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OS DEDOS FLUORESCENTES / Erle Stanley Gardner
OS DEDOS FLUORESCENTES / Erle Stanley Gardner

 

 

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OS DEDOS FLUORESCENTES

 

Após um longo dia de trabalho no tribunal, Perry Mason entrou no gabinete e a sua secretária particular, Della Street, colocou-lhe em frente uma pilha de cartas recém-dactilografadas, para que ele assinasse, e observou:

- Convinha, "Chefe", que despachasse esta correspondência e, antes de ir para casa, pudesse atender uma cliente que tem estado a "secar" na sala de espera, há uma data de tempo...

- Quem é ela?

- Nellie Conway. Eu disse-lhe que o "Chefe" talvez a recebesse se ela quisesse esperar.

Mason assinou a primeira carta e, eficientemente, Della dobrou-a e enfiou-a no respectivo sobrescrito.

- Que pretende essa Nellie?-interessou-se o advogado.

- Não quis dizer-mo, mas deve tratar-se de um assunto realmente urgente.

Mason franziu o sobrolho e, assinando a segunda carta, resmungou:

- É tarde, Della. Tive um dia esgotante, no tribunal.

- A moça está metida num sarilho grave...-replicou Della, com suave insistência.

Mason assinou a carta imediata e sondou:

- Como é ela?

- Anda entre os trinta e os trinta e dois, quando muito; é esbelta, tem cabelo escuro, olhos cinzentos e o mais perfeito rosto de jogadora de poker que vi até hoje.

- Não tem expressão?

- Tanta como uma estatueta... esfíngica.

- Nesse caso, como percebeu que ela está metida num sarilho?

- Pela maneira como está sentada. Percebe-se que tem uma tensão interna, embora a sua fisionomia não a exprima.

- Sinais de nervosismo?

- Nada exteriorizado; está imóvel, sem mexer os pés e as mãos; apesar de inexpressiva, os seus olhos movem-se, de quando em quando, ligeiramente... e é tudo. Não lê nenhuma das revistas que ali temos. Limita-se a estar sentada.

- Portanto, tensa?

- Como um gato à entrada de uma toca à espera que o rato saia.

- Bem, Della, você conseguiu despertar-me o interesse por essa jovem esfinge.

- Era essa a minha intenção - confessou Della Street insinuantemente.

Então Mason apressou-se a assinar o resto da correspondência, sem sequer dar-se ao trabalho de ler o que a sua secretária redigira como resposta, e indicou:

- Okay, Della. Mande entrar essa mulher-enigma. Sempre quero dar-lhe uma vista de olhos.

Della Street levou a correspondência para a sala de espera a cujo balcão de recepção se encontrava Gertie, telefonista-recepcionista e, depois de ter-lhe confiado os sobrescritos, a fim de serem selados para o correio, introduziu a cliente no gabinete do advogado, anunciando:

- Nellie Conway, Mr. Mason.

Este indicou à recém-chegada o maple superconfor-tável que se achava defronte dele, para lá da secretária de mogno, e destinado a contribuir para que os clientes se descontraíssem e soltassem a língua.

Contudo, Nellie Conway não ligou importância a essa indicação e sentou-se numa das menos cómodas cadeiras de madeira, deslocando-se silenciosamente, como se estivesse treinada a movimentar-se sem causar ruído desnecessário.

- Boas tardes, Mr. Mason - saudou ela, sem sorrir. - Obrigada por ter-me recebido. Tenho ouvido falar muito de si... Estive à espera de que chegasse e já não me resta muito tempo, pois, às seis horas, cumpre-me ir para o meu serviço.

- Trabalha à noite?

- Sou enfermeira.

- Clínica geral ou cirurgia?

- Bem... tirei um curso de enfermagem e posso praticá-la junto de doentes externos a um hospital... Esses que não têm dinheiro para serem assistidos por enfermeiras mais especializadas que, hoje em dia, cobram uma fortuna. Por esse motivo, também o meu salário é inferior ao delas.

Nellie Conway olhou de relance para Della e Mason apresentou:

- É Miss Street, minha secretária particular. Assiste a todas as entrevistas e estenografa os assuntos em curso que têm de ficar registados. Tem de saber quase tanto como eu acerca dos casos que me são confiados e encarrega-se da sua devida coordenação.

"Agora, Miss Conway, queira dizer-me o motivo que a induziu a vir consultar-me."

Nellie apertou as mãos enluvadas, uma na outra, e sem a mínima vibração nos olhos cinzentos e na voz, indagou:

- Diga-me, Mr. Mason, como é possível evitar-se um assassínio que está na iminência de ser cometido?

O advogado franziu as sobrancelhas, com um certo exagero de espanto.

- Francamente, não sei dizer-lho!

- Estou a falar-lhe a sério, Mr. Mason.

- Também eu. Isso está fora da minha linha profissional. Especializei-me em defender pessoas acusadas de homicídio, mas não me compete evitar que ele seja perpetrado. Quando muito, uma precaução desse tipo é da alçada da Polícia. Porém, talvez possa adiantar que, para esse fim, há quatro vias.

- Quais são elas?

Mason; ergueu uma mão espalmada e foi destacando os dedos.

- A primeira é afastar a provável vítima da zona do perigo.

Nellie confirmou, com um aceno de cabeça.

- A segunda - prosseguiu o advogado - é afastar o provável assassino do local onde possa contactar com a pessoa ameaçada. A terceira é afastar das proximidades qualquer instrumento que possa causar a morte... o que também se reveste de grande dificuldade...

- Sim, todas essas precauções são quase impraticáveis.

- A quarta - continuou Mason - é avisar a Polícia, como já sugeri.

- Já o fiz.

- Que sucedeu?

- Riram-se-me na cara.

- Nesse caso, por que veio ter comigo?

- Porque espero que não me faça o mesmo.

- Bem, não o farei, mas não gosto de abstracções. Os meus minutos valem dinheiro. Aparentemente, você está com pressa e eu também não tenho tempo a perder. E não gosto de um caso em que um cliente se limita a dizer-me: um tal A quer matar B. É demasiado vago. Portanto, vamos lá pôr o assunto em pratos limpos.

- Quanto vai levar-me por esta consulta?

- Depende do tempo que você vai empatar-me com rodeios.

- Sou uma mulher que trabalha e não posso dispor de muito dinheiro.

- Então, é tanto do seu interesse como do meu que se despache o mais depressa possível.

- Quanto terei de pagar-lhe?

Mason observou-lhe o rosto imprescrutável e, de relance, dirigiu uma careta divertida a Della Street. Depois, tornou a encarar a cliente, com um ténue sorriso.

- Um dólar-decidiu. - Será o preço desta consulta, se expuser a sua história em quatro minutos. Cinco já lhe sairão mais caros.

Sem o menor sinal de surpresa pela módica quantia sugerida, Nellie abriu a bolsa de mão, retirou dela uma carteirinha, extraiu desta uma nota de um dólar e espalmou-a, calmamente, sobre a secretária.

Sem tocar no dinheiro, o advogado continuou a fitar-lhe os olhos cinzentos.

Nellie tornou a guardar a carteirinha na bolsa, fechou-a e expôs:

- Creio que Mr. Bain quer matar a mulher. Gostaria de poder impedi-lo disso.

- Quem é Bain?

- Nathan Bain... É um gestor financeiro. Deve conhecê-lo, não?

- Não. Quem é a mulher dele?

- Elizabeth Bain.

- Como descobriu que ele tenciona matá-la?

- Usando o meu poder de observação.

- Vive em casa deles?

- Sim.

- Tratando de alguém?

- Sim. Sou enfermeira de Mrs. Elizabeth Bain.

- Que se passa com ela?

- Foi vítima de um acidente de automóvel.

- Grave?

- O seu estado é muito pior do que ela própria pensa. Ficou com a coluna vertebral lesionada.

- Pode andar?

- Não... e nunca mais conseguirá fazê-lo.

- Queira continuar, Miss Conway - incitou Mason.

- É tudo.

O rosto do advogado exprimiu contrariedade.

- Não basta. Você pensa que ele tenciona assassiná-la. Porventura consegue adivinhar o pensamento das outras pessoas?

Numa voz calma, Nellie respondeu:

- Não se trata de clarividência.

- Nesse caso, que mais sabe?

- Que Nathan Bain pretende casar com outra mulher.

- Que idade tem ele?

- Trinta e oito.

- E Mrs. Elizabeth Bain?

- Trinta e dois.

- Que idade tem essa outra mulher com quem ele desejaria casar?

- Cerca de vinte e cinco.

- E essa jovem também quer casar com ele?

- Não sei.

- Quem é ela?

- O seu primeiro nome é Charlotte, mas desconheço-lhe o apelido. Tem um apartamento na cidade, mas não sei onde.

Irritadamente, Mason criticou:

- É cansativo, Miss Conway, ter de extrair-lhe as palavras, como se lhe estivesse a arrancar dentes. Por que chegou à conclusão de que Bain pretende casar com essa Charlotte?

- Porque se apaixonou por ela.

- Como o sabe?

- Mantêm uma correspondência íntima. Nathan Bain conheceu-a durante uma convenção de negócios... de investimentos financeiros, como é uso dizer-se. Encontraram-se nessa reunião.

- Muito bem. E depois? Muitos homens saudáveis, de trinta e oito anos, têm inclinações amorosas por mulheres mais novas do que eles. É uma idade perigosa. Mas, na maioria dos casos, se as esposas os deixam em paz, sem lhes fazerem cenas de ciúme, acabam por voltar para casa. Noutros casos, divorciam-se... mas os homicídios, nessas situações, são deveras raros.

Nellie Conway tornou a abrir a bolsa de mão e explicou:

- Mr. Bain ofereceu-me quinhentos dólares para que eu desse à mulher um certo remédio.

Mason ergueu um sobrolho, com um ar céptico.

- Tem a certeza do que está a dizer, Miss Conway?

- Absoluta. O remédio é este. E exibiu um tubo de vidro.

- A que pretexto lhe pediu Bain que ministrasse esse medicamento à mulher?

- Não deu qualquer justificação precisa. Limitou-se a dizer que este remédio lhe faria bem. Nathan não gosta do médico que anda a tratar de Elizabeth.

- Por que não?

- Porque esse médico assistente é um velho amigo dela.

- Quer dizer que Bain é ciumento?

- Julgo que o seja.

- Mau! - resmungou Mason. - Essa história não faz sentido. Se Bain pretende ver-se livre da mulher, o melhor que tem a fazer é divorciar-se e deixá-la casar com o médico. Não precisa de envenená-la

Sem uma palavra, Nellie estendeu ao advogado o tubo de vidro que continha quatro comprimidos semelhantes ao de aspirina.

- E você deveria dar todos estes comprimidos à paciente, de uma só vez?

- Sim, à noite, quando ela já estivesse prestes a dormir.

- E Bain entregou-lhe os quinhentos dólares?

- Prometeu pagar-mos, depois de eu ter conseguido que Elizabeth ingerisse os comprimidos.

- Como poderia ter ele a certeza de que você lhos daria?

- Não sei. Creio que confia em mim. Sabe que eu não lhe mentiria.

- A ele, particularmente?

- A ninguém. Sou contra a mentira. Acho que destroi o carácter de quem mente.

- Por que motivo o próprio Bain não dá esse medicamento à mulher?

- Não pode entrar no quarto dela.

- Por que não?

- O médico proibiu-o de fazê-lo.

- Está a dizer-me que o médico proibiu o marido de entrar no quarto da própria esposa?

- Elizabeth não pode vê-lo. Odeia o chão que ele pisa. Fica histérica, sempre que o encara. Até nos proíbe de mencionar o nome dele.

- Por que motivo ela o detesta a esse ponto?

- Talvez pressinta que jamais voltará a andar. Nathan ia ao volante quando ocorreu o tal acidente de automóvel. Elizabeth pensa que este poderia ter sido facilmente evitado. Está convencida de que ele tentou matá-la.

O rosto de Mason exprimia um misto de irritação e curiosidade.

- Está a parecer-me, Miss Conway, que você não gosta muito dele, não será assim?

- Pelo contrário. Considero-o um homem fascinante, embora se tenha deixado engordar demasiadamente.

- E Bain gosta de si?

- Receio que não.

- Mas, apesar disso, ofereceu-lhe quinhentos dólares para envenenar-lhe a mulher! Isso colocá-lo-ia inteiramente nas suas mãos, tornando-a uma testemunha potencial desse acto criminoso... Essa história não faz o mínimo sentido! Como sabe que se trata de veneno?

- Sinto que este medicamento se destina, de qualquer modo, a causar-lhe a morte.

- Sabe de que produto químico se trata?

- Não.

- E ele não a elucidou a esse respeito?

- Não. Só me disse que estes comprimidos lhe fariam bem-.

- Tudo isso não tem pés nem cabeça! - resmungou Mason.- E relatou essa história à Polícia?

- Sim.

- Com quem falou?

- Com um agente da esquadra do bairro que me mandou expor o caso ao Departamento de Homicídios. Aí fui atendida por um tal sargento Holcomb que estava cheio de pressa para ir a um lado qualquer. Desatou a rir e foi muito desagradável para comigo...

- Em que termos foi ele desagradável?

- Disse-me na cara que eu era uma neurótica... mas não o sou.

- Quando lhe deu Mr. Bain esse medicamento?

- Ontem.

- Você prometeu ministrá-lo à mulher?

- Não prometi, mas também não lhe disse que me recusava a fazê-lo. Ficou com a impressão de que eu aceitava a incumbência.

- Portanto, você apenas esperava ter uma oportunidade de fazer alguma coisa contra isso?

- Precisamente.

- Nesta altura, esse tubo de comprimidos já não deve ter as impressões digitais de Bain, não é verdade?

- É muito improvável que ainda as conserve. Agora só deve ter as minhas.

Mason pegou no tubo de vidro, destapou-o e espalhou os quatro comprimidos numa folha de papel. À vista desarmada pareceram-lhe idênticos. Separou um e reintroduziu os outros três no tubo. Depois, pediu a Della:

- Dê-me dois envelopes, por favor.

Della Street abriu a gaveta da sua própria secretária que formava um T com a do advogado entregou-lhos.

Mason guardou o comprimido num dos envelopes, fechou-o e assinou o seu nome, de maneira, que após fechado, a escrita ficasse atravessada, de cima a baixo. Depois, estendeu-o a Nelie para que esta também o assinasse, mas no lado oposto.

Em seguida, introduziu o tubo de comprimidos, com os quatro restantes, no segundo envelope e ambos executaram a mesma operação, com as assinaturas na face e no verso, após o que o advogado inquiriu:

- Qual é a morada dos Bain?

- Monte Carlo Drive, número 1925.

- Vai entrar de serviço às seis horas?

- Exactamente.

- Até que horas trabalha?

- Até às oito da manhã.

- Então, que sucede?

- Uma outra enfermeira vem substituir-me para o turno de dia.

- Quer dizer, Miss Conway, que o seu período de serviço é mais longo do que o dela?

- Sim, porque as enfermeiras nocturnas têm menos que fazer.

- Por que precisa Mrs. Bain de uma enfermeira nocturna? Não dorme durante a noite? Por outras palavras, não poderia chamar uma enfermeira, por telefone, em caso de emergência?

- Bem... Elizabeth tem certa dificuldade em comunicar com o exterior.

- Porquê?

- Porque está um tanto ou quanto transtornada mentalmente. Tem andado terrivelmente preocupada... e não quer que o marido entre no quarto, como já lhe disse. O médico determinou que uma enfermeira permaneça constantemente junto da paciente. A verdade é que dinheiro não lhes falta, mas procuram poupá-lo. A avareza é humana, não é verdade?

- De quem- é o dinheiro?

- Dela.

- Bain não tem sucesso na sua actividade de gestão financeira?

- Certamente, mas a fortuna é da mulher e casaram com separação de bens. Elizabeth herdou-a antes de "dar o nó" com Nathan e, bem, foi por causa do dinheiro da noiva que ele a levou ao altar.

- Estou a ver... Sabe se Elizabeth Bain está a par da paixão do marido por outra mulher?

- Certamente que está a par disso. Foi ela quem me falou dessa situação. Apanhou-lhe as tais cartas de Charlotte.

- Há quanto tempo ocorreu o acidente de automóvel?

- Há coisa de um mês, logo a seguir a Nathan ter-se apercebido de que aquelas cartas tinham desaparecido. Concluiu que a mulher se tinha apoderado delas. Talvez Elizabeth tenha feito uma cena... Depois do acidente, Elizabeth ficou internada num hospital, durante dez dias. Depois, mandaram-na para casa.

- E você tem trabalhado aí, a partir dessa altura?

- Sim.

- Quem mais trabalha na casa?

- A enfermeira diurna.

- Também desde a mesma data?

- Sim.

- Mais alguém?

- Uma governanta.

- Como se chama?

- Imogene Ricker.

- Há quanto tempo está essa mulher ao serviço dos Bain?

- Há muito tempo. É muito devotada a Nathan Bain.

- E Elizabeth Bain gosta dela?

- Certamente.

- Essa Imogene Ricker entra no quarto da patroa?

- Está visto. Por vezes até nos substitui como enfermeira, quando, por qualquer motivo, temos de ausentar-nos, durante o período de serviço.

- Que idade tem a governanta?

- Não sei. Deve andar perto dos quarenta.

- Como é ela?

- É uma mulher de modos bastante peculiares que se desloca com pés de lã e está em toda a parte, surgindo, de repente, como uma sombra. Dir-se-iia que se empenha em vigiar-nos.

"Às vezes, até me causa arrepios. Já viu esses filmes de desenhos animados em que figura uma mulher com cara de pau, de olhos negros, inexpressivos? Pois bem, ela é desse género!"

Mason tornou a olhar de soslaio para Della Street e perguntou:

- Mas Nathan Bain confia nela, não é assim?

- Creio que conta com a sua cumplicidade em tudo quanto faz. Imogene trabalha para ele, há muitos anos. Já lá estava em casa no tempo da sua primeira mulher... que morreu.

- Há quanto tempo morreu a primeira mulher de Bain?

- Não o sei, com exactidão. Ele está casado com Elizabeth há pouco mais de dois anos e manteve-se viúvo durante cerca de três. Portanto, Imogene já deve estar com ele há mais de cinco ou seis anos. Porquê?

- Porque me espanta o facto de Bain, convivendo com a mesma governanta há mais de cinco anos, ter escolhido uma pessoa que lhe é totalmente estranha para desempenhar a missão de envenenar-lhe a mulher, a troco de quinhentos dólares.

- Sim. Também me pareceu estranho.

- Será que existe entre Bain e essa governanta alguma relação romântica?

- Céus! Não! Quase não conversam um com o outro. Ela é uma fêmea taciturna, de formas secas, angulares, quase sem seios, de cabelos repuxados para trás.

- Por conseguinte, não há motivo para Mrs. Bain ter ciúmes do marido com essa Imogene?

- De modo algum, Mr. Mason! Ela não tem mais atractivos sexuais do que uma pedra de amolar.

- E pode entrar no quarto de Elizabeth, sempre que quer?

- Certamente. Como lhe disse, até nos substitui, quando, esporadicamente, temos de ausentar-nos do quarto.

- E também lhe ministra alguns medicamentos?

- Ocasionalmente, isso já tem acontecido.

- Nesse caso, por que motivo Bain decidiu aliciá-la a si, Miss Conway, para envenenar a mulher?

- Não faço a mínima ideia. Limitei-me a apontar-Lhe os factos, Mr. Mason.

- É esquisito - comentou o advogado. - Vou telefonar ao sargento Holcomb para auscultar-lhe a reacção. Você vai guardar o sobrescrito com o tubo de comprimidos e eu fico com este outro, para mandar analisá-lo. Mais tarde, contactarei consigo. Posso telefonar-lhe lá para casa?

- Naturalmente.

- Qual é o número do telefone dos Bain?

- West, 6-9841.

- Muito bem. Não fale a Bain acerca do que fizemos com os comprimidos. Vou tratar do assunto com Holcomb. O Departamento de Homicídios pode perfeitamente investigar esse caso.

- Mas ele julga que eu estou doida!

- Na realidade, a sua história parece não ter ponta por onde se lhe pegue!

- Posso telefonar para sii, Mr. Mason, esta noite?

- Não será muito fácil encontrar-me aqui, Miss Conway. Entrevê alguma necessidade de falar-me, esta mesma noite?

- Receio que Natahn me interrogue acerca dos comprimidos, logo que me encontre lá em casa. Se lhe confesso que ainda nada fiz, não suspeitará das minhas intenções?

- Escusa de dizer-lhe que não os ministrou à mulher.

- Mas ele não terá dificuldade em saber que não lhos dei.

- Porquê?

- Porque Elizabeth ainda estará viva.

- Quanto mais penso no caso, mais disparatado me parece. Contudo, você está plenamente convencida das intenções desse homem.

- Não tenho a menor dúvida quanto a elas.

- Okay, Miss Conway. Se quiser contactar comigo, ligue para a "Agência Detectives Drake". Esta agência colabora comigo e está neste mesmo piso do edifício. Aí transmitir-me-ão o seu recado. Sabem sempre onde encontrar-me.

- Obrigada, Mr. Mason.

Della Street escreveu num cartão o número do telefone da agência de detectives e estendeu-o a Nellie Conway.

Esta perguntou:

- Eles atendem chamadas, mesmo a meio da noite?

- Sim - respondeu Della. - Mantêm um serviço de vinte e quatro horas por dia.

Nellie levantou-se da cadeira, olhou para a nota de um dólar e sondou:

- Quer passar-me um recibo?

Mason semicerrou os olhos ao estranhar:

- Receia que eu lhe cobre a consulta duas vezes?

- Não, mas sou muito metódica em tudo quanto faço, particularmente nas minhas contas.

- Muito bem, Miss Conway. Miss Street vai passar-lhe um recibo referente a esta consulta.

- Uma vez mais, obrigada, Mr. Mason. Boa noite a ambos.

Depois de a cliente sair, o advogado olhou para Della Street e, mudamente, pediu-lhe uma opinião.

- Não sei que lhe diga, "Chefe"! Por que razão só lhe cobrou um dólar?

Mason riu.

- Calculei que ela esperasse que eu lhe pedisse vinte ou trinta dólares. Ao levar-lhe só um pelo "frete", procurei descobrir-lhe um sinal de espanto no rosto, mas manteve-se imperturbável. Estou arrependido de não lhe ter falado em cem dólares.

- Porquê?

- Porque ela teria logo desistido de envolver-me neste caso. Não me "cheira" muito agradavelmente.

- Não estou a perceber...

- Suponha, minha amiga, que, na realidade, acontece qualquer coisa de sinistro a Mrs. Elizabeth Bain. Nellie esteve nos "Homicídios" a falar da hipótese de assassínio. Agora, tem um recibo meu em seu poder. A Polícia poderá pensar que se trata de um plano preconcebido por ela, para que eu a defenda do crime que intenta perpetrar. Ligue-me para o sargento Holcomb.

-Mas esse brutamontes detesta-o, "Chefe"!

- Também nunca o tratei cordialmente. Contudo, quero verificar a história que Nellie nos contou, quanto a tê-lo consultado.

- Não prefere falar com o tenente Tragg que é um homem de bom senso? Tragg ouvi-lo-ia com mais atenção e, sobretudo, com mais inteligência...

- Isso é verdade, mas quero lavar as minhas mãos do caso, ouvindo a opinião de Holcomb.

- A esta hora já deve ter largado o serviço nos "Homicídios".

- Ligue para casa dele.

Momentos depois, Mason saudava ao bocal do aparelho:

- Olá, Holcomb! Porventura uma tal Nellie Conway procurou-o esta tarde?

- Essa "chalada"?

- Que pretendia ela?

- É doida! Veio desbobinar uma história em que um tipo queria matar uma tipa, mas não me trouxe qualquer prova convincente.

- Talvez não lhe tenha contado toda a história...

- A que contou sobejou. Estou farto de atender psicóticas. Por aqui, andamos a abarrotar de cartas e telefonemas de loucos no mesmo género. A tipa é uma dessas destravadas que passam a vida a inventar crimes.

- Okay, Holcomb. Miss Conway veio consultar-me e eu achei preferível passar-lhe o caso para as mãos, Holcomb. Com a sua experiência...

- Não há caso algum.

- Mas ela não lhe contou ser enfermeira numa casa em que o marido se prepara para assassinar a mulher?

- Contou, mas não liguei a miníma importância a essa versão desmiolada. Na minha opinião, o que a tipa pretende é desacreditar o patrão, com qualquer finalidade que não nos explica...

- Contudo, essa Conway afima que o homem lhe ofereceu quinhentos dólares para envenenar a mulher com comprimidos...

- É tudo invenção dela. De resto, a doente em questão também é histérica. São as duas "destravadas"!

- Muito bem, Holcomb. Agora, já lhe passei o caso para as mãos.

- 'tá visto, Mason. Se fosse coisa de jeito, você não se incomodava a telefonar-me. Passou-me o caso para as mãos, porque sentiu que ele lhe queimava os dedos, mas pode estar certo de que já atirei essa história para o cesto dos papeis. Passe bem, Advogado!

Desligou e Mason desabafou:

- Raios o partam! O animal acusou-me de ter-lhe telefonado para livrar-me de apuros!

- E não foi isso o que fez, "Chefe"?

- Precisamente, Della, sem tirar nem pôr.

 

Paul Drake, dono e director da "Agência de Detectives Drake" deslocava-se com uma suavidade que a um espectador casual pareceria moleza e tédio. Contudo, o seu físico era capaz de desenvolver uma actividade surpreendente, eficiente e rápida, mesmo nunca aparentando qualquer pressa.

Mal entrou no gabinete particular de Perry Mason, Paul Drake sentou-se no maple superestofado, destinado aos clientes, com o seu jeito habitual e exótico, atravessando-se nele, de lado, com as pernas dobradas pelos joelhos sobre um dos braços do móvel.

- Que se passa, Perry? - perguntou.

- Estou perante um problema... o mais disparatado que encontrei na minha carreira.

- De que se trata?

- Surgiu-me aqui uma cliente com uma história dos diabos e pedi-lhe um dólar pelo meu conselho profissional.

- Que aconteceu?

- Pagou-me o dólar.

- Sempre é melhor um dólar na mão, do que cem por algibeiras alheias. Mas, se foi um sinal pela tua intervenção no caso, estás sempre a tempo de devolver-lho. Qual foi a história dessa cliente?

- Que o patrão tenciona matar a mulher.

- Manda-a expor o caso à Polícia.

- Já o fez e consideraram-na "chanfrada" dos miolos.

- Para sermos práticos, Perry, que queres que eu faça?

Mason estendeu-lhe o sobrescrito que continha o comprimido e indicou:

- Quero que me faças o favor de mandar analisar este medicamento. Vinha num tubo de comprimidos que ela me trouxe aqui. Pode tratar-se de cianeto de potássio. Se o for, transmitirei a descoberta ao sargento Holcomb e vê-lo-ei dar saltos, como um gato em cima de brasas. O pior é que só temos este comprimido para análise. Devolvi os outros à minha cliente para que o patrão não ficasse com a pedra no sapato.

- Como se chama ela?

- Nellie Conway. Um comprimido chega?

- Deve chegar. Tenho um amigo com acesso ao laboratório criminal da Polícia do Estado onde está instalado um desses aparelhos de raios X capaz de obter uma espectrografia da defracção molecular de qualquer substância química.

- E é homem para testemunhar o que descobriu nessa análise?

- Certamente, se lhe pagares bem o trabalho que teve.

- Okay, Paul. Que não perca esse sobrescrito que tem as assinaturas de Nellie e a minha. Não pode haver substituição do comprimido.

- Não corres risco algum, Perry. O meu amigo é um homem competente, com um enorme "calo" profissional. Está farto de trabalhar para o Departamento de Homicídios e de ir a tribunal testemunhar em vários casos. Todos têm a mais completa confiança nele.

- Muito bem, Paul. Põe-te a andar, sem demora. Quanto tempo precisa o teu amigo para ultimar a análise?

- Talvez dentro de uma hora já possa dar-te uma informação.

- Okay, Paul. Agora, eu e Della vamos trincar qualquer coisa.

- Decerto estás a pensar num jantar opíparo, enquanto eu terei de contentar-me com um hamburger rançoso... como de costume.

Depois de Paul Drake sair, Mason virou-se para Della Street e suspirou:

- Mais um dia!

- E apenas mais um dólar!

 

Hora e meia depois, já de volta ao edifício dos escritórios, Mason e Della Street entraram no escritório da agência de Drake.

- Já tens alguma coisa para mim, Paul? - perguntou o advogado.

- Ainda não, mas não deve tardar.

- O teu homem terá utilizado todo o comprimido?

- Não, Perry. Provavelmente, só metade.

O telefone tocou e, tapando o bocal, o detective disse para Mason:

- É a tua cliente. Parece muito excitada. Estendeu-lhe o auscultador e Mason saudou:

- Olá, Miss Conway. Acabei agora mesmo de chegar. Que se passa?

- Uma coisa terrível, Mr. Mason. Preciso de vê-lo imediatamente.

- Onde? No meu escritório?

- Não. É-me impossível sair daqui. Por favor venha a esta casa. Monte Carlo Drive, número 1925. Não posso dizer-lhe mais nada.

Desligou abruptamente e Mason comentou:

- Receio que Mrs. Bain já esteja morta a esta hora. E o pior é que pressinto ter-me metido numa terrível "alhada". Se a minha cliente tivesse querido matar a patroa, podia ter-se servido deste expediente. Depois de falar com Holcomb e comigo, já poderia atribuir o crime ao patrão, de maneira a ficar fora de suspeitas.

"Provavelmente, os comprimidos eram de cianato ou de arsénico... Forjou um perfeito álibi e "armou-me" em palhaço! É melhor irmos os três ver o que aconteceu naquela casa."

Quando chegaram à moradia dos Bain, Mason decidiu:

- Você, Della, mantém-se aí ao volante, com o motor a trabalhar, para o caso de termos de partir imediatamente e seguir um fugitivo.

- Como nos filmes de polícias e ladrões?

- Precisamente, Della. Creio que não a faremos esperar muito tempo.

Perry Mason, com Paul Drake à ilharga, tocou à porta que lhe foi aberta por um indivíduo baixo- e roliço que parecia ter estado atrás dela, pronto a recebê-los, mal chegassem.

- Venham por aqui, meus senhores - convidou o sujeito que se movia rapidamente, exteriorizando uma enorme energia.

Mason notou que Drake torcera o nariz depreciativamente, mas a casa estava ricamente mobilada. A sala era ampla e, a um canto, achava-se sentada Nellie Conway, como sempre inexpressiva. Um homem alto, mas gordo, de estômago dilatado, encontrava-se de pé, não muito longe dela. A seu lado via-se uma mulher de rosto duro e idade imprecisa.

- Mr. Mason -apresentou Nellie,- este é o meu patrão, Mr. Bain.

- E eu sou Jim Hallock- apresentou-se o homem baixo. - Como está, Mr. Mason... e como vai você, Drake?

- Olá! - retribuiu Paul Drake, sem cordialidade, como se a presença de Hallock o desgostasse.

Este explicou a Bain:

- Mr. Perry Mason é o mais célebre advogado criminalogista da nossa praça, como deve saber, Mr. Bain.

- Bem sei - replicou o dono da casa. - Que raio veio cá fazer? Já chamei a Polícia.

- Miss Conway telefonou-me...-justificou Mason.

- Nellie? - estranhou Bain, encarando-a.

- Sim. Chamei Mr. Mason, há momentos.

- Mas... para quê?... E esse Drake quem é?

- É um meu colega de profissão-elucidou Hallock. - Dirige uma agência de detectives.

- Não estou a perceber! - espantou-se Bain.- Você, Mr. Mason, representa Nellie Conway?

- Para ser preciso, ainda não. Mas posso vir a representá-la.

- Ora essa! - protestou Nellie. - Tenho em meu poder o recibo que o senhor me passou, referente a um sinal...

- Esse recibo de um dólar-especificou Mason - diz respeito a uma consulta profissional. Não implica a obrigatoriedade de eu vir defendê-la num caso de crime. Vim cá apenas com o objectivo de saber o que sucedeu.

Hallock observou a Bain:

- Se quiser, escusa de falar acerca seja do que for. A Polícia está a chegar e vai encarregar-se do caso, oficialmente.

- Nada tenho a esconder - retorquiu Bain. - A minha mulher encontra-se doente e Nellie foi contratada como enfermeira de serviço nocturno. Não é uma profissional especializada, mas unicamente uma prática com curso de enfermagem. Porém, para o tratamento que a doença da minha mulher exige, serve perfeitamente.

