Biblio VT
Jake Steiner, homem rude e brusco, deixa cair o garfo no prato.
- Mas que merda é esta? - pergunta.
- São fettucini primavera, pai - diz Sally. - Foi a Martha que fez a massa, e os legumes são fresquíssimos. Experimenta, vais gostar.
- Não vou experimentar, sei que não ia gostar. Que mal tem um bom peito de galinha e batatas cozidas?
- Sabes muito bem o que o médico te disse a esse respeito - diz a filha, apontando o polegar para o copo de uísque com água. - E isso também!
- Que se lixe o médico - resmunga Jake. - Há mais bêbados velhos do que médicos velhos.
Levanta-se da mesa, dirige-se ao aparador com tampo em mármore e tira um charuto da caixa. Morde a ponta do charuto e cospe os restos para dentro de um cinzeiro de cristal.
- Como qualquer coisa mais logo - explica. - Tenho de sair.
- Já sei - diz Sally. - Vais ao Ozone Park. Dia de pagamento. Malditos bandidos!
- Cuidado com o que dizes! - avisa o pai em tom agreste. - Porta-te como uma senhora! Não te quero ouvir a falar dessa maneira.
A rapariga acaba os fettucirri e fita o pai quando este acende um fósforo de cozinha raspando-o na placa de mármore, para depois chegar a chama à ponta do charuto.
- Tenho de mandar vir estes fósforos da Florida - protesta ele. - Já não se conseguem encontrar fósforos de raspar em nenhum sítio. Não acreditas? - Solta uma baforada
com ar importante, rodando o charuto por entre os lábios grossos. - O que é que vais fazer esta noite?
- Vou lá acima sentar-me um bocado com a mãe, para que a Martha possa jantar e fazer umas limpezas.
- E depois?
- Estou a pensar ir a Nova Iorque, a um cinema. Há um filme novo do Woody Allen.
- Tretas! - replica o pai. - Vais é ver o maricas do teu irmão. Bom, não lhe dês cumprimentos meus.
- Podes crer que ele consegue viver sem isso - responde Sally.
Fitam-se nos olhos, mas por fim Jake abre a porta de correr envidraçada e sai para o terraço para acabar de fumar o charuto, levando consigo o copo de uísque.
Sally sobe ao primeiro andar e entra no quarto da mãe. Martha está a dar de comer à inválida. As mãos e pernas de Rebecca Steiner estão tão tolhidas com artrite reumatóide que a mulher não consegue nem andar nem segurar numa colher.
- O jantar estava bom, mãe? - pergunta Sally.
- Uma delícia! - diz Becky, com um sorriso alegre.- Aposto que o teu pai nem sequer o provou.
- Não aposto que perdia logo. Martha, porque é que não desces para jantar? Eu fico aqui com a mãe durante um bocado.
A velha negra diz que sim com um aceno de cabeça.
- Ainda há uma bela fatia de tarte de morango, Miz Steiner - diz ela para a mulher na cadeira de rodas.- Está mesmo como a senhora gosta.
Sally debruça-se sobre a mãe.
- E se for um bolo de queijo? - sugere.
- Bom, talvez um bocadinho não caia mal. Não gosto de desapontar a Martha... ela trabalha tanto!
- Oh, oh!-diz Sally. - Como se eu não te conhecesse! Vais comer a fatia inteira. Vá lá, abre a boca.
Dá o bolo de queijo a Rebecca e por fim segura a xícara de café junto à boca da mãe, para que ela o possa beber com uma palhinha.
- Vais sair hoje à noite? - pergunta Becky. - Hoje é sábado... talvez tenhas um encontro com um rapaz?
- Não mãe. Vou a Nova Iorque ver o Eddie.
- Que bom. Podes dizer-lhe que gosto muito dele.
- Claro. Não o faço sempre?
- Olha, Sally, prometes que vais ter cuidado em Nova Iorque?
- Sou sempre cuidadosa. Já sei tomar conta de mim, mãe, sabes isso perfeitamente.
Vêem o noticiário da noite na televisão e ficam um bocado a conversar sobre uma tia que já vai no terceiro marido e foi vista há pouco tempo com um rapagão no Havai.
Rebecca Steiner mostra-se chocada, mas Sally diz-lhe:
- Acho muito bem que se divirta... tem dinheiro para isso e muito mais.
Martha sobre com o tricô, e senta-se ao lado da Sr.a Steiner para um serão televisivo. Às onze da noite Rebecca será posta na cama e Martha retirar-se-á para o seu quarto, onde costuma ler a Bíblia antes de adormecer.
- O pai ainda está lá em baixo? - pergunta Sally.
- Ainda - diz Martha. - Para cá e para lá, sempre a praguejar.
- Claro. Poderia ser de outra maneira?
Desce e dá com o pai a vestir o blusão de couro, com um charuto novo enfiado entre os dentes.
- Como é que ela está? - pergunta ele.
- Porque é que não vais lá acima de vez em quando, para veres com os teus próprios olhos? - replica Sally em tom zangado.
- Não sou capaz - resmunga o pai. - Vejo-a naquele estado e então lembro-me...
- Sim, deixa estar. Ela está na mesma. Não há nenhuma alteração.
- Está frio lá fora, Sal. Não te esqueças de levar um casaco.
- Está descansado, pai.
- Queres boleia?
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- Não, vou no meu carro.
- Tens a pistola?
- Está no porta-luvas.
- Se tiveres problemas, não hesites em servir-te dela.
- Claro. Papá, tem cuidado com aqueles trastes.
- Olha, quando eu não for capaz de lidar com miúdos daqueles, então é porque estou pronto para o Monte Zion.
De súbito, inesperadamente, ele aproxima-se e toca-lhe na face com as pontas dos dedos.
- A vida é formidável se nunca deres parte de fraca - comenta ele, fitando-a nos olhos.
- Vou sobrevivendo - responde Sally Steiner.
- Vê-se - diz o pai. - Até amanhã, miúda. Não aceites moedas falsas.
Sally fica a vê-lo da janela até o pai se afastar no Cadillac Eldorado negro. Depois veste um casaco de lã comprido que é capaz de ter custado o salário de uma semana
numa daquelas boutiques italianas da Avenida Madison, e vai tirar o Mazda fíX-7 prateado da garagem, que é enorme, com espaço para três carros. Abre o porta-luvas,
para se certificar de que lá está a pistola, e arranca em direcção a Manhattan.
Jake Steiner atravessa Smithtown e dirige-se a Ozone Park. Estaciona em frente a um edifício estreito de fachada em tijoleira, com as janelas pintadas de negro.
Por cima da porta de entrada há um pequeno letreiro: CLUBE SOCIAL E DE PESCA DE MIAMI.
Jake sai do Cadillac descansado quanto ao destino dos tampões das rodas. Não há roubos naquela rua, assim como não se vêem pedintes, lixo ou graffiti. Os chuis só lá devem passar uma vez por semana, mas os habitantes do bairro sabem tomar conta de si mesmos.
Na sala da frente estão vários velhos caquéticos a jogar às cartas e a beber vinho tinto. Não olham para cima quando a porta se abre, mas o mastodonte por detrás do balcão do bar fita Steiner dos pés à cabeça, aproveitando para encher um copo com uísque, um pouco de água e nada de gelo. Jake saca de um espesso rolo de notas, tira uma de vinte e estende-lha.
- Para a tua obra social favorita - esclarece.
- Certo - diz o barman, apontando com o queixo para a sala das traseiras.
Steiner pega no copo e atravessa uma entrada tapada
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por uma cortina de fiadas de contas de vidro, a maior parte rachadas ou escurecidas. Lá dentro há uma mesa redonda de madeira rodeada por seis cadeiras, com ar de poder cair ao primeiro assopro. O tampo tem uma enorme mancha acastanhada no centro: pode ser vinho entornado ou sangue derramado; Jake não sabe distinguir e não está para perguntar.
À mesa sentam-se dois homens: Vic Angelo e o seu adjunto e motorista, Mario Corsini. Entre os dois está uma garrafa de Chivas Regai, e os copos enormes estão cheios até à borda. Só Vic se levanta quando Steiner entra, abrindo os braços de par em par.
- Seu bastardo judeu! - exclama, sorridente.
- Olá, filho da mãe - corresponde Jake.
Abraçam-se, desviando cuidadosamente as cabeças para
não esmagarem os charutos. São parecidos: baixos, fortes de peito e ombros, barrigudos, carnes moles, unhas tratadas e anéis vistosos.
- Viva, Mario! - diz Jake.
Corsini responde com um aceno.
- Como é que vai a família? - pergunta Angelo, puxando de uma cadeira para Jake se sentar.
- Vai bem. E a tua?
- Na mesma, graças a Deus. Portanto aqui estamos nós mais uma vez... já lá vai um mês. Até nem dá para acreditar!
- Pois é - diz Steiner, bebendo um golo de uísque.- Nem d"á para acreditar.
Tira um sobrescrito branco do bolso de dentro do blusão e fá-lo deslizar sobre o tampo na direcção de Angelo.
- Os meus impostos - explica.
Vic sorri e passa o sobrescrito a Corsini.
- Nem preciso de contar - diz, satisfeito. - Confio em ti. Há quanto tempo é que somos bons amigos, Jake?
- Há demasiado - responde Steiner, fazendo com que Mario Corsini se remexa nervoso na cadeira.
- Pois é. Bom, temos um pequeno negócio a discutir - diz Angelo, bebendo o seu scotch com gestos delicados.
- É como se diz, há boas e más notícias. Vou dar-te as más primeiro: vamos aumentar a tua contribuição em duas das grandes por mês.
Steiner esmurra o tampo da mesa, fazendo-a abanar; as bebidas entornam-se.
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- Mais duas por mês? - exclama. - Que raio de merda é esta?
- Tem calma - diz Vic Angelo em tom apaziguador.- Toda a gente em Manhattan e Brooklyn vai passar a pagar mais uma das grandes.
- E eu apanho com duas? Já sei, é por ser um dos teus grandes amigos, não é?
- Não me venhas com essa - diz Vic, virando-se para o adjunto. - Este tipo ferve em pouca água, não achas, Mario?
- Acho-concorda Corsini.
O adjunto é um homem esguio, com um tom de pele mais amarelado do que cor de azeitona.
- Nem sequer me deste a oportunidade de te dar as boas novas - diz Angelo a Steiner. - Vamos dar-te um novo território, a sul do teu depósito. Desde a Décima Primeira Avenida até à Rua Vinte e Três.
- Ah sim? - pergunta Jake, desconfiado. - O que é que aconteceu ao Pitzak?
- Reformou-se - diz Vic.
- Para onde é que foi? Para o de Forest Lawn?
- Não gosto de piadas dessas - diz Corsini. - É falta de respeito.
- Tanto se me dá que gostes ou não - replica Steiner, emborcando o resto do uísque. - Portanto a minha tarifa sobe duas Gs, e fico com a Décima Primeira Avenida até à Rua Vinte e Três. Certo?
- E com todo o lixo que conseguires comer - acrescenta Corsini.
- Escuta uma coisa, rapazinho - diz Jake. - O lixo de uns é o tesouro de outros. Estás a beber Chivas Regai... é daí que ele vem, do meu lixo.
- Eh, eh! - interrompe Angelo. - Vamos lá a portar-nos como cavalheiros. Começas na segunda, Jake. Consegues ter mão em tudo?
- Sou capaz de precisar de mais um ou dois camiões. Primeiro preciso de ver se há muita coisa.
- Se precisares de mais camiões - diz Vic -, não compres novos. Podemos oferecer-te um bom preço com a frota do Pitzak.
- Oh, oh!-d"iz Steiner. - Então é assim, não é?
- É assim mesmo - replica Corsini. - Se quiseres o distrito do Pitzak, tens de ficar com os camiões dele. E quem os vende somos nós.
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- Sempre gostei de espertinhos como vocês - diz Jake.
- São mais retorcidos que uma cobra...
- Se estiveres teso não nos importamos de te fazer um empréstimo por conta dos camiões - continua Angelo.
- Com juros baixos, claro.
- Obrigado por nada - replica Steiner com amargura. Não era capaz de tocar nos vossos empréstimos nem com a ponta da picha. Eu cá me arranjo.
- Ah!, só mais uma coisa - diz Vic. - Queremos que admitas um novo funcionário. Veio do velho continente há seis meses, e está perfeitamente legítimo; tem todos os papéis, tudo certinho. Vais ver que vai dar um bom carregador. É novo, simpático, forte como um touro e muito trabalhador.
- Achas? - diz Jake. - Sabe falar inglês?
- Tão bem como tu e eu - garante Angelo.
- E o sindicato?
- Já está tudo tratado - diz Vic. - Não há qualquer problema.
- Se vou ficar com a organização do Pitzak, para que preciso de um homem novo? - quer saber Steiner.
- Porque ele é meu primo - informa Mario Corsini. Acabam as bebidas, e Jake levanta-se.
- Foi um serão muito agradável - diz para os outros.
- Podem crer que gostei muito.
Acena-lhes e afasta-se em direcção à porta, deixando o copo vazio e o toco mastigado do charuto em cima da mesa.
- Não confio neste sacana - diz Mario, servindo nova rodada de scotch. - Não nos tem o mínimo respeito.
- Também tem os seus problemas - diz Vic. - Uma mulher entrevada, um filho maricas... e a filha, essa ninguém sabe como é que é. Já viste a casa para onde ele tem de voltar todos os dias?
- Só que às vezes não volta para casa - diz Corsini.
- Vai para Brooklyn, tem uma miúda na Park Slope. Comprou-lhe um apartamento e tudo.
Angelo olha para ele, espantado.
- A sério? Como é que descobriste?
- Gosto de saber com quem é que lidamos. Nunca se sabe se uma informação dessas nos poderá ser útil...
- É nova?
- Claro. E bonita. O tipo vai lá três ou quatro vezes por semana, umas à tarde e outras à noite.
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- O velho lambão! - exclama Vic, admirado. - Nunca me passaria pela cabeça... será que a mulher sabe?
- Quem deve saber é a espertinha da filha - diz Corsini.- Não a consigo compreender, é impossível saber-se o que vai naquela cabecinha.
Manhattan surge do lado de lá da ponte. Uma cidade brutal e apinhada onde o civismo é língua estrangeira, onde os nativos falam aos gritos. Sally Steiner ama-a; é o seu ambiente preferido. Gosta daquela gente rude e boçal - a hostilidade também é um modo de se estar na vida. Quem falar baixinho pode dizer adeus à vida.
Deixou de frequentar a Barnard ao fim de dois anos. Aquelas mulheres... nada tinha em comum com elas; nunca tinham sido feridas. Eram todas Bendel e Bermudas. O que é que sabiam da sua cidade, daquele antro perigoso e traiçoeiro tão cheio de vida? Flutuavam enquanto Sally andava com os pés bem assentes no chão, considerando-se feliz por o poder fazer.
O irmão dela vive em Hell"s Kitchen, numa rua nojenta e estreita à espera do camartelo. Eddie trabalha no último andar de um prédio de cinco sem elevador. A fachada original, de tijoleira vermelha, está agora adornada com fiapos de tinta cinzenta a cair aos bocados, e os lambrins de pedra, rachados, ameaçam ruir a qualquer momento.
O apartamento é espaçoso mas desproporcionado, mobilado com os restos de vários despejos. O pé direito, contudo, é alto, e no topo surge uma clarabóia. Há espaço de sobra para os cavaletes, bancos, tintas, paletas e pincéis. As paredes brancas dão para pendurar todos os trabalhos não vendidos; uma explosão furiosa de cor.
O irmão herdou a beleza da mãe e o corpo do pai; cabeça de cisne em cima de um corpo taurino. Quando abraça Sally, a rapariga nota que o bigode loiro e encaracolado cheira a alho.
- Esparguete outra vez? - pergunta ela. - Com azeite?
- É verdade - responde ele com um sorriso travesso.
- Não me posso queixar; nós comemos fettucini. A mãe manda-te um beijo, mas o papá não quer saber de ti.
Eddie acena com a cabeça;
- Como é que está o velho?
- Terrível. Fuma e bebe que nem um cavalo. Nem sei
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porque é que anda a pagar àquele médico de luxo da Park Avenue, nunca faz o que lhe mandam.
- Ainda tem aquela miúda em Brooklyn?
- Oh, claro que tem! Não o posso censurar por isso, não achas?
- Não, não acho - diz Eddie Steiner. - Nunca aprovarei uma coisa dessas.
Sentam-se lado a lado num sofá delapidado, com uma das pernas partidas assente em cima da lista telefónica. Eddie serve-lhes dois copos de uma zurrapa que pretente imitar o chianti.
- Como é que vai a vida, miúdo? - pergunta Sally.
-"Vai bem - diz ele. - Há uma galeria em East Village
que quer fazer uma exposição minha.
- Eh, mas isso é formidável!
Ele abana a cabeça.
- Ainda não. Não estou pronto, tenho de trabalhar mais uns tempos.
Sally percorre com o olhar as paredes recobertas de quadros, detendo-se numa tela meio pintada presa ao cavalete.
- Os teus trabalhos estão a ficar mais brilhantes, não estão?
- Ah!, reparaste nisso? Pois é - diz ele, rindo-se.- Estou a sair do meu período azul, e já não quero nada com as merdas abstractas. Sinto-me mais representativo. O que é que achas daquela cabeça? A pequenina, ali em cima.
- Jesus! - exclama Sally.- Mas quem é ela?
- Uma pedinte. Convenci-a a vir posar. Fiz uns esboços rápidos a carvão, dei-lhe uns dólares e depois passei ao óleo. Gosto dele.
- Eu também, Eddie.
- Nesse caso podes levá-lo. É teu.
- Não, não era capaz de uma coisa dessas. Vende-o. Prova ao papá que és um génio.
- Estou-me nas tintas para a opinião do velho. Falei com a mãe aqui há uns dias, e ela pareceu-me tão alegre como sempre.
- Sim, nunca a ouvi queixar-se. Onde é que está o Paul?
- A trabalhar como barman numa tasca da Oitava Avenida. É só um biscato, mas serve para nos arranjar umas coisas, incluindo o vinho que estás a beber.
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- O Paul é amoroso - diz Sally.
O irmão sorri.
- Sim, também acho. Olha lá, ando há muito tempo com vontade de te pedir uma coisa...
- Diz lá.
- Gostava de te pintar. Um nu. és capaz dè posar para mim?
- Um nu? Mas para quê? Já me viste em fato de banho, sabes muito bem o género de corpo que tenho! Meu Deus, Eddie, sei que não valho nada.
- Tens um corpo forte - diz-lhe ele. - Uma boa musculatura, e pernas soberbas.
- E nada de mamas.
- Não quero pintar nada de espampanante. Imagino-te sentada no tamborete, inclinada para a frente... determinada, agressiva. Contra um fundo vermelho e redemoi-nhante pintado com espátula. Então, o que me dizes a isso?
- Primeiro tenho d"e pensar, está bem? Nunca me viste nua...
- É claro que vi - replica ele, alegre. - Quando tinhas cinco anos e eu sete. Estavas a tomar banho, e eu espreitei através do buraco da fechadura.
-"Atrevido! - grita ela, empurrando-o pelo ombro.- Bom, desde então fiquei com uns quilitos a mais.
- E miolos, também - diz ele, inclinando-se para a beijar na face. - É bom ver-te de novo, doçura, mas não sei porquê pareces-me em baixo. Problemas?
- É sempre o mesmo, com a mãe e o pai. E tu.
- Eu? - pergunta ele, divertido. - Eu cá não sou nenhum problema.
- E eu também - continua ela. - Eu sou mais um problema a juntar aos outros... sei que não ando a fazer aquilo que gostava de fazer.
- Já sei, ficar rica.
- Claro-replica ela, desafiando-o. - É só isso que interessa, não te parece?
- Acho que sim - responde ele com um suspiro. - O objectivo final.
- Acredita no que te digo, rapaz. Vejo tanta malta a nadar em dinheiro... como aqueles bandidos a quem o papá foi pagar esta noite. Tenho mais miolos do que eles todos juntos, mas é essa gente que se aproveita do nosso suor. Achas bem?
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- A vida é injusta - replica ele, sorrindo e servindo mais vinho.
- Só se a deixarem ser injusta. Eu cá não sou dessas. Vou começar a atirar-me como os outros... só me falta uma oportunidade.
O irmão fita os quadros pendurados nas paredes.
- A vida não é só ganãoncia, Sally.
- Quem é que disse? - responde ela. - O sexo está morto, o dinheiro é o sexo da nossa era.
Ele não replica. Ficam os dois sentados em silêncio, satisfeitos por estarem juntos.
- És uma cabeça de alho chocho - acaba ela por dizer.
- Eu sei - diz ele. - Mas um alho chocho satisfeito. Tu vives satisfeita, Sal?
-"Satisfeita? Estar satisfeito é o mesmo que estar morto. Se deixares de trepar, começas a escorregar e só páras na cova.
- Eh, eh!-protesta ele. - Deixa para lá os maus augúrios!
Sally acaba de beber o vinho, levanta-se, esgravata na mala d"e mão. Tira várias notas e enfia-as na mão do irmão.
- Tens aí uns duzentos - diz ela. - Para comprares tintas e esparguete. E vê lá se cortas o cabelo.
- Sally, eu não...
- Vai-te lixar - interrompe ela em tom seco.-Não são meus, vou abatê-los das despesas miúdas do escritório. O papá não é capaz de descobrir a falta.
- Tens a certeza?
- Absoluta.
Antes dela sair, o irmão beija-a de novo.
- Vais pensar em posar para mim?
- Vou. A sério.
- Gosto muito de ti, Sal.
- Eu também gosto de ti. Juizinho, e dá cumprimentos meus ao Paul. Descansa que vou apitando.
Volta a Smithtown pouco antes da meia-noite. Sobe ao primeiro piso e abre devagarinho a porta do quarto da mãe. A luz de vela está acesa, e Becky ressona pesadamente. Sally volta para baixo e vai para o pequeno escritório. Os livros da contabilidade e do IRS (1) são guardados num cofre do escritório da Steiner Waste Control, na
(1) IRS - Internal revcnua Service, Serviços Fiscais dos EUA. (N. do T.)
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Décima Primeira Avenida de Manhattan; os livros verde-deiros são mantidos em casa, num pequeno cofre disfarçado de mesa de bebidas.
Sally passa a meia hora seguinte às voltas com os números, servindo-se de uma calculadora de bolso sem memória. Os lucros são superiores aos da semana correspondente do ano anterior, mas não são suficientes. O imposto pago aos abutres pelos direitos de recolha do lixo é um rombo imparável. Que mais queres? Processa a Câmara Municipal.
A seguir folheia o último número da Barrorís para ver como vão as suas acções. Uma ligeira subida. Jake deixa a cargo da filha todos os investimentos. "Não me quero preocupar com essa merda." Não sabe distinguir uma acção de uma obrigação, mas a última linha não lhe escapa. Todos os meses. O comentário é sempre o mesmo: um "nada mau" ou um furioso "mas tu estás a tentar levar-me à falência?".
Sally afasta os papéis aglomerados sobre o enorme tampo forrado a couro e marcado por inúmeras queimadelas dos charutos do pai. Deixa-se ficar sentada, pensativa, roendo a pele dura em volta da unha do polegar.
A firma não vai nada mal - mas está longe de ser sensacional. Muita gente consideraria os Steiner como gente rica, mas a verdade é que não são ricos a sério - o que é o mais importante. Não que não se esforcem; vontade não lhes falta. Porém, aquilo a que Sally chama a Grande Oportunidade ainda não surgiu no horizonte. A única coisa que pode fazer é comprar uns milhares de acções desta companhia, uns milhares de outra, e talvez assim ganhe uns míseros dólares. Formidável.
A verdade é que conseguiu adquirir algumas acções de qualidade e, pelo menos no papel, a carteira dos Steiner está a conseguir um rendimento anual próximo dos dez por cento. Hurra! Faria muito melhor se aplicasse o dinheiro tudo em cupões do Tesouro. Mas isso tem alguma piada? Nunca foi às corridas ou a Las Vegas; as acções são a sua roda da fortuna. Sabe perfeitamente que jogar na Bolsa é arriscado, mas é sempre o mesmo, basta tentar uma vez para nunca mais se lhe perder o gosto.
Mais tarde, nua em cima da cama, as mãos cruzadas atrás da cabeça, tenta concentrar-se na Grande Oportunidade e no modo como poderá ser agarrada. No entanto,
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só consegue pensar em Eddie e no pedido do irmão para que vá posar nua.
Foi a melhor coisa que lhe aconteceu nos últimos anos.
Judy Bering, a secretária-recepcionista, abre a porta do gabinete de Sally e enfia a cabeça lá para dentro.
- Está um tipo ali fora - anuncia. - Diz que foi contratado e que o mandaram apresentar-se ao trabalho hoje de manhã.
- Sim, já sei - responde Sally. - O meu pai disse-me para contar com ele. Como é que se chama?
- Anthony Ricci.
- Claro-diz Sally. - Era de esperar. Como é que ele é?
Judy rola os olhos para cima.
- Um rebuçado.
Ricci entra, um verdadeiro Adónis, de boné na mão e ostentando um sorriso que consegue iluminar o escritório desconchavado.
- Bom dia, Míss - cumprimenta. - Sou o Anthony Ricci, e venho trabalhar aqui como carregador.
- Já sei - responde Sally. - Chamo-me Sally Steiner, e sou a filha do patrão. Sente-se, fume se quiser. Traz os papéis todos?
- Oh, claro! Tenho-os aqui mesmo.
Mete a mão no bolso do blusão e estende os documentos a Sally, que os folheia quase sem ver.
- Parece-me estar tudo em ordem - diz ela. - Já cá vive há seis meses?
- Talvez sete - responde o rapaz.- Não quero voltar para a terra.
- O seu inglês é muito bom...
- Muito obrigado. Estudei bastante.
- Ainda bem - diz Sally. - Sabe qual é o trabalho de um carregador? Tem de levantar latas de lixo muito pesadas e despejá-las na parte de trás de um camião. Acha que consegue?
Novo sorriso de alta intensidade. Ricci levanta os braços e mostra os bíceps flectidos.
- Sou capaz - garante, seguro de si.
- Hum-hum!-comenta Sally. - Tivemos três hérnias no ano passado... acho que as pessoas o tratam- por Tony?
- Isso mesmo. Tony.
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- Bom, Tony, o patrão não está neste momento, anda a inspeccionar um novo território que acabámos de ocupar. Não deve demorar, mas entretanto vou-lhe mostrar os cantos da casa. Venha daí.
Assim que saem a porta, ele volta a mostrar as favocas brilhantes e pergunta-lhe:
- É casada?
- Tem alguma coisa a ver com isso? - replica Sally em tom seco.
Mostra-lhe o depósito: trituradoras, plataformas de descarga, compactores, garagem e oficinas, chuveiros e vestiário. Deixa-o entregue ao velho Ed Fogleman, que ficou com uma perna presa numa trituradora mas se recusa a abandonar o serviço. Jake Steiner dá-lhe emprego como uma espécie de encarregado das instalações, e sente-se feliz por o ter ao serviço.
Sally volta para o escritório, tira uma chávena de café
- a terceira do dia - da máquina ligada no cubículo de Judy Bering, e volta a atarefar-se com a papelada.
É vice-presidente e encarregada dos movimentos da Steiner Waste Control. Dirige, fiscaliza, contrata, despede, louva, admoesta, amaldiçoa e, ocasionalmente, conforta uma equipa de homens duros - motoristas e carredagores - que ganham a vida com os músculos e muito suor. Esforçam-se todos ao máximo (Sally faz com que assim seja) e vivem a vida dos duros.
Sally, porém, faz mais do que escalar os camiões do lixo: dirige o escritório, mantém o contabilista debaixo de olho, solicita e revê propostas de aquisição de novo equipamento, negoceia contratos com antigos e novos clientes. Encarrega-se dos contactos com o sindicato e aprova todos os relatórios e formulários a enviar à cidade, ao Estado e ao Governo Federal, incluindo os que dizem respeito ao meio ambiente.
Um encargo e pêras. Stress. Tensão. Trabalhadores casmurros. Mas lá se vai aguentando. É uma mulher a abrir caminho num mundo de homens, num mundo de subornados e subornadores, de patifes, de escroques, de damas sorridentes com facas nas ligas. Sally Steiner adora-o porque freme de vida, exsuda uma vitalidade que a mantém alerta e a toda a pressão.
Por volta do meio-dia e meia, atravessa a correr a Décima Primeira Avenida e compra uma sandes de pas-trami com queijo suíço, acompanhada por chá gelado, no
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Stardust Dinner. Ela e Mabel, a empregada, trocam comentários jocosos sobre um cozinheiro grego maluco que outro dia atirou um hamburger tão alto que o deixou pregado ao tecto de zinco.
Volta ao depósito da Steiner. Está a entrar um camião carregado, conduzido por Terry Mulloy, homenzarrão de rosto afogueado e cabelo ruivo. Sentado no banco do lado vem o seu carregador, um negro chamado Leroy Hamilton, tão grande que poderia servir de placador nos Rams. Qualquer dos homens gosta da pinga, e num dia quente é aconselhável mantermo-nos a favor d"o vento caso os vejamos por perto.
- Eh, Sally!-grita Terry, acenando com a mão livre.
- Como é que vais?
- Sobrevivo - responde ela, aproximando-se do camião de recolha. - E vocês, como é que vai isso?
- Formidável - diz Leroy. - Hoje trazemos lixo de primeira. Conheces aquele restaurante da Trinta e Oito? Apanhei restos suficientes para alimentar o meu doberman durante uma semana!
- Tretas!-diz Sally. - Vocês os doiss vão é ter um bom grelhado esta noite, seus cretinos!
Os dois homens riem-se alto e bom som.
- Eh, miúda - diz Terry-, quando é que nós os dois nos decidimos? Uma noite na cidade, talvez um espectáculo... um jantar dos antigos. Tudo o que puderes comer.
- Não, obrigado - responde Sally. - Não gosto das coisas pequeninas.
Acena-lhes com a mão e afasta-se.
- Não digas mal enquanto não experimentares! - grita Terry Mulloy nas costas dela.
Volta para o gabinete com um sorriso nos lábios. Aquele tipo não é dos que desistem. Mas tudo bem: é capaz de o aguentar. Além disso aquele desafio rude agrada-lhe sobre maneira.
Entretém-se com o planeamento da semana seguinte, atribuindo motoristas e carregadores aos vários camiões da frota da Steiner. Há já dois anos que tenta convencer o pai a informatizar o negócio, mas Jake mostra-se renitente. Não é por falta de fundos: o pai não quer é entregar o controlo a simples máquinas; precisa de ver aqueles bocados de papel com números e nomes de cima a baixo.
Ao fim da tarde, o pai entra a coxear no gabinete de Sally e deixa-se cair no sofá ao lado da secretária.
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- Caramba, Jake! - protesta a filha. - Cheiras como uma destilaria. Hoje foste mais longe do que o normal...
- Tive de me encontrar com imensa gente.
Tira o chapéu, revelando a careca coberta de suor. Para Abril estivera um dia quente, e o pai parecia profundamente cansado.
- Queres beber alguma coisa? - pergunta ela, ansiosa.
- Um café? Uma Coca-Cola gelada?
- Ná, estou mais que bem. Só preciso de descansar um bocadinho.
- Pareces mais a ira de Deus...
- É como vês, ando numa roda-viva desde o princípio da manhã. Alguma novidade por aqui?
- Nada de especial. Apresentou-se o novo empregado, chama-se Tony Ricci.
- Já calculava - diz Jake. - É primo do Mario Corsini. Já te tinha dito isso?
- Já, pai, já me tinhas dito.
- Como é que ele é?
- Um rapaz com muito bom aspecto. Inexperiente... mas não faz mal.
- Espera até o veres a levantar caixotes de cinquenta quilos durante uma semana... fica a saber do ofício num instante. Achas que o consegues aguentar?
- Claro, pai. Nenhum problema. Mas conta lá, o que é que pensas do novo território?
- Nada mau - diz Jake, tirando o lenço do bolso para limpar a cara antes de se endireitar no sofá. - O Pitzak estava bem equipado: três compactores Loadmaster com poucos anos... o resto está velho mas ainda funciona. O encarregado dele é um cretino; não sabe distinguir o cu do cotovelo. Vais ter de ser tu a tratar das escalas.
--Okay, pai, não é nada que me assuste. E os clientes?
- A maior parte são industriais, graças a Deus. Alguns restaurantes, cafés, dois prédios de apartamentos. A maior parte do lixo é limpo. Restos de madeira, aparas metálicas e coisas do género. Há uma fábrica de tintas e um laboratório químico que nos podem dar alguns problemas, os restos vão ter de ser descarregados em Nova Jérsia. Ah!, e duas ou três tipografias. É só papel, não é por aí que o gato vai às filhoses. Até podemos empacotá-lo e vendê-lo.
- Que género de tipografias?
- Uma faz revistas, catálogos e brochuras, a outra
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trabalha com material da Wall Street: relatórios anuais, documentos, prospectos, enfim, essa tralha toda.
- Ah sim? -diz Sally Steiner. - Interessante...
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Nos fins de Maio, Timothy Cone despacha um caso extremamente aborrecido. Cone é investigador da Haldering & Co., uma firma da John Street que fornece "nformações
financeiras" a grandes empresas e clientes individuais.
No início de Maio, uma sociedade de capital de risco contratara a Haldering para investigar uma coisa chamada Ozam Biotechnology, Inc. A Ozam publicitava-se nos
meios de comunicação com enormes anúncios: NOVIDADE! As acções da Ozam estavam disponíveis a dez dólares cada.
Os departamentos legal e contabilístico da Haldering & Co. não descobriram registos da Ozam em lado nenhum. Aparentemente, não tinha contas bancárias, não estava licenciada pelo Estado de Nova Iorque, e a Securities and Exchanje Comission nunca ouvira falar da organização.
Timothy Cone meteu braços ao caso, e pouco depois descobriu que havia mais alguém a fazer a mesma coisa: um detective da SEC e uma mulher do gabinete do Procurador Distrital de Manhattan.
Os três acabaram por descobrir que a Ozam, pura e simplesmente, não existia: era um cambalacho concebido por um figurão chamado Porfirio Le Blanc. Nunca se conseguiu determinar a quantia exacta com que o homem se locupletara, mas deve ter sido grande porque o escroque foge da firma e voa em primeira classe até à Bolívia.
Ninguém está interessado em tentar extraditar o bandido; pô-lo fora do país é quanto basta. Deste modo, os Serviços de Imigração e Naturalização são informados de que devem colocar o Senor Le Blanc na "lista de procurado", e Timothy Cone regressa ao seu gabinete minúsculo para escrever o relatório devido.
Quando o atira para cima da secretária de Samantha Whatley, chefe dos cinco investigadores da Haldterig & Co., encosta-se à ombreira da porta enquanto ela o lê.
- É pena não teres aprendido a gramática - comenta ela, sacudindo a cabeça de admiração. - Inacreditável! Um
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tipo põe anúncios nos jornais e as pessoas mandam-lhe dinheiro. Fan-tás-ti-co.
- Já não é a primeira vez - diz Cone, encolhendo os ombros. - Aqui há uns anos apareceu um tipo no Midwest que pôs uma data de anúncios nos jornais. O texto dos
anúncios só dizia o seguinte: "Última oportunidade de mandar o seu dólar"; seguia-se um número de Caixa Postal em Chicago. Tudo correu bem até que a gente dos Correios
o apanhou.
- O Barnum tinha razão - diz Sam.- Bom, tens aqui um novo caso para ti.
Estende-lhe uma pasta-arquivo, e Cone dá um passo em frente para a apanhar.
- O que é desta vez? - pergunta. - Um tipo a tentar vender a Ponte de Brooklyn?
- Não, este é dos pesados. O cliente é a Pistol & Burns. Conheces?
- Quem, os banqueiros de investimento? Claro que conheço. Muito antigos, muito conservadores. Qual é o problema?
- Acham que podem ter uma fuga de informações no Departamento de Fusões e Aquisições.
- Oh, oh! Mais um escândalo de negociatas internas?
- Pode ser - diz Samantha.- Tim, trata-se de um novo cliente com mucho dinero. Por amor de Deus, será que desta vez és capaz de te vestir decentemente e falar como um cavalheiro?
- Mas não sou sempre assim?
Ela fita-o nos olhos.
- Rua!
De regresso ao gabinete, abre um maço novo Camel (o segundo do dia) e acende um cigarro. Estaciona as botas de atanado cardadas no tampo da secretária desconjuntada e começa a folhear o processo da Pistol & Burns.
É uma triste história de ganãoncia desenfreada - e nada fora do vulgar. Nos últimos doze meses, a P&B tem estado a engendrar a compra de uma pequena firma com cadeia nacional de distribuição e fabrico de bolinhos caseiros e diários, compra essa efectuada em nome de um dos grandes conglomerados do sector alimentar. O negócio é como um casamento realizado no céu ou, como dizem em Wall Street, prenhe de sinergismo.
Como é habitual, as damas e cavalheiros do Departamento
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de Fusões e Aquisições da Pistol & Burns trabalham em condições de secretismo que fariam corar de inveja a CIA - para que rumores da compra prevista não
surjam desatempadamente. Mas é isso mesmo o que acontece. Os computadores da Securities and Exchange Comis-sion recolhem provas de fortes transacções na companhia
dos bolinhos, isto na semana anterior à da assinatura dos documentos da aquisição e do anúncio público do acordo. As acções dos bolinhos sobem quase dez pontos.
É assim que a SEC lança uma investigação para tentar descobrir de onde vem a fuga. Descobre-se que um yuppie do Departamento de Seguros e Hipotecas da Pistol & Burns, que nada tem a ver com as fusões e aquisições e é suposto nada saber do assunto, é companheiro de copos de outro yuppie da secção F&A. Como se isso não bastasse, ambos consomem coca e compartilham a mesma pequena que lhes fornece o pó e dança nua numa espelunca da Rua Trinta e Oito Leste chamada Aristotle"s Dream.
A sujeira é total. Os dois yuppies da Pistol & Burns confessam os seus pecados e admitem ter feito mais de um quarto de milhão em acções e obrigações da corporação dós bolinhos, um mês antes da aquisição pelo conglomerado. Pior ainda, venderam as informações a
- mediadores e advogados que trabalham para outros banqueiros de investimento.
Esta clique de conhecedores, todos licenciados em administração ou advogados, ganha rios de dinheiro até a SEC lhes cair em cima - altura em que todos vomitam" os
lucros, pagam as multas respectivas e são expulsos por três anos dos negócios da Bolsa de Valores. Os dois delatores originais da Pistol & Burns apanham ainda um
ano dle choça cada um, o que quer dizer que estarão na rua quatro ou cinco meses depois. Não há registos do destino dado à dançarina do Aristotle"s Dream.
O escândalo constitui profundo embaraço para a Pistol & Burns, uma das poucas sociedades de investimentos ainda a trabalharem na Street. Os sócios originais, Leo-nard K. Pistol e G. Watson Burns, há muito que não se contam entre os vivos, mas os actuais sócios tentam preservar a rígida probidade e os elevados princípios dos dois fundadores, cujos retratos a óleo os contemplam do alto da sala de jantar dos executivos, estragando-lhes o apetite.
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A Pistol & Burns, contudo, tenta salvar a face e coopera o melhor possível com investigadores e promotores da SEC e do gabinete do Procurador Distrital. A P&B também nomeia um dos sócios principais, o Sr. G. Fergus Twiggs, como Chefe da Segurança Interna. Este institui uma série de reformas destinadas a garantir que tamanha fuga
de informações nunca mais ensombrará uma tão venerada e respeitada instituição.
(O que de certo modo não deixa de divertir os estudiosos da história da comunidade financeira da nação. Com efeito, Leonard K. Pistol tinha uma amante muito jovem,
e G. Watson Burns bebia uma garrafa de brande por dia; uma vez teve de ser dissuadido de fazer uma oferta em dinheiro para adquirir o Governo dos EUA.)
Timothy Cone, divertido com a leitura, faz uma pausa para acender outro cigarro e telefonar à pastelaria da esquina a encomendar um hamburger, batatas fritas, pão
e duas Heinekens geladas. Come o almoço enquanto acaba de ler o relatório preliminar fornecido pelo cliente.
Depois de ter passado por aquilo a que na Wall Street se chama agora o Grande Golpe dos Bolinhos, e depois de ter reforçado as suas preocupações de segurança interna,
à Pistol & Burns depara-se uma nova desgraça implicando fugas internas.
A firma está a dar os últimos retoques à aquisição amistosa dle uma corporação que faz roupas de criança, incluindo fraldas com a etiqueta de um figurinista conceituadíssimo e pequenos fatos-macacos às riscas como os antigamente usados pelos dançarinos de revista. Os compradores são um grupo formado pelos principais dirigentes da companhia, e a transacção inclui a emissão de um pacote de obrigações.
Tudo é mantido em grande segredo, e o número de pessoas com acesso à informação é reduzido ao mínimo. Contudo, durante as duas últimas semanas, o volume de transacções na Bolsa relativo à Wee Tot Fashions, Inc.
- normalmente minúsculo- quase quadruplicou, e as acções subiram cinco dólares. Um investigadbr da SEC já se passeia nos corredores forrados de madeira da Pistol & Burns, tentando descobrir a fonte dá fuga de informações.
"Não podemos tolerar a continuação desta situação", conclui firmemente o Sr. G. Fergus Twiggs.
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Timothy Cone liga para o número indicado no papel timbrado do cliente.
- Pistol & Burns - responde uma voz feminina, rápida e eficiente.
- Desejava falar com o Sr. Twiggs.
- Posso perguntar quem fala?
- Pode - diz Cone em tom alegre.
Uma longa pausa.
- Quem é que fala, por favor?
- Timothy Cone. Sou investigador da Haldering & Companhia.
Após uma espera de quase um minuto, a ligação é estabelecida. Twiggs tem uma voz profunda e trovejante. Cone julga distinguir-lhe um travo de rum envelhecidb em cascos dle carvalho, mas isso não quer dizer nada, até é capaz de ser o modo como todos os velhos banqueiros de investimento falam. Não há meio de saber, Cone não joga críquete.
A conversa é breve. G. Fergus Twiggs concorda em reunir-se com Cone às 10 da manhã do dia seguinte, para discutirem esta
"lamentável e desastrosa situação"".
- Hum-hum!- diz Cone. - Okay, estarei no seu gabinete amanhã de manhã às dez. Quem é o investigador da SEC?
- Chama-se Jeremy Bigelow. Conhece-o?
- Conheço - diz Cone.- É o Jerry. Trabalhei com ele num caso no princípio deste mês. É bom.
- Parece-me muito novo... - diz Twiggs, soltando um suspiro. - Mas na minha idade todos me parecem mais novos
do que eu.
Cone sorri. O tipo quase que parece humano.
Ao entardecer, o céu está forrado e cinzento; quando sai para a John Street, a caminho de casa - mora ao fundto d"a BroadWay-, Cone pode sentir o paladar do ar com
a ponta d"a língua. Nada agradável. Pára num mini-mercado do bairro para comprar uma embalagem grande de esparguete com molho de carne, uma garrafa de bor-gonha tinto Gallo Hearty e uma salsicha kielbasa para Cleo, o seu gato castrado, que come de tudo, incluindo baratas, cabeças de peixe e ossos de galinha.
Cone descobre entristecido que a porta de entrada do seu prédio comercial foi forçada de novo - é uma ocorrência praticamente semanal. Como já passa das seis da
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tarde, o velho elevador de gaiola está desligado, por isso tem de subir os seis lances de escadas em ferro até ao seu apartamento.
Cleo está à espera dele, esfregando-se nos tornozelos do dono no meio de miados piedosos, que desaparecem mal Cone lhe dá a salsicha. O gato pega no seu tesouro e leva-o para baixo da banheira - um modelo antigo, daqueles com pés a imitar garras de felino-, onde o fica a roer todo contente enquanto o detective da Wall Street prepara um vodea com água. Ao mesmo tempo vai aquecendo o esparguete numa frigideira amolgada, e por fim põe o prato e talheres em cima da secretária, que também serve de mesa de refeições. Os pratos, facas e garfos são todos diferentes, restos de antigos serviços de origem misteriosa, e os copos são boiões de compota vazios.
Samantha Whatley aparece pouco depois dias sete, trazendo consigo uma embalagem de legumes e salada, bem como duas tartes de morango para a sobremesa e uma pequena fatia de halvah para Cleo.
Uma hora depois já estão com os pés em cima da mesa pejada de restos, bebendo café misturado com um brande italiano dos baratos. Decidem deixar as tartes para mais
tarde, mas Cleo recebe o seu halvah com um miado de contentamento.
- Belo jantar - diz Cone.
- Nem por isso - responde Sam. - Porque é que com-pras esparguete enlatado?
- Não era enlatado - explica ele. - Vinha numa embalagem de plástico.
- Tanto faz. É assim tão difícil comprares um bocado de massa, cozê-la em casa e juntar o molho?
- Oh, oh! - diz ele, começando a ferver. - Agora tanrv bém tenho de ser um chefe de cozinha, não é? Merda! Ou comes do que há ou trazes a tua comida. Estamos esclarecidos? Bom. Passas a noite cá?
- Metade da noite - diz ela. - Talvez fique até à rneia-noite.
- Okay - diz ele em tom mais calmo. - Depois meto-te num táxi.
- És o meu herói. Falaste com a Pistol & Burns?
- Falei. Vou encontrar-me com o G. Fergus Twiggs amanhã às dez. Vou chegar atrasado ao escritório.
- Grande novidade!-Sam olha para o colchão estendido
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no chão, que desta vez tem lençóis lavados. - Sinto-me excitada...
- Grande novidade! - diz ele.
Timothy Cone é um homem alto e esgrouviado que nunca aprendeu a escanhoar-se devidamente; Samantha Whatley é uma mulher alta e magra com o corpo de um modelo e os músculos de uma equilibrista de circo. Ele é mais alto mas está sempre de costas arqueadas, como um falcão a olhar para baixo; ela tem as feições marcadas por um
queixo pontiagudo e olhos azuis-esverdeados. O cabelo dele, cortado rente, é cor de gengibre; o dela, comprido e ruivo, costuma estar enrolado em fiadas compactas. O nariz dele parece a lâmina de um machado, as orelhas são de abano, e a pele é pálida e cheia de sardas. As costas dela são duras e elegantes; a pele é morena, e o corpo musculoso esconde curvas secretas e sombras quentes. Ele é desengonçado, com o ar de um fazendeiro gasto pelo tempo: tendões tensos, músculos poderosos.
Nada têm em comum excepto...
Nus em cima do colchão estendido no chão, preparam-se para nova luta. Não é um combate clássico, é como os da guerra de guerrilha, em que não há vencedores nem vencidos. Nenhum deles se renderá, assaltando-se mutuamente no meio de gritos e gemidos, ambos à espera do fim do mundo. Consideram a capitulação vergonhosa, e as suas paixões alimentam-se do orgulho.
Reconhecem alguns destes aspectos; o seu relacionamento é um xadrez sexual que tem inevitavelmente de acabar num empate. Mesmo assim, o suor e os gemidos constituem prazer suficiente para aqueles dois seres introvertidos que prefeririam cortar os pulsos a admitirem a sua vulnerabilidade.
Pouco depois da meia-noite, Cone acompanha-a à rua e manda parar um táxi vazio.
- Porta-te bem - diz ela à guisa de despedida.
- Claro-responde Cone. - Tu também.
Volta para o sótão desolado, come as duas tartes de morango e fica a pensar no raio de vida que leva.
Os escritórios da Pistol & Burns, Banqueiros de Investimento, na Wall Street, parecem-se vagamente com um elegante mas gélido clube de cavalheiros. Os pés afundam-se até aos tornozelos nas carpetas, os empregados arrdam nas pontas dos pés, comunicam entre si por meio
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de sussurros. Até o toque dos telefones foi reduzido a um delicado tinir. A atmosfera exsuda uma riqueza de décadas, e Timothy Cone sente-se impressionado - não pela primeira vez - com a confortável serenidade que a avareza consegue criar.
Só o fazem esperar dez minutos, que aguenta com estoicismo, e por fim é introduzido no gabinete privado de G. Fergus Twiggs, Chefe da Segurança Interna da P&B. A sala, tão grande como o sótão de Cone, não foge ao luxo do resto das instalações. No chão, porém, pode ver-se um enorme tapete persa muito gasto, e as paredtes amparam aguarelas emolduradas de iates a todo o pano, a maior parte com os balões envergados.
G. Fergus Twiggs é um homem extraordinário: baixo, rotundo, afogueado e com um sorriso e maneiras tão suaves que o detective da Wall Street consegui imaginá-lo com uma caneca de cerveja numa das mãos e um cachimbo de barro na outra.
Veste fato completo de flanela cinzenta de uma tal suavidade que bem poderia ter sido tecido com os fios de teias de aranha anglo-saxónicas e protestantes. Os olhos, de um azul-pálido, nada têm de suave: nem sequer pestanejam. São os olhos frios e basilescos de um banqueiro de investimento.
- Muito obrigado por ter vindo - diz Twiggs em tom afável quando apertam as mãos, fazendo Cone sentar-se num sofá de couro ao lado da secretária mastodôntica.
- Não preciso dizer-lhe o quão desagradável se tornou este assunto; a firma inteira está a ser afectada por ele.
- Olhe, Sr. Twiggs - diz Cone-, pouco posso fazer quanto ao acordo da Wee Tot Fashions. O gato já saiu do saco... a única coisa que vos resta ó aguentar o barco o melhor que puderem.
- Compreendo perfeitamente, mas o problema agora é evitarmos que um caso desses se repita de novo.
- Impossível - diz Cone. - A não ser que consiga descobrir um processo de acabar com a ganãoncia dós homens... e duvido que alguém seja capaz. Olhe, como é que define
uma fuga interna de informações?
- Definir? - pergunta Twiggs, fitando-o com curiosidade.
- É simples, trata-se do aproveitamento ilegal de informações confidenciais sobre actividades financeiras planeadas ou em curso para se conseguir um lucro pessoal.
- Pois é, parece tudo muito claro, mas a coisa não
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é assim tão simples. Nunca se conseguiu definir com precisão a fuga de informações, mesmo no caso do Supremo Tribunal. Deixe-me dar-lhe um exemplo. Suponha que um
dos seus funcionários trabalha durante dias até tarde num negócio de milhões; a mulher fica furiosa porque ele chega sempre atrasado para o jantar. Assim, para explicar
os atrasos, ele diz-lhe que anda muito atarefado com a compra da Corporação ABC pela Corporação XYZ. A mulher conta o caso à cabeleireira, que por sua vez o menciona a outra cliente; esta acaba por contar ao marido. O marido fala no assunto a um amigo que é vendedor de automóveis, e este não perde tempo e vai comprar acções da Corporação ABC, acabando por ganhar umas massas. Quem é o culpado? O banqueiro de investimento original nada ganhou com a fuga de informações; limitou-se a falar de mais. O tipo que obteve o lucro (o vendtedor de automóveis) limitou-se a apostar numa dica sobre cotações da Bolsa. Não sabia do que se passava. Como é que consegue evitar este género de situações?
- Sim, estou a ver o que quer dizer-diz Twiggs lentamente.
- Além disso - prossegue Cone-, a fuga sobre o negócio da Wee Tot Fashions pode não ter surgido na sua firma. Os mediadores têm biliões de formas de cheirar um negócio em preparação logo desde as fases iniciais. Ouvem um boato, uma simples sugestão de que a firma XYZ vai comprar a ABC, e começam a trabalhar a sério. A primeira coisa a fazer é localizar o paradeiro do presidente, do administrador principal e dos executivos de ambas as corporações. Vão ao ponto de verificar as descolagens,
aterragens e planos de voo dos jactos privados das corporações. São capazes de subornar secretárias, porteiros, pilotos, motoristas, mulheres da limpeza, guardas
da segurança... toda e qualquer pessoa que os possa informar sobre quem se encontrou com quem ou qual a natureza dos assuntos discutidos. O conhecimento antecipado
dos negócios em perspectiva implica muito dinheiro em jogo, e esse tipo de gente quer sempre ganhar a sua fatia do bolo. Mas será que podemos chamar a isso fugas
internas? Não me parece. A coisa não passa dè uma investigação arguta feita por tipos que querem tomar parta na acção.
- Suponho que tem toda a razão - diz o homenzinho,
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esfregando a testa com ar preocupado. - Deprimente, não acha? É inacreditável como há pessoas que chegam a esse ponto para conseguir um lucro. Nos velhos tempos não havia nada disso.
- Talvez sim, talvez não - diz Cone. - Nos velhos tempos eram muito poucas as pessoas conhecedoras dos negócios em preparação (os interessados e uns poucos de advogados), de modo que era relativamente fácil descobrir o malandro se houvesse uma fuga ou alguém conseguisse um lucro pessoal e ilegal. Agora, porém, qualquer negócio volumoso implica centenas de pessoas com conhecimento de causa: executivos das firmas e respectivo pessoal, executivos dos bancos de investimento e respectivo pessoal,
advogados e respectivo pessoal, contabilistas e respectivo pessoal. Depois há as secretárias, telefonistas e paquetes... qualquer pessoa dentro destas centenas pode
originar a fuga ou conseguir uns milhares sujos.
-Quem diria... - diz Twiggs com um suspiro. - Portanto o senhor acha que é impossível deter as fugas internas?
- Claro que é - diz Cone em tom divertido. - Enquanto o gosto das pessoas pelo dinheiro se sobrepuser à ética, à moral ou ao raio que lhe queira chamar.
- Suponho que penas mais pesadas podiam dar resultado.
- Acha? - pergunta Cone. - Já ouviu falar no -golpe do desliga?
- Golpe do desliga? Mas que diabo é isso?
- Um mediador ouve dizer que a Corporação ABC pode vir a ser comprada pela Corporação XYZ; o mediador tem um amigo na firma de advogados que trata dos assuntos
da ABC. Telefona ao amigo e diz-lhe: "Constou-me que a XYZ fez uma oferta para comprar a ABC. Se o boato for verdadeiro, não digas nada. Eu fico em linha. Se ficares
calado e desligares ao fim de dez segundos, sei o que hei-de fazer e tu receberás a tua
parte."" Os dez segundos passam-se em silêncio, o advogado desliga e o mediador
vai comprar acções da ABC. Quem é que pode ser processado? O advogado, sabedor do caso, não abriu a boca e pode jurá-lo em tribunal. Como é que pode ser acusado?
Há centenas de golpes como este. Quando o senhor me fala em punições mais
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pesadas para as fugas de informação, tem de compreender o quão difícil é conseguir-se uma condenação.
G. Fergus Twiggs brinda-o com um sorriso atravessado.
- Está a tentar fugir a este trabalho, Sr. Cone?
- Nada disso, só queria que o senhor compreendesse os problemas que teremos de enfrentar. Além disso gostava de saber o que é que o senhor espera que a Hal-dering
& Companhia faça a esse respeito.
O banqueiro tira um elegante cachimbo da gaveta de cima da secretária. Espreita para dentro do fornilho, roda-o e esfrega-o suavemente entre o nariz volumoso e a
maçã do rosto, inspeccionando-o enquanto a gordura natural da pele vai polindo a madeira rugosa.
- A chefia dá segurança interna da Pistol & Burns não é tarefa que eu tenha procurado ou desejado - diz ele em tom sério. - Não tenho a mínima experiência nesse
campo tão desagradável. Suponho que me escolheram para o cargo porque (e sei que vai ser difícil o senhor acreditar) sou o mais novo dos sócios maioritários. Seja
como for, aquilo que eu gostaria que o senhor fizesse era passar o tempo que julgar necessário nos nossos escritórios, verificando e revendo todas as medidas de segurança que pus em vigor. Faça todas as críticas que entender, dê-me as sugestões que julgar mais apropriadas para que a fuga de informações na Pistol & Burns, já que não pode ser evitada, se torne o mais difícil possível.
- Sim, posso fazer como me pede - diz Cone. - Desde que compreenda que não posso tornar este sítio completamente estanque. Ninguém pode. Vou analisar o seu esquema como se fosse um empregado decidido a ganhar uns cobres ilegais através do aproveitamento da divulgação de informações secretas. Não deve ser muito difícil, para criticar tenho muito jeito.
O Sr. Twiggs sorri de novo e levanta-se.
- Acho que é o homem certo para este trabalho. Quando é que tenciona começar?
- Acha bem amanhã? Se não se importar, gostava que passasse palavra aos guardas e secretárias sobre as minhas deambulações, assegurando-lhes desde já que não tenciono revistar as malinhas das mulheres nem surripiar nenhuma máquina de escrever.
- Será como quer. Precisa de mais alguma coisa?
- Não me parece, muito obrigado. Não mee importava
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de começar hoje mesmo, mas primeiro quero comparar aquilo que sei com os dados recolhidos pelo Jeremy Bige-low, o investigador da SEC. Talvez ele já saiba alguma
coisa sobre a fuga de informações no caso da Wee Tot Fashions.
Cone volta a pé para a John Street. O dia está quente e primaveril, mas o vento sopra com demasiada força, de modo que Cone nem consegue suar debaixo do blusão verde-azeitona
e do boné de couro negro. Sobe a Broadway a matutar sobre a entrevista dessa manhã, interrogando-se sobre a possibilidade do próprio Twiggs não estar a ganhar umas
massas rápidas e ilegais com os negócios da Pistol & Burns. O tipo parece o Pai Natal, mas pode ter um saco cheio de notas de proveniência duvidosa.
O detective da Wall Street pondera o valor por que ele, Cone, se deixaria vender. Meio milhão? Um milhão? Cinco milhões? Não vale a pena preocupar-se com isso; é como nos sonhos húmidos, ninguém lhe vai oferecer um bolo tão grande para o comprar. Além do mais, de que é que serve ser-se rico? Neste momento tem trabalho, um sítio para dormir, um gato maluco e dinheiro que baste para ir comprando cerveja e presunto. Até tem a Samantha... Enfim, faz de conta que a tem. Que mais poderia desejar um rapaz crescido?
De volta ao seu acanhado gabinete, tira o boné e o anoraque e atira-os para o chão - um qualquer ladrão de escritórios roubou-lhe o bengaleiro. Acende o quarto ou quinto cigarro do dia e senta-se à secretária para telefonar a Jeremy Bigelow, da Securities and Exchange Comission.
- Jerry?
- O próprio. Quem fala?
- Timothy Cone, da Haldering & Companhia.
- Olá, meu velho! Estava a pensar em telefonar-te. Ouvi dizer que ficaste com o processo da Pistol & Burns.
- As más notícias correm depressa. Olha, Jerry, foste tu que andaste à procura de uma possível fuga no negócio da Wee Tot Fashions, não foste?
-É verdade. - A voz de Bigelow ficou cautelosa.- Ando a trabalhar nisso. Tens alguma coisa para mim?
- Nada de nada, ou melhor, o que sei é igual a zero, mas mesmo assim gostava de te convidar para almoçar, sempre te posso espremer os miolos.
- Almoçar? Hoje?
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- Claro.
- E porque não? - diz o investigador da SEC. -Onde?
-Apetecia-me comer na rua. Não te importas?
Bigelow deixa escapar um suspiro.
- És o último dos grandes perdulários - comenta ele.
- Tudo bem, posso comer na rua. Vou ter contigo aí ao escritório. Podemos encontrar-nos à saída aí por volta do meio-dia e meia. Dá-te jeito?
- Impecável. Há uma banca nova perto da Trinity que serve cabrito assado picante. Alinhas?
- Isso dá direito a uma úlcera instantânea... mas alinho. Até já.
Encontram-se à porta dos escritórios da Haldering & Co. e seguem lentamente pela Broadway abaixo. O dia ensombrou-se, as nuvens encavalitadas não deixam ver o Sol.
O ar cheira a chuva, mas isso não impediu a habitual multidão da hora dò almoço de invadir os passeios de ambos os lados.
Manhattan é o maior bufete ao ar livre do mundo. No bairro financeiro, então, os carrinhos com guarda-sol, as carrinhas, camionetas e bancas de armar espalham-se
por tudo quanto é sítio. Não interessa se o tempo está bom ou mau: os vendedores de rua não têm mãos a medir, sonhando provavelmente com o dia em que conseguirão
montar a sua venda ambulante de tacos nas Four Seasons ou talvez mesmo obter a licença para abrir um restaurante.
O que é que lhe apetece comer? Falafel? Cabrito assado picarrte? Tacos? E que tal galinha frita com molho
jalapeno, pãezinhos com fatias de carne fria, salsichas
gigantes, giros, sandes de trinta centímetros, "hamburgers" de peru, piza, sopas frias e quentes, saladas de Acapulco, sandes de bife à Filadélfia, burritos, camarões
com parmesão, tortilhas, gelados Ben & Jerry, oreos recobertos de chocolate, café, chá, leite, colas, bolos, tartes, nozes, fruta fresca? Não lhe apetece nada? Olhe
que nem sequer é preciso dar gorjeta!
Cone e Jeremy Bigelow iniciam o seu almoço peri-patético. A primeira paragem é para uma sopa de alho francês com cogumelos; deitam fora as colheres de plástico e
bebem-na directamente das malgas em esferovite.
Depois vão experimentar o cabrito assado picante. Nada mau. Param numa venda chinesa para provarem porco grelhado espetado em caninhas de bambu, temperado com
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fatias de kiwi. Seguem-se duas latas de cola e gelados recobertos com uma camada de chocolate belga com mais de um centímetro.
Caminham enquanto comem, como todos os outros. Entretanto, no meio de mordidelas e golos de cola, vão falando de serviço.
- O que é que pensas do Twiggs? - pergunta Cone.
- Acho que é um tipo fixe - diz Bigelow. - Um cavalheiro dia velha escola, muito pouco habituado a lidar com a nova canalha. Queria submeter todos os empregados
da Pistol & Burns a um detector de mentiras. Tive cte lhe explicar que é facílimo enganar a máquina.
- Pois é - replica Cone. - É como a análise da urina por causa das drogas... há uma ou duas maneiras de fazeres trapaça mesmo com um observador a ver-te mijar
para o frasquinho de plástico.
- Por favor, agora não - pede o homem da SEC. - Não vês que estou a comer?
- Então como é que achas que surgiu a fuga da Wee Tot Fashions? Terá alguma coisa a ver com os mediadores?
- Acho que sim, e é o que vou escrever no meu relatório. Não acredito que haja gente da Pistol & Burns metida no caso... foi tudo uma questão de boatos e de um bom
trabalho por parte dos mediadores. Esses tipos são capazes de juntar dois e dois e ficar com vinte e dois... verificámos todas as compras e vendas de acções da
Wee Tot nas últimas semanas. As compras ao acaso não, claro, só vimos as de lotes grandes,
com mais de dez mil acções cada. A maior parte foi processada por corretores
onde os mediadores costumam aparecer. Procurei ligações pessoais com os funcionários da Pistol & Burns, mas não consegui nada. Houve um amador que fez uma compra
muito grande, uma mulher chamada Sally Steiner, que trabalha para uma empresa de recolha de lixo da Décima Primeira Avenida. Era impossível ela ter qualquer acesso
a informações confidenciais; joga na Bolsa para se divertir, e lá conseguiu acertar numa coisa em grande. Por outro lado, nada justifica o prosseguimento das investigações.
Qual é o teu interesse nisto, Tím? O que é que o Twiggs pretende da Haldering & Companhia?
- Só quer que eu verifique as medidas de segurança que ele tomou.
- Não me parece nada do outro mundo - diz Jeremy
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Bigelow.- A maior parte dessas sociedades de investimentos têm mais buracos que um queijo suíço. Podes lá entrar e roubar as cadernetas dos livros de cheques que
ninguém dá por nada, em especial se fores vestido como um MBA de Harvard.
O investigador da SEC é um fulano cheio de autoconfiança e com tamanha força de carácter que até é capaz de comer um amendoim salgado. Quando Cone o conheceu, Bigelow
entrou a matar, como se o facto de trabalhar para a Securities and Exchange Comission fosse o mesmo que ocupar um lugar importante no Vaticano. O detective da Wall Street vira-se forçado a amansá-lo, e pouco depois Jerry acalmou e assim conseguiram trabalhar juntos sem grandes problemas.
É um tipo alto que associa a altura à superioridade - mas isso é o menos; os camarões grandes são os que arranjam mais problemas. Cone admira-o porque o outro consegue beber martinis com gin. Cone adora os gin-martinis, mas não é capaz de os segurar, por isso prefere deixálos em paz - especialmente depois de um incidente há
alguns anos atrás em que acabou na cama com uma fulana anã de Hoboken, Nova Jérsia.
- Tenho de voltar para a minha tasca - diz Bigelow.
- Obrigado pelo almoço. Sou capaz de ficar a arrotar o resto do dia, mas soube-me bem. Da próxima vez que comermos na rua sou eu quem paga.
- Óptimo - responde Cone. - Olha lá, essa mulher que mencionaste a propósito das grandes compras da Wee Tot Fashions... como é que se chamava?
- Sally Steiner. Estás interessado?
- Falaste com ela?
- Claro que falei! - protesta Bigelow, ofendido. - É para isso que me pagam o meu ordenado de miséria.
É uma mulher de armas, que na prática dirige o negócio de recolha de lixo de que te falei. O dono é o pai. Disse-me que comprou acções da Wee Tot porque quer abandonar
o ramo do lixo e abrir uma loja de roupas de criança, e pensou que os relatórios anuais da Wee Tot poderiam ajudá-la a aprender os meandros do novo negócio. Acho
que faz sentido.
- Pois faz - diz Timothy Cone. - Muito prazer em ver-te de novo, Jerry. Dá os meus cumprimentos à tua mulher.
Bigelow fita-o nos olhos.
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- Como é que sabes que sou casado? Nunca te falei nisso!
- Não, nunca - diz Cone, encolhendo os ombros.- Acho que foi pressentimento. Tens um ar dé pessoa casada, e além disso vê-se um anel de pele mais clara no sítio onde costumas usar a aliança que tiras durante o dia, não vá dar-se o caso de topares com alguma coisa interessante...
Bigelow solta uma gargalhada.
- Maldito sherlock! Apanhaste-me com a boca na botija... é melhor ter cuidado contigo, és demasiado perigoso.
- Quem, eu? - protesta Cone com ar inocente. - Não, sou é bom observador. Obrigado, Jerry.
- Porquê?
- Pelas informações que me deste... a dâ Sally Steiner e as outras. Fico-te a dever um favor.
- Olha lá - diz o homem da SEC-, se descobrires mais qualquer coisa sobre a fuga da Wee Tot Fashions, és capaz de me avisar?
- Conta com isso-promete o detective da Wall Street.
- Não ando à caça de glória.
Apertam as mãos, e Cone fica a ver o outro a afastar-se no meio da multidão, a cabeça visível sobre todas as outras. Vira costas e encaminha-se para a Haldering & Co. Detém-se a meio caminho para comprar uma sandes, pois ainda se sente com fome.
3
Maio é um mês desgraçado para Sally Steiner. Vive numa selva e tem de responder a dobrar a todos os pontapés e golpes baixos que vai encaixando.
- Olha, Jake - diz para o pai-, esta tarde vou sair por umas horas, tenho uns clientes para ver.
- Ah sim? - pergunta ele, levantando os olhos do jornal. - Quem?
- Os novos que herdámos do Pitzak.
- Já fui falar com todos.
Ela suspira.
- Foste vê-los uma vez, pai. E depois? é a mim que eles telefonam quando têm queixas... quero saber com quem é que estou a lidar.
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- Faz como quiseres -diz ele, pondo de lado o charuto meio roído e pegando no copo de uísque com água,
- Sei que fazes sempre as coisas à tua maneira, por mais que eu diga o contrário, Porque é que me pedes licença?
- Não estava a pedir-responde ela, tão dura como o pai. - Estava só a informar-te.
Mas Sally só quer visitar um cliente: a Tipografia Bechtold, ao fundo da Décima Avenida. Planeou a entrevista e vestiu-se de propósito: vestido de gabardina preta,
camisola de gola alta, meias escuras, sapatos pesadões, nada de jóias. Uma pasta
de couro debaixo do braço. A imagem perfeita da executiva séria e determinada.
- O Sr. Frederick Bechtold, por favor - diz ela à recepcionista loira e curvilínea, entregando-lhe o cartão-de-visita.
- Da parte dá Steiner Waste Control.
A tipa estuda o cartão.
- Neste momento ele está na sala dás rotativas - informa ela. - Vou ver se a pode receber.
O dono só aparece passados uns cinco minutos. É um homem baixo e gordo, com um chapéu feito de papel dobrado e um avental borrado de tinta de impressão que não coosegue esconder uma pança tão dilatada que até parece ter e-ngolido uma jibóia ao almoço.
- Sally Steiner, hem? - diz ele, olhando para o cartão-de-visita. - Tem alguma coisa a ver com Steiner Waste Control?
- Sou filha do dono - apresenta-se ela em tom decidido. - Passei por aqui para ver se está satisfeito com os nossos serviços, Sr. Bechtold. Tem alguma razão de queixa? Podemos melhorar alguma coisa?
O homem fita-a espantado.
- Oito anos com Pitzak, e nunca tive o prazer de o ver por aqui! Não, cara menina, não tenho queixas nenhumas. Vocês vêm duas vezes por semana e nunca falharam. O meu contrato com o Pitzak ainda é válido?
- Mas com certeza! - garante Sally. - Fazemos questão de manter os preços. Bela firma que o senhor aqui tem, Sr. Bechtold. Ouvi falar na sua reputação em matéria de impressões financeiras de alta qualidade...
- Não me diga? - responde ele com um meio sorriso.
- Sou o melhor. O melhor! Gostava de ver a sala dás impressoras?
- Muito.
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É uma caverna em que diversos ruídos portentosos saltam e ressaltam das quatro paredes. Há uma rotativa enorme, parada neste momento, e quatro impressoras mais pequenas
a trabalharem afanosamente, imprimindo e empilhando milhares de folhas. Sally fica surpreendida com o reduzido número de empregados - não mais que meia dúzia, todos
com aventais sujos de tinta e chapéus de papel. Dois indivíduos escrevem rapidamente em processadores de texto; um está a operar uma guilhotina, outro uma máquina
de encadernar. Um jovem negro empilha e arruma os trabalhos prontos em caixas de cartão.
- Esta é o orgulho da minha vida - diz-lhe Frederick Bechtold, afagando a grande rotativa. - Feita na Alemanha Ocidental. Alta velocidade, do melhor que há no mundo. Seis cores numa só passagem. Só usamos tintas de alto contraste, vindas da Suécia. Caras, mas as pessoas com quem lido só querem o melhor que há.
- Trabalha para grandes firmas dá Wall Street, Sr. Bech-told?
- Mas claro! - assevera ele. - Para essa gente tem de ser tudo assim.
- Relatórios anuais? - sugere Sally.
- Sim, a cores. A preto e branco faço brochuras, documentos, manuais de instruções, declarações de procuração... seja o que for. Sabem que podem contar com a Tipografia Bechtold. Dão-me prazos e eu cumpro-os. Nunca me atrasei. Nunca!
Sally abana a cabeça, admirada.
- Um trabalho interessantíssimo - diz ela. - Tive muito prazer em o conhecer, Sr. Bechtold. Se alguma vez tiver razões de queixa dos nossos serviços, basta telefonar-me que eu trato de tudo.
Volta para os escritórios da Steiner e mete mãos à obra. Primeiro, vai à procura do velho Ed Fogleman, o encarregado das instalações.
- Ed-começa Sally-, temos um novo cliente, a Tipografia Bechtold, na Décima Avenida. É limpo, a merda é quase toda constituída por papel. Passaremos a ir lá duas
vezes por semana. Há por aí algum lugar onde possamos guardar os caixotes durante um dia ou dois, antes de os embalarmos?
O velho olha para ela, confundido.
- Mas para que é que queres fazer isso, Sal?
Sally vem preparada para as perguntas.
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- forque fui ver o trabalho deles, e descobri que se servem de vários tipos de papel, desde o mais barato aos couchés. Até aqui temos estado a embalar tudo misturado,
mas penso que poderemos ganhar umas massas extra se Separarmos o bom do mau e vendermos as diferentes qualidades de restos a preços mais adequados.
- Sim, isso parece-me boa ideia - diz lentamente o ancião. - Mas quem é que vai fazer a separação? Parece-me um trabalho de tempo inteiro... e lá se vai o teu lucro extra.
- É por isso que quero que me guardes os caixotes da Bechtold - responde Sally com toda a paciência.- Para ver se vale a pena. Onde é que os posso guardar temporariamente?
Fogleman mastiga as pontas do bigode farfalhudo.
- Talvez no armazém -acaba por dizer. - Sou capaz dte arranjar um buraco. É contra os regulamentos
dos incêndios, guardamos lá materiais inflamáveis, mas se é
só por um dia ou dois, quem é que vai descobrir?
- Obrigado, Ed -disse Sally, agradecida. - Prometo que tiro de lá os contentores assim que puder.
Volta para o gabinete e espreita pela janela de cada vez que entra um camião; desata a correr quando vê chegar Terry Mulloy e Leroy Hamilton no seu enorme compactor
Loadmaster.
- Eh, malandros! - grita ela. O camião pára e Terry estica o pescoço para fora da janela.
- Olá, Sally!-cumprimenta ele com um sorriso. - Não me digas que decidiste não resistir mais à minha tasca irlandesa!
- Vai levar no cu, cretino - contrapõe ela. - Oiçam, vou refazer as escalas e tirar-vos a vocês os dois daquele laboratório químico da Rua Vinte e Quatro; passam
a ficar encarregados da Tipografia Bechtold, na Décima Avenida.
- Deus abençoe a mulher que te deu à luz - diz Leroy Hamilton. - Aquele laboratório cheira mal que tresanda! Entra-nos nos cabelos, na roupa... quase que podes lamber o cheiro.
- Eu sei - diz Sally. - Bom, agora ficam com a Bechtold. É mais limpo, não passa de papel. Recolhas às terças e quintas. Depois de carregarem o material, guardem-no
em caixotes separados e deixam-nos no armazém. O Ed Fogleman mostra-vos onde é.
- Mas para que diabo... - quer saber Mulloy,
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- Sabes o que é que a curiosidade fez ao gato. não sabes?
- De gatos não percebo nada - responde o irlandês.
- Eu cá percebo é de passarinhas...
Ela faz-lhe um sinal com o dedo do meio e afasta-se, seguida por um coro de assobios.
Na quinta-feira à noite, queixa-se ao pai e a Judy Bering de que tem de ficar a trabalhar até mais tarde por causa de um problema das compensações com dois ex-empregados.
Os dois só saem depois das sete, e pouco depois vê Ed Fogleman a coxear a caminho dfe casa. O depósito fica praticamente deserto; só o guarda-nocturno está à vista
no cubículo junto ao portão de entrada, a folhear os seus exemplares mais que gastos da Penthouse.
Vai ao armazém, acende as luzes e começa a esgravatar no meio dos caixotes de papéis trazidos da Bechtold. É quase tudo material a seis cores. Há alguém prestes a editar um volumoso relatório anual, e as folhas deitadas fora são provas preliminares comi as cores fora do sítio e a tinta preta demasiado forte ou fraca.
Não é o que ela procura, pelo que passa a examinar as provas a preto e branco: documentos, procurações, prospectos. Nada de interesse. Desiste e vai para casa; na manhã seguinte diz a Fogleman para esvaziar os contentores e empacotar o papel.
Na terça-feira seguinte é a mesma rotina, e os resultados são os mesmos. Começa a pensar que a sua ideia maluca, a sua Grande Oportunidade, é puro engano. Porém, na noite de quinta-feira descobre umas quantas provas bem interessantes com o timbre da Pistol & Burns. Ana-lisa-as ansiosamente: parece um plano para a compra amistosa da Wee Tot Fashions, Inc. Agarra em todas as páginas que pode e enfia-as na pasta de couro. Segue para Smithtown a cantar em coro com Linda Ronstadt, cuja voz sai
dO conjunto estereofónico do Mazda.
Sobe para passar um bocado com a mãe; quando Becky e Martha se preparam para iniciar o habitual serão televisivo, Sally desce as escadas a correr e enfia-se no escritório
da cave. Está tão excitada que nem consegue comer, mas sempre bebe uma Perrier antes de se debruçar sobre os documentos da Pistol & Burns recuperados do lixo da
Bechtold. Tem de os ler três vezes porque algumas partes saíram tremidas, e às tantas pega numa lupa para decifrar certas palavras e frases.
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Pouco depois pega na calculadora de bolso e faz várias estimativas rápidas; na manhã seguinte telefona ao seu oorretor e vende vários dos conjuntos da carteira da
Steiner, perdendo um pouco em relação ao valor de compra. Mesmo assim consegue acumular fundos suficientes para comprar 10 000 acções da Wee Tot Fashions, gastando para isso cerca de 48 000 dólares, incluindo a comissão. Com um bom palpite, o melhor é jogar tudo por tudo.
Uma semana mais tarde, depois de seguir ansiosamente o mercado, vende o lote completo da Wee Tor por cerca de 112 000 dólares, ficando tão orgulhosa e ao mesmo tempo descrente que não sabe se há-de rir ou chorar.
Na semana seguinte, está a beber um café com Judy Bering no gabinete junto à entrada, quando um homem muito alto, magro e bem
vestido entra e sorri para as duas.
- Queria falar com a Sally Steiner - diz ele.
- Sou eu. E o senhor, quem é?
Ele entrega-lhe um cartão-de-visita.
- Jeremy Bigelow, da Securities and Exchange Comis-sion.
Está sentada, nua, num banco de cozinha de três pernas, inclinada para a frente.
- Acho que estou a ficar com farpas no cu - queixa-se ela.
- Está calada - diz Eddie. - Tenta manter essa pose. Não te descontraias! Fica rígida, dura!
Ela é dura. O corpo tem uma graça rude, principalmente nos ombros e coxas pesadas. A cintura é fina, as coxas são pilares sobre tornozelos inesperadamente frágeis. Uma mulher musculada com pele de seda.
- QuandO é que o Paul volta? - pergunta ela.
O irmão solta um suspiro.
- Já te disse, ele toca antes de subir. Não fiques assim.
Continua a desenhar, servindo-se de um lápis mole sobre um papel granuloso. Trabalha rapidamente, delineando-lhe o corpo com traços rápidos, passando as páginas
do bloco ao tentar captar-lhe a solidez e agressividade da carne. Tinha razão: o corpo dela é fenomenal.
Passado um bocado, Sally esquece-se de que está a exibir-se para o irmão e começa a matutar nos motivos
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que a levaram ali. A verdade é que quer qualquer coisa dele - ou melhor, do seu amiguinho Paul Ramsey.
A visita do investigador da SEC alertou-a. O tipo queria saber por que razão tinha ela comprado 10 000 acções da Wee Tot Fashions. Ouvira falar em alguma coisa?
Alguém lhe tinha dito qualquer coisa? Conhecia alguém dentro da Wee Tot? E na Pistol & Burns? Porque é que tinha comprado repentinamente um grande lote daquelas acções em particular?
Não demorou muito a compreender que o tipo não devia nada à esperteza, e no passo seguinte enrolou-o. Sentia-se orgulhosa dessa vitória. Disse-lhe que queria sair do negócio da recolha de lixos, para abrir uma loja de roupas de criança. Comprara na Wee Tot para ter direito aos relatórios anuais da companhia, para poder aprender mais sobre aquele ramo de negócio. Para além disso possuía acções de várias outras firmas, jogava na Bolsa para ver se ganhava alguma coisa.
O homem fora-se embora aparentemente satisfeito, e Sally enfiara-se no gabinete. Por dentro estava encharcada em suor. E se aquele Jeremy Bigelow arranjasse um mandado
de busca às instalações da Steiner e descobrisse que um dos clientes era a Bechtold, tipografia que aceitara um trabalho confidencial da Pistol & Burns? E se ele
começasse a fazer perguntas indiscretas a Ed Fogleman, Terry Mulloy e Leroy Hamilton, ficando a saber que ela estava a pôr de lado o lixo recolhido na Bechtold?
Maldição!
Compreende que atacou da pior forma a sua Grande Oportunidade. Há demasiadas pessoas envolvidas, demasiadas testemunhas. Além disso comprou as acções em seu nome,
atirando-se logo a 10 000 delas. Idiota! O grande número de acções seria um alerta nítido para quem quer que andasse a investigar hipotéticas fugas de informação.
O telefone de Eddie toca. Três vezes.
- É o Paul - diz o irmão. - Deve chegar daqui a cerca dé dez minutos. Já te podes vestir, acho que consegui material bem bom. Só vou precisar de mais umas duas
sessões.
- Certo-diz ela. - Quando quiseres.
Surpreendida, descobre que já não tem preconceitos
quanto ao facto de posar nua para o irmão, e quando este a ajuda a descer do banco, toma o gesto por uma atitude fraternal e carinhosa. Quando Paul Ramsey entra,
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Sally está vestida e a beber um copo do horrível chianti deles.
Paul é alto, louro, com um eterno sorriso dbce e mais dentes do que seria necessário. Tem modos lânguidos e desprendidos, e Eddie diz que quando o mundo explodir, Paul será o único a murmurar: "Ah sim? Bestial!"
Sally já decidiu o que quer fazer. Não vai desistir das buscas no lixo da Tipografia Bechtold, mas se descobrir vestígios de outra compra ou fusão, não poderá investir em seu nome, nem no de ninguém relacionado com a Steiner Waste Control. É demasiado arriscado, e para além disso o número de acções a adquirir terá sempre de ser inferior a 10 000.
- Paul - diz ela -, tenho uma proposta a fazer-te.
- Lamento, mas as minhas noites estão todas ocupadas - responde ele com o seu sorriso seráfico.
Ela põe-no a par do que pretende. Indicar-lhe-á o nome de um corretor, onde abrirá conta comprando acções da AT&T. O dinheiro necessário será dado por ela. Depois disso, passará a comprar e a vender de acordo com as suas instruções.
- Pagarei todos os prejuízos - diz ela. - Tu recebes cinco por cento dos lucros. O que é que achas?
- Aceita, Paul - aconselha Eddie Steiner. - A minha irmã ,é uma espécie de génio das finanças...
- Okay - concorda Paul Ramsey com um encolher de ombros. - Porque não?
Sally já veio preparada. Estende-lhe um sobrescrito castanho com 2500 dólares em notas e o nome e número de telefone do corretor dela.
- Se alinhares, rapaz, ainda hás-de nadar em diamantes
- diz a Paul, beijando-o na face.
- Prefiro esmeraldas - contrapõe ele.
Sally regressa ao escritório, pelo caminho vai pensando na próxima jogada. Está a sair do parque de estacionamento quando vê Anthony Ricci. O rapaz veste calças de ganga muito justas e uma T-shirt do Stanley Kowalski. Tem um ar formidável.
Olá, Tony!-cumprimenta Sally. - Como é que vai isso? Gostas do trabalho?
- Não-responde o italiano com um sorriso de 100 watts. - Mas o dinheiro dá-me jeito.
- Não há dinheiro que não nos dê jeito - diz-lhe ela.
- E os caixotes... podes com eles?
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- Claro - diz ele. - Já fiz coisas piores. Talvez daqui a uns tempos consiga ser motorista... não achas?
- Porque não? Há sempre gente a entrar e a sair. Aguenta-te, miúdo.
Volta para o gabinete, põe os pés em cima da secretária e tenta descobrir um processo de chafurdar no lixo da Bechtold sem pôr em perigo a Steiner Waste Control. Sabe que não o pode fazer sozinha, precisa de intermediários, de dois cabeças de alho chocho que não se apercebam do que se está a passar. Espreita pela janela e vê Terry Mulloy e Leroy Jamilton a enfiar o camião junto à plataforma de descarga, para as recolhas da tarde.
- É isso mesmo!-exclama, respirando fundo.
Na manhã seguinte, durante o pequeno-almoço, Jake Steiner diz para a filha:
- É melhor levares o teu carro, vou estar fora a tarde toda, tenho várias coisas para fazer.
- Está bem, pai - diz ela. - Vou no meu.
Não olham um para o outro. Sally sabe quais são essas "coisas para fazer": o pai vai fornicar com a tipa de Broo-klyn.
Jake segue para o depósito no Cadillac e ela vai atrás no Mazda. Quando entra no gabinete, o pai já vai no seu segundo charuto e no terceiro café, ao qual juntou uma generosa dose de schnapps de uma garrafa que guarda na secretária.
- Andas a matar-te aos poucos, pai - diz ela.
- Não me chateies - resmunga ele sem levantar os olhos do Times.
Sally não pára de olhar pela janela, à espera do enorme Loadmaster tripulado por Mulloy e Hamilton. Por fim, pouco passa do meio-dia, vê-os a entrar. Sabe que os tipos estão no intervalo do almoço. Agarra na mala de mão e sai a correr, mas tem de esperar enquanto os dois se lavam no vestiário.
- Eh, seus vadios!-diz ela. - Querem um almoço de borla?
- Cáspite! - grita Leroy. - O Natal em Maio! O que é que se celebra, Sallyzinha?
- Quer mostrar que é simpática - diz Terry. - Bem te tinha dito que ela havia de alinhar...
- É um almoço de negócios, seu sacana - previne
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Sally. - Venham daí, acho que o Stardust serve perfeitamente.
Escolhe uma mesa no canto mais recuado do restaurante, e os três pedem o que querem a Mabel: três cheeseburgers, batatas fritas, salada de couve picada e cerveja.
- Algum de vocês consegue arranjar uma carrinha? Pode ser de caixa aberta - pergunta-lhes ela.
Os dois homens olham um para o outro.
- Para quê? - quer saber Mulloy.
- Um trabalho especial. Preciso de uma carrinha todas as terças e quintas. Quero que a carreguem com os contentores da Tipografia Bechtold e os levem até minha casa, em Smithtown, guardando-os na garagem. Na terça ou quinta seguinte, quando trouxerem os contentores novos, pegam nos outros e vão pô-los no depósito, para podermos embalar o papel. Percebido?
- Mas o que é que se passa? - pergunta Terry.
- O que se passa é que há cem extras por semana para cada um de vocês. Em dinheiro, nada de registos nos livros.
Os dois pensam durante um bocado, aproveitando para ir mastigando os hamburgers.
- Há um primo meu que tem uma carrinha Chevy a cair aos bocados - diz por fim Hamilton em voz arrastada.
- Talvez ma empreste às terças e quintas, mas isso vai-me custar pelo menos cinco dólares e um depósito cheio de cada vez.
- Eu pago-garante Sally prontamente. - O que for preciso. Vocês só têm de levar os contentores da Bechtold até Smithtown duas vezes por semana. Vou arranjar os
vossos horários desses dias de modo a terem tempo para a viagem de ida e volta. O melhor é um de vós ficar de guarda ao camião enquanto o outro vai à ilha na carrinha-
- Mas recebemos à mesma cem cada um? - pergunta Mulloy.
- Exacto. Por semana. Em dinheiro e nada de recibos.
- Não há problemas com os chuis? - quer saber Hamilton.
- Que problemas? - diz Sally. - Se vos fizerem perguntas, não sabem nada de nada; estão simplesmente a cumprir ordens do patrão.
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- Cá por mim estou de acordo - diz Mulloy, olhando para Hamilton.
- Eu alinho - confirma Leroy.
Sally volta ao escritório e começa a reajustar as escalas do pessoal. Aligeira os encargos de Mulloy e Hamilton às terças e quintas, para que um ou ambos tenham
tempo de ir a Smithtown e voltar a Manhattan. São quase três da tarde, e Jake já saiu há um bom bocado no seu Cadillac. Judy Bering entra no gabinete.
- Está uma mulher ao telefone - diz a rapariga. - Está a chorar, e parece-me histérica. É qualquer coisa a respeito do teu pai.
- Meu Deus! - exclama Sally, sabendo que não pode ser nada de bom. - Está bem, passa-me a linha.
Só ouve gemidos, soluços e um balbuciar incoerente, mas por fim julga perceber o que aconteceu.
- Como é que se chama? - pergunta em tom seco, interrompendo os uivos de desespero da outra.
- O quê? o quê?
- O seu nome! Como é que se chama?
- Dotty. Chamo-me Dotty.
- Dotty o quê?
- Hum!... Dotty Rosher.
- Muito bem, Dotty, oiça-me com atenção. Feche a porta à chave e vista-se. Vá para a sala de estar e dei-xe-se lá ficar. Não mexa em nada, não telefone a ninguém e não fale com ninguém. Vou já para aí para a ajudar. Para a ajudar, Dotty. Vou o mais depressa que puder. Dê-me a sua morada e número de telefone.
Toma uns rápidos apontamentos, desliga e consegue ter a presença de espírito suficiente para abrir o cofre da companhia, onde costumam guardar o dinheiro para as despesas miúdas - só que a quantia lá existente dificilmente se poderá considerar "miúda", pois ascende a quase cinco mil dólares em notas pequenas. Dão sempre jeito caso por ali apareçam inspectores dos incêndios, da canalização, da electricidade e do saneamento básico. Não é dinheiro para subornos, nada disso. Não passa de uma demonstração de boa vontade.
Sally tira do cofre uma mão-cheia de notas de vinte e de cinquenta, guarda-as na mala de mão e sai, a tristeza estampada no rosto.
- Eu ouvi tudo, Sal - diz Judy Bering, começando a chorar.- Lamento.
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- Está bem - é a única resposta de Sally Steiner.
Mete-se no Mazda e arranca com fúria. Porém, o trânsito da cidade está nos dias maus, e passa-se quase hora e meia antes que consiga chegar às imediações de Park Slope.
Dotty Rosher é uma coisinha pequenina e fofa; dificilmente resistiria em pé a uma boa rajada de vento. Tem uns olhos azuis enormes, cabelos loiros aos cachos, lábios iguais ao arco do Cupido e um par de pulmões que fazem Sally parecer-se com um rapaz. Está completamente vestida... se é que isso serve de alguma coisa.
- Onde é que ele está? - pergunta-lhe Sally com brusquidão.
- Consegui o seu número de telefone no cartão-de-visita dele. Estava na carteira, mas juro que não...
- Onde é que ele está? - grita Sally.
- No quarto de cama. Ele... ele foi-se, assim sem mais nem menos. Julguei que tinha desmaiado ou coisa no género, mas depois não fui capaz...
- Cala-me essa cloaca - diz-lhe Sally em tom selvagem.
Entra no quarto de cama. O corpo do pai, nu, jaz no
meio de lençóis cor-de-rosa amarrotados. Tem a boca aberta, os olhos fixam o tecto. Está morto e mais que morto. Sally sente repulsa ao olhar para a pele pálida
e para as veias varicosas. O pénis encolhido perde-se no meio de um emaranhado de pêlos grisalhos.
- Seu grandessíssimo filho da puta - diz Sally com amargura, dobrando-se para beijar a maçã do rosto já fria.
Volta para a sala de estar e explica a Dotty Rosher aquilo que tem de ser feito.
- Não posso. Não sou capaz!
- Ou fazes o que te digo ou saio imediatamente daqui e deixo-te sozinha com um cadáver - previne Sally em tom duro. - Depois podes explicar tudo aos chuis. É isso
que queres?
Assim, as duas vestem os restos mortais de Jake Steiner, lutando contra o peso do corpo enquanto lhe tentam enfiar as cuecas e camisola interior, a camisa desportiva,
as calças, casaco, meias e sapatos. Não se esquecem de atar os atacadores e de lhe fechar a braguilha. Tiram-no da cama e arrastam-no até à sala de estar, pendurado
pelos sovacos, os calcanhares a arrastarem pela alcatifa barata. Sentam o corpo num sofá, a cabeça pendente e os braços caídos ao lado do tronco.
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Dotty Rosher parece prestes a desmaiar. Os lábios mexem-se e as mãos começam a agarrar a garganta.
- É melhor tomares uma bebida. Das fortes - aconselha Sally.
- Sou capaz de tomar um Grasshopper - diz Dotty numa vozinha quase inaudível. - São deliciosos. Quer um?
- Não, obrigada. Vai lá beber o teu Grasshopper.
Sally vai ao quarto buscar o balão meio cheio de
conhaque do pai e pousa-o na borda da mesinha ao lado do sofá, empurrando-o de seguida para que o líquido se espalhe no tampo e comece a pingar para o chão. Inspecciona a cena e por fim atira o copo vazio para o chão. Agora parece autêntica: um homem com um historial de problemas cardíacos fulminado por um ataque enquanto bebia
o seu copo.
Dotty volta para a sala com o Grasshopper na mão, parecendo um bocadinho melhor. Sally explica-lhe a encenação, falando lenta e pausadamente:
- O meu pai era o dono deste apartamento, e você alugou-lho. Percebeu? Eu e ele viemos cá para receber a renda do mês que vem. Eu e ele viemos juntos. Não se esquece? Este pormenor é muito importante. Sentámo-nos todos na sala de estar, a conversar, e você ofereceu-nos bebidas. Eu não quis nada, mas o Jake aceitou um cálice de conhaque. Bebeu dois golos e de repente caiu para o lado. Tentámos reanimá-lo mas não serviu dfe nada. Percebeu tudo?
Dotty diz que sim com a cabeça.
- Deixe-se ficar calada - continua Sally. - Quem fala sou eu. Okay? Se se portar bem é capaz de receber uma boa maquia. Capisci?
- O quê?
- Compreendeu o que lhe disse?
- Oh, claro!
Sally telefona então para o 911 e explica que o pai morreu inesperadamente e, como já tinha tidb complicações cardíacas, pensa ter sido vítima de um ataque súbito.
Enquanto esperam pelos polícias e paramédicos, faz três chamadas. A primeira é para Judy Bering.
- Morreu - informa Sally. - Sou capaz de não aparecer por um dia ou dois, mas conto contigo para manteres as engrenagens em movimento.
- Sally, lamento sinceramente.
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- Eu sei, miúda, obrigado. Olha, se aparecer alguém a fazer perguntas, diz-lhes que não sabes de nada e manda-os ter comigo, Okay?
- Está descansada, Sal, eu sei quando devo ficar calada.
- Assim é que se fala. Eu aviso-te quando for o funeral, para o caso de tu e qualquer dos rapazes quererem aparecer.
- Vou fazer uma coleta. Para as flores.
- Sim, é uma ideia simpática.
A segunda chamada é para o médico pessoal de Jake. Explica-lhe que o pai caiu morto depois de beber meio copo de conhaque.
- Não me surpreende - responde o médico. - Eu preveni-o várias vezes, mas ele nunca me deu ouvidos. Lamento, Sally.
- Obrigada. Suponho que irão levar o corpo para a Medicina Legal, não é?
- É o procedimento habitual quando não há nenhum médiico presente no momento da morte.
- Conhece lá alguém? Quero dizer, gostava que libertassem o corpo assim que lhes fosse possível.
- Compreendo. Vou fazer tudo o que puder.
- Obrigada, doutor. Sabia que podia contar consigo.
Por fim liga para Eddie, conta-lhe a verdade sobre a
morte do pai e explica-lhe o que está a fazer para a disfarçar. O irmão começa a gemer baixinho.
- Eu sei, mano.
- Jesus!-diz Eddie.- Isso era o fim da mãe.
- Não - responde Sally. - A Becky é mais forte do que tu pensas. Eddie, podes vir a Smithtown? Gostava que lá estivesses quando a puser ao corrente. Apanha um táxi.
Tens dinheiro que chegue?
- Cá me arranjo. Vou para lá assim que puder.
- Se quiseres traz o Paul. Podem lá ficar durante os dias que quiserem, há espaço de sobra para vocês os dois.
- Sim, talvez o leve. Sal, estás bem?
- Vou sobrevivendo.
- Meu Deus!-desabafa ele. - Não era capaz de fazer o que tu fizeste. Não tinha tomates para isso.
- É claro que tinhas-replica ela.
A Polícia e os paramédicos chegam, e Jake Steiner é oficialmente declarado morto. Recolhem as declarações de
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Sally Steiner e Dotty Rosher. Enquanto um polícia uniformizado escrevinha no bloco de apontamentos, o agente encarregado da operação - um tipo enorme e corpulento,
à paisana - vai passeando pelo apartamento, de mãos nos bolsos. Parece assobiar em silêncio.
O corpo é finalmente removido numa maca, coberto com um lençol de borracha. O indivíduo à paisana faz um sinal a Sally, e os dois vão para a cozinha. O chui vasculha
no bolso do casaco e tira para fora um saco de plástico pequenino. Lá dentro está o coto mastigado de um charuto.
- Esqueceu-se disto - diz ele, fitando Sally com um olhar penetrante. - Estava no cinzeiro da mesinha-de-cabe-ceira.
Sally enfia a mão na malinha e tira duas notas de cinquenta dólares.
- Para a sua obra de caridade favorita.
- Obrigado - responde o homem, pegando no dinheiro e estendendo-lhe o saco de plástico. - Por favor aceite as minhas mais sinceras condolências.
Está na casa mortuária, procurando manter a compostura enquanto uma fila de velhos vai passando por ela e reafirmando as excepcionais qualidades do pai. São os companheiros
de cartas e de críquete dele. "Muito e muito obrigada", é a única coisa que consegue responder.
O porteiro uniformizado vem dizer-lhe que está lá fora um homem que lhe quer falar. Chama-se Mario Corsini.
- Jesus! - exclama Sally. - Tudo bem, diga-lhe que já lá vou.
Olha à sua volta. Tudo parece estar a correr normalmente. Eddie lá consegue aguentar-se, e a família alugou um carro funerário especial, de modo que Becky poderá
seguir nele para o cemitério sem ter de sair da cadeira de rodas. Paul também está presente, assim como Martha, e uns quantos parentes e vizinhos. Mais gente do
que Sally esperava. Dotty Rosher não apareceu. Got tsu danken!
O carro funerário está estacionado numa curva, seguido por uma longa fila de limusinas negras. Os motoristas juntaram-se e conversam no meio de estrepitosas gargalhadas.
O enorme e luxuoso Cadillac prateado está parado do outro lado da rua.
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- O Sr. Angelo gostava de falar consigo - diz Corsini.
- Agora? - replica Sally, indignada. - Não podiia esperar?
- Não demora nada - diz ele. - Achámos melhor não entrar.
- Tinha-os corrido a pontapé - diz ela, e está a ser sincera.
Atravessa a rua e entra para a parte de trás, sentando-se ao lado de Vic Angelo. Corsini senta-se ao volante mas vira-se para poder manter Sally debaixo de olho e ouvir o que vai ser dito.
- Por favor aceite as minhas condolências - começa Angelo.
- Obrigada.
- O seu pai e eu éramos amigos de longa data.
- Hum, hum!
- Mas agora ficamos com um problema de negócios. O depósito de lixo. Quem é que vai herdar?
- A minha mãe, o meu irmão e eu.
- E quem é que o vai gerir?
- Quem é que lhe parece? - responde Sally, zangada.
- Sou eu, claro! Na prática fui eu que geri aquilo durante os últimos dez anos!
- Não é negócio para uma mulher - diz Angelo, abanando a cabeça com ar pesaroso. - É demasiado violento. Estamos prontos para lhe fazer uma oferta deveras atraente.
- Vão-se lixar mais a vossa oferta - atalha Sally, enraivecida.- Vou continuar com o negócio, e vocês continuarão a receber a vossa comissão. O Jake morreu, mas o negócio pertence à minha família e é assim que vai continuar.
Mario Corsini sorri, ou pelo menos mostra os dentes grandes e amarelados.
- Não me parece - diz ele.
Sally fita os dois bandidos. Se tivesse consigo a pistola abatia-os aos dois naquele instante. Sabe perfeitamente o que serão capazes de fazer à Steiner Waste Control: problemas com o sindicato, problemas com os inspectores camarários, talvez bombas nos camiões de recolha se quiserem jogar duro. Não há nenhuma forma de o evitar. Pode ir ter com o Procurador Distrital e denunciar os pagamentos mensais... mas como é que o poderá provar?
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-Está bem - acaba por dizer. - Se quiserem focar com o negócio, sei que são capazes de o fazer. No entanto deixem-me preveni-los de uma coisa: estarão a deitar fora uma fortuna..
- O que é que quer dizer com isso? - diz Angelo.
- Algum de vocês já jogou na Bolsa? - pergunta Sally.
