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Estavam nos campos abertos de atletismo do Parque Norte de Abbenay, seis deles, na longa poeira dourada e quente da noite. Estavam todos agradavelmente empanturrados, pois o jantar tinha durado quase a tarde inteira, um festival de rua e banquete feito ao ar livre. Era o feriado do meio do verão, Dia da Insurreição, comemorando o primeiro grande levante em Nio Esseia, no ano urrasti de 740, quase duzentos anos antes. Cozinheiros e trabalhadores do refeitório eram convidados de honra naquele dia, pois o sindicato dos cozinheiros e garçons tinha iniciado a greve que levara à insurreição. Havia muitas tradições e festividades assim em Anarres, algumas instituídas pelos Colonos, e outros, como as casas de colheita e a Festa do Solstício, que tinham surgido espontaneamente dos ritmos da vida no planeta e da necessidade dos que trabalham juntos de celebrarem juntos.
Estavam conversando, todos meio desconexos, exceto Takver. Ela tinha dançado por horas, comido grandes quantidades de pão frito e picles e se sentia muito animada.
– Por que mandaram Kvigot para um posto nos pesqueiros do Mar Keran, onde ele vai ter que começar tudo de novo, enquanto Turib será a encarregada do seu projeto de pesquisa aqui? – ela dizia.
O sindicato de Takver fora incorporado a um projeto dirigido diretamente pelo CPD, e ela se tornara uma forte partidária de algumas das ideias de Bedap.
– Porque Kvigot é um bom biólogo que não concorda com as teorias antiquadas de Simas, e Turib é uma nulidade que esfrega as costas de Simas durante o banho. Espere para ver quem vai assumir a direção do programa quando Simas se aposentar. Aposto que vai ser ela, Turib!
– O que significa “aposto”? – perguntou alguém sem disposição para crítica social.
Bedap, que estava engordando na barriga e levava os exercícios a sério, trotava com empenho em volta do campo de esportes. Os outros estavam sentados num talude empoeirado debaixo das árvores, praticando exercícios verbais.
– É um verbo iota – disse Shevek. – Um jogo urrasti que brinca com as probabilidades. Quem adivinha certo ganha a propriedade do outro. – Há muito tempo Shevek deixara de observar o banimento de Sabul às menções sobre seus estudos de iótico.
– Como uma das palavras deles entrou no vocabulário právico?
– Os Colonos – respondeu outro. – Tiveram que aprender právico já adultos; devem ter pensado nas línguas antigas por um bom tempo. Eu li em algum lugar que a palavra maldito não consta no Dicionário Právico... é iótico também. Farigv não forneceu nenhum palavrão quando inventou a língua, ou, se forneceu, os computadores não entenderam a necessidade.
– O que é inferno, então? – perguntou Takver. – Eu achava que era o depósito de fezes da cidade onde eu cresci. “Vá para o inferno!” O pior lugar para ir.
Desar, o matemático, que agora assumira um posto permanente no Instituto e que ainda passava bastante tempo com Shevek, embora raramente conversasse com Takver, disse, em seu estilo criptográfico:
– Inferno é Urras.
– Em Urras, significa o lugar para onde você vai quando é maldito.
– É um posto no Sudoeste no verão – disse Terrus, um ecologista, velho amigo de Takver.
– É o modo religioso, em iótico.
– Eu sei que você tem que ler em iótico, Shev, mas você tem que ler sobre religião?
– Alguns dos antigos livros urrastis sobre física são todos no modo religioso. Aparecem conceitos assim: “Inferno significa o lugar do mal absoluto”.
– O depósito de esterco no Vale Redondo – disse Takver. – Eu pensava assim.
Bedap chegou estimulado, branco de poeira, com suor escorrendo. Sentou-se pesadamente ao lado de Shevek, ofegando.
– Diga alguma coisa em iótico – pediu Richat, aluna de Shevek. – Como é o som da língua?
– Você sabe: Inferno! Maldito!
– Mas pare de me xingar – disse a moça, com uma risadinha – e fale uma frase inteira.
Shevek, de bom grado, disse uma sentença em iótico.
– Não sei bem como se pronuncia – acrescentou. – Só imagino que seja assim.
– E o que significa?
– Se a passagem do tempo é uma característica da consciência humana, passado e futuro são funções da mente. De um pré-sequencista, Keremcho.
– Que esquisito pensar nas pessoas falando e você sem poder entender!
– Nem eles conseguem se entender. Eles falam centenas de línguas diferentes, aqueles loucos hierarquistas da Lua...
– Água, água – disse Bedap, ainda ofegante.
– Não tem água – disse Terrus. – Não chove há dezoito décades. Cento e oitenta e três dias, para ser exato. A maior seca em Abbenay dos últimos quarenta anos.
– Se continuar assim, vamos ter que reciclar urina, como fizeram no Ano 20. Vai um copo de xixi, Shev?
– Não brinque – disse Terrus. – Estamos na corda bamba. Será que vai chover o suficiente? As safras de folhas no Nascente Sul já estão perdidas. Lá não chove há trinta décades.
Todos olharam para o céu enevoado e dourado. As folhas serrilhadas das árvores sob a qual estavam sentados, grandes árvores exóticas do Velho Mundo, caíam nos bancos, empoeiradas, torcidas pela secura.
– Nunca haverá outra Grande Seca – disse Desar. – Usinas modernas de dessalinização. Vão evitar.
– Talvez ajudem a aliviar a situação – disse Terrus.
Naquele ano o inverno chegou cedo, frio e seco no Hemisfério Norte. Poeira congelada ao vento nas ruas baixas e largas de Abbenay. Água para o banho rigidamente racionada: sede e fome eram mais importantes que limpeza. Comida e roupas para os 20 milhões de pessoas de Anarres vinham das plantas holum: folhas, sementes, fibras, raízes. Havia alguns estoques de têxteis nos armazéns e depósitos, mas nunca existira muita reserva de comida. Á água ia para a terra, para manter as plantas vivas. O céu sobre a cidade não tinha nuvens e estaria límpido, não fosse o amarelado da poeira trazida pelo vento de regiões mais secas para o sul e o oeste. Às vezes, quando o vento soprava do norte, vindo das Ne Theras, a névoa amarela se dissipava, deixando um céu limpo e brilhante, de um azul-escuro que se tornava roxo no zênite.
Takver estava grávida. Na maior parte do tempo, ficava sonolenta e afável.
– Sou um peixe – ela dizia –, um peixe na água. Estou dentro do bebê dentro de mim. – Mas às vezes ficava sobrecarregada de trabalho, ou faminta pela ligeira redução nas rações dos refeitórios. Mulheres grávidas, além de crianças e idosos, podiam receber uma refeição leve extra por dia e almoço às onze horas, mas ela com frequência o perdia por causa do horário rigoroso de seu trabalho. Ela podia perder uma refeição, mas os peixes nos tanques do laboratório, não. Os amigos com frequência lhe traziam alguma coisa guardada do jantar deles ou alguma sobra de seus refeitórios, um pão recheado ou um pedaço de fruta. Ela comia tudo com gratidão, mas continuava a ter desejo por doces, e doces estavam em falta. Quando estava cansada, ficava ansiosa e se aborrecia com facilidade, enfurecendo-se com uma só palavra.
No final do outono, Shevek concluiu o manuscrito dos Princípios da Simultaneidade. Entregou-o a Sabul para aprovação e publicação. Sabul o guardou por uma décade, duas décades, três décades, e não dizia nada a respeito. Shevek lhe perguntou sobre o manuscrito. Respondeu que ainda não tivera tempo de ler, estava muito ocupado. Shevek aguardou. Estavam no meio do inverno. O vento seco soprava dia após dia; o chão estava congelado. Parecia que tudo tinha parado, uma parada inquieta, esperando a chuva, o nascimento.
O quarto estava escuro. As luzes da cidade acabavam de se acender; pareciam fracas sob o céu alto, cinza-escuro. Takver entrou, acendeu a luz e agachou-se vestida em seu casaco, ao lado do aquecedor.
– Ah, que frio! Horrível. Sinto os pés como se eu tivesse andado numa geleira, quase chorei na volta para casa, de tanto que doíam. Estas botas podres de exploradores! Por que não conseguimos fazer botas decentes? Por que você está sentado no escuro?
– Não sei.
– Você foi ao refeitório? Fiz um lanche do Excedente no caminho para casa. Tive que ficar, os kukuris estavam saindo dos ovos e tivemos que tirar os peixinhos dos tanques antes que os adultos os comessem. Você comeu?
– Não.
– Não fique amuado. Por favor, não fique amuado hoje à noite. Se mais uma coisa der errado, eu vou chorar. Estou cansada de chorar o tempo todo. Malditos hormônios! Queria poder ter filhos como os peixes: botar os ovos, sair nadando e fim. A menos que eu nadasse de volta e os comesse... Não fique aí sentado feito uma estátua! Não suporto isso! – Ela estava parcialmente em lágrimas quando se agachou ao lado do aquecedor, tentando desamarrar as botas com os dedos gelados.
Shevek não disse nada.
– O que foi? Você não pode simplesmente ficar aí sentado!
– Sabul me chamou hoje. Ele não vai recomendar a publicação nem a exportação dos Princípios.
Takver parou de brigar com o cadarço da bota e sentou-se, imóvel. Olhou para Shevek por sobre o ombro. Enfim, perguntou:
– O que ele disse, exatamente?
– A crítica que ele escreveu está em cima da mesa.
Ela se levantou, foi arrastando os pés até a mesa calçando só uma bota e leu o documento, inclinando-se sobre a mesa, com as mãos nos bolsos do casaco.
– “Que a Física Sequencial é a principal via do pensamento cronosófico da sociedade odoniana é um princípio aceito universalmente desde a Colonização de Anarres. A divagação egoísta deste princípio de solidariedade só pode resultar em rodeios estéreis de hipóteses impraticáveis sem utilidade orgânica social, ou na repetição de especulações supersticiosas/religiosas dos irresponsáveis cientistas contratados dos Estados Exploradores de Urras...” Ah, que explorador! Que homenzinho insignificante, esse invejoso declamador de Odo! Ele vai mandar essa crítica para a Imprensa?
– Já mandou.
Ela ajoelhou para brigar com a outra bota. Olhou de relance para Shevek várias vezes, mas não foi até ele nem tentou tocá-lo e, por um tempo, não disse nada. Quando falou, sua voz não era alta e hostil como antes, mas tinha sua característica natural, rouca e macia.
– O que você vai fazer, Shev?
– Não há nada a fazer.
– Vamos publicar o livro. Formar um sindicato de imprensa, aprender tipografia e publicá-lo.
– O papel está racionado ao mínimo. Nada de publicação não essencial. Só publicações do CPD, até que as plantações de holum estejam a salvo.
– Você não consegue mudar a apresentação de algum modo? Disfarce o que está dizendo. Coloque uns enfeites de Sequência. Para que ele aceite.
– Não dá para disfarçar o preto de branco.
Ela não perguntou se ele poderia se desviar de Sabul ou passar por cima dele. Ninguém em Anarres devia passar por cima de ninguém. Não havia desvios. Quando não se era capaz de trabalhar em solidariedade com seus síndicos, trabalhava-se sozinho.
– E se... – Ela parou. Levantou-se e colocou as botas para secarem perto do aquecedor. Tirou o casaco, pendurou-o e pôs nos ombros um pesado xale feito em tear manual. Sentou-se na cama, gemendo um pouco ao se abaixar os últimos centímetros. Olhou para Shevek, sentado de perfil entre ela e as janelas.
– E se você sugerisse deixá-lo assinar como coautor? Como o primeiro artigo que você escreveu.
– Sabul não vai colocar o nome dele em “especulações supersticiosas/religiosas”.
– Tem certeza? Tem certeza de que não é justamente o que ele quer? Ele sabe o que isso significa, o que você fez. Você sempre disse que ele é perspicaz. Ele sabe que, com a publicação do seu trabalho, ele e toda a escola da Sequência vão para a lata de reciclagem. Mas e se ele pudesse compartilhar com você, compartilhar o crédito? O problema dele é o ego. Se ele pudesse dizer que o livro é dele...
Shevek disse, com amargura:
– Minha vontade de compartilhar o livro com ele é a mesma de compartilhar você com ele.
– Não encare assim, Shev. É o livro que importa... as ideias. Escute. Queremos ficar com este bebê que está para nascer, queremos amá-lo. Mas se, por alguma razão, ele fosse morrer se ficássemos com ele, se ele só pudesse viver num berçário, se jamais pudéssemos vê-lo ou saber seu nome... se tivéssemos que fazer essa escolha, o que faríamos? Ficaríamos com o natimorto? Ou lhe daríamos a vida?
– Não sei – ele respondeu. Pôs a cabeça nas mãos, esfregando a testa penosamente. – Sim, claro. Sim. Mas isto... Mas eu...
– Irmão, meu querido – disse Takver. Apertou as mãos no colo, mas não as estendeu para ele. – Não interessa qual nome estará no livro. As pessoas vão saber. A verdade é o livro.
– Eu sou aquele livro – ele disse. Depois fechou os olhos e ficou sentado, imóvel. Takver então se aproximou, timidamente, tocando-o com a mesma delicadeza com que tocaria uma ferida.
No início do ano 164, a primeira versão dos Princípios da Simultaneidade, incompleta e drasticamente editada, foi publicada em Abbenay, com Sabul e Shevek como coautores. O CPD estava publicando apenas registros e diretrizes essenciais, mas Sabul tinha influência na Imprensa e na Divisão de Informação do CPD e os convecera do valor de propaganda do livro no exterior. Urras, ele disse, estava se regozijando com a seca e possível fome em Anarres; o último carregamento de revistas iotas estava repleto de profecias tripudiando sobre o iminente colapso da economia odoniana. Que melhor refutação, observou Sabul, do que a publicação de um importante estudo de pensamento puro, “um monumento da ciência”, disse ele em sua crítica revisada, “pairando acima da adversidade material para comprovar a vitalidade inextinguível da Sociedade Odoniana e seu triunfo sobre o proprietarianismo hierarquista em todas as áreas do pensamento humano”?
Assim, o trabalho foi publicado; e 15 dos 300 exemplares embarcaram no cargueiro iota Atento. Shevek nunca sequer abriu um exemplar da versão publicada. No pacote exportado, entretanto, ele colocou uma cópia completa do manuscrito original, feita à mão. Uma nota na capa dizia para ser entregue ao dr. Atro, na Faculdade de Ciência Nobre da Universidade de Eun, com os cumprimentos do autor. Certamente Sabul, que deu a aprovação final do pacote, perceberia o acréscimo. Se ele tirou o manuscrito ou o deixou lá, Shevek não sabia. Poderia confiscá-lo por despeito; poderia deixá-lo seguir, sabendo que sua edição mutilada não teria o efeito desejado nos físicos urrastis. Não disse nada a Shevek sobre o manuscrito. Shevek não perguntou nada a respeito.
Shevek falou muito pouco com as pessoas naquela primavera. Assumiu um posto voluntário, serviço de construção numa nova usina de reciclagem de água em Abbenay Sul, e trabalhava fora ou dava aulas a maior parte do dia. Retornou aos seus estudos dos subatômicos, muitas vezes passando as noites no acelerador do Instituto ou nos laboratórios com os especialistas em partículas. Com Takver e seus amigos, estava calado, sóbrio, cortês e frio.
A barriga de Takver cresceu muito, e ela andava como uma pessoa carregando um grande e pesado cesto de roupa suja. Trabalhou com os peixes do laboratório até encontrar e treinar um substituto adequado para ela, então veio para casa e começou o trabalho de parto, mais de uma décade após a data prevista. Shevek chegou em casa no meio da tarde.
– É melhor você trazer a parteira – disse Takver. – Diga-lhe que as contrações estão ocorrendo com intervalos de quatro ou cinco minutos, mas não estão acelerando muito, então não precisa se apressar.
Ele se apressou e, quando constatou que a parteira não estava, entrou em pânico. Tanto a parteira quanto o médico do quarteirão estavam fora, e nenhum deles deixou um recado na porta dizendo onde poderiam ser encontrados, como geralmente faziam. O coração de Shevek começou a bater forte em seu peito, e ele subitamente viu as coisas com uma clareza apavorante. Viu que aquela ausência de ajuda era um mau presságio. Ele se afastara de Takver desde o inverno, desde a decisão sobre o livro. Ela estivera cada vez mais calada, passiva, paciente. Agora compreendia essa passividade: era uma preparação para a sua morte. Foi ela que se afastara dele, e ele não tentara segui-la. Ele olhara apenas para a própria amargura do seu coração e nunca para o medo dela, ou sua coragem, e então ela tinha prosseguido, tinha ido longe, longe demais, e iria prosseguir sozinha, para sempre.
Correu para a clínica do quarteirão, chegando lá tão ofegante e com as pernas tão bambas que pensaram que estava tendo um ataque cardíaco. Ele explicou. Mandaram uma mensagem a outra parteira e disseram para ele ir para casa, a parceira estaria querendo companhia. Foi para casa e, a cada passo, o pânico aumentava, o terror, a certeza da perda.
Mas quando chegou não pôde se ajoelhar diante de Takver e pedir-lhe perdão, como queria desesperadamente fazer. Takver não tinha tempo para cenas dramáticas; estava ocupada. Tinha tirado tudo de cima da cama, exceto um lençol limpo, e estava parindo uma criança. Não gemia nem gritava, e não estava sofrendo, mas a cada contração controlava os músculos e a respiração, soltando um uff de ar, como alguém que faz uma tremenda força para erguer algo pesado. Shevek nunca tinha visto um trabalho que usasse tanto todas as forças do corpo.
Não podia olhar tal esforço sem prestar ajuda. Podia servir de apoio e suporte quando ela precisasse se alavancar. Eles encontraram esse sistema rapidamente, por tentativa e erro, e o mantiveram mesmo depois da chegada da parteira. Takver deu à luz de cócoras, o rosto colado na coxa de Shevek, as mãos agarrando seus braços firmes.
– Pronto – disse calmamente a parteira, sob a respiração forte e pulsante de Takver, e pegou a viscosa, mas reconhecível, criatura humana que aparecera. Seguiu-se uma golfada de sangue e uma massa amorfa de algo não humano, não vivo. O terror que Shevek esquecera voltou redobrado. Foi morte que ele viu. Takver soltara seus braços e aconchegara-se a seus pés, completamente frouxa. Shevek curvou-se sobre ela, num silêncio de horror e sofrimento.
– É isso – disse a parteira. – Ajude-a a sair daqui para eu poder limpar tudo.
– Quero me lavar – disse Takver, numa voz fraca.
– Isso, ajude-a a se lavar. Aquelas roupas estão esterilizadas... ali.
– Buá, buá, buá – disse outra voz.
O quarto parecia cheio de gente.
– Bem – disse a parteira –, agora leve o bebê de volta para ela, no colo, para ajudar a estancar o sangue. Quero levar a placenta para o congelador da clínica. Volto em dez minutos.
– Onde está... onde está o...
– No berço! – disse a parteira, saindo. Shevek localizou a caminha que estivera pronta no canto há quatro décades, e o bebê dentro. De alguma maneira, em meio à extrema afobação, a parteira tinha tido tempo de limpar o bebê e até vesti-lo com uma camisola, de modo que ele não parecia mais um peixe viscoso como quando Shevek o vira da primeira vez. A tarde escurecera, com a mesma rapidez peculiar e falta de lapso temporal. A luz estava acesa. Shevek pegou o bebê para levá-lo a Takver. Seu rosto era incrivelmente pequeno, e as pálpebras grandes e de aparência frágil estavam fechadas.
– Me dê o bebê aqui – Takver dizia. – Oh, venha logo, por favor, me dê o bebê.
Ele atravessou a sala e, com muito cuidado, baixou-o até o colo de Takver.
– Ah! – ela disse, com ternura, uma exclamação de puro triunfo.
– É menino ou menina? – ela perguntou após algum tempo, sonolenta.
Shevek estava sentado ao seu lado na beirada da cama. Ele investigou com cuidado, um tanto surpreso pelo comprimento da camisola contrastando com as perninhas extremamente curtas.
– Menina!
A parteira voltou e começou a arrumar tudo.
– Vocês fizeram um ótimo trabalho – ela observou para os dois. Eles concordaram, acanhados. – Eu volto aqui amanhã de manhã – ela disse ao sair.
O bebê e Takver já estavam dormindo. Shevek pôs a cabeça perto da cabeça de Takver. Estava acostumado ao agradável cheiro almiscarado de sua pele. O cheiro tinha mudado; tornara-se um perfume, intenso e lânguido, intenso como o sono. Com muita delicadeza, ele pôs o braço sobre a parceira, quando ela se virou de lado com o bebê junto ao peito. No quarto intenso de vida, ele adormeceu.
Um odoniano adotava a monogamia do mesmo modo que poderia empreender sociedade para uma produção, uma fábrica de sabão, ou um balé. A parceria era uma federação constituída voluntariamente, como qualquer outra. Enquanto funcionava, funcionava, e se não funcionasse, cessava de existir. Não era uma instituição, mas uma função. Não havia sanção, exceto da consciência individual.
Isto estava totalmente de acordo com a teoria social odoniana. A validade da promessa, mesmo a promessa de termo indefinido, estava no germe do pensamento odoniano; embora pudesse parecer que sua insistência na liberdade de mudança invalidaria a ideia de promessa ou compromisso, na verdade a liberdade tornava a promessa mais significativa. Uma promessa é a tomada de uma direção, uma autolimitação de escolhas. Como Odo salientava, se não se tomar nenhuma direção, se ninguém for a lugar algum, nenhuma mudança ocorrerá. A liberdade que se tem de escolher e de mudar será inútil, exatamente como se a pessoa estivesse na prisão, uma prisão construída por ela própria, um labirinto no qual nenhum caminho é melhor que o outro. Então Odo passou a ver a promessa, o voto, a ideia de fidelidade, como essencial na complexidade da liberdade.
Muitas pessoas achavam que essa ideia de fidelidade era mal aplicada à vida sexual. A feminilidade de Odo a induziu, diziam, a recusar a verdadeira liberdade sexual; neste caso – e em nenhum outro –, ela não escreveu para os homens. Como tanto as mulheres quanto os homens faziam a mesma crítica, poderia parecer que não foi a masculinidade que Odo não conseguiu entender, mas todo um tipo ou parte da sociedade, pessoas para as quais a experimentação é a alma do prazer sexual.
Embora ela talvez não os tenha entendido, e provavelmente os considerasse aberrações proprietárias – sendo a espécie humana, se não uma espécie monogâmica, pelo menos propensa a laços familiares –, ainda assim favoreceu mais os promíscuos do que aqueles que tentavam parcerias de longo prazo. Nenhuma lei, nenhum limite, nenhuma penalidade, nenhum castigo, nenhuma reprovação se aplicava a nenhuma prática sexual de nenhum tipo, exceto estupro de crianças e mulheres, para o qual os vizinhos da vítima provavelmente aplicariam vingança sumária, se o estuprador não caísse antes nas mãos mais gentis de um centro de terapia. Mas a violação era extremamente rara numa sociedade em que a satisfação completa era a norma da puberdade em diante, e o único limite social imposto à atividade sexual era uma pressão branda a favor da privacidade, uma espécie de modéstia imposta pela vida comunitária.
Por outro lado, aqueles que se propunham a formar e manter uma parceria, seja homossexual ou heterossexual, encontravam problemas desconhecidos dos que se contentavam com o sexo onde quer que o encontrassem. Tinham de enfrentar não apenas o ciúme, o desejo de posse e outras doenças da paixão para as quais a união monogâmica fornece um excelente meio de propagação, mas também as pressões externas da organização social. Um casal que se propunha a uma parceria sabia que poderia se separar a qualquer momento pelas exigências da distribuição do trabalho.
A Divlab, a divisão de administração do trabalho, tentava manter os casais juntos e reuni-los o mais rápido possível, mediante solicitação; mas nem sempre isso era viável, especialmente em recrutamentos urgentes, e ninguém esperava que a Divlab refizesse as listas e reprogramasse os computadores na tentativa de atender pedidos. Para sobreviver, para levar a vida adiante, um anarresti sabia que deveria estar pronto para ir aonde precisavam dele e fazer o trabalho que precisasse ser feito. Crescia sabendo que a distribuição do trabalho era um importante fator da vida, uma necessidade social imediata e permanente, enquanto o estado conjugal era uma questão pessoal, uma escolha que só poderia ser feita dentro dos limites da escolha maior.
Mas, quando uma direção é escolhida com liberdade e seguida com alegria, parece que todas as coisas favorecem o caminho. Assim, a possibilidade e a realidade de uma separação muitas vezes serviam para fortalecer a lealdade dos parceiros. Manter fidelidade genuína e espontânea numa sociedade que não possuía sanções legais ou morais contra a infidelidade, e mantê-la durante separações voluntariamente aceitas que poderiam vir a qualquer momento e durar anos, era uma espécie de desafio. Mas o ser humano gosta de ser desafiado, procura a liberdade na adversidade.
No ano de 164, muitas pessoas que nunca a tinham procurado experimentaram o gosto desse tipo de liberdade, e gostaram, gostaram da sensação de provação e perigo. A seca que começou no verão de 163 não deu trégua até o inverno. No verão de 164, houve muita privação, e a ameaça de um desastre caso a seca continuasse.
O racionamento era rígido; as convocações para o trabalho, imperativas. A luta para cultivar alimento suficiente e conseguir distribuir esse alimento tornou-se decisiva, desesperada. No entanto, as pessoas não estavam nem um pouco desesperadas. Odo escreveu: “Uma criança livre da culpa da posse e do fardo da concorrência econômica crescerá com a vontade de fazer o que for necessário fazer, e com a capacidade de alegrar-se em fazê-lo. É o trabalho inútil que entristece o coração. O deleite da mãe que amamenta, do estudioso, do caçador bem-sucedido, do bom cozinheiro, do criador talentoso, de qualquer um que faça um trabalho necessário e o faça bem – essa alegria duradoura talvez seja a fonte mais profunda de afeto humano e de sociabilidade como um todo”. Havia uma subcorrente de alegria, nesse sentido, em Abbenay naquele verão. Havia uma felicidade no trabalho, por mais árduo que fosse, uma disposição para esquecer toda preocupação, para que o que poderia ser feito fosse feito. O velho clichê da “solidariedade” reavivara-se. Há satisfação em descobrir que o laço, afinal, é mais forte do que tudo o que o ameaça.
No início do verão, o CPD afixou cartazes sugerindo que as pessoas reduzissem seu dia de trabalho em mais ou menos uma hora, já que a distribuição de proteína aos refeitórios era agora insuficiente para o gasto normal de energia. A atividade exuberante das ruas da cidade já vinha decrescendo. As pessoas que saíam mais cedo do trabalho costumavam vaguear pelas praças, jogavam boliche nos parques secos, sentavam-se às portas das oficinas e puxavam conversa com os transeuntes. A população da cidade estava visivelmente menos densa, já que milhares tinham se voluntariado ou sido enviados para postos de emergência nas fazendas. Mas a confiança mútua atenuava a depressão e a ansiedade. “Nós nos ajudaremos até o fim”, diziam, com serenidade. E grandes impulsos de vitalidade corriam logo abaixo da superfície. Quando os poços dos subúrbios do norte secaram, encanamentos temporários vindos de outros distritos foram instalados por voluntários, qualificados ou não, adultos e adolescentes, que trabalharam em seu tempo livre, e o serviço foi feito em trinta horas.
No final do verão, Shevek foi designado para um posto num contingente agrícola de emergência na comunidade de Fontes Vermelhas, no Nascente Sul. Confiando numa chuva que tinha caído durante a estação chuvosa equatorial, apressavam-se em plantar e colher holum antes que a seca voltasse.
Ele estava aguardando uma designação emergencial, já que o serviço na construção tinha terminado e ele se registrara como disponível no grupo de serviços gerais. Durante todo o verão, não fizera nada senão dar suas aulas, ler, atender a qualquer chamado por voluntários que surgisse em seu quarteirão e na cidade, e voltar para casa, para ficar com Takver e o bebê. Takver voltara ao laboratório, só pela manhã, após cinco décades. Como estava amamentando, tinha direito a suplementos de proteína e carboidratos às refeições e sempre se servia de ambos; seus amigos não podiam mais compartilhar sobras de comida com ela, pois não havia sobras de comida. Ela estava magra, mas viçosa, e o bebê era pequeno, mas forte.
Shevek tinha muito prazer em ficar com a bebê. Como tomava conta dela sozinho de manhã (eles a deixavam no berçário só enquanto ele fazia trabalho voluntário ou dava aula), tinha aquela sensação de ser necessário, que é o fardo e a recompensa da paternidade. Sendo uma criança alerta e receptiva, era a plateia perfeita para as fantasias verbais reprimidas de Shevek, que Takver chamava de seu traço de loucura. Ele punha a bebê no colo e proferia palestras sobre cosmologia, explicando como o tempo era, na verdade, o espaço virado do avesso, sendo o cronon, portanto, as vísceras invertidas do quantum, e a distância, uma das propriedades acidentais da luz. Dava à bebê apelidos extravagantes, sempre diferentes, e recitava-lhe exercícios mnemônicos ridículos: o Tempo é uma algema, o Tempo é tirânico, supermecânico, superorgânico – POP! – e nesse pop a bebê se erguia a uma curta distância no ar, dando gritinhos e agitando os punhos rechonchudos. Ambos sentiam grande contentamento com esses exercícios. Quando ele recebeu sua designação, foi uma tristeza. Esperava algum posto próximo a Abbenay, e não afastado como o Nascente Sul. Mas, junto com a necessidade desagradável de se separar de Takver e da bebê por sessenta dias, veio a certeza inabalável de que voltaria para elas. Desde que tivesse essa certeza, não tinha nada a reclamar.
Na noite anterior à partida, Bedap veio comer com eles no refeitório do Instituto, e eles voltaram juntos para o quarto. Ficaram sentados, conversando na noite quente, a luz apagada, as janelas abertas. Bedap, que comia num pequeno refeitório onde acordos especiais não eram um fardo para o cozinheiro, reservara suas rações especiais de bebida por uma décade, pegando tudo depois numa garrafa de um litro de suco de fruta. Exibiu-a com orgulho: uma festa de despedida. Repartiram a garrafa, saboreando-a com volúpia, enrolando a língua.
– Você se lembra – perguntou Takver – de toda aquela comida uma noite antes de você partir para o Poente Norte? Eu comi nove daqueles bolinhos fritos.
– Na época você usava o cabelo curto – disse Shevek, surpreso com a lembrança, que ele nunca antes relacionara a Takver. – Era você mesmo, não era?
– Quem você pensava que fosse?
– Caramba, você era tão jovem naquela época!
– Você também, já faz dez anos. Cortei o cabelo para ficar diferente e interessante. Me fez muito bem! – Ela soltou sua risada alta e alegre, abafando-a rapidamente para não acordar a bebê, que dormia no berço atrás do biombo. Nada, entretanto, acordava a bebê depois que ela pegava o sono. – Eu queria tanto ser diferente. Por que será?
– Faz sentido, por volta dos 20 anos – disse Bedap –, quando você tem que escolher se vai ser como todo mundo pelo resto da vida, ou fazer de suas peculiaridades uma virtude.
– Ou pelo menos aceitá-las com resignação – disse Shevek.
– Shev está numa fase de resignação – Takver disse. – É a idade chegando. Deve ser terrível ter 30 anos.
– Não se preocupe, você não vai se resignar nem aos 90 – Bedap disse, dando-lhe uns tapinhas nas costas. – Pelo menos já se resignou com o nome da sua filha?
Os nomes de cinco e seis letras emitidos pelo computador do registro central, sendo únicos a cada indivíduo vivo, substituíam os números que, de outro modo, uma sociedade que utiliza computadores vincularia aos seus membros. Um anarresti não precisava de nenhuma outra identificação senão o nome. O nome, portanto, era considerado uma parte importante de si mesmo, embora não se pudesse escolhê-lo, assim como não se escolhe o nariz ou a altura. Takver não gostava do nome dado à bebê: Sadik.
– Ainda soa como uma boca cheia de pedregulho – ela disse –, não combina com ela.
– Eu gosto – disse Shevek. – Soa como uma menina alta e esbelta, de cabelo preto.
– Mas é uma menina baixa e gorda, de cabelo invisível – observou Bedap.
– Dê tempo a ela, irmão! Ouçam, vou fazer um discurso.
– Discurso! Discurso!
– Psiu...
– Por que psiu? Aquela bebê dormiria até no meio de um cataclismo.
– Quieto. Estou emotivo – Shevek ergueu seu copo de suco de fruta. – Quero dizer... O que eu quero dizer é o seguinte: estou contente por Sadik ter nascido agora. Num ano difícil, numa época difícil, quando precisamos de nossa fraternidade. Estou contente por ela ter nascido agora, e aqui. Estou contente por ela ser um de nós, uma odoniana, nossa filha e nossa irmã. Estou contente por ela ser irmã do Bedap. Ser irmã do Sabul, até do Sabul! Bebo a esta esperança: de que, enquanto Sadik viver, ela amará suas irmãs e seus irmãos com a mesma alegria que eu sinto hoje à noite. E de que a chuva cairá...
O CPD, principal usuário de rádio, telefone e correios, coordenava os meios de comunicação interurbana, assim como os meios de viagem e transporte interurbanos. Como não havia “negócios” em Anarres, no sentido de promoção, publicidade, investimento, especulação e por aí afora, o correio consistia, sobretudo, de correspondência entre sindicatos industriais e profissionais, seus diários oficiais e seus boletins, mais os do CPD, e um pequeno volume de cartas pessoais. Vivendo numa sociedade em que qualquer um podia se mudar quando e para onde quisesse, um anarresti tendia a procurar amigos onde estivesse, não onde estivera. Raramente usava-se o telefone dentro de uma comunidade; comunidades não eram tão grandes. Até mesmo Abbenay mantinha o fechado padrão regional nos seus “quarteirões”, os bairros semiautônomos nos quais se podia chegar a qualquer um ou a qualquer coisa a pé. Assim, ligações telefônicas eram, sobretudo, interurbanas, e operadas pelo CPD: ligações pessoais tinham de ser combinadas com antecedência, pelo correio, ou não seriam conversas, mas simples mensagens deixadas no centro do CPD. As cartas seguiam abertas, não por lei, é claro, mas por convenção. Comunicação pessoal a longa distância é dispendiosa, em material e mão de obra, e como a economia privada e pública eram a mesma, havia considerável desaprovação a cartas e ligações desnecessárias. Eram hábitos fúteis; cheiravam a privatismo, a egoização. Era provavelmente por isso que as cartas seguiam abertas: não se tinha nenhum direito de pedir para as pessoas carregarem uma mensagem que não pudessem ler. Com muita sorte, uma carta podia seguir num dirigível postal do CPD, ou, com menos sorte, num trem de abastecimento. Por fim, como não havia carteiros, a carta chegava ao depósito postal da cidade para onde fora endereçada e lá ficava, até alguém avisar o destinatário que havia uma carta para ele e que ele fosse buscá-la.