- A sua mulher não piorou? - interessou-se o advogado.

- Não, Mr. Mason. O caso é outro. Ultimamente, tenho verificado o desaparecimento de algumas jóias e contratei Mr. Hallock para investigar a origem desses furtos.

"Bem... logo de princípio suspeitei de Nellie. Contudo, quis obter provas quanto à identidade do responsável pelo desaparecimento das jóias."

- Isso é infame - proferiu Nellie, sem a mínima excitação.

Bain não lhe ligou importância e continuou:

- Hallock apresentou uma solução prática. Aconselhou-me a substituir as jóias verdadeiras por meras imitações. Depois, veio cá a casa e polvilhou o guarda-jóias com um produto fluorescente, de maneira que, se alguém tocasse na caixa, ficaria com algum daquele pó aderente aos dedos. Em seguida, em vez de tornarmos a guardar a caixa na gaveta da cómoda da sala, deixámo-la sobre esta, como se nos tivéssemos esquecido de arrumá-la no seu lugar.

"Fizemos um inventário completo de todas as jóias e Hallock esboçou um desenho de cada uma delas, para uma possível identificação ulterior. Embora todas as peças actuais sejam falsas, a caixa que as contém é tão valiosa que um ladrão improvisado tomá-las-ia por genuínas.

"Esta tarde, Hallock e eu tornámos a inventariar o conteúdo do guarda-jóias. Não faltava nenhuma. E o mesmo sucedeu, esta noite, quando a enfermeira diurna saiu de serviço. Todas as peças estavam no seu lugar.

"Há coisa de meia hora, quando Nellie desceu para preparar o leite para a minha mulher, demorou-se um bom pedaço, mas não a interrompemos, para darmos-Lhe uma maior oportunidade. Mal ela subiu, Hallock e eu tornámos a inventariar o guarda-jóias e verificámos faltar um diamante suspenso de um fio.

"Então, chamámos Nellie e, quando ela entrou na sala, acendemos as luzes de raios ultravioletas que já tínhamos, previamente, mandado instalar. Pois bem, o resultado foi exactamente o que esperávamos."

- Não sei como essa porcaria se me agarrou aos dedos - murmurou Nellie.

- Você tinha pó fluorescente na polpa dos dedos? - inquiriu Mason.

- Veja o senhor mesmo, com os seus próprios olhos - convidou Bain, num gesto teatral, apagando as luzes e acendendo outras, ultravioletas. - Estenda as suas mãos, Nellie.

Esta obedeceu e os seus dedos ficaram peculiarmente brilhantes.

- Aí tem! - regozijou-se Bain.

- Foi uma armadilha, Mr. Mason - protestou Nellie. - Nathan Bain quer prejudicar-me e foi por isso que eu lhe pedi que viesse a esta casa.

Hallock interveio para advertir:

- Atenção, Mr. Bain. Drake é um detective e Mr. Mason representa Miss Conway...

- Isso que tem? Já possuímos provas suficientes de que esta mulher é uma ladra. É quanto nos basta.

- Bem, Mr. Bain-prosseguiu Hallock, - é preferível esperarmos pela Polícia, antes de fazermos uma acusação formal.

- Seja como for - declarou Bain, - armámos uma ratoeira e Nellie caiu nela. Não há advogado nem detective algum que possam salvá-la, depois da prova que obtivemos.

Tocaram à campainha e, segundos depois, entraram dois agentes da Polícia.

Mason disse para Neilie:

- Pelo sim, pelo não, a partir de agora, não torne a abrir a boca. O pó fluorescente é um ingrediente muito útil mas, no presente caso, nada prova. A acusação que acabam de fazer-lhe não se aguenta de pé.

- Que conversa é essa? - interveio um dos agentes. - Basta de falatório. Quem diabo é você?

- Sou um advogado, no direito de avisar uma cliente.

- Não fui eu quem o chamou e não o quero aqui - declarou Bain.

- Está a ouvir? - retrucou o agente. - Ponha-se na rua. E este, quem é? - inquiriu, apontando para Drake.

- Um detective particular.

- Veio com o advogado?

- Sim.

- Nesse caso, ponham-se ambos a "milhas". Por que nos chamaram? - indagou, dirigindo-se a Bain.

- Porque roubaram um fio com um diamante, no valor de cinco mil dólares, que pertence a minha mulher.

- Tratava-se de uma imitação - cortou Mason.- Quanto é que essa jóia falsa pode valer?

- Rua! - gritou o agente, apontando a porta a Mason e a Drake. - O assunto agora é comigo.

Antes de sair, o advogado tornou a aconselhar a Nellie:

- Não diga uma palavra. Não responda a pergunta alguma. É capaz de fazer isso?

- Pode estar descansado, Mr. Mason.

 

- Que sucedeu? - interessou-se Della Street quando os dois amigos regressaram ao carro. - O homem assassinou a mulher?

- Não houve qualquer assassínio. Unicamente um detective esperto serviu-se de pó fluorescente para implicar Nellie Conway num roubo de uma jóia... falsa.

- E nós, agora, que fazemos?

- Esperamos que o carro da Polícia parta daqui com Nellie e vamos atrás dele.

- Para quê?

- Quero saber para onde a levam. Se a meterem na prisão, tiro-a logo de lá, com um habeas corpus.

- E que mais?

- Paul Drake vai telefonar ao seu amigo químico. Temos de saber que espécie de veneno continha o comprimido que lhe demos para analisar. A partir daí, as coisas mudam de figura.

- Vai comunicar com a Polícia? Sorrindo, Mason respondeu:

- Não, minha amiga. Apenas represento Nellie Cooway num caso de furto de uma jóia falsa pretensamente furtada. Isso dar-me-á oportunidade de contra-interrogar Bain no tribunal... e ver o que posso sacar dele. Tenho de conhecê-lo melhor. Se Nellie não abrir a boca, a sua situação altera-se, num abrir e fechar de olhos.

Drake observou:

- Escusamos de estar aqui, à espera de que o carro-patrulha parta. Posso telefonar para o meu informador, na Polícia, e perguntar-lhe como correm as coisas.

- É melhor vermos para onde a levam. Podem não a conduzir directamente para a esquadra, a fim de a interrogarem noutro local qualquer. Já não é a primeira vez que usam esse expediente. Para arranjar-lhe um habeas corpus tenho de saber, com exactidão, para onde a transportaram.

- Mas só usam esse estratagema, em casos de homicídio.

- Sim... mas não sabemos se este não será um caso de homicídio. Mãos firmes nesse volante, Della. Pode ser que os "chuis" se lembrem de pisar o acelerador e não quero perdê-los de vista.

- Mesmo com a sereia a tocar?

- Podem tocar o que quiserem. Uma orquestra não me impedirá de segui-los.

- E isso é legal?

- Nenhuma lei me impede de seguir outra viatura.

- E o excesso de velocidade?

- Iremos à mesma velocidade que eles... mas não creio que se larguem numa corrida. Preferirão conduzir Nellie, brandamente, para induzi-la a falar, de boa vontade.

- Aqui vêm eles - alertou Drake.

- Siga em frente, Della. Deixe-os ultrapassar o nosso carro e, em seguida, mantenha-se a uma distância que não lhes permita fugirem-nos da vista.

Porém, antes que Della Street arrancasse, um dos agentes acercou-se do carro de Mason e ordenou:

- Ponha-se a andar! Mr. Baim vai retirar o carro da garagem, para vir atrás de nós, a fim de assinar uma queixa. Ele não quer ter mais conversas consigo, Mason. Portanto, toca a andar para diante.

O advogado olhou para o passeio e observou:

- Não estou a ver a boca.

- Que boca?-admirou-se o agente.

- De incêndio. Como não estou estacionado diante de uma boca de incêndio nem em qualquer contravenção, não percebo em que infracção legal se baseia para mandar-me sair daqui. Certamente que Mr. Bain não se atreveu a subornar um agente da Polícia. Portanto, a sua atitude deve ter uma explicação suficientemente clara, para que não possa ser considerada prepotência policial. Gostava de transmiti-la ao tenente Tragg para que ele o elogie na ordem de serviço de amanhã.

- Espertalhão, bem, Mason? Fique sabendo que o sargento Holcomb já esperava que viéssemos encontrá-lo por estas paragens e falou-nos das suas costumeiras habilidades.

Entretanto, Bain já colocara o seu automóvel atrás do carro-patrulha. Os "chuis" romperam a marcha e as três viaturas seguiram em coluna, com a de Mason muito atrasada, como se o advogado estivesse desinteressado neles, mas apenas seguisse o mesmo rumo, com destino à cidade.

Quarenta minutos mais tarde, Nellie Conway saía da prisão, depois de Perry Mason ter pago dois mil dólares de caução.

Em seguida, subiu as escadas dos "Homicídios" e foi encontrar-se com o sargento Holcomb.

O facto de este já ter previsto a presença de Mason em casa de Bain, significava que sabia de muito mais coisas acerca do que se passava no ambiente em que Nellie Conway evoluía. Ao entrar no gabimete do sargento, o advogado observou:

- Penso que você, Holcomb, tratou a questão Conway, bastante "por cima da rama".

- Já esperava que viesse dizer-me isso. De resto, Mason, você passa a vida a criticar-me pelo mesmo motivo... e nunca tem razão. Se, às vezes, as circunstâncias se alteram, a culpa não é minha. Fique sabendo que fui eu quem aconselhou Bain a contratar Hallock... e que fui eu quem sugeriu a este que utilizasse pó fluorescente. Evidentemente, essa Conway ficou com as mãos brilhantes, pois caiu na armadilha... e você também, logo atrás dela. Pensou tratar-se de um caso de homicídio em embrião, quando, desde o início, se estava perante o expediente de uma ladra, para desviar as atenções do roubo que já arquitectara. Simples como água!

E Holcomb soltou uma gargalhada, acrescentando:

- Para um tipo que tem fama de advogado esperto, até custa a crer que se tenha deixado cair numa esparrela tão elementar.

- A menos que estejamos em presença de um caso inverso.

- Que quer dizer com isso?

- Que Bain, ao verificar que Miss Conway não alinhava no envenenamento da mulher, decidiu desacreditá-la.

- Nah, Mason. Para mim, isso não faz sentido. Seria Bain tão estúpido que confiasse um veneno a uma enfermeira, para que esta o livrasse da mulher, e logo a seguir, mandasse prender a sua própria cúmplice por roubo? Essa não lembra o Diabo!

E Holcomb soltou outra gargalhada, aconselhando:

- Não deixe essa garota hipnotizá-lo, Mason! Se vai representá-la no tribunal, veja onde põe os pés e não meta um "na poça". Ela é capaz de convencê-lo de que o terreno está firme... e é um abismo.

- Obrigado, Holcomb - resmungou Mason ao sair do gabinete.

No corredor, ainda ouviu o sargento gargalhar, trocista.

Mason foi reunir-se a Della Street e dirigiram-se para o escritório de Drake. Este já tomara um táxi e estava à espera deles, no seu gabinete.

- Aqui tens o que querias - disse ao advogado, estendendo-lhe uma nota do perito que analisara o comprimido.

"Caro Paul.

"O gráfico é muito explícito. Trata-se de ácido acetilsalicílico. Devolvo o comprimido que apenas furei no centro para obter um pouco de pó."

- Ácido acetilsalícílico!- repetiu Della Street. - Que diabo é isso?

- Exactamente o que Holcomb previu. É o nome de um ingrediente com que os farmacêuticos fabricavam remédios do tipo aspirina. Modernamente, já lhe acrescentam outros ingredientes, como, por exemplo, cafeína.

- Acabou-se, Mason - considerou Drake. - Já podes encerrar o caso Conway. Não vale a pena perderes tempo com...

- Pelo contrário, Paul. Tenho de defendê-la. Para já, quero que mandes entregar uma contrafé à governanta daquela casa. Chama-se Imogene Ricker. Quero interrogá-la em tribunal. Isso dará uma boa dor de cabeça a Nathan Bain.

- Se eu fosse a ti, Perry, tomava já o que resta do comprimido, para prevenir a dor de cabeça que tu próprio irás sentir.

 

Harry Saybrook, adjunto do procurador do Distrito, ao dirigir-se aos membros do júri, fizera-o com uma exposição enérgica, quase violenta, apresentando Nellie Conway como sendo uma ladra premeditada. Usou termos incisivos, desagradáveis, espetando o queixo para diante e bracejando teatralmente.

Pelo contrário, Mason mostrava-se calmo, sorrindo para o júri, como se este devesse desculpar a desnecessária excitação do seu opositor.

O juiz Peabody, observando Mason, parecia estranhar a tranquilidade do representante da Defesa, enquanto o detective James Hallock testemunhava, declarando ter sido contratado por Nathan Bain para investigar uma série de furtos que haviam ocorrido em casa do último. Explicou ter espalhado, na superfície de um guarda-jóias, um pó de uma cor neutra que, submetido a raios ultravioletas, apresentava um brilho azul esverdeado. Acrescentou que se mantivera na casa de Bain e que, com este, inventariara, várias vezes, o conteúdo da referida caixa, tendo, da última vez, verificado que faltava uma jóia. Entrou em pormenores de todas as acções que ele e Bain tinham levado a cabo e explicou que se apresentara no local, como sendo um vendedor de propriedades. Dessa maneira, não levantara suspeitas à ré. Esta, sendo chamada à sala onde se achava o guarda-jóias, apresentara as mãos fluorescentes, à luz ultravioleta que fora instalada nesse local.

- Como vêem-sublinhou Saybrook, - foi muito simples.

Dava assim a entender ao júri que o caso estava praticamente encerrado e que nada mais havia a dizer. Virando- se para Mason, convidou, num tom quase sarcástico:

- A Defesa pode contra-interrogar. Mason mostrou-se surpreendido e declarou:

- Para quê? Nada tenho a perguntar à testemunha.

- O quê? - espantou-se o adjunto do procurador do Distrito.

- Não vejo por que motivo a Acusação se admira da minha abstenção de contra-interrogatório. O testemunho de Mr. Hallock foi muito claro e preciso. Aceito-o como tal.

- Nesse caso, chamo a depor Mr. Nathan Bain - disse Saybrook, visivelmente desnorteado.

Bain, depois de ajuramentado, desbobinou a sua história. Tinha a mulher doente e contratara duas enfermeiras para cuidarem dela. A do serviço nocturno era a ré, Nellie Conway. Desconfiado de que esta lhe roubava jóias, preparou-lhe uma armadilha. Com a colaboração de Hallock, polvilhara, exteriormente, o guarda-jóias com uma substância fluorescente e deixara aquele fora da gaveta onde habitualmente se encontrava guardado, como se tratasse de um acto de negligência. A enfermeira caíra na armadilha, furtara um fio que tinha um diamante suspenso e ficara com os dedos luminosos sob a acção da luz ultravioleta.

O seu testemunho era quase idêntico ao de Hallock. Quando terminou, Mason foi surpreendido a bocejar.

- Deseja contra-interrogar esta testemunha? - perguntou Saybrook.

Mason levou tanto tempo a responder que Bain começou a erguer-se da cadeira.

- Um momento, Mr. Bain-interrompeu-o o advogado. - Tenho uma ou duas perguntas a fazer-lhe.

- Sim, sir.

- Quando foi esse pó fluorescente colocado no lado exterior do guarda-jóias?

- No dia dez, quando verificámos o furto.

- A que horas?

- Por volta das nove da manhã.

- Quando a enfermeira diurna ainda se achava de serviço?

- Sim, sir.

- Quem polvilhou a caixa?

- Mr. Hallock, na minha presença.

- E as jóias já estavam no interior da caixa?

- Sim, sir, depois de devidamente inventariadas.

- De que tipo é esse guarda-jóias? Pode descrevê-lo?

- Certamente. É um estojo de vinte centímetros por doze, feito de cabedal e coberto por escamas de prata. Tem uma fechadura e pegas de ambos os lados.

- É propriedade de sua mulher?

- Sim. Ofereci-lho no Natal passado.

- Quando fez o inventário do seu conteúdo, na presença de Mr. Hallock, continha jóias verdadeiras ou simples imitações?

- Por precaução, já tinha previamente substituído as jóias verdadeiras por falsas.

- E fez o inventário dessas jóias falsas, depois de o estojo estar polvilhado com o produto fluorescente?

- Sim, sir. Fizemo-lo várias vezes.

- Quantas?

- Duas.

- Quando?

- Logo após a ré ter entrado de serviço. Não faltava jóia alguma. Duas horas mais tarde, depois de termos deixado o guarda-jóias sobre a cómoda, fizemos um terceiro inventário e verificámos que faltava o fio com o diamante.

- A caixa ficara aberta?

- Não. Deixámo-la fechada à chave.

- Como explica que a ré tenha podido abrir o guarda-jóias, se este se encontrava fechado à chave?

- Certamente que obtivera uma chave falsa. Devia ter feito um duplicado da verdadeira.

- E Mr. Hallock não possuía uma chave?

- Não, sir. Só eu a tinha.

- Mas Mrs. Bain também possui uma, não é verdade?

- Sim, mas ela não pode sair do leito que se encontra no piso superior.

- Estou a ver. Como sucede ter o senhor uma outra chave do guarda-jóias de sua mulher?

- Por uma questão de precaução, para o caso de minha mulher perder a dela. Quando lhe ofereci o estojo, entreguei-lhe uma chave e guardei a outra num lugar seguro.

Olhando de relance para as mulheres que faziam parte do júri, Mason indagou:

- Tomou essa precaução contra a negligência de sua mulher? Ela costuma perder chaves?

- Chaves não digo que já tenha perdido, mas as mulheres estão sempre a perder coisas. Pensei que ela poderia esquecer-se do lugar onde a guardara.

- Quer dizer que, na sua opinião, as mulheres têm tendência a perder objectos de responsabilidade?

- Um momento-interveio Saybrook.:-A testemunha não disse isso.

- Mas deu-o a entender, por outras palavras.

- Objecção - interpôs Saybrook. - Não é contra-interrogatório correcto. A Defesa está a distorcer as declarações da testemunha, dando uma interpretação errónea às palavras aqui proferidas. Mr. Bain limitou-se a admitir uma hipótese particular, circunscrita a um possível esquecimento da esposa, e não a generalizou.

- Estou pronto a pedir desculpa à testemunha - declarou Mason, complacentemente.- Contudo, desejo verificar em que ponto fui levado a distorcer essas declarações. Peço ao Tribunal que mande o escrivão ler o que aqui foi proferido.

Após o consentimento do juiz, o escrivão leu:

"Pergunta: Como sucede ter o senhor uma outra chave do guarda-jóias de sua mulher?

"Resposta: Por uma questão de precaução, para o caso de minha mulher perder a dela. Quando lhe ofereci o estojo, entreguei-lhe uma chave e guardei a outra num lugar seguro.

"Pergunta: Tomou essa precaução contra a negligência de sua mulher? Ela costuma perder chaves?

"Resposta: Chaves não digo que tenha perdido, mas as mulheres estão sempre a perder coisas. Pensei que ela poderia esquecer-se do lugar onde a guardara.

"Pergunta: Quer dizer que, na sua opinião, as mulheres têm tendência a perder objectos de responsabilidade?"

O escrivão calou-se e Mason tornou a olhar para as mulheres presentes no júri.

- Lamento - disse para Saybrook, - mas não houve de minha parte distorção alguma das declarações da testemunha, feitas sob juramento.

- Bem... - justificou-se Bain. - Não queria dizer isso, mas saiu-me da boca.

- Costuma dizer muita coisa que não é verdade, Mr. Bain?

- Não se tratou de uma mentira. Apenas falei sem pensar no que dizia.

- Isso acontece-lhe muitas vezes?

- Não. De resto, só quis dizer que a minha mulher tem o costume de perder objectos.

- E generalizou esse caso particular, abrangendo todas as mulheres. Porquê, Mr. Bain?

- Senhor Doutor Juiz! - interrompeu Saybrook, exasperado. - Estamos a perder tempo com uma questão de lana caprina com que a Defesa apenas tenta impressionar, ad náusea, os elementos femininos do júri contra a testemunha.

- Nada disso - contrapôs Mason. - A defesa procura descobrir até que ponto as declarações da testemunha são incorrectas.

- Mr. Bain nada declarou de incorrecto - replicou Saybrook.

- Ah! Quer dizer com isso que ele considera todas as mulheres negligentes?

- Não era intenção de Mr. Bain dizer uma coisa dessas.

- Mas foi o que se ouviu, nesta sala, e já por duas vezes. Quero distinguir aquilo que a testemunha diz, conscientemente, e aquilo que apenas diz sem pensar, embora esteja sob juramento. De outra maneira, poderá mentir e, seguidamente, desculpar-se com ter sido uma frase que "lhe saiu da boca". Ora, num julgamento, isto é inadmissível.

Após uma ligeira pausa, Mason prosseguiu:

- Quero que fique bem explícito, perante o júri, de que o senhor, Mr. Bain, abriu o guarda-jóias, antes de a ré descer à sala. Declarou que tinha um duplicado da chave desse estojo, não é verdade?

- Sim.

- Porventura o senhor disse a sua mulher que ficara com esse duplicado?

- Objecção - gritou Saybrook. - A pergunta é incompetente, irrelevante e imaterial, imprópria de um contra-interrogatório.

- Objecção mantida-determinou o juiz.

- Bem, farei a pergunta noutros termos: o senhor guardou para si uma chave do guarda-jóias, mas, cuidadosamente, escondeu essa informação a sua mulher? Lembro-o de que está sob juramento e que é fácil obter-se uma confirmação ou negação. Responda sim ou não.

Bain hesitou.

- Sim ou não? - insistiu Mason.

- Não se tratou de esconder cuidadosamente a informação. Efectivamente, esqueci-me de dizer-lho. Não era necessário. Fiquei com a chave, por mera precaução. ..

- Bem sei, porque, na sua opinião, as mulheres são seres negligentes. Tem a certeza, Mr. Bain, de que sua mulher já perdera outras chaves?

- Não sei se perdeu... Não me lembro.

Piscando o olho a uma das mulheres do júri que se mostrava muito atenta ao debate, Mason continuou:

- Portanto, Mr. Bain, o senhor abriu o estojo e esteve a inventariar, por duas vezes, as jóias que ele continha. Da segunda vez que operou esse inventário, Mr. Hallock estava junto de si?

- Esteve sempre junto de mim.

- Tinha uma lista que referenciava as jóias?

- Sim.

- Enquanto o senhor as manipulava, ele ia verificando essa lista?

- Sim.

- Por conseguinte, enquanto examinava a lista não podia estar, simultaneamente, a olhar para os seus dedos, não é verdade, Mr. Bain?

- Objecção - cortou Saybrook, exaltado. - A Defesa está a querer insinuar que a testemunha teria furtado uma das jóias, mesmo" na presença de Mr. Hallock. Isto é. inadmissível!

- Não insinuei tal coisa - replicou Mason, sorrindo.- Apenas apontei ter havido uma oportunidade para a testemunha tê-lo feito. Quando do último inventário, depois de a ré ter estado na sala, o senhor, Mr. Bain, chamou a atenção de Mr. Hallock para a falta de uma jóia?

- Sim. Ele verificou essa falta comigo.

- Olhando para a lista?

- Sim.

- E Mr. Hallock nunca tocou no estojo?

- Nunca disse tal coisa. É natural que lhe tenha tocado.

- Depois de o guarda-jóias estar polvilhado com o produto fluorescente?

- É natural. Não havia motivo para que não lhe tocasse. Estava a colaborar comigo.

- Isso significa que, além da ré, outras duas pessoas teriam ficado com pó fluorescente aderente aos dedos, não será assim?

- Certamente, mas nós ambos estávamos a tentar identificar o ladrão.

- Era essa a vossa intenção, segundo o senhor diz. Mas como pode ter a certeza de que Mr. Hallock não tinha uma chave falsa?

- Não podia tê-la. Só havia duas. A minha mulher possuía uma e eu tinha a outra em meu poder.

- Nesse caso, como poderia ter a ré aberto o estojo?

- Com uma chave falsa.

- Isso coloca-a na mesma posição de Mr. Hallock e de qualquer outra pessoa com acesso à casa.

- Mas ela tinha os dedos fluorescentes - ripostou Bain, triunfante.

- Bastava-lhe ter tocado no guarda-jóias, por um mero impulso de curiosidade, visto que se trata de um objecto artístico que se achava, propositadamente, sobre a cómoda da sala. É um gesto instintivo e... neste caso, posso dizê-lo... deveras feminino, visto que as mulheres são muito sensíveis à beleza dos objectos.

- Mas Nellie Conway não tinha nada que mexer no estojo. O seu serviço não era esse.

- Mas, se o fez, é natural que tivesse ficado com os dedos fluorescentes. A jóia que falta foi encontrada em seu poder?

- Não.

- E a chave falsa?

- Também não.

- A Polícia foi negligente ao ponto de não terem revistado a acusada?

- A Polícia revistou-a na esquadra. Nellie podia ter escondido a jóia e a chave, em qualquer lado.

- A Polícia efectuou uma busca à casa.

- Bem, não sei... Creio que não.

- Nesse caso, também não revistou Mr. Hallock? Nem o revistou a si, Mr. Bain?

- Para quê? Eu sou o queixoso e Hallock é um detective que está ao meu serviço. Não havia motivo para sermos revistados.

- Isto é o que o senhor pensa... agora... e talvez já o tivesse pensado antes.

- Senhor Doutor Juiz - indignou-se Saybrook.- Lá volta o advogado da Defesa a insinuar...

- ... coisa alguma - cortou Mason. - Limito-me a evidenciar factos. Naturalmente, a testemunha já pensara que a Polícia só desconfiaria da ré. Para isso lhe preparara a armadilha, deixando o guarda-jóias bem à vista, num lugar em que o objecto artístico lhe despertaria a curiosidade, a ponto de ela poder tocar-lhe, inadvertidamente.

"Agora, esclareçamos ou outro ponto. Quando a ré foi presa, o senhor acompanhou os agentes da Polícia à esquadra, para apresentar uma queixa por furto?"

- Sim.

- E a enfermeira diurna já se ausentara?

- Sim.

- Isso quer dizer que a sua mulher ficou sozinha em casa, sem ninguém que olhasse por ela?

- Não ficou sozinha. Estava lá a governanta.

- Ah! E essa governanta pode substituir qualquer das enfermeiras?

- Certamente. Já o tem feito, quando tal se torna necessário.

- Entra no quarto da sua mulher?

- Está visto, sempre que é preciso.

- Como se chama essa governanta?

- Mrs. Imogene Ricker.

- E o senhor explicou a Mrs. Ricker por que motivo se tornara necessário substituir a enfermeira nocturna?

- Sim.

- Disse-lhe por que motivo Miss Conway fora presa?

- Sim... e ela ficou satisfeita por termos apanhado a ladra.

- Mrs. Ricker estava a par da armadilha?

- Tive de explicar-lhe o que se passava, porque, ao ver o guarda-jóias fora da gaveta, tentara guardá-lo no seu lugar.

- Por que motivo não o guardou?

- Porque a gaveta estava fechada à chave, como de costume.

- Nesse caso, Mrs. Ricker também ficou com os dedos fluorescentes, não é verdade?

- Objecção - interveio Saybrook, num salto. - A pergunta é argumentativa e requer uma conclusão da testemunha, visto que tal não foi verificado.

- Objecção mantida - decidiu o juiz.

- Foi o senhor, Mr. Bain - prosseguiu Mason,- quem contratou Mr. Hallock para coadjuvá-lo na armadilha?

- Sim.

- Portanto, estava a pagar-lhe esse serviço?

- Naturalmente.

- Estava a pagar-lhe à hora ou ao dia?

- Bem, ofereci-lhe uma recompensa, caso descobríssemos o ladrão.

- Uma recompensa? De quanto?

- De cem dólares.

- Cem dólares? Mas essa importância não será exagerada, se tomarmos em consideração o pequeno valor de uma jóia falsa?

- A recompensa não se referia à jóia, mas à prisão de Miss Conway.

- Ah! Nesse caso, o que o senhor pretendia era a prisão de Miss Conway!

- A prisão da ladra - corrigiu Bain.

- Estou a ver. E já pagou essa recompensa a Mr. Hallock?

- Ainda não. O nosso contrato tem por finalidade a prisão definitiva da ré, depois de condenada.

- Quer isso significar que, se Miss Conway não for condenada, Mr. Hallock não receberá um chavo?

- O nosso contrato foi efectuado nesses termos - respondeu Bain, secamente.

- Obrigado, Mr. Bain. Não tenho mais perguntas a fazer-lhe.

Com evidente alívio, Saybrook levantou-se e declarou:

- A Acusação dá o seu caso por encerrado e espera que o júri considere a ré culpada de furto premeditado.

- Um momento - interveio Mason. - A Defesa ainda não terminou o seu caso. Foi entregue uma contrafé a Mrs. Imogene Ricker, para ser ouvida como testemunha. Contudo, como ainda não chegou, sugiro que o Tribunal faça um breve intervalo de... dez minutos... pois já não deve tardar.

- Muito bem- concedeu o juiz Peabody. - Faça-se um intervalo de dez minutos.

Quando a audiência foi reaberta, Imogene Ricker já se encontrava na sala do tribunal.

Tendo sido chamada por Mason, manteve-se de pé, com um ar desafiador e declarou secamente:

- Recuso-me a falar com esse advogado. Vim aqui, porque me impingiram uma contrafé. Mas isso não significa que tenha de falar com ele.

- Muito bem - disse Mason.- Entretanto, queira cumprir com as formalidades legais a que não pode furtar-se. Preste juramento e sente-se na cadeira das testemunhas.

- Tenho de fazer isso? - sondou a governanta, consultando o juiz.

- Se recebeu uma contrafé - esclareceu Peabody, sorrindo - não terá outro remédio.

Imogene Ricker passou, muito hirta, pela frente de Mason, prestou juramento e sentou-se na cadeira das testemunhas, olhando fixamente em sua frente.

Calmamente, Mason observou:

- Agora que já se encontra ajuramentada, não poderá prestar falsas declarações. É governanta em casa de Mr. Bain?

Voltando-se para o juiz, a mulher inquiriu, furiosa:

- Tenho de responder-lhe?

- Certamente - confirmou Peabody. - Foi para isso que recebeu a contrafé.

- E se eu não quiser responder-lhe?

- O Tribunal ver-se-á na lamentável obrigação de mandar prendê-la por desrespeito à Justiça.

- Favas... Perdão. Escapou-me. Nesse caso, perguntem lá.

- É governanta em casa de Mr. Bain? - repetiu Mason.

- Sim.

- Há quantos anos trabalha para ele?

- Há seis.

- Na noite do dia dez examinou as suas mãos à luz ultravioleta e viu os dedos ficarem fluorescentes?

- Não tem nada com isso.

- Mas, se os seus dedos não tivessem ficado fluorescentes, a senhora não se importaria de responder à pergunta, pois não? Tê-lo-ia negado imediatamente.

- Também não lhe respondo a isso.

- Mr. Bain declarou que a senhora, Mrs. Ricker, tentou guardar o guarda-jóias na gaveta e que não conseguiu fazê-lo por esta estar sempre fechada à chave. Mr. Bain mentiu?

- Mr. Bain nunca mente.

- Nesse caso, se a gaveta está sempre fechada à chave e se Mr. Bain nunca mente, a ré, para efectuar os furtos anteriores de que Mr. Bain se queixou, teria de possuir não só a chave do guarda-jóias, mas também uma chave da gaveta da cómoda da sala. De outra maneira não lhe seria possível o acesso às jóias. Por outro lado, Mr. Bain também tem uma chave dessa gaveta. Sabe se o seu patrão tem essa chave?

- Não é da sua conta.

- É tudo - concluiu Mason.

- A Defesa tem mais alguma testemunha para ser ouvida? - inquiriu Peabody.

- Não senhor Doutor Juiz.

- Nesse caso, pode apresentar a sua argumentação em defesa da ré.