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- Vou vergar a mola - anuncia Timothy Cone.
- Vais o quê?- pergunta Samantha Whatley.
- Nunca vergaste a mola? É a mesma coisa que ires pelos ares com o teu próprio petardo.
- Oh, está mas é calado!-diz ela, aborrecida. - Vai trabalhar.
- Era isso que eu estava a tentar explicar-te - replica ele com toda a paciência. - Não venho ao escritório durante o resto da semana. Tenho de investigar a segurança
interna da Pistol & Burns e fazer sugestões para a melhorar.
- Então mãos à obra!
Cone sai do gabinete da chefe e desce a Broadway até à Wall Street. O dia está quente e
abafado, e ele sente-se feliz por ter deixado o impermeável em casa. Traz
vestido o velho fato de veludo e o chapéu de couro negro.
G. Fergus Twiggs deve ter dado as suas instruções, porque depois de se identificar, o detective da Wall Street não tem problemas para entrar na Pistol & Burns. Dei-cham-no
em paz enquanto se passeia pelos corredores, examina os gabinetes, mete o nariz em armários-arquivo e verifica as saídas de emergência, para ver se podem ser abertas do lado de fora.
Não sai das instalações durante a hora do almoço porque quer assistir à chegada dos directores
do serviço mais importantes, a ver se algum deles aparece com os
olhos brilhantes depois de um lauto almoço precedido por três martinis. Quanto a esse aspecto não tem a mínima sorte: todos os funcionários da P&B parecem sóbrios, trabalhadores e aborrecidos.
No fim do primeiro dia vai ter com o Sr. Twiggs.
- Olhe, vou escrever tudo no relatório final, mas há certas coisas que o senhor devia fazer desde já, e por
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isso achei melhor reunir-me consigo pessoalmente no fim de cada dia.
- A situação está assim tão mal? - pergunta o queru-bínico sócio maioritário.
- Não lhe chamaria desastre - tranquiliza-o Cone-, mas o senhor tem de aprender a tomar medidas defensivas. Não estou a dizer que deve transformar as instalações numa fortaleza, mas a verdade é que deveria tomar mais algumas precauções. Caso contrário arrisca-se a que um dia destes lhe entrem por aqui um par de bandidos e saiam calmamente com as jóias da família.
- Que género de precauções?
- Bom, para começar, já vi que mantém um guarda na porta da frente. Não duvido de que seja um velhote simpático, mas a verdáde ó que é velho e gordo. Se precisasse de sacar do revólver teria de procurar o coldre no meio das banhas... ponha um tipo mais novo a tomar conta da entrada, e ponha outros dois ou três a vaguear por aí. Podem vestir-se como o resto dos funcionários, mas deverão andar armados e talvez com uma chapa de identificação.
- Mais alguma coisa? - quer saber Twiggs, tirando apontamentos.
- Todas as máquinas de escrever e de contabilidade terão de ser presas às secretárias. Se quiser até lhes pode mandar montar alarmes contra roubo. A vossa firma
tem milhões de dólares em material portátil, que qualquer criancinha poderia levar daqui sem a mínima dificuldade. Prenda-as às secretárias.
- Boa ideia - diz o sócio maioritário. - Tem mais sugestões?
- Tenho. As trituradoras de papei que está a usar para destruir os documentos confidenciais... são peças de museu. As tiras que de lá saem podem ser coladas outra vez. Os iranianos ensinaram-nos isso quando se apoderaram de memorandos secretos da CIA, recriados a partir das tiras deitadas fora pela nossa embaixada. O senhor precisa de modelos novos, daqueles que transformam os papéis em confetis.
- Excelente sugestão! Tem mais?
- Por hoje ficarei por aqui - diz Cone. - Amanhã volto cá para reexaminar tudo com mais atenção. No fim do dia venho ter consigo e apresento-lhe o meu relatório.
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- Acho que o senhor está a fazer um trabalho formidável.
- Oh, são só coisas de carácter prático! Não vão deter as fugas internas, mas são capazes de ajudar. Por exemplo, as mulheres da limpeza já não serão capazes de
entregar o conteúdo dOs vossos cestos de papéis a algum espertinho lá de fora.
No fim do segundo dia, Cone vai ter com Twiggs.
- Hoje tenho uma que lhe vai sair cara: os vossos funcionários das Fusões e Aquisições estão espalhados por tudo quanto é sítio... um gabinete aqui, outro ali. É
um convite às fugas. Tem de aglomerar todo o Departamento; podem continuar com os gabinetes individuais, mas têm de trabalhar todos dentro da mesma área. E essa área terá de ficar detrás de uma porta blindada, que só poderá ser aberta por pessoal autorizado e dotado de um cartão codificado por computador.
- A mim parece-me que estamos é a construir uma autêntica fortaleza... - comenta Twiggs com o seu sorriso bondoso.
Cone encolhe os ombros.
- Não quer reduzir as possibilidades de fuga de informações? Só assim é que o conseguirá.
No último dia na Pistol & Burns, Cone diz para o sócio maioritário:
- Esta então vai-lhe custar montes de dinheiro. A sua gente das F&A anda a escrever demasiados memorandos, projecções, sugestões e análises de negócios futuros... e tudo em papel vulgar.
- Temos de comunicar uns com os outros - protesta Twiggs.
- Não é preciso fazê-lo com papéis. Informatize a operação inteira. Se alguém tiver qualquer coisa a dizer sobre uma possível compra, fusão ou retoma, basta pô-la no computador. As pessoas interessadas poderão chamá-la nos seus terminais... mas só se conhecerem o código de acesso. Está a perceber? Nada de papéis. Toda a informação fica dentro do computador, codificada de forma a só ser acedida pelas pessoas com necessidade de saber, as quais terão em seu poder o código de acesso. Além disso, o computador é capaz de manter uma lista das pessoas que consultam os registos.
G. Fergus Twiggs abana a cabeça, pesaroso.
- Mas para onde é que vai o mundo? - pergunta.
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- Não faço a mínima ideia - responde Cone.
Volta a pé à Haldering & Co. para receber o cheque do ordenado, satisfeito com o trabalho que fez na Pistol & Burns. Se o homem quiser seguir as sugestões dele, tudo bem; caso contrário, não tem nada a ver com o caso.
Contudo, há algo que não deixa de o preocupar. Algo que viu ou ouviu e que mantém uma luz vermelha acesa dentro da sua cabeça. Talvez seja qualquer coisa dita por Bigelow, ou mesmo por Twiggs; talvez qualquer coisa vista na Pistol & Burns. Sacode violentamente a cabeça, mas não é capaz de detectar o problema. Sente-se incomodado, como se tivesse um bocadinho de amendoim entalado no buraco de um dente.
No gabinete, descobre um recado em cima dá secretária: telefonar a Jererny Bigelow. Sem tirar o chapéu, Cone liga para o investigador da SEC.
- Olá, meu velho!-cumprimenta Jerry em tom alegre.
- Como é que te safaste na Pistol & Burns?
- É como dizias, é um autêntico queijo suíço. Dei-lhes umas ideias sobre o modo de fechar alguns dos buracos.
- Não encontraste provas de nenhuma fuga interna?
- Não, nadinha.
- Ainda bem. No meu relatório escrevi que a corrida às acções foi provocada pelos mediadores. Acho que tinha razão.
- Hum, hum!-diz Cone.
- Portanto são essas as notícias boas... agora vêm as más. Temos mais um caso de fuga de informações.
- Oh, meu Deus!-exclama o detective da Wall Street.
- Não me digas que é em mais um negócio da Pistol & Burns!
- Não, desta vez é na Snellig Firsten Holbrook. Conheces?
- Não são uns especialistas em obrigações?
- Isso mesmo. São conhecidos por terem a melhor segurança da Street, mas estão a tratar de uma compra amistosa e houve alguém que se meteu no negócio. As obrigações estão a subir em flecha. Olha lá, poderíamos encontrar-nos na segunda-feira? Talvez consigamos descobrir o que se está a passar.
- Talvez - diz Cone, esgravatandto na memória a ver se se lembra do bichinho que lha vem roendo há algum tempo.
Na manhã seguinte acorda esperançado em que o sono
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de uma noite tenha trazido à superfície aquilo que tenta recordar; não é invulgar
acontecer-lhe isso. Porém, a única coisa de que se consegue lembrar é ce a piza
com pimentos que comeu ao jantar.
No sábado à noite vai a casa de Samantha. A chefe não quer ser vista em público com ele, receosa de serem detectados por alguém da Haldering, o que daria início
à boataria dentro do escritório. Cone não se importa; prefere aderir às regras impostas por ela.
O jantar é constituído por galinha assada, arroz à espanhola e salada, acompanhados por uma garrafa de Orvleto gelado que os deixa algo bem-dispostos. O serão é passado no meio de brincadeiras divertidas, e Cone está de volta a casa às dez da noite. Cleo recebe a pele e os ossos dá galinha de Sam e uma tigela de água fresca.
Õ domingo é um dia mais que descontraído. Cone entretém-se a arrumar o sótão, fuma dois maços Camel, bebe quase melo litro de vodca Com água e pesquisa a última
edição da Èarrorís e a secção financeira do New York times. À noite tira do frigorífico uma lata de meio quilo de carne guisada e um pedaço de pão francês, tão duro
que para o comer tem de o meter primeiro no forno. Cleo contenta-se com os restos dos restos da galinha.
Na segunda-feira, como é habitual, chega atrasado ao trabalho. Jeremy Bigelow aparece às dez, trazendo uma pasta atafulhada. Cone telefona para a pastelaria da esquina
e manda vir dois cafés e duas torradas. Esperam peia chegada do pequeno-almoço antes de começarem a trabalhar.
- Olha - começa Cone-, ajudava-me imenso se primeiro me explicasses como é que a SEC actua no caso destes escândalos de negociatas internas. Só assim é que poderei
perceber o que tens para me dizer.
- É uma operação a dois níveis - diz Jerry, mastigando a torrada. - Quando nos avisam começamos logo a retinir informações, é aí que eu entro. Se não descobrimos
provas de jogo sujo a investigação é normalmente abandonada, mas se a coisa parece preta, então vamos ter com a Comissão e solicitamos uma ordem de inquérito formal.
Só depois é que podemos usar os mandados de busca e as contrafés.
- Está bem, mas afinal o que é que desencadeia a vossa acção? De onde é que recebem a denúncia?
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- Essencialmente dos computadores. Não poderíamos viver sem eles. Sabes quantas companhias estão registadas em todas as Bolsas de Valores do país?
- Não faço ideia.
- Nem eu... exactamente. Calculo que andem à volta das doze mil. Como é que as poderias verificar a todas à mão, dia após dia? Impossível! Os computadores estão programados para detectarem qualquer actividade fora do vulgar. Por exemplo, imagina uma acção que tem estado a ser movimentada a uma média de cinquenta mil papéis por dia, isto durante meses e meses; de repente o volume aumenta para talvez um milhão de acções por dia. O computador acende uma luz vermelha, as campainhas começam a tocar e surge uma bandeira americana no cimo do monitor, acenando-nos loucamente.
- E é aí que vocês avançam?
- Claro - diz Bigelow. - Queremos saber quem é que anda a comprar ou a vender. Na maioria dos casos são pessoas inocentes: qualquer boato em Wall Street põe em movimento dos mediadores, Sempre à coca do negócio do século... mas é raro conseguirem-no.
- Postanto são os computadores que fazem tudó?
- Não, c"os diabos! Também recebemos informações das firmas de corretagem. Os computadores deles também detectam indícios de actividades inabituais; vêm falar connosco
porque não querem ficar com os tomates apertados no meio da tempestade. Para além disso, recebemos denúncias anónimas de maridos e mulheres divorciados que se querem
vingar dos antigos caras-metade... às vezes somos informados por executivos honestos que sabem ou suspeitam que o tipo do escritório da porta ao lado está a comprar
ou a vender ilegalmente, baseado quase sempre no próximo relatório trimestral de actividades.
- Vocês verificam primeiro a idoneidade desses executivos?
- Mas claro! Se são funcionários da companhia, têm de declarar as compras e vendas que fazem; se não o fazem, estão metidos no mesmo saco dos outros.
- Espera aí - diz o detective da Wall Street. - Sei que vocês não têm tempo nem pessoal para investigar todas as negociatas de pequena monta... quero dizer, vocês não vão investigar o zé-ninguém de Hanging Dog, Carollna do Norte, só porque ele comprou dez acções
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desta ou daquela companhia... afinal de que é que andam à procura?
- Geralmente procuro transacções superiores a dez mil acções. No entanto, se um funcionário de uma corporação está implicado no negócio, é tão culpado de vender cem acções como cem mil na base de conhecimentos internos.
- Mas só um parvo é que não recorria a parentes ou amigos para fazer a aquisição.
- É claro - concorda Jerry com um grande sorriso.- Está sempre a acontecer. É aí que temos de brincar aos detectives, temos de descobrir as ligações e avisá-las
de que acabaram de fazer uma asneira.
- E o que é que apanham por isso?
- Na generalidade dos casos têm de devolver os lucros, pagam uma multa e são postos em liberdade condicional. Muito poucos vão parar mesmo à choldra.
- Quanto tempo?
- Acho que a sentença mais pesada por fuga de informações foi de quatro anos.
- Ou seja, o tipo está cá fora passados dezoito meses.
- Provavelmente - diz Bigelow com um encolher de ombros. - Mas isso já não me diz respeito. O meu papel consiste em apresentar o caso, aquilo que o juiz decide é outra loiça.
Cone acende um cigarro depois de oferecer o maço ao outro homem. Jerry declina.
- Deixei de fumar há quatro anos - explica em tom virtuoso. - Sabes o que é que essas coisas te estão a fazer aos pulmões e ao coração?
- Por favor! - protesta Cone, erguendo uma das mãos.
- Já ouvi milhares de palestras e nenhuma me convenceu. Deixa-me gozar os meus vícios à vontade. Ora bem, o que é que se passa com o negócio da Snellig Firsten Hollbrook de que me falaste ao telefone?
- Tal como disse, é uma aquisição amistosa. Uma firma já antiga do Massachusets, a Trimbley e Diggs. Fazem vassouras, piaçabas, molas de roupa de madeira e coisas do género, mas também são donos de grandes lotes junto à costa. Foram aceites na Bolsa há cerca de vinte anos, e desde então têm pago dividendos muito pequenos... mas nunca falharam um trimestre. É uma firma pequena, Tim; invisível ao pé da General Motors. Se o volume de acções transaccionadas num dia chegar às dez mil, então
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é um dia dos grandes. Os executivos principais querem comprá-la e reprivatizá-la, virando-se para o desenvolvimento imobiliário junto à costa. Quem está a tratar da compra é a Snellig Firsten Hollbrook. Eis senão quando, de repente, o volume de negócios diário dispara... na sexta-feira passada atingiu quase as cem mil acções. Ninguém sabe como é que se deu a fuga. Há uma certa pessoa que se está a empanturrar com montes de acções, e nós queremos saber quem é.
- Mediadores? - pergunta Cone.
Bigelow nega com a cabeça.
- Duvido. O bolo não chega para os excitar.
- Pois é - diz Cone. - Até aí percebo eu. Mas vamos ao que interessa: o que é que isso tem a ver comigo? Trabalho para a Haldering, e que eu saiba a Snellig Firsten Holbrook não se conta entre os nossos clientes, o mesmo se passando com a Trimbley e Diggs. Porque é que me queres meter ao barulho?
- Por um lado - responde Jeremy, levantando um dedo-, porque se trata de um quebra-cabeças, e eu sei que tu adoras quebra-cabeças. Além disso-levanta-se o terceiro dedo-, quem diabo é que tu julgas que te recomendou à Pistol & Burns?
- Jesus! - desabafa Cone. - Estás a cobrá-las todas de uma vez, não estás?
- Não te importas de dar uma vista de olhos ao caso? Trouxe-te os extractos do computador sobre os volumes de vendas e um registo das acções desde que se iniciou
o acordo de compra.
- Qual é a cotação neste momento?
- Cerca de oito dólares. Aqui há uma semana andava pelos quatro.
- Muito bem - diz o detective da Wall Street, deixando escapar um suspiro. - Deixa-me ficar a tua papelada, sou capaz de arranjar tempo para lhe dar uma vista de
olhos. Atenção, não prometo nada!
- Obrigado, Tim - diz Bigelow, agradecido. - Em troca, a SEC pode colaborar a fundo com a Haldering & Companhia se alguma vez surgir a ocasião.
- E isso interessa para alguma coisa? - replica Cone em tom rude. - Quando é que me pagas aquele almoço na rua que me prometeste no outro dia?
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- Se me deres uma pista neste caso, prometo que te levo ao Four Seasons.
- Ah sim? Será que servem fatias de presunto?
Nunca seria capaz de mentir a Samantha Whatley sobre assuntos pessoais. Contudo, era muito capaz de lhe mentir oficialmente como chefe dos investigadores da Haldering & Co. O facto de o fazer não lhe deixa nenhum peso na consciência.
Encosta-se à ombreira da porta do gabinete dela.
- Olha uma coisa - diz em tom muito sério. - Tenho de voltar à Pistol & Burns para acabar aquele trabalho.
- Ah sim? - replica ela. - Julgava que já tinhas encerrado o processo.
- Preciso de mais dois dias para limar algumas arestas, e além disso quero conversar com o Twiggs sobre o relatório final.
Ela mira-o de alto a baixo, desconfiada.
- Portanto o que me estás a dizer é que não voltas ao escritório durante o resto da semana.
- Só até quarta-feira, se tudo correr como espero. Acho que por essa altura já devo ter tudo pronto.
- Ai de ti se não o tens - avisa ela. - Tenho mais três processos novos para te entregar.
- Formidável, patroa!-diz ele. - Sinto-me uma pessoa de reconhecido mérito aqui na firma...
Jeremy Bigelow deixou-lhe uma pasta a transbordar de documentos sobre o caso da compra da Trimbeley & Diggs.
- Empresto-te a pasta - dissera ele a Cone. - No entanto não te esqueças de ma devolver.
- Para quê? - perguntara Cone.- Laços sentimentais? Já deu o que tinha a dar... devias era pagar-me por aceitar ficar com ela!
Sobe a Broadway no meio da canícula, transportando a pasta e sentindo-se tranquilo quanto ao facto de ter aldrabado Sam. O mundo não vai acabar só porque ele resolveu fazer uns dias de gazeta, e para além disso é por uma boa causa: cooperação com uma agência do Governo dos EUA.
De regresso ao sótão, a primeira coisa que faz é abrir uma lata de Bud (1), das grandes. Depois abre a pasta de
(1) Bud: abrev. de Budiceiser, marca de cerveja dos EUA. N. do T.)
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Bigelow e deixa cair o conteúdo sobre a secretária. Coloca a pasta vazia no chão, e Cleo salta imediatamente para cima dela, satisfeito com o novo brinquedo.
- Não enchas isso de pulgas!-previne Cone.
Lê a papelada toda e volta a lê-la com mais atenção, para depois se reclinar na cadeira a ponderar. É mais ou menos como Bigelow o descreveu. Os impressos dè computador mais antigos datam de há três semanas atrás, e estão relacionados com o plano sugerido pela Snellig Firsten Holbrook para a aquisição amistosa da Trimbley & Diggs, Inc.
Os documentos subsequentes reformulam e refinam o plano, surgindo às tantas um documento assegurando às principais pessoas envolvidas que os fundos requeridos podem ser recolhidos através da emissão de obrigações de alto risco; a Snellig Firsten Holbrook tem "toda a confiança" na subscrição total da emissão.
Tudo aquilo não passa de rotina e Cone não é capaz de descortinar nada de estranho em germinação. O que o interessa mais são os registos de computador referentes
às transacções bolsistas da Trimbley & Diggs. O volume começou a subir há cerca de dez dias atrás, e o valor das cotações-listadas no mercado nacional de Nasdaq
- subiu regularmente de cerca de 4 dólares por acção até ao seu preço actual, ligeiramente acima dos 8 dólares. Bonito. Os compradores estão provavelmente a esfregar
de contentamento as mãos suadas e gananciosas, sem saberem se devem vender e fugir ou então aguentar até ver onde pára.
Cone inclina-se para falar com Cleo, que dormita sobre a pasta.
- As vezes há espertinhos que ganham umas massas - comenta. - Noutras são os donos que ganham, mas quem se lixa é sempre o mexilhão.
Mas quem serão os felizes investidores que duplicaram os seus proventos em menos de dez dias? Cone debruça-se de novo sobre as listagens do computador, e fica extremamente
divertido com o que descobre. Não consegue detectar nenhuma compra igual ou superior a dtez mil acções, mas há várias de 9000. Segundo pensa, há uma data de espertinhos
a par do interesse da SEC pelas aquisições iguais ou acima dos dez K. Se se limitarem a comprar 9000 acções, julgam poder escapar à triagem. Cone sente-se surpreendido
por Jeremy Bigelow não ter
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reparado no pormenor, o que uma vez mais o leva a duvidar das capacidades do outro.
Os grandes compradores de acções da Trimbley & Diggs estão espalhados por todo o país, mas parecem concentrar-se em Nova Iorque, Atlantic City, Miami, Nova Orleães
e Las Vegas. Por outro lado, a maior parte dos nomes dos compradores acabam em vogais. O pormenor excita Cone, pois sabe que todas aquelas cidades são grandes centros
da mafia - o que tanto pode dizer muito como não significar nada de nada.
Como ninguém irá financiar deslocações para investigação de clientes de fora da cidade, Cone concentra-se nos nomes dos investidores de Nova Iorque. Um que lhe desperta
a atenção é o de um certo Paul Ramsey, que vive na Rua Quarenta e Sete e num local que o coloca a oeste e muito perto da Décima Avenida.
Um tal endereço acciona várias campainhas de alarme porque Cone, após o seu regresso do Vietname, viveu durante dois anos num prédio de cinco andares sem elevador
na Quarenta e Oito, a leste dá Décima, e sabe perfeitamente o tipo de bairro miserável que aquilo tudo é. Fica mesmo no meio da Hell"s Kitchen, e é na sua maioria
composto por edifícios semiarruinados, tascas nojentas, cervejarias asquerosas e prédios abandonados, a aguardar demolição.
A não ser que a área tenha sido reconvertida desde que Cone lá morou, é difícil de imaginar um dos seus residentes como grande investidor da Bolsa. Não é vulgar
os habitantes dos ghettos lidarem todós os dias com moedas de ouro.
Analisa pela quarta vez as folhas do computador, verificando todas as compras e vendas de Paul Ramsey. Não demora muito a descobrir que o tipo detém presentemente
27 000 acções da Trimbley & Diggs, Inc., compradas a uma média de cerca de seis dólares cada. Se as vendesse hoje, sairia dali com um lucro líquido de 54 000 dólares;
nada mau para um fulano que vive numa rua em que qualquer vagabundo se contentaria com um ganho de dez dólares - o suficiente para uma dose de crack.
Cone enfia o chapéu de couro e vai buscar o impermeável amarfanhado, não vá dar-se o caso da chuvinha miúda ter engrossado. Pouco antes de sair do sótão, verifica
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a S&W .357 (") de cano curto que usa num coldre de tornozelo. Reassegurado, aventura-se a ir fazer uma visita ao seu velho bairro.
- De guarda! - ordena ele a um espantado Cleo, antes de sair.
Na rua, descobre que a chuvinha miúda não se limitou a engrossar: é como se alguém tivesse aberto uma torneira sobre Manhatan inteira. Não há um único táxi à vista.
Maldizendo a sua pouca sorte, Cone baixa a cabeça contra a chuva e saltita sobre as poças até à estrada do metropolitano. Tenta descobrir a melhor forma de chegar ao cruzamento da Décima Avenida com a Rua Quarenta e Sete, mas acaba por concluir que não há nenhuma. Seja qual for a linha que seguir, acabará por chegar encharcado ao seu destino.
Porém, cerca de meia hora mais tarde, quando sobe à superfície na esquina da Rua Cinquenta com a Oitava Avenida, o aguaceiro acabou. A cidade continua a parecer-se com uma sauna, e Cone pensa tristemente que a única coisa que lhe falta é alguém para lhe bater com ramos de
azevinho.. Despe a gabardina e saltita sobre mais poças
e esgotos a transbordar até chegar à Rua Quarenta e Sete, virando então para a Décima Avenida.
O prédio de Ramsey é tal e qual Cone o tinha imagi-nadO: tinta a cair aos bocados, lambrins rachados, janelas estilhaçadas. Está a morrer aos poucos, e não parece
de modo nenhum a residência de um mago da Wall Street.
No passeio está uma rapariguita de pernas de alicate. Deve ter uns nove anos, e está a saltar à corda e a cantar a compasso:
Huba, huba, huba,
É melhor usares uma camisa,
Ou a tua mãe fica prenha.
Nas escadas de pedra da entrada senta-se um miúdo ruivo e cheio de sardas. Cone dá-lhe uns onze anos, já a caminho dos quarenta e seis.
- Vives aqui? - pergunta-lhe o detective.
O rapaz fita-o com olhos frios.
- E isso é da tua conta?
- Estou à procura do Paul Ramsey. Conhece-lo?
(1) Revólver Smith & IWa.sow, calibre 9 milímetros. (N. do T.)
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- Não conheço ninguém, não conheço.
- Mas acho que mora neste prédio...
- Não foi isso que eu disse, não senhor.
- Mas já ouviste falar no nome?
- Já lhe disse que não conheço, já lhe disse.
Cone solta um suspiro.
- Mas afinal quem és tu? O Jeoy Eco? Está bem, vou à procura dele.
Começa a subir os degraus, e o miúdo levanta-se.
- Eh! - chama o petiz. - Queres saber onde mora o tipo, queres? Vai-te custar um dólar.
Cone procura na carteira, tira uma nota dfe dólar e dá-a ao outro.
- Não conheço ninguém, não conheço - ri-se o miúdo, fugindo pelas escadas abaixo.
Enfurecido, Cone fica a ver aquele bandido juvenil a correr rua fora, mas acaba por se rir do logro em que caiu com toda a facilidade. Segundo lhe parece, aquele miúdo ou chega a Presidente ou acaba a vida a cumprir vinte anos em Attica.
Entra no vestíbulo acanhado, que cheira a urina e a couves cozidas em putrefacçáo. Há uma placa para os nomes ao lado das campainhas, mas está em branco. As caixas do correio, porém, dão-lhe a relação dos inquilinos. No apartamento 5-A vivem dois deles.
Um é Paul Ramsey.
O outro é Edward Steiner.
Apanha um táxi que desce em direcção à Nona Avenida. O motorista quer meter conversa sobre basebol, mas Cone não lhe dá troco; está demasiado preocupado para ser simpático.
Há uma mulher, Sally Steiner, que compra 10 000 acções da Wee Tot Fashions, Inc., num escândalo de fuga de informações relacionado com a Pistol & Burns; por outro lado, há um homem, Paul Ramsey, que compra 27 000 acções da Trimbley & Diggs, Inc., no que parece ser outro caso de fuga de informações dentro da Snellig Firsten Holbrook. Este Ramsey compartilha um apartamento com um fulano chamado Edward Steiner.
Talvez os dois Steiner não tenham nada a ver um com o outro, talvez nem sequer se conheçam. As coincidências também acontecem... mas o melhor é não apostarmos nelas. O detective da Wall Street fica a pensar
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até que ponto é que poderá pressionar aquilo que já designa no íntimo por "Ligação Steiner".
Está já de regresso ao sótão, caminhando para trás e para a frente, quando uma luz se acende dentro da cabeça, muito parecida com aquele típico balão das bandas
desenhadas. Ao mesmo tempo, lembra-se daquilo que há dias anda a tentar recordar - algo que ouviu e que lhe fez tocar as campainhas dentro da cabeça. Até que enfim!
Jeremy Bigelow dissera-lhe que quando entrevistara Sally Steiner - durante as investigações do escândalo Wee Tot Fashions-, a rapariga afirmara ter comprado as 10 000 acções para ter acesso aos relatórios dá firma; planeava deixar o negócio da recolha do lixo, e pretendia aprender mais coisas sobre a manufactura, distribuição e venda de roupas de criança.
Como Cone muito bem sabe, as pessoas às vezes compram acções de uma dada companhia para terem acesso aos relatórios da firma e mesmo para comparecerem às reuniões anuais de accionistas, onde sempre se consegue um almoço de borla. Estes objectivos, contudo, podem ser conseguidos através da aquisição de uma única acção, de dez ou talvez de cem. Mas comprar 10 000 acções só para obter os relatórios trimestrais? Ridículo!
Cone amaldiçoa a sua própria estupidez; devia ter visto tudo logo de início. É óbvio que Sally Steiner comprara aquele lote de acções porque sabia ou ouvira qualquer coisa relacionada com a aquisição da Wee Tot Fashions, e porque estava na disposição de conseguir um lucro rápido.
Pega no telefone de parede da sua engordurada e minúscula kitchenette e liga para Neal K. Davenport, detective do Departamento de Polícia de Nova Iorque. Já antes trabalhara com Neal em vários casos, e o chui adora-o.
- Olá, sherlock! - cumprimenta-o alegremente o homem do NYPD. -Como é que vais? Há semanas que não oiço falar de ti! Descobriste outro tanso aqui no Departamento?
- Nã - responde Cone. - Nada disso. Acontece é que estou a trabalhar numa coisa que é capaz de te interessar.
- Folgo em ouvir isso. Sempre que me meto contigo, acabo por suar as estopinhas. O que é que há desta vez?
- É uma coisa relacionada com o negócio da recolha do lixo.
- Oh? - diz Davenport. - Estás a pensar em mudar de
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profissão? Olha que te acho mais que qualificado... queres uma carta de recomendação?
- Deixa-te de merdas - protesta Cone.- Interrompe-me se eu estiver errado. A recolha privada de lixo, o tratamento dos detritos e a venda de papelão em Nova Iorque estão mais ou menos nas mãos das Famílias... certo?
- Foi o que ouvi dizer - responde o homem do NYPD.
-Parece que têm a cidade inteira e arrabaldtes dividida em bairros... se quiseres recolher a merda, tens de pagar um imposto aos narizes torcidos. Aqui há anos
ouve uma investigação, mas não se descobriu nada. As testemunhas do PD desapareceram e nunca mais se ouviu falar delas. Isso é que é a novidade?
- Obrigado - responde Cone. - Foi um prazer falar contigo.
- Eh, aguenta aí!-suplica Davenport.-Tens qualquer coisa sobre a mafia?
- Nicles - tranquiliza-o Cone. - Se se me deparar alguma coisa, prometo que serás o primeiro a saber.
-Bem posso esperar... - diz o polícia.
Cone desliga e olha para Cleo, cada vez mais pensativo.
- Há qualquer coisa que cheira mal - diz para o gato.
- E não é o lixo, miúdo.
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Sally consegue aguentar Vic Angelo e Mario Corsini por duas semanas. É um autêntico jogo: se não conseguir apresentar resultados positivos, perderá a Steiner Waste Control e o acesso aos segredos recolhidos no lixo da Tipografia Bechtold. A ser assim, lá se vai a sua Grande Oportunidade.
Conseguiu enganar os dois vilões dentro do carro de Angelo, estacionado em frente à casa mortuária onde os restos mortais de Jake estavam em câmara-ardente.
- Oiçam - disse-lhes ela. - Tenho um namorado na Wall Street, é advogado do Departamento de Fusões e Aquisições dte um dos maiores bancos de investimento. Não vos vou dizer qual, mas posso assegurar-vos que está por dentro de todas as compras, fusões e aquisições conflituosas. Pode ganhar-se muito dinheiro se tivermos conhecimento antecipado desses negócios. Eu, por exemplo, já
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ganhei uma pequena fortuna. Se vocês me deixarem ficar com a Steiner Waste Control, posso dar-vos as mesmas informações confidenciais que o meu namorado me vai fornecendo.
Os dois homens olham para ela e por fim viram-se um para o outro.
- Não me agrada nada- diz Angelo. - A fuga de informações é um crime federal. Quem é que se quer meter nisso?
- Espera um bicadinho, Vic - pede Corsini. - Neste caso o informador é o namorado da miúda... se quiser dar com a língua nos dentes, o problema é dele. As pessoas a quem ele passa a informação podem dizer sempre que compraram por palpite.
- É isso mesmo! - interrompe Sally entusiasticamente.
- Garanto-vos que é infalível! Já entrámos em quatro negócios e não perdemos um centavo.
Corsini brinda-a com o seu sorriso atravessado.
- E tu investes de acordo com as dicas do namorado e depois dás-lhe uma parte. É isso, miúda?
- Mas claro - responde ela. - O que é que julgava? E por favor não me trate por miúda!
- Mesmo assim isso não me cheira nada bem - continua Angelo, tirando calmamente a embalagem de plástico de um dos seus gordos havanos.-Não quero complicações nenhumas
com os Feds.
- Não fazia mal experimentarmos uma vez, Vic - diz Corsini.
Foi então que os tubarões concordaram em dar-lhe duas semanas para aparecer com uma informação de valor. Se cumprir o prometido, pode ser que cheguem a acordo; se não conseguir, comprarão a Steiner Waste Control - de acordo com os termos deles. Sally concorda; não tem
outrtra hipótese.
Por esta altura já conseguiu organizar o trabalho de Terry Mulloy e Leroy Hamilton. O lixo da Tipografia Bechtold é regularmente entregue na sua garagem de Smithtown,
e o material já pesquisado volta ao depósito da Décima Primeira Avenida.
No nono dia começa a entrar em pânico. Já partiu três unhas a esgravatar no lixo da Bechtold, e a única coisa que encontrou foram prospectos e circulares aos milhões para os accionistas. Porém, na quinta-feira à noite, acerta mais uma vez.
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Descobre páginas amarrotadas com o logotipo da Snellig Firsten Holbrook; trata-se do esboço de um plano para a aquisição amistosa de uma firma chamada Trimbley & Diggs, Inc. O financiamento inclui a emissão de obrigações e um generoso pagamento em numerário por parte dos executivos da companhia que a querem comprar e reprivatizar assim que se assenhoreiem da maioria dos votos. A finalidade disto tudo, tanto quanto Sally consegue perceber, consiste em desenvolver valiosas propriedades imobiliárias junto à costa atlântica.
Vai à procura da Trimbley & Diggs no Wall Street Journal desse dia, e acaba por descobrir as cotações da companhia em Nasdaq. Vende-se a quatro dólares por acção. No dia seguinte telefona a Paul Ramsey e diz-lhe para comprar 9000 acções da T&D; dar-lhe-á o dinheiro assim que puder. Depois liga para o número que Mario Corsini lhe dera. O mafioso não está, mas ela deixa recado, e ele telefona-lhe passados quinze minutos. Sally diz-lhe que está pronta para um encontro.
O outro responde que eles não querem ser vistos em público com ela, o que para Sally até convém. Assim, sugere que apareçam na casa dela em Smithtown por volta da meia-noite, altura em que a mãe e a empregada já estão a dormir. Poderão falar sem receio de serem interrompidos ou espiados.
Corsini não gosta da proposta, deixando implícito que a casa dela pode ter escutas electrónicas. Não está para correr tamanho risco.
- Oh, por amor de Deus! - diz Sally, revoltada. - Porque é que eu iria fazer uma estupidez dessas? Estou tão metida nisto como vocês. Olhe, se isso vos fizer sentir melhor, podem vir de carro até aqui, estacionam na alameda e eu saio e sento-me no vosso carro. O vosso Cadillac não tem escutas, pois não?
Corsini murmura uma vaga negativa, mas mesmo assim acrescenta que nos dias que correm ninguém pode ter a certeza. Por fim concorda e diz que irão até lá nessa noite, devendo chegar por volta da meia-noite. Sally dá-lhe a morada e ensina-o a dar com a vivenda.
Chega cedo a casa, enche um prato com maionese de camarão preparada por Martha, e leva-o para cima para jantar com a mãe. Vê o noticiário das oito com Becky enquanto come, e por fim desce para o rés-do-chão para que Martha possa deitar a inválida. Vai para a cave trabalhar
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nos livros da firma. A Steiner Waste Control, depois da adição do território do falecido Pitzak, está a fazer montes de dinheiro. Jake teria ficado satisfeito.
Às onze da noite a casa mergulha no silêncio. Sally senta-se num sofá, pensando calmamente no melhor processo de arranjar o dinheiro para Paul Ramsey e na maquia
que poderá dar a Dotty Rosher, se é que lhe vai dar alguma coisa. A cretina escreveu uma carta a Sally a dizer que estava tesa, e depois de tudo o que fizera por
Jake, sentia-se no direito de obter uma recompensa pelo trabalho e complicações em que se metera. E pelo seu silêncio.
Sally decide entregar a carta de Dotty ao advogado da Steiner, Ivan Belzig. Não é homem para brincadeiras, e sabe melhor que ninguém como se trata cfe uma chantagem
daquelas.
As quinze para a meia-noite, está a espreitar por uma das janelas da sala de estar semiobscurecida, perscrutando a alameda deserta. Passam dez minutos da meia-noite quando a limusina prateada surge em marcha lenta e acaba por encostar junto ao passeio, apagando as luzes.
Sally acende a luz do patamar da entrada e sai para fora. Preparava-se para descer os degraus quando vê Vic Angelo e Mario Corsini a saírem do Cadillac, começando a caminhar em direcção à vivenda, olhando desconfiados à sua volta.
- Preferem entrar? - pergunta Sally quando já estão perto.
- É - responde Angelo. - Acho que posso confiar em si. Era louca se tentasse qualquer coisa...
Avança à frente dos dois até ao escritório e oferece-lhes uma bebida, mas os homens declinam.
- Não nos vamos demorar assim tanto-explica Angelo.
Ambos acendem charutos: Vic puxa de um dos seus
grossos havanos, e Mario prefere uma cigarrilha negra e retorcida que faz lembrar um pedaço de corda alcatroada. A atmosfera da sala torna-se fétida, e Sally liga o ar condicionado ao máximo. Senta-se à secretária e fita Vic Angelo, subitamente chocada com a extraordinária semelhança entre este homem e Jake.
- Então? Já se decidiram? - pergunta em tom vivo.- Querem alinhar? Se quiserem, tenho uma dica para vos dar.
- Nã - responde Angelo. - A Bolsa não é para nós.
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Falei com o meu advogado sobre isso, e ele diz que o risco de sermos incriminados numa negociata de fuga de informações é nulo. No entanto, se alinharmos, pode acontecer que os Feds comecem a cheirar outras das nossas actividades... e isso é um risco tremendo. Por isso viemos aqui dizer-lhe que recusamos a sua proposta.
Sally fica a olhar para os dois homens, sentindo-se como se tivesse sidO apunhalada pelas costas. Eles correspondem ao olhar com uma expressão parecida com a das estátuas da ilha da Páscoa.
- Deste modO - continua Vic Angelo-, vamos tomar conta da Steiner Waste Control. O meu adVogadO já está a preparar a papelada. Pode crer que lhe pagaremos uma bonita
maquia.
- Uma bonita maquia!-explode Sally. - O meu pai começou o negócio com um camião asqueroso comprado em enésima mão, e trabalhou que nem um mouro para aumentar a exploração! Era ele que guiava e carregava! Depois de me ter juntado a ele, trabalhei até não poder mais... como é que vocês podem oferecer uma "bonita maquia" por isso tudo? Malditos sejam, o depósito pertence à família Steiner!
- Não, agora já não pertence - responde Angelo em tom gelado. - Oiça, a recolha privada de lixo é um negócio duro e sujo, não é lugar para uma mulher.
- Que se lixe!-diz Sally, furiosa. - Posso muito bem desenrascar-me.
- Além disso não precisa do negócio, pois não? - interrompe Mario Corsini, falando pela primeira vez.- Quero dizer, o seu amiguinbo da Wall Street está a enriquecê-la com as informações confidenciais... você deve estar a ganhar umas massas valentes. Foi isso o que nos disse, não foi?
- Sim, bem, foi isso mesmo... - responde Sally, começando a sentir-se desesperada. - Mas o dinheiro para jogar na Bolsa vem do negócio.
- Esse problema é seu - atalha Vic Angelo, levantando-se. - Você é uma rapariga esperta; sei que descobrirá um modo de se safar. Os papéis para a compra da Steiner Waste Control estarão prontos dentro de duas semanas; temos de descobrir alguém para a comprar, mas o problema aí é nosso. Muito obrigado por nos ter convidado para sua casa. Acredite que gostei deste bocadinho.
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Vão-se embora. Sally observa a limusina a afastar-se lentamente. Crava as unhas na palma das mãos, deter-minadà em não chorar. Desliga a luz do patamar e fecha à chave a porta da frente, não se esquecendo de correr a tranca. Volta para o escritório, deixa-se cair em cima da cadeira giratória e, em surdina, chama todos os nomes que sabe àquelas duas víboras.
Só dez minutos depois é que começa a chorar.
Na segunda-feira de manhã a encenação recomeçou, mas o cérebro dela vibra como um dos compactores do depósito enquanto vai tentando descobrir uma saída. A única coisa de que tem a certeza é que aqueles dois não vão ficar-lhe com a firma. Isso nunca!
Mete-se no carro em direcção à cidade e, antes de seguir para o escritório, pára no banco que trata das contas da companhia. Levanta 36 000 dólares, explicando ao admirado bancário que acabou de comprar um novo camião mas o vendedor pretende dinheiro à vista. Recebe o dinheiro em notas de cem dólares, cuidadosamente enfiadas num sobrescrito castanho suficientemente pequeno para caber na mala de mão, ao lado da pistola carregada.
Quando chega ao depósito, Judy Bering aponta com o polegar para o gabinete de Sally.
- Tens uma visita-avisa em voz baixa. - Não quis esperar aqui fora, e não me deu o nome. Um autêntico bandido, conseguiu assustar-me. Queres que chame os chuis?
- Por enquanto não - diz Sally. - Se me ouvires gritar é porque preciso de ajuda.
Entra no gabinete com uma das mãos dentro da bolsa, empunhando a arma. Mario Corsini está sentado no sofá ao lado da secretária. Sally pára de chofre e fica a olhar para o homem.
- Já sei, veio contar os percevejos - diz ela, sarcástica.- Têm medo que eu roube alguma coisa antes de ficarem com isto?
- Não, nada disso-responde ele com um sorriso desmaiado. - Feche a porta e sente-se. Temos de ter uma conversa em privado, só nós os dois.
- Já tivemos - diz Sally. - Na sexta-feira à noite, lembra-se? Acho que não temos mais nada a dizer um ao outro.
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No entanto faz como ele lhe pede: fecha a porta e senta-se atrás da secretária. Fica a examiná-lo em silêncio.
É na verdade um homem repelente, com um tom de pele amarelado e olhos iguais a carvão molhado. O cabelo, negro, tem risco ao meio e acompanha os contornos do crânio, como os gigolos ou dançarinos de tango dos anos 20. Veste como um gato-pingado: fato preto, camisa branca, gravata preta, meias negras, sapatos negros. Nenhuma outra cor, nenhumas jóias. Faz lembrar uma sombra.
- Mas preciso de falar consigo!-diz ele. - Acho que o Vic está a fazer uma grande asneira.
- Não mo diga a mim, diga-o a ele - responde Sally em tom amargo.
- Já o fiz - continua Corsini. - A minha opinião é a seguinte: podemos tomar conta disto assim que quisermos... mas qual é a pressa? Por que razão não lhe havemos de dar uma hipótese de nos dar essas informações sobre a Bolsa? Se acertar, podemos ganhar mais na Bolsa do que com a compra da sua companhia. Se você não cumprir o prometido, então ficamos-lhe com o depósito. Disse-lhe isto tudo, mas ele não
me quis dar ouvidos.
- E o Vic é o patrão...
- Pois é - diz Corsini. O patrão é o Vic. Tenho de alinhar mesmo quando não concordo, mas apesar disso há várias maneiras de se esfolar um coelho. Temos imensa coisa
em jogo, e como tal posso ir protelando a concretização das intenções dele a seu respeito.
- Ah sim? De que modo?
- Acredite-me quando digo que sou capaz - diz Corsini, esquivando-se a uma resposta directa. - No entanto você terá de alinhar comigo. Comigo, e não comigo e com o Vic. Percebeu? Ele não sabe que eu vim aqui... se soubesse que tivemos esta conversa, era capaz de me cortar os tomates. Disse-lhe que vinha cá para ver como é que ia o meu primo, o Tony Ricci...
- Bom, vai muito bem. O miúdo é trabalhador... e ambicioso.
- Julga que não o sei? Tomei o pequeno-almoço com ele há bocado. Não se preocupe com ele; faz sempre o que lhe mando. Enfim, o que eu lhe queria dizer é o seguinte: na sexta-feira passada, você disse-nos que tinha uma informação valiosa; depois disso o Vic não aceitou a sua proposta. Quero que me dê o nome da companhia em causa, na qual irei investir o meu dinheiro. Não se
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trata do dinheiro do Vic nem da nossa companhia, mas sim do meu, dos meus fundos pessoais. Se a sua indicação resultar e eu ganhar umas massas, então vou ter com o Vic e digo-lhe: "Eh, a Sally Steiner não estava a enganar-nos; o material dela é do bom. Porque é que não a deixamos ficar com o depósito enquanto ela continuar a dar-nos informações sobre a Bolsa?" O que é que você acha?
- Acho muito mal - diz Sally. - Há duas coisas que não jogam bem. Primeiro, você pode fazer tal e qual o que acabou de me dizer, e o Vic é muito bem capaz de continuar a sua e apoderar-se do meu negócio.
- É verdade - diz Corsini, acenando com a cabeça.- Pode acontecer. O Angelo é um tipo casmurro que gosta de ver as coisas feitas à sua maneira.
- Em segundo lugar - continua Sally-, como é que eu posso saber se você não me está a passar uma rasteira? Talvez queira ganhar umas massas sem trabalho nenhum e com base na minha informação, mas pode estar-se nas tintas para o facto de eu perder ou não o depósito.
Corsini fita-a com uma expressão de admiração.
- Afinal você é mesmo uma miúda inteligente... mas claro, tem toda a razão. Posso estar a enganá-la. No entanto está a esquecer-se de uma coisa: não tem hipóteses de escolha. Sem mim, é certo e sabido que fica sem o negócio, mas se alinhar comigo pode ser que consiga escapar...
- Ainda me restam outras hipóteses - diz Sally em tom acalorado.
- Não me diga! - replica ele com o seu sorriso cadavérico. - Como por exemplo? Vai denunciar-nos ao Procurador? Uma semana depois estava a fazer tijolo, tal oomo a sua mãe e o seu irmão. É isso que quer?
Ficam sentados em silêncio, de olhos nos olhos. A volta deles ressoam os ruídos do depósito: camiões a entrar e a sair, engrenagens a gemer, gritos e gargalhadas. Em pano de fundto, o sussurro daquela cidade brutal: sereias, apitos, o rugido do trânsito e um fremir surdo e contínuo, como se a grande metrópole tivesse um diapasão próprio, afinado dos esgotos aos arranha-céus mais altos.
Sally Steiner puxa para si um bloco-notas e escreve qualquer coisa na folha de cima.
- As acções são as da Trimbley & Diggs - diz ela.-
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No Mercado de Nasdaq. Neste momento custam cerca de
4 dólares cada. Por amor de Deus, livre-se de comprar blocos superiores a 9000 acções, caso contrário a SEC pode cair-nos em cima.
Mario Corsini pega na folha de papel.
- Sempre gostei de fazer negócios consigo-afirma em tom untuoso.
Dirige-se para a porta, mas vira-se quando ela o chama.
- Eh, obrigado por não me ter tratado por miúda!
O mafioso inclina a cabeça com ar grave, como se a gratidão dela tivesse razão de ser.
Sally deixa-se ficar sentada depois de Corsini ir à sua vida, matutando na conversa que tivera e interrogando-se sobre se dera o passo mais acertado. Por fim compreende que o bastardo tinha razão: não tem a mínima hipótese de escolha. No que diz respeito à ameaça dele sobre o que lhe aconteceria a ela, a Becky e a Eddie caso o denunciasse aos chuis, disso não tem a mínima dúvida. Os gorilas dele são capazes de concretizar a ameaça sem um piscar de olhos.
Pega no telefone e liga para Eddie.
- Olá, maninho, como é que tens passado?
-Vai-se andando - responde o irmão. - E tu, Sal?
- Não podia estar melhor-responde ela em tom alegre.- O Paul está por aí?
- Não, só volta lá para o meio-dia. Foi prestar provas para um anúncio de um laxante com sabor a morango.
- Belo - diz Sally. - Posso aparecer por aí? Tenho dinheiro para lhe entregar... é o nosso primeiro passo para a fama e fortuna.
- Claro - responde ele. - Vem até cá. Tens tempo para posar?
- Talvez uma hora. Okay?
Vai a pé até ao apartamento de Eddie, parando pelo caminho para lhe comprar um borgonha decente. O dia está primaveril, o Verão espreita atrás de cada esquina, e o céu azul, o sol brilhante e as carícias da brisa fazem-na sentir-se como se fosse dona do mundo. Todas as almas se dissolvem, mas entretanto até é bom correr-se em frente sem nunca olhar para trás.
Posa nua para Eddie durante quase uma hora, sentada naquele banco estúpido ao mesmo tempo que tenta manter o corpo tenso, duro e agressivo, tal como ele quer. Por
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fim o irmão fecha o bloco de esboços com uma pancada seca.
- Já está - anuncia. - Tenho todos os estudos de que precisava. Vou passar à tela. Vai ser um dos bons, Satly; sinto-o cá por dentro.
- Pinta-me bonita - pede ela. - Talvez dez centímetros mais alta e com menos uns dez quilos.
- És perfeita tal como estás.
- Então casa comigo - ri-se ela. - E serve-me um copo de vinho enquanto me vou vestir.
Estão sentados no sofá, a beber o borgonha e a falar sobre a mãe, ponderando a hipótese de a levarem a outro especialista, quando entra Paul Ramsey, sorridente
como de costume.
- Não consegui o papel - anuncia. - Acho que não me acharam o tipo ideal para o laxativo de morango.
- Graças a Deus! - diz Eddie. - Acho que não era capaz de te ver num anúncio, a sair da casa de banho e a sorrir como um maníaco.
- Paul - diz-lhe Sally, tirando o sobrescrito castanho da malinha de mão-, tens aqui trinta e seis mil dólares, em notas de cem.
- Eh, bestial!-é o comentário do rapaz.
- Já abriste conta na casa de corretagem?
- Claro. Não custou nada.
- Bom. Vais depositar esta massa na tua conta bancária, e compras nove mil acções da Trimbley & Diggs. O teu corretor pode encontrá-las na Bolsa de Nasdaq. Vou escrever-te
todas as instruções. Compra as acções ainda hoje, assim que possas; tens cinco dias para entregar o cheque ao corretor.
- E com isso vou ficar milionário?
- Só um milionariozinho - diz Sally. - Não te esqueças de que ainda estamos no começo.
Senta-se na única cadeira de braços confortável do apartamento, enquanto Eddie e Paul se sentam muito juntos no sofá desengonçado. Os três brincam durante um bocado,
conversando sobre isto e aquilo. Por fim, Sally cala-se e fica a ouvir os dois homens - agora de mãos dadas - combinarem o que vai ser o jantar e a quem caberá a
vez de cozinhar.
Apercebe-se da intimidade dos dois, de ternos laços que podem ser de afeição, de amizade, quiçá de amor. Sentem-se bem um ao pé do outro, não se nota nenhuma
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tensão latente. Sally fica perturbada com aquela intimidade, pois para ela não passa de uma língua estrangeira, é como se os seus sentimentos estivessem a ser enganados
e roubados.
A cotação da Trimbley & Diggs começa a subir, a subir, e Sally fica extasiada. Quando atinge os sete dólares, manda Paul Ramsey comprar mais 9000 acções.
Também repara que o volume de transacções da T&D vai aumentando à medida que a cotação sobe. Ou há uma fuga interna na Snellig Firsten Holbrook ou então os mediadores cheiraram a aquisição e estão a tentar ganhar o deles. O mesmo se passa com Sally e, aparentemente, com Corsini. Uma semana depois da conversa no escritório, o mafioso telefona-lhe para casa ao fim da noite.
- Boa dica - começa ele, sem que a voz rouca denote entusiasmo ou alegria. - Vai comprar mais?
- Estou a pensar nisso.
- Até onde é que lhe parece que vá subir?
- Quem sabe? - responde ela. - Dez, talvez doze.
- Doze? - ecoa o outro, cauteloso. -Se chegar aos doze, acha que as devo vender?
- Eh! - protesta Sally. - Não sou o seu conselheiro financeiro! Dei-lhe uma informação que rendeu, não dei? Aquilo que você fizer com ela só a si diz respeito. E quanto ao meu negócio? O que é que vai acontecer à Steiner Waste Control?
-Estou a tratar disso - diz ele.-Oiça, também lhe telefonei para a avisar que amanhã o Tony Ricci vai chegar atrasado ao trabalho. Só aparecerá por volta do meio-dia. Okay?
- Se tem de ser assim... - diz Sally. - Vai-me lixar as escalas dos serviços, mas eu cá me arranjo.
- Assim é que se fala - diz Corsini. - E se tiver mais alguma dica não se esqueça de ma passar!
Desliga abruptamente, deixando Sally a fitar zangada o telefone silencioso. Enfurece-a permitir que aquele patife ganhe uns cobres à sua custa. É ela que parte as unhas a remexer no lixo da Tipografia Bechtold, e Corsini só precisa de fazer um telefonema ao seu corretor.
Na manhã seguinte vai mais cedo para o trabalho, vê se há novidades no escritório e de seguida atravessa a Décima Avenida em direcção ao Stardust Diner. Terry Mulloy e Leroy Hamilton estão sentados na mesa do
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fundo; ambos se batem com ovos mexidos com presunto, uma montanha de batatas fritas, pilhas de torradas com manteiga e compota e café com natas e açúcar. Sally vai
ter com eles.
- Depois não se admirem se tiverem um ataque das coronárias - diz-lhes, pedindo a Mabel um pão de leite e uma chávena de café.
É dia de pagamento: passa um sobrescrito a cada um dos homens por debaixo da mesa.
- Muito e muito obrigado - diz Hamilton, enfiando os seus cem no bolso. - O melhor disto tudo é que a minha mulher não sabe destes cobres extra...
- Quanto tempo é que isto vai durar? - quer saber Mulloy.
- Até eu vos dizer para pararem - responde Sally.- Qual é o problema? Estás a ficar cansado, filho? Não é difícil descobrir outros dois imbecis que tratem do lixo
da Bechtold.
- Nã - diz Leroy. - Não é preciso chegarmos a esse ponto. Nós somos capazes de tratar de tudo, não é, Terry?
- Claro, claro - apressa-se a dizer o gigante ruivo.- O dinheiro faz-me jeito, só gostava era de saber o que raio se está a passar. Não gostava de me lixar por uns míseros cem dólares por semana.
- Estás a exagerar - diz Sally.- Já ouviste falar naqueles três macacos? Não ouvi nada, não disse nada, não vi nada. É assim que eu gosto dos macacos.
Mais ou menos à mesma hora, um Cadillac cinzento-prateado detém-se num local assinalado por uma placa de Estacionamento Proibido, mesmo em frente do toldo da entrada do Hotel Bedlington, na Madison Avenue.
- Porque é que parámos aqui? - pergunta Angelo.
- Vic - diz Mario Corsini-, ainda temos imenso tempo antes da reunião na baixa. Pensei em irmos tomar um bom pequeno-almoço. Vais gostar do sítio. Aquelas tostas francesas... Lembras-te?
- Oh, se me lembro! - responde Angelo. - Boa ideia!
Saem do carro. O porteiro uniformizado aproxima-se,
pressuroso, e Corsini enfia-lhe uma nota na mão.
- Toma-me conta do carro. Se tiveres qualquer problema, estaremos na sala de jantar.
- Não há problemas, sir - diz o porteiro.-Pode ir descansado.
A cavernosa sala de jantar está praticamente deserta;
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só lá vêem um velhote sozinho numa mesa e duas solteironas noutra, a beberem chá acompanhado por torradas de pão integral. Os dois homens escolhem uma mesa num
canto, para poderem ficar cem as costas viradas para a parede. Vic Angelo manda vir um copo de sumo de laranja fresco, torradas à francesa com muita manteiga e compota
e um café sem cafeína. Mario prefere bolinhos quentes e café simples.
- Um sítio agradável - comenta Angelo, olhandò em volta.
- É verdade - diz Corsini. - Podes planear uma revolução que ninguém ficará a saber. Além disso dá-me a oportunidade de te falar numa coisa.
- Oh, meu Deus! - resmunga Angelo. - Não me digas que é outra vez aquilo da Steiner! Já falámos sobre isso duas vezes, e aquilo que eu disse mantém-se.
- Mas eu falei com ela, Vic, e pressionei-a. Ela não teve outro remédio senão dar-me aquela dica sobre as cotações, a mesma que nos tinha prometido. Joguei forte... por minha conta, Vic, por minha conta... e olha que numa semana quase que dupliquei o capital!
Angelo fita-o nos olhos, a expressão rígida.
- Isso não foi lá muito esperto, Mario. Já te disse que não quero meter-me na Wall Street. Vamos ficar com o depósito dos Steiner, portanto não me aborreças mais
com isso.
- Vic, dá-me atenção só por um bocadinho - diz Corsini, inclinando-se sobre a mesa. - A miúda não nos estava a enganar; tem mesmo uma fonte de informações lá dentro.
Sou até capaz de triplicar o que apostei... Jesus, podemos ganhar mais com ela do que com todos os depósitos tfe lixo da cidade! E o...
Servem-lhes o pequeno-almoço, e nenhum dos homens abre a boca até o criado se ter retirado.
- E o melhor de tudo - continua Corsini, apressado-. é que não temos de entregar nada à gente lá de cima. Tens de enfrentar a situação, Vic, não passamos de meros contratados. Somos autênticos moços de recados, não te parece? Está bem, ganhamos bastante, mas com quanto é que ficamos depois de subornar os estúpidos dos políticos,
os chuis, a malta dos sindicatos e toda essa cambada? Esta coisa da Sally Steiner é trigo limpo... aquilo que ganhamos é aquilo com que ficamos. Não há subornos,
não há pagamentos a ninguém.
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- Só sabes dizer asneiras - responde Angelo, barrando a tosta com manteiga e compota para depois começar a engolir. Continua a falar com a boca cheia:-Quanto tempo é que julgas que o Fat Lonny demorará a descobrir a marosca? Não é parvo nenhum. Depois vai perguntar-nos porque é que não o metemos na coisa, e então são os nossos pescoços que ficam em jogo. Esquece-te disso, está bem? Deixa-me acabar de comer em paz. Não quero mais negócios da Bolsa com essa Sally Steiner. Assim que os papéis estiverem prontos, saltamos-lhe para o espinhaço. E não quero ouvir falar mais nisso!
- Está bem, Vic, se assim o dizes... o patrão és tu.
Acabam de comer em silêncio, e por fim acendem
charutos com o DunhiH de ouro de Corsini. Quando se levantam para sair, Corsini deixa-se ficar para trás a inspeccionar a conta, pondo em cima da mesa dinheiro
suficiente para pagar e uma generosa gorjeta.
Saem dò hotel lado a lado. O Cadillac ainda está estacionado em frente ao toldo.
Corsini bate com a mão no bolso do casaco.
- Merda!-exclama. - Devo ter deixado o isqueiro em cima da mesa. Espera aí, não me demoro nada.
Desaparece no interior do hotel, e Vic Angelo vai sentar-se no banco da frente, ao lado do condutor. Acabou de fechar a porta quando um jovem sai de entre os carros
estacionados logo a seguir à limusina. Veste impermeável preto com a gola virada para cima, e um boné escuro com a pala toda puxada para baixo.
Dirige-se rapidamente ao Cadillac, e já perto tira do bolso uma pistola automática. Enfia o braço pela janela aberta e dispara quatro tiros em rápida sucessão contra
o atónito rosto de Vic Angelo.
Afasta-se a correr e entra num carro estacionado em dupla fila a norte do hotel. O carro arranca.
O porteiro, ao ouvir os tiros, sai a correr do átrio. Pouco depois surge Mario Corsini, também a correr. Aparecem transeuntes a correr vindos de todas as direcções,
ficando a espreitar para o banco da frente da limusina, onde Vic Angelo jaz no meio de uma poça de sangue que ainda borbulha. A cara e metade da cabeça desapareceram.
- Oh, meu Deus!-grita o porteiro.
- Eu vi quem foi!-grita alguém. - Foi um tipo de gabardina preta!
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- Chamem a Polícia!-grita outra pessoa.
- Nunca se vê um polícia quando precisamos deles - diz Mario Corsini.
Sally Steiner não nasceu ontem; depois de ver os noticiários na TV e de ter lido as descrições dos jornais sobre o assassínio do Hotel Bedlington, fica a saber,
sem grandes dúvidas, o que se passou e quem é a pessoa por detrás do crime. Não tem nada a ver com isso. Os bastardos bem podem matar-se uns aos outros, por ela
está-se perfeitamente nas tintas.
A única coisa que a preocupa é o futuro da Steiner Waste Control, agora que Vic Angelo morreu. Não demora muito a descobrir: três dias após o assassínio, Mario Corsini telefona-lhe para o escritório.
- Vou a sua casa esta noite - informa ele. - Por volta da meia-noite. Vai estar em casa?
- Claro - responde ela. - Lamento o que se passou com o Angelo.
- Pois é - diz Corsini. - Era um tipo às direitas.
A perspectiva de ficar sozinha com aquele mafioso, ainda por cima a altas horas, não é de molde a enchê-la de alegria, e como tal guarda a pistola carregada na gaveta de cima da secretária. Não lhe parece que o tipo tente usar a força, mas pelo sim pelo não...
A noite é calma, e ela aproveita para passear no relvado da frente. Pouco depois da meia-noite, o Cadillac cinzento-prateado entra na álea de gravilha. Sally vai
para o patamar iluminado e fica à espera de Corsini.
- Vejo que ainda tem o mesmo carro - comenta ela.
- É verdade - diz ele. - Tive de mandar estofar os dois bancos da frente.
Na cave, Sally oferece-lhe uma bebida, e desta vez ele aceita. Em casa dela não há Chivas Regai, mas mesmo assim o fulano tem direito a um balão de Rémy Martin. Era o conhaque favorito de Jake, e ninguém tocara na Garrafa desde a morte do dono da casa.
-Vou substituir o Vic - anuncia Corsini. - Já obtive a aprovação lá de cima. Não quero que você vá ao Ozone Park, por isso a partir de hoje passará a entregar os
pagamentos mensais ao Tony Ricci, que mos fará chegar às mãos. Estou a ver se o meto nestas andanças... daqui a uns tempos vai passar a ser o meu motorista.
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- Õs pagamentos mensais? - pergunta Sally. - Isso quer dizer que posso ficar com o depósito?
- Até vermos - responde ele em tom frio. - Continue a geri-lo como o tem feito, até aqui, e depois veremos. Tem mais alguma acção para mim?
- Não, ainda não.
Corsini bebe um golo do conhaque.
- É melhor ser ainda mais simpática com esse seu namorado - aconselha ele. - Veja as coisas
do seguinte modo: enquanto me continuar a dar boas informações, informações
que rendam, pode ficar com a Steiner Waste Control. Percebe, não percebe?
- Claro, claro. Não é assim tão complicado.
- Ainda bem, assim já sabe com o que pode contar. Gosto de fazer tudo às claras, nada de mistérios.
- Hum-hum!-é a resposta de Sally.
Corsini recosta-se no sofá, começando a sentir-se mais à vontade. Cruza a perna e aspira o aroma do balão de conhaque.
- A propósito das acções da Trimbley & Diggs...- comenta ele, observando-a para ver a reacção. - Neste momento tenho na minha posse cerca de cem mil delas.
-O quê?
- É como lhe digo. Cem mil. Não se preocupe, em meu nome só comprei nove mil. As outras aquisições foram feitas por amigos meus espalhados pelo país, que claro está
irão receber uma parte dos lucros. Nenhum deles comprou mais do que nove mil acções cada, por isso não vale a pena preocuparmo-nos.
- Espero que tenha razão - diz Sally, nervosa, começando a roer a unha do polegar. - Meu Deus, você deve ter empatado mais de meio milhão nessas acções!
- Mais ou menos - confirma ele, descontraído. - Tive cfe pedir algum emprestado para poder lá chegar, e as pessoas a quem recorri não achariam graça nenhuma se não lhes pudesse pagar. É por isso que vou começar a concretizar alguns dos lucros.
- Oh, meu Deus! - exclama Sally, desesperada. - Não me diga que vai vender cem mil acções de uma vez! Vai dar cabo do mercado!
- Você toma-me por néscio? Claro que não vou vender todas de uma só vez! Vou vendê-las aos poucos... descanse que as cotações não serão afectadas. A verdade é
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que preciso de realizar algum dinheiro, o suficiente para pagar acs tubarões. Quanto é que você meteu nisto?
- Tanto quanto pude - diz Sally, pensando ser melhor demonstrar a sua confiança na T&D. - Tenho dezoito mil acções, e hoje de manhã comprei mais nove mil, através
de um amigo.
- Rapariga esperta - diz ele, acenando em ar aprovador. - Acha que vão mesmo chegar aos doze dólares por acção?
- Segundo me parece, há grandes hipóteses de chegarem aos quinze. É uma compra amistosa, e pelo que o meu namorado me disse, a coisa está praticamente concluída.
Corsini acaba a bebida e deposita cuidadosamente o balão no tampo da secretária. Levanta-se para se ir embora.
- Não se esqueça do que lhe disse. A sua família fica com a firma enquanto você me continuar a aparecer com vacas leiteiras. É mais que justo, não lhe parece?
- Oh, claro! - responde Sally. - Bastante justo.
Já na porta da frente, Corsini vira-se para ela e estende a mão para lhe tocar na face, mas Sally esquiva-se, zangada, o que o faz sorrir com tristeza.
- Você é uma mulher de armas - diz ele. - Reconheço que tem mais coragem do que muitos homens. Gostava de a ensinar a ser simpática, mas não quero estragar o seu
arranjinho com o menino da Wall Street. É dai que vêm as informações, não é?
Sally não responde, limita-se a olhar para ele. Fica a vê-lo enquanto o mafioso entra no Caddy e arranca em direcção à cidade. Regressa ao escritório e dtepara-se-lhe
o balão vazio. Num assomo de fúria dá-lhe uma pancada com as costas da mão, esperando que o copo se desfaça em milhares de bocados. Porém, a carpeta espessa amortece
a queda, e o balão fica onde caiu.
Senta-se muito direita na cadeira giratória, pensando no que acabou de se passar. Consegue acalmar passado um bocado, e o facto do tipo ter vindo a casa dela parece-lhe
de somenos importância quando comparado com outro: o do cretino ter investido meio milhão num mero palpite sobre cotações da Bolsa. De repente, bate na testa com a palma da mão e geme.
Folheia febrilmente o número mais recente do Standard & Poor"s Stock Guide. Descobre a Trimbley & Diggs, Inc., e segue as colunas de números até chegar à coluna
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Capital. Tal como receava, a T&D tem um capital muito pequeno. Não há acções nominais, limitando-se a cerca cte 800 000 acções ao portador.
Desata a rir. É possível que haja mesmo uma fuga interna na Snellig Forsten Holbrook, como também ó possível que os mediadores tenham sabido da aquisição amistosa, começando a comprar T&D na mira de um lucro rápido. Agora, porém, parece óbvio que a subida da cotação se deve essencialmente à compra dela - 27 000 acções - e às quase 100 000 adquiridas por Mario Corsini.
Sem o saberem, os dois têm estado a manipular aquelas malditas acções! Fica a rir-se durante um bom bocado, mas por fim lá acalma o suficiente para compreender
que uma tal manipulação pode dar para os dois lados. Se Corsini começar a livrar-se das acções, o melhor é ela fazer o mesmo. É pegar e largar - antes que a coisa
dê para o torto e se desmorone como um castelo de cartas.
No dia seguinte, a primeira coisa que faz é livrar-se da aquisição inicial
de 9000 acções, conseguindo aí um lucro de perto de 36 000 dólares. Dá a Paul Ramsey
os 5 por cento prometidos, o que leva o rapaz a ficar a olhar para as notas sem querer acreditar.
- Bestial! - diz Paul.
- Já te tinha dito que a minha irmã é um génio das finanças - diz-lhe Eddie. - É uma péssima cozinheira, mas lá de dinheiro sabe ela.
Tudo corre pelo melhor, e ainda fica mais risonho quadò Sally, na sexta-feira à noite, descobre no lixo da Tipografia Bechtold algumas provas de impressão com o
logotipo da Pistol & Burns. Trata-se de uma fusão entre duas companhias do ramo alimentar, uma pequena e outra gigantesca e poderosa.
Sally sorri, satisfeita. A novidade é capaz de manter o Corsini calado enquanto ela não descobre um modo de pôr o bandido fora da vida dela... definitivamente.
6
Timothy Cone pega na lista telefónica de Manhattan, procura o número de Edward Steiner, Rua Quarenta e Sete Oeste, e faz a chamada do sótão.
- Sr. Steiner?
Sim, quem fala?
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- O meu nome é Silas Farthingale, e sou director de clientes da Carlton Insurance Company. Temos aqui a inscrição de uma Miss Sally Steiner para um seguro de vida na Carlton... o seguro é pago em caso de morte, claro, e a Miss Steiner deu o seu nome como um dos seus beneficiários. Infelizmente, esqueceu-se de preencher o espaço reservado ao grau de parentesco. Tentámos contactar a Miss Steiner, mas não nos foi possível falar com ela. Será que o senhor nos poderia elucidar sobre o seu parentesco com a Miss Steiner, para que o pedido de inscrição possa seguir os seus trâmites?
- Mas claro - diz Eddie, rindo-se. - Sou irmão dela.
- Muito e muito obrigado, Sr. Steiner.
Portanto Cone fica a saber mais um pormenor. Aqueles dois, irmão e irmã, podem estar a operar juntos, mas sem saber bem porquê, Cone sente-se inclinado a pensar que é a mulher quem está a brincar com os negócios da Bolsa. No fim de contas, foi ela que comprou as 10 000 acções da Wee Tot Fashions, ainda por cima em seu nome. Depois apareceu o Jerimy Bigelow, que lhe foi fazer umas perguntas, o que levou Sally a servir-se de um amigo: Paul Ramsey, companheiro de apartamento do irmão. Sally tem estado a comprar Trimbley & Diggs em lotes de 9000 acções, convencida de que assim não despertará as atenções da SEC.
E as outras aquisições de 9000 acções espalhadas por todo o país? Talvez sejam amigos de Sally Steiner; esta solução, contudo, é tão simples que Cone não lhe dá grande atenção.
Porém, nenhuma destas teorizações lança qualquer luz sobre o informador da Steiner dentro da Wall Street. A mulher tem de ter um informador, a não ser que...
Ela gere uma companhia de recolha de lixo, não é? Talvez esteja a recolher o lixo da Pistol & Burns, da Snellig Firsten Holbrook e sabe-se lá de quantos outros banqueiros
de investimento e casas de corretagem. Talvez ande a vasculhar o lixo em busca de informações. É bem possível. Cone lembra-se de ter prevenido G. Fergus Twiggs sobre
a segurança do conteúdo dos cestos de papéis da Pistol & Burns, levando-o a adquirir trituradores de papel mais eficientes.
Pega outra vez na lista telefónica de Manhattan e, na secção intitulada Recolha de Lixos e Salvados, procura
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o endereço e número de telefone que lhe interessa. Liga para lá.
- Steiner Waste Control.
- Charrvo-me Herschel Dingby. Vou abrir um restaurante na zona de Wall Street daqui a mais ou menos um mês, por isso gostaria de falar com alguém da vossa companhia para acertar os pormenores para uma recolha de lixo diária.
- Não prestamos serviços abaixo da Rua Catorze.
Desliga o telefone. Lá se vai a teoria de Cone sobre
o modo como Sally Steiner está a conseguir informações confidenciais. Suspira e faz mais uma chamada.
- Pistol & Burns. Em que lhe posso ser útil?
- Gostava de falar com o Sr. G. Fergus Twiggs, se faz favor. Fala Timothy Cone, da Haldering & Companhia.
- Um momento, sir.
Passa-se mais de um momento, mas Cone aguarda pacientemente. Por fim o sócio maioritário atende a chamada, pelo que trocam breves cumprimentos. O detective da Wall Street vai direito ao assunto.
- O senhor gosta de apostar, Sr. Twiggs?
Uma curta pausa.
- Claro que gosto, caso contrário não estaria neste ramo de negócios. Quer que eu faça uma aposta? Sobre o quê?
- Em mim - diz Cone. - Oiça, sei que o trabalho da Haldering está feito no que se refere à sua firma. Já apresentei o relatório final, vocês pagaram-nos e nós demos o assunto por encerrado. Contudo, eu não queria acabar já com a coisa. Gostava que telefonasse ao Hiram Haldering e lhe dissesse que precisa dos nossos serviços
por mais umas duas semanas.
- E porque é que acha que eu devia fazer isso, Sr. Cone?
- Porque penso ter descoberto qualquer coisa que poderá (repito, poderá) pôr a nu a fuga de informações na sua firma no caso da Wee Tot Fashions, bem como outras fugas internas de outros bancos de investimento. Não lhe dbu garantias, mas acho que vale a pena apostar em como vou conseguir resultados palpáveis. Se não conseguir nada, pode pôr-me na lista dos falhados.
- Não, Sr. Cone, nunca faria uma coisa dessas - segue-se um longo silêncio, e por fim Twiggs continua:
- Muito bem, vou apostar em si. Vou telefonar imediatamente
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ao Sr. Haldering para lhe dizer que requisitamos os seus serviços durante mais duas semanas.
- Obrigado - diz Cone. - Mas tenho de o prevenir de uma coisa; tenciono alugar um carro, e serão os senhores a arcar com as despesas.
G. Fergus Twiggs solta uma gargalhada.
- E porque não? Perdido por um, perdido por mil.
Nessa noite, Cone compra uma embalagem grande de
lasanha, outra de salada de pepino e uma garrafa de bor-gonha. Mete-se num táxi até ao apartamento de Samantha, na East Village. A chefe põe a lasanha a aquecer no forno e ele abre a garrafa para encher dois copos. Como é hábito, sentam-se no chão e comem em cima de um dos tapetes ovais do requintado apartamento dela.
- Nem vais acreditar no que aconteceu - diz ela.- Esta tarde, o Sr. Twiggs telefonou ao H. H. e disse que te queria a trabalhar na Pistol & Burns por mais duas semanas.
- A sério? - exclama Cone, atarefado a comer. - O que é que ele quererá desta vez?
Sam olha para ele, desconfiada.
- Quando ficas com essa expressão, é certo e sabido que temos sarilhos pela frente... não tens nada a haver com o telefonema do Twiggs, pois não?
- Eu? Vá lá... como é que eu conseguiria convencer um tipo daqueles a gastar mais dinheiro, depois do trabalho estar mais que feito? Só me falta entregar-te o relatório final!
- Hum-hum!... - diz ela, sem deixar de o fitar. - Bom, agora tenho de entregar aqueles três casos novos aos outros investigadores, e já sei que vou ter de aturar
os protestos deles. Tim, há qualquer coisa que eu não saiba?
Ele levanta uma das mãos.
- Juro que não. Nunca te menti, pois não?
- Oh, meu Deus! - exclama ela, soltando um suspiro.
- Agora é que fiquei mesmo preocupada. Seu grandes-síssimo bastardo! Já devia saber que nem vale a pena perguntar-te o que é que andas a tramar!
Acabam de jantar e vão lavar a loiça. Pouco depois estão de novo em cima do tapete, cada um com novo copo de vinho.
- Queres ficar cá esta noite?
- É claro que quero! Vou-me embora de manhã cedi-nho, antes de acordares.
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- Mas que vida a nossa! - desabafa ela. - Tudo a correr, estamos sempre a dizer adeus um ao outro...
- Eh!-protesta ele. - Fizemos um acordo, lembras-te? Qualquer de nós pode pegar no apito a qualquer altura, sem explicações, sem desculpas, sem remorsos.
Ela flta-o friamente.
- Gostava de assoprar no teu apito - acaba por dizer, fazendto as pazes.
Como Sam quer ver um documentário estúpido sobre o homem mais rico do mundo, Cone despe-se e enfia-se dentro dos lençóis, depois de tirar as bonecas francesas e a colcha bordada recoberta de inúmeros pompons cor-de-rosa e felpudos.
Sam põe o som da televisão no mínimo e ele adormece pouco depois. Não ficou mesmo a dormir; era como se flutuasse à deriva entre os lençóis frescos e lavados, interrogando-se sobre se ela seria mesmo o melhor que lhe tinha acontecido na vida.
Mal dá conta de Sam desligar a TV e ir verificar a fechadura e a corrente da porta aa entrada. Ouve-a a andar pela casa, a ir à casa de banho, a sair de lá, a dtespir-se.
Por fim ela desliza para dentro dos lençóis.
- Estás a dormir? - pergunta ela num sussurro.
- Estou.
- Mentiroso. Queres esperar até dte manhã?
- Não.
Ela cola-se-lhe às costas, como uma colher, e estende a mão para o afagar. Tim pode sentir o corpo febril dela, mas a sensação é tão agradável que nem lhe apetece
mexer-se.
- Faz qualquer coisa!-exaspera-se ela.
- Queres que assobie o "Dixie"? - sugere ele. - Preferes uma Ária? Ou gostas mais de me ouvir a estalar os nós dos dedos?
Ela dá-lhe um murro nas costelas.
- Vou-te estalar mais do que isso, malandro.
A sonolência desaparece, atacam-se um ao outro no meio de gemidos, beijos e carícias duras como golpes; os corpos unem-se numa curva tão retorcida como a fita de Mõbius. Momentos depois passam ao assalto, como se qualquer deles se sentisse culpado das necessidades do outro - pecado para o qual não há perdão.
Atravessam-se na cama, dão voltas sobre voltas... se houvesse um candelabro no quarto ter-se-lam pendurado
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nele, quais acrobatas a encontrarem-se em pleno ar. Gritam juras, gemem pragas, e por fim conseguem o encontro total, cada um a acreditar na sua vitória egoísta, felizes e contentes consigo mesmos.
Cone aluga um Dodge Shadow (") porque gosta do nome do carro. Tenciona utilizá-lo para fazer de sombra a alguém e, se as coisas se complicarem, para se pôr a milhas. É um compacto de duas portas com características ideais para a condução em cidade.
Vai experimentá-lo num engarrafamento na parte alta da cidade. Passa em frente à Steiner Waste Control, na Décima Primeira Avenida, e fica surpreendido com o tamanho do depósito, que ocupa quase um quarteirão. A tarde já vai no fim e o sítio está relativamente calmo: só há um camião a descarregar e outro a aguardar vez no meio da grande placa de cimento a meio do depósito.
Volta para o sótão e telefona a Neal K. Davenport.
- O que é que queres agora? - pergunta o detective do NYPD. - Estou a comer um cachorro, por isso vê lá se te despachas.
- Isso é que é o teu almoço? A esta hora?
- Julgas que aqui temos horas para o almoço como vocês, seus mangas de alpaca? O que é que andas a tramar, sherlock?
- Conheces alguém da Brigada do Crime Organizado?
- Talvez conheça. Porque é que perguntas? Tens alguma coisa para eles?
- Nã - responde Cone. - Só lhes queria fazer umas perguntas.
- Mas que raio pensas tu que isto é? Uma rua de sentido único? Quando é que começas a fornecer-nos algumas respostas? Sempre me saíste um espertinho... Okay, por
esta vez alinho no teu jogo. O único tipo que conheço no Crime Organizado é um tal Joe
D'Amato. Veste-se como um professor universitário, mas sabe mais da rua do
que tu e eu juntos. Vou-lhe telefonar a dizer que és o maior cretino desta cidade; se ele quiser falar contigo, o problema é dele.
- Obrigado - diz Cone. - Fico a dever-te um favor.
- Só um? - protesta o detective, indignado. - Já nem
(1) Em inglês, shadow significa sombra e o termo dodge é sinónimo de fugir. (N. do T.)
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sequer sabes contar pelos dedos? Se pensares bem és capaz de chegar aos vinte e dois... estás a perceber, rapazinho?
Cone desliga suavemente. Vai buscar as listagens de computador que Jeremy Bigelow lhe forneceu e escreve num papel à parte todos os nomes de indivíduos de fora da
cidade que compraram 9000 acções da Trimbley & Diggs, Inc. Ao todo são dez; Cone escreve à frente de cada um o nome da cidade onde compraram as acções da T&D.
Cleo mia desconsoladamente, por isso muda-lhe a areia do caixote, dá-lhe água fresca e vai inspeccionar o conteúdo do frigorífico desconjuntado, para ver que género
de banquete poderá preparar para si e para o animal. Descobre três ovos, um pedaço de salame e uma fatia de queijo já esverdeado e recoberto de pedacinhos de pimentão
jalapeno.
Corta o salame em cubos, frita-os junto com os ovos e junta-lhes pedaços de queijo, preparando assim a sua dose diária de colesterol. Para sobremesa contenta-se
com uma banana enegrecida. Sabe-lhe tudo muito bem, e até Cleo não levanta objecções, excepto talvez no que se refere ao queijo picante, que o faz espirrar várias vezes.
O telefone só toca por volta das nove da noite, e Corte, que é supersticioso, vai atender com os dedos em figa.
- Está?
- Timothy Cone?
- Sou eu. Quem fala?
- Sargento Joseph D'Amato. O Neal Davenport disse-me que você queria falar comigo.
- É verdade. Obrigado pela atenção.
- Devo preveni-lo de que esta chamada está a ser gravada. Aqui no meu serviço é o procedimento normal. Não se importa?
- Absolutamente nada. A única coisa de que disponho é uma lista de nomes e as cidades onde vivem. Estava a contar que você me desse algumas indicações sobre os tipos.
- Quem são?
Cone não vê razões para não lhe dar a informação, especialmente se quer um favor do polícia.
- Nas últimas duas ou três semanas, todos eles compraram grandes lotes de acções da mesma companhia.
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Julgo que se pode tratar de um caso de fuga de informações.
- Eh, espere aí um bocadinho! - diz D'Amato.- Isso é um crime federal, não nos diz respeito.
- Talvez diga - replica Cone. - Acho que estes tipos estão a obter as informações junto de uma mulher que gere uma empresa privada de recolha de lixo no West Side
de Manhattan. Tenho o pressentimento de que todos eles são suspeitos, devem constar dos vossos ficheiros.
Segue-se um momento de silêncio, até que o outro volta a falar:
- Muito bem, venham daí esses nomes. Tente pronunciá-los devagar e com clareza, o meu gravador é quase uma peça de museu. Soletre os apelidos.
Cone faz como lhe pedem.
- É tudo - diz quando acaba.
- Alguns deles já me estão a espevitar a memória - diz o sargento. - E você tem razão: não são gente agradável. Vou ver no computador, e depois volto a ligar para si.
- Obrigado.
- O Neal disse-me que você é um filho dã mãe cheio de segredinhos... se me está a esconder alguma coisa, o melhor é dizê-lo desde já. Não gosto de trabalhar para detectives particulares a não ser que ganhe qualquer coisa com isso.
- Compreendo perfeitamente, mas a verdade é que não lhe estou a esconder nada. Disse-lhe tudo o que sei.
- Muito bem - diz D'Amato. - Mas se me trair uma vez que seja, então ajustamos contas, camarada. Capisci?
- Capisci - assegura Cone.
Nessa noite, por volta das onze horas, vai de carro até à parte alta da cidade. Estaciona dois quarteirões adiante da Steiner Waste Control e faz o resto a pé. O depósito está rodeado por uma rede alta e grossa, e o pátio enorme e cheio de camiões está iluminado por dois potentes projectores. Há uma casota junto ao portão de entrada, e o guarda-nocturno está cá fora, a olhar para o céu recamado de estrelas. É um tipo possante, e o que tem dentro do coldre não é de certeza uma salsicha.
Cone percebe ser impossível entrar nos escritórios da Steiner para se apoderar da lista de clientes da firma. Só lhe resta uma alternativa, que o leva a gemer em voz alta ao aperceber-se da trabalheira que o espera.
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Não vai desistir; já não é a primeira vez que faz trabalho de burro, e sempre conseguiu safar-se nas calmas. Como tal, na quinta-feira de manhã, bem cedo, está estacionado na Décima Primeira Avenida, mesmo em frente à Steiner Waste Control. Veio, preparado com duas sandes enormes (bologna com mostarda e rosbife com molho de tomate) e quatro latas de cerveja Miller, guardadas dentro dé um saco de plástico cheio de cubos de gelo.
O depósito de lixo acorda para a vida. Cone vê o portão ser aberto de par em par. Os empregados chegam aos grupos, ouvem-se motores de camiões a arrancar, a bomba
da gasolina começa a funcionar, e às tantas uma mulher baixa e fortalhaça sai
dos escritórios e grita qualquer coisa que Cone não consegue ouvir para um velhote
que sai a coxear de um barracão de chapa ondulada.
Há seis compactores Loadmaster, enormes e pintados de amarelo. Timothy Cone agradece a Deus e aos seus anjos da fortuna pelo facto de os camiões da Steiner Waste
Control não só terem o nome da firma pintadò nos lados como ostentarem cada um o respectivo número, de 1 a 6. Pelo menos não corre o risco de seguir o mesmo camião
durante uma semana inteira.
É esse o seu plano; não é capaz de pensar em nada melhor se quiser descobrir com quem trabalha a Sally Steiner. Não lhe parece que a mulher tenha um informadtor em Wall Street, por isso deve estar a obter as informações confidenciais através de um dos seus clientes. É arriscado, mas Cone não tem outra alternativa.
O camião n.? 4 é o primeiro a sair, e Cone arranca com o Dodge para o seguir. Durante as sete horas seguintes vai bebendo os gases de escape do camião, parandb quando ele pára, arrancando quando ele arranca, voltando ao depósito sempre que o outro vem descarregar o lixo depois de cheio.
Entretanto aproveita para ir tirando apontamentos nas costas de um sobrescrito amarfanhado, que originalmente continha uma carta desagradável do IRS a avisá-lo de que ainda deve ao Tio Sam 17.96 dólares de imposto. Regista o itinerário do camião n.? 4: nomes e moradas dos sítios de recolha, restaurantes, prédios de apartamentos, cafés, instalações industriais, bares.
No fim do dia, consumidas as sandes e as cervejas, Cone sente-se mais que aborrecido, sem saber se terá
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a coragem suficiente para continuar com aquilo durante o resto da semana. O que o preocupa é a possibilidade de cada um dos camiões numerados ter um esquema de recolhas
diferente de dia para dia. Se for esse o caso, precisará de mais de um mês para compilar a lista de todos os clientes de Sally Steiner.
Na sexta de manhã volta a estacionar em frente ao depósito, à espera. Dos portões da Steiner saem várias camionetas de caixa aberta cheios de enormes bolas de papel,
enquanto outros transportam cubos de lixo comprimido para serem levados, pensa Cone, até aos grandes depósitos de Long Island ou de Nova Jérsia. De permeio surgem camionetas mais pequenas com toneladas de restos de comida, mas Cone nem sequer imagina qual o destino a dar àqueles dejectos.
Na sexta-feira segue o camião n.? 2, na segunda faz sombra ao n.? 5 e na terça encarrega-se do n.? 3, começando a pensar que por ali não vai a lado nenhum. Contudo, na tarde de terça, acontece uma coisa que o leva a regozijar-se com o tempo até então perdido.
Cone já reparou que os camiões grandes da Steiner são operados por equipas de dois homens, o condutor e o carregador. Na terça-feira, o camião n.? 3 é conduzido por um tipo ruivo com o mapa da Irlanda estampado na cara. O carregador é um negro de ombros possantes com ar dè quem pode tirar uma porta dos gonzos sem qualquer dificuldade.
A rotina de terça-feira daqueles dois mantém-se normal e monótona até cerca da uma da tarde, altura em que o camião n.? 3 abranda a marcha e se desvia para um beco que corre ao longo das traseiras de um edifício de um só andar, ao fundo da Décima Avenida. Cone estaciona do outro lado da rua e abre o seu segundo maço Camel do dia. Do sítio onde está sentado, pode ver perfeitamente o que se vai passando.
O carregador desce do camião, mas em vez de ir buscar os contentores cilíndricos colocados no beco para a recolha, sai do beco e começa a subir a Décima Avenida. Cone endireita-se, tão interessado que até se esquece de acender o
cigarro.v
Minutos depois, entra no beco uma carrinha Chevy a cair aos bocados, detendo-se mesmo atrás do camião da
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Steiner. O carregador desce da carrinha, abre as portas traseiras e começa a enfiar os contentores lá dentro.
- Mas que raio...? - diz Cone em voz alta, apercebendo-se então de que tem dois cigarros acesos ao mesmo tempo. Molha o polegar e o indicador para tirar um da boca,
apagando-o cuidadosamente no cinzeiro. A carrinha, carregada com quatro contentores, faz marcha atrás e arranca em direcção ao topo da Décima Avenida, a norte. Cone
dá uma olhadela rápida ao edifício de onde saiu o lixo: tem uma placa de cobre junto à entrada principal, mas as letras são demasiado pequenas para serem lidas do
outro lado da rua. O camião amarelo não saiu do mesmo sítio, por isso Cone põe o motor a trabalhar e segue a carrinha.
Mas que passeio! Sobem a Décima Avenida até à Rua Cinquenta e Quatro e viram para a Oitava Avenida. Seguem-na para norte e entram na Broadway, seguindo daí para
a Rua Setenta e Dois. Viram para leste, aproados ao lado poente do Central Park, e pouco depois enfiam na Rua Oitenta e Seis. Mais uma curva à direita e atravessam
o Parque através da Traverse Três. Cone dá graças aos céus por ter o depósito cheio.
Mantém-se logo atrás da carrinha, mas o trânsito citadino é intenso e só dificilmente o condutor da carrinha o descobrirá, e isso se estiver a contar com" uma possível
sombra. Cone sente-se seguro: o tipo tem vindo a guiar a uma velocidade constante e não faz tentativas para despistar ninguém.
No East Side. viram para a Primeira Avenida e continuam para norte, quase chegando à Rua Cento e Vinte e Cinco. Cone já calcula qual será o destino: a Ponte Tri-borough.
Se calhar o tipo meteu-se numa hégira para ir despejar os quatro cilindros em Long Island, num qualquer terreno deserto; mas não, isso não faz o mínimo sentido.
Por norma, o conteúdo daqueles contentores teria sido entregue no depósito da Steiner, para posterior tratamento.
A velocidade aumenta à medida que a intensidade do tráfego vai diminuindo. Detêm-se por momentos para pagarem as portagens, e atravessam o braço de mar. Cone acelera o seu Dodge Shadow para se colocar a par da carrinha, e olha de esguelha: o carregador parece ir divertido. Fuma um charuto murcho e vai marcando no volante o compasso de uma música que Cone não consegue ouvir.
Entram na via rápida de Long Island a boa velocidade Pouco depois viram para a Northen State Parkway, des viando-se mais adiante para a Sunken Meadow State Parkway. A carrinha começa a abrandar a marcha, e Cone tem tempo para apreciar os arredores. Uma zona bonita cheia de árvores por entre as quais espreitam vivendas impressionantes delimitadas por sebes dè tabuinhas brancas.
Descem a Main Street de Smithtown e entram num bairro onde as casas são ainda maiores, rodeadas por amplos relvados entrecruzados por áleas de gravilha conduzindo às portas de entrada e às garagens com capacidade para dois ou três carros.
A carrinha Chevy entra por uma dessas áleas. Cone segue em frente durante um bocado, abranda junto a um cruzamento e estaciona. Sai, acende um cigarro e faz a pé o caminho inverso. Deixa-se ficar ao abrigo de um pequeno molhe de pinheiros e observa o carregador a tirar os quatro contentores, um de cada vez, guardando-os numa garagem de aspecto cuidado, com o tecto de madeira.
Depois de arrumada a carga, o homem pega de novo nos contentores e enfia-os dentro da carrinha - ou pelo menos assim parece; os contentores são iguais aos descarregados. Timothy sente-se confuso até compreender o que se está a passar: o tipo acabou de entregar quatro contentores novos, e veio buscar outros quatro que já estavam dentro da garagem.
O carregador da Steiner senta-se ao volante da carrinha e arranca. Cone não duvida do caminho que tomará: de regresso ao local onde ficou parado o camião n.? 3, para descarregar o lixo nas entranhas do enorme Load-master amarelo e voltar a colocar os contentores vazios nas traseiras do edifício da Décima Avenida.
Cone deixa-se ficar onde está, vigiando a garagem e a vivenda. Um sitio agradável; a casa tem dois andares e numerosas janelas. A metade inferior das paredes é de tijoleira, enquanto o restante está revestido com tabuadò branco. Num dos lados há um terraço para onde se passa através de painéis de correr envidraçados. A vivenda
está assente no meio de um terreno com pelo menos um acre, e o relvado parece ser tratado por uma manicura; aqui e ali surgem várias peças de mobiliário ao estilo
vitoriano, todas em ferro forjado pintado de branco.
Resolve avançar para ir ver o nome inscrito na caixa
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do correio; se alguém o interpelar, dirá que é a senhora da Avon. Contudo não tem de recorrer a tais subterfúgios: mal começou a caminhar pela álea de gravilha,
a caminho da entrada, quando se lhe depara uma placa montada num poste curto espetado no relvado. VIVENDA STEINER.
- Oh, oh, oh!-diz Cone em voz alta. Volta para o carro, dá meia volta e dirige-se para a cidade. Acelera tanto como os táxis na auto-estrada e nas vias rápidas,
esperando chegar à Décima Avenida a tempo de assistir ao fim daquela pequena operação. O trânsito adensa-se, mas nada que se compare com o que sai da cidadte; aí
é pára-choques contra pára-choques.
Está de volta a Manhattan às quatro horas, mas leva quase três quartos de hora a atravessar o West Side. Quando finalmente estaciona na Nona Avenidia, o relógio
marca 5.00 PM. Quase que corre até chegar ao edifício de um andar. A placa de cobre ao lado da entrada anuncia: TIPOGRAFIA BECHTOLD. Só isso, nada mais.
A porta da frente ainda está aberta, mas quando entra a loira avantajada da secretária da recepção já está a pôr o chapéu, que faz lembrar um penico em veludo.
- Já estamos fechados - informa ela.
- Não estão, não - responde Cone, brindando-a com aquilo que ele pensa ser um sorriso cativante. - A porta está aberta... só queria encomendar umas folhas timbradas,
blocos de facturas e cartões-de-visita.
- Não fazemos esse tipo de trabalho - contrapõe a loira.
- Não fazem? - espanta-se ele. - Bom, nesse caso que género de trabalhos é que aceitam?
- Só imprimimos para os meios financeiros - diz ela.
- Muito obrigado - diz o detective da Wall Street, tocando com a ponta do dedo no boné de couro. - Peço desculpa por a ter incomodado.
De volta ao Doclge Shadow, apercebe-se de que nesse dlia ainda não comeu nada de nada. Engole as duas sandes que trouxe (salame e ovos com salada) e emborca duas cervejas. Os cubos de gelo do saco de plástico há muito que derreteram, e a cerveja nada tem de fresca. Enfim, pelo menos está molhada.
Volta para o sótão a assobiar de contentamento.
Na quarta-feira de manhã acorda com a boca a saber a lã molhada e o estômago pronto para fazer uma razoável imitação do Krakatoa. Decide nunca mais beber brande.
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Um italiano com cachorros quentes picantes, feijões guisados e sauerkraut. Até Cleo, que compartilhou a mesma refeição, tem um ar abalado.
Vai a pé para o escritório. Inesperadamente, o dia está límpido e o vento, fresco, assobia por entre os prédios. Respirar aquela atmosfera etérea é o mesmo que enfiar um tubo descongestionante em cada narina. Quando chega à John Street já se sente muito melhor, e convence-se de que poderá viver mais uns dias.
- Obrigado por apareceres - diz-lhe Samantha Whatley em tom azedo. - Nem sei como é que tens tempo para isso. Ainda falta tanto para o dia do pagamento...
- Aguenta aí-protesta ele. - Sabes muito bem que tenho andado atarefado com a Pistol & Burns. Estou praticamente a viver com o G. Fergus Twiggs...
- Com que então agora vives com ele, hem? É por isso que tens três recados na tua secretária para lhe telefonares assim que puderes.
- Oh!-diz Cone. - Bam, deve ter acontecido alguma coisa. Vou telefonar-lhe já.
- É mais do que fazes por mim, seu bastardo!-diz ela em voz baixa.
- A sério, tenho andado muito ocupado - desculpa-se Cone, fugindo para o seu gabinete antes que ela o comece a chagar por causa dos relatórios semanais em atraso.
Há mesmo três recados de Twiggs, bem como outro de Joseph D'Amato. Cone liga primeiro para o sargento.
- Cristo, você é um homem difícil de encontrar! - começa o detective do NYPD. - Telefonei-lhe para casa aí umas duas vezes, e por fim resolvi experimentar o escritório.
Oiça, temos de ter uma conversa.
- Claro. Que tal ao meio-dia, aqui na minha firma? Podemos comer uma sandes e estrilhar o tempo que quiser.
- De acordo - responde D'Amato. - Não falto.
- Tem alguma coisa para mim? - pergunta Cone, esperançado.
- Encontramo-nos ao meio-dia - diz o sargento, desligando de seguida.
Cone liga então para G. Fergus Twiggs. Conseguir falar com o sócio maioritário da Pistol & Burns é o mesmo que solicitar uma audiência à rainha de Inglaterra, mas
o detective da Wall Street aguarda pacientemente, até que por fim surge a voz de Twiggs - normalmente alegre, mas desta feita com um tom entristecido.
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- Receio estarmos a braços com outra - anuncia ele.
- Mais uma fuga interna?
- Exacto. E ainda por cima num negócio que mal arrancou. Não compreendo! É deveras deprimente.
- Posso estar no seu escritório daqui a meia hora. Não lhe quero roubar o seu tempo, mas acho que lhe posso levantar o moral.
- Então de que está à espera? Venha já!
Timothy chega aos escritórios da P&B vinte minutos cfepois, e não demora nada a ser recebido pelo Chefe da Segurança Interna. O homem, pequeno e gorducho, está com ar abatido, e mal é capaz de lhe dirigir um sorriso entristecido.
- É uma fusão - explica a Cone. -Duas companhias do ramo alimentar. Vai-me desculpar mas prefiro não men cionar os nomes.
- Com certeza, não tem mal nenhum.
- De qualquer maneira, o negócio ainda vai na fase inicial. De certeza que só é conhecido aí por umas cinquenta pessoas, no máximo. Contudo, ,o volume de compras das acções da companhia mais pequena já começou a aumentar, a cotação subiu dois dólares desde a última segunda-feira.
- Hum-hum! - diz Cone. - Suponho que já emitiram vários documentos?
- Claro, as propostas preliminares. Sugestões para trocas de acções entre as duas companhias e análises dos problemas da fusão dos dois grupos de gestores.
- E esses documentos foram impressos e distribuídos por essas cinquenta pessoas?
- Naturalmente! Têm todas uma palavra a dizer, e nós temos de as manter informadas do que se vai passando.
- Qual é a vossa tipografia?
- A Bechtold1, na Décima Avenida. Já a utilizamos há imensos anos, e considero-os da máxima confiança. O Fre-dterick Bechtold manda-me um presunto fumado todos or Natais.
- Conhece alguém na Snellig Firsten Holbrook? - pergunta Cone de chofre.
Twlggs olha para ele, confuso.
- Sim, conheço o Greg Vandiver, um advogado espr cializado em arbitragens de risco. Faz parte da minha
tripulação nas regatas do nosso clube de vela.
- Não se importa de lhe telefonar agora e perguntar
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qual é a tipografia usada pela Snellig Firsten Holbrook. Como sabe eles também foram apanhados.
Twiggs faz a chamada e a pergunta; pouco depois de liga e fita Cone com um ar soturno.
- É a Tipografia Bechtold, da Décima Avenida - informa.
