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OS CRIMES DO MOSAICO / Giulio Leoni
OS CRIMES DO MOSAICO / Giulio Leoni

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

OS CRIMES DO MOSAICO

 

         São João de Acre, alvorecer do dia 28 de maio de 1291.

         Um silvo atravessou o ar, como se todas as serpentes do deserto, ao mesmo tempo, tivessem erguido suas cabeças da areia. O projétil dardejou no ápice da parábola, imóvel no céu iluminado pelas primeiras luzes da aurora. Depois, após um instante interminável, retomou seu curso e se abateu com estrondo contra o torreão do portal. Uma nuvem de fragmentos de pedras e tijolos irrompeu ao redor, enquanto a muralha trepidava, sacudida desde o alicerce pelo choque.

         A face externa do torreão, rasgada na altura do segundo andar, inclinou-se lentamente e começou a deslizar em direção ao solo, arrastando consigo as traves do vigamento. Os gritos de terror dos homens que despencavam na voragem aberta sob seus pés sobrepujaram por instantes o estrondo do desmantelamento, em seguida toda a parte alta do torreão desmoronou sobre o muro, abrindo uma fenda junto ao portal. Uma imensa nuvem de pó levantou-se, escondendo os restos dos escombros, enquanto um segundo projétil caía com seu silvo malévolo, desaparecendo além da nuvem cinzenta.

          Nenhum estrondo seguiu dessa vez a chegada da grande pedra, só o rumor atenuado pela montanha de detritos. Em lugar do alvo só encontrou o vazio e a devastação causada pelo primeiro tiro.

         Do outro lado do portal, distante algumas dezenas de braças, um dos postos de observação havia estremecido como se estivesse também a ponto de desmoronar.

         "Usaram novamente uma de suas diabruras, irmão", disse um dos dois homens no interior do posto, levantando-se do chão com dificuldade e correndo a espiar pelo vão da porta as proporções do desastre. "A muralha não resistirá por muito tempo.”

         O outro havia resistido ao choque, agarrado à pesada mesa de carvalho sobre a qual estava escrevendo. Com um gesto mecânico sacudiu de suas vestes os fragmentos de alvenaria, enquanto seu olhar dirigia-se à fenda que havia se formado na parede. Mas foi somente uma distração momentânea. Logo voltou a inclinar-se sobre os papéis dispostos diante de si. Esfregou os olhos com a mão, procurando afastar o cansaço da noite insone. Em seguida escreveu algumas poucas palavras. Quando ergueu o rosto novamente, seu olhar demonstrava sinais de desespero.

         "O relatório está terminado. Mas é inútil, se não chegar às mãos deles", murmurou. "Estamos perdidos. Tudo está perdido, é tudo inútil.”

         "Não!" gritou o companheiro, agarrando-o pelos ombros e sacudindo-o. "Não, nem tudo está perdido!" E interrompeu-se subitamente, como que arrependido de seu gesto. "Nós estamos perdidos, mas para os outros ainda existe uma esperança", continuou, exaltado. "Há um navio no porto. Se os hospitalários conseguirem manter-se atracados por mais uma hora, até subir a maré...”

         "A sorte não estava inscrita em nossas estrelas, irmão. Mas talvez tenha razão, vamos deixar os dados rolarem", respondeu o homem sentado à mesa, apontando um pequeno cofre reforçado com lâminas de ferro que jazia aberto no chão. Rapidamente, com a ajuda do companheiro depositou os papéis no interior do cofre, fechando-o com uma cinta de couro.

         Em cima da mesa havia uma longa espada, ornada com a guarda-mão cruzada, embainhada. Alcançou-a e começou a cingi-la à cintura. Mas, mudando de idéia, dirigiu-se rápido para a porta seguido pelo outro, que mantinha o pequeno cofre firmemente seguro debaixo do braço.

         Assim que saíram, envolveu-os a confusão da luta furiosa. O rufar dos tambores acompanhava o assalto dos sarracenos ao último baluarte ainda defendido pelos cristãos, o Arco de Acre. Percorreram uma estreita passagem orlada de seteiras sobre as muralhas. Podiam ver, no vale arenoso, os assaltantes rearmando duas catapultas gigantescas. Dezenas de homens, açoitados até sangrar pelos eunucos da guarda pessoal do sultão, procuravam deslocar as máquinas de guerra, altas como torres, para uma nova linha de tiro.

         O mais velho parou um instante, observando atentamente a cena. "Querem acertar o porto. Apressemo-nos.”

         Tudo se precipitava num caos de gritos, ordens e imprecações. Grupos de homens armados dirigiam-se em desespero para a abertura da muralha, enquanto, em sentido contrário, homens, mulheres e crianças tomados de pânico agitavam-se sem direção, curvados sob o peso de sacolas e objetos de estimação, buscando uma saída impossível.

         Nesse ínterim, deixando a muralha, os dois homens encaminhavam-se pelo labirinto de pequenas vielas que cruzavam o centro da cidadela. Moviam-se rapidamente procurando abrir caminho entre a multidão aterrorizada que se dirigia ao porto. No fim de uma descida entreviram o porto interno, protegido por um muro ainda firme. Havia um navio, como supunham. Uma galera negra inclinada a estibordo, a quilha no seco em razão da maré ainda baixa. Sobre a vela recolhida contra o mastro entrevia-se o vermelho da cruz. Na popa, um estandarte negro tremulava, mostrando o branco recente de uma caveira. Uma agitação confusa movimentava a coberta. Sobre o tombadilho, toda a equipagem armada estava envolvida em repelir, a golpes de remo, a multidão de refugiados que tentavam desesperadamente subir a bordo.

         Atiraram-se ambos na água rasa, avançando à força por entre os fugitivos, pisoteando e empurrando os que haviam escorregado sobre o fundo limoso. Avançaram com dificuldade até alcançar a murada, logo abaixo da carranca. A ponta de uma lança passou perigosamente ao lado de suas cabeças, seguida de gritos de ameaças.

         "Não queremos subir. Mas levem isto, pelo amor de Deus!" gritou o mais velho dos dois, enquanto o jovem, com a força do desespero, erguia sobre a cabeça o cofre.

         Num canto do castelo de proa havia um pequeno grupo de refugiados, vestidos com roupas nobres, que observavam, atônitos, essa cena horrorosa.

         Ao ouvir o grito, um deles se mexeu. Abandonou a mulher que protegia em seus braços, aproximou-se da murada. Inclinou-se para baixo até conseguir receber o cofre das mãos do jovem. "O que devo fazer com isto?" perguntou.

         "Leve ao Templo. Faça com que chegue lá" respondeu o homem apontando o estandarte da popa.

       "O que contém?" Parecia que o nobre estava para acrescentar algo, mas sua voz foi sufocada por um estrondo repentino. Todo o casco da galera vibrou, estremecendo ao ser levantado pela onda da maré crescente. Depois voltou a cair sobre o fundo, de novo vibrando em cada conexão. Naquele instante o silvo da serpente se fez ouvir mais uma vez, acompanhado pelo barulho de uma enorme coluna de água e lama a poucas braças da murada. A onda gerada pelo impacto havia submergido dezenas de refugiados, entre gritos de pânico assustadores, separando novamente o casco do navio da lama.

         O jovem conseguiu voltar à tona, ofegante. Procurou desesperadamente o companheiro, mas não havia sinal dele entre os corpos que chafurdavam ao redor.

         "O que contém?" gritou novamente o nobre da galera. Ao redor dele os marinheiros usavam os remos como alavancas contra o fundo, começando a empurrar a embarcação ao largo.

         "A verdade!" o jovem ainda teve tempo de murmurar, enquanto um segundo silvo atravessava o ar por cima de sua cabeça.

      

         Florença, 15 de junho de 1300, por volta de meia-noite.

         Preenchera várias folhas de papel com sua letra fina, enquanto a vela se consumia sobre a escrivaninha. Haviam-se passado algumas horas desde que começara a redigir o relatório, e ele então se interrompeu para reler o que tinha escrito.

         Sentia-se exausto, suas têmporas pulsavam com a dor de cabeça, mas a sensação de sono ainda não havia chegado.

         "Certamente é assim. A hipótese contrária ofende a razão e a evidência", murmurou, passando a mão sobre a testa.

         Em cima da mesa havia uma jarra cheia e duas taças. Despejou a água numa taça até que ela transbordou e foi formar uma poça no chão. O líquido então continuou a espalhar-se pelo piso cerâmico seguindo as irregularidades e infiltrando-se por uma rachadura, desaparecendo do campo de visão.

         "Desce. Desce necessariamente", exclamou em voz alta. Pareceu-lhe que uma sombra, à sua frente, concordava com ele.

          Na rua alguma coisa interrompeu o perfeito silêncio da noite. Passos pesados, sempre mais próximos, acompanhados por um som metálico. Como se alguém agitasse lâminas. Ou manuseasse espadas. A mão correu para empunhar a adaga que levava sempre consigo, num bolso secreto da roupa.

         Homens armados atrás da sua porta àquela hora? Quanto tempo havia passado desde o sino do toque de recolher? Estava desorientado.

         Procurou com o olhar um sinal que lhe devolvesse o sentido do tempo, mas além da janela estreita o céu negro não mostrava nenhum indício do alvorecer. Levantou-se em silêncio, apagou a vela e tratou de encostar-se bem junto à pedra de cantaria da janela. Sem respirar, apurou os ouvidos e tentou captar o mais leve ruído.

         Atrás da porta, o ressoar dos metais continuava, como se soldados se agitassem à espera de alguma coisa. A mão de Dante apertou o punho da adaga. Ouviu dois golpes secos contra a porta, depois uma voz áspera pronunciou seu nome.

         "Mestre Durante?”

         Dante Alighieri mordeu os lábios, indeciso sobre o que fazer. São Piero deveria ser vigiado, especialmente de noite, pela guarda do priorado. A cerimônia com que fora investido com o cargo de prior mal havia terminado e já esses canalhas o traíam?

         "Mestre Durante, está aí dentro? Abra.”

         Não podia titubear. Talvez a sua autoridade fosse necessária para o bem-estar público. Com rapidez vestiu o barrete com o longo véu e colocou, no dedo indicador, o   anel de ouro com o sinete do lírio; em seguida arrumou cuidadosamente as dobras de suas vestes imitando a toga romana, como havia reparado nas estátuas da igreja de Santa Cruz, e levantou a tranca da porta.

         "O que você quer, malandro?" perguntou num tom ríspido.

         À sua frente surgiu um homem baixo e atarracado, usando uma cota de malha que o recobria até abaixo do joelho. Em vez da túnica habitual da guarda com a insígnia do lírio, estava revestido com uma segunda armadura de placas metálicas, unidas por cordões de couro, e a cabeça permanecia escondida por um elmo cilíndrico de batalha, conforme o costume dos cruzados. Uma espada descansava na bainha ligada ao ombro por uma cinta, e dois punhais estavam bem à vista na cintura.

         "Há uma proibição de circular pelas ruas depois do toque de recolher. Somente bandidos e ladrões ousam violar essa proibição e pagam com a forca. Espero que tenham ponderado bem sobre as conseqüências", continuou o poeta em tom ameaçador.

       O outro continuou sem dizer palavra. Não parecia um indivíduo perigoso, apesar de sua aparência marcial. Enquanto falava, Dante não perdia de vista nem por um instante as mãos do homem, uma ocupada em sustentar um lampião, a outra desarmada ao longo do flanco. Teria sido fácil atacá-lo. Entre a extremidade do elmo e a cota de malha havia uma fenda de uma polegada. Também a abertura frontal da viseira, se bem que mais difícil de ser alcançada, oferecia um orifício para infligir um golpe mortal afundando a lâmina no olho.

          "Sou o chefe da guarda e estou aqui a serviço. E também para servi-lo, visto que o elegeram prior e por dois meses dependeremos todos do senhor." A voz do homem assumia um tom queixoso, enquanto tratava de erguer-se em toda a sua pequena estatura.

         Dante inclinou-se em sua direção, procurando ler os traços de seu rosto escondidos por trás do elmo. Através da viseira em forma de cruz entreviam-se um nariz avantajado e dois olhinhos muito próximos um do outro, como os de um rato.

         Agora, sim, o reconhecia. Era realmente ele, o chefe da guarda da cidade. Um ladrão chefiando outros ladrões.

         Afrouxou a mão sobre o cabo da adaga. "E qual seria o sortilégio que poderia aproximar nossas funções?" perguntou.

        "Na igreja de São Judas, lá nas muralhas novas, ocorreu um crime." O homem parecia menos seguro de si na presença do prior. "Um crime que... talvez requeira a presença da autoridade da cidade", gaguejou.

         "Quem morreu?”

         Em lugar de responder, o chefe da guarda desamarrou com dificuldade os laços do elmo. Finalmente conseguiu arrancar da cabeça o pesado fardo, surgindo coberto de suor. "Ainda não sabemos. Mas será melhor que veja com seus próprios olhos. Quer vir?"       

         "Relate o ocorrido.”        

         "Bem, é algo... estranho, não natural...”

         Dante começava a perder a paciência. "Deixe que eu julgue o que é ou não estranho. Omne ignotum pro magnífico, como falavam nossos mestres. O desconhecido sempre parece sublime." E, dando-lhe um tapinha nas costas, continuou: "Certamente o senhor não será a pessoa mais adequada para reconhecer se o que ocorre está ou não de acordo com a natureza. Somente o estudo atento e a compreensão plena do que é, ligados ao conhecimento do que não é, autorizam o sábio a traçar a fronteira entre o ordinário e o milagroso. Existe uma passagem de Lucano a esse respeito sobre a qual o senhor deveria refletir.”

         "Sim... compreendo", murmurou o outro.

         "Portanto, procure relatar os fatos, não suas suposições.”

         O chefe da guarda enxugou novamente o suor do rosto. "Um homem. Morto. Lá em São Judas. Dentro da igreja. Assassinado, eu creio.”

         "E por que quer envolver nisso a autoridade máxima da cidade? Tratar do inquérito criminal não seria a sua função?”

         "Sim, certamente... mas... De fato, preferiria que visse com seus próprios olhos. Por favor.”

         Pareceu que esse último pedido havia lhe custado muito. Dante fixou o rosto do outro, enquanto um trejeito franzia-lhe os cantos da boca fina.

         "Não é com os olhos que se vê, oficial, mas sim com o intelecto. É de meu intelecto que necessita. O senhor assim como os outros cegos. Fez bem em dirigir-se a mim. Agradeça a São João Batista, nosso protetor, que quis que eu fosse o prior, se as circunstâncias são tão nebulosas como está dizendo.”

         "O senhor virá, então?" repetiu o homem com um tom de voz que traía sua ansiedade. "Tem água aqui", acrescentou em seguida, apontando para o chão.

          Dante não respondeu, absorvido em seus próprios pensamentos. Dirigiu o olhar para a fresta de céu além da seteira, observando as estrelas e seus desenhos na abóbada celeste. Curiosa forma de dar início a seu mandato como chefe da cidade. Os maus presságios o inquietavam.

         Sacudiu-se, erguendo de repente a cabeça, e pegou o bastão dourado que havia deixado sobre a arca. "Vamos!" ordenou, precedendo o chefe da guarda através da porta.

         Percorreram a galeria, a partir da qual abriam-se as portas das celas. Dante pensou nos outros cinco priores, certamente imersos no sono perturbado das mentes frágeis, povoado pelos fantasmas da luxúria e da devassidão. Depois parou, agarrando o chefe da guarda com a mão. "Por que razão procurou a mim?”

         O outro pigarreou. Parecia embaraçado. "Porque é de opinião geral que, dentre todos, o senhor é o mais letrado. O senhor não é um poeta? Escreveu uma obra.”

         "E no que poderei ajudar eu, um poeta?”

         "Existe algo de loucura nessa morte.”

         Dante decidiu ignorar a ofensa. O que poderia responder àquele idiota?

         "Dizem que dentre os priores o senhor é o mais adequado...", continuou o chefe da guarda.

         "Adequado a quê?”

         "A... a procurar nos assuntos secretos." O chefe da guarda pronunciou essas palavras num tom confidencial, expressando ao mesmo tempo admiração e suspeita. O segredo é a ante-sala do crime, devia ele crer em sua mente simplória, pensou o poeta. Talvez também o considerasse um criminoso cm potencial. Quando terminasse   seu encargo deveria acautelar-se com aquele homem. Mas agora o chefe da guarda parecia realmente necessitar de sua ajuda. Retorcia as mãos com certo nervosismo, alternando ritmicamente o peso de uma perna com o da outra.

         Então o prior pôs-se novamente a caminho e o chefe da guarda o seguiu em silêncio.

         Atravessaram a grande praça em terra batida, iluminada pela luz da lua cheia. O solo ainda recoberto dos restos das casas dos Uberti, destruídas depois da derrota dos gibelinos em Benevento. Durante mais de trinta anos as ruínas haviam sido utilizadas como fonte de pedras para edificar as novas construções da cidade. Diante deles, na penumbra apenas atenuada pelas lâmpadas a óleo que queimavam nos arredores da Ponte Vecchio, surgia um contraforte lateral da torre de Farinata, o chefe de linhagem da família.

         As ruínas brotavam da terra como restos de dentes gigantescos. Aquele espaço largo cheio de entulhos viria a se tornar o verdadeiro centro da cidade nos mapas do provedor das estradas. Mais adiante entrevia-se o perfil escuro do novo palácio dos priores, agora quase concluído, com sua gigantesca torre. Um gigante adormecido, como um Titã ferido com um raio por Júpiter, o braço estendido para golpear o céu. Sabe-se lá quantas pedras gibelinas, ainda manchadas com o sangue de seus moradores tinham sido incorporadas às suas muralhas.

         Não havia sido o mesmo orgulho que fez levantar a torre da Babilônia? Toda a cidade parecia tomada de loucura. Destruir ou reconstruir. Derrubar os que se sobressaiam e depois tratar de sobrepujá-los com nova pretensão, enquanto a inveja se aloja nos corações como uma serpente.

         Dante virou-se para o chefe da guarda. "A abadia de São Judas, você falou... Mas não é uma das paróquias do primeiro muro? Fica fora das muralhas." Localizava-se muito longe dali, se a memória não o enganava, bem além do portão da cidade, na estrada para Roma. "Era a sede de um convento agostiniano, há muito tempo. Falava-se dele cm Santa Cruz, nas aulas franciscanas..." A doçura daqueles dias lhe veio à lembrança por um momento. "Pensei que estivesse abandonada", concluiu.

         "E está. Ou melhor, estava. Os agostinianos saíram de lá há muitos anos, e, desde então, ela vinha se transformando numa ruína, até que uma congregação resolveu restaurá-la. Ouvi dizer que será a sede do instituto florentino.”

         "Um Studium?1”

         "Sim... isso mesmo.”

        "Mas já não temos uma universidade, em Florença?", replicou o poeta, surpreso.

         O chefe da guarda encolheu os ombros. "Seja como for, é ali que querem instalá-lo. Venha, chegaremos até lá com a minha carruagem.”

         Na esquina com a via dos Tintori havia uma carruagem bastante sólida com quatro rodas. Eles subiram, protegidos por uma tela de cânhamo, enquanto a escolta se acomodava nos fundos. Debaixo daquela espécie de toldo o calor era sufocante, mas ao menos o poeta não precisava ficar espremido entre os soldados.

          O veículo avançou entre estrondos por sobre as pedras do caminho, puxado por um cavalo que se recusava constantemente a sair do lugar, como se também ele estivesse pouco convencido daquela corrida noturna pouco usual. A carroça sofria todos os abalos causados pela irregularidade das pedras, sem que os cintos de couro amortizassem os choques.

         A enxaqueca de Dante piorava em meio ao tormento dos impactos. Pela abertura lateral ele viu desfilar a superfície irregular dos muros antigos, depois o veículo girou em direção ao Arno, até a subida que levava para a Ponte Grazie. Ali foram intimados a parar pelos guardas distritais que vigiavam o trânsito. O chefe da guarda, depois de ter se identificado à luz das tochas, ordenou que as pesadas correntes que bloqueavam o acesso à galeria fossem removidas.

         Além do Arno o ar parecia mais denso à medida que se afastavam do centro da cidade. O piso terminou abruptamente e as rodas deslizaram sobre o chão de terra batida. Os prédios em miniatura haviam cedido lugar a uma série, de casinhas de madeira que flanqueavam a estrada para Roma como um conjunto de mendigos maltrapilhos. Só de vez em quando a monotonia da paisagem era quebrada pela sombra mais maciça de uma capela ou pelos amplos espaços abertos de campos ou vinhedos. Agora as luzes da Ponte Vecchio eram só uma lembrança, e a escuridão muito intensa reinava sobre todo o bairro atenuada somente pelo reflexo da lua.

         Dante percebia uma presença ao lado deles, enquanto avançavam nas trevas. Traiçoeira, densa como a neblina amarelada que se elevava dos prados, parecia desfilar ao lado da carruagem, tomando corpo enquanto entravam naquele bairro periférico. Era o mal. Aquele mal vindo de fora, que havia se adensado ao redor da cidade e agora a sufocava como que a estrangulando.

         "Quem morreu?" perguntou de repente. Só naquele instante havia se dado conta de que o outro não lhe havia revelado a identidade do morto. Alguém havia descido para o nada, e nem mesmo seu nome era lembrado com uma palavra de piedade. Fez rapidamente um gesto de esconjuro.

         "Não... não sabemos. Aguarde. Espere para ver com seus próprios olhos.”

         Dante esteve a ponto de insistir, mas depois encolheu os ombros e calou-se. No fundo era melhor assim. Se fora chamado para dar uma explicação sobre o ocorrido, preferia analisar os fatos diretamente, sem confiar nas percepções incertas de terceiros. Retornou com seus pensamentos à sua cela em São Piero, aos escritos que havia interrompido. Abandonou-se ao movimento das rodas, procurando relaxar o corpo cansado.

         A igreja surgia uma milha ao sul do rio, numa região de campo aberto, agora protegida pelo terceiro anel de muros. Na origem devia ter sido uma paróquia na estrada para Roma. Do lado de fora estavam amontoados materiais de construção, ferramentas e tapumes para carpintaria.

         Uma parte da abside havia sido incorporada nas muralhas do novo baluarte, enquanto o velho campanário fora reforçado na base por um contraforte e readaptado como torre de vigia. O edifício apresentava sinais de muitas outras transformações ocorridas ao longo dos séculos, as   quais o fizeram assumir o aspecto estranho de uma construção ao mesmo tempo religiosa e militar. Um portão em arco estreito era acompanhado na fachada por duas seteiras em forma de cruz, características de um estilo mais antigo, Dante havia escutado descrições similares de peregrinos que retornavam de além-mar.

         Alguém, outrora, tentara impedir-lhe o acesso com uma paliçada, que em muitos pontos parecia caída ou formula. Pela porta aberta entreviam-se as chamas de tochas trêmulas em movimento.

         "É lá dentro que foi encontrado o corpo", disse o chefe da guarda, as narinas dilatadas pelo cheiro de um perigo iminente.

         Dante havia visto uma expressão semelhante no gado a caminho do abate. Não o considerava um covarde. Na batalha de Campadino, onze anos antes, vira-o sustentar o ataque dos aretinos, quando a cavalaria inimiga se lançara contra as fileiras desfeitas. Por que agora tinha medo diante da porta de uma igreja?

         A dor nas têmporas voltara com violência. Rejeitou um novo acesso de enjôo e afastou com sofreguidão o homem que ainda hesitava. Queria resolver logo aquele assunto para poder finalmente refugiar-se entre as paredes de sua cela, em busca de repouso. Continuou atravessando a nave da igreja imersa em trevas, encaminhando-se em direção ao grupo de homens com archotes que se destacavam ao fundo.

         "Prior... espere! Pare!”

         A voz do chefe da guarda às suas costas, esganiçada pela ansiedade, parecia vir de um lugar distante. Sem dúvida era a dor que alterava suas percepções. Nem sempre a alma fortalecida de virtudes e conhecimento pode sobrepujar-se à fragilidade do corpo vil, pensou amargamente. Havia percorrido cerca de vinte passos quando novamente a voz o chamou.

         "Espere, pare!" Mas dessa vez o som era diferente, como se um eco houvesse sido acrescentado.

         Ainda deu alguns passos, cambaleante, tomado por vertigens. Experimentava a sensação de não estar só, a mesma de algumas horas antes em sua cela. "O quê..." murmurou desnorteado, enquanto uma luz brilhava ao seu redor. Percebeu uma mão que o agarrava pelo braço.

         "Pare, aí está a morte!”

         A mão que o detivera pertencia a um jovem soldado, com longos cabelos loiros que despontavam por baixo da viseira. Segurava um archote de onde provinha o brilho que iluminara o prior havia alguns instantes. Parecia saído do nada. Continuando a agarrar o braço de Dante, o jovem abaixou a chama, que iluminou o chão à frente de seus pés. Dante percebeu num instante o reflexo azul do olhar do soldado, em seguida ele também olhou para baixo e estremeceu de horror.

         Estava à beira de um precipício. O piso da nave estava rachado de um lado a outro. Um abismo abria-se no centro do piso, como se um peso enorme tivesse caído do alto, rompendo as pedras para abrir seu caminho em direção às entranhas da terra. Lúcifer precipitado dos céus. Só duas estreitas passagens ao longo das paredes laterais, com largura menor que uma braça, ainda estavam inteiras.

          Mais um passo e leria despencado no abismo. Passou a mão pelo rosto para enxugar o suor e em seguida dobrou-se sobre os joelhos para recobrar-se do susto. Levou mais de um minuto para recuperar o domínio de si. A dor de cabeça havia desaparecido. Voltou-se em direção ao jovem que o tinha salvado, mas este desaparecera. Aproximou-se cuidadosamente da borda da fenda, procurando estimar sua profundidade. Devia ter existido uma falha naquele lugar. Ou a igreja havia sido erguida sobre as ruínas de uma construção precedente, uma grande Villa romana com suas cisternas para o armazenamento de água.

         Elevou novamente o olhar além do vazio, em direção a abside. Percebeu a seu lado a respiração ofegante do chefe da guarda, que o alcançara. "Senhor Durante... felizmente parou a tempo.”

         Dante teve a impressão de perceber algo não muito sincero na preocupação do outro. Afastou-o rudemente com um gesto de mão e encostou-se à parede, percorrendo com cautela a estreita passagem que margeava a fenda.

         Podia reconhecer com clareza o pequeno grupo de soldados agrupados junto à parede da abside, archotes erguidos, diante de uma estrutura de andaimes que se perdia na escuridão do alto. Pareciam ocupados em iluminar uma figura diante de si: um homem alto, indiferente à agitação dos demais. Mantinha a cabeça em direção à nave, como se perscrutasse as trevas à espera de alguém.

         Havia algo não natural em sua imobilidade. Era como se uma mortalha lhe cobrisse os traços, tornando-o irreconhecível. O homem estava ereto, as mãos juntas atrás das costas.

         Dante estava estupefato. No rosto dos soldados que se amontoavam ao redor lia-se a mesma incredulidade. O homem parecia ser ao mesmo tempo vítima e testemunha muda do crime.

         O chefe da guarda aproximou-se mais. Parecia buscar conforto, como um cão aterrorizado por um trovão.

         Dante percorreu com rapidez os últimos passos. Arrancou com decisão o archote das mãos de um dos soldados e aproximou-o do corpo.

         O morto encontrava-se apoiado numa coluna que sustentava o andaime. Estava vestido com panos surrados acinzentados, as mãos amarradas atrás das costas. Pés afastados, joelhos levemente inclinados como se estivesse pronto para saltar. A cabeça e o pescoço estavam recobertos por uma camada de cal como uma máscara que lhe reproduzia grosseiramente o semblante.

         Dante reprimiu o ensejo de socorrê-lo: sua imobilidade negava que pudesse existir nele uma única fagulha de vida. As mãos amarradas à coluna e a rigidez da mortalha de cal, que havia se solidificado, o mantinham numa posição ereta, ligeiramente inclinado para a frente, como uma carranca macabra de uma embarcação. Caronte, o barqueiro das sombras, poderia utilizar-se dele para ornamentar seu barco, pensou.

         "Agora compreende por que é oportuno que seja a maior autoridade da cidade a ocupar-se disso. Deveríamos... devem chamar a Santa Inquisição. Há um demônio nesta igreja desconsagrada...", gaguejou o chefe da guarda.

         Quantas vezes havia se questionado sobre a perversão humana, lembrou o poeta. Agora encontrava-a à sua frente, em sua forma mais desprezível. "Agiu com sabedoria, trazendo-me aqui" disse lentamente. "Quanto à Inquisição, por enquanto, deixe-a fora deste assunto. Teremos sempre tempo de convocá-la, se eu julgar oportuno e necessário.”

         Aproximou-se do cadáver. Quando vivo, deveria ter sido mais ou menos de sua altura. Parecia observá-lo, escondido por trás de sua máscara. Mas como podia sustentar o próprio peso e permanecer de pé? Solicitou um punhal de um soldado e com poucos golpes determinados cortou as cordas que prendiam as mãos do morto.

         As mãos do homem projetaram-se para a frente com um movimento lento que parecia imitar aquele da vida. Mas o corpo permaneceu de pé, dentre as exclamações e os atos de persignar-se dos presentes.

         Dante roçou a máscara com a mão. Ela estava completamente seca, dura como pedra. Não parecia a argamassa comum de pedreiro, como se a mão do assassino tivesse mesclado algum componente mais firme. Golpeou a dura cobertura ao longo da nuca do morto, repetidamente, produzindo uma série de pequenas fendas, como vira ser feito certa vez na fundição dos sinos. O metal ainda fumegante havia saído de sua prisão de terra pouco a pouco, enquanto a cobertura desmanchava-se sob o martelo.

         A cabeça começou a aparecer. Escondida na máscara, uma corda passava por baixo do queixo do homem, apertando sua garganta contra a coluna. Esse era o segredo que o mantinha ereto. Às suas costas o chefe da guarda emitiu um suspiro de alívio.

         A cobertura continuava a desfazer-se, a princípio onde a espessura era mais fina, revelando mechas de cabelos grisalhos. Na frente, porém, resistia, como se a garra de um demônio tivesse se apossado do rosto do morto para mantê-lo no reino das sombras.

         Conforme a crença popular, a segunda morte, a da alma, só ocorria duas horas após a primeira, a dos sentidos. E nesse meio tempo ainda era possível devolver a vida ao desaparecido com oportunos rituais de necromancia. Talvez o assassino quisesse ter certeza de que nem mesmo um mago poderia desfazer a sua obra, pensou o poeta.

         Agora a nuca estava quase completamente descoberta. Aplicando mais um golpe firme sentiu sob seus dedos um movimento, quando algo começou a ceder. Em seguida a máscara saiu de chofre, revelando à luz dos archotes a face do morto.

         Por trás dele elevou-se um murmúrio de horror, vindo dos homens que haviam se aproximado para acompanhar seu trabalho. Percebeu que eles recuavam. Também o chefe da guarda tinha emitido um gemido, persignando-se.

         Apenas Dante permaneceu imóvel, assim como o homem que, diante dele, o fixava com os olhos esbugalhados. O prior segurava nas mãos a massa côncava que até aquele momento ocultara tamanho horror. Ficou tentado a recolocá-la no lugar, para apagar o que todos tinham visto, vencendo com dificuldade um impulso de afastar-se para trás.

         Um leproso parecia convidá-los para uma dança em seus braços.

         Em volta deles havia se desencadeado uma movimentação caótica. Abandonando toda compostura, os soldados fugiam disparado em direção à fenda, correndo o risco de ser engolidos por ela na tentativa desajeitada de contorná-la. Seu comandante, em princípio, ameaçara segui-los, depois, talvez por um resto de dignidade, tinha se detido diante da fenda. Dante também havia recuado, mas só para recolher um dos archotes que os soldados tinham deixado cair. Envolveu seu rosto com o véu do barrete, para proteger a boca e o nariz do fedor, e voltou a iluminar o morto.

         Lentamente o coração do poeta retomava uma pulsação regular. A cal tinha escavado feridas na carne do morto, deixando estrias vermelhas, e, ao ser removida, havia arrancado pedaços de pele e pêlos, danificando os traços e deixando-lhe o rosto parecido com o de um leproso coberto de chagas. As mãos e o pescoço pareciam inteiros, sem ulcerações. Tomando-se de coragem, Dante levantou as mangas da túnica do homem até os cotovelos. Ali também não havia sinais de contaminação.

         A cal devia ter sido coada sobre o rosto do homem quando ele ainda estava vivo, queimando-o, e havia se solidificado acompanhando-o nos espasmos da agonia. Durante a observação, Dante havia deixado cair o véu da boca. O chefe da guarda interpretou isso como um sinal tranqüilizador e voltou a aproximar-se com cautela.

         "Não é...”

         "Não, fique sossegado. Não é leproso, nem empestado. Pelo contrário, julgando pelo estado de seus músculos, devia gozar de boa saúde no momento de sua morte.”

         O chefe da guarda parecia ter superado seus primeiros temores e fixava, boquiaberto, o cadáver. "Mas é claro!" exclamou. "Eu sei quem ele é!”

         "Sabe quem é?”

          "Sim, agora eu o reconheço, mesmo nesse estado... É Ambrogio, o mestre construtor comacino2.”

         "Um magister cum machinist3”

         Dante olhou a seu redor. O projeto de restauração da igreja devia realmente ser ambicioso, se haviam pensado em recorrer a um mestre construtor comacino. Franziu a testa, preocupado. Era um fato completamente inesperado, e acontecia num péssimo momento. Com todas as tensões que estremeciam Florença, agora também havia a morte de um membro da mais importante corporação de construtores da Itália setentrional. E, além do mais, daquela forma horrível. O que aconteceria quando seus confrades descobrissem?

         Devia preparar-se para o pior, se eles estavam envolvidos. Parecia-lhe que um vento gélido havia varrido de um golpe o ar sufocante da igreja. "Um construtor..." murmurou.

         "Sim, um arquiteto", continuou o chefe da guarda. "E também um grande mosaicista. Era ele o encarregado de dirigir as obras de reconstrução da igreja... Como acha que foi morto?”

         Dante não respondeu de imediato. Teria sido melhor indagar sobre o motivo. Mas no fundo a pergunta não estava fora de lugar. Quantas vezes a forma como um crime é cometido não é também reveladora das causas? Apontou uma ferida na nuca. "Talvez tenha sido atacado pelas costas e deixado semimorto. Depois pode ter sido sufocado.”

         "Estrangulado?”

         "Não foi essa a causa de sua morte", disse o poeta, avaliando a corda que tinha mantido o corpo em sua posição não natural. Não estava apertada o suficiente para prender a respiração, e de fato no pescoço havia só um leve sinal avermelhado. "Enquanto ele estava sem sentidos, o agressor lhe amarrou as mãos atrás das costas, e apertou-lhe a corda no pescoço, a qual depois serviu para sustentar o cadáver. Talvez quisesse extrair-lhe uma confissão. Em seguida verteu a cal sobre o rosto, que ao solidificar se transformou numa máscara fúnebre. Veja.”

         Da massa acinzentada informe da máscara parecia surgir de repente a impressão de um rosto humano deformado pela agonia, a boca fechada com os dentes cerrados numa dentada bestial. Sobre a superfície da máscara eram visíveis algumas mechas de cabelos grisalhos, e fragmentos de pele ficaram presos na sua cavidade no momento em que havia sido arrancada. Era como se a cabeça do morto estivesse ali, diante deles, imobilizada pelo olhar terrível de uma Medusa.

         Só então, talvez para afastar-se daquele horror, ou porque o brilho de uma tocha havia iluminado a parede, a atenção de Dante se fixou no grande mosaico às costas do morto.

         Ergueu os braços, curioso. A luz iluminou algumas pastilhas de várias cores caídas sob o andaime. Na parede, percebiam-se traços do mesmo material utilizado para fazer a máscara.

          "Foi assassinado com o seu próprio material" murmurou.

         Recuou alguns passos para observar melhor o conjunto. Da parede sobressaía a majestosa figura de um velho, com uma estrutura muscular poderosa. Era alto cerca de seis braças, o olhar virado para a sua direita, as pernas ligeiramente flexionadas como se o corpo avantajado estivesse a ponto de dirigir-se ao encontro de algo surgido de repente em seu campo de visão. O braço direito estava estendido à frente, quase antecipando o movimento sucessivo. A perícia do artesão parecia ter conseguido captar, mesmo através de um material tão pouco dúctil como a pedra, as emoções daquele ser.

         A princípio pareceu-lhe que o gigante estivesse usando um traje multicolorido, semelhante àqueles das figuras alegóricas nas representações sagradas. Mas era o próprio corpo que havia sido composto por pastilhas de materiais diferentes. A cabeça fora feita com chapinhas de ouro fino, oportunamente esmaltadas para realçar a profundidade do olhar, o relevo dos cabelos e o detalhe da expressão de dor que parecia marcar a face barbuda. O peito e os braços eram de prata; o ventre, até a região inguinal, de chapinhas de cobre martelado, enquanto a perna esquerda, que parecia sustentar o peso do corpo, sugerindo aquela postura de início de um movimento, fora recoberta com fragmentos de ferro. A perna direita, ligeiramente flexionada ao esboçar um passo, era feita de material avermelhado não metálico, provavelmente terracota.

         Em vários pontos da figura grupos de placas haviam sido retirados, como por uma reconsideração do artista.

          "Então era essa a obra em que trabalhava mestre Ambrogio, ao mesmo tempo que já estava marcado pelo sopro da morte" disse Dante, pensativo. "Mas por que...”

         "O que significa?" interrompeu o chefe da guarda, Olhava para o alto, intimidado, como se a enormidade da figura houvesse afugentado de sua mente limitada a presença do cadáver.

         Dante lançou-lhe um olhar, por essa vez, benevolente. "É a representação de uma passagem das Escrituras, um episódio referente a Nabucodonosor, rei pagão, e à estádia que lhe apareceu em sonho e que simbolizava a humanidade em sua queda desde a antiga Idade do Ouro até o presente, não mais metálica, mas transmutada na desprezível matéria dos orcos.”

         Nos dois lados do colosso, o artista havia traçado com a pedra os perfis de torres, muralhas e templos, como se o gigante estivesse prestes a abandonar uma cidade à sua esquerda para alcançar uma maior à sua direita. Dante aproximou-se dessa última para iluminá-la melhor, atraído por um detalhe que havia percebido na floresta de torres e cúpulas que despontavam do cinturão de muralhas fortificadas. Era a imagem de uma grande fortaleza que havia visto durante sua viagem à capital da cristandade: o Castelo do Anjo, erguido sobre as gigantescas ruínas da tumba de Adriano. Seu perfil não deixava dúvidas, mesmo se simplesmente esboçado.

         Era em direção a Roma que a grande figura do mosaico se encaminhava. A humanidade sofredora e corroída pelo pecado que se punha em marcha rumo à cidade sagrada. Talvez para obter o indulto por ocasião do Centesimus, o grande ano do jubileu proclamado por Bonifácio VIII para celebrar o novo século.

         Voltou a abaixar a tocha em direção ao morto, de pé diante de sua obra, como se quisesse reivindicá-la com orgulho para a eternidade. Percebia que devia existir uma relação entre a figura representada na parede e o horror daquele crime. "Você foi assassinado sob o mosaico não por acaso" murmurou ao ouvido do mestre construtor comacino. "Deve haver uma ligação com seu assassinato.”

         O chefe da guarda esforçava-se para compreender aquelas palavras murmuradas. Ao redor do colosso, um grande trecho de parede já havia sido preparado para a continuação dos trabalhos. O mosaico deveria ficar muito maior, quando terminado.

         Talvez o motivo do delito não residisse no que estava pronto, mas naquilo que havia permanecido na mente do morto. Dante lançou um rápido olhar ao longo do perímetro da abside, procurando algum indício. Não havia nada, a não ser poucas tábuas amontoadas. "Procurem em volta", ordenou aos soldados. "Telas, folhas de papel desenhadas... deve haver os cartões do mosaico.”

         Os homens, carregando tochas e guiados pelo chefe da guarda - aliviado em afastar-se daquele que conversava com os mortos -, começaram a procurar. Enquanto isso, o poeta havia recomeçado a estudar a paisagem atrás dos pés da figura. A pequena cidade à esquerda parecia-se com um dos inúmeros burgos coroados de torres ilustrados nas representações paisagísticas que enfeitavam todas as igrejas da Itália, desde que a moda de ornar com afrescos as paredes havia se estabelecido. Não se podia perceber nenhum sinal particular que permitisse sua identificação. Só uma porta, na parte central do cinturão de muralhas, sobressaía-se com quatro cabeças de leão que lhe adornavam a parte superior.

         Justamente nesse lugar havia alguns sinais, arranhados sobre a superfície do reboque. Inclinou-se para observá-los com atenção. Enquanto isso, o chefe da guarda havia retornado de sua inspeção.

         "Não encontramos nada, prior. Só ruínas e ferramentas de trabalho. Nenhum papel, nenhuma tela”

         Dante sentia-se incomodado pela presença daquele idiota. Virou-se bruscamente e estendeu-lhe a tocha. Pelo menos se tornaria útil, de alguma maneira.

         O outro aceitou-a, perplexo e ferido em seu orgulho. Mas a curiosidade era mais forte. "Crê que o mestre foi amarrado ao poste ainda vivo? E a partir de que consegue deduzir isso?”

         Dante mostrou os arranhões na parede, nas costas do corpo. "Pelo fato de que neste ponto, apesar de ter as mãos amarradas às costas, conseguiu escrever alguma coisa, e ainda devia estar vivo para isso”

         O chefe da guarda aproximou a tocha da parede para poder ver melhor. Na parede, no meio de um emaranhado de riscos avermelhados, com caracteres inseguros e quase ilegíveis, traçados sob o impulso do desespero com algo cortante, a mão de Ambrogio havia inscrito sinais parecidos com letras: "IIICOE”

         Dante curvou-se novamente para observar os sinais inscritos superficialmente no reboque, talvez com o canto de uma plaqueta.

          O chefe da guarda havia acompanhado com atenção seus movimentos, inclinando-se por sua vez para examinar os sinais. Em seguida levantou-se. "Vejo, sim... E qual é a sua interpretação, senhor Alighieri?”

         "Nenhuma. Talvez seja um número em caracteres romanos, noventa e sete, seguido de outra palavra que o mestre não teve forças de terminar. Mas não tenho certeza.”

         Por outro lado, a idéia de que aquela inscrição havia sido feita durante o crime era somente uma suposição. Poderia ser uma simples anotação de trabalho e estar ali havia vários dias. A ordenação de seus pensamentos começava a mergulhar numa tempestade de hipóteses. "Quem descobriu o cadáver?" perguntou depois de um instante de reflexão.

       "Um pastor de passagem que procurava um cordeiro perdido. Ou talvez houvesse entrado para roubar alguma coisa. Deu o alarme. Estava aterrorizado.”

         Dante olhou ainda à sua volta, pensativo. Sua enxaqueca estava voltando à fase aguda. A dor latejava por trás do olho. Voltara a sentir vertigens. Necessitava de ar e de repouso. Nada mais havia para ser feito lá dentro, disse para si mesmo.

         "Ordene a seus homens que providenciem a remoção do corpo e que seja levado para a câmara dos mortos em regime de isolamento no Hospital da Misericórdia. Podem utilizar a carruagem. Eu voltarei a pé. Deixe instruções na entrada que permitam o meu acesso."

 "Mas, não é oportuno... de noite.”

         "O sino matutino já soou há algum tempo. Daqui a pouco será dia. Necessito respirar. Pensar, também.”

          Saiu da igreja percorrendo em sentido contrário o caminho que rodeava o precipício. Na proximidade do abismo leve uma vertigem, enquanto beirava o vazio, e vacilou. Não havia nenhuma mão para socorrê-lo dessa vez.

         Dizem que o homem justo é reconhecido pelo seu passo desprovido de incertezas. Dizem que não existem mais do que dois justos em cada cidade, e que ninguém os escuta.

         Lembrou-se do jovem que o salvara. Teria gostado de agradecer-lhe, mas dentre as faces marcadas pelo cansaço e pelo medo que o rodeavam não havia traços dele.

         Na porta cumprimentou rispidamente o chefe da guarda, deixando-o desconcertado diante de seus homens. O idiota esperava, quem sabe, que ele fosse lhe indicar um culpado, assim, na hora? O olhar desiludido do chefe da guarda dava a impressão de que era exatamente isso. Um lampejo de orgulho despertou Dante. No fundo, aquele miserável não estava completamente errado. Se sua cabeça estivesse menos perturbada, pensou enquanto apertava as têmporas, talvez tivesse podido correlacionar os elementos que havia colhido, dando-lhes uma forma.

         Mas uma voz interior dizia-lhe que teria sido necessária bem mais do que uma hora para alcançar a verdade. "Amanhã. Amanhã voltaremos a isto. Todos necessitamos de luz", murmurou consigo mesmo.

         Do lado de fora foi acolhido pelo primeiros clarões da aurora. Voltou-se. As linhas severas da igreja apareciam agora perfeitamente reconhecíveis. Existia algo de perverso dentro daquelas muralhas. Como se as mãos que haviam transformado o edifício ao longo dos séculos, deixando cada uma seu sinal, tivessem gravado nas pedras a marca da própria maldade. "O destino deixa seu sinal nos lugares, assim como na vida dos homens", pensou. E, assim como na vida, as pedras também podem ser erguidas para o mal.

         Queria ficar sozinho. Necessitava respirar, na esperança de que o ar fresco atenuasse seus espasmos. Pensou na pequena reserva de acônito que mantinha em sua cela, mas duvidava que fosse suficiente para acalmar a dor. E a essa hora da manhã não era possível encontrar aberta a botica de um farmacêutico.

         Lembrou-se de uma de suas aparições públicas, já havia algum tempo, quando fazia parte do Conselho dos Cem. Sempre tivera orgulho de sua memória. Mesmo naquele instante poderia recitar livros inteiros da Eneida. A cena parecia estar diante de seus olhos. "Com autorização do prior da Arte... concedemos a autorização de explorar o comércio... ao mestre Teofilo Sprovieri, médico e boticário, nascido em São João de Acre, e de mesma procedência...”

         Botica e laboratório na via Lunga, perto da Porta Romana. Iria tirá-lo da cama. No fundo o homem lhe devia alguma coisa. Ele era o prior, podia infringir o toque de recolher. Podia tudo. E, além disso, também era membro da Arte dos boticários. Um confrade recebê-lo-ia de braços abertos.

         Um remédio... um remédio e um pouco de ar fresco, e venceria a dor.

         A caminhada até a Porta Romana não foi como esperava. Quase todo o corpo lhe doía. Estava exausto, cabelos e barba empapados de suor. Sentiu-se perdido no complexo de vielas que se espalhavam como teias de aranha nas costas da igreja de Santo Espírito, logo depois da porta.

         Numa curva da viela deparou-se com um clérigo pançudo que caminhava em sentido contrário, arquejando com aquele ar enfermiço de quem freqüentemente é obrigado a recorrer a remédios e misturas. Parecia que tentava evitá-lo, e Dante percebeu uma expressão de medo em seu olhar esquivo.

         "Há uma loja de boticário por aqui. Onde?" perguntou o poeta interceptando-lhe a passagem e dirigindo-lhe um olhar injetado de sangue.

         O clérigo empalideceu. Fitou com perplexidade as roupas do poeta, depois o rosto transtornado. Dante arrumou o barrete sobre a cabeça e as dobras de seu traje, antes de repetir a pergunta, quase aos gritos.

         "Ali... pela esquerda. Logo atrás da fonte da Morte..." balbuciou o clérigo, indicando com mão trêmula a direção.

         Dante prosseguiu, satisfeito pelos efeitos que as insígnias de sua autoridade provocavam nos seus concidadãos. Voltou-se ainda a tempo de ver o homem afastar-se velozmente, contente de ter escapado por pouco de um louco vestido como prior.

         Caminhava tropeçando continuamente nas pedras irregulares. As pontadas nas têmporas lhe obscureciam a visão, transformando o calçamento desordenado numa névoa de fagulhas. Nem saberia dizer como alcançara a fonte de pedras cinzentas, sobre a qual sobressaíam os restos de uma estátua romana. Ao longo dos séculos a corrosão e a falta de cuidados haviam agredido o rosto da mulher de mármore, transformando-o numa horrenda máscara. Inclinou-se para beber um gole de água fria.

         Em seguida sentou-se um instante na borda para repousar. Ali também a morte espreitava às suas costas como uma presença maligna, acariciando-o com seu olhar cego.

         Que idéia excêntrica, um boticário num lugar daqueles. Ou, talvez, a escolha era motivada por uma sabedoria secreta? A Cura ou a Morte, inseparáveis como as duas faces de uma mesma moeda na geografia daquela cidade, como o eram na vida.

         Deu ainda alguns passos ao longo da viela que dava num lado do largo e reconheceu ao longe a porta de batentes entalhados com as insígnias da Arte. Percorreu o último trecho quase em sonho.

         Apesar da hora a loja já estava aberta. Pela porta entrevia-se uma luz bruxuleante, como se alguém no interior estivesse se movendo e carregasse uma lamparina.

         O local tinha o aspecto peculiar de uma biblioteca. Ao longo das paredes estavam ordenadas altas prateleiras preenchidas com filas regulares de vasos e frascos de vidro e de cerâmica colorida. Sobre o grande balcão central coberto por uma placa de mármore sobressaíam alguns almofarizes de vários tamanhos, de pedra, de bronze e de madeira, e depois uma série de fogareiros sobre os quais ferviam panelinhas e retortas de cobre, de onde emanava um leve vapor aromático. Um forno de material refratário emitia ao fundo uma leve claridade avermelhada.

         Ao lado da bancada o poeta viu um homem, aparentando a sua mesma idade, que olhava para ele com curiosidade enquanto ocupava-se em amassar ervas secas num almofariz. Tinha uma silhueta delgada, com cabelos de um negro corvino e olhos escuros, ligeiramente amendoados como os dos orientais. O olhar era vivo, inteligente, com algo de felino em sua mobilidade. As pupilas pareciam emanar uma leve fosforescência à luz da lamparina apoiada sobre a bancada.

         "Em que posso servi-lo, senhor?" perguntou, depois de uma ligeira inclinação de cabeça à guisa de saudação. O gesto havia revelado à luz um denso reticulado de rugas sobre a testa.

         Sem responder, Dante olhou ao redor. Havia no ambiente uma agradável impressão de linearidade e ordem, de equilíbrio de formas e utilização racional dos espaços.

         Sentiu-se seguro. Não havia ido parar no antro de um charlatão. Lá dentro reluziam tanto o brilho do intelecto quanto a marca da sabedoria da nova ciência. Aquele lugar parecia realmente um símbolo dos novos tempos, da clareza do pensamento apoiado pela razão, conforme a escola de Paris. Aquele lugar era... sim, moderno.

         "Raiz de acônito e espinha-branca em pó. E infusão de tomilho e pimenta em grãos, e casca de salgueiro fresca", disse finalmente.

         O outro olhava para ele sem parar de amassar bem lentamente as ervas no almofariz. Parecia refletir no significado daquele pedido. "Estranha combinação, essa que solicita. Como se quisesse ao mesmo tempo contrair e relaxar suas vísceras. E parece subestimar a periculosidade do acônito. Quem lhe prescreveu essa poção?" Apesar de soar gentil, havia uma sombra de suspeita no tom da sua voz.

          "Sou Dante Alighieri, prior da cidade", respondeu com brusquidão o poeta. Pareceu-lhe morrer com uma nova pontada de dor. "E sou mestre boticário e especialista em artes médicas. Eu bem sei que o acônito pode induzir à morte..." Durante a conversa aproximara-se do balcão e havia agarrado um pilão de bronze. "Não pretendo envenenar-me, mas só facilitar com o remédio a eliminação da bile de seus vasos repletos, para que seja expelida com suas afecções pelas vias naturais. Portanto, dê-me logo essas malditas ervas, antes que o agarre pelo pescoço!" No mesmo instante arrependeu-se do gesto de raiva e abaixou rapidamente a mão.

         O boticário havia seguido aquele raciocínio ofegante com atenção. Não parecia ofendido pelo tom arrogante do poeta. Aliás, parecia contente. "Dante Alighieri?", disse abrindo os braços. "Que alegria me é dada pela sua presença inesperada! O senhor, o mestre do verso poético, em minha loja! Lembra-se de mim? Sou Teofilo Sprovieri. Nos conhecemos quando estudantes, há alguns anos, em Bolonha... lembra?" voltou a repetir com uma ponta de desilusão ao notar a perplexidade do outro.

       Dante não lembrava nada. Depois de alguns instantes, em sua cabeça contraída pela dor, aquele nome despertou um eco. Anos atrás, quando compunha versos de amor para Beatrice, durante seu breve período de estudos universitários. "Sim... agora sim. Perdão. A minha dor turvou os traços de seu rosto.”

         Esperava que tais palavras fossem suficientes. Mas o outro, em vez de voltar-se para as prateleiras de remédios, aproximou-se mais ainda dele. "Qual é a natureza do mal que   o aflige?" perguntou, observando-o como se quisesse, através da porta dos olhos do poeta, penetrar-lhe o sofrimento.

         "A bile negra difusa em minhas veias. Inflama minha testa como lava ardente", respondeu Dante, exausto.

         Um brilho acendeu-se no olhar de Teofilo. "Talvez eu tenha algo... um remédio novo", disse. Parecia contente em ter a oportunidade de agradar a um homem importante e ao mesmo tempo em dar-se a conhecer como mestre na Arte médica. "Tenha confiança em mim, senhor Alighieri, e permita que a minha pobre ciência acrescente um pequeno grão à sua tão maior.”

         Num canto da loja havia um grande cofre de madeira maciça, com os cantos reforçados por cintas metálicas e a porta fechada por um seguro cadeado de dupla chave, semelhante ao dos cofres dos maiores banqueiros de Florença. O boticário retirou de uma pequena cômoda duas chaves de ferro e, aproximando-se da porta protegida, inseriu uma delas na fechadura superior.

         Apesar dos espasmos que agora quase o cegavam, Dante observou com admiração aquela obra-prima da arte mecânica. A fechadura era concebida de tal forma que para abri-la era necessário atuar alternadamente com cada uma das duas chaves, dando antes de tudo um único giro com a primeira, para depois inserir a outra e proceder em sentido contrário por um número de giros que lhe pareceu interminável.

         Por fim, com um estalido seco a lingüeta escondida da fechadura liberou o arco de aço do cadeado, e Teofilo escancarou a pesada porta do cofre.

         De onde estava o poeta não tinha uma visão clara do que havia lá dentro. Teve a impressão de que o outro   colocava de propósito seu corpo na frente cofre para esconder-lhe o conteúdo. Conseguiu ver somente um rolo de papéis amarrados por um cordão, no fundo e numa prateleira de madeira uma ampola equivalente a uma medida de vinho, quase cheia com um líquido esverdeado e selada por uma tampa de metal.

         "Eis o medicamento de que lhe falava.. Um remédio para qualquer dor do frágil corpo humano. Até o sofrimento da alma é subjugado por este repente" explicou Teofilo, enquanto voltava a fechar o cofre.

         Depositou com extremo cuidado a ampola sobre a bancada. Dante acreditava saber de que se tratava. Também em Florença havia corrido o rumor de que uma erva fora trazida para a Europa por alguns cruzados ao retornar de além-mar. Era a chamada erva dos Assassinos, os perversos seguidores do terrível Ancião da Montanha; tinha o poder de adormecer os sentidos e aquietar as emoções, cancelando as lembranças e as certezas, uma erva sobre a qual haviam escrito os antigos gregos, chamando-a loto. Sabia que estava sendo utilizada também em sua cidade.

         "Acho que já conheço o seu remédio, senhor Teofilo, mas creio que o loto destilado não seja a cura mais adequada para reequilibrar os humores desarranjados.”

         "Oh, não, mestre, não é das ervas da Líbia que é extraído este remédio", respondeu o boticário em tom enigmático. Por um instante pareceu não desejar acrescentar nada, em seguida esclareceu. "Sua origem é muito mais remota. Não vem das áridas terras dos mouros, mas sim dos confins luxuriantes de uma terra que nem Alexandre, o Grande, soube transpor. Dois anos atrás, na cidade de Alepo, um viajante   presenteou-me com esta pequena quantidade. Tinha consigo pedras preciosas e sedas, mas esta era sua posse mais extraordinária. Disse que era conhecida como chandu na língua de seus primeiros descobridores.”

         "E o que contém?”

         Teofilo não respondeu de imediato, como se refletisse a respeito.

         "Disse o senhor que esse composto não é loto, mas que vem de terras longínquas", continuou Dante. Em sua mente havia se formado uma estranha intuição. "Trata-se talvez de... mecônio?”

         "Mecônio?", repetiu lentamente o boticário.

         "A substância que se extrai da papoula, no Oriente, sobre a qual escreveu Plínio, o Velho. Aquela com que o grande imperador Marco Aurélio amenizava sua ansiedade e seus afãs de governo.”

         "Vejo que seu saber está a par de sua fama, senhor Alighieri", limitou-se a replicar o outro, com uma expressão indecifrável. "É meu tesouro mais precioso. O mais secreto. E ficarei honrado se for o senhor a tirar agora proveito dele.”

         Retirou de uma gaveta um tubinho de vidro e, depois de abrir a ampola, aspirou com a pipeta uma pequena quantidade de seu conteúdo, em seguida despejou tudo numa ampola menor. Escorregando pelas paredes de vidro, as gotas da substância pareciam atravessadas por um raio de luz, enquanto um odor acre difundia-se no ar.

       O poeta esticou a mão, vencendo as últimas hesitações. As pontadas na cabeça faziam-se sentir novamente como marteladas. Nessa hora teria feito qualquer coisa para eliminar a dor. Mas Teofilo parecia ainda segurar a ampola.

          "Observe essas doses, cuja medida exala nasceu de uma atenta e às vezes infeliz experimentação de seus efeitos no organismo humano. Dez gotas induzem ao assombro e acalmam a dor mais intensa, como aquela que às vezes irrompe na cavidade dos dentes, nos dutos auditivos ou nas circunvoluções do cérebro, como no seu caso. Vinte gotas e a mente precipita-se num delírio de visões impetuosas. O véu que Deus colocou sobre nossas mais secretas vergonhas se rasga e o intelecto racional penetra no reino da alma. A mente adquire o dom blasfemo de um poder profético não inspirado por Deus, mas pelo demônio verde que o alimenta. A excitação nesse estágio é tão intensa que o corpo pode ser dilacerado pelos ferros de um cirurgião ou pela lâmina de um assassino sem que a dor distraia o sonhador de suas visões”

         Enquanto o outro falava, o nome da mistura ecoava na mente do poeta.

         "Se não temesse incorrer na ira da Santa Igreja, diria que os primogênitos da humanidade arrancaram esse chandu dos galhos da árvore do Bem e do Mal", continuou o boticário. "Retorne então a seus aposentos e aplique conforme minhas instruções. Por volta da nona hora seu sofrimento terá desaparecido.”

         "E acima de vinte gotas?" perguntou Dante. Mas ele já conhecia a resposta.

         "Não o faça. Nunca. Acima de vinte gotas entreabrem-se, talvez, as portas do Paraíso, mas ninguém visitou o Paraíso vivo. Acima dessa medida existe somente a morte." Dante percorreu o trajeto até o convento apelando para suas últimas forças. Em São Piero não havia ninguém à porta nem nas escadas. Até os guardas pareciam ler se evaporado   depois daquela noite infernal. Alcançou rapidamente sua cela, diluiu dez gotas da mistura numa xícara de água. Logo em seguida acrescentou mais cinco gotas, antes de deixar-se cair sobre o leito, ainda vestido. Ansiou que as palavras de Teofilo fossem verdadeiras.

         No início não percebeu nenhuma sensação incomum. As primeiras luzes da manhã entravam na cela com uma intensidade constante. Só os rumores da rua pareciam atenuados, como se tivessem estendido um tapete de feltro sobre o calçamento de pedras da rua. Ao seu ouvido chegavam vozes incompreensíveis, um murmurar indistinto. Parecia que os transeuntes na rua estavam mancomunados. Certamente já se espalhara a notícia de que Dante Alighieri, prior florentino, poeta, residia ali.

         Experimentou um desejo repentino de abrir a janela da cela para agradecer publicamente, mas estava muito fraco. Os membros recusavam-se a obedecer. Todo seu corpo parecia restrito somente à ilha de sua mente, circundada por um mar efervescente de vazio, uma pequena rocha numa rota já esquecida por todos os navios, abandonada até pelo canto das sereias.

         Não saberia dizer desde quando reinava aquele silêncio absoluto. Percebia nas têmporas o fluir silencioso do sangue. Todos os seus humores precipitavam-se no interior de seu corpo. Por instantes pareceu-lhe estar à beira de uma assustadora cascata que mergulhava em direção às entranhas da terra. Sentia-se dominado pelo rumor de seu próprio corpo.

         Por trás da porta fechada percebeu um leve ruído de passos. Pessoas que se aproximavam procurando não   ser ouvidas, atenuando com as mãos o som da própria voz para não incomodá-lo. Mas a hora era tardia, e lá fora o aguardavam os cardeais que vinham anunciar o período de eleição. Estariam eles talvez tramando às suas costas? Por que não havia sido convocado para participar do conclave? No entanto, cabia a ele decidir quem seria o sucessor de Bonifácio. Não só isso, mas era a ele que seria oferecido o anel pastoral e... iluminado pela Graça...

         "Entrem, então!" gritou através da porta que vibrava, enquanto uma miríade de lampejos luminosos revelava-se por entre as fendas. Nas tabuletas de madeira, as letras de fogo começavam a tomar forma, as letras da morte, "IIICOE".

         A luz filtrava por todas as fendas da porta. Depois explodiu com o brilho de um relâmpago, enquanto a porta abria-se girando sobre os gonzos. A cratera de um vulcão, ou do próprio inferno, havia se escancarado em sua cela. Uma figura escura, que sobressaía na contraluz, aproximou-se com passos vagarosos do leito sobre o qual Dante jazia.

         Era uma mulher, envolvida por uma ampla túnica de seda branca, verde e escarlate, suas formas sedutoras revelavam-se por entre os véus transpassados pela luz ofuscante. Continuou a aproximar-se até roçar com as pernas o leito, e o poeta sentiu o calor do corpo que se inclinava sobre ele, soltando os laços das vestes e projetando o seio em direção de seu rosto.

         Foi então que aquele seio revelou a chaga que o mutilava, um corte ensangüentado e imundo. Uma floresta viva pareceu erguer-se ao redor do rosto da mulher e um emaranhado de serpentes sibilantes atirou-se contra Dante, que   procurou proteção apoiando-se sentado contra a cabeceira da cama, quase desejando afundar dentro da parede às suas costas para fugir daquele ser infernal que vinha persegui-lo. As pálpebras da Medusa, desfiguradas pela lepra, começaram lentamente a abrir-se, enquanto um grito terrível quebrava o silêncio, fustigando sua mente como um golpe de porrete.

        

         16 de junho, por volta da nona hora.

         Dante acordou sobressaltado, coberto por uma camada gélida de suor. O eco do grito ainda ressoava entre as paredes da cela. A luz ofuscante do sonho havia dado lugar ao brilho do sol, agora já alto no céu.

         Levantou-se cambaleando, ainda confuso. Segurou a cabeça entre as mãos, procurando voltar totalmente a si. Tinha a sensação de ter acabado de emergir das profundezas de um mar povoado por monstros. Mas o ardor latejante nas têmporas tinha desaparecido. Uma extraordinária sensação de bem-estar permeava todas as fibras de seu corpo, cada átomo de dor havia se dissolvido.

         Com o bem-estar do corpo, a prontidão e as virtudes de seu ânimo haviam se revigorado. Os acontecimentos da noite estavam claríssimos em sua memória, como se tivesse acabado de sair da igreja onde ocorrera o crime. O rosto martirizado do mosaicista estava novamente diante de seus olhos e parecia convidá-lo à ação, quase como um parente obrigado à vingança do sangue.

         Era certamente sua consciência a estimulá-lo: como prior de Florença não era talvez como um pai para seus   concidadãos? O sangue deles não era o seu? Devia agir sem titubear, sem nenhuma indulgência, seguindo o que lhe sugeriam a razão e a consciência.

         Apresentou-se ao pórtico, acenando para o guarda que vigiava a fila de celas. "O secretário do priorado está? Mande que ele venha logo até aqui", ordenou.

         Em lugar de apressar-se a obedecer, o homem o fixava piscando os olhos. "Antes veio um tal de Manetto, enquanto o senhor dormia. E o senhor tem o sono pesado, prior.”

         "O senhor Manetto? O que queria?”

         "Procurava pelo senhor. Sujeito azedo e amarelo como um limão. Referia-se a algumas contas. Disse que irá procurar seu irmão, se o senhor não pagar.”

         Dante sentiu-se enrubescer. Maldito agiota. Vir procurá-lo justamente no priorado! E esse soldado de uma figa que continuava a fixá-lo com um olhar sarcástico.

         "Vá logo fazer o que mandei, agora!" ordenou secamente.

         Observou de mau grado a expressão entediada do homem que se dirigia sem pressa ao longo da escada, em seguida retornou a sua cela e sentou-se à escrivaninha enquanto aguardava. Seu olhar recaiu sobre um montinho de folhas sobre as quais havia trabalhado à noite, antes de entrar no reino das trevas.

         A dissertação que queria defender no senado da universidade de Pádua, quando terminasse o seu mandato, intitulava-se: Questão da água e da terra. Depois dos louros poéticos, aquela pequena obra lhe daria glória eterna entre os sábios.

         Havia sido escrita para rebater a afirmação irreverente e ilógica de que cm algum lugar do globo terrestre   as águas poderiam elevar-se acima das terras emersas e no hemisfério austral poderia existir outra coisa que não o oceano.

         Aquelas teorias eram malucas, entretanto mais de uma pessoa as defendia, acrescentando como prova as fontes nas montanhas. Dar crédito a tais argumentos seria equivalente a admitir que em algum lugar a água pudesse escorrer para cima.

         Em cima da mesa ainda estavam a jarra e as taças que havia enchido durante a noite. Ficou tentado a repetir a experiência, mas a jarra estava vazia. Ninguém parecia preocupar-se com o serviço no priorado, pensou irritado. Mas no fundo era inútil. Bastava a autoridade de Aristóteles para contestar tanta insensatez, sinal inequívoco da degradação do conhecimento.

         O secretário era um homem de meia-idade, completamente calvo. Apresentou-se à porta com um grande livro debaixo do braço. As páginas estavam prensadas por duas pequenas tábuas de madeira ilustradas com imagens de santos.

         "Chamou, senhor Alighieri? Imagino que gostaria de analisar a prestação de contas das finanças da cidade. Eu trouxe comigo...”

         "Obrigado, senhor Duccio", respondeu Dante cortando-lhe a palavra. "Teremos tempo para isso. O senhor toma nota dos trabalhos que são realizados para as novas muralhas?”

         "Sim, claro. Se bem que para estes seria necessário um registro especial...”

          "Quem está restaurando São Judas? E por quê?”

         O outro procurou por um instante em sua memória ordenada. Depois começou, como se estivesse lendo um arquivo invisível. "A igreja e as construções anexas pertenceram aos agostinianos. Mas foram abandonadas pela Ordem. Permaneceram desabitadas por mais de cinqüenta anos, e então foram atribuídas à posse da cidade como res nullius4. No ano passado chegou de Roma uma solicitação para que a autorização para a construção fosse concedida para servir de sede ao Studium geral.”

         "De Roma?”

         "Sim, por intermédio de um portador do senado da Urbe5. Os monges de São Paulo Fora dos Muros haviam feito a solicitação; pretendiam destiná-la para sede principal da universidade. Papa Bonifácio deseja que, em todas as cidades cristãs, se desenvolva o amor pelo conhecimento. Em Roma já foi dado incentivo à Sapientia6", a universidade dos sábios da Urbe?

         "Bonifácio está por detrás do Studium?" perguntou Dante alarmado. "Quem contratou o mosaicista?”