O indivíduo, entretanto, decidia o que era ou não necessário. Shevek e Takver escreviam-se com regularidade, cerca de uma vez por décade. Ele escreveu:
A viagem não foi ruim, três dias inteiros num trem de passageiros. Este recrutamento foi grande... 3 mil pessoas, dizem. Os efeitos da seca são muito piores aqui. Não os racionamentos. As porções de comida nos refeitórios são as mesmas de Abbenay, só que aqui a gente come gara-verde cozido nas duas refeições, todos os dias, pois eles têm um excedente local. Nós também começamos a sentir que temos um excedente. Mas o tormento aqui é o clima. Aqui é a Poeira. O ar é seco e o vento sopra sem parar. Há chuvas breves, mas uma hora depois da chuva a terra se solta e a poeira começa a subir. Tem chovido menos da metade da média anual para esta época do ano. Todo mundo do Projeto está com os lábios rachados, sangramento no nariz, irritação nos olhos e tosse. Entre as pessoas que vivem em Fontes Vermelhas, muitas estão com a tosse da poeira. Quem sofre mais são os bebês, a gente vê muitos com a pele e os olhos inflamados. Imagino se eu notaria isso meio ano atrás. A gente fica mais atento depois da paternidade. O trabalho é apenas trabalho, e todo mundo é camarada, mas o vento seco é desgastante. Ontem à noite pensei nas Ne Theras, e à noite o som do vento parecia o som da correnteza. Não vou lamentar esta nossa separação. Ela me fez ver que eu tinha começado a me dedicar menos, como se eu possuísse você e você a mim, e não houvesse mais nada a se fazer. O fato real não tem nada a ver com a posse. O que fazemos é afirmar a integridade do Tempo. Conte-me o que Sadik tem feito. Estou dando aulas nos dias livres a algumas pessoas que me pediram; uma garota tem o dom da matemática e vou recomendá-la ao Instituto. Seu irmão. Shevek.
Takver respondeu:
Estou preocupada com uma coisa meio esquisita. As aulas do terceiro trimestre foram publicadas há três dias e eu fui ver qual seria o seu horário no Inst., mas não havia nenhuma aula designada a você. Pensei que o tivessem deixado de fora por engano, então fui ao Sind. dos Membros e eles disseram que sim, querem que você dê aulas de Geom. Então, fui ao gabinete da Coord. do Inst., aquela velha nariguda, e ela não sabia de nada, não, não, não sei de nada, vá à Central de Postos. Isso é um absurdo eu disse e fui falar com Sabul. Mas ele não estava no gabinete de Fís. e eu ainda não consegui falar com ele, apesar de ter voltado lá duas vezes. Com Sadik, que está usando um lindo chapéu branco que Terrus tricotou com fios de lã desfiados e ficou uma graça. Eu me recuso a ir caçar Sabul no quarto, na toca de minhoca ou seja lá onde ele more. Pode ser que ele esteja fora fazendo trabalho voluntário ha! ha! Talvez você devesse telefonar para o Instituto e descobrir que tipo de engano eles cometeram. Na verdade, eu já fui lá verificar no Centro de Postos da Divlab, mas você não estava em nenhuma das novas listas. O pessoal lá foi simpático, mas aquela velha nariguda é ineficiente e de má vontade e ninguém se interessa. Bedap está certo, deixamos a burocracia tomar conta de nós. Por favor volte (com a garota gênio em matemática se for preciso), a separação educa a gente, mas sua presença é a educação que eu quero. Estou conseguindo meio litro de suco de fruta e uma cota de cálcio por dia porque meu leite estava diminuindo e a S. gritava muito. Viva os médicos!! Tudo, sempre, T.
Shevek nunca recebeu esta carta. Ele saíra do Nascente Sul antes de ela chegar ao depósito postal de Fontes Vermelhas.
A distância aproximada entre Fontes Vermelhas e Abbenay era de 4 mil quilômetros. Um viajante teria simplesmente pedido carona, pois todos os veículos de transporte ficavam à disposição como veículos de passageiros, para quantas pessoas coubessem; mas como 450 pessoas estavam sendo redistribuídas aos seus postos regulares no Noroeste, providenciou-se um trem para elas. Era feito de vagões de passageiros, ou pelo menos de vagões sendo utilizados naquele momento por passageiros. O menos popular era o vagão fechado que recentemente transportara um carregamento de peixe defumado.
Após um ano de seca, as linhas de transporte normais se tornaram insuficientes, apesar de todo o empenho dos trabalhadores do transporte para suprir a demanda. Eles formavam a maior federação da sociedade odoniana: auto-organizada, é claro, em sindicatos regionais coordenados por representantes que se reuniam e trabalhavam com o CPD local e central. A rede mantida pela federação dos transportes era eficiente em tempos normais e emergências limitadas; era flexível, adaptável às circunstâncias, e os Síndicos do Transporte possuíam uma ótima equipe e orgulho profissional. Davam a seus trens e dirigíveis nomes como Indomável, Persistência, Papa-Vento; tinham lemas: “Sempre Chegamos Lá”; “Nada é Demais!”. Mas agora, quando regiões inteiras do planeta estavam ameaçadas de fome iminente caso a comida não fosse trazida de outras regiões, e quando grandes contingentes de trabalhadores de emergência precisavam mudar de um lugar para outro, a demanda por transporte era demasiada. Não havia veículos o suficiente; não havia pessoas o suficiente para dirigi-los. Tudo o que a federação tinha com asas ou rodas foi posto em operação, e aprendizes, trabalhadores aposentados, voluntários e contingentes de emergência ajudavam a operar os caminhões, os trens, os navios, os portos, os pátios.
O trem em que Shevek estava seguia em curtos avanços e longas paradas, já que todos os trens de provisões tinham precedência sobre ele. Depois parou de uma vez por vinte horas. Um despachante sobrecarregado ou destreinado cometera um erro, e por conta disso houve um acidente nos trilhos.
A pequena cidade onde o trem parou não tinha comida sobrando nos refeitórios ou nos armazéns. Não era uma comunidade agrícola, mas uma cidade industrial que fabricava concreto e cimento-espuma, construída numa feliz confluência de depósitos de cal e um rio navegável. Havia hortas, mas era uma cidade dependente de transporte para alimentação. Se as 450 pessoas do trem comessem, as 160 pessoas locais não comeriam. Em circunstâncias ideais, todos partilhariam a comida, comeriam metade da ração e passariam fome juntos. Se houvesse 50, ou mesmo 100 pessoas no trem, a comunidade provavelmente lhes reservaria pelo menos uma fornada de pães. Mas 450? Se dessem qualquer coisa nessa quantidade, ficariam sem nada por dias. E será que o próximo trem de provisões chegaria logo? E qual a quantidade de cereais que traria? Não deram nada.
Os viajantes, não tendo comido nada no café da manhã daquele dia, jejuaram, portanto, durante sessenta horas. Só fizeram uma refeição depois de a linha do trem ter sido liberada e o trem percorrido mais de 250 quilômetros até uma estação com refeitório abastecido para os passageiros.
Foi a primeira experiência de fome de Shevek. Ele jejuara algumas vezes quando estava trabalhando, pois não queria se preocupar com alimentação, mas duas refeições completas por dia sempre estiveram à disposição: constantes como o nascer e o pôr do sol. Ele jamais sequer imaginara como seria ficar sem elas. Ninguém em sua sociedade, ninguém no mundo tinha de passar sem elas.
Enquanto ficava cada vez mais faminto, enquanto o trem ficou parado hora após hora num desvio entre uma pedreira esburacada e empoeirada e uma fábrica temporariamente fechada, teve pensamentos sombrios sobre a realidade da fome, e sobre a possível inadequação de sua sociedade para enfrentar uma fome sem perder a solidariedade que era a sua força. Era fácil partilhar quando se tinha o suficiente, mesmo escassamente suficiente, para se viver. Mas e quando não havia o suficiente? Então a força entrava em cena; força reivindicando direitos; poder e sua ferramenta, a violência, e seu mais fiel escudeiro, o olho desviado.
O ressentimento dos passageiros contra os habitantes da cidade se intensificou, mas era menos nefasto que o comportamento dos habitantes da cidade – o modo como se escondiam atrás de “seus” muros, com a “sua” propriedade, e ignoravam o trem, desviando o olhar. Shevek não era o único passageiro melancólico; uma longa conversa serpentou de cima a baixo ao lado dos vagões parados, pessoas saindo e entrando, discutindo e concordando, todas sobre o mesmo tema geral que os pensamentos de Shevek acompanhavam. Uma invasão das hortas foi proposta com seriedade e debatida com amargura, e poderia ter ocorrido se o trem não tivesse finalmente apitado, anunciando a partida.
Mas, quando o trem enfim se aproximou lentamente da estação da linha e eles fizeram uma refeição – meio pão de holum e uma tigela de sopa –, a melancolia deles deu lugar ao júbilo. Quando se chegava ao fundo da tigela, percebia-se que a sopa era bem rala, mas a primeira colherada dela, a primeira colherada tinha sido maravilhosa valia o jejum. Todos concordaram com isso. Voltaram para o trem rindo e brincando juntos. Tinham se ajudado até o fim.
Um comboio de caminhões-trens apanhou os passageiros de Abbenay na Colina do Equador e os levou pelos últimos oitocentos quilômetros. Chegaram tarde à cidade, numa noite ventosa de início de outono. Era quase meia-noite; as ruas estavam desertas. O vento fluía através deles como um turbulento rio seco. Acima das luzes fracas dos postes, as estrelas cintilavam com uma luminosidade brilhante e trêmula. A tempestade seca de outono e a paixão carregavam Shevek pelas ruas, quase correndo, cinco quilômetros até o quarteirão norte, sozinho na cidade escura. Subiu os três degraus da varanda num salto, correu pelo corredor, chegou à porta, abriu-a. O quarto estava escuro. Estrelas iluminavam a janela escura.
– Takver! – ele disse, e ouviu o silêncio. Antes de acender a luz, ali no escuro, no silêncio, de repente, ele soube o que era a separação.
Nada tinha ido embora. Nada havia para ir embora. Apenas Sadik e Takver tinham ido embora. As Ocupações do Espaço Inabitado giraram delicadamente, num brilho fugidio, com a corrente de ar vinda da porta aberta.
Havia uma carta sobre a mesa. Duas cartas. Uma de Takver. Era breve: ela recebera um posto de emergência nos Laboratórios de Desenvolvimento Experimental de Algas Comestíveis no Nordeste, por tempo indeterminado. Ela escreveu:
Eu não poderia em sã consciência recusar agora. Fui conversar com eles na Divlab e também li o projeto que eles mandaram para a Ecologia, no CPD, e é verdade que eles precisam de mim porque trabalhei exatamente nesse ciclo algas-ciliados-camarão-kukuri. Solicitei à Divlab para lhe designarem a um posto em Rolny, mas é claro que eles não vão fazer nada até você também solicitar esse posto, e se isso não for possível por causa do trabalho no Inst., então não solicite. Afinal, se demorar muito, direi a eles para arranjarem outra geneticista e voltarei! Sadik está muito bem e já consegue falar “uiz” de luz. Não vai demorar muito. Tudo, por toda a vida, sua irmã, Takver. Oh, por favor, venha se puder.
O outro bilhete tinha sido rabiscado às pressas num pedacinho de papel: “Shevek, venha ao gab. de Física assim que vc voltar. Sabul”.
Shevek vagou pelo quarto. A tempestade, o ímpeto que o impelira pelas ruas ainda estava nele. Tinha se deparado com um muro. Não podia seguir adiante e, no entanto, precisava se mexer. Olhou no armário. Não havia nada, exceto seu casaco de inverno e uma camisa que Takver, adepta de trabalhos manuais delicados, bordara para ele; as poucas roupas que ela tinha não estavam lá. O biombo estava fechado, mostrando o berço vazio. A cama não estava arrumada, mas o cobertor cor de laranja cobria cuidadosamente a roupa de cama dobrada. Shevek deparou com a mesa de novo, leu a carta de Takver de novo. Seus olhos se encheram de lágrimas enraivecidas. Uma fúria de decepção o abalou, uma ira, um mau pressentimento.
Não havia a quem culpar. Isso era o pior de tudo. Precisavam de Takver, precisavam para combater a fome – dela, dele, a fome de Sadik. A sociedade não estava contra eles. Estava a favor deles; com eles; eles eram a sociedade.
Mas ele renunciara ao seu livro, ao seu amor, à sua filha. Quanto se pode pedir a um homem para renunciar?
– Que inferno! – ele disse em voz alta. Právico não era uma boa língua para xingamentos. É difícil xingar quando o sexo não é sujo e a blasfêmia não existe. – Ah, que inferno! – repetiu. Vingativo, amassou o bilhetinho imundo de Sabul, depois bateu na borda da mesa com os punhos cerrados, duas vezes, três vezes, em sua dor à procura de paixão. Mas não havia nada. Não havia nada a fazer nem aonde ir. Restou-lhe enfim arrumar a cama, deitar sozinho e dormir, com sonhos maus e sem conforto.
Primeira coisa de manhã, Bunub bateu à porta. Ele atendeu e não se afastou para deixá-la entrar. Era a vizinha deles de corredor, uma mulher de 50 anos, operadora de máquinas na fábrica de Motores de Veículos Aéreos. Takver sempre se divertia com ela, mas ela enfurecia Shevek. Primeiro, porque queria o quarto deles. Ela o requisitara assim que vagou, dizia, mas a animosidade da registradora do quarteirão a tinha impedido de consegui-lo. O quarto dela não tinha a janela de canto, objeto de sua eterna inveja. No entanto, era um quarto de casal, e ela morava sozinha nele, o que, considerando a redução de moradias, era egoísta da parte dela; mas Shevek jamais teria perdido tempo em desaprová-la se ela não o tivesse obrigado a fazê-lo, ao inventar desculpas. Ela explicava, explicava. Tinha um parceiro, um parceiro para toda a vida, “exatamente como vocês dois”, riso afetado. Só que onde estava o parceiro? De algum modo, ela sempre se referia a ele no pretérito. Enquanto isso, o quarto de casal era plenamente justificado pela sucessão de homens que passavam pela porta de Bunub, um homem diferente por noite, como se ela fosse uma estonteante garota de 17 anos. Takver observava o cortejo com admiração. Bunub vinha lhe contar tudo sobre os homens e reclamava, reclamava. Não ter a janela de canto era apenas uma de suas inúmeras queixas. Tinha uma mente insidiosa e invejosa, que conseguia ver o mal em tudo e trazê-lo direto para si. A fábrica onde trabalhava era uma massa peçonhenta de incompetência, favoritismo e sabotagem. As reuniões do seu sindicato eram tumultos de insinuações injustas, todas voltadas contra ela. O organismo social inteiro se dedicava à perseguição de Bunub. Tudo isso fazia Takver rir, às vezes gargalhar, bem na cara de Bunub.
– Ah, Bunub, você é tão engraçada! – ela dizia, ofegante, e a mulher, com cabelo grisalho, boca fina e olhos abatidos, dava um sorriso apagado, não ofendida, nem um pouco, e continuava suas horrendas recitações. Takver tinha razão em rir dela, mas ele não conseguir fazer o mesmo.
– É terrível – ela disse, dando um jeito de passar por ele e entrar, indo direto para a mesa para ler a carta de Takver. Ela pegou a carta; Shevek arrancou-a de suas mãos com uma rapidez serena que ela não esperava. – Realmente terrível. Nem uma décade de prazo. Só “Venha aqui! Agora mesmo!” E dizem que somos pessoas livres, que devemos ser pessoas livres. Que piada! Separar um casal feliz desse jeito. É por isso que fizeram isso, sabe. Eles são contra parcerias, a gente vê isso o tempo todo, eles mandam os parceiros para postos separados de propósito. Foi o que aconteceu comigo e com Labeks, exatamente a mesma coisa. Nunca mais vamos voltar a ficar juntos. Não com toda a Divlab se unindo contra nós. Olhe ali o bercinho vazio. Tadinha! Não parou de chorar nas últimas quatro décades, dia e noite. Não me deixava dormir por horas. São os racionamentos, claro; Takver simplesmente não tinha leite suficiente. E ainda mandam uma mãe amamentando para um posto a centenas de quilômetros de distância, imagine! Suponho que você não vá poder unir-se a ela lá, para onde é que a mandaram?
– Nordeste. Quero tomar café da manhã agora, Bunub, estou com fome.
– É bem típico deles, fazer isso enquanto você estava fora.
– Fazer o quê, enquanto eu estava fora?
– Mandá-la para longe... acabaram com a parceria – Ela estava lendo o bilhete de Sabul, que desamassara com cuidado. – Eles sabem quando agir! Suponho que agora você vai sair deste quarto, não vai? Não vão deixar você manter um quarto de casal. Takver falou em voltar logo, mas eu percebi que ela só estava tentando se animar. Liberdade, devemos ser livres, grande piada! Ficam empurrando a gente de um lugar para o outro...
– Ah, caramba, Bunub, se Takver não quisesse assumir o posto, teria recusado. Você sabe que estamos enfrentando uma fome.
– Bem, eu me pergunto se ela não estava querendo mudar. Acontece com frequência depois da chegada de um bebê. Sempre achei que vocês deveriam ter mandado o bebê para um berçário há muito tempo. Como chorava! Crianças atrapalham os parceiros. Eles ficam amarrados. É natural, como você diz, que ela estivesse querendo mudar, e que tenha agarrado a primeira oportunidade que apareceu.
– Eu não disse isso. Vou tomar café. – Ele saiu a passos largos, tremendo pelas cinco ou seis feridas sensíveis nas quais Bunub tinha posto o dedo certeiro. O horrível naquela mulher é que ela exprimia todos os temores mais desprezíveis dele próprio. Ela ficou sozinha no quarto, provavelmente planejando sua mudança para lá.
Ele tinha dormido demais e chegou ao refeitório pouco antes de fecharem as portas. Ainda esfomeado por causa da viagem, pegou uma porção dupla do mingau e do pão. O rapaz atrás das mesas de distribuição olhou-o franzindo o cenho. Naqueles dias ninguém pegava porções duplas. Shevek retribuiu o olhar, também franzindo o cenho, e não disse nada. Ele passara as últimas oitenta horas com duas tigelas de sopa e um quilo de pão e tinha o direito de compensar o que perdera, mas de jeito nenhum iria dar explicações. A existência justifica-se por si mesma, a necessidade é o direito. Ele era odoniano, deixava a culpa para os exploradores.
Sentou-se sozinho, mas Desar uniu-se a ele imediatamente, sorrindo, olhando com olhos desconcertantes para Shevek ou para algo ao lado.
– Você esteve fora por um tempo – Desar disse.
– Contingente agrícola. Seis décades. Como estão as coisas por aqui?
– Escassas.
– Vão ficar mais escassas ainda – disse Shevek, sem muita convicção, pois estava comendo, e o mingau estava excelente. “Frustração, ansiedade, fome!”, dizia seu cérebro anterior, base do intelecto; mas seu cérebro posterior, agachado em impenitente selvageria no fundo escuro do crânio, dizia: “Comida agora! Bom, bom!”.
– Viu Sabul?
– Não. Cheguei tarde ontem à noite. – Olhou de relance para Desar e disse, com indiferença forçada: – Takver recebeu um posto na prevenção da fome; teve de ir há quatro dias.
Desar assentiu mexendo a cabeça, com indiferença genuína:
– Fiquei sabendo. Está sabendo da reorganização do Instituto?
– Não. O que há?
O matemático estendeu as mãos longas e esguias sobre a mesa e baixou os olhos para elas. Ele sempre falava pouco e de modo telegráfico; na verdade, ele balbuciava; mas se era um balbucio verbal ou moral, Shevek nunca chegara a uma conclusão. Assim como gostava de Desar sem saber por quê, havia momentos em que desgostava dele intensamente, também sem saber por quê. Aquele era um desses momentos. Havia uma dissimulação na expressão da boca de Desar, nos seus olhos abatidos, como os olhos abatidos de Bunub.
– Ajustes. Só fica pessoal funcional. Shipeg está fora. – Shipeg era um matemático notoriamente idiota que, por meio da assídua bajulação aos alunos, sempre dava um jeito de conseguir um curso requisitado por eles a cada período letivo. – Mandaram embora. Algum instituto regional.
– Ele faria menos mal se fosse carpir holum – disse Shevek. Agora que estava alimentado, parecia-lhe que a seca, no fim das contas, prestaria um serviço ao organismo social. As prioridades estavam voltando a ficar claras. Fraquezas, pontos fracos, pontos doentes seriam varridos para fora, órgãos preguiçosos iriam recuperar sua função plena, a gordura seria cortada do corpo político.
– Falei a seu favor na reunião do Instituto – Desar disse, erguendo os olhos, mas não olhando diretamente nos olhos de Shevek, pois não conseguia. Enquanto falava, embora Shevek ainda não entendesse o que ele queria dizer, sabia que Desar estava mentindo. Tinha certeza. Desar não tinha falado a seu favor, mas contra ele.
O motivo por que detestava Desar em alguns momentos tornou-se claro agora: um reconhecimento, antes não admitido, do traço de pura maldade na personalidade de Desar. Que Desar também o amava e estava tentando adquirir poder sobre ele estava igualmente claro, e, para Shevek, igualmente abominável. Os tortuosos caminhos da posse, os labirintos do amor/ódio não faziam sentido algum para ele. Arrogante, intolerante, ele atravessava direto esses muros. Não falou mais com o matemático. Terminou o café da manhã e cruzou o quadrilátero, na luminosa manhã do início do outono, até o gabinete de física.
Foi até a sala dos fundos que todos chamavam de “escritório do Sabul”, a sala onde se conheceram, onde Sabul lhe dera a gramática e o dicionário de iótico. Sabul ergueu cautelosamente os olhos da escrivaninha, tornou a baixá-los, ocupado com papéis, o cientista trabalhador, abstrato; depois permitiu que a percepção da presença de Shevek penetrasse em seu cérebro sobrecarregado; depois foi, para seus padrões, efusivo. Parecia magro e envelhecido e, quando se levantou, estava com a cabeça mais baixa do que de costume, uma espécie de cabeça baixa apaziguadora.
– Tempos difíceis, hein? – ele disse. – Tempos difíceis!
– E vai piorar – Shevek disse, de modo inconsequente. – Como vão as coisas por aqui?
– Mal, mal – Sabul balançou a cabeça grisalha. – Tem sido uma época difícil para a ciência pura, para os intelectuais.
– Já houve alguma época boa?
Sabul deu uma risadinha artificial.
– Chegou alguma coisa para nós nos carregamentos de verão de Urras? – perguntou Shevek, abrindo espaço no banco para se sentar. Sentou-se e cruzou as pernas. A pele clara se bronzeara e a penugem que lhe cobria o rosto tornara-se prateada enquanto trabalhava nos campos do Nascente Sul. Parecia magro, saudável e jovem, comparado a Sabul. Ambos estavam cientes do contraste.
– Nada de interesse.
– Nenhuma crítica aos Princípios?
– Não – o tom de voz de Sabul foi ríspido, mais como ele mesmo.
– Nenhuma carta?
– Não.
– Estranho.
– O que há de estranho nisso? O que você esperava, ser palestrante da Universidade de Eun? O Prêmio Seo Oen?
– Esperava críticas e respostas. Já era tempo – ele disse isso enquanto Sabul dizia:
– Mal houve tempo ainda para fazerem críticas.
Houve uma pausa.
– Você tem que perceber, Shevek, que a mera convicção de se estar certo não é autojustificativa. Você se esforçou muito no livro, eu sei. Eu me esforcei muito ao editá-lo também, tentando deixar claro que não se tratava apenas de um ataque irresponsável à teoria da Sequência, porém tinha aspectos positivos. Mas se outros físicos não derem valor ao seu trabalho, você vai ter que começar a examinar os valores que defende para descobrir onde está a discrepância. Se o livro não significa nada para outras pessoas, para que ele serve? Qual a sua função?
– Sou físico, não analista de função – Shevek disse, cordialmente.
– Todo odoniano deve ser analista de função. Você tem 30 anos, não é? Nessa idade um homem deve saber não apenas a sua função celular, mas sua função orgânica... qual o seu melhor papel no organismo social. Talvez você não tenha precisado pensar tanto nisso, como a maioria das pessoas precisa...
– Não. Desde os 10 ou 12 anos eu sabia que tipo de trabalho eu tinha de fazer.
– O que um garoto pensa que gosta de fazer nem sempre é o que a sociedade precisa que ele faça.
– Tenho 30 anos, como você disse. Um garoto bem velho.
– Você atingiu essa idade num ambiente excepcionalmente protegido, abrigado. Primeiro o Instituto Regional do Poente Norte...
– E um projeto florestal, e projetos agrícolas, e treinamento prático, e comitês de quarteirão, e trabalho voluntário desde a seca; a quantidade normal de kleggich. Gosto de fazer tudo isso, na verdade. Mas faço física também. Aonde está querendo chegar?
Como Sabul não respondeu, mas limitou-se a lançar um olhar furioso sob as pesadas e gordurosas sobrancelhas, Shevek acrescentou:
– É melhor você dizer com clareza, porque não vai conseguir chegar a lugar nenhum apelando para a minha consciência social.
– Considera funcional o trabalho que fez aqui?
– Sim. “Quanto mais organizado, mais central é o organismo: centralidade aqui significando o campo de função real.” Definições, de Tomar. Como a Física Temporal tenta organizar tudo o que é compreensível à mente humana, ela é, por definição, uma atividade centralmente funcional.
– Mas não põe comida na boca das pessoas.
– Acabei de passar seis décades ajudando a fazer isso. Quando for chamado de novo, irei de novo. Enquanto isso, mantenho-me fiel ao meu ofício. Se existe um trabalho de física a ser feito, reivindico o direito de fazê-lo.
– O que você precisa é encarar o fato de que, neste momento, não há trabalho de física a ser feito. Não do tipo que você faz. Temos que nos ajustar à praticidade. – Sabul mexeu-se na cadeira. Parecia emburrado e apreensivo. – Tivemos que liberar cinco pessoas para outros postos. Lamento informar que você é uma delas. É isso aí.
– Exatamente o que eu tinha pensado – Shevek disse, embora na verdade ele não percebera, até aquele momento, que Sabul o estava expulsando do Instituto. Assim que o ouviu, entretanto, a notícia lhe pareceu familiar; e não daria a Sabul a satisfação de vê-lo abalado.
– O que pesou contra você foi uma combinação de coisas. A natureza abstrusa e irrelevante da pesquisa que você tem feito nos últimos anos. Além de uma certa impressão, não necessariamente justificada, mas existente entre muitos alunos e professores do Instituto, que tanto as suas aulas quanto o seu comportamento refletem uma certa deslealdade, um grau de privatismo, de não altruísmo. Isso foi mencionado em reuniões. Falei a seu favor, claro. Mas sou só um síndico entre muitos.
– Desde quando o altruísmo é uma virtude odoniana? – Shevek perguntou. – Bem, não importa. Entendo o que quer dizer. – Levantou-se. Não conseguia permanecer sentado, mas de resto mantinha-se sob controle e falava com a maior naturalidade. – Imagino que não tenha me recomendado para um posto como professor em outro lugar.
– De que adiantaria? – respondeu Sabul, quase melodioso em autojustificação. – Ninguém está aceitando novos professores. Professores e alunos estão trabalhando lado a lado em projetos de prevenção da fome, por todo o planeta. É claro que esta crise não vai durar. Daqui a um ano, mais ou menos, vamos olhar para trás, orgulhosos dos sacrifícios que fizemos e do trabalho que realizamos, ajudando uns aos outros, compartilhando em igualdade. Mas neste exato momento...
Shevek estava em pé, ereto, relaxado, olhando o céu pálido através da janela pequena e arranhada. Havia nele um poderoso desejo de, enfim, mandar Sabul para o inferno. Mas foi um impulso diferente e mais profundo que encontrou as palavras.
– Na verdade – ele disse –, você provavelmente está certo. – Com isso, despediu-se de Sabul inclinando a cabeça e saiu.
Pegou um ônibus no centro da cidade. Ainda tinha pressa, motivação. Estava seguindo uma linha e queria ir até o fim, até poder descansar. Foi ao escritório da Central de Postos da Divisão Laboral solicitar um posto na comunidade aonde Takver tinha ido.
A Divlab, com seus computadores e sua imensa tarefa de coordenação, ocupava uma praça inteira; os prédios eram bonitos, imponentes pelos padrões anarrestis, com linhas simples e delicadas. Por dentro, a Central de Postos tinha o teto alto, semelhante a um celeiro, cheio de gente e movimento, as paredes cobertas de cartazes referentes a postos de trabalho e instruções sobre a que balcão ou departamento se dirigir para este ou aquele assunto. Enquanto esperava numa das filas, ouviu as pessoas à sua frente, um rapaz de 16 anos e um homem de 60 e poucos. O rapaz estava se voluntariando para um posto de prevenção da fome. Estava cheio de sentimentos nobres, transbordava fraternidade, audácia, esperança. Estava encantado porque ia viajar sozinho, deixando a infância para trás. Falava muito, como uma criança, numa voz ainda não acostumada a tons mais graves. Liberdade, liberdade!, reverberava em sua conversa entusiasmada, em cada palavra; e a voz do mais velho atravessava a do rapaz, murmurando e resmungando, provocando sem ameaçar, caçoando sem advertir. Liberdade, a capacidade de ir a algum lugar e fazer alguma coisa, liberdade era o que o velho elogiava e apreciava no jovem, mesmo enquanto caçoava de sua presunção. Shevek os ouvia com prazer. Eles interromperam a série de coisas grotescas daquela manhã.
Assim que Shevek explicou aonde queria ir, a atendente adquiriu um olhar preocupado e foi buscar um atlas, que abriu no balcão entre eles.
– Veja – ela disse. Era uma mulher feia e dentuça; as mãos sobre as páginas coloridas eram hábeis e macias. – Rolny fica aqui, está vendo, a península que entra no Mar Tameniano Norte. É só uma imensa faixa de areia. Não existe absolutamente nada por lá, a não ser os laboratórios marinhos nessa extremidade aqui, está vendo? E a costa é toda de pântanos e charcos salinos até acabar aqui, em Harmonia... a mil quilômetros. E a oeste fica o Areão da Costa. O lugar mais próximo de Rolny seria alguma cidade nas montanhas. Mas eles não estão pedindo postos de emergência lá; são autossuficientes. É claro que você pode ir para lá mesmo assim – ela acrescentou, num tom de voz ligeiramente diferente.
– É longe demais de Rolny – ele disse, olhando o mapa, percebendo nas montanhas do Nordeste a cidadezinha isolada onde Takver crescera, Vale Redondo. – Eles não precisam de um zelador no laboratório marinho? Um estatístico? Alguém para alimentar os peixes?
– Vou verificar.
A rede humana/eletrônica de arquivos da Divlab funcionava com eficiência admirável. Não levou nem cinco minutos para a atendente obter a informação desejada, selecionada do enorme e contínuo sistema de entrada e saída de informações a respeito de cada trabalho sendo feito, cada posição solicitada e as prioridades de cada um na economia geral da sociedade em todo o planeta.
– Eles acabaram de preencher um contingente de emergência... foi a parceira, não foi? Eles conseguiram todos que queriam, quatro técnicos e um pescador experiente. Equipe completa.
Shevek apoiou os cotovelos no balcão e baixou a cabeça, coçando-a, um gesto de confusão e derrota mascarado pela inibição.
– Bem – ele disse –, não sei o que fazer.
– Escute, irmão, de quanto tempo é o posto da parceira?
– Indefinido.
– Mas é um trabalho de prevenção da fome, não é? Não vai durar para sempre. Não pode! Vai chover no inverno.
Ele ergueu os olhos para o rosto sério, solidário e perturbado da irmã. Sorriu um pouco, pois não podia deixar sem resposta o esforço da mulher em lhe dar esperança.
– Vocês vão ficar juntos de novo. Enquanto isso...
– Sim. Enquanto isso – ele disse.
Ela aguardou a decisão dele.
Era ele quem tinha de tomar a decisão; e as opções eram intermináveis. Ele poderia ficar em Abbenay e organizar aulas de física, se encontrasse alunos voluntários. Poderia ir para a Península Rolny e morar com Takver, mesmo sem nenhum posto na estação de pesquisa. Poderia viver em qualquer lugar e não fazer nada, mas levantar duas vezes por dia e ir ao refeitório mais próximo se alimentar. Poderia fazer o que quisesse.
A identidade das palavras “trabalho” e “diversão” em právico tinha, é claro, um forte significado ético. Odo percebera o perigo de um moralismo rígido proveniente do uso da palavra “trabalho” em seu sistema analógico: as células devem trabalhar juntas, o funcionamento ideal do organismo, o trabalho feito por cada elemento, e daí por diante. Cooperação e função, conceitos essenciais da Analogia, implicavam ambas trabalho e funcionamento. A prova de um experimento, vinte tubos de ensaio num laboratório ou 20 milhões de pessoas na Lua, tudo se resumia a uma questão simples: funciona? Odo percebera a armadilha moral: “O santo nunca está ocupado”, ela afirmara, talvez com melancolia.
Mas as escolhas do ser social nunca são feitas na solidão.
– Bem – disse Shevek –, acabei de voltar de um posto na prevenção da fome. Tem mais alguma coisa assim que precise ser feita?
A atendente lançou-lhe um olhar de irmã mais velha, incrédulo, mas indulgente.
– Há cerca de setecentos pedidos urgentes afixados nesta sala – ela disse. – Qual deles você gostaria?
– Algum deles precisa de matemática?
– A maioria é trabalho agrícola e qualificado. Tem conhecimento de engenharia?
– Não muito.
– Bem, tem coordenação de trabalho. Certamente exige cabeça para números. Que tal este?
– Tudo bem.
– É lá no Sudoeste, na Poeira, você sabe.
– Já estive na Poeira. Além do mais, como você disse, um dia vai chover...
Ela assentiu com a cabeça, sorrindo, e digitou no registro de Shevek na Divlab: DE ABBENAY, N.O., Inst. Centr. de Cien., PARA Cotovelo, S.O., coord. trab., usina fosfato, nº 1: POST. EMERG. 5-1-3-165 – indefinido.
9
°°°°°
Shevek despertou com os sinos da torre da capela repicando a Primeira Harmonia para o serviço religioso da manhã. Cada nota era como uma pancada na cabeça. Estava tão enjoado e trêmulo que por um bom tempo não conseguiu sentar na cama. Pôde finalmente se arrastar até o banheiro e tomar um longo banho frio, que aliviou a dor de cabeça; mas o corpo todo continuava a lhe parecer estranho – a lhe parecer, de algum modo, repulsivo. Quando começou a ser capaz de pensar de novo, fragmentos e momentos da noite anterior vieram-lhe à mente, vívidos, cenas breves e absurdas da festa na casa de Vea. Tentou não pensar nelas, e então não conseguiu pensar em mais nada. Tudo, tudo se tornou repulsivo. Sentou-se à escrivaninha e ficou sentado ali por meia hora, com os olhos fixos, imóvel, totalmente desolado.
Já tinha se constrangido muitas vezes, e já se sentira um idiota. Quando jovem, sofrera com a sensação de que os outros o achavam estranho, diferente deles; anos depois, sentira a raiva e o desprezo, pois deliberadamente os provocara, de muitos de seus companheiros em Anarres. Mas nunca aceitara de fato o julgamento deles. Nunca se sentira envergonhado.