- Não tenho argumentação alguma a fazer, já que não cumpre à Defesa provar a inocência da acusada. Compete, sim, à Acusação provar a sua culpabilidade. Até agora, o que foi exposto indica que Miss Conway, tendo descido à sala e visto um belo objecto de arte, sabendo-o um guarda-jóias ou não, lhe tocou por mera curiosidade, talvez apenas instintivamente. Isso provocou a aderência do pó fluorescente aos seus dedos. É notória a improbabiiidade de a ré ter duas chaves falsas, uma para abrir a gaveta da cómoda e outra para abrir o estojo que contém as jóias... não as verdadeiras, mas as falsas, após a substituição efectuada por Mr. Brain. Ficou provado que Mr. Bain... que tanto se empenhou em mandar prender Miss Conway, chegando a oferecer cem dólares de recompensa pela sua condenação... tem duplicados das referidas chaves e se esqueceu de informar a esposa de que possuía aquela que abre o guarda-jóias. Ficou provado que outras pessoas, além da ré, apresentavam os dedos fluorescentes, por terem tocado no exterior daquela caixa. Por outro lado, nem a jóia-imitação que Mr. Bain diz ter sido furtada, nem as chaves falsas foram encontradas em poder da ré ou em qualquer lugar da casa. A negligência de Mr. Bain, não sugerindo essa busca à Polícia, pode ser muito significativa, se o júri quiser considerá-la. Perante os factos expostos, a Acusação nada provou contra a ré. É tudo, senhor Doutor Juiz.

Ergueu-se um rumor na sala que o juiz Peabody fez calar com uma pancada do maço sobre a secretária. Em seguida, proferiu:

- Minhas senhoras e meus senhores ouviram os debates do Caso do Povo versus Nellie Conway. Agora cumpre ao júri considerar o que aqui foi ouvido e emitir o seu veredicto de culpada ou inocente.

O júri retirou-se e regressou, dez minutos depois, com um veredicto de inocente. Nellie e Mason dirigiram-se para os membros do júri e apertaram-lhes as mãos.

A mulher a quem Mason piscara o olho, durante a audiência, exclamou, indignada:

- Esse Bain! Todos percebemos que é um patife! Pobre mulher, estar agarrada a uma cama, sem saber o que o marido anda a fazer lá por casa, com as chaves dos cofres e gavetas e a substituir jóias que, depois, diz terem sido roubadas! Graças a Deus que adivinho logo o carácter das pessoas. Era minha intenção aconselhar os meus pares do júri a abrirem bem os olhos, quanto ao carácter desse pirata, mas não foi preciso, visto que a decisão foi unânime. Todos perceberam claramente de que espécie é esse Mr. Bain!

Virando-se para Nellie, acrescentou:

- E você, pobre moça, em que mãos foi cair! Que azar o seu em ter ido trabalhar para aquele homem! Eu, se fosse a si, processava-o por calúnia e difamação.

- Obrigada pela sugestão - respondeu Nellie, tranquilamente.- Vou fazer isso mesmo.

 

De volta ao escritório, Mason e Della Street sentaram-se às respectivas secretárias, no gabinete do advogado, mas não chegaram a trocar uma palavra porque, de imediato, o telefone tocou e Della atendeu, logo indagando:

- Quer falar com Nellie, "Chefe"?

- Sim e definitivamente, pois vou dizer-lhe que deixou de ser minha cliente.

Ao pegar no auscultador, ouviu a voz de Nellie, num tom calmo, tão inexpressivo como o seu rosto:

- Venho agradecer-lhe, Mr. Mason, por tudo quanto fez por mim, hoje.

- Não tem que agradecer-me.

- Mas creio que lhe devo mais algum dinheiro além do dólar que me cobrou. O senhor fez despesas...

- Evidentemente que, se os meus honorários pela defesa de uma causa fossem sempre de um dólar, ser-me-ia difícil pagar a renda de casa e a do escritório, os salários dos meus empregados, as deslocações em serviço, a roupa e o que como. Além disso não poderia dispor, do pé para a mão, de dois mil dólares para pagar a caução de uma cliente presa por furto... Tê-la-ia de deixar "engaiolada", a arrefecer, até ao dia da audiência.

- Oh, Mr. Mason! Escusa de ser sarcástico!

- Estou apenas a apontar-lhe alguns factos económicos.

- Pode dizer-me quanto lhe devo? Acha bem mais dez ou quinze dólares?

- Quanto dinheiro tem consigo, Nellie?

- Isso tem alguma coisa a ver com o assunto?

- Pode ter muito.

- Não lhe telefonei para discutir esse ponto, mas para perguntar-lhe quanto fiquei a dever-lhe.

- Só me telefonou por esse motivo?

- Sim.

Mason sentiu uma inesperada curiosidade.

- Mas, Nellie, você nunca me falou numa compensação adicional. Agradeceu-me e apertou-me a mão, considerando um dólar um pagamento justo.

- Não considerei um pagamento justo, Mr. Mason, e compreendi que estava a ser generoso comigo, mas nessa altura, eu não tinha dinheiro...

Nellie Conway calou-se bruscamente e Mason indagou:

- Mr. Bain esteve em contacto consigo?

Após uma hesitação Nellie confirmou:

- Sim.

- E ele ofereceu-lhe uma espécie de indemnização?

- Bem... Mr. Bain e eu temos estado a falar no assunto...

- Quer dizer que ele está consigo, neste momento?

- Sim.

- Onde?

- Em casa dele.

- Que foi aí fazer?

- Bem... Vim buscar as minhas coisas, visto que eu vivia aqui.

- E continua a habitar essa casa?

- Sim, tal como dantes. Eu e a enfermeira diurna compartilhamos um apartamento, por cima da garagem.

- Diabos me levem! - exclamou Mason admirado.

- Porquê? Que mal acha nisso? Mr. Bain tem imenso espaço disponível nesse anexo.

- Mas você, Nellie, não me tinha falado misso!

- O senhor nunca mo perguntou.

- Quem esteve a tratar de Mrs. Bain, durante a sua ausência?

- Contrataram uma outra enfermeira nocturna, mas vai-se agora embora.

- Isso significa que você recupera o seu antigo lugar?

- Sim. Mrs. Bain esteve a falar comigo. Soube de tudo quanto se passou e lamentou a minha ausência, durante estes últimos dias. Achou que o senhor se portou maravilhosamente, da maneira como contra-interrogou o marido. Quer conhecê-lo, Mr. Mason e... bem, eu...

- Quer dizer que, neste preciso momento, não pode falar livremente?

- É isso.

- Bain acercou-se de si, na sala?

- Sim, é isso.

- E vai agora negociar com ele essa espécie die indemnização?

- Sim.

- E pensa voltar a trabalhar para ele?

- Não estou a pensar nisso. Uns parentes de Mrs. Elizabeth Bain chegam esta noite, de Honolulu... Vai ter muita companhia... Acho que poderemos falar nisso, noutra altura. Só lhe telefonei, Mr. Mason, para saber se lhe devo mais qualquer coisa... Isto é, Mr. Bain pretende saber quanto lhe devo, Mr. Mason, pelos seus serviços...

- Se Nathan Bain vai pagar a despesa, você deve-me quinhentos dólares. Está a compreender? Se não tenciona pagá-la, ficamos quites com o dólar que já lhe cobrei. Percebe isso, Nellie?

- Sim.

- E quero dizer que não a represento em qualquer outro caso. Para aquele assunto de que me falou, referente a Mr. Bain, terá de contratar outro advogado.

- Oh! E terei de pagar quanto me pedirem?

- Exactamente. Já lhe dei uma ideia de a quanto montam as despesas de um advogado. Não se vive do ar.

- Bem sei, mas não creio que possa pagar-lhe quinhentos dólares.

- Não será você a pagá-los, mas Mr. Bain.

- Mas, quinhentos dólares, só por meio dia de debates em tribunal? Francamente, Mr. Mason! Nunca ouvi uma coisa dessas!

- É porque, até hoje, teve sempre os ouvidos sintonizados noutra direcção.

- Parece impossível! - protestou Nellie Conway e desligou o telefone.

O advogado esfregou o ouvido com o indicador e comentou para Della Street:

- Aqui está um exemplo de gratidão! Miss Nellie Conway acha que quinze dólares são suficientes para compensar o que fiz por ela. Olhe, Della, fechemos a "loja" e vamos para casa.

 

Quando, na manhã seguinte, Perry Mason entrou no seu gabinete, poucos minutos depois das dez, Della Street proferiu:

- Parabéns, chefe!

- Porquê? É dia de aniversário de qualquer coisa?

- Não se trata diisso, mas do facto de o "Chefe" tê-la falhado por quatro minutos. Portanto, está de parabéns.

- Falhei quem?

- A sua cliente de um dólar.

- Santo Deus! Ela anda a ver se me apanha?

- Depois das nove e meia, já telefonou quatro vezes. Eu disse-lhe que talvez conseguisse encontrá-lo, depois das dez. Ligou para cá, às nove e cinquenta e oito, informando que, depois dessa hora, ser-lhe-ia impossível voltar a telefonar.

- Sabe que diabo ela pretende?

- Arranjar um advogado.

- Para quê?

- Não mo disse.

- Pois que vá bater a outra porta.

- Nellie insiste em que só tem confiança em si... Provavelmente, está disposta a pagar-lhe outro dólar.

- Talvez me ofereça quinze por outro meio dia de debates em tribunal. Tem outras novidades?

- Está uma "brasa" na sala de espera. Tem qualquer coisa que me induz a sugerir-lhe que a receba. Está cá, desde as nove e um quarto, para tratar de um assunto tão confidencial que não pode referi-lo a mais ninguém.

- Uma "brasa", não foi o que disse? Que idade tem ela?

- Vinte e dois, vinte e três, quando muito.

- Aspecto?

- Rosto, corpo, olhos e um ténue perfume de fazer "tarar" os homens. Devia ter visto a reacção de Gertie, na mesa da recepção. Não conseguia tirar os olhos de cima dela.

- Nome?

- Miss Braxton. Quer recebê-la já, ou prefere despachar a correspondência?

- Deixe as cartas para outra ocasião. Vamos ouvir o que essa moça tem a dizer-nos.

Momentos depois, Della Street apresentava Miss Braxton ao advogado que a convidou a sentar-se.

Ao fazê-lo, a jovem cruzou as pernas, sem se preocupar com a saia que lhe trepara até meio das coxas e desfechou:

- É capaz de explicar-me, Mr. Mason, o que se passa com a minha irmã?

O seu olhar exprimia angústia e o advogado sondou:

- Quem é a sua irmã?

- Elizabeth Bain. O marido, Nathan Bain quer envenená-la e vim saber o que já foi feito para impedi-lo disso.

- Um momento, Miss Braxton. Está a pôr várias "carroças à frente dos bois".

- Desculpe, Mr. Mason, mas estou verdadeiramente desesperada.

- Por que veio ter comigo?

- Porque o senhor é a única pessoa capaz de dominar a situação.

- Que situação?

- Essa em que ela se encontra. Casou com um canalha que apenas pretende ficar-lhe com a "massa" e procura matá-la. Nós avisámo-la, mas Elizabeth não fez caso do que lhe dissemos.

- Quem são esses "nós"?

- A família. Eu sou sua meia-irmã e tem ainda outro meio-irmão, James. Éramos os três muito unidos, até que Nathan surgiu na paisagem e estoirou com as nossas relações. Porém, graças a Deus, a situação mudou e estamos novamente juntos, do mesmo lado da barricada.

- Que deseja que eu faça, Miss Braxton?

- Ouvimos a descrição da maneira como o senhor o arrasou no tribunal e, como é natural, demos pulos de satisfação. Aquele patife, pomposo, vaidoso e egoísta ficou reduzido a excremento de rato. Nem calcula como lementamos não ter estado presentes nessa audiência!

- Quem lhe falou no assunto?

- Nellie Conway.

- Falou com ela?

- Sim. Encontrei-a lá em casa.

- Pois estranho muito que essa enfermeira tenha voltado a trabalhar para Bain.

- Não trabalha para ele, mas para a minha irmã. Nathan não ficou encantado com o seu regresso, visto que ela soube meter-lhe a "choupa", a fundo, sacando-Lhe umas boas "massas". Agora Elizabeth quer que o senhor a represente.

- Em que sentido?

- Em vários. Há uma data de coisas a fazer.

- Pode explicar-se mais claramente, Miss Braxton?

- Agora, Elizabeth já vê o marido com as suas verdadeiras cores. Tem a certeza de que ele já tentou matá-la e vai continuar a procurar eliminá-la do mundo dos vivos. Mesmo antes do acidente, já a minha irmã se queixava de permanentes dores do estômago e da cabeça. Pensa que, já então, ele andava a envenená-la, aos poucos e poucos.

- Como ocorreu esse acidente de automóvel? - interessou-se Mason.

- Segundo Nathan, ao rodar por uma descida, faltaram-lhe os travões. Então, gritou a Elizabeth para que saltasse para fora do carro. Mas, do lado dela, a estrada dava para um precipício. A minha irmã teve medo de saltar da viatura em andamento, mas Nathan já abrira a porta do seu lado e abandonara o assento. Rolou no asfalto, mas nada mais lhe aconteceu a não ser umas ligeiras escoriações. Elizabeth, passando-se para o volante, tentou dominar a direcção da marcha, cada vez mais acelerada. Embora aguentasse ao surgir a primeira curva da estrada, o carro já ia tão embalado que não lhe foi possível evitar despenhar-se na imediata. Contudo, em vez de projectar-se no fundo do abismo, o automóvel pairou a meio da encosta, retido por dois troncos de árvore. Não se incendiou, mas a minha irmã ficou inválida para toda a vida, com a espinha fracturada. Nunca mais conseguirá andar... Ainda ninguém lho disse, mas já começa a suspeitar disso.

Os olhos da jovem marejaram-se de lágrimas e Mason sondou:

- Os travões do carro estavam realmente avaliados?

- Eram travões hidráulicos e, inexplicavelmente, o tubo de óleo saltara da junta. Está visto que o próprio Nathan teria podido provocar essa avaria, antes de sair da garagem. A perda de óleo impediria os travões de actuarem. Foi tudo muito bem calculado.

- E a Polícia não investigou essa avaria?

- Não teve oportunidade de fazê-lo. Depois de vir a ambulância, Nathan mandou um carro-reboque levar o automóvel para uma oficina onde foi reparado. O meu cunhado falou com um amigo da Polícia, explicou-lhe o sucedido e não chegou a efectuar-se qualquer investigação. Ele é bem falante e sabe convencer toda a gente.

- Porventura a sua irmã pensa que o marido teria podido evitar o acidente?

- Está certa disso. Se Nathan tivesse dirigido o carro para a berma oposta, roçando todo o lado da viatura ao longo do barranco, teria sido possível reduzir gradualmente o andamento, até conseguir fazê-lo parar. Mas ele preferiu saltar... sabendo de antemão que Elizabeth não teria coragem para imitá-lo.

- Estou a ver. Portanto, não existe qualquer prova de que o seu cunhado tenha tentado, propositadamente, matar Mrs. Bain.

- Pois não. Nellie Conway contou-me toda a história do pretenso roubo das jóias e da maneira como o senhor, Mr. Mason, a defendeu no tribunal. Por conseguinte, cheguei à conclusão de que o senhor é o advogado que pode ajudar a minha irmã. Finalmente, Elizabeth está decidida a fazer um novo testamento, de modo a deserdá-lo de todos os seus bens. Quer divorciar-se dele e corrê-lo daquela casa para fora.

- Nathan Bain já está a par dessa resolução da mulher?

- Ainda não. Queremos que seja o senhor a dizer-lho.

- Eu?

- Sim. Queremos que vá lá a casa e fale pessoalmente com a minha irmã. Depois de ouvir o que ela tem a dizer-lhe, terá de mandá-lo fazer as malas e pôr-se na rua.

- De quem é a casa?

- Da minha irmã, assim como tudo o que contém.

- Os negócios de Bain não são rendosos?

- Ele diz que lhe correm "de vento em popa", mas o que ele diz não se escreve. Não possui quaisquer livros de contabilidade.

- Como pode ser isso?

- Para evitar pagar impostos, faz todas as especulações em dinheiro contado. Não sabemos quanto tem na algibeira e não fala a ninguém das suas actividades.

- Não acha que seria melhor a sua irmã ter uma conversa com ele e declarar-lhe, cara a cara, querer divorciar-se e deserdá-lo?

- Elizabeth não pode vê-lo. Fica histérica só de ouvir-lhe a voz no andar de baixo. Não se esqueça de que é uma mulher muito doente que vive atulhada em sedativos. Por esse motivo quer que seja o senhor a tratar do assunto.

- Mandou-a, a si, vir procurar-me para esse efeito?

- Sim e pediu-me que lhe entregasse esta carta. O sobrescrito estava aberto e continha um cheque, datado do- próprio dia e passado sobre o "Farmer's and Mechanic's National Bank", no valor de quinhentos dólares pagáveis a Mr. Perry Mason, advogado. Estava assinado por Elizabeth Bain, numa caligrafia um tanto ou quanto incerta.

- É um sinal pelos meus serviços futuros? - perguntou Mason.

- Exactamente.

- Mesmo assim, preciso de ouvir uma confirmação da própria boca de Mrs. Bain.

- Foi para esse fim que vim aqui. Desejo levá-lo comigo, lá a casa. Entretanto, gostaria que me desse a sua opinião acerca deste documento.

Miss Braxton abriu a bolsa de mão e extraiu uma folha de papel, dobrada ao meio, e redigida com a mesma caligrafia irregular. Mason leu:

Eu, Elizabeth Bain, sabendo que meu marido tentou matar-me já por várias vezes, perdi a confiança e toda a afeição que tinha por ele e decidi fazer este meu último testamento, legando tudo quanto possuo à minha amada meia-irmã, Victoria Braxton, e ao meu amado meio-irmão, James Braxton

Mason olhou para a folha de papel, um pouco desconfiado e inquiriu:

- Que quer saber a este respeito?

- Se o testamento é válido, feito nesses termos.

- Isso depende.

- Co'os diabos!-exclamou Victoria. - O senhor é advogado e não sabe verificar, logo à primeira vista, se esse documento é bom ou não?

- Depende das circunstâncias em que foi redigido.

- Tem a data de hoje. Elizabeth, ontem à noite, dormiu mais tranquila, por saber que já lá estávamos em casa; porém, acordou às cinco da manhã, quis falar comigo, mandou-me contratá-lo como advogado, passou o cheque e declarou desejar que o senhor manifestasse o seu parecer quanto à validade deste testamento. O que a minha irmã pretende é que o marido não receba um chavo dos seus bens, se e quando ela morrer.

- Hum, hum!-emitiu Mason, cautelosamente.

-Hum, hum, o quê? Isto está certo ou não?

- Está certo, até um certo ponto.

- Que quer dizer com isso?

- Que um testamento é válido, se for feito pelo próprio punho do testador e datado e assinado pelo mesmo.

- Foi o que Elizabeth fez.

- Se reparar bem, Miss Braxton, este documento não foi assinado.

- Ora essa! Elizabeth começou por assinar o seu nome, logo à cabeça dessa folha de papel. Principiou logo por escrever: "Eu, Elizabeth Bain..."

- Escreveu o nome, no início do documento, mas não no fim. Fê-lo de uma maneira descritiva, mas não o firmou como se diz, tecnicamente.

- E isso é assim tão importante, à face da Lei?

- É importante, porque a assinatura indica o termo do documento. Além disso, Miss Braxton, repare que a sua irmã também não pôs ponto final no texto.

- E isso que tem?

- O ponto final é essencial para indicar que o texto do documento está integral e completo, ou seja, que nada mais o testador desejava acrescentar.

- Francamente, Mr. Mason! Não me diga que um sinal do tamanho de uma sujidade de mosca é essencial para validar um testamento. Isso não tem pés nem cabeça!

- Tem, sim, Miss Braxton. Suponha que o testador foi interrompido, antes de terminar o documento. Por exemplo, depois de ter escrito: "legando tudo quanto possuo a Fulano e Beltrano" poderia desejar acrescentar: "com excepção de estes e de aqueles bens que lego a Cicrano." Está a perceber. Então, sim, poria o ponto final, para que o documento não parecesse inacabado, como se o testador tivesse sido interrompido, antes de concluí-lo.

- Se apenas falta acrescentar um ponto, não poderei fazê-lo eu própria?

- Não, Miss Braxton. Se o testamento for contestado por Mr. Bain e sujeito a uma análise pericial, há meios de verificar a natureza química da tinta e o tipo de aparo que foi utilizado; por vezes, até o prazo que mediou entre a redacção do documento e a de qualquer outro acréscimo. Lamento decepcioná-la, mas Mrs. Elizabeth Bain terá de ser ela própria a pôr o ponto final e a assinar o nome no fim do testamento.

- Que raio de "minhoquices" têm os homens de Leis! Muito bem. Se assim é, diremos a Elizabeth que o faça, quando formos lá a casa. Tudo isto me parece disparatado, visto ela não querer deixar nada a nenhum Cicrano.

- Mesmo não desejando contemplar outrem no seu testamento, de maneira nominal directa, poderia tencionar acrescentar: "com a finalidade de Fulano e Beltrano fazerem isto ou aquilo". Compreende agora?

- Já compreendi que a Lei se agarra a meras picuinhas, para entravar as intenções das pessoas.

- E ainda há mais outra coisa. Como o testamento não está firmado por duas testemunhas desinteressadas, ainda corre o risco de ser contestado por "influência exercida sobre o testador por um ou mais dos futuros contemplados".

- Quer dizer que fui eu quem convenceu Elizabeth a escrever essa história, nesses mesmos termos?

- Não disse isso, mas Nathan Bain poderá, naturalmente, invocar essa irregularidade, assim como o estado de sanidade da mulher, no momento em que redigiu o testamento.

- Ela está boa, mentalmente; isto é, não está louca a ponto de não saber o que quer e o que faz. De resto, não vai morrer subitamente. Agora que viemos para junto dela, Nathan não terá grande oportunidade de matá-la... sem ser logo caçado- pelo crime. Quanto às testemunhas, que podemos fazer?

- Quando eu for falar com a sua irmã, levarei Miss Street comigo. As nossas duas assinaturas legalizarão o documento. Mrs. Bain porá o ponto final que falta no texto e assinará este, como é normal.

Nesse momento, o telefone tocou e Della Street atendeu.

- Com quem deseja falar?... Com Vicky... Victoria Braxton?... Um momento, por favor.

- Co'os diabos! - espantou-se a jovem. - Ninguém sabe que vim aqui, a não ser Elizabeth e ela não fala ao telefone... Por favor, Miss Street, indague quem está ao telefone.

Instantes depois, Della esclarecia:

- Seu irmão Jim... James Braxton.

A jovem inclinou-se para diante, a fim de empunhar o auscultador e ofereceu a Mason uma bela paisagem de seios espreitando pelo decote do seu vestido de corte muito ousado.

- Vicky... O quê?... Oh, meu Deus!... Tens a certeza?... Vou já para aí.

Passou o auscultador a Della Street e exclamou:

- Santo Deus!... Aquilo aconteceu. Elizabeth está à morte. Vicky andou a procurar-me, pelo telefone, por todo o lado, até que se lembrou do que Nellie Conway contara a seu respeito e de eu ter dito que gostaria de contratá-lo para defender Elizabeth.

A "brasa" ergueu-se, de salto, e correu para a porta, exibindo um magnífico par de pernas ao deixar o maple.

Depois de ela sair, Mason resmungou:

- Este caso Bain... Onde está o testamento holográfico?

- Ela levou-o na mão, quando deu o "pinote", mas o "Chefe" estava a olhar-lhe para as calcinhas pretas e não podia reparar em mais nada.

- O espectáculo não foi tão erótico como isso, Della. Aquele documento pode revestir-se de uma enorme importância, caso Mrs. Bain esteja a morrer. É um documento holográfico que não teve testemunhas, não foi devidamente assinado e carece do ponto final.

- Quer apostar, "Chefe", em que, da próxima vez que o vir, já ele ostenta a tal sujidade de mosca?

- É possível que Miss Braxton se arrisque a isso, mas o tiro poderá sair-lhe pela culatra... Por favor, minha amiga, ligue para Paul Drake. Preciso de que ele me informe do que se passa em casa dos Bain. Que se sirva de todos os meios ao seu alcance

para obter essa informação. O último telefonema de Nellie foi às dez horas?

- Em ponto.

- E ela disse que não teria oportunidade de tornar a telefonar?

- Exactamente.

- Okay Della. Aguardemos a chamada de Paul.

 

O telefone retiniu às onze e cinquenta e cinco e Paul Drake comunicou:

- Estou numa cabina pública a dois quarteirões da casa dos Bain. Elizabeth Bain morreu há coisa de dez minutos, segundo a informação do homem que postei à entrada da porta de serviço. Colocou um auscultador de estetoscópio, na vidraça, e ouviu...

- Não me interessa o meio que utilizou. Sabes qual foi a causa da morte?

- A moradia está atulhada de "chuis" do Departamento de Homicídios. O teu "amigo", sargento Hol-comb, está muito em evidência...

- Okay, Paul, tenho outro serviço para ti. Quero que mandes vigiar e seguir qualquer pessoa, não oficial, que se lembre de sair dessa casa. Também desejo saber quais foram os aviões que deixaram esta cidade, a partir das dez e um quarto da manhã. Preciso dessa informação, o mais depressa possível.

- Tu mesmo podias telefonar para os aeroportos...

- Mas não fazia o resto. Só te encomendei metade. Depois de averiguares que aviões levantaram voo, quero que obtenhas a descrição de todas as mulheres que embarcaram neles, particularmente, uma, com cara de jogadora de poker, que conheces por Nellie Conway. Mas deve ter usado outro nome. Pode ter assinado, na lista de passageiros, unicamente as iniciais "N. C."... as mesmas que, provavelmente, terá gravadas na mala de viagem. Quanto tempo precisas para isso?

- Talvez uma hora.

- Corta-a ao meio. Se possível, passa-me essa informação, dentro de quinze minutos. Fico aqui, ao telefone, à espera da tua chamada.

Depois de desligar o aparelho, Mason começou a palmilhar o gabinete, de um lado para o outro.

- Em que pensa, "Chefe"?-sondou Della Street.

- Provavelmente, por volta das nove da manhã, ou talvez um pouco antes, Elizabeth Bain adoeceu violentamente; por volta das nove e meia, foi-lhe diagnosticado um envenenamento por arsénico e, há cerca de um quarto de hora, morreu. Ora, esta manhã Nellie Conway tentou, freneticamente, comunicar comigo, mas, até ao último minuto, não o conseguiu.

- Quer dizer que ela tinha de apanhar um avião?

- Exactamente. Ainda está em voo, para algures. Se não utilizou o próprio nome, ainda terá alguma possibilidade de escapar à Polícia, antes de aterrar no seu destino. Deve ter adoptado algum nome com as mesmas iniciais que, provavelmente, tem na sua bagagem.

- E Elizabeth Bain terá morrido de envenenamento por arsénico?

- É quase certo, visto que a morte não foi súbita, como no caso de cianeto. Agora temos de encarar o facto de eu ter um comprimido de salicilato que Nellie me confiou para análise; porém ela ficou com outros que não foram analisados... e fui eu quem lhos devolveu. Nellie andou a espalhar a história de que Bain lhos dera para envenenar a mulher, mas um acusador público não lhe dará crédito.

"Se ela ministrou esses outros comprimidos a Elizabeth Bain, poderá alegar tê-lo feito, porque eu a informara de que se tratava de um produto semelhante à aspirina... e isso vai envolver-nos directamente no caso. Escute, Della... Telefone para casa dos Bain e diga a Holcomb que quero falar com ele."

Momentos depois, Della Street discava o número de West, 6-9841 e, quando o sargento dos "Homicídios" atendeu, Mason saudou:

- Olá, Holcomb! Daqui, Perry Mason.

- Como descobriu que eu me encontrava aqui?

- Tenho andado a procurá-lo, por todo o lado. Lembra-se, Sargento, de Nellie Conway ter acusado Nathan Bain de lhe oferecer quinhentos dólares para ministrar uns certos comprimidos à mulher? Recorda-se de eu lhe ter falado nisso?

- Perfeitamente. Essa "tarada" também já me contara o mesmo.

- Pois bem, Holcomb, por uma questão de segurança, mandei analisar um desses comprimidos. Continha um produto semelhante à aspirina. Pensei que você gostasse de saber isso.

Fez-se um longo período de silêncio e Mason impacientou-se:

- Está lá?

- Sim - acabou por responder Holcomb. - Mas essa história da Conway não faz sentido. Bain não lhe entregara quaisquer comprimidos.

- Ela acusava-o de querer envenenar a mulher. Lembra-se disso?

- Não. Não me recordo disso, por essas palavras. Creio que não se falou em veneno. Tratava-se apenas de um medicamento para que a "velha" pudesse dormir mais tranquila... Estou cheio de trabalho. Bom dia, Mason.

O sargento desligou o telefone e Mason também pousou o auscultador, resmungando:

- Patife! Tem, agora, a "lata" de negar que Nellie lhe tenha falado em veneno.

- Acha que ele pretende ilibar Bain de qualquer responsabilidade?

- É o que tudo indica.

- Será possível que um "chui" se atreva a mentir deliberadamente?

- Tudo é possível nesta vida. O tenente Tragg está convencido de que Holcomb é um tipo honesto, embora "bronco" como uma porta. Contudo, a estupidez pode, por vezes, degenerar em desonestidade. A verdade é que começo a sentir-me metido numa "alhada"!

Continuou a percorrer o gabinete, de um lado para o outro, enquanto Della Street o observava com notória ansiedade.

Ao meio dia e vinte e cinco, o telefone tocou.

Quando Mason ouviu a voz de Drake, no outro lado do fio, quase gritou:

- Dispara, Paul!

- Uma mulher cuja sinalética corresponde à que me indicaste, partiu para Nova Orleães, no voo das dez e quinze, usando o nome de Nora Carson.

- Okay, Paul. Põe-te imediatamente em contacto com a agência de detectives de Nova Orleães, tua correspondente. Quero que me cacem essa Nora Carson, mal o avião aterre. Terão de segui-la, a par e passo, vá ela para onde for. Também preciso que reserves um apartamento para dois, em teu nome... Faz o registo como "Paul Drake e parceiro".

"Della Street tratará dos nossos bilhetes para o primeiro avião para Nova Orleães. Dize aos teus homens que nos enviem os seus relatórios telefónicos para o "Roosevelt Hotel". Temos de despachar-nos o mais depressa possível."

- Há um avião às treze e quinze, Perry, mas já não deves ter tempo de apanhá-lo.

- É-nos forçoso ir nele, Paul. Mete-te no carro e "raspa-te" imediatamente para o aeroporto. Irei lá ter contigo.

Quando Perry Mason e Paul Drake entraram no átrio do "Roosevelt Hotel" de Nova Orleães, encontraram um dos detectives da agência correspondente da de Drake à espera deles para dar-lhes as primeiras informações. Subiram ao quarto duplo e o detective comunicou:

- Localizámos a mulher. Ocupa um apartamento no velho Bairro Francês. Já estava preparado para recebê-la. Foi alugado por um homem da vossa cidade, chamado Nathan Bain. Sabem quem é?

Mason e Drake entreolharam-se e o advogado incitou:

- Que mais?

- Esse apartamento foi alugado há coisa de trinta dias, por um período de seis meses.

- Que espécie de habitação é essa?

- Como todas as do Bairro Francês. As construções são antigas, mas atraem os turistas pelo seu ambiente exótico. Têm tectos altos e rendas baixas. Alguns dos edifícios foram restaurados e ficaram muito confortáveis.

- Quando Bain fez o contrato de aluguer, não indicou quem iria ocupar o apartamento?

- Não prestou quaisquer esclarecimentos.

- Como pagou a renda? Por meio de cheque ou dinheiro contado?

- Mandou um vale postal.

- E a rapariga está a viver lá?

- Sim, com o nome de Nora Carson... e está cheia de "massa".

- Cheia até que ponto?

- Não sei ao certo, mas traz na bolsa um maço chorudo de notas... e das grandes. Logo que chegou, foi a "Bourbon House" para jantar e tentou trocar uma nota de mil dólares, o que causou uma certa comoção, visto ter declarado que era a mais pequena que trazia consigo.

"O gerente deu uma olhadela para dentro da bolsa, viu o monte de "massa" e receou que se tratasse de dinheiro roubado ou notas falsas que ela pretendia" passar". Por esse motivo, exigiu o pagamento em notas mais pequenas. Nellie deixou mil dólares, de caução, e foi trocar dinheiro. Quando voutou, já trazia um molho de notas pequenas."

- Mais alguma coisa?

- Sim. Seguimos as vossas instruções e temo-la mantido sob vigilância.

- Ela apercebeu-se que estava a ser seguida?

- Aparentemente, não deu por isso. Deu algumas voltas pelo bairro, mas não parece ligar importância a quem anda pelos passeios.

- Que tem andado a fazer?