         "A incumbência foi delegada a Ambrogio, mestre construtor comacino, hospedado pelos frades de Santa Cruz.”

         "Quem pagã pelos serviços?”

         "Não é o município... Creio que seja diretamente á colegiado do Studium''   "Os membros instrutores do colégio têm assim tanto dinheiro?”

         O secretário deu de ombros. "Alguns dentre eles são famosos, em suas artes... Talvez consigam grandes lucros, ou disponham de outras rendas. Mestre Teofilo, por exemplo, com sua botica, não é certamente pobre, haja vista o preço dos preparados desses malditos boticários...”

         Dante ergueu a cabeça com um sobressalto, avançando de súbito em direção ao secretário, que recuou receoso. De repente este havia se recordado que o prior também pertencia à Arte dos boticários. Enquanto tentava desesperadamente encontrar uma maneira de remediar aquilo que havia dito, mordia os lábios amaldiçoando-se. Mas o poeta pensava em outras coisas. "Teofilo? Quer dizer Teofilo Sprovieri, aquele que tem botica perto da fonte da Morte? É um dos membros do Studium?

         Imediatamente lembrou-se do rosto inteligente do boticário, mas agora sob um ângulo diferente. Mais sinistro, se tinha algo em comum com aquele poço de hipocrisia que era o papa.

         O outro consultou rapidamente os papéis para certificar-se, antes de dar seu consentimento.

         Enquanto isso, Dante refletia em silêncio. Por fim deu-se conta do senhor Duccio, que continuava a apertar o livro como se fosse um patrimônio familiar. "Pode ir. Mas ainda necessitarei de seus serviços. Um relatório minucioso sobre os membros do Studium: quem são, de onde vêm, quais são suas simpatias partidárias, seus vícios, suas culpas escondidas e as evidentes. Tudo, enfim!”

         O outro saiu.

         Dante estava perplexo. Olhou ao redor, detendo-se distraidamente sobre os pequenos objetos da cela, sem conseguir concentrar a atenção sobre nenhum. A idéia de que o próprio Bonifácio estivesse organizando uma universidade em Florença, e que, em seguida, a dominaria com seus acólitos, o deixara preocupado.

         Abriu a porta, chamando novamente com um gesto o guarda, que estava apoiado a uma coluna do Claustro. O homem devolveu-lhe um olhar aborrecido, bufando ostensivamente antes de sair do lugar. Dois encargos em tão curto espaço de tempo deviam ser muito cansativos para alguém como ele.

         Dante esperou impassível que o outro se aproximasse o suficiente, em seguida golpeou-o violentamente com o dorso da mão. "Maldito preguiçoso, quero que obedeça às minhas ordens com a mesma velocidade do pensamento. E mais rápido ainda, se possível. E deve ser possível, para você, se pretende manter-se saudável", acentuou, dando-lhe um pontapé enquanto o outro se virava procurando escapar à sua ira.

         O homem, ainda meio desorientado, concordou com um gesto rápido de cabeça. "Claro... claro... às suas ordens...”

         "Convoque dois soldados para escoltar-me imediatamente até Santa Cruz.”

         O homem concordou novamente, enquanto massageava a face. O poeta viu-o correr em direção aos alojamentos da guarda. Mas antes percebeu o olhar dele sobre sua garganta, ameaçador como uma lâmina. Talvez devesse ser mais cauteloso, pensou. Não seria prior para sempre.    Era dia de mercado e este se estendia ao longo das velhas muralhas. Dante havia decidido atravessar as ruas apinhadas com as bancas da feira para encurtar o caminho. Mas, logo percebeu com incômodo, teria sido melhor se houvesse dobrado em direção às margens do Arno, evitando assim aquele ajuntamento de homens fedorentos e de mercadorias suspeitas. Cavalheiros e prostitutas, nobres e batedores de carteira, envolvidos todos num abraço indecente ao longo das ruas da cidade outrora devotada a São João.

         Sentia uma raiva surda crescer dentro de si diante daquele espetáculo aviltante. "Procurem ficar ao meu lado", gritou aos soldados que o seguiam. Mas, apesar de seus gritos e da ameaça das lanças, perdeu-os quase imediatamente por detrás da multidão de cabeças que vagavam por entre as paredes das casas. Era como se todos os cidadãos de Florença, incluindo os seus animais de carga, houvessem combinado encontrar-se naquelas intricadas e estreitas vielas entre o batistério e a igreja dos franciscanos.

         Avançava com dificuldade, procurando abrir caminho na confusão e andando o mais possível afastado do meio das ruas para evitar os numerosos excrementos dos cavalos. Havia pensado que as insígnias do priorado seriam suficientes para abrir caminho, mas, depois de ter perdido contato com os soldados armados, o barrete e o bastão dourado não pareciam exercer nenhum efeito sobre a multidão. Pelo contrário, a impressão é de que até mesmo aluíssem a atrevida insolência dos plebeus, já por duas vezes havia evitado milagrosamente um jato de tinta vindo de uma janela, e começava a suspeitar que, por trás daqueles atentados, houvesse uma intenção ultrajante.

         Procurou memorizar as casas de onde haviam partido os lançamentos. Covil daqueles cães dos Donati, seus inimigos. Logo encontraria uma forma de vingar-se. Valendo-se da proteção oferecida pela tenda de um banqueiro, levantou-se na ponta dos pés, em busca dos soldados. Mas aqueles canalhas pareciam ter desaparecido.

         Estremeceu. Alguém havia agarrado sua mão. Tentou libertar-se da presa com um safanão, mas quem o segurava resistiu com uma força inesperada. "Uma moeda!”

         "Que diabos você quer, velha?", gritou o poeta à mulher que o agarrara. Coberta de trapos, os longos cabelos brancos desgrenhados caídos sobre os ombros curvos, ela mantinha o rosto abaixado, como se não ousasse olhar para ele.

         "Em troca da sua sorte.”       

         "Cuidado com a sua sorte, bruxa. Você vai precisar.”

         "Uma moeda. Uma moeda pela sua sorte", repetiu ela novamente. O tom de sua voz era firme e sonoro, apesar de seu aspecto decrépito. Enquanto isso, havia aberto pela força a mão do prior e parecia olhar para a palma atentamente. A multidão agora desfilava ao redor deles, abrindo-se como uma onda contra o recife, quase como se todos tivessem temor de roçar neles.

         Por fim haviam reconhecido as insígnias do priorado, pensou esperançoso o poeta.

         Os olhares dos passantes, na verdade, estavam voltados para a mulher. Era ela que todos procuravam evitar.      

         "Deixe-me ir, não acredito em sua conversa fiada."    

         "Uma moeda para saber quando estará perdido.”

          "Quem quer que eu me perca?"    

         "Você. É você que está procurando perder-se." Dante tentou novamente libertar a mão, mas a mulher não cedeu. "Descobriu o rosto do homem morto" disse ainda. O que...

         "Mas o homem morto não revelará.”

         Dante estava desconcertado. Mecanicamente alcançou a bolsa presa ao cinto e pegou uma moeda de cobre. "Fale-me do homem morto."      

         "Ele servirá de guia aos vivos.”

         "Guia? E para onde?”

         "Em direção à terra dos outros mortos. Você não deveria ter descoberto seu rosto.”

         Dante estava confuso. A velha expressava-se de maneira obscura, como todos os adivinhos. Mas tinha o ar de saber algo do drama da noite precedente. "Por que você está me contando isso?”

        "Para que possas sofrer." De repente a mulher abandonou a presa, recuando um passo e sendo imediatamente engolida pela multidão em movimento.

         Surpreendido, Dante hesitou por um instante antes de tentar segui-la, mas agora seus esforços seriam inúteis contra a barreira de corpos que se tornara impenetrável. "Quem era aquela mulher?" perguntou a um banqueiro parado à porta de sua banca. Tinha certeza de que o homem havia assistido à cena. "Quem é? Fale, quem lhe ordena é o prior de Florença!”

        O homem não pareceu muito impressionado. É só a velha Martina. É louca, não faça caso dela. Perdeu ambos os filhos em Campaldino.”

         Dante permaneceu imóvel ainda por um instante, enquanto a multidão recomeçava a empurrá-lo com seu movimento frenético. Aquela referência ao mosaicista devia ler sido uma coincidência. Ou talvez um dos soldados contara o que tinha presenciado na igreja e a notícia havia se espalhado. Sacudiu os ombros, dirigindo-se com dificuldade para o convento.

         Durante o trajeto, ele se maldizia por ter dado ouvidos a uma das muitas desesperadas que se fazem de bruxas ou feiticeiras. Florença estava repleta delas, bem como as fossas do inferno.

         ‘Sua sorte por uma moeda...’

         ‘Para o inferno!’

         Finalmente conseguiu alcançar Santa Cruz. O mestre construtor comacino havia se alojado no convento dos franciscanos, na ala que os frades colocavam à disposição dos peregrinos.

         O padre guardião não estranhou demais sua chegada. Mesmo quando soube da morte de seu hóspede, não pareceu perturbado. Talvez sua calma fosse uma conseqüência da impassibilidade de uma alma acostumada a confrontar-se com as fragilidades da vida humana. Talvez estivesse habituado à transitoriedade das presenças no convento, e a morte, além do mais, era uma maneira como outra qualquer de afastar-se. Mas Dante continuava a duvidar se ele também já teria sabido do crime, assim como a velha no mercado.

         "Entrou alguém na cela que ele ocupava?", perguntou.

         "Não vi ninguém. Mas a porta não é vigiada. Venha, vou mostrar-lhe o alojamento de mestre Ambrogio.”

          A cela estava situada no fim de um estreito corredor que dava diretamente no Claustro interno. Um canto da colunata se abria para a entrada lateral da igreja. Qualquer um poderia ter entrado sem ser percebido, aproveitando o ir-e-vir dos fiéis.

         A mobília era reduzida ao essencial: um estrado servia como cama e uma tábua apoiada contra o muro, de escrivaninha. Sobre esta havia uma caixa de madeira repleta de carvões para desenhar e alguns frascos de cerâmica para a tinta. Um tinteiro devia ter sido derramado, produzindo uma mancha na madeira, que fora em seguida enxugada rapidamente com um pano ainda abandonado no chão. Entre os papéis, havia uma carta, com selo papal, que ordenava a apresentação do mestre em Roma para realizar serviços de reforço no complexo do mosteiro de São Paulo Fora dos Muros. Não havia data, mas parecia recente.

         "Ambrogio esteve em Roma, antes de vir para Florença?”

         "Creio que sim. Falava da cidade santa como se a conhecesse muito bem.”

         Dante voltou a observar a carta. Essa circunstância reforçava a sua primeira idéia: que o mosaico pudesse ser uma espécie de celebração do Centesimus. Voltou a perguntar-se o que estaria previsto na parte não concluída.

         "Notou algo estranho em seu comportamento? Temia alguma coisa? Parecia preocupado?" perguntou ao padre guardião.

         "Não, eu não diria isso. Estava muito absorvido por seu trabalho... A não ser o assunto da carta."

          "Que carta? Esta?" perguntou o poeta, indicando o contrato.

         "Não, não essa. Umas duas semanas atrás perguntou-me se haveria algum irmão partindo para o Norte. Queria confiar-lhe uma mensagem para os seus companheiros da Arte. Talvez um relatório... quem sabe?”

         "E a mensagem foi enviada?”        

         "Sim, justamente naqueles dias um padre visitante devia seguir para Mântua. O mestre entregou-lhe um envelope.”

         "E não tem idéia do que continha?”

         O frade encolheu os ombros. Ao lado do estrado havia uma caixa aberta, repleta de plantas e pergaminhos preenchidos com desenhos arquitetônicos: detalhes de arcos e travamentos, esquemas para decorações mosaicistas e projetos de pisos misturados desordenadamente. Nunca um mestre da Arte teria guardado tão mal os instrumentos de seu trabalho. Alguém devia ter revistado o conteúdo, sem se preocupar em recolocar em ordem. O que poderia haver de tão interessante entre os papéis de um morto? Talvez o que ele também havia procurado na igreja: os cartões completos do mosaico.

        Sentou-se sobre o colchão de palha e começou a examinar meticulosamente os desenhos. Esperava encontrar ao menos um esboço preparatório, ou até mesmo um detalhe do grande mosaico. Mas não havia absolutamente nada sobre a obra que tinha sido a causa de sua morte.

         Talvez quem revistara as coisas do morto tenha encontrado o que procurava.

         Estava a ponto de desistir quando ergueu contra a luz da janela uma das últimas folhas de pergaminho. Em sua parte superior havia um esquema maravilhoso de uma vidraça em policromia que lhe chamou a atenção. Mas havia mais, como descobriu virando a folha.

         A luz rasante que provinha da janela tinha ressaltado uma trama de sinais leves. Apalpando com delicadeza a superfície, pareceu-lhe perceber os sulcos deixados por uma ponta. Alguém havia apagado alguma coisa raspando o pergaminho.

         Curioso, Dante levantou-se e aproximou-se da caixa dos cálamos. Como esperava, havia lá dentro um pedaço de carvão de desenho. Começou a passá-lo sobre toda a superfície do pergaminho, com leves traços sucessivos. Atrás dele, o padre guardião, esticando-se todo, procurava compreender seus movimentos.

         Lentamente, como por mágica, ficou visível o traço do primeiro desenho. Não era o velho a caminho representado no mosaico, como esperava, mas algo muito mais surpreendente.

         Tratava-se de uma embarcação, uma galé, com seu castelo de proa embandeirado festivo. Reconheciam-se com clareza as fileiras de remos, a vela quadrada retesada pelo vento e uma segunda vela desfraldada numa posição inusitada, abaixo da quilha.

         Dante aguçou o olhar para perceber melhor todos os detalhes. Talvez se tratasse do primeiro esboço. O desenhista havia pensado em situar a embarcação mais abaixo no desenho e depois tinha modificado o projeto inicial, deslocando o desenho para cima.

         Mas o detalhe não parecia nem um pouco uma reconsideração. A vela parecia ligada à quilha por uma rede de estais, como se Ambrogio quisesse indicar a real possibilidade de manobra.

         Era um absurdo. Uma brincadeira.

         Mas por que utilizar um material precioso como o pergaminho? Além do mais, nunca ouvira dizer que os comacinos se interessassem por construções navais. Eram arquitetos e mestres lapidadores famosos. Até Arnolfo de Cambio tinha se utilizado dos serviços deles em todas as suas construções em Florença.

         Ainda havia um detalhe, percebeu, enquanto ordenava aos soldados que recolhessem o material para levá-lo a São Piero. No céu, na proa da nave, era visível um pequeno sinal. Uma estrela pequenina de cinco pontas e uma palavra: Vênus, a estrela Vênus, o planeta luminoso que domina um terço dos nove céus cristalinos.

         Dobrou novamente o pergaminho com cuidado, procurando fazer com que o sombreado do carvão não se alterasse.

         Estava para sair da cela quando seu olhar fixou-se novamente sobre a caixa dos calamos. Ao lado dos frascos cerâmicos encontrava-se uma ampola de vidro, que passara despercebida durante o seu primeiro exame. Estava vazia, mas levando-a ao nariz percebeu logo o cheiro azedo e inconfundível do chandu.

         Havia prometido a Teofilo que retornaria para fazer-lhe uma visita. Decidiu honrar o compromisso. Imediatamente.

         Enquanto estava à porta viu que chegavam os dois soldados, resfolegantes. O brilho dos olhos denunciava uma passada em alguma taberna aproveitando a confusão. Apertou os maxilares para conter os insultos que já estavam prontos para sair.

          

         No mesmo dia, por volta de meio-dia.

         O boticário parecia feliz em revê-lo. "Percebo que está melhor, senhor Durante. Como eu lhe havia prometido", falou com orgulho mal disfarçado.

         "E assim como lhe prometi, cá estou eu de volta para render homenagem e renovar a nossa velha amizade.”

         "Estou satisfeito. Meu remédio realizou então o efeito benéfico desejado?”

         "Da maneira mais absoluta e sou-lhe muito grato por isso. Também resultou em benefício aos outros que o têm utilizado?”

         "O que quer dizer?" perguntou Teofilo, tornando-se repentinamente cauteloso por detrás de sua cordialidade.

         "Ambrogio, o mestre construtor comacino. Ele também não recorreu a esse remédio?”

         O boticário deixou passar um instante, antes de responder. "Sim, claro", disse em seguida, como se houvesse lembrado de repente.

         "Ele também sofria de dores insuportáveis?" perguntou Dante. 

         Novamente Teofilo não respondeu de imediato. Em seguida aquiesceu. "Se bem que não da mesma natureza das suas. Existem dores do corpo e dores da alma, e para alguns espíritos estas são muito mais terríveis do que aquelas.”

         "Uma dor da alma... talvez provocada pela enormidade de sua tarefa?”

         Teofilo observava com olhar interrogativo.

         "São Judas. O grande mosaico da abside", prosseguiu o poeta. "Eu o vi. Tão grande que faz tremer as veias e os pulsos.”

         "Ambrogio é um artista supremo, um mestre na sua arte. Está na natureza dos grandes confrontar-se com grandes obras e desgastar-se na tarefa. Fiquei feliz em ser-lhe útil. Sinto afeição por ele.”

         "Como o conheceu?" perguntou Dante, curioso pelo fato de que falava do morto sem nenhuma emoção. Será que não estava a par do ocorrido?

         "Ele pertence ao pequeno círculo daqueles que são meus companheiros desde que cheguei a esta cidade. Homens de estudo, de cuja amizade me orgulho... assim como da sua.”

         "Um círculo de homens de estudo aqui em Florença? Teve muita sorte, senhor Teofilo. Eu, que nasci aqui, nunca consegui encontrar mais do que cinco homens merecedores de minha estima. E três dentre eles já faleceram.”

         O outro sorriu. "Oh, claro que não se trata da Academia de Platão! Somos apenas um pequeno grupo que se encontra de vez em quando, à noitinha, depois de ter concluído os respectivos trabalhos, para falar de assuntos virtuosos. Procuramos dividir entre nós aquele pão dos anjos que cada um conseguiu extrair de seus estudos. Somos todos mestres nas nossas artes, viemos para Florença para o Studium geral.”

         Dante manteve um ar indiferente. "Não sabia que houvesse uma universidade em Florença.”

         "No entanto ela existe. Ao menos nos pergaminhos e nos atos com que o rei Carlos a constituiu, há mais de trinta anos. Mas daqui a pouco aparecerá feita de homens e de coisas, em todo o seu esplendor. Ora, nossas lições são pronunciadas em sedes provisórias nos quatro cantos da cidade, mas logo o Studium disporá de uma sede definitiva.”

         "Ouvi falar de um projeto nesse sentido. Não será justamente o de São Judas, o velho mosteiro nas muralhas novas?”

         Teofilo aquiesceu. Mais uma vez não deu nenhum sinal de saber sobre o ocorrido. Parecia completamente alheio à tragédia.

         "Um colégio de doutores em minha cidade... Eu ficaria realmente honrado em discutir com todos vocês algumas das idéias modernas, e de submeter à sua avaliação a minha pequena ciência" continuou Dante. "Por outro lado, seria muito pouco cortês da parte de uma das mais altas autoridades da cidade não homenagear os homens que estão prestes a abrilhantar Florença.”

         O boticário permaneceu um instante em silêncio com os olhos semicerrados. Um instante que pareceu longo demais para Dante. Mas logo o seu rosto abriu-se com aquele sorriso caloroso que já havia conhecido, sobrepondo-se à máscara ladina de alguns minutos atrás. "Tenho certeza de que todos ficariam honrados com uma visita do príncipe dos poetas toscanos, e que não consideraria totalmente inútil para seu espírito tomar parte num de nossos encontros. Quando quer vir?”

         "Hoje mesmo, se for possível. Suas palavras acenderam em minha alma o desejo. Isso se não for contra os seus projetos, naturalmente.”

         "Não, pelo contrário. Hoje é um dia melhor do que os outros. Estávamos justamente pensando em fazer uma reunião. Vou esperá-lo assim que anoitecer na taberna atrás da fonte grande, na estrada para Roma. É a taberna de Baldo, o cruzado. Vai se encontrar com o Terceiro Céu.”

         "O Terceiro Céu?”

         "É uma fórmula que utilizamos entre nós, uma brincadeira entre doutores. Mas certamente compreenderá. O nosso amor pelo conhecimento é tão grande quando nos aproximamos da doutrina dos anjos, que cada um de nós tem a impressão de ascender ao céu da estrela Vênus. Mas não é só isso. Verá.”

         Dante permaneceu silencioso, absorto. Talvez fosse só um acaso que Ambrogio tivesse sido assassinado enquanto trabalhava para o Studium. Mas talvez, pensou, seja só a pobreza de nossos sentidos que nos impede de reconhecer a trama ordenada por trás da casualidade dos acontecimentos. Ainda gostaria de fazer algumas perguntas ao boticário, mas antes preferia refletir. Haveria tempo, depois. Ao sair, parou à porta e perguntou: "Senhor Teofilo?”

         "Diga, por favor.”

         "O que contém a sua poção, o mágico chandu”

         "Não sei, senhor Alighieri. Quem me deu de presente não revelou."

          "E não tentou...”

         "Estudei atentamente. Mas não consegui decifrar nada, a não ser que é uma mistura de cinco substâncias diferentes.”

         Dante meneou a cabeça. Tinha a sensação de que aquele homem estava mentindo. Por um instante imaginou-o preso ao cepo nos subterrâneos da Stinche*7. Quanto tempo resistiria à tração das cordas, com o seu segredo?

         E quanto tempo resistira mestre Ambrogio com o seu?

 

         No mesmo dia, perto do anoitecer.

         Uma chapa esmaltada de cobre suspensa sobre a entrada convidava os bebedores à taberna A Caminho de Jerusalém. A insígnia reproduzia um emblema nobiliário de fantasia: ao fundo estava representada uma meia dúzia de cavaleiros fortemente armados, esboçados por um pincel sem pretensão; no primeiro plano, na parte inferior, sobressaía a cabeça de um sarraceno decepada e ensangüentada que parecia observar com os olhos esbugalhados cada freqüentador que entrava. A insígnia era cortada ao meio por uma cruz vermelha.

         "O justo tratamento a ser reservado àqueles cães mouros", pensou Dante observando-a. Era a única coisa nos arredores a obter a sua aprovação.

         A taberna havia sido obtida fechando com muros de pedra as arcadas de sustentação de uma grande construção da época romana. Mais no alto a muralha, que na sua origem devia ter sido imponente, parecia truncada por um desmoronamento antigo. Só um canto da ruína, que havia permanecido de pé e fora transformado numa tosca   torre com ameias, ainda dava a idéia da altura original. O restante eram escombros e sobre estes se tinha aninhado aquele fragmento do Oriente assinalando a cidade santa.

         Havia alguma coisa sórdida na construção e nas casas de madeira que a coroavam. Ao redor, amplos prados interrompiam a parte edificada da cidade que recomeçava apenas próximo às muralhas. Dante olhou à sua volta aborrecido. Por que homens de cultura deveriam escolher um lugar como esse, em lugar de qualquer convento dentro das velhas muralhas? O que poderia atraí-los, a não ser o desejo de ficar longe dos olhares e da honesta curiosidade dos cidadãos? O que tinha de ficar escondido, num Studium?”“.

         Até mesmo o nome do local parecia inapropriado: após as derrotas sofridas no além-mar e a lenta reconquista da Palestina por obra dos mamelucos, o nome Jerusalém havia se tornado um símbolo sagrado e ao mesmo tempo penoso, certamente não adequado à insígnia de uma taberna.               

         Subiu os degraus desconexos do alpendre, aproximando-se da porta. Do interior provinha um vozerio confuso, como se lá houvesse um grande número de pessoas, apesar da hora já tardia. Parecia que ninguém temia o toque de recolher naquela cidade, pensou irritado o poeta. Empurrou com um gesto decidido a porta e entrou, abrindo caminho por entre criados e freqüentadores que se aglomeravam no espaço entre as mesas alinhadas ao longo do perímetro da sala. No centro crepitava o fogo de um braseiro, em cujas chamas, atiçadas continuamente, borbulhava uma grande panela de cobre e giravam espetos de carnes movidos por algumas crianças malvestidas acomodadas no chão. Escravos adquiridos de famílias pobres do campo por algumas moedas, pensou Dante, desgostoso.

         O ar denso da fumaça das luminárias e do fogo estagnava por baixo das treliças antes de encontrar uma abertura no telhado. As vozes, os sons surdos dos pratos e os gritos fizeram-no temer que a dor de cabeça pudesse voltar a atormentá-lo. Tal animação recordava-lhe o mercado daquela manhã.

         Já estava pensando em ir embora quando ouviu uma voz. "Venha, senhor Alighieri, por este lado! Tome lugar no Terceiro Céu!”

         O poeta virou-se. À sua esquerda, no canto mais longínquo da sala, o boticário, sentado entre outros homens, havia se levantado e o cumprimentava com o braço, fazendo sinal para que se aproximasse.

         Dante dirigiu-se para aquele lado com estudada lentidão. Queria que seus movimentos fossem impregnados com aquela gravitas8 que os antigos julgavam natural nos sábios. Assim teria oportunidade de observar o grupo que estava sentado ao redor da mesa.

         Percebia que cada detalhe de sua pessoa, desde a roupa até a maneira de andar, era objeto de avaliação. Os desconhecidos sentavam-se ao redor de uma grande mesa e pareciam protegidos por uma barreira invisível que impedia qualquer pessoa de aproximar-se. A despeito da aglomeração, de fato, os lugares mais próximos estavam curió-   samente vazios, e os poucos freqüentadores que se sentavam perto deles pareciam mais silenciosos e compostos do que os outros.

         Além das roupas que vestiam, de bom feitio, também as louças testemunhavam a sua condição superior: para cobrir a mesa havia sido estendida uma toalha limpa de tecido, e as labaredas de fogo do braseiro refletiam-se nos pratos e nos copos de peltre alinhados ordenadamente. Nenhum traço das rudes bandejas de madeira, recentemente moldadas pelo formão, sobre as quais era servida a comida aos outros clientes, nem de bancos, substituídos por tronetos elaborados de encosto alto.

         Teofilo continuava a acenar-lhe com a mão, enquanto os outros permaneciam imóveis. Aguardaram que o poeta chegasse perto para levantarem-se todos ao mesmo tempo, inclinando a cabeça numa muda reverência, comedida, mas cortês.

         Dante, por sua vez, inclinou a cabeça, surpreendido: todo o corpus da arte da fisiognomia estava diante dele. O cão, a raposa, o macaco, o leão em vestes humanas estavam fixando-o atentamente. E o cavalo, e a águia...

         Antes desse dia nunca lhe tinha acontecido de encontrar uma tão precisa correspondência entre as espécies animais e os diversos caracteres humanos sobre os quais havia lido nos livros dos antigos. Aquele grupo heterogêneo constituía então a sociedade dos sábios da qual o boticário havia falado. Não deviam ser muitos em Florença, entretanto nenhum daqueles rostos lhe era conhecido. Deviam ser estrangeiros como Teofilo, pensou, observando um de Cada vez. 

          "Que alegria a nossa em vê-lo aqui, senhor Durante", sacudiu-o a voz do boticário. Dirigindo-se aos outros: "Alighieri, o poeta. Meu mestre e amigo.”

         Dante eludiu-se com um gesto. A rigor, não tinha o direito de ser chamado de mestre, não tendo desenvolvido nenhuma atividade didática. Mas, em seu íntimo, sentia-se lisonjeado: era justo que a profundidade de seu saber fosse reconhecida. "Sou eu que devo agradecer o convite, senhor Teofilo. E a companhia de todos, a quem espero não desagradar.”

        "Não diga isso, mestre! Será uma honra para todos nós poder compartilhar de sua intimidade, começando por quem está à sua direita." O boticário indicou um homem alto e maciço, que superava em altura com um palmo abundante a cabeça de todos os outros. Os olhos doces do cão resplandeciam em seu rosto, por baixo das pesadas pálpebras. "Augustino de Menico, filósofo natural, conhecedor dos segredos mais íntimos da Criação. Recém-chegado de uma estada de anos na remota e infiel cidade de Tripoli, onde trabalhou sobre os escritos pagãos de modo a traduzi-los para a nossa língua. Especialista em alquimia e grande conhecedor das línguas antigas, assim como seu vizinho, Antonio de Peretola, jurista e notário, insigne estudioso de ambos os Direitos", continuou, apontando o dedo para um vulto de traços afiados e fugidios como os de uma raposa. O homem respondeu com uma inclinação cerimoniosa.

         "A serviço da Cúria romana, imagino", disse Dante, procurando disfarçar a indiferença.

         "Chefe da Chancelaria de Sua Santidade. Em outros tempos", confirmou a raposa. As insígnias e o prestígio de seu grau eram revelados pela pesada corrente de ouro e pelos anéis que lhe adornavam os dedos, além da pompa do traje negro enfeitado com fios de ouro, que se destacava diante da sobriedade dos outros.

         "Bruno Ammannati, mestre nas ciências de Deus", continuou Teofílo, apontando um terceiro homem que havia permanecido à parte, como se a veste da ordem terceira franciscana que usava lhe impusesse uma certa discrição, especialmente naquele local dedicado aos prazeres. Um rosto nobre e perspicaz, onde o macaco havia deixado a marca evidente da inteligência, mas também da ambigüidade.

         Dante não estranhou em encontrar um clérigo na taberna: parecia que os frades gaudiosos, além de Bolonha, estavam se difundindo pelo resto da Itália, pensou observando o homem de alto a baixo. Bastava uma espiada para notar que o tecido de sua batina era bem mais refinado do que o de seus confrades. O teólogo, mesmo tendo percebido a indiferença, não demonstrou nenhuma contrariedade, devolvendo, aliás, com acentuada cortesia a saudação.

         "E este é Iacopo Torrito, romano. O último a se juntar a nós, geômetra e arquiteto.”

         "E matemático", precisou rapidamente o homem com certa afetação.

         Dante lembrou de ter ouvido falar dele: tinha sido um dos assistentes do grande Amoldo de Cambio, e viera com ele de Roma, quando haviam dado início aos trabalhos da nova catedral. Sopesou-o com um olhar rápido, percorrendo o perfil longo e sem graça. A majestade do cavalo emergia das formas alongadas dos membros e do rosto, com uma força retida que parecia sempre a ponto de manifestar-se em toda sua presença. Mãos que pareciam feitas para trabalhar a pedra. E talvez não só isso.

         O sexto membro do grupo aproximou-se, inclinando a cabeça e antecipando-se à apresentação de Teofilo. Era um homem vigoroso, com longos cabelos negros amarrados atrás da nuca, a boca bem talhada e ameaçadora do leão. "Meu nome é Veniero Marin. Seu criado, senhor Durante. Espero ser honrado com sua amizade, assim como fui com a destes sábios depois que meu barco me abandonou nestas paragens, mesmo não podendo eu contrapor a eles nenhuma doutrina particular", disse com o doce sotaque dos venezianos. "Minha ciência é a do mar, e a ponte de uma galé é minha cátedra. Lugares a partir dos quais freqüentemente nasce uma visão diferente das coisas da terra.”

         Dante sentiu uma simpatia instintiva por esse homem de modos francos. Devia ter a sua idade, apesar de que em seu rosto, escavado pelo vento, estava esculpida uma rede de rugas que o faziam parecer mais velho. Representava um elemento de calor entre aqueles gélidos pedantes.

         "A ciência dos ventos e dos mares é contígua à do movimento das estrelas. E, como esta, alimenta-se do cálculo exato e da medida certa das coisas", disse sorrindo, enquanto o outro o observava com seus olhos claros. "Como nas ciências mais famosas, mas não certamente as mais antigas. Não teria sido o nosso Salvador a escolher seus primeiros companheiros entre as gentes da vela e do remo?”

         "O senhor Veniero não é um pescador, mas foi um corajoso capitão da marinha da Sereníssima", esclareceu Teofilo, como para recuperar suas funções de mestre-de-cerimônias que seu companheiro havia arrebatado com sua impetuosidade. "Mas teve divergências com os doges, e precisou solicitar asilo. Isso explica sua presença entre nós, tão longe do mar...”

         "Pode mesmo dizer que estou aqui para escapar do carrasco" interrompeu o veneziano, cujo olhar havia perdido subitamente toda a alegria que o animava. Dante recebeu com surpresa essas palavras amargas. Veniero acolheu sua interrogação muda. "Não é oportuno, para um homem do mar, pousar por demasiado tempo o olhar sobre as mulheres da terra, nem mesmo na Sereníssima Veneza. E muito menos sobre a esposa de um membro do Conselho. Para nós estão reservadas tão-somente as sereias dos oceanos, com suas carnes com sabor de peixe", exclamou, soltando uma fragorosa risada. Parecia ter recuperado o bom humor, mas em seus olhos flutuava uma sombra.

         No fundo da mesa, finalmente, estava um homem de longos cabelos negros e densos que lhe caíam sobre os ombros. Os olhos de águia pareciam queimar em seu rosto juvenil mas já marcado pelos serões de estudo ou de secreta inquietude. Aguardava imóvel, como um dos grandes mosaicos bizantinos que Dante havia visto no delta do rio Pó. Assistira às apresentações em silêncio, sem tirar, nem por um instante, o olhar do rosto do poeta.

         Falou sem esperar ser apresentado por Teofilo. "Entretanto o senhor me conhece, messer9 Durante, e eu o conheço. Apesar de esta ser a primeira vez que nossos passos se cruzam. Sou Francesco, de Ascoli.”

         Ao ouvir esse nome, Dante teve um gesto de surpresa. Os outros também demonstravam o máximo respeito. "Messer Cecco foi eleito reitor do Studium" disse Teofilo à guisa de apresentação.

         Francesco Stabili, conhecido como Cecco d'Ascoli. Dizia-se que todo o conhecimento das estrelas estava em suas mãos. O maior astrólogo da época, de acordo com os seguidores de sua ciência.

         Abriu os braços e o poeta retribuiu calorosamente, apoiando ambas as mãos em seus ombros e apertando com força. "Oh, claro que eu o conheço, messer Cecco, e quero cumprimentá-lo como grande médico e astrólogo", disse com sincero entusiasmo.

         "E eu o cumprimento como o poeta mais aprazível, grande entre os grandes", respondeu o outro com um sorriso, enquanto por sua vez mantinha-o entre os braços. "Há tempo que eu desejava encontrá-lo. Por toda a Itália só se faia de seu novo estilo e de sua graça. Se o imperador Frederico estivesse vivo, certamente ia querer ouvi-lo para aliviar com seus versos as preocupações do reino.”

       "Se o imperador Frederico estivesse vivo, o senhor, aluno predileto de Guido Bonatti, estaria em sua corte para iluminar-lhe o caminho do reino com sua ciência", respondeu Dante inclinando-se.

         "O mestre da ciência dos céus", acrescentou Cecco em tom de reverência, apontando com o indicador para o alto.

         "E dos rituais de magia", respondeu o poeta, indicando o solo.

         "Se assim lhe agrada”  

          Dante ainda aguardou um instante, antes de soltar-se do abraço, depois acomodou-se no único assento disponível, certamente preparado para ele, abandonando-se contra o encosto.

         Aquele grupo de homens poderia dar vida à universidade de Florença, pensou, e nenhum deles era florentino. E a morte já os havia visitado.

       "Assim, este é o Terceiro Céu. O céu dos espíritos amantes. Da sabedoria e da doutrina, como me revelou Teofilo", disse em seguida, sem se dirigir a ninguém em particular. "Mas, por que escolher um lugar tão singular para se reunirem? Sei que não dispõem ainda de uma sede para o Studium. Mas, durante as reformas, o município teria certamente concedido uma sala, em São Piero. Ou então ao amparo de algum convento...”

         Pareceu-lhe perceber um rápido olhar de entendimento entre os presentes. "Se tiver um momento de paciência, vai logo compreender, messer Alighieri" disse o boticário apontando para o fundo da sala, onde a animação parecia aumentar.

         Havia alguns instantes ouvia-se um leve som de tambor lento e sensual acompanhado pelo tremido metálico de pequenos pratos de bronze. Uma figura feminina havia surgido, provocando uma ovação por parte dos presentes. Imediatamente uma selva de mãos e de corpos agitou-se desordenadamente ao redor dela, com gritos e exclamações vulgares, acompanhados pelo barulho dos pratos de madeira golpeados ritmicamente sobre as mesas. Uma música que, por instantes, sobrepunha-se à outra.

         Dante dirigiu um olhar interrogativo para Teofilo.

         "É Antilia, a dançarina que tornou célebre até mesmo em Roma a taberna do Baldo", explicou o boticário, tomado ele também por uma repentina excitação.

         O poeta relanceou o olhar ao redor. Aquela espelunca era então conhecida até em Roma? Em que estava se transformando sua cidade? Não a sua Florença, mas a outra cidade, desconhecida, despontando inesperadamente fora dos muros da antiga cidade, uma nova Babilônia sem a magnificência da antiga. Com seus novos ídolos... como aquela dançarina, vinda quem sabe de onde, uma vagabunda de olhos pintados.

         "Antilia? Nome curioso, não compreendido no cânone de nossos santos", limitou-se a observar.

       "Antilia não entraria no cânone dos santos, nem se seu nome fosse Maria Madalena, creia-me", disse rindo Veniero.

         "Mas, apesar de não estar no cânone, creio que poderá apreciar seus dotes evidentes e os ocultos", acrescentou Teofilo com uma expressão irônica.

         Dante escutava distraidamente. Continuava a fixar o fundo da sala, com seu espetáculo indecoroso, procurando observar algum detalhe através da barreira de corpos. Observava a figura no centro de tanta atenção, uma mulher de pele escura, de membros imponentes.

         Ouviu-se um grito de dor, seguido de uma explosão de risadas. Do outro lado da sala um homem maciço, desprovido de um braço, com uma única mão havia agarrado pelo baixo-ventre um freqüentador em evidente estado de embriaguez. O infeliz gritava como um porco   sendo degolado, enquanto o outro o arrastava em direção à saída.

         "Esta noite também nosso amigo taberneiro precisou recorrer ao golpe do cruzado", disse Bruno, acenando com o olhar aos outros.

        "O golpe do cruzado?”

         "Não conhece esse gracioso achado que nos chega de além-mar, messer Alighieri?" interveio Veniero. "É uma das tantas artes que os mouros nos ensinaram, juntamente com os seus comentários sobre Aristóteles. Quando nossos homens, recobertos com armaduras de ferro, chegaram pela primeira vez às margens da Ásia, mergulharam no medo e na confusão aqueles filhos de Satanás que nos julgaram invulneráveis. Mas sua pérfida genialidade logo intuiu que havia um ponto fraco nas couraças cristãs, com os resultados que bem pode imaginar e aos quais acabou de assistir. Baldo, apesar de sua limitação física, com esse golpe consegue imobilizar homens bem mais fortes do que ele e manter uma invejável ordem em sua taberna.”

         Enquanto isso, outro tambor de som poderoso havia se juntado aos instrumentos, envolvendo-os. Parecia um sinal, porque a dançarina principiou a mover-se com passos solenes em direção a eles. Fendia a selva de mãos como a proa de uma galé. O rosto, semi-escondido por um véu, mostrava todo o seu desprezo por aquelas barulhentas manifestações de admiração.

         Entretanto Dante percebia algo de falso naquele desprezo, no gesto de oferecer-se aos olhares como se fosse coagida. Era certo que no seu íntimo estivesse orgulhosa desses mesmos gestos pelos quais fingia descaso, e que estivesse representando um papel.

         A música ritmada dos tambores e dos pratos cresceu mais. Antilia continuava a aproximar-se, descrevendo uma ampla curva no espaço vazio por entre as mesas. A curiosidade inicial do poeta estava se transformando num sutil calafrio de prazer, à medida que a mulher achegava-se a eles ignorando a gentalha que parecia idolatrá-la.

         A dançarina escondia-se por baixo de um ligeiro manto de seda ricamente bordado com olhos de pavão, que lhe conferia a graça nobre de um pássaro maravilhoso. Dante tinha certeza de nunca ter visto nada parecido nos locais de Florença.

         Agora havia chegado diante da mesa deles onde se deteve, saracoteando lentamente e sacudindo as plaquetas redondas de metal presas aos pulsos. Fixava-os com olhos negros, parecidos com duas pedras de ônix. Havia reclinado a cabeça, inclinando com volúpia o pescoço, adornado por uma série de finos aros de ouro, para trás. Depois moveu os ombros como se estivesse a ponto de afastar-se novamente, agitando os seios e os maravilhosos flancos, até que todo o corpo começou a ondular sobre os tornozelos, estes também enfeitados com inúmeros aros finos de ouro. Completou o primeiro giro, depois um segundo e um terceiro, enquanto os braços se elevavam até a altura do rosto parodiando um ofertório.

         Dante fixava seu rosto maravilhoso, de traços orientais, sabiamente retocado com um sutil traço de carmim que lhe conferia o brilho de uma estátua de cobre. Em seus gestos havia algo que lembrava uma pantera, como aquela que havia visto anos atrás no harém do embaixador do sulino. Essa dança parecia a celebração de um ritual. Um ritual blasfemo pela evidente impudicícia da oficiante, entretanto rico de uma espiritualidade original.

         Estava fascinado. Se alguma vez uma criatura dançou no paraíso terrestre, devia tê-lo feito daquela forma não repetível. Assim devia ter dançado Lilith, assim haviam se perdido os homens em seu primeiro templo. A expressão de Antilia havia perdido qualquer traço da lascívia com que oferecera seu corpo aos olhares. Agora seu rosto irradiava um sorriso celestial. Naquele sórdido lugar de prazeres havia realmente chegado um mensageiro de Deus, surpreendeu-se pensando o poeta, um de seus anjos que caminhara pelas ruas de Sodoma, intangível mesmo quando circundado pelo furor dos desejos sórdidos.

         Embaladas pela rotação sempre mais rápida, as abas do manto haviam começado a abrir-se e a alargar-se à maneira de uma extraordinária flor que desabrochava sob os olhares dos espectadores repentinamente emudecidos, enquanto a música se difundia num crescendo frenético, marcado pelo ritmo da percussão.

         Dante percebia crescer uma onda de desejo que todos os homens presentes projetavam sobre ela. Ele também se levantara, imitando, sem dar-se conta, todos os outros como se uma força o coagisse a acompanhar a ascensão do véu que agora já revelava todo o esplendor do corpo. Sobre os músculos tensos do ventre vibrava só um pendente de ouro suspenso por uma pequena corrente.

         Dezenas de olhos embasbacados fixavam a penugem sutil que desenhava suavemente a curva inguinal.

          A mulher continuava a rodopiar sobre si mesma, extática, esmaecida numa nuvem de olhos de pavão. Os braços sobre a cabeça vibravam de tensão. Parecia que esse movimento não teria fim. Abruptamente a música parou, no mesmo instante em que a dançarina imobilizou-se sem nenhum esforço aparente, como se não tivesse peso algum. O manto recobriu seu corpo nu ocultando-o dos olhares. Ela estreitou o véu sobre os quadris, permanecendo imóvel por um bom tempo, recuperando o fôlego, aparentemente ignara ao arrebatamento que provocara nos presentes.

         Dante também havia ficado petrificado. Num átimo fechou a boca, que devia ter permanecido aberta durante boa parte do espetáculo, assaltado por uma vergonha repentina. Certamente deveria ter sido ainda conseqüência do remédio chamado chandu o fato de provocar num prior, membro do Conselho de Florença, uma reação típica de homens simples, disse a si mesmo. Voltou a sentar-se confuso, esperando que ninguém tivesse reparado nele. Coube a Teofilo romper o silêncio. "O senhor compreende agora por que costumamos nos referir à nossa pequena companhia pelo nome de seguidores do Terceiro Céu", disse, mantendo o olhar fixo na dançarina que se afastava para o fundo da sala, ainda imersa num silêncio irreal, para depois desaparecer detrás de uma cortina que escondia uma porta. Todos recomeçaram a falar e a rir, mas sem alegria, como se cada um devesse vencer uma luta secreta contra o demônio da luxúria.

          "Compreendo" murmurou Dante. "E não é difícil imaginar quais amorosos significados a mensageira da deusa transmite aos senhores...”

         Estava estarrecido, agora que a excitação ia se dissipando e começava a ser novamente dono de seu juízo. Uma vagabunda, era essa a deidade tutelar da futura Universitas da sua cidade! Uma puta triunfante que freqüentava livremente as tabernas sem as roupas e as marcas de sua infâmia. Alguém terá de pagar, ao município, por essa evidente corrupção. Que maravilhosa alegoria dos tempos, disse para si mesmo, refreando um sorriso de zombaria que começava a surgir-lhe nos lábios. Uma meretriz elevada ao céu da deusa do amor.

         A voz poderosa de Veniero intrometeu-se em seus pensamentos. Dentre todos, parecia ser o que se sentia mais a vontade. "O que lhe pareceu, messer Durante, sobre o que assistiu? Não pensa que o conhecimento desses mestres resplandeça também na sabedoria com que perseguem a beleza, que é parte significativa do mundo criado? Quem lhe fala é alguém que já experimentou as belezas de quase todos os portos do Mediterrâneo.”

         "Quem é essa mulher?", perguntou o poeta, procurando dar à pergunta um tom indiferente.

         Na voz e no olhar de Augustino brilhava a fagulha do desejo. "Chegou há pouco em Florença, vinda de terras longínquas. Percebeu os traços do seu rosto? Dizem que estava entre os prófugos de São João de Acre que escaparam daquela matança horrenda. Sozinha, sem nada a Não ser sua beleza singular. Deve ter sido lá que aprendeu os gestos de sua dança, que não têm nada a ver com as nossas.”

          "Não parece filha de gentes latinas.”

         "Não. Talvez os seus fossem de Bizâncio. Ou então judeus. Ou escravos capturados na Anatólia. Nem ela sabe ou não quer contar.”

         "Então, messer Alighieri", intrometeu-se Bruno Ammannati, fixando-o com um olhar malicioso, como querendo provocar. "O senhor também não ficou desejoso de participar de nossas aulas de doutrina?”

         Dante tinha certeza de que todos, por detrás da aparente indiferença, aguardavam com ansiedade sua resposta. "Parece uma corte de amor, mais do que uma congregação de sábios", respondeu em tom evasivo.

         "Essa mulher que acabamos de admirar é a causa disso, messer Alighieri", disse Antonio de Peretola. "Aliás, não parecem ter sido feitos para ela seus próprios versos, que me honro em recordar?

         "Vós que sabeis discorrer sobre o Amor

         Ouvi minha balada piedosa                

         Que fala de uma mulher desdenhosa    

       Que me roubou o coração por seu valor”

         Dante enrubesceu, reconhecendo o início de uma das canções que havia dedicado a Beatrice. Estava indignado que alguém a considerasse adequada a cantar as belezas terrestres de uma dançarina. Estava pronto a reagir com veemência, mas conteve-se. Talvez Antonio não quisesse ofendê-lo, mas, pelo contrário, homenageá-lo.

         "De resto, o próprio Salomão inclinou sua sabedoria aos desejos da rainha de Sabá, e sem incertezas e sem perder nada de sua glória" interveio em tom alusivo Iacopo, o arquiteto. "Talvez possa encontrar aqui motivação para enriquecer seus louros poéticos.”

         "Se as agruras de meu ofício não me desprendessem com suas obrigações das doçuras dos temas amorosos" respondeu Dante.

         "Mas não só de amor são nossos argumentos" interveio docemente Cecco d'Ascoli. "Fruto da ciência é o desvelar daquilo que é oculto à nossa razão pelos ciúmes da Natureza. Pesquisar o mistério é a verdadeira missão do sábio... e a finalidade do Studium”

         "Mas, dentre todos os temas, nada como o amor parece tão digno de ser analisado pela paciente obra de nossa razão", insistiu Iacopo. "E o senhor, messer Alighieri, há de convir.”

         Todos concordaram, prontos a tecer comentários às palavras do arquiteto, que pareciam compartilhar. Augustino, em particular, parecia a ponto de dizer algo.

         "Nada como o amor. Nem mesmo o crime?" perguntou Dante de súbito, antecipando-se.    

         Ninguém reagiu às suas palavras. Logo o silêncio foi rompido.

         "O crime?" perguntou Bruno. "Acredita que o crime possa  de alguma maneira ser objeto de conhecimento? Como é possível, visto que é exatamente o contrário, messer Durante, como afirmavam Sócrates e Platão?”

         Dante percorreu todos com o olhar. "O crime é um ato cruel, mas não estranho às virtudes da alma. Acompanha-nos desde o primeiro atrevimento humano, nos jardins do Éden. E desde o primeiro homicídio, quando Caim convidou o irmão ao pastoreio." Interrompeu-se um instante, paira avaliar o efeito de suas afirmações. "Mas penso que não exista trama da mente que a razão e a virtude não possam decifrar. Porque o criminoso deixa sobre o corpo da vítima a marca de sua própria alma, juntamente com a das mãos. E a vítima chama a si seu carrasco por meio de uma secreta e misteriosa atração. Assim, o homem vivo e o homem morto são um o espelho do outro.”

         "Tem certeza?" perguntou Ammannati.

         "Certamente. Dêem-me uma vítima e lhes indicarei o culpado, assim como o grande Arquimedes podia levantar o mundo inteiro com um único ponto de apoio.”

         "O que pretende dizer com isso?”

         "Quero dizer que cada vítima escolhe o próprio algoz e cria as condições do crime, que resulta moldado sobre si mesmo, não sobre o assassino. A vítima está ligada a seu executor como os astros ao céu. Assim, no movimento celeste, segundo Ptolomeu, as aparentes inversões dos corpos celestes sob a perspectiva do Primum Mobile10 se recompõem na interconexão ordenada dos epiciclos. Da mesma forma, as mais horrendas maquinações do assassino permanecem ligadas à órbita de suas culpas, passíveis de ser calculadas com exatidão pela razão infalível.”

         O poeta percebia sobre si os olhares atentos e perplexos de todos. "Não desejando o mal, o poder de Deus ilumina nossas mentes para contrastá-lo", concluiu.

         Pareciam atônitos, e Dante perguntou-se o que poderiam ter compreendido de sua ponderação. Pouco, tinha certeza, com exceção talvez de Cecco, o astrônomo. Reclinou-se na cadeira, satisfeito com o ar de estupefação que lia em seus rostos. No fundo, não era difícil tratar esses estrangeiros, mesmo tendo alguma cultura.

         Coube a Augustino interromper o silêncio. "Da forma como fala, messer Alighieri, dir-se-ia que seus interesses no que respeita ao crime não se reduzem à paixão intelectual, mas que também persiga as pistas nos caminhos do mundo. Agora que é prior, talvez tenha a ocasião de desvendar algum desses crimes de que falou com tanta paixão", disse em tom inocente. "Terá sido cometido um crime?", continuou a sorrir, como se tivesse levantado uma hipótese absurda.

         "É exatamente o que aconteceu. E o crime que estou perseguindo perpassa pelos rastros de vocês.”

         Suas palavras provocaram um silêncio repentino. Até mesmo os ruídos da taberna haviam se atenuado. Com o rabo dos olhos percebeu que mesmo Baldo, o taberneiro, havia se aproximado. De onde estava parecia impossível que tivesse conseguido ouvir seus discursos, entretanto não havia dúvida de que estivera observando-os atentamente.

         "Na igreja que servirá de sede para o Studium foi assassinado um homem de maneira atroz. Mestre Ambrogio, o mosaicista.”

         Nenhuma reação seguiu-se às suas palavras. Dante examinou aqueles rostos inexpressivos sobre os quais pareciam coladas máscaras de indiferença. Esperava um gesto de pesar, de comoção. Ao menos de estupor. Aquela muralha de indiferença era realmente o testemunho vivo da imperturbabilidade dos sábios ou uma comprovação de cumplicidade? Aqueles homens já sabiam do ocorrido. E um dentre eles sabia mais do que os outros.

         Em seguida, o encanto rompeu-se e os rostos dos presentes animaram-se subitamente com as expressões de admiração e de pesar que ele esperara, enquanto um coro de exclamações levava para aquele canto da sala a atmosfera do restante da taberna.

        "Ambrogio... morto?" disse finalmente Cecco d'Ascoli. "Como? E por quê?" Parecia angustiado, mas Dante percebia uma nota falsa em sua emoção.

         "O chefe da guarda e seus homens andam às cegas", disse. Aguardou um instante antes de prosseguir, fixando um a um os homens sentados ao redor da mesa. Estava sempre mais convencido de que estivessem a par do assassinato e fingissem por alguma razão misteriosa.

         Certamente a idéia de que esses sábios pudessem ter a ver com um crime tão horroroso parecia absurda. Mas quantas vezes já reconhecera a falsidade mais imprevisível na conduta dos homens?

         "O senhor não respondeu, messer Alighieri. Como morreu o mestre?" perguntou novamente Cecco.

         "Ambrogio foi enterrado ainda vivo em seu túmulo." O prior descreveu brevemente a cena do crime. "Mas talvez a vítima tenha tido tempo de compor seu epitáfio, ainda que com sinais ambíguos", concluiu.

         "Sinais? Quais?”

         Dante molhou o dedo em sua taça, onde sobrara um fundo de vinho, e traçou sobre a mesa as inscrições feitas na parede da igreja. Depois parou abruptamente.  

          Um fragmento da visão induzida pelo misterioso remédio que recebera do boticário havia se sobreposto à lembrança do que presenciara na igreja. Um detalhe que sua mente devia ter anotado inconscientemente, sugerindo-o em sonho, mas que agora surgia iluminado pela certeza.

         Enquanto ainda estava chocado com a descoberta, ouviu a voz preocupada de Teofilo. "Mestre, o senhor está bem?”

         Em vez de responder, perguntou: "Quantos entre os senhores conheciam o mosaicista?”

         Os outros se entreolharam. Ainda coube a Teofilo responder. "Creio poder falar em nome de todos nós, messer Durante. Cada um de nós conheceu o mestre, e todos respeitavam sua grandeza.”

         O homem havia falado em tom pacato, mas as expressões inquietas de todos demonstravam como cada um estava chocado com a pergunta, especialmente pelo quanto ela dava a subentender.

         "O senhor falou das pobres conclusões dos inquisidores", retomou Teofilo. "E as suas?”

         "A princípio não muito mais perspicazes, apesar de minha capacidade de análise ser muito mais profunda do que aquela dos rudes inquisidores a serviço do chefe da guarda", respondeu o poeta. Talvez fosse uma impressão, mas pareceu-lhe que essas palavras tivessem sido acolhidas com alívio. "Até agora há pouco", acrescentou e aguardou ainda um instante. "Quando a mão luminosa de Minerva clareou minha mente.”

         "O que quer dizer com isso?" perguntou Teofilo.

         "Aquilo que agora me parece evidente." Dante percorreu lentamente com o dedo o traçado das letras sobre a mesa. "Não lhes parece que Ambrogio possa ter escrito três curtos traços verticais seguidos da inicial de outra palavra que não conseguiu levar a termo? Que tenha tentado escrever III Coelum o Terceiro Céu?”

         Novamente o silêncio seguiu suas palavras. "Curiosa coincidência, não acha, messer Alighieri?", disse finalmente Augustino em tom indiferente.

         Dante decidiu enfrentar a parada. Se queria descobrir, era melhor fazer logo um jogo aberto. "Estaria ofendendo a sua inteligência se pensasse que nenhum dos senhores já não havia chegado a essa hipótese antes de mim.”

         "Mas o que se pode concluir dessa hipótese?", perguntou Iacopo, lá do final da mesa, com sua voz desagradável.

         Sem dar tempo de resposta a Dante, Cecco d'Ascoli inseriu-se na discussão. "Sim, messer Alighieri, penso que essa escrita não foi casual, e eu também já havia chegado à sua mesma conclusão. Mas, aceitando a hipótese de que Ambrogio tenha evocado o Terceiro Céu, terá sido para pedir a punição sobre nós ou para reclamar por vingança? E, na primeira hipótese, pretendia culpar a todos nós ou só um oculto entre nós? E, na segunda hipótese, contra quem deveríamos exercer essa indignação?”

         "E finalmente, tertium datur11, se nenhuma das duas hipóteses fosse a correta?" interveio Bruno. "E o Terceiro Céu houvesse sido evocado não pelo mestre, mas por seu   assassino, e estivesse se referindo, portanto, a outra contingência, debaixo de que céu devemos colocar a agonia do moribundo? O que pensam os caros amigos?" concluiu o teólogo, sem dirigir-se a ninguém em particular.

         "Contra esse rochedo se arrebenta o pequeno barco de nosso espírito" murmurou Augustino.

         Dante aguardou, antes de falar, encerrado em seus pensamentos. O desenho traçado por seus interlocutores era exato. Voltou a observar os rostos que o fixavam. Alguém havia lhe atirado um desafio por detrás dessa fachada de cortesia.

         Mas ele estava pronto para aceitá-lo. "O assassino pensa livrar-se por detrás desse enigma insano. Mas Florença colocou em minhas mãos a espada da justiça, que eu não deporei sem ter antes decepado sua cabeça", disse pausando cada palavra.

         Todos pareciam concordar e o observavam impassíveis como gatos bem alimentados. Lembravam-lhe os agentes da Arte da lã, que tantas vezes Dante havia visto percorrendo as ruas de Florença de braço dado com os compradores, e por um instante foi tomado pela dúvida.

         O sino do toque de recolher já soara fazia algum tempo quando se despediu. Mas ninguém a seu redor demonstrava preocupação com isso, como se todos naquela taberna possuíssem um salvo-conduto. Na porta cruzou com o taberneiro, que parecia ter esperado por aquele momento para aproximar-se dele. Aparentava estar ansioso para dizer-lhe algo, mas limitou-se a uma inclinação grosseira e a mastigar algumas poucas palavras de saudação.

          Pareceu ao poeta que o homem, enquanto falava, estava atento ao grupo do Terceiro Céu e que estes também não perdiam um único gesto dele.

         Alcançou seu alojamento em São Piero depois de atravessar rapidamente as ruas de Oltrarno, desertas àquelas horas da noite. Na escada que conduzia à sua cela as forças o abandonaram de repente. O corpo cedia ao cansaço daqueles dias terríveis. Precisou parar no meio da rampa para retomar fôlego. Atirou-se sobre a cama, totalmente vestido, limitando-se a tirar os sapatos e a cobrir a cabeça com o capuz de dormir.

         Pensou no que havia visto e ouvido. Na igreja da morte. No mosaico que Ambrogio não havia podido terminar. Na sua horrenda máscara fúnebre. Existia uma relação entre esses objetos? Aquele iluminado pela luz da arte e aquele envenenado pela dor? E por que o mosaicista havia sido assassinado daquela maneira, transformado na própria pedra de sua obra?

         Continuou levantando questões sem respostas enquanto mergulhava no sono, embalado pelo chacoalhar das plaquetas de metal que ainda ressoavam em sua mente.

        

         17 de junho, por volta da primeira hora.

         Dante tentou levantar-se da cama, procurando proteger-se com a mão dos raios do sol que penetravam pela janela. Sonhos e lembranças ainda se confundiam em sua mente. Por um instante receou que as fagulhas que via fossem novos efeitos do remédio, mas para explicar esse torpor eram suficientes o vinho e a fumaça irritante da taberna.

         Voltou a deitar-se, o olhar fixo nas vigas do teto, tentando refrear as vertigens. A cela girava a seu redor como o manto de Antilia. Apertou com força as pálpebras, para cancelar os lampejos de luz gélida que machucavam a vista, enquanto a náusea começava a atenuar-se. Finalmente levantou-se com cautela. Devia sair e retomar o controle de si mesmo.

         Maldizia-se por sua imprevidência: um prior da cidade de Florença deveria conduzir-se com mais sobriedade, sem abandonar-se à depravação. Esperava que seus colegas nunca viessem a ter conhecimento daquela aventura.

         Levou mais de uma hora para preparar os papéis para a primeira reunião do Conselho. Ainda estava ocupado em formular na mente o incipit12 de sua alocução quando recebeu o relatório sobre os membros do Terceiro Céu que havia solicitado. Como imaginara, os homens eram todos mestres das Artes, possuidores da autorização de docência concedida por universidades de renome.

         O mais velho era Bruno Ammannati, que havia vivido longo tempo na Palestina, tentando converter os pagãos de modo a fazê-los seguir os passos do fundador da ordem, São Francisco. O mais jovem era Iacopo Torriti, o arquiteto. Haviam chegado a Florença em diferentes períodos do último ano e começaram a ensinar, cada um individualmente com um grupo próprio de alunos, depois de se registrarem como professores junto ao município e terem obtido a relativa licença. Mantinham uma relação com as scholae13 de Santa Cruz e de Santa Maria Nova, mas não dependiam delas em nada. Também Teofilo Sprovieri, mesmo exercitando predominantemente sua arte na botica, ministrava em algumas ocasiões aulas de farmácia no convento de Santa Madalena.

         Quanto ao capitão Veniero Marin, era conhecida sua ligação com os outros, mas não constava que exercesse uma atividade específica. Não se conheciam suas fontes de renda, mas suspeitava-se que recorresse a empréstimos e agiotagem, Ao lado de cada nome estava relacionado o seu endereço.

         "Tem certeza disso?" perguntou Dante ao funcionário que permanecia de pé diante dele, indicando um ponto na lista. O outro inclinou-se para observar melhor.

         * ** Do latim: escolas. (N. T.)

          "Sim, prior. Todos eles chegaram de Roma. 1' "Grandes viajantes, ao que parece. E a dançarina? Por que não há nada sobre ela?”

         "Mas... ela não faz parte do Studium. Não imaginei que lhe interessasse...”

         Pareceu-lhe que havia algo subentendido nas palavras do outro. "Tudo interessa à autoridade municipal", retrucou friamente. "A justiça vigia cada indivíduo duvidoso.”

         O homem encolheu os ombros, intimidado pelo tom inquisitivo. "Não... não sabemos muito. Parece ter vindo de além-mar. A guarda da Porta do Prado registrou sua passagem... faz sessenta dias. Declarou-se de condição livre e não...

         O que?    "Não consta que exerça a prostituição." "E onde mora? Não encontro a indicação." "Na taberna... imagino. Não está sujeita a restrição de movimento, apesar de sua reputação discutível ser bem conhecida pelo guarda da regional, que mantém um olho sobre ela", disse o funcionário, como se procurasse desculpar-se pela omissão. Pareceu aliviado, quando o poeta o dispensou com um gesto.

         Dante guardou os papéis no gabinete, prometendo-se investigar mais a fundo aquelas informações. Seguiu então para a sala de reuniões. Caminhando ao longo da galeria respirava profundamente o ar fresco da manhã, farejando os odores dos fogos e dos pães. Lutava para afastar da mente as imagens da noite, procurando concentrar-se sobre a discussão que o esperava no Conselho. Devia ser convincente,

          se queria que cada uma de suas esperanças de carreira política não fosse frustrada.

         Começaria com a celebração da divina liberdade; citaria a Ética do Filósofo, e depois a sua Política. Mas entre as palavras de sua alocução insinuavam-se o corpo de Antilia e a máscara de Ambrogio. E o mal alastrava-se pela sua mente.

         Sentiu entre os pés um obstáculo inesperado que quase o derrubou. Deitado no chão estava um homem encolhido, que procurava retê-lo com uma voz lamuriosa. Sua cabeça estava envolta em trapos como para esconder alguma deformidade asquerosa.

         "Uma moeda e revelarei sua sorte!”

         "O quê? Ainda?" Dante afastou-o com um pontapé, vociferando. Conhecia essa fuça, pertencia a um dos mendigos que permaneciam o dia inteiro diante da porta de São Piero Scheraggio, a paróquia do seu bairro. Era um ladrão cujos dedos já haviam sido amputados. "Desapareça ou mando enjaulá-lo na Stinche!”

         "Sua sorte, senhor, por uma moeda!" ouviu-o ainda gritar em tom insolente enquanto se afastava.

         Se fossem realmente suficientes poucas moedas... Todos estavam ansiosos para predizer-lhe o futuro, naquela cidade, disse para si dando de ombros.

         As reuniões do Conselho ocorriam no antigo refeitório do convento. Ao chegar, os outros cinco membros do Conselho já lá se encontravam, ao redor da longa mesa, entretidos na observação de um documento e conversando animadamente.

          Vendo-o entrar, o prior da Arte da lã pigarreou. Dante teve a impressão de que quisesse chamar a atenção dos outros, como para adverti-los de sua chegada. Em seguida começou a falar: "Aqui, sob nossos olhos, está uma bula pontifícia com as solicitações de Bonifácio. É o próprio núncio, por intermédio de seu delegado, que a submete ao município. A nobre cidade de Florentia14, muito cara ao nosso coração, pupila de nossos olhos e pérola do reino... '".

         Dante sentiu-se incomodado pela forma como eles passavam de mão em mão a bula pontifícia, quase com temor de roçar um pergaminho que havia sido tocado pelo papa. Viera determinado a valer-se mais da persuasão do que da afronta, mas a visão daquele procedimento acanhado e já pronto para ceder acendeu sua ira. Quando o documento chegou ao homem sentado ao seu lado, arrancou-o com um gesto abrupto, atirando-o com indignação sobre a mesa.

         "À corte, messer Lapo. Todos conhecemos as sutilezas da prosa de Caetani. Qual o sentido desse novo estudo das palavras, ainda que fossem as de um novo evangelista? O que quer?" exclamou. Não sabia nada dessa solicitação e tinha a desagradável sensação de que os outros o houvessem mantido intencionalmente na ignorância.

         "O nobre Caetani, Sua Santidade Bonifácio VIII, solicita um apoio financeiro e de soldados para as suas empresas na Toscana.”

         Esse era o ponto, afinal. Conhecia o assunto. A cidade do Lazio, seguindo o exemplo de Palestrina, rebelara-se contra o vicário papal e havia se proclamado cidade livre.

         "Na realidade só está pedindo uma centena de arqueiros e alguns cavalos... Talvez pudéssemos concordar sem onerar demasiadamente as finanças da cidade...”, sugeriu em tom inseguro um dos priores.

         "Não estão em jogo nossas finanças, messer Pietro, respondeu rispidamente Dante, "mas a nossa liberdade e a das pessoas que confiam em Florença. E agora deveríamos oferecer o pescoço ao jugo de Bonifácio, simoníaco e indigno?”

       "Bonifácio, simoníaco? Cuidado com suas palavras, messer Alighieri, ou poderá arrepender-se. E que não nos arraste todos em sua ruína. O lado Branco, nosso partido, não tem interesse..."

         “O lado Branco também é o meu lado, mas parece que o senhor está esquecendo. E é em seu interesse que minha ação se move. Mas existe ainda um interesse maior, para a salvação da cidade, que deve nos nortear.”

         "Mas trata-se só de cem arqueiros!”, procurou intrometer-se o prior da Arte do câmbio em tom conciliador. "Talvez possamos satisfazer as exigências de Bonifácio sem indispô-lo contra nós e sem minguar nossas defesas...” 

         "Não se deixem enganar pelo número aparentemente pequeno”, retrucou Dante. "Parece que não conhecem o estado de abandono de nossas milícias, depois de anos de péssima gestão. Se neste instante tivéssemos que soar o alarme com o sino, quem os senhores pensam que se apresentaria no Campo de Marte? Alguns milhares de lojistas mal equipados, cujo último treinamento militar data de pelo menos três anos atrás, fora de forma, mal armados, sem oficiais, sem disciplina, sem doutrina, sem valentia. Hábeis somente nas lutas corporais, estupidamente ferozes ao encarniçar-se sobre os vencidos, mas incapazes de suportar o impacto de um exército bem organizado. Desde que os decretos do judiciário excluíram do oficialato os filhos da nobreza, as companhias regionais foram parar nas mãos de cardadores e batedores de lã, vilões regenerados, filhos de prostitutas...”

         "Messer Alighieri!" Do outro lado da mesa levantou-se Lapo Saltorello, gritando. "Parece que o povo de Florença não é mais o seu povo, da maneira que está falando! Como se o senhor também não fosse filho de mercadores e cambistas, para não dizer pior!”

