Biblio VT
Series & Trilogias Literarias
DAVID GREENGOLD nasceu na mais americana das comunidades, o Brooklyn, mas no seu bar mitzvah alguma coisa importante mudou em sua vida. Depois de proclamar Hoje sou um homem, foi para a festa de comemoração e encontrou alguns membros da família que vieram de Israel. Seu tio Moses era um negociante de diamantes muito próspero por lá. O próprio pai de David era dono de sete joalherias, cuja matriz ficava na rua 40, em Manhattan.
Enquanto o pai e o tio falavam de negócios bebendo vinho californiano, David juntou-se ao primo, Daniel. Mais velho do que ele dez anos, Daniel começara a trabalhar para o Mossad, o principal serviço de informação exterior de Israel e, como principiante típico, regalou o primo com histórias. Daniel fizera seu serviço militar obrigatório com os paraquedistas israelenses, dera 11 saltos e enfrentara alguma ação na Guerra dos Seis Dias, em 1967. Para ele havia sido uma boa guerra, sem baixas graves em sua companhia e mortes apenas o suficiente para considerar aquela guerra uma aventura esportiva — uma caçada perigosa, mas não excessivamente, com uma conclusão que se encaixara muito bem em suas perspectivas e expectativas antes da guerra.
As histórias forneceram um forte contraste à cobertura melancólica da TV no Vietnã, que antecedia todos os noticiários da noite na época, e com o entusiasmo de sua identidade religiosa recém-reafirmada, David decidiu imediatamente emigrar para sua pátria judaica tão logo se formasse no secundário. O pai, que servira na Segunda Divisão Blindada dos Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial, e que no todo achara a aventura menos do que agradável, ficou ainda menos feliz com a possibilidade da ida de filho para uma selva asiática, lutar numa guerra pela qual nem ele nem nenhum dos seus conhecidos sentiam grande entusiasmo. Assim, quando se formou, o jovem David seguiu para Israel num voo da El Al e realmente nunca olhou para trás. Aprimorou seu hebraico, prestou serviço militar e depois, como o primo, foi recrutado pelo Mossad.
Nesse trabalho ele se saiu bem — tão bem que já era chefe do posto em Roma, uma designação de não pouca importância. O primo Daniel, enquanto isso, tinha deixado o serviço e voltado ao negócio da família, que pagava muito melhor do que o salário de funcionário civil. Para Daniel, dirigir o posto do Mossad em Roma o mantinha ocupado.
Tinha sob seu comando três agentes de inteligência em tempo integral, e eles conseguiam boa quantidade de informação. Parte dela procedia de um agente que chamavam de Hassan. Era palestino de origem e tinha boas ligações na Frente Popular para Libertação da Palestina, a FPLP, e por dinheiro partilhava com os inimigos as coisas que aprendia lá — muito dinheiro, na verdade, o suficiente para financiar um confortável apartamento a um quilômetro do Parlamento italiano. Hoje David ia pegar um pacote.
Já usara antes o local, o banheiro masculino do Ristorante Giovanni, na Piazza di Spagna. Primeiro aproveitou o tempo para apreciar um almoço de vitela à francesa — era sublime ali —, terminou seu vinho branco e depois se levantou para recolher o pacote. A entrega estava embaixo do mictório mais à esquerda, uma escolha teatral que tinha a vantagem de nunca ser inspecionada ou limpa. Uma placa de aço fora colada ali, e mesmo que tivesse sido notada, pareceria inocente o bastante, uma vez que tinha gravado o nome do fabricante e um número que afinal nada significava. Aproximando-se dela, decidiu tirar vantagem da oportunidade ao fazer o que os homens costumam fazer em um mictório e, enquanto estava empenhado nisso, ouviu a porta se abrir com um rangido. Quem quer que fosse, não tinha nenhum interesse nele, mas, para ter certeza, deixou cair seu maço de cigarros e enquanto se abaixava para recuperá-lo com a mão direita, a esquerda arrebatou o pacote imantado do esconderijo. Foi uma boa manobra, como um mágico profissional distraindo a atenção com uma das mãos enquanto faz o truque com a outra.
Só que neste caso não funcionou. Mal acabara de pegar o pacote, alguém esbarrou nele por trás.
— Desculpe, meu velho... isto é, signore — a voz se corrigiu no que soou como inglês de Oxford. Simplesmente o tipo de coisa que faz um homem civilizado se sentir à vontade em determinada situação.
Greengold nem respondeu, apenas virou-se à direita para lavar as mãos e depois sair.
Alcançou a pia e abriu a torneira. Então olhou no espelho.
Na maior parte do tempo, o cérebro age mais rápido do que as mãos. David viu os olhos azuis do homem que esbarrara nele. Eram bem comuns, mas não sua expressão. No momento em que sua mente ordenou ao corpo que reagisse, a mão esquerda do homem se estendeu à frente para agarrar sua testa, e algo frio e cortante mordeu sua nuca, logo abaixo do crânio. Sua cabeça foi puxada bruscamente para trás, facilitando a passagem da faca pela medula espinhal, cortando-a por completo.
A morte não foi instantânea. Seu corpo desabou quando cessaram todos os comandos eletroquímicos para os músculos. Junto com isso se foi toda a sensação. Algumas distantes sensações no pescoço eram tudo o que restava, e o choque do momento evitou sua evolução para uma dor aguda. Tentou respirar, mas não conseguia entender que jamais faria isso de novo. O homem virou-o de frente como se fosse um manequim de loja de departamentos e carregou-o até o reservado do toalete. Tudo o que podia fazer agora era olhar e pensar. Viu o rosto, mas nada significava para ele. O rosto olhou para trás, fitando-o como uma coisa, um objeto, sem conceder sequer a dignidade do ódio.
Desamparado, David vasculhou com os olhos enquanto era posto no reservado. O homem parecia estender o braço para seu casaco com intenção de roubar sua carteira. O que era tudo aquilo, então? Apenas um assalto? Um agente veterano do Mossad sendo assaltado? Não era possível. Então o homem agarrou David pelos cabelos para erguer sua cabeça pendente.
— Salaam aleikum — disse seu assassino. A paz esteja contigo.
Então era um árabe? Ele não tinha a menor pinta de árabe. O espanto devia ser evidente em seu rosto.
— Confiou realmente em Hassan, judeu? — perguntou o homem, sem qualquer satisfação na voz. O modo de falar, despido de emoção, revelava desprezo. Nos seus últimos momentos de vida, antes de seu cérebro morrer por falta de oxigênio, David Greengold percebeu que havia caído numa das mais velhas armadilhas da espionagem, o agente duplo. Hassan lhe passara informação de modo a ser capaz de identificá-lo, extrair dele o que pudesse. Que maneira estúpida de morrer. Só restou tempo para um único pensamento: Adonai echad.
O matador se certificou de que as mãos estavam limpas e verificou suas roupas. Mas a faca enfiada daquele jeito não causava muito derramamento de sangue. Embolsou a carteira e o pacote e, após ajeitar as roupas, saiu. Parou na mesa para deixar 23 euros pela refeição, incluindo poucos centavos de gorjeta. Mas não pretendia voltar ali tão cedo. Terminado seu serviço no Giovanni, atravessou a praça.
No caminho notou uma loja Brioni e decidiu que precisava de um terno novo.
O QUARTEL-GENERAL do Corpo de Fuzileiros Navais dos Estados Unidos não fica no Pentágono. O maior prédio de serviço público do mundo abriga o Exército, a Marinha e a Força Aérea, mas de uma maneira ou outra os fuzileiros ficaram de fora e tiveram que se contentar com seu próprio complexo, chamado Anexo Naval, a 400 metros de distância na Lee Highway, em Arlington, Virginia. Não era um grande sacrifício. Os fuzileiros sempre foram uma espécie de filho adotivo das forças armadas americanas, tecnicamente uma parte subordinada à Marinha. Sua utilidade original era ser o exército particular da Marinha, excluindo assim a necessidade de embarcar soldados em navios de guerra, já que entre o Exército e a Marinha nunca houve uma relação amistosa.
Com o tempo, o Corpo de Fuzileiros tornou-se autônomo, por mais de um século a única força americana de combate terrestre fora do país. Isentos da necessidade de se preocupar com logística pesada, ou mesmo pessoal médico — tinham o corpo médico da Marinha para isso —, cada fuzileiro era um atirador e uma visão intimidante e equilibrada para qualquer um que não simpatizasse com os Estados Unidos da América. Por este motivo, os fuzileiros eram respeitados, mas nem sempre apreciados pelos colegas nas forças armadas. Exibição demais, arrogância demais, e muita autopromoção no que seriam trabalhos simples.
O Corpo de Fuzileiros Navais atua como um miniexército, claro — e tem até sua própria força aérea, pequena, mas com caninos aguçados —, e agora incluía um chefe de inteligência, embora alguns militares fardados considerassem isso uma contradição em termos. O quartel-general da inteligência dos Fuzileiros era um novo departamento, parte do esforço da Máquina Verde para se igualar ao restante das forças armadas.
Chamado de M-2 — o 2 sendo o identificador numérico de qualquer um envolvido com informação —, o nome do chefe era Terry Broughton, general de divisão, atarracado profissional da infantaria escolhido para esta tarefa com o objetivo de dar um pouco de realismo à atividade de espionagem: o Corpo decidira lembrar que no fim da trilha burocrática estava um homem com fuzil que precisava de boa informação para permanecer vivo. Era apenas mais um segredo do Corpo que a inteligência inata de seu pessoal não ficava devendo nada a ninguém — nem mesmo aos magos de computador da Força Aérea, cuja atitude era de que alguém capaz de pilotar um avião simplesmente tinha que ser mais inteligente do que qualquer outro. Dali a onze meses, Broughton foi indicado para assumir o comando da Segunda Divisão dos Fuzileiros, baseada em Camp Lejeune, Carolina do Norte. Esta notícia bem-vinda tinha chegado havia apenas uma semana, e ele ainda estava no melhor de seu bom humor por causa disso.
Esta também foi uma boa notícia para o capitão Brian Caruso, para quem uma audiência com um general era se não exatamente assustadora, motivo para uma pequena circunspecção. Usava seu uniforme verde-oliva Classe A completo, com talabarte e todas as insígnias que merecera, que não eram muitas, mas bem vistosas, assim como suas asas douradas por saltos de paraquedas e uma coleção de medalhas como atirador de elite capazes de impressionar até mesmo um atirador veterano como o general Broughton.
O M-2 tinha um tenente-coronel como ordenança, mais uma sargento de artilharia negra como secretária pessoal. Isso tudo pareceu estranho ao jovem capitão, mas ninguém jamais acusara o Corpo de Fuzileiros de ser lógico, Caruso lembrou a si mesmo. Como gostavam de dizer: 230 anos de tradição sem os entraves do progresso.
— O general vai recebê-lo agora, capitão — disse a secretária, olhando-o de sua mesa.
— Obrigado, artilheira — respondeu Caruso, levantando-se e caminhando para a porta, que a sargento abriu para ele.
Broughton era exatamente o que Caruso havia esperado. Um coroa com menos de l,80m, e o tipo de peito que podia desviar uma bala em alta velocidade. O cabelo era cortado à escovinha. Como ocorria com muitos fuzileiros, um dia de cabelo ruim era o que acontecia quando ele crescia mais de um centímetro, exigindo uma visita ao barbeiro. O general ergueu a vista da papelada e olhou para seu visitante de cima a baixo com olhos castanhos frios.
Caruso não bateu continência. Como os oficiais da Marinha, os fuzileiros só batiam continência quando estavam armados ou com o quepe regulamentar na cabeça. A inspeção visual durou três segundos, que deram a impressão de uma semana ou mais.
— Bom dia, senhor.
— Sente-se, capitão. — O general apontou para uma cadeira forrada de couro.
Caruso sentou-se mas permaneceu em posição de sentido.
— Sabe por que está aqui? — perguntou Broughton.
— Não, senhor. Não me disseram.
— Gosta da Força de Reconhecimento?
— Acho ótima, senhor — replicou Caruso. — Tenho os melhores suboficiais de todo o Corpo, e o trabalho continua me interessando.
— Você fez um excelente trabalho no Afeganistão, diz aqui. — Broughton segurava uma pasta com fita listrada em vermelho e branco nas bordas. Isso significava material top secret. Mas o trabalho em operações especiais frequentemente caía nesta categoria e, com toda certeza, o trabalho de Caruso no Afeganistão não tinha sido algo para passar no noticiário noturno da NBC.
— Foi para lá de empolgante, senhor.
— Bom trabalho, diz aqui, retirando todos os seus homens vivos.
— General, foi graças principalmente aos SEALs que tínhamos conosco. O cabo Ward foi ferido gravemente, mas o suboficial Tandall salvou a vida dele, com toda certeza. Indiquei-o para uma condecoração. Espero que ele a ganhe.
— Ganhará — garantiu-lhe Broughton. — E você também.
— Senhor, só fiz o meu serviço — protestou Caruso. — Meus homens fizeram tudo...
— E esta é a marca de um bom jovem oficial — interrompeu o M-2. — Li seu relato da ação, e li também o de Gunny Sullivan. Ele diz que você foi simplesmente ótimo para um jovem oficial em sua primeira missão de combate. — O sargento-artilheiro Joe Sullivan, vulgo Gunny, já tivera sua prova de fogo no Líbano e no Kuwait, e em alguns poucos lugares que nunca apareciam nos noticiários de TV. — Sullivan trabalhou para mim uma vez — informou Broughton ao convidado. — Ele merece uma promoção.
Caruso assentiu.
— Sim, senhor. Ele está com certeza bem preparado para se destacar no mundo.
— Vi seu relatório sobre ele. — O M-2 bateu em outra pasta, que não tinha identificação de top secret. — O tratamento que dá a seus homens é generoso em elogios, capitão. Por quê?
Isto fez Caruso pestanejar.
— Senhor, eles se saíram muito bem. Eu não poderia ter esperado mais sob quaisquer circunstâncias. Com aquele bando de fuzileiros posso enfrentar qualquer um no mundo. Mesmo os garotos novos podem todos se tornar sargentos algum dia, e dois deles têm sargento escrito em todo o corpo. Eles trabalham duro e são espertos o bastante para começar fazendo a coisa certa antes que eu precise mandar. Pelo menos um deles é matéria-prima para oficial. Senhor, aqueles caras são a minha gente, e tenho uma sorte tremenda em contar com eles.
— E você os treinou muito bem — acrescentou Broughton.
— É o meu serviço, senhor.
— Não é mais, capitão.
— Como disse, senhor? Tenho mais 14 meses com o batalhão e minha próxima missão ainda não foi determinada. — Embora ele se sentisse feliz em permanecer na Segunda Força de Reconhecimento para sempre, Caruso imaginava que seria avaliado para passar a major muito em breve e talvez pulasse para S-3, oficial de operações para o batalhão de reconhecimento da divisão.
— Aquele cara da Agência que foi para as montanhas com você: o que achou de trabalhar com ele?
— James Hardesty. Diz que serviu nas Forças Especiais do Exército. Quarenta anos mais ou menos, porém em ótima forma para a idade, fala duas línguas locais. Não mija nas calças quando coisas ruins acontecem. Ble... bem, foi um excelente apoio para mim.
A pasta top secret voltou às mãos do M-2.
— Ele diz aqui que você salvou a vida dele naquela emboscada.
— Senhor, para começar, ninguém parece esperto quando se vê no meio de uma emboscada. O Sr. Hardesty estava fazendo reconhecimento na frente com o cabo Ward, enquanto eu montava o rádio por satélite. Os bandidos estavam num pequeno ponto bem estratégico, mas eles os perceberam a tempo. Abriram fogo cedo demais sobre o Sr. Hardesty, erraram na primeira rajada, e então manobramos colina acima em torno deles. Eles não tinham boa segurança externa. Gunny Sullivan conduziu seu esquadrão para a direita e, quando se posicionou, levei meu grupo para o meio. Passaram-se uns dez ou quinze minutos e então Gunny Sullivan atingiu nosso alvo, acertou-o bem na cabeça de uma distância de dez metros. Queríamos pegá-lo vivo, mas não foi possível pelo modo como as coisas se desenrolaram. — Caruso deu de ombros. Superiores podiam gerar oficiais, mas não as exigências do momento, e o homem não tinha a menor intenção de cair prisioneiro dos americanos, além de ser difícil capturar alguém assim. O escore final foi um fuzileiro gravemente ferido e 16 árabes mortos, mais dois prisioneiros para bater um papo com os caras da inteligência. Terminou sendo mais produtivo do que qualquer um havia esperado. Os afegãos eram bem valentes, mas não loucos — ou, mais exatamente, só escolhiam o martírio nos seus próprios termos.
— Lições aprendidas? — indagou Broughton.
— Não existe essa coisa de treinamento excessivo, senhor, ou estar em muito boa forma. A vida real é bem mais complicada do que os exercícios. Como eu disse, os afegãos são valentes, mas não são treinados. E nunca se pode saber quais vão lutar com unhas e dentes e quais vão debandar. Em Quantico nos ensinaram que devemos confiar nos instintos, mas lá não nos fornecem instintos, e nem sempre temos certeza de que estamos ouvindo a voz certa ou não. — Caruso deu de ombros, mas prosseguiu e pensou em voz alta: — Acho que funcionou bem para mim e meus fuzileiros, mas realmente não sei dizer por quê.
— Não pense demais, capitão. Quando a merda bate no ventilador, você não tem tempo para pensar enquanto isso está ocorrendo. Você pensa antecipadamente. É como você treina seus homens e dá responsabilidades a eles. Você prepara sua mente para a ação, mas nunca pensa que sabe que forma de ação vai ser empreendida. De qualquer modo, fez tudo muito bem. Impressionou esse tal de Hardesty... e ele é um cliente para lá de fiel. Foi assim que aconteceu — concluiu Broughton.
— Como disse, senhor?
— A Agência quer falar com você — anunciou o M-2. — Estão caçando talentos, e seu nome apareceu.
— Para fazer o que, senhor?
— Não me contaram. Estão procurando gente para serviço de campo. Não creio que seja espionagem. Provavelmente é o lado paramilitar da casa. Imagino que seja o novo setor antiterrorismo. Não posso dizer que estou satisfeito em perder um jovem fuzileiro promissor. Contudo, não tenho voz na questão. Você é livre para recusar a proposta, mas vai ter que subir e falar com eles primeiro.
— Entendo. — Na verdade, não entendia.
— Talvez alguém os tenha lembrado de outro ex-marine que trabalhou razoavelmente bem por lá... — Broughton observou.
— Está falando do tio Jack? Meu Deus... desculpe, senhor, mas estive me esquivando disso desde que me destaquei na Academia Militar. Sou apenas mais um fuzileiro 0-3, senhor. Não estou pedindo nada mais.
— Bom — foi tudo que Broughton encontrou para dizer. Via diante de si um jovem oficial muito promissor que lera o Marine Corps Officer's Guide de cabo a rabo e não havia esquecido nenhuma das partes importantes. De certo modo, era um tanto zeloso demais, mas ele próprio já tinha sido assim.
— Bem, você deve se apresentar lá em duas horas. A um sujeito chamado Pete Alexander, outro ex-Forças Especiais. Ajudou a dirigir a operação no Afeganistão para a agência em 1980. Não é mau sujeito, ouvi dizer, mas não quer desenvolver próprio talento. Cuidado com sua carteira, capitão — disse, dispensando-o.
— Pode deixar, senhor — prometeu Caruso. Ele se levantou, assumiu posição de sentido.
O M-2 premiou seu visitante com um sorriso.
— Semper Fi, filho.
— Aye, aye, sir — Caruso saiu do escritório, acenou com a cabeça para a sargento e não disse uma palavra ao tenente-coronel, que nem se incomodara de erguer a vista, e desceu, imaginando em que inferno ele estaria entrando.
A CENTENAS DE QUILÔMETROS dali, outro homem chamado Caruso estava pensando o mesmo. O FBI fizera sua reputação como uma das primeiras agências mantenedoras da lei por investigar sequestros interestaduais, começando logo após a aprovação da Lei Lindbergh, nos anos 1930. Seu sucesso em resolver esses casos dera fim aos sequestros por dinheiro — pelo menos para criminosos espertos. O FBI solucionou cada um daqueles casos, e criminosos profissionais finalmente entenderam que praticar aquela forma de crime era um mau negócio. E assim continuou por anos, até que sequestradores com outros objetivos que não dinheiro decidiram se aprofundar nisso.
E essa gente era muito mais difícil de capturar.
Penelope Davidson desaparecera a caminho do jardim de infância naquela mesma manhã. Seus pais tinham chamado a polícia local uma hora após o desaparecimento, e logo em seguida o xerife comunicara ao FBI. O procedimento permitiu que o FBI se envolvesse o mais rapidamente possível, pois a vítima havia sido levada através de uma fronteira estadual. Georgetown, Alabama, ficava a apenas meia hora da fronteira com o Mississippi, e assim o posto do FBI em Birmingham assumira imediatamente o caso, como um gato pula em cima de um rato. Na nomenclatura do FBI, um caso de sequestro é chamado de “7”, e quase todo agente no posto pegou seu carro e seguiu rumo sudoeste para a pequena cidade agromercantil. Na mente de cada agente, porém, estava o terror de uma empreitada infrutífera. Havia um medidor em casos de sequestro. A maioria das vítimas sofria abuso sexual, sendo mortas dentro de quatro ou seis horas. Só um milagre podia trazer de volta a criança viva com tanta rapidez, e milagres não acontecem com frequência.
Mas a maioria dos agentes era de homens com esposa e filhos, e continuariam investigando enquanto houvesse uma chance. O escritório do ASAC — agente especial assistente encarregado — foi o primeiro a falar com o xerife local, que se chamava Paul Turner. O FBI o considerava um investigador amador, apesar de sua sagacidade, e Turner concordava. O pensamento de uma menininha estuprada e assassinada em sua jurisdição lhe revirava o estômago e ele recebeu bem o auxílio federal. Fotos foram passadas a cada homem com uma credencial e uma arma. Mapas foram consultados. Os tiras locais e os agentes especiais do FBI se dirigiram para a área entre a casa da menina Davidson e a escola pública para a qual ela havia caminhado cinco quarteirões a cada manhã durante dois meses. Todos que residiam naquele trajeto foram entrevistados. Em Birmingham, buscas por computador foram feitas por possíveis criminosos sexuais morando num raio de 160 quilômetros, e agentes e patrulheiros estaduais do Alabama foram enviados para também interrogá-los. Cada casa foi vasculhada, em geral com permissão do proprietário, porém mais frequentemente sem permissão, porque os juízes locais eram implacáveis em casos de sequestro.
Para o agente especial Dominic Caruso, não foi seu primeiro caso importante, mas era o primeiro 7, e embora fosse solteiro e sem filhos, o simples pensamento de uma criança desaparecida fazia seu sangue primeiro gelar, depois ferver. A foto oficial da menina no jardim de infância mostrava olhos azuis e cabelos louros ficando castanhos e um sorrisinho esperto. Este 7 não envolvia dinheiro. Era uma família comum da classe operária. O pai era um instalador de cabos para a empresa de energia local, a mãe trabalhava em meio expediente como auxiliar de enfermagem no hospital do condado.
Ambos frequentavam a igreja metodista, e nenhum deles, à primeira vista, parecia suspeito em potencial para abuso de crianças, mas isso também seria investigado. Um agente sênior do posto de Birmingham era perito em formar perfis, e sua leitura inicial revelou-se assustadora: este sujeito desconhecido seria um sequestrador e assassino serial, alguém que achava as crianças sexualmente atraentes, e que sabia que o modo mais seguro de cometer este tipo de crime era matar a vítima após o estupro.
Ele estava em algum lugar por aí, Caruso sabia. Dominic Caruso era um jovem agente, mal completara um ano fora de Quantico, mas já na segunda missão de campo — agentes solteiros do FBI não tinham mais escolha na seleção de missões do que um pardal num furacão. A primeira tinha sido em Newark, Nova Jersey, durante sete meses, mas o Alabama estava mais a seu gosto. O tempo era em geral miserável, mas não era um cortiço como aquela cidade suja. Sua tarefa agora era patrulhar a área a oeste de Georgetown, para esquadrinhar e esperar algum fragmento de informação. Não tinha experiência suficiente para ser um interrogador eficaz. Adquirir esta habilidade leva anos, embora se considerasse bem inteligente e fosse formado em psicologia.
Procurar uma menininha dentro de um carro, disse a si mesmo, mas não sentadinha num banco?, especulou. Isso podia dar a ela uma maneira de acenar por socorro... Portanto, não, o sujeito a teria amarrado, algemado ou enrolado com fita crepe, e provavelmente amordaçado. Alguma menininha, desamparada e apavorada. O pensamento fez suas mãos apertarem no volante. O rádio crepitou.
— Base de Birmingham para todas as unidades 7. Temos um informe de que o suspeito 7 estaria dirigindo uma van, provavelmente Ford, de cor branca e um tanto suja. Placa do Alabama. Se virem um veículo que combine com essa descrição, avisem e acionaremos o departamento de polícia local para verificar.
O que significava: não acendam sua luz estroboscópica e só o detenham por conta própria em caso de extrema necessidade, pensou Caruso. Era hora de pensar em alguma coisa.
Se eu fosse uma dessas criaturas, onde estaria...? Caruso reduziu a velocidade. Ele pensou: num lugar com bom acesso rodoviário. Não uma estrada principal exatamente... uma estrada vicinal decente com um desvio para um lugar mais reservado. Fácil de entrar, fácil de sair. Um lugar onde vizinhos não pudessem ver ou ouvir o que ele ia...
Ele pegou seu microfone.
— Caruso para a Base Birmingham.
— Sim, Dominic — respondeu o agente na mesa de rádio. Os rádios do FBI estavam em código e não podiam ser ouvidos por ninguém que não tivesse um bom decodificador.
— A van branca. Até que ponto a informação é consistente?
— Uma mulher idosa diz que, quando saiu para apanhar o jornal, viu uma menininha, descrição correta, conversando com um homem perto de uma van branca. O possível suspeito é um homem branco, idade indeterminada, nenhuma outra descrição.
Não é muito, Dom, mas é tudo que conseguimos — relatou a agente especial Sandy Ellis.
— Quantos molestadores de crianças na área? — perguntou Caruso a seguir.
— Um total de 19 no computador. Temos gente conversando com todos eles. Nada resultou ainda. É tudo que temos, cara.
— Entendido, Sandy. Desligo.
Mais tempo dirigindo, mais varredura. Ele se perguntou se isso era parecido com o que seu irmão Brian vivenciara no Afeganistão: sozinho, caçando o inimigo... Começou a procurar caminhos de terra fora da estrada, talvez marcas recentes de pneus.
Baixou a vista de novo para a foto do tamanho de uma carteira. Uma garotinha de rosto doce, ainda aprendendo o bê-á-bá. Uma criança para quem o mundo tinha sido sempre um lugar seguro, governado por mamãe e papai, que iam à escola dominical e faziam lagartas de embalagens de ovos e limpadores de cachimbo, e aprendiam a cantar Jesus me ama, sei disso Porque a Bíblia assim me diz.... Olhava de um lado para o outro. A cerca de 100 metros de distância, uma estradinha de terra levava aos bosques. Ao reduzir a velocidade, viu que a trilha fazia uma suave curva em S, mas as árvores eram esparsas e ele pôde ver... um casebre... e no lado dele... a extremidade de uma van...? Mas esta era mais bege do que branca... Bem, a velhinha que tinha visto a garotinha e a van... a que distância, à luz do sol ou no escuro...? Coisas demais, inconsistências demais, variáveis demais. Por melhor que fosse a Academia do FBI, ela não preparava o agente para tudo — diabos, não chegava nem perto de tudo. E isto era o que eles também diziam: que o agente tinha de confiar no seu instinto e na experiência... Mas Caruso mal tinha um ano de experiência.
Ainda assim...
Ele parou o carro.
— Caruso para a base de Birmingham.
— Sim, Dominic — respondeu Sandy Ellis. Caruso transmitiu sua localização.
— Estou indo para 10-7 dar uma olhada.
— Entendido, Dom. Precisa de apoio?
— Negativo, Sandy. Talvez não seja nada demais, só vou bater numa porta e falar com o morador.
— Tudo bem, fico na escuta.
Caruso não tinha um rádio portátil — isso era para os tiras locais, não para o FBI — portanto estava fora de contato, exceto por seu celular. Sua arma pessoal era uma Smith & Wesson 1076, aninhada no coldre do quadril direito. Desceu do carro e fechou a porta sem bater, para evitar barulho. As pessoas sempre se viravam pata olhar quando ouviam uma porta de carro batendo.
Ele vestia um terno mais escuro do que verde-oliva, uma circunstância favorável, pensou Caruso, seguindo para a direita. Primeiro olhou para a van. Andava normalmente, mas seus olhos se concentravam nas janelas do casebre, talvez esperando ver um rosto, mas, pensando bem, satisfeito por não ter aparecido ninguém.
A van Ford tinha uns seis anos de uso, avaliou. Poucos arranhões e amassados na lataria. O motorista estacionara de ré, o que punha a porta corrediça junto à casa, o tipo de coisa que fariam um carpinteiro ou um encanador. Ou um homem transportando um corpo pequeno oferecendo resistência. Manteve a mão direita livre e o paletó desabotoado. Saque rápido era algo que todo policial no mundo praticava, com frequência diante de um espelho, embora só um tolo disparasse como parte do movimento, porque simplesmente não ia acertar ninguém dessa maneira.
Caruso aproveitou este tempo. O vidro da janela do lado do motorista estava arriado. O interior do veículo estava quase inteiramente vazio, nu, o assoalho de metal sem pintura, o estepe e o macaco... e um enorme rolo de fita crepe...
Havia um monte dessa coisa em volta. A ponta solta do rolo estava virada para baixo, como que para ter certeza de que seria possível puxar mais um pedaço do rolo sem ter de futucá-lo com a unha. Muita gente também fazia isso. Havia finalmente um tapete dobrado — não, preso com fita, ele viu — jogado no chão, logo atrás do banco do carona no lado direito... e o que era aquela fita pendendo da estrutura metálica do banco? O que podia significar?
Por que ali?, especulou Caruso, mas de súbito a pele de seus antebraços começou a formigar. Foi a primeira coisa para aquela sensação. Ele nunca realizara uma detenção, e ainda não se vira envolvido num caso importante de delito grave, pelo menos não para qualquer tipo de conclusão. Havia caçado foragidos em Newark, por breve tempo, e fizera um total de três detenções, sempre com outro agente mais experiente liderando a ação. Sentia-se mais experiente agora, um pouquinho mais amadurecido... Mas não tanto assim, lembrou.
Virou a cabeça na direção da casa. Sua mente trabalhava rapidamente agora. O que tinha de fato? Não muito. Havia olhado dentro de uma caminhonete comum sem nenhuma prova concreta, afinal, apenas um veículo vazio com um rolo de fita crepe e um pequeno tapete no chão de aço.
Ainda assim...
O jovem agente tirou do bolso o telefone celular e ligou para a base.
— FBI. Posso ajudá-lo? — perguntou uma voz feminina.
— Caruso para Ellis. — Isso precipitou as coisas.
— O que conseguiu, Dom?
— Van Ford Econoline branca, placa do Alabama Echo Romeo seis, cinco, zero, um, estacionado na minha locação. Sandy...
— Sim, Dominic?
— Vou bater na porta deste sujeito.
— Quer apoio?
Caruso pensou por um segundo.
— Afirmativo...
— Entendido. Patrulheiro do condado em dez minutos. Fique a postos — disse Ellis.
— Entendido, fico a postos.
Mas a vida de uma menininha estava em jogo...
Ele seguiu em direção à casa, cuidando para ficar fora de vista das janelas mais próximas. Foi então que o tempo parou.
Ele quase pulou de surpresa quando ouviu o grito. Foi um som medonho e estridente, como alguém olhando para a própria morte. Seu cérebro processou a informação e de repente viu-se com a pistola automática na mão, encostada ao peito, apontada para o céu mas mesmo assim em suas mãos. Tinha sido um grito de mulher, percebeu, e alguma coisa fez um clique dentro de sua cabeça.
Movendo-se o mais rápido que podia sem provocar muito ruído, chegou à varanda sob o telheiro barato e irregular. A porta da frente era telada para manter os insetos de fora. Precisava de pintura, assim como a casa inteira. Provavelmente era alugada, e barato, justamente por isso. Através da tela pôde ver o que parecia ser um corredor, levando à esquerda para a cozinha e à direita para um banheiro.
Conseguiu ver dentro dele. Um vaso e uma pia de porcelana branca era tudo o que podia ver.
Ele especulou se tinha um motivo plausível para entrar na casa e de imediato decidiu que tinha, e muito. Abriu a porta e deslizou para dentro tão furtivamente quanto pôde. Um tapete sujo e barato forrava o corredor. Seguiu por aquele caminho, a arma erguida, os sentidos aguçados para a prontidão definitiva.
Enquanto se movia, os ângulos de visão se alteraram. A cozinha tornou-se invisível, porém teve uma visão melhor do banheiro...
Penny Davidson estava na banheira, nua, os olhos azuis de porcelana arregalados, e sua garganta estava cortada de uma orelha à outra, com todo um suprimento de sangue cobrindo seu peito achatado e os lados da banheira. Seu pescoço tinha sido cortado tão violentamente que se abria como uma segunda boca.
Estranhamente, Caruso não reagiu fisicamente. Seus olhos registraram a imagem instantânea, mas no momento tudo em que pensou foi que o homem que fizera aquilo estava vivo, e apenas a alguns passos.
Deu-se conta de que o ruído que ouviu viera da direita e da frente. Da sala de estar. Uma televisão. O sujeito devia estar ali. Ou poderia haver outro? Não tinha tempo para isso, nem se preocupava no momento.
Lenta e cuidadosamente, seu coração batendo como um martelete pneumático, ele avançou e espiou além da esquina. Lá estava ele, no fim dos trinta, homem branco, cabelo rareando, assistindo à TV com atenção embevecida — era um filme de terror, o grito deve ter saído dali — e bebericando uma cerveja em lata. Seu rosto estava contente e de modo algum perturbado. Provavelmente já estivesse acostumado, pensou Dominic. E bem em frente a ele — meu Deus — estava uma faca de açougueiro ensanguentada, na mesinha de centro. Havia sangue em sua camiseta, como se respingado. Da garganta de uma garotinha.
— O problema com esses putos é que nunca oferecem resistência — dissera um instrutor de sua turma na Academia do FBI. — Ah, sim, eles são que nem John Wayne cheio de marra quando têm criancinhas à mercê, mas não oferecem resistência a policiais armados... nunca. E, vocês sabem — concluíra o instrutor —, isto é uma puta vergonha.
Hoje você não vai para a cadeia. O pensamento entrou na mente de Caruso aparentemente sem sua própria concordância. Seu polegar direito puxou o cão da arma até que ele clicou no lugar, colocando o braço plenamente em prontidão. Suas mãos, notou brevemente, pareciam gelo.
Bem na curva, onde se dobra à esquerda para entrar na sala, havia uma surrada mesa octogonal. Sobre ela estava um vaso de vidro azul transparente, daqueles baratos, talvez comprado na Kmart local. Provavelmente era para flores, mas naquele dia não havia nenhuma. Lenta e cuidadosamente, Caruso ergueu a perna e chutou a mesa. O vaso se estilhaçou ruidosamente no chão.
O sujeito se sobressaltou violentamente e se virou para ver um visitante inesperado na casa. Sua reação defensiva foi mais instintiva do que racional — ele agarrou a faca de açougueiro na mesinha de centro. Caruso nem sequer teve tempo de sorrir, embora soubesse que o sujeito tinha cometido o erro definitivo de sua vida. Nas agências policiais americanas é considerado um evangelho sagrado que um homem armado de faca a menos de seis metros de distância é uma ameaça imediata e letal. Ele até começou a se levantar.
Mas nunca chegou a fazê-lo.
O dedo de Caruso apertou o gatilho da sua Smith, enviando a primeira bala direto no coração do sujeito. Duas outras se seguiram em menos de um segundo. Sua camiseta branca se floriu em sangue. Ele baixou os olhos para o peito, depois para Caruso, surpresa total no rosto, e depois se sentou de novo, sem pronunciar uma só palavra ou gritar de dor.
A ação seguinte de Caruso foi mudar de direção e checar o único quarto da casa. Vazio.
Da mesma forma a cozinha, a porta dos fundos fechada por dentro. Veio um momento de alívio. Ninguém mais na casa. Outra olhada no sequestrador. Os olhos permaneciam abertos. Mas Dominic o matara mesmo. Primeiro ele algemou o corpo, pois era assim que tinha sido treinado. Em seguida vinha a verificação do pulsar da carótida, mas isso era desperdício de energia. O cara não via nada além da porta principal do inferno. Caruso pegou seu celular e ligou de novo para a base.
— Dom? — perguntou Ellis.
— Sim, Sandy, sou eu. Acabei de apagar o cara.
— O quê?! O que quer dizer? — perguntou Sandy Ellis com urgência.
— A garotinha, ela está aqui, morta, garganta cortada. Entrei e o cara partiu para mim com uma faca. Ele também está morto, pra lá de morto.
— Meu Deus, Dominic! O xerife do condado acabou de sair faz dois minutos. Fique a postos.
— Entendido. Aguardando, Sandy.
Não se passou outro minuto antes que ouvisse o som de uma sirene. Caruso saiu para a varanda. Travou a pistola e a pôs no coldre, depois pegou suas credenciais do FBI do bolso do paletó e segurou-as na mão esquerda enquanto o xerife se aproximava, com o revólver de serviço empunhado.
— Tudo sob controle — anunciou Caruso com a voz mais calma possível. Estava todo alerta agora. Acenou para o xerife Turner entrar na casa, mas ele próprio ficou do lado de fora enquanto o tira local seguia para o interior. Um ou dois minutos depois, o xerife retornou, sua própria arma no coldre.
Turner era a imagem hollywoodiana de um xerife do Sul, alto, troncudo, braços carnudos e um cinturão de armas que se enterrava profundamente na barriga. Só que era negro. Filme errado.
— O que aconteceu? — perguntou.
— Pode me dar um minuto? — Caruso tomou uma profunda inspiração e pensou por um momento em como contar a história. Era importante que Turner entendesse, porque homicídio era um crime local e estava na jurisdição dele.
— Claro. — Turner pegou um maço de Kools no bolso da camisa. Ofereceu um cigarro a Caruso, que fez que não com a cabeça.
O jovem agente se sentou no piso de tábuas sem pintura e tentou pôr tudo em ordem na sua mente. O que, exatamente, tinha acontecido? O que, exatamente, ele havia acabado de fazer? E como, exatamente, deveria explicar? A parte sussurrante de sua mente disse-lhe que não devia lamentar nada, afinal. Pelo menos não pelo sujeito. Por Penelope Davidson — chegara tarde demais. Uma hora mais cedo? Talvez mesmo meia hora? Aquela menininha não voltaria para casa naquela noite, nunca mais seria levada para a cama pela mãe ou abraçaria o pai. E assim o agente especial Dominic Caruso não sentia nenhum remorso. Só lamentava ter sido lento demais.
— Já pode falar? — perguntou o xerife Turner.
— Eu estava procurando um lugar como este e, quando passei por ele, vi uma van estacionada... — começou Caruso.
Logo se levantou e levou o xerife até a casa para relatar os outros detalhes.
— De qualquer modo, derrubei a mesa. Ele me viu e pegou a faca, virou-se para mim... então, saquei minha pistola e atirei no sacana. Três balaços, acho.
— Hã-hã. — Turner examinou o corpo. O homem não havia sangrado muito. As três balas penetraram direto no coração, interrompendo quase instantaneamente sua capacidade de bombear.
Paul Turner não era nem de perto tão tolo quanto parecia para um agente treinado do governo federal. Ele olhou para o corpo, depois virou-se para olhar o vão de porta de onde Caruso disparara seus tiros. Seus olhos mediram distância e ângulo.
— Então — disse o xerife —, você derrubou a mesa. O suspeito o vê, pega a faca e você, temendo por sua vida, saca a pistola de serviço e dá três liros rápidos nele, certo?
— Foi como aconteceu, é isso aí.
— Hã-hã — observou o homem que conseguia abater um cervo em quase toda temporada de caça.
O xerife Turner tirou seu chaveiro do bolso direito da calça. Era um presente do pai, carregador de bagagens na velha ferrovia Illinois Central. Era um chaveiro fora de moda, com um dólar de prata de 1948 soldado nele, da espécie antiga, com uns três centímetros de diâmetro. Ele o segurou diante do peito do sequestrador e o diâmetro da velha moeda cobriu por completo os três ferimentos. Seus olhos assumiram um aspecto muito cético, mas depois se desviaram para o banheiro. Os olhos se suavizaram antes que desse seu veredicto sobre o incidente.
— Então é assim que escreveremos. Belos disparos, garoto.
UM TOTAL de 12 veículos da polícia e do FBI chegaram poucos minutos mais tarde. Logo depois veio o caminhão-laboratório do Departamento de Segurança Pública do Alabama para proceder ao trabalho investigativo da cena do crime. Um fotógrafo da equipe pericial bateu 23 rolos de filme 400 ASA. A faca fora ensacada para tomada de impressões digitais e comparação do tipo sanguíneo com a vítima — não era mais que uma formalidade, mas o procedimento criminal imperioso em caso de assassinato. Finalmente, o corpo da garotinha também foi ensacado e removido. Os pais teriam de identificá-la, mas, felizmente, o rosto estava até certo ponto intacto. Um dos últimos a chegar foi Ben Harding, o agente especial encarregado do escritório em Camp Birminghan do FBI. Um agente envolvido disparando significava um relatório formal do setor para o do diretor Don Murray, um amigo distante. Primeiro, Harding veio para se certificar de que Caruso se mostrava em bom estado físico e psicológico. Depois foi cumprimentar Paul Turner e obter sua opinião do ocorrido. Caruso observou de certa distância e viu Turner gesticular narrando o incidente, acompanhado por acenos de cabeça de Harding.
Era bom que o xerife Turner estivesse dando seu selo oficial de aprovação. Um capitão da patrulha estadual também ouvia e acenava positivamente.
Na verdade, Dominic Caruso não estava ligando a mínima. Sabia que tinha feito a coisa certa, apenas uma hora mais tarde do que deveria. Finalmente, Harding se aproximou de seu jovem agente.
— Como está se sentindo, Dominic?
— Lento — disse Caruso. — Tremendamente lento... é, eu sei, não faz sentido de outra maneira.
Harding segurou o ombro dele e sacudiu.
— Você não podia ter feito muito melhor, garoto. — Ele fez uma pausa. — Como foi que aconteceu?
Caruso repetiu a história. Sua mente agora tinha quase adquirido a segurança da verdade. Podia provavelmente ter contado a verdade exata e não ser censurado por isso, Dom sabia, mas por que correr o risco? Foi, oficialmente, um disparo limpo, e isso bastava até onde dizia respeito ao seu prontuário no FBI.
Harding ouvia e assentia pensativamente. Haveria papelada a ser preenchida e despachada para a capital. Mas não pegaria mal nos jornais a história de um agente do FBI ter baleado e matado um sequestrador e assassino no próprio dia do crime. Provavelmente descobririam provas de que este não era o único crime que o escroto havia cometido. A casa ainda tinha que ser vasculhada por completo. Já haviam encontrado uma câmera digital e não seria surpresa para ninguém descobrir que o escroto tinha registrado crimes anteriores em seu computador pessoal. Se assim fosse, Caruso havia fechado mais do que um caso. Se assim fosse, Caruso ganharia um grande elogio em seu prontuário do FBI.
De que tamanho, nem Harding nem Caruso podiam ainda saber. Os caça-talentos também estavam prestes a encontrar Dominic.
E mais um outro.
1
O CAMPUS
A CIDADE DE WEST ODENTON, Maryland, não era bem uma cidade, apenas uma agência de correios para os residentes na área, alguns postos de gasolina e uma filial 7-Eleven, além das habituais lanchonetes de fast-food para gente que precisava de um café da manhã rico em gordura no caminho de Columbia, Maryland, até seus empregos em Washington. E a uns 800 metros do modesto prédio dos correios situava-se um prédio de escritórios do governo de arquitetura indistinta. Tinha nove andares e, sobre a vasta frente do gramado, um monólito baixo decorativo feito de tijolos cinzentos com faixas prateadas anunciava HENDLEY ASSOCIATES, sem explicar exatamente o que era esta entidade. Havia uns poucos indícios. O telhado do edifício era chato, com alcatrão e cascalho sobre concreto reforçado, uma pequena casa de máquinas do elevador e uma outra estrutura retangular que não dava nenhuma pista de sua identidade. De fato, era feita de fibra de vidro branca, permeável às ondas de rádio. O edifício em si só era incomum por um. detalhe: exceto por uns poucos galpões antigos de tabaco que mal excediam oito metros de altura, era o único prédio com mais de dois andares numa linha direta de visão da National Security Agency (NSA) em Fort Meade, Maryland, e do quartel-general da CIA em Langley, Virginia. Alguns outros incorporadores haviam desejado construir naquela linha de visão, mas a aprovação da comissão de zoneamento nunca saía, por muitas razões, todas falsas.
Atrás do edifício havia um conjunto de antenas semelhantes às de uma estação de TV local — uma meia dúzia de discos parabólicos de seis metros, assentados dentro de uma cerca Cyclone de 3,5m de altura coroada de arame farpado e apontados para vários satélites comerciais de comunicação. Todo o complexo, que não era tão complexo, afinal, abarcava oito hectares do condado de Howard, Maryland, e era chamado de O Campus pelas pessoas que trabalhavam lá. Nas proximidades ficava o Laboratório de Física Aplicada da Universidade Johns Hopkins, antigo e conceituado estabelecimento de consultoria governamental.
Para o público, a Hendley Associates fazia corretagem de ações, apólices e moedas internacionais, embora, estranhamente, pouco atuasse na área comercial pública.
Ignorava-se se tinha clientes, e embora se murmurasse que fosse discretamente ativa em ações beneficentes locais (a Escola de Medicina da Johns Hopkins, comentava-se, era a principal beneficiária da generosidade empresarial da Hendley), nada jamais vazara para a mídia. De fato, a Hendley nem tinha departamento de relações públicas. Nem havia boatos de que estivesse fazendo alguma coisa ilegal, embora seu diretor-executivo fosse conhecido pelo passado um tanto conturbado, sendo em consequência refratário à publicidade, da qual, em raríssimas ocasiões, ele se esquivara direta e afavelmente, até que, por fim, a mídia local deixara de procurá-lo. Os funcionários da Hendley se espalhavam mais ou menos na região, principalmente em Columbia, viviam em estilo classe média alta e eram geralmente pessoas comuns, que não chamavam atenção.
Gerald Paul Hendley Jr. tivera uma carreira estelar no negócio de commodities, durante a qual acumulara considerável fortuna pessoal, e depois voltara-se para a política no final da casa dos trinta, logo se elegendo senador pela Carolina do Sul. Muito rapidamente, granjeara a reputação de um dissidente legislativo que evitava interesses especiais e ofertas de dinheiro em suas campanhas. Seguia uma trilha política ferozmente independente, tendendo para posições liberais em relação a direitos civis, mas decididamente conservador sobre defesa e relações exteriores. Nunca se furtou em dizer o que pensava, o que fazia dele um bom e divertido material para a imprensa, e vez por outra havia cochichos sobre suas aspirações à presidência.
Chegando ao fim de seu segundo mandato de seis anos, porém, ele foi vítima de uma grande tragédia pessoal. Perdera a esposa e três filhos num acidente na rodovia Interestadual 185, nos arredores de Columbia, Carolina do Sul, a van esmagada sob as rodas de um trator-trailer Kenworth. Tinha sido um golpe previsivelmente terrível e logo depois, exatamente no início da campanha para seu terceiro mandato, outro infortúnio o atingiu. Soube-se através de uma coluna do New York Times que sua carteira de ações e títulos — ele sempre a mantivera em segredo, dizendo que, uma vez que não aceitava dinheiro para sua campanha, não tinha necessidade de expor seus lucros exceto nos termos mais gerais — mostrava evidência de informação privilegiada. Esta suspeita foi confirmada em investigação mais profunda por parte dos jornais e da TV, e apesar dos protestos de Hendley de que a Comissão de Valores e Câmbio nunca houvesse publicado um regulamento legal, pareceu a alguns que ele usara seu conhecimento interno sobre gastos futuros do governo para se beneficiar um empreendimento imobiliário que gerou lucro de 50 milhões de dólares para ele e seus coinvestidores. Pior ainda, quando desafiado sobre a questão num debate público pelo candidato republicano — que se autodefinia como Sr. Limpo —, ele cometera dois erros. Primeiro, perdeu a calma diante das câmeras. Depois, disse aos eleitores da Carolina do Sul que, se duvidavam de sua honestidade, então que votassem no idiota com quem dividia o palco.
Para um homem que nunca dera um passo político errado na vida, somente esta surpresa custou-lhe cinco por cento dos votos do estado. O restante de sua campanha sem brilho foi só ladeira abaixo e, apesar do persistente voto de simpatia dos que se lembravam da aniquilação de sua família, sua derrota acabou sendo uma pesada perda para os democratas. A seguir ele abandonara a vida pública para sempre, nem sequer voltar a sua fazenda anterior à Guerra de Secessão, a noroeste de Charleston, mas antes se mudando para Maryland e deixando sua vida inteiramente para trás. Mais uma declaração dura sobre o processo eleitoral queimara de vez as portas que ainda estivessem abertas para ele.
Sua casa agora era uma fazenda do século XVIII, onde ele criava cavalos Appaloosa — cavalgar e jogar um golfe medíocre eram suas únicas distrações — e ia vivendo a vida tranquila de um fazendeiro abastado. Também trabalhava no Campus sete ou oito horas por dia, conduzido por um comprido Cadillac com chofer. Aos 52 anos, alto, esguio e de cabelos prateados, ele era bem conhecido sem ser conhecido de todo, afinal, talvez o único aspecto remanescente de seu passado político.
— VOCÊ SE SAIU BEM nas montanhas — disse Jim Hardesty, apontando uma cadeira para o jovem fuzileiro.
— Obrigado, senhor. O senhor também se saiu bem.
— Capitão, toda vez que atravessa a porta de sua casa depois que tudo terminou, você se saiu bem. Aprendi isso com meu oficial instrutor. Já faz uns 16 anos — acrescentou.
O capitão Caruso fez a conta mental e concluiu que Hardesty era um pouco mais velho do que aparentava. Capitão nas Forças Especiais do Exército dos Estados Unidos, depois CIA, e mais 16 anos o deixavam mais próximo dos 50 do que dos 40. Ele devia ter trabalhado muito duro para manter a forma.
— Portanto — perguntou o oficial —, o que posso fazer por vocês?
— O que foi que Terry lhe disse? — indagou o agente secreto.
— Ele me disse que eu falaria com alguém chamado Pete Alexander.
— Pete foi chamado de repente para fora da cidade — explicou Hardesty.
O oficial aceitou a explicação sem comentários.
— Tudo bem. Seja como for, o general disse que os caras de sua agência estão empenhados numa espécie de caça a talentos, mas que o senhor não está disposto a expandir sua propriedade — disse Caruso honestamente.
— Terry é um bom homem e um tremendo fuzileiro, mas ele pode ser um tanto provinciano.
— Talvez, Sr. Hardesty, mas ele vai ser meu chefe em breve, quando assumir a Segunda Divisão dos Fuzileiros, e estou tentando permanecer ao lado dele. E o senhor ainda não me disse por que estou aqui.
— Gosta dos Fuzileiros? — perguntou o agente secreto.
O jovem fuzileiro assentiu.
— Sim, senhor. O salário não é lá essas coisas, mas supre minhas necessidades, e o pessoal com quem trabalho é de primeira.
— Bem, aqueles com quem subimos a montanha são muito bons. Quanto tempo passou com eles?
— No total? Cerca de 14 meses, senhor.
— Você os treinou muito bem.
— É para isso que me pagam, senhor. E tive bom material humano, para começar.
— Você também conduziu brilhantemente aquela pequena ação de combate — observou Hardesty, tomando nota das distantes réplicas que estava obtendo.
O capitão Caruso não era nem um pouco modesto para encarar aquilo como uma pequena ação de combate. As balas que choviam em torno tinham sido bem reais, o que tornava a ação grande o bastante. Mas seu treinamento, ele descobrira, funcionara simplesmente tão bem quanto seus oficiais lhe disseram que funcionaria em todas as aulas e exercícios de campo. Tinha sido uma descoberta importante e até mesmo gratificante. O Corpo de Fuzileiros realmente fazia sentido, porra.
— Sim, senhor — foi porém o que disse em resposta, acrescentando: — E obrigado por sua ajuda, senhor.
— Estou um pouco velho para esse tipo de coisa, mas é bom ver que ainda entendo do riscado. — E já tinha sido o bastante, Hardesty não acrescentou. O combate ainda era uma brincadeira de garotos, e ele não era mais um garoto. — Algumas reflexões a respeito, capitão? — perguntou em seguida.
— Na verdade não, senhor. Fiz meu relatório pós-ação.
Hardesty tinha lido.
— Teve pesadelos, alguma coisa assim?
A pergunta surpreendeu Caruso. Pesadelos? Por que os teria?
— Não, senhor — respondeu com visível surpresa.
— Sentiu algum remorso? — continuou Hardesty.
— Senhor, aquela gente estava fazendo guerra contra meu país. Nós guerreamos de volta. Ninguém devia entrar no jogo se não pode arcar com as consequências. Se eles tinham esposas e filhos, sinto muito, mas quando se ataca é preciso entender que vai ter forra.
— Quer dizer que este é um mundo duro?
— Senhor, é melhor não chutar o rabo de um tigre se não tiver um plano para enfrentar os dentes dele.
Nada de pesadelos nem remorsos, pensou Hardesty. Era assim que as coisas deviam ser, porém os mais amáveis e gentis Estados Unidos nem sempre se apresentavam a seu povo desta maneira. Caruso era um guerreiro.
Hardesty recostou-se em sua cadeira e lançou um cauteloso olhar ao visitante antes de falar.
— Capitão, o motivo que o trouxe aqui... você viu nos jornais, todos os problemas que temos enfrentado com esta nova enxurrada de terrorismo internacional. Tem havido muita guerra de jurisdição entre a Agência e o FBI. Em nível operacional geralmente não tem problema, e não há tanta encrenca em nível de comando... o diretor do FBI, Murray, é um soldado sólido, e quando trabalhou como adido legal em Londres se deu muito bem com nosso pessoal.
— Mas agora há dissensões em nível intermediário, não é? — perguntou Caruso. Também vira isso no Corpo de Fuzileiros. Oficiais de equipe que passavam boa parte de seu tempo provocando oficiais de outras equipes, dizendo que seu papai podia bater no papai dos desafetos. O fenômeno provavelmente remontava aos romanos ou gregos. Tinha sido estúpido e contraproducente também naquela época.
— Bingo — confirmou Hardesty. — E você sabe, o próprio Deus podia ser capaz de ajeitar as coisas, mas até Ele precisaria de um dia realmente bom para levar isso a cabo. As burocracias estão por demais arraigadas. Não é tão ruim nas forças armadas. Lá as pessoas vivem entrando e saindo de serviço, têm essa ideia de missão e todos em geral trabalham para executá-la, em especial se isto as ajuda a galgar degraus individualmente. Falando de modo geral, quanto mais longe você está da ação, mais fica imerso nas minúcias. Portanto, estamos procurando gente que conheça ação.
— E qual é... a missão?
— Identificar, localizar e lidar com ameaças terroristas — respondeu o agente secreto.
— Lidar com? — replicou Caruso.
— Neutralizar... merda, vá lá: quando necessário e conveniente, matar os filhos da puta. Reunir informação sobre a natureza ou gravidade da ameaça e empreender qualquer ação necessária, dependendo da ameaça específica. A tarefa é essencialmente coleta de informação. A Agência faz muitas restrições sobre como ela é realizada. Este subgrupo especial, não.
— É mesmo? — Esta era uma surpresa considerável.
Hardesty assentiu sobriamente. — É. Você não está trabalhando para a CIA. Pode até usar valores e recursos da Agência, mas só vai até aí.
— Então, para quem estou trabalhando?
— Temos um pequeno caminho a percorrer antes de discutirmos isso. — Hardesty levantou o que tinha de ser a pasta do pessoal dos Fuzileiros. — Você ficou três por cento acima entre os oficiais do Corpo em termos de inteligência. Quatro-ponto-zero em quase tudo. Sua perícia em idiomas é particularmente impressionante.
— Meu pai é um cidadão americano... nascido aqui, quero dizer... mas o pai dele veio de navio da Itália. Ele dirigia... ainda dirige... um restaurante em Seattle. Portanto, papai cresceu falando principalmente italiano, e muito disso foi transmitido para mim e meu irmão. Aprendi espanhol no ginásio e na faculdade. Não posso passar por nativo, mas entendo a língua muito bem.
— Engenharia especializada?
— Isso veio de meu pai, também. Está aí. Ele trabalha na Boeing. Engenharia aerodinâmica, principalmente projetando asas e superfícies de controle. O senhor sabe sobre minha mãe... está tudo aí. Ela é principalmente mãe, também presta serviços a escolas católicas locais, agora que eu e Dominic crescemos.
— E ele está no FBI?
Brian assentiu.
— Isso mesmo. Formou-se em direito e alistou-se para ser G-man.
— É o que contam os jornais — disse Hardesty, estendendo um fax de jornais de Birmingham. Brian a examinou.
— Vá em frente, Dom — o capitão Caruso suspirou quando chegou ao quarto parágrafo, o que agradou ainda mais seu anfitrião.
Eram quase duas horas de voo de Birmingham até o Reagan National em Washington. Dominic Caruso caminhou para a estação do metrô e embarcou num trem para o Edifício Hoover, na esquina da Décima com Pennsylvania. Seu distintivo o isentou da necessidade de passar pelo detector de metal. Agentes do FBI supostamente andavam armados e sua automática ganhara um entalhe na coronha — não literalmente, claro, agentes do FBI costumavam fazer piada a respeito.
O escritório do diretor assistente Augustus Ernst Werner ficava no último andar, de frente para a Pennsylvania Avenue. A secretária acenou-lhe para entrar.
Caruso ainda não conhecia Gus Werner. Era um alto, esguio e muito experiente agente de rua, ex-marine, e positivamente monástico na aparência e no comportamento. Chefiara a Equipe de Resgate de Reféns do FBI e duas divisões de campo e estivera a ponto de se aposentar antes de ser cantado para o novo posto por seu amigo mais íntimo, o diretor Daniel E. Murray. A Divisão de Contraterrorismo era uma filha adotiva das mais amplas divisões Criminal e Contrainteligência Externa, mas estava crescendo em importância a cada dia.
— Pegue uma cadeira — disse Werner apontando, enquanto encerrava um telefonema. Que levou mais um minuto. Depois Gus repôs o fone no gancho e apertou o botão de NÃO PERTURBE.
— Ben Harding me mandou este fax — disse Werner, segurando o relatório do tiroteio do dia anterior. — Como é que foi?
— Está tudo aí, senhor. — Ele passara três horas puxando pelo próprio cérebro e pondo tudo no papel no exato burocratês do FBI. Era estranho que uma ação que levara menos de 60 segundos para ser executada exigisse tanto tempo para ser explicada.
— E o que foi que você omitiu, Dominic? — A pergunta era acompanhada pelo olhar mais penetrante que o jovem agente já vira.
— Nada, senhor — replicou Caruso.
— Dominic, temos alguns atiradores muito bons no FBI. Sou um deles — disse Gus Werner ao convidado. — Três disparos, todos no coração, de uma distância de quatro metros e meio, é um desempenho para lá de bom. Para alguém que teve que pular por cima de uma mesa derrubada, é incrível. Ben Harding não achou nada de notável, mas o diretor Murray e eu, sim... Dan também é um bom atirador. Ele leu este fax na noite passada e me pediu para dar uma opinião. Dan nunca apagou um sujeito. Eu já, três vezes, duas com a Equipe de Resgate de Reféns... eram riscos cooperativos, como se dizia... e uma vez em Des Moines, Iowa. Foi também um caso de sequestro. Eu tinha visto o que ele fizera com duas de suas vítimas... garotinhos... e, você sabe, eu não queria realmente que algum psiquiatra viesse dizer ao júri que o assassino era vítima de uma infância adversa e que não tinha sido realmente culpa dele, e toda essa babaquice que você ouve num tribunal todo arrumadinho, onde tudo o que o júri vê são fotos, talvez nem mesmo isso, se a defesa puder convencer os jurados de que são incitantes demais. E sabe o que aconteceu? Resolvi ser a lei. Não para aplicar a lei, ou escrever a lei, ou explicar a lei. Naquele dia, 22 anos atrás, assumi a lei. A Espada Vingadora de Deus. E sabe que me senti muito bem?
— Como soube...
— Como eu soube com toda certeza que ele era o nosso cara? Ele guardava suvenires. Cabeças. Havia oito delas no trailer onde morava. Assim, não, não houve qualquer dúvida em minha mente. Havia uma faca por perto. Eu disse a ele para pegá-la, e ele o fez. Aí, coloquei quatro balas no peito dele de uma distância de três metros, e nunca senti remorso por isso. — Werner fez uma pausa. — Não tem muita gente sabendo desta história. Nem mesmo minha mulher. Portanto, não me diga que pulou por cima de uma mesa, sacou sua pistola e meteu três balas no ventrículo do sujeito apoiado num pé só, Okay?
— Sim, senhor — respondeu Caruso de modo ambíguo. — Sr. Werner...
— O nome é Gus — corrigiu o diretor assistente.
— Senhor — insistiu Caruso. Superiores que usavam prenomes tendiam a deixá-lo nervoso. — Senhor, se eu dissesse algo assim estaria confessando assassinato num documento oficial do governo. Ele pegou realmente a faca e ia usá-la contra mim, estava apenas a três metros de distância, e lá em Quantico nos ensinaram a considerar isso uma ameaça imediata e letal. Portanto, sim, atirei e estava certo, de acordo com a política do FBI sobre o perigo de força letal.
Werner assentiu.
— Você é formado em direito, não?
— Sim, senhor. Fui admitido na ordem dos advogados na Virginia e em Washington. Ainda não prestei exame para a do Alabama.
— Bem, pare de ser advogado por um minuto — aconselhou Werner. — Foi um disparo justo. Ainda guardo o revólver com que apaguei aquele. Um Smith Modelo 66 de quatro polegadas. Até costumo usá-lo algumas vezes. Dominic, você conseguiu fazer o que todo agente gostaria de fazer pelo menos uma vez na carreira. Você teve que administrar justiça por sua conta. Não se sinta mal por isso.
— Não me sinto, senhor — assegurou-lhe Caruso. — Aquela garotinha... -Penelope... não pude salvá-la, mas pelo menos aquele escroto nunca mais fará aquilo. — Fitou Werner direto nos olhos. — O senhor sabe como é.
— Sim. — Ele olhou detidamente para Caruso. — E tem certeza de que não guarda remorso?
— Tirei um cochilo de uma hora no voo para cá, senhor. — Soltou a declaração sem um sorriso visível.
Mas isto gerou um no rosto de Werner. Ele assentiu.
— Bem, você obterá um atestado de aprovação do escritório do diretor. Nada de DRP.
DRP era a Divisão de Responsabilidade Profissional, a assuntos internos do FBI e, embora respeitada pelos agentes, não era muito amada por eles. Havia um ditado: se o cara tortura pequenos animais e mija na cama, ou é um assassino em série ou trabalha para a DRP.
Werner ergueu a pasta de Caruso.
— Aqui diz que você é bem esperto... boas habilidades linguísticas, também... Está interessado em vir para Washington? Estou procurando gente que tenha iniciativa para trabalhar na minha loja.
Mais uma mudança, foi o que ouviu o agente especial Dominic Caruso.
GERRY HENDLEY não era um homem excessivamente formal. Usava paletó e gravata para trabalhar, mas o paletó terminava pendurado num cabideiro de seu escritório quinze segundos após sua chegada. Ele tinha uma excelente secretária-executiva — como ele próprio, natural da Carolina do Sul — chamada Helen Connolly e, após estudar com ela a agenda do dia, pegava seu Wall Street Journal e dava uma olhada na primeira página. Ele já havia devorado o New York Times e o Washington Post para obter sua posição política para o dia, resmungando como sempre por eles nunca fazerem as coisas direito. O relógio digital na mesa lhe dizia que ainda tinha vinte minutos antes da primeira reunião, e ele ligou o computador para obter também o Early Bird da manhã, o serviço de clipping para os principais funcionários do governo. Examinou-o para ver se havia perdido alguma coisa na leitura matinal dos grandes jornais. Não muito, exceto uma interessante matéria no Virginia Pilot sobre a Conferência Fletcher, encontro de livre debate realizado anualmente pela Marinha e o Corpo de Fuzileiros na Base Naval de Norfolk. Debatiam terrorismo, e bem inteligentemente, pensou Hendley. Os militares com frequência o faziam, ao contrário dos funcionários eleitos.
Nós matamos a União Soviética, pensou Hendley, e esperávamos que tudo no mundo assentasse. Mas o que não previmos foi o surgimento desses lunáticos com AK-47 refugados e formação em química de fundo de quintal, ou simplesmente uma disposição em sacrificar a própria vida em troca daquelas de quem acham ser inimigos.
E a outra coisa que eles não haviam feito foi preparar a comunidade de informação para lidar com isso. Até mesmo um presidente experiente no mundo subterrâneo e o melhor DCI na história americana conseguira que muita coisa fosse feita. Tinham acrescentado um monte de gente — um contingente extra de quinhentos homens numa agência que abrigava 20 mil não parecia exatamente um monte, mas havia duplicado a diretoria de operações. Isso dera à CIA uma força apenas metade horrível do que era antes, mas que não chegava a ser adequada. E em função disso, o Congresso havia apertado a supervisão e as restrições, mutilando ainda mais os novos contratados. Eles nunca aprendiam. Ele mesmo havia falado com seus colegas no Clube Masculino Mais Exclusivo do Mundo, mas alguns ouviam e outros não, e quase todos os restantes vacilavam, Eles davam atenção excessiva aos editoriais, muitas vezes de jornais que nem eram de seus estados natais, porque isso, imaginavam tolamente, era o que pensava o Povo Americano. Talvez fosse simples assim: qualquer funcionário recém-eleito era seduzido para o jogo da mesma maneira como Cleópatra tinha deixado Júlio César numa sinuca. Sabia que eram os funcionários, os ajudantes políticos "profissionais", que "guiavam" seus empregadores no caminho certo para serem reeleitos, que se tornaram o Santo Graal do serviço público. Os Estados Unidos não tinham uma classe dominante hereditária, mas havia gente de sobra feliz por conduzir seus empregadores ao caminho certo da divindade governamental.
E trabalhar dentro do sistema simplesmente não funcionava.
Assim, para realizar alguma coisa, você só precisava estar fora do sistema.
Infernalmente fora do sistema.
Se alguém notasse, bem, o cara já estava ferrado de qualquer forma, não estava?
Passou a primeira hora discutindo questões financeiras com alguém da equipe, porque era assim que a Hendley Associates ganhava dinheiro. Como negociante de commodities e especialista em câmbio, estivera à frente do gráfico quase desde o início, sentindo as diferenças momentâneas de avaliação — ele sempre as chamava de Deltas —, que eram geradas por fatores psicológicos, por percepções que podiam ou não se tornar realidade. Ele fazia todas as suas operações comerciais anonimamente, através de bancos estrangeiros, todos adorando ter grandes depósitos em dinheiro vivo e nenhum preocupado demais com a procedência do dinheiro, até onde não fosse sujo demais, o que por certo não era. Este era simplesmente outro meio de se manter fora do sistema.
Não que todos os seus negócios fossem estritamente legais. Ter a radioescuta de Fort Meade ao lado tornava o jogo bem mais fácil. De fato, era para lá de ilegal e nem um pouco ético. Mas na verdade a Hendley Associates causava poucos danos no cenário mundial. Podia ter sido de outra maneira, mas a Hendley Associates operava pelo princípio de que os leitões eram alimentados e os capados iam para o abate, e assim eles comiam apenas um pouco no contexto internacional. Além disso, não havia nenhuma autoridade ou legislação para crimes deste tipo e desta magnitude. E guardado a salvo no cofre da companhia estava uma autorização oficial assinada pelo ex-presidente dos Estados Unidos.
Tom Davis entrou. Chefe titular da carteira de títulos, o currículo de Davis era de algumas maneiras similar ao de Hendley, e ele passava os dias grudado ao seu computador. Não se preocupava com segurança. Naquele edifício todas as paredes tinham revestimento metálico para conter emanações eletrônicas e todos os computadores eram protegidos contra tempestades.
— O que há de novo? — perguntou Hendley.
— Bem — respondeu Davis —, temos uma dupla de novos recrutas em potencial.
— Quem seriam ?
Davis deslizou as pastas sobre a mesa de Hendley. O diretor-executivo pegou e abriu as duas.
— Irmãos?
— Gêmeos. Fraternos. A mãe deles deve ter tido dois óvulos fertilizados em vez de um naquele mês. Os dois impressionaram as pessoas certas. Cérebro, agilidade mental, boa forma física, além de compartilharem uma boa mistura de talentos, mais habilidades linguísticas. Espanhol, especialmente.
— Este aqui fala afegane? — Hendley ergueu a vista em surpresa.
— Apenas o suficiente para achar o caminho do banheiro. Esteve no país por oito semanas, e aproveitou o tempo para aprender o dialeto local. E saiu-se muito bem, diz o relatório.
— Acha que são nosso tipo de gente? — perguntou Hendley. Esse tipo de gente não entrava pela porta da frente, motivo pelo qual Hendley mantinha um pequeno número de recrutadores muito discretos espalhados pelas repartições do governo.
— Precisamos checá-los um pouco mais — disse Davis —, mas eles têm os talentos que apreciamos. Na superfície, ambos parecem confiáveis, estáveis e espertos o bastante para entender por que estão aqui. Portanto, sim, creio que merecem ser avaliados a sério.
— O que vem em seguida para eles?
— Dominic está sendo transferido para Washington. Gus Werner quer recrutá-lo para a unidade antiterrorista. Ele provavelmente será um burocrata, para começar. É um pouco jovem para a Equipe de Resgate de Reféns, e ainda não provou suas capacidades analíticas. Acho que Werner quer ver primeiro o quanto ele é esperto. Brian voará para Camp Lejeune, para voltar a trabalhar com sua companhia. Estou surpreso de os fuzileiros ainda não terem transferido o garoto para a inteligência. Brian é um candidato óbvio, mas eles amam seus atiradores e ele saiu-se muito bem lá na terra dos camelos. Será logo promovido a major, se minhas fontes estão corretas. Assim, para começar, acho que voarei até lá para almoçar com ele, senti-lo um pouco, depois volto para cá e faço o mesmo com Dominic. Werner ficou impressionado com ele.
— E Gus é um bom avaliador de homens — observou o ex-senador.
— Isso ele é, Gerry — concordou Davis. — E então... alguma coisa nova?
Fort Meade está enterrado debaixo de uma montanha, como de hábito — o maior problema da NSA era que eles interceptavam tanto material bruto que seria preciso um exército para peneirar aquilo tudo. Programas de computador ajudavam a alojar palavras-chave e coisas assim, mas quase tudo era irrelevante. Os programadores estavam sempre tentando melhorar os softwares de captação, mas ficara provado ser virtualmente impossível dar instintos humanos a um computador, embora ainda estivessem tentando. Infelizmente, os programadores mais talentosos trabalhavam para empresas de videogames. Era onde estava o dinheiro, e o talento geralmente seguia o rastro do dinheiro. Hendley não podia se queixar. Afinal, ele passara toda a casa dos 20 anos e metade da dos 30 fazendo a mesma coisa. Portanto, com frequência corria atrás de programadores ricos e bem-sucedidos para os quais a caça ao dinheiro se tornara tão tediosa quanto redundante. Em geral era perda de tempo. Os nerds costumavam ser uns filhos da puta ambiciosos. Como os advogados, mas nem sempre tão cínicos.
— Vi meia dúzia de radioescutas interessantes hoje, mas...
— Tipo o quê? — perguntou Davis. O recrutador-chefe da empresa era também um analista habilidoso.
— Isto. — Hendley passou-lhe a pasta. Davis abriu-a e examinou a página de alto a baixo.
— Hum... — foi tudo que disse.
— Pode ser assustador, se se transformar em alguma coisa — pensou Hendley em voz alta.
— É verdade. Mas precisamos de mais. — Não era nenhum terremoto. Eles sempre precisavam de mais.
— Quem é que temos lá exatamente agora? — Hendley deveria saber, mas sofria da habitual doença burocrática: tinha dificuldade em manter na cabeça toda a informação corrente.
— Exatamente agora? Ed Castilanno está em Bogotá, investigando o Cartel, mas sob cobertura profunda. Realmente profunda — Davis lembrou ao chefe.
— Você sabe, Tom, este negócio de informação às vezes enche.
— Anime-se, Gerry. O pagamento é bem melhor... pelo menos para nós subalternos — acrescentou com um débil sorriso. Sua pele escura contrastava profundamente com os dentes cor de marfim.
— É, deve ser terrível ser um camponês.
— Pelo menos o sinhô me deixou estudar, aprender minhas letra e coisa e tar. Podia ser pió, não tenho mais que colhê argodão, sinhô Gerry. — Hendley revirou os olhos. David tinha, de fato, obtido seu diploma em Dartmouth, onde sofreu muito menos pela pele escura do que em seu estado natal. O pai plantava milho em Nebraska e votava nos republicanos.
— Quanto está custando agora uma daquelas máquinas de ceifar e enfeixar? — perguntou o chefe.
— Está brincando? Muito mais de 200 mil. Papai comprou uma nova no ano passado e ainda está reclamando. É claro que essa vai durar até os netos morrerem ricos. Colhe meio hectare de milho como um batalhão de Rangers perseguindo bandidos. — Davis tinha feito uma boa carreira na CIA como espião de campo, começando como especialista em rastrear dinheiro através das fronteiras internacionais. Na Hendley Associates havia descoberto que seus talentos eram também muito úteis num sentido comercial, mas, laro, ele nunca tinha perdido o prazer pela ação de verdade. — Você sabe, este cara do FBI, Dominic, ele fez um trabalho interessante em crimes financeiros na primeira missão de campo em Newark. Um dos seus casos está evoluindo para uma investigação de vulto numa casa bancária internacional. Ele sabe farejar as coisas bem demais para um novato.
— Tudo isso, e ainda pode matar gente por conta própria — concordou Hendley.
— É por isso que gosto do jeito dele, Gerry. Ele sabe tomar decisões em ação, como um cara dez anos mais velho.
— Lei do irmão. Interessante — observou Hendley, os olhos de novo nas pastas.
— Talvez venha da criação. O avô foi policial da homicídios, afinal.
— E antes disso esteve na 101ª Aerotransportada. Entendo seu ponto de vista, Tom. Okay. Convoque os dois logo. Vamos estar ocupados muito em breve.
— Acha mesmo?
— Não está melhorando nada lá fora. — Hendley indicou a janela.
ESTAVAM NUM CAFÉ DE CALÇADA em Viena. As noites estavam esfriando, e os donos do estabelecimento enfrentavam a friagem para servir refeições na ampla calçada.
— Então, qual é seu interesse em nós? — perguntou Pablo.
— Existe uma confluência de interesses entre nós — respondeu Mohammed, esclarecendo em seguida: — Temos os mesmos inimigos. — E desviou o olhar para fora. As mulheres que passavam estavam vestidas do jeito formal, metódico de Viena. E o ruído do tráfego, especialmente os bondes, tornava impossível que a conversa deles fosse ouvida por qualquer um. Para um observador casual, ou mesmo profissional, eram apenas dois estrangeiros — e havia um monte deles naquela cidade imperial — falando de negócios de maneira tranquila e amigável. Falavam em inglês, o que também não era incomum.
— Sim, é verdade — Pablo teve de concordar. — Quer dizer, no que se refere aos inimigos. E quanto aos interesses?
— Vocês têm trunfos que podemos usar. Nós temos trunfos que vocês podem usar — explicou pacientemente o muçulmano.
— Entendo. — Pablo acrescentou creme ao seu café e mexeu. Para sua surpresa, o café era tão bom quanto em seu próprio país.
Mohammed esperava que demorassem para chegar a um entendimento. Seu convidado não era tão veterano quanto teria preferido. Mas o inimigo comum tinha conseguido maior sucesso contra a organização de Pablo do que contra a sua própria. Isto continuava a surpreendê-lo. Eles tinham motivos de sobra para empregar medidas eficazes de segurança, mas, como acontece com todas as pessoas motivadas monetariamente, careciam da pureza de propósito de seus colegas. E desse fato resultava sua maior vulnerabilidade. Mas Mohammed não era tolo a ponto de presumir que isso os tornava inferiores. Matar um espião israelense não o transformara num Super-Homem, afinal. Claro que eles eram amplamente especializados, mas isso simplesmente tinha limites. Como seu próprio povo tinha limites. Como qualquer um a não ser Alá tinha limites. Saber disso trazia expectativas mais realistas, e decepções mais brandas quando as coisas corriam mal. Não se podia permitir que as emoções interferissem no negócio, como o convidado teria identificado erroneamente sua Causa Santa. Mas ele estava lidando com um infiel, e concessões tinham que ser feitas.
— O que podem nos oferecer? — perguntou Pablo exibindo sua cobiça, como Mohammed havia esperado.
— Vocês precisam estabelecer uma rede confiável na Europa, certo?
— Sim, precisamos. — Eles tinham poucos problemas ultimamente. As agências policiais europeias não estavam tão rígidas quanto suas contrapartes nos Estados Unidos.
— Temos uma rede assim. — E como os muçulmanos nem pensavam em tomar parte ativa no tráfico de drogas, pois narcotraficantes, na Arábia Saudita, por exemplo, costumavam ser decapitados, tanto melhor.
— Em troca de quê?
— Vocês têm uma rede altamente bem-sucedida nos Estados Unidos, e têm razões para detestar os americanos, não é?
— É isso aí — concordou Pablo. A Colômbia estava começando a fazer progresso com aliados ideologicamente inseguros do Cartel nas montanhas da região natal de Pablo. Mais cedo ou mais tarde, as Farc sucumbiriam à pressão e depois, sem dúvida, recorreriam a seus amigos. Na verdade associados era uma palavra bem vaga, como é vago seu preço de admissão ao processo democrático. Nessa ocasião, a segurança do Cartel poderia ser seriamente ameaçada. A instabilidade política era o maior amigo deles na América do Sul, mas não duraria para sempre. O mesmo era verdade para seu anfitrião, considerou Pablo, e isto os tornava aliados por conveniência. — Exatamente que tipo de serviços exigiriam de nós?
Mohammed lhe disse. Não acrescentou que nenhum dinheiro seria pago pelo serviço do Cartel. O primeiro embarque que o pessoal de Mohammed protegeria — Grécia? Sim, esse podia ser provavelmente o mais fácil — o suficiente para selar a aventura, não?
— Isso é tudo?
— Meu amigo, mais do que qualquer outra coisa negociamos ideias, não objetos. Os poucos itens materiais de que necessitamos são de tamanho compacto e podem ser obtidos localmente, se necessário. E não tenho a menor dúvida de que vocês podem ajudar com documentos de viagem.
Pablo quase engasgou com o café.
— Sim. Isso se consegue facilmente.
— Então, existe algum motivo pelo qual esta aliança não possa ser concretizada?
— Devo discuti-la com meus superiores — acautelou-se Pablo —, mas, à primeira vista, não vejo nenhum conflito.
— Excelente. Como podemos fazer contato de novo?
— Meu chefe prefere conhecer aqueles com quem faz negócio.
Mohammed pensou a respeito. Viajar o deixava nervoso, mas não havia como evitar. E ele tinha passaportes suficientes para transitar pelos aeroportos do mundo. Também tinha as necessárias habilidades linguísticas. Sua educação em Cambridge não fora desperdiçada. Podia agradecer aos pais por isso. E ele abençoava a mãe inglesa pela cor da pele e os olhos azuis. Na verdade, podia passar por nativo em qualquer lugar que não fosse a China ou a África. E os resquícios da pronúncia de Cambridge tampouco atrapalhavam.
— Você só precisa me dizer a hora e o lugar — replicou Mohammed.
Passou-lhe seu cartão comercial. Tinha seu e-mail, a mais útil ferramenta para comunicações secretas já inventada. E com o milagre da moderna viagem aérea ele podia estar em qualquer lugar do mundo em 48 horas.
2
ALISTANDO-SE
ELE CHEGOU faltando quinze minutos para as cinco. Qualquer um que passasse por ele na rua não lhe daria uma segunda olhada, embora pudesse chamar atenção de uma ocasional mulher desacompanhada. Com l,80m, cerca de 80 quilos — ele se exercitava regularmente —, cabelo preto e olhos azuis, não era exatamente um astro de cinema, mas tampouco o que uma jovem executiva chutaria sumariamente de sua cama.
Também estava bem-vestido, notou Gerry Hendley. Terno azul com riscas vermelhas — parecia feito na Inglaterra —, gravata listrada em vermelho, um elegante prendedor de ouro. Camisa na moda. Corte de cabelo decente. O aspecto confiante de quem tem dinheiro e boa educação para acompanhar uma juventude que não seria desperdiçada.
O carro dele estava estacionado em vaga de visitantes diante do prédio. Uma SUV Hummer 2 amarela, o tipo de carro preferido por gente que herda gado no Wyoming ou dinheiro em Nova York. E, provavelmente por que...
— Então, o que o traz aqui? — perguntou Gerry, indicando a seu visitante uma confortável poltrona em frente a sua escrivaninha de mogno.
— Ainda não decidi o que quero fazer; ando batendo cabeça por aí atrás de um nicho onde eu possa me encaixar.
Hendley sorriu. — É, não sou tão velho que não possa me lembrar do quanto é confuso quando a gente sai da faculdade. De qual você era?
— Georgetown. Tradição de família. — O garoto sorriu gentilmente. Esta foi uma coisa boa sobre ele que Hendley viu e apreciou: não estava tentando impressionar ninguém com seu nome e formação familiar. Ele podia até mesmo ficar um pouco constrangido com isso, querendo fazer seu próprio caminho e seu próprio nome, como um bom número de rapazes fazia. Os espertos, pelo menos. Era uma pena que não houvesse nenhum lugar para ele no Campus.
— Seu pai realmente gosta de escolas jesuítas.
— Até mamãe se converteu. Sally não foi para Bennington. Fez seu pré-médico na Fordham, em Nova York. Está na faculdade de medicina de Hopkins agora, claro. Quer ser médica, como mamãe. Que diabo, é uma profissão honrosa.
— Diferente do direito? — perguntou Gerry.
— O senhor sabe o que papai pensa a esse respeito — assinalou o rapaz com um sorriso. — Em que o senhor se formou? — perguntou a Hendley, já sabendo a resposta, claro.
— Economia e matemática. Fiz uma dupla especialização. — Tinha sido de fato muito útil para modelar padrões comerciais em mercados de commodities. — E então, como está sua família?
— Ah, muito bem. Papai voltou a escrever... as memórias. Ele principalmente se queixa de que não está tão velho para escrever este tipo de livro, mas vem trabalhando arduamente para concluí-lo bem. Ele não tem realmente grande entusiasmo pelo novo presidente.
— É, Kealty tem um verdadeiro talento para renascer das cinzas. Quando finalmente enterrarem o cara, fariam melhor se estacionassem um caminhão em cima de sua sepultura. — Esta piada tinha sido feita até mesmo pelo Washington Post.
— Ouvi essa. Papai diz que só mesmo um idiota pode desfazer o trabalho de dez gênios.
Este adágio não era produto do Washington Post. Mas era a razão pela qual o pai do rapaz tinha organizado o Campus, embora ele não soubesse disso.
— Isso é exagerar as coisas. Esse novo cara só conseguiu por acidente.
— É, bem, quando chegar a hora de executar o sujeito da Klan lá no Mississippi, quanto quer apostar que ele vai atenuar a sentença?
— Opor-se à pena de morte é uma questão de princípio para ele — assinalou Hendley. — Ou assim ele diz. Outras pessoas também pensam isso, e é uma opinião louvável.
— Princípio? Para ele é como a velha dama gentil que dirige uma escola primária.
— Se quiser ter uma discussão política, existe uma ótima churrascaria a quase dois quilômetros na Rota 29 — sugeriu Gerry.
— Não, não é nada disso. Desculpe a divagação, senhor.
Este garoto está segurando as cartas muito perto, pensou Hendley.
— Bem, não é um mau tema para alguém. Assim, o que posso fazer por você?
— Estou curioso.
— Sobre o quê? — perguntou o ex-senador.
— Sobre o que faz aqui — disse seu visitante.
— Principalmente arbitragem de títulos de crédito. — Hendley se esticou para mostrar a exaustão do fim de um dia de muito trabalho.
— Hã-hã... — disse o garoto, apenas um pouco desconfiado.
— Há muito dinheiro para se ganhar nessa área, se você tiver boa informação e sangue-frio para atuar nela.
— O senhor sabe que papai o estima muito. Ele diz que é uma vergonha que nunca mais tenham se encontrado.
Hendley assentiu. — Isso mesmo. E é culpa minha, não dele.
— Ele disse também que o senhor era esperto demais para ferrar tudo como fez.
Normalmente, isso teria sido um faux pas sísmico, mas óbvio pelo olhar do garoto que ele não pretendia nenhum tipo de insulto, e sim fazer uma pergunta... ou pretendia mesmo?, Hendley de repente se perguntou.
t — Foi uma época horrível para mim — Gerry relembrou ao convidado. — E qualquer um pode cometer um erro. Seu próprio pai também cometeu alguns.
— Isso é verdade. Mas papai teve sorte por ter Arnie por perto para tirar o rabo dele da reta. — Isso deixou uma abertura para o anfitrião, que aproveitou.
— Como vai o Arnie? — perguntou Hendley, fazendo a evasiva para ganhar tempo, ainda especulando por que o garoto estava ali e, na verdade, começando a ficar um tanto inquieto, embora não tivesse certeza do motivo pelo qual deveria se sentir assim.
— Ótimo. Ele vai ser o novo reitor da Universidade de Ohio. Deve ser bom nisso, e precisa de uma espécie de trabalho calmo, papai acha, e creio que ele está certo. Eu e mamãe não conseguimos entender como ele conseguiu se livrar de um ataque cardíaco. Talvez algumas pessoas realmente floresçam com a ação. — Seus olhos nunca se desviaram dos de Hendley durante todo o discurso. — Aprendi muito conversando com Arnie.
— E com seu pai?
— Ah, só uma coisinha ou outra. Principalmente, aprendi coisas com o resto do bando.
— A quem se refere?
— Mike Brennan, por exemplo. Ele foi meu agente principal — explicou Jack Jr. — Formado na Holy Cross, carreira no Serviço Secreto. Danado de bom com uma pistola. Foi ele o cara que me ensinou a atirar.
— É?
— O Serviço tem um estande no edifício Old Post Office, a dois quarteirões da Casa Branca. Ainda vou lá de vez em quando. Mike agora é instrutor na Academia do Serviço Secreto, lá em Beltsville. Realmente um cara bom, esperto e à vontade. De qualquer modo, sabe, ele foi uma espécie de babá para mim, e eu costumava encher o saco dele, perguntando o que fazia o pessoal do Serviço Secreto, como eles treinavam, como pensavam, as coisas que procuravam quando estavam protegendo papai e mamãe. Aprendi muito com ele. E com todos os outros caras.
— Quem?
— Caras do FBI, Dan Murray, Pat O'Day... Pat é o inspetor de Casos Importantes para Murray. Está prestes a se aposentar. E pode crer, ele vai criar gado de corte no Maine. Lugar engraçado pacas para se criar gado. Ele é atirador também, como um Wild Bill Hickock moderno, mas é fácil demais esquecer que é formado em Princeton. Sujeito muito esperto, o Pat. Ele me ensinou muito sobre como o FBI conduz as investigações. E a esposa dele, Andréa, é uma leitora de pensamentos. Deve ser: ela chefiou a guarda pessoal do meu pai durante uma época muito alarmante. Fez mestrado em psicologia na Universidade da Virginia. Aprendi muita coisa com ela. E havia o pessoal da Agência, claro, Ed e Mary Pat Foley... Meu Deus, que dupla eles formavam. Mas sabe quem foi o mais interessante de todos?
Ele sabia.
— John Clark?
— Acertou. O macete era conseguir fazê-lo falar. Juro, comparados a ele, os Foley eram o casal de I Love Lucy. Mas, uma vez que se ganhe a confiança dele, John se abre um pouco. Eu o pus contra a parede quando ele ganhou sua Medalha de Honra... apareceu brevemente na TV, suboficial da Marinha aposentado recebe condecoração por ação no Vietnã. Cerca de sessenta segundos de tape num noticiário. E quer saber? Nenhum repórter lhe perguntou o que ele fazia após deixar a Marinha. Nenhum. Meu Deus, como são burros. Bob Holtzman conhecia parte da história, acho. Ele estava lá, em pé no canto oposto ao meu. É bem esperto para um cara da mídia. Papai gosta dele, só que não confiaria nele se fosse promovido a âncora. Seja como for, Big John... Clark, quero dizer... é um autêntico manda-chuva. Ele passou por isso diversas vezes. Como é possível ele não estar aqui?
— Jack, meu garoto, quando você quer chegar ao ponto, você chega realmente ao ponto — disse Hendley com um toque de admiração na voz.
— Quando vi que o senhor sabia o nome dele, percebi que o tinha pego, senhor. — Um ar brevemente triunfante nos olhos. — Investiguei o senhor por duas semanas...
— Oh? — E, com isso, Hendley sentiu seu estômago se contrair.
— Não foi difícil. É tudo de acesso público, simplesmente uma questão misturar e combinar. Como os exercícios de ligue-os-pontos que davam às criancinhas naqueles livros recreativos. Sabe, me espanta que este lugar nunca tenha chegado aos noticiários...
— Meu jovem, se isto é uma ameaça...
— O quê? — Jack Jr. estava surpreso pela interrupção. — Está se referindo a chantageá-lo? Não, senador, o que quero dizer é que existe tanta informação por aí que a gente fica imaginando como é que os repórteres deixam escapar. Quero dizer, até um esquilo cego é capaz de achar uma noz de vez em quando, sabe disso? — Ele fez uma pausa momentânea antes que seus olhos se iluminassem. — Ah, entendo. O senhor manipula o que passa e eles aceitam.
— Não é tão difícil, mas é perigoso subestimá-los — avisou Hendley.
— Basta não dizer a eles. Papai me falou muito tempo atrás: em boca fechada não entra mosca. Ele sempre deixou Arnie fazer os vazamentos. Ninguém jamais dizia nada à imprensa sem orientação de Arnie. Juro, acho que a mídia tinha medo daquele cara. Foi ele quem cancelou a credencial da Casa Branca de um repórter do Times e deixou isso se espalhar.
— Eu me lembro — respondeu Hendley. A coisa fedeu, mas muito em breve até mesmo o New York Times percebeu que não ter nenhum repórter na sala de imprensa da Casa Branca feria um nervo sensível. Havia sido uma lição prática de conduta que durara quase seis meses. Arnie van Damm tinha uma memória mais longa e maldosa que a da mídia, que se achava um tanto dentro e fora de si mesma. Arnold van Damm era excelente jogador de pôquer. — Qual é seu objetivo, Jack? Por que está aqui?
— Senador, só quero apostar nos favoritos. Este lugar aqui, acho, é o favorito.
— Explique — pediu Hendley. Quanta coisa aquele garoto conseguira reunir?
John Patrick Ryan Jr. abriu sua pasta.
— Para começar, este é o único edifício mais alto que uma residência particular na linha de visão da NSA em Fort Meade à sede da CIA em Langley. É possível baixar fotos de satélite fora da internet. Imprimi todas elas. Aqui. — Entregou-lhe uma pequena pilha. — Verifiquei com os órgãos de zoneamento e descobri que três outros prédios comerciais estão planejados para esta área, e a todos foi negada permissão de construção. Os registros não dizem por que, mas ninguém protestou. O centro médico na rua abaixo, contudo, obteve realmente belos termos de financiamento do Citibank para seus projetos de reforma. A maioria do pessoal é composta de ex-espiões. Seu pessoal de segurança é todo de ex-policiais militares, patente E-7 ou mais alta. O sistema de segurança eletrônico aqui é melhor do que o de Fort Meade. Aliás, como diabo administra isso?
— Firmas particulares têm muito mais liberdade ao negociar com os contratadores. Prossiga — disse o ex-senador.
— O senhor nunca fez nada ilegal. Aquela acusação de conflito de interesses que matou sua carreira no Senado foi um monte de merda. Qualquer bom advogado podia ter resolvido tudo num julgamento antecipado favorável, mas o senhor deixou rolar e caiu por causa disso. Lembro-me de como papai sempre gostou do senhor por sua inteligência, e ele sempre disse que era um sujeito decente. Não dizia o mesmo em relação a toda aquela gente no Capitólio. O pessoal veterano da CIA gostava de trabalhar com o senhor, que ajudou financeiramente um projeto que dava chilique em alguns outros caras no Capitólio só de ouvir falar. Não sei a razão disso, mas um monte de gente lá detesta os serviços de informação. Papai ia à loucura cada vez que precisava se sentar com senadores e deputados para discutir o assunto, tinha que suborná-los com projetos de seus distritos eleitorais e coisas assim. Meu Deus, papai odiava isso. Toda vez que o fazia, resmungava por um semana antes e outra depois. Mas o senhor o ajudava muito. Costumava ser muito bom trabalhando no Capitólio. Mas quando teve seu problema político, simplesmente desmoronou. Achei muito difícil de acreditar. Mas o que realmente tive dificuldade de engolir foi como papai nunca falou disso, afinal. Ele nunca disse uma única palavra. Quando eu perguntava, ele mudava de assunto. Até mesmo Arnie jamais abriu a boca a respeito... e Arnie sempre respondia a qualquer pergunta que eu fizesse. Quer dizer, os cães não latiam, entende? — Jack se recostou, os olhos o tempo todo no anfitrião. — Seja como for, eu também nunca nunca disse nada, mas fiquei farejando no meu último ano em Georgetown, perguntei a algumas pessoas, e aqueles caras me ensinaram a ver as coisas com discrição. Mais uma vez, não é tão difícil assim.
— E aí, a que conclusão chegou?
— O senhor teria sido um bom presidente, mas perder mulher e filhos foi um golpe duro. Ficamos todos arrasados com aquilo. Mamãe realmente gostava de sua mulher. Por favor, desculpe por trazer isso à tona, senhor. Foi seu motivo para abandonar a política, mas acho que é patriota demais para esquecer seu país, e acho que a Hendley Associates é a sua maneira de servir... mas por baixo do pano. Lembro-me de papai e o Sr. Clark tomando drinques e conversando lá em cima uma noite... era meu último ano no secundário. Não captei muita coisa. Eles não me queriam por lá, portanto desci para assistir ao History Channel. Por coincidência passava naquela noite um programa sobre o SOE, operações especiais dos britânico na Segunda Guerra Mundial. Eram principalmente banqueiros. Will Bill Donovan recrutava advogados para dar partida no OSS, o Escritório de Serviços Estratégicos, mas os britânicos usavam banqueiros para exercer pressão sobre as pessoas. Eu especulava sobre o motivo, e papai dizia que banqueiros eram mais espertos. Eles sabem como ganhar dinheiro no mundo real, enquanto os advogados não são tão espertos — isso é o que papai disse, de qualquer maneira. Acho que ele pensou que era isso que ele fazia. Com o seu fundo de investimentos, quero dizer. Mas o senhor é um tipo diferente de pirata, senador. Acho que é um espião, e acho que a Hendley Associates é uma agência de espionagem financiada privadamente e que atua por baixo do pano... totalmente fora do âmbito federal. Assim, não precisa se preocupar com senadores e deputados pentelhos bisbilhotando e deixando vazar besteiras só porque acham que faz coisas erradas. Diabo, fiz uma busca no Google e só achei seis menções à sua empresa na internet. Sabe como é, há mais informações sobre o penteado da minha mãe. A Women's Wear Daily gostava de criticá-la asperamente. Papai ficava puto com isso.
— Eu me lembro. — Jack Ryan pai certa vez fugiu dos repórteres para não tratar desse assunto e pagou o preço de ser ridicularizado nas turmas de bate-papo. — Ele falou comigo sobre como Henrique VIII teria dado aos jornalistas alguns cortes de cabelo especiais por isso.
— É, com um machado na Torre de Londres. Sally às vezes ria disso. Ela também alfinetava mamãe por causa do cabelo. Fico imaginando que ser homem é uma bela coisa, não acha?
— Outra coisa são os sapatos. Minha mulher não gostava dos Manolo Blahniks. Preferia sapatos macios, do tipo que não machucavam os pés — disse Hendley, recordando, e depois se fechando atrás de um muro de concreto. Ainda doía falar dela. Provavelmente sempre seria assim, mas pelo menos a dor confirmava seu amor por ela, o que já era alguma coisa. Por mais que amasse a lembrança da esposa, não podia sorrir em público a respeito dela. Tivesse permanecido na política, teria sempre que fazer isso, fingir que havia superado, que seu amor era imorredouro mas também incólume. É, isso mesmo. Mais um preço da vida política, que o faria abrir mão de sua humanidade juntamente com sua coragem. E tal preço não valia a pena. Nem mesmo para ser presidente dos Estados Unidos. Uma das razões por que ele e Ryan pai tinham sempre caminhado juntos era essa semelhança.
— Realmente acha que isso aqui é uma agência de informação? — perguntou o anfitrião, tão suavemente quanto a situação permitia.
— Sim, acho, senador. Se a NSA, digamos, prestar atenção no que os grandes bancos centrais estão fazendo, o senhor está no local ideal para tirar vantagem dos sinais de informação que eles reúnem e cruzam com Langley. Deve dar a tropa que negocia com moedas a melhor informação privilegiada, e se jogar suas cartas cuidadosamente... isto é, se não ficar ganancioso... pode juntar uma tonelada de dinheiro a longo prazo sem ninguém perceber. O senhor não faz isso para atrair investidores. Eles falariam demais por aí. Portanto, essa atividade financia as coisas que faz aqui. Não preciso especular muito sobre o que exatamente faz.
— Isto é um fato?
— Sim, senhor, é um fato.
— Você não comentou com seu pai?
— Não, senhor. — Jack Jr. balançou a cabeça. — Ele simplesmente evitou isso. Papai me contava muita coisa quando eu perguntava, mas não essa.
— O que ele lhe contava?
— Sobre pessoas. O senhor sabe... como lidar com políticos, que presidente estrangeiro gosta de garotinhas ou garotinhos. Puxa, rola muito disso por aí, especialmente além-mar. Que tipo de pessoas são, como pensam, quais suas prioridades individuais e excentricidades. Que país cuida bem de suas forças armadas. Que países são bons em espionagem e quais não. Um monte de coisas sobre as pessoas na Capitol Hill... Coisas que se lê nos livros e jornais, só que papai me contava a coisa real. Eu sabia que não devia repetir aquilo tudo em lugar nenhum — garantiu o jovem Ryan ao anfitrião.
— Nem mesmo na escola?
Nada que não saísse primeiro no Post. Os jornais são muito bons em descobrir coisas, mas são rápidos demais repetir coisas prejudiciais sobre gente de que não gostam, e frequentemente não publicam material sobre gente que gosta. Eu acho que o negócio de notícias é praticamente o mesmo que fazem as mulheres trocando fofocas no telefone ou nas mesas. Menos uma questão de fatos concretos e mais atirando em pessoas que de que não gostam.
— São humanos como todo mundo.
Sim, concordo, são. Mas quando minha mãe opera os olhos de alguém não quer saber se gosta da pessoa ou não. Ela prestou um juramento de exercer sua profissão segundo as regras. Papai fez a mesma coisa. Foi assim que eles me criaram. — John Patrick Ryan Jr. concluiu: — Cada pai diz a mesma coisa a cada filho: se vai fazer isso, faça direito ou então não faça.
— Nem todo mundo pensa mais desse jeito — assinalou Hendley, embora sempre tivesse dito aos filhos, George e Foster, exatamente a mesma coisa.
— Talvez, senador, mas não é culpa minha.
— O que sabe sobre a atividade comercial? — perguntou Hendley.
— Conheço o básico. Dá para conversar, mas não aprendi o suficiente para dar uma conferência.
— E quanto a sua graduação em Georgetown?
— História, fiz também um curso de economia, mais ou menos como papai. Às vezes eu perguntava a ele sobre seu hobby... ele ainda gosta de especular no mercado financeiro e tem amigos no ramo, como George Winston, seu ex-secretário do Tesouro. Eles conversam bastante. George tem tentado sem parar atrair papai para sua empresa, mas ele não quer fazer nada além de jogar conversa fora. Ainda são amigos, porém. Até fingem jogar golfe juntos. Papai é um golfista de dar dó.
Hendley sorriu. — Sei disso. Você já tentou?
Jack sacudiu a cabeça.
— Já sei como praguejar. Tio Robby era muito bom no golfe. Papai ainda sente falta dele. Tia Sissy ainda nos visita muito. Ela e mamãe tocam piano juntas.
— Aquilo foi muito ruim.
— Aquele caipira racista de merda — disse Jack. — Desculpe. Robby foi o primeiro cara que conheci que foi assassinado. — A coisa espantosa foi que seu assassino escapou vivo. O pessoal do Serviço Secreto chegou meio segundo depois da Polícia Estadual do Mississippi para capturá-lo, mas alguns civis haviam agarrado o filho da puta antes que alguém pudesse completar o serviço, e assim ele foi para a cadeia vivo. Este fato pelo menos eliminou qualquer absurdo de conspiração. Era da Ku Klux Klan, 67 anos de idade, e simplesmente não podia suportar a ideia de que a saída de Ryan levasse seu vice-presidente negro à posição de presidente. Seu julgamento, condenação e sentenciamento ocorreram em velocidade espantosa... o assassinato tinha sido todo gravado, para não falar das seis testemunhas a dois metros de distância do assassino. Até mesmo a bandeira no topo da Assembleia Legislativa de Jackson tinha descido a meio pau por Robby Jackson, para consternação e desgosto de alguns. Sic volvere Parcas, disse Jack.
— O que é isso?
— As Parcas, senador. Uma tece o fio. Outra mede o fio. E uma outra corta o fio. Assim tecem as Parcas, diz o adágio romano. Nunca vi papai tão arrasado com alguma coisa. Mamãe segura a barra melhor, realmente. Acho que os médicos estão acostumados com pessoas agonizantes. Papai... bem, ele simplesmente queria matar o cara pessoalmente. Foi uma parada dura. — As câmeras haviam captado o presidente chorando na missa fúnebre na capela da Academia Naval. Sic volvere Parcas. — Portanto, senador, como é que meu fio está sendo tecido aqui?
Isso não pegou Hendley no contrapé. Tinha visto a pergunta chegar a meio quilômetro de distância, mas mesmo assim não era uma pergunta especialmente fácil.
— E quanto a seu pai?
— Quem está dizendo que ele sabe? O senhor tem seis empresas subsidiárias que provavelmente usa para esconder suas atividades comerciais. — Descobrir isso não tinha sido tão fácil, mas Jack sabia como cavar.
— Não esconder — corrigiu Hendley —, disfarçar, talvez, mas não esconder.
— Desculpe. Como lhe disse, eu costumava andar com espiões.
— Você aprendeu.
— Tive professores muito bons.
Ed e Mary Pat Foley, John Clark, Dan Murray e seu próprio pai. O diabo do moleque teve realmente muito bons professores, pensou Hendley.
— O que exatamente pensa em fazer aqui?
— Bem, sou bem esperto, mas não tão esperto. Tenho que aprender muito. O senhor também. O que quero fazer? Quero servir a meu país — disse Jack tranquilamente. — Quero ajudar a fazer as coisas que precisam ser feitas. Não preciso de dinheiro. Disponho de fundos depositados por papai e vovô... Joe Muller, pai da mamãe, quero dizer. Diabos, se eu quisesse podia me diplomar em direito e terminar como Ed Kealty, abrindo meu caminho para a Casa Branca, mas meu pai não é rei e eu não sou príncipe. Quero seguir meu próprio caminho e ver como as coisas terminam.
— Seu pai não pode saber disso, pelo menos por enquanto.
— É? Ele guardou muito segredo de mim. — Jack pensou que isso era muito engraçado. — O mundo dá muitas voltas, não acha?
— Pensarei no seu caso. Você tem e-mail?
— Sim, senhor. — Jack entregou-lhe um cartão.
— Dê-me dois dias.
— Claro, senhor. E obrigado por me receber. — Ele se levantou, apertaram-se as mãos e Jack saiu.
O garoto cresceu depressa, pensou Hendley. Talvez a escolta do Serviço Secreto tivesse ajudado nisso — ou piorado, dependendo do tipo de pessoa que por acaso se é. Mas esse rapaz provinha de uma boa cepa, tanto por parte da mãe quanto do pai. E estava na cara que era esperto. Era cheio de curiosidade, em geral um sinal de inteligência. E inteligência era a única coisa que nunca havia de sobra, em qualquer lugar do mundo.
— ENTÃO? — PERGUNTOU ERNESTO.
— Foi interessante — replicou Pablo, acendendo um charuto dominicano.
— O que eles querem de nós? — perguntou seu chefe.
— Mohammed começou falando sobre nossos interesses comuns e nossos inimigos comuns.
— Se tentássemos fazer negócios por lá, acabaríamos decapitados — observou Ernesto.
Com ele, tudo era sempre negócios.
— Foi o que falei. Mohammed replicou que eles são um mercado muito pequeno, seria uma perda de tempo. Eles meramente exportam matérias-primas. E isso é verdade. Mas ele pode nos ajudar, disse, com o novo mercado europeu. Mohammed diz que sua organização tem uma boa base de operações na Grécia, e com a extinção das fronteiras internacionais na Europa, este seria o ponto mais lógico de entrada para nossas entregas. Eles não vão nos cobrar pela assistência técnica. Dizem que só desejam estabelecer boas relações.
— Devem estar precisando desesperadamente de nossa ajuda — observou Ernesto.
— Eles têm seus próprios recursos consideráveis, como têm demonstrado, jefe. Mas parecem necessitar de orientação especializada em contrabando de armas e pessoas. Seja como for, estão pedindo pouco e oferecendo muito.
— E o que eles oferecem será útil a nossos negócios? — especulou Ernesto.
— Certamente forçaria os ianques a dedicar recursos a tarefas diferentes.
— Poderia causar estragos no país deles, mas os efeitos políticos também podem ser sérios...
— Jefe, a pressão que exercem sobre nós agora dificilmente poderia ficar pior, não acha?
— Este novo presidente americano é um idiota, mas mesmo assim perigoso.
— Nesse caso, podemos contar com nossos novos amigos para distraí-los, jefe — assinalou Pablo. — Nem sequer usaríamos nossos recursos para isso. Assumimos pouco risco e a recompensa potencial é grande, não é?
— Sei disso, mas pense bem, Pablo, se este esquema for rastreado até nós o custo poderia ser alto.
— É verdade, mas repito: quanta pressão adicional eles podem exercer sobre nós? — perguntou Pablo. — Estão atacando nossos aliados políticos através do governo de Bogotá, e se forem bem-sucedidos em produzir o efeito que desejam, então o dano para nós será de fato muito grave. Você e outros membros do Conselho podiam se tornar fugitivos em nossa própria terra — avisou o chefe de inteligência do Cartel. Não precisou acrescentar que tal eventualidade tiraria boa parte do prazer que as imensas riquezas proporcionavam aos membros do Conselho. Dinheiro tinha pouca utilidade sem um lugar confortável para gastá-lo. — Há um adágio naquela parte do mundo: o inimigo do meu inimigo é meu amigo. Jefe, se existe uma desvantagem de vulto para esta parceria, eu não vejo onde.
— Você acha então que eu deveria me encontrar com este homem? — perguntou Ernesto.
— Sí, Ernesto. Não faria mal nenhum. Ele é mais procurado pelos gringos do que nós. Se receamos traição, então ele deve recear muito mais. E, de qualquer modo, tomaremos as precauções adequadas.
— Muito bem, Pablo. Discutiremos isso com o Conselho com uma recomendação de que vamos ouvi-lo — concedeu Ernesto. — Quanta dificuldade haveria para arranjar isso?
— Eu o esperaria voando via Buenos Aires. Certamente ele sabe viajar com segurança. Deve ter mais passaportes falsos do que nós, e na verdade não parece tipicamente árabe.
— Suas habilidades linguísticas?
— Adequadas — respondeu Pablo. — Fala inglês como um inglês de nascença, o que por si só já é um passaporte.
— Através da Grécia, hã? Nosso produto?
— A organização dele tem usado a Grécia como um porto seguro por muitos anos. Jefe, é mais fácil contrabandear nosso produto do que um grupo de homens e, numa primeira inspeção, seus métodos e trunfos parecem se adaptar aos nossos objetivos. Nosso próprio pessoal terá que examiná-los, claro.
— Alguma ideia de quais seriam seus planos para os Estados Unidos?
— Não perguntei, jefe. Realmente não é da nossa conta.
— Exceto até onde isto estreitaria a segurança na fronteira. Poderia ser uma inconveniência. — Ernesto ergueu a mão. — Eu sei, Pablo, não é nada grave.
— Desde que eles nos ajudem, não me importo com o que possam querer fazer com os Estados Unidos.
3
ARQUIVOS CINZENTOS
UMA DAS VANTAGENS de Hendley era que a maioria de seus ativos trabalhava em outro lugar. Eles não tinham que ser pagos, abrigados ou alimentados. Os contribuintes pagavam as despesas gerais sem saber e, de fato, as próprias despesas gerais não sabiam exatamente o que era isso. A recente evolução no mundo do terrorismo fizera com que as duas principais agências de inteligência dos Estados Unidos, a CIA e a NSA, trabalhassem ainda mais em conjunto do que no passado, e uma vez que estavam a uma inconveniente hora de distância uma da outra — dirigir na parte norte do Beltway de Washington era como percorrer o estacionamento de um shopping na semana de Natal —, elas faziam a maior parte de suas comunicações através de links seguros de micro-ondas, do topo do QG da NSA ao topo do QG da CIA. Que esta linha de visão transitasse pelo telhado da Hendley Associates passava despercebido. E isso, de qualquer modo, não devia ter importado, uma vez que o link de micro-ondas era codificado. Tinha que ser, já que micro-ondas vazavam da linha de transmissão deles por todo tipo de razões técnicas. As leis da física podiam ser exploradas, mas não mudadas para atender necessidades do momento.
A amplitude do canal de micro-ondas era imensa, devido a algoritmos de compressão que pouco diferiam dos usados nas redes de computadores. A versão King James da Bíblia podia ser transferida em segundos de um prédio ao outro. Esses links estavam sempre funcionando, a maior parte do tempo trocando nonsense e caracteres aleatórios, a fim de confundir quem tentasse quebrar a criptografia, mas desde que este sistema foi criptografado, era totalmente seguro. Ou assim alegavam os magos da NSA. O sistema dependia de CD-ROMs selados com transposições totalmente aleatórias, e a menos que você pudesse encontrar uma chave para o ruído de radiofrequência, isso era o fim de tudo. Toda semana, um dos seguranças da Hendley, acompanhado de dois colegas — todos escolhidos aleatoriamente entre a força de vigilância —, dirigia até Fort Meade para pegar os discos codificados da semana. Eles eram inseridos no leitor automático ligado à máquina de criptografia, e quando cada um era ejetado após o uso, levavam-no até um forno de micro-ondas para ser destruído, sob as vistas dos três seguranças, todos treinados durante anos para não fazer perguntas.
Este procedimento um tanto trabalhoso permitia que Hendley tivesse acesso a toda atividade das duas agências, uma vez que eram do governo e anotavam tudo, desde o pagamento de agentes secretos ao custo da misteriosa carne servida na lanchonete.
