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Me aproximei do banco das testemunhas com um sorriso cordial, amigável. Claro que isso escondia minha verdadeira intenção: liquidar a mulher que estava sentada ali, com os olhos fixos em mim. Claire Welton tinha acabado de identificar meu cliente como o homem que, com uma arma apontada, a forçara a descer de seu Mercedes E60 na véspera de Natal do ano anterior. Afirmava que fora ele mesmo o responsável por jogá-la no chão antes de levar seu carro, sua bolsa e as sacolas de compras que havia guardado no porta-malas, no estacionamento do shopping. Como disse à promotora, também fora ele o responsável por levar sua sensação de segurança e sua autoconfiança, embora por esses roubos mais pessoais ele não estivesse sendo acusado.
— Bom dia, sra. Welton.
— Bom dia.
Ela disse essas palavras como se fossem sinônimo de por favor, não me machuque. Mas todo mundo no tribunal sabia que meu trabalho nesse dia era atingi-la de algum modo e, por tabela, o processo montado pela promotoria contra meu cliente, Leonard Watts. Welton tinha sessenta e poucos anos e um ar matriarcal. Não parecia frágil, mas eu precisava torcer para que fosse.
Welton era dona de casa em Beverly Hills e uma das três vítimas de agressão e assalto em uma onda de crimes que explodiu pouco antes do último Natal e resultou em nove acusações contra Watts. A polícia o apelidara de “Bandido Bate-Bate”: um ladrão violento que escolhia e seguia mulheres na saída de shoppings e, quando paravam por um momento em alguma área residencial, colidia contra a traseira de seus carros. Em seguida, assim que elas desciam para verificar os danos, apontava uma arma e levava seus veículos e pertences. Depois ele penhorava ou revendia os artigos, pegava a grana que conseguia e levava os carros para os desmanches do Valley.
Mas tudo isso não passava de alegação e alguém precisava identificar Leonard Watts como culpado diante do júri. Era isso que tornava Claire Welton tão especial e a testemunha-chave do julgamento. Ela foi a única das três vítimas que apontou Watts para o júri e afirmou sem pestanejar que era ele, que aquele homem tinha sido o autor do crime. Era a sétima testemunha apresentada pela promotoria em dois dias, mas a única que importava. O pino da frente. Se eu o derrubasse no ângulo certo, todos os demais cairiam com ele.
Eu precisava de um strike ali mesmo, ou os jurados fariam Leonard Watts ver o sol nascer quadrado por um bom tempo.
Levei uma única folha de papel para o banco das testemunhas. Identifiquei o documento como o boletim de ocorrência original do primeiro policial que respondeu ao chamado do 911 feito por Claire Welton, de um celular emprestado, após o roubo. O boletim já estava entre as provas da promotoria. Depois de pedir e obter a aprovação do juiz, coloquei o papel sobre o tampo do banco das testemunhas. Welton se encolheu quando fiz isso. Tive certeza de que a maioria dos membros do júri também notou essa reação.
Comecei fazendo minha primeira pergunta ao voltar para o atril, entre as mesas da promotoria e da defesa.
— Sra. Welton, acabei de deixar à sua frente o boletim de ocorrência original, registrado no dia do infeliz incidente. A senhora se lembra de ter conversado com o policial que chegou para ajudar?
— Lembro, claro que lembro.
— A senhora contou a ele o que aconteceu, correto?
— Sim. Eu ainda estava abalada com...
— Mas a senhora contou o que aconteceu para que ele pudesse registrar a ocorrência sobre o homem que roubou suas coisas e seu carro, correto?
— Isso.
— O nome do policial era Corbin, correto?
— Acho que sim. Não lembro o nome, mas está no BO.
— Mas a senhora realmente se lembra de contar ao policial o que aconteceu, não é mesmo?
— Sim.
— E ele escreveu um resumo do que a senhora disse, correto?
— Sim, isso mesmo.
— E ele até pediu para a senhora ler e rubricar o que estava escrito, não foi?
— Foi, mas eu estava bem nervosa.
— Essas são as suas iniciais, ao final do último parágrafo do BO?
— São.
— Sra. Welton, poderia ler em voz alta para o júri o que o policial Corbin escreveu depois de conversar com a senhora?
Welton hesitou ao examinar o documento.
Kristina Medina, a promotora, aproveitou a deixa para se levantar e protestar.
— Objeção. Excelência, com ou sem a rubrica da testemunha no documento, a defesa continua tentando desqualificar o testemunho com algo que ela não escreveu.
O juiz Michael Siebecker estreitou os olhos e se virou para mim.
— Meritíssimo, ao rubricar o boletim de ocorrência do policial, a testemunha ratificou o que estava escrito. É um registro do que aconteceu naquele momento, e o júri precisa escutar o conteúdo.
Siebecker indeferiu a objeção e instruiu a sra. Welton a ler o depoimento rubricado no BO. Ela finalmente consentiu.
— “A vítima afirmou que parou no cruzamento da Camden com Elevado e logo em seguida seu carro foi atingindo na traseira por outro. Quando abriu a porta para sair e verificar os danos, foi abordada por um homem negro, IE de trinta a trinta e cinco...” Eu não sei o que IE quer dizer.
— Idade estimada — disse eu. — Continue lendo, por favor.
— “O homem a agarrou pelo cabelo, a puxou para fora do carro e a arrastou para o meio da rua. O indivíduo apontou para o rosto dela um revólver preto, de cano curto, e disse que atiraria se ela fizesse qualquer movimento ou algum barulho. O suspeito em seguida entrou no veículo e se afastou na direção norte, seguido pelo carro que batera na traseira. A vítima não pôde oferecer...”
Esperei, mas ela não terminou.
— Excelência, pode instruir a testemunha a ler todo o boletim da maneira como foi escrito no dia do incidente?
— Sra. Welton — proferiu o juiz Siebecker. — Por favor, continue a leitura do documento até o fim.
— Mas, meritíssimo, não foi só isso que eu disse.
— Sra. Welton — disse o juiz, energicamente. — Leia todo o documento, como está pedindo o advogado da defesa.
Welton cedeu e leu a última sentença do resumo:
— “A vítima não pôde oferecer mais nenhuma descrição do suspeito nesse momento.”
— Obrigado, sra. Welton — disse eu. — Certo, embora não haja muita coisa no que se refere à descrição do suspeito, a senhora desde o início foi capaz de descrever em detalhes a arma utilizada, não é verdade?
— Não sei bem se foi em detalhes. Ele apontou a arma para a minha cara, então eu dei uma boa olhada nela e consegui descrever o que eu vi. O policial me ajudou, falando sobre a diferença entre um revólver e outro tipo de arma. Acho que é automática o nome.
— E a senhora foi capaz de descrever o tipo de arma em questão, a cor e até o comprimento do cano.
— As armas não são todas pretas?
— Talvez nesse momento seja melhor deixar as perguntas para mim, sra. Welton.
— Bom, o policial perguntou um monte de coisas sobre a arma.
— Mas mesmo não sendo capaz de descrever o homem que apontou a arma na sua direção no momento do incidente, duas horas depois a senhora identificou o rosto dele entre uma série de fotos de suspeitos. Não foi assim, sra. Welton?
— O senhor precisa entender uma coisa: eu vi o homem que me roubou e apontou a arma para mim. Ser capaz de descrever e reconhecer são coisas diferentes. Quando vi a foto, eu sabia que era ele, assim como tenho certeza de que é ele sentado ali naquela mesa.
Me virei para o juiz.
— Excelência, a resposta é evasiva, peço que seja desconsiderada.
Medina se levantou.
— Meritíssimo, as supostas perguntas da defesa não passam de afirmações vagas. O advogado afirmou uma coisa e a testemunha simplesmente respondeu. Esse pedido de anulação não tem fundamento.
— Indeferido — disse o juiz, rapidamente. — Passe à próxima pergunta, dr. Haller, e com isso quero mesmo dizer uma pergunta.
Fiz o melhor que pude. Durante os vinte minutos seguintes, parti para cima de Claire Welton, questionando o fato de ter identificado meu cliente. Perguntei quantas pessoas negras conhecia na vida como dona de casa em Beverly Hills, trazendo à tona questões inter-raciais. De nada adiantou. Em nenhum momento fui capaz de abalar sua certeza ou sua crença de que Leonard Watts era o homem que a assaltara. No decorrer da inquirição, ela pareceu recuperar uma das coisas que afirmara ter perdido no roubo: sua autoconfiança. Quanto mais eu apertava, mais ela parecia opor resistência ao meu ataque verbal, devolvendo na mesma moeda. No fim, parecia um iceberg. A identificação que fizera de meu cliente continuava inabalável. Minha bola de boliche corria pela canaleta.
Informei que não tinha mais perguntas e voltei à mesa da defesa. Medina disse ao juiz que faria uma breve contrainquirição, e eu sabia que ela faria a Welton uma série de perguntas que serviriam apenas para reforçar a identificação que fizera de Watts. Quando sentei na cadeira ao lado de meu cliente, seus olhos sondaram meu rosto, à procura de alguma esperança.
— Bom — sussurrei para ele. — Já era. A gente dançou.
Ele recuou, como que repelido por meu hálito ou minhas palavras, ou pelas duas coisas.
— A gente? — perguntou.
Disse isso alto o bastante para interromper Medina, que se virou e olhou para a mesa da defesa. Ergui um pouco as mãos com a palma virada para baixo, em um gesto apaziguador, e fiz Calma! com a boca, sem som, para ele.
— Calma? — disse ele, em voz alta. — Calma porra nenhuma. Você me falou que estava tudo certo, que ela não era problema.
— Dr. Haller! — bradou o juiz. — Controle seu cliente, por favor, ou vou ser obrigado a...
Watts não esperou o juiz concluir sua ameaça. Jogou-se com todo o peso do corpo em cima de mim, me atingindo como um zagueiro de futebol americano que interceptasse um arremesso e levando minha cadeira junto. Caímos estatelados no chão, aos pés de Medina. A promotora deu um pulo para o lado para não se machucar quando Watts levou o braço direito para trás. Fiquei com o lado esquerdo do corpo espremido contra o chão, o braço direito preso sob o corpo de Watts. Consegui erguer a mão esquerda e aparei o punho que desceu para me acertar. Só o que pude fazer foi reduzir o impacto do soco. O murro espremeu minha própria mão contra meu queixo.
Fiquei perifericamente ciente dos gritos e da agitação em volta. Watts ergueu o punho de novo, se preparando para desferir o segundo soco. Mas os guardas do tribunal caíram em cima dele antes que tivesse tempo de soltar o braço. Eles o dominaram, tirando-o de cima de mim e arrastando para o poço, o vão diante das mesas dos advogados.
Tudo parecia se mover em câmera lenta. O juiz bradava ordens que ninguém ouvia. Medina e a estenógrafa se afastavam da confusão. A assistente do juiz havia se levantado atrás de seu nicho e observava tudo horrorizada. Watts estava com o peito contra o chão, a mão de um dos guardas na lateral de sua cabeça, pressionada contra o piso. Esboçou um sorriso estranho enquanto suas mãos eram algemadas às costas.
E num instante tudo terminou.
— Guardas, tirem esse homem do recinto! — ordenou Siebecker.
Arrastado pela porta de aço na lateral do tribunal, Watts foi levado à cela usada para os réus sob detenção. Fiquei ali caído, verificando os estragos. Tinha sangue na boca, nos dentes e também na impecável camisa branca que estava vestindo. Minha gravata tinha ido parar debaixo da mesa da defesa. Era a gravata de presilha que eu usava nos dias em que precisava visitar clientes detidos, para não correr o risco de ser estrangulado nas barras.
Esfreguei o queixo com a mão e passei a língua pelas fileiras de dentes. Tudo parecia intacto e no lugar. Tirei o lenço branco de um bolso interno do paletó e comecei a limpar o rosto, enquanto usava a mão livre para me apoiar na mesa da defesa e ficar de pé.
— Jeannie — disse o juiz para sua assistente. — Chame os paramédicos para o dr. Haller.
— Não, meritíssimo — falei na mesma hora. — Está tudo bem. Só preciso me limpar um pouco.
Peguei a gravata e esbocei uma patética tentativa de recuperar a compostura, prendendo-a no colarinho apesar da considerável mancha vermelha que havia arruinado a frente da minha camisa. Enquanto ajustava a presilha no colarinho abotoado, vários guardas do tribunal, sem dúvida respondendo ao botão de emergência apertado pelo juiz, entraram correndo pela porta dupla, no fundo da sala. Sem perder tempo, Siebecker pediu para se acalmarem e explicou que o incidente tinha acabado. Os guardas se posicionaram na parede do fundo do tribunal, em uma demonstração de força, caso houvesse mais alguém na sala pensando em pôr as manguinhas de fora.
Esfreguei meu rosto com o lenço uma última vez e então falei:
— Excelência. Lamento profundamente o comport...
— Agora não, dr. Haller. Volte a sentar. A senhora também, dra. Medina. Vamos todos nos acalmar e voltar aos nossos lugares.
Fiz como instruído, segurando o lenço dobrado na boca e observando o juiz virar sua cadeira para ficar de frente para a bancada do júri. Primeiro ele informou a Claire Welton que ela podia deixar o banco das testemunhas. Ela ficou de pé, hesitante, e se dirigiu à porta atrás das mesas dos advogados. Parecia mais abalada do que todos ali no tribunal. Sem dúvida por um bom motivo. Provavelmente imaginou que Watts poderia ter ido atrás dela com a mesma facilidade com que pulara em cima de mim. E, se fosse suficientemente rápido, teria conseguido.
Assim que Welton sentou na primeira fileira da plateia, reservada às testemunhas e aos profissionais ligados ao julgamento, o juiz se dirigiu ao júri.
— Senhoras e senhores, lamento que tenham sido obrigados a presenciar essa cena lamentável. Um tribunal não é lugar para violência. É um lugar onde a sociedade civilizada se posiciona contra a violência que ocorre lá fora, nas ruas. É muito doloroso para mim quando uma coisa dessas acontece.
Houve um estalo de som metálico quando a porta para a cela abriu. Os dois guardas voltaram e me perguntei até que ponto haviam maltratado Watts enquanto o jogavam dentro da cela.
O juiz fez uma pausa e então voltou a se dirigir ao júri.
— Infelizmente, a decisão do sr. Watts de atacar seu advogado prejudicou a continuidade desse julgamento. Creio...
— Excelência? — interrompeu Medina. — Se a promotoria puder ter uma palavra.
Medina sabia exatamente o que o juiz iria dizer e precisava fazer alguma coisa.
— Agora não, dra. Medina, e não interrompa a corte.
Mas Medina insistiu.
— Excelência, podemos nos aproximar?
O juiz pareceu irritado, mas cedeu. Deixei que ela andasse na frente e fomos até o juiz, que acionou o interruptor de um ventilador no teto para que o júri não pudesse escutar nossos murmúrios. Antes que Medina pudesse apresentar sua argumentação, o juiz perguntou mais uma vez se eu desejava cuidados médicos.
— Estou bem, meritíssimo, mas obrigado por perguntar. Acho que na verdade a única coisa sem remédio é minha camisa.
O juiz balançou a cabeça e se virou para Medina.
— Entendo sua objeção, dra. Medina, mas não há nada que eu possa fazer. O júri foi contaminado pelo que acabou de presenciar, será uma avaliação tendenciosa. Não tenho escolha.
— Excelência, este caso diz respeito a um acusado que cometeu atos extremamente violentos. Os membros do júri sabem disso e não vão ser indevidamente influenciados pelo que viram. Os jurados têm direito a uma opinião e a julgar por conta própria o comportamento do réu. Como este se envolveu voluntariamente em atos violentos, a tendenciosidade não é indevida nem injusta.
— Se me permite a palavra, Excelência, devo discordar da...
— Além do mais — continuou Medina, passando por cima de mim —, receio que a corte esteja sendo manipulada pelo réu. Ele sabia perfeitamente que poderia conseguir um novo julgamento dessa forma. O réu...
— Ei, espera aí um minuto — protestei. — A objeção da doutora é repleta de insinuações infundadas e...
— Dra. Medina, sua objeção foi indeferida — disse o juiz, encerrando a discussão. — Mesmo que a tendenciosidade não seja indevida nem injusta, na prática o sr. Watts acabou de dispensar seu advogado. Não posso exigir que o dr. Haller prossiga nessas circunstâncias e não estou inclinado a permitir que o sr. Watts volte a pisar nesse tribunal. De volta a seus lugares. Os dois.
— Meritíssimo, solicito que conste dos autos o protesto da promotoria.
— Assim será feito. Agora, para trás.
Voltamos a nossas mesas e, depois de desligar o ventilador, o juiz se dirigiu ao júri:
— Como eu estava dizendo, senhoras e senhores, o que acabaram de presenciar criou uma situação prejudicial para o réu. Creio que, ao deliberar sobre a culpa ou a inocência das acusações, seria muito difícil para o júri se distanciar da cena que acabou de acontecer nessa sala. Desse modo, devo decretar temporariamente anulado o julgamento e dispensá-los, com os agradecimentos do tribunal e do Estado da Califórnia. O guarda Carlyle vai escoltá-los de volta à sala da assembleia, onde poderão pegar seus pertences e ir embora.
Os jurados ficaram sem saber o que fazer, sem saber se tudo havia terminado de fato. Finalmente, um deles criou coragem e se levantou, logo sendo seguido pelos demais. Então saíram em fila por uma porta no fundo da sala.
Olhei para Kristina Medina. Ela estava sentada na mesa da promotoria com o rosto para baixo, derrotada. O juiz de repente suspendeu a sessão pelo resto do dia e deixou sua cadeira. Dobrei meu lenço arruinado e o guardei.
2
Eu tinha programado o dia inteiro para o julgamento. Liberado de uma hora para outra, estava sem cliente para visitar, sem promotor para negociar, sem lugar para ir. Saí do prédio do tribunal e andei pela Temple até a First. Na esquina, havia uma lata de lixo. Tirei o lenço do bolso, levei aos lábios e cuspi o que havia dentro da minha boca, antes de jogá-lo fora.
Dobrei à direita na First e vi os Lincoln Town Cars estacionados junto ao meio-fio. Havia seis enfileirados, como um cortejo fúnebre. Na calçada, em grupinho, os motoristas jogavam conversa fora enquanto esperavam. Dizem que a imitação é a forma mais sincera de elogio, mas desde o filme O poder e a lei todo um contingente de Mickey Haller com seus Lincoln brotara do nada e passara a circular pelos arredores dos tribunais de LA. Isso me deixava orgulhoso e irritado. Várias vezes ouvira dizer que outros advogados por aí afirmavam ter sido a inspiração para o filme. Para completar, eu entrara no Lincoln errado pelo menos três vezes no último mês.
Desta vez não haveria erro. Descendo a ladeira, peguei o celular e liguei para Earl Briggs, meu motorista, que eu podia ver lá adiante. Ele atendeu na hora e eu lhe disse para abrir o porta-malas. Então desliguei.
Vi o porta-malas aberto no terceiro Lincoln da fila e me dirigi para lá. Quando cheguei, coloquei a pasta no chão e tirei o paletó, a gravata e a camisa. Como estava usando uma camiseta por baixo, não causei nenhuma comoção. Escolhi uma oxford azul-clara na pilha de camisas de reserva, desdobrei e comecei a vestir. Earl deixou a roda de bate-papo e se aproximou. Ele vinha sendo meu motorista de maneira intermitente por quase dez anos. Sempre que se metia em encrenca, me procurava e pagava meus honorários dirigindo para mim. Desta vez não estava pagando por um erro seu: eu tinha evitado a execução da hipoteca da casa de sua mãe, impedindo que ela ficasse sem um teto. Isso me rendeu seis meses de serviços de motorista por parte de Earl.
Ele pegou e examinou minha camisa arruinada, pendurada no para-choque:
— Ei, alguém derramou ketchup na sua camisa ou algo assim?
— Algo assim. Vamos indo.
— Pensei que tivesse julgamento o dia inteiro.
— Eu também. Mas as coisas mudam.
— Pra onde, então?
— Vamos dar uma passada no Philippe, primeiro.
— Beleza.
Ele sentou no banco do motorista e eu me acomodei atrás. Depois de uma rápida parada em uma sanduicheria da Alameda, disse a Earl para tomar a direção oeste. A próxima parada era um lugar chamado Menorah Manor, perto do Park La Brea, no distrito de Fairfax. Avisei que ia levar mais ou menos uma hora e desci com minha pasta. Eu tinha colocado a camisa limpa para dentro da calça, mas não me dei ao trabalho de pôr a gravata de presilha outra vez. Não iria precisar.
Menorah Manor era um lar de idosos de quatro andares em Willoughby, a leste de Fairfax. Me identifiquei na recepção e tomei o elevador para o terceiro andar, onde informei a mulher no balcão que tinha uma consulta jurídica com meu cliente, David Siegel, e que não queria ser incomodado enquanto estivesse no quarto. Era uma mulher simpática, acostumada com minhas visitas frequentes. Ela assentiu e segui pelo corredor para o quarto 334.
Entrei e fechei a porta, após pendurar o aviso de NÃO PERTURBE na maçaneta, do lado de fora. David “Legal” Siegel estava deitado, com os olhos grudados na TV fixada em um suporte no alto da parede, o botão mudo acionado. As mãos brancas e finas repousavam sobre um cobertor e o tubo de oxigênio enfiado no nariz sibilava baixinho. Ele sorriu quando me viu.
— Mickey.
— Legal, como vão as coisas hoje?
— Iguais a ontem. Trouxe algo para mim?
Puxei e posicionei a cadeira encostada na parede de modo a sentar em sua linha de visão. Aos oitenta e um anos, sua mobilidade era reduzida. Abri a pasta sobre a cama e virei para que ele pudesse alcançá-la.
— Sanduíche de rosbife do Philippe The Original. Que tal?
— Puxa vida — ele disse.
Menorah Manor era um estabelecimento kosher e eu usava a história da consulta jurídica como forma de driblar o regulamento. Legal Siegel sentia falta dos lugares no centro em que costumava comer durante seus quase cinquenta anos como advogado, e eu ficava feliz de poder proporcionar uma pequena alegria gastronômica. Ele fora sócio de meu pai na firma de advocacia e era o estrategista. Já meu pai ficava na linha de frente, o artista que encenava as estratégias no tribunal. Mesmo depois da morte de meu pai, quando eu tinha cinco anos, Legal continuou por perto. Ele me levou para meu primeiro jogo dos Dodgers quando eu era criança e me mandou para a faculdade de direito quando fiquei mais velho.
Um ano antes, eu havia procurado Legal Siegel depois de perder a eleição para a promotoria, em meio à autodestruição e ao escândalo. Precisava de uma nova estratégia de vida e ele não me deixou na mão. Nesse sentido, os encontros eram consultas jurídicas legítimas entre advogado e cliente, só que as pessoas na recepção não sabiam que eu era o cliente.
Ajudei-o a desembrulhar o sanduíche e abri o recipiente plástico com o molho de carne que tornava os lanches do Philippe tão bons. Havia também algumas fatias de picles embrulhadas em papel-alumínio.
Legal sorriu com a primeira mordida e gesticulou com o braço magro, como se tivesse conquistado uma grande vitória. Sorri, feliz por trazer algo. Ele tinha dois filhos e um punhado de netos mas, a não ser nos feriados, eles nunca apareciam. Como Legal sempre me dizia: “Eles precisam de você até não precisar mais”.
Quando eu conversava com Legal, o assunto girava principalmente em torno dos casos. Ele sugeria estratégias e era imbatível quando se tratava de prever planos da promotoria e desdobramentos de casos. Não fazia diferença que nunca tivesse pisado em uma sala de tribunal neste século ou que os códigos penais tivessem mudado desde sua época. Ele tinha experiência e sempre sabia como entrar na dança. Chamava suas artimanhas de jogadas — a jogada do duplo cego, a jogada da toga do juiz, e assim por diante. Eu o procurara durante o período sombrio que se seguiu à eleição. Queria saber sobre meu pai e como ele havia lidado com as adversidades da vida. Acabei aprendendo mais sobre direito e como esse campo se parecia com massa de modelar, como podia ser dobrado e moldado.
— A lei é maleável — Legal Siegel sempre me dizia. — Flexível.
Eu o considerava parte da equipe, o que me permitia discutir casos com ele. Legal me apresentava suas ideias e jogadas: às vezes, eu usava e funcionavam, às vezes, não.
Ele comia devagar. Eu descobrira que, se lhe desse um sanduíche, podia levar até uma hora para comer, mastigando com pequenas e firmes mordiscadas. Nada era desperdiçado: Legal comia tudo o que eu trazia.
— A garota do trezentos e trinta morreu ontem à noite — contou, entre uma dentada e outra. — Uma pena.
— Lamento saber disso. Quantos anos tinha?
— Era nova. Setenta e poucos. Morreu dormindo, levaram o corpo hoje de manhã.
Fiquei sem saber o que dizer. Legal deu outra mordida e esticou a mão para pegar um guardanapo na minha pasta.
— Você não colocou o molho de carne, Legal. É o que dá gosto.
— Prefiro seco. Quer dizer que você usou a jogada da bandeira ensanguentada? E aí, como foi?
Ao pegar o guardanapo, ele tinha visto a cápsula extra de sangue guardada em um saco de Ziploc. Eu carregava aquilo para o caso de engolir a primeira por engano.
— Às mil maravilhas — eu disse.
— Conseguiu a anulação?
— Consegui. Por sinal, posso usar o banheiro?
Peguei outro Ziploc dentro da pasta, dessa vez com minha escova. Entrei no banheiro do quarto e escovei os dentes. No começo, a tintura vermelha deixou as cerdas cor-de-rosa, mas logo foi tudo pelo ralo.
Quando voltei para a cadeira, notei que Legal havia comido só metade do sanduíche. Eu sabia que o resto devia estar frio e que não havia como levar o lanche para esquentar no micro-ondas da cozinha. Mas Legal parecia satisfeito mesmo assim.
— Quero saber os detalhes — pediu.
— Bom, eu tentei persuadir a testemunha, mas a mulher não deu o braço a torcer. Parecia um iceberg. Quando voltei para a mesa, falei minha deixa e ele fez a parte dele. Me acertou com mais força do que eu esperava, mas não tenho do que me queixar. A melhor parte foi que nem precisei propor a anulação. O juiz fez isso por conta própria.
— Com protesto da promotoria?
— Ah, claro.
— Ótimo. Que se fodam.
Legal Siegel era um advogado de defesa de corpo e alma. Para ele, qualquer questão ética ou controversa podia ser superada com o pensamento de que é o dever de um advogado de defesa apresentar a melhor defesa possível para seu cliente. Se isso significasse forçar uma anulação do julgamento quando a maré não estava a seu favor, azar.
— Agora a questão é, ele vai tentar o acordo?
— Na verdade é ela, e acho que vai. Você devia ter visto a testemunha depois da confusão. Ficou apavorada, e tenho a impressão de que não vai querer participar de outro julgamento. Vou esperar uma semana e pedir para Jennifer ligar para a promotora. Acho que vai estar pronta para um acordo.
Jennifer era minha sócia, Jennifer Aronson. Ela teria de assumir a representação de Leonard Watts, porque se eu continuasse iria parecer a armação que de fato era. Kristina Medina já aludira a essa manipulação no tribunal.
Medina não quisera negociar antes do julgamento porque Leonard Watts se recusou a entregar o parceiro, o sujeito que dirigia o carro e batia na traseira das vítimas. Como Watts não delatou o comparsa, Medina não negociou um acordo. As coisas mudariam de figura dali a uma semana, pensei, por uma série de motivos: eu vira a maior parte da argumentação da promotoria ser apresentada no primeiro julgamento, a principal testemunha de Medina ficou assustada com a cena que aconteceu bem na sua frente no tribunal e a realização de um segundo julgamento significaria desperdício de dinheiro público. Acrescente-se a isso o fato de que eu dera a Medina uma mostra do que poderia ocorrer se a defesa insistisse em levar o caso a júri — em outras palavras, minha intenção de explorar, por intermédio do testemunho de especialistas, os perigos do reconhecimento e da identificação inter-racial. Isso era algo com o qual nenhum promotor queria lidar na frente de um júri.
— Sabe — eu disse —, é capaz de ela me ligar antes mesmo de eu ligar pra ela.
Era um pensamento um tanto otimista de minha parte, mas eu queria que Legal se sentisse bem pela jogada planejada para mim.
Ainda de pé, peguei a cápsula extra de sangue na pasta e joguei no recipiente de lixo hospitalar que havia no quarto. Eu não precisava mais dela e não queria correr o risco de ver aquilo se romper e arruinar meus documentos.
Meu telefone tocou e tirei o aparelho do bolso. Era minha secretária, Lorna Taylor, mas decidi deixar a ligação cair na caixa de mensagens. Retornaria depois de encerrar minha visita a Legal.
— O que mais você tem em andamento? — ele perguntou.
Abri as mãos.
— Bom, nenhum julgamento marcado, então acho que estou com o resto da semana livre. Talvez eu compareça a algumas audiências amanhã e veja se consigo arranjar algum cliente. Um trabalho viria bem a calhar.
Não só pelo dinheiro, mas também porque o trabalho me manteria ocupado e com a cabeça longe das coisas que andavam erradas na minha vida. Nesse sentido, o exercício do direito se tornara muito mais do que uma vocação e um trabalho. Era o que me mantinha são.
Dando uma passada na sala de audiências no Criminal Courts Building, no centro, eu podia tentar pegar os clientes que o defensor público largava por conflito de interesse. Toda vez que o Gabinete da Promotoria entrava com uma ação contra vários réus, o defensor público podia assumir só um, deixando os outros em conflito. Se os demais réus não tivessem um advogado particular, o juiz designaria um para eles. Como era comum sobrar casos, se eu estivesse por perto, à espreita, podia pegar um. Os honorários eram tabelados pelo governo, mas era melhor do que ficar sem trabalho e sem dinheiro.
— E pensar que a certa altura do outono passado você estava com cinco pontos de vantagem nas pesquisas — comentou Legal. — E agora olhe só para você, mendigando clientes em salas de audiência.
Ao envelhecer, Legal perdera o filtro de bom senso utilizado pela maioria das pessoas educadas.
— Obrigado, Legal — disse eu. — Sempre posso contar com você para uma apreciação justa e precisa do que me resta na vida. É animador.
Legal Siegel ergueu as mãos ossudas, no que parecia um gesto de desculpa.
— Não falei por mal.
— Claro.
— Bom, e como vai sua filha?
Era assim que a mente de Legal operava. Às vezes, ele não conseguia se lembrar do que tomara no café da manhã, mas parecia nunca esquecer de que eu perdera muito mais do que a eleição no ano anterior. O escândalo me custara o amor e a companhia de minha filha, Hayley, e acabara com qualquer chance que eu ainda pudesse ter de juntar os cacos da minha família.
— As coisas continuam na mesma, mas não quero tocar nesse assunto hoje — falei.
Depois de sentir o celular vibrando, apanhei outra vez o aparelho. Era uma mensagem de texto de Lorna. Ela supôs que eu não tinha como atender ligações nem escutar o correio de voz. Mas uma mensagem de texto era diferente.
Me liga urgente — 187
Sua menção ao número da seção para assassinato no código penal da Califórnia chamou minha atenção. Estava na hora de partir.
— Sabe, Mickey, eu só toco no assunto porque você nunca faz isso.
— Eu não quero falar desse assunto. É doloroso demais, Legal. Eu encho a cara toda sexta à noite pra conseguir passar a maior parte do sábado dormindo. Sabe por quê?
— Não. Não sei por que você enche a cara. Você não fez nada errado. Só fez seu trabalho com o tal do Galloway ou seja lá como se chamava o sujeito.
— Eu encho a cara na sexta para ficar fora do ar no sábado porque sábado era o dia que eu costumava ver minha filha. O nome do cara era Gallagher, Sean Gallagher, e não faz diferença se eu estava fazendo meu trabalho. Aquelas pessoas morreram e a culpa foi minha, Legal. Não posso me esconder atrás da desculpa esfarrapada de que estava só fazendo meu trabalho quando duas pessoas foram atropeladas em um cruzamento pelo cara que eu deixei livre. Bom, enfim... Preciso ir.
Fiquei de pé e lhe mostrei o celular, como se aquele fosse o motivo para eu sair.
— Que história é essa? Faz um mês que você não aparece e agora já precisa ir? Ainda não acabei meu sanduíche.
— Eu estive aqui na terça passada, Legal. E vou fazer outra visita na semana que vem, não sei o dia. Se não der na semana que vem, na outra. Segura as pontas.
— Segurar as pontas? Que merda isso quer dizer?
— Quer dizer que é pra você ficar firme. Meu meio-irmão, o policial, me ensinou isso. Acaba logo esse sanduíche antes que entrem aqui e tirem de você.
Andei em direção à porta.
— Ei, Mickey Mouse.
Virei para ele. Era como me chamava quando eu era bebê, um recém-nascido de dois quilos. Normalmente, eu diria para não me chamar mais assim. Mas deixei pra lá, queria ir logo embora.
— O que foi?
— Seu pai costumava chamar os jurados de “deuses da culpa”, lembra?
— Lembro. Porque os membros do júri decidem quem é ou não é culpado. E daí, Legal?
— Já tem muita gente por aí julgando cada movimento que a gente faz todo santo dia. Existem deuses da culpa demais. Você não precisa ser mais um.
Balancei a cabeça, mas não pude deixar de responder.
— Sandy Patterson e a filha dela, Katie.
Legal pareceu confuso com minha resposta. Não reconheceu os nomes. Já eu, é claro, nunca esqueceria.
— A mãe e a filha que Gallagher matou. Elas são minhas deusas da culpa.
Fechei a porta ao sair e deixei o sinal de NÃO PERTURBE na maçaneta. Talvez ele conseguisse matar o sanduíche antes que as enfermeiras entrassem e descobrissem nosso crime.
3
De volta ao Lincoln, liguei para Lorna Taylor. Seu alô foram as palavras que sempre faziam a faca de dois gumes me atravessar, palavras que me empolgavam e repeliam ao mesmo tempo:
— Mickey, você tem um caso de homicídio pra pegar, se quiser.
A hipótese de um caso de homicídio era capaz de mexer comigo por vários motivos. Primeiro, e mais importante, era o pior crime do código e implicava os mais altos riscos da profissão. Para defender um suspeito de homicídio, você tinha de estar realmente afiado e ter fama de cachorro grande. Para conseguir um caso de homicídio, você precisava de certa reputação que o fazia virar cachorro grande. Além disso, havia a questão do dinheiro: uma defesa de homicídio — o caso indo ou não a julgamento — é dispendiosa porque consome tempo. Conseguir um caso de homicídio com um cliente que paga significa provavelmente saldo positivo na conta pelo resto do ano.
O lado ruim é o cliente. Embora eu não tenha a menor dúvida de que gente inocente também é acusada de assassinato, na maioria dos casos a polícia e a promotoria estão no rumo certo e só resta a você negociar ou atenuar a duração e os termos da sentença. Passar esse tempo todo sentado ao lado de alguém que tirou uma vida nunca é uma experiência agradável.
— Quais são os detalhes? — perguntei.
Eu estava no banco de trás do Lincoln, com um bloco de anotações amarelo preparado na mesinha de trabalho dobrável. Earl ia para o centro pela Third Street, uma linha reta desde o distrito de Fairfax.
— Foi uma ligação a cobrar da Men’s Central. Aceitei e era um sujeito chamado Andre La Cosse. Ele disse que tinha sido preso por homicídio na noite anterior e que queria contratar você. E escuta só, quando eu perguntei quem tinha indicado, ele falou que a recomendação foi feita pela própria mulher que ele agora está sendo acusado de ter matado. Disse que ela comentou que você era o melhor.
— Quem é ela?
— Isso é o mais louco de tudo. Segundo o cara, ela se chama Giselle Dallinger. Eu pesquisei no nosso banco de dados e o nome não aparece. Você nunca foi advogado dela, então não sei muito bem como ela conseguiu seu nome e fez essa indicação antes de supostamente ter sido assassinada pelo sujeito.
O banco de dados era um aplicativo que digitalizava todos os nossos casos arquivados e nos permitia verificar em poucos segundos se um potencial cliente constava em algum outro caso como testemunha, vítima ou mesmo cliente. Em vinte e tantos anos de carreira, eu não tinha como me lembrar do nome de todos meus clientes, muito menos dos figurantes envolvidos nos casos. O aplicativo me poupava uma quantidade gigantesca de tempo. Antes, às vezes eu mergulhava em um caso e só depois descobria que havia um conflito de interesses em representar o novo cliente em decorrência de um cliente antigo, uma testemunha ou uma vítima.
Olhei para meu bloco de anotações. Havia escrito apenas os nomes, mais nada.
— Certo, quem está com esse caso?
— O West Bureau Homicide do DPLA.
— A gente sabe de mais alguma coisa sobre esse cara? O que mais ele disse?
— Disse que a primeira audiência no tribunal é amanhã de manhã e que queria você por lá. Jura que foi uma armação, que não matou ninguém.
— Ela era esposa, namorada, sócia, alguma coisa?
— Ele disse que ela trabalhava pra ele, só isso. Sei que você não gosta que seus clientes fiquem falando nos telefones da cadeia, então não perguntei nada sobre o caso.
— Ótimo, Lorna.
— Mas onde você está?
— Fui ver o Legal. Estou voltando para o centro, agora. Vou ver se consigo entrar para ver o sujeito e saber onde estamos pisando. Dá para você falar com Cisco e pedir para ele fazer uma pesquisa preliminar?
— Ele já está fazendo. Dá para ouvir ele falando no telefone com alguém neste exato momento.
Cisco Wojciechowski era meu investigador e também o marido de Lorna. Os dois trabalhavam em casa, em West Hollywood. Por sinal, Lorna era minha ex. Era a esposa número dois, sucessora da mãe da minha única filha — que estava agora com dezesseis anos e não queria saber de mim. Às vezes, eu achava que precisava de um fluxograma em um quadro branco para acompanhar as idas e vindas de todos, mas ao menos não havia ciúme entre mim, Lorna e Cisco, apenas uma sólida relação de trabalho.
— Certo, pede para ele me ligar. Ou eu ligo pra ele depois que sair da cadeia.
— Certo, boa sorte.
— Mais uma coisa. La Cosse vai ter como pagar?
— Ah, claro. Ele disse que não tinha dinheiro vivo, mas tinha ouro e outros “bens” que podia usar como moeda de troca.
— Você passou algum valor para ele?
— Falei que você ia precisar de vinte e cinco só para começar, e mais depois. Ele não surtou nem nada.
Era baixíssimo o número de réus que tinha condições de adiantar vinte e cinco mil pratas e estava disposto a abrir mão dessa quantia. Eu não sabia nada sobre o caso, mas me parecia melhor a cada minuto.
— Certo, eu ligo de volta quando tiver alguma novidade.
— O.k.
Parte da empolgação murchou antes mesmo de eu pôr os olhos no meu novo cliente. Eu acabava de protocolar uma carta de contrato na administração da cadeia e estava esperando os agentes penitenciários trazerem La Cosse para a sala de entrevista quando recebi o telefonema de Cisco, que trazia uma informação preliminar obtida por meio de fontes humanas e digitais:
— O.k., duas coisas. O DPLA emitiu ontem um comunicado sobre o homicídio, mas até agora nada sobre a prisão. Giselle Dallinger, de trinta e seis anos, foi encontrada no início da manhã de segunda-feira pelos bombeiros em seu apartamento, na Franklin, a oeste de La Brea. Eles foram chamados porque alguém ateou fogo no apartamento. O corpo estava carbonizado, mas a polícia desconfia que o incêndio foi iniciado como uma tentativa de encobrir o crime e fazer parecer acidental. A autópsia ainda não saiu, mas há indícios de estrangulamento. O comunicado se refere à mulher como empresária, mas no site do Times há uma matéria curta que cita fontes dentro da polícia sugerindo que ela era prostituta.
— Maravilha. Quem é meu cara então, um cliente?
— Na verdade, a matéria do Times diz que os policiais estavam interrogando um sócio. Se era La Cosse, não menciona, mas você só precisa ligar os pontos para...
— Descobrir que temos um cafetão.
— É o que parece, para mim.
— Que maravilha. Deve ser uma pessoa de alta classe.
— Tente ver pelo lado positivo. Lorna diz que o cara vai pagar.
— Vou acreditar nisso quando o dinheiro estiver no meu bolso.
De repente, pensei em minha filha e em uma das últimas coisas que me disse antes de cortar relações. Hayley chamou meus clientes de escória da sociedade, um bando de aproveitadores, viciados e até assassinos. No momento, eu não tinha como argumentar isso. Minha lista incluía um ladrão de carros que apontava a arma para senhoras de idade, um acusado de estupro, outro com denúncia de apropriação indébita, depois de passar a mão no dinheiro de um fundo de viagens estudantil, e vários outros degenerados sociais. Agora presumivelmente eu acrescentaria um acusado de homicídio a essa turma — melhor dizendo, um acusado de homicídio que atuava no ramo de venda de sexo.
Comecei a sentir que nós nos merecíamos. Não passávamos de casos perdidos, de derrotados, o tipo de gente que nunca recebe um sorriso dos deuses da culpa.
Minha filha conhecera as duas pessoas mortas por meu cliente Sean Gallagher. Katie Patterson era sua colega, e a mãe da menina trabalhava na escola. Hayley tivera de trocar de escola para evitar o desprezo que sofreu quando foi divulgado pela mídia — e estou me referindo a toda a mídia — que J. Michael Haller Jr., candidato ao Gabinete da Promotoria do Condado de Los Angeles, se valera de uma brecha para livrar a cara de Gallagher por uma acusação de embriaguez ao volante.
O resumo da ópera era que Gallagher estava solto por aí, bebendo e dirigindo, graças às minhas assim chamadas habilidades como advogado de defesa. E por mais que Legal Siegel tentasse apaziguar minha consciência com o velho refrão de “você só estava fazendo seu trabalho”, eu sabia, nas profundezas escuras da alma, que meu veredicto era culpado. Culpado aos olhos de minha filha e aos meus próprios olhos.
— Está aí, Mick?
Voltei de meus devaneios sombrios, percebendo que continuava no telefone com Cisco.
— Estou. Você sabe quem está trabalhando no caso?
— O comunicado menciona o detetive Mark Whitten, do West Bureau, como chefe da investigação. O parceiro dele não aparece.
Até onde era capaz de me lembrar, eu não conhecia nem nunca tinha enfrentado Whitten em um caso.
— O.k. Mais alguma coisa?
— É só o que tenho até o momento, mas estou trabalhando nisso.
A informação de Cisco fora um balde de água fria. Ainda assim, eu não ia descartar o caso por enquanto. Consciências pesadas à parte, um cheque é sempre um cheque, e eu precisava da grana para manter solvente a Michael Haller & Associados.
— Ligo para você depois de me encontrar com o cara, o que vai acontecer agora mesmo.
O guarda me indicava uma das cabines de advogado-cliente. Levantei e fui até lá.
Andre La Cosse já estava sentado em uma cadeira do outro lado da mesa, que tinha uma divisória de acrílico de um metro de altura. Em sua maioria, os clientes que visito na Men’s Central adotam uma postura desleixada, arrogante, de quem não está nem aí para sua situação. É um mecanismo de defesa. Se você não demonstra preocupação por estar trancado em um prédio de aço com 1200 outros criminosos violentos, então talvez eles o deixem em paz. Porém, se você revelar medo, os predadores percebem e se aproveitam, perseguindo você.
Mas La Cosse era diferente. Antes de mais nada, era menor do que eu havia imaginado. Era franzino e parecia nunca ter puxado ferro na vida. Estava usando um uniforme laranja folgado, mas parecia exibir um orgulho pouco condizente com as circunstâncias. Não demonstrava exatamente medo, mas também não aparentava a despreocupação ostensiva que eu tantas vezes vira nesses lugares. Sentava empertigado na beirada da cadeira, e seus olhos me acompanharam como lasers quando entrei no cubículo. Havia algo de formal no modo como se portava. Seu cabelo era cuidadosamente escovado nas laterais e parecia que estivera usando delineador.
— Andre? — perguntei, ao sentar. — Sou Michael Haller. Você ligou para o meu escritório sobre o caso.
— Foi, isso mesmo. Eu não devia estar aqui. Alguém matou ela depois que eu estive lá, mas ninguém acredita em mim.
— Devagar um segundo, deixa eu me ajeitar aqui.
Peguei um bloco amarelo na pasta e a caneta no bolso da camisa.
— Antes de conversar sobre o caso, preciso fazer algumas perguntas.
— Tudo bem.
— E já vou dizendo que não deve mentir para mim, Andre, nunca. Está entendendo? Se mentir, eu caio fora. É assim que funciona. Não posso trabalhar para você se não me fizer acreditar que tudo que me conta é a pura verdade.
— Certo, isso não vai ser problema. A verdade é a única coisa que tenho do meu lado, no momento.
Fiz uma série de perguntas básicas, compondo um rápido perfil para meu arquivo. La Cosse tinha trinta e dois anos, era solteiro e morava em um prédio de condomínio em West Hollywood. Não tinha parentes na cidade, e os familiares mais próximos eram seus pais, em Lincoln, Nebraska. Disse que não tinha ficha criminal na Califórnia, nem em Nebraska, nem em nenhum outro lugar, e que nunca tomara sequer uma multa por excesso de velocidade. Me passou os números de telefone dos pais, seu celular e o fixo — usaria isso para localizá-lo caso saísse da cadeia e não cumprisse com o acordo de honorários. Assim que terminei, ergui o rosto do bloco de anotações.
— O que você faz da vida, Andre?
— Trabalho em casa. Sou programador. Eu crio e gerencio websites.
— Como você conheceu a vítima do caso, Giselle Dallinger?
— Eu cuido de todo o conteúdo digital dela. Os sites, Facebook, e-mail, tudo.
— Quer dizer que você é uma espécie de cafetão digital?
O pescoço de La Cosse ficou vermelho na mesma hora.
— De jeito nenhum! Sou um empresário, e ela é... era... uma empresária. E eu não matei ela, mas ninguém aqui quer acreditar em mim.
Com a mão livre, fiz um gesto de calma.
— Vamos relaxar um pouco. Estou do seu lado, lembra?
— Não parece, fazendo uma pergunta dessas.
— Você é gay, Andre?
— Que importância tem isso?
— Talvez nenhuma, mas pode significar muita coisa quando a promotoria começar a falar sobre a motivação do crime. É ou não é?
— Sou, já que precisa saber. Eu não escondo.
— Bom, por aqui talvez deva, para sua própria segurança. Posso transferir você para um módulo homossexual assim que for chamado para a citação, amanhã.
— Não se incomode, por favor. Não quero receber nenhum rótulo.
— Como preferir. Qual era o site de Giselle?
— Giselle-for-you-ponto-com. Esse era o principal.
Anotei.
— Tinha outros?
— Ela mantinha sites direcionados para gostos específicos, páginas que apareciam de acordo com a pesquisa de certas palavras ou coisas. É isso o que ofereço: visibilidade on-line através de uma ferramenta multiplataforma. Foi por isso que ela chegou até mim.
Balancei a cabeça, como se estivesse admirado com tanta criatividade e perspicácia nos negócios.
— E há quanto tempo você trabalhava para ela?
— Ela me procurou faz mais ou menos dois anos. Queria ter visibilidade na rede.
— Ela procurou você? Explique isso. Procurou como? Você publica anúncios on-line ou algo assim?
Ele movimentou a cabeça, como se estivesse lidando com uma criança.
— Não, anúncio nenhum. Só trabalho com indicações de pessoas de confiança e que eu já conheça. Ela foi recomendada por outra cliente.
— Que cliente?
— Tem uma questão de confidencialidade aí. Não quero ver ela envolvida nisso. Ela não sabe de nada e não tem nada a ver com essa história.
Balancei a cabeça como se eu estivesse lidando com uma criança.
— Por enquanto, vou deixar passar, Andre. Mas, se eu assumir o caso, em algum momento vou precisar saber quem fez a indicação. E não caberá a você decidir se alguém ou alguma coisa tem relevância. Essa decisão é minha. Está claro?
Ele fez que sim.
— Vou mandar uma mensagem para ela — ele disse. — Assim que receber o o.k., ponho você em contato. Mas eu não minto nem entrego ninguém. A base do meu negócio e da minha vida é confiança.
— Ótimo.
— E o que você quer dizer com “se eu assumir o caso”? Achei que estivesse assumindo o caso. Quer dizer, você está aqui, não está?
— Ainda vou decidir.
Olhei meu relógio. O sargento para quem me apresentei disse que eu teria apenas meia hora com La Cosse. E ainda havia três áreas para cobrir — a vítima, o crime e os honorários.
— Não temos muito tempo, então vamos em frente. Quando foi a última vez que você viu pessoalmente Giselle Dallinger?
— Domingo à noite, bem tarde... e quando eu saí ela estava viva.
— Onde?
— No apartamento dela.
— O que você foi fazer lá?
— Fui pegar dinheiro, mas saí de mãos abanando.
— Que dinheiro e por que você foi embora sem nada?
— Ela saiu para um trabalho. A gente tem um acordo, sabe, eu recebo uma porcentagem do que ela ganha. Eu tinha arranjado para ela um encontro padrão Linda Mulher e queria minha parte... com essas garotas, se você não consegue o dinheiro na hora, a tendência é a grana desaparecer debaixo do nariz delas e em outros lugares.
Escrevi um resumo do que ele acabara de dizer, ainda que não tivesse certeza do sentido da maioria daquelas palavras.
— Está me dizendo que Giselle era usuária de drogas?
— Eu diria que sim. Nada fora do controle, mas faz parte do trabalho e até da vida.
— Me conta sobre esse encontro padrão Linda Mulher. O que isso quer dizer?
— O cliente aluga uma suíte no Beverly Wilshire, como no filme Uma linda mulher. Giz tinha essa coisa meio Julia Roberts, sabe? Principalmente depois que mandei fazer um airbrush nas fotos. Acho que você consegue imaginar o resto.
Eu nunca tinha visto aquele filme, mas sabia que contava a história de uma prostituta com coração de ouro que conhece o homem de seus sonhos fazendo um programa no Beverly Wilshire.
— Quanto ela cobrava por isso?
— Era para ser dois paus e meio.
— E a sua parte?
— Mil, mas não teve nada. Ela disse que foi uma ligação fria.
— O que é isso?
— A garota chega no local e não tem ninguém esperando, ou a pessoa que está no quarto diz que não deu nenhum telefonema. Eu checo essas coisas da melhor forma que posso. Verifico documento de identidade e tudo mais.
— Então você não acreditou nela.
— Vamos dizer apenas que fiquei desconfiado. Eu tinha conversado com o possível cliente. Liguei para o hotel e reservei o quarto. Ela alegou que não tinha ninguém esperando e que não havia nenhuma reserva.
— Então você discutiu por isso?
— Um pouco.
— E você bateu nela.
— O quê?! Não! Nunca bati em uma mulher. Nunca bati em ninguém! Eu não faço isso. Será que você não pode...
— Olha, Andre, só estou reunindo informações. Então você não bateu nem machucou a garota. Você encostou no corpo dela, em algum lugar?
La Cosse hesitou e com isso percebi que havia um problema.
— Me conta, Andre.
— Bom, eu agarrei ela. Como ela não queria olhar para mim, achei que estava mentindo. Então eu agarrei ela pelo pescoço... com a mão. Ela ficou puta e eu fiquei puto e foi isso. Fui embora.
— Mais nada?
— Mais nada. Bom, quando eu estava na rua, indo pro meu carro, ela jogou um cinzeiro em mim, da varanda. Não acertou.
— Como foi antes de você sair do apartamento?
— Eu só disse que ia voltar para o hotel e bater na porta do cara para pegar nossa grana.
— Qual era o número do quarto e como se chamava o sujeito?
— Ele estava hospedado no 837. O nome era Daniel Price.
— Você foi até o hotel?
— Não, fui pra casa, só isso. Resolvi que não valia a pena.
— Pareceu valer a pena quando você agarrou ela pelo pescoço.
Ele balançou a cabeça com a incongruência disso, mas não ofereceu nenhuma explicação adicional. Por ora, mudei de assunto.
— O.k., e depois, o que aconteceu? Quando a polícia chegou?
— Os tiras chegaram lá pelas cinco, ontem.
— Cinco da manhã ou da tarde?
— Tarde.
— Disseram como chegaram até você?
— Eles sabiam sobre o site. Isso levou até mim. Disseram que tinham umas perguntas e concordei em conversar.
Sempre um erro, conversar voluntariamente com os tiras.
— Lembra do nome deles?
— Tinha um tal de detetive Whitten. Esse foi quem mais falou. O parceiro dele se chamava Weeder ou qualquer coisa assim.
— Por que você concordou em conversar?
— Sei lá, talvez porque eu não tenha feito nada de errado e quisesse ajudar?! Fui idiota de achar que os caras estavam tentando descobrir o que aconteceu com a coitada da Giselle. Na verdade, foram lá com o que achavam que tinha acontecido e só queriam me envolver na história.
Bem-vindo ao meu mundo, pensei.
— Você sabia que ela estava morta antes deles chegarem?
— Não. Eu fiquei ligando, deixando recados e mandando mensagens de texto o dia todo. Estava me sentindo culpado pela discussão da noite anterior. Mas, como ela não me retornou, achei que continuava puta comigo por causa da briga. Daí eles vieram e disseram que ela estava morta.
Obviamente, quando uma prostituta aparece morta, um dos primeiros alvos de busca dos investigadores é o cafetão, mesmo que seja um cafetão digital que não se encaixe no estereótipo do sádico violento e que não mantenha as mulheres reféns por meio de ameaças e maus-tratos.
— Eles gravaram a conversa que tiveram com você?
— Não que eu saiba.
— Informaram sobre seu direito constitucional de ter um advogado presente?
— Isso sim, mas foi mais tarde, na delegacia. Eu achava que não precisava de um advogado. Não fiz nada errado. Então eu disse tudo bem, podemos conversar.
— Você assinou algum tipo de formulário?
— Sim, assinei um papel... eu não li, pra falar a verdade.
Engoli em seco minha contrariedade. Em geral, o pior inimigo de quem entra no sistema de justiça criminal é a própria pessoa. Elas praticamente põem as algemas sozinhas, com sua boca grande.
— Me conta mais. Você primeiro conversou com eles em casa, depois foi levado pro West Bureau?
— Isso. Primeiro foi uma conversa de uns quinze minutos em casa, depois eles me levaram para a delegacia, supostamente para eu olhar fotos de suspeitos. Papo furado. Não mostraram foto nenhuma, me puseram em uma salinha de interrogatório e ficaram fazendo perguntas. Aí depois falaram que eu estava preso.
Eu sabia que, para dar voz de prisão, os policiais precisavam de evidência física ou de testemunhas ligando de algum modo La Cosse ao homicídio. Além do mais, alguma coisa do relato de La Cosse não deve ter batido. Assim que mentiu, ou acharam que mentiu, foi preso.
— O.k., e você contou para os tiras que foi ao apartamento da vítima na noite de domingo?
— Contei. E acrescentei que ela estava viva quando eu fui embora.
— Você falou que agarrou ela pelo pescoço?
— Falei.
— Isso foi antes ou depois de lerem seus direitos e fazerem você assinar o formulário?
— Ah, não lembro. Acho que antes.
— Tudo bem, eu descubro. Os policiais falaram sobre alguma outra evidência, confrontaram você com qualquer coisa que tinham?
— Não.
Olhei meu relógio outra vez. Como meu tempo estava acabando, decidi encerrar por ali as perguntas sobre o caso. A maioria das informações eu descobriria, caso aceitasse mesmo defender La Cosse. Além do mais, sempre era uma boa ideia limitar a informação direta de um cliente. Eu ficaria preso ao que La Cosse me dissesse e isso poderia influenciar as decisões que fosse tomar mais tarde, no caso ou no tribunal. Por exemplo, se La Cosse contasse que de fato matara Giselle, eu não poderia levá-lo ao banco dos réus para negar o fato, porque isso me tornaria culpado de indução a falso testemunho.
— O.k., por enquanto é só. Se eu pegar o caso, como você vai pagar?
— Em ouro.
— Já me avisaram. O que quero saber é como? De onde virá esse ouro?
— Eu tenho em um lugar seguro. Todo meu dinheiro está investido em barras de ouro. Se você pegar o caso, mando entregar até o final do dia. Sua secretária disse que você precisava de vinte e cinco mil dólares para começar. A gente usa a cotação da Bolsa de Nova York para fazer avaliação. Aqui dentro não tive como checar o mercado, mas calculo que uma barra de uma libra cubra esse valor.
— Você sabe que isso vai cobrir apenas os custos iniciais, certo? Se o caso avançar para uma audiência preliminar e um julgamento, vou precisar de mais. Você pode conseguir alguém por um preço menor, mas não vai achar ninguém melhor do que eu.
— Sei, entendo. Vou ter que pagar para provar minha inocência. Mas, azar, eu tenho ouro suficiente.
— Tudo bem, então. Manda o entregador deixar a barra de ouro com minha secretária. Vou precisar dessa grana na mão antes do seu primeiro comparecimento no tribunal, amanhã. Assim vou entender que está falando sério.
Eu sabia que o tempo estava se esgotando, mas examinei La Cosse em silêncio por um longo momento, tentando sacar qual era a dele. Sua história de inocência soava plausível, mas eu não fazia ideia do que a polícia sabia. Tudo que eu tinha era o relato de Andre, e eu desconfiava que, no momento em que a evidência do caso fosse revelada, descobriria que ele não era tão inocente quanto alegava ser. Era sempre assim.
— O.k., uma última coisa, Andre. Você disse para minha secretária que conseguiu meu contato por recomendação da própria Giselle, é isso mesmo?
— É, ela disse que você era o melhor advogado da cidade.
— Como ela podia saber disso?
La Cosse pareceu surpreso, como se toda a conversa até aquele momento tivesse se baseado em um pressuposto — o de que eu conhecia Giselle Dallinger.
— Ela falou que conhecia você, que você cuidou de uns casos pra ela. Chegou a dizer que você conseguiu um ótimo acordo para ela, uma vez.
— E você tem certeza mesmo que é de mim que ela estava falando?
— Absoluta. Era de você. Ela comentou que você conseguiu um home run pra ela. Chamou você de Mickey Mantle e tudo.
Fiquei sem reação por um momento. Certa vez tive uma cliente — uma prostituta, também — que me chamava assim. Mas fazia muito tempo que eu não a via. Desde que a enfiara em um avião com dinheiro suficiente para recomeçar a vida e nunca mais voltar.
— Giselle Dallinger não era o nome verdadeiro dela, era?
— Não sei. Era o único que eu conhecia.
Bateram com força na porta de aço às minhas costas. Meu tempo havia acabado. Algum outro advogado precisava da sala para conversar com seu cliente. Olhei para La Cosse do outro lado da mesa. Eu já não estava mais imaginando se iria ou não pegá-lo como cliente.
Sem sombra de dúvida, o caso era meu.
4
Earl dirigiu até o Starbucks na Avenida Central e parou na frente. Fiquei no carro esperando ele buscar café para nós dois. Abri o laptop na mesinha e usei o wi-fi da cafeteria para acessar a internet. Tentei três variações antes de digitar www.Giselle4u.com e conseguir achar o site da mulher que Andre La Cosse era acusado de assassinar. As fotos eram retocadas, o cabelo estava diferente e uma cirurgia plástica tinha sido realizada desde a última vez em que eu a vira, mas eu não tinha dúvida de que Giselle Dallinger era minha antiga cliente, Gloria Dayton.
Isso mudava as coisas. À parte a questão do conflito legal de eu representar um cliente acusado de matar outro cliente, havia meus pêsames por Gloria Dayton e a súbita percepção de que eu fora usado por ela de maneira não muito diferente de como ela foi usada pelos homens a vida toda.
Gloria fora um projeto, uma cliente com quem fui além da usual relação profissional. Não saberia dizer como aquilo tinha acontecido, apenas que Gloria tinha um sorriso tristonho, um temperamento sarcástico e um viés pessimista que me cativaram. Eu assumira pelo menos seis casos dela ao longo dos anos. Todos envolviam prostituição, drogas, aliciamento e por aí afora. Ela estava profundamente mergulhada nessa vida, mas sempre me pareceu merecer uma chance de se erguer e escapar. Não fui nenhum herói, mas fiz o que pude. Providenciei penas alternativas, internação em clínicas de reabilitação, diversos tratamentos e certa vez cheguei a matriculá-la no Los Angeles City College, após ela manifestar interesse em escrever. Nada disso funcionou por muito tempo. Um ano ou algo assim se passou até eu receber novo telefonema — ela estava presa outra vez e precisava de um advogado. Lorna começou a insistir que eu precisava me livrar dela ou encaminhá-la para outro advogado, que ela era uma causa perdida. Mas eu não podia fazer isso. A verdade era que tinha gostado de conhecer Gloria Dayton ou, para os íntimos, Glory Days, promessa de Dias de Glória para qualquer cliente. Sua visão oblíqua do mundo combinava com seu sorriso oblíquo. Ela era como uma gata selvagem e eu era o único que podia chegar perto.