         "Maldito patife!" Dante levantou-se, por sua vez, os braços estendidos em direção ao pescoço de Lapo. Percebeu uma mão que o deteve, enquanto outros se interpunham.

         Conseguiu apenas roçá-lo, antes que Lapo escapasse com um grito sufocado.

         "O senhor arranha como um gato, messer Durante!", choramingou, enquanto apertava o nariz arranhado.

         "Eu golpeio como um tigre. Deixo os gatos para os ratos como o senhor!”

         Com o coração tumultuado, o poeta olhou ao seu redor. Ele também devia estar transtornado, percebia o sangue latejando nas veias das têmporas. Lentamente começou a relaxar, os olhos sempre fixos em Lapo. "Sim... talvez seja melhor voltar ao trabalho." Pegou novamente o pergaminho com os dedos ainda trêmulos pela emoção. "Os senhores disseram que pede só cem arqueiros. Mas nossa companhia de arqueiros é o único verdadeiro corpo militar presente em Florença neste momento. Confiá-lo a Bonifácio significa desguarnecer o coração de nossas defesas e expor nossos homens à possibilidade de que Caetani os compre e os torne seus, devolvendo-os como serpentes às suas ordens, prontas a picar nossas mãos. Ou então nos obrigando a encontrar outros. Imaginem a montanha de florins que deveríamos desembolsar para recrutar mercenários de Gênova.”

         A observação tinha causado impacto. Até Lapo Saltarello, mesmo continuando a observá-lo de viés, parecia considerar suas palavras.

         "Talvez seja melhor refletir mais um pouco... podemos ganhar tempo", murmurou messer Pietro.

         Isso já era alguma coisa, pensou Dante. Ao menos havia conseguido plantar a semente da dúvida. Sabia que havia tocado a tecla certa, sem incomodar Platão e Aristóteles. O discurso do ouro era muito mais sonoro do que o da virtude e da razão.

        "Sim, podemos responder ao papa que forneceremos os arqueiros assim que tivermos terminado de reforçar as novas muralhas", acrescentou messer Duccio. Estava aliviado. Agora que haviam se libertado da angústia de ter de tomar uma decisão, todos tinham um ar mais sereno.

         "Ouviram as novidades de Porta do Prado?" perguntou Lapo. "Parece que teria sido avistada, aproximando-se pelo norte, uma multidão de leprosos que se dirigia para Roma. Esperam que o jubileu de Bonifácio possa purificar suas chagas. E quem sabe quantos entre eles são impostores e agitadores? É necessário que o prior de Calimala ordene reforçar a guarda para impedir que adentrem a cidade.”

         "Precisaria matar a todos", disse messer Pietro com azedume. Por trás de suas palavras ferozes transparecia o medo. "Infelizmente estão protegidos pelo indulto da Igreja.”

         "Sabem o que dizem, em Pádua, onde o leprosário foi esvaziado? Que teriam sido os gibelinos, por intermédio de alguns frades assalariados, a divulgar entre esses desamparados a informação de que em Roma encontrariam a cura para a sua doença. Querem utilizar essa multidão asquerosa contra as cidades inimigas.”

         "E ainda precisamos cuidar deles, esses malditos. No Hospital Geral já está pronto um subterrâneo para eles, e poderá não ser suficiente. Os leprosos pagam suas culpas com o mal que os devora.”

         Dante estava pensando em outras coisas. Essa do exército de leprosos parecia-lhe uma lenda. Mas a última afirmação o havia chocado. Era uma idéia banal, filha de uma mente obtusa, mas tocava um ponto sobre o qual havia refletido por muito tempo, durante seus estudos de filosofia moral.

         "Pensam realmente que o mal é a punição da ação não correta?", disse, falando mais para si mesmo. "E se assim fosse, que mal foi punido com o suplício do mestre mosaicista, em São Judas?”

         Na sala ressoou um silêncio embaraçador. Dante não aguardava nenhuma resposta, e continuou. "Soube que está para ser inaugurado, também aqui em Florença, um Studium geral. Uma faculdade das Artes, como a da longínqua Paris. E ainda pela vontade de Bonifácio, imaginem. Alguém sabia algo sobre isso?”

         "Nada", respondeu messer Pietro. Os outros também menearam a cabeça. "Mas de resto são assuntos de frades.

          O município não financia esse tipo de escolas; só aquelas para os encarregados das lojas. De qualquer maneira é uma felicidade que finalmente aqui também em Florença surja uma Universitas, assim nossos concidadãos não mais precisarão arruinar-se para enviar o filhos para Pádua ou para Bolonha. Ou ainda para aquele covil de heréticos que é Paris.”

         Dante o olhou atravessado. Ele havia estudado em Paris, quando jovem. E justamente na faculdade das Artes, a mesma à qual a cidade devia sua fama de não ser preconceituosa. Aonde queria chegar aquele velhaco?

         Levantou-se abruptamente, juntando seus papéis. Estava saturado daquele ambiente.

         Fora do palácio havia um homem que o observava do fundo da escada. Apesar do calor, vestia uma túnica de lã branca, o rosto coberto por um véu que o protegia do sol, conforme o uso das gentes do deserto. Enquanto se aproximava, levantou o véu, mostrando seu rosto. Era um dos membros do Terceiro Céu: Augustino de Menico, o filósofo natural.

        Foi ao seu encontro com a expressão afável da amizade. Mas seu olhar gélido desmentia a aparente cordialidade. Dante ficou alerta.

         "Saudações, messer Alighieri. Eu estava aqui na praça para encontrar meus alunos quando o vi e perguntei-me se seria de seu agrado acompanhar-se comigo. É raro em sua cidade poder gozar de uma conversa culta com um colega filósofo de seu prestígio. Que, além do mais, freqüentou as aulas dos mestres parisienses.”

          A impressão é que todos sabiam de seus estudos. "Talvez tenha aqueles mestres num conceito excessivamente elevado" respondeu Dante, secamente.

         Afastaram-se da escadaria em direção à arcada de Orsammichele.

         Os carros dos mercadores de tecidos paravam para carregar mercadorias nesse lugar, antes de partir para as feiras do Norte. O calor escaldante fermentava os excrementos das dúzias de cavalos que se revezavam na estreita passagem. Enxames de moscas rodopiavam endoidecidos, enfiando-se até na boca dos transeuntes. Apesar do sol tórrido, a rua fervilhava de homens com o rosto encoberto para proteger-se.

         "Não foi para questionar sobre os pais de nossa sabedoria que chamei sua atenção, messer Alighieri" disse ainda Augustino, afastando com um gesto uma nuvem de insetos. "Mas para conhecer melhor o seu pensamento sobre o crime ao qual foi chamado a julgar”

         Dante não respondeu logo. Perguntava-se qual a razão de tanto interesse. Talvez simples curiosidade, talvez a sombra de uma culpa. Decidiu satisfazê-lo. "Não havia muitos indícios no local do crime. Nada além do que relatei.”

         "Realmente nada mais?" Augustino parecia desiludido. "Pensava que seu intelecto superior houvesse percebido uma luz onde nossa pobreza anda às cegas. Mas talvez meu julgamento tenha sido condicionado pelas vozes que circulam a seu respeito.”

         Dante rangeu os dentes. Em seguida desviou o olhar como se estivesse interessado nas pessoas ao redor. "Fiquei todavia com uma sensação a respeito" disse afinal, olhando novamente para o filósofo.    "Qual?"  

         "Que todos os senhores já soubessem bastante sobre o ocorrido, talvez tudo.”      

          Augustino não reagiu logo. "Imagino que tenha examinado atentamente o mosaico sobre o qual o mestre estava trabalhando" disse após uma breve pausa.

         Dante espantou uma mosca que havia pousado sobre sua face. "O senhor também viu?”

         "O colosso? Sim, uma vez, pouco depois que Ambrogio havia começado a produzir." Augustino não acrescentou mais nada, aguardando que Dante recomeçasse.

         "Parece uma representação sacra do sonho de Nabucodonosor", revelou cuidadosamente Dante. Não aludiu aos detalhes da obra, nem ao fato de que mais da metade da parede estava inacabada. "Trata-se de um símbolo transparente até demais", concluiu.

       "A obra não era uma simples transposição daquela cena por meio de um jogo de cores e de traços. Escapa-lhe o sentido secreto que a anima. Havia por trás uma idéia mais complexa, que o mestre comacino procurava tornar visível com sua arte.”

       "Então o senhor também acredita que tenha sido assassinado por isso?”

         "Não será isso?”     Dante encolheu os ombros, sem responder logo. Augustino parecia esperar que ele dissesse ainda alguma coisa. "Acho que foi isso... certo. O crime nasce da vingança de uma ação do passado, ou para prevenir uma ação futura.

          E de qualquer maneira para apagar o proprium15, a identidade mais profunda da vítima. E o quê, mais do que sua obra, seria o proprium de um artista?”

         Caminhando haviam chegado às cercanias da arcada do mercado. O filósofo parou, inclinando-se sobre um dos canos de bronze da fonte em forma de cabeça de lobo. Dante também bebeu um gole de água tépida. Sentia retornar a secura da febre.

         "Creio que tenha razão", continuou Augustino. "Talvez Ambrogio tenha errado em querer modificar o projeto.”

         O prior enxugou os lábios com a manga. "O tema da obra não havia sido decidido pelos comitentes e, portanto, de fato, pelos senhores do Studium?”

         Augustino devolveu-lhe mais uma vez o seu sorriso. Parecia querer dosar as informações para manter uma vantagem sobre o outro. "É assim. Mas nossa idéia era no começo bem diferente. Eu vi o esboço em carvão sobre a parede, realizado por um aluno de Cimabue: um triunfo de plantas e de animais, uma Arbor vitae16 à maneira daquela maravilhosa da basílica de Otranto, no Sul do reino.”        

         "E o que aconteceu, depois?”        

         "O mestre solicitou e conseguiu autorização para poder modificar o tema por outro de sua escolha. Recusou medir-se com uma obra tão grande. Ou, ao menos, era isso que queria que acreditassem.”

         "E o senhor não acreditou?”  

         "Eu lenho a impressão de que mestre Ambrogio não era homem de recusar-se a confrontar com quem quer que seja em sua arte. Tinha, aliás, uma opinião tão elevada dela que beirava a blasfêmia. Dizia que faria de São Judas o centro do mundo. Não, penso que tenham sido outras as razões de sua decisão.”

         Dante refletia em silêncio, brincando com o cinto. Por que aquela passagem marginal das Sagradas Escrituras teria tocado tanto o mosaicista a ponto de levá-lo a alterar seus próprios planos e entrar em conflito com os comitentes? E especialmente, se estava certo o juízo que Augustino tinha dado dele, por que haveria de renunciar à oportunidade de medir-se com uma das maiores obras da cristandade? O que havia de tão importante naquele colosso?

        Só Ambrogio poderia responder, pensou, e Augustino pareceu ler em seus pensamentos. "Deveríamos interrogar o morto", disse inesperadamente. “Se ao menos fosse possível.”

         "E o senhor pensa que seria?" O filósofo não respondeu, como se julgasse imprudente aventurar-se por esse caminho. Mas não havia perdido o desejo de desafiá-lo. "Pareceria impossível, mas o senhor está tentando questionar ao menos sua alma?”

         "Os mortos são interrogados por meio de uma paciente análise, messer Augustino. Com a coleta e o atento exame dos traços que sua passagem deixou em nosso mundo. Com a luz da razão que, se corretamente guiada pela virtude e pelo conhecimento, não erra nunca.”

         "Creio que sua idéia está correta. Mas cuidado, porque outros percorrem o caminho que leva à comunicação com os mortos no silêncio, com metas diferentes. E encontrar-se com um deles pode ser um perigo mortal. Há quem pense que seja mais simples evocar os defuntos com um poder taumatúrgico, arrancando-os das regiões nas quais se encontram.”

         "Aquelas regiões são a região de Deus. Estará o senhor falando de necromancia? De magia negra?”

         Augustino deu de ombros, sem responder. "Pensa que as almas dos mortos possam ser forçadas a falar com os vivos? E julga-se capaz o senhor mesmo, ou alguém de seu conhecimento?" acrescentou Dante depois de uma breve pausa, arriscando um tiro no escuro.

         Augustino empalidecera. Olhava fixamente para alguma coisa atrás do poeta, como se visse um fantasma. Dante deu uma rápida olhada por sobre os ombros, para verificar se havia alguém espiando. Naquele momento a praça estava estranhamente vazia, como se todos os habitantes tivessem fugido de uma cidade empestada. Talvez a terra dos mortos não fosse diferente daquele lajeado sujo. Também Augustino parecia uma daquelas almas mortas. Necessitou reprimir o instinto de tocá-lo para ter certeza de que não se tratava de um fantasma.

         "Cuidado com suas palavras. Aqui estamos em terras da Igreja", continuou o outro. Apontou uma fila de monges que tinha surgido na esquina da via Acciaiuoli.

         "Não existem então necromantes na terra da Igreja?" acossou-o Dante.

         "Mais que em outros lugares, talvez."     "Mesmo nos aposentos dos homens de Deus?”

          "Frei Francesco contou mais diabos no consistório do que nas legiões infernais.”

         "Mesmo no Terceiro Céu?”

         Augustino não respondeu. Em seguida cerrou suas vestes para defender-se de uma lufada de vento úmido que havia inesperadamente varrido a praça, levantando uma nuvem de poeira. Abaixou o véu sobre os olhos. "Tibi benedicat Dominus17 irmão. Teremos como continuar nossa conversa quando retornar ao Terceiro Céu.”

         O filósofo afastara-se com pressa, depois de ter cumprimentado Dante com um breve aceno da cabeça. Ao seu redor o vozerio e os barulhos da rua tornaram-se novamente intensos, mas o poeta não escutava nada. Refletia sobre as palavras de Augustino, sobre suas obscuras alusões, sobre a acusação de soberba que havia levantado contra o morto.

         No fundo sabia muito pouco sobre Ambrogio, além do fato de que havia sido um grande artista. Quem podia conhecê-lo melhor do que um companheiro seu na arte? A silhueta alta de traços eqüinos de Iacopo Torritti surgiu em sua mente. Era o único que havia conhecido o mestre comacino antes de sua chegada a Florença.

         Ou, ao menos, assim parecia.

         O arquiteto estava trabalhando nas obras da nova catedral, diante do batistério. Dante percorreu com passadas rápidas a via Calzaiuoli, naquela hora atulhada de bancas dos vendedores que com suas tendas coloridas só permitiam uma estreita passagem no centro, até alcançar a praça São João.

         Diante das portas do batistério, o terreno havia sido aplainado por mais de duzentas braças, até o velho círculo das muralhas romanas. Lá estavam sendo erguidas as maciças estruturas, divididas em três naves onde já se destacavam as grandes colunas. As paredes periféricas já haviam sido erguidas até a borda das janelas, enquanto na altura do transepto a abside estava quase pronta, com seus três nichos. Naquele ponto o grande Arnolfo já tinha traçado os pilares de sustentação da cúpula que haveria de recobrir a maior igreja da cristandade.

         O poeta introduziu-se no canteiro de obras procurando evitar os carrinhos e sobretudo as roldanas que giravam em órbita ao redor dele como corpos de uma esfera armilar enlouquecida. No interior, exatamente no ponto onde haveria de surgir o futuro cibório, no centro geométrico do grande octógono de tijolos do tambor da cúpula, havia tábuas longas apoiadas sobre cavaletes. Reconheceu de longe o arquiteto, debruçado sobre uma série de desenhos.

         Dante alcançou-o pelas costas sem que o homem percebesse sua presença. Manteve-se um instante em silêncio, admirando a segurança com que Iacopo estava delineando com poucos traços de gesso os detalhes de um arco, ilustrando-o para um mestre-de-obras que estava em pé a seu lado. O círculo perfeito de céu encerrado no ápice da cúpula, que se entreabria sobre suas cabeças, parecia o olho vigilante de Deus, atento àquilo que, em seu nome, estava sendo erguido, para que não se repetisse a arrogância da Babilônia.

          Em seguida, o arquiteto virou a cabeça, percebendo-o. Por um instante pareceu contrariado em vê-lo, depois enquanto se levantava, seu rosto iluminou-se num pálido sorriso. "Messer Alighieri, é uma honra receber um prior da cidade em nosso humilde canteiro de obras. Lamento que mestre Arnolfo não esteja aqui, hoje, para homenageá-lo como merece. Imagino que tenha vindo para inspecionar o andamento dos trabalhos.”

         "Em verdade eu queria falar consigo, messer Iacopo. Se bem que olhar esta obra", acrescentou Dante soerguendo o olhar, "com toda essa imponência é certamente um extraordinário convite para elogiar publicamente Arnolfo, e o senhor que o tem ajudado.”

         "Queria falar comigo?" perguntou o outro, ignorando o elogio. Parecia preocupado.

         "Sim. Quero saber mais alguma coisa sobre o mestre assassinado. Parece que o senhor seria aquele que mais o conheceu, entre todos os membros do Studium! ' Iacopo deu de ombros. "Claro, mestre Ambrogio fazia parte de minha própria arte. Apesar de sua corporação, a Arte comacino, ser pouco inclinada a fraternizar com os não-inscritos. De qualquer forma, no período que convivemos nos canteiros de obras de Roma fomos vizinhos por várias vezes. Mas não éramos amigos, se é isto o que quer saber. Além do mais foi por um breve tempo. Um dia viajou inesperadamente, deixando o serviço interrompido. Não esperava encontrá-lo aqui em Florença, quando vim com Arnolfo.”

         Dante observou-o. "Como considera a arte de Ambrogio, mestre Iacopo? Era ele realmente o melhor mosaicista da Itália?”

          O outro aguardou alguns instantes antes de responder. "Ambrogio era certamente um mestre na sua arte. O próprio Bonifácio o havia encarregado de decorar com mosaicos as paredes de sua capela sepulcral, em São Piero", respondeu secamente.

        "Mas o senhor não apreciava seu estilo, certo?”

         "Os tempos mudam, messer Durante. Da França chegam novas formas. Mestre Ambrogio ainda estava ligado às formas bizantinas, à repetição obsessiva de módulos formais rígidos. Talvez um desenho coerente com a majestade de um rei, mas pouco adaptado aos novos tempos, marcados pelo desenvolvimento popular. Além disso, o senhor viu o mosaico na igreja. Certamente percebeu a dureza dos traços...”

         "O mosaico interrompido... Me disseram que o projeto original previa um tema diferente, uma representação da árvore da vida como alegoria da Criação. Sabe por que o mestre mudou de idéia?”

         "Não. E também não tenho certeza se alguma vez tenha considerado desenvolver esse tema. Nos primeiros tempos, depois de ter assumido a incumbência, passou vários dias sem criar nada, andando pela igreja em profunda meditação.”

         "Como se estivesse incerto sobre o que fazer?"    "Sim. Ou melhor..."

         O arquiteto se interrompera com ar embaraçado, como se estivesse arrependido de ter iniciado tal discurso.”

         "Ou melhor?”

         "Como se estivesse com medo." De quê?

         "Não sei. Mas o que quer que fosse, havia-o seguido até aqui desde Roma.”

         Dante refletiu sobre essas palavras. "E o senhor pensa que era aquele o objeto de sua representação?" perguntou finalmente. "Aquilo que ele queria revelar com sua obra?”

         Iacopo relanceou um olhar nervoso ao redor, como se estivesse ansioso para retomar seu trabalho.

         "O senhor tem uma idéia própria sobre o que possa ter sido, não é?" continuou o poeta. Iacopo não respondeu, e Dante agarrou-o pelo ombro, sacudindo-o. "É assim? Não esqueça que o município possui meios para obrigar a falar quem se recusa.”

         "Comentava-se na basílica de São Pedro, onde trabalhamos... algo sobre a morte de Celestino V... o papa ermitão", balbuciou Iacopo.

         "Claro, todos sabem. Assassinado por ordem de Bonifácio.”

         O arquiteto parecia sinceramente admirado.

         "Não, messer Durante. Certamente não por sua ordem. Em Roma sussurrava-se que Bonifácio reagira à notícia com uma explosão de raiva extraordinária, e que invectivara durante três dias contra a morte que lhe arrebatara a presa."    

         "Presa?", exclamou Dante, desconcertado. "Um conhecimento secreto que o velho papa havia aprendido e levara consigo para o túmulo.”

         Continuava a não se mostrar convencido. Deveria ser uma das tantas histórias que circulavam dentro da corte de Bonifácio, divulgada pelos seus cortesãos para salvar o pontífice da desonra. "O que diziam?”

          "Nada além disso. Talvez Ambrogio soubesse algo mais. E talvez ele não fosse o único .”

         Dante procurava encontrar um sentido a partir daquilo que havia apreendido. "Não só ele? A quem se refere?”

         "No convento anexo à basílica de São Paulo, durante nossas obras, alojavam-se também alguns membros da cúria. Um grupo de juristas que estavam trabalhando num encargo particular por conta de Bonifácio...”

         Um nome atravessou a mente do prior. "Antonio da Peretola, o jurisconsulto do Terceiro Céu, era um deles? É isso o que quer dizer?”

         Iacopo acenou com um gesto de cabeça, concordando. "Talvez ele possa lhe ser mais útil, messer Durante. Ele certamente estava mais próximo do que eu das fontes desses comentários.”

         Dante afastou-se ligeiramente para deixar passar um volume de tijolos que estava sendo erguido por um braço móvel ligado a um contrapeso. Sua atenção foi atraída pela máquina, uma simples alavanca de Arquimedes, mas construída em escala gigantesca. Uma das especializações dos mestres comacinos. "Pelo que vejo, há muitas por aqui.”

         "É verdade. São a própria essência das grandes construções.”

         O poeta olhou ao redor. Da velha igreja de Santa Reparata só restavam os traços dos muros periféricos, que desapareceriam por baixo da nova pavimentação. Ergueu os olhos procurando imaginar como ficaria a construção, quando terminada. Um templo de gigantes erguido para gentes tão mesquinhas...

          Iacopo havia acompanhado seu olhar. "Quando estiver coberta, no cruzeiro dos pilares, será a maior igreja da cristandade. A obra-prima de Arnolfo. Assim, por causa desses muros, o nome de Florença será conhecido por toda a Terra.

         "O nome de Florença já é bem conhecido até no inferno, messer Iacopo", murmurou Dante. "Existe uma cidade que cresce para o alto, mas também outra que cava nas profundezas, como se quisesse abrir um caminho até Lúcifer.”

         O outro permaneceu em silêncio, observando-o.

         Antonio da Peretola, o homem com feições de raposa, habitava perto de São Marcos, na hospedaria destinada aos visitantes do convento. O prior esperava que ele já tivesse retornado de suas classes na Schola dos franciscanos.

         De fato o homem ali estava, ocupado em recobrir de anotações um grande código. Ao seu redor, outros volumes estavam abertos. Parecia imerso numa fatigante comparação de redações diversas, sobre as quais fazia comentários.

         Quando reparou em Dante, interrompeu-se imediatamente, fechando o código sobre o qual estava escrevendo.

         "Trago-lhe minhas saudações, messer Antonio", disse Dante. "E peço desculpas se minha chegada interrompe seu trabalho", acrescentou apontando o livro.

         O outro, levantando-se, inclinou a testa em sinal de saudação. "Nada que não possa ser deixado para mais tarde", disse, indicando ao visitante um banco que agilmente havia liberado de um monte de pergaminhos.

          "De resto, as exigências da justiça do município impõem às vezes maneiras pouco polidas pelas quais espero que me perdoe" continuou o poeta, acomodando-se confortavelmente.

         "Pelo contrário, é com alegria que o recebo, messer Durante. Sua fama chegou até Roma, seus versos de amor correm também nos lábios daqueles que, como eu, mantêm seus interesses em outras regiões do espírito. E tenho muito prazer em conversar consigo... 'Pode-se muito bem reconhecer no homem, conversando, se tem juízo... ', além de nosso agradável encontro no Terceiro Céu.”

         Novamente uma citação de seus versos. Parecia realmente que os membros do Studium eram todos seus admiradores.

         Dante enrubesceu, assolado por um arrebatamento de orgulho, e estava pronto para recitar o restante do soneto, mas conteve-se. Alguma coisa no olhar do outro prevenia-o de que devia se manter em guarda. Sob os traços de uma raposa escondia-se a dentadura de um lobo. Limitou-se a um curto agradecimento. "Estou aqui para solicitar sua ajuda em minha investigação, messer Antonio", disse. "Soube que antes de chegar a Florença o senhor viveu em Roma, no convento anexo à basílica de São Paulo Fora dos Muros.”

         "É verdade. Foi lá que me acolheram, recém-chegado de além-mar.”

         "O senhor também esteve na Palestina?", perguntou Dante, surpreso.

         "Pensei que soubesse. Estava no séquito do cardeal de Liegi, o último núncio apostólico em São João de Acre. Fugi com ele, por ocasião da rendição da cidade, e, quando cheguei à Itália, papa Bonifácio quis bondosamente servir-se da minha pouca doutrina para a grandeza da Igreja.”

         "Conheceu Ambrogio, durante sua estada em Roma?”

         "O mestre construtor comacino. Sim, mas não éramos confidentes. Estava encarregado de não sei que serviços na basílica. Creio que o encontrei algumas vezes, passeando no Claustro.”

         Pronunciara a última frase em tom indiferente, quase procurando evidenciar a superficialidade do relacionamento. Mas, na realidade, estava muito atento em medir cada palavra, tenso como uma mola de balestra. Talvez fosse somente por causa da sua mentalidade de jurista, atento à tonalidade e às sutilezas. Ou a defesa de alguém que tem alguma coisa para esconder.

         Dante decidiu enfrentar o argumento diretamente. "O mestre poderia ter adquirido, no decorrer de seu trabalho, algum conhecimento perigoso?”

         "Não tenho idéia. Algo pelo que possa ter sido assassinado?" Antonio parecia sinceramente perplexo, mas os traços de raposa continuavam a transparecer.    

         "Algo que pudesse ser revelado na sua obra?"      

         "O convento de São Paulo pertence aos bens da comenda templária de Roma. Na época hospedava uma comissão de juristas, da qual eu fazia parte, encarregada por Bonifácio de aportar a sustentação doutrinai à bula que está prestes a divulgar. Não havia nada que pudesse justificar um assassinato.”

         "Uma bula? E sobre que assunto?" perguntou Dante, ficando mais atento. De repente o motivo pelo qual tinha vindo passou para segundo plano.

          "A supremacia do poder espiritual sobre o temporal. Ou, melhor ainda, o fato de considerar-se o segundo incluído no primeiro.”

         "Quer dizer, a justificativa jurídica para a tirania do Caetani?”

         Antonio olhou bem nos seus olhos. "Não concorda com a justa reivindicação de Bonifácio pela primazia do Império? Entretanto o senhor está do lado dos guelfos...”

         Em vez de responder, Dante apontou com o indicador para o código encerrado. "É ali que estão as suas argumentações?”

         "Sim, eu era o secretário da comissão, e possuo todos os atos e as transcrições. É com base neles que estou preparando o texto da bula. Deus concedeu o Sol aos homens, o trono a Pedro, para que governe e ilumine as terras do Império. Unam Sanctam18: que esse seja o destino da Igreja, e isto está escrito em meus papéis", declarou o jurista com orgulho, como se não houvesse nenhuma dúvida sobre a excelência do partido que sustentava.

         "Mas a ação dos homens, iluminada por Deus, alinhou ao Sol espiritual um segundo Sol, temporal, na figura do imperador romano. Parece que está esquecendo isto.”

         "Sua teoria, messer Alighieri, equipara o brilho do Sol criado por Deus a uma luz, também forte, acesa pelos homens. E esta é uma afirmação..." Parecia não encontrar o termo correto.

         "Insensata, talvez?" sibilou Dante.

         O outro encolheu os ombros.

         "Não, não insensata: perversa.”     

         "Saberei convencê-lo do contrário. Mas vamos voltar a morte de Ambrogio..." continuou o poeta. O tempo corria. Estava arrependido de ter se abandonado à paixão pela política. "O senhor sabia que o primeiro projeto do mosaico em que estava trabalhando era diferente daquele que começara a realizar?”

         "Não. E por que deveria ter agido dessa forma?”

         "Eu esperava que soubesse. Diz-se que o motivo estaria ligado à sua permanência em Roma. Talvez naqueles dias tenha acontecido alguma coisa da qual o senhor também poderia ter sido testemunha.”

         "Eu estava atento só aos meus estudos, messer Alighieri. E o senhor, sendo também um homem de estudos, sabe muito bem como essa atividade nos isola e afasta do mundo. Mas, pensando melhor, há algo que posso relatar-lhe, no que diz respeito ao mestre desaparecido. Dizia-se que, certa vez, havia sido afastado de uma igreja que estava decorando, e que seu trabalho fora destruído, porque os comitentes perceberam que havia retratado os apóstolos com as feições da família imperial, desde Barba-Roxa até Corradino. Mas talvez fosse só uma maledicência.”

         Dante percebeu que o jurista não revelaria mais nada. Talvez porque não soubesse realmente. Ou então porque cada raposa sempre mantém, no fundo da toca, um caminho de fuga.

         As feições desfiguradas do rosto de Ambrogio continuavam diante de seus olhos. Entretanto, não podia negligenciar os outros deveres.

          Relembrou, desanimado, todas as provas de mesquinhez a que havia assistido durante as assembléias florentinas; o entusiasmo com que aprovavam a espoliação de um vencido e a infinita cautela com que enfrentavam a arrogância de um poderoso. Se ao menos houvesse outros dois como ele nessa cidade maldita...

         Mas era inútil pensar. Sacudiu a cabeça, esfregando a testa suada com a mão. Não conseguia deixar de pensar na morte do mosaicista. Mais uma vez.

         Haveria de resolver esse mistério. Mas devia retornar ao local do crime, sozinho.

         A primeira vez tinha ido acompanhado, e sua visão havia sido ofuscada pela dor de cabeça. Seus sentidos estavam alterados. Não pudera escutar a voz suave com que os lugares comunicam-se com a alma. Devia ter negligenciado sinais e traços essenciais. O que não havia conseguido ver?

         Dali a pouco, depois do pôr-do-sol, poderia percorrer mais livremente as ruas. Seu encargo de prior de Florença conferia-lhe o direito de ir-e-vir mesmo durante o toque de recolher. Agiria então.

        

         No mesmo dia, depois do toque de recolher.

         Dante parava em cada esquina das ruelas estreitas, com os sentidos atentos, para ouvir a passada cadenciada da ronda da guarda. Todo o bairro parecia imerso num silêncio absoluto, entrecortado só às vezes por risos, gritinhos e sussurros que provinham das janelas dos andares inferiores. Encolheu os ombros, cada vez mais escandalizado pelos costumes que estava descobrindo em sua cidade.

         Sua mente registrava cada detalhe. Haveria de redigir um relatório ao município para impor um freio àquela decadência.

         O surgir da neblina tornara o ambiente sufocante. Ao alcançar a igreja estava cansado, as roupas embebidas de suor. O prédio encontrava-se mergulhado na noite, uma grande massa escura que mal se distinguia das sombras do campo. Só a torre destacava-se claramente contra o disco da lua.

         Abriu caminho por entre os escombros diante da entrada. Avançava com dificuldade, no escuro levemente iluminado pelo ligeiro clarão que penetrava pelas ameias,   resvalando com a mão as pedras da parede. Ladeou sem dificuldades o precipício no centro da nave central, de que bem se lembrava.

         Na abside devia haver ainda tochas, deixadas pelos homens do chefe da guarda. Chegando ao hemiciclo, diante da sombra incerta do mosaico, tirou pederneira e caçoleta de sua bolsa. Bem embaixo do andaime havia uma lamparina a óleo que ele recolheu rapidamente.

         Assim que deu os primeiros golpes com a pederneira, um violento empurrão no ombro obrigou-o a soltar um grito de surpresa. Alguém saído das sombras havia esbarrado nele ao passar correndo. A caçoleta caiu no assoalho de pedras emitindo um som metálico, enquanto ele procurava manter o equilíbrio. A mão saltou rápida para o cabo da adaga. Mas, quando conseguiu retirá-la, o misterioso assaltante havia desaparecido além do vão da paliçada. Permaneceu imóvel, escutando atentamente, procurando colher algum ruído na escuridão.

         Parecia não haver mais ninguém. Inclinado sobre os joelhos, tateou à procura da caçoleta e da lamparina, atento a cada ruído. Finalmente conseguiu recuperá-las. Sentiu sob seus dedos o óleo da lâmpada que derramara no chão e torceu para que ainda houvesse sobrado o suficiente.

         Teria sido um ladrão? Mas o que poderia ser roubado de uma igreja abandonada? Ou, então, teria alguém vindo examinar, assim como ele, o local do crime? Enquanto cambaleara no escuro, tivera a impressão de que havia um segundo corpo ali perto. Mas devia ter sido fruto de sua imaginação.

         Enquanto isso havia conseguido acender a lamparina. Aproximou o pequeno círculo luminoso do local onde ocorrera a morte de Ambrogio. Primeiramente explorou com atenção o piso; em seguida, levantando a mão que sustentava a luminária, começou a examinar mais uma vez o mosaico inacabado. A chama revelava pouco a pouco alguns detalhes do colosso, sem que a figura como um todo conseguisse emergir das trevas.

         Havia algo diferente. Observou por terra um montinho com pastilhas e cal em pó; em seguida, levantando o olhar, percebeu sinais vistosos sobre a superfície do desenho, em sua região central, como se alguém o tivesse golpeado com a intenção de apagá-lo. Mas devia ter sido interrompido na obra de destruição, que ficara inacabada. Dante levantou o mais alto que pôde a luminária, soerguendo-se na ponta dos pés. Aquilo que da primeira vez parecera um conjunto casual de arranhões em forma de teia de aranha formava, na verdade, um desenho preciso: um pentágono.

         Isso fez com que se lembrasse do pentagrama, o símbolo mais poderoso da teurgia.

         O desenho havia sido traçado com impetuosidade, às pressas. Olhou ao redor. No centro da nave havia uma escada dupla, deixada aberta para os serviços antes da tragédia. Arrastou-a para o lado do mosaico, contra a parede, e apoiou em cima a lâmpada para examinar melhor o sinal diabólico. Roçou com os dedos o sulco sobre a cal: alguém devia ter raspado várias vezes a parede com uma ponta de aço, talvez uma espada ou um punhal. Soerguendo-se na ponta dos pés conseguiu alcançar o vértice superior da incisão. Quem havia marcado a parede devia ser mais ou menos da sua altura.

         Já tinha visto um desses símbolos do mal num livro de encantamentos confiscado na casa de um homem suspeito de bruxaria. O sujeito havia sido surpreendido enquanto estava absorvido em evocar os espíritos dos mortos e fora entregue à Inquisição, juntamente com todos os papéis encontrados. Dizia-se que o tinham transferido acorrentado, num carro fechado, diretamente para Roma. Ninguém mais tivera notícias dele.

         Naquele tempo o poeta ocupava o cargo de gonfaloneiro do bairro de São Piero, e fora ele mesmo a assinar o protocolo de consignação à autoridade eclesiástica. Mas havia conseguido manter os textos durante uma noite na sede do povo, para poder ler o Grimório19 e aprender assim tudo o que era possível da diabólica arte da bruxaria.

         O livro havia sido escrito numa língua desconhecida, de sinais indecifráveis e números, talvez o antigo idioma falado pelos demônios. Pouco havia obtido disso, a não ser a sensação de uma total confusão mental, de uma perversa inversão da ordem natural de exposição de cada argumento. Só poucas coisas eram compreensíveis: imagens de estrelas e constelações, e figuras geométricas, entre as quais justamente o pentagrama ocupava uma posição de destaque.

         Fora interrogar longamente o homem, para procurar arrancar-lhe uma explicação. Mandara soltar as cordas com que os homens do chefe da guarda tentavam deslocar as juntas de seus membros, mas este tinha se restringido a pronunciar uma cantilena incompreensível, acompanhada de um estranho bailado entrecortado com invocações aos demônios. Dante o havia golpeado duramente na face quando percebera que estava traçando a seu redor, com o   sangue dos pés lacerados, uma espécie de limite, como para encerrar-se dentro de sua perversidade.

         "Golpeie-me porque estou em suas mãos", sussurrara o prisioneiro reprimindo uma careta de dor. "Mas, se você estivesse em minhas mãos, eu lhe abriria os olhos para a verdade, em lugar de fechá-los com o fogo como está fazendo comigo.”

         "Se eu estivesse em suas mãos, significaria que o mundo está de cabeça para baixo, e que as legiões do Anticristo cavalgam sobre a terra", respondera secamente o poeta.

         "Entretanto, essas legiões carregam consigo o segredo do bem e do mal, o fruto que nos torna semelhantes a Deus. Venha também para a legião, cujo nome é o nome de meu senhor." Continuando a misturar palavras e babando sangue, o homem havia se inclinado em sua direção. "Aproxime 0        ouvido de minha boca. Revelar-lhe-ei a palavra que move as pedras e que abre as portas da terra dos mortos.”

         Seus olhos brilhavam na penumbra do subterrâneo.

         Dante pensara que fossem os reflexos da tocha na parede. Ou então o lampejo da loucura que se apoderara dele.

         Havia se retirado horrorizado, tampando os ouvidos com as mãos, enquanto o outro murmurava ainda algo com uma expressão horrorosa.

         Durante anos havia se arrependido daquele gesto de covardia. Não tivera a coragem de colocar à prova a própria fé. E agora reencontrava aquele símbolo.

         Então era verdade que em Florença, sob o olhar cego dos governantes, realizavam-se rituais de necromancia. Mas por que o símbolo havia sido traçado na parede, como para contaminar a alegoria bíblica do mosaico, e não sobre o chão, onde se dizia que os bruxos o utilizavam para seus rituais?

         Voltou a observar atentamente o mosaico. A incisão havia danificado a perna esquerda do gigante. Um grande número de pastilhas de terracota jazia no chão, misturadas com a cal.

         Algo brilhava entre os fragmentos. Uma espécie de punhal de lâmina curta que Dante não lembrava de ter visto na Toscana. Parecia uma reprodução em miniatura da lâmina de foice que os camponeses de sua região utilizavam para o trabalho de campo, boa para enxertar uma videira, mas adequada também para resolver, sem testemunhas, uma questão de honra.

        No cabo de chifre havia uma gravação. O poeta aproximou a arma da luminária. Era uma cruz. A cruz dos templários.

         Observou inquieto ao seu redor. Não, não se tratava de um ladrão. Somente agora se deu conta de que não havia ouvido os passos do agressor afastarem-se em direção à porta da igreja. Talvez ainda estivesse ali, escondido, pronto a golpear. Ergueu a luminária, mas sua débil luminosidade revelava somente uma selva de sombras. O local parecia deserto.

         Entretanto, tinha certeza de que ninguém correra até o portão. Diante dele estendia-se a poça escura da abóbada destruída. Talvez houvesse um meio de descer no abismo, ou então a cripta possuísse uma passagem secreta. Aproximou- se com cuidado, mantendo a luminária erguida acima da cabeça.     

          Pela primeira vez observou as ruínas com atenção. Na beira estavam montes de escombros, fragmentos de pedras e blocos parecidos com degraus brutos. Aproximou-se para avaliar se alguém poderia ter passado por ali. Com surpresa, descobriu que não se tratava de restos do sótão, mas da ponta de uma escada que mergulhava na escuridão. Apertou o cabo da adaga e enfrentou o primeiro degrau.

         A rampa desdobrava-se em espiral ao longo das laterais de calcário de uma grande escavação em forma circular, que parecia estreitar-se à medida que o poeta se aprofundava, um funil de trevas afundado na terra úmida, como se uma besta enorme tivesse cavado à força uma toca para esconder-se da luz.

         Movia-se com cuidado, procurando manter-se do lado esquerdo, enquanto o eco de seus passos retornava amplificado pela curiosa acústica do local. Parecia-lhe estar cercado por uma multidão em movimento, um murmúrio de vozes que se perseguiam no abismo. Naquela confusão teve a impressão de ouvir um barulho de água.

         De uma rachadura na parede, a água escorria pela escada de uma pequena fonte para em seguida precipitar-se no vazio. Após um instante de hesitação, Dante atravessou com um salto o pequeno riacho lamacento torcendo para que a rampa não cedesse debaixo de seu peso. Tinha a sensação de estar ultrapassando uma barreira invisível, um aviso silencioso para não prosseguir. Com o movimento a chama brilhou com intensidade maior, iluminando mais claramente a descida.

         As laterais da escavação já não eram mais de rocha compacta. Na superfície abriam-se dezenas de nichos de variadas dimensões, uma horrenda colméia repleta de restos humanos. Deslizando ao longo das aberturas, a luz da luminária parecia animar aqueles restos desfeitos.

        Órbitas ocas seguiam o poeta e mãos esqueléticas estendiam-se dos nichos, como se uma inteira legião infernal estivesse ali aguardando por ele.         

         Sentiu os joelhos fraquejarem.

         Devia tratar-se de um cemitério abandonado. Desceu mais alguns degraus, com o medo a apertar-lhe a garganta; em seguida parou, procurando controlar a angústia que se tornara insuportável. Debaixo de seus pés elevava-se uma cerração parda. Todo o forte calor do verão parecia estagnado ali dentro.

         Decidiu impor-se vencer o receio recorrendo à razão. O agressor que o havia golpeado na nave superior era um ser corpóreo, e o fato de que em seguida fugira era a prova.

         Da primeira vez, quando correra o risco de cair no abismo, pensou que poderia tratar-se de uma antiga cisterna romana para o armazenamento da água. Mas os cristãos deviam, em seguida, tê-la transformado numa catacumba fora das muralhas, longe dos olhares dos pagãos.

         Depois de a igreja de São Judas ter sido erguida sobre as fundações da construção, o cemitério ficou esquecido até o desmoronamento da abóbada, que veio a abrir mais uma vez aquela porta para o inferno.

         Ou poderia ter sido um dos muitos túmulos etruscos disseminados pelo antigo reino. Foram encontrados alguns enormes nas terras da Maremma. De qualquer maneira, tratava-se de uma obra humana e não diabólica.

         Todavia, se o inferno tivesse uma forma, pensou Dante, esta não poderia ser muito diferente.

          Continuou a descida, revigorado à luz da razão. Parecia inclusive que o ar fazia-se menos denso, como se uma leve ventilação fluísse de baixo.

         A escadaria de pedra terminava contra um arco cego, fechado por uma parede de tijolos. Numa época posterior alguém devia ter decidido bloquear essa passagem para as entranhas da Terra, talvez para impedir uma ulterior exploração. Ou então para aprisionar forças que de outra forma teriam se alastrado pela Terra.

         O fundo da cripta era constituído por um círculo de pelo menos dez braças de diâmetro. O solo estava revestido por placas de pedra vulcânica, corroídas pelo tempo, no centro do qual havia uma poça com as águas que desciam do alto. Nos últimos degraus alguém deixara numerosos tocos de velas. Pegou um. Era de fabricação recente: a cera ainda estava macia e emanava um leve perfume.

         O temor do desconhecido voltou a dominá-lo. Não era possível que alguém tivesse fugido por aquele lado. Ergueu o braço que segurava a lamparina, olhando ao redor com mais atenção. A chama continuava a oscilar. Moveu-se com cautela na direção de onde parecia provir o fluxo de ar.

         A parede, observada mais de perto, mostrou-se uma imponente muralha construída com pedras irregulares: os restos das fundações da construção mais antiga. Num ponto havia uma região com a sombra mais acentuada. Não se tratava simplesmente de uma mudança na cor da rocha, mas sim de um nicho, uma passagem apenas suficiente para um homem. Aproximou-se, procurando iluminar o local para olhar melhor: além daquela passagem estreita parecia haver uma cavidade mais ampla, com paredes regulares.

         Decidiu aventurar-se para além da passagem.

         Mesmo não podendo avaliar a extensão, tinha certeza de que diante dele se descortinaria um ambiente maior do que aquele que deixara. À medida que a lâmpada iluminava mais detalhes, o aspecto da construção parecia mais familiar. Encontrava-se numa galeria cavada na rocha, larga de pelo menos quatro braças e encerrada por uma abóbada de aresta. Aqui e acolá, sem uma regularidade, a abóbada era reforçada por pilares e arcos de tijolo. A galeria desaparecia nas sombras além do círculo de luz da lâmpada. Debaixo de seus pés reconhecia uma superfície escorregadia, com forte cheiro de podridão. Devia ser a argila das margens do Arno que chegava até ali quando o rio estava em cheia. Agora, durante a seca de verão, aquela passagem tornava-se transitável.

         Continuou a observar ao seu redor, admirado. Uma obra imponente, digna da capacidade de seus antigos construtores, mas que em seguida tornara-se parte do reino do mal. Quantas dessas construções subterrâneas haveria no território do município? Debaixo de quais igrejas, sob quais mosteiros existiam cavidades semelhantes?

         As velas na cripta testemunhavam presenças inquietantes, rituais tão ignóbeis que não poderiam ser celebrados à luz do sol. Talvez o mestre comacino houvesse participado desses rituais.

         Dante deu mais alguns passos. Agora eslava certo de que o misterioso visitante tinha fugido por aquele caminho. Mas era tarde demais para pensar em segui-lo. Estava para retornar quando percebeu um movimento diante de si. Ao longo das paredes e junto aos pilares dos arcos jaziam uns amontoados informes, parecidos com trouxas de panos, que lentamente estavam se erguendo do chão.

         Encostou-se na parede, aterrorizado.

         Era daquela forma que sempre imaginara o despertar do exército dos mortos, no dia do Juízo. Mas tal ressurreição tinha algo inseguro, como se fosse uma versão reduzida, uma paródia. Ao contrário de corpos renascidos livres dos pecados, aqueles membros que caminhavam em sua direção, às apalpadelas na quase escuridão, pareciam marcados com as chagas mais horrendas, mal cobertas com faixas purulentas manchadas com sangue.

         Seu coração quase parou. A horda de leprosos imundos não estava chegando, como temiam em São Piero, mas já invadira as entranhas da cidade, valendo-se daqueles caminhos.

         Apelando a toda sua coragem adiantou-se, ameaçando o mais próximo com a adaga. Mas este continuou a aproximar-se, estendendo os braços chagados na sua direção, o rosto reduzido a um focinho entrecortado por um sorriso lúgubre.

         "Pare, diabo, ou será seu último passo nesta terra!" gritou Dante.

         "Messer Alighieri, não me reconhece?”

         Aquela voz parecia familiar. Mas, em lugar de responder, o prior com a adaga desembainhada cortou o ar num gesto circular, como se criasse uma barreira de aço entre si e o inferno. "Não conheço seu nome", disse.

         "Sou eu, messer Alighieri, Giannetto de São Piero. Giannetto, o mendigo.”               

          Um leve raio de luz agora iluminava o rosto do homem, que havia parado. Começou a soltar as faixas ensangüentadas da cabeça, enquanto Dante abaixava lentamente sua arma. Era realmente ele, o mesmo mendigo que havia pisoteado dentro do priorado. O homem da sorte. Enquanto isso, as outras criaturas haviam parado de se aproximar, como se tivessem perdido toda a curiosidade a seu respeito, e voltaram a deitar-se.

         "Bem-vindo ao reino dos verdadeiros crentes, messer Alighieri. O senhor também está procurando um teto para a noite?" o homem sorriu, colocando à mostra uma fileira de dentes corroídos.

         O poeta não havia embainhado a lâmina. Um sentimento de raiva havia substituído o horror de antes. Suas mãos ainda tremiam. Atirou-se à frente e agarrou o mendigo pelo pescoço, batendo violentamente sua cabeça contra a parede. Só o olhar aterrorizado do outro, mais que seu frágil pedido de piedade, conseguiu pará-lo antes que fosse tarde demais.

         Deixou-o. O mendigo permaneceu encostado à parede, dolorido, e procurando tomar fôlego. A respiração de Dante também estava entrecortada pela ansiedade. Esfregou os olhos com as mãos, como querendo apagar o acontecido. "Por que você está coberto com esses panos imundos? E esses outros talvez sejam...”

         "Esses?" repetiu Giannetto, apontando os corpos recostados ao redor. Alguém se movera, levantando a cabeça, mas já voltara a deitar-se, indiferente, como se uma briga não fosse um espetáculo insólito naquele lugar."Vejo que o senhor foi enganado pela Arte secreta", continuou, levantando-se.

         "A Arte secreta?”

         "Isso mesmo. A Arte dos Cardadores, dos últimos. Não está registrada em nenhum lugar, nem mesmo na lista das Artes menores do município. No entanto, garanto que existe, como pode ver. O povo abastado de Florença habita em seus palácios e em suas torres. Mas nas ruas existe uma corte que vive à sombra. Nós que vivemos de esmolas necessitamos sentir de perto a luz da graça.”

         Dante voltou a olhar ao redor. Tempos atrás Florença tinha sido invadida por uma horda de pedintes que se alastrara pela cidade como moscas sobre uma carcaça de cavalo. Falsos peregrinos, falsos aleijados, falsas aberrações, falsos cegos, falsos veteranos das cruzadas misturados com aleijados verdadeiros e cegos verdadeiros, loucos verdadeiros e condenados verdadeiros, reunidos a um exército de carpideiras, adivinhos da sorte, anunciadores de milagres, gente sem causa e sem outra meta a não ser remexer no duvidoso. Mas nunca havia pensado que fossem em tão grande número.

         Mais ao norte, durante sua viagem a Paris, havia visto coisas piores. Aquela escória do gênero humano tinha se reunido numa liga tão forte que rivalizava com o rei da França o domínio sobre bairros inteiros da cidade. Florença também se precipitaria no caos que invadia toda a cristandade.

         "Mas estão afligidos por males imundos... Como é possível que lhes seja concedida a autorização para mendigar livremente, sob o olhar de honestos cidadãos?", perguntou o poeta.

         "Nenhum de nós está realmente marcado pelos males que ostenta. Os guardas bem sabem disso e satisfazem-se em receber um punhado de moedas para nos deixar em paz. Acredite, messer Alighieri, nós, os ladrões, estamos em boa companhia aqui na cidade dos florins”

         Dante deixou escapar um gesto involuntário de concordância. Era verdade que entre os homens pendurados na forca e a multidão que aplaudia não havia uma grande diferença. Talvez aquele malandro pudesse ser-lhe útil. "Você viu alguém fugindo, há pouco?" perguntou.  "Eu vi alguém descendo da igreja”

         "Quem era? Como estava vestido, você viu seu rosto?”

         "Não, lamento não poder ajudá-lo. Corria na escuridão.”

         "Será que mais alguém não poderia ter visto alguma coisa?”

         "Ninguém se interessa pelos assuntos dos outros, aqui na Arte. E, além disso, é comum que alguém desça da igreja. Nós não ligamos.”

         Dante agarrou-o pelos ombros. "O que quer dizer? Os trabalhadores conhecem esse caminho?”

         "Não há nenhum trabalhador lá em cima, prior. Entrei lá em mais de uma ocasião, para avaliar... a situação. A única pessoa que vi trabalhar era o mestre mosaicista, aquele que morreu. Não havia nenhum outro trabalho. Referia-me aos outros.”

         "Que outros?”

         "Os homens que se reúnem no fundo da cisterna para a cerimônia. Pensei que soubesse.”

         "Não sei de nada... Qual cerimônia?”

         "Várias vezes, sempre à noite, no fundo da catacumba embaixo da igreja, eu vi um grupo de homens que se reúnem 134   para conchavos. Nós nunca vamos até lá, para não perturbar o sono dos mortos, mas ouvimos suas vozes.”

         "O que dizem?”

         "Não dá para entender; palavras confusas, discussões... Às vezes rezam.”

         Dante acariciou o queixo, perplexo. O pentagrama desenhado diante do altar para evocar os demônios...

         Elevou de súbito o olhar para seu interlocutor. A fuça de Giannetto despontava das bandagens como o focinho de um rato num buraco da parede. Ocorreu-lhe que poderia tratar-se de um engano. Talvez o homem estivesse contando aquela história só para alimentar sua fantasia. Talvez não houvesse nenhuma cerimônia, e o mestre houvesse sido simplesmente assassinado por um dos falsos leprosos que subira da caverna para roubá-lo. Os mestres comacinos eram conhecidos em toda a Europa, e era sabido quão altos eram seus honorários. Nem mesmo Giotto jamais recebera uma remuneração tão elevada por sua obra.

         Talvez o próprio Giannetto, com seu ar aparentemente inofensivo, como bom rufião que era, escondesse entre as bandagens as mãos manchadas de sangue. Deveria prender todos, pensou. Agora conhecia seu esconderijo. Retornaria ali.

         "Onde vai dar por ali?" perguntou, apontando a escuridão diante dele.

         "Essa galeria vai dar junto ao Arno, perto de Ponte Nuovo.”

         O poeta estava apoiado na parede, em silêncio, imerso em seus pensamentos. Só depois de algum tempo percebeu que Giannetto continuava a observá-lo. Parecia que queria dizer alguma coisa, mas não encontrava as palavras adequadas para começar.

         "Queria pedir um favor, messer Alighieri." O homem esfregava a nuca, como tentando lembrar as pancadas recebidas.

         "Diga.”

         "O senhor escreve, não? Fale de mim, por favor.”

         Claro, pensou o prior. É isso que todos nós queremos, mesmo os mais míseros: que a luz de nosso nome permaneça acesa. E se pudéssemos visitar o país dos mortos, não seria essa a reivindicação deles?

         "Em contrapartida vou revelar-lhe algo que será útil", continuou Giannetto.

         Dante observou-o. O que será que poderia revelar-lhe de útil o miserável?

         "Algo que poderá salvá-lo", continuou o mendigo, observando-o com seu olhar de rato.

         "A minha sorte? Outra vez?”

         "Prepare-se para a fuga. O seu lado está perdido.”

         O poeta aguçou os ouvidos. O que poderia saber aquele farrapo humano da política de Florença?

         O outro pareceu perceber a desconfiança. "Um dos soldados, a quem pago proteção, tem um parente no exército do papa. Bonifácio está se preparando para partir em direção à nossa cidade com o objetivo aparente de estender a paz, mas em verdade para saquear e derrubar o governo a favor dos Negros. Para nós, mendigos, qualquer mudança de governo entre os lados tem pouco significado; para alguém como o senhor poderia significar perder a vida. Fuja antes que seja tarde demais.”

          Havia o risco de que essa história fosse verdadeira: não era difícil imaginar o fluxo contínuo de informações que chegava a alguém como Giannetto, que vivia nas ruas. Com o rabo dos olhos, Dante notou duas figuras encolhidas que se levantavam e caminhavam em direção à saída. Apreendeu o olhar cheio de suspeita com que Giannetto havia acompanhado seus movimentos. Antes de desaparecer, um deles olhou para trás. Por um instante pareceu-lhe distinguir um rosto conhecido, mas não conseguia lembrar. "Quem são?" perguntou.

         "São dois que nunca imaginaria encontrar aqui na Arte.”

         "E então?”

         "Não sei. Por algum motivo, procuram passar por um de nós. Porém enganaram os outros, não a mim.”

         Dante procurou acompanhar com os olhos as silhuetas recobertas de trapos, mas já haviam desaparecido na penumbra.

        

         18 de junho, durante a manha.

         Dante convocara urgentemente o chefe da guarda ao palácio dos priores.

         O homem chegou esbaforido, visivelmente contrariado. Não estava vestindo a armadura habitual. Parecia menor. "O que é tão importante, messer Alighieri, para interromper minhas tarefas?", foi logo dizendo.

         A taberna são suas tarefas, miserável, pensou o poeta, mas limitou-se a ignorá-lo. Manuseava o estranho punhal que havia encontrado na igreja. "Há templários em Florença?", perguntou.

         "O quê?”         

         "Acorde, oficial! A Ordem dos Pobres Cavaleiros de Cristo chamada do Templo. As capas brancas, com suas cruzes características. Sabe se há algum na cidade?”

         Parecia finalmente que o outro havia compreendido. Sacudiu os ombros com indiferença. "Ah, aquela espécie de seita. Tão poderosos e depois perderam a Palestina, fingindo que queriam morrer pelo Santo Sepulcro. Enriqueceram também através do comercio com os mouros. Altivos e arrogantes, avarentos como os hebreus, briguentos... Não, o município nunca concedeu que se instalassem na cidade. Aliás, agiotas já temos de sobra por aqui" concluiu debochando.

         Dante não pôde fazer menos que sorrir. Pela primeira vez estava de acordo com o chefe da guarda. Em seguida, um pensamento enregelou-o. Aquele canalha queria aludir às calúnias sobre seu pai, Alighieri? Apertou os punhos, avançando em direção ao homem. "O que pretende dizer?", gritou, fulminando-o com o olhar.       O chefe da guarda recuou com um salto. Parecia sinceramente surpreso com a reação do prior, e também assustado. "Nada além do que eu disse", balbuciou. "Não existem templários nas terras do município. Sua comenda mais próxima é em Áquila, a partir de onde negociam com Foggia e as outras terras do reino de Nápoles...”

         "Eu também sei que não está registrada uma presença oficial da Ordem. O que quero saber é se durante suas investigações nunca ocorreu deparar-se com alguma presença oculta deles, talvez disfarçada sob outra aparência." Era uma pergunta inútil. Aquele homem não teria atentado para um bando de unicórnios que passasse embaixo de seu nariz. No entanto, o poeta ficou surpreso com sua resposta.

         "Não... mas talvez haja algum, ou pelo menos já houve. Sob aparência diferente, como o senhor está dizendo.”

         "O que quer dizer?”

         "Falava-se, no passado, que entre os franciscanos, inclusive os nossos florentinos, havia uma corrente, um grupo de partidários do Império que tinham secretamente aderido à Ordem do Templo. Mas não se sabe com certeza. São só rumores. Seria necessário penetrar na cabeça dos capuchinhos. Entre si eles se esganam, mas nada transparece para fora, tudo se passa como se no interior de seus conventos ainda estivessem Francisco e irmã Pobreza...”

         Não sabia mais nada. Dante dispensou-o irritado, incomodado com sua petulância. Aquele repertório de frases prontas o aborrecia. Só quem, como ele, os havia freqüentado assiduamente podia conhecer profundamente neles a virtude e a perfídia. Virtudes poucas, perfídias inúmeras.

         O chefe da guarda acabara de sair quando o guarda avisou que um desconhecido solicitava uma audiência.

         "Disse quem era?”

         "Não, mas afirma conhecê-lo.”

         O poeta contraiu o maxilar. Mais uma vez aquele desgraçado Manetto com suas pretensões. Olhou ao redor nervosamente, procurando uma saída. "Agora não. Peça para voltar mais tarde, depois da seção do Conselho.”

         "Sempre com pressa, messer Durante? Como na derrota de Campaldino!", gritou uma voz zombeteira.

         Dante virou-se como um cão a quem tivessem pisado no rabo, pronto a morder. Encontrou-se diante de um homem de rosto largo e sorridente que o observava com as mãos na cintura. Estava vestido com ricas roupas de viagem, excessivamente vistosas e ornamentadas segundo as leis que o município havia proclamado contra o luxo desenfreado. Tudo nele o fazia parecer com um estrangeiro, começando pela leve inflexão senense.

         "Faz muitos anos que não vê a minha fuça, mas será que o amor mudou-me tanto que fiquei irreconhecível?" continuou o recém-chegado em tom frívolo.

         Dante olhou-o mais atentamente, protegendo-se com a mão dos raios do sol que penetravam através das curvaturas das arcadas. "Ora, messer Angiolieri... é o senhor? Mas não estava na cadeia?”

         O outro explodiu numa risada. "À custa de lágrimas convenci o meu velho a resgatar a minha dívida com os agiotas, e saí faz três anos. Quanto àquele velhaco que esfaqueei com meu punhal, ele retirou sua queixa quando escutou o som dos escudos. Mas, se eu não tivesse encilhado rapidamente meu cavalo, estaria mais uma vez a ferros. Os dados me traíram novamente, e dessa vez o velho não quis saber. Especialmente depois que lera aquele meu soneto que dizia que eu queria vê-lo queimando. Apenas tive o tempo de dar uma rapidinha com minha Becchina, e aqui estou eu, refugiado nesta sua bela cidade livre... onde fiquei sabendo de sua rápida ascensão. Que se tinha tornado prior! Um poeta! Em Siena falta pouco para que nos decepem a língua. É verdade o que dizem? Que uma nova Atenas está surgindo às margens do Arno e que aqui tem mais livros do que havia na biblioteca de Alexandria?”

         Dante abriu a boca para responder, mas foi imediatamente calado pelo outro, que continuou com entusiasmo.

         "E, além disso, as tabernas daqui... são realmente excepcionais! Não como os imundos pardieiros freqüentados por meus concidadãos. Conheci o local de um tal Baldo, que mantém um banquete permanente fora das antigas muralhas. Conhece? Ali tem jogo, sabia? E também mulheres bonitas.”

         Dante finalmente conseguiu dizer. "Aqui o município não é tolerante em relação aos jogadores e aos devassos em geral. Na cidade do Batista é sobre a virtude que procuramos apoiar nossas ações. Tome cuidado para não se meter em encrencas. Não tem idéia do que pode ser o inferno, se não tiver conhecido nossas cadeias. E, quanto à batalha de Campaldino, minhas tropas retrocederam um pouco, e só no começo do dia, para depois voltar à carga e dobrar a insolência dos aretinos com a força dos nossos braços.”

         "Talvez tenha sido assim. Pode ser que não me dei conta que o senhor fugia com seus florentinos porque eu estava totalmente ocupado fugindo com os meus senenses. Mas para que vamos nos magoar com as tristezas da guerra, quando os prados da paz se abrem às nossas esperanças? Eu li as suas Rimas e as imprecações contra a bela Pietra. Quer dizer que já sarou do coração ferido por Beatrice? Então é verdade, como ouvi dizer pelos poetas de amor, que Dante voltou ao reino da carne e da merda?”

         Dante enrubesceu e não deu resposta. Olhava ao redor em busca de um pretexto para despedir-se.

         O outro pareceu notar o seu embaraço. Por um momento deu a impressão de que iria insistir com seu sarcasmo, mas logo mudou de assunto, retornando aos temas frívolos anteriores. "Estive presente à sua posse em São Piero. Realmente uma cerimônia impressionante. Os poderes do céu ligados à força terrestre. Fiquei contente com a minha sorte: uma amizade poderosa é o melhor remédio para um exilado."

          O prior enrijeceu. "O senhor também estava em São Piero, nos idos de junho? Mas quando chegou à cidade?”

         "Há três dias. Bem a tempo de assistir ao seu triunfo.”

         Bem a tempo para estar presente na noite do crime, pensou Dante perscrutando o interlocutor, que continuava a falar olhando ao redor. Do mirante das arcadas podia-se ver uma fresta da praça Maior: a visão para o Arno estava impedida pela base imponente do campanário que Giotto estava erguendo.

         "Parece que sua cidade está crescendo prodigiosamente, messer Durante, da mesma forma que a presunção de vocês, florentinos. Mas também em Siena os meus concidadãos colocaram as bases da maior igreja da cristandade. Do alto do telhado faremos gestos obscenos para vocês florentinos e até para o papa em Roma", disse Cecco, unindo entre si o polegar e o indicador e apontando.

         Dante deixou escapar um sorriso. Parecia vê-lo, Cecco, no alto do campanário fazendo gestos obscenos.

         "No que diz respeito a Bonifácio, ele está fazendo um bom dinheiro com essa história do Jubileu. Eu também terminarei por juntar-me a essa multidão de desocupados que formigam pelo vale do Tibre para enriquecer os padres. Sim, daqui a dez anos essa cidade estará irreconhecível”

         "Já está irreconhecível", murmurou Dante. "E não para melhor. Quer dizer que conheceu a taberna de Baldo?”

         "Mais do que isso, estou alojado lá. Aquele malandro maneta queria arrancar-me uma fortuna para hospedar-me, mas utilizei seu nome como referência e ele logo amoleceu. Parece que o senhor é realmente importante em sua cidade. Ou pelo menos lá na taberna do Baldo", disse Cecco com um sorriso malicioso.

         Continuava a fixá-lo com ar zombeteiro, como se de alguma forma fosse dono de seu destino. O prior percebeu a ira crescer dentro de si. Insuportável poetaço! E ainda ousara zombar dele em versos, com sua imoralidade de província. Conteve uma resposta feroz. "E então, que bons ventos o trazem a Florença? Além da necessidade de evitar a cadeia, como o senhor disse." Limitou-se a replicar.

         "O senhor não adivinhou? Há um concurso de doutores em sua cidade. Haverá um Jubileu de sábios, com esse seu Studium. Eu vim oferecer meus serviços e minha sabedoria.”

         "O senhor está se expressando por meio de enigmas, como um hebreu cabalista. O que pretende ensinar na faculdade das Artes? Parece que dialética e retórica não lhe fazem falta, mas quanto a tecer disputas...”

         "Quem disse que pretendo entrar em disputas para lecionar essas obscuras disciplinas, messer Alighieri? Em Siena adquiri bem outras qualidades! Três mulheres vieram cercar meu coração... assim como o seu. E graças a elas fui iluminado.”

         "Quais seriam, no seu caso?”

         "A mulher, a taberna e os dados.”

         Dante dirigiu-lhe um olhar gélido que o outro sustentou imperturbável. "Os dados são masculinos", retrucou.

         "Enquanto não forem viciados com chumbo. Aí tornam-se femininos e, como mulheres, dobram-se às ordens de seu patrão."  

          "Sabe, Cecco, o que me perguntei assim que nos encontramos?” 

         "Não, o quê?”

         "Com que animal o senhor se parece, entre os muitos da ciência da fisiognomonia.”

         "Nos últimos tempos aconteceu encontrar muitos animais no seu caminho?”

         "Muitos, mas nenhum como o seu.”

         "Qual seria?”

         "O basilisco", respondeu o poeta com semblante sério.

         "Mas o basilisco não existe!”

         "No entanto ele envenena e mata como se existisse; da mesma forma que as palavras de uma calúnia”

        

         No mesmo dia, depois do pôr do sol 

         Dante encontrou a mesa dos sábios sem nenhuma incerteza. Agora estava claro que aquele canto na taberna constituía de fato um espaço privativo. Alinhados em seus assentos estavam todos os homens que já havia conhecido. Levantaram-se, retribuindo silenciosamente sua saudação. Observavam-no com curiosidade, mas nenhum deles parecia decidido a ser o primeiro a tomar a palavra.

         Coube a Teofilo Sprovieri quebrar o silêncio. "Ei-lo aqui novamente no Terceiro Céu, messer Alighieri. Esperávamos que voltasse a nos dar a honra. Estávamos ansiosos em conhecer as suas conclusões sobre o acontecimento de que falamos na outra noite" disse, depois de convidá-lo a sentar a seu lado. "Se é que tem alguma.”

         Dante supôs perceber um tom irônico na voz do boticário. Estava para responder à altura, mas Cecco d'Ascoli antecipou-o no intento.

         "Amigos, por que querem que o agradável hóspede nos fale sobre um tema tão penoso, quando a sorte nos dá o privilégio de valer-nos de sua opinião sobre temas bem mais elevados? Conte-nos, em lugar disso, que obras está planejando realizar, em suas novas funções como governante?”

         "Estou pensando num convite que, como para um banquete, possa ser distribuído a todos os que quiserem comer o pão da sabedoria", respondeu Dante.

         "Um banquete?" perguntou uma voz, obrigando-o a virar-se. Às suas costas surgira Cecco Angiolieri. Podia-se pensar que estivesse escondido debaixo da mesa, até aquele momento, ou que houvesse imitado o passo aveludado dos ladrões, adquirido em suas inúmeras estadas nas prisões. "E estaria aberto a todos? Não só aos sábios?" Olhou ao redor como a solicitar a atenção dos outros para o que dizia. Não pareceu que o descaramento com que se aproximara da mesa tivesse perturbado algum dos presentes. Pelo contrário, Dante percebeu alguns olhares divertidos entre os presentes, como se as graçolas de Cecco fossem bem conhecidas.