Muito — a maior parte — da informação não era de nenhum interesse para a equipe de Hendley, mas quase toda ela era estocada em veículos transmissores de alta densidade e cruzada com um computador de grande porte Sun Microsystems, com poder suficiente para administrar todo o país, se necessário. Isso capacitava a equipe de Hendley a dar uma olhada em tudo que os serviços de inteligência estavam gerando, juntamente com as análises de alto nível realizadas por especialistas numa profusão de áreas, e a seguir cruzadas com outras para comentários e análises posteriores. A NSA estava se saindo melhor nesse tipo de trabalho do que a CIA, ou assim pensava o próprio analista principal da Hendley, mas muitas cabeças concentradas num único problema com frequência funcionavam bem — até que a análise se tornava tão enroscada a ponto de paralisar a ação, um problema não ignorado pela comunidade de inteligência. Com o novo Department of Homeland Security, o departamento de segurança interna — e Hendley achava que teria votado não para sua criação — no circuito, a CIA e a NSA eram ambas receptoras das análises do FBI. Isso com frequência apenas acrescentava uma nova camada de complexidade burocrática, mas a verdade da questão era que os agentes do FBI obtinham um apanhado levemente diferente sobre informação bruta. Eles pensavam em termos de construir um caso criminal a ser posto diante de um júri, o que não era de todo ruim quando se descia a este nível.
Cada agência tinha sua própria maneira de pensar. O FBI era composto de tiras que possuíam uma tendência. A CIA possuía outra totalmente diferente e tinha o poder — vez por outra exercido — de empreender alguma ação, embora isso fosse bem raro. A NSA, por sua vez, apenas obtinha informação, analisava-a e repassava aos outros — se faziam algum uso dela, era uma questão além da esfera de ação da agência.
O chefe de Análise da Informação da Hendley era Jerome Rounds, Jerry para os amigos. Tinha um doutorado em psicologia da Universidade da Pensilvânia. Havia trabalhado no State Departament's Office of Intelligence and Research — I & R — antes de se mudar para a firma Kidder, Peabody como um tipo diferente de analista atraído por um tipo diferente de contracheque, antes que o então senador Hendley o tivesse descoberto pessoalmente durante um almoço em Nova York. Rounds fizera seu nome na casa comercial como o leitor de pensamento da firma, mas embora tivesse acumulado uma boa pilha de dinheiro, concluíra que o dinheiro perdia importância uma vez que a educação dos filhos ficasse plenamente garantida e que seu veleiro estivesse pago. Ele havia ralado em Wall Street até estar pronto para a proposta que Hendley fizera quatro anos antes. Suas obrigações incluíam ler o pensamento de outros operadores financeiros, que era algo que aprendera a fazer em Nova York. Trabalhou estreitamente com Sam Granger, chefe do comércio monetário no Campus, o Departamento Operacional.
O expediente estava perto do fim quando Jerry Rounds entrou na sala de Sam. Era tarefa de Jerry e sua equipe de trinta homens revisar todo o material baixado da NSA e da CIA. Todos tinham que ser especialistas em leitura dinâmica e atentos a detalhes. Rounds era o equivalente local de um cão de caça.
— Dá uma olhada nisso — disse, jogando uma folha de papel na mesa de Granger e se sentando.
— O Mossad perdeu um... Station Chief? Hum... Como isso aconteceu?
— Os tiras locais estão pensando em assalto. Morto a facadas, carteira desaparecida, nenhum sinal de luta demorada. É evidente que não estava armado na hora.
— Num lugar civilizado como Roma, por que se preocupar com isso? — observou Granger. Mas agora passariam a se preocupar, pelo menos por enquanto. — Como descobrimos?
— Segundo a imprensa local, um funcionário da embaixada israelense foi apagado enquanto dava uma mijada. Foi descoberto como espião. Os caras em Langley estão correndo em círculos, tentando imaginar o que tudo isso significa, mas provavelmente vão cair na esparrela e aceitar o que os tiras locais acham. Homem morto. Sem carteira. Assalto em que o ladrão conseguiu um pequeno ganho.
— Você acha que os israelenses vão engolir? — especulou Granger.
— Tanto quanto serviriam carne de porco num jantar na embaixada. Ele foi esfaqueado entre a primeira e segunda vértebras. Um ladrão de rua mais provavelmente cortaria a garganta, mas um profissional sabe que isso é sujo e barulhento. Os carabinieri estão trabalhando no caso... mas parece que não têm muito saco para isso, a não ser que alguém no restaurante tenha uma tremenda boa memória. Eu não apostaria muito nessa possibilidade.
— Então, o que significa tudo isso?
Round se acomodou na cadeira.
— Quando foi a última vez que um Station Chief de qualquer serviço foi morto?
— Já faz algum tempo. A Agência perdeu um na Grécia... aquele grupo terrorista local. O chefe da estação da CIA foi dedurado por algum escroto... um de seus próprios, um desertor, que escapuliu e agora está bebendo vodca e se sentindo abandonado, imagino. Os britânicos perderam um há alguns anos no Iêmen... — Fez uma pausa. — Você tem razão, não se ganha muita coisa matando um chefe de base. Uma vez que se saiba quem ele é, você o observa, descobre quem são seus contatos e agentes. Se você o apagar, perde trunfos em vez de ganhar algum. Então, está pensando num terrorista talvez mandando mensagem para Israel?
— Ou talvez eliminando uma ameaça de que eles especialmente não gostavam. Que diabo, o pobre sacana era israelense, não era funcionário da embaixada. Talvez simplesmente isso fosse o bastante, mas quando um espião... em especial um sênior... morre, você não presume que seja um acidente, não é?
— Alguma chance de que o Mossad peça nossa ajuda? — Mas Granger sabia que o Mossad era que nem o garoto na caixa de areia que nunca, jamais, compartilha seus brinquedos. Eles só pedem ajuda se estiverem: A, desesperados, e B, convencidos de que alguém pode lhes dar algo que não conseguiriam por conta própria. Então eles agiam como o filho pródigo.
— Eles não vão confirmar que este cara, chamado Greengold, era agente do Mossad. Isso seria uma pequena ajuda para os tiras italianos, podia até mesmo envolver a agência de contraespionagem deles, mas não há nenhuma evidência de isso transpirou, pelo que o pessoal da CIA, em Langley, saiba.
Mas Langley não pensaria nesses termos, percebeu Granger. E Jerry também. Podia ver isso nos olhos dele. A CIA não pensava naqueles termos porque o ramo da informação se tornara muito civilizado. Não se matam os trunfos dos outros caras porque isso era ruim para a atividade. Ele poderia fazer alguma coisa por seus trunfos, e se você ficasse em guerrilha pelas ruas de alguma cidade estrangeira, não conseguiria que o trabalho fosse realizado. E o trabalho era obter informação para seu governo, não fazer marcas na coronha da pistola. Assim, os carabinieri pensariam em termos de um crime comum, porque pessoal diplomático era inviolável para a polícia de qualquer país, protegida por tratado internacional e uma tradição que remontava ao Império Persa de Xerxes.
— Okay, Jerry, você é o homem do faro treinado — observou Sam. — O que está pensando?
— Estou pensando que talvez haja um fantasma malvado à solta nas ruas. Esse sujeito do Mossad está num refinado restaurante em Roma, almoçando e tomando uma taça de ótimo vinho. Talvez estivesse pegando uma encomenda... verifiquei o mapa, o restaurante fica a uma boa caminhada do prédio da embaixada, um pouco longe demais para um local de almoço regular, a não ser que este tal Greengold fosse um adepto do jogging, além do que era a hora errada do dia para isso. Assim, a não ser que ele fosse realmente fanático pela cozinha do Giovanni, só podia ser uma entrega de dinheiro ou um encontro de alguma espécie. Se foi isso, ele estava marcado. Não marcado para ser identificado por seu opositor, quem quer que pudesse ser, mas identificado para ser liquidado. Para os tiras locais pode parecer assalto. Para mim parece assassinato deliberado, e executado por especialista. A vítima ficou instantaneamente incapacitada. Sem chance de opor resistência alguma. É desse jeito que se abate um espião... nunca se sabe o quanto ele pode ser bom em defesa pessoal, mas se eu fosse árabe imaginaria um agente do Mossad como o próprio bicho-papão. Não assumiria muitos riscos. Nada de pistola, portanto ele não deixou nada para trás na forma de prova, nenhuma bala, nenhum cartucho deflagrado. Ele pegou a carteira para fazer parecer um assalto, mas matou um rezident do Mossad e ainda deixou uma mensagem, provavelmente. Não dizendo que detesta o Mossad, mas que pode matar seus agentes tão facilmente quanto abotoa a calça.
— Está planejando um livro, Jerry? — perguntou Sam suavemente. O analista-chefe pegou um factoide de informação bruta e teceu uma novela completa.
Rounds apenas deu uma batidinha no nariz e sorriu.
— Desde quando você acredita em coincidências? Esse aqui está farejando alguma coisa.
— O que pensa o pessoal de Langley?
— Nada ainda. Eles passaram isso ao Setor da Europa Meridional para avaliação. Espero que tenhamos alguma coisa em uma semana, mais ou menos, e isso não é muito. Conheço o cara que cuida do setor.
— Burro?
Rounds sacudiu a cabeça.
— Não, isso não seria justo. Ele é bem esperto, mas não vai fundo. Nem é especialmente criativo. Aposto que a história não vai chegar nem ao sétimo andar.
Um novo diretor da CIA havia substituído Ed Foley, que agora estava aposentado e, segundo relatos, escrevendo seu próprio livro, Eu estive lá, junto com a mulher, Mary Pat. Eles tinham sido muito bons no seu tempo, mas o novo diretor era um juiz politicamente atraente, queridinho do presidente Kealty. Ele não fazia nada sem a aprovação presidencial, o que significava que tudo percorria a miniburocracia da equipe do Conselho de Segurança Nacional, na Casa Branca, que era tão cheia de vazamentos quanto o Titanic e portanto adorada pela imprensa. A Diretoria de Operações ainda estava em formação, treinando novos agentes de campo na fazenda em Tidewater, na Virginia, e o novo diretor de Operações não era mau sujeito, afinal — o Congresso havia insistido em alguém que soubesse como arar o campo, um tanto para consternação de Kealty, mas ele sabia como fazer o jogo do Congresso. Operações podia estar voltando ao formato adequado, mas ele nunca faria nada abertamente ruim sob a atual administração. Nada que tornasse o Congresso infeliz. Nada que fizesse os inimigos franco-atiradores da comunidade de informação vociferarem qualquer coisa além das queixas de rotina sobre esposas e grandes teorias conspiratórias, e de como a CIA havia causado Pearl Harbor e o terremoto de San Francisco.
— Então, nada resultará disso, é o que imagina? — perguntou Granger, já sabendo a resposta.
— O Mossad vai procurar por aí, colocar suas tropas em alerta, e isso é trabalho para um ou dois meses. Depois a maioria deles retomará a rotina normal. O mesmo em relação a outros serviços. Os israelenses ficarão tentando imaginar como seu homem foi dedurado. Difícil especular sobre isso com a informação disponível. Provavelmente alguma coisa simples. Em geral é. Talvez ele tenha recrutado o cara errado e se ferrou, talvez seu código secreto tenha sido violado... um funcionário de códigos subornado na embaixada, por exemplo... talvez alguém tenha falado com o sujeito errado no coquetel errado. As possibilidades são amplas, Sam. Basta um pequeno vacilo para se ter um cara morto neste ramo, e até o melhor de nós pode cometer esse erro.
— Algo para ser posto no manual sobre o que se fazer na rua e o que não fazer. — Ele teve seu próprio tempo de rua, claro, mas principalmente em bibliotecas e bancos, garimpando informação tão seca quanto fazer poeira parecer orvalho, para descobrir o diamante ocasional em meio a uma pilha inútil. Ele sempre mantivera uma cobertura e aferrou-se a ela até se tornar tão real para ele quanto o dia de seu aniversário.
— A não ser que algum outro espião faça merda — observou Rounds. — Então saberemos se realmente existe um fantasma à solta.
O VOO DA AVIANCA procedente do México aterrissou em Cartagena cinco minutos mais cedo. Ele havia voado pela Austrian Air até Heathrow, em Londres, depois voou pela British Airways para a Cidade do México antes de pegar o avião da Avianca para a Colômbia. Era um velho Boeing americano, mas ele não se preocupava com a segurança da viagem aérea. O mundo tinha perigos muito maiores. No hotel, abriu a mala para recuperar sua agenda, saiu para uma caminhada e encontrou um telefone público para fazer sua ligação.
— Por favor, diga a Pablo que Miguel está aqui... gracias. — E a seguir caminhou até uma cantina para um drinque. A cerveja local não era de todo ruim, achou Mohammed.
Embora beber fosse contrário às suas crenças religiosas, ele tinha que se adequar a este meio, e ali todo mundo consumia álcool. Após quinze minutos, caminhou de volta para o hotel, olhou duas vezes para verificar se estava sendo seguido e não viu ninguém. Assim, se tinha alguém na sua cola, só poderia ser um especialista, e contra isso não havia defesa, não numa cidade estrangeira onde todo mundo falava espanhol e ninguém sabia qual era a direção de Meca. Viajava com passaporte britânico, dizendo que se chamava Nigel Hawkins, de Londres. Havia de fato um apartamento no endereço fornecido. Isto o protegeria até mesmo de uma batida policial de rotina, mas nenhuma história de fachada dura para sempre, e se viesse a acontecer... então acontecia. Ninguém podia passar a vida com medo do desconhecido. Você fazia seus planos, tomava as precauções necessárias, e então entrava no jogo.
Era interessante. Os espanhóis eram velhos inimigos do Islã, e este país era composto principalmente por filhos da Espanha. Mas havia gente neste país que odiava os Estados Unidos quase tanto quanto ele — apenas quase, porque os Estados Unidos eram para eles uma imensa fonte de renda para a cocaína, tal como eram fonte imensa de renda para o petróleo de sua terra natal. Sua própria renda pessoal batia em centenas de milhões de dólares, estocados em diversos bancos ao redor do mundo, Suíça, Liechtenstein, e mais recentemente nas Bahamas. Ele podia se permitir seu próprio avião particular, claro, mas ficaria muito fácil identificá-lo e, tinha certeza, fácil demais derrubá-lo no mar. Mohammed desdenhava dos Estados Unidos, mas não era cego para o poder deles. Muitos homens bons haviam partido inesperadamente para o Paraíso por esquecer desse detalhe. De modo algum era um péssimo destino, mas sua missão era entre os vivos, não entre os mortos.
— EI, CAPITÃO.
Brian Caruso se virou para ver James Hardesty. Não eram nem sete horas da manhã.
Ele acabara de liderar sua pequena companhia de fuzileiros na rotina de exercícios matinais e na corrida de cinco quilômetros e, como todos os seus homens, estava encharcado de suor. Dispensara a turma para os chuveiros e ia a caminho de seu alojamento quando encontrou Hardesty. Mas antes que pudesse dizer qualquer coisa, uma voz mais familiar chamou.
— Comandante? — Deparou-se com o sargento de artilharia Sullivan, seu oficial não comissionado.
— Oi, Gunny. O pessoal parecia bem afiado esta manhã.
— Sim, senhor. E o senhor não nos forçou muito. Bom da sua parte — observou o E-7.
— Como está o cabo Ward? — Essa era a razão por que Brian não os forçava muito.
Ward tinha dito que estava pronto para voltar ao batente, mas ainda se recuperava de ferimentos graves.
— Está bufando um pouco, mas não forçou a barra. O cabo Randall está de olho no cara para nós. Sabe como é, para uma isca, ele não é tão mau — concedeu o artilheiro. Os fuzileiros são tipicamente muito solícitos com os companheiros de Corpo, em especial aqueles duros o bastante para entrar na dança com a Força de Reconhecimento.
— Cedo ou tarde, os SEALs vão convidá-lo para Coronado.
— Também acho, comandante, e aí vamos ter que arranjar uma nova isca.
— Do que você precisa, Gunny? — perguntou Caruso.
— Senhor... ah, ele está aqui. Ei, Sr. Hardesty. Ouvi que tinha vindo ver o chefe. Desculpe, capitão.
— Não tem problema. Vejo você em uma hora, Gunny.
— Aye, aye, sir. — Sullivan bateu continência e voltou para os alojamentos.
— Ele é um suboficial danado de bom — pensou Hardesty em voz alta.
— Bons tempos — concordou Caruso. — Caras como ele fazem o Corpo. Eles apenas toleram gente como eu.
— O que acha de um café da manhã, capitão?
— Preciso tomar uma chuveirada antes, mas aceito.
— O que tem na agenda?
— A aula de hoje é sobre comunicações, para garantir que podemos chamar todos no ar e pedir apoio de artilharia.
— Eles não sabem isso? — perguntou Hardesty, surpreso.
— Sabe como um time de beisebol treina os batedores antes de cada jogo? Eles todos sabem como girar um taco, não sabem?
— Peguei. — Eles eram considerados fundamentais por serem realmente isso. E esses fuzileiros, como jogadores de beisebol, não recusariam a aula do dia. Uma viagem cheia de dificuldades ensinava a todos eles o valor do treinamento básico.
Era uma curta caminhada até os alojamentos de Caruso. Hardesty pegou um café e um jornal enquanto o jovem oficial tomava banho. O café era muito bom. O jornal, como de hábito, não dizia muita coisa que já não soubesse, exceto pelos últimos resultados esportivos, mas as histórias em quadrinhos sempre serviam para uma risada. — Pronto para o desjejum? — perguntou o homem mais novo, já de banho tomado.
— Como é a comida por aqui? — quis saber Hardesty.
— Bem, é meio difícil errar num café da manhã, não acha?
— É verdade. Vamos nessa, capitão. — Seguiram juntos no Mercedes classe C de Caruso por cerca de um quilômetro até o rancho comunitário. O carro o assinalava como um homem comum, para alívio de Hardesty.
— Eu não esperava vê-lo de novo por algum tempo — disse Caruso, ao volante.
— Ou para sempre? — perguntou suavemente o oficial aposentado das Forças Especiais.
— Isso também, sim, senhor.
— Você passou no exame.
Isto foi suficiente para fazê-lo virar a cabeça.
— Que exame foi esse, senhor?
— Não pensei que tivesse notado — observou Hardesty com um risinho.
— Bem, senhor, foi bem-sucedido em me confundir esta manhã. — O que, o capitão Caruso tinha certeza, era parte do plano do dia.
— Há um velho ditado: Se você está confuso, está mal informado.
— Isto soa um pouco sinistro — disse o capitão Caruso, dobrando à direita para o estacionamento.
— Pode ser. — Ele saltou do carro e seguiu o oficial rumo ao prédio. Era um amplo edifício de um só andar repleto de fuzileiros famintos. A cafeteria tinha prateleiras e bandejas com os alimentos usuais do desjejum americano. De sucrilhos a ovos com bacon. E até mesmo algumas...
— O senhor pode tentar os bagels, mas não são lá tão bons, senhor — avisou Caruso, enquanto pegava dois muffins e manteiga de verdade. Ele era claramente jovem demais para se preocupar com colesterol e outras mazelas que surgem com o passar dos anos. Hardesty pegou uma caixa de Cheerios, porque tinha chegado àquela idade, um tanto para seu aborrecimento, juntamente com leite desnatado e adoçante. As canecas de café eram grandes, e os bancos permitiam um surpreendente anonimato, embora devesse haver umas quatrocentas pessoas ali, de várias patentes, de cabo a coronel. Seu anfitrião o conduziu a uma mesa nomeio de uma turma de jovens sargentos.
— Okay, sr. Hardesty, o que posso fazer pelo senhor?
— Em primeiro lugar, sei que tem credencial de segurança lá na TS, certo?
— Sim, senhor. Alguma coisa compartimentada, mas isso não lhe diz respeito.
— Provavelmente — concedeu Hardesty. — Muito bem, o que estamos prestes a discutir vai um pouco acima disso. Você não pode repetir para absolutamente ninguém. Fui claro?
— Sim, senhor. Assunto sigiloso, entendo. — De fato, ele não entendia, pensou Hardesty. Isto estava além de sigilos, mas esta explicação ficaria para outra oportunidade. — Por favor, prossiga, senhor.
— Você foi notado por algumas pessoas relativamente importantes para uma... organização um tanto especial que não existe. Você já ouviu este tipo de coisa nos filmes ou leu nos livros. Mas é inteiramente real. Estou aqui para lhe oferecer um lugar nesta organização.
— Senhor, sou um oficial do Corpo de Fuzileiros, e gosto daqui.
— Isso não prejudicará sua carreira nos Fuzileiros. Na verdade, você ansiava por uma promoção a major. Vai obtê-la na semana que vem. Portanto, terá que deixar sua atual função, de qualquer modo. Se continuar nos Fuzileiros, será mandado para o quartel-general no mês que vem, para trabalhar com inteligência, operações especiais. Vai também ganhar uma Estrela de Prata por sua ação no Afeganistão.
— E quanto ao meu pessoal? Eu os indiquei para condecoração.
É típico desse garoto se preocupar com isso, pensou Hardesty.
— Todos foram aprovados. Bem, você terá a opção de voltar para o Corpo sempre que desejar. Sua patente e rotina de promoção não serão afetadas.
— Como administrou isso?
— Temos amigos nos altos postos — explicou seu convidado. — Assim como você, por falar nisso. Continuará a ser pago pelo Corpo. Talvez tenha que fazer novos arranjos bancários, mas isso é coisa de rotina.
— O que acarreta este novo posto? — perguntou Caruso.
— Servir a seu país. Fazer coisas necessárias para nossa segurança nacional, mas de uma maneira um tanto irregular.
— Fazendo o que, exatamente?
— Não aqui, não agora.
— Pode ser um pouco mais misterioso, sr. Hardesty? Eu poderia começar a entender do que está falando e estragar a surpresa.
— Não sou eu quem faz as regras — replicou ele.
— A Agência, hein?
— Não exatamente, mas você descobrirá no devido tempo. O que preciso agora é de um sim ou não. Você pode deixar esta organização a qualquer hora, se achar que não está gostando — prometeu ele. — Mas este não é o momento adequado para uma explicação mais detalhada.
— Quando eu teria de decidir?
— Antes de terminar seus ovos com bacon.
A resposta fez Caruso engolir seu muffin.
— Isto não é algum tipo de piada, é? — Ele havia adquirido esta faceta zombeteira devido às ligações de família.
— Não, capitão, não é piada.
O tom foi deliberadamente não ameaçador. Pessoas como Caruso, por mais corajosas que pudessem ser, com frequência olhavam o desconhecido — mais adequadamente, o desconhecido não entendido — com um certo grau de apreensão. Sua profissão já era por demais perigosa, e os inteligentes entre nós não corriam alegremente atrás de perigo. O serviço deles é em geral uma abordagem ponderada ao risco, depois de primeiro ter certeza de que seu treinamento e experiência se adequavam à tarefa. E assim Hardesty se certificara de dizer a Caruso que o Corpo de Fuzileiros dos Estados Unidos sempre estaria disponível para abrigá-lo de volta. Era quase verdade, e estava bem perto dos seus objetivos, senão, talvez, aos do jovem oficial.
— Como é sua vida amorosa, capitão?
A pergunta o surpreendeu, mas ele respondeu honestamente.
— Nenhum compromisso firme. Saio com algumas garotas, mas nada sério ainda. Isso é alguma preocupação? — Simplesmente o quão perigoso seria aquilo?, especulou ele.
— Apenas de um ponto de vista de segurança. A maioria dos homens não consegue guardar segredos das esposas. — Mas namoradas era uma questão totalmente diferente.
— Okay, o quanto vai ser perigoso este serviço?
— Não muito — mentiu Hardesty, mas não com tanta habilidade para ser inteiramente bem-sucedido.
— O senhor sabe, planejei ficar no Corpo pelo menos até chegar a tenente-coronel.
— Seu avaliador no Corpo de Fuzileiros acha-o bom demais para chegar a coronel algum dia, a não ser que pise na bola no caminho. Ninguém acha isso provável, mas já aconteceu com um monte de gente boa. — Hardesty terminou seus Cheerios e voltou sua atenção para o café.
— É bom saber que tenho um anjo da guarda em algum lugar por aí — observou Caruso secamente.
— Como eu disse, você foi notado. O Corpo de Fuzileiros é muito bom em descobrir talentos e ajudá-los a se desenvolver.
— E então foi uma outra pessoa... que me descobriu, quero dizer.
— Exatamente, capitão. Mas tudo que estou lhe oferecendo é uma chance. Você será posto à prova ao longo do caminho. — O desafio estava bem avaliado. Homens jovens e capazes tinham dificuldade em virar as costas a um desafio. Hardesty sabia que conquistara Caruso.
TINHA SIDO UM LONGO PERCURSO de Birmingham a Washington. Dominic Caruso levara um dia inteiro nisso porque não gostava muito de motéis baratos, mas mesmo começando às cinco da manhã, não conseguiu encurtar a viagem. Dirigia um Mercedes branco classe C de quatro portas muito semelhante ao do irmão, repleto de bagagem no porta-malas. Quase tinha sido parado duas vezes, mas nas duas os patrulheiros estaduais reagiram favoravelmente às credenciais do FBI — chamadas de credo pelo Bureau — e o liberaram sem nada mais que um aceno amistoso. Havia uma fraternidade entre os agentes da lei que se estendia muito além da violação dos limites de velocidade. Chegou ao hotel em Arlington, Virginia, exatamente às 10 da noite, e deixou um carregador tirar as malas do carro, e pegou o elevador até o terceiro andar. O frigobar tinha meia garrafa de vinho branco de boa qualidade, que ele esvaziou após o necessário banho de chuveiro. O vinho e a enfadonha TV o ajudaram a pegar no sono. Avisou à recepção para ser acordado às sete da manhã e apagou com a ajuda da HBO.
— BOM DIA — DISSE GERRY HENDLEY às 8h45 da manhã seguinte. — Café?
— Obrigado, senhor. — Jack serviu-se de uma xícara e se sentou. — Obrigado por ter ligado.
— Bem, demos uma olhada nos seus registros acadêmicos. Você se saiu bem na Georgetown.
— Pelo que custa... e nem foi tão duro assim. — John Patrick Ryan Jr. bebericou seu café e ficou imaginando o que viria a seguir.
— Estamos preparados para discutir um emprego em nível iniciante — disse de imediato o ex-senador. — Ele nunca fora homem de rodeios, uma das razões pelas quais ele e o pai de seu visitante tinham se dado tão bem.
— Fazendo o que, exatamente? — perguntou Jack, os olhos se animando.
— O que sabe sobre a Hendley Associates?
— Só o que já lhe contei.
— Okay. Nada do que vou lhe dizer pode ser repetido em lugar nenhum. Em lugar nenhum mesmo. Está claro?
— Sim, senhor. — E de imediato tudo ficou claro pra cacete. Tinha adivinhado direitinho, disse Jack a si mesmo. Porra.
— Seu pai foi um dos meus amigos mais íntimos. Digo foi porque nunca mais pudemos nos encontrar, e conversamos muito raramente. Em geral porque ele liga para cá. Pessoas como seu pai nunca se aposentam... nunca por completo, de qualquer modo. Seu pai foi um dos maiores espiões que já existiram. Ele fez coisas que nunca foram registradas, pelo menos não em documentos do governo, e provavelmente jamais serão. Neste caso, jamais significa cinquenta anos, por aí. Seu pai está escrevendo suas memórias. Está preparando duas versões, uma para publicação em poucos dias, outra que só verá a luz do dia em umas duas gerações. Não será publicada antes da sua morte. É uma ordem dele.
Isso golpeou Jack como se seu pai estivesse fazendo planos para depois de sua própria morte. Seu pai... morto? Era difícil compreender exceto num distante sentido intelectual.
— Okay — ele conseguiu dizer. — Mamãe está sabendo disso?
— Provavelmente... não, quase com certeza não. Uma parte disso não pode existir nem mesmo em Langley. O governo vez por outra faz coisas que não são passadas para o papel. Seu pai tinha um dom para se meter em coisas como essa.
— E quanto ao senhor?
Hendley recostou-se e assumiu um tom filosófico.
— O problema é que, não importa o que você faça, existe alguém que não gosta muito disso. Como uma piada. Não importa o quanto é engraçada, alguém se sentirá ofendido. Mas num nível elevado, quando alguém é ofendido, em vez de dizer isso na sua cara, ele vai choramingar com alguém da imprensa. Aí a coisa se torna pública, em geral acompanhada por um enorme tom de reprovação. Com muita frequência existe arrivismo alçando sua feia cabeça... avançando para apunhalar pelas costas algum superior. Mas isso também ocorre porque pessoas em nível superior gostam de fazer política de acordo com sua própria versão de certo e errado. O nome disso é ego. O problema é que todo mundo tem uma versão diferente de certo e errado. Algumas dessas pessoas podem ser positivamente loucas. Agora, veja o nosso atual presidente. Certa vez, no vestiário do Senado, Ed me disse que era tão contrário à pena capital que nem sequer toleraria a execução de Adolf Hitler. Isto foi depois de alguns drinques... ele tende a falar demais depois que toma umas e outras, e o fato a lastimar é que bebe um pouco demais de vez em quando. Quando ele me disse isso, fiz piada a respeito. Disse a ele para não mencionar tal coisa num discurso... os eleitores judeus são muitos e poderosos, e poderiam interpretar mais como um insulto grave do que como um princípio profundamente arraigado. Em teoria, muita gente se opõe à pena capital. Tudo bem, posso respeitar isso, embora não concorde. Mas o empecilho a esta posição é que você não pode lidar decisivamente com gente que causa dano aos outros... às vezes dano grave... sem violar seus princípios, e para certas pessoas sua consciência ou sensibilidades política não lhes permitirão fazer isso. Muito embora o fato triste da questão seja que o devido processo da lei nem sempre é eficaz, frequentemente fora de nossas fronteiras e, em raras ocasiões, dentro delas. Muito bem, como é que isto afeta os Estados Unidos? A CIA não mata pessoas... jamais. Pelo menos desde a década de 1950. Eisenhower foi muito habilidoso ao usar a CIA. Foi de fato tão brilhante em exercer o poder que as pessoas nunca sabiam nada do que estava acontecendo e o consideravam um simplório porque não fazia a velha dança de guerra diante das câmeras. Mais exatamente, um mundo diferente tinha agora ficado para trás. A Segunda Guerra Mundial era história recente, e a ideia de matar um monte de gente, até mesmo civis inocentes, era bem familiar, principalmente os bombardeios — esclareceu Hendley. — Era apenas um custo comercial.
— E Castro?
— Isso foi coisa do presidente John Kennedy e de seu irmão Robert. Eles tinham obsessão de matar Castro. Muita gente acha que era embaraçoso por causa do fiasco na baía dos Porcos. Tenho para mim que isso resultou de leitura excessiva dos romances de James Bond. Na época era glamouroso matar pessoas. Hoje chamamos de sociopatia — assinalou Hendley, amargo. — O problema era, primeiro, que há muito mais satisfação em ler sobre isso do que realmente fazer e, em segundo lugar, não é coisa fácil de levar a cabo sem pessoal altamente treinado e altamente motivado. Bem, acho que eles descobriram. Depois, quando isso veio a público, de alguma forma o envolvimento da família Kennedy foi atenuado e a CIA pagou o preço do que o presidente em exercício ordenara que fizesse. Uma ordem executiva do presidente Ford pôs um fim a tudo isso. E assim a CIA não podia mais matar pessoas deliberadamente.
— E quanto a John Clark? — perguntou Jack, lembrando-se do olhar daquele sujeito.
— Ele é uma aberração de todo tipo. Sim, ele já matou mais de uma vez, mas sempre foi cuidadoso o bastante para só fazer quando era taticamente necessário no momento. Encontrei Clark umas duas vezes. Conheço-o principalmente pela reputação. Mas ele é uma aberração. Agora que está aposentado, talvez escreva um livro. Mas mesmo que o faça, o livro nunca conterá toda a história. Clark joga pelas regras, como seu pai. Às vezes se desvia das regras, mas que eu saiba nunca as quebrou... bem, não como um funcionário federal — corrigiu-se Hendley. Ele e o Jack Ryan mais velho certa vez tiveram uma longa conversa sobre John Clark, e eram as duas únicas pessoas em todo o mundo a conhecer a história completa.
— Uma vez eu disse a papai que não queria estar no lado mau de Clark.
Hendley sorriu.
— Isso é verdade, mas você também podia confiar a Clark a vida de seus filhos. Da outra vez você me fez uma pergunta que posso responder agora: se fosse mais jovem ele estaria aqui — disse Hendley reveladoramente.
— Você acabou de me contar algo — replicou Jack de imediato.
— Eu sei. Pode conviver com isso?
— Matar pessoas?
— Eu não disse exatamente isso, disse?
Jack Jr. apoiou sua xícara. — Agora estou entendendo por que papai diz que você é esperto.
— Pode conviver com o fato de que seu pai tirou algumas vidas no tempo dele?
— Sei sobre isso. Aconteceu na noite em que nasci. É praticamente uma lenda na família. A mídia fez um alarido a respeito enquanto papai era presidente. E continua tocando no assunto como se fosse lepra ou algo assim. Só que existe cura para lepra.
— Eu sei. Num filme a coisa é absolutamente empolgante, mas na vida real as pessoas são cheias de escrúpulos. O problema com o mundo real é que às vezes... não com frequência, mas às vezes... é necessário fazer esse tipo de coisa, como seu pai descobriu... em mais de uma ocasião, Jack. Ele nunca hesitou. Creio que tinha até pesadelos por causa disso. Mas quando tinha que fazer, fazia. É por isso que você está vivo. É por isso que um monte de outras pessoas estão vivas.
— Sei sobre aquela coisa do submarino. Isso é muito bonito publicamente, porém...
— Mais do que apenas isso. Seu pai nunca saiu para procurar encrenca, mas quando se deparava com ela... como eu disse, ele fazia o que era necessário.
— Eu me lembro mais ou menos de quando as pessoas que atacaram mamãe e papai... ou seja, na noite em que nasci... foram executadas. Perguntei a mamãe a respeito. Ela não é muito favorável à execução de pessoas, entende? Naquele caso ela não se importou muito. Estava desconfortável com isso, mas suponho que você diria que ela viu a lógica da situação. Papai... você sabe, ele também não gostava de execuções, mas não derramou lágrimas por isso.
— Seu pai tinha uma pistola apontada para aquele cara... o líder, quero dizer... para a cabeça dele, mas não disparou. Não foi necessário, e assim ele se conteve. Estivesse eu na situação dele, bem, não sei. Era um dilema, mas seu pai fez a escolha certa quando tinha ampla razão para não fazê-la.
— Foi o que o Sr. Clark disse. Certa vez perguntei isso a ele. Ele disse que os tiras estavam bem ali, então por que se incomodar? Mas na verdade nunca acreditei nele. Aquele cara é uma mãe incorrigível. Perguntei também a Mike Brennan. Ele disse que foi impressionante para um civil se conter. Mas ele não teria matado o cara. Treinamento, acho.
— Não tenho certeza quanto a Clark. Ele não é realmente um assassino. Ele não mata pessoas por diversão ou dinheiro. Talvez tivesse poupado a vida do sujeito. Mas não, não se espera que um tira treinado faça qualquer coisa assim. O que acha que você teria feito?
— A gente não pode saber até que se veja na situação — respondeu Jack. — Pensei nisso por uma ou duas vezes. E decidi que papai agiu bem.
Hendley assentiu.
— Você está certo. Ele manipulou bem a outra parte, também. O cara no barco que ele acertou na cabeça; tinha que fazer isso para sobreviver, e quando se tem essa escolha, só existe um caminho a seguir.
— Portanto, o que a Hendley Associates faz exatamente?
— Coletamos e agimos em cima de informação de serviços secretos.
— Mas vocês não fazem parte do governo — objetou Jack.
— Tecnicamente não, não fazemos. Mas fazemos coisas que devem ser feitas quando as agências do governo são incapazes de cuidar disso.
— Com que frequência acontece?
— Não muita — replicou Hendley de imediato. — Mas isso pode mudar... ou pode não mudar. É difícil dizer exatamente agora.
— Há quanto tempo...
— Você não precisa saber — replicou Hendley, as sobrancelhas erguidas.
— Tudo bem. O que papai sabe deste lugar?
— Ele é o cara que me convenceu a montá-lo.
— Oh... — E imediatamente tudo ficou claro. Hendley abrira mão de sua carreira política a fim de servir a seu país de uma maneira que jamais seria reconhecida, jamais seria recompensada. Droga. Seu próprio pai tinha bala na agulha para tentar essa coisa? — E se vocês de algum modo se meterem em encrencas...?
— Num cofre de segurança de meu advogado pessoal há centenas de perdões presidenciais, dando cobertura a todos e quaisquer atos ilegais que possam ter sido cometidos entre as datas que minha secretária preencherá quando digitar os espaços em branco, e assinados por seu pai uma semana antes de ele deixar o escritório.
— Isto é legal?
— É legal o bastante — replicou Hendley. — O procurador-geral de seu pai, Pat Martin, disse que seria aprovado, embora se tornasse dinamite pura se algum dia viesse a público.
— Dinamite, diabo! Seria uma bomba atômica na Capitol Hill — pensou Jack em voz alta. Era, de fato, uma declaração um tanto abrandada.
— É por isso que somos cuidadosos aqui. Não posso encorajar meu pessoal a fazer coisas que podem levá-los à prisão.
— Eles perderiam o crédito para sempre.
— Vejo que tem o mesmo senso de humor de seu pai.
— Bem, senhor, ele é meu pai, sabe? Vem junto com os olhos azuis e o cabelo preto.
Os registros acadêmicos diziam que ele era inteligente. Hendley podia ver que tinha a mesma natureza inquisitiva, e a capacidade de separar o joio do trigo. Teria ele a coragem do pai...? Era melhor não ter que descobrir. Mas mesmo seu melhor pessoal era incapaz de prever o futuro, exceto as flutuações monetárias, e trapaceavam em cima disso. Essa era a única coisa ilegal pela qual podia ser processado. Mas, não, isso nunca ia acontecer, ia?
— Okay, já é hora de você encontrar Rick Bell. Ele e Jerry Rounds fazem as análises aqui.
— Já os encontrei antes?
— Não. Nem seu pai. Este é um dos problemas com a comunidade de inteligência. Ela é grande pra cacete. Gente demais... as organizações estão sempre puxando o tapete delas mesmas. Se você tiver os cem melhores profissionais de futebol no mesmo time, este time se autodestruirá por dissensão interna. Cada homem nasceu com um ego, e eles são como o folclórico gato de rabo comprido numa sala cheia de cadeiras de balanço. Ninguém faz muita objeção porque não se espera que o governo funcione com tanta eficiência. Assustaria o povo se acontecesse. É por isso que estamos aqui. Vamos. O escritório de Jerry fica bem no fim do corredor.
— CHARLOTTESVILLE? — perguntou Dominic. — Eu pensei...
— Desde a época do diretor Hoover que o Bureau tem mantido uma casa segura exatamente lá. Tecnicamente, não pertence ao FBI. É onde guardamos os Arquivos Cinzentos.
— Ah. — Ele ouvira sobre isso de um instrutor sênior na Academia. Os Arquivos Cinzentos — gente de fora nem sequer conhecia a expressão. Supostamente seriam os arquivos de Hoover sobre figuras políticas, todos os tipos de irregularidades pessoais, o que os políticos colecionavam como outros homens colecionavam selos e moedas. Supostamente destruídos por ocasião da morte de Hoover, em 1972, eles de fato foram transferidos para uma ampla casa segura em Charlottesville, na Virginia, no alto de uma colina do outro lado da propriedade Monticello de Tom Jefferson, com vista para a Universidade da Virginia. A velha casa de fazenda havia sido construída com uma espaçosa adega de vinhos, que por mais de cinquenta anos abrigara os mais preciosos exemplares. Era o mais negro dos segredos do Bureau, conhecido apenas por um punhado de pessoas, que não incluíam necessariamente o diretor atual do FBI, mas controlado apenas pelo mais confiável dos agentes de carreira. Os arquivos nunca foram abertos, pelo menos não os políticos. Aquele senador novato durante a administração Truman, por exemplo, não precisava ter sua inclinação por garotas menores de idade revelada publicamente. De qualquer modo, ele estava morto há muito tempo, como estava o defensor do aborto. Mas o medo de que essas informações fossem publicadas — cuja coleta continuava a ser feita —, explicava por que o Congresso raramente recusava os pedidos de verba do FBI. Um arquivista realmente bom com uma memória de computador podia deduzir sua existência a partir de buracos sutis nos volumosos registros do Bureau, mas isso teria sido uma tarefa digna de Hércules. Além disso, havia segredos muito mais suculentos do que os encontrados nos Arquivos Brancos escondidos em uma antiga mina de carvão da Virginia Ocidental — ou assim pensaria um historiador.
— Nós vamos desligar você do Bureau — disse Werner a seguir.
— O quê? — perguntou Dominic Caruso. — Por quê? — O choque daquele pronunciamento quase o ejetou da cadeira.
— Dominic, existe uma unidade especial que quer falar com você. Seu emprego continuará lá. Eles vão admiti-lo. Eu falei desligar, não demitir, lembre-se. Continuará a receber seu salário. Você será registrado nos livros como um agente especial em missão especial para investigações antiterrorismo diretamente sob as ordens do meu escritório. Continuará tendo as promoções normais e aumentos de salário. Esta informação é secreta, agente Caruso — continuou Werner. — Não pode discuti-la com ninguém exceto comigo. Está claro?
— Sim, senhor, mas não sei dizer se entendo.
— Entenderá no devido tempo. Você continuará a investigar a atividade criminal, e provavelmente vai atuar nela. Se sua nova missão acabar não sendo do seu agrado, é só me dizer e nós o realocaremos em uma nova divisão de campo para tarefas mais convencionais. Mas, repito, você não pode discutir sua nova missão com ninguém a não ser comigo. Se alguém perguntar, você é ainda um agente especial do FBI, mas está impossibilitado de discutir seu trabalho com qualquer pessoa. Não ficará vulnerável a uma ação adversa de qualquer tipo enquanto fizer seu trabalho adequadamente. Descobrirá que a supervisão é mais flexível do que a que costumava ter. Mas precisará se reportar a alguém em tempo integral.
— Senhor, isso ainda não está muito claro — observou o agente especial Caruso.
— Você estará fazendo trabalho da mais alta importância nacional, principalmente antiterrorismo. Haverá perigo envolvido. A comunidade terrorista não é nada civilizada.
— Esta é uma missão secreta, então?
Werner assentiu.
— Correto.
— E conduzida por este escritório?
— Mais ou menos. — Werner esquivou-se com um aceno.
— E posso abandonar o barco sempre que quiser?
— Correto.
— Okay, senhor, darei uma olhada nisso. O que faço agora?
Werner escreveu algo num bloquinho e passou-lhe a folha.
— Vá a este endereço. Diga que quer falar com Gerry.
— Agora mesmo, senhor?
— A não ser que tenha algo mais para fazer.
— Sim, senhor. — Caruso se levantou, apertou-lhe a mão e saiu. Pelo menos seria uma agradável viagem à região equestre da Virginia.
4
CENTRO DE TREINAMENTO
O TRAJETO DE VOLTA AO Marriot do outro lado do rio permitiu que Dominic recolhesse sua bagagem — com 20 dólares de gorjeta para o carregador — e depois teclou seu destino no GPS do Mercedes. Logo seguia para o sul pela Interstate 95, deixando Washington para trás. A silhueta da capital do país realmente parecia muito bonita em seu espelho retrovisor. O carro viajava bem, de acordo com que se espera de um Mercedes; o rádio de comunicação local estava agradavelmente moderado — os tiras tendem a ser assim — e o tráfego não era tão ruim, embora se visse com pena dos pobres sacanas que tinham que dirigir para Washington todos os dias para dar expediente no Edifício Hoover e em todos os outros grotescos edifícios governamentais que circundavam The Mall. Pelo menos o quartel-general do FBI tinha seu próprio estande de tiro de pistola para administrar estresse. Provavelmente bem usado, pensou Dominic.
Pouco antes de chegar a Richmond, a voz feminina do GPS lhe disse para dobrar à direita para a Richmond Beltway, que logo o deixaria na 1-64, rumo às colinas onduladas e cobertas de árvores a oeste. A zona rural era agradável e bem verdejante. Provavelmente com um monte de campos de golfe e haras. Ele ouvira que a CIA tinha muitas casas seguras aqui desde a época em que precisavam interrogar desertores soviéticos.
Ficou especulando em que esses locais eram usados agora. Chineses, talvez? Franceses? Certamente não tinham sido vendidas. O governo não gostava de se desfazer das coisas, exceto de bases militares. Os palhaços do Noroeste e do Oeste adoravam fazer isso. Também não gostavam muito do Bureau, embora talvez o temessem. Ele não sabia por que policiais e soldados incomodavam alguns políticos, mas não esquentava a cabeça com isso. Cada qual que comesse em seu próprio prato.
Após uma hora e quinze minutos, mais ou menos, ele começou a procurar o letreiro indicando a saída, mas o computador de bordo não precisava disso.
— PREPARE-SE PARA DOBRAR À DIREITA NA PRÓXIMA AGULHA — disse a voz, com dois minutos de antecedência.
— Valeu, querida — replicou o agente especial Caruso, sem obter resposta. Um minuto depois, pegou a saída sugerida, sem mais que um MUITO BEM do computador, e depois seguiu por algumas ruas comuns da agradável cidadezinha e subiu algumas colinas suaves para a parede norte do vale, até que finalmente:
— PEGUE A PRÓXIMA À ESQUERDA E VOCÊ CHEGOU AO SEU DESTINO...
— Está ótimo, querida, obrigado — observou ele.
“SEU DESTINO” era o fim de uma estrada rural de aparência inteiramente comum, talvez uma entrada para carros, já que nela não havia faixas pintadas. Algumas centenas de metros adiante, ele viu dois pilares de tijolo vermelho e um portão de trilho branco que estava convenientemente sendo aberto. Havia uma casa a outros trezentos metros de distância, com seis pilares brancos suportando a parte da frente do telhado. O telhado parecia ser de ardósia — ardósia um tanto velha, a propósito — e as paredes eram de tijolos desgastados que já tinham sido vermelhos há centenas de anos.
Este lugar devia ter mais de um século de idade, talvez dois. A entrada para carros tinha sido recentemente revestida com cascalho do tamanho de ervilhas. A grama — havia muita grama no local — era tão exuberante quanto a de um campo de golfe.
Alguém saiu de uma porta lateral e acenou para que dobrasse à esquerda. Ele girou o volante, seguindo para trás da casa, e teve uma surpresa. A mansão — como você chamaria uma casa tão grande assim? — era maior do que parecia a princípio e tinha um estacionamento de bom tamanho, que no momento abrigava um Chevy Suburban, uma van Buick e um Mercedes Classe C como o seu, com placa da Carolina do Norte. A possibilidade desta coincidência era remota demais até mesmo para entrar em sua imagin...
— Enzo!
Dominic girou a cabeça.
— Aldo!
As pessoas com frequência notavam a semelhança entre eles, embora fosse até mesmo mais evidente quando estavam separados. Ambos tinham cabelo preto e pele clara.
Brian era mais alto 24 milímetros. Dominic talvez pesasse cinco quilos a mais. Qualquer diferença de maneirismos que tiveram na infância eles haviam conservado enquanto cresciam juntos. Como descendiam parcialmente de italianos, se abraçaram calorosamente — mas não se beijaram. Não eram daquele tipo de italiano.
— Que diabo está fazendo aqui? — Dominic foi o primeiro a perguntar.
— Eu? E quanto a você? — disparou Brian de volta, adiantando-se para ajudar com a bagagem do irmão. — Li sobre seu tiroteio no Alabama. Qual é a história?
— Pedófilo — replicou Dominic, tirando para fora a valise de duas alças. — Estuprou e matou uma linda menininha. Cheguei ao local com meia hora de atraso.
— Ei, ninguém é perfeito, Enzo. Os jornais disseram que você pôs fim à carreira dele.
Dominic olhou bem nos olhos de Brian.
— É, consegui pelo menos isso.
— Como, exatamente?
— Três no peito.
— Sempre funciona — observou o capitão Brian Caruso. — E nada de advogados para chorar sobre o corpo dele.
— Não, não desta vez. — Suas palavras não soaram nem um pouco alegres, mas o irmão ouviu a fria satisfação.
— Com esta aí, hein? — O fuzileiro ergueu do coldre a automática do irmão. — Parece boa.
— Ela atira muito bem. Está carregada, mano, tenha cuidado.
Brian ejetou o pente e examinou a câmara.
— Dez milímetros?
— Isso aí. Padrão FBI. Produz belos buracos. O Bureau voltou a usá-la depois que o inspetor O'Day teve aquele tiroteio com os bandidos... você sabe, a filhinha do tio Jack.
Brian se lembrava bem da história: o atentado contra Katie Ryan na escola pouco depois de seu pai se tornar presidente, o tiroteio, as mortes.
— Aquele danado fez o dever de casa muito bem — comentou. — E você sabe, ele nem era ex-marine. Foi refugo da Marinha antes de se tornar policial. Enfim, é o que dizem em Quantico.
— Eles gravaram até uma fita de treinamento com aquele serviço. Estive com ele uma vez, apenas apertei a mão dele com mais vinte caras. O filho da puta sabe atirar. Ele disse que aguardou sua chance fazendo contagem regressiva para o primeiro disparo. Acertou os dois na cabeça.
— Como ele manteve o sangue-frio? — O resgate de Kate Ryan tinha abalado os dois garotos Caruso. Afinal, era sua primeira prima, uma adorável garotinha, a imagem da mãe.
— Ei, você também pegou uma barra pesada. Como fez para manter o seu?
— Treinando. E eu tinha que zelar pelos fuzileiros, mano.
Juntos, carregaram as coisas de Dominic para dentro. Brian mostrou o caminho para cima. Tinham quartos separados, um ao lado do outro. Depois voltaram para a cozinha, onde se serviram de café e se sentaram.
— E aí, que tal a vida no Corpo de Fuzileiros, Aldo?
— Em breve serei major, Enzo. Ganhei uma Estrela de Prata por minha atuação lá... na verdade não foi lá essas coisas, só fiz o que me treinaram para fazer. Um de meus homens foi baleado, mas já está recuperado agora. Nós não capturamos o cara que estávamos perseguindo... ele não estava muito a fim de se render e por isso Gunny Sullivan o mandou para Alá... mas pegamos dois vivos e eles falaram alguma coisa, deram alguma informação boa, os caras da inteligência me contaram.
— O que fez para ganhar esta bela fita? — perguntou Dominic, apontando.
— Principalmente ficar vivo. Eu mesmo matei três bandidos. Nem chegamos a trocar tiros, de fato. Eu apenas os peguei. Mais tarde me perguntaram se eu tinha pesadelos por causa disso. O Corpo de Fuzileiros simplesmente tem doutores demais... e todos eles são uns merdas.
— No Bureau foi a mesma coisa, mas eu caguei e andei. Pesadelos o cacete por causa daquele escroto! Coitada da garotinha... Eu devia era ter arrancado a pica dele a tiros.
— Por que não fez isso?
— Porque isso não mata o rabo do cara, Aldo. Mas três balas no coração, matam.
— Você não atirou nele impulsivamente, não é?
— Não exatamente, mas...
— E é por isso que você está aqui, agente especial Caruso — disse um homem, entrando no quarto. Tinha mais de 1,80m de altura, um cinquentão muito bem apessoado, os dois irmãos acharam.
— Quem é o senhor? — perguntou Brian.
— Pete Alexander — respondeu o homem.
— Eu devia encontrar o senhor na última...
— Não, na verdade vocês não iam, mas foi o que dissemos ao general. — Alexander se sentou com a sua própria xícara de café.
— Então, quem é o senhor? — quis saber Dominic.
— Sou o seu oficial de treinamento.
— Somente o senhor? — perguntou Brian.
— Treinamento para quê? — perguntou Dominic ao mesmo tempo.
— Não, não apenas eu, mas sou o único que estará aqui o tempo todo. E a natureza do treinamento mostrará a vocês para que estão sendo treinados — foi sua resposta. — Okay, vocês querem saber a meu respeito. Eu me formei em ciência política em Yale trinta anos atrás. Pertenci até mesmo ao Skull and Bones (crânio e ossos), vocês sabem, o clube de garotos sobre o qual os teóricos da conspiração gostam de tagarelar. Meu Deus, como os caras no fim da adolescência podem realmente fazer algo além de trepar, numa boa noite de sexta-feira... — Mas seus olhos castanhos e o olhar não tinham vindo de uma universidade, até mesmo uma da Ivy League. — Antigamente, a Agência gostava de recrutar gente de Yale, Harvard e Dartmouth. Os garotos já superaram isso. Tudo que eles querem agora é ser banqueiros e ganhar dinheiro. Trabalhei vinte anos no Serviço Clandestino e depois fui recrutado pelo Campus. Estou com eles desde então.
— O Campus? O que é isso? — perguntou o fuzileiro. Alexander notou que Dominic não perguntou. Ele estava ouvindo e observando muito atentamente. Brian nunca deixaria de ser fuzileiro, e Dominic jamais deixaria de ser agente do FBI. Nunca deixaram. Nos dois casos, era bom e ruim.
— Isso é um serviço de inteligência financiado pela iniciativa privada.
— Financiado pela iniciativa privada? — perguntou Brian. — Como diabos...
— Mais tarde você saberá como funciona, e quando o fizer ficará surpreso ao constatar com que facilidade. O que interessa a vocês, exatamente aqui e agora, é o que eles fazem.
— Eles matam pessoas — disse Dominic no ato. As palavras saíram como que por sua própria conta.
— Por que pensa isso? — perguntou Alexander inocentemente.
— A turma é pequena. Somos as únicas pessoas aqui, a julgar pelo estacionamento lá fora. Não tenho experiência suficiente para ser um agente perito. Tudo que fiz foi matar gente que precisava morrer, e no dia seguinte me chamam ao quartel-general para falar com um diretor assistente, e dois dias depois dirigi até Washington e fui mandado para cá. Esse lugar é muito, muito especial, e muito, muito pequeno, e tem aprovação de alto nível para qualquer coisa que faça. Vocês não estão aqui para vender bônus do governo, estão?
— O relatório sobre você diz que tem boa capacidade analítica — declarou Alexander. — Consegue manter a boca fechada?
— Isso não é necessário neste lugar específico, imagino. Mas, sim, sei ficar de bico fechado, quando a situação o exige — disse Dominic.
— Okay, eis o primeiro discurso. Vocês sabem o que extraoficial significa, certo? Significa um programa que não é reconhecido pelo governo. As pessoas fingem que não existe. O Campus dá um passo adiante: nós realmente não existimos. Não há um só documento escrito em poder de qualquer funcionário do governo que tenha uma única dica sobre nós. A partir deste momento, vocês dois, jovens cavalheiros, não existem. Ah, claro que você, capitão Caruso... ou já é major?... vai receber pagamento esta semana em alguma conta bancária que designar, mas não é mais um fuzileiro. Está em missão especial, cuja natureza é desconhecida. E você, agente especial Dominic Caruso...
— Já sei. Gus Werner me disse. Eles cavaram um buraco e o fecharam atrás dele.
Alexander assentiu.
— Vocês dois deixarão aqui seus documentos oficiais de identificação, crachás, tudo, antes de partirem. Podem manter seus nomes, talvez, mas um nome é só um conjunto de palavras e, de qualquer modo, ninguém neste ramo de negócio acredita em nomes. Essa é a parte engraçada do meu tempo como agente de campo. Certa vez, numa missão, troquei de nome por distração. Fiquei para lá de embaraçado quando percebi. Como um ator: de repente eu viro Macbeth, quando supostamente deveria ser Hamlet. Nenhum dano resultou disso, e não morri no fim da peça.
— O que exatamente faremos? — quis saber Brian.
— Farão principalmente trabalho investigativo. Rastrear dinheiro. O Campus é particularmente bom nisso. Mais tarde descobrirão como e por quê. Provavelmente atuarão juntos. Você, Dominic, fará a maior parte do trabalho pesado no lado investigativo. Você, Brian, lhe dará cobertura no lado muscular, e ao longo do caminho aprenderão a fazer isso... como é que chamavam um ao outro há poucos instantes?
— Ah, refere-se a Enzo? Eu o chamo assim porque ele tinha um pé pesado quando tirou a carteira de motorista. Você sabe, como Enzo Ferrari.
Dominic apontou para o irmão e riu.
— E ele é Aldo porque se veste como um janota. Como naquele comercial de vinho, Aldo Cella: Ele não é um escravo da moda? É uma piada de família.
— Muito bem, vá à Brooks Brothers e se vista melhor — disse Pete Alexander a Brian. — Sua fachada será principalmente a de um empresário ou turista. Portanto, terá que se vestir com elegância, mas não como o príncipe de Gales. Ambos terão que deixar o cabelo crescer agora, especialmente você, Aldo.
Brian passou a mão espalmada sobre os curtos fios espetados no topo da cabeça. Isso o marcaria em qualquer parte do mundo civilizado como um marine americano. Podia ser pior. Os Rangers do exército eram ainda mais radicais no quesito cabelo. Brian pareceria um ser humano perfeitamente normal em uns dois meses.
— Droga, vou ter que comprar um pente.
— Qual é o plano?
— Para hoje, apenas relaxem e se acomodem. Amanhã acordaremos cedo e nos certificaremos de que vocês dois estejam em condições físicas decentes. Depois vem o teste de eficiência com armas... e o trabalho escolar. Vocês dois são feras no computador, presumo.
— Por que pergunta? — Era Brian.
— O Campus trabalha principalmente como um escritório virtual. Vocês terão computadores com modems especiais embutidos, e é desse modo que se comunicarão com a sede.
— E quanto à segurança? — perguntou Dominic.
— As máquinas dispõem de muito boa segurança. Se há um meio de invadi-las, ninguém descobriu ainda.
— É bom saber disso — observou Enzo duvidosamente. — Usam computadores no Corpo, Aldo?
— Sim, temos todas as conveniências modernas, até papel higiênico.
— E SEU NOME é MOHAMMED? — perguntou Ernesto.
— Correto, mas agora pode me chamar de Miguel. — Ao contrário de Nigel, um nome que era capaz de lembrar. Ele não havia começado pedindo a bênção de Alá neste encontro. Esses infiéis não teriam entendido.
— Seu inglês é... bem, soa britânico.
— Fui educado lá — explicou Mohammed. — Minha mãe era inglesa. Meu pai era saudita.
— Eram?
— Estão ambos mortos.
— Minhas condolências — ofereceu Ernesto com sinceridade questionável. — Bem, o que podemos fazer um pelo outro?
— Falei ao Pablo aqui sobre a ideia. Ele o pôs a par?
— Sim, ele pôs, mas desejo ouvir diretamente de você. Entende que represento seis outros sócios nos meus interesses comerciais.
— Entendo. Pode negociar por todos eles?
— Não inteiramente, mas apresentarei sua proposta a eles... preciso me encontrar com todos... e eles nunca rejeitam minhas sugestões. Se chegarmos a um acordo aqui, ele pode estar plenamente ratificado lá pelo fim da semana.
— Muito bem. Você conhece os interesses que represento. Também tenho carta branca para fazer um acordo. Como vocês, temos um inimigo de vulto na nação ao norte. Eles estão exercendo pressão cada vez maior sobre meus amigos. Desejamos retaliar e desviar essa pressão para outras direções.
— É exatamente o mesmo conosco — observou Ernesto.
— Portanto, é de nosso mútuo interesse causar intranquilidade e caos dentro dos Estados Unidos. O novo presidente americano é um homem fraco. Mas exatamente por esse motivo pode ser perigoso. Os fracos são mais rápidos em usar a força do que os fortes. Muito embora a usem de modo ineficaz, pode ser uma chateação.
— Seus métodos de coleta de informação nos preocupam. Acontece com vocês também?
— Aprendemos a ter cautela — replicou Mohammed. — O que não temos é uma boa infraestrutura nos Estados Unidos. Por isso precisamos de assistência.
— Vocês não têm? Isto é surpreendente. A mídia está cheia de reportagens sobre o FBI e outras agências assoberbadas em rastrear seu pessoal dentro da fronteira deles.
— No momento, eles estão perseguindo sombras... e semeando discórdia em sua própria terra ao agirem assim. Isto complica a tarefa de construir uma rede adequada de modo que possamos levar a cabo operações ofensivas.
— A natureza dessas operações não nos diz respeito? — perguntou Pablo.
— Está correto. Não é nada que vocês já não tenham feito, claro. — Mas não nos Estados Unidos, ele se absteve de acrescentar. Aqui na Colômbia estava tudo dominado, mas eles cuidaram para se impor limites nos Estados Unidos, sua nação "cliente". Tanto melhor. Ficaria inteiramente descaracterizado com qualquer coisa que já tivessem feito. Segurança operacional era um conceito que ambos os lados compreendiam plenamente.
— Entendo — assinalou o chefão do Cartel.
Ele não era nenhum otário, Mohammed podia ver isto em seus olhos. Não subestimaria esses homens nem suas capacidades... Nem os confundiria com amigos. Eles podiam ser tão implacáveis quanto seus homens, sabia disso. Aqueles que negavam Deus podiam ser tão perigosos quanto os que trabalhavam em Seu Nome.
— Então, o que pode nos oferecer?
— Há muito tempo que realizamos operações na Europa — disse Mohammed. — Vocês desejam expandir seus esforços de marketing por lá. Estabelecemos na Europa uma rede altamente segura por mais de vinte anos. As mudanças no comércio europeu... a diminuição da importância das fronteiras e assim por diante... trabalham a seu favor, como trabalharam a nosso. Temos uma célula na cidade portuária de Pireu que pode facilmente acomodar as necessidades e contatos de vocês em empresas transportadoras transnacionais. Se elas podem trasportar armas e gente para nós, certamente podem transportar seus produtos com facilidade.
— Precisaremos de uma lista de nomes, pessoas com as quais possamos discutir os aspectos técnicos do negócio — disse Ernesto ao seu visitante.
— Eu a tenho comigo. — Mohammed pegou seu laptop. — Estão acostumados a fazer negócios em troca de recompensa financeira. — Ele viu seus anfitriões acenarem em concordância sem perguntar quanto. Era óbvio que não seria uma questão de muita preocupação para eles.
Ernesto e Pablo estavam pensando: havia mais de trezentos milhões de pessoas na Europa, e muitas delas sem dúvida apreciariam a cocaína colombiana. Alguns países europeus até permitiam o uso de drogas em locais discretos e controlados — além de tributados. O dinheiro envolvido era insuficiente para dar um lucro razoável, mas isso tinha a vantagem de criar a atmosfera adequada. E nada, nem mesmo a heroína de qualidade medicinal, era tão boa quanto a cocaína dos Andes. Por isso eles pagariam seus euros, e dessa vez seria o suficiente para tornar aquela aventura lucrativa. O perigo, claro, residia na parte de distribuição. Alguns traficantes de rua descuidados iriam sem dúvida ser presos, e alguns dariam com a língua nos dentes. Portanto, teria que haver um amplo isolamento entre atacado e varejo, mas era algo que sabiam como fazer — não importa quão profissionais fossem os policiais europeus, eles não podiam ser totalmente diferentes dos americanos. Alguns deles aceitariam alegremente os euros do Cartel e aparariam as arestas. Negócio era negócio. E se este árabe pudesse ajudar nisso — e de graça, o que era realmente notável —, tanto melhor. Ernesto e Pablo não reagiram fisicamente à proposta comercial posta na mesa. Alguém de fora podia confundir sua atitude com tédio. Era tudo menos isso, claro. A proposta caía do céu. Todo um novo mercado se abriria, e com a nova torrente de renda que traria, eles poderiam comprar seu país inteiramente. Eles teriam de aprender um novo meio de fazer negócio, mas havia o dinheiro para experimentações e eram criaturas adaptáveis: como se fossem peixes nadando num mar de camponeses e capitalistas.
— Como vamos fazer contato com essas pessoas? — indagou Pablo.
— Meu pessoal fará as apresentações necessárias.
Cada vez melhor, pensou Ernesto.
— E que serviços exigirão de nós? — perguntou finalmente.
— Precisaremos da ajuda de vocês para transportar pessoas para os Estados Unidos. Como nos acertaremos sobre isso?
— Se está se referindo a mover fisicamente pessoas da sua parte do mundo para a América, a melhor coisa é mandá-los para a Colômbia... exatamente para cá, em Cartagena, de fato. Depois arranjaremos para enviá-los a outros países de língua espanhola mais ao norte. Costa Rica, por exemplo. De lá, se tiverem documentos confiáveis, eles podem voar diretamente em avião de carreira americano, ou através do México. Se parecerem latinos e falarem espanhol, podem ser contrabandeados através da fronteira México-EUA... é um desafio físico e alguns deles podem ser detidos, mas se isso acontecer, podem simplesmente retornar ao México, para uma nova tentativa. Ou, novamente com documentos adequados, podem simplesmente atravessar a pé a fronteira em San Diego, Califórnia. Uma vez na América, é uma questão de manter a cobertura. Se dinheiro não for problema...
— Não é — assegurou Mohammed.
— Então arranje um advogado local... poucos deles têm muitos escrúpulos... e providencie a compra de uma casa segura adequada para servir como base de operações. Perdoe-me... sei que concordamos em que as operações não são da nossa conta... mas se nos der alguma ideia do que tem em mente, eu poderia aconselhá-lo.
Mohammed pensou por alguns momentos e depois explicou.
— Entendo. Seu pessoal deve estar adequadamente motivado para fazer tais coisas — observou Ernesto.
— Está mesmo. — O homem podia ter alguma dúvida disso?, especulou Mohammed.
— E com bom planejamento e sangue-frio, eles podem até sobreviver. Mas você nunca deve subestimar as agências policiais americanas. No nosso ramo podemos fazer arranjos financeiros com alguns deles, mas isso é muito improvável no seu caso.
— Sabemos disso. Idealmente, desejaríamos que nosso pessoal sobrevivesse, mas lamentavelmente sabemos que alguns vão morrer. Eles entendem o risco. — Mohammed não falou sobre Paraíso. Aquela gente não compreenderia. O Deus que veneravam estava dobrado em suas carteiras.
Que tipo de fanático sacrifica sua própria gente dessa maneira?, Pablo perguntou a si mesmo. Seus homens assumiam livremente os riscos, comparando o dinheiro a ser ganho com as consequências do fracasso, e tomavam as decisões segundo seu livre-arbítrio. Mas não aquela gente. Bem, nem sempre se pode escolher os parceiros comerciais.
— Muito bem. Temos boa quantidade de passaportes americanos em branco. É tarefa sua certificar-se de que as pessoas que nos mandam saibam falar bem inglês ou espanhol e possam se apresentar adequadamente. Imagino que nenhum deles vá tomar aulas de voo...
Ernesto só quis fazer uma piada. Mohammed não entendeu assim.
— Isso é passado. O sucesso raramente acontece duas vezes em meu campo de atuação.
— Felizmente estamos em campos diferentes — respondeu Ernesto.
E era verdade. Ele podia despachar contêineres de navios mercantes e caminhões por toda a América. Se um deles se perdesse, e se o destino programado fosse descoberto, os Estados Unidos tinham muitas proteções legais para seus empregados em apuros. Só os tolos iam para a prisão. Ao longo dos anos, haviam aprendido a frustrar cães farejadores e todos os outros meios de escapar ao flagrante. A coisa mais importante era que usavam gente disposta a assumir riscos, e a maioria sobrevivia para voltar à Colômbia e se integrar à classe média alta, sua prosperidade resultante de algo no distante e desvanecido passado, para nunca ser repetido ou comentado.
— Portanto — disse Mohammed —, quando começamos as operações?
Este homem está ansioso, percebeu Ernesto. Mas ia tranquilizá-lo. Qualquer coisa que conseguisse levar a cabo arrastaria o potencial humano para longe das operações anticontrabando dos Estados Unidos, o que era bom. As perdas relativamente menores de cruzamento da fronteira que ele tinha aprendido a suportar encolheriam a níveis triviais. O preço de rua da cocaína cairia, mas de certa forma a demanda aumentaria, e portanto não haveria perda líquida na receita das vendas. Seria um lucro tático. Mais exatamente, os Estados Unidos ficariam menos interessados na Colômbia, mudando o foco das operações de inteligência para outros lugares. Esta seria sua vantagem estratégica a partir deste esforço...
... e ele sempre teria a opção de mandar informação à CIA. Terroristas tinham aparecido inesperadamente em seu quintal dos fundos, podia dizer, e suas operações seriam vistas como além dos limites razoáveis mesmo pelo Cartel. Embora isso não fosse lhe valer a afeição dos Estados Unidos, tampouco o atingiria. E qualquer um de seu próprio povo que tivesse prestado assistência aos terroristas podia ser enfrentado internamente, como costumava acontecer. Os americanos realmente respeitariam isso. Portanto, havia uma verdadeira parte superior e uma parte inferior controlável. No todo, decidiu, tinha os contornos de uma valiosa e lucrativa operação.
— Señor Miguel, vou propor esta aliança aos meus sócios, com minha recomendação para que aceitem. Pode esperar uma decisão final no fim desta semana. Vai permanecer em Cartagena ou vai viajar?
— Prefiro não permanecer muito tempo num só lugar. Viajo amanhã. Pablo pode me contactar via internet, informando da decisão. Por enquanto, agradeço por nosso encontro cordial.
Ernesto se levantou e apertou a mão do hóspede. Decidiu ali mesmo considerar Miguel um empresário num similar, porém não competitivo campo de atuação. Não um amigo, por certo, mas um aliado de conveniência.
— COMO DIABOS CONSEGUIU ISSO? — perguntou Jack.
— Já ouviu falar numa empresa chamada Infosec? — Rick Bell perguntou de volta.
— Coisa de codificação, certo?
— Correto. Information Systems Security Company. A empresa é sediada nos arredores de Seattle. Eles têm o melhor programa de informação-segurança que existe. Dirigida por um ex-subchefe da Divisão Z lá em Fort Meade. Ele e três colegas fundaram a empresa há uns nove anos. Não sei ao certo se a NSA pode invadir o sistema deles, a não ser apelando para a força bruta com seu novo Sun Workstations. Praticamente todo banco do mundo usa a empresa, em especial os de Liechtenstein e do restante da Europa. Mas existe um alçapão no programa.
— E ninguém o descobriu? — Compradores de programas de computador haviam aprendido ao longo dos anos a ter especialistas externos examinando esses programas linha por linha, como defesa contra engenheiros de computação brincalhões, dos quais havia uma legião.
— Aqueles caras da NSA fazem bons códigos — respondeu Bell. — Não faço a menor ideia do que existe lá, mas esses caras ainda têm suas velhas gravatas de escola da NSA penduradas no armário, sabia disso?
— E Fort Meade fica na escuta, e obtemos o que eles apuram quando mandam um fax para Langley — disse Jack. — Tem alguém bom na CIA para rastrear dinheiro?
— Não tão bom quanto nosso pessoal.
— Um ladrão para pegar um ladrão, hein?
— É bom saber o que se passa na cabeça do adversário — confirmou Bell. — Não é uma grande comunidade com que estamos lidando aqui. Que diabo, conhecemos a maioria deles... estamos no mesmo barco, certo?
— E isto faz de mim um trunfo adicional? — perguntou Jack. Ele não era um príncipe sob a lei americana, mas os europeus ainda pensavam nesses termos. Eles tinham sido exageradamente servis só para apertar sua mão, vendo-o como um jovem promissor, por mais dura que sua cabeça fosse, e buscaram seus favores, primeiro pela possibilidade de que ele talvez falasse uma palavra gentil no ouvido certo. O nome disso era corrupção, claro, ou pelo menos criava as condições para tal.
— O que você aprendeu na Casa Branca? — perguntou Bell.
— Um pouco, acho — respondeu Jack. Principalmente com Mike Brennan, que tinha cordialmente detestado todas as frivolidades diplomáticas, sem falar das ninharias políticas que aconteciam lá diariamente. Brennan sempre comentava isso com os colegas diplomatas, que viam as mesmas coisas em suas próprias capitais e pensavam exatamente assim por trás dos mesmos rostos inexpressivos quando em serviço. Era provavelmente um meio melhor para aprender essa coisa toda do que seu pai tivera, pensou Jack. Ele não havia sido forçado a aprender a nadar enquanto lutava para não se afogar. Era algo de que seu pai nunca tinha falado, exceto quando furioso com todo o processo de corrupção.
— Tenha cuidado ao falar com Gerry sobre isto — avisou Bell. — Ele gosta de dizer como o negócio comercial é limpo e aprumado em comparação.
— Papai realmente gosta dele. Creio que talvez eles se pareçam um pouco.
— Não — corrigiu Bell —, eles se parecem muito.
— Hendley se afastou da política por causa do acidente, não foi?
Bell assentiu.
— Isso mesmo. Espere até ter mulher e filhos. É quase o maior golpe que um homem pode receber. Muito pior do que você pode imaginar. Ele teve que ir ao local e identificar os corpos. Não foi bonito. Algumas pessoas ficariam piradas depois disso. Mas ele não. Andava pensando em concorrer à Casa Branca ele mesmo, achava que talvez Wendy desse uma boa primeira-dama, talvez sim, mas seu desejo pelo cargo morreu junto com a esposa e filhos. — Ele não prosseguiu. Os decanos no Campus protegiam o chefe, em reputação pelo menos. Consideravam-no um homem que merecia lealdade. Não se pensava em linha sucessória no Campus. Ninguém tinha pensado nisso para mais adiante, e o assunto nunca viera à baila nas reuniões do conselho, que, de qualquer modo, se concentravam principalmente em questões não comerciais. Bell especulou se John Patrick Ryan Jr. anotaria esse ponto em branco na estrutura do Campus.
— E então — continuou Bell —, o que você acha até agora?
— Li as cópias que me deram do que os diretores do banco central dizem um ao outro por aí. Surpreendente como é venal uma parte dessa coisa. — Jack fez uma pausa. — Ah, sim, eu não devia estar surpreso, devia?
— Toda vez que se concede às pessoas o controle de tanto dinheiro ou poder, alguma corrupção está fadada a acontecer. O que me surpreende é a maneira como as amizades deles cruzam as divisas nacionais. Um monte desses caras lucra pessoalmente quando seu próprio meio circulante está abalado, mesmo que isso signifique uma pequena inconveniência para seus companheiros cidadãos. Voltando à época antiga, a nobreza frequentemente se sentia mais à vontade com a nobreza estrangeira do que com a gente nas suas próprias terras que reverenciavam o mesmo rei. Essa característica ainda não morreu... pelo menos não por lá. Aqui os grandes industriais poderiam trabalhar juntos para pressionar o Congresso, mas eles com frequência não trocam cortesias e nem partilham segredos. Conspiração a este nível não é impossível, mas escondê-la por um longo tempo é duro demais. Muitas pessoas, e cada qual tem uma boca. A Europa está seguindo o mesmo caminho. Não há nada de que a mídia goste mais do que um escândalo, aqui ou lá, e prefere bater num escroque rico do que num ministro do governo. Este último costuma ser uma boa fonte, afinal. O primeiro é apenas um escroque.
— Então, como mantém seu pessoal honesto?
Era uma boa pergunta, pensou Bell, e uma com que se preocupava o tempo todo, embora não falasse muito nisso.
— Pagamos muito bem ao nosso pessoal, e todos aqui participam de um plano de investimento em grupo que faz com se sintam confortáveis. O lucro anual é de cerca de dezenove por cento a mais do que nos últimos anos.
— Nada mau — compreendeu Junior. — Tudo dentro da lei?
— Isso depende do advogado contratado, mas nenhum procurador da União vai fazer um escarcéu a respeito e temos muito cuidado em administrar isso. Não gostamos de ambição aqui. Podíamos transformar este lugar na maior coisa desde Ponzi, mas aí as pessoas perceberiam. Assim, não alardeamos nada. Fazemos tudo o que é possível para cobrir nossas operações e nos certificamos de que as tropas estão bem providas. — Eles também realizavam um rastreamento do dinheiro dos empregados e dos negócios que faziam, se é que faziam. A maioria não fazia, embora alguns mantivessem contas através do escritório, que, mais uma vez, foram lucrativas mas não ambiciosas. — Você nos dará números e códigos sobre todas as finanças de seu pessoal, e os computadores continuarão a rastreá-los.
— Tenho uma conta em fideicomisso através de papai, mas é administrada por uma firma contábil em Nova York. Recebo uma boa mesada, mas nenhum acesso ao principal. O que ganhei por minha própria conta, porém, é só meu, a não ser que eu mande para os contadores. Então eles anotam e me enviam um extrato quinzenal. Quando completar 30 anos, posso agir por minha própria conta. — Completar trinta, porém, estava um pouco longe para um jovem como Jack se preocupar no momento.
— Sabemos — assegurou-lhe Bell — que não é uma questão de falta de confiança, apenas queremos ter certeza de que ninguém está desenvolvendo o hábito de especular. Provavelmente os melhores matemáticos de todos os tempos foram os que criaram as regras dos jogos de azar, pensou Bell. Bastava fornecer a ilusão de que a pessoa tinha a chance de levar vantagem. Nascida no interior da mente humana estava a mais perigosa das drogas. Que era chamada também de ego.
— Assim, eu começo do lado branco da casa? Observar as flutuações monetárias, esse tipo de coisa? — disse Jack.
Bell assentiu.
— Correto. Mas primeiro você precisa aprender a linguagem.
— Muito justo. — Seu pai tinha começado bem mais humildemente, como subgerente contábil na Merrill Lynch, que tinha que ligar para as pessoas. Pagar as dívidas era provavelmente ruim para o ego mas bom para a alma. Seu pai com frequência lhe ensinam a Virtude da Paciência. Atingi-la era um pé no saco, mesmo depois. Mas o jogo tinha regras, mesmo neste lugar. Especialmente neste lugar, percebeu Jack em reflexão. Imaginou o que acontecia com as pessoas no Campus que pisassem na bola. Provavelmente nada de bom.
— BUON VINO — OBSERVOU DOMINIC. — Para uma instalação do governo, até que a adega de vinhos não é nada má. — O ano do rótulo era 1962, muito antes que ele e seu irmão tivessem nascido... a propósito, muito antes que sua mãe estivesse pensando sobre a Mercy High School, a alguns quarteirões da casa dos avós, no Loch Raven Boulevard, em Baltimore... perto do fim da última Era Glacial, provavelmente. Mas Baltimore ficava longe demais da Seattle onde eles haviam crescido. — Quantos anos tem este lugar? — perguntou a Alexander.
— A propriedade? Vem de muito antes da Guerra de Secessão. A casa foi construída em mil setecentos e alguma coisa. Foi queimada e reconstruída em 1882. O governo tomou posse dela pouco antes de Nixon ser eleito. O proprietário era um velho agente do OSS, J. Donald Hamilton, que trabalhou com Donovan e sua turma. Conseguiu um bom preço quando a vendeu, mudou-se para o Novo México e morreu lá em 1986, acho, aos 94 anos. Dizem que ele foi um osso duro em seu tempo, começando já na Primeira Guerra Mundial. E ajudou Wild Bill a trabalhar contra os nazistas. Há um quadro dele na biblioteca. Parece um cara a quem não se deve provocar. Ah, sim, ele entendia de vinhos. Este aqui é da Toscana.
— Cai muito bem com a vitela — disse Brian, que a havia cozinhado.
— Vitela cai bem com qualquer coisa. Você não deve ter aprendido isso nos fuzileiros, aposto — observou Alexander.
— Foi com papai. Ele cozinha até melhor do que mamãe — explicou Dominic. — Você sabe, é uma habilidade que vem lá da velha terra. E vovô, aquele filho da puta, ele ainda cozinha também. Com que idade ele está, Aldo? Oitenta e dois?
— Completou no mês passado — confirmou Brian. — Velho engraçado: viaja o mundo inteiro até Seattle, e depois passa sessenta anos sem sair da cidade.
— A mesma casa nos últimos quarenta anos — acrescentou Dominic —, a um quarteirão do restaurante.
— É dele esta receita?
— Pode apostar, Pete. A família voltou para Florença. Fui até lá dois anos atrás, quando a esquadra do Mediterrâneo estava fazendo uma escala em Nápoles. O primo dele tem um restaurante rio acima da Ponte Vecchio. Quando souberam quem eu era, ficaram loucos para me empanturrar. Você sabe como os italianos adoram os fuzileiros.
— Deve ser o uniforme verde, Aldo — disse Dominic.
— Talvez eu apenas represente uma figura viril, Enzo. Alguma vez pensou nisso? — replicou o capitão Caruso.
— Ah, claro — disse o agente especial Caruso, levando à boca outro pedaço da vitela à la française. — O próximo Rocky, o Lutador está diante de nós.
— Vocês dois são sempre assim? — indagou Alexander.
— Só quando bebemos — respondeu Dominic e o irmão riu.
— Enzo não aguenta beber nem um pouco. Já nós, fuzileiros, podemos fazer qualquer coisa.
— Preciso aguentar isso de alguém que acha que a Miller Lite é cerveja de verdade? — o agente Caruso lançou a pergunta no ar.
— Vocês sabem — disse Alexander —, espera-se que gêmeos sejam iguais.
— Só os gêmeos idênticos. Mamãe fertilizou dois óvulos naquele mês. Isso enganou mamãe e papai até que já estivéssemos com um ano ou por aí. Não somos totalmente iguais, Pete — Dominic liberou este pronunciamento com um sorriso partilhado pelo irmão.
Alexander, porém, sabia mais. Eles apenas se vestiam de modo diferente — e isso em breve estaria mudando.
5
ALIANÇAS
MOHAMMED PEGOU o primeiro voo da Avianca para a cidade do México e lá aguardou o voo 242 da British Airways para Londres. Ele se sentia a salvo nos aeroportos, onde tudo era anônimo. Tinha que tomar cuidado com a comida, já que o México era uma nação de infiéis, mas o saguão da primeira classe o protegia do barbarismo cultural daquela gente, e os muitos policiais armados garantiam que pessoas mais ou menos como ele mesmo não fossem penetras, como acontecia. Assim, sentou numa poltrona afastada da janela e leu um livro que comprara numa das freeshops e conseguira não se entediar até a morte. Ele nunca lia o Corão num lugar como aquele, claro, nem nada relativo ao Oriente Médio, para evitar que alguém lhe fizesse perguntas. Não, ele tinha que viver sua lenda de fachada tão bem quanto qualquer profissional de inteligência, de modo a não ter um fim tão abrupto quanto o do judeu Greengold em Roma. Mohammed usava os toaletes com cuidado redobrado, para o caso de alguém tentar um truque igual com ele.
Nem mesmo fez uso do seu laptop, embora houvesse uma ampla oportunidade para isso. Melhor ficar sentado ali imóvel como uma massa informe, decidiu. Em 24 horas estaria de volta ao continente europeu. Deu-se conta de que vivia mais no ar do que em qualquer outro lugar. Ele não tinha lar, apenas uma série de casas seguras, lugares de confiabilidade duvidosa. A Arábia Saudita estava fechada para ele, e vinha sendo assim por quase cinco anos. O Afeganistão estava também fora dos limites. Estranhamente, os únicos lugares onde podia se sentir mais ou menos próximo da segurança eram os países cristãos da Europa, que os muçulmanos lutaram para conquistar e fracassaram em mais de uma ocasião. Aquelas nações tinham uma abertura quase suicida para estrangeiros, e qualquer um podia desaparecer em sua vastidão com apenas algumas habilidades modestas — e até nenhuma, de fato, se tivesse dinheiro. Aquelas pessoas eram suicidamente abertas, receosas de ofender os que em breve as matariam e a seus filhos e destruiriam toda a sua cultura. Era uma visão agradável, pensou Mohammed, mas ele não vivia em sonhos. Em vez disso, trabalhava por eles. Esta luta duraria mais do que seu tempo de vida. Triste, talvez, mas verdadeiro. Mas era melhor servir a uma causa do que aos interesses de alguém. E gente assim era o que não faltava no mundo.
Imaginou o que seus supostos aliados da reunião da véspera estariam dizendo e pensando. Certamente não eram aliados de verdade. Ah, sim, seus inimigos eram os mesmos, mas isso não era o somatório de uma aliança. Eles iriam — poderiam — facilitar questões, não mais do que isso. Os homens deles não ajudariam sua equipe com empenho real. Na história, mercenários nunca tinham sido soldados realmente eficazes. Para lutar com eficácia, o soldado tinha que acreditar. Somente um crente arriscaria a vida, porque só um crente nada tinha a temer. Não com Alá de seu lado. O que havia a temer então? Apenas uma coisa, admitiu a si mesmo. Fracasso. Fracasso não era uma opção. Os obstáculos entre ele e o sucesso eram coisas a ser tratadas de qualquer modo que fosse conveniente. Apenas coisas. Não pessoas. Não almas. Mohammed pegou um cigarro no bolso e o acendeu. Neste sentido, pelo menos, o México era um país civilizado, embora ele se recusasse a especular sobre o que o Profeta teria dito em relação ao tabaco.
— MAIS FÁCIL NUM CARRO, não é, Enzo? — Brian provocou o irmão enquanto cruzavam a linha de chegada. A corrida de cinco quilômetros não era lá essas coisas para o fuzileiro, mas para Dominic, que passara raspando em seu teste físico para o FBI, tinha sido uma parada.
— Escute aqui, seu marrento — arquejou Dominic —, eu só tenho que correr mais rápido do que os caras que estou perseguindo.
— No Afeganistão você estaria fodido. — Brian corria atrás dele agora, para observar melhor o esforço do irmão.
— Provavelmente — admitiu Dominic. — Mas os afegãos não assaltam bancos no Alabama e em Nova Jersey. — Dominic nunca em sua vida disputara provas de resistência com o irmão, mas estava claro que o Corpo de Fuzileiros caprichara mais em mantê-lo em boa forma física do que o FBI. Mas e com uma pistola, o quanto ele era bom? Pelo menos a corrida tinha acabado, e ele caminhou de volta à casa.
— Passamos no teste? — Brian perguntou a Alexander na entrada.
— Fácil, os dois. Isso aqui não é treinamento para patrulheiros, caras. Não queremos treinar uma equipe para as Olimpíadas, mas, em ação, saber fugir é uma ótima qualidade.
— Em Quantico, Honey gostava de dizer isso — concordou Brian.
— Quem? — perguntou Dominic.
— Nicholas Honey, suboficial artilheiro, Corpo de Fuzileiros Navais dos Estados Unidos. E, sim, ele provavelmente suportou muita de gente chamando-o de mel ou doçura por causa do sobrenome, mas não duas vezes do mesmo cara. Ele foi um dos instrutores na Academia Militar. Também o chamavam de Nick Pentelho — acrescentou Brian, pegando uma toalha e entregando-a ao irmão. — É um marine durão. Mas dizia que fugir é a única habilidade de que um homem de infantaria necessita.
— É mesmo? — perguntou Dominic.
— Só vimos combate uma vez, e só por uns dois meses. Na maior parte do tempo ficamos olhando os cabritos-monteses que sofriam ataques cardíacos por subir aquelas porras de montanhas.
— Tão ruim assim, é?
— Pior. — Alexander se intrometeu. — Mas travar guerras é para garotos, não para adultos sensatos. Entenda, agente Caruso, lá naqueles ermos os caras têm que carregar um peso enorme nas costas.
— Deve ser divertido — disse Dominic ao irmão, não sem respeito.
— Demais. Muito bem, Pete, que outras coisas agradáveis estão na agenda do dia?
— Primeiro tomar um banho — aconselhou Alexander. Agora que tinha certeza de que os dois estavam em razoável forma física — embora tivesse tido pouca dúvida sobre isso, e de qualquer modo não tinha lá toda essa importância, apesar do que dissera — eles podiam passar ao que interessava. A coisa importante.
— O DÓLAR VAI SOFRER UM BAQUE — disse Jack ao novo patrão.
— Muito forte?
— Apenas um arranhão. Os alemães vão desvalorizar o dólar em relação ao euro, cerca de 500 milhões em valor.
— Isso é muito importante? — perguntou Sam Granger.
— Está perguntando a mim? — disse Jack.
— Exatamente. Você tem que ter uma opinião. Não precisa ser correta, mas tem que fazer algum sentido.
Jack Ryan Jr. entregou-lhe as intercepções de radioescuta.
— Este tal de Dieter falando com sua contraparte francesa. Ele faz parecer uma transação de rotina, mas o intérprete diz que o tom de voz trai alguma maldade. Eu falo um pouco de alemão, mas não o suficiente para essas nuances — disse o jovem Ryan ao chefe. — Não posso dizer que entendo por que os alemães e os franceses estariam em alguma espécie de conspiração contra nós.
— Isso combina com o atual interesse alemão em se aconchegar aos franceses. Contudo não vejo a longo prazo uma aliança bilateral. Fundamentalmente, os franceses têm medo dos alemães, e os alemães desprezam os franceses. Mas os franceses têm ambições de soberania... bem, sempre tiveram. Basta olhar para suas relações com os Estados Unidos. Mais ou menos como irmão e irmã de 12 anos ou por aí. Eles se amam, mas não conseguem se dar muito bem. Quanto à Alemanha e à França, o caso é parecido, mas mais complexo. Os franceses costumavam esnobar os alemães, mas então os alemães se organizaram e deram o troco. E ambos têm recordações de longa data. Essa é a maldição da Europa. Há muita história litigiosa por lá, e eles têm dificuldade para esquecer.
— O que uma coisa tem a ver com outra? — indagou o jovem Ryan.
— Diretamente, nada, mas como pano de fundo talvez o banqueiro alemão queira se aproximar desse cara para montar uma peça futura. Talvez o francês o esteja deixando pensar que está ficando mais próximo, de modo que o banco central francês possa marcar pontos em Berlim. É um jogo engraçado. Você não pode surrar o adversário cruelmente porque aí ele não vai mais querer jogar com você. Além disso, você não vai se desviar do caminho para ganhar mais inimigos. No todo, é como um jogo de pôquer entre vizinhos. Se você se dá bem, ganha inimigos, e fica bem mais desagradável morar na área porque ninguém virá a sua casa jogar. Se você for o mais otário na mesa de jogo, os outros vão se unir contra você da maneira mais gentil possível a fim de roubá-lo... não o bastante para arruiná-lo, mas para que possam dizer a si mesmos o quanto são espertos. Portanto o que acontece é que todo mundo blefa baseado no seu jogo, e a coisa segue inteiramente amigável. Ninguém ali se distancia muito de uma greve geral a partir de uma grave crise de liquidez nacional, e quando isso acontece você precisa de amigos. Esqueci de lhe contar: os banqueiros centrais consideram que todos no continente são camponeses. E estão incluídos aí vários chefes de governo.
— E nós?
— Americanos? Ah, sim, humildemente nascidos, pobremente educados, mas camponeses... extremamente sortudos.
— Com armas pesadas? — perguntou o jovem Jack.
— Sim, camponeses com armas sempre deixam a aristocracia nervosa — concordou Granger, abafando um riso. — Eles ainda têm aquela merda de distinção de classe por lá. Têm dificuldade de entender o quanto isso os prejudica no mercado, porque os maiorais raramente expõem uma ideia realmente nova. Mas isso não é problema nosso.
Oderint dum metuant, pensou Jack. Uma das poucas coisas em latim que recordava. Supostamente o lema pessoal do imperador Calígula: Deixe-os odiar enquanto têm medo. Será que a civilização não avançara um pouco além disso nos dois últimos milênios?
— Qual é nosso problema? — perguntou ele.
Granger sacudiu a cabeça.
— Eu não pretendia colocar desse jeito. Eles não gostam muito de nós... de fato, jamais gostaram... mas ao mesmo tempo não podem viver sem nós. Alguns deles estão começando a pensar que podem, depois do fim da União Soviética, mas se algum dia tentarem, a realidade morderá seus rabos com força suficiente para tirar sangue. Não confunda os pensamentos da aristocracia com os do povo. Este é o problema deles. Pensam realmente que o povo segue sua liderança, mas não é verdade. O povo segue seu próprio bolso, e o homem comum na rua entenderá tudo por si mesmo se tiver tempo suficiente para pensar a respeito.
— Quer dizer que o Campus simplesmente faz dinheiro fora do mundo da fantasia deles?
— Acertou. Sabe, eu detesto novelas de TV. Sabe por quê? — Ele assumiu um ar inexpressivo. — Jack, é porque elas refletem a realidade com tanta exatidão. A vida real, mesmo a este nível, está repleta de babaquice e egos. Não é amor o que faz o mundo girar. Não é sequer dinheiro. É babaquice.
— Ei, já ouvi cinismo em minha vida, mas...
Granger o interrompeu com a mão erguida.
— Não é cinismo. É a natureza humana. A única coisa que não mudou em dez mil anos de história registrada. Eu me admiraria se algum dia mudasse. Ah, claro, existe também a parte boa da natureza humana: nobreza, caridade, autossacrifício, até mesmo coragem em alguns casos... e amor. O amor conta. Conta bastante. Mas junto com ele vem a inveja, a cupidez, a ambição, todos os sete pecados capitais. Talvez Jesus soubesse do que estava falando, hein?
— Isto é filosofia ou teologia? — Achei que aqui fôssemos tratar de assuntos de inteligência, pensou o jovem Ryan.
— Completei 50 na semana passada. Velho cedo demais e esperto tarde demais. Algum agente disse isso uns cem anos atrás. — Granger sorriu. — O problema é que você já está pra lá de velho quando percebe para que possa fazer algo a respeito.
— O que você faria? Começaria uma nova religião?
Granger deu ele próprio uma boa risada enquanto se virava para reencher a xícara de café na sua máquina Gevalia pessoal.
— Não, nenhuma das sarças em volta da minha casa ardeu ainda. O problema com pensamentos profundos é que você tem que aparar a grana e pôr comida na mesa. Em nosso caso, proteger nosso país.
— Então, o que fazer com esta coisa alemã?
Granger deu outra olhada na interpretação e pensou por um segundo.
— Nada, não nesse exato momento, mas recordemos que Dieter ganhou um ponto ou dois com Claude, dos quais ele pode tirar proveito em seis meses ou por aí. O euro ainda é muito novo para saber como isso vai acabar. O francês acha que a liderança financeira da Europa vai deslizar para Paris. O alemão acha que vai para Berlim. De fato vai para o país com a economia mais forte, com a força de trabalho mais eficiente. Que não vai ser a França. Eles têm planejadores muito bons, mas sua população não é tão bem organizada quanto a da Alemanha. Se eu tivesse que apostar ficaria com Berlim.
— Os franceses não vão gostar.
— É verdade, Jack, é verdade — repetiu Granger. — Que diabo, a França tem bomba atômica e a Alemanha, não... por enquanto, de qualquer modo.
— Está falando sério? — perguntou o jovem Ryan.
Um sorriso.
— Não.
— ENSINARAM UM POUCO DISSO em Quantico — disse Dominic.
Estavam num shopping de tamanho médio que servia a uma multidão de universitários devido à proximidade da universidade.
— O que eles disseram? — perguntou Brian.
— Não permaneça no mesmo lugar em relação ao seu homem-alvo. Tente alterar sua aparência... óculos de sol, coisas desse tipo. Use peruca, se estiver disponível. Paletós reversíveis. Não olhe para ele, mas não desvie a vista se ele olhar para você. É muito melhor se houver mais de um agente na cola do alvo. Um homem não pode rastrear um adversário treinado sem isso. Um alvo treinado é difícil de seguir sob a melhor das circunstâncias. É por isso que as grandes agências mantêm seus GEVs, Grupos Especiais de Vigilância. Eles são empregados do FBI, mas não juramentados, e não portam armas. Alguns caras os chamam de os Irregulares de Baker Street, em alusão a Sherlock Holmes. Eles parecem com qualquer coisa, menos com um tira, gente das ruas... vadios... operários de macacão. Eles podem ser sujos. Podem ser pedintes. Conheci alguns no Escritório de Campo em Nova York uma vez. Trabalham para a CO e para a CIE... crime organizado e contrainteligência estrangeira. São profissionais, mas os profissionais com a aparência mais improvável que você desejaria encontrar.
— Com gente assim? — perguntou Brian ao irmão. — A vigilância, quero dizer.
— Nunca tentei eu mesmo, mas pelo que ouvi dizer, exige grande efetivo, tipo quinze ou vinte, para trabalhar num sujeito-alvo, sem contar carros, aviões... e um cara realmente bom pode nos passar a perna mesmo assim. Os russos, em especial. Aqueles putos são muito bem treinados.
— Então, que diabos esperam que a gente faça? — perguntou o capitão Caruso.
— Apenas aprender o básico — disse Alexander. — Estão vendo aquela mulher ali de suéter vermelho?
— De cabelo preto comprido? — perguntou Brian.
— Isso — confirmou Pete. — Verifiquem o que ela compra, que tipo de carro dirige e onde mora.
— Só nós dois? — perguntou Dominic. — Não acha que está pedindo demais?
— Eu disse a vocês que o serviço era mole? — replicou Alexander inocentemente. Ele entregou dois rádios. — Os fones de ouvido ficam na orelha, e os microfones no colarinho. O alcance é de uns três quilômetros. E aqui estão as chaves de seus carros. — E com isso ele se afastou, rumo à loja Eddie Bauer para comprar uma bermuda.
— Bem-vindo à merda, Enzo — disse Brian.
— Pelo menos ele nos deu uma instrução de missão.
— Foi uma instrução, tudo bem.
A mulher que era alvo deles entrara numa loja Ann Taylor. Ambos seguiram naquela direção, cada um pedindo uma xícara descartável de café no Starbucks como disfarce fajuto.
— Não jogue a xícara fora — Dominic avisou ao irmão.
— Por quê? — perguntou Brian.
— Para o caso de você precisar dar uma mijada. A perversidade do mundo tem um jeito de violar seus planos cuidadosamente elaborados em situações como esta. É uma lição prática de uma turma lá na Academia.
Brian nada comentou, mas pareceu afetado. Um de cada vez, experimentaram os rádios para ver se funcionavam.
— Aldo para Enzo, câmbio — chamou Brian no Canal 6.
— Enzo na escuta, mano. Vamos desligar na vigilância visual, mas sem perder de vista um ao outro, certo?
— Faz sentido. Tudo bem, vou para a loja.
— Entendido, e o mesmo para você, mano. — Dominic viu seu irmão se retirar. Depois se sentou para bebericar o café e olhar para o alvo; nunca diretamente para ela, mas uns vinte graus para o lado.
— O que ela está fazendo?
— Pegando uma blusa, parece. — O alvo tinha seus trinta e poucos anos, com cabelos castanhos caindo até os ombros, razoavelmente atraente, usando uma aliança de casada mas sem diamante e um colar barato folheado a ouro talvez comprado na Wal-Mart do outro lado da rua. Blusa cor de pêssego. Calça comprida preta em vez de saia, sapatos de salto baixo pretos macios. Bolsa razoavelmente grande. Não parecia excessivamente atenta ao ambiente em volta, o que era bom. Parecia estar sozinha. Ela finalmente escolheu uma blusa, de seda branca ao que parecia, pagou com cartão de crédito e saiu da loja.
— O alvo está em movimento, Aldo.
A setenta metros, a cabeça de Brian se espichou e se virou diretamente na direção do irmão.
— Fale comigo, Enzo.
Dominic ergueu sua xícara de café como se para tomar um gole.
— Dobrando à esquerda, indo em sua direção. Você pode me encontrar em um minuto ou dois.
— Entendido, Enzo.
Tinham estacionado os carros em lados opostos do shopping. Veio a ser uma boa coisa, enquanto o alvo dobrava à direita e se dirigia para o portão do estacionamento.
— Aldo, aproxime-se o suficiente para anotar a placa — ordenou Dominic.
— O quê?
— Leia o número da placa para mim e descreva o carro. Estou indo para o meu carro.
— Okay, entendido, mano.
Dominic não correu para seu carro, mas caminhou tão rápido quanto as circunstâncias permitiam. Entrou, ligou o motor e baixou o vidro das janelas.
— Enzo para Aldo, câmbio.
— Okay, ela está dirigindo uma van Volvo verde-escuro, placa da Virginia Whiskey Kilo Romeo Seis-Um-Nove. Sozinha no carro, dando partida, dobrando para norte. Estou a caminho do meu carro.
— Entendido. Enzo em perseguição. — Ele contornou o prédio da Sears que ancorava a extremidade leste do shopping tão rapidamente quanto o tráfego permitia e pegou seu celular no bolso do casaco. Ligou para Informações pedindo o número do posto do FBI em Charlottesville, que a companhia telefônica forneceu cobrando uma taxa adicional de 50 centavos.
— Atenção, aqui é o agente especial Dominic Caruso. Meu número de identificação é um-meia-cinco-oito-dois-um. Preciso checar a placa Whiskey Kilo Romeo Seis-Um-Nove. Imediatamente.
Quem quer que estivesse do outro lado da linha digitou o número de suas credenciais num computador e verificou a identidade de Dominic.
— O que está fazendo tão longe de Birmingham, Sr. Caruso?
— Não há tempo para isso. Por favor, cheque a placa.
— Entendido, okay, é um Volvo, cor verde, registrado em nome de Edward e Michelle Peters, residentes em Six Riding Hood Court, Charlottesville. Fica logo na divisa municipal, lado oeste da cidade. Algo mais? Precisa de apoio?
— Negativo. Obrigado, posso cuidar disso a partir daqui. Caruso desligando. — Ele fechou o celular e transmitiu o endereço ao irmão pelo rádio. Os dois fizeram a mesma coisa e inseriram o endereço no computador de bordo.
— Isso é cascata — observou Brian, sorrindo enquanto o fazia.
— Os mocinhos não cascateiam, Aldo. Eles apenas fazem bem o seu serviço. Okay, estou de olho no alvo. Ela está seguindo para oeste pela Shady Branch Road. Onde você está?
— Uns 500 metros atrás de você... merda! Sinal vermelho!
— Okay, fique fora disso. Parece que ela está indo para casa, e sabemos onde fica. — Dominic se aproximou do alvo numa distância de 100 metros mantendo uma picape entre ele e o carro do alvo. Raramente fizera esse tipo de coisa antes, e surpreendeu-se com o quanto a situação era tensa.
— PREPARE-SE PARA DOBRAR À DIREITA A 150 METROS — informou o computador de bordo.
— Obrigado, querida — grunhiu Dominic.
Mas então o Volvo dobrou na esquina sugerida pelo computador. Não era tão ruim afinal, era? Dominic inspirou fundo e se acalmou um pouco.
— Okay, Brian, parece que ela está indo direto para casa. Apenas me siga — disse ele pelo rádio.
— Entendido, seguir você. Alguma ideia de quem seja essa dona?
— Michelle Peters, assim diz o Departamento de Trânsito. — O Volvo dobrou à esquerda, depois à direita, num beco sem saída, onde entrou numa alameda para carros que terminava numa garagem para dois carros anexa a uma casa de tamanho médio de dois andares e revestimento de alumínio branco. Ele estacionou o carro uns 100 metros rua acima e tomou um gole de seu café. Brian apareceu trinta segundos depois, fazendo o mesmo meio quarteirão acima.
— Vê o carro? — perguntou Dominic.
— Claro, Enzo. — O fuzileiro fez uma pausa. — O que fazemos agora?
— Vocês entram para uma xícara do meu café comigo — sugeriu uma voz feminina. — Sou a mulher do Volvo — esclareceu a voz.
— Ai, merda — sussurrou Dominic longe do microfone. Ele desceu do Mercedes e acenou para o irmão fazer o mesmo. Caminharam até o número 6 de Riding Hood Court.
A porta se abriu quando chegaram ao alto da alameda de carros.
— Fique frio o tempo todo — disse Dominic baixinho. — Devíamos ter imaginado isso desde o início.
— É. Fizemos papel de bobo.
— Não mesmo — disse a Sra. Peters da porta. — Mas pedir meu endereço ao Departamento de Trânsito foi uma trapaça, vocês sabem.
— Ninguém disse nada sobre regulamentos, madame — disse Dominic.
— Não há nenhum... não com muita frequência, de qualquer modo, não neste ramo.
— Então você estava no circuito de rádio o tempo todo? — perguntou Brian.
Ela acenou com a cabeça enquanto os levava à cozinha.
— Isso mesmo. Os rádios estão codificados. Ninguém mais sabia do que vocês estavam falando. O que acharam do café?
— Então você nos identificou por todo o caminho? — perguntou Dominic.
— Na verdade, não. Eu não uso os rádios para trapacear... bem, não tanto assim. — Ela exibia um sorriso cúmplice, que ajudou a suavizar os golpes no ego dos visitantes.
— Você é Enzo, certo?
— Sim, madame.
— Vocês estavam um pouco próximos, mas só um alvo com o olhar realmente aguçado teria notado, dado o limitado quadro de tempo. A marca do carro ajudou. Há muitos Mercedes pequenos nesta área. Mas a melhor escolha de carro seria uma picape... uma bem suja. Esses caipiras nunca as lavam, e alguns acadêmicos na escola adotaram o mesmo tipo de comportamento para se adaptar. Na Interestadual 64, bem, seria melhor que tivessem um avião, claro, e um Porta-Potti. Vigilância discreta pode ser o serviço mais duro no ramo. Mas agora vocês já estão sabendo disso.
A seguir a porta se abriu e Pete Alexander entrou.
— Como eles se saíram? — perguntou a Michelle.
— Vou dar um B.
E de repente Dominic achou que ela estava sendo generosa.
— E esqueçam o que eu disse antes... chamar o FBI para conseguir minha ficha no Departamento de Trânsito foi bem esperto.
— Sem brincadeira? — perguntou Brian.
Alexander aproveitou a deixa.
— A única regra é levar a cabo a missão sem se comprometer. Lá no Campus não computamos pontos por estilo.
— Somente o corpo conta — confirmou a Sra. Peters, para evidente irritação de Alexander.
Isso foi o bastante para fazer o estômago de Brian se contrair um pouco.
— Hã, caras, sei que já perguntei isso antes, mas para que exatamente estamos treinando? — Dominic também se contraiu visivelmente.
— Paciência, rapazes — avisou Pete.
— Okay. — Assentiu Dominic, submisso. — Darei a você este tempo. — Mas não longo demais, ele se absteve de acrescentar.
— QUER DIZER QUE VOCÊS NÃO VÃO explorar isso? — perguntou Jack no fim do expediente.
— Poderíamos, mas realmente não merece o tempo despendido. Nós só giramos uns 200 mil no máximo, provavelmente não tanto. Mas você fez bem em apontar — concedeu Granger.
— Que volume desse tipo de mensagem entra aqui semanalmente?
— Um ou dois; quatro numa semana realmente atarefada.
— E quantas operações vocês fazem? — perguntou Junior.
— Uma em cinco. Fazemos muito cuidadosamente, mas mesmo assim sempre corremos o risco de ser notados. Se os europeus percebessem que estávamos adivinhando demais suas intenções eles então examinariam como fazemos isso... provavelmente apertando sua própria gente, procurando um vazamento humano. É como eles pensam por lá. É um grande lugar para teoria conspiratória, entende, por causa da maneira como eles se administram. Mas o jogo que eles disputam regularmente age um tanto contra isso.
— O que mais vocês investigam?
— A começar na próxima semana, você terá acesso às contas seguras... as pessoas as chamam de contas numeradas porque são supostamente identificadas por números em código. Agora são principalmente palavras em código, por causa da tecnologia do computador. Eles provavelmente pegaram isso da comunidade de informação. Com frequência contratam arapongas para zelar por sua segurança... mas não os bons. Os bons permanecem longe dos negócios que lidam com dinheiro, principalmente sem esnobismo. Não é importante o bastante para um espião veterano — explicou Granger.
— Essas contas seguras, elas identificam os titulares? — perguntou Jack.
— Nem sempre. Às vezes isto tudo é feito por senha, embora vez ou outra os bancos tenham memorandos internos que podemos interceptar. Nem sempre, porém, e os banqueiros nunca especulam internamente a respeito de seus clientes... pelo menos não por escrito. Tenho certeza de que eles fofocam na hora do almoço, mas você sabe, a maioria deles não se importa muito de onde vem o dinheiro. Judeus mortos em Auschwitz, algum chefão da Máfia no Brooklyn... é tudo dinheiro lavado.
— Mas se vocês passassem o caso ao FBI...
— Não podemos porque isso é ilegal, e não fazemos porque então perderíamos um meio de rastrear os sacanas e seu dinheiro. Legalmente, há mais de uma jurisdição, e para alguns países europeus... bem, a atividade bancária é uma grande geradora de dinheiro, e nenhum governo jamais abre mão da sua coleta de impostos. O cachorro não morde ninguém no seu quintal. O que acontece no bloco não importa a eles.
— Fico imaginando o que papai acha disso...
— Não muito, eu apostaria — opinou Granger.
— Não realmente — concordou Jack. — Portanto, vocês rastreiam as contas secretas para seguir os bandidos e seu dinheiro?
— A ideia é essa. É bem mais difícil do que você pode imaginar, mas quando a gente acerta, acerta em cheio.
— Nesse caso, vou ser um chamariz?
— Isso mesmo. Você é muito bom — disse Granger.
MOHAMMED ESTAVA QUASE diretamente acima naquele momento. A Grande Rota Circular da Cidade do México para Londres passava bem perto de Washington, de modo que pudesse olhar para baixo de uma altitude de 37 mil pés e ver a capital dos Estados Unidos estendendo-se como um mapa. Bem, sendo ele um membro do Departamento do Martírio, poderia subir a escada em espiral para o nível superior, usar uma pistola para matar a equipe de voo e fazer cair o avião... mas isto já tinha sido feito antes e agora as portas da cabine eram protegidas, e poderia muito bem haver um policial armado lá em cima na classe executiva para estragar o espetáculo. Pior ainda, um soldado armado à paisana. Mohammed tinha pouco respeito por policiais, mas havia aprendido da maneira mais dura a não menosprezar os soldados ocidentais. Todavia, ele não era do Departamento do Martírio, por mais que admirasse aqueles Guerreiros Santos. Sua capacidade de garimpar informações tornava-o valioso demais para ser sacrificado em tal gesto nobre. Aquilo era bom, mas também era mau, porém, bom ou mau, era um fato, e ele vivia no mundo dos fatos. Iria ao encontro de Alá e entraria no Paraíso na hora escrita pela Própria Mão de Deus no Próprio Livro de Deus. Por enquanto, ele tinha mais seis horas e meia de confinamento naquela poltrona.
— Mais vinho, senhor? — perguntou a aeromoça de faces rosadas. Que prêmio ela seria no Paraíso...
— Ah, sim, obrigado — replicou no seu melhor inglês de Cambridge. Isto era contrariar o Islã, mas não beber pareceria suspeito, pensou novamente, e sua missão era importante demais para correr riscos. Ou pelo menos assim admitia para si mesmo, com uma pequena fissura na consciência. Ele bebeu de um gole só e ajustou os controles da poltrona. O vinho poderia ser contrário às leis do Islã, mas ajudava a dormir.
— MICHELLE DIZ QUE OS GÊMEOS são competentes para principiantes — disse Rick Bell ao seu chefe.
— O exercício de rastreamento? — perguntou Hendley.
— É. — Ele não teve que dizer que um exercício de treinamento adequado incluiria oito a dez carros, dois aviões e um total de vinte agentes, mas o Campus não tinha nada que chegasse perto dessas necessidades. Em vez disso, tinha uma amplitude maior para lidar com alvos, um fato que trazia vantagens e desvantagens. — Alexander parece gostar deles. Diz que são brilhantes e têm agilidade mental.
— É bom saber. Alguma coisa mais acontecendo?
— Rick Pasternak diz que tem alguma coisa nova.
— O que pode ser? — perguntou Gerry.
— É uma variante de sucinilcolina, uma versão sintética do curare. Paralisa os músculos quase imediatamente. A vítima desaba e não pode respirar. Ele diz que seria uma morte terrível, como ter uma baioneta trespassando o peito.
— Rastreável? — perguntou Hendley.
— Essa é a boa notícia. As esterases no corpo transformam a droga rapidamente em acetilcolina, de modo que é também improvável que seja detectável, a não ser que o alvo bata as botas bem na porta de um centro médico de primeira, com um arguto patologista que esteja procurando algo fora do comum. Os russos a testaram, pode crer, ainda na década de 1970. Estavam pensando em aplicá-la no campo de batalha, mas provou-se impraticável. É de surpreender que a KGB não tenha feito uso dela. Parece infarto agudo do miocárdio, mesmo numa lousa de necrotério uma hora depois.
— Como ele conseguiu isso?
— Um colega russo estava de visita em Columbia. Acontece que era judeu e Rick conseguiu que falasse. Ele falou o bastante para que Rick desenvolvesse um sistema de entrega lá no seu laboratório. Está sendo aperfeiçoado neste exato momento.
— Sabe, é espantoso que a Máfia nunca tenha pensado nisso. Se você quiser alguém morto, é só contratar um médico.
— Vai contra os velhos métodos para a maioria deles. — Mas a maioria deles não teve um irmão na Cantor Fitzgerald jogado do 97º andar em uma manhã de terça-feira.