- Mas claro - diz Cone. - Aposto que há mais uma dúzia de banqueiros e corretores a
servirem-se dessa tipo grafia...
-O senhor está a dizer-me que o Frederick Bechtold, um homem simpatiquíssimo e distinto que até me manda presuntos
defumados, está a divulgar os segredos dos seus
clientes?
- Nada disso, o homem não tem culpa nenhuma. Acontece é que anda a deitar fora lixo muito valioso.
Cone explica-lhe então o que se está a passar: as primeiras provas tipográficas são invariavelmente deitadas fora, seguindo-se novas provas até a densidade da tinta
estar correcta, as cores coincidirem e a cópia ficar devidamente centrada na página.
- Todas essas provas são deitadas fora. Aqui entra em cena uma firma privada de recolha de lixo, que esvazia os contentores para dentro dos camiões que o senhor
e eu tão bem conhecemos. No caso vertente, trata-se de uma companhia do ramo chamada Steiner Waste Control, com sede na Décima Primeira Avenida. O patrão é uma tal Sally Steiner, que ainda por cima gosta de jogar na Bolsa. A mulher sabe o tipo de trabalhos a que se dedica a Tipografia Bechtold, e sempre que o lixo é recolhido, os contentores são entregues na casa dela em Smithtown. Depois basta-lhe procurar no lixo até encontrar o que quer. E olhe que tem encontrado coisas de valor...
O rosto de Twiggs fica muito vermelho, e por momentos Cone receia que o sócio maioritário esteja prestes a sofrer uma paragem cardíaca, ou pelo menos um ataque de fúria. Contudo, e inesperadamente, Twiggs desata à gargalhada, o rosto contorcido de gozo, as lágrimas a escorrerem-lhe pelas faces. Ao mesmo tempo vai esmurrando o tampo da secretária descomunal.
- O homem do lixo!-consegue dizer, arquejante. - Oh, meu Deus, só me faltava essa! Vou ter história para os jantares dos próximos anos! Pode crer que acredito em si da primeira à última palavra.
- Pois pode - diz Cone, acenando com a cabeça. - Aqui há uns anos atrás uma tipografia especializada em assuntos
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financeiros lia todo o material enviado pelos clientes da Wall Street e punha-se a comprar e a vender acções com base nos documentos enviados para impressão... ganharam
balúrdios, mas a SEC acusou-os de fuga de informações. Acho que foi o primeiro caso do género a acabar no Supremo Tribunal. O réu foi dado como inocente, mas o certo
é que a lei nunca conseguiu definir concretamente o que é o aproveitamento das fugas de informação. O caso do lixo não passa de nova abordagem de um velho esquema.
- E agora o que é que podemos fazer?
- Em relação à fusão em curso, nada. É coisa que já se soube, não se pode voltar atrás. No futuro, Porém, tem de tomar várias opções. Pode contratar uma nova tipografia, mas aí não tem qualquer garantia de que a coisa não suceda de novo. Se continuar com a Bechtold, a cada vez que lhe mandar documentos para imprimir faça-os acompanhar
por um par de homens seus, para se certificarem de que as provas tipográficas são destruídas a tempo. Ou então... e esta é a hipótese que me parece mais adequada...
equipe o seu Departamento de Fusões e Aquisições com um desses novos sistemas de impressão por computador. Não conseguirá obter cópias a seis cores ou capas de luxo, mas será capaz de produzir a maior parte dos documentos de que necessita, incluindo gráficos, tabelas e esquemas. É tudo feito pelos computadores, e.os documentos impressos podem ser numerados e codificados para não serem desencaminhados. As máquinas não são baratas, mas mesmo assim podem poupar-lhe uma fortuna em custos de impressão. Além disso a sua segurança ficará cem vezes melhor do que se continuar a enviar os seus segredos a uma tipografia estranha à firma.
- Vou analisar isso imediatamente - diz Twiggs. - Acho que faz sentido. Vai denunciar essa firma de recolha de lixo à SEC?
- Assim que me for possível.
- E o que é que vai acontecer a essa... como é que se chama a mulher?
- Sally Steiner. Bom, segundo penso, trata-se de uma senhora esperta e corajosa. Provavelmente sabe que se for apanhada pode safar-se com um sorriso nos lábios. Se é a mulher de armas que eu penso que seja, lutará contra qualquer tentativa da SEC para a incriminar ou obrigar a devolver os lucros. No fundo, o que é que ela fez? Limitou-se a vasculhar uns quantos caixotes de lixo, nada mais.
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Safa-se com uma perna às costas. Deve ser isso o que ela pensa, e quanto a mim deve ter toda a razão, apesar di eu odiar ter de o admitir.
- Será que ela gostaria de trabalhar para um banqueiro de investimentos? - interroga-se G. Fergus Twiggs com ar sonhador.
Cone sorri e levanta-se para sair.
- Podia ter sido muito pior - diz ele. - Tive muito prazer em o conhecer, Sr. Twigg. Não se esqueça do sistema de impressão por computador. É capaz de o ajudar bastante.
O sócio maioritário aperta-lhe a mão com força.
- Muito obrigado por tudo o que fez, Sr. Cone. É um prazer lidar com alguém que gosta do trabalho que faz.
- E eu gosto? - replica Timothy Cone. - Sim, pensando bem acho que gosto.
Neal Davenport tinha razão: o sargento Joseph D'Amato parece e veste-se como um professor universitário. É um fulano alto e esquelético com uma cara à Monte Rushmore
e manápulas poderosas. O casaco de lã tem cotoveleiras de couro, e os sapatos bicudos brilham como um espelho. Fuma uma cigarrilha comprida e fina, o que leva Cone
a acender aliviado o seu nono cigarro do dia.
Telefona à pastelaria da esquina a encomendar hambur-gers, batatas fritas, pickles e quatro latas geladas de Bucl. Comem e falam ao mesmo tempo, acenando ocasionalmente com uma batata frita ou um pickles para frisar este ou aqueles aspecto.
- Os nomes que me deu são todos de gente ilegal. - diz D'Amato. - São membros da mesma Família.
- Nova Iorque? - pergunta Cone.
- Sim, mas nenhuma das Cinco Grandes. São mafiosos de segunda ordem, chefiados por um patife que dá pelo nome de Alonzo Departeur. Nem sequer é italiano, e muito
menos siciliano. É conhecido pela alcunha de Pat Lonny, e se alguma vez o vir compreenderá porquê. É tão obeso que se torna obsceno.
- E a Família dele... a que é que se dedica?
D'Amato acena com um pickle.
- Pode considerá-los como hienas, entretêm-se a chafurdar nos restos deixados pelas grandes Famílias. Não podem operar sem autorização dos graúdos e, é claro, pagam
do bom e bonito para poderem trabalhar.
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- Como é que sabe isso tudo? - pergunta Cone, curioso.
- Graças às dicas - responde prontamente o sargento.
- Temos informadores dentro de cada uma das Famílias de Nova Iorque. Quando apanhamos um tipo com a boca na botija, damos-lhe a escolher: ou vai passar dez anos na choldra ou vira a casaca e fica a pertencer-nos. Você ficaria surpreendido com o número de bandidecos dispos-postos a trabalhar para nós... cantam como canários no cio. Alguns dos grandes até estão sob escuta.
- O que é que aconteceu ao código do silêncio?
- A Omertà? Esqueça-a. Talvez vingasse aqui há dez anos atrás, mas hoje é cada um por si. O crime organizado está a transformar-se em crime desorganizado. Seja como for, os nomes que você me deu estão todos associados ao bando do Departeur, que tem sede em Nova Iorque mas opera ramificações por todo o país. Encarregam-se das colectas diárias para os Cinco Grandes e deixam-nos tratar de parte da droga, extorções, prestamismo e mais coisas menores, tais como restaurantes, clubes nocturnos e tascas.
- Acha que estão relacionados com a recolha do lixo?
- Oh, claro! Além disso ainda se encarregam das lavandarias, da venda de bebidas alcoólicas e exercem um certo controlo sobre os sindicatos da construção civil, cimenteiras, firmas de canalizações e fornecedores de material eléctrico.
- E quanto à Wall Street?
- Que eu saiba não se metem nisso. Os Cinco Grandes proíbem-no terminantemente. O motivo por que lhes estou a contar tudo isto é que um dos mandões da Família Departeur
era, até aqui há uns dias, um patife chamado Vic Angelo. Você é capaz de ter lido as notícias do assassínio dele no Hotel Bedlington. Quem ficou com o lugar dele foi o adjunto, um tal Mario Corsini. E Corsini é um dos nomes da sua lista... o que lhe deve interessar.
- Você pensa que o Corsini tratou da morte do Vic Angelo?
- Não tenho a mínima dúvida. É voz corrente na rua, mas o certo é que não temos provas que justifiquem a prisão de Corsini, e muito menos uma incriminação. Enfim, vamos tentando arranjá-las.
- E esse Corsini também se dedica à extorsão de companhias privadas de recolha de lixo?
- Claro. Porque é que pergunta?
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É assim que, pela segunda vez nessa manhã, Cone descreva as actividades de Sally Steiner. explicando o processo por ela arranjado para descobrir dicas proveitosas em relação às cotações da Bolsa.
- Formidável!-exclama D'Amato quando Cone acaba.
- Aposto que ela anda a passar essas informações ao Corsini. Só não sei é porque o fará... talvez goste dto tipo. Há mulheres que vêem os mafiosos como se fossem
os reis da merda.
- Talvez - diz Cone. - Ou então é ele que a anda a pressionar, e as informações sobre a Bolsa são o modo dela pagar a sua continuação no negócio.
- Também pode ser -concorda o sargento. Limpa delicadamente os lábios com um guardanapo de papel, reclina-se na cadeira e acende mais uma das suas cigarrilhas quilométricas antes de continuar. - Na lista que você me deu, a morada de Corsini é dada como sendo em Atlantic City. O tipo vive em Queens, mas é muito capaz de ter comprado as acções através de um corredor em Atlantic City. Não há nenhuma lei contra isso, e o mais provável é o corretor ser amigo dele ou da Família Departeur. Você está preocupado com qualquer coisa, não está?
- Não sei bem - diz Cone, irritado. Temos estado a assoprar o fumo, mas a verdade é que dispomos de muito poucos factos concretos. São só suposições e talvez... não me parece que todas as companhias privadas de recolha de lixo em Nova Iorque estejam a ser extorquidas pela mafia. Quero dizer, não temos qualquer prova de que o Mario Corsini ou qualquer outro tipo de mafia esteja a cobrar dinheiro à Steiner Waste Control. Como é que poderemos provar uma ligação dessas?
O sargento D'Amato sorri com ar pacífico.
- Aqui há uns sete ou oito meses atrás, o Corsini mandou vir um primo da Europa. Está legal; o miúdo tem todos os papéis necessários. Chama-se Anthony Ricci. Seja
como for, na lista que você me deu havia dois grandes compradores em Atlantic City: um é o Mario Corsini e o outro é o Anthony Ricci.
- E depois? - pergunta Cone. - O que é que isso prova?
- O Anthony Ricci trabalha na Steiner Waste Control.
- Caramba, isso merece mais um cheeseburger! - comenta Timothy Cone.
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- Aqui tens!-diz Eddie Steiner, apontando com a mão.
- Em toda a tua primitiva glória
Sally é confrontada com o quadro a óleo terminado, ainda montado no cavalete.
- Jesus! - exclama. - Fizeste-me parecida com uma lutadora í
- Mas tu és uma lutadora - contrapôs o irmão. - Esque-de-te lá da tua vaidade só por um bocadinho; o que é que pensas do quadro?
- É bom, Eddie. - admite ela.
- Bom? Esta maldita tela saiu-me magnífica! É um retrato e pêras, o melhor que fiz em toda a minha vida. Nunca serei capaz de fazer melhor. Aliás também nunca conseguirei encontrar um modelo como tu.
Ela aproxima-se para ver a tela mais de perto.
- Cuidado - previne ele. - Não lhe toques, ainda não está seco. Só o acabei ontem à noite
- Vou ter de perder uns quilos - diz Sally. - Olha-me para estas coxas! E o cu! Meu Deus!
- És uma mulher forte e sólida, mana. Não digas mal do que Deus te deu.
- O que é que vais fazer com ele?
- Acho que já te falei na galeria de East Village que quer fazer uma exposição minha... acabei por concordar. Aposto que este retrato será o primeiro a ser vendido.
- Espero que não o vás chamar A Minha Irmã ou qualquer coisa no género.
- Está descansada - diz Eddie, rindo-se. - Vou-lhe chamar Manhattan.
Bom título, pensa ela. Naquele corpo nu de mulher o irmão conseguiu captar o mundo cruel e excitante que é o dela. As cores são tão brutais que parecem gritar, e
as linhas secas e irregulares da composição reflectem o ritmo demoníaco da cidade.
- É mesmo - diz ela. - Acho que conseguiste uma coisa mesmo boa. Se ninguém o quiser, eu compro o.
- Para o cortares aos bocados? - comenta ele, provocante.
- Nunca. Quando for uma velhinha de cabelos brancos, olho para ele e lembro-me de como era - responde a irmã com um sorriso. - Bom, tens aqui um sobrescrito para o
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Paul. É dinheiro e um recado a dizer-lhe que acções deve comprar. Okay?
- Fica descansada, entrego-lho assim que chegar. Sabes que o Paul anda todo contente com a ideia de ser o Maravilhas de Wall Street? Ouve, lá, Sal, não te vais meter
em sarilhos por causa disto, pois não?
- Sarilhos? Mas que sarilhos? Estou a dar sugestõe sobre a Bolsa a um amigo, nada mais. Não tem nada de ilegal!
- Espero bem que não - diz Eddie. - Odiava ir visittar-te a meio do rio nas últimas quintas-feiras de cada mês, para te levar os bolinhos da Martha.
- Impossível - responde ela em tom seguro.- Ninguém me vai pôr a pata em cima.
Volta a pé para os escritórios da companhia, a pensar no retrato. Aquela tela consegue alegrar o apartamento inteiro... quanto mais o revê mentalmente, mais gosta dele. Pode ser Manhattan, mas também é uma Sally Steiner beligerante a querer saltar para fora da tela.
- Sou eu - diz ela em voz alta. - Uma lutadora!
É quase meio-dia quando chega à Steiner Waste Control. No pátio estão quatro grandes camiões amarelos a aguardar vez para descarregar. A maior parte dos trabalhadores estão do outro lado da rua, a almoçar no Stardust, mas Anthony Ricci aguarda-a na zona da recepção. Sally sabe o que ele pretende.
- Podes ir almoçar - diz ela para Judy Bering. - Eu aguento o barco até voltares.
- Sou capaz de me atrasar, Sally. Há saldos de meias no Bloomies.
- Demora o tempo que quiseres. Tony, vamos para o meu gabinete.
Não há dúvida de que o rapaz tem mesmo bom aspecto... Sally fica a pensar nas reacções do irmão se este o visse. Por fim decide que nunca os apresentará só para o descobrir. O Paul Ramsey era capaz de a matar por isso.
Ricci tem o cabelo negro e encaracolado, olhos de alcova e uma boca que parece ter sido feita para beijar. O rosto cinzelado pode não ter expressão, excepto quando ele às vezes endurece o olhar meigo, crispa os maxilares e comprime os lábios. É então que se revelam a têmpera, a determinação e a selvajaria indisciplinada do latino, o ferver do sangue que lhes é característico.
O corpo é musculoso e move-se com a elegância de um
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jovem felino. O rapaz trabalhou toda a manhã, mas não cheira a lixo; cheira antes a suor de macho com uns laivos de couro vindos da água de colónia que ele guarda no cacifo, da qual se serve todas as vezes que regressa ao depósito.
- Como é que vai isso, Tony? - pergunta-lhe Sally.- Satisfeito com o trabalho?
- Tudo bem - responde o rapaz. - Não pretendo é passar o resto da vida a acarretar contentores cheios de merda.
- Não pretendes? - diz ela, provocando-o. - Pode-se saber quais são os teus planos? Um lugar de executivo em que possas usar camisas com monograma e fatos Armani?
- Isso mesmo - diz ele em tom sério. - Acho que prefiro trabalhar sentado num gabinete.
- Com uma secretária? Uma loira de olhos azuis com um patriotismo que se veja?
Ele brinda-a com o seu sorriso de 100 watts.
- Talvez... mas não o considero necessário.
- Pois é, não me parece que tenhas grandes problemas nesse departamento. Tens alguém em especial, Tony?
Ele encolhe os ombros.
- Tenho muitas amigas, mas nenhuma em especial. O Mario quer casar-me com uma mulher que escolheu para mim, mas eu não vou nisso. O pai dela é rico e respeitado, mas ela parece-se com um... com um... como é que se chama aquela coisa que os agricultores põem nos campos para espantar os pássaros?
- Um espantalho?
- É isso! - diz Ricci, soltando uma gargalhada. - A miúda é tal e qual um espantalho. Não é o meu tipo.
- Nesse caso qual é o teu género de mulher?
Tony inclina-se ligeiramente para ela, fitando-a directamente com os olhos escuros e ardentes.
- Uma mulher mais velha - confessa em voz baixa.- Estou cansado de raparigas novas, só sabem falar de roupas e estrelas de rock, só querem ir aos restaurantes e clubes mais caros. É verdade, prefiro as mulheres mais maduras.
- Porque se mostram agradecidas? - sugere Sally.
Ele fica a pensar na ideia.
- É verdade - acaba por dizer, levando Sally a pensar
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que ele pode multo bem ser um Adónis, mas não tem nada no sítio dos miolos.
- Além disso - continua Tony-, as mulheres mar velhas já assentaram e conhecem a vida. Têm cuidado con o dinheiro, e trabalham pra valer.
- Hum, hum!-diz Sally. - Parece-me que já progra maste tudo. Um lugar de executivo - com ou sem secretária- e uma mulher madura a quem possas contar os teus problemas.
E em troca o que é que lhe darias? Suponho que serias fiel?
Ricci não se apercebe de que ela está a gozar com ele, e reclina-se na cadeira com um sorriso misterioso.
- Ela nunca se preocuparia com isso - responde. - No sítio de onde venho, o homem dá a casa, a comida e toma conta dos filhos. Aquilo que faz fora de casa só a ele diz respeito. A mulher compreende isso.
- Bom, desejo-te muita sorte - diz Sally.- Espero que descubras uma mulher rica e mais velha mesmo a teu gosto.
- Tenciono descobri-la - diz ele com toda a solenidade, fitando-a com tamanha intensidade que ela começa a ficar ansiosa.
- Temos negócios a tratar - diz Sally. Tira um sobrescrito fechado da gaveta de cima da secretária e
estendo-lho. - Sabes o que é isto, Tony?
Ele diz que sim com a cabeça.
- Mais do que eu ganho num mês a carregar caixotes de lixo - comenta.
- Bem podes acreditar - diz Sally. - Não o percas nem vás dar uma volta a Las Vegas... não preciso de recibo.
O sarcasmo atravessa-o como se ele não estivesse ali.
- Um recibo? - diz ele, confuso. - O Mario não me disse nada a propósito de um recibo.
Sally fica sem saber se o rapaz tem os parafusos todos no sítio.
- Esquece, estava só a brincar. Gostei de falar contigo, Tony.
- Talvez possamos ir jantar numa noite destas - diz ele, em tom mais afirmativo do que interrogativo. - Conheço um bom restaurante na Mulberry Street, barato mas com uma comida delizioso. Gostava de jantar comigo?
Sally compreende que se Terry Mulloy lhe fizesse a mesma proposta, tê-lo-ia mandado pentear macacos.
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- Claro - diz ela a Anthony Ricci. - Porque não?
Depois do rapaz se ter ido embora, fica a pensar porque
é que não lhe cortou as vasas ali mesmo. Não por ele ser tão bonito e estúpido, mas sim por ser primo do Mario Corsini. Sally tem o pressentimento de que ele lhe
poderá um dia vir a ser útil. Nunca se esqueceu do facto de Tony ter chegado atrasado ao trabalho na manhã em que Vic Angelo foi assassinado.
Telefona a Mario, deixa recado e ele liga-lhe passados vinte minutos.
- Entreguei o sobrescrito ao Tony - diz-lhe ela.
- Okay. Tem mais alguma coisa para mim?
- Tenho - respondeu ela, dando-lhe o nome da companhia alimentar mais pequena envolvida num processo de fusão a cargo da Pistol & Burns.
- É boa? - pergunta Corsini.
- Eu arrisquei - diz Sally. - Você faça como quiser.
- Oxalá seja boa - diz ele. - Você sabe muito bem o que é que está em jogo.
- O quê, está a ver se me assusta?
- Acha que sim? - diz ele, desligando o telefone.
Timothy Cone e Jeremy Bigelow estão outra vez a "almoçar na rua". Vão descendo o bairro financeiro em direcção à Battery, parando nesta ou naquela venda para comprar
calzone, asas de frango com molho de soja, cenouras cruas, bolinhos de chocolate, gelados e muitas outras coisas.
- Nunca mais vou trabalhar contigo num caso - desabafa o investigador da SEC. - Sempre que comemos desta maneira, engordo três quilos e a minha mulher passa a vida a protestar porque não consegue dormir por causa dos rugidos do meu estômago...
- Eu cá tenho um estômago em aço inoxidável - gaba-se Cone. - Mas nada que se compare ao do meu gato. Aquele monstro é capaz de comer pregos e cagar percevejos!
- Está cheio de sorte. O que é que pensas daqueles registos que te dei sobre a Trimbley e Diggs?
- Descobri a fuga - diz Timothy.
Jeremy pára a meio do passeio, fitando-o admirado.
- Estás a gozar comigo!
- Palavra de escuteiro - diz Cone, descrevendo pela terceira vez o modo como Sally anda a esgravatar no lixo
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da Tipografia Bechtold para encontrar provas de impres são de documentos confidenciais.
Contudo, não conta nada a Bigew sobre o envolvi mento de Mario Corsini.
Twiggs quase morrera a rir depois de ficar ao corrente, e até Joe D'Amato se mostrara divertido, mas o homem da SEC fica furioso.
- Filha da mãe!-exclama, zangado. - Devia ter detectado essas compras de 9000 acções. Como é que deste por isso?
- Acho que tive um bocado de sorte.
- Já avisaste a Pistol & Burns?
- Claro. O Twiggs telefonou-me esta manhã. Denunciaram o contrato com a Bechtold e mudaram para outra tipografia enquanto não compram o seu próprio sistema de impressão. Olha, Jerry, é melhor avisares a Snellig Firsten Holbrook.
- Podes ficar descansado - diz o outro, preocupado.- Achas que o tipógrafo também estava metido ao barulho?
- Nã - diz Cone. - Acho que está limpo. Foi descuidado com o lixo, nada mais.
- Meu Deus!-continua Bigelow, tentando limpar pingos de sorvete da lapela do casaco. - Já viste o que isto quer dizer? Temos de ir ver toda a lista de clientes da
Bechtold- com uma ordem do tribunal, se for preciso-, e alertar todos os clientes da Wall Street sobre o que se está a passar.
Era o que Cone pretendia ouvi-lo dizer. O tipo é esperto, mas não será bem a pessoa mais difícil de manipular.
- Acho bem - diz ele em tom compreensivo. - É um trabalho e pêras, mas talvez te safes melhor se fores fazer uma visita ao Frederick Bechtold. Entra a matar, diz-lhe
tudo o que sabes, e ameaça-o de o denunciares a todos os clientes da Wall Street se ele não montar um incinerador e se não despedir a Steiner Waste Control. Ele
vai acreditar em ti, porque já se tramou com a Pistol & Burns.
- Sim, acho que é uma solução - concorda Jeremy, pensativo. - Dá muito menos trabalho. Não são precisas contra-fés nem acusações nem julgamentos em tribunal...
- É isso - corrobora Timothy. - Porque é que um tipógrafo inocente haveria de sofrer só por causa da
ganãncia de uma Sally Streiner?
Detêm-se junto a um toldo para um último bolo de chocolate
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gigante. Continuam rua fora. comendo com guardanapos de papel debaixo do queixo.
- Sally Steiner... - repete Bigelow. - O que é que vamos fazer com ela?
- O que é que podes fazer? - pergunta Cone. - Tens de enfrentar a situação: não tens a mínima hipótese de conseguir uma acusação fundamentada por aproveitamento de informações confidenciais. A Sally é uma tipa manhosa, e aposto que te dava luta do princípio ao fim. Talvez consigas obrigá-la a vomitar os lucros... mas mesmo assim tenho cá as minhas dúvidas. O que não irá faltar é a publicidade negativa para a SEC. As pessoas vão pôr-se do lado da Steiner, vão-se rir às gargalhadas do modo como ela conseguiu manipular o mercado de valores.
- Sim, acho que tens razão. Se fosse um negócio de muitos milhões, exigiria à Comissão um inquérito formal. Quanto é que achas que ela poderá ter ganho? Meio milhão?
- Talvez menos - responde Cone, sem se referir aos "lucros conseguidos por Corsini e pelos seus amiguinhos.- O mais importante é que vais fechar-lhe a torneira... no momento em que encostares o Bechtold à parede, sabes que ele se vai livrar da Steiner. A mulher vai perder um bom cliente e ficará sem acesso às informações confidenciais.
- Faz sentido - diz Jeremy, acenando com a cabeça.- Vou manter a coisa ao nível da investigação, e no relatório final digo que a fuga foi estancada.
- E podes ficar com o crédito todo - aconselha Cone,
- Cá por mim não quero glória nenhuma. O meu trabalho foi com a Pistol & Burns, e sei que eles ficaram satisfeitos. O resto é contigo.
- Obrigado, Tim- diz Bigelow, agradecido. - Olha lá, não ficas ofendido se eu me pirar já, pois não? Quero arrancar o mais cedo possível com este plano.
- Avança - encoraja-o o detective da Wall Street.- Diz ao tipógrafo que a culpa foi toda da Sally Steiner.
Fica a ver o homem da SEC a afastar-se apressado, atirando os restos do bolo para um cesto de papéis. Cone acaba o seu, dá meia volta e segue lentamente em direcção à Haldering & Co.
Sente-se satisfeito por ter conseguido levar a cabo a primeira parte do seu plano. Se conseguir encenar a segunda parte, o esquema é capaz de resultar. Enfim, tem de admitir que tudo depende da reacção de Sally Steiner; a
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única coisa que Cone pode fazer é pressioná-la na esperança de que a mulher acabe por ceder. A tipa é dura, mas sempre vale a pena tentar. É o seu dever cívico, diz para si mesmo reconfortado com tamanho virtuosismo. Tirando isso, aquele caso é mais difícil do que parece à primeira vista.
De regresso ao escritório, a primeira coisa que faz é telefonar a Joe
D'Amato. Fica a saber que o sargento não está disponível nesse momento. Cone deixa recado e
começa a ficar nervoso. Tudo depende da precisão das jogadas, e se não conseguir convencer
D'Amato a alinhar, então estará tudo perdido.
Fuma dois cigarros de seguida e faz uma tentativa frouxa para compor os seus atrasadíssimos relatórios semanais. Deviam ser apresentados todas as semanas a Samantha
Whatley, mas do modo como as coisas têem corrido, são capazes de se transformar em relatórios mensais.
O telefone só toca às quatro da tarde, altura em que a garganta já lhe dói de tanto fumar. O "sim?" sai-lhe como o grasnido de um corvo.
- Joe D'Amato - diz o sargento. - O que é que se passa com a sua voz?
- Demasiados pregos de caixão. Obrigado por me ter ligado, precisava de um favor seu.
- Ai sim? E que género de favor?
- Tem o número de telefone do Mario Corsini? Gostava de falar com ele.
- Para quê? Quer ir almoçar com ele?
- Não, nada disso. - Cone explica-lhe então o seu plano. - É arriscado, mas pode resultar, não lhe parece?
- Só com um milagre - diz D'Amato. - Você já viu que está a querer brincar com o fogo?
- Pois sim, mas o que é que tenho a perder? Acho que se for em frente ela é capaz de pensar seriamente em arrepiar caminho.
- Hummmm... talvez.
- Quer ser você a falar com o Corsini?
- Raios, isso nunca! A autopreservação é a primeira, segunda e terceira lei neste negócio! Não me posso denunciar, isso estragaria tudo. Vou mesmo apagar a gravação
desta nossa conversa.
- Quer dizer que me pode dar o número de telefone do Corsini?
- Não sei qual é, mas tenho o número de um clube no
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Ozone Park onde ele costuma parar. Talvez lhe dêem o recado e ele lhe ligue. É o máximo que posso fazer por si.
- É mais que bom - diz Cone. - Venha daí esse número.
Nessa noite, a caminho de casa, pára para comprar presunto - que Cleo adora - e uma embalagem de salada-
- russa. No sótão, porém, resolve adiar o festim até ter telefonado para o tal clube social de Ozone Park.
Responde um homem com uma voz a soar como se lhe tivessem partido a maçã de Adão.
- Sim?
- Queria falar com o Sr. Mario Corsini - diz Cone com toda a delicadeza.
- Quem?
- Mario Corsini.
- Não sei quem é.
- É claro que sabe - replica Cone.
- Já lhe disse, mister, não conheço aqui ninguém com esse nome, e além do mais nunca ouvi falar nele.
- Bom, nesse caso, se aparecer por aí um homem chamado Mario Corsini, peça-lhe para telefonar para o número que lhe vou dar. É muito importante. Diga-lhe que é a respeito da Sally Steiner. Percebeu? Sally Steiner.
Dá o seu número de telefone, repete-o e desliga. Depois chama Cleo para atacarem o presunto e a salada.
Cleo pega na sua fatia e leva-a para debaixo da banheira,
e Cone prepara um vodea com água para cortar a gordura.
Não lê nem perde tempo com o rádio ou a televisão. Deixa-se ficar sentado à secretária, os pés em cima do tampo, a pensar no que irá dizer se Corsini ligar.
O telefone toca pouco depois das oito, fazendo-o dar um pulo até à kitchenette.
- Olá, cara de cu - diz Samantha Whatley. - O que é que estás a fazer?
- Não te importas de desligar? - suplica ele. - Estou à espera de uma chamada muito importante.
Um longo silêncio.
- E esta o que é? Fígado picado? - grita ela. - Vai-te lixar, cretino!
- Ouve... - diz ele, desesperado. - Eu telefono-te quando...
Sam desliga de repente, e Cone volta a resmungar para o pé da garrafa de
vodca.
- Afinal quem é que precisa dela? - grita para um admirado
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Cleo, respondendo de seguida ao seu próprio desabafo;-Eu preciso...
O telefone toca de novo às nove e meia, mas a esl hora já Cone está insensibilizado e pronto para arrasar tod a Cosa Nostra e respectivas dependências.
- Quem fala? - grita uma voz.
- Estou a falar com o Sr. Mario Corsini?
- Ou me diz quem é ou desligo.
- Sr. Corsini, chamo-me Smedley Tonker, e sou inves tigador da Securities and Exchange Comission.
- E daí?
- Peço-lhe desculpa por telefonar tão tarde - continua Cone, interrogando-se sobre os anos que poderá apanhar por se passar por agente federal. - Acontece que estamos
a trabalhar sem descanso numa recente aquisição de acções da Trimbley & Diggs, incorporated. No decurso da nossa investigação, o exame cuidadoso dos registos de computador indica que o senhor e os seus associados adquiriram uma considerável percentagem das acções dessa companhia. ..
- Não faço a mínima ideia do que é que está a falar.
- Tenho a certeza de que faz, Sr. Corsini. Os nossos registos indicam uma aquisição de 9000 acções em seu nome, através de um corretor de Atlantic City.
- Já lhe disse que não tenho nada a ver com isso, não sei de nada. Para além do mais o senhor deixou recado a dizer que a chamada era sobre uma tal Sally Steiner, mas nunca ouvi falar nessa tipa.
- Nunca ouviu? É estranho, pois um primo seu, o Anthony Ricci, trabalha na Steiner Waste Control. Vamos lá, Sr. Corsini, é melhor deixar-se de brincadeiras. A nossa investigação revela que o senhor e os seus associados compraram acções com base em informações dadas pela Sally Steiner. Quer saber como é que ela obtém as informações, Sr. Corsini?
Assim, pela quarta vez, Cone conta a história do lixo da Tipografia Bechtold a ser entregue na casa de Sally em Smithtown, para que a mulher o pudesse esgravatar à procura de documentos financeiros confidenciais.
- O senhor está a afirmar que não sabe nada sobre as actividades ilegais da Sr.a Steiner?
- Vá falar com os meus advogados, seu cretino! - grita o outro, desligando sem esperar pela resposta.
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Sorrindo de satisfação, Cone prepara nova bebida, acaba com ela e liga para Samantha
Whatley.
São precisos quase vinte minutos de falinhas mansas para acalmar Sam e levá-la a aceitar o sucedido. Por fim já se tratam um ao outro por "cara de cu" e "cabeça
de merda", combinando um jantar no sótão para sábado. Cone promete trazer toneladas de entrecosto grelhado no carvão, um cesto de batatas fritas extra-grossas (com tempero de alho) e pickles variados.
- Eu levo a sobremesa - oferece-se Sam.
- Okay.
- O que é que preferes?
- Tu - diz ele.
Tempos depois, Sally Steiner recorda-se daquele dia como a Sexta-Feira Negra. O dia começa mal e vai piorando a cada hora que passa. A caminho da cidade, um maluco qualquer atravessa-se-lhe na frente e quase a obriga a enfiar o Mazda na valeta.
Pouco depois, ao entrar no escritório, descobre que o ar condicionado avariou, ainda por cima num dia abrasador. Há uma carta do banco a informá-la de que um cheque por si depositado, proveniente do tipo que lhe compra os restos de papel, vai ser devolvido por falta de cobertura. Outra carta, desta feita do IRIS, avisa-a de que a Steiner Waster Control deve mais 29 871 dólares e 46 cêntimos sobre os rendimentos do ano anterior, tendo tantos dias para os pagar, caso contrário...
Perde imenso tempo ao telefone a falar com o IRS, e quando por fim desliga, encharcado em suor, Judy Bering vem avisá-la de que o Sr. Frederick Bechtold já telefonou três vezes.
- Pareceu-me que estava prestes a explodir - avisa-a Judy. - Não parava de gritar em alemão, mas eu só consegui perceber verdammt, verdammt, verdammt. Segundo percebi parece que te quer enfiar numa das suas rotativas de alta velocidade.
- Está bem - diz Sally com um suspiro. - Vou-lhe telefonar.
Bethtold começa imediatamente a protestar, gritando as suas pragas em alemão. Sally sabe o suficiente da língua para reconhecer algumas das palavras empregues, que
não são nada agradáveis de se ouvir.
- Espere aí!-diz ela, começando a ficar zangada.
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- Zo! - grita ele. - Então sou eu que tenho de esperar, não ó? Você, sua. sua Dirne, você vai é esperar cinco anos na prisão! É à prisão que vai parar!
- Mas de que raio é que está a falar? - quer saber ela.
- Pois é, pois é - continua o homem, furioso. - Você fez-me perder o meu melhor cliente, e sabe-se lá quantos mais! Talvez todos! Com que então andava a remexer no meu lixo para ler as minhas provas e depois comprar acções, sua Schlampe! Está despedida, percele? Vai ter notícias minhas através dos meus advogados! Vai pagar bem caro por ter dado cabo do meu negócio!
Sally ouviu esta tirada ainda em pé atrás da secretária, mas de repente os joelhos começaram-lhe a tremer e teve de se sentar na cadeira giratória.
- Quem é que lhe disse isso tudo? - pergunta em voz fraca.
- Quem? Quem é que havia de ser? Um agente do Governo dos Estados Unidos! Sabem o que você tem andado a fazer... oh, sim, sabem tudinho, e você pode apostar que vai pagar bem caro. Estou à trinta e seis anos neste negócio, e o meu trabalho é o melhor. O melhor! E você, sua... sua cabra, acabou de destruir tudo o que eu...
Sally desliga e inclina-se para a frente, a cabeça apoiada nas mãos. Tenta ordenar os pensamentos, mas a cabeça parece-lhe um redemoinho; as ideias vêem, vão, saltitam, gritam a pedir atenção, dissolvem-se, regressam.
O homem do Governo que o outro mencionou deve ser aquele cretino da SEC. Como é que terá descoberto? Se já sabe de tudo sobre as negociatas com acções, então Paul Ramsey pode correr perigo. O que é que lhe poderão fazer?
O que lhe poderão fazer a ela? Maldição, há que lutar até ao fim! A bem dizer, nunca recebeu informações confidenciais dos participantes nos negócios... será que mesmo assim a acusarão? Obrigá-la-ão a devolver os lucros, para além da multa habitual? Poderá ir parar à prisão? Ridículo! Não fez nada de especial. Como raio é que eles descobriram?
Assustada - não por causa de uma possível punição, mas sim com a provável perda dos lucros conseguidos-, Sally telefona a Paul Ramsey. Graças a Deus o rapaz está em casa, e ela diz-lhe para telefonar imediatamente ao corretor e dar ordens para vender tudo ao preço corrente. Tudo.
- Bestial - diz o rapaz.
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- Não te esqueças, Paul, Fá-lo imediatamente.
- Está descansada.
A placidez dele consegue acalmá-la.
Fecha a porta do gabinete e liga para Ivan Belzig, o advogado dela, contando-lhe tudo o que se passou. Quando o homem consegue parar de rir, mostra-se indignado:
- E nem sequer se lembrou de me passar essas informações? Afinal o que é que eu sou? Um dos seus inimigos?
- Deixe-se de merdas, Ivan- atalha Sally. - Diga-me uma coisa, o que é que a SEC me pode fazer?
- Tenho de ir ver - responde ele cautelosamente. - Mas se quer uma opinião em cima do joelho, posso assegurar-lhe que nada vai acontecer. Você não teve nenhum contacto pessoal com os intervenientes nos negócios, a única coisa que fez foi aplicar a típica engenhosidade dos americanos. Podem terrtar obrigá-la a devolver os lucros, mas podemos dar-lhes luta sob esse aspecto. Oiça, eles deram cabo da sua operação, não deram? Acho que deve ser suficiente. Se eles forem ter consigo não lhes diga
absolutamente nada, percebe? Limite-se a mandá-los contactar comigo, eu cá me encarrego dos tipos. Não fique preocupada, querida, vai ver que se safa sem o mínimo
problema.
- Obrigada, Ivan - responde Sally, agradecida e sentindo-se muito melhor.
Quando desliga, dá de caras com Mario Corsini encostado à ombreira da porta.
- Obrigada por ter batido - atira-lhe ela, furiosa.
O homem aproxima-se da secretária, inclina-se para diante e apoia-se nas mãos cerradas, tão cerradas que os nós dos dedos estão brancos. Por baixo da pala do chapéu negro, os olhos são frios como gelo.
- Sua puta! - exclama ele.
- Posso explicar tudo! -começa ela. - Posso...
- Explicar uma ova! - interrompe ele, a voz fria e dura.
- Com que então era um namorado da Wall Street? Você passou mais foi o tempo toda a esgravatar no lixo! Eu devia ter desconfiado... é mesmo o seu estilo, sua filha da mãe asquerosa. Agora tenho a SEC a roer-me os calcanhares, e sabe-se lá quem mais...
- Oiça - interrompe ela, desesperada -, acabei de falar com o meu advogado e ele diz que...
- Que se lixe o seu advogado!-grita Corsini. - E você também! A SEC trabalha em conjunto com o Procurador
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Federal do Distrito, e este é unha e carne com o FBI e Deus sabe com quem mais! Agora tenho todo o
maldito Governo a fazer-me perguntas, como por exemplo onde que
fui arranjar o dinheiro e se conheço os tipos da outras cidades... provavelmente até o IRS anda a vasculhc as minhas declarações de rendimentos! Tudo isto por sua
causa, sua puta nojenta! O Vic Angelo é que sabia, ele ben me preveniu. Juro por Deus que era capaz de a liquida neste preciso momento só por aquilo que você me
fez.
- Eh, tenha calma! - diz Sally. - Está para aí a ima ginar uma data de coisas que se calhar até nem vão acon tecer. Pode ser que o obriguem a devolver os lucros
e a pagar uma multa, o que não deve ser assim tão grave para um ricaço como você.
- Não é grave, pois não? E o que é que vou dizer aos prestamistas? Afinal você tem é merda no lugar dos miolos! Oh, claro que me vou safar!, mas vou ter de engraxar as mãos a muita gente. Vai-me custar umas boas massas., já adivinhou quem é que as vai pagar?
Sally não responde.
Corsini olha à sua volta e vai até à janela para observar o movimento intenso que nesse momento se verifica déntro do pátio.
- Uma bela empresa, a sua - comenta ele. - Bons clientes, bom capital, bons camiões... os papéis estão prontos, e olhe que apesar de tudo ainda lhe vou fazer uma oferta mais que justa.
- Não me custa a acreditar-responde Sally, rígida na sua cadeira. - Acontece é que a empresa não está à venda.
- É claro que está - contrapõe Corsini, sacando de um dos seus charutos negros e retorcidos.
Acende-o e atira o fósforo gasto para cima da secretária de Sally.
- É com a sua empresa que vou recuperar o dinheiro perdido.
- Mas você não perdeu dinheiro nenhum! - grita-lhe ela.
- Na verdade ganhou bastante com as informações que lhe passei! Porque é que agora se está a armar em duro?
O mafioso inclina-se sobre a secretária e manda-lhe uma baforada de fumo à cara.
- Porque você me aldrabou - diz ele, o rosto contorcido.-Tomou-me por um papalvo, sua puta de merda. Agora é a minha vez. Se quiser continuar viva, tem de me vender a firma. É tão simples como isso.
Sally aprendeu há muito tempo que naquele mundo, quem mostrar fraqueza está perdido. Foi Jake quem lhe ensinou
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Isso. "Se lhes deres a mão eles agarram-te no braço", costumava dizer o pai. "Tens de os enfrentar. Se te empurrarem, empurra-os logo a seguir, caso contrário deitam-te ao châo e passam-te a ferro."
- Oiça, seu cretino - diz Sally, teimosa. - Você e os seus gorilas bem podem desistir de voltar aqui. O negócio pertence à minha família e é assim que vai continuar. Não assino nenhuns papéis. Pode metê-los pelo cu acima, seu grandessíssimo monte de esterco!
A mão que segura o charuto começa a tremer, e Corsini apoia-se à esquina da secretária para a firmar. Ela fica a pensar se ele a irá abater ali mesmo, mas no fundo está-se nas tintas.
- Oh, vai vender, isso é que vai! - diz ele, num tom de voz inesperadamente suave. - Talvez você tenha tomates para me fazer frente, mas já não posso dizer o mesmo da sua mãe entrevada e do maricas do seu irmão. Vou começar por eles... você fica para o fim, e acredite que antes de acabar hei -de vê-la de joelhos a suplicar-me que compre a empresa.
- Vá-se lixar - replica Sally, revelando uma coragem que no íntimo não sente.
- Há uma maneira de você continuar com o depósito - diz Mario Corsini, fitando-a com ar pensativo. - Venha para a cama comigo, talvez possamos chegar a um acordo.
- Cristo Todo-Poderoso! - exclama ela. - Só assim é que consegue arranjar uma mulher?
- Posso arranjar montes de mulheres - diz ele, estalando os dedos. - É só chamá-las. Mas eu quero-a a si.
Quero dar-lhe cabo do canastro.
Corsini começa a descrever em pormenor o que pretende fazer-lhe.
Sally levanta-se num repente.
- Seu grandessíssimo depravado!-grita ela.-Saia imediatamente do meu escritório!
- Seu? - replica ele com um sorriso maldoso. - Não por muito tempo.
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Ainda é sexta-feira, e Sally Steiner começa a duvidar de que aquele dia assustador vá acabar. Se aparecer mais algum cretino a aborrecê-la e a insultá-la, é muito
capaz de pegar na pistola e bang! - em cheio nas jóias da família.
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Judy Bering sai para almoçar, e Sally telefona para o Stardust para mandar vir uma sandes de atum e um copo de chá gelado. Contudo, a sondes sabe-lhe a papelão
e, após uma primeira dentada, vai parar ao cesto dos papéis. O chá está fresco, mas não passa de chá.
O estômago dela ainda dá voltas depois daquela troca de mimos com Mario Corsini. Vasculha as gavetas da secretária que era do pai - ainda não a mandou tirar do
gabinete - e descobre a garrafa de schnapps na do fundo. Ninguém lhe tocou desde que Jake morreu. Deita uma dose generosa no chá, mas a mistura resulta tão asquerosa
que Sally não vai além do primeiro golo.
Vai tirar um copo de plástico da pilha ao lado da máquina de café e enche-o com os cubos de gelo pescados no copo de chá; deita o schnapps sobre o gelo, conseguindo assim uma bebida capaz de lhe arrancar os cabelos. Depois do primeiro golo - que a deixa quase sem respiração-, o líquido translúcido começa a escorregar melhor, matando todas as borboletas que lhe enchem o estômago.
Está a preparar nova dose quando olha para cima e vê um homem alto e desengonçado junto à porta. Veste um fato de veludo puído e na cabeça traz um chapéu de couro
negro. Parece um maluquinho fugido do hospício, o que até se ajusta à sexta-feira negra a ser vivida por Sally. lá vem mais uma discussão com um cretido.
- Sabia-me bem uma dessas - diz o homem, apontando com o queixo para a garrafa de schnapps. Tem um sorriso estranho, mas Sally pensa que não vai ter problemas.
- Quem é você? - pergunta ela, guardando a garrafa.
- Sally Steiner?
- Sou eu. Se vem vender alguma coisa, não estou interessada. Pode pôr-se a milhas.
- Só queria falar consigo. Não lhe vou tomar muito tempo.
- Sobre o quê?
- Sobre Paul Ramsey.
- Oh, meu Deus!-exclama ela. - Você é da SEC?
- Não - tranquiliza-a o tipo. - Acha que me visto como os tipos da SEC? Chamo-me Timothy Cone, e trabalho para a Haldering & Companhia, da John Street. Dedicamo-nos
a investigações de carácter financeiro, a maior parte para clientes da Wall Street.
- Ponha-se a andar, está bem? - responde Sally, esgotada.
- Já me investigaram de uma ponta à outra, de cima para baixo e de baixo para cima.
- Bem sei - diz Cone. - Fui eu que descobri o seu jogo. A Pistol & Bums é nossa cliente. E a Wee Tot Fash-jons..-. lembra-se dessas acções? Também andei a trabalhar no outro caso de fuga de informações na Trimbley & Diggs.
Ela fica a olhar para ele.
- Você é o bastardo que me arruinou a vida?
- Sim, sou o bastardo que lhe estragou tudo - responde Cone em tom divertido.
Sally deixa escapar um suspiro.
- Só me faltava você para alegrar o dia. Tudo bem - diz ela, tirando a garrafa da gaveta-, vá buscar um copo para podermos comemorar a minha destruição.
- A coisa não está assim tão má - diz ele. - Só queria que ouvisse o que tenho para lhe dizer.
Cone volta com um copo de plástico, senta-se no sofá ao lado da secretária e tira o chapéu.
- Como é que descobriu? - pergunta ela, servindo-lhe uma boa dose de schnapps.
- O quê, descobrir que você andava a remexer no lixo da Bechtold? Segui os seus camiões. Sally arregala os olhos.
- Está a gozar comigo!
-Não, foi assim mesmo. O seu nome constava das listagens de computador a propósito do negócio da Wee Tot Fashions, e dias depois, a propósito do caso da Trimbley
& Diggs, apareceu o nome do Paul Ramsey. Fui a casa dele para lhe falar, mas decidi não entrar quando vi que o rapaz vive com o seu irmão. Portanto resolvi ver o
que se passava consigo.
- Como é que descobriu que o Eddie ó meu irmão?
- Telefonei-lhe e disse que ele tinha sido indicado como beneficiário de um seguro de vida feito por si, aproveitando para lhe perguntar qual era o vosso grau de parentesco. Ele disse-me que eram irmãos. Desculpe-me por o dizer, mas o seu maninho não é lá muito esperto quando se trata cfe lidar com a canalha da rua.
- Foi sempre assim. Diga-me, durante quantos dias é que seguiu os meus camiões?
- Quatro.
- Teve muita sorte.
- Bem sei. Segui a carrinha com o lixo da Bechtold até
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à sua casa em Smíthtown... daí para a frente foi tudo muito fácil.
Sally bebe um grande golo da bedida, que agora já lhe escorrega como seda.
- Você é üm autêntico abelhudo, não é? - comenta ela.
- Pois sou - concorda Cone, com um sorriso inesperadamente simpático.-É para isso que me pagam. Disse à Pistol & Burns para cortar com a Bechtold, e denunciei-a à SEC? Está aborrecida comigo?
- Aborrecida? Porque é que ficaria aborrecida? Você só me arruinou a vida, mais nada.
- Nã - diz Timothy, estendendo o braço para se servir de nova bebida. - As coisas não são assim tão más. Não vai acontecer nada ao Paul Ramsey... só referi o nome dele para que você não me pusesse na rua. Além disso duvido que a SEC se atire a si. Talvez tentem obrigá-la a devolver os lucros, mas se você tiver um bom advogado pode dar-lhes luta. Eles conseguiram o principal, não acha? Fecharam-lhe a torneira. Para eles é isso que importa.
- Então o que é que veio cá fazer? Rir-se de mim?
- Não propriamente - diz Cone, fitando-a nos olhos.- Gostava de conversar consigo sobre o Corsini.
- Quem?
- Mario Corsini.
- Não sei quem seja - diz ela.
- Claro que sabe - contrapõe Timothy. - O primo dele trabalha para si. O Anthony Ricci.
- Caramba, você não tem perdido o seu tempo!-diz ela, com um sorriso forçado.
- São tudo suposições - admite ele. - No entanto, suspeito que a Steiner Waste Control, como muitas das empresas de recolha de lixo desta cidade, paga à mafia para poder continuar a operar. Suponho que o Corsini é o seu cobrador; foi por isso que você lhe forneceu informações sobre a Bolsa. Não sei é se você o fez voluntariamente ou devido a qualquer pressão do tipo.
Sally levanta-se de repente e começa a andar para cá e para lá atrás da secretária, as mãos agarradas aos cotovelos.
- Você é mesmo um metediço de primeira! - desabafa ela.
- Pois sou. Então como é que era? Deu-lhe as informações porque tem um coração de ouro ou porque ele a apertou?
Não tem nada com isso - replica Sally.
- Ai isso é que tenho - insiste Cone. - Acho que o Corsini está a fazê-la passar por um mau bocado, e você foi-lhe dando as dicas para ver se se safava.
Ela vira-se subitamente para ele.
- Está bem! - grita. - Dei-lhe informações! Que diferença é que faz se as dei a bem ou a mal? Está .tudo acabado, não está?
- Não, ainda estamos muito longe disso - continua Cone em tom severo. - Por esta altura tanto ele como os seus amiguinhos devem ter tido notícias da SEC, e o Corsini já sabe como é que você conseguia as informações.
E sabe que a SEC a anda a investigar. Acabaram-se as dicas sobre cotações. Como tal, se ele antes a andava a apertar, agora vai aparecer em força... se é que já não apareceu.
Sally deixa-se cair na cadeira giratória, acaba o schnapps e fica a olhar para o fundo do copo.
- Está bem - acaba por dizer. - O certo é que você não veio aqui só para me contar a história da minha vida e mostrar que é tão esperto. Deve querer qualquer coisa. O que é?
Cone olha para ela com uma expressão de admiração.
- Lá miolos não lhe faltam - comenta. - Quero que você denuncie o Corsini. Vá ter com a Polícia e conte-lhes
tudo sobre as extorções.
- O quê, para me rebentarem com os miolos? - diz ela
com um sorriso amargo.
- Não - diz Cone, abanando a cabeça.-Os chuis podem protegê-la a si e à sua família. O Corsini não se atreverá a mexer um dedo. Nem pensar! São suficientemente espertos para saberem que qualquer gracinha é capaz de levantar uma tal tempestade que no fim acabam inculpados mesmo
sem julgamento.
- Você não os conhece - diz Sally. - Podem ser espertos, mas quando alguém os trai, aquela gente deixa de raciocinar. Olhe que não são só os campeões do orgulho estúpido, do machismo e do sangue na guelra... nessas alturas a única coisa que compreendem é a vingança.
- Tretas! - exclama Cone. - Talvez fosse assim aqui há uns dez anos, mas estes novos mafiosos são uns moles. São capazes de vender a mãe para se safarem. Pode crer, não se parecem nada com os tipos dos Intocáveis. Basta aparecer uma pessoa como você a fazer-lhes frente. Depois são capazes de aparecer mais pessoas dentro do mesmo
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ramo de negócio a dizerem "basta", o que só ajudará a Polícia a dar cabo dos tipos.
- E se eu me recusar?
- Pretende seguir pelo mesmo caminho que tem vindo a seguir? Pagar aos narigudos para poder sobreviver? O que é que a leva a pensar que vai continuar com o negócio?
- Explique-se melhor, está bem?
- Já lhe disse que a SEC não deve chegar ao ponto de a acusar criminalmente... mas o que é que acontece se a SEC e o Procurador Federal decidirem que você não quer cooperar? Sabe o que é que eles podem fazer, se assim o entenderem? Basta darem a história aos jornais e à TV. Você será o tema principal das conversas em Wall Street durante pelo menos oito horas... o suficiente para que muita gente se decida e comece a metê-la em tribunal. São capazes até de exigir processos-crimes. Vão acusá-la
de manipular a Bolsa... e isso é pior que um crime de lesa-majes-tade. Ponha-se no lugar de um tipo que vendeu Trimbley & Diggs na baixa: perdeu tudo porque você
forçou a subida das cotações, e ele afirmará que o fez devido a ter tido acesso a informações confidenciais. As pessoas que estão a tentar comprar a Trimbley & Diggs
terão provavelmente de pagar mais devido ao que você fez... e o mesmo se passa no caso da Wee Tot Fashions. Não terão grandes dificuldades em processá-la, basta
estarem para aí virados. Não estou a dizer que consigam recuperar as perdas, mas só as custas que você terá de pagar chegam para a deixar na miséria.
- Oh, oh! - interrompe Sally. - Primeiro a cenoura, e depois a chibata.
- Só lhe estou a fazer o ponto da situação - responde Cone. - No que diz respeito à SEC você vai safar-se sem grandes problemas, mas mesmo assim ainda não saiu da floresta. Os processos civis são suficientes para a demolir. No entanto, se você se transformar na Joana d"Arc da recolha do lixo, suponho que a Polícia e o PD de Manhattan são capazes de passar palavra, e os casos contra si desfazem-se em fumo. Ninguém estará na disposição de processar a testemunha mais importante da cidade,
a qual até está a cumprir um dever cívico da máxima importância Pense bem no que lhe disse. Se decidir alinhar, telefone-me para a Haldering & Companhia, na John
Street. Conheço alguns dos chuis mais influentes em Nova Iorque. São gente
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dura, mas de absoluta confiança. Basta uma palavra sua para combinarmos um encontro.
Sally não responde.
O detective da Wall Street levanta-se e põe o chapéu.
- Obrigado pelas bebidas - diz ele. - Siga o meu conselho e vá falar com a Polícia. É um favor que estará a fazer a si própria.
Depois dele sair, Sally deixa-se ficar sentada à secretária, balançando-se lentamente na cadeira giratória. O que Cone disse tem toda a razão de ser... para ele. Contudo, por muito esperto que seja, ainda não sabe de tudo. Só trabalhou com metade da equação. Sally terrvna toda, todos os mais e menos. E, nesse momento, não faz a mais pequena ideia de como é que a há-de resolver.
Levanta-se e vai até à janela. O camião n.? 2 acabou de chegar e prepara-se para descarregar. Anthony Ricci desce dia cabina. Sally fica a olhar para ele e de repente sai a correr do gabinete.
- Tony!-grita ela, acenando-lhe para se aproximar quando ele a vê. O rapaz vem ter com ela a sorrir, limpando o rosto e pescoço com um lenço vermelho.
- Está um calor de rachar! - exclama ele quando se junta a Sally.
- Pois está. Ouve lá, então o que é que se passa com aquele jantar que me querias oferecer?
Ele olha para ela, espantado.
- Mas sempre quer ir? Eh, isso é bestial! Que tal amanhã à noite?
- Por mim está bem.
- O restaurante é o Brolios, na Mulberry, logo abaixo dia Grand Street.
- Conheço uma rapariga que foi violada na Delancey Street e julgava que tinha sido na Grand Street. Tudo bem, encontro-me contigo no Brolio"s amanhã à noite. A que
horas?
- Por volta das oito. Acha bem?
- Não falto - garante Sally.
No sábado de manhã fica na cama até mais tarde. Levanta-se por volta das dez e, nua, vai espreitar à janela. Lá fora reina um nevoeiro espesso, tão espesso que
Sally nem consegue ver a garagem. A casa está silenciosa, a imobilidade apoderou-se de tudo: não se ouvem o ruído do trânsito, os chilreios dos pássaros e o distante zumbido
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dos jactos. Sente-se isolada, mergulhada em algodão em rama, e sente-se ansiosa por ouvir um grito ou um assobio
Veste calças de ganga e uma T-shirt e, descalça, descc as escadas para ir à cozinha. Bebe um copo de V-8, come um pão de leite com compota de laranja e prepara uma
chávena de café forte. É certo que está acordada, mas o mesmo não se pode dizer do seu cérebro; movimenta-se às cegas através de um mundo abafado, incapaz de se con centrar. É como se o nevoeiro estivesse também dentro dela.
Vai buscar o Times ao patamar da entrada, mas não é capaz de o ler. Bebe novo café, mas não lhe sabe a nada; pisa o dedo grande do pé, mas não sente a mínima dór.
- Uma zombie - diz Sally em voz alta.
Aquela situação enfurece-a e atemoriza-a; não gosta de se sentir descontrolada. Sobe ao primeiro andar, entra no quarto e mete-se debaixo do chuveiro, regulando
a água para o mais fria que consegue suportar. Deixa-se ficar debaixo do duche durante quase vinte minutos, deixando que os jactos finos como agulhas lhe massagem o crânio, o rosto, as costas, os seios, o estômago, as coxas - até sentir todo o seu ser regressar à vida.
A consciência ressurge gradualmente, a confiança renasce, a resolução sobe à tona. Veste-se de novo, vai para o escritório e senta-se à secretária. Pega numa caneta e num bloco de apontamentos e começa a fazer bonecos incertos, quais hieróglifos: setas, vasos de flores, um sol radiante, figuras em corrida. Entretanto vai pensando no que fazer e quando.
Timothy Cone ofereceu-lhe uma opção: ir ter com os chuis e despejar o saco. Deste modo talvez consiga manter-se na posse da Steiner Waste Control. Talvez possa mandar a mãe e o irmão para fora da cidade, reduzindo o perigo que pesa sobre a família. Quanto a si, ainda julga que será capaz de se proteger.
Uma segunda opção consiste em alinhar com Mario Corsini, abrir as pernas àquele demónio enquanto vai pensando num modo de o mandar desta para melhor. Pensa seriamente em permitir que o velho debochado consiga o que quer, mas às tantas compreende que isso é impossível; da primeira vez que ele tentasse, ela era muito capaz de vomitar por cima dele; sabe-o perfeitamente.
No fundo, qualquer das opções representa uma rendição, coisa que ela nunca foi capaz de tolerar. Considera-se apta a lidar com aquele mundo duro e impiedoso; é uma questão
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de orgulho. Se desistir agora, então passará a viver uma vida a fingir, pretendendo ser alguém que afinal não é.
O que é que o pai teria feito no lugar dela? Jake nunca iria pedir ajuda aos chuis; disso tem ela a certeza. Por outro lado, nunca sacrificaria a sua dignidade pessoal
submetendo-se a Mario Corsini ou a outro de igual jaez. Os pagamentos à mafia eram um contratempo desagradável para Jake, mas ele encarava-os como mais uma despesa
de operação. Se os bandidos tivessem exigido mais qualquer coisa, algo que diminuísse a virilidade de Jake, Sally sabe que o pai só teria tido uma reacção: morreria
a lutar.
Sally compreende que está tudo relacionado com o ego, e não vale a pena negá-lo. Sempre se gabou (no íntimo) de ser uma mulher com miolos, disposta a ser bem sucedida
no mundo cão violento e selvagem dos homens. Se for derrotada neste momento, ficando com a sua autoconfiança estilhaçada, nem quer imaginar como iria ser o seu futuro.
Futuro? Isso era coisa que nem sequer haveria.
Desenha o algarismo 1 no bloco e realça-o com uma bola a toda a volta, passando-lhe um risco por cima. Faz o mesmo com o número 2. Por fim desenha um grande 3 e fica a olhar para ele. Uma terceira opção que não lhe ocorreu subitamente, tendo antes vindò a crescer dentro dela como um tumor maligno desde o dia em que a sua Grande Oportunidade foi por água abaixo.
A opção número 3 é tenebrosa, disso não há dúvida, e ela nem sabe se terá tomates para a levar a cabo. Sente-se capaz de a experimentar, mas os riscos são tremendos. Falhar significaria a perda do negócio e, possivelmente, da própria Sally Steiner.
É um jogo, o maior jogo em que participou na sua vida. Contudo, sublinha o número 3 com traços fortes, decidida a seguir em frente. Jake aprovaria, disso tem ela a certeza. Começa a congeminar os pormenores.
Horas depois telefona a Eddie. Paul Ramsey não está, mas o irmão assegura-lhe que Paul vendeu todas as acções, tendo pedido ao corretor para lhe mandar um cheque.
- É quanto basta -diz Sally. - Olha lá, não foste visitado por ninguém com que não contasses... como por exemplo alguém da SEC?
- Não veio cá ninguém - responde Eddie. - O que é que se passa Sal?
- Nada que te possa preocupar. Quando é que é a tua exposição na galeria?
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- Daqui a um mês, mais ou menos. Tem cocktail de inauguração e tudo. Não vais faltar, pois não?
- Não perdia isso por nada neste mundo. Vou mesmo dizer a toda a gente que posei para a tua obra-prima. Eddie...
- O que é, Sal?
- Gosto muito de ti, miúdo.
O irmão ri-se.
- A que propósito vem isso?
- Só queria que Soubesses.
- E eu não sei? - responde o irmão na sua voz suave.
- Eu também gosto muito de ti, querida, e desejo-te o melhor de tudo.
Desliga antes que comece a chorar. Sobe ao quarto da mãe, onde Becky e Martha estão a jogar gamão, com a empregada a chocalhar o copo dos dados para ambas as mulheres. Sally senta-se por um bocado a ver o jogo, fazendo-as rir com os seus comentários irreverentes.
Martha desce para começar a fazer o jantar, e Sally aproxima um tamborete da cadeira de rodas da mãe.
- Hoje não janto em casa, mamã - anuncia ela. - Vou até à cidade. Tenho um encontro.
- Um encontro? - pergunta Becky, sorrindo de felicidade.- Maravilhoso! Bem o mereces, esforças-te tanto no trabalho... o rapaz é simpático?
- Muito. E muito, muito bem-parecido - diz Sally, acrescentando por já conhecer as reacções da mãe: - Igualzinho ao John Garfield.
- Formidável! - grita Becky, continuando em tom sonhador:- O John Garfield... adoro esse homem. Mas diz-me, como é que o conheceste?
- Através dos negócios.
- E tem dinheiro?
- Bastante.
- Como é que se chama?
-Anthony. É italiano.
- Também é bom, isso - diz a mãe. - Conheço italianos muito simpáticos. Então onde é que vais?
- A um restaurante italiano -diz Sally, rindo-se. - Onde mais poderia ser?
- Voltas cedo para casa?
- Não me parece, mas descansa que amanhã de manhã conto-te tudo.
- O rapaz vive na cidade?
- Vive, mãe.
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- Portanto vens a guiar sozinha?
Sally confirma com um aceno de cabeça,
- Toma cuidado. Guia com as janelas fechadas e as portas trancadas. Prometes?
- Prometo.
Saliy levanta-se, inclina-se sobre a mãe, abraça-a e beija-a na face macia.
- Gosto muito de ti, mamã.
Becky fica com os olhos marejados de lágrimas.
- Também gosto muito de ti, Sally. Tenho tanta sorte em ter uma filha como tu... agradeço-o a Deus todos os dias.
- Pois é - diz Sally em tom embargado. - Ambas temos muita sorte. Come o jantar todo e diverte-te ao serão.
- Tu também - exclama a mãe, satisfeita. - Diverte-te! Diverte-te!
Sally vai ao quarto para se arranjar. Mais um duche, desta vez quente e com sabão perfumado. Escolhe um vestido escuro de gola alta e muito cingido, pensando que as miúdas conhecidas de Anthony Ricci se vestem provavelmente com as mamas quase a saltarem para fora. É mesmo por isso que se decide por um negro conservador adornado por um simples colar de pérolas. Quando se examina no espelho de corpo inteiro, fica sem saber se se parece com a tal mulher mais velha de que Ricci anda à procura.
O caminho até à cidade e à Mulberry Street é longo e monótono, mas ela guia depressa enquanto vai tecendo diversos cenários, tentando decidir a melhor maneira de enrolar o simplório. Há muito tempo que não sai com um homem, mas apesar disso espera não ter problemas: é como andar de bicicleta, nunca se esquece.
Chega à Pequena Itália com muito tempo pela frente, mas tem de dar várias voltas até encontrar um lugar onde estacionar. Só o descobre dois quarteirões adiante do restaurante. Enfia a pistola na bolsa, fecha o carro à chave e volta a pé até ao Brolio"s. O sitio parece-se com uma tasca vulgar, mas nunca se sabe.
Graças a Deus que Tony já lá está, esperando por ela num minúsculo bar de dois bancos à esquerda do vestíbulo.
- Eh! - exclama ele, avançando para lhe pegar em ambas as mãos. - Consequiu! Teve problemas em dar com o sítio?
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- Nenhuns- diz Sally, olhando em volta e fingindo surpresa.- Tony, este sítio é formidável! Gosto imenso!
- Nada de luxuoso - diz ele com um encolher de ombros.- Mas a comida é fenomenal, e os preços são dos melhores.
Aquilo que Sally vê não passa de uma trattoria nova-iorquina de terceira categoria: pequena, só com nove mesas, todas ocupadas à excepção de uma. Pinturas murais
horríveis retratando o Vesúvío, o Coliseu e os canais de Veneza; plantas de plástico em vasos de plástico, toalhas aos quadrados vermelhos e brancos. Velas a pingar
cera enfiadas em garrafas de chianti embrulhadas em ráfia, guardanapos de papel. Suspenso a meio do ar, um misma de alho suficientemente forte para afugentar uma
centena de vampiros.
Tony estala os dedos, e um empregado suado com um avental sujíssimo aparece a correr para os guiar até à mesa vazia, tirando rapidamente um cartão a dizer "reservada".
- Um pouco de vinho para começar? - sugere o homenzinho.
- É melhor seres tu a encomendar, Tony - diz Sally.- Deves saber o que é melhor.
- Para começar traz-nos dois copos de Soave - diz Ricci ao criado. - Depois um antipasto frio, lagosta à
diablo, linguine e talvez uma salada de arugola e raddichio.
Com uma garrafa daquele chianti velho que bebi outro dia, o Monte Vertine.
- Muito bem - diz o criado, acenando de modo aprovador.
- Acha bem? - pergunta Tony a Sally.
- Parece-me apetitoso. Comes aqui todas as noites?
Ele brinda-a com o seu sorriso estonteante, as pálpebras semicerradas.
- Hoje é uma ocasião especial, estou a jantar com a patroa!
- Vamos pôr isso de lado, está bem? - diz ela, tocando-lhe na mão. - Estamos aqui é para nos divertirmos.
A comida, contra todas as expectativas, é excelente. Talvez um pouco temperada de mais, com alho em demasia, mas Sally solta exclamações de delícia a cada prato, apreciando devidamente o vinho, o pão estaladiço, o serviço rápido e eficiente.
- Afinal sabes como é que se vive - diz a Tony.
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- Toda a gente sabe como é que se vive - responde o rapaz. - A única coisa que é preciso é ter dinheiro.
- Uma grande verdade - concorda Sally. - É o dinheiro que faz o mundo girar, não achas?
Leva-o a falar de si próprio, da família, da infância em Salerno, da motorizada que teve, do trabalho que fazia a esculpir santos de barro. Sally inclina-se para a frente enquanto escuta o monólogo por entre os gritos, exclamações e gargalhadas dos comensais, cujos sons confusos ecoam e ressaltam no tecto baixo. Ao se chegar mais para a frente, pode sentir o odor da água-de-colónia misturado com o hálito a alho, o que a obriga a recostar-se na cadeira.
Bebe um único copo de vinho e deixa-o acabar com a garrafa. Tony come e bebe com entusiasmo e - repara ela oom espanto - usa o guardanapo preso ao colarinho por
uma ponta, espalhado sobre o peito, o que tem a vantagem de esconder uma gravata de padrão indescritível.
O rapaz insiste em mandar vir tortoni e dois espressos, seguido de amaretti servido em copinhos de Strega. Sally prova o licor e empurra o cálice na direcção de Tony.
- Acaba com ele - diz ela.
- Claro-responde ele, bebendo-o num só trago.
Quando se levantam da mesa já passa das dez. Sally
repara que Tony paga a conta com dinheiro-não deve ter direito ao de plástico-, deixando uma gorjeta principesca. Saem para a rua, deparando-lhes uma noite escura
e fechada, recamada de nevoeiro. Ficam por momentos na entrada.
- Eh!-diz ele. - Ainda nem sequer lhe disse que está muito elegante! É assim que as mulheres se devem vestir... muito elegante.
- Obrigado - responde ela com um sorriso.
- Quero dizer, eu cá acho que uma mulher não deve mostrar tudo o que tem em público. Não acha que tenho razão?
- Absolutamente - responde Sally, dando-lhe o braço.
- Onde é que tens o carro, Tony?
- Bom, compreende, o meu carro está a arranjar na oficina. Um problema qualquer com a transmissão. Vim de táxi.
Ela sabe que ele está a mentir. O pobre diabo nem sequer tem carro.
- Nesse caso vamos no meu - diz ela em tom gaiato.
- Está a dois quarteirões daqui, não dá para nos molharmos.
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Enfiam-se a rir no meio do nevoeiro, até que Sally o faz parar ao lado do Mazda RX-7 prateado.
- Já chegámos - informa ela.
Tony olha atónito para o carro.
-É seu?
- É. Gostas?
- Fantástico!-exclama ele, andando em volta do carro a admirá-lo.
- Vamos lá, entra - diz Sally. - Podes guiar, se quiseres.
Enfiam-se nos bancos anatómicos, e Tony começa a acariciar o volante, fitando deliciado o painel de instrumentos.
- Rádio, ar condicionado, estereofonia...-vai enumerando-, até uma bússola! Tem de tudo!
- Gosto de todos os confortos - diz Sally, desprendida.
- Também tenho um Cadillac, mas gosto muito mais de guiar esta beleza.
- Eu qostava... - começa ele, detendo-se abruptamente.
Ficam sentados no meio da escuridão, as janelas ligeiramente abertas para deixar entrar o ar húmido da noite. O pára-brisas está completamente embaciado, e as luzes
dos candeeiros da rua dividem-se em padrões aquosos, como peças irregulares de um quebra-cabeças gigante.
-Se tivesses massa, Tony - diz Sally-, que género de carro é que gostarias de ter?
- Um Jaguar - responde ele sem hesitar. - Um XJ-SC descapotável. Sabe qual é?
- Sim, já o vi. Uma beleza. Vejo que tens gostos caros...
- Pois é - concorda ele, a voz a revelar enorme tristeza.- Talvez um dia...
- Talvez seja mais cedo do que julgas - diz ela.- Importas-te se ficarmos sentados aqui um bocado? Gostava de falar contigo acerca de uma coisa.
- Claro. A noite ainda é uma criança.
Apesar de todos os ensaios e cenários imaginados, Sally tem grandes dificuldades em explicar ou mesmo sugerir aquilo que pretende. Tony, por seu lado, não é lá muito esperto, por isso ela decide abordá-lo da forma mais directa e óbvia que lhe for possível. Poderá assim avaliar as reacções dele e começar a trabalhar a partir daí.
- Esse teu primo, o Mario... o que é que pensas dele?
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Ricci encolhe os ombros.
- Acho que é fixe. Às vezes até julga que é meu pai. Sabe bem o que quer.
- Pois sabe - diz Sally, soltando uma risada seca.- Quer-me a mim.
Tony vira-se para a fitar no meio da escuridão.
- O que quer dizer com isso? O que é que está a dizer?
- O tipo anda a pôr-me louca, persegue-me quase todos os dias. Não é capaz de desistir, e eu já nem sei o que fazer.
- Ele anda atrás de si? Não percebo! Você sempre pagou sem o mínimo atraso!
- Tenho de te contar tudo tim-tim por tim-tim, Tony? Esse teu primo quer é enfiar-me na cama dele! Já me disse mais de cem vezes aquilo que pretende fazer comigo...
- Não pode ser!
- Não pode? Pois é assim. Não sabias de nada?
- Juro que não sabia.
- Pensei que ele te tivesse falado no assunto. Sei que os homens falam sobre essas coisas.
- O Mario não é desses. É muito... como é que se diz... muito fechado.
- Calado.
- Isso, calado. Nunca me diz nada, só "Tony, vai fazer isto", "Tony, vai fazer aquilo". Guarda os segredos todos para ele.
- Bom, eu sou um dos segredos dele. A verdade é que nunca abrirei as pernas a um tipo como ele. Revolta-me. Não sei como poderei fazer para que ele me largue da
mão. Nem pensar em pedir-te para falares com ele...
- Virgem Santíssima, isso não! Não era capaz de fazer uma coisa dessas!
-É claro que não, assim ele ficava a saber que falei contigo sobre o caso. Sei que ia ficar cheio de ciúmes porque tu és novo e bonitão... até era capaz de pensar que há qualquer coisa entre nós.
- É verdade - respondeu Tony.
- Tony - diz ela, pondo-lhe uma mão em cima da coxa -, o que é que posso fazer?
- Você já lhe disse que não quer fazer... ah!... aquilo que ele quer?
- Já lho disse vezes sem conta, mas ele não é pessoa para aceitar um não. Passa a vida a perseguir-me, telefona-me
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quase todos os dias. Escreve-me. Cartas sujas, queres acreditar?
Tony acena com a cabeça.
- Está a portar-se como um palerma. Comigo, quando uma mulher me diz não, eu digo-lhe adeus. Há muitas outras.
- E julgas que eu não lhe disse isso? Não serviu de nada. Tenho de o pôr fora da minha vida, Tony, mas não sei como.
Tony não responde.
- Às vezes - diz Sally, decidindo ser chegado o momento -, às vezes desejava que lhe acontecesse o mesmo que aconteceu ao Vic Angelo.
- O quê? O que é que disse?
- Ouviste-me bem. Quero-o morto, e cheguei a um ponto em que nem me interessa a maneira como ele possa morrer. Odeio aquele tipo, e odeio o que ele anda a fazer à minha vida.
Deixam-se ficar sentados em silêncio, e Sally dá-lhe tempo para absorver aquilo que disse. Se o rapaz não cair na esparrela, sabe que está perdida. Se ele sair do carro e se afastar, está mais que perdida, e se ele for contar a Mario a conversa, então pode dizer adeus à vida. São suposições em demasia, e as únicas coisas que a podem salvar são a ambição e a ganância de Tony Ricci.
- Eu pagava - diz ela numa voz dorida, sem ser preciso fingir o desespero que a invade. - Eu até pagava para que alguém o fizesse. Em dinheiro. Até era capaz de
ajudar a planear o golpe, fazer com que parecesse um acidente.
- Ele não responde, e Sally apoia-se com mais força na coxa do rapaz, aproximando-se dele.
- E talvez haja um belo emprego para o tipo que o fizer - continua ela. - Um trabalho de escritório. Acabam-se os caixotes do lixo, os dias passados na rua faça chuva ou sol. Já viste a secretária a mais que está no meu gabinete? Era do meu pai. Tenho estado a tomar conta de tudo desde que ele morreu, mas o negócio está a crescer cada vez mais. Preciso de um executivo, alguém em quem eu possa confiar. Alguém que
me faça um grande favor mandando o Corsini desta para melhor.
Fita-o nos olhos, já muito perto, e descobre algo de novo: dureza. Os olhos dele estão negros e brilhantes como carvão molhado.
- Não, não o posso fazer - diz ele numa voz átona.-
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Sou capaz de uma coisa dessas, mas não no caso do Mario. É meu primo. Compreende? É da família.
Sally deixa-se cair no banco.
- Nesse caso estou morta - lamenta-se em voz rouca.
- Não está nada morta - diz Anthony Ricci. - Há uma forma de se safar.
- Há? - pergunta ela em voz baixa.-Qual é?
- Case comigo.
Ela olha para ele.
- Estás maluco?
- Oiça uma coisa - diz ele, pegando-lhe na mão com um aperto firme. - Se casar comigo o Mario nunca mais a incomoda. Juro-o pela saúde da minha mãe. Além disso pode ficar com a sua empresa... é claro que terá de continuar a pagar as contribuições, mas ninguém a aborrecerá, porque no fim de contas é a minha mulher.
-E tu o que é que ganhas?
- Primeiro caso com uma mulher rica, bonita e mais velha, o que me ajuda a ficar neste país. Por outro lado consigo um emprego sentado, um gabinete e talvez uma secretária.
- Para não falar numa boa fatia do negócio...
Ele fita-a com o seu sorriso de 100 watts.
- Contento-me com uma fatia pequenina.
- E quanto ao sexo?
- O que é que isso tem? Sou assim tão feio?
- Não, antes pelo contrário - diz Sally.
- Então? Qual é a sua resposta?
- Preciso de pensar um bocado - diz Sally Steiner, não se opondo quando ele a beija.
Timothy Cone cobriu o tampo da mesa com várias camadas de jornais velhos, e por boas razões: o entrecosto grelhado, as batatas fritas e os pickles contribuem todos para uma refeição pouco limpa. Cleo ronda a mesa, à espera dos restos.
- É o meu saco do lixo ambulante - diz Cone.
- Deixa-te de conversas - protesta Samantha Whatley.
- Continua lá com a tua história. Quero saber como é que tudo acabou.
Enquanto comem, Cone descreve pela quinta e última vez - assim o espera - o modo como Sally Steiner jogava na Bolsa com base em informações confidenciais recolhidas
no lixo da tipografia. Explica a Sam como é que a mafia
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controla as empresas privadas de recolha de lixo, e as razões que levaram Sally a passar Informações a Mario Corsini.
- Nunca soube ao certo as razões principais - admite Timothy. - No entanto acho que o tipo andava a pressioná-la; é o mais provável.
Conta a seguir como é que foi fazer uma visita à Stei ner para a pressionar um pouco, tentando fazer com que ela se oueixasse à Polícia e denunciasse as extorsões,
contribuindo para pôr cobro à situação.
Quando acaba a narrativa, já os dois deram conta do entrecosto, das batatas fritas e dos pickles. Sam trouxe
éclairs de chocolate para sobremesa, mas preferem guardá-los
no frigorífico e continuar na cerveja, os pés estacionados em cima da mesa juncada de restos.
- Afinal andaste bastante ocupado, não andaste? - diz Sam. - Sabes o que é que me preocupa?
- Uma coisa deste tamanho? - pergunta ele, pondo a mão estendida a cerca de um metro do chão.
- Engraçadinho!-diz ela. - Quando descobriste a fuga interna na Pistol & Burns, o teu trabalho acabou. Correcto? Foi para isso que eles contrataram a Haldering,
e nós levámos a missão a bom termo. O assunto devia ter acabado aí, mas não, tinhas de ir para a frente e meteres-te com a mafia e o pessoal do lixo, tentando obrigar
essa Sally Steiner a virar a casaca. Porque é que fizeste isso, Tim?
Ele fica a olhar para ela, mas por fim responde:
- Não sei. Pareceu-me a coisa mais acertada.
- Tretas!-diz Sam. - Sabes qual é o teu problema? Acho que te consideras uma Némesis. Morte a todos os pecadores!
- Quem, eu? Nem por isso. Limitei-me a considerar a hipótese dos bons marcarem uns pontos, nada mais; foi então que resolvi jogar a minha cartada. Ouve, os chuis
ajudaram-me imenso. Quando lhes consigo proporcionar umas boas prisões, estão sempre prontos a colaborar. Limi-tei-me a agir por puro egoísmo.
- Hum-hum!- diz Samantha. - Vai-me buscar um éclair, ó Vingador Mascarado.
- Vai-te lixar - diz ele.
Acabam as cervejas, comem os doces e concordam em que ambas as coisas não combinam lá muito bem - mas que são saborosas, disso não há dúvida. A conversa desHcamba,
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e enquanto Cone fala Samantha limita-se a responder com monossílabos ou resmungos.
- Hei!-diz ele por fim. - O que é que se passa contigo? Estás com gases?
- Não, estava só a pensar.
-- Em quê?
- Na Sally Steiner. Tenho pena dela.
Ela solta uma gargalhada.
- O que é isso? Estás-te a rir?
- Se estou, então é de mim. Sabes que fui visitar de novo essa senhora, para ver se ela sempre estava disposta a conversar com a Polícia?
- E depois?
- Mandou-me dar uma volta. Vai casar com o Tony Ricci, o primo de Corsini.
- Não pode ser!
Ele levanta a mão.
- Palavra de escuteiro. Até gozou comigo. Julguei que a tinha na mão, mas ela escapou-se sem qualquer dificuldade. Ao casar com Ricci continua na posse da empresa... talvez tenha de dar uma parte ao marido, mas mesmo assim aposto que aquele depósito de lixo vai continuar a ser da família Steiner por mais uma geração. Aquela fulana sabe como é que se sobrevive.
- É bonita? - quer saber Sam.
- Não é de deitar fora.
Uma hora depois rebolam nus em cima do colchão. Há latas de cerveja abertas ao alcance da mão, e
Cleo, no meio de grandes protestos, foi fechado na casa de banho.
Samantha senta-se e começa a desprender os cabelos magníficos. Timothy observa com prazer o jogo de luz e sombra sobre os braços levantados dela, os ombros largos,
os seios pequenos e duros. De repente ela detém-se e fita-o de frente.
- Olha lá uma coisa, tu dás a impressão de que a Sally Steiner vai casar com o Tony Ricci só para poder manter o negócio na família. Nunca te ocorreu que ela pode
gostar mesmo dele?
Cone encolhe os ombros.
- Pode ser que sim. Há tantas espécies de amor...
- Pois é - diz Sam, chegando-se para ele. -Aqui tens o meu.
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LIVRO SEGUNDO
EM FAMÍLIA
1
John J. Dempster, Presidente e Director-Geral da Demps-ter-Torrey, Inc., sai a correr da casa de banho do seu gabinete, activo como um dínamo em sobrecarga. O cabelo
grisalho à escovinha ainda vem molhado do duche; esfrega-o furiosamente com a toalha. Veste umas simples cuecas estampadas com vários símbolos monetários: dólares,
libras, marcos alemães, ienes.
A Sra. Esther Giesecke, sua secretária pessoal, segue-o até à salinha de estar, apanhando pelo caminho a toalha húmida. Deixa-se ficar junto à ombreira da porta
enquanto ele se veste rapidamente.
- Muito bem - diz ele. - O que é que temos hoje?
- O Tommy telefonou de LaGuardia. O Lear V(1) está abastecido e pronto para descolar. Quer saber a que horas é que o senhor pretende largar.
- O idiota! - rosna Dempster. - Largamos quando eu lá chegar. Como é que ele queria? Há mais?
- O Hiram Haldering telefonou a confirmar a sua entrevista para segunda-feira às 3 da tarde.
Aparece outra mulher ao lado da secretária. É Eve Bookerman, Chefe das Operações da Dempster-Torrey.
- Tem a certeza de que quer ir mesmo aos escritórios da Haldering, J.J.? - pergunta a recém-chegada. - Porque é que não lhe pede para vir cá?
(1) Lear Jet - pequeno avião a reacção, com capacidade para dez a doze passageiros, normalmente de uso privado. (N. do T.)
- Não - responde ele com brusquidão. - Quero como é que eles trabalham. O Twiggs, da Pistol & Bun disse-me que aquilo é quase uma espelunca, mas pelo que parece
conseguem resultados. Eve, quero que vá comk e não se esqueça de levar o Ted Brodsky. informe-o que se passa. Mais alguma coisa?
- A sua mala está pronta - diz-lhe a secretária. - Os papéis da aquisição estão lá dentro, junto com uma fotocópia da sua carta de intenções. Juntei-lhe uma miniu
preliminar do seu discurso aos analistas de Chicago.
- É só?
- É só - confirma ela.
- Eve, tem alguma coisa para mim?
- A Time quer fazer um artigo sobre si, pretendeu mandar alguém para viver consigo durante um dia inteiro Vinte e quatro horas da vida de um magnata... esse género
de coisas.
- Com direito a capa? - pergunta ele, decidido.
- Não falaram nisso, e eu não perguntei.
- Diga-lhes que sem capa não há história. Mandou as flores para o funeral do Ed Schanke?
- Encarreguei-me pessoalmente disso, J.J.
- Óptimo. A partir de agora talvez possamos entender-nos melhor com esse sindicato. O tipo era um filho da mãe. Bom, acho que estou pronto. Se me lembrar de mais
alguma coisa, telefono do carro ou do avião. Sabem onde é que me podem contactar em Chicago e em St. Louis. Estou de volta no domingo à noite, por isso podem ligar-me
para casa se surgir qualquer problema.
Inspecciona-se a si próprio num espelho de corpo inteiro. Veste fato escuro de seda pura, camisa branca e a regimental gravata às riscas. Os sapatos brilham como
se fossem de verniz, e no que respeita a jóias contenta-se com uma simples aliança de casamento.
- Okay, Esther - ordena ele. - Verifique se não me esqueço de nada.
- Carteira? - começa a secretária. - Chaves? Lenço? Óculos de sol? Óculos para ler? Cartões de crédito? Caneta? Cigarros? Isqueiro? Caixinha dos medicamentos?
À medida que vai enumerando os items ele vai batendo com a mão nos bolsos das calças e do casaco.
- Tenho tudo - anuncia por fim. - Esther, pode levar a minha mala ao Tim. Não me demoro nada.
Saem para o gabinete exterior, um salão descomunal
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forrado a pranchas de pinho tratado. A meio impera uma secretária enorme: uma placa sólida de teca polida, apoiada em cavaletes cromados.
A Sra. Giesecke pega na pasta e leva-a para o corredor, fechando a porta quando sai. Dempster encosta as costas à porta e faz sinal à outra mulher. Eve Bookerman
cai-lhe nos braços: um abraço longo e febril, lábios contra lábios, as línguas buscando-se uma à outra.
Ela afasta-se, arquejante.
- Telefonas-me esta noite, Jack? - pergunta.
- Não o faço sempre? Esse teu ouvido ainda te anda a incomodar?
- Já está melhor, as gotas ajudaram bastante.
- Óptimo. É melhor ir andando.
- Jack, toma cuidado.
- Sou sempre cuidadoso - diz ele. - Até segunda.
Tim, o guarda-costas, aguarda-o junto ao elevador privativo. Os dois homens entram e descem os quarenta e dois andares até à Wall Street.
- Está um dia bonito, Sr. Dempster - comenta Tim, bem disposto. - Ideal para voar.
- Demasiado quente, mas no fundo vamos passar de um casulo com ar condicionado para outro igual.
Junto ao passeio está uma enorme limusina Lincoln cinzenta. Ao volante senta-se Bernie. Sai para abrir a porta traseira, e Dempster entra. Tim contorna o carro e entra pela porta do lado do trânsito, sentando-se ao lado do patrão.
A cerca de seis metros atrás da limusina, uma Kawasaki negra ronrona em ponto morto. Arranca e aproxima-se lentamente, tão devagar que o homem sentado no banco arrasta pelo chão a bota com protectores de aço. Tanto o condutor como o pendura usam blusões de nylon azuis, calças de ganga e capacetes integrais com viseiras fumadas, que lhes tapam os rostos por completo.
A moto pára ao lado do Lincoln, e o pendura abre o fecho de correr do blusão. Tira uma pistola-metralhadora Uzi, a coronha dobrada para dentro. Dispara a arma com uma só mão, varrendo os três homens dentro da limusina; os projécteis atravessam a porta aberta e as janelas fechadas.
O motorista e o guarda-costas são os primeiros a morrer, os corpos despedaçados pelas balas de nove milímetros. O cano vira-se para Dempster, que levanta ambas as
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mãos num gesto de furioso protesto; os projécteis retalham-no impiedosamente. O corpo é atirado contra as costas do assento e por fim cai no chão do carro.
O assassino esvazia friamente o carregador de trinta e duas balas e volta a guardar a arma dentro do blusão A Kawasaki acelera e afasta-se a ziguezaguear através
do trânsito. Momentos depois desapareceu.
O mesmo se pode dizer de John J. Dempster.
Cabeçalho do News: MASSACRE EM WALL STREET!
Parangonas do Post: BANHO DE SANGUE EM WALL STREET!
Título a duas colunas do Times: Executivo e Dois Adjuntos Mortos por Motociclistas no Bairro Financeiro.
Fotografias aos montes, mas muito poucos factos. Testemunhas presenciais identificaram a moto como sendo uma Kawasaki negra modelo Ltd 650, e a arma utilizada foi reconhecida como uma pistola-metralhadora Uzi de nove milímetros. As descrições dos assassinos de pouco serviam: dois jovens Caucasóides de estatura média, vestidos com blusões azuis, calças de ganga, capacetes com viseiras e botas cardadas.
Pouco tempo depois dos assassínios, três jornais de Nova Iorque receberam chamadas telefónicas de uma organização auto-intitulada Liberdade Amanhã, a qual declarava a sua responsabilidade pelos crimes, ao mesmo tempo que prometia novos ataques à "América Corporativa" e avisava que continuariam os assassínios de executivos até o "povo se sentar nos lugares dos poderosos".
O Departamento de Polícia de Nova Iorque, o FBI, a CIA, a Interpol e as organizações antiterroristas de governos estrangeiros comunicaram não possuírem dados sobre nenhum grupo revolucionário chamado Liberdade Amanhã, mas todos referiram cautelosamente que essas células anarquistas se formavam com relativa frequência e duravam habitualmente pouco tempo, sendo as mais das vezes constituídas por pouco mais de uma meia dúzia de membros.
As investigações concentraram-se na busca da Kawasaki e na verificação de todas as cartas ameaçadoras que John J. Dempster, tal como muitos outros executivos, recebera ao longo dos anos. Os detectives também procuraram inteirar-se de quem teria conhecimento dos planos de Dempster, do seu projectado voo até Chicago, pessoa essa que poderia ter dirigido os executantes até ao sítio certo na hora
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certa, permitindo-lhes cometer o crime e escapar com toda a facilidade.
John J. Dempster foi a enterrar na sexta-feira, mas antes dto funeral (que contou com a presença de um adjunto do Subsecretário do Comércio), o Conselho de Administração da Dempster-Torrey, Inc. reuniu-se em sessão de emergência e nomeou uma subcomissão para tratar da escolha de um possível sucessor de Dempster. Entretanto, a responsabilidade do funcionamento do conglomerado foi confiada à Chefe de Operações, Eve Bookerman.
No dia dos assassínios, as acções da Dempster-Torrey, Inc. estavam listadas na Bolsa de Nova Iorque a 155 250 dólares, cada; na segunda-feira seguinte transaccionavam-se a 119 625 dólares.
Nessa segunda-feira, às três da tarde em ponto, Eve Bookerman é introduzida no gabinete privado de Hiram Haldering, na John Street.
- Minha cara senhora - diz ele, apertando-lhe ambas as mãos e contorcendo a cara bolachuda até conseguir uma adequada expressão de pesar. - Permita-me que lhe exprima
os meus mais sinceros pêsames pela grande perda sofrida, bem como o meu horror pela tragédia.
- Obrigado - diz a mulher, apreciando atónita o ambiente escabroso do gabinete. - Posso sentar-me?
- Mas é claro!-diz H.H. apressadamente. Larga-lhe as mãos e empurra a cadeira de braços para junto da secretária. - Depois do que passou nestes últimos dias, não me importava mesmo nada de adiar esta nossa reunião ou mesmo de ir pessoalmente aos vossos escritórios...
-Não - diz ela em tom decidido. - O Sr. Dempster queria vir cá pessoalmente, e o mínimo que posso fazer é cumprir os seus desejos da melhor maneira possível. O nosso Chefe de Segurança, Theodor.e Brodsky, também devia ter vindo, mas anda muito ocupado com a Polícia de Nova Iorque e o FBI.
- Compreendo perfeitamente. Diga-me, tem havido progressos?
Não me dizem nada de nada - diz ela, aborrecida.- Limitam-se a informar-me de que as investigações continuam. É enfurecedor!
Haldering acena com a cabeça, compondo uma expressão benigna.
- Não me custa a acreditar, trabalhei para o FBI durante muitos anos. Sei que estão a fazer progressos, disso não
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tenho a mínima dúvida. Contudo, nada será divulgad enquanto não estiverem na posse de todos os dados,
com os perpetradores presos ou pelo menos depois de ident ficados os suspeitos. Minha cara senhora, espero bem qu todos os executivos da Dempster-Torrey tenham reforçad as suas medidas de segurança pessoal...
- A Polícia insistiu muito nesse ponto - diz ela com ar infeliz. - Neste momento o meu guarda-costas está sentado à porta do seu gabinete. Ridículo! Sei muito ben tomar conta de mim própria!
-Tenho a certeza de que o Sr. Dempster também pen sava da mesma maneira - diz ele. Receoso de que o comeu tário não demonstrasse o devido respeito pelo falecido
cerra as mãos sapudas e inclina-se sobre a secretária, con; um sorriso delicodoce estampado nos lábios. - Bom, poi certo que não veio aqui para me falar sobre o assassínio do Sr. Dempster. Em que é que lhe posso ser útil, minha senhora?
- Conhece bem a Dempster-Torrey?
- Claro que conheço! Quem é que não conhece? Suponho que se trata de um dos maiores conglomerados deste país.
- É o oitavo - diz ela, espetando o queixo. - Há dois anos estávamos em décimo segundo lugar. Se o J.J. não tivesse morrido, daqui a cinco anos seríamos o maior
de todos. Fantástico! A Dempster-Torrey possui vinte e sete subsidiárias com um total de oitenta e três divisões. Temos de tudo, desde a manteiga de amendoim até
ao metal laminado. Produzimos carros de golfe, guardanapos de papel, equipamento de mergulho, condutas de ventilação, batatas fritas, ponchos para o Governo dos
EUA, massas alimentícias, secadores de cabelo, empilhadoras e muitas mais coisas. A cadeira onde o senhor está sentado foi feita por uma subsidiária da Dempster-Torrey; uma das nossas divisões industriais fabricou o revestimento do chão do seu escritório. Pode citar qualquer coisa, há grandes hipóteses de ter sido manufacturada pela Dempster-Torrey.
H. H. vai abanando a cabeça, admirado, apesar de saber que a cadeira onde se senta foi comprada em segunda mão, e o chão foi forrado com linóleo comprado num lote de salvados - de resto não presta para nada.
Nos últimos seis meses, mais coisa menos coisa - continua Eve Bookerman-, as nossas fábricas, armazéns e centros de distribuição por todo o país têm sido alvo de
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uma série de ataques. Deliberados! incêndios, vandalismo, greves selvagens e processos movidos por consumidores. Ao todo houve dezoito incidentes separados. O Sr.
Dempster não os considerou uma coincidência, e o mesmo se passa comigo. Estava convencido de que alguém ou algum grupo anda a conspirar contra a Dempster-Torrey...
não fazia a menor ideia dos motivos que possam levar a uma tal acção, tal como eu não faço, nem ninguém da nossa organização. Um autêntico mistério!
- Por certo que o Sr. Dempster fez inimigos ao longo da sua carreira.
- É claro que fez. Como é que um homem consegue alcançar o que ele alcançou sem arranjar inimizades? Contudo não me parece que nenhuma delas vá ao ponto de pegar fogo a uma fábrica de bandeiras e distintivos que possuímos, um fogo em que morreram dois trabalhadores inocentes. Incrível!
- A senhora acabou de dizer que o Sr. Dempster contemplava a possibilidade de uma conjura tramada por um grupo. O da Liberdade Amanhã, por exemplo? Os tais terroristas que telefonaram para os jornais depois do crime?
- Foi a primeira vez que ouvi falar nesse nome. É um dos aspectos mais frustrantes destes ataques contra a Dempster-Torrey... nunca houve telefonemas nem cartas com ameaças, nem ninguém reclamou a responsabilidade em nenhum dos casos.
- Presumo que qualquer dos incidentes foi investigado?
- Claro que foram, pelas Polícias locais e pela nossa própria segurança. Não houve nenhuma prisão, e nem sequer apareceu uma teoria que apontasse para um possível responsável. É de enlouquecer!
- Diga-me, minha senhora, contou isto tudo aos agentes que estão a investigar a morte do Sr. Dempster?
- Contei-lhe tudo - responde ela em tom soturno.- Não me parece que eles considerem a possibilidade da existência de qualquer relação entre os ataques às nossas fábricas e o assassínio do J.J.
- Mas a senhora pensa que há?
- Já nem sei o que pensar. É um pesadelo!
Hiram Haldering acena com a cabeça e começa a balançar-se lentamente na sua cadeira articulada. Cada vez se parece mais com um pudim: o papada dupla está a ficar tripla, e aos botões do colete pouco lhes falta para saltar. A imagem de executivo que ele pretende dar aproxima-se
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perigosamente da de um labrego. Não é completamente careca, longe disso, mas o crânio brilha com um ar de maçã descascada.
Pára de balançar e inclina-se de novo sobre a secr tária, juntando as palmas das mãos suadas.
- Minha senhora, devo dizer-lhe desde já que a Ha dering & Companhia não pode investigar o assassínio do Sr. Dempster. Não dispomos nem dos recursos nem do pessoal
necessários. Consideramo-nos especialistas en informações corporativas. Aquisições, amistosas ou não fusões... coisas desse género. Fornecemos informações confidenciais
sobre indivíduos e companhias, mas não estamos equipados para conduzir investigações sobre homicídios.
- Nunca pensei que estivessem - diz Eve Bookerman em tom seco. - O J.J. marcou uma entrevista consigo por recomendação do Sr. G. Fergus Twiggs, da Pistol & Burns,
a quem entregamos os nossos investimentos. Fê-lo com o propósito expresso de chegar às raízes desta série de assaltos contra as nossas propriedades e a nossa gente. Pelo nosso lado não chegámos a lado nenhum quando tentámos esclarecer o mistério, e também não o conseguimos deter. O Sr. Twiggs sugeriu que a sua firma talvez nos pudesse ajudar.
- É muita amabilidade da parte do Twiggs - diz Haldering, fazendo uma pequena vénia. - É verdade que em vários casos obtivémos sucessos assinaláveis, casos esses em que outros falharam redondamente.
- Nesse caso pode aceitar o trabalho? Não nos preocupamos com os custos.
- Só no pressuposto de que a nossa investigação se debruçará unicamente sobre a sabotagem industrial, nada tendo a ver com o assassínio do Sr. Dempster.
- Concordo em absoluto - diz ela em tom vivo.- Quando é que podem começar?
- Imediatamente!-exclama ele, levado pelo monossi-labismo dela.
- Excelente! Como já esperava que iríamos chegar a um acordo, tomei a liberdade de trazer comigo cópias de um processo que lhe dará uma ideia daquilo com que se terão de haver. Anexei-lhe uma lista do pessoal envolvido, com as moradas e números de telefone... enfim, tudo o que possa constituir uma ajuda.
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- Pode crer que admiro a sua previsão - diz ele com um sorriso untuoso.
- Oh! - exclama ela, estalando os dedos. - Só mais uma coisa: o Sr. Twiggs recomendou-me veementemente para pedirmos que o assunto seja entregue a um dos vossos investigadores... o Sr. Timothy Cone. É assim que ele se chama?
- Timothy Cone! - repete Hiram Haldering, o sorriso a desaparecer. - Sim, temos um investigador com esse nome. Infelizmente, o Sr. Cone está neste momento muito atarefado com vários outros casos. Não se preocupe, qualquer dos investigadores estarão certamente à altura da...