Não sabia que aquela humilhação paralisante era uma consequência química da bebedeira, como a dor de cabeça. Nem esse conhecimento teria feito muita diferença para ele. Vergonha – a sensação de repulsa e autoestranhamento – foi uma revelação. Ele via com uma nova clareza, uma clareza medonha; e via muito além daquelas lembranças incoerentes do fim da noite na casa de Vea. Não foi apenas a pobre Vea que o traíra; não foi apenas o álcool que ele tentou vomitar; era tudo que ele engolira em Urras.
Apoiou os cotovelos na mesa e pôs a cabeça nas mãos, pressionando as têmporas, a posição rígida da dor; examinou sua vida à luz da vergonha.
Em Anarres, escolhera, desafiando as expectativas de sua sociedade, fazer o trabalho que atendia a um chamado individual. Fazê-lo era rebelar-se: arriscar-se em nome da sociedade.
Ali em Urras, aquele seu mesmo ato de rebelião era um luxo, um comodismo. Ser físico em A-Io era servir não à sociedade, não à humanidade, não à verdade, mas ao Estado.
Em sua primeira noite no quarto, perguntara-lhes, desafiador e curioso: “O que vão fazer comigo?” Agora sabia o que tinham feito com ele. Chifoilisk dissera a pura verdade. Eles o possuíam. Pensou em barganhar com eles, uma noção anarquista muito ingênua. O indivíduo não pode barganhar com o Estado. O Estado não reconhece outra moeda senão o poder: e o próprio Estado cunha as moedas.
Percebia agora – em detalhe, item por item, desde o início – que cometera um erro ao vir para Urras; seu primeiro grande erro, que provavelmente duraria pelo resto da vida. Uma vez percebido o erro, uma vez recapituladas todas as suas evidências, que ele reprimira e negara por meses – e isso lhe tomou um bom tempo sentado imóvel à escrivaninha –, até chegar à absurda e abominável última cena com Vea, e reviver isso também, e sentir o rosto quente até os ouvidos zumbirem, ele encerrou o assunto em sua mente. Mesmo no vale de lágrimas pós-alcoólico, não sentia culpa alguma. Agora aquilo tudo estava feito, e o que ele tinha de pensar era: o que fazer agora? Tendo trancado a si mesmo numa prisão, como poderia agir como um homem livre?
Não faria física para os políticos. Isso estava claro, agora.
Se parasse de trabalhar, eles o deixariam ir embora para casa?
Nesse ponto, deu um longo suspiro e ergueu a cabeça, olhando com olhos vagos a paisagem verde iluminada pelo sol, do lado de fora da janela. Era a primeira vez que se permitira pensar em ir para casa como uma possibilidade genuína. Esse pensamento ameaçou romper os portões e inundá-lo de um anseio incontrolável. Falar právico, falar com amigos, ver Takver, Pilun, Sadik, tocar a poeira de Anarres...
Eles não o deixariam partir. Ele não pagara a passagem. Nem ele poderia se permitir partir: desistir e fugir.
Ainda sentado à luz brilhante do sol matinal, bateu com as mãos na beirada da escrivaninha, deliberadamente e com força, duas vezes, três vezes; seu rosto estava calmo e parecia pensativo.
– Para onde vou? – disse em voz alta.
Uma batida na porta. Efor entrou com a bandeja do café da manhã e os jornais do dia.
– Entrei às seis, como de costume, mas o senhor estava recuperando o sono – observou, descansando a bandeja na mesa com admirável destreza.
– Fiquei bêbado ontem à noite – disse Shevek.
– Lindo enquanto dura – disse Efor. – É tudo, senhor? Muito bem – e ele saiu com a mesma destreza, curvando-se no caminho para Pae, que entrou quando ele saiu.
– Não tinha a intenção de atrapalhar o seu café da manhã! Voltando da igreja, resolvi dar uma passada por aqui.
– Sente-se. Tome um pouco de chocolate. – Shevek não conseguiu comer até Pae pelo menos fingir que estava comendo com ele. Pae pegou um pão de mel e o esmigalhou num prato. Shevek ainda se sentia bastante trêmulo, mas com muita fome agora, e atacou seu café da manhã com energia. Pae parecia achar ainda mais difícil do que de costume começar uma conversa.
– O senhor ainda recebe esse lixo? – perguntou por fim, em tom de brincadeira, tocando os jornais dobrados que Efor colocara na mesa.
– Efor os traz.
– Traz?
– Eu que pedi – explicou Shevek, olhando Pae de relance, um rápido olhar de reconhecimento. – Eles ampliam minha compreensão de seu país. Interesso-me pelas classes inferiores.
– Sim, claro – disse o mais jovem, respeitoso, assentindo com a cabeça. Comeu um pedacinho do pão de mel. – Acho que vou querer um gole desse chocolate, afinal – disse, e tocou o sino que estava na bandeja. Efor apareceu à porta. – Mais uma xícara – ordenou Pae, sem se virar. – Bem, estávamos aguardando para passear com o senhor de novo, agora que o tempo está melhorando, para lhe mostrar mais do nosso país. Até uma visita ao estrangeiro, talvez. Mas receio que essa maldita guerra tenha posto um fim a todos esses planos.
Shevek olhou a manchete do jornal que estava por cima:
CHOQUE ENTRE IO E THU PERTO DA CAPITAL BENBILI.
– Há notícias mais recentes do que essa no telefax – disse Pae. – Liberamos a capital. O general Havevert será reinstalado.
– Então a guerra acabou?
– Não enquanto Thu ainda ocupar as duas províncias orientais.
– Entendo. Então o seu exército e o exército de Thu vão lutar em Benbili. Mas não aqui?
– Não, não. Seria loucura total eles nos invadirem, ou nós a eles. Superamos o tipo de barbárie que costumava gerar guerras no coração das altas civilizações! O equilíbrio de poder se mantém com esse tipo de ação policial. Entretanto, estamos oficialmente em guerra. Assim, receio que todas as velhas e cansativas restrições estejam valendo.
– Restrições?
– Classificação de pesquisa feita na Faculdade de Ciência Nobre, por exemplo. Nada de mais, na verdade, só um carimbo do governo. E às vezes a demora em publicar um artigo, quando os chefes de alto coturno acham que deve ser perigoso porque não entendem!... E viagens são um pouco limitadas, especialmente para o senhor e para os outros estrangeiros. Acredito que, enquanto o estado de guerra durar, não se pode deixar o campus sem a autorização do reitor. Mas não ligue para isso. Posso tirá-lo daqui quando o senhor quiser, sem passar por todo esse processo.
– Você tem as chaves – Shevek disse, com um sorriso ingênuo.
– Ah, sou um grande especialista nisso. Adoro burlar regras e ser mais esperto que as autoridades. Talvez eu seja um anarquista nato, hein? Onde diabos está aquele maldito idiota com a xícara?
– Ele tem que descer até a cozinha para pegar uma.
– Não precisa levar meio dia fazendo isso. Bem, não vou esperar. Não quero ocupar o que lhe resta da manhã. A propósito, o senhor viu o último Boletim da Fundação de Pesquisa Espacial? Eles publicaram os planos de Reumere para o ansível.
– O que é ansível?
– É como ele está chamando um dispositivo de comunicação instantânea. Ele diz que se os temporalistas... isso quer dizer o senhor, claro... solucionarem as equações de tempo-inércia, os engenheiros... isso quer dizer ele... serão capazes de construir a maldita coisa, testá-la e assim, consequentemente, provar a validade da teoria em poucos meses ou semanas.
– Os próprios engenheiros são a prova da existência da reversibilidade causal. Veja que Reumere já tem o efeito antes de eu providenciar a causa. – Ele sorriu de novo, com bem menos ingenuidade. Quando Pae fechou a porta atrás de si, Shevek levantou-se de repente. – Seu mentiroso corrupto e explorador! – ele disse em právico, branco de raiva, as mãos cerradas para evitar que pegassem alguma coisa e atirassem em Saio Pae.
Efor entrou carregando uma xícara e um pires numa bandeja. Parou subitamente, apreensivo.
– Está tudo bem, Efor. Ele não... Ele não quis a xícara. Pode levar tudo agora.
– Certo, senhor.
– Escute, não quero receber visitas por um tempo. Você pode barrá-los lá fora?
– Fácil, senhor. Alguém especial?
– Sim, ele. Qualquer um. Diga que estou trabalhando.
– Ele vai gostar de ouvir isso, senhor – Efor disse, suas rugas fundindo-se em malícia por um instante; depois, com familiaridade respeitosa. – Ninguém que o senhor não queira vai passar por mim – e, por fim, com a devida formalidade: – Obrigado, senhor, e bom dia.
A comida e a adrenalina dissiparam a paralisia de Shevek. Ficou andando de um lado para o outro no quarto, irritado e inquieto. Queria agir. Passara quase um ano sem fazer nada, exceto bancar o idiota. Era hora de fazer alguma coisa.
Bem, ele viera para Urras fazer o quê?
Fazer física. Para afirmar, com seu talento, os direitos de qualquer cidadão em qualquer sociedade: o direito de trabalhar, de ser sustentado enquanto trabalha e de compartilhar o produto de seu trabalho com todos os interessados. Os direitos de um odoniano e de um ser humano.
Está certo que seus anfitriões benevolentes e protetores o deixavam trabalhar e o sustentavam enquanto trabalhava. O problema ocorria no terceiro ramo dos direitos. Mas ele próprio não chegara lá ainda. Não tinha feito seu trabalho. Não podia compartilhar o que não tinha.
Voltou à escrivaninha, sentou-se e tirou alguns pedaços de papel todo rabiscados do bolso menos acessível e menos útil da calça justa e elegante. Desdobrou-os com os dedos o olhou para eles. Ocorreu-lhe que estava ficando igual a Sabul, escrevendo em letras miúdas, em abreviações, em pedaços de papel. Agora sabia por que Sabul fazia isso: era possessivo e sigiloso. Uma psicopatia em Anarres era comportamento racional em Urras.
De novo Shevek ficou sentado imóvel, a cabeça baixa, estudando os dois pedacinhos de papel nos quais fizera algumas anotações essenciais da Teoria Temporal Geral, até o ponto em que estava.
Nos três dias seguintes, ficou sentado à escrivaninha, olhando os dois pedaços de papel.
Às vezes levantava e andava pela sala, ou escrevia alguma coisa, ou usava o computador da mesa, ou pedia a Efor para lhe trazer alguma coisa para comer, ou deitava e dormia. Depois voltava à escrivaninha e ficava sentado lá.
Na noite do terceiro dia estava sentado, para variar, no assento de mármore ao lado da lareira. Sentou-se lá na primeira noite. Sentara-se ali na primeira noite que entrara no quarto, sua graciosa cela de prisão, e geralmente sentava ali quando recebia visitas. Não tinha visitas no momento, mas estava pensando em Saio Pae.
Como todos os que buscam poder, Pae tinha uma visão espantosamente curta. Havia um aspecto banal, imaturo em sua mente; faltava-lhe profundidade, imaginação, paixão. Era na verdade um instrumento primitivo. No entanto, sua potencialidade tinha sido real e, apesar de deformada, não se perdera. Pae era um físico muito inteligente. Ou, mais exatamente, tinha muita inteligência para a física. Não tinha feito nada original, mas seu oportunismo, sua intuição para saber onde estava a vantagem, conduziram-no repetidas vezes ao campo mais promissor. Ele tinha faro para saber onde começar a trabalhar, assim como Shevek, e Shevek respeitava essa qualidade nele, como respeitava em si mesmo, pois se trata de um atributo especialmente importante num cientista. Foi Pae quem deu a Shevek o livro traduzido de Terran, o simpósio sobre as teorias da Relatividade, ideias que lhe ocupavam a mente cada vez mais, nos últimos tempos. Seria possível, afinal, que ele tivesse vindo a Urras apenas para conhecer Saio Pae, seu inimigo? Que ele tenha vindo procurá-lo, sabendo que poderia receber de seu inimigo o que não conseguira receber de seus irmãos e amigos, o que nenhum anarresti poderia lhe dar: conhecimento estrangeiro, alienígena, informação...
Esqueceu Pae. Pensava no livro. Não podia afirmar com clareza a si mesmo o que, exatamente, ele achara tão estimulante no livro. Afinal, a maior parte da física contida nele estava ultrapassada; os métodos eram complicados, e a atitude dos alienígenas, às vezes bem desagradável. Os terranos tinham sido imperialistas intelectuais, ciumentos construtores de muros. Até mesmo Ainsetain, o iniciador da teoria, sentiu-se compelido a advertir que sua física abrangia apenas o modo físico e não deveria ser tomada como se envolvesse a metafísica, a filosofia e a ética. O que, evidentemente, era uma verdade superficial; no entanto, ele utilizara o número, a ponte entre o racional e o observado, entre psique e a matéria, “Número, o Indiscutível”, como diziam os antigos fundadores da Ciência Nobre. Aplicar matemática nesse sentido era aplicar o modo que precedeu e conduziu a todos os outros modos. Ainsetain percebera isso; com cautela afetuosa, ele admitira acreditar que sua física de fato descrevia a realidade.
Estranheza e familiaridade: em cada movimento do pensamento do terrano, Shevek captava essa combinação e ficava constantemente intrigado. E solidário: pois Ainsetain também buscara uma teoria unificadora. Depois de explicar a força da gravidade como uma função da Geometria do Tempo-Espaço, ele procurara estender a síntese para incluir as forças eletromagnéticas. Não teve êxito. Mesmo durante sua vida, e por várias décadas após sua morte, os físicos de seu próprio planeta afastaram-se de seu esforço e de seu fracasso, adotando as magníficas incoerências da Teoria Quântica e seus importantes produtos tecnológicos, por fim concentrando-se tão exclusivamente no modo tecnológico que chegaram a um beco sem saída, a um catastrófico fracasso da imaginação. No entanto, a intuição original dos terranos era sólida; no ponto em que chegaram, o progresso residira na incerteza que o velho Ainsetain se recusara a aceitar. E sua recusa tinha sido igualmente correta – a longo prazo. Só que lhe faltaram as ferramentas para prová-lo – as variáveis de Saeba e as teorias da Velocidade Infinita e Causa Complexa. Seu campo unificado existia, na física cetiana, mas existia em termos que ele talvez não estivesse disposto a aceitar; pois a velocidade da luz como um fator limitante tinha sido essencial às suas grandes teorias. As suas duas Teorias da Relatividade continuavam bonitas, válidas e úteis como sempre, após todos aqueles séculos, porém ainda dependiam de hipóteses cuja veracidade não se podia comprovar e que, em certas circunstâncias, demonstraram ser falsas.
Mas uma teoria cujos elementos fossem todos provavelmente verdadeiros não seria uma simples tautologia? Nos domínios do que não pode ser provado, ou mesmo refutado, residia a única chance de se quebrar o círculo e seguir adiante.
Nesse caso, a impossibilidade de se provar a hipótese da coexistência real – o problema no qual Shevek vinha quebrando a cabeça desesperadamente nos últimos três dias, na verdade nos últimos dez anos – teria realmente importância?
Estivera tateando em busca de uma certeza, como se fosse algo que pudesse possuir. Estivera exigindo uma segurança, uma garantia, que não poderia ser concedida e que, se fosse concedida, se tornaria uma prisão. Simplesmente admitir a validade da coexistência real o deixaria livre para utilizar as belas geometrias da Relatividade; e então seria possível seguir adiante. O próximo passo era perfeitamente claro. A coexistência da sucessão e da presença não apresentava absolutamente nenhuma antítese. A unidade fundamental dos pontos de vista da Sequência e da Simultaneidade tornou-se evidente; o conceito de intervalo servia para conectar os aspectos estáticos e dinâmicos do universo. Como pôde ter contemplado a realidade por dez anos e não ter visto isso? Não haveria problema algum em seguir adiante. Na verdade, já tinha seguido adiante. Já estava lá. Viu tudo o que estava por vir no primeiro vislumbre, aparentemente casual, do método proporcionado a ele pela compreensão de uma falha no passado distante. O muro tinha caído. A visão era clara e total. O que ele via era simples, mais simples do que qualquer outra coisa. Era simplicidade: e continha em si toda a complexidade, toda a promessa. Era a revelação. Era o caminho livre, o caminho para casa, a luz.
O espírito de Shevek era como o de uma criança correndo em direção à luz do sol. Era sem fim, sem fim...
No entanto, em sua completa calma e felicidade, ele tremia de medo; as mãos estavam trêmulas, os olhos, cheios de lágrimas, como se ele tivesse ficado olhando para o sol. Afinal, a carne não é transparente. E é estranho, demasiado estranho, saber que sua vida atingiu a plenitude.
No entanto, ele continuou procurando, indo mais longe, com a mesma alegria infantil, até que, de repente, não pôde mais avançar; retornou e, olhando à sua volta através das lágrimas, viu que a sala estava escura e as janelas altas estavam cheias de estrelas.
O momento se foi; ele o viu partir. Não tentou agarrar-se a ele. Sabia que ele, Shevek, fazia parte do momento, e não o contrário. Estava sob a guarda do momento.
Após certo tempo levantou-se, trêmulo, e acendeu a luz. Vagou um pouco pela sala, tocando as coisas, a capa de um livro, a sombra de um abajur, contente por estar de volta entre aqueles objetos familiares, de volta ao próprio mundo – pois, naquele instante, a diferença entre este e aquele planeta, entre Urras e Anarres, não era mais significativa do que a diferença entre dois grãos de areia na praia. Não havia mais abismos, nem muros. Não havia mais exílio. Ele tinha visto as fundações do universo, e eram sólidas.
Entrou no quarto, com andar vagaroso e meio cambaleante, e jogou-se na cama sem se despir. Ficou ali deitado com os braços cruzados atrás da cabeça, de vez em quando prevendo e planejando um ou outro detalhe do trabalho a ser feito, absorto numa solene e agradável gratidão, que pouco a pouco se transformou num sereno devaneio, e então adormeceu.
Dormiu por dez horas. Acordou pensando nas equações que iriam expressar o conceito de intervalo. Foi até a escrivaninha e começou a trabalhar nelas. Tinha uma aula naquela tarde e cumpriu o compromisso; jantou no refeitório dos Veteranos da Faculdade e lá conversou com os colegas sobre o clima, a guerra e qualquer outro assunto que traziam à baila. Se notaram qualquer mudança em seu comportamento, ele não sabia, pois não estava realmente prestando atenção neles. Voltou aos seus aposentos e trabalhou.
O dia dos urrastis tinha vinte horas. Por oito dias ele passou de doze a dezesseis horas diárias à sua escrivaninha, ou perambulando pelo quarto, os olhos claros voltados frequentemente para as janelas, lá fora brilhando o sol quente da primavera, ou as estrelas e a lua, fulva e minguante.
Entrando com a bandeja do café da manhã, Efor o encontrou deitado, semivestido, de olhos fechados, falando numa língua estrangeira. Ele o despertou. Shevek acordou com um susto convulso, levantou-se e foi cambaleando para o outro cômodo, para a escrivaninha, que estava completamente vazia; fitou o computador, que tinha sido apagado, e então ficou ali parado como um homem que levou uma pancada na cabeça e ainda não sabe. Efor conseguiu fazê-lo deitar-se de novo e disse:
– Febre, senhor. Chamo o médico?
– Não.
– Certeza, senhor?
– Não! Não deixe ninguém entrar aqui. Diga que estou doente, Efor.
– Daí com certeza vão trazer médico. Posso dizer que ainda está trabalhando, senhor. Eles gostam disso.
– Tranque a porta quando sair – disse Shevek. Seu corpo não transparente o decepcionara; estava fraco pela exaustão e, portanto, aflito e em pânico. Tinha medo de Pae, de Oiie, de uma batida policial. Tudo o que tinha ouvido, lido e semicompreendido sobre a polícia urrasti, a polícia secreta, veio-lhe à mente de modo vívido e terrível, como um homem que admite sua doença a si mesmo relembra cada palavra já ouvida sobre o câncer. Ergueu os olhos para Efor em angústia febril.
– Pode confiar em mim – disse o homem, em seu jeito calado, oblíquo e rápido. Trouxe um copo d’água para Shevek e saiu, e a fechadura da porta externa fez um clique após sua saída.
Ele cuidou de Shevek nos dois dias seguintes, com uma conduta que pouco devia à sua instrução como criado.
– Você devia ter sido médico, Efor – disse Shevek, quando sua fraqueza se tornara apenas uma prostração física, e não desagradável.
– É o que diz minha velha. Ela não quer que ninguém cuide dela além de mim quando fica adoentada. Ela diz “você tem muito jeito”. Acho que tenho.
– Você já trabalhou com doentes?
– Não, senhor. Não quero me meter em hospitais. Triste dia o dia que eu tiver que morrer num desses focos de infecção.
– Os hospitais? O que há de errado com eles?
– Nada, senhor, não esses onde levariam o senhor se piorasse – Efor disse, com bondade.
– Que tipo de hospital você quis dizer, então?
– Nosso tipo. Sujo. Como o traseiro de um lixeiro – disse Efor, sem violência, descritivamente. – Velho. Criança morreu num. Buracos no piso, buracos grandes, dá pra ver através deles, entende? Pergunto “por quê?”. Veja, ratos sobem pelos buracos direto para as camas. Eles dizem “prédio velho, é hospital há seiscentos anos”. Estabelecimento da Divina Harmonia para os Pobres, o nome dele. Uma bosta é o que ele é.
– A criança que morreu no hospital era sua?
– Sim, senhor, minha filha Laia.
– Do que ela morreu?
– Válvula no coração. Dizem. Ela não cresceu muito. Dois anos quando morreu.
– Você tem outros filhos?
– Não vivos. Três nascidos. Difícil para a velha. Mas agora ela diz: “Bem, a gente não precisa sofrer por causa deles, e isso é sorte, afinal!” Algo mais que eu possa fazer, senhor? – A súbita mudança para a sintaxe da classe superior perturbou Shevek; ele disse, impaciente:
– Sim! Continue falando.
Por Shevek ter falado espontaneamente, ou por estar doente e precisar ser animado, desta vez Efor não se empertigou.
– Pensei ser médico militar, certa vez – ele disse –, mas me pegaram primeiro. Recrutamento. Dizem “servente do hospital, você vai ser servente”. Então eu fui. Bom treinamento, servente de hospital. Saí do exército direto para o serviço para cavalheiros.
– Você poderia ter se formado em medicina no exército? – A conversa prosseguiu. Shevek a acompanhava com dificuldade, tanto pela linguagem quanto pelo conteúdo. Estava ouvindo coisas nas quais não tinha experiência alguma. Jamais tinha visto um rato, ou um quartel, ou um hospício, ou um albergue para pobres, ou uma casa de penhores, ou uma execução, ou um ladrão, ou um cortiço, ou um cobrador de aluguel, ou um homem que quisesse trabalhar e não encontrasse trabalho para fazer, ou um bebê morto numa vala. Todas essas coisas surgiam nas reminiscências de Efor como lugares-comuns ou horrores comuns. Shevek teve de usar a imaginação e evocar cada fragmento de informação que tinha sobre Urras para compreendê-las de algum modo. E, no entanto, elas lhe eram familiares de uma forma que nada do que vira em Urras era, e ele as compreendeu.
Era este o Urras sobre o qual aprendera na escola em Anarres. Era este o mundo do qual seus ancestrais haviam fugido, preferindo a fome, o deserto e o exílio interminável. Era este o mundo que formara a mente de Odo e a aprisionara oito vezes por tê-lo denunciado. Era este o sofrimento humano no qual se enraizaram os ideais de sua sociedade, o solo no qual frutificaram.
Não era o “Urras real”. A dignidade e a beleza dos aposentos onde ele e Efor estavam eram tão reais quanto a miséria onde Efor nascera. Para Shevek, a tarefa de um pensador não era negar uma realidade à custa de outra, mas incluir e conectar. Não era uma tarefa fácil.
– Parece cansado de novo, senhor – Efor disse. – Melhor descansar.
– Não, não estou cansado.
Efor o observou por um momento. Quando Efor funcionava como criado, seu rosto enrugado e bem barbeado era bastante inexpressivo; durante a última hora Shevek o tinha visto passar por mudanças extraordinárias de humor, rispidez, cinismo e dor. No momento, sua expressão era solidária, embora distante.
– Diferente de tudo lá de onde o senhor vem – Efor disse.
– Muito diferente.
– Ninguém nunca sem trabalho lá.
Havia um leve traço de ironia, ou de dúvida, em sua voz.
– Não.
– E ninguém faminto?
– Ninguém passa fome enquanto outro come.
– Ah.
– Mas já passamos fome. Já morremos de fome. Houve uma grande fome, sabe, há oito anos. Conheci uma mulher que, nessa época, matou seu bebê porque ela não tinha leite, e não havia mais nada, mais nada para dar ao bebê. Nem tudo são flores em Anarres, Efor.
– Não duvido, senhor – disse Efor, com um de seus curiosos retornos à dicção culta. Então disse com uma careta, contraindo os lábios e mostrando os dentes. – Mesmo assim, não tem nenhum deles lá!
– Deles?
– O senhor sabe, sr. Shevek. O que o senhor disse uma vez. Os proprietários.
Na noite seguinte Atro fez uma visita. Pae devia estar vigiando, pois, minutos após Efor consentir na entrada do velho, ele entrou passeando e perguntou, com amável cordialidade, sobre o estado de saúde de Shevek.
– O senhor tem trabalhado demais nas duas últimas semanas – disse –, o senhor não deve se desgastar assim. – Ele não se sentou e logo se despediu, o espírito da civilidade. Atro continuou falando sobre a guerra em Benbili, que estava se tornando, segundo suas palavras, “uma operação em larga escala”.
– O povo deste país aprova essa guerra? – Shevek perguntou, interrompendo um discurso sobre estratégia. Ficara perplexo com a falta de julgamento moral da imprensa alpiste sobre o assunto. Tinham abandonado o tom bombástico; sua linguagem muitas vezes era exatamente a mesma dos boletins do governo publicados no telefax.
– Se aprova? Você acha que iríamos deitar no chão e deixar os malditos thuvianos passarem por cima de nós? Nosso status de potência mundial está em jogo!
– Mas eu quis dizer o povo, não o governo. As... As pessoas, os soldados que têm de combater.
– O que têm eles? Estão acostumados aos recrutamentos obrigatórios em massa. É para isso que servem, meu caro amigo! Para lutar pelo seu país. E vou lhe dizer, não há soldado melhor no mundo do que o iota, depois de domado para obedecer a ordens. Em tempos de paz ele pode declamar pacifismo sentimental, mas a coragem está lá, aguardando. O soldado raso sempre foi nosso melhor recurso como nação. Foi como nos tornamos os líderes que somos.
– Escalando uma pilha de crianças mortas? – disse Shevek, mas a raiva, ou talvez uma relutância inconsciente em magoar os sentimentos do velho, abafou a sua voz, e Atro não o ouviu.
– Não – Atro continuou –, você vai ver que a alma do povo é verdadeira e forte quando o país é ameaçado. Alguns agitadores em Nio e nos centros industriais fazem um grande barulho entre as guerras, mas é formidável ver como as pessoas cerram fileiras quando a bandeira está em perigo. Você não quer acreditar nisso, eu sei. O problema com o odonismo, sabe, meu caro amigo, é que ele é feminil. Simplesmente não inclui o lado viril da vida. “Sangue e aço, clarão da batalha”, como diz o velho poeta. O odonismo não entende a coragem... o amor à bandeira.
Shevek ficou em silêncio por um minuto; depois disse, com delicadeza:
– Isso pode ser verdade, em parte. Pelo menos não temos bandeiras.
Quando Atro foi embora, Efor entrou para retirar a bandeja do jantar. Shevek o impediu. Levantou-se e aproximou-se dele, dizendo:
– Com licença, Efor – e pôs um bilhete na bandeja. Nele estava escrito: “Há um microfone nesta sala?”
O criado inclinou a cabeça e leu, devagar, e então olhou para Shevek, um longo olhar bem de perto. Então olhou de relance por um segundo para a chaminé da lareira.
“Quarto?” – perguntou Shevek, com o mesmo recurso.
Efor balançou a cabeça, pôs de volta a bandeja na mesa e seguiu Shevek até o quarto. Fechou a porta atrás de si com o silêncio de um bom criado.
– Localizei aquele primeiro dia, espanando – disse com um meio sorriso que aprofundou as rugas de seu rosto, tornando-as sulcos ásperos.
– Aqui não?
Efor encolheu os ombros.
– Nunca localizei. Podemos deixar a água correndo ali dentro, senhor, como fazem nas histórias de espião.
Entraram no magnífico templo de ouro e marfim do banheiro. Efor abriu as torneiras e olhou as paredes em volta.
– Não – ele disse. – Acho que não. E olho espia eu poderia localizar. Conheci uns quando trabalhei uma vez para um homem em Nio. Não escapam depois que você os conhece.
Shevek tirou outro pedaço de papel do bolso e mostrou a Efor:
– Você sabe de onde veio isto?
Era o bilhete que ele tinha encontrado no casaco: “Junte-se a nós, seus irmãos”.
Após uma pausa – ele leu devagar, mexendo os lábios fechados –, Efor disse:
– Não sei de onde veio isto.
Shevek ficou decepcionado. Ocorrera-lhe que o próprio Efor estava em posição ideal para enfiar alguma coisa no bolso de seu “patrão”.
– Sei de quem veio isto, de certa maneira.
– Quem? Como posso chegar até eles?
Mais uma pausa.
– Negócio perigoso, sr. Shevek. – Virou-se e aumentou o jato d’água das torneiras.
– Não quero envolvê-lo. Se puder só me dizer... dizer aonde devo ir. O que devo procurar. Pelo menos um nome.
Uma pausa ainda mais longa. O rosto de Efor parecia aflito e tenso.
– Eu não... – ele disse, e parou. Depois disse abruptamente, e em voz muito baixa. – Veja, sr. Shevek, Deus sabe, eles querem o senhor, precisamos do senhor, mas veja, o senhor não sabe como é. Como vai se esconder? O homem como o senhor? Com a sua aparência? Aqui é uma armadilha, mas todo lugar é uma armadilha. O senhor pode fugir, mas não se esconder. Não sei o que lhe dizer. Vou dar nomes, claro. Pergunte a qualquer niota, ele vai lhe dizer aonde ir. Já estamos cansados. Precisamos de ar para respirar. Mas se pegarem o senhor, se o matarem, como eu fico? Trabalho para o senhor há oito meses, passei a gostar do senhor. A admirá-lo. Eles me abordam o tempo todo. Eu digo: “Não, deixem-no em paz. É um bom homem e não tem nada a ver com seus problemas. Deixem-no voltar para o lugar de onde veio, onde as pessoas são livres. Deixem alguém se livrar desta maldita prisão em que a gente está vivendo!”
– Não posso voltar. Ainda não. Quero conhecer essas pessoas.
Efor ficou em silêncio. Talvez tenha sido o hábito de uma vida inteira como criado, como alguém que obedece, que o fez enfim assentir com a cabeça e dizer, sussurrando:
– Tuio Maedda, é ele que o senhor quer. Na Travessa da Brincadeira, Cidade Velha. A mercearia.
– Pae diz que estou proibido de sair do campus. Podem me deter se me virem pegando o trem.
– Táxi, talvez – disse Efor. – Chamo um, o senhor desce pela escada. Conheço Kae Oimon, do ponto de táxi. Ele tem juízo. Mas não sei.
– Tudo bem. Agora mesmo. Pae esteve aqui há pouco tempo, ele me viu, pensa que vou ficar aqui dentro porque estou doente. Que horas são?
– Sete e meia.
– Se eu for agora, terei a noite inteira para descobrir aonde devo ir. Chame o táxi, Efor.
– Vou arrumar uma mala, senhor...
– Uma mala para quê?
– O senhor vai precisar de roupas...
– Já estou vestido! Vamos.
– O senhor não pode ir assim, sem nada – Efor protestou. Isso o deixou mais ansioso e inquieto do que qualquer outra coisa. – O senhor tem dinheiro?
– Ah... sim. Devo levar dinheiro.
Shevek já estava saindo; Efor coçou a cabeça, com ar sério e preocupado, mas foi até o telefone do corredor para chamar o táxi. Voltou e encontrou Shevek aguardando do lado de fora, diante da porta do corredor, já vestido com o casaco.
– Vá para o andar de baixo – Efor disse, contrariado. – Kae estará na porta dos fundos em cinco minutos. Diga para ele sair pelo Caminho do Bosque, não tem controle lá como no portão principal. Não vá pelo portão, eles vão parar vocês com certeza.
– Você levará a culpa por isso, Efor?
Ambos estavam sussurrando.
– Não sei que o senhor foi embora. De manhã digo que o senhor ainda não levantou. Mantê-los longe por um tempo.
Shevek segurou-lhe pelos ombros, deu-lhe um abraço, apertou-lhe a mão.
– Obrigado, Efor!
– Boa sorte – disse o homem, desnorteado. Shevek já tinha saído.
O dia dispendioso que Shevek passara com Vea tinha levado quase todo o seu dinheiro vivo, e a corrida de táxi até Nio levou mais dez unidades. Desceu numa das principais estações de metrô para a Cidade Velha, uma parte da cidade que ele nunca tinha visto. A Travessa da Brincadeira não estava no mapa, então ele desceu do trem na estação central da Cidade Velha. Quando saiu da espaçosa estação de mármore para a rua, parou, confuso. Aquilo não parecia Nio Esseia.
Caía uma chuva fina e nevoenta e já estava escuro; não havia luzes na rua. Os postes estavam lá, mas as luzes não estavam acesas, ou estavam quebradas. Aqui e ali, vislumbres amarelos cintilavam através das venezianas das janelas. Mais à frente na rua, uma luz irradiava de uma porta aberta, em torno da qual homens descansavam, conversando alto. O asfalto, escorregadio com a chuva, estava sujo de lixo e pedaços de papel. As vitrines das lojas, pelo que ele podia ver, eram baixas e estavam todas protegidas por metal pesado ou venezianas de madeira, exceto uma que tinha sido devastada pelo fogo e permanecia escura e vazia, cacos de vidro ainda grudados nas esquadrias das janelas quebradas. Pessoas passavam, sombras silenciosas e apressadas.
Uma idosa subia a escada atrás dele, e ele virou-se para lhe pedir informação. Sob a luz do globo amarelo que marcava a entrada do metrô, ele viu nitidamente o rosto dela; enrugado e branco, com o olhar apático e hostil dos fatigados. Grandes brincos de vidro roçavam-lhe as bochechas. Ela subia a escada com dificuldade, encurvada pelo cansaço, pela artrite ou por alguma deformidade na espinha. Mas não era velha, como ele havia pensado; não tinha nem 30 anos.
– Pode me dizer onde fica a Travessa da Brincadeira? – ele perguntou, gaguejando. Ela o olhou de relance, com indiferença, acelerou o passo quando chegou ao topo da escada e continuou andando sem dizer uma palavra.