Não que houvesse alguma coisa romântica ou sexual em nossa relação. Não havia. Na verdade, nem tenho certeza se poderia chamar aquilo de amizade: nos víamos muito pouco para sermos amigos. Mas eu gostava dela e por isso doía agora saber que estava morta. Nos últimos sete anos, achava que ela saíra daquela vida e que eu tinha contribuído para isso. Ela pegara o dinheiro que eu dera e viajara para o Havaí, para viver com um cliente de longa data que a ajudaria a recomeçar a vida. Eu recebia cartões-postais de vez em quando e um ou dois cartões de Natal. Em todos ela dizia que estava bem e longe das drogas. Aquilo me deixava com a sensação de ter conseguido algo raramente conquistado nos tribunais e corredores da lei: a mudança do rumo de uma vida.
Quando Earl voltou com o café, fechei o laptop e pedi para ir para casa. Então liguei para Lorna e disse para marcar uma reunião com a equipe toda para as oito da manhã seguinte. Andre La Cosse deveria comparecer à citação na segunda chamada, ou seja, ele compareceria pela primeira vez perante o tribunal em algum momento entre as dez e o meio-dia. Eu queria me reunir com minha equipe e dar andamento às coisas antes disso. Pedi a Lorna para puxar todos os arquivos sobre Gloria Dayton e levar também.
— Por que você quer os arquivos de Gloria? — ela perguntou.
— Porque ela é a vítima — eu disse.
— Ai, meu Deus, você tem certeza? Não foi esse nome que o Cisco me passou.
— Tenho certeza. A polícia ainda não sabe, mas era ela.
— Droga, Mickey. Imagino como você está se sentindo... sei que gostava dela.
— É, gostava. Eu estava lembrando dela ainda outro dia e pensando em ir para o Havaí no recesso dos tribunais, no Natal. Eu ia dar uma ligada para ela, se fosse lá.
Lorna não respondeu. A viagem para o Havaí foi uma ideia que tive para suportar o feriado sem ver minha filha. Mas eu já tinha descartado aquela possibilidade, na esperança de que as coisas mudassem: talvez no Natal eu recebesse uma ligação de Hayley e um convite para a ceia. Se eu fosse para o Havaí, perderia a oportunidade.
— Olha — eu disse, interrompendo meus pensamentos. — Cisco está por aí?
— Não, acho que foi para o lugar onde a vítima... quer dizer, Gloria... morava, para ver o que conseguia descobrir.
— O.k., vou ligar para ele. A gente se vê amanhã na reunião.
— Ah, Mickey, espera. Quer que a Jennifer compareça também? Acho que ela tem alguns julgamentos no tribunal.
— Claro que quero. Se ela tiver algum conflito de horário, veja se consegue um dos Cavaleiros Jedi para cobri-la nas audiências.
Eu havia contratado Jennifer anos antes diretamente na Southwestern Law School. Ela cuidava de nossos casos contra execuções de hipoteca, na época uma área próspera para os advogados de defesa. No ano anterior, o ramo perdera força nos Estados Unidos, e a defesa criminal voltara a crescer. Mesmo assim, Jennifer ainda tinha uma pilha enorme de casos nas mãos. Havia um grupo de advogados regulares no circuito de execução de hipoteca, e os integrantes costumavam realizar almoços ou jantares todos os meses para trocar experiências e estratégias. Eles se autointitulavam os Cavaleiros Jedi, uma referência à sigla de sua associação, JEDTI, as iniciais de Jurists Engaged in Defending Title Integrity (Juristas Empenhados em Defender a Integridade do Direito à Propriedade), e a parceria entre os membros se estendia a cobrir o companheiro no tribunal, quando havia conflitos de horário.
Eu sabia que Jennifer não se importaria de ser retirada do ramo das hipotecas para transitar durante algum tempo pela área criminal. Quando a contratei, a primeira coisa que me disse foi que ambicionava uma carreira em direito criminal. Com o passar do tempo, passou a sugerir, por e-mail e nas reuniões semanais da equipe, que era hora de eu contratar outro sócio para cuidar das execuções de hipoteca para que ela pudesse mergulhar mais a fundo na área de sua preferência. Eu demonstrava resistência porque contratar outro sócio me deixava mais próximo da necessidade do tradicional arranjo de escritório, com secretária, fotocopiadora e todas essas coisas. A ideia de despesas gerais ou de ficar preso a uma sede fixa não me agradava. Eu gostava de trabalhar no banco traseiro do carro e ir aonde a vida me levasse.
Depois de encerrar a ligação com Lorna, abaixei o vidro e deixei o vento soprar em meu rosto. Era um lembrete do que eu apreciava no modo de fazer as coisas.
Mas não demorei a subir o vidro outra vez, para conseguir escutar Cisco. Liguei para o celular dele, e Cisco me informou que estava literalmente batendo de porta em porta e checando o prédio onde Giselle Dallinger vivera e morrera.
— Conseguiu alguma pista?
— Uma coisinha aqui e outra ali. Ela ficava mais na dela. Quase não recebia visitas. Não devia atender no próprio apartamento.
— E como é para entrar?
— Tem uma porta com interfone no térreo. Ela precisaria autorizar a entrada.
O que não parecia bom para La Cosse. A polícia provavelmente presumiu que Dallinger conhecia o assassino e o deixara entrar.
— Algum sistema com digitação de senha na porta? — perguntei.
— Não, o sistema não tem senha — disse Cisco.
— Câmeras de segurança?
— Negativo.
Isso podia ser tanto um bom quanto um mau sinal para La Cosse.
— Certo, me avisa quando terminar por aí. Tenho algumas coisas para você.
— Eu posso voltar para cá depois. O zelador do prédio está cooperando.
— Então tudo bem. Olha, vamos nos reunir amanhã, às oito, todo mundo. Mas antes, se puder, quero que pesquise um nome. Gloria Dayton. Você pode conseguir a data de nascimento nos arquivos de Lorna. Quero saber por onde ela andou nos últimos anos.
— Deixa comigo. Quem é ela?
— É a nossa vítima, só que a polícia ainda não sabe.
— La Cosse contou isso para você?
— Não, descobri por conta própria. É uma antiga cliente.
— Sabe, eu podia usar essa informação como moeda de troca. Eu chequei no IML e os peritos não confirmaram a identidade porque o corpo e o apartamento foram queimados. Também não conseguiram recolher digitais. Estavam esperando que o DNA estivesse no sistema ou que pudessem fazer o reconhecimento pela arcada dentária.
— Bom, nesse caso, pode usar se servir para conseguir alguma coisa. Acabei de ver as fotos no site Giselle-for-you. É Gloria Dayton, uma antiga cliente que eu achava que tivesse se mudado para o Havaí há uns sete anos. Andre me contou que vinha trabalhando com ela aqui nos últimos dois anos. Quero o panorama geral.
— Deixa comigo. Sete anos, mas por que ela saiu da cidade?
Fiz uma pausa antes de responder, pensando no último caso que eu pegara para Gloria Dayton.
— Tive um caso que me rendeu uma boa grana e ela desempenhou um papel. Dei vinte e cinco mil para ela me prometer largar essa vida e recomeçar. Tinha também um cara, que ela delatou para conseguiu um negócio. Eu fui o intermediário. Era só questão de tempo para ela ir embora.
— É possível que isso tenha alguma coisa a ver com o que aconteceu?
— Não sei. Faz muito tempo e o cara pegou perpétua.
Hector Arrande Moya. Ainda me lembro do nome, da pronúncia. Os federais queriam muito aquele homem, e Gloria sabia como encontrá-lo.
— Vou pôr a Bullocks nisso amanhã — disse eu, referindo-me a Jennifer Aronson pelo apelido. — Na pior das hipóteses, talvez a gente consiga usar o cara como laranja.
— Você pode pegar um caso mesmo que a vítima seja uma antiga cliente? Isso não é algum tipo de conflito de interesse ou qualquer coisa assim?
— Dá para achar um jeito. Estamos falando do sistema jurídico, Cisco. Ele é maleável.
— Entendo.
— Mais uma coisa. Domingo à noite a garota tinha um programa no Beverly Wilshire. Parece que a coisa não vingou porque o cara não estava lá. Procure dar uma bisbilhotada e veja o que consegue descobrir.
— Tem o número do quarto?
— Tenho, 837. O nome do cara era Daniel Price. Isso tudo veio da conversa com La Cosse. Segundo ele, Gloria disse que o quarto nem estava reservado.
— Vou verificar.
Depois de desligar, guardei o celular e fiquei olhando pela janela até chegarmos em minha casa, na Fareholm. Earl me deu as chaves do Lincoln e foi para seu carro, estacionado junto à calçada. Pedi a ele que não se esquecesse de que começaríamos cedo no dia seguinte e subi os degraus até a porta de entrada.
Pus as coisas na mesa da sala de jantar e fui para a cozinha pegar uma cerveja. Quando fechei a geladeira, percorri com o olhar as fotos e os cartões presos com ímãs até encontrar um cartão-postal da cratera de Diamond Head, em Oahu. Era o último cartão que tinha recebido de Gloria Dayton. Tirei do prendedor magnético e li o verso.
Feliz Ano-Novo, Mickey Mantle!
Espero que você esteja bem. Tudo ótimo aqui no sol. Vou à praia todo dia. Você é a única coisa de LA que me dá saudade. Venha me visitar qualquer dia.
Gloria
Meus olhos foram das palavras para o carimbo do correio. A data era 15 de dezembro de 2011, quase um ano antes. O carimbo, que eu nunca tivera curiosidade de olhar antes, dizia Van Nuys, Califórnia.
Tive uma pista do subterfúgio de Gloria na porta da geladeira por quase um ano, mas não me dei conta. Agora isso confirmava a farsa, e minha participação involuntária nela. Eu não podia deixar de me perguntar por que ela se dera ao trabalho. Eu era apenas seu advogado. Não havia necessidade de me convencer de nada. Se nunca mais tivesse recebido uma notícia de Gloria, eu não teria desconfiado nem ido à sua procura. Para mim, aquilo parecia estranhamente desnecessário e até mesmo um pouco cruel. Sobretudo a última linha, com o convite para uma visita. E se eu tivesse mesmo ido no Natal para fugir da minha desastrosa vida pessoal? O que teria acontecido quando eu aterrissasse e ela não estivesse lá?
Fui até a lata de lixo, pisei no pedal para abrir a tampa e deixei cair o cartão. Gloria Dayton estava morta. Os Dias de Glória tinham terminado.
Tomei um banho, mantendo a cabeça debaixo da forte ducha por bastante tempo. Eu tinha um bom número de clientes que terminaram mal ao longo dos anos. Eram ossos do ofício e, em casos anteriores, eu sempre encarara as perdas de modo profissional. Clientes fiéis eram o meu ganha-pão e saber da perda de um sempre me deixava abatido. Mas no caso de Gloria Dayton era diferente. Não eram apenas negócios. Era pessoal. A morte dela desencadeou em mim uma série de sentimentos, desde decepção e vazio até desgosto e raiva. Eu estava louco não só pela mentira que ela havia armado para mim como também por ter continuado na vida que acabou por matá-la.
No momento em que a água quente acabou e fechei a ducha, me dei conta de que estava direcionando mal minha raiva. Compreendi que havia um motivo e um propósito para as atitudes de Gloria. Talvez ela não tivesse me cortado de sua vida e sim me protegido de algo. Do quê, eu não fazia ideia, mas agora seria meu trabalho descobrir.
Depois de me vestir, andei pela casa vazia e parei na porta do quarto de minha filha. Hayley não entrava ali fazia um ano, e o quarto permanecia intocado desde o dia de sua partida. Ver aquilo me fez lembrar de pais que perdiam os filhos e não mudavam seus quartos. Só que eu não havia perdido minha filha em uma tragédia: eu a afastara de mim.
Fui até a cozinha pegar outra cerveja e enfrentei o eterno dilema noturno: sair ou ficar em casa. Com a reunião cedo, resolvi ficar de molho e tirei duas quentinhas da geladeira. Eu tinha meio filé e um resto de salada que sobraram do domingo à noite, quando fui ao Craig’s, um restaurante na Melrose Avenue onde eu costumava comer sozinho no balcão. Pus a salada em um prato e o filé na frigideira para esquentar no fogão.
Quando abri a lata de lixo para jogar as embalagens, vi o cartão-postal de Gloria. Pensei melhor e o tirei dali, examinando mais uma vez os dois lados e me perguntando sobre o propósito de Gloria em enviá-lo. Será que ela queria que eu percebesse o carimbo e fosse procurá-la? Será que o cartão podia ser algum tipo de pista que eu deixara escapar?
Eu ainda não tinha respostas, mas pretendia descobrir. Levando o cartão de volta para a porta da geladeira, prendi com um ímã e ajeitei na altura dos olhos. Assim teria certeza de vê-lo todos os dias.
5
Earl Briggs demorou para me apanhar na manhã de quarta-feira, de modo que fui o último a chegar para a reunião da equipe, às oito. Estávamos no terceiro andar de um prédio de lofts no Santa Monica Boulevard, East Hollywood, próximo a uma saída para a 101 Freeway. Era um prédio ocupado pela metade, ao qual tínhamos acesso sempre que precisávamos, porque Jennifer se encarregava da defesa contra a execução de hipoteca do senhorio e recebia seus honorários em regime de permuta. O senhorio tinha comprado e reformado o lugar seis anos antes, na época do boom dos aluguéis, e aparentemente havia mais produtoras independentes na cidade do que equipes de câmera disponíveis para filmar seus projetos. Mas pouco depois veio a recessão e os investidores em filmes independentes se tornaram tão escassos quanto as vagas de estacionamento nos arredores do Ivy. Muitas companhias fecharam as portas, e o senhorio tinha sorte de contar com pelo menos meio prédio ocupado. Só que ele acabou atrasando a hipoteca, e foi então que procurou a Michael Haller & Associados, após receber uma mala-direta que mandávamos para uma lista de propriedades incluídas na relação pública de execuções.
Como a maioria das hipotecas emitidas antes da quebra, aquela fora colocada em um pacote com outras e revendida, o que nos proporcionou uma brecha. Jennifer questionou o direito de execução do banco e conseguiu emperrar o processo por dez meses, enquanto nosso cliente tentava virar a situação a seu favor. Mas não havia mais grande procura para lofts de 280 metros quadrados em East Hollywood. O senhorio continuou mal das pernas e foi incapaz de se reerguer, fechando aluguéis mensais para bandas de rock que precisavam de lugar para ensaiar. A execução estava definitivamente a caminho: era só uma questão de quantos meses mais Jennifer conseguiria segurar.
A boa notícia para a Haller & Associados era que bandas de rock costumam dormir tarde. O prédio ficava durante a maior parte do dia deserto e silencioso, até pelo menos o fim da tarde. Havíamos nos acostumado a usar o loft para as reuniões semanais de equipe. O ambiente era espaçoso e desguarnecido, com piso de madeira, pé-direito de quase cinco metros, paredes de tijolo e colunas de ferro, além do janelão com uma linda vista para o centro. Mas o melhor de tudo era a sala de reuniões no canto sudeste, com uma mesa comprida e oito cadeiras. Era ali que nos reuníamos para discutir os casos e montar as estratégias, como a de defesa de Andre La Cosse, o cafetão digital acusado de homicídio.
A sala de reuniões tinha uma grande divisória de vidro temperado com vista para o resto do loft. Quando atravessei o enorme espaço vazio, pude ver toda a equipe sentada em torno da mesa, olhando para alguma coisa. Presumi que fosse a caixa de donuts do Bob’s que Lorna geralmente trazia para as reuniões.
— Desculpem pelo atraso — disse eu ao entrar.
Cisco virou seu corpo enorme e constatei que a equipe não estava olhando para a caixa de donuts. Sobre a mesa havia um tijolo dourado e brilhante como o sol nascente.
— Isso não parece uma libra — eu disse.
— É mais — falou Lorna. — Um quilo.
— Pelo jeito ele acha que vamos ter julgamento — disse Jennifer.
Sorri e olhei para o aparador credenza encostado na parede esquerda da sala. Lorna servira o café e os donuts ali. Pus minha pasta sobre a mesa e fui pegar um café, sentindo mais necessidade de uma injeção de cafeína do que de ouro para começar o dia.
— Então, como estão todos? — perguntei, de costas para eles.
Recebi um coro de exclamações positivas enquanto me dirigia com o café e o donut açucarado para a mesa e sentava. Era difícil olhar para outra coisa além da barra de ouro.
— Quem trouxe? — perguntei.
— Veio em um carro-forte — informou Lorna. — De um lugar chamado Gold Standard Depository. La Cosse fez o pedido de entrega da cadeia. Tive de assinar o recibo em triplicata. O entregador estava armado.
— Então, quanto vale um quilo de ouro?
— Cerca de cinquenta e quatro paus — disse Cisco. — A gente acabou de verificar.
La Cosse mais do que dobrara meu pedido. Gostei disso.
— Lorna, você sabe onde fica o St. Vincent’s Court, no centro?
Ela assentiu.
— Então, é o bairro das joalherias. Entrando na Seventh Street, travessa da Broadway. Tem um monte de negociantes de ouro naquela região. Vai com o Cisco até lá e faz a conversão... quer dizer, se for ouro de verdade. Assim que tiver isso em dinheiro e depositado na conta de custódia, me manda uma mensagem de texto para avisar. Vou fazer um recibo para La Cosse.
Lorna olhou para Cisco e assentiu.
— A gente vai assim que a reunião acabar.
— Tudo bem, perfeito. O que mais? Trouxe a pasta de Gloria Dayton?
— Pastas — corrigiu ela, abaixando e pegando uma pilha de pastas de vinte centímetros no chão.
Ela empurrou o material para mim através da mesa, mas desviei na direção de Jennifer.
— Bullocks, isso é seu.
Jennifer fez cara feia, mas esticou o braço, obediente, e pegou as pastas. Estava com o cabelo preto preso em um rabo de cavalo, seu visual de mulher eficiente. Eu sabia que a cara feia não condizia com o fato de que aceitara com prazer tomar parte em um caso de homicídio. Sabia também que podia contar com seu melhor trabalho.
— O que devo procurar nisso tudo? — ela perguntou.
— Não sei, ainda. Só quero outros olhos além dos meus examinando esses arquivos. Quero que se familiarize com o que está registrado e com Gloria Dayton. Quero que saiba tudo que há para saber sobre ela. Cisco está trabalhando para levantar um perfil dela em todos os anos transcorridos desde esses casos.
— O.k.
— Ao mesmo tempo, quero você em mais uma coisa.
Ela deslizou o notebook sobre a mesa, diante de si.
— O.k.
— Em algum lugar na pasta mais recente, você vai encontrar uns bilhetes do meu antigo investigador, Raul Levin, mencionando um traficante e a localização em um hotel. O nome do cara é Hector Arrande Moya. Ele era do cartel de Sinaloa e os federais estavam atrás dele. Quero que você levante tudo que puder conseguir do homem. Pelo que me lembro, ele pegou perpétua. Descubra onde está e o que está rolando com ele.
Jennifer balançou a cabeça, mas em seguida avisou que não estava vendo a lógica da tarefa.
— Por que estamos atrás desse traficante?
— Gloria entregou o cara para conseguir um acordo. Ele dançou feio e pode ser que a gente esteja procurando teorias alternativas em algum momento.
— Certo. Usar um laranja na defesa.
— Veja o que consegue descobrir, só isso.
— Raul Levin continua na ativa? Talvez eu comece por ele, ver o que lembra desse Hector.
— Seria uma boa ideia, mas ele não está mais no pedaço. Morreu.
Vi Jennifer relancear Lorna, e o olhar de Lorna advertindo para que deixasse o assunto de lado.
— É uma longa história, um dia eu conto — falei.
Um momento de tensão se passou.
— Tudo bem, então vou ver apenas o que consigo descobrir sozinha — disse Jennifer.
Virei para Cisco.
— Cisco, o que você tem para nós?
— Consegui algumas coisinhas, até o momento. Você me pediu para checar a vida de Gloria depois do último caso em que a defendeu. Fiz isso e pesquisei por todas as vias, e ela meio que sumiu do mapa depois daquele último caso. Você comentou que ela se mudou para o Havaí, mas, se for verdade, nunca tirou carteira de motorista, não pagou conta de água, gás ou luz, não assinou TV a cabo nem comprou propriedade em nenhuma das ilhas.
— Ela disse que ia morar com um amigo — falei. — Alguém que ia cuidar dela.
Cisco deu de ombros.
— Pode até ser, mas a maioria das pessoas deixa pelo menos a sombra de um rastro. Eu não consegui encontrar nada. Acho que o mais provável é que tenha sido nesse ponto que ela começou a se reinventar, sabe? Nome novo, identidade nova, tudo isso.
— Giselle Dallinger.
— Talvez, ou pode ser que esse nome tenha vindo depois. As pessoas que fazem essas coisas geralmente não ficam com uma identidade por muito tempo. É um ciclo. Sempre que acham que alguém pode estar se aproximando da verdade ou que é hora de mudar, repetem o processo outra vez.
— É, mas ela não estava no programa de proteção à testemunha. Só queria um recomeço. Isso parece meio extremo.
Jennifer interrompeu a conversa.
— Não sei, se eu tivesse um histórico desses ligado ao meu nome e quisesse recomeçar, apagaria qualquer vestígio. Hoje em dia, tudo é digital e uma boa parte dessa informação é pública. Provavelmente a última coisa que ela queria era alguém no Havaí desenterrando todo esse negócio.
Ela deu alguns tapinhas na pilha de pastas à sua frente. Era um bom argumento.
— O.k. — eu disse —, e quanto a Giselle Dallinger? Quando ela surgiu?
— Não tenho certeza — disse Cisco. — A carteira de motorista atual foi emitida em Nevada, dois anos atrás. Ela não mudou de documento quando veio para cá. Alugou o apartamento na Franklin faz dezesseis meses, fornecendo comprovantes de quatro anos de quitação de aluguel em Las Vegas. Não tive tempo de me deter nisso tudo, mas logo vou ter.
Puxei um bloco de anotações na pasta e escrevi algumas perguntas que precisava fazer a Andre La Cosse em nossa próxima conversa.
— O.k., o que mais? — perguntei. — Você foi ao Beverly Wilshire ontem?
— Fui. Mas, antes de passar a isso, vamos falar sobre o apartamento na Franklin.
Assenti. O relatório era dele. Podia fazer como achasse melhor.
— Vamos começar pelo incêndio. A primeira chamada de emergência ocorreu à 00h51 de domingo, quando os alarmes de fumaça no corredor dispararam e os vizinhos saíram dos seus apartamentos e viram a fumaça por baixo da porta da vítima. O fogo destruiu completamente a sala, onde o corpo foi localizado, e danificou muito a cozinha e os dois quartos. Os detectores de fumaça do apartamento evidentemente não dispararam, e o motivo está sendo investigado.
— E quanto ao sistema de sprinkler?
— Não tem sistema de sprinkler. Como é um edifício antigo, não era obrigatório. Agora, pelo que consegui descobrir lá no corpo de bombeiros, houve duas investigações para essa morte.
— Duas? — perguntei.
Parecia o tipo de coisa que eu poderia usar.
— Isso mesmo. A polícia e os peritos do corpo de bombeiros classificaram como acidental, concluindo que a vítima adormeceu no sofá enquanto fumava. O fator que propagou as chamas foi a blusa que a vítima estava usando, de poliuretano. Eles só mudaram de ideia depois do exame inicial do legista. O que sobrou do corpo foi ensacado e etiquetado no local e levado para a autópsia.
Cisco olhou para suas anotações, que haviam sido rabiscadas em uma caderneta que parecia pequena em sua enorme mão esquerda, antes de continuar:
— Uma assistente do legista, uma tal de Celeste Frazier, realizou um exame preliminar do corpo e determinou que o hioide estava fraturado em dois lugares. Isso mudou as coisas bem rápido.
Olhei para Lorna e percebi que ela não estava entendendo.
— O hioide é um ossinho em forma de ferradura que protege a traqueia.
Toquei a frente do meu pescoço para ilustrar.
— Se está quebrado, significa que houve um traumatismo na parte frontal do pescoço. Ela foi sufocada, estrangulada.
Lorna fez um gesto, agradecendo, e mandei Cisco continuar.
— Então eles voltaram atrás, enviaram a perícia e agora temos uma investigação de assassinato em pleno andamento. Os investigadores bateram de porta em porta, e eu conversei com muitos moradores que também foram interrogados por eles. Várias pessoas escutaram uma discussão no apartamento, lá pelas onze da noite, no domingo. Vozes alteradas. Um homem e uma mulher discutindo por causa de dinheiro.
Ele consultou sua caderneta outra vez para pegar um nome.
— Uma tal srta. Annabeth Stephens mora em frente ao apartamento da vítima, do outro lado do corredor, e estava espiando pelo olho mágico quando um homem saiu, depois da discussão. Ela disse que isso se passou entre onze e meia e meia-noite, porque o noticiário tinha terminado quando ela foi para a cama, à meia-noite. Mais tarde ela identificou Andre La Cosse, quando os policiais mostraram fotos de suspeitos.
— Ela disse isso para você?
— Disse.
— Sabia que você estava trabalhando para o cara que ela identificou?
— Eu falei que estava investigando a morte no apartamento da frente e ela conversou comigo por livre e espontânea vontade. Só não dei mais detalhes sobre mim porque ela não perguntou.
Balancei a cabeça, aprovando Cisco. Ser capaz de extrair o relato de uma testemunha-chave da promotoria tão no começo do jogo era um bom trabalho de sua parte.
— Qual a idade da srta. Stephens?
— Uns sessenta e poucos. Acho que ficou grudada naquele olho mágico um bom tempo. Todo prédio tem uma bisbilhoteira dessas.
Jennifer interrompeu.
— Se ela diz que ele foi embora antes da meia-noite, como a polícia explica que o detector de fumaça no corredor demorou ainda mais cinquenta minutos para soar?
Cisco deu de ombros outra vez.
— Pode haver mais de uma explicação. A primeira: levou algum tempo para a fumaça passar por baixo da porta. As chamas podiam estar queimando dentro do apartamento esse tempo todo. A segunda: ele começou o incêndio com algum tipo de macete para retardar as chamas e ter mais tempo para sair e escapar. E a terceira: uma combinação das duas alternativas anteriores.
Cisco levou a mão ao bolso e apanhou um maço de cigarros e fósforos. Tirou um cigarro do maço e enfiou entre a cartela de fósforos dobrada.
— O truque mais antigo do ramo — disse. — Você acende o cigarro e ele queima devagar até chegar nos fósforos. Os fósforos acendem e inflamam o material usado para propagar o fogo. Significa de três a dez minutos de vantagem, dependendo do cigarro usado.
Balancei a cabeça mais para mim mesmo do que para Cisco. Eu estava começando a me dar conta do processo que o estado queria montar contra meu cliente e já estava trabalhando estratégias e jogadas. Cisco continuou.
— Sabia que por lei, na maioria dos estados, toda marca é obrigada a garantir uma queima de três minutos a partir do momento em que o cigarro é aceso e é deixado de lado? É por isso que a maioria dos incendiários usa cigarros estrangeiros.
— Isso é ótimo — eu disse. — Podemos voltar ao caso? O que mais você conseguiu no prédio?
— Por enquanto, não muito mais — disse Cisco. — Mas vou voltar lá. Em vários apartamentos, não tinha ninguém em casa quando eu toquei a campainha.
— Isso porque espiaram pelo olho mágico e ficaram com medo do que viram.
Disse isso por brincadeira, mas tinha lá seu fundo de verdade. Cisco andava em uma Harley Davidson e se vestia a caráter. Seu traje costumeiro consistia de jeans preto, coturno e uma camiseta preta colada no corpo, com um colete de couro por cima. Com seu tamanho intimidador, as roupas e a expressão penetrante do olhar através de um olho mágico, não me surpreendia que algumas pessoas não atendessem a campainha. Na verdade, o que me deixou mais espantado foi ele relatar a cooperação de uma testemunha. Por isso fiz de tudo para me certificar de que a cooperação tivesse sido completamente voluntária. A última coisa que eu queria era uma testemunha dando para trás quando estivesse no tribunal. Eu avaliava pessoalmente uma a uma.
— Quer dizer, quem sabe você podia pensar em usar uma gravata de vez em quando — acrescentei. — Tenho uma coleção enorme de gravatas com presilha, sabe.
— Não, obrigado — respondeu Cisco, em um tom seco. — Podemos passar ao hotel agora ou você quer continuar pegando no meu pé?
— Calma aí, grandão, só estou brincando. Fala pra gente sobre o hotel. Você teve uma noite cheia.
— Trabalhei até tarde. Aliás, no hotel as coisas ficaram quentes.
Ele abriu o laptop e digitou algumas teclas enquanto falava, seus dedos enormes castigando o teclado.
— Consegui a cooperação da equipe de segurança do Beverly Wilshire sem usar gravata nenhuma. Eles...
— Tudo bem, tudo bem — eu disse. — Chega desse papo de gravata.
— Beleza.
— Continua. O que eles contaram por lá?
6
Cisco disse que o importante não foi o que contaram e sim o que mostraram no hotel.
— A maioria dos ambientes comuns no hotel é vigiada por câmeras, 24 horas por dia, sete dias por semana — disse. — Por isso, eles têm gravada quase toda a visita da vítima ao hotel no domingo à noite. Eles me forneceram algumas cópias por um valor simbólico, que vou registrar como despesas.
— Sem problema — disse eu.
Cisco girou o computador sobre a mesa para que todos pudéssemos ver a tela.
— Usei um programa de edição básico e juntei os vários ângulos em uma tomada contínua, em tempo real. Dá para seguir ela o tempo todo que esteve lá.
— Põe para rodar, Scorsese.
Ele acionou o PLAY e começamos a assistir o vídeo. A gravação era em preto e branco e não tinha som. A imagem era um pouco pixelizada, mas não a ponto de obscurecer os rostos ou de tornar impossível a identificação. Começava com uma tomada de cima no saguão do hotel. Um marcador de hora no alto apontava 21h44. Embora o saguão estivesse movimentado com hóspedes chegando para se registrar e pessoas circulando, foi bem fácil identificar Gloria/Giselle caminhando pelo saguão em direção à área dos elevadores. Estava usando um vestido preto que caía até a altura do tornozelo, não muito provocante, e parecia totalmente à vontade, como se estivesse em casa. Carregava uma sacola de compras, o que ajudava a passar a imagem de pessoa integrada ao ambiente.
— É aquela ali? — perguntou Jennifer, apontando para uma mulher sentada em um divã circular, mostrando parte das coxas.
— Óbvio demais — eu disse. — É aquela outra ali.
Apontei para o lado direito da tela e acompanhei Gloria. Ela sorriu para um segurança que estava na entrada da área dos elevadores e passou por ele sem se deter.
Logo o ângulo mudou e tínhamos a tomada de cima na área dos elevadores. Gloria verificou e-mails no celular enquanto esperava. Não demorou para que o elevador chegasse e ela entrasse.
A tomada seguinte era a da câmera do elevador. Gloria entrou e apertou o 8. Enquanto subia, abriu a bolsa e olhou dentro. A visão que tínhamos não permitia ver o conteúdo.
Quando chegou ao oitavo andar, saiu do elevador e a tela ficou preta.
— O.k., é aqui que a gente fica no escuro — disse Cisco. — Não há câmeras de segurança nos corredores do hotel.
— Por que não? — eu perguntei.
— Disseram que era política de privacidade. Filmar quem entra e quem sai de cada quarto pode render mais problemas do que compensações em casos de divórcio, intimações e todas essas coisas.
Fiz um gesto de aprovação. A explicação parecia válida.
A tela voltou à vida, mostrando Gloria no elevador para descer. Notei no marcador de horário que cinco minutos haviam se passado, o que aparentemente significava que Gloria batera à porta do quarto 837 e esperara no corredor por um bom tempo.
— O hotel dispõe de algum sistema de telefonia interna nos andares? — perguntei. — Ela passou esse tempo todo batendo à porta ou ligou para a recepção e perguntou sobre o quarto?
— Nenhum sistema de telefonia — disse Cisco. — Continua assistindo.
Uma vez de volta ao térreo, Gloria saiu do elevador e caminhou até um dos telefones do hotel sobre uma mesa encostada na parede. Fez uma ligação e passou a conversar com alguém.
— Isso é ela pedindo para ligar para o quarto — disse Cisco —, antes de ser informada pela telefonista que não tinha nenhum Daniel Price registrado no hotel nem ninguém no 837.
Gloria desligou o telefone e pude perceber por sua linguagem corporal que estava irritada e frustrada. Viagem perdida. Começou a andar para a saída do saguão, movendo-se mais depressa do que quando chegara.
— Agora olha só isso — disse Cisco.
Gloria estava na metade do caminho quando um homem surgiu na tela cerca de dez metros atrás dela. Usava um chapéu fedora e estava com a cabeça baixa, olhando para o visor do celular. Parecia se dirigir também à porta de entrada e, afora estar com as feições ocultas pelo chapéu e o rosto inclinado para baixo, não havia nada de suspeito nele.
Gloria de repente mudou de ideia e foi para o balcão da recepção. Isso levou o homem atrás dela a também mudar desajeitadamente de direção. Ele se virou, foi até o divã circular e sentou.
— Ele está seguindo ela? — perguntou Lorna.
— Espera só — disse Cisco.
Na tela, Gloria foi até a recepção, aguardou um pouco enquanto um hóspede era atendido e depois fez uma pergunta ao recepcionista, que digitou algo no teclado, olhou para a tela e balançou a cabeça. Estava obviamente lhe dizendo que não havia nenhum hóspede com o nome Daniel Price registrado no hotel. Durante esse tempo todo, o homem de chapéu permanecera sentado, cabisbaixo, com a aba escondendo o rosto. Continuava olhando para o celular, mas não fazia nada com o aparelho.
— Aquele cara não está digitando nada — disse Jennifer. — Está só olhando para o celular.
— Ele está olhando para Gloria — eu corrigi. — Não para o telefone.
Era impossível afirmar com certeza absoluta por causa do chapéu, mas parecia evidente que Gloria tinha alguém na sua cola. Depois da consulta na recepção, ela se virou e voltou caminhar para a saída do saguão. Foi quando puxou um celular da bolsa e apertou alguma tecla de discagem rápida. Antes de chegar à saída, trocou algumas palavras no celular e deixou o aparelho cair outra vez na bolsa. Então saiu do hotel.
Antes que ela tivesse ido embora, o homem do chapéu já tinha se levantado e atravessava o saguão atrás dela. O homem apertou o passo assim que ela cruzou a porta de saída, o que pareceu confirmar que a brusca mudança de rumo de Gloria para o balcão da recepção expusera alguém que a perseguia.
Depois que o homem do chapéu saiu do saguão, a tomada passou para a câmera da calçada da frente. No espaço do valet, um Lincoln Town Car preto como o meu havia parado diante de Gloria, que abriu a porta traseira, jogou a sacola de compras no banco e entrou. O carro começou a andar e sumiu do campo de visão. O homem do chapéu atravessou as faixas de valet e também desapareceu do enquadramento, sem erguer em momento algum a cabeça, de modo que nem sequer o nariz pôde ser visto.
O vídeo terminou e todos ficamos calados por um longo momento, repassando mentalmente as imagens.
— Então? — Cisco perguntou, quebrando enfim o silêncio.
— Então ela foi seguida — eu disse. — Imagino que você tenha perguntado sobre o cara no hotel?
— Perguntei e o cara não trabalha lá. Eles não tinham nenhum segurança à paisana naquela noite. Esse sujeito, seja lá quem for, era de fora.
Pensei por um momento no que acabara de ver.
— Ele não estava atrás dela quando ela entrou — disse eu. — Isso não quer dizer que já devia estar lá?
— Tenho uma gravação dele também — disse Cisco.
Virando o computador mais uma vez para si, ele teclou outros comandos e preparou um segundo vídeo. Depois virou a tela para nós e apertou o PLAY, se encarregando da narração:
— Tudo bem, esse é ele sentado no saguão às nove e meia. Já estava no hotel antes dela. Ele fica desse jeito até ela chegar. Tenho uma gravação lado a lado disso.
Voltou a girar o computador e em seguida preparou os vídeos lado a lado, antes de virar a tela para nós outra vez. As diferentes gravações das câmeras foram sincronizadas nos marcadores de horário, de modo que pudemos ver Gloria atravessar o saguão e o homem ir atrás dela, o chapéu virando quando ela passou para o outro lado do ambiente. O sujeito esperou que ela voltasse do oitavo andar e a seguiu até a rua, após a súbita parada no balcão da recepção.
Com o fim da gravação, Cisco fechou o laptop.
— O.k., então quem é ele? — perguntei.
Cisco abriu as mãos, uma envergadura de mais de dois metros.
— Só o que posso dizer é que não trabalha no hotel — disse.
Fiquei de pé e comecei a andar de um lado para o outro da sala, sentindo adrenalina no corpo. O homem do chapéu era um mistério, e mistérios sempre jogam a favor da defesa. Mistérios são pontos de interrogação, que levam à dúvida razoável.
— Sabe se a polícia já passou no hotel? — perguntei.
— Até ontem à noite, não — disse Cisco. — Eles já apresentaram o caso para a promotoria. Provavelmente não se interessaram pelo que ela estava fazendo horas antes do crime.
Fiz um gesto de discordância. Era uma estupidez subestimar a promotoria.
— Não se engane, eles vão se interessar.
— Ele poderia estar a serviço de Gloria? — perguntou Jennifer. — Sabe, tipo um segurança ou algo assim?
Fiz um movimento com a cabeça.
— Boa questão. Vou fazer essa pergunta para nosso cliente, antes de ele comparecer à primeira vez ao tribunal. Também vou perguntar sobre o Lincoln preto, ver se Gloria tinha um motorista. Mas tem algo nesse vídeo... alguma coisa que não bate. Não parece que esse cara está trabalhando para ela. É como se ele soubesse das câmeras e ficasse de propósito com chapéu e de cabeça baixa. Ele não queria ser pego pelas câmeras.
— Tem também o fato de estar lá antes que ela chegasse — acrescentou Cisco. — Estava esperando por ela.
— Ele agiu como se soubesse que ela ia subir e voltar em seguida — acrescentou Lorna. — Sabia que não tinha ninguém no quarto lá em cima.
Parei de andar de um lado para outro e apontei para o laptop de Cisco.
— O cara só pode ser ele — eu disse. — O homem de chapéu é Daniel Price. Precisamos descobrir quem ele é.
— Ãhn, posso interromper por um momento? — perguntou Jennifer.
Fiz que sim, passando a palavra.
— Antes que a gente fique todo animado com o tal do homem misterioso de chapéu, não podemos esquecer que La Cosse admitiu para a polícia que estava no apartamento da vítima depois da perseguição ou não do cara de chapéu e que discutiu e colocou a mão na garganta dela. Então, em vez de nos preocuparmos com o que aconteceu antes de nosso cliente estar no apartamento dela, será que não devíamos focar no que ele fez ou deixou de fazer quando estava realmente no local?
— Isso é de suma importância — respondi depressa. — Mas tudo precisa ser examinado. Temos que encontrar esse cara e descobrir o que ele estava fazendo. Cisco, será que você consegue ampliar um pouco a busca? Esse hotel fica bem no fim da Rodeo Drive. Deve ter mais câmeras espalhadas pelo quarteirão. Quem sabe a gente consegue rastrear o cara entrando em um carro. Com sorte, conseguimos até uma placa. O rastro dele não esfriou completamente.
— Deixa comigo. — disse Cisco.
Olhei meu relógio. Eu precisava ir para o centro, para a audiência preliminar.
— Certo, o que mais?
Ninguém disse nada, então Lorna ergueu a mão, timidamente.
— Lorna, o que foi?
— Só para lembrar, hoje, às duas, você tem a conferência de status no Departamento Trinta, sobre Ramsey.
Resmunguei. Outra de minhas clientes ilustres, Deirdre Ramsey, era acusada de ajudar e incitar uma variedade de crimes em um dos casos mais estranhos a cair nas minhas mãos ou nas de qualquer advogado em anos. Ela fora o centro das atenções pela primeira vez um ano antes, vítima anônima de uma horrível agressão durante o roubo de uma loja de conveniência. Os relatórios iniciais davam conta de que a mulher de vinte e seis anos fora uma das quatro clientes e dois empregados presentes no estabelecimento quando dois homens mascarados, fortemente armados, entraram para roubar o lugar. Os clientes e os empregados foram levados para um depósito e trancados enquanto os bandidos usavam um pé de cabra para arrombar o cofre da loja.
Depois de arrombar o cofre, os bandidos voltaram ao depósito e mandaram os reféns entregarem carteiras e joias e tirarem a roupa. Enquanto um dos homens vigiava o grupo, o segundo estuprou Ramsey na frente de todos. Os indivíduos então fugiram da loja, levando um total de duzentos e oitenta dólares e duas caixas de balas, além dos pertences das vítimas. Por meses, o crime permaneceu sem solução. A polícia ofereceu uma recompensa de vinte e cinco mil dólares por informações que levassem à prisão dos suspeitos, e Ramsey entrou com um processo por danos morais contra a rede responsável pela loja de conveniências, alegando que o estabelecimento não oferecia proteção adequada para os clientes. Como a última coisa que queriam ver era Ramsey testemunhando sobre seu calvário na frente de um júri, a alta cúpula da rede em Dallas votou por um acordo, pagando a Ramsey duzentos e cinquenta mil dólares pelo lamentável episódio.
O dinheiro é o maior destruidor de relacionamentos. Duas semanas depois de Ramsey se mandar com a grana, os investigadores do caso receberam a ligação de uma mulher perguntando se a recompensa da polícia continuava de pé. Quando foi informada de que sim, ela contou uma história surpreendente. Disse que o acordo de duzentos e cinquenta mil era o verdadeiro objetivo do roubo e que o bandido e estuprador era na verdade o namorado de Ramsey, Tariq Underwood. O estupro foi parte de um golpe bem elaborado e consensual, segundo a delatora, um esquema de enriquecimento planejado pela própria Ramsey.
Como se revelaria, a autora do telefonema era a ex-melhor amiga de Ramsey, que achava uma injustiça ter ficado de fora da partilha do dinheiro do golpe. Escutas autorizadas pela justiça foram feitas, e não tardou para que Ramsey, seu namorado e seu parceiro de golpe fossem presos. O Gabinete da Defensoria Pública assumiu a defesa de Underwood, criando um conflito com a defesa de Ramsey, e desse modo seu caso veio parar nas minhas mãos. Era um caso de baixo custo e com pouca probabilidade de vitória, mas Ramsey se recusou a fazer acordo: queria ir a julgamento e não tive escolha senão fazer sua vontade. A coisa não terminaria bem.
Ser lembrado daquela audiência acabou com toda a empolgação que começava a sentir pelo caso La Cosse. Meu muxoxo não passou despercebido por Lorna.
— Quer que eu tente adiar? — ela propôs.
Pensei a respeito. Fiquei tentado.
— Quer que eu assuma? — perguntou Jennifer.
Claro que ela se ofereceria. Ela aceitaria qualquer caso criminal que eu lhe passasse.
— Não, é uma furada — falei. — Não posso fazer isso com você. Lorna, veja se consegue adiar. Prefiro continuar com La Cosse hoje, se puder.
— Eu aviso o que conseguir.
Todo mundo pegava um último donut ou caminhava para a porta.
— O.k., então todos têm suas tarefas e sabem o que fazer — eu disse. — Mantenham contato e me informem o que descobrirem.
Servi outra xícara de café para mim e fui o último a sair. Earl estava esperando com o carro no estacionamento dos fundos. Pedi que seguisse para o centro, para o tribunal, e que ficasse longe da via expressa. Queria chegar a tempo de conversar com La Cosse antes que ele fosse conduzido perante o juiz.
7
Eu tinha quinze minutos com meu cliente antes de ele ser levado pela primeira vez diante do juiz, na sala do tribunal, ao lado de vários outros detentos. La Cosse estava em uma cela abarrotada, anexa ao tribunal de audiências preliminares, e tive de me aproximar das barras e sussurrar para que os demais presos não escutassem.
— Andre, a gente não tem muito tempo — eu disse. — Daqui a alguns minutos você vai ser levado para ver o juiz no tribunal. Vai ser jogo rápido, eles vão ler as acusações e marcar uma data para a audiência.
— Eu não vou declarar que sou inocente?
— Não, ainda não. Isso é só uma formalidade. Depois que você é preso, eles têm 48 horas para colocar você na frente de um juiz e prosseguir com o caso. Não vai demorar nada.
— E quanto à fiança?
— Você não vai conseguir pagar a fiança a menos que a barra de ouro que mandou pra gente seja só uma de muitas. Você é acusado de homicídio. É claro que o juiz vai determinar uma fiança, mas por baixo deve ficar em uns dois milhões, talvez dois e meio. Isso significa uma caução de duzentos mil dólares em um fiador judicial. Você tem todo esse ouro? Não vai receber o dinheiro de volta, sabe disso.
Seus ombros afundaram, e ele pressionou a testa contra as barras que nos separavam.
— Não aguento este lugar.
— Eu sei, mas no momento você não tem escolha.
— Você disse que conseguia me transferir para outro módulo?
— Claro, posso fazer isso. É só mandar que consigo para você um status de separação.
— Faz isso. Não quero voltar para lá.
Inclinei mais a cabeça e sussurrei ainda mais baixo.
— Aconteceu alguma coisa com você ontem à noite?
— Não, mas são uns animais, ali dentro. Não quero ficar lá.
Não lhe contei que, independentemente do módulo onde estivesse, não iria gostar. No sistema carcerário, os animais estavam em toda parte.
— Vou levar o pedido ao juiz — eu disse. — Agora quero perguntar algumas coisas sobre o caso antes de irmos lá pra dentro, o.k.?
— Pode falar. Aliás, você recebeu o ouro?
— Sim, estou com o ouro. É mais do que pedi, mas vai tudo para sua defesa. O que não for usado e sobrar, volta para você. Tenho um recibo aqui comigo, mas acho que você não vai querer carregar pela cadeia um pedaço de papel mostrando que tem dinheiro.
— Não, claro que não. Guarda para mim, por enquanto.
— Tudo bem. Agora, vamos às perguntas. Você sabe se Giselle tinha algum tipo de segurança?
Ele balançou a cabeça como se não tivesse certeza, mas então respondeu:
— Giz tinha um alarme antirroubo, mas não sei se chegou a usar e...
— Não, estou falando de pessoas. Ela contava com um guarda-costas ou algum segurança quando fazia um programa, tinha um encontro agendado ou seja lá o que for?
— Ah, não, pelo menos nada que tivesse me contado. Tinha um motorista para quem podia ligar em caso de problema, mas em geral ele só ficava no carro.
— Minha próxima pergunta é sobre o motorista. Quem é e como faço para encontrar?
— O nome é Max, era um amigo dela. Tinha um trabalho diferente durante o dia e dirigia para ela à noite. Ela praticamente só trabalhava à noite.
— Max o quê?
— Não sei o sobrenome. Nunca cheguei a conhecer o cara, que ela só mencionava de vez em quando. Dizia que era seu gorila.
— Mas ele não entrava com ela.
— Não que eu saiba.
Notei que outro prisioneiro circulava atrás do ombro esquerdo de meu cliente. Estava tentando escutar a conversa.
— Vamos mais para lá — eu disse.
Andamos até o outro lado da cela, separados pelas barras. O bisbilhoteiro ficou onde estava.
— O.k. — disse eu. — Me conta sobre o telefonema que você deu para o hotel para checar o cliente da Julia Roberts. Como o negócio todo funcionou?
Olhei meu relógio.
— Seja breve — acrescentei.
— Bom, ele achou o site e entrou em contato. Eu falei os preços e...
— Isso foi feito por e-mail?
— Não, ele ligou. Do hotel. Eu vi no identificador de chamada.
— Certo, continua. Ele ligou do hotel, e depois?
— Eu falei os preços e ele disse que tudo bem. Aí a gente marcou pras nove e meia da noite. Ele me passou o número do quarto e eu expliquei que precisava ligar de volta para confirmar. Ele disse que não tinha problema, então eu liguei.
— Você ligou para o hotel e pediu para falar com o quarto 837?
— Isso mesmo. A recepção me passou para o 837 e era o mesmo cara. Aí eu confirmei para as nove e meia.
— O.k., e você nunca tratou com esse cara antes?
— Não, nunca.
— Como ele pagou?
— Não pagou. Por isso briguei com a Giz. Ela me contou que ele não pagou porque não tinha ninguém no quarto. Me disse que a recepção informou que o cara tinha saído do hotel naquele dia. Eu sabia que ela estava me enrolando porque eu liguei para o sujeito no quarto.
— Certo, certo, mas você combinou o pagamento com ele? Sabe como é, dinheiro ou cartão?
— Combinei, ele disse que ia pagar em dinheiro. Por isso que fui até a casa da Giz, para pegar minha parte. Se o pagamento tivesse sido por cartão, eu teria cuidado da transação e retirado minha parte. Como ele pagou em dinheiro, eu quis pegar minha parte antes que ela tivesse tempo de torrar ou perder toda a grana.
As práticas do negócio de La Cosse agora estavam ficando mais claras para mim.
— E você sempre fez desse jeito?
— Sempre.
— Era rotina.
— Sim, sempre a mesma coisa.
— E a voz do cara? Você não reconheceu como a de um cliente antigo?
— Não, não reconheci. Além do mais, ele disse que era um cliente novo. O que isso tem a ver?
— Pode ser que nada ou pode ser que tudo. Com que frequência você entrava em contato com Giselle?
La Cosse encolheu os ombros.
— Todo dia, por mensagem de texto. A gente fazia muita coisa por mensagem de texto, mas quando eu precisava de uma resposta rápida ligava para o celular dela. Acho que a gente conversava umas duas vezes por semana, talvez.
— E você a via com muita frequência?
— Acho que uma ou duas vezes por semana, quando tinha um cliente que pagava em dinheiro. Eu aparecia para pegar minha parte, depois. Às vezes, a gente ia tomar café da manhã e eu pegava meu dinheiro nessa hora.
— E ela nunca passou você pra trás?
— A gente teve uns problemas antes.
— Como assim?
— Com a Giz, eu percebi que dinheiro era só para gastar. Quanto mais eu deixava meu dinheiro na mão dela, maior a chance da grana evaporar. Eu nunca esperava muito tempo para pegar minha parte.
Vi a fila de presos que haviam acabado de comparecer perante o juiz voltando da sala do tribunal para outra cela. A vez de La Cosse chegaria rápido.
— O.k., espera aí um segundo.
Parei e abri minha pasta no piso frio. Abaixei para pegar o documento que precisava que ele assinasse e uma caneta, antes de voltar a levantar.
— Andre, isso é um formulário de conflito de interesse. Preciso que assine, se quiser ser representado por mim. Esse papel diz que você reconhece que a vítima de que está sendo acusado de assassinar foi uma antiga cliente minha. Você está abrindo mão de qualquer alegação futura de que eu tinha um conflito de interesse ao representar você. Está afirmando que por você tudo bem. Olha rápido e assina, antes que vejam você com a caneta.
Passei o documento e a caneta pelas barras e La Cosse assinou. Ele deu uma olhada rápida na folha e me devolveu.
— Quem é Gloria Dayton?
— Giselle. Esse era o nome verdadeiro dela.
Abaixei e pus o papel de volta na pasta.
— Mais duas coisas — disse eu, me levantando. — Você falou ontem que ia entrar em contato com a cliente que recomendou Giselle. Você já fez isso? Preciso falar com ela.
— Já, ela disse que tudo bem. Pode ligar para ela. O nome é Stacey Campbell.
Ele me passou o número e eu anotei na palma da mão.
— Você sabe o telefone de cor? A maioria não se lembra mais de número nenhum, porque fica tudo salvo na memória do celular.
— Se eu salvasse o telefone de todo mundo no celular, a essa altura a polícia estaria com todos eles. A gente muda de aparelho e de número com frequência, e eu guardo tudo na memória. É o único jeito seguro de fazer isso.
Balancei a cabeça. Eu estava impressionado.
— Tudo bem, então é isso. Vamos lá falar com o juiz.
— Você disse duas coisas.
— Ah, é.
Levei a mão ao bolso do paletó e tirei uma pilha pequena de cartões de visita. Passei a ele através das barras.
— Põe isso aqui ali naquele banco — falei.
— Você está brincando — ele disse.
— Não, as pessoas estão sempre procurando um bom advogado. Principalmente quando saem daí e conhecem o defensor público que está cuidando do caso delas junto com outros trezentos. Espalha um pouquinho no banco e a gente se vê na sala do tribunal.
— Como quiser.
— E não se esqueça que, enquanto estiver preso, você pode conversar com quem quiser sobre seu advogado, mas não comenta nada com ninguém sobre o caso. Com ninguém, porque a coisa volta para morder seu calcanhar. Pode ter certeza.
— Entendi.
— Beleza.
O tribunal de audiências é o lugar onde o sistema de justiça criminal vira um frenesi alimentar, onde quem fica preso na rede é levado para o mercado. Saí da área de detenção e entrei na turba de advogados de defesa, promotores, investigadores e guardas, todos se mexendo em uma dança não coreografada presidida pela juíza Mary Elizabeth Mercer. Era o trabalho dela zelar pela garantia constitucional de que todo réu fosse levado sem demora à justiça para ser informado das acusações e designado a um defensor público, caso não tivesse obtido um advogado por conta própria. Na prática, isso significava que cada acusado tinha apenas alguns minutos perante o juiz antes de iniciar sua longa e muitas vezes tortuosa jornada pelo sistema.
As mesas no tribunal do primeiro comparecimento eram grandes como mesas de salas de reuniões, de modo que vários advogados pudessem sentar ao mesmo tempo enquanto se preparavam para que seus casos e clientes fossem chamados. Outros tantos advogados de defesa esperavam e andavam de um lado para o outro em um espaço que ficava à esquerda da cadeira da juíza, para o qual os réus eram trazidos das celas em grupos de seis. Esses advogados ficariam com seus clientes durante a leitura das acusações e para a marcação de uma audiência preliminar, na qual o acusado faria sua declaração formal de inocência ou culpa. Para alguém de fora — e isso incluía tanto os réus como os familiares, espremidos nos bancos de madeira da plateia — era difícil acompanhar ou entender o que estava acontecendo. Dava para saber apenas que aquilo era o sistema de justiça em funcionamento e que, a partir daquele momento, ele passaria a governar o futuro de suas vidas.
Fui até a mesa do assistente do tribunal. A relação de chamada da custódia estava afixada em um quadro, e o assistente já riscara os primeiros trinta nomes da lista. A juíza Mercer avançava com eficiência no turno da manhã. Vi o nome de Andre La Cosse abaixo do número 38. Isso significava que ainda havia um grupo de seis antes de ele ser chamado, o que me dava tempo de procurar um lugar para sentar e verificar os recados.
Todas as nove cadeiras da mesa da defesa estavam ocupadas. Olhei para a fileira de cadeiras encostadas junto à balaustrada que separava a plateia da área oficial do tribunal e vi uma brecha. Quando me encaminhava para lá, reconheci um dos homens ao lado da cadeira vaga. Não era advogado, e sim policial. Por coincidência, durante a reunião de equipe daquela manhã, nossa antiga rixa fora mencionada. Ele também me reconheceu e sorriu com escárnio quando sentei ao seu lado.
Conversamos aos sussurros, evitando chamar a atenção da juíza.
— Ora, ora, se não é Mickey Mouth, o grande orador dos tribunais, o paladino dos vagabundos.
Ignorei a alfinetada. Estava acostumado com a provocação dos tiras.
— Detetive Lankford, quanto tempo.
Lee Lankford fora um dos detetives do Departamento de Polícia de Glendale que investigaram o assassinato de meu antigo colaborador, Raul Levin. Havia muitos motivos para o esgar, os insultos de Lankford e o atrito que obviamente continuava existindo entre nós. Em primeiro lugar, Lankford parecia dotado de um ódio crônico contra todos os advogados. Em segundo, ainda existia a pequena rusga que surgiu quando ele me acusou equivocadamente pela morte de Levin. Para finalizar, também não contribuiu em nada para nossa relação o fato de eu ter esfregado o erro na sua cara, resolvendo o caso para ele.
— Está longe de Glendale — comentei, enquanto tirava o celular do bolso. — Pensei que vocês tinham audiências suficientes por lá.
— Como sempre, Haller, você está desatualizado. Eu não trabalho mais para o Departamento de Polícia de Glendale. Me aposentei.
Acenei como se achasse isso uma coisa boa, depois sorri.
— Não me diga que passou para o lado sombrio. Está trabalhando para um desses caras da defesa?
Lankford fez cara de nojo.
— Sem chance. Eu nunca trabalharia pra um desses seus filhos da puta. Agora trabalho para o Gabinete da Promotoria. Por sinal, acabou de vagar uma cadeira ali na mesa grande. Por que não vai lá sentar com sua turma?
Não pude deixar de sorrir. Lankford não mudara nada desde a última vez que o vi, há cerca de sete anos. Estava achando até meio divertido mexer com ele.
— Não, obrigado. Está bom aqui.
— Fantástico.
— E a detetive Sobel? Continua no departamento?
A parceira de Lankford na época fora meu canal de comunicação. Ela não vivia cheia de pedras na mão contra advogados de defesa, como ele.
— Continua lá e vai muito bem. Agora me diga, qual desses honrados cidadãos passeando de bracelete é o seu cliente?
— Ah, não, nada disso. O meu só vem na próxima leva. É uma figura de nível superior, um cafetão acusado de matar uma das garotas. História comovente e edificante, Lankford.
Lankford recostou ligeiramente na cadeira e percebi uma expressão de surpresa.
— Não me diga — ele falou. — La Cosse?
— Isso mesmo. É seu caso, também?
Um sorriso desdenhoso se abriu no rosto dele.
— Pode apostar. Agora é que vou aproveitar cada minuto.
Os investigadores da promotoria não passavam de coadjuvantes em um caso. Os investigadores principais continuavam sendo os detetives da polícia, que trabalhavam com base na cena do crime. Mas, quando o caso virava processo e passava do Departamento de Polícia para o Gabinete da Promotoria, seus investigadores eram usados para ajudar nos preparativos para o julgamento. Suas tarefas incluíam localizar e levar testemunhas ao tribunal, e contra-atacar as manobras e as testemunhas da defesa, entre outras coisas. Um verdadeiro balaio de gatos de atividades secundárias. Eles tinham a função de estar preparados para fazer o que fosse necessário antes do julgamento.
Em sua maior parte, os investigadores da promotoria eram ex-tiras. Muitos entre eles eram aposentados, como Lankford, e acumulavam rendimentos, ganhando a aposentadoria de um departamento e um contracheque da promotoria. Um trabalho bom, se você conseguisse a boquinha. O que me parecia incomum era Lankford já ter sido destacado para o caso La Cosse. O réu ainda nem comparecera pela primeira vez perante o juiz e Lankford já estava ali, no tribunal.
— Não consigo entender — eu disse. — Ele foi fichado ontem e você já foi designado para o caso?
— Estou na divisão de homicídio. A gente recebe os casos em rodízio e esse caiu para mim. Eu só queria dar uma olhada no cara, ver com quem estou lidando. E, agora que eu sei quem é o advogado dele, sei exatamente com quem estou lidando.
Ele ficou de pé e virou para me olhar de cima. Notei o distintivo preso no cinto e as botas de couro preto que usava sob a bainha das calças. Um visual meio duvidoso, mas provavelmente ninguém despertaria sua raiva lhe dizendo isso.
— Vai ser divertido — ele disse, e então se afastou.
— Não vai esperar La Cosse aparecer?
Lankford não respondeu. Passou pela divisória e seguiu pelo corredor central em direção à porta de saída, no fundo da sala do tribunal.
Depois de vê-lo sair, fiquei ali parado por alguns momentos, refletindo sobre a ameaça velada e sobre o fato de que agora eu tinha um investigador louco para me foder trabalhando no caso para a promotoria.
Não era um bom começo.
Meu celular vibrou e li a mensagem de texto. Era Lorna trazendo uma notícia animadora, que ajudou a amenizar um pouco o episódio com Lankford.
O tijolo de ouro era pra valer! + de $52 mil depositados na conta de custódia.
Estávamos dentro. Independentemente do que acontecesse, pelo menos eu receberia. Comecei a esquecer Lankford. De repente, vi uma sombra se aproximar e, quando ergui o rosto, dei de frente com um dos guardas de detenção parados diante de mim.
— Você é Haller, certo?
— Sim, sou eu. O que...
Ele jogou uma pilha de cartões de visita em cima de mim. Meus cartões. Os que dera a La Cosse.
— Apronta outra gracinha dessas e nunca mais vai ter permissão de ver um desses imprestáveis que vocês chamam de cliente. Pelo menos não enquanto eu estiver por aqui.
Senti meu rosto ficar vermelho. Vários advogados olhavam para nós. Ainda bem que Lankford não ficara para assistir a cena.
— Entendeu? — perguntou o sujeito.
— Sim, entendi — falei.
— Ótimo — ele disse.
Ele se afastou e comecei a recolher os cartões. Com o fim do show, os outros advogados se viraram e voltaram ao trabalho.
8
Dessa vez, quando saí do tribunal, havia um único Lincoln parado junto à calçada. Todo mundo já tinha se mandado para almoçar. Sentei no banco de trás e pedi a Earl para dirigir até Hollywood. Eu não sabia onde morava Stacey Campbell, mas imaginava que não era no centro. Peguei o celular, olhei o número anotado na mão e liguei. Ela atendeu na mesma hora, com uma voz aveludada e sexy, tudo que eu esperava da voz de uma prostituta.
— Alô, aqui é Starry-Eyed Stacey.