Ela interrompe-o:
- Sem Cone não há acordo.
H.H. remexe-se na cadeira, nervoso.
- Como queira - acaba por dizer. - Talvez seja melhor preveni-la de que o Timothy Cone é...
- O Sr. Twiggs já mo descreveu - atalha ela, impaciente.- Sei com que é que posso contar. Se o homem for capaz de dar conta do assunto, isso não tem a mínima importância.
Eve levanta-se e estende-lhe a mão.
- Tive muito prazer em o conhecer, Sr. Haldering. Ficamos a depender de si para resolver todos estes casos lamentáveis. Monstruosos!
H.H. começa a agradecer-lhe a confiança depositada na firma, mas ela sai sem mais palavras, deixando atrás de si uma pasta-arquivo a abarrotar de documentos. H. H. pega no telefone e carrega na tecla da extensão interna do gabinete de Samantha Whatley.
- Sam? Venha aqui ao meu gabinete, se fizer favor. Imediatamente. Se o Cone não estiver a dormir ou a emborcar cervejas, traga-o consigo.
Cone coxeia pela Broadway acima com o dossier descomunal bem preso debaixo do braço direito. O calhamaço é tão pesado que o obriga a inclinar-se para estibordo, para além de ter de parar de vez em quando para mudar de braço.
- Não te atrevas a tirar esse processo do escritório!
- prevenira Sam.
- Está descansada, chefe - replicara ele. - Não tenciono levar esta bexigosa para casa...
- Bexigosa? O que é isso?
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- Quatro quilos de merda dentro de um saco de dois quilos.
- És asqueroso!-grita-lhe ela.
- Eu sei.
É assim que agora vai a caminho do sótão, com a bexigosa debaixo do braço e sem saber o que dar de comer a
Cleo. Decide que o melhor será comprar uma salsicha italiana
picante, para a fritar junto com batatas enlatadas. Parece-lhe uma refeição perfeitamente equilibrada.
Pára no minimercado da rua e compra os géneros necessários, sem se esquecer de uma caixa com seis cervejas geladas e uma garrafa de vodca com sabor a pimenta - bebida
que ele anda há muito tempo com vontade de experimentar. Carregado até não poder com mais, sobe os seis lanços de escadas de ferro até ao sótão.
A refeição acaba por resultar saborosa, mas o vodca com pimenta é suficientemente forte para eriçar o escalpe de Cone. No fim não acende um cigarro, receoso de que
a primeira baforada saia como a de um lança-chamas e acabe por incinerar o apartamento.
Abre uma cerveja para amaciar o palato irritado e senta-se à secretária com os pés em cima do tampo, começando a esgravatar o conteúdo do processo da Dempster-Torrey.
A primeira coisa que se lhe depara são três páginas agrafadas com os nomes, moradas e números de telefone de pessoas relacionadas com John J. Dempster e a sua companhia. Cone repara que estão incluídos os nomes da viúva, dos três filhos, do irmão, dos pais (ambos vivos e residentes em Boca Raton, na Florida), do motorista e do guarda-costas abatidos a tiro, e todos os executivos principais da Dempster-Torrey, para além dos membros do Conselho de Administração, de vários advogados e banqueiros.
Para grande espanto de Cone, a lista inclui os nomes de outras pessoas relacionadas com Dempster: alfaiate, médico, dentista, instrutor de educação física, criados, treinador de golfe, piloto e protologista.
- Há gente que sabe gozar a vida - diz Cone para Cleo. O tareco, contudo, dorme debaixo da banheira enquanto digere as salsichas italianas, não lhe prestando atenção.
Cone passa a folhear rapidamente os documentos descritivos dos ataques que têm vindo a apoquentar a Dempster-Torrey Inc. durante os últimos seis meses. Ao todo são
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dezoito relatórios, todos assinados por Theodore Brodsky, Chefe da Segurança. Incluem fogo posto, sabotagem, vandalismo, falsificação de produtos e outros crimes
de igual jaez, todos aparentemente perpetrados com o fim de iludir os lucros e manchar a imagem pública da Dempster-Torrey. Cone consegue perceber o porquê de John
J. Dempster pensar numa conspiração montada contra si e o seu conglomerado; o tipo não estava nem de longe a ser paranóico.
Abre nova cerveja e começa a ler de novo os relatórios, com mais calma desta vez, procurando um elo ou padrão que lhe possa ter escapado na primeira análise. Vai
a meio da pesquisa, e ainda sem quaisquer resultados palpáveis, quando o telefone de parede começa a tocar. Pega na cerveja e vai até à kitchenette acanhada.
- Estou?
- Seu malandro! - grita a voz de Neal K. Davenport.- Mas que Que é que andas a tramar desta vez?
- Eh, aguenta aí! - protesta Cone. - Mas o que é...
- O assassínio do Dempster! - ruge o detective do NYPD. - Porque é que andas a meter o nariz nesse caso?
- Vá lá...-pede Cone. - Não fiques assim tão excitado. Quem é que te disse que a Haldering está metida no caso?
- Uma senhora chamada Eve Booki.man, se queres saber. É ela que está a gerir a companhia desde que o Dempster foi mandado desta para melhor. Disse-me que tinha
contratado a Haldering.
- Nesse caso também te deve ter dito que estamos a investigar vários casos de sabotagem industrial nas instalações deles. Olha, Neal, nós não limpamos janelas nem
tratamos de homicídios. Isso é convosco; o Hiram Haldering explicou-o claramente a essa Bookerman. Tens conhecimento dos acidentes que os têm atingido?
- Sim, eles contaram-nos tudo - responde o polícia, aborrecido.
- Achas que há alguma ligação com o assassínio do Dempster?
- Não, nada aponta para ele.
- Então qual é o problema? O Departamento anda atrás dos tipos da moto, e nós
andamos à caça dos tipos que resolveram delapidar as instalações da Dempster-Torrey.
Olha lá, qual é o teu interesse neste caso? És tu que estás a tratar da investigação?
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- Não, merda! Fui dos primeiros a chegar ao local logo a seguir à malta fardada. A coisa é demasiado grandi para a entregarem a um zé-ninguém como eu... só precisam
de mim para tratar de carteiristas e maníacos sexuais.
- E achas pouco? - comenta Cone. - Então quem é que está a tratar do caso?
- Um tenente marreta, com um bom padrinho lá no topo do Departamento. Um verdadeiro cow-boy, passa a vida a gritar e a querer ver tudo. Bom, a verdade é que não o oosso censurar. O caso é demasiado importante, e ele só quer é segurar-se bem. Repara que é o primeiro caso de terrorismo em Wall Street.
- Um raio é que é - diz Cone. - Aqui há uns anos atrás a Fraunces Tavern foi bombardeada por revolucionários, e muito antes disso houve um tipo que desceu a Wall Street numa carroça puxada por um cavalo e accionou uma série de bombas que levava lá dentro. Nesses tempos chamavam-lhes anarquistas, mas o que interessa é que a explosão mandou pelos ares o pobre do cavalo. Se procurares bem, ainda podes ver as marcas em vários edifícios.
- Caramba!-diz Davenport. - És uma verdadeira mina de informações inúteis. Seja como for, apesar dessas histórias este ainda é um caso importante, e toda a gente quer ficar com uma fatia. Não é só o Departamento, também o Procurador Distrital de Manhattan, o Procurador Federal, o FBI, o Estado de Nova Iorque e a CIA. A confusão é pior que num fogo-de-artifício chinês.
- A CIA também? Qual é a deles?
- Andam a investigar esses malucos da Liberdade Amanhã, para ver se se trata de uma organização terrorista com amiguinhos do outro lado do Atlântico, por exemplo na Alemanha, em França ou no Médio Oriente.
- Oxalá tenham sorte - diz Timothy. - Por isso andam todos a empurrar-se uns aos outros a ver quem é entrevistado primeiro pelas cadeias de TV... qual é o teu papel no meio dessa confusão?
- Cristo!-desabafa o polícia. - Sabes o que é que me puseram a fazer? Há um par de testemunhas que juram que o condutor da moto usava botas com reforços de aço, por isso tenho de verificar todos os sapateiros da cidade que põem protecções de aço em sapatos e botas! É o mesmo que procurar uma agulha num palheiro.
- Sim, compreendo o que queres dizer - diz Cone.
- Se nos limitássemos a pôr pó em tudo... - continua
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Davenport.- Se isto fosse um homicídio vulgar, as coisas eram muito mais simples. Acontece é que as pessoas interessadas são tudo gente graúda... ou pensam que
o são. Quero dizer, a Dempster-Torrey tem imenso peso na política local. Contribui para várias obras de caridade, faz donativos para as campanhas e merdas do género. Anda tudo em ebulição. Não me dão um minuto de descanso, e quando soube que tu também estavas metido nisto, então saltou-me a tampa. Desculpa por te ter gritado.
- Não faz mal - diz Cone. - Sei como é que te deves sentir. Mas a sério, a Haldering & Companhia não tem o mínimo interesse na morte do Dempster. A única coisa que tenho de fazer é investigar os acidentes nas fábricas do grupo.
- E achas que isso não tem nada a ver com o crime?
- Eh! Só comecei há bocadinho! Estava a ler o processo quando telefonaste... e tu mesmo já disseste que não consegues ver nenhuma ligação.
- Pois foi, mas isso é hoje. Talvez amanhã te depare qualquer coisa. Não te importas de me manter a par?
- Claro que sim, homem. Sabes que não anda à caça de glória. Se descobrir qualquer coisa que faça disparar as campainhas, prometo que serás o primeiro a saber. Podes
ficar com as parangonas.
- Nunca soube porque é que confio em ti - diz Davenport.- Sempre me saíste um espertinho de primeira...
- Bom, a verdade é que nunca te deixei ficar mal, pois não?
- Ultimamente não - diz o homem do NYPD, sensibilizado.- Okay, vou deixar-te em paz com os teus papéis... ou com os copos. Parece-me que por hoje já estás bem aviado. Sempre que penso num destravado como tu a remexer neste caso, a minha úlcera começa a protestar... vai dando notícias, está bem?
- Podes contar com isso - diz Cone.
Volta para a secretária e pega nos relatórios dá Dempster-Torrey, não se esquecendo de preparar mais um vodca com pimenta - que agora já lhe parece suave, seco,
estimulante e capaz de tornar a vida muito mais interessante, diando-lhe mesmo um certo significado.
Fica de mão a abanar no que se refere a uma possível ligação entre os dezoito crimes separados, mas mesmo assim a ausência de um padrão também pode ser significativa.
Não lhe parece provável que um só tipo ande pelo
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país Inteiro a pegar fogo às coisas, a despejar arroz em tanques de gás, a fazer explodir armazéns e a enfiar cianeto em frascos selados de pílulas dietéticas
produzidas pela subsidiária farmacêutica da Dempster-Torrey.
As técnicas utilizadas são demasiado sofisticadas, concebidas de certeza por alguém com vastos conhecimentos do mundo do crime. Esta constatação leva Cone a pensar estar perante um bando chefiado por um vilão que sabe exactamente o que está a fazer e com metas perfeitamente definidas. Mas quais serão essas metas? Vingança?
A ser assim tudo aponta para um empregado despedido ou contrariado, ou mesmo o antigo dono de uma firma pequena mas rendível engolida pela Dempster-Torrey na sua marcha a caminho do poder. Só Deus sabe quantos inimigos deve ter feito Dempster ao longo da sua vida - a qual, no fim de contas, não durou assim tanto tempo.
O detective da Wall Street serve-se de mais uma dose de vodca - pequena, desta vez -, jurando a si próprio que vai ser a última da noite, mas sabendo que está a
mentir com todos os dentes, pois tem o cérebro às voltas e só será capaz de dormir depois de insensibilizado pelo álcool.
Mergulhado em cogitações, depara-se-lhe às tantas uma ideia tão elegante que lhe apetece gritar de satisfação. É uma solução simples e clara: uma organização controlada
ou contratada por um tipo duro, determinado e inteligente que sabe perfeitamente o que quer e quais os meios para o alcançar. Excitado com tão brilhante inspiração,
Cone começa a passear dentro do sótão, e quanto mais analisa, questiona e burila os diversos ângulos, mais forte lhe parece a possibilidade.
E os motivos? Ah, essa é a parte melhor!
- Acredito que... -diz em voz alta, fazendo Cleo sair de debaixo da banheira para se espreguiçar demoradamente.
Mais tarde, deitado nu em cima do colchão, as luzes apagadas, pensa uma última vez em Neal K. Davenport, na fúria que o detective deve sentir por se ver relegado
para um papel menor num caso que por direito lhe devia pertencer inteiramente.
Cleo sobe para o colchão e vem enrolar-se na dobra dos joelhos do dono.
- Ele só quer ver-se reconhecido, miúdo - diz Cone, estendendo a mão para afagar as orelhas destroçadas do tareco. - Ou talvez pretenda justificar-se perante si
mesmo. Quer ver reconhecida a importância de um trabalho lixado
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como o dele, e ainda por cima num mundo cão como este. Tu também queres agradecimentos, Cleo? Reconhecimento? Louvores? Um raio é que queres. Eu também não. Temos um tecto onde nos abrigar e todas as salsichas que queiramos comer. Que mais é que precisamos?
Cleo ronrona e concorda.
2
A secretária é uma mulher de meia-idade com pele a fazer lembrar cerâmica vidrada e cabelos grisalhos enrolados para cima. Observa o mundo à sua volta através de olhos duros e frios. Cone calcula ser muito difícil surpreendê-la seja com que for - nada será capaz de chocar aquela mulher.
- Timothy Cone, da Haldering & Companhia - apresenta-se ele. - Para ver Miss Bookerman. Tenho uma entrevista marcada para as dez e meia.
Ela olha para o relógio que usa pendurado no peito; não precisa de lhe dizer que está atrasado: o olhar é acusação bastante.
- Vou-lhe dizer que já chegou, Sr. Cone. Sente-se, por favor.
Cone, porém, deixa-se ficar em pé, a estudar o sítio. Não há grandes luxos, mas tudo tem um ar seco e ligeiro, como se a sala tivesse sido limpa cinco minutos atrás. A carpeta tem bordada a insígnia corporativa da Dempster-Torrey, o que lhe confere certa distinção e leva Cone a lembrar-se do linóleo que recobre o chão do seu sótão. Esse, então, tem bem marcada a sua insígnia: estalado, gasto, com a trama castanha a surgir em várias manchas aqui e ali.
- A Miss Bookerman vai recebê-lo - informa a secretária, pousando o telefone no descanso. - Depois daquela porta, atravesse o átrio e vire à esquerda.
- Certo - diz ele.
- À esquerda - insiste ela.
Cone olha para ela e detecta um leve indício de divertimento naqueles olhos firmes.
- E que tal logo à noite? - sussurra ele. - No mesmo sítio, à mesma hora. Eu levo os carapaus.
A mulher não resiste.
- Não falto - promete.
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Cone telefonara nessa manhã antes de sair de casa. Eve Bookerman estava disponível para o receber às 10.30. Em ponto. Por meia hora, nem mais um minuto. Cone disse que estava tudo bem, e que também gostaria de falar com Theodore Brodsky, o Chefe da Segurança. Bookerman disse que trataria de tudo. A mulher tinha a voz rouca, baixa e enervada, mas Cone gostou de a ouvir.
Como a entrevista era às dez e meia, achou que não valia a pena passar antes pelo escritório; como tal gastou uma hora a beber café acompanhado por vários Camel, aproveitando para acabar com a última charlotte russa. A ressaca, desta feita, nada tinha de sério; só o estômago o incomodava, e nem queria imaginar o que poderia acontecer caso bocejasse.
Resolveu ir a pé até à Wall Street. Estava um daqueles dias quentes e húmidos de Julho, com uma ligeira poalha a querer esconder o céu azul. Quando chegou ao edifício
da Dempster-Torrey estava estafado; o ar condicionado soube-lhe a plasma.
Agora, atravessando o corredor para depois virar à esquerda, passa em frente a uma série de portas com nomes gravados em placas de bronze: JOHN J. DEMPSTER, SIMON
TRALE, THEODORE BRODSKY e, por fim. EVE BOOKERMAN. Cone não sabe se a mulher, depois de receber, mesmo que temporariamente, os encargos do homem assassinado, se terá mudado para o gabinete do PDG. Quando bate com os nós dos dedos na porta envernizada, ouviu gritar um "Entre!" lá dentro, num tom autoritário que o faz entrar
devagarinho e com o chapéu de couro nas mãos.
A mulher levanta-se e avança para o cumprimentar. Cone fica surpreendidíssimo. Pela voz e modos determinados ao telefone, estava à espera de uma felina: o que tem
pela frente é bem diferente. Bookerman é uma mulher baixa com cabelos loiros encaracolados, que lhe tenta sorrir sem grande sucesso.
- Muito prazer em conhecê-lo - diz ela. - O Sr. Twiggs disse-me muito bem de si.
- Disse? Ainda bem.
A mulher veste um saia-casaco com uma camisa vaporosa, e usa lacinho no colarinho fechado. Parece pouco activa, mas caminha com agilidade e o aperto de mão é firme. Os olhos são espantosos, mesmo ao gosto de Cone: grandes, escuros e luminosos. O patriotismo, esse, é impressionante; nem a camisa e o casaco conseguem disfarçá-lo.
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Bookerman indica-lhe uma cadeira em frente à secretária, e depois senta-se num enorme cadeirão rotativo estofado a couro, que praticamente a engole e a faz parecer-se com uma miúda.
- Fuma? - pergunta ela.
- Obrigado - diz Cone, agradecido e metendo a mão no casaco para tirar o maço.
- Aqui não, se não se importa - atalha ela em tom seco. - Não suporto o cheiro do tabaco. Atroz!
- Tudo bem - conforma-se ele. - Sou capaz de sobreviver.
A mulher senta-se na ponta do cadeirão, inclinada em frente, os cotovelos sobre a secretária e as mãos enclavi-irhadas. Uma posição de oração. Cone repara que os
dedos dela, inesperadamente, são finos e compridos.
- Leu os documentos que entreguei ao Sr. Haldering?
- quer saber ela.
- Li.
- Espero que compreenda que esses relatórios são confidenciais. Não gostaria nada que chegassem às mãos da comunicação social.
- Não costumo dar à língua - diz-lhe ele.
- Tem algumas perquntas a fazer?
- Montes delas - diz Cone. - Aqui tem a primeira: qual é a diferença entre Presidente Director-Geral (aquilo que era o Dempster) e Chefe de Operações, neste caso
você?
- Varia de companhia para companhia - esclarece ela.
- Na Dempster-Torrey, o J. J. tomava as grandes decisões e eu encarregava-me das pequenas. Ele arranjava úlceras, enquanto eu me ficava com as dores de cabeça.
- Ele sofria de úlceras?
- Claro que não. Foi só uma figura de retórica. Aquilo que quero dizer é que ele decidia a Dolítica e eu executava-a. Coisas expeditas, como por exemplo reunir-me
com as pessoas de quem ele precisava e tratar dos contactos com bancos, advogados e contabilistas.
Cone fita-a nos olhos.
- Concretizava os sonhos dele? - sugere.
- Isso mesmo - diz ela com um sorriso forçado. - Mais ou menos. Os sonhos eram sempre dele, claro.
- Há quanto tempo trabalha na Dempster-Torrey?
- Há quase oito anos.
- Começou logo como Chefe de Operações?
- Meu Deus, nem pensar! Entrei logo depois de tirar
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o MBA (1) em Harvard, e comecei na Secção de Planei mento, praticamente uma caloira. Só fui promovida a
chefe dè Operações aqui há três anos.
- E depois passou a trabalhar em estreita ligação com o Sr. Dempster?
- Exactamente.
- Acha que ele fez muitos inimigos?
- Não muitos, mas por certo que conseguiu alguns É inevitável num homem com a posição dele.
- Alguns mais assanhados? Do género de dizerem "Hei-de apanhar-te, seu filho da mãe. Não interessa o tempo que levar, hei-de arruinar-te!"
- Não tenho conhecimento de nenhum assim. Pensa que é um velho inimigo que está por detrás de todas estas complicações?
- Ainda não penso nada de nada sobre este caso - disse Cone. - Ainda mal comecei. Neste momento ando a tentar recolher dados, e talvez me ajudasse se me dissesse que
género de homem ele era.
- Tinha uma personalidade muito forte - responde ela sem hesitar. - Não aceitava um não como resposta em relação ao que pretendia para a companhia. Não era capaz
de suportar a derrota. Só pensava nos objectivos... pode dizer-se que era um vencedor. Sabia o que queria e lutava para o conseguir.
- Para si próprio ou para a Dempster-Torrey?
- Sr. Cone, ele era um Dempster-Torrey. Nunca poderá separar o homem da companhia que construiu. Eram um só Não se tratava unicamente de uma questão de ego, ele
pretendia mesmo tornar-nos num conglomerado internacional maior que a IBM, a General Motors ou o Vaticano. Se não tivesse morrido, pode ter a certeza de que o tinha
conse guido. Absolutamente!
- Não me parece que fosse fácil trabalhar para ele..
Ela reclina-se na enorme cadeira giratória e começa
a brincar com uma madeixa do cabelo encaracolado. Os olhos negros brilham, e Cone fica sem saber se a mulher está a tentar não chorar. Repara pela primeira vez num
tampãc de algodão no ouvido direito dela.
- Problemas com o ouvido? - pergunta, tentando dis traí-la da morte de Dempster.
(1) MBA - Manter of Business Adminisiratutv. licenciatura em Administração
Empresarial. (N. do T,)
Ela sacode a cabeça num gesto impaciente.
- Uma pequena Infecção. Acho que a apanhei na piscina do centro de estética onde costumo ir. Já está quase curada. Oiça, Sr. Cone, tentei descrever-lhe a personalidade
do j. J. sob o ponto de vista de negócios. É assim mesmo, no trabalho ele era duro, exigente, às vezes impiedoso. Acreditava que era assim que teria de construir
a Dempster-Torrey. No entanto, fora do trabalho, quando conseguia esquecer-se temporariamente das aquisições e fusões, era o homem mais simpático e carinhoso que
conheci em toda a minha vida. Era terno, compreensivo, acolhedor. É esse o John J. Dempster de que o senhor nunca ouviu falar no Wall Street Journal ou na Fortune.
A imprensa só se interessava pela magnata, mas o homem em si era muito mais cto que dinheiro e poder; era um verdadeiro mensch V). Sabe o que quer dizer mensch (1),
Sr. Cone?
- Sei.
- Bom, o J. J. era um mensch. A sua vida pessoal pau-tava-se pela honra e pela integridade. Estou a tentar cooperar o melhor que sei, mas tenho a certeza de que
à medida que o senhor for aprofundando a sua investigação, ouvirá muitas referências desagradáveis sobre o Sr. Dempster. Só quero deixar clara a minha opinião sobre
ele. Considerava-o um homem maravilhoso. Maravilhoso!
- Hum-hum! - diz Cone. - Compreendo perfeitamente. Como é que vão as coisas desde que ele morreu?
- Mal - diz ela, deixando escapar uma pequena gargalhada amargurada. - Estamos a enfrentar um desastre. Viu o que é que aconteceu às nossas acções?
- Vi.
- Desceram imenso, porque a Wall Street sabia que o J. J. era a Dempster-Torrey. Agora que ele desapareceu, o que é que irá acontecer? Acima de tudo, o mercado odeia
a incerteza, e por isso os grandes investidores e as grandes instituições estão a vender as acções que possuíam. Não os posso censurar, mas lá que dói, ai isso dói.
- Claro - diz Cone. - Mas mesmo assim vocês ainda têm as fábricas, as explorações agrícolas, os armazéns, o caminho-de-ferro, a companhia de aviação, a força laboral,
a organização de gestão. O activo contínua presente e em força.
(1) Mensch - Homem, ser humano. Em alemão no original. (N. do T.)
155- Mas ele morreu - insiste ela em tom soturno. - Ele era o nosso maior capital, e a Street sabe-o muito bem.
A Chefe de Operações consulta um relógio digital de homem que usa no pulso direito.
- Acabou o seu tempo - informa. - Tenho o Ted Brodsky à espera. Quer que o mande vir aqui?
- Não - diz Cone. - Prefiro ir ao gabinete dele.
- Como queira - diz ela com um encolher de ombros.
- Sei que o senhor vai ter de falar com imensa gente. Peço-lhe é que não acredite em tudo o que lhe contarem.
- Nunca acredito - tranquiliza-a ele. - Muito obrigado por me ter recebido. Talvez volte noutra ocasião para mais umas perguntas.
- Mas claro. Sempre que quiser. Só lhe peço que me telefone primeiro... estou pelos cabelos até que o Conselho de Administração nomeie outro Presidente, mas isso
não impede que o ajude no que for preciso.
- Obrigado - diz o detective da Wall Street.
O gabinete de Theodore Brodsky é pequeno, mas os montes de relatórios, pastas-arquivo e manuais que o juncam ainda o fazem parecer mais acanhado. Na parede há um
mapa do país cheio de alfinetes coloridos, e a um canto, enfiada numa base de latão polido, ressalta uma enorme bandeira americana. O ar tresanda a fumo de charutos.
O Chefe da Segurança desempacha um sofá de dois lugares e convida-o a sentar-se, ficando os dois meio virados um para o outro.
- Ela não o deixou fumar, pois não? - pergunta Brodsky com um sorriso conhecedor.
- Quem, a Eve Bookerman? Não, mas não fiquei preocupado. Tem todo o direito a isso.
- Bom, aqui pode fumar à vontade. É por isso que uso estes charutos... para a manter longe daqui. Sei que ela não suporta este fedor, está sempre a protestar porque
lhe fica no cabelo.
Cone acende um Camel, observando o outro homem a chegar um fósforo de cozinha ao que resta de um charuto meio fumado e roído na ponta.
- Há uma coisa que lhe quero dizer desde já - começa Brodsky. - Não concordei com o Dempster sobre a contratação de pessoal estranho à empresa para investigar os
incidtentes nas nossas instalações. Não é nada lisonjeiro para o meu lugar. Concorda?
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Cone encolhe os ombros.
- Por vezes ajuda ouvirmos pontos de vista frescos...
- Não preciso de nenhuns pontos de vista lá de fora. Quando o Dempster me disse que ia à Haldering, fiz um barulho dos diabos... mas já sabia que não servia de nada.
Quando o tipo tinha uma ideia, nem com nitro a conseguíamos tirar daquela cabecinha. Seja como for, falei com o Neal Davenport e ele diz que você é fixe, por isso
acho que nos vamos dar bem.
- Oh? Vocês são amigos?
- Não o tenho visto muito nos últimos tempos, mas já nos conhecemos há muito tempo. Fizemos uma comissão juntos na Vigésima Primeira Esquadra, mas depois disso reformei-me e vim trabalhar para aqui. Oiça, não me parece que você venha aqui para me tramar... quero dizer, você tem uma missão a cumprir, e pela minha parte não lhe vou levantar objecções.
- Hum-hum! - diz Cone. - Além disso não tenho vontade nenhuma de aparecer no noticiário das nove.
- Claro - diz Brodsky. - Se descobrir alguma coisa, espero que me informe em primeiro lugar... certo?
- Absolutamente - responde Cone, servindo-se de uma velha e habilidosa mentira.
- Nesse caso acho que vamos poder trabalhar em conjunto- continua Brodsky, recostando-se no sofá a mordiscar o charuto. - É como se diz, uma mão lava a outra.
- Sim, é o que se diz. Por mim tudo bem.
- Segundo julguei perceber, você tem por missão investigar os acidentes industriais... certo? Não tem nenhum interesse no homicídio, pois não?
- Nenhum. Deixo isso para a malta uniformizada.
- Claro, é a melhor coisa a fazer.
A simples menção do assassínio de Dempster fá-lo tossir. Dobra-se para a frente e deixa cair o charuto num cinzeiro de vidro a deitar por fora. Levanta-se e começa
a andar para a frente e para trás no meio do gabinete acanhado, as mãos enfiadas nos bolsos das calças. A pança obriga-o a usar o cinto muito abaixo da cintura.
Se telefonasse para uma agência teatral, pensa Cone, a pedir um actor de meia-idade e pés chatos, por certo que me teriam mandado o Thecdore Brodsky. É o ideal para
o papel: um tipo de cabeça grande com ombros largos e barriga saliente, de rosto truculento e uma expressão marcada
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por um nariz que mais parece um polegar inchado. É rosto de um beberrão, bolachudo e avermelhado.
- A minha posição na empresa não é muito boa nos tempos que correm - confessa o homem. - No fim de con tas sou o Chefe da Segurança, e a minha missão número um é
a protecção do patrão... certo? Olhe, eu fazia o que ele me deixava fazer. Fui eu que o convenci a contratar um guarda-costas. O Tim era um ex-Boina Verde, e não
era tipo para virar as costas a nada. O mesmo se pode dizer do motorista, o Bernie. Foi ajudante de xerife no Kansas Ambos estavam armados e teriam sacado dos revólveres se lhes tivessem dado uma hipótese, mas o que é que se pode fazer contra um par de doidos com uma Uzi?
- Pouca coisa - concorda Cone. - Como também nin guém consegue deter um tipo com uma arma de longo alcance no telhado de um prédio do outro lado da rua. Foi pouca
sorte, e no seu lugar não me preocupava.
- Mas tenho de me preocupar - diz Brodsky, furioso-Pode vir a custar-me o lugar. Sei muito bem que aquela Bookerman gostava de me ver daqui para fora.
- Porque é que a limusina do Dempster não tinha vidros à prova de bala?
- Julga que não pensei nisso? Andei meses atrás dele para mandar vir um BMW transformado! Custa mais de três mil Gs mas vem com vidros à prova de bala, carroçaria
e depósito de gasolina blindados, ignição de controlo remoto, detectores de bombas... tudo o que há de mais sofisticado. Ele acabou por concordar e a encomenda foi
feita, mas ainda vai demorar um bom par de meses. Demasiado tarde. Quem o vai poder usar é o novo PDG.
- Quem é que vai ser nomeado? A Eve Bookerman?
- Cuidado com o que diz! - protesta Brodsky. - Se for ela a conseguir o lugar, estou mais que liquidado. Aquela fulana não pode comigo... e o inverso também é verdadeiro.
- Qual é o problema?
- Química - diz o outro homem, e Cone resolve não tocar mais no assunto.
- Oiça, Brodsky, quando começámos esta conversa você disse-me que não precisava de novos pontos de vista sobre as sabotagens. Quer isso dizer que tem alguma suspeita sobre quem está por detrás de tudo?
- Era isso mesmo o que eu queria dizer.
- Nos seus relatórios não aparece nem uma sugestão
quanto à identidade do responsável, nem sequer são mencionados os possíveis motivos...
- Porque não disponho de provas - responde o Chefe da Segurança em tom contrariado. - Mas hei-de lá chegar, disso pode ter a certeza.
Detém-se uns momentos a ponderar qualquer aspecto, mas por fim continua:
- Não vejo motivos para não o pôr ao corrente. São os sindicatos.
Timothy fica a olhar para ele, atónito.
- Isso mesmo - diz Brodsky, acenando com a cabeça.
- São os sindicatos. Aqueles com quem a Dempster-Torrey lida uniram-se e estão a provocar todos estes problemas para se colocarem numa boa base negocial quando chegar
a altura das revisões dos contratos de trabalho.
- Vai-me desculpar, mas tenho de ser franco consigo - atalha Cone. - Acho que essa sua ideia não tem pés nem cabeça.
Brodsky fica furioso.
- Mas afinal quem é você? O dono da verdade absoluta? Que raio é que sabe destas coisas?
Cone levanta-se e dirige-se ao mapa pendurado na parede, espetando-lhe um dedo no meio.
- Suponho que estes alfinetes indicam a localização das instalações da Dempster-Torrey no país... correcto? Devem ser mais de cem.
- Cento e cinquenta e nove.
- Portanto com quantos sindicatos locais lida a Dem-pester-Torrey? Dez? Vinte? Pelo
menos uns cinquenta! Você está a querer dizer-me que todos esses sindicatos se
uniram numa espécie de conspiração gigantesca para danificar a companhia onde trabalham, de modo a conseguirem um acordo laboral mais favorável na próxima renegociação?
Tretas! Não se ajusta, já viu? Em primeiro lugar, nunca se conseguiram pôr tantos sindicatos de acordo sobre seja o que for... segundo, aposto que a renegociação
dos vários contratos se verifica em alturas diferentes, talvez alguns nos próximos meses e outros dentro dos próximos três anos. Por fim, qual será o interesse de
se destruir os locais de trabalho? Hoje em dia não é assim tão fácil arranjar-se emprego nos meios fabris... nenhum sindicato no seu perfeito juízo iria destruir
as fábricas onde trabalham os seus membros. Está enganado, não são os sindicatos que andam a causar todos esses problemas.
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- Então quem diabo acha que é? - grita Brodsky.
Cone abre as mãos.
- Eh, tenha calma!-protesta. - É o meu primeiro dia de trabalho! Não sou capaz de tirar coelhos da cartola.
- Cá por mim continuo a pensar que são os sindicatos
- insiste Brodsky, teimoso. - Quem mais poderia ser? Alguns desses tipos são comunas confessos... talvez o estejan a fazer por razões políticas.
- Para destruírem o capitalismo americano? Não sei, qual é a marca desses charutos que você fuma, mas no seu caso mudava-me para outra. No fim de contas também está
a contribuir para o enriquecimento dos comunas.
- Ai sim? Bom, você faça como quiser, eu cá mantenho os meus pontos de vista. Continuo a dizer que os culpados são os sindicatos.
Cone encolhe os ombros, mas apercebe-se de que foi tão longe quanto lhe era possível. Pega no chapéu e dirige-se para a porta, detendo-se com a mão na maçaneta.
- Talvez me possa ajudar dizendo-me que género de homem era o John J. Dempster - acaba por dizer.
Brodsky vasculha a papelada que cobre a secretária até descobrir um charuto novo. Morde a ponta e cospe-a para o cinzeiro a transbordar, passando o charuto várias
vezes pelos lábios a fim de o humedecer.
- Dizem que não devemos falar mal dos mortos - começa-, mas neste caso vou abrir uma excepção. O tipo era um bastardo e um sacana de todo o tamanho. Um gajo tramado. Quando em Wall Street ouviram dizer que o tinham abatido, a lista dos suspeitos deve ter sido reduzida aí a uns dez mil. Não tolerava que ninguém se lhe atravessasse no caminho, e quem tentava era imediatamente esmagado. Era um tipo mesquinho e insensível; não precisava de o ser, tinha todo o dinheiro deste mundo e do outro... certo?
- Teve aborrecimentos com ele?
- Imensos, mas o mesmo se passa com toda a gente que trabalha aqui. A Bíblia dele era a Lei dos Tumultos, passava a vida a citá-la.
- Sim, percebo o que quer dizer - comenta Cone.
Faz menção de sair, mas Brodsky chama-o.
- Eh, Cone! Aposto que o que lhe contei sobre o Dempster não se ajusta ao que lhe disse a Eve Bookerman.
- Tem razão, não se ajusta mesmo nada.
Brodsky levanta uma das mãos, mostrando o dedo médio cruzado sobre o indicador.
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- Dempster e Bookerman - diz ele com um sorriso velhaco.- O de cima é o Dempster.
- Obrigado pela informação - agradece Cone.
Na sua opinião, se voltar a pé para a John Street com aquele calor é capaz de lá chegar derreado; como tal mete-se num táxi, mas antes de subir para o escritório
vai à pastelaria da esquina para comprar queijo cremoso e uma sandes com uma espessa rodela de cebola dás Ber-mudas em cima de um pedaço de salmão fumado, sem
se esquecer do pacote de biscoitos e das duas latas de Bud gelada.
Sentado à secretária, devorando o almoço sem sequer tirar o chapéu de couro, chega à conclusão de que não pode dissociar a investigação sobre a sabotagem industrial
nas instalações da Dempster-Torrey das averiguações respeitantes ao assassínio de John J.
Apesar do que Hiram Haldering disse, e independentemente do que ele próprio disse a Neal Davenport, à Bookerman e a Brodsky, Cone suspeita de que as sabotagens e
o homicídio estão relacionados. Além do mais, há vários aspectos práticos a considerar. Se se limitasse a pesquisar as sabotagens, teria de se deslocar a dezoito
localidades espalhadas pelo pais a fim de tentar encontrar pistas - há muito arrefecidas - de casos exaustivamente investigados pelas polícias locais e pelos agentes
de segurança do Brodsky, sem quaisquer resultados palpáveis.
As únicas coisas de que Cone dispõe para começar a trabalhar são a família e os amigos do morto e o rol dos seus conhecidos, empregados e sócios de negócios. Cone
tira do bolso de dentro do casaco a lista de nomes dada por Eve Bookerman; procura a morada e número de telefone da viúva, Teresa Dempster, e liga para lá.
O telefone toca sete vezes antes de ser atendido.
- Residência Dempster - anuncia uma voz feminina toda repenicada.
- Desejava falar com a Sr.a Teresa Dempster, se faz favor.
- Só um momento.
Uma longa espera.
- Fala David Dempster. Com quem estou a falar?
- O Sr. John J. Dempster era seu irmão?
- Era.
- Bom, chamo-me Timothy Cone, e trabalho na Haldering
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& Companhia. Estamos a investigar uma série de acidentes de trabalho nas instalações da Dempster-Torrey, pelo que desejava falar com a Sr.s Dempster. A propósito,
o senhor também consta da minha lista.
- A Eve Bookerman informou-nos de que o senhor poderia ligar para cá. Devo dizer-lhe desde já, Sr. Cone, e con, toda a honestidade, que nem a Teresa nem eu sabemos
a mínima coisa sobre as actividades da Dempster-Torrey. Claro que isso não obsta a que estejamos dispostos a colaborar de todas as formas ao nosso alcance.
O tipo não devia ter dito "com toda a honestidade": Cone fica nervoso sempre que ouve frases desse estilo. Para além disso, este Dempster tem a voz de um padre que
foi expulso por ter acenado com o coiso através da cortina de um confessionário. O que é que o tipo fará para ganhar o sustento? A morada de negócios afirma tratar-se da David Dempster Associates, Inc., na Cedar Street.
- Poderia encontrar-me com a Sr.a Dempster, por favor?
- pergunta ele.
- Desde que não seja nem da Polícia nem dos jornais...
- responde o outro. - Acho que ela está pelos cabelos com essa gente.
- Posso estar aí dentro de meia hora.
- Nesse caso venha já; vou avisá-la para contar consigo Lamento não poder estar presente quando o senhor chegar, mas pode contactar-me no meu escritório sempre que o desejar. Tem a morada e o número de telefone?
- Sim, tenho-os aqui. Se não vir nenhum inconveniente era capaz de íhe fazer uma visita amanhã...
- Mas claro. Olhe, Sr. Cone, agradeço-lhe que abrevie o mais possível o seu encontro com a Teresa. A pobre coitada tem passado por imensas coisas nesta última semana.,
está a reagir bastante bem, mas o melhor é não a perturbarmos mais, não lhe parece?
- Esteja descansado que não a vou perturbar - promett Cone. - São só umas quantas perguntas, não demoro nada
No entanto, antes de sair vai ao gabinete de Sidney Apicella, Chefe do Departamento de Auditores da Haldering Como é habitual, Sid está a massajar o nariz. O pobre sofre de rosácea da narigana - um apêndice grande, arroxeado e inchado que não lhe dá um minuto de descanso.
Sid olha para cima quando Cone entra.
- Não sei o que é que queres, mas não o posso fazer. Estou muitíssimo ocupado.
- Deixa-te disso, Sid. Só te vai custar uma chamada telefónica.
- Da última vez que me disseste isso custaste-me quatro dias de trabalho...
- Juro, é só uma chamada telefónica. Até era capaz de a fazer, mas és tu que tens os contactos mais indicados. É sobre um tipo chamado David Dempster, irmão do magnata que foi assassinado na Wall Street na semana passada. Só pretendo saber que género de negócio é o dele, qual é o capital, o activo, os valores de tesouraria, enfim, todas essas merdas financeiras.
Apicella solta um gemido.
- E tu julgas que consigo saber isso tudo com um simples telefonema? Deves estar louco!
- Experimenta os teus antigos colegas da universidade, Sid. Podes crer que menciono o teu nome no meu relatório final.
- Obrigado por nada - diz o CDA. - Quando é que te decides a comprar um fato novo?
- Que mal tem este? Não sabias que o veludo está na moda este ano?
Considerando que uma organização tão grande como a Dempster-Torrey não porá entraves às despesas, mete-se mim táxi até à residência dos Dempster, na Rua Sessenta e Quatro Leste, entre a Terceira e a Lex. A casa é praticamente uma mansão e, ao contemplá-la do outro lado da rua, Cone calcula que originalmente deveria ser constituída por dois prédios de cinco andares. Agora, depois de uma dispendiosa maquilhagem, está revestida a tijoleira vermelha e ostenta numerosos painéis envidraçados no
lugar das antigas janelas.
Os antigos degraus foram removidos, e a entrada está ao nível da rua, protegida por um portão em ferro forjado. Encostado às grades está um polícia uniformizado, de olhos postos em todas as miúdas giras que lhe vão passando pela frente.
Cone atravessa a rua e brinda o agente com aquilo que ele julga ser um sorriso inocente. Não resulta. O chui estuda demoradamente o chapéu de couro negro, o fato de veludo puído e as botas de atanado, acabando por resmungar:
- Põe-te a andar daqui para fora, seu maltrapilho.
- Eh! - protesta Cone, ofendido. - Cuidadinho com a língua! Chamo-me Timothy Cone, e trabalho para a Haldering & Companhia. A Sr.a Dempster está à minha espera.
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- Não me digas! Vamos lá a ver o teu bilhete de iden tidade...
Cone saca do cartão da Haldering & Co., que tem colado o seu retrato, Samantha Whatley costuma dizer que aquela fotografia devia estar afixada em todas as estações
de correio com o seguinte aviso: "Este homem é procurado por abusar de crianças."
O agente pega no cartão, afasta-se e vai falar ao intercomunicador. Por fim abre o portão, devolve o cartão a Cone e roda a chave da pesada porta de madeira de
car valho.
- Desculpe-me pela confusão - diz o homem.
- Não faz mal - responde Cone. - Vocês estão aqui de dia e de noite?
- Estamos - diz o polícia. -É tão excitante como ver tinta a secar.
No átrio aguarda-o uma criada muito nova enfiada num uniforme impecável, que o precede escadas acima até ao primeiro andar. Cone tenta manter os olhos fixos nos degraus, mas é muito mal sucedido. Ao percorrer um corredor enorme que leva às traseiras do prédio, capta fugazes imagens de tectos altos, quadros em profusão, madeiras envernizadas e plantas por todo o lado.
É introduzido numa estufa montada na fachada traseira do edifício, com largos painéis de vidro encastradòs numa estrutura metálica de cobre esverdeado. A estufa está virada a sudeste, de modo que a luz forte daquele dia límpido atravessa a parede e o tecto envidraçados. Para atenuar a crueza do sol existe um sistema de persianas amovíveis, mas o ar condicionado encarrega-se dè manter o local suficientemente fresco.
A estufa está pejada de toscas mesas de madeira, tendo à sua volta dezenas de sacos de fertilizantes, conchas moídas, areia e utensílios de jardinagem. Sobre os tampos das mesas, em filas ordeiras, vê-se uma impressionante floresta de bonsais, cada uma das árvores anãs enfiada num vaso devidamente proporcionado cujas cores variam entre o castanho, o creme ou o azul-escuro. Alguns são decorados, e uns quantos apoiam-se em pedestais de madeira lacada.
A mulher que vem ter com ele, de regador enfiado num braço, é alta, elegante e traz um vestido
comprido que sussurra ao mínimo movimento. O roupão, volumoso, deve
ser feito de várias camadas de um tecido fino e diáfano, da cor do gelado de baunilha, mas não consegue ser tão pálido como a mulher.
- Sr.a Teresa Dempster? - pergunta Cone.
Ela acena vagamente com a cabeça e olha em seu redor para a imensidão de plantas.
- E você é o Sr. Timothy?
- Cone - apresenta-se ele. -Timothy Cone.
- Mas claro - diz ela.
- Muito obrigado por me receber. Lamento ter de a incomodar neste momento de provação.
Por fim ela fita-o directamente.
- Momento de provação... - repete ela. - Que expressão tão antiga mas tão bonita. O senhor é uma pessoa antiquada, Sr. Timothy?
Cone desiste de corrigir o nome.
- Acho que sim - comessa, pouco à vontade. - Cobre certas coisas. Tem umas plantas muito bonitas, Sr.a Dempster.
- Árvores - emenda ela. - São as minhas queridas. Esta aqui, por exemplo, deve ter perto de quarenta e cinco anos. É uma acácea vermelha japonesa. Gosta dela?
- Muito - diz Cone. - Uma maravilha.
A mulher pousa o regador no chão, pega na pequena acácea vermelha e estende-lha.
- Nesse caso fique com ela - diz. - Ofereço-lha.
Espantado, Cone dá um passo à retaguarda.
- Oh, não posso aceitar!-diz ele. - Deve ser muito valiosa...
- Não, não - insiste ela - Se prometer gostar dela, quero que a aceite.
Apercebendo-se vagamente do que tem pela frente, Cone diz-lhe apressadamente:
- Olhe, Sr.a Dempster, agradeço-lhe muito a sua oferta, é muita amabilidade da sua parte. Infelizmente, no sítio onde vivo quase não dá a luz do sol, e para além disso tenho um gato danado que daria cabo da planta num abrir e fechar de olhos. Não estava a ser justo para com a arvorezinha se a aceitasse.
Ela parece ficar tão magoada que Cone receia que comece a chorar.
- Vamos fazer o seguinte - continua ele, aflito.- Aceito o presente dentro da boa vontade com que é feito, mas a senhora fica com ele e toma-me conta dele. Claro
que nunca deixará de ser a minha árvore...
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Ela sorri de modo tão simples e encantador como uma criança.
- É uma ideia maravilhosa! - exclama. - Direi a toda gente que esta é a árvore do Sr. Timothy. Quer dar-lhe um nome?
- Um nome?
- Mas claro! A maior parte das minhas árvores tem nome. Este zimbro é o Ralph, e aquele pinheiro de Norfol é a Matilda. Não gostava que a sua acácea vermelha japonesa
tivesse um nome?
- E que tal Irving? - sugere ele, resolvendo aderir ao jogo dela. - Se é que se trata de um jogo.
- Amoroso!-exclama ela com tamanha alegria que ele a fica a olhar, espantado e ao mesmo tempo preocupado.
Tudo nela é comprido: rosto, membros, mãos, pés. Parece-se com uma árvore, mas não com um bonsai; é mait como um salgueiro crescido, suave e pendente. A sua postura
revela um langor inefável, parece flutuar, os seus gestos são como adejos. Os olhos grandes e azuis são mais inocentes do que um par de olhos deve ser, e
o cabelo solto, que lhe acompanha a curvatura das costas é macio e ondulado.
Há nela qualquer coisa de etéreo, algo impossível de descrever por palavras, e Cone tem uma fugaz visão da mulher a galopar através de um milharal dourado, pulando
e rindo enquanto grita "Heathcliff! Heathcliff!". Sacode a cabeça para clarear as ideias e, para ver se ela é destra vada de todo, resolve perguntar:
- Como é que se chamam os seus filhos?
- Edward - diz ela. - É o mais velho. E depois há o Robert e o Duane.
- Vivem aqui consigo?
- Normalmente estão no colégio, mas neste Verão foram dar uma volta à Europa em bicicleta. Estão a divertir-se como nunca.
- Não voltaram para assistir ao funeral do pai?
- Não - diz ela. - Não vieram. Quando os conseguimos contactar era demasiado tarde. De resto não valia a pena interromperem as férias, não acha?
Cone tem ideias bem definidas sobre isso, mas não as declina.
- A morte do seu marido deve ter sido um tremendo choque para si, Sra. Dempster.
- Oh, o Jack não morreu! -diz ela num tom quase alegre. - Passou-se. Nada nem ninguém morre neste mundo,
Çr. Cone, limita-se a assumir outra forma. Tudo é imortal: ò senhor, eu, estas árvores, o mundo que nos rodeia.
Oh, meu Deus, pensa ele, esta é uma das tais! Decide então acabar com a entrevista o mais depressa possível, considerando-a como uma pura perda de tempo. Porém,
e repentinamente, Teresa Dempster torna-se faladora. A princípio Cone pensa que ela se balança enquanto fala, mas por fim compreende que a mulher está no caminho
do jorro de um dos aparelhos de ar condicionado incrustados na parede interior de tijolos, cuja corrente de ar lhe faz dançar o roupão insubstancial.
- O David, o meu cunhado, tem-me ajudado imenso - diz ela. - Tem tomado conta de tudo. Sei que as pessoas querem ser simpáticas, mas porque é que tiveram de cortar todas aquelas flores? O Jack foi enterrado perto do Lago Schroon. Temos lá uma casa de Verão e um jazigo de família no cemitério mais querido que alguma vez o senhor poderá encontrar. A minha mãe e o meu pai já lá estão, e agora foi a vez do Jack... também lá tenho um lugar guardado.
A ideia parece encantá-la, obrigando-a a fazer uma pausa, deliciada e enternecida.
- É claro que ele não está mesmo lá - continha ela.- Só enterrámos o invólucro temporário onde ele vivia. Sabe que ele veio ver-me ontem à noite? Veio mesmo! "Terry", disse-me ele; chamava-me sempre Terry. "Terry, sou muito feliz aqui. Consegui atravessar a fronteira, e isto aqui é maravilhoso. Estou à tua espera, Terry." Foi o que ele me disse a noite passada.
O detective da Wall Street já não consegue aguentar mais.
- Sra. Dempster! - replica em tom seco. - O seu marido falou-lhe alguma vez em inimigos que porventura tivesse? Alguém que o tenha ameaçado ou jurado vingar-se por esta ou aquela razão?
- Já tanta gente me perguntou a mesma coisa...- diz ela, parecendo genuinamente atrapalhada. - É claro que o Jack não tinha inimigos! Como é que podia ter? Era um homem tão bom... Tive muita sorte, Sr. Timothy. Pode crer que ele era o melhor marido do mundo. Estava quase sempre fora - em viagens, percebe-, a fazer o que tinha a fazer, mas eu compreendia perfeitamente; os homens andam sempre ocupados. Quando voltava, porém, trazia-me
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sempre um presente. Sempre! Por vezes eram coisas engraçadas... lembro-me de me ter trazido uma marioneta. A verdade é que nunca se esquecia de me trazer qualquer
coisa. Nunca!
- Só lhe posso apresentar as minhas condolências - balbucia Cone, continuando em voz mais firme: - Muito obrigado por me ter recebido, Sr.a Dempster. Foi-me muito
útil.
- Já se vai embora? - pergunta ela, parecendo desapontada.
- Infelizmente tenho outra entrevista marcada.
- Acho que deveria ter-lhe oferecido uma bebida ou algo no género...
- Não faz mal, deu-me uma árvore. O Irving.
- Vai voltar para o visitar, Sr. Timothy?
- Pode contar com isso - diz ele, tentando corrigi-la pela última vez. - O meu nome é Cone. Timothy Cone.
- Oh!-exclama ela. - Bom, isso não é assim tão importante, pois não?
- Não tem a mínima importância - assegura-lhe ele.
Estava a contar com a criadita jeitosa para o acompanhar à saída, mas não há ninguém
à vista. Atravessa o corredor, desce as escadas e sai para o sol escaldante. Ao portão ainda está o mesmo agente uniformizado. Cone
detém-se para acender um cigarro.
- Já falou alguma vez com a Sr.a Dempster? - pergunta-lhe Cone.
- Não, nunca - responde o polícia.
- Então nem sabe a sorte que teve - diz-lhe Cone.
Talvez tenha ficado chanfrada com a morte do marido
- sugere Samantha Whatley. - Talvez fosse uma mulher perfeitamente normal, levada para lá dos limites após aquele assassínio tremendo e brutal.
- Não me parece - diz Cone. - Aposto que foi sempre assim desde que nasceu. Não sei se estás a perceber, ela não tem nada de maluca, só deve ter as engrenagens ligeiramente
fora de sítio; aquilo lá dentro não gimbra bem Não é o suficiente para a terem de internar, mas lá que ela é tarada, disso não tenho a mínima dúvida.
Estão estendidos sobre um dos tapetes ovais do pequeno apartamento de Sam em East Village. A chefe preparou uma mistura de asas de galinha estufadas com molho italiano, cebolas e batatas pequenas. A enorme caçarola
de ferro fundido repousa num descanso ao lado deles, pelo que podem ir enchendo os pratos com uma concha. Também têm salada de alface e tomates miniatura.
- O rancho hoje está bom - diz Cone, chupando a carne de uma asa. - Da próxima vez talvez possas pôr-lhe mais um bocadinho de pimenta e de alho...
-O quê, agora deste em gastrónomo? Se deixares de fumar vais ver que a comida te sabe ao que deve saber! Portanto não conseguiste nada da viúva?
- Não, nada de importante. Enfim, fiquei a saber que sou imortal, o que até me faz sentir melhor. Talvez me saia melhor com o irmão, o David Dempster. Telefonei-lhe e marquei um encontro para amanhã. Também vou falar com um tal Simon Trale, Chefe do Departamento Financeiro da Dempster-Torrey.
- O que é que esperas saber desse?
- Nada, para te ser franco. Neste momento limito-me a andar à pesca.
Ela olha-o com uma expressão de suspeita.
- Quando ficas com esse olhar esquisito, já sei que se está a passar qualquer coisa dentro desse teu cérebro minúsculo. O que é que andas a tramar desta vez, malandro?
- Eu? - replica ele com ar inocente. - Não ando a tramar nada de nada, chefe. Talvez só um pouco de sexo ilícito. Mas acho melhor prevenir-te: não me parece que possamos separar a sabotagem industrial do assassínio. Acho que estão relacionados. O limparem o sebo ao PDG foi simplesmente o último acto de sabotagem, para destruir ou danificar a Dempster-Torrey.
- Porquê? Ou com que finalidade?
- Não faço a mínima ideia. O que é que há para sobremesa?
- Pudim de tapioca.
- Passo - diz ele. - Podes comer os olhos do peixe que eu levo os restos para o Cleo. Aquele gato é capaz de comer qualquer coisa.
- Obrigado pela simpatia. Queres café?
- Claro - diz ele. - Trouxe uma garrafa de brande espanhol. Queres provar?
- Alinho - diz ela. - E depois, tencionas brincar um bocadinho comigo? Uma daquelas tuas brincadeiras maldosas?
- Não é coisa em que não tivesse pensado - admite ele.
Vêem a enésima reposição dos Honeymooners na TV
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ainda deitados no chão, entretidos a bebericar o brande. O anoitecer está calmo e lânguido, mas quando o program acaba, Titmothy não consegue disfarçar a impaciência.
- O que é que tens? - pergunta Sam.
- Não sei - diz ele, preocupado. - Acho que estou derreter. Olha para nós: deitados num tapete a ver televisão e a beber brande. É tudo tão doméstico e confortável
que não consigo aguentar mais.
- Vá lá, diz - pede ele. - Acaba! Qual é o meu pro blema?
- Não suportas ser feliz - diz-lhe ela. - Não sabei como é que hás-de lidar com a felicidade. Assim que começas a sentir-te bem, recuas e perguntas, "Mas afinal
o que é isto?". Não podes acreditar nela só de vez em quando., é perfeitamente normal as pessoas viverem contentes.
- Sim, talvez tenhas razão. Sei que não passo a vida a sorrir. Admito que fico ansioso quando as coisas me correm bem, mas isso só acontece porque ainda não tenho
a experiência necessária. Ser feliz é como falar uma língua estrangeira. Não a consigo perceber, por isso não é de espantar que fique nervoso quando penso que alguém
andí a querer tramar-me.
- Achas que te estou a tratar como um palerma de ocasião?
- Não, Cristo, nunca! Estava era a falar em Deus.
- Desde quando é que te tornaste religioso?
- Sempre acreditei em Deus - protesta ele. - Sei que se parece muito com o meu instrutor de infantaria de Par ris Island. Um fiiho da puta dos diabos que passava a vida a dar-nos pontapés no cu e a dizer-nos que era para nosso próprio bem. Como o meu pai, que me dava com o cinto ( me dizia que lhe doía mais a ele do que a
mim. Deus está sempre na mó de cima... talvez nem sempre, mas mais tarde ou mais cedo é mesmo assim. Toda a gentí paga pelos prazeres deste mundo, miúda.
- Eu não me importo de pagar - diz Samantha. - Vou agora e pague depois...
Dez minutos depois estão abraçados na cama.
Ambos se sentiriam chocados se alguém sugerisse estarem muito ligados um ao outro. Não se trata só
da sua fidelidade sexual, a verdade é que andam juntos há mais anos do que a maior parte dos casais seus conhecidos e casados. Cada um deles é como um copo meio cheic a precisar do outro para se encher até à borda.
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No entanto não perdem tempo com semelhantes raciocínios vãos; as únicas coisas que conhecem são o suor e a agressividade: um jogo fenomenal de gemidos e gritos de
desejo. Abraçados ou às cambalhotas, esquecem-se de tudo o que os rodeia; nem sequer se apercebem do vazio no écran do televisor depois dos acordes finais da "The
Star-Spangled Banner".
3
Manhattan foi envadida por uma vaga de calor estival. O ar está húmido e tão supersaturado que as pessoas não o respiram, bebem-no. As roupas pegam-se ao corpo, os pés escorregam dentro dos sapatos, o cabelo alisa-se e até as notas parecem gordurentas, como se as figuras gravadas dos presidentes estivessem a suar.
Cone, em marcha lenta, segue em direcção à Cedar Street, com o casaco dobrado no braço e o chapéu na mão. Tenta manter-se no lado das ruas banhado pela sombra, mas mesmo assim não há escapatória. Como Sydney Smith costumava dizer, está um dia ideal para as pessoas tirarem a pele e andarem de ossos ao léu.
A David Dempster Associates, Inc., fica localizada num edifício de aço inoxidável e vidros fumados. O átrio, graças ao ar condicionado à máxima potência, está tão
frio que até se podiam pendurar quartos de animais nas paredes sem receio de estragar a carne. Cone deixa-se ficar lá dentro durante cinco minutos, à espera que
o sangue pare de ferver. Por fim vai consultar a placa com os nomes dos inquilinos e mete-se num elevador de alta velocidade até ao vigésimo sétimo andar, vestindo o casaco a meio caminho.
A antecâmara é pequena: secretária, máquina de escrever, arquivador, cesto de papéis e uma recepcionista capitosa que neste momento lê um exemplar da Elle. Olha para cima quando Cone entra e brinda-o com um sorriso húmido.
- Muito calor, não acha? - pergunta ela.
- Não é o calor - diz ele em tom solene. - É a humidade.
Cumprido assim o catecismo nova-iorquino, vai direito ao assunto:
- Timothy Cone, da Haldering & Companhia. Tenho uma entrevista marcada com o Sr. Dempster.
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- Claro - diz ela, bem-disposta. - Vou-lhe dizer que já chegou.
Desaparece por uma porta lateral e está de volta mo mentos depois.
- Por aqui, se faz favor, Sr. Cone. Quer deixar o seu chapéu aqui fora?
- Nã, eram capazes de mo roubar - diz ele.
- Duvido - replica ela. - Duvido muito.
O gabinete de David Dempster é grande se comparado com a salinha da recepcionista. Na verdade é uma divisão modesta e de mobiliário espartano: secretária tipo executivo com os habituais acessórios em couro, dois telefones, cadeira rotativa e duas de braços, armário-ficheiro em aço e uma pequena eatante com livros. Nada mais. A única decoração visível - pendente na parede - é uma enorme ampliação colorida de um cão de fila, tendo preso à moldura um diploma e uma fita azul.
O homem em pé por detrás da secretária é alto e encorpado. Veste um fato tropical de bom corte, muito justo nos ombros e peito, e traz colete por baixo. Cone pensa que o homem, se não é ferreiro nas horas livres, então deve fazer qualquer coisa tão ou mais revoltante - como por exemplo preparação física. O aperto de mão é de esmagar os ossos, como se estivesse preparado para um braço de ferro imediatamente a seguir à apresentação.
No entanto revela-se afável: faz o visitante sentar-se numa das cadeiras de braços, acende o cigarro a Cone com um Dunhill de ouro e aproveita para acender o seu Ben-son & Hedges (com filtro). Após uma gargalhada estrondosa, pergunta a Cone se não acha que está demasiado calor, e o detective da Wall Street dá a resposta apropriada. Parecem-se com dois irmãos maçónicos a trocarem os códigos secretos.
Por fim reclinam-se nas cadeiras, fumando avidamente os cigarros enquanto se estudam mutuamente com um ar de cautelosa descontracção.
- A Teresa disse-me que o senhor a foi ver - diz Dempster. - Ficou muito embaraçada quando percebeu que o tratou sempre por Sr. Timothy.
- Não tem mal nenhum; aliás disse-me que isso não era importante, e a verdade é que não é.
- O que é que pensa dela? - pergunta subitamente o outro. - Quererá dizer-me qual foi a sua impressão inicial?
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Cone encolhe os ombros:
- É diferente.
Dempster sorri, revelando uns dentes avantajados.
- A Teresa é uma mulher muito especial. Muita gente fica de pé atrás quando a conhece pela primeira vez, mas posso assegurar-lhe que ela não é a simplória que talvez pareça. Quando é necessário, sabe ser pragmática e determinada, e aliás aceitou a tragédia do Jack de uma forma admirável.
- Ele não morreu - observa Cone, incapaz de resistir.
- Passou-se.
Dempster torna-se sério.
- Bom... sim, ela acredita nisso, e acredita sinceramente. Não faz mal a ninguém, pois não?
- Absolutamente. Perguntei-lhe se o marido tinha inimigos, e ela respondeu que não. Agora gostava de lhe fazer a mesma pergunta a si.
- Os repórteres e a Polícia já ma fizeram - diz Dempster, entristecido. - Sr. Cone, tem de compreender que a minha cunhada não conhecia intimamente as actividades comerciais do marido. Nem sequer sabia o que é que o Jack fazia para ganhar a vida. Não que ele lhe quisesse esconder alguma coisa; ela é que não se mostrava minimamente interessada. Tinha os filhos, as casas, os bon-sais e satisfazia-se com tudo isso. Agora quanto à sua pergunta: o Jack tinha inimigos? É claro que tinha. O meu irmão era um PDG impiedoso e, receio dizê-lo, por vezes chegava a ser brutal. Erigiu um enorme conglomerado a partir de uma pequena oficina em Quincy, no Massachusetts... não se consegue uma coisa dessas sem se ir fazendo inimigos pelo caminho. No entanto, e tanto quanto eu sei, ninguém o odiava a ponto de cometer um assassínio. Foi isto mesmo que disse à Polícia, e é a verdade tal como a conheço.
- Sr. Dempster, não tenho nada a ver com as investigações do homicídio; a minha missão consiste em analisar os acidentes industriais que a Dempster-Torrey sofreu nos últimos tempos. Já ouviu falar no assunto?
- Por alto. O Jack falou-me nisso uma vez, durante um jantar.
- Faz alguma ideia de quem poderá estar por detrás desses casos?
- Por mim apostaria em empregados despedidos ou ressentidos.
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Ficam ambos calados. Cone acende novo cigarro, mas desta vez Dempster tira da gaveta da secretária um elegante cachimbo com banda de prata e enche-o com tabaco retirado
de uma bolsa de seda, acamando-o lentamente com a ponta do dedo indicador. Acende cuidadosamente o cachimbo com um fósforo especial, e por fim recosta-se na cadeira,
soltando satisfeito as primeiras baforadas.
O Lorde da mansão, pensa Cone. Com o retrato do seu mastim favorito pendurado na parede.
Dempster tem um rosto comprido e de feições marcadas; nariz grande, dentes grandes e, maior que o resto, um bigode aparado ao estilo dos soldados da guarda, que se estende de lado a lado, farfalhudo, com leves tons ruivos num fundo castanho. O cabelo, espesso e ondulado, tem a mesma coloração, e faz com que o corte à escovinha de Cone se pareça com o cucuruto de um cacto. A única coisa pequena em Dempster são os olhos: dois tições escuros.
- Que espécie de homem era o seu irmão? - pergunta Cone.
- Sabe que é o primeiro investigador a perguntar-me isso? Estranho, não lhe parece? Se pensarmos bem deveria ser essa a primeira questão que a Polícia gostaria de ver esclarecida. Bom, o Jack era um homem com uma tremenda vontade de vencer, dispunha de energias infindáveis. E ambição que chegava para dez. Não sei se está a perceber, ele não pretendia nem dinheiro nem poder; disso tinha quanto chegava para duas vidas inteiras. O Jack era um idealista; queria que a Dempster-Torrey se tornasse na maior, mais rica e mais internacional entidade comercial do mundo. Vivia para a competição, e quanto a mim encarava o mundo dos negócios como se fosse um jogo. Sabia que ele jogava squash, golfe, póquer e era um demónio no bilhar às três tabelas? Jogava sempre para ganhar, e não suportava a derrota.
- Sabe se ele limava algumas arestas para se assegurar da vitória?
Dempster solta uma gargalhada, mostrando de novo as favocas.
- Mas é claro que sim! O certo é que quase nunca era apanhado, e quando o era, admitia o erro, arrependia-se, sorria e as pessoas perdoavam-lhe. Perdoavam-lhe porque ele era um homem encantador. O mais encantador que
jamais conheci em toda a minha vida, e olhe que não lhe estou a dizer isto só por ele ser meu irmão.
- E os oponentes dele nos negócios... também lhe perdoavam quando ele atalhava caminho?
- Aí já tenho as minhas dúvidas. Como lhe disse, o Jack fez inimigos ao longo da vida. Claro está, não lhe posso dar uma resposta concreta, nunca tive negócios com
o meu irmão. Seguimos cada qual o seu caminho.
- Qual é o seu ramo de actividades, Sr. Dempster?
- O quê, ainda não sabe? - pergunta o outro, surpreendido.- Relações públicas para as grandes corporações. Não tenho muitos clientes porque prefiro manter a firma
nas suas actuais dimensões, isto é, com um só homem. Não sou um construtor de impérios como o Jack, e nenhum dos meus clientes é aquilo que poderemos designar por
gigante industrial. O certo é que gostam do meu trabalho e pagam as contas sem nenhum atraso. É só isso que pretendo.
- Que género de coisas é que o senhor faz? - pergunta Cone. - Edita informações para a imprensa? Trata das fotos e biografias dos clientes? Toma parte nas sessões de planeamento de novos produtos?
- Ah! - exclama Dempster, reacendendo o cachimbo.- Vejo que conhece o ramo! Sim, faço isso tudo, mas suponho que a minha função principal consiste em manter os nomes dos meus clientes fora dos jornais, quando por exemplo fazem uma manobra mais estúpida ou cometem qualquer erro relacionado com as suas vidas pessoais.
- Sim, hoje em dia há muitas coisas do género - diz Cone. - Como é que se dava com o seu irmão?
Dempster pousa cuidadosamente o cachimbo no tampo da secretária.
- Bom, suponho que não éramos tão íntimos como deveríamos ser. A nossa família é muito pequena... os meus pais já morreram, e os poucos tios, tias e primos que temos vivem todos no Dakota do Sul. Sei que nos devíamos ter aproximado mais... e agora o Jack já não está entre nós. Se quiser, posso dizer-lhe que as nossas relações eram cordiais mas frias. Não convivíamos muito; um jantar ocasional quando ele podia, o Jack era um homem extraordinariamente atarefado. De vez em quando ia passar um fim-de-semana à casa de Verão deles.
- Nunca tratou das relações públicas da Dempster-Torrey?
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- Não, mas também nunca me esforcei por isso, Não queria ver o Jack acusado de nepotismo, e para além
disso a Dempster-Torrey tem o seu próprio departamento de FU
aliás deveras eficiente. Era melhor para todos se eu nu mantivesse afastado dos negócios do meu irmão.
- Hum-Hum! - diz Cone. - Bom, o senhor prometeu qe colaborava e colaborou mesmo. Muito obrigado pelo tempo que me dispensou.
- Se houver qualquer coisa em que o possa ajudar não hesite em telefonar-me.
- É o que farei. Bonito cão, aquele ali.
Dempster vira-se para contemplar o retrato na parede.
- Era o King- diz em tom soturno. - Foi atropelado no ano passado por um condutor bêbado que subiu o passeio quando eu passeava com o cão no Central Park.
- É pena - diz Cone.
- Tirei o tipo do carro - continua Dempster - e dei -lhe cabo do canastro.
Após um último aperto de mãos de esmagar os ossos Cone sai cá para fora. Atravessa o átrio gelado, tira o casaco e enfia-se no banho de vapor. O calor bate-lhe na
cara, e quando começa a andar na direcção da John Street não sabe se conseguirá sobreviver dentro dos escritórios da Haldering & C.?, onde os aparelhos de ar condicionado,
todos de modelos obsoletos, gemem e chiam numa batalha perdida contra a canícula.
Tem uma hora disponível antes da sua entrevista com Simon Trale, Chefe do Departamento Financeiro da Dempster-Torrey, e sabe que tem várias coisas para fazer: falar
com Davenport sobre a investigação do homicídio; pedir ao Sid Apíceíla para se apressar com o balanço da David Dempster Associates, Inc.; e reunir provas que apoiem
a sua grandiosa teoria sobre o responsável pela campanha de sabotagem.
Começa por rever a sua recente conversa com David Dempster. Timothy sabe muito bem que ele próprio vive encastrado numa enorme confusão de preconceitos; por exemplo,
não é capaz de acreditar num homem que use anéis vistosos, assim como nunca emprestará dinheiro a quem afirme ter acabado de ler o Silas Marner, nem nunca confiará
numa mulher que num dia luminoso use os óculos de sol no topo da cabeça.
Sabe que são manias estúpidas, sabe que as tem aos
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montes, e no encontro matinal com David Dempster parece ter contraído mais algumas. A voz bombástica e a dicção precisa do homem, o sorriso cínico e tão caloroso
como o arreganho de um lobo... os gestos espectaculares com que encheu o cachimbo, como se estivesse a encher um cálice com vinho sacramental... o facto de usar colete no dia mais quente do ano, ainda por cima adornado com uma pesada corrente de ouro da qual pendia a chave emblemática do Phi Beta Kappa...
Tudo afectações de somenos importância, admite Cone, mas nem por isso menos reveladoras. O homem está muito perto de ser um escroque, ou de se parecer com um. Seja como for, Cone suspeita de que o outro é verdadeiro verbo de encher. Por detrás dos modos confiantes e do ar professoral esconde-se um tipo assustado de morte; basta tocar-lhe para que se esvazie como um balão.
No entanto... no entanto... as palavras finais de David Dempster, a propósito do condutor bêbado que lhe matara o cão, tinham ficado marcadas por tons de selvajaria incon-trolada: "Dei-lhe cabo do canastro". A afirmação chocara Õone, não devido ao acto ou às palavras usadas para o descrever, mas sim devido ao facto de não se ajustarem ao peralta pomposo que as pronunciara.
É tudo muito estranho, e Timothy decide colocar David Dempster debaixo de olho. O tipo não tem nada de esquisito, mas a verdade é que até ao momento ninguém questionara
aquelas vibrações mais que despropositadas. Como todos os detectives, Cone tende a enfiar as pessoas em pequenos cacifos, e quando não as consegue atribuir a compartimentos claramente definidos, começa a ficar ansioso.
A entrevista com Simon Trale decorre na sede da Demps-ter-Torrey, na Wall Street. Trale prefere receber Cone na sala de reuniões da direcção, um salão cavernoso com uma mesa central suficiente longa para Paul Bunyan se deitar nela. Rodeiam-na vinte cadeirões estofados a couro negro e espaçados com precisão milimétrica. Sobre o tampo, em frente a cada lugar, podem ver-se uma garrafa de água mineral, um copo, um bloco de papel amarelo, esferográfica e cinzeiro - tudo marcado com o logotipo da companhia.
- Preferi vir para aqui porque a sala foi revistada há menos de uma hora por causa das escutas electrónicas -
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informa Trale na sua voz aguda. - Os técnicos só passarão pelo meu gabinete depois do almoço, por isso achei que era mais seguro falarmos aqui.
- Sim, por certo que tem razão - diz Cone.
Será que se vão sentar em extremos opostos naquela enorme placa de madeira polida, forçados a gritarem um ao outro? Mas não, Trale puxa duas cadeiras contíguas nui
dos lados e convida-o a sentar-se.
O CDF é um fulano atarracado; Cone calcula que, si fosse uns centímetros mais baixo, o tipo poderia
ser mesmo classificado como anão. Na maior parte dos casos uma
pessoa tão diminuta vê-se obrigada a comprar as rou pas nas secções de crianças dos grandes armazéns, mas as vestes de Trale são de um corte irrepreensível, impossível
de se encontrar nas lojas vulgares. Veste casaco azul-escuro de abas largas e camisa de um branco ima culado onde sobressai uma gravata às pintas; botões de
punho de ouro, aliança grossa, fíolex de ouro. Os pés, minúsculos, calçam sapatos pretos de sola de borracha.
O cabelo, abundante, é branco como a neve e apresenta-se cuidadosamente aparado. As cãs são compreensíveis, pois Cone dá ao outro uns setenta anos, se é que já não vai nos setenta e muitos. O velho, porém, revela movimentos seguros, e a voz aguda não hesita.
- Não se importa que fume? - pergunta Cone.
- Faça favor - diz Trale. - O médico não me deixa fumar mais de um cigarro por dia, mas só por isso sabe-me muito melhor.
- Quando é que o fuma? À noite, depois do jantar?
- Nada disso - diz Trale com um sorriso divertido.- Assim que me levanto. Serve para restabelecer a circulação...
- Perdoe-me a indiscrição, mas... que idade tem o senhor?
- Não é indiscrição nenhuma. Faço setenta e três no ano que vem.
- Aposto que vai ter o mesmíssimo aspecto - diz Cone em tom apreciativo. - Não sofre de nada?
- O habitual - responde o homenzinho com um encolher de ombros. - Mas ainda tenho todos os dentes, graças a Deus. Uso óculos para ler, mas o coração está impecável.
- Porque é que ainda está a trabalhar? - quer saber Cone, cheio de curiosidade. - Dempster-Torrey não pratica a reforma obrigatória aos sessenta e cinco?
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Claro que praticamos, mas o Jack Dempster forçou o Conselho de Administração a aprovar uma moção que me permitiu continuar. Sabe porque é que ele fez isso?
- Porque o senhor é um mago das finanças?
- Não - diz Trale, soltando uma gargalhada. - Há centenas de homens mais novos que podiam fazer o que eu faço. A minha mulher morreu vai para nove anos, e os meus filhos estão todos casados e nas suas casas. Não jogo golfe nem tenho passatempos, a Dempster-Torrey é tudo o que tenho na vida. O Jack sabia disso, e sabia que
sem um gabinete e sem problemas para resolver eu acabava por morrer num canto qualquer. Por isso manteve-me ao serviço, Deus o abençoe.
- Foi muito simpático da parte dele - diz Cone, olhando para o cigarro enfiado entre os dedos manchados de nicotina. - Mas isso nem parece coisa do John J. Dempster de quem tenho ouvido falar.
- Oh, por certo que ainda ouvirá coisas desagradáveis sobre ele - diz Trale, parecendo divertido. - E a maior parte serão verdadeiras. Não lhe vou dizer que o homem era um santo, porque não o era. Conhece alguém que o seja?
- Disseram-me que era impiedoso e brutal quando se tratava de negócios.
O CDF franze o cenho.
- Impiedoso e brutal? Bom... talvez sim. Porém, quando se gira a uma escala como a do Dempster, ninguém se pode dar ao luxo de ser bondoso. Ele jogava duro quando era preciso jogar duro.
- Portanto foi arranjando inimigos à medida que crescia?
- Naturalmente. A Polícia pediu-me que elaborasse uma lista, mas eu disse-lhes que não ia ser uma lista, o que eles me pediam era um livro!
Sorri perante a recordação. Tem a pele de um bebé saudável, e os olhos azuis-claros contemplam o mundo com divertimento e admiração. As orelhas, pequenas e rosadas,
estão coladas ao crânio, e os lábios são tão vermelhos que bem poderiam estar pintados. Tem uma cabeça de boneca, finamente moldada em porcelana, com todos os pormenores
pintados com esmero, desde as pestanas grandes e negras ao queixo com covinha. - Há quanto tempo trabalha na Dempster-Torrey Sr. Trale?
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- Desde o princípio. Era o contabilista da Torrey Mn chine Works em Quincy, no Massachusetts, quando o Johi Dempster veio trabalhar connosco como gerente de vendas Um ano depois tinha duplicado as nossas receitas, e no ano a seguir casou-se com a Teresa Torrey e foi nomeadi vice-presidente.
- Oh, oh! - diz Cone, acendendo mais um Camel. - Com que então casou com a filha do patrão...
- Pois casou, mas teria sido nomeado vice-presidente mesmo que não se tivesse casado. O Sanford Torrey soube reconhecer no J. J. o génio que ele era; para além disso
tanto o Sanford como a mulher viviam preocupados com a filha. Era muito bonita, mas os namorados que a ronda vam não se aguentavam muito tempo por aquelas bandas Já falou com a Teresa?
- Já, conheci-a ontem.
- E como é que a achou?
- Um pouco destravada.
- Pois é - diz Trale em tom triste. - Era o que os outros jovens pensavam... mas o John Dempster viu qualquer coisa nela. Na verdade, Sr. Cone, trata-se de uma mulher muito querida, amorosa. Quando a minha mulher adoeceu, não houve nada que ela não fizesse por nós. Nunca poderei agradecer-lhe o bastante. O John viu essa faceta dela - a ternura, a afeição, a frontalidade inocente. Sim, sei que casou com a filha do patrão, mas havia muito mais do que isso. Posso parecer-lhe um velho romântico, mas sempre pensei que ele a amava e que casou com ela pelas qualidades que lhe faltavam a ele: a simpatia, uma doce ingenuidade, a honestidade absoluta.
- Mas também lhe permitiu subir na vida.
- Naturalmente. Um ano depois do casamento a companhia passou a chamar-se Dempster-Torrey - repare que o nome dele surge em primeiro lugar! -, e o John iniciou a sua campanha de aquisições e fusões, diversificando-a para áreas que nada tinham a ver com o negócio original. Eu resolvi aceitar a boleia, e que grande boleia me saiu!
- O Sanford Torrey apreciava o que o Dempster começou a fazer?
- O velho e a mulher morreram num acidente de aviação poucos anos depois de John Dempster começar a formar o conglomerado. Soube-se então que o Sanford deixou tudo o que tinha, incluindo a sua quota maioritária na Dempster-Torrey, à Teresa. No entanto acho que tinha as
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suas reservas quanto ao J.J., pois amarrou a herança da filha a um fundo em que o genro não podia tocar. Devo dizer-lhe que o velho não tinha nada a recear quanto
à possibilidade da filha ficar desamparada; o John passou a companhia a sociedade anónima e conseguiu triplicar o valor desse fundo, incluindo-lhe as partes dos
três filhos do casal. Apesar de tudo, a Teresa ainda é uma mulher riquíssima.
Cone remexe-se na cadeira, inquieto.
- Acho tudo muito interessante, Sr. Trale, mesmo que não passe de um pano de fundo. Infelizmente não serve de muito para aquilo que tenho de fazer... ou seja, descobrir quem está por detrás dos dezoito casos de sabotagem industrial nas fábricas e instalações da Dempster-Torrey.
Inesperadamente, Trale sorri.
- Esses incidentes punham o J.J. furioso, mas por mim nunca lhes liguei grande importância. Qualquer uma das grandes corporações sofre de vez em quando ataques semelhantes. O John, porém, dizia que se tratava de uma conjura contra nós.
- Mas o senhor não pensa assim?
- É possível, mas tenho as minhas dúvidas. Os seguros cobriram a maior parte dos prejuízos, e os incidentes nunca chegaram a afectar a nossa estrutura financeira básica.
- As acções não baixaram logo a seguir a cada um dos incidentes?
- Claro que baixaram, mas pouco tempo depois voltaram a recuperar.
- O que é que aconteceu às acções desde a morte de Dempster?
O homenzinho fica muito sério.
- Muito mau - diz ele. -Segundo as minhas estimativas, o valor total das nossas acções baixou cerca de trinta por cento desde a morte dele.
- E continuam a descer?
- Não, parece que estabilizaram de há uns dias a esta parte. A Wall Street está à espera de saber quem vai ser o novo PDG.
Timothy apaga o cigarro e respira fundo.
- Sr. Trale, vou-lhe colocar uma hipótese um tanto ou quanto maluca. É uma coisa em que ando a pensar desde que me entregaram este caso. Digo-lhe desde já que não
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tenho a mínima prova, mas como o senhor conhece muito mais áo negócio do que eu, gostaria de ver a sua reacção.
- Muito bem - diz o CDF em tom calmo. -Venha daí essa ideia.
- Suponha... repito, suponha que há uma corporação a preparar-se para tomar de assalto a
Dempster-Torrei Se assim for terá de...
- Calma!-protesta Trale, levantando uma mão lívidt
- Aguente aí! O senhor está a falar numa aquisição di mais de três biliões de dólares! Biliões, com B grande.
- Sei disso - responde Cone, apelando para toda sua paciência. - Posso indicar-lhe o nome de uma dúzia de piratas - americanos, ingleses, australianos - capazes
de se abalançar a uma manobra dessa envergadura. Suponha que um desses bandidos tem a bonita ideia de forçar a descida das cotações da Dempster-Torrey para conseguir
uma aquisição mais em conta? Antes de começar a com prar concebe um programa de sabotagens industriais, con vencido de que está a poupar dinheiro a cada vez que
as acções da Dempster-Torrey descem um ponto que seja.
- Partindo do princípio de que isso seria verdade, pode crer que não resultava. Tal como lhe disse, Sr. Cone, as cotações não desceram assim tanto após os incidentes,
e subiram pouco tempo depois.
O detective da Wall Street fica a olhar para ele.
Simon Trale devolve-lhe o olhar e por fim começa a mordiscar a unha do polegar.
- Já vi onde quer chegar - acaba por dizer, a voz subitamente enfraquecida. - Os actos de sabotagem não obti veram os efeitos desejados, e como tal esse pirata corporativo, se é que existe, assassinou o John J. Dempster.
- Mandou-o matar. Sei umas coisas sobre crimes violentos, Sr. Trale, e pode crer que o homicídio de Dempster tem todas as marcas de uma morte por contrato. Dois
patifes numa moto e com uma pistola-metralhadora Liz... de certeza que foram contratados. E resultou: o senhor acabou de me dizer que o valor total das acções ao
portador da Dempster-Torrey baixou cerca de trinta por cento Já viu que isso convém imenso a um qualquer bandido apostado em assaltar a vossa companhia?
- Só um momento - interrompe Trale, visivelmente incomodado. - Em primeiro lugar, há cerca de dois anos reestruturámos a corporação de modo a tornar muito difícil
uma aquisição inamistosa... difícil e dispendiosa. Desde
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então nunca ouvi falar nada de nada sobre qualquer jogada contra a companhia...
- A mulher é sempre a última a saber - diz Cone, mas o outro ignora o comentário.
- Em segundo lugar, se alguém tivesse acumulado nem que fossem cinco por cento das acções da Dempster-Torrey, teria de informar a SEC, declinando o valor das acções adquiridas e quais as suas possíveis intenções.
Cone detém-se para acender mais um cigarro.
- Então, Sr. Trale... -diz ele. - Sabe tão bem como eu que nem sempre é assim. Digamos que quatro bandidos muito ricos estão a preparar qualquer coisa, desejosos de poder, e um deles diz: "Hem! e se nos virássemos agora para a corporação XYZ?" Todos concordam em fazer a tentativa; cada um deles compra quatro por cento das acções da XYZ, por isso não precisam de preencher as declarações da SEC... correcto? No entanto, os quatro juntos detêm dezasseis por cento do património da companhia. A juntar a isso, resolvem dar a entender certas coisas a certos mediadores conhecidos, que começam imediatamente a comprar XYZ. Até aqui têm estado a actuar a titulo puramente individual; não há nada escrito que indique a finalidade da jogada. Isso só virá mais tarde, quando se julgarem com força suficiente para avançarem definitivamente. Depois é só dizer adeus à XYZ...
- Um cenário deveras imaginativo, Sr. Cone - comenta o CDF, preocupado.
- Mas é possível, não lhe parece?
- Sim, é muito possível.
- É como vê. Já foi feito antes, e não vejo razão para que não seja tentado de novo.
- Portanto o senhor julga que é isso o que está a acontecer à Dempster-Torrey?
- Ainda não sei - confessa Cone. - Não passa de uma teoria... mas não lhe consigo encontrar pontos fracos. O senhor consegue?
- Recuso-me a acreditar que um qualquer magnata vá ao ponto de assassinar três homens só para aumentar os seus lucros.
- O senhor não quer acreditar porque é uma pessoa com princípios morais, cuja ganância não ultrapassa os padrões normais. Acredite-me, há tipos na Wall Street que
seriam capazes de cilindrar a avó só para ganharem um mísero dólar.
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Trale não responde, parecendo de repente ainda mais pequeno, encolhido e derrotado.
- Talvez esteja na altura de me reformar - diz em voz baixa. - O Jack Dempster jogava duro, e eu alinhei com ele. Mas eram só negócios. Agora assassínios? Nunca
Tenho a sensação de que o mundo me ultrapassou... já não o consigo reconhecer. Tornei-me obsoleto.
- Nã!-diz Timothy Cone, estendendo o braço para dar umas pancadinhas no ombro do velhote. - O senhor está longe de ser obsoleto, e nem pense em demitir-se Preciso
da sua ajuda.
- Precisa de mim? - diz Trale, olhando para cima.- O que é que posso fazer?
- Tem contactos na Wall Street?
- É claro que tenho. Montes deles... Oh! já estou a perceber. Quer que eu descubra se há alguns rumores sobre uma possível tentativa de aquisição da Dempster-Torrey.
- Isso mesmo - diz Cone em tom aprovador. - Por mim também tenho uns contactos, mas nada que se com pare aos de um homem na sua posição.
Trale reanima; endireita-se na cadeira e puxa os ombros para trás.
- Sim, não custa nada fazer o que me pede - diz ele.
- Vou pôr-me em contacto com todos os meus conhecimentos da Wall Street.
- Era isso que eu esperava de si. Quanto tempo julga que vai demorar?
- Não muito. Talvez amanhã já tenha qualquer coisa para si.
- Não podia ser melhor. Depois telefona-me?
- Mas claro. Assim que tiver algo de definido... a favor ou contra.
- Obrigado - diz Cone. - Só mais duas perguntas e deixo-o em paz. O senhor disse-me que o John Dempster amava a mulher, e eu aceito isso sem problemas; aliás, a própria Teresa disse-me que eles formavam um casal feliz No entanto também ouvi dizer que ele tinha uns arranjinhos por fora...
- O que é que isso tem a ver com a sabotagem industrial?
- Nada, provavelmente - admite Cone. - Só me quero inteirar o mais possível sobre as pessoas
envolvidas. O John Dempster era mesmo um garanhão, Sr. Trale? -
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Sabendo quando mentir, Cone acrescenta rapidamente: - Já várias pessoas me vieram com essa afirmação...
-Que pessoas?
Cone deixa escapar um suspiro bem audível.
- Está a protelar, Sr. Trale. Se não quiser responder basta que mo diga, e eu aceito as suas reservas. Além de continuar a acreditar no que me contaram.
O CDF hesita durante um longo momento, mas por fim decide-se:
- Agora já não o posso prejudicar... e além disso há demasiada gente conhecedora do assunto, de modo que é impossível manter o segredo. É verdade, Sr. Cone: o Dempster
era um mulherengo. É uma atitude que quase derivava dos seus métodos de trabalho; quando via uma coisa que queria, perseguia-a sem olhar a custos e riscos, não se preocupando nunca com o tempo que poderia levar até à meta. Com as mulheres também era assim, mas isso nunca o impediu de amar a Teresa. Disso tenho a certeza absoluta.
- Hum-hum!-diz Cone, calculando que o Chefe da Segurança, Theodore Brodsky, estava dentro da razão quando se referira à ligação entre Dempster e Eve Bookerman. - Muito obrigado por esta conversa; pode crer que me ajudou imenso. Fico à espera da sua chamada sobre os boatos da possível aquisição.
Levantam-se, apertam as mãos e dirigem-se para a saída. Junto à porta, Cone detém-se.
- Só mais uma pergunta, Sr. Trale. Conhece o David Dempster?
- Foi-me apresentado - responde o outro.
- Por acaso sabe se é casado?
- Divorciado. Desde há cinco anos, se bem nie recordo.
- E não voltou a casar?
- Não faço ideia. Qual é o seu interesse no David Dempster?
- Estou a tentar enquadrá-lo na imagem - responde Cone, deixando ao Chefe das Finanças o trabalho de se interrogar sobre o significado da sua observação.
Entra no gabinete de Samantha Whatley, fazendo-a levantar os olhos da papelada que tem entre mãos.
- Estou ocupada - avisa ela.
- Eu também - replica ele.-Farto de andar na rua com este calor dos diabos, a fazer o trabalho de um justo. Preciso de duas coisas.
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Ela atira a caneta para cima da secretária e suspira.
- Então despacha-te.
- Não foi isso que me disseste na última noite.
Ela olha em volta, nervosa.
- Fala mais baixo - suplica, ainda convencida de que os colegas de escritório ignoram a relação entre eles os dois. Cone, pelo contrário, supõe que os outros investigadores
estão mais que a par.
- Preciso de um carro de aluguer - diz ele. - Esta coisa da Dempster-Torrey está a alastrar, de modo que tenho de dar umas voltas por aí. Podes dizer ao H. H que
o cliente autoriza a despesa.
- Como é que sabes? - Perguntaste-lhes?
- Não, não lhes perguntei. Vá lá, não chateies, arran ja-me mas é um carro.
- Vou tentar. É tudo?
- Não, não é tudo. Quero que me faças uma chamada telefónica a fingir que és outra pessoa. Não me importava de a fazer, mas preciso de uma voz de mulher.
- Não sei se sou capaz... - diz ela, duvidosa. - É assin tão importante?
- Não se trata da pista principal, é uma vista de costa que quero analisar. Sabes o que isso é, não sabes?
- Sei - diz ela em voz baixa.- Ponho-me de costas e tu saltas me para cima. Muito bem, onde é que queres chegar?
Ele explica: trata-se de telefonar para o escritório di David Dempster Associates, Inc., e falar unicamente con a secretária. Se for o Dempster a responder, deve desligar logo. Se atender a secretária, dir-lhe-ás que é uma velha amiga da
Sr.a Dempster, a quem já não vê há anos. Está de passagem na cidade por poucos dias e
gostava imenso de conversar com a sua melhor amiga dos tempos di liceu. Como sabe que a Sra. Dempster se divorciou, e como não tem o endereço e número de telefone
novos nem sabe qual o apelido que agora usa, gostaria de saber se a secretária a poderia ajudar a encontrar a amiga.
- Qual é o nome de baptismo da Sr.- Dempster?-pergunta Sam.
- Não sei.
- Cabeça de merda! - grita ela. - Como é que posse afirmar ser a melhor amiga da mulher se nem sequer se o primeiro nome dela?
- Sei que és capaz de te desenrascar. Pelo menos não perdes nada por tentar...
Dá-lhe o número e Sam faz a ligação.
- Bom dia! - cantarola ela. -Fala do escritório do David Dempster? Bom, chamo-me Irma Plotnick, e sou uma velha amiga da Sra. Dempster... colegas de liceu, percebe?
Vim a Nova Iorque passar uns dias - vivo em South Bend, Indiana - e gostava de me encontrar com a Sr.a Dempster. Uma amiga mútua disse-me que ela se divorciou; já
tentei ligar para o número antigo, mas ela já lá não mora. Por isso calculo que ela não ficou com o apartamento como parte do acordo... certo, minha querida? Bom,
nem sequer sei o nome que ela usa agora, e muito menos a morada... e o número de telefone, se o tiver. Gostava tanto de falar com ela sobre os velhos tempos... Ai
tem? Formidável! Só um minuto, vou arranjar papel e caneta. Tudo bem, já pode ditar, Hum-hum! Hum-hum! Hum-hum! Sim, escrevi tudo. Muito e muito obrigado, queridinha.
Foi um amor, e pode crer que vou contar à minha amiga quando a vir. Adeuzinho!
Whatley desliga e empurra através da secretária o bocado de papel onde esteve a rabiscar.
- Nome, morada e número de telefone-informa, triunfante.- Gostaste da minha actuação?
- Nada mal - responde Cone a contragosto. - Mas foi demasiado comprida. Quando quiseres passar por alguém ao telefone tens de ser o mais breve possível. As melhores mentiras são sempre as mais curtas.
- Já devia saber que não posso contar com agradecimentos da tua parte...-diz Sam. - Agora põe-te a andar e deixa-me trabalhar em paz.
- Só te queria fazer mais uma pergunta, é uma coisa que me tem andado a preocupar - diz ele. - Se um homem que saltita de cama em cama é considerado um mulherengo,
como é que se chama uma mulher que faz o mesmo? Uma homemrenga?
Sam aponta para a porta.
- Rua!
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Nessa noite chove torrencialmente, o que contribui para quebrar a vaga de calor. Quando Cone desce a Broadway a caminho do trabalho - para variar só está meia-hora
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atrasado -, a atmosfera está respirável e o céu apro senta-se límpido.
A nova recepcionista da Haldering & C.o entrega-lhe un recado escrito num papel cor-de-rosa: Telefonar para Simoi Trale, da Dempster-Torrey, Inc. Cone pega no papel
e leva-o junto com o embrulho de papel contendo o pequeno-almoço para o seu gabinete. Antes de ligar para Trale, come a torrada com manteiga e bebe metade do café.
- Bom dia. Sr. Cone.
- Bodia. Espero que tenha boas notícias.
- Para nós são boas notícias, mas no seu caso acho que vai ficar desapontado. Falei com meia dúzia dos meus melhores contactos, e nenhum deles ouviu falar num ataque
planeado contra a Dempster-Torrey. Para falar franca mente, sempre considerei essa ideia como pouco plausível Da maneira como estamos estruturados, qualquer pirata
pensaria duas vezes antes de se atirar a nós.
- Tudo bem - diz Cone. - Aceito isso. Muito obrigado pela sua ajuda, Sr. Trale. Se me der mais alguma tempes tade cerebral entro logo em contacto consigo.
Desliga, acende o terceiro cigarro do dia e acaba o pequeno-almoço. Portanto está de volta ao ponto de par tida. Não faz mal: tem-lhe acontecido tantas vezes...
A questão principal, contudo, mantém-se intacta: quem beneficiará com a morte de John J. Dempster? Dar-se-á o caso da mulher ter ficado a saber das infidelidades
do marido, contratando um par de cretinos para o mandar desta para melhor? Pouco provável. Se ela estivesse a par da dedicada busca da perfeição encetada pelo marido,
o mais natural era não ligar pêva; entretém-se perfeitamente com os seus bonsais, e além disso dinheiro é coisa que não lhe falta.
O mesmo se pode dizer dos funcionários superiores do Dempster-Torrey: podem muito bem pensar que o patrão era um bastardo de primeira, mas o certo é que são pagos
principescamente e nunca chegariam ao ponto de lixar quen lhes dava de comer. A única excepção poderá ser a Evi Bookerman, dama inteligente e enérgica que se entretinha
a dormir com J.J. Talvez ele a tenha ameaçado de a trocar por uma femea mais nova, ou então a fulana ansiava por ascender ao lugar do patrão. Qualquer dos motivos
é mais do que suficiente para contratar dois pistoleiros a fim de liquidar o presidente e director-geral.
Um empregado despedido e rancoroso? É outra possibilidade,
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mas, como Brodsky disse, isso implicaria uma lista com mais de dez mil suspeitos. Por onde começar a procurar no meio de tamanha imensidão?
Por fim surge David Dempster, o cretino do irmão. Que motivos teria ele para se desfazer do J.J.? Talvez esteja necessitado de massas, caso em que uma herança vinha mesmo a jeito.
Nesse momento, qual leitor de mentes, Sib Apicella entra no gabinete acenando com uma folha de papel.
- Tu e a tua maldita chamada telefónica!-exclama o homem, aborrecido. - Tive de fazer quatro chamadas, e perdi quase um dia a obter informações sobre o David Dempster.
Como é que consegues que as outras pessoas façam o teu trabalho?
- É graças ao meu encanto avassalador-responde Cone.
- Tens tanto encanto como o cão da minha mulher... aquele monstro passa a vida a peidar-se, tem pulgas e um hálito capaz de bater o pivete das tuas meias. Enfim, vamos a isto: a David Dempster Associates, Inc., é uma firma legal em actividade há cerca de doze anos. Trata da publicidade e relações públicas de várias entidades corporativas, e parece estar a sair-se muito bem. Boas receitas e alguns clientes da pesada.
- Tretas!-explode o detective da Wall Street. - Fui ver os escritórios da companhia, e aquilo não passa de uma mesa com telefones. O gabinete privado do Dempster não é muito maior que esta latrina!
- E depois? O que é que precisas para te meteres no ramo da publicidade? Um telefone e montes de bons contactos... Certo?
- Talvez, mas com todas essas grandes firmas de publicidade e de RP na Street, não consigo imaginar o Dempster a angariar clientes de vulto. Quanto dinheiro é que eles têm?
- A corporação? Mantém um balanço mínimo, à volta dos cem mil dólares. Quando ultrapassa isso o Dempster atribui-se um bónus.
- Muito conveniente. Quanto é que ele vale?
- Pessoalmente? - pergunta o CDC, consultando os seus apontamentos. - Cerca de quatro milhões, mais coisa menos coisa. Satisfeito?
- Nem por isso - responde Cone. - Acabaste de deitar abaixo mais uma das minhas ideias luminosas. É a segunda
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vez que isso me acontece no espaço de uma hora. Grande manhã esta, não há dúvida! De qualquer maneira obrigado. Sid; fico-te a dever um favor.
- Um?-grita Apicella, esfregando furiosamente a penca
- Deves-me tantos que nunca mos poderás pagar.
Atira os apontamentos para cima da secretária e vai-se embora a bufar de raiva. Cone inclinasse para agarrar a folha de papel e volta a endireitar-se, acendendo
novo Camel, Portanto, o Sr. David Dempster tem uma fortuna pessoal de quatro milhões de dólares; não se parece com um homem que mata o irmão só para se apoderar
de mais um punhado de dólares - a não ser que sofra de ganância já em fase terminal.
No entanto há qualquer coisa que não cheira nada bem. Cone sabe o suficiente de relações públicas e publicidade para perceber que as firmas do ramo lidam com imagens
e percepções. É tudo um modo de estar na vidía que gere aquele mundo dos negócios; gabinetes impressionantes, secretárias espampanantes, pessoal hiperactivo e fotografias
autografadas nas paredes, mostrando um patrão sorridente ao lado de pessoas importantes. Dempster tem um escritório parecido com uma cabina telefónica, uma secretária
agradável mas vulgaríssima e a única fotografia na parede é a do seu mastim atropelado.
Terá sido a partir desta bodega que conseguiu amealhar uma pequena fortuna? Não, há qualquer coisa que não se ajusta.
Rumina o problema durante um bom bocado. Por fim levanta-se com um resmungo e percorre o corredor até ao gabinete de Fred Burgess, outro
dos investigadores da Haldering & Co. Fred está a falar ao telefone, mas quando vê Cone encostado à ombreira da porta, faz-lhe sinal para se sentar numa cadeira ao lado da secretária atafulhada
de papéis.
- Mas, Mareia... - está ele a dizer. - Já te pedi desculpa duas vezes, mas peço outra, se é isso que queres. Foste tu que escolheste o restaurante japonês! Não te
estou a censurar, mas o que aconteceu foi por ter misturado o sashimi com o sake. Como raio é que podes saber quanto bebeste se eles servem aquilo em cálices tão pequeninos? Só fiquei mal-disposto quando cheguei a tua casa. Já vi que peixe cru não liga com vinho de arroz... Mareia, já te expliquei que não consegui chegar à casa de banho, e o teu aquário pareceu-me o compromisso mais aceitável.