— Esta variante é melhor do que a que já temos?
— Melhor do que a que qualquer um tenha, Gerry. Ele diz que é quase cem por cento confiável se usada certo.
— Muito cara?
Bell sacudiu a cabeça.
— Nada de alarmante.
— Está testada, realmente funciona?
— Rick diz que matou seis cachorros... todos grandes... daquele tipo que você gosta.
— Okay, aprovado.
— Entendido, chefe. Devemos tê-las em duas semanas.
— O que está acontecendo lá fora?
— Não sabemos — admitiu Bell com os olhos baixos. — Um dos caras em Langley está dizendo em seus memorandos que talvez os tenhamos atingido o bastante para retardá-los, se não para fechá-los, mas fico nervoso quando leio essas coisas. Como o tal "não há limite para este mercado", essas merdas que começam antes que o fundo caia. Hubris ante nemesis. Fort Meade não consegue rastreá-las na net, mas talvez isso signifique apenas que eles estão ficando um pouco mais espertos. Existe um monte de bons programas piratas codificados, e dois deles a NSA ainda não invadiu... pelo menos não confiavelmente. Estão trabalhando nisso umas duas horas por dia com seus computadores de grande porte. Como você sempre diz, Gerry, os programadores mais espertos não trabalham mais para Tio Sam...
—... eles desenvolvem videogames — Hendley concluiu a frase. O governo nunca pagava o suficiente para atrair os melhores, e isso nunca aconteceria. — E então? Só uma coceira no nariz?
Rick assentiu.
— Até que eles estejam mortos, debaixo da terra, com uma estaca cravada no coração, vou continuar a me preocupar com eles.
— Vai ser meio difícil pegar todos, Rick.
— Pra cacete. — Nem mesmo seu Doutor Morte próprio no distrito de Columbia podia ajudar nisso.
6
ADVERSÁRIOS
O 747-400 POUSOU SUAVEMENTE no aeroporto de Heathrow cinco minutos antes das 12h55. Como a maioria dos passageiros, Mohammed estava ansioso para sair logo do Boeing. Passou pelo controle de passaportes, sorriu polidamente, encontrou um banheiro e, sentindo-se de novo um tanto humano, caminhou até o portão de embarque da Air France para pegar o seu voo de conexão para Nice. Esperou noventa minutos até a partida e depois voou mais noventa minutos até seu destino. No táxi, demonstrou a espécie de francês que se poderia aprender numa universidade britânica. O taxista o corrigiu apenas duas vezes, e ao registrar-se no hotel capitulou ao seu passaporte britânico — relutantemente, mas o passaporte era um documento seguro que ele usava muitas vezes. O código de barras que havia no frontispício dos novos passaportes o confundia. O seu ainda não era deste tipo, mas quando expirasse, dali a dois anos, começaria a se preocupar com algum computador rastreando seus passos aonde quer que fosse. Bem, ele tinha três sólidas e seguras identidades britânicas, e era apenas uma questão de obter passaportes para cada uma delas ser bem discreto para que nenhum policial britânico decidisse checar as identidades. Nenhuma cobertura pode resistir eternamente até numa uma investigação casual, muito menos a uma profunda, e o novo código de barras podia significar que um dia uma luz piscaria no painel do agente de imigração, acionando um ou dois policiais. Os infiéis estavam dificultando a vida dos fiéis, mas isso era típico dos infiéis.
O hotel não tinha ar-condicionado, mas as janelas poderiam ser abertas e a brisa do oceano era agradável. Mohammed conectou seu computador ao telefone da mesa.
Depois a cama acenou para ele, e sucumbiu ao seu chamado. Por mais que já tivesse viajado, ainda não havia descoberto uma cura para os distúrbios de fuso horário. Pelos dois dias seguintes ele viveria de cigarro e café até que seu relógio biológico decidisse saber onde ele estava no momento. Consultou o relógio. O homem com quem se encontraria não ia aparecer antes de mais quatro horas, o que, pensou Mohammed, era muito correto da parte dele. Mohammed estaria jantando quando seu corpo esperaria o café da manhã. Cigarro e café.
ERA HORA DO CAFÉ DA MANHÃ na Colômbia. Pablo e Ernesto preferiam a versão anglo-americana, ovos com bacon ou presunto, acompanhada do excelente café local.
— Então, vamos colaborar com aquele gângster de toalha enrolada na cabeça? — perguntou Ernesto.
— Não vejo por que não — replicou Pablo, mexendo o creme em sua xícara de café. — Ganharemos muito dinheiro, e a oportunidade de criar o caos na casa dos americanos serve bem aos nossos interesses. Eles colocarão seus guardas de fronteira para vigiar pessoas em vez de contêineres, o que não nos causará dano direto ou indireto.
— E se um desses muçulmanos for apanhado vivo e começar a falar?
— Falar o quê? Quem ele vai encontrar, além de alguns coyotes mexicanos? — perguntou Pablo em resposta.
— Sí, é isso — concordou Ernesto. — Você deve me achar uma velha assustada.
— Jefe, o último que achou isso de você morreu há muito tempo. — O comentário rendeu a Pablo um grunhido e um sorriso torto.
— Sim, é verdade, mas só um tolo não seria cauteloso quando as forças policiais de dois países estão na cola dele.
— Assim, jefe, nós damos a elas outros caras para perseguir, não damos?
Ernesto achava que estava entrando num jogo potencialmente perigoso. Sim, ele estava fazendo um acordo com aliados de conveniência, mas estaria não tanto cooperando com eles, e sim os usando, jogando isca para os americanos persegui-los e matá-los. Esses fanáticos, porém, não se importavam em ser mortos, não é? Aliás, buscavam a morte. Portanto, ao fazer uso deles, estava realmente prestando um serviço, não estava? Podia até mesmo — muito cuidadosamente — entregá-los aos americanos, não incorrendo assim na ira deles. Além disso, como podiam esses homens prejudicá-lo? No seu quintal? Aqui na Colômbia? Era improvável. Não que planejasse traí-los, mas, se o fizesse, como eles descobririam? Se os seus serviços de inteligência fossem tão bons assim, eles não precisariam de ajuda, em primeiro lugar. E se o governo ianque — e o seu próprio — não tinha sido capaz de pegá-lo aqui na Colômbia, como essa gente poderia?
— Pablo, como exatamente você vai se comunicar com esse cara?
— Via computador. Ele tem vários endereços de e-mail, todos com provedores europeus.
— Muito bem. Diga-lhe que sim, que está aprovado pelo conselho. — Não muitas pessoas sabiam que Ernesto era o conselho.
— Muy bien, jefe. — E Pablo foi para o seu laptop. Sua mensagem partiu em menos de um minuto. Pablo conhecia seus computadores. A maioria dos criminosos e terroristas internacionais conhecia.
ESTAVA NA TERCEIRA LINHA do e-mail: Ei, Juan, Maria está grávida. Vai ter gêmeos. — Tanto Mohammed quanto Pablo tinham os melhores programas codificados disponíveis comercialmente — programas que, diziam os vendedores, não poderiam ser invadidos por ninguém. Mas Mohammed acreditava nisso tanto quanto acreditava em Papai Noel.
Todas essas empresas estavam no Ocidente, e tinham compromisso de fidelidade com seus próprios países e nenhum outro. Além disso, usar programas como este apenas realçava seus e-mails para programas de vigilância que estivessem sendo usados pela NSA, pelo quartel-general de comunicações do governo britânico (GCHQ) e da francesa Direction Générale de la Sécurité Extérieure (SGSE). Para não mencionar agências desconhecidas que pudessem estar monitorando comunicações internacionais, legalmente ou não, e nenhuma delas sentia amor algum por ele e seus companheiros. O Mossad israelense certamente pagaria bem para ter sua cabeça enfiada numa estaca, muito embora não soubesse — não pudesse — saber de seu papel na eliminação de David Greengold.
Ele e Pablo tinham arranjado um código, palavras inocentes que podiam significar qualquer coisa, que podiam ser remetidas em volta do mundo para testas de ferro que então as repassariam. Suas contas eletrônicas eram pagas com cartões de crédito anônimos, e as próprias contas eram ampla e completamente bem conceituadas nos provedores de internet baseados na Europa. À sua maneira, a internet era tão eficaz quanto as leis bancárias suíças em termos de anonimato. E tantos e-mails transitavam a cada dia pela rede que era impossível que alguém pudesse rastrear todos eles, mesmo com ajuda do computador. Enquanto não usassem palavras em código facilmente previsíveis, suas mensagens estariam seguras, achava Mohammed.
Então, os colombianos iam cooperar — Maria estava grávida. E teria gêmeos — a operação podia começar de imediato. Ele contaria ao convidado desta noite no jantar, e o processo começaria imediatamente. As notícias mereciam até mesmo uma ou duas taças de vinho, em antecipação ao misericordioso perdão de Alá.
O PROBLEMA COM A CORRIDA matinal era que parecia mais tediosa que a coluna social de um jornal do Arkansas — mas precisava ser feita, e cada irmão aproveitava o tempo para pensar... principalmente em como era tedioso. Levava só uma hora e meia. Dominic estava pensando em conseguir um pequeno rádio portátil, mas nunca o fazia. Jamais conseguia se lembrar dessas coisas quando estava num shopping. E o irmão provavelmente apreciava esta merda. Servir nos Fuzileiros devia ser ruim pra caramba. Depois veio o café da manhã.
— Então, rapazes, estamos todos acordados? — disse Pete Alexander.
— Por que você não sua um pouco de manhã? — perguntou Brian. Os fuzileiros tinham muitas histórias internas sobre as Forças Especiais, nenhuma delas lisonjeira e poucas acuradas.
— Há alguma vantagem em ficar velho — replicou o oficial de treinamento. — Uma delas é não forçar a barra.
— Ótimo. Qual é a aula de hoje? — Seu sacana preguiçoso, o capitão Caruso teve vontade de acrescentar. — Quando vamos ter os computadores?
— Muito em breve.
— Você disse que a codificação de segurança é muito boa — comentou Dominic. — O quanto boa é "muito boa"?
— A NSA pode quebrar se direcionar seus computadores de grande porte para a tarefa por uma semana e arrombá-la à força. Eles podem invadir qualquer coisa, se lhes derem o tempo para isso. Já podem invadir a maioria dos sistemas comerciais. Fizeram um arranjo com a maioria dos programadores — explicou ele. — E eles cooperam... em troca de alguns algoritmos da NSA. Outros países também poderiam, mas é preciso muita perícia para entender criptologia plenamente, e poucos têm os recursos ou o tempo para adquiri-la. Assim, um programa comercial pode dificultar a coisa, mas não tanto se você tem o código-fonte. É por isso que nossos adversários tentam passar mensagens em encontros cara a cara, ou usar códigos em vez de escrita criptografada, mas uma vez que isso é ineficaz em questão de tempo, estão gradualmente abandonando a prática. Quando eles têm material urgente para transferir, com frequência nós invadimos.
— Quantas mensagens passam através da internet? — perguntou Dominic.
Alexander soltou um suspiro.
— Essa é a parte complicada. São bilhões de mensagens, e os programas que temos para fazer varredura ainda não são bons o bastante. Provavelmente nunca serão. O macete é identificar o endereço do alvo e se concentrar nele. Leva tempo, mas a maioria dos bandidos é preguiçosa sobre como derrubar o sistema... e é difícil seguir o rastro de um bando com diferentes identidades. Esses caras não são super-homens, e não têm microchips ligados nas cabeças. Portanto, quando pegamos um computador do inimigo, a primeira coisa que fazemos é imprimir seus contatos. É como descobrir ouro. Muito embora eles possam às vezes transmitir algaravia, o que faz Fort Meade perder horas ou mesmo dias tentando invadir alguma coisa que talvez não faça nenhum sentido. Os profissionais costumam fazer isso enviando nomes tirados do catálogo telefônico de Riga. Existe jargão em todas as línguas, menos em letão. Mas o maior problema são os linguistas. Não temos muitos falantes de árabe. É algo em que estamos trabalhando em Monterey e algumas universidades. Há um monte de alunos árabes em nossa folha de pagamento. Não aqui no Campus, porém. As boas-novas para nós é que conseguimos as traduções na NSA. Não estamos tão carentes em matéria de linguística.
— Então não estamos aqui para coletar informação, não é? — perguntou Brian.
Dominic já esperava por essa.
— Não. Se puderem arranjar alguma coisa, tudo bem, descobriremos um meio de usá-la. Mas nosso trabalho é agir com base em informação, não acumulá-la.
— Okay, então estamos de volta à pergunta original — observou Dominic. — Qual é a missão, porra?
— O que acha que seja? — retrucou Alexander.
— Acho que é alguma coisa que não deixaria o Sr. Hoover muito satisfeito.
— Correto. Ele era um filho da puta asqueroso, mas um defensor obstinado dos direitos civis. Nós aqui no Campus não somos.
— Continue falando — disse Brian.
— Nosso trabalho é agir em cima de informação. Empreender ação decisiva.
— Não é o termo para aquela tal "ação executiva"?
— Só no cinema — replicou Alexander.
— Por que nós? — perguntou Dominic.
— Olhe, o fato em questão é que a CIA é uma organização governamental. Muito cacique e pouco índio. Quantas agências governamentais encorajam as pessoas a entregar seu pescoço à forca? — perguntou ele. — Mesmo que seja bem-sucedido, advogados e contadores levam você à morte como patos. Assim, se alguém precisa dar partida a esta espiral mortal, a autorização tem que vir de cima, do alto da cadeia de comando. Gradualmente... bem, nem tão gradualmente... as decisões vão até o chefão na Ala Oeste. E não são muitos os presidentes que desejam aquela folha de papel nos seus arquivos pessoais, onde alguns historiadores poderiam encontrá-la e divulgá-la. Assim, queremos distância desse tipo de coisa.
— E não há muitos problemas que não possam ser resolvidos por uma única bala.45 no tempo e lugar certos — disse Brian como bom fuzileiro.
Pete assentiu de novo.
— Correto.
— Portanto, estamos falando de assassinato político? Isso pode ser perigoso — observou Dominic.
— Não, isso tem muitas ramificações políticas. Aquele tipo de coisa que não acontecia há séculos, e não muito frequentemente mesmo naquela época. Contudo, há pessoas por aí que necessitam com certa urgência ir ao encontro de Deus. E às vezes cabe a nós marcar o encontro.
— Droga — disse Dominic.
— Espere aí. Quem autoriza? — perguntou o major Caruso.
— Nós.
— Não o presidente?
Um sacudir de cabeça.
— Não. Como eu disse antes, não há muitos presidentes com cara de pau para dizer sim a uma coisa como esta. Eles se preocupam demais com os jornalistas.
— Mas e quanto à lei? — perguntou o agente especial Caruso, previsivelmente.
— A lei é, como já ouvi um de vocês dizer uma vez tão memoravelmente: se você quiser chutar o rabo de um tigre, é melhor ter um plano para lidar com os dentes dele. Vocês, rapazes, serão os dentes.
— Apenas nós? — especulou Brian.
— Não, não só vocês. Mas quem vocês não precisam saber.
— Merda... — Brian sentou-se em sua cadeira.
— Quem montou este lugar... o Campus?
— Alguém importante. Conseguiu-se uma autorização confidencial. O Campus não tem vínculos com o governo. Nenhum — enfatizou Alexander.
— Portanto, estaremos atirando em pessoas tecnicamente por nossa conta?
— Nem tanto tiro. Há outros métodos. Provavelmente não usarão muito as armas de fogo. Elas são muito difíceis de carregar por aí, com toda essa vigilância nos aeroportos.
— Vamos estar em campo sem proteção? — perguntou Dominic. — Nenhum disfarce?
— Vocês terão um bom disfarce, mas nenhuma proteção diplomática de qualquer espécie. Vão viver de sua perspicácia. Nenhum serviço de inteligência estrangeiro terá qualquer meio de localizá-los. O Campus não existe. Não está no orçamento federal, nem mesmo na parte clandestina. Assim, ninguém pode rastrear qualquer dinheiro para nós. É assim que é feito, claro. É uma das maneiras que temos para rastrear pessoas. A cobertura de vocês será a de empresários internacionais, banqueiros e investidores. Serão instruídos sobre a terminologia, de modo que possam ter uma conversa num avião, por exemplo. Essas pessoas não falam muito sobre o que estão fazendo, para manter seus negócios em estrito segredo. Portanto, se vocês não falarem abertamente, isso não será visto como incomum.
— Agente secreto... — disse Brian baixinho.
— Nós pegamos pessoas que possam pensar por conta própria, que tenham iniciativa e que não desmaiem à visão de sangue. Vocês dois já mataram pessoas no mundo real. Defrontaram-se com o inesperado e cuidaram da situação com eficiência. Nenhum de vocês teve remorsos. Este será o trabalho de vocês.
— E quanto à proteção para nós? — De novo o agente do FBI.
— Existe um cartão de saiam-livres-da-prisão para os dois.
— Cacete — repetiu Dominic. — Não existe nada assim.
— Um perdão presidencial assinado — esclareceu Alexander.
— Porra... — Brian pensou por um segundo. — Foi tio Jack, não foi?
— Não posso responder a isso, mas, se quiserem, podem ver seus perdões antes de entrarem em campo. — Alexander pousou sua xícara de café. — Okay, cavalheiros. Vocês terão alguns dias para refletir, mas precisam tomar a decisão. Não é pouca coisa o que estou pedindo. Não vai ser um trabalho divertido, nem fácil ou agradável, mas servirá aos interesses de sua pátria. Existe um mundo perigoso lá fora. Alguém precisa lidar com isso diretamente.
— E se matarmos o cara errado?
— Dominic, existe esta possibilidade, mas, não importa quem seja, posso prometer que não lhe pedirão para matar a irmãzinha de Madre Teresa. Somos muito cuidadosos no que se refere a nossos alvos. Você saberá quem é, e além disso, como e por que precisamos acabar com ele ou ela, antes de receber suas ordens.
— Matar mulheres? — perguntou Brian. Isto não fazia parte do ethos do Corpo de Fuzileiros.
— Nunca aconteceu até onde sei, mas é uma possibilidade teórica. Assim, se já é o suficiente como aperitivo, vocês precisam pensar a respeito.
— Meu Deus — disse Brian depois que Alexander deixou o recinto. — Se isso foi o aperitivo, qual vai ser o almoço?
— Surpreso?
— Não completamente, Enzo, mas do jeito como ele falou...
— Ei, mano, quantas vezes já pensou por que não podíamos simplesmente cuidar da missão por nossa conta?
— Você é o tira, Enzo. Você é o cara que supostamente devia dizer Ah, merda, está lembrado?
— É, mas aquele que apaguei lá no Alabama... bem, eu... bem... saí um pouco da linha, sabe? Por todo o caminho dirigindo até Washington, pensei em como ia explicar a Gus Werner. Mas ele nem piscou.
— Então, o que você acha?
— Aldo, estou disposto a ouvir um pouco mais. Há um ditado no Texas que diz: Há mais homens precisando ser mortos do que cavalos precisando ser roubados.
A inversão de papéis atingiu Brian mais do que como uma pequena surpresa. Afinal, ele era o maioral nos fuzileiros. Enzo era o cara que tinha sido treinado para ler para as pessoas seus direitos constitucionais antes de algemá-las. Que mais tarde fossem capazes de levar a vida sem pesadelos era óbvio para os irmãos, mas essa coisa agora ia um pouco mais longe. Era assassinato premeditado.
Brian costumava sair em campo com um atirador de elite primorosamente treinado sob seu comando, e sabia que aquilo que faziam tampouco estava muito longe de assassinato. Mas estar de uniforme tornava a coisa diferente. O uniforme dava-lhes uma espécie de absolvição. O alvo era um inimigo, e no campo de batalha a tarefa de cada um era cuidar da própria vida e, se falhasse nisso, bem, a culpa era dele, não do homem que o matasse. Mas aqui a coisa ia além. Eles estariam caçando indivíduos com a deliberada intenção de matá-los, e não era para isso que tinha sido criado e treinado. Usaria roupas civis — e estaria matando pessoas sob aquelas circunstâncias que faziam dele um espião, não um oficial do Corpo de Fuzileiros dos Estados Unidos.
Havia certa honra neste caso, mas quase porra nenhuma no primeiro, ou assim ele tinha sido treinado a pensar. O mundo não tinha mais um Campo de Honra, e a vida real não era um duelo no qual homens usavam armas idênticas e tinham um campo aberto para fazer uso delas. Não, eles tinham sido treinados para planejar suas operações de um modo que desse ao inimigo uma chance, afinal, porque ele tinha homens sob seu comando cujas vidas jurara preservar. Havia regras de combate. Duras, é certo, mas mesmo assim regras. Agora pediam que jogasse aquelas regras para escanteio e se tornasse... o quê? Um assassino de aluguel? Os dentes de uma irracional besta selvagem? O vingador mascarado de algum daqueles filmes antigos na sessão da madrugada? Isso não se enquadrava em seu ordeiro retrato do mundo real.
Quando foi mandado para o Afeganistão, ele não tinha — não tinha o quê? Ele não tinha se disfarçado de peixeiro numa rua da cidade. Não havia nenhuma rua de cidade naquelas malditas montanhas. Tinha sido mais como uma grande caçada, uma na qual a caça tinha suas próprias armas. E havia honra numa caçada assim, e devido aos seus esforços ele ganhara a aprovação de seu país: uma condecoração por bravura em combate que ele poderia ou não exibir. Em tudo e por tudo, era muito a considerar em sua segunda xícara de café da manhã.
— Caramba, Enzo — suspirou.
— Brian, você sabe qual é o sonho de todo tira? — perguntou Dominic.
— Infringir a lei e escapar impune?
Dominic sacudiu a cabeça.
— Tive essa conversa com Gus Werner. Não, nada de infringir a lei, mas apenas uma vez ser a lei. Ser a própria Espada da Vingança de Deus, foi o jeito como ele colocou... matar o culpado sem advogados e babacas afins metendo o bedelho, ver a justiça sendo feita por você mesmo. Isso não acontece com muita frequência, dizem, mas, sabe, eu tive que fazer no Alabama e correu muito bem. Você simplesmente tem que estar seguro de que está empacotando o pilantra certo.
— Como se pode estar seguro? — perguntou Aldo.
— Se você não está, aborta a missão. Eles não podem encanar você por não cometer assassinato, mano.
— Portanto, é assassinato?
— Não, se o pilantra está atacando, não é. — Era um ponto de vista estético, mas importante para alguém que já cometera assassinato sob a blindagem da lei e não sofria pesadelos por isso.
— IMEDIATAMENTE?
— Sim. Quantos homens já temos?
— Dezesseis.
— Ah. — Mohammed tomou um gole de um fino vinho branco francês do Loire. Seu convidado bebia Perrier com limão. — Quais as habilidades linguísticas deles?
— Suficientes, acho.
— Excelente. Diga-lhes que se preparem para viajar. Nós os mandaremos de avião para o México. Lá eles irão se encontrar com nossos novos amigos e depois viajar para os Estados Unidos. E, uma vez chegados lá, podem executar seu trabalho.
— Insh Allah — observou ele. Vontade de Deus.
— Sim, vontade de Deus — disse Mohammed em inglês, lembrando ao convidado a língua que ele deveria estar usando.
Estavam na varanda de um restaurante com vista para o rio, isolados, sem ninguém nas proximidades. Ambos falavam normalmente, dois homens bem-vestidos num jantar amigável, sem nada de secreto ou conspiratório em seu comportamento. Isto exigia certa quantidade de concentração, já que algum grau de postura conspiratória vinha naturalmente para o que eles estavam fazendo. Mas nenhum dos dois era um estranho a tais encontros.
— E então, como é que foi matar o judeu em Roma?
— Foi muito satisfatório, Ibrahim, sentir o corpo dele afrouxar enquanto lhe cortava a espinha, e depois ver o ar de surpresa em seu rosto.
Ibrahim deu um sorriso amplo. Não era todo dia que se matava um agente do Mossad, muito menos um Station Chief. Os israelenses seriam sempre seus inimigos mais odiados, se não os mais perigosos.
— Deus foi bom para nós naquele dia.
A missão Greengold tinha sido um exercício recreativo para Mohammed. Nem havia sido estritamente necessária. Marcar o encontro e alimentar a suculenta informação dos israelenses tinha sido... divertido. Não terrivelmente difícil, tampouco. Embora tão cedo não fosse se repetir. Não, o Mossad não permitiria que nenhum de seus agentes fizesse alguma coisa sem vigiar por algum tempo. Eles não eram idiotas, e haviam aprendido com seus erros. Mas matar um tigre trazia satisfações peculiares. Uma pena que ele não tivesse tirado a pele. Mas onde iria pendurá-la? Não tinha mais residência fixa, apenas uma coleção de casas seguras que poderiam ou não ser totalmente seguras. Mas não podia se preocupar com tudo. Nunca se encontra tudo feito. Mohammed e seus colegas não temiam a morte, só o fracasso. E eles não pretendiam fracassar.
— Preciso dos detalhes do encontro e assim por diante. Posso cuidar da viagem. Nossos amigos fornecerão as armas?
Um assentimento.
— Correto.
— E como seus guerreiros entrarão na América?
— Isso é problema dos nossos amigos. Mas vocês mandarão primeiro um grupo de três, para ter certeza de que os arranjos estão satisfatoriamente seguros.
— Claro. — Eles conheciam tudo sobre segurança operacional. Houvera muitas lições, nenhuma delas agradável. Membros de sua organização povoavam muitas prisões ao redor do mundo, aqueles que foram azarados o bastante para ter evitado a morte. Esse era um problema, um que sua organização nunca fora capaz de resolver. Morrer em ação, que era nobre e corajoso. Ser capturado por um policial como um criminoso comum era ignóbil e humilhante, mas de algum modo seus homens achavam preferível morrer sem levar a cabo uma missão. E as prisões ocidentais não eram afinal tão terríveis para muitos dos seus colegas. Confinantes, talvez, mas pelo menos a comida era regular, e as nações ocidentais não violavam seus preceitos dietéticos. Estas nações eram tão fracas e tolas em relação a seus inimigos! Elas demonstravam misericórdia para com aqueles que nada lhes dariam em troca. Mas isso não era culpa de Mohammed.
— CACETE — disse Jack. — Era seu primeiro dia no lado extraoficial da casa. Seu treinamento em altas finanças transcorreu muito rapidamente, em virtude de sua formação. Seu avô Muller o ensinara bem durante suas visitas esporádicas ao lar da família. Ele e o pai de Jack eram corteses um com o outro, mas vovô Joe achava que homens de verdade trabalhavam no ramo empresarial em vez de no mundo sujo da política — embora tivesse que admitir, claro, que seu genro se saíra muito bem em Washington. Mas o dinheiro que podia ter ganho em Wall Street... por que um homem virava as costas a isso? Muller nunca expressara isso ao pequeno Jack, lógico, mas sua opinião era bem clara. De qualquer modo, Jack podia ter obtido um emprego de iniciante capaz de abrir portas em qualquer das maiores casas, e provavelmente progrediria muito rápido a partir daí. Mas o que importava agora era que tinha navegado pelo lado financeiro do Campus e estava agora no Departamento de Operações — na verdade não tinha esse nome, mas era assim chamado por seus integrantes. — Elas são tão boas?
— Elas o que, Jack?
— As radioescutas da NSA. — Ele entregou a folha. Tony Wills leu. A interceptação havia identificado um notório associado dos terroristas — exatamente que função ele desempenhava ainda não se sabia, mas tinha sido positivamente identificado a partir da análise do registro vocal.
— São os fones digitais. Eles geram um sinal muito claro, fácil para o computador de registro vocal identificar as vozes. Vejo que ainda não identificaram o outro cara. — Wills devolveu a folha.
A natureza da conversa era inócua, tanto que qualquer um podia imaginar por que a chamada fora completada. Mas algumas pessoas simplesmente gostavam de jogar conversa fora no telefone. E talvez estivessem falando em código, discutindo guerra biológica, ou uma campanha para lançar bombas sobre Jerusalém. Talvez. Mais provavelmente, estivessem apenas gastando tempo. Havia um bocado disso na Arábia Saudita. O que impressionava Jack era que a ligação tinha sido detectada e lida em tempo real.
— Bem, você sabe como os telefones digitais funcionam, certo? Eles estão sempre transmitindo o sinal AQUI ESTOU para a célula local, e cada telefone tem seu código de endereçamento particular. Uma vez que identifiquemos esse código, é só uma questão de ouvir quando o telefone toca, ou se o dono do telefone faz uma ligação. De modo similar, podemos identificar o número e telefone de quem está ligando. A parte mais difícil é obter a identidade em primeiro lugar. Agora eles têm outra identificação do telefone a ser monitorada por computador.
— Quantos telefones eles têm que rastrear? — perguntou Jack.
— Simplesmente mais de 100 mil, e isso só no Sudoeste Asiático. Quase todos são poços secos, exceto para um em 10 mil que tenha alguma utilidade... e às vezes eles podem mostrar resultados reais — disse Wills.
— Então, para captar uma ligação fria, um computador ouve e tecla as palavras quentes?
— Palavras quentes e nomes quentes. Infelizmente, tem muita gente chamada Mohammed naquelas bandas... é o prenome mais popular do mundo. Boa parte deles usa apelidos ou patronímicos. Outro problema é que existe um grande mercado de telefones clonados... são clonados na Europa, especialmente em Londres, onde a maior parte dos telefones tem software internacional. Ou um cara pode obter seis ou sete telefones, usa uma vez e joga fora. Eles não são burros. Mas podem ficar superconfiantes. Algum deles acaba nos contando um monte de coisas, que podem ser ocasionalmente úteis. Isso tudo vai para o grande livro NSA/CIA, ao qual temos acesso em nossos terminais.
— Okay, quem é este cara?
— Chama-se Uda bin Sali. De família rica, amigos íntimos do rei. O papaizão é um antigo banqueiro saudita. Tem onze filhos e nove filhas. Quatro esposas, um homem de vigor elogiável. Não é um sujeito mau, aparentemente, mas um pouco generoso demais com os filhos. Dá-lhes dinheiro em vez de atenção, como um chefão de Hollywood. Este Uda descobriu Alá no fim da adolescência, e pertence à extrema direita do ramo Wahabi do islamismo sunita. Não gosta muito de nós, esse rapaz que rastreamos. Ele pode ser um agente das movimentações bancárias deles. Seu arquivo da CIA traz uma foto. Ele tem seus 27, 28 anos, corpo esguio, barba caprichosamente tratada. Voa muito para Londres. Gosta de mulheres que possa contratar por hora. Ainda não se casou. Isso não é comum, mas se ele é gay, esconde muito bem. Os britânicos botaram garotas em sua cama. Elas relataram que ele é vigoroso, o que não é nenhuma novidade na idade dele, e razoavelmente inventivo.
— Diabo de coisa para um agente de inteligência treinado — observou Jack.
— Diversos serviços recorrem a prostitutas — explicou Wills. — Elas não se importam em falar, e pela quantidade certa de grana farão praticamente tudo. Este Uda gosta da posição frango assado. Eu mesmo nunca tentei. Especialidade asiática. Sabe como acessar o dossiê dele?
— Ninguém me ensinou — replicou Jack.
— Okay. — Wills deslizou na sua cadeira de rodinhas e demonstrou. — Este é o índice geral. Sua senha de acesso é SOUTHWEST91.
Junior digitou a senha e o dossiê surgiu como um arquivo gráfico Acrobat.
A primeira foto era provavelmente do passaporte, seguida por seis outras, num formato mais informal. Jack Jr. conseguiu não enrubescer. Ele havia curtido sua parcela de Playboy enquanto crescia, mesmo em escolas católicas. Wills continuou com a lição do dia.
— Você pode aprender muito a partir de como um cara age com as mulheres. Langley tem um psicanalista que analisa isso detalhadamente. Vai ser provavelmente um dos anexos neste arquivo. Lá eles chamam de informação Nuts & Slots, Pirados e Piranhas. O médico se chama Samuel Pizniak, professor da Escola de Medicina de Harvard. Pelo que me recordo, ele diz que este garoto é normal em seus impulsos, dada a idade, liquidez e formação social. Como vai9 ver, ele anda muito com banqueiros de negócios em Londres, como um novato aprendendo o negócio. O que se diz é que é esperto, afável e bonito. Cuidadoso e conservador ao lidar com dinheiro. Ele não bebe. Assim, é de certa forma religioso. Não condena a bebida nem censura os outros em relação a isto, mas vive de acordo com as regras principais de sua religião.
— E o que o torna importante? — perguntou Jack.
— Ele fala muito com pessoas que conhecemos. Não há nenhuma palavra sobre com quem ele se comunica em saudita. Jamais colocamos qualquer cobertura sobre ele no seu quintal dos fundos. Nem mesmo os britânicos o fizeram, e eles têm muito mais condições para isso. A CIA não tem muita coisa, e o perfil dele não é importante o bastante para merecer um estudo mais detalhado, ou assim acham eles. É uma vergonha. O pai parece um bom sujeito. Vai ficar arrasado quando descobrir que o filho está andando com o pessoal errado em casa. — Com esta sabedoria partilhada, Wills voltou para seu próprio local de trabalho.
Junior examinou o rosto na tela de seu computador. Sua mãe era muito boa em ler as pessoas ao primeiro olhar, mas esta era uma habilidade que ela não transmitira a ele.
Jack tinha grande dificuldade em decifrar as mulheres — assim como a maioria dos homens no mundo, consolou-se. Continuou a olhar para o rosto, tentando ler a mente de alguém a milhares de quilômetros de distância, que falava uma língua diferente e professava outra religião. Que pensamentos circulavam por trás daqueles olhos? Seu pai, ele sabia, gostava dos sauditas. Era especialmente ligado a Ali bin Sultan, um príncipe e alto funcionário do governo saudita. O jovem Jack o havia conhecido, mas só superficialmente. Uma barba e um senso de humor eram as únicas coisas de que se lembrava. Uma das crenças essenciais de Jack sênior era que todos os homens eram fundamentalmente iguais, e ele transmitiu essa opinião para o filho. Mus também significava que, tal como havia gente má nos Estados Unidos, o mesmo se dava em qualquer lugar do mundo, e seu país recebera recentemente algumas duras lições deste triste fato. Infelizmente, o presidente em exercício ainda não imaginara o que fazer a este respeito.
Junior leu todo o dossiê. Então, foi dessa maneira que tudo começou aqui no Campus. Ele estava trabalhando num caso — participando dos trabalhos em algum tipo de caso, corrigiu-se. Uda bin Sali estava trabalhando para ser banqueiro internacional. Com toda certeza movimenta dinheiro por aí. Dinheiro do pai?, especulou Jack. Se era, o pai não passava de um filho da puta muito rico. Negociava com todos os grandes banqueiros de Londres — Londres ainda era a capital financeira do mundo. Jack nunca teria adivinhado que a NSA tinha habilidade para invadir esse tipo de coisa. Cem milhões aqui, cem milhões ali, e muito em breve se falava em dinheiro de verdade.
Sali estava tentando manter o valor do capital, que não só significava crescimento do dinheiro a ele confiado como assegurava que o cofre tinha uma fechadura realmente boa. Havia 71 contas subsidiárias, 63 das quais eram identificadas por banco e senha, assim parecia. Garotas? Política? Esportes? Administração financeira? Carros? Negócios com petróleo? O que fazia ricos principezinhos sauditas falarem a respeito?
Este era um ponto em branco nos arquivos. Por que os britânicos não ouviam? As entrevistas com suas prostitutas não haviam revelado muito, exceto que ele era um bom informante para aquelas garotas que lhe tinham proporcionado momentos especialmente bons na sua casa em Berkeley Square... uma parte da cidade reservada a grandes transações, percebeu Jack. Ele circulava principalmente de táxi. Tinha carro — um Aston Martin preto conversível, nada menos —, mas não dirigia muito, revelava o informe britânico. Não tinha chofer. Ia muito à embaixada. Em tudo e por tudo, era um monte de informação que não revelava muita coisa. Ele assinalou isso para Tony Wills.
— É, eu sei, mas se ele se tornar muito enxerido, pode estar certo de que há duas ou três coisas ali que deviam ter pulado fora da página para você. Esse é o problema com essa porra de atividade. E lembre-se: estamos vendo o material processado. Algum pobre coitado teve que pegar dados realmente brutos e filtrá-los até chegar a isso. Que fatos significativos se perderam ao longo do caminho? Não há como dizer, meu garoto. Não há como dizer.
Isso é o que meu pai costumava fazer, pensou Jack se recordando. Tentar encontrar diamantes num balde cheio de merda. De algum modo, ele havia esperado que fosse mais fácil. Muito bem, o que tinha que ser feito então era descobrir movimentações financeiras não facilmente explicadas. Esta era a pior parte do trabalho chato, e ele nem sequer tinha o pai para aconselhá-lo. Seu pai provavelmente teria pulado ao saber que estava trabalhando ali. A mãe tampouco ficaria muito entusiasmada. Por que isso importava? Ele já não era um adulto agora, capaz de fazer o que entendesse com sua vida? Não exatamente. Os pais tinham um poder sobre os filhos que nunca acabava. Ele sempre tentou agradá-los, mostrar a eles que tinha sido criado da maneira correta e que estava fazendo a coisa certa. Ou algo parecido. Seu pai teve sorte. As pessoas nunca souberam de todas as coisas que ele tinha sido obrigado a fazer. Do contrário, teriam gostado?
Não. Os pais dele teriam ficado contrariados — furiosos — com todos os riscos que ele assumiu na vida. E isso era o que o filho sabia. Havia muitos pontos em branco em sua memória, épocas em que seu pai não estivera em casa e mamãe não explicara por quê. Agora, aqui estava ele, se não fazendo a mesma coisa, pelo menos era para lá de certo que seguia na mesma direção... Bem, seu pai sempre disse que o mundo era um lugar louco, portanto aqui estava ele, imaginando o quanto louco podia realmente ser.
7
EM TRÂNSITO
COMEÇOU NO LÍBANO, com um voo para Chipre. De lá, um voo da KLM para o Aeroporto Schipol, Holanda, e de lá para Paris. Na França, os 16 homens que passaram a noite distribuídos em oito hotéis, aproveitando o tempo para caminhar pelas ruas e exercitar seu inglês — havia bem pouco sentido em fazê-los aprender francês, afinal — e pelejar com uma população local que podia ser mais prestativa. A boa notícia, como eles notaram, era que certas mulheres francesas desviavam-se do caminho delas para falar um inglês correto, e foram de fato muito úteis. Por uma gorjeta.
Eram gente comum em muitos detalhes, todos no fim da casa dos vinte, bem barbeados, medianos em tamanho e aparência, porém mais bem vestidos que a média.
Todos escondiam bem sua inquietação, embora com olhares furtivos mas prolongados para os guardas que viam — todos sabiam não atrair atenção de qualquer um em uniforme de policial. A polícia francesa tinha uma reputação para minúcias que os novos visitantes detestavam. Estavam viajando no momento com passaportes do Catar, razoavelmente seguros, mas um passaporte expedido pelo próprio Ministério das Relações Exteriores francês não era garantia contra um interrogatório dirigido. Portanto, eles se mantinham discretos. Todos tinham sido instruídos a não olhar muito em torno, a ser educados e fazer um esforço para sorrir para cada um que encontrassem. Felizmente era a temporada de turismo na França, e Paris estava abarrotada de gente como eles, muitos dos quais também falavam pouco francês, causando um desdém divertido entre os parisienses, que em cada caso levavam o dinheiro deles, de qualquer modo.
O CAFÉ DA MANHÃ DO DIA SEGUINTE ocorrera sem novas revelações explosivas, e o mesmo se deu no almoço. Os irmãos Caruso ouviam as aulas de Pete Alexander fazendo o melhor possível para não cochilar, porque eram repetitivas demais.
— Tedioso, vocês acham? — perguntou Pete no almoço.
— Bem, nada disso é de sacudir a terra — respondeu Brian após alguns segundos.
— Vocês acharão um pouco diferente numa cidade estrangeira, saindo à rua num mercado, digamos, olhando para seu alvo em meio à multidão de alguns milhares. A parte importante é ficarem invisíveis. Trabalharemos nisso à tarde. Já teve alguma experiência semelhante, Dominic?
— Na realidade, não. Apenas o básico. Não olhar muito diretamente para o alvo. Roupas reversíveis. Gravatas diferentes, se estiverem num ambiente que exija gravata. E a gente depende de outros para se desligar em cobertura. Mas não vamos ter o apoio que temos no FBI para uma vigilância discreta, vamos?
— Nem perto disso. Portanto, mantenham distância um do outro até a hora de entrar em ação. Neste momento vão se mover tão rapidamente quanto as circunstâncias permitam...
— E apagar o cara? — indagou Brian.
— Ainda incomodado com isso?
— Não abandonei o barco ainda, Pete. Digamos que tenho minhas preocupações, e não se toca mais no assunto.
Alexander assentiu.
— É justo. Preferimos gente que saiba pensar, e sabemos que pensar acarreta suas próprias penalidades.
— Acho que é assim que você tem que encarar a coisa. E se o cara que vamos apagar de repente acontece de estar limpo? — perguntou o fuzileiro.
— Nesse caso, você volta atrás e relata. É teoricamente possível que uma missão possa estar incorreta, mas, em toda a minha experiência nunca aconteceu.
— Nunca?
— Nunca, nem uma vez — assegurou-lhe Alexander.
— Registros perfeitos me deixam nervoso.
— Tentaremos ser cuidadosos.
— Quais são as regras? Okay, talvez eu não precise saber... neste exato momento... quem é que manda matar alguém, mas seria bom saber quais os critérios que estão escritos na sentença de morte de algum fodido, sabe?
— Será alguém que, direta ou indiretamente, causou a morte de cidadãos americanos, ou que esteja diretamente envolvido em planos para fazer isso no futuro. Não estamos atrás de pessoas que cantam alto demais na igreja ou que tenham livros da biblioteca com prazo vencido.
— Está falando de terroristas, certo?
— É isso — replicou Pete.
— Por que simplesmente não os prendem? — perguntou Brian.
— Como vocês fizeram no Afeganistão?
— Aquilo foi diferente — protestou o fuzileiro.
— Como? — perguntou Pete.
— Bem, para começar éramos combatentes uniformizados no campo de batalha sob as ordens de autoridade de comando legalmente constituída.
— Você tomou alguma iniciativa, certo?
— Espera-se que oficiais usem suas cabeças. Minhas ordens gerais de missão, contudo, vieram da cadeia de comando.
— E não questionou seus superiores?
— Não. A não ser que estivessem loucos, ninguém teoricamente faria isso.
— E o que me diz de quando não fazer alguma coisa é loucura? — perguntou Pete. — E se você tiver uma chance de empreender ação contra pessoas que estão planejando fazer algo muito destrutivo?
— É para isso que servem a CIA e o FBI.
— Mas e quando eles não podem fazer o serviço, por uma ou outra razão, então o quê? Você simplesmente deixa que os bandidos vão em frente com seus planos para cuidar deles depois? Isso pode custar muito caro — disse-lhe Alexander. — Nossa tarefa é fazer as coisas necessárias quando os métodos convencionais são incapazes de executar a missão.
— Com que frequência? — Desta vez foi Dominic, tentando proteger o irmão.
— Está aumentando.
— Quantas vezes foram bem-sucedidos? — Brian de novo.
— Vocês não precisam saber.
— Ah, essa é muito boa — observou Dominic com um sorriso.
— Paciência, rapazes. Vocês ainda não são sócios do clube — disse Pete, esperando que fossem espertos o bastante para não objetar.
— Okay, Pete — disse Brian, após pensar por um momento. — Ambos demos nossa palavra de que o que aprendêssemos aqui ficaria aqui. Ótimo. Só que assassinar pessoas a sangue-frio não é exatamente aquilo para que fui treinado, sabe?
— Aparentemente você não se sente bem a esse respeito. Lá no Afeganistão você algum dia atirou em alguém olhando para o outro lado?
— Dois deles — admitiu Brian. — Ei, o campo de batalha não tem nada a ver com as Olimpíadas — ele parecia protestar.
— Nem o restante do mundo, Aldo. — A expressão no rosto do fuzileiro dizia: Bem, nesta você me pegou. — É um mundo imperfeito, caras. Se quiserem tentar torná-lo perfeito, vão em frente, mas já foi tentado antes. Eu mesmo tomei partido por alguma coisa mais segura e mais previsível. Imaginem se alguém tivesse cuidado de Hitler em 1934 ou de Lenin em 1915, na Suíça. O mundo teria sido melhor, não acham? Ou talvez ruim de um modo diferente. Mas não estamos nesse ramo. Não vamos nos envolver em assassinatos políticos. Estamos atrás dos pequenos tubarões que matam gente inocente de uma maneira que os procedimentos convencionais não podem manipular. Não é o melhor sistema, sei disso. Todos sabemos disso. Mas existe alguma coisa, e vamos tentar ver se funciona. Não pode ser muito pior do que o que já temos, não é?
Os olhos de Dominic jamais deixaram o rosto de Pete durante este discurso. Ele simplesmente lhes contara algo que talvez não tencionasse. O Campus ainda não dispunha de assassinos. Eles seriam os primeiros. Deveria haver muita esperança depositadas neles. E era muita responsabilidade. Mas tudo fazia sentido. Era óbvio que Alexander não estava ensinando sua própria experiência do mundo real. Esperava-se que um agente de treinamento fosse alguém que tivesse realmente ido lá e feito a coisa. Era por isso que a maior parte dos instrutores na Academia do FBI eram agentes de campo experimentados. Podiam dizer como parecia a coisa. Pete só podia dizer o que tinha de ser feito. Mas por que então haviam escolhido ele e Aldo?
— Entendo seu ponto, Pete — disse Dominic. — Não estou saindo ainda.
— Nem eu — disse Brian a seu oficial de treinamento. — Só quero saber quais são as regras.
Pete não lhes disse que estavam fazendo as regras enquanto eles prosseguiam. Imaginavam que uma sairia muito em breve.
AEROPORTOS SÃO IGUAIS em todo o mundo. Instruídos a ser educados, todos eles passaram pelo check-in, esperaram nos saguões certos, fumaram seus cigarros nas áreas destinadas aos fumantes e leram os livros comprados nos quiosques do aeroporto. Ou assim fingiam. Nem todos eles possuíam as habilidades linguísticas que teriam desejado. Uma vez no ar, comiam as refeições de companhia aérea e a maioria tirava uma soneca de avião. Quase todos sentavam-se nas fileiras atrás de suas seções, e quando se agitavam, imaginavam quais de seus colegas poderiam reencontrar dentro de poucos dias ou semanas, por mais tempo que levasse para especificar os detalhes. Cada um deles esperava ir ao encontro de Alá em breve e usufruir das recompensas que viriam por lutar na sua Causa Santa. Ocorria ao mais intelectual deles que até mesmo Maomé, bênçãos e paz estejam sobre ele, era limitado em sua capacidade de comunicar a natureza do Paraíso. Ele tivera de explicar isso ao povo sem nenhum conhecimento de aviões a jato, automóveis e computadores. Qual era então a verdadeira natureza do Paraíso? Tinha de ser tão completamente maravilhosa a ponto de desafiar a descrição, mas, mesmo assim, um mistério ainda a ser descoberto. E eles iam descobrir. Havia um grau de excitamento nesse pensamento, uma espécie de antecipação sublime demais para discutir com colegas. Um mistério, mas um mistério infinitamente desejável. E se outros também tivessem de conhecer Alá, como consequência, bem, isto estava igualmente escrito no Grande Livro do Destino. Por enquanto, eles todos tiravam seus cochilos, dormindo o sono dos justos, o sono dos Mártires Santos ainda a ser. Leite, mel e virgens.
SALI, DESCOBRIU JACK, tinha algum mistério. O arquivo da CIA sobre o sujeito tinha até mesmo o comprimento de seu pênis anexado à seção Pirados e Piranhas. As prostitutas britânicas diziam que ele era mais ou menos mediano em tamanho mas incomumente vigoroso em aplicação — e dava boas gorjetas, o que tinha apelo para suas sensibilidades comerciais. Mas, ao contrário da maioria dos homens, ele não falava muito de si mesmo. Falava principalmente sobre o clima de Londres e coisas lisonjeiras de sua companhia no momento, que apelava à vaidade dela.
Seu ocasional presente de uma bela bolsa — Louis Vuitton na maioria das vezes — caía bem com suas garotas, duas das quais ligadas à Thames House, a nova sede tanto do serviço secreto britânico quanto do Serviço de Segurança. Jack especulava se elas estariam sendo pagas tanto por Sali quanto pelo governo de Sua Majestade por serviços prestados. Provavelmente um bom negócio para as garotas envolvidas, tinha certeza, embora Thames House provavelmente não fosse explodir por causa de sapatos e uma bolsa.
— Tony?
— Sim, Jack? — Wills olhou de seu posto de trabalho.
— Como sabemos se este Sali é bandido?
— Não temos certeza. Não até que ele faça realmente alguma coisa, ou interceptemos uma conversa entre ele e alguém de quem não gostamos.
— Então, estou apenas checando este pássaro.
— Correto. Você vai fazer muito disso. Já tem algum perfil do cara?
— Ele é um filho da puta tesudo.
— É difícil ser rico e solteiro, caso ainda não tenha notado, Junior.
Jack pestanejou. Talvez estivesse indo para o mesmo caminho.
— Certo, mas duvido que eu pagasse por isso, e ele está pagando muito.
— O que mais? — perguntou Wills.
— Ele não fala porra nenhuma.
— E o que isto lhe diz?
Ryan se recostou em sua cadeira giratória e pensou a respeito. Ele não falava muito com suas namoradas, tampouco, pelo menos não sobre seu novo emprego. Tão logo você dissesse gerenciamento financeiro, a maioria das mulheres tendia a cochilar em autodefesa. Isto significava alguma coisa? Talvez Sali simplesmente não fosse um tagarela. Talvez estivesse seguro de que não sentia necessidade de suas mulheres com nada mais senão dinheiro — ele sempre usava dinheiro, não cartões de crédito. E por que isso? Para evitar que a família soubesse? Bem, Jack também não falava com os pais sobre sua vida amorosa. De fato, raramente levava uma namorada à casa da família. A mãe costumava espantar as garotas. Não seu pai, por mais estranho que parecesse. A Dra. Ryan impressionava as outras mulheres como poderosa, e enquanto a maioria das jovens achava isso admirável, muitas outras também achavam para lá de intimidante. Seu pai se desligava de todo o aparato de poder e se apresentava aos convidados da família como um esbelto e distinto urso de pelúcia de cabelos grisalhos. Mais do que qualquer outra coisa, seu pai gostava de jogar bola com o filho no gramado em frente à baía Chesapeake, talvez lembrando uma época mais simples. Ele tinha Kyle para isso. O mais novo dos Ryan estava na escola primária, numa fase em que ainda fazia perguntas furtivas sobre Papai Noel, mas só quando papai e mamãe não estavam por perto. Havia provavelmente um garoto na turma que queria deixar que todos soubessem o que ele sabia — sempre há um desses — e Katie estava mais esperta agora. Ela ainda gostava de brincar com bonecas, mas sabia que papai e mamãe as compravam na Toys R Us em Glen Burnie, e reunia todas elas na véspera de Natal, um processo que seu pai adorava, por mais que tentasse disfarçar. Quando se deixava de acreditar em Papai Noel, toda a porra do mundo simplesmente começava a deslizar ladeira abaixo...
— Isso nos diz que ele não é um tagarela. Não muita coisa — disse Jack após refletir um pouco. — Não pretendemos converter inferências em fatos, não é mesmo?
— Correto. Muita gente pensa de outra forma, mas não aqui. Presunção é a mãe de todas as cagadas. Aquele psicanalista em Langley é especialista em firmas isoladas. Ele é bom, mas é preciso aprender a distinguir entre especulação e fatos. Portanto, fale sobre o Sr. Sali — ordenou Wills.
— Ele é tesudo e não é de falar muito. Usa o dinheiro da família de modo muito conservador.
— Alguma coisa que o faça parecer um bandido?
— Não, mas vale a pena ficar de olho nele por causa de seu... bem, extremismo religioso é a expressão errada. Há algumas coisas faltando aqui. Ele não é turbulento, não é exibido como os ricos de sua idade costumam ser. Quem iniciou o arquivo sobre ele? — perguntou Jack.
— Os britânicos. Alguma coisa neste cara despertou o interesse de um de seus principais analistas. Então Langley deu uma breve olhada e começou o seu próprio arquivo. Depois ele foi grampeado falando com um sujeito também fichado em Langley... a conversa não era sobre nada importante, mas aconteceu — explicou Wills. — E, você sabe, é bem mais fácil abrir um arquivo do que fechar um. Seu celular está codificado nos computadores da NSA, e assim eles reportam toda vez que liga o aparelho. Estive examinando o arquivo e também acho que vale a pena ficar de olho nele... mas não sei com certeza por quê. Neste ramo a gente aprende a confiar nos instintos, Jack. Portanto, estou designando-o para ser o especialista da casa neste garoto.
— E estou procurando como ele manipula seu dinheiro...?
— Isso mesmo. Sabe, não custa muito financiar um bando de terroristas... pelo menos não muito pelos cálculos dele. Um milhão por ano é muito dinheiro para aquela gente. Eles vivem de modo frugal, e suas despesas de manutenção não são muito altas. Assim, você deve procurar pelas beiradas. As chances são de que ele tentará esconder o que quer que esteja fazendo à sombra das suas grandes transações.
— Não sou contador — assinalou Jack. Seu pai se diplomou em contabilidade muito tempo atrás, mas nunca exerceu, nem para fazer seu próprio imposto de renda. Tinha uma firma de advocacia para isso.
— É bom em aritmética?
— Bem, sim.
— Então, cole o nariz nisso.
Ótimo, pensou John Patrick Ryan Jr. Então ele se lembrou de que as verdadeiras operações de inteligência nada tinham a ver com matar-o-bandido-e-comer-a-mocinha enquanto os créditos passavam. Isso era só nos filmes. Aqui era o mundo real.
— NOSSO AMIGO ESTÁ COM TANTA PRESSA assim? — perguntou Ernesto, surpreso.
— Parece. Os americanos têm sido duros com eles ultimamente. Imagino que queiram lembrar a seus inimigos que ainda têm dentes. Uma questão de honra para eles, talvez — especulou Pablo. Seu amigo entenderia com presteza.
— Então, o que fazemos agora?
— Quando eles estiverem acomodados na Cidade do México, providenciamos transporte para os Estados Unidos e, presumo, fornecemos armas.
— Complicações?
— Se os americanos penetrarem em nossas organizações, podem ter algum tipo de aviso, além de pistas de nosso envolvimento. Mas também já levamos isso em consideração.
Haviam considerado brevemente, sim, refletiu Ernesto, mas tinha sido a uma distância conveniente. Agora a campainha da porta estava tocando, e era preciso pensar mais. Mas ele não podia descumprir o acordo. Também era uma questão tanto de honra quanto de negócio. Estavam preparando um embarque inicial de cocaína para a União Europeia. Que prometia ser realmente um mercado de bom tamanho.
— Quantas pessoas estão vindo?
— Quatorze, diz ele. Não trazem armas.
— Do que precisam?
— Automáticas leves devem servir, mais pistolas, claro — disse Pablo. — Temos um fornecedor no México que pode cuidar disso por menos de 10 mil dólares. Por mais 10 mil, podemos ter as armas entregues nos Estados Unidos, para evitar complicações na travessia.
— Bueno, faça isso. Vai ao México?
Pablo assentiu.
— Amanhã de manhã. Vou colocá-los em contato com os coyotes nesta primeira vez.
— Tem que ser cauteloso — assinalou Ernesto.
Suas sugestões tinham a força de um artefato explosivo. Pablo assumia riscos, mas seus serviços eram muito importantes para o Cartel. Seria difícil substituí-lo.
— É claro, jefe. Preciso avaliar o quanto essas pessoas são confiáveis, se são elas que vão nos dar assistência na Europa.
— Sim, é isso aí — concordou Ernesto cautelosamente. Como acontecia com a maioria dos acordos, quando chegava a hora de entrar em ação havia segundos pensamentos. Mas ele não era nenhuma velha. Nunca teve medo de agir decisivamente.
O AIRBUS AVANÇOU PARA O portão, os passageiros da primeira classe tiveram permissão para descer primeiro e seguiram as setas coloridas no piso rumo à imigração e alfândega, onde garantiram aos funcionários uniformizados que nada tinham a declarar. Seus passaportes foram devidamente carimbados e saíram para recolher as bagagens.
O líder do grupo se chamava Mustafa. Saudita de nascimento, estava bem barbeado, do que não gostava, embora isso expusesse a pele que as mulheres pareciam apreciar. Ele e seu colega Abdullah caminharam juntos até as malas, e depois para onde seus transportadores deveriam estar esperando. Este seria o primeiro teste dos novos amigos no hemisfério ocidental. Realmente, alguém estava segurando um cartão quadrado com o nome MIGUEL impresso nele. Era o codinome de Mustafa para a missão, e ele se adiantou para apertar a mão do homem. O cumprimentado não disse nada, mas gesticulou para que o seguisse. Lá fora aguardava uma minivan Plymouth marrom. As malas foram guardadas na traseira e os passageiros se sentaram no banco do meio. Fazia calor na Cidade do México, e o ar era mais pesado do que qualquer coisa que já tivessem experimentado. O que deveria ser um dia ensolarado estava arruinado por um cobertor cinza sobre a cidade — poluição atmosférica, pensou Mustafa.
O motorista continuou mudo enquanto os levava para o hotel. Isso realmente os impressionou. Se não há nada a dizer, então se fica calado.
O hotel era bom, como esperado. Mustafa se registrou com um cartão Visa falso, e em cinco minutos ele e o amigo estavam num espaçoso quarto no quinto andar. Deram uma olhada antes de falar para ver se havia grampos óbvios.
— Pensei que aquele maldito voo nunca terminaria — resmungou Abdullah, procurando água mineral no frigobar. Haviam sido instruídos a não beber aquela coisa que saía das torneiras.
— Sim, concordo. Dormiu bem?
— Não muito. Acho que a única coisa boa do álcool é que ele deixa a gente inconsciente.
— Alguns. Nem todos — disse Mustafa ao amigo. — Há outras drogas para isso.
— Aquelas são odiosas para Deus — observou Abdullah. — A não ser que receitadas por um médico.
— Temos amigos agora que não pensam assim.
— Infiéis — quase cuspiu Abdullah.
— O inimigo de seu inimigo é seu amigo.
Abdullah torceu a tampa de uma água Evian.
— Não. Você pode confiar num amigo de verdade. Podemos confiar nesses homens?
— Apenas enquanto precisarmos — concedeu Mustafa. Mohammed tinha sido cuidadoso em negociar a missão. Esses novos aliados os ajudariam apenas por uma questão de conveniência, porque também desejavam ferir o Grande Satã. O que era bom por enquanto. Algum dia esses aliados se tornariam inimigos, e teriam que lidar com eles. Mas esse dia ainda não chegara. Ele bocejou. Era hora de algum repouso. O dia seguinte seria atarefado.
JACK MORAVA NUM CONDOMÍNIO em Baltimore, a poucos quarteirões do campo dos Orioles em Camden Yards, onde tinha ingressos para toda a temporada, mas às escuras agora porque o time estava em Toronto. Não sendo bom cozinheiro, comeu fora como geralmente fazia, sozinho desta vez porque não tinha uma namorada, o que não era tão incomum quanto teria desejado. Ao terminar, voltou ao condomínio e ligou a TV. Pensou melhor e foi para o computador verificar seu e-mail e surfar na internet. Foi quando fez uma anotação para si mesmo. Sali também vivia sozinho, e embora com frequência tivesse prostitutas como companhia, não era todas as noites. E o que fazia nas outras noites? Ficava no computador? Muita gente o fazia. Os britânicos teriam os telefones dele grampeados?
Deviam ter. Mas o arquivo sobre Sali não incluía e-mails... por quê? Valia a pena investigar.
NO QUE ESTÁ PENSANDO, ALDO? — perguntou Dominic ao irmão. A ESPN transmitia um jogo de beisebol, e os Mariners estavam derrotando os Yankees.
— Não sei se gosto da ideia de abater um pobre sacana no meio da rua, mano.
— E se você souber que ele é um bandido?
— E se eu apagar o cara errado só porque ele dirige o mesmo tipo de carro e usa o mesmo bigode? E se ele deixa esposa e filhos? Nesse caso sou um assassino escroto... um matador de aluguel, de fato. Isso não é a espécie de coisa que nos ensinam no curso elementar, está entendendo?
— Mas se você sabe que ele é um bandido, como é que fica? — perguntou o agente do FBI.
— Ei, Enzo, isso tampouco é o que você foi treinado para fazer.
— Sei disso, mas aqui é uma situação diferente. Se eu sei que o sacana é um terrorista, e sei que não podemos prendê-lo, e sei que ele tem mais planos, nesse caso acho que posso cuidar disso.
— Lá nas montanhas do Afeganistão, você sabe, nosso setor de inteligência nem sempre era confiável, cara. Claro, aprendi a botar o meu na reta, mas não o de algum outro pobre fodido.
— As pessoas que você perseguia lá... quem elas matavam?
— Ei, elas eram parte de uma organização que fazia guerra aos Estados Unidos. Provavelmente não eram escoteiros. Mas nunca vi evidência direta disto.
— Mas e se tivesse? — perguntou Dominic.
— Mas não tive.
— Você tem sorte — respondeu Enzo, lembrando-se de uma garotinha cuja garganta fora cortada de uma orelha à outra. Havia um adágio legal de que casos difíceis fazem lei ruim, mas os livros não podiam prever todas as coisas que as pessoas faziam. Tinta preta em papel branco era um pouco seco demais às vezes para o mundo real. Mas ele sempre tinha sido o mais passional dos dois. Brian era sempre mais tranquilo, como Fonzie em Happy Days1. Gêmeos, sim, mas fraternos, não idênticos. Dominic puxou mais ao pai, italiano e passional. Brian saíra mais à mãe, mais fria, de um clima mais setentrional. Para alguém de fora, as diferenças teriam parecido menos do que triviais, mas para os próprios gêmeos isso era frequentemente motivo para sopapos e piadas. — Quando vir isso, Brian, quando estiver bem aqui diante de você, isso o abala, cara. Acende uma fogueira nas entranhas.
— Ei, eu estive lá, fiz a coisa, vesti a camisa, tá? Eu mesmo apaguei cinco caras. Mas era negócio, nada pessoal. Eles tentaram nos emboscar, mas não leram o manual certo, e usei fogo e manobra para iludi-los e envolvê-los, como me ensinaram a fazer. Não é culpa minha se eles fossem ineptos. Podiam ter se rendido, preferiram atirar. Foi uma péssima opção da parte deles, mas um homem deve fazer o que ele acha melhor. — Seu filme preferido era Hondo (Caminhos ásperos), estrelado por John Wayne.
— Ei, Aldo, não estou dizendo que você seja um bundão.
— Sei o que está dizendo, mas, escute aqui, não quero me transformar num deles, certo?
— Não se trata da missão aqui, mano. Também tenho minhas dúvidas, mas vou continuar para ver como é que a banda toca. De qualquer modo, sempre podemos cair fora na hora em que quisermos.
— Assim espero.
Então, no jogo de beisebol, Derek Jeter dobrou-se ao meio e rebateu, os lançadores provavelmente acharam que ele era um terrorista, não é mesmo?
DO OUTRO LADO DO PRÉDIO, Pete Alexander falava num telefone seguro com Columbia, Maryland.
— E aí, como eles estão se saindo? — ouviu Sam Granger perguntar. Pete tomou um gole de xerez.
— Eles são bons garotos. Ambos têm dúvidas. O fuzileiro fala abertamente sobre isso, e o cara do FBI fica de bico calado, mas as engrenagens estão girando muito lentamente.
— É sério?
— Difícil dizer. Ei, Sam, nós sempre soubemos que o treinamento seria a parte difícil. Poucos americanos querem ser matadores profissionais... pelo menos não aqueles de que precisamos para a missão.
— Havia um cara na Agência que teria se adequado perfeitamente em...
— Mas ele está pra lá de velho, e você sabe disso — contestou Alexander no ato. — Além do mais, ele tem seu posto derradeiro lá do outro lado do oceano em Gales, e parece estar bem à vontade nele.
— Se ao menos...
— Se ao menos sua tia tivesse bagos, ela então seria seu tio — assinalou Pete. — Selecionar candidatos é tarefa sua. Treiná-los é tarefa minha. Os dois têm os cérebros e as habilidades. A parte difícil é o temperamento. Estou trabalhando nisso. Seja paciente.
— Nos filmes é bem mais fácil.
— Nos filmes todo mundo é psicopata limítrofe. É essa gente que queremos na folha de pagamento?
— Espero que não. — Havia um monte de psicopatas a ser encontrados. Cada departamento de polícia de porte conhecia vários. E eles matavam pessoas por pouco dinheiro, ou uma pequena quantidade de droga. O problema com essa gente era não gostar de acatar ordens e não ser esperta. Exceto nos filmes. Onde estava a garota Nikita quando se precisava realmente dela?
— Temos que lidar com gente boa e confiável com cérebro. Essas pessoas pensam, e nem sempre pensam de modo previsível, não é? É ótimo ter um cara com consciência, mas ele, com muita frequência vai se perguntar se está fazendo a coisa certa. Por que você tinha que mandar dois católicos? Judeus já são bem ruins, já nascem com sentimento de culpa... mas os católicos aprendem na escola.
— Obrigado, santidade — respondeu Granger, na cara de pau.
— Sam, sabíamos que não seria fácil. Puxa, você me mandou um fuzileiro e um agente do FBI. Por que não uma dupla de escoteiros?
— Okay, Pete. É trabalho seu. Alguma ideia do tempo que vai levar? Há algum trabalho empilhando aqui — observou Granger.
— Talvez em um mês saberei se vão topar. Eles vão querer saber o motivo e quem é o alvo, mas eu sempre lhe disse isso — Alexander relembrou ao chefe.
— É verdade — admitiu Granger. Era realmente muito mais fácil nos filmes, não era? Apenas deixar o dedo percorrer assassinos de aluguel nas Páginas Amarelas. Haviam pensado no início em contratar ex-agentes da KGB. Todos tinham treinamento especializado e todos queriam dinheiro... a taxa vigente era de menos de 25 mil dólares por morte, uma ninharia... mas essa gente provavelmente contaria tudo ao Centro Moscou na esperança de ser recontratada, e o Campus então se tornaria conhecido na comunidade extraoficial global. Eles não podiam ter essa informação.
— E quanto aos novos brinquedos? — indagou Pete. — Cedo ou tarde teremos que treinar os gêmeos com as novas ferramentas do ofício.
— Duas semanas, me disseram.
— Tanto assim? Diabo, Sam, eu propus isso a eles nove meses atrás.
— Não é uma coisa que você consiga na Western Auto da esquina. Elas têm que ser fabricadas a partir do zero. Você sabe, mecânicos altamente especializados em locais secretos, gente que não faz perguntas.
— Eu lhe disse para conseguir os caras que fazem esse tipo de coisa para a Força Aérea. Estão sempre produzindo umas engenhocas maneiras. — Por exemplo, gravadores que cabem em isqueiros. Bem, isso era provavelmente inspirado pelo cinema. E para as coisas realmente boas, o governo quase nunca tinha em casa o pessoal certo, recorrendo então a empreiteiros civis, que pegavam o dinheiro, faziam o serviço e mantinham a boca fechada, pois queriam mais contratos.
— Elas estão sendo fabricadas, Pete. Duas semanas — enfatizou.
— Entendido. Até lá, tenho todas as pistolas com silenciadores de que preciso. Os dois estão se saindo otimamente nos exercícios de rastrear e ficar na cola. A aparência comum deles ajuda.
— Então, no cômputo geral, as coisas estão indo bem? — perguntou Granger.
— Tirando o problema de consciência, sim.
— Okay, me mantenha informado.
— Eu o farei.
— A gente se vê.
Alexander pôs o fone no gancho. Diabo de consciência, pensou. Seria tão bom ter robôs, mas alguém poderia percebê-los descendo a rua. E de qualquer modo não os tinham. Quem sabe o Homem Invisível? Mas na história de H.G. Wells a droga que o tornava transparente também o enlouqueceu, e essa parada já era louca o suficiente, não era? Ele jogou fora o resto do xerez e depois, pensando melhor, saiu para reencher a taça.
_______________
1 Seriado da TV americana exibido de 1974 a 1984 (N. do E.).
8
CONVICÇÃO
MUSTAFA E ABDULLAH se levantaram ao amanhecer, disseram suas preces matinais e comeram, depois ligaram os computadores e verificaram os e-mails. Um e-mail de Mohammed para Mustafa, antecipando mensagem de alguém supostamente chamado Diego, com instruções para um encontro às 10h30 da manhã, hora local. Ele percorreu o restante do correio eletrônico, a maioria com aquilo que os americanos chamavam de spam. Ele aprendera que isto era um produto de porco enlatado, o que parecia inteiramente apropriado. Os dois caminharam para fora — mas separadamente — pouco depois das 9h, principalmente para manter o sangue em movimento e examinar a vizinhança. Verificaram cuidadosa mas furtivamente se estavam sendo seguidos e não viram ninguém. Chegaram ao local do encontro às 10h25.
Diego já estava lá, lendo um jornal, usando camisa branca com listras azuis.
— Diego? — perguntou Mustafa suavemente.
— Você deve ser Miguel — replicou o contato com um sorriso, levantando-se para um aperto de mão. — Por favor, fique sentado. — Pablo olhou em torno. Sim, Miguel tinha uma cobertura, sentado sozinho e pedindo café, vigiando como profissional. — Então, gosta da Cidade do México?
— Não sabia que era tão grande e agitada. — Mustafa acenou em volta. As calçadas apinhadas de gente seguindo em todas as direções. — E o ar é muito poluído.
— Esse é um problema aqui. As montanhas bloqueiam a poluição. Precisam de ventos fortes para limpar o ar. Café?
Mustafa assentiu. Pablo acenou para o garçom e ergueu o bule de café. O café de calçada era ao estilo europeu, mas não excessivamente lotado. As mesas estavam ocupadas pela metade, com pessoas reunidas para negócios ou socialmente, mantendo suas conversas e cuidando da própria vida. Chegou o novo bule de café. Mustafa serviu-se e aguardou que o outro falasse.
— Então, o que posso fazer por vocês?
— Estamos aqui como solicitado. Com que brevidade podemos ir?
— Quando desejam ir? — perguntou Pablo.
— Esta tarde seria ótimo, mas pode ser um pouco antes, conforme seus arranjos.
— Sim. Mas que tal amanhã? Digamos, por volta das treze horas?
— Seria excelente — respondeu Mustafa em agradável surpresa. — Como será feita a travessia?
— Não estarei diretamente envolvido, você entende, mas vocês serão levados à fronteira e entregues a alguém especializado em colocar gente e certas mercadorias nos Estados Unidos. Terão que caminhar uns seis quilômetros. Vai fazer calor, mas não tão forte. Nos Estados Unidos, serão levados a uma casa segura nos arredores de Santa Fé, Novo México. De lá, podem seguir de avião para seu destino final ou então alugar carros.
— Armas?
— O que exatamente vocês querem?
— De preferência gostaríamos de fuzis AK-47.
Pablo sacudiu a cabeça imediatamente.
— Esses não podemos fornecer, mas podemos conseguir Uzis e submetralhadoras Ingram. Parabellum nove milímetros com, digamos, seis carregadores de trinta cartuchos cada, plenamente municiados para seus objetivos.
— Mais munição — disse Mustafa de imediato. — Doze carregadores, mais três caixas adicionais de munição para cada arma.
Pablo assentiu.
— Isso é fácil. — A despesa extra custaria apenas uns 2 mil dólares. As armas tinham sido compradas no mercado paralelo, juntamente com a munição. Eram facilmente rastreáveis até sua origem e ou comprador, mas isso era apenas um problema teórico, não prático. As armas seriam principalmente Ingrams, não fuzis israelenses Uzi, mais bem fabricados e mais acurados, mas aquela gente não se importaria. Talvez eles até tivessem objeções morais ou religiosas para tocar em armas de fabricação israelense. — Diga-me, quanto têm para despesas de viagem?
— Temos 5 mil dólares em dinheiro cada um.
— Vocês podem usar esse dinheiro para despesas menores, como comida e gasolina, mas para outras coisas precisam de cartões de crédito. Os americanos não aceitarão dinheiro vivo para aluguel de carros, e jamais para passagens aéreas.
— Já temos — replicou Mustafa. Ele e cada componente da equipe tinham cartões Visa emitidos para eles em Bahrein. Tinham até mesmo números consecutivos. Todos garantidos por uma conta num banco suíço com fundos superiores a 5 mil dólares, o suficiente para seus propósitos.
O nome no cartão, viu Pablo, era JOHN PETER SMITH. Bom. Quem quer que os tivesse forjado não cometera o erro de usar explicitamente nomes do Oriente Médio. Desde que o cartão não caísse nas mãos de um policial que pudesse perguntar ao Sr. Smith de onde exatamente ele procedia. Esperava que tivessem sido instruídos sobre a polícia americana e seus hábitos.
— Outros documentos? — perguntou Pablo.
— Nossos passaportes são do Catar. Temos carteiras de motoristas internacionais. Todos falamos um inglês aceitável e sabemos ler mapas. Conhecemos as leis americanas. Ficaremos nos limites de velocidade e dirigiremos com cuidado. O prego que poderia sobressair está bem cravado. Portanto, não seremos apanhados.
— Ótimo — observou Pablo. Portanto, eles haviam sido instruídos. Podiam até se lembrar das instruções. — Lembrem-se de que um erro pode arruinar a missão para todos vocês. E é fácil cometer erros. Os Estados Unidos são um país descomplicado para se viver e locomover, mas a polícia é muito eficiente. Se não se fizerem notar, estão livres dos tiras. Portanto, devem evitar chamar atenção. Se falharem nisso, todos podem estar condenados ao fracasso.
— Diego, não vamos falhar — prometeu Mustafa.
Falhar em quê?, pensou Pablo, mas não perguntou. Quantas mulheres e crianças vão matar? Mas não era realmente da conta dele. Era um método covarde de matar, mas as regras de honra na cultura de seus amigos eram muito diferentes da sua própria. Aqui era negócio, e era tudo que precisava saber.
CORRIDAS DE DOIS QUILÔMETROS, flexões, e um café com conhaque, esta era a vida no sul da Virginia.
— Brian, você costumava carregar arma de fogo?
— Em geral um M16 e cinco ou seis carregadores. E também algumas granadas de fragmentação na carga básica, sim, Pete.
— Na verdade, eu estava falando sobre armas de coldre.
— Uma Beretta M9, era o que eu costumava usar.
— Era bom com ela?
— Está no meu currículo, Pete. Fui classificado como especialista em Quantico, mas todos os meus colegas de turma foram. Não foi nada demais.
— Costumava andar armado?
— Quer dizer quando à paisana? Não.
— Okay, passe a andar.
— Isso é legal? — perguntou Brian.
— A Virginia é um estado liberal. Se você tiver a ficha limpa, a comunidade lhe garante um porte de arma dissimulado. E quanto a você, Dominic?
— Ainda sou do FBI, Pete. Eu me sinto meio nu na rua sem uma amiga.
— O que você carrega?
— Smith &c Wesson 1076. Dispara cartuchos de dez milímetros, dupla ação. O FBI adotou a Glock recentemente, mas acho o Smith melhor. — E, não, não faço marcas na coronha, ele não acrescentou. Embora tivesse pensado nisso.
— Okay. Bem, quando vocês se formarem aqui, quero que ambos portem armas. Acostume-se com a ideia, Brian.
Um dar de ombros.
— É justo. — Uns quilos a mais na mochila.
HAVIA MUITO MAIS DO que simplesmente Sali, claro. Jack estava trabalhando em cima de um total de 11 pessoas diferentes, todas, menos uma, do Oriente Médio, todas na área financeira. O único europeu vivia em Riad. Era alemão convertido ao Islã, o que parecia estranho demais a ponto de merecer vigilância eletrônica. O alemão que Jack aprendeu na universidade era suficiente para ler os e-mails do sujeito, mas não revelavam muita coisa. Ele evidentemente adquirira os hábitos locais, não bebia nem mesmo cerveja. E era evidentemente popular entre os amigos sauditas — uma coisa sobre o Islã era que, se obedecesse às regras e orasse da maneira certa, eles não se importavam muito com sua aparência. Seria admirável exceto pelo fato de que a maioria dos terroristas do mundo oravam virados para Meca. Mas isso, Jack lembrou a si mesmo, não era culpa do Islã. Na noite em que ele mesmo tinha nascido, pessoas tinham tentado matá-lo ainda no útero da mãe — e haviam se identificado como católicos. Fanáticos eram fanáticos, em qualquer lugar do mundo. A ideia de que pessoas tinham tentado matar sua mãe bastava para fazê-lo querer pegar sua Beretta 40. Seu pai, bem, seu pai era capaz de cuidar de si mesmo, mas se meter com mulheres era um grande passo além da linha, e uma linha que só se podia ultrapassar uma vez e em uma direção. Não tinha volta.
Ele não lembrava nada disso, claro. Os terroristas da ULA tinham ido todos ao encontro de seu Deus — cortesia do estado de Maryland — antes que ele tivesse entrado para a escola, e seus pais nunca haviam falado a respeito. Mas a irmã Sally, sim. Ela ainda tinha sonhos com aquilo. Jack especulava se o pai e a mãe também teriam. Eventos assim iam finalmente embora? Ele vira programas no History Channel mostrando que veteranos da Segunda Guerra ainda tinham imagens de combate retornando à mente durante o sono, e a guerra tinha sido há mais de sessenta anos. Lembranças assim eram uma maldição.
— Tony?
— Sim, Junior?
— Esse cara, Otto Weber, qual é jogada? Ele parece tão excitante quanto um sorvete de baunilha.
— Se você é um bandido, por que vai anunciar isso num letreiro de néon pendurado nas costas? Ou tentar se esconder no gramado?
— Com as serpentes — Junior completou o pensamento. — Já sei... estamos procurando coisas pequenas.
— Como eu disse. Você sabe aritmética de quarto grau. Meta o bedelho nisso. E, sim, está procurando coisas que supostamente seriam quase invisíveis, okay? É por isso que esse trabalho é tão divertido. Coisinhas inocentes são principalmente coisinhas inocentes. Se ele baixar pornografia pedófila na internet, não é porque é terrorista. É porque ele é um pervertido. O que não é crime capital em muitos países.
— Aposto que é na Arábia Saudita.
— Provavelmente, mas eles não caçam isso, aposto.
— Pensei que eles fossem todos puritanos.
— Naquelas bandas, um homem guarda sua libido para si mesmo. Mas se fizer alguma coisa com uma criança em carne e osso, está ferrado. A Arábia Saudita é um bom lugar para se respeitar a lei. Você pode estacionar seu Mercedes e deixar as chaves na ignição e o carro estará lá quando voltar. Você não pode fazer isso nem mesmo em Salt Lake City.
— Já esteve lá? — perguntou Jack.
— Quatro vezes. As pessoas são amistosas desde que você as trate adequadamente, e se fizer um amigo por lá, vai ser um amigo para toda a vida. Mas as regras são diferentes, e o preço de rompê-las pode ser bem exorbitante.
— Então, Otto Weber segue as regras?
Wills assentiu.
— Correto. Ele percorreu todo o caminho no sistema, religião e tudo. Gostam dele por isso. A religião é o centro da cultura deles. Quando um cara se converte e vive pelas leis islâmicas, dá validade ao mundo deles, e os sauditas gostam disso, como qualquer um gostaria. Não creio porém que Otto seja um ator, como chamamos os agentes que integram os esquemas terroristas. As pessoas que estamos procurando são sociopatas. Elas podem aparecer em qualquer lugar. Algumas culturas os pegam cedo e os mudam... ou os matam. Outras culturas, não. Não somos tão bons nisso quanto deveríamos ser, e desconfio que os sauditas provavelmente são. Mas os realmente bons podem patinar em qualquer cultura, e alguns deles usam o disfarce da religião. O Islã não é um sistema de crença para psicopatas, mas pode ser pervertido para o uso dessas pessoas, como o cristianismo pode. Fez algum curso de psicologia?
— Não, queria ter feito — admitiu Ryan.
— Então, compre alguns livros. Leia-os. Descubra pessoas que saibam sobre essa coisa e faça perguntas. Ouça as respostas. — Wills voltou para a tela de seu computador.
Merda, pensou Junior. Esse trabalho está ficando cada vez pior. Quanto tempo, especulou, antes que descobrisse alguma coisa útil? Um mês? Um ano? Que diabo era ser aprovado no Campus... O que exatamente aconteceria quando ele deparasse com algo útil? De volta a Otto Weber...
ELES NÃO PODIAM PASSAR O DIA inteiro no quarto sem que alguém se perguntasse por quê. Mustafa e Abdullah saíram logo depois de um almoço leve na lanchonete para dar um passeio. A três quarteirões encontraram um museu de arte. A entrada era franca, mas lá dentro descobriram a razão. Era um museu de arte moderna e suas pinturas e esculturas estavam muito além da compreensão deles. Percorreram o museu por duas horas e ambos concluíram que pintura devia ser barato no México. Não obstante, isto deu-lhes a oportunidade de trabalhar seus disfarces, enquanto fingiam apreciar o lixo pendurado nas paredes e assentado sobre os assoalhos.
Depois caminharam de volta ao hotel. A única coisa boa era o tempo. Fazia calor para os de origem europeia, mas estava bem agradável para os árabes de visita, com névoa cinzenta e tudo. Amanhã eles veriam o deserto de novo. Uma última vez, provavelmente.
ERA IMPOSSÍVEL, mesmo para uma bem apoiada agência governamental, rastrear todas as mensagens que flutuavam através do ciberespaço a cada noite, por isso a NSA usava programas de computador para filtrar frases-chave. Os endereços eletrônicos de alguns terroristas notórios ou suspeitos, ou encadeamentos suspeitos, tinham sido identificados ao longo dos anos, e estes eram observados, como eram os servidores do Internet Service Providers, ou ISP. No todo, ocupavam vastas quantidades de espaço de armazenamento e, em consequência, caminhões de entrega traziam constantemente novos dispositivos de armazenagem para Fort Mead, Maryland, onde eram ligados a computadores centrais de modo que, se uma pessoa-alvo fosse identificada, então seus e-mails retroagindo a meses ou até mesmo anos podiam ser recuperados. Se houvesse até mesmo um jogo de gato e rato, estaria ali. Os bandidos, claro, sabiam que o programa de filtragem procurava palavras ou frases específicas, e assim optaram por usar suas próprias palavras codificadas — o que em si era outra armadilha, já que os códigos davam uma falsa sensação de segurança, o que era facilmente explorado por uma agência com setenta anos de experiência em ler as mentes dos inimigos da América.
O processo tinha seus limites. Um uso excessivamente livre revelava sua existência, fazendo com que os alvos mudassem os métodos de cifragem, comprometendo assim a fonte. Usá-lo muito pouco, por outro lado, era tão ruim quanto não tê-lo, afinal. Infelizmente, os serviços de inteligência tendiam mais ao último do que ao primeiro. A criação de um novo Departamento de Segurança Interna envolvia, teoricamente, montar uma carteira de compensação central para toda informação relativa a ameaças, mas o tamanho da nova superagência havia estragado isso desde o início. A informação estava toda lá, mas numa quantidade grande demais para ser processada e com processadores demais para se tornar um produto viável.
Mas velhos hábitos dificilmente morrem. A comunidade de inteligência permanecia intacta, uma superagência sobrepujava sua própria burocracia ou não, e seus segmentos conversavam um com outro. Como sempre, eles saboreavam o que os de dentro conheciam como oposto àqueles que não sabiam... e queriam que continuasse assim.
O principal meio de comunicação entre a NSA e a CIA era essencialmente dizer: Isto é interessante, o que acha? Porque cada agência mantinha seu diferente ethos corporativo. Falavam línguas diferentes. Pensavam de modo diferente. E até onde agiam, enfim, agiam diferentemente. Pelo menos pensavam em direções paralelas, não divergentes. No todo, a CIA tinha os melhores analistas, e a NSA era melhor em reunir informações. Havia exceções nas duas regras gerais; e, em ambos os casos, os indivíduos realmente talentosos se conheciam e, entre eles, falavam principalmente a mesma língua.
ISSO FICOU CLARO NA MANHÃ SEGUINTE com o tráfego por cabo interagências. Um analista sênior em Fort Meade passou a informação como FLASH-traffic para sua contraparte em Langley, o que significava muito urgente. O que garantia que seria notada no Campus. Jerry Rounds a viu no alto de seus e-mails da manhã e levou-a à reunião seguinte.
— Vamos pegá-los firme desta vez, diz o cara. O que significa isso? — pensou Jerry Rounds em voz alta. Tom Davis havia passado a noite em Nova York. Tinha uma reunião no café da manhã com o pessoal de debêntures no Morgan Stanley. Era uma chateação quando os negócios assumiam cara de negócio.
— Está boa a tradução? — quis saber Gerry Hendley.
— A nota de rodapé diz que não há problema nesta ponta. A radioescuta está clara e livre de estática. É uma simples frase declaratória em árabe culto, sem nuance com que se preocupar — disse Rounds.
— Origem e destinatário? — continuou Hendley.
— O remetente é um cara chamado Fa'ad, sobrenome desconhecido. Conhecemos o sujeito. Achamos que ele é um agente de operações de nível médio... um planejador em vez de homem de campo. Está baseado em algum lugar em Bahrein. Ele só fala no celular quando está num carro em movimento ou lugar público, como um mercado ou algo assim. Ninguém conseguiu uma linha sobre ele ainda. O destinatário — prosseguiu Bell — parece um cara novo... mais provavelmente um cara antigo num telefone recém-clonado. É um velho telefone análogo, e assim não podem gerar uma impressão de voz.
— Então, eles têm provavelmente uma operação em andamento... — observou Hendley.
— Assim parece — concordou Rounds. — Natureza e local desconhecidos.
— Portanto, não sabemos picas. — Hendley alcançou sua xícara de café e conseguiu um franzir de cenho que seria melhor medido na escala Richter. — O que eles vão fazer com isso?
Granger pegou a deixa: — Nada de útil, Gerry. Eles estão numa armadilha lógica. Se fizerem alguma coisa, como subir a cor no arco-íris de ameaça, estão soando o alarme, e já fizeram isso tantas vezes que se torna contraproducente. A menos que revelem o texto e a fonte, ninguém levará a sério. Se revelarem alguma coisa, queimamos a fonte por completo. E se eles não soarem o alarme, o Congresso empurra qualquer merda que acontecer direto no rabo deles.
Funcionários eleitos se sentiam muito mais confortáveis sendo o problema e não a solução. Havia vantagem política na gritaria não produtiva. Assim, a CIA e outras agências continuariam a trabalhar na identificação das pessoas em distantes celulares. Isso não tinha nenhum charme, era trabalho policial lento, e corria a uma velocidade que políticos impacientes não podiam estabelecer — e jogar dinheiro no problema não melhorava em nada, o que era duplamente frustrante para pessoas que não sabem fazer outra coisa.
— Portanto, eles ficam em cima do muro e fazem alguma coisa que sabem que não vai funcionar...
—... e ficam esperando um milagre — concordou Granger com seu chefe. Os departamentos de polícia de todo o país seriam alertados, claro — mas para que propósito, e contra qual ameaça, ninguém sabia. E os tiras estavam sempre procurando rostos do Oriente Médio, mandando-os estacionar e interrogando-os. Até que ficavam entediados com o que era quase sempre um exercício improdutivo em fazer algo a que a União Americana pelas Liberdades Civis já começava a se opor. Havia seis casos relacionados a árabes pendentes em várias cortes distritais federais, quatro envolvendo médicos e dois com estudantes comprovadamente inocentes a quem a polícia local havia pressionado com excessivo vigor. Qualquer precedente legal que resultasse daqueles incidentes causaria mais dano do que bem. Era o que Sam Granger chamava de uma armadilha lógica.
O franzir de cenho de Hendley ficou um pouco mais profundo. O mesmo acontecia, Hendley tinha certeza, em meia dúzia de agências governamentais que, com seus orçamentos e pessoal, eram quase tão úteis quanto as tetas de uma porca.
— Alguma coisa que possamos fazer? — perguntou ele.
— Ficar alertas e chamar os tiras se virmos algo incomum — respondeu Granger. — A não ser que você tenha uma pistola na mão. — Para atirar em algum palhaço inocente que está provavelmente tomando aulas de cidadania — acrescentou Bell. — Não vale a encrenca.
Eu devia ter ficado no Senado, pensou Hendley. Pelo menos ser parte do problema tinha suas satisfações. Era bom para o baço extravasar de vez em quando. Gritar aqui era totalmente contraproducente, e ruim para o moral da equipe.
— Tudo bem, então, vamos fingir que somos cidadãos comuns — disse por fim o chefe.
A equipe sênior assentiu em concordância e passaram aos negócios de rotina do dia. Perto do fim, Hendley perguntou a Rounds como estava se saindo o novo garoto.
— Ele é esperto para fazer um monte de perguntas. Eu o mantive revisando laranjas notórios ou suspeitos de transferências de dinheiro não contabilizado. — Se ele puder continuar fazendo isso, que Deus o abençoe — disse Bell. — Pode levar um homem à loucura.
— A paciência é uma virtude — assinalou Gerry. — Basta um filho da puta adquiri-la.
— Vamos alertar nosso pessoal para essa radioescuta?
— Seria bom — respondeu Bell.
— Entendido — disse Granger a todos eles.
— MERDA — DISSE JACK quinze minutos depois. — O que significa isso?
— Podemos saber amanhã, na próxima semana... ou nunca — respondeu Will.
— Fa'ad... conheço esse nome... — Jack se virou para o computador e teclou alguns arquivos. — É isso! É o cara em Bahrein. Como é que os tiras locais não lhe deram uma prensa?
— Ainda não sabem dele. Rastreá-lo, até agora, é tarefa da NSA, mas talvez Langley verifique se pode descobrir mais alguma coisa dele.
— Eles são tão bons quanto o FBI para trabalho de polícia?
— Na verdade, não, eles não são. Treinamento diferente. Mas não é tão distante do que uma pessoa normal possa fazer...
O jovem Ryan o interrompeu.
— Babaquice. Avaliar pessoas é algo em que os tiras são bons. É uma habilidade adquirida, e vocês também têm que aprender a fazer perguntas.
— Segundo quem? — perguntou Wills.
— Mike Brennan. Ele foi meu guarda-costas. Ensinou-me uma pá de coisas.
— Bem, um bom espião também precisa saber avaliar as pessoas. O rabo deles está na reta.
— Talvez, mas se você quiser tratar dos olhos, fale com minha mãe. Para os ouvidos, fale com alguém mais.
— Okay, talvez. Por enquanto verifique o nosso amigo Fa'ad.
Jack voltou ao computador. Procurou a primeira conversa interessante que interceptaram. Então pensou melhor e voltou ao começo, à primeira vez que ele tinha chamado atenção.
— Por que ele não troca os telefones?
— Talvez por preguiça. Esses caras são espertos, mas também têm pontos cegos. Adquirem hábitos. São inteligentes, mas não fazem treinamento formal, como um espião treinado da KGB ou algo parecido.
A NSA tinha um amplo mas secreto posto de escuta em Bahrein, com cobertura da embaixada e suplementado por navios da Marinha que atracavam lá regularmente, mas não eram vistas como uma ameaça eletrônica naquele ambiente. As equipes da NSA que viajavam nesses navios interceptavam até mesmo gente caminhando no cais com seus telefones celulares.
— Esse cara está sujo — observou um minuto depois. — Este cara é bandido, certo como o inferno.
— Ele tem sido também um bom barômetro. Diz muita coisa que achamos interessante.
— Então, alguém devia pegá-lo.
— Estão pensando nisso lá em Langley.
— Qual é o tamanho do posto em Bahrein?
— Seis pessoas. O chefe do posto, dois espiões de campo e três funcionários diversos, sinaleiros, essas coisas.
— Isso é tudo? Apenas um punhado?
— Isso mesmo — confirmou Wills.
— Droga. Eu costumava perguntar a papai sobre isso. Ele geralmente dava de ombros e resmungava.
— Ele se empenhava firme em obter para a CIA maior financiamento e mais funcionários. O Congresso nem sempre concordava.
— Já pegamos um cara e, você sabe, falamos com ele?
— Não ultimamente.
— Por que não?
— Potencial humano — respondeu Wills simplesmente. — O engraçado sobre funcionários, eles todos esperam ser pagos. Nós não somos grandes.
— Então por que a CIA não pede que os tiras locais o peguem? O Bahrein é um país amigo.
— Amigo, mas não vassalo. Eles também têm lá suas ideias sobre direitos civis, só que não iguais às nossas. E também não se pode prender um cara que sabe e o que pensa. Só pelo que faz. Como pode ver, não sabemos se ele fez realmente alguma coisa.
— Então, é só pôr alguém colado no rabo dele.
— E como a CIA pode fazer isso com apenas dois espiões de campo? — perguntou Wills.
— Meu Deus!
— Bem-vindo ao mundo real, Junior. — A agência devia ter recrutado alguns agentes, talvez policiais de Bahrein, para ajudar nas tarefas, mas isso não tinha acontecido. Station Chief também podia ter requisitado mais pessoal, claro, mas agentes de campo de fala e aparência árabe eram uma raridade em Langley, e os existentes foram para postos obviamente mais espinhosos.
O ENCONTRO CORREU COMO PLANEJADO. Havia três veículos, cada qual com um motorista que mal falava uma palavra, e isso em espanhol. A viagem foi agradável, e lembrou distantemente a terra natal. O motorista era cauteloso; não corria em excesso nem fazia nada que atraísse atenção e seguiam em frente.
Quase todos os árabes fumavam cigarros, de marcas exclusivamente americanas, como Marlboro. Mustafa fazia o mesmo e imaginava — como Mohammed antes dele — o que o Profeta teria dito sobre o cigarro. Provavelmente nada de bom, mas nada disse, não é? Portanto, Mustafa podia fumar o quanto desejasse. A questão do perigo para a saúde era uma preocupação distante agora. Ele só esperava viver mais quatro ou cinco dias, pouco mais que isso se as coisas corressem segundo o planejado.
Esperava alguma conversa animada por parte desse pessoal, mas não houve nenhuma. Dificilmente alguém pronunciava uma palavra. Eles simplesmente olhavam indiferentes para a paisagem rural que passava, deixando velozmente para trás uma cultura da qual pouco sabiam e não aprenderiam mais.
— Okay, BRIAN, AQUI ESTÁ SEU PORTE de arma. — Pete Alexander entregou o documento.
Podia ser igualmente uma segunda habilitação de motorista, e foi posta na carteira.
— Então estou estritamente legal agora?
— Praticamente nenhum tira criaria caso com um marine por carregar uma pistola, mas é melhor deixar tudo nos trinques. Vai usar uma Beretta?
— É com o que estou acostumado, e as quinze balas garantem segurança. O que eu teoricamente deveria usar?
— Use uma dessas, Aldo — disse Dominic, erguendo sua mochila sortida. Parecia mais cinto para dinheiro, ou o tipo de bolsa usada mais frequentemente por mulheres do que por homens. Um puxão no cordão a abriu, revelando a pistola e dois carregadores extras. — Um monte de agentes usa esta. Mais confortável do que um coldre de quadril, que podem perfurar seus rins numa longa viagem de carro.
Por enquanto, Brian a usaria enfiada no cinto.
— Para onde vamos hoje, Pete?
— De volta ao shopping. Mais exercícios de perseguição.
— Ótimo — respondeu Brian. — Por que vocês não têm pílulas de invisibilidade?
— H.G. Wells guardou a fórmula com ele.
9
SEGUINDO COM DEUS
A VIAGEM DE JACK PARA O CAMPUS levou 35 minutos. No caminho todo, a Morning Edition da NPR porque, como o pai, ele não ouvia música contemporânea. As semelhanças com o pai tinham igualmente aborrecido e fascinado John Patrick Ryan Jr. por toda a vida. Na maior parte da adolescência tinha lutado contra isso, tentando estabelecer uma identidade própria em contraste com a do pai sempre alerta. Depois, na faculdade, tinha de certa forma voltado atrás, mal notando o processo. Imaginava que estivesse apenas fazendo a coisa sensata, por exemplo, ao namorar garotas que pudessem ser boas esposas, embora nunca tivesse encontrado a candidata perfeita. Coisa que inconscientemente julgava pela mãe. Ficava irritado com os professores em Georgetown que diziam que ele era igualzinho ao pai. No princípio tomava como ofensa, depois lembrou a si mesmo que seu pai não era tão mau assim. Podia ter feito pior. Testemunhara muita rebelião, mesmo numa universidade tão conservadora quanto a G-Town, com suas tradições jesuíticas e currículo rigoroso. Alguns colegas de turma tinham até mesmo exibido rejeição aos próprios pais, mas que babaca faz isso? Por mais sisudo e desatualizado que John Ryan Sr. fosse, ele tinha sido um pai muito bom, como pais devem ser. Nunca foi autoritário e deixava-o agir de sua própria maneira e escolher seu próprio caminho... confiando em que ele ficaria okay?, Jack imaginava. Mas, não. Se seu pai houvesse sido tão conspiratório, Jack teria notado, por certo.
Pensou em conspiração. Houve muito disso em jornais e livros de ficção baratos. Seu pai tinha até feito piada mais de uma vez sobre mandar os marines pintar seu helicóptero pessoal de preto. Isso teria merecido uma vaia, pensou Jack. Em vez disso, seu pai substituto tinha sido Mike Brennan, a quem ele regularmente bombardeava de perguntas, muitas sobre conspiração. Ficou enormemente desapontado ao saber que o Serviço Secreto dos Estados Unidos acreditava cem por cento que Lee Harvey Oswald tinha assassinado Jack Kennedy por conta própria. Na academia deles em Beltsville, nos arredores de Washington, Jack havia segurado, e até mesmo disparado, uma réplica do rifle Mannlicher-Carcano de 6.5mm que tirara a vida do presidente, e tinha sido plenamente informado do caso — para sua própria satisfação, ainda que não da indústria conspiratória, que tão fervorosa e comercialmente pensava de outra maneira. Tinham até mesmo proposto que seu pai, como ex-agente da CIA, fosse o beneficiário final de uma conspiração que duraria pelo menos cinquenta anos com o propósito expresso de dar à CIA as rédeas do governo. Claro. Como a Comissão Trilateral e a Ordem Mundial dos Franco-Maçons, e qualquer coisa mais que os escritores de ficção pudessem fabricar. Tanto de seu pai quanto de Mike Brennan, ele ouvira um monte de histórias da CIA, poucas delas vangloriando-se da competência dessa agência federal. Isso era bom demais, mas nem um pouco tão competente quanto Hollywood sugeriria. Mas Hollywood talvez acreditasse que Roger Rabbit fosse real — afinal, o filme dele tinha dado dinheiro, certo? Não, a CIA tinha dois profundos defeitos...
...e era o Campus um meio de corrigi-los...? Essa era a questão. Droga, pensou Junior, virando na Rota 29, talvez os teóricos da conspiração estivessem certos, afinal? Sua própria resposta interior foi um resfolegar e uma careta.
Não, o Campus afinal não era assim, não tinha nada a ver com o SPECTRE dos velhos filmes de James Bond, ou a THRUSH da série O agente da UNCLE, reprisada no canal Nick at Nite. A teoria conspiratória dependia da capacidade de inúmeras pessoas de ficar de bico calado e, como Mike lhe dissera tantas vezes, os Bandidos talvez não ficassem calados. Não havia surdos-mudos nas prisões, Mike lhe disse muitas vezes, mas criminosos quase nunca entendiam isso, os idiotas.
Até mesmo as pessoas que estava rastreando tinham esse problema e, supostamente, eram espertas e altamente motivadas. Ou assim pensavam. Mas, não, nem mesmo elas eram os Bandidos dos filmes. Tinham necessidade de falar, e falar seria sua ruína. Ele imaginou o que era isso: as pessoas que faziam coisas ruins precisavam se gabar, ou precisavam de outras pessoas que lhes dissessem que estavam se saindo bem, de alguma perversa maneira, naquilo em que todos concordavam? Os caras que estava vigiando eram muçulmanos, mas havia outros muçulmanos. Ele e seu pai conheciam o príncipe Ali da Arábia Saudita. Era um bom sujeito, o cara que dera a seu pai a espada da qual ele extraíra o codinome de seu Serviço Secreto, e ele ainda frequentou a casa por pelo menos um ano, porque os sauditas, uma vez que se fizesse amizade com eles, eram as pessoas mais leais do mundo. É claro que ajudava se você fosse um ex-presidente. Ou, nesse caso, o filho de um ex-presidente, agora fazendo seu próprio caminho no mundo extraoficial...
Droga, como papai reagiria a isso?, especulou Jack. Ele vai levar um susto. E mamãe? Um verdadeiro ataque de nervos. Isso foi bom para uma risada enquanto ele virava à esquerda. Mas mamãe não precisava saber. A história de fachada funcionaria para ela — e para seu avô —, mas não para papai. Jack sênior ajudara a montar este lugar. Talvez ele precisasse de um daqueles helicópteros negros, afinal. Ele deslizou para sua própria vaga no estacionamento, número 127. O Campus não podia ser tão grande e poderoso, não é? Não com menos de 150 funcionários. Trancou o carro e entrou, assinalando a si mesmo que essa coisa de toda-manhã-para-o-trabalho enchia o saco. Mas todo mundo tinha que começar em algum lugar.
Caminhou para a entrada dos fundos, como a maioria. Havia uma mesa de recepção-segurança. O cara responsável era Ernie Chambers, ex-sargento da Primeira Divisão de Infantaria. Seu blazer azul tinha uma miniatura de sua condecoração por bravura em combate, caso você não reparasse nos ombros largos e nos duros olhos escuros. Após a Primeira Guerra do Golfo, ele tinha trocado a ação para grunhir na Polícia Metropolitana. Havia aplicado a lei e dirigido o trânsito muito bem, pensou Jack, acenando para ele.
— Olá, Sr. Ryan.
— Bom dia, Ernie.
— Tenha um bom dia, senhor. — Para o ex-soldado, todo mundo era senhor.
ERA DUAS HORAS MAIS CEDO nos arredores de Ciudad Juárez. Lá, a van entrou num posto de gasolina e parou junto a quatro outros veículos. Atrás deles estavam as outras minivans que os seguiram todo o caminho para a fronteira.
Os homens despertaram do sono e saltaram no frio ar matinal para esticar as pernas.
— Está entregue, señor — disse o motorista a Mustafa. — Agora deve se reunir ao homem no Ford Explorer marrom. Vaya con Dios, amigo — disse na mais encantadora forma de despedida.
Mustafa caminhou até lá e se encontrou com um homem alto com chapéu de cowboy. Não parecia muito asseado e seu bigode precisava ser aparado.
— Buenos dias. Sou Pedro, encarregado de levá-lo pelo restante do caminho. São quatro para o meu carro, não?
— Isso mesmo — confirmou Mustafa.
— Há garrafas de água no porta-malas. Vocês talvez queiram algo para comer. Podem comprar o que quiserem na loja. — Ele apontou para o prédio. Mustafa queria, os colegas mais ainda e, após dez minutos, todos embarcaram nos carros e partiram. Seguiram para oeste, principalmente ao longo da Rota 2. Imediatamente os veículos se separaram, não mais mantendo a formação de voo, como até aqui. Eram quatro vans americanas, cobertas com espessa camada de terra e lama de modo que não parecessem novos. Atrás deles, o sol se erguera acima do horizonte, lançando suas sombras no chão caqui.
Pedro parecia ter pronunciado sua fala ensaiada lá no posto. Agora ele nada dizia exceto um arroto ocasional e os anéis de fumaça dos cigarros. Tinha o rádio ligado numa estação AM e cantarolava com a música hispânica. Os árabes iam em silêncio.
— OI, TONY — DISSE JACK em saudação. O colega já estava a postos.
— Salve — respondeu Wills.
— Alguma coisa quente esta manhã?
— Não depois de ontem, mas Langley está falando de pôr alguma cobertura em nosso amigo Fa'ad... de novo.
— Eles vão mesmo fazer isso?
— Sua suposição é tão boa quanto a minha. O chefe no Bahrein está dizendo que precisa de mais pessoal para fazer isso e os chefetes em Langley talvez estejam analisando tudo de cabo a rabo neste exato momento.
— Meu pai gostava de dizer que o governo é realmente exercido por contadores e advogados.
— Ele não estava muito enganado, meu chapa. Mas Deus sabe até onde Ed Kealty está metido nisso. O que seu pai acha dele?
— Não tolera o filho da puta. Só não fala em público sobre a nova administração porque acha errado, mas se você comentar alguma coisa sobre o cara no jantar pode acabar esvaziando a adega. É engraçado. Papai odeia política, e de fato tenta manter a calma, mas esse cara está definitivamente excluído da lista de cartões de Natal dele. Mas papai fica na dele, nada diz à imprensa. Mike Brennan me disse que o Serviço Secreto também não gosta do novo presidente. E eles precisam gostar dele.
— Há punições para quem tenta ser profissional — concordou Wills. E então Junior ligou seu computador e observou o tráfego noturno entre Langley e Fort Meade. Era muito mais impressionante em quantidade do que em qualidade. Parecia que seu novo amigo, Uda, tinha...
— Nosso chapinha Sali almoçou com alguém ontem — anunciou Jack.
— Com quem? — perguntou Wills.
— Os britânicos não sabem. Parece ser do Oriente Médio, cerca de 28 anos, usa uma daquelas... hã... barbichas em volta da linha do queixo e bigode, mas nenhuma identificação do cara. Eles falaram em árabe, mas ninguém chegou nem perto de entreouvir porra nenhuma.
— Onde eles comeram?
— Num pub na Tower Hill chamado Hung, Drawn and Quartered. Fica na esquina do distrito financeiro. Uda bebe Perrier. O outro vai de cerveja. E tiveram um almoço digno de um lavrador inglês. Ocuparam um reservado de canto, dificultando a qualquer um chegar mais perto e ouvi-los.
— Então, queriam privacidade. Isto não os torna necessariamente bandidos. Os britânicos o seguiram?
— Não. Significa um único homem na cola de Uda?
— Provavelmente — concordou Wills.
— Mas aqui diz que obtiveram uma foto do novo cara. Sem incluir no relatório.
— Foi talvez alguém do Serviço de Segurança, o MI5, fazendo a vigilância. É provavelmente um novato. Uda não é considerado muito importante, não o bastante para cobertura plena. Nem todas aquelas agências têm o potencial humano que desejam. Algo mais?
— Algumas transações financeiras à tarde. Parece quase uma rotina — disse Jack, examinando as transações. Estou procurando algo pequeno e inócuo, lembrou a si mesmo. Mas coisas pequenas e inócuas eram, na maioria, pequenas e inócuas. Uda movimentava dinheiro quase diariamente, em grandes e pequenas quantidades. Uma vez que queria manter o valor do investimento, ele raramente especulava, investindo principalmente em transações imobiliárias. Londres — e a Grã-Bretanha em geral — era um bom lugar para manter o valor dos investimentos. Os preços dos imóveis eram bem altos porém estáveis. Se você comprasse um imóvel, ele podia não se valorizar muito, mas era tremendamente certo que seu preço não ia deslizar ladeira abaixo. Portanto, o pai de Uda estava deixando que o filho caminhasse um pouco com as próprias pernas, mas não permitindo-o correr demais e jogar na especulação. Quanta liquidez pessoal tinha Uda? Já que pagava suas putas em dinheiro e bolsas caríssimas, ele devia ter seu próprio suprimento de caixa. Talvez modesto, mas modesto para os padrões sauditas não era exatamente o mesmo para muitos outros. O garoto afinal dirigia um Aston Martin e não morava num camping... então...
— Como diferencio as transações de Sali com o dinheiro da família das de seu próprio bolso?
— Não esquente a cabeça. Achamos que ele mantém duas contas secretas, no sentido de ambas estarem ocultas e próximas uma da outra. Sua melhor aposta nisso é ver como ele apresenta seus relatórios trimestrais à família.
Jack grunhiu.
— Ah, essa é boa. Vou levar dois dias para acrescentar todas as transações, e depois para analisá-las.
— Agora você sabe por que não é um autêntico contador, Jack. — Wills conteve um risinho.
Jack quase rosnou, mas só havia um meio de levar a tarefa a cabo, e sua função era esta, não era? Primeiro, tentou ver se o seu programa podia abreviar o processo. Nada. Aritmética de quarto grau com um nariz fuçando. Que beleza. Pelo menos, quando acabasse, talvez tivesse feito melhor em introduzir números no teclado numérico do lado direito. Havia alguma coisa a antecipar! Por que o Campus emprega alguns contadores que gostam de contestar?
ELES SAÍRAM DA ROTA 2 para uma estrada de terra que serpenteava seu caminho para o norte. A estrada tinha sido bastante usada, até bem recentemente, a julgar pelos rastros. A região no todo era um tanto montanhosa. Os verdadeiros picos das montanhas Rochosas ficavam mais para oeste, bem distantes para que pudesse vê-los, porém o ar era mais rarefeito aqui do que estava acostumado, e seria uma calorenta caminhada.
Imaginou quão longe seria e quão próximos estavam da fronteira com os Estados Unidos. Ouvira dizer que a fronteira americana-mexicana era guarnecida, mas não tão bem assim. Os americanos podiam ser letalmente competentes em algumas áreas, mas inteiramente infantis em outras. Mustafa e seu pessoal esperavam evitar a primeira hipótese e usar da segunda. Por volta das onze da manhã, ele viu um grande caminhão-baú a distância, e seu veículo se encaminhou na direção dele. O caminhão, viu ao chegar mais perto, estava vazio, suas amplas portas vermelhas escancaradas. O Ford Explorer chegou a uma distância de 100 metros e parou. Pedro desligou o motor e saltou.
— Chegamos, amigos — anunciou. — Espero que estejam prontos para andar.
Os quatro saltaram e, como antes, esticaram as canelas e olharam em torno. Um novo homem caminhou na direção deles, enquanto as outras três vans estacionavam e desembarcavam seus passageiros.
— Alô, Pedro — o novo mexicano saudou o motorista líder, evidentemente um velho amigo.
— Buenos dias, Ricardo. Aqui estão as pessoas que vão para a América.
— Olá. — Apertou as mãos dos quatro primeiros. — Meu nome é Ricardo e sou o coyote de vocês.
— O quê? — perguntou Mustafa.
— É apenas um termo. Levo pessoas através da fronteira por uma taxa. No caso de vocês, é claro, já fui pago.
— Qual a distância?
— Dez quilômetros. Uma modesta caminhada — disse ele à vontade. — O terreno será principalmente como este aqui. Se virem uma serpente, é só se afastarem dela. Não vai atrás de vocês. Mas se chegarem a menos de um metro, ela pode dar o bote e matar vocês. Fora isso, nada a temer. Se virem um helicóptero, devem se deitar no chão sem se mexer. Os americanos não guarnecem bem a fronteira e, bem estranhamente, não tão bem de dia quanto à noite. E tomamos também algumas precauções.
— Que precauções?
— Havia trinta pessoas ali — disse ele, apontando para o caminhão grande que viram ao chegar. — Elas caminharão na frente e a oeste de nós. Se pegarem alguém, serão elas.
— Quanto tempo vai levar?
— Três horas. Menos, se vocês se adaptarem. Vocês têm água?
— Conhecemos o deserto — assegurou-lhe Mustafa.
— Se o diz... Vamos partir então. Siga-me, amigo. — E, com isso, Ricardo começou a caminhar para o norte. Vestia-se todo de caqui, usava um cinto estilo militar com três cantis atados nele, carregava um binóculo estilo militar e mais um chapéu de aba caída estilo militar. Suas botas eram bem surradas. Seu passo era decidido e eficiente, não rápido para exibição, apenas para ganhar terreno de modo eficaz. Seguiam atrás dele formando uma fila indiana para que nenhum possível rastreador soubesse quantos eram. Mustafa os encabeçava, uns cinco metros atrás do coyote.