         "Não pensa, messer Alighieri", continuou Cecco, depois de ter, com um gesto rápido, saudado os presentes, "que seu banquete possa reduzir-se a uma insuportável confraria de pedintes e escroques? E que áreas da pesquisa filosófica estarão presentes em sua obra?" acrescentou, tomando assento junto a Veniero e enchendo de vinho a taça do veneziano.

         "Todas", respondeu friamente o prior, frisando as palavras. "Por assunto e ordenadamente. Desde a formação do cosmos até os segredos íntimos da alma. E terminarei com a maior virtude que o ser humano pode alcançar."      

         "Qual?”

         "A Justiça" Dante olhou ao redor, fixando pausadamente cada um dos presentes. Pareciam todos chocados com suas últimas palavras.

         "Claro, a Justiça é um pilar mestre entre as virtudes", murmurou Antonio da Peretola. "Seu projeto nos traz de volta o tema tenebroso que Cecco d'Ascoli tentava evitar. Como tratará as causas do crime?”

         "Certo, messer Alighieri" interveio Bruno Ammannati. "Eu gostaria de saber. E que ocasião melhor do que a morte do mosaicista para discutir isso? É opinião da maioria que se uma forte razão pessoal pode induzir ao crime, uma força de vontade contraposta pode evitá-lo. Se isso for verdade, então Ambrogio foi assassinado ou por um ser frágil ou por um motivo muito forte.”

         "Creio que assim foi.”

         "Como consideraria a hipótese de que o mestre comacino tenha sido assassinado por seus colegas da Arte?”

         "E qual seria o motivo?”

         "Um muito forte, sem dúvida. O orgulho pela própria arte, que a vítima queria ridicularizar. Viram o mosaico e suas cinco partes com valores decrescentes. Tenho certeza de que nessa representação queria aludir aos cinco maiores mosaicistas da Itália." Ammannati dirigia-se aos outros, como buscando apoio para a sua argumentação. "Devem lembrar como era habitual para Ambrogio enaltecer a própria obra, comparando-se aos outros quatro que com ele dividiam a glória da Arte: Buondelmonte, Martino, Giusto de Imola. E o senhor, messer Iacopo. Por último, mas não certamente o último.”

         Ouvindo o próprio nome, o arquiteto respondeu com um sorriso pálido, inclinando ligeiramente a cabeça num sinal de apreço. "E como nunca fez mistério de julgar-se superior a todos os outros, às vezes até beirando a difamação, creio que a escolha de utilizar materiais de valores diferentes na representação do velho, que simbolizava com seu corpo a totalidade da arte, fosse uma clara alusão a uma hierarquia de artífices.”

         "É verdade" confirmou Cecco d'Ascoli. "Lembro bem como freqüentemente costumava confrontar sua habilidade com a dos outros. Mas daí pensar que...”

         "Todos aqui conhecem as duras regras da Arte da pedra", continuou Ammannati. "É absolutamente proibido a um membro difamar um companheiro, sob pena muito severa. E não seria a primeira vez que os membros da Arte castigam de maneira feroz quem infringe as regras. E o senhor deveria saber muito bem disso, messer Alighieri, com base no que se conta dos tintureiros florentinos.”

         Dante concordou em silêncio. Era conhecida em toda a Itália a expedição que a Arte de Calimala havia organizado até as terras da França para assassinar dois tintureiros culpados de ter revelado o segredo da coloração dos tecidos. Em seguida a notícia fora divulgada para que servisse de aviso a todos. Mas uma morte tão horrível parecia um castigo desproporcional a uma simples rivalidade.

         No entanto, o teólogo parecia convencido daquela hipótese que, entre outras coisas, tinha a vantagem de eliminar qualquer suspeita que pairasse sobre os membros do Terceiro Céu, à exceção de Iacopo Torriti. Era evidente, observando as faces dos presentes, que cada um deles teria apreciado essa solução.

          "Em quais elementos está fundamentada sua hipótese?" perguntou Dante, cauteloso. Intimamente duvidava da consistência dessa teoria, mas, encorajando a discussão, poderia colher algum indício posterior.

         "Considerando a maneira como o mosaicista foi assassinado", respondeu Ammannati. "Utilizando a matéria-prima de sua profissão, a cal, como se o assassino quisesse testemunhar que a causa do crime deveria ser encontrada justamente na profissão da vítima.”

         "Mas pensa verdadeiramente que a rivalidade na arte possa satisfazer a necessidade de uma causa fortíssima?" declarou Teofilo, pouco convencido.

         "Está esquecendo a segunda condição: um ser frágil. Sentir-se ferido na própria dignidade pode facilmente motivar ao crime um espírito não muito firme e confirmado na verdade cristã. Em alguns homens a fragilidade moral pode transformar-se numa arma, dando vida a um inesperado vigor físico. Não é necessário que a vingança tenha sido cometida pela Arte inteira. Um único homem ofendido pode ter sido responsável. Encontrem o nome daquele que se reconheceu na terracota utilizada por Ambrogio e teremos o culpado.”

         "Trata-se de uma tarefa muito difícil", afirmou Antonio da Peretola. "Nenhum desses artistas jamais esteve em Florença. A não ser o senhor, messer Iacopo. Mas sua maestria o exclui da suspeita, naturalmente", acrescentou rapidamente.

         Desde que Bruno Ammannati havia começado a expor sua teoria, Dante estava pensando nas sombras que vislumbrara no subterrâneo. Gente nunca antes vista, conforme Giannetto. Parecia que nenhum dos presentes estava a par desse detalhe.  

          Ou então sabiam, e procuravam orientá-lo exatamente nessa direção.

         "Mas todos trabalharam em Roma, juntamente com o grande Giotto, no embelezamento da Urbe para o Jubileu", insistiu Bruno. "E aí poderia ter nascido a rivalidade que aqui explodiu. E quanto ao fato de que nenhum deles tenha sido avistado em Florença, com o ir-e-vir de peregrinos e postulantes, de soldados e de mercadores que se atiram sobre a cidade como mutucas sobre uma égua prenhe, creio que seja absolutamente irrelevante como argumento adversum20.”

         "E quem pensam então que poderia ser o mestre mais desprezado?" perguntou o poeta.

         Ninguém respondeu, todos trocavam olhares perplexos entre si. Como se hesitassem em formular um juízo estético que pudesse soar como uma condenação.

         "Sua tese poderia explicar por que foi retratada Roma. Mas por que não colocar nela o colosso, se o mosaico reflete um acontecimento verificado lá? E qual é a cidade representada no lado direito da obra?", continuou o poeta.

         "Talvez eu saiba o nome" murmurou Antonio da Peretola, fazendo com que todos se interessassem. "Damieta." Dante ficou de repente atento. "Damieta", repetiu o outro com voz mais firme. "Com um grande portão de pedras e quatro leões. Baldo me contou.”

         "Tem certeza de que foi o taberneiro que contou?”

         "Sim, tenho certeza. E, além do mais, quem entre nós poderia conhecer uma região tão remota? A menos que algum de nós tenha viajado para além-mar...”

          O poeta olhou ao redor, procurando confirmação dessa hipótese, mas parecia que ninguém tinha o que dizer.

         "Podem convocar o proprietário da estalagem para sentar à nossa mesa?", continuou o prior. Nos fundos da taberna, a cabeça de Baldo emergia sobre a dos convivas como uma abóbora à mercê das ondas.

         Veniero, que até então permanecera calado, levantou-se e foi até o taberneiro. Conversaram um pouco. Dante viu que o cruzado dirigia algumas vezes o olhar na direção deles, com uma expressão perplexa. Logo os dois se aproximaram.

         Chegando à mesa, Baldo parou, apoiando o único braço sobre a mesa, e olhou o poeta nos olhos, com ousadia. A mão, recoberta por uma luva grossa de tecido verde, apertava a tábua de carvalho. "Me disseram que queria falar-me, senhor.”

         A pressão sobre a tábua da mesa parecia acentuar-se, e Dante teve a impressão de que a madeira se queixava. Toda a força do homem parecia concentrada no membro supérstite, como se a natureza quisesse compensá-lo pela perda que os homens lhe haviam infligido. Mas o que mais surpreendia era a visão do outro braço, ou melhor, do pouco que restara. Logo abaixo da articulação do ombro sobressaía de uma fenda do jaleco como uma ponta de asa, encerrado por uma taça de latão, provavelmente uma peça da louçaria de sua taberna.

         O homem percebeu o olhar do poeta. "Gostou do meu Graal, senhor?", perguntou com ironia, aproximando-lhe o cotoco do rosto.

         "Foi em Damieta que você foi ferido?" perguntou Dante, esforçando-se para não desviar o olhar. Estava incomodado por aquela ostentação. O taberneiro julgava impressioná-lo com suas misérias? Como se não tivesse visto, ele também, ossos fraturados e cabeças rolarem no pó, em Campadino.

         "Não, senhor. Foi em Acre que a morte começou a perseguir-me. Mas conheci bem Damieta, em minhas viagens.”

         "E é verdade que suas muralhas são decoradas com um grande portão de pedra branca, coroado por quatro leões no remate?" disse Antonio, como que buscando confirmação de sua afirmativa anterior.

         "É bem como está dizendo, senhor. Um grande portão, largo como a entrada do inferno, coroado com quatro leões, prontos para agarrar quem procurar atravessá-lo pela força. Mas teria sido melhor colocar quatro dragões para guardar aquele covil infame.”

         O homem parecia tomado por intensa emoção. Inesperadamente começou a cantar com uma voz rouca e desafinada.

         "Per te venit hac tribulatio O quam pravo ducti consilio Exierunt Duces in praelio Damiata tu das exilio Maledictafatorum series". Do latim:

         "Foi por tua causa todo esse sofrimento. Enganados por uma informação infame Que induziu os generais a sair em batalhai Damieta tu nos condenas ao exílio Maldita seqüência de eventos."

         Desde as primeiras palavras fez-se um silêncio inesperado na taberna. Dante observou inúmeros olhos lacrimosos. Todos, até mesmo os clientes mais humildes, pareciam ainda estar sofrendo pela tragédia da cruzada. Damieta, flor do Nilo, cidade mártir, onde as tropas cristãs haviam sofrido uma clamorosa derrota, reconquistada e perdida duas vezes pela obstinação dos cruzados em querer permanecer dentro das muralhas, ao invés de retirar-se para uma posição mais defensável.

         A chacina dos defensores, abandonados pelos reforços que nunca chegaram. A desolação dos desertores e das responsabilidades negadas. O louco orgulho dos templários, que haviam ensejado iniciar a batalha sozinhos, certos de sua invencibilidade, e a rivalidade das outras ordens, que haviam desertado. A ferocidade bestial dos mouros.

         Passados cinqüenta anos o amargo daquela derrota ainda envenenava a cristandade com seu séquito de polêmicas não resolvidas. Dante lembrava que, durante a sua infância, cantava-se na festa de primeiro de maio as glórias das tropas florentinas que haviam participado daquela empresa desafortunada.

         "Ouviram?", exclamou Antonio, confortado pelas palavras de Baldo.

         "Sim... poderia ser", concedeu o poeta. "Mas nesse caso, mais do que a cidade, o mosaico parecia retratar o seu abandono. Com sua quíntupla singularidade.”

         "Talvez eu possa ajudá-los, senhores.”

         Todos os olhares voltaram-se para Veniero. O capitão estava sentado a um lado da mesa, ligeiramente afastado os outros, que se aglomeravam ao redor de Baldo.

          "Ouviram a canção O quam pravo ducti consilio, enganados por uma informação infame. Os defensores foram traídos. Eu também estive além-mar. Antes de... abandonar a marinha várias vezes conduzi grupos de peregrinos no caminho de Jerusalém. E freqüentemente a bordo a queda de Damieta era comentada e amaldiçoada. Cinco eram os atores envolvidos nessa tragédia: os francos, os lombardos, os teutões e os genoveses. E também a Ordem dos Templários. E sempre havia disputas sobre quem entre eles teria sido o responsável principal pela derrota. Talvez mestre Ambrogio quisesse representar em seu mosaico exatamente essas cinco forças, atribuindo a cada uma delas um grau de valor em função do material escolhido...”

         "Demarcando com a vil terracota aquele que, segundo ele, fora o responsável pela traição", interveio Antonio. "Talvez haja alguém que não queria ser tachado de covarde dentro de uma igreja da cristandade... onde deverá surgir o colegiado geral do Studium"

 "Até ao ponto de assassinar?" perguntou Dante. A pergunta não encontrou resposta. Mas os fatos falavam por si, com a sua evidência de morte. Enquanto isso, os outros haviam se lançado sobre essa nova pista, discutindo animadamente as várias hipóteses. O prior acompanhava em silêncio e distraído a disputa. Indicar como responsáveis os franceses ou os lombardos era como não acusar ninguém. E, além disso, por que escolher a imagem de um velho, se a traição era o tema do mosaico? A idade sempre fora um sinal de sabedoria e virtude, de afastamento das paixões. Por que Ambrogio haveria de subverter essa imagem? E por que orientá-lo na direção de Roma?

       Passado o primeiro entusiasmo, ao redor dele a conversa começara a esmorecer, sem ter chegado a nada. Dante dirigiu-se novamente ao taberneiro, que havia permanecido ao seu lado, a mão sempre agarrada à mesa. "Você disse que a morte havia começado a persegui-lo em Acre. O que quer dizer com isso?”

         O homem rangeu os dentes, e repentinamente soltou a mesa para roçar a taça de latão, como se uma pontada houvesse atravessado o membro mutilado. "O senhor está fazendo ressurgir uma antiga dor. Mas responderei. Enquanto com meus companheiros defendíamos as muralhas, debaixo do sol escaldante dos pagãos, fui ferido por uma flecha envenenada. Percebi que ela vinha em minha direção e apenas tive tempo de fazer escudo com a mão. O dardo atravessou a luva. Logo o veneno começou a se espalhar ao longo do corpo, como as hordas de mouros que atravessavam nossas posições. Meu corpo não resistia, enfraquecido da luta, e cedia...”

         A voz de Baldo havia se feito gélida. Diante de seus olhos pareciam projetar-se as imagens daquele encontro. "Os cirurgiões da Ordem decidiram que só havia uma solução para mim, a amputação da mão. E, com o único conforto do lótus, ofereci o pulso a seus ferros." Olhou ao redor, fixando com orgulho a companhia, que parecia atravessada por um arrepio. Cada um parecia reviver na própria carne o sofrimento relembrado pelo aleijado. "Mas o veneno dos infiéis provou ser mais veloz do que o previsto e a gangrena apareceu no pulso e depois no cotovelo. Assim, por mais três vezes ofereci o braço já amputado aos ferros que corriam atrás do veneno. E este", concluiu agitando o toco do membro, "é o meu quinto braço. Ele substitui o único que a natureza me havia dado.”

         "Mas como sobreviveu?" Ocorrera a Dante assistir a algumas dessas dramáticas amputações no campo de batalha ou nos hospitais florentinos, e raramente concluíam-se bem. O fato de esse homem ter sobrevivido a quatro intervenções e gozar de boa saúde era um milagre.

         "Devo minha salvação à proteção de minha boa estrela", decidiu-se finalmente a responder o cruzado, contrariado.

         O poeta observou-o, perplexo.

         "Seus raios... me curaram. E a oração.”

         Dante continuava a observá-lo, perguntando-se o que eslava querendo esconder. Em seguida, dirigiu-se ao veneziano. "Messer Veniero, sabe alguma coisa de uma estrela milagrosa que cura os braços amputados? Encontrou-a em suas viagens?”

         "Infelizmente não, messer Alighieri. Receio que não se encontre uma assim debaixo de nenhum céu", respondeu interpelando num tom irônico. "Mas, se existisse, eu bem que gostaria...”

         Veniero interrompeu-se abruptamente, atraído por alguma coisa. Dante acompanhou o olhar do outro, curioso. Antilia surgira nos fundos da taberna e estava vindo em sua direção.

         A mulher caminhava lentamente, envolvida até os tornozelos em seu manto de pavão. Não parecia aprestar-se a dançar. Parou perto da mesa, ao lado de Dante, enquanto Baldo afastava-se rapidamente. O poeta enrijeceu-se, tomado por um súbito sentimento de vergonha. Por um instante a lembrança de Beatrice a caminhar pelas ruas de Florença havia se sobreposto ao movimento onduloso dos flancos da dançarina.

         Agora tinha finalmente a ocasião de observar de perto aquele corpo escultural que tanto o havia excitado.

         Os pés desnudos emergiam da orla turquesa do manto, adornados por anéis de ouro que luziam. Em seu rosto, além dos olhos negros, sobressaía a tez acobreada e a forte dentição branca. O colorido avermelhado da tez recordava a elegância de uma estátua antiga. Inclinou ligeiramente a testa, agitando os grandes brincos de ouro. Em seguida, com um gesto gracioso, sentou-se ao lado dele. Nesse movimento, por um instante as bordas do manto se entreabriram permitindo a visão do brilho do corpo nu.

         O rosto de Dante enrubesceu. Os outros também deviam ter percebido o resplendor, a julgar pela agitação que envolvia os membros do Studium. Ninguém entre os clientes habituais parecia ter notado; estavam todos absorvidos pelo vinho, como se a presença da mulher não mais constituísse motivo de espanto para eles... ou como se não ousassem erguer o olhar para aquele grupo.

         Apesar da perturbação que provocara, Antilia estava perfeitamente à vontade, sentada entre eles, como se o banco de uma taberna fosse para ela um assento de uma sala feminina.

         O poeta estava aterrorizado pela idéia de que alguém pudesse ver e comentar: um prior de Florença recém-eleito que permanecia sentado à mesa com uma dançarina, num local mal-afamado.

          Enquanto isso, depois de um instante de imobilidade total, a mulher havia movido a cabeça, percorrendo com o olhar o rosto dos homens que ali estavam sentados. Por último fixou Dante, que, entretanto, procurava obstinadamente pelo vazio à sua frente, tentando ignorar a força daqueles olhos penetrantes. Mas sem paixão, como se ele fosse um objeto a decorar o salão. Entretanto, o olhar da mulher não se desviava dele.

         Lentamente voltou-se para ela. Os malares salientes, sob as pálpebras alongadas pela maquiagem, lhe davam uma expressão indecifrável perdida num espaço e num tempo remotos. Lembrou-se de ter visto uma vez um rosto semelhante, na cabana de um caseiro que havia encontrado uma escultura ao arar o campo. Diziam tratar-se de uma cabeça de mulher de origem nobre pertencente ao povo etrusco que precedera os romanos.

         Comparou Antilia com todas as belas mulheres que havia conhecido, com as mulheres que havia amado. Nenhuma delas resistia ao confronto com o esplendor da beleza da dançarina, à exceção de Beatrice, com seu sorriso celestial. Rejeitou mais uma vez, irritado, essa comparação inadequada que, entretanto, continuava a reapresentar-se em sua cabeça.

         "Então, messer Durante, ao que parece Antilia atingiu também a sua imaginação", falou com um sorriso malicioso Cecco Angiolieri, que estivera observando atentamente suas reações. Havia permanecido em silêncio até então, em contemplação aparente de sua taça de vinho, como se estivesse entediado com o relato da história de Damieta. Mas a aparição de Antilia havia despertado também nele o interesse.

          "Certo, o senhor ainda não nos deu seu parecer sobre essa beleza", exclamou Antonio da Peretola. "De um poeta do amor como o senhor, esperaríamos um entusiasmo mais vivo pela beleza feminina. O senhor já dedicou versos graciosos a mulheres de toda espécie. Por que não regozijar nossos corações fazendo o mesmo com ela?”

         "Meus versos são fruto do despertar do sentimento amoroso de minha alma, não do furor dos sentidos, como os senhores parecem acreditar. E louvando a nobreza da mulher e sua proximidade com Deus, não suas formas aparentes que confundem nossos olhos." Dante havia pronunciado as últimas palavras com uma crescente irritação, esforçando-se para não olhar para Antilia. Ora, sua poesia por essa mulher, uma vagabunda estrangeira...

         "Compreendemos bem a relutância em arrastar para os bancos de uma taberna seus versos", continuou Cecco Angiolieri, que não pretendia render-se. "É claro que o trabalho de polimento da obra do rimador não coaduna com uma improvisação como essa que estamos solicitando. Então gostaria de ajudá-lo, declamando algo de sua obra. E diga se esses versos não foram escritos para ela.”

         "Quem olhará jamais sem medo Os olhos dessa bela pequenina, Que me deixaram tal que nada mais se espera De mim salvo a morte, que me é dura?”

         Cecco fez uma pausa. "Observou os olhos dela, messer Alighieri? Olhou realmente para eles?”

         Havia pronunciado os versos num tom dramático incomum, dirigindo-se para a dançarina. Ela escutava atentamente, Dante perguntava-se o que ela poderia ter compreendido dessas palavras pronunciadas numa língua estranha, e dirigidas a uma outra mulher. Antilia continuava a olhar para ele. Inesperadamente começou a cantar, no começo em voz baixa, quase sussurrando. De seus lábios entreabertos saía uma melodia fortemente ritmada, um conjunto de palavras incompreensíveis. Depois o canto subiu de tom, uma melodia triste que preencheu todo o espaço da taberna.

         Dante escutava fascinado. Não era nenhuma das línguas cristãs que conhecia; também não era o hebraico nem o idioma bárbaro dos mouros. No esforço do canto a mulher havia movido um ombro, e a borda do manto descera, descobrindo assim o colo. Parecia que o relampejar de uma chama ardia no peito da mulher, subindo para a garganta numa silhueta sinuosa. Era uma tatuagem, que se elevava das profundezas secretas de seu corpo para alcançar o seio num abraço. Viu a cabeça de uma serpente escarlate ornada de uma estranha crista, talvez um basilisco das terras do Oriente. Sentia-se tomado de uma excitação irrefreável ao imaginar o lugar onde poderia aninhar-se esse monstro.

         Agora era ele que procurava seus olhos. Mas o olhar dela havia se tornado fugidio. Interrompeu seu canto depois da última nota prolongada até o espasmo. Em seguida, se levantou lentamente, fixou o olhar do poeta por um instante e afastou-se em direção de seu refúgio, atrás da cortina no fundo da taberna.

         Os olhares de todos os presentes a haviam seguido. Cecco Angiolieri foi o primeiro a abrir a boca, demonstrando ter recuperado seu habitual tom gozador, fazendo alusão às formas da mulher, evidentes por baixo do leve véu de seda. Mas ninguém parecia disposto a escutá-lo.

         "Deveria estar lisonjeado, messer Durante. Antilia cantou para o senhor. É a primeira vez que isso acontece", disse Antonio em tom invejoso. "Aliás, todos aqui pensavam que fosse muda.”

         Dante enrubesceu. O olhar penetrante daquela criatura, que parecia vir de uma distância sem fim, e a serpente escarlate que mergulhava em suas carnes haviam se aninhado dentro de seu coração.

        

         19 de junho, durante a manhã.

         A coloração cobreada ainda preenchia seus olhos quando despertou. Sentia que, de alguma maneira, devia afastá-la. Aquela atração era perniciosa e imoral. Alguma coisa naquela mulher trazia má sorte, tinha certeza disso.

         Dante procurou concentrar-se nos negócios públicos. Naquele dia não estavam previstas reuniões com o Conselho, mas seu instinto sugeria que não era oportuno afastar-se naquele momento. Os outros cinco priores seriam capazes de qualquer coisa, por mesquinhez, ambição e obtusa ferocidade, as três feras que estavam assolando Florença. Eram necessárias a sua sabedoria, a sua ciência e a sua intuição para salvar a cidade.

         Mas o corpo de Antilia continuava como que caminhando dentro dele.

         Aguçou o ouvido para os sons exteriores. Não ouvia vozes nem ruído de passos. O convento parecia deserto, como se todos os seus ocupantes tivessem desaparecido. Saindo de sua cela inspecionou rapidamente as outras. Realmente não havia ninguém. Talvez os priores houvessem 163   retornado a suas casas. Poderia aproveitar e ocupar-se tranqüilamente do assassinato.

         Até aquele momento tinha explorado o local do crime, percorrera as ruas nos arredores, buscara entre os possíveis autores do crime. Ainda não havia examinado o cadáver, a não ser de maneira breve quando de sua descoberta.

         O corpo fora transportado para o Hospital da Misericórdia. A essa hora o protomédico já deveria ter concluído o exame post mortem. Talvez aquele beberrão houvesse descoberto alguma coisa útil.

         Parecia-lhe tê-lo diante dos olhos, o velho médico. Um embromador e um pederasta. Era o enésimo fruto da corrupção dos tempos: virgem em astrologia elementar, em fisiatria, na ciência dos fluidos e dos humores, sem nenhuma competência nos simples e nos compostos. Entretanto havia assumido esse encargo só porque pertencia a uma família abastada que chafurdava nas finanças públicas. E estaria disposto a lutar para mantê-lo. Mas, mais dia, menos dia, teria de haver-se com ele. Estava na lista. Como aquele maldito chefe da guarda. Como muitos outros.

        Saiu com passo ligeiro. Durante o percurso, no Claustro e depois até a porta, não encontrou ninguém, confirmando o estado de abandono do lugar. Outro sinal de decadência, se a política, em vez de ser feita no palácio do priorado, era realizada nas casas dos poderosos e em encontros secretos. Para que serviria o novo edifício em construção? Um invólucro vazio, voltado a assinalar com sua imponência inútil o direito e a justiça já deteriorados, como os arcos de triunfo dos antigos romanos.

         Diante dos portões do mercado de Orsammichele estava a multidão habitual dos dias úteis. Ficou surpreso de reconhecer na multidão os perfis inconfundíveis de Augustino e Antonio, entretidos na conversa com alguém que estava de costas para ele. Eles também o haviam reconhecido. Foram ao seu encontro, abandonando de repente aquela atitude confidencial, enquanto o desconhecido se afastava rapidamente, sem mostrar o rosto.

         "Messer Durante! O senhor está a serviço?", perguntou Antonio.

         "Ou está sempre à caça do assassino?" acrescentou o outro.

         "Ambas as coisas, sendo minha função de prior a luta contra o mal.”

         "Já conseguiu apagar da memória a maravilhosa Antilia para perseguir novamente o quíntuplo enigma?" perguntou Antonio. Havia um ligeiro traço viperino no tom de sua voz, como se ainda estivesse incomodado pela gentileza que a dançarina concedera ao prior.

 "Sim", encurtou Dante. "Mas nosso encontro pode ser proveitoso, porque acho que podem me ajudar. Desejo conhecer mais de seus projetos de dar vida ao Studium. Quem os enviou para Florença? De quem é a idéia? E de que maneira essa idéia tomou forma no espírito de Bonifácio, como dizem?”

         Os dois lançaram um ao outro olhares furtivos, como para consultar-se às escondidas. Em seguida, seus olhares dirigiram-se para ele. "Mas ninguém, messer Durante", respondeu Antonio, "ninguém nos convocou. O papa encoraja o nascimento das universidades para que o pensamento favorável à sua causa na disputa com os teólogos imperiais seja difundido. Mas não determinou em nada os nossos entendimentos. Cada um de nós chegou a Florença pelo seu próprio caminho. Foi aqui que nós nos conhecemos, e foi aqui que percebemos o vazio que a ausência de um Studium constitui para a divulgação do saber que tanto apreciamos.”

         "Compreendo. Um louvável empreendimento, não fosse a desgraça da morte de Ambrogio.”

         Os dois voltaram a olhar-se de relance, mas não acolheram a alusão. "Existem quatro grandes universidades na Itália. O Studium florentinum*21 será a quinta.”

         "A quinta" murmurou Dante, pensativo. Aquele número surgia continuamente. Cinco mestres da arte, o pentágono traçado sobre o mosaico, cinco possíveis traidores... E, agora, cinco universidades.

        Sua mente começou a divagar. Ao redor percebia apenas as vozes dos outros que continuavam a falar. Repensava esse número obsessivo. Cada relação de que lembrava tinha a ver com quantidades diversas: a unicidade do Deus verdadeiro, Adão e Eva, a Trindade imensa e inconcebível, os quatro cavaleiros do Apocalipse, os quatro evangelistas, os quatro fundamentos da Natureza...

         Por mais que se esforçasse não conseguia encontrar um grupo significativo composto de cinco elementos. Os sete sábios, as sete maravilhas do mundo, os nove céus, os doze apóstolos... como se o cinco fosse realmente um número maldito, excluído da numeração da condição humana.

         Poderiam ser cinco objetos. Ou cinco condições. Ou cinco idades, o mais óbvio. Retornaram à memória frases interrompidas, palavras que outrora ouvira sendo sussurradas nas salas reservadas aos studia22, nos contos populares, nos scriptoria23 dos conventos. E depois nas tabernas e nas estações de correio de via Francigena, pelos peregrinos que chegavam das terras do Norte ou que retornavam de alem mar. O quinto Evangelho. Os cinco evangelistas.

         Será que Ambrogio quisera celebrar Joaquim, que, segundo murmuravam, teria escrito o primeiro Evangelho, o mais antigo? O próprio irmão de Jesus Salvador, aquela sombra sempre presente e sempre rejeitada na história da Igreja?

         Mas para que recorrer à metáfora do gigante? Cada evangelista tinha a sua marca, consolidada pelos tempos e pelo uso por pintores e historiadores. E por que o quinto Evangelho deveria ser simbolizado pela terracota? Não seria absurda uma hierarquia de valores aplicada à palavra de Deus?

         "Por que está sacudindo a cabeça, messer Alighieri?" ouviu Augustino perguntar.

         Dante Sobressaltou-se. "Pensava no tema do mosaico. Naquela inexplicável alegoria.”

         "É, realmente singular. Uma inspiração bíblica. E ainda mais estranha, pensando no mestre Ambrogio", interveio Antonio.

         "Por quê?”

         "O comacino não era muito ligado a religiosidades. Eu o consideraria mais ligado à escola de Epicuro. Os prazeres de Eros não o repugnavam. Tinha freqüentemente o nome de uma mulher nos lábios...”

         "Que nome?”

         O outro hesitou um instante, antes de responder. Parecia embaraçado. "Oh, um nome que o senhor conhece bem: Beatrice.”

         Dante deteve-se de chofre, o olhar embaçado pela surpresa. Agarrou o outro pelo braço, obrigando-o a aproximar-se. Haviam lhe retornado à mente as palavras do jurista, durante o encontro na cela de São Marcos. "Não estava falando das simpatias imperiais do mestre?”

         "Sim, ou pelo menos é o que se murmurava em Roma", respondeu Antonio, tocado pela sua excitação. "O senhor pensa que pode haver alguma relação...”

         Dante não respondeu. Tinha-o soltado e agora refletia.

         Quatro metais e um material menos digno, mas resistente. Frágil mas duradouro. O bronze e o ferro dos antigos eram pó, juntamente com suas sombras. Mas os tijolos dos romanos ainda estão aí, nos arcos, nas basílicas, como testemunho da grandeza do Império.

         A terracota friável sobre a qual se apoiavam as esperanças residuais de um grande edifício. E, justo numa igreja de Florença, a cidade dos inimigos do Império. Um sorriso surgiu em seus lábios: se era realmente assim, que sutil perversão havia animado esse projeto! Nem mesmo Cecco Angiolieri teria sido capaz de igualar um gesto tão irreverente. Uma burla.

          Seu sangue voltara a ferver, como nos tempos em que, nas noites florentinas, caçava tenazmente, com Guido Cavalcanti, as esposas jovens de maridos idosos.

         Os outros dois continuavam a observá-lo. Pareciam interessados em sua expressão. Mas o poeta não queria enfrentar as suas perguntas. Não agora. Antes devia ter as informações sobre o corpo do morto. "Apresento minhas saudações, senhores. Infelizmente os compromissos de dever me obrigam a deixá-los neste instante. As necessidades do município são prementes", disse isso e, dando-lhes as costas, encaminhou-se rumo à esquina mais próxima.

        

         No mesmo dia, por volta de meio-dia.

         Dante atravessou o portão do Hospital da Misericórdia cabisbaixo. Ninguém dentre o grupo de encapuzados da confraria hospitalar que estacionavam embaixo da galeria pareceu fazer caso de sua chegada. Estavam ocupados em beber alternadamente de uma pequena moringa, apoiados às grades do carrinho utilizado para os cadáveres.

         Chegando ao andar superior, abriu caminho ao longo da galeria do antigo convento até a cela do protomédico. Entrou sem bater, parando à soleira da porta, de braços cruzados.

         "Saudações, messer Durante", disse, após um instante de surpresa, o homem no interior da cela, reprimindo um gesto de irritação. No momento em que Dante entrara, estava ele entretido contando moedas dentro de uma caixa de ferro. Apressou-se em fechar a tampa da caixa, levantando-se para ir ao encontro do prior. "Que motivo o traz aqui entre nós, interrompendo as sérias incumbências de seu ofício? Espero que não seja por alguma infecção do corpo, seu ou de algum parente, Nesse caso, providenciaremos abrigo e remédios.”

         Era um tipo seco, de traços aguçados. Uma abundante auréola de cabelos brancos descia ao longo da nuca até os ombros, que estavam recobertos por uma rica roupa de seda. Seus olhos eram frios, destituídos de inteligência e ofuscados por mais de um dos sete pecados capitais. Já ao chegar à porta o poeta havia começado a recitar uma silenciosa oração contra o mau-olhado, seguida de uma rápida invocação à Virgem Maria.

         O outro percebera algo, porque seus lábios finos se abriram num sorriso zombeteiro.

         Maldito. Três vezes maldito!, pensou o prior. "Quero saber do morto de São Judas. O que descobriu do exame do corpo?" disse em seguida.

         O médico-mor havia recuperado toda a sua calma. "Nada. Morreu." Parecia sinceramente surpreso. "O que eu deveria ter descoberto?”

         Dante fechou a porta, avançando lentamente para o homem, até quase chocar-se contra ele. Falou em voz baixa. "Que tenha morrido é uma notícia que já correu por toda Florença. Faz parte da natureza humana percorrer um breve caminho sobre a Terra, segundo a vontade de Deus, e depois retornar ao pó. Mas às vezes a medida prevista é reduzida pela maldade dos homens, o que se aplica a este caso. E então se espera que o arquiatro do município saiba fazer alguma coisa além de reconhecer a ausência da respiração."

 O homem começara a bambear sobre as pernas, cada vez mais nervoso.

         "Quando mandei entregar-lhe o corpo, ordenei que fosse feita uma minuciosa exploração necroscópica. Era isso que eu pretendia que fosse feito", acossou o poeta.

         "Mas foi justo o que realizei pessoalmente, atendendo a suas ordens, prior." O médico acrescentara o título do cargo, como para enfatizar que só por conta dele havia se dobrado às suas exigências.

         "Fez bem. E então?”

         "Sua alma separou-se do corpo com violência, por asfixia.”

         "E que mais?

         "Mais nada. Havia sinais de golpes na cabeça, mas nenhuma ferida. Nenhum sinal de crime, à exceção de...”

         "À exceção de...?”

         "Uma ferida, aparentemente superficial no peito, infligida por uma ponta. Uma espécie de arranhão, algo como um desenho...”

         "Deixe-me ver. Imediatamente!" Dante amaldiçoou-se por não ter ele próprio realizado o exame do cadáver, na mesma noite em que fora encontrado.

         "Agora está no subterrâneo, junto aos incuráveis..." O protomédico fez um gesto de contrariedade. "Trata-se de um simples arranhão...”

         "Tudo pode ser importante. Vamos." O prior já tinha aberto a porta e aguardava na galeria. O arquiatro seguiu-o de má vontade.

         Atravessaram rapidamente os grandes dormitórios destinados à cura dos doentes, roçando os leitos simples de madeira. Entre eles estavam estendidas telas de algodão, e dentro das pequenas celas assim formadas se agrupavam os parentes, que vinham alimentar os pacientes. No final da última sala, abria-se uma porta que- dava para uma escada estreita. Por ali se descia aos subterrâneos do edifício, divididos em duas áreas. Uma em direção ao rio, além da parede de tijolos que se destacava à frente deles, à qual se tinha acesso por uma porta baixa, que era utilizada como cadeia do município. A outra, essa que então percorriam, estava destinada a recolher os mortos e os moribundos, mais para escondê-los à visão do que para respeitar sua agonia.

         O inferno.

         O baixo subterrâneo, mal iluminado pela luz que atravessava as seteiras ao nível da rua, estava empestado por odores insuportáveis, tornados ainda piores pelo calor externo. O espaço achava-se abarrotado de mesas, sobre as quais jaziam algumas formas humanas recobertas de trapos. Outros corpos estavam alinhados junto às paredes, as cabeças reclinadas sobre o peito. Alguns tinham forças para ficar de pé e arrastavam-se com movimentos desconexos, lentamente, como se procurassem fugir das garras da morte. Mas nenhum deles parecia ultrapassar uma linha imaginária ao longo da parede do fundo. Lá, separados só por um corredor vazio, quase como uma alegoria do rio que assinala a fronteira com o reino da morte, estavam os bancos com os cadáveres que aguardavam o sepultamento.

         Vivos e mortos juntos, pensou Dante, como nos rodopios de uma dança macabra. Talvez fosse um bem que poupassem aos cidadãos honestos a visão desse espetáculo horrendo. Talvez os antigos persas tivessem razão, existia realmente uma região de trevas escondida do olhar luminoso de Deus, um lugar onde o Seu poder perdia para a miséria da carne.

         Relembrou a atmosfera pesada da cripta em São Judas. Que diferença havia entre os corpos que estavam ali, debaixo de seus olhos, e os corpos decompostos e mumificados que jaziam no fundo daquela espécie de funil infernal? Quem sabe dentro de poucas horas estes também ficariam como aqueles, desfeitos e perdidos até o Dia do Juízo?

         Cada vez que desciam uma escada descobriam uma cidade de dor, uma via crucis subterrânea onde aquela talvez fosse a estação mais terrível.

         Ao seu lado o arquiatro havia colocado a máscara de médico, com uma longa protuberância junto ao nariz que o deixava parecido com um obsceno pássaro do pântano; estava repleta com ervas e essências para dominar o terrível fedor de carne morta e viva.

         Dante conteve o impulso de vomitar que o invadira. "Onde está o cadáver do mestre?", perguntou.

         O outro indicou um dos bancos perto da parede. O corpo de Ambrogio jazia nu, parcialmente escondido pela presença de alguém que, inclinado junto ao morto, observava-o. Por um instante Dante pensou que um dos moribundos estivesse espiando no rosto do cadáver seu próprio terrível futuro. Mas suas roupas claras não se pareciam com os trapos rasgados ou os sudários que envolviam os outros; nem vestia o uniforme da Arte dos médicos. Era alguém do mundo dos vivos, debaixo de uma batina dominicana.

         O homem virou-se rapidamente, ouvindo o barulho de passos, e afastou-se depressa do corpo.

         "Quem é você e o que faz aqui?", perguntou rispidamente o prior.

         O outro teve um momento de incerteza. Parecia absorvido em decidir o que dizer.

         Enquanto isso, o poeta se aproximara e, quando um leve raio de luz atingiu o rosto do homem, reconheceu-o. "Você é Noffo. Noffo Dei.”

        Era um dos inquisidores florentinos, do lado de Bonifácio, ligado ao serviço da liga pontifícia. Havia-o visto várias vezes ao lado do cardeal Acquasparta, o núncio apostólico, apenas um passo atrás do cardeal. Um espião de Bonifácio. Um daqueles que deveriam ser banidos de Florença. Mas ainda não existiam provas de seus crimes. Por enquanto.

         "Irmão Noffo pediu para ver o cadáver." A voz do arquiatro às suas costas chegava abafada pela máscara.

         "Para conceder o conforto da piedade cristã." O dominicano rompera o silêncio. Estava parado na frente de Dante, a cabeça escondida no capucho e as mãos cruzadas na cavidade das mangas. "Eu também o conheço, messer Alighieri, e quero render homenagem ao seu cargo, à sua doutrina e à firmeza de sua fé.”

         "Que o próprio chefe da Inquisição confira tanta piedade é uma fonte de inspiração para todos nós. É isso que fortifica a fé dos humildes pecadores como eu. Mas o exame do corpo do cadáver está incluído nos rituais de despedida? Julgava que lhes fosse reservado o cuidado da alma e às mulheres piedosas aquele dos corpos", respondeu ironicamente o poeta.

         O dominicano permaneceu impassível. Dante aproximou-se mais. Estava ansioso por compreender o que estava observando quando o haviam surpreendido. O peito   de Ambrogio estava marcado por uma série de feridas à altura do coração, que atravessavam de um ombro ao outro. Deviam ser os arranhões aos quais havia aludido o arquiatro. Os cortes, firmes, estavam cercados por gotas de sangue coaguladas, mas não pareciam particularmente fundos e deviam ter sido infligidos mais para intensificar a dor do que para embotar os sentidos do mestre.

         Agora havia esquecido a presença dos outros, os gemidos e os odores. Parecia que seu espírito estava explorando aquela pele lacerada como um viajante num país desconhecido. Os cortes não haviam sido infligidos ao acaso: a lâmina havia provocado exatamente cinco incisões formando um pentágono. Novamente aquele símbolo, aquele número maldito.

         Ergueu o olhar para o frade. Seria inútil tentar arrancar-lhe informações. Teria sido mais fácil violar um túmulo e interrogar um cadáver. Só com um ferro em brasa nos olhos teria falado, pensou, e talvez um dia isso viria a ser possível.

         Um número muito elevado de perguntas sobre o papel da Igreja nesse assunto ainda estava sem resposta. Mestre Ambrogio simpatizava com o Império. Com o nome Beatrice sobre os lábios. Um nome que poderia explicar muitas coisas. Inclusive a presença de um inquisidor no necrotério.

         Mas teria sido inútil teimar em interrogar Noffo Dei quando poderia dirigir-se diretamente a seu patrão, o cardeal Acquasparta, o embaixador do pontífice em Florença.

        

         No mesmo dia, na parte da tarde.

         O núncio apostólico havia sido magnificamente alojado à custa da municipalidade numa ala do convento de Santa Maria Nova. Quando, no início do ano, o cortejo que acompanhava o cardeal Acquasparta tinha atravessado a entrada de Porta Romana entre duas alas de curiosos e, em meio aos aplausos da multidão, parecera a todos que realmente havia ingressado em Florença o grande mediador, o homem que iria atenuar os ódios e pacificar a cidade em nome da irmandade cristã.

         Somente Dante havia permanecido à parte, inquieto, como um troiano diante do magnífico cavalo. "Timeo Danaos et donaferentes", havia pensado. "Não confio nesses cães, mesmo quando sorriem para mim." Nada lhe havia agradado, nem o homem nem sua corte. O aspecto físico do cardeal revelava um luxurioso poltrão, com o rosto marcado pela hipocrisia conveniente da cúria. E quando na sala do Conselho fizera o grande gesto de recusar uma vasilha cheia de florins de ouro, não escapara a Dante o lampejo de cobiça que havia iluminado seu olhar com uma luz sinistra. Recusava o dinheiro para conseguir muito mais em seguida.

         Ao poeta não agradavam nem mesmo os secretários suspeitos, nem os cortesãos como o inquisidor Noffo Dei, que haviam acampado com ele e tinham sido lançados imediatamente às ruas no encalço de não se sabe bem o quê. E, sobretudo, não lhe agradavam as duas dúzias de mercenários armados com bestas e lanças que, apesar da sua oposição no Conselho, tinham sido autorizados a seguir o alto prelado para dentro das muralhas da cidade, e que agora haviam transformado Santa Maria Nova numa espécie de posto avançado das forças de Bonifácio, uma unha do leão enfiada no curral das ovelhas.

         Convocou rapidamente a sua "família", doze guardas municipais armados que lhe haviam sido destinados para a sua defesa pessoal e para fazer frente a eventuais problemas de ordem pública.

         "Que diabos está acontecendo, messer Alighieri?", gritou um dos outros priores. "É uma revolta? Onde está nossa guarda?”

         "Nada que deva perturbar seu sono, messer Lapo", respondeu Dante, sarcástico. "Uma rotineira operação policial", acrescentou para tranqüilizá-los. Enquanto descia, ouviu um deles que chamava aos gritos o chefe da guarda, para que acudisse depressa com seus homens.

         Parou aos pés da escada do priorado, aguardando que os guardas se alinhassem em duas fileiras diante dele, ofegantes sob o peso das armaduras. Havia solicitado que estivessem inteiramente armados, incluindo as espadas longas, e que vestissem a armadura completa com o brasão da   municipalidade. Seis homens carregavam sobre os ombros as pesadas bestas genovesas, inúteis num embate nas ruas urbanas, mas impressionantes por suas formas semelhantes às de um animal mitológico de aço.

         Atemorizar o adversário: era isso que Dante pretendia. Até aquele momento preferira mover-se com discrição. A torpeza encoberta por detrás da morte de Ambrogio lhe havia sugerido não comprometer a municipalidade naquele crime. Mas agora as circunstâncias estavam mudando: a trajetória do mal levara-o a cruzar com uma autoridade de mesmo nível que a sua.

         Ele próprio estava vestindo todas as insígnias de seu cargo. Em seguida, ordenou aos soldados que marchassem para Santa Maria Nova. Queria que os espiões de Acquasparta, que certamente estavam por ali, tivessem tempo de anunciar sua chegada.

         Percorreu rapidamente o trajeto que separava seu alojamento da residência do núncio. A cada passo o barulho e a multidão cresciam, como se todos os habitantes de Florença tivessem resolvido reunir-se debaixo da residência do vicário papal. No último trecho ficara difícil prosseguir. Sua escolta era obrigada a abrir caminho à força pela multidão de clérigos, mercadores, guardas armados e, sobretudo, mendigos, que gritavam ostentando suas misérias, e entre bandos de crianças que fugiam de seus professores ou das lojas dos pais. Diante de uma loja de tecidos, o proprietário, apoiado de braços cruzados contra o umbral da porta, parecia apreciar o espetáculo.

         "Por que diabos toda essa gente se aflige e se agita dessa forma?", perguntou o poeta.

          O homem não pareceu muito impressionado com suas insígnias e com os soldados que o seguiam. "Assunto de padres, senhor", respondeu. "Hoje é o dia de audiência pública, na casa do cardeal. Já que agora a casa é dele, não é?" acrescentou caçoando.

         "Santa Maria é e permanecerá sendo somente a casa dos florentinos, fique certo disso.”

         "Pode ser, mas será necessário fazer com que o cardeal também compreenda isso, pois ele mantém aqui sua corte.”

         "Mas por que tanta gente?”

       "Hoje são concedidas as indulgências, e especialmente moedas e provisões para os peregrinos do Jubileu.”

         Um pressentimento agourento atravessou a mente do poeta; talvez fosse melhor escolher uma outra hora para solicitar uma audiência. Mas a urgência da tarefa antepunha-se a qualquer consideração de oportunidade. E, além disso, não deveria encontrar um encarregado qualquer da cúria, mas sim Acquasparta em pessoa. Aquela confusão podia, portanto, virar-se a seu favor.

         Enquanto isso, chegara com seu séquito diante da fachada ainda inacabada da igreja. Ali terminava a jurisdição territorial do município e entrava-se na jurisdição da Igreja. Ordenou aos guardas que se postassem diante da entrada, e encaminhou-se sozinho rumo ao Claustro situado no lado esquerdo do edifício.

         O grande espaço quadrado, circundado por pórticos, tinha sido aberto ao público por tratar-se de um dia de audiência, e formigava de homens e mulheres amontoados, esperando sabe lá o quê. O poeta abriu caminho à custa de cotoveladas em direção a escada, procurando proteger suas roupas e amaldiçoando as leis locais que o impediam de varrer aquela gentalha de lá.

         Ultrapassou com um salto o primeiro degrau, atulhado com peças de tecido sobre as quais os vendedores expunham suas mercadorias. Readquirido o equilíbrio, iniciou com dificuldade a subida, cuidando para não ser empurrado pelos que desciam.

         Precisou retroceder algumas vezes para não ser arrastado, e finalmente aproveitou-se do caminho aberto por um grupo de mercadores lombardos corpulentos e organizados. Subiam abrindo caminho como lanceiros que atacam as linhas inimigas. A reboque desses, Dante conseguiu finalmente alcançar o topo da escada, chegando à frente dos guardas armados que interrogavam os postulantes para serem admitidos por uma pequena porta atrás deles ou mandá-los de volta conforme critérios misteriosos. Pareciam estar às ordens de um guarda armado de besta, recoberto com uma imponente armadura, maciço como o sino de uma catedral. Era aquele velhaco a autoridade suprema; sentado num barril, julgava com um grunhido ou com um leve gesto com a mão, às vezes com um simples levantar da sobrancelha.

         Imprensado pela multidão que o circundava, Dante teve tempo suficiente para estudá-lo. Os postulantes que chegavam pela esquerda eram sistematicamente privilegiados em relação aos outros. Como se para ele a esquerda fosse o lado dos beneméritos, enquanto a direita, por uma curiosa inversão das normas universais, a parte rejeitada. De qualquer forma, Dante atirou-se com força para o lado esquerdo, alcançando com um último esforço a frente do barril.

         "Sou Dante Alighieri, prior da cidade de Florença. Solicito audiência imediata ao vicário de Bonifácio", disse no tom mais solene de que era capaz, erguendo-se com toda sua estatura diante do outro, que permanecia tranqüilamente sentado.

         Nem o nome nem o cargo pareciam ter suscitado nele uma impressão particular. O homem limitou-se a observá-lo de baixo para cima. "Aguarde", disse em seguida num tom seco. E logo acrescentou: "O senhor e essa cidade florentina!" Pronunciou essas palavras com uma irreverência que expressava claramente os sentimentos dos esbirros de Bonifácio em relação à cidade. A pronúncia denotava uma origem remota. Devia ser um dos mercenários franceses do cardeal.

         Dante abaixou-se ligeiramente dobrando um dos joelhos, colocando-se ao nível do rosto do outro. "Anuncie-me imediatamente ao cardeal! Com sua má vontade e sua indolência está atrasando uma missão da qual pode depender o triunfo da justiça e as relações entre o Patrimônio de São Piero e a nobre cidade de Florença. Você será enforcado, juntamente com os bandidos que o acompanham, quando...”

         "Vá se foder, senhor", interrompeu-o o outro sem nenhum gesto que indicasse a intenção de levantar-se, acompanhando a expressão com um bocejo. "Vade et repetito"24, sentiu-se na obrigação de acrescentar.

         "Repete, idiota!" gritou Dante. "Anuncie-me, filho de uma puta, ou essa noite você irá dormir na cadeia!”

         O outro olhou para ele como se fosse um louco. Em seguida pareceu-lhe finalmente dar-se conta de suas vestes luxuosas. Com o olhar observou os símbolos do priorado, enquanto um dos guardas inclinava-se e sussurrava alguma coisa no seu ouvido. Talvez o tivesse reconhecido, ou então havia observado a escolta de soldados enfileirados na entrada. Agora o homem estava perplexo, mas ainda não parecia disposto a ceder. Em seguida, como tomado de um inesperado sentimento de piedade pelo postulante que se agitava diante dele, encolheu os ombros. "Visto que o senhor parece importante, talvez seja melhor que o deixe visitar o cardeal: ele saberá colocá-lo em seu devido lugar. Entre. Mas tenha cuidado para não incomodá-lo.”

         Dante ultrapassou a porta sem nem mesmo perceber, tomado por uma raiva cega. Conseguir cruzar uma porta em sua cidade, onde era prior, por concessão de um pilantra francês! Se olhasse para alguém nesse momento tê-lo-ia transformado em pedra, tanto era o veneno que trazia no corpo. Era dessa forma que deveria ter nascido Górgone.

         Um funcionário da cúria acompanhou-o ao longo de um curto corredor, e depois por uma galeria aberta até a extremidade da construção. Lá estava um homem de costas ocupado em contemplar a cidade. Por um instante Dante observou seu perfil de traços marcantes. Um patrão ocupado em admirar suas possessões.

         Enquanto o frade que o havia anunciado afastava-se silenciosamente, o homem voltou-se. Alto e maciço, com um nariz largo que pendia sobre o lábio superior, poderia ter sido o magnífico retrato de um imperador da decadência. Um Cômodo, talvez. Ou então um Nero, se não lhe tivesse faltado completamente a faísca juvenil de loucura que iluminava os traços do romano. No rosto do cardeal lia-se somente um longo hábito de intrigas e de corrupção.

         "Finalmente nos encontramos, messer Durante. Faz tempo que queríamos conhecê-lo. Isso não significa que já não conheçamos seu espírito, pelos seus versos amorosos", iniciou o alto prelado.

         "Minha arte é objeto das atenções da Igreja?", Dante perguntou levemente orgulhoso.

         "Entretanto nem sempre suas idéias e mais ainda suas atitudes são tais para suscitar a nossa paternal benevolência. Teríamos auspiciado que um bom cristão, como o senhor é, demonstrasse uma maior compreensão pelos nossos anseios, que são os do papa Bonifácio. Ergo25, aqueles de Deus.”

         Os olhos do poeta faiscaram, enquanto seus punhos se contraíam. Deixou passar alguns instantes antes de responder. "É um silogismo difícil o seu, cardeal", replicou, procurando manter um tom pacato. "Eu posso distinguir entre a infinidade de Deus, a majestade da Igreja e o breve papado de Bonifácio. Quanto a isso, já antes de estar investido com os trajes de prior, tive ocasião de contrastar as intenções do papa com o meu conselho, a minha palavra e as minhas ações.”

         A expressão do rosto de Acquasparta contraiu-se numa careta. "Parece que sua obstinação não se atenuou, entretanto a responsabilidade de seu cargo deveria induzi-lo a maneiras mais conciliadoras. O que lhe dá tanta segurança? Está tão seguro que, pelo fato de pertencer ao partido Branco, isso o deixe ao amparo dos caprichos da sorte? Agora suas costas estão cobertas graças à proteção da família Cerchi, assim como anos atrás conseguiu subtrair-se à justiça graças à proteção da família Cavalcanti. A Inquisição já enumera entre os procedimentos em curso o manuscrito de seu livreco, o Fiore, com suas obscenas chacotas dirigidas aos eclesiásticos.”

         Dante permaneceu impassível. Bem no fundo esperara que cedo ou tarde alguém realizasse a conexão dele com aqueles sonetos, apesar de ter tido o cuidado de fazê-los circular só em cópias anônimas. Mas diante desses malditos hipócritas não haveria de retratar-se por nada.

         "Parece que meus concidadãos têm um melhor juízo sobre minha pessoa, visto que a mim confiaram seus destinos", limitou-se a responder.

         "Talvez seus concidadãos não saibam tanto quanto nós sabemos. Perguntamo-nos por que razão um homem que administrou tão mal sua fortuna deveria exceder-se na gestão dos assuntos públicos. E agora nos chega a notícia de que está interessando-se também por um crime. A perdição parece persegui-lo, messer Alighieri, como a sombra do cão persegue o cão.”

         "Ou como os passos da morte seguem os que são malvistos por Bonifácio, em suas cidades cristãs.”

         O cardeal levantou-se de um salto, o rosto roxo de furor. "Como ousa, impudente! Vai se arrepender da louca altivez com que associa o nome de Sua Santidade ao gesto de um facínora. O senhor parece esquecer que só não está a ferros pela benevolente paciência da Igreja, que ainda não acertou as contas consigo.”

         Estendeu o anel em sua direção, aproximando-o dos lábios do prior, enquanto com os olhos chamejantes impunha-lhe beijá-lo. Dante também havia saltado em pé, os braços esticados em direção à garganta do outro, que havia encolhido instintivamente a cabeça entre os ombros maciços, como uma tartaruga ao defender-se de um corvo. Os dedos do prior não conseguiam abrir uma brecha entre as dobras do pescoço, enquanto o príncipe da Igreja, superado o primeiro choque, começara a preparar-se para gritar por socorro, com os olhos vítreos de terror.

         O poeta soltou momentaneamente a mão direita dó pescoço de sua presa, tateando sobre a mesa em busca de um candelabro para utilizar como arma. Acquasparta, por sua vez, havia cingido com os braços a cintura do prior, tentando com isso arrastá-lo em direção à porta para pôr-se a salvo. Sob a pressão, o cabo da adaga escondida premia suas costelas. Dante agarrou-a e a apontou para o pescoço de seu adversário.

         "Ousaria... isto! Na casa do vigário de Deus! Ensangüentar a entrada da casa de Pedro!", murmurou o cardeal com a voz alquebrada pela ansiedade, a ponta da adaga contra o pomo-de-adão. "Não sairá vivo daqui... nunca!”

         "O senhor também não sairá de Florença!" assoprou Dante, procurando morder a orelha do outro. Mas, enquanto isso avaliava rapidamente os prós e os contras na balança que o destino lhe oferecia. Sua própria vida em troca da eliminação de um dos mais acérrimos inimigos da liberdade de Florença. Podia finalmente livrar-se daquele homem venenoso, esmagando a cabeça da serpente que havia depositado os ovos em sua cidade. Bonifácio, privado de sua longa manus* na Toscana, seria obrigado a desistir de suas intenções.

        Depois o gesto apareceu-lhe em toda sua enormidade. Não se importava em sacrificar a própria vida, mas Acquasparta, apesar de tudo, era um vicário de Deus. E, além disso, cortar uma cabeça da Hidra seria inútil, visto que outras cem já estavam prontas com as goelas abertas. Soltou-o lentamente, retrocedendo um passo. O outro, assim que sentiu desapertar-se a morsa, recomeçou a respirar ofegante, massageando a garganta onde estavam bem visíveis os sinais de dedos. Abandonou-se pesadamente num dos pequenos tronos da sala, muito pálido. Um instante depois o poeta também se sentou diante dele.

         "Arrependa-se... peça perdão pela sua ferocidade diante de nossa humilde grandeza, e poderá voltar a ser como um nosso filho...", murmurou o cardeal. Todos os traços de seu hipócrita caráter sagrado haviam desaparecido. Agora aparecia o que estava em sua essência: um político envolvido num duelo com um adversário irredutível. Tinha perdido o primeiro embate e procurava recolher suas forças para atacar novamente. "E, além disso, o que o trouxe a esta sala, além do pérfido desejo de ofender nossa sagrada pessoa?”

         "Por que a Igreja se interessa pelo crime do mesere mosaicista? Por que o senhor despachou o seu capanga, Noffo, para espiar seus restos?" replicou Dante, ele também com voz ofegante.

         O cardeal teve um sobressalto, incomodado pela pergunta. "Não tenho nada para explicar. A santa Igreja romana avalia a hora do bem e a do mal", respondeu com gravidade. Aos poucos estava readquirindo as cores. "Um crime realizado num local sagrado é sempre objeto da sua atenção. E daquela da Inquisição, sempre que surjam indícios de rastros diabólicos.”

         "E o senhor encontrou esses rastros no crime do mosaicista? É assim, então? Pensa verdadeiramente que tenha sido um demônio a cometer o crime? As unhas de Belzebu laceraram o pobre corpo de Ambrogio? O que teme, realmente, dessa morte? E antes? O que temia de sua vida?".   

         O outro não deu mostras de perceber seu tom zombeteiro. Havia se aproximado da janela, como procurando ar fresco. Em seguida voltou-se, com um lampejo malicioso no olhar. Retirada a máscara curial, agora se mostrava como qualquer mercador astuto, pronto a comprar e a vender.

         "O que deveria temer a santa Igreja da morte de um mísero artesão? E o que de sua vida?”

         "Não era um simples artesão, mas um grande mestre das artes. Um mestre comacino. E, além do mais, era gibelino.”

         O cardeal continuava com sua atitude indiferente. Dante lembrou do contrato para as obras no convento de São Paulo que havia encontrado na cela do falecido.

         "O homem havia trabalhado também para Bonifácio, em Roma.”

         "E então?”

         O poeta pareceu perceber um timbre ansioso na última pergunta. Decidiu ir mais a fundo. "Se a morte do mestre, como tudo indica, está ligada à sua obra, é opinião de muitos que nessa obra ele quisesse representar uma verdade que veio a conhecer em Roma. Cidade de onde havia fugido com muita pressa para encontrar refúgio aqui.”

        Interrompeu-se para avaliar o efeito de suas palavras sobre o adversário. "Uma verdade que julgava devesse ser revelada com a força da arte. Lembre que a igreja deverá vir a ser a capela da Universitas* florentina. Debaixo dessa imagem teriam lugar as grandes batalhas do conhecimento. E se não agradasse à Igreja...”

         "E qual seria, a seu ver, essa verdade tão desagradável para a Igreja?" Os olhos do embaixador do pontífice estavam reduzidos a uma fresta estreita.

         "Está querendo sustentar que não sabe?”

         "Qual é essa verdade, messer Alighieri? O que teria desejado representar o comacino?, repetiu o outro, os olhos agora completamente cerrados, o rosto coberto de suor.

         Dante deixou transcorrer ainda um instante, antes de responder. "É possível que tivesse a intenção de incluir na pedra um símbolo da família imperial da Suévia.”

         O cardeal reabriu os olhos de uma só vez, enquanto um sorriso de desprezo desenhava-se nos seus lábios. "É essa hipótese miserável todo o fruto do seu engenho? Seriam esses os resultados de sua inquisição? E quais danos deveria sofrer o herdeiro triunfante de Cristo de uma relação de mortos já derrotados e cancelados do século?”

         Aquele tom sarcástico teve o efeito de uma chicotada. Sem refletir, o prior abandonou a prudência. "Derrotados mas não cancelados. Talvez o comacino não quisesse celebrar somente as gerações passadas, mas também a geração presente.”

         "O que quer dizer? A qual geração está aludindo? Ficou louco?”

         "Está esquecendo a quinta filha de Manfredi, Beatrice. A última herdeira de Frederico II”.

         A expressão do príncipe da Igreja parecia de pedra. Levantou-se de repente enquadrando o prior do alto de sua estatura. Dante ajeitou-se melhor no pequeno trono, ajustando as dobras de suas vestes. A voz de Acquasparta fez-se estrídula, sem mais nenhum traço de bonomia.

         "Não existe nenhuma quinta filha! Manfredi, o bastardo, teve só quatro descendentes, e todos estão mortos!”

         "E se a lenda for verdadeira? Talvez seja isso o que o comacino apreendeu em Roma, e que queria revelar.”

         O cardeal havia perdido qualquer controle. "Não existe nenhuma Beatrice, estou dizendo!" balbuciou.

         "Talvez seja assim, mas a força das lendas vence a da realidade. Se os imperialistas estiverem prestes a apresentar uma Beatrice como legítima herdeira da coroa imperial, talvez Bonifácio encontrasse mais de um obstáculo em seu caminho na direção do domínio da Itália.”

         "É uma mentira..."   

          Dante percebia que havia aberto uma fenda na segurança do outro e continuou, implacável. "Depois da derrota e da morte de Manfredi em Benevento, seus filhos homens foram capturados. Eram quatro. Mas dizem que havia uma mulher com o rei. Uma mulher que trazia o embrião do imperador em seu ventre, e que conseguiu fugir com o tesouro imperial.”

         "Como é que essa história chegou ao seu conhecimento?”

         "A Igreja não é a única que possui olhos e ouvidos. E talvez minha mente seja mais aguçada do que o senhor crê", sibilou o poeta.

         Alguma coisa mudou instantaneamente na atitude de Acquasparta. Até mesmo o tom de sua voz tornou-se inesperadamente menos altivo, assumindo uma atitude conciliadora. "Está completamente fora do rumo, messer Alighieri. E não hesitaria em deixá-lo no erro se, ao permitir que um dirigente da cidade siga por um caminho equivocado, não gerasse danos para a nossa amada cidade de Florença. Não desafie o nosso poderio. Não lhe convém. Em vez disso, tenha confiança na magnanimidade da Igreja. Aliás, queremos oferecer a face para o beijo de reconciliação. Bonifácio pode ser magnânimo até mesmo com seus inimigos. Sabemos de suas dificuldades domésticas. Abrigue-se debaixo de nossas grandes asas e reencontrará, além da fé de seus pais, também a ajuda de que necessita. Nenhum agiota de Florença pode ser tão generoso quanto nós.”

         Dante aproximou-se, mais pronto para morder do que para beijar. "Pensa que para salvar-me eu estaria dis- 191   posto a vender a liberdade do município? li mais do que isso, a trair a verdade?”

         "A Igreja conhece bem as debilidades do ser humano, por ter sido a fiel guardiã desde a traição de Pedro. O espírito que nos anima não se mede em anos, mas em milênios. Sabemos esperar. No final retornará a nós, e essa decisão de retornar como filho pródigo ou como acorrentado cabe-lhe inteiramente. O senhor é feito de pó, como todos. Navega nos céus das musas, mas seu barco se destroça nas ondas de poucos florins.”

         O prior levantou-se de um salto. "Só Deus é guardião de meu futuro! Nem Bonifácio tem poder sobre ele enquanto Florença o enfrentar com a cabeça erguida. E, no que me diz respeito, continuarei a investigação, e mais forte ainda minha voz se levantará para dificultar suas intenções sobre nossa liberdade!”

         "Pode seguir suas pistas, messer Alighieri. Mas não chegará a nada. Ambrogio não fugiu de Roma pelos motivos que o senhor pensa. Não foi por eles que foi morto", disse o cardeal, enquanto o despedia com um gesto.

         Dante começou a retirar-se, mas chegando à porta parou, atento à voz esganiçada de Acquasparta. "Foi-nos relatado a respeito daquela dançarina que se apresenta na taberna do cruzado. Parece que está interessado nela, e, conhecendo-o, é fácil intuir o tipo de paixão que o atrai na direção da vagabunda. Mas não se entregue às suas ilusões de poeta: aquela mulher é perigosa, um vaso de luxúria, sempre pronto a transbordar.”

         O poeta desceu as escadas sem nem mesmo se dar conta da multidão que continuava a chegar; foi abrindo 192   passagem por entre a massa de corpos, batendo e golpeando como se estivesse tomado pelas próprias Fúrias, ou como se os quatro cavaleiros do Apocalipse galopassem a seu lado. Cada músculo de seu corpo estava contraído num espasmo. Tinha a sensação de que, de um instante para outro, uma flecha de besta pudesse rasgar-lhe as costas. Só depois de ter alcançado a rua conseguiu lentamente acalmar-se.

         Do lado de fora reencontrou a escolta, que havia ficado à espera, enfileirada diante da escadaria. Observou com fastio aqueles poltrões que se divertiam, enquanto faziam gestos e propostas lascivas às empregadinhas que passavam. Estava arrependido de querer ostentar uma força com a qual, na verdade, não podia contar. Conseguiria agir melhor sem eles, pensou enquanto os despachava rudemente. Além do mais, para o que pretendia fazer, seria melhor não chamar a atenção.

         Dobrou rapidamente uma viela lateral, olhando ao redor desconfiado, atentando para que ninguém o seguisse. Ao sair da nunciatura não havia prestado atenção, e não era de se excluir a hipótese de que algum esbirro do cardeal já estivesse em seu encalço.

         Observou cautelosamente os rostos dos transeuntes, mas sem notar nada suspeito. Continuou caminhando com rapidez, ladeando as fachadas dos edifícios, cabisbaixo, refletindo sobre o que acabara de ocorrer.

         Acquasparta havia negado tudo. Mas o fato de ter chegado a Florença logo depois do comacino poderia ser só uma coincidência? Ambrogio, fugindo de Roma, talvez tivesse deixado naquela cidade um indício de quais eram 193   suas intenções, e essa pista havia sido seguida pelos homens do papa como sanguessugas em busca de sangue.

         Dante caminhava procurando não se fazer notar, mas era praticamente impossível por causa das insígnias de seu cargo que ostentava nas roupas. "Dê-me uma braça de tecido, qualquer um", pediu autoritariamente a um comerciante que ali perto exibia tecidos sobre uma banca. O homem apressou-se em oferecer-lhe um manto escarlate que ainda recendia aos perfumes da tinturaria, intimidado pelo tom imperioso e por suas vestes. Não parecia nem mesmo esperar pelo pagamento, que Dante atirou sobre a banca, afastando-se rapidamente.

         Assim que dobrou a esquina, o poeta retirou o barrete e envolveu-o cuidadosamente no tecido, junto com o bastão dourado. Em seguida, com aquele embrulho bem seguro debaixo do braço, continuou seu caminho, a cabeça descoberta sob o sol escaldante. Mas, percorridos menos de cem passos, uma fraqueza súbita acompanhada de vertigem obrigou-o a apoiar-se contra a parede.