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Sei que matei os teus guppies todos, mas eu compro-te mais. Mareia? Mareia?
Coloca o telefone no descanso.
- Desligou - queixa-se em tom amargo.
- Tiveste uma noite agradável? - pergunta Cone,
- O diabo que te carregue! - grita Burgess. - Levei semanas a convencer esta tipa! É um espanto e tem um emprego formidável na Street, para além de um apartamento de sonho ao pé do Gramercy Park. Ontem julguei que desta vez é que era, mas no fim tinha de ir logo vomitar para dentro do maldito aquário dela! Claro que matei os peixes todos... Aposto que a partir de hoje estou na lista negra da tipa.
- Uma conclusão lógica - diz-lhe Cone. - Olha, não vim aqui para discutir a tua vida amorosa. Ainda tens aquela colecção de cartões-de-visita?
Burgess, um fulano jovem, gorducho e afogueado, fita-o com ar desconfiado.
- Tenho e tenciono continuar a ter.
- É só um - pede Timothy. - Só um. Emprestado.
- E eu o que é que ganho com isso?
- Explico-te como é que podes conquistar de novo a Mareia.
- Negócio feito. Como é que devo fazer?
- Compra-lhe o peixe tropical mais caro que puderes pagar, qualquer coisa mesmo exótica, com montes de barbatanas compridas. Experimenta um Peixe Anjo Cauda de Véu. Manda-o entregar no apartamento dela com um bilhete sincero mas simples, dto género "lamento ter estragado o teu aquário".
- Talvez resulte - diz Fred, convencido. - De que é que precisas?
- De um cartão-de-visita de um escritor.
- Os escritores não têm cartões-de-visita, Timothy. Tenho aqui um de um editor de uma revista. Serve?
- Tem de servir.
Burgess tira da gaveta uma enorme pasta-arquivo própria para cartões-de-visita, que ele foi coleccionando ao longo de anos e anos de recepções, convenções, seminários e conferências de imprensa. Folheia as capas plásticas e por fim tira um, estendendo-o a Cone.
- Waldb Sperling - lê Cone. - Editor, Zebu Magazine. O que raio é que quer dizer Zebu?
- Se fizesses palavras cruzadas já sabias. É um boi
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asiático. Mas não tens de te preocupar; a revista já não existe e no teu caso pode significar aquilo que quiseres
- Okay - agradece Cone, levantando-se. - Vou experimentar. Achas que me pareço com um Waldo?
- A mim fazes-me lembrar um vagabundo - diz Burgess
Cone volta para o gabinete e vasculha a secretária até
encontrar o papel com o nome, morada e número de telefone da ex-mulher de David Dempster. Liga e espera nove tocadelas até aparecer uma voz feminina.
- Tou? - pergunta ela em voz ensonada.
- Estou a falar com a Miss Dorothy Blenke, ex-esposa do Sr. David Dempster?
- Está - diz ela. - Que horas são?
- Quase onze e meia, Miss Blenke.
- Meu Deus! Tenho um almoço ao meio-dia! Quem diacho é o senhor?
- Chamo-me Waldo Sperling, e sou editor da Zebu Magazine. Estamos a planear um artigo sobre a vida do falecido John J. Dempster, Presidente do Conselho de Admi nistração
da Dempster-Torrey, e ando a tentar falar com o maior número de pessoas que o possam ter conhecido.
- Não quero falar sobre ele.
- Conheceu o John Dempster, Miss Blenke?
- Claro que conheci. Melhor do que muita gente.
- Só lhe queria pedir para me receber durante uns momentos, para colher as suas reacções pessoais a pro pósito do homem. Tanto os pontos bons como os maus
- Não tinha nenhum - diz ela.
- Não tinha nenhuns o quê?
- Pontos bons.
- Não lhe vou roubar muito tempo - suplica Cone.- Se não quiser o seu nome no artigo, pode crer que respeitaremos o seu desejo. No entanto, se preferir ver o seu nome, e talvez uma fotografia (já que para nós é uma personagem chave da nossa história), então teremos todo o prazer nisso.
- Oiça, tem a minha morada? - pergunta ela.
- Temos sim, Miss Blertke.
- Okay. Tenho este almoço estúpido e até já estou atra sada, mas se o senhor puder aparecer por volta das duas e meia, posso recebê-lo durante um bocado.
- Muito e muito obrigado - diz Cone em tom humilde
- Chamo-me Sperling, Waldo Sperling.
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Desliga, a sorrir, e dá com Samantha Whatley na porta do gabinete.
- Ouvi tudo, Waldo - diz ela. - Demasiado comprido, não te parece?
- Vai-te lixar - replica ele.
Sam fita-o com olhos doces.
- Já podes ir buscar o carro de aluguer - anuncia ela.
Timothy pisca-lhe o olho.
Finalmente dá consigo a passear por Manhattan ao volante de um Ford Escort GT, sentindo-se um verdadeiro Rei dia Merda. Como é habitual, o trânsito está de morte, mas Cone não fica preocupado; tem imenso tempo à sua frente, e de resto quer ficar a conhecer melhor o carro. Até as frustrações do pára-arranca da condução em cidade são melhores que as tentativas desesperadas de mandar parar um táxi.
O problema, porém, é o estacionamento. Cone descobre por fim um buraco na Rua Oitenta e Três Leste, logo a seguir à Primeira Avenida. Tranca as portas e volta a pé até à morada de Dorothy Blenke, na Terceira Avenidà a norte da Rua Oitenta e Cinco. O prédio é alto e esguio, a fachada recoberta por camadas alternadas de betão pré-esforçado e painéis de vidro verde fumado. O porteiro veste-se de acordo com uma concepção estrambólica de um Hussardo, com dólman bordado, meia capa pendurada no ombro e uma pluma roxa e murcha a sair da barretina envernizada.
- Tenho encontro marcado com a Miss Dorothy Blenke diz-lhe Cone.
- Não está - responde o hussardo. - Experimente mais tarde.
- Ela disse-me que voltava para casa às duas e meia, e já passa da hora.
O porteiro fita o fato de veludo puído de Cone com certo desDrezo.
- Já lhe disse, ela ainda não voltou. Porque é que não vai dar um passeio em volta do quarteirão?
- Esplêndida ideia - diz Cone, seguindo à risca a sugestão. Não se apressa, parando aqui e ali em frente a uma montra e observando com curiosidade as vários obras
de construção civil em curso no local. Regressa ao prédio da Blenke e olha para o porteiro com ar inquisitivo.
- Ainda não-informa-o o hussardo.
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Cone vai dar mais uma volta ao quarteirão, fuma ut cigarro e regressa ao prédio de apartamentos.
- Acabou de chegar - diz o porteiro. - Quem devo anunciar?
- Waldo Sperling, da Zebu Magazine.
- Zebu? - espanta-se o porteiro. - O que é isso?
- Um boi asiático - explica Cone. - Julguei que tod a gente sabia.
O porteiro fala pelo intercomunicador e por fim vira-se para Cone.
- Okay, pode subir. Apartamento 18-A. Vire à esquerda quando sair do elevador.
- Obrigado - diz Cone. - O seu uniforme é magnífico
- Acha? - contrapõe o hussardo. - Experimente usá-lo no Verão. É capaz de suar as estopinhas.
Abre-lhe a porta interior, e o detective da Wall Stret entra num átrio estreito forrado a mosaico, tão alegre convidativo como uma cripta subterrânea, a que um
par ti figueiras dissecadas adicionam o apropriado ar mortuário. O elevador automático é mais alegre, com música a sa de um sítio qualquer. Timothy reconhece a melodia:
"Putti on the Ritz".
A mulher que lhe abre a porta do apartamento 18-A, uma loira alta com tudo em ponto grande: cabelo,
sombra dos olhos, bâton, ancas, peito, coxas e perfume. Dentro
o copo de martini que tem na mão afogam-se três azeitonas sobredimensionadas.
- Oh, não! - diz Cone. - Não, não, não. Sou Wak Sperling, da Zebu Magazine.
Estende-lhe o cartão-de-visita, mas ela nem olha para baixo.
- Detesto polícias - afirma ela em tom sombrio. - Bo entre. Quer tomar uma bebidinha?
- Não, muito obrigado, mas não se prenda comigo.
- É o que tenciono fazer - responde Dorothy Blenke. Mas que almoço estúpido o meu! O tipo fazia lembrar i Godzilta, e vive de um salário, por amor de Deus! Eh,
da maneira como você se veste. Está-se nas tintas, não é verdade?
- Exacto - diz Cone.
- Eu também sou assim - continua a mulher. - Estou perfeitamente nas tintas. Sente-se ali naquele sofá, é
fantástico (custou mil e duzentos no Bloomies), eu cá
perco-me aqui neste.
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- Do Bloomies?- pergunta Cone.
- Sím senhor. Três mil. - A mulher brindado com um sorriso sem graça. - Até tenho a etiqueta do Bloomies nas minhas calcinhas. Quer ver?
- Agora não, mas não me vou esquecer da oferta - diz Cone. - Tem uma casa muito bonita, Miss Blenke.
A sala de estar, contudo, é como a locatária, tem demasiado de tudo: mobiliário, candeeiros, carpetas, quaoros, bibelots, vasos, flores secas e até cinzeiros em demasia. A sala quase que deita por fora.
- Posso fumar? - pergunta Cone.
- À vontade - diz ela com o mesmo sorriso desfocado. - É como se estivéssemos no Liberty Hall. Pode fazer tudo
o que lhe apetecer.
Cone oferece-lhe um Camel, mas ela declina com um abanar da cabeça. Acende-o enquanto ela vai dando cabo da bebida; duas das três azeitonas já desapareceram junto com metade da dose dupla de martini, e Cone pensa que
o melhor é despachar-se.
- Miss Blenke - começa ele-, tal como lhe disse ao telefone, a Zebu Magazine está...
- Mas que raio de revista é essa? - interrompe ela. - Nunca a vi nas bancas nem nas livrarias!
- É de circulação controlada - explica Cone. - Só por assinatura. Dedicamo-nos exclusivamente aos executivos da comunidade financeira.
- A sério? - diz ela com o mesmo sorriso amorfo.- Aposto que não me quer vender a vossa lista de assinantes...
- Receio não me ser possível-diz Cone, resolvendo experimentar de novo: - Miss Blenke, como lhe disse ao telefone, estamos a planear um artigo definitivo sobre o Sr. John J. Dempster, e eu ando a tentar...
- Não quero falar sobre isso - diz ela.
Cone, que começa a sentir-se como o porteiro hussardo, a suar as estopinhas, mergulha de cabeça.
- É por isso que estamos muito interessados nas suas recordações pessoais sobre o falecido John Dempster.
. -Atrasado - diz ela em tom soturno. - O filho da mãe estava sempre atrasado.
- Não estou a perceber, Miss Blenke.
- Há muita coisa que você não percebe - diz ela em tom portentoso. - Mas acredite que é verdade.
Ficam calados enquanto ela vai beberricando devagarinho,
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como as senhoras, o seu martini gigante. A terceis azeitona já seguiu o caminho das irmãs, e ela olha pa dentro do copo, confusa.
É uma mulher grande e vistosa, com traços de una certa beleza que infelizmente já há muito desapareceu. Pode ser da bebida, mas Cone pensa que isso é só o sintoma
não a doença. Ambições desfeitas, sonhos estragados, amores perdidos... tudo isso deve ter surgido antes dos copos. A vida dela é agora aos trambulhões, pronta para
a grande queda. Vê-se perfeitamente nos olhos mortiços e no sorrir amargo.
- Quanto tempo esteve casada com o David Dempstei
- pergunta ele, determinado em ser simpático com aquela ruína humana.
- Com esse palerma? É assim que eu lhe chamo: Lord Palerma. Oh, anos e anos!
- Não tiveram filhos?
- Não, graças a Deus. Sei que os filhos dele seriam iguaizinhos ao pai. O tipo não tem energia nenhuma. E há uma coisa que gosto nele: os cheques da pensão chegam
pontualmente.
- Como é que eram as relações dele com o John Dempster?
- O palerma? - pergunta ela, espantada. - Eram irmãos caramba!
- Bem sei - responde Cone com toda a paciência. Estava a referir-me ao relacionamento pessoal. Acha que davam bem?
- Nada como o gin e o vermute - diz ela. - Eh, a minha bebida acabou! Deve ser da evaporação. Já reparou que a cidade de Nova Iorque tem valores tremendos de evaporação?
- Já me tinha apercebido disso - responde Cone.
Ela levanta-se do sofá e vai à cozinha. Cone ouve-a abrir e fechar armários ao mesmo tempo que cantarola
uma música que ele não é capaz de reconhecer. Deixa-se ficar sentado com o tronco inclinado em frente, as mãos
juntas entre os joelhos, a pensar se poderá descobrir outra linha de actuacão mais produtiva.
A mulher regressa passado um bocado, ainda a can rolar e com novo copo cheio na mão. Deixa-se cair no sofá e cruza as pernas. Como muitas mulheres pesadas, tem as coxas
e tornozelos muito estreitos.
- Um martini é bom para começar - diz ela. -
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Com dois já me sinto nas nuvens. De que é que estávamos a falar?
- Do David e do John Dempster. De como eles se davam um com o outro.
- É verdade - diz ela. - Bom, o Jack pensava que o Dave era um falhado... o que até é. O Dave andava sempre a queixar-se de que o irmão não lhe queria entregar as
relações públicas da Dempster-Torrey, mas o Jack sabia muitíssimo bem o que fazia.
- Ai sim? Quando é que foi isso?
- Aqui há uns anos. O Lorde Palerma acabou por desistir. Aliás desistiu de imensas coisas. O John nunca desistia, não era homem para aceitar um não como resposta.
- Deve ter sido um homem formidável, para conseguir montar uma companhia como aquela.
- O Jack? Esse era o Napoleão, o Hitler e o Atila reunidos num só. Nunca se sabia o que ele iria fazer a seguir, e era isso que lhe dava todo o interesse.
Cone fica a olhar para ela.
- Mas ele voltava sempre para junto da mulher - diz em voz baixa. - Essa maluca? Qualquer golpe de vento é capaz de a mandar de pantanas. Nunca heí-de compreender
o que é que ele viu nela. Aposto que é daquelas que põem a camiisa de noite antes de despirem a roupa interior. Adiante, não quero falar mais sobre esse assunto.
- Perdoe-me a indiscrição, Miss Blenke, mas gostava de saber porque é que se divorciou do David Dempster.
- Aborrecimento galopante-responde ela sem hesitar.
- Já o conheceu?
- Já.
- Então é capaz de perceber. O tipo precisava de beber Drano para pôr o sangue a correr. O Jack herdou toda a Vivacidade da família, era capaz de trabalhar vinte
e quatro horas seguidas e depois divertir-se durante outras tantas, mas o Dave, se não dorme a sesta depois do almoço, é muito capaz de cair para o lado. O mais
engraçado... o que é que era mais engraçado?
- Qualquer coisa sobre os dois irmãos?
- Isso. O Jack era três anos mais novo, mas normalmente é o irmão mais velho que tem sucesso, não é?
. -Sim, é o mais vulgar, mas não é obrigatório. Você encontrava-se frequentemente com o John e a mulher? Quando estava casada com o David?
- Encontrar-me? Jesus, se os visse duas vezes num ano
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já era multo. Aqueles dois não se podiam ver um ao outt e eu não suportava a desenchabida da Teresa... e acho que ela pensava o mesmo de mim. Não éramos aquilo que
pode chamar uma família muito unida.
Timothy pensa em colocar-lhe frontalmente as questões mais importantes, mas percebe que não tem coragem. Pa além disso, já faz uma boa ideia de como as coisas aconteceram.
- Muito obrigado, Miss Blenke - diz-lhe, levantando-se.
- Podo crer que fez uma valiosa contribuição para o nosso artigo. Vou certificar-me pessoalmente de que o
jomalista encarregado lhe telefona para confirmar as suas
declarações.
- Mas Já se vai embora? - diz ela. - Deixa-me aqui sozinha?
- Tenho de ir, já estou atrasado. Que canção era aquela que estava a cantarolar há bocado?
- Canção? Que canção?
- A que estava a cantarolar dentro da cozinha.
- Oh, essa... "It Had to Be You"!
- Hum-hum! - diz Cone.- Mais uma vez muito obrigado. Tive muito prazer em a conhecer, Miss Blenke,
Na sua opinião já é muito tarde para voltar para o escritório, e além do mais que raio teria para fazer depois de lá chegar? Como tal, senta-se ao volante do Escort
e puxa da lista com os nomes e endereços. David Dempster mora no bairro de Murray Hill, o que até fica em caminho.
Cone arranca em direcção a sul, decidido a ir dar uma vista de olhos à casa... só para passar o tempo.
Trata-se de um prédio de fachada em pedra calcái na Rua Trinta e Oito Leste, entre a Park e a Madist O edifício é pequeno e está muito bem cuidado, com vasos de hera
nas janelas e buxos aparados a flanquearem a entrada elegante. O sítio respira dinheiro, e segundo Cone julga, deve ter passado ao estatuto de condomínio aqui uns
anos atrás.
Estaciona em dupla fila do outro lado da rua e atravessa-a, esgueirando-se entre os carros em movimem Estuda os nomes na placa ao lado da campainha. Lá estava
David Dempster, terceiro andar. O prédio só tem cinco apartamentos, aparentemente um por andar, com um duplo no topo. Bonito. No caminho até casa, Cone mata o tempo
perdido no meio do trânsito a calcular quanto poderá custar
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um andar corrido num prédio de apartamentos em Murray Hiil. Seja qual for,
isso deve ser exagerado para um tipo Lcom um pé-de-meia de quatro milhões.
Quando entra no seu próprio apartamento de andar inteiro, descobre que
Cleo conseguiu abrir o armário por baixo da pia, para depois morder uma garrafa plástica de
detergente. Ao que parece, o maluco do gato começou depois a pular em cima da garrafa, pois o detergente espalhou-se pelo linóleo fora. No meio da poça, o gato,
sentado com um ar muito sério, fita-o com uma expressão do género "Quem, eu? estampada no focinho feioso.
-Seu rato asqueroso! - grita-lhe Cone, obrigando Cleo a procurar refúgio debaixo da banheira.
Demora vinte minutos a limpar a porcaria. Quando acaba, já Cleo veio ter com ele e iniciou a sua habitual bajulação, esfregando-se nos tornozelos dele no meio de
miadelas piedosas.
- Não quero falar mais nisso - diz Cone.
- Está na kitchnette a abrir uma lata de cerveja quando o telefone de parede toca.
- Estou.
- Sr. Timothy Cone? - pergunta uma voz de mulher.
- O próprio.
- A Miss Bookerman deseja falar consigo. Um momento, por favor.
Eve Bookerman surge na linha.
- Como está? - diz ela, aparentemente sem fôlego.- Desculpe-me por lhe telefonar para casa, mas tentei no seu
escritório e disseram-me que não estava. Foi o Sr. Haldering que me deu o seu número de telefone. Espero que não fique aborrecido com esta intromissão...
- Não tem mal nenhum - tranquiliza-a Cone.
- Como não tenho tido notícias suas, não sei se o senhor já fez alguns progressos quanto às sabotagens. O Símon Trale falou-me na sua hipótese de um pirata graúdo,
o que até foi uma ideia brilhante. Brilhante!
- Brilhante, sim - repete Cone. - Só que não resultou.
- Mas revela que o senhor tem imaginação - contrapôs ela. - Gosto das pessoas assim. Tem alguma novidade para me comunicar?
- Nada. Ainda há mais perguntas do que respostas. Acho melhor termos nova reunião, Miss Bookerman.
- Amanhã tenho o dia muito ocupado, mas se for assim muito importante sou capaz de arranjar um bocadinho para aí.
- Acho melhor conversarmos fora do seu gabinete.
Uma longa pausa.
- Oh? Bom, deixe-me ver o que se pode arranjar. Hoje à noite trabalho até mais tarde, e ainda por cima tenho um jantar marcado. Devo chegar a casa por volta das
onze. É muito tarde para si?
- Ainda devo estar acordado.
Ela ri-se, mas o riso soa a falso.
- Tem a minha morada, não tem? Que tal se lá aparecer às onze? Eu aviso o porteiro da sua chegada. Acha que vai demorar muito?
- Não me parece. Talvez uma meia hora.
- Esplêndido! Então até logo, Sr. Cone.
Desliga e fica a olhar para o telefone durante um bocado. O melhor será entrar a matar; ela está preparada para o sucesso, por isso deve ser capaz de aguentar.
Na semana anterior, Cone comprou um naco de alcatra salgada que devia pesar pelo menos dois quilos e meio Gastou um serão inteiro a cozinhá-lo, tirando a espuma
com uma colher e mudando várias vezes a água para se livrar do sal. Enquanto a água fervia, foi-lhe juntando piri-piri, folhas de louro e dentes de alho - tal como
o talhante lhe ensinara.
Quando foi capaz de lhe espetar um garfo, calculou que já estava pronto. Por essa altura o sótão estava cheio de um nevoeiro bem cheiroso, e Cleo tentava trepar-lhe
pela perna para se chegar à panela. Cone congelou a peça de carne durante vinte e quatro horas, e depois ele e o gato começaram a desbastá-la. Na primeira noite
comeu-a acompanhada de batatas cozidas, mas a partir daí resolveu que a cerveja era o melhor acompanhamento.
Comeu carne durante quase toda a semana - à excepção do dia em que jantou em casa de Sam-, mas ainda sobrabra um bocado. O naco começa a ficar verde e ligeiramente
iridiscente nas bordas, mas ainda sabe bem. Não está muito tenro, mas Cone tem dentes fortes, e o mesmo se pode dizer de Cleo.
Como tal, nessa noite o repasto é constituído pelo último bocado de carne, cujas peles servirão para entreter Cleo durante o resto do serão.
Depois de lavar a loiça, Cone estende-se no colchão
- Isto chama-se sesta - diz para Cleo.
Dorme profundamente até às nove e meia. Levanta-se. toma um duche e veste uma T-shirt lavada, tão puída das
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idas ã lavandaria que começa a parecer-se com gaze cinzenta. Aperta no sítio o coldre de tornozelo, verifica a sua S&W -357 de cano curto e sai para a rua.
Eve Bookerman vive num arranha-céus perto de Sutton Place; o edifício faz com que o de Dorothy Blenke se pareça com uma casa de bonecas. O topo dá ideia de se enfiar pelas nuvens, e em frente à entrada monumental desponta uma escultura de Henry Moore a descansar num pedestal.
O porteiro veste uma espécie de sobrecasaca por cima da camisa de colarinhos engomados, com um lacinho branco no sítio da gravata. Inspecciona o detective da Wall Street e torce o nariz.
- Deseja alguma coisa? - pergunta numa voz aflautada.
- Chamo-me Timothy Cone, e venho ver a Miss Eve Bookerman.
Com ar infeliz, o tipo pega no intercomunicador e diz qualquer coisa em voz baixa.
- Está à sua espera, sir - anuncia. - Apartamento B, de Benjamim, no trigésimo primeiro andar.
- Andar de André? - diz Cone.
- Como disse, sir?
Timothy, porém, já vai a caminho do bloco dé elevadores, atravessando uma alcatifa tão espessa e macia que lhe dá vontade de pôr o rabo ao léu para se rebolar nela.
Desta feita não há música no elevador, mas sim um odor perfumado deveras agradável. O ascensor, de alta velocidade, sobe tão depressa que Cone tem uma fugaz visão da maldita caixa de furar o terraço do prédio para fugir em direcção às estrelas.
Mais alcatifa macia no corredor do trigésimo primeiro andar. A porta do apartamento B de Benjamim está entreaberta, e Eve Bookerman espreita do lado de dentro.
- Ah!-exclama ela. - Sr. Cone. Faça o favor de entrar.
Abre-lhe a porta de par em par; Cone tira o chapéu e
segue-a através de um foyer tão grande como o seu sótão, com o chão em quadrados de mármore brancos e negros, a fazer lembrar um tabuleiro de xadrez. Por fim entram numa sala de estar com janelas do chão ao tecto e uma magnífica vista para o East River.
Por ali passou a mão de um decorador dle luxo, que se esmerou e conseguiu um trabalho e pêras. A sala podia constar por direito próprio no Architectural Digest, e Cleo teria passado momentos de delícia a destruir a colecção
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de cristais Steuben. Está tudo tão limpo e brilhante que Cone fica sem saber se deverá permanecer em pé.
- Bonita casa - cumprimenta ele.
- Obrigado - diz ela em tom descontraído. - Percorri um grande caminho desde Bensonhurst. Estou a beber conhaque, Sr. Cone. Quer um?
- Sim, gostava muito.
A mulher traz-lhe um balão e pousa a garrafa em cima de uma mesa Lucite colocada entre duas cadeiras de balanço, ambas num canto pouco iluminado daquela sala aparentemente interminável. Os candeeiros Noguchi estão acesos, mas para eliminar todas as sombras daquela caverna seriam precisas várias baterias de projectores.
Ela levanta o copo.
- À sua saúde.
- A sua. Como é que vai o ouvido?
- Meu Deus, você não se esquece de nada!-diz ela.
- Está muito melhor, obrigada.
- Alguma novidade sobre o futuro PDG?
- Não - responde ela em tom seco. - O Conselho de Administração nomeou uma comissão especial para sugerir vários nomes, mas a comissão ainda não concluiu as suas deliberações.
Cone fita-a de frente.
- Desejo-lhe boa sorte.
Ela ri-se como uma rapariguinha da escola.
- Infelizmente não sei rezar...
- Claro que sabe - diz ele. - A senhora era a pessoa mais ligada ao John Dempster, não era?
Ela fica rígida.
- O que quer dizer com isso?
- Oiça, Miss Bookerman - diz ele. - Agradeço-lhe muito o conhaque, mas acho melhor não nos pormos com jogui-nhos. Okay? Vou-lhe fazer umas perguntas e a senhora responde; se não quiser responder, então é consigo, mas isso obrigar-me-á a ir procurar as respostas junto de outra pessoa qualquer. Espero que não me faça perder tempo.
- Não compreendo como é que o meu relacionamento com o John Dempster tem qualquer coisa a ver com a sua investigação sobre as sabotagens...
Cone deixa escapar um suspiro.
- Oiça, você tem a sua própria maneira de trabalhar... certo? Eu cá tenho a minha. Tem de me dar espaço para me estender, percebe? Quanto aos ataques contra as instalaçôes
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da Dempster-Torrey... o que é que quer que eu faça? Que vá a dezoito sítios diferentes para Investigar casos que já foram esmiuçados pelas Polícias locais
e pela vossa própria gente da segurança, sem nenhuns resultados? Assim não ia a lado nenhum. Não acha que o que digo faz sentido?
Ela diz que sim com a cabeça e bebe um pouco de conhaque.
- Como tal parece-me que a solução - se é que há alguma-, só pode estar aqui mesmo, em Nova Iorque. Também estou convencido de que a morte do Dempster está ligada às sabotagens; melhor ainda, o assassínio foi o último acto de sabotagem.
- Mas porquê? - grita ela. - Por que motivos?
Cone encolhe os ombros.
- A minha primeira ideia, a do tubarão das finanças, foi por água abaixo, e portanto ando à procura de outra explicação. A única coisa de que disponho para trabalhar são as pessoas envolvidas... como você, por exemplo. É por isso que prefiro não estar com rodeios: tinha ou não tinha um arranjinho com o Dempster?
Ela levanta o queixo numa atitude de desafio.
- Você vai logo direito à jugular, não vai? Incrível!
- Vai responder à minha pergunta ou não?
- É verdade, eu tinha um arranjinho com o John J. Dempster... se é assim que gosta de chamar a uma coisa dessas.
- Okay - diz ele em tom mais suave. - Isso já limpa um pouco o ar. Sabia que ele era um mulherengo?
Ela enfia os dedos entre os caracóis loiros e por fim cerra os punhos, num gesto de fúria impotente.
- Você tem andado muito atarefado, não tem? É claro que eu sabia das escapadelas dele! Trabalhei ao lado do homem durante vários anos, e aquilo que você designa por arranjinho durava há três. Sei que começou a enganar a mulher desde que se casou. Não se ponha aí com ideias erradas, Sr. Cone; o facto de eu ir para a cama com o J.J. nada tinha a ver com o conservar o meu lugar ou com o ser promovida na Dempster-Torrey. Acontece que sou mesmo boa a fazer aquilo que faço, e para além disso o Jack não trabalhava assim. Se eu lhe tivesse dito que não, continuaria a ser na mesma a Chefe de Operações, porque sei que conquistei o lugar por mérito próprio. De
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resto, ele podia ter as mulheres que quisesse... mais novas, mais bonitas e mais magras do que eu.
- Você não está nada mal - comenta Cone, conse guindo que ela sorria ao de leve. - Diga-me uma coisa, Miss Bookerman, e trata-se unicamente de curiosidade: como é que ele tinha tanto sucesso com as mulheres? Era pelo dinheiro? Pelo poder?
Ela nega com a cabeça.
- Se ele não passasse de um taxista ou de um trolha, mesmo assim continuaria a ser um garanhão. Tinha uma energia, uma determinação e uma vontade como nunca vi em mais nenhum homem, e provavelmente nunca mais voltarei a ver. Fisicamente não era assim tão atraente, quero dizer, nada tinha de ídolo do cinema. Contudo, quando atacava, suponho que nenhuma mulher deste mundo lhe conseguiria resistir. Aliás, quando ele queria, sabia ser terno, compreensivo, generoso... amoroso.
De repente começa a soluçar, as lágrimas a escorrerem dos olhos grandes e luminosos. Não faz qualquer gesto para as limpar. Estende uma mão incerta para se servir de mais conhaque, mas Cone pega na garrafa, serve-a e aproveita para deitar mais uma boa dose no seu balão.
- Desculpe-me, acaba por dizer a mulher, respirando fundo. - Julguei que já tinha chorado tudo o que havia para chorar, mas afinal enganei-me.
- Não tem mal nenhum - diz ele. - Acho que tem todo o direito.
Ela reclina-se na cadeira e bebe um longo gole do conhaque. Hoje traz um vestido diferente: gabardina negra e brilhante com camisa cor-de-rosa e lacinho de seda. Parece cansada, e revela rugas no rosto que Cone não tinha detectado no seu primeiro encontro.
Fica sem saber se está perante uma rapariguinha simpática de Bensonhurst que de repente vê o seu mundo de pernas para o ar, desaparecido que estava o seu mentor e amante, debatendo-se com pressões para as quais não se sente capacitada. O comentário que ela lhe faz a seguir, porém, desfaz essa impressão; aquela mulher tem uma vontade e determinação inabaláveis.
- Mas que raio têm a ver os hábitos sexuais do J.J. com as sabotagens e o próprio assassínio dele? - quer saber ela.
- Oiça, já lhe disse que tenho mais perguntas do que respostas. Quando trabalho num caso, tento sempre reunir
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o maior número de dados possíveis; noventa por cento acabam por ir pela borda fora, mas como é que podemos saber isso logo ao princípio? Até aqui você tem cooperado
bastante, e pode crer que lhe agradeço. Espero que se mantenha na mesma linha, sei que você tem grandes interesses numa conclusão favorável do caso.
- O que é que quer dizer com isso?
- Foi você quem contratou a Haldering & Companhia. Se eu conseguir descobrir o responsável pelas sabotagens e, quem sabe, o tipo que liquidou o seu patrão, então
o Conselho de Administração passará a encará-la de maneira diferente, não acha? É capaz de ajudar se pensarem em si para o cargo de PDG.
Ela olha para ele, admirada.
- Você sempre me saiu uma boa peça... não lhe escapa nada. Fantástico! Bom, para sua informação, Sr. Cone, o ascender ao lugar de PDG está muito abaixo na minha
lista de prioridades.
- Hum-hum!-diz ele. - Podemos voltar às perguntas e respostas durante um bocadinho?
- Claro. Dispare.
- Conhece o irmão dele, o David Dempster?
- Conheço.
- O que é que pensa dele?
- Um inútil.
- O que é que o John Dempster pensava do irmão?
- Ignorava-o. Considerava o David como uma anedota.
- O David tentou conseguir as Relações Públicas da Dempster-Torrey?
- Meu Deus, como é que descobriu isso tudo? É verdade, o David fez uma tentativa... mas já lá vão uns anos. O Jack deu-lhe com os pés, claro. Montámos a nossa própria divisão corporativa de publicidade e relações públicas, e a coisa resultou em cheio.
- Portanto havia hostilidade entre os dois irmãos?
- Hostilidade? Não. Não havia era nada.
- Já falei com a Dorothy Blenke, a ex-mulher do David.
- Ai falou? Nunca conheci essa senhora.
- Fiquei com a impressão - apesar de ela nunca ter dito nem que sim nem que não - de que o John Dempster talvez tenha tido um caso com ela enquanto foi casada com o irmão. Sabe alguma coisa a esse respeito?
Eve Bookerman levanta-se de repente e fita-o muito direita, rígida.
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- Ponha-se na rua! - grita-lhe.
- Okay - diz Cone em tom conformado. Levanta-se e vai buscar o boné.
- Não, espere - diz a mulher, levantando uma mão.- Sente-se e acabe a sua bebida. Peço desculpa.
Sentam-se de novo, fitando-se com ar zangado.
- Talvez tenha havido qualquer coisa - diz ela passado um bocado. - Não tenho a certeza, mas por pequenas coisas que o Jack me disse, talvez sim, talvez tenha andado metido com ela.
-Este caso está cheio de "talvezes" e "se calhares" - diz Cone. - Muito bem, partamos do princípio de que o John e a Dorothy andaram um com o outro. Isso foi antes do arranjinho dele consigo... certo?
Ela confirma com um aceno de cabeça.
- E talvez, repito, talvez esse caso tenha levado ao divórcio do David Dempster. Acha possível?
- Tudo é possível - respondeu ela.
- Muito obrigado, mas aprendi isso aos quatro anos de idade - diz Cone, sarcástico. Acaba o conhaque, levan-ta-se e pega no boné. - Muito obrigado por me ter recebido.
- Acho que falei de mais - diz ela em tom soturno.
- Nã! - replica Cone. - No fundo não me disse nada de que eu já não suspeitasse. Além do mais não trago nenhum gravador, de modo que ninguém vai ficar a saber aquilo que você disse ou não disse. Durma descansada, Miss Bookerman.
- Não me parece - diz ela, amargurada.
Cone desce no mesmo elevador perfumado, acena uma despedida ao fulano da sobrecasaca atrás da secretária, e sai para uma noite de lua cheia e brisas refrescantes. Sente-se nervoso e irrequieto, pelo que se põe a considerar as várias opções à escolha. Pode ir já para casa, mas também pode parar no bar mais próximo e tomar uma ou duas bebidas. Pode telefonar a Samantha a ver se a chefe está com disposição para aturar uma visita àquelas horas tardias.
Um quarto de hora depois dá consigo estacionado em segunda fila na Rua Trinta e Oito Leste, a vigiar o prédio onde vive David Dempster. As luzes do terceiro andar estão acesas, as janelas da rua abertas mas de cortinados corridos. Cone não vê ninguém a passar em frente aos rectângulos de luz.
Deixa-se ficar ali por cerca de meia hora, fumando dois
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cigarros para compensar a abstinência a que se forçou no apartamento da Bookerman. Por fim as luzes do terceiro andar apagam-se. Está chegado o momento da verdade: o tipo foi deitar-se ou estará a preparar-se para sair?
Apelando a toda a sua paciência, Cone aguarda mais vinte minutos, mas ninguém sai do prédio de Dempster.
- Mas que raio é que estou aqui a fazer? - grita o detective da Wall Street em voz alta, já sem saber se lhe saltou um parafuso, pois nem sequer tem um gato para ouvir os seus desabafos.
5
É sábado, dia da semana que ele e Samantha aproveitam para passar juntos - continuando às vezes pela noite fora. Desta feita, porém, ela reservou a tarde para ir às compras, e à noite tem de ir à festa de despedida de solteira de uma das secretárias da Haldering & Co.
- Vais ter saudades minhas? - pergunta ela.
- Nã!-diz ele. - Tenho várias coisas para fazer.
- Oh, claro! Vais fumar, que nem uma chaminé, beber o vodca todo e passar a tarde a dar pontapés no gato.
- Nunca dei um pontapé no Cleo. Era capaz de o estrangular, mas nunca lhe darei um pontapé. - A amanhã?
- Tenho de ir ver à minha agenda.
- Continua nessa, cretino, e ainda acabas a cantar como um soprano. Ouve, há imenso tempo que não como uma pizza... talvez há mais de uma semana. O que é que achas de comprarmos uma das grandes metades, metade de pimentos para ti e metade de anchovas para mim, e vir comê-la aqui amanhã? Eu encarrego-me da salada.
- Acho boa ideia - diz ele. - Por volta do meio-dia?
- Mais tarde - pede ela. - Primeiro quero ler o Suriday Times. A não ser que estejas a planear uma matinée... estás?
- Não foi coisa que não me passasse pela cabeça.
- Qual cabeça? E se fosse às três ou mesmo quatro?
- Não preferes por volta das duas?
- Okay! - condescende Sam.- Podemos ler na cama a secção de compra e venda de propriedades...
- lupiii!-grita ele.
A verdade é que tem várias coisas a fazer - não muitas,
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mas algumas. Muda a areia de Cleo e passa uma esfre gona húmida pelo linóleo; leva a roupa suja à lavandaria não sem antes decidir que o fato de veludo ainda
está óptimo para mais uma semana de uso. Na volta pára a comprar cerveja,
vodca, vinho e brande. Acrescenta-lhe um pão de centeio judeu (sem sementes) e um salame
de alho inteiro. O enchido tem quase sessenta centímetros de comprimento e faz lembrar a tromba de um elefante.
De regresso ao sótão, prepara sandes de salame para si e nara Cleo, duas para ele e uma para o gato; a de Cone leva mostarda inglesa picante, mas Cleo prefere a
maionese.
Le o Barrorís enquanto come, maravilhado com as descrições de inúmeras sacanices na Wall Street. A maior parte está relacionada com o aproveitamento ilegal de informações confidenciais, manipulação de cotações ou indicações fraudulentas em balanços de companhias. A Street também tem a sua quota-parte de escroques, e o facto de vestirem fatos completos e andarem com pastas de pele de crocodilo não atenua a sua corrupção.
O que nunca deixou de admirar Cone é o facto desses fulanos nunca enfrentarem as coisas com coragem. Uma vez trancafiados pela Securities Exchange Comission ou pelo Procurador Federal, começam a cantar que nem canários, felizes por denunciarem os seus infelizes associados, desejosos de serem submetidos a escutas para que os antigos colegas de negócios possam compartilhar do escândalo. Cone sabe que quando um tipo anda de BMW e passa os verões no Cape, raras são as vezes em que não se
mostra disposto a colaborar com as autoridades, se isso significa safar-se de um ano passado atrás das grades. Cone já conheceu carteiristas, arrombadores de pacotilha
e passadores de droga com mais honra do que a daqueles finórios.
- É o dinheiro - diz para um Cleo a passar pelas brasas.- Toda a gente sabe que o dinheiro é a raiz de todos os males, mas não é isso o que a Bíblia diz. O que a Bíblía diz é que -o amor pelo dinheiro é a raiz de todos os males. Onde é que está a diferença?
Cone acaba de ler e adormece com os braços em cima da mesa, a cabeça apoiada na dobra do cotovelo. Acorda ao entardecer enrijecido pela posição incómoda, sentido
as mãos como se fossem almofadas de alfinetes. Levanta-se e caminha para a frente e para trás ao longo do sótão
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executando movimentos enérgicos com os braços e pernas para restabelecer a circulação.
Na esquina há uma tasca gordurenta gerida por um grego que só sabe fazer hamburgers duplos e batatas fritas com montes de cebola. É esse o jantar de Timothy, sentado ao balcão a pensar se é assim que um dia destes vai morrer, caído do banco com o colesterol a sair-lhe pelas orelhas.
Volta para o sótão e fica quase uma hora sem fazer nada, fumando dois Camel acompanhados por nova e robusta bebida. Sabe muito bem o que vai fazer nessa noite, mas as perspectivas são tão deprimentes que ele tenta adiá-las o mais possível. Por fim já não se pode atrasar mais e pega no telefone para falar com David Dempster.
- Estou? - responde a voz de Dempster. Cone reconhece o tom bombástico do homem.
- Sam? - pergunta o detective da Wall Street.
- Não, enganou-se no número - diz Dempster, desligando de seguida.
Cone fica a saber que o tipo está em casa, de modo que já não tem mais desculpas para protelar a incursão. Prepara-se rapidamente: um boião de compota cheio de
vodca com a tampa bem apertada; um saco de plástico cheio de cubos de gelo, fechado com uma tira de metal maleável; um maço novo de cigarros; carteira de fósforos;
lápis. E uma embalagem de leite vazia para o caso de ter vontade de se aliviar.
Chega à Rua Trinta e Oito por volta das oito e meia, estacionando em dupla fila do outro lado do prédio com a fachada em calcário. Mesmo em frente à entrada há um candeeiro de rua, pelo que Cone faz marcha-atrás com o Escort até sair do cone de luz. Ainda consegue ver bem as imediações, e sente-se reconfortado ao constatar que as luzes do terceiro andar continuam acesas. Na verdade, minutos depois David Dempster assoma à janela, afasta os cortinados e espreita cá para baixo.
- Estás à espera de alguém, queridinho? - diz Cone em voz baixa. Recosta-se no assento, sabendo que tem pela frente uma longa noite. Tenciona ficar estacionado em dupla fila tanto tempo quanto puder, e se um carro-patrulha o mandar dali para fora, dará a volta ao quarteirão até regressar à mesma posição.
Um cigarro depois, vê um Jaguar Plus estacionar em frente ao prédio de Dempster. Pára em dupla fila; o condutor
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sai, fecha a porta à chave e entra no prédio. Passado pouco tempo, Cone pode ver as sombras de dois homens a passarem por detrás das cortinas do terceiro andar.
Sai do carro, corre até ao passeio fronteiro e ultrapassa propositadamente o Jaguar, olhando bem para a matrícula de regresso ao Ford, escreve o número na parte
de dentro da carteira de fósforos. Mal acabou quando um Bentley azul-escuro de quatro portas pára atrás do Jaguar. O tipo apeia-se, fecha a porta e entra a correr
no prédio. Cone passa a ver três sombras para a frente e para trás no terceiro andar.
Faz a mesmíssima coisa de há bocado: atravessa a ma, mira com cuidado a chapa da matrícula e volta para o Escort a fim de apontar o número. Só falta um para um jogo de póquer, pensa Cone.
No entanto, tem de esperar quase quinze minutos até que apareça a quarta visita, que chega num Daimler negro com motorista e estaciona à frente do Jaguar... O passageiro sai e entra no prédio. Cone nem sequer olha para as janelas do terceiro andar; tem a certeza de que o dono do Daimler se foi juntar aos outros.
Agora, porém, o detective da Wall Street tem novo problema pela frente: o motorista sai do carro, encosta-se a um guarda-lamas, acende um cigarro e põe-se a inspeccionar
o céu nocturno. Cone decide arriscar. Atravessa a rua, olha para o carro e pára como que em transe.
- Caramba! - diz para o motorista. - Que raio de carro é este?
O tipo inspecciona-o com olhos frios. É um latagão de ombros tão largos que deve ter de se pôr de lado para passar nas portas.
- É um Daimler-acaba por responder.
- Muito caro? - pergunta Cone.
- Nem por isso - diz o tipo. - Basta coleccionar tampas de garrafas.
Cone ri-se em ar apreciador.
- Importa-se que veja melhor? - pergunta.
- Veja mas não mexa - avisa o tipo.
O investigador da Wall Street passeia-se lentamente em volta do Daimler, não se esquecendo de decorar a matrícula.
- Uma bela máquina - acaba por dizer. - Quem é que é tão rico que possa dar-se ao luxo de comprar um cano destes?
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O motorista olha-o de alto a baixo com frieza:
- Julgava que toda a gente tinha um...
Cone sabe que não vai conseguir sacar nada daquele túmulo, por isso volta para o carro alugado e acrescenta o número do Daimler à lista recém-compilada. Por detrás das cortinas do terceiro andar não se vêem agora nenhuns movimentos, e Cone fica sem saber se se tratará mesmo de uma jogatana de póquer, de brídege ou de bisca lambida, caso em que terá de se preparar para ver mais uma noite ir pelo cano abaixo.
Abre o boião de vodca, bebe um gole para baixar o nível, e deita-lhe dois cubos de gelo e alguma da água gelada que vai enchendo o fundo do saco de plástico. À medida
que bebe vai acrescentando mais cubos e água, mexendo com o indicador até obter a mistura desejada. Engole-a então de uma vez, mantendo a entrada do prédio debaixo
de olho e desejoso de acção.
Não precisa de esperar muito tempo. Vinte minutos depois saem três homens. Ficam uns momentos no meio do passeio, conversando e rindo com grandes gestos pelo meio, iluminados como estão pelo candeeiro da rua, parecem todos ser gente bem alimentada, bem vestida e de carteira recheada. Tipos com boa pinta, pensa Cone, daqueles que secam o cabelo com secador eléctrico. Apertam as mãos como verdadeiros amigos e vai cada um para o seu carro. O Daimler é o primeiro a arrancar, logo seguido pelo Jaguar e pelo Bentley. Cone fica a vê-los desaparecer ao fundo da rua.
Mas que raio é que se terá passado? Obviamente não foi nenhum jogo de cartas, e a duração do encontro foi demasiado curta para que se tivessem entretido com uma call-girl num quarto das traseiras ou a verem uma cassette pomo no videogravador do Dempster. Será que o tipo negoceia em droga? Que motivo tão especial poderá levar três ricaços a irem ao apartamento de Dempster num sábado à noite? Clientes? Um encontro de negócios? Se assim fosse, porquê três ao mesmo tempo? Por que razão não poderia Dempster recebê-los no escritório da Cedar Street ou mesmo tratar do assunto pelo telefone?
São quase dez e meia, mas Cone deixa-se ficar pacientemente sentado a vigiar as janelas do terceiro andar. De repente as luzes apagam-se e Timothy endireita-se. Demasiado cedo para o chichi-cama. O tipo deve estar quase a sair. E está: pouco depois sai do prédio e caminha
rapidamente
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em direcção à Park Avenue. Quando passa por baixo do feixe de luz do candeeiro, Cone identifica-o positivamente como sendo David Dempster. Põe o motor do
Escort a funcionar e segue em marcha lenta atrás do alvo
David Dempster vira para sul ao chegar à Park Avenue Cone encosta junto à esquina e pára como se estivesse à espera de dar a curva. Observa o homem, desejoso de que não se trate de um simples passeio nocturno. Mas não: mais ou menos a meio do quarteirão, Dempster detém-se debaixo do toldo de um hotel residencial. O porteiro vem ao seu encontro, e os dois trocam umas curtas palavras. Dempster saca da carteira, tira uma nota e enfia-a na mão do porteiro; dirige-se a um Cadillac Seville
branco arrumado numa zona com o sinal de Estacionamento Proibido, mesmo em frente ao hotel, mete a chave na porta e entra.
Para Cone, o que acabou de se passar é óbvio: Dempster está a engraxar o porteiro para "alugar" um local de estacionamento deveras conveniente. Quando o Seville
arranca, Cone faz a curva e segue-o. O trânsito é suficientemente intenso para que Dempster não detecte a sombra, mesmo que estivesse a contar com ela.
Seguem para oeste, depois para norte, viram novamente a poente e continuam ainda mais para norte. Por momentos Cone receia que o Cadillac se esteja a dirigir para
o Túnel Lincoln. A hipótese de uma hégira a más horas através dos descampados de New Jersey não enche de alegria o detective da Wall Street, mas por fim Dempster segue para norte ao longo da Oitava Avenida e vira para oeste ao chegar ao cruzamento com a Rua Quarenta e Cinco; pouco depois abranda a marcha no quarteirão entre a Décima e a Décima Primeira Avenida. Uma zona temível para quem lá resolva andar à noite dentro de um Cadillac branco.
Dempster, porém, sabe exactamente o que está a fazer. No sítio onde foi demolido um prédio existe agora uma área pavimentada, aproveitada temporariamente como parque de estacionamento. Está mergulhada na escuridão, e a entrada está cortada por uma corrente metálica. Cone pára a uma distância segura, a coberto do escuro, e fica à espreita. O Cadillac sobe o passeio, e de uma casota sai um homem. Dempster estende-lhe uma nota; a corrente cai no chão e o Seville entra.
Quando Dempster volta para o passeio, agora a pé, já
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Cone estacionou ao lado de uma boca de incêndio, de luzes apagadas. Não está preocupado com uma multa - o cliente pode muito bem tratar disso-, mas sim com a possibilidade de lhe rebocarem o carro. No entanto, de momento não vê mais nenhuma solução. Dá um bom avanço a David Dempster e segue a pé atrás do homem.
O alvo caminha apressado ao longo da rua deserta até à Décima Primeira Avenida. No preciso momento em que Cone dobra a esquina, Dempster desaparece no interior de um bar de mau aspecto com um anúncio de néon azul à porta: o Paddys Pig.
Cone aproxima-se e espreita pelo vidro emporcalhado. David Dempster está sentado ao balcão, falando em ar sério com um tipo gordo de boné de marinheiro e uma T-shirt que deve ter sido branca há muito tempo atrás. Cone não é capaz de calcular os motivos que levam Dempster a ter escolhido um tal companheiro de copos; será que o tipo é um maricas encapotado? Pouco provável.
Nem pensar em entrar no bar; Dempster reconhecê-lo-ia imediatamente. Como tal, Cone passa a meia-hora seguinte a passear-se pelo quarteirão, detendo-se de vez em quando em frente ao Paddy"s Pig para espreitar pela janela, a ver se a presa ainda está lá dentro. Preso ao vidro da janela há uma ementa desbotada que Timothy lê com interesse. Anuncia "Jantar de peru com todos os tremens". Da variedade delirium, disso não duvida Cone.
Está a meio quarteirão de distância, junto à esquina da Rua Quarenta e Seis, quando vê David Dempster sair do bar e caminhar rapidamente em direcção à Rua Quarenta e Cinco, provavelmente para ir buscar o carro. O detective da Wall Street deixa-o ir, aguarda uns minutos e volta para junto do Paddys Pig. Inesperadamente, depara-se-lhe uma porta em madeira de carvalho trabalhada, com painéis marchetados de vidrinhos fumados.
A taberna em si é uma espelunca. O bar, desconjuntado, é em mogno; a serradura espalhada pelo chão deve datar do Ano Primeiro, mas desde então viu-se acrescentada com uma miríade de cascas de amendoim e pontas de charuto.
Cone olha em volta, como se procurasse uma pessoa conhecida. À esquerda fica o bar, e à direita há uma fila de reservados; no meio estendem-se duas filas de mesas
de madeira e cadeiras com ar muito frágil. As mesas estão apinhadas com os habituais beberrões das noites de sábado, todos com ar de embarcadiços, estivadores, ladrões
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e damas da noite. O chavascal ecoa no tecto em alumínio, e a atmosfera tresanda a gordura queimada à mistura com fenol.
Os reservados à direita estão ocupados por uma raça diferente, quase todos jovens vestidos de forma espampa nante. Também há raparigas, mas todos se parecem unf,
com os outros. Cone reconhece que entre aquela gente devem estar vários alunos de Attica: têm um ar despren dido e absorto, falam sem mexer os lábios, e os olhos não perdem pitada do que se passa.
Aproxima-se do bar e senta-se na segunda cadeira ao lado do tipo gordo com o boné naval e a T-shirt emporcalhada, deixando um banco vago entre os dois. Os braços
gordos e flácidos do fulano estão recobertos por numerosas tatuagens, e no queixo tem uma cicatriz fina e pálida, como se alguém lhe tivesse tentado cortar a garganta no momento em que ele se abaixava.
À direita de Cone, praticamente cotovelo contra coto velo, senta-se um tipo alto e aparentemente irrequieto ora pesquisa um ouvido com a ponta de um fósforo, ora coça furiosamente a acne. Tem ambos os dedos mindinhos cortados na segunda junta, e o cabelo, negro e gorduroso tem atrás uma espécie de rabo de cavalo atacado com um elástico.
O barman, de bigode espalhafatoso, aproxima-se de Cone.
- Sim? - pergunta.
Cone olha em volta; toda a gente parece estar a bebef cerveja, mas ele resolve não alinhar.
- Vodca - pede. - Com gelo.
O do bigode olha para ele.
- Vodca da casa? - quer saber.
- Não, não - replica Cone, aborrecido. - O que é que tem?
- Vodca da casa e Smirnoff.
- Dê-me um Smirnoff - diz Cone. - E dou-lhe um dólar de gorjeta se abrir uma garrafa nova.
O barman fica a olhar para ele com ar ofendido.
- Aqui não baptizamos as bebidas, mister.
- Não disse que o faziam. Quer o dólar ou não?
O bigodes olha para o tipo do boné de marinheiro.
- Faz como o homem te pede, Tommy - diz o gordo
- O cliente tem sempre razão.
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A resmungar, Tommy tira uma garrafa intacta de Smirnoff de debaixo do balcão e abre-a em frente a Cone.
- Okay? - pergunta em tom truculento.
- Optimo.
Está a beber o primeiro gole quando o fulano alto à sua direita se inclina para ele:
- Eh, gostei da maneira como você resolveu o assunto! Cheia de classe...
Cone encolhe os ombros e vira-lhe a cara, para ver que o gorducho, depois de o mirar com ar de aprovação, também se resolveu aproximar, pondo a caneca de cerveja ao pé do copo de Cone ao mesmo tempo que transfere o corpanzil para o banco vago entre os dois.
- Você mora por estes lados?- pergunta numa voz rouca.
- Já morei - responde Cone. - Estive fora durante uns tempos.
- Pois é - diz o tipo. - Não estivemos todos? Precisa de alguma coisa? Uma pequenota? Quer ganhar umas massas?
- Hoje, não.
- Mercadoria?
Cone fica a olhar para ele.
- Daquela que caiu do camião? - pergunta.
- Isso mesmo. Cassettes, aparelhos de televisão, video-gravadores, micro-ondas... é só pedir. Tudo nos caixotes de origem. Selados.
O detective da Wall Street pondera um momento, aproveitando para beber mais um pouco do vodca.
- Uma moto? - sugere. - Tenho um amigo que anda à procura de uma em conta.
- Pois está a falar com a pessoa indicada! Basta que me diga a marca e o modelo... arranjo-lha num abrir e fechar de olhos.
- Vou trazê-lo cá - diz Cone. - Costuma parar por aqui?
- Todas as noites. Sou o dono disto, chamo-me Louie.
Cone acena com a cabeça e acaba a bebida. Bate com
a nota no tampo do balcão e vira-se para sair. O fulano magro desapareceu de vista. De repente ouve um estardalhaço enorme nas suas costas; vira-se. Numa das mesas, os dois homens e as duas mulheres que a ocupavam começaram a lutar. Aos gritos, atiram-se uns aos outros com punhos, pés, malinhas de mão; vale tudo. O número de
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lutadores vai crescendo, já se brandem garrafas, as mesas caem ao chão, as cadeiras desfazem-se em tiras.
- Tommy - diz o gordo, apontando para dentro do balcão.
O outro passa-lhe um taco de basebol em alumínio; desce do banco e dirige-se aos contendores. Começa a bater nos crânios de quem lhe surge mais à mão. A malta dos reservados grita de delícia, e Timothy decide que está na altura de se ir embora.
Vai a caminho da Rua Quarenta e Cinco, onde deixou o carro estacionado, quando alguém o chama: Eh, mac! Pára e roda lentamente sobre os calcanhares. O tipo alto e magro do Paddy"s Pig aproxima-se; numa mão empunha uma navalha tão comprida que mais parece um sabre.
- Passa para cá - diz-lhe na sua voz sussurrante.
Cone recua um passo.
- Passar o quê? - pergunta.
O tipo deixa escapar um suspiro.
- O que é que te parece? Dinheiro, cartões de crédito, tudo o que tiveres.
- Oh, meu Deus!-grita Cone, as mãos crispadas contra o peito. - O meu coração! O meu coração!
Dobra-se como se acometido por uma dor insuportável, a cabeça quase a tocar no chão. Quando se endireita, tem a SSI/I/ .357 apontada ao outro.
- Só tenho isto - informa.
O homem fica a olhar para a arma.
- Eh, aguenta aí! - exclama.
- Larga o canivete - ordena Cone. - Larga-o!
A navalha emite um ruído seco ao bater no cimento do passeio. O detective da Wall Street dá um passo em frente e desfere tremendo pontapé num ponto logo abaixo do
joelho do tipo. O ladrãozeco grita, dobra-se e Cone dá-lhe uma pancada atrás das orelhas com a coronha da Magnum de cano curto. O homem fica estendido no passeio,
mas Cone contínua a pontapeá-lo com as suas duras botas de atanado, não lhe poupando os rins e as jóias da família.
Por fim consegue dominar-se, tentando respirar lenta e profundamente. Pega na navalha e deixa-a cair para dentro da sarjeta mais próxima. Mete-se no carro e vai
para casa. arrependido com o tratamento de polé que deu ao tipo Desta vez exagerou, não se portou nada bem.
- Nada bem? - pergunta em voz alta, já sem saber se
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está preparado para ingressar na academia dos destravados.
- O que é que fizeste ontem à noite? - pergunta Samantha Whatley.
- Nada de especial - responde Cone. - Bebi uns copos e deitei-me cedo.
- Mentiroso - diz ela. - Telefonei-te por volta da meia-noite, mas não estavas em casa.
- Ai eras tu? Estavas nas lonas... bem me pareceu ouvir o telefone tocar, mas quando me levantei já tinha parado.
- Hum-hum!-diz ela.
A tarde de domingo já vai adiantada, estão deitados na cama rococó de Sam e ela está mesmo a ler a secção de compra e venda de propriedades do Times; o resto das
folhas espalha-se sobre os lençóis. Sam está sentadá com as costas apoiadas à cabeceira, os óculos pesados de aros de tartaruga encavalitados na ponta do nariz.
Cone deita-se ao lado dela, lânguido, sem se preocupar com as agruras da vida.
- Já me viste estas rendas? - exclama Sam. - Um estúdio por mil e duzentos ao mês! Duas assoalhadas por mil e quinhentos! Onde é que isto vai parar?
- É só dinheiro - diz ele.
- Só dinheiro? Às vezes também tens a mania dé te armar em superior... gostas tanto dele como qualquer pessoa.
Ele vira a cabeça para a fitar.
- Claro que gosto, mas não era capaz de matar por dinheiro. Tu eras?
- A única pessoa que me apetece matar és tu, e ainda por cima não tens assim tanta massa.
- Mas tenho gases. Agora a sério: eras capaz de matar por dinheiro?
- Claro que não!
- Já alguma vez conversaste com um detective dos Homicídios sobre os motivos que levam as pessoas a matar?
- Andei uns tempos com um tipo dos Homicídios, mas tive de o mandar dar uma volta. Sempre que nos metíamos nos copos o gajo desatava a chorar. Mas não, nunca falei
com ele sobre as pessoas que matam outras.
- Eu digo-te porque o fazem - começa Cone. - Se puseres dte lado os malucos que matam porque Deus os mandou
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matar, e se subtraíres os que matam porque descobrem o marido ou a mulher na cama com outra pessoa... isso são crimes impulsivos...
- Crimes passionais - interrompe Sam.
- Como queiras. Bom, subtrai esses casos e considera unicamente os crimes premeditados... e cuidadosamente planeados. Agora estás a lidar com dois motivos principais: um é a vingança, que até nem tem assim tanta importância a não ser no caso dos sicilianos...
- E o outro é o dinheiro - diz Sam.
- Bingo! Suponho que a ganância é mais forte do que qualquer outra coisa; tanto faz serem uns míseros dólares na malga de um pedinte ou milhões no cofre de uma
empresa.
- Oh, oh! - exclama Whatley, fitando-o através dos óculos de ler. - Agora já sei o porquê desta palestra sobre assassínios numa tarde soalheira de domingo... andas a magicar no caso do Dempster, e pensas que a ganância está na base de todas as sabotagens...
- E na base do assassínio do John Dempster. Que mais pode ser? - replica ele, agastado. - Não estou a dizer que não hajam mais motivos, mas foi a ganância que despoletou
o processo.
- Como é que sabes? - pergunta ela.
- Não sei - admite ele. - É isso que me está a dar cabo do toutiço. Julguei que tinha descoberto a marosca, mas afinal enganei-me.
Conta-lhe então o que se passou com a sua grande inspiração, a do pirata corporativo a tentar atirar-se à Dempster-Torrey, procurando baixar a cotação das acções através de actos de sabotagem e, em última instância, recorrendo ao homicídio.
- Um bom raciocínio, Tim - observa Samantha.
- Bom? - diz ele, sacudindo a cabeça com ar triste.- O Simon Trale, CDF da companhia, verificou-me essa possibilidade, e concluiu não haver nada, nem o mínimo rumor, sobre qualquer jogada de um pirata da alta finança. Foi tudo por água abaixo. Que se lixe! O melhor é nem falarmos nisso.
- Já tens fome? - pergunta Sam. - Se quiseres vou aquecer a pizza.
- Tenho fome, mas não é de pizza - diz ele, olhando para ela.
- Meu grandessíssimo filho da mãe!-diz ela. - Achas
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que podemos fornicar em cima do Sunday times? Não será um sarilégio?
- O pior que pode acontecer é ficares com o título Imprimido às avessas no cu... não, não tires os óculos. Nunca fiz amor com uma mulher com os óculos postos.
- És um depravado - diz Sam.
- É só por hoje, vais ver que me passa.
- Oh, meu Deus! Espero bem que não!
Horas mais tarde, depois de um duche morno em que ambos apanham o sabonete à vez, sentam-se em frente ao jantar de pizza, salada e vinho.
Cone retoma o assunto do caso Dempster; não o consegue tirar da cabeça.
- É claro que não serve de nada dizermos que as pessoas só matam por um único motivo - diz ele. - Normalmente deparam-se-nos um emaranhado de razões, justificações e acontecimentos passados.
- Do que é que estás a falar? - pergunta ela.
- Oh!... só das pessoas - responde ele em tom sombrio.
- Sei que voltaste ao mesmo - diz ela. - Esse teu cérebro retorcido vai continuar às voltas como um pião, e ainda por cima não me vais dizer nada do que se for passando.
- Não há nada para dizer - murmura ele, de cabeça baixa. - Há mais salada?
- Não - responde ela. - Desculpa, mas não podia antecipar esse teu súbito desejo de salada...
Ele levanta a cabeça lentamente e fica a olhar para ela.
- Jesus, porque é que me estás a olhar dessa maneira?
- pergunta ela, espantada. - Só disse que não tinha mais salada... podes processar-me à vontade.
- Lembras-te do caso Laboris? - pergunta ele. - O tipo que tinha montado uma trama tipo Ponzi para poder dissipar a massa conseguida com a droga e o contrabando de arte?
- Sim, lembro-me - diz ela. - E depois?
- Sem o saberes, foste tu que me deste a pista que levou ao encerramento do caso... e agora voltaste a fazê-lo!
- Fazer o quê? - grita ela, desesperada. - Afinal de que é que estamos a falar?
- Esquece - diz ele, sorrindo bem-disposto. - Bebe mais um copo de vinho.
- Vai-te lixar-replica ela, contrariada. - Foste considerado o "Falhado do Ano" no teu livro de curso do liceu?
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- Sou uma gota perdida...
- Gostava de verificar isso -diz ela, pondo-os aos dois a rir às gargalhadas.
Depois de comida a pizza, continuam estendidos no chão a beber o vinho gelado e a conversar sobre isto e aquilo. São estes os seus momentos mais íntimos, aqueles
em que se aproximam mais. O sexo é como um estado de guerra brutal, mas isto é uma paz morna e tem muito que se lhe diga - se bem que nenhum deles esteja pronto para o admitir.
Samantha tem uma colecção espantosa de velhos discos de 78. Põe uma pilha no gira-discos, seleccionando os que ele gosta mais. Começa com a "September Song", de Walter Houston, o "Just a Gigolo", de Bing Crosby, e o "Fine and Mellow", de Billie Holiday.
- Também tenho o "Gloomy Sunday" - diz Sam. - Podia pô-lo, mas o dia não está nada assim.
- É verdade - responde Timothy Cone, feliz da vida. - Não está, não senhor.
Cone acalenta várias ilusões sobre si próprio. Uma das mais mundanas leva-o a pensar que se antes de adormecer disser a si mesmo a hora precisa a que deve acordar,
então presto!, acordará no momento exacto e escolhido.
Assim, no domingo à noite, encolhido sobre o colchão, instrui-se a si próprio: "Vais acordar às oito horas. Vais acordar mesmo às oito horas." Dorme como uma pedra
e acorda precisamente às nove e dez. Praguejando, acende um cigarro, põe uma chaleira de água ao lume e atira um biscoito de cão a Cteo, que é um gato mas nada tem
de racista.
Ainda em roupa interior, com novo cigarro no canto da boca e a chávena de café na mão, vai telefonar a Neal Davenport.
- Já a pé? - espanta-se o polícia. - Não me digas que estás no escritório!
- Vou a caminho - responde Cone, com a barba por fazer. - Como é que o Departamento se está a safar com o homicídio de Dempster?
- Foi por isso que me telefonaste a esta hora? Para me fazeres sentir ainda mais miserável? É uma pista fria, rapazinho, e a cada dia que passa vai ficando mais gelada. O caso é insolúvel. Estamos a levar pontapés de todos os
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lados, e só aqui entre nós, meu filho, ainda não conseguimos nada de nada.
- Então e esse tenente maravilha que conduzia a investigação? Já não anda por aí?
- Nã - diz Davenport. - Já se foi embora há tempos, agora temos um inspector-adjunto, que de resto já viu onde se meteu. Esta coisa está a transformar-se numa pira funerária... vai arruinar muitas carreiras, incluindo a minha.
- Souberam alguma coisa do grupo terrorista que reivindicou o crime através dos jornais? O bando da Liberdade Amanhã.
- Nada de nada. Agora pensa-se que foi uma cilada que nos montaram, uma manobra de uns esquerdistas quaisquer apostados em conseguir grandes parangonas... ou então
foram os tipos que abateram o Dempster, para nos levar por um caminho diferente. Foi por isso que telefonaste? Para ouvires as minhas queixas?
- Não propriamente - diz Cone. -Queria pedir-te um favor.
- A sério? Já devia ter calculado.
- Ouve - diz Cone -, tu deves-me um, certo? Lembras-te do caso Laboris, o das drogas?
- Sim... sim, acho que me lembro. O que é que tens?
- Três matrículas. Preciso de saber quem são os donos dos carros.
- Para quê?
- Ouve, Neal - diz o detective da Wall Street em voz suave. - Isto pode estar relacionado com o assassínio do Dempster.
Um longo silêncio.
- Estás a gozar comigo, sherlock? - pergunta Neal.
- Juro por Deus que não estou. Ainda não estabeleci a ligação definitiva, mas pode ser que se vá dar com alguma coisa. Vá lá, arrisca.
Davenport deixa escapar um suspiro.
- Okay, vou ver o que posso fazer. Dá-me lá os números.
Cone lê-lhe os gatafunhos que escreveu do lado de
dentro da carteira de fósforos.
- Anda depressa com isso - frisa ele. - Pode ser coisa da grossa.
- E se não for?
- Nesse caso gastaste uma chamada telefónica. Grande coisa...
- Eu depois ligo-te - diz o homem do NYPD, desligandto.
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Cone, ansioso por pôr as engrenagens a girar, vai encher nova chávena de café, acende mais um Camel e liga para Simon Trale, da Dempster-Torrey. Tem de esperar vários minutos antes que o ponham em contacto com o CDF; enquanto aguarda, obrigam-no a ouvir música, ainda por cima a "Climb Every Mountain".
- Desculpe por o ter feito esperar, Sr. Cone.
- Não faz mal, Sr. Trale. Oiça, lembra-se de o ter avisado de que o contactaria se precisasse de mais dicas?
- Dicas?
- Informações. Aqui há uns dias fui acusado de me servir das pessoas para me fazerem o trabalho, mas por vezes é a única forma de conseguirmos avançar. É por isso que lhe estou a telefonar. Tem alguma objecção a fazer?
- Claro que não-diz Trale.
- Quando falámos sobre os incidentes nas vossas subsidiárias, o senhor disse que a maior parte dos prejuízos estavam cobertos pelo seguro. É mesmo assim?
- Exactamente.
- A Dempster-Torrey lida com várias companhias de seguros ou serve-se de um só agente?
- Usamos um único agente, Sr. Cone. Consideramos que é mais eficiente e mais económico.
- Um agente para todos os seguros da Dempster-Torrey, seja qual for o ramo?
- Isso mesmo.
- Grande sorte a desse agente... deve ganhar a vida só com vocês.
Simon Trale ri-se discretamente.
- Acredito que sim.
- Portanto suponho que a Dempster-Torrey, e o senhor em particular, têm muito boa impressão desse agente...
- É uma conclusão lógica. Onde é que quer chegar, Sr. Cone?
- Vou-lhe dizer o que preciso... deve haver uma associação a nível nacional de todas as companhias de seguros, uma organização qualquer com influências em Washington e que também elabora estatísticas sobre os prejuízos por seguros vencidos, isto de uma forma global.
- É claro que há. É um grupo comercial chamado Central Insurance Association.
- A CIA? -espanta-se Cone. - É nome para fazer levantar bastantes sobrancelhas... enfim, aposto que os computadores
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deles têm gravados todos os dados sobre o funcionamento das seguradoras... certo?
- Sim, calculo que tenham tudo isso.
- Bom, o que eu lhe queria pedir é o seguinte: telefone ao vosso agente e peça-lhe para entrar em contacto com essa tal associação, por forma a obter uma lista com as dez companhias mais afectadas por prejuízos durante o último ano.
Trale fica calado um bom bocado, mas por fim pergunta:
- Acha que há alguma ligação com os nossos prejuízos, Sr. Cone? Poderá haver uma espécie de conspiração contra as maiores corporações do país?
- É qualquer coisa no género - diz Cone. - Olhe, Sr. Trale, não o censuro se me tomar por um cretino, depois do falhanço daquela minha ideia do pirata a actuar na sombra...
-Não tem nada que pedir desculpa por isso - replica o ancião. - Foi uma ideia muito engenhosa que simplesmente não resultou. Aconteceu-me o mesmo imensas vezes. Portanto agora pensa que pode haver uma relação entre os nossos acidentes e os das outras companhias?
- Talvez haja.
- Muito bem -responde Trale sem a mínima hesitação.
- Vou falar com o nosso agente para lhe pedir essas informações.
- Se for preciso aperte-o - diz Cone.
Trale solta uma gargalhada.
- Acho que não vai ser preciso, ele terá muito gosto em colaborar connosco. Quer que lhe peça para contactar directamente consigo?
- Sim, ajudava-me imenso. Quero avançar o mais depressa que puder, Sr. Trale, mas mesmo assim não lhe posso prometer nada.
-Compreendo. Vou-lhe telefonar imediatamente.
Cone desliga, satisfeito por ter posto tudo a gimbrar. Agora terá de esperar pelas respostas de Davenport e do agente de seguros. Podia ter-se encarregado sozinho destes aspectos, mas demoraria semanas ou mesmo meses até conseguir os dados pretendidos; por outro
lado tem o pressentimento de que se está a preparar qualquer
coisa de muito grave, uma coisa que tem de ser travada quanto antes.
Cumpridas as suas obrigações da manhã para com a Haldering & Co. - duas telefonadelas bastaram-, Cone não
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se sente obrigado a sentar-se à secretária; toma um duche demorado, faz a barba e veste-se nas calmas, detendo-se a meio para fazer uma pequena bola de folha de alumíniu. um dos brinquedos preferidos de Cleo. Por fim abre uma lata de cerveja, para excitar as papilas gustativas e desim pedir os canais nasais.
Vai a pé até à baixa, franzindo o cenho ao sol estival que o banha com o seu calor. O dia está brilhante, e se Cone não fosse por natureza uma pessoa soturna, até era capaz de se alegrar. Mas não, o detective ainda anda a estudar a alegria e os modos de a alcançar. Para si, aquele dia luminoso e convidativo é uma indignidade: continua a preferir o nevoeiro e as peúgas molhadas.
A irritante recepcionista da Haldering olha-o com ar reprovador pelo seu atraso, e o gabinete minúsculo e ata-fulhado não constitui grande consolo. Sobre a secretária está um memorando gelado de Samantha: "Os seus relatórios semanais das últimas três semanas estão atrasados. Por favor mande-mos ASAP (")."
Faz um avião de papel com o memorando e lança-o no ar. O engenho estremece e cai para lá da secretária, numa imitação do seu estado de espírito. Intrigado, pensa
se poderá melhorar a sua sorte nesta vida a lavar pratos numa pastelaria de classe; podia forçar uma tal opção entrando no gabinete de Haldering para esmurrar o patrão em cheio no nariz... sim senhor, foi o pensamento mais atraente do dia.
Sabe muito bem os porquês deste avanço súbito e galopante da melancolia. Depois de ter posto a girar as engrenagens do caso Dempster, não há nada que possa fazer enquanto Neal Davenport e Simon Trale não responderem aos seus pedidos. A inactividade enerva-o, e a única coisa que pede a Deus é que esta sua segunda tempestade cerebral não resulte em branco como a primeira.
Contrariado, começa a trabalhar nos relatórios semanais atrasados, tentando não pensar na possibilidade de novo falhanço no caso Dempster. Quando, por volta das onze e meia, o telefone toca, estende a mão cautelosamente, como se viessem aí notícias desastrosas.
- Sim? - pergunta, zangado.
- Davenport. Tens papel e lápis? Já tenho os nomes dos donos dos carros.
(1) ASAP - sigla para Soon An Possible, o mais depressa possível. (N. do T.)
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- Caramba, isso é que é eficiência! - diz Cone. - Não contava que me telefonasses tão depressa,
- Bom. como disseste que podiam estar relacionados com o Dempster... quando é preciso também sei mexer os cordelinhos. Tenho os nomes, mas se quiseres também te
posso dar as moradas. Pronto? O primeiro chama-se Samuel Folger, e o segundo é um tal Jerome K. Waltz. W-a-l-t-z, como na dança. A terceira matrícula é a de um carro
registado em nome de uma companhia, a Simon and Butterfield Incorporated. Escreveste tudo? Agora não digas que não cumpro o prometido!
- Obrigado - diz Cone. - Muito e muito obrigado.
- Esses nomes dizem-te alguma coisa?
- São todos tipos da Wall Street. Designam-se a si próprios por conselheiros de investimentos ou consultores financeiros, ou qualquer coisa no género. No fundo são
gestores de dinheiro... do dinheiro de outras pessoas.
- Estão legais?
Cone não dá uma resposta directa.
- São pesos-pesados - continua. - Lidam essencialmente com pensões de reforma e carteiras de títulos. Quero dizer, estamos a falar de biliões de dólares.
- Então qual é a ligação com o homicídio do Dempster?
- Bom... neste momento ainda é cedo para o dizer.
- Seu sacana! - grita Davenport. - Esfalfo-me a conseguir estes dados e tu dás-me com a porta na cara! Não tens nada para mim? Afinal que raio de merda é esta?
- Tem calma, Neal - diz o detective da Wall Street.- Tenho aqui uma coisa para ti. Já ouviste falar numa tasca no West Side chamada Paddy"s Pig?
Silêncio. O outro fica calado tanto tempo que Cone acaba por dizer:
- Eh, ainda estás aí?
- Estou, estou. Disseste Paddy"s Pig?
- Isso mesmo.
- Achas que pode ter a ver com a morte do Dempster?
- Acho.
- Nesse caso é melhor encontrarmo-nos - diz o polícia.
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Cone oferece o almoço. Está à porta do escritório com o saco das compras na mão quando Davenport encosta o carro ao lambril do passeio. O Plymouth azul fica estacionado
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em dupla fila, com um letreiro sobre o tablier a dizer "Agente da Polícia em Serviço". Timothy senta-se com o embrulho no lugar do morto,
- Olá, sherlock! - cumprimenta Davenport. - Isso cheira bem! O que é que arranjaste?
- Hamburgers mal passados com cebola e pimentos... não era o que tu querias? Também há batatas fritas, pickles e seis Buds geladas.
- Maravilhoso - diz o agente do NYPD, atirando janela fora uma pastilha Juicy Fruit mais que gasta. - Podes meter isso na tua relação de despesas?
- Sem qualquer problema.
- Então vamos lá a isso!
Abrem os embrulhos mais pequenos, tiram a tampa a duas cervejas, dividem os guardanapos de papel e começam a morfar.
- Há mostarda e ketchup nesse pacote mais pequeno
- diz Cone.
- Por mim passo - responde o polícia. - Ando a fazer dieta. Olha lá, não tenho muito tempo, por isso tens de te despachar. Há um bando na Hells Kitchen (aquilo agora
chama-se Clinton) que dá pelo nome de Westies. São quase todos irlandeses, maus como as cobras. A sério, fazem com que os tipos da Murder, Inc. se pareçam com criancinhas
de coro. Diz-se que um dos fulanos dos Westies entrou num bar com a cabeça de um pobre diabo que acabara dè lixar...
- E o bar era o Paddys Pig?
- Bruxo. É aí que os Westies se reúnem. Dedicavam-se essencialmente ao jogo e à extorção na zona dos cais, mas quando as docas do West Side secaram, os Westies atiraram-se
a tudo o que havia disponível... drogas, prosti tuição, pornografia, enfim, é só pedir. Em certa altura, aqui há uns dez anos atrás, começaram a aceitar
contratos para assassínios, nos quais se incluem alguns dentro das
famílias da Mafia. Pela nossa conta, devem ter praticado mais di trinta homicídios; a maior parte
das vítimas acabaram retalhadas. Chegaram a meter a cabeça de um tipo num torno apertando-o até o crânio rebentar como um melão maduro
- Bonito. Come mais batatas antes que eu dê cabo delas.
Abrem os embrulhos da segunda dose de hamburgei e prosseguem o almoço de negócios.
- Estas cebolas estão picantes! - protesta Davenpor.
- É mesmo assim que eu gosto delas, mas depois fico
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arrotar o dia todo. Adiante. Aqui há três anos, o Departamento organizou uma brigada especial, junto com a malta da Polícia Estadual. Correu tudo sobre esferas. Prendemos cerca de uma dúzia de Westies, incluindo alguns dos capangas, e o resto desapareceu por aí. O Paddys Pig ficou fechado durante uns tempos, mas acabou por reabrir com um novo dono. Ultimamente soubemos pelos nossos informadores que o bando voltou à actividade, e agora apareces-me tu a dizer que há uma ligação entre o Paddy"s Pig e o homicídio do Dempster. Já agora, o que é que foste fazer a esse antro?
Cone limpa os lábios com um guardanapo de papel e abre mais uma lata de cerveja.
- Segui o David Dempster até lá.
O homem do NYPD volta-se para o fitar, atónito.
- Estás a entrar comigo outra vez, não estás?
- Nem por sombras - diz Cone. - O tipo foi mesmo lá, e teve uma grande conversa com o dono, um fulano gordo chamado Louie. Olha lá, quando vocês começaram a investigar o caso Dempster meteram todas as pessoas implicadas no computador?
- O que é que julgas? É claro que os investigámos a todos! O David Dempster tem cadastro, mas nada de especial. Foi acusado de espancar um condutor bêbado no Central Park, o qual, segundo afirmou o próprio Dempster, lhe matou o cão. Além disso tem duas prisões por assalto, mas nunca chegou a ir a tribunal.
- Caramba!-diz Cone. - Portanto o tipo já cá andou por baixo, não andou? Bem me parecia.
Davenport faz vibrar o vidro da janela com um arroto reverberante, e por fim abre uma embalagem nova de Juicy Fruit.
- A mim não me parece nada - diz ele. - A única coisa que sei é que o David Dempster foi visto a conversar com o dono do Padefys Pig. O que é que isso prova?
- Quando falei com o Louie depois do Dempster sair, o tipo tentou passar-me droga. Quando viu que eu não estava interessado, passou para as mercadorias que costumam
cair do camião... disse-lhe que um amigo meu andava à procura de uma moto, e ele disse que com certeza, bastava eu mandá-lo falar com ele.
Os dois detectives ficam a olhar um para o outro.
- É pouca coisa - diz por fim Davenport.
- Consegues algo melhor?
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- Não - admite Davenport. - Temos uma série de tarados que não nos vão levar a nada... Olha lá, podes ir falar de novo com esse Louie para ver se ele te arranja uma
Kawasaki preta modelo 650?
- Bom, não sei se poderei... para te dizer a verdade,
tive uma ligeira discussão com um tipo que costuma aparecer por lá,
- Uma ligeira discussão? No teu caso é o mesmo que estar ligeiramente grávido... okay, quem lá vai sou eu.
- Neal, não faças uma asneira dessas - diz Cone em tom persuasivo. - Assim que entrares naquele antro topam-te logo.
Davenport olha para o velho fato castanho, cheio de nódoas, para a barriga e para as mãos
mucosas.
- Achas que sim? - pergunta.
- Tão certo como eu estar aqui. Porque é que não arranjas um agente à paisana que se consiga imiscuir? Manda-o falar comigo, eu preparo-o. Podemos deixá-lo no Paddys
Pig até o aceitarem como mais um maluco entre muitos, e depois dizes-lhe para tactear o Louie a ver se sabe alguma coisa da moto. Aposto que não a atiraram ao Hudson
nem a desmontaram numa oficina, é demasiado
valiosa para isso.
- Talvez tenhas razão... se resultar, somos capazes de
chegar ao David Dempster... sabes que é assim, não sabes?
- É claro que sei.
- Está bem, mas afinal quais são os motivos dele?
Inveja? Cavalheirismo fraternal?
- Cavalheirismo fraternal? São palavras demasiado caras
para um tipo como tu...
- Também leio os meus livros - protesta Davenport.-
Anda lá, na tua opinião quais serão os motivos dele?
- Ando a ver se descubro.
- Jesus, nunca és capaz de desembuchar tudo de uma
vez, pois não? - diz o detective, desgostoso.
- Tu tratas do Paddy"s Pig, e eu encarrego-me do David Dempster - diz Cone. - Um tipo nunca devia matar o irmão
é ir longe de mais.
- Tens algum irmão?
- Não.
- Então porque é que estás a armar-te em bom?
- Tenho cá os meus princípios - replica Cone.
Leva as duas cervejas que sobraram para o escritório
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escondidas dentro de um saco de papel castanho. Na recepção está um tipo magro e bem vestido à espera; usa óculos de armações metálicas, e sobre os joelhos tem um chapéu de marinheiro. O rosto é o de um falcão pálido, com o nariz adunco e uma boca tão estreita que mais parece uma fenda sem lábios.
- Aquele senhor quer falar consigo - diz a antiga recepcionista para Cone.
O visitante levanta-se e esboça um sorriso mal alinhavado.
- Sr. Timothy Cone?
- Sim. Quem é você?
O tipo tira um cartão-de-visita do bolso do casaco.
- Bemard Staley, da International Insurance...
- Oooal - interrompe Cone, levantando uma das mãos.
- Não estou interessado.
- Não lhe venho impingir nada, sou da International Insurance Investigators. O Triplo I. Não ouviu falar de nós?
- Não.
- Óptimo - diz o fulano, e desta vez o sorriso resulta.
- Preferimos que seja assim. Venho por causa da Dempster-Torrey. Podemos conversar?
- Claro - diz Timothy, pegando no cartão-de-visita. - Por aqui.
Staley segue-o corredor fora e entra no gabinete acanhado de Cone.
- Parece o meu - diz o homem dos seguros. - Mas ainda é maior...
- Maior? Meu Deus, você deve trabalhar dentro de um caixão! Oiça, tenho aqui duas cervejas... não estão frescas, mas ainda se bebem. Quer uma?
Na sua opinião o tipo é um ninhas, mas Staley surpreende-o.
- Claro. Vai saber-me bem.
Abrem as latas, bebem um golo e estudam-se mutuamente com um interesse cauteloso.
- Esse Triplo I onde você trabalha... -quer saber Cone. -O que é que é?
- Somos investigadores de seguros. A maior parte das seguradoras têm os seus próprios departamentos de investigação, mas as mais pequenas não conseguem resolver
nada que seja mais complicado ou suspeito. Por outro lado, os grandalhões ficam por vezes com tanto trabalho que
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precisam de uma ajudazinha temporária cá de fora. Ê aí que nós entramos.
- Estou a ver - diz Cone, - Mas qual é o seu interesse na Dempster-Torrey?
Staley tamborila com os dedos no chapéu de marinheiro.
- Pelo que ouvi dizer, você foi contratado para investigar as sabotagens nas instalações da companhia. Correcto?
- Correcto.
- Por isso telefonou à Dempster-Torrey, e eles telefonaram ao seu agente de seguros. Por sua vez, o agente falou com a Central Insurance Association, e esta falou connosco.
- Muitos telefonemas se têm feito ultimamente - desabafa Corte. - Talvez esteja na altura de comprar acções da NYNEX. Não estou é a perceber o papel da sua firma neste caso.
- Aqui há cerca de três anos, os computadores da CIA (gandé nome, não acha?) detectaram um súbito aumento de pedidos de pagamentos de seguros por danos de património e acidentes pessoais, por parte de grandes corporações. O salto não podia ser justificado por um crescimento normal, por isso a Triple-I foi contratada para ver o que estava a passar.
- Portanto você tem estado a trabalhar nos últimos três anos em casos de património danificado e acidentes de trabalho?
- Só há um ano. O investigador que acompanhava o processo reformou-se, e eu herdei os dossiers. O meu antecessor não chegou a nenhuma conclusão, e eu vou pelo mesmo caminho.
- Investigou tudo pessoalmente?
- Pode crer que sim - responde Bernard Staley. - Via jei por todo o país, gastei uma data de dinheiro à CIA, e não apresentei resultados nenhuns. Por regra cheguei aos locais dos acidentes um ou dois dias depois de sucederem às vezes horas depois. Houve fábricas incendiadas, sabo tagens, vandalismo, falsificação de produtos, suborno de dirigentes sindicais, processos movidos por consumidores contratação ou corrupção de empregados-chaves... por ou tras palavras, um programa completo para arruinar a reputação e os proventos da companhia escolhida como alvo.
- Houve homicídios? - pergunta Cone.
Staley fita-o com um ar estranho.
- É curioso você perguntar isso - diz ele. - O cientista
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principal de uma empresa de biomedicina morreu num acidente de automóvel, numa noite límpida e calma, Não ia bêbado nem drogado. O veredicto oficial diz que o homem
perdeu o domínio do carro e foi embater num muro de cimento. A verdade é que o tipo era uma espécie de génio, dizia-se que estava quase a descobrir uma cura para
a calvície. Depois da sua morte a cotação das acções desceu na vertical, e o novo produto nunca chegou a ser lançado no mercado.
- Acha que o acidente foi forjado?
Staley encolhe os ombros.
- É só um pressentimento - diz ele. - Não há quaisquer provas que indiquem o contrário, mas eu passo a vida a lembrar-me do caso. O homem deixou mulher e três filhos pequeninos.
- Sim, é difícil esquecer uma coisa dessas - diz Cone.
- Portanto não conseguiu nada com as suas investigações?
O outro pestaneja por detrás dos óculos.
- Nada de aproveitável. Só fiquei com a noção maluca de que todos esses casos (em companhias diferentes e em sítios diferentes) foram preparados pelo mesmo tipo ou pela mesma organização, Há montes de semelhanças. Em vários casos de fogo posto, o método seguido foi praticamente o mesmo. Não me pergunte quem é que está por
detrás da conspiração, nem quais são os motivos... não faço a mínima ideia. Seja como for, não vou
aborrecê-lo mais com a minha história de falhanços sucessivos.
Você queria uma lista das dez companhias com mais prejuízos e acidentes de trabalho, não queria? Aqui a tem, junto com a relação dos montantes reclamados.
Mete a mão dentro do casaco e tira uma folha dobrada de papel de máquina, estendendo-a a Cone.
- Se reparar, e no que se refere aos prejuízos, quem está à cabeça é a Dempster-Torrey.
Cone lê rapidamente a lista.
- Reconheço a maior parte dos nomes - diz ele. - Não todos, mas a maioria. O que é que querem dizer estas datas?
- São as dos acidentes - explica o homem da Triple-I.
- Pensei que lhe podiam ser úteis. Se reparar pode ver que algumas são de há mais de um ano. Sei que pediu a relação das perdas no último ano, mas esta coisa tem vindo a verificar-se há mais de três, por isso decidi incluir os que perderam mais.
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Cone fita o homem com uma expressão apreciadora.
- Você sabe mesmo do ofício - comenta.
- Não, não sei - replica Bernard Staley. - Se soubesse, já tinha encerrado o processo há um ano a esta parte. Espero que você seja mais bem sucedido. Tenho muitos mais casos entre mãos, mas este nunca deixou de me preocupar.
- Pois é... a mulher e os três miúdos.
O investigador de seguros acena com a cabeça, levanta-se e estende a mão.
- Tive muito prazer em o conhecer, Sr. Cone. Espero que a lista contenha o que pretendia. Juro-lhe por Deus que há qualquer coisa a passar-se, só que não faço a mínima ideia do que seja.
- Obrigado pela sua ajuda - diz Cone, apertando-lhe a mão.
- Se descobrir alguma coisa será capaz de me pôr a par?
- Absolutamente. Ambos trabalhamos do mesmo lado da rua.
- E que rua!-diz Staley com um sorriso desmaiado.
Depois do homem se ter ido embora, Cone lê a lista
com mais atenção. As sabotagens não são nenhuma brincadeira: os pedidos de pagamento de seguros ascendem a milhões de dólares. Se alguém planeou deliberadamente
aqueles prejuízos, trata-se por certo de um profissional ou, mais provável ainda, de um grupo de profissionais contratados. Duas das companhias da lista tiveram
fogo posto no mesmo dia, e estão em extremos opostos do país: nenhum fanático do fogo teria conseguido tamanha proeza.
Cone fica a ruminar por momentos, vasculhandto na papelada da secretária à procura do número de telefone do seu contacto na Securities and Exchange Comission. Quando
o encontra faz a chamada.
- Jeremy Bigelow, por favor. Fala Timothy Cone.
- Neste momento ele está a atender o telefone, Sr. Cone. Quer esperar?
- Sim, eu espero.
Espera, espera e espera, até que por fim Bigelow vem atender.
- Olá, Tim! - cumprimenta ele.
- O que é que estiveste a fazer tanto tempo ao telefone? A tentar explicar à tua mulher porque é que tiras a aliança assim que sais de casa?
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- Meu Deus, tu nunca te esqueces de nada, pois não?
- diz o outro com uma gargalhada oca. -O que é que se passa?
- A merda do costume. Jerry, preciso de um pequeno favor.
- Bem, compreendes, neste momento estou cheio de trabalho...
Bigelow é um tipo simpático, mas não muito esperto, já não é a primeira vez que Cone tem de o pressionar.
- Olha lá - diz-lhe em tom ríspido. - Não me venhas com essa história, sabes que comigo não pega. Em primeiro lugar, estás a dever-me um por causa da malandrice
dia Sally Steiner; não julgues que não vi o teu nome no Wsll Street Journal. Tudo bem. Já te tinha dito que a glória ficava toda para ti. Em segundo lugar, se não
me ajudas nesta, estás a deixar passar ao lado uma coisa que pode vir a ser maior do que o caso Boesky. Se tu e a SEC não querem tomar parte na acção, basta que
o digas e eu não te chateio mais.
- Maior que o caso Boesky? - repete Jeremy. - Acabaste de pronunciar as palavras mágicas! O que é que tens?
- Uma lista de dez companhias. Preciso de saber o montante de vendas antecipadas de acções dessas companhias nas datas que te vou dar.
- Meu Deus! - protesta Bigelow. - Vou demorar mais de um mês a dar com isso tudo!
- Jerry, já te disse que comigo isso não pega. Sabes muito bem que está tudo nos vossos computadores. O New York Times, publica todos os meses um quadro com as posições antecipadas... não deves levar mais de uma hora para arranjar os dados que te estou a pedir.
- Bom, está bem - diz o outro, contrariado. - Man-da-me a lista pelo correio e depois eu vejo o que posso fazer.
- Pelo correio, uma ova! - grita Cone. - Não tenho tanto tempo como isso, e se quiseres ver o teu nome na Business Week é bem melhor que trabalhes o mais depressa que puderes! Tens alguma escuta montada? O teu telefone está ligado a algum gravador?
- Bem... tenho - diz o homem da SEC, hesitante.- É para quando os informadores telefonam.
- Eu sou o melhor informador que alguma vez terás. Liga-o e eu começo a ditar os nomes das companhias e as-datas.
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Ouve-o a mexer em várias coisas, e por fim Bigelov anuncia:
- Okay, podes começar.
Cone lê em voz alta a lista fornecida pela Triple-I, e conclui, dizendo:
- É tudo por hoje, malta. Não se esqueçam de conti nuar a mandar essas cartas e postais.
Jerry volta a falar ao telefone:
- Já tenho tudo, vou imediatamente levar os dados , secção de Pesquisas. Tens a certeza de que é
coisa graúda?
- Faz com que o escândalo do Teapot Dome se pareça com uma brincadeira de crianças - assegura-lhe Cone. -Espero notícias tuas amanhã de manhã. Se até lá não disseres
nada, podes crer que te apareço aí no gabinete armado de cajado! Diverte-te.
- Está bem - diz Bigelow. - Tu também.
Cone desliga convencido de que o ritmo da investigaçâ está finalmente a acelerar. Acende um Camel, pousa a botas de atanado no tampo da secretária desconjuntada
fica a meditar. Onde poderão estar os pontos fracos? Se não os houver, onde é que estão as lacunas? Detecta um e estende a mão para o telefone, marcando o número
de Sr.a Teresa Dempster.
É ela própria quem atende o telefone, o que leva Con a pensar, entristecido, se a criadita jeitosa terá sido dispensada.
- Olá! - diz a mulher em tom alegre. - Fala a Tere; Dempster.
- Como tem passado, Sr.a Dempster? Fala Timot Cone.
- Sr. Timothy! - exclama ela, deliciada. - É tão bo ouvir de novo a sua voz!
- Telefonei só para saber como é que vai o rrv bonsai. A acácia vermelha japonesa que me ofereceu lembra-se?
- O Irving? Mas é claro que me lembro! O Irving é formidável, cresce que se farta. Acho que vamos ter o mudar de vaso.
- Será que posso passar por aí? Não demoro nada, gostava de o ver.
- Claro que pode - diz ela, sempre bem-disposta O Irving vai ficar todo contente por o ver.
- Então estou aí dentro de meia hora - diz ele.
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Pega no chapéu e sai do gabinete, dando de caras com Samantha Whatley a meio do corredor.
- Onde é que vais desta vez? - pergunta ela.
- Ao manicômio - responde Cone.
Teresa traz um avental azul sobre o fato de treino branco, mas nenhuma vestimenta conseguirá jamais disfarçar o seu ar excêntrico. Os grandes olhos azuis abrem-se
numa constante admiração, e o cabelo longo e sedoso cai-lhe pelas costas como uma capa. Teresa recebe-o à porta, e parece genuinamente deliciada por o ver.
- É a primeira visita que tenho hoje - diz-lhe quase sem fôlego, pegando-lhe na mão para o levar para dentro.
- É o dia de folga da Jeanette, por isso estou sozinha... à excepção dos meus amigos, claro.
- Claro - diz Cone, calculando que ela se esteja a referir às árvores e plantas. - Já não tem um polícia à porta?
- Já não. Nunca foi preciso. Meu Deus, quem é que me quererá fazer mal?
Cone não responde e segue-a escadas acima, atravessando o corredor até à estufa. Ela detém-se subitamente e vira-se para ele.
- Quer um iogurte de framboesa?-pergunta-lhe. - São deliciosos!
-Não, muito obrigado. Comi muito ao almoço.
- Calculo-diz ela.- Vocês, homens, passam a vida a comer rosbife e pudim de Yorkshire... não faz nada bem, sabia?
-Bem sei - diz Cone. - Procuro sempre evitar essas coisas.
- Bom, aqui está o Irving!-diz ela, apontando. - Não é uma beleza?
- Formidável - diz Cone, e está a ser sincero.- A senhora sabe mesmo como se tratam as plantas, Sra. Dempster.
- Oh! bem, vou tentando - responde ela, corando.- Também tive os meus falhanços, lá isso é verdade, mas nunca desisti. Veja-me este aqui, Sr. Cone: chegou há pouco tempo. É um ulmeiro chinês, e é mais velho do que o senhor e eu juntos. Não o acha magnífico?
- Impressionante. Já o baptizou?
Teresa fica a olhar para a arvorezinha, que é farfalhuda, minúscula e com um ar coriáceo.
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- Já - diz ela em voz baixa. - Chama-se John J. Demps ter. Era o nome do meu falecido marido, como sabe.
- Pois sei - diz Cone. - Espero que não se tenha sen tido muito sozinha desde que o seu marido morr... desde que o seu marido se passou.
- Sozinha? Oh! não. Há tanta gente maravilhosa que me telefona ou me vem visitar... Sou uma mulher muito feliz. Os meus filhos voltam daqui a um mês, sabia? Não
nem tempo tenho para ficar sozinha.
- Ainda bem - diz Cone. - O seu cunhado também deve visitar de vez em quando...
- De vez em quando? - espanta-se ela, soltando uma gargalhada aguda. - Esse vem cá praticamente todos os dias!
- Desde que perdeu o seu marido?
- Oh, muito antes disso! O David e eu somos grandes amigos. Meu Deus, ele praticamente vive aqui! O John andava quase sempre por fora - nos negócios dele, per cebe-
e o David levava-me a passear e a jantar fora... As vezes até íamos ao teatro.
- Portanto o David estava a par de todas as viagens, do seu marido?
- Claro que estava - assevera ela. - Eu dizia-lhe e eee planeava o que iríamos fazer durante o tempo em que o John estava fora. Ópera, ballet, passeios no Central
Park.. uma vez fomos ao Cloisters. O David é muito bom para mim, sabia? Especialmente desde que o John se foi. É difícil a uma mulher andar sozinha por aí, acompanhada
é muito melhor.
- Percebo muito bem - diz Cone em tom compreensivo aproximando-se dela com um sorriso viperino. - Será possível que o David tenha um fraquinho por si, Sra. Dempster
É um risco calculado. Cone sabe que a mulher não é completamente destravada, e se a pergunta a ofender e ela o puser na rua, não ficará nada surpreendido. Teresa
porém, aproxima-se ainda mais e diz-lhe numa voz mais baixa que a dele:
- É estranho que o senhor sugira isso... sabe que ideia já me ocorreu? Não, devo estar a imaginar coisas, isso acontece-me com certa frequência.
- É muito natural que ele se sinta atraído por si -diz Cone, recuperada a coragem. - A senhora é uma mulher fascinante.
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- Oh! - exclama ela. - Muito obrigado, caro senhor. Está-me a fazer um grande elogio!
- É a verdade - diz ele. - Bom, lamento mas tenho de me ir embora, Sra. Dempster. Espero que não passe todo o dia sozinha.
- Oh, não! Tenho imensas coisas para fazer, e logo à noite o David vem buscar-me para jantar e para irmos a um recital de Mozart no Lincoln Center. Gosta de Mozart, Sr. Cone?
- Muito - responde o detective. - Nunca me farto dele. Obrigado por me ter deixado ver o Irving, Sr.a Dempster.
- É seu, como sabe. Tem o direito de o visitar sempre que quiser.
Cone tem vontade de lhe beijar o rosto aveludado, mas resiste. Sai para a rua pouco satisfeito com o que acabou de fazer, tentando convencer-se de que era necessário.
Não consegue.