- Bem... só cá está há três horas e picos e ainda nada fez de especial, além de ver as montras das lojas e o aspecto geral do bairro. Não chegou a afastar-se da sua zona.

- Que alegou ela para justificar a sua estadia em Nova Orleães?

- Nada. Mal se dignou falar com o encarregado do prédio de apartamentos que veio ocupar.

- Esse prédio de apartamentos é muito grande?

- Não muito. Tem três pisos, com dois apartamentos por andar. Essa Nora Carson e uma outra mulher ocupam os dois apartamentos do segundo piso. No terceiro piso vive um solteirão... e o apartamento ao lado está vago. O primeiro piso é habitado pelo encarregado do prédio e também tem um armazém.

- Quem é a outra mulher que ocupa o segundo andar?

- Uma tal Charlotte Moray.

- E há quanto tempo está ela a viver ali?

- Há cerca de uma semana.

- Sabe-se alguma coisa a seu respeito?

- Nada. Temo-nos cingido ao trabalho que nos foi encomendado. Não nos pediram que investigássemos essa Moray.

- Bem sei... mas, por acaso, pode fazer uma descrição da sua sinalética?

O detective tirou da algibeira um bloco-notas, folheou-o e começou a ler:

- Anda à volta dos vinte e quatro, vinte e cinco anos,- tem tez morena e cabelo escuro; uma esplêndida figura que sabe movimentar eroticamente e uns grandes olhos pestanudos. Fala com personalidade, numa voz grave, e possui belas roupas que sabe usar. Não tivemos muito tempo para obter informações a seu respeito, tanto mais que não nos tinham sido pedidas. Apesar disso, sabemos que recebe telegramas, todos os dias, por vezes mais do que um, no mesmo dia, mas não nos foi possível averiguar o seu teor nem a sua origem.

- Mais alguma coisa?

- Só posso acrescentar que essa Charlotte Moray é um bom "traço" que qualquer tipo gostaria de meter na cama... ou mesmo apenas no banco traseiro do carro; tem um metro e sessenta e oito, sessenta e nove, e não deve pesar mais de sessenta quilos. Oscila as ancas, sem exagero, numa oferta tentadora, mas nada oferece a não ser essa imagem. Não tem namorado nem amigos que a visitem. Quando sai, fá-lo sozinha e parece estar bem familiarizada com as ruas da cidade; conhece as boas lojas de Nova Orleães e, embora geralmente cozinhe em casa, tem ido a alguns bons restaurantes, mas mostrando-se sempre reservada, sem dar "troco" a quaisquer tentativas de aproximação. Limita-se a sorrir, simpaticamente, à criada que a serve, ou a baixar os olhos, num agradecimento mudo, quando se trata de um criado... Bem, estas informações não nos foram solicitadas, mas, ao largarmos o nosso turno de serviço, já nos tem acontecido segui-la, só por curiosidade e deleite próprio.

- Só mais uma pergunta. Quando arrendou ela o apartamento?

- Não o alugou directamente ao encarregado do prédio, pois já para cá veio com ele subalugado.

- Subalugado a quem?

- A esse mesmo Bain. Pensei já ter explicado que ele alugou todo o segundo piso.

- Ainda não mo tinha dito. Bain também ficou com o terceiro andar?

- . Não. Só alugou dois apartamentos do segundo.

Virando-se para Drake, Mason indicou:

- Paga aos teus amigos, Paul. Por agora podemos dispensar os seus serviços, visto que já cá estamos. Não quero que essas jovens se apercebam de que estão a ser vigiadas. Quero o local livre.

- Se deixam de pagar-nos podem estar certos de que abandonamos as paragens. Não trabalhamos "à borla" - assegurou o detective de Nova Orleães.

Depois de Drake ter liquidado a conta e aquele ter saído, perguntou a Mason:

- Estás certo, Perry, de que não precisas mais deles?

- Esse detective mostrou-se muito curioso na minha pessoa. Pareceu-me ansioso por descobrir quem eu era.

- Okay, Perry. Dentro de quinze minutos desaparecerão da paisagem.

- Perfeito. Já temos as informações que desejávamos. Nellie Conway vai receber um visitante e, em breve, a Polícia começará a interessar-se por ela. Se os "chuis" toparem que andam detectives a vigiá-la, procurarão imediatamente saber quem lhes pagou esse trabalho. Portanto, se os homens dessa agência não souberem quem sou, não poderão "dar à dica" à Polícia. Operam nesta cidade e, por conseguinte, convém-lhes estar de boas relações com as autoridades.

- Quem é o visitante? Nathan Bain?

- Não. Perry Mason - respondeu o advogado sorrindo.

 

Depois da meia-noite, o Bairro Francês ganha um ambiente característico.

Nas ruas estreitas começam a circular mais automóveis, com grupos de foliões a entrar e a sair; alguns permanecem nos passeios, a conversar depois das últimas bebidas. Soam buzinadelas dos carros que pretendem circular e são impedidos por outros mal estacionados. As boites e os cabarets têm um movimento intenso; as donas de casa vêm pôr os caixotes do lixo à porta e há gente nas janelas, a olhar para o espectáculo de rua e a tomar o fresco. Antes das seis da manhã, o silêncio nunca é completo.

Mason, antes de entrar no velho prédio, teve de dar várias voltas, para conseguir uma oportunidade de não ser visto a transpor a porta. Esta dava acesso a um pátio interior. As portas do primeiro piso, tanto a do encarregado do prédio como a do armazém estavam fechadas. Mason subiu a escada, silenciosamente, e penetrou num corredor sem luz.

Junto da porta A do segundo andar, estacou, ao vê-la entreaberta com o interior iluminado. Espreitando, viu uma mesa com algumas revistas e uma cadeira. Ao fundo, um cortinado agitava-se, brandamente, numa porta-janela que dava para uma varanda.

Ao fundo do corredor, uma outra porta, certamente a B, abriu-se e uma mulher soltou um breve grito:

- Como veio cá parar? - espantou-se Nellie Conway.

Com uma careta sorridente, Mason propôs, apontando a porta A.

- É melhor falarmos aqui dentro.

Momentos depois, já sentados, no apartamento de Nellie, a jovem criticou:

- Francamente, Mr. Mason. Não precisava de ter vindo aqui. Juro-lhe que tencionava pagar-lhe.

Abriu a bolsa de mão que estava sobre a mesa e tirou uma nota de cem dólares. Pô-la sobre a mesa, mas Mason limitou-se a olhar para ela.

Nellie acrescentou mais outra e, após uma hesitação, ainda uma terceira.

- Onde arranjou esse dinheiro? - inquiriu o advogado.

- Faz parte da combinação.

- Que combinação?

- Da que fiz com Nathan Bain... Uma espécie de indemnização.

Ainda sem tocar no dinheiro, Mason disse:

- Fale-me disso.

- Nathan estava aterrorizado, quando fui lá a casa buscar as minhas coisas. A governanta ficara a substituir-me, até vir uma outra enfermeira nocturna, mas esta também se foi embora. Nathan explicou-me que estava à espera da chegada de uns parentes da mulher que ficariam lá por uns tempos, pelo que poderiam cuidar de Elizabeth. Deviam chegar por volta da meia-noite.

- E você que fez?

- Fui falar com Elizabeth e ajudei Imogene a tratar dela. Elizabeth, nessa noite, dormiu profundamente.

- Antes de ela adormecer, você falou com ela?

- Certamente. Fez-me uma data de perguntas.

- A que respeito?

- Quis saber o motivo por que eu me ia embora. Disse lamentá-lo imenso.

- Você explicou-lhe o motivo? Disse-lhe que tinha sido presa e julgada por roubo?

- Contei-lhe tudo.

- Bain entrou nesse momento?

- Nunca entra no quarto da mulher. Já lhe expliquei isso, Mr. Mason.

- E você falou a Mrs. Bain acerca de o marido lhe ter pedido, a si, para dar-lhe, a ela, aquele medicamento?

- Oh, não. Não falei nisso.

- Por que não?

- Porque isso iria preocupá-la... e ela é muito nervosa... está muito doente...

- Bem sei, Nellie. Já é história antiga. Quando obteve todo esse dinheiro?

- Logo ao princípio da noite, antes de ir falar com Elizabeth. Nathan perguntou-me o que eu tencionava fazer a seu respeito e eu respondi-lhe não ter ainda pensado no assunto. Ele retirou-se para o escritório e aproveitei a oportunidade para telefonar-lhe, Mr. Mason.

- Que mais?

- Ele voltou para a sala, enquanto eu ainda tinha o auscultador na mão... e tive de desligar. Então propôs-me que arrumássemos o assunto, sem intervenção de advogados. O dinheiro que ambos teríamos de pagar-lhes poderia aumentar a quantia que ele queria dar-me à laia de indemnização. Confessou ter-se enganado a meu respeito e que caíra na esparrela de dar ouvidos àquele detective, Hallock, que se julgara muito esperto e que o metera num sarilho, com o truque do pó fluorescente.

- E você entrou numa combinação monetária com Bain?

- Está visto! Preferi tratar as coisas directamente, em vez de ter de gastar dinheiro com advogados.

- Quanto lhe pagou Bain?

- Não creio que isso seja da sua conta, Mr. Mason. Fui bem recompensada.

- Quanto?

- Mr. Bain pediu-me para não discutir esse assunto, fosse com quem fosse. Eu tencionava pagar os seus honorários, Mr. Mason, logo no dia seguinte.

- Quanto lhe deu ele?

- Lamento, mas não posso dizer-lhe. Prometi guardar segredo. Estou agora, Mr. Mason, a pagar-lhe trezentos dólares e peço-lhe que me passe um recibo.

- Esse dinheiro proveio de Nathan Bain?

- Está visto. Como poderia tê-lo eu, de outra maneira?

- Ele passou-lhe um cheque, ou pagou-lhe a "combinação" em dinheiro corrente?

- Nathan nunca passa cheques.

- E você assinou algum papel?

- Sim, declarando que não o processaria por perdas e danos.

- Esse papel fora redigido por um advogado?

- Não sei. Deu-mo para assinar, li-o e assinei-o.

- Estava dactilografado?

- Sim.

- Não sabe se, antes disso, ele teria consultado qualquer advogado?

- Não creio que o tenha feito. Estou convencida de que ele próprio redigiu o documento.

- E pagou-lhe, logo de seguida?

- Sim.

- Por que motivo veio você instalar-se aqui?

- Precisava de descansar e sempre desejara conhecer Nova Orleães. É uma cidade antiga, cheia de tradições românticas...

- Deixe-se disso, Nellie. Por que motivo veio para cá?

- Bem... Creio que se tratou de um súbito impulso.

- Bain não lhe sugeriu que viesse para esta cidade?

- Oh, Céus! Nunca me sugeriu uma coisa dessas.

- Como conseguiu arranjar este apartamento?

Nellie Conway baixou os olhos e hesitou, antes de responder:

- Não vejo por que motivo tenho de discutir consigo os meus assuntos particulares. Estou-lhe grata pelo que fez por mim, mas é tudo. O senhor só me representou num caso judicial. Defendeu-me e eu paguei-lhe. Não quero mostrar-me rude para consigo, mas a verdade é que as nossas relações terminaram. Nada mais tenho a dizer-lhe.

- Conhece alguém em Nova Orleães?

- Ninguém.

- Não veio encontrar-se cá com uma pessoa?

- Não.

- De onde vinha você, quando me viu no corredor? Saiu de um outro apartamento, não é verdade?

- Oh, não. Tinha descido as escadas para meter uma carta no correio, na esquina do quarteirão.

- Para quem era essa carta?

- Para si. Quis informá-lo de que não deixaria de pagar-lhe, como tínhamos combinado.

- Que fez aos comprimidos que eu lhe devolvi, dentro de um sobrescrito fechado?

Após uma ligeira hesitação, Nellie respondeu:

- Atirei-os ao lixo.

- Dentro do sobrescrito?

- Sim.

- Nunca chegou a abri-lo, depois de eu lho ter entregue?

- Não.

- Por que deitou fora o sobrescrito com os comprimidos? Podiam vir a constituir uma prova importante, sabe?

- Não pensei nisso. Agora, reconheço que, realmente, não o devia ter feito...

- Disse a Bain que se desfizera dos comprimidos?

- Não tenho que responder-lhe a essa pergunta, Mr. Mason.

- Muito bem, Miss Conway. Agora, para variar, vamos pôr as cartas na mesa.

- Que quer dizer com isso?

- Que, se eu dei com o seu paradeiro, a Polícia também não terá dificuldade em descobri-la aqui e averiguar como é que veio cá parar. Se for esperta, treine-se a responder às minhas perguntas, para já estar melhor preparada, quando eles vierem "espremê-la". Você disse a Bain que se desfizera dos comprimidos?

- Não lho disse, intencionalmente, mas ele viu-me fazê-lo.

- Viu-a atirá-los ao lixo?

- Sim, para o balde da cozinha.

- Que justificação lhe deu a esse respeito?

- Contei-lhe que o tinha consultado, Mr. Mason, acerca de ele ter-me pedido que desse aquele remédio à mulher.

- Qual foi a reacção de Bain?

- Nenhuma, em especial. Disse-me que já estava preparado para essa eventualidade, pois receara que eu tomasse a decisão que, na realidade, tomei. Afirmou-me que os comprimidos eram uma espécie de aspirina, mandados compor numa farmácia, com uma pequena porção de sedativo.

- Isso sucedeu antes ou depois de ele lhe ter dado o dinheiro?

- Não sei... Já não me lembro.

- Você comunicou a Bain que tencionava vir para Nova Orleães?

- Não... Que disparate!... Ele não tinha nada com isso!

- Quer dizer que você se meteu num avião, desembarcou nesta cidade e veio logo para aqui? Nem sequer passou por um hotel, antes de orientar-se e descobrir este poiso?

- Onde está o erro dessa minha atitude?

- Não é fácil encontrar-se alojamento nesta cidade, muito menos no Bairro Francês. Geralmente torna-se necessária uma marcação prévia, com alguma antecedência.

- Não há regra sem excepção. Não tive a menor dificuldade em instalar-me aqui.

- Nunca cá tinha estado, Miss Conway?

- Não tenho que dar-lhe contas da minha conduta passada.

Mason fez uma breve pausa, antes de perguntar:

- Como se achava Mrs. Elizabeth Bain, quando a deixou?

- Esplendidamente... isto é, tomando em conta o seu triste estado. Dormiu como uma pedra, logo que soube que os seus parentes estavam a chegar. Nunca a vira dormir tão bem.

- Encontrou esses parentes?

- Sim. Chegaram antes de eu partir. Eu só deixei a casa, depois de Nathan me ter dado o dinheiro.

- Quanto lhe pagou Bain?

- Não vou dizer-lhe isso, Mr. Mason.

- Tive ocasião de dizer-lhe, Miss Conway, que, se Bain lhe desse dinheiro para pagar os meus honorários, estes seriam de quinhentos dólares, lembra-se?

- Ele não me deu o dinheiro para saldar os seus honorários, Mr. Mason. Estou a pagá-los da minha "algibeira".

- Mas ele estava junto ao telefone, quando eu lhe expus, a si, as minhas condições. Foi você que mo disse.

E Mason estendeu a mão espalmada.

Nellie Conway tirou da bolsa mais duas notas de cem dólares e juntou-as às três anteriores que ainda se achavam sobre a mesa. Depois, juntou os quinhentos dólares, relutantemente, e entregou-os ao advogado.

Este guardou-os no bolso interior do casaco e saiu.

Mal se achou no corredor, ouviu o ruído de um fecho de segurança na porta de Nellie.

Deslizando suavemente, dirigiu-se ao apartamento B. Bateu à porta e, quando esta se entreabriu, viu uma mulher extremamente atractiva espreitar pela abertura.

- Estava envolta num penteador finíssimo e a luz, por detrás dela, exibia-lhe todo o corpo à transparência.

- Oh! - exclamou ela, ao ver um estranho. Imediatamente tentou fechar a porta, mas Mason empurrou-a.

- Eu grito! - ameaçou a jovem.

- Não ganha nada com isso, Miss Moray.

- E você também não! - protestou. - Ponha-se a andar!

- Isso é o que lhe parece. Vamos tratar deste assunto o mais calmamente possível. Quero falar-lhe da mulher que se instalou no apartamento A e, ainda há pouco, saiu daqui.

- Nada sei a respeito dela.

- Sabe sim. O nome Nathan Bain diz-lhe alguma coisa?

- Não faço a menor ideia de quem seja.

- Nesse caso, não lhe interessa a informação de que ele vai tardar algum tempo a chegar cá.

- Que quer dizer com isso? Não conheço nenhum Nathan Brame.

- Bain - corrigiu Mason.

- Bain ou Brame tanto me faz.

- Nunca se encontrou com ele?

- Não o conheço e, se você não se vai embora, chamo a Polícia.

Dirigiu-se, ameaçadoramente, para a porta-janela da varanda e Mason sondou:

- Não utiliza o telefone?

- Não preciso. Basta-me gritar para a rua.

- Se eu fosse a si, não o fazia. A morte de Elizabeth Bain vai causar a Nathan...

- Que está a dizer?

- Que Elizabeth Bain morreu.

- O quê?

- Estou a fornecer-lhe uma informação valiosa e...

- Não conheço nenhuma Elizabeth Bain. Quem é ela?

- A mulher de Nathan Bain.

- E o senhor quem é?

- Chamo-me Mason.

- Está relacionado com a Polícia?

- Não. Sou advogado.

- Por que motivo veio dar-me essa informação?

- Porque quis averiguar se você estava a par da morte de Elizabeth Bain.

- Deve estar a confundir-me com outra pessoa qualquer e não me interessa o que sucedeu a essa Mrs. Brane.

- A primeira em que fingiu enganar-se no nome, ainda podia parecer natural, mas desta vez foi uma péssima representação. Mrs. Bain foi envenenada.

Os joelhos de Charlotte Moray fraquejaram e ela teve de sentar-se numa cadeira. Por fim, inquiriu:

- Suicidou-se?

- Não.

- Oh!

- Mas como você não a conhece, este assunto não deve interessar-lhe - observou Mason, sarcástico.

Simulou uma retirada, mas Charlotte murmurou:

- Espere... Quem lhe deu o veneno?... Como é que isso aconteceu?

- Está a preocupar-se com o que sucedeu a uma mulher que lhe é inteiramente estranha?

- Afinal, o senhor que pretende de mim?

- Uma informação.

- E se eu não quiser dar-lha?

- Está no seu direito.

- O senhor é advogado?

- Sim.

- Okay. Sente-se. Posso oferecer-lhe uma bebida?

Mason sentou-se e, instantes depois, aceitou um copo de whisky com soda, enquanto Charlotte se servia de outro.

- É tudo quanto tenho - justificou-se a jovem. - Não costumo beber...

- Serve perfeitamente - disse Mason, com um sorriso contemporizador.- Quer falar ou não?

- Muito bem, pergunte. Nada tenho a esconder.

- Quando conheceu Nathan Bain?

- Encontrei-o numa convenção de gestores financeiros. Tinha bom aspecto, falava bem e gastava dinheiro, sem estar a contá-lo.

- Você andava à procura de um homem desse género?

- Sim. E depois? Não sou a única, a superfície da terra, que procura "amanhar-se" com alguém, não é verdade?

- É uma verdade puríssima. Que mais?

- Tenho trabalhado toda a vida, desde os dezassete anos. Vi mulheres que nunca conseguiram obter coisa alguma na vida e outras que souberam instalar-se nela, sem que nada lhes faltasse... Peles, automóveis, casa luxuosa e tudo o mais. Não é difícil preferir-se o mel ao vinagre.

- Lógico.

- Nathan foi sempre encantador para mim, mostrando-se o mais generoso possível.

- Dava-lhe dinheiro?

- Oh, não! Percebeu que não sou "dessas". Mas paga-me as despesas do meu apartamento de Los Angeles, dava-me vestidos e oferecia-me jóias.

- Mandava-lhas, de presente, por um portador da loja?

- Que ideia! Entregava-mas sempre pessoalmente.

- Que mais?

- Prometeu tratar do divórcio e alugou-me este apartamento em Nova Orleães. Eu pedi umas férias e vim para cá. Pelo seu lado, Nathan alugou o apartamento ao lado deste e, para salvar as aparências, combinou comigo fingir que não nos conhecíamos. Depois de estarmos juntos, saíamos sempre separadamente.

- Quando ele estava em Los Angeles, escrevia-lhe para aqui?

- Sim. Naturalmente correspondíamo-nos... e aquele idiota deixou que a mulher lhe apanhasse as minhas cartas!

- Cartas apaixonadas?

- Certamente que eram desse género. Que tinha eu a perder? Pegava na caneta e num pedaço de papel... e, na volta do correio, vinha sempre alguma coisa substancial.

- Bain ficou preocupado, quando a mulher lhe apanhou as cartas?

- Está visto que isso não lhe agradou muito. Contudo, ontem conseguiu recuperá-las e devolveu-mas pela rapariga que está no apartamento A... uma Nora Carson.

- Que pensa dela?

- Não sei que lhe diga. É muito fechada consigo mesma. Não tem "voltagem", se é que percebe o que quero dizer. Mal chegou, entregou-me as cartas e foi tudo... isto é, veio aqui mais duas vezes, para coisa nenhuma. Tem um ar patético, sem expressão especial. Quando aqui vem, olha para tudo, como se desejasse avaliar quanto eu tenho comigo.

- Limitou-se a entregar-lhe as cartas e não fez perguntas?

- Não me perguntou coisa alguma.

Mason terminou a bebida, pousou o copo e sondou:

- Por que razão está a prestar-me todas essas informações?

- Porque gosto do seu aspecto. - Sorrindo, Mason abanou a cabeça. - Estou a falar a sério. O senhor parece-me franco e vai directamente aos assuntos. Creio que é fixe... e que pode ser perigoso como inimigo. Aí tem. Prefiro jogar do seu lado.

- Qual é o seu objectivo, Miss Moray?

- Já pus as cartas na mesa, não é verdade?

- E que pretende em troca?

Após uma pausa, Charlotte considerou:

- Se estamos perante um caso de assassínio, quero ficar fora dele. Nathan é um tipo divertido que gasta a "massa" generosamente, mas não é do género de casar a não ser por interesse. Uma mulher deve saber qual o momento em que deve pôr-se a andar. Nunca acreditei nas promessas de divórcio e em tudo o mais. Está a compreender? Fui pastando, enquanto a erva estava verde.

- Continue, Miss Moray.

- Conheço um homem que me "enche as medidas". Não tem tanto como o que Nathan poderia dar-me, mas não anda a pedir esmola... e a esse posso deitar-lhe a "fateixa", em qualquer altura. É dos que querem casar.

- Que deseja que eu faça por si?

- Que me aconselhe. Que devo fazer, para não ser implicada nessa história de envenenamento?

- Faça as malas e saia daqui, logo que possa... e isto é já. Recuperou suas cartas. Queime-as. Desapareça. Dentro de vinte minutos ou meia hora, a Polícia vai entrar aqui, como um ciclone. Se eu a descobri, os "chuis" também não levarão muito tempo a dar consigo. Bata asas.

Mason levantou-se e encaminhou-se para a porta. Charlotte, pousou o copo na mesa e acompanhou-o. O seu penteador entreabrira-se, expondo um seio moreno, magnífico. Contudo, a jovem não se deu ao trabalho de cobri-lo e pôs a mão no braço do advogado.

- Hei-de lembrar-me sempre de si - murmurou.

- Se, em Los Angeles, algum dia, voltarmos a encontrar-nos, gostaria de poder agradecer-lhe o que acaba de fazer por mim... e com prazer da minha parte.

- Obrigado, Charlotte. Agora, avie-se. Não vai ter muito tempo para sair de cá... E arranje-se de maneira a que a sua vizinha do apartamento aqui ao lado não se aperceba da sua partida.

- Escusa de dizer-mo. Aprendi que não há muitos homens em quem uma mulher possa confiar... e não pode, de maneira alguma, confiar em nenhuma mulher.

- Boa sorte - desejou Mason.

Desceu as escadas, atravessou o pátio e esgueirou-se ao longo da ruidosa St. Peter Street.

 

De regresso ao "Roosevelt Hotel" foi encontrar Paul Drake com o ouvido encostado ao auscultador, recebendo um longo relatório da sua agência em Los Angeles.

Quando desligou, Mason indicou:

- Preciso, Paul, que me obtenhas cópias das mensagens telegráficas enviadas para o prédio de apartamentos da St. Peter Street. Telefona ao teu informador da "Western Union Telegraph Company" e...

- Bem sabes que isso é ilegal - cortou Drake, alarmado. - É-me quase impossível convencê-lo a arranjar essas cópias.

Mason encolheu os ombros e prosseguiu:

- Preciso de obtê-las, Paul. Charlotte Moray, que ocupava o apartamento ao lado do de Nellie Conway, recebia frequentes telegramas de Nathan Bain.

- Talvez possa alcançar-te o último que ele lhe enviou.

- Como?

- Pode dar-se o caso de ainda não ter sido entregue.

- Que vais fazer para o caçares?

Com um sorriso cínico, Drake esclareceu:

- Para ser mais preciso, Perry, já aqui tenho essa cópia. Estava só a valorizar o meu trabalho. Pensei que apreciasses essa informação.

- Dá-a cá.

Drake estendeu-lhe um pedaço de papel, rabiscado à pressa, e Mason leu:

"Acontecimentos inesperados e graves obrigam-me a ir aí falar contigo imediatamente. Chego no avião das nove e trinta da manhã, mas terei de deixar Nova Orleães no da uma e trinta e cinco da tarde, de maneira a estar novamente em Los Angeles, antes que tenham dado pela minha ausência."

Drake acrescentou:

- A mensagem estava assinada por "o teu Falstaff".

- Nathan escolheu uma linda alcunha!

- Os grandes amorosos têm dessas fraquezas.

- Como diabo, Paul, conseguiste esta informação?

- Nathan Bain tem um amigo médico que o recolheu numa clínica privada, declarou ter-lhe ministrado um forte sedativo e proibiu que o perturbassem. Aparentemente, Bain sofreu um ataque do coração que exige repouso total. Não poderá ser incomodado, durante algum tempo.

"Evidentemente, a Polícia foi à procura dele e ficou danada por não conseguir interrogá-lo. Os repórteres também começaram a rondar a clínica e um dos meus homens, que é esperto como um rato, pensou que talvez Bain não estivesse a dormir, como o seu amigo médico afirmara a toda a gente.

"Descobriu a existência de uma passagem interna, da clínica para a garagem, foi postar-se aí, de sentinela. Pouco tempo depois, teve a confirmação de que o traseiro de Bain não levara qualquer picada hi poderia sair. A prova é que se sentou num dos carros que estava na garagem e saiu do edifício da clínica, com o acelerador a fundo.

"O meu operador teve uma certa dificuldade em segui-lo, mas Bain estava tão ansioso por mandar este telegrama que parou, dois quarteirões mais abaixo, numa estação de correio. Aí, pegou no bloco-notas, desses de folhas picotadas, para telegramas, e rapou da esferográfica. O meu homem esperou que ele escrevesse o que tinha a escrever e fingiu desejar também mandar um telegrama. Quando Bain se dirigiu ao balcão para expedir a sua mensagem, o meu homem pegou no bloco e antes de escrever nele fosse o que fosse, leu o que ficara vincado na folha imediata à que Bain utilizara... e copiou o texto que aí tens."

- E depois?

- Bem, teve de pagar um dólar e dez cêntimos.

- A quem?... Que história é essa?

- Naturalmente, para não levantar suspeitas, utilizou o impresso para mandar um telegrama à sua mulher que está fora, em casa dos pais.

Mason riu e aplaudiu:

- Bom trabalho, Paul. De que constou o relatório que acabaste de receber por telefone?

- De um assunto que não te dará tanta euforia. A Polícia foi vasculhar o caixote do lixo da cozinha dos Bain e encontrou um sobrescrito com a tua assinatura e a de Nellie Conway.

- Continha um tubo de comprimidos?

- Não. Estava aberto e, praticamente, vazio.

- Que queres dizer com esse "praticamente"?

- Estava vazio, mas vincado. A Polícia descobriu que ele contivera um tubo do formato desses que servem de embalagem a comprimidos.

Depois de pensar uns segundos, Mason indagou:

- A Polícia já determinou que espécie de veneno foi ministrado a Elizabeth Bain? Ela comera alguma coisa?

- Não comera coisa alguma.

- Então, como o ingeriu?

- Foi-lhe dado pela irmã, Miss Victoria Braxton... Cinco comprimidos, empurrados por um copo de água, logo seguido de uma chávena de café.

- Tens a certeza disso?

- A Polícia tem.

- Como o souberam?

- A própria Elizabeth Bain teve tempo de contar-Lhes esse pormenor.

- E que disse Victoria Braxton a esse respeito?

- Aparentemente, nada, porque a Polícia não consegue encontrá-la.

- Oh, oh!

- O teu "amigo", sargento Holcomb, parece estar oficialmente encarregado do caso. Por qualquer razão, decidiu revistar a casa, de ponta a ponta. Mandou sair toda a gente, logo que Elizabeth Bain morreu. Correu com os parentes para hotéis, mas com a recomendação de não se ausentarem, sem informar a Polícia do local para onde forem.

- Que mais aconteceu?

- Nathan Bain foi para o seu clube e informou a Polícia do poiso onde se achava. James Braxton e a mulher, Georgiana, foram para um hotel, na parte baixa da cidade. Victoria Braxton foi para outro hotel e também comunicou à Polícia onde se encontrava, mas, depois disso, os "chuis" tentaram interrogá-la, sem contudo terem conseguido dar com ela. Apenas sabem que ficou muito transtornada com a morte da irmã e que foi alojar-se em casa de uns amigos. Esteja onde estiver, não dormiu no seu quarto.

- Sabes mais alguma coisa acerca do que se passou antes da morte de Mrs. Bain?

- Sei que o marido contratou uma outra enfermeira nocturna, depois de Nellie Conway ter sido presa. Evidentemente, deve ter tentado levá-la para a cama, ou coisa no género, visto que a rapariga pôs-se logo a andar.

"Mrs. Imogene Ricker ficou a trabalhar todo o dia. Depois de a enfermeira diurna ter saído, subiu, várias vezes, ao quarto da doente, para ver se ela estava confortável. Então, Nellie Conway apareceu lá em casa, para emalar as suas coisas, e Bain fez com ela um contrato qualquer, de maneira que a tua ex-cliente retomou o serviço, temporariamente, por umas horas.

"Mrs. Bain teve uma noite repousada, dormindo como já não lhe acontecia, havia muito tempo. Por volta da meia-noite, um avião trouxe de Honolulu a sua meia-irmã, Victoria Braxton, e o seu meio-irmão, James Braxton... e também a mulher deste, Georgiana. Mal aterraram foram logo direitos a casa dos Bain.

"Como Elizabeth Bain estivesse a dormir profundamente, decidiram não a incomodar. Contudo, por volta das três da manhã, ela acordou e disse que desejava vê-los.

"Parecia muito ensonada e estonteada e pediu para que a deixassem continuar a dormir.

"Agora, escuta isto, Perry: Nellie Conway não esteve, praticamente, de serviço à cabeceira da doente. Foi fazer as malas e teve uma conversa com Bain. Assinou um papel qualquer e deve ter recebido, nessa altura, as "massas". Estava disposta a deixar a casa, nessa mesma noite, mas, como os Braxton vinham cansados da viagem e queriam repousar um pouco, Nellie acedeu em ficar a tomar conta de Elizabeth.

"Após uma hora de sono, Victoria Braxton levantou-se e disse a Nellie que se achava completamente repousada, de maneira que a outra já podia ir-se embora. Nessa altura, a governanta já tinha ido para a cama."

- Que mais?

- O médico, chamado Keener, deixara cinco comprimidos para serem ministrados a Mrs. Bain, quando ela acordasse, a qualquer hora, depois das seis da manhã. Sublinhou que esses comprimidos não deveriam ser-lhe dados, antes daquela hora. Foram confiados a Nellie.

"Elizabeth Bain acordou, por volta das cinco horas e manteve-se acordada algum tempo, a falar com Victoria Braxton. Tornou a adormecer e só voltou a despertar, cerca das sete da manhã. Não quis tomar o pequeno-almoço, mas bebeu uma chávena de café. Nessa altura, tomou três comprimidos. Pelo menos, foi o que ela disse ao médico.

"Agora, toma atenção, Perry. A única coisa que ela ingeriu, desde as oito e meia da noite anterior, foram esses três comprimidos. Portanto, o arsénico tinha de estar neles."