— Ãhn, Stacey Campbell?
A suavidade e a sensualidade da voz sumiram e deram lugar a um tom seco, com um leve toque de fumante.
— Quem está falando?
— Meu nome é Michael Haller. Sou advogado de Andre La Cosse. Ele me passou seu contato e disse que você concordou em conversar sobre Giselle Dallinger.
— O negócio é que não quero ser obrigada a comparecer em juízo nem nada.
— Não é essa minha intenção. Só quero conversar com alguém que conhecia Giselle e possa me falar sobre ela.
Silêncio.
— Sra. Campbell, seria possível eu dar uma passada aí ou a gente marcar a conversa em algum lugar?
— Eu encontro você. Não quero ninguém vindo aqui.
— Tudo bem. Pode ser agora?
— Preciso trocar de roupa e escolher uma peruca.
— Que horas e onde?
Novo silêncio. Eu estava prestes a dizer que não precisava escolher peruca nem nada para se encontrar comigo quando ela falou:
— Que tal Toast?
Era meio-dia e dez, mas imaginei que uma mulher com aquela ocupação teria acabado de acordar.
— Ãhn, tudo bem, eu acho. Estou tentando pensar em um lugar para a gente tomar café da manhã — disse eu, pensando que com toast ela se referira a “torrada”.
— Como? Não. Estou falando do Toast, o lugar. É um café na Third, perto de Crescent Heights.
— Ah, o.k. A gente se vê lá. À uma, então?
— Combinado.
— Vou pegar uma mesa e ficar esperando.
Desliguei, disse a Earl para ir ao Toast e então liguei para Lorna para saber se ela conseguira adiar minha conferência de status das duas horas.
— Sem acordo — ela disse. — A Patricia falou que o juiz quer eliminar esse negócio da agenda. Sem mais adiamentos, Mickey. Ele quer você no tribunal às duas.
Patricia era a assistente do juiz Companioni e quem de fato cuidava do tribunal e da agenda. Quando disse que o juiz queria fazer o processo andar, significava na verdade que ela queria ver a coisa andando. Patricia estava cansada dos meus constantes pedidos de protelação enquanto eu tentava convencer minha cliente a aceitar o acordo que a promotoria propusera.
Pensei por um momento. Mesmo que Stacey Campbell chegasse no horário — com o que eu não podia contar —, provavelmente não havia maneira de eu conseguir o que precisava dela e voltar ao tribunal às duas. Eu podia cancelar o encontro no Toast, mas não queria. Os mistérios e as motivações envolvendo Gloria Dayton captavam toda minha atenção no momento. Como eu estava curioso para saber os segredos por trás de seu subterfúgio, me dispersar para tratar de outro caso estava fora de cogitação.
— Tudo bem, vou ligar pra Bullocks e ver se ela continua disposta a me cobrir nessa.
— Nossa, você ainda está no tribunal de audiência?
— Não, estou a caminho de West Hollywood, caso Dayton.
— Você quer dizer caso La Cosse, certo?
— Isso.
— E West Hollywood não pode esperar?
— Não, Lorna, não pode.
— Ela continua enfeitiçando você, não é? Mesmo depois de morta.
— Só quero saber o que aconteceu. Bom, agora preciso ligar pra Bullocks. A gente conversa mais tarde.
Desliguei antes de escutar um sermão sobre meu envolvimento emocional com o trabalho. Lorna sempre teve implicância com minha relação com Gloria, sem conseguir entender que não tinha nada a ver com sexo, que não era algum tipo de fixação por uma prostituta. Tinha a ver com encontrar alguém com quem você de algum modo dividia, ou pelo menos achava que sim, a mesma visão de mundo.
Quando liguei para Jennifer Aronson, ela me contou que estava na biblioteca de direito na Southwestern, revisando as pastas sobre Gloria Dayton que eu lhe dera de manhã.
— Estou indo de caso em caso e tentando me familiarizar com tudo, só isso — disse ela. — A menos que tenha alguma coisa específica para eu procurar.
— Na verdade, não — falei. — Você encontrou alguma anotação sobre Hector Arrande Moya?
— Nada. Acho incrível você lembrar esse nome depois de sete anos.
— Eu me lembro de nomes e até de alguns casos. Mas me esqueço de aniversários e datas importantes. Sempre me dou mal com isso. Bom, você precisa verificar a situação de Moya e...
— Foi a primeira coisa que fiz. Comecei pelos arquivos on-line do L.A. Times e encontrei umas matérias sobre esse caso. Virou federal. Você disse que fez acordo com o Gabinete da Promotoria, mas é óbvio que os federais ficaram com o caso.
Balancei a cabeça. Quanto mais conversava sobre o caso, mais lembrava.
— Isso mesmo, tinha um mandado federal. O Gabinete da Promotoria deve ter sido obrigado a sair do jogo porque Moya caiu na mão do procurador e os federais tinham a primazia.
— Isso também deu mais instrumentos para eles. Existe um agravante por uso de arma nos estatutos federais de tráfico de entorpecentes, o que tornou Moya passível de prisão perpétua, pena que recebeu.
Lembrei dessa parte também. O cara tinha recebido a perpétua tendo pouco mais de cinquenta gramas de coca em seu quarto de hotel.
— Presumo que tenha tido uma apelação. Você checou no PACER?
O Public Access to Court Electronic Records era um banco de dados do governo federal. Ele fornecia acesso eletrônico rápido a todos os documentos arquivados de um caso. Seria um ponto de partida.
— Já, eu chequei no PACER e puxei o sumário do processo. Moya foi sentenciado em 2006. Daí teve o apelo, com a estratégia de sempre, citando provas insuficientes, erros nos requerimentos e pena excessiva. Pasadena barrou. PCA na cabeça.
Ela estava se referindo ao Tribunal de Apelações do Nono Circuito. Sua representação no sul da Califórnia ficava na South Grand Avenue, em Pasadena. As apelações dos casos baseados em Los Angeles eram recebidas pelo tribunal de Pasadena e inicialmente revisadas por uma equipe de triagem com três membros do tribunal de apelações. Essa equipe descartava as apelações que julgava improcedentes e passava as demais para consideração de um grupo composto por três juízes do circuito, que detinham jurisdição sobre a região oeste do país. Ao mencionar que Moya fora barrado em Pasadena com um PCA, Aronson queria dizer que a equipe de juízes emitira um veredicto per curiam affirmed, isto é, um parecer sumário por unanimidade, sem arrazoado, referendando a decisão da instância inferior.
O próximo passo de Moya foi entrar com uma petição de habeas corpus no U.S. District Court, visando ao indulto pós-condenação, uma tentativa com pouca probabilidade de sucesso para a anulação da sentença. Era algo como tentar uma cesta de três arremessando com uma mão só. O pedido seria sua última tentativa de obter um novo julgamento, a menos que houvesse uma surpreendente reviravolta e uma nova e bombástica prova fosse apresentada.
— E quanto ao vinte e dois, cinquenta e cinco? — perguntei, usando a designação do Código Civil dos Estados Unidos para uma petição de habeas corpus.
— Também não deu em nada — disse Aronson. — Foi alegado que o réu nunca quis negociar um pedido de acordo e ele dançou.
— Quem era o advogado de defesa no julgamento?
— Um tal de Daniel Daly. Você conhece?
— É, conheço, mas é um cara que trabalha na instância federal e eu tento manter distância dessa esfera. Nunca vi trabalhando mas, pelo que escutei, é um dos advogados de defesa mais eficientes por lá.
Eu na verdade conhecia Daniel Daly do Four Green Fields, onde íamos sexta à noite para tomar uns martínis.
— Bom, nem ele nem ninguém poderiam fazer muito por Moya — disse Jennifer. — O cara beijou a lona e não levantou. E agora já cumpriu sete anos de perpétua e não vai mais a lugar algum.
— Onde ele está.
— Victorville.
A Instituição Correcional Federal em Victorville ficava 130 quilômetros ao norte, nos arredores de uma base da força aérea no deserto. Não era um bom lugar para passar o resto da vida. Diziam que se você não fosse soprado para longe pelos ventos do deserto, os constantes ruídos supersônicos dos jatos no céu o deixariam maluco. Estava pensando nisso quando Aronson falou outra vez:
— Pelo jeito os federais não brincam em serviço — disse.
— Como assim?
— Sabe, uma prisão perpétua por cinquenta gramas de pó. É bem severo.
— É, eles são bem severos na hora da sentença. É por isso que não faço defesa na esfera federal. Não gosto de dizer para meus clientes abandonarem a esperança. Não gosto de trabalhar em um acordo com a promotoria só para ver o juiz ignorar e descer o martelo no meu cliente.
— Isso acontece?
— Muito. Tive um cara uma vez... olha, esquece, deixa pra lá. É passado e não quero pensar nisso.
Eu estava pensando em Hector Arrande e como um acordo matreiro que fiz com uma cliente acabou o mandando para Victorville com uma pena perpétua. Eu nem me dera ao trabalho de acompanhar o caso depois de fazer o acordo com Leslie Faire, do Gabinete da Promotoria. Para mim, era só mais um dia de batente, um rápido acordo de tribunal, um nome e número de quarto de hotel em troca da retirada das acusações contra minha cliente. Gloria Dayton entrou em um programa de reabilitação de drogas em vez de ir para a cadeia, e Hector Arrande Moya caiu direto em uma prisão federal pelo resto da vida — e sem saber de quem ou de onde veio a delação para as autoridades.
Ou será que sabia?
Sete anos haviam se passado. Parecia fora de propósito considerar que Moya pudesse ter se vingado de Gloria Dayton de dentro de uma prisão federal. Mas, por mais forçada que a ideia pudesse parecer, talvez tivesse alguma utilidade na defesa de Andre La Cosse. Meu trabalho seria fazer o júri questionar o caso da promotoria. Fazer com que pelo menos um dos deuses da culpa pensasse por si mesmo e dissesse, Ei, espera um pouco, e aquele cara lá no deserto, apodrecendo na prisão por causa dessa mulher? Talvez...
— Você viu no sumário do processo alguma audiência para requerimento de apresentação do rol de testemunhas ou para petição de anulação baseada em ausência de causa provável? Qualquer coisa nessa linha?
— Vi, isso fazia parte da primeira apelação de erro da corte. O juiz indeferiu o requerimento para apresentar qualquer informante confidencial no caso.
— Ele estava jogando verde para colher maduro. Só tinha um informante confidencial, e era Gloria. Você viu qualquer coisa lacrada no sumário ou algo assim?
Os juízes geralmente lacravam registros relativos a informantes confidenciais, mas os documentos em si eram muitas vezes referidos por número ou código no PACER, de modo que pelo menos se sabia da existência de tais registros.
— Não — disse Jennifer. — Só o RPS.
O relatório de pré-sentença de Moya. Esses documentos também sempre eram mantidos lacrados. Pensei na situação por um momento.
— O.k., não pretendo deixar isso de lado. Quero ver a transcrição dessa disputa sobre informantes confidenciais e causa provável. Você vai ter que ir até Pasadena para puxar umas pastas. Vai saber fazer isso? Talvez a gente dê sorte e encontre alguma coisa ali que possa usar. A DEA ou o FBI tiveram de depor em algum momento sobre como chegaram naquele hotel e naquele quarto. Quero saber o que disseram.
— Você acha que o nome de Gloria pode ter vazado?
— Isso seria óbvio e negligente demais. Mas, se existe uma referência a um informante confidencial específico, pode ser que a gente tenha algo com que trabalhar. Além disso, pergunta pelo relatório pré-sentença. Pode ser que depois de sete anos eles deixem você dar uma olhada.
— Isso seria esperar demais. Esses documentos devem ficar lacrados para sempre.
— Não custa perguntar.
— Bom, posso ir para Pasadena agora mesmo. Eu volto para as pastas de Gloria mais tarde.
— Não, Pasadena pode esperar. Quero que vá até o centro. Continua de pé a proposta de me cobrir no caso Deirdre Ramsey?
— Claro!
Ela praticamente pulou, na outra ponta da linha.
— Não fica muito animada — aconselhei rápido. — Como eu disse de manhã, esse caso é uma furada. Você só precisa pedir para o juiz um pouco mais de tempo e paciência. Fala para ele que a gente sabe que é um caso STD e que estamos quase convencendo Deirdre de que é melhor para ela aceitar a proposta da promotoria e esquecer essa história. Você também precisa convencer Shelly Albert, a promotora, a manter a oferta na mesa por mais umas duas semanas. Isso é tudo, só mais duas semanas, o.k.?
A oferta era de que Ramsey declarasse ser cúmplice do crime e cooperasse testemunhando contra seu namorado e seu parceiro de golpe. Em troca, receberia uma sentença de três a cinco anos. Com bom comportamento e o tempo já cumprido, sairia em um ano.
— Eu posso cuidar disso — disse Jennifer. — Mas provavelmente vou deixar passar a menção à sífilis, se você não se importar.
— Como?
— Sífilis. Você não disse que era um caso STD, sigla para doença sexualmente transmissível em inglês?
Sorri e olhei pela janela. Estávamos passando pelo Hancock Park. Apenas mansões, gramados extensos e sebes elevadas.
— Jennifer, eu não quis dizer isso. STD é uma abreviatura de meus tempos de advogado do estado. Significa straight to disposition, direto para a disposição, a determinação da sentença. Quando eu estava com a Defensoria Pública, vinte anos atrás, era assim que a gente dividia nossa montanha de processos. STDs e STTs — direto para a disposição ou direto para o julgamento, straight to trial. Quem sabe hoje fossem chamados de STPs — straight to plea, direto para a alegação —, a fim de evitar confusão.
— Ah, bom, agora fiquei com vergonha.
— Não tanto quanto se tivesse dito para o juiz Companioni que o caso tem sífilis.
Nós dois demos risada. Jennifer tinha uma das mentes mais brilhantes e ávidas para a advocacia que eu já vira, mas ainda estava ganhando experiência prática e aprendendo a rotina e o linguajar do direito criminal americano. Eu sabia que, se continuasse nessa área, acabaria se tornando o pior pesadelo da promotoria quando pisasse em um tribunal.
— Mais duas coisas — disse eu, voltando ao trabalho. — Tenta entrar na sala antes da Shelly e pegar a cadeira que fica à esquerda do juiz.
— Tudo bem — disse ela, hesitante. — Por quê?
— Tem a ver com esse negócio de lado direito-esquerdo do cérebro. As pessoas são mais simpáticas com as pessoas do lado esquerdo.
— Para com isso.
— É sério. Sempre que eu fico na frente de um júri para a argumentação final, vou o mais para a direita que dá. Assim eu fico à esquerda para a maioria dos jurados.
— Você está forçando a barra.
— Tenta. Você vai ver.
— É impossível de comprovar.
— Estou falando. Fizeram testes e estudos científicos. Pode pesquisar no Google.
— Não tenho tempo. Qual era a outra coisa?
— Se você começar a se sentir à vontade com o juiz, fala para ele que, se Shelly tirar a cooperação do acordo, isso vai ajudar a pôr uma pedra no assunto. Se Deirdre não tiver que testemunhar contra o namorado, acho que a gente consegue fazer isso acontecer. Estamos dispostos até a manter os mesmos termos de sentença, só que sem cooperação. E fala para o juiz que Shelly não precisa disso, já que tem o grampo dos três conversando sobre todo o golpe e o DNA coletado na cena de estupro batendo com o do namorado. É uma barbada mesmo sem o testemunho de Deirdre. Ela não precisa da Deirdre.
— O.k., vou tentar. Mas eu meio que estava torcendo para esse ser meu primeiro julgamento criminal.
— Você não vai querer que esse seja seu primeiro julgamento. Você não quer estrear com uma derrota. Além do mais, oitenta por cento da arte em direito criminal é achar um jeito de ficar longe do julgamento. E o restante...
— É trabalho mental. É, eu sei.
— Boa sorte.
— Obrigada, chefe.
— Não me chama de chefe. Somos sócios, lembra?
— Certo.
Guardei o celular e comecei a pensar em como ia conduzir a conversa com Stacey Campbell. Estávamos passando pelo Farmers Market e quase chegando.
Depois de um tempo percebi que Earl não parava de me olhar pelo espelho. Ele fazia isso quando tinha alguma coisa a dizer.
— O que foi, Earl? — perguntei, finalmente.
— Eu estava pensando no que você disse no telefone. Sobre a pessoa do lado esquerdo e como isso funciona.
— Sei.
— Bom, uma vez... você sabe, naquele tempo em que eu vendia na rua... veio um cara pra cima de mim com uma arma, pra roubar minha droga.
— E?
— E o negócio era que naquele tempo alguém andava por aí atirando nos malucos pra pegar a grana e a droga, saca? O cara metia uma bala na cabeça e levava tudo. E eu pensei na hora que aquele era o cara e que eu já era.
— Que merda. O que aconteceu?
— Bom, eu fiz a cabeça dele. Falei da minha filha que tinha acabado de nascer e essa coisa toda. Dei o que tinha pra ele e o cara se mandou. Daí teve uma prisão em um crime e eu vi a foto dele na TV. Era o mesmo cara, o que tinha aliviado pra mim.
— Você teve sorte, Earl.
Ele balançou a cabeça e olhou para mim no espelho outra vez.
— E o negócio é que eu estava do lado esquerdo do cara quando ele chegou e eu fiz a cabeça dele. Tipo o que você estava dizendo aí. Como ele concordou em não meter chumbo em mim.
Assenti devagar.
— Não deixa de contar essa história pra Bullocks da próxima vez que você encontrar ela.
— Pode apostar.
— Tudo bem, Earl. Fico feliz que você tenha conseguido fazer a cabeça do cara.
— É, eu que o diga. Minha mãe e minha filha também.
9
Cheguei cedo ao Toast, aguardei dez minutos por uma mesa e então a segurei bebericando café durante quarenta e cinco minutos. O grupo de descolados de West Hollywood que aguardava na fila não estava nada feliz em me ver monopolizando uma mesa cobiçada sem nem ao menos pedir um prato. Fiquei de cabeça baixa, lendo e-mails, até Starry-Eyed Stacey aparecer à uma e meia, imersa em uma forte nuvem de perfume, e sentar na cadeira diante de mim.
Stacey estava usando uma peruca platinada de fios espetados, tingidos de azul nas pontas. Combinava com sua pele quase azul de tão pálida e com as faixas largas de glitter pintadas em suas pálpebras. Imaginei que a turma de moderninhos que me odiara por pegar uma de suas mesas devia estar espumando de raiva agora. Starry-Eyed Stacey não parecia exatamente em seu habitat. Era como se tivesse saído da capa de um álbum de glam rock dos anos 1970.
— Então você é o advogado — disse ela.
Abri um sorriso profissional.
— O próprio.
— Glenda me contou sobre você. Disse que você era um amor, mas não mencionou que era um gato, também.
— Quem é Glenda?
— Giselle. Quando a gente se conheceu em Las Vegas, ela era Glenda Feiticeira Daville.
— Por que ela mudou de nome quando veio para cá?
Stacey deu de ombros.
— As pessoas mudam, eu acho. Mas ela continuava sendo a mesma garota, por isso que sempre chamei ela de Glenda.
— Então você já tinha saído de Las Vegas e ela fez isso em seguida?
— Por aí. A gente tinha mantido contato, sabe. Ela ligava para saber qual era o babado por aqui e essas coisas. Falei para ela que podia vir se quisesse e ela veio.
— E você indicou Andre para ela.
— É, para colocar Glenda na internet e cuidar das páginas dela.
— Há quanto tempo você conhecia Andre?
— Não muito. Você acha que a gente consegue ser atendido por aqui?
Stacey tinha razão: a garçonete que tão atenciosamente me perguntava de cinco em cinco minutos se eu ia pedir alguma coisa sumira de vista. Meu palpite era que Stacey provocava isso nas pessoas, sobretudo em mulheres. Consegui falar com um ajudante de cozinha que passava e pedi para ele chamar a garçonete para nos atender.
— Como você conheceu Andre? — perguntei, enquanto esperávamos.
— Foi fácil. Eu comecei a dar uma olhada nas páginas das outras garotas. Ele era o administrador do site de várias delas, entre as melhores. Então eu mandei um e-mail pra ele e a gente fechou.
— De quantos sites ele cuida?
— Sei lá. Você precisa perguntar isso pra ele.
— Você alguma vez ficou sabendo de Andre ter maltratado alguma das garotas?
Ela deu uma risadinha de desdém.
— Você quer dizer tipo um cafetão de verdade?
Fiz um gesto de negação.
— Não. Quando ele quer engrossar, conhece gente que faz o serviço pra ele.
— Como quem?
— Não conheço ninguém de nome. Só sei que entrar no braço não é com ele. Ele já precisou tomar uma atitude certas vezes, quando algum cara estava tentando pegar um pedaço do negócio. Pelo menos foi isso que ele me contou.
— Você quer dizer caras tentando tirar o negócio dele na internet?
— É, tipo isso.
— Sabe quem eram?
— Não, não sei nome nenhum nem nada. Só o que o Andre me contou.
— E quanto aos caras que faziam o serviço pra ele? Você chegou a conhecer alguém?
— Eu vi os caras uma vez, quando precisei. Um tipinho não queria pagar e, quando foi tomar banho, eu liguei pro Andre. Os caras apareceram assim.
Ela estalou os dedos.
— Fizeram ele pagar, pode crer. O cara achou que não precisava pagar só porque trabalhava em um programa da TV a cabo que ninguém nunca tinha ouvido falar. Todo mundo paga.
A garçonete finalmente voltou para a mesa. Stacey pediu um sanduíche BLT — bacon, alface e tomate — e uma Coca Diet. Eu fui de salada de frango no croissant e troquei o café por chá gelado.
— De quem Glenda estava se escondendo? — perguntei, assim que ficamos a sós outra vez.
Stacey lidou com essa mudança abrupta no rumo da prosa com toda casualidade.
— Quer dizer que todo mundo está se escondendo de alguém ou de alguma coisa?
— Não sei. Ela estava?
— Ela nunca falou sobre isso, mas olhava por cima do ombro um bocado, se entende o que quero dizer. Sobretudo quando voltou pra cá.
Aquilo não estava levando a lugar nenhum.
— O que ela falou sobre mim pra você?
— Disse que, quando tinha morado aqui da outra vez, você foi o advogado dela, mas que nunca ia poder procurar você outra vez se fosse presa.
A garçonete serviu nossas bebidas e esperei até que se afastasse.
— Por que ela não podia me procurar?
— Não sei. Porque a coisa ia desmoronar, eu acho.
Aquela não era a resposta que eu esperava. Imaginei que Stacey ia dizer que Glenda não podia me procurar porque assim revelaria sua traição.
— Desmoronar? Foi essa palavra que ela usou?
— Foi isso que ela disse, é.
— O que ela quis dizer com isso?
— Sei lá, ela falava por falar. Disse que ia desmoronar. Não sei o que queria dizer e ela não falou mais nada sobre isso.
Stacey começou a parecer irritada com as perguntas. Recostei na cadeira e pensei sobre tudo. Afora algumas deixas sem maiores explicações, ela não tinha sido de grande ajuda. Acho que eu fora ingênuo de pensar que Gloria Dayton — se é que esse era mesmo seu verdadeiro nome — confidenciaria seu passado a outra prostituta.
Tudo que eu sabia agora era que a coisa toda me deprimia. Gloria-Glenda-Giselle tinha sido ferrenhamente apegada àquele tipo de vida. Como era incapaz de deixá-la, no fim aquela vida tomou tudo dela. Era uma história batida e dentro de um ano seria esquecida ou substituída por outra.
Nossa comida chegou, mas eu perdera o apetite. Fiquei assistindo Starry-Eyed Stacey encharcar seu sanduíche de maionese e comer como uma garotinha, lambendo os dedos depois da primeira mordida. Nem isso levantou meu astral.
10
Fiquei sentado no banco traseiro por um longo tempo, pensando nas coisas. Earl volta e meia olhava para mim pelo espelho, querendo saber quando eu lhe daria instruções. Mas eu não sabia para onde ir. Pensei em esperar Stacey Campbell sair do restaurante depois de usar o banheiro e segui-la até sua casa, para descobrir onde morava, mas sabia que Cisco a encontraria se eu precisasse dela outra vez. Olhei o relógio e vi que eram quinze para as três. Bullocks provavelmente estava no meio da conferência de status, na sala do juiz Companioni. Decidi esperar um pouco antes de ligar.
— Valley, Earl — me decidi enfim. — Quero dar uma olhada no treino.
Earl deu partida no carro e saímos. Ele pegou o Laurel Canyon para subir a montanha para Mulholland Drive. Viramos a oeste e depois de algumas curvas chegamos ao pátio de estacionamento do Fryman Canyon Park. Earl parou em uma vaga, abriu o porta-luvas e me passou o binóculo por cima do banco. Tirei o paletó e a gravata, deixando no banco traseiro do carro.
— Devo demorar meia hora, mais ou menos — eu disse.
— Não vou sair daqui — ele respondeu.
Fechei a porta e comecei a caminhar. O Fryman Canyon desce a encosta norte das montanhas Santa Monica até Studio City. Peguei a trilha Betty Dearing até a bifurcação para leste e oeste. Nesse ponto saí da trilha e entrei mato adentro até chegar a um promontório com vista livre para a cidade, esparramada abaixo. Minha filha havia se transferido nesse ano para a Skyline School, e o fundo do campus ia de Valleycrest Drive até o limiar do parque. O campus ficava em duas elevações: o nível mais baixo abrangia os prédios acadêmicos, e no superior se localizava o complexo esportivo. No momento em que cheguei ao meu mirante particular, o treino de futebol já tinha começado. Esquadrinhei o campo com o binóculo e encontrei Hayley no gol oposto. Ela estava jogando de goleira titular, o que significava uma evolução em relação à antiga escola, quando costumava acompanhar as partidas do banco de reservas.
Sentei na pedra grande que eu havia pegado no chão e posicionado em uma visita anterior. Depois de um tempo, deixei o binóculo pendurado no pescoço e apenas observei com os cotovelos apoiados nos joelhos, o rosto nas mãos. Hayley estava pegando tudo até um chute perfeito passar por ela, acertar o travessão e voltar para o jogo. Ela parecia estar se divertindo, e a concentração exigida pela posição provavelmente afastava todos os demais pensamentos. Também desejei poder fazer aquilo, apenas esquecer Sandy e Katie Patterson e tudo mais por algum tempo. Sobretudo à noite, quando eu fechava os olhos para dormir.
Eu poderia ir a juízo para forçar a barra com minha filha, fazer o juiz emitir um mandado, exercer meu direito de visita e obrigar Hayley a ficar comigo nos fins de semana e a cada duas semanas, como costumava ser. Mas eu sabia que uma atitude dessas só pioraria as coisas. Fazer isso com uma adolescente de dezesseis anos seria perdê-la para sempre. Então deixei como estava e comecei um jogo de paciência, esperando e observando de longe. Eu precisava ter fé de que Hayley acabaria percebendo que o mundo não era assim tão preto no branco. Que era cinza, e era por essa área cinzenta que seu pai circulava.
Era fácil para mim ter essa fé porque não havia outra escolha. Mas não era tão fácil assim encarar a questão mais complexa que pairava como uma nuvem sombria. A questão de como você pode torcer e ter esperança de que alguém vá perdoá-lo quando lá no fundo nem você mesmo se perdoa.
O celular vibrou e atendi a ligação de Bullocks, que acabara de deixar o tribunal, no centro.
— Como foi?
— Acho que tudo bem. Shelly Albert não gostou nem um pouco, mas o juiz pressionou a promotoria a respeito do aspecto cooperativo da disposição e ela no fim cedeu. Então a gente tem um acordo se conseguir fazer Deirdre aceitar.
Como era uma conferência de status privada, a presença de Ramsey não fora necessária. Teríamos de fazer uma visita à cadeia e apresentar os novos termos da oferta do Gabinete da Promotoria.
— Ótimo. Quanto tempo a gente tem?
— Basicamente, 48 horas. Ela deu até sexta-feira à tarde pra gente, antes do fim do expediente. E o juiz quer nossa posição na segunda.
— O.k., então a gente vê ela amanhã. Eu faço as apresentações e você convence a mulher.
— Parece ótimo. Onde você está? Estou ouvindo gritos.
— Em um treino de futebol.
— Sério? Você e a Hayley fizeram as pazes? Isso é fan...
— Não é bem assim. Só estou assistindo. Então, o que vai fazer agora?
— Acho que vou voltar para a biblioteca e atacar aquelas pastas. Deve ser muito tarde para ir até Pasadena e conseguir aquelas transcrições.
— Tudo bem, pode voltar para a biblioteca. Obrigado por cuidar da Ramsey para mim.
— Fico feliz em ajudar. Eu adorei, Mickey. Quero pegar mais casos da área criminal.
— Tenho certeza de que isso pode ser arranjado. A gente se fala amanhã.
— Ah, mais uma coisa. Você pode falar?
— Claro. O que foi?
— Fiquei do lado esquerdo do juiz, como você disse. Sabe, acho que funcionou. Ele escutava com paciência toda vez que eu falava e interrompia Shelly sempre que ela contra-argumentava.
Eu poderia ter mencionado que a atenção do juiz talvez tivesse alguma relação com o fato de Jennifer Aronson ser uma mulher atraente de vinte e seis anos, ativa e idealista, ao passo que Shelly Albert, uma promotora veterana e carrancuda, parecia carregar o ônus da prova em seus ombros afundados.
— Viu, não falei? — respondi, em vez disso.
— Obrigada pela dica — ela disse. — A gente se fala amanhã.
Depois de guardar o celular, usei o binóculo outra vez para observar minha filha. A professora encerrou o treino às quatro, e as meninas começaram a deixar o campo. Como não fazia muito que Hayley tinha sido transferida, era tratada como novata e precisava juntar todas as bolas e guardar no saco de rede. Durante o treino, ela ficara no gol de frente para mim, então só a vi de costas quando começou a recolher as bolas. Meu coração bateu mais forte quando constatei que ainda usava o número 7 nas costas da camisa verde. Seu número da sorte. Meu número da sorte. O número de Mickey Mantle. Ela não trocara de número e pelo menos aquela era uma ligação comigo que não tinha mudado. Interpretei como um sinal de que nem tudo estava perdido entre nós e que devia continuar mantendo a fé.
PARTE DOIS
VIRADO
PRA LUA
Terça-feira, 2 de abril
11
Nunca é um caso só. Sempre são muitos. Eu comparo a prática do direito com a de certos artistas de rua que se apresentam para o público em um calçadão. Tem o homem que equilibra pratos com varetas, girando vários ao mesmo tempo, com rapidez e altura. E tem o homem que faz malabarismo com facões, lançando-os para o alto com precisão, sem que suas mãos nunca entrem em contato com as lâminas.
Além do caso La Cosse, eu mantinha vários pratos girando conforme o calendário mudava de ano para ano. Leonard Watts, o ladrão de carros, obteve um acordo que aceitou meio a contragosto para evitar novo julgamento. Jennifer Aronson conduziu as negociações, assim como fez com Deirdre Ramsey, que se declarou culpada das alegações para não precisar testemunhar contra o namorado no tribunal.
No fim de dezembro, peguei um caso de grande visibilidade que estava mais para a variedade facões. Um antigo cliente chamado Sam Scales, um golpista desde que se entendia por gente, foi pego pelo DPLA — Departamento de Polícia de Los Angeles — em um esquema que deu novo significado à expressão criminoso sem coração. Scales era acusado de criar um site e uma página de Facebook falsos, solicitando doações para cobrir os custos funerários de uma criança morta na chacina de uma escola em Connecticut. Pessoas de várias regiões fizeram contribuições generosas, e a promotoria afirmou que Scales recolhera cerca de cinquenta mil dólares desses doadores, que acreditavam estar contribuindo para o enterro de uma criança tragicamente assassinada. O conto do vigário funcionou bem até que os pais da criança ficaram sabendo da campanha e contataram as autoridades. Embora Scales tivesse utilizado uma série de fontes digitais falsas para proteger sua identidade, no final — como em qualquer golpe — precisou transferir a soma para um lugar que pudesse acessar e embolsar o dinheiro.
E esse lugar era uma conta na filial do Bank of America, no Sunset Boulevard, em Hollywood. Quando entrou para sacar o dinheiro, o caixa viu um sinal de alerta vinculado à conta e enrolou o golpista enquanto a polícia era acionada. O funcionário explicou para Sam que o banco não mantinha todo aquele valor em dinheiro vivo porque a localização era de alto risco, ou seja, as chances de um roubo ali eram maiores do que em outros lugares. Scales foi informado de que tinha duas opções: ou esperar até que uma ordem de pagamento especial fosse feita e trazida no carro-forte das três da tarde ou ir a um local no centro, onde aquela quantia pudesse ser disponibilizada com mais agilidade. Scales, o golpista que não percebeu que estava caindo em um golpe, optou pela ordem de pagamento e saiu. Quando voltou, às três, dois investigadores da Divisão de Crimes Financeiros do DPLA estavam à sua espera. Os mesmos dois investigadores que deram a ordem de prisão no último caso em que eu defendera Scales — um trambique envolvendo ajuda para as vítimas do tsunami no Japão.
Todo mundo queria uma casquinha de Scales dessa vez — o FBI, a Polícia Estadual de Connecticut e até a Real Polícia Montada do Canadá, que entrou na história porque diversos doadores lesados eram canadenses. Porém, como quem fez a prisão foi o DPLA, isso significava que o Gabinete da Promotoria do Condado de Los Angeles tinha a primazia. Scales me procurou assim como da outra vez, e assumi a defesa de um homem tão bombardeado pela mídia que precisou ficar na solitária da Men’s Central, por receio de ataques dos outros detentos.
A indignação era tão grande que o próprio promotor público, Damon Kennedy, o homem que me aplicara uma sonora derrota na eleição do ano anterior, anunciou que iria processá-lo pessoalmente de acordo com o pleno rigor da lei, o que tornou as coisas ainda piores para Scales. É claro que isso só aconteceu depois de eu ter sido contratado como advogado de defesa, de modo que agora o palco estava armado para que Kennedy me desse outra surra na frente de todo mundo. Eu cheguei a sondar a possibilidade de um acordo — o Gabinete da Promotoria pedira flagrante delito para Scales, dessa vez —, mas Kennedy não quis nem ouvir falar. Sabia que tinha uma barbada nas mãos e não um acordo não fazia sentido: ele espremeria o julgamento até a última gota de atenção que pudesse conseguir na TV, nos jornais e na web. Não restava dúvida de que dessa vez Sam Scales dançaria com pena máxima.
O caso Scales tampouco contribuiu para minha vida pessoal. A L.A. Weekly publicou uma capa sobre “O Homem Mais Odiado dos Estados Unidos”, uma matéria com uma retrospectiva de cada um dos inúmeros golpes pelos quais Scales fora acusado ao longo das últimas duas décadas. Além de mencionar meu nome como fiel advogado de defesa em várias daquelas falcatruas, a matéria me pintava como o apologista oficial de meu cliente. A edição chegou às bancas uma semana antes do Natal, preparando o terreno para uma recepção glacial por parte de minha filha, que mais uma vez chegara à conclusão de que fora humilhada publicamente por seu pai. Ambas as partes haviam concordado com antecedência de que eu teria permissão para uma visita na manhã de Natal. Eu levaria presentes para minha filha e também para minha ex-mulher. Mas a coisa desandou, e o que eu esperava que pudesse ser o início do degelo em ambos os relacionamentos acabou se transformando em uma nevasca. Naquela noite, esquentei comida congelada e tive um jantar solitário em casa.
Agora era a primeira semana de abril e eu comparecia em nome de Andre La Cosse perante a excelentíssima Nancy Leggoe, do Departamento 120 do Criminal Courts Building, no centro. Faltavam seis semanas para o julgamento, e Leggoe estava tomando depoimentos ligados ao pedido de anulação em que eu dera entrada após a audiência preliminar em que La Cosse fora considerado apto a ser julgado por causa provável.
La Cosse sentou do meu lado à mesa da defesa. Havia cinco meses que estava preso, e a palidez da pele era apenas um indício de como se deteriorara. Certas pessoas aguentam passar um período atrás das grades. Andre não era uma delas. Como mencionava com frequência em nossos encontros, estava enlouquecendo ali dentro.
Na publicação compulsória — a troca obrigatória de materiais relevantes entre defesa e promotoria antes do julgamento —, que começou em dezembro, eu recebera uma cópia do vídeo com o depoimento de Andre La Cosse sobre o assassinato de Gloria Dayton, feito pelo investigador principal. Meu pedido de anulação alegava que o depoimento fora na verdade um interrogatório e que o policial se valera de artifícios e coerção para induzir meu cliente a fazer declarações incriminadoras. Além disso, o requerimento alegava que o detetive que interrogou La Cosse em uma saleta sem janelas no West Bureau passou por cima dos direitos constitucionais, não fazendo devidamente a Advertência de Miranda — o direito de um depoente poder permanecer calado e contar com um advogado — senão depois de La Cosse ter dado declarações incriminadoras e recebido voz de prisão.
Durante o interrogatório, La Cosse negara ter matado Dayton, o que era bom para nosso lado. O ruim foi que fornecera à polícia evidência de motivo e oportunidade, ao admitir que estivera no apartamento da vítima na noite do crime e que discutira com Gloria sobre o dinheiro que ela supostamente deveria pagar pelo cliente no Beverly Wilshire. Chegou até a admitir que segurara Gloria pela garganta.
Claro que essa evidência que La Cosse produzira contra si era bastante prejudicial e servia de peça central no caso da promotoria, como demonstrado na audiência preliminar. Agora eu estava pedindo à juíza para eliminar o depoimento e não permitir que o júri visse. Além das práticas de intimidação empregadas pelo detetive, os direitos de La Cosse só foram lidos depois de ele mencionar ter estado no apartamento e discutido com Dayton nas horas que antecederam a morte dela.
Os pedidos de anulação são sempre uma possibilidade muito remota, mas nesse caso valia a pena tentar. Se eu conseguisse eliminar a gravação do interrogatório, o caso todo mudaria de figura. Talvez até pendesse em favor de Andre La Cosse.
Pelo lado da promotoria, William Forsythe começou a audiência com o relato do detetive Mark Whitten sobre as circunstâncias do depoimento e em seguida apresentou o vídeo com a gravação da sessão. O vídeo de trinta e dois minutos foi exibido na íntegra, em uma tela instalada na parede oposta à bancada do júri, vazia. Eu já tinha assistido inúmeras vezes à gravação. Estava com meu tempo programado e as perguntas prontas quando Forsythe encerrou a inquirição com Whitten e passou a testemunha e o controle remoto para mim. Como eu partira para cima de Whitten com tudo durante seu testemunho na audiência preliminar, ele já sabia o que estava por vir. Dessa vez o ataque ocorreria diante da juíza Leggoe, que estava designada para ouvir o caso após a preliminar. Não havia júri presente. Nada de deuses da culpa. Permaneci sentado à mesa da defesa, meu cliente com o uniforme laranja ao lado.
— Bom dia, detetive Whitten — disse eu, apontando o controle remoto para a tela. — Quero voltar bem ao começo do interrogatório.
— Bom dia — disse Whitten. — E foi um depoimento, não um interrogatório. Como eu disse antes, o sr. La Cosse concordou por livre e espontânea vontade em me acompanhar à delegacia para conversar.
— Certo, já ouvi essa história. Mas vamos dar uma olhada nisso.
Comecei a passar o vídeo. Na tela, a porta da sala de interrogatório se abria e La Cosse entrava, seguido de Whitten, que punha a mão no ombro de meu cliente para direcioná-lo a uma das duas cadeiras de uma pequena mesa, posicionadas frente a frente. Parei a imagem no momento em que La Cosse sentava.
— Bem, detetive, o que o senhor está fazendo aí com sua mão no braço de Andre La Cosse?
— Estava apenas indicando o lugar para sentar. Eu queria me sentar para colher o depoimento.
— Mas o senhor estava indicando essa cadeira em particular, correto?
— Na verdade não.
— O senhor queria que ele ficasse de frente para a câmera, porque seu plano era extrair uma confissão, correto?
— Não, não é correto.
— Está dizendo à juíza Leggoe que não indicou essa cadeira em particular, de modo que La Cosse ficasse à vista da câmera escondida da sala?
Whitten refletiu por um momento antes de dar a resposta. Ludibriar o júri é uma coisa. Mas é um risco muito grande tentar passar para trás uma juíza tarimbada.
— É a diretriz colocar o depoente na cadeira de frente para a câmera. Eu só estava seguindo o procedimento padrão.
— É a diretriz gravar em vídeo depoimentos com testemunhas que compareceram ao departamento de polícia para uma “conversa”, como o senhor disse em seu testemunho ao promotor?
— É, isso mesmo.
Ergui as sobrancelhas em uma expressão de surpresa, mas então me lembrei de que tentar ludibriar a juíza também não ajudaria meu cliente. Isso incluía fingir surpresa em uma resposta que eu já sabia estar a caminho. Prossegui.
— E continua insistindo que não rotulava o sr. La Cosse como suspeito quando o levou à delegacia para conversar?
— De modo algum. Eu estava com a mente completamente aberta em relação a ele.
— De maneira que não havia necessidade de ler para ele a usual advertência sobre seus direitos antes dessa assim chamada conversa?
Forsythe protestou, alegando que a pergunta já tinha sido feita e respondida durante a inquirição. Forsythe era um homem magro de trinta e poucos anos e, com a pele bronzeada e o cabelo cor de areia, parecia um surfista de terno.
A juíza Leggoe indeferiu a objeção e permitiu que eu prosseguisse. Whitten respondeu à pergunta.
— Não achei necessário — disse. — Ele não era um suspeito no momento em que compareceu por livre e espontânea vontade à delegacia nem quando por livre e espontânea vontade entrou na sala para conversar. Eu só ia colher um depoimento, mas ele acabou dizendo que estivera no apartamento da vítima. Eu não esperava por isso.
Ele respondeu do modo como eu tinha certeza que ensaiara com Forsythe. Avancei o vídeo para um ponto em que Whitten pedia licença para sair da sala e buscar um refrigerante. Pausei a imagem com La Cosse sozinho na sala.
— Detetive, o que teria acontecido se meu cliente tivesse decidido, quando estava sozinho ali dentro, que precisava usar o banheiro e se levantasse para ir?
— Não estou entendendo a pergunta. Nós teríamos permitido que usasse o banheiro. Ele não pediu.
— Mas o que teria acontecido se ele decidisse por conta própria se levantar da mesa nesse exato momento e abrir a porta? O senhor trancou a porta quando saiu da sala, sim ou não?
— Não é uma resposta de sim ou não.
— Eu acho que é.
Forsythe protestou e chamou minha resposta de intimidação. A juíza pediu ao detetive para responder à pergunta da maneira que julgasse melhor. Whitten refletiu e voltou à desculpa padrão: diretriz.
— É a diretriz do departamento não permitir que o cidadão não escoltado tenha acesso a áreas restritas de uma delegacia policial. Como essa porta leva direto à sala dos detetives, eu estaria desrespeitando a diretriz se permitisse que o depoente andasse pela delegacia sem acompanhamento de ninguém. Sim, eu tranquei a porta.
— Obrigado, detetive. Então, deixa eu ver se entendi direito até aqui. O sr. La Cosse não era suspeito do caso, mas ficou trancado nessa sala sem janela e sob constante vigilância enquanto esteve ali dentro, correto?
— Não sei se eu chamaria de vigilância.
— Então como chamaria?
— A câmera funciona sempre que tem alguém dentro de uma das salas. É a dir...
— A diretriz, é, já sei. Vamos continuar.
Avancei o vídeo cerca de vinte minutos, para um ponto em que Whitten se levantava da cadeira, tirava e pendurava o paletó no espaldar. Em seguida empurrava a cadeira na direção da mesa e ficava de pé atrás dela, curvando-se com as mãos sobre a mesa.
“Então o senhor não sabe nada sobre o assassinato, é isso o que está dizendo?”, perguntava ele para La Cosse, na tela.
Pausei bem aí.
— Detetive Whitten, por que tirou o paletó nesse ponto do interrogatório?
— Quer dizer depoimento? Tirei o paletó porque estava ficando abafado ali dentro.
— Mas o senhor afirmou na inquirição da promotoria que a câmera fica escondida na abertura do ar-condicionado. O ar não estava ligado?
— Não sei se estava ligado ou não. Não tinha verificado antes de entrar na sala.
— Por falar em sala, essas salas de interrogatório não são chamadas de “caixas quentes” pelos detetives porque são usadas para fazer o suspeito suar, na esperança de induzir à cooperação e à confissão?
— Nunca ouvi falar a respeito.
— O senhor mesmo nunca usou a expressão para descrever essa sala?
Apontei para a tela e fiz a pergunta com um tom de surpresa tão grande que esperava que Whitten imaginasse que eu tinha alguma carta na manga. Mas foi um blefe e o detetive não caiu, usando uma desculpa protocolar de testemunho.
— Não me lembro de algum dia ter usado essa expressão.
— Tudo bem. Então o senhor tirou o paletó e está agora de pé na frente de Andre La Cosse. Fez isso para intimidá-lo?
— Não, apenas senti vontade de ficar de pé. Estávamos sentados por muito tempo.
— O senhor sofre de hemorroidas, detetive?
Forsythe logo protestou outra vez e me acusou de tentar constranger o detetive. Eu disse à juíza que estava apenas tentando fazer constar dos autos um testemunho que ajudaria o tribunal a entender por que o detetive se levantara durante o depoimento depois de apenas vinte minutos. A juíza manteve a objeção e me instruiu a prosseguir sem fazer à testemunha uma pergunta de natureza tão pessoal.
— Tudo bem, detetive — disse eu. — E quanto a La Cosse? Ele podia ter levantado, se quisesse? Poderia ter ficado de pé enquanto o senhor continuava sentado?
— Eu não teria objetado — respondeu Whitten.
Eu esperava que a juíza estivesse ciente de que as respostas de Whitten eram uma grande conversa fiada e parte da dança que os detetives faziam todos os dias em uma central de polícia. Eles andavam em uma corda bamba constitucional, tentando forçar as coisas ao máximo antes de precisar esclarecer os direitos dos pobres-diabos sentados à mesa diante deles. Eu precisava provar que aquilo era um interrogatório sob custódia e que, em tais circunstâncias, Andre La Cosse não achava que era livre para ir embora. Se a juíza ficasse convencida disso, ela determinaria que La Cosse estava de fato sob voz de prisão quando entrou naquela sala de interrogatório e que deviam ter lido para ele a Advertência de Miranda. Ela poderia então descartar todo o vídeo, mutilando o processo montado pela promotoria.
Apontei para a tela outra vez.
— Vamos falar sobre o equipamento que o senhor tem aí, detetive.
Fiz Whitten dar uma descrição detalhada, para que constasse dos autos, do coldre de ombro e da Glock que estava portando. Depois passei ao cinto, extraindo descrições das algemas, do pente extra, do distintivo e da lata de spray de pimenta presos nele.
— Qual era o propósito de mostrar todas essas armas para o sr. La Cosse?
Whitten balançou a cabeça como se estivesse irritado comigo.
— Propósito nenhum. Estava quente ali dentro e eu tirei o paletó. Não queria mostrar coisa nenhuma.
— Então está dizendo ao tribunal que exibir arma, distintivo, pente reserva e spray de pimenta para meu cliente não foi um meio de intimidação contra o sr. La Cosse?
— É exatamente isso que estou dizendo ao tribunal.
— E quanto a isso?
Avancei o vídeo mais um minuto até o ponto em que Whitten puxava a cadeira sob a mesa e colocava o pé em cima. Nessa posição, o detetive contrastava com a pequena mesa e com o próprio La Cosse, que além de ser mais baixo era de constituição mais delicada.
— Eu não quis intimidar ninguém — disse Whitten. — Estava tendo uma conversa com ele.
Chequei as anotações em meu bloco amarelo e me certifiquei de ter incluído tudo que queria que constasse dos autos. Não pensava que Leggoe fosse deliberar em meu favor dessa vez, mas acreditava que tinha uma chance na apelação. Enquanto isso, tinha enfrentado um round com Whitten no banco das testemunhas, o que me ajudaria a preparar melhor o julgamento, quando precisaria agredi-lo para valer.
Antes de terminar a contrainquirição, me inclinei e conferenciei com La Cosse, como forma de cortesia.
— Deixei alguma coisa de fora? — sussurrei.
— Acho que não — sussurrou La Cosse. — Acho que a juíza sabe o que ele está fazendo.
— Vamos esperar que sim.
Endireitei o corpo na cadeira e olhei para a juíza.
— Sem mais perguntas, Excelência.
Como combinado previamente, Forsythe e eu devíamos submeter arrazoados por escrito sobre o pleito após o depoimento da testemunha. Sabendo muito bem como Whitten iria testemunhar, por conta da audiência preliminar, meu documento já estava pronto. Submeti-o a Leggoe e dei cópias à secretária do tribunal e a Forsythe. O promotor disse que teria sua resposta na tarde do dia seguinte, e Leggoe afirmou que planejava deliberar prontamente e bem antes do início do julgamento. O fato de que sua determinação não interromperia o cronograma do julgamento era um forte indicativo de que meu pleito fora em vão. Com as deliberações dos últimos anos, a Suprema Corte dos Estados Unidos modificara a lei para os casos envolvendo a Advertência de Miranda, dando à polícia uma margem de manobra mais ampla sobre quando e onde os suspeitos deviam ser informados de seus direitos constitucionais. Eu desconfiava de que a juíza Leggoe se decidiria pelo caminho mais seguro.
A juíza encerrou a audiência e os dois guardas do tribunal se aproximaram da mesa da defesa para levar La Cosse de volta à cela. Perguntei se seria possível conferenciar com meu cliente por alguns minutos, mas fui informado de que teria de fazer isso na cela do tribunal. Acenei para Andre e lhe disse que conversaríamos em breve.
Assim que os guardas o levaram, me levantei e comecei a pôr as coisas na pasta, juntando os documentos e as anotações que espalhara na mesa antes da audiência. Forsythe se aproximou para conversar. Parecia um cara decente e até então — pelo que eu sabia — não fizera nenhum jogo de gato e rato com a publicação compulsória nem nada assim.
— Deve ser duro — ele disse.
— O quê? — perguntei.
— Se agarrar nessas coisas, sabendo que a chance de sucesso é... quanto... uma em cinquenta?
— Talvez seja uma em cem. Mas quando você acerta... Cara, que maravilha.
Forsythe balançou a cabeça. Eu sabia que sua intenção não era apenas se compadecer da sina dos advogados de defesa.
— Então — disse ele, enfim. — Alguma chance de encerrar isso antes do julgamento?
Estava falando sobre um acordo. Forsythe mandara uma proposta em janeiro e outra em fevereiro. Nem respondi à primeira — que seria aceitar uma condenação de segundo grau, ou seja, La Cosse ficaria livre apenas em quinze anos. Ignorei a oferta e ela foi melhorada quando Forsythe voltou à carga em fevereiro. Dessa vez, a promotoria estava disposta a considerar o caso como crime passional e deixar que La Cosse se declarasse culpado de homicídio culposo. Ainda assim, La Cosse cumpriria dez anos de prisão. Como era meu dever, levei a proposta para ele, que rejeitou sem pensar duas vezes. “Dez anos podem virar cem se você está cumprindo pena por um crime que não cometeu”, disse ele, em um tom arrebatado. Essa paixão na voz me trouxe para seu lado e me levou a pensar que talvez ele fosse de fato inocente.
Olhei para Forsythe e abanei a cabeça.
— Andre não vai ceder — falei. — Ele segue afirmando que não cometeu esse crime e continua querendo ver se você pode provar o contrário.
— Então nada de acordo.
— Sem acordo.
— Então acho que a gente se vê na seleção do júri, 6 de maio.
Essa era a data que Leggoe determinara para o início do julgamento. Ela estava nos dando quatro dias no máximo para escolher um júri e um dia para fazer petições de última hora e preparar os discursos de abertura. O show começaria para valer na semana seguinte, quando a promotoria iniciasse a apresentação do caso.
— Ah, pode ser que você me veja antes disso. A gente nunca sabe.
Fechei a pasta com um estalo e me encaminhei para a porta de aço. O guarda do tribunal me escoltou para os fundos e encontrei La Cosse sozinho na cela, esperando.
— Ele vai ser levado daqui a quinze minutos — informou o guarda.
— O.k., obrigado — eu disse.
— Quando estiver pronto pra sair, é só bater.
Esperei até o guarda se retirar pela porta antes de virar e olhar para meu cliente pelas barras.
— Andre, estou preocupado. Parece que você não está se alimentando.
— E não estou mesmo. Como alguém pode comer quando está preso por uma coisa que não fez? Além disso, a comida de lá é uma merda. Eu quero ir embora, só isso.
— Eu entendo.
— Você vai ganhar esta, não vai?
— Vou dar meu melhor. Mas, só para você ficar sabendo, a promotoria continua oferecendo um acordo, caso você queira que eu negocie.
La Cosse negou enfaticamente.
— Não quero nem ouvir falar. Sem acordo.
— Foi o que eu pensei. Então vamos para o julgamento.
— E se a gente ganhar o pedido de anulação?
Encolhi os ombros.
— Não deposite esperanças nisso. Como falei, é uma possibilidade remota. Você deve esperar um julgamento.
La Cosse baixou a cabeça até sua testa encostar em uma das barras que nos separavam. Parecia que ia chorar.
— Olha, eu sei que não presto — disse. — Fiz muita coisa ruim na vida. Mas eu não cometi esse crime. Não fui eu.
— E vou fazer o melhor que posso para provar, Andre. Pode contar com isso.
Ele ergueu a cabeça para me fitar nos olhos e assentiu.
— Foi isso o que Giselle disse. Que podia contar com você.
— Ela disse isso? Contar comigo para quê?
— Você sabe, tipo, se alguma coisa acontecesse com ela, sabia que podia contar com você pra não deixar por isso mesmo.
Parei por um momento. Nos últimos cinco meses, minha comunicação com La Cosse fora limitada. Ele estava na cadeia, e eu, abarrotado de trabalho. A gente só conversou para as audiências em tribunal e durante os ocasionais telefonemas do módulo cor-de-rosa, onde estava instalado, na Men’s Central. Mesmo assim, eu imaginava que já tinha obtido dele tudo que era necessário para a defesa no julgamento. Mas o que ele acabava de dizer era informação nova e me fez parar para pensar, porque era sobre Gloria Dayton, que continuava um enigma para mim.
— Por que ela disse isso para você?
La Cosse balançou a cabeça ligeiramente, como se não entendesse o tom de urgência empregado por mim.
— Sei lá. A gente só estava conversando uma vez e ela mencionou você, dizendo que, se alguma coisa acontecesse, Mickey Mantle estaria lá pra rebater pra ela.
— Quando ela disse isso?
— Não lembro. Ela comentou e pronto. Falou que era pra eu dizer isso pra você.
Com a mão livre, agarrei uma das barras e cheguei mais perto do meu cliente.
— Você disse que me procurou porque ela falou que eu era um bom advogado. Não me contou nada sobre essas outras coisas.
— Eu tinha acabado de ser preso por assassinato, estava morrendo de medo. Queria que você me defendesse.
Me segurei para não enfiar as mãos pelas barras e agarrá-lo pela gola do uniforme laranja.
— Andre, me escuta. Quero que você me diga exatamente o que ela disse. Usando as palavras dela.
— Ela só disse que se alguma coisa acontecesse com ela eu tinha que prometer contar pra você. E daí aconteceu de verdade e eu fui preso. Então liguei pra você.
— Entre essa conversa e o crime, quanto tempo passou?
— Não consigo lembrar ao certo.
— Dias? Semanas? Meses? Vamos lá, Andre. Pode ser importante.
— Não sei. Uma semana, talvez mais. Não consigo lembrar. Aquele lugar, com todo o barulho e as luzes e aqueles animais... isso acaba com você, a gente pira. Não consigo lembrar das coisas, não consigo mais nem lembrar direito do rosto da minha mãe.
— Certo, calma. Pensa nisso quando estiver no ônibus e depois na cela. Quero que lembre exatamente quando essa conversa aconteceu. O.k.?
— Vou tentar, mas não garanto.
— O.k., então tenta. Agora preciso ir. Vou ver você antes do julgamento. Ainda tem muita coisa para preparar.
— Tudo bem. E desculpa.
— Pelo quê?
— Por deixar você grilado por causa da Giselle. Dá pra perceber que você ficou chateado.
— Não esquenta com isso. Só não deixa de comer o que servirem hoje à noite. Preciso que esteja forte durante o julgamento. Promete?
La Cosse balançou a cabeça, a contragosto.
— Prometo.
Me retirei em direção à porta de aço.
12
Atravessei a sala do tribunal de cabeça baixa, sem prestar atenção na audiência que a juíza Leggoe começara depois da nossa. Fui para a saída, nos fundos, refletindo sobre a história que La Cosse acabara de contar. Então Andre tinha me procurado depois da prisão porque Gloria Dayton queria que eu soubesse que algo aconteceu com ela, e não necessariamente porque achava que eu devia ser seu advogado. Havia uma diferença significativa entre as duas coisas e isso ajudava a aliviar o peso que eu carregara por meses em relação a Gloria. Mas será que ela queria que eu recebesse esse recado para vingá-la ou era uma advertência sobre algum perigo desconhecido? Essas perguntas traziam um caráter novo ao modo como eu via as coisas sobre Gloria e até mesmo sobre mim. Agora eu percebia que Gloria podia estar sabendo ou ao menos temendo que estivesse em perigo.
No momento em que deixei a sala do tribunal e passei à entrada abarrotada, fui abordado por Fernando Valenzuela. Val e eu nos conhecíamos havia muito tempo e a certa altura tivemos uma relação de trabalho financeiramente proveitosa para os dois. Mas as coisas azedaram anos antes e acabamos nos afastando. Agora, quando eu precisava de um fiador, em geral recorria a Bill Deen ou Bob Edmundson. Val era a terceira e remota opção da lista.
Valenzuela me passou um documento dobrado.
— Mick, é para você.
— O que é isso?
Peguei o documento e comecei a desdobrar com uma só mão, sacudindo para que abrisse.
— É uma intimação. Você foi notificado.
— Do que você está falando? Está entregando intimações agora?
— Esse é um dos meus muitos talentos. A pessoa precisa ganhar a vida. Segura assim pra mim.
— Vai à merda.
Eu já conhecia o procedimento. Ele queria tirar uma foto minha com o documento para comprovar a intimação. Eu tinha sido intimado, mas não ia posar para fotos. Segurei o papel atrás das costas. Mesmo assim, Valenzuela tirou uma foto com o celular.
— Tanto faz — comentou.
— Isso é totalmente desnecessário, Val — eu disse.
Ele guardou o celular e olhei para o papel. Na mesma hora vi o cabeçalho do caso: Hector Arrande Moya vs. Arthur Rollins, diretor da Instituição Correcional Federal de Victorville. Tratava-se de uma demanda 2241, ou seja, uma permutação de petição de habeas corpus. Era conhecida entre os advogados como “habeas verdadeiro” porque, mais do que um esforço desesperado de se agarrar a bagatelas legais como assistência jurídica ineficaz, se tratava de uma declaração de que havia uma nova e surpreendente evidência disponível provando inocência. Moya tinha uma nova carta na manga e isso de algum modo me envolvia, envolvendo também minha falecida cliente, Gloria Dayton, a única ligação entre mim e Moya. O motivo básico da ação em uma demanda 2241 era a alegação de que o requerente — nesse caso, Moya — estava sendo detido de forma ilegal, por isso a ação cível movida contra o diretor da instituição correcional. Haveria algo mais na demanda completa, a alegação de nova evidência destinada a chamar a atenção de um juiz federal.
— O.k., Mick, então sem ressentimentos?
Olhei do papel para Valenzuela. Ele estava outra vez com o celular na mão e tirou minha foto. Eu até havia me esquecido de sua presença. Podia ter ficado puto da vida, mas naquele momento estava intrigado demais.
— É, sem ressentimentos, Val. Se soubesse que entregava intimações, eu mesmo teria requisitado seus serviços.
Agora quem estava intrigado era Valenzuela.
— Quando quiser, cara. Você tem meu número. A grana está devagar no negócio das fianças, então só estou tirando por fora. Entende o que quero dizer?
— Entendo. Mas fala para seu empregador que, de advogado para advogado, intimação não é a maneira de...
Parei quando li o nome do advogado que emitiu a intimação.
— Sylvester Fulgoni?
— Isso mesmo, o escritório que mata a cobra e põe no pau.
Valenzuela riu, orgulhoso da resposta espirituosa. Mas eu estava pensando em outra coisa. Sylvester Fulgoni era na verdade um ex-peso pesado dos tribunais. Era estranho ser intimado por ele porque eu sabia que fora expulso da ordem e estava cumprindo pena por evasão fiscal em uma prisão federal. Fulgoni construíra uma carreira bem-sucedida processando departamentos de polícia por casos de corrupção, nos quais os homens de farda usaram a proteção do distintivo para se safar de acusações de agressão, extorsão e outros abusos de poder, às vezes até de homicídio. Fizera fortuna com acordos e veredictos de júri, abocanhando milhões em honorários. Só que não se dera ao trabalho de pagar impostos sobre a maior parte dos ganhos, e os órgãos de governo que tantas vezes processou acabaram descobrindo.