Mete-se no carro e volta para o sótão, pensando até que ponto a possível destruição de David Dempster poderá afectar aquela mulher doce e inocente. Um pensamento nada feliz, mas apesar de tudo ela impressiona-o por ser uma autêntica sobrevivente, uma mulher capaz de suportar a dor e a tragédia. Espera que o seu julgamento esteja correcto. Muito provavelmente, o feitio especial dela poderá ser a sua própria salvação; uma mulher mais racional era capaz de soçobrar perante as mesmas
circunstâncias.
Quando chega ao seu prédio, descobre que a fechadura da porta da frente foi arrombada - uma vez mais. Como ainda não são seis horas o elevador está a funcionar,
pelo que não tem de subir a pé os seis lanços de escada. Cleo recebe-o com as habituais esfregadelas nos tornozelos e um miar desesperado, sinal de que está quase
a morrer de fome.
Tira do frigorífico um pedaço de salame com alho - sobrou bastante desde a última refeição-, e atira uma fatia ao gato, que a leva para debaixo da banheira, satisfeito
com o festim. Cone abre uma cerveja gelada e, num tmpulso súbito, despeja-a num boião de compota vazio, para depois a polvilhar com sal.
Não se recorda dos porquês desta técnica usada nos Seus tempos do USMC ("). Dar-lhe-á melhor sabor? Para
(") USMC- United Statt Marine Corps - Corpo de Fuzileiros dos EUA. (N. do T.)
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espevitar a espuma? A verdade é que o gosto da cerveja salgada lhe trás antigas recordações, a maior parte das quais gostaria de esquecer para sempre.
Senta-se à secretária, botas em cima do tampo, completamente dominado pelos acontecimentos do dia. Tanta gente envolvida, tantos empurrões e cravanços para conseguir
o que quer... e por último aquela troca de palavras odiosas com uma mulher ingénua. Sente-se esgotado.
Sem dar por ela, começa a matutar sobre a vítima, John J. Demspter. Pelo que ouviu dizer àquela gente toda o tipo devia ser um garanhão - tanto na cama como na sala do Conselho de Administração. Dispondo de toda a energia deste mundo e do outro, desejoso de arriscar os tomates naquele coliseu que é o mundo das finanças. Na verdade saltava de risco em risco, pois é aí que está o prazer desta vida.
Cone conheceu uma data de garanhões, nas ruas, en combate, no mundo dos negócios. Admira-os a todos,
sejam honestos ou escroques, pela sua coragem e energia. Jogam
as suas cartadas o melhor que sabem, e nunca protestarm nem se queixam quando recebem uma mão menos boa.
De vez em quando - não muitas vezes-, Cone deseja poder ser como eles. A verdade é que não tem o temperamento adequado, como ele muito bem o sabe. Pelo con trário,
parece destinado a arrastar-se pela vida armadi com uma vassoura e uma pá, sempre a limpar a porcari deixada pelos garanhões.
Estas reflexões melancólicas são interrompidas por fo tes pancadas na porta do sótão, o que o leva a tirar Magnum do coldre de tornozelo. Colocando-se ao lado da
porta, grita lá para fora:
- Quem é?
- Polícia! - grita Neal Davenport. - Abra imediatamente! Tem algum gato nu aí dentro?
Cone guarda o revólver, tira a corrente, roda a chave na fechadura e abre a porta. O detective do NYPD ent acompanhado por um fulano pequenino e coxo vestido co umas
roupas tão decrépitas que as de Cone parecem ac badas de sair da loja.
Davenport aponta para o companheiro com um poleo esticado:
- Tim, apresento-te o agente Sam Shipkin.
- Conseguiste enganar-me - diz Cone, apertando a mão do homem.
238
O fulano tem uma barba negra que parece ter sido roída pelos ratos, e usa óculos escuros praticamente opacos. As calças de ganga não são daquelas pré-lavadas, devem
ter sido passadas entre as mós de um moinho, e as botas de motociclista foram por certo apanhadas no refugo do Exército de Salvação. A T-shirt, manchada de suor,
tem escrita a legenda "ALL THE NUDES FIT TO PRICK".
- O que é que me dizes deste monte de esterco? - pergunta Neal a Shipkin. - É tão mau como te tinha contado?
O polícia disfarçado olha à sua volta.
- Gosto - afirma, sincero. - É o luxo dos miseráveis.
- Bom, vamos lá a não perder tempo - diz o detective do NYPD. - Tenho de voltar para Staten Island... e não me perguntem porquê.
- Não queres beber nada? - pergunta Cone.
- Já agora... o que é que tens?
- Vodca, cerveja, vinho e um pouco de brande.
- Para mim uma cerveja. Sam?
- Um bocadinho de brande.
Sentam-se à mesa desconjuntada e o anfitrião serve-os.
- Mas que raio é aquilo? - grita Davenport, apontando com o dedo.
- Salame de alho. Queres uma fatia?
- Jesus, não! E tu, Sam?
- Passo - diz Shipkin. - Era capaz de rebentar a úlcera.
- O Sam vai até ao Paddy"s Pig - informa Neal. - A ver se consegue alguma coisa. Já lhe disse que o podes preparar.
- Claro - diz Cone, descrevendo a tasca ao chui disfarçado: a disposição física da casa, o género de frequentadores, aquilo que lá se bebe.
- Os duros sentam-se todos nos reservados à direita
- explica. - Nas mesas do meio ficam os bêbados e vagabundos. O dono, um tipo chamado Louie, é um monte de banhas cheio de tatuagens. Na noite em que lá estive usava um boné de marinheiro e vestia uma T-shirt.
- Sabe se negoceia em drogas?
- Negoceia com tudo, até me ofereceu Boom-boom. Mas que raio é isso?
- Droga - esclareceu Shipkin. - Da Florida. Material pesado.
- Que se lixem as drogas - interrompe Davenport. - O que nos interessa é a moto.
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- Eu disse ao Louie que tinha um amigo que andava à procura de uma moto, e ele respondeu que bastava dizer-lhe a marca e o modelo.
Shipkin acena com a cabeça e bebe o brande que Cone lhe serviu num boião de compota.
- Já estou a ver o panorama - diz ele, virando-se para o outro detective. - O que me diz a este cenário: se cou seguir uma pista sobre a Kawasaki, compro um bocado
de droga ao Louie e pago-lhe com notas marcadas. Assim podr mos apanhá-lo por tráfico de droga, para depois o apertar sobre a moto. Acha bem?
- A mim parece-me óptimo. O que é que acha. Sherlock?
- Faz sentido - diz Cone. - Não vamos chegar a lado nenhum a não ser que alguém dê com a língua nos dentes. Quanto mais forte jogarmos, melhor será para todos. Na minha
opinião, esse tal Louie é o elo de ligação entre David Dempster e os Westies. Trata dos negócios e pag ao bando depois de receber a sua percentagem. Assim que tivermos
o suficiente para lixar o Dempster, mesmo qu sob uma acusação de caca, aposto que os outros finório ficarão muito felizes se puderem cooperar e salvar a .pele
Davenport fita-o com curiosidade.
- Ainda me estás a esconder qualquer coisa, não estás? Okay, seja como queres. Neste momento a
única coisa que me interessa é aquela moto. Há mais alguma coisa que o Sam deva saber?
- Há - diz Cone, virando-se para Shipkin. - Se der com um tipo alto e magro, com um rabo de cavalo e a cai cheia de acne, tome cuidado com as costas. É fácil
detetá-lo:
alguém lhe cortou ambos os dedos mindinhos.
- Qual é o problema com ele? - pergunta Sam.
- É maluco - diz Cone. - Usa uma navalha de ponta de mola e julga-se um herói.
- Okay! - diz o agente disfarçado. - Vou tomar cuidad Obrigado pelo aviso - acaba o brande e levanta-se. Bom, é melhor meter mãos à obra. Quanto mais tempo passar
mais fácil será desenrascar-me.
- O barman chama-se Tommy - acrescenta Cone Tem um bigode farfalhudo. Achei que lhe daria jeito saber.
- Nunca se sabe - replica Shipkin, admirando o sótão de Cone. - Cada vez gosto mais deste sítio... se
alguma vez se decidir mudar, fale primeiro comigo.
- Estás a brincar? - exclama Davenport. - Este se
240
cone vai morrer aqui! Qualquer dia dão com ele debaixo da banheira, morto com uma indigestão de salame de alho.
- Há piores maneiras de se morrer - comenta Cone.
7
A manhã nasce tristonha; o céu estival está sombrio, e para os lados de New Jersey ouve-se o ressoar cavo da trovoada. O ar espesso cheira a turfa, e as coisas brilham
de uma maneira estranha.
Encolhido, Cone vai a pé até à John Street, convencido de que dia tão mal começado vai certamente terminar em desastre. Pára no café da esquina e compra um pão com
fiambre e café. Leva o pequeno-almoço para o escritório, trocando olhares assassinos com a recepcionista anquilosada. É esse o género de dia que tem pela frente.
Não dormiu bem, mas não atribui as culpas ao repasto apressado da noite anterior. Não foi a primeira vez que comeu salame, anchovas e pudim de chocolate, e a mistura
nunca o deixou assim tão deprimido. Nesta manhã, porém, sente-se com vontade de implicar com tudo e com todos, sente-se disposto a investir as poupanças num pedaço de terreno no cemitério.
Quando o telefone toca fica a olhar estupidamente para o aparelho, convencido de que o banco lhe vai comunicar a passagem de um cheque sem cobertura, ou então é
o IRS a dizer que descobriu mais um engano na sua declaração anual de impostos. Por fim decide-se a atender.
- Sim?
- Tim? Fala Jeremy Bigelow. Diz-me uma coisa: costumas acertar muito na lotaria?
- O que é que queres dizer com isso?
O investigador da SEC treme de excitação:
- É sobre aquelas dez companhias que me deste... a malta da Pesquisa dizem que oito delas estavam muito, muito altas em acções antecipadas nas datas que me indicaste. Temos cá um génio dos computadores que gosta de quebra-cabeças como este, e o tipo resolveu investigar vários dados já antigos. Segundo ele, no mês anterior a cada uma dessas datas, o total de acções vendidas por antecipação mais que triplicou em todas as oito companhias. Mas o que raio é que se estará a passar?
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Cone suspira de alívio; desta vez sabe que acertou mas não se sente especialmente satisfeito com o facto.
- É mais uma jogada - diz a Bigelow. - Uma jogada formidável que até ô capaz de ter a sua piada, mas no fundo houve gente que foi enganada, e isso não tem graça
nenhuma. Jerry, desta vez acho melhor participares o caso ao Procurador Federal.
- A SEC é capaz de tratar de tudo.
-Não, não é - diz Cone. - Não se trata só de um caso civil. Se resultar, somos capazes de levantar vários aspectos criminais. Tens algum enfia no gabinete do PF?
- Enfia?
- Um contacto, alguém com quem já tenhas trabalhado. De preferência alguém que esteja em dívida para contigo.
- Conheço um Procurador-Ad junto chamado Hamish McDonnelI, já trabalhámos juntos em vários casos.
- Hamish McDonnelI? É italiano, sem dúvida.
- Não - diz Bigelow em tom sério. - Acho que é escocês. É um tipo teimoso, mas consegue resolver as coisas. Achas que devo falar com ele?
- É o melhor que tens a fazer, assim estás sempre seguro. Conta-lhe o que eu te disse e mostra-lhe os resultados obtidos nos vossos computadores. Dá-lhe o meu número de telefone; se ele quiser mais dados, pode falar comigo directamente.
- Bom, está bem - acaba por dizer o homem da SEC, algo hesitante. - Vou fazer como dizes, Tim, mas por favor não me deixes ficar mal.
- Não te preocupes - responde Cone. - Aposto que o teu nome vai aparecer de novo nos jornais.
Desliga e fica à espera, acendendo novo cigarro, os pés em cima da secretária. Samantha Whatley, que passava no corredor, pára para espreitar para dentro do gabinete.
- A trabalhar? - pergunta ela.
- Estou a trabalhar, estou - responde ele, irritado.- Que raio é que achas que estou a fazer? A coçar o cu?
- Hoje estás mesmo bem-disposto - protesta ela. - Não é de admirar que o pessoal te chame o Sr. Simpatia...
- O pessoal pode ir dar uma curva - replica ele, já enfurecido. - Achas que eu...
Cala-se porque ela já lá não está, afastou-se deixando-o entregue aos seus pensamentos amargos. Ouve o resmungar da trovoada lá fora - "São os anjos a tossir", costumava dizer a mãe dele. Não deve faltar muito para que comece
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a chover. Não, o mais provável é a chuva esperar até que ele saia para almoçar. Era o cúmulo: quando o seu fato de veludo fica molhado, cheira como a cilha de um
Percherão.
O telefone toca, mas ele deixa-o tinir sete vezes antes de atender. Pura perversidade.
- Sim?
- Timothy Cone? - pergunta uma voz masculina, forte, olara, dominadora.
- O próprio.
- Fala Hamish McDonnell, Procurador-Adjunto, federal. O Jeremy Bigelow telefonou-me a dizer que você tinha qualquer coisa para me comunicar.
- E falou-lhe nas vendas antecipadas?
- Falou - atalha McDonnell-, mas tenho de saber mais sobre isso antes de pôr a máquina em movimento. Tenho o dia muito ocupado, mas se você conseguir estar no meu gabinete às três e meia, então concedo-lhe meia hora.
Era só o que faltava.
- Então esqueça - diz-lhe Cone.
- O quê?
- Esqueça-se de tudo. Se não quiser levantar esse seu cu daí e vir ao meu escritório dentro de uma hora, vou falar com o FBI. Tenho lá um amigo que adora títulos nos jornais.
- Oiça uma coisa, vamos lá a...
Cone desliga, concedendo ao outro três minutos para voltar a ligar. O telefone, porém, volta a tocar ainda não se passou um minuto.
- Sim?
- Sou eu, o Hamish McDonnell. Oiça, acho que começámos com o pé esquerdo.
- Eu não - diz Cone. -Já passei por isso: esquerdo, esquerdo, direito, esquerdo...
- Não estou a perceber.
- Não tem importância. Está interessado ou não?
- Acha mesmo que há qualquer coisa de grave no meio dessas vendas antecipadas?
- Claro que há! E olhe que cheira muito, muito mal.
- Muito bem - diz o Procurador-Adjunto. - Vou ver se arranjo alguém para ficar aqui no meu lugar, e daqui a uma hora estou aí no seu escritório. Já está mais satisfeito?
- Já estou a dar pulos de contente - replica Cone.
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Chega passada uma hora e picos, a gabardina de borracha a brilhar e o cabelo ruivo colado ao crânio.
- Molhou-se? - pergunta Cone.
McDonnell fica a olhar para ele.
- Você é mesmo um comediante, nào é?
É um tipo novo, alto e forte; poderia ter sido campeão de râguebi na universidade se não lhe tivesse faltado a velocidade ou a agilidade de um verdadeiro profissional.
Mesmo assim ainda se mantém em forma: barriga chata, ombros largos, queixai saliente e mãos do tamanho de pequenos presuntos.
- Onde é que posso pendurar a gabardina? - pergunta ele.
- Atire-a para o chão - diz Cone. - É o que eu faço.
O Procurador-Adjunto, porém, eenta-se com o impermeável vestido; saca de um lenço de mão muito branco e começa a secar o cabelo encharcado.
- Muito bem, vamos lá a pôr de lado as brincadeiras - diz por fim. - O que é que descobriu?
Cone explica-lhe a coisa toda: como é que a Haldering foi contratada para investigar as sabotagens nas instalações da Dempster-Torrey: como é que ele, Cone, decidiu que o motivo consistia em fazer baixar o preço das acções ao portador para que os compradores por antecipação pudessem lucrar; como é que às tantas passou a suspeitar de que David Dempster podia ser o cérebro por detrás de todas essas manipulações.
- David Dempster? - pergunta McDonnell na sua voz forte. - O irmão do tipo que foi liquidadto?
- Isso mesmo.
- E acha que ele tem alguma coisa a ver com a morte do John Dempster?
- Como raio é que quer que eu saiba? - atira-lhe Cone.
- Não passo de um reles detective privado a investigar vários casos de sabotagem industrial!
- Conseguiu saber alguma coisa sobre o David Dempster?
- Sei que tem uma pequena firma de Relações Públicas na Cedar Street, mas a sua fortuna pessoal ascende a quatro milhões. Ora isso já nos deve dizer qualquer coisa, não lhe parece?
- A não ser que os tenha herdado.
- Duvido, mas vocês podem verificar esse aspecto.
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McDonnelI fita-o durante longos momentos, os olhos iguais a dois carvões molhados.
- Cheira-me a esturro - acaba por dizer.
- É claro que cheira - concorda Cone. - Mais uma maneira de ganhar uns dólares sem grande esforço.
- Não é isso o que eu quero dizer-acrescenta o PA.
- Quem cheira a esturro é a sua história.
O detective da Wall Street aponta para a porta com o polegar.
- Nesse caso pode ir dar uma volta - diz ao outro.- Lamento ter-lhe feito perder o seu tempo.
- Caramba, você é um tipo cá com um feitio... já viu que não me podte censurar por duvidar de si? Que raio de informações é que afinal me deu? Uma data de números saídos do computador! As vendas por antecipação podem muito bem tratar-se de uma aposta bem sucedida, e você sabe-o muito bem. A única coisa que acabou por me dizer é que "suspeita" de uma manobra do David Dempster! Onde é que estão as provas?
Cone encolhe os ombros.
- Pense o que quiser, a decisão é sua.
McDonnelI inclina-se para diante e dá uma palmada tremenda no tampo da secretária.
- Maldição! - exclama. - Sei que me está a esconder qualquer coisa! Quer ser acusado de obstrução da justiça?
- Faça favor - diz Cone. - Dava-me imenso prazer vê-lo a fazer figura de parvo, se é que já não o é.
Fitam-se de olhos nos olhos, ambos furiosos. Hamish McDonnelI é o primeiro a pestanejar.
- Não tem nada que me permita começar? - pergunta, agastado. - Preciso de qualquer coisa que me convença de que você não está a construir castelos no ar!
- Sim, posso dar-lhe uma coisa - diz Cone. - Três nomes, dois tipos e uma companhia. São todos conselheiros financeiros, dos grandes, tratam quase só de fundos de pensões. São os canalhas que andam a financiar esta operação... pode ser que haja mais, mas estes três estão metidos até ao pescoço.
- Como é que sabe?
- Não sei. Quer os nomes ou não?
O PA geme de raiva.
- Dê-me lá esses malditos nomes!
A esferográfica de Cone acabou, e ainda por cima não consegue encontrar um bocado de papel em branco onde
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escrever. É assim que o seu triunfo resulta ligeiramente diminuído ao ter de pedir emprestadas a McDonnell a caneta e uma folha arrancada à agenda de bolso.
- Não há dúvida, você é um autêntico vencedor - comenta o PA. - Como é que faz para atravessar a rua? Pede ajuda a um escoteiro?
Cone escreve os três nomes que Davenport lhe conseguiu saber.
- Não deve ter problemas em arranjar as moradas - diz a McDonnell. - São operadores muito conhecidos em toda a Wall Street. Outra coisa, queria pedir-lhe um favor que também lhe diz respeito: ponha-me as coisas a andar bem depressa, os tipos estão a preparar novo golpe e Já não deve faltar muito para o concretizarem.
- Ai sim? E como é que também sabe isso?
- Terá de aceitar a minha palavra.
- Parece-me é que estou a aceitar a sua palavra a propósito de muita coisa...
- Mas afinal o que é que pretende? Um molhe de referências pessoais?
- Esta coisa vai dar-me muito trabalho, e se...
- Tretas! - interrompe-o Cone. - Basta-lhe deitar a luva a esses escroques, apertá-los um bocado e dizer-lhes tudo o que sabe a respeito dos arranjinhos deles com o David Dempster. Garanto-lhe que pelo menos um deles se vai abaixo. Será capaz de vomitar as tripas só para sofrer uma pena reduzida. Os vilões da Wall Street não são tipos corajosos, e você sabe-o tão bem como eu.
- Se você me está a levar com isto, Cone, pode ter a certeza de que volto cá para o desfazer pessoalmente, e pode crer que sou pessoa para o fazer.
- Talvez seja - responde Cone.
Hamish McDonnell levanta-se e aperta os botões do impermeável. Não estende a mão, e Cone paga-lhe na mesma moeda.
- Não me telefone - diz o PA em jeito de despedida.
- Eu ligo para si se e quando descobrir alguma coisa.
Cone recosta-se na cadeira e acende um cigarro. Segundo lhe pareceu, McDonnell é um duro que não tem medo de usar o peso do seu gabinete para conseguir levar a sua por diante. Ainda bem; os tipos do alfinete na gravata vão ver-se confrontados com um peso-pesado sem nenhuma da deferencia dos seus treinadores de golfe ou nutricionistas
privados.
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5
Pega no chapéu de couro e sal para a rua, descobrindo então que a chuva parou. O céu, porém, continua plúmbeo, a ameaçar nova carga d"água. Amaldiçoa a sua estupidez
por não ter vindo de carro para o trabalho; a esta hora é impossível descobrir um táxi vazio. Amaldiçoando a chuva, inicia a longa caminhada de regresso ao sótão, convencido de que por hoje já nada mais poderá fazer no escritório.
É verdade que ele consegue persuadir as outras pessoas a fazerem-lhe o trabalho. Neal Davenport, Jeremy Bigelow e agora Hamish McDonnelI... todos eles estão a colaborar, mas só o fazem por julgarem tirar daí dividendos. Toda a gente age de acordo com os respectivos interesses próprios... certo? O interesse próprio é a Primeira Lei da Natureza. Até um indivíduo que devote toda a sua vida a uma tarefa altruísta - como servir a sopa aos pobres ou converter os pagãos - estará a fazê-lo por causa da sensação de virtude que daí resulta.
No entanto, mesmo partindo do princípio de que ninguém age sem ter em conta o ego, Cone enfrenta um problema real ao distribuir estas tarefas de investigação. Deoois de pôr os amigos a trabalhar para si, a única coisa que lhe resta é ficar a retorcer os dedos - ou qualquer outra coisa ao alcance da mão. Não serve de nada pressionar os seus ajudantes; só os iria aborrecer ainda mais e provocar um aumento da estática. Vê-se assim obrigado a aguardar pacientemente - mais ou menos o mesmo que pedir a um canibal para se tornar vegetariano.
Estas divagações ocupam-lhe a mente durante o solitário regresso à sua caverna. Mal lá chega, descobre que
Cleo, aparentemente atascado em salame de alho, vomitou
por tudo quanto é linóleo.
Passa o resto do dia entretido com pequenas coisas do sótão, fumando demasiado e bebendo mais
vodca do que o habitual. Passa em revista o caso pelo menos uma dúzia
de vezes, à procura de pontos fracos na solução a que chegou. Não encontra nenhuns. Por fim considera a possibilidade de conseguir mais qualquer coisa falando novamente
com Dorothy Blenke ou Eve Bookerman, mas concluiu que não vale a pena.
À noite, prevenido pelo que aconteceu a Cleo, deita fora o salame e abre uma lata de carne de porco com feijão.
- Feijões, feijões, feijões artilheiros!-canta para o gato. - Quantos mais comes, mais te peidas...
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Acaba com a lata (come-a fria), mas deixa umas migalhas para o seu tareco castrado,
pensando que é melhor deixar o estômago da criatura descansar por uma noite. Por
fim embrenha-se na leitura dos jornais e revistas de finanças, devorando-as com a mesma avidez de um fanático do basebol a ler os resultados do último fim-de-semana.
A Wall Street é o meu mundo, e há muito que desistiu de analisar o seu relacionamento de amor-ódio com ele. Na quarta-feira de manhã resolve telefonar para o escritório; quando atendem pede para falar com Samantha Whatley.
- Não vou trabalhar nos próximos dias - informa.- Estou doente.
- Oh? - diz ela. - Não me digas que são as enxaquecas de novo. Já uma vez me vieste com essa...
- Não, desta vez acho que tenho coriza e psoríase - diz ele. - Além disso acho que devo estar com cálculos biliares.
- Eu sei muito bem o que é que tens, filho - diz Samantha. - Tens mais banha que um peru no Natal. O Hiram perguntou por ti, não te tem visto ultimamente e queria saber se ainda trabalhavas cá.
- Diz ao gordo que se vá lixar - responde Cone, aborrecido.- Estou a trabalhar no caso da Dempster-Torrey, e ele sabe-o muito bem.
- Já fizeste alguns progressos?
- Mais ou menos.
Ela deixa escapar um suspiro.
- Já devia saber que nem vale a pena perguntar... amanhã vens cá?
- Provavelmente não.
- E na sexta?
- Talvez.
- É dia de pagamento, como sabes.
- Bom, se eu não aparecer és capaz de ir levantar o meu cheque?
- Não - diz ela. - Se o quiseres, dá-nos a honra de passares por cá.
- Agora estás a portar-te como uma cabeça de merda...
- Cara de cu! - replica ela, desligando sem esperar pela resposta.
Desce à rua para comprar cigarros, contida areia para o gato e os jornais do dia, aproveitando para se reabastecer no capítulo dos líquidos. A zona de baixas pressões
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ainda voga sobre a cidade, e os habitantes começam a rosnar uns aos outros. Cone não se sente incomodado; pelo menos é melhor do que ter as pessoas à sua volta a
dizerem "bom dia" ou "boa tarde" por dá cá aquela palha.
Se não fosse o caso da Dempster-Torrey, aquele dia solitário passado no sótão ter-lhe-ia sabido muitíssimo bem. O telefone nunca toca -nem sequer uma chamada por
engano -, e Cleo passa o tempo todo na sorna debaixo da banheira. Cone raciona cuidadosamente as bebidas, mantendo-se num estado ligeiramente alegre enquanto lê
os jornais, sem deixar de passar pelas brasas uma vez ou outra. Por fim mete-se debaixo do chuveiro e cumpre o seu ritual de massagem com a escova de arame e a aplicação
de germe de trigo sobre a pele, não se esquecendo de mudar de meias e de roupa interior.
De quando em quando sente-se tentado a telefonar a Davenport ou a McDonnelI, mas lá consegue resistir. Oxalá estejam a fazer o que lhes compete; caso contrário, demorará semanas, talvez meses, a apanhar David Dempster e a meter os seus comparsas atrás das grades.
Ao serão, vestido unicamente com as cuecas, considera serem horas de ir para a cama. Ao lado do colchão há uma lâmpada mais forte que normalmente usa para as suas actividades horizontais; tem também um exemplar do Silas Marner, livro que anda a tentar ler nos últimos quatro anos. Já vai na página 23, e chegou à conclusão de que a obra é um soporífero mais eficiente do que qualquer das variedades de flurazepam compradas nas farmácias.
Ao fim de meia página, só lhe restam forças para pôr o livro de lado e apagar o candeeiro.
Quinta-feira começa no mesmo ritmo letárgico. Contudo, por volta do meio-dia, Neal Davenport telefona-lhe e as coisas começam a mexer.
- Olá, sherlock!-cumprimenta Neal, aparentemente bem-disposto. - Liguei para o teu escritório mas de lá disseram-me que estavas doente. Calculei logo que estavas a fingir, resolveste foi fazer um fim-de-semana alargado...
- És mais esperto do que eu pensava - responde Cone.
- Já há alguma coisa?
- Está tudo a correr sobre esferas. Hoje é o dia-D, e a hora-H é às três em ponto. Vamos fazer uma incursão
249
ao Paddys Pig. O Sam Shipkin fez um trabalho do caraças: descobriu a moto. Sabes onde é que a tinham guardada?
- Na casa de banho?
- Perto, perto. Por detrás da tasca há outro prédio, parecido com um grande armazém. O Sam diz que parece um hipermercado... tem de tudo, desde os preservativos às cassettes. Tudo material quente. A moto é da mesma marca, cor e modelo da utilizada na morte do Dempster.
- Mas ainda não sabes se é a mesma?
- Claro que não, só que para começar serve de prova acessória. Para cobrir o bolo, sabemos já que os donos da moto são os irmãos Ryan, um par de patifes que se iniciaram nesta vida ainda muito novos, como carteiristas e saca-bolsas. Já cumpriram penas por assalto à mão armada, e têm cadastros que nunca mais acabam. Além disso ajustam-se às descrições dos tipos da moto feitas pelas testemunhas presentes aquando da morte do Dempster. Para ajudar à coisa, o Shipkin diz que quando os conheceu, ambos usavam botas com protectores de aço. Então o que é que me dizes a isto?
- Parece-me perfeito - diz Cone, cauteloso. - Mas mesmo assim ainda não tens um caso à prova de baia Qualquer advogado de meia-tijela é capaz de os safar em dois
minutos se não conseguires arranjar nada melhor do que uma moto igual, descrições de testemunhas e botas cardadas... - E achas que eu não sei disso? - protesta Davenport indignado. - Conforme combinámos, o Shipkin comprou uma boa dose de droga ao Louie ainda não vai para uma hora
e pagou-lhe com notas marcadas. Apanhámo-lo com a boca na botija, de modo que o podemos apertar. Acho que o tipo não vai recusar um acordo. Seja como for, vamos
actuar à maneira antiga. Ouve, o assalto ao Paddys Pig va-ser aquilo a que se pode chamar um caso para telejornal Démos umas dicas aos jornais e às cadeias de TV,
de modo que aquilo se vai parecer com um circo. Calcule que poderias estar interessado em assistir...
- Sim, claro - diz Cone. - Ouve, Neal, um dos tipos que está dentro da coisa é um tal Hamish McDonnell, d( gabinete do Procurador Federal. Acho melhor convidá-lo
para assistir às prisões.
- Nem pensar! - respondeu o homem do NYPD
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Á festa é nossa, e portanto não vamos compartilhar as parangonas com os Feds nem com mais ninguém.
- Calma, Neal - aconselha Timothy. - Neste momento não tens nada na manga, e se esse Louie tiver medo dos Westies e decidir fechar a boca, então o que é que consegues? Os irmãos Ryan põe-se a milhas e vocês ficam com cara de parvos. É esse o género de parangonas que pretendes?
Silêncio.
- Sim, bem, não posso pôr essa hipótese de lado - diz por fim o polícia. - Mas afinal o que é que esse Hamish McDonnelI tem a ver com o preço do chá na China?
- Está a cercar o David Dempster de outro ângulo. O Dempster era o cérebro por detrás de todas as sabotagens industriais que me deram para investigar. Se o McDon-nell o apanhar por isso - e acho que já não falta muito-, então podes segurar-te no caso do Louie resolver man-ter-se calado. O David Dempster vai cair para um dos lados... ou para ambos ao mesmo tempo.
- Maldição!-grita Davenport. - Mas porque é que não me contaste isso tudo logo desde o princípio?
- Porque fica fora da tua jurisdição - explica Cone com toda a paciência. - Sei muito bem que a prisão dos três tipos da Wall Street é um assunto local, e o teu Departamento merece todo o crédito por ter decifrado o caso. Contudo, há muito mais do que esses homicídios; há fogo posto, sabotagem, suborno e talvez conspiração com a finalidade de cometer assassínio. Acho que o David Dempster está metido até ao pescoço nisso tudo, mas a verdade é que são crimes federais, Neal. É o mesmo que atravessar a fronteira do Estado para cometer um crime. Se queres a minha opinião, acho que devias convidar o Hamish McDonnelI para o assalto ao Paddys Pig. Fazes logo um amigo, o que só te pode vir a ser útil no futuro, e por outro lado tens onde te agarrar se não conseguires acusar os irmãos Ryan de homicídio premeditado.
- Bom... talvez - diz o detective, relutante. - Tenho de pedir autorização aos chefes. Que género de tipo é esse McDonnelI?
- Parece-me ser do género de ferver em pouca água - diz Cone. - Mas é de confiança. Olha, Neal, quando vocês tiverem o embrulho pronto, com fitinha e tudo, vai haver louvores que chegam para toda a gente. O Departamento fica com as suas parangonas e os Feds com as deles, e
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continuam amigos e felizes como dantes. Telefonas ao McDonnelI ou não?
- Não estou a gostar nada disso - insiste Davenport. casmurro como sempre. - A festa ó nossa, e não gosto que as Dessoas pensem que não somos capazes de limpar o lixo das nossas próprias ruas. Mas por outro lado é como dizes, talvez seja uma segurança para depois conseguirmos as condenações. Okay! Vou ver o que é que os chefões pensam sobre isso. Se concordarem podes crer que telefono aos Feds. Da próxima vez, por amor de Deus, vê lá se consegues ser mais aberto comigo, está bem?
- Fica descansado - tranquiliza-o Cone em tom caloroso.-Então até às três.
Davenport, porém, já tinha desligado. Cone pousa o telefone muito devagarinho no descanso de parede, e ainda lá tem a mão quando a campainha toca de novo. Atende sem hesitar, receoso de que o polícia tenha mudado de ideias.
- Sim?
- Tim? Fala Jeremy Bigelow. Estás mesmo doente?
- Ligeiramente indisposto. O que é que se passa?
- Tenho boas notícias. Fui falar com o meu chefe por causa das acções por antecipação, e ele conseguiu que a Comissão emitisse uma ordem de investigação formal. A partir daqui podemos mandar contrafés e interrogar os tipos que andaram a vender antecipadamente pela medida grossa antes daquelas datas que me deste.
Cone respira fundo.
- Jerry, mas porque é que fizeste uma coisa dessas? Julgava que tinhas entregue o assunto ao Procurador Federal! Foste tu que contactaste o Hamish McDonnelI, lembras-te?
- Bem... sim, fui eu - diz Bigelow. - Mas por que raio é que eles hão-de ficar com o crédito todo? Foi a SEC que descobriu o caso, não foi?
Cone prefere não comentar esta última tirada.
- Vocês vão receber a fatia que merecem - diz ao investigador, repetindo o que acabou de dizer a Neal Davenport:- Vai haver louvores para todos. Segue o meu con selho, Jerry, e telefona ao McDonnelI antes de começares a emitir contrafés. Se não o fizeres acabas por descobrir que há duas investigações idênticas em curso, com as pessoas a atrapalharem-se umas às outras. No fim só consegues é arranjar um sarilho dos diabos com os Feds.
- Achas que sim? - pergunta Bigelow, preocupado.
- Não acho, tenho a certeza. Pensa bem e actua com cuidado. Telefona ao McDonnell e diz-lhe que a SEC desencadeou uma investigação formal, com poderes para emitir contrafés, mas que não queres começar a actuar se isso for interferir com o que ele anda a fazer. Se fores simpático vais ver que ficas a ganhar. Entretanto, telefona aos teus repórteres favoritos e diz-lhes o suficiente para os deixar com água na boca. Podes dizer-lhes que vai ser o maior escândalo da Wall Street desde o caso Boesky, e vais ver como eles nunca mais te largam.
- Sim, acho que é boa ideia - concorda Bigelow, feliz da vida.
- Não te esqueças de soletrar bem o teu nome - aconselha Cone.
Desliga, sacudindo a cabeça de admiração. Nunca foi capaz de compreender esta malta faminta de títulos em caixa alta. Cone está-se nas tintas para os louvores pessoais e não liga pêva à reputação da Haldering & Co. Dali a cem anos, quem é que se lembrará daquela merda toda?
Entretanto vai-se divertindo como pode. Às três da tarde está na Rua Quarenta e Cinco, sentado ao volante do seu Ford Escort. Descobre um buraco para estacionar do outro lado do quarteirão, e volta a pé para se juntar à pequena multidão de mirones que apareceu vinda do nada e agora se apresta a observar o assalto da Polícia ao Paddy"s Pig.
Não há muito para ver, nenhuma excitação, nenhum tiroteio desenfreado. A tasca está bloqueada por uma muralha de carros-patrulhas e outros normais com a luz vermelha da Polícia no tejadilho. A um dos lados está um camião do NYPD, tendo ao pé uma carrinha da TV. Cone enfia-se no meio dos espectadores.
Os numerosos polícias que entram de mãos a abanar no Paddy"s Pig saem carregados com caixas, caixotes e embrulhos, a maior parte resguardando aparelhos de televisão e videogravadores. Por fim saem dois a empurrar uma moto preta, que é içada para dentro do camião.
Louie é trazido cá para fora, algemado e firmemente seguro por dois mastrodontes uniformizados; é atirado sem cerimónias para o banco traseiro de um carro-patrulha.
Um tipo mais novo, também algemado, recebe idêntico tratamento: sorri como um maníaco, o que leva Cone a supor tratar-se de um dos irmãos Ryan. Por fim, o
detective Neal.
253
Davenport sai do Paddy"s Pig acompanhado pelo PA Hamish McDonnell; param a meio do passeio e
trocam rápidas frases no meio de grandes e eloquentes gestos.
Os carros começam a arrancar e os mirones dispersam aos poucos. Cone começa a arrepender-se por ter ido ali. Está quase a virar costas quando McDonnell o detecta.
- Eh, Conel - grita o PA, fazendo-lhe sinal para se aproximar. Davenport brinda-o com um sorriso de poucos amigos e volta para dentro do bar.
- Seu filho da puta! - começa McDonnell, furioso.- Porque é que não me disse que o NYPD andava atrás do David Dempster por causa dos homicídios?
- Hem! - protesta Cone. - Não comece já a mandar vir. Em primeiro lugar você não tinha necessidade de saber, essas mortes são da competência do Departamento... certo?
Tanto trabalho consigo como trabalho com os locais; cada um tem direito à sua fatia do bolo.
McDonnell fita-o com dureza.
- Bom, tenho de admitir que você não me enganou, os nomes que me deu estão a resultar. Com um dos tipos, a única coisa que precisámos de fazer foi mencionar o nome
do David Dempster; o gajo desfez-se em merda e começou a cantar. Sabe o que é que o preocupa mais? Que lhe tirem o Daimler! Já viu coisa mais estapafúrdia?
- Formidável - diz Cone. - Já conseguiu o suficiente sobre as compras antecipadas e as sabotagens?
- Havemos de lá chegar - diz o PA. - Aquilo é gente para levar o seu tempo... talvez não muito, mas sempre será algum.
De repente, o Procurador-Adjunto transforma-se no Sr. Simpático:
- Oiça, Cone, peço-lhe desculpa se entrei a matar consigo. Por favor aceite as minhas mais sinceras desculpas.
- Não faz mal, teve todo o direito de fazer o que fez: não me conhecia de lado nenhum e provavelmente calculou que eu o estava a aldrabar.
- Sim, foi mais ou menos isso. Diga-me uma coisa, como é que conseguiu chegar ao David Dempster?
- Foi fácil - diz o detective da Wall Street. - Não tinha mais ninguém para quem me virar.
McDonnell solta uma gargalhada sonora.
- E o que é que vai ganhar com isso?
- Hei-de ser recompensado no céu.
- Ah! afinal você sempre é um perdedor...-comenta
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McDonnelI, brincalhão. - Oiça, estou-lhe a dever um favor, mas se quiser pago Já: amanhã à tarde, por volta das quatro, vamos prender o David Dempster no escritório dele. Quer assistir?
- Não tenho nada melhor para fazer-responde Cone.
Na sexta-feira à tarde, quando Cone lá chega, Neal Davenport está à espera no átrio gelado do edifício de aço e vidro de David Dempster. Não perdem tempo com cumprimentos.
- Como é que vais com o Louie? - quer saber Timothy.
- Ainda não estamos prontos para dançar o fandango
- responde o homem do NYPD. - O advogado dele, contudo, parece querer chegar a acordo. Acho que vamos conseguir apanhar os irmãos Ryan pelos homicídios.
- E quanto às sabotagens?
- Suponho que o David Dempster dirigia a operação, e pagava as despesas todas. Dava as ordens ao Louie e este punha os Westies a trabalhar. Uma tramóia bem montada; o Louie era o intermediário de Dempster, que nunca chegou a conhecer os ratos que lhe faziam o trabalho sujo. É por isso que eles não o podem acusar, nem sequer o conhecem.
- Sim, bem me parecia que a coisa gimbrava desse modo. Se o Louie não falar, achas que o Dempster se safa da acusação de homicídio?
- Talvez, mas o McDonnelI apanha-o por causa das sabotagens e por ter conspirado para fugir às acusações.
- Grande coisa - queixa-se Cone, aborrecido. - O tipo livra-se disso num abrir e fechar de olhos.
- Não te preocupes - aconselha Davenport. - O Louie vai vomitar tudinho, disso podes ter a certeza. Nunca cumpriu nenhuma pena, e nós temos estado a descrever-lhe as delícias de Attica... para começar ficou a saber quanto é que lá vale aquele cu gordo dele.
- Disseste-lhe isso em frente ao advogado?
- Claro que não. Acontece que o tipo está detido sem direito a caução, e neste momento o seu companheiro de cela está a fazer-nos um pequeno favor.
- Boa - diz Cone. - Deixa o bastardo suar um bocado.
Hamish McDonnelI entra no átrio no seu passo de marcha, trazendo na mão uma pasta algemada ao pulso. Ladeiam-no dois marshals federais tão avantajados como ele.
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- Vocês os três parecem uma meia tonelada de carne presa nos ganchos... - diz Davenport para o PA. - Conseguiu o mandato?
- Assinado e selado......responde McDonnell, batendo na
pasta. - Vamos lá, mostra-lho.
- Vão algemá-lo e tudo?
- Claro que vamos. Você é capaz de ficar surpreendido com o efeito psicológico das algemas nestes tipos da alta. Tira-lhes logo a goma dos colarinhos!-vira-se para
Cone.
- Já esteve no escritório dele?.
- Já. É pequeno, nem sei se lá cabaremos todos. Tem uma salinha de entrada onde trabalha a secretária, e por uma porta ao fundo entra-se no gabinete privado de
Dempster.
- Óptimo. Vamos a isto.
Metem-se no elevador de alta velocidade e saem no vigésimo sétimo andar, percorrendo o corredor em forma çáo cerrada até chegarem à porta do escritório de Dempster.
Quando entram, a secretária curvilínea levanta os olhos da revista que estava a ler, atónita com aquela invasão.
- Mas o que... - começa ela a dizer.
- Não é preciso anunciar-nos - diz-lhe McDonnell. Vamos fazer-lhe uma surpresa...
Dirige-se à porta interior e abre-a de rompante e cinco homens entram à carga. David Dempster, vestido con requinte, está sentado à secretária, a falar ao telefone
Desliga, levanta-se lentamente e fita os homens um a um. Um dos marshals coloca-se à sua esquerda e o outro
flanqueia-o pela direita, como se tivessem executado aquel;
manobra centenas de vezes.
- David Dempster? - pergunta McDonnell.
- Sou eu. E os senhores, quem são?
- Hamish McDonnell, Procurador Distrital Adjunto, Federal. - O PA mostra-lhe o crachá. - Suponho que já conheo o Sr. Cone. Este cavalheiro é o detective Neal K.
Daven port, do Departamento de Polícia de Nova Iorque, e os outros dois são marshals dos EUA. Tenho um mandado de captura passado em seu nome.
- Mandado? - exclama Dempster, a voz pomposa subi tamente seca e assustada. - Para me prender? Porquê?
- Sr. Dempster - diz McDonnell-, as acusações qu-impendem contra si davam para encher um saco. Quer
que lhe leiam os seus direitos?
- Espere aí um bocadinho...
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- Não, Sr. Dempster, quem vai esperar é o senhor, pode-nos fazer perder tempo ou pode facilitar-nos a vida e acompanhar-nos sem mais protestos. Quer cooperar ou
não?
David Dempster consegue compor um sorriso digno.
- Não se importam que primeiro encha o cachimbo, pois não? - pergunta, e, sem esperar pela resposta, estende a mão para abrir a gaveta lateral da secretária.
Surpreendentemente, Davenport é o primeiro a reagir. O detective move-se tão depressa que Cone nem é capaz de acreditar. Atira-se sobre a secretária e agarra o pulso
de Dempster com ambas as mãos, torcendo-o com força. Ouve-se um uivo de dor, e Neai acaba por tirar uma pistola cromada dos dedos insensibilizados de Dempster.
- Belo cachimbo - comenta o polícia, irónico. - Que marca é que o senhor fuma? Trinta e dois?
- Ponham-lhe as algemas - ordena McDonnell. Os marshals dobram os braços de Dempster atrás das costas, sem nenhuma gentileza, e prendem-lhe os pulsos com as algemas,
segurando-o cada um com uma manápula poderosa cerrada em volta do braço.
- Não foi muito esperto, Sr. Dampster - diz o PA.- O que é que pretendia fazer, abater-nos aos cinco? Ou ia apontar-nos o seu brinquedo para depois fugir? É muito
difícil apanhar um táxi nas tardes de sexta-feira, como deve saber...
- Quero falar com o meu advogado - replica Dempster em tom ríspido.
- Descanse que terá a oportunidade de o fazer - diz McDonnell. - Vamos embora.
Cone afasta-se para o lado a fim de deixar passar o grupo. David Dempster pára à sua frente, travando o impulso firme dos dois marshals. e fica a olhar para ele.
- Foi você? - pergunta. - Foi você quem me fez isto?
O detective da Wall Street confirma com um aceno de
cabeça.
Dempster mira com desdém o fato de veludo puído, a T-shirt desbotada e as botas de atanado.
- Mas você não passa de um maltrapilho! - exclama, ofendido e incrédulo.
- Eu sei - diz Cone.
Deixa-os seguir à sua frente e detém-se por momentos na salinha da recepção, onde a atónita secretária está a
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um canto, de costas encostadas è parede, o nó de um dedo enfiado entre os dentes.
- Acho que já pode fechar a tasca - diz-lhe ele em tom simpático.
- Ele já não volta? - pergunta ela.
- Parece-me bem que não.
- Merda!-exclama ela inesperadamente, - Foi o melhor emprego que tive na vida!
Quando Cone vai para a rua os outros já desapareceram. Olha para o relógio de parede .sobre a monumental porta da entrada e vê que, se se apressar, ainda pode chegar
Haldering & Co. a tempo de receber o cheque do ordenado. No entanto, andar a correr por ali com o calor que faz
não é ideia que o excite muito.
- Que se lixe!-diz em voz alta, fazendo com que o transeuntes mais próximos o fitem espantados e se
desviem dele.
Ao fim da tarde de sábado, estão os dois a preguiçar no sótão de Cone, vestidos unicamente com as cuecas. A janelas da rua estão abertas e a velha ventoinha eléctrica
zune a dar o seu melhor, mas mesmo assim faz um calor de rachar.
- Quando é que resolves abrir os cordões à bolsa compras um aparelho de ar condicionado? -
pergunta Samantha Whatley.
- Qualquer dia - responde Cone.
- Eu já te conheço - continua ela. - És tão sumítico que preferes sofrer com o calor.
É verdade, e ele sabe-o bem. A somitiquice é uma filosofia, talvez mesmo uma religião, e a simples ideia de la gar umas centenas de dólares por um aparelho de parede
é mais do que ele pode suportar.
- Não se está assim tão mal - diz ele, procurando defender-se. - Além disso a rádio diz que logo à noit vai arrefecer.
- Sim, deve baixar para os trinta - diz ela. - O que que há para o jantar?
- Não tenho nada... pensei em ir comprar qualquer coisa ao minimercado. O que é que te apetece?
- Qualquer coisa, desde que seja fria.
- E que tal fiambre, salada-russa, tomates e cerveja.
- Não é má ideia - concorda Sam. - Vê lá se ele têm Heavenly Hash.
- Que raio é isso?
- Sorvete, cara de cu. Afinal em que mundo é que vives?
Estão a beber chablis com muito gelo, e a lata de amendoins recobertos de mel já vai a meio. De vez em quando atiram um amendoim a Cleo, que em vez de o comer prefere
persegui-lo pela casa fora.
- Então, como é que vais com o caso da Dempster-Torrey? - quer saber Sam.
- Oh, isso... - responde ele, displicente. - Já acabou. Tudo esclarecido. Finish.
Os pés dela batem no chão com um ruído cavo; inclina-se sobre a mesa e fica a olhar para ele, espantada.
- Estás a gozar comigo?
Cone levanta a mão.
-Palavra de escuteiro! Entrego-te o relatório final na próxima semana.
- Ainda falta muito - protesta Sam, indignada. - Quero saber tudo imediatamente. Quem era o culpado? O mordomo?
- Nã - diz ele. - Era o David Dempster.
Samantha enche os pulmões de ar.
- David Dempster? O irmão?
Timothy confirma com um aceno de cabeça e serve mais
vinho.
- Ouve, sabes o que é que quer dizer vender por antecipação?
- Vagamente. Acho que quer dizer vender uma coisa que ainda não é nossa.
- É isso mesmo, miúda. Quando vendes acções por antecipação, ainda não as compraste. É um negócio perfeitamente legítimo.
- Mas como é que as podes vender se ainda não as tens? De resto, qual é o interesse disso?
- Supõe que as acções da Corporação XYZ se vendem a cem dólares cada uma. Não tens nenhumas acções dessa companhia, mas por qualquer razão pensas que elas vão baixar
na vertical. Como tal, pedes emprestadas cem acções da XYZ e vende-las. Recebes dez mil dólares... certo? Bom, não contando com a comissão do corretor. Percebeste
até aqui?
- Claro, mas a quem ó que vais pedir emprestadas as acções?
- A tua casa de corretagem... ou a alguém que esteja disposto a emprestá-las. Seja como for, supõe que as
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acções da XYZ baixam tal. como pensavas, passando a transaccionar-se por oitenta dólares cada. Nessa altura compras. As cem acçòes custam-te oito mil; devolves a;,
acções tomadas por empréstimo e ainda consegues ganhar dois mil.
- Formidável - diz Sam. - Há quanto tempo é que isso se pratica?
- Desde que a Eva emprestou a maçã ao Adão.
- Mas o que sucede se a cotação subir?
- Nesse caso o melhor é cortares os pulsos e atirares-te do terraço do teu prédio. Bom, estou a brincar. A compra de acções por antecipação não é mais arriscada do que compra das mesmas acções a contar com uma subida de cotação.
- E era isso o que o David Dempster andava a fazer? A vender por antecipação?
- Duvido - diz Cone. - Não o tenho na conta de un tipo que goste de arriscar. Isso, contudo, não o impedii de conceber um esquema muito prático de alimentar
os grandes vendedores por antecipação da Wall Street. Suponho que tudo começou aqui há três anos, mais coisa menot coisa. O Dempster sabia que a Street é um mundo emocional
e irracional, em que o boato mais estúpido ou a declaração mais impensada pode fazer subir ou descer
e Dow. Segundo calculo, o David Dempster montou urr
esquema para depreciar o preço de determinadas acções Talvez tenha começado por espalhar boatos... os contactos que tinha através das Relações Públicas não eram
de des prezar. Ou então foi buscar a ideia ao escândalo da Tyleno de Chicago. Deve ter calculado que conseguiria fazer baixai a cotação das acções de companhias
farmacêuticas ou ali mentares fazendo telefonemas anónimos para os jornais oi para a Polícia, pretendendo ter envenenado um dado pro duto. Como sabes há sempre enorme
publicidade em redor desses casos, os produtos desaparecem das
prateleiras (por uma questão de segurança) e as acções do fabricanti descem na vertical.
- Jesus! - exclama Samantha. - Só uma mente pervei tida é que é cauaz de conceber um esquema desses!
- Claro, mas resulta. O Dempster percebeu que lho bastava fazer baixar as cotações uns quantos pontos para poder ganhar balúrdios de dinheiro, desde que negociassse
na ordem dos milhares de acções. Um tipo que vende por antecipação aí umas dez mil acções da Corporação XYt
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receberá um milhão de dólares... correcto? Depois é só engendrar a falsificação do produto ou qualquer outro desastre na companhia, o que leva a cotaçao a baixar
para, digamos, noventa dólares. Compra então as suas dez mil acções a esse preço, e mete ao bolso a bonita maquia de cem mil das verdes. Que tal? Agora calcula quais
seriam os lucros se o negócio fosse da ordem de um meio milhão de acções!
- É revoltante - diz ela. - Estás a dizer que o David Dempster foi ao ponto de arranjar meios para forçar a descida dessas acções?
- É verdade. Depois dos telefonemas anónimos e da falsificação dos produtos, passou a organizar sabotagens muito mais sérias, como fogo posto e vandalismo... para
além da corrupção de pessoas-chaves nas empresas. Qualquer coisa que pudesse danificar a companhia, baixar as cotações e beneficiar os seus clientes para a venda
por antecipação. Era o Bela Lugosi da Wall Street.
- E essa gente pagava-lhe pelos serviços prestados, claro.
- Bruxa. Ou uma comissão ou uma percentagem dos lucros obtidos. Como é que julgas que ele conseguiu uma fortuna pessoal de quatro milhões de dólares? Devia operar com uma pequena lista de clientes demasiado gananciosos, a maior parte deles tipos que lidam com o DOP (Dinheiro de Outras Pessoas), ou por outra, com grandes fundos de pensões e carteiras de títulos. Reuniam-se na casa do Dempster, estudavam a próxima vitima e então o Dempster entrava em acção. Não era ele quem se encarregava do trabalho sujo, claro; para isso contratou um bando de patifes, os Westies.
- Meu Deus!-diz Sam. - O que as pessoas são capazes de fazer pelo dólar todo-poderoso. Achas que o David Dempster também planeou o assassínio do irmão?
- Claro que sim - diz Timothy. - Foi ao ponto de se servir da Teresa Dempster para saber as datas em que o marido saía em viagem, e por fim montou a emboscada na Wall Street. Tal como ele calculava, logo após a morte do irmão a cotação das acções da Dempster-Torrey caiu na vertical, e os seus clientes ganharam um balúrdio.
Ficam sentados em silêncio, a beberricar o vinho e a observar Cleo a perseguir um amendoim através do linóleo. A atmosfera é capaz de estar mesmo a arrefecer, mas
nenhum deles se sente com vontade para uma sessão aeróbica - pelo menos da variedade vertical.
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- Tim - diz Samantha em voz baixa -, ele mandou mesmo matar o irmão? O irmão, Tim?
- É tão certo como eu estar aqui.
- Mas porquê? Por causa do dinheiro?
- O dinheiro foi uma das razões, mas como já te disse ninguém actua por um único motivo. As pessoas não são assim tão simples, é verdade que o David Dempster matou
o irmão pelo dinheiro, mas também o fez porque o John lhe pôs os cornos ao se meter com a Dorothy, na
altura a mulher do David. Por outro lado, e para me servir
de uma expressão do Neal Davenport, havia uma enorme rivalidade, fraternal entre os dois. Lá porque dois tipos são
irmãos isso não quer dizer que sejam parecidos
ou tenham as mesmas personalidades ou temperamentos. Basta pergun tares aos criadores de cavalos, ou mesmo às pessoas que criam cães e gatos. Qualquer delas te dirá
que numa ninhada não há dois animais iguais, cada qual tem as suas próprias características e maneiras de ser. O John J Dempster pode ter jogado a doer tanto nos
negócios como na sua vida privada, mas era genuíno, enquanto que o David é um bastardo hipócrita, mau e mesquinho.
Sam levanta a mão num gesto de protesto.
- Já chega! - suplica ela. - Hei-de ler tudto no teu relatório, por agora não quero ouvir falar mais em fratrcídios e em ganância. É demasiado deprimente, prefiro
pensar em coisas mais alegres. Deita-me aqui mais um pinga de vinho, e não te esqueças do gelo.
O sótão está a mergulhar na escuridão, e pelas janela da frente entra agora uma brisa abençoada. Cone
desligou a ventoinha, o que parece refrescar ainda mais o ambientt.
O ruído do trânsito parece vir de muito longe, abafado monótono.
- Então e esses pensamentos agradáveis? - perguntou Cone.
- Já lá vamos - diz Samantha.
- Se fores boazinha para mim eu também sou bonzinh para ti.
- Foi a melhor proposta que me fizeram durante o dia todo. Mudaste os lençóis?
- Claro. É o último sábado do mês, não é?
- És o meu herói - diz ela, levantando-se para ir parar ao colchão. Despe o soutien e as cuecas e, sempre em
pé, um fantasma pálido no meio da escuridão, começa a
desprender os longos cabelos ruivos.
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- Se calhar é melhor eu ir comprar primeiro o fiambre- diz Timothy.
- QUe se lixe o fiambre! - exclama ela, imobílizando-se de braços levantados, as tranças meio desfeitas, fitando-o com um ar pensativo. - Sabes quem é que me faz
mais pena no meio de toda essa confusão dos Dempster?
- A Teresa. Pelo que me contaste deve ser uma mulher formidável, só teve foi o azar de se casar com um tubarão, por fim o marido é morto e descobre-se que o assassino
é o cunhado dela, um tipo simpatiquíssimo que sempre a ajudou imenso. Meu Deus, já viste bem o que aquela mulher teve de suportar?
-Sim, percebo, mas olha que ela está a aguentar-se bem. Fui vê-la hoje de manhã; está a pensar ir passar uns tempos ao Japão.
- Para quê?
- Para estudar o Zen. Disse-me que queria ficar mais perto do cosmos... seja lá o que isso quer dizer. Segundo ela pensa, tudo o que acontece é sempre pelo melhor.
Com o cabelo solto, Sam aproxima-se e fica em frente ctele. Timothy baixa a cabeça para a beijar no pescoço.
- Tu não és nada assim - diz ela, afagando-lhe o cabelo à escovinha. - Para ti tudo o que acontece é sempre pelo pior.
- Nem tudo-replica Cone.
LIVRO TERCEIRO
PANDA & BAMBU
1
Nunca ocorreu a Cone que Samantha Whatley não gosta de ser vista em público com ele porque o detective se veste como um refugiado da Baixa Slobóvia. Ela diz que
não está disposta a correr o risco de ser vista por um empregado da Haldering & Co., o que levaria o seu estupendo relacionamento a trivializar-se graças aos mexericos
do escritório.
Como tal, os seus encontros vêem-se limitados ao requintado apartamento dela em East Village ou ao decrépito sótão de Cone no topo de um edifício comercial de seis
andares ao fundo da Broadway. Timothy não se importa; é um heremita por natureza, e até gosta de jogar de acordo com as regras impostas por ela.
É assim que, num sábado à noite - 8 de Agosto-, estão os dois no andar dela a comer entrecosto grelhado e a conversar sobre isto e aquilo.
- Quando é que vais tirar as tuas duas semanas? - pergunta Sam.
-Quais duas semanas?
- As férias, cretino. Quando é que as queres gozar?
Timothy encolhe os ombros.
- Tanto me faz. Em qualquer altura.
- Bom, eu cá arranco na próxima sexta-feira. Vou a casa.
Ele pondera a situação por momentos, e por fim comenta:
- Vais voar numa sexta-feira treze?
- É a melhor altura, o avião vai praticamente vazio. E não te quero a vadiar enquanto eu estiver fora...
- Eu? Nunca.
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- Além disso vê lã se bebes menos.
- Sim, mãe. Quem é que vai ficar no teu lugar durante as férias?
- O Hiram em pessoa.
- Oh, Jesus!-exclama ele, deixando cair o osso que tem entre mãos. - Não me fales nessas coisas enquanto estou a comer!
Na segunda-feira seguinte à partida de Sam, Cone chega ao trabalho com uma hora de atraso, para não fugir à regra. Descobre dois processos em cima da secretária:
novas investigações. Folheia-as displicentemente; parecem-lhe mais aborrecidas do que o normal. Uma diz respeito a um cliente que investiu considerável maquia num esquema destinado ô criação de cavalos miniaturas; agora, com o dinheiro gasto e os telefones da firma desligados, o homem pretende que a Haldering & Co. descubra os sócios desonestos, para ver se consegue reaver o investimento. Boa sorte, Charlie...
O segundo caso refere-se a uma possível fusão entre duas companhias que manufacturam embalagens plásticas para montes de produtos - aquele género de embalagens que nos parte as unhas e nos obriga a usar uma faca de mato para abrir a maldita coisa. Um dos sócios principais pretende a verificação exaustiva dos créditos da outra firma. Aborrecimento empacotado e instantâneo.
Cone põe os processos de lado e acaba o pequeno-almoço: café forte e pão de leite com manteiga. Está a acender o seu segundo cigarro do dia quando o telefone toca. Atende-o já a contar com uma calamidade; pensa sempre, assim, pois um contratempo menor surgir-lhe-á então como se fossem boas notícias.
- Sim?
- Cone? Hiram Haldering. Venha imediatamente ao meu gabinete, se faz favor.
Afinal tinha razão. Quando o H.H. diz "por favor", então é porque se trata de uma calamidade.
Enfia pelo corredor até ao gabinete do patrão, o único da firma com duas janelas. A luz radiosa do sol estival faz brilhar a careca luzidia do gordo, que se balança
na cadeira como uma dessas bonecas estúpidas usadas junto ao vidro traseiro dos carros conduzidos por atrasados mentais. No entanto, os dois aparelhos de ar condicionada zunem a toda a força, e o gabinete está deliciosamente fresco.
Este facto é providencial, pois o visitante - que se
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levanta quando Cone entra - usa um fato completo escuro que parece suficientemente espesso para ter sido tecido com lã iaque. É um fulano alto e cadavérico com um sorriso mais que desmaiado; a mão que estende a Cone é como um cacho de bananas retorcidas e a cair de maduras.
- Este é que é o Timothy Cone - apresenta-o Hiram Haldering.- É um (repito, um) dos nossos qualificados investigadores. Cone, este cavalheiro é o Sr. Omar Jeffreys.
- Da Blains, Kibes & Thrush - acrescenta Jeffreys.- Advogados.
Sentam-se todos, e H. H. vira-se para o advogado.
- Sr. Jeffreys, importa-se de explicar ao Cone o que é que pretende?
- Não se trata daquilo que nós pretendemos - começa o outro. - Nada que se pareça, os nossos desejos não têm a mínima importância. Limitamo-nos a apresentar, da melhor forma possível, os desejos do nosso cliente.
- Pois sim - diz Cone. - E quem é esse cliente?
- Nos últimos anos, a Blains, Kibes & Thrush, Advogados, tem prestado serviços de consultoria legal a um cavalheiro oriental, o Sr. Chin Tung Lee. É presidente e
director-geral de uma corporação que processa e comercializa uma série de comidas chinesas com o rótulo White Lotus. Talvez o senhor esteja familiarizado com esses
produtos?
- Oh, não tenha dúvida - diz Cone. - Uma boa porcaria.
- Cone!-grita Haldering, indignado.
- Mas são mesmo - insiste ele. - Veja o chow mein de galinha, por exemplo. Meu Deus, quase não se encontra a carne no meio daquela mistela... os tipos devem estar
a usar a mesma galinha há anos! O que eu normalmente faço é comprar uma lata pequena de galinha desossada para juntar ao chow mein. Até nem fica mau... é um dos
pratos favoritos do meu gato.
Termina a dissertação em tom triunfante, enquanto os outros dois homens o fitam com olhos gelados.
- Muito interessante, não duvido - diz por fim o advogado.- Mas não me parece que os ingredientes do
chow mein de galinha da White Lotus sejam relevantes para esta
nossa conversa. O Sr. Chin Tung Lee está de momento a enfrentar um problema financeiro que transcende as capacidades de Blains, Kibes & Thrush, e como tal deseja
contratar os serviços da Haldering & Companhia. Estou autorizado
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a concluir um acordo verbal que, claro está, será seguido por um contrato escrito a determinar os termos concretos da contratação acima mencionada.
- Porque é que ele não nos telefonou? - quer saber Cone. - Ou melhor, porque é que esse senhor não veio cá pessoalmente?
- O Sr. Lee é um cavalheiro de idade avançada que, infelizmente, se viu confinado a uma cadeira de rodas nos últimos anos, e portanto não é tão fisicamente activo como porventura gostaria de ser. Além disso requereu especificamente os seus serviços, Sr. Cone.
- Os meus? Mas como? Nunca o conheci...
- O nosso cliente é um grande amigo do Sr. Simon Trale, da Dempster-Torrey, e suponho que foi a conselho do Sr. Trale que o Sr. Lee decidiu recorrer aos serviços da Haldering & Companhia, e ao senhor em particular.
- Tenho a certeza de que ele ficará satisfeito com os nossos serviços - gaba-se Haldering. - Nós garantimos sempre os resultados, não é assim, Cone?
- Nã - replica o detective da Wall Street. - Não conheço ninguém capaz de fazer uma coisa dessas. Sr. Jeffreys, acabou de me dizer que o Sr. Lee está com um problema financeiro. Pode concretizar melhor?
- Receio não estar autorizado a revelar os pormenores nesta altura. O nosso cliente pretende discutir o assunto consigo pessoalmente.
- Tudo bem - diz Cone, simpático. - Se ele quer jogar assim, não ponho quaisquer objecções. Como é que posso entrar em contacto com ele?
O advogado estende-lhe um cartão-de-visita.
- Tem aqui a morada da Exchange Place, onde fica a sede da White Lotus. Na parte de trás do cartão tem um número de telefone escrito à mão: é a linha privada do
Sr. Chin Tung Lee. As chamadas para esse número não passam através do PBX da companhia.
Cone pega no cartão e levanta-se.
- Muito bem, vou telefonar-lhe para ver qual é o pro blema, e já agora aproveito para lhe dizer para pôr
mais galinha no chow mein.
Volta para o gabinete, esgravata na confusão de papéis que recamam o tampo da secretária (que raio fará ali un pacote vazio de Twinkies?), e por fim consegue desenraizar
um velho exemplar do Guia da Bolsa da Standard & Poor's. Folheia-o até encontrar a White Lotus.
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A companhia, listada na bolsa de valores OTC, vende comida chinesa empacotada a consumidores, restaurantes e instituições. O capital é composto por pouco mais de
dois milhões de acções ao portador - não há nenhumas nominais. Não tem dívidas a longo prazo, e desde 1949 que vem pagando dividendos em dinheiro. Aquilo que mais
interessa a Cone é a variação das cotações ao longo dos últimos quinze anos: fica a saber que nunca subiu ou desceu de uma zona situada entre os 31 e os 34 dólares
por acção.
Da mesma forma, os dividendos anuais pouco variaram. A carteira da White Lotus rende actualmente um pouco mais de 5 por cento. A situação financeira parece exemplar:
activo sólido, passivo baixo e um confortável excedente em caixa e em valores equivalentes.
Numa primeira análise, parece tratar-se de uma organização robusta mas conservadora, talvez um pouco estagnada. Tem ar de proporcionar o tipo de investimento preferido
das viúvas e órfãos chineses: um óptimo rendimento de
5 por cento que se revela indiferente a guerras, à inflação e aos espasmos financeiros. Ninguém será capaz de enriquecer por apostar na White Lotus, mas também ninguém
verá o seu capital ir por água abaixo. Sendo assim, qual poderá ser o problema financeiro da companhia?
- Ah so! - diz Cone em voz alta, imitando horrorosamente o inglês cantarolado dos chineses. - Está escrito que quando aparecem pingentes de gelo nas folhas, o homem
precavido esconde a sua manteiga de amendoim...
Marca então o número da linha directa do presidente e director-geral da White Lotus. No entanto, quando o Sr. Chin atende, a sua voz não se parece nada com a do
Charlie Chan, e muito menos com a de um inválido amarrado a uma cadeira de rodas. Pelo contrário, é forte, clara e ressonante.
O cavalheiro, extremamente bem educado, diz-lhe que terá muito prazer em receber o Sr. Timothy Cone dentro de uma hora, agradecendo-lhe desde já a cortesia.
Cone desce a Broadway até chegar à Exchange Place. O dia está límpido e soalheiro, e o céu parece ter sido acabado de lavar pela brisa refrescante. As ruas do bairro financeiro estão apinhadas; todos se apressam, a perseguição à fortuna continua com o mesmo vigor e determinação de sempre.
Porém, e como ele muito bem o sabe, a Wall Street é
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quase sempre um jogo que acaba empatado: se alguém ganha, há sempre os que perdem. Não que isso tenha algum mal; quem não estiver bem pode mudar-se em qualquer altura. Este pensamento fá-lo sorrir, pois há bem a pouco tempo Samantha protestava contra as dificuldades encontradas pelas mulheres quanto à ascensão a lugares importantes
na Street. Cone replicara-lhe: "Se te sentes mal, então muda-te." Como resposta levou com um murro no queixo.
A sede da White Lotus fica num edifício antiquado a necessitar desesperadamente de uma limpeza a seco. O átrio de entrada tenta imitar o estilo Art Deco, mas os
elevadores de museu ainda funcionam com ascensoristas - que hoje em dia são tão raros como os ardinas ou engra-xadores antes encontrados em todas as ruas de Manhattan.
Timothy, homem muito dado aos estereótipos, calcula que os escritórios de uma firma que vende chop suey enlatado devem parecer-se com uma casa de especiarias: mobiliário em teca trabalhada, estatuetas de bronze e painéis de seda pintada. Para seu grande espanto, as instalações da White Lotus têm mobiliário sueco e grandes gráficos nas paredes, com uma alcatifa axadrezada que só deve servir para confundir a vista.
A recepcionista - caucasóide e muito jovem - fala para o intercomunicador e informa-o de que o Sr. Chin receberá o Sr. Cone dentro de poucos minutos. O detective da Wall Street gasta-os a inspeccionar um móvel-mostruário iluminado a meio da sala da recepção, o qual contém um exemplar de todos os produtos da White Lotus: massa chinesa, arroz frito, chop suey, chow mein, rebentos de bambu, lichis, molho de soja, bolinhos da sorte, ervilhas miniatura e molho de ostra. O Cleo deveria adorar ver aquela montra.
Dois minutos depois é introduzido no sanctum. O gabinete privado de Lee é extremamente moderno, sem o mínimo resquício de influência oriental nem o habitual odor a incenso. É tudo material da última moda, com manchas de arte abstracta nas paredes e estatuetas de bronze de formas indescritíveis, algo parecidas com o hipopótamo do-do. Do tecto alto pende um mobile com inúmeros gansos grávidos em voo.
- Gosta do meu gabinete, Sr. Cone? - pergunta-lhe Chin Tung Lee na sua voz portentosa.
- É diferente.
Lee solta uma gargalhada.
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- Foi decorado pela minha mulher - explica. - Admito que levei certo tempo a habituar-me, mas agora gosto dele. O meu filho diz que parece uma venda de caridade.
Carrega nos botões encastrados no braço da sua cadeira dte rodas eléctrica e sai a zunir de detrás da secretária enorme para estender a Cone uma mão pequenina.
- Tenho muita honra em conhecê-lo, senhor - diz ele.
- O Sr. Trale falou-me muito bem de si e do magnífico trabalho que fez para a Dempster-Torrey.
- Foi simpático da parte dele - responde Cone, apertando com todo o cuidado aquela mão frágil. - O senhor e Trale são velhos amigos? - Sente-se aqui, por favor. Uma das poucas coisas em que insisti foi numa cadeira confortável para as visitas. Como pode ver a minha cadeira é móvel, mas mesmo assim tenho de me sentar em cima de uma lista telefónica de Manhattan para poder chegar à secretária.
Ri-se de novo, e Cone pensa que o homem é o oriental mais aberto que jamais encontrou. Timothy senta-se no sofá de couro e Lee volta a acelerar a cadeira para se pôr de novo atrás da secretária.
- Oh. sim!-continua o velho. - Eu e o Simon somos amigos há muitos, muitos anos. Jogamos xadrez todas as sextas-feiras à noite.
- E quem é que ganha?
- Sou eu - diz o ancião, sorridente. - Sempre. Mas o Simon não desiste. É por isso que o admiro imenso. Sr. Cone, recebi um telefonema do Sr. Jeffreys, da Blains, Kibes e Thrush, a informar-me que chegara a acordo com a Haldering & Companhia sobre a contratação dos vossos serviços, confirmando ainda que o senhor seria encarregado do meu caso. Fiquei muito satisfeito, como deve calcular.
- Obrigado - diz Cone. - Qual é o seu problema?
- Antes de lá chegarmos, gostaria de o pôr a par da história da nossa companhia.
- Não tenho pressa nenhuma, e além disso quem está a pagar é o senhor - responde Cone.
- Pois estou. Bom, vou tentar ser o mais breve possível. Emigrei de Taiwan - naqueles dias chamava-se Formosa- em 1938, pouco antes do início da guerra. Estive vários anos à espera de me chegar a vez, nessa altura os asiáticos enfrentavam grandes dificuldades para entrarem legalmente nos Estados Unidos.
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- Imagino.
- No entanto consegui chegar cá. Vim para Nova Iorque e, graças à ajuda de parentes que já cá viviam, iniciei um pequeno negócio na Mott Street. Na verdade tratava-se
de uma venda ambulante; não tinha posses para comprar uma loja. Vendia frutas e legumes chineses. Bom, uma coisa leva à outra, e neste momento sou dono da White
Lotus. Não estarei a exagerar se disser que se trata de uma típica história de sucesso americano.
- Quem o oiça falar julga que foi tudo fácil, mas aposto que o senhor trabalhou até rebentar - comenta Cone.
- Dezoito horas por dia - diz Lee, acenando com a cabeça. - Quer chovesse quer fizesse sol. Foi talvez por isso que hoje vivo nesta geringonça eléctrica. Contudo, os familiares que fui empregando trabalharam tanto como eu. A venda ambulante transformou-se numa loja, onde para além dos legumes já vendia aves e carnes. A loja dividiu-se em quatro, e nessa altura começámos a oferecer comidas já feitas, não só aos residentes da zona como aos turistas que visitavam Chinatown. Os pratos mais procurados eram o chop suei e o chow mein em embalagens de cartão, por isso dedicámo nos quase exclusivamente a eles. Daí até à enlatagem foi um passo. Passámos a sociedade por acções em 1948.
- E o resto é história.
Chin Tung Lee sorri com ar sonhador, lembrando se dos velhos tempos.
- Sabe uma coisa, Sr. Cone? - diz o velho. - Tenho saudades desses dias. Trabalhávamos muito, mas todos éramos novos, fortes e determinados. Por outro lado acho que nenhum de nós duvidava de que conseguiríamos obter sucesso, este país oferecia-nos todas as oportunidades possíveis e imagináveis. Se o senhor devotar a sua vida a um empreendimento, pode ter a certeza de que é bem sucedido. É tão simples como isso.
- As coisas mudaram - contrapõe Cone.
- É verdade - concorda Lee, contemplando as manchas das costas das mãos. - Tento não me parecer com um velho aborrecido que passa a vida a falar nos "bons velhos tempos", mas tenho de admitir que as coisas mudaram... e nem sempre para melhor.
Detém-se, e Cone aproveita para o estudar mais demoradamente. O homem deve ser da mesma idade de Simon
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Trale ou ainda mais velho - de certeza que já vai nos setenta e muitos. Consegue ser mais pequenino que Trale, apesar de ser difícil ver até que ponto por estar
sentado na cadeira de rodas, em cima de uma lista telefónica e com as pernas penduradas.
A pele faz lembrar marfim polido, e o bigode e mosca à Vandyke dão-lhe ao rosto um aspecto truncado e incompleto. Os olhos são escuros e faiscantes - não têm nada de senil-, mas nota-se perfeitamente que o velho usa capachinho, aliás um de cores espantosas: é uma mistura desconexa de cabelos brancos, pretos, grisalhos e ruivos. O tipo que o fez, pensa Cone, devia ser abatido por indecência.
- Receio ter sobrevivido a todos os parentes que tanto trabalharam para me ajudar - irmãos, irmãs, tios, tias, primos... já se foram todos. As suas quotas no negócio passaram para a segunda geração e, nalguns casos, já vão na terceira. Apesar disso, Sr. Cone, ainda considero a White Lotus como um negócio de família. É certo que não é tão grande como a La Choy, mas possui uma personalidade e uma originalidade muito suas. Peço-lhe desculpa por o estar a aborrecer com isto tudo; espero que compreenda as divagações de um pobre velho.
- Não, não - diz Cone. - Estou a aperceber-me da situação. Porque é que não se reformou?
- Para quê? - responde Lee, enérgico. - Para jogar xadrez às sextas-feiras com o Simon Trale? Não, muito obrigado. A White Lotus tem sido toda a minha vida e assim vai continuar a ser até ao fim.
- O senhor mencionou a segunda e terceira gerações... também as foi incluindo no negócio?
- Só o meu filho, Edward Tung Lee. É filho da minha primeira mulher, que morreu já lá vão uns anos. Os outros
- sobrinhos, sobrinhas - nunca mostraram nenhum interesse pela White Lotus, para além de reclamarem pontualmente os seus dividendos. Talvez pensassem que a devoção de uma vida inteira à produção de chop suey enlatado estava além das suas possibilidades. Tenho de admitir, contudo, que a maior parte deles se saiu muito bem... hoje são médicos, advogados e músicos. Um dos meus sobrinhos está a efectuar pesquisas na área dos computadores, no MIT
(1), e estou muito orgulhoso dele.
(1) MIT - Masaachusetts Institute of Technology. (N. do T,)
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- E o filho que trabalha para a companhia? Quais são as suas funções?
- O Edward? Suponho que lhe pode chamar o nosso Director-Geral. Toma conta da produção, relações laborais, marketing, planeamento financeiro, publicidade e coisas no género. Quero que adquira experiência em todos os departamentos.
- Isso significa que está a contar com ele para lhe suceder um destes dias.
- Talvez - diz Chin Tung Lee, fitando Cone com um olhar misterioso. - Ou talvez não. Mas já chega de detalhes pessoais, na verdade pouco têm a ver com o motivo por que o senhor está aqui.
- Com o seu problema financeiro?
- É mais um quebra-cabeças do que um problema, Sr. Cone, faz alguma ideia da cotação das acções ao portador da White Lotus referida ao fecho da última sexta-feira?
O detective da Wall Street encolhe os ombros.
- Não sei exactamente, mas calculo que se situa algures entre os trinta e um e os trinta e quatro dólares.
Lee fita-o intensamente durante segundos, para por fim se rir jovialmente, cofiando o bigode sedoso.
- Ah! vejo que já fez os trabalhos de casa. Gosto disso. Bom, se me tivesse dado essa resposta há seis meses atrás, teria acertado em cheio. A verdade, porém, é que na última sexta-feira as acções da White Lotus cotaram-se a quarenta e dois e meio.
- Oh! oh! - exclama Cone. - Então é isso. Há quanto tempo é que dura a situação? Há seis meses?
- Aproximadamente.
- O volume de transacções aumentou?
- De forma apreciável. E o preço das acções não pára de subir.
-Está a planear alguma coisa? Uma aquisição de outra firma? Uma fusão? Uma grande expansão? Novos produtos?
- A resposta é não para todas as suas perguntas. Somos uma corporação muito bem estruturada, Sr. Cone. Rentável, mas nada de exagerado; preferimos manter-nos quase no anonimato, não nos abalançamos a nada para o qual não estejamos preparados. No que me diz respeito, a nossa linha de produtos está completa; nunca declarámos nem sequer discutimos o mínimo aumento dos dividendos. O senhor é capaz de pensar que somos ultraconservadores,
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apáticos mesmo, mas essa tem sido a minha filosofia durante toda a vida: aprender o mais que posso, fazer o melhor que sei e não arriscar nada na conquista de novos mundos. Como tal, não sei explicar esta corrida às nossas acções. Como lhe disse, é uma situação que me confunde... e que me perturba. Na minha idade as pessoas não gostam de surpresas... especialmente quando se trata de surpresas desagradáveis. Pretendo saber o que se está a passar.
- Sim, não o posso censurar por isso - diz Cone.- Okay, vou ver se consigo descobrir alguma coisa. Se não se importa, gostava de falar com o seu filho.
- Mas claro. Hoje está na nossa fábrica em Metuchen, Nova Jérsia, mas deve regressar ao fim da tarde. Vou preveni-lo de que o senhor lhe vai telefonar, e pode desde já contar com a máxima cooperação da parte dele.
- Obrigado, já é uma grande ajuda. Os seus produtos são todos fabricados em Nova Jérsia?
- Só a gama destinada ao público, as embalagens maiores, para restaurantes e instituições, são produzidas no parque industrial existente nos antigos estaleiros navais de Brooklyn. Também temos várias dependências espalhadas pelo país, destinadas a adquirirem os produtos, de forma a dispormos de uma fonte regular e de confiança no que se refere à frescura dos ingredientes.
- Há uma coisa que lhe queria perguntar - diz Cone.- Porque é que não põe mais galinha no seu chow mein de galinha? As latas quase não têm carne...
Chin Tung Lee fita-o com um sorriso irónico.
- Coma mais massas, Sr. Cone - aconselha o ancião.
- Pois, acho que essa é uma das soluções - diz Cone.
- De qualquer maneira, obrigado pela informação. Vou andar por aí a fazer umas perguntas, pode ser que se lhe depare qualquer coisa. Se precisar de mais alguma coisa volto a entrar em contacto consigo.
- Sempre que quiser; estou à sua inteira disposição. Pode-lhe parecer estranho o facto de eu me preocupar com este súbito e inexplicável aumento da cotação das nossas acções e do respectivo volume de transacções... muitas companhias encarariam o sucedido com bons olhos, sei-o perfeitamente. Contudo, no caso da White Lotus é um acontecimento tão fora do vulgar que não faço a mínima ideia do que se estará a passar. Por outro lado, receio que aquilo que o senhor descobrir, se é que vai descobrir
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alguma coisa, não deve ser nada de agradável. Espero que apresse as suas investigações, Sr. Cone.
- Vou ver o que posso fazer-diz Cone. - Se descobrir alguma coisa, o senhor será o primeiro a saber.
Levanta-se e estende o braço sobre a secretária para apertar de novo a mão pequenina. Ainda está nessa posição quando a porta do gabinete se abre de rompante nas suas costas. Endireita-se e vira-se lentamente.
Uma mulher entrou esbaforida. É nova (cerca de vinte e cinco), alta (perto de um metro e oitenta), loira (muito), com uma pele aveludada (morena) e olhos azuis-claros. Veste um cheongsam de seda fina cor de pistachio.
Aqueles melões têm de ser de silicone, pensa Cone. Se fossem feitos por Deus teriam de estar mais descaídos, para que Ele pudesse recordar às pessoas a realidade da imperfeição humana.
- Oh, querido, desculpa-me! - arrulha ela. - Não sabia que tinhas visitas. Não queria interromper...
- Entra, Claire - diz Chin Tung Lee numa voz suave.- Não estás a interromper. Sr. Cone, apresento-lhe a minha mulher.
Cone sauda-a com um abaixar de cabeça, deixando-se ficar no sítio onde está. Ainda bem, porque se se aproximasse dela para a cumprimentar era muito capaz de cair de joelhos numa muda e humilde reverência.
Volta a pé para a John Street, comparando todas as mulheres que vê com a Sra. Claire Lee- que as bate a todas com quilómetros de avanço.
Ficou tão abalado com o súbito aparecimento dela que ainda tem as impressões todas misturadas; o único remédio é tentar pô-las em ordem. Não sabe se a mulher é tipo modelo, tipo dançarina ou tipo actriz.
- Tioo deusa!-exclama em voz alta.
Compra uma almôndega gigante e duas latas de Bud, levando o embrulho para o escritório; pelo caminho vai reflectindo que é um almoço muito fraco... mas é isso mesmo o que ele é: um cabeça de almôndega. Além do mais trata-se da mulher do cliente, o que não lhe permite tecer sonhos depravados acerca dela. É pura perda de tempo,
mas o certo é que uns poucos sonhos modestos não podem fazer mal a ninguém. Nem mesmo a Samantha.
Afasta resolutamente a cintilante imagem de Claire Lee e desembrulha a sandes de carne. Enquanto mastiga,
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aproveita para telefonar a Jeremy Bigelow, agente da Securities and Exchange Comission.
- Eh, grande homem!-diz Jeremy, feliz da vida.- Aquele escândalo das vendas por antecipação está mesmo a dar que falar! Os maus da fita mordem-se uns aos outros
para tentarem safar com o mínimo dos mínimos...
- Sim, tenho lido as notícias - responde Cone. - É por isso que me estás a dever um favor... certo?
- Oh, oh! - replica Bigelow, imediatamente preocupado.
- O que é que queres agora?
- É muito fácil, até a tua secretária pode tratar disso. É sobre uma firma registada na Bolsa OTC, chamada White Lotus, vendo chop suey enlatado... só queria saber se alguém entregou um impresso 13-D a registar a compra de acções dessa companhia.
- Haverá alguém interessado em comprar cinco por cento de chop suey enlatado?
- Não faço a mínima ideia. És capaz de me ver isso?
- Okay - diz o homem da SEC. - Vou procurar e depois digo-te.
- Demoras muito?
- Trato disso assim que a minha secretária voltar do almoço.
Cone acaba a almôndega e abre a segunda lata de cerveja. Recosta-se na cadeira giratória, põe os pés em cima da secretária e vai matutando naquilo que sabe e naquilo
que não sabe.
Sabe que um súbito aumento da cotação e o correspondente aumento do volume de transacções representa frequentemente- nem sempre, mas na maior parte dos casos
- um indício de que alguém se prepara para fazer uma oferta de compra da companhia em causa. Normalmente, o primeiro passo consiste em se acumular um número suficiente de acções para provar a seriedade das intenções, seguindo-se uma oferta de compra de acções dirigida aos outros accionistas - por norma a um preço superior ao da cotação na Bolsa-, o que possibilita o controlo da firma por parte do novo adquirente.
A aquisição pode ser amistosa, caso em que a direcção da companhia colabora - ou inamistosa, caso em que os quadros dirigentes da companhia lutam por todas as formas ao seu alcance para derrotarem o comprador e, claro está, para manterem os seus lugares. Na Wall Street, estes casos
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nem sempre resultam em benefício dos accionistas; a "democracia corporativa" tem toda a moderna relevância de um "salve-se quem puder", e por vezes quem sai prejudicado são os accionistas de pequenas posses.
Para se evitarem escândalos, a lei determina que quando uma entidade - individual ou corporativa - acumula cinco ou mais por cento de acções de outra companhia, é obrigada a preencher e a entregar na SEC o impresso 13-D, no qual declara os propósitos da compra - simples investimento ou intenção de fazer uma oferta de compra da companhia.
A secretária de Jeremy Bigelow telefona-lhe cerca de uma hora depois, para lhe dizer que nos arquivos não há nenhum impresso 13-D relativo à White Lotus. Cone agradece, desliga e volta aos seus raciocínios, evidenciando uma enorme força física ao conseguir amachucar uma lata de cerveja vazia.
A ausência do 13-D não o deixa descansado: ainda é possível haver alguém a preparar-se para se assenhorear da White Lotus. Há várias formas de se contornar a lei do 13-D, todas elas insidiosas. Quem pensa que os regulamentos financeiros são claros e directos, então não tem nada que se meter neste mundo; a Wall Street é um emaranhado confuso de situações e possibilidades.
Cone só tem a certeza de uma coisa: se está na forja uma tentativa de aquisição da White Lotus, o Sr. Chin Tung Lee terá de tratar a oferta como inamistosa. Cone
não é capaz de esquecer o tom apaixonado do homenzinho quando se referiu à "companhia familiar" e ao facto da White Lotus ser toda a sua vida. Se houver mesmo algum pirata no horizonte, então terá de se preparar para uma luta de morte até à tomada da White Lotus - se é que Lee alguma vez se dará por vencido.
A questão para a qual Cone não tem resposta é a colocada por Jeremy Bigelow: para que raio alguém quererá a White Lotus? É certo que a companhia apresenta um balanço limpo: as últimas linhas são mais que boas. Contudo, não possui subsidiárias que possam ser vendidas na mira de um lucro imediato, e a sua gama de produtos não oferece nada de novo ou diferente. Seria preciso uma enorme infusão de capital em publicidade para aumentar a sua quota de mercado, e isso, claro está, a expensas da La Choy.
As acções da White Lotus transaccionam-se actualmente a quarenta dólares cada: como o capital é de dois milhões
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de acções, tal significa que quem quiser comprar a companhia terá de aparecer com oitenta milhões nas mãos. Cone vê-se forçado a reconhecer que, nesta era de mega-negócios, uma tal soma pode não parecer nada de especial, mas mesmo assim ainda é uma maquia respeitável.
Para Cone, a White Lotus não vale semelhante esforço. Apresenta poucas oportunidades de crescimento, e mesmo com uma liderança mais dinâmica que a de Chin Tung Lee,
a companhia parece fadada a um lento e calmo passo de tartaruga, pagando bons dividendos aos accionistas mas sem qualquer potencial para se transformar numa verdadeira
vaca leiteira. Cone é capaz de enumerar uma dúzia de companhias que, pelo mesmo preço ou ainda por menos, dariam uma aquisição muito mais proveitosa.
Toda esta actividade cerebral deixa-o sonolento; o queixo toca-lhe no peito e a soneca que se segue demora mais ou menos uma hora. Nem sequer sonha com Claire Lee, mas o tinir do telefone acorda-o instantaneamente. Atende.
- Sr. Timothy Cone?
- O próprio. Quem fala?
- EdWard Tung Lee. Sr. Cone, ainda estou em Nova Jérsia, mas acabei de falar com o meu pai e ele disse-me que o senhor pretendia falar comigo.
- Exactamente. Quando lhe der jeito.
- Bom, daqui a bocadinho volto para Manhattan, às cinco tenho um encontro de negócios num restaurante da Pell Street. Não me deve ocupar por muito tempo... talvez dez ou quinze minutos. Se puder encontrar-se comigo lá, talvez me possa dar o prazer de tomar uma bebida comigo?
- Acho óptimo - responde Cone.-Como é que se chama o restaurante?
- Ah Sing"s Bar and Grill. Vem na lista.
- Eu cá me arranjo. Talvez seja melhor dar-lhe uma descrição minha, para que me possa reconhecer.
- Não se preocupe - diz Edward Lee, rindo-se. - Você será o único branco presente no restaurante.
Desliga e Cone pousa o telefone, pensativo. O tipo parece-lhe acelerado; talvez ande a snifar glutamato mo-nossódico ou se injecte com molho de soja. Cone sacode a cabeça para libertar o cérebro ainda ensonado de tamanhos disparates, e começa a folhear a lista telefónica de Manhattan, à procura da morada do Ah Sing"s Bar
and Grill, na Pell Street.
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É igualzinho a centenas de outros restaurantes chineses baratos que Cone frequentou de Boston a Saigão: muita fórmica e sininhos pendurados às fiadas, lâmpadas fluorescentes
e flores de plástico. As paredes, brancas e razoavelmente limpas, estão decoradas com quadros de dragões pintados sobre veludo negro, mas não faita um calendário com Miss Hong-Kong em biquini.
A direita da entrada há um pequeno bar, cujos frequentadores desfrutam de uma bela panorâmica da frenética actividade da Pell Street através de uma enorme janela envidraçada. Nesse momento, porém, o bar está sem fregueses, mas o resto do restaurante, comprido e estreito, abarrota de comensais, todos eles asiáticos, sentados nas mesas e dentro de vários reservados junto às paredes.
Cone acabou de se sentar num dos bancos altos do bar quando um tipo magro lhe toca no cotovelo. Veste-se como um yuppie oriental.
- Sr. Cone? - pergunta o outro com uma voz forte.- Sou Edward Tung Lee.
Apertam as mãos.
- Olhe, peça uma bebida que eu não me demoro nada.
- Pode demorar o tempo que quiser - responde Cone.
- Não tenho pressa nenhuma.
- Henry!-diz Lee para o empregado do bar. - Põe esta na minha conta, se fazes favor.
Cone observa-o enquanto o outro regressa ao reservado de onde saíra. É alto, mais ou menos da altura de Cone, mas com melhor postura. Move-se com uma graça elegante-, um jovem executivo pronto para tudo. O cabelo escuro está bem cuidado, e durante os poucos segundos em que falaram, Cone reparou no Rolex de ouro, na corrente também de ouro e nos botões de punho com diamantes encas-trados. Edward Lee não precisa de um bolinho da sorte para prevêr um futuro glorioso; escolheu o pai certo.
- Senhor? - pergunta o barman.
- Como é ele quem paga - diz Cone-, vou tomar um vodca Absolut com gelo. Duplo, com umas gotas de água e sem fruta.
- Uma escolha sensata - comenta Henry.
- Começa a trabalhar, e proporciona a Cone um belo espectáculo; atira os cubos de gelo ao ar, apanha-os com o copo, serve o vodea com a garrafa muito alta, conseguindo não desperdiçar uma só gota, e por fim coloca a
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bebida em frente ao detective, adicionando-lhe uma pinga de água gelada no meio de muitos floreados.
- Muito bonito - diz Cone. - Se eu tentasse fazer isso precisava de um esfregão para limpar a porcaria...
- Pus muita água? - pergunta o empregado, ansioso. Cone prova o vodca.
- No ponto.
Henry afasta-se e Cone vai bebendo lentamente o vodca on the rocks, contemplando a multidão da Pell Street através da janela enorme: pedestres em corrida, vendedores
de rua aos gritos, os carros a arrastarem-se, colados uns aos outros, um fulano com um molhe de galinhas vivas ao ombro (cabeça para baixo, patas amarradas), e uma jovem ensanduichada entre duas placas de cartão recobertas de caracteres chineses.
Volta-se apara estudar o ambiente do restaurante. Lee tinha razão: Cone ó o único caucasóide presente, facto que o leva a pensar que a comida deve ter qualquer coisa de especial. Por fim decide que essa conclusão tem grandes hipóteses de ser uma pura estupidez, semelhante à crença que leva as pessoas a dizerem que os camionistas sabem onde se come bem. No fundo, os camionistas só se interessam por grandes quantidades e preços baixos e, no caso vertente, Cone pensa que os clientes do Ah Sing"s Bar & Grill devem andar atrás do mesmo.
Detecta Edward Lee sentado num dos reservados, junto à parede mais afastada. Lee, inclinado sobre a mesa com um ar muito sério, faia rapidamente com um asiático gorducho dotado de papada tripla e um estômago que nunca mais acaba. Os dois têm as cabeças quase a tocarem-se, o que não deixa de ter a sua piada porque a de Edward se esconde atrás de um cabelo negro e farto, enquanto a do outro é calva e brilhante como uma bola de bilhar.
Enquanto Cone os observa, Lee esgueira-se para fora do reservado e aperta a mão do outro. Dirige-se rapidamente ao bar, saltitando entre as mesas, e senta-se no banco alto ao lado de Cone. Henry aparece à sua frente instantaneamente.
- O costume, Sr. Lee? - pergunta o empregado.
- Porque não?
Ambos ficam a ver enquanto Henry executa de novo o seu acto, preparando um scotch com a espectacular habilidade de m malabarista profissional.
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- É o melhor barman que já vi em toda a minha vida
- diz Cone.
- O Henry devia estar nos bairros novos - responde Lee. - Conseguia-lhe trabalho num sítio qualquer, assim...
- estala os dedos-, mas se o fizesse o Chen era capaz de me matar. É o fulano avantajado com quem estive a falar: Chen Chang Wand. É o dono desta tasca e de mais uma dúzia espalhada pela cidade. Já se debate com demasiados problemas laborais para que lhe fosse roubar o seu melhor empregado de bar...
- O dono chama-se Chen Chang Wang? - espanta-se Cone. - Então o que é feito do Ah Sing?
- Já por cá não anda há muito - responde Lee, soltando uma gargalhada. - Só o nome é que ficou. É muito mais fácil as pessoas lembrarem-se de Ah Sing do que de um Chen Chang Wang"s Bar and Brill.
- São bons clientes? - aventura-se Cone.
- Muito bons. O senhor ficaria admirado com a quantidade de produtos White Lotus que esta gente movimenta. Não se trata propriamente de comida para apreciadores, mas as quantidades são razoáveis e os preços imbatíveis.
- O senhor costuma visitar pessoalmente os clientes? Julgava que essa tarefa estava a cargo dos vossos vendedores...
- Oh, mas está! Acontece é que gosto de visitar de vez em quando os nossos maiores clientes, nomeadamente os grossistas. Procuro inteirar-me das queixas deles e
certificar-me de que recebem as encomendas a tempo, para além de lhes pedir sugestões que nos permitam melhorar os nossos serviços. Como deve saber, Sr. Cone, os orientais dão grande importância às relações pessoais muito estreitas.
- Não deixa de fazer sentido. Oiça, não lhe quero fazer perder o seu tempo desnecessariamente. Falei com o seu pai esta manhã, e obtive a maior parte das informações de que precisava. Também fiquei a conhecer a sua madrasta
- acrescenta Cone,
Edward Lee fica muito sério:
- Não há nenhum louco pior que um louco senil - comenta.
Timothy não gosta do desabafo. Se Chin Tung Lee escolheu casar com uma estampa com um terço da sua idade, ninguém tem nada a ver com isso. Edward não tem o mínimo
motivo para dizer mal do pai - a não ser que
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a boa da Claire lhe tenha vedado o acesso a uma herança há muito esperada.
- Julguei que se tratava de uma senhora simpática - diz Cone. - Mas isso não vem ao caso. Suponho que o seu pai lhe explicou as razões que o levaram a contratar a Haldering & Companhia...
- A subida das nossas acções? Não tem nada de mal. É como que uma tempestade num copo de água.
- Acha que sim? - pergunta Cone. - Como é que a explica?
- É fácil - diz Lee. - No estado em que o mercado está, há muita gente que anda a ficar nervosa. Todos sabem que se vai verificar uma correcção de monta... não quero diz que vá haver uma queda calamitosa, mas aquilo que sobre algum dia há-de cair. É como dizem na Wall Street, as árvores não crescem no céu. Há imensos investidores que procuram fugir aos aventureiros, e ultimamente tem-se verificado enorme procura nos sectores de qualidade. Como sabe, a White Lotus sempre teve um capital subvalorizado... meu Deus, onde é que se consegue um rendimento seguro de cinco por cento ao ano, ainda por cima proporcionado por uma companhia sólida e bem gerida?
Enquanto o outro foi expendendo as suas opiniões, Cone aproveitou para o inspeccionar no espelho do bar. Visto sob aquele reflexo azulado, Lee parece mais velho do que Cone o julgara à primeira vista. A pele isenta de rugas parece mais o resultado de massagens faciais e de gel bronzeador do que a placidez de um homem em paz consigo próprio e com o mundo.
O fulano é bem parecido, tem os lábios bem desenhados, o queixo saliente e voluntarioso, a testa é alta e lisa. O cavado dos olhos quase não se nota, mais parecendo uma faceta exótica, e os óculos de armação negra com lentes fumadas dão-lhe o ar de uma estrela de cinema. Não usa aliança, mas Cone, sempre alerta, toma uma nota mental para não se esquecer de verificar esse aspecto.
A descontraída explicação do outro sobre os motivos da subida das acções da White Lotus deixa Cone preocupado. É sinceridade em demasia, o tipo parece querer estar a forçar a nota num caso em que não tinha a mínima necessidade de o fazer.
- Sim, talvez tenha razão - diz-lhe Cone. - Só comecei hoje, por isso não tenho nenhumas ideias, num sentido ou noutro.
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Edward faz sinal ao empregado do bar, apontando para os copos vazios, Henry começa a actuar.
- Aceite o meu conselho, Sr. Cone - diz Lee. - Não perca o seu tempo. Pode crer no que lhe digo, trata-se de uma simples demonstração do funcionamento das habituais forças do mercado. Daqui a seis meses, mais coisa menos coisa, espero que a cotação das acções da White Lotus volte aos seus valores habituais.
- Já disse isso ao seu pai?
É aqui que a ira do homem se torna aparente.
- Dizer-lhe o quê? Quem é que lhe consegue dizer seja o que for? Sempre foi teimoso, mas agora está cada vez pior. Desde que se casou com aquela... enfim, desde que a minha mãe morreu e ele se voltou a casar. Às vezes penso que está a ficar senil. Posso até dar-lhe um exemplo: aqui há cerca de um ano fui expor-lhe aquilo que me parecia ser uma grande ideia... toda a gente com quem falei me disse que daria um resultadão. Na prática, tratava-se de meter a White Lotus no mercado das refeições congeladas. Comida chinesa da boa, pronta a servir num instante; basta metê-la num forno ou num micro-ondas para se acabar com pratos tão bons como os preparados pelos melhores chefes chineses. Estou a refèrir-me a peixe cozido em vapor, galinha assada eni sal, porco mu shu, carne de cinco aromas, pato fumado e iguarias no género...
- Bom, não percebo muito da comida dos mandarins, mas mesmo assim parece-me uma ideia com grandes perspectivas de sucesso.