Ele começou a andar pela rua ao acaso. O entusiasmo de sua súbita decisão e fuga de Ieu Eun havia se tornado apreensão, uma sensação de estar sendo impelido, caçado. Evitou o grupo de homens em torno da porta, o instinto o alertou de que um estranho desacompanhado não deve se aproximar daquele tipo de grupo. Quando viu um homem à sua frente caminhando sozinho, ele o alcançou e repetiu a pergunta. O homem disse:
– Não sei – e desviou de Shevek.
Não havia nada a fazer senão seguir em frente. Chegou a uma rua transversal mais bem iluminada, que se estendia pela chuva enevoada em ambas as direções, na profusão turva e sinistra de letreiros e anúncios luminosos. Havia muitas adegas e casas de penhores, algumas ainda abertas. Muitas pessoas estavam na rua, passando e se esbarrando, entrando e saindo das adegas. Havia um homem deitado, deitado na sarjeta, o casaco amarrotado sobre a cabeça, deitado na chuva, dormindo, doente, morto. Horrorizado, Shevek fitou o homem e as pessoas que passavam sem olhar.
Enquanto estava ali paralisado, alguém parou ao seu lado e ergueu os olhos para olhá-lo no rosto, um homem de 50 ou 60 anos, baixo, com a barba por fazer, de pescoço torto, olhos injetados e a boca desdentada aberta num riso aparvalhado. Ficou ali parado, rindo do homem grande e aterrorizado, apontando-lhe o dedo trêmulo.
– Onde arranjou todo esse cabelo, he, he, hein, esse cabelo, onde arranjou todo esse cabelo? – resmungou.
– Pode... pode me dizer onde fica a Travessa da Brincadeira?
– Claro, brincadeira, estou brincando, sem brincadeira, estou quebrado. Ei, tem um trocado para um trago numa noite fria? É claro que tem um trocado.
O homem se aproximou. Shevek afastou-se, vendo a mão aberta, mas sem entender.
– Vamos, uma brincadeira, senhor, um trocadinho – o homem resmungou, sem ameaça ou súplica, mecanicamente, a boca ainda aberta no sorriso sem sentido, a mão estendida.
Shevek entendeu. Apalpou o bolso, achou seu último dinheiro, jogou-o na mão do mendigo e então, com um medo frio que não era medo por si mesmo, passou pelo homem, que resmungava e tentava agarrar o seu casaco, e entrou pela primeira porta aberta. Ficava abaixo de um letreiro que dizia “Penhor e produtos usados – melhores preços”. Lá dentro, entre as prateleiras de casacos, sapatos e xales surrados, instrumentos danificados, lustres quebrados, pratos desemparelhados, vasilhas, colheres, contas, destroços e fragmentos, cada velharia marcada com um preço, ele ficou parado, tentando se recompor.
– Está procurando alguma coisa?
Shevek fez a sua pergunta mais uma vez.
O lojista, um homem moreno da mesma altura de Shevek, mas recurvado e magro, olhou-o de cima a baixo.
– Para que você quer ir lá?
– Estou procurando uma pessoa que mora lá.
– De onde você é?
– Preciso chegar a essa rua. Travessa da Brincadeira. Fica longe daqui?
– De onde você é, cavalheiro?
– Sou de Anarres, da Lua – Shevek disse, irritado. – Tenho que chegar à Travessa da Brincadeira, agora, esta noite.
– Você é ele? O cientista? Que diabos está fazendo aqui?
– Fugindo da polícia! Quer avisá-los que estou aqui ou vai me ajudar?
– Caramba – disse o homem. – Caramba. Olhe... – Hesitou, estava prestes a dizer algo, prestes a dizer outra coisa, e disse: – É só seguir em frente – e no mesmo fôlego, embora visivelmente com uma completa mudança de atitude, disse: – Tudo bem. Eu vou fechar. Te levo lá. Espere. Caramba!
Inspecionou os fundos da loja, apagou a luz, saiu com Shevek, abaixou as venezianas metálicas e as trancou, passou um cadeado na porta e começou a andar com passos rápidos, dizendo:
– Vamos!
Andaram 20 ou 30 quarteirões, cada vez mais entranhados no labirinto de ruas tortuosas e becos no coração da Cidade Velha. A chuva enevoada caía de modo suave na escuridão irregularmente iluminada, acentuando cheiros de decadência, de pedra e metal molhados. Viraram num beco sem iluminação, sem placa, entre cortiços velhos e altos, cujos térreos eram, em sua maioria, lojas. O guia de Shevek parou e bateu na veneziana fechada da janela de uma delas: V. Maedda, Secos e Molhados de Qualidade. Depois de um bom tempo a porta se abriu. O penhorista conferenciou com alguém lá dentro, depois gesticulou para Shevek, e ambos entraram. Uma garota os deixara entrar.
– Tuio está lá atrás. Venham – ela disse, olhando o rosto de Shevek na luz fraca de um corredor nos fundos. – Você é ele? – perguntou com voz fraca e ansiosa, e com um sorriso estranho. – Você é ele mesmo?
Tuio Maedda era um homem moreno de 40 e poucos anos, rosto inteligente e cansado. Fechou um livro no qual estivera escrevendo e levantou-se depressa quando entraram. Cumprimentou o penhorista pelo nome, mas em nenhum momento tirou os olhos de Shevek.
– Ele veio à minha loja perguntando como chegar aqui, Tuio. Ele diz que é o, você sabe, o que veio de Anarres.
– Você é, não é? – Maedda perguntou devagar. – Shevek. O que está fazendo aqui? – Fitou Shevek com olhos vivos e assustados.
– Procurando ajuda.
– Quem mandou você aqui?
– O primeiro homem a quem perguntei. Não sei quem você é. Perguntei para ele aonde eu poderia ir, ele disse para procurar você.
– Alguém mais sabe que você está aqui?
– Eles não sabem que fui embora. Amanhã saberão.
– Vá chamar Remeivi – Maedda disse à garota. – Sente-se, dr. Shevek. É melhor me contar o que está acontecendo.
Shevek sentou-se numa cadeira de madeira, mas não desabotoou o casaco. Estava tão cansado que tremia.
– Eu fugi – ele disse. – Da universidade, da prisão. Não sei para onde ir. Talvez tudo aqui seja prisão. Vim aqui porque falam das classes mais baixas, as classes trabalhadoras, e eu pensei, isso parece meu povo. Pessoas que podem se ajudar.
– Que tipo de ajuda está procurando?
Shevek esforçou-se para se recompor. Olhou um pouco em volta, para o escritório pequeno e sujo, e para Maedda.
– Tenho algo que eles querem – disse. – Uma ideia. Uma teoria científica. Vim de Anarres porque pensei que aqui eu poderia fazer o trabalho e publicá-lo. Não entendi que aqui uma ideia é propriedade do Estado. Não trabalho para o Estado. Não posso pegar o dinheiro e as coisas que me dão. Quero sair. Mas não posso ir para casa. Então vim para cá. Você não quer a minha ciência e talvez também não goste de seu governo.
Maedda sorriu.
– Não, não gosto. Mas meu governo também não gosta de mim. Você não escolheu o lugar mais seguro, nem para você, nem para nós... Não se preocupe. Hoje à noite é hoje à noite; decidiremos o que fazer.
Shevek tirou o bilhete que havia encontrado no bolso de seu casaco e o entregou para Maedda.
– Foi isso que me trouxe aqui. É de alguém que você conheça?
– Junte-se a nós, seus irmãos... Não sei. Pode ser.
– Vocês são odonianos?
– Parcialmente. Sindicalistas, libertários. Trabalhamos com os thuvianistas, com o Sindicato dos Trabalhadores Socialistas, mas somos anticentralistas. Você chegou num momento bem quente, sabe.
– A guerra?
Maedda confirmou com a cabeça.
– Foi anunciada uma passeata para daqui a três dias. Contra o recrutamento, os impostos de guerra, o aumento no preço dos alimentos. Há 400 mil desempregados em Nio Esseia, e eles aumentam impostos e preços. – Ele observara Shevek firmemente o tempo todo que conversaram; agora, como se o exame tivesse terminado, desviou o olhar, reclinando-se na cadeira. – Esta cidade está quase pronta para qualquer coisa. Precisamos de uma greve, uma greve geral, e de manifestações em massa. Como a Greve do Nono Mês que Odo liderou – acrescentou com um sorriso seco e tenso. – Uma Odo nos seria útil agora. Mas desta vez eles não têm uma Lua para nos comprar. Ou fazemos justiça aqui, ou em lugar nenhum. – Tornou a olhar para Shevek e em seguida falou numa voz mais suave: – Você sabe o que a sua sociedade tem significado aqui, para nós, nos últimos cento e cinquenta anos? Você sabe que quando as pessoas querem desejar boa sorte umas às outras dizem “que você renasça em Anarres”? Saber que ela existe, saber que existe uma sociedade sem governo, sem polícia, sem exploração econômica, saber que nunca mais se pode dizer que é só uma miragem, um sonho idealista! Imagino se você consegue entender plenamente por que o mantiveram tão bem escondido lá em Ieu Eun, dr. Shevek. Por que nunca permitiram que você aparecesse em qualquer reunião aberta ao público. Por que eles virão atrás de você como cães atrás de um coelho no momento em que descobrirem que você fugiu. Não é só porque eles querem essa sua ideia. Mas porque você é uma ideia. Uma ideia perigosa. A ideia do anarquismo, em carne e osso. Andando entre nós.
– Então vocês têm a sua Odo – a garota disse em sua voz baixa e urgente. Ela tinha retornado enquanto Maedda falava. – Afinal, Odo era apenas uma ideia. O dr. Shevek é a prova.
Maedda ficou em silêncio por um minuto.
– Uma prova indemonstrável – ele disse.
– Por quê?
– Se o povo souber que ele está aqui, a polícia também vai saber.
– Deixe que tentem vir aqui pegá-lo – disse a garota, e sorriu.
– A passeata será absolutamente sem violência – Maedda disse, com súbita violência. – Até o STS já aceitou isso!
– Eu não aceitei, Tuio. Não vou deixar os casacos-pretos socarem meu rosto ou estourarem a minha cabeça. Se eles me agredirem, vou revidar.
– Una-se a eles, se gosta do método que usam. Não se chega à justiça com a força!
– E não se chega ao poder com passividade.
– Não queremos poder. Queremos o fim do poder! O que me diz? – Maedda apelou para Shevek. – Os meios são os fins. Odo disse isso a vida inteira. Só a paz gera paz, só atos justos geram justiça! Não podemos divergir sobre isso na véspera da ação!
Shevek olhou para ele, para a garota e para o penhorista que estava parado, tenso, ouvindo tudo perto da porta. Disse, numa voz cansada e calma:
– Se eu puder ser útil, usem-me. Talvez eu possa publicar uma declaração sobre isso num dos seus jornais. Não vim a Urras para me esconder. Se todas as pessoas que eu conheço souberem que estou aqui, talvez o governo fique com medo de me prender em público. Não sei.
– É isso – disse Maedda. – Claro. – Seus olhos escuros brilharam de entusiasmo. – Onde diabos está Remeivi? Vá chamar a irmã dele, Siro, diga para ela ir atrás dele e trazê-lo aqui... Escreva por que veio para Urras, escreva sobre Anarres, escreva por que não vai se vender ao governo, escreva o que quiser... e nós publicaremos... Siro! Chame Meisthe também... Vamos escondê-lo, mas, por Deus, vamos avisar a todos os homens de A-Io que você está aqui, está conosco! – As palavras jorravam dele, suas mãos se agitavam enquanto falava, e ele andava rápido de um lado a outro da sala. – E então, depois da passeata, depois da greve, veremos. Talvez as coisas mudem até lá! Talvez você não precise se esconder!
– Talvez todas as portas das prisões se abram – disse Shevek. – Bem, dê-me papel, vou escrever.
A garota Siro aproximou-se dele. Sorrindo, parou como se fosse reverenciá-lo, um pouco timidamente, com decoro, e deu-lhe um beijo no rosto; depois saiu. O toque de seus lábios foi frio, e ele o sentiu no rosto por um longo tempo.
Passou um dia no sótão de um cortiço na Travessa da Brincadeira, e duas noites e um dia num porão debaixo de uma loja de móveis usados, um lugar estranho e sombrio, cheio de molduras de espelhos vazias e armações de camas quebradas. Escreveu. Trouxeram o que ele escrevera, impresso, em poucas horas: primeiro no jornal Era Moderna e, mais tarde, depois que fecharam a gráfica do Era Moderna e prenderam os editores, como panfletos rodados numa gráfica clandestina, junto com planos e incitações à passeata e à greve geral. Não revisou o que escrevera. Não prestou muita atenção em Maedda e nos outros, que descreviam o entusiasmo com que liam os jornais, a crescente adesão ao plano de greve, o efeito que sua presença na greve teria aos olhos do mundo. Quando o deixaram sozinho, tirou algumas vezes um caderninho do bolso da camisa e olhou as anotações em código e as equações da Teoria Temporal Geral. Olhou-as e não conseguiu lê-las. Não as compreendeu. Guardou o caderninho de novo e sentou-se com a cabeça entre as mãos.
Anarres não tinha nenhuma bandeira para ser agitada, mas entre os cartazes proclamando a greve geral e os estandartes azuis e brancos dos Sindicalistas e dos Trabalhadores Socialistas, havia muitas bandeirolas caseiras mostrando o Círculo verde da vida, o antigo símbolo do Movimento Odoniano de duzentos anos antes. Todas as bandeiras e cartazes brilhavam corajosamente à luz do sol.
Era bom estar ao ar livre, depois das salas trancadas, dos esconderijos. Era bom andar, balançar os braços, respirar o ar puro de uma manhã de primavera. Era assustador estar no meio de tanta gente, de uma multidão tão imensa, milhares marchando juntos, enchendo todas as ruas laterais, bem como a larga via pública na qual marchavam, mas era também estimulante. Quando cantaram, tanto o estímulo quanto o medo tornaram-se uma exaltação cega; seus olhos se encheram de lágrimas. Era intenso, nas ruas intensas suavizadas pelo ar livre e pelas distâncias, era indistinto, avassalador, aquele levantar de milhares de vozes numa só canção. O canto na frente da marcha, lá longe no fim da rua, e o das multidões infinitas que vinham atrás eram defasados pela distância que o som deve percorrer, de modo que a melodia parecia estar sempre atrasada e alcançando a si mesma, como um cânone, e todas as partes da canção eram cantadas ao mesmo tempo, no mesmo momento, embora cada cantor cantasse a música como um verso do início ao fim.
Ele não conhecia aquelas canções, apenas ouvia e deixava-se levar pela música, até que lá da frente veio refluindo, onda por onda pelo imenso e vagaroso rio de pessoas, uma cantiga que ele conhecia. Levantou a cabeça e cantou com eles, em sua própria língua, como a tinha aprendido: o Hino da Insurreição. Tinha sido cantada naquelas ruas, naquela mesma rua, duzentos anos antes, por aquele povo, seu povo.
Ó luz do oriente, desperta
Aqueles que dormiram!
A treva será rompida,
A promessa será cumprida
Fizeram silêncio nas fileiras em torno de Shevek para ouvi-lo, e ele cantou alto, sorrindo, seguindo em frente com eles.
Devia haver 100 mil pessoas na Praça do Capitólio, ou o dobro disso. Os indivíduos, como as partículas da Física Atômica, não podem ser contados, nem sua posição determinada, nem seu comportamento previsto. No entanto, como uma massa, aquela massa enorme fez o que se esperava que fizesse pelos organizadores da greve: ela se juntou, marchou em ordem, cantou, encheu a Praça do Capitólio e todas as ruas do entorno, ficou parada em sua imensidão inquieta, mas paciente, na claridade do meio-dia, ouvindo os oradores, cujas vozes, amplificadas de modo desordenado, ressoavam e ecoavam nas fachadas ensolaradas do Senado e do Diretório, estrepitavam e silvavam sobre o murmúrio vasto, contínuo e suave da própria multidão.
Havia mais gente ali na Praça do que habitantes em Abbenay, pensou Shevek, mas o pensamento era sem sentido, uma tentativa de quantificar a experiência direta. Ficou com Maedda e os outros na escadaria do Diretório, em frente às colunas e às altas portas de bronze, olhou para o trêmulo e sombrio campo de rostos e ouviu, como eles ouviam, os oradores: não ouvindo e compreendendo da maneira como a mente individual e racional percebe e compreende. Quando falou, falar não foi muito diferente de ouvir. Nenhuma vontade própria consciente o movia, não havia nele nenhuma consciência de si mesmo. Os múltiplos ecos de sua voz vindos dos distantes alto-falantes e das fachadas de pedra dos imensos prédios, entretanto, o distraíam um pouco, fazendo-o hesitar às vezes e falar muito devagar. Mas em nenhum momento hesitou nas palavras. Expressou o pensamento deles, a existência deles, na língua deles, embora não dissesse mais do que havia dito em seu próprio isolamento, no centro de seu próprio ser, muito tempo atrás.
– É o nosso sofrimento que nos une. Não é o amor. O amor não obedece à mente e transforma-se em ódio, quando forçado. O laço que nos une vai além da escolha. Somos irmãos. Somos irmãos naquilo que compartilhamos. Na dor, que cada um de nós deve sofrer sozinho, na fome, na pobreza, na esperança, sabemos que somos irmãos. Sabemos, pois tivemos de aprender. Sabemos que não há ajuda para nós exceto a ajuda mútua, que nenhuma mão vai nos salvar se não estendermos a nossa mão. E a mão que vocês estendem está vazia, como a minha mão está vazia. Vocês não têm nada. Não possuem nada. Não são donos de nada. Vocês são livres. Tudo o que vocês têm é aquilo que vocês são, e aquilo que dão.
“Estou aqui porque vocês veem uma promessa em mim, a promessa que fizemos há duzentos anos nesta cidade – a promessa cumprida. Nós a cumprimos, em Anarres. Não temos nada, exceto nossa liberdade. Não temos nada a lhes dar, exceto a sua própria liberdade. Não temos leis, exceto um único princípio de ajuda mútua entre indivíduos. Não temos governo, exceto o único princípio da livre associação. Não temos Estado, nação, presidente, primeiro-ministro, chefes, generais, patrões, banqueiros, senhorios, salários, caridade, polícia, soldados, guerras. Nem temos muito. Nós compartilhamos, não somos proprietários. Não somos prósperos. Nenhum de nós é rico. Nenhum de nós é poderoso. Se é Anarres o que vocês querem, se é o futuro que procuram, então eu lhes digo que vocês devem vir de mãos vazias. Devem vir sozinhos, e despidos, como a criança vem ao mundo, ao seu futuro, sem passado, sem nenhuma propriedade, dependendo totalmente de outras pessoas para viver. Não podem receber o que não deram, e vocês devem se dar. Não podem comprar a Revolução, não podem fazer a Revolução. Vocês só podem ser a Revolução. Ela está no seu espírito, ou não está em lugar nenhum.”
Quando estava terminando de falar, o barulho espalhafatoso dos helicópteros da polícia que se aproximavam começou a abafar a sua voz.
Afastou-se dos microfones e olhou para cima, semicerrando os olhos à luz do sol. Muitos na multidão repetiram o gesto, de modo que o movimento das cabeças e mãos foi como a passagem do vento sobre um ensolarado campo de trigo.
O ruído das hélices girando na imensa caixa de pedra da Praça do Capitólio era insuportável, um estrépito e um ganido como a voz de um monstruoso robô. Abafou até o barulho dos disparos de metralhadoras vindos dos helicópteros. Mesmo quando o ruído da multidão elevou-se num tumulto, o estrondo dos helicópteros ainda era audível, a gritaria estúpida das armas, a palavra sem sentido.
O fogo dos helicópteros centrava-se nas pessoas que estavam mais perto da escadaria do Diretório. O pórtico cheio de colunas do edifício ofereceu refúgio imediato aos que estavam na escadaria, e em poucos instantes ficou apinhado de gente. O ruído da multidão, à medida que as pessoas corriam em pânico em direção às oito ruas que saíam da Praça do Capitólio, elevou-se numa lamúria, como uma ventania. Os helicópteros estavam logo acima de suas cabeças, mas não era possível dizer se tinham cessado fogo ou se ainda disparavam; os mortos e feridos na multidão estavam tão comprimidos, tão próximos uns dos outros, que não caíam.
As portas revestidas de bronze do Diretório cederam com um estalo que ninguém ouviu. As pessoas se empurraram e pisotearam umas às outras em direção às portas, procurando abrigo da saraivada de balas. Empurraram-se às centenas para dentro das altas paredes de mármore, algumas se agachando para se esconder no primeiro refúgio que viam, algumas se empurrando adiante para encontrar uma saída pelos fundos do edifício, outras ficando para destruir o que podiam antes da chegada dos soldados. Quando chegaram, marchando em seus elegantes uniformes pretos pela escadaria, por entre os mortos e os homens e as mulheres agonizantes, encontraram na parede alta, cinza e polida do grande vestíbulo uma palavra escrita na altura dos olhos, em extensas manchas de sangue: ABAIXO!
Atiraram nos homens mortos que estavam estirados mais perto da palavra e, mais tarde, quando o Diretório foi recolocado em ordem, a palavra foi apagada com água, sabão e panos, mas ela permaneceu; tinha sido dita; tinha sentido.
Ele percebeu que era impossível seguir adiante com seu companheiro, que estava enfraquecendo, começando a cambalear. Não havia aonde ir, exceto para longe da Praça do Capitólio. Tampouco havia onde parar. A multidão tinha se reagrupado duas vezes no Bulevar Mesee, tentando enfrentar a polícia, mas os carros blindados do exército vieram atrás da polícia e impeliram as pessoas para a frente, em direção à Cidade Velha. Os casacos-pretos não tinham atirado nenhuma das duas vezes, embora se pudesse ouvir o barulho de armas em outras ruas. Os helicópteros ruidosos cruzavam as ruas de cima a baixo; não se podia escapar deles.
Seu companheiro respirava em soluços, sorvendo o ar, enquanto ele se esforçava para continuar. Shevek praticamente o carregara por vários quarteirões, e agora estavam muito atrás da concentração principal da multidão. Não adiantava tentar alcançá-la.
– Aqui, sente-se aqui – disse ao homem, e ajudou-o a sentar no primeiro degrau da entrada do porão de algum tipo de armazém, em cujas venezianas a palavra GREVE estava escrita a giz em letras garrafais. Ele desceu até a porta do porão e tentou abri-la; estava trancada. Todas as portas estavam trancadas. A propriedade era privada. Pegou um pedaço de pedra que tinha se soltado do canto da escada e arrebentou o cadeado e o trinco da porta, agindo não de forma furtiva ou vingativa, mas com a segurança de alguém destrancando a própria porta de entrada. Olhou lá dentro. O porão estava cheio de engradados e sem ninguém. Ajudou o companheiro a descer os degraus, fechou a porta e disse:
– Sente aqui, deite, se quiser. Vou ver se tem água.
O lugar, obviamente um depósito químico, tinha uma fileira de tanques de água, bem como um sistema de mangueiras para incêndios. O companheiro de Shevek estava desmaiado quando ele voltou. Aproveitou a oportunidade para lavar a mão do homem com um filete de água da mangueira e dar uma olhada no ferimento. Era pior do que tinha pensado. Mais de uma bala devia tê-lo atingido, arrancando dois dedos e destroçando a palma da mão e o pulso. Pedaços de osso lascado se projetavam para fora como palitos de dente. O homem estava em pé perto de Shevek e Maedda quando os helicópteros começaram a disparar e, atingido, tinha se chocado contra Shevek, agarrando-o para se apoiar.
Shevek o amparara com um braço durante toda a fuga através do Diretório; duas pessoas poderiam manter-se de pé melhor do que uma naquele primeiro tumulto da multidão.
Fez o que pôde para estancar o sangramento com um torniquete e para enfaixar, ou pelo menos cobrir, a mão destruída, e conseguiu fazer o homem beber um pouco d’água. Não sabia o nome dele; pela braçadeira branca, era um Trabalhador Socialista; parecia ter quase a mesma idade de Shevek, 40, ou um pouco mais.
Nas usinas do Sudoeste, Shevek tinha visto homens muito mais feridos do que aquele em acidentes e aprendera que as pessoas podem, incrivelmente, suportar a dor e sobreviver a ferimentos graves. Mas aquelas pessoas tinham recebido cuidados. Havia um cirurgião para amputar, plasma para compensar a perda de sangue, uma cama para se deitar.
Shevek sentou-se no chão ao lado do homem, que agora estava semiconsciente e em choque, e olhou em volta, as pilhas de engradados, as longas e escuras passagens entre eles, o lampejo esbranquiçado da luz do dia vindo das frestas das venezianas fechadas ao longo da parede da frente, as riscas brancas de salitre no teto, as marcas das botas dos trabalhadores e das rodas dos carrinhos no chão de cimento empoeirado. Uma hora, centenas de milhares de pessoas cantando a céu aberto; na hora seguinte, dois homens se escondendo num porão.
– Vocês são desprezíveis – Shevek disse em právico ao seu companheiro. – Não podem deixar as portas abertas. Nunca serão livres. – Pôs a mão delicadamente na testa do homem; estava fria e suada. Soltou o torniquete por um momento, levantou-se, atravessou o porão escuro até a porta e subiu para a rua. A frota de carros blindados já tinha passado. Uns poucos retardatários da passeata passavam apressados, de cabeça baixa, em território inimigo. Shevek tentou falar com dois deles; um terceiro enfim parou para ouvi-lo:
– Preciso de um médico, há um homem ferido. Pode mandar um médico aqui?
– Melhor tirá-lo de lá.
– Ajude-me a carregá-lo.
O homem voltou a andar apressado.
– Eles estão vindo para cá – ele disse, virando a cabeça para trás. – É melhor você dar o fora.
Ninguém mais passou, e logo Shevek viu um destacamento de casacos-pretos do final da rua. Ele voltou ao porão, fechou a porta, voltou para o lado do homem ferido e sentou-se no chão empoeirado.
– Inferno – disse.
Depois de um tempo, tirou o caderninho do bolso da camisa e começou a estudá-lo.
À tarde, quando olhou lá fora com cuidado, viu um carro blindado estacionado do outro lado da rua e dois outros atravessados no cruzamento. Isso explicou os gritos que estivera ouvindo: eram os soldados dando ordens uns aos outros.
Atro uma vez lhe explicara como isso funcionava, como os sargentos podiam dar ordens aos soldados, como os tenentes podiam dar ordens aos soldados e aos sargentos, como os capitães... e daí por diante, até chegar aos generais, que podiam dar ordens a todo mundo e não precisavam receber ordens de ninguém, exceto do comandante supremo. Shevek ouvira com aversão incrédula.
– Vocês chamam isso de organização? – ele perguntara. – Chamam até de disciplina? Mas não é nem uma coisa nem outra. É um mecanismo coercitivo de extraordinária ineficiência... uma espécie de máquina a vapor do sétimo milênio! Com uma estrutura tão rígida e frágil, o que se poderia fazer que valesse a pena? – Isso dera a Atro a oportunidade de argumentar a favor da guerra como geradora da coragem e da virilidade e como extirpadora dos incapazes, mas sua própria linha de raciocínio o forçara a concordar com a eficácia das guerrilhas, organizadas de baixo, autodisciplinadas. – Mas só funciona quando as pessoas pensam que estão lutando por algo que lhes pertence... você sabe, suas casas, ou alguma ideia, ou outra coisa – tinha dito o velho. Shevek desistira da discussão. Agora a continuava, no porão que escurecia por entre os engradados empilhados de produtos químicos sem rótulos. Explicou a Atro que agora entendia por que o exército era organizado daquela maneira. Era de fato muito necessário. Nenhuma forma racional de organização serviria ao propósito. Ele simplesmente não entendera que o propósito era habilitar homens a usar metralhadoras para matar homens e mulheres desarmados com facilidade, e em grandes quantidades, quando recebessem a ordem. Só não conseguia entender onde entrava a coragem, ou virilidade, ou capacidade.
De vez em quando falava com seu companheiro também, enquanto escurecia. O homem agora estava deitado de olhos abertos e gemeu duas vezes de um modo que comoveu Shevek, um gemido infantil, paciente. O homem fizera um esforço nobre de se manter de pé e andando o tempo todo, nos primeiros momentos de pânico da multidão forçando a entrada no Diretório, e correndo, e depois caminhando em direção à Cidade Velha; tinha escondido a mão ferida sob o casaco, pressionando-a contra o flanco, e tinha feito o possível para prosseguir e não deter Shevek. Da segunda vez que gemeu, Shevek segurou-lhe a mão ilesa e sussurrou:
– Não, não. Fique quieto, irmão –, só porque não suportava ouvir a dor do homem sem poder fazer nada por ele. O homem provavelmente pensou que ele deveria ficar quieto para que não os entregasse à polícia, pois concordou com um fraco movimento da cabeça e fechou a boca.
Os dois aguentaram ficar ali três noites. Durante todo esse tempo houve combates esporádicos no bairro do depósito, e o bloqueio do exército permaneceu naquele quarteirão do Bulevar Mesee. Em nenhum momento os combates se aproximaram dali, mas o lugar estava sob forte vigilância, portanto os homens escondidos não tinham chance alguma de saírem sem se renderem. Uma vez, quando seu companheiro estava acordado, Shevek lhe perguntou:
– Se saíssemos e nos entregássemos à polícia, o que fariam conosco?
O homem sorriu e sussurrou:
– Nos matariam.
Como tinha havido disparos dispersos nas redondezas, próximos e distantes, e explosões sólidas ocasionais, e barulho de helicópteros, a opinião do homem parecia bem fundamentada. O motivo de seu sorriso era menos claro.
Morreu por perda de sangue naquela noite, enquanto dormiam lado a lado para se aquecerem no colchão que Shevek fizera com palha tirada dos engradados. O corpo já estava rígido quando Shevek acordou, sentou-se e ouviu o silêncio no grande porão escuro, e na rua, e em toda a cidade, um silêncio de morte.
10
°°°°°
As ferrovias no Sudoeste seguiam, em sua maioria, sobre aterros de mais ou menos um metro acima da planície. Havia menos nuvem de poeira num leito mais elevado, o que oferecia aos viajantes uma bela vista da região desértica.
O Sudoeste era a única das oito Divisões de Anarres sem nenhuma grande fonte de água. Pântanos se formavam pelo degelo polar no verão, no extremo sul; nas proximidades do equador só havia lagos rasos e alcalinos, em vastas salinas. Não havia nenhuma montanha; a cada cem quilômetros, mais ou menos, uma cadeia de colinas estendia-se no sentido norte-sul, áridas, fendidas, desgastadas em penhascos e pináculos. Eram riscadas de violeta e vermelho, e nas faces dos rochedos o musgo da rocha, planta capaz de sobreviver aos extremos de calor, frio, aridez e vento, crescia em verticais ousados de cinza-verde, formando um desenho xadrez com os estriamentos de arenito. Não havia nenhuma outra cor na paisagem além de cinza-pardo, que desbotava num tom esbranquiçado nas salinas semicobertas de areia. Raras nuvens carregadas moviam-se acima na planície, branco vívido num céu apurpurado. Não faziam chuva, apenas sombra. O aterro e os trilhos cintilantes estendiam-se em linha reta atrás do trem a perder de vista, e em linha reta adiante a perder de vista.
– Não dá para fazer nada no Sudoeste – disse o maquinista – a não ser atravessá-lo.
Seu companheiro não respondeu, pois adormecera. Sua cabeça sacolejava com a vibração da locomotiva. As mãos, calejadas e enegrecidas por queimaduras de frio, descansavam soltas sobre as coxas; o rosto relaxado era enrugado e triste. Pegara carona na Montanha do Cobre e, como não havia outros passageiros, o maquinista tinha lhe pedido para se sentar na cabine e lhe fazer companhia. Ele dormira imediatamente. O maquinista o olhava de relance de vez em quando, um tanto decepcionado, mas com complacência. Tinha visto tanta gente exausta nos últimos anos que isso lhe parecia a condição normal.
No final da longa tarde o homem acordou e, depois de fitar o deserto por um instante, perguntou:
– Você sempre faz esse trajeto sozinho?
– Nos últimos três ou quatro anos.
– O trem já quebrou aqui?
– Duas vezes. Tem provisões e água de sobra no armário. Por falar nisso, está com fome?
– Ainda não.
– Eles mandam o carro de consertos lá de Solitário em um ou dois dias.
– Solitário é o nome do próximo povoado?
– Isso. Mil e setecentos quilômetros das Minas de Sedep até Solitário. A maior distância entre cidades em Anarres. Faço esse trajeto há onze anos.
– Não cansa?
– Não. Gosto de trabalhar sozinho.
O passageiro concordou com um movimento da cabeça.
– E é estável. Gosto de rotina; dá tempo de pensar. Quinze dias viajando, quinze de folga com a parceira em Nova Esperança. Entra ano, sai ano; seca, fome, o que for. Nada muda, aqui é sempre seca. Gosto da viagem. Pode pegar água, por favor? O refrigerador fica nos fundos, embaixo do armário.
Cada um tomou uma longa golada na garrafa. A água tinha um gosto alcalino, choco, mas estava fresca.
– Ah, que bom! – o passageiro disse, agradecido. Pôs a garrafa de lado e, voltando ao seu assento na frente da cabine, espreguiçou-se, forçando as mãos contra o teto. – Então você tem uma parceira – disse. Falou com uma simplicidade que agradou o maquinista, e ele respondeu:
– Há dezoito anos.
– Estão apenas começando.
– Caramba, concordo! Mas isso é uma coisa que certas pessoas não entendem. Mas eu penso que, se a gente copula bastante na adolescência, é quando se aproveita melhor, e também descobre que é tudo mais ou menos a mesma coisa! E uma coisa boa, claro! Mas mesmo assim, o diferente não é copular; é a outra pessoa. E dezoito anos é realmente só o começo, quando se fala em entender essa diferença. Pelo menos quando é uma mulher que a gente está tentando entender. A mulher não revela que está intrigada com um homem, mas talvez esteja blefando... De todo modo, o prazer está aí. A intriga, o blefe e todo o resto. A variedade. A variedade não é só ficar de lá para cá o tempo todo. Eu, jovem, andei por Anarres inteiro. Dirigi e carreguei em todas as Divisões. Devo ter conhecido cem garotas em cidades diferentes. Ficou enfadonho. Voltei para cá e faço este percurso a cada três décades, entra ano e sai ano, por este mesmo deserto onde não dá para distinguir uma colina de areia da outra, e é tudo a mesma coisa por 3 mil quilômetros, para onde quer que a gente olhe, e depois vou para casa, para a mesma parceira... E eu nunca, nenhuma vez, fiquei enfadado. Não é andar de um lugar a outro que faz a gente se sentir vivo. É ter o tempo a seu favor. Trabalhando com ele, não contra ele.
– É isso aí – disse o passageiro.
– Onde está a parceira?
– No Nordeste. Há quatro anos.
– Tempo demais – disse o maquinista. – Vocês deviam ter sido enviados para um posto juntos.
– Não onde eu estava.
– Onde era?
– Em Cotovelo, e depois Vale Grande.