Fulgoni alegou ser alvo de uma conspiração vingativa que tinha o intuito de sabotar a defesa de seus clientes — vítimas de policiais e agentes do governo —, mas o fato era que sonegara impostos ou nem sequer declarara rendimentos por quatro anos consecutivos. Em casos assim, como a bancada do júri é composta de doze contribuintes, o veredicto será sempre contra você. Fulgoni apelou por quase seis anos, mas enfim não coube mais recurso à sentença e ele foi para a cadeia. Isso aconteceu apenas um ano antes, e eu estava com uma ligeira desconfiança de que Fulgoni fora parar na Instituição Correcional Federal de Victorville, que por acaso era o mesmo lugar de detenção de Hector Arrande Moya.
— Sly já saiu? — perguntei. — Não é possível que já tenha conseguido recuperar sua licença.
— Não. Quem está cuidando do caso é o filho dele, Sly Jr.
Eu nunca tinha ouvido falar a respeito de nenhum filho de Sylvester Fulgoni que, até onde lembrava, não era muito mais velho do que eu.
— Deve ser um advogado bem novinho, então.
— Eu não saberia dizer. Nunca vi o cara. Trato direto com a secretária. Olha, preciso ir, Mick. Tenho mais belezinhas dessas para entregar.
Valenzuela deu tapinhas na bolsa de couro que levava a tiracolo e se virou na direção da entrada do fórum.
— Mais alguma coisa sobre esse caso? — perguntei, mostrando a intimação.
Valenzuela fez uma careta:
— Qual é, Mick, você sabe que eu não posso...
— Eu despacho um bocado de intimações, você sabe, Val. Quer dizer, quem entrega para mim consegue juntar uma boa grana todo mês. Mas precisa ser alguém de confiança, sabe o que quero dizer? Alguém que está do meu lado, não contra mim.
Valenzuela sabia exatamente o que eu queria dizer. Seus olhos se iluminaram quando vislumbrou um jeito de sair do dilema em que se encontrava. Sinalizou com o dedo para que eu chegasse mais perto.
— Olha, Mick, quem sabe você pode me ajudar — disse.
Me aproximei.
— Claro — falei. — Do que você precisa?
Ele abriu a bolsa e começou a procurar entre os papéis ali dentro.
— Preciso ir até a DEA para encontrar um agente por lá, chamado James Marco. Você faz ideia de onde fica a DEA no Roybal Building?
— A DEA? Depende se é uma das forças-tarefa ou não. Elas ficam espalhadas por aquele edifício e em outros lugares da cidade.
Valenzuela assentiu.
— É, ele faz parte de um negócio chamado Interagency Cartel Enforcement Team. Acho que chamam de ICE-T, como o rapper, ou qualquer coisa assim.
Pensei sobre aquilo, me remoendo por dentro com a trama da intimação e tudo mais.
— Desculpa, não sei onde eles ficam lá dentro. Mais alguma coisa em que eu possa ajudar?
Valenzuela voltou a olhar em sua bolsa.
— Tem, mais uma. Depois da DEA, preciso ver uma mulher chamada Kendall Roberts, escreve com um K e dois L. Ela mora em Vista Del Monte, Sherman Oaks. Por acaso você sabe onde fica isso?
— Assim de cabeça, não.
— Bom, acho que vou ter que recorrer ao velho GPS, então. A gente se vê, Mick.
— Certo, Val. Eu ligo quando tiver a próxima pilha de trabalho.
Depois de observá-lo se afastar pelo saguão, fui até um dos bancos encostados à parede. Encontrando um pequeno espaço vago para sentar, abri a pasta para escrever os nomes que Valenzuela acabara de me passar. Então peguei o celular e liguei para Cisco, citando os nomes James Marco e Kendall Roberts e pedindo para que ele tentasse descobrir tudo o que conseguisse sobre os dois. Mencionei que Marco seria supostamente agente federal, e que era provável que trabalhasse na Drug Enforcement Agency. Cisco resmungou. Todo mundo que trabalha para a lei toma providências para se proteger, eliminando o máximo de rastro digital e informação pública possível, mas os agentes da DEA levam isso a um patamar inteiramente novo.
— Eu podia muito bem estar atrás de um agente da CIA que dava no mesmo — se queixou Cisco.
— Só vê o que consegue descobrir — eu disse. — Comece pela Interagency Cartel Enforcement Team, a ICE-T. Nunca se sabe, a gente pode dar sorte.
Saí do fórum depois de desligar e vi o Lincoln estacionado na Spring Street. Sentei no banco traseiro e já ia pedindo a Earl para rodar até a Starbucks quando percebi que não era Earl no volante. Eu estava no Lincoln errado.
— Ah, desculpe, errei de carro — falei.
Saí e liguei para o celular de Earl. Ele disse que estava estacionado na Broadway porque um fiscal de trânsito o mandara sair da Spring. Esperei cinco minutos por sua chegada e usei o tempo para telefonar para Lorna e saber das novidades. Ela comentou que não estava acontecendo nada que valesse a pena mencionar. Contei sobre a intimação de Fulgoni, marcada para a manhã da terça seguinte, no escritório dele, em Century City. Ela disse que anotaria na agenda e pareceu partilhar minha irritação com Fulgoni por utilizar Val para me entregar a citação. Tradicionalmente, não é necessário que um advogado mande a intimação para outro. Em geral, um telefonema e um pouco de cortesia profissional bastam.
— Que babaca! — disse Lorna. — Mas e como está Val?
— Acho que bem. Eu disse que ia passar nossas intimações pra ele entregar.
— E você falou sério? Você tem Cisco.
— Pode ser. Vamos ver. Cisco odeia fazer esse trabalho, acha que está abaixo de sua capacidade.
— Mas faz de qualquer maneira, e sem nenhum custo adicional pra você.
— É verdade.
Encerrei a ligação quando Earl se aproximava com o Lincoln certo. Fomos a Starbucks, na Central, assim eu podia usar o wi-fi.
Uma vez on-line, fui para o site do PACER e pesquisei o número do caso constando da intimação. A ação de Sylvester Fulgoni Jr. era de fato uma petição de habeas verdadeiro buscando revogar a condenação de Hector Arrande Moya. Mencionava grave impropriedade do governo na conduta do agente da DEA, James Marco. A ação alegava que, antes de Moya ser preso pelo DPLA, Marco usou um informante confidencial para entrar no quarto de hotel de Moya e plantar uma arma de fogo sob o colchão. Marco usou a informação para orquestrar a prisão de Moya pelo DPLA e para que a arma fosse encontrada pelos policiais que fizeram a batida. A arma permitiu aos promotores acrescentar um agravante contra Moya, que se tornou qualificado para uma pena perpétua em prisão federal. E foi de fato o que aconteceu após a condenação.
O governo ainda não tinha apresentado resposta, pelo menos até onde pude pesquisar pela internet. Mas era cedo. A ação de Fulgoni datava de 1o de abril.
— Dia da mentira — pensei em voz alta.
— Como é, chefe? — perguntou Earl.
— Nada, Earl. Só estava falando sozinho.
— Quer que vá pegar alguma coisa?
— Não, estou tranquilo. Você quer um café?
— Não, eu não.
O Lincoln era equipado com impressora em uma prateleira de trabalho acoplada no banco do passageiro — eu podia apostar que os caras dos outros Lincoln nunca tinham pensado naquilo. Imprimi uma cópia da ação e em seguida fechei o computador. Quando Earl me passou o papel por cima do banco, reli a petição do começo ao fim. Então recostei na porta e tentei imaginar qual seria o lance e que papel eu representava naquilo.
Achei bastante óbvio que o informante confidencial mencionado reiteradas vezes no documento só podia ser Gloria Dayton. Havia claramente a inferência de que sua prisão e minha negociação de acordo a seu favor foram orquestradas pela DEA e pelo agente Marco. Sem dúvida era uma boa história mas, por ser um dos personagens dela, achei muito difícil de engolir. Tentei recordar com o máximo de detalhes possível o caso que uniu Gloria Dayton e Hector Arrande Moya. Me lembrei de ter encontrado Gloria na cadeia feminina no centro, e de ela ter me detalhado sua prisão. Sem nenhuma sugestão por parte dela, vi a possibilidade de negociar informação sua em troca de um acordo em que ela escaparia do julgamento contanto que se comprometesse a passar pela reabilitação. A ideia tinha sido toda minha. Gloria não era o tipo de cliente que entendesse nem que conhecesse a lei. E, quanto a Marco, eu nunca vira nem falara com o sujeito na vida.
Tive de considerar, porém, que Gloria fora instruída a dizer apenas o suficiente para colocar as engrenagens na cabeça de seu advogado para funcionar. Parecia uma possibilidade remota, mas eu precisava admitir que os últimos cinco meses haviam provado que Gloria possuía facetas que eu desconhecia completamente. Talvez esta fosse a suprema revelação a seu respeito: a de que me usara como peça para a DEA.
Impaciente, liguei para Cisco outra vez e perguntei que progresso tinha feito investigando os nomes que eu passei.
— Você me entregou os nomes faz menos de meia hora — protestou Cisco. — Sei que está com pressa nesse negócio, mas meia hora?
— Preciso saber o que está acontecendo. Agora.
— Bom, estou indo o mais rápido que dá. Posso falar sobre a mulher, mas ainda não tenho nada sobre o agente. Esse vai ser difícil de tirar da toca.
— O.k., então me fala sobre ela.
Houve um momento de silêncio enquanto Cisco aparentemente juntava suas anotações.
— O.k., Kendall Roberts — começou. — Ela tem trinta e nove anos e mora em Vista Del Monte, Sherman Oaks. A ficha dessa mulher começa lá em meados dos anos 1990. Várias detenções por prostituição e coisas assim. Você sabe, o negócio de acompanhante de sempre. É garota de programa. Ou era, melhor dizendo. A ficha está limpa nos últimos seis anos.
Isso significava que estava na ativa quando Gloria Dayton trabalhava como acompanhante com o nome de Glory Days. Eu desconfiava de que Roberts e Dayton se conheciam ou se esbarravam na época, e esse foi o motivo para a intimação de Fulgoni.
— O.k. — eu disse. — O que mais?
— Mais nada — disse Cisco. — O que eu contei para você é tudo o que sei. Por que não me liga de novo daqui a uma hora?
— Não, a gente se vê amanhã. Quero todo mundo na sala de reuniões às nove da manhã. Consegue passar o recado para os outros?
— Claro. Isso inclui Bullocks?
— É, Bullocks também. Quero todo mundo lá pondo a cabeça para funcionar nesse negócio. Pode ser exatamente o que a gente precisa no caso La Cosse.
— Você quer dizer a hipótese do laranja: Moya matou Dayton?
— Exato.
— O.k. Bom, vai estar todo mundo na sala de reuniões às nove.
— E nesse meio-tempo você tem que descobrir quem é esse tal de Marco. A gente precisa mesmo disso.
— Já estou fazendo meu melhor. Estou atrás.
— Só me encontra esse cara.
— Falar é fácil. Enquanto isso, o que você vai fazer?
Era uma boa pergunta — boa o bastante para eu hesitar antes de dar uma resposta.
— Estou indo até o Valley para conversar com Kendall Roberts.
Cisco rejeitou o plano na mesma hora.
— Espera aí, Mickey, é bom eu ir junto. Você não sabe no que vai estar se metendo com essa mulher. Não sabe com quem ela vai estar. Se fizer uma pergunta errada, pode ter encrenca. Deixa eu encontrar você lá.
— Não, continua em cima desse tal de Marco. Eu tenho Earl e vou ficar bem. Não vou fazer nenhuma pergunta errada.
Cisco me conhecia bem o bastante para saber que um protesto bastava: eu não mudaria de ideia sobre levá-lo junto para apertar Roberts.
— Bom — disse ele —, então boa caçada. Me liga se precisar.
— Pode deixar.
Encerrei a ligação.
— Tudo bem, Earl, vamos nessa. Sherman Oaks, pisa fundo.
Earl deu partida no carro e logo engatou a quinta.
Senti a adrenalina aumentando no compasso da velocidade. Coisas novas estavam acontecendo. Coisas que eu ainda não entendia. Mas tudo bem. Prometi a mim mesmo que em breve entenderia tudo.
13
Parecia provável para mim que Fernando Valenzuela entregaria suas intimações na ordem em que me perguntara os nomes. O Edward R. Roybal Federal Building ficava apenas a algumas quadras do Criminal Courts Building, e Val provavelmente passaria lá primeiro para entregar a intimação a James Marco. Depois seguiria para o Valley, a fim de notificar Kendall Roberts. Não seria fácil para Val encontrar Marco: agentes federais fazem de tudo para evitar receber intimações. Eu sabia por experiência própria. Em geral, quem recebia o documento era um supervisor, que com relutância aceitava a intimação em nome do agente citado. O agente envolvido quase nunca recebia a notificação pessoalmente.
Eu imaginava que saber de tudo isso me dava uma vantagem sobre Val. Se por acaso Roberts estivesse em casa, eu conseguiria chegar a ela muito antes dele. Claro, eu não fazia ideia do que poderia conseguir chegando lá primeiro, mas esperava ser capaz de pegar Roberts com a guarda baixa, antes que ela soubesse que estava sendo arrastada para uma espécie de processo federal envolvendo um chefão de cartel preso.
Eu continuava precisando saber mais do que apenas o nome de Kendall Roberts. Tinha a impressão de que ela e Gloria Dayton frequentavam círculos semelhantes na década de 1990 e também no começo dos anos 2000. A informação de Cisco era um ponto de partida, mas não bastava. O melhor modo de conduzir uma conversa com uma pessoa implicada em um caso é dispor de mais informação do que ela.
Pesquisei o nome Sylvester Fulgoni Jr. no aplicativo do Google do celular e depois liguei para o número mencionado. Uma mulher com voz grave e rouca que parecia mais apropriada para receber pedidos de reserva no Boa Steakhouse do que atender ligações em um escritório de advocacia me deixou na espera. Rodávamos pela via expressa 101 e o trânsito estava pesado. Pelo que podia calcular, faltava ainda meia hora para chegar a Sherman Oaks, de modo que não me preocupei com a demora nem com a música mexicana brega tocando na minha orelha.
Estava recostado na janela e prestes a fechar os olhos quando uma voz masculina jovem soou em meu ouvido.
— Aqui é Sylvester Fulgoni Jr. O que posso fazer pelo senhor, dr. Haller?
Sentei direito, peguei na pasta um bloco de anotações e apoiei na coxa.
— Bem, acho que poderia começar me explicando por que fui intimado hoje no fórum. Estou imaginando que o senhor deve ser um advogado novato, dr. Fulgoni, porque esse negócio todo foi desnecessário. Só o que precisava ter feito era me ligar. O nome disso é cortesia profissional. Advogados não mandam citações para outros advogados, principalmente na frente de colegas, em pleno fórum.
Houve uma pausa e depois um pedido de desculpa.
— Lamento muito pelo ocorrido. Estou envergonhado, dr. Haller. O senhor tem razão, estou começando na advocacia e tentando buscar meu espaço. Se lidei mal com a situação, por favor aceite minhas desculpas.
— Desculpas aceitas e pode me chamar de Michael. Por que não me diz do que se trata? Hector Arrande Moya? Não ouço esse nome há sete ou oito anos.
— É, o sr. Moya tem andado afastado por muito tempo e estamos procurando melhorar sua situação. O senhor teve oportunidade de olhar para o caso a que se refere a intimação?
— Dr. Fulgoni, eu mal tenho tempo de olhar meus próprios casos. Na verdade, preciso alterar minha agenda para acomodar o prazo que o senhor colocou na intimação. Deveria ter deixado a hora do depoimento em aberto ou marcado uma data conveniente para ambas as partes.
— Tenho certeza de que podemos mudar isso caso a manhã de terça não esteja bom. E, por favor, pode me chamar de Sly.
— Tudo bem, Sly. Acho que consigo dar um jeito. Mas me diga por que estou sendo chamado a depor em relação a Hector Moya. Ele nunca foi meu cliente e não tenho nada a ver com ele.
— Mas já teve... Michael. Em certo sentido, foi você quem colocou Moya na prisão e por isso também pode ser a chave para tirar meu cliente de lá.
Ao ouvir isso, fiquei paralisado. A primeira parte da afirmação de Fulgoni era discutível, mas, verdade ou não, a última coisa que eu queria era um figurão do cartel de drogas pensando a meu respeito, mesmo que isolado em uma prisão federal.
— Pode ir parando por aí — falei, enfim. — Dizer que eu coloquei seu cliente na prisão não vai servir para conseguir nenhuma ajuda ou cooperação da minha parte. Com base em que está afirmando uma coisa tão ofensiva e negligente como essa?
— Ah, deixa disso, Michael. Já faz oito anos e a gente sabe os detalhes. Você fez um acordo que comutou a pena da sua cliente, Gloria Dayton, em reabilitação e entregou Hector Moya com uma maçã na boca, de bandeja, para os federais. Agora que sua cliente está morta você pode contar o que aconteceu.
Tamborilei no apoio do banco enquanto tentava pensar sobre o melhor modo de lidar com aquilo.
— Conta para mim — falei, depois de um tempo —, como sabe as coisas que acha que sabe sobre Gloria Dayton e o caso dela?
— Não vou entrar em detalhes com você, Michael. Esse assunto é interno e sigiloso. Confidencial, pra falar a verdade. Seja como for, precisamos mesmo pegar seu depoimento enquanto preparamos nosso caso. Fico aguardando você na terça-feira.
— Não é assim que isso vai funcionar, Júnior.
— Ãhn?
— Você ouviu. Pode ser que você me veja na terça, pode ser que não. Se eu entrar em qualquer tribunal no CCB vou fazer o juiz anular esse papel em cinco minutos. Está entendendo? Então, se quiser um encontro na terça, é melhor começar a falar. Não me interessa se o assunto é interno, restrito, sigiloso ou confidencial. Não vou dar nenhum depoimento com o rabo entre as pernas. Se espera minha presença, pode começar a me contar exatamente por que me quer aí.
Isso mudou sua postura e ele gaguejou ao responder:
— Hum... olha... vamos fazer o seguinte. Deixa eu ligar de volta para você daqui a pouco, Michael. Prometo que é rápido.
— Certo, estou esperando.
Desliguei. Eu sabia o que Sly Jr. faria: consultaria seu pai por telefone em Victorville e perguntaria como proceder comigo. Ficou bem claro pela ligação que o filho estava seguindo as instruções do pai. A coisa toda provavelmente fora arquitetada no pátio de recreação em Victorville: Sly pai procurou Moya e sugeriu que arriscasse um habeas verdadeiro. A partir desse ponto, Sly pai provavelmente redigiu a mão a petição ou as instruções para seu filho, na biblioteca da prisão. A única pergunta que me fazia era como eles sabiam que Gloria Dayton fora a informante confidencial no caso Moya?
Olhei pela janela e vi que estávamos avançando bem agora, quase chegando ao Cahuenga Pass. Earl encontrava as brechas e costurava como um atacante entre os zagueiros. Era muito bom nisso. Chegaríamos na casa de Roberts mais cedo do que eu esperava.
Roberts morava a algumas quadras do Ventura Boulevard. Se a pessoa estava à procura de algum endereço de status, então a parte sul do Ventura Boulevard era o lugar para se estar no Valley. Após meu divórcio, minha ex-esposa comprou um apartamento em um condomínio uma quadra ao sul do Ventura Boulevard, na Dickens Street, e essa distinção fora importante para ela — além de cara. Naturalmente, eu estava pagando em parte pelo lugar, já que era onde morava nossa filha.
Roberts ficava alguns quarteirões ao norte dessa linha, na faixa entre o Ventura Boulevard e a Ventura Freeway. O bairro era meio que um patamar abaixo, com uma mistura de prédios residenciais e casas isoladas.
Faltando uma quadra para chegar, vi que passávamos em um trecho de Vista Del Monte com uma casa após a outra, em vez de prédios residenciais. Disse a Earl para estacionar um minuto, para que eu passasse para o banco do carona. Primeiro precisei desconectar a impressora e levar a plataforma de apoio para o porta-malas.
— Só para o caso dela ver a gente chegando — comentei, assim que entrei e fechei a porta.
— O.k. — disse Earl. — Qual é o plano?
— Com sorte a gente para na frente e parece coisa oficial, nesse carro. Você vai comigo até a porta e eu falo.
— Quem a gente vai ver?
— Uma mulher. Preciso que ela me diga o que sabe.
— Sobre o quê?
— Não sei.
Esse era o problema. Assim como eu, Kendall Roberts estava sendo intimada na apelação de Moya. Eu mal fazia ideia de qual seria minha contribuição para o caso, muito menos a de Roberts.
Estávamos com sorte. Havia um meio-fio pintado de vermelho e um hidrante bem na frente do rancho estilo anos 1950, no endereço que Cisco passou.
— Estaciona ali para ela ver o carro.
— A gente pode ser multado por causa do hidrante.
Abri o porta-luvas, tirei uma placa dizendo CLERO e pus no painel. Quase sempre funcionava e não custava nada tentar.
— Vamos ver — eu disse.
Antes de descer do carro, tirei a carteira, peguei meu cartão plastificado da Ordem dos Advogados em um dos compartimentos do fundo e o enfiei sob a janelinha transparente da carteira de motorista. Elaborei um rápido plano de ação com Earl e então descemos. Cisco dissera que a ficha de prisão de Kendall Roberts se encerrava em 2007. Meu palpite era que ela deixara aquela vida e provavelmente andava na linha. Eu esperava usar isso como uma vantagem — se é que a mulher estava em casa em pleno dia útil.
Pus os óculos escuros quando nos aproximamos: meu rosto aparecera na TV e em outdoors espalhados pela cidade no ano anterior, durante a corrida eleitoral, e eu não pretendia ser reconhecido. Bati com firmeza à porta e recuei um passo, ficando perto de Earl, que estava com um Ray-Ban Wayfarer, o tradicional terno preto e gravata. Eu usava um Corneliani carvão com risca de giz. Então, como estávamos lado a lado e de óculos escuros, lembrei da dupla cara negro/cara branco daquela popular franquia de filmes que eu tinha visto com Hayley em tempos mais felizes da minha vida. Sussurrei para Earl:
— Como é mesmo o nome daqueles filmes sobre dois caras que caçam alienígenas para uma agência secreta do g...
A porta foi aberta de repente. Uma mulher que aparentava ter um pouco menos do que os trinta e nove anos que Cisco determinara para Roberts estava parada. Era alta e esbelta, com o cabelo castanho-avermelhado na altura dos ombros. Até onde eu podia perceber, não usava maquiagem, nem precisava. Vestia calça de agasalho cinza e uma camiseta rosa com a estampa GOT FLEX?
— Kendall Roberts?
— Pois não?
Comecei a tirar a carteira do bolso interno do paletó.
— Meu nome é Haller. Represento a Ordem dos Advogados da Califórnia e este é Earl Briggs. Gostaria de saber se podemos fazer algumas perguntas sobre uma situação que estamos investigando.
Segurei a carteira aberta por um breve momento, de modo que ela pudesse ver minha identificação da Ordem dos Advogados. Tinha o logo da justiça com a balança e o aspecto era bem oficial. Antes que olhasse por tempo demais, fechei a carteira com um rápido movimento de mão e a recoloquei no bolso interno do paletó.
— Não vamos demorar muito.
Ela balançou a cabeça.
— Não entendo — disse. — Não tenho nada... com a justiça no momento. Deve ser algum tipo de equí...
— Não tem relação com a senhora. Envolve outras pessoas, a senhora só está envolvida indiretamente. Podemos entrar, ou prefere nos acompanhar até nosso escritório em Van Nuys para conversar?
Era uma aposta arriscada propor outro lugar que na verdade não existia, mas minha intuição dizia que ela não ia querer sair de casa.
— Que outras pessoas? — ela quis saber.
Eu esperava que ela não perguntasse isso antes de a gente ter entrado. Mas este era o problema: eu estava blefando, tentando agir como se soubesse de alguma coisa a respeito de algo de que nada sabia.
— Gloria Dayton, para começar. A senhora talvez a conheça como Glory Days.
— O que tem ela? Eu não tenho nenhuma relação com ela.
— Está morta.
Não posso dizer que ela pareceu surpresa. Talvez ainda não soubesse da notícia, mas tinha consciência de que a vida que Gloria levava podia terminar mal.
— Ela morreu em novembro, assassinada — eu disse. — Estamos investigando como o processo dela foi conduzido. Há questões éticas envolvidas na conduta do advogado dela. Podemos entrar? Prometo que não vai tomar muito do seu tempo.
Ela hesitou, mas então deu um passo para trás. Estávamos dentro. Provavelmente, deixar dois estranhos entrarem em sua casa era contra seus instintos, mas era provável também que ela não quisesse discutir o assunto do lado de fora, na varanda, diante dos vizinhos. Passei pela porta e Earl me seguiu. Kendall nos conduziu até a sala de estar, apontou um sofá e sentou em uma cadeira diante de nós.
— Olha, lamento muito essa notícia de Glory. Só deixem eu esclarecer que larguei aquele tipo de vida faz muito tempo e não quero ser arrastada de volta. Não sei nada sobre o que Glory estava fazendo, ou sobre a condução do caso dela, ou a respeito do que aconteceu com ela. Tem anos que não nos falávamos mais.
— Entendemos isso e não estamos aqui para arrastá-la de volta a lugar nenhum — disse eu. — Na verdade, queremos ajudar a evitar que isso aconteça.
— Duvido muito. Ainda mais quando aparecem na minha casa desse jeito.
— Lamento, mas essas perguntas precisam ser feitas. Vou tentar ser o mais breve possível. A primeira pergunta é simples. Qual era sua relação com Gloria Dayton? Pode ser franca e honesta. Sabemos que sua ficha está limpa há muito tempo. Isso não tem a ver com a senhora. É sobre Gloria.
Roberts ficou em silêncio por um momento enquanto tomava uma decisão. Então começou a falar.
— A gente dava cobertura uma pra outra e usava o mesmo serviço de atendimento. Se uma estava ocupada e a outra livre, o serviço sabia como ligar para nós. Éramos três. Glory, eu e Trina. Como a gente era parecida, os clientes raramente percebiam, a menos que fossem clientes antigos.
— Qual o sobrenome de Trina?
— Como vocês não sabem?
— Apenas porque o nome dela não surgiu na investigação.
Ela olhou desconfiada para mim, antes de continuar, provavelmente querendo encerrar a conversa o mais rápido possível.
— Trina Rafferty. No site, ela usava o nome de guerra, Trina Trixxx, com três x.
— Por onde anda Trina Rafferty hoje em dia?
Pergunta errada.
— Não faço ideia! — ela exclamou. — Será que não escutou nada do que eu disse? Não estou mais nessa! Tenho um emprego, um negócio, uma vida. Não tenho mais nada a ver com aquilo!
Ergui a mão em um gesto apaziguador.
— Desculpe, desculpe. Só achei que a senhora talvez soubesse, que podiam ter mantido contato, só isso.
— Eu não mantive contato com nada daquilo, o.k.? Está entendendo agora?
— Estou, eu entendo. Percebo que nossa conversa está trazendo velhas lembranças.
— Está e eu não estou gostando.
— Peço desculpas. Vou tentar ser breve. Então a senhora disse que vocês eram três e que as ligações eram gerenciadas por um serviço de atendimento telefônico. Se o cliente perguntasse pela senhora e a senhora não estivesse disponível, a ligação iria para Glory ou Trina e vice-versa, está correto?
— Correto. O senhor fala como advogado.
— Acho que é porque eu sou advogado. Certo, a próxima pergunta.
Hesitei, porque era a pergunta da hecatombe ou da admissão na terra prometida dos fatos.
— Na época, qual era sua ligação com Hector Arrande Moya?
Roberts me encarou sem expressão por um momento. No início, achei que era porque lancei um nome que nunca escutara antes. Então vi o reconhecimento em seus olhos, e o medo.
— Quero que saiam agora mesmo — disse, com calma.
— Não entendo — falei. — Eu só...
— Fora, os dois! — ela gritou. — Eu vou morrer por causa de vocês! Não tenho mais nada a ver com isso. Vão embora e me deixem em paz!
Ela se levantou e indicou a porta. Comecei a me levantar, percebendo que arruinara tudo ao mencionar Moya.
— Pode ir sentando agora mesmo!
Era Earl. E estava falando com Roberts. Ela olhou para ele, atordoada pela força de sua voz grave.
— Eu mandei sentar — ele disse. — Não vamos embora daqui enquanto não soubermos sobre Moya. E não queremos provocar a morte de ninguém. Na verdade, estamos tentando salvar sua vida. Então pode sentar e contar tudo o que sabe.
Roberts lentamente voltou a sentar. Eu também sentei e acho que estava tão atordoado quanto ela. Já tinha usado Earl na jogada de falsos investigadores, mas essa era a primeira vez que ele abria a boca.
— Tudo bem — ele disse, depois que todos voltaram a seus lugares. — Fale sobre Moya.
14
Pelos vinte minutos seguintes, Kendall Roberts nos contou uma história de drogas e prostituição em Los Angeles. Disse que as duas coisas eram uma combinação frequente no mercado de acompanhantes de luxo, com garotas fornecendo os dois serviços para o cliente. Isso mais do que dobrava o lucro de cada programa. Era aí que entrava Hector Moya: embora fosse um intermediário que transportava quilos de cocaína pela fronteira para distribuir entre traficantes de nível inferior na rede, ele tinha uma queda por prostitutas americanas e sempre estava com alguma quantidade de pó disponível para uso próprio. Moya pagava os programas com cocaína e rapidamente se tornou fornecedor para inúmeras acompanhantes de alta classe que trabalhavam em West Hollywood e Beverly Hills.
Ao ouvir o relato, ficou óbvio para mim que o que eu achava que sabia sobre Gloria Dayton estava longe de ser completo. Isso também foi confirmado por minhas suspeitas iniciais de que, no último acordo feito no tribunal, eu não passara de um fantoche manipulado cuidadosamente por Gloria e outras pessoas. Tentei manter uma fachada de indiferença e de já estar sabendo tudo que Roberts contava, mas por dentro me sentia usado e humilhado, mesmo depois de um intervalo de oito anos.
— Certo, e há quanto tempo a senhora, Glory e Trina conheciam Hector antes de ele ser preso e pegar perpétua? — indaguei, assim que ela terminou a história.
— Ah, acho que alguns anos. Ele vivia por perto.
— E como ficou sabendo que ele tinha sido preso?
— Trina me contou. Lembro que ela ligou para dizer que ouviu que Hector tinha dançado com a DEA.
— Mais alguma coisa que se lembre?
— Só que ela disse que a gente ia precisar achar outro fornecedor, se ele ficasse preso. Aí eu disse que não estava interessada, porque queria sair daquela vida. E logo depois foi exatamente o que fiz.
Tentei absorver aquilo tudo, pensando em como podia encaixar no lance de Fulgoni, fosse ele qual fosse.
— Sra. Roberts, conhece um advogado chamado Sylvester Fulgoni? — perguntei.
Vincos se formaram no canto dos seus olhos, e ela respondeu que não.
— Nunca ouviu falar?
— Não.
Meu pressentimento era de que Fulgoni precisava de Roberts como testemunha de corroboração. Seu depoimento sobre Moya confirmaria algo que Fulgoni já sabia. Isso apontava para Trina Trixxx como a origem provável da informação e a possível fonte que entregou o nome Gloria Dayton. Valenzuela não dissera nada sobre intimar Trina Rafferty. Talvez porque Fulgoni já contasse com ela a bordo.
Olhei para Kendall.
— Alguma vez falou com Glory sobre Moya e a prisão?
— Não. Na verdade, eu achava que ela havia caído fora do negócio na mesma época. Ela me ligou uma vez e disse que estava em uma clínica de reabilitação e que deixaria a cidade assim que saísse. Eu não fui embora da cidade, mas larguei o negócio.
Assenti.
— O nome James Marco diz alguma coisa para a senhora?
Examinei seu rosto à procura de uma reação ou de algum tipo de sinal denunciador. Ao fazer isso, percebi como ela era mesmo bonita, de um jeito pouco chamativo. Ela movimentou a cabeça e seu cabelo balançou sob o queixo.
— Não, deveria?
— Não sei.
— Ele era um cliente? A maioria desses caras não usa o nome verdadeiro. Se o senhor tivesse uma foto eu podia dar uma olhada.
— Ele não era um cliente, até onde eu sei. É um agente federal. Da DEA, imagino.
Ela balançou a cabeça.
— Então não conheço. Não topei com nenhum agente da DEA na época, graças a Deus. Conhecia algumas garotas que faziam programa com os federais. Os federais eram os piores. Eles nunca aliviavam a barra delas, entende o que quero dizer?
— Quer dizer como informantes?
— Se você estivesse na mão deles, não podia nem sonhar em largar essa vida. Eles não iam deixar. Eram piores que cafetão. Queriam que você arrumasse casos para eles investigarem.
— Glory ficou enroscada desse jeito com Marco?
— Não que tenha me contado.
— Mas pode ser.
— Tudo é possível. Se você andava dedurando para os federais, não ia sair por aí anunciando.
Tive de concordar com ela. Tentei pensar na pergunta seguinte a fazer, mas me deu um branco.
— O que a senhora faz agora? — perguntei, enfim. — Para ganhar a vida, quero dizer.
— Dou aula de ioga. Tenho um estúdio no bulevar. O que o senhor faz agora?
Olhei para ela e sabia que o jogo terminara.
— Eu sei quem é o senhor — ela disse. — Estou reconhecendo, agora. O senhor foi advogado da Glory. Também é o advogado que livrou da cadeia aquele cara que atropelou e matou duas pessoas.
Confirmei com um aceno.
— Isso, sou aquele advogado. E peço desculpas pela farsa. Só estou tentando descobrir o que aconteceu com Glory e...
— É difícil?
— O que é difícil?
— Conviver com seu passado.
Havia um tom pouco amistoso em sua voz. Antes que eu tivesse tempo de responder, houve uma forte batida na porta, que assustou todo mundo na sala. Roberts se curvou para levantar, mas ergui as mãos e baixei a voz.
— Acho que não vai querer atender.
Ela ficou paralisada, a meio caminho da cadeira, e sussurrou de volta.
— Por quê?
— Porque acho que é um homem com uma intimação. Ele está trabalhando para o advogado de Moya: Fulgoni. Quer conversar e oficializar para os autos do processo algumas das coisas sobre as quais estamos falando aqui.
Roberts voltou a sentar em sua cadeira, seu rosto demonstrando o medo de Hector Arrande Moya. Fiz um aceno para Earl, que se levantou e foi em silêncio até o vestíbulo, para checar.
— O que eu faço? — sussurrou Roberts.
— Por enquanto não atende — falei. — Ele...
Uma batida ainda mais forte ecoou pela casa.
— Ele precisa entregar a intimação pessoalmente. Então, se evitar o encontro, não precisa responder à citação. Tem uma saída nos fundos? Ele pode ficar aí na frente, esperando.
— Ai, meu Deus! Por que isso está acontecendo?
Earl voltou para a sala. Tinha olhado pelo olho mágico.
— Valenzuela? — sussurrei.
Ele confirmou. Olhei outra vez para Roberts.
— Ou, se preferir, posso aceitar a intimação em seu nome e depois procurar um juiz para nulificar.
— O que isso quer dizer?
— Anular. Assegurar que a senhora não se envolva, que não precise prestar depoimento.
— E quanto isso vai me custar?
Movimentei a cabeça.
— Nada. Eu faço isso e pronto. Uma mão lava a outra. Como me ajudou aqui, deixo a senhora fora disso.
Era uma oferta que eu não estava seguro de poder cumprir. Mas algo em seu medo me levou a dizer isso. Algo no modo como percebeu a verdade terrível de que não deixara o passado para trás mexeu comigo. Era um sentimento que eu podia compreender.
Bateram de novo, e em seguida Valenzuela chamou Roberts pelo nome. Earl voltou ao olho mágico.
— Eu tenho um negócio — sussurrou Roberts. — Clientes. Eles não sabem o que eu fazia no passado. Se isso se espalhar, eu...
Ela estava à beira das lágrimas.
— Não se preocupe. Não vai acontecer.
Eu não sabia por que estava fazendo aquelas promessas. Embora me sentisse confiante de que conseguiria anular a intimação, Fulgoni podia simplesmente recomeçar o processo. E não havia como controlar a mídia. No momento, a coisa estava voando fora do radar mas, como a apelação de Moya continha acusações de impropriedade administrativa, se houvesse uma ampla divulgação das alegações, isso provavelmente chamaria a atenção. Se o interesse se estenderia para uma personagem secundária como Kendall Roberts era uma incógnita, mas não seria alguém como eu que conseguiria impedir.
E depois havia o caso La Cosse. Eu ainda nem tinha certeza de como poderia usar Moya e sua apelação na defesa de meu cliente, mas no mínimo sabia que era possível introduzir isso como uma tática diversionária para atrapalhar o processo montado pela promotoria, levando os jurados a pensarem em outras possibilidades.
Earl voltou à sala.
— Ele foi embora — disse.
Olhei para Roberts.
— Mas vai voltar — falei. — Ou ficar lá fora e esperar que a senhora saia. Quer que eu cuide disso para a senhora?
Ela pensou por um momento e depois assentiu.
— Quero, obrigada.
— Tudo bem.
Pedi seu número de telefone, o endereço do estúdio de ioga e anotei. Informei que avisaria quando tivesse me livrado da intimação. Depois agradeci e saí junto com Earl. Estava pegando o celular para ligar e dizer a Valenzuela que voltasse e entregasse a citação para mim, quando vi que não precisava. Valenzuela estava à minha espera, sentado no capô do Lincoln, apoiando as mãos atrás do corpo e com o rosto erguido para o sol. Falou sem se virar e sem mudar de posição.
— Sério, Mick? Clero? Sem brincadeira, dá para descer mais baixo que isso?
Abri bem os braços, como um pastor diante da congregação.
— Meu púlpito é o poço do tribunal. Eu prego para doze apóstolos, os deuses da culpa.
Valenzuela me olhou com indiferença.
— Bom, enfim... É uma baixaria mesmo assim, e você devia sentir vergonha. Isso é quase tão baixo quanto vir correndo antes de mim e se esconder na casa, orientando a mulher a não atender.
Balancei a cabeça. Ele sacara tudo. Sinalizei que descesse do capô.
— Bom, Val, a sra. Roberts agora é minha cliente e estou autorizado a receber a intimação de Fulgoni em nome dela.
Ele escorregou pelo capô, raspando na pintura a corrente da carteira, que ia do cinto ao bolso de trás.
— Ah, puxa, foi mal. Espero não ter arranhado, reverendo.
— Me dá logo o papel.
Ele puxou o documento enrolado do bolso de trás e bateu com ele em minha mão.
— Ótimo — disse. — Me poupa o trabalho de ficar esperando aqui o dia inteiro.
Então apontou com o queixo, por cima do meu ombro, para a casa atrás de mim. Virei e vi Kendall olhando pela janela da sala. Acenei sugerindo que estava tudo bem e ela fechou a cortina.
Virei para Valenzuela outra vez. Ele estava com o celular na mão e bateu uma foto minha segurando o documento.
— Isso realmente não é necessário — eu disse.
— Com um cara como você, estou começando a achar que é — alfinetou.
— Então me diga, como foi intimar James Marco, ou ele está dificultando as coisas para você?
— Não conto mais merda nenhuma pra você, Mick. E aquilo que você falou sobre eu entregar suas intimações era só papo furado, não era?
Dei de ombros. Valenzuela já fora útil para mim e eu sabia que não devia queimar esse contato. Mas algo na atitude de arrastar a corrente no capô do meu carro me deixou irritado.
— Provavelmente — falei. — Eu já tenho um investigador em tempo integral. Em geral, ele é quem cuida dessas coisas.
— Certo, melhor ainda, porque não quero mesmo trabalhar para você, Mick. A gente se vê por aí.
Começou a se afastar pela calçada e fiquei observando.
— É, a gente se vê, Val.
Entrei no banco traseiro e disse a Earl para pegar o Ventura Boulevard e ir para Studio City. Queria passar na frente do negócio de Kendall Roberts. Não havia outro motivo para isso além da minha curiosidade sobre ela. Eu queria ver o que construíra para si e o que estava protegendo.
— Você se saiu bem ali dentro, Earl — eu disse. — Salvou o dia.
Ele olhou para mim no espelho e balançou a cabeça.
— Tenho meus talentos — disse.
— Tem mesmo.
Peguei o celular e liguei para Lorna. Nenhuma novidade surgira desde o último telefonema. Contei sobre a reunião que queria para a manhã seguinte e ela disse que já tinha sido informada por Cisco. Pedi a ela para comprar café e donuts suficientes para cinco pessoas.
— Quem é a quinta? — ela perguntou.
— Earl vai participar — eu falei.
Olhei para ele no espelho. Dava para enxergar apenas seus olhos, mas pude ver que estava sorrindo.
Depois de encerrar a conversa com Lorna liguei para Cisco. Ele disse que estava em uma revendedora da Ferrari em Wilshire Boulevard, cerca de vinte quadras do Beverly Wilshire. Contou que o lugar tinha um monte de câmeras de segurança para vigiar o luxuoso estoque à noite.
— Não me diga — falei. — O homem do chapéu?
— Isso mesmo.
Em seu tempo livre, Cisco estivera perseguindo o homem do chapéu por cinco meses. Depois de varrer Beverly Wilshire e os arredores imediatos, tinha ficado profundamente incomodado por não ter sido capaz de encontrar uma única câmera que mostrasse o rosto do sujeito ou o cara entrando em um carro para seguir Gloria Dayton.
Mas Cisco conseguira localizar o motorista de Gloria naquela noite, e o cara forneceu a rota exata que tomara ao levá-la para casa depois do hotel. Cisco passou seu tempo vago conhecendo essas ruas, verificando o comércio e as residências dotadas de câmeras de segurança, na remota possibilidade de que tivessem filmado o carro seguindo Gloria. Chegara até a procurar os departamentos de trânsito de Beverly Hills, West Hollywood e Los Angeles, para ver as câmeras de tráfego ao longo do trajeto. Isso se tornara uma questão de orgulho profissional para o grandalhão.
Já eu havia muito abrira mão da esperança de identificar o homem do chapéu. Para mim, a pista desaparecera. A maioria dos sistemas de segurança não guarda os vídeos por mais de um mês e as pessoas que falaram com Cisco informaram que já não dispunham das gravações de vídeo da noite em que Gloria Dayton fora assassinada, que era tarde demais.
— Bom, pode deixar isso pra lá — eu disse. — Tenho um nome e quero que você ponha no topo da sua lista de tarefas. Quero encontrar essa mulher o quanto antes.
Passei o nome de Trina Rafferty e falei a respeito de minha conversa com Roberts sobre ela.
— Se ela continua na ativa, fazendo programa, pode estar em qualquer lugar daqui até Miami. Além do mais, esse talvez nem seja o nome verdadeiro dela — ele disse.
— Acho que está por perto — falei. — Acho que Fulgoni pode até ter escondido ela em algum lugar. Você precisa encontrar essa mulher.
— Certo, deixa comigo. Mas por que a pressa? Ela não vai dizer a mesma coisa que Roberts acabou de contar?
— Alguém sabia que Glory Days era a informante que levou à prisão de Moya. Kendall Roberts não foi... pelo menos, diz que não foi. Assim, nos resta Trina Trixxx. Acho que Fulgoni já chegou até essa mulher e quero descobrir o que ela disse pra ele.
— Entendi.
— Então tudo bem. Manda notícia.
Desliguei. Earl me avisou que estávamos chegando ao endereço do Flex, o estúdio de ioga de Roberts. Ele reduziu a velocidade para dez por hora quando passamos diante da fachada. Verifiquei o horário de funcionamento impresso na porta e vi que o lugar ficava aberto diariamente, das 8 às 20h. Dava para ver gente dentro, só mulheres, todas na posição do cachorro olhando para baixo, em colchonetes de espuma. Eu conhecia o nome da postura porque minha ex tinha sido praticante de ioga.
Fiquei pensando se as clientes de Roberts não se incomodavam de ficar à vista de quem passava pela calçada. Inúmeras posições da ioga eram sutil ou abertamente sexualizadas e me pareceu estranho ter um estúdio com um janelão de vidro do chão ao teto. Enquanto refletia sobre isso, uma mulher dentro do estúdio foi até o janelão e levou as mãos aos olhos, como se estivesse me olhando de binóculo. O significado era claro.
— Podemos ir agora, Earl — eu disse.
Ele acelerou.
— Pra onde?
— Vamos passar no Art’s Deli, mais no fim da rua. A gente pega uns sanduíches e depois vai encontrar Legal Siegel para almoçar.
15
Às oito e meia dessa mesma noite, bati à porta da casa de Kendall Roberts. Eu ficara dentro do Lincoln na rua dela, esperando que voltasse.
— Sr. Haller. Alguma coisa errada?
Ela estava usando a mesma roupa de antes e presumi que voltara do trabalho no estúdio de ioga.
— Não, nada errado. Só voltei para dizer que pode esquecer aquela intimação.
— Como assim? O senhor levou para o juiz, como disse que faria?
— Nem foi necessário. Depois que nos despedimos, percebi que o documento estava sem o selo do escrivão da U.S. District Court. O caso de Moya corre na corte federal. Se não tiver o selo não é legítimo. Acho que o advogado, Fulgoni, estava tentando ver se conseguia fazer a senhora comparecer em segredo, assim forjou uma intimação e mandou o homem entregar.
— Por que ele faria isso... quer dizer, me fazer comparecer em segredo.
Eu já tinha pensando a respeito daquilo, principalmente porque a intimação que Fulgoni mandara me entregar era verdadeira. Por que tomar as medidas corretas no meu caso e não no dela? Até o momento, eu não conseguira imaginar o motivo.
— Boa pergunta — eu disse. — Se ele quisesse manter escondido, podia ter dado entrada no pedido de citação com o selo. Mas ele não fez isso. Na verdade, tentou um blefe para conseguir seu depoimento. Devo me encontrar com ele amanhã e é exatamente isso que vou perguntar.
— Bom, é tudo muito confuso... mas obrigada.
— Confusões à parte, nosso objetivo na Michael Haller & Associados é agradar.
Sorri e depois me senti estúpido com o que tinha acabado de falar.
— Sabe, podia ter me ligado. Eu dei meu telefone. Não precisava vir até aqui.
Franzi o cenho e balancei a cabeça, como se sua preocupação fosse sem fundamento.
— Não foi problema. Minha filha mora aqui perto com minha ex, e resolvi dar uma passada lá.
Não era bem uma mentira. De fato, eu havia passado de carro pelo prédio de minha ex-mulher e ficara olhando para as janelas iluminadas de seu apartamento. Imaginei minha filha no quarto, fazendo a lição de casa ou mexendo no computador, trocando tweets ou no Facebook com os amigos. Só depois fui para a rua de Kendall Roberts.
— Então isso quer dizer que terça que vem não preciso ir ao escritório daquele advogado? — ela perguntou.
— Não, está liberada — falei. — Pode esquecer.
— E não vou precisar comparecer ao tribunal nem testemunhar sobre nada?
Essa era a grande questão e eu sabia que tinha de parar de fazer promessas que não tinha certeza de conseguir cumprir.
— O que vou fazer é encontrar Fulgoni amanhã e deixar claro para ele que a senhora está fora disso e não sabe de nada que possa ser útil para o assunto. Que ele deve esquecer qualquer tipo de participação de sua parte. Acho que isso resolve as coisas.
— Obrigada.
— De nada.
Não fiz qualquer movimento para ir embora e ela deu uma olhada rápida por cima do meu ombro, na direção da rua, onde o Lincoln estava estacionado, outra vez na zona vermelha.
— E então, cadê seu parceiro? O bicho-papão?
Comecei a rir.
— Ah, Earl? Está de folga. Na verdade, ele é meu motorista. Desculpe mais uma vez por hoje. Eu não sabia no que estava me metendo quando a gente veio pra cá.
— Está perdoado.
Não havia mais nada a dizer, mas eu continuava sem arredar pé dos degraus. O silêncio ficou constrangedor, até que ela finalmente falou.
— Tem alguma...
— Ah, desculpa, estou aqui parado feito tonto, ou sei lá o quê.
— Tudo bem.
— Não, eu, ãhn... Sabe, o verdadeiro motivo de eu ter voltado é que queria conversar sobre aquela pergunta que me fez. Quer dizer, mais cedo, hoje.
— Que pergunta?
Ela recostou no batente da porta.
— A senhora me perguntou sobre o passado, não foi? Sobre como eu convivia com o passado. Com meu passado.
Ela meneou a cabeça. Agora lembrava.
— Desculpe por aquilo — disse. — Eu estava sendo sarcástica e foi inconveniente. Não é da minha conta...
— Não, tudo bem. Sarcástica ou não, a pergunta foi válida. Mas daí aquele cara bateu à porta com a falsa intimação e eu, sabe, não tive oportunidade de responder.
— Então voltou para responder à pergunta.
Sorri, pouco à vontade.
— Bom, mais ou menos isso, eu pensei... que o passado para nós dois foi uma coisa...
Comecei a rir de constrangimento.
— Na verdade, não sei o que estou dizendo.
— Quer entrar, sr. Haller?
— Eu adoraria, mas precisa parar de me chamar assim. Me chama de Michael, Mickey ou Mick. Sabe, Gloria costumava me chamar de Mickey Mantle.
Ela segurou a porta aberta e eu passei ao vestíbulo.
— Também já fui chamado de Mickey Mouth algumas vezes. Sabe, um pequeno trocadilho.
— Sei, entendo. Eu ia tomar uma taça de vinho tinto. Está servido?
Quase perguntei se tinha alguma coisa mais forte, mas achei melhor não.
— Seria perfeito.
Ela fechou a porta e fomos até a cozinha para pegar as taças e servir o vinho. Ela me deu uma e pegou a sua. Recostou no balcão e olhou para mim.
— Saúde — eu disse.
— Saúde. Posso perguntar uma coisa?
— Claro.
— Ao vir aqui, você não estava pensando naquilo, não é?
— Como assim? Naquilo o quê?
— Você sabe, sobre mulheres... como eu.
— Eu não...
— Estou aposentada, não faço mais isso. Se veio com toda a história de donzela em perigo porque achou...
— Não, de jeito nenhum. Olha, desculpe. Estou morrendo de vergonha, acho que é melhor eu ir.
Pus minha taça sobre o balcão.
— Tem razão — falei. — Eu devia ter ligado.
Estava quase na porta quando ela me parou.
— Espera, Mickey.
Virei e olhei para ela.
— Não disse que você devia ter ligado. Eu disse que você podia ter ligado. É diferente.
Ela pegou minha taça no balcão e trouxe para mim.
— Desculpe — ela disse. — Eu precisava deixar isso bem claro. Você ficaria surpreso de ver como minha antiga vida ainda afeta minha atual.
Fiz que sim.
— Entendo.
— Vamos sentar.
Fomos para a sala e sentamos nos mesmos lugares que tínhamos sentado nesse mesmo dia — um de frente para o outro, com a mesinha de centro entre nós. No começo, a conversa foi artificial: dissemos algumas banalidades e elogiei o vinho, como grande enólogo que não era.
Finalmente perguntei como ela havia acabado proprietária de um estúdio de ioga, e Kendall me explicou em tom casual que um antigo cliente da época de acompanhante emprestara o dinheiro para o investimento inicial. Isso me lembrou minha tentativa de ajudar Gloria Dayton, mas obviamente com resultados diferentes.
— Acho que, no fundo, algumas garotas não querem sair — disse Kendall. — Elas tiram dessa vida o que precisam, em vários níveis. Então talvez até falem sobre cair fora, mas sempre da boca pra fora. Eu tive sorte. Eu quis sair, e tive alguém para me ajudar. Como você acabou virando advogado?
Ela havia me devolvido a pergunta de forma hábil, embora abrupta, e respondi com a explicação básica sobre seguir a tradição familiar. Quando contei que meu pai fora advogado de Mickey Cohen, os olhos dela não mostraram nenhum reconhecimento.
— Isso já tem muito tempo — eu disse. — Mickey Cohen era um famoso gângster de Los Angeles nos anos 1940 e 1950. Fizeram filmes sobre ele. Fazia parte do que chamavam de a Máfia Judaica. Com Bugsy Siegel.
Outro nome que não provocou reação.
— Seu pai deve ter tido você bem tarde, se estava envolvido com aqueles caras nos anos 1940.
Fiz que sim.
— Sou filho do segundo casamento. Acho que não era esperado.
— Esposa jovem?
Confirmei outra vez e torci para a conversa tomar um rumo diferente. Eu descobrira tudo isso por conta própria. Havia checado os arquivos do condado. Meu pai se divorciou da primeira esposa e se casou com a segunda menos de dois meses depois. Nasci cinco meses após o segundo casamento. Não era preciso um diploma de direito para ligar as coisas. Na infância, diziam para mim que minha mãe tinha vindo do México, onde era uma atriz famosa, mas nunca vi um pôster de filme, um recorte de jornal nem nada parecido em lugar nenhum da casa.
— Tenho um meio-irmão que trabalha no DPLA — falei. — Mais velho. Ele é da seção de homicídios.
Eu não sabia por que disse aquilo. Acho que para mudar de assunto.
— Mesmo pai?
— É.
— Vocês se dão bem?
— Sim, dentro do possível. A gente só ficou sabendo um do outro há alguns anos. Então por isso acho que não somos tão próximos.
— Não é uma coincidência? Quer dizer, vocês não se conheciam e você virou advogado de defesa e ele policial?
— É, acho que sim. Uma coincidência.
Eu estava desesperado para sair do terreno onde estávamos pisando, mas não conseguia pensar em nenhum assunto que me ajudasse a fazer isso. Kendall facilitou, fazendo uma pergunta que abriu nova porta, mas igualmente dolorosa de responder.
— Você mencionou sua ex. Então não é casado?
— Não. Já fui, duas vezes até. Na verdade, a segunda não conta pra valer. Foi rápido e indolor. Nós dois sabíamos que era um erro e continuamos amigos. Aliás, ela trabalha para mim.
— E a primeira?
— A gente tem uma filha.
Ela assentiu, parecendo compreender as permanentes complicações e os vínculos criados por um casamento destruído e com filhos na parada.
— E a mãe da sua filha, vocês se dão bem?
Fiz um movimento triste de cabeça.
— Não, não mais. Na verdade, não estou me entendendo nem com ela nem com minha filha, no momento.
— Pena.
— É.
Dei outro gole no vinho e olhei para ela.
— E você? — perguntei.
— Pessoas como eu não têm relacionamentos longos. Me casei aos vinte. Durou um ano. Sem filhos, graças a Deus.
— Você sabe como anda seu ex? Quer dizer, vocês se falam? Minha ex e eu, a gente está no mesmo ramo, o direito. Então a gente se cruza no tribunal de vez em quando. Se ela me vê andando na direção dela, geralmente desvia.
Ela balançou a cabeça, mas não detectei nenhuma compaixão.
— Da última vez que tive notícia do meu ex, ele me escreveu uma carta de uma prisão na Pensilvânia — disse. — Queria que eu vendesse meu carro para mandar dinheiro para ele todo mês. Nem respondi, e isso foi há mais ou menos dez anos. Ele continua lá, pelo que eu sei.
— Nossa, e eu aqui choramingando porque minha ex vira a cara para mim no tribunal. Acho que você ganhou.
Ergui a taça e ela aceitou a vitória com um aceno de cabeça.
— Então, por que está aqui de verdade? — ela perguntou. — Espera que eu possa contar mais coisas sobre Glory?
Baixei o rosto para minha taça, agora quase vazia. Aquela pergunta seria o fim da linha ou o começo.
— Você me diria, não é, se tivesse alguma coisa que eu precisasse saber sobre ela?
Ela franziu o rosto.
— Já contei tudo que sei.
— Então acredito em você.
Terminei meu vinho e pus a taça em cima da mesa.
— Obrigado pelo vinho, Kendall. Acho melhor eu ir andando.
Ela me acompanhou até a porta e abriu para mim. Rocei em seu braço quando passei. Tentei pensar em algo para dizer que deixasse aberta a possibilidade de um novo encontro. Kendall foi mais rápida.
— Quem sabe da próxima vez você esteja mais interessado em mim do que na garota morta.
Virei para encará-la enquanto ela fechava a porta. Balancei a cabeça, mas Kendall já entrara.
16
Estava tentando convencer Randy a me servir uma última dose de Patrón depois do sinal de fim de expediente do Four Green Fields, quando a tela do meu celular em cima do balcão se iluminou. Era Cisco, que estava fazendo hora extra.
— Cisco?
— Desculpe se acordei você, Mick, mas achei que ia preferir assim.
— Sem problema. O que está rolando?
Randy acendeu outra vez as luzes brilhantes e soltou no último volume a gravação “hora de fechar”, em uma tentativa de colocar para fora os últimos bêbados recalcitrantes.
Acionei tarde demais o botão de mudo do aparelho e desci da banqueta para sair.
— Que porra foi essa? — perguntou Cisco. — Mick, você está aí?
Assim que atravessei a porta, tirei o celular do mudo.
— Desculpe, é um defeito do iPhone. Onde você está e o que está acontecendo?
— Estou na frente do Standard, no centro. Trina Trixxx está lá dentro, trampando. Mas não foi por isso que liguei. Isso podia ter esperado.
Eu queria perguntar como ele havia encontrado Trina, mas notei o tom de urgência em sua voz.
— Certo, então o que é que não podia esperar?
Acionei o mudo outra vez e entrei no carro, fechando a porta. Tinha sido uma decisão estúpida misturar com tequila o vinho que tomei na casa de Kendall. Mas eu não estava legal ao sair de lá, como se de algum modo tivesse metido os pés pelas mãos, e quis apagar os pensamentos com doses de Patrón.
— Recebi a ligação de um cara que me faz uns favores, de vez em quando — disse Cisco. — Sabe a concessionária da Ferrari que mencionei hoje?
— Sei, a que fica em Wilshire.
— Isso mesmo. Bom, encontrei a mina de ouro. Uma porrada de vídeos. Os caras guardam as gravações digitais por um ano, na nuvem. Então a gente tirou a sorte grande.
— Você viu o rosto do homem do chapéu?
— Não, não tanta sorte assim. Nada de rosto, por enquanto. Mas a gente viu o vídeo daquela noite e eu achei Gloria e o motorista passando. Depois, uns quatro carros atrás, vem um Mustang, que parece ser do nosso cara. Como ele continua usando o chapéu, tenho noventa por cento de certeza de que é o nosso homem.
— O.k.
— Uma das câmeras no perímetro pega o leste, na frente do pátio. Eu mudei pra essa tomada e verifiquei o Mustang.
— Você conseguiu uma placa.
— É isso aí, estou com a placa. Então passei para esse amigo meu e ele acabou de me ligar, depois que começou a trabalhar à noite.
Por “amigo” eu sabia que estava se referindo a sua fonte na polícia, que verificava placas para ele. Uma fonte que obviamente fazia o turno da noite. Essa prática de compartilhar a informação do banco de dados com uma pessoa de fora era contra a lei. Por isso, não pedi a Cisco nenhum esclarecimento sobre quem fornecera a informação que ele ia me passar. Só esperei que me dissesse um nome.
— Tudo bem. Lá vai então, o Mustang está no nome de um cara chamado Lee Lankford. E escuta só, Mick, o cara é da lei. Meu amigo sabe disso porque o endereço dele não aparece no sistema. Eles protegem os tiras desse jeito. Conseguem pôr um bloqueio da polícia em um registro de veículo pessoal. Mas ele é da lei, e agora a gente precisa descobrir para quem ele trabalha e por que estava seguindo Gloria. Uma coisa eu já sei, ele não é do DPLA. Meu amigo verificou. Resumindo, Mick, estou começando a achar que pode ter alguma verdade no que nosso cliente alegou, naquele papo de armação.
Não escutei a maior parte do que Cisco falou depois de mencionar o proprietário do Mustang. Eu estava com a mente distante, digerindo o sobrenome Lankford. Cisco não reconhecera porque não trabalhava para mim oito anos antes, quando fiz o acordo em que Gloria Dayton entregou Hector Moya para o Gabinete da Promotoria, que passou adiante para os federais. Claro, na época Lankford não tinha nada a ver com o negócio, mas ele girava em torno do caso como um urubu.
— Lankford é um agente aposentado do Departamento de Polícia de Glendale — eu disse. — Atualmente trabalha de investigador para a promotoria.
— Você conhece o cara?
— Mais ou menos. Ele trabalhou no assassinato de Raul Levin. Na verdade, foi quem tentou jogar a culpa em mim, no começo. E esbarrei com ele durante o primeiro comparecimento de La Cosse diante do juiz. É o investigador que a promotoria designou para o caso.
Escutei Cisco assobiar enquanto dava partida no carro.
— Então vamos entender isso direito — disse ele. — Temos Lankford seguindo Gloria Dayton na noite em que ela foi assassinada. Ele provavelmente segue a mulher até o apartamento dela e quase uma hora depois ocorre o assassinato.
— E alguns dias depois, na primeira audiência, lá está ele — falei. — Designado para investigar o homicídio de Dayton.
— Não é mera coincidência, Mick. Não existem coincidências desse jeito.
Concordei, mesmo estando sozinho no carro.
— É uma armação — falei. — Andre está dizendo a verdade.
Eu precisava olhar as pastas de Gloria Dayton, mas Jennifer Aronson ainda estava com o material. Isso teria de esperar até a reunião da equipe pela manhã. Nesse meio-tempo, ficaria tentando recordar aqueles dias, oito anos antes, quando conheci o detetive Lankford e virei seu principal suspeito no assassinato de meu próprio investigador.