         Enquanto procurava restabelecer-se, com os olhos fechados, aguardando que os efeitos da vertigem passassem, lembrou que não comera nada desde a véspera. A não ser o vinho de Baldo, lembrou balançando a cabeça.

         A excitação do espírito pelos últimos acontecimentos parecia ter cancelado completamente as necessidades da carne, e agora seu corpo enfraquecido estava se vingando. Protegendo os olhos com a mão, percebeu na extremidade da rua a tabuleta de uma pequena taberna e dirigiu-se naquela direção.

          "O que posso servir, senhor?" perguntou solícito o taberneiro, que tinha ido logo ao seu encontro. Sobre o balcão estavam algumas travessas com fatias de queijo e presunto, rodeadas de pratos com legumes. O homem acompanhou o olhar do poeta.

         "Vejo que aprecia a minha comida. Não haverá de arrepender-se de sua escolha, venha sentar-se", convidou alegremente.

         Dante deixou-se cair sobre um banco. "Traga-me alguma coisa, o que tiver", limitou-se a dizer, com ar sombrio. "E para beber. Branco.”

         Depositou o embrulho sobre a mesa e segurou a cabeça entre as mãos. Estava tentando preparar um discurso convincente para enfrentar a prova que o aguardava. Mas pagaria qualquer coisa para evitá-la. Afugentou com raiva uma mosca que parecia tê-lo escolhido como latrina.

         A nuvem de insetos que circulavam no local não parecia muito diferente da dos credores que o atormentavam.

         "Aqui está, senhor!" A voz do taberneiro tirou-o de seus pensamentos. Diante dele estava um prato de madeira recoberto com fatias de pão preto, embebidas num caldo avermelhado. Por cima, duas fatias de queijo, com uma grossa casca que já apresentava alguns sinais de mofo. "E aqui está o vinho, verdadeiro néctar de São Dionígio!" declarou, trazendo um jarro de barro fresco.

         "Dioniso", murmurou Dante com voz cansada.

         "São Dionísio?”

         "Não, Dioniso, o deus.”

         "Nossa, senhor, tem razão; aquele era São Damásio.”

         O prior afastou-o com um gesto, enquanto procurava inutilmente por algo parecido com uma colher. Foi suficiente um olhar rápido para perceber que não havia nem sombra de colher em toda a taberna. Com um suspiro resignou-se a enfiar os dedos no prato, depois de ter enrolado a manga da veste. Finalmente conseguiu engolir uma porção gotejante. De fato estava razoável, a não ser pelos sinais evidentes de mofo. Não era muito diferente do que lhe era servido pela cozinha do priorado. Atirou-se sobre o vinho, quase em desespero.

         O que quer que seja que comera, começava a sentir-se melhor. Teria gostado de ficar repousando mais algum tempo, mas o assalto que os insetos faziam aos restos do caldo tornara-se insuportável. Recolheu seu embrulho e saiu, depois de ter deixado uma moeda entre os restos de comida. O safado do taberneiro seria obrigado dessa forma a sujar, ele também, seus dedos se quisesse pegá-la.

         O cardeal podia estar errado em tudo, mas, quanto à sua necessidade de dinheiro, tinha desgraçadamente razão. A imagem esmaecida de Manetto veio-lhe à mente. Reviu seus dentes aguçados de furão, sua horrorosa cor de bílis. E nem era o único credor, tão-só o mais desagradável e impudente.

        O ânimo de Dante tornava-se cada vez mais sombrio à medida que se aproximava de sua meta. Quando entrou na via Cambiari poderia matar um homem somente com o olhar, tanta era a raiva que fervia dentro dele. Era, em parte, efeito do que havia ingerido, mas também do que via ao seu redor, com a lembrança humilhante de suas visitas prece- 196   dentes. A rua, estreita e modesta, era o verdadeiro coração pulsante de Florença, com suas bancas de mercadores, os armazéns de tecidos e, sobretudo, as lojas dos maiores usurários da cidade.

         Não era a primeira vez que ultrapassava uma daquelas portas. A fortuna dos Alighieri, depois da morte de seu pai, diminuíra com a queda dos valores fundiários das terras que constituíam o patrimônio da família. As receitas estavam reduzidas a quase nada, destroçadas pelos anos de colheitas ruins e pela cobiça dos meeiros e rendeiros. Cada vez mais freqüentemente Dante tinha sido obrigado a recorrer a empréstimos daquela gentalha.

         Durante os primeiros tempos no exercício de sua função política, mais de um usurário havia se apresentado espontaneamente, oferecendo-se para cobrir suas despesas. Participar nas eleições de um membro do Conselho dos Cem valia muito, em termos de retribuição de favores.

         Mas depois começara a enxotar os primeiros que vinham cobrar os frutos do investimento, e sobre sua cabeça haviam começado a voar os urubus da desgraça. Agora era sempre mais difícil para ele obter um empréstimo, mesmo com o apoio das garantias de seu irmão Francesco.

         Percorreu lentamente um trecho da rua, até parar diante da banca de messer Domenico, um pequeno cambista de divisas que, porém, graças à sua associação com a família Bardi, sempre dispunha de muito dinheiro. Ninguém teria imaginado que, por trás de uma simples porta de madeira, simplesmente protegida por uma tela de algodão, se refugiasse uma das maiores potências econômicas da cidade e talvez de todo o Império.

         O poeta estava juntando forças para entrar, quando por trás da tela escutou vozes que se aproximavam. Antes que pudesse apartar-se, viu surgir Veniero, que saía em companhia do banqueiro. Parecia existir uma boa harmonia entre os dois. Messer Domenico o acompanhava até a porta com uma gentileza incomum, roçando-lhe o cotovelo, enquanto o outro se despedia também cerimonioso.

         Dante parou de chofre, admirado.

         Vendo-o, messer Domenico assumiu uma atitude apressada e enfadada, como se já adivinhasse a razão de sua visita. Ao poeta parecera que o outro havia avaliado com um rápido olhar o embrulho que continuava a apertar debaixo do braço. Pensava que tinha consigo algum objeto para penhorar? Maldito sanguessuga! Atirar-lhe-ia na cara suas insígnias assim que estivessem sozinhos.

         Veniero, pelo contrário, entreabriu os lábios num largo sorriso, como se estivesse contente pelo encontro. "Messer Alighieri, vejo que seus negócios o conduzem para o mesmo caminho que o meu. O senhor também está procurando florins?", disse.

         "Mas com poucas esperanças de conseguir. O ouro concilia-se mal com a poesia. Imagino que saiba disso", respondeu Dante acompanhando com o olhar o usurário que se apressara a entrar, depois de um rápido cumprimento.

         "Se é por isso, também se concilia mal com o andar no mar, receio.”

       "Entretanto, não é o mar o cofre de todas as riquezas?”

         "Se for verdade, então para mim esse cofre permaneceu bem fechado, e agora sou obrigado a procurar na terra", retrucou o outro, apontando com um gesto a porta do banco às suas costas.

         Dante teria apreciado aprofundar-se sob a superfície dessa alegria forçada. Parecia-lhe que o veneziano procurava minimizar voluntariamente as próprias possibilidades, mas bem havia reparado no brilho de cobiça nos olhos de messer Domenico.

        Não seria certamente o tratamento que aquele cachorro avarento reservava aos que se humilhavam diante dele para um empréstimo. Não, juraria que Veniero fora oferecer mais do que pedir.

         "Mas, mesmo se o cofre permanece fechado, os caminhos da água levam aos reinos da riqueza. E quem melhor do que um marinheiro como o senhor pôde percorrê-los e desfrutá-los?" insistiu.

         Veniero parou, agarrando-o pelo braço. O poeta percebia a firme pressão através da manga. "Por Deus, prior! Não nego ter assaltado alguma abastada embarcação sarracena, nos meus tempos, e os genoveses também receberam mais de uma visita, antes que os acontecimentos da vida me encalhassem entre estas suas colinas. Certo, alguns anos atrás eu poderia ter armado uma galé de guerra, e o messer Domenico não teria tido o prazer de me conhecer." O homem pareceu enxotar uma sombra. "Todavia não é só de virtudes que é rica a minha vida, messer Alighieri, mas também de uma certa loucura. E essa é a fonte das minhas desgraças.”

        "Como para todos. De onde, a não ser da loucura, brota cada nossa desventura? Mas ser prisioneiro do amor 199   eu não definiria exatamente como loucura, a não ser para os espíritos grosseiros...”

         "Ah, sim, aquilo que contei na taberna... Não é o amor que me leva à banca do agiota, mas sim um demônio mais sinistro", interrompeu-o Veniero, rindo às gargalhadas. "O jogo, messer Alighieri", acrescentou logo em seguida, vendo sua expressão perplexa. "E suas desventuras.”

         Dante concordou, sorrindo por sua vez. "Não me espanta, se é essa a sua segunda paixão.”

         "Não a segunda. O senhor não se sente tentado a desafiar a sorte? Seria uma honra para mim medir-me com o senhor. Tenho certeza que deve ser um jogador formidável.”

         "Assim como o senhor é um grande navegador, presumo. Fiar-se aos dados ou às ondas exige a mesma coragem.”

         "O senhor nunca se meteu ao mar?”

         "Nunca para longos percursos. Penso que minha natureza seja mais afim à contínua estabilidade da terra firme.”

         "Entretanto o senhor é um homem de estudos e de conhecimento. Se excluir de seus horizontes os reinos de Posêidon, fica-lhe impedido o acesso à quarta parte do globo, a maior.”

         "Mas também a mais instável e a mais incerta. Deus separou, em sua sabedoria, a água da terra e confiou esta aos homens, aquela aos peixes. Prefiro ficar do lado dos homens. E, além do mais, o que aprendeu em suas viagens, messer Veniero, que eu deveria invejar?”

         O marinheiro ficou repentinamente sério. "Aprendi a terrível diversidade dos lugares e das gentes.”

         "Dir-se-ia que tenha alcançado as Ilhas Felizes, aquelas das fábulas.”

         O veneziano deu de ombros. "As ordens da Sereníssima eram claras: proteger com minha galé as embarcações cargueiras diretas para a Palestina dos predadores sarracenos. E isso eu realizei durante muitos anos. Mas, certa vez, embarcou em meu veleiro um encarregado da República, que retornava de Jerusalém, possuidor de ordens específicas que me impunham ficar a seu serviço. Um homem idoso, mas ainda saudável. Ordenou-me velejar rumo ocidente, em direção às costas do Marrocos. Durante mais de um mês bordejamos pela costa africana, até as Colunas de Hércules."       

         "E ultrapassou-as?"  

        "Sim.”

         Dante inclinou-se para ele. "E o que viu?"  

         "Ao sul, na linha equatorial, os astros do outro hemisfério. Que luzes brilhantes, tão diferentes das nossas! E ali também Deus deixou o seu sinal, anunciando a vinda de Cristo. Há uma constelação de quatro grandes estrelas, que formam uma cruz perfeita."

 Dante escutava boquiaberto, com os olhos arregalados. "E o que mais viu?”

         "Montanhas de água, peixes enormes e monstros horrendos, polvos com tentáculos que subiam a bordo de noite para raptar nossos marinheiros. Nada além disso, a não ser o frio das noites e o calor dos dias. Talvez eu devesse ter pendurado à proa um de meus inimigos, para ter melhor sorte.”

         "É verdade. Que um sacrifício humano propicie a navegação, os gregos também acreditavam nisso. Mas o que procurava o homem que dava as ordens?”

          "Era um estudioso. O senhor conhece o segredo do pólo magnético?”

         "Está se referindo à agulha magnética que aponta sempre para o norte? Aquela que os amalfitanos carregam? Trata-se de um instrumento já conhecido.”

         "Sim. Mas talvez não saiba que sua orientação desvia-se do norte em um ângulo crescente à medida que nos movemos em direção ao oeste. O velho estava encarregado de medir essa variação, para cada grau de longitude. Agora o resultado de seu trabalho jaz nos arquivos da Sereníssima, mais uma arma na guerra contra os infiéis", respondeu Veniero com uma expressão amarga na boca, como se a lembrança daquela aventura despertasse nele uma emoção sofrida. Ou talvez fosse o nome da pátria perdida a fazê-lo sofrer. "Dias e mais dias de cansaço e de lutos, gastos para uma pesquisa sem sentido", acrescentou depois de uma breve pausa, em tom de deboche.

         "Por que diz isso? Aumentar o conhecimento é a mais nobre das empresas. Não acha...”

         "Não acho nada, messer Alighieri, entretanto tenho certeza de que não necessito de nenhum desses números para guiar uma galé ao ataque das costas dos mouros. Mas talvez os senhores, sábios, sejam feitos de outro material. Os senhores detestam os espaços vazios nos mapas e sempre querem preenchê-los com sinais. Condenam suas almas para descobrir uma pequena verdade inútil, como a daquele velho. Havia estudado profundamente os costumes dos povos do Oriente. Durante as longas noites de navegação, diante do aquecedor do castelo de popa, contava o que havia apreendido de suas religiões e dos demônios que sabiam evocar. Cultos estranhos que chegaram até nós, nas sacolas dos peregrinos, como as sementes da lepra. São povos que adoram as pedras, orgulhosos de suas crenças e entusiastas de sua estranha fé. Assim como é messer Bruno.”

         "Bruno Ammannati, o teólogo do Studium?" perguntou Dante, surpreso. Ele também havia chegado de além-mar, segundo o relatório que havia lido.

         "Sim, ele mesmo. Nunca ouviu nem um único de seus sermões, na igreja dos Quarenta Mártires? Garanto que são emocionantes. Até mestre Ambrogio estava fascinado. Vi-os freqüentemente juntos, imersos numa conversa envolvente." O capitão sorriu. "Talvez o comacino fosse religioso. Sua cidade parece atrair as almas puras, como Angiolieri." Pronunciara as últimas palavras com um sarcasmo evidente.

         "Claro, messer Cecco", disse lentamente o prior. "Poeta bizarro e homem muito original, não acha?”

         "Certamente, mas talvez mais sensato do que outros.”

         "Talvez seja como diz. O senhor já o conhecia?" Dante havia atirado aí essa última observação como quem não quer nada, como se estivesse pensando em outra coisa. Mas tinha certeza de que Veniero prestava grande atenção em cada uma de suas palavras.

         "Não, messer Alighieri. Eu sou um homem do mar. Entretanto descobri logo em seus sentimentos uma certa afinidade com os meus, o que o tornou muito estimado por mim. Dividimos uma mesma paixão, e não é certamente a da poesia. É tanta afinidade que pode dar a impressão de uma precedente familiaridade. Mas agora 203   devo mesmo despedir-me; não desejo roubar um tempo precioso às suas tarefas de governante. Ou às outras", concluiu Veniero com um brilho malicioso no olhar dirigido à porta do banqueiro.

         Dante acompanhou com o olhar o homem que se afastava, depois entrou com passo decidido na loja. O proprietário estava sentado no seu lugar, atrás de uma humilde mesa gasta de pinho recoberta de papéis e registros.

         Não fez sinal de levantar-se, limitando-se a uma leve saudação com a cabeça. O olhar pousou sobre o embrulho escarlate, antes de voltar a fixar Dante com superioridade. "Quer propor um penhor, senhor?”

         O poeta mordeu a língua para mantê-la quieta. Não podia romper com Domenico. Não agora, pelo menos. Esse cão era sua única esperança de fazer face às dificuldades. Mas por dentro queimava pela humilhação. Procurou ansiosamente lembrar o discurso que havia preparado para um novo empréstimo, mas as palavras subiam a seus lábios misturadas com insultos e agressões.

         E além do mais havia Veniero, e sua presença ali não fora prevista. Ao diabo com Manetto e suas pretensões, disse para si mesmo. Haveria tempo para isso.

         "A autoridade do município necessita interrogá-lo, messer Domenico, com relação a um assunto de natureza criminal.”

         O outro mudou de expressão imediatamente. "Natureza... criminal? O que quer dizer, prior?”

         O poeta percebeu com satisfação que finalmente Domenico havia pronunciado o seu título com a deferência exigida. "Certamente terá ouvido falar do assassinato em nossa cidade de um mestre na Arte comacina. O município encarregou-me de encontrar o culpado.”

         "E pretende encontrá-lo aqui?", balbuciou o usurário, tornando-se pálido.

         "Onde quer que possa esconder-se. Mas agora é outro assunto que quero saber. Que assuntos veio tratar aqui messer Veniero, cidadão da Sereníssima?”

         "Nenhum... até agora. Só perguntou se estaria disposto a aceitar uma carta de crédito.”

         "E o que respondeu?”

         "Que depende da solvência do fiador.”

         "E ele?”

         "Ele... ele disse que eu não precisava preocupar-me com isso. Que seu fiador é solvente em todas as praças do Império.”

         Dante calou-se, refletindo.

         "Mas..." Domenico pigarreara e parecia querer acrescentar alguma coisa. No rosto agora retornava a expressão astuta de sua profissão. Como sempre, estava disponível a vender tudo e todos. E agora ele era prior, convinha-lhe agradá-lo. "Porém pareceu-me estranho..." "O "O que?”

         "Falar tanto de garantias e impérios e no fim pedir-me um adiantamento sob penhora. Um anel de ouro", disse escarnecendo, e mostrou um anel amarelo que havia retirado de debaixo do banco. "São todos iguais, esses marinheiros", concluiu, piscando um olho com ar de cumplicidade.

         Dante ignorou-o. Agarrou a jóia, um pesado anel de ouro recoberto com pequenos símbolos quase irreconhecíveis; examinou-o atentamente, antes de restituí-lo ao banqueiro. "Claro, todos iguais. Eu voltarei ainda aqui, messer Domenico. Devemos falar também de outros assuntos.”

         Moveu-se para sair, acompanhado pelo olhar do usurário. Ao atravessar a porta estreita chocou o embrulho no batente, deixando escapar uma imprecação.

         Devia retornar ao priorado e livrar-se finalmente daquela tralha.

        

         No mesmo dia, final da tarde.

         Dante adentrou a pequena nave central escura da igreja dos Quarenta Mártires e aproximou-se do altar caminhando ao longo da parede, para não dar na vista. Ao fundo, junto a uma mesa simples de pedra, rodeada de assentos de madeira, havia sido colocado um estrado rudimentar de tábuas. Sobre esse estrado improvisado, um homem falava a um pequeno grupo de fiéis apinhados ao seu redor.

         Não havia muita gente, talvez duas dúzias de pessoas, entre homens e mulheres. Alguns espalhados entre as colunas, outros sentados em bancos simples de madeira e outros, ainda, acocorados no chão, todos absorvidos escutando. Foram exatamente seus rostos estupefatos, rostos simples de gente do campo, que chamaram sua atenção, antes mesmo do homem que falava. Pareciam fascinados.

         "Messer Durante! Venha dividir conosco o pão dos anjos. Aproxime-se.”

         Bruno Ammannati se interrompera, e agora o fixava com expressão inspirada. Seu nome não parecia ter suscitado nenhuma reação particular nos presentes. Somente   alguns deles haviam se limitado a lançar-lhe um olhar suspeito, logo dissipado pelo tom confidencial do pregador.

         Depois da breve saudação, Bruno também parecia ter se esquecido dele. Havia desviado o olhar, retornando com fervor à sua oração, os olhos brilhantes dirigidos ao céu. Devia estar no fim, julgando pelo tom conclusivo. Mas mesmo assim o poeta não teve dificuldade em reconhecer a fonte. Naquele instante estava dizendo algo relativo às sucessivas etapas da vida do homem sobre a Terra. Para chegar, tinha certeza, a exaltar a futura etapa, o terceiro tempo do Espírito, a libertação da densidade da carne e da matéria, o cancelamento do vício e do egoísmo numa sociedade de iguais onde a Igreja, renovada pela presença vivificadora do Espírito Santo, tornar-se-ia finalmente referência de liberdade e de justiça.

         As expressões apáticas daqueles plebeus eram o terreno ideal para semear sonhos. Mais um fruto da grande árvore plantada por Giovacchino da Fiore, o exaltado monge que mais de um século antes havia tentado renovar a Igreja com suas profecias.

         Bruno continuava animadamente a preencher a sua paisagem de palavras com imagens de salvação. Como podia um refinado mestre de teologia perder-se por trás dessas visões grosseiras, para espíritos simples? Seriam bobagens como essas que haviam suscitado a curiosidade de Veniero?

         Dante havia começado a ausentar-se, seguindo o fio de seus pensamentos. Escutava sempre cada vez menos as palavras do homem. Até que alguma coisa, uma mudança no ritmo da oração ou do tom da voz, chamou sua atenção.

          A lengalenga sobre a grandeza da era futura, feita de aspirações indefinidas e esperas extraordinárias, havia dado lugar a um tema mais carregado. Deus parecia ter desaparecido inesperadamente do horizonte do teólogo, dando lugar a um negrume torvo, maligno.

         Bruno não estava mais acompanhando os pensamentos e os sonhos de seus ouvintes em direção a um futuro distante. Havia começado a remontar o passado mais remoto do homem. E, à medida que a evocação prosseguia, suas palavras pareciam distanciar-se das teses de Giovacchino. Ora o teólogo falava da idade dos Anjos, que se rebelaram contra Deus; dos Gigantes, que nasceram dos ossos dos anjos e haviam dominado a Terra oprimindo-a com seu poderio. Da idade dos Profetas, que receberam o dom da visão e morreram cegos pelo que haviam visto, e dos Antigos, que construíram monumentos desmedidos, ensangüentando-os com suas batalhas. Finalmente, a idade dos Últimos, que teriam herdado a Terra, se soubessem evocar as forças desmesuradas das raças que os haviam precedido, e cujos corpos repousavam no subsolo aguardando o despertar.

         Ao ouvirem essas palavras, um murmúrio percorreu os fiéis. Dante recolheu algum comentário sussurrado sobre umas ossadas enormes encontradas numa fazenda em Mugello. Mas Bruno continuava sem atentar aos comentários.

         "Os que nos precederam jazem em seus túmulos, não mortos mas adormecidos", declarou com os olhos semicerrados, como se buscasse dentro de si mesmo a prova de suas próprias palavras. "É possível despertá-los e sentar-se com eles à mesa de Deus. É possível fazer isso. É possível. É possível!" repetiu três vezes, transformando sua voz num grito. "Os astros, o corpo visível das raças antigas adormecidas, indicarão o momento ao Mestre, com seu movimento. Começando pela estrela vespertina, símbolo quíntuplo da soberania dos anjos.”

         Dante estava escandalizado. Não havia nada de cristão nas palavras de Bruno, somente um discurso fútil e torpe das trevas. Por muito menos, outros já haviam sido esquartejados pela Inquisição. Como era possível que tais ensinamentos fossem ministrados dentro de uma igreja? Retornaram à sua mente as palavras de Veniero, convencido de que o mestre comacino tivesse caído nessa armadilha. Se realmente Ambrogio compartilhava essa perversão, talvez fossem as cinco eras de um mundo deserdado por Deus que ele queria representar. Quem mais, entre os membros do Terceiro Céu, poderia segui-lo por esse caminho de perdição? Passou mentalmente em revista todos aqueles rostos de máscaras animalescas. Alguém habilidoso nos cálculos, conhecedor da ciência celeste...

         Voltou a observar as faces dos fiéis, perguntando-se que conseqüências essa cosmologia deforme poderia ter sobre eles. Pareciam sonâmbulos ou então como se estivessem sob o efeito de um narcótico. Alguns instantes antes o pregador havia entoado um salmo desconhecido, ao qual os presentes respondiam em antífona, resmungando frases num latim incompreensível. Conseguiu decifrar somente uma fórmula, repetida muitas vezes; "Mater salva nos!” 26, referida a um nome incompreensível semelhante ao silvo de uma serpente.

         Deu outra olhada ao redor. Será possível que ninguém fizesse objeção àquelas palavras? Nenhuma reação, ninguém parecia perturbado. Um coro abjeto que continuava a entoar mecanicamente, invocando o nada.

         Só um homem, percebeu o prior, permanecia em silêncio, sem responder às fórmulas do ritual. Ficava lendo, afastado dos outros, do lado oposto da nave central em relação ao local em que Dante estava, o rosto afundado no capucho. Exatamente quando Dante estava olhando para ele, moveu ligeiramente a cabeça, revelando por um instante seu rosto. Um estremecimento percorreu as costas do poeta, enquanto procurava abrigo atrás de uma coluna.

         Mesmo na penumbra, não podia estar errado. Era o mesmo homem que havia surpreendido examinando o cadáver de Ambrogio. Noffo Dei, o inquisidor.

         Refletia freneticamente sobre o que fazer. Se o frade encontrava-se ali, significava que a Igreja estava a par do que ocorria na igreja dos Quarenta Mártires, e que Bruno estava perdido. E talvez agora ele também, pensou encolhendo-se ainda mais atrás da coluna. Teria desejado desaparecer dentro do mármore. Não sabia se Noffo já estava presente quando de sua chegada. Se assim fosse, então seria tarde demais para qualquer coisa. O safado poderia acusá-lo de cumplicidade com toda aquela loucura.

         Não podia deixar uma arma como essa nas mãos do cardeal. Talvez devesse afastar-se imediatamente. Ou então interromper a cerimônia e acusar Bruno de assassinato. Se fizesse com que fosse preso pela autoridade cível, isso iria livrá-lo das garras da Inquisição, impedindo que aquele louco se entregasse sozinho à fogueira.    

         Estava prestes a adiantar-se quando seu olhar cruzou o do teólogo, que parecia fixar o canto onde estava Noffo Dei. Alguma coisa completamente imprevisível o impediu de realizar sua intenção.

         Dante havia percebido um olhar de entendimento entre os dois. Inequívoco. Bruno estava a par da presença do frade, entretanto não tivera nenhum escrúpulo ao ilustrar sua louca cosmologia.

         Estava procurando o martírio? Ou então se sentia tão seguro a ponto de escarnecer do carrasco? Por um instante foi tentado a acreditar que aquela peste asiática tivesse atacado de maneira insuspeita, infectando até os níveis mais altos da hierarquia eclesiástica. Olhou mais uma vez na direção do inquisidor. O homem parecia não querer intervir: havia-se voltado e dirigia-se lentamente para a saída, deslizando ao longo da parede. Perto da porta passou rente a um grupo de mulheres. Dante, que o acompanhava com o olhar desde seu refúgio, lançou um olhar distraído sobre elas.

         Foi então que a viu, semi-escondida por uma coluna de uma capela lateral. Estava envolvida numa longa veste turquesa e trazia sobre o rosto uma daquelas máscaras de algodão que muitas mulheres nobres utilizavam ao ar livre para proteger-se da poeira. Mas havia sido suficiente um pequeno movimento, enquanto ela se erguia na ponta dos pés para ver melhor, para que ele a reconhecesse com a intuição da lembrança de um homem apaixonado.

         Não sabia mais o que fazer. Naquele momento a mulher moveu-se, ela também, em direção à porta, com o seu passo elástico. Por um instante o prior havia tido a impressão de que Noffo lhe houvesse feito um sinal, ao passar ao seu lado. Um gesto de entendimento como aquele, há pouco, com Bruno.

         Um inquisidor, um herege, uma prostituta. Três cartas saídas de um maço de tarô extravagante, reunidas dentro de uma igreja. Não conseguia compreender a relação que existia entre elas. Talvez Noffo não estivesse ali para vigiar Bruno, e sim a mulher.

         Aguardou um pouco no vão da porta, antes de sair à rua. Fora não havia nenhum sinal do frade, e Antilia já ia longe.

         Dante caminhava com o rosto escondido sob o véu do barrete, fingindo proteger-se do sol a pique. Seguia a mulher a uma certa distância para não ser percebido, no caso de ela voltar-se.

         Antilia deslizava entre a multidão como se fosse invisível, sua beleza escondida por baixo do amplo manto e da máscara. Seu andar veloz não parecia perturbado pelo calor ainda intenso, apesar de as sombras dos edifícios estarem se alongando. Já haviam atravessado todo o bairro, mas ela continuava em seu caminho, alheia ao cansaço e às nuvens de insetos que invadiam tudo.

         Chegando ao lado de uma fonte, parou para beber. Para isso, levantou um instante a máscara, virando-se levemente. Dante percebeu o lampejo dos olhos de ônix, como se a mulher estivesse procurando seu olhar. Depois continuou seu caminho. Ele também ultrapassou a bacia de pedra, com sua efígie lúgubre. Havia seguido Antilia sem atentar para o caminho, toda sua atenção concentrada no cuidado em não se deixar descobrir. Só agora se dava conta de onde ela o havia conduzido, vendo ao longe a loja do boticário.

         Percebendo que ela reduzia o passo, parou. Pela primeira vez viu-a perscrutar ao redor, como se estivesse preocupada de que alguém pudesse observar seus movimentos. Por sorte, naquele momento estava passando um carro carregado de barris, ocultando-o da sua vista. Depois que o veículo passou, ela havia desaparecido dentro da botica.

         Dante estava inseguro quanto a segui-la ou esperar que saísse e continuar a vigiá-la sem ser percebido. Decidiu esperar atrás de uma das colunas da galeria na esquina, depois de ter enxotado com rudeza um pedinte que havia escolhido a mesma coluna como local de coleta.

         O homem afastou-se apenas alguns metros, apesar da ameaça de ser mandado chicotear pelos guardas do chefe da guarda, e deitou-se novamente no chão, a mão estendida a esmolar. Parecia a Dante que o homem o encarava com olhar sombrio. Outro pilantra da Arte secreta, sem dúvida. Se não estivesse vigiando a mulher, teria chamado imediatamente os homens do chefe da guarda para mandar prendê-lo. Atirou um último olhar ameaçador ao maltrapilho, que voltara a apresentar suas desgraças aos passantes.

         Havia alguma coisa singular nele. Depois do encontro com Giannetto, o poeta olhava de forma diferente aquela realidade que antes havia somente ignorado com intolerância. O mendigo parecia realmente o dono da rua, como um cão que tivesse demarcado a esquina com sua urina. Lembrou a sinistra profecia de Giannetto, sua aparente segurança ao prever as desventuras ao partido Branco. O que poderia saber aquela ralé sobre o futuro de Florença, 214   de seu próprio destino? Percebeu novamente a terra falsear sob seus pés e sentiu uma pontada na vista esquerda.

         Olhou mais uma vez para a porta. De repente percebeu uma confusão atrás de si. Um segundo mendigo havia se encostado ao primeiro e a impressão era a de que os dois trocavam ofensas. Pareceu-lhe reconhecer a voz de Giannetto, que insultava o outro por ter invadido seu território. Em seguida os dois começaram a brigar numa confusão de braços e pernas. Mas o primeiro rapidamente levou a melhor: com um grito atirou-se sobre o recém-chegado, golpeando-o com um violento pontapé no flanco. Este gritou de dor, enquanto escorregava ao chão comprimindo com a mão a costela fraturada.

         Dante adiantou-se com um salto, correndo na direção dos dois. Não tinha certamente a intenção de resolver uma briga entre mendigos, mas uma coisa havia chamado sua atenção. Na confusão do embate, a roupa do primeiro pedinte havia se aberto sobre o peito, revelando por um instante uma superfície escura e rígida, talvez de couro ou de bronze. Parecia que o homem utilizava uma couraça. Queria verificar isso, mas, vendo-o aproximar-se, o mendigo apressou-se em soltar a presa, que continuava a gemer. Com um salto, revelando uma agilidade insuspeita sob o seu aspecto macilento, levantou-se e correu pela rua, atravessando a massa de curiosos que estavam se aproximando e desaparecendo por trás da confusão de cabeças, não sem antes ter endereçado ao poeta um gesto obsceno.

         "Sou prior de Florença, animal! Mande tomar no cu a puta da sua mãe!" gritou Dante, enquanto perdia de vista o falso pedinte. "Miserável insolente!", ainda teve a força de acrescentar, ofegante pelo esforço e a emoção. Percebeu um jovem destacar-se da multidão de curiosos e sair em perseguição do fugitivo. Parecia usar o uniforme dos soldados. Torceu para que conseguisse alcançá-lo.

         "Quem era aquele velhaco?" perguntou em seguida para Giannetto, ainda ocupado em lançar obscenidades contra seu adversário.

         "Não sei", respondeu este com uma expressão de dor que acentuava sua semelhança com um rato. "Não o conheço. Alguém novo que há alguns dias anda por estes lados sem a autorização da Arte. Existem muitos como ele, nos últimos tempos, vindos sabe-se lá de onde.”

         "Muitos?”

         "Sim, realmente muitos. Malditos!”

         Dante apoiou-se ao pilar respirando fundo para aplacar a agitação, depois abriu caminho no meio da multidão rumo à porta do boticário. Parado na entrada, Teofilo esperava por ele.

         Entrou decidido, seguido pelo boticário, que se afastara para deixá-lo passar. Visto que as circunstâncias haviam decidido por ele, agora interrogaria a mulher. Olhou rapidamente em volta, procurando por ela. "Onde está...”

         "Antilia? É a ela que está procurando?" perguntou Teofilo com um tom malicioso. "Esteve aqui há pouco.”

         "Para onde foi?", perguntou Dante, confuso. Tinha certeza de que não a vira sair. Mas na confusão do embate tinha perdido de vista a porta da loja.

         "Já foi, o senhor não viu? Ouvimos uma confusão lá fora e pareceu-me melhor que ela fosse embora sem dar na vista. Conhece bem a sua condição particular, os riscos...”

          O poeta concordou. Tinha a sensação de que Teofilo estava lhe escondendo alguma coisa. "O que estava procurando aqui?", perguntou rispidamente, encarando o boticário.

         Teofilo parecia refletir sobre o que responder, como se quisesse medir com precisão a verdade que pretendia colocar em suas próprias palavras com a mesma meticulosidade com que calculava as doses de suas fórmulas. "Aquilo que todos procuram em minha loja", disse finalmente em tom enigmático.

         "Aquilo que todos procuram?”

         "Todos. O senhor também, messer Durante.”

        Dante esperou que o outro acrescentasse alguma coisa. "O sentido de sua alegoria me escapa", declarou em seguida, vendo que o boticário continuava calado.

         "A dor e como se livrar dela. Ou então...”

         "Ou então?”

         "Como desencadeá-la. A dor é o primeiro motor de nossa ação. Nisto pensava o grande Aristóteles quando imaginou a sua máquina celeste.”

         "Não, Aristóteles estava errado. É o amor que confere movimento à corrente dos céus. É o desejo inspirado pelo amor do último céu que, imerso no amor da essência divina, lhe determina a rotação, desejando esta corrente dos céus, em todos os seus pontos, experimentar a infinita alegria da iluminação", falou Dante distraidamente, como se estivesse repetindo uma lição. Pensava em Antilia.

         Aquele jogo de alusões o incomodava. Abriu a boca para espremer o boticário, mas este se antecipou.

          "Entretanto, messer Durante, não acredita que seja Algos27 o deus que domina sobre a Terra? Não será por ele que combatemos, amamos, construímos e morremos? E o senhor mesmo confirma, seguindo as palavras de Aristóteles: se o primeiro céu roda freneticamente para estar em Deus com todos os seus pontos, não será a plenitude de sua alegria fundada numa ausência defeituosa?”

         Havia falado em voz baixa, como se temesse que o deus da dor estivesse na escuta. O poeta deu de ombros. Não pretendia envolver-se numa discussão teológica naquele momento. Estava convencido de que Teofilo havia iniciado tal polêmica só para distrair sua atenção da mulher.      

         "Antilia pediu aquele seu remédio?”

         O boticário riu de bom gosto. Parecia de repente ter se transformado no habitual bonachão da taberna. "Chama-se chandu... Oh, não, nada tão grave. Estava só procurando um bom sabonete para a beleza de sua pele. Mas quem sabe, talvez para uma mulher a defesa da própria beleza seja a suprema fonte de dor...”

         Dante continuava a olhar ao redor. Nada daquilo que Teofilo dizia parecia-lhe sensato. Antilia havia se dirigido para a botica logo após ter ouvido o sermão de Bruno.

         "Da última vez o senhor me disse que são cinco os elementos que compõem o seu remédio. Realmente não sabe quais são?”

         O boticário teve um sobressalto imperceptível. O olhar correu instintivamente para a caixa de ferro, como se quisesse assegurar-se de que estava bem fechada. "Sua composição é um segredo, messer Durante", disse num tom evasivo. "O senhor já experimentou seus efeitos. Está, portanto, em condições de avaliar exatamente o seu valor.”

         "O mosaicista foi assassinado porque estava prestes a revelar as cinco partes de alguma coisa. E por que não os cinco elementos da fórmula... que poderia ter recebido do senhor, ou tê-los subtraído. Está dizendo que eu mesmo posso estimar o valor. É verdade, e julgo esse valor extremo, a ponto de induzir alguém a matar para apropriar-se dele. Ou para defendê-lo.”

         O boticário parecia de repente preocupado.

         "Não será com isso que messer Bruno deixa abobalhados os discípulos do culto profano, de que o senhor também faz parte?" pressionou Dante.

         "Não estará pensando...", gaguejou o outro.

         "Por que não deveria pensar isso?”

         Teofilo hesitou ainda por um instante, depois ergueu com um movimento brusco a mão direita, os dedos dispostos conforme a fórmula de reconhecimento da Arte dos boticários. "Auxilium peto", (Do latim: solicito ajuda.) exclamou.

         Era a fórmula com que um confrade solicitava ajuda a um outro. Dante repetiu mecanicamente o gesto, forçado a respeitar o juramento que o obrigava. "Auxilium fero"( Do latim: concedo ajuda. (N. T.), respondeu.

         Agora Sprovieri parecia aliviado. Agarrou um braço do poeta, apertando com força. "Justamente consideramos muito importante esse segredo. Mas ele não é o único, debaixo da abóbada celeste. Outros e maiores existem, e talvez seja um bem que um confrade possa compartilhar.”

         "O que quer dizer?”

         "Quem sabe, talvez o senhor pudesse realmente ajudar-me... talvez a sua ciência...", prosseguiu Teofilo, sem responder. Permaneceu mais um instante imóvel, como se necessitasse vencer um último escrúpulo, e por fim aproximou-se de um armário. Abriu-o e retirou de dentro uma pequena caixa perfeitamente cúbica feita daquela escura e preciosa madeira africana que os faraós tanto amavam. Mexeu habilmente numa das laterais. Dante ouviu um leve estampido e viu-o levantar um pequeno calço. Devia ter acionado uma fechadura escondida, porque a caixa abriu-se, revelando em seu interior um objeto redondo de metal amarelo. Segurou o objeto quase com temor e o entregou ao poeta.

         Era um anel de metal dourado, recoberto de pequenas incisões, semelhantes às letras de um alfabeto de uma língua desconhecida. Muito semelhante àquele que o poeta havia visto na loja de Domenico, o usurário.

         Sopesou o objeto na palma da mão, depois de tê-lo observado atentamente. "É aquilo que parece?”

         "Sim, messer Durante. É ouro.”

         Dante continuava a revirar o objeto com as mãos. Levantou o olhar. "De onde provém?”

         "Talvez fosse mais adequado perguntar de quem provém. Faz algum tempo que esses anéis apareceram aqui em Florença, acompanhados de um burburinho. Talvez, uma lenda.”

         "E o que diz essa lenda?”

          "Que esse ouro não provém das entranhas da Terra.”

         "Está querendo dizer que alguém o... fabricou?" murmurou o poeta, detendo-se para examiná-lo mais uma vez atentamente. Depois o aproximou dos lábios, roçando o metal com a ponta da língua. "Se for verdade o que está afirmando, um grande perigo ameaça as finanças da cidade. Qualquer um dos métodos hoje conhecidos para identificar os resíduos na obra dos falsificadores de moedas seria inútil.”

         "Então, não lhe parece que este segredo seja maior do que aquele de minha infusão?”

         "De quem recebeu este anel? E quem guarda o segredo desta metamorfose? É alguém do Terceiro Céu? Fale!" acossou-o Dante. Estava pronto a repetir o gesto secreto de reconhecimento, mas deteve-se, escondendo a mão. "Não quero que responda ao vínculo da Arte, mas à autoridade de Florença.”

         "Não sei, juro! Foi Ambrogio que o deu para mim, um pouco antes de ser assassinado. Mas não falou nada sobre sua origem." Parecia transtornado, como se o nome do morto tivesse também evocado seu fantasma. "Este segredo não me pertence. Eu próprio estou em busca dele", acrescentou em seguida, quase falando para si mesmo.

         Dante refletia sobre as últimas palavras. Certamente a infusão era extraordinária; mas o que podia significar comparada com aquilo que Teofilo acabara de lhe mostrar? E quem, em Florença, poderia dedicar-se a estudos desse quilate? Pensativo, havia se aproximado da porta. Voltou-se novamente.

         "O anel de ouro... Pode deixá-lo comigo por algum tempo?”

         "Mas é claro, messer Alighieri", respondeu, entregando-me o anel. "Acredita poder descobrir a origem?”

         O prior não respondeu. Sua mente já estava em outro lugar, enquanto se afastava da botica sem nem mesmo saudar o boticário, numa descortesia voluntária. Estava excitado, pela revelação e pelas novas perspectivas que esta abrira.

         Teofilo acompanhou-o até a porta, ele também sem falar. Depois se apressou a fechar a porta da botica, após certificar-se de que Dante não estava mais à vista. Um leve farfalhar de roupas às suas costas o induziu a virar-se rapidamente. Um dos painéis de madeira do móvel que recobria a parede estava aberto, revelando um vão. Pela pequena porta se insinuava Antilia. Teofilo percorreu com o olhar as formas que transpareciam com sua beleza por entre as dobras delicadas das roupas, como uma estátua de Vênus prisioneira do planejamento. Uma gota de suor escorria-lhe pela fronte.

        A mulher havia retirado do rosto a máscara de viagem e agora mostrava-se em toda sua beleza.

         "Escutou?", ele perguntou.

         Antilia aquiesceu. Fixava a caixa de ébano aberta que ainda jazia sobre a mesa.

         "Eu não falei nada", acrescentou Teofilo, com um tremor na voz. "Quando... quando vai viajar?”

         Ela continuava calada.

         "Poderei ir consigo?" O boticário aproximou-se e levantou as mãos até roçar os ombros da mulher. Ela acompanhava, impassível, os movimentos dele. O homem começou a desfazer os nós dos laços que prendiam as vestes, revelando lentamente o corpo acobreado.      

 

         20 de junho, durante a manhã.

         "Malditos mercadores! Homens que não prestam para nada", murmurava Dante, irritado, num vaivém diante do átrio da sede da Calimala, a Arte dos mercadores de tecidos, a mais importante de Florença. Ricos, presunçosos e descarados. Pelo menos metade dos funcionários da municipalidade estava abertamente a serviço deles. E os que não estavam, temiam-nos. "Permitem-se deixar-me esperar. Mandaria enforcá-los todos, se tivesse um carrasco.”

         Havia conseguido uma audiência só à custa da própria autoridade, mas a espera estava se tornando humilhante. Ao longo de meia hora havia assistido a mercadores corpulentos, trabalhadores e outras gentinhas serem recebidos antes dele. Percebia crescer em si o ódio em relação àqueles malcriados enriquecidos, insuflado por um desejo de vingança. Por culpa de pessoas como eles Florença tinha se tornado o que era. Uma cidade que poderia ser uma nova Roma pela sabedoria das leis, e uma outra Atenas pelo esplendor de suas obras de arte, estava se transformando numa nova Babilônia quanto à corrupção dos costumes.

         Não havia encargo público que não fosse negociado, lei que não pudesse ser outorgada à custa de florins, sentença que não fosse ajustada em conformidade com as conveniências dos juízes.

         A sala de espera dava para um canteiro de obras. Do outro lado da rua estava surgindo um palácio imponente no lugar das casinhas do antigo bairro. Mas havia alguma coisa de podre por trás do fausto das novas construções que se erguiam no meio dos vinhedos para suprir com casas a multidão efervescente de camponeses provenientes do condado em busca de fortuna; uma fissura escondida como a ranhura invisível no bronze de um sino, que só um ouvido experiente pode perceber antes que ele se rompa inesperadamente. E o ouvido do poeta, afinado pelas musas e pela prática com a voz dos antigos, percebia claramente essa dissonância, como o ruído de uma cachoeira longínqua.

         "Cidade de ladrões", repetiu, afastando-se da janela.

         Por fim um funcionário, usando o vistoso uniforme da Arte, chamou-o sem deferência e o acompanhou ao andar superior, por cima da galeria que recobria o antigo mercado.

         O regente estava sentado atrás de uma escrivaninha, rodeada por outras mesas menores ocupadas por uma dúzia de guarda-livros empenhados em registrar em grandes volumes os atos de comércio das empresas e dos mercadores. "O que posso fazer pelo senhor, prior? O município interessa-se pela nossa Arte?", perguntou. O homem falara com uma voz fria, sem coloração. O mesmo tom com que haveria de dirigir-se ao último dos seus funcionários.    

         Dante aproximou-se da cátedra até roçar com o peito o tampo de madeira. "O município interessa-se pelo bem e pelo mal de Florença. Hoje, pelo mal.”

         O regente estava desconcertado. Esperava a solicitação habitual de favores ou de dinheiro. "O que significa?", perguntou com um trejeito.

         "Tenho o encargo de conduzir as investigações sobre o suplício imposto ao mestre Ambrogio.”

         "O mestre mosaicista... eu soube. Mas não compreendo o que tenha isso a ver com Calimala...”

         "Eu também não. Não ainda, pelo menos. É por isso que estou explorando os diferentes caminhos da verdade.”

         "E esses caminhos o trazem aqui?”

         "Calimala é a Arte para onde todos os conhecimentos convergem, é o que dizem por aí. Fazer, providenciar, ordenar: não é esse o seu lema?”

         O regente concordou, pouco convencido.

         "De qualquer forma, é para falar de um de seus colaboradores que estou aqui", acrescentou Dante. "Flavio Petri, o genovês.”

         "O mestre tintureiro? E por qual razão...”

         Não terminou sua pergunta. No rosto do poeta havia descido uma máscara impassível que não deixava espaço para discussões. Com uma frase seca o regente ordenou a um dos escriturários que o acompanhasse.

         O laboratório estava situado num amplo subterrâneo de abóbada rebaixada, entulhado de grandes recipientes de cobre e moinhos para moer e amassar. Fedores sufocantes tornavam o ar quase irrespirável.  

         Flavio estava só, ocupado em verter uma substância em um dos caldeirões utilizando uma proveta de vidro. Ele e o escriturário confabularam rapidamente, em seguida o mestre tintureiro veio solícito ao seu encontro. Dante teve a impressão de que a preocupação do outro tinha o intuito principal de distraí-lo do que estivera fazendo. Mas, de qualquer maneira, essa cortesia era bem recebida depois da forma como o prior havia sido tratado.

         Dois olhos muito negros brilhavam cheios de vida na face enrugada, apesar da idade já ter encurvado o corpo. “Em que posso servi-lo, messer Durante?”

         "Necessito da ajuda de sua sabedoria sobre um assunto particular.”

         "Todo o meu conhecimento, apesar de modesto, está ao seu inteiro dispor.”

         "Não desvalorize sua arte. O senhor é o maior conhecedor da ciência da natureza. Em Florença e na Itália. E, quem sabe, em todas as terras cristãs.”

         O outro apenas inclinou a cabeça, com um sorriso comedido. Aguardava que o prior continuasse.

         "O que sabe da fabricação do ouro?" Dante havia procurado formular a pergunta em tom casual, mas ele próprio dava-se conta da gravidade de suas palavras. Foi o primeiro a espantar-se com a serenidade com que o genovês respondeu, quase como tratando de uma questão fundada.

         "Ouvi alguma coisa a respeito durante a minha longa vida. Muitas ilusões, uma busca capaz de fazer tremer as veias nos pulsos. Anos de insônia dedicados a essa obra... não sei se divina, pelo desejo de penetrar a matriz da natureza, ou simplesmente inspirada pelo demônio da cobiça. É essa dúvida que a consciência não consegue resolver, cada vez que a nossa mente logra penetrar um segredo da natureza, por menor que seja.”

         "Mas o senhor acredita que pode ser realizada? Ou que já tenha sido realizada?" perguntou Dante, ignorando os escrúpulos morais do velho, que encolheu os ombros mantendo o olhar fixo num ponto longínquo.

         "Existe quem afirme isso. Encontrei homens de toda laia que juravam estar de posse desse segredo. Velhacos e aventureiros, em sua maioria, sem capacidade de apresentar nem mesmo as provas mais superficiais de algum conhecimento da grande arte alquímica... A não ser, talvez, numa ocasião.”

         "E o que ficou sabendo?”

         "Quem tinha a certeza de possuir a arte contou sobre os cinco passos necessários para a transformação do cobre em ouro. Essa era a essência do segredo: não a sublimação do chumbo, como muitos acreditam, mas buscar no fogo escondido dentro do cobre a força que germina o ouro.”

         "E... o senhor experimentou?" perguntou Dante ansiosamente.

         "Não procurei conhecer essa verdade até o fundo. O segredo do ouro é o segredo dos reis. Muitos que diziam possuir esse conhecimento foram assassinados pelos que desejavam saber... ou que não queriam que outros soubessem." O homem não parecia ter mais nada a acrescentar.

         Dante estava perplexo. Havia escutado inúmeras vezes, nas tabernas, relatos lendários e destituídos de fundamentos. "Então o senhor ouviu falar há muito tempo, na época de suas viagens. Em terras longínquas, imagino", disse com uma ponta de ironia.

         O mestre tintureiro lixou-o bem nos olhos. "Não, messer Durante. Ouvi falar aqui na sua cidade, recentemente", respondeu ele, ressentido. "E não se tratava só de palavras. Vou lhe mostrar o que foi encontrado, no fundo de uma barca abandonada na costa pisana, por um pescador local. Um nosso agente ficou curioso e a enviou para a matriz da Arte.”

         Abriu uma gaveta e retirou aquilo que parecia uma pedra avermelhada, grande como uma noz. "Olhe. Alguma vez já viu uma coisa assim?”

         Dante observou o objeto com atenção. "É cobre?”

       "Os pomos de ouro das Espérides", respondeu Flavio num tom misterioso. "Sim, é cobre. Puríssimo."    

         "E esse pode ser convertido em ouro?”

         "Talvez." O genovês tornou a voltear a pepita entre os dedos. "O cobre encontra-se na natureza na forma de filamentos delgados mesclados com abundante rocha e terra. Nunca vi...”

         "E como o senhor explica essa singularidade?", interrompeu o poeta.

         "Não explico. Poderia ser o primeiro ato da transformação. Parece que a montanha do conhecimento está crescendo vertiginosamente em Florença. Torres infinitas erguem-se em direção ao céu. Abóbadas de templos suficientemente amplas para cobrir um campo multiplicam-se sobre nossas cabeças. Engenhos nunca antes vistos são criados para ajudar o homem nessas construções. Talvez alguém tenha arrancado uma fruta da árvore do conhecimento.”

         "Sim, de fato alguém poderia ter realmente saboreado essa fruta. O que o senhor pensa disso?" disse Dante, retirando de uma bolsa que trazia à cintura o anel de ouro e mostrando-o. O outro estendeu rapidamente a mão com uma expressão de curiosidade. "Mais um daqueles anéis...”

         "Mais um? O senhor viu outros?”

         "Sim... pelo menos outros dois, muito semelhantes a este.”

         "O que pode me dizer sobre este metal? É ouro? Quero dizer, ouro natural...”

         Flavio lançou um olhar irônico para Dante, enquanto aproximava o anel de uma placa de jaspe negro sobre a bancada, começando a esfregá-lo na pedra com golpes suaves.

         "Parece que suas certezas não estão mais tão firmes, prior... Sim, é ouro", declarou em seguida, observando atentamente as leves estrias que o metal havia deixado sobre a placa. "Completamente ausente de impurezas. Mas não tenho como afirmar se é obra da natureza ou do homem: para isso não existe pedra de referência.”

         "De onde vinham os outros anéis que o senhor viu?”

         "Chegaram ao caixa da Arte, de alguma maneira. É tudo o que sei. E mesmo que soubesse não revelaria nada mais do que isso. As negociações de Calimala são cobertas pelo sigilo, e esse sigilo é a morte.”

         Devolveu o anel. Dante estava prestes a replicar quando sua atenção foi atraída por alguma coisa que jazia sobre a bancada de trabalho, ao lado dos recipientes que continham os corantes. Havia uma grande folha de papel dobrada. No lado visível reconheceu o azul dos cursos de água e o ocre das cadeias montanhosas. Aproximou-se e pegou o papel com as mãos para poder ver melhor, percebendo no interlocutor um gesto de descontentamento. A   / 229   impressão, aliás, era que o homem quisesse arrancá-lo de suas mãos, mas finalmente conteve-se.

         "Reconheço a cidade de Paris, com sua ilha torreada. O senhor também usa isso em seu trabalho?" perguntou o poeta em tom indiferente.

         "O conhecimento dos princípios geométricos faz parte das minhas competências. É uma das maneiras com que posso tornar-me útil à Arte. O registro exato das ruas e das fronteiras é importante para o comércio, bem como outros conhecimentos. Mas não comente nada sobre o que viu aqui", acrescentou o mestre tintureiro, desta vez retirando o papel das mãos do outro e dobrando-o cuidadosamente.

         "Por qual razão o conhecimento das formas do mundo deve ser mantido em segredo? Por que esconder o aspecto da criação? Ocultar a criação significa esconder a face de Deus!", provocou Dante, espantado pelo comportamento do outro.

         "Os caminhos da terra não são somente os nervos que conectam seu grande organismo: são as veias pelas quais escorre a sua riqueza, messer Durante. Conhecê-los significa poder beber desse sangue livremente, protegidos da inveja dos concorrentes. Além disso, talvez a forma do mundo seja tão esplêndida e terrível como a face de Deus e, como esta, deve ser velada para que não nos possa cegar.”

         "Provavelmente o senhor tem razão, messer Flavio. Mas dizem que no instante final, antes de precipitar para dentro das trevas, os olhos dos condenados ao suplício da cegueira experimentam um brilho milagroso que revela a verdadeira forma das coisas. Talvez todos nós estejamos em busca desse brilho.”

          O velho encolheu os ombros. "Sim, antes de precipitar nas trevas.”          

         Depois de ter se despedido do mestre tintureiro, Dante saiu para a rua apinhada de gente. Suas idéias não estavam mais claras do que antes. Na esquina havia uma pequena taberna. Sentou-se num banco ao ar livre, debaixo da cobertura de lona que protegia a entrada, enquanto o locandeiro servia, do barril perto da lareira, uma dose de vinho branco. O líquido tépido desceu-lhe pela garganta sem aplacar o ardor que sentia. O brilho do ouro artificial reluzia ainda diante de seus olhos por entre os vapores que se elevavam da rua, envenenados pelos odores dos dejetos humanos e dos animais.

         Era então realmente possível fabricar o ouro, de uma pureza tal que até podia enganar o olhar conhecedor de um mestre como Flavio Petri? Deveria colocar de prontidão o moedeiro da Casa da Moeda. Movimentou repetidamente o pescoço, tentando dissipar o torpor causado pelo calor e pelo vinho. Em sua mente os pensamentos continuavam a girar.

         Qual seria a conseqüência se realmente uma grande quantidade de florins entrasse em circulação? A princípio um aumento não diferenciado da riqueza e da felicidade pública. A remissão das dívidas, a extinção dos impostos, a libertação universal do consumo. O reino da abundância.

        E depois o desastre, a perda de cada valor, quando o ouro ficasse comum como a areia. Uma nova era, como aquela sonhada por Bruno Ammannati. Mas uma idade do desespero, realmente a dos Últimos.

          Havia falado em voz alta, atraindo a atenção do locandeiro, que se aproximara rapidamente para receber um novo pedido. O calor estava insuportável.

         "Talvez esse seja o intento deles!" gritou e, levantando-se com um salto, quase derrubou o banco. Em seguida dirigiu-se para a Ponte Vecchio, não sem antes atirar uma moeda ao locandeiro, este cada vez mais confuso.

         "Aquele homem, não era messer Durante?" perguntou um dos freqüentadores do local que havia acompanhado a cena. "O novo prior? Valha-nos Deus!”

         No mesmo dia, por volta de meio-dia.

         No relatório sobre os membros do Terceiro Céu estava também indicado o local onde cada um dava provisoriamente suas aulas. Cecco d'Ascoli reunia seus discípulos do curso de astrologia médica na pequena sala capitular da abadia de São Xisto, em São Frediano.

         Logo que o reconhecera na taberna, Dante comprometeu-se a enfrentá-lo a sós para confrontarem-se sobre tudo aquilo que os dividia. Há anos alimentavam entre si um debate à distância sobre a tipologia astrológica. Mas, depois do que havia escutado na igreja dos Quarenta Mártires, o confronto tornara-se inevitável. E por que não agora, quando sua fantasia aquecida pelo vinho encontrava-se nas melhores condições para prevalecer?

         Adentrou a sala quando o mestre terminava de assistir ao contraditório entre dois alunos do alto de sua cátedra. Parecia satisfeito com o andamento da discussão. O “sic” já havia terminado sua argumentação, e também o defensor do "non" estava chegando às conclusões. O jovem lia de pé, diante da cátedra do mestre, enquanto atrás dele os outros alunos, uma meia dúzia, escutavam sentados num banco e tomavam anotações em suas tabuletas recobertas de cera. Perto dele, o seu oponente do dia escutava com atenção, pronto para captar cada contradição ou incoerência, que assinalava ao mestre erguendo o dedo e pronunciando a palavra nego.

         Dante chegara a tempo de ouvir as últimas frases. O tema devia ter sido a influência dos trânsitos de Marte sobre as secreções úmidas dos pulmões. Marte, planeta do fogo, quente e seco, gera, com seu sopro nos corpos, uma inflamação dos espíritos. E isso, na opinião do que estava falando, era um sinal certo de redução dos afluxos e da expectoração.

         Seu adversário devia ter sustentado o contrário, "... certamente enganado pela evidente irrupção do líquido seminal e pelo aumento dos sonhos amorosos que se verificam por ocasião de seus trânsitos. Mas é sabido, de resto, como a secura favorece o coito, argumento reforçado pela maior taxa de fertilidade das espécies animais na estação quente e pelo conhecido ímpeto amoroso que caracteriza os povos negros da Líbia".

         O jovem havia pronunciado as últimas palavras em tom condescendente, quase procurando justificar o erro do adversário que estava evidenciando com maldade. Uma salva de palmas acompanhou sua réplica. Pareceu que sua tese tinha convencido o pequeno auditório. O mestre também acenou um aplauso de louvor, como procurando manifestar a sua apreciação, mas sem incutir nos seus alunos a semente perigosa da soberba.

         Os estudantes estavam se despedindo, após ter apresentado fórmulas cerimoniosas de saudação ao mestre. Só então Cecco d'Ascoli pareceu notar a presença de Dante, que permanecera junto à porta. Desceu rapidamente do estrado sobre o qual se elevava a cátedra, abrindo os braços e beijando-o nas faces.

         "Messer Durante, seja bem-vindo! Se tivesse sabido que pretendia assistir à minha aula, teria mandado trazer uma outra cadeira, para que o senhor pudesse sentar-se à minha direita e assistir como meu par.”

         Dante retribuiu a saudação com uma leve inclinação. "Agradeço a honra, mas não possuo a licentia docendi28. Os cursos que freqüentei em Bolonha e em Paris não elevam a minha ciência a esse nível. Portanto o meu lugar é aqui embaixo, entre os seus estudantes.”

         "Sei que excede em modéstia assim como em sabedoria, mestre. Se desejasse, haveria um lugar para o senhor no Studium. E exatamente nessa matéria de astrologia, sobre a qual eu sei que o seu conhecimento é profundo.”

         Dante fixou-o nos olhos.

         "Me aceitaria também no Terceiro Céu?”

         O outro enrijeceu. A expressão afável que o animara até então desapareceu de seu rosto. "Por que não?" disse, depois de um tempo que pareceu interminável. "O Terceiro  Céu é o céu de Vênus, e o senhor é o poeta do amor... e muito grande, posso dizer.”

         Inspirou profundamente, em seguida começou de modo inesperado a cantarolar Amor Che nella mente mi ragiona29, prosseguindo até o fim da primeira estrofe. A doçura dos versos era enriquecida pela sua voz cálida, enquanto acompanhava a cantiga cadenciando o ritmo com a mão.

         O poeta, superada a surpresa inicial, cantou a segunda estrofe, e depois novamente Cecco entoou os versos sucessivos até o final.

         Depois de um instante de silêncio, durante o qual a harmonia das vozes ainda parecia ecoar na sala, o astrólogo tomou a palavra. "O senhor tornou imortal o objeto terrestre das suas paixões. Infelizmente, os tempos miseráveis que vivemos não o permitem, mas em outros tempos a sua Beatrice teria sido elevada ao grau de estrela, em virtude dos seus versos extraordinários. Assim como foi Berenice, cantada por Calímaco.”

         "Não é a miséria dos tempos que o impede, mas o fato de sermos cristãos, que nos nega a possibilidade de ascender aos céus, a não ser pelo caminho de Pedro e de seus coros angélicos", retrucou o prior, comovido.

         "Seja então assim como o senhor diz. Posso ajudá-lo em alguma coisa?”

         "Há uma questão que eu gostaria de submeter à sua ciência. Tem a ver com a nobre matéria astrológica, mas também com o perverso episódio do delito.”

         * 236   O outro se aproximou mais. Parecia estar curioso. Diga.

         "O senhor pensa que a influência dos céus, que assinala nossos destinos, é uma necessidade ou um acidente? As estrelas guiam inevitavelmente os nossos passos ou, então, limitam-se a dar um empurrão inicial aos nossos atos, que em seguida são governados pelo livre-arbítrio?”

         Cecco d'Ascoli sorriu imperceptivelmente. "Esse é um tema de debates, messer Durante. Mas, me permita dizer, só entre os grandes espíritos. É certo que os corpos celestes, que giram em órbitas nos céus além da esfera da Lua, são perfeitos e incorruptíveis. Se a sua ação pudesse ser evitada, ela seria defeituosa, e teríamos uma conseqüência incerta de um antecedente certo, uma causa perfeita que daria origem a efeitos imperfeitos. É esta contradição que nosso espírito rejeita. Ergo, o nosso destino está escrito nas estrelas com uma medida exata.”

         Dante levantou o indicador instintivamente. Não pronunciou o nego, mas todo seu corpo estava projetado para a frente, como se estivesse empenhado num duelo.

         "Mas, admitindo que o efeito dos céus sobre as nossas naturezas seja absoluto, a estrutura ética que rege todas as nossas leis, nossos costumes e até nosso conceito moral se esfacelaria", replicou tranqüilamente. "Até a morte de mestre Ambrogio seria então atribuída à eterna peregrinação dos astros, e a mão que a determinou tornar-se-ia um simples instrumento irresponsável. Seria então inútil a Redenção, visto que não existiria Culpa. A nossa própria religião de salvação seria vã como os ídolos pagãos.”     

         Cecco d'Ascoli sustentou friamente o seu olhar. "Talvez tenha sido vã.”

         "O senhor está blasfemando! Não foi isso que ensinou o grande Ptolomeu no Almagesto30", gritou Dante. "Nem Sacrobosco. Nem Guido Bonatti, seu próprio mestre!”

        "Não só às suas lições é devido o meu conhecimento.”

         Agora o poeta estava tão próximo do outro que podia perceber o calor da sua respiração. "O senhor então subiu ao púlpito de messer Bruno e extraiu do deserto de seu espírito a funesta fantasia de outros deuses? O senhor também acredita que os astros sejam a forma visível, a manifestação de seres de poder inimaginável que nos precederam sobre a Terra e que agora a desertam, prontos porém a retornar? E que por meio da observação dos astros seja possível evocar aqueles seres? É nisto que acredita?”

         "Eu também escutei as palavras de messer Bruno" respondeu lentamente o astrólogo. "Não são idéias da nossa ciência. Elas vêm de longe, de terras do Oriente onde o teólogo predicou quando jovem. Mas não deve atribuir a elas uma importância superior ao que de fato têm. Elas não apresentam perigo para ninguém, a não ser talvez para aquele que as alimenta em seu peito." Um sorriso iluminou-lhe a face. Sua expressão fez-se conciliadora e sua voz voltou aos tons afáveis do início. "Ora, messer Durante, vamos abandonar essa estrada perigosa, que verga a beleza fulgurante da ciência dos céus às misérias da Terra. E, quanto à Redenção, saiba que ela não contradiz o meu argumento. De fato estava prevista com exatidão nas esferas estelares e antecipada pela conjunção de Marte com Júpiter em Peixes, quando nasceu o Salvador.”

         Dante suavizou, por sua vez, o tom de voz. "Bem, sim, deixemos a religião aos padres. Mas eu tenho um outro argumento para demonstrar a falácia do seu. A influência das estrelas, certa e incorruptível, atua também sobre os minerais escondidos nas entranhas da Terra?”

         "Indubitavelmente. É a influência de Vênus que determina a virtude antiabortiva da cornalina. Assim como é Marte que faz do ônix um poderoso antídoto. E não será finalmente o Sol que confere ao ouro as suas virtudes de maleabilidade e luminosidade?”

         "Mas se o ouro é plasmado em suas virtudes pela força do Sol, como explica que o maior astro e o mais luminoso ceda sua natureza a um mineral tão raro?”

         Cecco abriu um sorriso de suficiência. "Quem disse que o ouro é tão raro na Terra? Ou que ainda o será por muito tempo?”

         Dante permaneceu em silêncio olhando para o outro.

         "E de qualquer forma, mesmo que os corpos celestes não sejam deuses, como a sabedoria antiga acreditou, eles realmente têm, contudo, o poder de inúmeras virtudes, como aprendemos cotidianamente pela evidência das coisas nas turbulentas contingências da vida. A ira de Marte, o triunfo de Júpiter e, sobretudo, a irresistível energia de Vênus, a estrela pentagonal, que arromba as portas da cidade, última das divindades que não pereceram.”

         "A dominadora do Terceiro Céu", murmurou o poeta. As palavras do astrólogo lhe haviam recordado um detalhe. Também Ambrogio, em seus papéis, tinha representado uma pequena estrela de cinco pontas. E Bruno, na igreja, falara de um astro quíntuplo.

         Cecco havia concordado. Depois começou, acentuando as palavras e fazendo uma breve pausa depois de cada verso.

         "Do amor, a estrela na terceira roda Ao espírito gera angústia com sua luz. De coisa bela, que não lhe é remota Se a morte extinguir sua pessoa.”

         Dante ouviu em silêncio. "O que foi que recitou?" perguntou.

         "Uma quadrinha de um pequeno poema meu sobre a configuração dos céus. Esta, fala do terceiro e da sua rainha.”

         "Por que definiu como pentagonal a estrela vespertina?”

         O outro lhe lançou um olhar irônico. "Não vai querer que eu acredite que não sabe, messer Durante", respondeu num tom de falsa surpresa. "Com sua fama de conhecedor dos movimentos celestes!”

         Dante enrubesceu, ferido pela observação. "Não, certamente. Mas por que Vênus e o amor deveriam provocar angústia?”

         "E está perguntando para mim? Realmente não sabe? Ou não acredita que o Amor guie os passos da Morte? Por que pensa que o mestre Ambrogio foi assassinado?"      

         "Por amor de uma mulher?”

         "Que é a Verdade.”

         "Por que o mosaicista deveria ter sido vítima da verdade?”

         "Não o somos todos, de uma forma ou de outra? O senhor também não o é, messer Durante?”

         Dante lembrava do que havia lido no relatório sobre o Terceiro Céu: todos haviam chegado de Roma. Mas, antes, iodos haviam estado no Oriente. Como Baldo, o cruzado. E Antilia...

         Tinha a impressão de que Cecco encobria com o manto da dignidade astrológica alguma coisa mais torpe. E que Antilia podia ser alguma coisa mais do que uma dançarina. Um calafrio o percorreu à lembrança de seu corpo. Devia vê-la. Agora. Sozinho.