HAVIA UM ESTANDE DE TIRO a 300 metros da casa de fazenda. Ficava do lado de fora e tinha alvos de aço, um conjunto como aqueles da Academia do FBI, com gravuras de cabeças circulares e mais ou menos do tamanho de uma cabeça humana. Faziam um barulho agradável quando atingidos, e caíam, como um alvo humano atingido na cabeça. Enzo mostrou-se o melhor nisso. Aldo explicou que os marines não davam muita ênfase ao tiro de pistola, ao passo que o FBI dedicava a isso especial atenção, imaginando que qualquer um podia disparar acuradamente com uma arma apoiada no ombro. O irmão do FBI usava a postura Weaver, de duas mãos, enquanto o fuzileiro ficava em pé e atirava com uma só mão, como os serviços ensinavam a seu pessoal.
— Ei, Aldo, isto só torna você um alvo melhor — avisou Dominic.
— Ah, é mesmo? — Brian disparou três balas e conseguiu três clangs satisfatórios como resultado. — É difícil atirar depois que você toma uma bala entre os olhos, mano.
— E que merda é essa de um tiro, uma morte? Qualquer coisa que mereça ser baleada merece ser baleada duas vezes.
— Quantos tiros deu naquele escroto lá no Alabama? — indagou Brian.
— Três. Achei que não devia assumir risco.
— Você diz, mano. Ei, deixe-me experimentar sua Smith.
Dominic limpou sua arma antes de entregá-la. A munição seguiu em separado. Brian disparou em seco algumas vezes para se acostumar com a arma, depois carregou-a e girou o tambor. Seu primeiro disparo produziu um clang na placa da cabeça. O mesmo fez o segundo. O terceiro errou, mas o de número quatro, não, um terço de segundo mais tarde. Brian devolveu a arma.
— Parece diferente na mão — explicou.
— Você vai se acostumar — prometeu Dominic.
— Obrigado, mas gosto das seis balas extras no carregador.
— Bem, se prefere...
— E quanto ao tiro na cabeça, afinal? — arriscou Brian. — Okay, disparar com um rifle de alta precisão é o meio mais seguro de parar alguém com um tiro só, mas não com uma pistola.
— Quando você consegue acertar um cara na cabeça a 50 metros — respondeu Pete Alexander —, é simplesmente um belo talento a se ter. É a melhor maneira de terminar uma discussão que conheço.
— De onde você surgiu? — perguntou Dominic.
— Você não sondou em volta, agente Caruso. Lembre-se de que até Adolf Hitler tinha amigos. Não ensinam isso em Quantico?
— Bem, sim — admitiu Dominic, meio de crista caída.
— Quando seu alvo principal está abatido, você vasculha o local à procura de amigos que ele pudesse ter. Ou cai fora da cidade rápido pra cacete. Ou as duas coisas.
— Está falando em fugir? — perguntou Brian.
— Não, a menos que esteja na pista de alguém. Você abre seu caminho de forma que não chame atenção. Isso pode significar entrar numa livraria e fazer uma compra, tomar um café, o que for. Você tem que tomar sua decisão baseado em circunstâncias, mas mantendo seu objetivo em mente. Seu objetivo é sempre limpar a área imediata tão rapidamente quanto as circunstâncias permitam. Se se mover rápido demais, as pessoas vão notar. Se se mover com lentidão demais, elas podem se lembrar de ter visto você e seu alvo bem próximos. Elas nunca reportarão a pessoa que não notam. Assim, você quer ser uma delas. O quanto você se desgasta num serviço, o modo como atua no campo, o jeito como caminha, a maneira como pensa... tudo isso deve ser destinado a torná-lo invisível — disse Alexander.
— Em outras palavras, Pete, você está dizendo que quando matamos essas pessoas estamos só treinando — observou Brian calmamente. — Você nos quer aptos a fazer isso e nos afastarmos de modo que possamos escapar.
— Vocês preferem ser capturados? — perguntou Alexander.
— Não, mas a melhor maneira de notar alguém é baleá-lo na cabeça com um rifle a uns duzentos metros de distância. Isso sempre funciona.
— E se o quisermos morto de uma maneira que ninguém saiba que foi assassinado? — perguntou o oficial de treinamento.
— Como diabos você administra isso? — disse Dominic.
— Com paciência, rapazes. Uma coisa de cada vez.
HAVIA ALI OS RESQUÍCIOS de algum tipo de cerca. Ricardo simplesmente atravessou, usando um buraco que não parecia recente. Os mourões da cerca tinham sido pintados de verde vivo, mas a maior parte já estava enferrujada. O material da cerca estava ainda pior. Atravessá-la foi o menor de seus problemas. O coyote seguiu por mais uns 50 metros, selecionou uma rocha larga e depois se sentou. Acendeu um cigarro e bebeu um gole de um cantil. Foi sua primeira parada. A caminhada não fora difícil, afinal, e ele claramente a fizera muitas vezes. Mustafa e seus amigos não sabiam que ele já tinha passado centenas de pessoas pela fronteira nesta mesma rota, e só havia sido preso uma vez — e isso não contava muito, exceto por ferir seu orgulho. Ele abriu mão dos honorários, pois era um coyote honrado.
Mustafa foi até ele.
— Seus amigos estão bem? — perguntou Ricardo.
— Não foi muito extenuante — replicou Mustafa —, e não vi nenhuma serpente.
— Não há muitas por aqui. As pessoas geralmente atiram nelas, ou jogo pedras. Ninguém se preocupa muito com cobras.
— Elas são perigosas... de verdade, quero dizer?
— Só se você for um tolo, e mesmo então é improvável que morra. Fica doente alguns dias. Não mais que isso, mas pode tornar a caminhada bem dolorosa. Esperaremos aqui alguns minutos. Estamos adiantados no planejamento. Ah, sim, bem-vindo aos Estados Unidos, amigo.
— Aquela cerca é tudo que existe? — perguntou Mustafa, espantado.
— O americano é rico, sim, e esperto, sim, mas é também preguiçoso. Meu povo nem iria para lá, exceto porque lá tem trabalho, e o gringo é preguiçoso demais para fazê-lo por conta própria.
— Quantas pessoas então contrabandeiam para os Estados Unidos?
— Refere-se a mim? Milhares. Muitos milhares. Sou bem pago por isto. Tenho uma excelente casa e mais seis outros coyotes trabalhando para mim. Os gringos se preocupam mais com pessoas contrabandeando drogas pela fronteira, e isso é uma coisa que evito. A encrenca não vale a pena. Deixo que dois dos meus homens façam por mim. O pagamento pelo tráfico é muito alto, você sabe.
— Que tipo de droga? — perguntou Mustafa.
— O tipo pelo qual sou pago. — Ele sorriu e tomou outro gole de seu cantil.
Mustafa se virou quando Abdullah se aproximou.
— Pensei que seria uma caminhada difícil — observou seu segundo em comando.
— Só para gente da cidade — replicou Ricardo. — Este é meu território. Nasci no deserto.
— Como eu — disse Abdullah. — Está um dia agradável. — Melhor do que ficar sentado na carroceria de um caminhão, ele nem precisou acrescentar.
Ricardo acendeu outro Newport. Ele gostava de cigarros mentolados, que irritavam menos a garganta.
— Não vai fazer calor por mais um mês, talvez dois. Mas depois vai ficar realmente quente, e o homem sábio carrega um bom suprimento de água. Já houve gente que morreu aqui sem água no calor de agosto. Mas nenhum dos meus. Certifico-me de que todo mundo carregue água. A Mãe Natureza não tem amor nem piedade — observou o coyote. No fim da caminhada, ele conhecia um lugar onde podia conseguir algumas cervezas antes de seguir para El Paso. De lá, voltaria para sua casa confortável em Ascensión, longe demais da fronteira para ser incomodado por pretensos imigrantes, que tinham o péssimo hábito de roubar coisas de que talvez precisassem na travessia. Ele imaginava quanto mais roubariam do lado gringo da fronteira, mas isso não era problema seu, era? Ele terminou seu cigarro e se levantou. — Mais três quilômetros, amigos.
Mustafa e os outros entraram em forma e reiniciaram a penosa jornada para o norte.
Só mais três quilômetros? Em casa, eles caminhariam mais do que isso até o ponto de ônibus.
DIGITAR ALGARISMOS num teclado numérico era quase tão divertido quanto correr nu num jardim de cactos. Jack era do tipo que precisava de estímulo intelectual, e embora alguns homens pudessem encontrar nisso uma contabilidade investigativa, ele não fazia parte da tribo.
— Entediado, hein?
— Pra lá de.. — confirmou Jack.
— Bem, está é a realidade de coletar e processar informação de espionagem. Mesmo quando é excitante, é chato paca... bem, a não ser que você esteja realmente no faro de uma raposa particularmente esquiva. Então pode ser uma espécie de alegria, embora não como observar seu alvo lá fora no campo. Nunca fiz isso.
— Nem papai — observou Jack.
— Depende das histórias você leu. Seu pai ocasionalmente achava seu caminho para a ação. Imagino que não gostasse muito. Ele alguma vez falou disso?
— Nunca. Nem uma única vez. Acho que nem mamãe sabe muito a respeito. Bem, exceto aquela coisa do submarino, mas a maio parte do que sei daquilo vem dos livros. Perguntei a papai certa vez, e tudo o que ele disse foi: você acredita em tudo que lê nos jornais? Mesmo quando aquele cara russo, Gerasimov, apareceu na TV, tudo que papai fez foi resmungar.
— O que se comenta sobre ele em Langley é que foi um tremendo espião. Mantinha todos os segredos como devia. Mas trabalhava principalmente no Sétimo Andar. Eu mesmo nunca cheguei tão alto.
— Talvez você possa me contar alguma coisa.
— Sobre o quê?
— Gerasimov. Nikolay Borissovich Gerasimov. Era ele realmente o chefe da KGB? Meu pai realmente conseguiu arrastar o rabo dele para fora de Moscou?
Wills hesitou por um momento, mas não havia como evitar isso.
— Sim. Ele era o diretor da KGB e, sim, seu pai conseguiu a deserção dele.
— Sem sacanagem? Como diabo papai conseguiu?
— É uma história muito longa e você não está liberado para ouvi-la —
— Então por que ele deixou papai na mão?
— Porque era um desertor a contragosto. Seu pai o forçou a cair fora. Ele queria ir embora mesmo depois de seu pai virar presidente. Mas, você sabe, Nikolay Borisovich cantou... talvez não como um canário, mas de qualquer modo cantou. Ele está no Programa de Proteção a Testemunhas neste exato momento. Eles ainda o trazem de vez em quando para que cante um pouco mais. As pessoas que você interroga nunca entregam tudo de uma vez; e assim é preciso voltar a elas periodicamente. Isso faz com que se sintam importantes... o suficiente para que cantem um pouco mais, geralmente. Ele ainda não é um cara feliz aqui. Não pode voltar para casa, do contrário vão ferrá-lo. Os russos nunca foram de perdoar traição. Bem, nem nós. Assim, ele vive aqui sob proteção federal. Pelo que ouvi da última vez, começou a jogar golfe. A filha se casou com um aristocrata babaca de fortuna antiga na Virginia. Ela é uma americana autêntica agora, mas o pai morrerá infeliz. Ele queria acabar com a União Soviética, quer dizer, ele realmente queria fazer isso, mas seu pai ferrou a ideia de uma vez por todas, e Nick ainda carrega o rancor.
— Puta que o pariu.
— Alguma novidade com Sali? — perguntou Wills, trazendo as coisas de volta à realidade.
— Alguma coisa pequena. Você sabe, 50 mil aqui, 8 mil ali... libras, não dólares. Em contas das quais não sei muita coisa. Ele movimenta para algum lugar de 2 a 8 mil libras por semana, o que provavelmente considera merreca.
— De onde vem essa grana? — perguntou Wills.
— Não está inteiramente claro, Tony. Imagino que ele saque um pouco da conta da família, talvez os dois por cento que pode declarar como despesas. Não o suficiente para alertar o pai de que está roubando a família. Fico imaginando como eles reagiriam a isso — especulou Jack.
— Eles não cortariam fora a mão dele, mas podiam fazer pior... cortar seu dinheiro. Imagina esse cara trabalhando para se sustentar?
— Você se refere a trabalho de verdade? — Jack permitiu-se uma breve risada. — De alguma maneira, não vejo isso acontecendo. Ele esteve no bem-bom por tempo demais para gostar de suar a camisa. Estive um bom tempo em Londres. Difícil imaginar como um vagabundo sobrevive lá.
Wills começou a resmungar.
— Como mantê-los na fazenda depois que viram Paris?1
Jack enrubesceu.
— Ouça, Tony, sim, sei que nasci rico, mas papai sempre se certificou de que eu tivesse um emprego de verão. Cheguei até a trabalhar em construção civil por dois meses. Dei muito trabalho a Mike Brennan e seu pessoal. Mas meu pai queria que eu soubesse como era o trabalho de verdade. No início, detestei, mas, em retrospecto, foi uma boa coisa, acho. O Sr. Sali aqui nunca fez isso. Quero dizer, eu podia sobreviver num trabalho de iniciante no mundo real, se fosse preciso. Este cara dificilmente se adaptaria.
— Okay, a quanto monta o total de dinheiro inexplicado?
— Talvez 200 mil libras... 300 mil dólares, se preferir. Mas realmente não consegui rastrear tudo, e esse não é todo o dinheiro.
— Quanto tempo mais para estreitar o cerco?
— A este ritmo? Droga, uma semana, se eu tiver sorte. É como rastrear um carro na hora do rush em Nova York, sabe?
— Continue em cima. Embora não seja fácil ou divertido.
— Aye, aye, sir. — Tinha aprendido esse modo de falar com os fuzileiros da Casa Branca. Eles até falavam assim com ele de vez em quando, até que o pai notou e proibiu. Jack voltou para seu computador. Mantinha suas anotações num bloco de papel pautado, só porque era mais fácil desse jeito, depois à tarde as transferia para um arquivo de computador separado. Enquanto escrevia, notou que Tony deixava sua salinha para uma visita lá em cima.
— ESTE GAROTO PEGOU O MACETE — disse Wills a Rick Bell no último andar.
— Hein? — Era um pouco cedo para esperar resultados do recruta, independentemente de quem fosse o pai dele, pensou Bell.
— Eu o pus para rastrear um jovem saudita que mora em Londres, chamado Uda bin Sali... ele transfere dinheiro para interesses de sua família. Os britânicos estão na cola dele porque ligou para alguém que eles acharam interessante uma vez.
— E?....
— E Junior descobriu 200 mil libras não contabilizadas.
— Até que ponto é sólido? — perguntou Bell.
— Temos que pôr um agente regular nisso, mas, você sabe... o garoto tem o tipo certo de faro.
— Dave Cunningham, talvez? — Era um contador judicial. Veio para o Campus do Departamento de Justiça, Divisão do Crime Organizado. Já na casa dos 60 anos, Dave tinha um faro lendário para números. O departamento de comércio do Campus usava-o principalmente em funções convencionais. Ele podia ter se saído muito bem em Wall Street, mas adorava ganhar a vida pegando criminosos. No Campus ele pôde prosseguir no passatempo bem além das regras de aposentadoria do governo.
— Dave seria minha escolha — concordou Tony.
— Okay, vamos passar os arquivos do computador de Jack para Dave e ver no que vai dar.
— Para mim tudo bem, Rick. Você viu o relatório de ontem da NSA?
— Vi. Chamou minha atenção — respondeu Bell, olhando para cima. Três dias antes, o tráfego de mensagens de fontes que os serviços de inteligência do governo achavam interessantes haviam caído dezessete por cento, e duas fontes particularmente interessantes tinham quase parado por completo. Quando isso acontecia, com frequência significava um recuo antes de operações reais. O tipo de coisa que deixava nervoso o pessoal de sinalização da inteligência. Na maior parte do tempo não significava nada, afinal, apenas uma contingência na operação, mas havia se desenvolvido para algo real com frequência suficiente para que os espiões de sinais ficassem alvoroçados.
— Alguma ideia? — perguntou Wills.
Bell sacudiu a cabeça.
— Deixei de ser supersticioso uns dez anos atrás.
Claramente, Tony Wills não tinha deixado: — Rick, estamos devendo. Estamos devendo há longo tempo.
— Sei o que você está dizendo, mas não podemos dirigir este lugar baseados nesse tipo de coisa.
— Rick, é como sentar no banco do time que está jogando... talvez seja chato ficar na reserva, mas ainda assim não se pode entrar em campo na hora que se quer.
— Para fazer o que, matar a jogada? — perguntou Bell.
— Não, apenas o cara que esquematiza a jogada.
— Paciência, Tony, paciência.
— É uma virtude filha da puta de se adquirir, não é? — Wills nunca aprendera inteiramente, apesar de toda a experiência.
— Acha que ter é ruim? E o que me diz de Gerry?
— É, Rick, eu sei. — Ele se levantou. — Até mais tarde, cara.
NÃO VIRAM NENHUM OUTRO SER HUMANO, nenhum carro, nenhum helicóptero. Claramente, não havia nada de valor ali. Nem petróleo, nem ouro, nem mesmo cobre. Nada que valesse a pena vigiar ou proteger. A caminhada tinha sido longa demais para ser saudável. Alguns arbustos esturricados, até mesmo algumas árvores mirradas. Poucas marcas de pneus, nenhuma recente. Esta parte da América podia muito bem ser o Bairro Vazio da Arábia Saudita, o Rub al-Khali, onde até mesmo um resistente camelo do deserto teria achado penoso ir.
Mas estava claro que a caminhada chegara ao fim. Enquanto escalavam uma pequena elevação, viram cinco veículos parados e homens em pé junto a eles, conversando.
— Ah — disse Ricardo —, eles também chegaram cedo. Excelente. — Ele podia descarregar esses estrangeiros mal-humorados e ir cuidar da vida. Parou e deixou que os clientes o alcançassem.
— É nosso destino? — perguntou Mustafa, com esperança na voz. Tinha sido uma fácil caminhada, muito mais fácil do que havia esperado.
— Meus amigos vão levá-los a Las Cruces. Lá poderão fazer seus planos de viagem.
— E você? — perguntou Mustafa.
— Vou para casa, para minha família — respondeu Ricardo. Não era simples? Talvez este cara aqui não pudesse ter uma família...
O restante da caminhada levou apenas dez minutos. Ricardo entrou no veículo líder após trocar apertos de mão com a turma. Eles eram bem amigáveis, se bem que de uma maneira comedida. Podia ter sido mais difícil trazê-los até aqui, mas o tráfico de imigrantes ilegais era mais frequente no Arizona e na Califórnia, onde a Patrulha de Fronteira dos Estados Unidos concentrava a maior parte do efetivo. Os gringos choravam de barriga cheia — como todos os outros no mundo, talvez, mas ainda assim essa facilidade aqui não passava despercebida. Cedo ou tarde se dariam conta de que também havia tráfico de ilegais aqui. Só que não do tipo notável. Então Ricardo teria que buscar um novo meio de vida. Mas trabalhara muito bem nos últimos sete anos — o suficiente para montar um pequeno negócio e criar os filhos numa linha de trabalho mais legítima. Observou o grupo partir. Ele também seguiu na direção geral de Las Cruces, depois dobrou para o sul na 1-10 rumo a El Paso. Há muito que deixara de especular sobre o que seus clientes planejavam fazer nos Estados Unidos.
Provavelmente não era jardinagem nem trabalho de pedreiro, imaginou, mas havia recebido 10 mil dólares em dinheiro vivo. Portanto, eram importantes para alguém...
Não para ele.
_______________
1 “How Ya Gonna Keep'em Down on the Farm (After They've Seen Paree?)” Canção da Primeira Guerra Mundial que cresceu de popularidade depois que a guerra acabou, com a preocupação de que os soldados americanos do campo não quereriam voltar à fazenda dos pais.
10
RUMOS
PARA MUSTAFA E SEUS AMIGOS, a viagem para Las Cruces foi uma pausa bem-vinda e, embora não o demonstrassem, havia um óbvio excitamento agora. Estavam nos Estados Unidos. Aqui estava o povo que se propunham matar. A missão estava agora, de alguma forma, mais perto da execução, não por um mero punhado de quilômetros, mas por uma linha mágica e invisível. Estavam no lar do Grande Satã. Aqui vivia o povo que fizera chover morte sobre sua terra natal e, para todos os fiéis do mundo muçulmano, o povo que tão servilmente apoiava Israel.
Em Deming, dobraram a leste para Las Cruces. Cem quilômetros até sua próxima parada intermediária, ao longo da 1-10. Havia cartazes anunciando motéis e lugares para comer, atrações turísticas de tipo rotineiro e inconcebível, e mais terra a percorrer, e horizontes que pareciam distantes mesmo enquanto o carro devorava distâncias a mais de 100 quilômetros por hora. O motorista, como o anterior, parecia mexicano e nada dizia. Provavelmente outro mercenário. Ninguém dizia nada, o motorista porque não se importava, os passageiros porque seu inglês tinha sotaque e o motorista podia notar. Deste modo ele só podia se lembrar de ter apanhado umas pessoas numa estrada de terra ao sul do Novo México e as transportado para algum outro lugar.
Era provavelmente mais difícil para os outros no seu grupo, pensou Mustafa. Tinham de confiar nele para saber o que estava fazendo. Era o comandante da missão, o líder de um grupo guerreiro prestes a se dividir em quatro partes que jamais se reuniriam. A missão havia sido exaustivamente planejada. As únicas comunicações futuras seriam através de computador, e mesmo essas bem poucas. Eles iriam atuar de forma independente, mas para um único espaço de tempo e visando a um único objetivo estratégico. Este plano sacudiria os Estados Unidos como nenhum outro, disse Mustafa a si mesmo, olhando para uma caminhonete que os ultrapassava. Um casal e seus dois filhos, um garoto de uns quatro anos e outro menor, talvez de um ano e meio. Todos eles infiéis. Alvos.
Seu plano operacional estava todo escrito, claro, em corpo 14 sobre folhas de papel branco. Quatro cópias. Uma para cada líder de equipe. Os outros dados estavam em arquivos nos computadores pessoais que todos os homens levavam nas suas pequenas bagagens de mão, junto com mudas de roupa limpas e pouco mais. Não iriam precisar de muito, e o plano era deixar bem pouco para trás a fim de estontear mais ainda os americanos.
Foi o bastante para provocar nele um pequeno sorriso. Mustafa acendeu um cigarro — só lhe restavam três — e deu uma profunda tragada enquanto o ar-condicionado soprava ar frio sobre ele. Atrás deles, o sol declinava no céu. Fizeram sua próxima e última parada na escuridão, que, considerou, era bom planejamento tático. Ele sabia que era só um acidente, mas, se fosse assim, isto significava que o próprio Alá estava sorrindo por causa do plano deles. Como Ele devia fazer, claro. Eles estavam todos fazendo o trabalho Dele.
MAIS UM DIA DE TRABALHO infrutífero, disse Jack para si mesmo a caminho de seu carro. Uma coisa ruim a respeito do Campus era que ele não podia discutir isso com qualquer pessoa. Ninguém estava esclarecido para esta coisa, embora ainda não fosse evidente por quê. Ele podia, claro, discutir o assunto com seu pai — o presidente, por definição era posto a par de tudo, e ex-presidentes tinham o mesmo acesso a informações, se não por lei, então pelas regras práticas. Mas não, ele não podia fazer isso. Seu pai não gostaria deste novo serviço. Ele podia dar um telefonema e ferrar tudo, e Jack já experimentara a sensação de ser mantido por fora por pelo menos alguns meses. Mesmo assim, a oportunidade de discutir umas poucas coisas com alguém que sabia o que estava acontecendo seria uma bênção. Apenas alguém que dissesse, sim, é realmente importante, e, sim, você está contribuindo de fato para a verdade, a justiça e o modo americano de ser.
Podia ele realmente fazer uma diferença? Era assim que o mundo funcionava, e ele não podia alterar muito isso. Mesmo seu pai, com todo o poder que lhe fora conferido, tinha sido incapaz de fazê-lo. Como é que ele, um príncipe-herdeiro no ramo, seria capaz de levar a cabo a tarefa? Mas se as partes fendidas do mundo estavam ainda por ser fixadas, teria que ser pelas mãos de alguém que não se importasse se isso era impossível ou não. Talvez alguém jovem e tolo demais para saber que as coisas impossíveis eram... impossíveis. Mas nem seu pai nem sua mãe acreditavam nessa palavra, e foi desta maneira que o criaram. Sally em breve ia se formar em medicina, na área de oncologia — a única coisa que a mãe deles lamentara não ter feito na sua própria carreira médica —, e dizia a todos que lhe perguntavam que estava indo para onde o dragão câncer seria exterminado de uma vez por todas. Assim, acreditar na impossibilidade não fazia parte do credo dos Ryan. Ele ainda não sabia disso, mas o mundo estava repleto de coisas a aprender, não estava? E ele era esperto e bem-educado, e ter uma reserva financeira considerável significava que podia seguir em frente sem receio de passar fome se ofendesse a pessoa errada. Esta era a liberdade mais importante que seu pai lhe havia legado, e John Patrick Ryan Jr. era esperto o bastante para reconhecer sua importância — se não agarrasse a responsabilidade que tal liberdade trazia consigo.
EM VEZ DE COZINHAR seu próprio jantar, eles decidiram ir a uma churrascaria local naquela noite. Estava repleta de estudantes da Universidade da Virginia. Poder-se-ia dizer que todos pareciam brilhantes, tão brilhantes quanto se achavam, e falavam um tanto alto, mostrando-se um pouco autoconfiantes. Esta era uma das vantagens de ser criança — por mais que detestassem ser assim chamados —, garotos cujas necessidades eram ainda satisfeitas por seus adoráveis pais, embora a uma confortável distância. Para os dois rapazes Caruso, isto era uma mirada cheia de humor no que eles mesmos tinham sido poucos anos atrás, antes do rude treinamento e da experiência no mundo real que os transformaram em algo mais. Exatamente o que, não estavam ainda certos. O que parecera tão simples na escola tinha se tornado infinitamente complexo após deixarem o útero acadêmico. O mundo não era digital, afinal de contas — era uma realidade análoga, sempre desordenada, sempre com pontas soltas que nunca podiam ser atadas caprichadamente como cordões de sapato, e portanto era possível escorregar e cair a cada passo em falso. E cautela só vinha com a experiência — com umas poucas quedas e passos em falso que produziam dor, só que a pior delas ensinava lições nunca esquecidas. Essas lições chegaram cedo aos irmãos. Não tão cedo quanto chegaram para outras gerações, mas ainda assim cedo o suficiente para que percebessem as consequências de equívocos num mundo que nunca aprendera a perdoar.
— Não é um mau lugar — avaliou Brian, já na metade do seu filé mignon.
— É difícil estragar um bom corte de carne, por mais burro que seja o cozinheiro. — O lugar obviamente tinha um cozinheiro, não um chef, mas as batatas fritas estavam muito boas para o que era quase puro carboidrato, e o brócolis estava fresco mesmo sendo daqueles congelados, pensou Dominic.
— Eu realmente deveria comer melhor do que isto — observou o major dos Fuzileiros.
— Aproveite enquanto pode. Ainda não chegamos aos 30, não é?
Isso valeu uma risada.
— Costumava parecer um tremendo número, não parecia?
— Onde a velhice começa? Ah, sim. Bem, você está muito jovem para ser major, certo?
Aldo deu de ombros.
— Suponho que sim. Meu chefe gostou de mim e tive um pessoal muito bom trabalhando para mim. Nunca tomei gosto pelo rancho, porém. Eles mantêm você em pé, mas isto é quase tudo que posso dizer a favor. Meu artilheiro adorava as coisas, dizia que eram melhores dos que as que se acostumara no Corpo de Fuzileiros.
— No Bureau a gente vive como se estivesse no Dunkin Donuts e... bem, eles fazem o melhor café industrial do país. É duro manter a cintura nos trinques com esse tipo de dieta.
— Você está em boa forma para um guerreiro de escritório, Enzo — observou Brian um tanto generosamente. No fim da corrida matinal, seu irmão às vezes parecia a ponto de cair. Mas uma corrida de quase cinco quilômetros era café pequeno para um fuzileiro, alguma coisa para abrir os olhos. — Ainda gostaria de saber exatamente para o que estamos sendo treinados — disse Aldo após outra mordida.
— Mano, estamos treinando para matar pessoas, isso é tudo que precisamos saber. Agir sem ser visto e dar no pé sem ser notado.
— Com pistolas? — replicou Brian em dúvida. — Tipo de coisa barulhenta e não tão segura quanto um rifle. Eu tinha um atirador de elite em minha equipe no Afeganistão. Ele pegava os bandidos a mais de um quilômetro e meio de distância. Usava um rifle Barrett 50mm, puta merda, fuzil automático Browming com esteroides. Dispara as balas 50mm da metralhadora Mamãe Dois. Uma pontaria do cacete, e isto contribui para um sucesso definitivo, tá sabendo? Tipo difícil escapar com um buraco de meia polegada na carcaça. — Especialmente depois que seu atirador de elite, o cabo Alan Roberts, um garoto negro de Detroit, optara por tiros na cabeça, e as balas 50mm realmente faziam o serviço nas cabeças.
— Bem, talvez pistolas com silenciador. A gente pode silenciar uma arma leve muito bem.
— Já vi. Treinamos com elas na Escola de Reconhecimento, mas elas são volumosas demais para carregar sob um terno de trabalho, e você ainda tem que sacá-las, permanecer imóvel e mirá-las na cabeça do alvo. A não ser que nos mandem para a Escola James Bond para cursos de magia, não vamos matar muita gente com armas leves, Enzo.
— Bem, talvez usemos algo mais.
— Então você também não sabe?
— Ei, cara, meus dados ainda vêm do FBI. Tudo que sei é que Gus Werner me mandou para cá, o que torna isso o máximo do mais adequado... eu acho.
— Você já o mencionou. Quem é ele exatamente?
— Diretor assistente, chefe da nova Divisão Antiterrorismo. Não se pode vacilar com Gus. Ele foi chefe da Equipe de Resgate de Reféns e também já passou por todas as experiências. Cara esperto, e durão pra cacete. Não creio que vá desmaiar à visão de sangue. Mas também tem uma boa cabeça sobre os ombros. Terrorismo é novidade no FBI, e Dan Murray não o escolheria para o serviço só porque ele sabe usar uma pistola. Ele e Murray são firmes, com mais de vinte anos de janela. Murray também não é nenhum otário. Seja como for, se ele me mandou para cá, é para ficar Okay com alguém. Assim, seguirei no jogo até que eles me digam para infringir a lei.
— Eu também, mas ainda estou um pouco nervoso.
LAS CRUCES TINHA UM AEROPORTO regional para pequenos aviões de carga e táxis aéreos. Nas proximidades havia locadoras de automóveis. Eles saltaram e foi a hora de Mustafa ficar nervoso. Ele e um dos colegas alugariam carros aqui. Dois outros fariam a mesma coisa no centro da cidade.
— Está tudo preparado para vocês — disse o motorista. Ele estendeu duas folhas de papel. — Aqui estão os números da reserva. Vocês estarão dirigindo sedãs Ford Crown Victoria de quatro portas. Para conseguir vans, como vocês pediram, seria preciso ir a El Paso, e isso não era desejável. Usem seus cartões Visa lá. Seu nome é Tomas Salazar. Seu amigo é Hector Santos. Mostrem a eles os números da reserva e simplesmente façam o que eles mandarem fazer. É muito fácil. — Nenhum homem pareceu ao motorista excessivamente latino em aparência, mas os atendentes da locadora eram dois irlandeses ignorantes cujo espanhol se resumia a taco e cerveza.
Mustafa saltou do carro e caminhou, acenando para que o amigo o seguisse. Soube de imediato que seria fácil. Quem quer que fosse o dono do negócio, não se preocupava em recrutar pessoas inteligentes. O rapaz na mesa de recepção debruçava-se sobre ela, lendo um gibi com uma atenção que parecia um pouco extasiada demais.
— Olá — disse Mustafa, com falsa confiança. — Tenho reserva. — Ele escreveu o número num bloco e entregou a folha ao rapaz.
— Okay. — O atendente não exibiu sua chateação por ser desviado da mais nova aventura de Batman. Ele sabia como operar o computador do escritório, que expeliu um formulário de aluguel já preenchido detalhadamente.
Mustafa entregou-lhe sua carteira de motorista internacional, da qual o funcionário tirou cópia, grampeando-a depois em seu formulário de aluguel. Estava encantado porque o Sr. Salazar tinha contratado todas as opções de seguro — ele ganhava um dinheiro extra por encorajar as pessoas a fazerem isso.
— Tudo bem, o seu carro é o Ford branco na vaga número 4. É só sair por aquela porta e dobrar à direita. As chaves estão na ignição, senhor.
— Obrigado — disse Mustafa em inglês com sotaque. Era realmente fácil.
Evidente que era. Mal entrou em seu Ford adaptado quando Saeed apareceu na vaga 5 e abriu um sedã verde-claro igual ao seu. Os dois tinham mapas do estado do Novo México, mas na verdade não iam precisar deles. Deram partida nos carros, manobraram para fora das vagas e saíram para a rua, onde as vans esperavam. Era bem simples segui-las. A cidade de Las Cruces tinha tráfego, mas não tanto na hora do jantar.
Havia outra locadora a apenas oito quarteirões ao norte do que parecia ser a rua principal de Las Cruces. Chamava-se Hertz, nome que pareceu a Mustafa vagamente judeu. Seus dois companheiros entraram e, dez minutos depois, saíram e entraram em seus carros alugados. Mais uma vez, eram Fords do mesmo estilo que o dele e de Saeed. Isso feito, talvez na mais arriscada missão que tinham de cumprir, era hora de seguir as vans rumo norte por mais alguns quilômetros — cerca de vinte, como veio a ser —, depois sair desta estrada e pegar outra de terra. Parecia haver um monte delas por aqui... como no país deles, de fato. Mais um quilômetro e se depararam com uma casa isolada, com apenas um caminhão estacionado nas proximidades para sugerir moradia. Lá, todos os veículos estacionaram e os ocupantes saltaram para o que seria, Mustafa percebeu, seu último encontro adequado.
— Temos as armas de vocês aqui — disse Juan. Apontou para Mustafa. — Venha comigo, por favor.
O interior da casa de madeira de aparência comum parecia um verdadeiro arsenal.
Um total de 16 caixas de papelão continham 16 submetralhadoras MAC-10. Sem ser uma arma de fogo elegante, a MAC é fabricada de aglomerado de aço, geralmente com pobre acabamento no metal. Junto a cada arma havia 12 carregadores, aparentemente todos municiados e colados de cabo a rabo com fita isolante.
— As armas são virgens, nunca foram disparadas — informou-lhes Juan. — Temos também supressores de para cada uma. Não são silenciadores eficientes, mas melhoram o equilíbrio e a pontaria. Esta arma não é tão facilmente manipulável quanto a Uzi... mas essa também é muito mais difícil de obter aqui. Para esta arma, seu alcance eficaz é de cerca de 10 metros. É facilmente carregada e descarregada. Dispara de um ferrolho aberto, claro, e o ritmo de fogo é bem alto. — De fato, podia esvaziar um carregador de trinta cartuchos em menos de três segundos, o que era um pouco rápido demais para o uso, mas essa gente não parecia excessivamente especial para Juan.
Eles não eram. Cada um dos 16 árabes ergueu uma arma e avaliou seu peso, como se dizendo alô a um novo amigo. Depois um ergueu um par de carregadores...
— Pare! Halt! — sibilou Juan no ato. — Você não vai carregar essas armas aqui dentro. Se quiser testá-la, temos alvos lá fora.
— Não será barulhento demais? — perguntou Mustafa.
— A casa mais próxima fica a 4 quilômetros — respondeu Juan, descartando. As balas não podiam viajar tão longe, e ele presumiu que o barulho também não. Nisso, ele estava enganado. Mas seus visitantes presumiam que ele conhecia tudo naquela área e estavam sempre dispostos a disparar armas, em especial do tipo barulhento. A 20 metros da casa havia um monte de areia com alguns caixotes e caixas de papelão espalhados. Um por um, eles inseriram os carregadores nas submetralhadoras e puxaram os ferrolhos para trás. Não houve nenhuma ordem oficial para atirar. Em vez disso, eles aceitaram a liderança de Mustafa, que agarrou a tira pendente do cano e apertou o gatilho.
Os resultados imediatos foram agradáveis. O MAC-10 fez o barulho apropriado, pulando acima e à direita como todas as armas do tipo faziam, mas como era sua primeira vez e era apenas um estande de tiro, conseguiu direcionar suas balas para uma caixa de papelão a uns 6 metros à frente e à esquerda. Aparentemente sem nenhum tempo afinal, o ferrolho bateu fechado sobre uma câmara vazia, tendo disparado e ejetado trinta cartuchos de pistolas Remington 9mm. Ele pensou em extrair o carregador e revertê-lo para desfrutar de mais dois ou três segundos de alegria flamejante, mas conseguiu se controlar. Haveria outra hora para isso num futuro não tão distante.
— E os silenciadores? — perguntou a Juan.
— Lá dentro. São atarraxados na boca da arma, e é melhor atarraxá-los... mais fácil de controlar como eles vão espalhar suas balas, você sabe. — Juan falava com alguma autoridade. Ele havia usado o MAC-10 para eliminar concorrentes comerciais e outras pessoas desagradáveis em Dallas e Santa Fé ao longo dos anos. Apesar disso, olhava para seus hóspedes com certa inquietação. Eles riam muito. Não eram como ele, Juan Sandoval disse a si mesmo, e quanto mais cedo seguissem seu caminho, melhor. Não seria fácil chegar a seus destinos, mas isso não era problema dele. Suas ordens vinham de cima. Muito de cima, seu superior imediato deixara isso claro na semana anterior. E o dinheiro havia sido proporcional. Juan não tinha nenhuma queixa especial, porém, como bom avaliador de pessoas, tinha uma luz vermelha piscando atrás de seus olhos.
Mustafa o seguiu de volta para dentro e pegou o silenciador. Tinha talvez 10 centímetros de diâmetro e cerca de meio metro de comprimento. Como prometido, já atarraxado nas ranhuras da boca da arma, no todo melhorou seu equilíbrio.
Ele o sopesou brevemente e decidiu que preferia usá-la desta maneira. Era melhor reduzir a subida do cano e produzir um disparo mais preciso. A redução do ruído não tinha muita importância em sua missão, a precisão tinha. Mas o silenciador tornava uma arma fácil de esconder inaceitavelmente volumosa. Assim, ele o desatarraxou por enquanto e guardou na mochila. Depois saiu para reunir seu pessoal. Juan o seguiu na volta.
— Tem algumas coisas que vocês precisam saber — disse ele aos líderes de equipe, Juan continuou numa voz lenta e cadenciada: — A polícia americana é eficiente, mas não infalível. Se, durante a viagem, alguém parar vocês, tudo que precisam fazer é falar educadamente. Se o guarda pedir que saltem do carro, façam como ele diz. A lei americana permite que ele verifique se carregam uma arma, que reviste vocês com as próprias mãos. Mas se ele pedir para revistar o carro digam simplesmente não, não desejo que faça isso... e, de acordo com a lei, ele não pode revistar o carro. Vou repetir: se um policial americano pedir para revistar seu carro, vocês só precisam dizer não, e então ele não pode fazê-lo. Depois sigam viagem. Quando dirigirem, não ultrapassem o limite de velocidade. Se agirem assim, provavelmente não serão perturbados de modo algum. Se ultrapassarem a velocidade permitida, só estarão dando à polícia um motivo para mandar parar o carro. Assim, não façam isso. Exercitem a paciência o tempo todo. Alguma pergunta?
— E se um policial for agressivo demais? Podemos...
Juan já sabia a pergunta que vinha: — Matá-lo? Sim, é possível, mas aí terão toda a polícia caçando vocês. Quando um policial nos manda encostar, a primeira coisa que faz é dar sua localização pelo rádio, mais o número da placa e a descrição do veículo. Assim, mesmo se o matarem, os colegas dele procurarão vocês em questão de minutos... e em grande número. Não vai compensar a satisfação de matar um policial. Só vão criar mais problemas para vocês. A força policial americana tem muitos carros, e até aviação. Uma vez que comecem a procurá-los, eles os acharão. Assim, sua única defesa é não chamar atenção. Nada de velocidade. Nada de infringir regras de trânsito. Façam isso e estarão a salvo. Se violarem a lei, serão apanhados, com ou sem armas. Entenderam?
— Entendemos — assegurou-lhe Mustafa. — Obrigado por sua assistência.
— Temos mapas para vocês. São mapas bons, do Automóvel Club. Todos vocês têm histórias plausíveis, não é? — perguntou Juan, esperando acabar tudo o mais rápido possível.
Mustafa olhou para os amigos em busca de perguntas adicionais, mas eles estavam ansiosos demais para cumprir a missão e não seriam desviados agora. Satisfeito, ele se virou para Juan.
— Obrigado por sua ajuda, meu amigo.
Amigo o cacete, pensou Juan, mas apertou a mão do homem e os dois caminharam até a frente da casa. As malas foram rapidamente transferidas das vans para os carros e depois Juan os viu seguir de volta para a Rota Estadual 185. Eram apenas poucos quilômetros até Radium Springs e a entrada para a 1-25 Norte. Os estrangeiros se reuniram uma última vez para apertos de mão — e até trocaram alguns beijos, Juan ficou surpreso de ver. Depois se dividiram em quatro equipes de quatro homens e entraram nos carros alugados.
Mustafa acomodou-se em seu carro. Colocou seus maços de cigarro no banco ao lado, certificou-se de que os espelhos retrovisores estavam perfeitamente alinhados com seus olhos e colocou o cinto de segurança — disseram-lhe que viajar sem o cinto era motivo para ser detido na estrada, tanto quanto excesso de velocidade. Entre todas as coisas, ele não desejava que um policial o mandasse encostar. Apesar das instruções que recebera de Juan, era um risco que não tinha nenhum desejo de correr. De passagem, um policial podia não reconhecê-los pelo que eles eram, mas cara a cara era outra coisa, e ele não tinha ilusões do que os americanos pensavam dos árabes. Por esta razão, todos os exemplares do Sagrado Corão estavam escondidos no porta-malas.
Seria um longo tempo, Abdullah ia soletrando ao volante, mas o primeiro turno seria dele. Norte na 1-25 para Albuquerque, depois leste pela 1-40 por quase todo o caminho para o alvo. Mais de três mil quilômetros. Ele tinha que começar a pensar em milhas, Mustafa disse a si mesmo. Um ponto seis quilômetros para uma milha. Teria que multiplicar cada número assim o tempo todo, ou simplesmente desprezar por completo o sistema métrico no que se referia ao carro. Fosse como fosse, seguiu rumo norte pela Rota 185 até ver o letreiro verde-folha e a seta apontando para a 1-25 Norte. Recostou-se no banco, verificou o tráfego enquanto entrava nele e aumentou a velocidade para 65 milhas por hora, mantendo o velocímetro do Ford exatamente neste número. Depois disso, era apenas uma questão de dirigir e observar todo o tráfego anônimo que, como ele e seus amigos, seguia rumo norte até Albuquerque...
JACK NÃO SABIA POR QUE ERA DIFÍCIL ir dormir. Passava das onze da noite, tinha visto um pouco de TV e tomara três drinques. Já deveria estar dormindo. Estava sonolento, aliás, mas o sono não vinha. E ele não sabia por quê. Apenas feche os olhos e pense em coisas felizes, sua mãe dizia quando era criança. Mas pensar em coisas felizes era a parte difícil agora que já não era mais um garotinho. Entrara num novo mundo que pouco tinha a ver com isso. Seu trabalho era examinar fatos notórios ou suspeitos relativos a gente que provavelmente nunca conheceria, tentar decidir se queriam matar gente que nunca conheceria, depois passar a informação para outras pessoas que podiam ou não fazer alguma coisa a respeito. Exatamente o que tentariam fazer ele não sabia, embora tivesse suas suspeitas... e eram suspeitas feias. Rolar na cama, afofar o travesseiro, tentar encontrar um ponto fresco na fronha, cabeça virada para trás, dormir um pouco...
...isso não estava acontecendo. Aconteceria, finalmente. Era sempre assim, aparentemente meio segundo antes que o despertador disparasse.
Droga!, rosnou para o teto.
Ele estava caçando terroristas. A maioria deles acreditava em algo de bom — não, algo heroico — de si mesmos enquanto praticavam seus crimes. Para eles não era crime, afinal. Para terroristas muçulmanos, era a ilusão de que estavam realizando a obra de Deus. Só que o Corão não dizia realmente isso. Ele particularmente desaprovava a morte de gente inocente, não combatentes. Como isso realmente funcionava? Alá recebia os homens-bomba com um sorriso, ou algo assim? No catolicismo, a consciência pessoal era soberana. Se a pessoa acreditava que estava fazendo a coisa certa, então Deus não podia puni-la. O Islã tinha as mesmas regras? Além disso, desde que só havia um Deus, talvez as regras fossem as mesmas para todo mundo. O problema era: que conjunto de regras religiosas mais se aproxima do verdadeiro pensamento de Deus? E como diabos se pode dizer qual é qual? Os cruzados cometeram atrocidades. Mas aquele era um caso clássico de se dar um pretexto religioso para o que na verdade se tratava de questões econômicas ou simples ambição. Um nobre simplesmente não queria dar a impressão de que lutava por dinheiro — mas tendo Deus do seu lado, não havia nada que se pudesse fazer. Girando a espada, qualquer pescoço que pudesse cortar era válido. Assim dizia o bispo.
Certo. O problema real era que religião e poder político fizeram uma mistura de merda, embora fosse adotada pelos jovens e entusiastas, para os quais aventura era algo que simplesmente se extraía da manga. Seu pai às vezes comentara sobre isso, durante o jantar na Casa Branca, explicando que uma das coisas que se precisava dizer ao jovem soldado e recrutas dos Fuzileiros era que até mesmo a guerra tinha suas regras, e que infringi-las acarretava duras punições. Os soldados americanos aprendiam isso muito facilmente, seu pai lhe dissera, porque eles procediam de uma sociedade na qual a violência indisciplinada era severamente punida, o que era melhor do que um princípio abstrato para ensinar o certo e o errado. Após uma ou duas dicas, já era possível entender a mensagem.
Ele suspirou e rolou na cama de novo. Era realmente jovem demais para pensar nas Grandes Questões da Vida, muito embora seu diploma de Georgetown sugerisse o contrário. As faculdades normalmente não lhe diziam que noventa por cento de sua formação vinham depois que você pendurava o diploma na parede. Os formandos podiam pedir um desconto.
PASSAVA DA HORA DO CAMPUS FECHAR. Gerry Hendley estava no escritório no último andar, revisando dados que não conseguira revisar durante o expediente. O mesmo se dava com Tom Davis, que tinha relatórios de Pete Alexander.
— Problemas? — indagou Hendley.
— Os gêmeos continuam pensando um pouco demais, Gerry. Devíamos ter previsto isso. Os dois são espertos, e ambos jogam dentro das regras, na maior parte das vezes. Assim, quando veem que estão sendo treinados para violar essas regras, ficam preocupados. A parte engraçada, diz Pete, é que o fuzileiro é o mais preocupado. O cara do FBI está se adaptando muito melhor.
— Eu teria esperado o contrário.
— Eu também. E Pete. — Davis pegou sua água gelada. Ele nunca tomava café tarde da noite. — Seja como for, Pete diz que não tem certeza de como isso vai terminar, mas não tem escolha senão continuar o treinamento. Gerry, eu devia tê-lo prevenido mais sobre isso. Imaginava que teríamos esse problema. Diabos, é nossa primeira vez. O tipo de gente que queremos... como eu disse, eles não são psicopatas. Eles farão perguntas. Vão querer saber por quê. Terão segundos pensamentos. Não podemos recrutar robôs, podemos?
— Como quando tentaram apagar Castro — observou Hendley. Ele havia lido os arquivos classificados sobre aquela aventura louca e fracassada. Bobby Kennedy havia chefiado a Operação MANGUSTO. Eles provavelmente a decidiram no meio de alguns drinques, ou talvez após algum jogo de futebol. Afinal, Eisenhower usara a CIA para propósitos similares durante sua presidência, então por que não fariam o mesmo? Só que um ex-tenente da Marinha que perdera o comando por colisão e um advogado que nunca exercera a profissão não sabiam instintivamente todas as coisas que um soldado de carreira que chegou a cinco estrelas entendia desde o início. Além disso, eles detinham o poder. A própria Constituição tornara Jack Kennedy comandante-em-chefe, e com tal poder invariavelmente vinha a pressa de fazer uso dele, e assim remodelar o mundo em alguma coisa mais receptiva a seu ponto de vista pessoal. Portanto a CIA recebera a ordem de matar Castro. Mas a CIA nunca teve um departamento de assassinato e nunca treinara pessoas para tais missões. E assim a Agência procurara a Máfia, cujos chefões tinham poucos motivos para admirar Castro — que botara abaixo o que esteve a ponto de se tornar seu mais lucrativo negócio de todos os tempos. Seria uma coisa tão segura que alguns chefões do crime organizado investiram o próprio dinheiro nos cassinos de Havana, só para vê-los fechados pelo ditador comunista.
E a Máfia, não era perita em matar pessoas?
Bem, na verdade não, os mafiosos nunca foram muito eficientes nisso — especialmente em matar gente capaz de retaliar —, ao contrário dos filmes de Hollywood. E mesmo assim o governo dos Estados Unidos tentara usá-los como sicários para o assassinato de um chefe de Estado estrangeiro — porque a CIA não sabia como fazer isso acontecer. Era, em retrospecto, um tanto ridículo. Um tanto?, Gerry Hendley se perguntou. Um desastre de trem planejado pelo governo. Com exposição suficiente para forçar o presidente Gerald Ford a solar sua ordem executiva tornando tais ações ilegais, ordem essa que havia durado até o presidente Ryan decidir remover o ditador religioso do Irã com duas bombas inteligentes. Notavelmente, o tempo e as circunstâncias haviam impossibilitado a mídia de comentar o assassinato. Tinha sido perpetrado, afinal, pela Força Aérea dos Estados Unidos, com bombardeio aéreo corretamente marcado — embora furtivamente — numa época de guerra não declarada mas muito real, na qual armas de destruição em massa foram usadas contra cidadãos americanos. Esses fatores se combinaram para tornar toda a operação não só legítima como também louvável, e ratificada pelo povo americano na eleição seguinte. Apenas George Washington acumulara uma pluralidade maior nas eleições, um fato que ainda deixava o velho Jack Ryan inquieto. Mas ele sabia da importância da morte de Mahmoud Haji Daryaei, e assim, antes de deixar o governo, tinha falado com Gerry para fundar o Campus.
Jack só não me disse como seria difícil, recordou Hendley. Era assim que Jack Ryan sempre operava: pegue as pessoas boas, dê a elas uma missão e as ferramentas para levá-la a cabo, depois deixe-as agir com a mínima interferência do alto. Isso era o que tinha feito dele um bom chefe e um excelente presidente, pensou Gerry. Mas não tornava muito mais fácil a vida dos subordinados. Por que diabos ele havia aceitado?, perguntou-se Hendley. Mas então veio um sorriso. Como Jack reagiria quando soubesse que seu próprio filho fazia parte do Campus? Veria algum humor nisso?
Provavelmente não.
— Então, Pete diz apenas para terminar com isso?
— O que mais ele pode dizer? — replicou Davis.
— Tom, algum dia desejou voltar para a fazenda de seu pai em Nebraska?
— É um trabalho duro pra cacete, e meio monótono. — E não havia como manter Davis lá na fazenda depois de ter sido agente de campo da CIA. Ele podia ser agora um excelente corretor da Bolsa em sua vida "branca", mas Davis não era mais branco em sua verdadeira distração do que na cor de sua pele. Ele gostava demais da ação no "black world".
— O que acha da coisa de Fort Meade?
— Algo me diz que estamos diante de alguma coisa. Nós os cutucamos. Eles vão querer nos cutucar de volta.
— Acha que eles podem se recuperar? Nossas tropas no Afeganistão os teriam mordido forte demais?
— Gerry, algumas pessoas são burras demais, ou dedicadas demais, para notar que estão feridas. Religião é um poderoso motivador. E até mesmo se os atiradores deles são burros demais para saber a importância do que estão fazendo...
—... eles são espertos o bastante para levar a cabo suas missões — concordou Hendley.
— E não é por isso que estamos aqui? — perguntou Davis.
11
CRUZANDO O RIO
O SOL SE ERGUEU prontamente ao alvorecer. Mustafa despertou sobressaltado pela combinação de luz brilhante e uma colisão na estrada. Sacudiu a cabeça para se recompor e se virou para ver Abdullah sorrindo ao volante.
— Onde estamos? — perguntou o líder da equipe ao principal subordinado.
— Estamos meia hora a leste de Amarillo. Foi uma viagem agradável pelos últimos 560 quilômetros, mas logo vou precisar abastecer.
— Por que não me acordou antes?
— Por quê? Você estava dormindo tão agradavelmente! E a estrada estava quase completamente vazia a noite toda, exceto por aquelas malditas carretas. Esses americanos devem todos dormir à noite. Não acho que vi mais de trinta automóveis de verdade nas últimas horas.
Mustafa verificou o velocímetro. O carro ia a apenas 65 milhas por hora. Assim, Abdullah não estava correndo muito. Não haviam sido parados por nenhum policial.
Não havia nada com que se preocupar — exceto que Abdullah não seguira suas ordens tão precisamente quanto Mustafa teria preferido.
— Lá. — O motorista apontou para o letreiro azul de um posto de gasolina. — Podemos abastecer e comer alguma coisa. Eu estava planejando acordá-lo aqui de qualquer modo, Mustafa. Fica frio, meu amigo. — O medidor de gasolina estava quase zerado, viu Mustafa. Abdullah tinha bobeado em deixar que baixasse tanto, mas não fazia sentido censurá-lo por isso.
Entraram num posto de bom tamanho. As bombas de gasolina tinham a marca Chevron e eram automáticas. Mustafa pegou sua carteira e tirou o cartão Visa, inserindo-o na fenda, depois encheu o tanque do Ford com gasolina premium.
Àquela altura, os outros três já tinham ido ao banheiro do posto e examinavam agora as opções de comida. Mais uma vez, só parecia haver donuts. Dez minutos após terem saído da rodovia interestadual, estavam de volta a ela, seguindo rumo leste para Oklahoma. Mais vinte minutos e entraram no estado.
No banco de trás, Rafi e Zuhayr estavam despertos e conversando e, enquanto dirigia, Mustafa ouvia sem se envolver na conversa.
A terra era plana, topograficamente similar ao país deles, mas muito mais verde. O horizonte era surpreendentemente distante, tanto que avaliar a distância parecia impossível à primeira vista. O sol estava acima do horizonte, e queimava nos olhos até que ele se lembrou dos óculos escuros no bolso da camisa. Eles ajudariam de alguma maneira.
Mustafa anotou seu atual estado mental. Descobriu que a viagem estava sendo boa, a paisagem agradável à vista e o trabalho, até aqui, fácil. Mais ou menos a cada noventa minutos, ele via um carro da polícia, geralmente ultrapassando o Ford bem de perto, mas rápido demais para que os tiras no seu interior dessem uma sacada nele e em seus amigos. Tinha sido um bom conselho respeitar os limites de velocidade. Eles prosseguiam bem, mas regularmente eram ultrapassados, até mesmo pelas grandes carretas. Não infringir a lei nem mesmo um pouco os tornava invisíveis para a polícia, cuja principal tarefa era punir aos apressados. Confiava na solidez da segurança em sua missão. Não aconteceu de serem seguidos ou forçados a parar num trecho de estrada particularmente deserto, numa armadilha com armas e muitos, muitos inimigos. Nada disso tinha acontecido. Uma vantagem adicional de respeitar o limite de velocidade era que ninguém na cola deles ia se salientar. Era só uma questão de olhar o retrovisor. Ninguém demorava atrás dele por mais que poucos minutos.
Qualquer espião da polícia seria um homem — teria que ser um homem — de seus 20 ou 30 anos. Talvez dois deles, um dirigindo e outro olhando. Os dois estariam em boa forma física, com cortes de cabelo conservadores. Ficariam na cola deles por alguns minutos antes de romper o contato, enquanto alguém mais assumiria a vigilância. Eles eram espertos, claro, mas a natureza da missão tornava seus procedimentos previsíveis. Alguns carros iam sumir e reaparecer. Mas Mustafa estava plenamente alerta e nenhum carro apareceu mais de uma vez. Eles podiam ser seguidos por via aérea, claro, mas helicópteros eram fáceis de detectar. O único perigo real era um pequeno avião convencional, mas ele também não podia se preocupar com tudo. Se estava escrito, então escrito estava, e não havia mais nenhuma defesa contra isso. Por enquanto, a estrada estava limpa e o café era excelente. Seria um dia ótimo.
OKLAHOMA CITY, 60 KM, anunciava o letreiro rodoviário verde.
A NPR ANUNCIOU que era o aniversário de Barbara Streisand, uma informação vital para começar o dia, disse John Patrick Ryan Jr. a si mesmo enquanto rolava para fora da cama e seguia para o banheiro. Poucos minutos depois, viu que sua cafeteira automática funcionara adequadamente e despejara duas xícaras no pote branco de plástico. Ele decidira ir ao McDonald's nesta manhã e encarar um Egg McMuffin e brownies a caminho do trabalho. Não era exatamente um café da manhã saudável, mas enchia a pança, e aos 23 anos ele ainda não esquentava a cabeça com gordura e colesterol como seu pai, por cortesia da mãe. Mamãe já deve estar vestida e pronta para dirigir até a Johns Hopkins (acompanhada por seu principal agente secreto) para o trabalho matinal, sem café se fosse operar hoje, porque se preocupava que a cafeína pudesse causar um leve tremor em sua mão — e dirigir seu bisturi para o cérebro do infeliz após desviar o globo ocular como a azeitona num martíni (era uma piada do pai, que em geral resultava num divertido sopapo de mamãe). Papai ia trabalhar em suas memórias, assistido por um ghostwriter (que ele detestava — mas o editor fizera questão dele). Sally estava no estágio final da faculdade de medicina; ele não sabia o que ela estaria fazendo neste momento. Katie e Kyle estariam se vestindo para a escola. Mas o pequeno Jack tinha que ir trabalhar. Recentemente lhe ocorrera que a universidade tinha sido seu último período de férias de verdade. Ah, claro, todo garoto e garota garota nada mais querem do que crescer e cuidar da própria vida, mas então chegam lá — e é tarde demais para voltar atrás. Essa coisa de trabalhar todo dia era um pé no saco. Tudo bem, o sujeito era pago para isso — mas ele já era rico, o herdeiro de uma distinta família. O dinheiro, no caso, já estava ganho, e ele não era o tipo de perdulário de torrar tudo e se tornar um homem não realizado, era? Colocou na pia sua xícara de café vazia e foi para o banheiro se barbear.
Isso era outro pé no saco. Droga, um adolescente seguindo a moda gostava tanto de ver a primeira penugem cor de pêssego ficar escura e hirsuta, e depois ia ter que se barbear uma ou duas vezes por semana, geralmente antes de um encontro. Mas toda maldita manhã — bem, isso era um pé no saco! Ele se lembrava de ter observado o pai fazer a barba, como fazem todos os garotos, e pensava em como era legal ser adulto. É, isso mesmo. Crescer simplesmente não valia a pena. Era muito melhor ter papai e mamãe cuidando de toda a merda administrativa. E mesmo assim... E mesmo assim ele estava fazendo uma coisa importante agora, e isso tinha sua espécie de satisfação. Desde que passasse por todo o trabalho doméstico que a acompanhava. Bem. Camisa limpa. Pegar uma gravata e dar o laço. Vestir o paletó. Porta afora. Pelo menos ele tinha um carro para dirigir. Podia arranjar outro. Um conversível, talvez. O verão estava chegando, e seria legal ter o vento soprando no cabelo. Até algum vândalo com uma faca rasgar a capota de lona. Aí teria que ligar para a companhia de seguros e ficar sem o carro por três dias. Quando se pensava a fundo nisso, crescer era como ir a um shopping para comprar cuecas. Todo mundo precisava de cuecas, mas não havia muito que se pudesse fazer com elas a não ser lavá-las.
A viagem para o trabalho era uma rotina como ir para a escola, exceto que ele não precisava mais se preocupar com alguma prova. Só que, se fizesse merda, ele perderia o emprego, e essa mácula o acompanharia por muito mais tempo do que uma nota baixa em sociologia. Assim, ele não queria fazer merda. O problema com seu emprego era que todo o dia era gasto em aprendizado, não em aplicação do conhecimento. Toda a grande mentira sobre a universidade era que ela ensinava o que precisava saber para enfrentar a vida. É, tudo bem. Ela provavelmente não tinha feito isso pelo pai — e a mãe, droga, ela nunca vai parar de ler publicações médicas para se atualizar. E não apenas publicações americanas. Inglesas e francesas também, porque ela falava francês muito bem e dizia que os médicos franceses eram bons. Melhores que seus políticos, mas depois, de novo, qualquer um que julgasse a América pelos líderes políticos provavelmente pensaria que os Estados Unidos eram uma nação de babacas. Pelo menos desde que seu pai tinha deixado a Casa Branca.
Ele estava ouvindo a NPR novamente. Era sua estação preferida para noticiário, e batia em audiência as atuais emissoras de música popular. Ele havia crescido ouvindo a mãe ao piano, principalmente Bach e seus pares — talvez um pequeno John Williams num gesto em direção à modernidade, embora ele compusesse mais para metais do que para marfins.
Outro homem-bomba em Israel. Droga, seu pai tentara desesperadamente acabar com isso, mas apesar de alguns esforços diligentes, mesmo pelos israelenses, acabou não dando em nada. Judeus e muçulmanos simplesmente não pareciam poder conviver. Seu pai e o príncipe Ali bin Sultan falavam sobre isso sempre que se reuniam, e era doloroso ver a frustração que sentiam. O príncipe não tinha sido escolhido para a realeza de seu país — o que era possivelmente boa sorte, pensou Jack, já que ser rei tinha que ser pior do que ser presidente —, mas continuava sendo uma figura importante cujas palavras o atual rei ouvia na maior parte do tempo... o que o levava a...
Uda bin Sali. Havia mais notícias dele esta manhã. Vindas ontem do MI5 britânico, cortesia dos grampos em Langley. Grampos?, Jack se perguntou. Seu próprio pai tinha trabalhado lá, havia servido com distinção antes de subir na vida. Muitas vezes ele dizia aos filhos que não acreditava em nada do que diziam nos filmes sobre o ramo de inteligência. Jack Jr. tinha feito perguntas e obtinha principalmente respostas insatisfatórias, e agora estava aprendendo o que o negócio realmente era. Na maioria das vezes tedioso. Parecido demais com contabilidade, como caçar camundongos no Parque dos Dinossauros, embora pelo menos você tivesse a vantagem de estar invisível para os perseguidores. Ninguém sabia que o Campus existia, e enquanto continuasse assim todos estariam a salvo. Isso dava uma sensação confortável, mas ainda tediosa. Junior ainda era jovem demais para achar que excitamento era divertido.
Saída da Rota 29, entrando no Campus. O lugar de sempre para estacionar. Um sorriso e um aceno para o guarda de segurança e subir para seu escritório. Foi então que Junior se deu conta de que passara batido pelo McDonald's. Portanto pegou duas roscas da bandeja de guloseimas e foi fazer um café a sua moda em seu cubículo. Ligou o computador e começou a trabalhar.
— Bom dia, Uda — disse Jack Jr. para a tela do computador. — O que foi que você aprontou? — O relógio no computador marcava 8h25 da manhã.
O que significava início da tarde no distrito financeiro de Londres. Bin Sali tinha um escritório no prédio da seguradora Lloyd's, que Junior recordou de viagens anteriores através do oceano, parecia uma refinaria de petróleo envidraçada. Vizinhança de elevado padrão e alguns vizinhos muito ricos. O relatório não dizia em qual andar, mas, de qualquer modo, Jack nunca estivera no edifício. Seguros. Devia ser o trabalho mais chato do mundo, esperando por um prédio pegar fogo. Assim, na véspera, Uda fizera algumas ligações telefônicas, uma delas para... ah! — Conheço esse nome de algum lugar — disse o jovem Ryan para a tela. Era o nome de um cara do Oriente Médio muito rico que era também conhecido por jogar no lado errado vez ou outra, e que estava também sob vigilância do MI5 britânico. Portanto, sobre o que eles falaram? Havia até uma transcrição. A conversa tinha sido em árabe e a tradução... podia muito bem ter sido instruções da esposa para comprar uma caixa de leite na volta para casa. Nada disso era excitante ou revelador — só que Uda havia replicado com uma declaração totalmente inócua de Tem certeza? Não o tipo de coisa que um marido pergunta à esposa quando ela pede para levar leite desnatado na volta para casa. O tom de voz sugere significado oculto, opinava gentilmente o analista britânico no fim do relatório.
Então, mais tarde naquele dia, Uda deixou o escritório cedo, entrou em outro pub e encontrou o mesmo cara com quem estivera falando ao telefone. Portanto, a conversa não tinha sido inócua, afinal... embora não tivessem conseguido entreouvir a conversa no reservado do pub, nada na ligação telefônica especificara um encontro ou um lugar para encontro... e Uda não perderia muito tempo naquele pub específico.
— Bom dia, Jack — saudou Wills enquanto entrava e pendurava o paletó. — O que está acontecendo?
— Nosso amigo Uda está se sacudindo como um peixe vivo. — Jack clicou o comando de IMPRIMIR e entregou a cópia ao colega de cubículo antes que ele tivesse a chance de se sentar.
— Parece sugerir essa possibilidade, não é?
— Tony, este cara é ator, está agindo — disse Jack com alguma convicção na voz.
— O que ele fez depois do telefonema? As transações habituais?
— Ainda não verifiquei, mas se houver, ele recebeu ordem do amigo para fazer isso, e então se encontraram para que ele pudesse confirmar diante de uma garrafa de John Smith's Bitter.
— Você está dando um salto de imaginação. Tentamos evitar isso aqui — preveniu Wills.
— Eu sei — resmungou Junior. Era hora de verificar a movimentação de dinheiro do dia anterior.
— Ah, você vai encontrar alguém novo hoje.
— Quem?
— Dave Cunningham. Contador judiciário, acostumado a trabalhar pela justiça... essa coisa de crime organizado. Ele é muito bom em apontar irregularidades financeiras.
— Ele acha que descobri algo interessante? — perguntou Jack com esperança na voz.
— É o que veremos quando ele chegar... depois do almoço. Está provavelmente dando uma olhada em seu trabalho neste exato momento.
— Okay — respondeu Jack. Talvez ele tivesse sentido o cheiro de alguma coisa. Talvez este trabalho realmente tivesse um elemento de emoção. Talvez ele ganhasse alguma condecoração por sua calculadora. Com certeza.
OS DIAS VIRARAM ROTINA. Corrida matinal e treinamento físico, seguidos de café da manhã e conversa. Em substância, nada de diferente do tempo de Dominic na Academia do FBI ou de Brian na Academia Militar. Era esta semelhança que perturbava de longe o fuzileiro. O treinamento nos marines era direcionado para matar pessoas e romper barreiras. Aqui também.
Dominic estava um pouco melhor na parte de vigilância, porque a Academia do FBI ensinava isso de um livro que os Fuzileiros não tinham. Enzo era também muito bom com a pistola, e Aldo preferia sua Beretta ao Smith &C Wesson do irmão. Dominic tinha apagado um bandido com seu Smith, ao passo que Brian fez seu serviço com fuzil a uma distância decentemente longa — cinquenta metros, perto o bastante para ver o aspecto do rosto deles quando as balas atingiram o alvo, e longe o bastante para que um disparo de volta não fosse motivo de preocupação. Seu artilheiro o repreendera por não se arrojar ao solo quando AKs se viraram na sua direção, mas Brian aprendera uma importante lição em sua única exposição ao combate. Ele descobrira que, nesse momento, sua mente e seu pensamento ficaram hiperdirecionados, o mundo em volta pareceu desacelerar e seu raciocínio se tornara extraordinariamente claro. Em retrospecto, ficou surpreso de que não tivesse visto as balas em voo, com sua mente operando tão rápido — bem, as últimas cinco balas no carregador do AK-47 eram geralmente traçantes, e ele as tinha visto em voo, embora nunca em sua direção imediata.
Sua mente com frequência voltava atrás para aqueles atarefados cinco ou seis minutos, criticando-se por coisas que ele podia ter feito melhor e prometendo que não repetiria aqueles erros de raciocínio e comando, embora Gunny Sullivan tivesse sido muito respeitoso mais tarde, durante a revisão pós-ação de Caruso com seus fuzileiros na base de tiro.
— Como foi a corrida hoje, rapazes? — perguntou Pete Alexander.
— Deliciosa — respondeu Dominic. — Talvez devêssemos tentar correr carregando uma mochila de 25 quilos nas costas.
— Isso pode ser arranjado — replicou Alexander.
— Ei, Pete, a gente costumava fazer isso lá na Força de Reconhecimento. Não é brincadeira — objetou Brian de imediato. — Mude seu senso de humor, mano — acrescentou para o irmão.
— Bem, é bom ver que você ainda está em forma — observou Pete confortavelmente. Claro, ele não tinha que correr toda manhã, afinal. — E aí, como ficamos?
— Ainda preciso saber mais sobre nosso objetivo aqui, Pete — disse Brian, olhando por cima do café.
— Você não é o cara mais paciente do mundo, é? — disparou de volta o oficial de treinamento.
— Olhe, nos Fuzileiros treinamos todo dia, mas mesmo quando não está claro para o que treinamos, sabemos que somos fuzileiros e não vamos ser enviados para vender biscoitos Girl Scout na frente do Wal-Mart.
— E para o que você acha que estão sendo mandados agora?
— Para matar pessoas sem aviso, sem regras de comprometimento que eu possa reconhecer. Parece muito com assassinato. — Tudo bem, pensou Brian, tinha dito em voz alta. O que aconteceria em seguida? Provavelmente uma viagem de volta a Camp Lejeune e à suspensão de sua carreira na Máquina Verde. Bem, poderia ser pior.
— Okay, bem, acho que já é hora — concedeu Alexander. — E se vocês recebessem ordens para acabar com a vida de alguém?
— Se as ordens são legítimas, eu as cumprirei, mas a lei... o sistema... me permite pensar acerca no quanto legítimas são essas ordens.
— Muito bem, uma hipótese. Digamos que você receba a ordem de acabar com a vida de um notório terrorista. Como vai reagir? — perguntou Pete.
— Essa é fácil. A gente apaga ele — respondeu Brian de imediato.
— Por quê?
— Terroristas são criminosos, mas nem sempre se pode prendê-los. Essa gente faz guerra ao meu país, e se recebo ordens de guerrear de volta, tudo bem. É isso que fui designado a fazer, Pete.
— O sistema nem sempre nos permite fazê-lo — observou Dominic.
— Mas o sistema nos permite apagar criminosos no ato, in flagrante delicto. Você já o fez e não o ouvi se lamentar, mano.
— E nem vai ouvir. É o mesmo para você. Se o presidente diz para fazer e você está em uniforme, ele é o comandante-em-chefe, Aldo. Você tem o direito legal... porra, o dever... de matar quem ele manda.
— Alguns alemães não alegaram isso em 1946? — retrucou Brian.
— Eu não me preocuparia muito. Tivemos que perder uma guerra por causa dessa preocupação. Não vejo isso acontecer em qualquer época recente.
— Enzo, se o que acaba de dizer é verdade, então se os alemães tivessem vencido a Segunda Guerra Mundial, ninguém precisaria se preocupar com aqueles seis milhões de judeus mortos. É isso o que está dizendo?
— Gente — interrompeu Alexander —, isso aqui não é uma aula de teoria legal.
— Enzo é o advogado aqui — assinalou Brian.
Dominic mordeu a isca: — Se o presidente infringisse a lei, então a Câmara pediria seu impeachment e o Senado o condenaria, e aí ele está no olho da rua e sujeito a sanções criminais.
— Certo. Mas e quanto aos caras que cumprem as ordens? — explicou Brian.
— Depende — disse Pete aos dois. — Se o presidente lhes der indultos presidenciais antes de deixar o cargo, que responsabilidade eles têm?
Aquela resposta sacudiu para trás a cabeça de Dominic.
— Nenhuma, suponho. O presidente tem poder soberano para perdoar sob a Constituição, como um rei tinha antigamente. Teoricamente, um presidente poderia perdoar a si mesmo, mas isso seria um verdadeiro balaio de gatos legal. A Constituição é a lei suprema da terra. Na verdade, a Constituição é Deus, e não há como reclamar disso. Bem, exceto quando Ford perdoou Nixon, esta é uma área que nunca foi realmente investigada. Mas a Constituição está destinada a ser razoavelmente aplicada por homens razoáveis. Esta pode ser sua única fraqueza. Advogados são advogados, o que significa que nem sempre são razoáveis.
— Assim, teoricamente falando, se o presidente lhe dá um perdão por matar alguém, você não pode ser punido pelo crime, certo?
— Isso mesmo. — O rosto de Dominic contorceu-se um pouco. — O que está dizendo?
— Apenas uma hipótese — respondeu Alexander, recuando perceptivelmente. Em qualquer caso, isto encerrava a aula sobre teoria legal e Alexander se felicitou por contar a eles várias coisas horríveis e ao mesmo tempo nada revelar, afinal.
OS NOMES DAS CIDADES ERAM tão estranhos para ele, Mustafa disse a si mesmo. Shawnee. Okemah. Weleekta. Pharaoh. Este era o mais estranho de todos. Afinal, não estavam no Egito, um país muçulmano, embora confuso, com uma política que não reconhecia a importância da Fé. Mas haveria uma reviravolta mais cedo ou mais tarde. Mustafa se esticou no banco e procurou um cigarro. Restava ainda meio tanque de gasolina. Este Ford certamente tinha um tanque bem grande no qual queimar petróleo muçulmano. Eram uns sacanas ingratos, os americanos. Os países islâmicos lhes vendiam petróleo, e o que a América dava em troca? Armas aos israelenses, para que matassem árabes com elas, e mais alguma coisa. Revistas pornográficas, álcool e outros tipos de corrupção para afligir até mesmo os Fiéis. Mas o que era pior? Corromper ou ser corrompido, para ser uma vítima dos infiéis? Algum dia tudo seria posto nos eixos, quando a Regra de Alá abarcasse o mundo. Ela viria, algum dia, e ele e seus companheiros guerreiros estavam agora mesmo na onda-guia da Vontade de Alá. Haveria mortes de mártires, o que era motivo de orgulho. No devido curso, suas famílias aprenderiam com o sacrifício deles — elas provavelmente dependeriam dos americanos para isso — e lamentariam a morte deles, mas celebrariam sua fidelidade. As agências policiais americanas adoravam exibir sua eficiência depois da batalha já estar perdida. Foi o que bastou para fazê-lo sorrir.
DAVE CUNNINGHAM APARENTAVA a idade. Estava com certeza em seus sessenta, avaliou Jack. Cabelo grisalho rareando. Pele ruim. Parara de fumar, mas não cedo o bastante. Mas seus olhos cinzentos cintilavam com a curiosidade de uma doninha das Dakotas, procurando marmotas para comer.
— Você é Jack Junior? — perguntou ele ao entrar.
— Culpado — admitiu Jack. — O que achou dos meus números?
— Nada mal para um amador — concedeu Cunningham. — Seu alvo parece ser um armazém ou uma lavanderia de dinheiro... para ele mesmo ou alguém mais.
— Quem seria alguém mais? — perguntou Wills.
— Não se tem certeza, mas é do Oriente Médio, é rico e sovina. Engraçado. Todo mundo acha que eles jogam dinheiro fora por aí como marinheiros bêbados. Alguns o fazem — observou o contador. — Mas outros são unhas de fome. Quando deixam ir embora o dinheiro, a porca torce o rabo.
Isso demonstrava sua idade. Porca torcer o rabo era uma expressão tão distante no passado que Jack nem sequer sacou a piada. Então Cunningham jogou uma papelada na mesa entre Ryan e Wills. Três transações estavam circuladas em vermelho.
— Ele é um pouco enrolado. Todas as transferências questionáveis são feitas em valores de 10 mil libras. Isso o torna fácil de ser localizado. Ele as disfarça como despesas pessoais... entra naquela conta, provavelmente para esconder dos pais. Os contadores sauditas são enrolados. Aposto que isso vai a um milhão ou algo assim para deixá-los agitados. Eles provavelmente imaginam que um rapaz como esse seja capaz de torrar 10 mil libras numa noite particularmente agradável com as damas, ou num cassino. Garotões ricos gostam de jogar, embora não sejam muito bons. Se eles vivessem mais perto de Vegas ou Atlantic City, fariam prodígios em nossa balança comercial.
— Será que eles acham as putas europeias melhores que as nossas? — Jack pensou em voz alta.
— Filho, em Vegas você pode pedir uma cambojana loura de olhos azuis e ela estará em sua porta meia hora depois que colocar o fone no gancho. — Os chefões da Máfia também tinham suas atividades preferidas, aprendera Cunningham ao longo dos anos. Isso tinha originalmente ofendido o avô metodista, mas com a percepção de que era apenas mais um meio de rastrear criminosos, aprendera a receber bem tais despesas. Pessoas corruptas corrompiam as coisas. Cunningham tinha também tomado parte na Operação SERPENTES ELEGANTES, que mandara seis congressistas para a prisão-country club federal na Base Eglin da Força Aérea, na Flórida, usando métodos exatamente iguais a este para rastrear as presas. Ele imaginava que isso fornecia caddies de luxo aos jovens pilotos da base nos jogos de golfe, além de ser um bom exercício para os ex-representantes do povo.
— Dave, nosso amigo Uda é ator?
Cunningham ergueu a vista dos papéis.
— Ele certamente age como um, filho.
Jack se sentou de novo com um grande sentimento de satisfação. Realmente havia conseguido alguma coisa... algo importante, talvez?
A PAISAGEM FICOU UM TANTO ESCARPADA quando entraram no Arkansas. Mustafa descobriu que suas reações estavam um pouco lentas após dirigir por quase 650 quilômetros, então entrou num posto e, após encher o tanque, deixou Abdullah assumir o volante. Foi bom para se esticar. Depois estavam de volta à autoestrada. Abdullah dirigia com cautela. Passaram apenas por gente idosa e se mantiveram na faixa à direita para evitar que fossem esmagados pelo tráfego pesado de caminhões.
Além do desejo de evitar chamar a atenção da polícia, não havia nenhuma pressa real. Eles tinham mais dois dias para identificar seu objetivo e executar a missão. Isso dava e bastava. Ele imaginou o que as outras três equipes estariam fazendo. Todas tinham distâncias mais curtas a cobrir. Uma delas talvez já estivesse na cidade-alvo.
Suas ordens eram para selecionar um hotel decente mas não opulento a menos de uma hora de carro do objetivo, para fazer um reconhecimento do alvo e a seguir confirmar sua prontidão via e-mail e aguardar até que Mustafa os liberasse para executar as missões. Quanto mais simples as ordens, melhor, claro, menos risco de confusão e erros. Eles eram bons homens, plenamente instruídos. Mustafa conhecia todos eles. Said e Mehdi eram, como ele, de origem saudita, como ele, filhos de famílias ricas que vieram a desprezar pelo hábito de bajular os americanos e outros como eles. Sabawi era iraquiano. Não tendo nascido rico,viera a se tornar um verdadeiro crente. Sunita como os demais, queria ser lembrado até mesmo pela maioria xiita em seu país como fiel seguidor do Profeta. Os xiitas no Iraque, tão recentemente libertados — por infiéis — do governo sunita, desfilaram pelo país como se só eles fossem os Fiéis. Sabawi queria mostrar o equívoco nesta falsa crença. Mustafa dificilmente teria se preocupado algum dia com essas trivialidades. Para ele, o Islã era uma enorme tenda, com lugar para quase todos...
— Meu rabo está cansado — disse Rafi do banco de trás.
— É inevitável, meu irmão — replicou Abdullah ao volante. Como motorista, ele se imaginava no comando temporário.
— Sei disso, mas meu rabo continua cansado — observou Rafi.
— Podíamos ter pegado cavalos, mas eles seriam lentos demais, e também deixam nosso rabo cansado, amigo — retrucou Mustafa. A declaração foi recebida com risos e Rafi voltou a seu exemplar da Playboy.
O mapa mostrou-se fácil de seguir até que alcançaram a cidade de Small Stone. Tinham que estar plenamente despertos para isso. Por enquanto a estrada serpenteava através de colinas agradáveis cobertas de árvores verdejantes. Contrastava inteiramente com o norte do México, que tinha parecido tanto com as colinas arenosas de seu país... ao qual nunca mais voltariam...
Para Abdullah, dirigir era um prazer. O carro não era tão luxuoso quanto a Mercedes que seu pai dirigia, mas era o suficiente para o momento, e a sensação do volante era doce em suas mãos, enquanto se recostava e fumava seu Winston com um sorriso contido nos lábios. Havia pessoas na América que disparavam carros como esse em grandes pistas ovais, e que prazer devia ser! Dirigir o mais rápido que pudesse, competindo com outros — e derrotá-los! Deve ser melhor do que ter uma mulher... bem, quase... ou apenas diferente, ele se corrigiu. Agora, ter uma mulher depois de uma corrida, isso devia ser de fato o auge do prazer. Ele imaginou se haveria carros no Paraíso. Dos bons, velozes, como os carros de Fórmula-1 preferidos na Europa, abraçando as esquinas, depois soltando-se nas retas, e guiando tão rápido quanto carro e estrada permitissem. Ele podia tentar isso aqui. O carro era provavelmente bom para 200 quilômetros por hora — mas não, a missão era mais importante. Jogou a guimba do cigarro pela janela. No justo momento, um carro branco da polícia com faixas azuis nas laterais passou zunindo. Patrulha Estadual do Arkansas.
Bem, aquele parecia ser um carro veloz, e o homem dentro dele tinha um esplêndido chapéu de cowboy, pensou Abdullah. Como cada ser humano no planeta, ele vira a sua cota de filmes americanos, incluindo os de faroeste, homens montados conduzindo gado, ou simplesmente disparando as pistolas nos saloons, fixando padrões de honra.
A fantasia tinha apelo para ele — mas isso era o que pretendia fazer, lembrou a si mesmo. Mais uma tentativa do infiel para seduzir o Fiel. Para ser justo, porém, os filmes americanos eram feitos principalmente para a plateia americana. Quantos filmes árabes ele tinha visto mostrando as forças de Saladino — um curdo, a propósito — esmagando os cruzados cristãos invasores? Eles estavam lá para ensinar história e estimular virilidade nos homens árabes, os melhores para esmagar os israelenses, o que, infelizmente, ainda não havia acontecido. O mesmo se dava, talvez, com os faroestes americanos. O conceito deles de virilidade não era afinal diferente do daqueles árabes, exceto que usavam revólveres em vez da espada, mais masculina. A pistola tinha, claro, alcance superior, por isso os americanos eram combatentes práticos, além de muito espertos. Não mais valentes que os árabes, apenas mais espertos.
Ele precisava ser cauteloso com os americanos e suas armas leves, Abdullah disse a si mesmo. Se um deles atirasse como nos filmes de faroeste, a missão poderia ter um fim prematuro. Imaginou o que o policial no carro branco que passou carregaria no cinto — e se era um atirador perito. Eles podiam descobrir, claro, mas só havia um meio e colocaria a missão em risco. Assim, Abdullah observou o carro de polícia disparar na frente até sumir de vista. Ele reduziu a velocidade para observar carretas passando enquanto cruzava para leste a 65 milhas e três cigarros por hora, mais um estômago roncando.
SMALL STONE 50 QUILÔMETROS.
— ELES ESTÃO FICANDO EXCITADOS de novo lá em Langley — disse Davis a Hendley.
— O que você ouviu? — perguntou Gerry.
— Um agente de campo obteve alguma coisa estranha de um agente-fonte entre os sauditas. Algo sobre alguns atores suspeitos estarem fora da cidade, por assim dizer, paradeiro desconhecido. Mas imagina que seja no hemisfério ocidental, uns dez ou mais.
— Isso é quente? — perguntou Hendley.
— Um três em termos de confiabilidade, embora a fonte seja em geral bem reputada. Alguma escuta no quartel-general decidiu depreciar isto, motivo desconhecido. — Este era um dos problemas no Campus. Eles dependiam de outros para a maioria de suas análises. Embora tivesse gente particularmente capaz em seus próprios departamentos de análise, o trabalho real era feito do outro lado do rio Potomac, e a CIA tinha extrapolado sua cota de cagadas nos últimos anos — ou melhor, décadas, Gerry lembrou. Ninguém atingia a mil rebatidas nesta liga, mas um monte de burocratas da CIA era muito bem paga apesar dos magros salários do governo. Ninguém realmente se importava ou sequer notava. O significativo era que os sauditas tinham um meio de deportar seus próprios encrenqueiros em potencial, permitindo que fossem cometer seus crimes em qualquer outro lugar, e se eles sofressem com isso, o governo saudita seria para lá de cooperativo, cobrindo assim todas as suas bases muito facilmente.
— O que você acha? — perguntou ele a Tom Davis.
— Diabos, Gerry, não sou cigano, não tenho bola de cristal nem sou o Oráculo de Delfos. — Davis deixou escapar um suspiro frustrado. — Homeland foi notificada, o que faz supor o FBI e o resto de sua equipe analítica. Mas isto é inteligência light, está sabendo? Nada para se tirar o chapéu. Três nomes, nada de fotos, e qualquer babaca pode obter uma identidade com nome novo. — Até mesmo romances populares ensinavam às pessoas como fazer isso. Você nem precisava de tanta paciência, porque nenhum estado do país fazia cruzamento de certidões de nascimento com atestados de óbito, o que teria sido uma coisa fácil, mesmo realizada por burocratas do governo.
— Então, o que acontece?
Davis deu de ombros.
— O de sempre. O pessoal da segurança nos aeroportos ganhará outro aviso para de alerta, e assim eles perturbarão mais gente inocente para se certificar de que ninguém tente sequestrar um avião. Policiais ficarão de olho em carros suspeitos, mas isso vai significar principalmente que motoristas aleatórios sejam parados. É vacilo demais. Até a polícia tem dificuldade de levar a sério, Gerry, e quem pode culpá-los?
— Quer dizer que todas as nossas defesas são neutralizadas... por nós?
— Para todos os propósitos práticos, sim. Até que a CIA tenha outros trunfos de campo para identificá-los antes que cheguem aqui, estamos em modo reativo, não proativo. Que diabo — ele fez uma careta —, o valor dos meus títulos cresceu muito nas duas últimas semanas. — Tom Davis descobrira que o negócio financeiro era muito agradável ou, pelo menos, facilmente administrável. Será que entrar para a CIA logo após sair da Universidade do Nebraska tinha sido um erro?, ele se perguntava com frequência cada vez maior.
— Algum acompanhamento do relatório da CIA?
— Bem, alguém de lá sugeriu outra conversa com nosso trunfo de campo, mas isso ainda não chegou ao sétimo andar.
— Meu Deus! — praguejou Hendley.
— Ei, Gerry, por que está surpreso? Você nunca trabalhou lá, como eu, mas lá no Capitólio deve ter visto esse tipo de coisa.
— Por que porra Kealty não manteve Foley como diretor?
— Ele tem um amigo advogado do qual gosta mais, está lembrado? E Foley era um espião profissional, portanto inconfiável. Olhe, vamos encarar assim: Ed Foley ajudou um pouco, mas uma consolidação real levará uma década. Essa é uma das razões por que estamos aqui, certo? — Davis acrescentou, com um sorriso: — Como vão indo nossos dois matadores estagiários lá em Charlottesville?
— O fuzileiro ainda está tendo ataques de consciência.
— Chesty Puller1 deve estar se revirando no túmulo — opinou Davis.
— Bem, não podemos contratar cães raivosos. Melhor ele fazer perguntas agora do que em missão no campo.
— Suponho que sim. E quanto ao hardware?
— Semana que vem.
— Está levando tempo demais. Fase de testes?
— Em Iowa. Porcos. Eles têm um sistema cardiovascular parecido, segundo diz nosso amigo.
Bem apropriado, pensou Davis.
SMALL STONE NÃO SE REVELOU um grande problema de direcionamento e, após se enfiarem na 1-40 rumo sudoeste, seguiam agora para nordeste. Mustafa estava de volta ao volante, e os dois atrás cochilavam após se empanturrarem de sanduíche de rosbife e Coca-Cola.
Estava principalmente entediante, agora. Nada pode permanecer cativante por mais de vinte horas, e nem mesmo os sonhos da missão dali a um dia e meio podiam conservar seus olhos abertos, e assim Rafi e Zuhayr dormiam como crianças exaustas. Ele seguiu para nordeste com o sol por trás do ombro esquerdo e começou a ver letreiros indicando a distância até Memphis, Tennessee. Pensou por um momento — era difícil pensar com muita clareza depois de estar dentro de um carro por tanto tempo — e percebeu que só tinha mais dois estados a atravessar. Seu progresso era constante, embora lento. Teria sido melhor pegar um avião, mas seria difícil passar pelos aeroportos com suas metralhadoras, pensou com um sorriso. E, como comandante-geral da missão, tinha mais do que uma equipe com que se preocupar. Era por isso que havia selecionado o alvo mais distante e difícil dos quatro, para dar o exemplo aos outros. Mas às vezes a liderança era simplesmente uma chateação, disse Mustafa a si mesmo enquanto se ajeitava no banco.
A meia hora seguinte passou rapidamente. Então surgiu uma ponte de dimensões e altura consideráveis, com um letreiro que anunciava o rio Mississippi, seguido por outro que lhes dava as boas-vindas ao TENNESSEE, O ESTADO VOLUNTÁRIO. Com a mente vagueando de tanto dirigir, Mustafa começou a especular sobre o que significavam aqueles letreiros, mas o pensamento morreu no nascedouro. O que quer que significassem, ele tinha de atravessar o Tennessee a caminho da Virginia. Nada de descanso por pelo menos quinze horas. Ele dirigiria por uns 100 quilômetros a leste de Memphis, depois passaria o volante a Abdullah.
Tinha acabado de cruzar um grande rio. Seu país não tinha rios perenes, apenas wadis que fluíam com um raro aguaceiro de passagem e logo secavam de novo. Os Estados Unidos eram mesmo um país rico. Esta provavelmente era a fonte de sua arrogância. Mas sua missão, e dos três companheiros, era baixar um pouco aquela crista. E isso, Insh Allah, eles fariam em menos de dois dias.
Dois dias para o paraíso, foi o pensamento que perdurou na sua mente.
_______________
1 Lewis Burwell "Chesty" Puller (1898-1971) foi o mais condecorado marine americano.
12
A CHEGADA
O TENNESSEE PASSOU rapidamente para os do banco de trás, só porque Mustafa e Abdullah se revezaram ao volante pelos 350 quilômetros de Memphis a Nashville, tempo em que Rafi e Zuhayr principalmente dormiram. Um quilômetro e três quartos por minuto, calculou ele. Isto se traduzia em... o quê? Vinte horas mais ou por aí. Ele pensou em aumentar a velocidade para tornar a viagem mais rápida — mas, não, isso era tolice. Assumir risco desnecessário era sempre tolice. Eles não haviam aprendido isso com os israelenses? O inimigo estava sempre à espera, como um tigre adormecido. Acordar um tigre desnecessariamente era muita tolice, de fato. Você só acorda o tigre quando seu rifle já está apontado, e só então, de modo que o tigre possa saber que lhe passaram a perna e está incapacitado para entrar em ação. Ser acordado para contemplar sua própria tolice, o suficiente para conhecer o medo. A América ia conhecer o medo. Com todas as suas armas e esperteza, todo esse povo arrogante ia tremer.
Descobriu-se agora sorrindo na escuridão. O sol voltara a se pôr, e os faróis do carro perfuravam tediosos cones brancos na escuridão, iluminando as linhas na rodovia que entravam e saíam rapidamente da sua visão enquanto dirigia para leste a 65 milhas por hora.
OS GÊMEOS ESTAVAM AGORA levantando às seis e saindo para seus exercícios diários sem a supervisão de Pete Alexander, de quem, eles decidiram, realmente não precisavam. A corrida estava ficando mais fácil para ambos, e o restante dos exercícios também se transformou em rotina. Por volta das sete e meia, tinham acabado e seguido para o café da manhã e a primeira sessão espreme-cuca com seu oficial de treinamento.
— Esses tênis precisam de algum trato, mano — observou Dominic.
— É — concordou Brian, dando uma olhada triste para seus velhos tênis Nike. — Eles me serviram bem por alguns anos, mas parece que chegou a hora de irem para o céu dos calçados.
— Foot Locker, meu chapa. — Ele se referia à loja no shopping Fashion Square, colina abaixo em Charlottesville.
— Hum, que tal um filé à parmigiana para o almoço amanhã?
— Para mim tudo bem, mano — concordou Dominic. — Nada como fritura, gordura e colesterol no almoço, especialmente com batatas fritas acompanhando. Presumindo que seus tênis aguentem mais um dia.
— Ei, Enzo, eu gosto do cheiro. Esses tênis e eu demos a volta no quarteirão algumas vezes.
— Como aquelas camisetas imundas. Porra, Aldo, não pode algum dia se vestir decentemente?
— Apenas me deixe usar minhas coisas de novo, cara. Eu gosto de ser um fuzileiro. A gente sempre sabe onde pisa.
— É, no meio da merda — observou Dominic.
— Talvez sim, mas você trabalha com um tipo de gente melhor lá. — E, se absteve de acrescentar, eles estavam todos do seu lado, e todos portavam armas automáticas. Isto causava uma sensação de segurança raramente encontrada na vida civil.
— Saindo para almoçar, hein? — disse Alexander.
— Amanhã, talvez — respondeu Dominic. — Precisamos providenciar um funeral adequado para os tênis de Aldo. Será que conseguimos uma lata de Lysol por aqui, Pete?
Alexander deu uma boa risada.
— Pensei que nunca ia perguntar.
— Sabe, Dominic — disse Brian, erguendo a vista —, se não fosse meu irmão, eu não aturaria essa merda de você.
— É mesmo? — O Caruso do FBI jogou-lhe um bolo inglês. — Juro que vocês fuzileiros só sabem falar. Eu sempre surrava ele quando éramos crianças — acrescentou para Pete.
Os olhos de Brian quase saltaram das órbitas: — O cacete!
E outro dia de treinamento teve início.
UMA HORA DEPOIS, JACK ESTAVA DE VOLTA a seu posto. Uda bin Sali havia desfrutado de outra noite atlética, de novo com Rosalie Parker. Ele deve gostar muito dela.
Ryan imaginou como o saudita reagiria se soubesse que, depois de cada programa, ela dava uma dica ao MI5 britânico. Mas para ela negócio era negócio, o que teria esvaziado um monte de egos masculinos na capital britânica. Sali certamente era um deles, pensou Junior. Wills chegou às 8h45 com um saco de Dunkin Donuts.
— Oi, Anthony. Qual é a boa?
— Você me diz — replicou Wills. — Vai de rosquinha?
— Obrigado, parceiro. Bem, Uda andou se exercitando mais na noite passada.
— Ah, a juventude, que coisa maravilhosa, mas desperdiçada com os jovens.
— George Bernard Shaw, certo?
— Eu sabia que você era culto. Sali descobriu um brinquedo novo alguns anos atrás, e imagino que vai se divertir com ele até quebrar... ou sair de linha. Deve ser uma parada para sua equipe fantasma ficar debaixo da chuva fria e saber que ele está transando lá em cima. — Esta era uma fala do seriado Família Soprano, da HBO, que Wills admirava.
— Você acha que são eles que a interrogam?
— Não, isso é serviço para os caras lá na Thames House. É preciso esperar um tempo. Pena que eles não nos mandem todas as transcrições — acrescentou com uma risadinha. — Seria bom para ter o sangue fluindo logo de manhã.
— Agradeço, mas sempre posso comprar a Hustler na banca da esquina se me der vontade alguma noite.
— Não estamos num negócio limpo, Jack. O tipo de gente com quem lidamos não é o tipo que você convidaria para juntar.
— Ei, Casa Branca, se lembra? Metade das pessoas que recebíamos para um jantar de Estado... bem, papai mal conseguia apertar as mãos delas. Mas o secretário Adler dizia que eram negócios, e assim papai tinha que ser gentil com os filhos da puta. A política atrai algumas pessoas realmente sujas.
— Amém. E aí, algo de novo sobre Sali?
— Ainda não analisei a movimentação financeira de ontem. Ei, se Cunningham esbarrar com alguma coisa significativa, o que acontece em seguida?
— Isso é lá com Gerry e o estafe superior. — Você ainda é muito novato para meter o bedelho nisso, ele não acrescentou, embora o jovem Ryan captasse a mensagem.
— E ENTÃO, DAVE? — Gerry Hendley estava perguntando lá em cima.
— Ele está lavando dinheiro e enviando para o exterior para pessoas desconhecidas. Banco de Liechtenstein. Se eu tivesse que adivinhar, é para cobrir contas de cartão de crédito. Você pode obter um Visa ou um MasterCard através desse banco em particular, e pode muito bem ser para cobrir faturas do cartão de pessoas desconhecidas. Pode ser uma amante ou um amigo íntimo, ou alguém em quem possa ter um interesse direto.
— Algum meio de descobrir? — perguntou Tom Davis.
— Eles usam o mesmo programa de extratos de contas que a maioria dos bancos — respondeu Cunningham, querendo dizer que, com um pouco de paciência, o Campus abriria uma brecha e descobriria mais.
Havia barreiras no caminho, claro. Era melhor deixar esse serviço a cargo da NSA, e portanto o macete era a NSA designar um de seus geniozinhos de computador para a invasão. O que significaria forjar um pedido da CIA para execução do serviço, e isso, imaginava o contador, era um pouco mais difícil do que simplesmente digitar um bilhete num terminal de computador. Ele também suspeitava de que o Campus tivesse alguém infiltrado nas duas agências de inteligência que podiam fazer o pedido falso de modo que nenhum rastro fosse deixado para trás.
— Isso é estritamente necessário?
— Talvez em uma semana, mais ou menos, eu possa descobrir mais dados. Esse tal de Sali pode ser simplesmente um garotão rico fazendo extravagâncias, mas... mas meu nariz me diz que ele é um ator de algum tipo — admitiu Cunningham. Ele havia desenvolvido bons instintos ao longo dos anos, graças aos quais dois ex-chefões da Máfia estavam agora vivendo em celas solitárias em Marion, Illinois. Mas ele não confiava nos próprios instintos, nem seus superiores antigos e atuais. Tendo uma carreira de contador com um nariz de cão farejador, ele era também muito conservador, por falar nisso.
— Uma semana, você acha?
Dave assentiu.
— Mais ou menos.
— Como vai indo o garoto Ryan?
— Tem bons instintos. Ele descobriu algo que a maioria das pessoas deixou escapar. Talvez a juventude trabalhe a favor dele. Alvo jovem, cão de caça jovem. Em geral, não funciona. Desta vez... parece que funcionou. Você sabe, quando o pai dele designou Pat Martin para secretário de Justiça, ouvi algumas coisas sobre Big Jack. Pat realmente gostava dele, e trabalhei com o Sr. Martin por tempo suficiente para respeitá-lo muito. Esse garoto pode progredir e chegar lá em cima. Claro que vai levar uns dez anos para se ter certeza.
— Esperava que não acreditássemos em procriação por aqui, Dave — observou Tom Davis.
— Números são números, Sr. Davis. Algumas pessoas têm bom faro, outras não. — Ele ainda não tem, não realmente, mas está com certeza no caminho certo. — Cunningham havia ajudado a fundar a Unidade Especial Contábil do Departamento de Justiça, especializada em rastrear dinheiro do terrorismo. Todo mundo precisava de dinheiro para agir, e dinheiro sempre deixava um rastro aqui e ali, mas com frequência era mais facilmente descoberto depois do fato do que antes. Bom para investigação, mas não tão bom para defesa ativa.
— Obrigado, Dave — disse Hendley em tom de dispensa. — Mantenha-nos informados, se puder.
— Sim, senhor. — Cunningham recolheu seus papéis e foi saindo.
— Sabe, ele vai ser um pouco mais eficaz se tiver personalidade — disse Davis quinze segundos depois da porta se fechar.
— Ninguém é perfeito, Tom. Ele é o melhor cara que já tivemos no Departamento de Justiça para esse tipo de coisa. Aposto que quando ele sai para pescar não resta nada no lago depois que vai embora.
— Assino embaixo, Gerry.
— Então, esse tal de Sali pode ser o banqueiro dos bandidos?
— Aparenta ser uma possibilidade. Langley e Fort Meade ainda estão muito agitados com a atual situação — continuou Hendley.
— Vi a papelada. É um monte de papel para muito poucos dados quentes. — No ramo de análise de informação, entrava-se na fase de especulação muito rapidamente, o ponto em que analistas experientes começavam a justapor medo a dados existentes, encaminhando-os para Deus sabe onde, tentando ler as mentes das pessoas que não falavam tanto assim, nem mesmo umas com as outras. Poderia haver gente lá com vírus de antraz ou varíola em frasquinhos no kit de barbear? Como diabos se pode dizer? Já tinha sido feito uma vez no país, mas, pensando bem, tudo já tinha sido feito uma vez nos Estados Unidos, e embora isso desse ao país a confiança de que seu povo podia lidar com quase tudo, também deixava claro para os americanos que coisas ruins podiam de fato acontecer aqui e os responsáveis nem sempre eram identificados. O novo presidente não passava nenhuma segurança de que éramos capazes de deter ou punir essa gente.
— Você sabem, somos vítimas de nosso próprio sucesso — disse baixinho o ex-senador. — Conseguimos manipular cada nação-estado que já cruzou nosso caminho, mas esses sacanas invisíveis que trabalham por sua visão de Deus são mais difíceis de identificar e rastrear. Deus é onipresente. Assim são Seus agentes pervertidos.
— Gerry, meu garoto, se isso fosse fácil, não estaríamos aqui.
— Tom, graças a Deus que ainda posso contar com seu apoio moral.
— Vivemos num mundo imperfeito, sabe. Nem sempre há chuva suficiente para fazer o milho crescer e, se houver, às vezes os rios transbordam. Assim meu pai me ensinou.
— Sempre quis lhe perguntar... como diabos sua família foi parar na porra do Nebraska?
— Meu bisavô foi soldado... da Nona Cavalaria, o regimento negro. Ele não se importou em voltar para a Geórgia ao fim do alistamento. Passou algum tempo em Fort Crook, perto de Omaha, e o danado nunca se importou com invernos. Assim, comprou um pedaço de terra perto de Seneca e plantou milho. Foi assim que começou a história da família Davis.
— Não havia nenhum grupo da Ku Klux Klan em Nebraska?
— Não, eles ficavam em Indiana. Fazendas menores lá, de qualquer modo. Meu bisavô chegou a matar um búfalo quando começou. É a maior cabeça em cima da lareira lá em casa. A porra da coisa ainda cheira até hoje. Papai e meu irmão caçam principalmente o antílope de chifres longos agora, o bode veloz, como eles chamam lá em casa. Nunca apreciei o gosto.
— O que seu faro diz desse novo serviço de inteligência, Tom? — perguntou Hendley.
— Não estou pretendendo voltar para Nova York tão cedo, meu chapa.
A LESTE DE KNOXVILLE, a estrada se bifurcava: 1-40 para leste, 1-81 para norte. O Ford alugado tomou a segunda, através das montanhas exploradas por Daniel Boone quando a fronteira ocidental da América se estendia pouco além da vista do oceano Atlântico. Um letreiro na estrada assinalava a saída para a casa de alguém chamado Davy Crockett, quem quer que fosse, pensou Abdullah, dirigindo colina abaixo através de um belo desfiladeiro de montanhas. Finalmente, numa cidade chamada Bristol, eles estavam na Virginia, sua última fronteira territorial importante. Mais umas seis horas, calculou ele. A terra aqui, à luz do sol, era luxuriante de verdor, com fazendas de cavalos e laticínios dos dois lados da estrada. Havia até igrejas, em geral prédios de madeira pintados de branco com cruzes em cima dos campanários. Cristãos. O país era claramente dominado por eles.
Infiéis.
Inimigos.
Alvos.
Tinham suas armas no porta-malas para lidar com eles. Primeiro, da 1-81 norte para a 1-64. Fazia muito tempo que haviam memorizado suas rotas. As outras três equipes estavam certamente no lugar agora. Des Moines, Colorado Springs e Sacramento. Cada qual uma cidade grande o bastante para ter pelo menos um bom shopping center. Duas delas eram capitais estaduais. Nenhuma delas, porém, era uma cidade importante. Todas situavam-se no que eles chamavam de América Classe Média , onde as pessoas boas viviam, onde OS americanos comuns e trabalhadores formavam seus lares, onde se sentiam a salvo, longe dos grandes centros de poder — e corrupção. Poucos judeus, se é que havia algum, podiam ser encontrados naquelas cidades. Ah, talvez alguns. Judeus gostavam de dirigir joalherias. Talvez mesmo nos shoppings. Isso seria um bônus adicional, mas apenas alguma coisa a ser tratada se acidentalmente aparecesse. Seu objetivo real era matar americanos comuns, aqueles que se consideravam a salvo nos úteros da América comum. Eles em breve aprenderiam que segurança neste mundo era uma ilusão. Aprenderiam que o raio de Alá chegava a qualquer lugar.
— ENTÃO É ISSO? — perguntou Tom Davis.
— Sim, é — replicou o Dr. Pasternak. — Tenha cuidado. Está plenamente carregada. Tarja vermelha, como vê. A azul não está carregada.
— O que ela libera?
— Sucinilcolina, um relaxante muscular, essencialmente um sintético e a mais potente forma do curare. Paralisa todos os músculos, inclusive o diafragma. A pessoa não consegue respirar, falar ou se mover. E está plenamente acordada. Uma morte terrível — acrescentou o médico numa voz fria e distante.
— Mas como? — perguntou Hendley.
— A pessoa não consegue respirar. O coração rapidamente entra em anoxia, na verdade, um ataque cardíaco induzido. Não parece nada bom.
— E depois?
— Bem, o começo dos sintomas leva cerca de sessenta segundos. Trinta segundos a mais para que os efeitos plenos da droga se manifestem. A vítima então sucumbiria, digamos, noventa segundos depois da injeção. A respiração para por completo quase ao mesmo tempo. O coração está faminto por oxigênio. Ele tentará bater, mas não está liberando nenhum oxigênio para o corpo, ou para si mesmo. O tecido cardíaco morrerá em cerca de dois ou três minutos... e será extremamente doloroso quando acontecer. A inconsciência virá mais ou menos na marca de três minutos, a não ser que a vítima tenha se exercitado previamente... nesse caso, o cérebro estará altamente provido de oxigênio. Em geral, o cérebro tem uma reserva de oxigênio de cerca de três minutos para funcionar sem infusão adicional de oxigênio, mas por volta da marca de três minutos... depois do início dos sintomas, quero dizer, quatro minutos e meio depois de ser acometida... a vítima perderá a consciência. A morte cerebral completa levará outros três minutos ou por aí. Depois disso, a sucinilcolina se metabolizará no corpo, mesmo depois da morte. Não inteiramente, mas o bastante para que só um patologista realmente arguto a descubra num atento exame toxicológico, e somente se estiver preparado para procurar isso. O único macete verdadeiro é testar o paciente nas nádegas.
— Por que lá? — perguntou Davis.
— A droga funciona muito bem com uma injeção intramuscular. Quando a pessoa está na mesa é sempre de rosto para cima, de modo que se possa ver e remover os órgãos. Raramente viram o corpo de bruços. Bem, este sistema de injeção deixa uma marca, mas é difícil de perceber na melhor das circunstâncias, e mesmo assim só quando se está olhando para a área certa. Mesmo viciados em drogas... que será uma das coisas que verificarão... não se injetam nas nádegas. Parecerá que foi um inexplicável ataque cardíaco. Daqueles que acontecem todo dia, raros, mas não de todo desconhecidos. Taquicardia, por exemplo, pode provocar isto. A caneta injetora é uma caneta de insulina modificada, como do tipo usada por diabéticos. Seus mecânicos fizeram um bom trabalho para disfarçá-la. Pode-se até escrever com ela, mas se você girar o cilindro, ele troca a parte da caneta pela parte onde estaria a insulina. Uma carga de gás no fundo do cilindro injeta o agente de transmissão. A vítima provavelmente vai sentir como que uma ferroada de abelha, menos dolorosa, mas, em um minuto e meio, não vai poder contar a ninguém. Sua reação mais provável será um pequeno ai e depois esfregar o local... quando muito. Como uma picada de mosquito no pescoço. Você dá um tapa, mas não chama a polícia.
Davis pegou a caneta azul segura. Era um tanto bojuda, como a que uma criança usa em sua primeira introdução oficial a uma esferográfica após anos de giz de cera.
— Assim, à medida que se aproxima do alvo, você a tira do bolso e, girando-a num movimento reverso de estocada, simplesmente continua andando. Seu homem de cobertura verá o sujeito cair na calçada, talvez até pare para ajudar, depois observa o sacana morrer, levanta-se e segue seu caminho... bem, talvez chame uma ambulância, de modo que o corpo possa ser mandado para um hospital e adequadamente desmantelado sob supervisão médica.
— Tom?
— Gosto disso, Gerry — replicou Davis. — Doutor, até que ponto está confiante quanto a essa coisa se dissipar depois que o sujeito bater as botas?
— Confiante — replicou o Dr. Pasternak e seus dois anfitriões recordaram que ele era professor de anestesiologia na Escola de Médicos e Cirurgiões da Universidade de Columbia. Provavelmente entendia do riscado. Além disso, confiavam nele o suficiente para deixá-lo a par dos segredos do Campus. Era um pouco tarde para deixar de confiar nele agora.
— É simplesmente bioquímica básica. A sucinilcolina é feita de duas moléculas de acetilcolina. Esterases no corpo impedem que a química baixe para a acetilcolina com uma rapidez razoável, portanto é muito provável que seja indetectável, mesmo por alguém lá na Columbia-Presbiteriana. A única parte difícil é fazer isso secretamente. Se ele pudesse ser levado a um consultório médico, por exemplo, seria apenas uma questão de infundir cloreto de potássio. O que causaria fibrilação cardíaca. Quando as células morrem, elas liberam potássio, de qualquer modo, e assim o relativo aumento não seria notado, mas as marcas de injeção intravenosa seriam difíceis de ocultar. Há muitas maneiras de fazer isso. Eu escolheria uma que é aplicada até certo ponto convenientemente em pessoas assassinadas com imperícia. Como uma questão prática, um patologista realmente bom poderia não ser capaz de determinar a verdadeira causa da morte... e saberia disso, o que o incomodaria... mas só se o corpo for examinado por um cara de fato talentoso. Não há muitos deles por aí. Quero dizer, o melhor cara lá em Columbia é Rich Richards. Ele realmente odeia não saber de alguma coisa. É um autêntico intelectual, um solucionador de problemas, um gênio em bioquímica além de ser um tremendo médico. Perguntei e ele me disse que seria extremamente difícil detectar até mesmo se tivesse uma base sobre a qual procurar. Em geral, fatores irrelevantes entram em ação, a bioquímica do corpo da vítima, o que ela comeu ou bebeu, se a temperatura ambiente seria um fator importante. Um dia frio de inverno, ao relento, as esterases podem não ser capazes de destruir a sucinilcolina por causa de uma diminuição dos processos químicos.
— Então não funciona com um cara em Moscou no mês de janeiro? — perguntou Hendley. Esta coisa de ciência profunda era complicada para ele, mas Pasternak estava por dentro.
O professor sorriu. Cruelmente.
— Exatamente. Também em Minneapolis.
— Morte sofrida? — perguntou Davis. Ele assentiu.
— Desagradável pacas.
— Reversível?
Pasternak sacudiu a cabeça.
— Quando a sucinilcolina entra na corrente sanguínea, não há mais nada a fazer... bem, teoricamente se pode colocar o cara respirando por aparelhos até a droga ser metabolizada... vi isso ser feito com Pavulon num OR... mas é difícil. Teoricamente é possível sobreviver, mas muito, muito improvável. Pessoas já sobreviveram ao ser baleadas entre os olhos, cavalheiros, mas não é exatamente comum.
— Com que firmeza é preciso atingir o alvo? — quis saber Davis.
— Não muito, apenas uma boa estocada, o suficiente para penetrar a roupa. Um sobretudo muito grosso poderia ser um problema, por causa da extensão da agulha. Mas um terno comum de trabalho não tem problema.
— Existe alguém imune à droga? — perguntou Hendley.
— Não a esta aqui, não. Seria um em um bilhão.
— Nenhuma chance de que faça barulho?