De repente, lembrei o que Cisco dissera no começo da conversa.
— Você está seguindo Trina Trixxx bem agora?
— É, não foi difícil encontrar. Passei na casa para dar uma conferida e ela apareceu na porta. Segui a garota até aqui. O mesmo esquema de Gloria. Motorista, a coisa toda. Ela está dentro do hotel faz uns quarenta minutos agora.
— Certo, estou indo pra aí. Quero conversar com ela. Hoje.
— Eu cuido disso. Você está legal pra dirigir? Parece que andou tomando umas.
— Estou. Vou pegar um café no caminho. Só segura a garota até eu chegar.
17
Antes de chegar ao Standard, no centro, recebi uma mensagem de texto de Cisco me mandando para o endereço de um apartamento na Spring Street. Logo em seguida recebi outra, dessa vez me avisando para passar em um caixa 24 horas no caminho — Trina queria receber para falar. Quando enfim cheguei ao lugar, calhou de ser um dos lofts restaurados bem atrás do Police Administration Building. A porta do saguão estava trancada e, quando apertei a campainha do 12C, foi meu próprio investigador que atendeu e apertou o botão para eu subir.
No décimo segundo andar, saí do elevador e vi Cisco esperando diante da porta aberta do 12C.
— Eu segui a garota quando voltava do Standard e esperei até ela descer do carro — explicou. — Imaginei que seria mais fácil com o motorista fora do jogo.
Balancei a cabeça e olhei pela porta aberta, mas não entrei.
— Ela vai conversar com a gente?
— Depende de quanto dinheiro você trouxe. É uma mulher de negócios, sem enrolação.
— Tenho o suficiente.
Passei por ele e entrei no loft com vista para o prédio da polícia e o centro de convenções. A torre da prefeitura, iluminada, dominava a paisagem. O apartamento era agradável, embora quase não tivesse mobília. Trina Rafferty devia ter se mudado há pouco ou estava em vias de sair. Ela sentava em um sofá de couro branco com pés cromados. Usava um vestido coquetel preto e curto, cruzava as pernas, em uma tentativa de parecer recatada, e fumava um cigarro.
— Você vai pagar? — perguntou.
Atravessei a sala e olhei para ela. Devia ter quase quarenta e parecia cansada. O cabelo estava ligeiramente desfeito, o batom, borrado, e o delineador ressecara no canto dos olhos. Outra longa noite em mais um ano de longas noites. Trina havia acabado de fazer sexo com alguém que não conhecia e que provavelmente nunca voltaria a ver.
— Depende do que você contar.
— Bom, não vou contar nada a menos que pague antes.
Eu passara em um caixa 24 horas no saguão do Bonaventure Hotel e fizera dois saques com limite máximo de quatrocentos dólares cada. O dinheiro estava dividido em notas de cem, cinquenta e vinte, e eu havia separado nos dois bolsos. Tirei os primeiros quatrocentos e pus na mesinha de centro, perto do cinzeiro abarrotado de guimbas.
— Aí tem quatrocentos. Está bom para começar?
Ela pegou o dinheiro, dobrou duas vezes e enfiou em um dos sapatos de salto alto. Lembrei nesse momento que Gloria certa vez me contara que sempre guardava a grana nos sapatos porque normalmente eram a última coisa a sair — quando saíam. Muitos clientes gostavam que ficassem de sapato enquanto faziam sexo.
— Vamos ver — disse Trina. — Pergunta.
Durante todo o trajeto até o centro eu havia refletido sobre o que e como perguntar. Tinha a sensação de que aquela podia ser minha única chance com Trina Trixxx. Assim que o pessoal de Fulgoni descobrisse que eu chegara até ela, tentariam bloquear meu acesso.
— Me fala sobre James Marco e Hector Moya.
Seu corpo oscilou para trás, de surpresa. Depois, Trina se empertigou e mordeu o lábio inferior por alguns segundos antes de responder.
— Eu não imaginava que tinha a ver com eles. Precisa pagar mais, se quer que eu fale sobre eles.
Sem hesitar, tirei o outro maço de notas do bolso e pus em cima da mesa. O dinheiro desapareceu no sapato. Sentei em uma cadeira de frente para ela, do outro lado da mesa.
— Estou ouvindo — falei.
— Marco é agente da DEA e era louco pra foder com o Hector — disse ela. — Ele queria muito pegar o cara, e pegou.
— Como você conheceu Marco?
— Ele me prendeu.
— Quando?
— Em uma armação. O cara fingiu que era cliente e que queria sexo e pó, e eu dei as duas coisas pra ele. Daí ele me pegou.
— Quando foi isso?
— Uns dez anos atrás. Não lembro ao certo.
— Você fez um acordo?
— É, ele me deixou ir, mas eu tinha que entregar umas coisas pra ele. Ele ia me procurar.
— Que coisas?
— Só umas coisas que eu ouvisse falar ou ficasse sabendo... você sabe, de clientes. Ele combinou de largar do meu pé se eu conseguisse alimentar ele com informações quentinhas. E o cara tinha fome.
— Fome de Hector.
— Bom, na verdade não. Ele não sabia sobre Hector, pelo menos não por mim. Eu não era estúpida a esse ponto e não estava tão desesperada assim. Preferia dançar do que entregar o cara. Hector era do cartel, sabe? Então eu dava peixes pequenos pro Marco, o tipo de coisa que os caras se gabam quando estão trepando. Como ganharam grana nisso ou naquilo, quais são os planos e sei lá mais o quê. Os caras tentam compensar na base da conversa o tempo todo, sabe?
Balancei a cabeça, embora sem saber dizer se revelava algo sobre mim ao concordar. Tentei me manter concentrado no que ela estava dizendo e em como isso se encaixava no cenário mais recente do caso de Gloria.
— O.k. — eu disse. — Então você não entregou Hector para o Marco. Quem foi?
Eu sabia que, pelo menos indiretamente, Gloria Dayton entregara Moya, mas não sabia o que Trina sabia.
— A única coisa que posso dizer é que não fui eu — disse Trina.
Fiz um movimento com a cabeça.
— Isso não é suficiente, Trina. Por oitocentos paus, não é mesmo.
— O que mais você quer, um boquete? Isso não é problema.
— Não, eu quero que me conte tudo. Quero que me conte o que contou para Sly Fulgoni.
Seu corpo estremeceu outra vez, assim como na menção a Hector Moya. Como se por um segundo Trina tivesse ficado chocada com o nome e depois conseguisse se recompor.
— Como sabe sobre Sly?
— Só sei. E, se quer ficar com o dinheiro, preciso saber o que contou pra ele.
— Mas e aquele negócio da relação advogado-cliente? Privilégio ou sei lá como vocês chamam?
— Você entendeu errado, Trina. Você é testemunha, não cliente. O cliente de Fulgoni é Hector Moya. O que ele disse pra você?
Curvei-me para a frente ao dizer isso e esperei.
— Bom, eu contei pra ele sobre outra garota que caiu na armação do Marco e precisou fazer o jogo dele, como eu. Só que essa ficou mesmo na palma da mão dele, não sei por quê. Acho que, quando foi presa, devia estar com muito mais papelote do que eu.
— Você quer dizer muito mais cocaína?
— Isso mesmo. E a ficha dela não estava limpa como a minha. Ela ia dançar feio se não entregasse alguém maior do que ela, entende o que quero dizer?
— Sei.
Os casos de droga, em sua maioria, eram construídos assim, com o peixe pequeno entregando o grande. Balancei a cabeça, como se estivesse completamente inteirado de como as coisas funcionavam, só que mais uma vez me senti humilhado por nem sequer saber os detalhes da relação de minha própria cliente com a DEA. Trina estava obviamente falando sobre Gloria Dayton e me contando uma história que eu não sabia.
— Então sua amiga entregou Hector — falei, querendo manter a história andando, de modo a não me deter sobre minhas próprias fragilidades no caso.
— Por aí.
— Como assim “por aí”? Ela entregou ou não entregou.
— Meio que entregou. Ela me contou que Marco obrigou ela a esconder uma arma no quarto de hotel de Moya. Assim, quando pegassem o cara, podiam aumentar as acusações e arrumar uma perpétua para ele. Olha, o Hector era esperto e nunca guardava no quarto o suficiente pra se ferrar muito. Só uns papelotes. Às vezes uma carreirinha de nada. Mas a arma mudava tudo, e foi Glory que levou o cano pra lá. Ela disse que esperou Hector cochilar depois do programa, tirou a arma da bolsa e escondeu embaixo do colchão.
Dizer que eu estava pasmo seria pouco. No decorrer dos últimos meses, já me conformara com o fato de ter sido usado por Gloria de algum modo. Mas se a história de Trina Rafferty fosse verdadeira, o nível de artimanha e manipulação era hábil e completo, e eu cumprira meu papel à perfeição, achando que estava sendo um ótimo advogado ao mexer os pauzinhos certos para minha cliente, quando na verdade eram minha cliente e o agente da DEA que estavam o tempo todo mexendo os pauzinhos pelas minhas costas.
Eu ainda tinha muitas perguntas sobre o cenário que Trina estava pintando — queria sobretudo entender por que fui necessário ao esquema. Mas por ora eu estava pensando em outras coisas. A única maneira dessa revelação ser mais humilhante seria o fato de vir a público, e tudo que a prostituta sentada diante de mim estava dizendo indicava que era exatamente essa a direção que a história estava tomando.
Tentei não demonstrar meu tumulto emocional. Mantive a voz firme e fiz a pergunta seguinte.
— Quando você diz Glory, presumo que se refira a Gloria Dayton, também conhecida na época como Glory Days?
Antes que ela pudesse responder, o iPhone sobre a mesinha começou a vibrar. Trina o pegou avidamente, talvez na esperança de conseguir um último programa antes de encerrar a noite. Verificou o visor, mas era um número bloqueado. Ela atendeu, de todo modo.
— Alô, aqui é Trina Trixxx...
Enquanto ela conversava ao telefone, lancei um olhar furtivo a Cisco para ver o que seu rosto me dizia. Me perguntava se ele entendia que, pelo que fora dito até ali, eu tinha sido um participante involuntário no esquema fraudulento de um agente da DEA.
— ... e mais um homem — ia dizendo Trina. — Ele falou que você não é meu advogado.
Olhei para Trina. Ela não estava conversando com nenhum potencial cliente.
— É o Fulgoni? — eu perguntei. — Deixa eu falar com ele.
Ela hesitou, mas então disse à pessoa para esperar e me passou o telefone.
— Fulgoni — falei. — Achei que fosse me ligar de volta.
Houve uma pausa e então uma voz que não reconheci como a de Sly Fulgoni Jr. falou.
— Eu não sabia que era para ligar.
E então me dei conta de que estava conversando com o próprio Sly pai, da Instituição Correcional Federal de Victorville. Ele falava provavelmente de um celular contrabandeado por uma visita ou um agente penitenciário. Muitos dos meus clientes presos eram capazes de se comunicar comigo com burners, celulares pré-pagos descartáveis com minutos restritos e vida útil limitada.
— Era para o seu filho ter retornado minha ligação. Como estão as coisas por aí, Sly?
— Não tão mal. Saio daqui a onze meses.
— Como sabia que eu estava aqui?
— Eu não sabia. Queria falar com Trina.
Não acreditei nisso nem sequer por um instante. Parecia que havia perguntado especificamente sobre mim antes de Trina me passar o telefone. Decidi não pressionar... por ora.
— O que posso fazer pelo senhor, dr. Haller?
— Hmm... Estou aqui sentado conversando com Trina e me perguntando o que eu posso fazer pelo senhor. Tenho a intimação comigo e estou só começando a entender o modo como estão trabalhando para Moya. E quero deixar claro que não achei graça em ser feito de trouxa, sobretudo em pleno tribunal.
— Isso é compreensível. Só que às vezes, quando a pessoa passou mesmo por trouxa, é difícil evitar a carapuça. Você precisa estar preparado para a verdade vir à tona. A liberdade de um homem está em jogo.
— Vou levar isso em conta.
Desliguei e devolvi o telefone para Trina.
— O que ele disse? — ela perguntou.
— Não muito. Quanto prometeram pra você?
— O quê?
— Vamos, Trina. Você é uma mulher de negócios. Me cobrou só para responder algumas perguntas. Deve estar cobrando alguma coisa para contar essa história em uma declaração juramentada para o juiz. Quanto? Eles já colheram seu depoimento?
— Não sei do que você está falando. Ninguém me pagou coisa nenhuma.
— E que tal esse apartamento? Arrumaram isso aqui para manter você por perto?
— Não! Esse lugar é meu e podem ir saindo. Os dois, rua. Agora mesmo!
Olhei para Cisco. Eu podia continuar pressionando, mas estava bem claro que meus oitocentos dólares tinham expirado e ela não falaria mais nada. Seja lá o que Fulgoni tivesse dito antes de Trina me passar o telefone serviu para fechar sua boca. Era hora de ir embora.
Levantei e indiquei a porta com o queixo.
— Obrigado pelo tempo — disse para Trina. — Tenho certeza de que a gente volta a se falar.
— Não conte com isso.
Saímos do apartamento e ficamos esperando o elevador, quando tive a impressão de ouvir Trina ligando para alguém, talvez Sly Jr. Então voltei até a porta e prestei atenção, mas não escutei nada.
O elevador chegou e descemos. Cisco estava calado.
— Qual o problema, parceiro? — perguntei.
— Nada, só estava pensando. Como ele sabia que era para ligar naquela hora?
Era uma boa pergunta. Eu ainda não chegara a uma conclusão.
Saímos do prédio e caminhamos pela Spring Street que, afora duas viaturas estacionadas na lateral do prédio da polícia, estava deserta. Eram mais de duas da manhã e não havia ninguém em parte alguma.
— Está achando que fui seguido? — perguntei.
Cisco pensou por um momento antes de menear a cabeça.
— De algum modo, ele sabia que a gente ia chegar até ela, que a gente ia estar naquele apartamento.
— Isso não é bom.
— Vou mandar vistoriar seu carro amanhã e depois ponho dois índios atrás de você. Se tiver alguém na sua cola a gente descobre rápido.
Os colegas que Cisco usava na contraespionagem eram tão hábeis em desaparecer nas sombras que ele os chamava assim, como os índios do velho oeste que costumavam seguir as caravanas sem que os colonos percebessem que estavam por perto.
— Isso vai ser ótimo — eu disse. — Agradeço.
— Onde você estacionou? — perguntou Cisco.
— Na frente do prédio da polícia. Achei que era seguro. E você?
— Aqui atrás. Está tranquilo ou quer companhia até lá?
— Sem problema. A gente se vê amanhã na reunião.
— Até.
Tomamos rumos diferentes. Olhei por cima do ombro três vezes antes de chegar ao meu carro, estacionado no ponto mais seguro do centro. Depois fiquei de olho no retrovisor durante todo o trajeto para casa.
18
Fui o último a chegar ao loft para a reunião de equipe. E estava em estado deplorável. Ao chegar em casa, atacara minha garrafa de Patrón Silver, apenas algumas horas antes do encontro. Entre o consumo do álcool, a ida ao centro para conversar com Trina Rafferty e a preocupação por saber que provavelmente estava sendo vigiado, só consegui duas horas de sono agitado antes que o despertador tocasse.
Grunhi um bom-dia para todos e fui direto para o bule de café no aparador. Servi meia xícara, enfiei dois ibuprofenos na boca e tomei o líquido escaldante em um gole só. Então voltei a encher a xícara e dessa vez acrescentei leite e açúcar, para tornar a bebida um pouco mais palatável. Aquele primeiro gole queimou minha boca, mas ajudou a fazer minha voz sair.
— Como vai todo mundo hoje? Melhor do que eu, espero.
Todos responderam que sim. Virei para pegar uma cadeira e notei a presença de Earl. Por um momento esqueci por que mas logo lembrei que eu o convidara pessoalmente para se juntar ao grupo na noite anterior.
— Ãhn, pessoal, convidei Earl para participar. Ele vai assumir um papel mais ativo em parte do trabalho, na questão das investigações e depoimentos. Vai continuar dirigindo o Lincoln, mas tem outros talentos que pretendo explorar para o bem de nossos clientes.
Acenei para Earl e, quando fiz isso, me dei conta de que esquecera de mencionar o fato para Cisco. Mesmo assim, Cisco não demonstrou nenhuma surpresa, e percebi que Lorna devia ter passado a informação para o marido.
Puxei uma cadeira na ponta da mesa e sentei, notando o pequeno dispositivo eletrônico preto com três luzes verdes piscando, no centro da mesa.
— Mickey, não quer um donut? — perguntou Lorna. — Pelo jeito está precisando pôr alguma coisa no estômago.
— Não, agora não — eu disse. — O que é isso?
Apontei para o aparelhinho. Era uma caixa preta retangular mais ou menos do tamanho de um iPhone, só que mais grossa, com uns dois ou três centímetros. E tinha três antenas curtas separadas saindo de uma ponta.
Cisco respondeu.
— Eu estava explicando agora mesmo. É um bloqueador Paquin 7000, que interrompe qualquer transmissão por wi-fi, Bluetooth e ondas de rádio. Ninguém vai escutar lá fora o que a gente disser aqui dentro.
— Você encontrou algum grampo?
— Com esse brinquedinho aqui você não precisa nem procurar. Essa é a beleza da coisa.
— E o Lincoln?
— Tenho uns caras cuidando disso no estacionamento agora mesmo. Eles estavam esperando você chegar. Aviso assim que souber.
Enfiei a mão no bolso para pegar as chaves.
— Eles não precisam de chave — disse Cisco.
Claro que não, percebi. Eram profissionais. Peguei as chaves, de todo modo, pus sobre a mesa e empurrei para Earl. Ele dirigiria pelo resto do dia.
— Tudo bem, certo, vamos começar. Desculpem pelo atraso. Foi uma noite longa. Sei que isso não é desculpa, mas...
Criei ânimo com outro gole de café, que dessa vez desceu mais fácil, e comecei a sentir a cafeína entrando na minha corrente sanguínea. Olhei para os rostos em volta da mesa e fui direto ao assunto.
Apontando o Paquin 7000, falei:
— Desculpem todo esse negócio de espião, mas acho que as precauções são necessárias. Tivemos uns desdobramentos significativos ontem, durante o dia e à noite, e queria que todo mundo estivesse aqui e ficasse sabendo do que está acontecendo.
Como que frisando a seriedade da minha declaração inicial, um som poderoso de guitarra elétrica ecoou pelo teto e me deixou paralisado. Todo mundo olhou para cima. Parecia o acorde inicial de “A Hard Day’s Night” — a justiça poética daquilo não passou despercebida por mim.
— Achei que os Beatles tivessem acabado — falei.
— E acabaram — disse Lorna. — E o homem me prometeu que não ia ter bandas ensaiando de manhã.
Outro acorde soou e depois alguns dedilhados improvisados. Alguém tocou bateria e o estardalhaço dos pratos quase soltou minhas obturações.
— Ah, só podem estar de sacanagem — eu disse. — Não era para esses caras estarem de ressaca ou dormindo? Eu com certeza preferia estar na cama.
— Vou lá em cima — disse Lorna. — Eu fico puta com isso.
— Não. Cisco, vai você. Você já está por dentro do que eu vou falar. Quero que Lorna escute. Além disso, você deve conseguir um resultado melhor lá em cima.
— Pode deixar.
Cisco deixou a sala e se dirigiu até a saída. Foi uma das poucas vezes em que fiquei feliz por ele estar usando camiseta na hora do trabalho, expondo seus bíceps gigantes e suas tatuagens intimidadoras. A camiseta tinha estampa comemorativa do aniversário de cem anos da Harley-Davidson. Achei que isso também podia ajudar a passar a mensagem.
Ao ritmo do baixo vindo de cima, passei a atualizar os demais, começando pela intimação que Valenzuela me apresentou na manhã anterior e passando para os acontecimentos do resto do dia. Na metade do relato, escutamos uma barulheira no andar de cima: era Cisco colocando um ponto final no ensaio. Terminei de falar contando a respeito do encontro de madrugada com Trina Trixxx e a conclusão de que estávamos sendo vigiados, graças à ligação de Fulgoni da cadeia.
Ninguém fez perguntas enquanto eu falava, embora Jennifer anotasse algumas coisas. Eu não soube dizer se o silêncio era por ser muito cedo, pela ameaça implícita de uma vigilância ou por meus eloquentes dotes narrativos. Havia também a possibilidade de que eu simplesmente tivesse levado todo mundo a se perder em pensamentos, em uma das reviravoltas confusas da história que estava narrando.
Cisco voltou à sala, impassível. Sentou em sua cadeira e acenou para mim. Problema resolvido.
Olhei para os demais.
— Perguntas?
Jennifer ergueu a caneta, como se ainda estivesse na escola.
— Eu tenho, na verdade — disse. — Primeiro, você disse que Sylvester Fulgoni pai ligou da prisão em Victorville às duas da manhã. Como isso é possível? Não acredito que os presos tenham acesso a...
— Eles não têm — falei. — O número estava bloqueado, mas tenho certeza de que era um celular. Contrabandeado ou emprestado por um agente penitenciário.
— Não dá pra rastrear?
— Não dá. Não se era um burner.
— Burner?
— Um celular pré-pago, comprado em nome de ninguém. Olha, a gente está fugindo do assunto. Basta dizer que era Fulgoni e que ele me ligou da cadeia, onde alguém obviamente entrou em contato para informar que eu estava naquele exato momento conversando com sua testemunha-chave, Trina Trixxx. Isso é o que importa. Não que Sly Fulgoni tivesse um telefone na prisão, mas que ele sabe dos nossos passos. Qual é a próxima pergunta?
Ela verificou as anotações, antes de falar.
— Bom, anteontem a gente tinha duas coisas sem relação acontecendo: o caso La Cosse e esse outro negócio com Moya que a gente achava que não tinha ligação, mas talvez fosse útil para incluir como parte de uma possível defesa usando um laranja para La Cosse. Só que agora, se estou acompanhando direito, estamos falando dessas duas coisas serem um mesmo caso.
— Sim, é isso que estou dizendo. Agora é tudo um caso só. O que liga uma coisa com a outra obviamente é Gloria Dayton. Mas a chave aqui é Lankford. Ele estava seguindo Gloria na noite do assassinato.
— Então foi uma armação para o La Cosse desde o começo — disse Earl.
Balancei a cabeça.
— Exato.
— E isso não é só um ângulo que estamos aproveitando ou uma estratégia — disse Jennifer. — Estamos dizendo que agora é nosso caso.
— Exato, outra vez.
Olhei ao redor. Três paredes da sala de reuniões eram de vidro, mas uma era de tijolo.
— Lorna, a gente precisa de um quadro branco naquela parede. Eu queria desenhar um diagrama. Ia facilitar.
— Eu arrumo um — disse Lorna.
— E troca as fechaduras daqui. Também quero duas câmeras. Uma na porta, outra nesta sala. Quando começar o julgamento, isso aqui vai ser nosso quartel-general e quero o lugar vigiado e seguro.
— Posso colocar um cara aqui em tempo integral — disse Cisco. — Talvez seja útil.
— E com que dinheiro a gente vai pagar tudo isso? — perguntou Lorna.
— Segura seu cara um pouco, Cisco — disse eu. — Talvez quando começar o julgamento. Por enquanto, vamos ficar só nas câmeras e fechaduras.
Então me inclinei para a frente, os cotovelos na mesa.
— É tudo um caso só agora — falei outra vez. — Então a gente precisa desmontar e olhar peça por peça. Oito anos atrás eu fui manipulado. Peguei um caso e arrisquei jogadas que achei que eram ideia minha. Mas não eram, e agora não vou deixar isso acontecer outra vez.
Sentei e esperei por algum comentário, mas me devolveram apenas olhares silenciosos. Vi Cisco olhar por cima do meu ombro para a parede de vidro atrás de mim. Ele começou a levantar. Virei. Do outro lado do loft tinha um homem parado na entrada e, por incrível que pareça, era maior do que Cisco.
— Um dos meus caras — disse Cisco, saindo da sala de reuniões.
Virei e voltei a olhar para os outros.
— Se isso fosse um filme, o título seria o Pequeno Tiny.
Eles riram. Levantei e fui me servir outro café. Quando virei, Cisco estava voltando para a sala de reuniões. Continuei de pé e esperei pelo veredicto. Cisco enfiou a cabeça pela porta, mas não entrou.
— O Lincoln está com um LoJack — disse ele. — Quer que tire? A gente podia encontrar um lugar pro negócio. Um caminhão da FedEx ia ser perfeito... fazer eles rodarem por aí.
LoJack é um dispositivo de rastreamento antirroubo. Mas o que Cisco estava me dizendo nesse caso é que alguém se enfiara debaixo do meu carro e prendera um GPS nele.
— Do que vocês estão falando? — perguntou Aronson.
Enquanto Cisco explicava o que eu já sabia, pensei sobre a questão de remover o aparelho ou deixá-lo no lugar e encontrar um modo de fazê-lo funcionar em meu benefício contra quem estivesse monitorando meus movimentos. Um caminhão da FedEx faria os caras andarem em círculos, mas também serviria de alerta e abriria o jogo de vez.
— Deixa onde está — falei, quando Cisco terminou sua explicação para os outros. — Por enquanto, pelo menos. Pode ser útil.
— Não esquece que talvez seja só um reforço — advertiu Cisco. — Você ainda pode estar com alguém na cola. Vou deixar os índios no topo do desfiladeiro mais uns dias, só por precaução.
— Bem pensado.
Ele virou na porta e sinalizou para seu homem com a palma da mão, como se a passasse na superfície de uma mesa. Tradução: mantenha o rastreador no lugar. O homem apontou para Cisco — mensagem recebida — e saiu porta afora. Cisco voltou à mesa, apontando o Paquin 7000 ao entrar.
— Desculpa. Ele não conseguiu me ligar por causa do bloqueador.
— Qual é o nome desse cara? — perguntei.
— Quem, Little Guy? Não sei o nome dele de verdade. Sempre chamei ele de Little Guy.
Estalei os dedos. Tinha errado por pouco. Os outros seguraram a risada e Cisco olhou ao redor, percebendo que era algum tipo de piada e que tinha a ver com ele.
— Existe algum motoqueiro que não tenha apelido? — perguntou Jennifer.
— Ah, você quer dizer um apelido como Bullocks? Não, pra falar a verdade, acho que não.
Isso provocou novas risadas, e então fiquei sério outra vez.
— O.k., vamos dar uma examinada no negócio todo. A gente sabe agora o que está na superfície. Vamos mais fundo. Antes de mais nada, tem a questão do por quê. Por que a manipulação, oito anos atrás? Se a gente acreditar no que contaram, Marco procura Gloria e fala para ela plantar uma arma no quarto de hotel de Moya. Assim, quando ele é preso, tem o agravante da arma e fica passível de perpétua. Certo, isso dá para entender. Mas agora vem a parte difícil.
— Por que Marco simplesmente não deu a voz de prisão assim que a arma foi plantada no lugar? — perguntou Cisco.
Apontei para ele.
— Exatamente. Em vez do caminho fácil e direto, ele parte para uma estratégia mais complexa, em que Gloria se deixa prender pelos tiras e depois me procura. Ela entrega informação suficiente para deixar meus olhos brilhando e achar que existe um acordo a ser feito. Eu procuro a promotoria e faço o acordo. Moya vai preso, a arma é encontrada e o resto todo mundo já sabe. Mas a pergunta continua no ar: por que se dar a todo esse trabalho?
Houve uma pausa enquanto minha equipe considerava o complicado quebra-cabeça. Jennifer foi a primeira a falar.
— Marco não podia ser visto tendo ligação com a gente — ela disse. — Por algum motivo, ele precisava ficar de longe e esperar até que a coisa chegasse nele. A promotoria faz o acordo com você, o DPLA consegue a prisão, mas depois Marco aparece com seu impressionante trunfo, o mandado federal e leva a melhor. Parece que o caso simplesmente caiu no colo dele, mas ele orquestrou a coisa toda.
— O que nos traz de volta ao por quê — disse Cisco.
— Exato — falei.
— Você acha que Marco conhecia Moya e não queria que o cara soubesse que tinha sido ele o autor da armação? — perguntou Jennifer. — Então ele meio que se escondeu atrás de Gloria e de você?
— Pode ser — eu disse. — Mas mesmo assim ele acabou ficando com o caso.
— E se isso foi por causa de Moya? — perguntou Cisco. — Ele é do cartel, a rede mais violenta do planeta. Os caras são capazes de destruir uma cidade inteira só para conseguir pegar um informante. Talvez Marco não quisesse atrair o alvo pro lado dele fazendo Moya ir em cana. Então esperou sentado e o caso chegou na mão dele, assinado, carimbado e entregue. Se Moya começasse a procurar culpados, acabaria parando em Gloria.
— Isso é possível, acho — eu disse. — Mas então, se Moya estava atrás de vingança, por que esperou sete anos para pegar Gloria?
Cisco não pareceu estar convencido com nenhum dos argumentos. Este é o problema com ideias soltas: na maioria das vezes, a conversa deixa você em uma sinuca.
— Pode ser que a gente esteja falando de duas coisas sem conexão — disse Jennifer. — Duas coisas sem relação entre si por sete anos. De um lado, a prisão e o motivo desconhecido de Marco ter armado a operação daquela forma, do outro o assassinato de Gloria, que pode ter acontecido por um motivo inteiramente diferente.
— Você voltou a achar que nosso cliente cometeu o crime? — perguntei.
— Não, de jeito nenhum. Na verdade, estou absolutamente convencida de que ele não passa de um bode expiatório. Só estou dizendo que sete anos é muito tempo. As coisas mudam. Você mesmo acabou de perguntar por que Moya esperaria sete anos para ter sua vingança. Não acho que ele fez isso. A morte de Gloria é uma grande perda para ele. O pedido de habeas alega que a arma foi plantada no quarto de hotel. Então ele precisava de Gloria para ajudar na defesa. Quem ele tem agora? Trina Trixxx e um relato de segunda mão? Boa sorte pondo essa mulher no tribunal de apelações dos Estados Unidos.
Olhei para Jennifer por um longo tempo e assenti lentamente.
— Olha só a novata! — eu disse. — Não me olhe assim, não falei para depreciar. Estou querendo dizer que, mesmo sendo a novata, acho que você acertou na mosca. Moya precisava de Gloria viva para o habeas. Para dizer ao tribunal o que ela fez.
— Bom, pode ser que ela não quisesse dizer a verdade e ele tenha mandado acabar com ela — disse Cisco, balançando a cabeça em seguida, para tentar se convencer.
Fiz um movimento com a cabeça. Aquela hipótese não me agradava. Havia alguma coisa faltando.
— Se a gente parte do princípio de que Moya precisava dela viva — disse Jennifer —, a questão passa a ser quem precisava dela morta.
Dessa vez assenti, gostando da lógica. Esperei um momento, abrindo as mãos para os outros, indagando pela resposta óbvia. Nada.
— Marco — falei.
Recostei na cadeira e olhei de Cisco para Jennifer. Eles me encararam sem expressão alguma no rosto.
— Vamos lá, só eu estou enxergando isso? — perguntei.
— Então você está optando por um agente federal em vez de um chefão do cartel para servir de laranja? — perguntou Jennifer. — Não parece uma boa estratégia.
— Já deixou de ser uma defesa usando laranja, é uma defesa de verdade — falei. — Não interessa se vai ser duro vender esse peixe se foi isso o que realmente aconteceu.
Houve um silêncio enquanto minhas palavras eram consideradas, e então Jennifer falou.
— Mas por quê? Por que Marco ia querer ela morta? — perguntou.
Dei de ombros.
— É isso que a gente tem que descobrir — eu disse.
— Rola muita grana nas drogas — disse Earl. — Isso balança muita gente.
Apontei para ele como se fosse um gênio.
— É isso aí — eu disse. — Se a gente acredita na história de que Marco fez Gloria plantar a arma, então estamos lidando com um agente corrupto desde o início. Não sabemos se ele infringiu as regras para pegar criminosos ou se foi para proteger outros interesses. Em qualquer uma das hipóteses, seria forçar demais a barra achar que ele foi capaz de matar para se safar e proteger a operação ilegal? Se Gloria passou a representar perigo, nesse caso eu acho que definitivamente ela estava no meio de seu caminho.
Me inclinei para a frente.
— Então é isso o que precisamos fazer. Temos que descobrir mais sobre Marco. E sobre a equipe dele, essa tal ICE-T. Descobrir em que outros casos eles trabalharam desde Moya. Ver que tipo de reputação os caras têm. A gente vasculha outros casos para ver se tem alguma coisa cheirando mal.
— Vou procurar o nome dele nos arquivos do tribunal — disse Jennifer. — Na esfera estadual e federal. Puxar tudo o que achar e partir disso.
— Eu vou perguntar por aí — acrescentou Cisco. — Conheço uns caras que conhecem uns caras.
— E eu cuido da família Fulgoni — disse eu. — E de Moya. Quem sabe eles podem até ajudar nosso caso.
Dava para sentir a adrenalina correndo nas veias. Nada como um senso de direção para animar.
— Você acha que isso significa que foi a DEA que pôs o aparelho no seu carro? — perguntou Jennifer. — E não Moya ou Fulgoni?
A ideia de um agente corrupto da DEA monitorando meus movimentos fez a adrenalina correndo em minhas veias congelar.
— Se esse for o caso, Fulgoni ter ligado para Trina ontem à noite quando eu estava lá não passou de coincidência — eu disse. — Não tenho certeza se acredito nisso.
Era um dos enigmas do caso que precisariam ser elucidados para a compreensão do todo.
Jennifer juntou seu bloco de anotações e suas pastas e começou a empurrar a cadeira para trás.
— Espera um minuto — eu disse. — A gente não terminou.
Ela voltou a se acomodar e olhou para mim.
— Lankford — falei. — Ele estava seguindo Gloria na noite em que ela foi assassinada. Se estamos de olho em Marco, então precisamos procurar uma ligação entre ele e Lankford. Se conseguirmos encontrar, vamos ficar mais perto de ter tudo o que a gente precisa.
Virei para Cisco.
— Levanta tudo o que puder sobre ele — pedi. — Se ele conhece Marco, quero saber de onde. E quero saber como.
— Deixa comigo — disse Cisco.
Voltei a fitar Jennifer.
— Só porque estamos com um olho em Marco não significa que vamos tirar o outro de Moya. Precisamos saber absolutamente tudo sobre o caso desse cara. Isso vai nos ajudar a entender Marco. Quero que continue nisso.
— Pode deixar.
Então virei para Lorna e Earl.
— Lorna, continue tocando o barco. E Earl, você vem comigo. Acho que é isso, gente. Por enquanto, pelo menos. Muito cuidado por aí. Não esqueçam com quem estamos lidando.
Todos começaram a se levantar, permanecendo em silêncio enquanto se aprontavam para sair. Não havia sido o tipo de reunião que terminava com um sentimento de animação ou de camaradagem entre os participantes. Estávamos tomando diferentes rumos para iniciar uma investigação sigilosa de um agente federal possivelmente perigoso. Poucas coisas podiam ser mais preocupantes do que isso.
19
Acaminho do centro, precisei pedir a Earl para controlar o impulso de tentar descobrir por conta própria se tinha alguém na nossa cola. Ele costurava entre os carros, acelerando e freando, tomando a direção das saídas e virando no último segundo para voltar à via expressa.
— Deixa o Cisco cuidar disso — falei. — Só me faz chegar inteiro no tribunal.
— Desculpa, chefe, me empolguei. Mas tenho que dizer que estou gostando desse negócio todo, saca? Estar na reunião e ficar por dentro do que está rolando.
— Bom, como eu disse, quando as coisas acontecerem e eu precisar da sua ajuda, como ontem, ponho você no lance.
— Beleza.
Ele sossegou depois disso e chegamos ao centro sem nenhum incidente. Pedi que me deixasse no Criminal Courts Building. Avisei que não sabia quanto tempo ia demorar. Eu não tinha nada para resolver no tribunal, mas o Gabinete da Promotoria ficava no décimo sexto andar e foi para lá que me dirigi. Depois de descer do carro, olhei por cima do teto e esquadrinhei casualmente o cruzamento da Temple com a Spring Street. Não vi nada nem ninguém fora do ordinário, mas me peguei olhando inadvertidamente para o teto dos edifícios, à procura dos índios. Também não vi ninguém ali em cima.
Depois de passar pelo detector de metal, peguei um dos elevadores lotados para o décimo sexto. Eu não marcara hora e sabia que podia estar prestes a tomar um belo chá de cadeira, mas achei que precisava ao menos tentar ver Leslie Faire. Embora tivesse desempenhado um papel-chave nos acontecimentos de oito anos antes, mal se envolvera na discussão atual. Leslie havia sido a promotora-assistente encarregada do acordo que resultou na prisão de Hector Arrande Moya e na liberdade de Gloria Dayton.
Ela se saíra muito bem desde então, vencendo julgamentos importantes e optando acertadamente por manifestar apoio a meu oponente, Damon Kennedy, na eleição para a promotoria. Isso resultou em uma ótima promoção. Ela agora era promotora-chefe e estava encarregada da Major Trials Unit, que cuidava dos principais casos do Gabinete da Promotoria. Por isso, estava mais para uma gerente dos demais promotores e do cronograma dos tribunais, de modo que era raro vê-la em ação nos julgamentos. Para mim, era uma boa notícia, claro: Faire era uma promotora casca-grossa e fiquei feliz por não precisar me preocupar mais em cruzar seu caminho no tribunal. Eu considerava o caso Gloria Dayton a única vitória já obtida contra ela. Claro, agora uma vitória vã, aos meus olhos.
Embora não gostasse de enfrentar Leslie Faire em um tribunal, eu a respeitava. E achava que ela já devia saber o que acontecera com Gloria Dayton. Talvez as novidades a deixassem inclinada a me ajudar a compreender alguns detalhes de oito anos antes. Eu queria saber se ela e o agente Marco algum dia haviam se encontrado e, em caso afirmativo, quando.
Avisei a recepcionista de que eu não tinha hora marcada, mas estava disposto a esperar. Ela me convidou a sentar enquanto notificava a secretária de Faire sobre meu pedido de ser recebido por dez minutos. O fato de Faire ter uma secretária demonstrava sua posição elevada no gabinete de Kennedy: os promotores que eu conhecia, pelo menos a maioria, não contavam com nenhuma ajuda administrativa e podiam se considerar com sorte se tivessem uma secretária comum ao setor à disposição.
Peguei o celular e sentei em uma das inúmeras cadeiras de plástico que havia na sala de espera desde tempos imemoriais, bem antes de eu sonhar em ter licença para advogar. Havia e-mails novos e algumas mensagens de texto que eu precisava mandar, mas a primeira coisa que fiz foi ligar para Cisco e verificar se os seus índios haviam conseguido algo no trajeto até o centro.
— Estava falando com meu cara agora mesmo — informou Cisco. — Eles não viram nada.
— O.k.
— Não quer dizer que não tenha. Foi só uma vez. Talvez a gente precise mandar você fazer alguns trajetos diferentes para ter certeza.
— Sério? Não tenho tempo de rodar pela cidade, Cisco. Achei que você tinha dito que esses caras eram bons.
— Bom... os índios que estavam no desfiladeiro não tinham que vigiar a 101. Vou falar para continuarem o que estão fazendo. Qual é a sua programação, afinal?
— Estou no Gabinete da Promotoria agora e não sei quanto tempo vou ficar aqui. Depois vou para o escritório do Fulgoni, ver o filho dele.
— Onde fica?
— Century City.
— Bom, Century City deve funcionar. Os bulevares são largos por lá. Vou avisar meus caras.
Desliguei e abri o e-mail no meu celular. Havia uma série de mensagens de clientes detidos atualmente. A pior coisa que aconteceu para os advogados de defesa nos últimos anos foi a liberação do uso de e-mails para os detentos, aprovada pela maioria das prisões. Sem mais nada para fazer além de se preocupar com seus casos, eles inundavam a caixa de entrada dos advogados com uma infinidade de e-mails perguntando coisas, comunicando suas preocupações e fazendo ameaças ocasionalmente.
Comecei a deletar um por um, e vinte minutos se passaram até erguer o rosto para pensar um pouco. Decidi que esperaria mais uma hora antes de desistir de Leslie Faire. Voltei a me concentrar nos e-mails e consegui limpar uma boa parte, chegando até a responder alguns nesse processo. Fiquei fazendo isso por quarenta e cinco minutos, cabisbaixo, quando surgiu o reflexo de um vulto na tela do celular. Ergui o rosto e me deparei com Lankford olhando para mim. Quase me encolhi, mas acho que consegui não demonstrar a surpresa de vê-lo ali.
— Investigador Lankford.
— Haller, o que está fazendo aqui?
Ele fez a pergunta como se eu fosse uma espécie de mendigo ou algum tipo de estorvo previamente advertido a cair fora e não voltar.
— Estou esperando para falar com alguém. O que você está fazendo aqui?
— Eu trabalho aqui, esqueceu? Isso tem a ver com La Cosse?
— Não, não tem a ver com La Cosse, mas não é da sua conta.
Ele fez um sinal para que eu ficasse de pé. Continuei sentado.
— Eu falei para você que estou esperando alguém.
— Não, não está. Leslie Faire me mandou ver o que você quer. Se não quer falar comigo, então não quer falar com ninguém. Vamos. De pé. Não pode usar nossa sala de espera para trabalhar. Você tem o carro para isso.
A resposta dele me deixou sem ação. Ele fora mandado por Faire. Será que isso significava que Faire sabia do que estava acontecendo por baixo dos panos no caso de homicídio de Gloria Dayton? Eu viera passar a informação, mas talvez ela estivesse mais por dentro do que eu.
— Eu disse vamos andando — falou Lankford, com veemência. — Levanta ou eu levanto você.
Uma mulher sentada a duas cadeiras de mim ficou de pé para se afastar do que achava que estava prestes a se tornar um confronto físico. Ela foi sentar do outro lado da sala.
— Fica calmo aí, Lankford — eu disse. — Estou indo.
Guardei o celular no bolso interno do paletó e peguei a pasta no chão, ao me levantar. Lankford não se moveu, permanecendo muito próximo de propósito e invadindo meu espaço pessoal. Fiz menção de contorná-lo, mas ele deu um passo para o lado e voltamos a ficar frente a frente.
— Está se divertindo? — perguntei.
— A dra. Faire não quer ver você de novo por aqui — avisou. — Ela não trabalha mais nos julgamentos e não quer nenhum tipo de contato com vagabundos como você. Entendeu?
Seu hálito fedia a café e cigarro.
— Claro — disse. — Entendi.
Dei a volta nele e fui para a área dos elevadores. Lankford me seguiu e ficou me observando em silêncio, enquanto eu apertava o botão para descer e aguardava. Olhei para ele por cima do ombro.
— Isso pode demorar, Lankford.
— Tenho o dia todo.
— Tenho certeza que sim.
Virei o rosto outra vez para as portas do elevador, mas depois voltei a olhar furtivamente para Lankford por cima do ombro. Não consegui resistir.
— Você parece diferente, Lankford.
— É? Como assim?
— Em relação à última vez que vi você. Tem alguma coisa diferente. Fez implante de cabelo ou algo assim?
— Muito engraçado. Mas pra minha sorte eu não tenho o desprazer de ver sua cara desde a audiência de La Cosse no ano passado.
— Não, estou falando de algo mais recente. Não sei.
Isso foi tudo que eu disse. Virei de novo e me concentrei nas portas do elevador. Finalmente a luz acima acendeu e as portas se abriram, revelando apenas quatro pessoas dentro. Eu sabia que, no momento em que chegasse ao térreo, a cabine estaria entupida de uma parede a outra, muito acima do limite máximo de peso.
Entrei e virei para encarar Lankford. Tirei um chapéu imaginário ao me despedir.
— É o seu chapéu — falei. — Você não está usando chapéu hoje.
As portas do elevador se fecharam diante de seu olhar impassível.
20
O confronto com Lankford me deixou agitado. Enquanto descia no elevador, fiquei mudando o peso do corpo de um pé para o outro, como um boxeador sentado na banqueta, à espera do gongo. Quando cheguei ao térreo, sabia exatamente para onde tinha de ir. Sly Fulgoni Jr. podia esperar. Eu precisava ver Legal Siegel.
Quarenta minutos depois, eu descia de outro elevador no terceiro andar da Menorah Manor. Ao passar pelo balcão da recepção, a enfermeira me parou e disse que eu precisava abrir a pasta antes de seguir pelo corredor até o quarto de Legal.
— Do que você está falando? — perguntei. — Eu sou advogado. Não pode me dizer para abrir a pasta.
Ela respondeu com rispidez e não arredou pé.
— Alguém anda trazendo comida de fora para o sr. Siegel. Além de ser uma violação das normas sanitárias e religiosas do estabelecimento, é um risco para o próprio paciente, porque interfere no planejamento nutricional elaborado e organizado com tanto cuidado.
Eu sabia aonde isso ia levar e também me recusei a ceder.
— Você chama a comida que servem aqui, pelo preço que meu cliente paga, de planejamento nutricional?
— Se os pacientes gostam ou não da comida, não vem ao caso. Se quer visitar o sr. Siegel, preciso que abra a pasta.
— Se quiser ver o que tem dentro da minha pasta vai precisar de um mandado.
— Isso não é uma instituição pública, sr. Haller, e não estamos no tribunal. Somos um estabelecimento médico cem por cento privado. Como enfermeira-chefe desta ala, tenho autoridade para inspecionar qualquer um e qualquer coisa que passe pelas portas desse elevador. Temos pessoas doentes aqui e devemos zelar por elas. Ou o senhor abre a pasta ou vou chamar a segurança e pedir que seja retirado.
Para enfatizar a ameaça, ela pôs a mão sobre o telefone que havia no balcão.
Balancei a cabeça com irritação e puxei a pasta para cima do balcão. Abri os dois fechos com um estalo e levantei a parte de cima. Fiquei observando seus olhos esquadrinharem o conteúdo por alguns momentos.
— Satisfeita? Deve ter algum Tic Tac perdido aí dentro. Espero que não seja problema.
Ela ignorou a ironia.
— Pode fechar e ir visitar o sr. Siegel. Obrigada.
— Não tem de quê.
Fechei a pasta e segui pelo corredor, contente, mas sabendo que agora eu precisaria de um plano da próxima vez que quisesse de fato levar comida para Legal. Em um armário de casa eu tinha uma pasta que aceitara em uma permuta com um cliente, certa vez. A valise tinha um compartimento secreto capaz de esconder um quilo de cocaína. Um sanduíche caberia fácil, fácil ali dentro, talvez até dois.
Legal Siegel estava recostado na cama, assistindo a uma reprise do programa de Oprah com o volume muito alto. Seus olhos estavam abertos, mas não pareciam ver. Fechei a porta e fui até a cama. Agitei a mão para cima e para baixo diante de seu rosto, temendo por um instante que tivesse morrido.
— Legal?
Ele voltou do devaneio, focou em mim e sorriu.
— Mickey Mouse! Ei, o que traz você aqui? Deixa eu adivinhar, atum com abacate do Gus.
Fiz um movimento de cabeça.
— Desculpa, Legal, hoje não trouxe nada. Mas ainda é cedo demais para o almoço.
— O quê? Para com isso, me passa aí. É o porco com molho do Coles, não é?
— Não, estou falando sério. Não trouxe nada. Além do mais, se tivesse trazido, a enfermeira Ratched teria confiscado. Ela está de olho na gente e me fez abrir a pasta.
— Aquela mocreia enxerida... negando a um homem os simples prazeres da vida!
Pus a mão em seu braço para acalmá-lo.
— Não esquenta, Legal. Ela não me assusta. Tenho um plano e da próxima vez eu passo no Gus. O.k.?
— Claro, claro.
Puxei uma cadeira encostada na parede e sentei ao lado da cama. Encontrei o controle remoto entre as dobras do lençol e apertei o botão do mudo.
— Graças a Deus — disse Legal. — Esse negócio estava me deixando maluco.
— Então por que não desligou?
— Porque não conseguia achar a droga do controle. Mas por que veio me ver sem trazer nada pra eu me sustentar? Você esteve aqui ontem mesmo, não foi? Pastrami do Art’s, no Valley.
— Você tem razão, Legal, e fico feliz que se lembre.
— Então por que voltou tão cedo?
— Porque hoje quem precisa de sustento sou eu. Sustento jurídico.
— Como assim?
— O caso La Cosse. As coisas estão acontecendo e está difícil separar o joio do trigo.
Fui enumerando os personagens nos dedos:
— Tenho um agente da DEA suspeito, um investigador corrupto no Gabinete da Promotoria, um chefão do cartel e um advogado sem licença. Sem falar do meu cliente em cana e da vítima, que é ou era a única pessoa com quem me importo de verdade. Para coroar, estou sendo vigiado, mas não sei exatamente por quem.
— Me fala sobre isso.
Passei os trinta minutos seguintes resumindo a história e respondendo às perguntas. Depois de recapitular até a última atualização que havia contado para ele, passei a relatar a partir desse ponto, entrando em muito mais detalhes do que antes. Legal fez um monte de perguntas enquanto eu falava, mas nenhum comentário. Estava apenas juntando informação e guardando sua resposta. Contei tudo até chegar ao confronto que tinha acabado de ter com Lankford na sala de espera do Gabinete da Promotoria, e a desagradável e desconfortável sensação de estar deixando alguma coisa escapar — alguma coisa bem na ponta do nariz.
Quando terminei, esperei por uma resposta, mas ele não disse nada. Fez um gesto com as mãos frágeis, como se jogasse a coisa toda no ar e deixasse o vento levar. Notei que seus braços estavam roxos de tantos buracos e picadas de agulha. Envelhecer não era para os fracos.
— Só isso? — perguntei. — Jogar para o vento, como pétalas de flor? Você não tem nada a dizer?
— Ah, tenho muita coisa a dizer e você não vai gostar de ouvir.
Fiz um gesto com a mão, indicando que viesse para cima com tudo que tinha.
— Você não está enxergando o cenário completo, Mouse.
— Sério? — disse eu, com sarcasmo na voz. — Qual é o cenário completo?
— Está vendo, essa é a pergunta errada — corrigiu ele. — Sua primeira pergunta não deveria ser qual é mas por quê. Por que não estou vendo o cenário completo?
Concordei a contragosto.
— Então por que não estou vendo o cenário completo?
— Vamos começar pelo relatório que acabou de me fazer sobre a situação do caso. Você disse que hoje de manhã precisou daquela novata faz-tudo que contratou em uma loja de 1,99 para fazer você enxergar as coisas do jeito certo na reunião da equipe.
Ele estava falando de Jennifer Aronson. Era verdade que eu a contratara direto da Southwestern Law School, que ficava no antigo prédio da loja de departamentos Bullock’s, em Wilshire. O apelido vinha daí, mas chamar a faculdade de direito de loja de 1,99 era denegrir ainda mais uma escola que já não era considerada das melhores.
— Só estava tentando dar o devido crédito a ela — eu disse. — Jennifer pode ainda ser novata, mas é mais rápida do que muito advogado de renome que você encontra por aí.
— Sei, sei, isso tudo é muito bonito. Ela é uma boa advogada, tenho certeza que sim. A questão é que você sempre espera ser o melhor advogado e no fundo se considera assim. Então, quando de repente é a novata da equipe que vê as coisas com clareza, como hoje de manhã, isso incomoda. Era para você ser o cara mais esperto da equipe.
Eu não sabia o que responder a isso. Legal foi em frente.
— Não sou seu terapeuta. Sou advogado. Mas acho que você precisa parar de encher a cara à noite e precisa pôr sua casa em ordem.
Levantei da cadeira e comecei a andar de um lado para outro diante da cama.
— Legal, do que você está falando? Minha casa está...
— Você está deixando que questões externas interfiram e prejudiquem seu discernimento e sua capacidade de superar os obstáculos.
— Você está falando de Hayley? De eu ser obrigado a viver sabendo que minha filha não quer nada comigo? Eu não chamaria isso de questões externas.
— Não estou falando de nada em específico, e sim do que está na raiz, da culpa que levou a tudo isso. Ela está interferindo em seu desempenho como advogado, como defensor do réu. E nesse caso, provavelmente, de um réu acusado injustamente.
Ele estava falando de Sandy e Katie Patterson e do acidente que levou suas vidas. Eu me curvei e segurei com as duas mãos a grade de ferro ao pé da cama. Legal Siegel era meu mentor e podia me falar qualquer coisa. Podia me malhar até mais do que minha ex que eu ia aceitar.
— Escuta uma coisa — continuou. — Não existe causa mais nobre nesse mundo do que defender alguém que foi acusado injustamente. Não pode pôr tudo a perder, meu jovem.
Assenti e mantive a cabeça baixa.
— Você precisa superar a culpa — ele disse. — Pode escolher, ou se livra dos fantasmas ou eles vão te arrastar e você nunca será o advogado que deveria ser. Nunca vai enxergar o cenário completo.
Joguei as mãos para o alto.
— Por favor, chega desse papo de cenário completo! Do que você está falando, Legal? O que eu não estou vendo?
— Para ver o que deixou escapar, você precisa recuar e ampliar o ângulo. Assim consegue enxergar o cenário mais amplo.
Olhei para ele, tentando entender.
— Quando deram entrada no habeas? — ele perguntou, em um tom calmo.
— Em novembro.
— Quando Gloria Dayton foi assassinada?
— Em novembro.
Eu respondia com impaciência. Nós dois sabíamos as respostas a essas perguntas.
— E quando você recebeu a citação do advogado?
— Hoje... ontem.
— E esse agente federal que você mencionou, quando ele foi intimado?
— Não sei se ele foi intimado. Mas Valenzuela estava com a intimação ontem.
— E também tem a intimação forjada que Fulgoni preparou para a outra garota da história.
— Kendall Roberts, isso.
— Faz alguma ideia por que ele falsificaria um documento para ela e não para você?
Dei de ombros.
— Sei lá. Acho que ele sabia que eu ia notar se era legítimo ou não. Como ela não é advogada, não perceberia. Ele teria economizado os custos de dar entrada no tribunal. Ouvi falar de uns advogados que fazem isso.
— Parece meio forçado, para mim.
— Bom, é só o que eu tenho além do...
— Então, seis meses depois que deram entrada no habeas corpus, eles emitiram as primeiras intimações? Vou dizer uma coisa para você, se eu levasse um escritório desse jeito, tinha ficado sem cliente e terminado no olho da rua. Não é o modo mais adequado de advogar, isso com certeza.
— Esse fedelho, o Fulgoni, não sabe a diferença entre...
Parei no meio da frase. Eu tivera de repente um vislumbre do cenário mais amplo. Olhei para Legal.
— Talvez não fossem as primeiras intimações.
Ele fez que sim.
— Agora eu acho que você está entendendo — disse Legal.
21
Pedi para Earl seguir pelo Olympic Boulevard até Century City e me deixar no escritório de Sly Fulgoni Jr. Depois me acomodei com um bloco de anotações zerado e comecei a traçar linhas do tempo sobre o caso de homicídio de Gloria Dayton e o pedido de habeas de Hector Moya. Não demorou para eu perceber que os casos estavam entrelaçados como uma hélice dupla. Vi o cenário mais amplo.
— Tem certeza que é aqui, chefe?
Desviei o rosto do bloco e olhei pela janela. Earl diminuíra a velocidade diante de uma fileira de pequenos prédios contíguos em estilo francês provinciano. Continuávamos no Olympic Boulevard, mas no extremo leste de Century City. Eu tinha certeza de estar com o endereço correto, mas o charme discreto do lugar estava a anos-luz de distância do glamour das torres reluzentes na Avenue of the Stars, o modelo que as pessoas associavam a um escritório de advocacia em Century City. Não pude deixar de pensar que, se um cliente chegasse ali pela primeira vez e visse aqueles prediozinhos, ficaria com cara de quem levou gato por lebre. Mas quem era eu para falar alguma coisa? Quantas vezes não vi essa exata expressão estampada no rosto de meus clientes ao descobrirem que eu trabalhava no banco de trás do meu carro.
— Tenho — falei. — Aqui mesmo.
Desci e caminhei em direção à porta. Entrei em uma pequena sala de recepção com tapete surrado, que levava do balcão a portas à direita e à esquerda. A da esquerda tinha uma placa com um nome que não reconheci. Na porta da direita havia a placa com o nome de Sylvester Fulgoni. Tive a impressão de que Sly Jr. estava dividindo o espaço com outro advogado. Provavelmente também uma secretária, mas no momento não havia secretária alguma para dividir nada: o balcão estava vazio.
— Olá? — perguntei.
Ninguém respondeu. Baixei o rosto para a papelada e para a correspondência no balcão e vi que acima havia uma folha com o cronograma de tribunal de Sly Jr. Só que havia pouquíssimas datas anotadas para o mês. Sly não tinha muito trabalho — pelo menos, trabalho que o levasse a pisar no fórum. Vi que anotara para colher meu depoimento na terça-feira seguinte, mas não havia nenhuma anotação sobre James Marco ou Kendall Roberts.
— Olá? — chamei novamente.
Dessa vez falei mais alto, mas nem por isso obtive resposta. Fui até a porta de Fulgoni e encostei o ouvido no batente. Não escutei nada. Bati e experimentei a maçaneta, que estava destrancada. Abri a porta e deparei com um jovem sentado atrás de uma grande mesa ornamentada, testemunha de tempos melhores, ao contrário do resto do escritório.
— Pois não, o senhor deseja alguma coisa? — perguntou o rapaz, parecendo irritado com a invasão.
Ele fechou um laptop sobre a mesa, mas não se levantou. Ultrapassei a soleira da porta. Não vi mais ninguém na sala.
— Estou procurando Sly Jr. — falei. — É você?
— Desculpe, mas só trabalho com hora marcada. O senhor vai precisar marcar uma hora e voltar.
— Não tem recepcionista.
— Minha secretária está almoçando e eu estou muito ocupado no... espera aí, você é Haller, certo?
Ele apontou um dedo para mim e pôs a outra mão no braço da cadeira, como que se preparando, caso precisasse dar no pé. Ergui as mãos para mostrar que estava desarmado.
— Eu venho em paz.
Não parecia ter mais do que vinte e cinco anos de idade. Estava se esforçando para cultivar um cavanhaque decente e usava uma camisa dos Dodgers. Era óbvio que não tinha tribunal nesse dia nem talvez em dia nenhum.
— O que você quer? — ele perguntou.
Dei mais alguns passos na direção da mesa, que era gigante, grande demais para o ambiente — obviamente herança paterna de um escritório melhor e maior. Puxei uma das cadeiras que havia diante da mesa e sentei.
— Não falei pra sentar. Você não...
Eu estava sentado.
— Certo, fique à vontade.
Balancei a cabeça agradecendo e sorri. Apontei para a mesa.
— Gostei. Herdou do velho?
— Olha, o que você quer?
— Já disse. Eu venho em paz. Por que está tão nervoso?
Ele bufou de exasperação.
— Não gosto quando as pessoas vão entrando assim sem pedir licença. Isso aqui é um escritório de advocacia. Você não ia gostar se alguém... ah, é, você não tem escritório. Eu vi o filme.
— Eu não fui entrando sem pedir licença. Não tem ninguém na recepção. Eu chamei e depois experimentei a porta.
— Eu já falei que a secretária saiu pra almoçar. Está no horário de almoço. Olha, será que dá para resolver isso logo? O que você quer? Fala o que veio fazer aqui e depois vai embora.
Ele fez um gesto dramático com a mão.
— Olha — eu disse —, estou aqui porque a gente começou com o pé esquerdo e eu queria pedir desculpas. A culpa foi minha. Eu estava tratando você, e seu pai, como se fôssemos inimigos no caso. Mas talvez não seja assim. Por isso estou aqui para selar a paz e ver se a gente consegue se ajudar. Sabe como é, eu mostro minha mão e você a sua.
— Não, a gente não vai fazer isso. Eu tenho um caso e você tem a merda que for, mas não vamos trabalhar juntos.
Me inclinei para a frente e tentei um contato visual, mas o rapaz estava muito agitado.
— Nossas condições são parecidas, Sly. Seu cliente, Hector Moya, e o meu, Andre La Cosse, vão se beneficiar se a gente trabalhar junto e trocar informação.
Ele fez um movimento de cabeça, descartando a ideia.
— Eu não acho isso.
Olhei ao redor da sala e percebi seus diplomas emoldurados na parede. As letras eram pequenas demais para ler de longe, mas não imaginei que estivesse tratando com um bambambã do direito ali. Decidi oferecer um pouco do que estava pensando e havia mapeado no carro lá fora, para ver a reação dele.
— Meu cliente foi acusado pelo assassinato de Gloria Dayton, que tem um papel importante na sua petição de habeas. O negócio é que eu não acho que foi ele.
— Bom, ótimo para você. Não é da nossa conta.
Eu estava começando a suspeitar que seu uso do “nós” não se referia a ele e Hector Moya, e sim à equipe Fulgoni — o sr. Preso e o sr. Livre. Só que o sr. Livre não sabia a diferença entre um habeas corpus e um corpus delicti. Eu estava conversando com o homem errado.
Decidi ir em frente e mandar bala na grande pergunta. A questão que me ocorrera quando recuei para enxergar o cenário mais amplo.
— Responda minha pergunta que vou embora. No ano passado, você tentou intimar Gloria Dayton antes que ela fosse assassinada?