– Já ouvi falar em Vale Grande. – Ele agora olhava o passageiro com o respeito devido a um sobrevivente. Viu a aparência seca da pela bronzeada do homem, uma espécie de desgaste até os ossos, que ele vira em outros que tinham passado pelos anos da fome na Poeira. – Não deveríamos ter tentado manter aquelas usinas funcionando.
– Precisávamos dos fosfatos.
– Mas dizem que, quando o trem de provisões foi atacado em Portal, eles mantinham as usinas funcionando enquanto as pessoas morriam de fome no trabalho. Elas se afastavam um pouco, deitavam e morriam. Foi assim mesmo?
O homem confirmou com um movimento da cabeça. Não disse nada. O maquinista não insistiu, mas, após um momento, falou:
– Fiquei imaginando o que faria se um dia o meu trem fosse atacado.
– Nunca foi?
– Não. É que não carrego comida; um vagão, no máximo, até Sedep do Norte. Esta é uma rota de minérios. Mas, se eu pegasse uma rota de provisões e eles me parassem, o que eu faria? Passaria por cima de todo mundo e levaria a comida para onde ela deveria ir? Mas que diabos, vou passar por cima de crianças, de velhos? Estão fazendo coisa errada, mas vou matá-los por isso? Não sei!
Os trilhos retos e brilhantes corriam sob as rodas. Nuvens a oeste projetavam grandes miragens tremulantes na planície, sombras de sonhos de lagos secos há 10 milhões de anos.
– Um síndico, um camarada que conheço há anos, fez exatamente isso, ao norte daqui, em 66. Tentaram descarrilar um vagão de cereais do trem dele. Ele recuou o trem e matou dois antes de saírem dos trilhos; eram como vermes num peixe podre, um monte, ele disse. Ele pensou: tem oitocentas pessoas esperando esse vagão de cereais, e quantas podem morrer se ele não chegar lá? Mais de duas, muito mais. Então, parece que ele estava certo. Mas, caramba! Não sou capaz de fazer essas contas, não sei se é certo contar pessoas como se contam números. Mas então o que você faz? Quem você mata?
– No meu segundo ano no Cotovelo, eu fazia as listas de trabalho, e o sindicato cortou as rações. Quem trabalhava seis horas na fábrica recebia a ração completa... que mal dava para aquele tipo de serviço. Quem trabalhava meio período recebia três quartos de ração. Se ficavam doentes ou muito fracos, recebiam metade. Com meia ração não se podia melhorar. Não se podia voltar ao trabalho. Talvez conseguisse ficar vivo. Eu tinha de deixar pessoas com meia ração, pessoas que já estavam doentes. Eu estava trabalhando em tempo integral, às vezes dez horas, no escritório, então recebia rações completas: eu tinha direito a essas rações, tinha direito por fazer as listas de quem deveria passar fome – os olhos claros do homem olharam em direção à luz seca à frente. – Como você disse, eu tinha de contar pessoas.
– Desistiu do trabalho?
– Sim, desisti. Fui para o Vale Grande. Mas alguém assumiu as listas nas usinas do Cotovelo. Sempre existe alguém querendo fazer listas.
– Ora, isso está errado – disse o maquinista, franzindo o cenho em direção ao clarão da luz. Tinha a cabeça e o rosto morenos e calvos, sem nenhum pelo entre as bochechas e o occipício, embora tivesse menos de 45 anos. Era um rosto forte, duro e inocente. – Está totalmente errado. Eles deveriam ter fechado as usinas temporariamente. Não se pode pedir a um homem que faça isso. Não somos odonianos? Tudo bem que um homem pode perder a paciência. Foi isso o que aconteceu com as pessoas que atacaram os trens. Elas estavam com fome, as crianças estavam com fome, estavam com fome há muito tempo, tem comida passando e não é para elas. Elas perdem a paciência e vão atrás da comida. Foi a mesma coisa com o amigo, aquelas pessoas estavam desmontando o trem sob a responsabilidade dele, ele perdeu a paciência e deu marcha à ré. Ele não contou as pessoas. Não naquele momento! Mais tarde, talvez. Porque ele ficou doente quando viu o que tinha feito. Mas o que mandaram você fazer, dizer quem vive e quem morre... Isso não é um trabalho que a pessoa tem direito de fazer, nem de pedir a ninguém para fazer.
– Estamos passando por tempos difíceis, irmão – disse o passageiro, com delicadeza, observando o clarão da planície onde as sombras de água oscilavam e flutuavam com o vento.
O velho dirigível cargueiro deslizou acima das montanhas e atracou no aeroporto da Montanha Rim. Os passageiros desembarcaram. No instante exato em que o último deles tocou o solo, o solo se abriu e tremeu.
– Terremoto – observou o passageiro; ele era um morador local voltando para casa. – Caramba, olhe aquela poeira! Qualquer dia a gente vai descer aqui e não vai ter mais montanha nenhuma.
Dois passageiros preferiram aguardar os caminhões serem carregados e viajar com eles. Shevek preferiu caminhar, já que o morador local disse que Chakar ficava a apenas seis quilômetros montanha abaixo.
A estrada seguia por uma série de longas curvas, com uma leve subida no fim de cada uma. Os aclives à esquerda da estrada e os declives à direita estavam cheios de holum rasteira; fileiras de grandes árvores holum, espaçadas como se tivessem sido plantadas, acompanhavam os veios do lençol de água ao longo das encostas das montanhas. No topo de um aclive, Shevek viu o dourado luminoso do crepúsculo sobre as colinas escuras e sinuosas. Não havia nenhum sinal de vida humana ali, exceto pela própria estrada, descendo no anoitecer. Quando começou a descer, o ar rosnou um pouco, e ele sentiu uma estranheza: não um sobressalto, não um tremor, mas um deslocamento, uma convicção de que as coisas estavam erradas. Concluiu o passo que havia começado, e o solo estava ali para encontrar seu pé. Prosseguiu; a estrada continuou descendo. Ele não estivera em perigo, mas nunca, em qualquer situação de perigo, tinha ficado tão perto da morte. A morte estava nele, debaixo dele; a própria terra era incerta, instável. O duradouro, o estável é uma promessa feita pela mente humana. Shevek sentiu o ar puro e frio em sua boca e em seus pulmões. Escutou. Ao longe, uma torrente na montanha ressoava em algum lugar, caindo na escuridão.
Chegou a Chakar no início da noite. O céu estava violeta-escuro sobre os cumes negros das montanhas. As luzes da rua tremeluziam brilhantes e solitárias. As fachadas das casas pareciam esboços na luz artificial, atrás delas a erma escuridão. Havia muitos terrenos vazios, muitas casas sozinhas: uma cidade velha, uma cidade de fronteira, isolada, espalhada. Uma mulher que passava indicou o Domicílio Oito a Shevek:
– Por ali, irmão, depois do hospital, no final da rua. – A rua se estendeu no escuro sob a encosta da montanha e terminou na porta de um prédio baixo. Ele entrou e deparou com o vestíbulo de um domicílio rural que o remeteu à infância, aos lugares em Liberdade, Monte Tambor, Campina Vasta, onde ele e seu pai moraram: a luz fraca, os tapetes remendados; um folheto descrevendo um grupo local para formação de maquinistas, uma folha com datas de reuniões do sindicato e um cartaz de peça teatral de três semanas antes, afixados no quadro de avisos; um retrato amador de Odo emoldurado acima do sofá da sala comum; um harmônio artesanal; uma lista dos residentes e um aviso pendurado na porta com os horários da água quente nos banheiros da cidade.
Sherut, Takver, nº 3.
Ele bateu, observando o reflexo da luz do teto na superfície escura da porta, que não se ajustava muito bem ao batente. Uma mulher disse:
– Entre! – Ele abriu a porta. A luz mais forte do quarto estava atrás dela. Por um momento, não conseguiu ver bem o suficiente para ter certeza de que era Takver. Ela ficou olhando para ele. Estendeu a mão, como se fosse empurrá-lo ou segurá-lo, um gesto incerto, inacabado. Ele pegou a mão dela, e então se abraçaram, se uniram, e ficaram abraçados na terra insegura.
– Entre – disse Takver –, ah, entre, entre.
Shevek abriu os olhos. Mais adiante dentro do quarto, que agora parecia muito claro, ele viu o rosto sério e atento de uma pequena criança.
– Sadik, este é Shevek.
A criança foi até Takver, agarrou a perna da mãe e rompeu em lágrimas.
– Mas não chore, por que está chorando, benzinho?
– E por que você está chorando? – sussurrou a criança.
– Porque estou feliz! Só porque estou feliz. Sente no meu colo. Mas Shevek, Shevek! A sua carta só chegou ontem. Eu ia ao telefone depois de levar Sadik para dormir. Você disse que ia telefonar hoje à noite. Não vir hoje à noite! Oh, não chore, Sadikinha, olhe, não estou mais chorando, estou?
– O homem chorou também.
– Claro que chorei.
Sadik olhou para ele com uma curiosidade desconfiada. Estava com 4 anos. Tinha uma cabeça redonda, um rosto redondo, ela era redonda, morena, felpuda, macia.
Não havia mobília no quarto, exceto as duas camas. Takver tinha se sentado em uma, com Sadik no colo, Shevek sentou-se na outra e esticou as pernas. Enxugou os olhos com as costas das mãos e estendeu-as, mostrando os nós dos dedos para Sadik.
– Está vendo? – ele disse. – Estão molhadas. E o nariz está escorrendo. Você tem um lenço?
– Tenho. Você não tem?
– Eu tinha, mas perdi numa lavanderia.
– Você pode compartilhar o lenço que eu uso – disse Sadik, após uma pausa.
– Ele não sabe onde está – disse Takver.
Sadik desceu do colo da mãe e foi buscar um lenço na gaveta do armário. Voltou e o deu a Takver, que o entregou para Shevek.
– Está limpo – disse Takver, com seu sorriso largo. Sadik observava atentamente enquanto Shevek limpava o nariz.
– Teve um terremoto aqui pouco tempo atrás?
– Treme o tempo todo. A gente até para de perceber – disse Takver, mas Sadik, encantada por poder dar informação, disse em sua voz aguda, mas rouca:
– Sim, teve um grande antes do jantar. Quando tem terremoto, as janelas ficam chiando e o chão balança, e aí a gente tem que ficar debaixo da porta ou lá fora.
Shevek olhou para Takver; ela retribuiu o olhar. Takver tinha envelhecido mais de quatro anos. Nunca tivera dentes bons e agora perdera dois, bem atrás dos caninos superiores, de modo que as falhas apareciam quando ela sorria. A pele já não tinha a firmeza lisa da juventude, e seu cabelo, preso impecavelmente para trás, estava sem brilho.
Shevek viu claramente que ela perdera a graça da juventude e parecia uma mulher simples, cansada, chegando à meia-idade. Viu isso com mais clareza do que qualquer um poderia ter visto. Viu tudo a respeito de Takver de uma maneira que ninguém mais poderia ter visto, do ponto de vista de anos de intimidade e anos de saudade. Ele a viu como ela era.
Seus olhos se encontraram.
– Como... como têm sido as coisas por aqui? – ele perguntou, corando na mesma hora e obviamente falando ao acaso. Ela sentiu a onda palpável, o ímpeto do desejo dele. Ela também ficou levemente ruborizada e sorriu. Disse em sua voz rouca:
– Ah, a mesma coisa de quando conversamos pelo telefone.
– Isso foi há seis décades!
– As coisas continuam as mesmas por aqui.
– É muito bonito aqui... as colinas. – Ele viu nos olhos de Takver a escuridão dos vales das montanhas. A intensidade de seu desejo sexual teve um aumento abrupto, deixando-o tonto por um momento; depois superou a crise temporariamente e tentou diminuir a ereção. – Você acha que vai querer ficar aqui? – ele perguntou.
– Tanto faz – ela disse, em sua voz estranha, profunda, rouca.
– Seu nariz ainda está escorrendo – observou Sadik, sutilmente, mas sem viés emocional.
– Ainda bem que é só isso – disse Shevek. Takver disse:
– Quieta, Sadik, não egoíze! – Os dois adultos riram. Sadik continuou a estudar Shevek.
– Eu gosto da cidade, Shev. As pessoas são simpáticas... todas elas. Mas o trabalho não é muito. É só trabalho de laboratório no hospital. O problema da falta de técnicos quase acabou, e eu poderia ir embora logo sem deixá-los em dificuldade. Gostaria de voltar a Abbenay, se é isso o que você estava pensando. Você já conseguiu seu posto de volta?
– Não pedi e não verifiquei. Estou na estrada há uma décade.
– O que você estava fazendo na estrada?
– Viajando, Sadik.
– Ele estava atravessando meio mundo, lá do sul, dos desertos, para chegar até nós – disse Takver. A criança sorriu, ajeitou-se numa posição mais confortável no colo da mãe e bocejou.
– Já comeu, Shev? Está cansado? Tenho que levar esta criança para a cama, eu estava pensando em sair quando você bateu na porta.
– Ela já dorme no dormitório?
– Desde o início deste trimestre.
– Eu já tinha 4 anos – declarou Sadik.
– Você diz eu já tenho 4 anos – corrigiu Takver, tirando-a do colo com delicadeza, a fim de pegar seu casaco no armário. Sadik ficou de pé, de perfil para Shevek; ela estava extremamente consciente da presença dele e dirigia suas observações a ele. – Mas eu tinha 4 anos, agora tenho mais de 4.
– Uma temporalista, como o pai!
– Você não pode ter 4 anos e mais de 4 anos ao mesmo tempo, pode? – perguntou a criança, percebendo a aprovação, e agora falando diretamente com Shevek.
– Ah, sim, facilmente. E você pode ter 4 anos e quase 5 ao mesmo tempo também. – Sentado na cama baixa, ele podia manter a cabeça no mesmo nível da cabeça da criança, de modo que ela não precisava olhar para cima para vê-lo. – Mas eu tinha esquecido que você já tem quase 5 anos, entende? Quando a vi pela última vez, você era uma coisinha de nada.
– É mesmo? – Seu tom de voz era sem dúvida galanteador.
– Sim. Você era mais ou menos deste tamanho. – Ele afastou um pouco as mãos uma da outra.
– Eu já sabia falar?
– Você falava uá e algumas outras coisas.
– Eu acordava todo mundo do dormitório, como o bebê de Cheben? – ela interrogou, com um sorriso largo e alegre.
– Claro.
– Quando eu aprendi a falar de verdade?
– Com mais ou menos 1 ano e meio – disse Takver – e depois nunca mais calou a boca. Onde está o gorro, Sadikinha?
– Na escola. Eu odeio o gorro que eu uso – ela informou a Shevek.
Caminharam com a criança pelas ruas ventosas até o dormitório do centro de aprendizagem e a levaram até o saguão. Era também um lugar pequeno e decadente, mas alegrado pelos desenhos das crianças, pelas várias miniaturas de máquinas feitas de bronze e pela bagunça espalhada de casas de brinquedo e bonecos de madeira pintada. Sadik deu um beijo de boa-noite na mãe e depois virou-se para Shevek e estendeu os braços; ele se curvou até ela; ela o beijou sem rodeios, mas com firmeza, e disse:
– Boa noite! – Foi embora com a assistente noturna, bocejando. Ouviram a voz da criança e a da assistente, pedindo silêncio de maneira carinhosa.
– Ela é linda, Takver. Linda, inteligente, forte.
– Receio que seja mimada.
– Não, não. Você se saiu bem, maravilhosamente bem... numa época tão difícil...
– Não tem sido tão difícil aqui em Chakar, não do jeito que foi no sul – ela disse, olhando para ele enquanto saíam do dormitório. – As crianças eram alimentadas aqui. Não muito bem, mas o suficiente. A comunidade local consegue plantar seu alimento. Nem que seja holum rasteira. Dá para juntar sementes de holum silvestre e triturá-las para uma refeição. Ninguém passou fome aqui. Mas eu realmente mimei Sadik. Eu a amamentei até os 3 anos, claro, por que não, se não havia nada de bom para dar a ela depois que desmamasse! Mas eles desaprovavam, lá na estação de pesquisa em Rolny. Queriam que eu a colocasse na creche em período integral. Diziam que eu estava sendo proprietária com a criança e não estava me dedicando integralmente ao esforço social da crise. E tinham razão, na verdade. Mas eram tão moralistas. Nenhum deles entendia o que era estar sozinho. Eram todos grupais, sem personalidade individual. Eram as mulheres que me chateavam por causa da amamentação. Verdadeiras exploradoras de corpos. Fiquei lá porque a comida era boa; experimentando as algas para ver se eram palatáveis, às vezes a gente acabava comendo bem mais do que a porção padrão, mesmo que as algas tivessem gosto de cola; fiquei até eles conseguirem me substituir por alguém que se adaptasse melhor. Depois fui para Recomeço e fiquei lá mais ou menos dez décades. Isso foi no inverno, há dois anos, aquele período longo em que a correspondência não chegava, quando as coisas estavam tão ruins lá onde você estava. Em Recomeço vi este posto numa lista e vim para cá. Sadik ficou comigo no domicílio até este outono. Ainda sinto falta dela. O quarto ficou tão silencioso.
– Você não tem uma companheira de quarto?
– Sherut, ela é muito simpática, mas trabalha à noite no hospital. Já estava na hora de Sadik ir, é bom para ela morar com outras crianças. Ela estava ficando tímida. Ela aceitou muito bem ir para lá, foi muito estoica. Crianças pequenas são estoicas. Choram se tropeçam e caem, mas aceitam as coisas difíceis quando elas vêm, não ficam choramingando como tantos adultos.
Seguiram caminhando lado a lado. As estrelas de outono já tinham surgido, incríveis em número e brilho, luzindo e quase piscando, por causa da poeira levantada pelo terremoto e pelo vento, de modo que o céu inteiro parecia tremeluzir, um brilho oscilante de diamantes lapidados, uma cintilação de luz solar num mar negro. Sob aquele esplendor inquieto, as colinas pareciam escuras e sólidas, os telhados bem demarcados, as luzes dos postes, fracas.
– Faz quatro anos – disse Shevek. – Faz quatro anos que voltei a Abbenay daquele lugar no Poente Sul... como era o nome?... Fontes Vermelhas. Foi numa noite assim, com vento e estrelas. Eu corri, corri o caminho todo, desde a Rua da Planície até o domicílio. E você não estava lá, tinha ido embora. Quatro anos!
– No momento em que parti de Abbenay percebi que estava sendo uma idiota em ir embora. Com fome ou sem fome, eu deveria ter recusado o posto.
– Não teria feito muita diferença. Sabul estava me esperando para me dizer que eu estava fora do Instituto.
– Mas eu estaria lá, e você não teria ido para a Poeira.
– Talvez não, mas pode ser que não tivéssemos conseguido postos no mesmo lugar. Por um tempo, parecia que nada conseguia permanecer no mesmo lugar, não é? As cidades do Sudoeste... não sobrou nenhuma criança lá. Ainda não tem nenhuma. Mandaram todas para o Norte, para regiões onde existe comida local, ou pelo menos uma chance. E eles ficaram para manter as minas funcionando. É um milagre termos vencido tantas dificuldades, todos nós, não é?... Mas, caramba, vou fazer o meu próprio trabalho agora!
Ela segurou o braço dele. Ele parou abruptamente, como se o toque dela o tivesse eletrocutado na hora. Ela o sacudiu, sorrindo.
– Você não comeu, né?
– Não. Ah, Takver, senti tanto a sua falta, tanto!
Abraçaram-se ardorosamente, na rua escura entre os postes de luz, sob as estrelas. Afastaram-se com o mesmo ímpeto, e Shevek encostou-se no muro mais próximo.
– É melhor eu comer alguma coisa – ele disse.
– Sim, senão você vai cair de cara no chão! Vamos.
Caminharam um quarteirão até o refeitório, o maior prédio em Chakar. O jantar regular já tinha acabado, mas os cozinheiros estavam comendo e providenciaram ao viajante uma tigela de cozido e pão à vontade. Todos se sentaram à mesa mais próxima da cozinha. As outras mesas já tinham sido limpas e postas para a manhã seguinte. O grande salão parecia uma caverna, o teto alto nas trevas, a outra extremidade obscura, exceto onde uma tigela ou uma xícara cintilavam numa mesa escura, refletindo a luz. Os cozinheiros e os atendentes formavam uma equipe silenciosa, cansada após um dia de trabalho; comiam depressa, sem falar muito, não prestando muita atenção em Takver e no estranho. Um após o outro, terminavam de comer, deixavam a mesa e levavam o prato aos lavadores na cozinha. Uma mulher idosa disse, ao sair:
– Não tenham pressa, ammari, eles ainda têm uma hora de lavagem de louça. – Ela tinha um rosto severo e parecia austera, não maternal, não benevolente; mas falou com compaixão, com a caridade dos iguais. Não podia fazer nada por eles, exceto dizer “Não tenham pressa” e olhar para eles por um momento com o olhar do amor fraterno.
Eles também não podiam fazer mais nada por ela, e muito pouco um pelo outro.
Voltaram ao Domicílio Oito, Quarto 3, e ali o longo desejo foi satisfeito. Nem sequer acenderam a luz; ambos gostavam de fazer amor no escuro. Na primeira vez, ambos gozaram quando Shevek a penetrou; na segunda vez, se contorceram e gritaram num furor de êxtase, prolongando o clímax como se adiassem o momento da morte; na terceira vez, ambos estavam meio adormecidos, girando em torno do centro de prazer infinito, em torno da essência um do outro, como planetas girando, de modo cego e silencioso, no fluxo da luz solar, em torno do centro comum de gravidade, rodando, girando infinitamente.
Takver acordou ao amanhecer. Apoiou-se no cotovelo e olhou para o quadrado cinza da janela, depois olhou para Shevek. Ele estava deitado de costas, respirando tão calmo que seu peito mal se movia, o rosto um pouco jogado para trás, distante e circunspecto, na luz fraca. Nós viemos, pensou Takver, de uma longa distância um para o outro. Sempre foi assim. Atravessamos grandes distâncias, longos anos, abismos de probabilidade. É porque ele vem de tão longe que nada pode nos separar. Nada, nem as distâncias, nem os anos podem ser maiores do que a distância que já existe entre nós, a distância de nosso sexo, a diferença de nosso ser, nossas mentes; essa lacuna, esse abismo que transpomos com um olhar, com um toque, com uma palavra, a coisa mais fácil do mundo. Veja como ele está longe, adormecido. Veja como ele está longe, ele sempre está longe. Mas ele volta, ele volta, ele volta...
Takver avisou sobre sua partida no hospital de Chakar, mas ficou até conseguirem substituí-la no laboratório. Trabalhava num turno de oito horas – no terceiro trimestre do ano 168, muitas pessoas ainda trabalhavam em longos turnos nos postos de emergência, pois, embora a seca tivesse abrandado no inverno de 167, a economia ainda não havia de modo algum retornado ao normal. “Trabalho longo e refeição curta” ainda era a regra para as pessoas em trabalho qualificado, mas a comida era agora adequada a um dia de trabalho, o que não fora o caso nos dois anos anteriores.
Shevek não fez muita coisa durante algum tempo. Não se considerava doente; após quatro anos de fome, todos estavam tão acostumados aos efeitos das privações e da subnutrição que já os consideravam normais. Estava com a tosse da poeira, que era endêmica nas comunidades dos desertos do sul, uma irritação crônica dos brônquios semelhante à silicose e outras doenças que acometiam os mineiros, mas isso também era algo que se aceitava como natural onde estavam vivendo. Ele simplesmente gostava do fato de que, se não tivesse vontade de fazer nada, não precisava fazer nada.
Por alguns dias ele e Sherut compartilhavam o quarto durante o dia, ambos dormindo até o final da tarde; depois Sherut, uma mulher pacata de 40 anos, foi morar com outra mulher que trabalhava à noite, e Shevek e Takver ficaram com o quarto só para eles, nas quatro décades seguintes em que permaneceram em Chakar. Enquanto Takver trabalhava, ele dormia, ou saía para caminhar nos campos ou nas colinas áridas e estéreis que dominavam a cidade. Ia até o centro de aprendizagem no final da tarde e observava Sadik e as outras crianças nos playgrounds, ou se envolvia, como os adultos muitas vezes faziam, num dos projetos das crianças – um grupo de carpinteiros loucos de 7 anos de idade, ou dois topógrafos sóbrios enfrentando problemas com triangulação. Depois acompanhava Sadik até o quarto; encontravam Takver quando ela saía do trabalho e iam juntos aos banheiros e ao refeitório. Uma ou duas horas após o jantar, ele e Takver levavam a criança de volta ao dormitório e retornavam ao quarto. Os dias transcorriam na mais completa paz, na luz do sol de outono, no silêncio das colinas. Para Shevek, era um tempo fora do tempo, a favor do fluxo, irreal, duradouro, encantado. Ele e Takver às vezes conversavam até muito tarde; outras noites iam para a cama logo após o anoitecer e dormiam nove, dez horas no silêncio profundo e cristalino da noite montanhosa.
Ele tinha trazido bagagem: uma malinha surrada feita de compensado, com seu nome escrito à tinta preta, em letras grandes. Quando em viagem, todos os anarrestis carregavam papéis, presentes e o par de botas sobressalente no mesmo tipo de mala, de compensado laranja, toda arranhada e amassada. A dele continha uma camisa nova que ele apanhara quando passou por Abbenay, dois livros e alguns papéis, e um curioso objeto que, ali dentro da mala, parecia consistir de uma série de espirais de arame achatado e algumas contas de vidro. Ele revelara o objeto, com algum mistério, para Sadik, em sua segunda noite em Chakar.
– É um colar! – a criança disse, com espanto. As pessoas das cidades pequenas usavam muitas joias. Na sofisticada Abbenay, sentia-se mais a tensão entre o princípio da não posse e o impulso de se autoenfeitar, e lá um anel ou um broche era o limite do bom gosto. Mas em outros lugares, a profunda relação entre o estético e o aquisitivo simplesmente não era motivo de preocupação; as pessoas se adornavam descaradamente. A maioria dos distritos possuía um joalheiro profissional, que fazia esse trabalho por amor e pela fama, bem como oficinas de artesanato onde se podia mandar fazer joias sob encomenda, de acordo com o próprio gosto, com os modestos materiais disponíveis: cobre, prata, contas, espinélio e granadas e diamantes amarelos do Nascente Sul. Sadik nunca tinha visto muitas coisas brilhantes e delicadas, mas conhecia colares, e por isso o identificou.
– Não. Olhe – disse seu pai, e com solenidade e habilidade ergueu o objeto pelo fio que ligava as várias espirais. Pendurado em sua mão, o objeto ganhou vida, as espirais girando livres, descrevendo esferas etéreas uma dentro da outra, as contas de vidro refletindo a luz do quarto.
– Ah, que lindo! – disse a criança. – O que é isso?
– É para pendurar no teto; tem um prego? O cabide do casaco serve, até eu conseguir um prego nos Suprimentos. Sabe quem fez isso, Sadik?
– Não... Foi você.
– Ela fez. A mãe. Ela fez – Ele se virou para Takver. – É o meu preferido, o que estava acima da escrivaninha. Dei os outros para Bedap. Não ia deixar lá para aquela velha, qual o nome dela, a Mãe Inveja do final do corredor?
– Ah... Dunub! Há anos que não me lembrava mais dela! – Takver riu, trêmula. Olhou o móbile como se estivesse com medo dele.
Sadik ficou observando o móbile girar em silêncio, em busca de seu equilíbrio.
– Eu queria – ela disse enfim, com cautela – poder partilhar dele uma noite, em cima da cama que eu durmo no dormitório.
– Eu vou fazer um para você, benzinho. Para todas as noites.
– Você sabe fazer mesmo, Takver?
– Bem, eu sabia. Posso fazer um para você. – As lágrimas agora eram evidentes nos olhos de Takver. Shevek deu-lhe um abraço. Os dois ainda estavam tensos, esgotados. Com olhos calmos e observadores, Sadik olhou por um instante os dois se abraçando, depois tornou a contemplar a Ocupação do Espaço Inabitado. Quando ficavam sozinhos à noite, Sadik com frequência era o assunto das conversas. Takver estava um tanto concentrada demais na criança, por falta de outras intimidades, e seu forte bom senso foi obscurecido pelas ambições e ansiedades maternais. Isso não era natural nela; nem a competição nem a proteção eram motivações fortes na vida anarresti. Ela estava contente em desabafar suas preocupações e livrar-se delas, o que a presença de Shevek lhe possibilitou fazer. Nas primeiras noites, foi ela quem mais falou, e ele escutou como se estivesse escutando música ou barulho de água corrente, sem tentar responder. Ele não conversara muito nos últimos quatro anos; tinha perdido o hábito de conversar. Ela o libertou desse silêncio, como sempre fizera. Depois, era ele quem mais falava, embora sempre dependente da reação dela.
– Você se lembra de Tirin? – ele perguntou uma noite. Fazia frio; o inverno chegara, e o quarto, o mais distante da caldeira de calefação do domicílio, nunca ficava muito aquecido, mesmo com o registro aberto no máximo. Eles tinham tirado as cobertas das duas camas e estavam enrolados nelas, juntos, na cama mais próxima do registro. Shevek usava uma camisa muito velha e puída para aquecer o peito, pois gostava de ficar sentado na cama. Takver, que não usava nada, estava enfiada nas cobertas das orelhas para baixo.
– Que fim levou o cobertor laranja? – ela perguntou.
– Que proprietária! Eu deixei lá.
– Para a Mãe Inveja? Que tristeza. Não sou proprietária. Sou apenas sentimental. Foi o primeiro cobertor que usamos juntos.
– Não, não foi. A gente deve ter usado um cobertor nas Ne Theras.
– Se usamos, não me lembro – Takver riu. – De quem você me perguntou?
– Tirin.
– Não lembro.
– Do Instituto do Poente Norte. Um rapaz moreno, de nariz arrebitado...
– Ah, Tirin! Claro. Eu estava pensando em Abbenay.
– Encontrei com ele no Sudoeste.
– Você viu Tirin? Como ele estava?
Shevek não disse nada por um momento, passando o dedo na trama do cobertor.
– Lembra o que Bedap nos falou sobre Tirin?
– Que ele só pegou postos kleggich e ficou de lá para cá até ir parar na Ilha Segvina, não foi? E depois Dap perdeu contato com ele.
– Você viu a peça que ele encenou, aquela que deu problema para ele?
– No Festival de Verão, depois que você foi embora? Ah, sim. Não me lembro da peça, já faz tanto tempo. Era boba. Espirituosa... Tirin era espirituoso. Mas boba. Era sobre um urrasti, certo? Esse urrasti se esconde num tanque hidropônico no cargueiro da Lua e respira por um canudo, e come as raízes das plantas. Eu falei que era boba! E assim ele entra como um clandestino em Anarres. E aí ele percorre os depósitos, tentando comprar coisas, e tenta vender coisas às pessoas, e guarda pepitas de ouro até que junta tantas que não consegue se mexer. Então ele tem que ficar sentado onde está, constrói um palácio e se autodenomina o Dono de Anarres. E tinha uma cena engraçadíssima em que ele e uma mulher querem copular, e ela está lá, pronta e de pernas abertas, mas ele não consegue fazer nada até dar a ela as pepitas de ouro primeiro, em pagamento. E ela não quer as pepitas. Aquilo foi engraçado, ela se jogando no chão e agitando as pernas, e ele se lançando sobre ela, e depois ele levanta num pulo, como se tivesse levado uma mordida, dizendo: “Não devo! Não é moral! Não é bom negócio!” Coitado do Tirin! Ele era tão engraçado, tão cheio de vida.
– Ele fez o papel do urrasti?
– Sim. Estava maravilhoso.
– Ele me mostrou a peça. Várias vezes.
– Onde você o encontrou? No Vale Grande?
– Não, antes, no Cotovelo. Ele era o zelador da usina.
– Ele tinha escolhido isso?
– Acho que ele não tinha condições de escolher nada, naquela altura... Bedap sempre achou que Tirin foi forçado a ir para Segvina, que foi intimidado até pedir a terapia. Não sei. Quando o vi, vários anos após a terapia, ele estava destruído.
– Você acha que fizeram alguma coisa com ele em Segvina...?
– Não sei; acho que o Manicômio realmente tenta oferecer um abrigo, um refúgio. A julgar pelas publicações sindicais deles, são pelo menos altruístas. Duvido que eles tenham levado Tir a perder o controle.
– Mas então o que o destruiu? Só o fato de não ter encontrado o posto que ele queria?
– A peça o destruiu.
– A peça? O escândalo que aqueles velhos de merda fizeram por causa dela? Ah, mas veja, para ser levado à loucura por aquele tipo de bronca moralista é porque ele já era louco. Tudo o que ele tinha a fazer era ignorá-los!
– Tir já era louco. Pelos padrões da nossa sociedade.
– O que você quer dizer?
– Bem, acho que Tir é um artista nato. Não um artesão... um criador. Um inventor-destruidor, do tipo que tem de virar tudo de cabeça para baixo e do avesso. Um satírico, um homem que elogia através da fúria.
– A peça era tão boa assim? – Takver perguntou com ingenuidade, saindo um ou dois centímetros das cobertas e examinando o perfil de Shevek.
– Não, acho que não. Deve ter sido engraçada no palco. Ele só tinha 20 anos quando a escreveu, afinal. Ele não para de reescrevê-la. Nunca escreveu mais nada.
– Ele fica escrevendo a mesma peça?
– Fica escrevendo a mesma peça.
– Ai – disse Takver, com pena e repulsa.
– A cada duas décades ele vinha e me mostrava. Eu lia, ou fingia que estava lendo, e tentava conversar com ele. Ele tinha desespero para conversar sobre a peça, mas não conseguia. Tinha muito medo.
– Do quê? Não entendo.
– De mim. De todo mundo. Do organismo social, da raça humana, da irmandade que o rejeitara. Quando um homem se sente sozinho contra todo o resto, tem mesmo de ficar com medo.
– Quer dizer, só porque algumas pessoas chamaram a peça dele de imoral e disseram que ele não deveria ser designado a um posto de professor, ele concluiu que todo mundo estava contra ele? Isso é meio bobo.
– Mas quem ficou a favor dele?
– Dap... todos os amigos dele.
– Mas ele perdeu os amigos. Foi mandado para um posto distante.
– Por que ele não recusou o posto, então?
– Veja, Takver. Eu pensava exatamente a mesma coisa. Nós sempre dizemos isso. Você disse isso... você disse que deveria ter se recusado a ir para Rolny. Eu disse isso assim que cheguei ao Cotovelo: sou um homem livre, não precisava ter vindo para cá!... Nós sempre pensamos isso, e dizemos isso, mas não fazemos isso. Enfiamos a nossa iniciativa num lugar bem guardado e seguro da nossa mente, como um quarto onde podemos entrar e dizer “não sou obrigado a fazer nada, faço as minhas próprias escolhas, sou livre”. E então saímos desse quartinho de nossa mente e seguimos para os postos designados a nós pelo CPD, e ficamos lá até sermos designados para outro lugar.
– Ah, Shev, isso não é verdade. Só depois da seca. Antes disso não havia nem metade desses postos. As pessoas só trabalhavam onde queriam, entravam num sindicato ou formavam um, e depois se registravam na Divlab. A Divilab designava principalmente as pessoas que preferiam ficar no Grupo de Serviços Gerais. Vai voltar a ser assim agora.