- Ou no café.

- Temos de excluir essa hipótese, porque várias pessoas beberam do mesmo café.

- Talvez no açúcar.

- Não se serviu de açúcar. A enfermeira diurna chegou às oito horas da manhã. Encontrou Victoria Braxton a tomar conta da irmã. Victoria quis tomar um banho e, depois, saiu de casa, sendo substituída pela enfermeira.

"Esta encontrou a doente adormecida, mas já sofrendo de dores, pois gemia. Não quis acordá-la e sentou-se-lhe à cabeceira. Isto é importante, porque significa que nenhuma prova foi retirada do quarto, desde que ela entrou ao serviço."

- Continua.

- Pouco tempo depois das nove, Mrs. Bain acordou com dores violentas e tão nítidos sintomas de envenenamento por arsénico que a própria enfermeira diurna, embora não sendo especializada, assim os diagnosticou. Telefonou imediatamente ao médico assistente que, às nove e meia, confirmou o diagnóstico elementar feito pela enfermeira. Concluiu também que, se a paciente não tivesse dormido tão profundamente, teria manifestado, mais cedo, as dores que gradualmente se tinham acentuado. Também absorvera demasiado arsénico, antes que o estômago pudesse rejeitá-lo. O sono, anormalmente profundo e quase contínuo de Mrs. Baim surpreendeu igualmente o médico, visto que não mandara ministrar-lhe uma dose de sedativo superior à habitual. Para finalizar, Elizabeth Bain morreu às onze e meia da manhã.

"Victoria Braxton já regressara a casa, por volta das onze menos e um quarto, portanto, numa altura em que a irmã já devia pressentir que estava a morrer.

"Apesar do seu estado de sofrimento e angústia, Elizabeth chamou por Victoria e esta acorreu para junto dela, mandando sair o médico e a enfermeira do quarto, pois desejava ficar a sós com a irmã, por uns dois minutos. O médico recomendou-lhe que não se demorasse mais de cinco, indo, com a enfermeira, preparar um vomitório e café forte. Victoria demorou-se cerca de três minutos com Elizabeth e ninguém sabe de que falaram."

- Tratou-se realmente de envenenamento por arsénico?

- Sim, Perry. Não há dúvida alguma. Estão agora a fazer a autópsia e uma análise aos órgãos vitais, mas, já antes disso, o médico tomara a precaução de recolher alguns resíduos do estômago que lhe permitiram confirmar, definitivamente, o seu diagnóstico.

- E quanto ao elemento tempo? As várias versões são concordantes quanto a horas e minutos do decurso dos factos?

- Todas as versões encaixam, umas nas outras.

- Os médicos também concordaram quanto à provável hora a que o arsénico foi ministrado à paciente?

- Bem... os médicos abstêm-se de prestar informações a esse respeito, mas o procurador do Distrito parece não ter dúvidas quanto à evolução do envenenamento e, obviamente, consultou os médicos. De resto, eu próprio dei-me ao cuidado de fazer a minha investigaçãozinha e recorri aos livros.

Drake tornou a olhar para o seu bloco-notas e expôs:

- Segundo a obra do Professor Glaister, "Medical Jurisprudence and Toxicology", os sintomas da intoxicação por arsénico manifestam-se cerca de uma hora após a ingestão do produto, caso o paciente tenha ingerido alimentos. Contudo, tendo ele o estômago vazio, os sintomas não se evidenciam antes de decorridas duas horas, pelo menos... e casos houve em que chegaram a demorar sete horas.

- Quinze "grãos" são uma dose fatal?

- Certamente, mas, de acordo com o Professor Glaister, também- houve casos em que dois "grãos" de arsénico foram suficientes para matar a vítima.

"No livro de Gonzales, Vanoe e Helpem, intitulado "Legal Medicine and Toxicology", afirma-se que três "grãos" de arsénico, absorvidos pelo organismo de um homem de corpulência normal, são bastantes para matá-lo. Os autores acrescentam ter havido excepções em que uma dose maior fora ingerida sem resultados fatais, mas isso sucedeu quando o estômago rejeitara o arsénico, antes de este ter sido assimilado pelo sistema orgânico."

O telefone tocou e Drake atendeu:

- Sim... Está aqui... Atende já. Virando-se para Mason, informou:

- É Della Street.

- Co'os diabos! Deve tratar-se de um assunto de grande emergência para Della telefonar a uma hora destas!

- "Chefe" - disse a secretária, - não quero mencionar nomes ao telefone, mas trata-se da cliente que o consultou acerca de um testamento.

- Do testamento a que faltava um ponto final?

- Sim.

- Que se passa com ela?

- Está comigo. Há uma data de gente a tentar caçá-la, mas ela não quer falar com ninguém-, antes de contactar consigo. Há qualquer pormenor que parece poder implicá-la no que aconteceu.

- Okay. Diga-lhe para não falar seja a quem for e trate de pô-la fora da circulação. Tenho um avião para aí, à uma e trinta e cinco. Seguirei nele.

O rosto de Drake manifestou surpresa.

- Esse é o avião em que Baim tenciona regressar. Mason confirmou com um aceno de cabeça e acrescentou para o bocal:

- Mantenha a cliente intocável. Irei ter convosco.

Mal o advogado pousou o auscultador, o aparelho voltou a tocar. Desta vez, a chamada era para Drake que atendeu:

- Sim... Sim... Obrigado. Estou-lhe muito grato. Não me esquecerei de si.

Desligou e respondeu à interrogação muda da expressão de Mason:

- Foi um "lamiré" da agência de detectives que contratei aqui. Parece que a Polícia da Califórnia está interessada em Nellie Conway. Telefonaram de Los Angeles para a de Nova Orleães... e os "chuis" de cá interrogaram todos os motoristas de táxi que fazem "praça" no aeroporto. Descobriram o que conduziu Nellie ao seu apartamento e foram interrogá-la... pelos vistos... pouco depois de tu teres saído de lá.

"Isto pode significar que a Polícia de Los Angeles te descobriu a pista. Como vieste para Nova Orleães, seguiram-te as passadas, a ver qual era a tua intenção. Depois, caçaram Nellie."

- Okay, Paul. Não quero que ninguém saiba que sigo nesse avião da uma e trinta e cinco. Compra um bilhete em teu nome e, no aeroporto, aluga um compartimento-cofre. Põe lá o bilhete e entrega a chave à empregada das "Informações". Faze-lhe uma descrição da minha pessoa e dize-lhe que irei buscar essa chave, mais tarde. A chave tem o número do compartimento-cofre e não terei dificuldade em dar com ele.

- Mas por que não viajas no teu próprio nome, Perry? Embora tenham seguido a tua pista até cá, nada têm contra ti.

- Acontece que trago, na algibeira, quinhentos dólares que me foram pagos por Nellie. Ela pode falar-Lhes nisso e a Polícia é capaz de considerá-los uma espécie de suborno. Aqui os tens, Paul. Mete-os num sobrescrito e manda-os, pelo correio, para o teu escritório.

"Também não quero levar o bilhete de avião no bolso, porque posso ser interceptado, antes de chegar ao aeroporto.

Calou-se, quando ouviu baterem à porta do quarto-duplo. Drake guardou o dinheiro nas calças e foi abrir. Deparou com dois polícias à paisana e um deles perguntou:

- Qual deles é o nosso "pássaro"?

- É aquele que está junto daquela porta de comunicação entre os quartos -respondeu o outro, apontando para Mason.

- Venha daí, Mister - ordenou o primeiro. - Temos um sítio aonde ir. Gente importante quer falar consigo.

 

Mason, escoltado pelos dois agentes, entrou num gabinete cujo odor indicava ser habitado, vinte e quatro horas por dia, por gente suada e fumadora, sem ser arejado.

Um sargento, sentado à sua secretária, desfechou:

- Não gostamos de tipos que entram nesta cidade, para negócios escuros. Como se chama?

- Suponha que lhe digo ser João Ninguém?

- Muita gente o faz... e metêmo-la na "choça". Se é isso que quer, não nos custa nada. Vai para uma cela, esvaziamos-lhe as algibeiras, tiramos-lhe a gravata, o cinto e os atacadores e deixamo-lo a "secar" por uns tempos, até lhe apetecer "dar à dica".

- Sob que acusação?

- Qualquer serve. Ainda não tinha pensado nisso, mas pode ser vadiagem.

- Estou hospedado num hotel e trago dinheiro para pagar a minha viagem turística.

- Nesse caso, prendêmo-lo por uso de prostituição. Andou para aí a dormir com menores de má vida.

- Não podem provar uma acusação dessas, porque é falsa.

- "Enquanto o pau vai e vem", você fica na "gaiola". Para começar, mostre-nos a sua carta de condução... ou quer que o mandemos revistar, à força?

Mason tirou a carteira do bolso do casaco, estendeu um cartão ao sargento e declarou:

- Sou Perry Mason, advogado, e vim a Nova Orleães para interrogar uma cliente.

O sargento assobiou, surpreendido. Com o cartão na mão, saiu do gabinete poluído e só voltou alguns minutos depois.

- O capitão quer falar consigo - anunciou. Novamente escoltado por outros dois polícias, estes uniformizados, Mason foi introduzido num novo gabinete, ligeiramente menos mal cheiroso.

Atrás da secretária estava um indivíduo de olhos papudos, de meia-idade, corpulento e com um bigodinho fino. A um canto da sala, achava-se Nellie Conway, sentada numa desconfortável cadeira de madeira. Olhava em frente, como sempre inexpressivãmente. Uma estenógrafa, de lápis e bloco-notas em punho, estava a um canto da secretária do capitão.

Nellie não manifestara reconhecer Mason, mas, quando o polícia lhe perguntou: - É este o homem? - respondeu secamente:

- Sim.

Então o capitão indicou a Mason:

- Sente-se.

Mas o advogado permaneceu de pé. Então o capitão observou:

- Vejo que está a "armar-se" em refilão>, mas isso não o leva a lado algum. Pelo menos, nesta cidade. Não pense que está em Los Angeles onde é possível que tenha protecções.

- A minha protecção é a Lei - rispostou Mason. - Vigora em todos os Estados Unidos.

- Muito bem. Se quiser ficar de pé, fique. As pernas são suas... mas isto vai levar bastante tempo.

Voltando-se para Nellie, relatou:

- Você disse que tudo quanto fez foi em observância aos conselhos de um advogado, Perry Mason. Aqui o tem, diante do nariz. Portanto, diga o resto.

- Aconselho-a a não proferir uma palavra - interveio Mason.

- Cale-se - intimou o capitão.

- Continua a ser o meu advogado? - sondou Nellie.

- Não, Miss Conway. Já lho tinha dito - respondeu Mason.

Então, Nellie declarou:

- Nathan Bain; como já disse, ofereceu-me quinhentos dólares para eu dar os tais comprimidos à mulher. Como receei que se tratasse de um veneno, fui consultar Mr. Perry Mason... e mostrei-lhe o tubo de comprimidos que me tinha sido entregue por Bain.

"Continha quatro compridos. Mr. Mason separou um e meteu-o num sobrescrito que fechou, assinando ele de um lado e eu no verso. Depois, introduziu o tubo, com os restantes três comprimidos, num outro sobrescrito e ambos o assinámos, como já tínhamos feito ao anterior. Mr. Mason disse-me tencionar mandar analisar o comprimido que introduziu no sobrescrito, e mandou-me conservar o tubo, com os outros três, até ter ele falado com o sargento Holcomb dos "Homicídiios".

- Que mais aconteceu?

- Nathan Bain mandou-me prender, acusando-me de ter-lhe roubado uma jóia falsa. Então Mr. Mason tomou a minha defesa e fui absolvida.

- E quanto aos comprimidos?

- Mr. Mason informou-me de que, após a análise daquele que ficara em seu poder, se concluira tratar-se de uma espécie de aspirina. Considerou-me mentirosa e insinuou que eu me servira dele... não sei para quê.

- Que mais?

- Regressei a casa dos Bain, para fazer a minha mala. Aí encontrei Nathan Bain que estava muito receoso de que eu o processasse por perdas e danos. Propôs-me uma compensação... uma espécie de indemnização, mas sem meter advogados no assunto.

- Pagou-lhe essa compensação?

- Sim. Entregou-me dois mil dólares e um bilhete de avião para Nova Orleães; também uma chave de um apartamento onde eu poderia instalar-me durante duas semanas de férias. Assinei-lhe um documento em que me comprometia a não o processar e ele pediu-me que eu ministrasse aqueles três comprimidos à mulher. "Como Mr. Mason me tinha assegurado de que os comprimidos eram inóquos, do tipo aspirina, não vi incoviniente algum em dá-los a Mrs. Bain."

- Teve dificuldades em conseguir que ela os ingerisse?

- Não! De maneira alguma! Eu era a sua enfermeira nocturna e limitei-me a explicar-lhe que era o remédio que o médico me pedira que eu lhe desse. Contudo, Mrs. Bain observou que já tomara um outro medicamento, também receitado pelo médico, em complemento da medicação habitual.

- Que aconteceu?

- O remédio que dei a Mrs. Bain não lhe fez mal algum. Tomou-o e adormeceu, quase logo a seguir.

- E depois?

- Tentei comunicar com Mr. Mason, mas não o consegui. Saí da casa dos Bain às sete horas da manhã e, até às dez, procurei falar com Mr. Mason. Em vão, pois ainda não tinha chegado ao seu escritório.

- Deu algum recado à secretária?

- Não.

- Não a informou do local para onde ia?

- Não.

- Nesse caso, como conseguiu Mason descobri-la, nesta cidade?

- Não sei.

- Quando tornou a vê-lo?

- Por volta das duas e meia da madrugada de hoje.

- Onde?

- No meu apartamento.

- Que pretendia ele de si?

- Quinhentos dólares.

- Pagou-lhos?

- Sim.

- Do dinheiro que recebera de Nathan Bain?

- Sim.

- Disse a Mason como obtivera esse dinheiro?

- Sim.

- E ele passou-lhe um recibo no valor dessa quantia?

- Não.

O capitão virou-se para Mason e inquiriu:

- Deseja negar as declarações que acaba de ouvir?

Mason replicou:

- Não gosto da maneira como as coisas estão a correr por aqui, pelo que não direi uma só palavra.

- Esta mulher acaba de acusá-lo de ter-lhe entregue três comprimidos destinados a Mrs. Bain. Nega isso?

- As declarações de Miss Conway, tal como foram prestadas, estão feridas de incorrecção.

- Que quer isso dizer, em linguagem de gente?

- Pecam por imprecisão.

- Troque isso por miúdos.

- O comprimido que mandei analisar era inócuo, pois só continha um produto semelhante à aspirina. Desconheço a natureza química dos outros três... e não sugeri, de modo algum, que Miss Conway os ministrasse a Mrs. Elizabeth Bain. Apenas lhe disse que os guardasse

- Muito bem, Mason. Tem mais alguma coisa a dizer?

- Nada.

- Como podemos precisar novamente de si, não saia da cidade. Volte para o seu hotel e não se afaste para nenhum lado, sem no-lo comunicar. Pode ser acusado de cumplicidade num caso de homicídio, "embrulhado" em quinhentos dólares para que fossem dados três comprimidos à vítima. Pode sair. Que raio de advogado é você?

- Ver-se-á, quando este caso estiver concluído - retorquiu Mason.

Virando-se para Nellie, perguntou:

- Que horas eram, quando...

- Ponha-se a andar! - cortou o capitão, exasperado.

Fez um sinal de cabeça aos dois guardas que agarraram Mason, cada um pelo seu braço, e o impeliram para o corredor.

A porta fechou-se com estrondo.

 

O táxi que Mason tomou estava estacionado defronte do quartel-general da Polícia e o advogado indicou em voz alta, ao motorista:

- Leve-me ao "Roosevelt Hotel".

Chegado ao hotel, pagou a corrida, dirigiu-se à portaria e pediu a chave do seu quarto-duplo. Ostensi­vamente entrou no elevador e disse ao ascensorista:

- Quinto piso.

No corredor, esperou que o elevador tornasse a descer e encaminhou-se para as escadas. Desceu estas até ao rés-do-chão e, aí, percorreu o corredor até à escada de acesso às traseiras do edifício.

Já no passeio, andou ao longo de dois quarteirões e chamou um táxi que ia a passar.

- Vá seguindo em frente - indicou ao motorista,- até eu me lembrar do nome do local aonde quero ir.

- Está um lindo dia - comentou o homem. - O senhor levantou-se cedo, hem?

- Quero dar uma vista de olhos pela cidade e talvez até pelos arredores. A que horas larga você o serviço?

- Às quatro da tarde.

- Nesse caso, que me diz a ganhar cinquenta dólares, por dar umas voltas comigo, até à sua saída de serviço?

- A ideia é esplêndida, sir. Aonde quer ir?

- Ainda não sei. Vamos por aí fora.

- Está bem, mas tenho de avisar a Central do des­tino que levo. Registam sempre todos os serviços longos.

- Diga-lhes que vamos para Biloxy.

- Mas isso fica muito fora da cidade. Julguei que quisesse ver a cidade por dentro...

- A verdade é que não sei ao certo para onde quero ir. Mas que mal faz você informar a Central de que vamos para Biloxy?

- Nenhum. Terá de esperar que eu comunique com eles, da próxima cabina telefónica.

- Okay. Entretanto, baixe um pouco o volume do rádio que está a tornar-me nervoso.

Pouco depois de ter telefonado, o motorista voltou ao táxi e disse:

- Pronto. Já os avisei, mas olhe que a corrida de ida e volta são cerca de setenta e cinco dólares.

- Aqui tem cem e arranque. Escusamos de ir para Biloxy. Contento-me com dar umas voltas, por onde você achar melhor.

- Cem chegam e sobejam. Já há muito tempo que não apanho um cliente como o senhor. Mas olhe que, às quatro, tenho mesmo de largar o serviço. Sou rendido por um colega, na Central, e nem sequer posso trocar com ele, para continuar a andar consigo.

- Porquê? É contra as regras da casa?

- Sim, mas não as da Central. É contra as regras da minha casa, visto que a "patroa" não é fácil de aturar e faz-me uma cena, sempre que chego tarde... A propósito, por que se lembrou de Biloxy?

- Porque, em tempos, conheci uma rapariga que vivia lá.

- Com tantos "borrachinhos" por aqui, foi logo arranjar uma tão fora da cidade! Só a corrida custava-lhe dois bons jantares num restaurante fino!

- Eu não ia ter com ela para jantar.

O motorista riu e começou a servir-lhe de cicerone, apontando os locais de interesse por onde iam passando. Mais tarde, pararam para almoçar num restaurante chamado "Negro" e o homem mostrava-se encantado com a generosidade de Mason. Depois da refeição, prosseguiram a viagem.

- Há algum grande parque na cidade? - perguntou Mason que já o conhecia.

- Sim, mas fica para os lados do aeroporto. Como, nessa zona, foi proibida a construção de prédios, por causa dos aviões, deixaram crescer as árvores que não são tão altas como os edifícios e fizeram jardins. É aquilo a que os tipos da Urbanização chamam o pulmão da cidade.

- Okay, vamos para lá.

De quando em quando, um avião sobrevoava o parque e Mason sugeriu:

- Gostava de ir até ao aeroporto. Desde miúdo que me encanta ver os aviões levantarem voo e aterrarem.

- A mim, tanto se me dá - respondeu o motorista.

- Tudo quanto é movido a motores lembra-me este raio de ofício. Só o cheiro da gasolina é bastante para me incomodar.

Era uma hora e um quarto, quando Mason propôs:

- Olhe, amigo. Vou assistir aos voos na sala do aeroporto... e talvez fique por lá, um pedaço, a tomar umas bebidas. Você já está pago. Se eu não regressar, dentro de um quarto de hora, pode ir-se embora.

- Mas ainda falta muito para as quatro!

- E isso que tem? Você escusa de avisar a Central de que me deixou ali. Como estamos a rodar ao quilómetro e não à bandeirada, pode embolsar a "massa que lhe dei e descansar até à sua hora de largar o serviço. Se quiser, até pode meter outros passageiros, com o taxímetro a trabalhar, aumentando os lucros da sua "carteira" do dia.

Era uma proposta que pareceu ao motorista ouro sobre azul.

Depois de entrar no aeroporto, Mason dirigiu-se ao balcão das informações e a empregada, ouvindo-o pedir a chave do compartimento-cofre, olhou para ele, identificou-o pela sinalética descrita por Drake e estendeu-lhe um sobrescrito, com a chave e uma nota rabiscada à pressa.

Depois de ir buscar o bilhete, Mason esperou que o chamassem para o voo Nova Orleães/Los Angeles. Ainda faltavam dez minutos para a partida e sentou-se, calmamente, a ler uma nota que Drake juntara à chave, dentro do sobrescrito.

"Della já sabe que segues nesse avião. As coisas estão a correr demasiado depressa para mim. Vou meter-me num buraco e tapá-lo com uma pedra. A Polícia tem andado a seguir-me. Telefonou para o hotel a lembrar-me de que não podes deixar a cidade... mas mandou-me sair de cá, o mais depressa possível. Não querem detectives "estrangeiros" por estas bandas. Não gosto da maneira como esta gente dá cartas. Por isso ponho-me a andar com as malas... a minha e a tua."

A nota não estava assinada.

Mason ouviu o altifalante chamar os passageiros e entrou na bicha para o seu voo. Depois de lhe conferirem o bilhete, seguiu, com os outros, através da pista, para o aparelho que os aguardava.

O avião aterrou em El Paso, uma paragem da escala para Los Angeles, e meteu passageiros. Entre eles vinha uma mulher que fitou o advogado atentamente. Vinha acompanhada de um sujeito, de cabelos no ar e olhos tímidos. Quando falavam um com o outro, ela fazia toda a despesa da conversa e ele limitava-se a murmurar "sim querida".

A certa altura, a mulher, bastante formosa, que lembrava a Mason alguém que ele já tinha visto, acercou-se e tocou-lhe no ombro.

- Miss Street mandou-nos, ao meu marido e a mim, vir ter consigo a El Paso.

- Tem alguma carta de apresentação?

- Não. Falei com a sua secretária, por telefone. Sou Georgiana e o meu marido é Jim... James Braxton, irmão de Victoria e meio-irmão de Elizabeth Bain. Já sabe o que aconteceu, Mr. Mason?

- Que foi?

- Essa enfermeira, Nellie Conway, deu o veneno à minha cunhada. Foi Nathan quem a impeliu a isso.

O advogado ergueu as sobrancelhas, interrogativamente.

- Não está a dizer uma palavra, Mr. Mason - estranhou Georgiana.

- O seu marido também ainda não abriu a boca.

- Ele é um "ouvidor" por excelência. Lá em casa, quem fala sou eu... e trato de tudo... Gostaria de ouvir a sua opinião acerca do caso, Mr. Mason.

- Muita gente gostaria de ouvi-la.

- Receio não estar a compreender...

- A senhora veio ter comigo, apresentando-se como sendo Georgiana, na companhia de seu marido, James Braxton. Contudo, nunca os vi na minha vida. Quem me diz que não são repórteres de um jornal qualquer?

- Santo Deus, Mr. Mason! A sua secretária, Miss Della Street, indicou-nos a hora e o avião em que o senhor regressava a Los Angeles e mandou-nos vir ter consigo a El Paso. Foi o que fizemos, a toda a pressa, visto estarmos, como é natural, apoquentadíssimos com tudo o que tem acontecido. Tem de acreditar-nos, Mr. Mason!

- Trazem algum documento de identificação?

James Braxton abriu a boca para confirmar:

- Este.

E exibiu a carta de condução. Mason examinou-a e inquiriu:

- Onde estavam, há três dias?

- Em Honolulu-respondeu Georgiana.

- Quem estava convosco?

- Vicky... Victoria, a minha cunhada. Vivemos lá os três.

- Tem outros documentos de identificação?

- Certamente. Cartões de clubes a que pertencemos, cartões de crédito para gasolina e até um livro de cheques de um banco de Honolulu.

- Deixe-me vê-los.

Depois de examinar os vários cartões que lhe eram exibidos, Mason disse:

- Okay. Tinha de certificar-me, como devem compreender. Por que motivo Miss Street os mandou vir ao meu encontro a El Paso?

- Porque o senhor era advogado de Elizabeth e agora que ela morreu, desejamos que nos represente.

- Se têm alguma informação para mim, é melhor não perderem tempo com rodeios.

- Muito bem, Mr. Mason. Eu sempre desconfiei de Nathàn Bain e, quando me disseram que os sintomas da morte da minha cunhada eram os de envenenamento por arsénico... Bem, pensei que, se havia alguma pessoa interessada em dar cabo dela, seria Nathan. A sua secretária, Miss Street, também admite essa probabilidade.

- Por que pensa a senhora que o seu cunhado matou a mulher?

- Porque o conheço bem. Quando casou com ela, era todo gentilezas e prometera emagrecer, para ser-lhe agradável. Depois disso, não só passou a comer ainda mais, engordando a olhos vistos, como se portou deselegantemente para com ela. Esse homem é um bruto!

- Vai direita ao assunto - recomendou James Braxton.

- Que assunto? - interessou-se Mason.

- O do primeiro casamento de Nathan. A outra mulher morreu, cerca de três anos antes de ele casar com Elizabeth. Estava financeiramente falido quando a desposou, embora alardiasse que os seus negócios iam de "vento em popa". Nathan casou apenas para ficar com o dinheiro de Elizabeth. Só que ela, embora parvamente apaixonada, foi suficientemente esperta para casar com separação de bens, mantendo tudo o que tinha em seu próprio nome.

"É um tipo que, a falar, leva todos na onda, mas eu descobri logo a sua hipocrisia. A mim nunca me enganou. Começou, logo de princípio, a querer convencer Elizabeth a financiar este e aquele empreendimento, mas ela sempre lhe respondeu que não era mulher de negócios e que vivia muito bem com os rendimentos que tinha. Então, ele começou a tratá-la sem a mínima consideração. Um dia, em que estava com uns copos a mais, descaiu-se acerca da sua primeira mulher."

- Descaiu-se, como?

- Falou-nos da maneira como ela morrera.

- Como se chamava essa primeira mulher de Bain?

- Martha.

- Como morreu ela?

- Estavam casados, havia coisa de dois anos, quando ele se lembrou de levá-la para uma estadia no México. Aí, a desgraçada comeu qualquer coisa que lhe fez mal e ficou terrivelmente doente. Ele, ao descrever a situação, pintou-a como um verdadeiro pesadelo, a guiar como um louco, até encontrar um local onde Martha pudesse receber assistência médica. Mas só havia farmácias e clínicos que, segundo ele, não inspiravam confiança.

"Quando chegaram à sua própria casa, chamou o médico que diagnosticou intoxicação alimentar, provavelmente causada pelo marisco que haviam ingerido... embora Nathan estivesse fino! Martha morreu e estou convencida de que foi envenenada. Os sintomas que ele descreveu da tal intoxicação eram idênticos aos do envenenamento por arsénico. Nathan oferecera a Martha uma caixa de bombons que ela viera a comer, pelo caminho."

- Pensa que esses bombons estivessem envenenados?

- É o mais natural. Nada custa injectar-se arsénico no recheio de bombons, sobretudo nos que sabem a amêndoa amarga.

- Bain não quis que a mulher fosse vista por um médico mexicano?

- Opôs-se a isso, porque, segundo ele, todos esses "índios" eram curandeiros. Levou-a para casa...

- Onde viviam, nessa altura?-interrompeu Mason.

- Em San Diego. O médico era um amigalhaço de Nathan que diagnosticou a tal intoxicação alimentar. Martha morreu dois dias depois de chegarem a San Diego.

- Mas o envenenamento por arsénico...

- Já sei o que vai dizer, Mr. Mason, mas Nathan não lhe deu uma dose fatal, logo na viagem. Teve mais dois dias para envenená-la, gradualmente, enquanto simulava estar a medicá-la. O que interessa é que a matou e o médico não hesitou em passar a certidão de óbito.

- Georgiana! - atreveu-se James Braxton a censurar.

- Que é? Receias que Mr. Mason me instaure um processo por difamação?

- Bem, é que...

- Deixa este assunto comigo, Jim! Na minha opinião, Nathan não quis que Martha fosse vista por um médico mexicano, para que o estado dela se agravasse ainda mais e o médico seu amigo passasse a certidão de óbito, sem desconfiar do envenenamento.

- O corpo de Martha Bain foi cremado?

- Não, embora fosse essa a intenção de Nathan; mas os pais dela, que são católicos, opuseram-se, de maneira que foi enterrada em San Diego.

- Bem, isso já me dá algumas bases para eu trabalhar, quando for oportuno. Não falem neste assunto a ninguém. Estão a compreender?

Acenaram afirmativamente com a cabeça e Mason prosseguiu:

- Pode ser muito importante, visto que Nellie Conway desconfiou do mesmo, quando me trouxe os comprimidos que Bain desejava que ela desse à mulher. Talvez a morte da primeira mulher de Bain possa servir de "bomba", quando eu o interrogar no tribunal. Portanto, tratem de manter segredo a esse respeito.

- Pode estar certo, Mr. Mason, de que não abrirei a boca e, quanto a Jimi, nem vale a pena preocuparmo-nos. Já nasceu calado ou fez-se mudo por vocação.

 

A noite estava límpida e calma e as estrelas brilhavam vivamente no firmamento, mas empalideceram, quando o avião imergiu nas luzes do aeroporto.

Seguindo as instruções de Mason, Georgiana e James saíram entre os primeiros passageiros. O advogado deixou-se ficar para o fim e, ao desembarcar, olhou em redor para ver se descobria a esbelta silhueta de Della Street.

Não a viu e, preocupado, dirigia-se para a saída do terminal, quando avistou o tenente Tragg junto do relógio de parede, a observar o ponteiro saltitante dos segundos.

Procurando não ser visto, Mason esgueirou-se para a porta de acesso ao parque de estacionamento das viaturas, mas ouviu Tragg gritar o seu nome, peremptoriamente.

Mason virou-se e aparentou surpresa. Tragg já corria para ele. Era um indivíduo alto, espadaúdo, com um olhar inteligente e Mason sabia-o um antagonista perigoso.

O tenente dos "Homicídios" agarrou-lhe um braço e perguntou:

- Como vai isso, Mason?

- Esplendidamente. E os seus casos?

- Progredindo. Ouvi dizer que você estava em Nova Orleães...

- Não lhe mentiram.

- E a Polícia de lá informou-me de que o tinha proibido de deixar a cidade...

- Também é verdade. Mas a Polícia de Nova Orleães é prepotente e bruta "como as casas"!

- Não me diga que você se permitiu sair de lá, sem uma autorização.

- Se não quer que lho diga, pense o que melhor lhe aprouver. Você veio esperar-me ao aeroporto?

- Não Mason. O meu avião deve partir dentro de escassos minutos. De resto, não gosto de esperar sentado.

- Vai a Nova Orleães para interrogar Nellie Conway?

- Sim, mas, oficialmente, a minha deslocação é confidencial, não sei se está a perceber o quase-para-doxo.

- Nova evolução do caso Bain?

Tragg abanou a cabeça.

- Escusa de ser tão secretívo comigo, Tenente. Aposto em que já toda a gente sabe que Nathan Bain ia deixar Nova Orleães, no mesmo avião em que vim. Só que não estava a bordo. Portanto, " engavetaram-no". Não foi isso?

Tragg fingiu ter ficado surpreendido, mas Mason insistiu:

- Você ainda não estava a par disso?

- Vejo que sabe muita coisa, Mason. Por acaso eu já fora informado a esse respeito.

- Nellie Conway foi caçada pela Polícia; Nathan Bain foi caçado pela Polícia e aposto em como prestou umas declarações substanciais. Por isso, você vai de viagem.

- Desconfio Mason, que tem uma bola de cristal! Podia fazer fortuna a ler a sina e a predizer o futuro.

- Bain confessou o crime?

- Por que não olha para a sua bola de cristal?

- Não quer dar-me essa informação, Tenente? Tragg abanou a cabeça e Mason alertou:

- Creio que vou armar um sarilho com o seu sargento Holcomb.

- Ou ele o arma a si. Já aconteceu, de outras vezes.

- Sim, mas nunca teve sorte. Desta vez vai ver-se em "palpos de aranha".

- Que diabo fez ele?

- O mal reside naquilo que não fez. Mostrou-se amnésico acerca de uma conversa que tive com ele.

- A respeito de quê?

- Do caso Bain e de Nellie Conway.