Fulgoni sacudiu enfaticamente a cabeça.
— Não vou conversar com você sobre nosso caso.
— Você mandou Valenzuela fazer isso?
— Já falei. Não vou conversar...
— Não entendo. A gente pode se ajudar.
— Então fala com meu pai e tenta convencer ele, porque não posso tomar a liberdade de discutir nada com você. Agora você precisa sair.
Não fiz menção de me levantar. Só fiquei olhando para ele, que fez um gesto com as mãos, como que me enxotando.
— Por favor, saia.
— Alguém deixou você desconfiado, Sly?
— Desconfiado? Não sei do que você está falando.
— Por que você forjou a intimação que mandou Valenzuela entregar para Kendall Roberts?
Ele apertou o alto do nariz com dois dedos, como que tentando aplacar uma dor de cabeça.
— Não vou dizer mais uma palavra.
— Tudo bem, então, eu falo com seu pai. Liga para ele agora e põe no viva voz.
— Não posso ligar para ele assim, sem mais nem menos. Ele está na prisão.
— Por que não? Ele me ligou ontem à noite.
Isso fez Sly erguer as sobrancelhas.
— É, quando eu estava com Trina.
Suas sobrancelhas se arquearam outra vez e depois voltaram à posição horizontal.
— Então. Ele só pode ligar depois da meia-noite.
— Sem essa, cara. Ele tem um celular por lá, assim como metade dos meus clientes. Não é um grande segredo nem nada assim.
— É, mas em Victorville eles têm um bloqueador. Meu pai conhece um cara que desliga o aparelho para ele... mas só depois da meia-noite. Além do mais, se você tem caras com celular lá dentro, sabe que nunca consegue ligar para eles. Eles é que ligam para você e pronto. Quando é seguro.
Ele tinha razão. Eu sabia por experiência profissional que celulares eram regularmente contrabandeados em quase todas as cadeias e prisões. Para não depender de constantes revistas em cavidades corporais e nas celas dos detentos, muitas instituições correcionais empregavam bloqueadores de sinal que obstruíam o uso. Sly pai obviamente tinha um guarda amigo — mais provavelmente um guarda pago para ser amigo — que controlava o interruptor durante o turno da noite. Isso confirmava que a ligação de Sly pai na noite anterior não passara de coincidência e que ele não pusera ninguém na minha cola. E significava que outra pessoa tinha feito isso.
— Com que frequência ele liga para você? — perguntei.
— Não vou dizer — respondeu Sly Jr. — Nossa conversa terminou.
Meu palpite era que Sly pai ligava toda noite com uma lista de tarefas para o dia seguinte. O filho não parecia ter grande iniciativa. Eu estava louco para dar uma olhada naquele diploma e descobrir em que escola de direito porcaria tinha se formado, mas decidi que não valia a pena o esforço. Conhecia advogados das melhores faculdades que não sabiam o caminho do tribunal, assim como conhecia advogados que haviam ralado para estudar à noite e que eu chamaria em um piscar de olhos se algum dia estivesse com os pulsos algemados. Quem fazia a diferença era a pessoa, não a escola.
Fiquei de pé e empurrei a cadeira de volta para o lugar.
— O.k., Sylvester, você vai fazer o seguinte. Quando o papai ligar hoje à noite, fala para ele que eu vou fazer uma visita amanhã. Vou me registrar no portão como advogado dele. De Moya também. Você e eu estamos fornecendo assistência jurídica conjunta. Pode garantir para o seu pai que não estou criando uma relação de adversários, e sim procurando uma cooperação entre os dois lados. Fala para ele que é melhor aceitar a reunião e ouvir o que tenho a dizer. Pede para ele passar o mesmo recado a Hector. Avisa para ele que é bom não recusar minha visita ou as coisas vão ficar incômodas para o cliente dele lá no deserto.
— Do que você está falando, porra. Assistência jurídica conjunta? Puta papo furado.
Voltei até a mesa e me inclinei, as duas mãos sobre a superfície de mogno. Sly Jr. recuou o máximo que pôde na cadeira.
— Deixa eu dizer algo para você, Júnior. Se eu rodar por duas horas para chegar até lá e tudo não sair exatamente como acabei de falar, vão acontecer duas coisas. A primeira é que o bloqueador vai começar a funcionar a noite toda, deixando você no escuro e sem a menor ideia do que fazer, de que jeito trabalhar e o que dizer. E a segunda é que a Ordem dos Advogados da Califórnia vai ficar muito interessada no pequeno arranjo que você mantém com seu pai. No caso do papai, vão dizer que isso é advogar sem licença. No seu, podem chamar de advogar sem saber porra nenhuma de direito.
Aprumei o corpo e comecei a sair, mas então virei de novo para ele.
— E, quando eu recorrer à Ordem, vou comentar também a respeito daquela intimação fajuta. Acho que provavelmente não vão gostar nem um pouco, também.
— Você é um babaca, sabia disso, Haller?
Balancei a cabeça e voltei a andar na direção da porta.
— Só quando é preciso.
Saí, deixando a porta escancarada às minhas costas.
22
O Lincoln aguardava onde eu tinha deixado. Me acomodei no banco de trás e topei com um homem sentado na outra ponta do banco, atrás de Earl. Lancei um olhar furtivo ao meu motorista pelo espelho e vi uma expressão quase de desculpa em seu rosto.
Voltei a prestar atenção no estranho. Ele estava usando óculos escuros de aviador, jeans azul surrado e camiseta polo preta. Tinha pele escura, cabelo preto e usava bigode. Meu primeiro pensamento foi de que parecia um assassino de aluguel do tráfico.
O homem sorriu quando reconheceu a expressão em meus olhos.
— Relaxa, Haller — disse ele. — Não sou quem você está pensando.
— Então é quem? — perguntei.
— Você sabe quem eu sou.
— Marco?
Ele sorriu outra vez.
— Por que não pede para seu motorista sair do carro e dar uma volta por aí?
Hesitei um momento e então olhei para Earl pelo espelho.
— Pode ir, Earl. Mas fica por perto, onde eu possa ver você.
O que eu queria na verdade era que Earl pudesse me ver. Queria uma testemunha porque não sabia o que Marco tinha em mente.
— Tem certeza? — perguntou Earl.
— Tenho — eu disse. — Pode ir.
Earl desceu do carro e fechou a porta. Andou alguns passos e depois recostou no para-choque dianteiro do carro, de braços cruzados. Olhei para Marco.
— Certo, o que você quer? — perguntei. — Está me seguindo?
Ele pareceu refletir sobre a pergunta antes de decidir responder.
— Não, não estou seguindo você — disse, enfim. — Vim falar com um advogado que está tentando me intimar e vejo você aqui. Os dois, trabalhando juntos.
Era uma boa resposta, porque era plausível. Evitava a confirmação de que pusera o rastreador no carro, e ele pareceu satisfeito com isso, mesmo que eu não tivesse ficado convencido. Calculei que devia ter quarenta e poucos anos. Tinha um ar confiante, de alguém por dentro das coisas, algo como um jogador sempre dois lances à frente.
— O que você quer? — perguntei outra vez.
— O que eu quero é ajudar você a evitar foder com tudo de um jeito sem volta.
— E que jeito seria esse?
Marco continuou como se não tivesse escutado a pergunta.
— Conhece a palavra sicario, doutor?
Ele pronunciou a palavra com sotaque espanhol perfeito. Desviei o rosto e olhei pela janela, depois voltei a encará-lo.
— Acho que já ouvi falar.
— Não tem tradução para ela, mas é assim que eles chamam os assassinos do cartel lá no México. Sicarios.
— Obrigado pela aula.
— As leis de lá são diferentes. Sabia que eles não têm código legal nem cláusula que permita qualificar o adolescente como adulto? Independente do que fizer, o cara não pode ser processado como adulto nem preso pelos crimes que cometeu enquanto era menor de idade.
— Bom saber, para a próxima vez que eu for para lá, Marco, mas meu exercício de advocacia é aqui na Califórnia.
— Então os cartéis recrutam e treinam os adolescentes como sicarios. Se eles forem presos e condenados, cumprem um ano ou dois. Daí com dezoito estão livres e prontos para voltar ao trabalho, entende?
— Percebo que se trata de uma verdadeira tragédia. Com certeza não existem meios para esses meninos serem reabilitados.
Marco não reagiu ao meu sarcasmo.
— Aos dezesseis anos, Hector Arrande Moya admitiu em um tribunal de Culiacán, no estado de Sinaloa, ter torturado e matado sete pessoas de quinze anos. Três vítimas ele enforcou em um porão. As demais foram queimadas ainda vivas. Havia no grupo duas mulheres, que ele estuprou antes de retalhar os corpos e dar de comida para os coiotes nas colinas.
— E o que isso tem a ver comigo?
— Ele fez tudo isso por ordens do cartel. Sabe, ele foi criado no cartel. E quando saiu da penta, com dezoito anos, voltou direto para o cartel. Na época, é claro, ele tinha um apelido. Era chamado de El Fuego, porque queimava as pessoas.
Olhei o relógio, demonstrando impaciência.
— É uma boa história, mas por que está me contando isso, Marco? E você? E quanto ao...
— Esse é o sujeito que você e Fulgoni estão querendo devolver para as ruas. El Fuego.
Fiz um gesto de negação.
— Não sei do que você está falando. A única pessoa que desejo libertar é Andre La Cosse, que está em uma cela nesse exato momento, acusado de um crime que não cometeu. Mas vou dizer uma coisa sobre Hector Moya. Você quer trancafiar o filho da puta pelo resto da vida, então vamos pôr as coisas em pratos limpos, para começo de conversa. Não...
Me controlei e ergui as mãos, as palmas viradas para fora. Estava falando mais do que deveria.
— Sai logo do meu carro — disse eu, com um tom calmo. — Se precisar conversar com você, a gente se fala no tribunal.
— É uma guerra, Haller, e você precisa escolher de que lado está. Certos sacrifícios são...
— Ah, agora vai me falar sobre escolhas? E quanto a Gloria Dayton, por acaso ela foi uma escolha ou um sacrifício? Vai se foder, Marco. Existem leis, o domínio da lei. Agora sai do meu carro.
Por uns cinco segundos ficamos apenas nos encarando. Até que Marco finalmente piscou. Ele abriu um pouco a porta e foi recuando devagar para fora do carro. Então se inclinou e olhou outra vez para mim.
— Jennifer Aronson.
Abri as mãos, como que esperando o que ainda pudesse ter a me dizer, fosse o que fosse.
— Quem?
Ele sorriu.
— Só fala para ela que, se quiser saber sobre mim, pode me procurar. Quando quiser. Não precisa se esconder lá no fórum pesquisando arquivos, perguntando em voz baixa. Estou bem aqui, 24 horas por dia.
Fechou a porta e se afastou. Fiquei olhando enquanto seguia pela calçada e dobrava a esquina. Não entrou no escritório de Fulgoni, embora tivesse alegado que esse era o motivo para estar na vizinhança e ter me visto.
Logo Earl voltou a sentar atrás do volante.
— Tudo o.k., chefe?
— Tudo bem. Vamos indo.
Ele deu partida no carro. Comecei a ser invadido por frustrações, pela sensação de vulnerabilidade e acabei descontando em Earl.
— Mas como é que você foi deixar esse cara entrar no carro, porra?
— Ele veio e bateu no vidro. Me mostrou o distintivo e falou que era para destravar a porta de trás. Achei que ia meter uma bala na minha cabeça.
— Que maravilha! E você simplesmente me deixou aqui atrás com ele.
— Não tinha nada que desse para fazer, chefe. Ele falou para não me mexer. O que o cara disse?
— Um monte de merda e delírio. Vamos embora.
— Para onde?
— Sei lá. Vai na direção do loft. Por enquanto.
Peguei o celular na mesma hora e liguei para Jennifer. Não queria assustá-la, mas estava claro que Marco sabia de seus esforços para levantar o passado dele e verificar outros casos em que estivera envolvido.
A ligação caiu direto na caixa de mensagens. Enquanto escutava a gravação com sua voz, pensei com meus botões se deixava um recado completo ou se apenas pedia para me ligar. Decidi que seria melhor e talvez mais seguro deixar uma mensagem de voz curta, porque ela teria a informação assim que ligasse o telefone.
— Jennifer, sou eu. Acabei de receber uma visitinha do agente Marco e ele está sabendo da sua tentativa de pesquisar a carreira dele. Deve ter amigos na secretaria do tribunal ou seja lá onde você estiver puxando os arquivos. Por isso fiquei pensando que talvez seja melhor você ficar com o que já conseguiu e voltar para o Moya. Até porque vou ver ele amanhã em Victorville e queria saber de tudo que der até lá. Me avisa quando pegar este recado. Até mais.
Cisco era o próximo e dessa vez fui atendido. Falei para ele do encontro com Marco e perguntei por que não tinha recebido nenhuma sinalização dos índios, que supostamente deveriam estar me seguindo para ver se havia alguém na minha cola. Eu não estava nada contente com a situação.
— Ninguém avisou, Cisco. O cara estava me esperando na porra do carro.
— Não sei o que aconteceu, mas vou descobrir.
Ele pareceu tão irritado quanto eu.
— É, faz isso e depois me liga.
Desliguei. Earl e eu rodamos em silêncio por alguns minutos, e nesse meio-tempo fui repassando mentalmente a conversa com Marco. Estava tentando entender os motivos da visita do agente da DEA. Antes de mais nada, concluí que havia a ameaça: Marco queria dar uma esfriada nos esforços da minha equipe para pesquisar suas atividades. Pelo jeito também queria me afastar do caso Moya. Provavelmente achava que a condenação de Moya e a prisão perpétua estavam relativamente seguras com o inexperiente Sly Fulgoni Jr. conduzindo a petição de habeas corpus. E provavelmente tinha razão. Mas vir para cima de mim pintando Moya como o diabo encarnado não passava de fachada. Os motivos de Marco nada tinham de altruístas e eu não cairia nessa. Depois de considerar tudo, concluí que Marco estava tentando me assustar porque eu o deixara assustado. E isso significava que estávamos indo na direção certa.
— Ei, chefe?
Olhei para Earl pelo espelho.
— Ouvi você falar no recado para Jennifer que está indo pra Victorville amanhã. É verdade? Nós vamos para lá?
— É, vamos. Na primeira hora da manhã.
E, ao dizer isso em voz alta, eu também mandava um foda-se silencioso para Marco.
Meu telefone vibrou e era Cisco, já de volta com uma explicação.
— Desculpa, Mick, os caras cagaram tudo. Viram o sujeito chegar e entrar no carro com Earl. Disseram que ele mostrou um distintivo, mas não sabiam quem era. Acharam que fosse amigo.
— Amigo? O cara mostra o distintivo para Earl antes de entrar no carro e acham que é amigo, caralho? Eles deviam ter ligado para você na mesma hora, para você ligar para mim e me impedir de sair com a porra do zíper aberto.
— Já falei isso para eles. Posso dispensar os caras agora?
— Como é? Por quê?
— Bom, parece bem claro que a gente está sabendo quem rastreou seu carro, certo?
Pensei nas palavras de Marco, na alegação de que acabara de me ver por acaso, quando estava indo falar com Fulgoni a respeito da citação. Eu não engolia essa desculpa nem por um minuto. Concordei com Cisco: Marco pusera o rastreador no meu carro.
— Pode dispensar, sim. Vai economizar uma grana — falei. — De qualquer maneira, no fim das contas, não foram de grande ajuda para disparar o alerta.
— Você quer que a gente tire o GPS do carro também?
Pensei nisso por um momento e nos planos para o dia seguinte. Decidi que preferia provocar Marco, mostrar para ele que não ia pôr o rabo entre as pernas depois da sua visita e da ameaça velada.
— Não, por enquanto deixa.
— O.k., Mick. E, se ainda vale alguma coisa, os caras pediram desculpa.
— Sei, esquece. Até mais.
Desliguei. Olhei pelo para-brisa e percebi que Earl estava cruzando Beverly Hills pelo Little Santa Monica Boulevard, a caminho da minha casa. Estava morrendo de fome e sabia que íamos passar perto do Papa Jake’s, uma lanchonete de aparência comum por fora, mas que fazia o melhor sanduíche de filé a oeste da Filadélfia. Eu não comia lá desde que o Tribunal Superior de Beverly Hills fora fechado na crise orçamentária do governo, o que me levou a perder alguns clientes dessa região. Há horas estava com um desejo vivo, à la Legal Siegel, de um filé Jake com cebola frita e molho pizzaiola.
— Earl — falei. — Vamos dar uma parada aqui para comer. E, se por acaso aquele agente da DEA ainda estiver na nossa cola, vai ficar sabendo do segredo mais bem guardado de Beverly Hills.
23
Depois do almoço fora de hora, dei o dia por encerrado. Minha agenda estava livre e não tinha mais nada marcado. Cogitei por um momento voltar para o centro e ver se conseguia arranjar uma visita com Andre La Cosse para repassar algumas coisas relativas ao julgamento iminente. Mas os acontecimentos das últimas horas — o sermão de Legal Siegel, o encontro com Sly Jr. e a visita surpresa de Marco — me levaram a decidir voltar para casa. Por ora, eu já tivera o bastante.
Disse a Earl para seguir para o loft, assim ele podia pegar seu carro, que deixara em uma vaga perto do local da reunião da equipe. Em seguida fui para casa, parando apenas para vestir roupas mais apropriadas para a trilha na mata de Fryman Canyon. Já fazia um bom tempo que não via minha filha treinando como goleira. Eu sabia pelo site da escola que restavam poucas semanas de pré-temporada e o time estava se preparando para o campeonato estadual. Decidi subir a colina para assistir e quem sabe fugir dos pensamentos sobre o caso La Cosse por algum tempo.
Mas minha fuga teve de ser adiada — pelo menos durante o trajeto de subida do Laurel Canyon Boulevard. Jennifer ligou de volta e disse que tinha recebido o recado e a instrução de suspender a pesquisa sobre Marco.
— Eu pedi algumas pastas no arquivo do tribunal sobre os casos ICE-T porque o negócio no PACER parecia incompleto — explicou. — Aposto que um daqueles funcionários no balcão ligou para ele.
— Tudo é possível. Então fica só no Moya, por enquanto.
— Pode deixar.
— Você consegue me passar o que encontrar até o final do dia? Tenho uma longa viagem até a prisão amanhã e o material de leitura pode ser útil.
— Será que não...
Houve uma hesitação em sua voz. Como se houvesse outra coisa que quisesse me dizer.
— Mais alguma coisa? — perguntei.
— Não sei. Acho que ainda estou pensando se a gente está fazendo o certo nessa história toda. Moya é um alvo melhor para nós do que a DEA.
Eu sabia o que ela queria dizer. Lançar suspeita sobre Moya no julgamento seria muito mais fácil e possivelmente mais produtivo do que jogar o foco em cima de um agente federal. Aronson estava pisando a linha tênue entre buscar a verdade e buscar um veredicto favorável a seu cliente. As duas nem sempre eram a mesma coisa.
— Eu entendo o que você quer dizer — falei. — Mas às vezes a pessoa precisa seguir seus instintos, e os meus me dizem que o caminho é esse. Se eu tiver razão, a verdade libertará Andre.
— Espero que sim.
Dava para perceber que não estava convencida ou que havia outra coisa incomodando.
— Por você tudo bem? — perguntei. — Se não, eu cuido disso, e você pode continuar com os outros clientes.
— Não, tudo bem. É só um pouco esquisito, sabe? As coisas de cabeça para baixo.
— Que coisas?
— Você sabe, os caras do bem podem ser os caras do mal. E o cara mal na cadeia pode ser nossa maior esperança.
— É, é esquisito.
Encerrei a ligação, lembrando que mandasse o resumo de sua pesquisa para mim antes que eu pegasse a estrada para Victorville na manhã seguinte. Ela prometeu que faria isso e nos despedimos.
Quinze minutos depois, eu estacionava no cume do Fryman Canyon. Peguei o binóculo no porta-luvas, tranquei o carro e comecei a subir. Então saí da trilha de terra batida para ir até meu posto de observação. Só que, quando cheguei lá, minha pedra tinha sido tirada do lugar, e parecia que alguém andara usando o ponto, talvez para dormir à noite. O capim alto estava amassado de um jeito que combinava com um saco de dormir. Olhei com todo o cuidado ao redor para ter certeza de que estava sozinho e pus a pedra de volta do meu jeito.
Lá embaixo, o treino de futebol estava apenas começando. Levei o binóculo aos olhos e mirei o gol do lado norte. A goleira tinha cabelo ruivo e usava rabo de cavalo. Não era Hayley. Olhei o outro gol, e lá havia uma goleira que também não era minha filha. Fiquei imaginando se ela teria mudado de posição e comecei a esquadrinhar o campo. Verifiquei as jogadoras, uma por uma, mas não encontrei Hayley. Nenhum número 7.
Deixei o binóculo pendurado no pescoço e peguei o celular. Liguei para o número de trabalho da minha ex-esposa, na Divisão Van Nuys do Gabinete da Promotoria. A secretária da divisão me deixou esperando e, quando voltou à linha, me informou que Maggie McPherson não podia atender porque estava no tribunal. Eu sabia que isso não podia ser verdade, porque Maggie era uma assistente da promotoria encarregada apenas da parte processual. Ela não apresentava mais os casos em corte — uma das muitas coisas pelas quais fui responsabilizado em nosso relacionamento, se é que podia ser chamado de relacionamento.
Tentei em seguida o celular, ainda que ela tivesse me instruído a nunca ligar para o número em horário de expediente, a menos que fosse uma emergência. Ela atendeu, dessa vez.
— Michael?
— Onde está a Hayley?
— Como assim? Está em casa, acabei de falar com ela.
— Por que ela não foi no treino?
— Como?
— O treino de futebol. Ela não foi. Ela se machucou ou está doente?
Houve uma pausa e percebi que estava prestes a descobrir algo que um pai já deveria estar sabendo.
— Ela está ótima. Só que largou o futebol faz mais de um mês.
— Como? Por quê?
— Bom, ela estava mais a fim de montar e não dava para conciliar as duas coisas e ficar em dia com a escola. Por isso, largou. Achei que eu tinha contado para você. Eu mandei um e-mail.
Graças à filiação a uma infinidade de sociedades legais e aos inúmeros clientes presos que tinham meu e-mail, havia mais de dez mil mensagens não lidas em minha caixa de entrada. As mensagens que eu limpara pouco antes, na sala de espera da promotora, eram apenas a ponta do iceberg. Havia tantas não lidas que eu sabia que devia ter um e-mail sobre o assunto, mas em geral os e-mails de Maggie ou da minha filha eu nunca deixava passar. Mesmo assim, como não estava pisando em terreno firme o suficiente para discutir, preferi prosseguir.
— Você quer dizer montar a cavalo?
— Isso, equitação. Ela está frequentando o L.A. Equestrian Center, perto de Burbank.
Agora tive de parar um pouco para pensar. Eu estava envergonhado de saber tão pouco sobre o que estava acontecendo na vida da minha filha. Pouco importava se não era uma escolha pessoal ser deixado de fora. Como pai, a culpa era minha, apesar de tudo.
— Michael, escuta, eu ia contar para você em uma hora mais adequada, mas talvez seja melhor falar logo de uma vez, assim tenho certeza de que você não vai perder o recado. Estou trocando de emprego, e a gente vai se mudar para Ventura County no verão.
O segundo soco de uma combinação de golpes deve sempre ser o de maior impacto. E foi.
— Quando isso aconteceu? Que emprego?
— Eu avisei aqui ontem. Estou cumprindo um mês de aviso prévio, depois vou tirar um mês, procurar um lugar para morar e deixar tudo arrumado. Hayley vai terminar o ano escolar na cidade. Depois a gente se muda.
Ventura era o condado vizinho, no litoral. Dependendo do lugar para onde se mudassem, Maggie e minha filha ficariam em algum ponto a uma hora ou uma hora e meia de distância. Havia percursos dentro do próprio condado de Los Angeles que demoravam até mais do que isso, por causa do trânsito. Mas, ainda assim, era como se estivessem de mudança para a Alemanha.
— De que emprego você está falando?
— No Gabinete da Promotoria de Ventura. Estou começando uma Unidade de Crime Digital. E vou voltar para o tribunal.
E é claro que tudo isso era debitado na minha conta. O fato de eu perder a eleição arruinara sua carreira no Gabinete da Promotoria do Condado de L.A. Para uma repartição pública incumbida da aplicação justa e imparcial das leis estaduais, o lugar era uma das burocracias mais políticas do condado. Maggie McPherson apoiara minha candidatura e, quando perdi a eleição, ela perdeu também. Assim que Damon Kennedy assumiu o cargo, ela foi transferida do tribunal para o escritório divisional, onde dava entrada em processos que outros promotores-assistentes levavam a julgamento. De certa maneira, teve sorte, já que poderia ter sido pior: o promotor-assistente que me apresentou em um comício quando eu liderava a corrida eleitoral acabou transferido para o tribunal de Antelope Valley. Como Maggie, ele pediu demissão.
Eu também podia entender que ela não seria capaz de fazer a transição para a defesa criminal ou tentar carreira em algum grande escritório jurídico. Ela era uma promotora até a medula e não havia escolha quanto ao que fazer — apenas quanto ao lugar onde fazer. Nesse aspecto, eu sabia que podia me considerar com sorte que estivesse se mudando apenas para um condado vizinho, e não para San Francisco, Oakland ou até San Diego.
— Certo, e onde você vai procurar lugar por lá?
— Bom, o trabalho é na City of Ventura, então é por ali ou não muito longe. Eu queria dar uma olhada em Ojai, mas deve ser muito caro. Estou achando que Hayley pode realmente se dar bem com a equitação.
Ojai era uma cidadezinha alternativa, meio new wave, em um vale montanhoso no norte do condado. Anos atrás, antes da nossa filha nascer, Maggie e eu costumávamos ir para lá nos fins de semana. Havia até uma chance de que Hayley tivesse sido concebida no lugar.
— Quer dizer que esse negócio de montar não é coisa passageira?
— Talvez seja. A gente nunca sabe. Mas por enquanto ela está se doando de corpo e alma. A gente alugou um cavalo por seis meses. Com opção de compra.
Balancei a cabeça. Aquilo era doloroso. Não estava chateado com minha ex-mulher, mas Hayley não me contara nada.
— Lamento — disse Maggie. — Sei que é duro para você. Quero que saiba que eu não incentivei nada. Independentemente do que aconteça entre nós, acho que ela deveria ter um relacionamento com o pai. Não estou falando por falar, e isso é o que digo a ela.
— Eu agradeço.
Não sabia mais o que dizer. Levantei. Queria sair dali e ir para casa.
— Pode me fazer um favor? — perguntei.
— O quê?
Percebi que estava improvisando, namorando uma ideia ainda não muito bem formada, que brotara da tristeza e do desejo de reconquistar minha filha de algum modo.
— Tenho um julgamento próximo — eu disse. — Quero que ela vá.
— Você está falando desse cafetão que está representando? Não, Michael, não quero que ela assista a uma coisa dessas. Além do mais, ela tem aula.
— O sujeito é inocente.
— Ah, não! Agora vai tentar me manipular como faz com o júri?
— Não, estou falando sério. O cara é inocente. Não cometeu o crime, e vou provar. Se Hayley pudesse estar presente, talvez...
— Não sei. Vou pensar a respeito. Ela tem escola, e não quero que perca aula. Além disso tem a mudança.
— Apareçam no veredicto, vocês duas.
— Olha, preciso desligar. Está enchendo de polícia aqui.
Os policiais esperando no gabinete para dar entrada em seus casos.
— Certo, mas pensa com carinho a respeito.
— Tudo bem, combinado. Preciso desligar, agora.
— Espera... só mais uma coisa. Pode mandar uma foto de Hayley a cavalo para o meu e-mail? Eu queria ver.
— Claro. Pode deixar.
Ela desligou depois disso e fiquei olhando para o campo de futebol por alguns momentos, repassando a conversa e tentando processar todas as novidades sobre minha filha. Pensei no que Legal Siegel tinha dito sobre deixar a culpa para trás. Percebi que algumas coisas eram mais fáceis de dizer do que fazer, e outras eram impossíveis.
24
Às sete da noite, desci a ladeira em direção ao pequeno mercado no sopé do Laurel Canyon. Chamei um táxi e aguardei quinze minutos, lendo os recados comunitários no painel de cortiça diante de mim. O táxi transpôs a colina e depois desceu pelo vale. Pedi ao motorista que me deixasse no Ventura Boulevard, perto do Coldwater Canyon. Dali andei as últimas cinco quadras até o Flex, chegando ao estúdio de ioga pouco antes das oito.
Kendall Roberts estava ocupada no balcão da entrada, encerrando o expediente. Seu cabelo estava preso com um lápis no alto da cabeça. As alunas da última aula iam saindo, com os tapetes de ioga enrolados sob o braço. Entrei, dei sinal de presença e perguntei se podia conversar com ela depois que fechasse. Ela hesitou. Eu não avisara sobre a visita.
— Está com fome? — perguntei.
— Dei quatro aulas seguidas. Estou morrendo de fome.
— Você já foi ao Katsuya, aqui no fim da rua? É muito bom. Tem sushi, não sei se você gosta.
— Adoro sushi, mas nunca fui a esse restaurante.
— Que tal se eu for e pegar uma mesa para nós? Aí, quando terminar aqui, você dá um pulo lá.
Ela hesitou outra vez, como se ainda estivesse tentando imaginar o que eu queria.
— Não vamos ficar até muito tarde — prometi.
Ela finalmente balançou a cabeça.
— Certo, a gente se vê lá. Pode demorar uns quinze minutos. Preciso trocar de roupa.
— Não tem pressa. Você gosta de saquê?
— Adoro.
— Quente ou frio?
— Ãhn, frio.
— A gente se vê lá.
Caminhei pelo Ventura Boulevard e entrei no Katsuya. O lugar estava abarrotado de apreciadores de sushi, e não havia mesas disponíveis. Ainda assim, consegui dois banquinhos no balcão. Pedi o saquê e um pouco de salada de pepino e peguei o celular enquanto esperava Kendall.
Minha ex-esposa havia me enviado por e-mail uma foto de minha filha e seu cavalo. A foto mostrava Hayley com a cabeça do animal mais atrás, curvada sobre seu ombro. O cavalo era preto, com uma faixa branca em forma de raio descendo pelo longo nariz. Minha filha era linda, assim como seu cavalo. Fiquei orgulhoso, mas ver a foto só serviu para aprofundar minha mágoa com a notícia da mudança iminente para Ventura County.
Abri o aplicativo e escrevi uma mensagem para minha filha. Hayley lia e-mails só uma ou duas vezes por semana e eu sabia que, para um retorno sem demora, precisava lhe enviar uma mensagem de texto.
Disse que sua mãe me enviara a foto com o cavalo e que estava orgulhoso de vê-la gostando de equitação daquele jeito. Falei também que estava sabendo da mudança e que lamentava muito que ela fosse morar tão longe, mas que entendia. Perguntei se podia vê-la durante uma aula e encerrei por aí. Enviei a mensagem e ingenuamente achei que poderia receber uma resposta pouco depois da confirmação de envio. Só que nada.
Eu já ia escrever outra mensagem, perguntando se recebera a primeira, quando Kendall de repente apareceu no banquinho vago ao meu lado. Pus o celular no bolso, levantando para cumprimentá-la e felizmente evitando o constrangimento que essa segunda mensagem teria me causado.
— Oi — disse Kendall, animada.
Ela se trocara no estúdio e estava usando jeans e blusa camponesa. O cabelo estava solto e sua aparência era ótima.
— Oi — disse eu. — Que bom que veio.
Ela beijou meu rosto ao passar por mim para sentar no banquinho. Foi inesperado mas agradável. Servi um copo de saquê a ela, depois brindamos e provamos. Fiquei esperando uma reação negativa em sua expressão, mas ela aceitou minha escolha.
— Como você está? — perguntei.
— Estou muito bem. Tive um dia ótimo. E você? Fiquei meio surpresa de ver você aparecendo no estúdio hoje daquele jeito.
— É, bom... Preciso conversar sobre uma coisa, mas primeiro vamos pedir.
Examinamos juntos o cardápio de sushi e Kendall escolheu três variações de atum picante. Já eu fui de rolinhos Califórnia e de pepino. Antes da eleição, eu tinha começado a levar minha filha ao Katsuya, quando seu paladar estava ficando mais sofisticado e as panquecas de quarta à noite deixaram de ser uma atração. Claro que meus interesses gastronômicos eram reduzidos comparados aos dela, e nunca fui capaz de me acostumar com a ideia de comer peixe cru. Mas sempre havia uma infinidade de outras opções para os menos aventureiros.
Já saquê era outra história. Quente ou frio, eu gostava. Estava no terceiro copo quando o sushiman finalmente se curvou e pegou nosso pedido. Acho que a rapidez com que estava bebendo se devia em parte ao motivo por estar ali e à conversa que me sentia obrigado a ter com Kendall.
— Então, como estão as coisas? — perguntou ela, após usar habilmente os hashis para provar a salada de pepino que eu havia pedido antes. — O que eu disse ontem ainda vale: você não precisava ter vindo até aqui para conversar comigo.
— Não, eu queria ver você — eu disse. — Mas também precisava conversar mais sobre esse caso envolvendo Moya e Marco, o agente da DEA.
Ela franziu o rosto.
— Por favor, não me diga que preciso ir lá conversar com aquele advogado.
— Não, nada disso. Não vai ter depoimento seu e já providenciei isso. Mas surgiu mais uma coisa hoje.
Fiz uma pausa, já que eu ainda não havia formulado como queria tocar no assunto.
— Bom, o que é? — insistiu ela.
— O caso é meio que perigoso devido às pessoas envolvidas. Tem Moya lá na prisão e tem esse Marco, o agente da DEA, do lado de fora, tentando se proteger e acobertar os próprios casos. E no meio disso tudo tem o que aconteceu com Gloria e depois com meu cliente, que foi acusado de um crime que acho que não cometeu. Então a gente tem um bocado de variáveis no caso e, para completar, hoje de manhã eu descobri que tinha um rastreador no meu carro.
— Como assim? O que é um rastreador?
— Tipo um GPS. Quer dizer que tem alguém na minha cola. Eles sabem para onde estou indo... ou pelo menos meu carro.
Virei em meu banco para olhar para ela e ver como recebia aquela informação. Dava para perceber que a ficha não caíra.
— Não sei há quanto tempo o aparelho está lá — eu falei. — Mas estive na sua casa duas vezes ontem. Primeiro com Earl e depois à noite, sozinho.
Agora ela começava a se dar conta do significado daquilo. Percebi o primeiro indício de medo surgindo em seus olhos.
— O que isso quer dizer? Alguém vai aparecer na minha casa?
— Não, não acho que seja isso. Não tem motivo para entrar em pânico. Mas achei que você devia saber.
— Quem colocou o aparelho?
— Ainda não temos cem por cento de certeza, mas acho que foi o agente da DEA. Marco.
Nesse momento pouco oportuno, o sushiman passou uma larga bandeja em forma de folha sobre o balcão e a colocou na nossa frente. Cinco rolos fatiados dispostos com beleza, com gengibre em conserva e a pasta de raiz-forte que minha filha chamava de morte verde. Agradeci o chef com um aceno. Kendall apenas ficou olhando para a comida, enquanto considerava o que tinha acabado de ouvir.
— Eu até estava em dúvida se contava para você — falei. — Mas achei que você devia saber. Dessa vez tomei precauções. Desci a colina da minha casa e peguei um táxi. Não vão saber que estou com você. Meu carro está parado na frente de casa.
— Como você sabe que não está sendo seguido também?
— Eu tinha uns homens trabalhando nisso hoje, o dia inteiro. Parece que é só o rastreador.
Se isso significou algum alívio para suas preocupações, ela não demonstrou.
— Não pode simplesmente tirar e se livrar do negócio? — ela perguntou.
— Isso é uma opção — disse eu, balançando a cabeça. — Mas existem outras. Pode ser que a gente consiga usar contra eles. Sabe, dar um jeito de confundir ou de passar informação errada. Ainda estamos decidindo, então por enquanto o aparelho continua lá. Por que não está comendo?
— Acho que perdi a fome.
— Vamos lá, você trabalhou o dia inteiro. Disse que estava morrendo de fome.
Relutante, ela derramou um pouco de shoyu em um dos recipientes e misturou com um pouco de wasabi. Então mergulhou um dos rolinhos de atum e comeu. Fez uma expressão de prazer e na mesma hora experimentou outro. Como eu era uma nulidade com os pauzinhos, usei os dedos para pegar um rolinho Califórnia. Não fiz questão de raiz-forte.
Duas bocadas depois, estava de volta ao assunto.
— Kendall, eu sei que perguntei isso para você ontem, mas preciso perguntar de novo. Esse agente da DEA, James Marco... você tem certeza de que nunca teve nenhum negócio com ele? É um cara de cabelo escuro, hoje lá pelos quarenta anos. Usa bigode, tem um olhar cruel. Ele...
— Se ele é da DEA, você não precisa descrever para mim. Nunca tive nada a ver com ninguém da DEA.
Assenti.
— Tudo bem, e você não consegue imaginar nenhum motivo para ter aparecido no radar dele em relação a Gloria Dayton, certo?
— Não, nenhum motivo.
— Você me disse ontem que um dos serviços que fazia era arrumar cocaína. Gloria e Trina conseguiam a droga com Moya. Onde você conseguia a sua?
Kendall terminou de mastigar sem pressa e depois pousou os hashis no pequeno suporte ao lado do prato.
— Eu realmente não gosto de falar sobre isso — ela disse. — Acho que você me trouxe aqui só para me pôr contra a parede e me obrigar a responder.
— Não — falei depressa. — Isso não é verdade e não quero que se sinta contra a parede. Me desculpa se estou forçando muito a barra. Eu só queria que você ficasse por dentro do que está acontecendo, só isso.
Ela limpou a boca com o guardanapo. Tive a sensação de que o jantar terminara.
— Preciso ir ao banheiro — ela disse.
— Tudo bem — eu falei.
Fiquei de pé e puxei meu banquinho, abrindo espaço para ela sair.
— Você vai voltar? — perguntei.
— Sim, eu volto — disse ela, em um tom seco.
Voltei a sentar e fiquei observando ela se afastar pelo corredor. Sabia que Kendall podia ir embora por uma porta dos fundos e que eu só descobriria depois de uns dez minutos. Mas eu tinha fé.
Peguei o celular para ver se minha filha tinha respondido à mensagem de texto, mas nada. Pensei em escrever de novo, talvez mandar uma foto do rolinho Califórnia do Katsuya, mas decidi deixar para lá.
Kendall retornou em menos de cinco minutos e voltou a sentar em silêncio em seu banco. Antes que eu tivesse oportunidade de falar, ela disse algo que aparentemente elaborara enquanto estava no banheiro.
— Eu recebia de Hector Moya o produto que fornecia para os clientes, mas apenas indiretamente. Eu comprava de Gloria e Trina pelo preço de custo. Nunca encontrei o traficante delas nem conheci nenhum agente da DEA enquanto estive naquela vida. É uma coisa que deixei para trás. Não quero ter que falar de novo sobre isso, nem com você nem com mais ninguém.
— Por mim tudo bem, Kendall. Entendo perf...
— Quando você me convidou para jantar, eu fiquei superanimada. Então foi por isso que reagi daquele jeito quando você me perguntou sobre as drogas.
— Lamento ter estragado as coisas. Mas acredite em mim, eu também fiquei empolgado quando você concordou em sair comigo. Então por que a gente não esquece todo esse negócio e come um pouco de sushi?
Fiz um gesto na direção da bandeja. A maior parte da comida continuava ali. Ela sorriu com hesitação e balançou a cabeça. Sorri de volta.
— Acho que vamos precisar de mais saquê — falei.
25
Voltando para casa, decidi pedir para o táxi me deixar na porta da frente. Eu estava cansado do trabalho, das novidades do dia e da caminhada pela trilha no Fryman Canyon. Imaginei que, se alguém estivesse vigiando a casa e o carro, teria que quebrar a cabeça para tentar descobrir onde eu passara as últimas quatro horas. Paguei a corrida, desci e subi os degraus até a porta da frente.
Antes de entrar, parei para olhar a paisagem iridescente. Fazia uma noite clara e dava para ver até as torres iluminadas em Century City. Lembrei que em algum lugar próximo àquelas torres Sly Fulgoni Jr. realizava sua deplorável incursão pelo domínio da lei.
Virei e olhei sobre meu outro ombro na direção do centro. Mais além, as luzes pareciam menos vibrantes, lutando para vencer a poluição. Mas eu conseguia enxergar os refletores do estádio em Chavez Ravine — os Dodgers, que haviam começado muito mal a temporada, jogavam em casa.
Abri a porta e entrei. Fiquei tentado a ligar o rádio e escutar o eterno Vin Scully narrando o jogo, mas estava cansado demais. Fui até a cozinha pegar uma garrafa de água e me detive por um momento, olhando para o cartão-postal do Havaí na geladeira. Depois segui direto para o quarto e desabei.
Duas horas mais tarde eu estava em um cavalo negro galopando sem controle por uma paisagem escura, iluminada apenas pelo clarão de raios, quando o toque do telefone me acordou.
Eu estava deitado ainda de roupa. Olhei para o teto, tentando lembrar o sonho, quando o telefone tocou outra vez. Levei a mão ao bolso para pegá-lo e atendi sem olhar quem era. Por algum motivo, esperava que fosse minha filha, e um tom de desespero contagiou meu alô.
— Haller?
— É, quem está falando?
— Sly Fulgoni. Tudo bem com você?
O timbre mais profundo da voz me fez perceber que falava com Sly pai, que ligava de Victorville outra vez.
— Estou ótimo. Como conseguiu esse número?
— Valenzuela me passou. Ele não vai muito com a sua cara, Haller. Algo relacionado a promessas não cumpridas.
Sentei na lateral da cama e olhei o relógio. Eram duas e dez.
— É, bom... ele que se foda — eu disse. — Por que está me ligando, Sly? Vou aí fazer uma visita amanhã para gente conversar.
— Sei. Vamos com calma, espertinho. Não gosto de ser ameaçado. Nem que ameacem meu filho, aliás. Então a gente precisa esclarecer algumas coisas antes de você vir até aqui.
— Espera um pouco.
Pus o telefone sobre a cama e acendi o abajur. Abri a garrafa de água e bebi quase até o fim. Ajudou a desanuviar minha cabeça.
Então peguei o telefone outra vez.
— Continua aí, Sly?
— Onde mais eu ia estar?
— Certo. Então o que exatamente a gente precisa esclarecer?
— Antes de mais nada, esse papo furado de representação conjunta que você tentou empurrar pela goela do jovem Sly. Não vai rolar, Haller. Moya é nosso e ninguém tasca.
— Você já pensou com cuidado sobre isso?
— O que tem para pensar? A gente tem tudo sob controle.
— Sly, você está na prisão. Vai chegar um ponto em que não sobra mais ninguém para intimar e alguém vai ter que ir para o tribunal. Você acha realmente que o jovem Sly consegue entrar em um tribunal federal, peitar os advogados do governo e a DEA e não levar uma surra?
Não houve resposta imediata, então insisti.
— Eu também sou pai, Sly, e todo pai ama seu filho. Mas o jovem Sly está cumprindo o roteiro que você passa para ele na hora. Só que não tem roteiro quando você entra em um tribunal. É matar ou morrer.
Ainda sem resposta.
— Eu não tinha hora marcada quando passei no escritório dele hoje. Não sei exatamente o que estava fazendo, mas não tinha nada a ver com jurisprudência. Ele não tinha nada na agenda, Sly. Ele não tem experiência e não é capaz nem de responder perguntas sobre esse caso. Sabe aqueles depoimentos que você quer para semana que vem? Tenho um palpite de que ele vai receber as perguntas, todas as perguntas, de você.
— Não é verdade. Isso não é verdade.
Sua primeira objeção ao que eu vinha dizendo.
— Tudo bem, então ele vai escrever algumas perguntas por conta própria. O depoimento continua sendo manobra sua e você sabe disso. Olha, Sly, você tem uma causa de ação crível. Acho que pode funcionar, mas só se você tiver alguém que saiba o que fazer em uma audiência de habeas.
— Quanto você quer?
Dessa vez fiz uma pausa. Eu sabia que tinha fisgado Sly e que ele estava prestes a entrar em acordo.
— Está falando de dinheiro? Não quero dinheiro nenhum. Quero cooperação com o meu cliente. A gente divide informação e divide o Moya. Pode ser que eu precise dele no meu caso.
Ele não respondeu. Estava pensando. Decidi entrar com meu argumento decisivo.
— Falando em Moya, você realmente quer ele sentado ao lado do jovem Sly se a coisa sair dos eixos no tribunal? Quer ele olhando para seu filho quando estiver procurando alguém para pôr a culpa, depois que o juiz mandar o cara de volta pra Victorville pelo resto da vida? Escutei umas histórias hoje sobre Moya dos tempos de Sinaloa. Pode acreditar, não é o tipo de sujeito que você vai querer perto do seu filho quando o caldo entornar.
— Quem contou essas histórias para você?
— O agente Marco. Ele me fez uma visitinha, assim como tenho certeza que deu um pulinho para falar com o jovem Sly.
Sly pai não respondeu, mas dessa vez não interrompi seu silêncio. Eu tinha dito tudo o que havia para dizer. Agora estava esperando.
Mas não demorou muito.
— Quando você chega aqui? — perguntou Sly pai.
— Bom, é madrugada. Vou voltar pra cama agora e dormir um pouco. Lá pelas oito horas, eu acordo. Tem todo o procedimento quando eu chegar à prisão, mas talvez eu consiga ver você antes do almoço.
— O almoço por aqui é às dez e meia, caralho. Eu costumava reservar uma mesa no Water Grill diariamente, à uma.
Balancei a cabeça. As pequenas coisas eram as que mais faziam falta.
— Tudo bem, então a gente se vê depois do almoço. Primeiro você, depois Moya. Não deixa ele esquecer que dessa vez estou do lado dele. O.k.?
— O.k.
— Até lá, então.
Desliguei e conferi as mensagens. Minha filha ainda não respondera ao recado enviado quase seis horas antes.
Ajustei o despertador do telefone para as sete e deixei o aparelho em cima do criado-mudo. Tirei a roupa e dessa vez me enfiei debaixo dos lençóis. Fiquei deitado de costas, pensando sobre as coisas. Minha filha, depois Kendall. Ela me dera outro beijo quando nos despedimos, na frente do Katsuya. Senti como se as coisas estivessem mudando em mim. Como se estivesse fechando uma porta e abrindo outra. Era uma sensação de tristeza e de esperança ao mesmo tempo.
Antes de apagar, lembrei do cavalo negro correndo pelo campo de raios. Eu segurava em sua crina porque não havia rédeas. Lembrei de segurar com força e não soltar por nada no mundo.
26
Desci os degraus de casa às oito em ponto e encontrei Earl Briggs me esperando, recostado no seu carro, apreciando a vista de West Hollywood além do Laurel Canyon.
— Bom dia, Earl — eu disse.
Ele pegou os dois copos da Starbucks no capô de seu carro e atravessou a rua até o Lincoln. Troquei as chaves por um dos copos e agradeci por lembrar de comprar café antes de seguirmos viagem.
Cisco submetera o Lincoln a um pente-fino na tarde anterior. O rastreador de GPS continuava no lugar, mas ele e seus homens não tinham encontrado nenhuma escuta, nem câmeras no carro.
Seguimos rumo ao sul para pegar a 10 Freeway na direção leste, parando apenas para abastecer o tanque enorme do Lincoln. O trânsito estava pesado, mas eu sabia que melhoraria assim que passássemos pelo centro e virássemos para o norte, na 15. Daquele ponto em diante, seria uma reta perfeita através do deserto de Mojave.
Durante a noite Jennifer me enviara diversos e-mails com documentos da pesquisa anexados. Matei o tempo lendo. A primeira coisa que me chamou atenção foi a análise do pedido de habeas de Hector Moya e do que isso dependia. Moya já ficara encarcerado por oito anos desde sua prisão. A pena perpétua por conta do agravante de arma sob o estatuto federal era a única coisa que o mantinha atrás das grades naquele momento. Ele recebeu sentença de seis anos por posse de cocaína, e a perpétua foi acrescentada em cima disso.
O que significava que a liberdade imediata de Moya dependia do resultado de seu pedido de habeas. Para mim, era um motivo a mais para que ele cooperasse comigo no caso La Cosse e depositasse seu futuro em mãos mais experientes do que as de Sylvester Fulgoni Jr.
Saber disso também me ajudou a encarar a visitinha que Marco me fizera no Lincoln de uma perspectiva mais favorável. Era impossível que o agente da DEA não soubesse que um homem violento que presumivelmente mandara para a cadeira para o resto da vida podia em breve estar em liberdade, dependendo do veredicto de dois casos sobre os quais ele não tinha controle.
Em seguida, revisei a transcrição do julgamento de Hector Moya sete anos antes. Li duas seções, uma com o testemunho de um policial que participou da execução do mandado para o DPLA e outra com parte do testemunho do agente da DEA, James Marco. O policial do DPLA depôs sobre a prisão de Moya e o momento em que encontrou a arma escondida sob o colchão no quarto de hotel. O depoimento de Marco continha respostas para a inquirição sobre o trabalho de análise e vestígios feito com a arma encontrada. Era um testemunho-chave porque ligava a arma a Moya por meio de uma compra em Nogales, Arizona.
Quando estávamos cruzando as montanhas antes do deserto de Mojave, cansei da leitura e pedi a Earl para me acordar assim que chegássemos. Então relaxei no banco de trás e fechei os olhos. Meu sono ficara agitado depois da conversa no meio da noite com Sly Fulgoni pai e eu precisava recuperar o descanso perdido. Eu sabia por experiência própria que a visita seria exaustiva, uma provação que sobrecarregava os sentidos. Os sons e os cheiros da prisão, a dureza banal e monótona evocada pelos uniformes laranja berrante dos detentos, a mistura de desespero e ameaça nos rostos dos homens que eu visitara — aquele era um lugar em que não gostaria de passar um único minuto a mais. Sempre tinha a sensação de que estava prendendo a respiração durante todo o tempo de permanência ali dentro.
A despeito do desconforto do banco traseiro, consegui cochilar por quase meia hora. Earl me acordou já perto da prisão. Olhei o celular e vi que tínhamos chegado rápido, mesmo pegando trânsito na cidade. Eram apenas dez da manhã, hora em que a visita dos advogados começava.
— Se não se incomoda, chefe, prefiro esperar aqui fora desta vez — disse Earl.
Sorri para ele pelo espelho.
— Imagina, Earl. Pena que não posso fazer isso também.
Passei meu celular por cima do banco. Não tinha como entrar com o aparelho naquele lugar, o que era irônico, porque a maioria dos prisioneiros tinha acesso a celulares.
— Se Cisco, Lorna ou Bullocks ligarem, atende e avisa para eles que estou lá dentro. Se for outra pessoa, deixa cair na secretária.
— Tá falado.
Ele me deixou na entrada principal dos visitantes.
O procedimento necessário para poder ver Fulgoni e Moya não foi complicado. Tive de mostrar minha carteira de motorista e o cartão da Ordem dos Advogados da Califórnia, depois assinar um documento certificando que era advogado e outro que não estava contrabandeando drogas nem qualquer outro produto ilegal para dentro do presídio. Em seguida, passei por um magnetômetro, após tirar cinto e sapatos. Fui levado a uma sala de entrevista para advogado e cliente e recebi um alerta eletrônico para prender no cinto. Em caso de ameaça física, assim me instruíram, era só puxar o aparelhinho do tamanho de um pager e o alarme disparava, chamando os guardas para a sala. Claro, eu precisava estar vivo para ser capaz de acionar o dispositivo, mas esse detalhe foi omitido. Isso tudo passara a valer desde a determinação de algum tribunal proibindo os guardas de presenciar visitas entre advogado e cliente na prisão.
Fiquei sozinho aguardando na pequena sala de três por três. Havia uma mesa, duas cadeiras e um interfone na parede junto à porta. A demora era de praxe. Acho que nunca fiz uma visita carcerária em que entrasse na sala de entrevista e meu cliente estivesse ali à minha espera.
Era rotina para os advogados acumular entrevistas com diversos clientes em uma prisão — mesmo quando os casos não estavam relacionados. Poupava tempo de deslocamento e de autorização resolver tudo em uma visita só. Mas em geral os detentos eram trazidos segundo um cronograma que se adequava à equipe carcerária e estava baseado nos cronogramas e disponibilidade dos prisioneiros. Eu pedira ao capitão do centro de visitas para me deixar ver Fulgoni primeiro e Moya depois. Ele torceu o nariz, mas disse que ia ver o que podia fazer.
Talvez tenha sido por isso que a espera pareceu extraordinariamente longa. Trinta minutos se passaram antes que Fulgoni fosse enfim trazido para a sala. À primeira vista, quase disse aos guardas que estavam escoltando o homem errado, mas então me dei conta de que era de fato Sylvester Fulgoni pai. Embora enfim o reconhecesse, em nada lembrava o homem dos fóruns e tribunais do passado. O homem que entrava arrastando os pés acorrentados estava pálido, magro e curvado, e pela primeira vez percebi que devia ter usado uma peruca durante todos aqueles anos em que esbarrei com ele em Los Angeles. Esse tipo de vaidade não era permitido na prisão. Seu cocuruto era careca e refletia as luzes fluorescentes acima.
Ele sentou do outro lado da mesa. Seus pulsos foram algemados a uma corrente na cintura. Não apertamos as mãos.
— Oi, Sly — disse eu. — Como foi o almoço?
— O almoço foi como sempre é por aqui. Pão de forma com salsichão, impróprio para o consumo humano.
— Lamento saber disso.
— Eu não. Acho que no dia em que gostar vou estar com um problema.
— Entendo o que quer dizer.
— Não sei quanto a você, mas antigamente eu tinha uns clientes que gostavam de se esconder na prisão. Em lugares como esse. Era mais fácil do que nas ruas, porque você tinha sua celinha, uma cama, roupa lavada. Sexo e drogas facilmente disponíveis, se quisesse. Era perigoso, mas as ruas também eram bem barra-pesada.
— Sei, tive alguns assim.
— Bom, não é meu caso. Considero esse lugar um inferno.
— Mas falta menos de um ano, certo?
— Trezentos e quarenta e um dias, eu costumava ser capaz de dizer quantas horas e minutos também, mas agora estou um pouquinho mais relaxado com isso.
Balancei a cabeça e decidi que já estava de bom tamanho em relação às amenidades. Era hora de tratar dos negócios. Eu não fizera toda aquela viagem para discutir os prós e os contras da vida na prisão ou para dar tapinhas nas costas de Fulgoni.
— Você conversou com Hector Moya sobre mim hoje de manhã?
Fulgoni assentiu.
— Já cuidei disso. E está tudo certo. Ele vai falar com você e vai aceitar você como advogado-assistente junto com o jovem Sly.
— Ótimo.
— Não posso dizer que esteja pulando de alegria com tudo isso. Ele não tem muita dúvida de que, se não fosse por sua causa, não estaria aqui.
Antes que eu pudesse dizer uma palavra em minha defesa, reverberou um impacto que sacudiu a sala e, assim presumi, a prisão inteira. Levei a mão ao alarme no cinto, já que meu primeiro pensamento foi de algum tipo de explosão e de uma revolta na cadeia.
Então notei que Fulgoni nem sequer piscara e estava com um sorrisinho confiante no rosto.
— Esse foi dos grandes — disse ele, em um tom calmo. — Devem estar com o B-2 hoje. O Stealth.
Claro. Agora eu lembrava da base aérea nas proximidades. Tentei deixar isso de lado e voltar ao trabalho. Meu bloco amarelo estava sobre a mesa diante de mim, e eu havia rabiscado algumas perguntas e lembretes enquanto esperava por Fulgoni. Queria começar pelo básico e passar às questões importantes à medida que Fulgoni se envolvesse na conversa.
— Me fala sobre Moya. Quero saber como e quando toda essa coisa começou.
— Bom, até onde eu sei, sou um dos dois advogados cassados por aqui. O outro participou de uma fraude bancária em San Diego. Enfim, a coisa meio que se espalha, o pessoal fica sabendo o que você fazia lá fora vem à sua procura. Primeiro, para aconselhamentos e recomendações em geral. Depois alguns retornam porque querem ajuda com uma intimação. Estou falando de caras com tempo de casa suficiente para terem sido abandonados por seus advogados, que cansaram de perder apelações. Caras que não aceitam jogar a toalha.
— Certo.
— Bom, Hector é um desses caras. Ele me procurou, disse que o governo não tinha feito jogo limpo e queria saber o que ainda podia fazer a respeito. O negócio é que nunca acreditaram nele. Nem mesmo o advogado acreditava na sua história e o cara não chegou nem a colocar um investigador no caso, até onde sei.
— Você está falando sobre a DEA ter plantado a arma no quarto para conseguir o agravante?
— É, o agravante que mandou ele direto para cá pelo resto da vida. Não estou falando do pó no quarto. Isso Hector admite cem por cento. Mas ele falou que a arma não era dele, e acontece que vem falando isso desde o primeiro dia, mas ninguém quis saber. Bom, eu quis. Quer dizer, o que mais eu posso fazer aqui dentro além de escutar as pessoas?
— Certo.
— Então esse é o ponto de partida. Meu filho entrou com a papelada e aqui estamos nós.
— Certo, mas vamos voltar para antes do jovem Sly ter entrado com o pedido de habeas. Vamos voltar ao ano passado. Olha, estou tentando entender a história toda. Moya diz para você que a arma foi plantada. Ele também disse que quem fez isso foi Gloria Dayton?
— Não, disse que foi a polícia. Ele foi preso pelo DPLA depois que você fez o acordo com o Gabinete da Promotoria. Lembra? Ele só ficou sabendo sobre o acordo anos depois... quando contei para ele. Só o que ele sabia na época era que o DPLA chegou na porta com um mandado de prisão contra réu foragido. Eles encontraram a coca na cômoda e a arma debaixo do colchão e foi tudo. O mandado era para um comparecimento perante o grande júri que nunca aconteceu. Não era nada comparado com o caso que eles passaram a ter nas mãos. Hector estava com cinquenta gramas no quarto, além da arma. Então os federais entram, pegam tudo e o julgamento passa a ser no tribunal federal, onde levam o prêmio pelo conjunto da obra. Conveniente, hein?
— É, e eu já sei disso tudo. Estou falando sobre a arma. Estou tentando entender como você começou nessa história e foi parar em Gloria Dayton. Sua petição de habeas diz que Gloria plantou a arma.
— Foi simples. Eu fiz as perguntas certas, recuei dois passos e enxerguei o cenário mais amplo. Consegui isso partindo do pressuposto de que eu devia acreditar em Hector Moya. Como falei, ninguém tinha feito isso antes. Mas ele chegou para mim e disse, olha, a farinha no quarto era minha e vou cumprir pena por causa disso. Mas a arma, não. Pensei assim, por que negar uma coisa e não a outra, a menos que você esteja dizendo a verdade.
Eu podia pensar em motivos para fazer exatamente isso — mentir sobre uma coisa e não sobre a outra —, mas naquele momento preferi ficar na minha.
— E quanto a Gloria?
— Certo, Gloria. Hector disse que a arma tinha sido plantada. Bom, uma vez peguei um caso com agravante de arma. A mesma coisa, com a diferença de que aquele foi um caso da DEA desde o começo. Nada de tira local. Um agente da DEA disfarçado de fornecedor, e o cliente jurou para mim que não estava com arma nenhuma quando deram voz de prisão. No começo eu não acreditei. Fala sério, quem vai comprar um quilo de pó com vinte e cinco paus em uma mala e não leva uma arma para se garantir? Mas então comecei a examinar melhor.
— Você provou que a arma foi plantada para eles conseguirem o agravante?
Fulgoni franziu o cenho.
— Para ser sincero, nunca consegui provar. E meu cliente dançou por isso. Mas a unidade que montou a operação era um negócio chamado Interagency Cartel Enforcement Team, subordinada à DEA e liderada por um tal de Jimmy Marco. É o mesmo cara que fez barba e bigode no Moya. Então, quando o nome apareceu no processo, achei que tinha alguma coisa ali. Sabe como é, era a segunda vez que eu via aquilo em um caso envolvendo o nome dele. Onde tem fumaça, tem fogo, eu pensei.
Refleti por um longo momento, tentando juntar as peças e entender os passos tomados por Fulgoni.
— Você tinha o nome de Marco, mas ele só entrou na história depois que a prisão foi realizada e os tiras locais encontraram o pó e a arma — disse eu, fazendo um resumo. — Então, se Marco estava por trás disso, você tinha que descobrir como ele conseguiu pôr a arma lá para a polícia encontrar.
Fulgoni assentiu.
— Exato. Então eu viro para o Hector e sugiro, e se a arma não tiver sido plantada pelos tiras? E se ela já estivesse lá, debaixo do colchão, plantada antes por outra pessoa? Quem esteve naquele quarto entre a hora que você se registrou no hotel e o momento da chegada dos federais? Foram quatro dias, e pedi para ele fazer uma lista com o nome de todos que tinham entrado naquele quarto entre uma coisa e outra.
— Gloria Dayton.