- Sucesso? - exclama Lee. - Era uma mina de ouro! Passei seis meses a estudar o assunto, e os resultados dos cálculos pareceram-me muitíssimo bons. Não estou a falar unicamente em comida chinesa congelada vendida em supermercados, mas também no negócio dos restaurantes. Uma tasca como esta até podia duplicar a ementa... os custos são mais que compensadores, não é preciso contratar cozinheiros, não há preocupações com a frescura dos géneros... suponha que um cliente manda vir carne picada frita; basta-lhe meter a embalagem no micro-ondas e servir. Sensacional!
- E como é que reagiu o seu pai?
- Disse-me logo que não. Não quer sair da mèsma porcaria com que trabalhamos há mais de quarenta anos. Maldição! - Então, como que envergonhado da sua veemência, Edward Tung Lee tenta compor um sorriso. - Bom, é
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sempre assim, perdemos uma mas a seguir ganhamos outra... certo?
O dono, Cheng Chang VYang, aproxima-se. Brinda-os com um sorriso igual ao do Buda, acena com a mão gorducha e sai para a Pell Street.
- Bom - diz Cone-, acho que...
O mundo parece desabar-lhes em cima no meio de fortes explosões - mais surdas do que repentinas. O enorme vidro da janela estilhaça-se e desaba; no espelho por detrás do bar aparece um buraco que rapidamente se transforma numa estrela. As pessoas começam a gritar, descontroladas, e no meio da confusão ouvem-se mais tiros.
Cone deixa-se cair do banco alto e arrasta Edward Lee consigo até ficarem colados ao chão, sacando ao mesmo tempo da sua Magnum guardada no coldre, de tornozelo.
- Para baixo! - ordena ao outro homem. - Não se atreva a levantar a cabeça!
Espreita cuidadosamente para as traseiras do restaurante: as mesas e cadeiras estão desertas, os clientes estenderam-se todos no chão.
- Para baixo! - repete de novo para Lee.
Ergue-se lentamente atá ficar de cócoras. Não há mais explosões, a gritaria cessou por completo. Lá fora ouvem-se gritos dispersos, alguém sopra com força num apito: apitadelas rápidas, curtas e secas.
Cone guarda o 357 no bolso de dentro do casaco e aproxima-se da porta da frente do restaurante. Há pessoas a sair das entradas dos prédios, outras correm por entre
carros e bancas de vendedores. Um polícia uniformizado já está em cena, enquanto outro se aproxima a correr. Forma-se o habitual círculo de mirones.
No centro, esparramado no passeio e a sangrar, jaz o corpo do Sr. Cheng Chang Wang, fazendo lembrar uma baleia ferida abicada na praia.
Cone volta para dentro. Edward Lee já está de pé, sacudindo a poeira do fato escuro. Henry levanta-se lentamente por detrás do bar.
- Peço-lhe desculpa por o ter atirado ao chão - diz Cone.
- Ainda bem que o fez. Mas que raio é que se passou?
- Receio que tenha perdido um bom cliente - diz Timothy.
Lee fica a olhar para ele com o rosto contorcido.
- O Chen? - pergunta, atarantado.
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Cone confirma com um aceno de cabeça.
- Morto?
- E bem morto.
O rosto de Lee contorce-se ainda mais; começa a esmurrar o tampo do balcão.
- Bastardos!-grita. - Oh, malditos bastardos!
Acalma e vira-se para Henry.
- Dá-me um brande, e serve outro ao Sr. Cone. Melhor, serve também um para ti.
Desta feita não há truques nem passes de mágica: o barman enche os três balões com as mãos a tremer, e emborca o seu num só golo. Cone e Lee endireitam os bancos caídos, sentam-se e viram-se para observar a confusão instalada na Pell Street. Um carro-patrulha, a sereia a uivar, enfia o nariz no meio da multidão e estaciona abicado ao passeio. Ao longe ouvem-se mais sereias em aproximação.
- Ah, Jesus! - exclama Lee, bebendo um pouco de brande. - Era um tipo formidável...
- Houve alguém que não pensou assim - responde Cone. - Quem são os bastardos?
- O quê?
- Quando eu lhe disse que ele estava morto, o senhor exclamou: "Bastardos, malditos bastardos!" Em quem é que estava a pensar?
- Oh, isso!-diz Lee. - Estava a referir-me ao homem que o matou.
- Hum-hum!-diz Cone. - Talvez tenha sido mais do que um, o Wang está furado de cima a baixo. Pareceram-me ser buracos de quarenta e cinco.
Dois agentes uniformizados entram no Ah Sing"s Bar & Grill. Um é chinês, o outro é negro. O chinês dirige-se às traseiras do restaurante, onde os clientes, agora sentados de novo nas mesas e reservados, recomeçaram a escarafunchar nas suas malgas de arroz. O agente negro aproxima-se do bar.
-Os senhores estavam sentados aqui quando o incidente ocorreu? - pergunta-lhes.
- Estávamos - responde Cone. - A beber um copo. Foi tudo muito repentino, ouvimos tiros e a janela estilhaçou-se.
- Viram alguma coisa do que se passou lá fora?
- Eu não - diz Cone.
- E o senhor? - pergunta o agente a Lee.
- Não vi nada - responde o interpelado. - Estávamos a falar, virados um para o outro.
- Okay - diz o polícia. - Estou só nos preliminares. Gostava de ficar com os vossos nomes, moradas e números de telefone, se não se importam. Também gostava de ver os vossos bilhetes de identidade.
Copia os dados todos para o bloco de apontamentos.
- Muito obrigado pela vossa colaboração - agradece o polícia, muito correcto. - Há mais alguma coisa que me possam dizer?
- Há - diz Cone, apontando para o buraco no centro do espelho estrelado. - Entrou ali uma bala perdida... se precisarem dela só precisam de a tirar de lá.
O agente olha para o espelho.
- Mais uma vez muito obrigado - agradece, reconhecido.- Era capaz de não ter reparado nesse pormenor.
- Podemos ir embora? - pergunta-lhe Lee.
- Claro-responde o chui. - Está tudo sob controlo.
Afasta-se para a outra ponta do bar e começa a interrogar Henry.
- Nem sequer nos revistou - comenta Lee, espantado.
- Porque é que nos haveria de revistar? Devem haver dezenas de testemunhas que viram os atacantes em fuga... não me parece que os assassinos abatessem o Sr. Wang e depois viessem a este bar para beber um copo...
- Se nos tivessem revistado teriam descoberto a sua arma - insiste Lee. - Vi quando você a tirou do coldre do tornozelo.
- E depois?
- Anda sempre com ela?
- Ando. É o meu seguro de vida. Descanse que tenho licença de porte de arma.
- É bom conhecer pessoas como o senhor - diz Edward Tung Lee em voz baixa.
Cone fica sem saber o que é que o outro quererá dizer com aquilo.
2
Acorda com uma péssima disposição; iça-se para fora do colchão e acende o primeiro cigarro do dia. Lava-se e faz a barba no meio de resmungos; prepara um café bem
forte e junta-lhe um cheiro de brande para abrir melhor as pálpebras.
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- E então disse-lhe que um dos seus melhores clientes tinha sido abatido - diz ele para Cleo, que se afadiga a comer uns restos de chow mein. - E ele responde: Bastardos,
malditos bastardos! Perguntei-lhe quem eram esses bastardos, e ele disse que estava a referir-se ao tipo que esburacou o Chen Chang Wang. Agora pergunto-te a ti:
achas que isso faz algum sentido? Claro que não! Ele estava a mentir, disso não duvido, mas porquê? Não tenho nada a ver com isso, nem quero saber quem é que ventilou
o Sr. Wang. Cleo, seu rato asqueroso, estás a ouvir o que te digo?
É Agosto, o dia nasceu radioso, mas isso nada contribui para melhorar a disposição de Cone. O sol brilha? Grande coisa. É para isso que lhe pagam, não é? E aquele
céu azul suave com nuvens pequeninas parecidas com flocos de algodão... faz lembrar um postal rasca, daqueles que
se vendem aos turistas falidos e que dizem: "Estamos
a divertir-nos muito, desejava que estivesses aqui connosco." Mas afinal quando é que a Samantha volta para casa?
Está um tipo à espera dele na recepção da Haldering & Companhia. Sentado, parece baixo e atarracado, mas quando se levanta todos podem ver que é magro e ágil, talvez
três ou quatro centímetros mais baixo do que Cone. É chinês, usa o cabelo negro cortado en brosse
(1) e tem uma boca cheia de dentes demasiado brancos e demasiado grandes.
- Sr. Timothy Cone?
- Sou eu. E você quem é?
O fulano estende-lhe um cartão-de-visita, e o detective da Wall Street lê-lo em voz alta:
- Johnnie Wong. Federal Bureau of Investigation - inspecciona o cartão, apalpando-o entre o indicador e o polegar.- Muito bonito, boa gravação. Importa-se de me
mostrar a sua identidade?
- Não me importo nada - responde Wong, sacando da carteira com o crachá.
- Hum-hum! - diz Cone. - Parece-me em ordem. Mas porquê Johnnie? Não bastava um vulgar John?
- Vá perguntar aos meus pais - replica o homem do FBI. - Tenho sido perseguido por isso a vida inteira. Ainda aguento o Wong, mas por favor não me venha com aquela "há cinquenta milhões de chineses chamados Wong"...
(1) En brosse: à escovinha. Em írancês no original. (N. do T.)
288
- Nunca diria uma coisa dessas - afirma Cone, que estava quase a dizê-la.-Suponho que quererá falar comigo... por aqui, se faz favor.
Johnnie Wong segue Cone até ao gabinete minúsculo e olha ao seu redor.
- Gosto - comenta. - Tem um não sei quê que...
- Pois é - atalha Cone, mostrando ao outro o saco de papel castanho que traz consigo. - É o meu pequeno-almoço: café e pão com manteiga. Também quer? Posso telefonar a encomendar.
- Não, obrigado - responde Wong. - Já tomei o meu, mas por favor não se incomode comigo, avance com o seu.
Cone acende um Camel e abre a embalagem de café e o embrulho com o papo-seco.
- Então o que é que se passa? A que se deve esta honra de uma visita do FBI?
- Você estava no Ah Sings Bar and Grill, na Pell Street, quando o proprietário, um tal Chen Chang Wang, foi abatidd a tiro.
- Oh, oh! - exclama Cone. - Então é por isso! Sim, estava lá, mas isso não explica o vosso interesse pelo caso. Suponho que será um assunto a ser tratado pelos locais...
- Neste caso estamos a trabalhar em conjunto com o NYPD - explica Wong. - Foi por eles que fiquei a saber do seu nome. Importa-se de me dizer o que estava lá a fazer?
- Importo-me. Ainda há quem pratique uma coisa chamada respeito pela confidencialidade dos clientes.
- Claro - replica o agente do FBI. - E também há uma coisa chamada obstrução à justiça...
Os dois fitam-se por momentos. Johnnie Wong é um asiático alto com sobrancelhas parecidas com bigodes; o rosto é ligeiramente bolachudo, mas o corpo não tem um grama
de gordura: parece duro como um osso. Sorri muito, mostrando a fiada de dentes, mas é difícil dizer-se se se trata de um sorriso genuíno ou de um esgar de dor.
- Vamos fazer uma coisa - diz por fim Cone. - Se você me explicar qual é o interesse do FBI pelo assassínio do Wang, então eu digo-lhe o que estava a fazer naquele
sítio.
Wong pondera a proposta.
- Acho justo - acaba por dizer. - Mas você é o primeiro.
É a vez de Cone considerar a proposta.
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- Okay - condescende. - Negócio feito. Estava com um senhor chamado Edward Tung Lee, director-geral da White Lotus. Já ouviu falar deles?
Wong diz que sim com a cabeça.
- A Haldering & Companhia foi contratada pela White Lotus para dtescobrir as razões de uma súbita subida das suas acções durante os últimos seis meses. Era disso que eu e o Edward Lee estávamos a falar.
-Interessante-comenta o homem do FBI. - Mas não muito.
- Agora é a sua vez.
- No meu caso é uma história muito comprida...
- Não tenho nada de melhor para fazer, posso ficar aqui a ouvi-lo o dia todo - replica Cone.
- Como queira. É o seguinte: desde 1970, o número de imigrantes chineses neste país quase que duplicou; estou a falar de gente vinda de Taiwan, da China continental
e de Hong-Kong; se lhes juntar os imigrantes de Macau, Coreia do Sul, Singapura, Vietname, Camboja e Tailândia, acabará por compreender que há por aqui mais asiáticos do que à primeira vista pode parecer. Noventa e nove por cento dôs recém-chegados são pessoas simples e respeitadoras da lei, que só pedem que os deixem em paz para poderem ganhar a vida; o um por cento restante é constituído por patifes de primeira apanha.
- E é aí que você entra - diz Cone.
- Vejo que está a perceber. Como tenho os olhos em bico, o Bureau pôs-me a mim e a muitos outros orientais a tratar do Perigo Amarelo. Entretanto aconteceu o seguinte: nos últimos anos, a Mafia italiana acabou por dar os últimos estertores; os tipos mais velhos, os dons e os padrinhos, ou morreram ou ficaram chechés. Os novos recrutas vindos da Sicília não valem um chavo, e os tipos que hoje dirigem as Famílias não os têm no sítio. Como tal, verificou-se um vazio no mundo do crime organizado, isto é, houve um vazio até os bandos asiáticos se mudarem para cá. O maior deles todos chama-se United Bamboo; são quase todos de Taiwan, mas isso não os impede de manterem laços com os Yakusa, os bandidos japoneses. Os seus principais adversários, não tão grandes mas em rápido crescimento, são o bando do Panda Gigante,
vindo na sua maioria da China continental e de Hong-Kong.
- Bambus Unidos e Pandas Gigantes... - repete Cone.
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- São nomes muito mais bonitos do que a Cosa Nostra. Em que é que essa malta anda metida?
- Em tudo o que quiser - diz Wong. - Os Bambus Unidos lidam com o tráfego de heroína, pois dispõem de bons contactos no Triângulo Dourado; ultimamente começaram a negociar com os colombianos por causa dá cocaína. Também se encarregam de círculos de prostituição por todo o país, a maior parte constituídos por mulheres taiwanesas. O Panda Gigante também lida com drogas (essencialmente marijuana) mas obtém a maior parte dos proventos graças às extorções: esquemas clássicos de protecção centrados em restaurantes chineses, lavandarias e mercearias. Ultimamente têm tentado meter-se nos negócios legítimos.
- Alguns homicídios? - quer saber Cone.
- Claro que sim! Praticamente só soldados do Bambu Unido e do Panda Gigante, mas pelo meio há uma data de inocentes: pessoas que se recusaram a pagar o baksheesh ou que tiveram o azar de estar no sítio errado no momento errado. Seja como for, a razão por que lhe estou a contar tudo isto é porque o Chen Chang Wang, o tipo que foi abatido ontem, era um oficial do Panda Gigante. Não o general comandante da organização de Nova Iorque, mas sim um coronel.
- Então é isso... Vocês andavam a vigiá-lo?
- Não permanentemente, não temos pessoal suficiente. Limitávamo-nos a uma vigilância intermitente.
- E você julga que os responsáveis são do Bambu Unido?
- O crime teve todas as características dos praticados pelo Bambu Unido: servem-se de rapazinhos muito novos, adolescentes, a quem entregam pistolas automáticas
aua-renta e cinco roubadas ao Exército dos EUA. Os miúdos costumam agachar-se, fecham os olhos e desatam a disparar; normalmente acertam em qualquer coisa. Depois
fogem, por vezes a pá, outras de carro ou em motos. Veia-me só isto: no mês passado souve um assassínio na Chinatown de Seatle, e os criminosos fugiram de bicicleta!
O que é que lhe parece?
- Bonito - diz Cone. - Portanto não há nenhum amor entre os dois bandos?
- Nem pensar - diz Johnnie Wong, mostrando os dentes refulgentes. - Estão a competir pelas mesmas coisas, qualquer deles pretende assenhorear-se da zona quando
a Mafia der o berro. Veja bem, eles têm mais de um milhão de
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asiáticos como matéria-prima... é gente que baste para se ganhar um balúrdio.
- Não há diferenças entre os dois?
- Não diria isso - responde Wong, cauteloso. - Em primeiro lugar, o Bambu Unido fala o dialecto Cantonês, enauanto que o Panda Gigante fala essencialmente o Mandarim.
- Qual desses é que você fala? - pergunta-lhe Cone.
- Ambos - diz o homem do FBI, convencendo o detective da Wall Street de que o seu sorriso é genuíno. Ora ali está
um tipo que ainda se consegue rir da loucura do mundo. - Além disso - continua Wong -, o Bambu Unido é constituído por pesos-pesados;
quer dizer, são patifes do piorio, capazes de queimar uma vítima com um maçarico
de propano antes de lhe cortarem a cabeça. Ou então abatem a família da vítima à frente desta para depois darem cabo dela. A velha Mafia nunca tocava nas famílias
dos alvos... diga-se em abono da verdade. O Bambu Unido, porém, não se esquiva a chacinas dessa natureza.
- Como os traficantes de coca colombianos? - sugere Cone.
- É, esses tipos também são uns verdadeiros selvagens. O bando do Panda Gigante, contudo, é muito menos violento. Nada têm de santos, percebe? Matam como os outros,
mas para eles matar é um simples negócio. Andam a infiltrar uma data dos seus membros mais novos em bancos e casas de corretagem da Wall Street. Oiça, esta conversa
não nos leva a lado nenhum; há mais qualquer coisa que possa dizer sobre o seu encontro com esse cliente no Ah Sing"s?
- Nada de nada - diz Cone. - Quando lá cheguei o meu cliente estava a conversar com o Chen Chang Wang; pouco depois deixou-o sozinho num dos reservados e veio juntar-se-me
no bar. Minutos depois, o Wang passou por nós, sorriu, acenou-nos e saiu... foi nesse momento que começou o fogo-de-artifício.
- É tudo o que me pode dizer?
- É tudo.
Johnnie Wong fita-o com cara de poucos amigos.
- Não me está a esconder nada, pois não?
- Porque é que faria uma coisa dessas? - replica Cone.
- Não sei a mínima coisa sobre o Bambu Unido e o Panda Gigante, nem sei quem tramou o falecido Sr. Wang.
- Hum-hum!-diz o homem do FBI. - Bom, aceito a sua
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palavra... por agora. Fui saber de si antes de vir cá, e acho que confere: comissões no Vietname, medalhas e uma data de louvores... a propósito, onde é que estão
as medalhas?
- Pu-las no prego - diz Timothy.
- Vá dando notícias, meu velho. Não temos assim tantos agentes atribuídos aos bandos asiáticos na área de Nova Iorque, e pelo que me toca tenho um pressentimento
de que se está a passar qualquer coisa de importante. Pode passar a considerar-se como meu adjunto: se descobrir alguma coisa telefone-me logo. O número vem no cartão
que lhe dei.
- Claro - promete Cone. - Descanse que digo qualquer coisa. Suponho que tem o meu número do escritório?
- Tenho - diz Johnnie Wong, levantando-se. - E também tenho o seu número de casa, que ainda por cima não vem na lista.
- Não me admira nada-replica Cone em tom apreciador.- Vocês não dão ponto sem nó, não é verdade? Acho que podemos trabalhar em conjunto.
- Podemos? - diz Wong, fitando-o nos olhos. - Há um velho ditado chinês que diz o seguinte: A freint darf men zich kofen; sonem krigt men umzist. Os amigos pagam- se;
os inimigos arranjam-se de graça.
- Pois é - responde Cone.
Depois do homem do FBI sair, Cone folheia o Wall Street Journal dessa manhã, e por fim acende um cigarro, recosta-se na cadeira e cruza as mãos atrás da cabeça.
Sabe que devia estar a pensar... mas sobre o quê? As únicas coisas de que dispõe são pontas soltas, e nesse
momento qualquer raciocínio coerente acaba invariavelmente
num beco sem saída. Não serve de nada criar um cenário: não tem dados suficientes para tecer o mínimo enredo.
Telefona ao Sr. Chin Tung Lee, marcando o número directo da White Lotus. O presidente e director-geral atende imediatamente.
- Quem fala? - pergunta o ancião.
- Sr. Lee? Timothy Cone, da Haldering.
- Ah, o meu jovem amigo! Como é que tem passado?
- Bem, muito obrigado - diz Cone, acedendo a alinhar no jogo das cortesias com este velhote simpático. - E o senhor?
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- Vou sobrevivendo, muito obrigado. Cada novo dia é uma bênção.
- Hum-hum! Sr. Lee, telefonei-lhe porque precisava de uma lista dos accionistas da sua companhia, bem como de uma cópia do seu relatório anual mais recente. Será possível facultar-me esses dados?
- Mas claro. Vou mandar embrulhar tudo o que precisa.
- Se o deixar na secretária da recepcionista, eu podia passar por aí e levantar o embrulho sem o incomodar.
- Oh, não!-protesta Chin Tung Lee. - Tenho todo o prazer de o ver novamente, e além disso quero perguntar-lhe uma coisa.
- Okay - responde Cone. - Estarei aí dentro de uma hora, mais ou menos.
Enfia pelo corredor até ao gabinete de Louis Kiernan, um dos paralegais da secção de advogados da Haldering
& Co. Cone prefere lidar com Kiernan, porque os causídicos o inundam invariavelmente com arrazoados legais tão esotéricos que Cone sai sempre com a cabeça feita
em água.
- Lou - diz ele, encostando-se à ombreira da porta-, preciso de uma opinião legal. Podes conceder-me um minuto?
Kiernan levanta os olhos da máquina de escrever e fita Cone através dos óculos de ler.
- Um minuto? Tens a certeza?
- Talvez sejam dois. Há um certo velhinho muito rico cuja primeira mulher já morreu, e agora está casada com uma fulana nova e podre de boa. Também tem um fiiho
da primeira mulher, filho esse mais velho que a segunda mulher... estás a perceber? A pergunta é esta: quando o velho morrer, quem é que herda?
- A mulher - responde Lou sem hesitar. - Pelo menos metade, mesmo que não haja testamento. O filho terá provavelmente direito a um terço. No entanto, Tim, quando entramos no direito sucessório estamos a abrir uma lata de minhocas. Qualquer pessoa com bons motivos pode processar um testamento.
- Mas com tudo normal, tu atribuirias à mulher uns cinquenta por cento e ao filho, digamos, uns trinta por cento?
- Não afirmei nada de tão concreto - responde Kiernan, cauteloso.
- Vocês dão-me cabo do miolo - desabafa Cone.-
Quando a mulher de um advogado pergunta ao marido "foi tão bom para ti como o foi para mim?", o tipo responde "preferia dispor de uma segunda opinião sobre o assunto".
Obrigadinho, Lou. Até depois.
Vai a pó até à Exchange Place, fumando um cigarro pelo caminho enquanto se interroga sobre o tempo que faltará para os não-fumadores conquistarem as ruas. Não falta
muito para que os viciados da nicotina tenham de cumprir os seus rituais em caves ilícitas, ou então ver-se-ão obrigados a entrar pelo oceano Atlântico fora em botes
de borracha.
Vinte minutos depois está no gabinete de Chin Tung Lee. O velho parece em boa forma, e como está a fumar um cigarro aromático enfiado numa comprida boquilha de marfim,
Cone calcula que não fará mal se acender mais um prego do caixão.
- Sei que ainda é cedo para lhe perguntar se já fez alguns progressos, Sr. Cone...
- Sim, ainda é muito cedo. Nesta fase ando a coleccionar dados, e é por isso que preciso da sua lista de accionistas e do relatório anual.
- Tenho-os aqui - diz Lee, dando umas pancadinhas num espesso embrulho pousado em cima da secretária.- Espero que os guarde bem, não gostava nada que a lista caísse
nas mãos do inimigo.
- Pode ficar descansado - promete Cone. - A propósito, já vi que a cotação da White Lotus subiu mais meio ponto.
- A coisa continua - diz o homenzinho, acenando com a cabeça. - O meu filho diz que não tem a mínima importância, mas eu não concordo.
- Já agora, o seu filho é casado? - pergunta Cone, esforçando-se por parecer casual.
Chin Tung Lee pousa cuidadosamente a boquilha com o cigarro num cinzeiro de latão, feito da base de um invólucro de uma granada de cento e vinte milímetros.
- Não, não é - diz o velho, soltando uma gargalhada fraca. - Para mim é uma tristeza, os homens da minha idade costumam viver rodeados pelos netos, alguns têm mesmo bisnetos...
- Ele ainda é novo - contrapõe Cone. - Um destes dias é capaz de lhe fazer uma surpresa.
- Seria uma surpresa bem agradável, a família é niuito importante para mim. É casado, Sr. Cone?
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- Não - responde o detective da Wall Street, contorcendo-se na cadeira de couro, pouco à vontade. - Ao telefone disse-me que tinha uma pergunta para fazer.
- Ah, sim! - diz Lee, rindo-se de novo com o seu ar vigoroso. - Boas notícias, diga-se de passagem. Hoje é o aniversário da minha mulher, e para o celebrar daremos uma festa no meu apartamento, logo à noite. Espero que nos dê o prazer da sua companhia.
- Eh, isso é formidável!-diz Cone. - A que horas?
- Das cinco até ao chichi-cama - esclarece o ancião, bem-disposto. - Devo confessar-lhe que estou ansioso por logo à noite. Adoro celebrações.
- Há fogo-de-artifício?- pergunta Timothy, sorrindo.
- Infelizmente não, teremos de nos contentar com os estalinhos das garrafas de champanhe.
- O seu filho também vai?
- Naturalmente - diz Chin, espantado com a pergunta.
- Vive no mesmo apartamento, mas tem a sua própria entrada privativa. Enfim, contamos com cerca de cem convidados, e espero que o senhor se conte entre eles.
- Pode contar comigo - diz Cone. - O seu número vem na lista?
- Vem, sim, mas para lhe poupar o trabalho de pesquisar quatro folhas de Lees na lista de Manhattan, meti dentro deste embrulho o nosso número e a morada. Podemos pois contar com a sua presença?
- Não era capaz de faltar - promete Cone. - Acha que devo levar uma prenda?
O ancião ergue uma mão em protesto:
- Claro que não a sua presença será o presente mais adequado.
Se tivesse ficado calado, Cone não teria recebido esta lição de cavalheirismo e cortesia.
Quando já vai no átrio, levando debaixo do braço o embrulho pesadão, apercebe-se de um pormenor que faltou em toda aquela conversa: Chin Tung Lee nunca lhe perguntou se falara com o filho, e por outro lado não se referira ao assassínio de Chen Chang Wang, um bom cliente da White Lotus.
O que é que isso quererá dizer? Que não atribuía importância ao assunto, ou então que o filho não lhe dissera que estava com Cone no Ah Sing"s quando Wang se foi juntar aos seus antepassados.
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O detective da Wall Street começa a compreender o significado da expressão "quebra-cabeças chinês".
Pode voltar para o escritório... perspectiva que não lhe agrada mesmo nada. O Haldering é muito capaz de vir meter o nariz não só no caso da White Lotus como nos dois outros processos que Cone tem entre mãos, ansioso por se inteirar dos progressos feitos até à data.
Como tal decide ir a pé até ao sótão, respirando fundo para tirar o alcatrão dos pulmões. Consegue fazê-lo durante seis quarteirões, mas por fim não resiste e acende
novo cigarro, maldizendo-se pela sua pouca força de vontade e interrogando-se sobre o que rebentará primeiro: pulmões, fígado ou rins?
Não pára para comprar almoço, calculando que poderá aguentar até à festa de anos: aproveitará então para se encher, e talvez mesmo para meter qualquer coisa ao bolso:
o Cleo também merece uns mimos de vez em quando. Entretanto, o gato pode sobreviver com os restos do frigorífico: queijo cheddar e bologna.
Chegado ao sótão, despe-se até ficar de T-shirt e cuecas Jockey, prepara um
vodca com água, muito do primeiro e pouco da última, e junta-lhe montes de gelo.
- À tua, miúdo - diz para Cleo, que saiu de debaixo da banheira e está estendido numa mancha difusa de luz do sol vinda da clarabóia cheia de pó.
A primeira coisa que Cone faz é telefonar a Eve Bookerman, da Dempster-Torrey, algo que já devia ter feito há mais de uma semana.
- Ainda bem que telefonou, Sr. Cone - diz ela na sua voz rouca. - Queria agradecer-lhe pessoalmente pelo seu estupendo trabalho sobre as sabotagens. Maravilhoso!
- Pois é, desta vez a coisa resultou, e ainda por cima os bons da fita não ficaram para último. Oiça, telefonei-lhe pelo seguinte: quando estive a trabalhar no vosso caso, a Haldering alugou um carro por um mês; é um Ford Escort, e quem está a pagar é a Dempster-Torrey. Normalmente, o carro devia ter sido devolvido quando o processo foi encerrado, mas a verdade é que ainda sobram duas semanas de aluguer pago... queria pedir-lhe para ficar com o carro até ao fim do prazo.
Ela solta uma gargalhada.
- Sr. Cone, pode ficar com o carro até já não precisar
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dele, e por favor não se preocupe com a conta. É o mínimo que podemos fazer.
- - OLrigado. Pode crer que é uma grande ajuda. Já há novidades sobre o novo director-geral da Dempster-Torrey?
- Não consegui - diz ela.
- É pena - diz Cone. - Mas haverá mais oportunidades, não é assim?
- Tem razão - responde ela. - Gostei muito de falar consigo, Sr. Cone. Temos de nos encontrar um dia destes, para beber um copo.
- Quando quiser - diz ele, sabendo de antemão que ela nunca mais o contactará.
Senta-se à mesa da cozinha, com o boião de vodca à sua frente, e abre o pacote da White Lotus. A primeira coisa que analisa é o relatório anual, sabendo perfeitamente
que, à semelhança de todos os relatórios das grandes companhias, poderia ser muito bem proposto para o Prémio Pulitzer de ficção.
A White Lotus surqe retratada em papel couché a quatro cores. Não lhe diz muito mais do que ele já sabia, à excepção do facto do número de accionistas registados
ser ligeiramente superior a 2000 - o que lhe parece excessivo para uma companhia tão modesta como a deste produtor de chop suey. Na página de abertura surgem as
fotografias de Chin Tung Lee e de Edward Tung Lee, enfrentando a objectiva com sorrisos gelados.
O Conselho de Administração revela-se mais interessante: dos seus dez membros, três são estranhos ao ramo, todos com apelidos caucasóides. Dos restantes sete, cinco
chamam-se Lee e os outros dois têm apelidos chineses. Todos os sete são funcionários da White Lotus, e Cone fica com a impressão de que o presidente e director-geral mantém a sua companhia sob rédea curta.
A listagem computadorizada dos accionistas, com os respectivos nomes, moradas e número de acções detidas, proporciona-lhe material muito mais provocante. Cone folheia
rapidamente a lista, verificando desde logo que pelo menos 90 por cento dos accionistas da White Lotus são chineses ou têm nomes orientais. Concentra-se depois nos
maiores accionistas: Chin Tung Lee, Claire Lee e Edward Tung Lee.
runs cálculos Dor alto, sem grande precisão porque as pilhas da sua calculadora de bolso acabaram há muito e não se deu ao trabalho de ir comprar recargas novas.
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Ao que parece, Chin Tung Lee detém cerca de 26 por cento da White Lotus; a mulher, Claire, possui 11 por cento, e o filho Edward é dono de 16 por cento.
Estes valores levam-no a conclusões curiosas. Os três juntos detêm a maioria da White Lotus, mas Chin e Claire batem Edward aos votos. Por outro lado, Chin e Edward também não terão o mínimo problema se quiserem derrotar Claire.
Espantosamente, Claire e Edward podem derrotar Chin.
Os outros 47 por cento da White Lotus são detidos pelos 2000 accionistas, na sua maior parte em lotes irregulares. Poucos possuem à volta de 1000 acções, e estes últimos, como Cone repara, são todos chineses.
- Não percebo nada disto - diz ele para Cleo. - E tu, percebes?
O gato replica com os habituais sinais do "estou faminto", os quais consistem em esfregadelas nos tornozelos e miadelas de partir o coração.
Cone atira à besta uma fatia de bologna e para si prepara nova bebida; aproveita para abrir uma embalagem de Cheez Doodles antes de voltar à sua aritmética.
Para ele, a coisa poderá ser designada por "aperaltar-se", ideia que não deve ocorrer a muito mais gente. O casaco de lã com cotoveleiras de couro engorduradas em nada se ajusta a uma festa em pleno Agosto, e as calças de flanela cinzenta, acabadas de sair da limpeza a seco, ainda ostentam nódoas de jantares de salsichas há muito esquecidos. A camisa está limpa, mas falta-lhe um botão. Como não podia deixar de ser, Cone não aperta o colarinho, e a T-shirt que espreita por baixo é quase branca.
O facto de se vestir tão bem põe-no muito bem-disposto, e na viagem até à parte alta da cidade, feita no seu Escort vermelho, Cone passa o tempo a marcar com pancadas no volante o ritmo dos hinos do Marine Corps de que se consegue lembrar - que até nem são assim tantos. Acabada a inspiração musical, fica a pensar se a sua boa disposição se ficará a dever à perspectiva de comida e bebida de borla ou à hipótese de rever Claire Lee, mulher com quem nem sequer se atreve a sonhar.
Os Lee vivem num apartamento da Quinta Avenida logo a seguir à esquina com a Rua Sessenta e Oito. O prédio, já com várias dezenas de anos em cima, tem grandes pilares na base e janelas de contornos trabalhados. Assenta solidamente
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na Avenida, fitando o Central Park com um ar digno e frio ao mesmo tempo que se aguenta contra os gigantes que o aldeiam.
O apartamento em si é fabuloso: ocupa todo o nono andar, tem duas entradas separadas e espaço suficiente para acomodar uma convenção de terapeutas sexuais. Quando
Cone lá chega, a multidão presente vagueia de sala em sala, parecendo perdida no meio daquele labirinto de tectos altos e ar condicionado. A mobília é mais do que suficiente para encher um pequeno hotel de segunda categoria.
Foram montados três bares e duas longas mesas recobertas de vituaihas. Reprimindo os apetites, Cone vai à procura de Chin, Edward e Claire Lee, para os cumprimentar. Cumprido este dever, esgueira-se até ao bar mais próximo para pedir um
vodca (Finlândia), emborca-o num só trago, pede nova dose e leva-a para junto da mesa logo
ali ao lado. Enche um prato com rosbife, peito de peru finalmente trinchado, tomates miniatura, rabanetes e rodelas de pepino, pegando ainda numa malga com qualquer
coisa parecida com comida chinesa; descobre que se trata de camarão com molho de lagosta, ao estilo Szechwan, que ainda por cima lhe põe o escalpe a suar.
Refugia-se num canto para comer, num ponto de onde pode estudar os convidados que por ali passam. São quase todos orientais, mas a representação de brancos e escuros não deixa de ser considerável. Todos são magros, bem vestidos e, como Cone calcula, não devem fazer muito mais na vida do que coleccionar obrigações isentas de impostos. Não que isso tenha algum mal: toda a gente sabe que a vida é injusta.
Acaba de comer e entrega o prato vazio ao primeiro criado que apanha a jeito; junta-se aos convidados mais próximos, pensando que o seu trabalho, de vez em quando, também tem as suas compensações. Às tantas entra num salão enorme onde a mobília foi encostada às paredes e a carpete retirada, dando lugar a um conjunto de três elementos que tocam músicas de Gershwin, Cole Porter e Irving Beríín. É o género de música ritmada de que Cone gosta-detesta todas as canções que não possa assobiar-, e como tal deixa-se ficar por perto, observando os poucos pares que rodopiam sobre o chão de parquet encerado.
Ao detectar um bar ali próximo, aproxima-se e, ciente
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de que ninguém lhe chamará a atenção, pede um balão com conhaque. Está a prová-lo, deliciado, quando Edward Tung Lee, vestido com um smoking, aparece a saudá-lo. Não seria preciso um Sherlock para concluir que o tipo já está meio aviado.
- Ainda bem que conseguiu vir!-diz-lhe o outro com um sorriso desfocado.
- Também posso dizer o mesmo - responde Cone.- Era bom se a sua madrasta fizesse anos mais vezes...
- Já viu como ela está vestida? - pergunta Edward.
- É revoltante!
O detective da Wall Street não é da mesma opinião. Claire apresenta-se envolvida num tecido de veludo muito justo cor de vinho com um decote convidativo; junto à clavícula direita usa um broche estrelado, tão displicentemente colocado que o mais insensível dos espectadores não poderá deixar de se transformar num amante das estrelas, num estudante dedicado dos corpos celestiais. Foi o que aconteceu a Cone.
- No fundo é o aniversário dela - diz ele para Edward.
- Acho que o dia é todo dela.
A fúria do homem, porém, não é daquelas que possam ser atenuadas.
- O dia é todo dela... - repete. - Pois há-de chegar o dia em que...
Lançada esta tenebrosa profecia, afasta-se dos bordos e deixa Cone satisfeito por o ver ir-se embora. A hostilidade do homem para com a madrasta é compreensível - se bem que um tanto exagerada. É assunto em que Timothy não tem a mínima vontade de se meter.
Come uma-última sandes de salmão fumado dentro de fatias de pão de centeio judeu (sem sementes) e aproveita para provar um sorvete que não consegue identificar, se bem que tenha cerejas e chocolate à mistura. O Cleo chamava-lhe um figo.
Decide-se por mais um brande, e quando o criado negro lhe pergunta, "o que deseja, senhor?", Cone sorri com ar esgrouviado e responde "um conhaque duplo, se faz favor".
De copo na mão, aproxima-se do bufete e embrulha várias fatias de Vosbife, presunto fumado e esturjão num guardanapo de papel, guardando-o disfarçadamente no bolso de dentro do casaco. Não é o único convidado a
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aproveitar-se da fartura: há imensas senhoras bem vestidas a encherem as malinhas de mão.
Prepara-se para ir à procura de Chin Tung Lee, a fim de lhe apresentar uma desculpa qualquer que lhe permita pôr-se a milhas, quando sente uma mão suave a pousar-lhe no braço. Vira-se e dá de caras com o broche estrelado, um sinal de beleza aderente a uma pele tão macia como o sorvete que acabou de enfardar.
- Sr. Cone - diz-lhe Claire Lee com um sorriso que lhe põe os joelhos a tremer. - Sinto-me tão feliz por o ter na minha festa...
- Parabéns!-diz ele, incapaz de pensar em mais qualquer coisa.
- O senhor já me deu os parabéns, lembra-se? - diz ela, rindo-se.
- E depois? - replica Cone. - Dois Parabéns... uma dúzia de parabéns.
- Muito obrigado. - Claire fica subitamente séria. - Sei que o meu marido ficou deliciado com a sua presença... ele gosta muito de si, Sr. Cone.
- E eu também simpatizo muito com ele, acho que é um verdadeiro cavalheiro, la agora procurá-lo para lhe agradecer e me despedir.
- Não. ainda não - diz ela rapidamente. - Já foi ver o nosso terraço?
Cone diz que não com a cabeça.
- Então venha comigo - diz ela, pegando-lhe no braço.
No fim de contas o terraço nada tem de especial: em
primeiro lugar, está virado a leste e dá para um ângulo morto, tendo em frente as paredes de tijoleira dos edifícios da Madison Avenue; além disso é estreitíssimo - de pouco serve para quem queira arejar um gato -, e as espreguiçadeiras e mesas parecem ter sido aproveitadas do refugo de uma residência de Verão nas Hamptons. Uns poucos vasos de barro tentam sustentar molhes gerânios definhados.
Mesmo assim é ao ar livre, e como tal vários dos convidados deram com o caminho para lá, acompanhados pelos respectivos pratos e copos. Parecem deliciados com o seu jantar ao fresco, e o tipo de jaqueta branca que ressona numa das espreguiçadeiras parece mais que satisfeito com a vida.
Claire leva Cone para um dos cantos, afastando-o dos vários convidados presentes. Ficam encostados à balaustrada,
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da qual se avista lá no fundo um pátio de cimento sujo; é mais divertido olhar para cima, para o céu sem nuvens banhado pelo luar. A noite está deveras agradável,
a brisa refresca e o calor promete um dia seguinte radioso.
- Viu o Edward? - pergunta-lhe ela em voz baixa.- O tipo está completamente bêbado!
- Nã! - replica Cone. - Só está com um grão na asa. Ainda consegue navegar.
- Não acha que ele possa fazer uma cena, pois não?
- Duvido muito.
- O meu marido esforçou-se tanto para que esta festa fosse um sucesso... odiava ver alguém a estragá-la.
- Pode crer que é um sucesso - assegura-lhe ele.- Não vejo nada que a possa estragar.
Claire fica calada, sempre agarrada ao braço dele. Cone está demasiado consciente da suavidade e do calor daquela mulher; a sensação incomoda-o, faz com que deseje estar a milhas dali.
Para mulher é alta: com aqueles saltos esguios, é da mesma altura de Cone. Deixa-se ficar muito direita ao lado dele, e Cone não sabe se se trata da sua postura natural ou se a mulher fica assim para aguentar no lugar o decote rasgado. O luar pinta-lhe os ombros numa tonalidade prateada e pálida, e os braços longos e esguios são tão suaves e bem torneados que parecem ter sido espremidos através de tubos calibrados. O cabelo, farto, está enrolado num carrapito alto e espiralado.
- O Edward odeia-me - diz ela numa voz muito calma.
- Tenho a certeza de que me odeia.
Cone não gosta do desabafo. É um eremita, não dá conselhos a viúvas nem a mulheres carecidas de amor.
- É um homem muito, muito mau - continua Claire Lee. - Compreendo o que ele sente, sei que sou muito mais nova do que o Chin. Até sou mais nova que o Edward... não
é para admirar que ele me veja como uma caçadora de fortunas. A verdade é que amo o meu marido, Sr. Cone; juro que o amo.
- Está bem - diz ele, muito pouco à vontade.
Ela solta-lhe o braço e vira-se subitamente para o enfrentar; Cone sente-se orgulhoso por poder aguentar o olhar da mulher, resistindo à tentação de espraiar a vista por aquele delicioso vale dos condenados.
- O senhor é um detective, não é? - pergunta ela, em voz baixa mas já determinada e firme.
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- Bem, o meu patrão chama-nos investigadores. Trabalhamos quase exclusivamente com assuntos financeiros, coisas da Wall Street. Quero dizer, não tratamos de roubos,
homicídios e crimes desse género...
- Mas sabe umas coisas sobre isso, não sabe?
- Um pouco - admite ele, confuso e desejoso de saber onde é que ela quer chegar.
- Preciso de um conselho seu - diz Claire.
- Eu? Nem pensar! Se se trata de qualquer coisa pessoal, sou a pessoa menos indicada para o fazer. Lamento.
Ela vira-se e volta a espreitar para o pátio de cimento lá no fundo.
- Não tenho mais ninguém com quem falar - suplica ela.
- Ninguém? E o seu marido?
- Não.
- Nenhuma amiga? A família?
- Ninguém - insiste Claire.
O vestido de veludo cor de vinho não tem costas; Cone pode ver-lhe o contorno dos ombros macios, o suave canal da espinha. A excitação que sente enfurece-o.
- Mas afinal de que raio é que está a falar? - pergunta-lhe com dureza, acabando a bebida para depois guardar o copo de balão no bolso.
- Preciso de ajuda - diz ela, virando a cabeça para o fitar, os grandes olhos azuis-claros arregalados numa súplica muda.
Cone compreende que está prestes a cair no logro, mas é tão capaz de lhe resistir como a um último conhaque duplo.
- Qual é o problema? - acaba por dizer, a voz rouca.
- Agora não posso falar nisso - diz ela, apressada.- Aqui não. Conhece o Restaurante Row?
- Na Quarenta e Seis, entre a Oitava e a Nona? Sim, conheço. Uma série de restaurantes de luxo, não é?
- Um deles é italiano, chama-se Carpacchios; fica do lado norte da rua, a meio do quarteirão. Nas traseiras há um bar que não pode ser visto da rua. Pode encontrar-se lá comigo amanhã, às três da tarde? Nessa altura já não há o problema da multidão da hora do almoço.
Portanto ela já tinha tudo planeado, e sabia antecipadamente que ele cairia na esparrela. Palerma!
- Claro - responde Cone. - Não me custa nada. No Carpacchio"s, às três. Não falto.
- Oh, muito e muito obrigado! - diz ela, já sem fôlego.
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Muito obrigado. - Inclina-se em frente e beija-o rapidamente na face. - Fique aqui um bocadinho; prefiro entrar sozinha.
- Sim, acho melhor.
Aguarda uns momentos e por fim vai-se embora do apartamento dos Lee sem sequer se despedir do anfitrião.
No caminho de regresso a casa, tenta convencer-se de que a única coisa em que se meteu não passa da ajuda a uma dama em perigo. Não, isso não pega. Se Claire fosse feia que nem uma torrada queimada, não sabe se teria acedido ao encontro no dia seguinte; sobre isso não tem grandes dúvidas.
Por fim calcula que o problema dela, seja ele qual for, pode ter qualquer coisa a ver com o que ele anda a investigar: a subida das cotações da White Lotus. É uma possibilidade que não pode ser posta de lado, e só a poderá confirmar comparecendo no Carpacchios às três da tarde do dia seguinte.
Sentindo-se mèlhor após esta conclusão, e reafirmando a si próprio que são só assuntos de serviço, sobe os seis lanços de escadas até ao sótão e descobre Cleo a sofrer as agonias da fome. Quando tira do bolso o guardanapo de papel engordurado e o abre, o animal, ao sentir-lhe o cheiro, começa a atirar-se a ele em saltos selvagens, agarrando-se-lhe às pernas com as garras afiadas.
Cone pica as fatias de rosbife, presunto e esturjão antes de as pôr no práto do animal, que de resto não é um prato mas sim um cinzeiro de lata amolgado. Cleo começa
a engolir aquelas iguarias ímpares e, a meio, pára e fita-o espantado, como se quisesse dizer "há quanto tempo é que andas a comer destas coisas às escondidas?"
Cone tira o balão do bolso e enche-o com uma boa dòse de brande italiano, a sua última bebida dessa noite. Bebe-o lentamente, sentado à mesa, os pés em cima do tampo,
tentando imaginar os objectivos da fulana. Matuta durante um bom bocado sobre os vários motivos possíveis, e por fim descobre que as suas ânsias iniciais desapareceram
por completo.
Para ele, Claire Lee aproxima-se muito do estatuto das deusas, mas no caso vertente abordou-o com os pés bem assentes na terra: ensaiou a coisa e sabia o que estava
a fazer; além disso é uma mulher que conhece bem as suas armas físicas e o modo de as utilizar. Não que isso tenha qualquer mal, mas apesar de tudo Cone só a consegue
analisar de uma forma esparsa. Não é a primeira vez que vê os seus sonhos mais loucos acabarem congelados; é muito capaz de aguentar tamanho descalabro.
Mas no fim de contas o que é que a Claire poderá querer? Ao pensar nesta incógnita, olha para baixo e vê Cleo encostado a uma perna da mesa. O prato do gato está
vazio e a alimária, de boca entreaberta, olha-o com uns olhos ansiosos e um esgar de quem quer dizer, "Mais! Mais! Mais!"
3
Passa a manhã no escritório, gemendo de frustração enquanto cozinha os relatórios semanais que todos os cinco investigadores da Haldering & Co. são obrigados a apresentar.
Com Samantha de férias, os relatórios irão directamente para as mãos de Haldering, conhecido entre os seus empregados como o Abominável Abdómen.
Cone garatuja aquilo que para si é uma obra-prima de ofuscação. Sugere, implica e mistifica tanta coisa que o resultado é um incompreensível emaranhado de dados
capaz de pôr Hiram a subir pelas paredes. A frase final do relatório reza o seguinte: "Será que a investigação requerida pela White Lotus terá uma conclusão bem
sucedida? Só o tempo o dirá."
Satisfeito com a sua criação literária, atira-a para cima da secretária da recepcionista e foge do escritório. Detém-se junto a uma venda para comprar um cachorro
quente Coney Island picante, com mostarda e cebola, que ajuda a empurrar com uma Cola. Após o arroto da praxe, segue a pé até ao sótão; contudo, em lugar de subir,
mete-se no Ford Escort - sem multas no pára-brisas e com os tampões das rodas no sítio - e arranca em direcção à parte alta da cidade.
É impossível encontrar-se um lugar para estacionar perto da zona da Times Square, o que o obriga a ir até à Rua Quarenta e Quatro e à Décima Avenida, onde por fim
descobre um buraco. Faz a pé o caminho até ao Restaurant Row, detendo-se a meio caminho para comprar uma limonada num vendedor de rua e para observar um jogo de
vermelhinha. O homem é rapidíssimo, e Cone, apostando mentalmente, perde cinquenta dólares imaginários.
Chega ao Carpacchio"s, na Rua Quarenta e Seis Oeste, cerca de vinte minutos mais cedo, calculando poder assim tomar uma bebida e estudar o local. Porém, quando entra
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e se dirige ao fundo do restaurante, Claire Lee já lá está, sentada sozinha no pequeno bar a beber uma coisa verde servida num copo recoberto de gelo.
As únicas outras pessoas presentes no restaurante são seis empregados de mesa, a comerem o almoço numa mesa corrida. Cone tira o chapéu e senta-se no banco ao lado de Claire, que o brinda com um sorriso de mil watts.
- Estava com medo de que você não viesse-diz ela.
- Eu disse-lhe que não faltava - protesta Timothy.- O que é que é preciso fazer para se arranjar uma bebida aqui?
Ela roda no banco de modo a ficar virada para a mesa dos criados.
- Carlos!-- chama. - Por favor... é só um minuto.
Um dos tipos levanta-se, atira o guardanapo para cima da mesa e dirige-se ao bar, muito pouco satisfeito por lhe terem interrompido o almoço.
- Sim? - pergunta ele.
- Queria mais um destes, se faz favor, e o meu convidado toma... o que é que quer tomar?
- Vodca oi? the rocks - diz Cone. - É melhor servir-me um duplo, assim não o interrompemos outra vez.
Carlos fita-o com um olhar de poucos amigos mas vai preparar as bebidas, regressando depois à mesa barulhenta.
- Simpático... - comenta Cone.
- O Carlos não está aborrecido por ter de trabalhar a meio do almoço, acontece é que não gosta de me ver com outro homem.
- Oh, oh!-diz Cone. - Então é isso, hem?
Claire tira um cigarro de uma cigarreira de platina, e ele acende um fósforo para ela e para o seu próprio Camel, reparando de caminho que os dedos dela tremem
ligeiramente.
A mulher veste camisa de seda estampada e usa um cinto de corda, que lhe dão um ar distinto. O chapéu é enorme, mais parecendo um spinnaker horizontal de linho branco.
Ficaria ridículo numa mulher de menor estatura, mas ela usa-o com todo o orgulho de uma freira com a sua touca engomada.
- Está um dia formidável, não acha? - pergunta ela.
- Oh, claro! - responde Cone. - E já é quarta-feira! As semanas passam a correr!
Ela fica a olhar para ele, atarantada, e por fim tenta sorrir.
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- Acho que mereci isso, mas a verdade é que é difícil explicar-lhe o motivo por que lhe pedi para se encontrar comigo.
- Basta dizê-lo. Desembuche.
- Sim, bem... receio que seja uma confissão. Espero poder confiar em si, Sr. Cone, caso contrário posso considerar-me morta.
- Não costumo dar com a língua nos dentes.
- Em primeiro lugar quero contratá-lo, Sr. Cone.
- Já lhe expliquei que tenho um trabalho - diz-lhe ele, pacientemente. - Investigações financeiras. Se o que você pretende entra dentro desse sector, então terá de falar com o meu patrão.
- Nesse caso pretendo um conselho seu - insiste ela, fitando-o nos olhos. - Não me vai recusar um conselho, pois não?
- Claro que não. Os conselhos são de borla.
- Antes de casar com o meu marido, eu vivia na Califórnia; era muito nova e pouco conhecia da vida. Fui para Los Angeles, esperançada em entrar para o cinema ou para a televisão.
- Você e triliões de outras.
- Acabei por descobrir isso mesmo. Todos me diziam que tinha um bom corpo... não quero armar-me em boa, mas olhe que também pensava assim. Era mais bonita que muitas das raparigas que conseguiram singrar naquele meio, e tinha um corpo muito melhor.
- Não me custa a acreditar - diz ele.
-Aquilo que não tinha - prossegue Claire-, e ainda não tenho, era talento. Fiz um teste que resultou num perfeito desastre. Uma tia minha, a minha parente mais próxima, mandou-me dinheiro para a escola de arte dramática. Tentei, a sério que tentei, mas não fui capaz. Não era capaz de representar, cantar nem dançar. Já alguma vez esteve no Sul da Califórnia, Sr. Cone?
- Sim, passei lá uns tempos.
- Então sabe como é que é. Vida agitada, muito sol, praias, festas... vinte e quatro horas de divertimento seguido.
- Se tiver massa para isso.
Claire acaba a primeira bebida verde e prova a segunda,
- Exactamente - diz ela. - Se tiver massa para isso. Eu acabei por ficar tesa, e não era capaz de pedir mais à minha tia.
- Porque é que não voltou para casa?
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- Para Toledo? Não, muito obrigado, Em Toledo não há surfe, e para além do mais seria admitir a derrota, não acha?
- Já me aconteceu - diz-lhe ele. - Não é assim tão mau.
- Bom, eu não era capaz de suportar a ideia. Por isso, e para abreviar, acabei numa casa de São Francisco... não era um lar, era uma casa... compreende?
- Estou a ver - diz ele.
- Não me venha dizer que havia uma data de outras coisas ao meu alcance: vender roupas interiores num armazém, casar com um palerma, recorrer à assistência social. Sei disso tudo, e na altura também o sabia. A verdade é que queria ganhar dinheiro, muito dinheiro.
Cone não responde.
Claire fica calada e ele observa-a, interrogando-se sobre quanto da sua história será verdade e quanto será pura aldrabice. O rosto dela reflecte a inocência de
uma órfã pobrezinha, mas ele suspeita que lá por dentro a mulher será mais como uma Madame Defarge.
O nariz dela é pequeno e arrebitado; o lábio superior, pequeno, deixa entrever uns dentes muito brancos. A pele é de cetim, e se usa maquilhagem é em muito pequena quantidade. A beleza dela é algo característica: podia muito bem ser uma dançarina, tem um ar vibrante como se, de um momento para o outro, pudesse saltar para cima do balcão do bar e começar a dançar um Charleston que poria Cone derreado.
- E depois? - pergunta Cone, desejoso de ouvir o resto.
- Você está numa casa em São Francisco. Uma casa duvidosa. E depois?
- Foi assim - diz ela, levantando o queixo. - Era na Chinatown, de lá, e chamava-se Cúpula do Prazer. Muito cara, recebia quase exclusivamente cavalheiros orientais. A gerência era muito exigente; nada de drogas e, acredite ou não, as bebidas não eram toleradas. Aceitávamos cartões de crédito.
- Formidável. Você era a única branca lá do sítio?
- Éramos duas; a maior parte das outras raparigas eram chinesas, algumas muito novas, de Taiwan.
- E ganhou muita massa?
- Claro que ganhei. Comprei um apartamento, um guarda-roupa fenomenal, e pela primeira vez na vida consegui ter dinheiro no banco. Cheguei mesmo a pagar impostos; no
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sítio onde temos de escrever a profissão, pus Terapeuta-Massagista.
- Até levanto o copo a isso - diz Cone, e fá-lo mesmo.
- Quanto tempo lá esteve?
- Quase dois anos, até a casa ser assaltada pela Polícia e fechada.
- Ai sim? Foi a Polícia local?
- Não, foi o FBI. De acordo com as histórias saídas nos jornais, a Cúpula do Prazer fazia parte de uma cadeia de bordéis operada por um bando chinês qualquer.
- Hum-hum!... Chegou a ser acusada?
- Não me apanharam, consegui safar-me por pura sorte. No fim-de-semana em que a casa foi sujeita à rusga, eu estava em Seattle com um cavalheiro chinês que lá fora
em viagem de negócios. De vez em quando deixavam-nos fazer isso... viagens curtas com alguns dos clientes mais ricos. As gorjetas eram formidáveis. Enfim, quando na segunda-feira seguinte voltei para São Francisco descobri que estava sem emprego. Mais importante ainda, as outras raparigas que tinham sido apanhadas na rusga ainda estavam presas. Descobriu-se que a maior parte delas estavam ilegalmente no país, pelo que teriam de ser deportadas. Decidii então que o melhor a fazer era afastar-me o mais possível da Cúpula do Prazer; encerrei a conta no banco, fiz as malas e metí-me num avião para Nova Iorque.
Cone olha para ela, surpreendido.
- Coragem não lhe falta - comenta.
- Aprendi müito - diz ela. - Da maneira mais difícil. Mas consegui safar-me, tinha algumas pessoas a quem recorrer em Nova Iorque.
- Cavalheiros chineses?
Ela fita-o demoradamente, mas não descobre ironia nos seus olhos nem sarcasmo na voz.
- É verdade - acaba por dizer. - Velhos amigos. Tempos depois, aqui há uns três anos, fui apresentada ao Chin Tung Lee. Foi o homem mais simpático, amoroso e compreensivo que jamais conheci em toda a minha vida. A mulher dele tinha morrido, e o velho não pretendia viver o resto da sua vida tendo como única companhia o miserável do filho. O Chin tem quase o triplo da minha idade, mas quando me pediu para casar com ele, eu aceitei imediatamente.
- Estava cansada das brincadeiras? - experimenta Cone.
- Sim, estava pelos cabelos.
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- E o Chin era rico.
Ela mostra-se furiosa pela primeira vez.
- Porque diabo é que isso vem ao caso? Todos os meus amigos eram ricos, mas eu própria tinha dinheiro no banco mais que suficiente para os mandar dar uma volta! E fi-lo mesmo numa vez ou outra. Não me interessa o que você possa pensar; não casei com o Chin por causa do dinheiro dele.
- Está bem, está bem - diz Cone. - Acredito na sua palavra. Contou-lhe o seu passado antes de casar com ele?
- Não.
- Ele nunca perguntou?
- Só uma vez, mas eu inventei uma história qualquer, fiz-me passar por uma antiga professora primária do Ohio.
- A mim parece-me que acabou tudo em bem - comenta o detective da Wall Street.-No fim de contas porque é que estou aqui a ouvir a sua telenovela? Qual é o seu problema?
Claire suspira e abre uma malinha de pele de crocodilo que provavelmente custa mais que os proventos de Cone numa semana. Tira um sobrescrito e estende-lho.
- Mandaram-me isto pelo correio na sexta-feira passada
- explica ela. - Veja.
Cone inspecciona o sobrescrito branco e comprido. Dirigido à Sr.`a Claire Lee, para o seu apartamento da Quinta Avenida. Sem remetente, carimbo de Nova Iorque. Cone
olha para ela.
- Quer mesmo que eu leia isto?
- É por isso que vim aqui - responde ela, determinada.
Dentro do sobrescrito está uma simples folha de papel
branco dobrada em três, com duas linhas batidas à máquina: "Lembras-te da Cúpula do Prazer? Temos as fotografias."
Cone lê de novo a frase e olha para a mulher.
- Chantagem? - pergunta ela.
- Parece-me bem que sim. A que fotografias se referem eles?
- Nada de pornografia, se era isso que estava a pensar. No Ano Novo Chinês fazíamos sempre uma festa na Cúpula do Prazer, com comida e bebida à borla para os nossos melhores clientes. Todas as raparigas compareciam, claro que completamente vestidas. Os vestidos talvez fossem muito curtos ou decotados, mas não aparecíamos com nada à mostra. A coisa não passava de uma festa enorme e barulhenta, e tirávamos retratos para os vender aos clientes
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como recordação. Tanto quanto me lembro, foram essas as únicas fotografias tiradas na Cúpula do Prazer.
Timothy fica a olhar para ela.
- Você pode ter aprendido da maneira mais difícil, como já o disse, mas será que aprendeu tudo? Quando recebia um cliente na Cúpula do Prazer, para onde é que o levava?
- Para o andar de cima, onde ficavam os quartos. Eram todos muito bem mobilados e decorados.
- Aposto que sim. Havia espelhos nas paredes?
- Claro.
Cone sorri com frieza, e ela começa a empalidecer, o rosto a ficar tão branco e rígido como o chapéu.
- Caramba! - exclama ela. - Acha que nos tiravam fotografias através dos espelhos?
Cone encolhe os ombros.
- Não era a primeira vez, é uma jogada esperta por parte dos tipos que gerem bordéis. Por um lado consegue manter as raparigas na ordem, e por outro sempre vai vendendo fotografias ou fitas de vídeo aos tarados que gostam dessas coisas. Em terceiro lugar, há sempre a possibilidade da chantagem. As cenas são fotografadas ou filmadas através de um espelho duplo, e não demora muito até que haja um belo ficheiro de clientes e raparigas, sem conhecimento destes, claro está. O dono do bordel pode assim pressioná-los sempre que quiser.
- Oh, meu Deus!-diz Claire, desesperada. - O que é que posso fazer?
- Neste momento? Nada. A carta não passa de uma jogada de abertura. Os chantagistas obrigam sempre a vítima suar um bocado, a perder noites de sono, a passar a vida a pensar no quanto lhe irá custar manter o segredo bem guardado. Tem conseguido dormir desde que recebeu a carta?
- Só com comprimidos.
- Está a ver? Já vive ansiosa, suficientemente nervosa para vir ter comigo, e nem sequer sabe o que é que o chantagista tem nem quanto é que ele lhe vai pedir pelo
material, Vai receber outra carta, Sr.a Lee, talvez com uma fotografia anexa. Depois disso as cartas vão continuar, até lhe dizerem exactamente quanto é que deverá
pagar. Faz alguma ideia de quem poderá estar por detrás disto tudo?
- Não, não faço a mínima ideia. Não pode fazer nada para pôr cobro à situação?
- Infelizmente não, A primeira carta é mais que inocente:
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se a levar à Polícia eles desatam a rir. Até aqui ainda ninguém a ameaçou... por enquanto. É a clássica jogada de abertura num jogo mais que sujo, e a senhora
terá de alinhar. Oiça, Sr." Lee, importa-se que eu fique com esta carta?
- Para que é que a quer, se não há nada que possa fazer?
- Para que não passe a vida a lê-la e acabe por dar em doida. Quantas vezes é que já a leu? Uma dúzia? Cem vezes? Mil vezes?
- No mínimo - confessa ela. - Muito bem, pode ficar com ela.
- Avise-me assim que chegar a segunda carta - diz-lhe Cone. - Pode crer que vai receber outra; não tenha a menor dúvida.
Claire acaba a bebida.
- Sabe uma coisa, Sr. Cone? - pergunta ela. - Já me sinto melhor só por lhe ter contado o caso. É bem
verdade que as confissões fazem bem à alma...
- Acha que sim? - replica ele. - Nunca reparei nisso.
Bebe o resto do vodca e levanta-se.
- Vá dando notícias - diz-lhe ele, tentando parecer descontraído. - Obrigado pela bebida.
Dirige-se lentamente para a saída e faz uma pausa para pôr o chapéu, olhando de esguelha para trás. Carlos, o criado, já está ao lado dela; os dois falam apressadamente, as cabeças tão juntas que o tipo está praticamente debaixo da aba do chapéu dela.
Regressa ao sótão antes das cinco da tarde. Faz uma festa a Cleo e telefona imediatamente a Johnnie Wong, o agente do Federal Bureau of Investigation.
- Posso convidá-lo para uma bebida? - pergunta assim que o outro atende.
- Olá, meu caro! - responde Wong. - Foi o melhor suborno que me fizeram hoje. Onde?
- Que tal em minha casa?
- Óptimo.-Como é que dou com o sítio?
Cone ri-se.
- Se conseguiu o meu número de telefone confidencial, então também conseguiu a morada. Se cá chegar antes das seis ainda encontra a porta aberta e o elevador a funcionar. Vivo no sótão.
- Nesse caso até já.
Cone muda a água a Cleo e dá-lhe metade de uma lata
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de atum, sentando-se depois a rever a curiosa conversa com Claire Lee.
Não é capaz de ver algum motivo plausível que a tivesse levado a inventar uma história daquelas, e além do mais não é assim tão fora do vulgar que não possa ser
verdadeira. No entanto, por que raio é que ela resolvera contar a Cone, praticamente um desconhecido, todos os sórdidos pormenores do seu passado, quando nem sequer os revelara ao próprio marido?
Cone decide acreditar na mulher. A tipa está aterrorizada- ou pelo menos muito assustada. Não pode pedir ajuda a Chin nem a Edward, e peios vistos não tem mais nenhum amigo íntimo a quem possa recorrer. Como tal, dirige-se à única pessoa que conhece e que lida com a lei. Vista sob este ângulo, a confissão dela tem toda a razão de ser.
Tira a carta do bolso e lê-a de novo. "Lembras-te da Cúpula do Prazer? Temos as fotografias." A frase nada lhe diz, a não ser que o horror de Claire fosse fingido quando ele lhe falou nas filmagens feitas atrás de um espelho duplo. Talvez tenha posado de livre vontade com homens, mulheres, macacos e dálmatas, o que explicaria o medo dela perante uma carta que aparentemente nada revela de importante.
Ainda está a pensar na confusão que deverá estar a passar se dentro daquela cabecinha bonita, sem saber se a tipa o está a enganar ou não, quando ouve várias pancadas fortes na porta. Levanta-se e vai postar-se a um dos lados da porta.
- Quem é?
- Johnnie Wong.
Cone tira a corrente, roda a chave e abre a porta; o tipo do FBI entra de favocas à mostra, olhando à sua volta.
- Jesus Cristo! - exclama. - Você vive aqui? No seu lugar preferia dormir no escritório! O que é aquela coisa debaixo da banheira?
- É o Cleo, o meu gato -explica Cone. - Oiça, esta casa não é assim tão má... estava limpa e arranjada quando me mudei para cá, mas eu baralhei-a um pouco para a tornar habitável.
- Para si isto é que é habitável? É o melhor Hotel das Baratas que já vi em toda a minha vida! E essa bebida que me prometeu, onde é que está?
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Sentam-se em lados opostos da mesa. Wong prefere cerveja.
- Não, obrigado - diz quando Cone lhe oferece um boião vazio. - Gosto mais de beber da lata, o pior que me pode acontecer é cortar um lábio - bebe um gole e fica a olhar para o detective da Wall Street, pensativo.- Okay, você não me convidou para apreciar a decoração da sua casa. O que é que pretende?
- Como lhe disse, a Haldering foi contratada para investigar a subida das cotações da White Lotus. Tenho aqui comigo uma lista dos accionistas; são mais de dois mil nomes, por isso não lhe vou pedir que veja a relação completa. Queria era perguntar-lhe se não se importa de dar uma vista de olhos, a ver se reconhece algum dos nomes mais importantes.
- Oh, meu Deus! - protesta Johnnie Wong, soltando um suspiro. - As coisas que tenho de fazer para ganhar uma cerveja de borla! Tudo bem, mostre-me lá essa maldita lista...
Folheia-a rapidamente e por fim volta ao princípio, relendo-a mais devagar. Cone deixa-se ficar calado até o outro pôr a listagem de lado.
- Interessante - diz o homem do FBI. - Na segunda leitura, concentrei-me nos maiores accionistas, detentores de mil acções ou mais.
- Reconheceu alguns dos nomes?
- Cerca de meia dúzia. São todos membros do Panda Gigante.
Os dois homens fitam-se por momentos.
- O que é que isso quer dizer? - pergunta Cone.
- Sei lá!-replica Johnnie. - Suponho que se poderá concluir que o Panda Gigante está a conseguir uma posição de peso dentro da White Lotus. Só não sei quais serão as razões. E você, tem alguma ideia?
- Nenhuma - responde Cone, aborrecido. - Ainda estão muito longe de conseguirem o controlo da companhia, e de resto as acções dão cinco por cento de dividendos ao ano, o que é um belo investimento para investidores legítimos mas não passa de amendoins para um bando de criminosos.
- Bom - diz Wong-, o problema é seu. Acha que já paguei o preço da cerveja, ou ainda tem mais qualquer coisa para mim?
Cone sente admiração pelo tipo. É directo, põe as cartas
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em cima da mesa, enfrenta tudo de cara levantada. Timothy pensa que se o quiser ter do seu lado, então será melhor dar-lhe mais qualquer coisa.
- É verdade, tenho mais uma coisinha para si - começa. - Pode ser um osso liso, mas também pode ter alguma carne agarrada. Já ouviu falar num bordel em São Francisco
chamado Cúpula do Prazer?
Wong, que está a levar a lata de cerveja à boca, pára a meio e volta a pousá-la em cima da mesa.
- A Cúpula do Prazer! - repete. - Como é que você me vem agora com essa, por amor de Deus? Se já ouvi falar nela? Pode apostar o couro e o cabelo que sim! Estava
a prestar serviço em Frisco quando fizemos uma rusga à casa. Um verdadeiro palácio! Raparigas brancas, negras, chinesas, coreanas, ibéricas, japonesas... era só pedir. Parecia as Nações Unidas, tudo muito exclusivo e caríssimo. Proibida a entrada a marinheiros. Como é que ficou a saber da Cúpula do Prazer?
- No meio de uma conversa - responde Cone. - Quem eram os donos da tasca?
O agente do FBI põe a cerveja de lado e levanta-se.
- Okay, se resolveu armar-se em duro, então passa a ser assim. Não volte a procurar-me.
- Aguente aí!-pede Cone. - Deixe-me pensar.
- Sim, acho melhor que pense bem - diz Wong, voltando a sentar-se.
Deixa-se ficar calado, a beber a cerveja enquanto fita Cone com dureza.
O detective da Wall Street sabe que precisa deste tipo: as ligações dele ao submundo asiático são praticamente inacessíveis a Cone. Cone é reservado por natureza, mas neste caso essa característica pode virar-se contra si, pode duplicar-lhe o trabalho ou mesmo torná-lo impossível. Pondera durante um bom bocado, tentando decidir a quem deverá dar a sua lealdade. Até que ponto deverá respeitar o seu cliente? E a mulher do cliente?
- Quem eram os donos da Cúpula do Prazer? - pergunta uma vez mais, experimentando o outro.
Wong ri-se na cara dele.
- Prefiro negociar em último - díz o agente. - Quem é que lhe falou nesse sítio?
Cone desiste ao ver que não lhe resta outra hipótese.
- Uma mulher chamada Claire. O nome diz-lhe alguma coisa?
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- Bom Deus, isto é pior do que arrancar dentes a frio! Quai é o apelido dessa Claire?
Cone hesita momentaneamente, mas por fim decide que perdido por um, perdido por mil.
- Lee. Ciaire Lee. Confessou-me que trabalhou na Cúpula do Prazer.
- E depois? É bem possível, trabalhavam lá não sei quantas mulheres. Qual é o seu interesse nisso?
- Acontece que é a mulher de Chin Tung Lee, director-geral e accionista maioritário da White Lotus.
- Bonito!-exclama o agente do FBI, sorridente.- A merda começa a vir ao de cima, meu caro.
- Porquê?
- Porque a Cúpula do Prazer pertencia ao bando dos Bambu Unidos. Fazia parte de uma cadeia de bordéis que eles geriam ao longo de toda a Costa Oeste... e a mulher
do patrão da White Lotus trabalhou numa das tascas dos Bambus Unidos. Que conclusões é que tira daí?
- Nenhumas - diz Cone. - Não consigo perceber nada.
Johnnie Wong inclina-se sobre a mesa, aproximando o
rosto do de Cone.
- Não me está a esconder nada, pois não?
- Eu? Nem pensar. Estou tão às escuras como você.
O homem do FBI reclina-se de novo na cadeira, e por
fim dá uma tremenda palmada no tampo da mesa, o que faz Cleo sair a correr de debaixo da banheira.
- Porra! - exclama Wong, zangado. - É como lhe disse, sinto que se está a passar qualquer coisa... tenho ouvido conversas aqui e ali, os meus informadores têm-me dado vários palpites. Os grandes patrões do Bambu Unido e do Panda Gigante estão na cidade; tem havido várias reuniões, há muita gente a ir e a vir. Depois foi o assassínio do Chen Chang Wang, e agora esta coisa da White Lotus... há qualquer coisa na forja, talvez uma guerra de morte entre os dois gangues, ou então uma prova de força a ver qual deles fica com o território de Nova Iorque. Quem sabe? Oiça, se você souber qualquer coisa, seja ela qual for, entre imediatamente em contacto comigo. Mesmo que não a considere importante. Pela minha parte, comprometo-me a fazer o mesmo consigo. Gostava de deter esses cretinos antes que comece o tiroteio em Manhattan. Vá dizendo coisas, e já agora obrigado pela cerveja.
- Sempre que quiser - diz Cone.
Depois de Wong sair, Cone vai à kitchenette para
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aquecer uma lata de carne seca picada, preocupado com a possibilidade de ter falado de mais ao revelar a identidade de Claire Lee. Conclui pelo negativa; no fim de contas, nada disse sobre a carta do chantagista.
O homem do FBI não precisa de saber disso. Por enquanto.
Cone passa a manhã de quinta-feira no escritório, entretido com uma série de telefonemas inócuos por causa dos outros dois processos entediantes que o patrão lhe atribuiu. Não são nada difíceis, e enquanto vai falando com as pessoas implicadas, continua a pensar no caso da White Lotus e no aspecto formidável de Claire com aquele chapéu de abas largas. A vida que a mulher levou não lhe roubou nenhuma beleza; parece nunca ter sido tocada por mãos humanas.
Talvez tenha vendido a alma ao Diabo em troca da juventude eterna, pensa Cone. Ele próprio não se importava de assinar um contrato do género, mas o Diabo nunca lhe perguntou se queria.
Por fim consegue tudo o que precisa para encerrar os dois processos. O tanso que se meteu no negócio dos cavalos miniatura nunca mais verá o dinheiro empatado, e os dois fabricantes de plásticos podem unir-se com toda a confiança e viver muito felizes daí em diante.
Sic transit...
Está a fumar o quarto cigarro do dia, estudando as tabelas de cotações da bolsa do New York Times, quando o telefone toca. Fica a olhar para o aparelho, põe o jornal
de lado e atende, pensando que talvez seja o Diabo, pronto para lhe propor o tal contrato.
- Sim?
- Sr. Cone, fala Edward Tung Lee. Como é que vai essa saúde?
- Vou sobrevivendo.
- Vou agora mesmo para os seus lados, e queria saber se será possível dar um pulo ao seu escritório Há um assunto que gostaria de discutir consigo.
- Claro - responde Cone. - Eu não vou sair, apareça quando quiser.
Lee chega passados dez minutos, o que leva Cone pensar que o tipo lhe telefonou da esquina do quarteirão
,era impossível fazer tão depressa o trajecto desde Exchange
Place.
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Está tão bem vestido como no encontro no Ah Sing"s Bar & Grill, e desta vez traz um fato de seda cinzenta tão brilhante como uma moeda de prata acabada de cunhar. Contudo, o habitual ar de confiança está algo desgastado: parece nervoso. A testa alta e larga revela gotas de suor, e o homem farta-se de torcer e retorcer a pulseira de ouro.
Deixa-se cair na cadeira em frente à secretária de Cone, e não tece comentários ao ambiente claustrofóbico do gabinete.
- Primeiro que tudo - começa ele-, queria agradecer-lhe por não ter dito ao meu pai que estávamos os dois no Ah Sings quando mataram o Chen Chang Wang.
- Pois é, como você também não lhe disse nada, pensei que teria boas razões para não se referir a esse aspecto.
- Não quis preocupar o velho - diz Lee, muito sério.
- Ele e o Chen eram amigos de há longa data.
- Hum hum!-diz Cone. - Mas por certo que o seu pai leu as notícias; veio em todos os jornais, e suponho que nas estações de TV locais.
- Oh!, ele acabou por ficar a saber, mas não quis ser eu a dar-lhe a triste novidade.
- Compreendo - diz Cone.
- Mas sobre a sua investigação... - continua Lee, tirando um lenço branco do bolso do casaco para limpar a testa. - Mas que calor!
- Pois é - replica Cone. - É habitual no Verão.
Lee ignora o remoque.
- Sobre a sua investigação... já conseguiu chegar a algum lado?
- Nem por isso - diz-lhe Cone. - Tenho outros processos entre mãos, e tive de os resolver primeiro.
- Bom, tenho a certeza de que chegará à mesma conclusão que eu, de que lhe falei no Ah Sing"s: é
um movimento normal do mercado resultante da procura da qualidade.
- Pode ser que sim- diz Cone. - Já reparei que a White Lotus subiu ontem mais sete oitavos... muitas transacções para uma firma com um capital tão pequeno como o
vosso.
- Não passa de um pico-replica Edward. - Não tem a mínima importância.
O detective da Wall Street não responde, preferindo
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aguardar que o fulano, cada vez mais nervoso, desembuche por completo.
- Na verdade, o assunto que queria tratar consigo não tem nada a ver com a White Lotus - diz Lee, limpando de novo a testa suada. - É um assunto mais... bem, de
natureza mais pessoal.
- Oh? - espanta-se Cone, sem saber se alguém o ordenou como padre confessor. - De que se trata?
- É uma estupidez - diz o outro, conseguindo compor uma má imitação de um sorriso. - O mais provável é não ter a mínima importância.
Cone aguarda em silêncio, não lhe dando a mínima ajuda. Se este tipo me vem dizer que também trabalhou na Cúpula do Prazer, corro-o a pontapé daqui para fora...
- Como é capaz de saber - decide-se Lee-, eu vivo no apartamento do meu pai; contudo, disponho da minha própria suite com entrada privativa, além de um número de telefone que nem sequer vem na lista. Na última sexta-feira, à noite, por volta das onze, estava a ler um livro quando o telefone tocou. Uma voz de homem perguntou: "Edward Tung Lee?". Eu disse que sim, e ele continuou: "Temos conhecimento do caso do Bedlington". Desligou logo a seguir. Bom, a princípio julguei que se tratava de uma dessas chamadas feitas por pírulas, mas fiquei preocupado por terem descoberto o meu número confidencial e por me terem tratado pelo nome completo.
- Reconheceu a voz? - pergunta Cone.
- Não - diz Lee. - Tinha uma entoação igual à da BBC, mas nas entrelinhas pareceu-me distinguir mais qualquer coisa, talvez o sotaque de um chinês educado em Inglaterra. É um tipo de pronúncia algo musical que com o tempo acabamos por reconhecer.
- Estou a ver - diz Cone. - Em vez de se dar ênfase a determinada sílaba, a pessoa altera o tom de voz.
Lee fita-o de olhos arregalados, espantado:
- Como é que sabia disso?
- Não costumo esquecer-me das coisas que considero úteis - afirma Cone. - Portanto o tipo disse-lhe que estava a par do caso do Bedlington e desligou logo a seguir. Foi assim?
- Sim, precisamente. A noite passada voltou a telefonar-me; era a mesma voz e, tanto quanto me lembro, disse-me: "Sobre o Bedlington, terá notícias nossas."
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- Tem a certeza de que o tipo disse "nossas" e não "minhas"?
- Tenho a certeza, o fulano disse mesmo "nossas". Aliás, no primeiro telefonema a frase utilizada foi "temos conhecimento do caso do Bedlington".
- Hum-hum! - diz Cone, lacónico.
- O nome Bedlington diz-lhe alguma coisa a si? - pergunta Edward.
- Claro que diz - responde Cone com um ar perfeitamente inocente. - É um cão, um terrier.
Lee consegue soltar um ruído parecido com uma gargalhada.
- É verdade, mas acontece que também é o nome de um hotel na Madison Avenue. Fica a cerca de três quarteirões do meu apartamento, ou melhor, do apartamento do meu
pai.
- E depois?
- Bom... como já deve saber, eu sou solteiro, mas... ah!... Isso não significa que tenha de ser um monge, pois não? Assim, numa dada ocasião, levei uma mulher para o Hotel Bedlington. O senhor já se encontrou com mulheres em hotéis ou motéis, não?
- Não nos últimos tempos - diz Cone.
- Bom, eu costumo recorrer a esse esquema, tenho um acordo com um dos recepcionistas do Bedlington. É tudo tratado da forma mais discreta possível, quero dizer, não dou bacanais nem nada no género... nunca tive problemas até me aparecerem estas estúpidas chamadas telefónicas.
- Há quanto tempo é que se serve do Beblington para se divertir?
- Oh, há mais ou menos dois anos!
- O tal recepcionista é de confiança?
- Completamente, nunca tentaria fazer-me chantagem.
- O que é que o leva a pensar que se trata de chantagem? Você é maior e vacinado... e a única coisa que tem feito é encontrar-se com mulheres adultas, de sua livre vontade. As suas amiguinhas eram adultas, não eram?
- Mas claro!-exclama Edward, ofendido.
- E então? Como é que o podem ameaçar de chantagem? Porque é que está tão preocupado?
Lee agita-se na cadeira desconjuntada, pouco à vontade.
- Por causa do meu pai, compreende? O meu pai é da
velha escola, muito... muito rígido. Se me descobrisse era um inferno.
Cone encolhe os ombros,
- Não me parece haverem razões para tanto - diz a Lee. - Você tem o direito de viver a sua própria vida... se esses telefonemas o estão a preocupar, porque é que não vai ter com o seu pai? Conta-lhe tudo, pede-lhe perdão e promete-lhe que a partir daí se vai portar bem... segundo me pareceu, o seu pai é um homem extraordinariamente inteligente e arguto; já viveu muito, e como tal deve ter visto de tudo, talvez mais do que você julga. Não o consigo imaginar a levantar uma tempestade por causa de umas piruetas no Hotel Bedlington!
- O senhor não o conhece!-diz Lee em voz baixa.
- Quando se enfurece, o meu pai pode tornar-se num homem assaz vingativo.
- Bom, quanto a isso não me parece que possa fazer grande coisa. Pode pedir para lhe mudarem o número do telefone privativo, mas eles passariam a ligar-lhe para o escritório.
- E o senhor, não há nada que possa fazer?
- Como o quê, por exemplo?
- Descobrir quem é que está por detrás disto.
Cone diz que não com a cabeça.
- Nunca na base daquilo que me acabou de dlier. Podia conseguir que lhe pusessem o telefone sob escuta, para lhe gravarem as chamadas... mas aonde é que isso nos levava? Se o tipo só falar durante um minuto ou dois, as hipóteses de se localizar a chamada são praticamente nulás. A única coisa que lhe posso sugerir é o seguinte: se for mesmo chantagem, mais tarde ou mais cedo o seu misterioso interlocutor vai informá-lo da quantia pedida e do modo como a deve entregar; caso se trate de uma operação pessoa a pessoa, posso tratar-lhe do assunto, posso mesmo prender o tipo ou fazer com que o sigam. Se o pagamento for feito pelo correio ou largando o dinheiro num sítio qualquer, ainda é possível chegarmos aos chantagistas, mas o certo é que neste momento não dispomos de nada.
- Nesse caso, se eu receber mais alguma chamada e o avisar a si, acha que posso contar consigo?
- Claro que pode.
- Muito obrigado! - diz Edward Lee, parecendo sincero; levanta-se e inclina-se sobre a secretária para apertar a
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mão a Cone. - Pode não acreditar, mas acabou de me tirar úm peso de cima do coração. Muito e muito obrigado!
Depois do asiático sair, Cone acende novo Camel, recosta-se na cadeira e mete os pés em cima do tampo da secretária. Segundo calcula, está metido numa das histórias mais estranhas de toda a sua vida, mais esburacada que uma roda de Emmentaler. A única razão por que deu importância ao caso baseia-se na frase utilizada no telefronema anónimo: "Sabemos do caso do Bedlington." Curiosamente, o tipo que mandou a carta a Claire também disse: "Temos as fotografias." Nós, nós, nós.
Interessante.
4
Na quinta-feira à noite, Timothy Cone sobe a Broadway em passo de passeio, parando em dois bares para tomar uma cerveja e fumar um cigarro. Não é capaz de tirar da cabeça a estranha história impingida por Edward Lee; pode ter muitas facetas verdadeiras, mas também revela buracos suficientemente grandes para conterem um camião de várias toneladas.
Por exemplo: se Edward quer passar uns bons momentos com uma pequena, porque é que não a convida para o seu apartamento? Não é verdade que dispõe de uma entrada privativa?
Por outro lado, o receio pela ira do pai não é coisa que pegue. Cin Tung Lee pode ser velho e antiquado, mas Cone é capaz de acreditar que o ancião enveredasse por uma vingança tipo oriental ao descobrir que o seu Número Um gosta de arejar as jóias da família de quando em quando.
Não, o menino Edward não está a dizer tudo o que sabe. O caso dos telefonemas anónimos pode ser verdadeiro, mas Cone era capaz de apostar a quinta da família em como essas chamadas põem Edward a suar por mais qualquer coisa do que o simples receio de chocar o papá querido.
A noite está calma, suave, com um céu limpo e uma brisa provocante. As estrelas começam a despontar, e a Lua, em quarto minguante, ainda é capaz de recobrir a cidade com um manto de prata. Cone não tem vontade nenhuma de voltar para o sótão, mas sente necessidade
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de comer, sabe que tem de alimentar o gato e, se lhe apetecer, pode sempre voltar à sua ronda nocturna dos bares da zona.
Quando entra dá com o telefone a tocar; dá um pontapé a Cleo para lá chegar.
- Sim?
- Olá, cara de cu - diz Samantha Wathley. - Pensei em telefonar-te antes que começasses com a tua ronda dos bares.
- Nã - diz ele. - Isso nem sequer me passou pela cabeça. Como é que vai isso?
- Mal, a minha mãe chateou-me até à medula e obrigou-me a engordar três quilos, todos nos sítios errados. E no escritório, como é que vão as coisas?
- Tudo bem.
- O Hiram arranjou-te problemas?
- A mim? Não. Tenho-o evitado o mais possível.
- Falei com ele hoje à tarde, e ele disse-me que andas a trabalhar naquela coisa dos chineses.
- Pois é, estou enterrado em chop suey até ao pescoço.
- É excitante?
- Nem por isso - diz Cone.
- Jesus, sempre me saiste cá um filho da mãe... -protesta Sam. - Tens tido cuidado com o tabaco?
- Ando a tentar - responde ele, vasculhando o bolso do casaco para tirar novo cigarro.
- E esse teu gato miserável, ainda é vivo?
- Vivo e faminto. Quando é que voltas para cá?
- Daqui a uma semana, mas vou chegar já de noite. Encontramo-nos no sábado?
- Claro - diz ele. - Era formidável.
- Porta-te bem.
- E tu também.
- Era a Sam - diz ele a Cleo depois de desligar.- Manda-te cumprimentos.
Vai inspeccionar o conteúdo do frigorífico, mas parece que a época é de miséria: descobre meia lata de atum. restos disto e daquilo, mas nada para comer a sério. Dá o atum a Cleo, muda-lhe a água e sai para a rua.
- Não demoro, filho - promete ao gato. - Vê lá se te deitas cedo.
Na esquina há uma tasca grega que costuma estar aberta até às nove, a que Cone chama o Palácio Ptomalne
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"A comida é um autêntico veneno", disse ele uma vez a Samantha, "mas as doses são mais que generosas."
Senta-se ao balcão de fórmica e manda vir um prato de carneiro quisado com pão de centeio; para beber, uma garrafa de Heineken. Pouco depois dá consigo a pescar
uns míseros pedaços de carneiro no meio de um molho viscoso; no entanto, as batatas, cenouras, cebolas e aipo são quanto basta para dois. Abusando do sal e da pimenta, consegue a única coisa que exige de uma refeição: atascar-se.
Por fim parte o pão em pedaços e empapa-os no molho, mandando vir nova dose de carneiro guisado para levar ao gato: o Cleo é capaz de se aguentar com ela durante uns dois dias, no mínimo. O pedido é-lhe entregue numa embalagem de esferovite metida dentro de um saco de papel castanho.
Com a compra na mão, decide voltar ao sótão. Está na Broadway, já perto de casa, quando dois tipos atarracados saem da entrada de um prédio e lhe barram o caminho. Ambos vestem calças pretas e casacos cinzentos de alpaca; parecem ser chineses e ainda jovens.
- O senhor é o Sr. Timothy Cone? - pergunta um deles.
- Não, não sou, amigo -diz Cone. - Chamo-me Simon Legree, e sou do Tenessee.
Após rápida troca de palavras em chinês, o outro homem agacha-se num repente e passa as mãos pelas canelas de Cone; tira o 357 Magnum do coldre do tornozelo e estende-o ao parceiro.
- Afinal é mesmo o Timothy Cone - diz o palrador.
- Venha por aqui, se faz favor.
Sem a S&W, Timothy resolve alinhar, sempre com o guisado de carneiro na mão. Os tipos levam-no até um enorme Bulck de modelo antigo, um verdadeiro carro de médico.
Ao volante senta-se um terceiro chinês. Obrigam Cone a sentar-se no amplo banco traseiro e flanqueiam-no sem delongas. - Tenho de lhe tapar os olhos - diz o chefe. - Peço-lhe imensa desculpa.
A venda é branca e almofadada; colocam-lha tão depressa que Cone pensa ter sido apertado com uma tira de Velcro. O carro arranca.
- Bonita noite para um passeio - comenta ele, mas como não obtém resposta desiste de os espicaçar.
Descontrai-se, deixando o corpo sentir a gravidade e o
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momento, balançando ao de leve sempre que o automóvel dá uma curva. Tenta calcular o trajecto: uma volta à direita em ângulo recto, uma recta com o Buick a acelerar, o abrandar para nova viragem à direita. Calcula que estejam a contornar o quarteirão para seguir em direcção à parte alta da cidade.
Não consegue ver nada de nada através da venda, mas pode ouvir as mudanças do ruído do trânsito à medida que vão passando pelas transversais. Conta o número de quarteirões
e, quando o Buick vira ligeiramente à esquerda, calcula estarem por alturas da Rua Catorze. O carro pára durante uns momentos, provavelmente à espera de um sinal
verde, e por fim vira à esquerda. O ruído do trânsito é agora mais forte, e Cone pensa tratar-se de uma rua mais larga, no sentido nascente-poente; ou é a Catorze ou a Vinte e Três.
O carro abranda após cerca de quatro minutos de marcha, e Cone desequilibra-se quando surge uma curva apertada à direita. Seguem por uma descida em que o motor do Buick ronrona com um som reverberante, quase como um eco. Uma garagem subterrânea, pensa Cone. O carro trava, pára e a porta de trás abre-se. Ajudam-no a sair com todo o cuidado, sem nada de violências gratuitas, mãos agarradas a ambos os braços; sempre com o embrulho do carneiro guisado na mão, é conduzido durante cerca de seis metros. Debaixo das solas das botas sente um piso de cimento, e o local cheira a gasolina e a fumo de escapes. Fica plenamente convencido de que estão dentro de uma garagem subterrânea.
Os homens que o agarram apertam-no mais; os três abrandam, páram e aguardam um minuto. O som de uma porta de elevador a abrir-se: chão de linóleo ou outro material sintético, liso. O ruído metálico das portas do elevador a fecharem. Sobem, e Cone conta silenciosamente os segundos: cento e um, cento e dois, cento e três... calcula que estejam a fazer dois segundos por andar; o elevador detém-se aos 118. As portas abrem-se e é levado para fora.
Agora caminham sobre alcatifa elástica. Uma grande caminhada; Cone, que conta as passadas, calculada em doze metros no mínimo. Os seus captores já não o pressionam por isso deve tratar-se de um corredor amplo. Um hotel? Não, nunca correriam o risco de se cruzarem com hóspedes enquanto conduziam um homem de olhos vendados.
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Páram, Três pancadas secas em madeira, o leve ranger de uma porta a abrir-se. Cone é empurrado para a frente, tropeçando ao de leve numa alcatifa mais espessa, talvez um tapete de pêlos farfalhudos. Viram uma esquina e empurram-no de novo, as mãos atrás das costas. Palavras rápidas em chinês. E então...
Uma voz clara e firme:
- Sr. Cone, o que é que traz consigo?
- Guisado de carneiro - diz ele. - Se quiser pode comer um bocado.
Ouve uns dedos a estalarem; tiram-lhe o saco das mãos, e Cone ouve o papel a abrir-se e logo de seguida o ruído cavo da tampa da embalagem de esferovite a ser retirada.
- Tem razão -diz a voz. - É mesmo guisado de carneiro... e pelo que parece muito mal confeccionado.
- Não é assim tão mau - protesta Cone. - Enche a pança.
- Sr. Cone, tenho de lhe pedir desculpa por estes métodos tão pouco ortodoxos de que me servi só para ter o prazer de o conhecer. Espero que não o tenham molestado fisicamente.
- Nã - diz Cone. - Os seus tipos fizeram um belo trabalho. Será que já me podem tirar a venda?
.... -Receio que não seja nada aconselhável. E, por favor, não tente tirá-la: atrás de si estão dois homens muitíssimo rápidos, ambos armados.
- Okay - diz Cone. - Prometo que me porto bem.
- Excelente. Isto não demora nada, e depois vamos pô-lo em sua casa. Sr. Cone, segundo fiquei a saber o senhor anda a investigar o aumento das cotações da White Lotus.
- Onde é que ouviu dizer isso? - replica Cone. - Oiça, se vamos ter uma conversa, será que não me posso sentar?
Prefiro que continue de pé - responde-lhe a voz em tom seco. - Não lhe vou pedir que páre com as suas investigações, Sr. Cone. Sei que trabalha para a Haldering & Companhia e que o caso lhe foi atribuído. A única coisa que lhe queria pedir era que protelasse as suas averiguações por mais uma semana... enfim, duas semanas no máximo. Tenho a certeza de que conseguirá isso sem ter de se haver com objecções insuperáveis por parte do seu patrão.
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- Talvez consiga - responde Cone. - Mas porque é que o faria?
- Porque eu lhe estou a pedir - diz a voz, num tom suave mas perigoso. - Como será natural, pode contar com uma boa retribuição.
- Ai sim? - diz Cone. - Quanto?
- Cinco mil dólares. Em notas pequenas e não marcadas.
- Esqueça. Eu vivo do meu ordenado, que não é grande mas dá para viver.
- Então, Sr. Cone!-continua a voz macia.- Não bé nenhum ordenado que seja suficiente. Todos nós queremos sempre mais, não é verdade?
- Eu recebo o suficiente - insiste Cone, teimoso.
- E não há nada neste mundo que o senhor deseje?
- Há! Sempre quis dormir com uma contorcionista. É uma coisa com que ando a sonhar há já muito tempo.
A voz transforma-se numa gargalhada e diz qualquer coisa em chinês; os dois homens atrás de Cone desatam a rir.
- Não será difícil de conseguir, Sr. Cone -diz a voz em tom frio.
- Estava a brincar - confessa Cone. -Oiça, não gosto nada de estar aqui em pé com esta trampa nos lábios, por isso vamos lá ao que interessa. O que é que acontece se eu me recusar a protelar as investigações da White Lotus?
- Peço-lhe que não mo obrigue a dizer.
- Ande lá, não faça cerimónia.
- Então receio que nos vejamos forçados a matá-lo, Sr. Cone.
- Okay - responde o detective da Wall Street, divertido. - Sempre gostei de saber com que linhas é que me coso. Dá-me uma hipótese de pensar na sua proposta?
- Quanto tempo?
- Uma semana.
- Três dias - diz a voz, autoritária. - Depois vamos á sua procura, Sr. Cone. Pode fugir, mas nunca conseguirá
esconder-se.
- Boa tirada, mas olhe que não é sua - diz Cone,- É do Joe Louis. Já posso ir para casa?
- Entraremos em contacto consigo na próxima segunda -feira, e nessa altura vamos querer uma resposta. Sim, ja se pode ir embora.
- Posso levar o meu guisado?
- Faça favor.
- E a minha coisa?
- A sua coisa?
-A minha arma. O revólver que os seus tipos me tiraram.
- A sua arma ser-lhe-á devolvida, Sr. Cone. Muito obrigado pela sua amável colaboração.
Segue-se uma longa conversa em chinês. Metem-lhe o embrulho de papel nas mãos, agarram-no pelos braços e o filme começa a correr ao invés: uma volta à esquina, a alcatifa espessa, a porta, a descida no elevador, a chegada à garagem, o carro e o caminho de regresso. Cone, sempre a contar o tempo, calcula o trajecto em quinze minutos.
O carro pára e dois pares de mãos ajudam-no a sair, sempre com o embrulho do guisado. Tiram-lhe a venda e deixam-no em pé no meio do passeio, a piscar os olhos.
Os dois chineses vestidos de alpaca trocam rápidas palavras entre si; um deles faz meia volta e desce a Broadway até desaparecer para lá de uma esquina; o palra-dor aponta a Cone uma Luger de nove milímetros.
- Vamos deixar o seu revólver em cima do passeio - explica o homem. - Por favor não tente apanhá-lo enquanto não partirmos, caso contrário seremos forçados a replicar.
Com os olhos ainda enevoados, Cone vê o outro tipo pousar o seu Magnum no passeio, junto a uma boca de incêndio. Volta para junto dele e os dois chineses entram no carro.
- Boa noite, Sr. Cone - diz o chefe.
O Buick acelera, contorna a esquina com os pneus a guincharem e desaparece da vista.
Cone vai buscar o canhangulo, inspeccinando-o rapidamente à luz de um candeeiro da rua. Parece-lhe em ordem, nem sequer lhe retiraram as munições. Enfia-o no bolso do casaco e volta a pé para o seu prédio. Antes de subir, porém, deixa-se ficar por momentos no meio do passeio deserto.
O facto de o terem vendado deixou-o aterrorizado. Não é experiência por que gostasse de voltar a passar. Agora já consegue ver nitidamente o cone de. luz do candeeiro, as sarjetas brilhantes da sua cidade e, lá muito em cima, o brilho das estrelas em ascensão. Uma autêntica bênção, ou melhor ainda, uma deliciosa sensação de bem-estar. A adrenalina afinal também pode saber bem.
No sótão, a primeira coisa que faz é despejar parte da
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mistela gelatinosa no prato de Cleo; o gato, feliz, começa imediatamente a morfar. Cone prefere um copo de brande, que bebe enquanto se despe, contemplando com olhos diferentes o gato, o sótão, o mobiliário, tudo o que lhe é familiar.
Em cuecas, vai apagar a luz e estende-se no colchão.
- Agora toca a fazer ó-ó - diz para o gato, mas como resposta só lhe chega o ruído gorgolejante do guisado de carneiro a ser deglutido.
Ainda está em cuecas quando, na sexta de manhã, telefona a Johnnie Wong.
- Não me diga que já está no escritório - diz o homem do FBI.
- Vou a caminho - responde Cone. - Oiça, você disse-me para o contactar se acontecesse qualquer coisa, mesmo que não me parecesse importante. Okay, aconteceu uma coisa: levaram-me a dar um passeio.
- Bom, como está a falar comigo parto do princípio de que não foi um passeio sem regresso.
Timothy descreve-lhe os acontecimentos da noite anterior, e Wong escuta-o sem interromper. Quando Cone acaba, o chinês diz-lhe:
- Consegue identificar os dois soldados que o apanharam na rua?
- Duvido.
- Já sabia - diz Johnnie. - Para vocês, olhos azuis, nós parecemos todos iguais.
- Eu não, os meus olhos são castanhos como a merda.
- E o mandão?
- Calculo que seja chinês, mas fala o inglês como um professor ou como se fosse a sua segunda língua. Quero dizer, nunca usou contracções nem nenhum termo de calão.
- Você deve saber melhor do que eu o que são contracções. Mais alguma coisa sobre o tipo?
- É um daqueles tipos com um punho de ferro dentro de uma luva de veludo... muitíssimo delicado, do género de pedir desculpa antes de nos cortar a cabeça. Pediu-me
para aguentar a investigação durante duas semanas, por isso acho que você tinha razão: há qualquer coisa na forja.
- É só isso que tem sobre ele?
- Já lhe disse que estive sempre de olhos vendados.
- Faz alguma ideia do sítio para onde o levaram?