         Para descobrir mais, naturalmente.  No mesmo dia, no início da tardei

        A taberna de Baldo estava quase vazia àquela hora; só havia dois empregados ocupados ao redor do grande fogão, dobrados sob o peso dos feixes de lenha que se acumulavam contra a parede. O cruzado estava sentado num dos bancos, a servir-se de vinho com uma jarra de metal, enquanto com o olhar acompanhava o trabalho dos serventes.

         Vendo-o entrar, Baldo apoiou com um gesto nervoso a taça sobre a mesa, derramando uma parte do conteúdo, como se quisesse manter livre o seu único braço para estar pronto a defender-se.

         Claro, naquela cidade nenhuma pessoa de bem atravessaria a porta de uma taberna antes da terceira hora, o fim da jornada de trabalho. Provavelmente o taberneiro pensava tratar-se de um beberrão.

         Dante fez uma careta. Ele, o prior de Florença, tratado como um beberrão por um mendigo, além do mais maneta. A mão agarrou a adaga escondida, enquanto a sua fantasia era atravessada pela horrenda imagem do golpe do cruzado. Devia ficar em guarda e mantê-lo a uma boa distância de segurança.

         "Posso servi-lo com o meu melhor vinho, messer Alighieri?", disse o homem, adiantando-se às suas palavras.

         "Não estou aqui para apreciar o seu vinho", respondeu Dante, sem dar sinais de querer sentar. "Quero falar com a dançarina que se apresenta na taberna.”

         Baldo acariciava o queixo, enquanto o observava malicioso. "Então quer falar com a minha Antilia. A maravilhosa Antilia." Havia enfatizado a palavra "maravilhosa" com um acento lascivo.

         "Sua?" O poeta nunca havia pensado que a mulher pudesse ser uma escrava, capturada numa batalha no Oriente ou então comprada. Por outro lado, as leis da cristandade não proíbem a escravidão dos pagãos.

         "Eu disse 'minha'? Oh, perdoe, senhor. É certamente pela admiração que tenho por ela. Antilia não pertence a ninguém nesta cidade. Para muitos homens esta verdade é a causa de grande sofrimento. E eu sou um deles", concluiu o maneta dando-lhe um tapinha no ombro como que para demonstrar solidariedade.

         O prior retrocedeu, quer com receio do golpe do cruzado, quer pelo incômodo dessa confidencia. "Quero falar com ela", disse brevemente.

         "Antilia não mora certamente em minha humilde casa, senhor. Mais para cima deve elevar o olhar, se quer vê-la.”

        "Como, não vive na sua estalagem?", replicou Dante, admirado. Recordava ter lido isso no relatório.

         "Não, com certeza ela está sob a proteção de alguém, e é lá que deveria ir. Se quiser falar com ela...”

         "Diga quem é o seu amante, já!”

         "Messer Alighieri, muitos são os enamorados da bela Antilia", disse o homem. "E deles eu poderia também fornecer os nomes, visto que de vez em quando participam da sua mesa. E claramente eu também me incluo nesse número... e talvez o senhor também", acrescentou com impertinência. "Mas o verdadeiro amante, o único que é correspondido, ninguém o conhece. É ele que o senhor deve procurar, se quiser achar Antilia.”

         "Quer dizer que não sabe como encontrar a mulher que anima as noites na sua taberna e a quem pagã um salário para viver?”

         "O senhor está enganado. Ela não recebe nada de mim. Eu não teria os meios. Não, só um príncipe poderia pagar tanto assim.”

         Dante estava sempre mais estupefato. "Não é uma dançarina profissional? Mas então por que...”

         "Não sei. Ninguém sabe", interrompeu o cruzado. "Foi ela que pediu para se exibir na taberna, sem nenhuma compensação. Aliás, tive a impressão de que estaria disposta a me oferecer dinheiro para isso, caso en recusasse.”

         "Mas você não recusou.”

         "Não. Não creio que algum homem de Florença tivesse recusado.”

         Dante estava cada vez mais desconcertado.

         Baldo pareceu ler em seu pensamento. "Eu não sou um homem letrado como o senhor. Mas vi muitas coisas no além-mar, talvez mais do que está escrito em seus livros. E muito mais ouvi contar pelos nossos que se aventuraram em direção às terras da índia, seguindo os passos do grande Alexandre.”

         "O que você ouviu contar?”

         "Que lá alguns povos honram os próprios deuses não com as palavras ou com o canto, mas com os movimentos do corpo. Bem, senhor, creio que Antilia, de alguma maneira, rende homenagem a eles com a sua dança.”

         O poeta cerrou os lábios. Por um instante esteve a ponto de concordar com a intuição primitiva daquele homem grosseiro. De resto, não havia ele mesmo percebido algo de mágico e ritualístico nos movimentos da mulher, logo na primeira vez que a vira? Se a idéia não fosse blasfema, teria até admitido que havia alguma coisa de divino nos seus movimentos, mais semelhantes aos de uma sacerdotisa do que aos de uma prostituta. Contava-se que nas estepes do Oriente viviam ferozes tribos nômades, cujos reis e sacerdotes eram mulheres de maravilhosa beleza. Eram sepultadas em tumbas luxuosas, recobertas com jóias esplêndidas e com sinais de sua grandeza, entre bandos de cortesãos que eram sacrificados para que elas não enfrentassem a escuridão e o terror da viagem sozinhas. Sacerdotisas que dialogavam com a morte, interrogando-a depois de ter ingerido poções estranhas, chamando as sombras para um encontro.

         O poeta perguntou-se se Ambrogio não teria sido a primeira vítima dessa deusa bárbara, o companheiro de seu caminho em direção à casa dos mortos.

         Enquanto isso, Baldo esfregava sua única mão na testa. "Sinto às vezes que o veneno dos mouros não está apagado em mim, mas só adormecido, como uma serpente que espera sob uma pedra o sol de maio para voltar a atacar.”

         "E é o espírito que o defende? Aquele dos nossos pais, que assistiu no Gólgota ao sacrifício divino?”

         O taberneiro encolheu os ombros. "Além-mar conheci muitos espíritos.”

        Dante observou-o em silêncio. Depois mergulhou o dedo na taça de vinho e traçou sobre a mesa o pentágono riscado sobre o mosaico de Ambrogio. O cruzado empalideceu, mas permaneceu impassível, como se não compreendesse. "Será que você trocou a salvação de seu corpo pela de sua alma?" perguntou o poeta.

         Baldo não respondeu.    Dante levantou-se, lentamente. "E o seu Espírito requer em troca sacrifícios de sangue?" Teve a impressão de que o maneta tentava evitar o seu olhar. "E os outros? A quais espíritos haviam consagrado a sua fé?”

         "Os outros? Quem?".      

         "Os sábios, que parecem ter escolhido a sua taberna como um altar para os seus rituais. O que você sabe sobre eles?”

         "Nada. São homens de ciência. O que poderiam ter a ver comigo?”

         "Muito, se a ciência deles for a da intriga. E nesta você poderia bem ser doutor também.”

         Baldo não respondeu, limitando-se a passar mecanicamente um pano sujo na borda da mesa. "Não serei só eu", disse por fim.

         Na mesma hora, no convento de Santa Maria Nova.

         Em sua sala, o cardeal Acquasparta estava sentado num trono. Seu rosto estava voltado para a pequena janela pela qual era visível o campanário da Abadia, uma lâmina cortando o azul do céu. O sino estava batendo a nona hora.

         Ouviu às suas costas um leve movimento e um suspiro. Alguém procurava chamar sua atenção, mas de maneira discreta. Voltou lentamente o olhar para trás.

         Noffo Dei estava em pé diante da porta. A um gesto do cardeal, ajoelhou-se, beijando o anel que este lhe oferecia, o capucho reclinado sobre os ombros revelando a tonsura.

         O alto prelado acariciou-lhe complacentemente a nuca com a mão livre. "O que ficou sabendo?", perguntou com uma ponta de ansiedade na voz.

       "O que já sabíamos. O pentágono está claramente visível. E sua mensagem inequívoca.”

         "Você acha que aquele intrigante compreendeu o significado?”

         Noffo sacudiu a cabeça. "O homem é astuto e inteligente. Mas ainda sabe muito pouco. Ainda." Pronunciou a última palavra num tom preocupado que não escapou ao príncipe da Igreja.

         "Pensa que ele está no caminho certo?”

         "Não, tenho certeza. Está confuso, cego por sua perversa fé na razão. São claras as pegadas dos mestres das Faculdades das Artes.”

         "Ele também esteve em Paris? Mas devia ser só um rapaz...”   

         "A diabólica lição deles, com sua mensagem mal direcionada, ceifou infinitas vítimas. E em nosso homem essa lição traduziu-se na louca convicção de que a razão humana possa penetrar em todos os segredos da natureza e das ações humanas. É por isso que agora ele encontra-se perdido num labirinto, sem compreender que são seus próprios passos que geram o desvio e os cantos sem saída, à medida que avança na investigação.”

         Acquasparta lançou um sorriso cruel. "Isso nos dá tempo de prever os lances da putinha.”

         "O senhor pensa realmente ser possível...", continuou Noffo.

         "Não sei. Mas a única sombra de dúvida deve ser eliminada.”

         "Eu também penso assim, eminência. Recordará que eu já sugeri...”

         O legado pontifício interrompeu-o com um gesto. "Sabe que é impossível, nesta cidade. Alguns priores já estão do nosso lado, mas ainda não é hora para uma ação direta. Seria interpretada por aquilo que é: uma afronta à soberania do município, e além do mais dentro de seu território. E teríamos contra também os que simpatizam com Bonifácio. Só serviria para dar um pretexto a todos os gibelinos escondidos... como esse Alighieri. Bem sabe que só os guardas municipais podem realizar prisões.”

         "Poderíamos acusá-la de bruxaria e solicitar a intervenção do braço secular.”

         "Já considerei essa possibilidade. Mas, se veio para Florença, significa que aqui tem amigos de confiança e talvez poderosos. Se falharmos, poderemos nos encontrar envolvidos num processo público. E se tudo for verdade, e ela falar..." A voz do alto prelado agora estava cheia de raiva. "Como é possível que tenha escapado da vigilância, depois de ter desembarcado na Itália? Que ninguém tenha seguido seus movimentos, impedindo que ultrapassasse a fronteira? Como conseguiu atravessar as terras da Igreja e chegar até aqui?

         Noffo deu de ombros. "Não sabemos. Apareceu em Florença como por obra de magia. Pensa-se que tenha viajado de navio. Talvez a bordo de uma nave genovesa... Por dinheiro, esses piratas são capazes de qualquer coisa. Está na cidade também aquele pilantra do senense, Cecco Angiolieri. Juntou-se rapidamente à companhia. Eles o aguardavam, evidentemente.”

         "Eu li sobre ele", disse o cardeal com um sorriso zombeteiro. "Trata-se justamente do homem para eles.”

         "Talvez seja o homem de que necessitamos. Poucos florins e o teremos em nossas mãos.”

         "Conheço seu projeto, mas avaliou bem as conseqüências? Se for descoberto...”

         O inquisidor meneou a cabeça. "Nada poderá ser relacionado a sua pessoa, nem à santa Igreja.”

         Acquasparta começou a percorrer a sala de um lado para o outro, girando ao redor de Noffo, que permanecia imóvel. Depois parou inesperadamente. "Está bem, faça", decidiu ele por fim..

         "Já foi feito. Eu contava com sua aprovação.”

        

          No mesmo dia, no fim da tarde.

         O chefe da guarda apareceu novamente diante da cela. Dante começava a achar que aquele homem trazia consigo um mau agouro. E sua expressão preocupada não desmentia essa sensação. Pareceu-lhe perceber novamente o seu mal-estar.

         "O que acontece agora? Quando o vejo nunca sei se devo alegrar-me pela sua solicitude ou amaldiçoar antecipadamente os motivos que o trazem até aqui.”

         "Tem alguma coisa que é melhor que o senhor saiba... pelo menos o senhor.”

         "Por quê? Porque sou um poeta?”

         "Não, a arte da poesia não tem a ver. Mas talvez... Bem, é um assunto grave.”

         "Fale.”

         "Hoje de manhã os empregados da cozinha estavam arrumando os tonéis do vinho reservado aos priores... é o que eles dizem.”

         "Eles dizem?”

         "Eu acho que estavam tentando tomar uns goles à custa da prefeitura, aqueles pilantras."   

         "E então? Veio aqui para discutir a sobriedade dos empregados do palácio?”

         "Não. Enquanto moviam os tonéis, é o que dizem, um tonel caiu e quebrou.”

         O poeta avançou para o homem, erguendo os ombros com ostentação. "Está querendo ajuda para limpar a adega?”

         "Claro que não." O chefe da guarda enrubesceu. Estendeu a mão, que até então mantivera escondida atrás das costas. "Dentro, no meio do vinho, tinha isto.”

         Dante agarrou o objeto, quase o arrancando da mão do chefe da guarda. Parecia um saquinho de tela, recheado com alguma coisa macia. O tecido ainda estava impregnado do vinho, e um odor forte havia invadido a cela.

       Depois de examinar rapidamente o exterior, tomou a adaga e preparou-se para cortar uma beirada do tecido.

         "Será uma maldição, prior? Um despacho de magia negra?", perguntou, agitado, o chefe da guarda.

         Sem responder, Dante havia retirado do interior do saquinho parte do conteúdo utilizando a ponta da lâmina, procurando não tocar nada com as mãos. Pareciam folhas e flores em decomposição.

         "Ou talvez alguma coisa para aromatizar o vinho, um macete dos vinheiros?" arriscou ainda o outro, mas sem convicção.

         Sempre em silêncio, Dante aproximou-se da janela para examinar melhor aquele material vegetal. Sua expressão fez-se sombria, uma ruga franzia-lhe a testa ao meio. A dor nas têmporas também estava mais aguda. "Dê sumiço em todo o vinho da adega, homem. Será melhor que os priores de Florença bebam água, pelo menos por alguns dias" disse ao chefe da guarda.

         "De que se trata? O senhor sabe?”

         "É estramônio. As flores e as folhas da planta, as partes mais nocivas.”

         "É... um veneno?”

         "Sim, em doses altas provoca a morte, mas diluído talvez seja até mais perigoso.”

         "Por quê?”

         "Perturba e ofusca quem deveria estar atento. Provoca sonhos e visões. Uma mente perversa deve ter pensado em utilizá-lo contra o governo de Florença. Um veneno que nos conduzisse à morte ocasionaria ao município uma crise grave mas superável. Levar-nos silenciosamente à loucura, por outro lado, reduzir nosso consciente às trevas das alucinações é realmente uma obra diabólica. Trate de manter o silêncio mais absoluto sobre este assunto execrável. É importante que quem tramou não conheça nossa vantagem.”

         "E o senhor, o que vai fazer?" perguntou o chefe da guarda.

         "Vou prosseguir as investigações. Se conseguir agarrar uma das cabeças desse dragão, terei todas as outras.”

         Depois que o chefe da guarda se afastou, uma agitação frenética apossou-se de Dante. Então o mal estava extrapolando, e desde o subterrâneo de São Judas assediava nada mais nada menos que os salões do governo?

         Estava irritadíssimo. Tomado pela fúria saiu, e quase sem notar de repente encontrou-se na praça. Sua cabeça estava novamente em chamas, enquanto se dirigia para a taberna de Baldo. Dessa vez também, com a desculpa do sigilo, havia evitado levar a escolta; assim podia mover-se mais livremente.

         Mas, na verdade, não era por isso que queria estar só. O corpo de Antilia continuava a dançar diante de seus olhos. Queria interrogá-la a sós, depois de sua exibição. Repetia a si mesmo ter como único objetivo a punição da culpa. E talvez fosse verdade. Mas a culpa estava se inserindo também dentro dele.

         Parecia-lhe ser Jacó, às turras com a luta noturna com o anjo. Continuava a agitar-se desordenadamente, como um viajante caído numa poça de água escura onde está destinado a se afogar.

         O Terceiro Céu não estava completo quando chegou à taberna. O lugar de Teofilo estava vazio. Em cima da mesa havia uma grande talha de vinho, da qual os presentes já tinham se servido. Dante encheu também a sua taça, depois de ter cumprimentado cada um dos presentes, chamando-os pelo nome.

         Olhou novamente para o lugar vazio. Estava a ponto de pedir notícias, quando a voz aguda de Cecco d'Ascoli se antecipou.

         "Quantas vezes, messer Durante, nesses dias falamos de amor! Entretanto, bem mais solenes deveriam ser os compromissos da mente, para nós homens de ciência que somos. O que é, a seu ver, essa força que parece prevalecer sobre qualquer razoável compreensão?”

         "E, antes disso", acrescentou Bruno Ammannati, "é certo falar de força? Ou não seria melhor definir o amor como uma debilidade da alma induzida pela fuga precipitada de espíritos vitais? O amor é alguma coisa que se adiciona, como uma virtude, irradiando-se por força própria do objeto amado, ou então é uma doença incurável que empobrece os espíritos?”

         Enquanto isso, do fundo da taberna chegava o rufar dos tambores que haviam começado, com seu ritmo alucinante, a anunciar a entrada de Antilia. Em lugar de responder, Dante desviou o olhar para a mulher. Seria amor essa sensação de esmaecimento que experimentava, esse desejo de fundir a própria carne com a dela, de afundar nela como num vórtice, de perder-se nela? E seria ele o mesmo homem que tremera à simples passagem de Beatrice? E, se havia mudado, a força do amor seria tão forte para mudar de maneira tão perversa a própria natureza do homem? Era essa a força que havia arrancado seus progenitores do paraíso terrestre?

         Agarrou a taça cheia até a borda e sorveu algumas grandes goladas de vinho. Sentiu uma labareda ardente subir do estômago até as têmporas.

         "Certamente o senhor leu a canção de Cavalcanti, o seu amigo. Donna me prega31.”

         Ainda era Cecco que falava. Sua voz havia soado longínqua ao ouvido de Dante, como se todos de repente fossem deixados de lado para dar lugar a Antilia, que se aproximava requebrando os quadris. Era certo que os olhos negros dela procuravam os seus e que a mulher, entre todos, tinha escolhido a ele como destinatário de sua dança.

         Experimentou um ódio incendiário em relação aos outros homens que naquele momento a desejavam, culpados de obrigá-la a conter os passos com seus gritos e as mãos estendidas para ela.

         Estava pronto para se pôr de pé e proclamar a própria autoridade de prior. Queria chamar os guardas e mandar fechar aquela pocilga de vícios, arrastaria para o Hospital Geral aquela vagabunda. Onde é que se escondia, e com quem, quando fugia da taberna de Baldo? Desejava saber isso, e haveria de arrancar-lhe este segredo assim que terminasse a exibição lasciva.

         O maneta a havia trazido de além-mar; ele era a origem de tudo. As vozes ao redor o confundiam.

         "Por exemplo, messer Durante. A nossa Antilia", ouviu Augustino dizer. "Não resta dúvida que a presença dela acende o calor dos corpos masculinos e os predispõe para a cópula. E isso ocorre em virtude dos raios luminosos que, irradiando de seu corpo, penetram nas cavidades oculares, dilatando pela ação do calor os humores da fleuma. É uma virtude própria da natureza feminina. Qualquer fêmea bem-proporcionada que se ofereça ao olhar do macho provoca a mesma resposta que está na origem do instinto da reprodução. Mas como explicar o fascínio que a mulher é capaz de gerar mesmo quando está ausente? Eu juraria que a simples lembrança de Antilia reaquece a verga dos homens, como se sua força permanecesse inalterada mesmo quando está longe. Por isso os nossos fluidos conservam no tempo as impressões e as modificações que a radiação imprimiu neles, como aconteceria a um líquido que conservasse a forma do vaso no qual foi despejado?”

         Enquanto isso, Antilia tinha mudado de direção. Parecia que dessa vez havia decidido concluir sua exibição ao lado da mesa de um grupo de mercadores, que junto à lareira berravam, já um pouco altos.

         Dante sacudiu-se com um esforço de vontade, retornando sua atenção a quem lhe dirigira a palavra. "Claro, a canção de Guido... Creio que o amor seja uma comoção da alma. Mas que não nasce do fluxo irradiante, como gostaria o infiel Al-Kindi em seu tratado. O amor é uma virtude inata na alma nobre, que a cultiva dentro de si desde o nascimento, como a virtude mineral já está inata na matriz da pedra preciosa. A mulher, com sua beleza, limita-se a ativar essa virtude latente que espera somente ser despertada para agir. Este argumento responde à sua dúvida, sobre como pode a mulher exercer seu fascínio mesmo quando está ausente, ou mesmo após a sua morte, como eu mesmo experimentei. Os senhores sabem da divina Beatrice.”

         "Então, na sua opinião, existem realmente os espíritos amantes? Mas por que, enquanto todos os homens estão predispostos à reprodução, somente alguns conhecem a ciência do amor?”

         "Porque a ciência do amor é a ciência suprema que sustenta o progresso do conhecimento, em todos os ramos do saber. Como de resto os senhores todos também acreditam", respondeu Dante olhando todos os presentes.

         "Nós?" disse Cecco.

         "Claro. Quando nomearam como Terceiro Céu o colegiado que dá vida ao Studium, não pretendiam referir-se ao amor como seu senhor e como a primeira força depois   de Deus? Não foram os senhores que elegeram a celeste Vênus como senhora das suas reuniões?”

         Os outros se entreolharam, como se estivessem avaliando suas palavras.

         "Mas negligenciaram alguma coisa escolhendo Vênus e não Minerva como musa da sua assembléia. O amor é a força que ilumina, mas, se não é controlado, induz à perdição. Sob o signo de Vênus os senhores partiram o pão da sabedoria. Mas sob esse mesmo signo Ambrogio foi assassinado.”

         Dante pegou novamente a taça, que nesse meio tempo alguém havia tornado a encher, tragando uma abundante golada de vinho. Sentia crescer o ardor, como se suas entranhas estivessem em chamas. Percebeu que os outros permaneciam em silêncio.

         Coube a Veniero falar. "Messer Alighieri, seu argumento é certamente sugestivo. Para mim, porém, que mastiguei pouco a sua doutrina mas, em compensação, visitei muitos portos e mares, a mulher é como o vento que enfuna as velas no alto ou racha o mastro ao desencadear da tempestade. É a força que falta a nós, homens, para atravessar o mar da vida, e que procuramos aprisionar nas nossas velas." Dirigiu o olhar para a dançarina que estava se afastando. "Nee tecum nee sine te"32, murmurou.

         O poeta esvaziou mais uma taça. O vinho branco fresco, ligeiramente batizado com água acidulada, provocava a cada gole um instante de alívio, seguido pelo reacender de novas labaredas.

          “Como interpretaria então, messer Alighieri, essa estrofe? 'Vien da valuta forma che s'intende...’33", disse Augustino. "Quer dizer que Cavalcanti reduz à pura visão a origem da paixão? E que, portanto, não é possível apaixonar-se quando se está longe? Mas então como explicar a paixão do trovador Rudello, morto de amor por uma mulher nunca vista?”

         "E que essa visão deve ser entendida, ou melhor, reconduzida, a alguma coisa já conhecida pelo nosso intelecto?", acrescentou Antonio. "Mas então como justificar o amor de Adão pela primeira Eva, da qual nada poderia ter conhecido?”

         "E que amor, senhores, a julgar pelas conseqüências!" exclamou Cecco Angiolieri. Até aquele momento tinha permanecido em silêncio, com uma expressão de crescente desgosto, como se todos aqueles discursos não fossem nada mais que palavrório enfadonho. "Visto que todos nós ainda estamos pagando pelas obras de nosso criador, seria o caso de perguntar se não teria feito melhor entregando-se à arte de Onan, o solitário.”

         "A sua zombaria blasfema não nos ajuda a prosseguir no caminho da verdade!", interveio Augustino, irritado.

         "Digo que Cavalcanti erra, e muito", recomeçou Cecco, bufando. "O amor não vem da visão, segundo os belos espíritos florentinos como messer Guido, Lapo e os outros. Mas do tocar e do morder e do chupar e do beber e do cheirar e do gritar e do torcer-se na cama e arrancar os cabelos.

         Talvez poderia recordar-lhes eu também, modestamente, alguns versos meus. Mas receio que messer Alighieri se ressentiria, se eu comparasse a minha Becchina com suas graças, às Selvagge e Beatrici34 com seus espíritos.”

         Enquanto a discussão sobre a poesia de amor continuava, Dante sentia pouco a pouco seu pensamento mais confuso, como se uma lama do fundo de sua mente se tivesse levantado e turvado a água. A ordem rigorosa de seus argumentos freqüentemente se interrompia, e a palavra exata custava a formar-se, enquanto a mente, ao contrário, era um vulcão de figuras e de hipóteses. Seu raciocínio parecia superar a língua.

         Era uma sensação que já havia experimentado, especialmente em sua juventude, quando com a sua brigada de amor, festejando o Primeiro de Maio, abandonava-se à celebração de Vênus e de Baco. Desde que havia empreendido a carreira política, porém, estivera sempre muito atento para manter-se sóbrio, pelo menos em público.

         Talvez fosse apenas uma excitação momentânea que um gole de vinho poderia aplacar, ajudando-o a recuperar o equilíbrio. Ergueu mais uma vez a taça e levou-a aos lábios, tomando uma longa golada.

         Queria replicar ao que lhe parecia uma falsidade... mas qual era a ordem das argumentações? Ou talvez ele devesse apresentar uma premissa? Tentou pôr-se de pé, mas caiu sobre o banco. Alguém às suas costas devia tê-lo segurado. Quem havia se permitido? Uma pontada atravessou-lhe o cérebro, irradiando a partir do olho esquerdo.

         Necessitava da poção de Teofilo. Tentou levantar pela segunda vez, mas antes devia sacudir aquele desagradável menestrel que lhe havia subido nas costas e chacoalhava os sininhos junto de seus ouvidos. Esticou o braço atrás da nuca, procurando agarrá-lo antes que os outros percebessem a brincadeira vulgar de que era objeto.

         Finalmente conseguiu colocar-se em pé. Ajeitou o traje, que de repente parecia muito apertado, tal era a sua dificuldade de movimentos. No ínterim levantara-se um vento fortíssimo, que varria toda a taberna, batendo em todas as paredes e no teto. As chamas dos braseiros revoluteavam. Pareceu-lhe que o piso de tábuas oscilava sob o seu peso, como se ele tivesse repentinamente ficado maior. Entretanto sua mente estava bem firme, a não ser pela pontada lancinante. Eis que a trama das imagens amorosas havia se recomposto, e a falácia das argumentações de Cecco Angiolieri aparecia com toda clareza.

         "Não é assim", conseguiu finalmente dizer, juntando as forças.

         Os homens do Studium pareciam espectadores de uma comédia, os olhos fixos nele, aguardando a sua palavra esclarecedora. Olhos que pareciam ser de vidro fosco.

         Uma mão apoiou-se delicadamente sobre seu ombro e ouviu uma voz que lhe parecia familiar. Queria virar-se para ver quem era, mas antes devia liberar o traje que estava preso no banco. Não queria mostrar-se desajeitado aos olhos daqueles estrangeiros. Estava para voltar-se quando lembrou que devia terminar sua discussão com Cecco.

        "Não é assim" repetiu, e pareceu-lhe ter sido maravilhosamente conclusivo.

         A voz tornou a falar em seu ouvido. "O senhor também não percebe como o ar está pesado aqui na taberna? A fumaça dos braseiros está escurecendo tudo. Não prefere sair para respirar melhor?”

         Aquele desconforto era, certamente, causado pelos braseiros. Experimentou levantar novamente, enquanto a mão por trás de seus ombros procurava ajudá-lo. Apoiou-se com os braços na mesa e encaminhou-se para a porta. Depois parou, pegando a taça novamente. Queria esvaziá-la, antes de sair. Mas parecia colada sobre a mesa e não conseguiu levantá-la mesmo ajudando-se com a outra mão. Devia ser outra brincadeira de mau gosto daquele maldito taberneiro.

         "Maneta safado!", gritou. "Maldito!”

         Do lado de fora o vento quente e úmido atingiu seu rosto como uma bofetada. Percebia as gotas de suor condensarem-se e congelarem no pescoço. O chão onde apoiava os pés era macio e cedia sob os seus passos como um colchão de crina. Aqueles danados florentinos, com suas ruas enlameadas. Agora, livre para mover-se, conseguiu distinguir o homem que o acompanhava. Claro que o conhecia.

         O outro caminhava num bom ritmo. Dante o alcançou cambaleando, agarrando-o pelo braço. "Agora o sentido da 'veduta forma'35 ficou claro. Certamente, é assim. Quod er at demonstrandum36.”

         Continuou a apertar o braço do homem, no rosto do qual se estampava uma sombra de fastio enquanto procurava, gentilmente, libertar-se. Mas o prior cingiu a presa com mais força. "É a alma sensitiva, onde se estampa a marca do amor. Por isso, permanece mesmo quando a mulher que lhe deu origem desaparece. Da mesma forma que durante o sono permanece a lembrança da respiração. Por isso, podemos amar os que não vemos. Por isso, podemos amar quem já morreu.”

         "Talvez o senhor gostasse de estudar os efeitos do amor, messer Alighieri, mais do que as suas causas", disse o homem depois de um breve silêncio. Agora havia renunciado a libertar-se. Sua voz tinha se enternecido. "Falou muito sobre o amor. Venha comigo ao Paraíso. O melhor dos cinco.”

         Cambaleando, Dante deu alguns passos na direção que o outro indicava. Mais uma vez o cinco. Por que esse maldito número continuava a retumbar? Estava incomodado com o corpo do seu acompanhante, que continuava a empurrar e a estorvar.

         "O melhor dos cinco. A... a que se refere?", perguntou. O rosto de Veniero estava próximo do seu. O homem parecia observá-lo atentamente dentro dos olhos, como para ter certeza que estava em condições de compreender.

         Mas o poeta compreendia tudo. "O melhor dos cinco...", repetia, com a voz pastosa.

         "Existem cinco casas de amor em Florença, messer Alighieri. E cada uma está localizada perto de uma das portas da cidade. Como prior, o senhor deveria saber disso.”

         "Os priores não vão aos lupanares." Cinco portas. Cinco prostíbulos. Em que estava se transformando Florença, sob Bonifacio, o corrupto? Mais ninguém se dedicava às obras de sabedoria e de virtude? "O Paraíso? A casa de monna37 Lagia...", murmurou Dante. Agora compreendia, tudo estava claro.

         "O senhor conhece?" perguntou Veniero em tom irônico. "Pensei que só Angiolieri fosse perito nessas casas.”

         De repente o poeta sentiu-se reanimar, como se houvesse concebido uma nova idéia. Começou a correr, deixando boquiaberto seu acompanhante, que, passado um instante, apressou-se em alcançá-lo. Agarrou-o gentilmente pelo cotovelo, dirigindo-o para uma viela lateral.

         "Por que desse lado?" perguntou Dante. Continuava a sentir-se desorientado. "É para o lado oposto que temos de ir para chegar ao Paraíso.”

         "As velhas muralhas: são elas que ligam as casas. Um círculo. E um círculo pode ser percorrido em ambos os sentidos, messer Alighieri", respondeu Veniero.

         O poeta tinha certeza que aquelas palavras escondiam uma profunda verdade. Mas não conseguia compreender qual. O capitão devia ser realmente um especialista em navegação, também pelas rotas terrestres. Curioso: um homem da terra guiado por um homem do mar.

         O ar mais fresco da noite e a caminhada começavam a clarear-lhe a cabeça. Lembrou do desenho que havia encontrado entre os papéis do mestre comacino. "Messer Veniero, as suas galés também tinham velas por debaixo da quilha?" perguntou.

         * 262   O marinheiro parou subitamente, observando-o. Havia retirado a mão, deixando de sustentá-lo. Dante sentiu uma forte vertigem e precisou agarrar-se ao braço do outro, enquanto apertava as pálpebras com força, esperando que o mundo parasse de girar.

         "Não, naturalmente. A obra morta está imersa na água. Que sentido teria uma vela debaixo da quilha?", replicou em seguida o veneziano com estudada lentidão. "Como lhe ocorreu uma idéia como essa?”

         "Entretanto, eu vi um navio com as velas ao contrário.”

         "Onde?" a voz de Veniero chegava de uma distância remota. Mas mesmo assim Dante reconhecia a sua curiosidade. "Onde?", repetiu.

         "Entre os papéis de mestre Ambrogio", respondeu o prior, procurando no bolso interno do traje. Mas depois lembrou que havia deixado os papéis em São Piero.

         "Uma extravagância. Ambrogio era um grande artista e construtor, mas pouco conhecia de marinha. Ou então ele quis imaginar alguma alegoria original. O senhor disse que estava entre os seus papéis?”

         Uma luz tremeluzia ao longe. Dante reconheceu as duas lanternas da casa de monna Lagia, erguida sobre as ruínas de uma antiga vila romana, como a taberna de Baldo. Todas as casas de má fama pareciam tomar forma nas ruínas dos antigos progenitores, como vermes numa carcaça.

         Mas naquele lugar as transformações eram menos evidentes. A construção havia mantido sua forma original: uma série de amplas salas no andar térreo alinhava-se ao longo das laterais de um pátio quadrado, com uma galeria do lado externo. Por cima dessas estava um primeiro andar dividido em cubículos estreitos.

         Entraram no antigo impluvium38 transformado em bebedouro, caminhando sobre os restos da pavimentação. Debaixo de seus pés um navio circundado por golfinhos negros concluía sua deterioração em seu naufrágio secular, pisoteado pelas montarias dos clientes. E ao redor da fonte, semi-apagados pelo tempo e pela falta de cuidados, os símbolos das constelações e os sete planetas com suas órbitas. Um zodíaco inteiro em deterioração, que se estendia por toda a superfície do pátio.

         Dante estava desorientado. Quantas noites havia passado em cima desses símbolos sem lhes prestar atenção, com a consciência e os sentidos cegos pela libido? O céu do Paraíso... mas existia realmente um Paraíso em algum lugar, além daquela obscena paródia de pedras, onde as rameiras dormiam com seus amantes ocasionais? Aqui e ali, placas de mármore haviam desaparecido, mas o percurso dos astros ainda estava visível, e bem na sua frente destacava-se a órbita curva de Vênus. A deusa atravessava nua o seu céu cavalgando uma estrela.

         Ultrapassou o círculo de Marte e aquele de Júpiter. Em seguida Saturno e o polvilhado das estrelas fixas, além da eclíptica, até a parede em frente, onde se abriam as arcadas dos antigos depósitos. Do lado direito elevava-se uma escada estreita de tijolos.

         Começou a subir. Parecia-lhe que uma risada sarcástica acompanhava seus passos. Virou-se rapidamente, julgando perceber Veniero atrás dele. Mas havia uma outra pessoa, escondida no vão de um arco, entretida em vigiar um ponto do outro lado do pátio. Vestia o uniforme dos homens do chefe da guarda. Estava sendo vigiado. Esses malditos! Voltou para trás com dificuldade e foi ao seu encontro com um ar ameaçador.

         O homem não parecia perturbado. Havia um ligeiro brilho azulado sobre o seu rosto. Dante parou, incerto, esfregando a testa com uma das mãos.

         "Você?”

         O desconhecido não disse nada, limitando-se a retribuir o olhar.

         "Eu queria lhe agradecer, na outra noite em São Judas", murmurou o poeta estendendo-me a mão. "Foi a minha boa estrela que colocou você ao lado da cratera.”

         O outro apenas inclinou a cabeça. Com o movimento seus longos cabelos loiros surgiram por um instante da sombra, brilhando. "Nós estamos onde somos chamados", replicou, continuando a olhar para o alto. "Lá em cima. Estão à sua espera", disse ainda.         

         "Quem o chamou?" perguntou Dante.   

         Mas ele já havia dado as costas e afastava-se ao longo' do caminho das estrelas desenhadas, em direção aos cavalos.

         No alto da escada surgira uma mulher que parecia esperar por ele. Um pouco mais do que uma adolescente, com os longos cabelos soltos sobre a fronte. Cachos escuros de cabelos encaracolados caíam sobre os ombros emoldurando um rosto delgado, como a auréola de um mártir.

         Olhava para ele sustentando um olhar descarado, a cabeça levemente inclinada para um lado, os lábios franzidos num sorriso vulgar.

        "Assim eu o encontro novamente, messer Alighieri. Ainda procura meu leito, depois de tudo", apostrofou-o, soltando as fitas da roupa e mostrando o peito. Sua voz estridente cortava como uma lâmina.

         Dante parou de súbito, dois degraus abaixo. A jovem aproximou-se e inclinou-se sobre ele, tocando-o de leve com o seio. O poeta reconheceu um odor confuso, o hálito animalesco de uma égua misturado com um desses perfumes baratos que eram vendidos nos mercados de Oltrarno.

         "Pietra", gaguejou. "É você?”

         "Sim, sou eu, messer Alighieri. Ou devo chamá-lo prior?" Estirou-se novamente na direção dele, procurando seus lábios.

         Dante retraiu-se instintivamente, para fugir do contato com sua pele nua. A mulher reagiu bruscamente, atirando os cabelos de um negro corvino para trás e voltando a encostar-se na parede, quase querendo penetrar dentro dela. Olhava para ele com uma mistura de ternura e fastio. Em seguida voltou a estender-lhe os braços, atraindo-o para si.

         Ele sentiu novamente aquele perfume penetrar-lhe nas narinas, enquanto seu corpo despertava ao contato das mãos que o procuravam por baixo da roupa, com a frieza e ao mesmo tempo o calor que bem conhecia. Mas não queria ceder. Estendeu os braços contra ela, repelindo-a. "Vá embora, Pietra.”

         “Oh, messer Alighieri, esta noite não precisa consolar-se da esposa? E então o que o traz ao Paraíso?" escarneceu.

         Novamente uma sensação de vertigem ofuscou sua visão. "Não... não sei.”

         O olhar da garota pareceu adoçar-se. Mas em seus olhos havia um brilho malicioso. "A patroa não quer que ninguém saia daqui insatisfeito. Venha", disse, estendendo-lhe a mão.

         Dante seguiu-a por um longo corredor, procurando acompanhar o seu passo ágil. Mas a jovem correra rapidamente, como tomada de grande pressa, e desaparecera atrás do canto do corredor, depois de haver lhe atirado um olhar.

         Para Dante parecia que ela queria assegurar-se de estar sendo vista. Depois de um instante de hesitação decidiu segui-la. Alcançou ele também o canto, adentrando na outra ala do edifício. Aqui os cubículos davam lugar a quartos mais amplos, decorados com mais luxo. Camas de madeira no lugar de humildes colchões, e um mínimo de acessórios. Apesar de todos os quartos estarem vazios, passando diante das portas abertas descobriu que em cada um deles havia uma pequena lâmpada que clareava apenas o espaço interior, povoando-o de sombras.

         Não conseguia encontrar Pietra em nenhum dos quartos. O som de seus passos sobre o piso de madeira retornava num eco confuso, misturado com um barulho metálico. Alguma coisa que tinha certeza de já ter ouvido. O vinho continuava a confundi-lo, e era sempre difícil compreender tudo o que o rodeava. Por que estava ali? O que significava toda aquela loucura? Onde o havia conduzido Pietra, simulando fugir? Era ela também um anjo ou Mercúrio havia surgido diante dele sob suas formas? Estava morto e aqueles quartos eram as antecâmaras do Hades39? Continuou em direção ao fundo, enquanto o som fazia-se mais intenso. Em sua mente ofuscada cintilavam fragmentos de recordações, que não conseguiam adquirir forma. Em seguida a memória clareou-se, enquanto alcançava o último quarto e parava na entrada, novamente assaltado pelas vertigens. Lembrou a natureza daquele som mesmo antes de ver.

 Entrou cambaleante e deixou-se cair na borda da cama, os olhos fixos no espetáculo diante de si. Ajoelhada, os braços estendidos em direção a um objeto colocado no chão à frente de si, estava Antilia. O som que havia escutado era aquele produzido pelas plaquetas de bronze presas a seus dedos, que a mulher percutia ritmicamente enquanto pronunciava uma cantilena na sua língua. Em meio às palavras desconhecidas pareceu-lhe reconhecer o mesmo nome sibilante invocado na igreja dos Quarenta Mártires.

         Quando ele entrou, a mulher interrompeu-se, levantando-se rapidamente depois de ter atirado um véu para cobrir o objeto que estava diante dela. Pareceu-lhe perceber uma estatueta, talvez um ídolo pagão diante do qual ela estava oficiando um de seus rituais.

         Agora estava ereta diante dele, vestida com uma simples túnica amarela de seda que não ocultava nada de suas formas. No instante em que se levantara, os anéis de ouro que lhe adornavam o pescoço e os tornozelos haviam tilintado, e agora continuavam a ressoar movidos pela respiração ofegante. Parecia agitada, como se a oração em que a surpreendera estivesse sendo realizada fazia horas e a houvesse extenuado.

         "O que faz... aqui?", murmurou Dante. "Aqui...", repetiu, indicando com um gesto vago o quarto. Teria desejado levantar-se, mas suas pernas não pareciam querer lhe obedecer. Permaneceu sentado, enquanto a mulher dava um passo em sua direção. "Aqui..." disse mais uma vez. Ou talvez houvesse só pensado, e o som desaparecera no ar denso. Num bordel, era isto que queria dizer. Vagabunda. E como era possível para ela estar lá, se a tinha deixado havia pouco...

         Antilia aproximou-se mais uma vez, estendendo uma das mãos para ele. Tinha uma expressão inquieta, sem mais nenhum traço daquele desapego dos olhares e da luxúria que tanto haviam tocado o poeta em seu primeiro encontro. Parecia mais humana, como se a pantera dentro dela tivesse fugido, deixando somente a sombra da fera. Seu rosto resplandecia de reflexos, ainda mais vermelho pela chama quente da candeia.

         Com os dedos começou a acariciar o rosto do poeta, lentamente, com doçura, como uma cega que procurasse descobrir as feições de um amante desconhecido. O ônix dos seus olhos parecia ainda mais negro: dois lagos de trevas sem fim. Dante levantou-se em direção a ela, sem perceber a facilidade com que agora conseguia realizar aquele movimento. Ela levou uma mão atrás das costas, soltando um laço. A túnica caiu rapidamente ao longo de seu corpo, desnudando-a.

        Sobre seu corpo surgira a serpente multicolorida aninhada em seu ventre, de onde se elevava em espiral em direção à curva do seio. O olho da besta fixava o poeta, chamando-o, enquanto Antilia aproximava-se ainda mais. Em seu hálito, claramente, percebia o perfume do chandu.

         Dante percebeu debaixo de si a resistência do colchão, o lençol noturno amassado e banhado em suor e umidade, enquanto o corpo de Antilia se espremia contra o dele, aderindo aos seus membros com todo o desespero de uma alma ferida pela solidão. Suas mãos desciam procurando-o. E o prior abandonou-se ao seu toque e afundou no seio e depois no ventre que lhe era oferecido, sem mais pensar.

         Fez amor com a dançarina de rosto pintado, que na sombra do quarto sobrepunha-se à lembrança de outra mulher, já perdida, uma mulher que se transformava em todas as mulheres, à exceção daquela que realmente era, aquela que ele não conhecia, por trás da máscara de cobre.

         Depois, lentamente voltou a si. Afastou aquele corpo, cujo peso tornara-se opressivo. Parecia sufocá-lo, como se todo o edifício estivesse pegando fogo e as chamas tivessem entrado no cubículo. Enquanto procurava ajeitar as roupas, mudo e carrancudo, percebia sobre si o olhar da dançarina, circundado pelas sombras. Virou-se para a parede para fugir daquele olhar que parecia escavar dentro dele, e finalmente voltou-se para ela derrotado.

         Antilia olhava para ele em silêncio. Havia se levantado da cama e estava imóvel no centro do quarto, em sua nudez triunfante. A serpente multicolorida brilhava com suas espirais que pareciam animadas pela respiração da mulher. O corpo recoberto por um véu de suor resplendia à luz da chama da candeia, como se toda a umidade da noite sufocante estivesse espalhada sobre a sua carne de bronze. Mesmo a essa distância o poeta continuava a sentir o perfume acre de sua pele nos cabelos, nos pêlos da barba, debaixo das unhas...

         "Quem é você?", murmurou.

         Ela apontou com o indicador seu próprio peito. Mesmo na lentidão do gesto, os anéis dourados vibraram, emitindo o som metálico habitual.

         "Beatrice.”

         Dante emitiu um soluço. "Como você sabe?" balbuciou, com a voz estrangulada. "Quem lhe falou esse nome? Pietra, aquela puta...”

         "Beatrice", repetiu a mulher. "Quero a minha retribuição", acrescentou com uma voz sem tons, como se não compreendesse o significado do que dizia e estivesse simplesmente repetindo um som numa língua desconhecida. Começou a chorar silenciosamente. Mas permanecia imóvel, de pé no meio do quarto. "A minha retribuição.”

         Sua cabeça doía novamente. Pequenas pontadas, não aquele aperto de aço de algumas noites, mas o leve roçar de um velho inimigo que não quer ser esquecido. Os músculos do rosto se contraíram numa careta. Sentia a dor de Antilia envolvê-lo como as espirais da serpente que ela trazia sobre a pele.

         A chama da candeia parecia bordar ao redor dela uma luminescência fétida, parecida com aquela das algas em decomposição que havia visto aflorar no delta do Pó. Como se a dançarina não estivesse ali, e nem ele estivesse. Duas aparições que se encontram num espelho.        

         Aquela imagem penetrava no abismo da dor vinda de um céu diferente. O paraíso é um inferno de cabeça para baixo. Como estivera errado o grande Platão, quando havia imaginado que a nossa alma vem das estrelas. Não, a alma quer somente retornar para o lugar onde nunca esteve. Queria a sua retribuição.

         Uma puta, igual a Pietra.

         Levantou-se de um salto e fugiu pelo corredor. Havia sido Pietra, tinha certeza, a revelar aquele nome. Para divertir-se com ele, para vingar-se. O nome continuava a ressoar em sua cabeça. Odiava aquela puta.

         A jovem estava novamente no alto da escada e parecia aguardar por ele. O olhar que lhe dirigia era ácido, como o de uma guardiã do inferno.

         "O que você falou de mim para ela, maldita? E o que quer aquela vagabunda?", murmurou Dante. "Como devo pagá-la?”

         Pietra ignorou o insulto. "É uma mulher esquisita. Tem desejos estranhos.”

         "O que ela quer?”

         A jovem teve um momento de incerteza. "Tempo. Ela disse que queria tempo.”

         "O que significa?”

         "Quer tempo", ela repetiu, encolhendo os ombros. "Foi isso que ela me disse para pedir. O sábio é o senhor.”

         Dante procurava compreender, olhando nervosamente ao seu redor para aquelas paredes impregnadas de luxúria.

         Pietra olhou para ele por um momento, depois sua risada vulgar voltou a iluminar-lhe os lábios. "Então, messer Alighieri, aquela vagabunda vermelha conseguiu fazê-Los esquecer a sua pequena Pietra? Ou é sempre aquela outra mulher que o senhor tem na cabeça? Não consegue esquecê-la, verdade? Morreu há mais de dez anos e ainda está em seus pensamentos. E ela nem mesmo lhe deu atenção!”

         "Cale a boca, puta! O que você quer saber do amor?", gritou Dante, golpeando-a com um bofetão.

         Ela tocou o lábio, onde surgira um pouco de sangue. "Não o amava, não o amava!" jogou-lhe na cara com um grito, enquanto algumas gotas de sangue molhavam suas vestes. Depois começou a chorar convulsivamente. "Ninguém o ama. O senhor vai terminar bem longe, sozinho.”

         Dante sentiu-se afundar numa poça de dor. Bebia aquela água amarga em grandes goles, como quem está afundando. A jovem havia fugido pelo corredor, soluçando, e ele desceu a escada com passos pesados.

         Chegando ao andar de baixo olhou para cima, para as estrelas. Viu uma luz sair da janela de um dos cubículos e deslizar lentamente em direção ao fundo da passagem coberta, seguida por uma silhueta incerta. Eram sombras de sombras. Por um instante a chama da candeia, dobrada pela brisa, iluminou uma face descoberta. Mas logo a sombra a engoliu, subtraindo-a à vista.

         Agora estava abatido. Não tinha forças para perguntar-se se teria sido mesmo Antilia a mulher que vira. Em suas mãos havia sinais vermelhos. Devia ser o carmim que deixava na pele dela o brilho do bronze. Esfregou os dedos na roupa, com raiva.   No pátio, atravessou novamente o pavimento com as órbitas dos sete planetas e deixou-se cair sobre os restos da fonte. A água borbotava docemente a seu lado. Imergiu uma mão na pequena poça e molhou a testa. O fresco contato fez com que ele voltasse completamente a si. O efeito do vinho estava desaparecendo juntamente com as horas da noite mais profunda. Percebia que as idéias começavam a clarear, mesmo se um turbilhão de imagens e de vultos femininos continuava a atravessar sua mente.

         Ergueu novamente o olhar em direção ao ponto onde lhe parecera ter visto Antilia, mas agora toda a parede estava imersa em trevas.

         Olhou ao redor, procurando em vão uma referência: os quatro lados do edifício eram exatamente iguais, com suas filas de janelas fechadas com venezianas.

         Por um instante experimentou o impulso de voltar ao andar de cima e fazer uma busca em todos os cubículos. Podia valer-se de sua autoridade para isso. Olhou em direção da Porta Carraia, avaliando rapidamente os tempos. Caso se apressasse poderia alcançar o Palácio, chamar a guarda e retornar com meia dúzia de soldados antes do alvorecer. Ordenaria àqueles velhacos para revirar cada colchão e olhar atrás de cada cortina.

         Mas deu-se conta de que nunca encontraria a mulher. Como acontecera antes na botica de Teofilo, de onde ela havia desaparecido sem deixar traços. Ergueu-se pesadamente, caminhando em direção do portão. Voltou-se mais uma vez para dar uma última olhada nas janelas, depois saiu para a rua.

         Diante dele estava um homem. Os músculos do poeta se contraíram instintivamente, enquanto se punha em guarda. Em seguida, assim que reconheceu os traços irônicos de Angiolieri, tranqüilizou-se.

         “Cecco, o senhor também conhece o Paraíso?" murmurou.

         "Este e muitos outros, desde aqui até Siena. Mas este é o mais divino de todos.”

         Permaneceram por um instante observando-se, sem falar. Por que haveria ele de surpreender-se ao encontrá-lo ali? Poderia tê-los seguido quando ele e Veniero haviam saído da taberna. E de qualquer maneira não seria improvável encontrá-lo num prostíbulo.

         Entretanto Dante tinha a sensação de que estivesse ali para algum escopo preciso. Tinha uma expressão tensa, diferente daquela que se poderia esperar de um cliente satisfeito.

         "Sabe por que odeio de morte meus pais?" disse Cecco de repente. O prior ficou espantado com a pergunta, que aparentemente não tinha nenhuma relação com as circunstâncias. "Imagine que tentei matar meu pai. Atirei-o escada abaixo na casa dele, e só o diabo sabe como é que ele não quebrou o pescoço.”

         "Porque o senhor tem uma cabeça excêntrica, Cecco. Eis por quê.”

         Angiolieri ergueu o queixo levemente, semicerrando os olhos. Era como se estivesse revendo a cena. Um sorriso aflorou em seus lábios, para depois se transformar numa careta. "Não sabe? Nem com todo o seu conhecimento das ciências?”

         "É difícil perseguir o corcel da loucura. Especialmente quando está a todo galope, como no seu caso", murmurou Dante, fatigado.

         "Entretanto não sou louco. Mesmo tendo escrito que a melancolia me tomou com uma força tal de deixar-me a um passo da morte. Quer saber por que fiz isso?”

          Cecco aproximou-se de Dante, quase a ponto de roçar nele. Abaixou o tom de voz, fazendo sinal para aproximar-se. "Tenho medo de que ele me coma.”

         "O que está falando?”

         "O velho, é um demônio. É capaz de engolir um leitão inteiro no jantar só para me prejudicar. Num dia ele devora as receitas de três vinhedos inteiros. Não vai me deixar nada quando morrer. Ele disse que vai comer todas as coisas até o último dia para que nada sobreviva a ele. E, além disso, é inútil, porque ele deverá sobreviver a mim. O diabo está ao seu lado.”

         Dante não conseguiu deixar de sorrir. Mas não era o pai de Cecco que lhe interessava. "Por que veio para Florença?”

         "Já disse. A barra estava pesada para mim em Siena. Eu precisava ir embora rapidamente.”

         "Mas por que justo Florença?”

         "Todos vêm para cá. Não é esta a cidade onde tudo está crescendo? Os florins no caixa, o alto das torres, o ventre das mulheres? Onde tudo se adiciona e se multiplica mais do que os pães e os peixes de Nosso Senhor? Se Cristo tivesse estado à beira do Arno em vez de naquela poça do Tiberíade, teria colocado à disposição de seus seguidores faisões e línguas de cervos em lugar de simples pedaços de pão. Aqui tem espaço também para mim, tenho certeza disto. Só necessito de dois cavalos para puxar minha carroça.”

         "Não vai me dizer que veio para cá em busca de trabalho?”

         "Mas então é bem verdade que uma fama injusta me persegue! Ah, se soubesse como mudou a minha natureza desde que nos encontramos em Campaldino... Entretanto, é exatamente esta a minha intenção: oferecer o meu braço a um empreendimento honesto em troca de um pequeno lucro.”

         "Quer dizer que a sua natureza mudou... Mas será que também mudaram as suas idéias?”

         O senense lançou-lhe um olhar enigmático. "Na batalha de Campaldino, em 1289, arrisquei a vida do lado da casa dos guelfos. E o que ganhei com isso? Pobreza e exílio. Desta vez resolvi lançar os meus dados.”

         "Aqueles femininos?”

         O outro concordou lentamente, observando-o como só tentasse ler seus pensamentos. "O senhor não está se dando conta do que vai acontecer na cidade?”

         Parecia esperar que Dante estivesse a par de alguma coisa. Mas o quê? Quais as idéias que ele havia mudado? "O senhor disse que ficou desiludido com os guelfos", experimentou jogar com isso. "Está pensando que os imperialistas saberiam ser mais generosos?”

         Cecco não respondeu, aguardando o poeta prosseguir.

         "As grandes famílias gibelinas consolidaram-se nas propriedades do norte, e não têm nenhuma intenção de descer abaixo do vale do Pó. Ao sul, no reino, o poder está nas mãos dos franceses que, se bem que de má vontade, estão com Bonifácio. Os Colonna e os Orsini de Roma odeiam o Caetani e lutariam contra ele, mas só para recuperar seu poder pessoal, e não certamente para abrir o caminho da Urbe a um soberano estrangeiro. E, além disso, quem poderia ficar à frente dessa empresa, depois do desastre de Tagliacozzo? O infeliz Corradino morreu sem deixar herdeiros.”

         Cecco continuava impassível, como se essas observações não o tocassem de nenhuma maneira.

         "Porque não existem herdeiros ao trono imperial, certo?", disse ainda Dante. "Ou estou errado?”

         O senense ergueu por um instante os olhos em direção às janelas dos cubículos. Foi só um lampejo, em seguida seu olhar retornou para Dante com a mesma indiferença de antes. Isso foi suficiente para que o poeta se virasse de repente, olhando em volta rapidamente. Não viu nada, mas inesperadamente o Paraíso parecia iluminado por uma luz diferente. Menos sórdida mas absurda.

         O exército dos falsos empestados. Mesclados com os peregrinos que se dirigem a Roma, os foragidos gibelinos que marcaram encontro em Florença, juntamente com os aventureiros e intrigantes como Cecco, para se colocar debaixo da proteção de uma rainha escondida? Uma vagabunda? Aqueles que Giannetto dizia ter visto no refúgio dos mendigos talvez fossem os batedores de um exército que se reunia secretamente na gruta, e cujas confabulações haviam sido entendidas por aquele tolo como a celebração de um ritual ocultista. E enquanto Giannetto imaginava demônios e bruxas, eles abriam mapas, estabeleciam pontos de encontro, providenciavam depósitos de armas...

         "Cecco, o senhor conhece a igreja de São Judas, fora das muralhas?”

         O outro riu às gargalhadas, dando finalmente um sinal de vida. "Seria melhor me perguntar se fui eu a assassinar o mestre comacino. E se me perguntasse isso também eu daria duas respostas: sic et non40, como nas discussões dos sabichões do Terceiro Céu. Não, não matei o mosaicista. Sim, conheço a igreja. Mas muitos a conhecem em Florença, acredite.”

         "O que quer dizer?”

         Cecco mordiscava os lábios. Parecia titubear, talvez em memória da antiga amizade. Em seguida, de súbito, falou como se quisesse fazer uma confidência. "Está sendo preparada uma nova era, talvez para Florença e talvez para toda a Itália. Pense em si, messer Alighieri, se quiser agarrar a cabeleira da Fortuna que passa." O senense saiu passando por debaixo do vão da arcada. Assim que chegou à rua, Dante observou-o dirigir-se para Porta Carraia e então encaminhou-se lentamente na mesma direção. Andava lentamente, pensando em tudo o que acabara de ouvir.

         Agarrar a cabeleira da Fortuna...

         Ainda não conseguira, ao longo de toda a primeira metade de sua vida. E nem mesmo agora a deusa vendada parecia querer conceder-lhe os seus favores. Esperava-o um caminho de grandeza, não de felicidade. E, para alcançar a glória, é mais necessária a virtude do que a sorte. Procurou os olhos do senense para gritar isso na sua cara, mas agora ele já estava longe.

         Sentou-se sobre um marco de pedra, ao lado da estrada. Uma ligeira vertigem ainda o atormentava. Seguir o caminho da virtude... Mas o que deveria fazer, se realmente sua hipótese correspondesse à verdade e a máscara de cobre sobre o rosto de Antilia fosse somente um truque engenhoso para esconder os traços nobres, antes de desencadear a revolta? Ela própria havia pronunciado o nome de Beatrice. O seu. Quem haveria de procurar a última herdeira dos suevos sob o teto de uma taberna, ou entre as paredes de um lupanar?

         Qual era o seu dever? Correr ao palácio e denunciar a intriga gibelina? Voltar com os soldados, cercar o Paraíso, prender Antilia ao cepo, extrair dela com o fogo uma confissão e depois entregá-la ao carrasco para ser decapitada, como havia sido feito com Corradino? Impedir que uma prostituta subisse ao trono?

         Meneou a cabeça.

         Aquela mulher era somente uma dançarina vinda de além-mar. Era impossível que uma rainha chegasse a prostituir-se. Cecco estava delirando, ou então estava se divertindo com tudo, como de costume. Talvez estivesse bêbado.

        

         21 de junho, ao nascer do dia.

         No oriente começava a clarear, e algumas estrias rosadas mesclavam-se ao negro e ao cobalto da noite. A mancha brilhante de Vênus resplandecia como um diamante na lesta de Lúcifer, sobrepujando todas as outras estrelas.

         Talvez devesse aguardar antes que abrissem o portão. Poderia exigir isso recorrendo à autoridade de seu cargo, mas dessa forma todos haveriam de notar seus movimentos.

         Quando chegou diante da passagem, encontrou-a inesperadamente aberta. Um grupo de homens armados, à espera de alguma coisa, estava enfileirado diante do portão. Depois de um instante de hesitação resolveu prosseguir. Se houvesse problemas dar-se-ia a conhecer. Mas, dados uns poucos passos, viu-se cercado pelas lanças dos soldados, enquanto braços robustos o agarravam.

         Tentou reagir, debatendo-se e gritando o próprio nome. Ouviu uma voz intimar aos guardas que parassem e o deixassem livre. O chefe da guarda surgira como por encanto entre seus homens.    

          "O senhor também em exploração noturna, messer Alighieri?" perguntou quando chegou perto. "E uma doce exploração tendo em vista o lugar de onde vem", acrescentou com um sorriso malicioso, indicando o Paraíso.

         "E o senhor, o que faz aqui com os seus homens?" replicou Dante, sem acolher a insinuação.

         "Dever de oficio, messer Alighieri. Parece que alguém está tentando infiltrar-se na cidade. A guarda está dobrada.”

         O poeta resmungou alguma coisa e prosseguiu atravessando o arco. O outro não tentou segui-lo, limitando-se a acompanhá-lo com o olhar.

         Sentia-se destruído. Percorreu o trajeto entre o portão da cidade e São Piero recolhendo suas últimas forças, e finalmente deixou-se cair sobre o leito, enquanto pela janela a luz do dia começava a clarear a cela.

         Apesar do cansaço, não conseguiu adormecer de imediato. Sua mente agitada percorria o pequeno quarto num turbilhão de imagens, como um pássaro trancado num celeiro. Movia-se do leito para a mesa, e depois para a janela. Permaneceu um instante diante do armário, num canto. Pareceu-lhe que sua vista penetrava além da porta de madeira, até a ampola escondida entre as roupas. Devia ainda ter um resíduo do líquido verde.

         Estava para entregar-se ao sono quando ouviu uma risada áspera. Virou-se subitamente em direção ao som. De pé, ao lado da cama, havia uma sombra. Reconheceu Guido Cavalcanti, vestido com uma túnica longa. Seu corpo parecia constituído de uma substância sutil e luminosa, como um tronco oco ao qual tivessem posto fogo. A chama interior lambia a superfície e começava a transparecer nas pequenas rugas, claras de uma maneira incomum sobre rosto sombreado.

         Guido olhava para ele e continuava a rir. Parecia estar lendo seus pensamentos. Dante sentiu-se invadir por uma «nula de amor.

         "Saudações, Guido. Reencontramo-nos. O que há de novo:

         "Estou morto e desde que morri experimentei coisas e quero contar para você.”

         Só então Dante notou a estranha veste que o amigo usava, parecida com o uniforme de alguma confraria. Sobre o peito tinha um escudo bordado em que cinco cores se repetiam em faixas verticais.

         Guido devia ter percebido seu olhar, porque indicou 0       próprio coração. "Existem cinco monstros em seu caminho", disse. Em seguida, traçou um pentágono no ar. Seu dedo deixava um traço de sangue como aquele sobre o peito de Ambrogio.

         "O que você quer me dizer?", perguntou ansiosamente Dante, enquanto os traços no ar lentamente desapareciam.

        "Nós mortos somos cegos no presente, porque no presente está a existência que nos é negada. Mas enxergamos longe, como se nossa visão fosse amplificada por um daqueles vidros convexos que os mouros lapidam nas terras árabes. E eu vejo o seu destino como através de um desses vidros. Você caminhará sobre a Terra por quatro lustros e depois conhecerá a morte úmida que cava com as suas febres os ossos e as vísceras. Mas sobre as coisas futuras não 283   quero saciá-lo de maneira que possa ir descobrindo uma a uma, com dor. Mais não digo e a nada mais respondo.”

         "Continue!" exclamou Dante. Estava enfurecido. Por que o amigo falava por enigmas? Por que o deixava na incerteza? "Você é um danado arrogante como todos de sua estirpe!", gritou. "Aquele safado do Giannetto está vivo, e sabe mais do que você!”

         A sombra de Guido havia se encostado à janela. Levantou o dedo para o alto, apontando a estrela mais luminosa entre as que brilhavam no requadro do céu.

         Suas rugas estavam mais acentuadas; agora uma rede de chamas percorria seu rosto, que começava a ficar indistinto; só com dificuldade os traços humanos ainda estavam reconhecíveis no brilho, que expandindo devorava todo o corpo. Dante encontrava-se deslumbrado. Estava para ser tocado pelas chamas quando acordou subitamente.

         Levantou-se do leito tremendo. O olhar correu para a janela aberta, procurando o astro com que havia sonhado. O dia já surgia. Alta sobre o horizonte, apenas velada pelos primeiros rasgos estreitos de luz azul-cobalto, Vênus resplandecia com seu fulgor. Era o astro indicado por Guido antes de desaparecer nas chamas.

         Dante estava transtornado: seu amigo não morrera. Tinha certeza disso. E então por que aparecera como ura fantasma? Por que essa insistência sobre a forma do pentágono e a referência a Vênus?

         Estando vivo, não poderia ter sido a alma do amigo a visitá-lo. Logo devia tratar-se de um incubus41 que havia tomado a sua forma para enganar e ferir o poeta. Diziam que por meio desses vislumbres de consciência o demônio se insinuava na alma humana.

         Lavou o rosto, enquanto os sentidos voltavam lentamente. A sua lógica, sustentada pelo julgamento correto e pela graça de Deus, não poderia ser enganada por um poder diabólico. Devia haver uma outra explicação.

         Pensou novamente naquilo que aprendera no livro de Artemidoro, o grego que havia estudado o segredo dos sonhos. Imagens do dia, falseadas e corrompidas pela alma vegetativa. Algo que já conhecemos sem saber. O sonho é só uma lembrança.

         Quantas lendas havia escutado, e a quantos sermões inflamados havia assistido, em que se tratava da história do amigo morto que retorna a visitar o vivo para falar das regiões de além-túmulo. Sua consciência devia ter acessado essas lembranças para dar forma ao sonho.

         O mistério ainda não resolvido das cinco partes do mosaico podia explicar a estranha veste de Guido e o pentágono traçado com o sangue. Entretanto, Cecco d'Ascoli havia falado de Vênus como de uma estrela pentagonal.

         Sua cabeça devia conhecer o motivo, mesmo se agora, à luz do dia, a faculdade de conectar os fatos parecia não estar disponível.

         Reviu rapidamente suas noções de astrologia. Num canto do quarto, escondido debaixo de um monte de papéis, estava o tratado de Guido Bonatti. Começou a folheá-lo, pensativo. Esperava que aquela sensação vaga adquirisse finalmente corpo. As grandes folhas do volume passavam debaixo de seus olhos com suas tabelas, o cálculo das efemérides, os movimentos planetários...

         De repente viu. Estava bem embaixo dos olhos, desenhados pela mão firme de um copista que relatara sem refletir, e talvez sem compreender, aquilo que o grande astrólogo havia assinalado nos mapas do zodíaco. Os ciclos do planeta Vênus. O estudo das conjunções com o Sol sobre o arco da eclíptica.

         Estava tudo ali, bem debaixo de seus olhos: a cada oito anos o Sol e Vênus se aproximam por cinco vezes em seu movimento circular, e o traço dessas conjunções sobre a volta celeste constituía os vértices de um pentágono perfeito. A estrela quíntupla. Como haviam descoberto os antigos babilônios. Agora aquele som sibilante, o nome evocado por Antilia e pelos outros, adquiria um sentido. Ishtar, a deusa do amor que doava a seus adeptos o êxtase da carne.

         Lentamente uma idéia tomou forma em seu pensamento, como quando no palco vazio de um teatro entram os atores para avivar a representação. A estrela do alvorecer, a divina Ishtar que exigia o sacrifício do corpo de suas sacerdotisas, ordenando-lhes que se entregassem a desconhecidos.

         Cingiu a cabeça com as mãos, pressionando com força as têmporas como se quisesse parar por um instante a confusão de seus pensamentos. "Se ao menos o senhor, pai, pudesse ajudar-me", surpreendeu-se a pensar.

       "Por que escolheu a mim como guia?" respondeu a amada voz de Virgílio.

         "Porque é o maior.”

         "Não. Fui escolhido porque estou morto. E os mortos não fazem sombra.”

         O barulho de passos pesados no corredor, depois uma série rápida de golpes decididos na porta o desviaram de suas fantasias. Agora já conhecia esses sinais.

         "Messer Durante, acorde.”

         O poeta apressou-se em abrir a porta e deu de frente com o chefe da guarda, ofegante, vestido com a armadura habitual. Agora, à luz do dia, animado pelo canto dos pássaros e pelo cheiro dos pães frescos, o homem, com seu equipamento de batalha, parecia ao poeta ainda mais grotesco, todavia, alguma coisa em seu olhar o livrava do ridículo.

         Era medo. Os olhos estavam injetados de sangue, e a parte visível do rosto debaixo do capacete era de uma palidez espectral. "Venha logo, mais um cadáver.”

         "De quem se trata?", perguntou Dante.