— É, a gente se concentrou nela. Mas não tinha sido só ela que circulou pelo quarto. Teve pelo menos outra puta, o irmão do Hector e também mais dois comparsas. Por sorte, a gente não precisou investigar a camareira, porque Hector ficou com o aviso de NÃO PERTURBE na maçaneta da porta o tempo todo. Mas a gente se concentrou em Gloria porque um amigo meu pesquisou todos os nomes no computador da polícia, e não é que ela havia sido presa um dia antes da batida no hotel do Hector?!
A lógica fazia sentido. Eu também teria me concentrado em Gloria. E também sabia o que teria feito em seguida.
— Como você encontrou Gloria? Ela trocou de nome, mudou de cidade e depois voltou.
— Internet. Essas garotas podem mudar de nome, de endereço, não faz diferença. O negócio delas está baseado na aparência. O jovem Sly conseguiu a foto dela de quando tinha sido fichada, oito anos antes, presa por posse de drogas e prostituição. Então ele pesquisou na internet, vendo fotos nos sites de acompanhantes. Acabou encontrando. Ela havia mudado o cabelo, mas só isso. Ele imprimiu umas fotos e trouxe para cá. Hector confirmou.
Fiquei surpreso de que Sly Jr. tivesse feito alguma coisa realmente capaz de fazer o caso andar.
— E daí, é claro, você mandou Júnior citar a garota.
Falei isso como se o passo seguinte fosse questão de rotina.
— É, a gente mandou uma intimação para ela. A gente queria fazer o depoimento dela constar nos autos do processo.
— Quem entregou a intimação, Valenzuela?
— Não sei. Foi alguém que Sly Jr. contratou.
Eu me inclinei sobre a mesa e comecei a pressioná-lo com mais insistência, fazendo perguntas sem parar.
— Ela foi fotografada para comprovar o recebimento?
Fulgoni deu de ombros, como se não soubesse e não estivesse interessado.
— Foi ou não foi?
— Olha, não sei. Eu estava aqui, Haller. O que...
— Se tem uma foto, eu quero. Fala para o seu filho.
— Certo. Pode deixar.
— Quando foi a intimação?
— Não sei a data. Em algum momento do ano passado. Naturalmente antes dela ter sido assassinada pelo cafetão.
Avancei um pouco mais sobre a mesa.
— Quanto tempo antes dela ter sido assassinada?
— Uma semana, eu acho.
Bati com o punho na mesa.
— Ela não foi assassinada pelo cafetão.
Apontei o dedo para ele.
— Vocês mataram ela. Você e o seu filho. Eles descobriram sobre a intimação. Não podiam confiar que a garota não ia pôr a boca no trombone.
Fulgoni estava balançando a cabeça antes que eu terminasse.
— Para começar, eles quem?
— Marco, a equipe da ICE-T. Você acha que eles iam correr o risco de que isso viesse à tona? Principalmente se a história de plantar arma fosse uma prática comum da equipe. Pensa só em tudo que estava em jogo, as reputações, as carreiras, os casos. Você não acha que isso é motivo suficiente para assassinato? Não acha que eles eram capazes de se arriscar apagando uma prostituta, se isso significasse assegurar a operação deles?
Fulgoni ergueu a mão para que eu parasse.
— Olha, eu não sou idiota, Haller. Eu sabia dos riscos. A intimação foi emitida sob sigilo. Não tinha como Marco ficar sabendo.
— Então ela apareceu morta uma semana depois e você pensou, bom, foi o cafetão e tudo não passou de coincidência?
— Eu pensei o que a polícia pensou e o que meu filho leu para mim no jornal. Que o cafetão matou a garota e a gente perdeu a chance de conseguir que ela ajudasse Moya.
Balancei a cabeça.
— Conversa fiada. Você sabia. Você devia saber que colocou a engrenagem em movimento. Ela foi assassinada quantos dias antes de depor para você?
— Não sei. Eu não progr...
— Besteira! Você sabia. Quantos dias?
— Quatro, mas isso não interessa. Foi sob sigilo. Ninguém sabia, só ela e a gente.
— Sei, só ela e vocês sabiam. E o que você esperava? Que ela não fosse contar para alguém que talvez passasse adiante? Ou quem sabe que ela não fosse ligar e perguntar para Jimmy Marco, para quem costumava dedurar, o que devia fazer com aquele negócio?
De repente, me dei conta da resposta a uma das perguntas que eu vinha remoendo desde a intimação falsa entregue a Kendall Roberts. Apontei para o peito de Fulgoni.
— Ah, agora entendo o que aconteceu. Você pensou que Marco tinha alguém dentro dos arquivos do tribunal. Alguém que contou para ele sobre a intimação sob sigilo. Foi por isso que seu filho forjou a intimação que mandou Valenzuela entregar pra Kendall Roberts. Vocês dois não queriam que a situação se repetisse, não queriam provocar a morte de outra pessoa. Você queria que ela aparecesse para depor, assim o Júnior podia descobrir o que sabia sobre Gloria e Marco, mas você tinha medo de que uma intimação de verdade chegasse a Marco, mesmo que fosse sob sigilo.
— Você não sabe do que está falando, Haller.
— Não, eu sei exatamente do que estou falando. De um jeito ou de outro, sua intimação acabou matando Gloria. Vocês dois sabiam disso e decidiram fechar o bico e ficar na moita enquanto um otário qualquer pagava o pato.
— Você está completamente por fora.
— Sério? Acho que não. Por que as intimações nessa semana? Uma para mim, uma para Marco e outra, forjada, para Kendall Roberts. Por que agora?
— Porque a gente deu entrada no pedido faz seis meses. A gente tinha que ir em frente ou ia ser recusado. Não teve nada a ver com Gloria Dayton ou...
— Mas que papo furado. E quer saber de uma coisa, Sly? Você e seu filho não são nem um pouco melhores do que Marco e Lankford nisso tudo.
Fulgoni ficou de pé.
— Em primeiro lugar, não faço a menor ideia de quem seja Lankford. Em segundo, a gente encerra por aqui. E pode esquecer Moya. Ele é nosso, não seu. Você não vai ver ninguém.
Ele se virou e começou a tomar a direção da porta.
— Senta aí, Sly, a gente ainda não terminou — disse eu, às suas costas. — Se sair daqui agora, a Ordem de Advogados da Califórnia vai vir com tudo para cima de você e de Júnior. Você não é mais advogado, Sly. Está operando uma fábrica de intimações daqui de dentro e arrumando casos para um moleque que fica sentado no escritório, de camisa dos Dodgers e sem saber porra nenhuma de direito. É mesmo o que você quer para ele? Para você? Vai mandar seus casos para quem, quando Júnior tiver fechado as portas?
Fulgoni virou e bateu na porta com o calcanhar, para alertar o guarda.
— Como vai ser, Sly? — perguntei.
O guarda abriu a porta. Fulgoni olhou para ele de relance, hesitou, e então disse que precisava de mais cinco minutos. A porta foi fechada e Fulgoni lançou um olhar para mim.
— Você ameaçou meu filho ontem, mas não achei que tivesse coragem de vir aqui me ameaçar.
— Não é ameaça, Sly. Vou acabar com o negócio de vocês dois.
— Você é um filho da puta, Haller.
Assenti.
— É, eu sou um filho da puta. Quando tenho um homem inocente preso por homicídio.
Ele não soube o que dizer.
— Senta logo aí — ordenei. — Você vai me dizer como lidar com Hector Moya.
27
Aespera entre a conversa com Fulgoni e o encontro com Moya foi de vinte e cinco minutos e mais dois estrondos de fazer bater os dentes. Quando a porta finalmente se abriu, Moya entrou com calma, devagar, os olhos fixos em mim. Andava de um jeito relaxado e tranquilo que não condizia com sua situação, dando a impressão até de que os dois homens atrás dele eram seus empregados, não seus carcereiros. O uniforme laranja tinha a cor muito viva e vincos, de tão novo. O que Fulgoni vestia era desbotado, de tantas lavagens, e puído nas mangas.
Moya era mais alto e mais musculoso do que eu esperava. Mais novo, também. Calculei trinta e cinco, no máximo. Tinha ombros largos e torso em forma de V. As mangas do uniforme ficavam coladas em seus bíceps. Me dei conta de que, apesar de ter envolvimento indireto com seu caso oito anos antes, nunca havia visto Moya pessoalmente, nem tampouco em fotos no jornal ou em noticiários da TV. Eu construíra uma imagem baseada na imaginação: para mim, era um homem pequeno e gorducho, venal e cruel, que tivera o que merecia. Não estava esperando pelo tipo que sentava diante de mim naquele momento. E isso era motivo de preocupação pois, ao contrário de Fulgoni, Moya não tinha correntes presas aos seus tornozelos nem à cintura. Estava tão desimpedido quanto eu.
Ele leu meus pensamentos e tocou no assunto antes mesmo de sentar.
— Estou aqui há bem mais tempo que Sylvestri — disse. — Eles confiam em mim e não preciso ficar acorrentado como um animal.
Falava com forte sotaque, mas sua pronúncia era facilmente compreensível. Balancei a cabeça com cautela, sem saber se aquela explicação continha algum tipo de ameaça.
— Por que não senta? — perguntei.
Moya puxou a cadeira e sentou. Depois cruzou as pernas e pousou as mãos no colo. Pareceu relaxado na mesma hora, como se estivéssemos em um escritório de advocacia, não em uma prisão.
— Sabe — disse ele —, seis meses atrás eu planejava mandar matar você com o maior sofrimento possível. Quando Sylvestri falou de sua participação no meu caso, não gostei nem um pouco. Eu fiquei puto e queria ver você morto, Haller. Junto com Glory Days.
Balancei a cabeça como se me solidarizasse com sua situação.
— Bom, fico feliz que isso não tenha acontecido. Porque eu ainda estou aqui e quem sabe vou poder ajudar você.
Ele assentiu.
— O motivo de mencionar isso é porque só um idiota pode achar que eu não teria uma razão para mandar matar Gloria Dayton e você. Mas não fiz isso. Se tivesse feito, você e ela teriam simplesmente desaparecido. É assim que se faz. Não ia ter processo, nem julgamento de um homem inocente.
— Compreendo. E eu sei que isso não significa muita coisa para você, mas também preciso dizer que oito anos atrás eu estava fazendo meu trabalho, que era dar meu melhor na defesa de um cliente.
— Não interessa. Suas leis. Suas regras. Um dedo-duro é um dedo-duro, e no meu negócio eles desaparecem. Às vezes, junto com seus advogados.
Ele me encarou com frieza e com os olhos mais negros que eu já tinha visto, a não ser talvez por meu meio-irmão. Então relaxou um pouco e sua voz mudou quando foi direto ao assunto, passando de um tom de franca ameaça para a cooperação jovial.
— Bom, Haller, o que vamos discutir aqui hoje?
— Quero conversar sobre a arma que foi encontrada em seu quarto de hotel quando você foi preso.
— Não era minha arma. Estou falando isso desde o começo. Ninguém acreditou em mim.
— Eu não estava lá no começo... pelo menos, não do seu lado. Mas tenho certeza de que acredito em você agora.
— E vai fazer alguma coisa a respeito?
— Vou tentar.
— Entende o que está em jogo aqui?
— Entendo que as pessoas que fizeram isso com você vão tentar de tudo para ocultar os crimes cometidos, porque tenho certeza absoluta de que não fizeram isso só com você. Os caras já mataram Gloria Dayton. Então a gente precisa ser bem cuidadoso até conseguir levar esse negócio para um tribunal. Assim que conseguirmos um julgamento, vai ser mais difícil para eles se esconderem atrás dos distintivos e continuarem no escuro. Eles vão ter que aparecer e prestar conta do que fizeram.
— Gloria... ela foi importante para você? — perguntou Moya.
— Por um tempo. Mas o que importa para mim agora é meu cliente na cadeia, acusado pelo assassinato que não cometeu. Preciso tirar ele de lá e preciso que você me ajude. Se me ajudar, pode ter certeza de que ajudo você. Aceita?
— Aceito. Tenho umas pessoas que podem garantir sua proteção.
Já esperava uma oferta dessas, mas não era nesse tipo de proteção que eu estava interessado.
— Acho que não vou precisar — falei. — Tenho minhas próprias pessoas. Vamos fazer o seguinte, meu cliente está no módulo rosa da Men’s Central, em L.A. Acha que consegue alguém lá dentro para meio que tomar conta dele? Ele está lá sozinho e minha preocupação é que esses caras vão ver as coisas andando na direção de um julgamento, com um monte de segredos vindo à tona. Vão saber que o melhor modo de acabar com isso é evitar que tenha um julgamento.
Moya assentiu.
— Se não tiver cliente, não tem julgamento — disse.
— É isso mesmo — falei.
— Então eu vou cuidar da proteção dele.
— Obrigado. Por sinal, enquanto estiver envolvido nisso, seria bom redobrar qualquer medida de proteção pessoal que tenha por aqui.
— Isso também vai ser feito.
— Ótimo. Agora vamos conversar sobre a arma.
Virei algumas páginas do bloco amarelo para trás e cheguei às anotações da transcrição do julgamento. Refresquei a memória quanto aos fatos e então olhei para Moya.
— Tudo bem. No seu julgamento, o policial do DPLA que deu a voz de prisão descreveu como entrou no quarto, prendeu você e depois encontrou a arma. Você continuava no quarto quando encontraram a arma ou já tinha sido levado?
Ele balançou a cabeça como se soubesse a resposta desta.
— Era uma suíte. Eles me algemaram e me fizeram sentar no sofá da sala. Um dos homens ficou comigo me apontando uma arma enquanto os outros davam a busca no quarto. Encontraram a cocaína em uma gaveta da cômoda. Depois disseram que acharam a arma. O cara sai do quarto e me mostra a arma em um saco plástico, eu falo que a arma não é minha, aí ele diz, “Agora é”.
Fiz algumas anotações e perguntei sem erguer o rosto do bloco.
— Esse foi o mesmo policial do DPLA que testemunhou no julgamento? Um policial chamado Robert Ramos?
— O próprio.
— Tem certeza de que ele disse “Agora é” quando você falou que a arma não era sua?
— Foi isso que ele disse.
Era um bom detalhe. Uma informação impossível de provar, de modo que talvez nem fosse admitida como testemunho em um julgamento. Ainda assim, se Moya estava dizendo a verdade — e eu acreditava que sim —, então isso significava que Ramos talvez tivesse algum conhecimento de que a arma fora plantada no quarto. Quem sabe tivesse sido instruído a olhar sob o colchão.
— No seu julgamento, não foi apresentado nenhum vídeo. Você lembra de alguém com uma câmera?
— Lembro, eles me filmaram. E o quarto inteiro. Os caras me humilharam, fizeram eu tirar a roupa para dar a busca. E o cara do vídeo estava lá.
Isso me deixou curioso. Tinham a gravação, mas não usaram no julgamento. Por quê? O que havia no vídeo que o tornava um risco ser mostrado para o júri? A humilhação de Hector Moya? É possível. Mas também era possível outra coisa.
Fiz mais uma anotação no meu bloco e depois passei à próxima pauta que queria cobrir.
— Você já esteve em Nogales, Arizona, alguma vez?
— Não, nunca.
— Tem certeza? Nunca na sua vida?
— Nunca.
De acordo com o depoimento dado por Marco no julgamento, ele recebeu um relatório da ATF rastreando a arma. Segundo esse relatório, a arma era uma Guardian calibre .25, fabricada pela North American Arms. Tinha sido comprada originalmente no Colorado por um sujeito chamado Budwin Dell, que depois a vendeu em um feirão de armas em Nogales, cinco semanas antes de ela supostamente ter sido encontrada no quarto de hotel de Moya. Como Dell não era um negociante de armas com licença federal, tinha permissão de vender a arma sem checagem de ficha criminal ou período de espera. A verificação da identidade seria a única coisa exigida em um negócio em dinheiro. Um agente da ATF designado para a ICE-T foi despachado para Littleton, Colorado, para falar com Dell e lhe mostrar uma série de fotos de suspeitos. Dell escolheu a foto de Hector Moya como o cliente que acreditava ter comprado a arma em Nogales. O talão de recibos creditava a venda a um homem chamado Reynaldo Sante, que por acaso era um dos nomes contidos nos inúmeros documentos falsos encontrados no quarto onde Moya foi preso.
Dell se revelou uma testemunha-chave no julgamento, ligando Moya à arma e à identidade falsa encontrada em sua posse. Embora Moya alegasse que a arma e a identidade tivessem sido plantadas pela polícia, para o júri a hipótese deve ter parecido absurda.
Mas agora, sabendo que Glory Days e Trina Trixxx eram informantes do agente da DEA que chefiava a equipe da ICE-T, eu não achava nada absurdo.
— Hector, preciso que seja sincero sobre um negócio. Não minta, porque eu acho que dizer a verdade vai ajudar você.
— Fala.
— A identidade falsa no nome de Reynaldo Sante. No julgamento, você disse que a arma e a identidade foram plantadas no quarto pelos policiais. Mas isso não era verdade, não é?
Moya pensou um pouco antes de responder.
— A identidade era minha. Não a arma.
Eu achava isso mesmo.
— E você usou essa identidade em viagens anteriores para Los Angeles, não foi?
— Sim.
— Durante essas viagens, quando se registrava em hotéis com o nome de Reynaldo Sante, você também encontrou Glory Days e Trina Trixxx nesses quartos?
— É.
Fiz algumas anotações. Minha adrenalina estava a mil. Eu via com nitidez um caminho por onde conduzir o caso La Cosse, assim como o de Moya. Eu estava no caminho certo para descobrir alguma coisa.
— Perfeito — falei. — Hector, estamos indo muito bem até agora. Acho que podemos fazer alguma coisa com isso.
— O que mais você quer saber?
— Por enquanto, nada. Mas eu volto a procurar você. O que eu mais queria hoje era sua cooperação e saber se a gente podia trabalhar junto. Vou precisar que testemunhe no julgamento do meu outro cliente. Vamos construir um histórico nesse julgamento que vai sustentar seu pedido de habeas. Um caso vai ajudar o outro. Está entendendo?
— Estou.
— E servir de testemunha não vai ser problema? Seu pessoal vai entender o que está fazendo?
— Eu faço eles entenderem.
— Então estamos conversados. A última coisa que preciso mencionar é um conselho sobre Sylvester Fulgoni.
— Sylvestri, sei.
— Certo, Sylvestri. Ele foi um ótimo advogado, mas não é mais. Então você tem que lembrar que as coisas que disser para ele não estão protegidas, ao contrário de tudo o que me disser. Precisa ser cauteloso na hora de falar com ele. Entendeu? Toma cuidado com o que disser para ele.
Moya assentiu.
— O.k. Ah, por falar nisso, para tornar as coisas legais entre nós dois, você precisa assinar a autorização que me permite ser seu representante legal.
Eu estava com o documento preparado, dobrado na vertical no bolso interno. Deslizei o papel sobre a mesa, junto com uma caneta, e ele assinou.
— Tudo bem, então. Acho que encerramos por aqui — disse eu. — Se cuida, Hector.
— Você também, Miguel.
28
Uma vez de volta ao Lincoln, pedi a Earl para nos levar de volta para a cidade.
— Como foi por lá, chefe?
— Quer saber, Earl, já visitei um monte de gente diferente em um monte de prisão diferente e acho que nunca tive uma visita tão boa.
— Isso é bom.
— É, muito bom.
Abri a lista de contatos do meu celular e rolei até o V. Certamente eu não tinha mais Valenzuela na função de discagem rápida, mas sabia que continuava com o número dele arquivado nos contatos. Fiz a ligação e fiquei pensando se ele atenderia no momento em que visse meu nome na tela. Quando estava prestes a desligar para não cair na caixa de mensagens, ele enfim atendeu.
— E aí, Mick? Não me diga que está ligando com todo aquele trabalho que prometeu.
— Para falar a verdade, Val, achei que você devia saber que fiquei sócio do Fulgoni, então parece que a gente vai trabalhar junto, no fim das contas.
— Mas que pena. Só vou acreditar quando ouvir do Fulgoni, não de você.
— Por mim tudo bem. Liga para ele. Mas tem uma coisa que preciso de você agora mesmo.
— Claro que tem. Mas eu não caio nessa merda, Haller. Vou ligar para Fulgoni e, se ele der sinal verde, vejo o que você precisa.
— Faz como quiser, Val. Mas eu preciso que me envie pelo celular a foto que tirou de Giselle Dallinger quando entregou a intimação para ela em novembro. Entendeu o que eu falei? Giselle Dallinger. Se eu não receber isso daqui a dez minutos, você está na rua.
— Vamos ver o que o Sly diz sobre isso.
— Sly e o velho dele estão trabalhando para mim, não o contrário. Você tem nove minutos agora, Val.
Desliguei. Alguma coisa em Valenzuela sempre me irritou. Ele agia o tempo todo como se soubesse de algo que eu não sabia, como se tivesse alguma coisa para usar contra mim.
— Isso é verdade? — perguntou Earl, no banco da frente. — Você e o Fulgoni viraram sócios?
— Só em um caso, Earl. É o máximo que poderia aguentar com esses caras.
Earl balançou a cabeça.
Olhei ao redor e percebi que ele nos levara de volta à 15 Freeway, na direção sul. O trânsito estava fluindo bem e tive esperanças de que pudéssemos chegar em Los Angeles antes da hora do rush, o que me permitiria continuar com o mesmo pique da visita à prisão.
Liguei para Cisco e mudei os planos mais uma vez.
— Preciso que você vá para o Colorado.
— O que tem no Colorado?
— Um cara chamado Budwin Dell, testemunha contra Moya no fatídico julgamento. É um negociante de armas não licenciado de Littleton que afirmou ter vendido a arma para Hector Moya em um feirão em Nogales. Acho que ele mentiu e acho que alguém da equipe da ICE-T deve ter obrigado o cara a fazer isso. A ATF provavelmente tinha alguma coisa contra ele. Quero que converse com o cara e descubra se vai sustentar a versão quando eu puser ele no banco das testemunhas.
— Estou trabalhando em cinco coisas diferentes aqui, Mick. Quer que eu largue tudo e pegue um avião?
Às vezes o embalo pode fazer você ir muito longe rápido demais. Cisco tinha razão.
— Quero que vá no momento certo. Mas acho que esse cara vai ser chave.
— Certo. Eu vou lá até o fim da semana. Mas primeiro preciso ter certeza de que ele está no Colorado. Se continuar no circuito de feirão de armas, pode estar em qualquer lugar. Virou a maior febre ultimamente.
— Tem razão. Fica por sua conta, então. Você sabe o que fazer.
— O.k., o que mais você conseguiu por aí?
— Sly Fulgoni Jr. intimou Gloria uma semana antes de ela ter sido assassinada. Acho que isso deu início à coisa toda. Ela foi morta antes que pudesse falar.
Cisco assobiou. Ele fazia isso sempre que uma peça do quebra-cabeça se encaixava no lugar.
— Não encontraram nenhuma intimação no apartamento dela. Eu examinei o inventário — falou.
— Claro, eles levaram. Foi por isso que mataram ela no apartamento. Eles tinham que encontrar a intimação ou a polícia local podia fazer perguntas.
— Como sabiam?
— Fulgoni entrou com o documento sob sigilo, então estou achando que Gloria comentou com a pessoa errada.
— Marco?
— Isso é o que estou achando. Mas não quero achar. Quero ter certeza.
— Registros telefônicos?
— Se houver algum. La Cosse disse que ele e Gloria usavam burners que trocavam o tempo todo.
— Vou ver o que consigo descobrir. Você talvez tenha que pedir os registros de Marco para um juiz e a gente tenta comparar os números dela dos burners.
— Isso vai ser um inferno de fazer.
— O que mais conseguiu por lá, Mick? Parece que a viagem valeu a pena.
— É, bom, acho que entendi nosso caso. A gente só precisa sacar qual é a desse Budwin Dell e mais umas outras coisas...
Depois de pensar sobre a briga que ocorreria em seguida se eu solicitasse os registros telefônicos de Marco, percebi de repente onde a verdadeira batalha do caso provavelmente se daria.
— Vai ser um caso de intimações — falei. — Fazer esse pessoal comparecer ao tribunal. Dell, Marco, Lankford: nenhum deles vai depor por livre e espontânea vontade. Suas corporações vão brigar com unhas e dentes. Os federais vão contestar até que eu leve Moya ao banco das testemunhas. Vão alegar motivos de segurança pública, custo para os contribuintes, qualquer coisa para me impedir de trazer o cara para testemunhar em Los Angeles.
— Em termos de segurança pública, talvez tenham alguma razão — comentou Cisco. — Transportar um membro do cartel? Esse pode ter sido o plano de Moya o tempo todo: ser tirado de lá de dentro para que seu pessoal tenha uma chance de fazer um resgate. De Los Angeles até Victorville tem oportunidade de sobra.
Pensei sobre Moya e a recente conversa.
— Pode ser — eu disse. — Mas alguma coisa me diz que não é o caso. Ele quer jogar limpo. E, se conseguir o habeas, provavelmente vai ganhar a liberdade, por tempo já cumprido. Já faz oito anos que ele está atrás das grades por causa de cinquenta gramas. A única coisa que mantém o cara lá dentro é o agravante da arma.
— Bom, seja como for — disse Cisco —, você vai precisar de um juiz com mão firme. Alguém disposto a peitar tudo isso.
— É, já não existem mais muitos assim.
Era verdade. Muitos juízes já não passavam de fachada para a promotoria. Mas até os que tinham pulso firme encontrariam muita dificuldade em permitir que eu apresentasse a defesa que estava planejando. O verdadeiro campo de batalha do caso estaria nas audiências, antes que um único jurado estivesse assistindo. A menos que eu bolasse outra estratégia para conseguir convocar minhas testemunhas.
Decidi não pensar nisso por ora.
— E como você tem se saído? — perguntei.
— Estou perto de ligar Lankford e Marco — disse Cisco.
Aquela era uma boa notícia.
— Me conte mais.
— Ainda não é nada certo, então me dá mais um dia. Envolve um homicídio duplo em Glendale. Um roubo de drogas que aconteceu há dez anos. Estou esperando uns documentos... é arquivo morto, então não vai ser problema conseguir.
— Me avisa quando tiver alguma coisa. Teve notícia de Bullocks hoje?
— Hoje não.
— Ela...
— Ei, chefe! — disse Earl, no banco da frente.
Fitei seus olhos pelo espelho. Eles não estavam fixos em mim, mas em algum ponto atrás. Algo que o assustou.
— O q...
O impacto foi violento e ruidoso quando algo que parecia ter a potência de um trem acertou a traseira do carro. Mesmo de cinto, meu corpo foi projetado para a frente — sobre o tampo de mesa abaixado, fixo no encosto do banco da frente — e depois jogado contra a porta, quando o Lincoln derrapou de lado para a direita. Lutando contra a força centrífuga da derrapagem, consegui erguer a cabeça o suficiente para olhar por cima da porta direita. Vi o guardrail uma fração de segundo antes de colidirmos em cheio e o impulso lançar o Lincoln por cima dele.
O carro começou a tombar em um aterro de concreto, e o som de metal esmagado e vidro quebrado encheram meus ouvidos enquanto capotávamos uma, duas, três vezes. Fui chacoalhado como uma boneca de pano até o carro finalmente parar de cabeça para baixo, em um ângulo de quarenta e cinco graus com o aterro.
Não sei quanto tempo fiquei sem sentidos, mas ao abrir os olhos percebi que estava pendurado de ponta-cabeça pelo cinto de segurança. Um velho agachado olhava para mim pela janela quebrada, próximo ao teto do carro.
— Moço, tudo bem aí? — perguntou. — Essa foi feia.
Não respondi. Levei a mão ao cinto e apertei o botão de soltar sem refletir no que estava fazendo. Caí com tudo no teto do carro, cortando o rosto com o vidro quebrado e contribuindo para a dor de uma dúzia de outros pontos doloridos em todo o corpo.
Gemi e lentamente tentei me levantar, olhando para o banco da frente à procura de Earl.
— Earl?
Ele não estava lá.
— Moço, melhor sair logo daí. Estou sentindo cheiro de gasolina. Acho que o tanque rachou.
Virei para o meu suposto salvador.
— Onde está Earl?
Ele fez um gesto de incerteza.
— Earl é seu motorista?
— É. Onde ele está?
Levei a mão ao rosto e puxei um caco de vidro. Dava para sentir o sangue nos dedos.
— Ele foi lançado para fora do carro — disse o homem. — Está caído ali. Parece mal. Acho que não... bom, os paramédicos vão dizer. Já chamei. Liguei para a emergência e estão a caminho.
Ele olhou para mim e acenou com o queixo.
— Obrigado — eu disse.
— Vamos lá, deixa eu ajudar. Esse negócio pode pegar fogo.
Só quando rastejei para fora do carro e consegui ficar de pé, apoiando a mão no ombro do sujeito, vi Earl caído de bruços no aterro, acima do Lincoln. Havia sangue escorrendo pelo concreto em um fluxo espesso, vindo do pescoço e do rosto dele.
— Você teve sorte — disse o homem.
— É, nasci virado pra Lua — falei.
Tirei a mão de seu ombro e me abaixei até as mãos tocarem o concreto. Rastejei pelo aterro até Earl. Percebi na mesma hora que estava morto. Provavelmente fora arremessado e depois o carro deve ter passado por cima dele. Seu crânio estava esmagado e o rosto era uma coisa disforme, assustadora de se olhar.
Sentei no concreto ao seu lado e desviei os olhos. Vi o homem olhando para mim, com uma expressão de horror no rosto. Eu sabia que meu nariz estava quebrado e que o sangue pingava nos dois lados da minha boca. Acho que eu também era uma visão assustadora.
— O senhor viu o que aconteceu? — perguntei.
— Vi, eu vi sim. Era um guincho vermelho. Ele bateu em vocês como se o seu carro não existisse e depois foi embora.
Balancei a cabeça e baixei o rosto. Vi a mão esticada de Earl, a palma para baixo no concreto ensanguentado. Pus minha mão em cima da dele.
— Sinto muito, Earl — eu disse.
PARTE TRÊS
O HOMEM DO
CHAPÉU
Segunda-feira, 17 de junho
29
A promotoria levou oito dias para apresentar seu caso contra Andre La Cosse, terminando estrategicamente em uma sexta-feira, de modo que os jurados tivessem o fim de semana inteiro para considerar o ponto de vista da acusação antes de escutar uma única palavra da defesa. Bill Forsythe, o assistente do promotor, fora hábil na argumentação. Sem nenhuma frescura, sem nenhum exagero. Construiu metodicamente o caso em torno da entrevista gravada do réu e, de maneira sólida, tentou uni-la à evidência física da cena do crime. Na gravação, La Cosse afirmava ter agarrado Gloria Dayton pela garganta durante a discussão. Forsythe ligou isso ao depoimento do legista, que disse que o osso hioide do pescoço da vítima fora fraturado. A associação entre os dois fatos foi o elemento central do caso de acusação, e todos os demais aspectos, testemunho e evidência, giravam em torno disso como círculos concêntricos das ondas de uma pedra atirada em um lago.
De fato, a juíza Leggoe autorizara o uso do vídeo prejudicial, rejeitando minha petição de suprimi-lo um dia antes do início da seleção do júri, com o único comentário de que a defesa deixara de provar que a polícia tinha usado táticas coercitivas ou agido de má-fé de algum modo durante o depoimento de La Cosse. A decisão não foi inesperada e na mesma hora preferi ver o lado positivo: eu agora acreditava ter a primeira base sólida para apelação caso o veredicto acabasse indo contra meu cliente.
Pelo vídeo, Forsythe deu ao júri o motivo e a oportunidade, usando as próprias palavras da defesa para estabelecer ambas as coisas. Em meus inúmeros julgamentos ao longo de quase vinte e cinco anos como advogado, nada me parecia mais difícil do que desfazer os danos que os réus se infligiam por conta de suas próprias palavras. E era exatamente a situação daquele julgamento. Os jurados sempre querem escutar os réus, seja em depoimento direto, seja em gravação de vídeo ou de áudio. É na interpretação instintiva da voz e da personalidade que formamos nosso juízo a respeito dos outros. Nada supera isso. Nem impressões digitais, nem DNA, nem o dedo apontado de uma testemunha.
Forsythe só me pegou de surpresa uma vez, mas foi uma boa jogada. Sua última testemunha era outro acompanhante para quem La Cosse fornecera serviços digitais e gerenciamento no passado. O promotor alegou que ele se apresentara apenas no dia anterior, após ficar sabendo do julgamento ao ler o jornal. Apresentei minha argumentação contra a permissão de seu testemunho, acusando a promotoria de manipulação dos fatos, mas de nada adiantou. Leggoe disse que o testemunho sobre dolos prévios de natureza similar era admissível e permitiu que Forsythe pusesse o sujeito no banco das testemunhas.
Brian “Brandi” Goodrich era um homem pequeno, com não mais de um metro e sessenta de altura. Se dirigiu ao banco das testemunhas usando jeans desbotado e camisa polo roxa. Afirmou ser um travesti que trabalhava como acompanhante, gerenciado por Andre La Cosse. Disse que Andre certa vez o estrangulara a ponto de deixá-lo inconsciente, por achar que Goodrich estava escondendo dinheiro. Quando Goodrich voltou a si, estava algemado a uma barra de ferro que ia do chão ao teto em sua sala e teve de assistir, sem poder fazer nada, a La Cosse vasculhando sua casa à procura da grana. Brandi levou consigo para o banco toda a usual dramaticidade do papel — às lágrimas, contou que temera por sua vida e que se sentia com sorte por não ter sido morto.
À mesa da defesa, eu me inclinei para Andre, sorri e balancei a cabeça, como se aquela testemunha não passasse de um aborrecimento e não merecesse ser levada a sério. Mas o que sussurrei para ele teve outro tom.
— Preciso saber agora mesmo, isso aconteceu de verdade? E não venha me pôr em fria mentindo pra mim, Andre.
Ele hesitou, depois chegou mais perto e sussurrou.
— Ele está exagerando. Eu algemei ele naquele poste de stripper na sala para poder procurar. Não estrangulei ninguém. Eu segurei no pescoço dele só uma vez, para ele olhar para mim e responder minhas perguntas. Ele não ficou inconsciente coisa nenhuma nem ficou com marca no pescoço. Até foi trabalhar à noite.
— Ele não foi embora nem procurou outra pessoa para fazer o seu trabalho?
— Ele continuou comigo durante mais seis meses. Só me largou quando encontrou um bofe com grana para cuidar dele.
Me afastei de Andre e esperei que Forsythe terminasse sua inquirição. Quando chegou minha vez, contra-ataquei inicialmente com algumas perguntas que, assim esperava, lembrariam os jurados de que Brandi era um michê e que nunca prestara queixa na polícia sobre essa experiência quase fatal.
— Em que hospital o senhor foi cuidar do pescoço? — perguntei.
— Não fui para o hospital — ele respondeu.
— Entendo. Então o osso hioide em seu pescoço não ficou esmagado, como aconteceu com a vítima desse caso?
— Não sei nada sobre os ferimentos específicos desse caso.
— Claro que não. Mas o senhor disse que foi estrangulado pelo réu até ficar inconsciente e que não deu parte na polícia nem procurou atendimento médico.
— Eu só fiquei feliz por estar vivo.
— E por poder trabalhar também, correto?
— Não entendi a pergunta.
— O senhor foi trabalhar como acompanhante nessa mesma noite, depois da suposta luta de vida ou morte, não foi?
— Não lembro.
— Se eu apresentar os registros dos negócios do sr. La Cosse referentes aos programas que agenciou para o senhor isso ajudaria a refrescar sua memória?
— Se trabalhei naquela noite, foi só porque ele me obrigou com ameaças.
— Tudo bem, vamos voltar ao alegado incidente. O réu usou uma só mão ou as duas?
— As duas.
— O senhor é um homem adulto, por acaso se defendeu?
— Até tentei, mas ele é muito maior do que eu.
— O senhor disse que depois acordou algemado a um poste de dança. Onde o senhor estava quando alega que foi estrangulado e ficou inconsciente?
— No apartamento. Ele me agarrou por trás assim que eu deixei ele entrar.
— Então ele estrangulou o senhor por trás?
— É, meio que foi.
— Como assim, “meio que foi”? Ele estrangulou ou não?
— Ele passou o braço em volta do meu pescoço por trás e apertou, e eu tentei lutar, porque achei que ele ia me matar. Mas daí eu apaguei.
— Então por que o senhor acabou de testemunhar que ele usou as duas mãos para estrangular?
— Bom, porque usou. As mãos e os braços.
Eu deixei isso pairando no ar por alguns momentos, para consideração do júri. Achei que conseguira atingir a credibilidade de Goodrich em alguns lugares. Decidi que era melhor sair por cima e fiz uma última tentativa no escuro. Era um risco calculado, mas eu agia na crença de que, em geral, testemunhas voluntárias querem alguma coisa em troca. Nesse caso, Goodrich obviamente queria vingança, mas eu tinha um palpite de que havia algo mais.
— Sr. Goodrich, no momento está enfrentando alguma acusação criminal, seja um delito leve ou grave? Alguma coisa?
Os olhos de Goodrich pestanejaram na direção da mesa da promotoria por uma fração de segundo.
— No condado de Los Angeles? Não.
— Em qualquer condado, sr. Goodrich.
Goodrich revelou com relutância que enfrentava um processo por prostituição em Orange County, mas negou que estivesse testemunhando em troca de ajuda.
— Sem mais perguntas — disse eu, baixando a voz para um tom de desdém.
Forsythe tentou arrumar as coisas na contrainquirição, deixando bem claro que não apresentara nenhuma proposta nem prometera ajuda alguma para Goodrich em Orange County.
Goodrich foi autorizado a deixar o banco depois disso. Senti que encaixara alguns bons golpes, mas mesmo assim o dano estava feito. Por meio da testemunha, a promotoria acrescentara uma história de atitudes similares aos já sólidos pilares do motivo e da oportunidade. O caso de Forsythe ficou então completo e ele encerrou às quatro da tarde de sexta-feira, me garantindo um fim de semana de sono agitado e preparativos corridos.
Agora era segunda-feira e em breve seria minha vez diante do júri. Minha tarefa era clara, desfazer o nó de Forsythe e mudar a cabeça dos doze jurados. Em julgamentos anteriores, meu objetivo tinha sido mudar apenas uma: na maioria dos casos, deixar o júri em um impasse é tão bom quanto obter um veredicto de inocente. O Gabinete da Promotoria muitas vezes opta por não tentar um novo julgamento e alivia um pouco para a defesa quanto aos termos de um acordo. O processo vira um animal doente e precisa ser sacrificado o quanto antes e com o menor alarde possível. Nas trincheiras da defesa, isso é considerado vitória. Mas não dessa vez. Não com Andre La Cosse. Estava convencido de que meu cliente podia ser muitas coisas, mas não um assassino. Eu tinha certeza de que era inocente das acusações e, portanto, precisava que todos os doze deuses da culpa me sorrissem no dia do veredicto.
Sentei à mesa da defesa, esperando que os guardas do tribunal trouxessem La Cosse. As pessoas presentes ao julgamento já haviam sido alertadas de que o ônibus que transportava o réu da Men’s Central estava preso no trânsito. Assim que Andre chegasse, o juiz deixaria sua sala nos fundos e a apresentação da defesa começaria.
Passei o tempo estudando uma folha de anotações que eu rabiscara para meu discurso de abertura. Eu deixara essa exposição reservada para o começo do julgamento, exercendo a opção de me dirigir ao júri antes de apresentar a defesa. Trata-se de uma estratégia arriscada em geral, porque significa que os jurados podem passar vários dias antes de escutar algum tipo de contra-argumentação à teoria do promotor para o caso, assim como a apresentação das provas e testemunhas.
Forsythe fez seu discurso de abertura para o júri doze dias antes. Tanto tempo passara que parecia que o lado da promotoria estava profunda e inalteravelmente enraizado na cabeça dos doze jurados. Mas eu sentia também que os membros do júri deviam estar loucos para finalmente ouvir o lado da defesa, a réplica a Forsythe, ao vídeo e às evidências científicas e físicas. Eles começariam a ter tudo isso nesse dia.
Finalmente, às nove e quarenta, La Cosse foi trazido pela porta da cela para o tribunal. Virei e fiquei observando os guardas conduzirem meu cliente à mesa da defesa, removerem as correntes no quadril e o instruírem a sentar ao meu lado. Andre vestia o segundo terno que eu lhe comprara. Queria que tivesse uma aparência diferente da exibida na semana anterior, quando começamos a defesa. Os dois ternos foram comprados pelo preço de um na Men’s Wearhouse. Lorna escolheu as peças depois de verificarmos as roupas de La Cosse e não encontrarmos nada que transmitisse a aparência conservadora e profissional que queríamos para ele no tribunal. Ainda assim, os novos ternos não ajudaram muito a disfarçar seu declínio físico: La Cosse parecia um paciente nos últimos estágios de um câncer terminal. A perda de peso tinha sido constante durante seus mais de seis meses na prisão. Ele estava cadavérico, desenvolvera erupções cutâneas nos braços e no pescoço, em reação ao detergente industrial utilizado na lavanderia do presídio, e sua postura à mesa da defesa o fazia parecer um homem velho. Precisei dizer o tempo todo para sentar direito, porque o júri estava observando.
— Andre, tudo bem com você? — perguntei, assim que sentou.
— Tudo — sussurrou ele. — Os fins de semana lá dentro não passam.
— Eu sei. Eles continuam dando remédio para seu estômago?
— Continuam e estou tomando, mas não sei se está fazendo alguma diferença. Ainda sinto como se estivesse pegando fogo por dentro.
— Bom, vamos esperar que você não precise ficar lá por muito mais tempo e que possa ir para um bom hospital assim que sair.
La Cosse balançou a cabeça, dando a entender que não conseguia acreditar muito que deixaria as correntes e a cadeia para trás. Ficar preso por muito tempo faz isso com o indivíduo — corrói a esperança. Mesmo de um homem inocente.
— Como você está, Mickey? — ele perguntou. — Como está seu braço?
Apesar de sua própria situação, Andre nunca deixou de perguntar sobre mim. De muitas maneiras, eu continuava me recuperando do acidente com o Lincoln. Earl morrera e eu estava ferido e quebrado — sobretudo por dentro.
Fisicamente, eu sofrera uma concussão e precisava de uma cirurgia para corrigir o nariz. Levei vinte e nove pontos em vários ferimentos e desde então vinha fazendo fisioterapia duas vezes por semana, para ajudar a restaurar todo o movimento do braço esquerdo, após a ruptura dos ligamentos no cotovelo.
Para falar a verdade, tinha escapado do pior. Dava até para dizer que havia me dado bem. Mas a intensidade dos ferimentos físicos nem chegava perto das persistentes feridas internas. Eu sofria todos os dias por Earl Briggs, e a tristeza só se comparava ao fardo da culpa que carregava junto. Não passava um dia sem que eu não repassasse os movimentos e as decisões que tomei em abril. A escolha mais catastrófica de todas fora manter o rastreador no carro e provocar aqueles que monitoravam meus movimentos com a ousadia de ir a Victorville para ver Hector Moya. Eu carregaria para sempre na consciência as consequências daquela decisão, assim como a imagem de Earl Briggs sorrindo ligada a elas.
No momento em que os destroços do Lincoln foram examinados, o rastreador de GPS sumira, embora estivesse lá na tarde anterior, quando Cisco examinara o carro. Não tenho a menor dúvida de que fui seguido até Victorville, nem tenho a menor dúvida sobre quem mandou jogar o Lincoln contra o guardrail, se é que não cuidou do serviço pessoalmente. Eu tinha um único propósito verdadeiro no julgamento: libertar Andre La Cosse e limpar seu nome. Mas considerava destruir James Marco como parte integrante da estratégia de defesa no processo.
Quando recordava o episódio na 15 Freeway, só havia uma coisa que ainda podia remotamente ser considerada positiva. Um helicóptero de resgate me transportou, e também Earl, para o Desert Valley Hospital, em Victorville. Earl já estava morto ao chegar e eu dei entrada na UTI. Quando saí da cirurgia, minha filha estava ali, junto ao leito, segurando minha mão. Aquilo ajudou bastante a sanar as feridas dentro de mim.
O julgamento foi adiado por quase um mês, enquanto eu me recuperava, e quem pagou o preço mais alto por isso foi Andre. Mais um mês preso, mais um mês vendo a esperança murchar. Mesmo assim, em nenhum momento ele se queixou. Só esperava que eu melhorasse.
— Estou bem — disse. — Obrigado por perguntar. Mal posso esperar para começar, porque agora finalmente é sua vez, Andre. Hoje a gente começa a contar uma história diferente.
— Ótimo.
Ele disse isso sem grande convicção.
— Você só precisa se concentrar em uma coisa para mim, Andre.
— É, eu sei, eu sei. Não parecer culpado.
— É isso aí.
Dei um soco de brincadeira em seu ombro com meu braço bom. Era o mantra que eu lhe passara desde o primeiro dia: não parecer culpado. Um homem que parece culpado é julgado culpado. No caso de Andre, era mais fácil falar do que fazer. Ele parecia aniquilado, e isso não estava tão distante de parecer culpado.
Claro, eu entendia alguma coisa sobre parecer culpado e me sentir culpado. Mas, como Andre, estava tentando cumprir meu papel. Eu não havia tomado um só gole de bebida desde a noite anterior ao início da seleção do júri. Nem mesmo nos fins de semana. Estava afiado e preparado. Para Andre, esse era o primeiro dia do resto de sua vida. Para mim, também.
— Eu só queria que David estivesse aqui — disse Andre, em um sussurro tão baixo que quase não escutei.
Impelido em um reflexo pelo que ele dissera, virei ligeiramente e meus olhos varreram o fundo do tribunal. Como desde o início do julgamento, a plateia estava quase vazia. Havia o caso de um serial killer no Departamento 111 e esse julgamento estava atraindo a maior parte da mídia. O caso La Cosse recebera pouca atenção nos noticiários e o cínico que mora em mim chegou à conclusão de que isso se devia ao fato de a vítima ter sido uma prostituta.
Ainda assim, eu tinha meu pequeno público para me animar. Kendall Roberts e Lorna Taylor sentavam na primeira fileira, bem atrás da mesa da defesa. Lorna vinha comparecendo periodicamente ao longo do julgamento. Esse era o primeiro dia de Kendall. Com receio de ir ao tribunal e esbarrar com algum fantasma do passado, ela mantivera distância até eu lhe pedir explicitamente para assistir a pelo menos meu discurso de abertura. Havíamos começado a nos ver cada vez mais desde abril e queria que ela estivesse lá para me dar apoio emocional.
E na última fileira estavam dois homens que compareceram desde o primeiro dia da seleção do júri. Eu não sabia seus nomes, mas sabia quem eram. Usavam ternos caros, mas pareciam deslocados na roupa. Eram musculosos e tinham a pele bem bronzeada, de viver ao ar livre, pelo jeito, e não dentro de tribunais. Tinham a mesma constituição física de Hector Arrande Moya, com ombros largos e proeminentes, e eu me habituara a pensar neles simplesmente como os homens de Moya. Eram parte do contingente de proteção que Moya mobilizara para cuidar de mim depois do acidente de carro nas montanhas. Eu tinha recusado a oferta de proteção naquele dia da visita na cadeia. Era tarde demais para Earl Briggs agora, porém não ia rejeitar a proposta uma segunda vez.
E era tudo. Ninguém mais acompanhava o julgamento. O companheiro de La Cosse, David, não estava presente na plateia. Ele se mandara, após fazer uma retirada completa do ouro restante de La Cosse e partir da cidade na véspera do julgamento. Essa perda contribuiu mais do que tudo para o abatimento e a decadência física de Andre.
De certa forma, eu compreendia. Ter Kendall no tribunal era uma coisa especial para mim, que me sentia apoiado e menos sozinho, como se tivesse uma parceira na briga. Em compensação, minha filha não pusera o pé na sala até aquele dia e isso doía. O encontro no quarto do hospital chegara apenas a reanimar a relação. E a escola não era mais uma desculpa, já que as aulas haviam terminado no meio da apresentação da promotoria. Acho que meu ato reflexo de verificar a plateia constantemente era na verdade a esperança de vê-la ali.
— Não pode se preocupar com isso agora — sussurrei para Andre, e também para mim mesmo. — Você precisa parecer forte. Ser forte.
Andre tentou sorrir.
Quando David fugiu com todo o ouro de La Cosse, Andre não foi o único que ficou a ver navios. Àquela altura, eu já tinha recebido a segunda barra de ouro como parte do pagamento. Uma terceira deveria ser entregue no começo do julgamento, mas então o ouro desapareceu. Assim, um caso que inicialmente tinha potencial financeiro tornara-se pro bono quando começou. A equipe Haller não estava mais faturando.
Às dez em ponto a juíza Leggoe apareceu de sua sala e se dirigiu à cadeira. Como sempre, olhou para Forsythe e para mim e perguntou se havia algum assunto a considerar antes de mandar trazer o júri. Dessa vez havia. Fiquei de pé, segurando um punhado de documentos, e disse que tinha uma lista de testemunhas retificada para consideração e aprovação da corte. Ela acenou para que me aproximasse e passei uma cópia da nova lista, depois deixei outra cópia com Forsythe ao voltar para a mesa da defesa. Assim que sentei, Forsythe se levantou para protestar.
— Excelência, o doutor está tentando a velha prática de lançar uma cortina de fumaça para ocultar as verdadeiras testemunhas em um mar de nomes. A lista pré-julgamento já era imensa e pelo que estou percebendo ele acrescentou agora uns vinte ou vinte e cinco novos nomes. É evidente que a maioria dos listados não vai ser chamada de verdade.
Ele gesticulou com as páginas na direção de Lee Lankford, que estava sentado em uma fileira de cadeiras junto à balaustrada.
— Estou vendo que incluiu na lista até meu investigador — prosseguiu Forsythe. — E vamos ver, temos também não um, mas dois prisioneiros federais aqui. Ele acrescentou um... dois... três guardas da prisão. Ao que parece adicionou todos os moradores do prédio da vítima...
Ele interrompeu abruptamente a ladainha e soltou as folhas na mesa, como se as jogasse em uma lata do lixo.
— A promotoria protesta, Excelência. Seria impossível outra resposta sem o tempo hábil para olhar cada um dos nomes e determinar a relação que tem com o caso, se é que tem alguma.
A objeção de Forsythe não era surpresa. Já contávamos com isso no planejamento e na estratégia da defesa, intitulada “Marco Polo” e escrita no alto do quadro branco que Lorna mandara instalar na parede de tijolos da sala de reuniões, no loft. A lista de testemunhas era o movimento de abertura do jogo, e até o momento Forsythe desempenhava seu papel, embora ainda não tivesse — ao menos não expressamente — prestado atenção ao único nome na lista que era de fato importante. O nome que apelidamos de bomba-relógio e aguardava escondido, à espera da detonação ao primeiro passo em falso da promotoria.
Levantei para responder à objeção, dando mais uma rápida espiada para trás: nada ainda da minha filha, mas um pequeno sorriso de Kendall. Quando meu olhar esquadrinhou um pouco mais adiante, detive-me por um momento em Lankford. Ele olhou para mim com uma expressão que era sessenta por cento Que porra é essa? e quarenta por cento o tradicional Vai se foder. Aqueles sessenta por cento eram o que eu estava esperando.
— Excelência — comecei, olhando enfim para a juíza. — Parece óbvio, com base nessa objeção, que o sr. Forsythe na verdade já dispõe de pleno conhecimento de quem são essas pessoas e como se relacionam ao caso. Ainda assim, a defesa terá o maior prazer em lhe conceder o tempo necessário para verificar os novos nomes e contestar. Só não há necessidade de interromper o julgamento. Planejo regalar o júri com meu tão postergado discurso de abertura e depois começar com as testemunhas da lista inicial, já aprovadas pela corte.
Leggoe pareceu satisfeita com a fácil solução.
— Muito bem — disse. — Será a primeira coisa que vamos tratar amanhã de manhã. Dr. Forsythe, o senhor tem esse prazo para examinar a lista e preparar sua resposta.
— Obrigado, Excelência.
Leggoe convocou o júri. Continuei de pé e reli as anotações enquanto os jurados sentavam e a juíza explicava que eu reservava o discurso de abertura para o início do julgamento e que iria apresentá-lo naquele momento. Ela lembrou os membros do júri de que as palavras que eu diria agora não deveriam ser interpretadas como evidência e então me passou a palavra. Me afastei da mesa da defesa, deixando as anotações ali em cima. Eu nunca usava anotações quando me dirigia ao júri. Mantinha máximo contato visual o tempo todo.
A juíza determinara que, durante os discursos, ambas as partes teriam permissão de ficar no espaço imediatamente à frente da bancada do júri. Esse lugar é chamado pelos advogados de poço do tribunal, mas para mim sempre foi um campo de provas. Não digo provas no sentido legal. Me refiro ao fato de que é onde você se põe à prova diante do júri, mostrando quem você é e pelo que está lutando. Se quiser ter alguma esperança de demonstrar a equidade de seu caso, você precisa antes de mais nada conquistar o respeito deles, passando uma imagem apaixonada e confiante na defesa do acusado.
A primeira jurada que encarei foi a número 4. Seu nome era Mallory Gladwell, vinte e oito anos, prospectora de roteiros em um estúdio de cinema. Seu trabalho era analisar os roteiros submetidos ao estúdio para compra e desenvolvimento. Assim que sentou para responder às perguntas na entrevista de seleção dos jurados, eu soube que a queria no júri. Eu queria suas capacidades analíticas em relação à lógica e à arte de narrar. Queria que o júri no fim das contas preferisse minha versão da história à de Forsythe, e algo me dizia que Mallory Gladwell podia ser a pessoa que conduziria os demais a isso.
Enquanto Forsythe apresentava o caso da promotoria, fiquei de olho em Mallory. Verdade que eu observava todos os jurados, tentando interpretar os rostos e captar sinais e pistas sobre que testemunho ou evidência era mais impactante para eles, o que despertava ceticismo, irritação e assim por diante. Porém, cheguei à conclusão de que Mallory era a alfa do grupo. Tive o palpite de que suas habilidades em desmontar uma história em partes menores a levaria a ser uma voz, quando não a voz, durante as deliberações. Como ela poderia ser meu Flautista de Hamelin, foi a primeira pessoa com quem fiz contato visual, e também seria a última. Eu a queria engajada no caso da defesa.
O fato de retribuir o contato visual e não desviar o rosto foi um forte indício de que meus instintos estavam corretos.
— Senhoras e senhores — comecei —, acho que apresentações não são necessárias aqui. Já avançamos bastante neste julgamento e tenho certeza de que todos sabem quem é quem. Por isso pretendo ser bastante breve, porque quero passar logo à apresentação do caso em si. À verdade sobre o que aconteceu com Gloria Dayton.
Enquanto falava, inconscientemente avancei dois passos, abri as mãos e as apoiei na balaustrada diante da bancada do júri. Inclinei-me para a frente, procurando tornar a comunicação entre um homem e doze estranhos tão íntima quanto a de um devoto se dirigindo a um padre ou um rabino. Eu queria que cada um ali achasse que me dirigia apenas para si.
— Não sei se sabem, mas os advogados têm uma série de apelidos para todas as coisas, incluindo júris. Chamamos vocês de deuses da culpa. Sem qualquer intenção de desrespeitar fé ou religião, mas porque é isso que vocês são, deuses da culpa. Estão sentados aqui para decidir quem é culpado e quem é inocente, quem ganha a liberdade e quem vai preso. É uma tarefa importante, mas um fardo. Para tomar uma decisão tão difícil é preciso dispor de todos os fatos. Vocês devem ter a história inteira e verdadeira. Devem contar com a interpretação correta da história.
Fitei Mallory Gladwell diretamente nos olhos outra vez. Tirei as mãos da balaustrada e voltei ao poço, para poder visualizar todos os doze jurados e os dois suplentes num curto movimento de vaivém. Enquanto falava, casualmente me desloquei para a direita, de modo que a maioria dos jurados olhasse para mim da esquerda.
— Peço que ao longo dos próximos dias ou da semana seguinte prestem muita atenção no caso da defesa. Até o momento, vocês ouviram apenas um lado da história, o da promotoria. Agora vão ouvir e ver o outro lado, e perceber que existem duas vítimas neste caso: Gloria Dayton, claro, é uma delas. E Andre La Cosse é a outra. Como Gloria, Andre foi manipulado e usado. Ela foi assassinada e ele caiu em uma armação para levar a culpa pelo crime.
Sem perder tempo, emendei:
— Sendo realista, meu trabalho aqui é plantar as sementes da dúvida na mente de cada um de vocês. Se chegarem à conclusão de que há dúvida razoável em relação à culpa ou à inocência de Andre, então têm o dever de determinar que o réu é inocente. No entanto, durante os próximos dias, irei além disso, como poderão ver. Vocês não só vão descobrir que Andre é absolutamente inocente, como também vão descobrir quem de fato cometeu esse crime terrível.
Fiz uma pausa, mas mantive o olhar passeando pelos rostos dos jurados. Estavam comigo. Dava para perceber.
— Agora, antes de encerrar, permitam apenas comentar algo que sem dúvida deixou todos vocês incomodados durante a apresentação da promotoria. O modo como o sr. La Cosse ganha a vida. Para dizer a verdade, isso me incomoda também. Basicamente, ele é o que poderíamos chamar de cafetão digital. Assim como muitos de vocês, eu também sou pai e me desagrada pensar em alguém lucrando com a exploração sexual de jovens mulheres e homens. Mas o veredicto que irão pronunciar sobre este caso não deve ser influenciado pelo estilo de vida de Andre La Cosse. Não podem julgá-lo culpado de homicídio simplesmente por ele ser o que é. Peço que pensem na vítima deste caso, Gloria Dayton, e se perguntem: ela merecia ser assassinada por ser prostituta? A resposta com certeza é não. O mesmo não vale para Andre La Cosse? Será que ele deve ser condenado por homicídio só por ser um cafetão?
Fiz nova pausa, coloquei as mãos no bolso e olhei para o chão. Era hora do grand finale. Quando ergui o rosto, encarei Mallory.
— Para terminar, faço uma promessa que podem me cobrar. Se eu não conseguir cumprir o que disse aqui, vão em frente e considerem meu cliente culpado. É uma aposta que estou disposto a fazer, assim como Andre, porque sabemos onde está a verdade. Temos a honradez da inocência.
Parei outra vez, torcendo para Forsythe lançar uma objeção. Eu queria que o júri visse o promotor me desafiando, tentando me impedir de falar a verdade. Mas Forsythe não era nenhum marinheiro de primeira viagem. Ele sabia o que estava fazendo e se segurou, me negando o que eu queria.
Fui em frente.
— A defesa vai apresentar evidências e testemunhos provando que o sr. La Cosse não passa de um bode expiatório. Um homem inocente envolvido no pior tipo de complô. Um complô em que aqueles em quem mais acreditamos conspiraram para incriminar uma pobre vítima. Essa é a história de como uma conspiração para proteger um terrível segredo terminou levando a um homicídio e a uma operação de acobertamento dos fatos. Minha esperança — virei e indiquei Andre La Cosse com um gesto de mão —, assim como a do sr. La Cosse, é que percebam que a verdade está do nosso lado e pronunciem o devido veredicto de inocente. Muito obrigado.
Voltei à cadeira e chequei minhas anotações rapidamente para ver se esquecera de algo.
Pareceu que havia abordado todos os pontos importantes e me dei por satisfeito. Andre se curvou e sussurrou um agradecimento. Respondi que ele ainda não vira nada.
— Acho que agora devemos fazer o intervalo da manhã — disse a juíza. — Quando voltarmos, dentro de quinze minutos, começaremos a apresentação da defesa.
Fiquei de pé quando o júri se levantou e me detive nos membros saindo em fila única para a sala de deliberação. Examinei Mallory Gladwell andando com a cabeça baixa. Então, no último segundo, no exato instante em que estava prestes a passar pela porta e sair, ela virou e olhou para a sala do tribunal. Seu olhar cruzou com o meu e permaneceu assim por uma fração de segundo antes que ela se fosse.
Assim que a juíza decretou o intervalo, fui para o corredor do fórum ver como andavam as coisas com minha primeira testemunha.
30
Mas o verdadeiro motivo para eu ter saído do tribunal depois que a juíza anunciou o intervalo e o júri deixou o recinto era dar uma chegada no banheiro. Eu estava acordado desde as quatro da manhã, pensando no julgamento e me preparando para o discurso de abertura. Mantivera a mente desperta com significativa quantidade de café e agora chegava a hora de eliminar o efeito colateral.
Encontrei Cisco sentado em um banco no corredor, ao lado de Fernando Valenzuela.
— Como estamos indo? — perguntei ao passar.
— Muito bem — respondeu Cisco.
— É, pode crer — disse Valenzuela.
— Já volto — falei.
Um minuto depois tirava água do joelho, de pé diante do mictório. Estava até de olhos fechados, repassando mentalmente parte do discurso de abertura. Não escutei a porta do banheiro abrir e não me dei conta de que havia alguém atrás de mim. Quando levantava o zíper, fui empurrado contra a parede azulejada. Meus braços ficaram presos e não pude me mexer.
— Cadê sua proteção do cartel agora?
Reconheci a voz, sem falar no hálito de café e cigarro.
— Lankford, tira a pata de cima de mim.
— Está querendo se meter comigo, Haller? Quer me tirar para dançar?
— Não sei do que você está falando. Mas se estragar meu terno vou conversar com a juíza sobre o assunto. Meu investigador está sentado ali fora. Ele viu você entrar.