Tragg, pensativo, tomou uma expressão séria. Lentamente, esclareceu:

- Holcomb é amigo de Nathan Bain. Ainda há pouco tempo, inscreveu-se num curso de relações públicas, destinado a oficiais da polícia e a deputados de xerife... e Bain foi seu professor. É um homem bem falante e impressionou grandemente o pobre Holcomb. Depois disso, encontraram-se algumas vezes e, há coisa de uma semana, Bain disse-lhe suspeitar de que uma das enfermeiras, que lhe tratava da mulher, furtara algumas jóias lá de casa.

"Holcomb explicou-lhe que esse assunto estava fora das suas atribuições, mas apresentou-lhe um detective para ajudá-lo... um tal James Hallock. Isso responde a qualquer dúvida sua, Mason?"

- Explica uma data de factos.

- Naturalmente, quando você relatou a Holccomb uma história acerca de comprimidos, supostamente contendo arsénico, ele pensou que você pretendia apenas atacar Bain para defender Nellie Conway... e deu-Lhe "sopa".

Uma voz feminina anunciou que os passageiros destinados a Nov" Orleães deviam aproximar-se da Porta 15 e Tragg, sorrindo, desejou:

- Boa sorte, advogado.

- O mesmo para si, Tenente. Espero que traga consigo, na volta, uma confissão de Nathan Bain, para pô-la sobre a secretária de Holcomb.

- Quer enviar alguma mensagem à Polícia de Nova Orleães?

- Diga-lhes que os recordo com amor.

- É possível que eles o queiram de volta ao seu quartel-general.

- Para me apanharem lá, terão de telegrafar um mandado de captura e provar que violei qualquer lei do Estado de Louisiania. Só depois disso poderão obter a minha extradição do Estado da Califórnia. Talvez fosse bom, Tragg, que você lhes explicasse um poucochinho de leis... e de boas maneiras.

Ao passar para a pista, pela Porta 15, o tenente do Departamento de Homicídios ainda lhe acenou com a mão. Mason correspondeu-lhe e ia a virar-se para trás quando ouviu passos acelerados de sapatos femininos.

- Olá, "Chefe"! - saudou Della Street.

- Viva, minha amiga. Onde tem estado?

- Nem queira saber! Quando vi o tenente Tragg, não podia adivinhar o que ele viera aqui fazer. Não sabia se pretendia caçá-lo a si ou a mim... ou, simplesmente, apanhar um avião. Pelo sim pelo não, preferi aguardar os acontecimentos e uma oportunidade mais propícia.

- Menina esperta! Onde está Victoria Braxton?

- Num motel. Registámo-nos ambas, num quarto com duas camas.

- Nos vossos próprios nomes?

- Certamente, para não nos considerarem fugitivas à Justiça. Fiz bem?

- Sim... Mas ela não é uma fugitiva à Justiça?

- Não, por enquanto, "Chefe".

- Não andam à procura dela?

- Sim, mas só os jornalistas. A Polícia apenas comunicou que o procurador do Distrito pretende interrogá-la, porém, unicamente, amanhã.

- Mandaram-lhe uma notificação?

- Não, mas isso já veio publicado nos jornais. Contudo, não notificaram James Braxton e a mulher, Georgiana. Pelos visto, não os consideram envolvidos na morte de Elizabeth Bain. Que pensa deles, "Chefe"?

- Parecem-me fixes; só que ele não fala e ela fá-lo pelos cotovelos.

- Referiram-lhe a suspeita de que Bain matou a primeira mulher... com arsénico?

- Sim, mas só desejo aproveitar-me dessa hipótese, no momento oportuno. Acabo de saber que Holcomb se fez amigalhaço de Bain... ou vice versa. Por isso tem tentado protegê-lo.

- Isso explica o motivo por que se mostrou tão azedo consigo, "Chefe"... para não variar.

- Os repórteres têm andado à minha procura?

- Só no primeiro dia, até se convencerem de que o desejado Perry Mason se encontrava em Nova Orleães. Até constou que o tinham retido nessa cidade.

- Tentaram, mas sem resultado. Os sujeitos da Louisiana pretendem investigar um crime perpetrado na Califórnia. Que vão para o Diabo... que lhes ensine a Lei.

- Não creio, "Chefe", que o Diabo goste muito da Lei. Agora, que fazemos?

- Vamos tentar não ser seguidos no caminho. Vá você ao volante, Della. Dá mais nas vistas... mas levanta menos suspeitas. O alvo dos jornalistas sou eu. Que tal se dá com Victoria?

- Vicky preocupa-me.

- Porquê?

- Mostra-se muito reservada, como procurando esconder qualquer coisa. Além disso, fez uma habilidade.

- Habilidade?

- Sim. O testamento apareceu com o tal ponto final.

- E foi assinado, por baixo?

- Não... mas a sujidade de mosca apareceu, milagrosamente. Não poderão acusá-la de falsificação?

- Se alguém conseguir provar que esse ponto foi feito por outrem que não a própria testante; e que ele altera o sentido do documento... então, sim.

- Bem, o pontilho está lá.

- Resta saber quem o fez e com que caneta e tinta. É melhor olhar para a frente, Della. Não se esqueça de que vai ao volante. Ponto final.

 

Victoria Braxton recebeu-os, vestindo um saia-casaco de magnífica fazenda e sóbrio corte. Mason não perdeu tempo com preliminares.

- Toca a expor novidades - propôs.

- Não quer dizer-me, primeiro, o que sucedeu em Nova Orleães?

- Levava muito tempo e não podemos dar-nos ao luxo de desperdiçá-lo. Que se passa com essa história dos comprimidos? Você implicou-se nela?

- Receio ter sido eu quem lhos deu, Mr. Mason.

- Como aconteceu isso?

- Nellie Conway colocou-os num pires e disse-me que eu deveria dá-los a Elizabeth, mal ela acordasse, depois das seis. Pois bem, foi o que fiz.

- Eram três comprimidos?

- Sim. Quando a minha irmã acordou, ministrei-lhos com um copo de água.

- A quem mais contou você isso?

- A Miss Street... e estou a contar-lho, agora, a si.

- Não falou nisso à Polícia?

- Não. Estava tão excitada que me esqueci de referir esse pormenor.

- É um pormenor do tamanho de uma montanha - comentou Mason, com uma careta.

- Pois bem. Agora, tal como estão as coisas, é melhor não falar disso a mais ninguém.

- Mas, Mr. Mason, não compreende que só o meu testemunho pode implicar Nellie Conway no crime de Nathan Bain?

- Por agora, deixe a Polícia estabelecer essa correlação.

- Mas os comprimidos que ela colocou no pires, decerto continham o arsénico.

- Talvez, mas não o diga à Polícia.

- Porquê?

- Agora não tenho tempo a perder com explicações. Fale-me do testamento.

- Que há acerca dele?

- Não creio que o seu irmão e a sua cunhada estejam a par do assunto.

- Isso faz alguma diferença, desde que venham a ser contemplados, tal como eu?

- É possível que faça.

- Elizabeth não queria que Georgiana soubesse da alteração do testamento. A minha cunhada é muito extravagante e começaria logo a fazer despesas idiotas, por conta do que viria, um dia, a receber.

- Georgiana é desse género?

- O mais possível. Passa a vida a meter James em dívidas. Se Georgiana soubesse das intenções de Elizabeth... e vendo o estado em que ela estava... começaria logo a empenhar-se, a torto e a direito.

Mason ficou uns instantes pensativo e, depois inquiriu:

- Você discutiu esse assunto com a sua irmã?

- Sim. Foi ela quem trouxe à baila esse defeito da nossa cunhada.

- Quando?

- Às cinco da manhã, ao despertar pela primeira vez.

- Muito bem. Onde trazia Nellie os comprimidos, antes de colocá-los no pires?

Num tubo que tirou da algibeira da sua bata de enfermeira.

- Por que motivo não lhe entregou ela o tubo, em vez de pôr os comprimidos no pires?

- Não sei. Talvez receasse que eu me esquecesse de dá-los a Elizabeth. Despejou-os no pires que estava na mesinha-de-cabeceira, mesmo ao lado da cama, bem à vista.

- Onde estava você, quando ela o fez?

- À cabeceira da cama.

- A que distância da porta?

- A um metro e meio.

- A porta estava aberta?

- Sim.

- Você deu os comprimidos à sua irmã, quando ela acordou às cinco horas?

- Não. Estivemos a falar acerca do testamento e tornou a adormecer. Só lhos dei, quando voltou a acordar, às sete menos um quarto.

- Quando Elizabeth lhe disse estar convencida de que o marido a queria matar, também falou da intenção de divorciar-se dele e deserdá-lo?

- Sim.

- Para divorciar-se, mencionou ter algumas cartas escritas pela amante do marido?

- Não entrou em pormenores, mas disse-me ter provas documentais.

- Não as especificou?

- Limitou-se a dizer que provariam a infidelidade do marido.

- Onde tinha ela essas provas guardadas?

- Não mo disse. Começou a falar no testamento; redigiu aquele rascunho que lhe mostrei, Mr. Mason, e manifestou o desejo de o senhor ir lá falar com ela, para legalizá-lo devidamente. Depois, pediu-me que lhe alcançasse o livro de cheques que se achava na sua bolsa de mão. Mandou-me ir buscá-la à gaveta da cómoda do quarto. Trouxe-lhe a caderneta dos cheques e ela preencheu aquele que lhe entreguei, Mr. Mason, no valor de quinhentos dólares.

- Deixe-me dar uma outra vista de olhos a esse testamento improvisado.

- Mas já o viu, Mr. Mason.

- Mas quero vê-lo novamente.

Com visível relutância, Victoria tirou-o da sua malinha e estendeu-o ao advogado. Este pegou-lhe e examinou-o atentamente.

- Agora já tem o ponto final que faltava - observou.

Victoria Braxton não abriu a boca.

- Foi você quem o pôs, no fim do texto? - inquiriu Mason, fitando-a nos olhos.

- Não. Foi Elizabeth, mas por minha indicação, depois daquilo que o senhor me dissera a esse respeito.

- Julga que acredito nisso? Sabe que uma análise espectroscópica pode evidenciar que a tinta não é a mesma?

- Sei isso perfeitamente, pois foi o senhor quem mo disse, no seu escritório. Pois bem, vou dizer-lhe a verdade. Logo que o deixei, tomei um táxi e corri para casa. Elizabeth já se achava muito mal. Pedi ao médico e à enfermeira que me deixassem uns momentos a sós com a minha irmã e, utilizando a esferográfica com que ela redigira o rascunho do testamento, acrescentei-lhe o ponto final que o senhor afirmara ser essencial para que lhe dessem algum crédito. Juro-lhe, Mr. Mason, que, nessa altura, Elizabeth já não poderia fazê-lo.

- Agora a sua história já me soa mais digna de crédito. Em todo o caso, aconselho-a a nunca falar dessa irregularidade a ninguém. Se o fizer, o testamento seria impugnado e nem você nem o seu irmão receberiam um chavo da herança de Elizabeth. Está a perceber?

- Não é difícil.

- Agora, outra pergunta: por que motivo a sua irmã não completou o testamento, omitindo o ponto final e a assinatura, ao fundo da página, como sempre se faz, até numa carta comum.

- Vou explicar-lhe isso Mr. Mason. Quando Elizabeth estava a acabar o rascunho, Georgiana apareceu no quarto. A minha irmã só teve tempo de esconder o papel debaixo da roupa da cama, para que a nossa cunhada não o visse.

- E depois devolveu-lho, quando Georgiana se retirou?

- Não. Antes disso, eu dei-lhe o medicamento que o médico prescrevera. Então ela pediu uma chávena de café e eu toquei a campainha para que a governanta lha trouxesse. Nessa altura, chegou a enfermeira diurna e Elizabeth pediu-lhe que fosse ela a dar-lhe o café. Enquanto esta se virava para pegar na chávena, apressei-me a recuperar o testamento. Elizabeth sorriu-me, com um gesto de cabeça aprovativo. Depois ainda disse:

"-Está bem, Vicky."

- Por que não me contou isso antes, Victoria?

- Porque receei que o senhor não me acreditasse... que pensasse que o testamento ficara incompleto, com omissão de outros legados ou condições testamentárias. Juro-lhe que tudo isto é verdade, Mr. Mason.

- Mas alguém viu Nellie colocar os comprimidos no pires?

- Não. Estávamos só as duas no quarto.

- Muito bem, Victoria. Agora, vamos levá-la ao aeroporto. Quero que regresse a Honolulu. Antes disso, expedirá um telegrama para o procurador do Distrito, justificando a sua viagem. Dirá que teve de ir a Honolulu, para tratar de uns assuntos urgentes, relacionados com os bens da sua irmã. Dirá que se manterá em contacto com ele, para prestar-lhe toda a colaboração necessária. Pode acrescentar que essa deslocação lhe foi aconselhada pelo seu advogado. Percebeu?

- Sim, mas a que assuntos urgentes me refiro?

- A sua irmã tinha propriedades em Honolulu, não é verdade?

- Sim, montes delas. Eu e o meu irmão vivemos numa moradia que era de Elizabeth.

- Você não tem de explicar ao procurador do Distrito de que propriedades se trata... nem a ninguém.

- Mas que vou eu fazer, quando chegar a Honolulu?

- Nada. Você regressará imediatamente. Mandá-la-ei voltar, mal saia do avião.

- Sendo assim, para que diabo parto?

- Porque é uma bela maneira de mantê-la fora da circulação, durante este período. Não poderá ser acusada de ter fugido, porque enviou o telegrama ao procurador do Distrito e este não poderá interrogá-la, porque você não se encontra cá. Comprará o bilhete da passagem, no seu próprio nome. Eu tomo a responsabilidade da sua ausência em viagem.

- Tudo isso me parece bastante disparatado!

- Mas é a única coisa sensata a fazer; é a única maneira de você não ser interrogada, nas próximas vinte e quatro horas, sem que possam acusá-la de ter-se escondido. Aviso-a, novamente, de que não deve falar a ninguém acerca dos comprimidos que deu a Elizabeth. E não fale com a Polícia ou com o procurador do Distrito, se eu não estiver presente. Só prestará declarações, comigo ao pé de si. Percebeu?

- Não muito bem. Continuo a não entender por que razão...

- Não precisa de entender coisa alguma e, sim, de seguir à risca as minhas instruções. É capaz de fazê-lo?

- Sim.

- À letra?

- Sim.

Mason virou-se para Della Street e indicou:

- Okay, minha amiga. Leve-a para o aeroporto, depois de ter expedido o telegrama.

 

Logo ao princípio da tarde do dia seguinte, Paul Drake entrou no gabinete de Perry Mason. Este não escondeu uma certa ansiedade.

- Trazes notícias? Que aconteceu em Nova Orleães? Bain prestou declarações?

- A Polícia não tem deixado transpirar a menor informação, a não ser uma que não irá agradar-te.

- O que é?

- Emitiram um mandado de captura contra ti.

- Com que fundamento?

- Acusação de vadiagem.

- Mais algum?

- Não.

- Então esse não chega. Vadiagem não é crime para extradição; sim para expulsão do Estado em que foi cometida, desde que haja infracções graves; nenhum Estado vai requerer a outro que lhe devolvam um tipo que foi acusado de não ter dinheiro nem ocupação, a fim de tornarem a mandá-lo embora. Eles sabem isso.

- Nesse caso, por que emitiram o mandado de captura contra ti?

- É apenas um gesto. Se um tipo te prega uma partida e o vês "pirar-se", sem que tu possas deitar-lhe a mão e desforrar-te, não lhe fazes um gesto de raiva?

- Até há quem faça um manguito obsceno.

- Aí tens. Há muitas formas de desabafo, desde o suspiro conformado à obscenidade. Os "chuis" da Louisiana emitem mandados de captura improcedentes.

- São doidos!

- Cada qual tem a sua loucura. Não vieste aqui só para contares-me isso, pois não?

- O tenente Tragg descobriu qualquer coisa de peso.

- O quê? Terá provas de que Bain assassinou a mulher? "

- Aparentemente, tem uma prova de que ele não o fez.

- Gostaria de ver essa prova! - ironizou Mason.

- Só te digo, Perry, que a Polícia tem uma prova que mantém em absoluto segredo... e não é a de que Elizabeth Bain tenha cometido suicídio. Foi mesmo envenenada.

- Tens alguma suspeita do que seja?

- Só sei que o procurador do Distrito está furioso por não poder interrogar Victoria Braxton.

- Ela teve de ir tratar de assuntos urgentes, em Honolulu, referentes aos bens da irmã.

- Sim. Foi isso o que me disseste e que ela telegrafou ao procurador do Distrito, mas este não lhe perdoa essa fuga.

- Não foi, legalmente, fuga. Agiu a conselho do seu advogado.

- Isso não atenua a raiva do procurador do Distrito. A Polícia de cá tem estado em conferência telefónica com o tenente Tragg e este está prestes a deixar Nova Orleães. Descobriram qualquer "bomba" e... O telefone tocou e Drake atendeu:

- Sim, diga lá... Quem mais sabe acerca disso?... Okay, obrigado.

Desligou o telefone e elucidou Mason:

- Aqui tens, Perry, a resposta às tuas dúvidas. O Grande Júri reuniu-se secretamente e a Procuradoria do Distrito vai acusar Victoria Braxton de assassínio em primeiro grau.

- Com que provas?

- Secretas.

Virando-se para Della Street que acabava de entrar, Mason indicou:

- Minha amiga, ainda bem que chegou mais cedo. Mande um telegrama a Victoria Braxton que vai a bordo do avião para Honolulu e diga-lhe que regresse no voo imediato. Eu já tencionava fazer isto, mas agora o Grande Júri entrou na baila e tenho de acelerar o processo.

 

A audiência do Caso do Povo do Estado da Califórnia ver sus Victoria Braxton foi aberta num ambiente de tensão, como se se tratasse de um campeonato de box entre dois candidatos ao prémio máximo de pesos pesados.

De um lado, estava o procurador do Distrito, Hamilton Burger, como um grande urso pardo, selvaticamente triunfante, com a segurança de quem tinha nas mãos um desses casos de "abrir e fechar", capaz de esmagar todas as esquivas de Defesa.

Do outro lado, achava-se Perry Mason, veterano dos debates casuísticos que, até então, só obtera vitórias contra a Acusação, disposto a bater-se cautelosamente e a aproveitar-se de todas as vantagens técnicas legais.

A favor do primeiro subsistiam provas que a Defesa ignorava. Se houvesse apostas, estas seriam de cinco contra um a favor de Burger.

Os jornalistas e repórteres fotográficos aguardavam, impacientemente, o início dos debates. Hamilton Burger anunciara esperar provar que Victoria Braxton envenenara a sua meio-irmã, ao ministrar-lhe três comprimidos de cinco "grãos" de arsénico, cada um, a fim de herdar-lhe metade dos bens avaliados em mais de meio milhão de dólares.

Após um longo preâmbulo, que o procurador do Distrito terminou cheio de pomposa dignidade, estabeleceu-se um silêncio de expectativa. Por fim, o juiz Howison virou-se para Perry Mason e sondou:

- A Defesa deseja fazer algumas considerações, antes do início dos debates?

- Não, senhor Doutor Juiz. A Defesa só intervirá, após ter tomado conhecimento dos fundamentos da Acusação.

- Muito bem - disse Howison. - Queira chamar a sua primeira testemunha, Mr. Hamilton Burger.

Este estava ladeado por dois adjuntos com quem conferenciava num breve murmúrio. Eram eles David Gresham e Harry Saybrook que já interviera no caso Bain versus Nellie Conway, e em que fora ignominiosamente batido por Perry Mason. Agora, só pensava em vingar-se do advogado que o ridicularizara perante o público.

Numa rápida sequência, várias testemunhas periciais da Polícia declararam que Elizabeth Bain, antes de morrer, tinha evidenciado sintomas de envenenamento por arsénico e que, após a autópsia, se provara terem os seus órgãos vitais absorvido quantidades letais de arsénico.

Findos estes preliminares, Burger chamou ao banco das testemunhas, o médico assistente da vítima. Após este ter sido ajuramentado, aquele perguntou:

- Diga-me, Doutor Harvey Keener: estava, profissionalmente, familiarizado com a falecida Mrs. Elizabeth Bain?

- Sim, sir. Era seu médico assistente e amigo pessoal, já há vários anos.

O dr. Keener tinha um ar arguto, de olhar analítico, uma barba à Vandyke e óculos de lentes espessas com aros de plástico negro.

- Na manhã do dia dezassete de Setembro - perguntou Burger - foi chamado para tratar dessa sua paciente, numa circunstância de urgência?

- Sim, sir.

- A que horas o chamaram, Doutor?

- Às oito e quarenta e cinco, aproximadamente.

- E foi ver a doente, de imediato?

- Sim, sir.

.- Refere-se a Mrs. Elizabeth Bain?

- Sim, sir.

- Vou perguntar-lhe, agora, Doutor, não os sintomas testemunhados pela enfermeira, mas aquele que o senhor presenciou pessoalmente. Quais foram eles?

- Típicos sintomas de envenenamento por arsénico, manifestado por uma perturbação gastro-enterior, náusea intensa, cãibras dolorosas, vómitos característicos, tenesmo muscular, pulsação irregular e fraca, rosto contraído, expressão de ansiosidade e pele fria. Estou a referir-me à evolução destes sintomas, desde a hora a que cheguei até ao momento da morte que ocorreu às onze e quarenta dessa manhã.

- A paciente estava consciente?

- Manteve-se consciente até às onze horas, aproximadamente.

- Efectuou testes químicos para verificar o seu diagnóstico?

- Sim. Recolhi substâncias estomacais para uma análise mais cuidadosa. Entretanto, um rápido exame desses resíduos indicou-me a presença de arsénico, de resto, logo notado nos vómitos. Os sintomas eram tão típicos que, poucos minutos depois de ter chegado à cabeceira da doente, já estava virtualmente certo do diagnóstico.

- Falou com a paciente acerca da maneira como o veneno lhe teria sido ministrado?

- Sim, sir.

- Pode declarar o que lhe disse a doente? Acusou alguma pessoa de ter-lhe dado os comprimidos que a vitimaram?

Objecção - interpôs Mason. - A pergunta é irrelevante e imaterial. Primeiro, não foi ainda provado que esses comprimidos continham arsénico. Depois, trata-se de testemunho "por ouvir dizer".

- Não é testemunha "por ouvir dizer", visto que a paciente estava moribunda. Dever-se-á considerar uma declaração in extremis.

O juiz Howison indicou:

- Terá de formular a sua pergunta noutros termos, senhor Procurador do Distrito.

- Muito bem. Se o advogado da Defesa pretende recorrer a pormenores técnicos, reformularei a pergunta. Diga-me, Doutor Keener, se a paciente tinha consciência de que estava a morrer.

- Objecção - repetiu Mason. - A pergunta é sugestiva.

- Francamente, senhor Doutor Juiz!-protestou Burger. - O Doutor Keener é um médico competente. Pode testemunhar se, na sua opinião, a doente sabia se estava a morrer ou não!

- Objecção-insistiu Mason. - A Acusação está a pedir uma opinião à testemunha e esta não tem competência para adivinhar o que a doente pensava, a menos que ela lho tivesse afirmado. Só nesse caso a sua declaração ulterior poderá ser considerada in extremis. Para mais, uma declaração desta natureza tem de ser confirmada por juramento solene da pessoa moribunda. Só nesse caso deverá ser aceite como prova.

- Senhor Doutor Juiz-replicou Burger.-A Acusação propõe-se provar que a ré, Victoria Braxton, foi deixada sozinha no quarto da doente, Elizabeth Bain; que lhe tinham sido confiados, num pires, três comprimidos, com a finalidade de serem ministrados à doente e que, sub-repticiamente a ré os substituiu por outros, contendo, cada qual, cinco "grãos" de arsénico. Finalmente, que a mesma ré disse à paciente: "Aqui tem o seu remédio".

- A Acusação terá de provar o que acaba de afirmar - sublinhou Mason.

- Muito bem. Nesse caso, pergunto ao Doutor Keener: a paciente disse-lhe que estava a morrer?

- Sim, sir... - respondeu o médico, após uma breve hesitação.

Com um sorriso triunfante, Burger inquiriu:

- Pode indicar-me quais foram as palavras exactas da moribunda?

- Terei de consultar a minha agenda - respondeu Keener, tirando um livrinho da algibeira.

- Um momento - interveio Mason. - Tenho o direito de examinar esse memorando, antes de a testemunha o ler.

- Faça como lhe aprouver, advogado - concedeu Burger, sarcasticamente.- Certamente que o Doutor Keener, que é um homem honesto, não iria ler, em Tribunal, frases que não tivesse escrito.

Mason aproximou-se da testemunha e pegou na agenda. Depois, declarou:

- Antes de o Doutor Keener refrescar a sua memória com o conteúdo desta agenda, desejo fazer-lhe algumas perguntas, para que a mesma seja devidamente identificada.

- Muito bem - concordou o juiz. - Queira interrogar a testemunha, Mr. Mason.

O advogado inquiriu:

- Este apontamento, Doutor, foi feito pelo seu próprio punho?

- Sim, sir.

- Quando o redigiu?

- Pouco tempo depois de a paciente ter feito a sua declaração.

- Com que instrumento o redigiu?

- Com a minha caneta de tinta permanente.

- O que escreveu foi efectuado enquanto a paciente estava consciente?

- Sim, ainda estava lúcida. Escrevi essa nota, pouco antes de ela ter perdido a consciência.

- Que entende por "pouco antes"? Não pode precisar o tempo?

- Direi que o redigi cerca de meia hora antes de ela entrar em estado de coma.

Mason folheou a agenda e perguntou:

- É seu costume, Doutor Keemer, fazer anotações neste livrinho, metodicamente, por ordem cronológica, consecutiva... ou abre o livro ao calhar, escrevendo em qualquer página que encontra em branco?

- Certamente que registo os meus apontamentos, ordenadamente. Quando preencho uma página, passo à seguinte.

- Quer isso dizer que a declaração da paciente de que estava a morrer, foi a última anotação que o Doutor redigiu?

- Sim, sir.

- Mas já passaram vários dias, desde que essa morte ocorreu. Depois disso, não fez quaisquer outras anotações?

- Não, porque a Polícia ficou com essa agenda em seu poder.

- A Polícia manteve-a em seu poder até quando?

- Até esta manhã, quando o senhor procurador do Distrito ma devolveu.

- Quer dizer que ele lha devolveu, recomendando-Lhe que a extraísse da algibeira, em Tribunal, para refrescar a sua memória?

- Objecção-gritou Hamilton Burger.- Este contra-interrogatório é impróprio!

- Apenas procurei - justificou-se Mason - verificar a parcialidade da testemunha e o expediente utilizado pelo procurador do Distrito.

Virando-se para Keener, indagou:

- Esta caligrafia é sua, Doutor?

- Sim.

- Foi escrita poucos minutos depois da declaração da doente?

- Sim.

- Quantos minutos?

- Cerca de cinco ou dez... Não ptosso recordar-me com exactidão.

- Fez essa anotação, porque a considerava importante?

- Sim.

- Porquê? Porque receava que a sua memória o atraiçoasse?

- Não o justificaria dessa maneira.

- Então, como o justificaria?

- Porque já esperava que um advogado esperto me fizesse essa pergunta.

Ouviu-se um murmúrio de galhofa na sala de audiências.

- Agora, o advogado que não se considera esperto vai fazer-lhe outra pergunta: não é verdade que, na página precedente, a paciente menciona quem lhe ministrou o medicamento?

- Sim.

- Nesse caso, essa menção é anterior a ela declarar que estava prestes a morrer.

Reconhecendo ter caído numa armadilha, o dr. Keener respondeu:

- Bem... isto é... não me recordo, exactamente, da sequência dessas minhas anotações.

- Mas - frisou Mason-o senhor declarou que as redigia cronologicamente, na sequência dos factos... ou também já não se recorda disso?

- Recordo-me de ter dito isso, mas...

- A sua agenda fala por si, Doutor. Quando a paciente mencionou o nome de quem lhe teria ministrado o medicamento, ainda não declarara pensar que ia morrer. Portanto, não o fez in extremis, o que torna o seu depoimento, Doutor, testemunho "por ouvir dizer".

- Senhor Doutor Juiz - interveio Burger, vendo o médico agitar-se nervosamente na cadeira. - Este contra-interrogatório tem-se prolongado exagerada-mente e...

- Um momento-interrompeu-o o juiz. - A Defesa acaba de estabelecer uma circunstância técnica fundamental. Só as declarações in extremis, proferidas solenemente, diante de testemunhas, têm validade num julgamento. Aquelas que foram proferidas antes de a paciente ter a noção de que se encontrava moribunda não podem ser consideradas como tal e perdem toda a sua validade, pois enquadram-se na circunstância de "ouvir dizer".

- Obrigado, senhor Doutor Juiz - sorriu Mason.- Da parte da Defesa é tudo.

Irritado, Burger indicou à testemunha.

- Pode ler, agora, o que a paciente declarou, Doutor Keener, acerca de quem lhe ministrou os três comprimidos.

- Objecção - interpôs Mason. - Essa declaração da testemunha seria incompetente, irrelevante e imaterial, pelas razões atrás expostas. Não foi feita in extremis... e a testemunha não pode depor "por ouvir dizer"

- Objecção mantida - decidiu Howison.

Com um gesto de desespero, Burger protestou:

- Mas, senhor Doutor Juiz...

- A Lei é explícita - cortou Howison. - Se nenhuma das partes deseja prosseguir o interrogatório do dr. Keener, queira a Acusação chamar a sua próxima testemunha.

- Nellie Conway- chamou Burger.

Depois de ajuramentada, o procurador do Distrito inquiriu:

- Conhecia Nathan Bain, marido da falecida Eli-zabeth Bain?

- Sim, sir.

- Ele contratou-a, como enfermeira, para tratar da mulher?

- Sim, sir.

- Na noite do dia dezasseis e manhã do dia dezassete de Setembro, ainda desempenhava as funções de enfermeira nessa casa?

- Sim, sir.

- E deu instruções à ré, Victoria Braxton, para que ministrasse um medicamento à paciente?

- Sim, sir.

- Entregou-lhe, pessoalmente, esse medicamento?

- Deixei-o num pires, sobre a mesinha-de-cabeceira.

- Em que consistia esse remédio?

- Em três comprimidos.

- Quem lhos entregara?

- O dr. Keener.

- Quando?

- Por volta das sete horas da noite do dia dezasseis.

- Estava alguém presente, quando a senhora, Miss Conway, entregou os comprimidos à ré?

- Só lá estávamos eu e Victoria Braxton... e, evidentememte, Elizabeth Bain.

- Que recomendação fez à ré?

- Que deveria dar os comprimidos à paciente, quando ela acordasse, mas só depois das seis horas da manhã e não antes.

- E esse medicamento, Miss Conway, foi-lhe entregue pessoalmente pelo dr. Keener?

- Sim, sir.

- Muito bem. A Defesa pode contra-interrogar.

Num tom casual, Mason indagou:

- Sabia qual a natureza desses comprimidos?

- Não. Só sabia que o dr. Keener mos mandara ministrar à paciente.

- Quantos?

- Três.

- De que peso farmacológico?

- De cinco "grãos" cada um.

- Mais alguém lhe pedira que desse outros comprimidos à paciente? Alguém lhe prometeu pagar quinhentos dólares para que o fizesse?

- Bem... Mr. Nathan Bain fez-me essa proposta...

- Quantos comprimidos?

- Três.

- De que peso farmacológico?

- Também de cinco "grãos" cada um.

- E Mr. Bain queria que eles também fossem miniistrados à mulher?

- Sim.

- E obedeceu a Mr. Bain? Chegou a ministrá-los a Mrs. Elizabeth Bain?

- Sim... mas, antes de fazê-lo, entreguei-lhe a si, Mr. Mason, um outro comprimido idêntico que o senhor mandou analisar, assegurando-me, depois disso, que se tratava de uma espécie de aspirina, completamente inócua.

- Quando ministrou esses três comprimidos à paciente?

- Pouco depois de o dr. Keener ter saído...

- Um momento - interrompeu Burger. - Vamos esclarecer esse assunto convenientemente, Miss Conway. Queira explicar ao Tribunal o que se passou com esses comprimidos, no escritório de Mr. Perry Mason.

- A Acusação já terminara o seu interrogatório directo - observou Mason. - Agora o contra-interrogatório cabe à Defesa.

- Certamente-conciliou Burger. - Contudo, convém que o Tribunal seja devidamente esclarecido.