– Não sei. Deveria voltar, claro. Mas, mesmo antes da fome, as coisas já estavam se distanciando desse rumo. Bedap tinha razão: cada emergência, até mesmo cada recrutamento de trabalho tende a criar um incremento na máquina burocrática dentro do CPD, e uma espécie de rigidez: foi feito assim, é feito assim, tem de ser feito assim... Havia muito disso antes da seca. Cinco anos de controle rigoroso talvez tenham fixado esse padrão de modo permanente. Não seja tão cética! Olhe, me diga quantas pessoas você conhece que se recusaram a aceitar um posto... mesmo antes da fome?
Takver considerou a pergunta.
– Tirando os nuchnibi?
– Não, não. Os nuchnibi são importantes.
– Bem, vários amigos do Dap... aquele compositor simpático, Salas, e alguns daqueles sujinhos também. E uns nuchnibi de verdade passavam pelo Vale Redondo quando eu era criança. Só que eles trapaceavam, sempre achei. Contavam mentiras e histórias tão adoráveis, liam a sorte, todo muito gostava de vê-los, abrigá-los e alimentá-los, enquanto ficassem. E nunca ficavam muito tempo. Mas naquela época era só pegar uma carona e sair da cidade, geralmente os jovens, alguns odiavam o trabalho nas fazendas, e eles simplesmente abandonavam os postos e iam embora. As pessoas fazem isso em todo lugar, o tempo todo. Elas se mudam, procurando algo melhor. Isso não é recusar um posto!
– Por que não?
– Aonde você quer chegar? – Takver resmungou, recolhendo-se ainda mais debaixo do cobertor.
– Bem, a isto. Que temos vergonha de dizer que recusamos um posto. Que a consciência social domina completamente a consciência individual, em vez de encontrar um ponto de equilíbrio com ela. Nós não cooperamos... nós obedecemos. Temos medo de sermos banidos, de sermos chamados de preguiçosos, de disfuncionais, de egoizadores. Temos mais medo da opinião do vizinho do que respeito pela nossa própria liberdade de escolha. Você não acredita em mim, Tak, mas tente, só tente sair da linha, só na imaginação, e veja como se sente. Aí você percebe o que Tirin é e por que ele é uma pessoa arruinada, uma alma perdida. Ele é um criminoso! Nós criamos o crime, assim como os proprietários fizeram. Nós forçamos um homem para fora da esfera de nossa aprovação e depois o condenamos por isso. Nós criamos leis, leis de comportamento convencional, construímos muros à nossa volta e não conseguimos vê-los, porque são parte de nosso pensamento. Tir nunca fez isso. Eu o conhecia desde que tínhamos 10 anos de idade. Ele nunca fez isso, nunca conseguiu construir muros. Era um rebelde natural. Era um odoniano natural... um verdadeiro odoniano! Era um homem livre, e todos nós, irmãos dele, o levamos à loucura como punição por seu primeiro ato de liberdade.
– Eu acho – Takver disse, agasalhada na cama, e de modo defensivo – que Tir não era uma pessoa muito forte.
– Não, ele era extremamente vulnerável.
Houve um longo silêncio.
– Não é à toa que ele o assombra – ela disse. – A peça dele. O seu livro.
– Mas eu tenho mais sorte. Um cientista pode fingir que o seu trabalho não o representa, é apenas a verdade impessoal. Um artista não pode se esconder atrás da verdade. Não pode se esconder em lugar nenhum.
Takver o observou com o canto do olho por um momento, depois virou-se e sentou-se, colocando o cobertor em volta dos ombros.
– Brr! Que frio... Eu estava errada, não é, sobre o livro? Sobre deixar Sabul editá-lo e colocar o nome dele. Parecia certo. Parecia que estávamos colocando o trabalho acima do trabalhador, o orgulho acima da vaidade, a comunidade acima do ego, tudo isso. Mas na verdade não foi absolutamente nada disso, não é? Foi uma capitulação. Uma rendição ao autoritarismo de Sabul.
– Não sei. O livro acabou sendo publicado.
– O fim certo, mas por meios errados! Pensei nisso por muito tempo, em Rolny. Vou lhe dizer o que estava errado. Eu estava grávida. Mulheres grávidas não têm ética. Só têm o impulso do sacrifício mais primitivo. Ao inferno com o livro, com a parceria, com a verdade, se tudo isso ameaça o precioso feto! É um instinto de preservação da espécie, mas pode funcionar contra a comunidade; é biológico, não social. O homem pode agradecer por nunca cair nas garras desse instinto. Mas deve saber que a mulher cai, e ele deve ter cuidado. Acho que é por isso que os velhos hierarquistas usavam as mulheres como propriedade. Por que as mulheres deixavam? Porque estavam grávidas o tempo todo... porque já estavam possuídas, escravizadas!
– Tudo bem, pode ser, mas a nossa sociedade, aqui, é uma verdadeira comunidade onde quer que incorpore genuinamente as ideias de Odo. Foi uma mulher quem fez a Promessa! O que você está fazendo? Perdendo-se em sentimentos de culpa? Chafurdando?
A palavra que ele usou não foi “chafurdando”, pois não havia animais em Anarres para chafurdar; foi uma palavra composta, cujo significado literal é “cobrindo-se total e continuamente de excremento”. O právico, com sua flexibilidade e precisão, prestava-se à criação de metáforas vívidas totalmente imprevistas pelos inventores da língua.
– Bem, não. Foi ótimo ter Sadik! Mas eu estava errada sobre o livro.
– Nós dois estávamos errados. Sempre erramos juntos. Você não pensa realmente que decidiu por mim, não é?
– Neste caso, acho que decidi.
– Não. O fato é que nenhum de nós dois decidiu. Nenhum de nós dois fez uma escolha. Deixamos Sabul decidir por nós. Nosso próprio Sabul internalizado: convenção, moralismo, medo do ostracismo social, medo de sermos diferentes, medo de sermos livres! Bem, nunca mais. Aprendo devagar, mas aprendo.
– O que você vai fazer? – perguntou Takver, com uma vibração de agradável excitação na voz.
– Vou para Abbenay com você e abrir um sindicato, um sindicato de imprensa. Vou publicar os Princípios, sem cortes. E o que mais quisermos. O Esboço de Educação Aberta em Ciência, de Bedap, que o CPD se recusou a pôr em circulação. E a peça de Tirin. Devo isso a ele. Ele me ensinou o que são prisões, e quem as constrói. Os que constroem muros são seus próprios prisioneiros. Vou cumprir minha própria função no organismo social. Vou derrubar muros.
– Isso pode causar uma tempestade – disse Takver, encolhida nas cobertas. Ela se recostou nele, e ele a abraçou.
– Espero que sim.
Muito depois de Takver ter adormecido, Shevek ainda estava acordado, com as mãos debaixo da cabeça, olhando a escuridão, ouvindo o silêncio. Pensou em seu longo regresso da Poeira, lembrando-se das planícies e miragens do deserto, do maquinista do trem com sua careca marrom e olhar sincero, que dissera ser preciso trabalhar com o tempo, não contra ele.
Shevek aprendera algo sobre sua própria vontade nos últimos quatro anos. Na frustração de sua vontade, aprendera qual era a sua força. Nenhum imperativo social ou ético igualava-se à sua força. Nem mesmo a fome conseguia reprimi-la. Quanto menos ele tinha, mais absoluta se tornava a sua necessidade de ser.
Reconhecia essa necessidade, em termos odonianos, como sua “função celular”, o termo analógico para a individualidade do indivíduo, o trabalho que ele melhor desempenha e, portanto, sua melhor contribuição à sociedade. Uma sociedade saudável o deixaria exercer essa função ideal livremente, pois é na coordenação de todas essas funções que ela encontra sua adaptabilidade e força. Esta era a ideia central da Analogia de Odo. O fato de a sociedade odoniana em Anarres não ter alcançado esse ideal não diminuía, a seus olhos, a sua própria responsabilidade para com ela; muito pelo contrário. Afastado o mito do Estado, a verdadeira mutualidade e reciprocidade entre sociedade e indivíduo tornou-se clara. Podia-se exigir sacrifício do indivíduo, mas nunca o compromisso: pois, embora somente a sociedade pudesse oferecer segurança e estabilidade, somente o indivíduo, a pessoa, tinha o poder da escolha moral – o poder da mudança, a função essencial da vida. A sociedade odoniana foi concebida como uma revolução permanente, e revolução começa no intelecto.
Shevek refletira sobre tudo isso nesses termos, pois sua consciência era completamente odoniana.
Portanto, ele agora tinha certeza de que seu anseio radical e ilimitado de criar era, em termos odonianos, sua própria justificativa. Seu senso de responsabilidade primordial em relação ao trabalho não o afastava dos companheiros e da sociedade, como ele tinha pensado. Unia-o a eles de maneira absoluta.
Percebeu também que um homem que tivesse esse senso de responsabilidade em relação a uma coisa era compelido a estendê-lo a todas as coisas. Era um erro ver a si mesmo como o veículo desse senso e nada mais, e sacrificar qualquer outra obrigação em seu nome.
Era desse sacrifício que Takver falava, reconhecendo-o em si mesma quando estava grávida, e falou meio horrorizada, com autorrepugnância, pois ela também era odoniana, e a separação entre meios e fins era-lhe falsa também. Para ela e para ele, não havia um fim. Havia um processo: o processo era tudo. Podia-se ir numa direção promissora ou numa direção errada, mas não se podia partir com a expectativa de um dia parar em algum lugar. Todas as responsabilidades, todos os compromissos deste modo adquiriam substância e duração.
Assim, seu compromisso mútuo com Takver, o relacionamento deles, mantivera-se inteiramente vivo durante os quatro anos de separação. Ambos haviam sofrido com isso, sofrido muito, mas não ocorrera a nenhum dos dois fugir do sofrimento pela negação do compromisso.
Pois, afinal, pensava ele agora, deitado no calor do sono de Takver, era a alegria que ambos buscavam – a plenitude de ser. Quando você evita o sofrimento, evita também a chance de alegria. Você pode ter prazer, ou prazeres, mas não pode atingir a plenitude. Você não saberá o que é voltar para casa.
Takver suspirou suavemente em seu sono, como se concordasse com ele, e virou-se, prosseguindo algum sonho tranquilo.
A plenitude, pensou Shevek, é uma função do tempo. A busca pelo prazer é circular, repetitiva, atemporal. O espectador que procura variedade, o caçador de emoção, o sexualmente promíscuo acaba no mesmo lugar. Há um fim. Quando se chega ao fim, começa-se tudo de novo. Não é uma viagem e um retorno, mas um ciclo fechado, um quarto trancado, uma cela.
Fora do quarto trancado está a paisagem do tempo, na qual o espírito pode, com sorte e coragem, construir as estradas e cidades de fidelidade, frágeis, transitórias e improváveis: uma paisagem habitável para seres humanos.
Só quando um ato ocorre dentro da paisagem do passado e do futuro é que ele é um ato humano. A lealdade, que garante a continuidade do passado e do futuro, agregando o tempo numa totalidade, é a raiz da força humana; não se faz nada de bom sem ela.
Assim, recordando os últimos quatro anos, Shevek os viu não como um desperdício, mas como parte do edifício que ele e Takver estavam construindo com suas vidas. O bom de trabalhar a favor do tempo, e não contra ele, pensou, é que não há desperdício. Até a dor conta.
11
°°°°°
Rodarred, a antiga capital da Província de Avan, era uma cidade pontuda: uma floresta de pinheiros e, acima das pontas dos pinheiros, uma floresta de torres mais etérea. As ruas eram escuras e estreitas, musgosas, muitas vezes nevoentas, sob as árvores. Somente nas sete pontes sobre o rio era possível olhar para cima e ver os topos das torres. Algumas tinham dezenas de metros de altura, outras eram meros brotos, como casas comuns malcuidadas. Algumas eram de pedra, outras de porcelana, mosaico, folhas de vidro colorido, revestimentos de cobre, estanho ou ouro, ornamentos inacreditáveis, delicados, resplandecentes. Era nessas ruas alucinantes e encantadoras que o Conselho dos Governos Mundiais urrasti mantivera sua sede nos trezentos anos de sua existência. Muitas embaixadas e consulados junto ao CGM e a A-Io também se aglomeravam em Rodarred, a apenas uma hora de carro de Nio Esseia e da sede nacional do governo.
A embaixada terrana no CGM situava-se no Castelo do Rio, agachado entre a estrada de Nio e o rio, erguendo apenas uma torre atarracada, com um topo quadrado e frestas de janelas semelhantes a olhos semicerrados. Suas paredes tinham enfrentado armas e intempéries por catorze séculos. Árvores escuras se aglomeravam próximo ao lado do castelo que dava para a terra, e entre elas e a ponte levadiça estendia-se um fosso. A ponte levadiça estava abaixada, com os portões abertos. O fosso, o rio, a grama verde, as paredes escuras, a bandeira no topo da torre, tudo emanava um brilho mortiço e enevoado, enquanto o sol atravessava a neblina do rio e os sinos de todas as torres de Rodarred iniciavam sua tarefa prolongada e insanamente harmoniosa de soar as sete horas.
Um atendente sentado à moderna mesa da recepção, no interior do castelo, ocupava-se com um tremendo bocejo.
– Abrimos ao público só depois das oito – disse, inexpressivo.
– Quero ver o embaixador.
– O embaixador está tomando o café da manhã. O senhor terá que marcar hora. – Ao dizer isso, o atendente esfregou os olhos úmidos e conseguiu ver o visitante claramente pela primeira vez. Fitou-o, abriu a boca várias vezes e perguntou:
– Quem é o senhor? Onde... O que o senhor quer?
– Quero ver o embaixador.
– Aguarde um momento – disse o atendente no mais puro sotaque niota, ainda o fitando, e estendeu a mão até um telefone.
Um carro acabara de estacionar entre o portão da ponte levadiça e a entrada da Embaixada, e vários homens saíam dele, com os detalhes metálicos de seus casacos pretos brilhando à luz do sol. Dois outros homens acabavam de entrar no saguão da parte principal do edifício, falando ao mesmo tempo, pessoas de aparência estranha, com trajes estranhos. Shevek apressou-se em contornar a mesa da recepção e foi até eles, tentando correr.
– Socorro! Me ajudem! – disse.
Eles o olharam, assustados. Um deles recuou, franzindo o cenho. O outro olhou para o grupo uniformizado que acabava de entrar na embaixada.
– Por aqui – ele disse com calma, pegou o braço de Shevek e, com dois passos e um gesto elegante como o de um bailarino, se fechou com ele num pequeno escritório lateral.
– O que está acontecendo? Você é de Nio Esseia?
– Quero ver o embaixador.
– Você é um dos grevistas?
– Shevek. Meu nome é Shevek. De Anarres.
Os olhos alienígenas se arregalaram, brilhantes e inteligentes, no rosto preto-azeviche.
– Meu Deus! – disse o terrano, num sussurro, e depois, em iótico: – O senhor está pedindo asilo?
– Não sei. Eu...
– Venha comigo, dr. Shevek. Vou levá-lo a algum lugar onde o senhor possa se sentar.
Havia corredores, escadas, a mão do homem negro em seu braço.
Pessoas tentavam tirar seu casaco. Ele se debateu, temendo que estivessem atrás do caderno no bolso da camisa. Alguém falou em tom autoritário, numa língua estrangeira. Outra pessoa lhe disse:
– Está tudo bem. Ele está tentando ver se o senhor está ferido. Seu casaco está ensanguentado.
– Outro homem – Shevek disse. – O sangue é de outro homem.
Conseguiu ficar sentado, embora sua cabeça girasse. Estava num sofá, numa sala grande e ensolarada; aparentemente, ele tinha desmaiado. Dois homens e uma mulher estavam perto dele. Olhou-os sem entender.
– O senhor está na embaixada de Terran, dr. Shevek. Está em solo terrano aqui. Está perfeitamente seguro. Pode ficar aqui o tempo que quiser.
A pele da mulher era amarelo-marrom, como terra ferrosa, e sem pelos, exceto na cabeça; não depilada, mas sem pelos. Os traços eram estranhos e infantis, boca pequena, nariz achatado, olhos com pálpebras longas e cheias, bochechas e queixo arredondados, gorduchos. A figura toda era arredondada, dócil, infantil.
– O senhor está seguro aqui – ela repetiu.
Ele tentou falar, mas não conseguiu. Um dos homens o empurrou delicadamente no peito, dizendo:
– Deite-se, deite-se.
Ele se deitou, mas sussurrou:
– Quero ver o embaixador.
– Eu sou a embaixadora. Meu nome é Keng. Estamos contentes por ter nos procurado. Está seguro aqui. Por favor, descanse agora, dr. Shevek, conversaremos mais tarde. Não há pressa. – Sua voz tinha um estranho ritmo monótono, mas era rouca, como a voz de Takver.
– Takver – ele disse, em sua própria língua. – Não sei o que fazer.
Ela disse:
– Durma. – E ele dormiu.
Após dois dias de sono e dois dias de refeições, vestido de novo em seu terno cinza-iota, que tinham lavado e passado para ele, foi levado ao gabinete particular da embaixadora no terceiro andar da torre.
A embaixadora não se inclinou para cumprimentá-lo nem apertou sua mão, mas uniu as palmas das mãos diante do peito e sorriu.
– Fico contente de ver que o senhor está se sentindo melhor, dr. Shevek. Não, devo dizer apenas Shevek, não é? Sente-se, por favor. Desculpe ter de lhe falar em iótico, uma língua estrangeira para nós dois. Não conheço a sua língua. Disseram-me que é muito interessante, o único idioma inventado racionalmente que se tornou a língua de um grande povo.
Ele se sentia grande, pesado, peludo ao lado daquela alienígena suave. Sentou-se numa das cadeiras fundas e macias. Keng também se sentou, mas fez uma careta ao sentar-se.
– Tenho problema de coluna – ela disse – de ficar sentada nessas cadeiras confortáveis! – E Shevek então percebeu que ela não era uma mulher de 30 anos ou menos, como tinha pensado, mas de 60 ou mais; a pele lisa e a figura infantil o enganaram. – No meu país – ela continuou – nós nos sentamos em almofadas no chão. Mas se eu fizesse isso aqui eu teria de olhar ainda mais para cima para ver todo mundo. Vocês, cetianos, são tão altos... Temos um pequeno problema. Isto é, nós não, mas o governo de A-Io. Seus amigos de Anarres, os que mantêm contato por rádio com Urras, têm pedido para lhe falar com urgência. E o governo iota está constrangido. – Ela sorriu, um sorriso de puro divertimento. – Eles não sabem o que dizer.
Ela era calma. Calma como uma pedra corroída pela água, que, se contemplada, acalma. Shevek recostou-se na cadeira e levou um tempo considerável para responder.
– O governo iota sabe que estou aqui?
– Bem, não oficialmente. Não dissemos nada, eles não perguntaram. Mas temos vários funcionários e secretários iotas trabalhando aqui na embaixada. Então, é claro que sabem.
– É perigoso para vocês... minha presença aqui?
– Oh, não. Nossa embaixada é no Conselho dos Governos Mundiais, não na nação de A-Io. O senhor tinha todo o direito de vir para cá, o que o resto do Conselho forçaria A-Io a admitir. Como lhe falei, este castelo é solo terrano. – Ela tornou a sorrir; o rosto liso franziu em várias pequenas pregas, e desfranziu. – Uma encantadora fantasia de diplomatas! Este castelo, a onze anos-luz do meu planeta Terra, esta sala numa torre em Rodarred, em A-Io, no planeta Urras do sol de Tau Ceti, é solo terrano.
– Então vocês podem dizer a eles que estou aqui.
– Ótimo. Vai simplificar a questão. Queria o seu consentimento.
– Não havia nenhuma... mensagem para mim, de Anarres?
– Não sei. Não perguntei. Não pensei no assunto do seu ponto de vista. Se está preocupado com alguma coisa, podemos transmitir uma mensagem a Anarres. Sabemos qual o comprimento de onda que seus amigos têm utilizado, claro, mas não o utilizamos porque não fomos convidados. Pareceu melhor não pressionar. Mas podemos facilmente providenciar uma conversa para o senhor.
– Vocês têm um transmissor?
– Retransmitiríamos através da nossa nave... a nave hainiana que fica em órbita em volta de Urras. Hain e Terran trabalham juntos. O embaixador hainiano sabe que o senhor está conosco; ele foi a única pessoa a ser informada oficialmente. Então, o rádio está à sua disposição.
Ele agradeceu, com a simplicidade de quem não procura a motivação por trás de uma oferta. Ela o analisou por um instante, com olhos perspicazes, diretos e tranquilos.
– Ouvi seu discurso – ela disse.
Ele a olhou como se a olhasse a distância.
– Discurso?
– Quando o senhor falou na grande passeata na Praça da Capital. Faz uma semana hoje. Sempre ouvimos a rádio clandestina, a transmissão de rádio dos Trabalhadores Socialistas e Libertários. É claro que estavam transmitindo a passeata. Ouvi o senhor falar. Fiquei muito emocionada. Depois houve um barulho, um barulho estranho, e deu para ouvir a multidão começando a gritar. Eles não explicaram. Houve uma gritaria. Então saiu do ar de repente. Foi terrível, terrível ouvir aquilo. E o senhor estava lá. Como conseguiu escapar? Como saiu da cidade? A Cidade Velha ainda está cercada por um cordão de isolamento; há três regimentos do exército em Nio; capturam grevistas e suspeitos às dezenas e centenas, todos os dias. Como conseguiu chegar até aqui?
Ele deu um sorriso fraco.
– Num táxi.
– E passou por todos os pontos de revista? E com aquele casaco ensanguentado? Mesmo com todos conhecendo a sua aparência?
– Fiquei escondido no banco de trás. O táxi foi recrutado, é essa a palavra? Algumas pessoas se arriscaram por mim. – Baixou os olhos para as mãos entrelaçadas sobre o colo. Estava sentado perfeitamente calmo, mas havia uma tensão interior, um peso, visível em seus olhos e nas linhas em torno de sua boca. Pensou por um instante, e então prosseguiu do mesmo modo neutro e tranquilo. – Foi sorte, no início. Quando saí do esconderijo, tive sorte de não ser preso na hora. Mas consegui chegar à Cidade Velha. Depois disso, não foi apenas sorte. Imaginaram onde eu poderia estar, planejaram me apanhar lá e correram os riscos. – Disse uma palavra em sua própria língua e a traduziu: – Solidariedade...
– É muito estranho – disse a embaixadora de Terran. – Não sei quase nada sobre o seu mundo, Shevek. Só sei o que os urrastis nos contam, já que o seu povo não nos permite ir até lá. Sei, é claro, que o planeta é árido e deserto, e como a Colônia foi fundada, que é um experimento anarco-comunista que sobrevive há cento e setenta anos. Li um pouco dos escritos de Odo... não muito. Pensei que tudo isso não tinha mais importância para os problemas atuais de Urras, que era algo remoto, uma experiência interessante. Mas eu estava errada, não é? É importante. Talvez Anarres seja a chave para Urras... Os revolucionários de Nio vêm dessa mesma tradição. Não estavam apenas fazendo greve por melhores salários ou protestando contra o recrutamento. Não são apenas socialistas, são anarquistas; estavam em greve contra o poder. Veja, o tamanho da passeata, a intensidade do sentimento popular e a reação de pânico do governo, tudo pareceu muito difícil de acreditar. Por que tanta comoção? O governo aqui não é despótico. Os ricos são de fato muito ricos, mas os pobres não são tão pobres. Não são escravos, nem passam fome. Por que não estão satisfeitos com o pão e os discursos? Por que estão tão sensíveis?... Agora começo a entender por quê. Mas o que ainda é inexplicável é que o governo de A-Io, sabendo que a tradição libertária ainda estava viva, e sabendo do descontentamento das cidades industriais, ainda assim tenha trazido o senhor para cá. É como trazer o fósforo para uma fábrica de pólvora!
– Não era para eu me aproximar da fábrica de pólvora. Era para eu ter ficado longe do populacho, vivendo entre os eruditos e os ricos. Sem ver os pobres. Sem ver nada feio. Era para eu ter sido embrulhado em algodão dentro de uma caixa de papelão envolta numa folha de plástico, como tudo aqui. Ali eu deveria ser feliz e fazer o meu trabalho, o trabalho que não consegui fazer em Anarres. E quando eu terminasse, deveria entregá-lo a eles, para que pudessem ameaçar vocês.
– Nos ameaçar? Você quer dizer Terran, Hain e as outras potências interespaciais? Nos ameaçar com o quê?
– Com a aniquilação do espaço.
Ela ficou em silêncio por um instante.
– É isso que o senhor faz? – ela perguntou em sua voz branda e sorridente.
– Não, não é o que eu faço! Em primeiro lugar, não sou um inventor, um engenheiro. Sou um teórico. O que eles querem de mim é a teoria. A teoria do Campo Geral em Física Temporal. Sabe o que é isso?
– Shevek, sua física cetiana, sua Ciência Nobre está muito além da minha compreensão. Não tenho conhecimento profundo de matemática, física e filosofia, e essa teoria parece consistir de tudo isso, e cosmologia, além de outras coisas. Mas sei o que quer dizer quando fala em Teoria da Simultaneidade, do mesmo modo que compreendo a Teoria da Relatividade; isto é, sei que a Teoria da Relatividade acarretou grandes resultados práticos; então, suponho que a sua Física Temporal pode tornar possível o surgimento de novas tecnologias.
Ele confirmou com um movimento da cabeça.
– O que eles querem – ele disse – é a transferência instantânea de matéria no espaço. Transiliência. Viagem espacial, entende, sem travessia no espaço nem lapso de tempo. Talvez ainda consigam; não com as minhas equações, eu acho. Mas podem fazer o ansível com as minhas equações, se quiserem. Os homens não podem saltar as distâncias abismais, mas as ideias podem.
– O que é ansível, Shevek?
– Uma ideia – Ele sorriu sem muito humor. – Será um dispositivo que permitirá a comunicação sem nenhum intervalo entre os dois pontos no espaço. O dispositivo não irá transmitir mensagens, é claro; simultaneidade é identidade. Mas, para as nossas percepções, essa simultaneidade irá funcionar como uma transmissão, um envio. Assim, poderemos usá-lo para conversas entre planetas, sem a longa espera para a mensagem ir e para a resposta retornar que os impulsos eletromagnéticos exigem. É uma questão realmente muito simples. Como uma espécie de telefone.
Keng riu.
– A simplicidade dos físicos! Então eu poderia pegar o... ansível?... e falar com meu filho em Déli? E com a minha neta, que tinha 5 anos quando eu parti e que envelheceu onze anos enquanto eu viajava numa nave de Terran para Urras quase na velocidade da luz. E poderia descobrir o que está acontecendo no meu planeta agora, não onze anos atrás. E seria possível tomar decisões, fechar acordos e partilhar informações. Eu poderia conversar com diplomatas em Chiffewar, o senhor poderia conversar com os físicos de Hain, as informações não levariam uma geração para chegar de um planeta a outro... Sabe, Shevek, acho que a sua questão muito simples pode mudar a vida de todos os bilhões de pessoas nos nove Planetas Conhecidos!
Ele confirmou com um movimento da cabeça.
– Tornaria possível uma liga de planetas. Uma federação. Temos estado separados pelos anos, pelas décadas entre partir e chegar, entre a pergunta e a resposta. É como se o senhor tivesse inventado a fala humana! Podemos conversar... pelo menos podemos conversar ao mesmo tempo.
– E o que você dirá?
O tom amargo de Shevek assustou Keng. Ela olhou para ele e não disse nada.
Ele inclinou-se para a frente na cadeira e esfregou a testa penosamente.
– Olhe – ele disse –, devo lhe explicar por que vim aqui procurá-los, e também por que vim para este planeta. Vim pela ideia. Por causa da ideia. Para aprender, para ensinar, para compartilhar a ideia. Em Anarres, nós nos isolamos, sabe. Não conversamos com outros povos, com o resto da humanidade. Não consegui terminar meu trabalho lá. E, mesmo que eu tivesse conseguido terminá-lo, eles não o queriam, não viam utilidade nele. Por isso vim para cá. Aqui há o que eu preciso: a conversa, o compartilhamento, um experimento do Laboratório de Luz que comprove algo que ele não estava destinado a provar, um livro sobre a Teoria da Relatividade de um mundo alienígena, o estímulo de que eu preciso. Então, finalmente terminei meu trabalho. Não há nada escrito ainda, mas tenho as equações, e o raciocínio está completo. Mas as ideias em minha cabeça não são as únicas importantes para mim. Minha sociedade também é uma ideia. Fui formado por ela. Uma ideia de liberdade, de mudança, de solidariedade humana, uma ideia importante. E, embora eu tenha sido muito estúpido, enfim percebi que, ao perseguir uma ideia, a física, estava traindo a outra. Estou deixando os proprietários comprarem a verdade de mim.
– E o que mais poderia fazer, Shevek?
– Não há outra alternativa senão vender? Não existe algo como uma dádiva?
– Sim...
– Vocês não entendem que eu quero oferecer isto a vocês... e a Hain, e aos outros planetas... e aos outros países de Urras? Mas para vocês todos! Para que um de vocês não possa usá-lo como A-Io quer fazer, para ter poder sobre os outros, para enriquecer e vencer mais guerras. Para que não possam usar a verdade em proveito próprio, mas apenas para o bem comum.
– No fim, a verdade geralmente insiste em servir apenas ao bem comum – disse Keng.
– No fim, sim, mas não estou disposto a esperar por esse fim. Tenho só uma vida e não vou passá-la servindo à ambição, à exploração e a mentiras. Não servirei a nenhum senhor.
A serenidade de Keng era agora muito mais forçada e controlada do que no início da conversa. A força da personalidade de Shevek, não reprimida por inibição ou considerações de autodefesa, era tremenda. Ela estremeceu diante dele e o olhou com compaixão e certo temor.
– E como é – ela perguntou –, como seria essa sociedade que o formou? Eu o ouvi falar de Anarres, na Praça, e chorei ao ouvi-lo, mas na verdade não acreditei no senhor. Os homens sempre falam assim de sua terra, de sua terra ausente... Mas o senhor não é como os outros homens. Há uma diferença no senhor.
– A diferença da ideia – ele disse. – Foi por essa ideia que vim, também. Por Anarres. Já que meu povo se recusa a olhar para fora, achei que poderia fazer com que os outros olhassem para nós. Achei que seria melhor não ficarmos isolados atrás de um muro, mas sermos uma sociedade entre as outras, um planeta entre os outros, dando e recebendo. Eu estava errado... estava absolutamente errado.
– Por quê? Certamente...
– Porque não há nada, nada em Urras de que nós anarrestis precisemos! Partimos daqui de mãos vazias, há cento e setenta anos, e estávamos certos! Não levamos nada. Porque não há nada aqui além de Estados e suas armas, os ricos e suas mentiras e os pobres e sua miséria. Não há como agir honestamente, de coração puro, em Urras. Não há nada que se possa fazer que não envolva lucro, medo de prejuízo e desejo de poder. Não se pode dar bom-dia sem saber qual de vocês é “superior” ao outro, ou tentar prová-lo. Vocês não conseguem agir como irmãos com outras pessoas, vocês têm que manipulá-las, comandá-las, obedecê-las, ou enganá-las. Não se pode tocar em ninguém, mas não deixam você em paz. Não há liberdade. É uma caixa... Urras é uma caixa, um embrulho, com toda essa linda embalagem de céu azul, prados, florestas e grandes cidades. E então você abre a caixa, e o que há lá dentro? Um porão escuro cheio de poeira e um homem morto. Um homem cuja mão foi arrancada a tiros por tê-la estendido aos outros. Finalmente conheci o inferno. Desar tinha razão; é Urras; o inferno é Urras.
Apesar de toda a exaltação, ele falou com simplicidade, com uma espécie de humildade, e mais uma vez a embaixadora de Terran o observou com um assombro cauteloso, mas solidário, como se ela não fizesse ideia de como lidar com aquela simplicidade.
– Nós dois somos alienígenas aqui, Shevek – ela disse, enfim. – Eu de um lugar muito mais distante em espaço e tempo. No entanto, começo a achar que sou muito menos alienígena em Urras do que o senhor... Deixe-me falar como vejo este mundo. Para mim, e para meus companheiros terranos que viram o planeta, Urras é o mais agradável, mais variado e mais belo dos mundos habitados. É o mundo que mais se aproxima do Paraíso.
Ela olhou para ele com serenidade e intensidade; ele não falou nada.
– Sei que está cheio de maldade, cheio de injustiça humana, ganância, loucura, desperdício. Mas também está cheio de bondade, de beleza, de vitalidade, de realizações. É assim que um mundo deve ser! Ele está vivo, tremendamente vivo... vivo, apesar de todas as maldades, e tem esperança. Não é verdade?
Ele concordou com um movimento da cabeça.
– Ora, o senhor é um homem vindo de um mundo que eu não consigo imaginar; o senhor, que vê meu Paraíso como Inferno, quer saber como é o meu mundo?
Ele ficou calado, observando-a, com os olhos firmes.
– Meu mundo, minha terra é uma ruína. Um planeta devastado pela espécie humana. Nós nos multiplicamos, nos empanturramos e brigamos até não sobrar nada, e então morremos. Não controlamos nosso apetite nem nossa violência; não nos adaptamos, nos destruímos. Mas destruímos nosso planeta primeiro. Não sobrou nenhuma floresta na Terra. O ar é cinza, o céu é cinza, está sempre quente. É habitável, ainda é habitável, mas não como este planeta. Este é um mundo vivo, uma harmonia. O meu é uma dissonância. Vocês, odonianos, escolheram um deserto; nós, terranos, criamos um deserto. Nós sobrevivemos lá, como vocês sobrevivem. As pessoas são resistentes! Somos quase meio bilhão agora. Já fomos 9 bilhões. Ainda se pode ver as antigas cidades por toda parte. Os ossos e os tijolos viram pó, mas os pedacinhos de plástico, jamais... também jamais se decompõem. Fracassamos como espécie, como uma espécie social. Estamos aqui agora, lidando como iguais com outras sociedades humanas, em outros mundos, só por causa da caridade dos hainianos. Eles vieram; trouxeram ajuda. Construíram naves e nos deram, para que pudéssemos sair de nosso planeta arruinado. Eles nos tratam com bondade, com caridade, como o homem forte trata o doente. São pessoas muito estranhas, os hainianos; são mais velhos do que qualquer um de nós; infinitamente generosos. São altruístas. São movidos por uma culpa que nem sequer compreendemos, apesar de nossos próprios crimes. São movidos em tudo o que fazem, penso eu, pelo passado, seu passado interminável. Bem, nós tínhamos salvado o que era possível salvar e criado uma espécie de vida em meio às ruínas, em Terran, da única maneira possível: pela total centralização. Total controle sobre o uso de cada acre de terra, cada fragmento de metal, cada litro de combustível. Racionamento total, controle de natalidade, eutanásia, recrutamento universal para a força de trabalho. A absoluta arregimentação de cada vida para o objetivo da sobrevivência racial. Tínhamos atingido essa meta quando os hainianos chegaram. Eles nos trouxeram... um pouco mais de esperança. Não muita. Nós perseveramos. Só podemos olhar de fora este esplêndido planeta Urras, esta sociedade cheia de vida, este Paraíso. Somos capazes apenas de admirá-lo e talvez invejá-lo um pouco. Não muito.