— Como expliquei, é no máximo como uma ferroada... maior que a de um mosquito, mas não o bastante para fazer um homem gritar de dor. No máximo, você pode esperar que a vítima fique intrigada, que talvez se vire para ver o que causou a picada, mas o seu agente se afastará normalmente, sem correr. Nessas condições, sem um alvo para gritar, e já que o desconforto inicial é transitório, a reação mais provável é ele esfregar o local e continuar andando... mais ou menos... hã, uns dez metros.
— Então, é de ação rápida, letal e indetectável, é isso?
— Tudo como foi dito — concordou o Dr. Pasternak.
— Como recarregar a coisa? — quis saber Davis. Droga, como é que a CIA nunca desenvolveu algo tão bom?, especulou ele. Ou a KGB, por falar nisso.
— Você torce o cilindro, assim — demonstrou ele —, e o desmonta. Aí usa uma seringa comum para injetar um novo suprimento da droga e troca a carga de gás. Estas pequenas cápsulas de gás são a única parte difícil de fabricar. Você joga a usada numa lata de lixo ou no esgoto... elas têm apenas quatro milímetros de comprimento e dois milímetros de largura... e insere a nova. Quando você torcer na substituição, uma pequena cavilha no fundo do cilindro a perfura e recarrega o sistema. As cápsulas de gás são revestidas de material viscoso para torná-las mais difíceis de pingar. — Muito rápido, e aquela azul era quente, exceto pela ausência de sucinilcolina. — Claro que se deve tomar cuidado com a seringa, mas a pessoa teria que ser muito idiota para ferroar a si mesma. Se você disfarçar seu agente de diabético, ele pode explicar a presença das seringas. Há um cartão de identidade para recarga de insulina, que é válido praticamente em qualquer lugar do mundo, e diabetes não apresenta nenhum sintoma externo.
— Caramba, doutor — observou Tom Davis. — Algo mais do gênero que pode nos fornecer?
— A toxina do botulismo é similarmente letal. É uma neurotoxina; bloqueia as transmissões nervosas e provoca morte por asfixia, também com razoável rapidez, mas é prontamente detectável no sangue durante a autópsia, é meio difícil de explicar. É rapidamente disponível no mundo inteiro, mas em doses microgâmicas, por seu uso em cirurgia plástica.
— Os médicos aplicam isso na cara das mulheres?
— Só os idiotas — replicou Pasternak. — Ela remove as rugas, claro, mas como mata os nervos faciais, também inibe a capacidade de sorrir em excesso. Esta não é exatamente a minha área. Existem muitos produtos químicos tóxicos e letais. É a combinação de ação rápida e detectabilidade que fez disso um problema. Outro meio rápido de matar alguém é usar uma pequena faca na nuca, onde a medula espinhal entra na base do crânio. O diabo é ficar bem atrás da vítima e atingir um alvo razoavelmente pequeno... dessa distância, por que não uma pistola .22 com silenciador? É bem rápido, mas deixa algo para trás. Já este método pode ser diagnosticado como ataque cardíaco. É quase perfeito — concluiu o médico, numa voz suficientemente fria para borrifar neve no carpete.
— Richard — disse Hendley —, você mereceu seus honorários com esta.
O anestesiologista se levantou, consultando o relógio.
— Nada de honorários, senador. Cortesia do meu irmão mais novo. Avise se precisar de algo mais. Tenho que pegar um trem para voltar a Nova York.
— Meu Deus — disse Tom Davis depois que ele saiu. — Eu sempre soube que os médicos tinham que ter maus pensamentos.
Hendley pegou um pacote na sua mesa. Havia um total de dez canetas nele, com instruções de computador impressas para seu uso, uma sacola de plástico cheia de cápsulas de gás, e vinte frascos grandes de sucinilcolina, mais um monte de seringas descartáveis.
— Ele e o irmão devem ter sido muito chegados.
— Conhece ele? — perguntou Davis.
— Sim, conheci. Bom sujeito, com mulher e três filhos. Chamado Bernard, formado em administração em Harvard, um cara esperto, negociador muito astuto. Trabalhava no 97° andar da Torre Um. Deixou muito dinheiro para trás... de qualquer modo, a família está bem protegida. Já é alguma coisa.
— Rich é um cara legal para se ter do nosso lado — pensou Davis em voz alta, reprimindo o calafrio que veio junto com a opinião.
— Isso ele é — concordou Hendley.
A VIAGEM DEVIA TER SIDO AGRADÁVEL. O tempo estava ameno e claro, a estrada não muito congestionada e principalmente reta na direção nordeste. Mas não foi agradável. Mustafa ouviu tanto falta muito? e já chegamos? de Rafi e Zuhayr no banco de trás que mais de uma vez pensou em encostar o carro e estrangulá-los. Talvez fosse chato sentar no banco de trás, mas ele tinha que dirigir a porra do carro!!!
Tensão. Ele a estava sentindo, e provavelmente os outros dois também. Inspirou fundo e se obrigou a manter a calma. O fim da viagem estava a menos de quatro horas, e o que era isso numa viagem transcontinental? Por certo era muito mais longa do que aquela que o Profeta uma vez fizera de ida e volta entre Meca e Medina, mas ele conteve imediatamente este pensamento. Não tinha nada que insistir em se comparar a Maomé, tinha? Não, não tinha. De uma coisa ele estava certo. Ao chegar ao destino, ia tomar um banho e dormir o maior tempo que pudesse. Quatro horas de descanso, era o que continuava se repetindo, enquanto Abdullah dormia no banco do carona.
O CAMPUS TINHA SUA LANCHONETE, cuja comida era fornecida por uma variedade de fontes externas. Hoje vinha de uma deli de Baltimore chamada Atman's, cujo corned beef era muito bom, se não inteiramente do tipo nova iorquino — querendo dizer que podia ser resultado de uma briga de socos, ele achava, enquanto servia uma fatia num pãozinho francês. O que beber? Se estivesse almoçando em Nova York, seria cream soda, exceto Utz, a batata frita local, claro, porque nunca a tiveram na Casa Branca — por insistência de seu pai. Provavelmente tinham alguma coisa de Boston agora. Não era exatamente um renomado restaurante, mas cada cidade tem pelo menos um bom lugar para se comer, até mesmo Washington, D.C.
Tony Wills, sua habitual companhia de almoço, não estava em lugar nenhum. Assim, ele olhou em volta e viu Dave Cunningham comendo sozinho, o que não era de surpreender. Jack foi até ele.
— Ei, Dave, posso sentar? — perguntou.
— À vontade — disse Cunningham, até cordialmente.
— Como está o negócio dos números?
— Excitante — foi a implausível resposta. Depois ele explicou: — Você sabe, o acesso que temos àqueles bancos europeus é espantoso. Se o Departamento de Justiça tivesse esse tipo de acesso, eles realmente fariam uma faxina... exceto que não se pode introduzir essa prova num tribunal.
— É, Dave, a Constituição pode de fato ser um empecilho, com todas aquelas malditas leis dos direitos civis.
Cunningham quase se engasgou com seu sanduíche de salada de ovo.
— Não comece. O FBI dirige muitas operações um tanto sombrias... em geral porque algum informante nos passa alguma besteira, talvez porque alguém pediu, ou talvez não, e eles agem por conta própria... mas dentro das regras do processo penal. Em geral faz parte de uma negociação para reduzir pena. Não há advogados vigaristas em quantidade suficiente para manipular todas as necessidades deles. Refiro-me aos caras da Máfia.
— Conheço Pat Martin. Papai pensa muito nele.
— Ele é honesto e muito, muito esperto. Devia realmente ser juiz. É o lugar a que pertencem os advogados honestos.
— Juízes não são bem pagos. — O salário oficial de Jack no Campus era bem acima do que ganhava qualquer funcionário federal. Nada mau para começar.
— É um problema, mas...
— Mas não há nada dessa coisa admirável na pobreza, diz meu pai. Ele brincava com a ideia de zerar os salários para funcionários públicos eleitos, de modo que eles tivessem que aprender o que é trabalho de verdade, mas finalmente decidiu que isso os deixaria ainda mais suscetíveis ao suborno.
O contador pegou a deixa.
— Jack, é espantoso como é preciso tão pouco para subornar um congressista. Fica até difícil identificar a propina — disse o contador. — É como um avião cair no meio da selva.
— E quanto aos nossos amigos terroristas?
— Alguns deles gostam de uma vida confortável. Muitos deles provêm de famílias endinheiradas, e gostam de ter seus luxos.
— Como Sali.
Dave assentiu.
— Ele tem caprichos onerosos. Seu carro custa um monte de dinheiro. Muito pouco prático. O consumo de combustível deve ser assustador, especialmente numa cidade como Londres. Os preços da gasolina lá são bem salgados.
— Mas ele usa principalmente táxis.
— Ele pode bancar. Provavelmente faz sentido. Estacionar um carro no distrito financeiro deve ser caro, também, e os táxis em Londres são bons. — Ele foi além. — Você sabe disso. Já esteve em Londres um monte de vezes.
— Algumas — concordou Jack. — Bela cidade, gente boa. — Ele não teve que acrescentar que um destacamento protetor de agentes do Serviço Secreto e tiras locais não causava muito dano. — Mais alguma ideia sobre nosso amigo Sali?
— Preciso examinar os dados mais detalhadamente, mas, como disse, ele por certo age como ator. Se fosse um cara da Máfia de Nova York, eu o imaginaria como aprendiz de consigliere.
Jack quase engasgou com seu cream soda.
— Tão alto assim?
— A Regra Sagrada, Jack. Aquele que tem o ouro faz as regras. Sali tem acesso a uma tonelada de dinheiro. A família dele é mais rica do que você imagina. Estamos falando aqui de quatro ou cinco bilhões.
— Isso tudo? — Ryan estava surpreso.
— Dê outra olhada nas quantidades de dinheiro que ele está aprendendo a administrar. Ele não especulou com mais de quinze por cento disso. Seu pai provavelmente limita o que ele tem permissão de fazer. Lembre-se de que ele quer manter o valor do capital. O sujeito que ganha o dinheiro, seu pai, não vai lhe dar de mão beijada toda essa grana para torrar, não importa o seu currículo educacional. No ramo financeiro, o que realmente importa é o que você aprende depois que pendura seus diplomas na parede. O garoto se mostra uma promessa, mas ainda está seguindo seu instinto em todo lugar que vai. Não é algo incomum para um jovem rico, mas se você tem uns trocados na carteira, vai querer manter seu garoto a rédeas curtas. Além disso, o que ele parece estar financiando... bem, o que desconfiamos que ele está financiando... não é realmente grande capital. Você apontou alguns negócios pelas beiradas. Isso foi muito esperto. Já reparou que quando voa para casa, na Arábia Saudita, ele freta um Gulfstream G-V?
— Hã... não — admitiu Jack. — Não prestei atenção nisso. Apenas imaginava que ele voasse de primeira classe para toda parte.
— Ele o faz, do mesmo modo como você e seu pai costumavam. Verdadeira primeira classe. Jack, nada é tão pequeno que não possa ser verificado.
— O que acha do uso do cartão de crédito?
— Tudo rotina, não digno de nota. Ele pode fretar tudo que quiser, se decidir, mas Sali parece pagar muitos gastos em dinheiro vivo... e ele gasta menos do que converte para seu próprio uso. Como faz com aquelas putas. Os sauditas não se importam com isso, de modo que está pagando em dinheiro lá porque ele quer, não porque tenha que fazê-lo. Ele está tentando manter secretas algumas partes de sua vida por motivos não evidentes de imediato. Talvez simplesmente práticos. Eu não ficaria surpreso em descobrir que tem mais cartões de crédito do que os que conhecemos... contas não usadas. Logo mais estarei cruzando as contas bancárias dele. Ele realmente ainda não sabe como ficar encoberto. Jovem demais, inexperiente demais, nenhum treinamento formal. Mas, sim, acho que ele é um jogador esperando se transferir para as ligas principais muito em breve. Os jovens e ricos não são conhecidos por sua paciência — concluiu Cunningham.
Eu mesmo devia ter adivinhado, disse Junior a si mesmo. Precisava ter pensado melhor essa coisa. Outra lição importante. Nada é tão pequeno que não deva ser verificado. Com que tipo de sujeito estamos lidando? Como ele vê o mundo? Como ele quer mudar o mundo? Seu pai sempre lhe disse como era importante olhar para o mundo através dos olhos do adversário, rastejar para dentro do seu cérebro e depois olhar o mundo. Sali é um cara impelido pela paixão por mulheres — haveria mais do que isso? Contratava as prostitutas porque elas eram boas fodas ou porque ele estava fodendo o inimigo? O mundo islâmico considerava os Estados Unidos e o Reino Unido essencialmente o mesmo inimigo. A mesma língua, a mesma arrogância, a maldita confiança nas mesmas forças armadas, já que americanos e britânicos cooperavam tão estreitamente em muitas coisas. Isto merecia ser levado em consideração. Não fazer pressuposições sem olhar através de seus globos oculares. Não era má lição para a hora do almoço.
ROANOKAYE DESLIZAVA À DIREITA deles. Os dois lados da 1-81 compunham-se de colinas verdes onduladas, na maioria fazendas, muitas delas de gado leiteiro, a julgar por tantas vacas. Letreiros verdes apontavam para estradas que, para seu propósito, levavam a lugar nenhum. E a mais daquelas igrejas em forma de caixotes pintadas de branco. Passaram por ônibus escolares, mas por nenhum carro de polícia. Ele ouvira dizer que alguns estados americanos punham seus patrulheiros rodoviários em carros de aspecto comum, não muito diferentes do seu, mas provavelmente equipados com antenas de rádio adicionais. Imaginou se os motoristas aqui usavam chapéus de cowboy. Seria algo decididamente fora de ambiente, mesmo numa região com tantas vacas. A Vaca , o Segundo Sura do Corão, pensou ele. Se Alá lhe dissesse para matar uma vaca, você deveria matá-la sem fazer muitas perguntas. Não uma vaca velha, nem uma nova, apenas uma vaca para fazer a vontade do Senhor. Não eram todos os sacrifícios agradáveis a Alá, desde que não fossem baseados em caprichos? Certamente eram, se oferecidos na humildade da Fé, pois Alá os recebia bem e se agradava das oferendas da Fé verdadeira.
Sim.
E ele e seus amigos iriam fazer mais sacrifícios ao matar os infiéis.
Sim.
A seguir viu um letreiro indicando a RODOVIA INTERESTADUAL 64 — mas ela ia para oeste, o lado errado. Eles tinham que seguir para leste, atravessar as montanhas orientais. Mustafa fechou os olhos e se lembrou do mapa que consultara tantas vezes.
Para o norte durante uma hora, depois para leste. Sim.
— BRIAN, AQUELES TÊNIS VÃO SE DESFAZER nos próximos dias.
— Ei, Dom, foi com eles que corri um quilômetro em dois minutos e cinquenta pela primeira vez — objetou o fuzileiro. Momentos como esse deviam ser lembrados e entesourados.
— Talvez, mas da próxima vez que tentar isso, eles vão se desfazer e ferrar seu tornozelo.
— Acha mesmo? Aposto um dólar como está errado.
— Aposta aceita — disse Dominic de imediato. Apertaram as mãos formalmente para selar a aposta.
— Eles também me parecem um lixo — opinou Alexander.
— Quer me comprar camisetas novas também, mamãe?
— Elas vão se autodestruir em um mês — Dominic pensou em voz alta.
— Ah, é isso aí! Bem, de manhã, com minha Beretta, eu atirei melhor do que seu rabo.
— A sorte acontece — fungou Enzo. — Veja se consegue fazer duas vezes seguidas.
— Aposto cinco paus nisso.
— Aceito. — Outro aperto de mão. — Eu podia ficar rico dessa maneira — disse Dominic. A seguir era hora de pensar no jantar. Picadinho de vitela esta noite. Ele tinha um fraco por uma boa vitela, e as lojas locais tinham bom sortimento. Lamentava pelo bezerro, mas não foi ele a cortar sua garganta.
LÁ ESTAVA: 1-64, PRÓXIMA SAÍDA. Mustafa estava tão cansado que podia passar o volante para Abdullah, mas queria encerrar ele mesmo, e imaginou se aguentaria mais uma hora. Seguiam para um desfiladeiro na cordilheira seguinte. O tráfego era pesado, mas só na direção contrária. Subiram a rodovia em direção a... sim, ali estava, um raso desfiladeiro com um hotel no lado sul. Um letreiro proclamava o nome, mas as letras eram confusas demais para enfiá-las na cabeça como uma palavra coerente. Ele deu uma olhada, bem a sua direita. O próprio paraíso dificilmente teria sido mais bonito — havia até mesmo um lugar para encostar, saltar e apreciar a vista. Mas claro que não tinham tempo. Era apropriado que o caminho fosse levemente em declive, e isso mudou seu humor por completo. Menos de uma hora. Mais um fumada para comemorar a cronometragem. No banco de trás, Rafi e Zuhayr estavam de novo acordados, admirando o cenário. Era sua última oportunidade. Um dia de descanso e reconhecimento — tempo para se coordenar por e-mail com as outras três equipes — e depois podiam cumprir sua missão. Que seria seguida pelo Próprio Abraço de Alá.
Um pensamento muito feliz.
13
LOCAL DE ENCONTRO
DEPOIS DE MAIS DE TRÊS MIL QUILÔMETROS de viagem, a chegada foi um completo anticlímax. A menos de um quilômetro da saída da Interstate 64 tinha um Holiday Inn Express que parecia satisfatório, especialmente por haver um Roy Rogers imediatamente ao lado e um Dunkin Donut a menos de 100 metros colina acima.
Mustafa entrou e reservou dois quartos interligados, pagando com seu cartão Visa do banco de Liechtenstein. Amanhã eles iam explorar o local, mas agora tudo que precisavam era de sono. Até mesmo comida perdia importância neste momento. Ele levou o carro até os quartos do primeiro andar que tinha reservado e desligou o motor.
Rafi e Zuhayr trancaram as portas, depois voltaram para abrir o porta-malas. Tiraram suas poucas bagagens e, debaixo delas, as quatro submetralhadoras ainda embrulhadas em cobertores baratos e grossos.
— Aqui estamos, companheiros — anunciou Mustafa, entrando no quarto. Era um motel inteiramente comum, nada parecido com os mais luxuosos hotéis a que estavam acostumados. Cada quarto tinha um banheiro e uma pequena TV. A porta que ligava os quartos estava aberta. Mustafa permitiu-se desabar em sua cama, de casal, toda para ele. Algumas coisas, porém, precisavam ser feitas.
— Companheiros, as armas devem estar sempre escondidas, e as persianas puxadas o tempo todo. Não viemos tão longe para correr riscos tolos — avisou Mustafa a eles. — Esta cidade tem uma força policial, e não creio que eles sejam tolos. Vamos para o paraíso num momento de nossa escolha, não numa hora determinada por um erro. Lembrem-se disso. — A seguir ele se sentou e tirou os sapatos. Pensou numa chuveirada, mas estava cansado demais para isso, e o amanhã chegaria muito em breve.
— Qual a direção de Meca? — perguntou Rafi.
Mustafa teve de pensar por um segundo, adivinhando a linha direta para Meca e o ponto principal da cidade, a pedra da Caaba, o próprio centro do universo islâmico, para onde eles direcionavam os Salat, versículos do Corão ditos cinco vezes por dia, recitados de joelhos.
— Para lá — disse ele apontando para sudeste, numa linha que cortava em transversal o norte da África no caminho para o mais santo dos Lugares Santos.
Rafi desenrolou seu tapete de prece e se pôs de joelhos. Ele estava atrasado em suas preces, mas não se esquecera de sua obrigação religiosa. Por sua vez, Mustafa suspirou para si mesmo, na esperança de que Alá o perdoaria seu presente estado de fadiga. Mas não era Alá infinitamente misericordioso? Além do mais, isso dificilmente seria um grande pecado. Mustafa tirou as meias e se deitou de novo, pegando no sono em menos de um minuto.
No quarto ao lado, Abdullah terminou sua prece e depois plugou o computador na lateral do telefone. Digitou um número 800 e ouviu o ruído característico enquanto o computador entrava na rede. Em poucos segundos, descobriu que tinha e-mails. Três mensagens, mais o lixo habitual. Três e-mails que ele baixou e salvou, e depois desligou o computador, tendo ficado online por meros quinze segundos, outra medida de segurança sobre a qual foram instruídos.
O QUE ABDULLAH NÃO SABIA era que uma das quatro contas tinha sido interceptada e parcialmente decifrada pela NSA. Quando sua conta — identificada apenas por uma palavra parcial e alguns números — foi cotejada com a de Saeed tinha sido identificada, mas apenas como a de destinatário, não como remetente.
A equipe de Saeed tinha sido a primeira a chegar ao destino em Colorado Springs, no Colorado — a cidade era identificada apenas por um codinome —, e estava confortavelmente instalada num motel a 10 quilômetros do objetivo. Sabawi, o iraquiano, estava em Des Moines, Iowa, e Mehdi em Provo, Utah. As equipes estavam também a postos e prontas para dar início à operação. Menos de 36 horas para executar sua missão.
Ele deixou Mustafa fazer as respostas. A resposta estava de fato já programada, 190,2, designando o 190° versículo da Segunda Sura. Não exatamente um grito de guerra, mas antes uma afirmação da fé que os trouxera aqui. O significado era: Prossigam com sua missão.
BRIAN E DOMINIC estavam assistindo ao History Channel na sua TV a cabo, algo sobre Hitler e o Holocausto. Isso já havia sido tão estudado que se pensaria que era um desafio encontrar algo novo, embora, de certo modo, historiadores com frequência conseguissem. Uma parte disso era provavelmente graças aos volumosos registros que os alemães tinham deixado para trás nas cavernas do monte Hartz, que talvez seriam tema de estudos acadêmicos pelos próximos séculos, enquanto as pessoas continuassem a tentar discernir os processos de pensamento dos monstros humanos que primeiro fantasiaram e depois cometeram tais crimes.
— Brian — perguntou Dominic —, o que acha dessa coisa toda?
— Um tiro de pistola podia ter evitado isso, suponho. O problema é que ninguém pode ver tão longe no futuro... nem mesmo adivinhos ciganos. Droga, Adolf matou um monte deles, também. Por que diabos eles não caíram fora da cidade?
— Você sabe, Hitler passou a maior parte da vida com um único guarda-costas. Em Berlim, ele morava num apartamento de segundo andar, com uma entrada no térreo, certo? Ele tinha apenas um soldado da SS, talvez nem sequer um sargento, guarnecendo a porta. Era só baleá-lo, abrir a porta, subir e apagar o filho da puta. Isso teria poupado um monte de vidas, mano — concluiu Dominic, pegando seu vinho branco.
— Porra, tem certeza disso?
— Assim ensina o Serviço Secreto. Eles mandam um instrutor lá para Quantico dar aulas sobre questões de segurança. O fato também nos surpreendeu. Houve muitas perguntas a respeito. O cara disse que se passava diante do guarda SS a caminho da loja de bebidas, por exemplo. Um tiro fácil, cara, fácil pra caramba. A ideia era que Hitler se achava imortal, que em lugar nenhum havia uma bala com seu nome gravado. Ei, nós tivemos um presidente apagado numa plataforma ferroviária, esperando seu trem chegar. Qual foi mesmo? Chester Arthur, acho. McKinley foi baleado por um cara que caminhou direto para ele com uma bandagem na mão. Acho que as pessoas eram meio descuidadas naquela época.
— Droga. Isto tornaria nosso trabalho bem mais fácil, mas eu ainda preferiria um rifle de 500 metros ou por aí.
— Nenhum senso de aventura, Aldo?
— Não tem ninguém me pagando o bastante para bancar o camicaze, Enzo. Não há nenhum futuro nisso, está entendendo?
— E o que me diz daqueles homens-bomba do Oriente Médio?
— Cultura diferente, cara. Não se lembra do segundo grau? Não se pode cometer suicídio porque isso é um pecado mortal e você não pode ir à confissão depois. A irmã Frances Mary deixou isso bem claro, eu achei.
Dominic riu.
— Droga, jamais pensei nela um instante sequer, mas ela sempre achou que você era o técnico.
— É porque eu não vivia brincando na aula como você.
— E lá nos Fuzileiros?
— Ficar brincando? Os sargentos cuidavam disso antes que eu tomasse conhecimento. Ninguém vacila com Gunny Sullivan, nem mesmo o coronel Winston. — Ele olhou para a TV por mais um minuto. — Sabe, Enzo, talvez haja ocasiões em que uma bala possa evitar muita desgraça. Aquele Hitler precisava ter recebido a sua. Mas nem mesmo oficiais treinados conseguiram levar isso a cabo.
— O sujeito que colocou a bomba simplesmente presumiu que todos no prédio tinham que estar mortos, sem voltar lá dentro para se certificar. Dizem isso todo dia na Academia do FBI, mano... presunção é a mãe de todas as cagadas.
— Você quer ter certeza, isso aí. Em qualquer coisa que valha a pena atirar, vale a pena atirar duas vezes.
— Amém — concordou Dominic.
TINHA CHEGADO AO PONTO de Jack Ryan Jr. acordar para os noticiários da manhã na NPR esperando ouvir alguma coisa terrível. Imaginava que era consequência de ver tanta informação bruta de espionagem sem se analisar o que era quente e o que não era.
Embora ele não soubesse tanto assim, o que sabia era mais do que uma pequena preocupação. Ele adquirira uma fixação por Uda bin Sali — provavelmente porque ele era o único ator que conhecia muito bem. E isso porque Sali era seu estudo de caso pessoal. Ele tinha que decifrar este pássaro, porque se não o fizesse seria... encorajado a procurar outro emprego...? Até agora não tinha encarado essa possibilidade, o que por si só não o recomendava bem para seu futuro no ramo da espionagem. Claro que seu pai tinha levado um longo tempo para descobrir alguma coisa em que fosse bom — nove anos, de fato, após se formar no Boston College — ele mesmo ainda não tinha completado um ano do recebimento de seu diploma em Georgetown. Assim, ia se formar no Campus? Devia ser o mais jovem ali. Até a equipe de secretárias era de mulheres mais velhas que ele. Droga, este era um pensamento inteiramente novo.
Sali era um teste para ele, e provavelmente um muito importante. Tony Wills já teria decifrado Sali e ele estaria caçando dados já plenamente analisados? Ou tinha que fabricar seu caso e vendê-lo depois que tivesse chegado a suas próprias conclusões? Era uma questão importante demais para ele ficar diante do espelho do banheiro com seu Norelco. Isso não era mais escola. Uma repetência aqui significaria fracassar... na vida? Não. Não tão ruim, mas tampouco bom. Era algo a se pensar com um café e a CNN na cozinha.
PARA 0 DESJEJUM, ZUHAYR subiu a colina e comprou vinte donuts e quatro copos grandes de café. Os Estados Unidos eram um país pra lá de louco. Tantas riquezas naturais — árvores, rios, estradas magníficas, prosperidade incrível —, mas tudo a serviço de idólatras. E aqui estava ele, bebendo seu café e comendo seus donuts. Na verdade, o mundo era louco, e se estava em andamento um plano para tudo, era o Próprio Plano de Alá, e não alguma coisa para até mesmo os Fiéis compreenderem. Eles só tinham que obedecer ao que estava escrito. Ao retornar ao motel, encontrou os aparelhos de TV sintonizados no noticiário — da CNN, a rede global — de orientação pró-judeus, era isso. Era uma pena que os americanos não vissem a Al-Jazeera, que pelo menos tentava falar para os árabes, embora aos seus olhos ela já tivesse pegado a doença americana.
— Comida — anunciou Zuhayr. — E bebida. — Uma caixa de donuts foi para seu quarto e a outra para o de Mustafa, ainda esfregando o sono dos olhos depois de onze horas de sono ressonante.
— Como dormiu, meu irmão? — perguntou Abdullah ao líder da equipe.
— Foi uma experiência abençoada, mas minhas pernas ainda estão duras. — Sua mão avançou para o enorme copo de café e ele arrebatou da caixa um donut glaçado de açúcar, engolindo metade dele em monstruosa mordida. Esfregou os olhos e fixou-os na TV para ver o que estava acontecendo no mundo. A polícia israelense tinha baleado e matado outro mártir santo antes que ele detonasse seu traje de Semtex.
— ESCROTO IDIOTA — observou Brian. — Qual é a dificuldade em puxar um cordão?
— Fico imaginando como os israelenses o flagraram. É de imaginar que tenham informantes pagos dentro do bando do Hamas. Deve ser missão principal da polícia deles, com muitas verbas, além da ajuda das agências de informação...
— Eles também torturam pessoas, não?
Dominic assentiu após uma segunda consideração.
— Sim, presumivelmente isso é controlado por seu sistema de justiça e tudo mais, mas eles interrogam um pouco mais vigorosamente do que nós.
— E funciona?
— Falamos sobre isso na Academia. Se você puser uma faca Bowie na pica de alguém, as possibilidades são de que ele terá a sabedoria de cantar, mas não é algo em que alguém queira pensar muito. Quero dizer, sim, abstratamente pode até parecer divertido, mas você mesmo fazer... provavelmente não é muito palatável, sabe? A outra pergunta é: quanto de boa informação realmente gera? O cara simplesmente fica propenso a dizer qualquer coisa para afastar a faca do seu amiguinho, fazer a dor parar, o que quer que seja. Patifes podem ser realmente bons mentirosos a não ser que você saiba mais do que eles. De qualquer modo, não podemos fazer isso. Você sabe, a Constituição e tudo mais. Você pode ameaçá-los com um tempo brabo de cadeia e gritar com eles, mas mesmo então há limites que não se pode ultrapassar.
— Eles cantam, de qualquer modo?
— Na maioria das vezes. O interrogatório é uma forma de arte. Alguns caras são realmente bons nisso. Na verdade, nunca tive muita chance de aprender, mas vi alguns caras em ação. O verdadeiro truque é desenvolver uma relação com o sacana, dizendo coisas como, sim, aquela garotinha obscena realmente pedia isso, não pedia? Faz a gente querer vomitar depois, mas o objetivo do jogo é fazer o sacana confessar. Depois que ele entra na cela, seus vizinhos vão atormentá-lo de modo bem pior do que eu jamais faria. Uma coisa que ninguém quer numa prisão é um molestador de crianças.
— Acredito, Enzo. Aquele seu amigo do Alabama... talvez lhe tenha prestado um favor.
— Depende de se acreditar ou não no inferno — respondeu Dominic. Ele tinha sua própria opinião sobre isso.
WILLS CHEGOU CEDO AQUELE DIA. Jack o viu em seu posto de trabalho quando entrou.
— Você me venceu, pelo menos uma vez.
— O carro da minha mulher voltou da oficina e trocamos. Ela agora já pode levar os garotos para a escola — explicou ele. — Verifique o que chegou de Fort Meade — ordenou.
Jack ligou o computador, sentou-se e digitou a senha para acessar o arquivo do tráfego interagências baixado da sala de computação lá em cima. No topo da pilha eletrônica estava um despacho prioridade-FLASH da NSA em Fort Meade para CIA, FBI e Homeland, um dos quais certamente devia ter se reunido com o presidente naquela manhã. Estranhamente, não havia quase nada, apenas uma mensagem numérica, um conjunto de números.
— Então? — perguntou Junior.
— Então, pode ser uma passagem do Corão. O Corão tem 114 Suras... capítulos... com um número variável de versículos. Se ié uma referência dessas, seria um versículo sem nada de particularmente dramático. Repasse e veja por si mesmo.
Jack clicou.
— Isso é tudo?
Woods assentiu. — Isso é tudo, mas a ideia lá em Meade é que uma mensagem tão estúpida é propensa a deixar entrever algo mais... alguma coisa importante. Espiões tendem a usar inglês invertido quando se deparam com a pista certa.
— Danou-se! Você está dizendo que só porque isso parece não ter nenhuma importância, então pode ser importante? Diabos, Tony, você pode fazer esta observação sobre qualquer coisa... O que mais eles sabem? A rede, onde o cara se conectou, esse tipo de coisa? j
— É uma rede europeia, de propriedade privada, com oitocentos participantes em todo o mundo, e sabemos de alguns bandidos que a usaram. É impossível saber a partir de onde se conectam à rede.
— Certo. Assim, primeiro precisamos saber se a mensagem tem alguma importância. Segundo, não sabemos onde a mensagem se originou. Terceiro, não temos qualquer meio de saber se alguém a leu ou onde diabos eles estão. A versão resumida é que não sabemos de merda nenhuma, mas todo mundo está se estressando por isso. O que mais? O remetente, o que sabemos dele?
— Ele... ou ela, pelo que sabemos... é um possível ator.
— De que turma?
— Adivinhe. Os criadores de perfis da NSA dizem que a sintaxe desse cara indica árabe como primeira língua... com base em tráfego anterior. Os psicólogos da CIA concordam. Já copiaram antes mensagens deste pássaro. Ele diz coisas obscenas para pessoas obscenas ocasionalmente e eles estão ligados no tempo com algumas outras coisas muito ruins.
— É possível que esteja dando algum sinal relacionado ao homem-bomba que a polícia israelense empacotou hoje mais cedo?
— É possível, sim, mas não terrivelmente provável. O remetente não está ligado ao Hamas, até onde sabemos.
— Mas realmente não sabemos, não é?
— Com esses caras nunca se pode ter certeza absoluta de nada.
— Portanto, estamos de volta aonde começamos. Algumas pessoas por aí estão preparando alguma coisa da qual realmente não sabemos merda nenhuma.
— Esse é o problema. Nessas burocracias é melhor gritar lobo e estar errado do que ficar de bico calado quando o grande predador cinzento sai correndo com uma ovelha na boca.
Ryan se recostou na cadeira.
— Tony, quantos anos você passou em Langley?
— Poucos — respondeu Wills.
— Como diabos aguentou isso?
O analista sênior deu de ombros.
— Às vezes me pergunto.
Jack se virou para o computador para verificar as outras mensagens da manhã. Decidiu ver se Sali andava fazendo alguma coisa diferente nos últimos dias, apenas para tirar seu rabo da reta, e, ao pensar nisso, John Patrick Ryan Jr. começou a raciocinar como um burocrata, sem sequer se dar conta.
— AMANHÃ VAI SER um pouco diferente — disse Pete aos gêmeos. — Michelle é o alvo de vocês, mas desta vez estará disfarçada. A missão é identificá-la e segui-la até o destino dela. Ah, eu diria a vocês: ela é realmente boa em disfarces.
— Ela vai tomar uma pílula para ficar invisível, certo? — perguntou Brian.
— É a missão dela — explicou Alexander.
— Você vai nos dar óculos mágicos para ver através da maquiagem?
— Nem mesmo se tivéssemos algum... e não temos.
— Que bom amigo você é — observou friamente Dominic.
ÀS ONZE DAQUELA MANHÃ era hora de fazer o reconhecimento do objetivo.
Convenientemente situado uns 400 metros ao norte na Rota 29, o Charlottesville Fashion Square Mall era um shopping center de porte médio que atendia a uma clientela amplamente crescente da burguesia local e estudantes da vizinha Universidade da Virginia. Estava ancorado por um JCPenney de um lado e uma Sears do outro, com lojas Belk's para homens e mulheres no meio. Inesperadamente, não havia nenhuma praça de alimentação — quem quer que tivesse feito o planejamento da missão tinha sido negligente. Um desapontamento, mas não de todo incomum. As equipes avançadas que a organização empregava eram com frequência meros freelancers, para quem as missões desse tipo não passavam de curtição. Ainda assim Mustafa prosseguiu.
Um hall central se abria para os quatro corredores principais do shopping. Um estande de informações até fornecia mapas com a localização das lojas. Mustafa olhou um deles. Uma estrela de Davi de seis pontas saltou da página aos seus olhos. Uma sinagoga aqui? Era possível? Foi verificar, esperando que fosse de fato possível.
Mas não era. Em vez disso era o escritório da segurança do shopping, onde se sentava um empregado de uniforme composto de camisa azul-claro e calça azul-escura. Verificou que o homem não usava arma. E isso era bom. Ele tinha um telefone, que sem dúvida se comunicava com a polícia local. Portanto, este homem negro teria que ser o primeiro. Decidido isso, Mustafa caminhou na direção oposta, passou pelos toaletes e pela máquina de refrigerante, dobrou à direita, afastando-se da loja masculina.
Era um excelente local-alvo, percebeu. Apenas três entradas principais, e um campo de tiro desimpedido a partir do saguão central. A maioria das lojas era retangular, com acesso aberto aos corredores. No dia seguinte, mais ou menos a esta hora, estaria até mesmo mais cheio. Calculava duzentas pessoas na sua visão imediata, e embora tivesse esperado por todo o caminho até esta cidade que teriam a chance de matar talvez mil pessoas, qualquer coisa acima de duzentas já seria uma vitória de não pouca dimensão. Havia lojas de todo tipo aqui e, ao contrário dos centros comerciais sauditas, homens e mulheres compravam no mesmo piso. Havia muitas crianças também. Havia quatro lojas listadas como especializadas no público infantil — e até mesmo uma Disney Store! Por essa ele não havia esperado, e atacar um dos mais valorizados ícones da América seria de fato uma delícia.
Rafi apareceu a seu lado.
— E então?
— Podia ser um alvo maior, mas o arranjo está quase perfeito para nós. Tudo no mesmo piso — replicou Mustafa baixinho.
— Alá é beneficente como sempre, meu amigo — disse Rafi, incapaz de esconder o entusiasmo.
Pessoas circulavam ao redor. Muitas mulheres jovens empurravam seus bebês em carrinhos — ele viu que se podia alugá-los num estande bem ao lado do salão de cabeleireiro. Ele teria que fazer uma compra. Ele a fez na Radio Shack junto à Zales Joalheiros. Quatro rádios portáteis e baterias, pelos quais pagou em dinheiro, recebendo breves instruções de funcionamento.
No todo, podia ter sido melhor, num sentido teórico, mas parecia não ser uma cidade agitada. Além disso, haveria policiais armados na rua que iam interferir na missão. Assim, como sempre na vida, tinha-se que medir o amargo contra o doce, e aqui havia doce demais para saborear. Os quatro compraram pretzels na Auntie Anne's e passaram pela loja JCPenney de volta para o carro. Um plano formal seria arquitetado nos quartos do motel, junto com mais donuts e café.
O EMPREGO OFICIAL DE JERRY ROUND era de chefe de planejamento estratégico do lado branco do Campus. Esta função ele executava muito bem — podia ter sido o próprio Lobo de Wall Street se não tivesse optado por se tornar oficial de inteligência da Força Aérea ao deixar a Universidade da Pensilvânia. O serviço tinha pago até mesmo seu mestrado na Wharton School of Business antes que se tornasse coronel. Teve então um inesperado diploma de mestrado para pendurar na parede, o qual também lhe daria uma soberba desculpa para entrar no ramo. Era até um alegre passatempo para o ex-analista-chefe da Força Aérea no quartel-general da Defense Intelligence Agency (DIA) na base Bolling da USAF em Washington. Mas ao longo do caminho ele descobriu que ser aviador em terra — ele nunca usou as asas de prata de piloto da Força Aérea — não compensava; sempre seria um cidadão de segunda classe num serviço dirigido por aqueles pilotos que abriam buracos no céu, mesmo que fosse mais inteligente do que vinte deles. Vir para o Campus havia alargado seus horizontes.
— O que é isso, Jerry? — perguntou Hendley.
— Os companheiros de Meade e do outro lado do rio ficaram excitados com alguma coisa — replicou Rounds, passando-lhe alguns papéis.
O ex-senador leu o tráfego por um minuto e devolveu tudo. Num instante, Rounds soube que o chefe já tinha visto mais antes.
— E aí? — disse Hendley.
— E aí, dessa vez eles podem estar certos, chefe. Estive de olho nos antecedentes. A coisa é que temos uma combinação de tráfego reduzido de mensagens dos atores conhecidos, e então isio passa voando por cima da porta. Passei a vida na DIA olhando para coincidências. Esta aqui é uma delas.
— Okay, o que eles estão fazendo a respeito?
— A segurança nos aeroportos vai ficar um pouco mais rígida a partir de hoje. O FBI vai colocar pessoal em alguns portões de embarque.
— Nada na TV sobre isso?
— Bem, o pessoal da Homeland podem ter ficado um pouco mais esperta em propaganda. É contraproducente. Não se pega um rato atirando nele. A gente faz isso mostrando a ele o que quer ver, e depois quebrando a porra do pescoço dele.
Ou talvez um gato pulando nele inesperadamente, pensou Hendley. Mas esta era uma missão mais difícil.
— Ideias? — perguntou em vez disso.
— Não no momento. É como ver uma frente fria se instalando. Pode trazer chuva pesada e granizo, mas não há nenhum meio de detê-la.
— Jerry, são bons os nossos dados sobre os caras de planejamento, aqueles que dão as ordens?
— Alguns são muito bons. Mas é o pessoal que transmite as ordens, não os que as criaram.
— E se eles viraram a mesa?
Rounds assentiu de imediato.
— Agora falou bem, chefe. Então, os verdadeiros maiorais podiam pôr a cabeça para fora. Especialmente se não souberem que a tempestade está chegando.
— Qual é a maior ameaça por enquanto?
— O FBI está pensando em carros-bomba, ou talvez alguém com um sobretudo recheado de explosivos, como em Israel. É possível, mas de um ponto de vista operacional não tenho tanta certeza. — Rounds se sentou na cadeira indicada. — Uma coisa é dar ao cara seu pacote de explosivos e colocá-lo num ônibus urbano para viajar até o objetivo, mas aqui é mais complicado. Trazer o homem-bomba para cá, equipá-lo... o que significa ter os explosivos no lugar, o que é uma complicação adicional... e depois familiarizá-lo com o objetivo, levá-lo lá. Depois espera-se que o homem-bomba conserve sua motivação mesmo distante de sua rede de apoio. Muita coisa pode dar errado, e é por isso que as operações extraoficiais são mantidas do modo mais simples possível. Por que sair do nosso caminho para comprar encrenca?
— Jerry, quantos alvos difíceis nós temos? — perguntou Hendley.
— No total? Mais ou menos seis. Desses, quatro são reais, alvos do cacete.
— Pode me dar locais e perfis?
— Quando quiser.
— Segunda-feira. — Não fazia sentido pensar sobre isso no fim de semana. Ele já programara dois dias de cavalgada. Tinha direito a dois dias fora pelo menos uma vez.
— Entendido, chefe. — Rounds se levantou e começou a se retirar. Então parou na porta.
— Ah, tem um cara na Morgan & Steel, do departamento de títulos. Ele é um patife. Está especulando rápida e muito levemente com o dinheiro de algum cliente na base de um para cinquenta do valor. — Com isso ele queria dizer 150 milhões de dólares do dinheiro de outra pessoa.
— Alguém em cima dele?
— Não, identifiquei o cara por minha conta. Encontrei-o dois meses atrás em Nova York e ele não me pareceu muito correto, por isso fiquei de olho em seu computador pessoal. Quer ver mensagens?
— Não é nosso serviço, Jerry.
— Eu sei, reduzi nossos negócios com ele para me certificar de que não vai ferrar nossos fundos, mas creio que ele sabe que é hora de deixar a cidade, talvez numa viagem além-mar com passagem só de ida. Alguém devia dar uma olhada. Talvez Gus Werner?
— Tenho que pensar a respeito. Obrigado pelo aviso.
— Entendido. — E Rounds desapareceu porta afora.
— PORTANTO, NÓS SÓ TEMOS que tentar ficar na cola dela sem ser notados, é isso? — perguntou Brian.
— Essa é a missão — concordou Pete.
— O quão perto?
— O mais próximo que puderem.
— Você quer dizer perto o bastante para meter-lhe uma bala na nuca?
— Perto o bastante para ver seus brincos — replicou Alexander, decidindo que era o modo mais educado de dizer isso. Era até mais preciso, uma vez que a Sra. Peters usava o cabelo razoavelmente comprido.
— Portanto, não balear na cabeça. Mas e quanto a cortar a garganta dela? — Brian pressionou a pergunta.
— Olhe, Brian, você pode colocar isso como quiser. Perto o bastante para tocá-la, certo?
— Okay, acabei de entender — disse Brian. — Temos que usar nossas pochetes?
— Sim — replicou Alexander, embora não fosse verdade. Brian estava se tornando de novo um pé no saco. Quem já ouviu falar num fuzileiro com crise de consciência?
— Isso nos tornará mais fáceis de identificar — objetou Dominic.
— Disfarcem de alguma maneira, sejam criativos — sugeriu um tanto irritado o oficial de treinamento.
— Quando descobriremos para que serve exatamente tudo isso? — perguntou Brian.
— Em breve.
— Você continua dizendo isso.
— Olhe, você pode dirigir de volta para a Carolina do Norte quando quiser.
— Estive pensando nisso — disse Brian.
— Amanhã é sexta-feira. Pense a respeito no fim de semana, Okay?
— É justo. — Brian parou de perturbar. O tom da interação tinha se tornado um pouco mais feio do que realmente desejara. Era hora de cair fora. Não porque desgostasse de Pete. Por nada saber e pela aversão ao que parecia ser. Especialmente com uma mulher como alvo. Ferir mulheres não constava do seu credo. Ou crianças, que foi o que fizera seu irmão matar — não que Brian desaprovasse.
Imaginou brevemente se poderia ter feito a mesma coisa e concluiu que sim, claro, por uma criança, mas sem estar inteiramente certo. Ao terminar o jantar, os gêmeos cuidaram da limpeza, depois se acomodaram diante da TV do andar térreo para tomar alguns drinques e assistir ao History Channel.
ACONTECIA QUASE O MESMO no estado acima com Jack Ryan Jr. bebendo uma cuba-libre e mudando para lá e para cá entre os canais History e History International, com uma ocasional parada em Biography, que exibia um perfil de duas horas sobre Stalin. Esse cara, pensou Junior, foi realmente um filho da puta frio. Forçar um de seus homens de confiança a assinar a ordem de prisão da própria mulher. Droga. Mas como um homem fisicamente antipático exerceu tanto controle sobre seus próprios pares? Qual era seu poder sobre os outros? De onde tinha vindo? Como o manteve? O próprio pai de Jack tinha sido um homem de poder considerável, mas nunca dominara as pessoas daquele jeito. Provavelmente nunca sequer pensara nisso, muito menos matar gente pelo prazer que isso acrescentava. Quem eram essas pessoas? Elas ainda existiam?
Bem, tinham que existir. A única coisa que nunca mudou no mundo foi a natureza humana. O cruel e o brutal ainda existiam. Talvez a sociedade não mais os encorajasse, como fizera, por exemplo, o Império Romano. Os torneios de gladiadores haviam treinado as pessoas a aceitar e até mesmo se divertir com a morte violenta. E a verdade sombria da questão era que, se tivesse tido acesso a uma máquina do tempo, Jack poderia — deveria — ter viajado de volta ao Anfiteatro Flaviano para ver isso, apenas uma vez. Mas era curiosidade humana, não sede de sangue. Apenas uma chance de adquirir conhecimento histórico, ver e ler uma cultura ligada a sua própria, embora diferente. Ele poderia até mesmo comer seus biscoitos observando... ou talvez não. Talvez sua curiosidade fosse forte assim. Mas com toda a maldita certeza, se algum dia voltasse lá, ele levaria uma amiga na viagem. Como a Beretta 45mm que aprendera a usar com Mike Brennan. Imaginou quantos outros mais podiam ter feito a viagem.
Provavelmente bem poucos. Homens. Não mulheres. As mulheres teriam precisado de muito condicionamento societário para olhar para isso. Mas e os homens? Os homens floresciam em filmes como Silverado e O resgate do soldado Ryan. Os homens queriam saber como teriam manipulado tais coisas. Portanto, não, a natureza humana realmente não mudava. A sociedade tendia a punir os cruéis, e uma vez que o homem era uma criatura da razão, mais pessoas se afastavam de um comportamento que pudesse colocá-las na prisão ou na câmara da morte. Assim, o homem podia aprender com o tempo, mas os instintos básicos provavelmente não, e assim alimentava a pequena besta asquerosa com fantasias, livros, filmes e sonhos, pensamentos que percorriam sua consciência enquanto esperava a chegada do sono. Talvez os tiras tivessem um tempo melhor. Eles podiam treinar a pequena criatura manipulando aqueles que saíam da linha. Havia provavelmente satisfação nisso, porque se podia tanto alimentar a criatura quanto proteger a sociedade.
Mas se a besta ainda vivesse no coração dos homens, em algum lugar devia haver aqueles que usariam qualquer talento que tivessem — não tanto para controlá-la como instrumento de sua própria vontade, mas para usá-la como ferramenta na sua busca pessoal pelo poder. Tais homens eram chamados de Bandidos. Os malsucedidos eram chamados de sociopatas. Os bem-sucedidos eram chamados de... presidentes.
Onde tudo isto o deixava?, pensou Jack Jr. Ele ainda era um garoto, afinal, muito embora o negasse e legalmente fosse adulto. Um adulto parava de crescer? Parava de especular e fazer perguntas? Parava de buscar informação — ou, como considerava ele, a verdade. Mas, uma vez que se tivesse a verdade, o que diabo se fazia com ela? Isso ele ainda não sabia. Talvez fosse simplesmente mais uma coisa a aprender. Por certo ele tinha o mesmo impulso por aprendizado que seu pai? Além disso, por que estava assistindo a este programa, em vez de uma inconsequente comédia de situações? Talvez comprasse um livro sobre Stalin e Hitler. Historiadores estavam sempre cavoucando velhos registros. O problema era que depois eles aplicavam suas próprias ideias pessoais àquilo que encontravam. Ele provavelmente precisava de um psicanalista para examinar as coisas. Eles tinham seus próprios preconceitos ideológicos também, mas pelo menos havia uma patina de profissionalismo para os seus processos mentais. Incomodava Junior o fato de ir dormir a cada noite com pensamentos não resolvidos e verdades não descobertas. Mas isto, imaginou, era toda a questão para esta coisa chamada vida.
ESTAVAM TODOS ORANDO. Todos em voz baixa. Abdullah murmurando as palavras lidas no seu Corão. Mustafa repassava o mesmo livro na santidade de sua própria mente — não tudo, é claro, apenas as partes que apoiavam sua missão no dia que chegava. Para ser corajoso, para lembrar da Santa Missão deles, para executá-la sem dó nem piedade. Piedade era negócio de Alá.
E se sobrevivermos?, perguntou-se e foi surpreendido pelo pensamento.
Eles tinham um plano para isso, claro. Dirigiriam de volta para oeste, tentariam achar o caminho para o México, e depois voariam de volta para casa — para ser recebidos com grande regozijo pelos camaradas. Na verdade, não esperava que acontecesse, mas esperança é algo que nenhum homem põe completamente de lado, e embora o paraíso pudesse chamar, a vida na terra era tudo que ele realmente conhecia.
Este pensamento também o sobressaltou. Estava ele expressando dúvida em sua Fé? Não, nada disso. Não exatamente isso. Apenas um pensamento aleatório. Não existe nenhum Deus senão Alá e Maomé é o Seu profeta, entoou ele na própria mente, expressando o Shahada, que é a própria fundação do Islã. Não, não poderia renegar sua Fé agora. Sua Fé o havia trazido através do mundo, até o exato local do martírio. Sua Fé o criara e nutrira sua vida, ao longo da infância, ao longo do ódio de seu pai. Ele estava no próprio lar dos infiéis que cuspiram no Islã e sustentaram os israelenses, estava lá para proclamar sua Fé com a sua vida. E sua morte, provavelmente. Quase com toda certeza, a não ser que o Próprio Alá decidisse de outra forma. Porque todas as coisas na vida eram escritas pela Própria Mão de Alá...
O ALARME TOCOU POUCO ANTES das seis. Brian bateu na porta do irmão.
— Acorde, federal. Estamos desperdiçando a luz do sol.
— Isso é verdade? — observou Dominic do corredor.
— Pode apostar! — O que já era um começo.
— Então vamos nos apressar, Enzo — respondeu Brian e depois saíram juntos. Uma hora e quinze depois, estavam de volta à mesa do café da manhã.
— É um belo dia para estar vivo — disse Brian com seu primeiro gole de café.
— O Corpo de Fuzileiros deve encher seu rabo de filosofadas, mano — observou Dominic bebericando seu café.
— Não, as endorfinas apenas racham a conta. É como o corpo humano mente para si mesmo.
— Vocês são produto dele — disse Alexander. — Prontos para seu pequeno exercício de campo?
— Sim, sargentão — replicou Brian com um sorriso. — Vamos fatiar Michelle para o almoço.
— Só se vocês puderem rastreá-la sem ser notados.
— Seria mais fácil na floresta, você sabe. Fui treinado nessa habilidade especial.
— Brian, o que você acha que estamos fazendo aqui? — perguntou Pete gentilmente.
— Ah, é assim?
— Primeiro arranje calçados novos — aconselhou Dominic.
— É, eu sei. Estes aqui já estão na hora da morte. — As lonas superiores já estavam se separando das solas de borracha, que também estavam gastas. Ele odiava fazer isso. Havia superado milhas com seus sapatos de corrida, e um homem podia ser sentimental com essas coisas, o que era com frequência uma questão de aborrecimento para as esposas.
— Chegaremos cedo ao shopping. A Foot Locker fica bem ao lado do lugar onde alugam carrinhos de bebê — lembrou Dominic ao irmão.
— É, eu sei. Okay, Pete, algum conselho sobre Michelle? — perguntou Brian. — Você sabe, se saímos em missão, em geral somos instruídos sobre ela.
— É uma pergunta justa, capitão. Eu sugeriria que procurasse por ela no Victoria's Secret, logo em frente ao The Gap. Se conseguir se aproximar o bastante sem ser notado, você venceu. Se ela disser seu nome quando estiver a mais de três metros de distância, você perdeu.
— Isso não é estritamente justo — assinalou Dominic. — Ela sabe como nós parecemos... especialmente peso e altura. Um inimigo de verdade não teria essa informação no bolso. Você pode simular ser mais alto, mas ser mais baixo, não.
— E meus tornozelos não aguentam salto alto, sabia? — acrescentou Brian.
— De qualquer modo, você não tem o tipo de pernas para isso, Aldo — aguilhoou Alexander. — Quem falou que este trabalho era fácil?
Exceto que ainda não sabemos qual é a porra do trabalho, Brian pensou mas não disse. — É justo. Improvise, adapte e supere.
— Quem é você agora? Dirty Harry, o perseguidor implacável? — perguntou Dominic, terminando seu McMuffin.
— Lá no Corpo é nosso personagem preferido, mano. Provavelmente daria um artilheiro muito bom.
— Especialmente com seu Smith.44.
— Um tanto barulhento para uma arma leve. Meio duro de manuseio, também. Exceto talvez a automática Magnum. Já atirou com uma?
— Não, mas segurei no paiol de Quantico. A maldita coisa devia vir acompanhada de um trailer para rebocá-la por aí, mas aposto que produz belos buracos.
— É, mas se você quiser escondê-la, é melhor ser Hulk Hogan.
— Ouvi falar, Aldo. — Como um assunto prático, as mochilas que eles usavam não escondiam tanto uma pistola quanto a tornavam mais conveniente para carregar.
Qualquer tira sabia o que era à primeira vista, embora poucos civis a reconhecessem. Os dois irmãos carregavam uma pistola municiada e um pente de balas extra nas mochilas, quando as usavam. Pete queria que fizessem isto hoje só para tornar mais difícil rastrear Michelle sem que fossem percebidos. Bem, isso era esperado de oficiais de treinamento, não era?
O MESMO DIA COMEÇOU A OITO QUILÔMETROS no Holiday Inn Express, e neste dia, ao contrário dos outros, todos desenrolaram seus tapetes de prece e, como um só homem, disseram seu Salat matinal no que esperavam ser a última vez. Só levou alguns minutos e depois todos se lavaram, a fim de se purificar para a tarefa. Zuhayr até arranjou tempo para aparar sua nova barba, ajeitando com capricho a parte que queria usar na eternidade. Quando se deu por satisfeito, vestiu-se.
Foi só quando já estavam completamente prontos que se deram conta de que sobravam horas para o momento apropriado. Abdullah foi até o Dunkin Donuts buscar o desjejum e o café, desta vez voltando até com um jornal, que circulou pelos quartos enquanto os homens bebiam café e fumavam. Podiam parecer fanáticos para os inimigos, mas continuavam humanos, e a tensão do momento era desagradável e a cada minuto apenas piorava. O café apenas bombeava mais cafeína em seus corpos, fazendo as mãos se agitarem e os olhos se estreitarem sobre o noticiário da TV Eles consultavam os relógios a cada poucos segundos, desejando sem sucesso que os ponteiros girassem mais rápido em torno dos mostradores, depois mais café.
— AGORA ESTAMOS FICANDO EXCITADOS também? — Jack perguntou a Tony no Campus. Ele gesticulou para seu posto de trabalho. — O que há aqui que não vejo, meu chapa?
Wills recostou-se na cadeira.
— É uma combinação de coisas. Talvez real. Talvez seja apenas coincidência. Talvez seja apenas um constructo nas mentes de analistas profissionais. Você sabe dizer o que realmente é?
— Esperar uma semana, olhar para trás e ver se alguma coisa realmente aconteceu?
Foi o bastante para fazer Tony rir.
— Junior, você está aprendendo o negócio de espionar. Puxa, tenho visto mais previsões dando errado no ramo da informação do que no dia do sweepstake em Pimlico. Entenda, a não ser que saiba, você simplesmente não sabe, mas o pessoal do ramo não gosta de pensar assim.
— Eu me lembro de quando era garoto. Papai às vezes costumava ficar puto da vida...
— Ele estava na CIA durante a Guerra Fria. Os chefões estavam sempre pedindo previsões que ninguém podia realmente dar... pelo menos que fizessem sentido. Seu pai costumava ser o cara que dizia: Esperem algum tempo e saberão por si mesmos. Isso de fato os deixava putos, mas, sabe como é, ele em geral tinha razão, e não ocorriam desastres no plantão dele.
— Serei algum dia tão bom?
— É muito bom esperar por isso, garoto, mas nunca se sabe. Você tem sorte de estar aqui. Pelo menos o senador sabe o que significa não saber. Quer dizer que seu pessoal é honesto e sabe que não é Deus.
— É, me lembro disso na Casa Branca. Sempre me espantou quantas pessoas lá pensavam que realmente eram.
DOMINIC DIRIGIA. Eram umas três ou quatro milhas colina abaixo até a cidade.
— Victoria's Secret? Posso supor que vamos enganá-la comprando um baby-doll? — especulou Brian.
— Só em sonho — disse Dominic, dobrando à direita na Rio Road. — Estamos adiantados. Quer ver o tênis primeiro?
— Faz sentido. Estacione junto à loja Belk's masculina.
— Entendido, comandante.
— ESTÁ NA HORA? — perguntou Rafi. Já perguntara três vezes nos últimos trinta minutos.
Mustafa consultou o relógio: 11h48. Quase na hora. Acenou com a cabeça.
— Meus amigos, embalem seus pertences.
As armas não estavam carregadas, mas em sacolas de compras.
Reunidas, ficavam protuberantes e óbvias demais. Cada homem tinha 12 pentes carregados, com trinta balas cada um, amarradas com fita em grupos de seis. Cada arma tinha um grande silenciador atarraxado no cano. O propósito deles não era tanto silêncio quanto controle. Mustafa se lembrou do que Juan lhe dissera lá no Novo México. Essas armas tendiam a errar o alvo, subindo à direita. Mas ele já havia revisado as armas com os amigos, e todos já sabiam como atirar, tinham disparado essas coisas quando as receberam, e sabiam o que esperar. Além disso, estavam indo para o que os soldados americanos chamavam de ambiente de alvo fértil.
Zuhayr e Abdullah levaram suas bagagens, trancando-as no porta-malas de seu Ford alugado. Refletindo, Mustafa decidiu pôr as armas ali também, e assim os quatro, cada qual carregando sua sacola de compras, saltaram do carro e colocaram as sacolas de pé no assoalho do porta-malas. Com isso feito, Mustafa entrou no carro, impensadamente trazendo a chave do quarto no seu bolso. A viagem não era longa. O objetivo já estava à vista.
O estacionamento tinha os habituais pontos de entrada. Ele escolheu a entrada noroeste, junto à Belk's masculina, onde podiam estacionar perto. Lá, desligou o motor e disse sua última prece da manhã. Os outros três fizeram exatamente o mesmo, saltaram e foram para a traseira do carro. Mustafa abriu o porta-malas. Estavam a menos de cinquenta metros da entrada. Estritamente falando, havia pouco lugar para ocultação, mas Mustafa lembrou-se da mesa da segurança. Para retardar a chegada da polícia, era preciso começar por lá. Assim, disse aos outros para que mantivessem as armas nas sacolas de compras, e com elas balançando de suas mãos esquerdas, caminharam para a porta.
Era uma sexta-feira, um dia não tão cheio para compras quanto um sábado, mas quase isso para seus propósitos. Eles entraram, passando pela loja LensCrafters, que estava lotada — a maioria ali provavelmente escaparia ilesa, o que era lamentável, mas a área principal do shopping ainda estava diante deles.
BRIAN E DOMINIC estavam na Foot Locker, mas Brian não via nada que gostasse. A Stride Rite, ao lado, era só para crianças, portanto os gêmeos seguiram em frente, dobrando à direita. A American Eagle Outfitters teria sem dúvida alguma coisa, talvez em couro, com canos altos que aliviariam os tornozelos.
DOBRANDO À ESQUERDA, Mustafa passou por uma loja de brinquedos e várias de roupas em seu caminho para o hall central. Seus olhos vasculharam a área rapidamente. Talvez umas cem pessoas na visão imediata, e a julgar pela K*B Toys, as lojas de varejo estariam lotadas. Ele passou pela Sunglass Hut e dobrou à direita para o setor de segurança. Era convenientemente localizado, a apenas poucos passos dos toaletes. Os quatro foram juntos para o toalete masculino.
Poucas pessoas notaram sua presença — quatro homens de aparência exótica idêntica era incomum — mas um shopping center americano é a coisa que mais se aproxima de um zoológico para humanos, e seria preciso muito tempo para que as pessoas notassem qualquer coisa incomum, muito menos perigosa.
No toalete masculino, todos retiraram as armas das sacolas e as reuniram. Ferrolhos foram puxados para trás. Carregadores foram inseridos nas coronhas das pistolas. Cada um deles enfiou os cinco pares de carregadores nos bolsos da calça. Dois atarraxaram os compridos silenciadores nas armas. Mustafa e Rafi não o fizeram, decidindo, após rápida reflexão, que preferiam ouvir o barulho.
— Estão prontos? — perguntou o líder. A resposta veio apenas em meneios de cabeça.
— Então vamos comer cordeiro no paraíso. Posicionem-se. Quando eu der o primeiro tiro, vocês começam tudo.
BRIAN ESTAVA EXPERIMENTANDO BOTAS de couro de cano baixo. Não exatamente iguais às que usava nos marines, mas pareciam confortáveis e se adequavam a seus pés como se feitas sob medida.
— Nada mau.
— Vai levar na embalagem? — perguntou a jovem vendedora. Aldo pensou por um momento e decidiu: — Não, vou amaciá-las agora mesmo. — Ele entregou a ela seus Nikes deploráveis, que ela pôs na embalagem das botas, e o encaminhou até o caixa.
MUSTAFA CONSULTAVA o relógio. Calculou dois minutos para que os amigos se posicionassem.
Rafi, Zuhayr e Abdullah percorriam agora o corredor principal do shopping, segurando as armas baixo, que espantosamente passaram despercebidas dos consumidores que se azafamavam preocupados com seu próprio consumismo. Quando os ponteiros chegaram ao doze, Mustafa inspirou fundo e saiu do toalete masculino para a esquerda.
O guarda de segurança estava em seu balcão, lendo uma revista, quando viu uma sombra no tampo da mesa. Olhou para cima e viu um homem de pele morena.
— Posso ajudá-lo, senhor? — perguntou polidamente. Não teve o menor tempo de reagir depois disso.
— Allahu Ackbar! — foi a resposta gritada. Então a Ingram surgiu.
Mustafa premiu o gatilho por nada mais que um segundo, mas, neste segundo, um total de nove balas penetrou no peito do homem negro. O impacto das nove balas o impeliu meio passo para trás, e ele caiu morto no piso ladrilhado.
— QUE DIABO FOI ISSO? — Brian perguntou de imediato ao irmão, a única pessoa próxima, enquanto todas as cabeças se viravam para a esquerda.
RAFI ESTAVA APENAS SETE METROS à frente deles quando ouviu o disparo. Era hora de começar. Ele caiu semiagachado e ergueu sua Ingram. Girou à direita na direção da loja Victoria's Secret. A freguesia lá tinha que ser toda de mulheres imorais para sequer olhar para essas roupas de puta, e talvez, pensou, algumas o serviriam no paraíso. Ele simplesmente apontou e pressionou o gatilho.
O som foi ensurdecedor, como um zíper colossal de explosões. Três mulheres foram imediatamente atingidas e caíram. Outras apenas ficaram imóveis por um segundo, os olhos arregalados em choque e descrença, sem reação.
De sua parte, Rafi ficou desagradavelmente surpreso pelo fato de que mais da metade das balas não atingir ninguém. A arma, precariamente equilibrada, havia pulado em sua mão, enviando rajadas para o teto. O ferrolho se fechou numa câmara vazia. Ele olhou para baixo surpreso, depois ejetou o primeiro pente e o inverteu, pondo-o de volta no orifício com uma pancada com a palma da mão, e procurou novos alvos. A multidão começara a correr e ele levou a Ingram ao ombro.
— PORRA! — DISSE BRIAN. Que diabo está acontecendo?, sua mente gritava.
— Porra mesmo, Aldo! — Dominic girou a pochete para diante da sua barriga e puxou o cordão que abria o zíper duplo. Um segundo depois, a pistola Smith & Wesson estava em suas mãos. — Me dê cobertura! — ordenou ao irmão. O atirador com a submetralhadora estava a meros seis metros de distância, do outro lado de um quiosque de joalheria, olhando para outro setor, mas isso aqui não era nenhuma Dodge City, não havia regras sobre fitar um pistoleiro olho no olho.
Dominic caiu sobre um joelho e, erguendo a automática com as duas mãos, mirou dois pontos vazios de 10 milímetros no centro das costas do homem, e depois mais um no centro da nuca. Seu alvo caiu direto para baixo e, a julgar pela explosão vermelha do terceiro disparo, não havia muito mais a ser feito. O agente do FBI pulou até o corpo prostrado e chutou a arma para longe. Ele notou imediatamente o que era, e então viu que o morto tinha carregadores extras nos bolsos. O primeiro pensamento foi: Que merda! A seguir, ouviu o matraquear de mais disparos à esquerda.
— Tem mais gente deles, Enzo! — disse Brian bem ao lado do irmão, a Beretta na mão direita. — Esse aí já era. Alguma ideia?
— Siga-me e dê cobertura!
MUSTAFA VIU-SE NUMA JOALHERIA, um piso abaixo. Havia seis mulheres à vista, em frente ou atrás do balcão. Ele baixou a arma até o quadril e disparou, esvaziando seu primeiro pente nelas e sentindo a satisfação momentânea de vê-las cair. Quando a arma parou de disparar, tirou o pente vazio e reverteu-o para recarregar, aprumando o ferrolho enquanto o fazia.
OS GÊMEOS SE LEVANTARAM e começaram a correr para oeste, não tão rápido mas também não devagar, com Dominic na frente e Brian dois passos atrás, seus olhos se dirigindo principalmente para o lugar de onde vinha o barulho. Todo o treinamento de Brian fluiu de volta a sua consciência. Use cobertura e dissimulação sempre que possível. Localize e ataque o inimigo.
Então uma figura surgiu da esquerda para a direita das Joalherias Kay, empunhando uma submetralhadora e dando rajadas à esquerda na direção de outra joalheria. O shopping era uma cacofonia de gritos e tiroteio agora, pessoas correndo às cegas para as saídas em vez de verificar primeiro onde estava o perigo. Boa parte caiu, principalmente mulheres. E algumas crianças.
De alguma forma, tudo isso passou pelos irmãos. Eles mal viram as vítimas. Simplesmente não havia tempo para isso, e o treinamento que haviam recebido assumiu por completo. O primeiro alvo à vista foi aquele postado lá, atirando contra a joalheira.
— Indo para a direita — disse Brian, disparando naquela direção com a cabeça baixa mas olhando o alvo.
BRIAN QUASE MORREU nessa. Zuhayr estava em pé na Claire's Boutique, tendo acabado de esvaziar todo um pente ali. De repente, incerto sobre o que fazer em seguida, ele girou à esquerda e viu um homem com uma pistola na mão. Apontou cuidadosamente sua arma e apertou o gatilho...
... dois disparos inúteis, depois nada. Seu primeiro pente se esgotara e ele levou dois ou três segundos para perceber. Então ejetou e reverteu, socando-o de volta e olhando em torno...
... mas o homem se fora. Para onde? Sem alvos, ele mudou de direção e caminhou com passo cuidadoso para a Belk's feminina.
BRIAN SE AGACHOU junto à Sunglass Hut, perscrutando ao redor do lado direito. Lá, movendo-se para a esquerda. Ele trouxe a Beretta para a mão direita e disparou um tiro...
... mas errou a cabeça por um triz quando o homem se abaixou.
— Porra! — Brian então se levantou e segurou a pistola com as duas mãos, mirando perfeitamente e disparando quatro tiros. Os quatro penetraram no tórax, abaixo dos ombros.
MUSTAFA OUVIU O BARULHO mas não sentiu os impactos. Seu corpo estava cheio de adrenalina e simplesmente não se sente dor. Apenas um segundo depois, ele cuspiu sangue, o que veio quase como uma surpresa. Pior, quando tentou dobrar à esquerda, seu corpo não obedeceu ao comando da mente. Sua perplexidade durou apenas um ou dois segundos quando...
... DOMINIC ESTAVA ENFRENTANDO o segundo, pistola erguida e apontada. Mais uma vez disparou, como treinado, no centro da massa, e o Smith, que estava em ação simples, latiu duas vezes.
Tão boa foi sua mira que a primeira bala atingiu a arma do alvo...
... A INGRAM SALTOU das mãos de Mustafa. Ele mal conseguiu agarrá-la, mas então viu quem o havia atacado e mirou cuidadosamente e disparou — mas nada aconteceu.
Olhando para baixo, viu um buraco na lateral de aço da Ingram, exatamente onde ficava o ferrolho. Levou mais um segundo ou dois para se dar conta de que agora estava desarmado. Mas o inimigo ainda estava diante dele. Então correu na sua direção, esperando usar sua arma inútil como um porrete.
DOMINIC ESTAVA ATÔNITO. Ele viu pelo menos uma bala acertá-lo no peito — e a outra inutilizar a arma do cara. Por alguma razão, não disparou de novo. Em vez disso, acertou o sacana no rosto com a pistola e seguiu em frente, onde havia mais tiroteio.
MUSTAFA SENTIU as pernas fraquejarem. A pancada no rosto doía, mas as cinco balas, não. Tentou se virar de novo, mas a perna esquerda não suportaria nenhum peso; ele rodopiou e caiu de costas no chão, e de repente, a respiração ficou muito difícil. Tentou se sentar, até mesmo rolar, mas as pernas falharam, e o lado esquerdo de seu corpo estava inútil.
— DOIS FORA DE COMBATE — disse Brian. — E agora?
A gritaria diminuíra, mas não muito. O tiroteio continuava, porém, e havia mudado de característica...
ABDULLAH ABENÇOOU O DESTINO por ter colocado o silenciador em sua arma. Seus disparos foram mais certeiros do que havia esperado.
Ele estava na loja de música Sam Goody, repleta de estudantes. Era também uma loja sem saída nos fundos, porque ficava bem próxima à entrada oeste do shopping. O rosto de Abdullah ostentava amplo sorriso quando entrou na loja disparando. Os rostos que viu estavam cheios de descrença — e por um divertido momento ele disse a si mesmo que descrença era o motivo pelo qual estava matando todos eles. Esvaziou rapidamente seu primeiro pente, e de fato o silenciador permitira que acertasse metade dos tiros. Homens e mulheres — rapazes e garotas — gritavam, se imobilizados, olhando fixamente por poucos, preciosos e mortais segundos, e então começaram a fugir. Mas a menos de 10 metros era fácil demais atingi-los nas costas, e eles de fato não tinham para onde fugir. Ele apenas ficou parado ali, varrendo a loja a bala, deixando os alvos se selecionarem. Alguns correram até o outro lado das prateleiras de CDs, tentando escapar pela porta principal. Esses ele baleou enquanto passavam a menos de dois metros de distância. Em segundos, esvaziou o primeiro par de pentes, ejetou-o e puxou outro do bolso da calça. Enfiou-o ruidosamente no orifício e engatilhou. Mas havia um espelho na parede dos fundos da loja, e nele viu...
— MEU DEUS, MAIS UM! — disse Dominic.
— Tudo bem. — Brian saiu em disparada para o outro lado da entrada e posicionou-se contra a parede, erguendo a Beretta. Isso o colocou no mesmo corredor que o terrorista, mas a posição não beneficiava nem um pouco um atirador destro. Brian tinha que escolher entre atirar com a mão fraca — algo que ele não havia praticado tanto quanto deveria — ou expor seu corpo a fogo de resposta. Mas alguma coisa em sua mente de fuzileiro simplesmente dizia foda-se e Brian deu um passo à esquerda, a pistola segura com as duas mãos.
Abdullah o viu e sorriu, levando sua arma ao ombro — ou tentando fazê-lo.
Aldo disparou dois tiros bem mirados no peito do alvo, não viu nenhum efeito, e então esvaziou seu pente. Mais de doze balas entraram no corpo do homem.
ABDULLAH SENTIU todas elas, e seu corpo oscilou com cada impacto. Tentou disparar sua própria arma, mas errou todos os tiros e então seu corpo já não estava mais sob controle. Ele caiu para a frente, tentando recuperar o equilíbrio.
BRIAN EJETOU o pente vazio e tirou o outro da mochila, inseriu-o e baixou a alavanca de desengate. Ele estava agora no piloto automático. O sacana ainda se mexia! Hora de acabar com isso. Caminhou até o corpo de bruços, chutou a arma para o lado e disparou um tiro na nuca do sujeito. O crânio se abriu — sangue e miolos se esparramando pelo chão.
— MEU DEUS, ALDO! — disse Dominic, chegando ao lado do irmão.
— Que se foda! Tem pelo menos mais um aí. Só me resta um pente, Aldo.
— Pra mim também, mano.
Espantosamente, a maioria das pessoas no chão, inclusive as baleadas, ainda estava viva. O sangue no piso podia ter sido chuva numa tempestade de raios e trovões. Mas os irmãos estavam elétricos demais para se sensibilizarem com o que viam. Saíram de volta para a galeria e seguiram na direção oeste.
A carnificina fora terrível deste lado. O piso estava manchado por numerosas poças de sangue. Por todo lado havia gritos e choro. Brian passou por uma garotinha, talvez uns 3 anos de idade, em pé sobre o corpo da mãe, os braços agitados como as asas de um filhote de passarinho. Não havia tempo para qualquer coisa.
Ele gostaria que Pete Randall estivesse por perto. Era um bom fuzileiro. Mas até mesmo o suboficial Randall ficaria esmagado nessa mixórdia.
Mais um matraquear abafado. Era na Belk's feminina, à esquerda deles. Não muito longe, pelo som. O barulho das automáticas é diferente. Nada mais soa exatamente igual. Eles se dividiram, cada qual tomando um lado do curto corredor que passava pelas lojas Coffee Beanery e Bostonian Shoes e levava até a próxima zona de combate.
O primeiro piso da Belk's começava com perfumaria e maquiagem. Como antes, eles correram para o som dos tiros. Havia seis mulheres caídas na perfumaria e mais três na seção de maquiagem. Algumas estavam obviamente mortas. Outras, obviamente vivas.
Algumas pediam socorro, mas não havia tempo para isso. Os gêmeos se separaram de novo. O barulho havia cessado. Tinha vindo da frente e à esquerda deles, mas agora não estava mais lá. Teria o terrorista fugido? Ou ficara sem munição? Havia cápsulas deflagradas espalhadas por todo o piso — de nove milímetros, ambos notaram. Os espelhos afixados aos pilares internos estavam quase todos estilhaçados pelo tiroteio. Para seu olho treinado, parecia que o terrorista tinha caminhado à frente, disparado nas primeiras pessoas que viu — todas mulheres — e depois andado de volta para a esquerda, talvez indo para onde quer que visse alvos mais potenciais.
Provavelmente só um cara, a mente de Brian lhe dizia.
Okay, contra quem estamos lutando?, especulou Dominic. Como ele vai reagir? Como ele pensa?
Para Brian era mais simples: Onde está você, seu filho da puta? Para o fuzileiro, ele era um inimigo armado, nada mais. Não uma pessoa, não um ser humano, nem mesmo um cérebro pensante, apenas um alvo segurando uma arma.
ZUHAYR SENTIU uma súbita diminuição do excitamento. Tinha ficado mais excitado do que em qualquer momento de sua vida. Ele teve bem poucas mulheres, e certamente matara um número maior delas aqui, num só dia, do que havia fodido a vida inteira... mas para ele, aqui e agora, de alguma maneira, dava no mesmo. E tudo o acometeu como algo muito satisfatório. Ele não ouviu o tiroteio antes, nada disso. Mal tinha ouvido seus próprios disparos, de tão concentrado que estava no trabalho. E tinha sido um bom trabalho. O aspecto de seus rostos quando eles o viam com a arma... e o olhar deles quando as balas penetraram... uma visão agradável. Mas estava reduzido aos dois últimos carregadores agora. Um estava na arma, e o outro no bolso.
Estranho, pensou, que pudesse ouvir o relativo silêncio agora. Não havia nenhuma mulher viva na sua área imediata. Bem... nenhuma mulher sem ferimento. Algumas das baleadas estavam fazendo ruído. Algumas até mesmo tentavam rastejar...
Ele não podia deixar, sabia. Começou a caminhar até uma delas, uma mulher de cabelo preto usando calça vermelha de prostituta.
BRIAN ASSOBIOU PARA O IRMÃO e apontou. Lá estava ele, calça caqui e jaqueta mais ou menos da mesma cor, a 50 metros de distância, uma brincadeira de criança para um tiro de fuzil, algo para um marine recruta fazer, mas não tão fácil para sua Beretta, por melhor atirador que fosse.
Dominic assentiu e começou a seguir para lá, mas girando a cabeça em todas as direções.
— UMA PENA, MULHER — disse Zuhayr em inglês. — Mas não tenha medo, vou mandá-la para Alá. Você me servirá no paraíso. — E ele tentou disparar um tiro nas costas dela. Mas a Ingram não permite isso tão facilmente. Em vez disso, disparou três balas de um metro de distância.
BRIAN VIU TODA A CENA, e alguma coisa simplesmente se soltou. O fuzileiro se levantou e mirou com as duas mãos.
— Seu filho da puta! — gritou e disparou tão rapidamente quanto a pontaria permitia, de uma distância de talvez 30 metros. Disparou um total de 14 tiros, quase esvaziando a arma. E alguns deles atingiram o alvo.
Três, de fato, um dos quais bem na barriga e outro no meio do peito.
O PRIMEIRO DOEU. Zuhayr sentiu o impacto como se tivesse levado um chute nos testículos. Isso fez com que seus braços caíssem como que para se proteger de outro ferimento. A arma continuava empunhada, e ele lutou através da dor para firmá-la quando viu o homem se aproximando.
BRIAN NÃO TINHA ESQUECIDO TUDO. De fato, um tanto veio fluindo de volta a sua consciência. Ele tinha que se lembrar das lições de Quantico — e do Afeganistão — se quisesse dormir em sua própria cama esta noite. E assim seguiu um caminho indireto à frente, contornando as mesas retangulares, mantendo os olhos no alvo e confiando em Enzo para olhar em torno. Mas ele também fazia isso. O alvo não tinha comando da arma. Ele olhava direto para o fuzileiro, seu rosto estranhamente receoso... mas sorrindo? Que diabo!
Caminhou reto agora, diretamente para o sacana.
DE SUA PARTE, ZUHAYR PAROU de lutar contra o peso subitamente insuportável da arma e empertigou-se tanto quanto podia, fitando os olhos de seu matador.
— Allahu Ackbar — disse.
— ISSO É ÓTIMO — replicou Brian e disparou bem na testa dele. — Espero que goste disso no inferno. — A seguir, se abaixou e pegou a Ingram, pendurando-a a tiracolo.
— Limpar e deixar a área, Aldo — comandou Dominic. Brian fez exatamente isso.
— Meu Deus, espero que alguém tenha chamado o 911 — observou.
— Okay, siga-me lá para cima — disse Dominic em seguida.
— O que... por quê? E se são mais de quatro? — A resposta-pergunta foi como um soco na boca de Brian.
— Okay, saquei a dica, mano.
Parecia incrível que a escada rolante ainda estivesse funcionando. Eles subiram, ambos agachados e perscrutando tudo em volta. Havia mulheres por toda parte — todas se mantendo o mais longe possível da escada rolante...
— FBI! — gritou Dominic. — Está todo mundo bem aqui?
— Sim — vieram as respostas múltiplas, separadas e ambíguas do segundo piso.
A identidade profissional de Enzo voltou em pleno comando: — Muito bem, temos tudo sob controle. A polícia logo estará aqui. Fiquem onde estão até que ela chegue.
Os gêmeos foram do alto da escada rolante subindo para o alto da que descia. Ficou imediatamente claro que os terroristas não tinham subido. A descida foi pavorosa. Novamente, havia poças de sangue que iam em linha reta da perfumaria até a seção de malas, e agora os sortudos que estavam apenas feridos imploravam ajuda. E, mais uma vez, os gêmeos tinham coisas mais importantes a fazer. Dominic conduziu o irmão para a galeria principal. Virou à esquerda para verificar o primeiro que tinha baleado. Estava para lá de morto. Sua última bala de 10mm havia explodido através de seu olho direito.
Pensando bem, lhe restaria apenas um olho, se ainda estivesse vivo.
ELE ESTAVA, apesar de todos os ferimentos. Mustafa tentava se mexer, mas seus músculos estavam drenados de sangue e oxigênio e não ouviam os comandos que vinham através do sistema nervoso central. Ele se descobriu olhando para cima, um tanto sonhadoramente, pareceu, mesmo para ele.
— Você tem um nome? — um deles perguntou.
Dominic apenas esperava uma resposta. O homem estava claramente morrendo, e nada lentamente. Virou-se para fitar o irmão — não estava ali.
— Ei, Aldo! — chamou, sem resposta imediata.
BRIAN ESTAVA NA LEGENDS, uma loja de artigos esportivos, dando uma rápida olhada. Sua iniciativa foi recompensada e levou-o de volta ao corredor do shopping.
Dominic estava lá, falando com seu suspeito, mas sem conseguir respostas.
— Ei, seu come-quibe — disse Brian, retornando. Depois, ajoelhou-se no sangue ao lado do terrorista moribundo. — Trouxe uma coisa para você.
Mustafa olhou para cima um tanto intrigado. Sabia que a morte estava próxima, e embora não lhe desse exatamente as boas-vindas, estava contente em sua própria consciência de que cumprira seu dever com a Fé, com a Lei de Alá.
Brian agarrou as mãos do terrorista e cruzou-as sobre o peito ensanguentado.
— Quero que leve isso com você para o inferno. É pele de porco, seu escroto, pele de um legítimo porco de Iowa. — E Brian envolveu as mãos dele em torno da bola de futebol enquanto o fitava nos olhos.
Os olhos se arregalaram em reconhecimento — e horror pela transgressão. Ele comandou os braços para tirar a bola, mas as mãos do infiel superavam seus esforços.
— É, é isso aí. Eu sou o próprio Iblis, e você está indo para o meu lugar. — Brian sorriu até os olhos ficarem sem vida.
— O que significa isso?
— Deixa pra lá — respondeu Brian. — Venha.
Eles se dirigiram até onde tudo havia começado. Várias mulheres estavam caídas no chão, a maioria se mexendo um pouco. Todas sangravam, algumas muito...
— Encontre uma farmácia. Preciso de ataduras. E veja se alguém chamou a polícia.
— Certo. — Dominic correu, procurando, enquanto Brian se ajoelhava junto a uma mulher de seus 30 anos, baleada no peito. Como a maioria dos fuzileiros, e todos os oficiais de marinha, ele tinha noções rudimentares de primeiros socorros. Começou examinando as vias aéreas. Okay, ela estava respirando. Sangrava de dois buracos de bala no alto do peito esquerdo. Havia uma pequena espuma rosada em seus lábios. Baleada no pulmão, mas não gravemente.
— Pode me ouvir?
Um aceno e um arquejo: — Sim.
— Okay, você vai ficar bem. Sei que dói, mas você vai melhorar.
— Quem é você?
— Brian Caruso, dona, do Corpo de Fuzileiros. Você vai ficar boa. Agora preciso tentar ajudar outras pessoas.
— Não, não... eu... — ela agarrou-lhe o braço.
— Madame, há outras pessoas mais feridas do que você. Vai ficar boa. — E com isso se afastou.
A vítima seguinte estava muito mal. Um garoto de uns cinco anos, com três orifícios nas costas, sangrando como um balde emborcado. Brian o virou. Os olhos estavam abertos.
— Como se chama, garoto?
— David — veio a resposta, surpreendentemente coerente.
— Muito bem, David, vamos cuidar de você. Onde está sua mãe?
— Não sei. — Ele estava preocupado com a mãe, mais temeroso por ela do que por si mesmo, como qualquer criança estaria.
— Okay, cuidarei dela, mas deixe-me cuidar de você primeiro, certo? — Ergueu a vista para ver Dominic correndo em sua direção.
— Não há nenhuma drogaria! — Dominic quase gritou.
— Arranje alguma coisa! Camisetas, qualquer coisa! — ordenou ao seu irmão policial.
E Dominic correu para a loja onde Brian comprara as botas. Voltou segundos depois com um braço cheio de agasalhos de corrida com diversos logotipos na frente. E foi então que o primeiro tira chegou, a arma de serviço empunhada com as duas mãos.
— Polícia! — gritou o tira.
— Pare aí, porra! — rosnou Brian em resposta. O policial levou talvez dez segundos para entender. — Ponha a pistola no coldre, patrulheiro. Os bandidos estão todos mortos — disse-lhe Brian numa voz um pouco mais comedida. — Precisamos de cada porra de ambulância que existir nesta cidade. E comunique ao hospital que vão ter uma porrada de feridos chegando. Tem um kit de primeiros socorros no seu carro?
— Quem é você? — perguntou o policial, sem guardar a pistola no coldre.
— FBI — respondeu Dominic por trás dele, exibindo suas credenciais na mão esquerda. — O tiroteio acabou, mas temos um monte de gente caída aqui. Chame todo mundo. Chame o escritório local do FBI e todos os outros. Agora consiga um rádio, patrulheiro, imediatamente!
Como a maioria dos tiras americanos, o patrulheiro Steve Barlow tinha um rádio Motorola com microfone preso na dragona da jaqueta. Fez uma frenética chamada pedindo apoio médico.
Brian virou sua atenção para o garotinho em seus braços. Neste momento, David Prentiss representava o mundo inteiro para o capitão Brian Caruso. Mas todo o dano era interno. O garoto tinha mais do que um peito arfante ferido, e o quadro não era nada bom.
— Okay, David, vamos cuidar disso. Está doendo muito?
— Muito — respondeu o garotinho depois de meia respiração. Seu rosto estava ficando pálido.
Brian o colocou sobre o balcão da loja Piercing Pagoda, depois percebeu que poderia haver alguma coisa ali que ajudasse — mas não encontrou nada além de bolas de algodão. Enfiou duas delas em cada buraco nas costas do garoto, depois o virou de novo de costas. Mas o garotinho estava com hemorragia interna. Sangrava tanto por dentro que os pulmões entrariam em colapso, e ele ia dormir e morrer asfixiado a não ser que alguém drenasse seu peito, e não havia nada que Brian pudesse fazer.
— Meu Deus! — Entre todas as pessoas, era Michelle Peters, segurando a mão de uma garota de 10 anos cujo rosto estava tão consternado quanto uma criança podia conseguir.
— Michelle, se sabe alguma coisa de primeiros socorros, escolha alguém e mãos à obra — ordenou Brian.
Mas ela não sabia, realmente. Pegou um punhado de bolas de algodão na loja de piercings e saiu em campo.
— Ei, David, você sabe o que eu sou? — perguntou Brian.
— Não — respondeu o garoto, com alguma curiosidade espreitando por trás da dor que ele sentia no peito.
— Sou um fuzileiro. Você sabe o que é isso?
— Tipo um soldado?
O garoto estava morrendo bem nos seus braços, percebeu Brian. Por favor, meu Deus, não este aqui, não este garotinho.
— Não, nós somos muito melhores que soldados. Um fuzileiro é quase a melhor coisa que um homem pode ser. Talvez algum dia, quando você crescer, possa ser um fuzileiro como eu. O que acha?
— Para atirar nos bandidos? — perguntou David Prentiss.
— Pode apostar, Dave — assegurou-lhe Brian.
— Legal — murmurou David e depois seus olhos se fecharam.
— David? Fique comigo, David. Vamos lá, Dave. Abra de novo esses olhos. Precisamos conversar mais. — Ele colocou gentilmente o corpo no balcão e sentiu a pulsação da carótida. Não havia nenhuma.
— Ah, droga. Ah, droga, cara — sussurrou Brian. Com isso, toda a adrenalina evaporou de sua corrente sanguínea. Seu corpo virou um vácuo e os músculos afrouxaram.
Os primeiros bombeiros chegaram correndo, usando uniformes caqui e carregando caixas do que parecia ser equipamento médico. Um deles assumiu o comando, direcionando seu pessoal em várias direções. Dois se encaminharam para onde Brian estava. O primeiro deles tomou o corpo de seus braços e olhou para ele brevemente, depois colocou-o no chão e então se afastou sem mencionar uma palavra a ninguém, deixando Brian parado ali, com o sangue do garoto morto em sua camisa.
Enzo estava nas imediações, em pé olhando, agora que profissionais — principalmente bombeiros voluntários, na verdade, mas competentes para a tarefa — assumiram o controle da área. Juntos, os gêmeos se dirigiram à saída mais próxima para o ar limpo do meio-dia. Toda a conflagração durara menos que dez minutos. Como num combate real, percebeu Brian. Uma vida inteira — não, muitas vidas inteiras tinham chegado a seu fim prematuro no que era relativamente um lampejo de tempo.
Sua pistola estava de volta na mochila. O pente gasto estava provavelmente nela também. O que ele havia vivenciado era a coisa mais próxima de ver Dorothy sendo sugada por um tornado do Kansas. Só que ele não tinha emergido na Terra de Oz. Estava ainda na Virginia, com um magote de gente morta e ferida atrás dele.
— Quem são vocês, caras? — Era um capitão de polícia. Dominic exibiu sua credencial do FBI, o que bastou por enquanto.
— O que aconteceu?
— Parece que terroristas, quatro deles, chegaram atirando pra tudo que é lado. Eles estão mortos. Nós os pegamos, todos os quatro — contou Dominic.
— Você está ferido? — o capitão perguntou a Brian, apontando para o sangue em sua camisa.
Aldo sacudiu a cabeça.
— Nem um arranhão. Capitão, você tem um monte de civis feridos por aí.
— E o que vocês estavam fazendo aqui? — perguntou o capitão em seguida.
— Comprando sapatos — respondeu Brian, uma ponta de amargura na voz.
— Não brinca... — observou o capitão, olhando para a entrada do shopping e ficando ali imóvel porque temia o que veria lá dentro. — Alguma ideia?
— Estabeleça seu perímetro — sugeriu Dominic. — Verifique cada placa de carro. Levante a identidade dos bandidos mortos. Você conhece a hierarquia, certo? Quem é o agente especial encarregado do FBI?
— Só tem um agente residente aqui. O agente especial mais próximo está lotado em Richmond. Já foi chamado. É um tal de Mills.
— Jimmy Mills. Conheço. Bem, o Bureau deve mandar um monte de agentes para cá. O melhor a fazer é isolar a cena do crime e ficar a postos, cuidar do atendimento aos feridos. Aquilo lá está uma tremenda mixórdia, capitão.
— Acredito. Bem, eu volto.
Dominic esperou que o capitão de polícia entrasse, depois cutucou o irmão e eles seguiram juntos para o Mercedes. O carro da polícia estava na entrada do estacionamento — dois patrulheiros, um dos quais empunhando uma espingarda. Eles conferiram as credenciais do agente do FBI e acenaram para que passassem. Dez minutos depois, estavam de volta à casa de fazenda.
— O que está acontecendo? — perguntou Alexander na cozinha. — O rádio disse...
— Pete, sabe, aquele negócio de eu pedir um tempo para pensar... — disse Brian.
— Sim, mas o que...
— Pode esquecer tudo aquilo, Pete. De uma vez por todas — anunciou Brian.
14
PARAÍSO
AS EQUIPES DE REPORTAGEM afluíram para Charlottesville como abutres numa carcaça caída — ou começaram até as coisas se tornarem mais complexas.
O próximo flash noticioso veio de um lugar chamado Citadel Mall em Colorado Springs, no Colorado, depois outro de Provo, em Utah, e finalmente Des Moines, em Iowa. Isso dava uma história colossal. O ataque ao shopping do Colorado teve seis cadetes mortos da Academia da Força Aérea — muitos outros tinham sido empurrados para fora em segurança pelos colegas — além de 26 civis.
Mas a notícia de Colorado Springs tinha chegado rapidamente a Provo, Utah, e lá o chefe de polícia local, com um bom instinto de tira, havia despachado radiopatrulhas para cada shopping center na cidade. No Provo Towne Center, eles tiveram sucesso.
Cada carro levava a espingarda regulamentar da polícia, e um tiroteio épico desenvolveu-se entre quatro terroristas armados e seis policiais — todos eles bons atiradores. O tiroteio produziu dois policiais feridos gravemente, três civis mortos — um total de onze cidadãos locais tinham se juntado à batalha — e quatro terroristas bem mortos, no que o FBI mais tarde denominaria de ataque desastrado. Em Des Moines podia ter acontecido o mesmo, exceto que a polícia metropolitana local foi lenta em reagir, e a contagem final foi de quatro terroristas mortos, mas 31 cidadãos lhes fazendo companhia.
No Colorado, dois terroristas sobreviventes foram encurralados numa loja com uma equipe da SWAT a apenas 50 metros de distância e uma companhia de atiradores de elite da Guarda Nacional — ativada com alacridade pelo governador do estado — no caminho e ansiosa para viver cada fantasia de soldado: usar fogo e manobra para imolar os invasores e jogar seus restos para isca de puma. Levou mais de uma hora para o desfecho, mas ajudados por granadas de fumaça, os guerreiros de fim de semana usaram poder de fogo suficiente para destruir um exército invasor e acabar com as vidas de dois criminosos — árabes, constatou-se, o que não surpreendeu ninguém — de modo espetacular.
A esta altura, todo o país estava de olho na TV, com repórteres em Nova York e Atlanta contando à América o que sabiam, o que era pouco, e tentando explicar os eventos do dia, o que fizeram com a perfeição de crianças em fase de alfabetização. Eles repetiam interminavelmente os fatos sangrentos que conseguiam reunir e se arvoravam em especialistas que sabiam pouco mas falavam muito. Foi bom para preencher o tempo no ar, pelo menos, se não para informar o público.
HAVIA APARELHOS DE TV NO CAMPUS, também, e a maior parte do trabalho parou para o pessoal assistir.
— Meu Deus — observou Jack Jr. Outros haviam falado ou pensado a mesma coisa, mas foi de algum modo pior para eles, já que tecnicamente eram da comunidade de informação, que não dera aviso estratégico contra este ataque ao país.
— É muito simples — observou Tony Wills. — Se não temos ativos de inteligência humana no campo, então é difícil obter qualquer aviso, a não ser que o inimigo esteja realmente perdido sobre como usar seus telefonemas. Mas a mídia gosta de contar às pessoas como rastreamos os bandidos e eles aprendem. O pessoal da Casa Branca também... eles gostam de mostrar aos repórteres o quanto são espertos e deixam vazar dados sobre sinais de inteligência. Você às vezes imagina se eles são marionetes dos terroristas, pelo modo como passam informação codificada essencial. Na realidade, os babacas do estafe estavam simplesmente se exibindo para os repórteres, claro, o que era quase a única coisa que sabiam fazer.
— E a mídia vai ficar o resto do dia vociferando sobre outra falha da inteligência, certo?
— Pode apostar — respondeu Wills. — As mesmas pessoas que esnobam a comunidade de inteligência se queixarão agora de que ela não faz seu serviço... sem reconhecer seu próprio papel de sabotar a cada chance. O mesmo se dá com o Congresso, claro. Seja como for, vamos voltar ao trabalho. A NSA está procurando um pequeno estímulo por parte da oposição... eles também são humanos, não? Eles gostam de bater um pouco no peito quando levam a cabo uma operação. Vamos ver se nosso amigo Sali é um deles.
— Mas quem foi o grande kahuna que ordenou isso? — perguntou Jack.
— Vamos ver se podemos descobrir. — Mais importante, Wills não acrescentou por enquanto, era determinar onde o sacana estava. Um rosto com uma localização ligada a ele valia bem mais do que um rosto sem paradeiro.
LÁ EM CIMA, HENDLEY tinha seu pessoal sênior reunido diante da TV.
— Ideias?
— Pete ligou de Charlottesville. Podem adivinhar onde nossos dois treinandos estavam? — perguntou Jerry Rounds.
— Está brincando — respondeu Tom Davis.
— Não, não estou. Eles mataram os terroristas numa boa, sem auxílio externo, e estão de volta à casa agora. Bônus: Brian, o fuzileiro, estava indeciso. Pete contou que isso é coisa do passado. Brian mal pode esperar para sair em missões de verdade. Pete também acha que eles estão quase no ponto.
— Quer dizer que precisamos de mais alvos sólidos? — perguntou Hendley.
— Meu pessoal está checando o material da NSA. Você pode ficar certo de que o inimigo vai bater muito papo. A inatividade deles deve estar chegando ao fim bem agora, — Rick disse. — Se estivermos prontos para entrar em ação, pode ser exatamente agora.
Esse era o departamento de Sam Granger. Ele se mantivera calado até aqui, mas agora era hora de falar.
— Bem, caras, temos dois garotos prontos para sair e servir alguns alvos — disse ele, usando uma frase que o Exército inventara vinte anos antes. — Bons garotos, diz Pete, e pelo que houve hoje, vão estar motivados.
— O que a oposição está pensando? — perguntou Hendley. Não era difícil de imaginar, mas ele queria opiniões adicionais.
— Que queriam nos atingir habilmente. O objetivo aqui, evidentemente, é atacar a parte central do país — sugeriu Rounds. — Eles acham que podem disseminar medo em nossos corações ao provar que podem nos atacar em qualquer lugar, não apenas alvos óbvios como Nova York. Foi esse o elemento inteligente desta operação. Provavelmente de quinze a vinte terroristas no total, mais algum pessoal de apoio, talvez. É um número razoavelmente grande, mas não sem precedente... eles mantiveram boa segurança operacional. Seu efetivo estava bem motivado. Eu não diria que estivessem particularmente bem treinados, apenas decidiram lançar um cão feroz no quintal dos fundos para morder alguns garotos, como se diz. Demonstraram sua disposição política para fazer coisas muito cruéis, mas não foi surpresa; também desperdiçaram pessoal dedicado, e isso tampouco é surpresa. O ataque foi rudimentar, apenas alguns bandidos com armas automáticas leves. Demonstraram maldade, mas não profissionalismo de verdade. Em menos de dois dias o FBI terá rastreado todos até seu ponto de origem, provavelmente, e talvez suas rotas de entrada. Eles não aprenderam a voar ou algo parecido, portanto talvez não estivessem há muito tempo no país. Eu gostaria de saber quem os escoltou até seus objetivos. O elemento de cronometragem sugere algum planejamento prévio, mas não muito, eu apostaria... não é difícil ver a hora num relógio de pulso. Eles não planejaram escapar após o tiroteio. Provavelmente chegaram com os objetivos já identificados. A esta altura, eu apostaria alguns dólares que só estiveram dentro de nossas fronteiras por uma semana ou duas... até menos, dependendo do método de entrada. O Bureau terá isso revelado muito em breve.
— Pete relata que as armas eram submetralhadoras Ingram. Parecem bonitas... é por isso que aparecem na TV e nos filmes — disse Granger. — Mas não são armas realmente eficientes.
— Como as obtiveram? — perguntou Tom Davis.
— Boa pergunta. Imagino que o FBI tenha aquelas da Virginia para rastreá-las pelo número de série. Eles são bons nisso. Esta noite já devemos ter a informação. Isso lhes dará pistas sobre como as armas foram parar nas mãos dos terroristas, e então a investigação seguirá em frente.
— O QUE O BUREAU vai fazer, Enzo? — perguntou Brian.
— É um caso importante. Terá uma chave de código designada, e cada agente no país será convocado a trabalhar nele. Nesse exato momento, a primeira coisa que estão procurando é o carro que eles usaram. Talvez seja roubado. Mais provavelmente foi alugado. É preciso assinar, deixar cópia da carteira de motorista, do cartão de crédito, todas as coisas normais que se tem que fazer para existir neste país. Isso tudo pode ser seguido. Tudo leva a algum lugar, mano. É por isso que eles todos acabam apanhados.
— Como estão, rapazes? — perguntou Pete, entrando no quarto.
— Um drinque ajuda — respondeu Brian. Ele já havia limpado sua Beretta, como Dominic fizera com o Smith & Wesson. — Não foi nada divertido, Pete.
— Não se esperava que fosse. Okay, acabei de falar com a sede. Querem ver vocês num dia ou dois. Brian, você teve problemas de consciência antes, e disse que isso mudou. Continua sendo verdade?
— Você nos treinou para identificar, chegar perto e matar pessoas, Pete. E posso conviver com isso... portanto não estivemos fazendo algo completamente fora do planejado.
Dominic apenas assentiu em concordância, mas seus olhos não deixaram Alexander.
— Okay, ótimo. Há uma velha piada no Texas sobre por que os advogados são tão bons por lá. A resposta é: há mais homens que é preciso matar do que cavalos que é preciso roubar. Bem, quanto àqueles que é preciso matar, talvez vocês dois possam ajudar.
— Você vai afinal nos dizer para quem exatamente estamos trabalhando? — indagou Brian.
— Você descobrirá no devido curso... apenas um dia ou dois.
— Okay, posso esperar esse tempo todo — disse Brian. Ele estava fazendo uma rápida análise por conta própria. O general Terry Broughton podia saber alguma coisa. Pois era claro como água que aquele tal Werner no FBI sabia, mas esta antiga plantação de fumo onde estiveram treinando não pertencia a nenhum órgão do governo, que ele soubesse. A CIA tinha A Fazenda perto de Yorktown, na Virginia, mas ficava a 250 quilômetros. Este lugar não lembrava a Agência, ao menos pelo que sabia deles. De fato, este lugar não cheirava a governo afinal, não para seu nariz. De um modo ou de outro, em dois dias saberia alguma coisa substancial, e podia esperar aquele tempo todo.
— O que sabemos dos caras que apagamos hoje?
— Não muito. Isso terá que esperar. Dominic, quanto tempo antes que o FBI comece a descobrir coisas?
— Amanhã por volta do meio-dia eles terão muita informação, mas não temos um canal no Bureau, a não ser que você queira que eu...
— Não, não quero. Podíamos ter que deixá-los saber que você e Brian não são a nova versão de Zorro e Tonto, mas isso não pode ir longe.
— Você quer dizer que tenho que falar com Gus Werner?
— Provavelmente. Ele tem muito cacife no Bureau para dizer que você está em missão especial e fazer colar. Imagino que estará se parabenizando por descobrir talentos para nós. Aliás, vocês dois se saíram muito bem.
— Tudo o que fizemos — disse o fuzileiro — foi o que fomos treinados para fazer. Apenas tivemos tempo suficiente para juntar nossa merda, e depois foi tudo automático. Me ensinaram na Academia Militar que a diferença entre fazer e não fazer é geralmente o pensamento de uns poucos segundos. Se estivéssemos na Sam Goody quando tudo começou, em vez de poucos minutos depois, o resultado final podia ter sido diferente. Mais uma coisa... dois homens são quase quatro vezes mais eficazes que um único homem. Existe até um estudo sobre isso. Fatores Táticos Não-Lineares em Combates de Pequenas Unidades, acho que o título é este. Faz parte do currículo na Escola de Reconhecimento.
— Os fuzileiros sabem realmente ler, hein? — perguntou Dominic, alcançando uma garrafa de bourbon. Serviu duas doses, passando uma ao irmão e sorvendo um gole da sua.
— O cara na loja Sam Goody... ele sorriu para mim — disse Brian em assombro reflexivo. — Nem pensei nisso na hora. Acho que ele não estava com medo de morrer.
— Isto é chamado martírio, e alguns povos realmente pensam desse jeito — disse Pete aos dois. — E o que você fez?
— Atirei nele de perto talvez seis ou sete vezes...
— Quase dez vezes, mano — corrigiu-o Dominic. — Contando com o último na nuca.
— Ele ainda estava se mexendo — explicou Brian. — E eu não tinha algemas para pôr nele. E, vocês sabem, não estou realmente tão preocupado com isso. — Além do mais, ele teria sangrado até a morte, de qualquer modo. Do jeito como as coisas foram, a viagem dele para a próxima dimensão tinha simplesmente acontecido mais cedo.
— E... BINGO! TEMOS UM BINGO — anunciou Jack de seu posto de trabalho. — Sali é um ator, Tony. Veja aqui — disse ele, apontando para a tela do computador.
Will teclou o botão da NSA, e lá estava.
— Você sabe, espera-se que as galinhas cacarejem depois que põem um ovo, só para deixar o mundo saber como elas são boas. Funciona também com estes pássaros. Okay, Jack, é oficial. Uda bin Sali é ator. A quem isso é endereçado?
— A um cara com quem bate papo na rede. Fala com ele principalmente sobre movimentação de dinheiro.
— Finalmente! — observou Wills, checando o documento em seu próprio computador. — Eles querem fotos do cara, uma coleção completa. Talvez Langley esteja finalmente pondo alguma cobertura nele. Louvado seja Deus! — Fez uma pausa. — Conseguiu uma lista das pessoas com quem ele troca e-mails?
— Sim. Você quer? — Jack teclou em IMPRIMIR. Em apenas 15 segundos passou a folha ao colega. — Números e datas dos e-mails. Posso imprimir todos os interessantes, e as razões por que acho interessantes, se quiser.
— Vamos deixar isso de lado por enquanto. Mandarei lá para cima para Rick Bell.
— Vou segurar as pontas.
VIU AS NOTÍCIAS NA TV?, Sali escrevera a um correspondente quase regular. ISTO DEVE CAUSAR DOR DE ESTÔMAGO NOS AMERICANOS!
— É claro que deve — disse Jack para a tela. — Mas você acabou de jogar fora seu trunfo, Uda. Ops.
MAIS DEZESSEIS MÁRTIRES, pensou Mohammed, assistindo à TV no Hotel Bristol, em Viena. Só era doloroso no abstrato. Essas pessoas eram, na verdade, ativos sacrificáveis. Eram menos importantes do que ele, e esta era a pura verdade, por seu valor para a organização. Ele tinha as habilidades linguísticas e a aparência para viajar para qualquer lugar, e a capacidade mental para planejar bem suas missões.
O Bristol era um hotel especialmente fino, defronte ao mais ornamentado Imperial do outro lado da rua, o bar tinha um bom conhaque — e ele gostava disso. A missão não fora de todo bem-sucedida... ele havia esperado centenas de americanos mortos, em vez de várias dezenas, mas com toda a polícia armada e alguns cidadãos armados, a mais alta de suas expectativas havia sido demasiadamente otimista. Mas o objetivo estratégico fora alcançado. Todos os americanos sabiam agora que não estavam a salvo.
Não importa onde morassem, podiam ser golpeados por seus Guerreiros Santos, que estavam dispostos a trocar suas vidas pelo senso de segurança dos americanos. Mustafa, Saeed, Sabawi e Mehdi estavam agora no Paraíso — se este lugar de fato existia. Ele às vezes achava que era uma lenda contada para impressionar crianças, ou para os pobres de espírito que realmente ouviam a pregação dos imãs. A pessoa tinha de escolher cuidadosamente seus pregadores, uma vez que nem todos os imãs viam o Islã da mesma forma que Maomé. Mas eles não queriam reger todo o Islã. Ele o fazia — ou talvez apenas uma parte, apenas até onde incluísse os Lugares Santos.
Ele não podia comentar esses assuntos em voz alta. Alguns membros mais antigos da organização realmente acreditavam, eles tendiam mais para o lado conservador — reacionário — da Fé do que aqueles como os Wahabis da Arábia Saudita. Aos seus olhos estes últimos eram apenas os corruptos ricos daquele país horrendamente corrupto, gente que proferia as palavras enquanto se entregava a seus vícios em casa e no exterior, gastando o dinheiro do país. E o dinheiro era gasto generosamente. Afinal, não se podia levá-lo para a vida após a morte. No paraíso, se realmente existisse, não havia necessidade de dinheiro. E se não existisse, também não haveria nenhuma utilidade para o dinheiro. O que ele queria, o que esperava — não, o que ele teria no seu tempo de vida — era poder, a capacidade de dirigir pessoas, submeter os outros a sua vontade. Para ele, religião era a matriz que moldava o mundo que estaria controlando. Até mesmo rezava vez por outra, para que não esquecesse aquele molde — principalmente quando se encontrava com seus superiores. Mas como chefe de operações era ele, e não eles, quem determinava o rumo da organização através dos obstáculos colocados em seu caminho pelos idolatras do Ocidente. E, ao escolher o caminho, ele também escolhia a natureza de sua estratégia, que vinha das crenças religiosas deles, que eram facilmente guiadas pelo mundo político no qual operavam. O inimigo é que moldava a estratégia adotada, afinal, uma vez que a sua estratégia era aquela que tinha de ser impedida.
Portanto, agora, os americanos iam conhecer o medo como nunca haviam conhecido antes. O que estava em risco não era sua capital política nem sua capital financeira. Era a vida de todos eles. A missão tinha sido designada desde o início principalmente para matar mulheres e crianças, as partes mais preciosas e vulneráveis de qualquer sociedade.
E, com isto feito, ele abriu a tampa de outra pequena garrafa de conhaque.
Mais tarde, ligou seu laptop e obteve relatórios de seus subalternos em campo. Ele teve que dizer a um de seus banqueiros que transferisse um pouco de dinheiro para sua conta em Liechtenstein. Isso não deixaria aquela conta zerar. Então as contas Visa seriam eliminadas e desapareceriam para sempre no mundo-éter. Do contrário, a polícia viria atrás dele, com um nome e talvez fotos. Isso não ia acontecer. Ficaria em Viena mais alguns dias, depois voltaria para casa a fim de encontrar seus superiores e planejar futuras operações. Com um tal sucesso a seu crédito, eles o ouviriam mais atentamente agora. Sua aliança com os colombianos valera a pena, apesar dos receios deles, e ele estava cavalgando a crista da onda. Mais algumas noites de celebração e ele estaria pronto a voltar para a vida noturna menos vibrante de seu lar, que consistia principalmente em café ou chá — e conversa interminável. Nada de ação. Somente através da ação ele podia alcançar as metas estabelecidas para si... por seus superiores... e ele mesmo.
— MEU DEUS, PABLO — disse Ernesto, desligando seu aparelho de TV.
— Ora, vamos, isso não é nenhuma surpresa. Você esperava que eles fossem montar uma banca de camelô para vender biscoitos?
— Não, mas isto?!
— É por isso que são chamados de terroristas, Ernesto. Eles matam sem aviso e atacam pessoas incapazes de se defender.
Houve muita cobertura da TV a partir de Colorado Springs, onde a presença de caminhões da Guarda Nacional compusera um dramático pano de fundo. Lá, os civis uniformizados haviam arrastado os corpos de dois terroristas para fora — ostensivamente para limpar a área onde granadas de fumaça tinham iniciado alguns incêndios, mas na realidade para exibir os corpos, é claro. As forças armadas locais na Colômbia gostavam de coisas similares. Soldados se exibindo. Bem, os próprios sicários do Cartel com frequência faziam o mesmo, não é? Mas isto não era algo que ele destacaria neste cenário. Era importante para Ernesto que sua identidade fosse a de um empresário, não de traficante ou terrorista. No seu espelho ele via um homem que fornecia um produto e um serviço valiosos para o público, pelos quais ele era pago, e para proteger o negócio tinha que lidar com seus concorrentes.