- Muito bem. Nesse caso, eu faço essa pergunta à testemunha... Diga-me, Miss Conway, o que se passou no meu gabinete?

- Eu entreguei-lhe os comprimidos que Mr. Bain me pedira que eu ministrasse à mulher e o senhor declarou que eles eram inócuos, semelhantes à aspirina

- Disse-lhe que todos eles eram inócuos?

- Bem... O senhor guardou um, num sobrescrito, para mandar analisá-lo e devolveu-me, noutro sobrescrito, o tubo com os restantes três comprimidos. Portanto, quando Mr. Bain me pediu que os desse à mulher, parti do princípio que o senhor, Mr. Mason, me falara verdade e que não havia qualquer perigo, visto que o medicamento nada continha de perigoso para a doente.

- Porém, não é verdade que eu só me referi a um único comprimido?

- Sim, mas esse comprimido fora retirado do tubo, ao acaso. Por conseguinte, concluí que os restantes eram iguais.

- E, apesar de os sobrescritos estarem fechados, com as nossas assinaturas na face e no verso, permitiu-se abrir o que continha o tubo?

- Não havia mal nisso, já que sabia que não eram mais do que uma espécie de aspirina.

- Sabia, como? Mandou analisar esses três outros comprimidos?

- Não, mas pensei que...

- Ah! Pensou! Contudo, esses três outros comprimidos podiam conter arsénico. O facto de estarem misturados, num mesmo tubo, com um comprimido inócuo, isso não prova que não contivessem o veneno que matou Mrs. Elizabeth Bain.

- Eu não podia adivinhá-lo.

- Mas, quando lhe devolvi o tubo, fechado dentro de um sobrescrito, não lhe sugeri que utilizasse os comprimidos que ele continha. Pelo contrário, se fechei o sobrescrito, foi para que não os desse à doente, não é verdade?

- Não mo proibiu, explicitamente.

- Mas fechei o sobrescrito e ambos firmámos nele as nossas assinaturas. Era assim que deveria ter sido observado por si, Miss Conway. Por que ministrou esses comprimidos à paciente?

- Porque Mr. Bain me pediu que o fizesse.

- E pagou-lhe para esse efeito?

- Bem... Limitou-se a prometer pagar-me.

- Falaremos disso, noutra oportunidade. Para já, diga-me: deu, pessoalmente, a Mrs. Elizabeth Bain esse medicamento... que podia conter arsénico... pouco tempo antes das sete da noite do dia dezasseis?

- Não. Só lho ministrei depois das oito.

- É tudo - disse Mason.

- Nesse caso- declarou Burger,- desejo prosseguir o interrogatório directo do dr. Keener para esclarecer um ponto que considero crucial.

O médico voltou à cadeira das testemunhas e o procurador do Distrito perguntou-lhe:

- Porventura três comprimidos de arsénico, no total de quinze "grãos", ingeridos pela paciente, às oito horas da noite, poderiam ter-lhe causado os sintomas de envenenamento que, ulteriormente, se manifestaram?

- Não... Isto é, na minha opinião, esses sintomas ter-se-iam evidenciado logo nas duas horas imediatas... por conseguinte, às dez da noite.

- Ora, Doutor, tais sintomas não se manifestaram, não é assim?

- Não.

- Contudo, Doutor Keener, o senhor prescreveu a ministração de outros três comprimidos às seis da manhã, depois de a paciente ter acordado. Qual a composição química desses comprimidos?

- Continham soda, ácido acetilsalicílico e feno-barbital.

- Não continham arsénico?

- De maneira alguma.

- Esses comprimidos foram receitados por si?

- Sim.

- Mandados comprar numa farmácia?

- Sim.

- E entregou-os, directamente, à enfermeira Nellie Conway?

- Sim.

- A que horas?

- Por volta das três da tarde do dia dezassete.

- Pode contra-interrogar - disse Burger para Perry Mason.

Este indagou ao médico:

- Encontrou comprimidos dentro de um balde de lixo da cozinha?

- Sim. Tive o cuidado de ir verificar o que se encontrava nele, susceptível de corroborar o meu anterior diagnóstico.

- E conhece a natureza química desses comprimidos que encontrou no caixote de lixo?

- Sim. Também tive o cuidado de mandar analisá-los.

- Continham arsénico?

- Não. Eram os mesmos que eu confiara à enfermeira Nellie Conway.

- Como sabe que eram os mesmos? Teve alguma maneira de identificá-los para ter essa certeza?

- Bem... não. Mas continham soda, ácido acetilsalicílico e fenobarbital.

- Encontrou-os pessoalmente?

- Sim.

- Que lhes fez?

- Introduzi-os num frasco e entreguei-os à Polícia.

- Antes ou depois de ter mandado analisá-los?

- Antes. Foram analisados, na minha presença por peritos farmacêuticos da Polícia.

- Mas não pode jurar que fossem precisamente os mesmos que entregara à enfermeira Conway, pois não?

- Não, mas a sua composição química era idêntica.

- Por que prescreveu, na fórmula dos comprimidos, uma dose de barbitural?

- Porque os babitúricos acalmam as dores dos doentes que sofreram uma lesão.

- E fazem-nos dormir?

- Sim.

- Mantém, constantemente, a mesma dosagem de barbitúrico, mesmo que o paciente já não sintta as dores dos primeiros tempos após a lesão?

- Não. A percentagem de barbitural vai diminuindo, gradualmente.

- Compreendo. Contudo, na noite do dia dezasseis para o dia dezassete, a paciente teve um sono anormalmente prolongado, não é verdade?

- Não sei. Apenas me foi dito que passara uma noite excepcionalmente calma.

- Bem sei que se trata de uma declaração "por ouvir dizer", mas, se a paciente tivesse ingerido uma dose dupla dos comprimidos que o Doutor lhe receitou, não teria dormido mais profundamente?

- Sim... mas não a ingeriu, visto que encontrei os comprimidos no balde do lixo.

- Como sabe que os comprimidos que "ncontrou nesse balde foram aí despejados nesse mesmo dia? Não poderiam ter lá estado, desde a véspera?

- A enfermeira disse-me que, de manhã, o balde do lixo estava vazio.

- Ah! Ela disse-lhe isso, mas o senhor não pode testemunhá-lo, como sendo um facto do seu conhecimento directo, não é verdade?

- Bem... não.

- Pelo que o senhor sabe, pessoalmente, Doutor, os comprimidos tanto poderiam ter sido atirados para o lixo, no próprio dia... ou na véspera. Ora, sendo na véspera, não podiam ser os mesmos comprimidos que o senhor entregara à enfermeira. Teriam de ser outros, embora de composição idêntica.

- Isto está a ir longe de mais - protestou Burger.

- Não se entende o objectivo de um tão longo contra-interrogatório, sem qualquer finalidade, a não ser perder tempo. Já são quatro horas e meia e o termo habitual das audiências é às cinco horas.

- Efectivamente - concordou o juiz, - chegou a altura de fazermos um adiamento da audiência. Tem mais alguma testemunha para interrogatório directo, Mr. Burger?

- Sim, senhor Doutor Juiz.

- E esse interrogatório não será demasiado longo? Não porá termo à audiência?

- Pela parte da Acusação, será deveras breve, mas receio que a Defesa repita a táctica de um contra-interrogatório extremamente moroso... embora não se entenda qual a sua finalidade...

- Queira chamar essa sua testemunha, Mr. Burger

- interrompeu secamente Howison.

O procurador do Distrito chamou Nathan Bain.

Este, obviamente preparado por Burger e confiante nos seus dotes oratórios, proverbialmente convincentes, sentou-se com grande à vontade, após ter prestado juramento, como um actor num palco.

- O senhor, Mr. Bain - começou Hamilton Bur-ger,-estava casado com Elizabeth Bain?

- Sim, sir.

- Por morte de sua mulher viria a herdar quaisquer bens?

- Não, sir. Por um recente testamento de minha mulher, que alterou totalmente o anterior, não receberei um centavo.

- Ouviu o testemunho de Miss Nellie Conway, referente a uns comprimidos que o senhor lhe teria mandado ministrar a sua mulher?

- Sim, sir.

- Que tem a dizer a esse respeito, Mr. Bain?

A atitude de Nathan Bain passou a ser a de um pecador no confessionário, suplicando compreensão para o seu estado de arrependimento convicto.

- Reconheço que o meu comportamento é merecedor de reprovação. Agi estupidamente... Nos últimos meses, as minhas relações com Elizabeth... minha mulher... não foram, de maneira alguma, felizes. Confesso, humildemente, que cometi um grande erro na minha vida. Perdi a cabeça, foi o que foi!

- Refira-se aos comprimidos - coordenou Burger.

- Ah, sim... Entreguei a Miss Nellie Conway quatro comprimidos para que os ministrasse a minha mulher, sem o conhecimento do médico assistente.

- Qual a natureza desses comprimidos?

- Dois deles eram aspirinas e os outros dois, barbitúricos.

- Muito bem - disse Burger, com um ar de reprovação, mas encolhendo os ombros, como se reconhecesse as fraquezas humanas. - Queira explicar ao Tribunal por que motivo tinham piorado as suas relações com Mrs. Elizabeth Bain e qual a finalidade com que entregara os comprimidos a Miss Conway.

- Fui infiel a Elizabeth... e ela interceptou umas certas cartas que me tinham sido enviadas por uma outra mulher. Essas cartas atestavam a minha infidelidade e poderiam constituir provas para um divórcio que eu desejava evitar, a todo o transe. Se Elizabeth não as tivesse em seu poder, ser-lhe-ia, obviamente, impossível utilizá-las para tal fim. Ora, com o tempo, eu poderia convencê-la de que, realmente, a amava e que poderíamos fazer as pazes.

"Os comprimidos que dei a Miss Conway destinavam-se a adormecer Elizabeth, profundamente, de maneira a que eu pudesse recuperar as malditas cartas. A minha mulher não me deixava entrar no quarto. Por isso, tive de servir-me da colaboração da enfermeira."

- Desde quando a sua mulher o proibira de entrar no quarto?

- Desde que saíra do hospital. O próprio dr. Keener foi de opinião que a minha presença irritaria o estado nevrótico de minha mulher. Por isso, só poderia entrar no quarto e recuperar as cartas, quando ela estivesse a dormir... sem eu correr o risco de que acordasse e me surpreendesse.

- Que fez, Mr. Bain, para recuperar as tais cartas?

- Aproveitei uma altura em que não estava lá ninguém, depois de Elizabeth se encontrar completamente adormecida, graças ao sedativo contido nos comprimidos que Miss Conway lhe dera.

- Que fez a essas cartas comprometedoras?

- Devolvi-as à mulher que as escrevera, para que ela as destruísse.

- Quando procedeu a tal devolução?

- Logo após a morte de Elizabeth.

- Para tal, deslocou-se a Nova Orleães? Não poderia ter devolvido as cartas pelo correio?

- Fui falar pessoalmente com aquela mulher, porque desejava também explicar-lhe que tudo estava acabado entre nós; que Elizabeth se encontrava muito doente, agarrada a uma cama, e eu não desejava abandoná-la num estado tão terrível. Seria desumano!

- Foi, há pouco, mencionado um facto susceptível de causar dúvidas no espírito dos ouvintes. O senhor, Mr. Bain, entregou dinheiro a Miss Conway, como pagamento de qualquer combinação mútua?

- Sim, sir. É verdade. Eu cometera uma injustiça para com ela e pretendi indemnizá-la.

- Que espécie de injustiça?

- Fiz dela um péssimo julgamento. Como tivesse verificado o desaparecimento de algumas jóias pertencentes a minha mulher, suspeitei de Miss Conway. Agi de maneira a que ela fosse presa, mas Mr. Mason, que agora defende Victoria Braxton, provou a inocência de Miss Nellie Conway.

- Queira explicar ao Tribunal, Mr. Bain, por que motivo Miss Conway foi presa.

Com um ar lastimoso, Nathan relatou a história do estojo de prata que continha as jóias e fora polvilhado com um produto fluorescente; explicou que, sob a incidência de raios ultravioletas, esse pó tornava-se luminoso; acrescentou que os dedos de Miss Conway tinham apresentado esse brilho característico, o que o levara a concluir, embora erradamente, que ela fora a autora dos furtos, particularmente de um último, verificado por ele e por um detective particular, James Hallock, que lhe fora recomendado pela Polícia.

- Foi por isso, Mr. Bain, que achou dever indemnizar Miss Conway?

- Sim, sir.

- Quanto lhe pagou, a título de compensação?

- Dois mil dólares.

Burger voltou a insistir no caso do roubo das jóias, rninuciando pormenores, até à absolvição definitiva de Miss Conway.

Por fim, voltando-se para o juiz - observou:

- Peço desculpa ao Tribunal por ter prolongado tanto este interrogatório directo. Na realidade, verifico que já passam dez minutos das cinco horas.

- Isso é um facto - confirmou o juiz, consultando o relógio, com uma careta de aborrecimento. - Chegou, pois, a altura de adiarmos esta audiência para amanhã, às dez horas da manhã.

Depois de o juiz sair da sala e a assistência começar a retirar-se, com um forte rumor de comentários, arrastar de cadeiras e passos, Mason perguntou a Victoria Braxton:

- Por acaso, você também tocou naquele guarda-jóias?

- Sim. Ao saber o que se passara com ele, tive interesse em vê-lo. Nathan tirou-o da gaveta e mostrou-mo. Deixou-o sobre a cómoda da sala e, quando o meu irmão chegou, com a mulher, também Georgiana não resistiu à curiosidade de pegar no estojo, elogiando-lhe as escamas de prata.

- Ela guardou-o na gaveta?

- Oh, não! Nathan disse-lhe que o deixasse sobre a cómoda. Creio que foi a governanta quem arrumou a caixa das jóias na gaveta.

- Pelo que me diz, toda a gente ficou com pó fluorescente nos dedos, com excepção da sua irmã Elizabeth.

- Assim parece.

- Não teria sido possível a Nathan entreabrir a porta do quarto da mulher, tirar os comprimidos que estavam no pires e substituí-los por outros?

- Não... isto é, pelo menos enquanto eu lá estive.

- A porta estava fechada?

- Sim... Mas Nathan podia ter substituído os com>-primidos, quando eles estavam na posse de Nellie Conway que os trazia num frasco.

- O que eu pretendia averiguar era se teria sido possível a Nathan substituí-los depois de Nellie Conway tê-los colocado no pires.

- Impossível.

- A que horas esteve você a contemplar a caixa das jóias?

- Pouco antes das três da manhã. Nós tínhamos vindo no avião da uma e quarenta e cinco que só aterrou às duas e meia.

- E quando chegou a casa, às três horas, você foi logo ver Elizabeth?

- Sim. Fomos os três: James, Georgiana e eu.

O guardiã do xerife tocou num cotovelo de Victoria, para a reconduzir à cela e Mason animoua:

- Não se apoquente. O caso há-de levar uma volta. Queixo levantado e coragem.

James Braxton e a mulher estavam à espera de Mason, do lado exterior do corrimão que dividia a sala, reservando um espaço para os advogados e oficiais da Justiça e, assim, separando estes do público comum.

Georgiana falou pelos cotovelos, criticando o "discurso" e as atitudes de Nathan Bain, no seu entender, "o maior hipócrita de todos os tempos"!

- Toda aquela história de penitente arrependido não passou de uma "fita" para impressionar os jurados - acrescentou furiosa. - E, quanto à minha cunhada não lhe deixar um "chavo", também é falso. Falou de um novo testamento... mas mesmo que Elizabeth o tenha feito, se acusarem Vicky de tê-la envenenado... e a condensarem... esse testamento... se é que a contempla com alguma coisa... fica invalidado. Sendo assim, Nathan é o único herdeiro, pelo testamento anterior.

- Quem lhe falou da existência de outro testamento, Mrs. Braxton?

- Foi Nathan quem o mencionou quando esteve a depor. Vicky não me falara de coisa alguma a esse respeito... o que também acho muito estranho da parte dela! Mas, se tal documento existe, já se explica a ânsia de Nathan em vê-la condenada! Ele só quer o que sempre quis: a "massa". O senhor, Mr. Mason, vai conseguir deitá-lo ao "tapete"?

- No decurso do meu contra-interrogatório, vou fazer o possível por descobrir uma maneira de confundi-lo desastrosamente.

 

À meia-noite, no seu gabinete, Mason conferenciava com Della Street e Drake.

- Maldito Burger! - resmungou. - Tem qualquer "bomba" escondida, para atirar-ma no último momento.

- Deve estar relacionada com o caso do estojo das jóias e com o pó fluorescente. Repara, Perry, que, sem justificação aparente, obrigou Nathan Bain a repetir toda a história do pretenso roubo de Nellie, entrando nos mais [minuciosos pormenores. Para quê? Provavelmente, porque Victoria Braxton também mexeu no guar-da-jóias e ficou com os dedos fluorescentes...

- Mas que mal há nisso? - estranhou Della. - O caso Conway já estava arrumado, antes dos Braston virem de Honolulu.

- Nathan entregou a caixa das jóias a Victoria, para que ela a visse... A cunhada também lhe tocou... e ainda temos aquela bruxa da governanta. Esta é muito devotada a Nathan e já estava com ele, no tempo da primeira mulher.

Drake comentou:

- O caso está muito feio, Perry. Supondo que Elizabeth se recusou a terminar o novo testamento, Victoria pode muito bem tê-la envenenado... apesar de ser sua meio-irmã.

- É admissível, mas improvável, Paul. Tenho de dirigir o caso, levantando a suspeita de que Nathan também envenenou a primeira mulher. Temos de investigar a fundo esse ângulo de Martha Bain.

- A governanta - informou Drake - declarou que o médico deu a Nellie aqueles três comprimidos. Viu-os, sobre a mesa da cozinha, quando, pouco antes da meia-noite, estiveram ambas a tomar café. Consta que Bur-ger pode provar que se tratava dos mesmos comprimidos. Portanto, só Nellie ou Victoria teriam podido substituí-los. A Polícia tem provas positivas a esse respeito e alega que Nellie não tinha motivo para envenenar Elizabeth. Portanto, toda a suspeita recai sobre Victoria.

- Como podem ter a certeza de que Nellie não teria um motivo? Toda a suspeita se baseia nas declarações de Imogene Ricker... e quem nos diz que esta governanta não está a mentir?

- Por que não mandas exumar o cadáver de Martha Bain?

- Não tenho autoridade legal para isso... e, se pedir ao procurador do Distrito que o faça, ele não mexerá uma palha para enfraquecer a sua acusação contra Victoria Braxton. Para vencer esta causa, terá de defender Nathan Bain, até à última instância. Teremos de deixar o cadáver de Martha na cova... mas posso passar uma contrafé ao seu fantasma. Hei-de trazê-lo para o tribunal.

Após uma pausa meditativa, Drake observou:

- Essa Martha Bain era de boa família. Os pais dela opuseram-se ao seu casamento com Nathan. São gente da Costa Oriental, cheia de princípios familiares. Martha, quando casou, fruía dos rendimentos de um depósito, que herdara de um tio e que receberia quando perfizesse vinte e cinco anos.

- Quanto dinheiro?

- Cerca de cinquenta mil dólares. Recebeu-os a dezassete de Junho... e a um de Outubro já estava morta. Nathan herdou-lhe a "massa" e, após alguns investimentos desastrosos e apostas em cavalos "errados", teve de lançar-se à caça de outra vítima.

"Descobriu Elizabeth, com mais de meio milhão nos bancos e numerosas propriedades de rendimento, em Honolulu. Pensou que conseguiria deitar a mão à "massa", mas a mulher não foi nisso. Depois, ele arranjou uma amante e as cartas desta foram caçadas pela esposa traída. Bain tentou matá-la no falso acidente de automóvel, mas falhou. Mesmo assim, Elizabeth morreu... e de maneira muito semelhante à da morte de Martha."

- Todos sabemos isso, Paul, mas não temos provas para induzir um júri a condená-lo. Além disso, ainda resta saber que diabo de prova esmagadora terá Burger, na manga, para "arrumar" Victoiria Braxton.

- O meu informador na Polícia confidenciou-me que a governanta declarou ter visto Victoria insistir com Elizabeth para que terminasse e assinasse o testamento e afirma que esta se recusava a fazê-lo.

- Isso é péssimo para Victoria. Será que Burger, além do testemunho de Imogene Ricker, terá alguma prova de que o testamento não é válido?

- Isso não sei, Perry. Dei-te todas as informações que consegui obter, pelas vias... Que tal a ideia de mandar alguém contactar com os pais de Martha?

- Burger empenhar-se-ia em fechar todas as portas a uma exumação, declarando que esse assunto nada tem a ver com o processo em causa. Terei de resolver o caso, no decurso do meu contra-interrogatório.

- Pressisto na minha sugestão, Perry - insistiu Drake. - Não vês inconveniente em que eu trabalhe esse ângulo dos pais de Martha, pois não?

- Okay, vai para diante, Paul... mas não entrevejo saída alguma por esse lado.

 

Às dez da manhã do dia seguinte, Hamilton Burger movia-se como um "espada", numa arena, pronto a matar o touro.

Por duas vezes, olhou de relance para Perry Mason, com um sorriso trocista e prenhe de autoconfiança.

Tornou a chamar Nathan Bain ao banco das testemunhas e este avançou como um elefante a caminhar sobre ovos, cautelosamente. Instalou-se na cadeira, com uma expressão de cão fiel, arrependido de ter feito uma maldade; dava a impressão de um homem que, sabendo-se pecador, estava disposto a sacrificar-se em prol do bom curso da Justiça.

Burger interrogou-o acerca da topografia da casa em que vivia, a disposição dos quartos, a existência do anexo, por cima da garagem, e de um pátio, entre os dois edifícios.

- Assistiu às buscas efectuadas pela Polícia?

- Sim, sir.

- Acompanhou os agentes a esse pátio?

- Sim, sir.

- Viu-os encontrarem qualquer objecto?

- Sim, sir. Um frasco, embrulhado num papel.

- Viu o que continha esse frasco?

- Continha arsénico.

- Ah!-exclamou Burger, teatralmente. - E teve ocasião de examinar bem esse frasco que continha arsénico?

- Sim, sir. Tinha um rótulo de uma farmácia de Horvokílu.

Mason sentiu formar-se-lhe um nó na garganta.

Nesse momento, Victoria Braxton começou a rir e a chorar ao mesmo tempo. Uma indignação revoltada levou-a a uma crise de histeria.

- Pelos vistos-considerou Burger, - a ré está altamente emocionada. Sugiro, senhor Doutor Juiz, que a audiência seja temporariamente interrompida.

O público manifestou-se ruidosamente e Howison teve de martelar na secretária para restabelecer o silêncio. Não o conseguindo, mandou evacuar a sala e gritou que a audiência seria interrompida até às onze horas. Depois, sondou:

- O dr. Keemer encontra-se presente? Peçam-lhe que examine o estado da ré.

O pandemónio recrudesceu com a actividade dos repórteres e fotógrafos, enquanto o guardiã conduzia Victoria para a sela destinada aos acusados, logo seguida pelo Dr. Keener.

Só quarenta e cinco minutos depois, Victoria conseguiu falar a Mason que se lhe juntara na cela.

- Que se passou com esse frasco de arsénico?

- Pensei que ninguém o descobriria, quando o atirei para o pátio. Não queria que me apanhassem com ele.

- Como se explica que tivesse esse frasco em seu poder?

- Honolulu está cheia de gatos vadios e dois deles, que não nos deixavam dormir, andaram a dar-me cabo do jardim, à caça dos pardais que fazem ninho nas minhas árvores. Comprei o arsénico para acabar com aquele vandalismo, no próprio dia em que recebi a notícia de que Elizabeth estava muito mal... à morte. Não sei como, ao fazer as malas, à pressa, esqueci-me de tirar o frasco da minha bolsa de mão... aquela com que acabara de vir da farmácia.

"Depois, já em casa de Elizabeth, notei a presença do frasco e mudei-o para uma das minhas malas de viagem... Naturalmente, quando a minha irmã morreu, envenenada, fiquei sem saber o que fazer ao arsénico e atirei-o pela janela para o pátio.

Mason mamteve-se silencioso.

- A situação, agora, tornou-se muito mais grave para mim? - perguntou a jovem, soluçante.

- Só um milagre poderá salvá-la de uma condenação por homicídio em primeiro grau. Deixou-me de mãos atadas! Devia ter-me falado nisso, em vez de "fechar-se em copas".

- Pensei que o assunto não viesse a tribunal... Sei que cometi um terrível erro...

- Voltemos para a sala de audiência, Victoria.

- Vai explicar ao júri a causa do meu ataque de histerismo?

- Certamente, mas não creio que acreditem em si.

Tendo o juiz Howison reaberto a audiência, Burger tornou a chamar Bain ao banco das testemunhas, a fim de prosseguir com o interrogatório directo.

- É este o frasco de arsénico que foi encontrado no pátio da casa dos Bain?

- Sim, sir.

- Pode identificá-lo?

- Sim. Tem as minhas iniciais no rótulo.

- Muito bem. Peço ao Tribunal que este frasco seja apenso ao processo, como prova material.

- Objecção - interpôs Mason. - Não pode ser apenso ao processo, como prova, sem que a Acusação o tenha relacionado, devidamente, com a ré.

- Terei oportunidade de relacionar o frasco de arsénio com a ré, depois de chamar outra testemunha, um empregado de farmácia da Hotel Street de Honolulu. Essa testemunha virá declarar que a ré, Victoria Braxton, adquiriu esse produto letal para exterminar uns gatos que andavam a destruir-lhe o jardim e matar pássaros...

O ar de Burger era irónico, mas tornou-se grave ao acrescentar:

- ...A testemunha apresentará o registo da venda de veneno, assinado pela ré.

- Não será preciso ouvir essa testemunha - declarou Mason. - A Defesa aceita a comunicação da Acusação.

- O quê? - interveio o juiz Howison, admirado. - A Defesa aceita uma tal comunicação, antes de ser testemunhada?

- Sim, senhor Doutor Juiz, porque é a verdade.

- Nesse caso, Mr. Mason, por que motivo objectou a inserção do frasco, como prova, no processo?

- Porque, embora a comunicação da Acusação seja verdadeira, o frasco continua a não estar devidamente relacionado com a ré. Terá de provar-se que foi exactamente esse frasco que o farmacêutico vendeu, em Honolulu, e que é o mesmo que foi encontrado no pátio.

- Se a Defesa pretende cingir-se a pormenores técnicos - replicou Burger, - a Acusação provará que o papel que envolvia o frasco apresenta impressões digitais da ré, com o mesmo pó fluorescente que cobria o guarda-jóias já mencionado neste processo.

- Nesse caso, compete-lhe, antes de inserir o frasco como prova, chamar os peritos de dactiloscopia para testemunharem acerca dessas impressões digitais.

- Trata-se, evidentemente, de um expediente técnico- protestou Burger, - com que a Defesa pretende prolongar indefinidamente a audiência. Terei, por conseguinte, de interromper o interrogatório de Mr. Bain e chamar o sargento Holcomb ao banco das testemunhas.

Nathan Bain retirou-se sendo substituído pelo sargento Holcomb. Com uma atitude muito segura de si, Hamilton Burger inquiriu:

- Já alguma vez viu este frasco, Sargento?

- Sim, sir.

- Quando e onde?

- Foi encontrado no dia dezassete de Setembro, no pátio da casa dos Bain.

- Estava embrulhado neste mesmo papel?

- Sim, sir.

- Foi feito algum teste dactiloscópico ao papel?

- Sim, sir. Detectaram-se nele duas impressões digitais da ré: do dedo médio e do dedo indicador. Tinham ténues vestígios de pó fluorescente, visível sob a acção de raios ultravioletas... indiscutivelmente, do mesmo pó que cobria a superfície exterior do guarda-jóias que se encontra na sala de estar de Mr. Bain.

- Pode contra-interrogar - concedeu Burger, dirigindo-se a Mason.

Este indagou:

- Esse papel embrulhava o frasco?

- Sim.

- Tinha outras impressões digitais que não fossem as da ré?

- Bem... sim. Foi manipulado por várias pessoas, evidentemente.

- E algumas dessas outras impressões digitais também apresentavam a mesma fluorescência?

- Sim, Mr. Bain também manipulou o papel, depois de ter tocado na caixa das jóias.

- Só o papel apresentava impressões digitais da ré. Estas não foram detectadas no frasco?

- Bem... não.

- Se a ré tinha suficiente pó fluorescente nos dedos para transmiti-lo ao papel, as suas impressões digitais também teriam ficado impressas no frasco... se porventura o tivesse aberto para retirar dele o seu conteúdo. Como explica que o frasco não as apresente?

- Não estou preparado para responder a isso - respondeu Holcomb, irritado.

- E está a testemunhar como perito da Polícia?

- Sim... mas não sei quando o arsénico foi retirado do frasco. A ré pode tê-lo feito antes de manipular o guarda-jóias.

- Já esperava que não pudesse responder a este facto. Obrigado, Sargento. Por agora, é tudo.

Hamilton Burger, decepcionado, chamou novamente Nathan Bain a depor.

- O senhor, Mr. Bain, também tocou no papel que embrulhava o frasco?

- Sim, sir... mas unicamente quando foi encontrado no pátio.

- Muito bem. A Defesa pode contra-interrogar. Mason olhou ansiosamente para o relógio. Só teria tempo para fazer algumas perguntas, antes do intervalo da audiência para almoço. Cumpria-lhe impressionar o júri, de qualquer maneira, antes desse intervalo. Encarando Bain, indagou:

- Viu a sua mulher, durante a doença que a vitimou?

- Só nos últimos momentos, quando já estava inconsciente.

- Já fora casado, anteriormente?

- Sim.

- A sua primeira mulher também morreu?

- Sim.

- E não viu a sua segunda mulher, Elizabeth, no decurso da doença?

- Não. Ela não queria que eu entrasse no seu quarto de cama... de onde nunca saía.

- Mas não estava interessado em acompanhar os sintomas da doença de que ela sofria?

- Certamente que me interessava pelo seu estado. Consultava os relatórios clínicos, informava-me junto do médico assistente e das enfermeiras que a tratavam e fiz tudo para que ela tivesse um tratamento adequado.

- Nos últimos momentos, foram-lhe descritos sintomas de envenenamento por arsénico?

- Sim.

- O senhor, Mr. Baiin, já estava familiarizado com esses sintomas?

- Não.

- Nunca os presenciara antes?

- Porquê?... Não, Mr. Mason!

Este pôs-se de pé, fitando Bain nos olhos.

- Pergunto-lhe se, nos últimos momentos da doença que vitimou a sua primeira mulher, os sintomas que esta apresentou não foram os mesmos evidenciados por Elizabeth Bain?

- Protesto! - gritou Burger.- Isto está a ir longe de mais! A morte da primeira mulher de Mr. Bain não está em causa.

- Objecção rejeitada-decidiu o juiz Howison.- O Tribunal deseja ouvir a resposta.

- Sim ou não? - insistiu Mason. Bain perdeu a pose inicial e titubeou:

- Bem... As circunstâncias foram diferentes. A minha primeira mulher, Martha, morreu devido a uma intoxicação alimentar. É o que consta da certidão de óbito.

- Foi feita uma autópsia?

- Não. Bastou o certificado médico.

- Mas a sua segunda mulher, Elizabeth, foi autopsiada, não é verdade?

- Sim.

- Com a finalidade de provar-se que se tratava de envenenamento por arsénico?

- Sim... O procurador do Distrito ordenou essa autópsia.

- Mas tal não foi acautelado, no caso da morte de sua mulher Martha?

Bain parecia ter minguado dentro do fato. Passou a mão pela cara e respondeu:

- Não.

- Presentemente, o senhor, Mr. Bain, vai herdar mais de meio milhão de dólares, com o envenenamento de sua mulher Elizabeth?

- Creio que ela, antes de morrer, fez um novo testamento.

- Tenciona contestá-lo?

- Sim. É um testamento disparatado.

- E, se ganhar o processo dessa contestação, o senhor herderá mais de meio milhão de dólares?

- Possivelmente - respondeu Bain, com raiva.

- Agora, descreva ao Júri, aqui presente, os sintomas que precederam a morte da sua primeira mulher.

- Objecção - gritou Burger. - Essa morte não está em causa.

- Rejeitada - decidiu Howison, interessado.

- Responda - insistiu Mason.

Bain manteve-se silencioso, com os olhos fixos no chão.

Então Mason inquiriu:

- Quanto herdou da sua primeira mulher que, segundo o senhor diz, morreu envenenada... de intoxicação alimentar?