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- Calculo que seja um prédio de apartamentos na Rua Catorze Oeste, por alturas da Décima Avenida. Fica do lado norte da rua, e pelo menos no nono andar. O prédio
tem garagem na cave e elevadores automáticos, e os corredores são largos e alcatifados. O apartamento onde entrei tinha porta de madeira e um tapete muito espesso.
- Mas não me disse que tinha uma venda nos olhos?
- Pois tinha, mas não me proibiram de cheirar nem de ouvir, e além disso sou capaz de sentir as coisas debaixo dos pés. Ah! é verdade, também sei contar segundos e minutos.
- Você saiu-me cá um melro... - comenta Johnnie Wong.
- Bom, com esses dados todos já sou capaz de fazer uma estimativa: levaram-no para um prédio de doze andares, propriedade do bando do Panda Gigante. Como você disse,
fica na Rua Catorze Oeste, mas entre a Oitava e a Nona. Os apartamentos estão todos alugados, mas o décimo andar inteiro é ocupado pelo quartel-general dos Pandas,
divisão da Costa Leste. O chefe com quem você provavelmente falou foi um fulano chamado Henry Wu Yeh, comandante da ramificação de Nova Iorque. Veio de Hong-Kong,
e estudou na UCLA. Um tipo das arábias, e ainda por cima milionário. É o tipo que está a tentar meter o Panda Gigante no mundo dos negócios legítimos, e é do género de nos dizer "ou me entregam a General Motors ou então..."
- Sim, tem todo o ar de ser esse - replica Cone.- Num minuto é o Sr. Simpático e no seguinte é a Trombeta da perdição.
- A propósito, pode encontrar o Henry Wu Yeh na lista de accionistas da White Lotus, naquela que você me mostrou outro dia.
- A sério?
- A sério. Já. não me lembro quantas acções tinha, mas de certeza que são mais de mil. Oiça, você acha que precisa de protecção?
- Para quê?
- Bom, o Yeh disse que ia à sua procura na próxima segunda-feira, não disse?
- E depois? É uma segunda-feira como outra qualquer, e ainda tenho três dias antes que me apertem o pescoço.
Johnnie Wong solta uma gargalhada:
- Como dizem os chineses, montes de solte, grande amigo.
Depois de desligar, Cone fica por momentos a olhar
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para a parede. Não constituiu nenhuma surpresa o ficar saber que esteve nas mãos do Panda Gigante. O seu
raciocínio é o seguinte:
Encontra-se com Edward Tung Lee no Ah Sings Bar , Grill, na Pell Street.
Depara-se-lhe Lee e Chen Chang Wang em amena cavaqueira.
Wang é abatido e, pouco depois, Cone fica a saber que o homem era um oficial da organização Panda Gigante.
No meio do burburinho, Edward Lee repara que Timothv Cone usa um revólver num coldre de tornozelo.
Guando os soldados do Panda Gigante apanham Cone a primeira coisa que fazem é revistá-lo em baixo, à
procura do coldre de tornozelo. Não foi uma revista normal;
os casacos de alpaca sabiam onde procurar.
Ergo: Edward Tung Lee é membro do bando Pande Gigante ou está-lhe estreitamente associado; foi ele quem os preveniu sobre o revólver guardado no tornozelo.
Portanto, se o Edward Lee é amiguinho dos Pandas Gigantes, as chamadas telefónicas que recebeu devem ter vindo de outra banda. Talvez do bando dos Bambus Unidos?
Será que estes também são responsáveis pela carta mandada a Claire Lee? O Bambu Unido possuía o bordel de São Francisco onde ela trabalhou, pelo que não lhe custava
nada obter fotografias comprometedoras.
Ponderando todas estas combinações e permutações, Cone acende o primeiro cigarro do dia, tosse e vai à secretária para consultar a lista de accionistas da White
Lotus. Sente curiosidade em saber quantas acções possui Henry Wu Yeh, patrão dos Pandas Gigantes.
Da lista, nem sinal. Não consegue descobri-la. Procura por todo o lado, indo mesmo a sítios pouco prováveis, como por exemplo o armário por baixo da pia. Não a encontra. Põe-se de gatas e espreita para baixo da banheira, pensando que Cleo a pode ter levado para lá. Nada. O relatório anual da White Lotus ainda está em cima da secretária, mas a lista confidencial dos accionistas desapareceu.
Vai inspeccionar a fechadura da porta do sótão, mas não descobre sinais de arrombamento. Isso, claro, não significa nada: um bom profissional pode abrir quase todas as portas sem deixar traços da sua passagem. Não vale a pena tentar imaginar quando é que a levaram; algures durante a tarde ou o anoitecer do dia anterior, quando Cone estava
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no trabalho. O que interessa é que a relação dos accionistas da White Lotus levou sumiço.
Cone olha para Cleo com ar de poucos amigos.
- Mas que grande gato de guarda me saíste!-diz à besta, em tom acusador. - O que é que o patife te fez? Atirou-te uma cabeça de carapau? Grandessíssimo cretino!
Chega ao escritório de muito mau humor, dizendo para com os seus botões que há vários motivos para se sentir assim.
A lista desaparecida preocupa-o, principalmente porque prometeu a Chin Tung Lee tomar conta dela. É fácil partir do princípio de que foi surripiada pelos Pandas Gigantes durante o tempo em que esteve com eles, mas só por si esse facto não colhe. Se o Edward Lee anda a dar dicas aos Pandas Gigantes - e Cone já não tem dúvidas
quanto a isso-, poderia dar-lhes uma lista igual sem o mínimo problema.
Esta constatação leva-o a pensar que o tipo que lhe entrou no sótão deve estar relacionado com a gente do Bambu Unido; mas para que é que esse bando de assassinos
pretenderia a relação dos investidores da White Lotus? Só se estiverem a preparar-se para mexer com a companhia.
Três dias, reflecte Cone: é quanto tem à sua frente antes de enfrentar os navalhas compridas. A possibilidade de ser abatido dentro de pouco tempo não o preocupa
tanto como o difícil futuro de Cleo sem a companhia do dono. Talvez seja melhor escrever uma carta a Samantha Whatley, deixando-lhe o gato em testamento. A não ser
que Cleo o acompanhe na grande viagem, apanhado também na maré de fúria assassina dos seus perseguidores.
Embrenhado nestes lúgubres pensamentos matinais, apercebendo-se repentinamente de que o telefone está a tocar. Atende-o, imaginando que se trata do Sr. Yeh, a lembrar-lhe que o cronómetro continua a avançar.
- Sim?
- Sr. Cone? Fala Claire Lee. Estou a telefonar de minha casa; o meu
marido está aqui comigo, e gostaríamos de falar consigo o mais depressa possível.
A mulher parece estar sem fôlego, talvez amedrontada.
- No apartamento da Quinta Avenida?-pergunta Cone.
- Sim. Venha depressa, por favor. O mais depressa que puder, Sr. Cone.
- Okay, vou já para aí.
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Não faz ideia do que possa ser, mas calcula ser melhor ir de carro. Mete-se num táxi até ao seu bairro, vai buscar o Ford Escort ao parque de estacionamento onde o deixou e arranca em direcção ao apartamento dos Lee na Quinta Avenida.
Descobrir um lugar para estacionar naquela zona é o mesmo que andar à procura do Santo Graal. Cone acaba por desistir e estaciona em dupla fila na Rua Sessenta e Oito Leste, fechando o carro à chave. Se o Escort for rebocado, então que seja; o cliente pode muito bem pagar a multa para o libertar das garras da Polícia.
Claire recebe-o à porta do apartamento. Parece apetitosa dentro de uma espécie de fato-macaco de linho branco com um cinto de crocodilo; o rosto, porém, está muito pálido, e quando agarra a mão de Cone com as suas, o detective sente perfeitamente o suor nervoso que as recobre.
Puxa-o para dentro do apartamento, fecha a porta à chave, coloca a corrente e vira-se para o enfrentar. Cone suspeita que ela esteve a chorar: os olhos perdem-se atrás de papadas inchadas. A mulher aproxima-se dele, fazendo-o sentir o odor de um qualquer perfume caríssimo.
- O meu marido está doente - díz ela em voz baixa.
- Talvez não seja nenhuma doença, mas está muito perturbado e preocupado.
- Lamento saber isso - diz Cone. - Preocupado com quê?
- É melhor ir falar com ele.
Claire segue à frente através de um labirinto de corredores, salas vazias, degraus que sobem e descem, até por fim chegarem àquilo que parece ser o quarto de cama principal.
Não é um quarto, é uma caverna enorme com o tecto lá muito no alto, dominado por uma cama de dossel em madeira de carvalho que poderia alojar toda a raça Celta Ao longo das paredes há armários, cómodas, toucadores, secretárias, aparadores, étagères - tudo em madeiras escuras e tristonhas, como se alguém tivesse desmontado um castelo escocês inteiro para mobilar aquele quarto.
No centro da cama imensa está deitado o Sr. Chin Tung Lee, enfiado até ao queixo num edredão leve como uma pena. A pele parece marfim velho, e os olhos fitam-no sem brilho; até a barba aguçada parece murcha. O velho tira uma mão de debaixo do cobertor e estende-a a Cone; a
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pele da mão parece pergaminho, e os ossos são finos e frágeis como os de uma asa de galinha.
- Muito obrigado por ter vindo - diz o ancião numa voz fraca. - Por favor, puxe de uma cadeira e sente-se aqui.
Cone luta com uma mão pesada que mais parece um trono, mas por fim consegue colocá-la ao lado da cama. Senta-se e inclina-se em frente.
- Lamento vê-lo tão abatido, Sr. Lee. Há alguma coisa que eu possa fazer?
Claire Lee está em pé do outro lado da cama, em frente a Cone. O marido roda lentamente a cabeça na sua direccão.
- A primeira carta, querida - diz ele, sem o mínimo vigor na voz. - Por favor, mostra-a ao Sr. Cone.
Claire tira uma folha de papel da gaveta da mesinha-de-cabeceira, contorna a cama e vem entregá-la a Cone. O papel é espesso e está dobrado em três, mas ostenta
um timbre na parte superior. Cone estuda-o e por fim olha para Chin Tung Lee.
- Yangtze International, Limited - d!iz o detective. - Na Pine Street, Nunca ouvi falar. O senhor conhece-os?
- Oh!, conheço, e muito bem. São meus conterrâneos
- diz o velho, acrescentando com amargura: -Suponho que há elementos criminais envolvidos.
- Hum-hum!-diz Cone, começando a ler a carta. O texto vem em delicada linguagem legal, mas o significado é bem claro. A Yangtze International acumulou dezasseis por cento das acções da White Lotus, servindo-se de alegadas "procurações de muitos outros accionistas", e como tal solicita um encontro com o Sr. Chin Tung Lee, com vista a exigir "uma adequada representação" no Conselho de Administração.
Cone lê a missiva por duas vezes, dobra-a e bate com o papel no joelho.
- Falei com a SEC no princípio desta semana - informa o detective. - Ninguém entregou nenhum impresso B-D a declarar um investimento na White Lotus igual ou superior
o cinco por cento, declarando as suas Intenções. Isso. claro, não significa nada; a lei concede um prazo de dez dias para a entrega da declaração.
- Mas o que é que isso quer dizer. Sr. Cone? - pergunta Lee.
- O senhor sabe-o muito bem - responde Cone em tom seco. - Estão a tentar tomar conta da sua
companhia. Agora Já sabemos porque é que as cotações têm subido sem parar.
- Eu nunca a venderei - geme o ancião. - Nunca!
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- Não precisa disso, se souber jogar as suas cartas com cuidado - diz-lhe Cone. - Há várias opções. Primeiro, pode comprar-lhe as acções por um valor superior ao
do mercado, e assim coloca-os fora da corrida. Também pode defender-se de modo a tornar a aquisição da White Lotus tão cara que o adversário desiste, ou então pode
arranjar um comprador em termos amistosos. Pode considerar a hipótese de uma aquisição nivelada: compra as acções de todos os accionistas e transforma a companhia
numa sociedade por quotas. Depois é só deixar passar uns anos e, de acordo com o comportamento do Dow, pode voltar a ser uma sociedade anónima. Há gente que ganha
biliões com este processo. Enfim, não sou a pessoa mais indicada para o aconselhar... o senhor tem algum banqueiro de investimento?
- Não, nunca tive necessidade de recorrer a esses serviços.
- Bom, agora precisa deles, e muito. Sr. Lee, a guerra estalou, e como tal aconselho-o a arranjar o melhor estratega dò mercado. Veja por aí, faça umas perguntas
e escolha um. Se quiser uma dica, tente a Pistol & Burns, na Wall Street. É um estabelecimento com tradições, muito conservador mas eficiente. Fale com o Sr. G. Fergus Twiggs: é um dos sócios maioritários e esperto como ninguém.
Lee fita a mulher com um ar desesperado.
- Claire, não te esqueces disto?
- Claro, papá - diz ela. - Pistol & Burns, G. Fergus Twiggs.
- Obrigado, querida. Agora mostra ao Sr. Cone a segunda carta.
Claire volta para junto da mesínha-de-cabeceira e regressa com uma folha branca, que estende a Cone na ponta de dedos mais nervosos que os do bar do Carpacchio.
Timothy desdobra o papel e lê-o. Este não vem timbrado, e limitasse a duas linhas batidas à máquina: Temos o Edward em nosso poder. Não vá à Polícia se quiser voltar
a ver o seu filho com vida.
Cone olha para cima, atónito:
- Mas que raio é isto? Já alguém o viu hoje?
- Fui verificar - diz Claire, a morder os nós dos dedos.
- Não dormiu em casa a noite passada, e ninguém sabe dele desde ontem à tarde.
- Oh, Jesus! - exclama Cone. - Não me admira que esteja na cama, Sr. Lee.
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O ancião deixa escapar um suspiro.
- É como diz a Bíblia, o homem nascido da mulher vive pouco, e o pouco que vive é recheado de complicações.
- Concordo -replica Cone. -Só recebeu esta carta?
-"Só - diz Claire. - Chegou hoje de manhã.
- Algum telefonema?
- Sobre o Edward? Não, nenhum.
- Bom, se o agarraram não vão ficar muito tempo sem receber notícias dos raptores. Ou vos telefonam ou mandam nova carta. Acho que devia falar com a Polícia, Sr. Lee.
- Não. - A voz do velhote, inesperadamente, sal-lhe firme e seca. - Nem pensar! Pago o que for preciso para mo devolverem, mas nunca colocarei em perigo a vida dele.
- Não tem garantias nenhumas - argumenta Cone.- Pode pagar e eles matam-lhe à mesma o seu filho... porque há sempre a possibilidade dele os identificar. Oiça, sei que é uma decisão difícil, e terá de ser o senhor a tomá-la. Não ligue ao que lhe disse.
- Eu só quero fazer o que foi mais acertado - replica o septuagenário, a voz fraca de novo.
- Sei que o fará.
- O senhor não vai dizer nada à Polícia, pois não?
- Não, se é assim que o senhor quer.
- Mas poderá ajudar-nos de alguma forma?
- É difícil - diz Cone. - Neste momento os tipos estão só a fazê-lo suar um bocado, vai ver que não demora a ter notícias deles. Só então é que saberemos com que linhas nos cosemos.
Olha para Claire, a ver se ela percebe a indirecta; foi praticamente a mesma frase que usou no Carpacchio"s. A mulher, porém, nem sequer o fita de frente.
- Diga-me uma coisa - continua Cone. - Como é que receberam esta carta? Pelo correio normal?
- Não, não foi posta nos correios - explica Cliare.- Foi deixada na portaria esta manhã, trazida em mão por alguém. A outra carta... a da Yangtze International...
também foi entregue em mão.
- Hum-hum! - diz Cone. - Chegaram ambas ao mesmo tempo, entregues pelo mesmo mensageiro?
- Não - responde ela. - Já verifiquei isso. Chegaram ambas esta manhã, mas a horas diferentes, no espaço de cerca de uma hora. A carta da Yangtze chegou primeiro, e foi entregue por um rapazito chinês. O porteiro diz que
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o miúdo lho atirou a carta para cima da secretária e fugiu a correr.
- Estou a ver - diz Cone. - Ouçam, por agora não há mais nada que possa fazer aqui. Tenho várias chamadas a fazer, todas elas para certas pessoas que nos podem ajudar.
- Como Chin Tung Lee o fita com ar preocupado, Cone acrescenta rapidamente: - Não vou falar com a Polícia, só com uns camaradas que podem saber disto ou daquilo. Vale a pena tentar. Importam-se que eu fique com esta carta sobre o Edward? Tenho um amigo que trabalha com máquinas, e é capaz de identificar a máquina que foi usada para a bater. Nunca se sabe, talvez por aí consigamos alguma coisa.
- Pode levá-la - diz Lee, zangado.
- E telefone-me se acontecer mais qualquer coisa, sejam novas cartas ou telefonemas. Não se esqueça de falar com um banqueiro de investimentos. Sei que o desaparecimento do seu filho já é oomplicação que baste, mas a verdade é que tem de começar a mexer-se se quiser proteger a sua companhia.
O velho acena com a cabeça e estende-lhe a mão. Cone aperta-a com cuidado, receoso de partir um osso.
- Eu entro em contacto consigo, Sr. Lee - diz num tom o mais tranquilizador possível. - Não lhe vou dizer para não se preocupar, o assunto é demasiado sério, mas o senhor já viveu muito e enfrentou uma data de problemas, não é verdade? E sempre os conseguiu resolver.
- Pois foi - diz Chin Tung Lee, endireitando-se e levantando a cabeça da almofada, o queixo esticado para a frente. - Isso é bem verdade.
- Está a ver? Aposto que também se vai safar desta.
Claire Lee acompanha-o à porta de entrada. Cone sente-se reconhecido, se assim não fosse ter-se-ia perdido nos meandros daquele casarão.
- Primeiro foi a carta que me mandaram, e agora isto tudo - queixa-se ela em voz baixa. - Acho que vou dar em doida.
- Nã! - contrapõe Cone. - Você é das que sobrevivem, e além do mais o seu marido precisa de si. Faz alguma ideia de quem possa ter raptado o Edward?
- É alguém que quer enriquecer depressa - diz ela, amargurada. - Não, ao certo não sei quem poderá ser.
- E o seu problema? Recebeu mais alguma carta ou telefonemas?
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- Não.
- Okay - diz-lhe Cone, já de saída. - Deixe-se ficar por aqui e tome conta do seu marido. Pareceu-me muito em baixo.
- É como eu me sinto - replica ela, pousando-lhe uma mão no braço. - Por favor, Sr. Cone, ajude-nos...
- Vou ver o que posso fazer - promete ele.
Misericordiosamente, o Ford Escort ainda está estacionado em dupla fila, o que para Cone constitui um bom auspício - sobre quê, isso já não sabe dizer. Volta para a sua rua e sobe até ao sótão, o cérebro a rodopiar como um daqueles conjuntos de esferas dentro de esferas intrincadamente esculpidas em marfim por artistas chineses. Dentro da bola exterior, mais ou menos do tamanho de uma bola de basebol, gira outra mais pequena, como que de golfe, movimentando-se sem restrições; dentro desta há outras cada vez mais diminutas, a tenderem para qualquer coisa como uma ervilha esculpida; qualquer delas gira de modo a apresentar desenhos exóticos e elaborados tão confusos como as ideias do detective.
A primeira coisa que faz ao chegar a casa - antes mesmo de preparar um
vodca com gelo - é comparar a carta dos raptores de Edward Lee com a enviada pelos chantagistas de Claire Lee. Os seus olhos mais que inexperientes conseguem mesmo assim detectar que as duas cartas foram feitas com tipos de letra diferentes e batidos em máquinas
diferentes.
- Merda! - exclama em voz alta.
Só então vai tratar do seu vodca.
Bebe-o sem delongas, fuma um cigarro, enraivecido, e pondera a sua próxima jogada. Primeiro o mais importante: liga para Johnnie Wong, na sede do FBI - o quartel-general
na Federal Plaza.
Um tipo antipático informa-o de que Wong não está disponível, mas se quiser pode deixar recado. Cone assim faz.
Passam-se uma hora, duas bebidas e três cigarros antes de Johnnie lhe ligar.
- Disseram-me que tinha telefonado para aqui - diz o asiático em tom descontraído. - É a segunda vez que falamos hoje... quando é que começamos a viver juntos?
- Deus me livre! - replica Cone. - Pode dizer-me onde é que está?
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- Claro - diz Wong, com uma gargalhada. - Estou a telefonar-lhe dò meu carro. Fui a Jérsia acabar um
trabalhinho, e acabei de sair do Túnel Lincoln. O trânsito
está por de mais! Neste momento sigo pela Nona Avenida, virado a sul. O que é que se passa?
- Oiça, acho que temos de nos encontrar o mais depressa possível. A merda está a começar a vir ao de cima.
- Ai sim? Bom, não diga mais. Há demasiados ouvidos mórbidos nestes circuitos móveis.
- Também me disseram-responde Cone. - Pode passar por minha casa? Não suba: eu espero por si junto à entrada. Se estacionar em segunda fila podemos falar dentro
do seu carro. Acha bem?
- Por mim tudo bem - diz Johnnie Wong. - Dê-me ai uns quinze minutos; o meu carro é um Chrysler preto de duas portas.
Cone está à espera no passeio quando, vinte minutos depois, o Chrysler se detém junto ao passeio. Enfia-se rapidamente no lugar ao lado do condutor, num banco luxuoso, estofado a couro.
- Belo iate - diz para Wong. - Portanto é nisto que se vai gastando o dinheiro dos contribuintes...
- É como vê - concorda o homem do FBI. - O que é que aconteceu?
- Primeiro quero fazer-lhe uma pergunta, e só depois é que negoceio. Já ouviu falar da Yangtze International, Limited?
Johnnie olha-o de esguelha com um ar muito sério.
- Você vêm-me sempre com cada uma... sim, já ouvi falar neles. É o ramo de negócios do bando do Panda Gigante. Encarrega-se de todas as compras, empréstimos, alugueres e investimentos. Quem é que lhe falou dessa companhia? Não me venha de novo com a história de ter sido a meio de uma conversa inocente...
- O Chin Tung Lee, patrão da White Lotus, recebeu esta manhã uma carta da Yangtze, que diz estar na posse de dezasseis por cento das acções da White Lotus, preten dendo colocar elementos seus no Conselho de Administração. Quanto a mim trata-se do início de uma compra forçada.
- Então é isso!-exclama Wong, pensativo - Enfim, não é coisa que me surpreenda. Até posso ver a experiente mãozinha italiana do nosso amigo Henry Wu Yeh por detrás
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da manobra. Cheguei a dizer-lhe que o tipo é um MBA? Tudo se ajusta à movimentação dos Pandas Gigantes em direcção aos negócios legais. O que é que o Lee vai fazer?
- Vai lutar, claro. Indiquei-lhe o nome de um bom banqueiro de investimentos. O velho só vive para a companhia: é tudo o que tem, e não vai meter o rabo entre as pernas por causa de uma simples carta da Yangtze. O problema é que isso não passa de um aperitivo: queria mostrar-lhe uma coisa mais séria: esta carta foi entregue na recepção do prédio dos Lee, hoje de manhã.
Estende ao outro a folha com duas linhas mandadas pelos raptores. Wong lê as frases e olha para Cone, chocado.
- Jesus, agora apanharam-lhe o filho? O tipo que estava consigo no Ah Sing"s?
- É o que diz aí. Oiça, Johnnie, neste caso vou precisar da sua ajuda: prometi ao pai que não ia dizer nada à Polícia.
- E depois? Nós não somos exactamente a Polícia...
- Não sei, mas se vocês lhe invadem o apartamento para montar escutas telefónicas e gravadores e enchem a zona de agentes, o Chin Tung Lee fica logo a saber que quem vos avisou fui eu, o que não seria lá muito bom para a minha reputação. O velho é muito capaz de contratar alguém para me lixar, e para problemas já me bastam os que tenho com o Henry Wu Yeh.
- Talvez seja altura de você ler um livro chamado Como Conquistar Amigos e Influenciar as Pessoas. Acha que os responsáveis pelo rapto são do Panda Gigante? Até
faz sentido... é outra forma de pressão para obrigar o Lee a entregar-lhes a White Lotus. Se o velho pagar um resgate de monta, os bandidos usam-no para comprar
mais acções da White Lotus. Claro como água.
- Demasiado claro! - protesta Cone, furioso. - Por aí não vamos lá, porque o Edward tem muito boas relações com os Pandas Gigantes.
Explica então a Wong o sucedido quando os soldados do Panda Gigante o revistaram na rua; os tipos foram directamente ao coldre de tornozelo, e só Edward lhes poderia ter relatado o pormenor. Por outro lado, Lee e Chen Chang Wang pareciam muito amigos no Ah Sing"s Bar & Grill, pouco antes do Wang ser abatido.
- Talvez sim - diz o agente do FBI. - Estou a perceber a sua Ideia, tudo indica que o Edward anda metido com o Panda Gigante. Talvez tenha engendrado o seu próprio
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rapto... não era a primeira vez que uma pretensa vítima trabalha a meias com os raptores.
- É possível, mas segundo você me disse o Bambu Unido e o Panda Gigante odeiam-se mutuamente... certo?
- Certíssimo. São tão amigos como Caim e Abel, os Yanks e os Red Sox ou a Texaco e a Pennzoil.
- Acha que mantêm espiões no campo do adversário?
- E você, acredita que há honra entre ladrões? É claro que têm! Aqui há cerca de dois meses descobrimos dois gorilas do Panda Gigante cortados em cubos numa fazenda de criação de porcos, em Jérsia. Na verdade não eram bem Pandas; eram do Bambu Unido e andavam a espiar os outros. O disfarce foi descoberto e os dois foram transformados em comida para porcos.
- Portanto, qualquer dos bandos deve saber mais ou menos o que o outro anda a fazer. O que é que me diz a este cenário; o Panda Gigante começa a comprar acções da White Lotus através da Yangtze International, com vista ao domínio da companhia; o Bambu Unido fica a saber do caso, começa a estudar a White Lotus e decide que também quer uma fatia do bolo. O Panda Gigante, porém, já acumulou dezasseis por cento das acções, o que obriga o Bambu Unido a andar depressa. Como? Raptando o filho do director-geral e maior accionista da White Lotus. Quer ver o Edward vivo e de boa saúde? Okay, o resgate será pago com todas as suas acções da White Lotus. Serão suficientes? Claro que são, somam quase vinte e seis por cento do capital da companhia. Assim, ao raptar o Edward, o Bambu Unido consegue uma fatia da White Lotus maior do que a arranjada pelo Panda Gigante através da compra de acções no mercado normal.
Johnnie Wong franze o cenho, ponderando o caso.
- Concordo - acaba por dizer. - Concordo porque se ajusta ao modo de operar do Bambu Unido: duro, directo e violento. São do género de preferirem a acção física
à consulta dos regulamentos da SEC.
- Vocês conseguem obter informações dentro do bando do Bambu Unido?
- Não espera que lhe responda a essa, pois não? - responde o agente do FBI com um sorriso sarcástico.- Não confirmo nem desminto.
- Okay, parto do princípio de que as conseguem - diz Cone. - Que me diz a contactarem os vossos espiões para
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confirmar se o Edward Tund Lee foi detido pelo Bambu Unido?
- Vou tentar - diz Wong, cauteloso.
- Tem de conseguir melhor do que isso - pressiona-o Cone. - Temos de ter tudo pronto na segunda-feira, caso contrário também acabo a servir de comida aos porcos!
- Muito bem, vou avançar assim que regressar ao escritório.
- Quando é que me diz qualquer coisa?
- Depende. Logo à noite está em casa?
- Claro que estou - diz Cone. - Com a porta fechada a sete chaves.
- Porque é que não ensina karate ao Cleo? - sugere Johnnie Wong.
Depois do Chrysler se afastar, Cone vai ao minimer-cado da esquina e compra um frango grelhado, uma embalagem de salada-russa e dois pickles grandes. Leva o embrulho
bem cheiroso para o sótão, abre-o e atira-se ao jantar, não se esquecendo de atirar ao gato a mitra do galináceo.
Come lenta e metodicamente, matutando naquela complicada história. Julga ter feito tudo o que estava ao seu alcance quanto ao rapto de Edward; a bola está agora do lado de Johnnie Wong. Contudo, não é isso que o preocupa: o pior é a carta ameaçadora recebida por Claire Lee e os telefonemas dirigidos a Edward Lee.
A princípio, Cone julgou que seria o bando dos Bambus Unidos o responsável tanto pela carta como pelos telefonemas, mas isso já não faz sentido. Ninguém telefona a fazer chantagem para logo a seguir raptar a vítima escolhida, e por outro lado os culpados não podem ser os Pandas Gigantes, pelas razões apresentadas a Wong: Edward Lee mantém estreitas relações com esse bando.
Ora isso significa - se o raciocínio de Cone estiver correcto - que há uma carta esquecida no baralho: um independente qualquer apostado em enriquecer depressa pressionando Claire e Edward. Timothy sente certa relutância em aceitar esta solução, mas na verdade não lhe ocorre nenhuma melhor.
Dá as pontas das asas a Cleo e começa a roer a segunda perna, detendo-se ocasionalmente para umas garfadas de salada-russa ou uma dentada num pickle. Procura fazer durar a cerveja que abriu, pois tenciona voltar ao vodca assim que acabar a refeição.
Timothy acredita sinceramente que o vodca ajuda muito
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o esforço mental, pois liberta a mente da disciplina habitual e reduz o peso do raciocínio linear. O
vodca põe-nos o cérebro a voar, e se houve caso que precisasse
mais de um cérebro solto e desinibido, então é o da White Lotus.
Junta os restos do frango num montinho, embrulha-o e guarda-o no frigorífico junto com o que sobrou da salada-russa e do segundo pickle, pensando em fazer daquilo
um belo pequeno-almoço de sábado. Cleo ficará com o pescoço e as costas da ave.
Volta assim para os cigarros e o vodca. O gelo acabou, mas isso não o deixa preocupado; o que o aborrece, isso sim, é não conseguir descobrir o fio invisível no
meio daquela meada confusa. Ou não o consegue ver ou alguém está a obrigá-lo a andar às voltas; nenhuma das hipóteses lhe agrada.
As 11 da noite ainda está à espera do telefonema de Johnnie Wong; o mesmo se passa à meia-noite e à uma da manhã. Por fim, Cone desiste e despe-se. Vai verificar
a porta, apaga as luzes e deita-se no colchão, com o Magnum ao alcance da mão. Cleo vem enroscar-se na dobra dos joelhos do dono; adormecem os dois, ressonando ao
de leve.
O telefone acorda-o; ainda está escuro. Vai aos bordos até ao telefone de parede, praguejando quando sem querer dá uma canelada na esquina do frigorífico.
- Sim? - pergunta, a voz peganhenta de sono.
- Não o acordei, pois não? - diz Johnnie Wong do outro lado.
- Que horas são? - pergunta Cone.
- Já passa das cinco. Não se queixe, eu estive a pé a noite inteira.
- Com bons resultados?
- Oh, claro! Acho que temos entre mãos um caso de primeira grandeza. Oiça, pode encontrar-se comigo à porta do seu prédio, daqui a uns vinte minutos?
- Posso. O que é que se passa?
- Vou levá-lo a um sítio, e pelo caminho conto-lhe tudo.
Cone veste-se rapidamente, aperta o coldre de tornozelo,
abastece-se de cigarros e fósforos, afaga um Cleo ensonado, fecha a porta à chave e desce as escadas até à rua. Os primeiros alvores começam a iluminar o céu para
os lados de Brooklyn.
Há muito tempo que Cone não está a pé àquela hora... mas no fundo até gosta. O ar está fresco -ainda não foi respirado por milhões de outras pessoas-, o céu é uma
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mancha intrincada de cinzentos e violetas. As estrelas estão a desaparecer, e uma inesperada brisa fresca de Agosto sopra de noroeste. A Broadway acabou de ser regada
pelos camiões-cisternas do munlcfpio, e o alcatrão brilha sob o lusco-fusco.
Johnnie Wong atrasa-se, mas Cone espera pacientemente, caminhando para a frente e para trás no passeio, fumando o seu primeiro Camel daquele novo dia.
Quando o Chrysler chega, Cone enfia-se no lugar ao lado do condutor.
- Eh, grande homem! - exclama o homem do FBI, dando-lhe uma palmada no ombro. - Lamento ter-lhe interrompido o seu sono de beleza.
Cone estuda-o atentamente.
- Cristo, você está mesmo acelerado! Não andou a fumar nada de esquisito, pois não?
- Não, acontece é que me excito nestas alturas. Está a passar-se muita coisa, e no fim tanto posso ser um herói como um candidato à despromoção.
Arranca, vira para nascente e acelera ao longo da rua deserta.
- Está uma manhã bestial!-diz ele. - Para mim é a melhor altura do dia, não há trânsito, não há poluição... está tudo fresco e limpo.
- Era isso que você me queria dizer? - pergunta Cone.
- Que o mundo é maravilhoso às seis da manhã?
Wong solta uma gargalhada:
- Não era bem isso. Oiça, você tinha razão-, o Edward Lee foi apanhado pelos piratas do Bambu Unido; raptaram-no ao fim da tarde de quinta-feira. Levei a noite toda
a certificar-me disso, e tive de me servir de muitas das minhas cartas de reserva.
- Para onde é que o levaram?
- Para onde vamos agora: a Doyer Street, em China-town. É o quartel-general dos Ubies. É assim que lhes chamo... os Ubies. Do "U" e do "B" do United Bamboo.
- Não é preciso desenhar-me um diagrama - diz Cone.
- Caramba, você hoje acordou mesmo maldisposto!
- É o meu estado de espírito habitual.
- Bom, os Ubies têm três ou quatro esconderijos conhecidos, a maior parte em Manhattan e um em Queens. Seja como for, o quartel-general deles é na Doyer Street, num prédio de cinco andares. Tirando o rés-do-chão, que é ocupado por um restaurante - aliás o melhor restaurante
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chinês em toda a Chinatown -, os tipos ocupam todo o edifício. O Edward Lee está num gabinete do terceiro andar; sacudiram-no um bocado, mas está vivo e consciente. Isto é, estava assim aqui há umas horas atrás.
- Vocês vão lá buscá-lo?
- Ah, aí é que está o problema! É por isso que o vou levar lá agora, para ver o local. Aquilo mais parece uma maldita
fortaleza.
Mesmo àquela hora matinal, Chinatown fervilha de actividade. Os lojistas sobem os estores, os vendedores da rua instalam as suas bancas, as ruas estreitas surgem
apinhadas de homens e mulheres transportando patos vivos, carapaus mortos e enormes sacos de rede cheios de frutas e legumes. Os cafés já estão abertos ao público,
e o bairro inteiro começa a evidenciar a sua tremenda vitalidade.
Wing descobre um buraco para estacionar na Chatham Square. Enquanto seguem a pé até à rua Doyer, o agente descreve-lhe o plano.
- A entrada do quartel-general dos Ubies fica ao lado do tal restaurante. A porta da rua é em ferro e costuma estar fechada; segue-se um pequeno vestíbulo e uma porta de aço pintada a imitar madeira, também fechada. Além disso há sempre dois soldados do Bambu Unido no passeio, de sentinela à porta de entrada. Vinte e quatro horas por dia. Não deixam entrar ninguém a não ser que a pessoa seja conhecida ou estejam à espera dela. Há um intercomunicador ligado aos andares superiores, e uma campainha de alarme que os guardas podem accionar no caso de serem atacados.
- Bonito - comenta Cone. - Alguma entrada nas traseiras?
- Nenhuma, parte de trás do prédio dá para um prédio sem saída. O muro tem rede de arame farpado, Olhe, ali está ele; veja-o bem.
Passam ao longo do outro lado da Rua Doyer, detendo-se para Cone acender um cigarro - o que lhe permite observar o sítio. Três prédios seguidos de fachada em tijoleira ver melha: o do meio tem um restaurante no piso térreo. Ac lado de um portão de ferro estão os dois guardas, que lhe parecem muito novos: miúdos pequenos mas já muito vividos.
Cone e Wong seguem lentamente em frente e por fin viram para a Mott Street.
- Ali em cima, ao pé do Canal, há um sítio onde podemos
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tomar um café e comer qualquer coisa - diz Johnnie.
- Já deve estar aberto.
- Boa ideia -diz Cone. - Pago eu.
Sentam-se a uma mesa encostada à parede de azulejo branco. Wong manda vir panquecas com manteiga e salsichas acompanhadas de couves de bruxelas; Cone prefere uma sandes de queijo, cebola e fiambre. Ambos bebem café forte.
- Você tinha razão - diz Timothy.-Aquilo é mesmo uma maldita fortaleza. Estão a pensar em assaltá-la?
- Os nossos peritos legais dizem que não é preciso um mandado, já que dispomos de uma causa provável; uma vítima de rapto mantida em clausura contra a sua própria
vontade no terceiro andar. O pior é chegar lá; se entrarmos à carga, metemo-nos num sarilho dos grandes. Os dois guardas não devem ter qualquer problema em sacar
das armas e disparar contra tudo o que se mexer, e se não o fizerem, então accionam a campainha de alarme. É isso que me preocupa mais, pois se o alarme soar antes
de chegarmos ao terceiro andar, os tipos abatem imediatamente o Edward Tung Lee, para que não possa testemunhar contra eles. Já lhe disse que os tipos são autênticos selvagens, não disse? Do mais primitivo que há.
Cone continua a comer a sandes, empurrando-a com goles de café.
- Nesse caso o que é que pretende da minha humilde pessoa?
- Não vamos deixar o Edward Lee a apodrecer lá dentro, não acha? Temos de tentar pô-lo cá fora sem colocar a vida dele em perigo.
- Podiam cercar o prédio e proporcionar-lhes uma demonstração de força das antigas... aí entrava em cena a vossa equipa de negociações.
- Acha que resultava? - pergunta Wong, espalhando mais compota em cima das panquecas.
- Não - responde Cone. - Se eles se acovardarem e lhe entregarem o Lee, sabem muito bem que serão acusados de rapto.
- Está a ver? Bom, você foi da infantaria. Esteve no Vietname, ganhou montes de medalhas... qual é a sua sugestão?
Cone afasta a cadeira da mesa, acende um cigarro, acaba o café e faz sinal ao criado para lhe trazer nova chávena.
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- Tem alguns cow-boys no seu serviço? - pergunta.
- Está a referir-se às equipas SWAT? Sim, temos tipos desses. Esquadrões de assalto treinados de propósito. São do caraças, atiradores de primeira, estão-se perfeitamente
nas tintas para as consequências.
- Hum-hum! - diz Cone. - Oiça, já ouviu falar na guerra de bandos, lá para os anos vinte e trinta?
- Mais ou menos. Sei que a zona delimitada pelas Ruas Mott, Pell e Doyer era conhecida como o Triângulo Sangrento.
- Isso mesmo. Bom, durante uma dessas guerras, o chefão de um dos grupos viu-se ameaçado por um bando rival, apostado em abatê-lo à vista. Como tal rodeou-se de guarda-costas, que nunca o abandonavam; na rua em frente ao sítio onde tinha o quartel-general, dentro do próprio gabinete onde trabalhava, no quarto onde dormia... e às tantas foi abatido. Sabe como?
- Como?
- O inimigo subiu ao telhado do prédio vizinho, que ficava ao mesmo nível do do quartel-general; passaram-se para o lado e desceram um atirador numa cadeirinha presa a uma corda. O chefão foi abatido através de uma das janelas.
Johnnie Wong fica a olhar para ele de boca aberta.
- Filhos da mãe!-exclama em voz baixa.
- Foi talvez a primeira demonstração mundial de um ataque na vertical - prossegue Cone. - Quando estamos metidos num tiroteiro, ou nos preparamos para entrar num, tendemos a raciocinar na horizontal, ou, por outra, calculamos que o inimigo nos aparecerá ao mesmo nível. Ninguém conta com um ataque por cima da cabeça. Durante a Segunda Guerra Mundial, os tipos do Sul do Pacífico demoraram um certo tempo a aprender que os atiradores japoneses se emboscavam nas copas das árvores.
Wong inclina-se para a frente, interessado.
- E acha que isso resultava aqui?
- Há prédios a ambos os lados do quartel-general do Bambu Unido... prédios contíguos e da mesma altura. Não deve ser muito difícil passar de um telhado ao outro. Não bastará descer um só atirador; vão precisar dè um poder de fogo muito superior. O quartel-general dos Ubies têm três janelas de largura. Depois de tudo pronto, mandam três homens em rappel pela fachada do prédio, um para cada janela, armados com Uzis ou mesmo Ingrams, eu sei
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lá, com a arma que vocês hoje usam para estas coisas. Descem até ao terceiro andar e entram pelas janelas a disparar contra tudo o que se mexer, mantido a pontaria
alta para não cortarem ao meio o Edward Lee. Se não quiserem arriscar-se a disparar, então os vossos homens podem partir os vidros das janelas com as botas e mandar
granadas de aturdimento lá para dentro.
- Ou granadas lacrimogéneas - exclama Wong, começando a ficar excitado.
Cone diz que não com a cabeça.
- O gás demoraria muito a neutralizar os guardas de Lee, e além do mais, em paralelo com o ataque por cima, vocês terão de mandar outra força pelas escadas acima,
até ao terceiro andar. Se esta não dispuser de máscaras antigás ficará neutralizada pelo ataque dos companheiros.
- E como é que essa segunda força passa pelas sentinelas da rua e pelas duas portas de ferro?
- Quando os atacantes descidos do telhado iniciarem o ataque, os dois guardas da porta vão correr até ao meio da rua para verem o que é que se está a passar lá em
cima. É a melhor oportunidade para os apanharem... no momento em que estão distraídos. Quanto às portas metálicas, não devem demorar-vos mais de um minuto ou dois,
se dispuserem da ferramenta apropriada. Se fosse eu, a primeira coisa a fazer era estoirar com elas. Oiça, já não ando nestas guerras há anos, e não conheço todos
os brinquedos novos dos vossos arsenais, mas aposto que hoje há coisas que abrem aquelas portas numa questão de segundos. Depois é só subir até ao terceiro andar, onde os tipos ainda estarão atrapalhados com o que lhes está a cair em cima.
- Pensa mesmo que esse esquema pode resultar?
Cone encolhe os ombros.
- Há cinquenta por cento de hipóteses - acaba por dizer.
- Então? - protesta Johnnie Wong, zangado. - Preciso de mais certezas. Se fosse você a tomar a decisão, o que é que dizia? Sim ou não?
- Dizia sim - responde Cone.
Wong solta um suspiro.
- Muito bem, vamos resolver isto como nos velhos tempos. O pior é que para tratar disto teremos de subir pela hierarquia acima, provavelmente até ao próprio D. C. O que me preocupa mais é o tempo de que dispomos...
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quero tirar o Edward Lee dali antes que os jornais cheirem o caso. Se alguém suspeitar de alguma coisa, o mais natural é termos um autêntico circo nesta rua. Normalmente, uma operação desta envergadura precisaria de uma conferência preliminar, da colaboração do NYPD e mesmo de um ensaio prévio em Quântico. A verdade é que não temos tempo para isso tudo. Oiça, vai ficar em casa durante o fim-de-semana?
- Vou, mas também tenho de sair à rua de quando em quando.
- Tentarei mantê-lo ao corrente do desenvolvimento da operação. Acho que lhe devo isso, no fundo a ideia foi sua.
- Se não arranjar os tipos suficientes para descerem do telhado, posso dar-vos uma mãozinha. Ainda sei como é que se faz um rappel.
Wong olha para ele, divertido.
- Já lhe está a cheirar a acção, não é? Já ouvi dizer que há coisas de que nunca mais nos libertamos na vida... obrigado pela oferta, mas pode crer que temos armas de que você nunca ouviu falar.
- As armas são sempre armas - replica Cone. - Apon-ta-se e carrega-se no gatilho.
- Esqueça-se disso - aconselha o agente do FBI.- Meu Deus, você não passa de mais um reles civil!
Johnnie pretende voltar para o escritório o mais depressa possível, e como tal Timothy decide ir a pé para casa - um belo passeio que será capaz de lhe reactivar a circulação. O Sol já vai alto, mas a atmosfera ainda está fresca. O dia promete calor, não se vê uma única nuvem de chuva no céu. Lá muito em cima, sobre Manhattan, evolui um avião de escrita no céu, e Cone fica a pensar no que sucederia se um piloto maluco resolvesse escrever em letras gigantes FODAM-SE TODOS, para a cidade inteira ler e ponderar.
Compra o Times e o Barrorís num quiosque do passeio. Pouco depois, já mais perto de casa, entra aqui e ali para se abastecer de mercearias e potáveis, calculando que vai passar o fim-de-semana inteiro dentro do sótão; não quer ser apanhado fora de casa quando o Johnnie Wong lhe telefonar.
Aos sábados o elevador trabalha até ao meio-dia, pelo que Cone não é obrigado a subir os seis lances de escadas carregado com todos aqueles sacos. Arruma as compras,
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muda a areia de Cleo, dá-lhe água fresca e um Twinkie. Por fim despe-se e estende-se no colchão, para continuar o sono
interrompido a más horas.
Acorda pouco depois do meio-dia, maldisposto e com a boca a saber a cebola da sandes do pequeno-almoço. Lava os dentes, toma um duche, barbeia-se e veste roupa
interior lavada. Assim arranjado, abre uma lata de cerveja, acende um cigarro e come duas barras de chocolate.
Em sua opinião, a operação sugerida ao homem do FBI tem boas hipóteses de sucesso. Por um lado há o elemento surpresa, e se a equipa do telhado e a da rua conseguirem
coordenar o ataque, a coisa pode correr sobre esferas. Se a coordenação falhar, arriscam-se a um dos maiores falhanços de todos os tempos.
Claro que tudo na vida precisa da sua dose de sorte; Cone já viu operações de combate perfeitamente planeadas resultarem mal devido a acidentes, falhas de equipamento ou actos divinos, enquanto outras, planeadas por cabeças de alho chocho, acabaram em vitórias só por terem a sorte,do seu lado.
Espera que a sorte esteja do lado de Johnnie Wong; se assim não for, vários homens de valor podem estar a caminho da morte. No fim de contas, reflecte Cone, é para isso que lhes pagam, e quem não gostar de semelhantes perspectivas pode sempre mudar de profissão - coisa que um soldado na frente de batalha no Vietname teria grandes dificuldades em conseguir.
Contrariado, afasta as memórias daquele tempo e daquele lugar para o recôndito mais afastado da sua mente, tentando concentrar-se nas atribulações e problemas com que de momento se debate. Preferia que Samantha não estivesse a milhares de quilómetros de distância; não que precise dela para lhe pedir conselhos ou para lhe chocar no ombro, mas sim porque a proximidade dela é o tempero indispensável num mundo que ele considera vazio e insípido.
Contemplativo, põe-se a imaginar o leve dedo do destino a empurrá-lo para uma profissão de investigador, ocupado a meter o nariz na vida das outras pessoas e nas
suas intrincadas manobras financeiras. No fundo, tem de admitir que leva uma vida o mais aborrecida possível. É quase um sacerdócio, e se não fosse o Cleo, poderia
muito bem passar noites e noites sem dirigir palavra a
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uma alma gémea - partindo do princípio de que os gatos têm alma, E porque não hão-de ter?
O fim-de-semana passa-se assim, a ler, a fumar, a meditar, a beber, a debicar comida saída de embalagens de plástico. O telefone não dá sinal de si, nem sequer recebe
nenhuma comunicação de Wong. O isolamento e a reclusão estão prestes a levá-lo a sair à rua quando, no domingo à noite, o telefone toca. Atende-o a fazer figas.
- Sim?
- Já está - diz Johnnie Wong. - Estou estoirado, não durmo há quarenta e oito horas. Não lhe posso dizer nada ao telefone. Lembra-se do sítio onde estacionei o carro
no sábado?
- Lembro.
- Pode encontrar-se lá comigo às duas e meia?
- Não falto. Posso ajudar nalguma coisa?
- Pode rezar-diz Wong, desligando sem esperar pela resposta.
Cone ainda tem três horas à sua frente, mas pensando bem é demasiado arriscado passá-las a dormir; é muito capaz de não acordar a tempo de assistir ao fogo-de-arti-fício.
Assim, passa a meia hora seguinte a faxinar o seu SSW 357 Magnum, oleando mesmo o coldre de tornozelo.
Como se trata de uma operação nocturna, pensa em usar uma camisola de gola alta preta e calças cinzentas escuras; compreende por fim que se está a enganar a si próprio:
não passa de um mero espectador, nem de longe tomará parte no combate, e as roupas que levar não terão a mínima importância. Decide-se finalmente por uma T-shirt azul-marinho e pelo habitual fato de veludo; o boné de couro vai enfiado no bolso.
Passa a última hora a rever de novo o plano, tentando descobrir pontos fracos. Não descobre nenhum; tudo lhe parece nos conformes. Se cada um cumprir a missão que lhe foi atribuída, e a sorte lhes sorrir, Edward Tung Lee poderá dormir ainda esta noite no seu apartamento da Quinta Avenida.
Quando sai para a rua descobre que a cidade está coberta por um manto de nuvens baixas. Como não há Lua nem estrelas, não podem ser vistos - o que Cone considera promissor para qualquer tipo de operação nocturna. Além disso não corre a mínima aragem, nada que possa prejudicar o rappel da rapaziada do FBI.
Mete-se no Escort vermelho e segue em dlrecçSo à
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Chatham Square; descobre um lugar para estacionar na Bowery e faz a pé o caminho de volta. Johnnie Wong aguarda-o; o homem do FBI está de camuflado e, inesperadamente, parece muito maior do que é. Cone espeta-lhe um dedo no sitiõ das costelas e sente a rigidez do colete ã prova de balas.
- Colete? - pergunta.
- Espero que resulte - responde Wong com um sorriso.
- Não me diga que é um dos que vão saltar do telhado!
- Não, co"os diabos! Não sou nenhum pássaro. Vou comandar a secção que vai subir as escadas, depois de rebentadas as portas de aço.
- Portanto vai ser tudo como combinámos?
- Mais ou menos - diz Wong. - Só com uns ajustamentos finais. Os tipos de cima vão saltar armados com Ingrams Mark Ten e granadas de aturdimento.
- E você, o que é que leva?
- A Velha Fiel: uma Thompson quarenta e cinco com carregador de tambor.
- E como é que rebentam com as portas?
- Os nossos cérebros apareceram com uma coisa bestial: um explosivo de alta energia que mais parece um cartão de crédito. Enfia-se entre a porta e a ombreira, puxa-se uma espoleta de fricção e foge-se a sete pés porque o rastilho só dura cinco segundos - e isso já com muita sorte. Oiça, já não temos muito tempo, por isso deixe-me fazer-lhe o ponto da situação. Tivemos de pedir ajuda ao NYPD, que daqui a cerca de quinze minutos vai fechar ambos os extremos da Doyer Street, montando barricadas
com carros da Polícia sem luzes nem distintivos. Em cada uma das barricadas serão montadas baterias de projectores e de farolins, alimentadas claro está por geradores
portáteis.
"O centro de comando está montado no telhado do prédio fronteiro ao do quartel-general dos Ubies; sobe-se para lá atravessando um pátio e subindo seis lances de
escadas. Além disso temos homens em todos os andares, para manterem os inquilinos dentro dos respectivos apartamentos. As comunicações são feitas com walkie-talkies,
todos os participantes dispõem do seu... e bem podemos rezar para que todos funcionem.
Johnnie segue à frente até à Doyer, e os dois começam a cruzar-se com homens vestidos de escuro, alguns falando calmamente para os seus transreceptores.
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- Quantos homens arranjou para esta operação? - pergunta Cone.
- Perto de cem. O comandante veio de Quântico: já dirigiu mais de uma dúzia de operações como esta. Tem fama de bom, mas tem um feitio tramado. Tive problemas para
o convencer a deixá-lo assistir à coisa; no fim de contas a ideia foi sua.
- Eu sei - diz Cone. - Só que não passo de um reles civil.
Atrevessam um pátio semiabandonado, entram no prédio por uma das portas das traseiras e sobem as escadas até ao último andar, de onde sai uma escada de ferro que
leva ao telhado através de um alçapão nesse momento aberto. Do piso do terraço elevam-se duas chaminés em tijolos e uma série de tubos de ventilação. Cone repara
numa parede baixa - dá-lhe pela cintura - que dá para a Doyer Street.
No terraço estão cinco homens; um deles tem entre mãos uma coisa parecida com uma Speea Graphic 4x5, e outro traz ao ombro uma câmara de vídeo portátil.
- Vamos registar tudo para a posteridade - explica Wong, parecendo aborrecido. - Não o vou apresentar a ninguém; o pessoal está demasiado tenso para perder tempo
com delicadezas.
- Pois é - diz Cone. - Também já me senti assim.
Dois dos outros agentes do FBI servem-se dos transreceptores. O quinto, aparentemente o comandante da operação, está em pé a alguns passos da parede, as mãos enfiadas nos bolsos; olha para o céu negro, a boca semiaberta.
Johnnie vai ter com ele; trocam umas breves palavras, e um dedo é apontado na direcção de Cone O comandante vira se para o ver, acena com a cabeça e diz qualquer coisa. Wong volta para junto de Cone.
- Mantenha-se afastado da beira do terraço até come çar a acção - diz-lhe o agente. - Não acenda nenhurr cigarro. Okay?
- Claro - diz Cone. - Oiça, não tenho nada a ver com isto, mas será que vocês trataram das coisas para o caso de haver feridos?
- Temos duas ambulâncias e equipas médicas de evacuação em stand by na Mott Street e vários carros prisionais, só que não são carros, são camionetas. Bom tenho
de ir ocupar o meu posto.
- Precisava de um favor seu - diz-lhe Timothy ante;
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que o outro se vá embora. - Lembra-se da lista de accionistas da White Lotus que lhe mostrei em minha casa? Alguém a foi buscar lá, e penso que seja obra dos Bambus
Unidos. Quando esta coisa acabar, será capaz de dar uma olhadela pelos escritórios deles a ver se a descobre? Prometi ao Chin Tung Lee tomar conta dela, no fim de
contas trata-se de informações confidenciais.
- Claro - diz Johnnie Wong. - Não me custa nada. Até daqui a pouco, meu velho.
- Até já - responde Cone.
Wong vai-se embora, e o detective da Wall Street mete a mão no bolso para tirar um cigarro, tirando-a imediatamente com uma sensação de culpa. Repara que os cinco
homens do FBI se estão a aproximar da beira do terraço, do lado que dá para a Doyer Street. Cone imita-os, caminhando com todo o cuidado.
O comandante tem nas mãos um cronómetro grande como uma cebola. Consulta-o e diz em voz calma para os companheiros:
- Preparar para o último minuto.
Os outros murmuram para os transreceptores.
- Um minuto... conta! - diz o comandante em tom seco.
Os outros repetem a ordem.
Todos aguardam em silêncio.
- Quarenta e cinco segundos - diz o comandante, a voz dura como o aço. - Trinta segundos... vinte... dez... cinco, quatro, três. dois, um. Acção!
Os homens das comunicações começam a gritar para os walkie tolkies, e todos se aproximam do muro limítrofe do terraço; agarram-se ao parapeito, de olhos fixos no
outro lado da rua.
Três homens descem por cordas presas ao telhado do quartel-general do Bambu Unido. O rappel é rápido e preciso, servem-se das pernas como amortecedores para não saírem muito da vertical da parede.
Detêm-se repentinamente em frente às janelas do terceiro andar e estilhaçam os vidros com as botas. Atiram granadas para o interior: as três explosões são quase simultâneas, formando um único e titânico bum!
- Luzes! - ordena o comandante na sua voz implacável.
Os projectores e farolins transformam a noite em dia;
a rua fica banhada por uma luminosidade crua e esverdeada.
- Unidade Dois, avançar - diz o comandante,
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Cone calcula que ninguém o mandará para Leavenworth se fumar agora um cigarro. Acende-o, inclinasse sobre o parapeito e espreita para baixo.
Uma das sentinelas dos Ubies correu para o meio da rua e está a olhar para cima, mas a outra tem as costas encostadas à porta de ferro e levou a mão ao cinturão.
O esquadrão de Wong sai a correr das entradas vizinhas e atira-se aos guardas, agarrando-os sem problemas. Johnnie começa a trabalhar na porta de ferro. Faz sinal para se afastarem e por fim foge a correr. Surge uma língua de fogo mais brilhante que as luzes dos projectores; uma nuvem de fagulhas e por fim a porta sai dos gonzos, ficando a abanar numa posição incrível.
A porta interior sofre o mesmo destino, só que rebenta completamente para d entro. Os atacantes entram a correr, liderados por Wong.
Os três homens do rappel desapareceram entretanto no interior, entrando pelas janelas destroçadas. Ouvem-se tiros de armas ligeiras, logo seguidos pelo matraquear das metralhadoras.
- Unidade Três - diz o comandante na sua voz fria.
Cone já tinha pensado se aquela gente teria preparada
uma força de reserva. Afinal tinha: doze homens surgem a correr pela Doyer Street; desta feita são polícias da corporação de Nova Iorque, com capacetes e coletes
anti bala. Logo atrás surge um pelotão de agentes uniformiza dos, que estabelecem rapidamente um cordão em volta
da entrada do prédio dos Bambus Unidos.
O tiroteio continua, agora mais intenso.
- Médicos - ordena o comandante. - Vamos embora
É o primeiro a sair, descendo cuidadosamente a escada
do ferro seguido pelos dois adjuntos. Depois descem os fotógrafos, que não deixaram de trabalhar desde que a operação foi desencadeada.
Cone acende novo cigarro e vai atrás deles. Quando chega à rua, o fogo de armas ligeiras já é esporádico tiros de pistola a que respondem curtas rajadas de
automáticas.
Uma ambulância sobe lentamente a rua, a sirena a uivar. Cone, junto à entrada do prédio, observa os maqueiro i a retirarem do interior várias macas e sacos para os
corpos. Aproxima-se um camião blindado.
Por esta altura, todas as janelas da Doyer Street tem as luxes acesas; as pessoas espreitam lá de dentro,
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algumas mais afoitas subiram aos telhados para verem melhor.
O tiroteio acaba. Cone acende um cigarro e apercebe-se de que está a fumar dois ao mesmo tempo; acaba o mais pequeno com duas ou três passas fortes e continua com
o outro.
Dois agentes do FBI saem do prédio do Bambu Unido, trazendo Edward Tung Lee pelos braços; os joelhos do homem fraquejam, mas mesmo assim ainda consegue andar. Ajudam-no
a entrar na ambulância. Os outros polícias começam a sair, FBI e NYPD à mistura: escoltam uma pequena multidão de prisioneiros, alguns completamente vestidos, outros
de pijama e uns quantos em cuecas. Todos trazem as mãos cruzadas em cima da cabeça. São enfiados no camião blindado, que arranca imediatamente, sendo substituído
por outro igual.
Johnnie Wong sai a ajudar a transportar uma maca. O corpo estendido está tapado até ao pescoço com um cobertor. Ao lado caminha um enfermeiro segurando bem alto
uma embalagem plástica; o tubo de ligação desaparece por baixo do cobertor.
A ambulância afasta-se para dar lugar a outra. Wong pára e olha em volta, parecendo entontecido, a Thompson pendurada numa das mãos.
Cone atravessa a rua e vai ter com ele.
-Johnnie - diz-lhe com suavidade.
O homem do FBI roda lentamente sobre os calcanhares para o fitar, não o reconhecendo logo. Cone detecta imediatamente os sintomas: choque, excesso de adrenalina,
tremuras pós-acção.
- Tudo bem? - pergunta a Wong.
- O quê? Oh, sim, estou mais que bem! Um dos meus homens foi atingido.
- Oh, Jesus! - exclama Cone. - É grave?
- Acho que sim. Tinha muito mau aspecto. Foi o Chiang Ho, trabalha no Bureau há quase dez anos. Um tipo formidável. Oh, meu Deus, o que é que vou dizer à mulher!?
- Talvez ele se safe.
- Não, não vai conseguir - responde Wong, acrescentando em tom selvagem: - Mas abati o cabrão que o atingiu! Já tirámos o Edward Lee lá de dentro... você viu-o?
- Vi. Foi um trabalho estupendo, Johnnie.
- Também acho. Sim, foi mesmo bem feito. Vamos levar todos de cana. Sabe uma coisa? Depois de ver o
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Chiang caído, apeteceu-me liquidar os gajos todos... nunca me senti assim em toda a minha vida! Não é um sentimento nada agradável.
- Bem sei. Mas enfim, você vai receber um louvor do director desta coisa toda.
- Talvez - diz Wong. - Eh, acabei por encontrar a sua maldita lista. Estava em cima de uma secretária no escritório do bando.
Mete a mão dentro do blusão do camuflado e tira a listagem computadorizada da White Lotus.
- Obrigado - diz-lhe Cone, reconhecendo. - Fico a dever-lhe um grande favor, pago-o assim que quiser.
- Não me vou esquecer disso, grande homem - diz o agente do FBI. - Vá dando notícias.
Em condições normais, deveria deitar-se mal entrasse no sótão, dormindo até ao fim da manhã de segunda-feira. Contudo, sente-se demasiado excitado. É certo que se limitou ao seu estatuto de espectador durante o assalto ao quartel-general do Bambu Unido, mas a tensão e a expectativa acabaram por se apoderar dele. Ainda conse gue ouvir as frias ordens do comandante da operação, o tiroteio a a vitória final.
Bebe um vodca puro para suavizar o nervosismo e concentra-se naquilo que resta do quebra-cabeças - as razões que o levaram a meter-se naquela confusão.
Porque é que as acções da White Lotus começaram de repente a subir? Obviamente porque o bando do
Panda Gigante as começou a comprar através da Yangtze Inter national,
com o objectivo de passarem a controlar a com panhia. O esquema nada tem de ilegítimo; assim,
quais serão os motivos que levaram Henry Wu Yeh a rapta Cone, avisando-o
para protelar a investigação, ameaçando-o de morte caso o não fizesse? É uma atitude que não
faz o mínimo sentido.
Por outro lado, onde é que se ajustam neste esquema a carta chantagista dirigida a Claire e os telefonemas recebidos por Edward Lee?
A resmungar, começa a folhear a lista de accionista da White Lotus; como sempre, presta mais atenção ac accionistas com mais de mil acções - os indivíduos qu Johnnie
Wong disse estarem ligados ao Panda Gigante.
As revelações surgiram lentamente, e não graças a uma súbita inspiração. Não se lhe acendeu nenhuma
lâmpada
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dentro da cabeça, como nas bandas desenhadas; as respostas vieram dos números frios das várias colunas, os quais, como o detective da Wall Street muito bem sabe,
podem contar-nos uma história tão bem como as manchas de sangue, as facas sujas ou um martelo recoberto de matéria cerebral.
O primeiro passo foi dado ao somar as carteiras de todos os accionistas detentores de mil ou mais acções, o que revelou nunca, mas nunca, poderem representar 16 por cento do capital, mesmo com as alegadas procurações de "muitos outros accionistas".
Como é que eles apareceram com aquele número mágico dos 16 por cento? Timothy sabe como. Edward Tung Lee, pessoalmente, detém 16 por cento da White Lotus; que bela coincidência, meus senhores! Quem não acreditar nela, o melhor é passar a recorrer à Fada dos Dentes.
O que se passa, compreende Cone, é que Edward Lee é conivente com o Panda Gigante no assalto à companhia do pai. Mas porquê? Cone julga também poder responder a esta última questão.
Abre na primeira página o estupendo relatório anual da White Lotus, onde surge a fotografia de Edward Tung Lee, director-geral da corporação. Mesmo com aquele sorriso gelado, o homem é um diabo elegante: lábios recurvos, queixo saliente, testa alta, cabelo seco com secador.
Podia ser um ídolo de cinema, e Cone compreende que é isso exactamente o que ele é.
- Cleo! - chama, e o gato adormecido levanta a cabeça.
- Fui enganado - diz Cone.
Na segunda-feira acorda tarde, senta-se no colchão, boceja e esfrega o escalpe com os nós dos dedos. L.em-bra-se do bandido que lhe disse: "hoje é o primeiro dia do resto da sua vida". Se não for trabalhar pode muito bem ser o seu último dia - com os cumprimentos de Henry Wu Yeh.
Só lá para as dez da manhã é que se prepara: dois "Camel, duas chávenas de café forte e um cheirinho d"e brande para realçar as cores do rosto.
Muda a água a Cleo e dá-lhe um pezinho de porco em pickles para o animal se ir entretendo. Verifica o coldre de tornozelo e vê se a carteira está bem recheada de notas verdes. Por fim rasga a fotografia de Edwrd Lee
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do relatório anual e enfia-a no bolso do casaco. Sai para a rua cheio de fel e vinagre, prenhe de pensamentos vingativos.
Vai directamente para o Upper East Side e gasta dez minutos a enfiar o Escort num buraco que já ficaria cheio com uma motorizada. Vai a pé até ao Hotel Bedlington, na Madison Avenue, a poucos quarteirões de distância do apartamento dos Lee.
Conhece o estabelecimento; já lá esteve a tratar de vários outros casos em que se meteu. É uma casa conservadora e recatada, com imensos residentes permanentes, um bar que se orgulha dos seus grasshoppers e um átrio que cheira levemente a mosto e ostenta uma litografia magnificamente emoldurada do Mausoléu de Grant.
Cone passeia-se um pouco pelo átrio até descobrir um paquete. O tipo é pequeno, atarracado e tem o queixo escuro da barba; parece ser um ano mais novo do que Deus. Cone imagina-o sentado numa mesa de jogo com um charuto enfiado nos lábios; tem aquele ar matreiro dos nova-iorquinos, e Timothy sabe que a coisa não lhe vai sair barata.
- Posso falar consigo um bocadinho? - pergunta.
O paquete olha-o de cima a baixo, apreciando com desdém o chapéu de couro negro, o fato de veludo puído e as botas de atanado.
- Falar não custa nada - responde o tipo.
- Assim espero - diz Cone. - Há por aí algum sítio onde possamos desfrutar de um pouco de privacidade?
- O que é que eu ganho com isso? - pergunta o homem.
O tipo parece um anão crescido, e a pança quase lhe rebenta os botões de latão do colete.
- Um par de dólares? - diz Cone, esperançado.
- Nem pensar! Por dois nem sequer digo os bons-dias...
- Cinco - oferece Cone.
O paquete aponta o polegar para a porta do lavabo dos homens.
- Ali - diz ele. - E espero que seja rápido. Tenho mais coisas a fazer, como deve calcular.
Enfiam-se cada um no seu urinol; a casa de banho está deserta. Cone estende-lhe a nota de cinco.
- Você não é da Polícia - diz o fulano.- Isso vê-se a milhas. O que é que é? Detective privado? Cobrador? Talvez um repórter à procura de escândalos?
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- Qualquer coisa como isso - diz Cone. - Como é que você se chama?
- Max.
- Oiça, Max, vou-lhe mostrar uma fotografia, e quero saber se você já alguma vez viu a pessoa. Basta um sim ou não. Não é nada difícil, pois não?
- Mostre-a lá.
Cone saca da fotografia de Edward Tung Lee e estende-a ao outro. O paquete fica a olhar para ela.
- Nunca o vi mais gordo - diz o homem, ao mesmo tempo que esfrega o indicador no polegar.
O detective da Wall Street suspira e pega na carteira.
- Você já recebeu um Lincoln - avisa.
- MaS isto vai-lhe custar um Hamilton - responde Max. - Oiça lá, você ganha uns belos Washingtons no seu trabalho, não é verdade? Por quem é que me toma? Por um trouxa?
Cone vasculha a carteira e tira uma nota de dez dólares.
- Sim, conheço o tipo - diz Max. - Vem cá duas ou três vezes por semana, sempre da parte da tarde. Costuma ficar aí umas duas horas.
- Desde quando é que este hotel se presta a erran-jinhos? - pergunta Cone.
- Desde o dia da inauguração - responde o paquete.
- Mas o que é que você pensa que fazem outros hotéis da cidade? É dinheiro fácil... e os clientes não nos ocupam por muito tempo.
- Há quanto tempo é que este tipo vem para aqui brincar com as suas garotas?
- Ohl, deve estar a fazer dois anos, mais mês menos mês. Já chega, o seu dinheiro rendeu o que tinha a render.
- Ainda não - diz-lhe o detective da Wall Street.- As mulheres são diferentes ou é sempre a mesma?
Max volta a repetir a esfregadela do indicador no polegar.
- Assim ainda acaba por gastar a pele dos dedos - diz Timothy. - Quanto?
- Agora acho que já vale um Jackson.
- O quê? - exclama Cone, indignado. - Tem a certeza de que o seu nome é Max? Não será Jesse James?
- Oiça, eu tenho a informação e você pretende-a. É a lei da procura e da oferta... percebe o que quero dizer?
Cone geme e estende-lhe uma nota de vinte.
- É sempre a mesma mulher - informa Max. - O tipo
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telefona para a recepção antes de cá chegar, para ficar a saber o número do quarto... capisci? O Hitler da recepção sabe do que se passa, por isso o tipo vem para
cá, sem qualquer bagagem, e sobe directamente para o quarto. Quinze ou vinte minutos depois aparece a fulana; como já sabe qual é o quarto, atravessa o átrio e mete-se
no elevador. É um casal simpático, dão boas gorjetas... espalham-nas por aí a torto e a direito, e assim é que deve de ser.
- Hum-hum! -diz Cone. - Aposto que a tipa é pequena, gorducha e tem o cabelo escuro... certo?
O paquete fita-o com ar aborrecido.
- Você julga que eu nasci ontem?
- Está bem, está bem!-diz Cone, suspirando.- Quanto?
- Um Grant, mas olhe que não testemunho em tribunal se isto é para um caso de divórcio, como me parece que é.
- É bom que esta renda mais - previne Cone, estendendo-lhe uma nota de cinquenta.
Max dobra-a e enfia-a no bolso do colete.
- É uma brasa, uma gaja boa como o milho. Alta como você, loira, mamas grandes e sempre muito bem vestida. Uma vez ouvi o tipo chamar-lhe Claire. Era isso que queria
saber?
- Serve - responde Cone, acenando com a cabeça. - Pode dizer-me onde é que posso encontrar uma cabina telefónica, ou também me vai cobrar por isso?
- Nã, essa dou-lhe de borla. Fica na sobreloja.
Cone descobre o telefone dentro de uma cabina antiga, daquelas de porta de dobrar e com um banquinho em frente ao aparelho. Mete a moeda e liga para a sede da White Lotus, na Exchange Place.
- O Sr. Chin Tung Lee veio trabalhar hoje de manhã?
- pergunta à telefonista.
- Veio sim senhor. Quem fala, por favor?
- Tenho uma entrega pessoal para o Sr. Lee, e só queria saber se ele estava nos escritórios. Muito obrigado.
Desliga, sai do Hotel Bedlington e dirige-se ao apartamento dos Lee, na Quinta Avenida.
Em frente à porta dos Lee está postado um monstro de braços cruzados, parecido com o Gengis Cão em jovem
- olhos em fenda e uma bigodaça suficientemente grande para varrer a gaiola de um periquito. Cone decide jogar pelo
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seguro, pois não sabe se o tipo é do FBI, do NYPD ou da bandidagem contratada.
- Chamo-me Timothy Cone, venho falar com a Sra. Claire Lee - diz o detective. - Ela está à minha espera.
O mastodonte descruza os braços, e Cone fica sem saber se o outro lhe vai desferir um golpe de karate capaz de o decapitar.
- Espere aqui - diz o tipo numa voz inesperadamente fina.
Desaparece lá dentro e Cone aguarda no corredor. Passados momentos a porta é aberta de novo pelo grandalhão.
- Venha comigo-diz o tipo.
Timothy segue-o através do já familiar labirinto de salas e corredores, sendo por fim introduzido numa pequena sala de estar, passando daí a um quarto de cama anexo. O mamute lanzudo retira-se.
Edward Tung Lee está sentado num sofá de couro; por baixo do roupão brocado veste um pijama de seda cor de cereja. Do bolso do roupão espreita a ponta de um lenço branco, e os pés estão descalços. Claire Lee está em pé ao lado dele: parece uma rapariguinha de liceu, com a camiseta curta, os calções e os sapatos de desporto.
- Sr. Cone!-arrulha ela. - Mas que surpresa aqra-dável!
- Estava aqui perto e pensei vir cá para ver como vai passando o seu marido.
- Está bastante melhor, obrigado - diz ela. - Na verdade sentia-se tão bem hoje de manhã que insistiu em ír trabalhar.
-É uma estupidez-interrompe Edward. - O meu pai é incapaz de abrandar o ritmo.
Fitam-se todos com um ar satisfeito.
- Oiçam, já não é tão cedo que não possamos tomar uma bebida!-diz Claire. - Que me diz a um copito, Sr. Cone?
- Nunca é demasiado cedo - responde ele.
- E já sei qual é a sua preferida - continua ela.- Vodca on the rocks com umas gotas de água. É isso? Edward, acho que também devias beber qualquer coisa... talvez
um brande. O médico disse que te fazia bem.
- Um pequeno - concorda ele.
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- E uma coisinha pequenina para mim -diz ela, alegre.
- Não demoro nada.
Sai porta fora e Edward vira-se para Cone:
- Puxe de uma cadeira, Sr. Cone.
O detective, porém, prefere sentar-se na beira da cama por fazer, de modo a ficar de frente para Lee e para o outro sofá. Quer tê-los aos dois debaixo de olho.
- Você parece-me um bocado em baixo de forma, mas a verdade é que não está tão mal quanto seria de esperar
- diz Cone. - Os tipos fizeram-no passar um mau bocado?
Edward fica surpreendido: .
- Mas afinal sabe o que se passou comigo?
Cone diz que sim com a cabeça.
- Como é que descobriu? Não veio nada nos jornais!
- Através de amigos - responde Cone. - O FBI fez um belo trabalho ao conseguir tirá-lo dali.
- Salvaram-me a vida. Um deles foi gravemente ferido durante o tiroteio... também sabia disso?
- Ouvi dizer.
- Nunca me esquecerei daquilo - diz Edward em tom sombrio. - Nunca na vida.
- Pois é - diz Cone.
Claire entra de rompante com uma travessa de prata nas mãos. Serve as bebidas:
vodca com gelo para Cone, um balão de brande para Edward e qualquer coisa verde num
copo gelado para ela.
- O Cone sabe o que me aconteceu - diz-lhe Edward.
- Oh, o Sr. Cone sabe tudo, tudo! - replica ela, bem-disposta.- Não sabe, Sr. Cone?
- Mais ou menos - confirma ele.
Claire senta-se no sofá vago, o que lhe permite observar os dois sem ter de virar a cabeça de um lado para o outro. Levantam os copos num brinde silencioso e provam as bebidas num gesto delicado. Tudo muito civilizado.
- Vocês os dois são um belo casal de escroques - diz-lhes Cone.
Os rostos deles ficam rígidos, mas as mãos de Edward começam a tremer, obrigando-o a pousar o balão no cf;ão, junto à perna do sofá.
- O quê? - pergunta Claire Lee, com a voz estrangulada.- Como é que disse?
- Escroques - repete Cone. - Patifes. Tanto um como outro. Durante quanto tempo julgavam vocês que podiam
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continuar com aquelas matinées no Bedlington? Para todo o sempre?
- Não sei do que é que está a falar -diz ela, acalorada.- Acho melhor retirar-se imediatamente!
- Cale-se!-replica Cone, zangado. - Tanto se me dá que você ande a abrir as pernas todos os dias do ano... o que me irrita é o facto de vocês os dois me terem tomado
por parvo, dizendo-me que se odiavam mutuamente. Acreditei porque era a situação clássica: madrasta mais nova, filho mais velho, ambos a competirem pela herança de um velho. Acontece é que vocês andam a trabalhar juntos há já alguns anos.
- Você é asqueroso, revoltante! - acusa-o Claire, fitando-o nos olhos.
- É melhor que me acredite - diz-lhe ele, bebendo um gole de vodca. - Oiça - diz para Edward -, se você quer pôr os cornos ao seu pai, o problema é seu. Quanto
a mim, só tenho de descobrir as razões da subida imparável das acções da White Lotus. Quer ouvir o meu cenário? É bem giro.
Nenhum deles responde.
- É mais ou menos assim - continua Cone.-E não me interrompam se eu estiver errado, porque não penso que o esteja.
Um: Claire e Edward andam a gozar com a senilidade do pobre e velho Chin. Dois: Edward sente-se furioso porque o pai não quer financiar a sua grande ideia de incluir
na linha de produtos da White Lotus uma série de refeições chinesas congeladas. Oh!, sim, reparei na sua fúria quando me contou a história, estávamos nós no Ah Sing"s. Três: Neste interim, a Claire faz-lhe olhinhos e você decide separar-se da White Lotus e prosseguir sozinho, iniciando um novo negócio que o faria ganhar triliões.
- Oiça uma coisa...-começa Edward.
- Cale-se! - replica Cone em tom selvagem. - Não há nada de errado no seu plano, mas o que me deixou lixado foram os meios que escolheu para o concretizar. Os seus dezasseis por cento do capital da White Lotus render-lhe-iam uma bonita maquia se vendesse as acções ao preço antigo no mercado livre, mas mesmo assim não serviria
para abrir uma pizaria das rascas; não, você precisava de muito mais para desencadear uma operação de refeições congeladas.
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- Claire, é melhor telefonares à Polícia - diz Edward, rígido.
- Vá lá, telefone-lhes - diz Cone. - E diga-lhes para trazerem repórteres e fotógrafos... seu cretino! Portanto o seu problema era o aumento de capital. A solução?
Traição! Fez um acordo com o Panda Gigante, e os tipos alinharam porque andam desejosos de se meter nos negócios legítimos para limparem a massa realizada com a droga e as extorções. A manobra é a seguinte: elementos do Panda Gigante começam a comprar acções da White Lotus, e o preço sobe. Quando atinge um valor considerável, como sucedeu na semana passada, o Panda Gigante atira-se à White Lotus, servindo-se da sua companhia Yangtze International.
"Qualquer de vocês sabe o quanto o Chin Tung Lee ama a sua firma. É a vida dele, e por isso calcularam que
ele pagaria bem para se manter à cabeça da companhia.
Assim, a Yangtze finge que quer assumir o controlo, quando o que na realidade pretendem é obrigar o Chin a duplicar o preço - comprar-lhes as acções ao dobro da
cotação oficial. O valor obtido já seria suficiente para você começar o seu negócio de refeições congeladas...
- Você está louco!-diz Edward Lee em voz baixa.
- Claro que estou - admite ele, bem-disposto. - Mas também tenho razão. Quase tudo se ajusta: a necessidade do seu pai em se manter na companhia que criou, a sua
necessidade de arrancar com o novo negócio para provar que é tão bom ou methor que o seu pai. E a necessidade do Panda Gigante em se meter nos negócios legítimos.
Qual foi o acordo? Será que eles lhe iam dar parte do capital? Uma merda é que iam! Aquela gente é do pior, mesmo que operem através de uma fachada financeira
na Pine Street. Você podia considerar-se cheio de sorte se o deixassem ficar com trinta por cento! Tenho ou não tenho razão?
Edward Lee, chocado, não responde, mas Claire fá-lo por ele:
- Você disse que quase tudo se ajusta. O que é que falta?
- Você - diz-lhe Cone. - Você e o Edward podiam ter-se apoderado da White Lotus em qualquer momento; entre os dois, detêm o capital suficiente para elegerem o vosso
próprio Conselho de Administração e mandar o velho para a reforma. A verdade é que não enveredaram por
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esse caminho. Porquê? Sr.a Lee, tenho-a na conta de uma mulher da vida que nunca deixou de perder qualquer boa oportunidade. É uma mulher com boa apresentação, disso
não restam dúvidas, mas quando chegamos à espinha, então é que se vê o quão você é mole.
"Na minha opinião, o seu raciocínio foi mais ou menos assim: sim, posso alinhar com o Edward neste esquema de pressionar o velho, mas será que isso é a melhor solução?
O que é que acontece se o Chin morrer de um ataque cardíaco e eu herdar a parte dele? É uma hipótese mais que possível na idade dele, por isso talvez seja melhor
jogar as minhas cartas com mais cautela. Se a conspiração do Edward resultar e o negócio dele se tornar num sucesso, então posso trocar o pai pelo filho... mas entretanto
é melhor jogar pela calada, deixar que o Edward se encarregue de tudo a ver até onde é que ele vai. Sou nova, posso dar-me ao luxo de esperar o tempo que for preciso.
Se o Edward ganhar vou com ele; se perder, então adeuzinho, Eddie querido.
- Você é nojento - diz ela, cuspindo as palavras.
- Pois sou - responde Cone, acabando a bebida. - Quase tão nojento como vocês os dois, cidadãos exemplares.
Levanta-se e pousa o copo na mesinha-de-cabeceira. -
- Obrigado pela bebida, mas já se faz tarde. Tenho imenso que fazer, percebem?
- Sr. Cone - chama Edward Lee, nervoso. - Não vai contar ao meu pai o que se passou no Hotel Bedlington, pois não?
- É como dizem os advogados - responde Cone.- À cautela do patrocínio... entretanto pode ir suando um bocado. Alguém me poderá mostrar como é que se sai desta maldita casa?
Claire Lee segue à frente dele, em silêncio. Junto à porta da rua, porém, gira sobre os calcanhares para o enfrentar.
- Você reparou em mim, não reparou? - pergunta ela.
- A princípio, sim - diz Cone. - Até me recordar de que tenho uma senhora que a faz parecer a si com uma boneca Barbie, e que além disso tem a espinha bem direita.
- Não sou tão má como isso - replica Claire, à defesa.
- Comparada com quem? - pergunta Cone.
Chega à Exchange Place à uma da tarde, depois de parar a meio da Avenida Lexington para comer um hamburger,
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acompanhado de uma garrafa de Heineken preta. Seguiu-se novo hamburger e nova cerveja preta. Sente-se faminto, pois saiu de um grande estado de tensão após
a conversa com Claire e Edward. O comer acalma-o, permí-tindo-lhe planear aquilo que vai dizer a Chin Tung Lee.
No entanto, fazem-no esperar na recepção da White Lotus.
- Neste momento o Sr. Lee está ocupado, sir, mas não demora a recebê-lo.
Não faz mal: ainda é segunda-feira, Cone ainda respira e, se os gorilas de Henry Wu Yeh andam na sua peugada, ainda não deu por eles.
Quando entra no gabinete de Lee, repara que o velho está bastante bem-disposto. Fuma o habitual cigarro perfumado na ponta da boquilha de marfim, enfiada ao canto da boca num ângulo atrevido, à FDR (1). O capachinho arroxeado está ligeiramente enviesado, dando-lhe um ar esgrouvidado, e a mosca à Vandyke respira de juventude.
-Tenho muito prazer em o ver de novo, Sr. Cone - diz-lhe na sua voz ressonante, estendendo-lhe a mão minúscula por cima da secretária. - Tencionava telefonar-lhe,
mas hoje foi o primeiro dia em que saí da cama. Sente-se, por favor, e diga-me o que tem feito.
O detective da Wall Street senta-se no sofá de couro, tira um Camel do maço e acende-o.
- Folgo muito por o ver de saúde e a trabalhar - começa. - Hoje de manhã fui visitar o seu filho.
- Já sei - diz Lee. - Ele telefonou-me assim que o senhor saiu. Disse-me que já sabia do salvamento dele.
- É verdade.
- Um fim feliz para uma situação extremamente infeliz. Não teve nada a ver com o caso, pois não?
- Eu? Não.
- Enfim, tudo está bem quando acaba bem, como dizia o vosso Shakespeare.
- Não é o meu Shakespeare, e além disso houve muita gente antes dele a dizer essa máxima.
Fitam-se por momentos, silenciosos. Lee parece retirar-se perante o olhar duro de Cone; o brilho dos olhos esmaece e o sorriso desaparece. O velho poisa cuidadosamente o cigarro e a boquilha no cinzeiro de latão.
(1) FDR - Franklin Delano Roosevelt, antigo presidente dos EUA. (N. do T.)
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- O que é que q preocupa, Sr. Cone?
- Já se apercebeu? - pergunta Timothy. - É verdade, há uma coisa que me preocupa. O senhor enganou-me, não é verdade?
- Como? O que é que disse?
- Julguei-o um cocker spaniel, mas afinal o senhor saiu-me um touro. Há quanto tempo é que sabia do seu filho e da sua mulher?
Chin Tung Lee não responde, mas parece enfiar-se pela cadeira de rodas abaixo.
- Qualquer outro homem tê-los-ia posto fora a pontapés- continua Cone. - Mas isso não é o seu estilo, o senhor é um jogador de xadrez habituado a ganhar. Prefere pensar nas cinco jogadas seguintes... no mínimo. Mexe nas pessoas como se fossem peças de xadrez, por isso mandou um empregado ou pediu a um amigo que escrevesse uma carta a assustar a Claire, não se esquecendo dos telefonemas ameaçadores para o seu filho. Para um homem na sua posição, não é nada difícil conseguir coisas dessas; pensou que assim conseguia acabar com aquelas sessões no Hotel Bedlington. Depois perdoar-lhes-ia e esqueceria o incidente.
- Nunca me poderei esquecer nem perdoar aquilo que o meu filho me fez - diz Chin em voz dura.
- Então, Sr. Lee?-replica Cone. - Se não fosse o Edward, seria outra pessoa qualquer... e o senhor sabe-o muito bem. Preferia que fosse um estranho? Acha que isso o faria sentir-se melhor?
- O senhor é uma pessoa muito cínica, Sr. Cone.
- Eu? Nada disso. Limito-me a ver as realidades. Quantos anos tem o senhor... setenta e muitos?
- Faço oitenta no ano que vem.
- Portanto tem o triplo da idade dela. O que é que esperava? Provavelmente já conhecia a história dela quando a escolheu para sua mulher; deve ter calculado que mais dia menos dia, aconteceria uma coisa destas.
- Sim, é certo que previ a situação. Mas nunca com o meu filho!
Cone encolhe os ombros.
- A família que joga unida permanece unida.
O comentário, pelo menos, é recebido com um sorriso.
- Diga-me, como é que descobriu que eu era o responsável pelas ameaças?
- Não custou muito, bastou ir eliminando as possibilidades.
369
Não podia ter sido o bando do Bambu Unido, porque raptaram o seu filho, e nunca se rapta uma vítima potencial de chantagem. Por outro lado também não podia
ter sido o Panda Gigante, porque o Edward e eles são praticamente unha com carne.
O velho endireita-se de repente sobre a lista telefónica onde está sentado, e fita Cone com olhos irados.
- Tem a certeza do que está a dizer?
- Tão certo como estarmos aqui. Oiça, esta coisa entre a Claire e o Edward é para tapar a vista, e além disso não me diz respeito. A minha missão consistia em descobrir os motivos da subida galopante da cotação das acções da White Lotus. Muito bem, aqui vai a resposta: o seu filho e o Panda Gigante, servindo-se da Yangtze International, estão a pressioná-lo para que o senhor suba o preço. O mais certo é o Edward ter posto as suas acções à disposição dos Pandas, para lhes dar mais força.
- O meu próprio filho? O meu filho quer pôr-me na rua?
Cone recosta-se no sofá e acende novo cigarro. Vê as
mãos de Chin começarem a tremer, e resolve dar ao ancião uns momentos para se acalmar.
- Não me percebeu - diz-lhe Cone. - O seu filho não está minimamente interessado em apoderar-se da White Lotus. Sabe que não tem o capital necessário. Nada disso, ele quer é arrancar com a sua própria companhia, a das refeições chinesas congeladas... a ideia que o senhor rejeitou. A única forma que ele tem para arranjar o capital necessário é obrigá-lo a si a comprar-lhe as acções dele a um preço inflacionado. É claro que, ao mesmo tempo, terá de dar uma boa parte dos lucros ao Panda Gigante. É uma técnica mais que conhecida, Sr. Lee. Eles sabem que o senhor pagará muito mais que a cotação actual das acções para se manter à cabeça da White Lotus.
O velho cofia suavemente a barba pontiaguda.
- Portanto também há mais gente que joga xadrez nos negócios - comenta.
- Na Wall Street? Mas é claro!
- Sr. Cone, naquela cómoda horrorosa do outro lado do gabinete está uma garrafa de sake. É uma bebida japonesa, mas sabe muito bem. É feita de arroz. Também lá poderá encontrar uns copos de cristal da Galeria Hoya, muito elegantes e requintados. Quanto a mim, acho que chegámos à altura de tomar uma bebida.
- Alinho - diz Cone.
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Vai buscar a garrafa e dois copos, pousando-os em cima da secretária; abre a garrafa e enche até meio os balões miniaturas. Chin esvazia o seu num só gole, estendendo-o sem demora para nova dose. Cone serve de novo, enchendo ambos os copos. Sente-se satisfeito por ver que a mão de Lee retomou a antiga firmeza.
Pouco depois sorriem um para o outro.
- Joga xadrez, Sr. Cone?
- Não. Não jogo nada.
- É pena, acho que deve ser dotado. Diga-me, como é que acha que eu deva reagir a esta extorção?
- Já falou com algum banqueiro de investimentos?
- Já, amanhã tenho um encontro marcado com o Sr. Twiggs, da Pistol & Burns.
- Óptimo. É um sujeito esperto. Bom, se isto fosse uma decisão puramente de negócios, há imensas coisas que pode fazer para se opor aos extorcionistas. Restruture a sua companhia, contraia um empréstimo pesado para comprar mais acções na Bolsa. Ou então, descubra um cavaleiro branco que queira comprar a maioria do capital,
claro que com o seu consentimento. Sirva-se da táctica da pílula envenenada, talvez consiga defender a sua posição pessoal e a dos seus colaboradores mais chegados.
- Tenho o pressentimento de que o senhor não aprova totalmente esses métodos...
- Aprovaria se se tratasse de uma decisão estritamente de negócios, mas a verdade
é que não o é. Há o Edward, seu filho único. Estamos a falar da sua família, Sr.
Lee, e sei que ela significa muito para si.
- É verdade. Portanto o que é que sugere?
- Que me diz a esta: mande chamar o seu filho e faça-lhe uma oferta de compra - dentro de um preço razoável-, para os dezasseis por cento dele na White Lotus; além
disso, ajude-o a montar o novo negócio até um montante de X dólares. A quantia exacta que quererá arriscar é consigo, mas o mais importante é que a sua oferta liber-tá-lo-á
da rede do Panda Gigante. Se o seu filho se mete em negócios com eles, terá muita sorte se conseguir ficar com as obturações dos dentes. Se o senhor lhe prometer dar-lhe a maioria das acções da nova companhia, ele é capaz de aceitar imediatamente, a não ser que seja um idiota chapado, coisa que não me parece que seja. Está a perceber?
- Estou.
- Para além de libertar o seu filho das garras do Panda Gigante, esta manobra permitir-lhe-á ficar com uma grande percentagem do capital da White Lotus, tão grande que nenhum pirata no seu perfeito juízo pensará em atirar-se à sua companhia.
- O senhor pensa que o Panda Gigante aceita a derrota assim sem mais nem menos?
- Claro que não! - diz Cone. - Vão guinchar como porcos antes da matança. Pode mandá-los dar uma volta, mas acho mais sensato entrar num acordo com essa gente. Conhece o Henry Wu Yeh?
- O cavalheiro foi-me apresentado.
- Ai ele é um cavalheiro? Bom, ouvi dizer que se dá ares disso. Em primeiro lugar, cimente bem o seu acordo com o Edward; depois vá ter com o Yeh e ofereça-lhe
o mesmo preço que pagou ao seu filho. De certeza que ele aceita. Que outras hipóteses lhe restam? Os amigos do Panda Gigante têm estado a comprar acções da White
Lotus em blocos de mil acções ou mais, e não se importarão de as vender a um preço ligeiramente superior ao da cotação oficial. Foi para isso, aliás, que alinharam
neste esquema. A única coisa que perdem é o controlo maiori-tário da nova companhia do Edward... o que não os deve preocupar muito.
- Isto vai-me custar muito dinheiro, Sr. Cone.
- Pode apostar que vai - replica Cone, bem-disposto.
- Não sei qual é a sua fortuna pessoal, mas calculo que terá de contrair um empréstimo para financiar a compra das acções e subsidiar o negócio do Edward. Que outras alternativas lhe restam? Claro que pode liquidar completamente o seu filho, mas não é isso que pretende, pois não?
- Não. Apesar do que me fez, ainda é carne da minha carne. Mais sake, se não se importa.
Cone volta a encher os copos de cristal. O vodca no apartamento dos Lee, as cervejas na Avenida Lexington e agora esta dose de aguardente de arroz... pensa poder
aguentar, mas se continuar assim o fígado é capaz de acabar parecido com uma esponja de celulose.
- Então, Sr. Lee? O que é que pensa do meu cenário?
- Tem grandes pontos a favor. Pode crer que o vou ponderar seriamente.
- Bom, acho que tenho de ser franco consigo; tenho um grande interesse pessoal neste esquema. O Sr. Henry Wu Yeh não ficou nada satisfeito por eu ter metido o nariz
nos negócios dele, e sugeriu-me mesmo que o mundo seria um lugar muito mais interessante sem a minha presença
- de forma permanente. Portanto, se o senhor pudesse apressar a sua decisão, telefonando hoje mesmo ao Yeh, ficar-lhe-ia muito agradecido. Não quero de modo algum pressioná-lo, a escolha é sua, mas não quero que comecem para aí a dizer que lhe sugeri este plano só para salvar os cajones. Acontece que o considero o melhor para si, para o seu filho e, de caminho, para mim.
- Muito obrigado pela sua honestidade, Sr. Cone. Só espero que seja igualmente honesto quanto a outro assunto: a minha mulher também tomou parte neste esquema de
extorsão?
- Não faço ideia. Só lhe posso transmitir algumas suposições. Quanto a mim, acho que ela pode ter encorajado o Edward a separar-se de si, mas provavelmente não passou
de conversa de travesseiro... perdoe-me a expressão. Não me parece que se tenha empenhado ou que tenha mesmo oferecido as acções dela para aumentar o instrumento
de pressão. Acho que decidiu esperar para ver como é que a coisa parava, para depois alinhar ao lado do vencedor.
- Sim, ela é muio capaz disso - diz Chin Tung Lee em tom entristecido - A minha mulher ainda guarda muito da chamada esperteza saloia.
- Disso não duvido. O que é que me diz a isto: se chegar a acordo com o seu filho e o financiar no novo negócio, porque é que não estipula a mudança dele para a Califórnia, para lá montar a nova companhia?
-Acha que com isso se resolvia definitivamente o assunto?
Timothy encolhe os ombros.
- Há sempre a possibilidade de ela ir atrás do EdWard até à Costa Oeste, mas aposto que prefere continuar em Nova Iorque. O senhor tem mais dinheiro que o seu filho...
- Pois é - diz Lee. - E além disso sou um velho com pouco tempo de vida à minha frente. Era isso que estava a pensar? Caramba, o senhor é mesmo pragmático!
Encorajado pelo segundo sake, Cone mostra-se mais atrevido:
- Oiça, Sr. Lee, porque é que não chama a sua mulher e lhe diz: "Olha, querida, acho melhor começares a portar-te bem. Se continuas a brincar por aí, dou-te cabo
do canastro!" Tem coragem para lhe dizer isso?
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- Talvez fale com ela - diz o velho, cauteloso. - Não sei é se me servirei dessas palavras...
- Sejam quais forem, o peritivo em xadrez é o senhor.
Cone levanta-se, guarda os cigarros e os fósforos, pega
no chapéu de couro e prepara-se para sair.
- Mais um sake? - sugere o ancião.
- Não, muito obrigado. Tenho um amigo que bebeu muito dessa mistela e depois vomitou para dentro do aquário da namorada.
- Conhece pessoas muito estranhas, Sr. Cone.
- No meu meio são todos estranhos... incluindo eu próprio. O senhor ainda gosta da sua mulher, não gosta?
- Gosto - responde Chin Tung Lee.
Estão abraçados como se a Bomba viesse a caminho e só lhes restassem uns minutos para apreciarem os praze-res da vida.
- Oh!-grita Samantha. - Oh! Oh! Oh!
Talvez soja por ter estado tanto tempo fora ou por ter tido muitas saudades dele, mas o certo é que se entregam ao jogo com uma intensidade brutal, talvez procurando punir-se pela recente separação. Copulam com o desespero dos sobreviventes.
Estendidos na cama rococó dela, com os cobertores cor-de-rosa espalhados em redor e as bonecas francesas atiradas ao chão, onde ficaram a contemplar o tecto com os seus olhos de loiça, Timothy e Samantha gemem, rugem e gritam com fervor, reclamando a intimidade há muito desejada. Não há delicadezas nem carícias ternas: é um combate nu e furioso.
- Ah!-exclama Timothy. - Ah! Ah! Ah!
Estes dois demónios nunca descobriram se são amantes ou antagonistas - e não estão interessados em descobri-lo. A única coisa que procuram é a satisfação dos seus desejos; se o fim não justificar os meios, então o que é que o justificará?
Assim, continuam a esfregar-se um no outro, atacando-se com ferocidade, mordendo, retorcendo, agarrando, perdidos numa ânsia que não conseguem definir. O amor deles está recheado de angústia, como se pensassem em suicidar-se depois de tudo acabado. Entretanto, porém, vão praticando velhas técnicas e truques vindos da idade das cavernas, ou talvez mesmo aperfeiçoados pelos primatas peludos que um dia desceram das árvores.
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Nenhum é capaz de se render, mas ambos têm de se conformar. Acabam com um dueto de gritos e gemidos, cantando a canção dos desejos insatisfeitos. Já mais calmos, separam-se e ficam a olhar um para o outro de viés, receosos da libertação, sem saberem se o mundo ainda está a girar.
Cone senta-se na cama e põe os pés no chão, aguardando que os joelhos se firmem. Só depois é que vai abrir o frigorífico de Samantha, regressando com uma garrafa de vinho branco da Califórnia que comprou para celebrar o regresso dela. Enche os copos e coloca a garrafa no chão, ao lado da cama.
Sentam-se com as costas apoiadas na cabeceira, satisfeitos com a preguiça e tranquilidade daquele fim de tarde de sábado.
- Tiveste saudades minhas? - pergunta Sam.
- Claro.
- Não me digas que não catrapiscaste nenhuma mulher enquanto eu estive fora...
- Posso ter olhado - admite Cone. - Mas não toquei em nada.
- Para mim chega - diz Sam. - E no escritório, como é que vão as coisas?
- Nada de especial, a merda do costume.
Ela volta-se para o encarar.
- Anda lá, cara de cu, não me venhas com essa! De qualquer maneira, vou ler os teus relatórios na próxima segunda-feira.
- Bom, passei o tempo quase todo a trabalhar naquele processo da White Lotus.
- Conta-me como é que foi.
Cone dá-lhe uma versão condensada das suas aventuras com Chin, Claire e Edward Lee, com Johnnie Wong e Henry Wu Yeh, e com o Bambu Unido e os Pandas Gigantes. Quando
acaba, a garrafa de vinho só dá para encher os copos uma última vez. A luz do dia está a ir-se embora, e o apartamento mergulhou numa semiobscuridade agradável.
- Caramba, apanhaste-me bem esses crápulas, não apanhaste?- comenta Sam. - Os tipos do Panda Gigante não vieram à tua procura?
- Nã. Na quarta-feira recebi um telefonema do Chin Tung Lee, a dizer-me que tinha chegado a acordo com o Yeh: comprou as acções detidas pelo Panda Gigante, pagando-as
acima da cotação oficial. Além disso o Edward
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vai mudar-se para a outra costa, a fim de iniciar o seu novo negócio.
- O Chin ficou satisfeito com o modo como a coisa acabou?
- Acho que sim; mandou-me um caixote enorme cheio de produtos da White Lotus, fiquei com comida chinesa suficiente para pôr o Cleo de olhos em bico.
- Tim - diz Sam em tom pensativo-, essa Claire Lee... foi a tal que catrapiscaste?
- É uma brasa. A princípio pensei que valesse ouro, mas afinal não passava de latão.
- Mas o marido continua a gostar dela.
- Todos nós temos os nossos problemas - responde Cone.
- Ai sim? E qual é o teu, filho?
- Estou outra vez excitado...
- Graças a Deus!-exclama Samantha.
Lawrence Sanders
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