— Mas como vão reagir os americanos? — perguntou Ernesto.
— Vão vociferar e investigar como qualquer crime de rua e algumas coisas vão descobrir, mas a maioria não... e ganhamos uma nova rede de distribuição na Europa, que — relembrou ele ao chefe — é o nosso objetivo.
— Eu não esperava um crime tão espetacular, Pablo.
— Mas nós discutimos tudo isso — retrucou Pablo na mais calma das vozes. — A esperança deles era fazer alguma demonstração espetacular — ele não disse crime, claro — para incutir medo no coração dos americanos. Esse lixo é importante para eles, como todos nós sabíamos de antemão. O importante para nós é que isso direcionará as incômodas atividades deles para longe de nossos interesses.
Às vezes ele tinha de ter paciência para explicar as coisas ao chefe. O que importava era o dinheiro. Com dinheiro podia-se comprar poder. Com dinheiro podiam comprar pessoas e proteção, e não apenas proteger sua própria vida e a de sua família, mas também controlar seu país. Cedo ou tarde, eles arranjariam a eleição de alguém que diria as palavras que os americanos queriam ouvir, mas que pouco fariam, exceto talvez negociar com o grupo de Cáli, que lhes era bem conveniente. A única preocupação real deles era comprar a proteção de um vira-casaca. Alguém que lhes tomaria o dinheiro e depois os descartaria como cachorro desleal. Os políticos eram todos feitos da mesma plumagem, afinal. Mas ele tinha informantes entre essas pessoas, com segurança própria. Eles cuidariam do falso amigo. Em tudo e por tudo, era um jogo complexo, mas jogável. E ele sabia como manobrar as pessoas e o governo — mesmo o americano, se fosse o caso. Suas mãos alcançavam longe, mesmo as mentes e almas daqueles que não faziam nenhuma ideia de quem era a mão que estava puxando seus cordões. Isto era especialmente verdade quanto aos que falavam contra legalizar seu produto. Se isso viesse a acontecer, sua margem de lucro ia evaporar e, junto com ela, seu poder. Ele não queria isso. Não. Para ele e sua organização, o status quo era um modo de vida perfeitamente ótimo tendo o mundo como um todo. Não era perfeito — mas perfeição era algo que não se podia esperar no mundo real.
O FBI TRABALHOU RÁPIDO. Localizar o Ford com placa do Novo México não foi difícil, embora cada número de placa no estacionamento tivesse sido peneirado e rastreado até o proprietário, e em muitos casos o proprietário havia sido entrevistado por um agente juramentado e armado. No Novo México descobriu que a locadora de carros National tinha câmeras de segurança. A fita para o dia em questão estava disponível e, nitidamente, mostrava outro carro alugado que era de interesse direto do escritório de campo em Des Moines, Iowa. Menos de uma hora depois, o FBI tinha os mesmos agentes de volta para checar o escritório da Hertz a apenas 800 metros de distância, e que também tinha câmeras internas. Entre registros impressos e as fitas de TV, eles tinham nomes falsos (Tomas Salazar, Hector Santos, Antônio Quinones e Carlos Oliva) com os quais jogar, imagens das carteiras de habilitação igualmente falsas e nomes de cobertura para quatro indivíduos. A documentação também era importante. As carteiras de habilitação internacionais tinham sido tiradas na Cidade do México e mensagens por telex foram expedidas para a polícia federal mexicana, onde a cooperação foi imediata e eficiente.
Em Richmond, Des Moines, Salt Lake City e Denver, números de cartão Visa foram checados. O chefe de segurança da Visa era um ex-agente sênior do FBI, e seus computadores não só identificaram o banco de origem para as contas de crédito, como também rastrearam quatro cartões num total de 16 postos de gasolina, mostrando os caminhos tomados e a velocidade de avanço dos quatro veículos terroristas. Os números de série das submetralhadoras Ingram foram processados pela agência irmã do FBI, a ATF, Bureau de Álcool, Tabaco, Armas de Fogo e Explosivos, do Departamento do Tesouro. Lá foi apurado que todas as 16 armas tinham sido parte de um embarque desviado 11 anos antes no Texas. Algumas dessas armas apareceram em tiroteios relacionadas ao narcotráfico por todo o país, e esta peça de informação abriu toda uma nova linha de investigação para o FBI. Nas quatro principais cenas de crime foram tiradas impressões digitais dos terroristas mortos, além de sangue para identificação do DNA.
Os carros, claro, foram removidos para agências do FBI e inteiramente polvilhados em busca de impressões digitais. Também tiraram amostras para prova de DNA para ver se outras pessoas estiveram neles. Gerência e funcionários de cada hotel foram entrevistados, bem como atendentes de várias lanchonetes e empregados de bares e outros restaurantes. Os registros telefônicos dos motéis foram obtidos a fim de checar para quem chamadas telefônicas foram feitas — se é que foram. Estas revelaram ter sido feitas principalmente para provedores de internet. Assim, os laptops dos terroristas foram apreendidos, polvilhados em busca de digitais e depois analisadas por peritos técnicos internos do Bureau. Um total de setecentos agentes foi designado especialmente para o caso, sob o codinome ISLAMTERR.
As vítimas estavam principalmente em hospitais locais, e as que podiam falar foram entrevistadas naquela tarde para apurar o que sabiam ou podiam recordar. As balas foram extraídas de seus corpos como prova e seriam comparadas com as armas apreendidas e levadas para o norte da Virginia, sede do laboratório novo em folha do FBI, para teste e análise. Toda esta informação foi para o Department of Homeland Security, que, é claro, antecipou-se em tudo à CIA, à NSA e ao restante da comunidade de inteligência americana, cujos chefes já estavam azucrinando seus agentes de campo por qualquer informação relevante. Os espiões também questionavam serviços de inteligência estrangeiros considerados amistosos — um exagero na maioria dos casos, claro — para informações relacionadas ao caso. O total de informação assim compilada chegava ao Campus pelo link CIA-NSA.
Todos os dados interceptados achavam seu caminho para o enorme setor de computação central no porão do Campus, onde eram classificados por tipo e organizados para análise de quem chegasse pela manhã.
LÁ EM CIMA, TODOS TINHAM IDO PARA CASA à noite, exceto a equipe de segurança e o pessoal da limpeza. Os computadores da equipe de analistas eram protegidos de várias maneiras para que não fossem usados sem autorização. A segurança aqui era rígida e monitorada por câmeras de TV em circuito fechado cujas tomadas estavam sempre sob escrutínio eletrônico e humano.
EM SEU APARTAMENTO, Jack pensou em ligar para o pai, mas decidiu não fazê-lo. Ele estava provavelmente sendo bombardeado por repórteres, apesar de sua bem conhecida prática de nada dizer sobre coisa alguma em respeito ao presidente, Edward Kealty. Havia uma linha segura e muito privativa que somente as crianças conheciam, mas Jack decidiria cedê-la a Sally, que era um pouco mais excitável do que ele. Jack se comunicou com ele por um e-mail que essencialmente dizia: Que diabo, eu gostaria que você ainda estivesse na Casa Branca. Mas ele sabia que o pai estava mais propenso a agradecer a Deus por não estar, talvez até esperando que Kealty desse ouvidos a seus consultores por uma mudança — ele tinha muito bons consultores — e pensasse antes de agir. Seu pai provavelmente havia ligado para alguns amigos no exterior para descobrir o que eles sabiam e pensavam, e talvez passassem algumas opiniões de alto nível, uma vez que governos estrangeiros costumavam ouvir o que ele tinha a dizer, quietamente, em salas privativas.
Big Jack ainda era alguma coisa no sistema. Ele podia ligar para os amigos restantes da sua presidência para descobrir o que estava realmente acontecendo. Mas Jack não achava que nenhum deles estivesse por dentro.
HENDLEY TINHA UM TELEFONE SEGURO no escritório e um em casa, chamado STU-5, um produto novo em folha da AT&T e NSA. Chegou a ele por meios irregulares.
Ele estava ao telefone neste momento.
— Sim, está certo. Teremos alguma coisa amanhã de manhã. Não faz muito sentido sentar no escritório e ficar olhando uma tela em branco — disse racionalmente o ex-senador, bebericando seu bourbon com soda. Depois ouviu a pergunta seguinte. — Provavelmente — pelo jeito, um tanto óbvia. — Nada consistente ainda... quanto ao que você esteve esperando a esta altura, sim.
Outra extensa pergunta.
— Temos dois rapazes nesse exato momento, inteiramente prontos... Sim, pegamos... quatro deles. Estamos dando uma olhada atenta neles nesse momento... amanhã, é isso. Jerry Rounds está matutando sobre o assunto com Tom Davis... está certo, você não o conhece, não é? Um cara negro, do outro lado do rio. Ele é muito esperto, tem bom faro para assuntos financeiros e também para o lado operacional. É de surpreender que você nunca tenha topado com ele. Sam? Ele é quente para ficar na cola... acredite. O macete é escolher os alvos certos... Eu sei, você não pode fazer parte disso. Perdoe por chamá-los de alvo.
Um extenso monólogo, depois uma pergunta-chavão.
— Sim, eu sei. É por isso que estou aqui. Em breve, Jack. Em breve... Obrigado, meu chapa. Você também. A gente se vê um dia desses. — E desligou, sabendo que na verdade não veria o amigo por um bom tempo... talvez nunca mais pessoalmente. E isso era uma pena. Lamentavelmente, não havia muitas pessoas que entendessem desses assuntos. Havia mais uma ligação a fazer, e esta no telefone comum.
O IDENTIFICADOR DE CHAMADAS DISSE a Granger quem ligava.
— Sim, Gerry?
— Sam, aqueles dois recrutas. Tem certeza de que eles estão prontos para jogar no primeiro time?
— Tão prontos quanto precisam estar — garantiu o chefe de operações ao patrão.
— Convide-os para almoçar aqui. Só você, eu, eles e Jerry Rounds.
— Ligo para Pete logo de manhã. — Não havia sentido em fazer isso exatamente agora. Afinal, eram apenas duas horas de estrada.
— Ótimo. Você tem algum receio?
— Gerry, o teste de habilidade, sabe? Temos que ver isso mais cedo ou mais tarde.
— Sim, tem razão. Vejo você amanhã.
— Boa noite, Gerry. — Granger desligou o telefone e voltou a seu livro.
O NOTICIÁRIO DA MANHÃ estava particularmente sensacionalista em todo o país — em todo o mundo, aliás.
Os satélites da CNN, da FOX, da MSNBC e de cada outra rede que tivesse câmeras e um caminhão conectado forneceram ao mundo uma história de primeira que não podia ser abafada por nada que não fosse uma explosão nuclear. Os jornais europeus expressaram simpatia ritual pelos Estados Unidos por seu mais recente sofrimento — em breve a ser esquecida e retirada, se não pública pelo menos particularmente. A mídia americana falava sobre como os cidadãos do país estavam assustados. Não com números de pesquisas, claro, mas porque os cidadãos estavam de repente comprando armas de fogo para sua proteção, cujo propósito poderia não acabar bem. A polícia sabia, sem que ninguém precisasse lhe dizer, como ficar de olho em qualquer um que pudesse ter vindo de um país a leste de Israel, e se alguns advogados babacas chamavam isso de preconceito étnico, eles então que fossem para o inferno. Os crimes da véspera não tinham sido cometidos por turistas da Noruega.
O comparecimento às igrejas aumentou ligeiramente.
Por todo o país, as pessoas iam trabalhar e cumpriam suas tarefas, com a pergunta O que você acha de tudo isso? direcionada aos colegas, que invariavelmente sacudiam as cabeças e voltavam ao serviço de produzir aço, automóveis, ou entregar a correspondência. Eles de fato não estavam tão terrivelmente temerosos, porque mesmo com quatro incidentes daquele tipo, eles haviam ocorrido bem longe de onde viviam e tais eventos aconteciam muito raramente, e não o suficiente para ser uma ameaça pessoal séria. Mas todos os trabalhadores do país sabiam no fundo do coração que alguém, em algum lugar, realmente precisava levar um chute no rabo.
A 20 quilômetros de distância, Gerry Hendley lia seus jornais — o New York Times era entregue por mensageiro especial, ao passo que o Washington Post tinha chegado numa picape normal. Nos dois jornais, os editoriais poderiam ter sido escritos pelo mesmo clone, instando calma e circunspecção, assinalando que o país tinha um presidente para reagir a estes pavorosos eventos, e instruindo calmamente o presidente a pensar antes de agir. As colunas de opinião eram de algum modo mais interessantes. Alguns colunistas realmente refletiam o cidadão comum. Haveria um brado nacional por vingança neste dia, e para Hendley a boa notícia era que ele simplesmente podia ser capaz de reagir a isso. A má notícia era que ninguém jamais saberia se ele fizesse a coisa direito.
Em tudo e por tudo, o sábado não seria um dia lento de novidades.
E o estacionamento do Campus estaria cheio, o que escaparia à atenção dos que passassem pelo local. A história de cobertura, se alguma fosse necessária, era de que os quatro massacres do dia anterior haviam causado alguma instabilidade nos mercados financeiros — o que se provaria verdade mais tarde naquele dia.
Jack Jr. presumiu corretamente que seria um dia de traje casual, e chegou no seu Hummer 2 em jeans surrados, camisa esporte e tênis. O pessoal da segurança estava informado, claro, com os rostos tão pétreos como sempre.
Tony Wills acabava de ligar seu computador quando Jack chegou, às 8h14.
— Ei, Tony — disse o jovem Ryan em saudação. — Como está o tráfego?
— Veja por si mesmo. Eles não estão dormindo — disse Wills ao seu trainee.
— Entendido. — Ele pousou o café na mesa e deslizou em sua confortável cadeira de rodinhas antes de ligar o computador e checar os sistemas de segurança que protegiam o que estava na memória. A carga matinal da NSA — aquela turma nunca dormia. E ficou imediatamente claro que o pessoal que ele rastreava prestava atenção às notícias.
Era de se esperar que as pessoas nas quais a NSA tinha tanto interesse não fossem amigas dos Estados Unidos, mas, mesmo assim, Jack Jr. ficou surpreso — até chocado — pelo conteúdo de alguns e-mails que lia. Ele se lembrou de seus próprios sentimentos quando o exército dos Estados Unidos invadiu a Arábia Saudita atrás das forças da agora extinta República Islâmica Unida, e o ímpeto de satisfação quando viu um tanque explodir no fogo direto. Ele não havia pensado nem por um momento nos três homens que haviam acabado de morrer em seu túmulo de aço, racionalizando que eles haviam empunhado armas contra seu país, e isso era algo que tinha um preço, uma aposta de pouco valor, e se a moeda desse coroa, bem, aí estava por que chamavam isso de jogo. Em parte tinha sido sua juventude, uma vez que para uma criança tudo parece direcionado a si mesma como centro do universo, uma ilusão que leva tempo para descartar. Mas a maioria das pessoas mortas na véspera era de civis inocentes, gente não combatente, principalmente mulheres e crianças, e extrair prazer de suas mortes não passava de puro barbarismo. Mas ali estava. Pela segunda vez, os Estados Unidos derramavam sangue para salvar a terra natal do Islã, e alguns sauditas falavam assim?
— Droga — sussurrou ele. O príncipe Ali não era assim. Ele e o pai de Jack eram amigos. Eram cupinchas. Visitavam a casa um do outro. Ele próprio havia falado com o príncipe, sentido seu modo de pensar, ouvira atentamente o que ele tinha a dizer. Okay, certo, ele não era mais que um pirralho na época, mas Ali não era esse tipo de sujeito. Nem seu pai tinha sido Ted Bundy e Bundy era cidadão americano, provavelmente tinha até votado. Assim, viver num país não fazia de você um embaixador itinerante.
— Nem todo mundo nos ama, garoto — disse Wills, olhando para o rosto dele.
— O que nós já fizemos para magoá-los? — perguntou Junior.
— Somos o garoto maior e mais rico do quarteirão. O que dizemos vale, mesmo quando não dizemos às pessoas o que fazer. Nossa cultura é dominante, quer seja a Coca-Cola ou a Playboy. Esse tipo de coisa pode ofender crenças religiosas dos povos, e em algumas partes do mundo as crenças religiosas definem seu modo de pensar. Eles não reconhecem nosso princípio de liberdade religiosa, e se permitimos alguma coisa que ofenda suas crenças profundamente arraigadas, então, na mente deles, é nossa culpa.
— Está defendendo esses caras? — perguntou Jack Jr.
— Não, estou explicando como eles pensam. Compreender uma coisa não significa aprová-la. — Mr. Spock, de Jornada nas Estrelas, tinha dito isso uma vez, mas evidentemente Jack perdera esse episódio. — Sua tarefa, não esqueça, é entender como eles pensam.
— Ótimo. Eles só pensam merda. Entendo isso. Agora tenho números a verificar. — Jack pôs de lado as transcrições de e-mail e começou a procurar movimentações financeiras. — Ei, Uda está trabalhando hoje. Hum, ele costuma fazer isso de casa, não é?
— Isso mesmo. É o lado bom dos computadores — disse Wills. — Mas ele não tem em casa os recursos do escritório. Movimentações interessantes?
— Apenas duas, no banco de Liechtestein. Deixe-me rastrear esta conta... — Ryan fez algum trabalho com o mouse e se deparou com uma identidade na conta. Não era uma conta especialmente grande. De fato, pelos padrões de Sali, era francamente mixuruca. Apenas meio milhão de euros, usada principalmente para despesas com cartões de crédito, as suas próprias e... outras... — Ei, esta conta banca um monte de cartões Visa — disse ele a Wills.
— É mesmo?
— É, uma dúzia, por aí. Não, são... 16, tirando os de seu próprio uso...
— Fale-me dessa conta — pediu Wills. Dezesseis pareceu de repente um número muito importante.
— É uma conta numerada. A NSA conseguiu por causa de uma falha no programa do banco. Não é grande o bastante para ser muito importante, mas é secreta.
— Pode puxar os números dos Visa?
— Os números das contas? Claro. — Jack selecionou os números das contas, transformou-os num novo documento e imprimiu. Depois entregou-os.
— Não, olhe para isto — disse Wills, passando-lhe uma folha sua. Jack a pegou, e imediatamente os números da conta lhe pareceram familiares.
— O que é essa lista?
— Todos aqueles sacanas em Richmond tinham cartões Visa, que usavam para pagar gasolina através do país... aliás, parece que a viagem deles se originou no Novo México. Jack, você ligou Uda bin Sali ao atentado de ontem. Parece que ele é o cara que bancou as despesas dessas contas.
Jack olhou de novo para as folhas, comparando uma lista de números com a outra.
Então, ergueu a vista.
— Porra — ofegou.
E Wills pensou no milagre dos computadores e os meios modernos de comunicação. Os terroristas de Charlottesville usaram os cartões Visa para comprar gasolina e comida, tudo bem, e o amiguinho deles, Sali, tinha simplesmente injetado mais um pouco de dinheiro na conta bancária para cobrir as despesas. Ele provavelmente agira na segunda-feira para encerrar as contas, para tirá-las da face da terra. Mas o fez tarde demais.
— Jack, quem disse a Sali para pôr dinheiro na conta?
Conseguimos um alvo, Wills pensou mas não disse. Talvez mais de um.
15
CASACAS VERMELHAS E CHAPÉUS PRETOS
ELES DEIXARAM JACK FAZER O TRABALHO no computador, cruzando e-mails de e para Uda bin Sali naquele dia. Era realmente um trabalho para lá de chato, já que Jack tinha as habilidades mas não a alma de contador. Mas ele logo descobriu que o aviso para abastecer a conta vinha de alguém chamado 56MoHa@eurocom.net, que se conectara à rede por uma linha 800 da Áustria.
Eles não podiam rastreá-lo mais perto do que isso, mas agora tinham um novo nome na internet para rastrear. Era a identidade cibernética de alguém que dava ordens a um suspeito — notório — banqueiro de terroristas, e isso tornava de fato muito interessante o 56MoHa@eurocom.net. Cabia a Wills ficar de olho na NSA para continuar na pista dele, no caso de ele ainda não ter gerado um "perfil de interesse", como essas identidades eram conhecidas. Na comunidade de informática acreditava-se amplamente que esses perfis fossem na maior parte anônimos, e na maior parte eram mesmo, mas uma vez que se tornassem conhecidos para as agências adequadas, podiam ser monitorados. Geralmente isso era feito por meios ilegais, mas se a linha entre conduta legal e ilegal na internet podia operar em favor de adolescentes travessos, o mesmo para a comunidade de inteligência, cujos computadores eram difíceis de localizar e ainda mais difíceis de invadir. O problema mais imediato era que o eurocom.net não guardava por muito tempo suas mensagens, e quando os suspeitos se desconectavam praticamente sumiam para sempre. Talvez a NSA notasse que o sacana tinha escrito para Uda bin Sali, mas outras pessoas o faziam, mesmo para repasse de dinheiro, e nem a NSA tinha o potencial humano para ler e analisar cada e-mail isolado que cruzasse sua trilha.
OS GÊMEOS CHEGARAM pouco antes das onze, guiados por GPS. Os sedãs Mercedes classe-C idênticos foram direcionados para o pequeno estacionamento de visitantes logo atrás do prédio. Lá foram recebidos por Sam Granger, trocaram apertos de mão e entraram. Ganharam imediatamente crachás para que pudessem passar pela segurança, que Brian logo identificou como ex-oficiais subalternos.
— Belo lugar — observou Brian enquanto se encaminhavam para os elevadores.
Bell sorriu.
— É, na indústria privada podemos contratar decoradores melhores.
— Você disse indústria privada — observou Dominic de imediato. Não era a hora, pensou, de apreciar a sutileza do momento. Esta era a agência para a qual trabalhava, e tudo aqui era importante.
— Vocês serão plenamente instruídos hoje — disse Bell, imaginando o quanto mais de verdade ele havia acabado de transmitir aos convidados.
A música ambiental nos elevadores não era mais ofensiva que de hábito e o saguão no último andar — onde o patrão sempre ficava — era pura baunilha, embora fosse baunilha Breyers em vez da marca caseira Safeway.
— ENTÃO, VOCÊ TOPOU COM ISSO HOJE? — Hendley estava perguntando. Este novo garoto, ele pensou, realmente herdou o faro do pai.
— Apenas pulou da tela para mim — replicou Jack. O que mais esperavam que ele dissesse, exceto que não havia pulado da tela de nenhum outro?
Os olhos do patrão foram para Wills, cuja capacidade analítica ele conhecia bem.
— Jack estava de olho nesse tal Sali há duas semanas. Pensávamos que podia ser um ator de segunda categoria, mas hoje ele subiu três vezes de status, talvez mais — especulou Tony. — Ele está indiretamente ligado a ontem.
— A NSA já notou isso? — perguntou Hendley.
Wills sacudiu a cabeça.
— Não, e não acho que vão notar. É indireto demais. Eles e Langley estão de olho nele, mas como um barômetro, não um principal. — A não ser que alguém tenha uma ideia luminosa, ele não acrescentou. Aconteciam, só que não com muita frequência. Nas burocracias, uma informação importante frequentemente se perdia no sistema, ou era esquecida para quem não a percebesse de imediato. Cada lugar no mundo tinha sua própria ortodoxia e coitado de quem não a aceitasse.
Os olhos de Hendley varreram o documento de duas páginas.
— Por certo ele é arisco como um peixe, não é? — Então seu telefone tocou. Ele atendeu. Okay, Helen, mande-os entrar... Rick Bell está trazendo os dois rapazes dos quais a gente falava — explicou a Wills.
A porta se abriu e os olhos de Jack Jr. quase saltaram das órbitas. O mesmo com os de Brian.
— Jack! O que está fazendo aqui?
O rosto de Dominic se alterou um momento mais tarde.
— Ei, Jack! O que está acontecendo? — exclamou ele.
Os olhos de Hendley franziram. Ele não havia pensado nisso, um raro erro de sua parte. Mas a sala só tinha uma porta, a não ser que se incluísse a do toalete.
Os três primos trocaram apertos de mão, momentaneamente ignorando o chefe, até que Rick Bell assumiu o controle da situação.
— Brian, Dominic, este aqui é o chefão, Gerry Hendley. — Apertos de mão foram trocados diante dos dois analistas.
— Rick, obrigado por ter trazido isso. Bom trabalho de vocês dois — disse Hendley em tom de dispensa.
— Acho que é hora de voltar ao batente. A gente se vê, caras — disse Jack aos primos.
A surpresa não se desfez de imediato, mas Brian e Dominic se acomodaram nas cadeiras e descartaram o acontecido por ora.
— Bem-vindos — disse Hendley, recostando-se na cadeira. Bem, mais cedo ou mais tarde eles teriam que se conhecer, não? — Pete Alexander me disse que vocês se portaram muito bem na casa de campo.
— Tirando o tédio — respondeu Brian.
— Treinamento é assim — disse Bell em simpatia polida.
— E quanto a ontem? — perguntou Hendley.
— Não foi divertido — antecipou-se Brian. — Pareceu muito com aquela emboscada no Afeganistão. KABUM! Começou, e então tivemos que encarar a coisa. A novidade foi que os caras não eram brilhantes. Agiram como agentes isolados em vez de equipe. Se tivessem sido treinados adequadamente... se tivessem agido como uma equipe com segurança própria... teria sido diferente. Do jeito que foi, foi só pegar um de cada vez. Alguma ideia de quem eram?
— Pelo que o FBI sabe até aqui, parece que entraram no país pelo México. O primo de vocês identificou para nós a fonte financiadora deles. Um expatriado saudita em Londres, e ele pode ser um de seus apoios. Todos são de origem árabe. Cinco deles foram positivamente identificados como cidadãos sauditas. As armas foram roubadas dez anos atrás. Eles alugaram os carros... os quatro grupos... em Las Cruces, Novo México, e provavelmente dirigiram independentemente para seus objetivos. Suas rotas foram rastreadas pelas paradas para abastecer.
— A motivação foi estritamente ideológica? — perguntou Dominic.
Hendley assentiu.
— Religiosa... a versão deles para isso, sim.
— O Bureau está procurando por mim? — perguntou Dominic em seguida.
— Você terá que ligar para Gus Werner hoje mais tarde, de modo que ele possa preencher sua papelada, mas não espere controvérsias. Eles têm uma história de cobertura já toda preparada.
— Okay — disse Brian. — Posso presumir que é para isto que estivemos treinando? Caçar essas pessoas antes que possam fazer novas maldades por aí?
— Isso é quase certo — confirmou Hendley.
— Está bem — disse Brian. — Posso viver com isso.
— Vocês entrarão em campo juntos, como gente ligada a negócios bancários e comerciais. Nós os instruiremos sobre as coisas que precisam saber para manter essa fachada. Vão operar principalmente de um escritório virtual via laptop.
— Segurança? — especulou Dominic.
— Não é problema — assegurou-lhe Bell. — Computadores são tão seguros quanto podemos torná-los, e às vezes podem servir de telefone quando comunicações verbais são exigidas. Os sistemas criptografados são altamente seguros — enfatizou ele.
— Okay — disse Dominic desconfiado. Pete lhe dissera quase a mesma coisa, mas ele jamais confiara em sistemas criptografados. Os sistemas de rádio do FBI, seguros como se esperava, tinham sido invadidos uma ou duas vezes por bandidos espertos ou hackers, do tipo que gostavam de ligar para o escritório de campo local do Bureau só para dizer o quanto eles eram inteligentes. — E quanto à nossa cobertura legal?
— Isso é o melhor que podemos fazer — disse Hendley, estendendo uma pasta.
Dominic a pegou e abriu. Seus olhos se arregalaram imediatamente.
— Diabos! Como diabos conseguiu isso? — O único perdão presidencial que já tinha visto estava num livro de direito. Este aqui estava efetivamente em branco, exceto que já vinha assinado. Um perdão em branco? Cacete.
— Diga-me — sugeriu Hendley.
A assinatura deu-lhe a resposta, e seus conhecimentos jurídicos voltaram. Este perdão era à prova de bala. Até mesmo a Suprema Corte era incapaz de vetá-lo, porque a autoridade soberana do presidente para perdoar era tão explícita quanto a liberdade de opinião. Mas não seria muito útil fora das fronteiras americanas.
— Portanto, vamos cuidar dessa gente aqui em casa?
— Possivelmente — confirmou Hendley.
— Somos os primeiros atiradores na equipe? — perguntou Brian.
— Também correto — respondeu o ex-senador.
— Como faremos isso?
— Vai depender da missão — respondeu Bell. — Para a maioria delas, temos uma nova arma que é cem por cento eficaz, e muito secreta. Vocês vão saber tudo amanhã, provavelmente.
— Estamos com pressa? — ainda perguntou Brian.
— As luvas de pelica estão descartadas agora — disse Bell aos dois. — Seus alvos são pessoas que realizaram, estão planejando realizar, ou que apoiem missões que visem causar dano grave a nosso país e seus cidadãos. Não estamos falando de assassinatos políticos. Nosso único alvo são pessoas que estejam diretamente envolvidas em atos criminosos.
— Há algo mais a acrescentar. Nós não somos os executores oficiais para o estado do Texas, somos?
Agora era Dominic.
— Não, vocês não são. Isso está fora do sistema legal. Nós vamos tentar neutralizar as forças inimigas pela eliminação de seu pessoal importante. Isso deveria pelo menos desintegrar sua capacidade de agir, e esperamos que também force seu pessoal sênior a dar as caras, de modo que também possam virar alvos.
— Então isso — Dominic fechou a pasta e devolveu-a — é uma licença de caça, ilimitada e com temporada aberta.
— Correto, mas dentro de limites razoáveis.
— Para mim está bom — observou Brian. Apenas 24 horas antes, ele lembrou, estivera segurando um menino agonizante em seus braços. — Quando começamos?
Hendley deu a resposta.
— Em breve.
— EI, TONY, O QUE ELES ESTÃO FAZENDO AQUI?
— Jack, eu não sabia que eles estariam aqui hoje.
— Isso não é resposta. — Os olhos azuis de Jack estavam estranhamente duros.
— Você faz ideia de por que este lugar foi montado, certo?
E isso respondia tudo. Droga. Seus próprios primos? Bem, um era fuzileiro, e o do FBI — o advogado, como Jack tinha pensado dele uma vez — havia bem e justamente apagado um pervertido lá no Alabama. Os jornais fizeram um alarde, e ele até discutiu o caso brevemente com o pai. Era difícil desaprovar, presumindo que as circunstâncias tinham sido dentro da lei, mas Dominic sempre foi do tipo de jogar segundo as regras — o que era quase o lema da família Ryan. E Brian provavelmente fez das suas no Corpo de Fuzileiros para ser notado. Brian havia sido o tipo de atleta de futebol no secundário, enquanto o irmão era o polemista da família. Mas Dominic não era um frouxo. Pelo menos um bandido tinha descoberto isso da maneira mais dura.
Talvez algumas pessoas precisassem aprender que não deviam se meter com um grande país que tinha homens de verdade a seu serviço. Todo tigre tinha dentes e garras...
... e a América criava tigres grandes.
Com isso assentado, ele decidiu voltar a procurar o 56MoHa@eurocom.net. Talvez os tigres fossem procurar mais comida. O que fazia dele um cão perdigueiro. Mas estava tudo bem. Alguns pássaros precisavam ter seus direitos de voo revogados. Ele tinha rastreado aquele perfil através de escutas da NSA na selva das cibercomunicações do mundo. Cada animal deixava um rastro em algum lugar, e ele precisava farejar. Diabos, pensou Jack, este serviço tem seu lado divertido, afinal, agora que via o objetivo.
MOHAMMED ESTAVA em seu computador. Atrás dele, a televisão exibia algo sobre a falha da inteligência, o que o fez sorrir. Isso só podia ter o efeito de diminuir ainda mais as capacidades da inteligência americana, especialmente com as distrações operacionais que por certo viriam das audiências investigativas conduzidas pelo Congresso. Era bom ter aliados assim dentro do país-alvo. Eles não eram muito diferentes dos superiores em sua própria organização, tentando fazer o mundo comungar com a visão deles em vez de com as realidades da vida. A diferença era que seus superiores pelo menos o ouviam, porque ele obtinha resultados reais, que, felizmente, coincidiam com suas visões etéreas de morte e medo. Para piorar, havia pessoas lá dispostas a dar suas vidas para tornar aquelas visões reais. Que eram tolos que nada significavam para Mohammed. Usavam-se as ferramentas como se devia e, neste caso, ele tinha martelos para bater os pregos que via através do mundo.
Ele abriu seus e-mails para ver se Uda cumprira suas instruções sobre o depósito. Em princípio, podia simplesmente deixar as contas Visa morrerem, mas então algum funcionário zeloso do banco podia meter o bedelho para ver por que o último grupo de despesas não havia sido pago. Era melhor, pensou, deixar algum dinheiro extra na conta e então mantê-la inativa. Um banco não se importa de ter um excedente no cofre eletrônico, e se a conta ficasse inativa, nenhum funcionário ia investigar. Acontecia o tempo todo. Ele se certificou de que o número da conta e a senha de acesso permanecessem escondidos no computador num documento que só ele conhecia.
Pensou em mandar e-mail de agradecimento a seus contatos, mas mensagens supérfluas eram um desperdício de tempo e um convite à vulnerabilidade. Não se manda mensagem por diversão ou boas maneiras. Apenas o estritamente necessário. Ele sabia o bastante para temer a capacidade dos americanos de reunir informação eletrônica. A mídia ocidental falava com frequência sobre interceptações e assim sua organização tinha renunciado por completo aos telefones por satélite que usavam por conveniência. Em vez disso, com mais frequência usavam mensageiros, que passavam informação que memorizavam com cuidado. Era inconvenientemente lento, mas com a virtude de ser completamente seguro... a não ser que o mensageiro fosse corrompido de alguma maneira. Nada era totalmente seguro. Cada sistema tinha seu ponto fraco. Mas a internet era a melhor coisa no momento. As contas individuais ficavam lindamente anônimas, uma vez que podiam ser abertas por laranjas , e suas identidades podiam ser trocadas para as dos verdadeiros usuários finais, e portanto só existiam como elétrons ou fótons — tais como grãos de areia no deserto, tão seguras e anônimas quanto qualquer coisa podia ser. E literalmente havia bilhões de mensagens da internet a cada dia. Talvez Alá pudesse rastreá-las, mas só porque Ele conhecia a mente e o coração de cada homem, uma aptidão que Ele não a concedia nem mesmo ao Fiel. E assim Mohammed, que raramente ficava no mesmo local por mais de três dias, sentiu-se livre para usar seu computador à vontade.
O MI5 BRITÂNICO, com seu quartel-general na Thames House, rio acima a partir do Palácio de Westminster, mantinha literalmente centenas de milhares de escutas — as leis de privacidade do Reino Unido eram bem mais liberais do que as dos Estados Unidos... isto é, para as agências estatais — quatro delas quais dedicadas a Uda bin Sali. Uma dessas escutas era para seu telefone celular, e raramente produzia qualquer coisa valiosa. Suas contas eletrônicas no distrito financeiro e em casa eram as mais valiosas, uma vez que desconfiava de comunicação vocal e preferia correio eletrônico para todos os seus contatos importantes com o mundo exterior. Isso incluía cartas de e para casa, principalmente para garantir ao pai que o dinheiro da família estava seguro. Estranhamente, nem sequer se deu ao trabalho de usar um programa criptografado, presumindo que o mero volume de tráfego de mensagem na rede excluiria vigilância oficial. Além disso, havia muita gente no negócio de gestão de capital em Londres — boa parte dos imóveis valiosos da cidade estava realmente nas mãos de estrangeiros — e o intercâmbio de dinheiro era algo que até mesmo a maioria dos atores achava entediante. O alfabeto do dinheiro tinha poucos elementos, afinal, e sua poesia pouco fazia para emocionar a alma.
Mas sua linha de e-mails nunca trinava sem ecoar em Thames House e aqueles fragmentos de sinais iam para o GCHQ — (Government Communications Headquarters), o Quartel-General de Comunicações do Governo — em Cheltenham, noroeste de Londres, do qual eram passados via satélite para Fort Belvoir, Virginia, e daí para Fort Meade, Maryland, via fibra ótica, para inspeção, principalmente por um daqueles supercomputadores do enorme porão do edifício, estranhamente parecido com uma masmorra. De lá, o material considerado importante ia para o QG da CIA em Langley, Virginia — depois de transitar por um certo telhado plano —, após o que os sinais eram digeridos por mais um conjunto de computadores.
— Alguma coisa nova aqui do Sr. 56 — disse Junior quase para si mesmo, referindo-se a 56MoHa@eurocom.net. Ele teve que pensar alguns segundos. Eram principalmente números. Mas um dos números era o endereço eletrônico de um banco comercial europeu. O Sr. 56 queria algum dinheiro, ou assim parecia, e agora que sabiam que o Sr. 56 era ator, tinham uma nova conta bancária a verificar. Isso aconteceria no dia seguinte. Poderia até mesmo resultar num nome e num endereço postal, dependendo dos procedimentos individuais internos do banco. Mas provavelmente não. Todos os bancos internacionais estavam gravitando em direção a procedimentos idênticos, para manter suas vantagens competitivas, até que a concorrência ficasse tão nivelada quanto um campo de futebol enquanto todos adotavam as melhores políticas para facilitar os depósitos. Cada pessoa tinha sua própria versão da realidade, mas o dinheiro de todo mundo era igualmente verde — ou laranja, no caso do euro, decorado de edifícios nunca construídos e pontes nunca transpostas. Jack tomou as notas devidas e desligou seu computador.
Ele ia jantar à noite com Brian e Dominic, só para pôr em dia os assuntos de família.
Havia um novo restaurante de frutos do mar na rodovia federal 29 que ele queria experimentar. E seu dia de trabalho estava concluído. Jack fez umas poucas anotações para a segunda-feira de manhã — ele não esperava estar lá no domingo, com ou sem emergência nacional. Uda bin Sali merecia um exame muito cuidadoso. Exatamente o quanto ele não tinha certeza, embora começasse a suspeitar de que Sali encontrasse uma ou duas pessoas que conhecia bem.
— EM BREVE QUANTO? — Esta teria sido uma pergunta ruim para Brian Caruso, mas da boca de Hendley tinha um quê de urgência.
— Bem, temos que estabelecer alguma espécie de plano — replicou Sam Granger.
Para todos ali, dava no mesmo. O que havia sido um gol de placa contra um adversário imaginário ficava mais complexo quando se tinha que encarar o adversário real. — Primeiro, precisamos de um conjunto de alvos que faça sentido, e depois um plano para servi-los de uma maneira que também faça alguma espécie de sentido.
— Conceito operacional? — Tom Davis pensou em voz alta.
— A ideia é agir logicamente... de nosso ponto de vista, mas para alguém de fora deve parecer aleatório... de alvo para alvo, fazendo as pessoas espichar as cabeças como marmotas, de modo que possamos pegá-las uma de cada vez. É bem simples conceitualmente, mais difícil na prática.
Era mais fácil mover peças de xadrez em volta de um tabuleiro do que fazer pessoas se moverem, sob comando, para as casas desejadas, um fato frequentemente perdido em diretores de cinema. Alguma coisa tão prosaica como perder um ônibus na baldeação, ou um acidente de trânsito, ou a necessidade de urinar, podia pôr a perder o mais elegante plano teórico. O mundo, é preciso recordar, é análogo, não digital, no modo como opera. E análogo na verdade significa desleixado.
— Portanto, está dizendo que precisamos de um psiquiatra?
Sam sacudiu a cabeça.
— Eles têm alguns em Langley. Isso não os ajudou muito.
— Não mesmo. — Davis riu. Mas não era hora de humor. — Rapidez — observou.
— Sim, quanto mais rápido, melhor — concordou Granger. — Negue a eles o tempo de reagir e pensar.
— E de saber que algo está em andamento — disse Hendley.
— Sumir com as pessoas?
— Pessoas demais com ataques cardíacos, alguém vai suspeitar.
— Você acha que eles infiltraram alguma agência? — pensou em voz alta o ex-senador. Os outros dois na sala estremeceram à sugestão.
— Depende do que você queira dizer — Davis assumiu a pergunta. — Um agente de infiltração? Isto seria difícil sem uma propina realmente suculenta, e ainda assim difícil, a não ser que a Agência tivesse um cara que fosse a eles pedindo uma fortuna. Talvez seja uma possibilidade — acrescentou após um momento de reflexão. — Os russos sempre foram sovinas com dinheiro... eles não têm tanta grana assim para espalhar por aí. Essa gente, diabos, tem mais do que necessita. Assim... talvez...
— Mas isso também trabalha a nosso favor — raciocinou Hendley. — Não são muitas as pessoas na Agência que sabem da nossa existência. Portanto, se eles começarem a pensar que a CIA está enviando gente para o exterior, seu agente infiltrado, se houver algum, não diria que isso não está ocorrendo lá?
— Então a perícia deles é contraproducente para eles? — especulou Granger.
— Eles pensariam no Mossad, não?
— Quem mais? — Davis perguntou de volta. — Sua própria ideologia trabalha contra eles. — Isso raramente tinha sido uma manobra tática... mas às vezes era bem-sucedida... usada contra a KGB. Ninguém gosta de fazer o outro cara se sentir mais esperto. E se era duro para os israelenses, ninguém na comunidade de inteligência americana perderia o sono por isso. Aliados ou não, os israelenses não eram inteiramente amados por suas contrapartes nos Estados Unidos. Mesmo os espiões sauditas jogavam com eles, porque os interesses nacionais com frequência se sobrepunham das maneiras mais improváveis. E por esta série de jogos, os americanos estariam cuidando apenas de sua mãe-pátria, e fazendo-o completamente fora das regras.
— E os alvos que identificamos, onde estão eles? — perguntou Hendley.
— Todos na Europa. São em geral banqueiros ou do ramo de comunicações. Eles movimentam dinheiro, ou manipulam mensagens, passam instruções. Um deles parece coletar informações. Viaja bastante. Talvez já tenha inspecionado locais para amanhã, mas não o temos visto por um tempo para saber com certeza. Temos alguns alvos que fazem comunicações, mas queremos deixar esses à parte. São valiosos demais. A outra preocupação é evitar alvos cuja morte diga ao inimigo como chegamos a eles. Tem que parecer aleatório. A oposição pode até pensar que desertaram. Pegaram o dinheiro e uma vida mansa e sumiram no mundo. Podemos até deixar mensagens de despedida.
— E se eles tiverem um código para as mensagens deles? — perguntou Davis.
— Funciona para nós tanto quanto contra nós. É um jogo natural, arranjar o desaparecimento de maneira tal que sugira que o cara foi apagado. Ninguém vai procurar um homem morto, certo? Eles devem ter esse tipo de preocupação. Eles nos odeiam por corromper sua sociedade, devem saber que seu povo pode ser corrompido. Terão gente valente mas também covarde. Essas pessoas não são únicas em ponto de vista. Não são robôs. Algumas serão verdadeiros crentes, certo, mas outras estão nessa pelo passeio, pela diversão e pelo charme, mas quando chega a hora do pega pra capar, a vida é mais atraente do que a morte.
Granger conhecia pessoas e movimentações, e não, elas não eram robôs. De fato, quanto mais espertas, menos provável que fossem motivadas pelo trivial. A maioria dos extremistas muçulmanos, interessantemente, estava na Europa ou foi educada lá. Num útero confortável, haviam sido isolados de seus antecedentes étnicos — mas também libertos das sociedades repressoras nas quais foram gerados. Revolução sempre tinha sido uma criatura de expectativas em ascensão — não um produto da opressão, mas da protolibertação. Era uma época de confusão pessoal e de busca de identidade, um período de vulnerabilidade psicológica quando uma âncora precisava ser agarrada, qualquer que fosse ela. Era ti imo ter de matar pessoas que estavam mais perdidas do que qualquer outra coisa, mas elas haviam escolhido livremente seu caminho, embora não com inteligência. E se o caminho levasse ao lugar errado, isto não era culpa de suas vítimas, era?
O PEIXE ESTAVA MUITO BOM. Jack experimentou o peixe-serra da baía de Chesapeake. Brian optou pelo salmão e Dominic pela perca-do-mar. Brian escolhera o vinho, um francês branco do vale do Loire.
— E aí, como diabos você baixou aqui? — perguntou Dominic ao primo.
— Procurei por aí e esse lugar me interessou. Portanto, dei uma olhada nele e, quanto mais descobria, menos entendia. Assim, apareci, falei com Gerry e pedi um emprego.
— Para fazer o quê?
— Eles chamam de análise. É mais como leitura mental. Um sujeito em particular, de nome árabe, especula com dinheiro em Londres, principalmente dinheiro da família. Circula com ele por aí, principalmente tentando proteger o montante do pai... é um montante de respeito — assegurou Jack aos primos. — Ele negocia com imóveis, um belo meio de preservar capital. O mercado londrino vai cair a qualquer momento e não vai demorar muito. O duque de Westminster é um dos caras mais ricos do mundo. É dono da maioria do centro de Londres. Nosso amiguinho está imitando Sua Graça.
— O que mais?
— O que mais é que injeta dinheiro numa certa conta bancária, que é a fonte de pagamento para um punhado de cartões Visa, quatro dos quais pertencentes aos caras que vocês encontraram ontem. — O círculo ainda não se completara, mas não levaria muito tempo para o FBI fechá-lo bem apertado. — Ele também falou nos e-mails sobre os maravilhosos eventos de ontem.
— Como obteve acesso aos e-mails? — perguntou Dominic.
— Não posso dizer. Vocês terão que descobrir isso com outra pessoa.
— Uns 16 quilômetros naquela direção, aposto — disse Dominic, apontando para nordeste.
A comunidade de espiões trabalhava em linhas comumente proibidas ao FBI.
De qualquer modo, o primo Jack simplesmente mantinha um ar razoavelmente vago que não o faria perder dinheiro numa mesa de pôquer.
— Então, ele financia os bandidos? — perguntou Brian.
— É isso aí.
— Isso não faz dele um mocinho — Brian desenvolveu um pouco mais o pensamento.
— Provavelmente não — concordou Junior.
— Talvez nós os encontremos. O que mais pode nos contar? — prosseguiu Brian.
— Um lugar caro, uma casa em Berkeley Square... parte mais seleta de Londres, a dois quarteirões da embaixada americana. Gosta de usar putas em suas brincadeiras sexuais. Gosta especialmente de uma garota chamada Rosalie Parker. O MI5 britânico está de olho nele e regularmente interroga sua piranha principal... essa garota Parker. Ele a paga bem em dólares, dinheiro vivo. A Srta. Parker é considerada popular entre gente rica. Suponho que aproveite isso bem — acrescentou Jack. — Há uma foto nova no arquivo do computador. Ele tem mais ou menos a nossa idade, pele morena, uma espécie de barba... do tipo que um cara usaria para parecer sedutor. Dirige um Aston Martin, um tremendo carrão. Mas costuma circular em Londres de táxi. Não tem uma casa no campo, mas faz viagens ao interior nos fins de semana para hotéis de alta rotatividade, principalmente com a Srta. Parker ou outra garota de programa. Trabalha no distrito financeiro. Tem um escritório no edifício da Lloyd's... terceiro andar, acho. Faz três ou quatro negócios por semana. Principalmente, creio que fica sentado lá vendo TV e as cotações das ações, lê os jornais, esse tipo de coisa.
— Então, ele é um garoto rico mimado que busca alguma excitação na vida? — resumiu Dominic.
— Correto. Exceto talvez que gosta de sair e brincar no trânsito.
— Isso é perigoso, Jack — assinalou Brian. — Pode até mesmo arranjar alguém puto da vida. — Brian estava usando sua face jogadora, prevendo o encontro com o cara que financiara a morte de David Prentiss.
E de repente Jack pensou que a Srta. Rosalie Parker, de Londres, podia estar obtendo muito mais do que bolsas Louis Vuitton. Bem, ela provavelmente já teria um belo plano de aposentadoria se fosse tão esperta quanto o MI5 acha que é.
— O que seu pai está fazendo? — indagou Dominic.
— Escrevendo as memórias — respondeu Jack. — Imagino o quanto pode pôr nelas. Nem minha mãe sabe muita coisa do que ele fez na CIA, e pelo pouco que sei... bem, tem muita coisa que ele não pode contar. Até as que são meio de domínio público ele não pode confirmar que realmente aconteceram.
— Como levar o chefe do KGB a desertar. Isto vai render uma história. Aquele cara esteve na TV. Acho que ainda está puto com seu pai por impedi-lo de derrubar a União Soviética. Provavelmente acha que podia salvá-la.
— Talvez. Papai tem muitos segredos, tudo bem. Como os colegas da Agência. Um cara em particular, chamado Clark. Um cara assustador, mas ele e papai são muito ligados. Creio que está na Inglaterra agora, chefe daquele novo grupo secreto de antiterrorismo do qual a imprensa fala mais ou menos uma vez por ano, os homens de preto, como são chamados.
— Eles são reais — disse Brian. — Lá em Hereford, no País de Gales. Não são tão secretos assim. Os veteranos da Força de Reconhecimento estiveram lá para treiná-los. Nunca estive lá pessoalmente, mas conheço dois caras que estiveram. Eles e o SAS britânico. Eles são uma tropa de elite.
— Até onde está por dentro disso, Aldo? — perguntou o irmão.
— Ei, a comunidade de operações especiais é muito ligada, partilham novos equipamentos, essa coisa toda. A parte mais importante vem quando nos sentamos para tomar umas cervejas e partilhamos histórias de guerra. Todo mundo tem um modo diferente de encarar os problemas e, você sabe, às vezes o outro cara tem uma ideia melhor do que a sua. A equipe Rainbow... ou seja, os homens de preto de que a imprensa fala... aqueles caras são muito espertos, mas aprenderam uma ou duas coisas de nós ao longo dos anos. O fato é que eles são espertos o bastante para ouvir novas ideias. O chefão, esse tal de Clark, é considerado muito esperto.
— Ele é. Eu o conheci. Papai acha que ele é o cara que sabe das coisas. — Fez uma pausa antes de prosseguir. — Hendley o conhece também. Por que ele não está aqui, não sei. Perguntei no primeiro dia em que cheguei. Talvez ele esteja velho demais.
— Ele é atirador?
— Perguntei a papai uma vez. Ele disse que não sabia dizer. É o jeito dele de dizer sim. Acho que o peguei num momento de fraqueza. Fato engraçado com papai: ele não consegue mentir.
— Acho que é por isso que gostava tanto de ser presidente — ironizou Brian.
— É, creio que esta foi a razão principal para sair. Ele imaginava que tio Robby podia fazer melhor.
— Até que aquele sacana escroto o ferrou — observou Dominic. O atirador, um tal Duane Farmer, estava atualmente na fila do corredor da morte no Mississippi. O último da Klan, assim o chamavam os jornais, e assim era, aos 68 anos, apenas um fanático irrecuperável que não podia suportar a ideia de um presidente negro, e usara o revólver do avô, do tempo da Primeira Guerra Mundial, para resolver.
— Aquilo foi péssimo — concordou John Patrick Ryan Jr. — Vocês sabem, se não fosse ele eu nem teria nascido. É uma grande história de família. A versão de tio Robby era bem boa. Ele adorava contar histórias. Ele e papai eram muito unidos. Depois que Robby foi morto, a corja política estava andando em círculos, alguns até queriam que papai empunhasse o estandarte de novo, mas ele não quis e assim, creio, ajudou esse Kealty a ser eleito. Papai não o suporta. Essa é a outra coisa que nunca aprendeu: ser gentil com pessoas que detesta. Ele simplesmente não gostava muito de morar na Casa Branca.
— Ele foi bom nisso, ser presidente — comentou Dominic.
— Vai lá dizer isso a ele. Mamãe também não se importou em sair. Aquele negócio de ser primeira-dama atrapalhava seu trabalho de médica, e ela realmente odiou o que isso fez com Kyle e Katie. Você conhece o velho ditado, o lugar mais perigoso do mundo fica entre uma mãe e seus filhos? Isso é verdade, caras. A única vez em que vi mamãe perder as estribeiras... papai fazia isso muito mais do que ela... foi quando alguém disse a ela que seus deveres oficiais exigiam que não fosse ao desfile de Kyle na creche. Poxa, ela realmente ficou uma fera. De qualquer modo, as babás ajudaram... e os jornalistas a aporrinharam a respeito, dizendo que isso não era americano, e toda essa merda. Sabem, se algum dia papai fosse fotografado dando uma mijada, aposto que alguém teria dito que ele não estava fazendo isso direito.
— É para isso que servem os críticos, para dizer que são muito mais inteligentes do que as pessoas que estão criticando.
— No Bureau, Aldo, eles são chamados de advogados, ou o Escritório de Responsabilidade Profissional — Dominic informou à mesa. — Eles têm seu senso de humor cirurgicamente removido antes de ingressarem lá.
— O Corpo de Fuzileiros também tem repórteres... e aposto que nenhum deles jamais entrou num centro de treinamento. — Pelo menos os caras que trabalhavam na Inspetoria Geral tinham passado pelo ensino básico.
— Acho que deveríamos brindar — anunciou Dominic, erguendo a taça de vinho. — Ninguém vai nos criticar.
— E viver — acrescentou Jack com uma risada. Droga, pensou ele, que diabos papai vai dizer quando descobrir o que estou fazendo?
16
E OS CAVALOS EM PERSEGUIÇÃO
DOMINGO ERA DIA DE DESCANSO para a maioria das pessoas, e no Campus também, exceto para o pessoal da segurança. Gerry Hendley acreditava que talvez Deus tivesse tido um motivo, que agendas de sete dias rendiam muito menos do que adicionar 16,67% à produtividade semanal de um homem. Isto também embotava o cérebro ao negar-lhe exercício de forma livre, ou apenas o luxo de não fazer nada, afinal.
Mas hoje era diferente, claro. Hoje, pela primeira vez, estavam planejando verdadeiras operações extraoficiais. O Campus estava ativo há somente 19 meses, tempo gasto principalmente em estabelecer sua fachada como um negócio de investimentos e corretagem. Seus chefes de departamento tinham tomado muitas vezes os trens da Acela de ida e volta a Nova York para encontrar suas contrapartes do mundo real, e embora isto parecesse lento à época, em retrospecto havia rapidamente estabelecido sua reputação na comunidade de gestão financeira. Eles mal haviam exibido ao mundo seus resultados concretos, claro, da especulação monetária e umas poucas jogadas com ações cuidadosamente escolhidas, às vezes até mesmo informações privilegiadas de empresas de que eles próprios desconheciam o ramo e que estavam entrando no seu caminho. Manter segredo era o objetivo geral, mas como o Campus tinha de ser autossuficiente, também gerava receita real. Na Segunda Guerra Mundial, os americanos haviam cultivado operações suspeitas com advogados, ao passo que os britânicos usaram banqueiros. Os dois sistemas provaram-se bons para ferrar pessoas... e matá-las. Devia ser alguma coisa acerca da maneira como olhavam o mundo, pensou Hendley tomando seu café.
Olhou para os outros: Jerry Rounds, seu chefe de Planejamento Estratégico; Sam Granger, seu chefe de Operações. Mesmo antes de o prédio ter sido completado, os três pensaram sobre como o mundo estava estruturado e como algumas de suas arestas podiam ser mais bem contornadas. Rick Bell, seu chefe de análise, também estava aqui, ele que passava seus dias de trabalho garimpando o material da NSA e da CIA, tentando descobrir significado no fluxo de informação não-relacionada — ajudado, é claro, pelos 35 mil analistas em Langley, em Fort Meade e outros lugares semelhantes. Como todos os analistas seniores, ele também gostava de brincar no playground de operações, e aqui isso era realmente possível, já que o Campus era pequeno demais para ter sido tomado por sua própria burocracia. Ele e Hendley se preocupavam de que isso nem sempre pudesse ser assim, e ambos se certificavam de que nenhum império estivesse sendo construído.
Pelo que sabiam, a instituição deles era única em todo o mundo. E havia sido montada de maneira tal que podia ser apagada da paisagem em questão de dois ou três meses. Uma vez que a Hendley Associates não convidava investidores de fora, seu perfil público era suficientemente baixo para que o radar nunca apontasse suas operações e, em qualquer caso, a comunidade à qual pertencia não fazia propaganda. Era fácil se esconder num campo em que todos faziam a mesma coisa e ninguém sabotava ninguém, a não ser se ferroado muito gravemente. E o Campus não ferroava. Pelo menos não com dinheiro.
— E então? — começou Hendley. — Estamos prontos?
— Sim — disse Rounds para Granger.
Sam assentiu sobriamente e sorriu.
— Estamos prontos — anunciou Granger oficialmente. — Nossos dois rapazes mereceram suas esporas de uma maneira que nunca previmos.
— Eles as mereceram, tudo bem — concordou Bell. — E o garoto Ryan identificou um bom primeiro alvo, este tal de Sali. Os acontecimentos de sexta-feira geraram um monte de tráfego de mensagens. Eles ganharam um monte de fãs. Vários são puxa-sacos ou querem ser, mas mesmo se balearmos algum deles por engano não se perde grande coisa. Já tenho os quatro primeiros na fila. Então, Sam, você já tem um plano para lidar com eles?
Essa foi a deixa de Davis: — Vamos fazer reconhecimento por fogo. Depois que apagarmos um ou dois, veremos que reação, se é que haverá alguma, vai resultar. Concordo que o Sr. Sali parece um primeiro alvo lucrativo. A questão é: sua eliminação vai ser aberta ou secreta?
— Explique — ordenou Hendley.
— Bem, se ele for encontrado morto na rua, é uma coisa. Se ele desaparecer com o dinheiro do pai e deixar um bilhete dizendo que quer parar o que estava fazendo e simplesmente se aposentar, é outra coisa — explicou Sam.
— Sequestro? É perigoso. — A polícia de Londres tinha uma taxa de solução de sequestros que beirava cem por cento. Era um jogo perigoso, especialmente no primeiro movimento que faziam.
— Bem, podemos contratar um ator, vesti-lo adequadamente, mandá-lo de avião para o aeroporto Kennedy, e depois simplesmente desaparecer com ele. De fato, nos desfazemos do corpo e ficamos com o dinheiro. A quanto ele tinha acesso, Rick?
— Acesso direto? Diabos, mais de 300 milhões de dólares.
— Podia ser bom para o erário corporativo. E não sangraria muito o pai dele, não é?
— O dinheiro do pai dele... todo ele? Imagine algo superior a três bilhões — respondeu Bell. — Ele sentirá falta, mas não vai quebrar. E dada a opinião dele sobre o filho, pode até mesmo ser uma boa desculpa para nossa operação — arriscou. — Não estou recomendando isso como um curso de ação, mas é uma alternativa — concluiu Granger.
Havia sido falado antes, claro. Era uma encenação óbvia demais para passar despercebida. E 300 milhões de dólares seriam ótimos numa conta do Campus, digamos, nas Bahamas ou Liechtenstein. Podia-se esconder dinheiro em qualquer lugar que tivesse linhas telefônicas. De qualquer modo, eram só elétrons, não barras de ouro.
Hendley ficou surpreso por Sam abordar o assunto tão cedo. Talvez ele quisesse avaliar a reação dos colegas. Eles claramente não superavam com emoção a ideia de acabar com a vida de Sali, mas roubar dele no processo apertava alguns botões muito diferentes. A consciência de um homem podia ser uma coisa engraçada, concluiu Gerry.
— Vamos deixar isso de lado por enquanto. E o golpe? — perguntou Hendley.
— Com aquilo que Rick Pasternak nos deu? É brincadeira de criança, desde que nosso pessoal não faça uma merda completa. Mesmo assim, o pior que pode acontecer é parecer um assalto que deu errado — disse Granger.
— E se nosso cara deixar a caneta cair? — preocupou-se Rounds.
— É uma caneta. Você pode escrever com ela. Passa na inspeção de qualquer guarda do mundo — replicou Granger confiantemente. Ele pegou no bolso e passou sua amostra em torno da mesa. — Esta aqui é fria — assegurou.
Todos foram instruídos a respeito. Em todos os aspectos era uma caneta esferográfica cara, folheada a ouro, com clipe de obsidiana. Ao se baixar o clipe e cobrir a ponta, substituía-se a ponta de uma caneta de verdade por uma agulha hipodérmica com um agente de transmissão letal. Paralisa a vítima em 15 ou vinte segundos e a mata em três minutos, sem possibilidade de cura, e com uma verdadeira assinatura transitória no corpo. Enquanto a caneta circulava ao redor da mesa, os executivos invariavelmente tocavam a ponta da agulha, e depois experimentavam usá-la num golpe simulado, principalmente como um furador de gelo, embora Rounds a empunhasse como uma espada em miniatura.
— Seria bom testá-la numa espécie de simulação — observou ele, baixinho.
— Alguém aqui se oferece como voluntário? — perguntou Granger aos colegas na mesa. Ninguém se ofereceu. O estado de espírito na sala não o surpreendeu muito. Era hora para uma pausa sóbria, o tipo de coisa que acomete um homem quando ele assina sua apólice de seguro de vida, um produto que só tem valor se ele estiver morto, o que tira um pouco da alegria do momento.
— Vamos mandá-los de avião para Londres juntos? — perguntou Hendley.
— Correto. — Granger assentiu e retomou a sua voz comercial. — Nós os escoltamos até o alvo, eles escolhem o momento e dão a estocada.
— E esperam para ver o resultado? — perguntou Rounds retoricamente.
— Correto. A seguir eles podem voar para o próximo alvo. Toda a operação não vai levar mais que uma semana. Depois os trazemos de volta para casa e aguardamos os desdobramentos. Se alguém fizer ligação com sua pilha de dinheiro após a morte, provavelmente saberemos, certo?
— Devemos saber — confirmou Bell. — E se alguém o roubar, saberemos aonde isso leva.
— Excelente — observou Granger. Afinal, era isso o que significava reconhecimento por fogo.
ELES NÃO FICARIAM aqui muito tempo, os gêmeos pensavam. Estavam alojados em quartos adjacentes no Holiday Inn local, e nesta tarde de domingo assistiam à TV com um convidado.
— Como está a mãe de vocês? — perguntou Jack.
— Ótima, envolvida com as escolas locais... as paroquiais. Um pouco mais do que ajuda docente, mas não realmente lecionando. Papai está trabalhando em algum novo projeto... parece que a Boeing está de novo interessada num SST, um avião de carreira supersônico. Papai diz que eles provavelmente nunca o fabricarão, a não ser que Washington injete uma boa grana; mas com o Concorde desativado, as pessoas estão pensando nisso de novo, e a Boeing gosta de manter seus engenheiros ocupados. Eles ficam meio nervosos quanto ao pessoal do Airbus, e não querem ser apanhados com a calça na mão se os franceses começarem a ficar ambiciosos.
— Como era lá no Corpo? — Jack perguntou a Brian.
— Bem, o Corpo é o Corpo, primo. Simplesmente vai levando, mantendo-se ocupado para a próxima guerra.
— Papai ficou preocupado quando você foi para o Afeganistão.
— Foi um tanto excitante. O povo de lá é parada dura, e eles não são burros. Mas carecem de bom treinamento. Assim, quando batemos cabeça com eles, saímos na frente. Se víamos alguma coisa que parecesse estranha, transmitíamos pelo rádio e isso geralmente resolvia as coisas.
— Quantos?
— Quantos eliminamos? Alguns. Não o bastante, mas alguns. Os Boinas Verdes foram primeiro, e os afegãos aprenderam a partir daí que uma luta corpo a corpo não lhes interessava. Fazíamos principalmente perseguição e reconhecimento, farejando pássaros para os cães de caça. Havia um cara da CIA conosco e um destacamento de inteligência de comunicações. Os bandidos usavam seus rádios um pouco demais. Quando obtínhamos uma dica, nos movíamos cerca de um quilômetro e meio e dávamos uma olhada. E se fosse interessante o bastante a gente entrava no ar e fazia uma confusão infernal nas comunicações. Assustador de se ver — resumiu Brian.
— Aposto. — Jack abriu uma lata de cerveja.
— E este cara Sali, o tal com a namorada, Rosalie Parker? — perguntou Dominic.
Como a maioria dos tiras, ele tinha boa memória para nomes. — Você disse que ele estava pulando de alegria com os atentados?
— Sim — disse Jack. — Achou que foram excelentes.
— Então quem estava com o chefe de torcida?
— Cheque os e-mails dele. Os britânicos têm os telefones dele grampeados, e Sali passa e-mails... bem, como eu disse, não posso contar sobre os e-mails. Aqueles sistemas telefônicos europeus nem chegam perto de ser tão seguros quanto as pessoas pensam... quero dizer, todo mundo sabe sobre interceptação de celulares e essas coisas, mas os tiras de lá puxam coisas que não podemos fazer aqui. Os britânicos, especialmente, usam escuta para rastrear os caras do IRA. Ouvi dizer que os demais países europeus são até mais livres para agir.
— São mesmo — assegurou-lhe Dominic. — Lá no Bureau tivemos alguns participantes no programa nacional da Academia... que é uma espécie de curso de doutorado para os tiras. Eles falam sobre esse tipo de coisa depois que você toma uns drinques com eles. Portanto, este Sali gostou do que aqueles escrotos fizeram, hein?
— Como se o time dele tivesse vencido o Super Bowl — replicou Jack de imediato.
— E ele os financia? — perguntou Brian.
— Isso mesmo.
— Interessante — foi tudo que Brian pôde dizer após ter essa pergunta respondida.
ELE PODIA TER FICADO mais uma noite, mas tinha algo a fazer de manhã, e assim estava dirigindo de volta a Londres no seu Aston Martin Vanquish, Bowland Black. O interior era carvão e o motor de 12 cilindros feito à mão desenvolvia mais do que 460 cavalos-vapor enquanto ele seguia para leste pela M4 a 160km h. À sua maneira, o carro era melhor do que sexo. Era uma pena que Rosalie não estivesse com ele, mas — ele olhou para sua acompanhante — Mandy era uma agradável aquecedora de cama, embora fosse um pouco magra demais para seu gosto. Se ao menos ela pudesse um pouco mais de carne sobre os ossos... Mas a moda europeia não encorajava isso. Os tolos que determinavam os corpos femininos eram provavelmente pederastas que queriam que todas parecessem garotos. Loucura, pensou Sali. Pura loucura.
Mas Mandy adorava passear neste carro, mais do que Rosalie, que tinha medo de velocidade, não confiando na sua perícia como deveria. Ele esperava poder levar este carro para casa — ia mandá-lo de avião para lá, claro. O irmão tinha seu próprio carro veloz, mas o vendedor lhe disse que este foguete em quatro rodas fazia mais de 300 quilômetros por hora e o Reino tinha excelentes estradas, retas e planas. Certo, ele tinha um primo que pilotava caças Tornado na Força Aérea Real saudita, mas este carro era seu, o que fazia toda a diferença. Infelizmente, a polícia aqui na Inglaterra não lhe permitiria testá-lo adequadamente — mais uma multa de trânsito e ele podia perder a carteira de habilitação, aqueles desmancha-prazeres —, mas em casa não haveria problema. E depois de ver o que o carro podia realmente fazer, ele o mandaria de volta via aérea para Gatwick e o usaria para excitar as mulheres, o que era quase tão bom quanto dirigi-lo. Mandy certamente ficava excitada. Comprou para ela uma bela mala Vuitton e enviaria amanhã para o apartamento dela. Não havia nenhum mal em ser generoso com as mulheres, e Rosalie precisava aprender que tinha concorrentes.
Correndo para a cidade tão rápido quanto o tráfego e a polícia permitiam, ele disparou pela Harrods através do túnel, passou pela casa do Duque de Wellington antes de dobrar à direita na Curzon Street e depois à esquerda na Berkeley Square. Com um piscar de faróis, avisou ao manobrista de seu estacionamento para levar seu carro, ele conseguiu uma vaga bem diante de sua casa de três andares com fachada de arenito pardo. Com modos civilizados, ele saltou do carro e o contornou correndo para abrir a porta de Mandy e galantemente a escoltou degraus acima até a enorme porta de carvalho. Sorrindo, manteve a porta aberta para que ela entrasse. Em poucos minutos, ela estaria abrindo para ele uma porta ainda mais linda, afinal.
— O PEQUENO PATIFE ESTÁ DE VOLTA — observou Ernest, tomando nota da hora exata em sua prancheta. Os dois agentes do MI5 estavam numa van da Telecom britânica estacionada a 50 metros. Tinham estado ali por duas horas. Aquele jovem louco saudita dirigia como se fosse a reencarnação do velho Jimmy Clark.
— Suponho que ele teve um fim de semana melhor do que o nosso — concordou Peter.
Então virou-se para apertar os botões que ativavam os vários sistemas de escuta na casa de estilo georgiano. Os botões incluíam três câmeras cujas fitas eram recolhidas a cada três dias por uma equipe de penetração. — Este sacaninha tem tesão.
— Provavelmente usa Viagra — pensou Ernest em voz alta e um tanto invejoso.
— As pessoas precisam ter alguma diversão, Ernie, meu chapa. Essa vai custar a ele duas semanas do nosso salário. E pelo que ela está a ponto de receber, ficará muito grata.
— Safado — comentou Ernest, amargo.
— Ela é magra, mas não tão magra, parceiro. — Peter guardou para si uma boa risada.
Eles sabiam que Mandy Davis cobrava por seus truques e, como homens em toda parte, eles imaginavam que coisas especiais ela podia fazer para merecer o pagamento, enquanto a desprezavam o tempo todo. Agentes de contrainformação não sentem o grau de simpatia que um policial experiente de rua pode ter por mulheres relativamente despreparadas tentando ganhar seu sustento. Setecentas e cinquenta libras por uma visita noturna, e duas mil libras pela noite toda. Exatamente quanto o cliente pagava por um fim de semana completo?, nenhum deles ousou perguntar.
Ambos pegaram os fones de ouvido para se certificar de que os microfones funcionavam, ligando os canais para rastreá-los através da casa.
— Ele é impaciente — observou Ernest. — Supõe que ela vai ficar toda a noite?
— Aposto que não vai, Ernie. Depois ele vai pegar o maldito telefone e talvez possamos obter algo útil.
— Maldito sacana — resmungou Ernest, para concordância do seu parceiro. Ambos achavam que Mandy era mais bonita que Rosalie. Adequada para um ministro do governo.
ESTAVAM certos em sua avaliação. Mandy Davis saiu às 10h23, parando na porta para um último beijo e um sorriso capaz de despedaçar o coração de qualquer homem. Depois desceu a Berkeley Street na direção de Piccadilly, onde não dobrou à direita na drogaria Boots para a estação do metrô na esquina de Piccadilly com Stratton; em vez disso, pegou um táxi para o centro, para a New Scotland Yard. Lá, foi entrevistada por um jovem detetive amistoso por quem tinha uma certa queda, mas era muito habilidosa na profissão para misturar negócios com prazer. Uda era um cara vigoroso e generoso, mas qualquer ilusão que existisse no relacionamento era da parte dele, não dela.
OS NÚMEROS SURGIRAM NO REGISTRO LED, e foram gravados com a hora em seus laptops — havia dois deles, e pelo menos mais um em Thames House. Em cada telefone de Sali havia um dispositivo que anotava o destino de cada chamada que fazia. Um artefato similar fazia o mesmo para todas as chamadas recebidas, enquanto três fitas gravavam cada palavra. Esta agora era uma ligação internacional, para um telefone celular.
— Ele está ligando para seu amigo Mohammed — observou Peter. — Imagino sobre o que vão falar.
— Pelo menos 10 minutos sobre sua aventura deste fim de semana, aposto.
— Sim, ele gosta de jogar conversa fora — concordou Peter.
— ELA É MAGRA DEMAIS, mas é uma puta de primeira, meu amigo. É algo que deve ser dito em favor das mulheres infiéis — assegurou Sali ao colega. Ela e Rosalie gostavam dele, sempre podia dizer.
— Fico contente de ouvir isso, Uda — disse Mohammed pacientemente de Paris. — Agora, aos negócios.
— Como queira, meu amigo.
— A operação americana correu bem.
— Sim, eu vi. Quantos, no total?
— Oitenta e três mortos e 143 feridos. Podia ter sido mais, se uma das equipes não cometesse um erro. Mais importante: os repórteres estavam em toda parte. Tudo que se viu hoje na TV foi a cobertura dos nossos mártires santos e seus ataques.
— Isso é mesmo maravilhoso. Um grande golpe para Alá.
— Ah, sim. Bem, preciso de algum dinheiro transferido para minha conta.
— Quanto?
— Umas 100 mil libras bastariam por enquanto.
— Posso providenciar lá pelas 10h da manhã. — De fato, ele podia fazer isso uma ou duas horas mais cedo, mas planejava dormir na manhã seguinte. Mandy o deixara esgotado. Agora estava deitado na cama, bebendo vinho francês, fumando e vendo TV sem se envolver demais. Queria sintonizar o noticiário da Sky News com as últimas notícias. — É tudo?
— Sim, por enquanto.
— Será providenciado — disse ele a Mohammed.
— Excelente. Boa noite, Uda.
— Espere, tenho uma pergunta...
— Agora não. Devemos ser cautelosos — preveniu Mohammed. Usar telefone celular tinha seus perigos. Ouviu um suspiro em resposta.
— Como queira. Boa noite. — E ambos desligaram seus aparelhos.
— O BAR LÁ EM SOMERSET era ótimo... Blue Boar, era o nome — disse Mandy. — A comida era boa. Uda pediu peru e dois canecões de cerveja na sexta à noite. Na última noite jantamos num restaurante defronte ao hotel, o Orchard. Ele pediu um chateaubriand e eu um linguado de Dover. Fomos fazer umas compras rápidas no sábado à tarde. Ele realmente não estava muito a fim de sair, queria mesmo era ficar na cama. — O arguto detetive gravava tudo, além de tomar notas, assim como o outro policial. Os dois estavam sendo tão clínicos quanto ela.
— Ele falou sobre alguma coisa? Sobre as notícias na TV ou nos jornais?
— Ele assistiu às notícias na TV, mas não falou uma palavra. Acho que foi apavorante, toda aquela matança, mas não deu um grunhido. Ele pode ser o cara mais desumano, embora seja bom para mim. Ainda não trocamos uma palavra sequer — disse-lhes, encantando os dois com seus olhos azuis.
Era difícil para os tiras olhá-la com profissionalismo. Ela tinha o aspecto de uma top model, embora com 1,60m fosse baixa demais para a profissão. Havia também uma doçura nela que deve tê-la ajudado de alguma forma. Mas por dentro havia um coração de puro gelo. Isso era triste, mas não era problema deles.
— Ele fez ligações?
Ela sacudiu a cabeça.
— Nenhuma. Não levou o celular neste fim de semana. Ele me disse que era todo meu e que eu não tinha que partilhá-lo com ninguém. Isso foi o começo. No mais, o usual. — Ela pensou em algo mais: — Ele toma mais banhos agora. Eu o botei debaixo do chuveiro nos dois dias, e ele não se queixou. Bem, eu ajudei. Fui para o chuveiro com ele. — Ela deu-lhes um sorriso coquete, e isto praticamente encerrou a entrevista.
— Obrigado, srta. Davis. Como sempre, você foi muito útil.
— Só fiz minha parte. Acha que ele é um terrorista ou algo assim? — ela teve de perguntar.
— Não. Se você corresse qualquer perigo, nós lhe daríamos o devido aviso.
Mandy pegou sua bolsa Louis Vuitton e tirou uma faca com lâmina de 25cm. Não era legal para ela levar algo assim escondido, mas no seu ramo de trabalho precisava de um amigo certo para acompanhá-la, e os detetives entenderam. Ela provavelmente sabia como fazer uso da faca, eles conjecturaram.
— Posso cuidar de mim mesma — garantiu a ambos. — Mas Uda não é desse tipo. Na verdade, é um homem gentil. A não ser que seja um tremendo ator, não é do tipo perigoso. Ele brinca com dinheiro, não com armas.
Os dois tiras anotaram seriamente essa afirmação. Ela estava certa — se havia algo em que uma prostituta não errava era na análise de um homem. Aquelas que não conseguiam fazê-lo costumavam morrer antes dos 20 anos.
Depois que Mandy pegou um táxi para casa, os dois detetives do Ramo Especial1 escreveram tudo que ela lhes contara e mandaram por e-mail para a Thames House, onde foi transformado em mais um verbete sobre o jovem árabe nos arquivos do MI5.
BRIAN E DOMINIC CHEGARAM ao Campus às oito da manhã em ponto. Seus recém-emitidos passes de segurança permitiram-lhes pegar o elevador para o último andar, onde se sentaram e tomaram café por meia hora até Gerry Hendley aparecer. Os gêmeos se empertigaram, especialmente Brian.
— Bom dia — disse o ex-senador ao passar por eles, então parou. — Vocês desejam falar com Sam Granger primeiro, presumo. Rick Pasternak estará aqui por volta das nove e quinze. Sam já deveria estar. Preciso verificar minha mesa agora, okay?
— Sim, senhor — disse Brian. Que diabo, o café até que não estava ruim.
Granger saiu do elevador apenas dois minutos depois.
— Ei, caras. Sigam-me. — E eles o fizeram.
O escritório de Granger não era tão grande quanto o de Hendley, mas não era um cubículo de estagiário, tampouco. Ele apontou cadeiras para os dois visitantes e pendurou seu paletó.
— Com que brevidade vocês estariam prontos para uma missão?
— Hoje está bom para você? — perguntou Dominic em resposta.
Granger sorriu com a resposta, mas gente ansiosa em excesso podia preocupá-lo. Por outro lado, três dias antes... talvez ansiedade não fosse tão ruim, afinal.
— Há um plano? — indagou Brian.
— Há. Trabalhamos nele no fim de semana. — Granger começou com o conceito operacional: reconhecimento pelo fogo.
— Faz sentido — observou Brian. — Onde?
— Na rua, provavelmente. Não vou lhes dizer como realizar uma missão. Só direi o que queremos que seja feito. Como vai ser é com vocês. Bem, para nosso primeiro alvo temos um bom prontuário da localização e dos hábitos. Será apenas uma questão de identificar o alvo certo e decidir quando.
Fazer o serviço, pensou Dominic. Parecia algo extraído de O Poderoso Chefão.
— Quem é ele e por quê?
— Seu nome é Uda bin Sali. Tem 26 anos e mora em Londres.
Os gêmeos trocaram olhares divertidos.
— Eu devia saber — disse Dominic. — Jack nos falou dele. É o cara cheio da nota que gosta de putas, não é?
Granger abriu o envelope de papel pardo que pegara no caminho e passou a eles.
— Fotos de Sali e de suas duas garotas. Local e fotos de sua casa em Londres. Eis aqui uma dele em seu carro.
— Aston Martin — observou Dominic. — Belo carrão.
— Ele trabalha no distrito financeiro, tem um escritório no edifício da Lloyd's Seguradora. — Mais fotos. — Tem uma complicação. Ele costuma ter gente na cola. O Serviço de Segurança britânico, o MI5, fica de olho nele, mas o tira que designaram parece ser novato e está sozinho. Portanto, quando vocês derem o bote, lembrem-se disso.
— Sem arma de fogo, não é? — perguntou Brian.
— Não, temos algo melhor. Sem ruído e dissimulado. Vocês verão quando Rick Pasternak chegar aqui. Nada de armas de fogo para esta missão. Os países europeus não gostam muito de armas, e no mano a mano é muito perigoso. A ideia é fazer parecer que ele teve um ataque cardíaco.
— Resíduos? — indagou Dominic.
— Pergunte a Rick sobre isso. Ele lhes dará todas as dicas.
— O que vamos usar para injetar a droga?
— Uma dessas. — Granger abriu sua gaveta e tirou a caneta azul segura. Entregou a eles e explicou como funcionava.
— Maneira — observou Brian. — Basta espetar na bunda, algo assim?
— Exatamente. Injeta sete miligramas da dose... é chamada de sucinilcolina... e resolve logo a parada. O sujeito desmaia, tem morte cerebral em poucos minutos, e está para lá de morto em menos de dez.
— E quanto à assistência médica? E se houver uma ambulância do outro lado da rua?
— Rick diz que não adianta, a não ser que exista uma sala de cirurgia com médicos esperando ao lado.
— Certo. — Brian pegou a foto do primeiro alvo deles, olhou para ela, mas na verdade via o garoto David Prentiss. — Triste sina, parceiro.
— VEJO QUE NOSSO AMIGO teve um belo fim de semana — dizia Jack para seu computador. O relatório do dia incluía uma foto de uma tal srta. Mandy Davis, juntamente com uma transcrição de sua entrevista com o Ramo Especial da Polícia Metropolitana. — Uma gata.
— Nada barata — observou Wills de seu lugar.
— Quanto tempo resta a Sali? — Jack perguntou.
— Jack, é melhor não especular sobre isso — avisou Wills.
— Porque os dois executores... que diabos, Tony, eles são meus primos!
— Não sei muito sobre isso e nem quero descobrir. Quanto menos soubermos, menos problemas. Ponto final.
— Assim diz você, cara — respondeu Jack. — Mas qualquer simpatia que eu possa ter tido por esse babaca morreu quando ele começou a financiar grupos armados. Há limites que não se pode ultrapassar.
— Certo, Jack, há mesmo. Tome cuidado para você mesmo não ultrapassá-los rápido demais.
Jack Ryan Jr. pensou a respeito por um segundo. Ele queria ser um assassino? Provavelmente não, mas havia gente que precisavam matar, e Uda bin Sali tinha entrado nessa categoria. Se seus primos iam acabar com ele agora, estavam apenas fazendo o trabalho do Senhor — ou o trabalho de seu país, que, pelo modo como tinha sido criado, era quase a mesma coisa.
— RÁPIDO ASSIM, DOUTOR? — perguntou Dominic.
Pasternak assentiu.
— Rápido assim.
— É confiável? — indagou Brian em seguida.
— Cinco miligramas bastam. Esta caneta injeta sete. Se alguém sobreviver, seria um milagre. Infelizmente, será uma morte muito desagradável, mas não é possível evitar. Quero dizer, podíamos usar toxina de botulismo... é uma neurotoxina de ação muito rápida... mas deixa vestígios no sangue que apareceriam num exame toxicológico post-mortem. A sucinilcolina se metaboliza muito perfeitamente. Detectá-la seria esperar outro milagre, a não ser que o patologista saiba exatamente o que procurar, o que é improvável.
— Com que rapidez exatamente?
— De vinte a trinta segundos, depende de se atingir um vaso sanguíneo importante. A seguir, o agente químico causa paralisia total. Ele não pode sequer piscar os olhos. Não pode mexer seu diafragma, portanto, nada de respiração, nada de oxigênio nos pulmões. Seu coração continuará batendo, mas como é o órgão que vai usar a maior parte de oxigênio, ele estará isquêmico em questão de segundos... o que significa que, sem oxigênio, o tecido cardíaco começa a morrer por falta dele. A dor será maciça. Em geral, o corpo tem um suprimento extra de oxigênio, o que depende muito da condição física. Entre nós, o obeso tem menos reserva de oxigênio do que o magro. De qualquer modo, o coração será o primeiro. Ele tentará continuar a bater, mas isso só piora a dor. A morte cerebral ocorre em três ou seis minutos. Até então, ele pode ouvir, mas não ver...
— Por que não? — perguntou Brian.
— As pálpebras provavelmente se fecharão. Estamos falando aqui de paralisia total. Assim, ele ficará jazendo lá, sofrendo uma dor enorme, incapaz de se mover, com seu coração tentando bombear sangue desoxigenado até que as células cerebrais morram de anoxia. Depois disso, é teoricamente possível manter o corpo vivo... as células musculares duram mais sem oxigênio... mas o cérebro terá ido embora. Tudo bem, isto não é tão seguro quanto uma bala nos miolos, mas não faz nenhum barulho e virtualmente não deixa nenhuma evidência. Quando as células cardíacas morrem, elas geram enzimas que procuramos para um provável ataque cardíaco. Assim, qualquer patologista que autopsiar o corpo pensará em ataque cardíaco ou convulsão neurológica. Um tumor cerebral pode causar isso, e talvez ele vá escavar o cérebro procurando um. Mas tão logo chegue o exame de sangue, o teste de enzimas dirá ataque cardíaco, e tudo acaba ali mesmo. O teste sanguíneo não revelará a sucinilcolina porque ela se metaboliza mesmo depois da morte. Eles terão nas mãos um inesperado ataque cardíaco fulminante, o que acontece todos os dias. Farão outros exames de sangue para aferir colesterol e outros fatores de risco, mas nada mudará o fato de que ele morreu de uma causa que jamais imaginariam.
— Puxa... — suspirou Dominic. — Doutor, como diabos você se meteu nesse serviço?
— Meu irmão mais novo era vice-presidente da Cantor Fitzgerald — foi tudo o que disse.
— Então temos que tomar cuidado com essas canetas, hein? — perguntou Brian. A resposta bastou para ele:
— Eu tomaria.
_______________
1 Special Branch é um rótulo usado para identificar unidades responsáveis por questões de segurança nacional e inteligência nas forças policiais britânicas e da Commonwealth.
17
E A RAPOSINHA VERMELHA E A PRIMEIRA CERCA
ELES PARTIRAM do Aeroporto Internacional Dulles num avião da British Airways, que veio a ser um 747 cujas superfícies de controle o próprio pai deles havia desenhado 27 anos antes. Ocorreu a Dominic que ainda usava fraldas na época, e que o mundo mudara pouco daquele dia para cá. Ambos tinham passaportes, novos em folha, em seus próprios nomes. Todos os outros documentos relevantes estavam nos laptops, plenamente criptografados, junto com modems e software de comunicação, também plenamente criptografados. E estavam vestidos informalmente, como a maioria dos outros da primeira classe.
Os comissários de bordo circulavam com eficiência, distribuindo petiscos a todos, juntamente com vinho branco para os gêmeos. Enquanto ganhavam altitude, a comida era boa — mais ou menos o melhor que pode ser dito de comida de avião — e então veio a seleção de filmes: Brian escolheu Independence Day, enquanto Dominic optou por Matrix. Ambos gostavam de ficção científica desde pequenos. Levavam no bolso suas canetas de ouro. Os cartuchos de recarga iam nos kits de barbear, empacotados na bagagem regular em algum compartimento abaixo. Levaria umas seis horas até Heathrow, e ambos esperavam dormir um pouco na viagem.
— Repensando, Enzo? — perguntou Brian baixinho.
— Não — replicou Dominic. — Apenas imaginando se vai funcionar. — As celas de prisão na Inglaterra não tinham encanamento, ele não acrescentou e, não importa o quanto isso pudesse ser embaraçoso para um oficial marine, seria positivamente humilhante para um agente especial de carreira do FBI.
— É justo. Boa noite, mano.
— Entendido, fuzileiro. — E ambos pelejaram com os controles para reclinar as poltronas. E assim o Atlântico foi passando embaixo deles por quase cinco mil quilômetros.
DE VOLTA A SEU apartamento, Jack Jr. soube que os primos estavam viajando para além-mar, e embora não lhe tivessem dito exatamente por que, a missão deles não exigia um espetacular salto de imaginação. Certamente Uda bin Sali não viveria até o fim daquela semana. Ele saberia disso pelas mensagens matinais da Thames House, e viu-se imaginando o que os britânicos diriam, se estariam excitados ou lamentosos. Por certo, ele saberia muito sobre como o trabalho tinha sido feito. Isso atiçava sua curiosidade. Ele passou muito tempo em Londres para saber que pistoleiros não eram permitidos lá, a não ser que fosse uma execução sancionada pelo governo. Num caso assim — se o Serviço Aéreo Especial despachasse por exemplo alguém especialmente detestado em Downing Street n° 10 —, a polícia sabia que não devia se aprofundar muito no caso. Talvez apenas umas entrevistas pró-forma, o suficiente para estabelecer um dossiê antes de enfiá-lo numa estante de CASOS INSOLÚVEIS para acumular poeira e pouco interesse. Não era preciso ser cientista de foguete para imaginar essas coisas.
Mas seria um ataque americano em solo britânico, e isso, ele tinha certeza, não agradaria ao governo de Sua Majestade. Era uma questão de soberania. Além do mais não era uma ação do governo americano. Para a lei, era assassinato premeditado, e para isso todos os governos franziam o cenho. Assim, o que quer que acontecesse, ele esperava que os primos fossem cuidadosos. Nem mesmo seu pai poderia interferir muito.
— AH, UDA, VOCÊ É UM ANIMAL — exclamou Rosalie Parker enquanto ele finalmente rolava para fora de seu corpo. Ela consultou o relógio. Uda se atrasara, e ela tinha um compromisso logo depois do almoço do dia seguinte com um executivo de petróleo de Dubai. Era um coroa amável e generoso nas gorjetas, mesmo tendo dito uma vez que ela lembrava uma de suas filhas favoritas, o velho patife sem-vergonha.
— Passe a noite — pediu Uda.
— Não posso, amor. Tenho que pegar minha mãe para almoçar e depois levá-la às compras na Harrods. Meu Deus, preciso cair fora — disse, com um bem dissimulado nervosismo, saltando da cama.
— Não — Uda alcançou seu ombro e a puxou de volta.
— Ah, seu demônio! — Um risinho e um sorriso cálido.
— Ele é chamado Shahateen — corrigiu Uda. — E não faz parte da minha família.
— Bem, você pode usar uma garota de fora, Uda. — Não que fosse ruim, mas ela tinha coisas a fazer. Assim, levantou-se e catou as roupas do chão.
— Rosalie, meu amor, só existe você — gemeu ele. E ela soube que era mentira. Afinal, ela o apresentara a Mandy.
— É mesmo?
— Ah, aquela outra. Ela é magra demais. Parece que não come. Não é como você, minha princesa.
— Como você é gentil. — Uma inclinada, um beijo, depois vestiu o sutiã. — Uda, você é o melhor; o melhor de todos — disse ela. Era sempre bom estimular o ego masculino, e o ego dele era maior que o da maioria.
— Você só diz isso para me agradar — acusou Sali.
— Você pensa que sou uma atriz? Uda, você faz meus olhos saltarem das órbitas. Mas preciso ir, amor.
— Já que você diz... — Ele bocejou. Compraria sapatos para ela no dia seguinte, decidiu. Havia uma nova loja Jimmy Choo perto do escritório que ele pretendia visitar, e ela calçava 36. Ele gostava muito dos pés dela.
Rosalie deu uma ida rápida ao banheiro para se olhar no espelho. O cabelo estava um horror — Uda vivia desmanchando-o, como se para marcar sua propriedade. Uma escovada de poucos segundos tornou-o quase apresentável.
— Preciso ir, amor. — Ela inclinou-se e o beijou de novo. — Não se levante. Sei onde fica a porta. — E um beijo final, prolongado e convidativo... para a próxima vez. Uda era tão cliente quanto um cliente podia ser. E ela voltaria. Mandy era boa, e uma amiga, mas ela sabia como tratar esses caras do Oriente e, melhor que tudo, não tinha que passar fome como uma falsa modelo. Mandy tinha muitos fregueses americanos e europeus para poder comer normalmente. Lá fora, fez sinal para um táxi.
— Para onde, querida? — perguntou o taxista.
— New Scotland Yard, por favor.
ERA SEMPRE DESORIENTADOR acordar num avião, mesmo em boas poltronas. As persianas da janela estavam levantadas, as luzes da cabine se acenderam e os fones de ouvido davam notícias que podiam ou não ser novas — como eram notícias britânicas, não era fácil saber. O café da manhã foi servido — cheio de gordura, com um autêntico Starbucks que merecia mais ou menos um 6 numa escala de 1 a 10. Talvez 7. Através das janelas à direita, Brian viu os campos verdes da Inglaterra em vez do preto-ardósia do oceano tormentoso que tinham atravessado durante seu sono felizmente sem sonhos. Os gêmeos temiam sonhos exatamente agora, pelo passado que continham e pelo futuro que receavam, apesar de seu comprometimento.
Mais vinte minutos e o 747 aterrissou suavemente em Heathrow. A Imigração foi uma formalidade gentil — os britânicos faziam melhor que os americanos, Brian achava. A bagagem rolou na esteira com rapidez e eles caminharam para o ponto de táxis.
— Para onde, cavalheiros?
— Mayfair Hotel, Stratton Street.
O motorista pegou a informação com um aceno de cabeça e partiu para leste em direção à cidade. A corrida durou vinte minutos com o começo da hora de pico matinal. Era a primeira estada de Brian na Inglaterra, para Dominic, não. As paisagens eram agradáveis para o segundo, novas e aventurosas para o primeiro. Era como em casa, pensou Brian, exceto que as pessoas dirigiam na contramão. À primeira vista, os motoristas também pareciam mais corteses, mas era difícil de aferir. Viram pelo menos um campo de golpe com grama verde-esmeralda, fora isso o pico de tráfego não diferia em nada de Seattle.
Meia hora depois, estavam olhando para o Green Park, que era, de fato, ele mesmo lindamente verde, depois o táxi virou à esquerda, rodou mais dois quarteirões e entrou à direita, e lá estava o hotel. Logo do outro lado da rua havia uma concessionária de Aston Martin, que pareciam tão reluzentes quanto os diamantes na vitrine da Tiffany's de Nova York. Era claramente uma vizinhança abonada. Embora já tivesse estado em Londres, Dominic não ficara nesta parte da cidade. Os hotéis europeus podiam dar lições aos congêneres americanos em termos de serviço e hospitalidade. Mais seis minutos e estavam em seus quartos contíguos. As banheiras eram grandes o bastante para exercitar um tubarão, e as toalhas pendiam de um porta-toalhas aquecido a vapor.
O minibar era generoso na variedade, se não nos preços. Os gêmeos levaram um bom tempo no banho. Faltavam quinze para as nove, e como a Berkeley Square ficava a apenas 100 metros, deixaram o hotel e se dirigirem à esquerda para o marco divisório onde os rouxinóis cantavam.
Dominic deu uma cotovelada no irmão e apontou à esquerda.
— O MI5 costumava ter um prédio daquele lado, na Curzon Street. Para ir à embaixada você tem que subir a colina, virar à esquerda, seguir mais dois quarteirões, dobrar à direita e depois à esquerda para a Grosvenor Square. Prédio feio, mas é o seu governo. E o nosso amigo mora perto... lá, do outro lado do parque, a meio quarteirão do Banco Westminster. É aquele com um cavalo no letreiro.
— Parece caro este lugar — observou Brian.
— Pode crer — confirmou Dominic. — Essas casas custam uma tonelada de dinheiro. A maioria é dividida em três apartamentos, mas nosso amigo Uda mantém a coisa toda para ele, uma Disney de sexo e dissipação. Hum — observou, ao ver uma van da British Telecom estacionar uns 20 metros adiante. — Aposto que é a equipe de vigilância... só que um tanto óbvia. — Não havia ninguém visível no veículo, mas isso porque as janelas tinham películas protetoras. Era o único veículo modesto na rua — nesta vizinhança, tudo era de Jaguar para cima. A grande pérola, computadorizada, era o Vanquish preto do outro lado do parque.
— Porra, aquele carro é uma esnobação — disse Brian. De fato, parecia que estar voando a 100 por hora apenas parado ali defronte à casa.
— O campeão de verdade é o McLaren F1. Um milhão de paus, mas só tem lugar na frente, acho. Rápido como um avião de caça. Aquele para o qual está olhando é um carro que vale um quarto de milhão, mano.
— Porra... — reagiu Brian. — Isso tudo?
— É feito à mão, Aldo, por caras que trabalham na Capela Sistina nas horas vagas. É, é veloz pra caramba. Gostaria de poder ter um. Você talvez pudesse pôr o motor dele num Spitfire e bombardear alguns alemães, sabia?
— Provavelmente bebe paca — observou Brian.
— Ah, claro... Tudo tem seu precinho... Merda. Lá está nosso garoto.
A porta da casa se abriu e um homem jovem saiu. O terno que usava era de três peças cinza. Parou no meio dos quatro degraus de pedra e consultou o relógio. Como se na hora exata, um táxi preto londrino assomou na colina e ele desceu os degraus para embarcar. Um metro e setenta e cinco, cerca de setenta quilos, pensou Dominic. Barba preta abaixo da linha da mandíbula, como se saído de um filme de piratas. O sacana deveria usar uma espada... mas não usa.
— Mais novo do que nós — observou Brian enquanto continuavam a caminhar. Então, por iniciativa de Dominic, cruzaram o parque e seguiram de volta para o outro lado, devagar, para uma olhada cobiçosa no Aston Martin antes de prosseguirem.
O hotel tinha uma cafeteria, onde pararam para um café e um desjejum leve de croissants e geleia.
— Não gosto da ideia da tocaia sobre nosso pássaro — disse Brian.
— É inevitável. Os britânicos devem achar que ele é meio suspeito também. Mas ele vai ter apenas um ataque cardíaco, lembre-se. Não é como se fôssemos atirar nele, mesmo com silenciadores. Nada de marcas, nenhum ruído.
— Certo, ótimo, nós o checamos no centro da cidade, mas se não parecer bom, cancelamos e voltamos para pensar no assunto, okay?
— De acordo — assentiu Dominic. Eles tinham que ser muito engenhosos na missão.
Dominic provavelmente assumiria a liderança porque era sua tarefa localizar o cola policial do sujeito. Mas também não fazia sentido esperar demais. Eles tinham olhado para a Berkeley Square só para ter uma noção e esperando dar uma sacada no alvo. Não seria um bom lugar para dar o bote, não com uma equipe de vigilância acampada a 30 metros.
— A boa notícia é que o cola dele deve ser um novato. Se eu puder identificar o cara, então, quando estivermos prontos, você apenas esbarra nele e... diabo, peço informações sobre uma coisa ou outra. Você só precisa de um segundo para dar a espetadela. Depois continuamos em frente como se nada houvesse acontecido. Mesmo se pessoas gritarem por uma ambulância, nada mais que uma virada casual e continuar em frente.
Brian pensou nisso de sua maneira.
— Temos que checar a vizinhança primeiro.
— De acordo. — Eles encerraram o desjejum sem falar mais nada.
SAM GRANGER já estava no escritório. Eram 3h15 da manhã quando chegou e ligou seu computador. Os gêmeos tinham chegado a Londres por volta de uma da manhã, pelo seu horário, e alguma coisa no fundo de sua mente dizia que eles não iam demorar na missão. Esta primeira missão validaria — ou não — a ideia do Campus como agência virtual. Se tudo corresse de acordo com o plano, ele saberia do progresso da operação ainda mais depressa do que Rick Bell conseguiria pela rede de inteligência. Agora vinha a parte que ele sempre soube que odiaria: esperar que outros executassem a missão que ele esboçara em sua própria mente, aqui nesta mesma mesa. O café ajudou. Um charuto teria ajudado ainda mais, mas ele não tinha charutos. Foi então que a porta se abriu. Era Gerry Hendley.
— Você também? — perguntou Sam, tanto com surpresa quanto divertimento.
Hendley sorriu.
— Bem, é a primeira vez, certo? Não consegui dormir.
— Eu entendo. Trouxe um baralho? — pensou em voz alta.
— Bem que gostaria. — Hendley era realmente muito bom num carteado. — Alguma notícia dos gêmeos?
— Nada. Eles chegaram no horário, podem estar no hotel agora. Imagino que chegaram lá, repousaram e saíram para dar uma olhada. O hotel fica a um quarteirão da casa de Uda. Diabos, por tudo que sei, eles já podem ter espetado a bunda dele. O timing é quase perfeito. Ele está indo para o trabalho agora, se o pessoal calculou bem sua rotina, e creio que podemos acreditar nisso.
— Sim, a não ser que ele tenha recebido uma chamada inesperada ou leu alguma coisa nos jornais que capturou seu interesse, ou sua camisa preferida não estava bem passada. A realidade é análoga, Sam, não digital, lembra?
— Não sabemos? — concordou Granger.
O DISTRITO FINANCEIRO parecia exatamente como era, embora um tanto mais doméstico do que as torres-alvo de aço e vidro de Nova York. Também havia algumas torres, claro, mas não eram tão opressivas. A meio quarteirão de onde saltaram do táxi ficava uma parte da muralha original romana que circundara a cidade de Londinium, como a capital britânica era originalmente conhecida, um lugar selecionado por seus bons poços e amplo rio. O povo aqui era especialmente bem vestido, eles notaram, e as lojas eram de alta classe numa cidade em que poucas coisas eram de baixa. O fator agitação era alto, multidões se movendo com pressa e propósito. Havia também um suprimento de pubs, a maioria com lousas nas portas anunciando seus cardápios escritos a giz. Os gêmeos escolheram um com visão privilegiada do edifício da Lloyd's. Agradavelmente, tinham mesas externas, como se estivessem num restaurante romano perto da Piazza di Spagna. O céu claro negava a reputação chuvosa de Londres. Os dois estavam suficientemente bem-vestidos para não parecerem turistas americanos óbvios demais. Brian avistou uma caixa automática ATM e sacou algum dinheiro, que dividiu com o irmão, e depois pediram café — eram americanos demais para tomar chá — e esperaram.
NO SEU ESCRITÓRIO, SALI estava trabalhando no computador. Tinha uma chance de comprar uma mansão em Belgravia — uma vizinhança ainda mais abonada que a sua — por 8,5 milhões de libras, o que não era exatamente uma pechincha, mas tampouco era excessivo. Certamente poderia alugá-la por uma boa soma. Era uma propriedade, significando que ao comprar a casa se tornava também dono do terreno, livrando-se de pagar aforamento ao duque de Westminster. Que também não era excessivo, mas aumentava o gasto. Ele tomou nota para olhar nesta semana. Quanto ao mais, os valores da moeda estavam completamente estáveis. Tinha especulado com câmbio alguns meses, mas realmente achava que não tinha competência para se aprofundar no assunto. Pelo menos por enquanto. Talvez devesse falar com algumas pessoas experientes. Tudo o que podia ser feito também podia ser aprendido, e com acesso a mais de 200 milhões de libras ele se capacitava a jogar sem causar muito prejuízo ao dinheiro do pai. De fato, ele estava garantido este ano por 9 milhões de libras, o que não era tão mau. Na hora seguinte, ele ficou no computador e procurou tendências — a tendência é sua amiga — tentando extrair sentido delas. O verdadeiro truque, ele sabia, era identificá-las cedo — cedo o bastante para comprar na baixa antes que a cotação subisse — mas, embora estivesse enfronhando nisso, ainda não adquirira essa habilidade especial. Se a tivesse, sua conta de títulos teria ficado acima de 31 milhões de libras, em vez de meros nove. Paciência, achava ele, era uma virtude tremendamente difícil de adquirir. Tanto melhor quando se era jovem e brilhante.
Seu escritório também tinha uma TV, claro, e ele a sintonizou num canal financeiro americano que falava na iminente queda da libra em relação ao dólar, embora os motivos para tal não soassem inteiramente convincentes, e ele pensou melhor sobre comprar 30 milhões de dólares em especulação. Seu pai já o havia prevenido sobre especulação, e como se tratava do dinheiro do pai, ele ouvira atentamente e garantira ao velho sacana que cumpriria sua vontade. Nos dezenove meses anteriores, ficou apenas 3 milhões de libras abaixo, e a maioria dos erros vinha de um ano antes dele. O portfólio imobiliário estava indo muito bem, comprando principalmente propriedades de ingleses idosos e vendendo-as depois a seus próprios compatriotas, que em geral pagavam em dinheiro ou em seu equivalente eletrônico. Em tudo e por tudo, ele se considerava um especulador imobiliário de grandes e crescentes talentos. E, claro, um amante soberbo. O meio-dia ainda estava chegando e sua virilha já doía por Rosalie. Ela estaria disponível à noite? Por mil libras ela viria, pensou Uda. Assim, pouco antes do meio-dia,pegou o telefone e bateu no número nove de discagem rápida.
— Minha adorada Rosalie, aqui é Uda. Se puder vir esta noite, por volta de sete e meia, terei uma coisa linda para você. Já sabe meu número, querida. — E desligou o telefone. Esperaria mais ou menos até as quatro, e se ela não retornasse, ligaria para Mandy. De fato era raro o dia em que ambas estivessem ocupadas. Ele preferia acreditar que elas gastassem tempo demais fazendo compras ou jantando com amigos. Afinal, quem pagava melhor do que ele? E ele queria ver o rosto de Rosalie quando ela ganhasse os sapatos novos. As mulheres inglesas realmente gostavam desse tipo de sapatos. A seu ver, os desenhos pareciam grotescamente desconfortáveis, mas mulheres eram mulheres, não homens. Pelas suas fantasias, ele dirigia seu Aston Martin. As mulheres preferiam pés doloridos. Vá se entender as mulheres...
BRIAN FICOU LOGO entediado de apenas ficar ali sentado olhando para o Lloyd's. Além disso, seus olhos doíam. Era mais do que deselegante, era positivamente grotesco, como uma instalação da Du Pont revestida de vidro para produzir gás asfixiante ou algum outro produto químico nocivo. Também era provavelmente uma ocupação ridícula ficar olhando para uma coisa por longo tempo. Havia algumas lojas na rua, também nada baratas. Uma loja de roupas masculinas e outras de belo aspecto para mulheres, e uma sapataria que parecia ser caríssima. Era um item que não o incomodava muito. Ele tinha sapatos de bom couro preto — estava com eles agora —, um bom par de tênis que comprara num dia que era melhor esquecer, e quatro pares de botas de combate, dois pretos e dois cor de camurça que o Corpo de Fuzileiros estava adotando, exceto para desfiles e outros eventos oficiais que com frequência nada diziam aos marines come-cobra da Force Recon. Todos os fuzileiros, em princípio, deviam ser soldados garbosos, mas os do esquadrão Cobra eram considerados aquele lado da família do qual não se fala muito. E ele ainda procurava se entender com o tiroteio da semana anterior. Nem mesmo os caras que caçou no Afeganistão tentaram matar mulheres e crianças, pelo menos que ele soubesse. Eram bárbaros, claro, mas até os bárbaros precisam de limites. Exceto com o bando deste cara. Aquilo não era viril — nem mesmo a barba dele era viril. A dos afegãos era, mas este cara parecia mais um tipo de cafetão. Ele era, em suma, indigno do aço dos fuzileiros; não era um homem para ser morto, mas uma barata a ser exterminada. Mesmo que dirigisse um carro que custava mais do que um capitão marine ganhava em dez anos, antes dos impostos. Um oficial dos Fuzileiros podia poupar para comprar um Chevrolet Corvette, mas, não, esse escroto tinha que ter o carro do neto de James Bond, desfilar nele com as putas que alugava. Pode-se chamá-lo de um monte de coisas, mas homem não estava definitivamente entre elas, pensou, preparando-se subconscientemente para a missão.
— Vamos à caça, Aldo — disse Dominic, pondo dinheiro na mesa para pagar a conta.
Ambos se levantaram e caminharam inicialmente para longe do alvo. Pararam na esquina e se viraram como se procurassem alguma coisa. Lá estava Sali...
... e o cola de Sali. Vestido dispendiosamente como um trabalhador. Ele também surgiu de um pub, Dominic reparou. Era de fato um principiante. Seus olhos fixavam obviamente demais o alvo, embora permanecesse para trás uns 50 metros, claramente despreocupado em ser notado. Sali não era provavelmente o mais alerta dos sujeitos, não era escolado em contravigilância. Sem dúvida se achava perfeitamente a salvo. Talvez também se achasse muito perspicaz. Todos os homens tinham suas ilusões. Este aqui provaria ser mais sério que o normal.
Os irmãos perscrutaram a rua. Centenas de pessoas no mesmo nível de visão. Montes de carros no asfalto. A visibilidade era boa — um pouco boa demais — mas Sali estava se apresentando a eles como que de propósito, e isso era bom demais para deixar passar...
— Plano A, Enzo? — perguntou Brian rapidamente. Eles tinham três planos elaborados, mais o sinal de cancelamento.
— Entendido, Aldo. Vamos nessa. — Eles se separaram, seguindo em direções opostas na esperança de que Sali se virasse para o pub cujo péssimo café tinham suportado pouco antes. Os dois usavam óculos de sol para ocultar a direção do olhar. No caso de Aldo, o espião na cola de Sali. Era provavelmente uma rotina para ele, algo que fazia há semanas, e ninguém faz isso muito tempo sem cair na rotina, prevendo o que o alvo faria, fixando-se nele, não checando a rua como supostamente deveria. Mas estava em Londres, talvez a sua praia, da qual imaginava saber tudo sem nada temer. Mais ilusões perigosas. Sua única tarefa era observar um sujeito não muito intrigante no qual a Thames House tinha algum inexplicado interesse. Os hábitos do sujeito estavam bem estabelecidos e não representava perigo para ninguém, pelo menos não nessa área. Um garotão rico mimado, era tudo. Agora ele dobrava à esquerda após atravessar a rua. Fazendo compras, parecia. Sapatos para uma das damas, presumiu o agente do MI5. Presentes melhores do que ele podia dar para a sua muito importante dama. E olhe que ele estava noivo, resmungou o espião em sua própria mente.
HAVIA UM BELO PAR DE SAPATOS na vitrine, viu Sali, couro preto e acabamento dourado. Ele pulou infantilmente na calçada, e virou para a entrada da loja, sorrindo antecipadamente à expressão que Rosalie teria nos olhos quando abrisse o presente.
Dominic pegou seu mapa Chichester do centro de Londres, um livrinho vermelho que abriu enquanto ultrapassava o sujeito, sem chegar a fitá-lo diretamente, deixando que sua visão periférica fizesse o serviço. O cola parecia até mais jovem do que ele e seu irmão, provavelmente na primeira missão fora da academia, designado para um alvo fácil exatamente por isso. Tinha ficado talvez um pouco nervoso, daí seus olhos fixos e os punhos crispados. Dominic não era muito diferente um ano e pouco antes, em Newark, jovem e diligente. Ele parou e se virou rapidamente, avaliando a distância de Brian para Sali. Brian estaria fazendo exatamente a mesma coisa, claro, e sua tarefa era sincronizar o movimento com o do irmão, que era o líder. Okay. Mais uma vez sua visão periférica assumiu, até os últimos poucos passos.
Depois seus olhos se fixaram no cola. Os olhos do britânico notaram, e seu olhar também se desviou. Ele parou quase automaticamente e ouviu o turista ianque perguntar estupidamente: — Desculpe, poderia me dizer onde... — Dominic pegou seu mapa para ilustrar o quanto estava perdido.
BRIAN METEU a mão no bolso e tirou a caneta dourada. Torceu a extremidade e a ponta preta mudou para uma ponta de irídio quando pressionou o clipe de obsidiana para baixo. Seus olhos concentraram-se no alvo. A quase um metro de distância, ele deu meio passo à direita como se para evitar alguém que não estava ali, afinal, e esbarrou em Sali.
— A TORRE DE LONDRES? Ora, é só seguir ali à direita — disse o cara do MI5, virando-se para apontar. Perfeito.
— DESCULPE — disse Brian e deixou o homem passar com meio passo à esquerda. E então a caneta desceu num movimento de estocada para trás e pegou o sujeito bem na nádega direita. A ponta oca da seringa penetrou talvez uns três milímetros. A carga de CO2 disparou, injetando seus sete miligramas de sucinilcolina no tecido mais musculoso da anatomia de Sali. E Brian Caruso continuou a caminhar.
— AH, OBRIGADO, amigão — disse Dominic, enfiando o livro de volta no bolso e dando um passo na direção indicada. Quando se viu livre do cola, parou e se virou — era um tremendo vacilo e ele sabia disso — para ver Brian pôr a caneta no bolso do paletó. Seu irmão então esfregou o nariz, no gesto, combinado de antemão, de MISSÃO CUMPRIDA.
SALI ESTREMECEU ligeiramente ao esbarrão ou picada — fosse o que fosse — em seu traseiro, mas não era nada sério. A mão direita recuou para esfregar o local, mas a dor sumiu imediatamente. Ele deu de ombros e continuou seguindo para a sapataria.
Deu talvez mais uns dez passos e então percebeu...
... que sua mão direita tremia levemente. Parou para olhar para ela, alcançando-a com a mão esquerda...
... que tremia também. Por que...
... suas pernas fraquejavam e seu corpo caía verticalmente na calçada de cimento? Seus joelhos se chocaram contra a superfície dura, numa dor insuportável. Tentou inspirar profundamente para espantar a dor e o embaraço...