- Cerca de cinquenta mil dólares.

- Que idade tinha sua mulher Martha, quando casou consigo?

- Vinte e três anos.

- E quando recebeu ela os cinquenta mil dólares que lhe foram deixados por um tio?

- Bem... ela já fruía dos rendimentos, mas, por condição testamentária, só pôde receber toda a herança, aos vinte e cinco, ou seja, dois anos após estarmos casados.

- Não é verdade que ela recebeu esse dinheiro a dezassete de Junho e morreu envenenada no dia um do mês de Outubro do mesmo ano?

- Sim... mas de intoxicação de marisco, no México.

- E quanto tempo esteve casado com Elizabeth, sua segunda mulher, antes de esta morrer, também envenenada?

- Dois anos... aproximadamente.

O juiz Howinson olhou para o relógio de parede e observou:

- Desagrada-me ter de interromper o contra-interrogatório da Defesa, mas já passam dez minutos para além da hora estipulada para o intervalo da audiência.

- Compreendo, senhor Doutor Juiz - respondeu Mason, afávelmente.

- O Tribunal voltará a reunir-se às duas horas, para prosseguimento desta audiência - indicou o juiz. - A ré permanecerá sob custódia. Os jurados não, deverão discutir as matérias expostas, antes da reunião do Júri para a decisão final.

Nathan Bain levantou-se da cadeira das testemunhas e ergueu um punho fechado, para Mason.

- Você... Você, seu... - rosnou, furioso. - Ainda o mato!

- Não, Bain, não me mate - retorquiu Mason. - Não herdaria um cêntimo com a minha morte!

Um jornalista que ouvira a ameaça e a réplica, soltou uma gargalhada e correu para uma cabina telefónica, para transmitir a sua reportagem.

Um meirinho interpôs-se entre Bain e Mason, para evitar uma cena de pugilato. Bain tinha baba aos cantos da boca, resmungando impropérios.

Os jurados, enquanto se retiravam, olhavam por cima do ombro, assistindo ao insólito espectáculo.

 

Perry Mason, Della Street e Paul Drake achavam-se reunidos à mesa de um pequeno restaurante, defronte do Palácio da Justiça. O proprietário, velho amigo do advogado, escolhera uma saleta particular e trouxera um telefone, cuja ficha ligou à parede.

Comendo uma sanduíche de presunto, acompanhada com um copo de leite, Mason sondou:

- Qual a tua opinião actual do caso, Paul?

- Acumularam-se demasiadas provas contra Victoria. As impressões digitais detectadas no papel de embrulho e o facto de ela ter atirado o frasco pela janela deixam-na em maus lençóis. Decerto, Burger vai apresentar uma testemunha que a viu desfazer-se do frasco.

- Podem ter visto alguém atirar o frasco pela janela, mas só por muita sorte, conseguem provar que foi ela.

- Uma testemunha que a tenha visto ou que saiba mentir bem, resiste ao teu contra-interrogatório, nessa matéria.

- Okay, Paul. Depois se verá. Telefonaste aos pais de Martha?

- Logo a seguir a termos discutido esse assunto.

- Como reagiram eles?

- Fretaram um avião e vão requerer a exumação do cadáver da filha.

Pela primeira vez, Mason sorriu. Drake continuou:

- Se o cadáver for exumado e se os peritos detectarem nele vestígios de envenenamento por arsénico, talvez consiga safar a tua cliente... Mas, se não encontrarem tais vestígios, as tuas insinuações caem pela base e vão censurar-te teres transformado Bain em mártir.

- É uma jogada que terei de arriscar.

- Não podes pôr a tua cliente no banco das testemunhas e interrogá-la acerca do frasco de arsénico? Talvez ela consiga convencer o júri... - sugeriu Drake.

- Com a história dos gatos? Burger daria logo cabo dessa justificação. Diria logo que Victoria tem instintos assassinos, mesmo contra os pobres animaizinhos indefesos. Acusá-la-ia de ter inventado essa versão para o caso de lhe descobrirem o frasco, depois de ter assassinado a irmã.

- O panorama está deveras feio. Vou telefonar para a agência, a saber se já há mais novidades. Temos andado a seguir Nathan Bain, sem que ele desse por isso.

Ligou o número do seu escritório e, instantes depois, tapava o bocal, para anunciar:

- Bain está perdido de amores por Charlotte Moray. Foi vê-la aos "Rapidex Apartments" onde a "querida" se instalou, depois de regressar a Los Angeles.

- Quando foi isso?

- Antes de ele ter ido para o tribunal.

- Em que nome se registou ela?

- No seu próprio nome. De resto, já ali vivia, há alguns meses. Nunca se desfez do apartamento nesta cidade.

- Bem... Já tenho mais alguns cartuchos para queimar.

- Tens instruções a dar-me?

- Acabo de ter uma ideia...

- Já não era sem tempo. Desembucha.

- Esta tarde, quem estará em casa dos Bain?

- Vejamos... Bain e a governanta estão no tribunal...

- Quero que mandes um dos teus homens instalar um microfone, perto do telefone que ele utiliza, na sala, e um gravador, nas redondezas.

- Tem piedade, Perry! Bem sabes que isso é ilegal! Ainda me cassam a licença de detective... e eu não sei fazer outra coisa na vida!

- Instala a aparelhagem, num sítio onde Bain não possa dar com ela. Logo que ele saia, os teus homens retiram toda a instalação. Manda-os ficarem de vigilância à casa, para o verem entrar e sair. Se Bain for a algum lado, posta outros dois para o seguirem, a par e passo.

- Se nos apanham, cassam-nos as licenças!

- Então, arranja-te de maneira que ninguém seja apanhado.

 

Na sessão da tarde, o juiz Howison dirigiu-se à assistência que atulhava a sala de audiências.

- Ao mais pequeno rumor, por parte do público, mandarei evacuar a sala. O tumulto do fim da sessão da manhã não poderá repetir-se. Todo o cidadão tem a obrigação de respeitar a dignidade do Tribunal.

"Mr. Nathan Bain encontrava-se, antes do intervalo, no banco das testemunhas. Queira a Defesa prosseguir com o seu contra-interrogatório."

Bain perdera o ar de segurança que inicialmente manifestara e já não olhava para o júri, com olhos de contricção pelo seu pecado de infidelidade. A suspeita de envenenador que Mason lhe atirara para os ombros acabrunhara-o visivelmente.

- Continuando o seu depoimento - preambulou Mason-acerca do pó fluorescente, quero que se refira ao motivo que o levou, Mr. Bain, a espalhá-lo no estojo das jóias. Tinha verificado a falta delas?

- Sim. Notei que tinham roubado algumas.

- E esses furtos coincidiram com a estadia ao serviço da enfermeira nocturna, Miss Nellie Conway?

- Sim.

- Antes de ela estar empregada como enfermeira de Mrs. Elizabeth Bain, o senhor nunca tinha dado pela falta de qualquer dessas jóias?

- Não.

- Mais alguma pessoa da casa notara o desaparecimento de outros objectos de valor?

- Não.

- As referidas jóias, propriedade de sua mulher, estavam fechadas numa gaveta de uma cómoda da sala?

- Sim.

- Miss Nellie Conway só foi contratada por si, para tratar de Mrs. Elizabeth Bain, após o acidente de automóvel que ela sofreu e lhe lesionou a coluna vertebral?

- Sim.

- E, a partir desse acidente, sua mulher manifestou horror, direi mesmo asco, por si?

- Bem... ela já era muito nervosa e a doença...

- Responda à pergunta.

- Bem... sim.

- Nunca mais pôde comunicar com a sua mulher, pessoalmente?

- Infelizmente, não. Recusava-se a falar-me e a ver-me.

- Quando se apossou ela das cartas comprometedoras, que a sua amante, Mr. Bain, lhe enviara? Foi antes ou depois do acidente?

- Foi antes, evidentemente. Depois do desastre nunca mais pôde mexer-se.

- Quanto tempo antes?

- Não me lembro.

- Faça um esforço de memória. Não é um assunto que se esqueça facilmente.

- Eu... não me recordo.

- Foi imediatamente antes do acidente, não é verdade, Mr. Bain?

- Sim, deve ter sido.

- De facto, no próprio diia do acidente, antes de este ter ocorrido, a sua mulher discutiu consigo, acusou-o de infidelidade e ameaçou-o com o divórcio. Não foi isso?

- Eu...

Mason abriu a carteira e retirou dela uma carta. Seguidamente, agitando-a no ar explicou:

- Tenho aqui, Mr. Bain, uma carta que foi expedida por Mrs. Elizabeth Bain, para Honolulu, dirigida a Miss Victoria Braxton. Está datada do dia em que sua mulher sofreu o estranho acidente de automóvel. Portanto, responda: sim ou não?

- Com os olhos fixos na carta, Bain respondeu, surdamente:

- Sim.

- Portanto, Mrs. Elizabeth discutiu consigo a questão da infidelidade matrimonial, ameaçou-o com o divórcio e... sofreu o tal estranhíssimo desastre de viação.

- Nada teve de estranho. Os travões falharam. Eu disse-lhe que saltasse do carro em andamento, ao mesmo tempo que eu... e ela não teve coragem para fazê-lo. Foi o que foi.

- Efectuou-se qualquer exame de peritagem aos travões, após o acidente?

- Objecção - indignou-se Burger. - Este contra-interrogatório é inadmissível. O acidente de viação não foi abordado pela Acusação, no interrogatório directo. A presente matéria é completamente estranha ao processo em causa e aos debates.

- Objecção aceite - disse o juiz, olhando atentamente para Bain, com um ar suspeitoso. - Queira a Defesa cingir-se à matéria do processo em causa.

- Sim, senhor Doutor Juiz. Peço imensa desculpa por ter abordado factos e pormenores que, embora verdadeiros, se afastam da linha de debates pre-estabelecida.

Virando-se para Bain, inquiriu:

- Miss Conway, enquanto sua empregada, foi portanto acusada por si de ter roubado jóias, não foi isso?

- Sim, mas repito ter cometido um erro de que já me penitenciei. Miss Conway foi absolvida. Estava inocente. Reconheci esse facto e indemnizei-a, de maneira adequada.

- Ela nada teve a ver com o desaparecimento das jóias?

- Não.

- Ah! Mas essas jóias desapareceram, não é verdade? Todas de uma vez?

- Não. As várias peças que faltam foram desaparecendo, gradualmente.

Mason ergueu-se, fitou a testemunha dramaticamente e acabou por perguntar-lhe, lentamente:

- Como é que soube isso?

- Isso, o quê?

- Que as jóias da sua mulher estavam a desaparecer?

- Porque as conhecia e sabia quantas possuía.

- Mas Mrs. Elizabeth estava de cama, impossibilitada de levantar-se. Decerto, não foi ela quem lhe pediu que, periodicamente verificasse o número de jóias, visto que não lhe dirigia a palavra nem sequer queria vê-lo. Portanto, não terá sido o senhor, Mr. Bain, quem, pessoalmente, num acto voluntário, se incumbiu do trabalho de verificar a existência de todas as jóias da sua mulher?

Nathan agitou-se na cadeira e, após uma pausa, respondeu:

- Como dono da casa, quis assegurar-me de que nada faltava, já que minha mulher estava doente e incapacitada...

- Dono da casa? A casa que o senhor habita não é propriedade da sua mulher?

- Bem... sim. A casa é dela.

- E o recheio dessa casa?

- Parte dele pertence-me.

- A mobília?

- Não, mas tenho alguns objectos, por mim adquiridos...

- Objectos pessoais, não é assim?

- E também alguns, decorativos. Por exemplo, fui eu quem lhe ofereceu o guarda-jóias.

- Mas não lhe ofereceu as jóias, pois não?

- Não.

- A cómoda da sala serve para guardar objectos seus, Mr. Bain, ou é um móvel reservado a coisas pertencentes à sua mulher?

- Só tem coisas dela.

- E a gaveta onde o guarda-jóias estava guardado fora fechado à chave por Mrs. Elizabeth, antes de ficar incapacitada de largar a cama?

- Sim.

- Mas o senhor obteve um duplicado dessa chave, sem o conhecimento da sua mulher?

- Bem... sim. Arranjei uma chave, para o caso de ela perder a que tinha guardada no seu quarto.

- E disse-lhe que tomara essa precaução, Mr. Bain? Lembre-se de que já testemunhou esse facto, no julgamento de Miss Nellie Conway. Referiu a Mrs. Elizabeth ter essa outra chave em seu poder?

- Creio que me esqueci de mencioná-lo.

- E também se esqueceu de informar a sua mulher de que, quando lhe ofereceu o estojo para guardar as jóias, ficara com uma outra chave, só para si?

- Bem... Fi-lo por precaução, não fosse ela extraviar a que trazia na sua bolsa de mão.

- Estou a ver, Mr. Bain, que o senhor é tão cauteloso como... no seu entender... a sua mulher era descuidada com as chaves. Alguma vez Mrs. Elizabeth perdeu alguma chave?

- Não sei.

- Ah! Não sabe... Mas tem a certeza de que tanto a gaveta da cómoda como o guarda-jóias estavam fechados à chave?

- Sim.

- E o senhor, voluntariamente, deu-se ao incómodo de abrir a gaveta e o estojo, para verificar se faltavam algumas jóias?

- Já respondi a essa pergunta - resmungou Bain, surdamente.

- Objecção, senhor Doutor Juiz! - interveio Hamilton Burger, levantando-se. - A testemunha já respondeu, repetidamente, às mesmas perguntas. A Defesa está afastar-se da matéria da causa em debate...

- Rejeitada - decidiu Howison, secamente. - A Acusação, no seu interrogatório directo, abordou este assunto, pormenorizadamente. A Defesa tem o direito de contra-interrogar a testemunha sobre a mesma matéria.

- Mas, senhor Doutor Juiz, eu abordei esse assunto, com a finalidade de provar que a ré manipulara o estojo das jóias, tendo ficado com os dedos fluorescentes e, dessa maneira, deixando as suas impressões digitais no papel que embrulhava o frasco de arsénico.

- Se a matéria foi abordada, em Tribunal, fosse qual fosse a intenção da Acusação, a norma mantêm-se e a Defesa pode idênticamente abordá-la, com qualquer outra intenção. Objecção rejeitada. Queira prosseguir, Mr. Mason.

O procurador do Distrito sentou-se, acabrunhado, e Mason inquiriu:

- Não é verdade, Mr. Bain, que, aproveitando a incapacidade da sua mulher, o senhor, sem o conhecimento dela, subrepticiamente, utilizou os duplicados das duas chaves, para manipular as jóias?

- Fi-lo, unicamente, para verificar se faltava alguma.

- E descobriu que alguém as roubara?

- Sim.

- Quando deu pela primeira falta, comunicou, imediatamente, esse roubo à Polícia?

- Não... não da primeira vez.

- Porquê?

- Tentei investigar o roubo, por mim próprio.

- Estou a ver. Fez um inventário de todas as jóias existentes no estojo?

- Sim.

- E só procurou a Polícia, quando deu pela falta da penúltima jóia?

- Sim.

- A Polícia interveio, directamente?

- Não. Falei com o sargento Holcomb que me aconselhou a contratar um detective particular, Mr. Hal-lock, a fim de ambos prepararmos uma armadilha à ladra.

- Ladra? Já sabia que se tratava de uma mulher?

- Bem... Não sabia... Cometi o erro de suspeitar de Miss Conway.

- E, depois disso, o senhor e Mr. Hallock verificaram a falta de mais uma jóia?

- Sim. Um fio com um diamante suspenso.

- Por essa falta, o senhor acusou Miss Conway?

- Sim... Mas já reconheci ter cometido um erro.

- Não há dúvida, Mr. Bain, de que cometeu um enorme erro em todo esse seu plano. Já agora, diga-me: ofereceu algumas jóias à sua amante?

Nathan Bain encolheu-se na cadeira, levando a mão à cara.

- Sim ou não? - insistiu Mason.

- Não me lembro.

- Não se lembra de ter-lhe oferecido uma única jóia?

- Bem... sim. Todos os homens costumam fazer isso...

- Nem todos, Mr. Bain. Só os que têm posses para um tal acto de generosidade. E o senhor pagou essas jóias do seu próprio bolso?

- Não me lembro.

- Portanto, também não é capaz de mencionar em que loja comprou essas jóias?

- Devo tê-las adquirido em leilões de casas de penhores.

- Compreendo. Tem as respectivas facturas?

- Não. Devo tê-las destruído.

- Compreendo - repetiu Mason, desta vez com um sorriso escarninho.

Após uma pausa, declarou:

- Fui informado de que os pais da sua primeira mulher, Mrs. Martha, vão requerer a exumação do cadáver da filha. Tem alguma objecção a fazer, Mr. Bain?

- Objecção! -gritou Burger, voltando a levantar-se.

- A pergunta é argumentativa e imprópria de contra-interrogatório. Esse assunto nunca foi abordado em interrogatório directo.

Mason alterou a formulação da pergunta:

- Deseja, Mr. Bain, que o cadáver da sua primeira mulher seja exumado?

- A mesma objecção - rugiu Burger, furiosamente.

- A matéria do primeiro casamento de Mr. Bain não está em causa no processo, agora em julgamento.

- Senhor Doutor Juiz - elucidou Mason, - considero vital para a defesa da ré que se aguardem os resultados da autópsia da primeira mulher de Mr. Bain, que, identicamente, morreu envenenada. Os sintomas de intoxicação por arsénico perduram, durante muitos anos, num corpo que o tenha ingerido, tanto nas vísceras, como nos cabelos e nas unhas... o que não sucederia no caso de tratar-se de uma intoxicação alimentar.

Burger interveio, indignado:

- A Defesa está a insinuar que Mr. Bain assassinou a primeira esposa com arsénico! Isso toca as raias da calúnia e da difamação!

- A exumação o dirá - replicou Mason. - Evidentemente, se Mrs. Martha Bain não foi envenenada com arsénico, ninguém poderá conceber que o marido também tenha assassinado Mrs. Elizabeth Bain de idêntica maneira, apesar dos muitos motivos que tinha para fazê-lo.

Rubro de raiva, o procurador do Distrito protestou:

- Senhor Doutor Juiz! Isto afasta-se de todas as regras dos debates! A Defesa permite-se acusar uma testemunha de assassínio, para desviar a atenção do Tribunal de todas as provas já acumuladas contra a ré. É um subterfúgio inadmissível!

O juiz Howison, fitando Bain com visível suspeita, determinou:

- A audiência é adiada para amanhã, às dez horas. Entretanto, o senhor Procurador do Distrito fará as diligências necessárias, para provar a inanidade da acusação que a Defesa acaba de fazer à testemunha, ou confirmar a consistência das mesmas.

Nathan Bain, embora permanecendo de olhos abertos, parecia ter perdido a consciência de tudo quanto o rodeava.

- A audiência é adiada - repetiu Howison, determinantemente.

 

O gabinete de trabalho de Paul Drake fora transformado no novo centro de operações. O detective, diante dos cinco telefones, recolhia as informações que, de quando em quando, os seus operadores lhe forneciam. Mason e Della Street achavam-se sentados junto dele.

Preocupado, Drake observou:

- Receio que os meus homens ainda não tenham tido tempo de ultimar a instalação da aparelhagem de escuta. Se Bain, ao sair do tribunal, foi imediatamente para casa, pode surpreendê-los com a "boca na botija" e, então, adeus licenças profissionais. Iremos todos para o desemprego!

- Não deve haver motivo para nos preocuparmos, Paul. Onde pensas que Bain se encontra, neste momento?

- Fui informado de que saiu do gabinete particular de Hamilton Burger, há coisa de meia hora, mas o homem, que encarreguei de segui-lo, ainda não teve oportunidade de comunicar comigo.

- Oh, diabo! Se Bain foi para os "Rapidex Apartments", estamos "tramados"!

- Porquê, Perry?

- Não tarda muito que te explique... Para já, Paul, de que maneira os teus operadores abordaram a casa de Bain?

- Um deles, disfarçado de marçano, transportou o equipamento num cesto de mercearia.

- Como entrou na casa? Com uma chave-mestra?

- Naturalmente. Bain não ia dar-lhe a dele! Mas qualquer vizinho pode tê-lo visto abrir a porta... e, se comunicou o facto à Polícia...

- Neste momento, não pensemos nisso. Onde mandaste instalar o gravador?

- Numa garagem fronteira. Estava desocupada e alugámo-la, demasiado à pressa. A mulher que no-la cedeu mostrou-se desconfiada de que os meus homens se dedicassem ao tráfico de carros roubados...

O telefone tocou e Drake interrompeu-se para pegar no auscultador. Depois de ouvir a comunicação, suspirou de alívio.

- Bem, isso já é melhor. Informem-me de tudo quanto acontecer.

Virando-se para Mason, esclareceu:

- Okay, Perry. Podemos respirar fundo. Bain e a governanta acabaram de entrar em casa, há cerca de cinco minutos. O detective que os seguia só agora pôde transmitir-me a informação.

Virando-se para Della Street, Mason indicou:

- É sua vez de actuar, minha amiga.

Della pegou num papel que Mason rascunhara à pressa e puxou para si um dos telefones. Em voz baixa, Drake indagou:

- Que raio de carta foi aquela que exibiste em tribunal, Perry? Porventura, Victoria Braxton confiou-te alguma carta que a irmã lhe tivesse escrito para Hono-lulu, no mesmo dia em que sofreu o acidente?

- Não... mas, por acaso, eu guardara, na algibeira, uma carta qualquer... e parece que surtiu o efeito desejado. Bain acreditou que aquilo era uma prova.

- Fazes coisas dos diabos, Perry!

- Vou fazer outra, Paul. Dize à tua telefonista que ligue, para aqui, uma das linhas exteriores. Quero fazer uma chamada.

- Para quem?

- Para Mr. Nathan Bain.

- O quê?

- É como te digo.

Depois de Della Street ter feito a ligação, falou com a boca muito junto do bocal:

- É de casa de Mr. Nathan Bain?... Muito bem... Por favor chame-o ao telefone. Diga-lhe que se trata de um caso de máxima urgência... Está lá? É Mr. Nathan Bain? Daqui fala do "Receiving Hospital". Uma paciente, que diz chamar-se Miss Charlotte Moray, residente nos "Rapidex Apartments", acaba de chegar, numa ambulância, ao banco de urgência deste hospital e está a receber tratamento intensivo a um envenenamento por arsénico. Afirma que o veneno só pôde provir de uma caixa de bombons que recebeu pelo correio... Ingeriu alguns e, pouco depois, começou a sentir-se mal... Pede-lhe, Mr. Bain, que venha vê-la imediatamente.

Ouviram-se ruídos do outro lado do fio e, no mesmo tom de voz impessoal e eficiente, Della acrescentou:

- Muito bem, Mr. Bain... O nome da paciente é Charlotte Moray, moradora nos "Rapidex Apartments". Boa tarde.

Desligou.

Drake fitou Mason com olhos incrédulos.

- Mas que raio de coisa te lembraste de fazer, Perry?

- A única que me pode valer, no caso de os resultados da exumação serem negativos.

- Mas Baim vai ficar como louco!

- É bom que se sinta cada vez mais desnorteado. Tenho uma teoria...

- E se o homem não acreditar neste telefonema?

- Ver-se-á depois. Qual a frequência das comunicações dos teus operadores?

- Ligam para aqui, de meia em meia hora, a menos que surja qualquer novidade importante. De que estás à espera que suceda agora?

- Espero que Bain faça um telefonema.

- Provavelmente, vai ligar para Charlotte, a fim de verificar se a chamada do hospital não seria falsa.

- Se ela estiver no apartamento, vai ser interessante ouvirmos a gravação dessa conversa.

Passaram-se cinco minutos de tensa expectativa. Mason reclinara-se no sofá e acendera um cigarro. Por fim, resmungou:

- Deves ter acertado, Paul. Decerto, Bain telefonou a Charlotte e certificou-se de que a chamada do hospital era "forjada". Talvez até já tivesse comunicado com ela, uma hora antes, do próprio gabinete do procurador do Distrito. Nesse caso, sabe que Charlotte não ingeriu o arsénico e está sã como um pêro! O melhor é dizeres aos teus homens que levantem o "arraial", com armas e bagagens, antes que a Polícia dê com eles e com o equipamento de gravação.

Logo à primeira campainhada do telefone, Drake levantou o auscultador.

- Sim... Que se passa? Subitamente o seu rosto iluminou-se.

- Okay, meu rapaz, não desligue. Aguarde novas instruções.

Tapando, com a mão, o bocal do aparelho, informou:

- Nathan Bain e a governanta envolveram-se numa terrível discussão. Bain acusou Imogene de ter enviado a Charlotte bombons envenenados com arsénico. A governanta chamou-lhe mentiroso e disse-lhe não o ter feito; acrescentou que, se antes injectara arsénico nos bombons de Martha, actuara por sugestão dele. Referiu-se ao acidente de automóvel que Bain... e só ele... provocara para matar Elizabeth e que, se não o amasse como amava, nunca teria cedido ao seu pedido para trocar os comprimidos que liquidaram a patroa. Acusou-o de só casar por dinheiro e nem sequer ter coragem para matar "limpamente". Em seguida, insultaram-se mutuamente.

- Perfeito, Paul! - animou-se Mason. - Agora, Della, ligue-me para o Departamento de Homicídiios. Quero falar com o< tenente Tragg.

Momentos depois, saudava:

- Olá, Tenente! Daqui, Perry Mason.

- Desta vez, que pedido tenciona fazer-me?

- Por que pensa que venho pedir-lhe qualquer coisa?

- Pelo tom melífluo da sua voz.

- Está enganado, Tragg. E quão grato me ficaria você, se eu lhe entregasse, "de bandeja", a solução completa de um par de assassínios sensacionais?

- E em troca? De que maneira teria eu de manifestar-lhe a minha gratidão?

- Fazendo vista grossa a uma instalação de um microfone e de um gravador.

- Quer dizer que você se atreveu a "plantar" uma escuta ilegal?

- Sim, mas, unicamente, com a intenção de oferecer-lhe a solução de dois casos de homicídio, embrulhados em papel de prata e com um belo laço, em redor.

- Está a jogar pela certa, Mason?

- Certíssima.

- Onde se encontra, neste momento?

- No gabinete de Paul Drake. Depois, conduzo-o ao local onde estão as famosas gravações.

- Okay, Mason, vou nisso. Esse Bain não me agrada, como parece agradar a Holcomb e ao procurador do Distrito... Mas você terá de provar o que diz.

- Venha cá e verá.

Mal pousou o auscultador, o advogado pediu a Della Street:

- Ligue-me a Nathan Bain.

- Estás louco? - espantou-se Drake. - Que raiio de ideia é a tua?

Mas Mason já pegara no telefone.

- Mr. Bain? Daqui fala Perry Mason.

- Nada tenho a dizer-lhe, Mr. Mason. O procurador do Distrito prometeu-me que ia pôr termo a essa sua perseguição à minha pessoa e aconselhou-me a processá-lo por calúnia e difamação.

- Um momento, Bain. Quis apenas avisá-lo de que, antes de processar seja quem for, seria melhor revistar essa sala e procurar um microfone. Adeus.

Mason desligou bruscamente e Drake exclamou:

- Santo Deus, Perry! Sabes o que estás a fazer?

- Perfeitamente.

- Mesmo que Tragg feche os olhos a essa história do equipamento de gravação, Bain não vai ficar calado.

- Vai sim... e bater asas. Voar daqui para fora, em fuga, é considerado prova de culpabilidade. Aposto em como, dentro de dez minutos, recebes a informação de que Bain saiu de casa, desarvoradamente. Quero que o tenente Tragg tenha provas tão fortes que nenhum Hamilton Burger lhes consiga abrir uma só brecha.

 

A garagem cheirava a bafio, como todos os compartimentos que estão muito tempo fechados, sem utilização.

Lá dentro fazia frio e os homens de Drake, apesar de protegidos por sobretudos, tinham os pés e as mãos geladas.

O tenente Tragg, ladeado por Perry Mason e Della Street, via-os, apreensivo, manipular as bobinas do gravador.

Ao cabo de alguns minutos, após ouvirem as vozes de Bain e da governanta, Tragg perguntou:

- Como suspeitou da verdade, Mason?

- Ao observar a cara de Bain, ao acusá-lo de ter envenenado a primeira mulher. Deduzi que, se ele já matara uma vez, por meio de arsénico injectado em bombons, era natural que tivesse tentado a sorte, uma segunda vez... com uma troca de comprimidos.

- Por que está tão certo de que Bain, dessa primeira vez, envenenara os bombons?

- Porque ele comera do mesmo marisco que a mulher e nada sofrera com isso e também porque Bain detesta o chocolate e não ingeriu nenhum dos bombons, sem que a mulher tivesse motivo para estranhar esse facto. Por conseguinte Martha só poderia ter sido envenenada por Bain ou pela governanta.

"Evidentemente, admiti a hipótese de essa Imogene Ricker estar apaixonada pelo patrão. É uma mulher introvertida e os crimes por envenenamento são mais femininos do que masculinos. Pois bem, esta regra voltou a confirmar-se. A gravação magnética que acabou de ouvir, Tenente, prova claramente que o assassino não foi Nathan Bain, mas, sim, a governanta. Ela, durante a discussão, acusou-se formalmente disso, embora também o tenho implicado, como cúmplice e instigador, nos dois crimes. Além deles, Bain também pode ser facilmente acusado de homicídio frustrado, no desastre de automóvel, e do roubo das jóias da mulher.

- Okay, Mason, você ganhou. Vou levar as gravações para o Quartel-General e deitar as unhas a esses "pássaros": ao peru e à pega.

- Faça isso e deixe o procurador do Distrito ler 3 notícias nos jornais... Mas cuidado, não tenham já os "pássaros" levantado voo.

- Vou já telefonar para a Polícia do aeroporto e para a das fronteiras terrestres. Servir-me-ei do telefone de Bain.

A porta de entrada estava aberta e um dos detectives de Drake correu a informar este de que Bain já saíra, alguns momentos antes, levando apenas uma pequena mala.

Ao entrarem na sala de estar, viram Imogene Ricker caída por terra.

- O tipo enlouqueceu e estrangulou-a!-observou Tragg.- Isto vai reforçar a credibilidade de Burger, quanto ao teor da discussão gravada. Ninguém poderá acusar-vos de terem "falsificado" uma gravação.

- A nós?

- Bem, à Polícia. Vou deixá-los fora disto. Drake respirou fundo e advertiu:

- Seria bom mandar proteger Charlotte Moray. Se Bain está louco...

- Estrangulou Imogene, num impulso de raiva momentânea - observou Mason. - Não creio que seja capaz de levantar um dedo contra a sua apaixonada. De resto, é natural que vá procurá-la ao hospital onde ela nunca entrou, se é que não fugiu já para um aeroporto.

- Okay- resmungou Tragg. - Não preciso que me ensinem o meu ofício. Adeus.

E começou a telefonar activamente.

Mason pegou no braço de Della Street e ambos se encaminharam para a porta, seguidos de Drake. Este, indicou aos seus homens que retirassem o equipamento que se achava na casa, o mais depressa possível, sem se importarem com o tenente dos "Homicídios" que estava ao telefone.

- Tudo arrumado - afiançou.

- Uma verdadeira tragédia! - comentou Della.- Pensar que começou por um salário de um dólar.

- Agora que Victoria Braxton vai ser absolvida - replicou Mason,- não deixará de pagar-nos uns bons honorários... ela e o irmão, antes de a cunhada começar a fazer despesas.

- Porquê o irmão? Ele não foi seu cliente!

- Se eu não tivesse solucionado o caso, nenhum dos Braxton receberia um chavo da herança e Victoria arriscava-se a abafar na câmara de gás. Hei-de fazer-lhe ver os factos reais da vida... deles.

- Acho bem - concordou Drake sorrindo. - Já agora, que tal irmos tomar um banho de imersão e, depois, um jantar celebrante... tanto mais que são os Braxton quem paga?

- Não acha, "Chefe" - sugeriu Della, - que poderíamos convidar Victoria a vir connosco, para sermos dois pares?

- Sim, minha amiga. Burger não poderá retê-la, depois de Tragg lhe expor a situação. Não é homem para deixar o procurador do Distrito saber do caso, apenas pelos jornais.

- Magnífico! - exultou Drake. - Essa ideia da "brasa" ser a minha parceira da noite foi magistral, Della! A menos, Perry, que tu queiras guardá-la para ti.

- Era o que faltava! - protestou Della.

 

                                                                                            Erle Stanley Gardner  

 

                      

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