– Então Anarres, pelo que me ouviu dizer... o que Anarres significaria para você, Keng?
– Nada. Nada, Shevek. Perdemos a chance de ser Anarres séculos atrás, antes de ele sequer existir.
Shevek levantou-se e foi até a janela, uma das frestas horizontais da torre. Havia um nicho na parede abaixo dela, no qual um arqueiro pisava para olhar para baixo e mirar invasores no portão; se não se pisasse naquele degrau, não se podia ver nada além do céu banhado pelo sol, com uma leve bruma. Shevek ficou debaixo da janela, olhando para fora, a luz preenchendo seus olhos.
– Você não compreende o que é o tempo – ele disse. – Você diz que o passado já foi, que o futuro não é real, que não há mudança, não há esperança. Você acha que Anarres é um futuro que não pode ser alcançado, como seu passado não pode ser alterado. Assim, não há nada além do presente, este planeta Urras, o presente rico, real, estável, o momento de agora. E você pensa que é algo que pode ser possuído! Você o inveja um pouco. Você pensa que é algo que gostaria de ter. Mas não é real, sabe. Não é estável, não é sólido... nada é. As coisas mudam, mudam. Não se pode ter nada... E muito menos o presente, a não ser que você o aceite junto com o passado e o futuro. Não apenas o passado, mas também o futuro, não só o futuro, mas também o passado! Porque eles são reais; só a realidade deles torna o presente real. Vocês não vão conquistar, ou sequer compreender Urras, a menos que aceitem a realidade, a realidade duradoura de Anarres. Você tem razão: nós somos a chave. Mas, ao dizer isso, você não acreditou de verdade. Você não acredita em Anarres. Não acredita em mim, embora eu esteja aqui, nesta sala, neste momento... Meu povo estava certo, e eu estava errado, sobre uma coisa: não podemos vir até vocês. Vocês não deixam. Não acreditam em mudança, em oportunidade, em evolução. Vocês prefeririam nos destruir a admitir a nossa realidade, a admitir que existe esperança! Não podemos vir até vocês. Só podemos esperar vocês virem até nós.
Keng permaneceu sentada, com uma expressão assustada e pensativa, e talvez ligeiramente confusa.
– Não compreendo... não compreendo – ela disse afinal. – O senhor parece alguém do nosso próprio passado, os velhos idealistas, os visionários da liberdade, e, no entanto, eu não o compreendo, como se o senhor estivesse tentando me dizer coisas do futuro; e, no entanto, como o senhor diz, estamos aqui, agora!... – Ela não perdera a perspicácia. Perguntou, após um instante: – Então, por que é que veio até nós, Shevek?
– Ah, para lhes dar a ideia. Minha teoria. Para impedir que ela se torne propriedade dos iotas, um investimento ou uma arma. Se quiser, a coisa mais simples a fazer seria transmitir as equações, entregá-las a todos os físicos deste mundo, aos hainianos e aos outros planetas, o mais rápido possível. Estaria disposta a fazer isso?
– Mais do que disposta.
– Serão apenas algumas páginas. As provas e algumas das implicações levariam mais tempo, mas isso pode ficar para depois, e outras pessoas podem desenvolvê-las, se eu não puder.
– Mas o que o senhor vai fazer depois? Pretende voltar para Nio? A cidade está calma agora, aparentemente; parece que a insurreição foi derrotada, pelo menos por enquanto; mas receio que o governo iota o considere um revolucionário. O senhor pode ir para Thu, é claro...
– Não. Não quero ficar aqui. Não sou nenhum altruísta! Se me ajudasse com isso também, eu poderia ir para casa. Talvez os iotas até estejam dispostos a me mandar para casa. Seria coerente, eu acho, me fazer desaparecer, negar minha existência. É claro que eles podem achar mais fácil me matar, ou me mandar para a prisão pelo resto da vida. Não quero morrer ainda, e de modo algum quero morrer aqui, no Inferno. Para onde vai a alma, quando se morre no Inferno? – Ele riu; tinha recuperado toda a gentileza de seus modos. – Mas se pudesse me mandar para casa, acho que eles ficariam aliviados. Anarquistas mortos viram mártires, você sabe, e continuam vivos por séculos. Mas os ausentes podem ser esquecidos.
– Eu achava que sabia o que era “realismo” – disse Keng. Ela sorriu, mas não foi um sorriso fácil.
– Como pode saber se não sabe o que é esperança?
– Não nos julgue com tanta severidade, Shevek.
– Não os julgo de forma alguma. Só peço a sua ajuda, para a qual não tenho nada em troca.
– Nada? Você chama a sua teoria de nada?
– Ponha a teoria numa balança com a liberdade de um único espírito humano – ele disse, voltando-se para ela – e qual pesará mais? Você sabe dizer? Eu não.
12
°°°°°
– Quero apresentar um projeto – disse Bedap – do Sindicato da Iniciativa. Vocês sabem que estamos em contato com Urras pelo rádio há cerca de vinte décadas...
– Contra a recomendação deste conselho, da Federação da Defesa e contra a maioria dos votos da Lista!
– Sim – disse Bedap, olhando o orador de cima a baixo, mas sem protestar contra a interrupção. Não havia regras de procedimento parlamentar nas reuniões do CPD. Interrupções às vezes eram mais frequentes do que exposições. O processo, comparado a uma convenção executiva bem conduzida, era um pedaço de carne crua comparado a um atraente diagrama. Carne crua, contudo, funciona melhor do que funcionaria um diagrama em seu lugar... dentro de um animal vivo.
Bedap conhecia todos os velhos oponentes no Conselho de Importação-Exportação; há três anos vinha frequentando as reuniões e os combatendo. Aquele orador era novo, um jovem, provavelmente um dos sorteados na nova Lista de postos do CPD. Bedap o estudou com benevolência e prosseguiu.
– Não vamos rediscutir antigas disputas, por favor. Proponho uma nova. Recebemos uma mensagem interessante de um grupo de Urras. Chegou pelo comprimento de onda que os nossos contatos iotas usam, mas não veio no horário combinado e era um sinal fraco. Parece ter sido enviada de um país chamado Benbili, não de A-Io. O grupo se autodenomina “A Sociedade Odoniana”. Parece que são odonianos pós-Colonização, existindo de algum modo nas brechas da lei e do governo de Urras. A mensagem era para os irmãos de Anarres. Vocês podem ler no boletim do Sindicato, é interessante. Perguntam se seriam autorizados a mandar pessoas para cá.
– Mandar pessoas para cá? Deixar urrastis entrarem aqui? Espiões?
– Não, como Colonizadores.
– Querem reabrir a Colonização, é isso, Bedap?
– Dizem que estão sendo perseguidos pelo governo deles e esperam...
– Reabrir a Colonização! A qualquer explorador que se diga odoniano?
Relatar um debate administrativo anarresti na íntegra seria difícil; acontecia muito rápido, várias pessoas falando ao mesmo tempo, ninguém se estendendo em exposições demoradas, muito sarcasmo, muitas coisas não ditas; o tom emocional, muitas vezes furiosamente pessoal; chegava-se a um fim, porém a nenhuma conclusão. Era como uma discussão entre irmãos, ou entre pensamentos numa mente indecisa.
– Se deixarmos esses supostos odonianos entrarem, como eles sugerem chegar até aqui?
Agora falou o oponente que Bedap temia, a mulher calma e inteligente chamada Rulag. Ela tinha sido a inimiga mais inteligente o ano todo no conselho. Ele olhou de soslaio para Shevek, que comparecia pela primeira vez a esse conselho, a fim de lhe chamar a atenção para ela. Alguém contara a Bedap que Rulag era engenheira, e ele viu nela a clareza e o pragmatismo do engenheiro, além do ódio que o especialista em mecânica tem da complexidade e da irregularidade. Ela se opunha ao Sindicato da Iniciativa em todos os pontos de discussão, inclusive no direito de o sindicato existir. Seus argumentos eram bons, e Bedap a respeitava. Às vezes, quando ela falava da força de Urras e do perigo de negociar com o forte numa posição de fraqueza, ele acreditava nela.
Pois havia ocasiões em que Bedap se perguntava, reservadamente, se ele e Shevek, quando se reuniram no inverno de 68 e discutiram os meios pelos quais um físico frustrado poderia publicar seu trabalho e comunicá-lo aos físicos de Urras, não teriam desencadeado uma série de acontecimentos incontroláveis. Quando enfim estabeleceram contato, os urrastis estavam mais ansiosos para conversar, para trocar informações, do que eles esperavam; e quando publicaram relatos desses contatos, a oposição em Anarres foi mais virulenta do que esperavam. Pessoas em ambos os mundos estavam voltando mais atenção para eles do que seria confortável. Quando o inimigo o recebe com entusiasmo e seus compatriotas o rejeitam asperamente, é difícil não se perguntar se você não é, de fato, um traidor.
– Suponho que viriam num dos cargueiros deles – Bedap respondeu. – Como bons odonianos, eles pegariam carona. Se o governo deles, ou o Conselho dos Governos Mundiais, deixar. Eles deixariam? Os hierarquistas fariam um favor aos anarquistas? É o que eu gostaria de descobrir. Se convidássemos um pequeno grupo, seis ou oito, dessas pessoas, o que aconteceria no fim?
– Curiosidade louvável – disse Rulag. – Com certeza conheceríamos melhor o perigo se entendêssemos melhor como as coisas de fato funcionam em Urras. Mas o perigo mora no ato de tentar descobrir. – Ela ficou de pé, demonstrando com isso que desejava ter direito a mais do que uma ou duas frases. Bedap estremeceu e lançou outro olhar a Shevek, que estava sentado ao seu lado. – Cuidado com essa – murmurou. Shevek não respondeu, mas em geral era reservado e tímido nas reuniões, absolutamente calado, a não ser que algo o comovesse profundamente, e, nesse caso, revelava-se um orador surpreendentemente bom. Estava sentado com os olhos baixos, fitando as próprias mãos. Mas, quando Rulag falou, Bedap percebeu que, embora ela se dirigisse a ele, não parava de olhar de relance para Shevek.
– Seu Sindicato da Iniciativa – ela disse, enfatizando o pronome possessivo – prosseguiu na construção de um transmissor, na troca de mensagens com Urras e na publicação dessas comunicações. Fizeram tudo isso contra o conselho da maioria do CPD e os crescentes protestos de toda a Irmandade. Não houve reprimendas contra vocês e seus equipamentos, ainda, em grande parte, creio eu, porque nós, odonianos, nos desacostumamos à ideia de que alguém possa adotar uma conduta prejudicial aos demais e nela persistir, contrariando conselhos e protestos. É um acontecimento raro. Na verdade, vocês são os primeiros entre nós a se comportarem da maneira como os críticos hierarquistas sempre previram que as pessoas se comportariam numa sociedade sem leis: com total irresponsabilidade em relação ao bem-estar da sociedade. Não proponho voltar a discutir o mal que vocês já causaram, entregando informações científicas a um inimigo poderoso, a confissão de nossa fraqueza que cada uma de suas transmissões representa. Mas agora, pensando que já nos acostumamos a tudo isso, vocês propõem algo muito pior. Qual a diferença, dirão vocês, entre conversar com alguns urrastis pelas ondas curtas e conversar com eles aqui em Abbenay? Qual a diferença? Qual a diferença entre uma porta fechada e uma porta aberta? Vamos abrir a porta... é isso o que vocês estão dizendo, sabem, ammari. Vamos abrir a porta, deixem os urrastis entrarem! Seis ou oito pseudo-odonianos no próximo cargueiro. Sessenta ou oitenta exploradores iotas no cargueiro seguinte, para nos estudarem e verem como podem nos dividir, como uma propriedade, entre as nações de Urras. E na viagem seguinte serão 600 ou 800 naves de guerra armadas: armas de fogo, soldados, uma força de ocupação. O fim de Anarres, o fim da Promessa. Nossa esperança reside e tem residido há cento e setenta anos, nos Termos da Colonização: nenhum urrasti fora das naves, exceto os Colonizadores, naquela época, e para sempre. Sem mistura. Sem contato. Abandonar esse princípio agora significa dizer aos tiranos que já nos escravizaram: a experiência fracassou, venham nos reescravizar!
– Em absoluto – disse Bedap prontamente. – A mensagem é clara: a experiência deu certo, estamos fortes o bastante agora para encará-los como iguais.
A discussão prosseguiu como antes, uma sucessão rápida e enérgica de argumentos. Não durou muito. Não houve votação, como de costume. Quase todos os presentes defendiam com veemência a aplicação dos Termos da Colonização e, assim que isso ficou claro, Bedap disse:
– Tudo bem. Considero isso decidido. Ninguém pode vir a bordo da Atento ou da Forte Kuieo. Sobre a questão de trazer urrastis para Anarres, os objetivos do Sindicato devem, evidentemente, se submeter à opinião da sociedade como um todo; pedimos seu conselho e vamos segui-lo. Mas há outro aspecto da mesma questão. Shevek?
– Bem, há a questão – disse Shevek – de mandar um anarresti para Urras.
Houve exclamações e dúvidas. Shevek não levantou a voz, que não estava muito acima de um murmúrio, mas insistiu:
– Não iria prejudicar nem ameaçar ninguém que vive em Anarres. E parece tratar-se de uma questão de direito individual; uma espécie de teste desse direito, na verdade. Os Termos da Colonização não o proíbem. Proibi-lo agora seria usurpação de autoridade pelo CPD, uma redução do direito individual odonioano de tomar iniciativas que não prejudiquem os outros.
Rulag, sentada, inclinou-se para a frente, sorrindo um pouco.
– Qualquer um pode sair de Anarres – ela disse. Seus olhos claros foram de Shevek para Bedap, e de volta para Shevek. – Ele pode ir quando quiser se os cargueiros dos proprietários o aceitarem. Mas não pode voltar.
– Quem disse que não pode? – interpelou Bedap.
– Os Termos de Fechamento da Colonização. Ninguém será autorizado a sair das naves cargueiras e ultrapassar os limites do Porto de Anarres.
– Bem, ora, com certeza isso se referia aos urrastis, não aos anarrestis – disse um velho conselheiro, Ferdaz, que gostava de dar suas remadas, mesmo quando isso afastava o barco do curso que ele queria.
– Uma pessoa vinda de Urras é um urrasti – disse Rulag.
– Legalismos, legalismos! O que significam essas ninharias? – disse uma mulher calma e forte, chamada Trepil.
– Ninharias! – gritou o novo membro, o jovem. Tinha um sotaque do Nascente Norte e uma voz grave e firme. – Se não gosta de ninharias, que tal isto? Se existem pessoas que não gostam de Anarres, que vão embora. Eu ajudo a carregá-las até o Porto. Posso até chutá-las até lá! Mas se tentarem entrar de novo escondidas, alguns de nós estaremos lá esperando. Alguns odonianos de verdade. E não vão nos encontrar sorrindo, dizendo “bem-vindos, irmãos”. Vão é engolir os dentes com socos e levar uns chutes no saco. Entende isso? Está claro o bastante para você?
– Claro, não; óbvio, sim. Óbvio como um peido – disse Bedap. – Clareza é uma função do pensamento. Você devia aprender um pouco de Odonismo antes de falar aqui.
– Você não é digno de pronunciar o nome de Odo! – berrou o jovem. – Vocês são traidores, vocês e todo o Sindicato! Tem gente em Anarres inteiro vigiando vocês. Vocês pensam que não sabemos que pediram para Shevek ir para Urras, para ir e vender a ciência anarresti aos exploradores? Acham que não sabemos que vocês todos, seus hipócritas, adorariam ir para lá viver na riqueza e deixar os proprietários darem tapinhas nas suas costas. Podem ir! Já vão tarde! Mas se tentarem voltar para cá, vão dar de cara com a justiça!
Ele estava em pé, inclinado sobre a mesa, gritando diretamente na cara de Bedap. Bedap olhou para ele e disse:
– Você não está falando de justiça, está falando de castigo. Acha que são a mesma coisa?
– Ele está falando de violência – disse Rulag. – E se houver violência, você a terão causado. Vocês e seu Sindicato. E terão merecido.
Um homem magro, franzino, de meia-idade, que estava ao lado de Trepil, começou a falar, de início tão baixo, com a voz enrouquecida pela tosse da poeira, que apenas alguns o ouviram. Era um delegado visitante de um sindicato de mineiros do Sudoeste, e não esperavam que se manifestasse sobre o assunto.
– ... o que os homens merecem – dizia ele. – Pois cada um de nós merece tudo, cada luxo empilhado nos túmulos dos reis mortos, e cada um de nós não merece nada, nem um pedaço de pão quando se está com fome. Nós não comemos enquanto outros morriam de fome? Vão nos punir por isso? Vão nos recompensar pela virtude de termos passado fome enquanto outros comiam? Nenhum homem merece castigo, nenhum homem merece recompensa. Libertem a mente da ideia de merecer, da ideia de ganhar, e serão capazes de pensar. – Eram, naturalmente, palavras de Odo, tiradas das Cartas do Cárcere, mas, ditas numa voz rouca e fraca, tiveram um estranho efeito, como se o próprio homem as tivesse produzido, como se viessem de seu coração, devagar, com dificuldade, como água brotando devagar, devagar, na areia do deserto.
Rulag o escutou, com a cabeça ereta, o rosto rígido, como o de uma pessoa reprimindo a dor. De frente para ela, do outro lado da mesa, Shevek estava sentado de cabeça baixa. As palavras deixaram um silêncio atrás de si, e ele olhou para cima e falou no silêncio.
– Sabem – ele disse –, o que pretendemos é relembrar que não viemos para Anarres por segurança, mas por liberdade. Se tivermos todos que concordar e trabalhar juntos, não seremos mais do que uma máquina. Se um indivíduo não puder trabalhar em solidariedade com os companheiros, é sua obrigação trabalhar sozinho. Sua obrigação e seu direito. Temos negado esse direito às pessoas. Temos afirmado, com frequência cada vez maior, que devemos trabalhar com os outros, que devemos aceitar as regras da maioria. Mas qualquer regra é tirania. A obrigação do indivíduo é não aceitar nenhuma regra, é ser o iniciador de seus próprios atos, é ser responsável. Somente se o indivíduo agir assim a sociedade poderá viver, mudar, se adaptar e sobreviver. Não somos súditos de um Estado fundado na lei, mas membros de uma sociedade fundada na revolução. A revolução é a nossa obrigação: nossa esperança de evolução. “Ou a Revolução está no espírito do indivíduo, ou não está em lugar nenhum.” É para todos, ou não é nada. “Se for vista como algo com qualquer propósito, a Revolução jamais começará de verdade.” Não podemos parar aqui. Temos de prosseguir. Temos de correr riscos.
Rulag replicou, tão calma quanto ele, mas com muita frieza.
– Você não tem nenhum direito de envolver a todos nós num risco que motivações particulares o impelem a correr.
– Ninguém que se recuse a ir tão longe quanto estou disposto a ir tem o direito de impedir que eu vá – respondeu Shevek. Seus olhos se encontraram por um segundo; ambos baixaram os olhos.
– O risco de uma viagem a Urras não envolve ninguém, a não ser a pessoa que estiver indo – disse Bedap. – Não muda nada nos Termos da Colonização, e nada em nosso relacionamento com Urras, exceto, talvez, moralmente... em nosso benefício. Mas acho que nenhum de nós está pronto para decidir sobre isso. Retiro o tópico por ora, se todos estiverem de acordo.
Todos assentiram, e ele e Shevek deixaram a reunião.
– Tenho que passar no Instituto – Shevek disse, ao saírem do prédio do CPD. – Sabul me enviou um de seus bilhetes... o primeiro nos últimos anos. O que será que ele quer?
– O que será que aquela Rulag quer? Ela tem algo pessoal contra você. Inveja, suponho. Não vamos mais colocar vocês dois frente a frente, senão não chegaremos a lugar algum. Embora aquele rapaz do Nascente Norte tenha sido uma novidade desagradável também. A maioria governa, e a força faz o direito! Será que estamos conseguindo passar nossa mensagem, Shev? Ou será que estamos apenas endurecendo a oposição a ela?
– Talvez tenhamos mesmo que mandar alguém para Urras... para provar nosso direito pela ação, se as palavras não adiantarem.
– Talvez. Desde que não seja eu! Vou ficar roxo de tanto defender nosso direito de sair de Anarres, mas se eu tivesse de sair, caramba, eu cortaria a minha garganta.
Shevek riu.
– Tenho que ir. Vou estar em casa daqui a uma hora, mais ou menos. Venha comer conosco hoje à noite.
– Encontro você no quarto.
Shevek começou a andar na rua com seus passos largos; Bedap ficou hesitante em frente ao prédio do CPD. Era o meio da tarde de um dia ventoso, ensolarado e frio de primavera. As ruas de Abbenay estavam claras, limpas, animadas com gente e luz. Bedap sentiu-se ao mesmo tempo animado e decepcionado. Tudo, inclusive suas emoções, era promissor, mas insatisfatório. Dirigiu-se ao domicílio no Quarteirão Pekesh, onde Shevek e Takver moravam agora, e encontrou, como esperava, Takver em casa com a bebê.
Takver tivera dois abortos, e então chegou Pilun, atrasada e de forma um tanto inesperada, mas muito bem-vinda. Nascera bem pequena e agora, com quase 2 anos, ainda era pequena, de pernas e braços finos. Sempre que Bedap a segurava, ficava um tanto assustado ou aflito com o toque daqueles braços delicados, tão frágeis que se podia quebrá-los com uma simples torcida de mão. Gostava muito de Pilun, fascinado pelos olhos cinzentos e turvos, encantado com sua total confiança, mas sempre que a tocava, sentia conscientemente, como nunca sentira antes, o que é a atração da crueldade, por que os fortes atormentam os mais fracos. E, portanto – embora não pudesse explicar por quê –, também compreendeu algo que nunca fizera muito sentido para ele, nem lhe interessado de modo algum: sentimento paterno. Provocava-lhe extraordinário prazer quando Pilun o chamava de “babai”.
Sentou-se na cama abaixo da janela. Era um quarto espaçoso, com duas camas e uma esteira no chão; não havia mais nenhuma mobília, nenhuma mesa ou cadeira, só o biombo que delimitava uma área para brincadeiras ou protegia o berço de Pilun. Takver tinha aberto a gaveta longa e larga da outra cama e estava separando pilhas de papéis guardados ali.
– Pode segurar a Pilun, Dap, querido? – ela disse, com seu sorriso largo, quando a bebê começou a caminhar na direção dele. – Ela já revirou esses papéis pelo menos dez vezes, toda vez que eu os separo. Termino aqui em um minuto... dez minutos.
– Não tenha pressa. Não quero conversar. Quero só sentar aqui. Venha, Pilun. Ande... Isso, menina! Venha com o babai Dap. Agora te peguei!
Pilun sentou-se contente no colo de Dap e estudou a mão dele. Bedap sentiu vergonha das próprias unhas, que ele não roía mais, mas que ficaram deformadas de tanto serem roídas, e no começo fechou a mão para escondê-las; depois sentiu vergonha da vergonha e abriu a mão. Pilun bateu nela de leve.
– É um belo quarto – ele disse. – Com a luz do norte. É sempre calmo aqui.
– Sim, psiu, estou contando estes papéis.
Após um momento, ela guardou os papéis e fechou a gaveta.
– Pronto! Desculpe. Falei para o Shev que eu paginaria aquele artigo para ele. Que tal uma bebida?
O racionamento ainda estava em vigor para muitos alimentos básicos, embora muito menos rígido do que cinco anos antes. Os pomares do Nascente Norte tinham sofrido menos e se recuperaram mais rápido da seca do que as regiões de cereais e, no ano passado, frutas e sucos de frutas saíram da lista dos restritos. Takver tinha uma garrafa em pé na janela sombreada. Serviu uma xicarada para cada um, em canecas de cerâmica um tanto irregulares que Sadik tinha feito na escola. Ela sentou-se de frente para Bedap e olhou para ele, sorrindo.
– Bem, como vão as coisas no CPD?
– As mesmas de sempre. Como vai o laboratório de peixes?
Takver baixou os olhos para a sua caneca, mexendo-a para captar a luz na superfície do líquido.
– Não sei. Estou pensando em sair.
– Por que, Takver?
– Melhor sair do que ser mandada embora. O problema é que eu gosto daquele trabalho e sou boa nele. É o único desse tipo em Abbenay. Mas não dá para ser membro de uma equipe de pesquisa que decidiu que você não é mais membro.
– Estão ficando cada vez mais severos com você, não é?
– O tempo todo – ela disse, e olhou para a porta de modo rápido e inconsciente, como se quisesse ter certeza de que Shevek não estava ali, ouvindo. – Alguns deles são inacreditáveis. Bem, você sabe. Não adianta continuar assim.
– Não. É por isso que estou feliz de encontrar você sozinha. Realmente não sei. Eu, Shevek, Skovan, Gezach e o restante do pessoal que passa a maior parte do tempo na gráfica ou na torre de rádio não temos postos, então não vemos muitas pessoas fora do Sindicato da Iniciativa. Vou muito ao CPD, mas lá a situação é especial, lá eu espero oposição porque eu a crio. Que tipo de dificuldade você está enfrentando?
– Ódio – disse Takver, em sua voz sombria e macia. – Ódio real. O diretor do meu projeto não fala mais comigo. Bem, isso não é uma grande perda. Ele é um idiota mesmo. Mas alguns dos outros me dizem o que pensam... Tem uma mulher, não no laboratório de peixes, aqui no domicílio. Estou no comitê de saneamento do quarteirão e tive que ir conversar com ela sobre alguma coisa. Ela não me deixou falar. “Nem tente entrar nesta sala. Conheço vocês, seus malditos traidores, seus intelectuais, seus egoizadores”, e assim por diante, e depois bateu a porta na minha cara. Foi grotesco. – Takver riu sem humor. Pilun, ao vê-la rir, sorriu, aninhada no braço de Bedap, e então bocejou. – Mas, sabe, foi assustador. Sou uma covarde, Dap. Não gosto de violência. Não gosto nem que me desaprovem!
– Claro que não. A única segurança que temos é a aprovação de nossos vizinhos. Um hierarquista pode infringir a lei e ter a esperança de se livrar da punição, mas você não pode “infringir” um costume; é a estrutura de nossa vida com outras pessoas. Estamos apenas começando a sentir como é ser um revolucionário, como Shevek disse hoje da reunião. E não é confortável.
– Algumas pessoas entendem – Takver disse com otimismo convicto. – Uma mulher no ônibus ontem. Não sei de onde a conhecia, do trabalho na dezena, suponho; ela disse: “Deve ser maravilhoso viver com um grande cientista, deve ser tão interessante!” E eu disse: “Sim, pelo menos tem sempre alguma coisa para conversar...” Pilun, não durma, meu bebê! Shevek vai chegar logo e nós vamos ao refeitório. Dê uma sacudida nela, Dap. Bem, de qualquer modo, ela sabia quem era Shevek, mas não falou com ódio ou desaprovação, ela foi muito simpática.
– As pessoas realmente sabem quem ele é – disse Bedap. – É engraçado, porque não conseguem entender os livros dele, como eu não entendo. Ele acha que algumas centenas de pessoas entendem. Aqueles estudantes dos Institutos Divisionais que tentam organizar cursos sobre Simultaneidade. Eu acho que algumas dezenas já seriam uma estimativa generosa. E, no entanto, as pessoas o conhecem, têm essa sensação de que ele é algo do que se orgulhar. Isso é uma coisa que o Sindicato fez, suponho, no mínimo. Publicou os livros de Shev. Pode ter sido a única coisa sensata que fizemos.
– Ah, ora! Vocês devem ter tido uma péssima reunião no CPD, hoje.
– Tivemos. Gostaria de animá-la, Takver, mas não posso. O Sindicato está se aproximando muito do limite do laço social: o medo do estrangeiro. Tinha um rapaz lá hoje ameaçando abertamente com represálias violentas. Bem, é uma opção equivocada, mas ele vai encontrar outros prontos para acatá-la. E aquela Rulag, caramba, ela é uma tremenda oponente!
– Sabe quem é ela, Dap?
– Quem é ela?
– Shev nunca te contou? Bem, ele não fala nela. Ela é a mãe.
– Mãe do Shev?
Takver confirmou com um movimento da cabeça.
– Ela o deixou quando ele tinha 2 anos. O pai ficou com ele. Nada de extraordinário, claro. Exceto os sentimentos de Shev. Ele tem a sensação de que perdeu algo essencial... tanto ele quanto o pai. Ele não faz disso um princípio geral, de que os pais sempre devem ficar com os filhos, ou algo assim. Mas a importância que ele dá à lealdade, isso começou lá atrás, eu acho.
– O que é extraordinário – disse Bedap com energia, esquecendo-se de que Pilun dormia num sono profundo em seu colo –, singularmente extraordinário, são os sentimentos dela em relação a ele! Ela estava só esperando que ele fosse a uma reunião da Importação-Exportação, deu para perceber, hoje. Ela sabe que ele é a alma do grupo, e ela nos odeia por causa dele. Por quê? Culpa? Será que a Sociedade Odoniana apodreceu tanto que somos motivados por culpa?... Sabe, agora que eu sei, eles se parecem. Só que nela tudo endureceu, virou pedra... morreu.
A porta se abriu enquanto ele falava. Shevek e Sadik entraram. Sadik tinha 10 anos, alta para a idade dela e magra, de pernas muito longas, flexível e frágil, com uma nuvem de cabelo escuro. Atrás dela vinha Shevek; e Bedap, olhando para ele sob a intrigante luz nova de seu parentesco com Rulag, o viu como se vê ocasionalmente um velho amigo, com uma nitidez para a qual todo o passado contribui: o esplêndido rosto reticente, cheio de vida, mas esgotado, esgotado até os ossos. Era um rosto intensamente individual e, no entanto, os traços não eram parecidos apenas com os de Rulag, mas com os de muitos outros anarrestis, um povo escolhido por uma visão de liberdade e adaptado a um mundo árido, um mundo de distâncias, silêncios, desolações.
No quarto, entretanto, muita proximidade, comoção, comunhão: cumprimentos, risos, Pilun passando de uma pessoa a outra, um tanto contrariada, para ser abraçada, a garrafa passando de uma mão a outra para ser servida, perguntas, conversas. Primeiro, Sadik foi o centro, pois ela era a presença menos frequente da família; em seguida, Shevek.
– O que o velho Barba Sebenta queria?
– Você esteve no Instituto? – perguntou Takver, examinando-o enquanto ele se sentava ao seu lado.
– Só dei uma passada lá. Sabul me mandou um bilhete de manhã no Sindicato. – Shevek bebeu todo o seu suco de fruta e baixou a caneca, revelando uma curiosa firmeza na boca, uma não expressão. – Ele disse que a Federação de Física tem um posto de período integral a ser preenchido. Autônomo, permanente.
– Quer dizer, para você, no Instituto?
Ele confirmou com a cabeça.
– Sabul disse isso a você?
– Ele está tentando aliciá-lo – disse Bedap.
– Sim, acho que sim. Se não pode eliminá-lo, domestique-o, como dizíamos no Poente Norte. – Shevek soltou uma gargalhada súbita e espontânea. – É engraçado, não é? – ele disse.
– Não – disse Takver. – Não é engraçado. É nojento. Como você pôde sequer conversar com ele? Depois de todas as calúnias que ele espalhou sobre você, das mentiras sobre você ter roubado os Princípios dele, de não ter contado que os urrastis tinham lhe dado aquele prêmio, e depois, agora, no ano passado, de ter mandado dissolver e dispersar o grupo que aqueles garotos tinham organizado para a série de palestras, por causa da sua “influência criptoautoritária” sobre eles... você, um autoritário!... aquilo foi repugnante, imperdoável. Como você pode ser civilizado com um homem desses?
– Bem, não é apenas o Sabul, você sabe. Ele é só um porta-voz.
– Eu sei, mas ele adora ser o porta-voz. E tem sido um ordinário há muito tempo! Bem, o que você disse a ele?
– Pode-se dizer que eu... temporizei. – Shevek disse, e riu de novo. Takver o olhou de soslaio de novo, sabendo que agora ele estava, apesar de todo o autocontrole, num estado de extrema tensão e excitação.
– Então, você não o rejeitou de pronto?
– Eu disse que tinha resolvido, alguns anos atrás, não aceitar nenhum posto regular, desde que eu pudesse fazer trabalho teórico. Então ele disse que, já que aquele posto era autônomo, eu estaria completamente livre para prosseguir com a pesquisa que eu estava fazendo, e que o objetivo de me dar um posto no Instituto era... vamos ver se eu lembro como ele disse... “facilitar acesso ao equipamento experimental no Instituto e aos canais regulares de publicação e disseminação”. O CPD, em outras palavras.
– Ora, então você venceu – disse Takver, olhando para ele com uma expressão esquisita. – Você venceu. Eles vão publicar o que você escrever. Era o que você queria quando voltamos para cá, há cinco anos. Os muros foram derrubados.
– Há muros atrás dos muros – Bedap disse.
– Venci apenas se eu aceitar o posto. Sabul está oferecendo... me legalizar. Me tornar oficial. Para me separar do Sindicato da Iniciativa. Não acha que a intenção dele é essa, Dap?
– Claro – disse Bedap. Seu rosto estava melancólico. – Dividir para enfraquecer.
– Mas levar Shevek de volta ao Instituto e publicar o que ele escrever na gráfica do CPD é uma aprovação implícita do Sindicato, não é?
– Pode significar isso para a maioria das pessoas – disse Shevek.
– Não, não vai significar – disse Bedap. – Eles vão explicar. O grande físico foi corrompido por um grupo de desleais, por algum tempo. Intelectuais estão sempre sendo desviados, pois pensam em coisas irrelevantes, como tempo, espaço e realidade, coisas que não têm nada a ver com a vida real, por isso são facilmente enganados por dissidentes malvados. Mas os bondosos odonianos do Instituto delicadamente lhe demonstraram que ele estava errado, então o grande físico voltou para o caminho da verdade social-orgânica. Ceifando do Sindicato da Iniciativa a única chance concebível para chamar a atenção de alguém em Anarres ou Urras.
– Eu não vou sair do Sindicato, Bedap.
Bedap levantou a cabeça e disse, após um minuto:
– Não, eu sei que não.
– Muito bem. Vamos jantar. Minha barriga está roncando: escute, Pilun, está ouvindo? Rrom, rrom!
– Upa! – disse Pilun, em tom de comando. Shevek pegou-a e se levantou, girando-a para colocá-la nos ombros. Atrás da cabeça dele e a da criança, o único móbile pendurado naquele quarto oscilou levemente. Era uma peça grande feita de fios achatados que, de perfil, quase desapareciam, fazendo as formas ovais nas quais eram moldados tremeluzirem, sumindo sob certas luzes, como também sumiam as duas finas bolhas de vidro que se mexiam com os fios ovais, em órbitas elipsoides entrelaçadas em torno de um centro comum, nunca se encontrando, nunca se separando inteiramente. Takver chamava o móbile de Habitação do Tempo.