... mas ele não respirava. A sucinilcolina havia penetrado todo o seu corpo agora e neutralizara qualquer interface nervo-músculo que ainda existisse nele. A última coisa a entrar em colapso foram suas pálpebras, e Sali, o rosto agora se aproximando da calçada, não viu a si mesmo atingi-la. Em vez disso, foi envolvido pela escuridão — na verdade, vermelhidão, pela luz de baixa frequência que penetrava o fino tecido de suas pálpebras. Muito rapidamente, seu cérebro foi dominado primeiro pela confusão que precedia o pânico.
O que é isso?, exigia sua mente de si mesma. Ele podia sentir o que estava acontecendo. Sua testa se apoiava na áspera superfície do cimento. Podia ouvir os passos das pessoas à direita e à esquerda. Tentou virar a cabeça — não, primeiro tinha que abrir os olhos...
... mas eles não abriam. O que é isso?!!!...
... ele não estava respirando...
... forçou-se a respirar. Como se debaixo d água numa piscina e vindo à tona para respirar após conter o fôlego por um longo tempo desconfortável, dizia à sua boca para se abrir e seu diafragma a se expandir...
... mas nada acontecia!...
... O que é isso?, sua mente gritou para si mesma.
Seu corpo operava segundo sua própria programação. Enquanto o dióxido de carbono se estabelecia em seus pulmões, comandos automáticos foram de lá para o diafragma expandir os pulmões na tomada de mais ar para substituir o veneno no seu interior.
Porém nada aconteceu e, com aquele retalho de informação, seu corpo entrou em pânico por si só. As glândulas suprarrenais inundaram a corrente sanguínea — o coração ainda estava bombeando — com adrenalina e, com este estimulante natural, sua consciência aumentou e o cérebro entrou em sobremarcha...
O que é isso?, perguntava Sali urgentemente mais uma vez, pois agora o pânico começava a prevalecer. Seu corpo o estava traindo de um jeito que ia além da imaginação. Ele estava sufocando no escuro sobre uma calçada no centro de Londres em plena luz do dia. A superdose de CO2 nos pulmões não causava realmente dor, mas seu corpo levava o fato à mente como tal. Alguma coisa estava muito errada e não fazia nenhum sentido, como ser atingido na rua por um caminhão — não, como ser atropelado por um caminhão na sua sala de estar. Estava acontecendo rápido demais para ele apreender tudo isso. Não fazia sentido, e era tão... surpreendente, espantoso, atordoante.
Mas tampouco podia ser negado.
Continuou comandando-se a respirar. Tinha que acontecer. Isso nunca tinha não acontecido antes, portanto devia. A seguir sentiu sua bexiga se esvaziando, mas o lampejo de vergonha foi imediatamente superado pelo pânico crescente. Ele podia ouvir tudo. Mas não podia fazer nada, nada. Era como ser apanhado nu na própria corte do rei em Riad com um porco nos braços...
... e então a dor começou. Seu coração batia freneticamente, agora a 160 batimentos por minuto, mas ao fazer isto estava apenas enviando sangue desoxigenado para o seu sistema cardiovascular e, em assim fazendo, o coração — o único órgão realmente ativo — havia usado todo o oxigênio livre e em reserva no seu corpo...
... e privadas de oxigênio, as fiéis células cardíacas, imunes ao relaxante muscular que tinha se inserido no corpo do seu dono, começaram a morrer.
Foi a maior dor que o corpo pode conhecer, como se cada célula separada começasse a morrer, começando no coração, o perigo disso sendo imediatamente reportado ao corpo como um todo, e as células agora estavam morrendo aos milhares, cada qual ligada a um nervo que gritava no cérebro que a MORTE estava acontecendo, e acontecendo agora...
Ele não podia sequer fazer caretas. Era como uma adaga em fogo no seu peito, retorcendo, empurrando cada vez mais fundo. Era a sensação da Morte, algo entregue pela mão do próprio íblis, pela própria mão de Lúcifer...
E esse foi o instante em que Sali viu a Morte chegando, cavalgando através de um campo de fogo para levar sua alma para a Perdição. Apressadamente, mas num estado de pânico interno, Uda bin Sali pensou tão alto quanto podia as palavras da Shahada: Não existe nenhum Deus senão Alá e Maomé é Seu profeta... Não existe nenhum Deus senão Alá e Maomé é Seu profeta... Não existe nenhum Deus senão Alá e Maomé é Seu profeta...
...Nãoexistenenhumdeusenãoaláemaomééseuprofeta.
Suas células cerebrais também estavam privadas de oxigênio e igualmente começaram a morrer e, nesse processo, os dados que continham foram despejados numa consciência diminuída. Ele viu seu pai, seu cavalo preferido, a mãe diante de uma mesa cheia de comida — e Rosalie. Rosalie montada em cima dele, seu rosto pleno de deleite, que de alguma maneira se tornava mais distante... se desvanecendo... desvanecendo...
desvanecendo...
... para escurecer.
Pessoas se aglomeravam em torno dele. Alguém se agachou e disse: Ei, você está bem?
Uma pergunta cretina, mas era o que as pessoas perguntavam em tais circunstâncias.
Então a pessoa — era um vendedor de periféricos de computador que se dirigia a um pub próximo para uma caneca de cerveja e um típico almoço com pão, queijo e picles — sacudiu seu ombro. Não houve nenhuma resistência, afinal, foi como virar uma peça de carne num açougue... E isso o assustou mais do que uma pistola carregada teria feito.
Imediatamente, ele virou o corpo e sentiu a pulsação. Não havia nenhuma. O coração batia freneticamente — mas o homem não estava respirando. Cacete...
A 10 metros de distância, o cola de Sali estava com seu celular, chamando o serviço de emergência. Havia um corpo de bombeiros ali perto e o Guy's Hospital ficava do outro lado da Tower Bridge. Como muitos espiões, ele havia começado a se identificar com o sujeito, embora o detestasse. E ver o homem esparramado na calçada o abalou profundamente. O que tinha acontecido? Ataque cardíaco? Mas ele era um jovem...
BRIAN E DOMINIC se encontraram num pub, colina acima da Torre de Londres.
Escolheram um reservado e, mal tinham se sentado, uma garçonete se aproximou e perguntou o que eles queriam.
— Duas canecas — disse-lhe Enzo.
— Só temos Tetley's Smooth e John Smith's, amor.
— Qual a que você bebe? — disse Brian de volta.
— A John Smith's, claro...
— Duas canecas dessa — pediu Dominic, pegando o cardápio que ela oferecia.
— Não sei se estou a fim de comer, mas a cerveja é uma boa ideia — disse Brian pegando o cardápio, as mãos tremendo levemente.
— E um cigarro, talvez — riu Dominic. Como a maioria dos garotos, eles haviam experimentado fumar no ginásio, mas ambos juraram largar antes de se viciar. Além disso, a maquina de cigarros no canto era feita de madeira, e talvez complexa demais um estrangeiro operar.
— É, tá certo — Brian repeliu a ideia.
Tão logo as cervejas chegaram, eles ouviram a nota dissonante de uma ambulância a três quarteirões.
— Como se sente? — perguntou Enzo ao irmão.
— Um pouco abalado.
— Pense na sexta-feira passada — sugeriu o agente do FBI ao fuzileiro.
— Não estou dizendo que me arrependo, ô babaca. Fica-se apenas um pouco balançado. Despistou o cola?
— Claro, ele olhava bem nos meus olhos quando você deu a espetadela. Seu alvo andou talvez uns seis metros antes de desabar. Não vi nenhuma reação. E você?
Brian balançou a cabeça.
— Nem mesmo um ai, mano. — Ele bebeu um gole. — Essa cerveja é muito boa.
— Sim, batida, não mexida, 007.
A contragosto, Brian riu alto.
— Seu escroto! — disse.
— Bem, foi nesse negócio que caímos, certo?
18
E A PARTIDA DOS CÃES DE CAÇA
JACK JR. SOUBE PRIMEIRO. Estava começando seu café com donuts e ligou o computador, navegando primeiro para o tráfego de mensagens da CIA para a NSA, e bem no alto da pilha eletrônica achou um alerta de prioridade-FLASH para que se prestasse atenção especial a parceiros notórios de Uda bin Sali, que tinha — a CIA dizia que os britânicos haviam reportado — evidentemente morrido de um ataque cardíaco no centro de Londres. O tráfego FLASH do MI5, incluído no da CIA, dizia em prosa inglesa concisa que ele caíra na rua diante dos olhos de seu agente de vigilância e fora levado de ambulância para o Guy's Hospital, onde morreu. O corpo estava agora sendo autopsiado, dizia o MI5.
EM LONDRES, O DETETIVE Bert Willow da Divisão Especial ligou para o apartamento de Rosalie Parker.
— Alô. — Ela tinha uma voz charmosa e musical.
— Rosalie, aqui é o detetive Willow. Precisamos vê-la o mais breve possível aqui na Yard.
— Receio estar ocupada, Bert. Tenho um cliente chegando a qualquer minuto. Levará umas duas horas. Posso ir diretamente depois disso. Tudo bem para você?
Do outro lado da linha, o detetive inspirou fundo, mas, não, não era realmente tão urgente. Se Sali tivesse morrido de overdose — a causa mais provável que ocorrera a ele e a seus colegas —, não conseguiria confirmação com Rosalie, que não era usuária nem fornecedora. Ela não era boba, considerando-se que foi educada em escola pública. Seu trabalho era lucrativo demais para que corresse esse risco. A garota até frequentava a igreja ocasionalmente, dizia seu arquivo.
— Tudo bem — disse Bert. Ele estava curioso acerca de como ela receberia a notícia, mas não esperava nada de importante para desenvolver.
— Excelente. Tchau — disse ela antes de desligar.
NO GUY'S HOSPITAL, o corpo já estava no laboratório post-mortem. Havia sido despido e deitado de barriga para cima numa mesa de aço inoxidável quando o patologista sênior chegou. Era Sir Percival Nutter, eminente médico acadêmico e diretor do Departamento de Patologia do hospital, com 60 anos. Seus técnicos já haviam extraído um litro de sangue para o laboratório. Era muito, mas eles estavam fazendo cada teste conhecido pelo homem.
— Muito bem, ele tem o corpo de um sujeito do sexo masculino de aproximadamente 25 anos... consiga a identificação para obter as datas certas, Maria — disse ele ao microfone que pendia ao teto, que levava a um gravador. — Peso? — A pergunta foi dirigida a um residente júnior.
— Setenta e três quilos e seiscentos gramas. Um metro e oitenta e um de altura — respondeu o médico recém-formado.
— Não há marcas distintas no corpo, numa inspeção visual, sugerindo um incidente cardiovascular ou neurológico. Qual é a pressa disso, Richard? O corpo ainda está quente. — Nada de tatuagens ou coisas do tipo. Os lábios estavam um tanto azulados. Seus comentários não oficiais seriam expurgados da fita, mas um corpo ainda quente era inteiramente incomum.
— Pedido da polícia, senhor. Parece que ele caiu morto na rua enquanto estava sendo observado por um guarda. — Não era exatamente a verdade, mas bem parecida.
— Viu marcas de agulha? — perguntou sir Percy.
— Não, senhor. Nenhum indício disso.
— E então, parceiro, o que você acha?
Richard Gregory, o novo médico, em seu primeiro plantão na patologia, deu de ombros em seu traje cirúrgico verde.
— Pelo que diz a polícia, o modo como ele caiu sugere um ataque cardíaco fulminante ou uma convulsão de alguma espécie... a não ser que esteja relacionado a drogas. Ele tem aspecto saudável e não há nenhum acúmulo de picadas de agulha a sugerir uso de drogas.
— Um tanto jovem para um infarto fatal — disse o homem mais velho. Para ele o corpo podia facilmente ter sido uma peça de carne no mercado quanto um cervo morto na Escócia, não a concha remanescente de um ser humano que estava vivo — o quê? — menos de duas ou três horas antes. Tremenda má sorte para o pobre sacana. Parecia vagamente procedente do Oriente Médio. A pele suave e sem calos nas mãos não sugeriam trabalho braçal, embora parecesse razoavelmente em boa forma física. Ele levantou as pálpebras. Os olhos eram castanhos o bastante para parecerem pretos à distância. Bons dentes, com pouco trabalho odontológico. No todo, um jovem que parecia ter cuidado decentemente de si mesmo. Era estranho. Um defeito cardíaco congênito, talvez? Eles teriam que abrir o peito para verificar. Nutter não se incomodava em fazer isso — era rotina do serviço, e há muito ele aprendera a esquecer a imensa tristeza associada àquilo — mas num corpo tão jovem parecia uma perda de tempo, muito embora a causa da morte fosse misteriosa o bastante para despertar interesse intelectual, talvez até merecedora de artigo em The Lancet, algo que fizera muitas vezes nos trinta anos precedentes. Ao longo do caminho, sua dissecação dos mortos salvara centenas, até milhares, de pessoas vivas, motivo pelo qual escolhera a patologia. E também não era preciso falar muito com os pacientes.
Por enquanto, tinham que esperar as leituras de toxicologia sanguínea que viriam do laboratório de sorologia. Isto pelo menos lhe daria um rumo para a investigação.
BRIAN E DOMINIC pegaram um táxi para voltar ao hotel. Lá chegando, Brian ligou seu laptop. O breve e-mail que mandou foi automaticamente criptografado e despachado em quatro minutos. Imaginava que o Campus reagiria em uma hora, presumindo que ninguém mijasse nas calças, o que era improvável. Granger parecia o cara que podia ter feito ele mesmo o serviço, razoavelmente durão para um coroa. Seu tempo no Corpo ensinara que se podia ler os caras durões nos olhos. John Wayne jogara futebol pela USC. Audie Murphy, rejeitado por um recrutador dos Fuzileiros — para eterna vergonha do Corpo —, parecia um menor abandonado, mas matara mais de trezentos inimigos sozinho. Ele também tinha olhos frios quando provocado.
Estava repentina e surpreendentemente solitário para os dois Carusos.
Tinham acabado de assassinar um homem que não conheciam e com quem nunca trocaram uma palavra. Tudo pareceu lógico e racional no Campus, mas o Campus era agora um lugar longínquo tanto em distância linear quanto em vastidão espiritual. Mas o homem que mataram financiara as criaturas que atiraram em Charlottesville, matando mulheres e crianças sem misericórdia e, ao facilitar este ato de barbárie, ele se tornara culpado legal e moralmente falando. Assim, não era como se tivessem apagado o irmãozinho de Madre Teresa em seu caminho para a missa.
Novamente, foi mais difícil para Brian do que para Dominic, que foi até o minibar e pegou uma lata de cerveja, que jogou para o irmão.
— Eu sei — disse Brian. — Era a sina dele, simplesmente... bem, não é exatamente como no Afeganistão, sabe?
— É, desta vez tivemos que fazer com ele o que tentou fazer com você. Não temos culpa de que ele fosse um bandido. Não é culpa nossa se ele achava que uma matança no shopping era quase tão bom quanto trepar. Ele fez acontecer. Talvez não tenha atirado pessoalmente em ninguém, mas é tremendamente certo que comprou as armas, concorda? — perguntou Dominic tão razoavelmente quanto as circunstâncias permitiam.
— Não vou acender uma vela para ele. Só que... porra, não é o que eu devia fazer num mundo civilizado.
— Que mundo civilizado é esse, mano? Apagamos um cara que precisava encontrar Deus. Se Deus quiser perdoá-lo, é problema Dele. Sabe, tem gente que acha que qualquer cara uniformizado é um assassino mercenário. Matadores de bebês, esse tipo de coisa.
— Bem, isso é simplesmente babaquice — retrucou Brian. — E se eu tiver medo de que nos tornemos iguais a eles?
— Bem, sempre podemos cancelar uma tarefa, não podemos? E nos disseram que eles sempre nos darão o motivo. Não nos tornaremos iguais a eles, Aldo. Não vou deixar que aconteça. Nem você. Portanto, temos coisas a fazer, certo?
— Suponho. — Brian engoliu um grande gole da cerveja e tirou a caneta dourada do bolso. Tinha que recarregá-la. Levou menos de três minutos e estava de novo pronta para fazer e acontecer. Depois ele voltou a fazê-la parecer um simples instrumento de escrita e a devolveu ao bolso. — Vou ficar numa boa, Enzo. Ninguém pode se sentir bem por matar um cara na rua. Embora eu ainda pense se não seria melhor simplesmente sequestrar o sujeito e interrogá-lo.
— Os britânicos têm regras sobre direitos civis, como nós. Se ele pedir um advogado... você sabe que ele foi instruído a fazer isso, certo? Bem, nesse caso os tiras não podem sequer perguntar que horas são, como lá em casa. Tudo que ele tem a fazer é sorrir e ficar de bico fechado. Um dos retrocessos da civilização. Faz sentido para criminosos, suponho, para a maioria deles, mas esses caras não são criminosos. É uma forma de guerra, não um crime de rua. Aí é que está o problema: você dificilmente pode ameaçar um cara que quer morrer no cumprimento do dever. Tudo que pode fazer é pará-lo, e parar uma pessoa assim significa que o coração dele tem que deixar de bater.
Outro gole na cerveja.
— É, Enzo, estou bem. Fico imaginando quem vai ser nosso próximo alvo.
— Dê a eles uma hora para ruminar. Que tal uma caminhada?
— Tudo bem para mim. — Brian se levantou e em um minuto estavam de volta à rua. Era um pouco óbvio demais. A van da Telecom estava indo embora, mas o Aston Martin continuava no lugar. Brian imaginou se os britânicos poriam uma equipe de arrombadores na casa para revirá-la em busca de coisas interessantes, mas aquele carro esporte preto estava bem ali, e certamente parecia sexy.
— Gostaria de poder comprá-lo na venda da propriedade? — perguntou Brian.
— Não se pode dirigi-lo lá em casa. O volante está do lado errado — assinalou Dominic. Mas o irmão estava certo. Era lamentável deixar um carro daqueles ali para se estragar. Berkeley Square era bem bonita, mas pequena demais para qualquer coisa exceto deixar os bebês engatinharem na grama e aproveitarem o ar puro e o sol. A casa provavelmente seria vendida também, e por uma boa soma. Advogados — chamados aqui de procuradores — ajeitariam as coisas, levando sua comissão antes de devolver a propriedade à família, qualquer que fosse, que a serpente tinha deixado para trás. — Ainda não está com fome?
— Eu bem que comeria alguma coisa — admitiu Brian. Assim, eles caminharam um pouco mais. Seguiram na direção de Piccadilly e descobriram um lugar chamado Pret à Manger, que servia sanduíches e drinques gelados. Depois de um total de quarenta minutos longe do hotel, eles retornaram e Brian ligou de novo o computador.
MISSÃO CUMPRIDA CONFIRMADA POR FONTES LOCAIS.
MISSÃO LIMPA
Era o que dizia a mensagem do Campus e prosseguia:
LUGARES CONFIRMADOS VOO BA0943
PARTIDA HEATHROW AMANHÃ 07H55
CHEGADA MUNIQUE 10H45.
PASSAGENS NO BALCÃO.
Havia uma página de detalhes, seguida por FIM.
— Okay — observou Brian. — Temos outro serviço.
— Já? — Dominic estava surpreso com a eficiência do Campus. Brian não estava.
— Acho que eles não estão nos pagando para fazer turismo, mano.
— SABE, PRECISAMOS tirar os gêmeos mais depressa dos locais — disse Tom Davis.
— Se eles estão cobertos, não há necessidade — replicou Hendley.
— Se alguém reconhecê-los de alguma maneira ou outra, é melhor que não estejam por perto. Não se pode interrogar um fantasma — assinalou Davis. — Se a polícia nada tiver para rastrear, terá menos em que pensar. Eles podem questionar a lista de passageiros de um voo, mas se procuram nomes... presumindo que tenham nomes... só para seguir os procedimentos normais, então vão ter uma parede em branco sem nenhuma evidência pendendo. Melhor ainda, se qualquer rosto que possa ou não ser reconhecido simplesmente evaporar, então eles têm gornisht, nada, e vão encarar como uma testemunha ocular que não podia mesmo ser confiável. — Não se espera que a polícia confie em testemunhos oculares como prova principal. Seus relatos são voláteis e sem muita utilidade num tribunal.
— E ENTÃO? — perguntou Sir Percival.
— CPK-MB e troponina estão muito altos, e o laboratório diz que o colesterol estava a 213 — disse o Dr. Gregory. — Alto para a idade. Nenhuma evidência de drogas, nem mesmo aspirina. Mas temos evidência enzimática de um incidente coronariano, e isso é tudo até o momento.
— Bem, temos que abrir o peito — observou o Dr. Nutter —, mas estava previsto, de qualquer modo. Mesmo com o colesterol alto, ele é jovem para uma obstrução cardiovascular importante, não acha?
— Eu estava apostando nisso, senhor, e penso num intervalo QT prolongado ou arritmia. — As duas coisas deixavam pouca evidência post-mortem exceto, infelizmente, num sentido negativo, mas ambas eram uniformemente fatais.
— Correto. — Gregory parecia um brilhante jovem formando da faculdade de medicina e, como a maioria deles, excessivamente franco. — Então vamos nessa — disse Nutter, estendendo a mão para pegar o grande bisturi de pele. Depois usaram os cortadores de costela. Mas ele estava para lá de certo do que descobririam. O pobre sacana tinha morrido de insuficiência cardíaca, provavelmente causada por um repentino — e inexplicado — ataque de arritmia cardíaca. Mas o que quer que o tivesse causado, havia sido tão letal como uma bala no cérebro. — Nada mais no exame toxicológico?
— Não, senhor, absolutamente nada. — Gregory ergueu a impressão saída do computador. A não ser pelas marcas de referência no papel, estava inteiramente em branco. E isso caía à perfeição.
ERA COMO OUVIR UM JOGO da World Series no rádio, mas sem os exaltados comentários para encher linguiça. Alguém no MI5 estava ansioso para deixar a CIA saber o que acontecia com o sujeito no qual Langley claramente tinha algum interesse, e assim qualquer fragmento de informação que chegasse era de imediato despachado para a CIA, e de lá para Fort Meade, que escaneava as ondas em busca de qualquer interesse frutífero da comunidade terrorista ao redor do mundo. O último informe noticioso, parecia, não foi tão eficiente quanto os inimigos haviam esperado.
— OLÁ, DETETIVE WILLOW — disse Rosalie Parker com seu costumeiro sorriso de quer-foder-comigo? Ela fazia amor como meio de vida, mas isto não significava que não gostasse. Entrou rapidamente, usando seu crachá de visitante, e se sentou do lado oposto da mesa dele. — E aí, o que posso fazer por você neste lindo dia?
— Más notícias, Srta. Parker. — Bert Willow era formal e polido, mesmo com prostitutas. — Seu amigo Uda bin Sali está morto.
— O quê? — Seus olhos se arregalaram de choque. — O que aconteceu?
— Não temos certeza. Ele simplesmente caiu na calçada, bem defronte ao seu escritório, no outro lado da rua. Parece que sofreu um ataque cardíaco.
— É mesmo? — Rosalie estava surpresa. — Mas ele parecia tão saudável. Nunca houve um indício de alguma coisa errada com ele. Quero dizer, até a noite passada.
— Sim, vi no arquivo — respondeu Willow. — Sabe se algum dia ele usou drogas de qualquer tipo?
— Não, nunca. Ele vez por outra bebia, mas não muito.
Aos olhos de Willow, ela estava chocada e grandemente surpresa, mas não havia um indício de lágrimas em seus olhos. Não, para ela Uda tinha sido um cliente, uma fonte de renda, e pouco mais que isso. O pobre sacana provavelmente pensava de outro modo. Má sorte dupla para ele, então. Mas não era realmente da conta de Willow, era?
— Algo incomum no encontro mais recente de vocês? — perguntou o policial.
— Não, não realmente. Ele era tinha muito tesão, mas, sabe, alguns anos atrás um freguês morreu em cima de mim... quero dizer, ele gozou e se foi, como dizem. Foi terrível, o tipo de coisa que não se esquece, por isso fico de olho nos clientes. Quero dizer, nunca deixarei ninguém morrer. Não sou uma selvagem. Realmente tenho coração — assegurou ela ao tira.
Bem, seu amigo Sali já não tem mais, Willow pensou mas não disse.
— Entendo. Então, na última noite ele estava completamente normal?
— Inteiramente. Nenhum sinal de que algo estivesse errado. — Ela fez uma pausa para se compor. Melhor parecer mais pesarosa, a fim de que ele não a considerasse um robô frio. — Esta é uma notícia terrível. Ele era tão generoso, e sempre educado. Como estou triste por ele!
— E por você — disse Willow em simpatia. Afinal, ela perdera sua maior fonte de renda.
— Ah, sim, por mim também, amor — disse ela, entendendo finalmente a notícia. Mas nem sequer tentou enganar o detetive com lágrimas. Perda de tempo. Ele havia percebido. Uma pena por Sali. Ela havia perdido os presentes. Bem, certamente obtivera mais algumas referências comerciais. Seu mundo não tinha acabado. Só o dele. E essa era a má sorte dele — sobrando um pouco para ela, mas nada de que não pudesse se recuperar.
— Srta. Parker, alguma vez ele deu a você algum indício de suas atividades comerciais?
— Ele falava principalmente de imóveis, comprando e vendendo casas elegantes. Uma vez, me levou a uma casa que estava comprando no West End. Disse que queria minha opinião sobre pintá-la, mas acho que estava apenas tentando me mostrar como era importante.
— Chegou a conhecer algum amigo dele?
— Não muitos... três, talvez quatro, acho. Todos eram árabes, mais ou menos da idade dele, talvez cinco anos mais velhos, não mais que isso. Todos me olhavam detidamente, mas nenhum negócio resultou disso. O que me surpreendeu. Os árabes podem ser uns sacanas tesudos, mas pagam bem a uma garota. Você acha que ele podia estar envolvido em alguma atividade ilegal? — perguntou ela delicadamente.
— Há uma possibilidade — admitiu Willow.
— Nunca percebi indício disso, amor. Se ele negociava com bandidos, me passou inteiramente despercebido. Adoro ajudá-lo, mas não há nada a declarar. — Ela pareceu sincera ao detetive, mas ele se lembrou de que, em dissimulação, uma prostituta desta categoria pode talvez superar a melhor das atrizes.
— Bem, obrigado por ter vindo. Se alguma coisa... qualquer coisa... lhe ocorrer, me dê um telefonema.
— Claro, amor. — Ela se levantou e sorriu a caminho da porta. Ele era um cara bacana, este detetive Willow. Pena que não pudesse pagar por ela.
Bert Willow já estava de volta ao computador, digitando seu relatório de contato. A Srta. Parker realmente parecia uma ótima garota, letrada e muito encantadora. Parte disso tinha sido aprendido por sua persona comercial, mas talvez fosse autêntico. Se assim fosse, ele esperava que ela encontrasse um novo ramo de trabalho antes que seu caráter fosse completamente destruído. Ele era um romântico, esse Willow, e algum dia isso podia ser sua ruína. E ele sabia disso, mas não tinha nenhum desejo de trocar de profissão como ela provavelmente também não teria. Quinze minutos depois,passou o relatório por e-mail para Thames House, e depois o imprimiu para o arquivo de Sali, que no devido tempo seguiu para o arquivo morto no Registro Central, para nunca mais se ouvir falar dele.
— EU AVISEI — disse Jack ao colega de seção.
— Bem, então você pode dar os parabéns a si mesmo — respondeu Wills. — Então, qual é a história, ou tenho que pedir os documentos?
— Uda bin Sali caiu morto de um aparente ataque cardíaco. O cola do MI5 não viu nada de incomum, apenas o cara desabando na calçada. E zap, não tem mais Uda para financiar bandido.
— Como se sente a respeito disso?
— Para mim tudo bem, Tony. Ele brincou com os garotos errados no playground. Fim da história — disse friamente o Ryan mais novo. Como foi que eles fizeram?, especulou.
— Acha que nossos rapazes o ajudaram?
— Não é nosso departamento. Fornecemos informação a outros. O que eles fazem fora de nossas vistas não é para especularmos.
— Aye, aye, sir. — O restante do dia decorreu muito monótono após um começo tão rápido.
MOHAMMED SOUBE DA NOTÍCIA no seu computador — ou melhor, foi-lhe dito em código para ligar para um contato chamado Ayman Ghailani, cujo celular ele havia decorado. Para este propósito deu uma caminhada até a rua. É preciso ser cauteloso ao usar telefones de hotel. Uma vez na rua, foi até um parque e se sentou num banco, bloco e caneta na mão.
— Ayman, aqui é Mohammed. Qual é a novidade?
— Uda está morto — reportou Ayman um tanto sem fôlego.
— O que aconteceu? — perguntou Mohammed.
— Não temos certeza. Ele caiu na rua perto do escritório e foi levado para o hospital mais próximo. E morreu lá — foi a resposta.
— Ele não foi preso, nem morto pelos judeus?
— Não, não há nenhum informe disso.
— Então, foi morte natural?
— Assim parece.
Espero que ele tenha feito a transferência antes de deixar esta vida, pensou Mohammed.
— Entendo... — Ele não entendia, claro, mas tinha que preencher o silêncio com algumas palavras. — Portanto, não há motivo para suspeitar de jogo sujo?
— Não desta vez. Mas quando um dos nossos morre, alguém sempre...
— Sim, sei disso, Ayman. Alguém sempre suspeita. O pai dele sabe?
— Foi como fiquei sabendo.
O pai provavelmente estará contente por ter se livrado do esbanjador, pensou Mohammed.
— Temos alguém que possa se certificar da causa da morte?
— Ahmed Mohammed Hamed Ali mora em Londres. Será que através de um procurador...?
— Boa ideia. Vou providenciar. — Uma pausa. — Alguém contou ao Emir?
— Não, acho que não.
— Verifique. — Era uma questão menor, mas mesmo assim precisava saber de tudo.
— Farei isso — prometeu Ayman.
— Muito bem. Isso é tudo, então. — E Mohammed desligou seu celular. Estava de volta a Viena. Ele gostava da cidade. Por um lado, eles haviam cuidado dos judeus aqui uma vez, e muitos vienenses conseguiam controlar seu arrependimento a respeito. Por outro lado, era um bom lugar para um homem com dinheiro viver. Restaurantes finos dirigidos por pessoas que conheciam o valor do serviço qualificado. A antiga cidade imperial tinha muita história cultural a ser apreciada quando lhe dava na telha ser turista, o que acontecia com mais frequência do que alguém podia imaginar. Mohammed descobriu que frequentemente pensava melhor quando olhava para alguma coisa de nenhuma importância para seu trabalho. Hoje, um museu de arte, talvez. Ele deixaria Ayman fazer o trabalho subalterno por enquanto. Um procurador londrino ia atrás de informação sobre a morte de Uda e, sendo um bom mercenário, não deixaria passar nenhuma anormalidade. Mas às vezes as pessoas simplesmente morriam. Era a mão de Alá, uma coisa nem sempre compreendida facilmente, além de imprevisível.
OU TALVEZ NÃO TÃO MONÓTONO. A NSA mandou uma nova remessa de mensagem depois do almoço. Jack fez alguma aritmética mental e decidiu que era noite do outro lado do oceano. Os técnicos dos carabinieri italianos — a polícia federal deles, que circulava em uniformes um tanto prosaicos — tinham algumas escutas que passaram para a embaixada americana em Roma e elas foram enviadas por satélite a Fort Belvoir — o principal downlink da Costa Leste. Alguém chamado Mohammed havia ligado para alguém chamado Ayman — eles souberam disso a partir da conversa gravada, que também mencionava a morte de Uda bin Sali, o que causou um Bingo! eletrônico em vários computadores, sinalizando para um analista de inteligência, o que fez a embaixada expelir o bolo.
— Alguém contou ao Emir? Quem diabo é o Emir? — perguntou Jack.
— É um título de nobreza, como um duque ou algo semelhante — respondeu Wills. — Qual é o contexto?
— Aqui. — Jack passou-lhe uma folha impressa.
— Isso parece interessante. — Wills buscou no computador por EMIR. Só conseguiu uma referência. — Segundo diz aqui, é um nome ou título colhido há cerca de um ano numa conversa grampeada, contexto incerto e nada significativo desde então. A agência acha que é provavelmente estenografia para algum pistoleiro de porte médio na organização.
— Neste contexto, me parece mais do que isso — pensou Jack em voz alta.
— Talvez — concedeu Tony. — Há muita coisa desses caras que ainda não sabemos. Langley provavelmente escreverá isso para alguém. É o que eu faria — concluiu ele, mas não muito confiante.
— Temos alguém na equipe que saiba árabe?
— Há dois caras que falam a língua... da escola de Monterey... mas não são especialistas na cultura.
— Acho que merece uma olhada.
— Então escreva isso e veremos o que eles acham. Langley tem um bando de leitores de pensamento e alguns deles são muito bons.
— Mohammed é o cara mais graduado que conhecemos neste grupo. Aqui, está se referindo a alguém mais graduado do que ele. É algo que precisamos verificar — o Ryan mais jovem pronunciou isso com todo o poder que possuía.
De sua parte, Wills sabia que o colega estava certo. Ele também havia implicitamente identificado o maior problema no ramo da inteligência. Dados demais, muito pouco tempo para análise. A melhor jogada seria forjar uma inquirição da NSA para a CIA e da CIA para a NSA, pedindo ideias sobre esse assunto em particular. Mas tinham que ser cuidadosos com isso. Pedidos de dados aconteciam um milhão de vezes por dia e, devido ao volume, eles nunca, jamais, eram checados — o link de comunicação era seguro afinal, não era? Mas solicitar tempo para análise podia muito bem resultar numa chamada telefônica, o que exigia tanto um número quanto uma pessoa para atender o telefone. Isso podia levar a um vazamento, e vazamentos eram a única coisa que o Campus não podia se permitir. E assim, inquirições do tipo iam para o andar de cima. Talvez duas vezes por ano. O Campus era um parasita no corpo da comunidade de inteligência. Tais criaturas supostamente não tinham boca para falar, mas somente para chupar sangue.
— Escreva suas ideias para Rick e ele discutirá com o senador — aconselhou Wills.
— Ótimo — resmungou Jack. Ele ainda não tinha aprendido a ter paciência. Mais direto ao ponto: ele não havia aprendido muito sobre burocracias. Até mesmo o Campus tinha uma. A coisa engraçada era que se ele fosse um analista de nível médio em Langley podia ter pegado um telefone, discado um número e falado com a pessoa certa para uma opinião pericial, ou algo próximo disso. Mas aqui não era Langley. A CIA era realmente muito boa em obter e processar informação. Estava fazendo um trabalho tão eficaz que constantemente deixava a própria agência tonta. Jack escreveu seu pedido e as razões para ele, imaginando no que resultaria.
O EMIR RECEBEU CALMAMENTE as notícias. Uda tinha sido um útil subalterno, mas não importante. Ele tinha muitas fontes de dinheiro para suas operações. Era alto para sua origem étnica, não particularmente bonito, com um nariz semita e pele azeitonada. Sua família era importante e muito rica, embora os irmãos — ele tinha nove — controlassem a maior parte do dinheiro da família. Sua casa em Riad era ampla e confortável, mas não um palácio. Aqueles ele deixava para a família real, cujos numerosos principezinhos desfilavam por aí como se cada um deles fosse o rei em sua terra e protetor dos Lugares Santos. A família real, cujos membros ele conhecia bem, era objeto de seu secreto desdém, mas essas emoções ficavam enterradas no fundo de sua alma.
Na juventude, tinha sido mais efusivo. Convertera-se ao Islã no início da adolescência, inspirado por um imã muito conservador cujas pregações tinham-no finalmente colocado em apuros, mas que inspirara um bando de seguidores e filhos espirituais. O Emir era meramente o mais inteligente do grupo, e em consequência fora mandado estudar na Inglaterra — na verdade para tirá-lo do país —, mas lá, além de aprender as maneiras do mundo, havia sido exposto a algo inteiramente estranho. Liberdade de fala e expressão. Em Londres, isto era principalmente exercido no Hyde Park Corner, uma tradição de desabafo que remontava a centenas de anos, uma espécie de válvula de segurança para a população britânica, que assim meramente dá vazão a pensamentos incômodos sem deixá-los se fixar em qualquer lugar. Tivesse ele ido para a América, isto teria sido tachado de pressão radical. Mas o que o atingiu tão duramente quanto a chegada de uma nave espacial marciana foi que o povo podia desafiar o governo em quaisquer termos que quisesse. Ele fora criado em uma das últimas monarquias absolutistas do mundo, onde o próprio solo da nação pertencia ao rei, e a lei era o que monarca reinante dizia — submeter-se em nome se não em substância ao Corão e à Shar'ia, então às tradições legais que remontavam ao próprio Profeta. Estas leis eram justas — ou pelo menos consistentes —, mas de fato muito rígidas. O problema era que nem todo mundo concordava com as palavras do Corão, e portanto como aplicar a Shar'ia ao mundo físico. O Islã não tinha papa, nenhuma verdadeira hierarquia filosófica como as outras religiões entendiam o conceito, e portanto nenhum padrão coerente de aplicação à realidade. Os xiitas e sunitas estavam com frequência — sempre — nas gargantas uns dos outros acerca dessa questão, e mesmo dentro do Islã sunita, os Wahabis — a principal seita do reino — aderiam de fato a um rígido sistema de crença. Mas para o Emir esta fraqueza muito aparente do Islã em o seu atributo mais útil. Precisava-se apenas converter alguns muçulmanos ao seu particular sistema de crença, o que era notavelmente fácil, desde que não se tivesse que sair procurando por essas pessoas. Elas se identificavam virtualmente até o ponto de anunciar suas identidades. E a maioria eram pessoas educadas na Europa e na América, onde sua origem estrangeira os forçava a se isolarem só para manter um confortável lugar intelectual de identidade própria, e assim construíram um alicerce de forasteiros que levou muitos deles a um ethos revolucionário. O que foi particularmente útil, já que ao longo do caminho adquiriram um conhecimento da cultura do inimigo que era vital em alvejar suas fraquezas. A conversão religiosa dessas pessoas havia sido amplamente pré-instalada, como devia ser. Depois disso, era apenas uma questão de identificar seus objetos de ódio — isto é, o povo a ser inculpado por sua juventude descontente — e depois decidindo como fazer com os inimigos autogerados, um de cada vez, ou como um grande coup de main, que apelava a seu senso dramático, se não a sua escassa compreensão da realidade.
E ao final disso, o Emir, como seus associados haviam se acostumado a chamá-lo, seria o novo mádi, o árbitro definitivo de todo o movimento islâmico global. As disputas inter-religiosas (sunitas e xiitas, por exemplo) ele planejou manipular através de uma abrangente fatwa, ou pronunciamento religioso de tolerância — que pareceria admirável até mesmo para seus inimigos. E, afinal, não havia uma centena ou mais de seitas cristãs que haviam terminado com suas próprias desavenças internas? Ele podia até mesmo reservar para si mesmo a tolerância dos judeus, embora tivesse que poupá-la para anos posteriores, depois que estivesse sentado no trono do poder definitivo, provavelmente com um palácio de humildade condizente nos arredores de Meca. Humildade era uma virtude útil para o chefe de um movimento religioso, pois como o pagão Tucídides havia proclamado, mesmo antes que o Profeta, de todas as manifestações de poder, aquela que mais impressiona os homens é a restrição.
Era a mais alta das ordens, a coisa que ele queria consumar. Exigiria tempo e paciência, e seu sucesso dificilmente era garantido. Era sua infelicidade que ele tivesse que depender de fanáticos, cada um dos quais tinha um cérebro e as consequentes opiniões fortes. Tais pessoas podiam, concebivelmente, virar-se contra ele e tentar substituí-lo com suas próprias perspectivas religiosas. Poderiam até mesmo acreditar nos seus próprios conceitos — poderiam ser autênticos zelotes, como o Profeta tinha sido, mas Maomé, bênção e paz sobre ele, tinha sido o mais honrado dos homens e havia travado uma boa e honrada luta contra idolatras pagãos, enquanto seu próprio esforço se concentrava principalmente dentro da comunidade da Fé. Era ele, então, um homem honrado? Uma pergunta difícil.
Mas o Islã não precisava ser trazido ao mundo atual, sem permanecer engaiolado na antiguidade? Alá desejou que seus Fiéis fossem prisioneiros do sétimo século? Por certo que não. O Islã tinha sido uma vez o centro da erudição, uma religião de avanço e conhecimento que havia, tristemente, perdido seu rumo nas mãos do Canato Mongol e depois oprimida pelos infiéis do Ocidente. O Emir acreditava no Sagrado Corão e nos ensinamentos dos irmãos, mas não era cego para o mundo a sua volta. Nem era cego para os fatos da existência humana. Aqueles que detinham poder o guardavam ciumentamente, e religião tinha pouco a ver com isso, porque o poder era em si mesmo um narcótico. E as pessoas precisavam de alguma coisa — preferivelmente alguém — para acompanhar se elas estavam progredindo. A liberdade, como os europeus e americanos entendiam o conceito, era caótica demais — ele aprendera isso no Hyde Parker Corner, também. Tinha que haver ordem. Ele era o homem que ia providenciar isto.
Assim, Uda bin Sali estava morto, pensou, tomando um gole de suco. Uma grande infelicidade para Uda, mas uma irritação menor para a Organização. A Organização tinha acesso, senão a um mar de dinheiro, pelo menos a uma quantidade de grandes lagos confortáveis, um pequeno dos quais Uda controlava. Um copo de suco de laranja havia caído da mesa, mas felizmente não manchara o tapete. Não exigia nenhuma ação de sua parte, mesmo indiretamente.
— Ahmed, esta é uma notícia triste, mas não uma questão de grande importância para nós. Nenhuma ação será necessária.
— Será como você disser — respondeu respeitosamente Ahmed Musa Matwalli. Ele desligou seu telefone. Era um telefone clonado, comprado de um ladrão de rua exatamente para este propósito, e a seguir o jogou no rio Tibre, do alto da Ponte Sant'Angelo. Era uma medida-padrão de segurança para falar com o grande comandante da Organização, cuja identidade era conhecida apenas por uns poucos, todos incluídos entre os crentes mais fiéis. A segurança era rígida nos mais altos escalões. Todos eles estudavam vários manuais para agentes de inteligência. O melhor havia sido comprado de um ex-agente da KGB, que havia morrido depois de vendê-lo, pois assim estava escrito. As regras eram simples e claras, e eles não se desviavam um milímetro. Outros haviam sido descuidados, e pagaram ela tolice. A antiga URSS havia sido um inimigo odiado, mas seus agentes nunca foram tolos. Somente infiéis. A América, o Grande Satã, deixara o mundo inteiro a favor de destruir aquele aborto de nação.
Tinham feito isso apenas em benefício próprio, claro, mas também devia ter sido escrito pela Mão de Deus... servira aos interesses dos Fiéis, pois que homem podia tramar melhor do que o Próprio Alá?
19
CERVEJA E HOMICÍDIO
O VOO PARA MUNIQUE foi macio como seda, a Alfândega alemã foi formal mas eficiente, e o táxi Mercedes-Benz levou-os ao Hotel Bayerischer.
O alvo da vez era alguém chamado Anas Ali Atef, supostamente de nacionalidade egípcia e engenheiro civil por formação, se não por profissão. Cerca de l,72m de altura, pesando seus 70 quilos, bem barbeado. Cabelo preto e olhos castanho-escuros, provavelmente habilidoso em combate corpo a corpo e bom com uma pistola, se tivesse uma. Tinha a função de correio e também trabalhava como recrutador de talentos — um dos quais com certeza tinha sido abatido em Des Moines, Iowa. Tinham um endereço e uma foto em seus laptops. Ele dirigia um carro esporte Audi TT, pintado de cinza navio de guerra. Tinham até mesmo o número da placa.
Problema: ele estava vivendo com uma alemã chamada Trudl Heinz e parecia apaixonado por ela. Também havia uma foto dela. Não era exatamente uma modelo da Victoria's Secret, mas tampouco um bagulho — cabelo castanho e olhos azuis, l,65m, 60 quilos. Sorriso gracioso. Uma pena, pensou Dominic, que tivesse um gosto questionável em questão de homens, mas isto não era problema. Anas orava regularmente em uma das poucas mesquitas de Munique, convenientemente localizada a um quarteirão de onde morava. Após se registrarem e trocarem de roupa, Dominic e Brian tomaram um táxi para aquela vizinhança e encontraram um muito agradável Gasthaus — um bar e churrascaria — com mesas externas de onde observar a área.
— Todos os europeus gostam de se sentar na calçada para comer? — perguntou Brian.
— Provavelmente é mais fácil do que ir ao zoológico — disse Dominic. O edifício de apartamentos tinha quatro andares, proporcionados como um bloco de cimento, pintado de branco como um telhado estranhamente parecido com o de um celeiro. Havia um notável aspecto de limpeza nele, como se fosse normal na Alemanha que tudo fosse antisséptico como uma sala de cirurgia da Clínica Mayo, mas isso dificilmente seria motivo de crítica. Até os automóveis aqui não eram tão sujos como costumavam ser nos Estados Unidos.
— Was darf es sein? — perguntou o garçom, surgindo na mesa.
— Zwei Dunkelbieren, bitte — replicou Dominic, usando um terço do alemão que aprendera no secundário. Quase todo o resto era sobre como descobrir o Herrnzimmer1, sempre uma palavra útil em qualquer língua.
— Americanos, hein? — continuou o garçom.
— Meu sotaque é tão ruim? — perguntou Dominic com um sorriso travesso.
— Seu sotaque não é bávaro e as roupas parecem americanas — observou casualmente o garçom, como se dissesse que o céu era azul.
— Okay, então dois canecos de cerveja preta, por favor.
— Duas Kulmbacheres, sofort — respondeu o homem e apressou-se para dentro.
— Acho que acabamos de aprender uma pequena lição, Enzo — observou Brian.
— Vamos comprar roupas locais na primeira oportunidade que tivermos. Todo mundo tem olhos — concordou Dominic. — Com fome?
— Eu bem que comeria alguma coisa.
— Vamos ver se eles têm um cardápio em inglês.
— Aquela deve ser a mesquita que nosso amigo frequenta, lá no fim do quarteirão, está vendo? — Brian apontou discretamente.
— Então ele provavelmente passará por aqui...?
— Assim parece, mano.
— E não há nenhuma cronometragem nisso, há?
— Eles não disseram como, só nos disseram o que o homem disse — Brian relembrou ao irmão.
— Bom — observou Enzo enquanto a cerveja chegava. O garçom parecia ser quase tão eficiente quanto um homem razoável poderia pedir.
— Danke, sehr. Vocês têm um cardápio em inglês?
— Certamente, senhor. — E ele extraiu um do bolso do avental como se num passe de mágica.
— Muito bom, e obrigado, senhor.
— Ele deve ter cursado a Universidade do Garçom — disse Brian enquanto o homem se afastava de novo. — Mas espere até ver a Itália. Aqueles caras são artistas. Na época em que estive em Florença, pensei que o sacana estava lendo meus pensamentos. Provavelmente tinha um doutorado em garçoneria.
— Nenhum estacionamento interno naquele edifício. Provavelmente fica nos fundos — disse Dominic, voltando aos negócios.
— O Audi TT é um bom carro, Enzo?
— É um carro alemão. Eles fazem boas máquinas por aqui, cara. O Audi não é um Mercedes, mas também não é nenhum Yugo. Não acho que já tenha visto algum fora da Motor Trend. Mas sei como parece, um tanto curvado, liso, do tipo que corre muito. Provavelmente corre, com as autobahns que têm aqui. Dirigir na Alemanha pode ser como disputar a Fórmula Indy, ou assim dizem. De fato, não vejo um alemão dirigindo um carro lento.
— Faz sentido. — Brian examinou o cardápio. Os nomes dos pratos estavam em alemão, claro, mas com a descrição em inglês. Parecia que era dirigida aos britânicos, não aos americanos. Ainda havia bases da Otan aqui, talvez para proteger dos franceses e não dos russos, pensou Dominic com um risinho. Embora, historicamente, os alemães não precisassem de muita ajuda daquela direção.
— O que vão querer, mein Herrn? — perguntou o garçom, reaparecendo como se teletransportado pessoalmente pelo Scott da Enterprise.
— Para começar, como se chama? — perguntou Dominic.
— Emil. Ich heisse Emil.
— Obrigado. Vou querer sauerbraten com salada de batata.
Depois foi a vez de Brian: — E eu vou de bratwurst. Posso lhe fazer uma pergunta?
— Claro — respondeu Emil.
— Aquilo lá no fim da rua é uma mesquita? — perguntou Brian, apontando.
— Sim, é sim.
— Não é algo incomum? — Brian esticou o assunto.
— Temos muitos operários turcos convidados na Alemanha, e eles também são maometanos. Não comem linguiça de porco nem bebem cerveja. Eles não combinam bem com a gente, mas o que se pode fazer? — O garçom deu de ombros, seu indício de aversão.
— Obrigado, Emil — disse Brian e Emil apressou-se para dentro.
— O que ele quis dizer? — especulou Dominic.
— Os alemães não gostam muito deles, mas não sabem o que fazer quanto a isso. Mas são uma democracia, tal como nós, e portanto têm que ser educados com eles. O alemão comum das ruas não é tão afável com seus operários convidados , mas não ocorre muito conflito real, apenas desentendimentos e coisas do gênero, principalmente briga de bar, segundo eu soube. Assim, acho que os turcos aprenderam a beber cerveja.
— Como soube disso tudo? — Dominic estava surpreso.
— Havia um contingente alemão lá no Afeganistão. Éramos vizinhos... quer dizer, nossos acampamentos eram... e conversei com os oficiais deles lá.
— Algo de bom?
— Eles são alemães, mano, e eram soldados profissionais, não recrutados. É, eles eram muito bons — garantiu Aldo. — Grupo de reconhecimento. A rotina de treinamento físico deles é tão dura quanto a nossa. Eles conhecem as montanhas muito bem e são bem treinados nos fundamentos. Os suboficiais pareciam ladrões, trocavam chapéus e insígnias à vontade. Também levavam cerveja nas mochilas, de modo que eram bem populares com meu pessoal. Sabe, essa cerveja é danada de boa.
— Como na Inglaterra. Cerveja é uma espécie de religião na Europa e todo mundo vai à igreja.
Emil reapareceu com o almoço — Mittagessen —, que, descobriram, era okay. Mas ambos continuavam a observar o edifício.
— Esta salada de batata é demais, Aldo — observou Dominic entre mastigadas. — Nunca provei nada igual. Um monte de vinagre e açúcar, com um sabor bem nítido.
— Comida boa não é só na Itália.
— Quando voltarmos para casa, vou tentar descobrir um restaurante alemão..
— Boa. Olhe, olhe, Enzo.
Não era o alvo deles, mas a amante, Trudl Heinz. Como na foto em seus computadores, saindo do prédio de apartamentos. Bonita o bastante para virar a cabeça de um homem brevemente, mas não uma estrela de cinema. Seu cabelo tinha sido louro uma vez, mas havia mudado no meio da adolescência, pelo aspecto dela. Pernas bem feitas, melhores do que a média. Uma pena que estivesse ligada a um terrorista. Talvez ele tivesse se amarrado nela como parte de seu disfarce, e assim tanto melhor para ele unir o útil ao agradável. A não ser que estivessem vivendo platonicamente, o que não parecia provável. Os dois americanos ficaram imaginando como ele a tratava, mas não se podia dizer alguma coisa assim só de observar o jeito como ela caminhava. Ela subiu o outro lado da rua, mas passou direto pela mesquita. Portanto, não ia para lá neste momento.
— Estou pensando... se ele for à mesquita, podemos cutucá-lo na saída, com um monte de gente anônima em volta, sabe? — Brian pensou em voz alta.
— Não é má ideia. À tarde veremos o quanto esse cara é religioso, e o tamanho da multidão.
— Chame isso de um talvez definido — replicou Dominic. — Primeiro, vamos terminar aqui e depois vestir roupas que nos disfarcem melhor.
— Entendido — disse Brian. Ele consultou o relógio: 14h. Oito da manhã em casa. Só uma hora de jet lag a partir de Londres, facilmente suportável.
JACK CHEGOU MAIS CEDO que de hábito, seu interesse espicaçado pela operação em andamento na Europa e imaginando que mensagem o tráfego exibiria hoje. Acabou sendo razoavelmente rotineira, com algum tráfego adicional sobre a morte de Sali. O MI5 reportara a morte dele a Langley como consequência evidente de ataque cardíaco, talvez causado por uma arritmia fatal. Era o que dizia a autópsia oficial, e o corpo havia sido liberado por uma firma de procuradores representando a família. Providenciaram o translado para a Arábia Saudita. Seu apartamento foi lacrado pela versão londrina de uma equipe especial que não tinha, porém, resultado em nada de interessante. Isso incluía o computador do escritório, cujo disco rígido havia sido copiado e os dados removidos. Estava sendo examinado pouco a pouco pelos técnicos, detalhes a acompanhar.
Podia levar tempo, Jack sabia. Coisas escondidas dentro de um computador eram tecnicamente detectáveis, mas, teoricamente, era também o mesmo que desmontar as pirâmides de Gizé para ver o que estava embaixo. Se Sali tinha sido realmente inteligente em enfiar coisas em fendas que só ele conhecia, ou num código que só ele podia decifrar... bem, seria uma parada. Tinha sido tão inteligente assim? Provavelmente não, pensou Jack, mas só se podia saber olhando, e era por isso que as pessoas sempre olhavam. Levaria pelo menos uma semana, com certeza. Um mês, se o pequeno sacana fosse bom com chaves e códigos. Mas simplesmente descobrir coisas escondidas diria a eles que Sali tinha sido um ator de verdade nas ações e não apenas um testa de ferro. Embora nenhum deles fosse capaz de descobrir o que ele tinha levado na cabeça para a tumba.
— Oi, Jack — disse Wills, entrando.
— Bom dia, Tony.
— Legal estar ansioso. O que eles descobriram sobre nosso amigo que se foi?
— Não muito. Estão enviando a caixa pelo correio aéreo logo mais, provavelmente, e o patologista classificou de ataque cardíaco. Portanto, nossos rapazes estão limpos.
— O Islã exige que o corpo seja sepultado rapidamente, e numa sepultura não marcada. Portanto, uma vez que o corpo se foi, está tudo encerrado. Nenhuma exumação para detectar drogas e similares.
— Então, fizemos isso? O que usamos? — perguntou Ryan.
— Jack, não sei e nem quero saber o que, se houve algo, tivemos a ver com a morte prematura dele. Nem tenho vontade de descobrir. Nem você, okay?
— Tony, como diabos você pode atuar neste ramo e não ser curioso? — perguntou Jack Jr.
— A gente aprende o que não é bom saber e aprende a não especular sobre essas coisas — explicou Wills.
— Hã-hã — Jack reagiu, desconfiado. Certo, mas sou jovem demais para essa merda, pensou mas não disse. Tony era bom no que fazia, mas vivia dentro de um caixão. Como Sali exatamente agora, pensou Jack, e não era um bom lugar para se estar. Além disso, nós o apagamos. Podia ter perguntado à mãe que tipo de droga ou produto químico podia estar envolvido na execução desta missão. Mas não, não podia fazer isso. Era certo que ela contaria ao pai, e Big Jack certamente ia querer saber por que o filho fizera essa pergunta — e podia até mesmo adivinhar a resposta. Portanto, não, fora de questão. Totalmente.
Com o tráfego oficial sobre a morte de Sali, Jack começou a procurar na NSA e em intercepções relacionadas de outras fontes interessadas.
Não havia nenhuma outra referência ao Emir no tráfego diário. Aquilo simplesmente chegou e se foi, e referências anteriores se limitaram àquela que Tony mostrou. Da mesma forma, seu pedido por uma busca mais global de registro de sinais em Fort Meade e Langley não tinha sido aprovado pelo pessoal lá de cima — uma decepção, mas nada surpreendente. Até mesmo o Campus tinha seus limites. Ele entendia a relutância lá de cima em correr o risco de ter alguém especulando sobre o autor do pedido, sem encontrar uma resposta para investigação mais profunda.
Mas havia milhares de pedidos assim circulando diariamente, e mais um não aumentaria tanto o tumulto, não é? Ele porém decidiu não pedir. Não fazia sentido ser identificado como um barco à deriva tão cedo na nova carreira. Mas instruiu seu computador a escanear todo o novo tráfego para a palavra Emir e, se ela aparecesse, ele podia baixá-la e então ter um caso mais sólido da próxima vez, se houvesse uma próxima vez. Ainda assim, um título como aquele — na sua mente, referia-se à identidade de uma pessoa específica, mesmo se a única referência que a CIA tivesse a respeito fosse provavelmente uma piada particular. A avaliação viera de um analista sênior de Langley, que exercia grande influência na comunidade de inteligência, e portanto nesta também. O Campus era supostamente o órgão que corrigia erros ou inabilidades da CIA, mas com muito menos pessoal tinham que aceitar as ideias que vinham da agência supostamente incapacitada. Isso não fazia tanto sentido lógico, mas ele não foi consultado quando Hendley montara o lugar, portanto tinha que presumir que o estafe sênior sabia do negócio. Mas como Mike Brennan lhe contara do trabalho da polícia, a presunção era a mãe de todas as cagadas. Era também um adágio amplamente conhecido no FBI. Todo mundo cometia erros, e o tamanho de cada erro era diretamente proporcional à antiguidade do homem que o cometia. Mas essas pessoas não gostavam de ser lembradas desta verdade universal. Bem, ninguém realmente gostava.
ELES COMPRARAM AS ROUPAS direto dos cabides. Era geralmente assim que se comprava na América, mas as diferenças, embora individualmente sutis, indicavam uma aparência completamente diferente. Também compraram sapatos para combinar com as roupas e, após se trocarem no hotel, voltaram à rua.
O teste veio quando Brian foi parado por uma cidadã alemã perguntando como chegar ao Hauptbahnhoff, ao que Brian respondeu que era novo na cidade. A mulher se afastou com um sorriso embaraçado e abordou outra pessoa.
— Isso significa a principal estação de trem — explicou Dominic.
— Então, por que ela não pode pegar um táxi? — replicou Brian.
— Vivemos num mundo imperfeito, Aldo, mas agora você deve estar parecendo um autêntico alemão. Se mais alguém o abordar, diga simplesmente Ich bin ein Aüslander. Significa sou estrangeiro, e isto o livrará. Depois talvez façam a pergunta no melhor inglês que você já ouviu em Nova York.
— Ei, olhe! — Brian apontou para os Arcos Dourados de um McDonald's, uma visão mais bem-vinda do que a bandeira americana em frente ao consulado, embora tampouco sentisse vontade de comer ali. A comida local era boa demais. Ao cair da noite estavam de volta ao Hotel Bayerischer, saboreando justamente essa comida.
— BEM, ELES ESTÃO EM MUNIQUE e identificaram o prédio e a mesquita do alvo, mas não ele ainda — reportou Granger a Hendley. — Identificaram a amiguinha.
— Então está tudo correndo bem? — perguntou o senador.
— Nenhuma queixa até aqui. Nosso amigo não está sendo vigiado pela polícia alemã. O serviço de contrainteligência deles sabe quem é, mas não estão desenvolvendo qualquer caso sobre ele. Têm alguns problemas com os muçulmanos no país, e alguns deles estão sendo vigiados, mas esse cara ainda não bateu na tela do radar. E Langley não está pressionando. Suas relações com a Alemanha não são muito boas no momento.
— Boas notícias e más notícias?
— Exato — admitiu Granger. — Eles não podem nos fornecer muita informação, mas não temos que nos preocupar em enganar um cola. Os alemães são engraçados. Se você mantiver seu nariz limpo e tudo estiver em Ordnung, está relativamente a salvo. Se ultrapassar a linha, eles podem infernizar sua vida. Historicamente, seus tiras são muito bons, mas os espiões não. Os soviéticos e a Stasi, o serviço secreto da ex-RDA, tiveram sua loja de espionagem inteiramente penetrada e ainda hoje convivem com essa derrota.
— Eles fazem operações suspeitas?
— Não realmente. A cultura deles é legalista demais para isso. Eles criam pessoas honestas que jogam segundo as regras, e isso exerce uma influência incapacitante nas operações especiais... aqueles que tentam ocasionalmente quebram a cara. Sabe, aposto que o cidadão alemão médio paga seus impostos em dia e à vista.
— Os banqueiros alemães sabem como fazer o jogo internacional — objetou Hendley.
— Sim, bem, talvez seja porque a banca internacional não reconheça o conceito de ser leal a um país — respondeu Granger, enfiando a agulha levemente.
— Lenin certa vez disse que o único país que um capitalista conhece é o território onde ele se fixa quando faz um acordo. Existem alguns assim — concedeu Hendley. — Ah, você viu isso? — Ele passou o pedido vindo lá de baixo para procurar alguém chamado o Emir.
O diretor de operações deu uma olhada na página e devolveu.
— Ele não sabe no que está se metendo.
— Eu sei. É por isso que neguei. Mas... mas, você sabe, isso eriçou os instintos dele, e ele teve miolos para fazer uma pergunta.
— O garoto é esperto.
— Sim, é. Por isso pedi a Rick para colocá-lo com Wills como colega de sala e instrutor de treinamento. Tony é brilhante, mas não avança muito externamente. Assim, Jack pode aprender o negócio e também descobrir suas limitações. Veremos quanto mais ele espreme disso. Se esse garoto ficar conosco, simplesmente pode ser promovido.
— Você acha que ele tem o potencial do pai? — especulou Granger. Big Jack tinha sido um espião-rei antes de partir para coisas maiores.
— Acho que ele pode progredir no ramo, sim. De qualquer modo, esse negócio do Emir me soa como uma ideia fundamentalmente boa. Ele não sabe muito sobre como a oposição age. Existe lá um processo darwiniano, Sam. Os bandidos aprendem dos antecedentes e vão ficando mais espertos... à nossa custa. Eles não vão se oferecer para ter uma bomba inteligente plantada no rabo. Não vão tentar ser astros da TV. Bom para o ego, talvez, mas fatal. Uma manada de gazelas não segue conscientemente rumo ao orgulho do leão.
— É verdade — concordou Granger, pensando de novo em como seu ancestral tinha lidado com índios hostis no Nono Regimento de Cavalaria. Algumas coisas não mudam muito. — Gerry, o problema é que tudo que podemos fazer de seu modelo organizacional é especular. E especulação não é conhecimento.
— Portanto, me diga o que você acha — ordenou Hendley.
— No mínimo dois níveis entre o chefe disso tudo: trata-se de um homem ou de um comitê? Não sabemos e não podemos saber exatamente agora. E os atiradores? Podemos pegar todos que quisermos, mas é como cortar grama. Você corta, ela cresce, você corta, ela cresce, e assim infinitamente. Se quiser matar uma cobra, o melhor movimento é cortar-lhe a cabeça. Okay, ótimo, todos sabemos disso. O macete é descobrir a cabeça, porque é uma cabeça virtual. Quem quer que seja, ou sejam, está agindo como nós mesmos, Gerry. Eis por que estamos fazendo um reconhecimento-por-fogo, para ver o que podemos eliminar. E temos toda a nossa tropa analítica procurando isso, aqui, em Langley e Meade.
Um suspiro cansado. — É, Sam, eu sei. E talvez alguma coisa passe. Mas paciência é uma mãe pela qual viver. O inimigo provavelmente está se aquecendo ao sol agora, sentindo-se bem por nos ter ferroado, matando todas aquelas mulheres e crianças...
— Ninguém gosta disso, Gerry, mas até mesmo Deus levou sete dias para criar o mundo, está lembrado?
— Vai dar uma de pregador pra cima de mim? — perguntou Hendley, estreitando os olhos.
— Bem, a parte olho por olho funciona para mim, parceiro, mas leva-se tempo para achar o olho. Temos que ser pacientes.
— Sabe, quando eu e Big Jack falamos sobre a necessidade de um lugar como esse fui realmente muito burro em pensar que podíamos resolver problemas mais rapidamente.
— Seremos mais rápidos do que o governo jamais será, mas não somos O Agente da UNCLE. Ei, olhe aqui, a finalidade operacional está em andamento. Já despachamos o primeiro. Três mais antes que possamos esperar reação real do outro lado. Paciência, Gerry.
— É, é isso aí. — Ele não acrescentou que o fuso horário tampouco ajudaria muito.
— BEM, TEM OUTRA COISA.
— O que é, Jack? — perguntou Wills.
— Seria melhor se soubéssemos que operações estão em andamento. Isso nos capacitaria a focalizar nossa caçada de dados com um pouco mais de eficiência.
— O nome disso é compartimentação.
— Não, é babaquice — disparou Jack de volta. — Se estamos na equipe, podemos ajudar. Coisas que poderiam parecer como falsas conclusões pareceriam diferentes se a gente soubesse o contexto em que se apresentam mundo afora. Tony, todo este prédio é considerado um compartimento, certo? Subdividi-lo como fazem em Langley não ajuda a ter o serviço feito, ou estou enganado?
— Entendo seu ponto de vista, mas não é assim que funciona.
— Tudo bem, eu sabia que diria isso, mas como diabos vamos consertar o que deu errado na CIA se tudo o que fazemos é copiar seu método de operação? — perguntou Jack.
Não havia uma resposta rápida para isso, havia?, perguntou-se Wills. Simplesmente não havia, e este garoto estava progredindo com rapidez. Que diabos havia aprendido na Casa Branca? Tinha feito montes de perguntas, isso era tremendamente certo. E ouvira as respostas. Ainda assim questionava.
— Detesto dizer isto, Jack, mas sou apenas seu instrutor, não o Big Boss da espelunca.
— É, eu sei. Me desculpe. Acho que usei a aptidão de meu pai para fazer as coisas acontecerem... bem, para mim pareceu que tinha que ser desse jeito, pelo menos. Não para ele, eu sei, não o tempo todo. Talvez a impaciência seja um traço de família. — Em dobro, portanto, já que a mãe era cirurgiã, acostumada a programar as coisas na própria agenda, que geralmente era agora mesmo, porra. Era difícil ser decisivo sentado, uma lição que seu pai provavelmente teve que aprender na sua época, quando o país vivia na mira de um inimigo realmente sério. Esses terroristas podiam perturbar, mas não podiam causar nenhum dano estrutural grave aos Estados Unidos, embora uma vez tivessem tentado, em Denver. Esses caras eram como insetos enxameantes, em vez de morcegos hematófagos. Mas mosquitos podiam transmitir febre amarela, não podiam?
AO SUL DE MUNIQUE, na cidade portuária de Pireu, um contêiner foi erguido do navio por um guindaste móvel e baixado sobre um caminhão à espera. Uma vez amarrado o contêiner, o caminhão Volvo partiu, saindo do porto, passando por Atenas e se dirigindo ao norte para as montanhas da Grécia. O manifesto de carga dizia que estava indo para Viena, uma viagem sem paradas em rodovias decentes para entregar uma carga de café colombiano. Não ocorreu ao pessoal da segurança do porto proceder a uma busca, já que todas as notas de embarque estavam em ordem e os códigos de barras foram escaneados devidamente. Homens já estavam se reunindo para lidar com a parte da carga não destinada a ser misturada com água quente e creme. Era preciso um bocado de homens para dividir uma tonelada métrica de cocaína em papelotes, mas eles tinham um galpão, recém-adquirido, no qual levar a cabo a tarefa, e depois se espalhariam individualmente por toda a Europa, aproveitando a falta de fronteiras internas que o continente havia adotado desde a formação da União Europeia.
Com esta carga estava sendo mantida a palavra de um parceiro comercial, e um lucro psicológico era recompensado por outro, monetário. O processo adentrou a noite, enquanto os europeus dormiam o sono dos justos, mesmo aqueles que em breve estariam fazendo uso da parte ilegal da carga tão logo encontrassem um traficante de rua.
ELES VIRAM O ALVO às 9h30 da manhã seguinte. Estavam tomando um café da manhã ocioso em outro Gasthaus a meio quarteirão daquele onde trabalhava o amigo Emil.
Anas Ali Atef caminhava resoluto pela rua e passou a uns seis metros dos gêmeos, que comiam strudel com café, juntamente com uns vinte cidadãos alemães. Atef não notou que estava sendo observado; seus olhos miravam em frente e não vasculharam discretamente as imediações como um espião treinado teria feito. Evidentemente, sentia-se a salvo aqui. E isso era bom.
— Aí está nosso garoto — disse Brian, reconhecendo-o primeiro. Como com Sali, não havia nenhum letreiro de néon sobre sua cabeça para identificá-lo, mas ele combinava à perfeição com a foto e saíra do edifício certo. Seu bigode tornava improvável um erro de identificação. Razoavelmente bem-vestido. Exceto pela pele e o bigode, passaria por alemão. No fim do quarteirão, embarcou num bonde com destino ignorado, mas seguindo para leste.
— Vai especular? — perguntou Dominic ao irmão.
— Além de tomar o café da manhã com um amigo, ou tramar a queda do Ocidente Infiel... realmente não saberia dizer, cara.
— É, seria ótimo ter uma real cobertura sobre ele, mas não estamos conduzindo uma investigação, estamos? Este escroto recrutou pelo menos um atirador. Ele abriu seu caminho para nossa lista suja, Aldo.
— Entendido, mano — concordou Brian. Sua conversão foi completa. Anas Ali Atef era apenas um rosto para ele agora, e uma bunda para ser espetada com sua caneta mágica. Além disso, era alguém com quem Deus falaria no devido tempo, uma jurisdição que não era da conta de nenhum deles no momento.
— Se esta fosse uma operação do Bureau, teríamos uma equipe no apartamento exatamente agora, pelo menos para vasculhar o computador dele.
Brian concordou.
— E agora o quê?
— Vamos ver se ele vai para a mesquita, e se for, a gente verifica se é mais fácil espetá-lo na entrada ou na saída.
— Não lhe ocorre que isso está um pouco rápido? — especulou Brian em voz alta.
— Suponho que podíamos sentar no quarto e nos masturbar, mas dá trabalho ao punho, não acha?
— É, acho que sim.
Terminado o desjejum, eles deixaram o dinheiro na mesa mas não uma gorjeta generosa, o que os marcaria como americanos.
O BONDE NÃO ERA TÃO CONFORTÁVEL quanto seu carro, mas era definitivamente mais conveniente pela necessidade de encontrar um lugar para estacionar. As cidades europeias não foram projetadas considerando automóveis. Nem Cairo tinha sido, claro, e os congestionamentos de trânsito lá podiam ser incríveis — até piores do que aqui —, mas pelo menos na Alemanha havia transporte público confiável. Os trens eram gloriosos. A qualidade das linhas impressionava o homem que tivera um pouco de treinamento em engenharia — foi realmente só um pouco?, ele se perguntou; parecia uma vida inteira — anos antes. Os alemães eram um povo curioso. Retraído e formal, achando-se superior a todas os outros. Desprezavam os árabes — e, de fato, também a maioria dos europeus — e só abriam as portas para estrangeiros porque suas leis — impostas sessenta anos antes pelos americanos após a Segunda Guerra Mundial — diziam que deviam. Mas como haviam sido obrigados, obedeciam, e sem se queixar abertamente, porque essas pessoas loucas obedeciam à lei como se lhes tivesse sido entregue pelas mãos do próprio Deus. Eram o povo mais dócil que já havia encontrado, mas por baixo dessa docilidade estava a capacidade para violência — violência organizada — do tipo que o mundo duramente conheceu. Na memória, tinham se destacado por massacrar os judeus. Haviam até mesmo transformado seus campos de extermínio em museus, mas museus nos quais as peças e máquinas sem dúvida ainda funcionavam, como se de prontidão. Uma pena que não pudessem congregar a vontade política para isso.
Os judeus haviam humilhado seu país em quatro ocasiões, no processo matando seu irmão mais velho, Ibrahim, no Sinai, enquanto pilotava um tanque soviético T-62. Ele não se lembrava de Ibrahim. Era muito jovem na época, e só tinha fotos para ter uma ideia de como ele era, embora a mãe ainda chorasse a memória dele. Ibrahim morreu tentando finalizar o serviço que esses alemães tinham começado, apenas para fracassar, morto por disparo de canhão de um tanque americano M60A1 na batalha da Fazenda Chinesa. Eram os americanos que protegiam os judeus. Os Estados Unidos eram governados por seus judeus. Era por isso que abasteciam seus inimigos com armas, forneciam-lhe informações e adoravam matar árabes. Mas o fracasso alemão na tarefa não havia domado sua arrogância. Apenas a direcionou. Ele podia ver isso no bonde, os breves olhares de esguelha, o modo como as mulheres idosas se afastavam uns poucos passos de onde ele estava. Algumas até provavelmente desinfetariam a barra superior onde se segurara depois que ele saltasse, resmungou Anas. Pelo Profeta, eles eram uma gente desagradável.
A viagem durou exatamente mais sete minutos e era hora de desembarcar, na Dom Strasse. Dali, era só um quarteirão de caminhada. No caminho, viu mais desses olhares, a hostilidade nos olhos, ou, ainda pior, os olhos que anotavam sua presença e seguiam em frente, como se tendo visto um cão vadio. Teria sido uma satisfação exercer alguma ação aqui na Alemanha — bem aqui em Munique! —, mas suas ordens eram específicas. Seu destino era uma cafeteria. Fa'ad Rahman Yasin já estava lá, vestido de modo informal, como um operário. Havia muitos como ele nessa cafeteria.
— Salaam aleikum — disse Atef em saudação. Paz sobre você.
— Aleikum salaam — disse Fa'ad em resposta. — As massas aqui são excelentes.
— Sim — concordou Atef, falando suavemente em árabe. — E então, o que há de novo, meu amigo?
— Nosso povo ficou satisfeito na semana passada. Demos uma tremenda sacudida nos americanos — disse Fa'ad.
— Não o bastante para eles largarem os judeus. Eles amam os judeus mais do que a seus próprios filhos. Grave minhas palavras. Eles vão nos dar o troco.
— Como? — perguntou Fa'ad. — Dar o troco, sim, do jeito que suas agências de espiões sabem fazer, mas só vão inflamar os fiéis, impelindo mais deles para nossa causa. Não, sobre nossa organização eles nada sabem. Nem sequer nosso nome. — Isto era porque a organização deles não tinha realmente um nome. Organização era meramente uma palavra descritiva pela associação dos Fiéis.
— Espero que esteja certo. E então, recebi novas ordens?
— Você trabalhou bem... três dos homens que recrutou optaram pelo martírio na América.
— Três? — Atef ficou agradavelmente surpreso. — Eles morreram bem, espero.
— Eles morreram no Santo Nome de Alá. Isso já seria bom o bastante. E então, já tem novos recrutas prontos para usarmos?
Atef bebericou seu café.
— Não inteiramente, mas tenho dois se inclinando em nossa direção. Isso não é fácil, como você sabe. Até mesmo o mais fiel deseja apreciar os frutos de uma boa vida. — Como ele estava fazendo, claro.
— Você atuou bem por nós, Anas. É melhor se certificar do que exigir demais deles. Leve o tempo que precisar. Podemos ser pacientes.
— Quanto? — Atef queria saber.
— Temos planos adicionais para a América, para feri-los de forma ainda pior. Desta vez matamos centenas. Da próxima vez mataremos milhares — prometeu Fa'ad com uma centelha nos olhos.
— Como, exatamente? — perguntou Atef de imediato. Ele podia ter sido — devia ter sido — um oficial de planejamento. Sua formação em engenharia o tornava ideal para essas coisas. Eles não sabiam disso? Havia pessoas na organização que pensavam com os bagos em vez de com o cérebro.
— Isso eu não tenho liberdade de dizer, meu amigo. — Fa'ad Rahman não dizia porque não sabia. Ele não era suficientemente confiável para os escalões superiores da organização, o que o teria ultrajado se soubesse.
O filho da puta provavelmente não sabe, pensou Atef ao mesmo tempo.
— Está chegando a hora da prece, meu amigo — disse Anas Ali Atef, consultando o relógio. — Venha comigo. Minha mesquita fica a apenas dez minutos. — Logo seria a hora do Salat. Era um teste para o colega, para saber se era realmente um fiel.
— Vamos lá. — Ambos se levantaram e caminharam para tomar o bonde, que parou 15 minutos depois a um quarteirão da mesquita.
— ALERTA, ALDO — disse Dominic. Eles haviam checado à vizinhança, na verdade apenas para sentir um pouco a área, mas lá estava o amigo deles, descendo a rua com quem parecia ser um amigo.
— Quem diabo é o número dois? — perguntou Brian.
— Ninguém que a gente conheça, e não podemos fazer serviço extra. Está preparado? — disse Dominic.
— Pode apostar seu pintinho, mano. E você?
— Pode apostar seu rabão — respondeu Dominic. O alvo estava a uns 30 metros, caminhando direto para eles, provavelmente se dirigindo para a mesquita, meio quarteirão atrás dos gêmeos. — O que você acha?
— Cancelar. É melhor pegá-lo na saída.
— Okay. — E ambos se viraram à direita para olhar a vitrine de uma chapelaria. Eles o ouviram — porra, quase o sentiram — passar. — Quanto tempo supõe que vai levar?
— Raios me partam se eu sei, cara. Eu mesmo não tenho ido à igreja já faz uns dois meses.
— Legal — rosnou Brian. — Meu próprio irmão virou um apóstata.
Dominic abafou uma risada.
— Você sempre foi o sacristão na família.
ATEF E SEU AMIGO entraram na mesquita. Era hora das preces diárias, o Salat, o segundo dos Cinco Pilares do Islã. Eles iam se prostrar e ajoelhar, na direção de Meca, murmurando frases preferidas do Sagrado Corão, afirmando sua fé. Ao entrarem no prédio, descalçaram os sapatos e, para surpresa de Yasin, a mesquita sofrerá influência alemã. Havia • escaninhos individuais na parede do pátio para os sapatos, todos devidamente numerados, para evitar confusão... ou roubo. Era um delito raro em qualquer país muçulmano, porque a punição islâmica para roubo era muito dura, e cometê-lo na Própria Casa de Alá teria sido uma ofensa dirigida ao Próprio Deus. Então entraram no templo propriamente dito e prestaram sua deferência a Alá.
Nilo levou muito tempo, uma espécie de refrigério para a alma de Atef, enquanto ele reafirmava suas crenças religiosas. Então acabou. Ele e o amigo voltaram ao átrio, recolheram seus sapatos e caminharam para fora.
Não foram os primeiros a transpor as amplas portas, e os outros serviram para alertar os dois americanos. Era realmente uma questão de qual caminho seguir. Dominic observava a rua, procurando um agente de polícia ou de inteligência, mas não viu nenhum. Ele estava apostando que o alvo voltaria ao apartamento. Brian tomou outra direção. Parecia que umas quarenta pessoas tinham ido às preces. Ao sair, elas se espalharam aos quatro ventos, sozinhas ou em pequenos grupos. Dois entraram em seus próprios táxis e partiram à cata de passageiros. Isso não incluía nenhum de seus irmãos de crença, que eram provavelmente da classe operária e caminhavam para pegar transporte público. Os gêmeos se aproximaram, nem muito rápido nem muito obviamente. Então o alvo e o amigo saíram.
Eles dobraram à esquerda, diretamente para Dominic, a 30 metros de distância.
De onde estava, Brian viu tudo. Dominic retirou a caneta do bolso interno do paletó, torceu discretamente a tampa para armá-la, depois segurou-a na mão direita como um furador de gelo. Estava se dirigindo para quase cruzar com o alvo... Perversamente falando, foi uma coisa bela de observar. A seis passos de distância, Dominic pareceu tropeçar em alguma coisa e caiu direto sobre Atef. Brian nem sequer viu a espetadela. Atef caiu junto com seu irmão, o que deve ter disfarçado o desconforto da estocada. O amigo de Atef ajudou os dois a se levantarem. Dominic pediu desculpas e seguiu seu caminho, enquanto os olhos de Brian acompanhavam o alvo. Ele não viu Sali morrer, portanto era interessante, de certa maneira cruel. O alvo caminhou uns 15 metros e parou. Deve ter dito alguma coisa, porque o amigo se virou como se para fazer uma pergunta, apenas a tempo de ver Atef cair. Um braço se ergueu para proteger seu rosto da queda, mas depois todo o corpo ficou flácido.
O segundo homem estava claramente estarrecido com o que via. Agachou-se para ver o que estava errado, primeiro intrigado, depois preocupado, e por fim em pânico, rolando o corpo e falando em voz alta para o amigo caído. Brian então passou por eles. O rosto de Atef estava tão composto e imóvel como o de uma boneca. O cérebro estava ativo, mas ele não conseguia sequer abrir os olhos. Brian ficou parado ali por um minuto, depois se afastou sem olhar para trás, mas gesticulou para que um transeunte alemão providenciasse ajuda, o que ele fez, pegando seu celular no bolso do casaco, talvez chamando uma ambulância. Brian caminhou para a esquina e virou-se para observar, consultando seu relógio. A ambulância chegou em seis minutos e meio. Os alemães eram realmente bem organizados. O paramédico que atendia verificou a pulsação, ergueu a vista com surpresa e depois com alarme. O companheiro puxou uma caixa de dentro do veículo e, enquanto Brian observava, Atef foi entubado e ensacado. Os dois bombeiros eram bem treinados. Na sua pressa, não removeram Atef para a ambulância, mas em vez disso o atenderam o melhor que puderam no chão.
Dez minutos depois que se foram, Brian consultou o relógio. Atef já estava com morte cerebral, este era o nome dessa melodia. O oficial dos Fuzileiros virou-se para a esquerda e caminhou para a esquina seguinte, onde pegou um táxi, atrapalhando-se com o nome do hotel, mas o motorista entendeu. Dominic estava no saguão quando ele chegou lá. Foram juntos para o bar.
A única coisa boa sobre matar um homem bem na saída da mesquita era que podiam estar razoavelmente certos de que ele não ia para o inferno. Pelo menos, era a menor coisa a perturbar suas consciências. A cerveja ajudava, também.
_______________
1 Banheiro dos homens.
20
O SOM DA CAÇADA
MUNIQUE ÀS 14h26 da tarde correspondia a 8h26 no fuso horário do Campus. Sam Granger estava cedo em seu escritório, imaginando se havia algum e-mail. Os gêmeos estavam trabalhando rápido. Não imprudentemente, mas estavam por certo fazendo uso da tecnologia que haviam recebido, e não desperdiçando o tempo ou o dinheiro do Campus no caminho. Ele já havia levantado o Alvo n° 3, claro, criptografado e pronto para ir para a internet. Ao contrário de Sali em Londres, ele não podia esperar notícia oficial dessa morte por parte do serviço de inteligência alemão, o Bundesnachrichtendienst, que mal soube de Anas Ali Atef. Seria, se muito, um assunto para a polícia de Munique, mais provavelmente um caso para o setor de medicina legal — mais um ataque cardíaco fatal num país de fumantes e comedores de gordura.
O e-mail chegou às 8h43 do computador de Dominic, reportando o bem-sucedido atentado em detalhes consideráveis, quase como um relatório investigativo oficial para o FBI. O fato de Atef ter tido um amigo por perto era provavelmente um bônus. Que um inimigo tivesse testemunhado o assassinato talvez significasse que a morte não despertaria suspeitas. O Campus faria o melhor possível para obter o relatório oficial da partida de Atef, só para ter certeza, embora isso tivesse seus elementos de dificuldade.
LÁ EMBAIXO RYAN E WILLS nada sabiam, claro. Jack se dedicava às tarefas de rotina de escanear o tráfego de mensagens entre os serviços de inteligência americanos — o que levou uma hora —, e depois disso um exame do tráfego na internet para e de endereços terroristas notórios ou suspeitos. A maioria esmagadora era tão rotineira como se fossem e-mails entre marido e mulher sobre o que comprar no supermercado na volta do trabalho para casa. Alguns daqueles e-mails podiam ser mensagens codificadas de significativa importância, mas nenhuma dizia isso sem um programa ou folha de decifração. Pelo menos um terrorista tinha usado TEMPO QUENTE para significar segurança pesada num local de interesse dos companheiros, mas a mensagem tinha sido enviada em julho, quando o tempo estava de fato mais quente do que ameno. E essa mensagem havia sido copiada pelo FBI, que não lhe dera especial atenção. Mas uma nova mensagem pulou positivamente da tela para ele nesta manhã.
— Ei, Tony, dê uma olhada nisto aqui, parceiro.
O destinatário era o velho amigo deles, 56MoHa@eurocom.net, e o conteúdo reconfirmava sua identidade como um nexo no tráfego de mensagem dos bandidos:
ATEF ESTÁ MORTO. MORREU BEM DIANTE DE MEUS OLHOS AQUI EM MUNIQUE. UMA AMBULÂNCIA FOI CHAMADA E O ATENDERAM NA CALÇADA, MAS ELE MORREU NO HOSPITAL DE ATAQUE CARDÍACO. PEÇO INSTRUÇÕES.
FA'AD.
E seu endereço era honeybear@ostercom.net, que era novo para o índice do computador de Jack.
— Honeybear? — observou Wills com uma risadinha. — Este cara deve procurar mulheres na internet.
— Portanto, ele faz sexo virtual, ótimo. Tony, se nós acabamos de apagar um cara chamado Atef lá na Alemanha, eis a confirmação: um novo alvo para rastrearmos. — Ryan voltou para o computador e usou seu mouse para checar fontes. — A NSA pegou também. Talvez eles achem que é um provável ator.
— Você certamente está dando saltos de imaginação — observou Wills, conciso.
— O cacete! — Jack estava realmente furioso pela primeira vez. Ele começava a entender por que seu pai com frequência ficava P da vida com a informação da inteligência que chegava ao Salão Oval. — Porra, Tony, o quanto as coisas têm que ser mais claras?
Wills inspirou fundo e falou tão calmamente como sempre: — Calma, Jack. É uma fonte isolada, um relatório isolado sobre alguma coisa que pode ou não ter ocorrido. A gente não comemora algo até que seja confirmado por fonte fidedigna. A identidade deste Honeybear pode ser um monte de coisas, e poucas delas podemos atestar como de mocinho ou bandido.
De sua parte, Jack Jr. imaginou se estava sendo testado — de novo! — por seu instrutor.
— Okay, vamos nos enfronhar nisso. MoHa 56 é uma fonte que acreditamos seriamente ser um ator, talvez um oficial de operações para os bandidos. Estamos fazendo uma varredura na internet por ele desde que cheguei aqui, certo? Bem, vasculhamos a rede e esta carta acaba na sua caixa postal ao mesmo tempo em que acreditamos, nós, que temos uma equipe de matadores em campo. A não ser que você vá me dizer que Uda bin Sali lealmente teve um infarto do miocárdio enquanto sonhava acordado com sua puta favorita no centro de Londres. E que o MI5 achou o evento altamente interessante só porque não é todo dia que um banqueiro terrorista suspeito cai morto na rua. Esqueci alguma coisa?
Wills sorriu.
— Não foi má apresentação. Um pouco tênue sobre a evidência, mas uma proposição bem organizada. Portanto, você acha que eu deveria encaminhar lá para cima?
— Não, Tony, acho que deve correr com isso lá para cima — disse Jack controlando a raiva óbvia. Inspire fundo e conte até dez.
— Então, acho que o farei.
CINCO MINUTOS DEPOIS, Wills caminhou até o escritório de Rick Bell. Entregou duas folhas de papel.
— Rick, temos uma equipe na Alemanha? — perguntou Wills.
A resposta não foi nem um pouco surpreendente.
— Por que pergunta? — Bell exibia um rosto de pôquer que teria impressionado uma estátua de mármore.
— Leia — sugeriu Wills.
— Droga — reagiu o chefe de análise. — Quem fisgou este peixe do oceano eletrônico?
— Dê um palpite — sugeriu Tony.
— Nada mau para o garoto. — Bell olhou muito detidamente para seu visitante. — De quanto mais ele desconfia?
— Ele tem certeza de que em Langley as pessoas estão ficando nervosas.
— Como você?
— Você poderia dizer assim — replicou Wills. — Ele dá bons saltos de imaginação, Rick.
Desta vez Bell fez uma careta.
— Bem, isso não é exatamente uma competição olímpica de salto em distância, é?
— Rick, Jack somou dois mais dois quase tão rápido quanto um computador diz a diferença entre um e zero. Ele está certo, não está?
Bell levou um segundo ou dois antes de responder.
— O que você acha?
— Acho que eles pegaram mesmo o tal Sali, e está é provavelmente a missão número dois. Como eles estão fazendo?
— Você realmente não quer saber. Não é tão limpo quanto parece — respondeu Bell. — Esse tal de Atef era um recrutador. Enviou pelo menos um cara para Des Moines.
— É um motivo bom o bastante — avaliou Wills.
— Sam pensa da mesma maneira. Passarei tudo para ele. Acompanhamento?
— Este MoHa precisa ser olhado de perto. Talvez a gente possa rastreá-lo — disse Wills.
— Alguma ideia de onde esteja?
— Itália, parece, mas um monte de gente vive lá na bota. Um monte de cidades grandes cheias de pocilgas. Mas a Itália é um bom lugar para ele. Situada num ponto central. Serviço aéreo por toda parte. E os terroristas têm deixado a Itália em paz ultimamente, portanto ninguém está caçando cão que não esteja latindo.
— O mesmo na Alemanha, na França e no restante da Europa Central?
Wills assentiu.
— Assim parece. Eles estão perto, mas não acho que apreciem isso plenamente. Tipo cabeça enfiada na areia, Rick.
— É verdade — concordou Bell. — Portanto, o que vamos fazer com seu estagiário?
— Ryan? Boa pergunta. Ele aprende rápido, com toda certeza. É particularmente bom em conectar coisas — Wills pensou em voz alta. — Ele dá grandes saltos de imaginação, às vezes longe demais, mas, ainda assim, não é uma qualidade ruim para um analista.
— Nota até aqui?
— B-mais, talvez um A-menos, e só porque é novo. Ele não é tão bom quanto eu, mas estou no ramo desde antes de ele nascer. Ele chegou agora, Rick. Vai longe.
— Tão bom assim? — perguntou Bell. Tony Wills era considerado um analista conservador cuidadoso, e um dos melhores que Langley já tinha produzido, apesar do visor verde sobre os olhos e a liga nas mangas.
Wills assentiu.
— Bom assim. — Ele também era escrupulosamente honesto. Era seu caráter natural, mas tinha condições de ser. O Campus pagava bem melhor que qualquer agência do governo. Os filhos estavam crescidos. O mais novo cursava o último ano de física na Universidade de Maryland e depois disso ele e Betty podiam pensar no próximo grande passo na vida deles, embora Wills gostasse daqui e não tivesse planos imediatos de sair. — Mas não conte a ele que eu disse.
— Metido a besta?
— Não, isso não seria justo. Mas não quero que ele comece a pensar que sabe tudo.
— Ninguém com meio cérebro pensa dessa maneira — disse Bell.
— É. — Wills levantou-se. — Mas por que correr o risco?
Wills foi saindo, mas Bell ainda não sabia o que fazer com o garoto Ryan. Bem, ia falar com o senador sobre isso.
— PRÓXIMA PARADA, VIENA — Dominic informou ao irmão. — Conseguimos outro alvo.
— Tem ideia de quanto este trabalho será constante? — Brian especulou em voz alta.
O irmão riu.
— Cara, há sacanas suficientes na América para nos manter ocupados pelo resto da vida.
— É, poupe dinheiro, despeça todos os juízes e jurados.
— Meu nome não é Dirty Harry Callahan, fuzileiro.
— Nem o meu é Chesty Puller. Como chegamos lá? Trem, avião... talvez de carro?
— De carro seria divertido — disse Dominic. — Que tal alugarmos um Porsche...?
— Ah, maravilha — grunhiu Brian. — Okay, saia logo para que eu possa baixar o arquivo, tá?
— Claro. Verei o que o porteiro pode arranjar para nós. — E ele se encaminhou para fora do quarto.
— É A ÚNICA CONFIRMAÇÃO que temos? — perguntou Hendley.
— Correto — confirmou Granger. — Mas corresponde exatamente ao que disseram nossos caras no térreo.
— Eles estão indo rápido demais. E se o outro lado pensar Dois ataques cardíacos em menos de uma semana...? E aí?
— Gerry, a natureza desta missão é reconhecimento-por-fogo, lembra? Nós em parte queremos que o outro lado fique um pouco nervoso, mas em breve a arrogância deles se manifestará e descartarão isso como um risco aleatório. Se fosse na TV ou no cinema, eles pensariam que a CIA está jogando pesado, mas não é cinema, e eles sabem que a CIA não faz esse tipo de jogo. O Mossad talvez, mas eles já estão desconfiados dos israelenses. Ei — uma lâmpada acendeu no cérebro de Granger —, e se são os caras que apagaram o agente do Mossad em Roma?
— Não pago a você para especular, Sam.
— É uma possibilidade — insistiu Granger.
— É também possível que a Máfia tenha abatido o pobre sacana porque o confundiu com um camarada mafioso que roubou dinheiro da organização. Mas eu não apostaria minhas fichas nisso.
— Sim, senhor. — Granger se retirou do escritório.
MOHAMMED HASSAN AL-DIN estava em Roma no momento, no Hotel Excelsior, tomando café e trabalhando no computador. Havia más notícias de Atef. Ele era — tinha sido — um bom recrutador, com a mistura correta de inteligência, plausibilidade e comprometimento para persuadir outros para se juntarem à causa. Ele próprio queria entrar na arena para ceifar vidas e ser um Santo Mártir, mas embora pudesse ter sido bom nisso, alguém que sabia recrutar era mais valioso do que um homem disposto a sacrificar a própria vida. Era uma questão de simples aritmética, algo que um engenheiro formado como Atef teria entendido. E se fosse com ele? Um irmão morto pelos israelenses em 1973? Um tempo longo para guardar rancor, mesmo para homens em sua organização, mas não sem precedente. Atef estava com seu irmão agora, no paraíso. Era uma boa sorte para ele, má sorte para a organização.
Assim estava escrito, Mohammed consolou a si mesmo, e portanto assim seria, e portanto a luta prosseguiria até que o último dos inimigos estivesse morto.
Ele tinha dois telefones clonados na cama, telefones que podia usar sem medo de grampo. Poderia ligar para o Emir sobre isso? Valia a pena pensar a respeito. Anas Ali Atef era o segundo ataque cardíaco em menos de uma semana, e nos dois casos homens jovens e, o que era estranho, algo pouco comum estatisticamente.
Fa'ad estava bem junto de Anas Ali na ocasião; não tinha sido baleado ou envenenado por um agente secreto israelense — um judeu provavelmente teria matado os dois, pensou Mohammed — e assim, com uma testemunha ocular bem ali, parecia haver pouco motivo para se suspeitar de jogo sujo. Por outro lado, bem, Uda gostava da vida de libertinagem e dificilmente teria sido o primeiro a morrer pelas fraquezas da carne. Assim, parecia apenas uma improvável coincidência e entretanto indigna de uma ligação urgente para o Emir em pessoa. Mas ele anotou os dois incidentes no seu computador, cifrou o arquivo e fechou. Sentiu vontade de caminhar.
Era um dia agradável em Roma. Quente para a maioria dos padrões europeus, mas o próprio alento do país natal para ele. Rua acima havia um agradável restaurante de calçada cuja comida italiana era apenas mediana, mas a média aqui era melhor do que em muitos restaurantes finos mundo afora. Era de se pensar que todas as mulheres italianas fossem obesas, mas, não, algumas sofriam da doença feminina ocidental da magreza, como as crianças da África. Como rapazinhos, em vez de mulheres adultas e experientes. Muito triste. Mas em vez de comer, ele atravessou a via Veneto para sacar mil euros do caixa eletrônico. O euro tornara muito mais conveniente viajar pela Europa, graças a Alá. Não se igualava ao dólar americano em termos de estabilidade, mas, com sorte, em breve poderia se igualar, o que facilitaria ainda mais as viagens. Roma era uma cidade difícil de não se gostar. Convenientemente localizada, internacional em caráter, repleta de forasteiros e plena de pessoas hospitaleiras que se rebaixavam e brigavam por dinheiro vivo como os camponeses que todos eles eram. Uma cidade boa para mulheres, com centros comerciais que Riad mal podia oferecer. Sua mãe inglesa tinha gostado de Roma, e os motivos eram óbvios. Comida boa, vinho e uma fina atmosfera histórica que antedatava o próprio Profeta, bênção e paz sobre ele.
Muitos tinham morrido aqui nas mãos dos césares, massacrados para diversão pública no Anfiteatro Flaviano, ou mortos por desagradar o imperador de uma maneira ou outra.
As ruas provavelmente tinham sido muito pacíficas durante o período imperial. Que melhor maneira de assegurar isto do que aplicar a lei implacavelmente? Até mesmo os fracos podiam reconhecer o preço a pagar por mau comportamento. Assim era no seu país e assim, ele esperava, permaneceria depois que a família real tivesse sido removida — ou morta ou escorraçada do país, talvez para a segurança da Inglaterra ou Suíça, onde pessoas com status de nobreza eram tratadas bem o bastante para viver suas vidas em indolente conforto. Qualquer das alternativas serviria para Mohammed e seus colegas. Só que eles não mais governariam seu país, repleto de corrupção, submissão aos infiéis e trocando petróleo por dinheiro, governando o povo como se fossem os filhos do próprio Maomé. Isso ia ter um fim. Sua aversão pela América fraquejava diante do seu ódio pelos governantes de seu próprio país. Mas a América era seu alvo primordial por causa de seu poder, quer mantido para seu próprio uso quer partilhado com outros para ser usado nos interesses imperialistas da própria América. Os Estados Unidos ameaçavam tudo que ele ambicionava. Eram um país infiel, patrono e protetor dos judeus. Invadiram seu próprio país e estacionaram tropas e armas lá, sem dúvida com o objetivo definitivo de submeter todo o Islã, e assim governar um bilhão de Fiéis em benefício de seus próprios interesses mesquinhos e provincianos.
Ferroar a América tornara-se sua obsessão. Nem mesmo os israelenses eram tão atraentes como alvos. Por mais maléficos que pudessem ser, os judeus não passavam de paus-mandados para os americanos, capachos que faziam a vontade dos Estados Unidos em troca de dinheiro e armas, sem sequer saber o quão cinicamente estavam sendo usados. Os xiitas iranianos estiveram certos. A América era o Grande Satã, o próprio íblis, tão grande em poder que era difícil golpeá-la decisivamente, mas ainda vulnerável na sua maldade diante das forças justas de Alá e dos Fiéis.
O PORTEIRO DO HOTEL BAYERISCHER havia se superado, pensou Dominic, conseguindo um Porsche 911 cujo porta-malas situado na frente mal dava para a bagagem deles. Mas bastava, e era até melhor mesmo do que um Mercedes alugado de motor pequeno. O 911 tinha colhões. Brian se atrapalharia com os mapas enquanto seguissem para sudoeste através dos Alpes para Viena. Que estivessem indo rumo sul para matar alguém era indiferente no momento. Estavam servindo ao país, que era quase tão grande quanto sua lealdade.
— Preciso usar um capacete? — perguntou Brian embarcando, o que no caso deste carro era quase como se sentar no chão.
— Não comigo dirigindo, Aldo. Vamos lá, mano. É hora de deitar e rolar.
O carro tinha uma horrível tonalidade de azul, mas o tanque estava cheio e o motor de seis cilindros adequadamente regulado. Os alemães faziam coisas assim in Ordnung. Brian os conduziu por Munique e pela autobahn a sudoeste de Viena, e a partir daí Enzo decidiu ver o quanto este Porsche podia realmente correr.
— VOCÊ ACHA QUE ELES TALVEZ precisem de algum apoio? — perguntou Hendley a Granger, a quem acabava de chamar a seu escritório.
— O que quer dizer? — respondeu Sam. Eles deviam ser os irmãos Caruso, claro.
— Quero dizer que eles não precisam muito do apoio da inteligência para atrapalhar — assinalou o ex-senador.
— Bem, nós nunca realmente pensamos nisso, não é?
— Exatamente. — Hendley recostou-se na cadeira. — Em certo sentido, eles estão operando desprotegidos. Nenhum dos dois aliás tem muita experiência em operações de inteligência. E se eles espetarem o cara errado? Okay, eles provavelmente não vão ser flagrados fazendo isso, mas tampouco vai elevar seu moral. Lembro de um mafioso na prisão federal de Atlanta, acho. Ele matou algum pobre fodido que achava que estava tentando matá-lo, mas só que foi o cara errado, e por causa disso ele se apavorou. Cantou como um canário. Foi assim que conseguimos nossa primeira grande abertura sobre a Máfia e como ela estava organizada, lembra?
— Ah, sim, era um soldado da Máfia chamado Joe Valachi, sim, mas ele era um criminoso, lembra?
— E Brian e Dominic são os mocinhos. Portanto, a culpa poderia acometê-los do pior modo. Talvez algum apoio de inteligência seja uma boa ideia.
Granger ficou surpreso com a sugestão.
— Posso ver a necessidade de melhor avaliação de inteligência, e esta coisa de escritório virtual tem suas limitações, admito. Eles não podem fazer perguntas, mas se tiverem alguma, sempre podem nos enviar e-mail pedindo conselhos...
— O que eles não fizeram — assinalou Hendley.
— Gerry, eles só tiveram duas etapas na missão. Ainda não é hora para pânico. São dois jovens agentes muito brilhantes e muito capazes. Foi por isso que os recrutamos. Eles sabem pensar por si mesmos, e é exatamente isso o que queremos do nosso pessoal de operações.
— Não estamos apenas fazendo presunções, estamos lançando presunções no futuro. Você acha que é uma boa ideia? — Hendley tinha aprendido como perseguir ideias no Capitólio, e era mortalmente eficaz nisso.
— Presunções sempre são uma coisa ruim, sei disso, Gerry. Mas há complicações. Como vamos saber que estamos mandando o sujeito certo? E se isso simplesmente adicionar um nível de incerteza? Queremos fazer isso? — Hendley, pensou Granger, estava sofrendo da mais mortal doença congressista. Era fácil demais supervisionar alguma coisa até a morte.
— O que eu estava dizendo é que é uma boa ideia ter alguém lá que pense um pouco diferente, que exerça um tipo diferente de abordagem dos dados que saem de lá. Os rapazes Caruso são muito bons, sei disso. Mas são inexperientes. A coisa importante é ter lá um cérebro diferente que assuma uma visão diferente dos fatos e da situação.
Granger se sentiu encurralado.
— Certo. Olhe, eu posso ver a lógica disso, mas existe um nível de complicação de que não precisamos.
— Okay, então veja desta maneira... e se eles virem alguma coisa para a qual não estão preparados? Nesse caso, precisam de uma segunda, ou seja lá como a chame, opinião sobre os dados à mão. O que vai torná-los menos propensos a cometer algum erro no campo. A única coisa que me incomoda é que eles cometam um erro... um erro fatal para algum pobre casca-grossa... e que este equívoco afete o modo como levarão suas missões a cabo no futuro. Culpa, remorso, e depois talvez então eles comecem a falar disso, certo? Podemos desprezar isso por completo?
— Não, talvez não inteiramente, mas também significa que apenas acrescentamos um elemento à equação que pode dizer não quando um sim é a maneira certa de prosseguir. Dizer não é algo que qualquer um pode fazer. Não é necessariamente certo. Pode levar a cautela longe demais.
— Não penso assim.
— Ótimo. Então, quem é que você quer mandar? — perguntou Granger.
— Vamos pensar a respeito. Deveria ser... tem que ser alguém que eles conheçam e em quem confiem... — Sua voz se arrastou.
Hendley havia deixado nervoso seu chefe de operações. Ele tinha uma ideia fixa na cabeça, e Hendley sabia muito bem que ele era o chefe do Campus e que dentro deste prédio sua palavra era lei e ninguém discutia. Assim, se Granger fosse selecionar um nome para esta tarefa visionária, tinha que ser alguém que não ferrasse tudo.
A AUTOBAHN era soberbamente, até mesmo brilhantemente, projetada. Dominic viu-se imaginando quem teria sido o engenheiro. Depois achou que a estrada parecia já estar ali há muito tempo. E ela ligava Alemanha e Áustria... será que o próprio Hitler ordenara sua construção? Não era engraçado? De qualquer modo, não havia limite de velocidade aqui, e o Porsche com motor de seis cilindros estava ronronando como um tigre à espreita ao farejar carne fresca. E os motoristas alemães eram espantosamente educados. Tudo que você tinha a fazer era piscar os faróis e eles saíam de sua frente como se tivessem recebido um aviso divino. Definitivamente ao contrário da América, onde alguma velhinha em seu calhambeque Pinto ficava na última faixa à esquerda porque era canhota e gostava de atrasar os maníacos em seus Corvettes. Uma matinê de desenho animado dificilmente seria mais engraçada.
Por seu turno, Brian fazia o melhor para não se borrar de medo. Vez por outra fechava os olhos, pensando nos voos rasantes de reconhecimento dos fuzileiros através dos desfiladeiros na Sierra Nevada, com frequência em helicópteros CH-46 mais velhos do que ele. Não o haviam matado. Tampouco aconteceria aqui e, como oficial do Corpo de Fuzileiros, não se podia permitir demonstrar medo ou fraqueza. E era excitante. Um tanto como andar de montanha-russa sem a barra de segurança. Mas percebeu que Enzo estava tendo a curtição de sua vida e consolou-se com o fato de que seu cinto de segurança estava atado, e que este carrinho alemão tinha sido projetado talvez pela mesma equipe que desenhara o tanque Tiger. Seguir através das montanhas foi a parte mais assustadora, e quando por fim entraram na área rural, a terra ficou mais plana e a estrada mais reta, graças a Deus.
— The hills are aliiive with the sound of muuuuusikkkk — cantou horrivelmente Dominic lembrando a terra da Noviça Rebelde.
— Se você cantasse assim na igreja, Deus o mandaria para o inferno — avisou Brian, pegando os mapas da cidade ao se aproximarem de Wien, como Viena era conhecida por seus cidadãos.
E as ruas da cidade eram um caminho de rato. A capital da Áustria — Osterreich — mais antiga que as legiões romanas, sem nenhuma rua reta que coubesse uma legião romana desfilando seus tribunus militaris no aniversário do imperador. O mapa mostrava ruas circulares internas e externas, que provavelmente assinalavam o antigo local das muralhas medievais — os turcos chegaram aqui mais de uma vez, esperando acrescentar a Áustria a seu império, mas esta ninharia da história militar não fazia parte da lista de leituras do Corpo de Fuzileiros. Um país amplamente católico, por ter sido governado pela Casa dos Habsburgs, isso não impedira os austríacos de exterminarem sua próspera e proeminente minoria judia após Hitler ter submetido o país ao Grande Reich Alemão. Isto se dera após o plebiscito do Anschluss de 1938. Hittler tinha nascido ali, não na Alemanha, como se acreditava amplamente, e os austríacos recompensaram essa lealdade, alguns deles tornando-se mais nazistas do que o próprio Hitler, ou assim reportou a história objetiva, não necessariamente os atuais austríacos. Foi o único país do mundo onde A Noviça Rebelde foi um fracasso de bilheteria, talvez porque o filme não louvava o Partido Nazista.
Por tudo isso, Viena parecia ser o que era, uma antiga cidade imperial, com amplos bulevares de três pistas e arquitetura clássica, e cidadãos marcantemente bem vestidos.
Brian passou entre eles até o Hotel Imperial na Kartner Ring, um edifício que parecia ser um anexo ao bem conhecido Palácio de Schonbrunn.
— Você tem que admitir que eles nos mandam para lugares bacanas, Aldo — observou Dominic.
Era até mesmo mais impressionante no interior, com reboco dourado e madeiramento laqueado, cada segmento do qual parecia ter sido instalado por mestres artesãos importados da Florença renascentista. O saguão não era espaçoso, mas o balcão da recepção era impossível de não ser notado, ocupado por pessoas usando trajes que as distinguiam como estafe do hotel tão nitidamente quanto um fuzileiro vestido de azul.
— Bom dia — disse o porteiro. — Seu nome é Caruso?
— Correto — disse Dominic, surpreso com a percepção extrassensorial do funcionário. — Vocês devem ter uma reserva para mim e meu irmão.
— Sim, senhor — replicou o porteiro com entusiasmo servil. Seu inglês podia ter sido aprendido em Harvard. — Dois quartos interligados de frente para a rua.
— Excelente. — Dominic pegou seu cartão American Express e entregou.
— Obrigado.
— Alguma mensagem para nós? — perguntou Dominic.
— Não, senhor — assegurou-lhe o porteiro.
— Pode pedir ao manobrista para cuidar de nosso carro? É alugado. Não temos certeza se vamos continuar com ele.
— Claro, senhor.
— Obrigado. Podemos ver nossos quartos?
— Perfeitamente. Vocês estão no primeiro andar... hã, desculpe, segundo andar, como vocês chamam na América. Franz — ele chamou.
O inglês do mensageiro era quase tão bom.
— Por aqui, por favor, cavalheiros. — Não havia elevador, mas um lance de escada acarpetada em vermelho que seguia diretamente até um retrato de corpo inteiro de alguém que parecia de fato muito importante em uniforme militar branco e cavanhaque belamente penteado.
— Quem é? — Dominic perguntou ao rapaz.
— O imperador Francisco José, senhor. Ele visitou o hotel na sua inauguração no século XIX.
— Ah. — Isso explicava o comportamento do estafe aqui, mas não se podia falar mal do estilo deste lugar. De modo algum.
Em mais cinco minutos, estavam acomodados nos quartos. Brian chegou perambulando ao aposento do irmão.
— Porra, o andar residencial da Casa Branca nem se compara...
— Você acha? — perguntou Dominic.
— Meu chapa, eu sei. Já estive lá. O tio Jack me recebeu depois que obtive minha patente... não, na verdade foi depois que concluí a Academia Militar. Merda, este lugar é um barato. Fico imaginando quanto isso custa.
— Que diabo, paguei com meu cartão, e nosso amigo está bem perto, no Bristol. É meio interessante caçar escrotos ricos, não é?
Isto os trouxe de volta à missão. Dominic tirou seu laptop da mala. O Imperial costumava ter hóspedes com computadores, e a instalação para seu uso era de fato muito eficiente. Ele abriu o arquivo mais recente. Ele só o havia escaneado antes. Agora ele ocupou seu tempo com cada palavra isolada.
GRANGER PENSAVA. Gerry queria alguém para paparicar os gêmeos, e parecia que sua mente estava fixada nisso. Havia muita gente boa no departamento de inteligência chefiado por Rick Bell, mas como ex-agente de inteligência na CIA e em toda parte, eles todos eram velhos demais para ser companheiros adequados para os gêmeos, jovens como eram os Caruso. Não parecia correto ter gente no final da casa dos vinte partilhando aposentos pela Europa com cinquentões. Portanto, era melhor alguém mais jovem. Não havia muitos disponíveis, mas tinha um... Ele pegou o telefone.
FA'AD ESTAVA a dois quarteirões de distância, no terceiro andar do Hotel Bristol, um hotel famoso e preferido pela alta sociedade conhecido particularmente por seu excelente restaurante e sua proximidade com a Ópera estatal, situada logo do outro lado da rua, consagrada à memória de Wolfgang Amadeus Mozart — o músico da corte dos Habsburg antes de morrer precocemente, aqui mesmo em Viena. Mas Fa'ad não estava nem um pouco interessado nessa história. Os eventos atuais eram sua obsessão. Ver Anas Ali Atef morrer diante de seus olhos o abalara fortemente. Aquilo não tinha sido a morte de infiéis, algo que ele podia assistir na TV com um sorriso discreto no rosto. Ele estivera bem ali, observando a vida ser drenada invisivelmente do corpo de seu amigo, observando os paramédicos alemães lutarem em vão por sua vida — evidentemente dando o melhor de si mesmos por uma pessoa que eles deviam ter desprezado. O que era uma surpresa. E, sim, eles eram alemães apenas fazendo seu trabalho, mas fizeram esse trabalho com determinação obstinada e dispararam com seu amigo para o hospital mais próximo, onde os médicos alemães haviam provavelmente feito o mesmo, só que fracassaram.
Um médico o procurara na sala de espera e tristemente lhe dera a notícia, dizendo desnecessariamente que tinham feito tudo o que podia ter sido feito, que parecia um ataque cardíaco fulminante. Um exame de laboratório seria feito para confirmar se esta fora de fato a causa da morte. Por fim, pediu informações sobre a família, se é que tinha, e quem cuidaria do corpo depois que eles tivessem acabado. Uma coisa estranha sobre os alemães: como eles eram sistemáticos a respeito de tudo. Fa'ad tinha feito os arranjos que pudera e depois pegara um trem para Viena, sentando-se sozinho na primeira classe e tentando se conformar com o terrível acontecimento. Ele estava fazendo seu relatório para a organização. Mohammed Hassan al-Din era seu portão para isso. Estava provavelmente em Roma no momento, embora Fa'ad não soubesse com certeza. A internet bastava, informal como era. Era muito triste para um jovem, vigoroso e valioso camarada cair morto no meio da rua. Se isso servia a algum propósito, só o Próprio Alá sabia o que poderia ser — mas Alá tinha Seu Plano para tudo, e nem sempre era algo que os homens devessem saber.