         "Perto da Porta Romana, a botica de mestre Teofilo, o boticário. Talvez seja ele o morto.”     

         "Talvez? O que significa?".

       "Deve ver com seus olhos, estou dizendo. É como da outra vez."         Dante teve um gesto de contrariedade. Parecia-lhe reviver a noite de São Judas. Levantou-se para xingar o chefe da guarda, mas alguma coisa no olhar do homem o conteve. Viu quando ele se precipitou escada abaixo, para onde os guardas, armados com lanças, o esperavam. Também na expressão do rosto deles parecia colher uma expressão alarmada.

         Os soldados deveriam tê-lo escoltado, mas Dante, livre do peso da armadura e das armas, chegou à botica de Teofilo primeiro. A porta estava aberta, vigiada por um único soldado com a lança atravessada para manter afastados os curiosos que haviam começado a amontoar-se pelas redondezas. O homem apressou-se em afastar-se para deixar passar o prior, assim que o reconheceu.

         O corpo estava diante do forno de cerâmica, pendurado pelo pescoço com uma das correntes do lustre. Talvez fosse realmente Teofilo. As roupas eram as suas e também o anel que adornava o indicador direito parecia ser o do boticário. Mas agora que via o cadáver compreendia a perplexidade do chefe da guarda.

         A cabeça estava recoberta por uma substância amarelada. No chão, junto ao cadáver, havia um caldeirão de cobre caído dentro do qual se viam os restos do material utilizado para o crime: cera de velas. As mãos, amarradas atrás das costas, ainda estavam contraídas na tentativa de libertar-se dos laços. A imagem do primeiro crime surgiu diante dos olhos de Dante, com sua evidente semelhança. A cera era a base para o preparo de muitas especialidades curativas, e aqui também o assassino havia matado com a matéria da arte da sua vítima. Aqui também o mesmo ritual, a mesma liturgia sórdida para apagar o rosto que nos deixa semelhantes a Deus.

         A substância mole havia escorrido pelo rosto atormentado numa camada fina, que deixava entrever as feições como através de um vidro opaco. Ajudando-se com a ponta de um formão que estava sobre a mesa, o poeta levantou a beirada de cera solidificada. Era realmente o boticário. Abriu sua roupa na altura do peito, descobrindo cinco cortes que o marcavam com um pentágono, como o do mosaicista. As feridas pareciam muito superficiais para ser mortais, também não havia outros sinais visíveis de golpes.

         A cera linha sido derramada sobre o infeliz quando ainda vivo. Teofilo devia ter acompanhado até o fim os gestos do assassino, antes que seus olhos fossem queimados pelo liquido fervente.

         Imaginou a cena horrorosa que surgiria depois de retirar a cobertura solidificada.

         "O senhor ainda nega que um bruxo está à solta em nossa cidade?" balbuciou o chefe da guarda às suas costas. O morto parecia bradar sua concordância, com a boca ainda aberta pelo grito supremo.

         Dante tinha a impressão de começar a delirar.

         Até aquele momento toda a sua atenção estivera concentrada no corpo dilacerado. Percorreu com o olhar a caixa de ferro. No chão, diante da tampa aberta estavam as folhas que tinha visto da primeira vez. Recolheu-as com avidez, enquanto constatava o desaparecimento do remédio milagroso. O assassino do boticário havia roubado o frasco, depois de executar a encenação macabra. Em seguida devia ter examinado os papéis, que Dante recordava estarem ordenadamente amarrados por um barbante.

         Sua desilusão cresceu. As folhas estavam em branco, à exceção de duas. A primeira trazia somente uma frase curta, enquanto na outra uma mão havia escrito, com sinais apressados, algumas seqüências numéricas cujo sentido ele não conseguia compreender. Talvez o assassino houvesse subtraído a parte já escrita do precioso trabalho em que estava envolvido o boticário, juntamente com o frasco do líquido verde. No chão havia somente um fragmento de pergaminho corroído pelo tempo, com alguns traços coloridos desbotados. Os restos de um desenho ou de um mapa.

         Tinha certeza de que seria completamente inútil dar uma busca minuciosa na loja. Examinou novamente a única página escrita.

         "O que quer dizer, prior?", ouviu o chefe da guarda murmurar às suas costas. O homem havia acompanhado com atenção todos os seus movimentos e tentava com dificuldade ler as poucas palavras.

         "Non in trigono nec in tetragono...”

         "... sed in pentágono secretum mundi"42 completou Dante, incomodado pelo bafo do outro em seu pescoço. "No pentágono está contido o segredo do mundo.”

         "E o que significa?", repetiu o chefe da guarda.

         O poeta encolheu os ombros. Estava se perguntando se o responsável teria sido só um. Talvez tenham sido as mãos de muitos a destruir aquelas vidas. Entretanto, a sua consciência recusava a idéia de um crime coletivo: aqueles crimes tinham uma forma, e naquela forma transparecia a absoluta individualidade de um único assassino.

         O assassino tinha um único motivo, apesar de ter se escondido numa selva de símbolos. Tudo começara com o crime do mosaicista e era impossível que não houvesse uma relação entre os dois homicídios. Na mente do poeta, porém, por um instante surgiu a hipótese de que a morte do mestre comacino não fosse essencial à sucessão dos acontecimentos; uma simples divagação no caminho abominável do crime.

         Claro, isso desmentia todas as suas convicções. Como ensina o Filósofo, de fato, cada evento é determinado por um Motor. Nunca duvidara que numa seqüência de eventos a ordem temporal devesse acompanhar a lógica necessária e, portanto, que o primeiro ato de violência fosse a origem do sucessivo, e assim por diante numa corrente horrenda. Se, entretanto, o culpado tivesse como objetivo primário a morte de Teofilo, o horrível fim do comacino poderia ter sido somente um trágico prólogo, uma encenação para conduzir todos para uma pista falsa?

         Até aquele momento havia procurado uma razão para a morte de Ambrogio. Mas, agora que o boticário fora assassinado, deveria descobrir um elemento comum a ambos. Aquele elemento que atraíra o assassino.

         Havia um, pensou. O anel de ouro que o comacino entregara a Teofilo. Aquele ouro talvez tivesse sido fabricado mediante o emprego de um segredo terrível. Aquele mesmo que circulava escondido por Florença e que resplandecia sobre a pele de uma mulher.

         Devia falar com ela. Sozinho. E dessa vez sem deixar-se trair pelo vinho.

         Subitamente lembrou-se do misterioso desaparecimento de Antilia daquela mesma loja.

         "Quem descobriu o crime?", perguntou ao chefe da guarda.

         "Foram os meus homens", respondeu o outro com um tolo acento de orgulho na voz. "Estavam fazendo a ronda e, ao passar diante da porta, ouviram uma confusão suspeita no interior. Entraram imediatamente...”

         "Confusão? Mas então pegaram o culpado em flagrante? E onde está?" Dante estava quase gritando.

         "Não havia ninguém no interior. Mas o assassino devia ter fugido pouco tempo antes, visto que o corpo da vítima ainda estava se contorcendo nos espasmos da agonia, foi o que disseram.”

         "Fugido? E por onde? A loja só tem a saída para a rua. Como fizeram para não ver ninguém, esses malditos idiotas?”

         "Estou lhe dizendo que há uma força diabólica por trás de tudo isso!”

         O poeta não o escutava mais. Seu olhar percorria todo o local, examinando mais uma vez cada detalhe. As paredes pareciam de pedra maciça e eram perfeitamente visíveis, a não ser atrás da estante onde estavam alinhados os recipientes com as ervas. Apressou-se para aquele lado e agarrando um canto do móvel sacudiu-o com todas as forças, como para avaliar a firmeza.

         "Ajude-me a afastá-la, rápido.”

         O chefe da guarda aproximou-se, perplexo; de repente um vislumbre de compreensão abriu caminho em seu rosto, enquanto se atirava por sua vez sobre a estante, tentando tirá-la do lugar. "Parece... parece chumbada na parede..." disse ofegante, vermelho pelo esforço.

         Dante também tinha a testa molhada de suor. Sob o esforço conjunto, o móvel não se movera uma polegada sequer. Como louco lançou-se sobre a fila de recipientes, atirando-os ao chão de modo a criar um espaço vazio no meio do móvel. Depois, com o cabo da adaga começou a bater contra a madeira do fundo da estante. Um som surdo respondeu aos golpes.

         "Aqui atrás a parede está oca", disse. Retrocedeu alguns passos enquanto exortava os guardas a adiantar-se. "Arrombem aqui!”

         Talvez fosse somente a sua fantasia, mas pareceu-lho perceber um movimento atrás da parede de madeira. Tinha certeza de que em algum canto deveria haver um mecanismo para abrir a parede, mas não tinha tempo para procurá-lo.

         Os guardas começaram a golpear as tábuas com as espadas. O carvalho envelhecido resistia, desfazendo-se lentamente numa nuvem de estilhaços. Aos poucos a estrutura dava sinais de começar a ceder. Afastando os homens com um gesto, Dante começou novamente a empurrar a estante com todas as suas forças, sem preocupar-se com os últimos vasos cerâmicos que caíam ao chão e espatifavam-se com um barulho seco.

         Finalmente a estrutura cedeu girando sobre um pivô para o interior, enquanto o prior, levado pelo mesmo impulso, caía ao chão do pequeno quarto escondido que se abria atrás da loja. Levantou-se ansiosamente, olhando ao redor. Teve um gesto de decepção ao descobrir que estava vazio. No alto havia uma espécie de janelinha. Uma cortina rasgada pendia de um canto do caixilho.

         "Deve ter fugido por ali. Rápido, sigam-me!" gritou enquanto agarrava a borda da janela, procurando levantar-se.

         Ofegante, conseguiu apoiar-se sobre o parapeito. Do outro lado abria-se um espaço maior imerso na semi-escuridão. Apoiando-se sobre o torso, conseguiu girar o corpo e deixou-se cair para o outro lado.

         "O senhor pegou? Consegue vê-lo?" ouviu o chefe da guarda gritar do outro lado da parede.

         Estava num lugar pouco comum. Os olhos, ainda ofuscados pela luz exterior, levaram alguns instantes para adequar-se à penumbra do novo ambiente.

          Parecia estar no interior de um grande navio, um grande almoxarifado habitado só por uma população de fantasmas que se agitavam debilmente sob uma leve aragem. Ao longo do eixo longitudinal da construção, por cerca de oitenta braças de comprimento, de um lado estendia-se uma densa série de cordas às quais estavam penduradas centenas de panos multicoloridos para secar. Uma atmosfera densa e úmida, permeada com os odores dos corantes, saturava o espaço, tornando o ar irrespirável.

         Tratava-se de um estendedouro, um grande depósito onde os tintureiros deixavam secar os panos tratados após o processo de tingimento. Dante foi tomado por uma repentina sensação de náusea enquanto tomava fôlego, inclinado sobre os joelhos. Mas sua mente estava empenhada em traçar um mapa do lugar. Na parte de trás da loja de Teofilo abria-se um almoxarifado que, por alguma razão, o boticário decidira manter em comunicação com o ambiente principal. E seu assassino devia saber disso.

         "Pode vê-lo?", gritou novamente o chefe da guarda.

         A quantidade de panos toldava a vista. Dante esperou que aquele idiota se calasse, para permitir-lhe ouvir alguma coisa. O estendedouro estava imerso na imobilidade mais absoluta, a não ser pelo ligeiro tremor dos tecidos. O arquiteto devia ter previsto algumas aberturas, distribuídas de maneira a provocar aquela leve corrente de ar que sentia em seu rosto. Portanto deviam existir outras saídas, reconheceu Dante, alarmado.

         Atravessou rapidamente as fileiras de tecidos, examinando os longos e estreitos corredores entre elas. Estava pensando com raiva que o assassino, a essas alturas, já devia ter fugido, quando lhe pareceu perceber um volume entre os tecidos que se movia lentamente em direção ao lado oposto da construção. Alguém estava caminhando sob a proteção dos tecidos estendidos para afastar-se sem ser visto.

         "Rápido, corra com seus homens; ele ainda está aqui!" gritou ao chefe da guarda, enquanto disparava em direção ao ponto onde percebera o movimento.

         Não sabia se os homens haviam seguido suas ordens, mas não tinha tempo para certificar-se. Rapidamente abriu caminho através dos panos que lhe obstruíam a passagem. Empunhava a adaga, sem se perguntar o que faria quando se encontrasse diante de seu adversário, no caso de este possuir uma arma longa.

         Mas alguma coisa dentro de si lhe assegurava: não era com ferro que aquele homem matava, se é que se tratava de um homem. Antilia também havia desaparecido naquele mesmo lugar.

         O movimento, enquanto isso, se deslocara para a sua direita, atravessando em diagonal as fileiras dos secadores. Dante percebeu confusamente um corpo pular de uma fileira para outra e, em seguida, desaparecer atrás das barreiras de tecidos. O salto havia sido muito rápido.

         Percebeu alguma coisa mover-se ao seu lado, algumas fileiras mais à direita. O assassino estava tentando retornar para pegá-lo pelas costas? Virou-se rapidamente e atravessou a barreira de tecidos, afastando os panos com violência.

         Estava correndo de novo em direção ao lado por onde entrara, quando, com um gesto de alívio, percebeu que, vindos da janela do alto, os soldados finalmente começavam a se aproximar. O corpo desajeitado do chefe da guarda ocupava o espaço vazio entre duas fileiras de panos. Estava parado, ofegante, mas ao menos tinha chegado.

         "Cuidado, ele está aqui! Está correndo em sua direção!" gritou Dante.

         Também o misterioso adversário devia ter percebido a chegada dos homens armados e inverteu novamente seu caminho, movendo-se na direção do prior, como se tivesse decidido que este agora representava o perigo menor.

         O vulto envolvido nos panos aproximava-se rapidamente. A parede estufou com velocidade surpreendente, como se não um homem mas um animal feroz estivesse correndo em sua direção. O poeta recordou com terror ter visto alguma coisa semelhante durante a caça ao cachaço, nas colinas ricas de bosques perto de Fiesole. Os arbustos tinham se aberto da mesma maneira, um instante antes que um javali enorme se precipitasse fora do bosque dilacerando com as presas o ventre de seu cavalo.

         Um arrepio percorreu-lhe o corpo a essa lembrança. Às suas costas os guardas estavam se aproximando, mas eram lentos demais para chegar a tempo, impedidos pelas lanças que se prendiam nas passagens estreitas.

         Mais do que uma ajuda, eles estavam criando uma condição de perigo para ele ao agirem como batedores de uma estranha caça. Inclinou-se sobre os joelhos, procurando assumir uma posição defensiva, e, segurando a adaga com todas as forças, aguardou o encontro com a massa que se deslocava em sua direção.

         De repente o movimento parou a poucos passos de distância como por um passe de mágica. O homem permaneceu imóvel. Talvez estivesse tomando impulso para agredi-lo, pensou Dante com temor.

         Depois um grande pano pareceu animar-se com vida própria, elevando-se da corda de sustentação, antes de cair bem em cima dele. Percebeu que o tecido molhado o envolvia, enquanto lutava furiosamente para libertar-se. Em seguida dois braços fortes o agarraram através do tecido, imobilizando-o. Tentou vibrar uma espadeirada desesperada com a adaga, mas o tecido escondia quem o havia agarrado. Suas narinas estavam cheias do cheiro azedo do corante, um cheiro que nunca teria associado com a morte. Pensou com horror que dali a um instante sentiria uma lâmina dilacerar suas carnes e que nada podia salvá-lo.

         Quando os braços do desconhecido afrouxaram e o empurraram de lado, Dante tropeçou e caiu ao chão. Percebia sempre o peso do corpo sobre si, mas detrás da tela não veio nenhum golpe. Era como se o seu agressor quisesse somente abrir passagem, afastando-o do caminho.

         Agora não sentia mais aquela presença. Voltou a lutar contra o tecido molhado para liberar-se do invólucro que o prendia e procurou levantar-se.

         Percebeu novamente uma presença ao seu lado e duas mãos que o agarravam. Quando conseguiu libertar-se, deu-se conta de que se tratava dos soldados que tinham vindo em sua ajuda. Ao lado deles estava o chefe da guarda, com o seu habitual ar idiota. Parecia divertido.

         "Estava aqui há um instante!", gritou o prior. "Não o deixem escapar!”

         "Quem? Não vimos ninguém.”

          "Estou dizendo que estava aqui dentro... não pode ter desaparecido! Procurem!”     

         Os soldados olharam ao redor, perplexos. Enquanto isso, outros homens haviam acorrido.

         "Distribuam-se entre as fileiras e percorram todas elas, precisamos cercá-lo", gritou Dante.

         Os soldados olharam para o chefe da guarda, que fez um gesto de concordância. Enquanto eles saíam correndo, o poeta dirigiu-se para um dos corredores no centro do salão. Tinha a impressão de que era exatamente ali o lugar para onde se dirigira seu agressor depois de tê-lo libertado.

         Não viu ninguém. Os outros também não encontraram nada em suas explorações ao longo dos estreitos corredores de tecidos. Os panos continuavam tremulando suavemente, movidos pela brisa do estendedouro. Mas o assassino havia desaparecido.

       

         No mesmo dia, no início da tarde.

         Os seis homens estavam sentados em círculo sobre os assentos altos com os encostos esculpidos, imersos na luz violenta que entrava aos borbotões pelas amplas janelas da sala de reuniões em São Piero.

         Estavam sós. Os guardas também tinham sido afastados. Uma grande folha, com as insígnias da cidade, havia passado várias vezes de mão em mão.

         "É um número... alto", disse um dos seis, um homem pequeno e magro que quase parecia desaparecer no assento, "talvez..." A mão que segurava o pergaminho teve um leve tremor. O homem percebeu, porque apressou-se em agarrar a folha com a outra mão, como para assegurar-se de que não cairia.

         "Devemos estar prontos para tudo.”

         "Mas tantos... E além disso seus nomes... Muitos gozam das graças de Bonifácio.”

         "Pensam que são demais? Que deveríamos ser clementes com alguns deles?" pressionou-o Dante. "Que deveríamos perdoar quem violou impudentemente as nossas  leis? Quem contribuiu com a sua obra funesta para transformar o município de uma cidade nobre, digna herdeira da grande Roma, numa espelunca de ladrões e alcoviteiros? Quem sujou suas ruas com o sangue derramado em brigas e embates, quem escancarou as portas do templo da guerra civil?"

         O poeta calou-se por um instante, os punhos cerrados sobre os braços da cadeira. "Quem com seu comportamento irresponsável está alimentando os projetos de Bonifácio sobre a nossa liberdade?”

         Ao ouvir esse nome, uma sensação de embaraço atingiu a todos os presentes.

         "Não... certamente." O outro prior estava confuso. "Mas exilar também a família Donati... Não são seus parentes?”

         "Minha mulher é uma Donati. E então?”

         O outro não sabia o que dizer. Mas ainda não parecia resignado a calar-se. "São cinqüenta. Acrescentei um nome de próprio punho. O último.”

         O prior levantou a lista à altura dos olhos, procurando com ansiedade. Depois localizou com os olhos o último que falara, como se a frieza de seu tom de voz o tivesse tocado como uma língua de cobra. "Pensa que devemos...”

         "É necessário. Para o bem de Florença." Dante esfregou a mão sobre a testa, procurando suavizar a pontada de dor que, partindo da parte posterior de um dos olhos, começara a agulhar o cérebro como uma lâmina ardente. O calor da tarde havia despertado a serpente adormecida dentro de sua cabeça.

         Houve uma pausa de silêncio, enquanto os presentes voltavam, cada um, a examinar lentamente o pergaminho, demorando-se sobre um ou outro nome. E cada um deles, depois de terminar a leitura, observava o poeta. Procuravam um sinal de dúvida, a sombra de uma incerteza em seu rosto delgado. Mas ele permanecia impassível, sustentando o olhar dos outros com firmeza.

         "Bem, seja como o senhor diz." Quem falou foi o mais velho. Apoiou o grande anel que trazia no dedo indicador sobre uma almofada entintada e, com um último momento de hesitação, aplicou o próprio selo no documento. "O que não tem remédio, remediado está", limitou-se a acrescentar, passando a lista para o vizinho da direita.

        Um de cada vez e rapidamente os outros quatro priores repetiram o gesto, quase querendo libertar-se dessa angústia com uma ação breve. O quinto homem reteve por um instante o documento antes de passá-lo ao último. "Por sorte nosso mandato termina nos idos de agosto. Tenho a intenção de ir, em peregrinação, até Roma para o grande jubileu. Quero afastar-me desta cidade; tem alguma coisa maligna em seus arredores. E o senhor, o que fará depois, messer Durante?”

         Dante arrancou nervosamente o pergaminho das mãos do vizinho e apressou-se em apor o próprio selo, encolhendo os ombros. "Não sei. Não conheço o futuro.

         Mas num ponto estou de acordo com o senhor. Parece que o demônio está realmente caminhando pelas ruas de Florença, desde que... "     

         "Desde quando, messer Durante?”        

         Dante não respondeu logo. Estava tomado por uma visão. Em seguida sacudiu-se. "Providenciem que o proclama seja transmitido ao magistrado de justiça para que cuide da execução. Até amanhã, nenhum destes deverá ser encontrado no interior das muralhas da cidade.”

         Enquanto saía quase esbarrou no chefe da guarda, que aguardava do lado de fora da porta. Segurava entre as mãos um fascículo amarrado por um barbante. "Eu vim conversar consigo, prior. O senhor ordenou que fosse relatado cada detalhe que tenha uma possível ligação com o crime.”

         "Alguma novidade?”

         O chefe da guarda olhou para os outros priores sem saber como comportar-se. Em seguida leu no rosto impassível do interlocutor a ordem para não revelar nada aos presentes.

         Dante esperou que os colegas estivessem longe e apressou-se a interrogá-lo. Não tinha muito tempo à disposição: não lhe escaparam os olhares suspeitosos que alguns priores lhe haviam lançado, enquanto deixava a sala. O que os outros sabiam desse assunto? O que poderia ter revelado aquele tonto do chefe da guarda? Seria possível que alguém entre eles estivesse envolvido naquela que, cada vez com maior evidência, parecia ser uma conspiração?

         "Então?" perguntou.

         O outro soltou o nó do fascículo e o abriu sob os olhos do poeta, mostrando uma página repleta com uma lista de nomes. "É o registro das entradas em Porta de Francia. Os meus guardas registram os nomes de todos os que passam, para a tributação. E me foi assinalada a entrada de dois suspeitos, mesclados com os peregrinos que fazem uma parada no caminho de Roma.”

         "Quem são?”

          "Apresentaram-se como dois mercadores de Pádua e hospedaram-se na taberna de Ceccherino, aquela onde...”

         Dante sabia muito bem o que se dizia de Ceccherino e de seus clientes. Aliás, na França, não era chamado de o vicio florentino, como aprendera assim que chegara a Paris?

         "Não vai me dizer que está preocupado porque dois veados resolveram se reunir em Florença", disse secamente. Só podia esperar que, graças a isso, Deus não submetesse a cidade à mesma punição de Sodoma.

         "Mas o encarregado dos guardas é de Siena, e os reconheceu. Talvez sejam paduanos, mas certamente não são mercadores. O meu homem lembrava bem deles: dirigiam os canteiros de obras da nova catedral, na sua cidade. São dois mestres construtores.”

         "Como a primeira vítima?" Enquanto refletia, Dante pousou os olhos sobre a data registrada na página e estremeceu. "Mas isso aconteceu há mais de uma semana! Por que esperou até agora para me comunicar este fato?”

         O outro enrubesceu, constrangido. "O controle do registro é feito a cada dez dias... O meu homem não podia imaginar..." balbuciou.

         O poeta havia levantado a voz sem querer. Apressou-se em reduzir o tom novamente. Então o que havia dito aquele desgraçado do Giannetto era verdade, se até o chefe da guarda estava certo da presença dos dois mestres comacinos. Mas será que eram os mesmos que havia visto de relance no subterrâneo? E por que estavam chegando em Florença tantos companheiros de Arte do mestre Ambrogio?

         "E onde estão agora?"      

          "Fique tranqüilo, prior. O meu homem tem experiência. Estão sendo vigiados, como é obrigatório para todos os que se introduzem no município sob falsas alegações. Foram seguidos até o Ceccherino, onde se hospedam.”

         "Mas eu quero saber onde se encontram agora!”

         "Mas... sempre ali, descansando da viagem, creio...”

         "Crê? Crê?" Dante fulminou o outro com o olhar. "E no que mais você crê, pode me dizer?”

         "Não me pareceu oportuno fazer nada", balbuciou o chefe da guarda. "No fundo trata-se de dois inocentes. Todos dizem que os comacinos são simpatizantes dos gibelinos, mas em nossa cidade não se tornaram culpados de nenhum crime... não há nada em que possam estar envolvidos...”

         "A não ser dois crimes hediondos!”

         Ao ouvir aquelas palavras o chefe da guarda pareceu recuperar um pouco de segurança. Ergueu-se todo orgulhoso. "A esse propósito eu queria avisá-lo de que o culpado do crime do boticário foi localizado e preso há uma hora.”

         "O quê?" Dante exclamou. "E quem...”

         "Os meus homens surpreenderam um conhecido patife, um tal de Giannetto, que realiza golpes na região de Santa Maria Nova, enquanto tentava vender alguns frascos de vidro que foram reconhecidos como provenientes da botica de messer Teofilo. Agora está preso na Stinche, debaixo das cordas. Alega inocência, mas é questão de tempo... Como vê, o senhor está errado em suspeitar dos comacinos.”

         Dante imaginou a expressão transtornada do rosto de Giannetto, nas mãos dos torturadores. Aquele safado não tinha nada a ver com o crime; no máximo poderia ter depredado a loja aproveitando-se da morte do boticário. Estava para ordenar ao chefe da guarda soltar aquele desgraçado quando um pensamento reteve suas palavras na garganta. Era justo que Giannetto passasse algumas horas sob tortura, por conta da sua vida imoral. Depois interviria para libertá-lo, antes que os guardas o matassem de verdade. Mas para isso seriam necessários alguns dias.

         Era uma sorte que, de qualquer maneira, as coisas tivessem evoluído dessa forma. Não confiava no homem que olhava para ele, esperando: talvez fosse só um tolo, mas podia também saber muito mais do que dizia, em relação aos dois crimes. Talvez tivesse de fato passado para o serviço de Acquasparta, e nesse caso seria melhor deixá-lo acreditar que estava convencido da sua teoria.

         "Se é assim, pelo menos um de nossos problemas parece resolvido. Graças ao seu zelo.”

         O chefe da guarda parecia estupefato, e Dante pensou que tivesse se mostrado muito apressado em aceitar as conclusões do homem. Provavelmente nem este acreditava totalmente na culpabilidade do mendigo.

         Sem acrescentar mais nada, o poeta foi embora, afastando-se em direção da escada, acompanhado pelo olhar desconfiado do outro.

         Ainda estava sob o pórtico quando viu no centro do Claustro um grupo de homens armados, com as fardas vistosas dos mercenários do legado pontifício. Acompanhavam, munidos de suas lanças, um homem que vestia o hábito claro dos dominicanos. Na luz brilhante do sol parecia muito mais magro e delgado do que o poeta o afigurara na penumbra do subterrâneo da Misericórdia.

          Na ocasião, Noffo Dei confrontava-se com os mortos. Agora que se movia entre os vivos parecia pouco à vontade, como se estivesse fora de lugar.

         Dante parou ao lado de um pilar para refletir um instante e preparar-se para o encontro. Quer dizer que o lobo viera para o curral das ovelhas. E com os seus esbirros. Quem havia permitido que homens armados penetrassem no palácio dos priores, sem que a guarda fosse alertada? Teve um momento de incerteza: talvez devesse retornar para juntar alguns soldados, antes de aproximar-se do inquisidor. Mas este já o havia notado e movia-se rápido atravessando o espaço vazio do Claustro, como se estivesse ansioso para alcançar novamente a sombra protetora do pórtico.

         "Estou contente de encontrá-lo na sede de seu ofício, irmão", disse estendendo ostensivamente a cruz que trazia ao pescoço. Dante apenas moveu a cabeça, ignorando o gesto.

         O outro retirou rapidamente a cruz, sem deixar de perceber a infração ao cerimonial.

         "Está aqui para reunir-se com o Conselho?" perguntou Dante.

         "Não com o Conselho, mas consigo, messer Alighieri, que é no Conselho a voz mais nobre.”

         "Uma nobreza que nasce da capacidade de resistir à bajulação, irmão Noffo. O que deseja aqui?”

         As faces esmaecidas do inquisidor enrubesceram por um instante, mas logo voltou a esconder-se por trás da máscara da diplomacia. "Talvez seja melhor que tratemos deste assunto em sua cela, ao abrigo de olhares indiscretos", limitou-se a dizer, olhando ao redor com desconfiança.

          Dante concordou, precedendo-o em direção à própria cela.

         Sentaram-se, um em frente ao outro, sobre os bancos espartanos. Noffo abaixou o capucho sobre as costas e enxugou o suor da testa com um pano retirado de uma pequena sacola que trazia a tiracolo.

         De súbito sua expressão se transformara. Parecia que as sombras da cela tinham regenerado as suas forças. Aquele homem crescia com as trevas. Seu olhar havia perdido todo traço da precedente hipocrisia, retornando à sua gélida natureza de torturador. Instintivamente o poeta se certificou de que a adaga estava ao alcance de sua mão.

         "É com grande pesar que me sujeitei a solicitar-lhe uma audiência, messer Alighieri, infringindo os costumes da Igreja e as minhas convicções pessoais", começou o inquisidor. "Creio que o bom pastor deva perseguir a ovelha desgarrada na noite, também em meio à tempestade e no deserto. Mas se a ovelha transforma-se em lobo e finge desgarrar-se para atrair o pastor para longe do rebanho, então o pastor deve retornar correndo sobre os próprios passos e armar-se.”

         "A sua é uma alegoria sinistra, irmão. Serei eu a ovelha com roupa de lobo? Ou toda Florença, que eu represento?”

         "O senhor não representa nada, messer Alighieri. E logo conhecerá a medida exata deste nada. Mas por enquanto está investido de um cargo que lhe impõe a nossa atenção. E só por isso venci o meu legítimo orgulho, tornando-me seguidor de nosso Senhor, quando lavou os pés também do indigno Judas.”

         "O que determinou tanta consideração? Estará querendo por acaso a revogação do proclama do exílio?”

          Sabe lá quem havia informado aquele cachorro sobre uma decisão que deveria permanecer secreta até o momento de sua execução. Mas era inútil aborrecer-se. Qualquer um dos cinco priores poderia estar a serviço do cardeal.

         O monge fez uma careta. "A Igreja não alimenta nenhuma preocupação com o destino dos homens que provocam a discórdia em sua cidade. Nem pede nenhuma rescisão do proclama: logo será a nossa mão que vai abrir ou fechar a porta de Florença, e todos os justos serão convidados a retornar para a pátria. Não, não é esse o motivo.”

         "E qual é então?”

         "Estou pedindo para prender uma mulher: Antilia, a dançarina que se apresenta na taberna na estrada para Roma.”

         Dante deixou passar alguns instantes antes de responder. Queria estudar a expressão do outro para tentar compreender o que pretendia. Mas o inquisidor permanecia impassível. "Por quê?", perguntou então.

         "Para que seja impossibilitada de causar dano, e transferida para Roma em correntes, onde deverá ser processada por suas culpas. E para que devolva o que não lhe é devido.”

         Dessa forma o cardeal havia decidido mostrar-se. A mente de Dante apressou-se em compor a rede de hipóteses de uma trama racional, que finalmente encontrava confirmação. Havia um só motivo pelo qual Bonifácio poderia desejar colocar as mãos na humilde dançarina. Beatrice, escondida sob a máscara carmim: a legítima herdeira do trono imperial.

         Qualquer outra hipótese desaparecia diante dessa admissão implícita. Era isso então que Ambrogio pretendia revelar na futura aula do Studium? Devia ser isso.

         "E qual é a acusação?" perguntou.

         "Atos de bruxaria e contra a natureza", respondeu o monge, com um tom indiferente. Estava claro que nem ele acreditava naquelas palavras, uma fórmula vazia conveniente.

         "A acusação de negociar com os demônios é adequada a quase qualquer ação contrária aos desejos de Deus. No fundo qualquer crime implica a participação de Satanás, como espectador ou como intérprete ativo. Portanto a autoridade municipal necessita de maiores detalhes para tomar uma iniciativa tão séria, especialmente em relação a uma mulher de ascendência real.”

         O rosto de Noffo Dei estava novamente molhado de suor. "Ainda com a lenda da filha de Manfredi... O senhor é mais obstinado do que as mulas de seu condado. já lhe disse que não é essa a acusação impugnada a essa mulher.”

         Dante olhou para ele com uma expressão sarcástica. "Vejo por suas palavras que a minha afirmação não o surpreende. E por que quer que ela lhe seja entregue, então? (Certamente não por ser uma bruxa", disse aproximando-se. O monge empalideceu. "De que ela é acusada?" insistiu. "Diga qual é a verdadeira imputação!”

         "Ela é acusada de furto.”

         O prior franziu a testa. De furto? Diante de seus olhos surgiu a imagem do anel de ouro que Teofilo lhe havia consignado e que agora estava escondido na cela de São Piero. Igual aos outros que circulavam pela cidade, como havia revelado messer Flavio. E extraordinariamente semelhante às jóias de Antilia. Podia não existir segredo algum por trás de sua origem misteriosa, a não ser só a banal esperteza de um furto? Era loucura. Não podia ser. "O que quer dizer?", perguntou para ganhar tempo enquanto avaliava aquele fato novo.

         "A mulher está na posse de alguma coisa que pertence à Igreja.”

         "De que se trata?”

         Noffo teve um instante de embaraço. "Não... não posso revelar.”

         "Em Florença não é consentida uma inquisição sem culpa formada. Pensa que está em Roma?" replicou o poeta.

         "Não posso porque não a conheço.”

         "Como?" exclamou Dante, admirado. "O que quer dizer? Como pode acusá-la, se nem sabe o que furtou?”

         "Sabemos que alguém lhe revelou um segredo. É esse segredo que ela furtou ao patrimônio de São Pedro.”

         "Chega deste jogo de enigmas! Qual segredo? E a respeito de quê?”

         "A morte de Celestino V, o predecessor de Bonifácio.”

         "A mulher conhece o nome dos assassinos? E o senhor gostaria que por isso Florença a pusesse a ferros? Para impedi-la de falar?”

         "Por que fala de assassinos? Por que associar essa palavra blasfema à morte serena de um homem santo?”

         "Porque até as pedras sabem que Celestino foi assassinado!" gritou Dante. Depois parou. "Ou então... a mulher conhece o segredo da transmutação do ouro? Foi este o furto que ela cometeu?”

        

          O monge não respondeu. Por um instante pareceu a ponto de revelar mais alguma coisa, mas em seguida, com um gesto brusco, ergueu os ombros franzinos. Uma expressão de mármore tinha descido novamente sobre o seu rosto.

         "Isto era o que eu tinha para dizer-lhe", declarou levantando-se. "Confiamos que esta nossa solicitação seja recebida com solicitude. É a sua última oportunidade para alterar o juízo que fizemos a seu respeito.”

         Dante juntou silenciosamente o indicador e o polegar de ambas as mãos, apontando para as costas do homem que estava saindo. Não a darei a você, cão!, pensou.

         Estava furioso. Tinha estado com aquela cobra entre as mãos pela segunda vez e a deixara ir sem conseguir arrancar-lhe uma informação sequer. Existia realmente um segredo sinistro por trás da morte de Celestino V, e esse segredo tinha escapado das garras de Bonifácio. Mas talvez houvesse uma brecha no muro de silêncio que a Igreja havia erguido ao redor desse assunto.

         Lembrou do que lhe mencionara Iacopo Torriti a respeito das relações entre os dois priores. O arquiteto havia relatado somente boatos. Mas Antonio da Perentola podia saber muito mais. Durante os anos passados a serviço da Cúria devia ter escutado e visto muitas coisas nos corredores do Palácio Laterano. Naquele covil de serpentes, a morte de Celestino V devia ter sido certamente um assunto de mexericos. Precisava obrigá-lo a falar.

         Ficou parado a meio caminho debaixo do pórtico. Queria dar tempo ao inquisidor de alcançar a sua escolta e afastar-se, antes de mover-se por sua vez. Ainda estava olhando fixamente a escada quando ouviu que gritavam seu nome. Virou-se apenas a tempo de não ser atropelado por messer Duccio, que corria em sua direção.

         "Finalmente o encontro!" exclamou o secretário municipal, com a respiração ofegante. "Ninguém consegue encontrá-lo nunca!”

         Retirara um grande papel enrolado de debaixo do braço e procurava confusamente desenrolá-lo sob o olhar de Dante.

         "Talvez porque eu esteja ocupado com alguma coisa", replicou o poeta num tom gélido, sem sequer se dignar a olhar o papel.

         "Mas os priores não deveriam afastar-se do palácio durante seu mandato... o senhor bem sabe.”

         "Essa é a norma. Mas a vida ama as exceções" encurtou Dante, chateado com o contratempo. "O que há de tão importante?”

         "É necessário decidir a instalação.”

         "A instalação do quê?" O prior abaixou o olhar para o papel que o outro continuava a segurar à sua frente. Parecia um desenho arquitetônico, a planta de um prédio. Uma longa estrutura dividida em muitos ambientes menores. Talvez um convento. Ou um novo hospital.

         "O provedor urbanístico insiste em construí-la no Guardingo, diante do futuro priorado. Alega que esse será, dentro em pouco, o novo centro de Florença. E ali seria oportuno construí-la, aberta para todos os cidadãos envolvidos nos negócios públicos. E também para todos os estrangeiros de passagem, para que relatem nas suas cidades as nossas virtudes cívicas.”

         Dante voltou a olhar o mapa. Estava para perguntar alguma coisa, quando o outro se adiantou.

         "Foi projetado por um artista experiente, para armazenar dignamente as coleções dos cidadãos. O projeto foi baseado naquele dos romanos. Os seus imperadores sempre cuidaram para que nada fosse perdido. E nós, florentinos, faremos a mesma coisa agora.”

         O poeta seguia o desenho com o olhar. Claro, a galeria de acesso era bem identificável. E, julgando pelo número de salas que se abriam nela, devia ser imponente. Talvez ainda houvesse uma saída para aquela cidade. Só na França vira algo parecido. Lá os reis, havia algum tempo, tinham começado a expor os seus tesouros, as coleções de jóias e os quadros da corte, para exaltar o próprio governo. li Florença não fazia por menos, quanto à criatividade e a habilidade de seus artistas. Aqui poderiam os cidadãos enobrecer a cidade, confiando as próprias coleções àquele lugar. Só os papas tinham coleções de arte tão importantes na Itália. Mas essa teria sido a primeira da Itália aberta à visitação dos cidadãos. Um museu, este devia ser o nome certo.

         Olhou novamente o projeto, satisfeito. "Em cada sala deverá ser exposto um gênero artístico singular, de maneira que, ao percorrer ordenadamente as diversas formas, os olhos possam apreciar toda a criatividade humana. Sim, eu também concordo que o lugar mais adequado será diante do Palácio Comunal.”

         "Também foi consultado Arnolfo de Cambio, lá nas obras do Duomo" continuou messer Duccio. Parecia sensibilizado pela clara compreensão do poeta.

          "O grande Arnolfo? Fez muito bem ao evocar a sua luz.”

         "Sabe... o fato é que não me parece adequado abrir a entrada para a praça. Talvez na parte posterior, quem sabe?" "E por que?

         "Não considero digno que os nossos futuros administradores venham a se deparar com algum grosseirão de calças arriadas.”

         Dante olhou para ele desconcertado. "E por que diabos alguém deveria arriar as calças num museu?”

         "Não sei de qual museu o senhor está falando. Mas acredito ser difícil aliviar-se sem arriar as calças.”

         O poeta arrancou-lhe o papel das mãos, examinando-o novamente com pressa. "Mas é uma latrina! O senhor quer colocar uma latrina diante do Palácio Comunal?" exclamou enrubescendo.

         "Claro, é exatamente essa a idéia. Seria uma boa fonte de receitas, uma taxa sobre a uréia...”

         "Está querendo recolher o mijo e iniciar um sórdido comércio, e ainda diante do palácio dos priores?”

         "Mas a urina serve para o curtume... Até os imperadores cuidavam do recolhimento da uréia...”

         "Vá para o inferno, messer Duccio, o senhor e a sua uréia! Passe o chapéu, se quer conseguir alguma coisa!", gritou Dante, exasperado, afastando-o para o lado e encaminhando-se para a saída.

         Depois de alguns passos, parou e voltou-se rapidamente para trás. "Apresente esse projeto a messer Lapo Salterello, o meu colega. Ele já recolheu muita, durante toda a sua vida, e agora teria a ocasião de recolher também a municipal.”

          Em seguida saiu apressado do palácio, passando entre ON guardas espantados que haviam acorrido com o barulho.

         Caminhando, apelou a todas as suas energias para aplacar o ânimo enfurecido. Recomeçou a pensar em sua missão. Ainda havia tempo, antes do toque de recolher. As ruas que conduziam a São Marco formigavam de desocupados, depois que os sinos haviam anunciado o fim da jornada de trabalho. Mas, apesar da multidão, alcançou rapidamente a residência do jurista. Tinha a sensação de que as pessoas o evitavam, intimidadas com sua presença.

         O homem estava em sua cela trabalhando com os códigos abertos sobre a mesa e folhas de pergaminho, ocupado em escrever, como da visita anterior que Dante lhe fizera.

       Ouvindo-o entrar, o jurista levantou o olhar. "O que posso fazer pelo senhor, messer Alighieri?”

         "Revelar-me algo mais do que o senhor sabe.”

         "A respeito da bula pontifícia? Já se convenceu de seu erro... a bizarra história dos dois sóis? Poderíamos continuar...”

         "A respeito de Celestino V.”

         O rosto de Antonio fez-se sombrio, como se esse nome soasse como um mau agouro aos seus ouvidos. "Mais uma vez o papa desprezível?”

         "Ou santo, depende de...”

         "Celestino não era santo, acredite. Mas talvez também não fosse desprezível. O que quer saber?”

         "Informações que só quem está bem inserido nos assuntos da Igreja pode dar-me: que não foi Bonifácio quem matou Celestino, contrariamente àquilo que todos pensam. Alguém como o senhor, messer Antonio.”

         O outro hesitou por um instante. Parecia lisonjeado. "É assim. Não nego que cedo ou tarde o teria assassinado. Mas, certamente, só depois de ter lhe arrancado o segredo. Que, ao que parece, a mão do verdadeiro assassino arrancou.”

         "Qual segredo?”

         Antonio pigarreou, para ganhar tempo. "Ninguém sabe. Logo depois de ter sido eleito, Celestino realizou uma longa viagem até Lion. Lá ficou hospedado durante alguns dias na comenda templária da cidade. Dali saiu para ser investido no portal sagrado. Mas dizem que também saiu conduzindo um conhecimento que o levou à morte. É esse o segredo que Bonifácio procura. Ou pelo menos era isso o que se dizia em Roma.”

         "Mas por que está convencido de que Antilia o conhece?", murmurou o poeta. "A menos que pense que ela esteja envolvida com o crime...”

         "A dançarina? Não compreendo" disse Antonio, perplexo. Depois encolheu os ombros. "Entretanto, não se esqueça de que as fontes de informações da Igreja são oblíquas mas eficientes. Se estão achando que ela está envolvida, talvez realmente esteja.”

         Dante escutava atentamente, brincando com um cordão das roupas. "Messer Antonio..." Diga.

         "O convento de São Paulo Fora dos Muros, em Roma, onde trabalharam Ambrogio e Iacopo e onde o senhor contribuiu para a redação da bula de Bonifácio... É uma comenda templária, o senhor disse...”

         "Sim. Como aquela de Lion, se é isso que quer saber.”

         “Era exatamente o que eu queria saber. Aliás, será que o senhor ouviu falar de um misterioso cinco, talvez um pentágono ligado de alguma forma a esse segredo?”

         O olhar do jurista ficou de repente mais vivo, como as tais palavras lhe trouxessem à memória um detalhe aquecido. "Sim, eu também ouvi isso. Que o segredo tinha a forma do cinco, numa alegoria. Isso lhe sugere alguma coisa?”

         Dante meneou a cabeça. As partes do mosaico, o sinal nos cadáveres, o repente asiático, a estirpe do imperador Frederico... Aquele número não estava só sugerindo uma mensagem de morte. Estava gritando em alto e bom som.

         Reencontrou-se na rua quase sem perceber, tomado por uma ansiedade crescente. O crime o fascinava. Mas seria justo dedicar todo o brilho de sua mente a uma má ação de um único indivíduo, negligenciando a condução de todo o povo da cidade?

         As escadas do setor residencial de São Marco davam para uma ruela lateral em relação à praça para onde se abria o pátio da igreja. Ao redor, a multidão de desocupados parecia aumentar, com um vozerio confuso que o ensurdecia. Queria retornar logo ao palácio dos priores para saber sobre a execução do proclama, mas só conseguia avançar muito lentamente, dificultado pela multidão que se movia de forma compacta em sentido contrário.

         Um enésimo empurrão tirou-o de seus devaneios. Voltou-se para acertar um pontapé na traseira do insolente que o havia empurrado, um vilão malvestido de expressão embrutecida. Mas o homem já estava fora do alcance, absorvido pela multidão de corpos. Só então se deu conta da agitação insólita que o cercava. Pelas costas, a pressão da multidão quase o levantava do chão, empurrando-o em direção ao largo do final da rua.

         Por cima da multidão de cabeças via-se um turbilhão de tendas coloridas, erguidas como velas sobre a plataforma de um carro estacionado no lado estreito da praça. Sobre aquele palco improvisado agitavam-se personagens vestidos com roupas berrantes, cercados por uma multidão que aplaudia.

         A última coisa que pretendia era terminar com aquelas bestas diante de uma palhaçada de saltimbancos. Tentou deslizar em direção a uma das lojas que se abriam na muralha ao longo da rua, mas todas as portas estavam fechadas, após o encerramento da jornada de trabalho. Antes de conseguir encontrar uma alternativa, viu-se ao lado do carro.

         "Messere, é realmente um grande espetáculo!", alguém gritou ao seu lado, agarrando e agitando-lhe o braço para atrair sua atenção. O homem devia tê-lo reconhecido e parecia contente que um prior dividisse com ele as emoções daquela tarde. O poeta lançou-lhe um olhar gelado afastando rispidamente a mão.

         "O que é que tem de bom nessa charlatanice, vilão?”

         O outro não pareceu ter percebido o tom insultuoso. "A luta do Anjo contra o Demônio!" explicou com o mesmo entusiasmo. "Para salvar o homem do inferno... Olhe!”

         Voltou a agarrar-lhe o braço. Libertando-se novamente, Dante decidiu por fim observar a cena.

          No centro do palco um jovenzinho ajoelhado sustentava por trás um boneco de pano, feito de maneira a parecer vagamente com um homem nu. Na parte anterior da cabeça estava esboçado grotescamente um rosto: dois olhos esbugalhados, as negras cavidades das narinas e uma boca repleta de dentes que tanto poderia representar um sorriso quanto uma careta ou mesmo um grito suspenso. O titereiro era o único ser vivente em cena a vestir uma roupa normal de trabalho. À sua esquerda saltitava, berrando imprecações, um grupinho de atores vestidos com túnicas vistosas, os rostos escondidos por máscaras grotescas e armados de forcados de onde pendiam fitas de tecido escarlate. À sua direita, comedidos em suas túnicas brancas decoradas com grandes asas de tecido dourado, outros tantos anjos com expressões apatetadas, numa beatitude idiota, recitavam laudas de salmos num latim sem nenhuma sombra de gramática.

         "Os anjos procuram arrancar dos diabos a alma do morto. Veja!", disse ainda o mesmo homem ao seu lado.

         De fato havia uma grande agitação à esquerda. O grupo de demônios havia rodeado o boneco, espetando-o num os forçados e rasgando em vários pontos a superfície de sua cabeça. Das feridas saía um jorro de serragem. A cabeça do fantoche oscilava violentamente, mas a sua expressão permanecia a que lhe havia sido imposta pelo titereiro, isto e, a de uma surpresa sofredora, como se não compreendesse nada da disputa extraterrena de que era objeto.

         Enquanto isso, os anjos haviam redobrado as invocações celestiais e começavam a saltitar em volta numa simulação de vôo, agitando as asas de papelão. Longe de evocar um ardor digno dos serafins, aquela agitação desordenada  acendeu na visão de Dante a imagem de um bando de harpias que se atiravam sobre o corpo do fantoche morto. Qualquer que fosse o escopo da pantomima, pensou, anjos e demônios fariam bem em apressar-se, visto que a hemorragia de serragem estava rapidamente esgotando o objeto das atenções.

         "Vê como os sete pecados capitais tentam dar o golpe? Mas as sete Virtudes não vão deixar que o levem, aquele pobre homem!" afirmou ainda o vilão, que não parecia perder nenhuma palavra do agitado conflito.

         "E por que aquele fantoche deveria livrar-se do inferno?", perguntou o prior, cuja curiosidade havia sido despertada pelas certezas teológicas lapidares de seu interlocutor.

         "Não compreende? Confessou os seus pecados, arrependeu-se!”

         "E isto é suficiente para salvá-lo? Uma simples lágrima?”

         "Claro, se o anjo quiser. Agora será decidido o seu destino, se subir ou descer", respondeu o outro, indicando sucessivamente os dois grupos de telas pintadas nas laterais do palco. Dante acompanhou com o olhar o movimento do dedo. Aqueles que inicialmente pareceram só trapos coloridos revelavam-se, a um exame mais atento, como uma tentativa grosseira de cenários: de um lado, a mesma mão grosseira havia traçado uma espécie de caverna, aberta sobre uma planície deserta interrompida aqui e ali por fragmentos de rochas e por algum arbusto esquelético. Do fundo dessa abertura irrompiam longas labaredas vermelhas, que desenhavam uma moldura de chamas incandescentes.

          Do outro lado, um fundo azul esmaecido cobria toda a superfície da tela, interrompido por manchas esbranquiçadas que deviam simbolizar algumas nuvens distribuídas sem critério algum, enquanto uma série de círculos concêntricos na parte alta orientava o olhar para um ponto indefinido para onde tendiam com evidência os saltos e os pulinhos dos anjos, entusiasmados na tentativa de arrastar para o lado deles o fantoche, que, com a sua expressão apalermada, parecia não compreender o que era melhor para si. Dante aguçou o olhar tentando discernir o que aqueles infelizes haviam desenhado no centro da fuga prospectiva dos círculos. Parecia uma flor, uma espécie de rosa esbranquiçada.

         "Aquele é o Paraíso, messere!" viu-se obrigado a esclarecer o homem, que acompanhara a direção do olhar do poeta. "Vê o trajeto dos astros? Os círculos?”

         Parecia muito satisfeito em poder ajudar um prior a interpretar a complexidade do cenário. Dante atirou-lhe um olhar gélido. "E o que tem a ver uma flor no meio do céu?”

         "Ora, bolas... Porque ali está Deus. Por isso!”

         "Mas por que uma flor?”

         "E por que não?", bufou o outro.

         Dante afastou o olhar, incomodado pelo atrevimento. Pensava no Fiore que havia escrito: nada a ver com o lugar de Deus. O Paraíso, entretanto, bem que poderia realmente assemelhar-se com aquela palhaçada. Pelo menos aquele de monna Lagia era assim. Quem sabe os saltimbancos haviam se inspirado durante uma visita às prostitutas para essa representação. As órbitas circulares, os céus, Mercúrio, a Lua, o Sol, Vênus, o Terceiro Céu...

          Naquele instante, um dos Vícios, que estava inclinado agarrando o fantoche, virou-se de repente, pulando com um berro em direção da platéia. Um grito de pavor atravessou a massa de espectadores. Também o homem que estava ao lado de Dante gritou. O poeta estremeceu: a máscara do demônio, com seus traços animalescos, lembrava singularmente aquela horrorosa de Ambrogio.

         Talvez os traços do horror sejam sempre semelhantes entre si, mas não as suas manifestações, disse para si mesmo. Existe uma ampla gama de formas de pecado. Talvez tivesse sido necessário explorar todos os lugares do crime, resumi-los num esboço compreensivo, traçar o mapa da cidade do pecado e do enxofre, os confins de Dite.

         Ao redor as pessoas continuavam a aglomerar-se, rindo das desgraças do fantoche. A Luxúria começara a fazer cócegas com gestos obscenos nas partes baixas, enquanto a Gula fingia empanturrar-se de maneira desmedida diante dele. Dante olhou à sua volta, observando os rostos daquela multidão que gritava. Que diferença havia entre aqueles rostos e a expressão impassível do fantoche de tela e de palha? Se os sete vícios descessem do carro e percorressem as ruas da cidade, só encontrariam cegos como aquele boneco. Em que Florença diferenciava-se do inferno desenhado na tela que o vento fazia oscilar sobre a sua cabeça? O inferno também era um círculo, uma cidade murada que hospedava o povo dos malvados. Um mapa de toda a crueldade possível.

         Sacudiu esses pensamentos da cabeça. Estavam surgindo as primeiras sombras da noite. Em sua mente alinhavavam-se os fragmentos de uma ópera, da mesma forma como as pastilhas do mosaico de Ambrogio haviam desenhado uma figura incompleta.

         Mas, enquanto isso devia continuar sua investigado, negligenciando a procura dos comacinos. Agora, graças a leviandade do chefe da guarda, poderiam ter encontrado refúgio em qualquer lugar. Era o Terceiro Céu que devia encontrar, mais uma vez. Porque era ali que estava enraizada a razão dos crimes.

         Lembrou-se das aulas a que havia assistido em Paris: parecia-lhe evocar a antiga discussão sobre os Universais com a qual tanto se envolvera nos intervalos em que não estava compondo rimas de amor para Beatrice.

        "Sim", murmurou. "Não existem as entidades coletivas. Os Universais como a forma do cavalo de Platão, o traço comum a todos os cavalos pensado diretamente por Deus no mundo das idéias, não passam de uma abstração mental.”

         Não podia existir um assassino cego e impessoal, disso tinha certeza. Só um havia cometido o crime, só um devia ser encontrado. Mas quem? E por quê? E, sobretudo, por que daquela maneira bárbara, em ambos os casos? Eram essas as três respostas que estivera procurando, e a necessidade da lógica impunha que deveria obtê-las todas ao mesmo tempo, pois de outra maneira seria inútil.

         A sua testa estava pegando fogo. Uma nova intuição alcançou-o. Até aquele momento havia procurado uma única resposta que resolvesse todos os três enigmas. Mas quem manchara as mãos de sangue poderia ter sido movido por uma motivação diabólica e ter escolhido aquela modalidade por uma razão diferente. Era possível que a falência de sua investigação, fundada sobre a convicção de que existia uma semelhança lógica entre a forma do crime e a mente do assassino, fosse exatamente devida a isso. A atrocidade dos crimes havia sugerido a prática de um ritual diabólico. Na postura não-natural das vítimas havia lido a horrenda inversão do preceito cristão do descanso eterno, a vontade de assumir o domínio sobre os corpos além do portal das trevas.

         E se, entretanto, o escopo do assassino fosse um outro? Se estivesse buscando, dentro de uma sua forma perversa, completar a obra que Ambrogio havia deixado inacabada?

        

          No mesmo dia, ao pôr do sol.

         Pela quinta vez Dante atravessou a baixa entrada da taberna e encaminhou-se para a mesa ao redor da qual reuniam-se os membros do Terceiro Céu. Aproximando-se, examinou a sala com um rápido olhar: todos os membros do Studium estavam sentados em seus lugares, conversando em voz baixa. Uma tensão pairava no ar e em seus rostos, onde cada ruga estava mais marcada. Davam a impressão de ler envelhecido muitos anos no transcurso de uma só noite. Apenas Cecco Angiolieri parecia estar à vontade e trocava risadas com o vizinho. Agora, para todos os efeitos, ele já havia sido acolhido entre eles, pensou o poeta.

         As expressões deles lembravam-lhe um conselho de animais sábios, onde Cecco era o basilisco que viera juntar-se aos outros. Mas a cadeira vazia de Teofilo estava ali para lembrar que entre aqueles animais escondia-se uma fera.

         Até Baldo parecia perturbado e não se aproximara da mesa com sua solicitude habitual. Parecia, pelo contrário, procurar manter distância. Dante precisou chamá-lo mais de uma vez, para que finalmente viesse servi-lo.

         O poeta esvaziou a taça num único longo gole.

         Cecco Angiolieri foi o primeiro a dirigir-se a ele, interpelando-o com o tom de gracejo costumeiro. "Bem, conseguiu iniciar aquele seu Banquete. Aquela concentração de conhecimento sobre a qual nos falou?”

         Dante pediu novamente que lhe enchessem a taça. Depois que o cruzado atendeu ao pedido, o poeta tomou-a, com ambas as mãos, permanecendo imóvel naquela posição com os lábios cerrados. Após um instante estremeceu. "Não. Aquele projeto, que me parecia tão oportuno faz só alguns dias, nas últimas três horas deixou de ter qualquer interesse para mim. Estou pensando agora numa obra bem diferente.”

         "E sobre o que tratará essa obra, messer Alighieri?" intrometeu-se Veniero.

         "Sobre um assunto em que o senhor é especialista. Uma viagem.”

         "Uma viagem? Eu não sabia que havia descoberto as alegrias do movimento e os seus perigos. E sobre quais países vai escrever?”

         "Escreverei sobre uma cidade. A cidade do sofrimento. E descreverei ordenadamente o muito mal e o pouco bem que encontrei dentro de suas muralhas. Toda a infinita exaltação do crime e toda a glória da virtude que o contrasta. Esta será a minha obra, a Summa Criminalis44. Em versos vulgares, conforme o costume moderno.”

         "O bem, o mal, a virtude e as ofensas? Mas então isso vai dar uma comédia fantástica!" declarou Cecco Angiolieri gargalhando.

         "Sim, uma comédia... sob certos aspectos", murmurou o poeta, pensativo. "Mas não é uma hora adequada para alongar-me sobre o meu projeto. Não estou reconhecendo a jovialidade habitual das suas reuniões", continuou, sem dirigir-se a ninguém em particular.

         Todos os presentes se voltaram para ele quase mecanicamente, como cabeças de bonecos num carro de feira acionadas por um fio.

         "Certamente a morte de mestre Teofilo destruiu a harmonia do Terceiro Céu, privando a abóbada cristalina de uma de suas estrelas. Compreendo o tormento dos senhores" continuou o prior.

         "Primeiro mestre Ambrogio, agora Teofilo", balbuciou Augustino. "Também Teofilo... Por quê?”

         "A morte às vezes dá uma longa volta para realizar seus objetivos", disse Veniero, absorvido na contemplação de sua taça. "Quando a vemos está virando pela direita e depois nos surpreende pela esquerda.”

         Os outros continuavam a observar Dante em silêncio. As feições animalescas sobre o rosto deles ficavam mais nítidas à medida que a tensão interna subia à superfície.

         "Um tormento ainda mais penoso pelo horror que caminha entre os senhores", acrescentou friamente o poeta.

         A tensão aumentou. Uma sombra havia descido como um véu fúnebre sobre a expressão de todos.

         Finalmente Cecco d'Ascoli rompeu o silêncio. "O horror... entre nós? Quer dizer a fúria cega que golpeou dois expoentes do Studium?. A malévola disposição dos céus que provocou tantas perdas?”

          "Estou me referindo àquele, dentre os senhores, que assassinou Ambrogio e Teofilo. Que com malícia criminosa e a força de um intelecto propenso para o mal ceifou essas vidas cuja duração somente Deus deveria ter dimensionado.”

         Não houve nenhuma reação a essa acusação. Cada um olhava para a frente, deslocando o olhar apenas sobre o vizinho, mas sem aventurar-se além. Evidentemente todos sabiam que àquela mesa estava sentado um assassino, e pareciam aceitar isso com indiferença, ou com a sórdida solidariedade do cúmplice.

         Cecco d'Ascoli havia mantido até aquele momento a cabeça reclinada sobre a mão bem fechada. Finalmente reagiu. "O senhor tem razão, messer Alighieri, e é talvez isto que todos nós pensamos. Não foi só o senhor que se debruçou sobre as sombras desse mistério, também as nossas consciências ficaram perturbadas com o ocorrido, e nossas mentes, bem como a sua, inclinaram-se na cansativa busca da verdade. Mas, da mesma forma que a sua inteligência está fatigada no caminho da solução, as nossas também não chegaram a nenhuma conclusão, a não ser à amarga de que a morte se interpôs no caminho de um projeto que podia ser ambicioso e teria arrecadado glória à cidade que aceitou hospedar-nos. A morte de Teofilo, seguida à do mestre comacino, assinala também o fim do Studium florentitium.”

         "Querem fechar a Universidade?" perguntou Dante.

         "Sim, messer Alighieri", confirmou Bruno. "Mas não foi somente por causa dessa tragédia que golpeou o Terceiro Céu. Esta cidade ainda não está pronta para a sede de estudos superiores que nós sonhamos. Aos governantes não interessa que surja aqui um centro de estudos que não seja direcionado ao comércio. Bonifácio já decretou a fundação da Sapientia Urbis em Roma. Pádua e Bolonha estão muito perto e é por demais forte a atração que exercem sobre a juventude daqui. Não, receio que o Terceiro Céu teria sido ofuscado de qualquer maneira, mesmo sem a intervenção da mão de Satanás.”

         Dante sentiu a raiva crescer dentro de si. Então era esse malogro que os entristecia, não o duplo assassinato? Lançou um olhar para o fundo da taberna, procurando Antilia. Um colegiado de hipócritas guiados por um encantador, com os sentidos excitados por uma vagabunda e assistidos por divindades obscuras. E entre eles um assassino, ou talvez mais de um. E agora queriam desistir do projeto. Assim, sem mais nem menos.

         "Pretendem então retornar às suas cidades? Entretanto a cidade está em plena expansão, o novo anel de muralhas conterá mais de cem mil almas. Já estão lançadas as fundações de obras imensas, de toda a Itália chegam trabalhadores para participar na construção dessa nova Atenas. O município sustentará o seu projeto. Parece que dois novos mestres comacinos atravessaram ontem a Porta de Tramontana. Talvez a obra de Ambrogio seja retomada e concluída.”

         Não havia se dirigido a ninguém em particular. Nenhum deles respondeu. O olhar do poeta continuava a perscrutar o rosto dos presentes. Tinha certeza de que pelo menos um deles já devia saber disso. Mas as expressões permaneciam imperturbáveis.

         Somente Veniero interessou-se. "Dois mestres comacinos?”

         "E, além do mais, este lugar não será mais o mesmo quando até a beleza o tiver desertado", disse Augustino, como se não tivesse escutado as palavras do prior. "O senhor não soube que a divina Antilia deixa Florença?”

         Dante levantou-se com ímpeto. "A dançarina? Tem certeza?", perguntou com a voz embargada pela emoção. Em seguida mordeu os lábios pela raiva de ter confirmado a opinião dos outros a respeito de seus sentimentos. "Ninguém pode deixar a cidade sem a autorização do município! Não enquanto eu não tiver atirado o culpado nas celas da Stinche!", acrescentou, procurando dar um tom formal às suas palavras.

         "A mulher está de partida. Baldo contou. E o jeito de cachorro magro desse homem é a melhor prova da verdade de sua notícia. E, no que diz respeito a Stinche, vai me dizer que acredita que aquelas doces mãos possam estar manchadas com sangue?”

         Aquele maldito taberneiro havia escondido essa informação dele. Entregá-lo-ia aos braços da Inquisição por causa disso. Para que lhe arrancassem também o outro braço. Aquele canalha maldito acabaria por desfazer-se na cadeia. Ali a morte o alcançaria pela quinta vez, e essa seria a última, com certeza.

         "Sabe para onde ela está indo?" perguntou, afastando-se daqueles pensamentos.

         Uma sombra encobriu o rosto de Augustino, enquanto trocava um olhar com os outros. "Quem sabe... Talvez para os lados do seu verdadeiro amor." Havia uma ponta de sarcasmo em sua voz. "Aquele demônio...”

         "Anjos e demônios não serão talvez a mesma coisa, ao olhar atemporal de Deus?", disse Bruno. "Em sua mente não é todo onipresente? E, também Lúcifer, enquanto está perdido no inferno, Não continua talvez a alegrar seus ouvidos com as doces notas da lira, derramando o mel do canto? Não será o tempo uma penosa ilusão que criamos? Não serão os sentidos ilusórios os nossos tiranos? Anjo do céu ou demônio das entranhas da terra, Antilia está envolvida pelo seu fulgor...”

         "Porque o que está no alto é como o que está embaixo", murmurou Cecco d'Ascoli. "Nas cavernas dos céus explode a mesma chama que devora o ventre dos vulcões.”

         Veniero permanecera em silêncio, contemplando o fundo da taça que cingia com a mão. Mas, ouvindo aquelas palavras, disse: "E os abismos dos mares são castigados por correntezas impetuosas, como as correntes de ar que inflam as velas. Sim, é verdade, messeri, o que está embaixo é como o que está no alto... eu vi." Voltou a afundar o rosto na taça, como se desejasse afastar uma lembrança angustiante.

         Dante tinha certeza de que aquelas palavras escondiam um significado oculto. Era como se o Terceiro Céu começasse a falar por alegorias. "Mas mesmo se na mente de Deus não há diferença entre o que foi e o que será, em virtude da onisciência do Espírito Santo", disse, "a nossa limitação humana deve constatar que dois homens foram assassinados, o caminho deles truncado, o seu tempo roubado. E essa é uma ação que pede vingança a Deus.”

         "Minha é a vingança e meu é o perdão, disse o Eterno. E Ele proibiu que Caim fosse tocado" murmurou Veniero.

         "Sua é a vingança e seu o perdão, mas nossa é a justiça. E nossa também é a tarefa de restabelecer a ordem correta no tempo finito que nos é concedido, aquela ordem que o crime corrompe.”

         "Parece ter em grande conta a ordem daquilo que se consome sobre a terra, com todas as suas misérias. Entretanto..." Cecco d'Ascoli apoiou a sua taça sobre a mesa. Fixava o metal brilhante iluminado pelos reflexos das tochas, como se aquele objeto reluzente tivesse captado toda a sua atenção. Sempre silenciosamente apoiou um dedo na base da taça, fazendo-o realizar um lento movimento circular e acompanhando-o com o olhar. De repente voltou-se. "Entretanto, tudo o que vive não passa de um pálido reflexo do que existe nos céus", concluiu.

         "Está se referindo à glória de Deus?" perguntou D ante.

         "Refiro-me à força infinita dos astros, que gravitam lá no alto e nos arrastam no turbilhão da sua órbita. Eles são o verdadeiro fundamento da criação do universo. Fazem de nós o que somos, como já lhes disse.”

         "Mas nas cavernas dos céus não existem correntes para o nosso espírito. Ele está livre de escolher e de desejar. O seu raciocínio tem defeito, além de ser blasfemo. Olhe ao seu redor, mesmo no recinto desta taberna: a agitação dos membros, as paixões da alma, as suas comoções, as próprias ações imprevisíveis dos senhores não serão talvez a melhor prova da verdade que estou apresentando? Não é a ordem sobre-humana e preordenada que guia os homens. A força dos astros imprime só uma leve tendência: eles devem ajudar o projeto de Deus com a ação correta. E procurar justiça significa aplainar o caminho para a realização do Seu querer.”

         "O senhor está errado, messer Alighieri. Está reduzindo a força dos astros ao espaço íntimo em que o azar nos designou viver. Mas logo acima de nossas cabeças, e por baixo de nossos pés, esse poder explode com força centuplicada. Não é então demonstrado que as pedras mantêm esse poder nas entranhas da terra? O diamante não é o rei entre os minerais e ao mesmo tempo aquele que se aninha mais profundamente, quase se confundindo com a própria matriz de nosso planeta? E isso não ocorre exatamente porque em suas entranhas o feixe de raios, circunscrito na superfície, é amplificado, assim como o fogo de uma lente situa-se exatamente a meio caminho entre a fonte luminosa e o seu ponto de irradiação máxima?”