Foram ao refeitório de Pekesh e aguardaram até o painel mostrar uma anulação, para que pudessem entrar com Bedap como convidado. Seu registro ali anulava o que ele tinha no refeitório onde costumava comer, pois o sistema era coordenado em toda a cidade por um computador. Era um dos “processos homeostáticos” altamente mecanizados adorados pelos primeiros colonizadores, que persistiam apenas em Abbenay. Como as outras soluções menos elaboradas em outros lugares, este sistema também não funcionava com perfeição; havia faltas, excedentes e frustrações, mas não muito importantes. Anulações no refeitório de Pekesh não eram frequentes, pois tinha a cozinha mais famosa de Abbenay e a tradição de ótimos cozinheiros. Uma vaga abriu, enfim, e eles entraram. Dois jovens que Bedap reconheceu vagamente como sendo vizinhos de domicílio de Shevek e Takver sentaram-se à mesa com eles. De resto, ficaram sozinhos... deixaram-nos sozinhos. Isolamento deliberado? Não pareceu importar. Tiveram um bom jantar, uma boa conversa. Mas, de vez em quando, Bedap sentia que havia um círculo de silêncio em torno deles.
– Não sei o que os urrastis vão inventar depois – ele disse e, embora não estivesse falando alto, percebeu, para seu desgosto, que estava baixando a voz. – Eles pediram para vir para cá e pediram para Shevek ir para lá; qual será o próximo passo?
– Eu não sabia que eles tinham de fato pedido para Shev ir para lá – Takver comentou, um tanto contrariada.
– Sabia, sim – retrucou Shevek. – Quando me disseram que eu tinha ganhado o prêmio, você sabe, o Seo Oen, perguntaram se eu podia ir, lembra? Para pegar o dinheiro do prêmio! – Shevek sorriu, radiante. Se havia um círculo de silêncio em torno deles, isso não o incomodava, pois sempre estivera sozinho.
– É verdade. Eu realmente sabia disso. Apenas não registrei como uma possibilidade real. Vocês vêm falando há décades em sugerir ao CPD que mande alguém para Urras só para chocá-los.
– É o que finalmente fizemos, hoje à tarde. Dap me fez falar.
– E eles ficaram chocados?
– De cabelo em pé, olhos arregalados...
Takver soltou uma risadinha. Pilun estava sentada numa cadeira alta ao lado de Shevek, exercitando os dentes num pedaço de pão de holum e a voz numa canção.
– Ô, mama, baba – proclamou.
– Aberi, aberi baba dab! – Shevek, versátil, respondeu no mesmo espírito. A conversa adulta prosseguiu sem intensidade e com interrupções. Bedap não se importava, tinha aprendido há muito tempo que, ou se aceitava Shevek com complicações, ou não se aceitava de jeito nenhum. A mais quieta de todos era Sadik.
Bedap ficou com eles por uma hora após o jantar, nas agradáveis e espaçosas salas comuns do domicílio e, quando se levantou para ir embora, ofereceu-se para acompanhar Sadik ao dormitório da escola, que ficava em seu caminho. Neste momento, algo aconteceu, um desses eventos ou sinais obscuros aos que estão fora da família; tudo o que soube é que Shevek, sem nenhuma confusão ou discussão, iria junto com eles. Takver tinha de amamentar Pilun, que fazia cada vez mais barulho. Ela beijou Bedap, e ele e Shevek saíram com Sadik, conversando. Conversavam com entusiasmo e passaram o dormitório do centro de aprendizagem. Voltaram. Sadik tinha parado na frente da entrada do dormitório. Ficou ali, imóvel, ereta e frágil, o rosto sereno, na luz fraca do poste da rua. Shevek ficou igualmente imóvel por um instante, e então foi até ela.
– O que foi, Sadik?
A criança respondeu:
– Shevek, posso ficar no quarto esta noite?
– Claro. Mas o que foi?
O rosto longo e delicado de Sadik estremeceu e pareceu se fragmentar.
– Não gostam de mim, no dormitório – ela disse, com a voz ficando aguda de tensão, porém ainda mais suave do que antes.
– Não gostam de você? Como assim?
Ainda não tinham se tocado. Ela respondeu com coragem desesperada.
– Porque não gostam... não gostam do Sindicato, do Bedap e... e de você. Eles chamam... A irmã grande do dormitório, ela disse que você... que você era um tr... Ela disse que nós somos traidores – e, ao dizer a palavra, a criança teve um espasmo, como se tivesse levado um tiro, e Shevek segurou-a e abraçou-a. Ela o agarrou com toda a força, chorando em grandes soluços ofegantes. Ela era alta e já não tinha idade para ser carregada no colo. Ele ficou abraçando-a, acariciando seu cabelo. Olhou por cima do cabelo escuro da filha em direção a Bedap. Seus próprios olhos estavam cheios de lágrimas.
– Tudo bem, Dap. Pode ir. – disse.
Não havia nada que Bedap pudesse fazer, a não ser deixá-los ali, o homem e a criança, naquela intimidade única que ele não podia compartilhar, a mais difícil e profunda: a intimidade da dor. Não teve nenhuma sensação de alívio ou libertação ao partir; ao contrário, sentiu-se inútil, diminuído. “Tenho 39 anos”, pensou, enquanto caminhava em direção ao domicílio, o quarto com cinco homens onde morava em perfeita independência. “Quarenta, em algumas décades. E o que eu fiz? O que tenho feito? Nada. Me intrometendo. Me intrometendo na vida dos outros porque não tenho vida. Nunca tive pressa. E o tempo vai se esgotar para mim, de uma vez, e eu nunca terei tido... aquilo.” Olhou para trás, para a rua comprida e silenciosa, onde os postes da esquina formavam suaves poças de luz no escuro ventoso, mas já estava longe demais para ver pai e filha, ou eles já tinham ido embora. E o que ele quis dizer com “aquilo”, não saberia expressar, por melhor que fosse com as palavras; no entanto, sentiu que compreendia claramente, que toda a sua esperança estava nessa compreensão, e que, se quisesse ser salvo, teria de mudar de vida.
Quando Sadik se acalmou o bastante para soltá-lo, Shevek deixou-a sentada no degrau da frente do dormitório e entrou para informar ao vigia que ela iria dormir com os pais aquela noite. O vigia respondeu-lhe com frieza. Adultos que trabalhavam em dormitórios infantis tinham uma tendência natural a desaprovar visitas a domicílios com pernoite, considerando-as um transtorno; Shevek disse a si mesmo que decerto estava enganado ao sentir alguma coisa a mais do que essa desaprovação no vigia. Os corredores do centro de aprendizagem estavam vivamente iluminados, soando com barulho, prática musical, vozes de crianças. Eram todos os velhos sons, os cheiros, os ecos de infância de que Shevek se lembrou e, no caso dele, os medos. A gente esquece os medos.
Ele saiu e caminhou com Sadik, os braços em volta dos ombros magros da garota. Ela estava quieta, ainda se contorcendo. Disse, de modo abrupto, quando entraram do domicílio principal de Pekesh:
– Eu sei que não é agradável para você e Takver quando eu durmo aqui.
– De onde você tirou essa ideia?
– Porque vocês querem privacidade, casais adultos precisam de privacidade.
– Tem a Pilun – ele observou.
– A Pilun não conta.
Ela fungou, tentando sorrir.
Quando entraram na luz do quarto, entretanto, seu rosto branco inchado e com manchas vermelhas logo levou Takver a perguntar, assustada:
– O que foi que aconteceu? – e Pilun, interrompida no meio de sua mamada, tirada de seu contentamento com um susto, abriu o berreiro, diante do qual Sadik tornou a cair em prantos, e por um certo tempo parecia que todo mundo estava chorando, se consolando e recusando consolo. Tudo isso de repente se transformou em silêncio, Pilun no colo da mãe, Sadik no colo do pai.
Quando a bebê foi saciada e posta para dormir, Takver falou em voz baixa, mas intensa:
– Agora me diga, o que foi?
A própria Sadik já estava quase dormindo, com a cabeça no peito do pai. Ele sentiu que ela estava reunindo todas as forças para responder. Acariciou-lhe os cabelos para acalmá-la e respondeu por ela:
– Algumas pessoas no centro de aprendizagem nos desaprovam.
– E que maldito direito elas têm de nos desaprovar?
– Psiu, psiu. Desaprovam o Sindicato.
– Ah – disser Takver, num som esquisito e gutural e, ao abotoar a túnica, arrancou o botão do tecido. Ficou em pé, olhando o botão na palma da mão. Depois olhou para Shevek e Sadik.
– Há quanto tempo isso vem acontecendo?
– Há muito tempo – respondeu Sadik, sem levantar a cabeça.
– Há dias, décades, o trimestre inteiro?
– Ah, mais tempo. Mas eles ficam... são mais malvados lá no dormitório. À noite. E a Terzol não faz nada. – Sadik parecia falar dormindo, muito serena, como se aquilo não a preocupasse mais.
– O que eles fazem? – Takver perguntou, embora o olhar de Shevek a advertisse.
– Bem, eles... eles são malvados. Me deixam fora dos jogos e outras coisas. A Tip, sabe, era uma amiga, ela vinha conversar comigo pelo menos até apagarem as luzes. Mas parou. Terzol é a irmã grande no dormitório agora e ela... ela diz: “Shevek é... Shevek...”
Ele interrompeu, sentindo a tensão aumentar no corpo da criança, encolhendo-se e criando coragem, intolerável.
– Ela diz “Shevek é traidor, Sadik é egoizadora...” Você sabe o que ela diz, Takver! – Seus olhos chamejavam. Takver aproximou-se e tocou na bochecha da filha, uma vez, com delicadeza. Disse, numa voz calma:
– Sim, eu sei – e foi se sentar na outra cama, de frente para eles.
A bebê, enrolada perto da parede, ressonava levemente. Pessoas no quarto ao lado chegavam do refeitório, uma porta bateu, alguém lá embaixo na praça gritou um boa-noite e outro respondeu de uma janela aberta. O grande domicílio, duzentos quartos, estava agitado, tranquilamente vivo, à volta deles; assim como a existência deles se infiltrava na existência do domicílio, a existência do domicílio também se infiltrava na deles, como parte de um todo. Logo Sadik deslizou para fora do colo do pai e sentou-se na cama ao lado dele, perto dele. Seu cabelo escuro estava desgrenhado, embaraçado, caindo-lhe no rosto.
– Eu não queria contar para vocês porque... – Sua voz soava fina e fraca. – Mas só foi piorando. Eles ficam mais malvados juntos.
– Então você não vai voltar lá – disse Shevek, e a envolveu em seu braço, mas ela resistiu, sentando-se ereta.
– Se eu for lá falar com eles... – disse Takver.
– Não adianta. Eles sentem o que sentem.
– Mas o que é isso que estamos enfrentando? – perguntou Takver, com perplexidade.
Shevek não respondeu. Continuou com o braço no ombro de Sadik, e ela enfim cedeu, recostando a cabeça no braço do pai com um cansaço pesado. – Existem outros centros de aprendizagem – ele disse, enfim, sem muita certeza.
Takver levantou-se. Era evidente que não conseguia ficar quieta, sentada, e queria fazer alguma coisa, agir. Mas não havia muito que fazer.
– Deixe eu fazer uma trança no seu cabelo, Sadik – ela disse, com voz mais branda.
Ela escovou e trançou o cabelo da criança; colocaram o biombo no meio do quarto e deitaram Sadik ao lado da bebê adormecida. Sadik estava quase às lágrimas de novo quando disse boa-noite, mas em meia hora perceberam, pela respiração, que ela estava dormindo.
Shevek tinha se acomodado na cabeceira da cama deles com um caderno e a lousa que ele usava para cálculos.
– Paginei aquele manuscrito hoje – disse Takver.
– Deu quantas páginas?
– Quarenta e uma. Com o suplemento.
Ele fez um movimento afirmativo com a cabeça. Takver levantou-se, olhou por cima do biombo as duas crianças adormecidas, voltou e sentou-se na beira da cama.
– Eu sabia que tinha alguma coisa errada. Mas ela não disse nada. Ela nunca diz, é estoica. Não me ocorreu que fosse isso. Pensei que fosse apenas problema nosso, não me ocorreu que eles podiam descontar nas crianças. – Falou com delicadeza e amargura. – Está aumentando, não para de aumentar... Será que vai ser diferente em outra escola?
– Não sei. Se ela passar bastante tempo conosco, provavelmente não.
– Você por acaso está sugerindo...
– Não, não estou. Só estou constatando um fato. Se optarmos por oferecer à criança a intensidade do amor individual, não poderemos poupá-la do que faz parte disso: o risco da dor. Dor vinda de nós e através de nós.
– Não é justo que ela seja atormentada pelo que nós fazemos. Ela é tão boa, tão educada, ela é como água cristalina... – Takver parou, sufocada por uma breve torrente de lágrimas, enxugou os olhos e firmou os lábios.
– Não é o que nós fazemos. É o que eu faço. – Pôs o caderno na cama. – Você também tem sofrido por causa disso.
– Pouco me importa o que eles pensam.
– No seu trabalho?
– Posso arranjar outro posto.
– Não aqui, não em seu próprio campo.
– Bem, você quer que eu vá para outro lugar? Os laboratórios de peixes de Sorruba, em Paz-e-Fartura, me aceitariam. Mas como você fica? – Olhou para ele, irritada. – Aqui, suponho?
– Eu poderia ir com você. Skovan e os outros já estão indo bem em iótico, vão conseguir lidar com as comunicações por rádio, e esta é minha principal função prática no Sindicato agora. Posso trabalhar em física em Paz-e-Fartura ou aqui. Mas, a menos que eu saia do Sindicato da Iniciativa, isso não resolve o problema, não é? O problema sou eu. Eu sou a única causa dos problemas.
– Será que eles se importariam com isso num lugar tão pequeno como Paz-e-Fartura?
– Receio que sim.
– Shevek, quanto desse ódio você vem enfrentando? Você tem se calado, como Sadik?
– E como você. Bem, às vezes. Quando fui a Concórdia, no verão passado, foi um pouco pior do que lhe contei. Jogaram pedras, e houve uma briga feia. Os alunos que me pediram para ir tiveram de brigar em minha defesa. Mas eu saí rápido; estavam em perigo por minha causa. Bem, estudantes gostam do perigo. E, afinal, nós pedimos briga, provocamos as pessoas deliberadamente. E muitos estão do nosso lado. Mas agora... estou começando a me perguntar se não estou expondo você e as crianças ao perigo, Tak. Ficando com vocês.
– É claro que você não está em perigo – ela disse, furiosa.
– Eu procurei. Mas não me ocorreu que eles estenderiam o ressentimento tribal a vocês. Não vejo o perigo que vocês correm do mesmo modo que vejo o meu.
– Altruísta!
– Talvez. Não posso evitar. Realmente me sinto responsável, Tak. Sem mim, vocês podem ir a qualquer lugar, ou ficar aqui. Você trabalhou para o Sindicato, mas do que eles se ressentem é a sua lealdade a mim. Eu sou o símbolo. Então, não... Não existe nenhum lugar para onde eu possa ir.
– Vá para Urras – disse Takver. Seu tom de voz foi tão áspero que Shevek recuou como se ela tivesse lhe dado um soco no rosto.
Ela não o olhou nos olhos, mas repetiu, em tom mais brando:
– Vá para Urras... Por que não? Eles querem você lá. Aqui não! Talvez comecem a perceber o que perderam quando você for embora. E você quer ir. Percebi isso hoje à noite. Nunca pensei nisso antes, mas quando conversamos sobre o prêmio, no jantar, eu percebi, do jeito que você riu.
– Não preciso de prêmios e recompensas!
– Não, mas precisa de reconhecimento, de discussões e de alunos... livres das amarras de Sabul. E olhe. Você e Dap ficam o tempo todo falando em assustar o CPD com a ideia de mandar alguém para Urras, para reafirmar o direito do indivíduo à autodeterminação. Mas se vocês falam isso e ninguém vai, só estarão fortalecendo o lado deles... só vão provar que um costume é inquebrável. Agora que vocês levaram o assunto a uma reunião do CPD, alguém vai ter que ir. E deveria ser você. Eles o convidaram, você tem um motivo para ir. Buscar o seu prêmio... o dinheiro que eles estão guardando para você – ela terminou com uma risada súbita e espontânea.
– Takver, eu não quero ir para Urras!
– Quer sim; você sabe que quer. Só não estou tão certa do motivo.
– Bem, é claro que eu gostaria de conhecer alguns dos físicos... E ver os laboratórios de Ieu Eun, onde estão fazendo experiências com a luz. – Parecia envergonhado ao falar.
– É seu direito fazer isso – disse Takver, com determinação ardorosa. – Faz parte do seu trabalho, você deveria ir.
– Ajudaria a manter a Revolução viva... de ambos os lados... não ajudaria? – ele disse. – Que ideia maluca! Como a peça de Tirin, só que ao contrário. Vou subverter os hierarquistas... Bem, pelo menos provaria a eles que Anarres existe. Eles conversam conosco pelo rádio, mas acho que não acreditam de verdade em nós. No que nós somos.
– Se acreditassem, poderiam ficar com medo. Poderiam vir e nos explodir lá do céu, se você de fato os convencesse.
– Não creio. Eu poderia causar uma pequena revolução na física deles de novo, mas não nas opiniões. É aqui, aqui que eu posso afetar a sociedade, mesmo que não prestem atenção à minha física. Você tem toda a razão. Agora que falamos nisso, temos que fazê-lo. – Houve uma pausa. – Fico imaginando que tipo de física as outras raças fazem.
– Que outras raças?
– Os alienígenas. O povo de Hain e outros sistemas solares. Existem duas embaixadas em Urras, Hain e Terran. Os hainianos inventaram o propulsor interestelar que Urras está usando agora. Suponho que eles nos dariam, também. Se estivéssemos dispostos a pedir. Seria interessante se... – ele não terminou.
Após uma outra longa pausa, ele voltou-se para ela e disse, num tom de voz diferente e sarcástico:
– E o que você faria enquanto eu estivesse visitando os proprietários?
– Iria para a costa do Sorruba com as meninas e viveria uma vida muito tranquila como técnica num laboratório de peixes. Até você voltar.
– Voltar? E quem sabe se eu poderia voltar?
Ela o olhou direto nos olhos.
– O que o impediria?
– Talvez os urrastis. Podem querer me manter lá. Ninguém lá é livre para ir e vir, sabe. Talvez nosso próprio povo. Podem impedir o pouso da nave na volta. Algumas pessoas no CPD fizeram essa ameaça, hoje. Rulag foi uma delas.
– Claro. Ela só conhece a negação. Como negar a possibilidade de voltar para casa.
– Isso é verdade. Isso diz tudo – ele concordou, tornando a recostar-se na cama e olhando Takver com admiração contemplativa. – Mas Rulag não é a única, infelizmente. Para muitas pessoas, qualquer um que fosse a Urras e tentasse voltar seria apenas um traidor, um espião.
– O que eles fariam de verdade?
– Bem, se convencessem a Defesa do perigo, poderiam destruir a nave no espaço.
– A Defesa seria tão estúpida?
– Não acredito. Mas qualquer um fora da Defesa poderia fazer bombas de dinamite e explodir a nave em terra. Ou, o mais provável, me atacar assim que eu saísse da nave. Acho que essa é uma possibilidade bem real. Deveria ser incluída no pacote da viagem de ida e volta para ver as paisagens de Urras.
– Valeria a pena para você... esse risco?
Ele olhou para o vazio por um instante.
– Sim – disse –, de certo modo. Se eu pudesse concluir a teoria lá e entregar para eles... para eles, para nós, para todos os planetas, sabe... gostaria disso. Aqui estou cercado por muros. Estou amarrado, é difícil trabalhar, testar o trabalho, sempre sem equipamento, sem colegas ou alunos. E aí, quando faço o trabalho, eles não se interessam. Ou, se se interessam, como Sabul, querem que eu abandone a iniciativa em troca de aprovação. Vão usar o meu trabalho depois que eu morrer, isso sempre acontece. Mas por que devo dar o meu trabalho de uma vida toda de presente para Sabul, para todos os Sabuls, para os egos mesquinhos, maquinadores e gananciosos de um único planeta? Gostaria de compartilhar o meu trabalho. Ele lida com um assunto muito importante. Deve ser divulgado, distribuído. Ele não vai se esgotar!
– Tudo bem – disse Takver –, então vale a pena.
– Vale a pena o quê?
– O risco. De talvez não poder voltar.
– Talvez não poder voltar – ele repetiu. Fitou Takver com um olhar estranho, intenso, embora distraído.
– Acho que há mais pessoas do nosso lado, do lado do Sindicato, do que imaginamos. Só que não fizemos muita coisa... não fizemos nada... para reuni-las... não corremos riscos. Se você corresse o risco, acho que essas pessoas apareceriam para apoiá-lo. Se você abrisse a porta, sentiriam o cheiro de ar puro de novo, o cheiro da liberdade.
– Ou viriam correndo para fechar a porta com força.
– Se fizerem isso, pior para elas. O Sindicato pode protegê-lo quando a nave pousar. E depois, se as pessoas continuarem com a hostilidade e o ódio, mandamos todas para o inferno. De que adianta uma sociedade anarquista que tem medo de anarquistas? Iremos viver em Solitário, em Sedep do Norte, em Confins, iremos viver sozinhos nas montanhas, se for preciso. Tem espaço. Muitas pessoas iriam com a gente. Criaremos uma nova comunidade. Se a nossa sociedade está caminhando para a política, para a busca de poder, então vamos dar o fora, vamos fazer Anarres além de Anarres, um novo começo. Que tal?
– Lindo – ele respondeu –, é lindo, querida. Mas eu não vou para Urras, sabe.
– Ah, vai. E vai voltar – afirmou Takver. Seus olhos estavam muito escuros, uma escuridão suave, como a escuridão de uma floresta à noite. – Se você resolver ir. Você sempre chega aonde quer chegar. E sempre volta.
– Não seja boba, Takver. Eu não vou para Urras!
– Estou exausta – disse Takver, se espreguiçando e se inclinando para colocar a cabeça no braço dele. – Vamos dormir.
13
°°°°°
Antes de saírem de órbita, as vigias se preencheram com o turquesa nublado do planeta Urras, imenso e belo. Mas a nave virou e as estrelas surgiram, e Anarres no meio delas, como uma pedra redonda e brilhante: movendo-se sem se mover, jogada quem sabe por que mão, girando eternamente, criando tempo.
Mostraram a Shevek a nave inteira, a interestelar Davenant. Era diferente do cargueiro Atento de todas as formas possíveis. Vista de fora, sua aparência era tão bizarra e frágil quanto a de uma escultura de arame e vidro; não parecia em nada com uma nave, um veículo, não tinha sequer proa e popa, pois nunca viajava numa atmosfera mais densa do que a do espaço interplanetário. Por dentro, era espaçosa e sólida como uma casa. As salas eram grandes e individuais, as paredes revestidas de madeira ou tecido, os tetos altos. Só que parecia uma casa com as persianas fechadas, pois poucas salas tinham vigias, e era muito silenciosa. Até na ponte de comando e na engenharia havia esse silêncio, e as máquinas e instrumentos tinham a perfeição simples das instalações de um navio. Para recreação havia um jardim, onde a luz tinha a qualidade da luz solar e o ar tinha o cheiro agradável de terra e folhas; durante a noite da nave, o jardim era escurecido, e as vigias revelavam as estrelas.
Embora suas jornadas interestelares durassem apenas horas ou dias, no horário de bordo, uma nave que quase atingia a velocidade da luz como aquela poderia passar meses explorando o sistema solar, ou anos orbitando um planeta onde sua tripulação estivesse vivendo ou explorando. Portanto, era espaçosa, humana, habitável aos que tinham de viver nela. Seu estilo nem tinha a opulência de Urras, nem a austeridade de Anarres, mas um equilíbrio e uma graça natural adquirida pela longa prática. Podia-se imaginar a vida restrita ali sem se afligir com as restrições, plena de contentamento e meditação. Eram um povo meditativo, os hainianos da tripulação, gentis, atenciosos, um tanto sombrios. Havia pouca espontaneidade neles. O mais jovem deles parecia mais velho do que todos os terranos a bordo.
Mas Shevek raramente os observava, terranos ou hainianos, nos três dias que a Davenant, movendo-se por propulsão química a velocidades convencionais, levou para viajar de Urras até Anarres. Respondia quando lhe falavam; respondia às perguntas com boa vontade, mas perguntava muito pouco. Quando falava, era a partir de um silêncio interior. Os viajantes da Davenant, em especial os mais jovens, sentiam-se atraídos por ele, como se ele tivesse algo que lhes faltasse ou fosse algo que eles gostariam de ser. Conversavam muito sobre Shevek entre si, mas eram tímidos na presença dele. Shevek não percebia isso. Mal tinha consciência deles. Tinha consciência de Anarres, diante dele. Tinha consciência da esperança iludida e da promessa mantida; do fracasso; e das fontes em seu espírito enfim abertas, da alegria. Era um homem liberto da prisão, indo para casa, para a família. Seja o que for que um homem assim veja ao longo do caminho, ele vê apenas como reflexos da luz.
No segundo dia de viagem, estava na sala de comunicações, falando com Anarres pelo rádio, primeiro no comprimento de onda do CPD, e agora com o Sindicato da Iniciativa. Estava sentado, inclinado para a frente, ouvindo ou respondendo com um jorro do idioma claro e expressivo que era sua língua nativa, às vezes gesticulando com a mão livre como se o interlocutor pudesse vê-lo, às vezes rindo. O imediato da Davenant, um hainiano chamado Ketho que controlava o contato pelo rádio, o observava atentamente. Ketho passara uma hora após o jantar na noite anterior com Shevek, junto com o comandante e outros membros da tripulação; ele perguntara – do jeito hainiano, calmo e afável – muitas coisas sobre Anarres.
Shevek enfim voltou-se para ele.
– Tudo certo, terminei. O resto pode esperar até eu chegar em casa. Amanhã vão contatá-lo para combinar o procedimento de reentrada.
Ketho assentiu com um movimento da cabeça.
– O senhor recebeu boas notícias – ele disse.
– Sim, recebi. Pelo menos algumas, como vocês dizem, notícias vívidas. – Tinham de falar em iótico juntos; Shevek era mais fluente nessa língua do que Ketho, que falava de um modo muito correto e formal. – A aterrissagem vai ser emocionante – prosseguiu Shevek. – Muitos inimigos e muitos amigos estarão lá. A boa notícia são os amigos... Parece que tenho mais amigos agora do que quando parti.
– Esse perigo de ataque, quando o senhor chegar – disse Ketho. – Decerto os oficiais do Porto de Anarres sabem que podem controlar os dissidentes? Não iriam deliberadamente dizer-lhe para descer e ser assassinado?
– Bem, eles vão me proteger. Mas eu também sou dissidente, afinal. Pedi para correr o risco. É meu privilégio, entende, como odoniano. – Sorriu para Ketho; o hainiano não retribuiu o sorriso; seu rosto estava sério. Era um homem bonito, de mais ou menos 30 anos, alto, de pele clara, como um cetiano, mas quase sem pelos, como um terrano, com traços muito finos e fortes.
– Fico contente em poder compartilhar esse momento com o senhor – ele disse. – Sou eu que vou levá-lo na nave de pouso.
– Ótimo – disse Shevek. – Não é todo mundo que se disporia a aceitar nossos privilégios!
– Mais gente do que o senhor pensa, talvez – respondeu Ketho. – Se o senhor permitisse.
Shevek, cuja mente não estivera totalmente concentrada na conversa, estava prestes a sair; aquilo o deteve. Olhou para Ketho e, após um momento, disse:
– Está querendo dizer que gostaria de desembarcar comigo?
O hainiano foi igualmente direto:
– Sim, gostaria.
– O comandante permitiria?
– Sim. Como oficial de uma nave em missão, na verdade, faz parte do meu dever explorar e investigar um planeta novo quando possível. O comandante e eu conversamos sobre essa possibilidade. Discutimos o assunto com nossos embaixadores antes de partir. A opção deles foi a de que não deveríamos fazer nenhuma solicitação formal, já que a política do seu povo é a de proibir o desembarque de estrangeiros.
– Hum – disse Shevek, evasivo. Foi até a parede do outro lado e ficou em pé por um instante em frente a um quadro, uma paisagem hainiana muito simples e sutil, um rio escuro fluindo por entre juncos, sob um céu carregado. – Os Termos de Fechamento da Colonização de Anarres – disse – não permitem que urrastis desembarquem, exceto dentro dos limites do Porto. Esses termos ainda são aceitos. Mas você não é urrasti.
“Quando Anarres foi colonizado, não havia outras raças conhecidas. Por consequência, esses termos incluem todos os estrangeiros.
“Foi o que os nossos administradores decidiram, sessenta anos atrás, quando seu povo veio pela primeira vez ao nosso sistema solar e tentou falar conosco. Mas acho que erraram. Estavam apenas construindo mais muros. – Virou-se e ficou, com as mãos para trás, olhando o outro homem. – Por que quer desembarcar, Ketho?”
– Quero ver Anarres – respondeu o hainiano. – Mesmo antes de sua ida para Urras, eu já tinha curiosidade sobre o seu mundo. Começou quando li as obras de Odo. Fiquei muito interessado. Eu... – Hesitou, como se estivesse envergonhado, mas continuou, no seu jeito reprimido e cuidadoso. – Eu aprendi um pouco de právico. Não muito ainda.
– É o seu próprio desejo, então... sua própria iniciativa?
– Inteiramente.
– E você entende que pode ser perigoso?
– Sim.
– As coisas andam... um pouco descontroladas em Anarres. É o que os meus amigos estavam me falando pelo rádio. Era esse o nosso objetivo desde o início... do nosso Sindicato, desta minha viagem... dar uma sacudida nas coisas, agitar, romper certos hábitos, fazer as pessoas questionarem. A se comportarem como anarquistas! Tudo isso tem acontecido desde que eu parti. Então, veja, ninguém tem certeza absoluta do que vai acontecer. E se você desembarcar comigo, as coisas vão se descontrolar mais ainda. Não posso ir longe demais. Não posso levá-lo como representante oficial de algum governo estrangeiro. Isso não vai funcionar em Anarres.
– Compreendo.
– Depois que você estiver lá, depois que atravessar o muro comigo, então, a meu ver, você já será um de nós. Seremos responsáveis por você, e você, por nós; você se tornará um anarresti, com as mesmas opções de todos os outros. Mas não serão opções seguras. A liberdade nunca é muito segura. – Olhou em volta da sala tranquila e arrumada, com os painéis simples e instrumentos delicados, o teto alto e paredes sem janelas, e tornou a olhar Ketho. – Você se sentirá muito sozinho – disse.
– Minha raça é muito antiga – disse Ketho. – Somos civilizados há mil milênios. Temos histórias de centenas desses milênios. Já experimentamos de tudo. Anarquismo, e todo o resto. Mas eu não experimentei. Dizem que não há nada de novo sob nenhum sol. Mas, se cada vida não é nova, cada uma delas, então para que nascemos?
– Somos os filhos do tempo – disse Shevek, em právico. O jovem olhou-o por um instante e, em seguida, repetiu as palavras em iótico.
– Somos os filhos do tempo.
– Está certo – disse Shevek, e riu. – Está certo, ammar! É melhor você chamar Anarres pelo rádio de novo... o Sindicato, primeiro... Eu disse a Keng, a embaixadora, que eu não tinha nada para oferecer em troca pelo que o povo dela e o seu tinham feito por mim; bem, talvez eu possa lhe oferecer algo em troca. Uma ideia, uma promessa, um risco...
– Vou falar com o comandante – Ketho disse, sério como sempre, mas com uma vibração muito leve na voz, de excitação, de esperança.
Muito tarde na noite seguinte, no horário de bordo, Shevek estava no jardim da Davenant. As luzes estavam apagadas, ali, e o lugar era iluminado apenas pela luz das estrelas. O ar estava muito frio. Uma flor noturna, originária de algum planeta inimaginável, desabrochara em meio às folhas verde-escuras, exalando seu perfume com uma doçura paciente e vã, para atrair alguma mariposa inimaginável a trilhões de quilômetros de distância, num jardim de um planeta orbitando outra estrela. As luzes solares variam, mas a escuridão é uma só. Shevek postou-se diante da vigia alta e limpa, olhando o lado noturno de Anarres, uma curva escura encobrindo metade das estrelas. Perguntou-se se Takver estaria lá, no Porto. Da última vez que falou com Bedap, ela ainda não chegara a Abbenay, vinda de Paz-e-Fartura, então ele deixara Bedap discutir e decidir com ela se seria sensato ela vir até o Porto. “Você não acha que eu vou conseguir impedi-la, mesmo que não seja?”, dissera Bedap. Perguntou-se também que tipo de carona ela pode ter pegado desde a costa de Sorruba; um dirigível, esperava, se ela tivesse trazido as meninas. Viagens de trem eram difíceis com crianças. Ele ainda se recordava do desconforto da viagem de Chakar a Abbenay, em 68, quando Sadik enjoou durante três dias desastrosos.
A porta do jardim se abriu, aumentando a iluminação fraca. O comandante da Davenant olhou lá dentro e chamou seu nome; ele respondeu; o comandante entrou com Ketho.
– Já temos as coordenadas de reentrada para a nossa nave de pouso, enviadas pelo controle de terra de Anarres – disse o comandante. Era um terrano baixo, cor de ferro, calmo e metódico. – Se o senhor estiver pronto, iniciaremos os preparativos para o lançamento.
– Sim.
O comandante confirmou com um movimento da cabeça e saiu. Ketho aproximou-se e postou-se ao lado de Shevek na vigia.
– Tem certeza de que quer atravessar esse muro comigo, Ketho? Sabe, para mim é fácil. O que quer que aconteça, estou voltando para casa. Mas você está saindo de casa. A verdadeira jornada é o retorno...
– Espero retornar – Ketho disse em sua voz tranquila. – No devido tempo.
– Quando vamos entrar na nave de pouso?
– Daqui a uns vinte minutos.
– Estou pronto. Não tenho bagagem nenhuma. – Shevek riu, um riso de pura e verdadeira felicidade. O outro homem olhou-o com seriedade, como se não tivesse certeza do que era a felicidade, mas a reconhecia, ou talvez se lembrasse dela, de longe. Ficou ao lado de Shevek como se houvesse algo que gostaria de perguntar. Mas não perguntou. – Pousaremos de manhã bem cedo no Porto de Anarres – ele disse, por fim, e saiu para pegar as suas coisas e encontrar Shevek no portal de lançamento.
Sozinho, Shevek tornou a olhar a vigia de observação e viu surgir a curva cegante do sol nascente sobre as Planícies de Temae.
“Vou deitar e dormir em Anarres hoje à noite”, pensou. “Vou deitar ao lado de Takver. Queria ter trazido a foto, o carneirinho, para dar a Pilun.”
Mas não tinha trazido nada. Suas mãos estavam vazias, como sempre estiveram.
Ursula K. Le Guim
O melhor da literatura para todos os gostos e idades