Fa'ad pegou uma garrafinha de conhaque no minibar e bebeu direto dela em vez de usar um dos cálices do aparador. Pecado ou não, ajudou a acalmar seus nervos e, de qualquer modo, ele nunca o fazia em publico. Maldita falta de sorte! Deu outra olhada no minibar. Restavam duas garrafas de conhaque e várias miniaturas de uísque escocês, a bebida preferida dos sauditas, com ou sem Shar'ia.
— TEM PASSAPORTE? — perguntou George tão logo ele se sentou.
— Bem, claro. Por quê? — quis saber Ryan.
— Você vai para a Áustria. O avião parte esta noite de Dulles. Aqui está sua passagem. — O diretor de operações entregou-lhe a pasta através da mesa.
— Para quê?
— Você tem reserva no Imperial Hotel. Lá você se juntará a Dominic e Brian Caruso para mantê-los informados dos desdobramentos da inteligência. Você pode usar sua conta regular de e-mail e seu laptop está equipado com a tecnologia criptográfica adequada.
Que diabo é isso?, especulou Jack.
— Desculpe, Sr. Granger. Podemos dar dois passos atrás? Exatamente o que está acontecendo aqui?
— Seu pai fez esta pergunta uma ou duas vezes, aposto. — Granger conseguiu um sorriso que congelaria o gelo boiando num copo de uísque. — Gerry acha que os gêmeos precisam de apoio da inteligência. Portanto, você está destacado para fornecer esse apoio, uma espécie de consultor para eles enquanto estiverem em campo. Não significa que você estará fazendo realmente alguma coisa, exceto ficar de olho nos desdobramentos da inteligência pelo escritório virtual. Você fez um trabalho muito bom nisso. Tem um bom faro para rastrear coisas na internet... uma visão muito melhor do que Dom e Brian. Manter os olhos no campo pode ser útil. Eis por quê. Você pode declinar da tarefa, mas no seu lugar eu aceitaria. Okay?
— A que horas é o voo?
— Está aí na sua passagem.
Jack olhou.
— Droga, tenho que me apressar.
— Então se apresse. Há um carro para levá-lo ao aeroporto. Vá indo.
— Sim, senhor — replicou Jack, se levantando. Ainda bem que teria um carro. Não gostava da ideia de deixar seu Hummer no estacionamento do aeroporto. — Ah, quem está autorizado a saber disso?
— Rick Bell avisará a Wills. Além deles ninguém mais. Repito: ninguém mais. Está claro?
— Está, senhor. Okay, estou fora daqui. — Ele abriu a pasta com a passagem para encontrar o cartão American Express preto. Pelo menos a viagem era por conta da empresa. Quantas coisas dessas o Campus tinha guardadas nas gavetas de seus arquivos?, imaginou. Mas com toda maldita certeza era tudo que precisava por este dia.
— O QUE É ISSO? — perguntou Dominic ao computador, — Aldo, vamos ter companhia chegando aqui amanhã.
— Quem? — perguntou Brian.
— Não diz. Só diz para não empreendermos nenhuma ação até que ele entre em contato conosco.
— Bolas, quem eles acham que nós somos? Os Teletubbies? Não é culpa nossa que o cara tenha caído direto no nosso colo. Por que vir com essa merda?
— São gente do governo. Se você se mostra eficiente demais, eles ficam assustados — Dominic pensou em voz alta. — Que tal jantar, mano?
— Ótimo. Podemos experimentar a versão deles de vitela à milanesa. Acha que têm vinhos decentes por aqui?
— Só há um meio de descobrir, Aldo. — Dominic pegou uma gravata da mala. O restaurante do hotel parecia quase tão formal quanto a velha casa do tio Jack.
21
O NOME DO BONDE DESEJADO
ERA UMA NOVA AVENTURA para Jack de duas maneiras diferentes. Ele nunca estivera na Áustria. E era para lá de certo nunca ter entrado em campo como espião para juntar-se a uma equipe de assassinato. E embora a ideia de acabar com a vida de pessoas que gostavam de matar americanos parecesse boa num escritório em West Odenton, Maryland, na poltrona 3A de um Airbus sobrevoando o Atlântico a 34 mil pés era subitamente um arriscado jogo de interesses. Bem, Granger lhe dissera que ele realmente não tinha que fazer nada. E estava tudo bem com Jack. Ele ainda sabia disparar uma pistola — praticava regularmente no estande do Serviço Secreto no centro de Washington, ou às vezes na academia deles em Beltsville, Maryland, se Mike Brennan estivesse por lá. Mas Brian e Dom não estavam atirando em pessoas, não é? Não segundo o relatório do M15 que chegara a seu computador. Ataque cardíaco? Como diabos era possível simular ataque cardíaco a ponto de patologistas morderem a isca? Tinha que perguntar a eles. Presumivelmente seria esclarecido.
De qualquer modo, a comida foi melhor do que a média das linhas aéreas, e nem mesmo uma empresa aérea pode estragar a bebida enquanto ela está na garrafa. Com álcool suficiente no corpo, ele dormiu facilmente, e a poltrona da primeira classe era do tipo antigo, não aquela nova geringonça com uma centena de posicionamentos, nenhum confortável. Como de hábito, metade dos passageiros ficou vendo filmes a noite toda. Cada pessoa tinha seu próprio jeito de lidar com choque de viagem, como seu pai invariavelmente chamava. O de Jack era dormir a viagem toda.
O SCHNITZEL1 VIENENSE era excelente, como eram os vinhos locais.
— Quem quer que faça isso precisa falar com vovô — disse Dominic após a última mordida. — Ele pode saber alguma coisa que vovô pode aprender.
— Ele é provavelmente italiano, mano, ou pelo menos descendente. — Brian terminou sua taça do excelente branco local que o garçom havia recomendado. Cerca de 15 segundos depois, o garçom percebeu isso e reencheu a taça antes de desaparecer novamente. — Droga, um homem pode se acostumar com essa comilança. Bota no chinelo a boia lá do rancho dos oficiais.
— Com sorte, você pode nunca mais comer aquela lavagem de novo.
— Claro, se continuarmos nesta linha de trabalho — respondeu Aldo duvidoso.
Estavam praticamente sozinhos num reservado de canto. — E então, o que sabemos sobre o novo alvo?
— Correio, aparentemente. Ele carrega mensagens na cabeça... as que eles não mandam pela internet. Teria sido útil pegar um pouco do cérebro dele, mas esta não é a missão. Temos uma descrição física, mas nenhuma foto desta vez. Isso é um pouco preocupante. Ele não parece tão importante. O que também é preocupante.
— É, estou com você. Ele deve ter deixado emputecidas as pessoas erradas. Sorte dura. — Seus escrúpulos de consciência eram coisa do passado, mas ele queria realmente apagar alguém mais próximo do topo da cadeia alimentar. A ausência de uma foto era de fato preocupante. Eles tinham que ser cautelosos. Ninguém quer matar o cara errado.
— Bem, ele não entrou na lista por cantar alto demais na igreja, está sabendo?
— E nem é o sobrinho do papa. — Brian completou a litania. — Estou com você, cara.
Ele consultou o relógio. — É hora de tirar o time de campo. Temos que ver quem está chegando amanhã. Como vamos encontrá-lo?
— O Campus tem ideias engraçadas sobre segurança, não tem?
— Sim, não é como nos filmes. — Dominic deu ele próprio uma risada silenciosa.
Acenou pedindo a conta. Pularam a sobremesa. Num lugar como este, podia ser letal.
Mais cinco minutos e estavam dormindo em suas camas.
— VOCÊ SE ACHA ESPERTO, hein? — Hendley perguntou a Granger nos telefones seguros em suas respectivas casas.
— Gerry, você me disse para enviar um cara pensante em inteligência, certo? Quem mais podemos aproveitar da loja de Rick? Todo mundo andou me dizendo como o garoto é afiado. Muito bem, deixe-o provar isso no campo de batalha.
— Mas ele é um recruta — protestou Hendley.
— E os gêmeos não são? — perguntou Granger em resposta. Droga. A partir de agora, deixe-me dirigir minha loja do meu jeito, ele pensou tão alto quanto podia. — Gerry, ele não está indo para sujar as mãos, e isso provavelmente o tornará um analista melhor. Jack é parente deles. Os gêmeos o conhecem. Ele os conhece. Eles vão confiar nele e acreditar no que ele tem a dizer. E Tony Wills diz que ele é o mais brilhante jovem analista que viu desde que deixou Langley. Assim, ele é perfeito para a missão, não é?
— Ele é muito novo — disse Hendley, mas sabia que estava perdendo a parada.
— E quem não é, Gerry? Se tivéssemos rapazes disponíveis com experiência nesse trabalho, nós os teríamos na folha de pagamento.
— Se isso explodir...
— Então estou queimado. Sei disso. Posso assistir à TV agora?
— Vejo você amanhã — disse Hendley.
— Boa noite, parceiro.
HONEYBEAR ESTAVA surfando na internet, batendo papo com alguém chamado Elsa K69, que dizia ter 23 anos, l,60m e 54 quilos, medidas decentes mas não excepcionais, cabelo castanho, olhos azuis, mente obscena e inventiva. Também tinha boas habilidades em digitação. De fato, embora Fa'ad não tivesse como saber, era um homem, 50 anos, meio bêbado e um tanto solitário. Conversavam em inglês. A garota do outro lado disse que era secretária em Londres. Era uma cidade que o contador austríaco conhecia bem. Ela era real o bastante para Fa'ad, que logo entrou profundamente na perversa fantasia.
Não era tão bom quanto uma mulher de verdade para um tiro no escuro, mas Fa'ad andava cuidadoso em dar rédeas às paixões na Europa. Nunca se sabia se a mulher contratada era alguém do Mossad, que podia ficar tão feliz em cortar fora seu pau quanto aceitá-lo dentro. Ele não temia muito a morte, mas, como todos os homens, temia a dor. De qualquer modo, a fantasia durou quase meia hora, o que o deixou satisfeito o bastante para anotar o username caso ela aparecesse de novo. Ele não tinha como saber que o contador do Tirol fez uma anotação similar no seu Arquivo de Fé antes de se retirar para um leito frio e solitário.
QUANDO JACK ACORDOU, as persianas estavam erguidas para revelar o cinza púrpura das montanhas 20 mil pés abaixo. Seu relógio mostrava que estava a bordo por quase oito horas, seis delas provavelmente dormindo. Nada mau. Sentia uma leve dor de cabeça por causa do vinho, mas o café da manhã estava bom, bem como os pãezinhos, que se combinaram para deixá-lo semidesperto enquanto o voo 94 manobrava para o pouso.
O aeroporto não era grande para um ponto principal de entrada em país soberano, mas a Áustria inteira tinha quase a mesma população da Grande Nova York, com três aeroportos. O avião pousou e o comandante deu boas-vindas a todos a sua terra natal, dizendo-lhes que eram 9h05 da manhã hora local. Portanto Jack teria um dia para lidar com o ajuste ao fuso horário, mas, com sorte, talvez estivesse mais ou menos bem no dia seguinte.
Ele passou facilmente pela imigração — o voo teve metade da lotação — pegou sua bagagem e saiu em busca de um táxi.
— Hotel Imperial, por favor.
— Para onde? — perguntou o taxista.
— Hotel Imperial — repetiu Ryan.
O motorista pensou por um momento: — Ach so, Hotel imperial, ja?
— Das ist richtig — assegurou-lhe Junior e acomodou-se para apreciar a corrida. Ele tinha 100 euros e presumiu que bastariam, a não ser que esse cara tivesse frequentado a escola de taxistas de Nova York. De qualquer modo, haveria caixas eletrônicos. A corrida levou meia hora, enfrentando o tráfego da hora do rush. A um quarteirão ou dois do hotel, ele passou por uma concessionária Ferrari, o que era algo novo para ele — antes, ele só tinha visto Ferraris na TV e imaginou, como todos os jovens imaginam, como seria dirigir um deles.
O pessoal do hotel saudou-o como um príncipe chegando e o conduziu para uma suíte no quarto andar, cuja cama parecia de fato muito convidativa. Ele imediatamente pediu café da manhã e desfez as malas. Depois se lembrou de por que estava aqui. Pegou o telefone e pediu uma ligação com o quarto de Dominic Caruso.
— ALÔ? — ERA BRIAN. Dom estava no chuveiro folheado a ouro.
— Ei, primo, aqui é Jack — ele ouviu.
— Que Jack... espere um minuto, Jack?
— Estou aqui em cima, fuzileiro. Cheguei uma hora atrás. Subam, precisamos conversar.
— Certo. Me dê dez minutos — disse Brian e foi até o banheiro. — Enzo, você não vai acreditar. Sabe quem está aqui em cima?
— Quem? — perguntou Dominic, enxugando-se.
— Deixe que seja uma surpresa, cara. — Brian voltou para a sala de estar, não muito certo se ria ou ficava sério enquanto lia o International Herald Tribune.
— TÁ BRINCANDO, porra — Dominic ofegou quando a porta abriu.
— Você devia ver isso do meu lado, Enzo — respondeu Jack. — Entre.
— A comida é boa no Motel 6, não é? — brincou Brian, seguindo o irmão.
— Na verdade, prefiro Holiday Inn Express. Preciso arranjar um Ph.D. para o meu currículo, sabe? — Jack riu e acenou para que sentassem. — Pedi café extra.
— Eles o fazem bem aqui. E vejo que você descobriu os croissants. — Dominic se serviu de uma xícara e afanou um deles. — Por que diabos eles mandaram você?
— Acho que é porque vocês me conhecem. — Junior pôs manteiga no seu segundo croissant. — Já lhes digo. Deixem-me terminar meu café e vamos dar uma caminhada até a concessionária Ferrari e falar disso. Estão gostando de Viena?
— Chegamos aqui só ontem à tarde, Jack — informou Dominic.
— Não sabia disso. Mas descobri que passaram um tempo produtivo em Londres, porém.
— Nada mau — respondeu Brian. — Contamos mais tarde.
— Certo. — Jack continuou seu café da manhã enquanto Brian voltava ao seu jornal. — Lá em casa eles ainda estão excitados com o tiroteio. Tive que tirar os sapatos no aeroporto. Ainda bem que estava com meias limpas. Parecia que tentavam ver se alguém queria sair da cidade às pressas.
— É, aquilo foi tremendamente feio, cara — observou Dominic. — Alguém que você conheça foi atingido?
— Não, graças a Deus. Nem papai, com toda aquela gente que ele conhece no ramo de investimento. E quanto a vocês, rapazes?
— Ninguém que conhecêssemos — disse Brian com um olhar engraçado. Ele esperava que a alma do pequeno David Prentiss não ficasse ofendida.
— Deixem-me tomar um banho e depois vocês podem me exibir por aí.
Brian acabou de ler o jornal e pôs a TV na CNN — o único canal americano que o Imperial tinha — para ver o noticiário das cinco em Nova York. A última das vítimas havia sido enterrada no dia anterior, e os repórteres perguntavam aos parentes consternados como se sentiam sobre suas perdas. Que pergunta cretina!, irritou-se o fuzileiro. A gente supostamente tinha que enfiar a faca era nos bandidos. E os políticos ficavam arengando sobre O que a América Tinha de Fazer.
Bem, pensou Brian, estamos fazendo isso por vocês, caras. Mas se descobrissem, provavelmente iam emporcalhar sua boa fama. Mas isso só o fazia se sentir melhor.
Alguém tinha que dançar conforme a música, e este era o seu trabalho agora.
NO BRISTOL, FA'AD acabava de acordar. Ele também pedira café e croissants. Marcara encontro com um correio amigo no dia seguinte para receber uma mensagem que depois percorreria o devido curso. A Organização operava suas comunicações importantes com grande segurança. As mensagens relevantes eram passadas pessoalmente. Os correios só conheciam suas contrapartes de entrada e saída, de modo que estavam organizados em células de apenas três, outra lição aprendida do falecido agente da KGB. O correio de entrada era Mahmoud Mohamed Fadhil, que estava chegando do Paquistão. O sistema podia ser quebrado, mas só com esmerado e extensivo trabalho policial, que era facilmente despistado se apenas um homem se retirasse da célula. O problema era que a remoção de um componente da célula podia impedir que uma mensagem alcançasse seu destino inteiramente, mas isso não tinha ainda acontecido e não se esperava que acontecesse. Não era uma vida ruim para Fa'ad. Ele viajava um bocado, sempre de primeira classe, só se hospedava em hotéis cinco estrelas e, no cômputo geral, era uma vida confortável. Ocasionalmente se sentia culpado por isso. Outros faziam coisas que ele considerava perigosas e admiráveis, mas ao assumir a tarefa havia sido instruído de que a organização não podia funcionar sem ele e seus onze camaradas, o que era bom para seu moral. Ficou sabendo que sua função, além de ter grande importância, era também inteiramente segura. Ele recebia e passava mensagens, com frequência aos próprios operadores, os quais o tratavam com grande respeito, como se ele próprio tivesse criado as instruções da missão, o que ele não negava. Assim, em dois dias, recebera mais ordens para transferir, ou para seu colega mais próximo geograficamente — Ibrahim Salih Al-Adel, baseado em Paris — ou para um operador atualmente desconhecido. Hoje ele ia receber e repassar as informações, na medida que fossem necessárias, e agir em cima dos desdobramentos. A tarefa podia ser ao mesmo tempo tediosa ou excitante, e com as horas livres e risco zero para sua pessoa, era fácil ser um herói do movimento, como às vezes se permitia pensar de si mesmo.
CAMINHAVAM PARA LESTE no Kartner Ring, que quase abruptamente virava para nordeste e mudava seu nome para Schubertring. No lado norte ficava a concessionária Ferrari.
— Então, como vocês estão fazendo? — perguntou Jack, já ao ar livre e com o rumor do tráfego além do alcance de qualquer possível aparelho de escuta.
— Dois já eram. Mais um para ir, aqui mesmo em Viena, depois outro em algum lugar, seja lá onde for. Eu esperava que você soubesse — disse Dominic.
Jack balançou a cabeça.
— Que nada. Não fui instruído sobre isso.
— Por que eles o mandaram? — indagou Brian.
— Aparentemente para dar a vocês segundos palpites, acho. Dar-lhes apoio na parte de inteligência e ser algum tipo de consultor. Foi o que Granger me disse, de qualquer modo. Sei o que aconteceu em Londres. Conseguimos muitas coisas com os britânicos... isto é, indiretamente. Foi relatado como um ataque cardíaco. De Munique não sei muita coisa. O que podem me contar?
Dominic respondeu: — Eu o peguei saindo da mesquita. Ele caiu na calçada. A ambulância chegou. Os paramédicos trabalharam nele e o levaram para o hospital. É tudo que sei.
— Ele está morto. Pegamos isso numa interceptação — contou Jack Ryan. — Estava com um cara chamado Honeybear na internet, que viu o parceiro cair e reportou a um cara com o apelido de MoHa 56, em algum lugar na Itália, achamos. O cara de Munique... era Atef... era recrutador e correio. Sabemos que recrutou ao menos um atirador na merda da semana passada. Assim, vocês podem estar certos de que ele mereceu seu lugar na lista de gente a ser apagada.
— Sabemos disso, eles nos contaram — disse Brian.
— Como estão apagando essa gente, exatamente?
— Com isto. — Dominic puxou sua caneta de ouro do bolso do paletó. — Você troca a ponta ao girar a extremidade e espeta eles, de preferência na bunda. Isso injeta uma droga chamada sucinilcolina, que estraga o dia inteiro do sujeito. A droga se metaboliza na corrente sanguínea mesmo depois da morte e não pode ser detectada facilmente, a não ser que o patologista seja um gênio, e ainda por cima sortudo.
— Ela paralisa?
— Sim. Eles desabam e depois não podem respirar. Leva uns 30 segundos para a droga fazer efeito, em seguida eles caem e, depois disso, é só uma questão de mecânica. Parece, mais tarde, com ataque cardíaco e os exames comprovam isso também. É perfeito para o que fazemos.
— Droga — disse Jack. — Então, vocês também estiveram em Charlottesville, hein?
— Sim — respondeu Brian. — Não foi muito divertido. Um garotinho morreu nos meus braços, Jack. Foi bem duro.
— Bem, foi um belo tiroteio.
— Eles não eram muito espertos — Dominic os avaliou. — Não mais espertos do que marginais de rua. Nenhum treinamento. Eles não checaram a retaguarda. Acho que imaginaram que não precisavam, tendo armas automáticas. Mas aprenderam de modo diferente. Ainda assim, tiveram sorte... Filhos da puta! — exclamou, enquanto se aproximavam das Ferraris.
— Porra, elas são lindas! — concordou Jack de imediato. Até Brian ficou impressionado.
— Essa é modelo antigo — disse Dominic. — De 575M, V-doze, quinhentos cavalos, transmissão de seis marchas, 220 mil para levá-la. Mas a máquina realmente quente é a Ferrari Enzo. Aquela beleza é a porra da bomba, caras. Seiscentos e sessenta cavalos. Foi até batizada em minha homenagem. Veja. Lá no canto mais afastado.
— Quanto? — perguntou Junior.
— Mais de seiscentos mil paus. Mas se você quiser algo mais quente, vai pedir um Lockheed Burbank. — E, de fato, o carro tinha duas aberturas na frente que pareciam orifícios de sucção de jato. A máquina toda parecia um veículo particular para o tio rico de Luke Skywalker.
— Ainda conhece os carros dele, hein? — observou Jack. Um jato particular provavelmente conseguiria mais milhagem, mas o carro era acintosamente bonito.
— Ele preferiria dormir com uma Ferrari do que com Grace Kelly — zombou Brian. Suas próprias prioridades eram um tanto mais convencionais, claro.
— Você pode cavalgar um carro por mais tempo que uma garota, caras. — O que era uma versão da eficiência. — Porra, aposto que aquela belezoca ali se move muito mais rápido.
— Você pode tirar um brevê de piloto particular — sugeriu Jack.
Dominic sacudiu a cabeça.
— Nah. Perigoso demais.
— Filho da puta. — Jack quase riu alto. — Como comparado ao que andam fazendo?
— Junior, estou acostumado com aquilo, tá sabendo?
— Isso você diz, cara. — Jack apenas sacudiu a cabeça. Droga, aqueles carros eram lindos. Ele gostava do seu Hummer lá em casa. Na neve ele podia dirigir para qualquer lugar e se dar bem na estrada, e, se não era exatamente esportivo, que diabos era então? Mas o garotinho que havia nele podia entender o desejo no rosto do primo. Se Maureen O'Hara tivesse nascido um carro, talvez fosse um desses. A cor vermelha teria combinado lindamente com o cabelo dela. Após 10 minutos, Dominic achou que já havia babado o suficiente e eles saíram.
— Então, sabemos tudo sobre o sujeito menos como é a cara dele? — perguntou Brian a meio quarteirão rua acima.
— Exatamente — confirmou Jack. — Mas quantos árabes você espera encontrar hospedados no Bristol?
— Tem um monte deles em Londres. O macete é sair para identificar o sujeito. Fazer o serviço certo na calçada não deve ser tão difícil. — E, olhando em volta, isso parecia provável. O tráfego na rua não era tão pesado como em Nova York ou Londres, mas tampouco era Kansas City depois de escurecer, e fazer o serviço em plena luz do dia tinha seus próprios atrativos. — Acho que a gente devia apostar na entrada principal do hotel e qualquer outra entrada lateral que exista. Dá para você verificar se podemos obter mais dados do Campus?
Jack consultou seu relógio e fez um cálculo mental.
— Eles só vão abrir dentro de uma ou duas horas.
— Então consulte seu e-mail — disse-lhe Dominic. — Ficaremos circulando por aí em busca de um alvo provável.
— Certo. — Eles atravessaram a rua e voltaram ao Imperial. De volta ao quarto, Jack desabou na cama e tirou uma soneca.
NÃO HAVIA NADA A FAZER agora — pensou Fa'ad, então podia muito bem dar um passeio. Viena era repleta de coisas para se ver, e ele ainda não havia esgotado todas elas. Vestiu-se adequadamente, como um empresário, e saiu.
BINGO, ALDO! — Dominic tinha uma memória de policial para rostos, e eles haviam praticamente caminhado para este aqui. — Ele não é...
— É. O companheiro de Atef em Munique. Quer apostar como é o nosso alvo?
— Está apostado, mano. — Dominic catalogou o alvo. Do Oriente Médio sem dúvida, altura mediana, 1,75, por aí, corpo esquio, uns 70kg, tez bronzeada, nariz levemente semita, veste-se bem e onerosamente, como empresário, caminha com determinação e confiança. Passaram a menos de três metros dele, cautelosos para não encará-lo, mesmo com seus óculos escuros. Está no papo, escroto. Quem quer que fossem essas pessoas, não sabiam nada sobre se esconder da visão óbvia. Eles caminharam para a esquina.
— Porra, foi bem fácil — observou Brian. — E agora?
— Vamos deixar Jack verificar com a sede e ficar frios, Aldo.
— Entendido e registrado, mano. — Ele inconscientemente verificou seu paletó para garantir que a caneta dourada estava no lugar, como podia ter verificado o coldre buscando a Beretta M9, se estivesse de uniforme e em missão. Sentia como se fosse um leão invisível na savana queniana cheia de gnus. Não conseguia pensar em alguma coisa melhor do que isso. Ele podia escolher aquele que quisesse matar e comer, e o pobre sacana nem sequer sabia que estava sendo espreitado. Exatamente como eles faziam. Imaginou se os companheiros do sujeito perceberiam a ironia de ver táticas assim usadas contra eles. Não era como os americanos estavam condicionados a agir, mas então toda essa coisa sobre duelos ao meio-dia na rua principal era algo inventado por Hollywood. Um leão não estava no negócio de arriscar a vida e, como lhe tinham dito na Academia Militar, se você se vê no meio de uma luta justa, então não planejou muito bem. Luta justa caía bem nos Jogos Olímpicos, mas não era o caso aqui. Nenhum caçador se aproximaria de um leão fazendo barulho e segurando uma espada. Em vez disso, faria a coisa mais sensata: se abrigaria atrás de um tronco e atiraria com um rifle a uns 200 metros de distância. Até mesmo os guerreiros massai do Quênia, para os quais caçar um leão era o rito de passagem de garoto para homem, tinham o bom senso de fazê-lo em grupos de dez, e nem todos eles adolescentes, para terem certeza de que era a cauda do leão que levariam na volta ao kraal. Não é uma questão de ser valente. É uma questão de ser eficaz. Estar nesse negócio era perigoso o bastante. Você faz o melhor possível para tirar da equação todo elemento de risco desnecessário. É negócio, não esporte. — Cutucamos na rua?
— Funcionou antes, Aldo, não foi? Não imagino que possamos pegá-lo no bar do hotel.
— Entendido, Enzo. E agora o que fazemos?
— Bancamos os turistas, acho. O teatro da ópera parece impressionante. Vamos dar uma olhada... O cartaz diz que estão exibindo As Valquírias, de Wagner. A esta eu nunca assisti.
— Nunca assisti a uma ópera na minha vida. Deveria assistir algum dia. Faz parte da alma italiana, não é?
— Ah, sim. Arranjei mais alma do que posso controlar, mas me inclino mais para Verdi.
— Porra, quando você começou a gostar de ópera?
— Tenho algumas em CD — respondeu Dominic com um sorriso. Como esperado, a Ópera estatal era exemplo magnífico da arquitetura imperial, construída e executada como se para o próprio Deus assistir a um espetáculo, adornada de escarlate e dourado. Por pior que pudesse ter sido, a Casa dos Habsburg mostrara excelente bom gosto. Dominic pensou brevemente em percorrer as catedrais da cidade, mas decidiu que não combinava com a missão. Então, passearam por duas horas, depois voltaram ao hotel e subiram ao quarto de Jack.
— NENHUMA ALEGRIA lá da sede — disse Jack.
— Não tem problema. Vimos o cara. É um velho amigo de Munique — relatou Brian.
Eles foram até o banheiro e abriram as torneiras, que fariam ruído bastante para perturbar qualquer microfone instalado no quarto. — É o parceiro do Sr. Atef. Estava lá quando o espetamos em Munique.
— Como pode ter certeza?
— Cem por cento de certeza não temos... mas e a coincidência de ele aparecer nas duas cidades e no mesmo hotel, cara? — perguntou Brian racionalmente.
— Cem por cento de certeza é melhor...
— Concordo, mas quando se está no lado certo das coincidências de mil para um, você bota o dinheiro e joga os dados — respondeu Dominic. — Pelas regras do Bureau, ele é pelo menos um associado conhecido, alguém que chamamos à parte para entrevistar. Não é provável que esteja coletando fundos para a Cruz Vermelha, é? — O agente fez uma pausa. — Okay, não é perfeito, mas é o melhor que conseguimos e acho que vale a pena insistir nisso.
Era a hora da verdade para Jack. Ele tinha autoridade para dar a palavra final?
Granger não dissera isso. Ele era o apoio de inteligência para os gêmeos. Mas o que, exatamente, isso significava? Maravilha. Ele tinha uma tarefa sem indicação da tarefa, e nenhuma autoridade designada. Não fazia muito sentido. Ele se lembrava do pai dizendo uma vez que pessoas do quartel-general não deviam ser a segunda opção para agentes no campo, porque os agentes tinham olhos e supostamente eram treinados para pensar por conta própria. Mas nesse caso seu treinamento talvez fosse tão bom quanto o deles. Mas ele simplesmente ficaria ali feito um babaca, imaginando quem estava certo na parada? O negócio de espionagem se tornava de repente muito imprevisível, e ele estava enfiado no meio de um pântano sem um helicóptero para tirar seu rabo dali.
— Okay, rapazes, é com vocês. — Parecia muito como tirar o cu da reta para Jack, e mais ainda quando disse: — Eu ainda me sentiria melhor se vocês estivessem cem por cento certos.
— Eu também. Mas como disse, mil para um representam probabilidades de aposta. Aldo?
Brian pensou a respeito e assentiu.
— Para mim é válido. Ele pareceu muito preocupado com o parceiro em Munique. Se ele é um bom sujeito, tem amigos divertidos. Portanto, vamos pegá-lo.
Okay — ofegou Jack, rendendo-se ao inevitável. — Quando?
Tão logo seja conveniente — respondeu Brian. Ele e o irmão discutiriam as táticas mais tarde, mas Jack não precisava saber.
ESTAVA COM SORTE, decidiu Fa'ad às 10h14 daquela noite. Recebeu uma mensagem de Elsa K69, que evidentemente se lembrava dele com carinho.
O QUE FAREMOS ESTA NOITE?, ele perguntou a ela.
ESTOU PENSANDO.
IMAGINE QUE ESTAMOS NUM CAMPO DE CONCENTRAÇÃO. SOU UMA JUDIA E VOCÊ É O COMANDANTE... EU NÃO QUERO MORRER COMO O RESTO, AÍ TE OFEREÇO PRAZER EM TROCA DA MINHA VIDA...
Dificilmente haveria uma fantasia mais prazerosa para ele. VÁ EM FRENTE E COMECE, digitou ele.
E assim foi por um instante, até: POR FAVOR, POR FAVOR, EU NÃO SOU AUSTRÍACA. SOU ESTUDANTE AMERICANA DE MÚSICA ISOLADA PELA GUERRA...
Cada vez melhor. OH, SIM. JÁ OUVI MUITO SOBRE JUDIAS AMERICANAS E SEU COMPORTAMENTO DE PUTA...
Prosseguiram por quase uma hora. Ao final, ele a mandou mesmo para a câmara de gás. Afinal, para que serviam os judeus, não?
PREVISIVELMENTE, RYAN não conseguiu dormir. Seu corpo ainda não se aclimatara à mudança de seis fusos horários, apesar da quantidade decente de sono que tivera no avião. Como as tripulações faziam era um mistério para ele, embora suspeitasse que simplesmente permaneciam sincronizadas ao lugar em que estivessem morando. Mas é preciso estar constantemente fluido para fazer isso, e ele não estava. Assim, plugou seu computador e decidiu buscar no Google seu caminho para o Islã. O único muçulmano que conhecia era o príncipe Ali, da Arábia Saudita, e ele não era um maníaco. Até se dava bem com a tímida irmã de Jack, Katie, que achava fascinante a barba caprichosamente cuidada. Jack conseguiu baixar o Corão e começou a ler. O livro sagrado tinha 48 Suras, subdivididos em versículos, como a Bíblia. Claro, ele raramente a consultava, muito menos a lia, porque como católico esperava que os padres contassem as partes importantes, pulando as partes de quem gerou o quê. Talvez tivesse sido interessante, e até engraçado, na época, mas não hoje, a não ser para quem estivesse em genealogia, que não era um tema de conversa na mesa de jantar da família Ryan. Além disso, todo mundo sabia que todo irlandês descendia de um ladrão de cavalos que percorreu todo o país a fim de evitar ser enforcado pelos odiados invasores ingleses. Toda uma coleção de guerras resultou disso, uma das quais quase impediu seu próprio nascimento em Annapolis.
Foi dez minutos mais tarde que ele percebeu que o Corão era quase uma cópia, palavra por palavra, do que todos os profetas judeus haviam escrito, divinamente inspirados para assim fazer, claro, porque assim diziam. E assim fez esse tal de Maomé. Supostamente, Deus falara com ele, que bancou uma secretária executiva e anotou tudo. Era uma pena que não tivesse havido uma câmera de vídeo ou um gravador para todos esses pássaros, mas não houve e, como um padre lhe tinha explicado em Georgetown, fé era fé, ou você acredita que era aquilo mesmo ou então não acredita. Jack acreditava em Deus, claro. Sua mãe e seu pai o instruíram no básico e o mandaram para escolas católicas, e ele aprendera as orações e as regras e fizera a Primeira Comunhão, Confissão — agora chamada Reconciliação na mais gentil e amável Igreja de Roma — e Crisma. Mas fazia um bom tempo que não via o interior de uma igreja. Não que estivesse contra a religião, mas era um adulto agora, e talvez não ir à missa fosse uma maneira (burra) de mostrar aos pais que podia tomar suas decisões acerca de como viveria a sua vida e que eles não podiam mais lhe dar ordens.
Ele notou que não havia nenhum lugar nas cinquenta páginas que examinara dizendo qualquer coisa sobre matar pessoas inocentes de modo que permitisse foder as vítimas mulheres no céu. A punição para suicídio estava correta no nível com que a irmã Frances Mary explicara na segunda série. Suicídio era um pecado mortal que se queria realmente evitar, porque a pessoa não podia ir para a confissão depois para purificar a alma. O Islã dizia que a fé era boa, mas não se podia apenas pensar nela. Era preciso vivê-la também. Bingo, era até onde ia o ensinamento católico.
Ao fim de noventa minutos ocorreu-lhe — numa conclusão um tanto óbvia — que o terrorismo tinha quase tanto a ver com a religião islâmica quanto tinha com irlandeses católicos e protestantes. Adolf Hitler, diziam os biógrafos, se considerava um católico convicto até o momento em que provou o gostinho da fama — evidentemente, nunca havia conhecido a irmã Frances Mary, ou teria sabido melhor. Mas aquele babaca tinha sido obviamente um louco. Portanto, se estava lendo isto corretamente, Maomé provavelmente teria criticado os terroristas. Havia sido um homem honrado e decente.
Nem todos os seus seguidores procediam da mesma maneira, porém, e era exatamente com esses que ele e os gêmeos tinham que lidar. Qualquer religião podia ser distorcida de sua forma original pela nova safra de loucos, pensou ele, bocejando, e o Islã era a próxima religião na lista.
— Chega de ler isto — disse a si mesmo a caminho da cama. — Chega.
FA'AD ACORDOU às oito e meia. Tinha um encontro com Mahmoud hoje, na drogaria no fim da rua. De lá, pegariam um táxi para algum lugar — talvez um museu — para a verdadeira transferência de mensagem, e ele havia aprendido que se esperava que isso acontecesse e que ele tinha de fazer acontecer. Era de fato uma pena que não tivesse sua própria casa. Hotéis eram confortáveis, em especial no serviço de lavanderia, mas ele se aproximava do seu limite de tolerância.
O café da manhã chegou. Ele agradeceu ao garçom e deu-lhe dois euros de gorjeta, depois leu o jornal que estava sobre a mesinha de rodas. Nada de importante parecia estar acontecendo. Havia uma eleição iminente na Áustria, e cada lado estava entusiasticamente injuriando o outro, como o jogo político era disputado na Europa. Era um bocado mais previsível em casa, e mais fácil de entender. Por volta das nove da manhã, ele desligou a TV e viu-se consultando o relógio com frequência cada vez maior. Esses encontros sempre o deixavam um pouco ansioso. E se o Mossad o tivesse identificado? A resposta a isso era bem clara. Eles o matariam sem maiores remorsos do que ao esmagar um inseto.
LÁ FORA, DOMINIC E BRIAN caminhavam quase sem rumo, ou assim poderia ter parecido a um observador casual. O problema é que havia uns poucos deles ao redor. Havia uma banca de revistas bem ao lado do hotel, e o Bristol tinha porteiros.
Dominic pensou em se encostar num poste e ler um jornal, mas isso era uma coisa que tinha sido instruído a nunca fazer na Academia do FBI, porque mesmo os espiões tinham visto os filmes em que os atores estavam sempre fazendo isso. E assim, profissional ou não, realista ou não, o mundo inteiro estava condicionado a saber que quem lê jornal encostado num poste é espião. Seguir um cara sem ser notado era brincadeira de criança, comparado a esperar que aparecesse. Ele suspirou e continuou andando.
Brian pensava no mesmo assunto. Pensou que um cigarro podia ajudar em momentos como esse. Era alguma coisa para fazer, como nos filmes, Bogart e seus mata-ratos. Foi mal, Bogie, pensou Brian. O câncer devia ser uma doença terrível. Ele não estava exatamente entregando o sopro da primavera aos alvos, mas pelo menos a agonia não durava meses. Alguns minutos e o cérebro apagava. Além disso, aquilo chegaria para eles de uma maneira ou outra. Talvez eles não concordassem, mas um cara precisa ser cauteloso com os inimigos que faz. Nem todos seriam burros e covardes indefesos. E surpresa era uma coisa do cacete. A melhor coisa no campo de batalha é a surpresa. Se você surpreende o inimigo, ele não tem chance de reagir, o que é ótimo, negócio puro, nada pessoal. Como um novilho no curral para o abate, ele caminhava num pequeno espaço, e mesmo que olhasse para cima só veria o cara com o martelo pneumático, e depois disso ia para o céu dos novilhos, onde o capim era sempre verde e a água doce, e não havia lobos em volta...
Sua mente está divagando, Aldo, disse Brian a si mesmo. Os dois lados da rua serviam muito bem a seu propósito. Assim, atravessou a rua e foi ao caixa eletrônico diretamente em frente ao Bristol, tirou seu cartão e digitou, para ser recompensado com 500 euros. Consultou o relógio: 10h53. O pássaro estava saindo? Eles o tinham perdido de alguma maneira?
O tráfego diminuíra. Os bondes vermelhos passavam indo e vindo. As pessoas aqui só cuidavam de seus próprios assuntos. Caminhavam sem olhar para os lados, a não ser que estivessem interessadas em algo específico. Nenhum contato visual com estranhos, nenhum instinto afinal para cumprimentar pessoas. Um estrangeiro devia permanecer na sua, evidentemente, ele percebia isso aqui mais ainda do que em Munique, exatamente como essas pessoas eram in Ordnung. Você provavelmente podia jantar bem no chão da casa delas, desde que limpasse depois.
Dominic se posicionara do outro lado da rua, cobrindo a direção para o teatro da ópera. Só havia dois caminhos para o personagem seguir. Esquerda ou direita. Ele podia atravessar a rua ou não. Não havia mais opções, a não ser que um carro viesse buscá-lo, e nesse caso a missão estava abortada. Mas amanhã era sempre outro dia. O relógio marcava 10h56. Ele tinha que ser cauteloso, não olhar demais para a entrada do hotel. Isso o deixava vulnerável...
Alá... bingo! Era o alvo, certo, trajando terno azul riscadinho e gravata marrom, como alguém indo para uma importante reunião de negócios. Dominic também o viu e se virou para se aproximar de noroeste. Brian esperou para ver o que ele ia fazer.
FA'AD DECIDIU pregar uma peça no amigo. Ele tinha se aproximado pela rua, só para fazer diferente, e assim a atravessou, no meio do quarteirão, desviando-se do tráfego. Quando criança, ele gostava de entrar no curral de cavalos do pai e ficar se esquivando entre eles. Cavalos tinham cérebros e não corriam para as coisas desnecessariamente, claro, e isso era mais do que podia ser dito de alguns motoristas se dirigindo para o Kartner Ring, mas ele atravessou com segurança.
A RUA AQUI ERA CURIOSA, uma pista pavimentada que nem uma entrada particular para carros, um estreito canteiro gramado, depois a rua propriamente dita com seus carros e bondes, mais um canteiro gramado e a entrada de carros final antes da calçada oposta. O alvo atravessou correndo e começou a caminhar para oeste, na direção do hotel deles. Brian assumiu posição três metros atrás e extraiu sua caneta, trocando a ponta e checando-a para se certificar de que estava pronto.
MAX WEBER ERA MOTORNEIRO da empresa de transporte da cidade há vinte e três anos, conduzindo seu bonde ida e volta dezoito vezes por dia, pelo que recebia um salário razoável salário. Seguia agora rumo norte, saindo da Schwartzenberg Platz, virando à esquerda tão logo a rua mudava de Rennweg para Schwartzenberg Strasse para entrar à esquerda no Kartner Ring. A luz estava a seu favor e seu olhar captou o ornamentado Hotel Imperial, onde todos os estrangeiros ricos e diplomatas gostavam de ficar. Então seus olhos voltaram para a rua. Não se pode dirigir um bonde, cabia aos motoristas aos motoristas dos carros se desviar de seu caminho. Não que os bondes fossem muito velozes, dificilmente iam a mais de 40 quilômetros por hora, mesmo no fim da linha. Não era um serviço exigente intelectualmente, mas ele o fazia com diligência, de acordo com o manual. A sineta tocou. Alguém precisava saltar na esquina do Kartner Ring com a Wiedner Hauptstrasse.
LÁ. LÁ ESTAVA MAHMOUD. Olhando para o outro lado. Ótimo, pensou Fa'ad, talvez ele pudesse mesmo surpreender o companheiro e fazer a piada do dia. Parou na calçada e examinou o tráfego antes de atravessar depressa a primeira ruazinha.
OKAY, SEU COME-QUIBE, pensou Brian, estreitando a distância para apenas três passos e...
AI, PENSOU FA'AD. Foi quase uma leve dor no traseiro. Ele a ignorou e continuou seguindo, abrindo brechas no tráfego. Um bonde vinha chegando, mas estava longe demais para ser motivo de preocupação. Não vinha tráfego da direita e assim...
BRIAN APENAS continuou a andar. Imaginou que devia ir para a banca de jornais. Teria uma boa chance de se virar e observar enquanto fazia ostensivamente uma compra.
MAX WEBER VIU O IDIOTA pronto a se lançar nos trilhos. Esses tolos não sabem que só podem fazer isso no Ecke, onde ele tinha que parar no sinal vermelho como todo mundo? As crianças aprendiam isso no jardim de infância. Algumas pessoas achavam que seu tempo valia mais do que ouro, como se fossem o próprio imperador Francisco José erguido do túmulo centenário. Ele não alterou a velocidade. Idiota ou não, ele ultrapassaria os trilhos antes de...
...FA'AD SENTIU A PERNA direita fraquejar embaixo dele. O que era isso? Depois foi a perna esquerda, e ele estava caindo sem nenhum motivo — e então outras coisas começaram a acontecer mais rápido do que podia entender e, de repente, viu-se caindo e havia um bonde... se aproximando!
MAX REAGIU UM TANTO devagar demais. Mal podia acreditar em seus olhos. Mas era impossível negar. Enfiou o pé nos freios, mas o idiota estava a menos de dois metros e... lieber Gott!
O bonde tinha duas barras de ferro paralelas sob o nariz para evitar justamente isso, mas há várias semanas não eram testadas e Fa'ad era um homem magro — magro o bastante para que seus pés deslizassem bem embaixo das barras de segurança e seu corpo então as empurrou para cima e para fora do caminho...
... e Max sentiu o pavoroso thump-thump de sua passagem sobre o corpo do homem.
Alguém chamaria uma ambulância, mas faria melhor se chamasse um sacerdote. Este pobre schlemiel nunca chegaria ao lugar para onde estava indo, o idiota, querendo ganhar tempo ao custo da própria vida. O idiota!
DO OUTRO LADO DA RUA, Mahmoud se virou bem a tempo de ver o amigo morrer. Seus olhos imaginaram, mais do que viram, o bonde saltar para cima, como se para evitar matar Fa'ad, e tão rápido quanto seu mundo mudava, o mundo de Fa'ad chegava ao fim.
— MEU DEUS — MURMUROU BRIAN a vinte metros dali, com uma revista nas mãos. O pobre fodido não viveu o tempo suficiente para morrer do veneno. Ele viu Enzo do outro lado da rua, talvez imaginando espetá-lo se e quando ele atravessasse, mas a sucinilcolina agira como previsto. Ela apenas tinha escolhido um lugar particularmente ruim para provocar o colapso. Ou o mais sortudo, dependendo do ponto de vista. Pagou a revista e atravessou a rua. Havia um homem com aspecto de árabe junto à drogaria, o rosto mais transtornado que o da maioria dos cidadãos em volta. Houve gritos, mãos levadas às bocas. Claro que não era uma visão agradável, embora o bonde tivesse parado diretamente sobre o corpo.
— Alguém vai ter que lavar a rua — disse Dominic baixinho. — Belo movimento, Aldo.
— Bem, espero nota cinco poto seis do juiz da Alemanha Oriental. Vamos andando.
— Boa, mano.
Seguiram para a direita e passaram pela tabacaria rumo à Schwartzenberg Platz.
Atrás deles houve uma pequena gritaria de mulheres, enquanto os homens aceitavam tudo mais sobriamente, muitos virando as costas. Não havia nada a ser feito. O porteiro do Imperial disparou para dentro a fim de chamar a ambulância e o Feuerwehr. Levaram dez minutos para chegar. Os bombeiros primeiro, e para eles a visão sinistra foi imediata e decisiva. Todo o suprimento de sangue parecia ter sido derramado e nada poderia salvá-lo. A polícia também estava presente e um capitão-detetive, que chegara de sua delegacia na vizinha Friedrichstrasse, disse a Max Weber para tirar seu bonde de cima do corpo. Isso revelou muito — e pouco. O corpo havia sido fatiado em quatro pedaços irregulares, como se dilacerado por uma criatura predadora pré-histórica. A ambulância estacionou no meio da rua — guardas de trânsito acenavam para que os carros prosseguissem, mas motoristas e passageiros tiravam um tempo para observar a carnificina, metade olhando com mórbida fascinação e a outra se virando de horror e asco. Até alguns repórteres estavam presentes, com câmeras e blocos de anotações.
Precisaram de três sacos para reunir os pedaços do corpo. Um inspetor de trânsito chegou para interrogar o motorneiro, a quem a polícia já havia detido, claro. No todo, levaram uma hora para remover o corpo, inspecionar o bonde e limpar a rua. Isso foi feito com certa eficiência. De fato, por volta das 12h30 tudo estava de volta in Ordnung.
Exceto para Mahmoud Mohamed Fadhil, que precisava ir para o hotel, ligar seu computador e mandar um e-mail para Mohammed Hassan al-Din, agora em Roma, pedindo instruções.
A essa hora Dominic estava em seu próprio computador, compondo um e-mail para o Campus relatando o trabalho do dia e pedindo instruções para a próxima missão.
_______________
1 Prato de origem alemã com carne, creme de leite e páprica. (N. do E.).
22
PIAZZA DI SPAGNA
— VOCÊS ESTÃO BRINCANDO — disse Jack de imediato.
— Deus, concedei-me um adversário burro — respondeu Brian. — Esta é uma prece que ensinavam lá na Academia Militar. O problema é que, mais cedo ou mais tarde, eles acabam ficando espertos.
— Como escroques — concordou Dominic. — O problema com os agente da lei é que geralmente capturam só os burros. Dos espertos raramente ouvimos falar. Eis por que levou tanto tempo para se pegar a Máfia. E eles nem eram todos tão espertos. Mas, sim, é um processo darwiniano, e ajudamos a criar cérebros neles de uma maneira ou outra.
— Notícias de casa? — perguntou Brian.
— Verifique o horário. Eles não vão estar disponíveis antes de uma hora — explicou Jack. — E então? O cara realmente foi atropelado?
Brian assentiu. O alvo tinha sido atropelado que nem o animal símbolo do estado do Mississippi — um cachorro esmagado na estrada. Por um bonde. A boa-nova é que isso encobriu a sujeira. — Foi mal, hein, Come-Quibe.
NÃO DAVA SEQUER um quilômetro e meio até o Krankenhaus St. Elizabeth, na Invalidenstrasse, para onde a ambulância levou as partes do corpo. Eles haviam ligado antes, e assim não houve nenhuma surpresa especial com os três sacos plásticos, que foram pousados numa mesa de patologia — não houve discussão sobre seu encaminhamento à unidade receptora de acidentados, pois a causa da morte era tão óbvia quanto soturnamente cômica. A única dificuldade era coletar sangue para exame toxicológico. O corpo fora tão mutilado quanto drenado de sangue, mas órgãos internos — principalmente o baço e o cérebro — tinham o suficiente para ser extraído com uma seringa e mandado para o laboratório, que investigaria uso de narcóticos ou álcool. A única outra coisa a procurar no exame post-mortem era uma perna quebrada, mas a passagem do bonde sobre o corpo — eles tinham nome e identidade tirados da carteira, e a polícia estava conferindo os hotéis locais para ver se ele deixara talvez um passaporte, de modo que a embaixada apropriada pudesse ser notificada — significava que até mesmo um joelho quebrado seria quase impossível de descobrir. As duas pernas tinham sido totalmente esmagadas em menos de três segundos. A única coisa surpreendente era que seu rosto estava plácido. Qualquer um teria esperado olhos arregalados e uma careta de dor pela morte, mas, então, mesmo a morte traumática tinha poucas regras duras e rápidas, como o patologista sabia. Havia pouco problema em fazer um exame em profundidade. Talvez, se ele tivesse sido baleado, poderiam encontrar um ferimento de bala, mas não havia razão para suspeitar disso. A polícia já havia falado com 17 testemunhas oculares que estavam a menos de 30 metros do evento. O relatório da patologia podia facilmente se tanto uma carta-padrão quanto um documento oficial assinado.
— JESUS — OBSERVOU GRANGER. — Como diabo eles arranjaram isso?
— Depois ergueu o telefone. — Gerry? Desça. O número três está empacotado. Você precisa ver esse relatório. — Após repor o fone no gancho, pensou em voz alta. — Muito bem, para onde os mandamos em seguida?
Isso era decidido num nível diferente. Tony Wills copiava todas as mensagens baixadas por Ryan, e aquela no alto era impressionante em sua maldita brevidade. Assim, ele ligou para Rick Bell.
FOI O MAIS DURO de tudo para Max Weber. Levou meia hora para que a negação e o choque iniciais se desvanecessem. Começou vomitando, os olhos reprisando a visão do corpo desequilibrado deslizando abaixo de seu campo de visão, e ouvindo o horrível thump-thump do bonde. Não tinha sido culpa dele, dizia a si mesmo. Aquele tolo, das idiot, tinha caído bem diante dele, como só um bêbado poderia, exceto que era cedo demais para um homem ter tomado muitas cervejas. Ele já sofrera acidentes antes, principalmente amassando carros que cruzavam abruptamente diante dele. Mas nunca tinha visto e dificilmente ouvido falar de um acidente fatal com um bonde. Ele tinha matado um homem. Ele, Max Weber, havia tirado uma vida. Não era culpa dele, disse a si uma vez por minuto nas duas horas seguintes. Seu supervisor deu-lhe o restante do dia de folga, e então ele bateu o relógio de ponto e dirigiu para casa no seu Audi, parando num Gasthaus a um quarteirão de casa, porque não queria beber sozinho naquele dia.
JACK PERCORRIA as mensagens baixadas do Campus, com Dom e Brian a postos, tendo um almoço tardio com cerveja. Era tráfego de rotina, e-mails de e para os suspeitos de serem atores, a maioria cidadãos comuns de vários países que haviam uma ou duas vezes escrito palavras mágicas que foram anotadas pelo sistema de intercepção Echelon em Fort Meade. Então apareceu uma mensagem igual a todas as outras, exceto pelo destinatário: 56MoHa@eurocom.net.
— Ei, caras, nosso chapinha lá na rua estava prestes a ter um encontro com outro correio, parece. Ele está escrevendo para nosso velho amigo MoHa 56, pedindo instruções.
— Ah? — Dominic se aproximou para olhar. — O que isso nos diz?
— Uma conta na internet... está no AOL: Gadfly097@aol.com. Se ele receber uma resposta de MoHa, talvez venhamos a saber alguma coisa. Achamos que ele é um agente de operações dos bandidos. A NSA o grampeou uns seis meses atrás. Ele cifra suas cartas, mas o pessoal sabe como decifrar e podemos ler a maioria dos e-mails dele.
— Com que rapidez você terá uma resposta? — especulou Dominic.
— Depende do Sr. MoHa — disse Jack. — Só nos resta sentar e esperar.
— Entendido — disse Brian de sua cadeira junto à janela.
— VEJO QUE O JOVEM JACK não os fez maneirar — disse Hendley.
— Você achava que faria? Puxa, Gerry, eu lhe disse — replicou Granger, tendo já agradecido a Deus pelas bênçãos, mas em voz baixa. — De qualquer modo, agora eles querem instruções.
— Seu plano era abater quatro alvos. Então, quem é o número quatro? — perguntou o ex-senador.
Foi a vez de Granger ser humilde.
— Ainda não tenho certeza. Para ser honesto, não imaginei que trabalhassem com tanta eficiência. Esperava que as execuções até aqui pudessem gerar um alvo de oportunidade, mas ninguém saiu da toca ainda. Tenho alguns candidatos. Deixe-me checá-los esta tarde. — Seu telefone tocou. — Claro, pode vir, Rich. — Ele pôs o fone no gancho. — Rick Bell diz que tem algo interessante.
A porta se abriu em menos de dois minutos.
— Ah, olá, Gerry. É um prazer vê-lo, Sam. — Bell girou a cabeça. — Acabamos de receber isso. — Ele passou a cópia do e-mail.
Granger o examinou.
— Conhecemos esse cara...
— Não há a menor dúvida. É um agente de operações de campo para nossos amigos. Imaginamos que esteja baseado em Roma. Bem, imaginamos certo. — Como todos os burocratas, especialmente os veteranos, Bell gostava de se felicitar.
Granger passou a página para Hendley.
— Okay, Gerry, eis então o número 4.
— Não gosto de coincidências.
— Também não gosto, Gerry, mas se você ganhar na loteria não vai devolver o dinheiro — disse Granger, pensando que o treinador Darrel Royal estava certo: a sorte não procura um negligente. — Rick, este cara merece ser apagado?
— Sim, merece — confirmou Bell, com um aceno entusiástico. — Não sabemos muito sobre ele, mas o que sabemos é muito ruim. É um cara de operações... do que estamos cem por cento certos, Gerry. E parece correto. Um de seus homens vê outro morrer, comunica isso e esse cara recebe e responde. Você sabe, se eu algum dia conhecer o sujeito que veio com esse programa Echelon, tenho que pagar-lhe uma cerveja.
— Reconhecimento-por-fogo — observou Granger, congratulando-se firmemente. — Porra, eu sabia que ia funcionar. Você sacode um ninho de vespões e alguns insetos ficam prontos para sair.
— Tudo bem, se não picarem seu rabo — disse Hendley. — Okay, e agora?
— Deixá-los soltos antes que a raposa chegue ao quintal — replicou Granger de imediato. — Se pudermos empacotar esse cara, talvez possamos realmente sacudir alguma coisa valiosa da árvore.
Hendley girou a cabeça.
— Rick?
— Funciona para mim. A missão continua — disse ele.
— Okay, então é continuar — concordou Hendley. — Dê a ordem.
A COISA BOA sobre comunicações eletrônicas é que elas não levam muito tempo. De fato, Jack já tinha a parte importante.
— Okay, caras. O primeiro nome de MoHa 56 é Mohammed... nenhuma novidade; é o prenome mais comum do mundo... e ele diz que está em Roma, no Hotel Excelsior na via Vittorio Veneto, 125.
— Já ouvi falar — disse Brian. — É caro, muito bacana. Parece que nossos amigos gostam de ficar em lugares bacanas.
— Ele se registrou sob o nome de Nigel Hawkins. Esse nome é inglês pra cacete. Acha que é cidadão britânico?
— Com um prenome como Mohammed? — pensou Dominic em voz alta.
— Pode ser codinome, Enzo — replicou Jack, alfinetando o balão de ensaio de Dominic. — Sem um quadro, não podemos ter ideia dos antecedentes dele. Certo, conseguimos um celular, mas Mahmoud... é o cara que viu o pássaro morrer esta manhã... supostamente saberia disso. — Jack fez uma pausa. — Por que ele simplesmente não telefonou, eu me pergunto... Hum... Bem, a polícia italiana nos mandou um material que veio de grampos eletrônicos. Talvez eles estejam observando as ondas do ar, e nosso garoto está sendo cauteloso...?
— Faz sentido, mas por que ele está mandando besteira pela internet?
— Ele acha que é seguro. A NSA cansou de invadir sistemas públicos criptografados. Os fornecedores não sabem, mas os garotos de Fort Meade são muito bons nisso. Uma vez invadido, continua invadido, e os caras nunca sabem. — De fato, ele não sabia a verdadeira razão. Os programadores podiam ser, e com frequência eram, persuadidos a inserir alçapões ou por patriotismo ou por dinheiro, e, com frequência, pelas duas coisas. O MoHa 56 estava usando a versão mais cara do tal programa, e sua literatura proclamava ruidosamente que ninguém podia invadi-lo devido a seu algoritmo proprietário. Isso não foi explicado, claro, apenas que era um processo de criptografia de 256 bits destinado a impressionar as pessoas com o tamanho do número. A literatura não dizia que o engenheiro de software que o gerou já tinha trabalhado em Fort Meade — razão pela qual havia sido contratado — e era um homem que se lembrava de ter prestado juramento. Além disso, um milhão de dólares em dinheiro livre de impostos tinha sido um motivador danado de bom, que o ajudara a comprar sua casa nas colinas do condado de Marin. E assim o mercado imobiliário da Califórnia estava agora mesmo servindo aos interesses de segurança dos Estados Unidos.
— Então podemos ler o e-mail deles? — perguntou Dominic.
— Parte — confirmou Jack. — O Campus baixa a maioria do que a NSA consegue em Fort Meade, e quando eles fazem o cruzamento com a CIA para análise, nós interceptamos. É menos complicado do que parece.
Dominic imaginou um monte de coisas em questão de segundos.
— Porra... — ele arfou, olhando para a luz no teto da suíte de Jack. — Não é de admirar... — Uma pausa. — Chega de cerveja, Aldo. Vamos dirigindo para Roma.
— Brian assentiu.
— Não tem lugar para mais um, hein? — perguntou Jack.
— Receio que não, Junior, não num 911.
— Okay, pego um avião para Roma. — Jack foi até o telefone e ligou para a portaria. Em dez minutos, tinha reserva para o voo 737 da Alitalia para o aeroporto Leonardo da Vinci, que partia em uma hora e meia. Pensou em trocar as meias. Se havia alguma coisa na vida que o desagradava era tirar os sapatos em aeroportos. Ficou pronto em poucos minutos e saiu, só parando para agradecer ao porteiro na saída.
Um táxi Mercedes o levou rápido para fora da cidade.
Dominic e Brian mal tinham desfeito as malas e já estavam prontos para partir em 10 minutos. Dom chamou o camareiro enquanto Brian voltava à banca de jornais, onde comprou mapas que cobriam a rota sul e oeste. Com isso e os euros que pegara mais cedo, imaginou que estavam preparados, presumindo que Enzo não ia dirigir além da primeira montanha dos Alpes. O Porsche azul-petróleo chegou à porta do hotel e ele entrou enquanto o porteiro forçava sua bagagem no minúsculo porta-malas. Em mais dois minutos, consultava os mapas, procurando o caminho mais rápido para a Sudautobahn.
JACK EMBARCOU no Boeing após suportar a humilhação que era agora o custo global da aviação comercial — mais do que suficiente para fazê-lo sentir saudade do Air Force One, embora também se lembrasse do conforto e da atenção, só mais tarde aprendendo o que as pessoas comuns tinham que enfrentar, como correr em cima de um muro de tijolos. No momento tinha que se preocupar com acomodações no hotel. Como fazer isso a bordo de um avião? Havia um telefone público preso em sua poltrona de primeira classe. Ele enfiou seu cartão preto no receptor de plástico e fez sua primeira tentativa de conquista dos telefones europeus.
Que hotel? Bem, por que não o Excelsior? Na segunda tentativa, conseguiu a recepção e descobriu que, de fato, tinham vários quartos disponíveis. Reservou uma pequena suíte e, sentindo-se muito bem consigo mesmo, pegou um vinho branco toscano da amigável aeromoça. Até mesmo uma vida agitada, ele aprendeu, podia ser uma boa vida se a pessoa soubesse qual era seu próximo passo, e por enquanto seu horizonte estava um passo à frente do tempo.
OS ENGENHEIROS rodoviários alemães deviam ter ensinado aos austríacos tudo o que sabiam, pensou Dominic. Ou talvez os mais espertos tivessem lido o mesmo livro. Fosse qual fosse a explicação, a estrada não diferia das americanas, exceto que a sinalização era tão diferente quanto incompreensível, principalmente porque não havia nenhuma indicação exceto os nomes das cidades — em alemão. Ele imaginava que um número em preto sobre fundo branco dentro de um círculo vermelho fosse o limite de velocidade, mas era em quilômetros... três quilômetros cabiam dentro de duas milhas, com espaço para estacionar. E os limites de velocidade austríacos não eram tão generosos quanto os alemães. Talvez eles não tivessem tantos médicos para cuidar de todos os acidentados, mas mesmo nas colinas crescentes as curvas eram adequadamente protegidas e os acostamentos davam muito espaço no caso de alguém ficar confuso com esquerda e direita. O Porsche tinha um controle de velocidade e ele fixou o seu em cinco quilômetros acima do limite estabelecido, só para ter a satisfação de dirigir um pouco mais rápido. Ele não podia ter certeza de que sua identidade do FBI lhe evitaria multas aqui, como nos Estados Unidos.
— Quanto tempo, Aldo? — perguntou ao navegador no Banco da Morte.
— Parece um pouco mais de mil quilômetros de onde estamos agora. Umas dez horas, talvez.
— Diabos, só dá pro aquecimento. Podemos precisar de gasolina em duas horas, mais ou menos. Quanto tem de dinheiro em espécie?
— Setecentos paus. Podemos gastá-los na Itália também, graças a Deus... com a velha lira a gente surta fazendo contas. O tráfego não está ruim — observou Brian.
— Não, e bem comportado — concordou Dominic. — Bons mapas?
— Sim, por todo o caminho. Na Itália, precisaremos de outro para Roma.
— Okay, não deve ser difícil. — E Dominic agradeceu a um Deus misericordioso por ter um irmão que sabia ler mapas. — Quando pararmos para abastecer, podemos comer alguma coisa.
— Boa, mano. — Brian olhou para cima para ver as montanhas à distância; não havia como dizer o quanto estavam distantes, mas devia ter sido uma visão assustadora no passado, quando as pessoas caminhavam ou cavalgavam para contorná-las. Eles deviam ter sido bem mais pacientes do que o homem moderno, ou talvez um pouco menos sensíveis. Nesse momento, o banco era confortável, e seu irmão não estava sendo inteiramente maníaco ao volante.
OS ITALIANOS se tornaram bons pilotos de avião, além de bons em carros de corrida. O piloto aterrissou suavemente na pista e o desembarque foi tão bem-vindo como sempre. Ele tinha voado demais para ser tão ansioso como o pai, mas, como a maioria das pessoas, sentia-se mais a salvo andando ou rodando sobre algo que pudesse ver. Aqui também havia táxis Mercedes e achou um taxista que falava um inglês passável e sabia o caminho do hotel.
As estradas pareciam quase iguais no mundo todo, e por um momento Jack imaginou onde diabo estaria. A terra fora do aeroporto parecia agrícola, mas o caimento dos telhados era diferente do de casa. Evidentemente não nevava muito aqui, pois eles eram um tanto rasos. Era o fim da primavera e fazia calor para poder usar uma camisa de mangas curtas, mas de modo algum era opressivo. Ele viera à Itália uma vez com o pai em visita oficial — uma reunião econômica de alguma espécie, ele achava —, mas circulara em um carro da embaixada o tempo todo. Era divertido bancar o príncipe do reino, mas não se aprendia a navegar daquela maneira, e tudo que retinha na memória eram os lugares que tinha visto. Esta era a cidade dos césares e de um monte de outros nomes que identificavam gente de quem a história lembrava como tendo feito coisas boas ou más. Principalmente más, porque era assim que a história funcionava. Aliás, lembrou a si mesmo, por isso estava na cidade. Um bom lembrete, realmente, de que não era o árbitro do bem e do mal no mundo, apenas um cara trabalhando para ajudar seu país, e o poder de decisão não era seu. Ser presidente, como o pai havia sido por mais de quatro anos, podia não ser um trabalho agradável, apesar de todo o poder. Com o poder vinha a responsabilidade em proporção direta, e se a pessoa tivesse consciência, tinha que vesti-la bem justa. Havia conforto em simplesmente fazer coisas que outras pessoas achavam necessárias. E, Jack lembrou a si mesmo, ele sempre podia dizer não, e embora pudesse haver consequências, elas não seriam tão graves como as coisas que ele e seus primos estavam fazendo, de todo modo.
A via Vittorio Veneto parecia mais comercial do que turística. As árvores dos dois lados pareciam um tanto estropiadas. O hotel, surpreendentemente, não era um prédio alto. Nem tinha uma entrada ornamentada. Pagou ao taxista e entrou e o porteiro carregou suas malas. O interior era uma celebração do trabalho em madeira, e o estafe era hospitaleira como devia ser. Talvez isso fosse um esporte olímpico no qual os europeus se excediam, mas alguém o levou a seu quarto. Havia ar-condicionado e o ar fresco na suíte foi bem recebido.
— Desculpe, qual é seu nome? — perguntou ao camareiro.
— Stefano — replicou o homem.
— Você sabe se há um homem chamado Hawkins hospedado aqui... Nigel Hawkins?
— O inglês? Sim, está a três portas daqui, descendo o corredor. É amigo dele?
— É amigo do meu irmão. Por favor, não diga a ele, quero fazer uma surpresa — sugeriu Jack, passando-lhe uma nota de 20 euros.
— Claro, signore.
— Muito bem, obrigado.
— Prego — respondeu Stefano e voltou para o saguão.
Isso tinha que ser arte operacional burra, disse Jack a si mesmo, mas se eles não tinham uma foto do pássaro, deviam ter alguma ideia de como ele era. Com isto feito, ele ergueu o telefone e tentou uma ligação.
— VOCÊ TEM UMA CHAMADA — o telefone de Brian começou a dizer em tons baixos, repetindo-se três vezes antes que ele o pegasse do bolso.
— Sim. — Quem diabo estava ligando para ele?, especulou.
— Aldo, aqui é Jack. Ei, estou no hotel... o Hotel Excelsior. Quer que eu tente arrumar alojamento para vocês aqui? É muito bom. Acho que vocês gostariam.
— Espere um pouco. — Ele pôs o celular no colo. — Você jamais vai acreditar onde Junior se hospedou. — Ele não precisou identificar o hotel.
— Está brincando — respondeu Dominic.
— Nada disso. Ele quer saber se pode fazer reservas para nós. O que digo a ele?
— Droga... — Uma rápida reflexão. — Bem, ele é nosso apoio em inteligência, não é?
— Soa um pouco óbvio demais para mim, mas se você diz... — pegou o celular de volta. — Jack, resposta afirmativa, parceiro.
— Ótimo. Vou providenciar. A não ser que eu ligue de volta dizendo não, vocês podem vir para cá.
— Entendido, Jack. A gente se vê.
— Tchau — ouviu Brian e desligou.
— Você sabe, Enzo, isso não parece realmente esperto para mim.
— Ele está lá. Está na cena e tem olhos. E sempre podemos recuar se for preciso.
— É justo, imagino. O mapa diz que estamos entrando num túnel daqui a umas cinco milhas. — O relógio no painel marcava 4h05. Estavam fazendo um bom tempo, mas seguindo direto para uma montanha logo depois da cidade de Badgastein. Precisavam de um túnel ou de um grande rebanho de cabras para escalar aquela montanha.
JACK LIGOU O COMPUTADOR. Levou 10 minutos para descobrir como conectar o sistema telefônico à internet, mas finalmente entrou, para encontrar sua caixa de correio transbordando com bits e bytes a ele destinados. Havia um cumprimento de Granger pela missão completada em Viena, embora ele não tivesse nada a ver com aquilo. Mas abaixo disso havia uma avaliação de Bell e Wills sobre MoHa 56. Na maior parte era decepcionante. O 56 era agente operacional dos bandidos. Planejava as coisas, e uma delas resultou num monte de gente morta em quatro shopping centers nos Estados Unidos, portanto esse escroto precisava ir ao encontro de Deus. Não havia nada de específico sobre o que ele fizera, como havia sido treinado, o quanto era capaz, se andava armado. Era a informação que gostaria de ter, mas depois de ler as mensagens decifradas, ele as criptografou de novo e salvou na pasta AÇÃO que ia para Brian e Dom.
O TÚNEL ERA COMO NUM VIDEOGAME. Ia e vinha até o infinito, sem engarrafamento como aquele maciço do túnel do Mont Blanc entre França e Suíça, anos antes. Após um período que pareceu durar metade da eternidade, saíram do outro lado. A partir dali era só descida.
— Posto de gasolina à frente — disse Brian. De fato, havia uma placa da ELF indicando um posto a 500 metros, e o Porsche precisava ser reabastecido.
— Certo. E eu podia mijar. — O posto era bem limpo pelos padrões americanos e a comida diferente, sem os Burger King ou Roy Rogers que se esperava encontrar na Virginia — a descarga do banheiro masculino estava toda in Ordnung — e a gasolina era vendida por litro, o que disfarçava bem o preço até que Dominic fez o cálculo mental: — Porra, eles realmente cobram por esta coisa...
— A empresa paga, cara — disse Brian suavemente e passou-lhe um pacote de biscoitos. — Vamos Enzo. A Itália nos espera.
— Tá certo. — O motor de seis cilindros roncou de volta à vida e eles retornaram à estrada.
— Bom para esticar as pernas — observou Dominic enquanto mudava a marcha.
— É, isso ajuda — concordou Brian. — Mais 700 quilômetros de chão, se minha conta estiver certa.
— Um passeio no parque. Bote aí seis horas, se o trânsito estiver bom. — Ele ajustou os óculos de sol e sacudiu um pouco os ombros. — Ficar no mesmo hotel com o nosso alvo... merda!
— Estive pensando. Ele não sabe picas sobre nós, talvez nem saiba que está sendo caçado. Pense no seguinte: dois ataques cardíacos bem diante de uma testemunha e um acidente de trânsito, também com uma testemunha que ele conhece. É uma tremenda falta de sorte, mas não sugere nenhuma ação hostil premeditada, não é?
— No lugar dele, eu estaria um pouco nervoso — Dominic comentou.
— No lugar dele, ele provavelmente já está. Se ele nos vir no hotel, somos apenas mais dois rostos infiéis, cara. A não ser que nos veja mais de uma vez, estamos só de passagem, não expostos numa vitrine. Nenhuma regra diz que isso tem que ser duro, Enzo.
— Espero que esteja certo, Aldo. Aquele shopping foi assustador o bastante para me abalar por uns tempos.
— Concordo, mano.
Esta não era a parte mais alta dos Alpes, que ficava ao norte e a oeste, embora fosse igualmente ruim para as pernas se precisassem atravessá-la a pé, como fizeram as legiões romanas pensando na bênção de suas estradas pavimentadas. Um pouco melhor do que lama, mas não muito, uma mochila nas costas que pesava quase tanto quanto as dos marines no Afeganistão. Essas legiões tinham sido duras em seu tempo, e provavelmente não diferiam muito dos caras que faziam o trabalho hoje de uniforme camuflado. Mas naquele tempo eles tinham maneiras mais diretas de lidar com bandidos. Matavam famílias, amigos, vizinhos e até os cães e eram notórios por isso. Não exatamente prático na era da CNN e, verdade seja dita, pouquíssimos fuzileiros tolerariam participar de massacre indiscriminado. Mas matá-los um de cada vez era certo, até onde houvesse certeza de que não se estava matando inocentes. Fazer esta merda era o outro lado do serviço. Era realmente uma pena que nem todos pudessem sair para o campo de batalha e lutar como homens, mas, além de malvados, terroristas também eram práticos. Não fazia sentido se lançar numa ação de combate na qual não apenas perderiam como seriam massacrados como ovelhas num cercado. Homens de verdade teriam reunido suas forças, treinando-as e equipando-as, e depois se lançado ao combate, em vez de se esgueirarem como ratos para morder bebês no berço. Mesmo a guerra tinha regras, estabelecidas porque havia coisas piores do que a guerra, coisas estritamente proibidas a homens de uniforme. Não se feria deliberadamente não combatentes, e se tentava ao máximo evitar fazê-lo por acidente. Os fuzileiros estavam agora investindo tempo, dinheiro e esforço consideráveis no aprendizado de guerrilha urbana, e a parte mais difícil era evitar civis, mulheres com bebês em carrinhos — mesmo sabendo que algumas delas tinham armas escondidas nos carrinhos e adoravam ver um marine pelas costas, digamos a dois ou três metros, só para ter certeza de não errar o tiro. Jogar pelas regras tinha limitações. Mas para Brian isso era coisa do passado.
Não, ele e seu irmão jogavam pelas regras do inimigo, e até onde o inimigo não soubesse seria um jogo lucrativo. Quantas vidas podem ter salvado ao executar um banqueiro, um recrutador e correio? O problema era que jamais se saberia. Era a teoria da complexidade aplicada à vida real, e a priori era impossível. Eles jamais saberiam que bem estariam fazendo e que vidas poderiam estar salvando quando pegassem o escroto do MoHa 56. Mas a impossibilidade de quantificar não significava que não fosse real, como aquele molestador de crianças que seu irmão despachara no Alabama. Eles estavam fazendo o trabalho do Senhor, mesmo se o Senhor não fosse um contador.
Trabalhando no campo do Senhor, pensou Brian. Certamente esses prados alpinos eram bem verdes e adoráveis, pensou ele, procurando o solitário pastor de cabras com seu canto em falsete característico. Odalay-eee-oh...
— ONDE ELE ESTÁ? — perguntou Hendley.
— No Excelsior — respondeu Rick Bell. — Diz que está quase parede-meia com nosso amigo.
— Acho que nosso garoto precisa de algum conselho sobre tática de campo — observou Granger sombriamente.
— Pense nisso — sugeriu Bell. — A oposição não sabe de nada. Eles estão provavelmente tão preocupados com o cara que pega a roupa para a lavanderia quanto com Jack ou os gêmeos. Eles não têm nomes, nenhum fato, nenhuma organização hostil... diabos, eles nem sequer sabem com certeza que alguém está a fim de pegá-los.
— Não é uma tática de campo muito boa — insistiu Granger. — Se Jack for notado...
— E daí? — perguntou Bell. — Okay, tudo bem, sei que sou apenas um técnico de inteligência, não um espião de campo, mas a lógica ainda se aplica. Eles não sabem e não podem saber nada sobre o Campus. Mesmo que esse MoHa 56 esteja ficando nervoso, é uma ansiedade indireta, que diabo, ele já deve muito disso no sistema. Você não pode ser espião se tiver medo de todo mundo, pode? Enquanto nosso pessoal se mantiver fora dos holofotes não tem que se preocupar... a não ser que façam uma grande burrice, e esses garotos não são burros, se os avaliei corretamente.
No meio de tudo isso, Hendley apenas ficou sentado, deixando seus olhos oscilarem de um para outro. Devia ter sido assim com M nos filmes de James Bond. Ser o chefe tinha seus bons momentos, mas havia estresse também. Claro, ele tinha um perdão presidencial sem data num cofre de segurança, mas isso não significava que algum dia o usaria. Isso faria dele um pária ainda maior do que já era e a mídia jamais o deixaria em paz até a morte, o que não era exatamente sua ideia de alegria.
— Eles não vão bancar os camareiros e matá-lo no quarto de hotel — pensou Gerry em voz alta.
— Ei, se eles fossem tão burros assim já estariam numa prisão alemã — disse Granger.
A TRAVESSIA PARA A ITÁLIA não era nada mais formal do que cruzar a divisa do Tennessee com a Virginia, um benefício da União Europeia. A primeira cidade italiana foi Villaco, onde o povo parecia bem mais alemão do que siciliano para seus concidadãos italianos, e daí para sudoeste na A23. A terra aqui não se distinguia da austríaca, e as casas de fazenda eram muito parecidas. Uma bela terra campestre, que não diferia do leste do Tennessee ou da Virginia Ocidental, com suas colinas onduladas e vacas que provavelmente davam leite duas vezes por dia para alimentar crianças dos dois lados da fronteira. A seguir vinha Udine, depois Mestre, e eles mudaram de estrada de novo, pegando a A4 para Pádua, virando na A13 e em uma hora, Bolonha. Os montes Apeninos ficavam à esquerda deles, e a parte fuzileiro de Brian olhou para aquelas colinas e se arrepiou ao se lembrar do campo de batalha que foram. Mas então seu estômago recomeçou a roncar.
— Sabe, Enzo, em cada cidade que cruzamos tem pelo menos um grande restaurante... massa de primeira, queijo caseiro, vitela à francesa, uma tremenda adega...
— Também estou com fome, Brian. E, sim, estamos rodeados por comida de alma italiana. Infelizmente temos uma missão.
— Só espero que o filho da puta compense o que estamos perdendo, cara.
— A gente não tem que ficar pensando no porquê, mano — disse Dominic.
— É, mas pode enfiar no rabo a outra metade dessa frase.
Dominic começou a rir. Ele também não gostava disso. A comida em Munique e Viena tinha sido excelente, mas todo o entorno deles era o lugar onde a boa comida tinha sido inventada. O próprio Napoleão levava um chef italiano em suas campanhas, e a maior parte da moderna cozinha francesa viera diretamente daquele homem, como os cavalos de corrida eram todos descendentes lineares de um garanhão árabe chamado Eclipse. E ele nem mesmo sabia o nome do cara. Uma pena, pensou, passando por um reboque cujo motorista provavelmente conhecia os melhores restaurantes. Merda.
Viajavam com as luzes acesas — uma regra na Itália imposta pela Polizia Stradale, que não era famosa por sua leniência — a uma velocidade constante de 150 quilômetros por hora, e o Porsche parecia adorar. O marcador de gasolina estava acima de 25 — ou assim achava Dominic. A aritmética de quilômetros e litros contra milhas e galões era demais para ele enquanto se concentrava na estrada. Em Bolonha pegaram a A1 e continuaram rumo sul para Florença, a cidade de origem da família Caruso. A estrada atravessava as montanhas, seguindo para sudoeste, e era lindamente projetada.
Passar ao largo de Florença foi muito duro. Brian conhecia um ótimo restaurante perto de Ponte Vecchio que pertencia a primos distantes, com vinho excelente e comida digna de rei, mas Roma estava a apenas mais duas horas. Ele se lembrava de ter ido lá de trem naquela vez com uniforme verde e talabarte para proclamar sua identidade profissional e, efetivamente, os italianos tinham gostado dos fuzileiros americanos, como todo povo civilizado. Ele havia odiado pegar o trem de volta para Roma e de lá para Nápoles e seu navio, mas não era dono de seu tempo.
Como não era agora. Havia mais montanhas enquanto seguiam para o sul, mas agora alguns já letreiros anunciavam Roma e isso era bom.
JACK COMEU NO RESTAURANTE do Excelsior, e a comida era tudo o que ele esperava, com o pessoal o tratando como um filho pródigo de volta após longa ausência. Sua única queixa era que quase todo mundo ali fumava. Bem, talvez a Itália não soubesse dos perigos do fumo. Ele crescera ouvindo isso da mãe — que com frequência estendia as observações ao pai, que estava sempre tentando largar o vício de uma vez por todas, sem sucesso. Ele aproveitou seu tempo com o jantar. Apenas a salada era comum. Nem mesmo os italianos dispensavam a alface, embora os molhos fossem excelentes. Ele pegara uma mesa de canto para ter uma visão ampla do salão. Os outros comensais pareciam tão comuns quanto ele. Todos bem vestidos. O folheto de serviços aos hóspedes no quarto não dizia que gravata era obrigatória, mas ele a havia colocado, sem contar que a Itália era o quartel-general da moda. Ele esperava comprar um terno lá, se o tempo permitisse. Havia trinta ou quarenta pessoas no salão. Jack descontou os acompanhados das esposas.
Assim, ele estava procurando alguém de uns 30 anos, jantando sozinho, registrado no hotel como Nigel Hawkins. Havia três possibilidades. Decidiu procurar gente que não parecessem árabe. Portanto, o que fazer agora? Devia fazer alguma coisa, afinal? Como podia isso fazer mal, a não ser que se identificasse como agente de inteligência? Mas... por que assumir riscos?, ele se perguntou. Por que não ficar frio?
E com esse pensamento ele recuou, mentalmente pelo menos. Melhor identificar o sujeito de outra maneira.
ROMA ERA DE FATO uma excelente cidade, disse a si mesmo Mohammed Hassan al-Din. De vez em quando ele pensava em alugar um apartamento aqui, ou mesmo uma casa. Podia até mesmo alugar uma no Bairro Judeu; havia alguns ótimos restaurantes kosher naquela parte da cidade, onde se podia pedir qualquer coisa do cardápio com confiança. Ele fora ver um apartamento uma vez na Piazza Campo di Fiori, mas embora o preço — mesmo o preço para turista — não fosse exagerado, a ideia de ficar amarrado a um único local o assustava. Melhor ter mobilidade em seu ramo de trabalho. Os inimigos não podiam atingi-lo se não o encontrassem. Ele assumira um risco ao matar o judeu Greengold — e havia sido duramente censurado pelo próprio Emir por esse tantinho de prazer pessoal, e prometera nunca mais fazer aquilo. E se o Mossad tivesse obtido um retrato dele? Que validade ele teria para a Organização então?, perguntara o Emir, furioso. E aquele homem era conhecido pelos colegas pelo temperamento vulcânico. Portanto, nada mais disso. Ele nem levava mais a faca, mas a mantinha num lugar de honra no seu kit de barbear, de onde podia extraí-la e examinar o sangue do judeu na lâmina retrátil.
Portanto, por enquanto, em Roma, ele morava aqui. Na próxima vez — depois que voltasse para casa — ele ficaria em outro hotel, talvez aquele lindo junto à fonte de Trevi, pensou, embora este local se adequasse melhor a suas atividades. E a comida... Bem, a comida italiana era para lá de excelente. Carneiro era bom, mas não todo dia. E aqui as pessoas não o olhavam como um infiel se bebesse uma pequena taça de vinho. Ele imaginou se Maomé, seu epônimo, tinha conscientemente permitido que o Fiel tomasse bebida alcoólica feita de mel, ou simplesmente não sabia que o hidromel existia. Experimentou quando estava em Cambridge, e concluiu que só um alcoólatra desesperado tomaria uma provinha de hidromel, mas jamais viraria uma noite bebendo aquilo. Assim, Maomé não foi inteiramente perfeito. E nem ele era, o terrorista recordou a si mesmo. Fez coisas difíceis pela Fé, e se permitira alguns poucos desvios do verdadeiro caminho. Se alguém tinha que conviver com ratos, era melhor desenvolver uns bigodes, afinal. O garçom chegou para recolher os pratos, e ele decidiu dispensar a sobremesa. Tinha que manter sua figura bem aprumada se quisesse manter o disfarce de empresário inglês e adequada a seus ternos Brioni. Assim, deixou a mesa e saiu para o saguão.
RYAN PENSOU numa saideira no bar, mas, refletindo, decidiu-se contra e saiu. Alguém já tinha entrado no elevador. Houve um encontro casual dos olhos, enquanto Ryan apertava o botão 3, mas viu que já estava aceso. Portanto, este britânico bem-vestido estava no seu andar...
... isso não era interessante...?
Levou apenas uns poucos segundos para o elevador parar e a porta se abrir.
O Excelsior não era um hotel alto, mas bem comprido e exigia uma longa caminhada, e o homem do elevador seguia na mesma direção. Ryan reduziu sua passada para segui-lo de uma distância maior e, efetivamente, ele passou pelo quarto de Jack e continuou andando, um... dois... e na terceira porta parou e se virou. A seguir olhou de novo para Ryan, especulando, talvez, se estaria sendo seguido. Mas Jack parou e procurou sua própria chave, depois, olhando para o homem, disse, na voz casual de estranho-para-estranho que todos os homens conheciam: — Boa noite.
— Boa noite para o senhor — foi a resposta em bem educado inglês da Inglaterra.
Jack entrou em seu quarto achando que já ouvira aquele sotaque antes... como os diplomatas britânicos que conhecera na Casa Branca ou em viagens a Londres com seu pai. Era a fala de alguém nascido em mansão, ou de quem planejava comprar a sua própria quando a hora chegasse e que havia investido um monte de libras esterlinas para se fazer passar por um Par do Reino. Ele tinha a pele pêssego-com-creme de um britânico e o sotaque da classe alta...
... e estava registrado sob o nome de Nigel Hawkins.
— E peguei um de seus e-mails, meu chapa — disse Jack para o tapete. — Filho da puta.
QUASE UMA HORA rodando pelas ruas de Roma, cidade cujos pais não tinham se casado com as mães, e nenhum deles conhecera merda nenhuma sobre planejamento urbano, pensou Brian, lutando para encontrar o caminho para a via Vittorio Veneto. Finalmente, soube que estavam próximos quando passou através do que podia ter sido um dia a muralha da cidade destinada a manter Aníbal Barca lá fora. Mas depois, à esquerda e à direita, descobriram que em Roma ruas com o mesmo nome nem sempre seguiam retas, o que exigiu circundar o Palazzo Margherita para chegar ao Hotel Excelsior, onde Dominic decidiu que já dirigira o suficiente pelos próximos dias. Em três minutos, a bagagem foi retirada do porta-malas e eles estavam no balcão de recepção.
— Vocês têm um recado para ligar para o signore Ryan logo ao chegar. Seus quartos ficam ao lado do dele — disse o recepcionista, depois acenou para o mensageiro, que os guiou até o elevador.
— Viagem longa, cara — disse Brian, recostando-se na parede apainelada.
— Nem me fale — concordou Dominic.
— Quero dizer, sei que você gosta de carros rápidos e mulheres rápidas, mas, da próxima vez, que tal a porra de um avião? Talvez você possa marcar pontos com uma aeromoça, sabia?
— Você manda, fuzileiro. — Seguido por um bocejo.
— Por aqui, signori — sugeriu o mensageiro, com um aceno do braço.
— O recado na recepção, onde é que ele está?
— O signor Ryan? Ele está bem aqui — apontou o mensageiro.
— Que conveniente — pensou Dominic em voz alta, até que se lembrou de algo mais.
Deixou-se conduzir para dentro, e a porta comunicante com o quarto de Brian se abriu. Ele deu uma generosa gorjeta ao mensageiro. Tirou o recado do bolso e ligou.
— ALÔ?
— Estamos na porta ao lado, campeão. O que está pegando? — perguntou.
— Dois quartos?
— Isso.
— Adivinhe quem está logo depois?
— Conte.
— Um cara inglês, um tal Nigel Hawkins — disse Jack ao primo e esperou que o choque diminuísse. — Vamos conversar.
— Venha logo para cá, Junior.
Jack calçou os mocassins.
— Gostaram da viagem? — perguntou Jack.
Dominic havia se servido de vinho do minibar. Não restava muito.
— Foi longa.
— Você dirigiu o tempo todo?
— Ei, eu queria chegar vivo, cara.
— Seu marrento — provocou Brian. — Ele acha que dirigir um Porsche é como sexo, só que melhor.
— Isto se você tiver a técnica correta, mas mesmo o sexo pode esgotar um homem. Okay. — Dominic pousou sua taça. — Você dizia...?
— É, bem aqui. — Jack apontou para a parede. E moveu os dedos para os olhos. Eu vi o sacana. A resposta se resumiu a acenos de cabeça. — Bem, vocês precisam dormir. Ligo amanhã e podemos pensar na missão. Legal?
— Muito legal — concordou Brian. — Ligue por volta das nove, okay?
— Pode apostar. Até mais tarde. — E Jack seguiu para seu quarto. Logo em seguida estava de volta ao computador. E então lhe ocorreu. Ele não era o único aqui com um laptop, era? Isso podia ser valioso...
AS OITO HORAS passaram mais depressa do que deveriam. Mohammed estava em pé, ansioso e enérgico, e verificava seu e-mail. Mahmoud também estava em Roma, tendo chegado na noite anterior, e no alto da caixa de correio de MoHa 56 havia uma carta de Gadfly 097, solicitando um local de encontro. Mohammed pensou a respeito e então decidiu exercitar seu senso de humor.
RISTORANTE GIOVANNI, PIAZZA DI SPAGNA, respondeu: 13h30. TENHA CUIDADO COM SUA ROTINA.
Com isso queria dizer empregar medidas de contravigilância. Não havia nenhuma razão definida para suspeitar de jogo sujo na perda de três agentes de campo, mas ele não vivera até os 31 anos no ramo de inteligência por ser tolo. Tinha habilidade para distinguir os inofensivos dos perigosos, pensava. Ele pegara David Greengold seis semanas antes porque o judeu não vira a operação sob falsa bandeira nem mesmo quando ela o mordeu no rabo — bem, no rabo não, na nuca, Mohammed pensou com um pequeno sorriso, relembrando o momento. Talvez devesse voltar a carregar a faca, só para dar sorte. Muitos homens em seu tipo de trabalho acreditavam em sorte, como um atleta. Talvez o Emir estivesse certo. Matar o agente do Mossad havia sido um risco desnecessário e gratuito, uma vez que granjeava inimigos. A organização já os tinha em demasia, mesmo se os inimigos não soubessem quem e o que era a organização. Melhor que fosse uma mera sombra para os infiéis... uma sombra num quarto escuro, invisível e desconhecida. O Mossad era odiado, mas eles eram formidáveis. Maus e infinitamente inteligentes. E quem podia dizer que conhecimento tinham, que traidores árabes compravam com dinheiro americano para seus fins? Não havia indício de traição na Organização, mas ele se lembrava das palavras do agente do KGB, Yuriy: a traição só é possível por parte daqueles em quem você confia. Matar o russo tão rápido fora provavelmente um erro. Ele havia sido um experiente agente de campo que atuara na maior parte da carreira na Europa e na América, e provavelmente as histórias que podia ter contado seriam infinitas, cada qual com uma lição a ser aprendida. Mohammed se lembrava das conversas com ele e de ter ficado impressionado com a amplitude de sua experiência e discernimento. Era bom ter instinto, mas o instinto com frequência imitava doença mental em sua extravagante paranoia. Yuriy havia explicado com riqueza de detalhes como avaliar pessoas e como distinguir um profissional de um civil inofensivo. Ele podia ter contado muito mais histórias, exceto a da bala 9mm que ganhou na nuca. Isso também violara as estritas e admiráveis regras do Profeta sobre hospitalidade. Se um homem comer do teu sal, muito embora seja um infiel, ele terá a segurança de tua casa. Bem, o Emir foi aquele que violou esta regra, dizendo de modo pouco convincente que ele era ateu e portanto fora do alcance das regras.
Mas aprendera algumas lições, de qualquer modo. Todos os seus e-mails eram criptografados no melhor programa existe, chaveados individualmente em seu próprio computador, portanto ninguém além dele podia ler. Suas comunicações eram seguras. Ele mal parecia árabe. Cada hotel em que ficava viam que bebia álcool, e sabe-se que muçulmanos não bebem. Então devia estar completamente a salvo. Bem, sim, o Mossad sabia que alguém como ele matara aquele porco do Greengold, mas não achava que tivessem uma foto dele e, a não ser que fosse traído pelo homem que contratara para enganar o judeu, não faziam ideia de quem era. Yuriy avisou de que nunca se pode saber tudo, mas também que ser paranoico em excesso pode alertar um cola fortuito, porque agentes de inteligência profissionais conhecem truques que ninguém mais usa — e podiam vê-lo se os usasse. Era como uma grande roda, sempre girando, sempre voltando ao mesmo lugar e da mesma maneira, nunca imóvel, porém jamais se desviando da trilha original. Uma grande roda... ele era apenas um dente na engrenagem, e se sua função era ajudá-la a se mover ou desacelerar, ele realmente não sabia.
— Ah. — Descartou essa ideia. Ele era mais do que um dente na engrenagem. Ele era um dos motores. Não um grande motor, talvez, mas importante, porque embora a grande roda pudesse se mover sem ele, nunca mais se moveria tão rápida e seguramente como agora. E, com a vontade de Deus, ele continuaria movendo-a até que esmagasse seus inimigos, os inimigos do Emir e os próprios inimigos de Alá.
Assim, despachou sua mensagem para Gadfly 097 e ligou pedindo café no quarto.
RICK BELL arranjara uma turma para ficar nos computadores em tempo integral. Era estranho que o Campus não estivesse fazendo isso desde o início, mas agora fazia. O Campus estava aprendendo, como todo mundo dos dois lados. No momento era Tony Wills, consciente de que havia uma diferença de seis horas no fuso horário. Bom navegante de computador, baixou a mensagem de 56 para 097 cinco minutos depois do despacho e passou-a a Jack.
Isso exigiu menos segundos do que para piscar. Okay, eles conheciam o alvo e sabiam aonde ia, e isso era simplesmente ótimo. Jack pegou o telefone.
— Está acordado? — ouviu Brian.
— Agora estou — grunhiu ele de volta. — O que é?
— Venha até aqui para o café. E traga Dom.
— Aye, aye, sir. — Seguiu-se um clique.
— ESPERO QUE SEJA ALGO BOM — disse Dominic. Seus olhos pareciam buracos de urina na neve.
— Se quer voar com as águias de manhã, parceiro, não pode chafurdar com os porcos à noite. Fica frio. Já pedi café.
— Obrigado. E então, o que há?
Jack foi até seu computador e apontou para a tela. Eles se inclinaram para ler.
— Quem é esse cara? — perguntou Dominic, pensando: Gadfly 097...?
— Ele também chegou ontem de Viena.
De algum lugar do outro lado da rua, talvez?, imaginou Brian. Será que viu meu rosto?
— Okay, acho que estamos prontos para a missão — disse Brian, olhando para Dom e erguendo um polegar.
O café chegou em poucos minutos. Jack serviu, mas a infusão estava arenosa, eles acharam, ao estilo turco, embora muito pior que dos turcos. Ainda assim, era melhor do que café nenhum. Eles não falaram sobre a missão. Seu profissionalismo lhes dizia que não falassem de negócios num quarto que não tivesse sido vasculhado em busca de grampos.
Jack engoliu seu café e dirigiu-se ao chuveiro. Havia nele uma corrente vermelha, evidentemente para ser puxada em caso de ataque cardíaco, mas sentia-se razoavelmente bem e não a usou. Não estava tão certo quanto a Dominic, que realmente estava parecendo vômito de gato no tapete. Em seu caso, o chuveiro operou maravilhas, e voltou, barbeou-se e se esfregou até ficar ralado e pronto para sair.
— A comida aqui é muito boa, mas não estou certo quanto ao café — anunciou.
— Não mesmo. Meu Deus, aposto que até em Cuba servem um café melhor — disse Brian. — Até o café do rancho é melhor do que este.
— Ninguém é perfeito, Aldo — observou Dominic. Mas ele também não gostou.
— Então, que tal meia hora? — perguntou Jack. Ele precisava de mais três minutos para ficar pronto.
— Se não der, mande uma ambulância — disse Enzo, encaminhando-se para a porta e esperando que os deuses do chuveiro fossem mais misericordiosos esta manhã. Não era justo, pensou. Beber dava ressaca; dirigir, não. Trinta minutos depois, porém, estavam os três no saguão, alinhadamente vestidos e usando óculos escuros contra o brilhante sol italiano que cintilava lá fora. Dominic pediu orientação ao porteiro, que apontou para a via Sistina, que levava diretamente à igreja Trinità dei Monti, cujos degraus ficavam bem do outro lado da rua, uns 25 metros abaixo. Havia um elevador que servia à parada do metrô, que parecia mais abaixo ainda, mas descer a colina não era uma tarefa ultrajante demais. Ocorreu aos três que Roma tinha tantas igrejas quanto Nova York tinha lojas de doces. A descida foi agradável. A cena, de fato, seria maravilhosamente romântica se você tivesse a garota certa pelo braço. Os degraus tinham sido projetados para acompanhar o declive da colina pelo arquiteto Francesco De Sanctis e era o lar da extravaganza de moda anual chamada Donna sotto le stelle. No fundo havia uma fonte na qual jazia um bote de mármore comemorativo de uma grande inundação, algo em que um bote de pedra teria pouca utilidade. A Piazza di Spagna era o cruzamento de apenas duas ruas, e ganhara seu nome por ali se situar a embaixada espanhola junto à Santa Sé. O tamanho da praça não era muito grande — menor que a Times Square, por exemplo —, mas fervia de atividade, com tráfego de veículos e pedestres que tornava a travessia ali um jogo arriscado para todos os envolvidos.
O Ristorante Giovanni ficava no lado oeste, um prédio indistinto de tijolos pintados de amarelo-creme, com uma ampla área externa coberta por um toldo. Lá dentro havia um bar onde todo mundo fumava, inclusive um policial tomando uma xícara de café.
Dominic e Brian entraram e olharam em volta, examinando o local antes de voltarem para fora.
— Temos três horas, pessoal - observou Brian. — E agora?
— Queremos estar de volta aqui... quando? — perguntou Jack.
Dominic consultou o relógio.
— Nosso amigo deve dar as caras por volta de uma e meia. Vamos imaginar que nos sentemos para almoçar por volta de meio-dia e quarenta e cinco e aguardemos os desdobramentos. Jack, você consegue identificar o cara de vista?
— Sem problema — assegurou Junior.
— Então acho que temos duas horas para vaguear por aí. Estive aqui dois anos atrás. É um bom lugar para fazer compras.
— Então vamos nessa. — Ele nunca teve um terno italiano. Tinha vários ternos ingleses do número 10 da Savile Row em Londres. Por que não tentar aqui? Esse negócio de espionagem era uma loucura, refletiu. Estavam aqui para matar um terrorista, mas antes iam comprar roupas. Nem mulheres fariam isso... exceto talvez com sapatos.
De fato, havia todo tipo de loja na via Del Babuino e Jack aproveitou o tempo para dar uma olhada em muitas. A Itália de fato era a capital mundial da moda e ele experimentou uma jaqueta de seda cinza-claro que parecia feita sob medida por um mestre-alfaiate e ele a comprou no ato por 800 euros. Depois teve que carregar a sacola de plástico no ombro, mas não era um belo disfarce? Que agente secreto homem ia se estorvar com fardo tão improvável?
MOHAMMED HASSAN deixou o hotel às 12h15, tomando o mesmo caminho a pé que os gêmeos haviam feito duas horas antes. Ele o conhecia bem. Percorrera o mesmo trajeto para matar Greengold e o pensamento o reconfortou. Era um belo e ensolarado dia, a temperatura chegando a 30 graus, um dia quente, mas não realmente de rachar. Dia bom para turistas americanos. Os cristãos. Americanos judeus iam para Israel para cuspir nos árabes. Aqui eles eram apenas Infiéis cristãos querendo tirar fotos e comprar roupas. Bem, ele também comprara seus ternos aqui. Havia aquela loja Brioni na saída da Piazza di Spagna. O vendedor de lá, Antonio, sempre o tratava bem, o melhor possível para tomar seu dinheiro. Mas Mohammed provinha também de uma cultura mercantil, e não se podia desdenhar um homem por isso.
Era hora da refeição do meio-dia e o Giovanni era tão bom quanto qualquer restaurante romano, e melhor do que a maioria. Seu garçom preferido o reconheceu e acenou para sua mesa habitual do lado direito, sob o toldo.
— AQUELE É O NOSSO GAROTO — disse-lhes Jack, apontando com sua taça de vinho.
Os três americanos observaram o garçom trazer para ele uma garrafa de água Pellegrino, junto com um copo de gelo. Não se via muito gelo na Europa, onde as pessoas achavam que gelo servia para esquiar ou patinar, mas evidentemente 56 gostava de sua água gelada. Jack estava mais bem posicionado para olhar na direção dele.
— Acho que ele gosta de comer.
— O condenado tem sempre uma última refeição decente — assinalou Dominic. Não aquele sacana no Alabama, claro. Ele provavelmente tinha mau gosto, de qualquer modo. Depois especulou se serviam almoço no inferno. — O convidado dele só deve dar as caras à uma e meia, certo?
— Correto. E 56 disse-lhe para ser cuidadoso em sua rotina. Isso pode significar ver se está sendo seguido.
— Acha que ele está nervoso por nossa causa? — perguntou Brian.
— Bem — observou Jack —, eles têm dado azar ultimamente.
— Temos que imaginar o que ele está pensando — opinou Dominic. Ele se recostou e se espreguiçou, captando um vislumbre do alvo. Estava um pouco quente para paletó e gravata, mas eles deviam se fazer passar por empresários, não turistas. Pensou se era um bom disfarce. É preciso levar em conta a temperatura. Dominic suava por causa da missão ou da temperatura ambiente? Ele não tinha ficado exageradamente tenso em Roma, Munique ou Viena, tinha? Não, nesses lugares, não. Mas aqui era mais povoado... não era?
Havia boas e más circunstâncias. Desta vez prevaleceu a má. Um garçom com uma bandeja de taças de Chianti tropeçou nos pés enormes de uma mulher de Chicago, que estava em Roma para verificar sua árvore genealógica. A bandeja errou a mesa, mas as taças caíram no colo dos gêmeos. Os dois usavam roupas claras por conta do calor, e...
— Ah, merda! — exclamou Dominic, a calça bege da Brooks Brothers parecendo que ele tinha sido baleado na virilha. Brian ficou pior ainda.
O garçom estava consternado. — Scusi, scusi, signori! — arquejava. Mas nada se podia fazer. Ele começou a gaguejar sobre mandar as roupas deles para a lavanderia. Dom e Brian apenas se entreolharam. Eles poderiam facilmente ter ostentado a marca de Caim.
— Está tudo bem — disse Dominic em inglês. Ele havia esquecido todos os seus palavrões em italiano. — Ninguém morreu. — Os guardanapos não ajudaram grande coisa. Talvez uma boa lavanderia a seco. O Excelsior provavelmente tinha uma. Umas poucas pessoas olharam, ou horrorizadas ou divertidas, e então seu rosto ficou tão vermelho quanto a roupa. Quando o garçom se afastou, morto de vergonha, o agente do FBI perguntou: — Muito bem, e agora?
— Raios me partam se eu sei — respondeu Brian. — O acaso não agiu a nosso favor, capitão Kirk.
— Muito obrigado, Spock — caçoou Dom de volta, no bordão de Jornada nas Estrelas.
— Ei, ainda estou aqui, lembram? — disse Jack aos dois.
— Junior, você não pode... — Mas Jack o interrompeu.
— Por que diabos não? — perguntou ele baixinho. — Qual a dificuldade?
— Você não está treinado — disse Dominic. — Não é como o torneio de Masters de golfe, é?
— Bem... — Era Brian de novo.
— É? — insistiu Jack.
Dominic tirou a caneta do bolso do paletó e a entregou. — Torça a ponta e enfie no rabo dele, certo?
— Está tudo pronto para funcionar — confirmou Enzo. — Mas tenha cuidado, pelo amor de Deus.
Era 1h21. Mohammed Hassan acabara de beber sua água e encheu o copo novamente. Mahmoud em breve estaria aqui. Por que interromper uma reunião importante? Melhor ir logo ao banheiro. Deu de ombros e foi para o banheiro masculino, que lhe trazia agradáveis lembranças.
— Tem certeza de que quer fazer isso? — perguntou Brian.
— É um bandido, não é? Quanto tempo leva para essa coisa fazer efeito?
— Cerca de 30 segundos, Jack. Use a cabeça. Se achar que não vai dar certo, volte e deixe-o ir embora — disse Dominic. — Isto não é uma porra de jogo, cara.
— Certo. — Que diabo, papai fez isso uma ou duas vezes, disse a si mesmo. Só para ter certeza, abordou um garçom e perguntou onde ficava o toalete masculino. O garçom apontou e Jack foi para lá.
Era uma porta comum de madeira com um desenho simbólico em vez de palavras, por causa da clientela internacional do restaurante. E se houver mais de um cara lá dentro?, ele se perguntou.
Então você cancela, seu burro.
Okay...
Ele entrou e havia alguém mais, secando as mãos. Mas logo saiu e Ryan ficou sozinho com 56, que estava fechando o zíper e começando a se virar. Jack tirou a caneta do bolso interno do paletó e girou-a para expor a ponta da seringa de irídio. Ele resistiu à tentação instintiva de testar a ponta com o dedo. Não seria um movimento esperto.
Passou pelo estrangeiro bem vestido e então, como instruído, baixou a mão e espetou-o bem na nádega esquerda. Esperava ouvir a descarga do gás, mas isso não aconteceu.
Mohammed Hassan al-Din pulou com a súbita dor aguda e virou-se para ver o que parecia ser um rapaz comum... mas, espere aí, ele já tinha visto esse rosto no hotel...
— Ah, desculpe o esbarrão, parceiro.
O modo com ele disse isso acendeu luzes de alarme em sua consciência. O rapaz era um americano, tinha esbarrado nele, que sentira uma espetadela na nádega e... E ele havia matado o judeu aqui mesmo e...
— Quem é você?
— Sou o homem que simplesmente o matou, MoHa 56 — replicou tranquilo.
O rosto do homem mudou para algo feroz e perigoso. Sua mão direita voou para o bolso e voltou com uma faca, e de súbito aquilo não era mais tão divertido.
Jack recuou instintivamente com um pulo. O rosto do terrorista era a própria imagem da morte. Ele abriu sua faca retrátil e mirou na garganta de Jack como alvo. Levou a faca para cima, deu um passo à frente e...
A faca caiu de sua mão — ele olhou para a mão com espanto, depois ergueu a vista de novo...
... ou assim tentou. Sua cabeça não se movia, as pernas perderam a força. Sentiu-se desabar. Seus joelhos bateram dolorosamente no piso ladrilhado. E ele caiu para a frente, girando para a esquerda enquanto isso acontecia. Seus olhos permaneciam abertos e então olhou para cima, para a placa de metal colada embaixo do mictório, onde Greengold quisera recuperar o pacote antes, e...
— Saudações da América, MoHa 56. Você se meteu com gente errada. Espero que goste do inferno, meu chapa.
A visão periférica dele viu a forma se mover para a porta, o aumento e o decréscimo de luz enquanto a porta se abria e fechava.
Ryan parou ali e decidiu voltar. Havia uma faca na mão do homem. Ele tirou o lenço do bolso e removeu a faca, depois deslizou-a para baixo do corpo. Melhor não se meter mais com isso, pensou. Melhor... não, uma outra coisa lhe ocorreu. Ele procurou nos bolsos de 56 e encontrou o que procurava. Depois saiu. A parte mais louca disso tudo era que sentia uma grande necessidade de urinar no momento, e caminhou rápido para acalmar esta urgência. Em questão de segundos, estava de volta à mesa.
— Correu tudo bem — disse aos gêmeos. — Acho que precisamos voltar para o hotel. Tem uma coisa que preciso fazer. Vamos — comandou.
Dominic deixou euros suficientes para pagar a conta, com uma gorjeta.
O garçom desajeitado foi atrás deles, oferecendo-se para pagar a lavagem das roupas, mas Brian dispensou-o com um sorriso e eles atravessaram a Piazza di Spagna. Tomaram o elevador para a igreja e depois desceram a rua até o hotel. Estavam de volta ao Excelsior em oito minutos, os gêmeos se sentindo um tanto idiotas pelas manchas vermelhas na calça.
O recepcionista percebeu e perguntou se precisavam de um serviço de lavagem.
— Sim, poderia mandar alguém lá em cima? — disse Brian.
— Claro, signore. Em cinco minutos.
O elevador não devia estar grampeado.
— Então? — perguntou Dominic.
— Eu o peguei, e peguei isto — disse Jack, segurando uma chave igual às deles.
— Para que isso?
— Ele tinha um computador, lembram?
— Ah, sim.
Quando entraram no quarto de MoHa, acharam que já tinha sido arrumado. Jack parou em seu quarto e trouxe seu laptop e o drive FireWire externo que usava. Tinha dez gigabytes de espaço vazio que, imaginava, seriam suficientes. No quarto da vítima, inseriu o cabo de conexão e ligou o laptop Dell que Mohammed Hassan usava.
Não havia mais tempo para gentilezas; tanto seu computador quanto o do árabe usavam o mesmo sistema operacional, e ele fez a transferência total de tudo que havia dele. Levou seis minutos, e então limpou tudo com seu lenço e saiu do quarto, limpando também a maçaneta. Saiu a tempo de ver o camareiro levando os ternos manchados de vinho dos irmãos.
— E aí? — perguntou Dominic.
— Está feito. Os caras lá em casa podem gostar de ter isso. — Ele levantou o FireWire para enfatizar este ponto.
— Boa ideia, cara. E agora?
— Agora é voltar para casa, amigão. Mande e-mail para a base, Okay?
— Entendido, Junior.
Jack se reaprumou e ligou para o recepcionista, que lhe disse que havia um voo da British Airways partindo do Aeroporto Da Vinci para Londres, com conexão para Dulles em Washington, mas ele tinha que se apressar. E foi o que ele fez. Noventa minutos depois, estava entrando no jato e se sentando na poltrona 2A.
MAHMOUD ESTAVA lá quando a polícia chegou. Ele reconheceu o rosto do companheiro enquanto a maca de rodas saía do toalete masculino e ficou estupefato. O que ele não sabia era que a polícia havia levado a faca e notado as manchas de sangue nela. Seria mandada para seu laboratório de DNA, cujo pessoal havia sido treinado pela Polícia Metropolitana de Londres, líderes mundiais em provas de DNA. Sem ninguém para relatar isso, Mahmoud voltou a seu hotel e reservou passagem no dia seguinte para Dubai num voo da Emirates Airline. Tinha que reportar a alguém a desgraça de hoje, talvez ao próprio Emir, a quem não conhecia mas sabia de sua reputação intimidativa. Ele tinha visto um colega morrer, e observou o cadáver de outro. Que desgraça horrenda é esta? Ele tinha que avaliar isso com vinho. Alá o Misericordioso certamente o perdoaria pela transgressão. Tinha visto coisas demais em pouco tempo.
JACK JR. FEZ UMA RÁPIDA AVALIAÇÃO dos eventos no voo para Heathrow. Precisava de alguém com quem falar, mas levaria um bom tempo para isso acontecer, e ele engoliu duas miniaturas de uísque antes de pousar na Inglaterra. Tomou mais dois na cabine dianteira do 777 rumando para Dulles, mas o sono não vinha. Ele não só matara alguém como também o insultara. Não era uma boa coisa, tampouco era algo para se pedir perdão a Deus, não é? O drive FireWire tinha três gigabytes tirados do Dell de 56. O que exatamente conteriam? Não podia saber por enquanto. Podia tê-lo conectado a seu próprio laptop e começado a explorar, mas não, era um trabalho de especialista. Eles haviam matado quatro pessoas que atacaram a América, e agora o país dera o troco no próprio quintal deles e pelas regras deles. A parte boa era que o inimigo possivelmente não saberia que tipo de felino estava na selva. Eles mal tinham encontrado os dentes.
Agora conheceriam o cérebro.
Tom Clancy
O melhor da literatura para todos os gostos e idades