         "Pretende dizer que a virtude dos astros, fortíssima nos céus, é mais fraca sobre a superfície da terra e volta a amplificar-se descendo nas profundezas?”

         O astrólogo iluminou-se. "Certamente é assim. In interiore terrae erimus sicut deos45.”

         "Deus separou a luz das trevas, a terra das águas! E nos deu a luz e a terra como reino, povoando as trevas e as águas com criaturas monstruosas. As entranhas do planeta não são como a terra prometida, mas o covil de Lúcifer!" exclamou o poeta em tom irado.

         "E onde, aliás, deveria ter se refugiado o príncipe dos anjos, a não ser no lugar para onde tudo converge, onde é máxima a força?”

         Exasperado, Dante preparava-se para objetar aquela teoria incongruente, quando um pensamento atravessou-lhe a mente.

         Lembrou os traços na cripta de São Judas, os sinais e as ladainhas incompreensíveis de que falara Giannetto. Concentrou-se no rosto do astrólogo, em seu perfil aquilino. Havia sido ele então que se aprofundara no subsolo em busca da força irradiante dos astros? E era a sua voz que ressoara naquelas galerias repletas de horror?

         E Ambrogio? E Teofilo? Que poder havia reclamado as suas vidas?

         Tão simples, tão abominável... Não era um complô orquestrado contra Florença, contra a Igreja ou contra os guelfos. O Terceiro Céu conspirava contra Deus.

         Levantou-se lentamente de seu assento, percorrendo com o olhar o rosto dos presentes. "Os senhores também sustentam a tese de mestre Francesco?", perguntou friamente. "Todos os senhores?”

         Bruno saltou de pé, animado por uma emoção evidente. Parecia a ponto de responder, mas a sua argumentação, qualquer que fosse ela, foi sufocada por um tumulto ensurdecedor que provinha da entrada da taberna.

         Um grupo de homens armados estava irrompendo no local, em meio à agitação dos freqüentadores que estavam mais perto e procuravam afastar-se apressadamente derrubando mesas e bancos.

         Dante também se tinha voltado, enquanto com a mão empunhava a adaga escondida. Ao mesmo tempo, com o rabo dos olhos procurava um caminho de fuga em direção ao centro da sala.

         Depois de ter visto aquele que parecia ser o chefe dos invasores, recuperou de novo a calma. Um homem tosco vestindo uma pesada armadura gritava ordens à esquerda e à direita, enquanto com o olhar parecia procurar justamente por ele. O poeta foi a seu encontro rapidamente, abrindo caminho no meio da turba confusa dos freqüentadores.

           "Talvez tenha sido a providência que o trouxe aqui!", disse ao chefe da guarda. Esses homens poderiam revelar-se necessários, se queria deter a dançarina e assegurar-se de que nenhum dos outros alçasse vôo. Estava para dar as ordens, mas percebeu a mão do homem que lhe agarrava o braço, o rosto alterado numa careta angustiada.

         "Necessito do senhor, messer Alighieri, ou melhor, da autoridade do município. Cerchi e Donati estão se enfrentando nas proximidades da Ponte Vecchio, desprezando o proclama c as ordens. Estou acorrendo ao local com os meus homens, mas é indispensável a presença de alguém com os símbolos da autoridade. Trouxe de São Piero comigo as suas insígnias.

         Um dos homens do chefe da guarda aproximou-se e entregou-lhe o barrete bordado e o bastão dourado.

         "Não podia chamar um dos meus colegas?", retrucou secamente o poeta, arrancando as insígnias das mãos suadas do guarda.

         "Eu tentei... mas eles...”

         "Eles o quê?”

         "Não estão nem aí... creio que estão com medo.”

         "Medo de uma briga entre maltrapilhos?”

        "Não... temem uma revolta...”

         Dante conteve-se com dificuldade para não soltar as injúrias que lhe subiam à garganta contra homens tão valentes e contra a incapacidade do chefe da guarda, que não conseguia nem dar conta de um tumulto sem perturbar um prior. Mas alguma coisa no olhar do homem deu-lhe a perceber o quanto a situação era grave.

         Talvez fosse melhor não subestimar o perigo. Se o conflito entre Brancos e Negros explodisse antes que o   proclama com o exílio dos chefes das facções tivesse dado algum resultado, toda Florença seria atirada no caos, autorizando Bonifácio a intervir, quem sabe recorrendo à ajuda do rei da França, sempre disponível a locupletar seus cofres com florins. Era necessário evitar isso a todo custo.

       Apressou-se a colocar o barrete e encaminhou-se correndo em direção da porta, dando ordem aos soldados de segui-lo. Saindo, lançou um último olhar aos membros do Terceiro Céu, que permaneciam impassíveis.

         Voltaria. Sobretudo para um deles.

        

         No mesmo dia, depois do toque de recolher 

         O chefe da guarda havia convocado todos os soldados das regionais que conseguira reunir sem desguarnecer os portões de entrada da cidade e as equipes de bombeiros. Uns quarenta homens ao todo: um número excessivo ou insuficiente, dependendo do que estivesse acontecendo.

         Percorreram rapidamente as ruas que os separavam da Ponte Vecchio. Por vezes correndo, enquanto as forças consentiam, com breves paradas para tomar fôlego.

        "São conhecidos os motivos do embate?" perguntou Dante, durante uma das paradas.

         "Alguém espalhou a notícia de que foi emitido um proclama contra os chefes das facções. Cerchi e Donati armaram-se, cada um para defender os seus e atacar os adversários.”

         O poeta apertou os punhos de raiva. Algum dos priores havia falado. E suas próprias palavras imprudentes haviam sido a semente da revolta. Lançou um olhar aos guardas que o seguiam, preocupado. Se as famílias dos Cerchi e dos Donati haviam descido à praça em peso, a tropa sob as ordens do chefe da guarda não seria suficiente. Somente os Donati poderiam facilmente dispor de quinhentos homens armados.

         Deveria ter chamado os arqueiros ou até mesmo pedir ajuda à guarda mercenária de Acquasparta. Assim, aquela serpente haveria finalmente de realizar o projeto que tinha em mente desde o início. Era melhor deixar incendiar Florença, pensou Dante. Seus pensamentos dirigiram-se para os depósitos de madeira perto dos moinhos, às margens do Arno. Forçados a lutar contra as chamas para salvar os próprios bens, talvez aqueles homens se acalmassem.

         Rejeitou imediatamente aquele pensamento ditado pelo desespero. Depois de uma última curva no Lungarno, o clamor aumentara de intensidade. Ao longe podiam se ver as tochas das duas formações que estavam frente a frente. Era estranha aquela contenda noturna, pensou, enquanto parava por um instante, arquejando pela corrida. Privava os contendores do prazer de trocar insultos cara a cara, de escolher o adversário mais odiado e de liberar os próprios rancores pessoais com a desculpa da rivalidade política.

         Tinha a impressão de que aquele tumulto tinha sido promovido somente para esconder alguma coisa mais séria.

         "Quem começou o tumulto?", perguntou ao chefe da guarda, que resfolegava ao seu lado. Mas, antes que o outro pudesse responder, Dante já sabia o quanto seria inútil a resposta. A tensão entre as duas facções havia tempo alcançara o ponto de ruptura.

         "A turma dos chefes das facções... ação temerária... Como sairemos deste apuro?" choramingou o chefe da guarda.

          "O que você quer entender da política da cidade, sua besta? O que pode saber do que se agita logo embaixo do chão onde põe as patas?”

         Até aquele idiota permitia-se discutir as suas escolhas. Agora deveria convencer até ele, e depois aqueles safados dos outros priores? Conteve com dificuldade a mão que já se levantara em direção ao rosto avermelhado do homem.

         Mas a inquietação crescia nele também. Aquele proclama coletivo havia sido a última tentativa de salvar uma situação já desesperada. Um gesto arriscado, na esperança de que o milagre de trinta anos atrás se repetisse, quando Florença tinha sobrevivido ao embate entre guelfos e gibelinos que a devastara. Mas então havia colossos como Farinata, entre os Umberti, e mentes finas como Mosca, entre os Lamberti.

         Desta vez quem haveria de salvar a cidade? Toda esperança parecia residir somente em suas forças. Certamente essa era a missão dos Alighieri, que lhe havia sido anunciada por sua estrela-guia.

         "Espírito simples, por que você pensa que eu nasci sob o signo de Gêmeos, a não ser por isso?”

         O chefe da guarda, pouco conhecedor da sabedoria astrológica, limitou-se a se afastar um pouco, estupefato.

         Do outro lado do rio, os Negros invectivavam contra os Brancos, que se haviam agrupado atrás do parapeito da rampa da Ponte Vecchio e agitavam as tochas. Eram em número menor do que ele temia, constatou o poeta com alívio. Talvez ainda fosse possível assumir o controle da situação.

         "Como sabemos que são os Negros?" gritou ao chefe da guarda. Ao luar podia-se distinguir com dificuldade uma multidão confusa além do dique. Poderiam até ser os misteriosos gibelinos de quem todos falavam.

         "Vimos o estandarte deles: está representando São Jorge. Os nossos respondem com o Batista", o outro respondeu.

         Dante desviou-se de algumas pedradas, que ricochetearam violentamente contra a parede de madeira das lojas. Evitou outras colocando-se sob a proteção de uma estátua mutilada de Marte em cima da ponte. Uma luz intensa acendeu-se de repente do outro lado, como se inúmeras tochas tivessem se juntado formando uma única grande fogueira. Evidentemente queriam que o espetáculo fosse bem visível. Alguns dos Negros, de fato, haviam descido as calças e ostentavam a bunda em sinal de desprezo.

         A um certo ponto, no meio do caminho, surgiu um homem a cavalo. Era um sujeito corpulento, o rosto maciço emoldurado por uma barba branca.

         O rosto do poeta, ao reconhecer o cavaleiro, contraiu-se numa careta. Mesmo à distância e com a luz incerta das tochas, soube imediatamente de quem se tratava.

         "Maldito", vociferou o chefe da guarda, que havia encontrado abrigo ao lado do prior. "Corso Donati, o chefe desses bandidos. Em lugar de apaziguar, está aqui para incentivá-los contra a autoridade do município. Precisariam aplicar nele a brincadeira dos pisanos...”

         "O que fazem os pisanos?", perguntou Dante, distraído.

         "Com sujeitos como ele? Encerram-nos em uma torre murada. Ou então penduram-nos ao mastro de suas galés, recobertos com betume para que durem mais tempo sem se decompor. Enterram-nos no céu, a esses bárbaros!”

          Dante recordou o triste fim do conde Ugolino, trancado vivo dentro da torre de Muda com os filhos. Corso Donati mereceria o mesmo tratamento... Dessa forma duraria muito mais tempo servindo de exemplo aos outros.

         Um clarão cruzou a sua mente. Por um instante pensou que uma das pedras o atingira, tal era a clareza com que a imagem formara-se em sua mente. Como não havia pensado nisso antes? Enterram-nos no céu. O que está no alto é como que está embaixo. Não havia sido dito dessa forma? havia ser esse o fio de Ariadne que procurara inutilmente? Naquele instante tudo ficou claro: o pentágono, Vênus, o seu conhecimento das estrelas.

         Devia retornar imediatamente à taberna e mandar prender o culpado, submetê-lo a torturas para que confessasse tudo. Era ele, devia ser ele. Voltou-se para dar a ordem aos soldados, mas conteve-se, tratando de proteger-se das pedradas que sobrevinham sem cessar.

         Alguma coisa em seu íntimo o freava. A utilização da tortura como meio de obter a verdade sempre o repugnara. Nunca recorreria a esse meio com um membro do Terceiro Céu. Mas não por caridade cristã. Quem cometera aqueles crimes havia abjurado de sua própria natureza, cedendo ao mal o dom divino do intelecto.

         Não, não por isso. O assassino o havia desafiado. Pusera sobre a balança do azar o ativo e o passivo. Colocara a mão diante dos seus olhos, certo de que ele não conseguiria ver.

         Esse desafio devia ser vencido com o emprego do intelecto e não com os ferros do carrasco. Mesmo aos ferros, o assassino o teria inflamado com um olhar gélido de desprezo, se tivesse que admitir que não conhecia o porquê do mal. Que de fato continuava a ignorar.

         Julgava conhecer o nome do culpado. Estava oculto entre os nomes dos membros do Terceiro Céu. Talvez em sua casa estivessem as razões do crime. Devia descobrir isso a qualquer custo. Com um salto levantou-se de trás do refúgio e começou a correr rumo à ponte.

         "Aonde vai, prior?" ouviu a voz alarmada do chefe da guarda perguntar às suas costas. "Os Negros estão daquele lado! Ficou louco?”

         Dante tomou a calçada da Ponte Vecchio. Ouvia ao seu redor os gritos sempre mais enraivecidos dos rebeldes.

         "Por que está correndo para eles? Está fugindo? O senhor também está fugindo?”

         O poeta continuou a correr. O chefe da guarda pagaria também por aqueles insultos. Mas agora não tinha tempo.

         Surgira em sua mente uma lembrança da infância, quando percorria a ponte com outros garotos. Lembrou da loja de um mercador de peles, no meio da arcada, com seu cheiro desagradável de urina de cavalo para o curtume. Havia uma escada atrás da loja. Por ali era possível subir para o teto das lojas e atravessar a ponte passando por sobre as cabeças dos velhacos que gritavam embaixo. Havia muitos anos que não pensara mais naquilo. Felizmente a escada ainda estava ali, embora bem mais destruída de como a recordava. Torceu para que suportasse o seu peso.

         Do outro lado da ponte os Negros haviam percebido o seu movimento. Vendo-o correr a descoberto e avançar em direção a eles, enfeitado com as insígnias do município, a princípio temeram que estivesse guiando um ataque da guarda e recuaram rapidamente em direção da rampa. Mas, quando se deram conta de que estava só, retomaram os ânimos. Enquanto subia freneticamente pela escada acima, Dante notou que eles estavam avançando entre as lojas.

         Chegou em cima justo quando o primeiro deles surgia no largo no meio da ponte, apontando com a lança na sua direção. O prior atirou contra o inimigo uma das tábuas do teto da loja e pulou sobre a seguinte. As tábuas rangeram assustadoramente sob o seu peso, mas resistiram. Dali, com mais um salto, alcançou a próxima loja. Embaixo dele os Negros, desorientados, tiveram um momento de hesitação, suficiente para permitir-lhe alcançar a última loja. Pulou para o chão por detrás do grupo, que só nesse instante compreendeu a estratégia do prior, vindo em sua direção com as lanças.

         Rolou por um breve trecho. Não era mais ágil como antigamente, pensou angustiado, enquanto se levantava, dolorido. Olhou ao redor, procurando orientar-se na escuridão. Percebeu uma sombra enorme, à sua esquerda, que se precipitava sobre ele.

         Por um instante acreditou que um gigantesco centauro estivesse se arremessando para cima dele. Corso Donati havia chegado naquele instante no canto da rampa e empinara seu corcel com um violento golpe das rédeas. A sua guarda pessoal estava acorrendo. O perigo mais imediato era representado por três homens armados com pesadas couraças que corriam com os braços estirados para agarrá-lo.

         Reconheceu furiosamente os uniformes da guarda mercenária de Acquasparta. Entre eles estava o homem que o insultara na escada do legado pontifício. Aqueles bastardos já haviam começado a ajudar os Negros, como ele sempre suspeitara. E agora, além do mais, estavam prontos a eliminá-lo para fazer desaparecer uma testemunha de suas patifarias.

         Sentiu-se perdido, um rato entre as garras dos gatos. Depois percebeu uma possível rota de fuga. Na lateral da rampa carroçável da ponte havia uma escadaria estreita. Apesar de conseguir ver mal-e-mal o primeiro degrau, sabia com certeza que seria conduzido às margens do rio. Correu para aquele lado, evitando por pouco uma maça ferrada que passou raspando sua cabeça, enquanto uma mão procurava agarrar-lhe um braço.

         Conseguiu escapar do guarda atrapalhado com a pesada malha de ferro atirando-se rapidamente sobre os primeiros degraus da escadaria, enquanto aquele, levado por seu próprio impulso, tropeçava nas pernas dos dois companheiros parados ao lado da rampa escura e arrastava-os na queda. Os três perseguidores caíram numa confusão de braços e pernas e desceram como uma avalanche vários degraus antes de parar, para o que tiveram de usar o próprio corpo como escudo contra a dureza das pedras.

         Chegando ao pé da escadaria, Dante conseguiu levantar-se antes dos outros e correr na direção do moinho que flutuava ao lado da Ponte Carraia, obtendo assim uma pequena vantagem sobre os seus perseguidores que haviam tomado o mesmo caminho e cuidavam-se de não escorregar e não se ferir uns aos outros com as lanças.

         "Malditos malandros!", gritou aos soldados que se aproximavam da escada. "Malditos malandros, filhos de putas lazarentas!" berrou com toda a raiva que o tomava, levantando as mãos juntas na direção deles e fazendo com os dedos o famigerado gesto obsceno. "Que vocês apodreçam no inferno, bastardos!”

         Dois mercenários estavam tentando levantar-se enquanto o oficial barrigudo aparecera atrás da ponte, procurando-o com seus olhinhos de porco, apenas a tempo de receber na cara todas as maldições. Contorceu a boca numa expressão de desgosto, deixando à mostra os dentes amarelados e tortos. "Está nos maldizendo, esse estrangeiro! Está nos atirando mau-olhado! Peguem o feiticeiro!”

         Os homens pararam de rir e agora se persignavam freneticamente em nome de Cristo. Depois agarraram suas lanças e atiraram-se em perseguição a Dante, que começou a correr como louco ao longo da margem do rio, com os pés que chafurdavam na água rasa levantando jatos de lama.

         Corria desesperadamente, ouvindo atrás de si as imprecações e o barulho da ferragem das armaduras. Tinha a impressão de que uma turba de funileiros despencara pela descida mal calçada. Não parou nem mesmo para olhar para trás, queimando todas as energias que possuía.

         Começava a sentir que o ar lhe faltava, enquanto uma pontada lancinante lhe atravessava o ventre. Talvez os seus perseguidores fossem mais jovens do que ele, pensou, desesperado. Entretanto devia fugir à captura a qualquer custo, para não trair as esperanças de Florença. Aquele tumulto era certamente o primeiro ato de uma revolta geral contra a facção Branca, como havia profetizado Giannetto, aquele maldito pássaro de mau agouro. O mendigo seria supliciado na Stinche. Para o diabo aquele ser inútil!

          Poucos passos mais à frente havia uma estreita fenda na parede de tijolos que fechava à direita o seu caminho de fuga. Escondeu-se dentro da fenda esperando que seus perseguidores passassem adiante.

         Agachado na sombra, com o coração a pulsar-lhe na garganta, ouviu o som das ferragens afastar-se, enquanto um suor gélido, apesar do calor do verão, escorria-lhe pelo pescoço. A pontada no flanco o dobrava ao meio.

         Esperou que a foice da morte o houvesse poupado e permaneceu imóvel, temendo ouvir novamente o rumor dos passos e dos gritos. Cedo ou tarde aqueles pilantras haveriam de perceber que tinham sido enganados e retornariam sobre seus passos. Devia aproveitar ao extremo aquela vantagem momentânea para encontrar um refúgio seguro.

         Avaliou rapidamente se seria o caso de voltar para a rua e tentar alcançar a Porta Romana. Mas temia que outros mercenários, guiados pelo javali, estivessem atrás dele. Se o primeiro grupo retornasse, ele se encontraria preso numa jaula de tijolos, num beco sem saída.

         Naquele momento percebeu uma sombra às suas costas. Virou-se num átimo, pronto para atacar. Na escuridão reconheceu o rosto de Cecco Angiolieri. Como era possível? Pouco antes aquele homem estivera com ele na taberna: devia ter saído logo depois e alcançado de alguma maneira a outra margem do rio. Mas por qual caminho? Não podia certamente conhecer Florença melhor do que ele.

         Cecco estava recoberto com uma couraça de couro, vestia um capacete emplumado e empunhava uma espada curta de cavalaria. Era como se uma daquelas estátuas romanas caídas na praça de Santa Maria tivesse ganhado vida. Nessa ocasião também a meio caminho entre o ridículo e o terrível, pensou Dante.

         "Cecco!", gritou. "Então é esse o negócio que o trouxe para Florença? O negócio que deveria mudar a história? Tornar-se o gigolô dos Negros?”

         O outro levantou o queixo, como para observá-lo melhor. "Para o gigolô sempre tem um cantinho quente. E não é obrigado a pagar por aquilo que os outros devem comprar com moedas soantes. Refiro-me àquela doce flor que com tanto desvelo carregamos no coração, eu e o senhor também!”

         "Está com o papa, Cecco?" insistiu o poeta, descrente.

         "O que acha, messer Durante? Venha o senhor também para este lado, ouça-me", disse o outro apoiando uma mão sobre o ombro do prior.

         Dante repeliu-o com um gesto rude. Queria acrescentar alguma coisa, mas virou-se e recomeçou a correr em direção de sua meta. "Não posso, meu amigo. Tenho um encontro com a culpa", gritou enquanto se afastava, sem olhar para trás.

         "Teria sido melhor que tivessem bebido aquele vinho, o senhor e os outros priores. Estariam então sonhando, mas, em vez disso, agora devem acordar.”

         Enquanto isso tinha surgido um dos arqueiros mercenários, com a seta no arco. Apoiou-se sobre um joelho mirando com cuidado as costas de Dante, que se afastava.

         A mão de Cecco Angiolieri empurrou a arma para o alto, desviando a flecha que se perdeu por cima da cabeça do fugitivo. "Pare. Ele já cavou sua tumba com as palavras" disse apontando para o poeta. "E ali será sepultado.”

         Percorreu o resto do caminho com a respiração ofegante, esgotando as suas últimas forças. No fundo esse tumulto revelava-se propício. Ninguém seria capaz de ultrapassar o bloco dos combatentes na Ponte Vecchio, e passar pela Ponte Carraia teria demandado um tempo muito longo.

         Sabia para onde ir. Reconheceu logo a torre truncada pela descrição feita no relatório sobre os membros do Studium. Não havia ninguém na rua flanqueada por muros onde se abriam somente os arcos das janelas muradas na época dos últimos tumultos. A muralha da torre era interrompida embaixo por um portão de madeira reforçado com pregos de ferro, e na parede de pedras não parecia haver nenhum ponto de apoio para alcançar a pequena janela geminada que se abria a pelo menos cinco braças de altura Por um instante Dante sentiu-se perdido, em seguida apoiou-se sobre a porta para avaliar sua firmeza. Apesar da aparente solidez, a porta oscilou sob o impulso de seu corpo. Talvez por dentro fosse fechada só por um simples ferrolho. Ou então a madeira, tão antiga quanto à construção, fora consumida pelos cupins. Empurrou uma outra vez e a porta cedeu mais um pouco. Insistiu, usando todas as suas forças.

         Com um barulho seco, alguma coisa cedeu no interior e a porta se abriu ao mesmo tempo. Precisou apoiar-se com força no batente para não cair por cima da porta, que acabara por se soltar dos gonzos enferrujados. Diante dele havia uma sala sem janelas, completamente vazia. Em frente começava uma estreita escada com degraus de pedra.

          O débil luar que peneirava pela porta arrombada era apenas suficiente para poder orientar-se no espaço pequeno. Viu uma lamparina a óleo pendurada num nicho do muro.

         Tirou da bolsa pederneira e caçoleta. Assim que conseguiu enxergar onde apoiar os pés, subiu rapidamente para o primeiro andar. O assoalho de madeira rangia com o peso de seus passos. Esperou que estivesse em melhores condições do que a porta. O local onde ele se encontrava também estava quase vazio. Havia somente uma cama simples de madeira, apenas enfeitada por uma tela de linho que emanava uma leve fragrância de limpeza, mesclada com um aroma diferente, de carne feminina. Por um instante a imagem, evocada por aquele perfume, do corpo nu de Antilia deitado diante dele encheu seus olhos em todo seu esplendor. E então era esse o seu refúgio, junto ao homem que havia construído uma toca na torre truncada. O amante secreto, o homem que Baldo odiava e talvez temesse. Pareceu-lhe ouvir ainda as palavras de Pietra. "Ninguém o ama...”

         Expulsou aquela imagem com um gesto de raiva. Haveria de puni-la e a ele também. Num canto do quarto havia um baú com roupas de mulher. Mergulhou as mãos naquela profusão de tecido, como se as estivesse mergulhando nos cabelos de Antilia, e novamente o perfume dela penetrou em suas narinas e apoderou-se de seus pensamentos.

         Subitamente sofreu uma vertigem. Por um instante foi como se o tempo tivesse parado. Os sinais da possessão pareciam cada vez mais fortes: é pela alma vegetativa que os demônios abrem o caminho na alma humana, provocando uma fenda onde a consciência correta está menos vigilante. A reduzida percepção do tempo e do espaço e a perturbação da imaginação são seus sinais mais imediatos e reconhecíveis. O conhecimento de estar sendo possuído poderia ser suficiente para salvá-lo da perdição? Ela havia olhado para ele na taberna. Não é com o olhar que o basilisco paralisa a sua presa? Poderia ainda sobreviver ao ritual daquela sacerdotisa infernal com as faces de cobre?

         Agarrou algumas roupas com as mãos e imergiu o rosto nelas, respirando profundamente aquele aroma. Talvez as roupas estivessem impregnadas com alguma poção mágica, disse para si mesmo com um resquício de consciência.

         Percebeu que os seus sentidos estavam perdendo a luta contra a miragem. Mas algo inesperado trouxe-o de volta à realidade, dando-lhe forças para livrar-se daquele arrebatamento amoroso.

         Ouviu um barulho metálico seco a seus pés e viu alguma coisa rolar sobre o chão: era uma das pulseiras de Antilia. Abaixou-se para pegá-la, devolvendo as roupas ao baú. O peso extraordinário do objeto o impressionou.

         A mulher devia realmente conhecer o segredo da fabricação do ouro para poder permitir-se abandonar uma riqueza como aquela dentro de um baú desprotegido. Atirou freneticamente ao chão o conteúdo do baú à procura de outras jóias. Misturadas desordenadamente com preciosas túnicas de seda e de linho havia dúzias de peças como aquela. O baú era uma arca do tesouro. Virou-o de cabeça para baixo, derramando por terra todo o seu conteúdo, que se espalhou cintilando. Naquela torre estava o tesouro de um reino.

         Um reino... Antilia era realmente a descendente do grande Frederico II.

         Assim, era por isso que havia se submetido àquela representação licenciosa no Paraíso. Qualquer coisa para esconder sua identidade. E as jóias eram somente um artifício para esconder dos olhares pelo menos uma parte da fortuna imperial, derretida naquela forma para ficar despercebida? Quem quer que visse aquelas pulseiras teria admirado a preciosidade, mas nunca iria pensar que a mulher possuísse dezenas delas. A ostentação teria sido sido a melhor maneira de ocultar o segredo.

         Na imaginação de Dante todos os detalhes do acontecimento estavam se compondo, como as peças do mosaico de Ambrogio. O ódio de Acquasparta contra a mulher, sua tentativa de acusá-la de heresia para poder mandar prendê-la, a perseguição do mestre comacino em Roma e depois o seu assassinato. A morte de Teofilo, que havia descoberto o segredo do ouro e conhecia sua origem, e que ainda havia tentado enganá-lo, desviando a sua atenção para os caminhos ilusórios da ciência alquímica.

         Era possível.

         Entretanto havia ainda algum detalhe naquele desenho complexo que lhe escapava.

         Por que os sicários de Bonifácio não haviam eliminado a mulher, perdendo tempo para isolá-la e manter o segredo escondido, em lugar de eliminar pela raiz o risco de um retorno dos suevos à Itália?

         Levantou o olhar ao mesmo tempo que erguia a luminária. A escada continuava para um outro andar. Apressou-se em direção aos degraus de pedra.

         No andar superior abria-se um ambiente semelhante aos anteriores, mas sem nenhum móvel a não ser uma mesa simples, apoiada sobre dois cavaletes, recoberta por um monte de grandes folhas de papel vegetal arrumadas desordenadamente. O poeta apanhou uma delas e aproximou-a da lamparina Podia ver-se uma complexa seqüência de traços marcados com carvões, esburacada como se uma colônia de insetos tivesse se encarniçado sobre a obra do desenhista. A folha estava manchada de fuligem.

         Sentiu seu coração batendo pela emoção. Havia encontrado o que estava procurando: os cartões preparatórios do mosaico de que mestre Ambrogio havia-se utilizado para traçar sobre o muro o esboço de sua obra.

         Examinou com sofreguidão um cartão após o outro, mas a emoção e a pouca luz lhe dificultavam ter uma visão do conjunto. Aqui surgia o detalhe de uma perna, ali um braço. Num estava representado o rosto do velho; mas todos os esboços estavam irreconhecíveis por uma série de marcas adicionais que impediam captar o sentido global. Desistiu. Havia uma única maneira de compreender.

         Juntou rapidamente os cartões enrolando-os, procurando algo com que envolvê-los para o transporte. Sobre um banquinho embaixo das janelas geminadas, pareceu-lhe perceber uma tela dobrada. Agarrou-a e a abriu, atirando-a sobre a mesa.

         Mais uma vez sentiu-se paralisar pela surpresa. Não se tratava de um lençol, como pensara, mas de um pesado tecido de lã branco. Quando aberto, assumiu a forma de um manto decorado, num lado, com uma cruz ricamente bordada cujos braços se alargavam na extremidade. A cruz dos templários, a mesma que adornava o punhal encontrado na igreja.

        

         Então a dançarina era realmente a descendente da casa da Suévia e os templários continuavam a protegê-la? Ou então...

         Bateu na testa com um golpe. Agora lembrava as palavras de Domenico, o agiota.

         Não era a Ordem do Templo que seguia os passos de Antilia, que a apoiava no perigo, que acariciava a carne de cobre. Era um único homem. O habitante daquela torre.

         O rosto dos membros do Terceiro Céu agitava-se em sua cabeça como num turbilhão. Amarrou rapidamente os papéis no manto e correu para a entrada. Passou diante do baú sem pensar nem por um instante na fortuna que deixava desprotegida.

        

         No mesmo dia, por volta da meia-noite.

         Dante acendeu uma das tochas que os guardas do chefe da guarda haviam deixado perto do portão. As trevas ao redor resistiam com obstinação, cedendo lugar somente num breve círculo à sua volta. Atravessando a estreita passagem que ladeava o abismo da cripta, a luz iluminou por um instante a máscara fúnebre de Ambrogio abandonada no chão, trazendo novamente à vida a careta do mestre comacino.

         Chegando ao pé do andaime, começou a subir com dificuldade, prendendo a tocha num dos suportes que estavam afixados na parede ao redor da área do mosaico. Ambrogio devia ter organizado tudo para poder trabalhar também à noite, como se desejasse acelerar a conclusão da obra, como se estivesse fugindo dos cães do inferno.

         Desatou o manto e começou a procurar entre as folhas, em busca de um ponto de partida para conseguir reconstruir o desenho. Logo encontrou o cartão com a cabeça do velho e o colocou por cima do mosaico. No andaime havia um martelo e um pequeno balde cheio de pregos enferrujados.

          Fixou rapidamente o cartão na parede, e então procurou um outro que desse continuidade à história.

         Fazia quase uma hora que estava trabalhando. A surpresa inicial ia se transformando numa curiosidade cada vez mais viva. Assim como na parede, os elementos daquela tragédia começavam a interligar-se dentro de sua mente mim desenho inesperado.

         À medida que os diferentes cartões encontravam seus lugares, ele se dava conta do quanto a execução da obra era diferente da proposta inicial. Não havia nada da leveza de pássaros e flores e árvores do Éden. Ambrogio não tinha abandonado o projeto original da Arbor vitae simplesmente porque este nunca existira. Havia dado forma com a sua maestria e seu extraordinário domínio das cores a uma imagem muito mais sensual.

         O segredo que devia ser ocultado a qualquer custo era o segundo corpo humano, à direita do gigante, que parecia esperá-lo no fim do seu caminho? Uma imagem de mulher, no rosto o olhar luminoso de quem está para abraçar o amante longamente esperado. De maneira semelhante, Penélope, pensou o poeta, devia ter acolhido Ulisses em seu leito.

         A mulher estendia um braço em direção do homem. Parecia estar no auge da juventude, tanto quanto o outro agora estava no declive da velhice. Estava completamente nua, como os artistas haviam ousado retratar somente Eva.

         Reconheceu o rosto de Antilia, o seu seio empinado, o ventre triunfante. Atrás das pernas fortes como colunas, com tornozelos delgados ornados com pulseiras de ouro, o artista havia retratado o perfil de uma cidade desconhecida, sem muralhas e merlões, rodeada por torres em degraus típicas dos desertos do Oriente: uma nova Babilônia governada por aquela mulher que dominava a cidade como uma rainha.

         Entre os dois amantes havia água, ondas curvas e quebradas, quase tocadas por estranhos pássaros rasantes, onde nadavam os golfinhos míticos e o horrendo Leviatã. Por cima dessa barreira o braço da mulher roçava a mão do homem estendida para agarrá-la, e seus membros formavam um semicírculo. Havia também sinais graduados e algarismos árabes que lembravam um relógio solar. Embaixo, dentro de um quadro, estava escrito:

 

                   DECLINATIONIS MAGNETICAE GRADUUS46.

 

         Surgira inesperadamente, saindo das trevas. Devia ter subido da cisterna, utilizando a galeria subterrânea.

         Seu olhar não tinha nada de amigável, seus olhos azuis brilhavam como cristais de gelo. Dirigia-se para ele lentamente, as mãos ao longo dos flancos. Mas na verdade seus músculos estavam tensos como aqueles de uma fera pronta a avançar sobre a presa. Parecia mais alto, agora que havia jogado a máscara de humilde refugiado e o sangue dos seus antepassados corsários voltava a rugir em suas veias. Por um instante Dante teve a impressão de que estava se preparando para o golpe do cruzado. Deu um salto para trás, apoiando o peso sobre o pé direito ligeiramente adiantado, e preparou-se para desferir o pontapé gibelino. O outro, intuindo a sua intenção, mudou rapidamente de tática: levantou os braços à altura do peito mostrando as palmas das mãos e parou, como para fazê-lo compreender que era ainda o momento das palavras.

         O prior aceitou a trégua tácita que lhe era oferecida. Por sua vez, deu um passo para trás, assumindo uma atitude relaxada. Na realidade estava amaldiçoando a si mesmo por ter se deixado dominar pelo ardor de saber, dirigindo-se ali desarmado e sozinho. Ninguém sabia onde ele se encontrava, ninguém podia vir em sua ajuda. A única arma que possuía era a adaga guardada no bolso secreto, mas duvidava que o outro lhe daria a oportunidade de servir-se dela.

         Melhor assim, disse para si mesmo. Não teria necessitado de ajuda, se Deus e a justiça estavam ao seu lado. Levantou as mãos, por sua vez, repetindo o gesto do outro, enquanto com o rabo dos olhos examinava ansiosamente o breve espaço iluminado procurando alguma coisa com que se defender.

        "Estranho lugar para encontrá-lo, messer Alighieri. Não num scriptorium ou numa biblioteca, onde se poderia esperar cruzar com um sábio amigo das palavras como o senhor.”

         "Talvez. Mas por outro lado também não estamos sobre a ponte de uma galé, num arsenal ou numa praia longínqua, onde se poderia pensar encontrar o senhor, messer Veniero.”

         "Entretanto, há mais braças de mar e terras longínquas debaixo desta abóbada do que pode presumir.”

         Dante olhou para ele, depois indicou o mosaico, “ali há também muito mais palavras e significados e livros, debaixo desta abóbada, do que o senhor pode pensar. Mas imagino que já saiba disso.”

         "O senhor não parece surpreso de encontrar-me.”

         "Não. Eu sabia que haveríamos de nos encontrar. E talvez este seja o lugar mais adequado.”

         "Como foi que suspeitou de mim?" perguntou o veneziano, depois de uma longa pausa. Havia uma sincera curiosidade em sua voz. Parecia não saber o que fazer, ou então estava à espera de alguém que lhe sugerisse algum conselho ou lhe desse as ordens.

         O poeta apenas virou a cabeça apontando para o manto que jazia abandonado aos pés do andaime. "Imagino que seja seu. Pertence à Ordem dos Templários.”

         Veniero concordou com um sorriso pálido. "Como foi que o senhor compreendeu?”

         "Não foi por isso. Nem pelo punhal que perdeu em São Judas, quando procurou fazer-me crer num ritual perverso, traçando o pentágono sobre a parede. Isso me foi revelado por messer Domenico, o agiota. Foi ele que me contou que o senhor lhe havia solicitado aceitar cartas de crédito, garantidas. E só as comendas templárias podem emiti-las.”

         "Mas como compreendeu... isto?" perguntou ainda o capitão, percorrendo com um amplo gesto o afresco atrás deles, até parar com o indicador apontado para a máscara de Ambrogio, que gritava contra a morte, a seus pés.

         "O senhor revelou para mim." "Eu?" replicou Veniero, admirado.

         "Sim, o senhor, com suas palavras. Falou-me das carrancas humanas que antigamente eram colocadas na proa dos navios, como sacrifício aos deuses para propiciar a viagem. E não é costume das marinhas cobrir o corpo dos condenados com betume, para preservá-los como advertência aos outros? Foi essa a linha de pensamentos que me levou ao senhor. E depois, no caminho do Paraíso, quando afirmou que um círculo pode ser percorrido em ambos os sentidos. Ambrogio e Teofilo estavam sobre o mesmo desesperado caminho, e só por um acaso um foi morto antes do outro. Era isso que pretendia, quando disse que o boticário foi assassinado em segundo lugar só porque a morte havia escolhido o outro caminho. Mas eu fui cego, até que hoje à noite minha mente se iluminou, na taberna do Terceiro Céu, quando o senhor comparou as correntezas marinhas com os ventos impetuosos e disse que aquilo que está embaixo é como o que está no alto. Era esse o significado do desenho do mestre Ambrogio, não é? Um meio para desfrutar das correntezas marinhas. E o senhor sabia disso, apesar de ter fingido ignorar.”

         Veniero concordou. "Sim, um instrumento antigo inventado pelos marinheiros de Tiro para vencer as fortes correntezas contrárias às Colunas de Hércules. Descobriram que, cinqüenta braças abaixo da superfície, existe uma correnteza de água que viaja na direção do Ocidente, em direção ao oceano. E inventaram uma vela submersa para aproveitar aquela correnteza como se fosse um vento", explicou animado.

         Em seus olhos, ao lembrar-se disso, havia se acendido novamente uma luz, como se a genialidade daqueles antigos marinheiros continuasse a suscitar a sua admiração. Para Dante parecia que a respiração do mar bafejava ao seu redor. Aguardou um instante, antes de prosseguir.

          "Mas não foi só por isso que os meus passos chegaram até aqui. Eles foram guiados pela sua alma. Eu disse que a forma do crime é modelada sobre o intelecto do seu autor. Pense em seus companheiros, no Terceiro Céu. Francesco d'Ascoli, com sua fé no abstrato rigor dos movimentos celestes, na absoluta geometria do destino. E Bruno Ammannati, o teólogo. Pronto a se entregar à fogueira ao final de seu caminho, guia cego de outros cegos. Antonio da Perentola, envolvido no sonho de unir todos os homens debaixo do sinal-da-cruz, e disposto para isso a nos entregar a todos nas mãos do tirano. Augustino de Menico, convicto como os antigos de que a razão possa alcançar a verdade, e destinado por isso a sentar nas trevas, fora da casa de Deus. E Cecco Angiolieri, dilacerado pela melancolia que o invade como um veneno inexorável. Todos teriam sido capazes de matar pelas suas paixões.”

         Veniero permanecia imóvel ouvindo, em silêncio. Limitou-se a cruzar os braços sobre o peito.

         "Mas nesses crimes eu não reconhecia o sabor da paixão. Havia mais uma outra sombra que os marcava", disse ainda o poeta.

         "Qual?”

         "A dor. A dor de uma alma arrancada da própria terra, jogada no frio do exílio. Que é talvez a dor maior, para a qual não há remédio.”

         O veneziano havia inclinado a cabeça, como para defender-se daquelas palavras. "Conhece minhas ações. E conhece também minhas razões?" disse em seguida, levantando-se abruptamente, com ar de desafio.

         O olhar de Dante desviou-se para o imenso desenho, finalmente revelando as suas partes faltantes. A luz das   tochas, ondeando, parecia dar vida à imensidão dos mares. "Sim, agora sim." Percorreu com o olhar a linha graduada, que atravessava o espaço entre o corpo do homem e aquele da mulher, unindo num semicírculo a massa de rochas e rios com a terra do outro lado do mar. "Uma nova parte do mundo. Depois da Europa, da Ásia, da Líbia e a quarta de águas. Esta..." Apontou para a massa escura assinalada no cartão aos pés da mulher, a cidade das torres estranhas.

         Veniero aproximou-se como para ver melhor. "Sim", disse em seguida. "É um trabalho preciso. Ambrogio era realmente um mestre. Tinha-lhe sido suficiente uma olhada no arquivo secreto da comenda de São Paulo, em Roma, para compreender tudo. Aquilo que no Templo havia demandado anos de pesquisas. Queria que todos soubessem. Ofereci-lhe todo o ouro, para calá-lo. Era louco." Debaixo das roupas retirou repentinamente uma curta espada e apontou-a contra o peito do poeta.

         Dante sentiu a ponta fria de aço subir perigosamente em direção à sua garganta e recuou por instinto, logo seguido pela lâmina. O outro parecia querer manter inalterada a pressão mortal, sem atenuar nem tornar mais grave a ameaça. Os cantos de seus lábios se contraíram, como se a máscara feroz que Dante bem conhecia houvesse de um golpe apagado os traços delicados de cavaleiro do seu rosto. Até o olhar, agora, era aquele gélido de um leão. De repente o poeta sentiu-se perdido.

         Mas o outro se limitava a brincar com a sua garganta, como se não tivesse pressa de pôr fim a esse desafio. Talvez, como todo grande ator, não quisesse abandonar a cena sem um gesto extremo de bravura, sem um aplauso ao seu talento.

          "E ninguém do Terceiro Céu nunca suspeitou do senhor. E nem mesmo Antilia, escondida entre as paredes do Paraíso como a última das prostitutas. Mas por que Teofilo? Como é que o boticário ficou preso na rede da morte?", perguntou Dante. "O senhor foi realmente muito hábil." Procurar lisonjeá-lo poderia ser a única maneira de ganhar tempo.

         "Conhecia os segredos dos metais. Das pedras. E suspeitava algo em relação à origem de Antilia. Havia visto o cobre puro das minas de sua pátria. Sabia que aquele cobre não existe nas terras conhecidas. Tentei comprá-lo também com um frasco de chandu. Esperava que, mais do que o ouro, aquele segredo acalmasse o seu orgulho intelectual. Mas queria mais... queria demais." O olhar do marinheiro correu por um instante para a mulher. "Procuraria e encontraria. Ele também pagou pela sua excelência", acrescentou em seguida com um sorriso pálido. "Talvez o mundo pertença aos seres medíocres. Somente esses caminham em segurança.”

         Dante percebeu uma pequena variação em seu tom de voz, como uma nota conclusiva. Certamente estava se preparando para golpeá-lo. Quem sabe se exibiria seu corpo também como uma carranca em seu navio, perguntou-se, enquanto pensava freneticamente sobre o que fazer. Sentia o peso da adaga em seu bolso. Talvez conseguisse alcançá-la antes que o outro se arremessasse contra ele.

         Deixou-se cair para a frente, enquanto a mão corria para a empunhadura da arma. Veniero, tomado de surpresa, reagiu com um instante de atraso, dando a Dante o tempo necessário para tentar uma estocada direta no rosto do   oponente, enquanto com a mão livre agarrava-lhe o braço direito, imobilizando-o. A lâmina brilhou em direção ao pescoço do adversário, percorrendo um semicírculo.

         Havia acertado o alvo logo abaixo do ouvido, mas a arma fora rechaçada por alguma coisa. Veniero devia estar usando um colar de aço que detivera o golpe. Velozmente o poeta voltou a levantar a mão, dessa vez apontando mais abaixo, para o coração.

         Afundou o punhal com todas as suas forças. Mas o outro conseguiu com um impulso libertar-se de sua presa e, mais uma vez, a lâmina errou o alvo, desviando do coração para onde estava direcionada e indo afundar no músculo do ombro. Sentiu a força de seu adversário ceder de uma vez, como se os espíritos vitais o abandonassem.

         Voltou a levantar a mão, mas alguém agarrou-lhe o braço, procurando detê-lo. Instintivamente virou-se para atacar o novo adversário que o ameaçava por trás, enquanto com a mão esquerda continuava a apertar a garganta de Veniero.

         Antilia estava curvada sobre ele. Algo na atitude da mulher o deteve: não parecia olhar em sua direção, mas mais além de seu ombro, para Veniero. Não demonstrava ler receio de Dante, e seus olhos estavam marejados de lágrimas. O poeta permaneceu imóvel, a lâmina erguida em direção ao céu, incerto, ofegante pela tensão e pelo esforço.

         Só nesse instante a mulher pareceu dar-se conta dele. "Peço lhe, messere", murmurou. Não acrescentou nada, limitando-se a fixá-lo com aquele seu olhar longínquo. Mas uma das brechas parecia ter se aberto no muro de sombras que a cercava. "Por favor", repeliu.

          A fúria assassina de Dante aplacara-se como por milagre. Abaixou o punhal. O corpo de Veniero agitava-se sem vigor debaixo de sua mão. Soltou a presa, deixando-o respirar, em seguida levantou-se, recuando alguns passos. Ela tomou seu lugar, inclinada sobre o corpo do homem, ajoelhando-se com um movimento sinuoso semelhante ao de uma serpente. O prior lembrou o que lhe havia relatado um viajante em terras longínquas a propósito da dança de amor das grandes najas de além-mar, que pode ser vista durante as noites de luar nas dunas do deserto.

         Antilia havia recoberto Veniero com o seu manto e procurava reanimá-lo com uma ladainha pronunciada em voz baixa feita de sons e palavras incompreensíveis. Segurava-se nele com uma vibração estranha, como se procurasse transmitir-lhe uma parte do próprio calor vital.

         Então se voltou novamente para o poeta, enquanto o veneziano começava a recuperar-se, tossindo.

         "Tenha piedade de nós", disse. O tom de sua voz era débil, despedaçado pela angústia. Pronunciava com dificuldade as palavras, arfando pela emoção, como quem deva exprimir-se numa língua pouco conhecida e tenha pavor de não ser compreendida. "Deixe-nos voltar. O senhor compreende o sofrimento do exílio. Eu o escutei.”

         A face de cobre resplandecia à luz da tocha, molhada pelas lágrimas. Dante observou um leve movimento de Veniero, que readquiria os sentidos. Agora havia reaberto os olhos e o fixava. Mas o olhar parecia atravessar seu corpo para alcançar Antilia às suas costas. Um olhar firme, sem traços de medo e, todavia, atormentado por uma dor profunda.

        

          Antilia voltou-se para Dante, mas foi Veniero quem falou. Sua voz era tranqüila, sem rancor. Pressionava o ombro para estancar o sangue com a mão. Estava muito pálido. "Proponho-lhe um acordo, prior.”

         "Que acordo?”

         "Peço tempo. Só uma hora.”

         "O que me oferece em troca?”

         O capitão hesitou um instante. "O senhor descobriu o segredo da quinta terra. Mas esse conhecimento sozinho é inútil, como aquele da Atlântida perdida. Para alcançá-la é necessário o mapa dos ventos e das correntezas do mar, que permite evitar os redemoinhos e os recifes. É isto o que lhe ofereço: o portulano dessas novas terras." Calou-se. A mulher também aguardava silenciosa, os olhos dilatados pela angústia. "Uma hora de vantagem", repetiu o veneziano. "Depois pode recomeçar a sua caça. Um navio da Ordem nos espera na costa. É lua cheia, o caminho até a praia está livre. Quando subir a maré deixaremos a Toscana.”

         Dante não conseguia tirar os olhos do templário. Talvez fosse o olhar do demônio que transparecia das suas pupilas. Ao seu lado, o rosto de Antilia estava mais próximo, quatro olhos que o observavam firmes. Sentiu uma ligeira vertigem. Não seria a besta do Apocalipse que teria congelado o homem com os seus múltiplos olhos?

         "Deixe ver isso de que fala.”

         Veniero retirou com esforço algumas folhas do seu colete. "São os mapas de mestre Teofilo. Ele também queria dar forma ao segredo", murmurou, erguendo a vista para a parede. "Claro, com um esplendor menor.”

         Entre as folhas havia uma dobrada, muito maior. Desdobrou-a e o poeta inclinou-se avidamente sobre o mapa que lhe era mostrado, manchado com o sangue que ele próprio derramara. Reconhecia as imagens que havia estudado com seu mestre Brunetto. A forma do mundo. A grande obra de Ptolomeu transcrita por uma mão hábil sobre aquele pergaminho. Com sua fragmentação em partes, as cadeias de montanhas, as longas serpentes dos rios, os grandes oceanos.

         Mas havia mais, imenso. Dante observava com as pupilas dilatadas os sinais e comparava a alegoria sobre a parede com a exatidão da representação que tinha diante de si. Então tinham tido razão os antigos em chamar de rio aquilo que o intelecto anão de seus contemporâneos obstinava-se em crer ser um oceano. Era realmente um rio, aquela massa de água estendia-se para ocidente, aparentemente infinita. No mapa estava assinalada claramente a outra margem, uma vereda de terras, ilhas e golfos, que corria paralela às margens da Europa e da África. Uma terra sem fim, uma ilha em forma de clepsidra: duas grandes massas ligadas entre si por um istmo.

         A quinta parte do mundo. In pentágono secretum mundi. A terra para onde se dirigia o gigante em movimento. Para ocidente, no ponto onde convergia o seu olhar. Esse era o segredo que o mestre comacino havia procurado revelar com a sua obra. Um novo continente além do oceano.

         A terra do ouro? O olhar de Dante voltou-se para as pulseiras de Antilia, com suas decorações indecifráveis. A mulher pareceu intuir o seu pensamento. "Lá há   muito deste metal que perturba os seus sonhos" disse com a sua voz insegura. "Mas para nós não tem o mesmo valor que parece ter entre os senhores. Para nós a riqueza é esta.”

         Havia retirado de debaixo das roupas um colar de pedras esverdeadas, de reflexos tênues. Jade. "Tome. Se aceitar o acordo, será sua. Torná-lo-á imortal.”

         Dante continuava a fixar o mapa, enquanto estendia distraidamente a mão na direção do colar. No mapa não estavam somente indicados os confins geográficos, mas também as rotas marítimas, o percurso dos ventos e das correntezas, o detalhe da costa com os lugares favoráveis para desembarcar e os recifes perigosos. O número de dias necessários para fazer a longa viagem e depois para a cabotagem ao longo da costa.

         Subjugado pela curiosidade, havia esquecido completamente o seu adversário. Retrocedeu de um salto, pondo-se na defensiva. Mas Veniero havia abandonado qualquer atitude hostil. Parecia ansioso, aguardando a resposta.

         "Tenho tudo em minhas mãos. O senhor, sua cúmplice e seu segredo. Por que eu deveria aceitar o acordo que me está propondo?" disse o prior depois de um momento de silêncio, agitando os mapas que segurava na mão.

         "Porque compreende o sofrimento. Não irá encarniçar-se sobre quem derrotou" murmurou o veneziano, inclinando a cabeça. Depois voltou a levantar-se, com um gesto nervoso. "E porque nesses mapas falta um elemento essencial. Aquele que nem mesmo Teofilo conseguiu descobrir.”

         "Qual?" perguntou Dante, desconfiado.

         "O oceano imenso é varrido por ventos constantes e contrários. Foram eles que protegeram por séculos essas terras. Só num ponto, e por poucos graus de latitude, eles sopram a favor. Sem esse conhecimento cada tentativa está condenada ao desastre. Errariam por meses e talvez por anos num deserto de água, sem esperança.”

         O poeta refletia sobre essa última observação. Talvez o outro presumisse demais em relação à sua nobreza de espírito. E ele não imaginava os instrumentos de persuasão que jaziam nos subterrâneos da Stinche. Poderia vir a conhecer o último segredo mesmo sem conceder nada.

         Todavia o olhar do homem sugeria que teria sido capaz de resistir à dor mais intensa. À exceção talvez de uma, pensou, olhando para Antilia, que continuava a evocar os seus deuses por trás das costas do amante. Imaginou o desespero daquele corpo dilacerado pelos ferros do carrasco.

         Mas nem ele teria podido suportar isso. Afastou esse pensamento com raiva, enquanto a curiosidade mais uma vez o vencia. Queria ganhar tempo.

         Apontou novamente para os mapas. "Como chegaram às suas mãos? No mundo, Platão foi o último a saber de uma terra além do oceano. E ele também falava não por conhecimento direto, mas por conta de um relato mais antigo...”

         Veniero sorriu fracamente. "A Ordem do Templo cavou longamente entre as ruínas da cidadela de Jerusalém, por baixo do antigo Templo. E muitos pensaram que procurava o tesouro dos israelitas. O ouro das oferendas, a Arca da Aliança... alguns até imaginaram que fosse a busca pelo Graal. Loucura. Não há nada lá. Nunca houve nada.”

         Uma careta formou-se em seu rosto. Uma pontada da ferida, ou a dor da desilusão.

         "Os deuses nunca caminharam sobre a terra. Lá existem só miragens. Pedras calcinadas pelo sol e pelas chamas dos assédios. Somente os traços de um conhecimento antigo, que a comunidade hebraica de Alexandria havia conservado. Fragmentos de mapas. Indicações de viagens para terras remotas. Testemunhos que os povos do Egito possuíam. Era no Nilo que deviam procurar.

         "Por essa razão os templários lutaram por Damieta além do razoável, levando à destruição as tropas cristãs?”

         "Sim. Já havia sido encontrado em Chipre um portulano incompleto, com o início de rotas traçadas para o ocidente. Sabiam que na antiga biblioteca de Alexandria deviam existir os mapas nos quais Ptolomeu se inspirara, c que esses mapas haviam sido carregados pelos hebreus em fuga, por ocasião da destruição da cidade pelos árabes. Lentamente foram juntados todos os fragmentos desse conhecimento. No ano do Senhor de 1294 um navio da Ordem foi enviado para tentar o caminho que os nossos geógrafos haviam assinalado. A rota fora calculada tendo por referência Vênus.”

         "A jóia caída da testa de Lúcifer", murmurou Dante. "Com os seus cinco pontos fixos no céu. O pentágono com que o senhor marcou a carne das suas vítimas.”

         "O senhor também sabe, então. O seu movimento constante é o mais simples de ser seguido no céu, até nos mares onde a agulha magnética começa a trair”

         Dante levantou o olhar para o mosaico. A luz da tocha iluminava a parte central do longo arco de números entre as duas figuras. Deixando as extremidades na sombra. "Naqueles algarismos está a medida de correção?", perguntou.

         O outro concordou e o poeta fixou-o nos olhos, que pareciam ver aquele horizonte longínquo. Já conhecia a resposta. "Foi o senhor a comandar o navio?" perguntou da mesma forma.

         Veniero concordou novamente. Parecia que em seus olhos ainda resplandecia a lembrança daqueles dias.

         Dante virou-se bruscamente para a mulher. "E ela? Foi de lá que ela veio, juntamente com o ouro e o cobre daquelas terras?”

         O capitão virou os olhos amorosamente para Antilia. "Sim, e é o tesouro mais precioso. Felizes os deuses daquela terra que são honrados pela sua dança.”

         "Mas por que manter o segredo? Por que matar para esconder uma revelação tão preciosa para toda a humanidade?”

         Veniero deixou passar alguns instantes, antes de responder. Quando falou tinha um tom irônico na voz, como se quisesse rir-se da ingenuidade do poeta. Agarrou docemente o pulso da mulher, erguendo-o em direção dos olhos de Dante para mostrar a pulseira.

         "Tem tanto que seria suficiente para encher o interior de cem das nossas galés. E em medida suficiente para saciar a cobiça de todos os reis da Europa e financiar as suas guerras durante mil anos. Para fundar um novo império... ou para destruí-lo." Fez outra pausa, como para certificar-se de que o outro havia compreendido as suas palavras. "Para chamar novamente sobre a terra o Cristo. Para acender a chama de uma nova religião. Para subir aos   céus e derrubar até as portas da casa de Deus. Realmente está se perguntando por que é necessário conservar o segredo? Por que a Ordem do Templo tinha procurado escondê-lo a todo custo? Por que quem tentava divulgá-lo devia morrer?”

         Dante olhava imóvel para o mapa, como se um sonho tivesse rasgado o véu do futuro. Sentiu um calor repentino correr-lhe nas veias. Tudo parecia pequeno e insignificante diante da visão que inflamava a sua mente: armar o maior exército da Terra, restabelecer o poder dos romanos, fazer de Florença o centro do mundo, sentar-se com os grandes, ditar novas leis para conformar a sorte dos homens às palavras dos Evangelhos. Castigar Bonifácio. "Uma hora de tempo em troca daquilo que sabe", disse finalmente.

         Veniero concordou lentamente. Por um instante a sua mão correu para o mapa como para agarrar, mas conteve o gesto. "Agradeço, messer Alighieri. O acordo está certo. Mas, se conservar o mapa, deixará abertas as portas do inferno. A sua inteligência sabe disto", disse, depois escreveu um número, com o dedo sujo do próprio sangue.

         Dante fechou o punho sobre o pergaminho. Nada e ninguém tiraria isso dele agora. "O que nós sabemos do inferno? O que conhece a nossa inteligência? Somente a luz de Deus ilumina nossos passos, não os seus mapas antigos. Se Deus nos dá a chave dessa porta, não abri-la seria um insulto à Sua vontade.”

         "O senhor está defendendo a sua cobiça com as palavras. Mas seja como quiser, visto que esse dia é seu. Chegarão outros dias, creia-me. Lembre-se: uma hora.”

         "O senhor a terá. Uma hora.”

          Enquanto os dois cruzavam a porta, Dante dirigiu-se ao homem. "Messer Veniero!”

         O marinheiro imobilizou-se no umbral, apoiando-se em Antilia, que segurava seu braço.

         "E o senhor viu a nova terra?”

         O templário aquiesceu.

         "O quê... o que viu?”

         "A costa, ao sul do equador. A sua quina pretendida na direção do nosso mundo. Um rochedo imenso que sobe em direção ao céu. É para lá que retornaremos.”

         Dante ergueu a mão em sinal de saudação. "Uma hora. Depois irei caçá-los." Enquanto os dois saíam, chamou novamente Veniero. "Uma última coisa. O senhor encontrou, em suas viagens, um lugar onde as águas se elevam além do nível das terras emersas?”

         "Nunca, em canto algum.”

         "Eu sabia. Eu tinha razão.”

         O poeta ficou sozinho. Sentado numa prancha do andaime, debaixo da figura imponente da mulher que aguardava seu namorado. O som dos cavalos a galope que se dirigiam ao ocidente havia sido o último barulho que escutara no exterior da igreja. Perguntou-se se o sangue de Ambrogio e Teofilo teria sido profícuo para aquela viagem. Parecia-lhe estar cercado por sombras, como se um grupo de fantasmas estivesse reunido atrás dele.

         O mapa da quinta parte do mundo estava estendido sob seus olhos. Na luz tremeluzente da tocha a superfície do pergaminho, brilhante pelo uso e pelos anos, parecia queimar como o ouro de que era a promessa. Dante estava  refletindo sobre os perigos para os quais Veniero o colocara em guarda.

         Perguntou-se com quem poderia dividir o segredo.

         Com ninguém. Somente ele em toda a Florença tinha a estatura para saber. Mais ninguém.

         Com um gesto decidido, aproximou a borda do pergaminho da chama da tocha.

         Fixou-o longamente, enquanto o pergaminho era consumido pela chama. Atrás das costas pareceu-lhe perceber uma presença amiga, que observava suas ações.

         "Eu agi bem, pai?”

         "Sim", respondeu a antiga voz que vivia dentro de sua alma. "Mas não terá mérito algum. Você velou os olhos de seus companheiros, derramou cera em seus ouvidos. Porque, assim como Ulisses, você quer ser o único a saber.”

        

         22 de junho, às primeiras horas do alvorecer.

         Dante havia se lançado na estrada a todo galope, estafando o cavalo. Algumas milhas antes de Pisa, as marcas dos fugitivos haviam dobrado em direção do litoral, deixando a estrada principal que conduzia para a cidade.

         As rajadas de vento do Tirreno o cegavam, enchendo seus olhos de lágrimas. A estrada batida pelas carroças terminava muitas milhas antes da costa. Ali se estendia um enorme pântano, intercalado por pequenas elevações e poças de água, com poucas línguas de terra arenosa. Parando junto a um pequeno aglomerado de cabanas, o último no caminho da praia, Dante perguntou se por aqueles lados existia um atracadouro. Os camponeses o tinham olhado lentamente, com seu olhar apalermado, antes de responder. Sim, havia um pequeno porto, um pouco mais adiante, na costa. Sim, tinham passado dois estrangeiros, direto para aquele lado.

         As trevas estavam diminuindo, libertando o pântano da sombra. Ultrapassou a última duna, enquanto seu cavalo resfolegava pelo cansaço, recoberto de suor. Debaixo dele a orla arenosa do Tirreno, as ondas encrespadas numa ressaca   violenta. O mar já estava à mercê de uma tempestade de verão, que na terra firme ainda parecia longínqua, anunciada somente pelas rajadas de vento úmido e quente.

         Lançou um rápido olhar ao longo da linha costeira. À sua esquerda, em direção ao sul, reconheceu o porto indicado pelos camponeses, um simples atracadouro de estacas, levemente protegido por uma pequena enseada, amparada por uma breve língua de terra. Ao redor, poucas cabanas de madeira formavam uma pequena vila de pescadores.

         Mas foi outro detalhe que atraiu sua atenção. Mais adiante, a uma centena de braças da costa, percebeu o perfil escuro de uma galé que tentava tomar ao largo sob o impulso da vela enfunada pelo vento. O barco não tinha nem escudo nem qualquer outro sinal de reconhecimento. Perigosamente inclinada sobre um flanco, por quanto o poeta podia perceber, parecia em dificuldade. Esporeou o cavalo esgotado para o lado do navio. O animal respondeu com um relincho ao estímulo da espora em seus flancos.

         Nos poucos instantes necessários para cobrir a distância que o separava do embarcadouro, temeu que o navio conseguisse fazer-se ao mar. Mas a operação revelava-se mais difícil do que tinha previsto a equipagem. Alcançou o início do pequeno pontilhão e desmontou, lançando-se sobre o tablado. O barco não havia ainda conseguido ganhar uma única braça contra a ressaca; pelo contrário, parecia que a distância da terra reduzia-se, como se o timoneiro estivesse em dúvida entre enfrentar o mar aberto ou ganhar a proteção da terra firme.

         No alvorecer destacava-se claramente a luz do farol de popa que fulgurava no mar negro, oscilando com os choques das ondas. Repentinamente a luz pareceu aumentar de intensidade, como se cem outras lamparinas tivessem sido acesas de repente. Depois um relâmpago envolveu todo o navio, fazendo-o resplandecer em toda a sua dimensão.

         Dante ouvira os relatos dos marinheiros de Pisa. Falavam de navios fantasmas que resplandeciam em alto-mar. E sempre os considerara pelo que eram, histórias de bêbados que queriam matar o tempo nas noites em que o vinho escasseava. Mas naquele instante tinha diante dos olhos uma dessas aparições: a galé parecia em fogo. Nem percebia precisamente as enxárcias e a vela iluminadas, como se toda a luz do sol tivesse se concentrado nelas, e na bancada dos remos levantados, imitando as asas num vôo maluco.

         Por um instante pareceu-lhe que a galé desaparecia numa esfera de chamas, ofuscante como o raio que havia destruído anos antes a torre de Santa Cruz. Um feixe de chamas incandescentes elevou-se em direção ao céu, superando o cesto da gávea e precipitando-se na água com grande estalido. No resplendor pareceu perceber as figuras de alguns corpos humanos que dançavam no branco deslumbrante, como se a ponte se tivesse transformado num templo onde um ritual era celebrado em nome dos antigos deuses do fogo.

         O navio adernara violentamente, agora sem nenhuma direção, envolvido em chamas, a vela transformada numa língua de fogo que se elevava em direção do céu negro, lembrando um estandarte fúnebre. Foi então que se lembrou.

         Havia visto aquele resplendor deslumbrante anos antes, durante seus estudos de alquimia para ser admitido  na Arte dos boticários. Uma substância que se inflama e queima num relâmpago claro, desenvolvendo um calor terrível semelhante a entrada do inferno.

         Continuou assistindo horrorizado ao navio: em poucos instantes a estrutura tinha sido consumida e estava afundando, enquanto lampejos de luz cintilavam nos restos do mastro e do castelo de popa.

         O fósforo.

         Era essa a única explicação que sua mente sugeria diante daquele terrível espetáculo, antes de render-se à hipótese de uma representação diabólica. Devia haver fósforo na estiva da galé, inflamado acidental ou deliberadamente.

         Uma onda de comoção o invadiu, e caiu de joelhos sobre o pontilhão, enquanto as primeiras gotas de chuva o molhavam. Sobre a ponte do navio em chamas havia reconhecido Antilia. Teve a sensação de que a mulher dirigia-se para ele, um braço levantado para o alto. Deviam ser os espasmos da morte, mas para ele pareceu-lhe um gesto de quem se despede.

         Pareceu-lhe ver o rosto dela derreter-se como cera sob aquele calor deslumbrante, os cabelos acender-se numa chama cândida. Por que dizem que é o negro a cor da morte? Ela adianta-se com grandes passos vestida de luz e de púrpura.

         Em seguida apareceu outra sombra, ela também envolvida em chamas. Viu-a acostar-se à mulher e estreitá-la entre os braços com doçura, como tentando protegê-la; agora eram visíveis só duas línguas de fogo agitadas pelo vento, próximas das cabeças que se consumiam.

        

          O navio desaparecera entre as ondas. Na luz crepuscular somente a ponta do mastro carbonizado se entrevia ainda acima das ondas: uma lápide flutuante indicando o local da sepultura marítima.

         Só então Dante percebeu as duas figuras a cavalo, cobertas com pesadas mantas de viagem, os rostos escondidos pelos capuzes, de pé na entrada de uma das cabanas do pequeno povoado. Deviam ter acompanhado com atenção todo o drama até a sua conclusão. Levantou-se de um salto, movido por uma intuição: aqueles eram os dois mestres comacinos.

         Correu ao longo do pontilhão procurando alcançá-los justo a tempo de vê-los passar a galope. Um dos dois, um jovem loiro, olhou-o por um instante com seus olhos azuis, enquanto passava ao seu lado. O poeta pensou em persegui-los com a sua montaria, mas viu seu cavalo parado num canto, esgotado, sem nem mesmo forças para pastar um pouco de capim. Estava tão fatigado que morreria depois de umas poucas ferroadas com as esporas.

         Dante virou o olhar para o ocidente. Diante de seus olhos estendia-se o horizonte, uma linha cinza que separava duas massas diferentemente obscuras. Havia realmente a quinta terra, além daquele ponto, com seu ouro e os seus resplendores? E existia realmente c terrível promontório de rocha que Veniero descrevera, que, como um gigante, surgia das águas diante dos navegantes, cortando a passagem com sua corte de monstros?

         Um monte nos antípodas, no centro de um mar fervente. Quem sabe a que habitantes Deus havia reservado esta visão. Os traços de Antilia surgiram diante de seus olhos.  

          Talvez nossos progenitores fossem como ela, pensou. Talvez o paraíso terrestre fosse assim.

         Tocou com a ponta dos dedos o colar de pedras verdes escondido debaixo das vestes.

         A imortalidade.

         Sim, ele a teria.

 

                                                                                Giulio Leoni  

 

                      

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