Ele me puxou com força da parede e me jogou por uma porta vaivém sobre um assento de privada. Eu me recompus na hora, abaixei o rosto para ver se o terno estava em ordem e afivelei o cinto. Fiz isso de modo casual, como se não estivesse nada preocupado com a ameaça de Lankford.
— Volta lá para o tribunal, Lankford.
— Por que estou na lista? Por que você me quer no banco das testemunhas?
Fui até a bancada de pias e lavei a mão, sem pressa.
— Por que você acha? — perguntei.
— Aquele dia no prédio, você disse que me viu usando um chapéu — ele falou. — Que caralho você quis dizer com aquilo.
Olhei das minhas mãos para o espelho e depois para ele.
— Eu mencionei um chapéu?
Acionei o dispensador de toalhas de papel e puxei algumas folhas para secar as mãos.
— É, você falou em um chapéu. Por quê?
Joguei as folhas usadas no cesto de lixo, virei e fiz uma pausa, como se estivesse lembrando de alguma coisa de um passado remoto. Depois olhei para ele e balancei a cabeça, como se estivesse confuso.
— Não sei quanto ao chapéu, mas sei que, se você encostar a mão em mim outra vez, a situação vai ficar ainda pior para o seu lado.
Abri a porta e saí para o corredor, deixando Lankford para trás. Mal pude segurar um sorriso ao me aproximar de Cisco, que continuava no banco com Valenzuela. A primeira regra da Marco Polo era mantê-los no escuro. Lankford em breve teria mais do que o chapéu para se preocupar.
— Tudo bem? — perguntou Cisco.
— Lankford tentou segurar seu pau ali dentro? — perguntou Valenzuela.
— É, algo nessa linha — falei. — Vamos entrar.
Abri a porta do tribunal e a segurei para os dois. Ao passarem por mim, olhei o corredor à procura de Lankford, mas não o encontrei. Em compensação, vi meu meio-irmão passando, com um grosso fichário azul debaixo do braço.
— Ei, Harry!
Ele virou sem diminuir o passo e me viu. Sorriu quando me reconheceu e então parou.
— Mick, e aí, cara, tudo bem? Como está o braço?
— Melhor. Veio para um julgamento?
— É, no 111.
— Ei, esse é o caso que está roubando toda a mídia do meu.
Disse isso em tom de protesto bem-humorado e sorri.
— É um caso de arquivo morto, de 1994. Um sujeito chamado Patrick Sewell... um maluco pervertido. Trouxeram o cara de San Quentin, onde ele já estava cumprindo pena por outro homicídio. Vão pedir a pena de morte, dessa vez.
Balancei a cabeça, mas não tive coragem de desejar boa sorte. Afinal, ele trabalhava para o outro lado.
— Então, alguma novidade sobre seu motorista? — quis saber ele. — Já prenderam alguém?
Olhei para ele por um momento, me perguntando se teria escutado alguma coisa sobre a investigação nos corredores da polícia.
— Ainda não — falei.
— Que pena — ele disse.
Assenti, concordando.
— Bom, preciso voltar. Foi bom ver você, Harry.
— O mesmo. A gente devia reunir as meninas outra vez.
— Claro.
Nossas filhas eram da mesma idade. Mas a sua pelo jeito ainda conversava com o pai normalmente. Afinal, ele colocava os bandidos atrás das grades, ao passo que eu os soltava.
Entrei na sala do tribunal, me censurando internamente pelos pensamentos negativos. Tentei lembrar da advertência de Legal Siegel para não sucumbir à culpa, para conseguir dar o meu melhor na defesa de La Cosse.
Depois que o júri voltou a sentar, chamei a primeira testemunha da defesa. Valenzuela caminhou até o banco das testemunhas, batendo com a palma da mão sobre a balaustrada diante da bancada do júri ao passar. Estava agindo como se testemunhar em um julgamento de homicídio fosse algo tão rotineiro quanto comprar cigarros no 7-Eleven.
Ele fez o juramento e soletrou seu nome para a estenógrafa. A partir de agora era comigo, e comecei lhe pedindo para dizer ao júri como ganhava a vida.
— Bom — respondeu ele. — Pode-se dizer que sou alguém de muitos talentos. Sou um dos homens que mantêm a máquina do sistema judiciário engraxada.
Eu quase corrigi sugerindo que na verdade ele queria dizer “azeitada”, mas me controlei. Afinal de contas, era minha testemunha. Em vez disso, pedi que fosse mais específico sobre seu trabalho.
— Para começar, sou fiador judicial licenciado pelo governo — disse ele. — Também tenho licença de DP e lanço mão dela para citar. E se você por acaso for até a cafeteria no segundo andar desse prédio, vai descobrir que sou o arrendatário daquilo. Entrei com meu irmão nesse negócio. Então...
— Vamos voltar um momento — interrompi. — O que é uma licença de DP?
— Detetive particular. Você precisa ter licença do governo se quiser fazer esse tipo de trabalho.
— Certo, e o que o senhor quis dizer quando mencionou que usa sua licença “para citar”?
— Ãhn, citar. Você sabe, entregar uma citação. Tipo quando a pessoa é processada e essas coisas, o advogado tem que dar entrada em uma intimação se ele quiser que alguém apareça para dar uma declaração, fazer um depoimento ou ir no julgamento para testemunhar. Como isso que eu estou fazendo agora.
— Então o senhor entrega a citação para a testemunha?
— É, tipo isso. É isso que eu faço.
Apesar de todos aqueles anos engraxando a máquina, estava bem claro que Valenzuela não tinha grande experiência como testemunha. Suas respostas eram cortadas e incompletas. Embora eu tivesse imaginado que seria uma das testemunhas mais fáceis de interrogar, me vi precisando dar um duro danado para obter uma resposta completa para o júri. Não era a maneira ideal de começar o caso da defesa, mas fui em frente, mais irritado comigo do que com ele por não ter ensaiado com antecedência.
— Certo. Agora, seu trabalho na entrega de intimações levou o senhor a ter contato com a vítima deste caso, Gloria Dayton?
Valenzuela franziu o rosto. O que eu acreditava ser uma pergunta inequívoca pareceu deixá-lo em parafuso.
— Bom... foi, mas na época eu não sabia. Quer dizer, o nome dela não era Gloria Dayton na única vez em que tive contato com ela, entendeu?
— O senhor quer dizer que ela estava usando um nome diferente?
— É, estava. O nome que estava na intimação que eu entreguei era Giselle Dallinger. Foi para essa pessoa que entreguei o papel.
— Certo, e quando foi isso?
— Isso foi em uma segunda, 5 de novembro, às 18h06, no saguão de entrada do prédio de apartamentos na Franklin, onde ela morava.
— Você parece saber com muita precisão sobre o horário e o lugar onde fez isso. Como pode ter tanta certeza?
— Porque anoto toda intimação que entrego, caso alguém não apareça no tribunal para testemunhar ou no escritório para dar o depoimento. Daí eu vou poder dizer para o advogado ou para o juiz: está vendo, eu falei, a pessoa foi citada e devia ter vindo. Eu mostro para eles o registro e mostro a foto, que tem a data e o horário marcados.
— O senhor bate uma foto?
— Pode crer, é como eu trabalho.
— Quer dizer que tirou uma fotografia de Giselle Dallinger depois que entregou uma intimação para ela no dia 5 de novembro?
— Isso mesmo.
Então peguei uma cópia 20x25 da foto com data e hora que Valenzuela batera de Giselle, ou Gloria, e pedi à juíza para aceitar como primeira evidência da defesa. Forsythe protestou contra a inclusão da foto e estava disposto a admitir que Valenzuela entregara a intimação para Gloria Dayton. Mas eu briguei pela foto, porque queria que os jurados a vissem. A juíza ficou do meu lado e entreguei a foto ao jurado número 1, para que examinasse e passasse adiante.
Mais do que tudo, era isso que eu esperava conseguir com Valenzuela no banco das testemunhas. A imagem era peça-chave, porque fazia mais do que validar a história de Valenzuela: ela também capturava o rosto de Gloria e uma expressão de medo que precisava ser vista, não relatada. A foto foi tirada no exato momento em que Gloria erguia o rosto depois da leitura da intimação. Ela vira o nome Moya no cabeçalho do caso — Hector Arrande Moya vs. Arthur Rollins, diretor da Instituição Correcional Federal de Victorville — e fora dominada instantaneamente pelo medo. Eu queria que o júri visse esse olhar e deduzisse que era medo sem que eu ou a testemunha precisasse dizer.
— Sr. Valenzuela, em nome de quem realizou essa citação? — perguntei.
— Eu estava trabalhando para um advogado chamado Sylvester Fulgoni Jr. — ele respondeu.
Eu meio que fiquei esperando Valenzuela acrescentar sua tirada improvisada sobre Fulgoni ser o advogado que mata a cobra e põe no pau, mas felizmente ele poupou o júri daquela. Talvez estivesse finalmente pegando o jeito de ser testemunha.
— E a que caso essa intimação estava ligada?
— O título era Moya versus Rollins. Um traficante preso chamado Hector Moya estava tentando...
Forsythe protestou e pediu para conferenciar com a juíza. Ele obviamente não queria o júri escutando coisa alguma do que Valenzuela tinha a dizer. A juíza acenou para nos aproximarmos e ligou o ventilador usado para abafar a conversa.
— Excelência, onde vai parar esse negócio? — perguntou Forsythe. — Com essa primeira testemunha o sr. Haller já está tentando se apropriar de um caso de homicídio e transformar em outra coisa, em um litígio completamente sem relação. Estou me segurando para não protestar, mas agora... temos que parar com isso.
Notei o uso da primeira pessoa do plural, como se ele e a juíza dividissem a responsabilidade de me manter sob rédea curta.
— Meritíssima — falei —, o dr. Forsythe quer parar com isso porque sabe exatamente onde o negócio vai parar, e é um lugar que ele percebe que vai solapar seu caso por completo. O caso envolvendo a intimação de Gloria Dayton é sobremodo pertinente para o presente caso e para este julgamento, e toda a teoria da defesa se baseia nisso. Peço apenas que me deixe prosseguir e em pouco tempo Vossa Excelência compreenderá por que a promotoria quer obstruir isso.
— Sobremodo, dr. Haller?
— Sem dúvida, Excelência, sobremodo.
Ela pensou por um momento e então balançou a cabeça.
— Objeção indeferida. Pode prosseguir, dr. Haller, mas vá direto ao ponto.
Voltamos a nossos lugares e fiz a pergunta a Valenzuela outra vez.
— Como eu disse, Moya versus Rollins. Rollins é o diretor da prisão em Victorville, onde Hector Moya cumpre pena faz uns sete ou oito anos. Ele está tentando sair porque a DEA armou para ele plantando uma...
Forsythe protestou outra vez, o que pareceu irritar a juíza. Ele pediu para conferenciar outra vez, mas a juíza negou. Era para anunciar sua objeção perante todos os presentes.
— Até onde sei, meritíssima, a testemunha não exerce a advocacia, mas está fornecendo a interpretação legal de um caso de habeas corpus e prestes a afirmar, e afirmar como um fato, alegações que estão meramente contidas em um processo. Todo mundo sabe que qualquer um pode dizer qualquer coisa em uma ação judicial. Só porque alguém diz, isso não...
— Tudo bem, dr. Forsythe — interrompeu a juíza. — Acho que deixou sua objeção bem clara para o júri.
Agora eu preferia que tivesse recebido permissão de se aproximar da juíza. Forsythe habilidosamente usara a objeção para sabotar o testemunho de Valenzuela antes mesmo que ele começasse. O promotor lembrou o júri, em tempo real, que Moya vs. Rollins não passava de uma ação judicial contendo alegações, não fatos comprovados.
— Vou indeferir a objeção e permitir que a testemunha termine sua resposta — disse Leggoe.
Em um tom ligeiramente abatido, instruí Valenzuela a dar sua resposta outra vez e ele resumiu a principal acusação da petição de habeas de Moya — de que a arma que terminou por sentenciá-lo à pena perpétua fora plantada pela DEA.
— Obrigado — eu disse, quando sua resposta enfim terminou e entrou para os autos. — O que o senhor fez depois de entregar a intimação para Giselle Dallinger?
Valenzuela pareceu confuso com a pergunta.
— Eu, ãhn... Acho que disse para o dr. Fulgoni que estava entregue.
— Tudo bem, e o senhor voltou a ver a srta. Dallinger outra vez? — perguntei.
— Não, de jeito nenhum. Foi só isso.
— Quando voltou a ter notícia sobre a srta. Dallinger depois de 5 de novembro?
— Deve ter sido uma semana depois, quando fiquei sabendo que ela havia sido assassinada.
— Como ficou sabendo?
— O dr. Fulgoni me contou.
— E o senhor ficou sabendo de mais alguma coisa sobre a morte dela?
— Bom, foi, eu li o jornal e vi que tinham prendido um cara.
— Está falando sobre a prisão de Andre La Cosse pelo assassinato?
— Isso, estava no jornal.
— E como o senhor reagiu à notícia, quando leu?
— Bom, foi tipo, fiquei aliviado, porque queria dizer que a gente não teve nada a ver com aquilo.
— O que o senhor...
Forsythe protestou outra vez, citando relevância. Argumentei que a reação de Valenzuela à notícia do assassinato e da prisão era relevante porque a defesa se baseava no fato de que a intimação entregue a Gloria Dayton tinha sido o motivo de seu assassinato. Leggoe permitiu que eu prosseguisse sob a condição de que determinasse a relevância após o depoimento da testemunha ter se encerrado. Isso era uma vitória para a defesa, de um jeito ou de outro. Mesmo se a juíza mais tarde mandasse apagar dos autos as respostas de Valenzuela, ela não seria capaz de apagá-las da memória dos doze jurados.
— Continue, sr. Valenzuela — disse eu. — Conte para o júri por que ficou aliviado quando soube que o sr. La Cosse tinha sido preso pelo homicídio.
— Bom, porque significava que não tinha nada a ver com aquele outro negócio. Você sabe, o caso Moya.
— Certo, mas por que o senhor teria ficado preocupado com isso, antes de mais nada?
— Porque Hector Moya é do cartel, e eu pensei, você sabe, que...
— Acho que vou interromper a testemunha aqui — disse Leggoe. — Agora estamos entrando em uma área fora de sua capacidade e conhecimento. Faça uma pergunta diferente, dr. Haller.
Mas eu não tinha mais perguntas. Apesar da maneira um pouco tosca como se expressava, Valenzuela fora uma testemunha muito boa, e fiquei satisfeito com a imagem final que deixamos. Passei a palavra a Forsythe para a contrainquirição, mas ele teve o bom senso de recusar a testemunha. Não havia muito que pudesse conseguir com Valenzuela sem um dos dois repetirem coisas que sustentavam a teoria da defesa.
— Sem perguntas, Excelência — disse ele.
A juíza liberou Valenzuela, que deixou a sala do tribunal. Leggoe me instruiu a chamar minha testemunha seguinte.
— Excelência — eu disse. — Talvez seja uma boa hora para o intervalo do almoço.
— Ah, é, dr. Haller? — perguntou Leggoe. — E por quê? O relógio está marcando vinte para o meio-dia.
— Ãhn, meritíssima, minha próxima testemunha ainda não chegou... Se eu puder contar com o horário do almoço, tenho certeza de que consigo trazê-la aqui depois do intervalo.
— Muito bem. O júri está liberado até uma da tarde.
Voltei para a mesa da defesa enquanto o júri saía em fila do tribunal. Forsythe me olhou de um jeito estranho e balançou a cabeça quando passei por ele.
— Você nem percebeu o que acabou de fazer, não foi? — sussurrou.
— Do que você está falando? — perguntei.
Ele não respondeu e continuei em frente. Comecei a juntar meus blocos de anotações e os documentos na mesa da defesa. Não seria tolo de deixar alguma coisa em cima da mesa durante um intervalo de tribunal. No momento em que a porta se fechou às costas do último jurado, a voz da juíza retumbou na sala.
— Dr. Haller.
Ergui o rosto.
— Sim, Excelência.
— Dr. Haller, o que acharia de se juntar a seu cliente para o almoço na cela do tribunal?
Sorri, ainda sem me dar conta de alguma transgressão que pudesse ter cometido.
— Bom, não me incomodo com a companhia, mas sanduíche de queijo não está entre minhas preferências gastronômicas, Exc...
— Então deixe-me avisá-lo de uma coisa, doutor. O senhor nunca mais vai sugerir um intervalo para o almoço nem nenhum tipo de intervalo na frente do meu júri, está entendendo?
— Sim, Excelência.
— Isso aqui é o meu tribunal, dr. Haller, não o seu. Só eu decido quando paramos para o almoço ou não.
— Certo, Excelência. Peço desculpas, isso não vai se repetir.
— Acho bom, ou o senhor vai sofrer as consequências.
A juíza então desceu da cadeira, irritada, arrastando a toga preta atrás de si. Tentei me recompor e olhei para Forsythe, que exibia um sorrisinho dissimulado no rosto. Era óbvio que já trabalhara em um tribunal com Leggoe antes e conhecia suas regras pessoais de decoro. Foda-se, pensei. Pelo menos ela esperou até o júri sair para me passar uma descompostura.
Quando deixei a sala do tribunal e passei para o corredor, encontrei Cisco andando de um lado para o outro perto dos elevadores. Ele estava com o celular colado no ouvido, mas sem falar.
— Porra, cadê Fulgoni? — perguntei.
— Sei lá — disse Cisco. — Ele falou que ia estar aqui. Liguei para o escritório dele e me puseram na espera.
— Ele tem uma hora. É bom aparecer.
31
Kendall saiu antes do recesso para o almoço, já que precisava chegar ao Valley a tempo de suas aulas na Flex. Lorna e eu caminhamos pela Spring Street e depois até a Main para um lugar chamado Pete’s Café. Durante o caminho, olhei de vez em quando por cima do ombro, para ter certeza de que os seguranças estavam com a gente. Os homens de Moya continuavam presentes o tempo todo.
Havíamos escolhido o Pete’s porque era bom, rápido e servia um sanduíche BLT excelente, que por algum motivo eu estava doido para comer. O único senão de almoçar no Pete’s era que o lugar vivia abarrotado de tiras, e dessa vez não foi diferente. Como ficava a poucas quadras do Police Administration Building, o restaurante era um dos prediletos entre os comandantes e os detetives dos esquadrões da Divisão de Roubos e de Homicídios. Troquei acenos e olhares constrangidos com alguns que reconheci de julgamentos e casos anteriores. Pegamos uma mesa que ficava oculta da maior parte do restaurante, por conta de uma larga coluna, o que para mim foi ótimo: estava começando a sentir que entrara em acampamento inimigo, quando na verdade só queria era um sanduíche de bacon, alface e tomate na torrada de pão integral.
Lorna era inteligente o bastante para me perguntar se eu preferia que ela não puxasse conversa enquanto eu pensava sobre o caso e a sessão de julgamento que aconteceria depois do almoço. Mas eu disse que não fazia sentido bolar uma estratégia para a tarde até saber se Sly Jr. estaria no tribunal, como deveria. Assim, após fazer o pedido, passamos o tempo estudando minha agenda e procurando horas passíveis de cobrança. O caixa do escritório estava beirando o zero. Antes de saber que não haveria mais barras de ouro de Andre La Cosse, gastei à vontade em P&I — preparação e investigação — para o julgamento. Havia mais dinheiro saindo do que entrando e isso era um problema.
Esse foi o motivo para Jennifer Aronson não estar presente no tribunal pela manhã. Eu não podia me dar ao luxo de tirá-la do trabalho com os poucos clientes rentáveis que tínhamos. Ela comparecera a uma audiência para tratar da falência do proprietário e senhorio do loft que usávamos para as reuniões de equipe.
Ao menos o cartão de crédito que usei para pagar o almoço passou. Não conseguia nem imaginar a humilhação que seria ter meu cartão recusado na frente daquele bando de policiais.
Mas tive mais um motivo para comemorar ao receber uma mensagem de Cisco, quando voltávamos para o fórum.
Ele chegou. Tudo pronto.
Dei a notícia de que Fulgoni estava no prédio e assim pude relaxar pelo resto da caminhada. Quer dizer, até Lorna tocar no assunto que vínhamos evitando por quase dois meses.
— Mickey, quer que eu comece a procurar um motorista?
Balancei a cabeça.
— Não quero falar sobre isso agora. Além do mais, estou sem carro. Para que eu ia precisar de motorista? Está me dizendo que não quer mais passar para me pegar?
Ela vinha passando em casa toda manhã para me levar para o tribunal. Normalmente, era Cisco que me levava para casa, assim ele podia checar a área e ver se a barra estava limpa.
— Não, não é isso — disse Lorna. — Eu não me incomodo de pegar você. Mas quanto tempo vai esperar para tentar voltar a uma vida normal?
O julgamento fora uma espécie de distração para as feridas abertas pelo acidente. A atenção exigida me impedia de ficar relembrando aquele fatídico dia no deserto de Mojave.
— Sei lá — eu disse. — Além do mais, a gente não pode se dar ao luxo de uma vida normal. Não temos dinheiro para um motorista e não temos dinheiro para um carro até eu receber o cheque da seguradora.
O cheque da companhia de seguros ficou retido pela investigação. A California Highway Patrol classificara o acidente como homicídio causado pela batida intencional do guincho. O veículo foi encontrado um dia após o ocorrido, abandonado em um campo em Hesperia e incendiado até só restar os destroços calcinados. Ele tinha sido roubado de um pátio de guinchos na manhã do crime. Até onde eu sabia, os investigadores da CHP não tinham a menor pista sobre quem dirigia o guincho no momento em que bateu no Lincoln.
Quando Sylvester Fulgoni Jr. passou pelas portas e fez a longa caminhada dos fundos até o banco das testemunhas, na frente da sala, ele virou a cabeça de um lado para outro, como se estivesse vendo o interior de um tribunal pela primeira vez. Ao se aproximar do banco, fez menção de sentar e foi interrompido pela juíza, que ordenou que continuasse de pé para fazer o juramento de dizer a verdade, toda a verdade, nada mais do que a verdade.
Após as perguntas preliminares determinando a identidade e a ocupação de Fulgoni, me concentrei no caso de habeas de Hector Moya, pedindo ao jovem advogado para rememorar cada passo que o levara a intimar Gloria Dayton para um depoimento.
— Bom, começou quando o sr. Moya me informou que a arma encontrada pela polícia no quarto de hotel não era dele, que tinha sido plantada — respondeu Fulgoni. — Com a nossa investigação, concluímos que havia uma forte possibilidade de que a arma já estivesse escondida no quarto quando a polícia chegou para efetuar a prisão.
— E o que o levou a pensar assim?
— Bom, se a arma tinha sido plantada, como o sr. Moya insistiu, então talvez tivesse sido plantada por alguém que entrou naquele quarto antes que a polícia chegasse.
— Para onde isso conduziu sua investigação?
— A gente verificou quem tinha estado naquele quarto durante os quatro dias que o sr. Moya ficou hospedado antes da batida. E, por um processo de eliminação, colocamos o foco em duas mulheres que tinham estado ali várias vezes nesses dias. Duas prostitutas, que atendiam pelo nome de Glory Days e Trina Trixxx, com três x. Trina Trixxx foi fácil de encontrar, porque continuava trabalhando com esse nome em Los Angeles e tinha um site e tudo mais. Eu entrei em contato e pedi para conversar pessoalmente com ela.
Fulgoni parou aí, aguardando nova orientação. Quando conversamos sobre seu testemunho, eu o instruíra a não avançar muito na história, a dar respostas curtas. Também disse para não mencionar de forma alguma que pagara Trina Trixxx por sua cooperação. Eu não queria entregar uma informação como essa de bandeja para Bill Forsythe.
— Pode dizer ao júri o que aconteceu nessa conversa? — perguntei.
Fulgoni parecia estar ansioso.
— Bom, primeiro ela revelou que seu verdadeiro nome é Trina Rafferty. Também admitiu conhecer o sr. Moya e ter estado no quarto naquele período. Ela negou ter plantado uma arma no quarto, mas afirmou que sua amiga Glory Days confessou ter feito isso.
Fiz o melhor que pude para fingir confusão, erguendo a mão em um gesto de não estou entendendo.
— Mas por que ela plantaria a arma?
Isso gerou um protesto de Bill Forsythe e um debate durante cinco minutos diante da juíza. No fim, recebi permissão de seguir adiante com a pergunta. Aquele é um dos poucos pontos em um tribunal criminal em que a defesa conta com uma vantagem. Tudo em um julgamento conspira contra a defesa, mas se tem uma coisa que nenhum juiz quer é a anulação do veredicto após uma apelação por conta de um erro seu. Assim, a ampla maioria dos magistrados, e isso incluía a juíza Nancy Leggoe, faz o maior esforço para permitir que a defesa prossiga conforme deseja, contanto que respeite os procedimentos de apresentação de evidências e decoro. Leggoe sabia que toda vez que deferisse uma objeção de Forsythe, corria o risco de ter sua decisão revista e revogada por um tribunal superior. Em contrapartida, rejeitar os protestos da promotoria raramente implica o mesmo risco. Na prática, isso significa que proporcionar à defesa ampla liberdade de movimentos em montar seu caso é a rota jurídica mais segura a tomar.
Assim que voltei ao atril, perguntei mais uma vez a Fulgoni por que Glory Days teria plantado uma arma no quarto de hotel de Hector Moya.
— Trina Rafferty me contou que tanto ela como Glory Days estavam trabalhando para a DEA, e que eles queriam a pena per...
Forsythe praticamente saiu do chão quando se levantou para protestar.
— Excelência! Onde está a base disso? A promotoria protesta com veemência contra o fato de a testemunha e o advogado de defesa usarem esse julgamento para vagar sem rumo por um vale de insinuações.
A juíza respondeu rápido.
— Acho que o dr. Forsythe tem razão desta vez. Dr. Haller, explique no que isso está fundamentado ou passe a um novo tópico com a testemunha.
Lá se ia minha vantagem como defesa. Levei alguns segundos para recuar e reorganizar a inquirição. Então conduzi Fulgoni por uma série de perguntas estabelecendo os parâmetros para a prisão e a condenação de Moya, focando em particular no código federal, que permitia a promotores incluir um agravante nas acusações e pleitear a pena perpétua por Moya ter sido encontrado de posse de uma arma de fogo e cinquenta gramas de cocaína — quantidade definida pelo código federal dos Estados Unidos como acima do uso pessoal.
Levou quase meia hora, mas no fim voltei a perguntar por que Glory Days — a essa altura identificada como Gloria Dayton — plantaria uma arma no quarto de Moya. Forsythe protestou outra vez, dizendo que a fundamentação que eu acabava de oferecer era insuficiente, mas enfim a juíza concordou comigo e indeferiu a objeção.
— Acreditamos, com base nos fatos levantados em nossa investigação, que Gloria Dayton era uma informante da DEA e que plantou a arma no quarto de Moya por ordens de seu contato na DEA.
Pronto. Constava dos autos. A pedra angular da defesa. Olhei de soslaio para Forsythe. Ele escrevia com fúria e raiva em um bloco amarelo, sem erguer o rosto. Era provável que nem quisesse ver como o júri estava reagindo àquilo tudo.
— E quem era o contato dela na DEA? — perguntei.
— Um agente chamado James Marco — respondeu Fulgoni.
Baixei os olhos e agi como se estivesse verificando anotações em meu bloco amarelo por alguns momentos, de modo que os jurados pudessem absorver o nome — James Marco.
— Dr. Haller? — exigiu a juíza. — Faça a próxima pergunta.
Olhei para Fulgoni e pensei na melhor maneira de prosseguir, agora que tinha o nome de Marco na mesa.
— Dr. Haller! — exigiu a juíza outra vez.
— Certo, Excelência — respondi, rápido. — Dr. Fulgoni, de onde tirou o nome James Marco como suposto contato de Gloria Dayton?
— De Trina Rafferty, que me disse que ela e Gloria trabalhavam para Marco como informantes.
— Trina Rafferty mencionou se Marco pediu a ela para plantar a arma no quarto de hotel de Moya?
Antes que Fulgoni pudesse responder, Forsythe protestou com raiva, acusando toda a linha de inquirição de ser um testemunho de ouvir dizer. A juíza deferiu sem permitir argumentação de minha parte. Pedi para me aproximar, e a juíza acenou com relutância para que fôssemos até lá. Fui direto ao ponto.
— Excelência, a defesa está entre a cruz e a espada. A corte deferiu a objeção alegando o caráter de ouvir dizer do testemunho. Isso não me deixa alternativa a não ser tentar pelo menos obter um testemunho direto do agente Marco. Como a senhora sabe, Marco figurava na lista de testemunhas original submetida quase quatro semanas atrás ao tribunal. No entanto, temos sido incapazes de entregar uma intimação para o agente Marco ou para a DEA de modo geral.
Leggoe deu de ombros.
— E que tipo de solução o senhor espera da corte? Permitir evidência de ouvir dizer? Isso não vai acontecer, dr. Haller.
Comecei a balançar a cabeça antes mesmo que terminasse.
— Sei disso, meritíssima. Mas estive pensando que uma ordem direta de comparecimento perante a corte, contando com a aprovação da promotoria, seria de grande ajuda para conseguir a presença do agente Marco neste tribunal.
Leggoe olhou para Forsythe e ergueu as sobrancelhas. A bola agora estava com ele.
— Excelência, tenho o maior prazer em dar minha aprovação — começou. — Funcionando ou não, tudo que o agente Marco pode fazer é comparecer e negar essas acusações grotescas. Será a palavra de um agente altamente condecorado contra a de uma puta e vou...
— Dr. Forsythe! — interrompeu a juíza, com a voz bem acima de um sussurro. — O senhor vai mostrar um pouco mais de decoro e respeito dentro do meu tribunal.
— Peço desculpas, Excelência — acrescentou Forsythe, rápido. — Uma prostituta. O que quis dizer é que tudo vai se resumir à palavra do agente contra a da prostituta, e a promotoria não tem nenhuma preocupação quanto a isso.
Arrogância da promotoria é um pecado mortal em um processo criminal. Era a primeira vez que eu via Forsythe efetivamente incorrendo nesse equívoco e sabia que ele podia acabar engolindo essas palavras antes que o caso terminasse.
— Muito bem, vamos em frente — disse a juíza —, vou encerrar quinze minutos mais cedo, de modo que possamos elaborar a citação para o comparecimento do agente.
Voltamos a nossas posições e olhei para Fulgoni, que me aguardava no banco das testemunhas. Até o momento ele tinha se mostrado frio, calmo e controlado. Eu estava prestes a mudar essa situação, levando-o para um caminho que não havíamos discutido nem ensaiado nos dias que antecederam o julgamento.
— Dr. Fulgoni — comecei —, até que ponto essa teoria da arma plantada foi confirmada por Gloria Dayton para o senhor?
— Não foi — disse Fulgoni. — Eu mandei uma intimação para colher o depoimento, mas ela foi assassinada antes que eu tivesse tempo de fazer isso.
Balancei a cabeça e olhei para minhas anotações.
— E há quanto tempo o senhor exerce a advocacia?
A mudança abrupta de direção surpreendeu o jovem Sly.
— Ãhn, dois anos e meio, no mês que vem.
— E o senhor já participou de um julgamento antes?
— Quer dizer em um tribunal?
Quase dei risada. Se não fosse minha testemunha, eu teria destruído Fulgoni com essa resposta. Como era, precisava deixá-lo em paz ao menos até um pouco antes do fim da inquirição.
— É, em um tribunal — disse eu, em tom seco.
— Até agora, nenhum. Mas alguns advogados que conheço dizem que o objetivo é ficar longe do tribunal e cuidar do caso antes que chegue a esse ponto.
— Olhando da posição em que me encontro nesse momento, não é mau conselho, dr. Fulgoni. Pode dizer ao júri de que maneira, apenas dois anos após ter se formado e sem nunca ter pisado em um tribunal antes, Hector Moya se tornou seu cliente?
Fulgoni fez que sim.
— Foi uma indicação.
— De quem?
— De meu pai, na verdade.
— E como isso aconteceu?
Fulgoni me lançou um olhar que interpretei como advertência de que eu estava ultrapassando uma linha que ele demarcara como território proibido quando conversamos sobre seu testemunho, da última vez. Devolvi com um olhar dizendo azar o seu. Você fez um juramento. Agora está na minha mão.
Precisei insistir para que respondesse.
— Por favor, diga ao júri como seu pai chegou a indicar Moya para o senhor.
— Ãhn, bom, meu pai está preso na mesma penitenciária federal de Hector. Os dois se conhecem e meu pai indicou ele para mim.
— Certo, então o senhor assumiu o caso dois anos depois de se formar em direito e deu entrada no pedido de habeas corpus, na esperança de anular a pena perpétua de Moya, correto?
— Correto.
— Porque a arma de fogo que levou à prisão perpétua era plantada.
— Isso.
— E o senhor acreditava que tinha sido plantada por Gloria Dayton, correto?
— Correto.
— Baseado no que Trina Rafferty informou.
— Isso mesmo.
— E, antes de entrar com o pedido de habeas, o senhor examinou a transcrição do julgamento de Moya em 2006?
— A maior parte, sim.
— O senhor leu a transcrição da audiência do veredicto, quando a juíza sentenciou Moya à prisão perpétua?
— Li, sim.
Pedi permissão à juíza para me aproximar da testemunha com um documento que apresentei como a segunda prova da defesa, a transcrição da sentença de Hector Moya em 4 de novembro de 2006.
A juíza deu seu consentimento e avancei para entregar o documento para Fulgoni. Já estava com algumas folhas dobradas e aberto em uma página com material destacado que eu queria que lesse para o júri.
— O que temos aí, dr. Fulgoni?
— É a transcrição da audiência de sentença no tribunal federal. São os comentários da juíza.
— Foi isso que o senhor leu quando estava preparando o pedido de habeas em favor de Moya?
— Foi.
— Tudo bem. Qual é o nome da juíza?
— Excelentíssima sra. Lisa Bass.
— Pode por favor ler para o júri os trechos da sentença proferida pela juíza Bass que destaquei na página?
Fulgoni olhou para a folha e começou a ler.
—“Sr. Moya, os fatos apresentados sobre sua pessoa neste julgamento são abismais. O senhor levou uma vida inteira de crimes, alcançando elevada posição no cartel de Sinaloa. É um homem frio e violento, que perdeu todos os aspectos de sua humanidade. O senhor fez da morte uma mercadoria. Fez da morte sua própria identidade. Devo dizer que é uma felicidade para mim poder sentenciá-lo hoje a passar o resto da vida na prisão. Quem dera pudesse ir além disso. Para ser honesta, gostaria que a pena capital fosse qualificável em seu caso, porque desse modo teria recorrido a tal condenação.”
Fulgoni parou nesse ponto. Os comentários da juíza continuavam, mas considerei que o júri já tivera uma boa amostra.
— Certo, então o senhor leu a transcrição dessa sentença em algum momento no ano passado, quando preparava o pedido de habeas em nome de Moya, correto?
— Correto.
— Desse modo, quando preparou a intimação para Gloria Dayton, o senhor sabia que tipo de ficha tinha Moya, correto?
— Correto.
— Nesse caso, dr. Fulgoni, alguma vez lhe passou pela cabeça, na condição de advogado jovem e inexperiente, que podia ser perigoso intimar Gloria Dayton a prestar depoimento? Sobretudo levando em conta que se tratava de um depoimento em que o senhor perguntaria sobre o fato de ela ter plantado a arma no quarto de hotel de Hector Moya?
— Perigoso como?
— Deixe que eu faça as perguntas, dr. Fulgoni. É assim que funciona um julgamento de verdade.
Houve um pequeno murmúrio de risadas vindo da direção do júri, mas agi como se não tivesse notado.
— Dr. Fulgoni, por acaso não percebeu que, ao emitir uma intimação e ao nomear Gloria Dayton como a pessoa que plantou uma arma no quarto de hotel de Hector Moya, o senhor a expunha a uma situação de grande perigo?
— Foi por isso que citei sob sigilo. Não era informação pública. Ninguém sabia.
— E quanto a seu cliente? Ele não sabia?
— Eu não contei.
— O senhor chegou a contar para seu pai, que está na mesma prisão de Moya?
— Mas isso não faz sentido. Ele nunca mataria a garota.
— Quem não mataria?
— Hector Moya.
— Dr. Fulgoni, o senhor precisa responder às perguntas que faço. Desse modo, não teremos confusão. O senhor contou ou não contou a seu pai que havia identificado Gloria Dayton como a pessoa que acreditava ter plantado a arma no quarto de Moya?
— Sim, eu contei para meu pai.
— E chegou a perguntar se ele mencionou isso a Moya antes de Gloria Dayton ser assassinada?
— Perguntei, é verdade, mas não tinha importância. Ela era a chance de Moya sair. Ele nunca teria matado a garota.
Balancei a cabeça e olhei para minhas anotações por um momento, antes de continuar.
— Então por que perguntou a seu pai se ele tinha mencionado o nome dela para Moya?
— Porque no começo eu não entendi. Achei que talvez fosse possível ele ter agido por vingança ou algo assim.
— O senhor acha isso agora?
— Não, porque só depois eu entendi. Ele precisava dela viva para conseguir o habeas. Ele precisava dela.
Torci para que o esboço do cenário que eu acabava de traçar ficasse óbvio para os jurados. No momento, eu estava sendo sutil. Queria que compreendessem por conta própria. Só depois reforçaria a história com novos testemunhos. Quando as pessoas acreditam que descobriram ou aprenderam algo por si, tendem a reter aquilo.
Lancei um rápido olhar a Mallory Gladwell na bancada do júri e vi que escrevia em um dos blocos de anotações distribuídos para eles. Parecia que meu jurado alfa entendera a sutileza.
Voltei a olhar para Fulgoni. Teria sido o momento perfeito para encerrar, mas estava com ele no banco das testemunhas e sob juramento. Decidi não perder a oportunidade de deixar bem claro para meu público a teoria básica da defesa.
— Dr. Fulgoni, estou tentando entender direito o momento de seu pedido de habeas envolvendo Hector Moya. O senhor abriu o processo e intimou Gloria Dayton no início de novembro, correto?
— Isso.
— Ela foi então assassinada na noite de 11 para 12 de novembro, certo.
— Não sei ao certo as datas.
— Tudo bem, eu sei. Na manhã de 12 de novembro, Gloria estava morta. Mesmo assim, levou mais cinco meses antes de alguma providência ter sido tomada quanto ao habeas, correto?
— Como eu disse, não sei ao certo as datas. Acho que foi isso mesmo.
— Por que o senhor esperou até abril deste ano para dar andamento ao processo e intimar o agente James Marco da DEA, entre outras testemunhas? O que provocou a demora de todos esses meses, dr. Fulgoni?
Fulgoni balançou a cabeça, como se não soubesse a resposta.
— Eu só estava... elaborando a estratégia do caso. Às vezes a lei anda devagar, sabe?
— Teria sido porque o senhor percebeu que, se Hector Moya precisava de Gloria Dayton viva, talvez alguém por aí precisasse dela morta?
— Não, acho que não é...
— O senhor receava, dr. Fulgoni, ter mexido em um ninho de cobras com seu pedido de habeas e que talvez estivesse correndo perigo?
— Não, não estava com medo de nada.
— Em algum momento o senhor foi ameaçado por uma autoridade policial a paralisar ou encerrar o caso Moya?
— Não, nunca.
— Como o agente Marco reagiu ao ser intimado em abril?
— Não tenho como saber. Eu não estava lá.
— Ele chegou a cumprir a intimação e comparecer para prestar depoimento para o senhor?
— Ãhn, não, ainda não.
— Ele ameaçou o senhor pessoalmente, caso desse continuidade ao pedido de habeas corpus?
— Não, não ameaçou.
Olhei para Fulgoni por um longo momento. Ele agora parecia um menino assustado que mentiria até o fim para se livrar dos problemas, se pudesse.
Aquele era o momento. Olhei para a juíza e disse que não tinha mais perguntas.
32
Forsythe manteve Fulgoni no banco das testemunhas por noventa minutos de implacável contrainquirição. Se eu tinha feito o jovem advogado parecer tolo às vezes, o promotor fez com parecesse um incompetente total. Forsythe sem dúvida se impusera uma missão a cumprir: destruir completamente a credibilidade de Fulgoni. Eu lançara mão do jovem Sly para fazer constar dos autos vários pontos importantes. Para Forsythe, a única esperança de sabotar esses pontos diante do júri era sabotar sua fonte. Ele tinha de fazer com que os jurados descartassem o testemunho de Fulgoni em sua totalidade.
Forsythe chegou perto de cumprir essa missão ao final dos noventa minutos. Fulgoni estava um bagaço. As roupas tinham um aspecto desmazelado, os ombros estavam caídos e ele dava respostas monossilábicas às perguntas, concordando com quase tudo que o promotor sugerisse na forma de uma questão. Era a síndrome de Estocolmo — estava tentando agradar seu captor.
Tentei interferir e ajudar como pude, protestando. Mas Forsythe manteve com habilidade a linha de inquirição e tive uma objeção após outra indeferida.
Finalmente, às quatro e quinze, terminou. Fulgoni desceu do banco das testemunhas como um homem que nunca mais voltaria a pôr os pés em um tribunal, apesar de ser advogado. Recuei até a balaustrada e sussurrei para Cisco na primeira fileira, pedindo que não deixasse o jovem Sly ir embora. Eu ainda precisava falar com ele.
A juíza dispensou o júri e encerrou a sessão do dia. Então convidou as partes para irem até sua sala para trabalhar na citação que, assim esperávamos, faria James Marco comparecer ao tribunal. Comentei com Lorna que a redação do documento não levaria muito tempo e que ela podia descer para buscar seu carro no estacionamento subterrâneo, na vaga encontrada pela manhã.
Alcancei Forsythe no corredor atrás do tribunal que levava ao gabinete da juíza.
— Bom trabalho com Fulgoni — eu disse. — Pelo menos agora ele tem um pouco de experiência de tribunal.
Forsythe virou e esperou por mim.
— Eu? Foi você quem começou... e o cara era testemunha sua.
— Um sacrifício para os deuses. Tinha que ser feito.
— Não sei o que está esperando conseguir com essa história do Moya, mas não vai colar, Mick.
— Vamos ver.
— E o que são todos aqueles nomes na lista nova? Eu tenho filhos e queria passar um tempo com eles hoje à noite.
— Passa para o Lankford. Ele tem tempo. Acho que ele devorou os próprios filhos.
Forsythe ria quando entramos no gabinete. A juíza já estava sentada atrás da mesa, virada para a tela do computador.
— Senhores, vamos resolver isso logo e ver se conseguimos fugir da hora do rush.
Quinze minutos depois eu deixava a sala e atravessava o tribunal. A juíza emitira a citação, que o Sheriff’s Department ficaria encarregado de entregar na sede da DEA na manhã seguinte. Era um mandado instruindo a agência a apresentar uma justificativa para o eventual não comparecimento do agente James Marco ao tribunal às dez da manhã de quarta-feira. Significava que Marco ou um advogado da DEA teria de aparecer. Caso a medida não funcionasse, a juíza Leggoe emitiria uma ordem de prisão para Marco, e aí as coisas ficariam realmente interessantes.
Encontrei Cisco e o jovem Sly sentados em um banco no corredor. Um dos homens de Moya estava em um banco do lado oposto. O outro tinha acompanhado Lorna quando ela desceu para buscar o carro.
Me aproximei de Cisco e de Fulgoni e disse ao jovem Sly que eu sabia que tinha sido um dia duro, mas que apreciava muito a ajuda dada ao meu cliente. Mencionei que continuava ansioso para trabalhar com ele no caso de habeas no tribunal federal.
— Eu tinha razão sobre você, Haller — ele falou.
— É, como assim? — perguntei.
— Quando eu disse que você era um babaca.
Ele se levantou para ir embora.
— Porque você é.
Cisco e eu ficamos olhando enquanto ele tomava o rumo dos elevadores. A vantagem de ficar até tarde no tribunal era que os elevadores já não estavam mais tão entupidos e não era necessário esperar tanto. Fulgoni logo entrou em um e foi embora.
— Gente boa — disse Cisco.
— Precisa ver o pai dele — falei. — Mais gente boa ainda.
— Melhor eu ficar de bico calado. Provavelmente um dia vou acabar trabalhando para um cara desses — comentou Cisco.
— Provavelmente você tem razão.
Passei para ele a cópia do mandado da juíza. Cisco desdobrou o documento e examinou.
— É capaz de alguém lá no Roybal Building usar isso para limpar a bunda.
— Pode ser, mas tudo faz parte do jogo. De qualquer forma, a gente precisa estar preparado para Marco na quarta.
— Certo.
Levantamos do banco e começamos a nos dirigir aos elevadores. O homem de Moya veio atrás.
— Está indo para o loft? — perguntei a Cisco.
Minha equipe vinha se reunindo regularmente no loft ao final de cada sessão do julgamento. Relatávamos os acontecimentos do dia e também conversávamos e trocávamos ideias sobre os próximos passos. Era uma maneira de compartilhar os sucessos e os fracassos. Naquele dia, eu achava que houvera mais vitórias do que derrotas. Seria uma reunião agradável.
— A gente se vê lá — disse Cisco. — Só preciso fazer uma coisa antes.
— Até mais, então.
Ao deixar o fórum, caminhei até a Spring Street e vi o Lexus de Lorna parado na frente de dois Lincoln que também aguardavam a saída de seus advogados do fórum. Segui pela calçada, passei pelos Lincoln e quase abri a porta traseira do carro de Lorna, mas decidi evitar o constrangimento. Entrei pela frente.
— Acho que isso faz de mim o Lexus Lawyer, agora — falei. — Quem sabe não fazem uma sequência no cinema.
Ela não sorriu.
— Vamos para o loft? — perguntou.
— Se você não se incomoda. Quero ter certeza de que todo mundo vai estar preparado para amanhã.
— Claro.
Ela arrancou repentinamente, sem olhar, e fechou um motorista, que enfiou a mão na buzina. Aguardei alguns segundos, decidindo se devia ou não abrir a boca. Como tinha sido casado com ela, ainda que por um curto espaço de tempo, conhecia suas birras e sabia que o diálogo calmo e seco podia ferver e transbordar se ficasse cozinhando no fogo por muito tempo.
— E aí, qual o problema? Você está irritada.
— Não, não estou.
— Está sim. Me fala.
— Por que fez Sylvester Jr. esperar por você depois do julgamento de hoje?
Franzi o rosto, tentando ver a ligação entre fazer Júnior esperar e a irritação dela.
— Não sei, acho que porque eu queria agradecer pessoalmente a ele por testemunhar. Foi um dia duro para o cara.
— E por culpa de quem?
Agora eu entendia por que estava levando uma reprimenda. Lorna tinha ficado com pena do jovem Sly.
— Olha, Lorna, aquele menino é um perfeito incompetente. Precisei conduzir daquele jeito porque, se não fizesse isso, eu também ia passar por incompetente quando Forsythe triturasse o infeliz. Além do mais, um dia ele vai me agradecer por isso. Melhor cair na real agora do que mais para frente.
— Então tá.
— É, então tá. Quer saber de uma coisa, nunca precisei escutar Earl falar merda nenhuma de como eu conduzo meu trabalho.
— E olha como o coitado terminou.
Aquelas palavras me atingiram como uma punhalada nas costas.
— Como é? O que você está querendo dizer com isso?
— Nada.
— Não, Lorna, não vem jogar essa merda para cima de mim. O jeito como eu me culpo por isso já não é suficiente para você?
Na verdade, eu estava surpreso por termos demorado dois meses para chegarmos àquela discussão.
— Você sabia que estava sendo seguido. Puseram um rastreador no seu carro.
— É, um rastreador. Então eles estavam autorizados a saber para onde eu estava indo. Mas não estavam autorizados a matar a gente. Isso nunca apareceu no nosso radar. Eles puseram um rastreador no carro, não um explosivo, pelo amor de deus.
— Você devia ter imaginado, quando foi ver Moya, que eles iam saber que você tinha sacado a história toda e era um risco.
— Isso é loucura sua, Lorna. Porque eu não saquei a história toda. Nem naquele dia, nem agora. Continuo tateando no escuro. Além do mais, no dia anterior, Cisco disse que os índios não estavam vendo nada de mais, e eu tomei a decisão executiva de dispensar os caras porque estavam custando uma grana alta e você não saía do meu pé por causa do dinheiro.
— Então a culpa é minha?
— Não. Não estou pondo a culpa em você. Não estou pondo a culpa em ninguém, mas é óbvio que alguém deixou escapar alguma coisa, porque a gente não estava fora de perigo.
— E Earl morreu.
— É, Earl morreu e por enquanto quem fez isso não pagou pelo crime. E ainda por cima tenho que viver com a decisão de ter dispensado a vigilância... não que isso teria mudado alguma coisa.
Ergui as mãos em um gesto de “eu desisto”.
— Olha, não sei por que todo esse negócio agora, mas será que dá para a gente parar de falar sobre isso? Estou no meio de um julgamento, fazendo malabarismo com facão. Essa história toda não ajuda em nada. Eu vejo o rosto de Earl toda noite, quando tento dormir. Se deixa você feliz, é como se tivesse um fantasma me assombrando.
Rodamos em silêncio pelos vinte e cinco minutos seguintes, até finalmente pararmos no estacionamento atrás do loft, no Santa Monica Boulevard. Pelo número de carros no pátio, incluindo três vans amassadas, dava para perceber que nossa reunião de equipe teria acompanhamento musical. Pelas regras da casa, as bandas tinham permissão de ensaiar em seus lofts após as quatro da tarde.
Lorna e eu tomamos o elevador de carga e subimos sem dizer uma palavra. Nossos sapatos fizeram bastante ruído na madeira do assoalho e ecoaram pelo loft vazio enquanto caminhávamos até a sala de reuniões.
Só Jennifer Aronson havia chegado. Lembrei de Cisco comentar que tinha algo para resolver antes.
— Então, como foi? — perguntou Aronson.
Balancei a cabeça enquanto puxava uma cadeira e sentava.
— Muito bem. As coisas estão engrenando. Consegui até sugerir para Forsythe que ele deixasse Lankford checar a nova lista de testemunhas.
— Estou falando do julgamento. Como Fulgoni se saiu?
Lancei um rápido olhar a Lorna, ciente de sua compaixão por Sly Jr.
— Serviu a seu propósito.
— Já terminou?
— Já, com ele a gente encerrou, por enquanto.
— E então? Depois que você deu a nova lista, o que aconteceu?
Jennifer havia preparado a nova lista de testemunhas, certificando-se de que todo novo nome tivesse alguma relação com o caso, de modo que pudéssemos defender sua inclusão. Quer dizer, todos os nomes menos um.
— Forsythe protestou feito louco, e a juíza deixou que tivesse tempo de responder até amanhã de manhã. Então quero você lá, já que conhece os nomes melhor do que eu. Está livre de manhã?
Jennifer assentiu.
— Estou. Eu respondo ou é só para sussurrar para você?
— Você responde.
Seu rosto se iluminou com a possibilidade de argumentar contra Forsythe no tribunal.
— E se ele mencionar Stratton Sterghos?
Pensei por um momento antes de responder. Escutei riffs de guitarra em algum lugar do prédio.
— Não existe se nesse negócio. Sterghos vai ser mencionado. Quando isso acontecer, você começa a responder e depois meio que dá uma olhada na minha direção, como se estivesse falando demais. Daí eu entro e assumo.
A nova lista de testemunhas submetida era uma parte cuidadosamente construída da estratégia de defesa. Todos os nomes adicionados tinham ligação ao menos tangencial com o caso Gloria Dayton. Podíamos defender com facilidade a inclusão ou o testemunho dessas pessoas. No entanto, a verdade era que, de fato, poucas seriam convocadas para testemunhar. A maioria foi acrescentada à lista na tentativa de lançar uma cortina de fumaça sobre um único nome: Stratton Sterghos.
Sterghos era a bomba-relógio. Ele não estava direta nem indiretamente ligado a Dayton. Porém, havia morado nos últimos vinte anos no endereço da frente de uma casa em Glendale onde dois traficantes foram assassinados em 2003. Eu acreditava que fora durante a investigação desses homicídios que, de algum modo, havia se formado a aliança escusa entre o então detetive Lee Lankford e o agente da DEA James Marco. Eu precisava desenterrar essa aliança e encontrar um modo de ligá-la a Gloria. Era algo chamado relevância. Eu tinha de tornar o caso de Glendale relevante para o caso Dayton ou jamais ganharia o júri.
— Então você está torcendo para que Lankford confira a lista e perceba a ligação com Stratton Sterghos — disse Jennifer.
— Se tivermos sorte.
— E depois dê um passo em falso.
— Se tivermos mais sorte ainda.
Como que em uma deixa, Cisco entrou na sala. Percebi que o grandalhão não fizera um ruído ao atravessar o loft. Ele se aproximou da cafeteira e começou a servir uma xícara.
— Cisco, esse está velho — avisou Lorna. — É de hoje de manhã. Não está nem quente.
— Serve — disse Cisco.
Ele colocou a jarra de vidro de volta no aparelho desligado e deu um gole no café. Todo mundo fez careta. Ele sorriu.
— O que foi? Preciso da cafeína — falou ele. — A gente está se preparando lá na casa e pode ser que eu fique acordado a noite toda.
— Então, tudo preparado? — perguntei.
Ele fez que sim.
— Acabei de passar lá. Estamos prontos.
— Então vamos esperar que Lankford faça seu trabalho.
— Isso e mais um pouco.
Ele começou a servir mais café frio na xícara.
— Deixa eu passar um café novo — disse Lorna.
Ela se levantou e começou a contornar a mesa até onde estava seu marido.
— Não, está ótimo — disse Cisco. — Não posso demorar, de qualquer maneira. Preciso ir para lá, ficar com o pessoal.
Lorna parou. Seu rosto exibia uma expressão aflita.
— O que foi? — perguntou Cisco.
— Que negócio é esse que você está fazendo? — ela perguntou. — É muito perigoso?
Cisco deu de ombros e olhou para mim.
— A gente tomou precauções — eu falei. — Mas... são homens armados.
— A gente sempre toma cuidado — acrescentou Cisco.
Agora eu percebia o verdadeiro motivo da discussão acalorada no carro. Lorna estava preocupada com seu marido, com medo de que sua família pudesse ter o mesmo fim de Earl Briggs.
33
Cisco me ligou à meia-noite. Eu estava na cama com Kendall, após ter saído de fininho pela porta dos fundos de casa e tomado um novo táxi para cruzar a colina e me encontrar com ela. A proteção dos homens de Moya era em período integral, mas eu os dispensava sempre que me encontrava com Kendall, que protestou a primeira vez e não queria vê-los por perto. Como passara a ser nossa rotina durante o julgamento, jantávamos no sushi bar após ela fechar o estúdio e depois voltávamos para sua casa. Eu dormindo como uma pedra e sonhando com acidentes de carro quando Cisco ligou. Levou um momento para me situar, antes de lembrar onde estava e sobre o que era a ligação.
— A gente filmou os caras — disse Cisco.
— Quem, exatamente?
— Os dois. Lankford e Marco.
— Juntos, em um mesmo enquadramento?
— Juntos.
— Ótimo. Eles fizeram alguma coisa?
— Fizeram. Eles entraram.
— Você quer dizer que arrombaram a porta?
— É isso aí.
— Puta que pariu. E você filmou?
— Tudo isso e mais um pouco. Marco plantou drogas na casa. Heroína.
Eu quase não conseguia falar. Não podia ser melhor.
— E você filmou isso também?
— Filmei. A gente gravou tudo. Quer que eu mande desmontar o equipamento agora? Tirar as câmeras?
Pensei por um momento antes de responder.
— Não — falei, por fim. — Quero deixar como está. A gente pagou Sterghos por duas semanas. Vamos manter tudo lá. Nunca se sabe.
— Tem certeza? A gente tem o dinheiro para isso?
— Tenho, tenho certeza. Não, a gente não tem dinheiro.
— Bom, você não vai querer passar a perna nesses caras.
Quase brinquei, dizendo que a gente vinha passando a perna nos índios desde Colombo, mas decidi que não era o momento apropriado para piadas.
— Vou pensar em alguma coisa.
— O.k.
— A gente se vê de manhã. Vai ter alguma coisa que dê para eu ver?
— Vai, vou baixar tudo no iPad da Lorna. Você pode ver no carro.
— Beleza, está ótimo.
Depois de desligar, verifiquei a caixa de mensagens para ver se havia alguma resposta da minha filha. Eu vinha enviando notícias atualizadas toda noite, dizendo como andavam as coisas e comentando os acontecimentos mais importantes do dia. Na maioria, pontos negativos, até começar a fase da defesa. Agora, os destaques seriam meus pontos altos. A mensagem de texto que eu havia enviado do táxi ao subir a colina fora sobre os êxitos com Valenzuela e Fulgoni no banco das testemunhas.
Mas, como sempre, não houve resposta alguma da parte dela. Pus o celular sobre o criado-mudo e recostei a cabeça no travesseiro. O braço de Kendall envolveu meu peito por trás.
— Quem era?
— Cisco. Ele conseguiu um negócio fantástico essa noite.
— Sorte dele.
— Não, sorte minha.
Ela me apertou e senti sua força após tantos anos de ioga.
— Vê se dorme um pouco agora — falou.
— Não sei se consigo — eu disse.
Mas tentei. Fechei os olhos e procurei evitar o pesadelo que acabara de ter. Procurei pensar em minha filha montando um cavalo negro com uma marca branca em forma de raio no nariz. Na cena, ela estava sem capacete e os cabelos esvoaçavam ao vento, enquanto o cavalo galopava por um campo aberto de relva alta. Percebi, um pouco antes de pegar no sono, que a garota da visão era minha filha de um ano antes, época em que ainda conversávamos com regularidade e nos víamos nos fins de semana. Meu último pensamento antes de sucumbir à exaustão e ao sono foi me perguntar se ela continuaria para sempre congelada naquela idade em meus sonhos, ou se eu teria outras experiências ao lado dela para construir novos sonhos.
Duas horas depois o telefone tocou outra vez. Kendall resmungou quando peguei o celular depressa no criado-mudo e atendi sem olhar para a tela.
— O que foi agora?
— O que foi agora? Que diabo você achou que estava fazendo, tratando meu filho daquele jeito lá no tribunal?
Não era Cisco. Era Sly Fulgoni pai.
— Sly? Oi, espera um minuto.
Levantei da cama e fui para a sala. Não queria incomodar Kendall ainda mais. Sentei diante do balcão da cozinha e falei em voz baixa.
— Sly, eu fiz o que precisava fazer pelo meu cliente e agora não é hora de conversar sobre isso. O fato é que ele pediu por isso. Agora está muito tarde e estou cansado demais para conversar a respeito.
Houve silêncio por um longo momento.
— Você me pôs na lista? — ele perguntou, enfim.
Aquele era o verdadeiro motivo da ligação. Sly pai não estava pensando no filho, mas em si. Como queria férias da prisão federal, exigiu que seu nome fosse acrescentado à lista de testemunhas adicionais. Decidira que queria fazer a viagem de ônibus de Victorville e passar um ou dois dias na L.A. County Jail, só para variar um pouco e mudar de ares. Não fazia diferença que não houvesse necessidade de seu testemunho no julgamento de La Cosse: ele queria que eu inventasse uma justificativa para incluí-lo na lista e realizar a transferência. Caso colasse, era só eu dizer à juíza que mudara de ideia ou de estratégia e que não precisava mais dele. O homem seria enviado de volta a Victorville após suas pequenas férias.
— Sim — respondi. — Você está na lista. Mas ela ainda não foi aceita. Vai ser a primeira coisa hoje, e não ajuda em nada você me acordar desse jeito. Preciso dormir, Sly, para acordar com as ideias claras e vencer a argumentação amanhã.
— Certo, entendi. Volte a seus lindos sonhos, Haller. Fico esperando notícia sua e acho bom não me sacanear nessa. Meu filho pode não ter as manhas. Foi uma lição para ele, hoje. Mas eu não preciso de lição nenhuma. Dá um jeito de me levar até lá.
— Vou fazer o melhor que posso. Boa noite.
Desliguei antes que ele pudesse responder e voltei ao quarto. Ia me desculpar com Kendall pela segunda interrupção da noite, mas ela já voltara a dormir.
Quem dera eu pudesse fazer o mesmo com tanta facilidade. O segundo telefonema tirou meu sono e fiquei virando de um lado para o outro na cama praticamente pelo resto da noite, cochilando um pouco apenas por uma hora antes de precisar me levantar.
Naquela manhã, chamei um táxi, assim Kendall podia continuar dormindo. Por sorte, vinha deixando roupas na casa dela e vesti um terno que não estava tão limpo, mas pelo menos era diferente do usado no dia anterior. Depois saí de fininho, sem acordá-la. Lorna já me esperava no Lexus quando o táxi parou diante de casa, pouco depois das oito. Os homens de Moya também estavam lá, no carro deles, esperando para fazer a escolta até o centro. Levei dois minutos para entrar em casa e pegar a pasta, depois voltei e entrei no carro.
— Vamos indo.
Lorna arrancou bruscamente. Dava para perceber que ainda não tinha superado a raiva que estava sentindo de mim.
— Olha, não fui eu que cheguei dez minutos atrasada — começou ela. — Eu cheguei no horário e tive que ficar esperando... para não falar da companhia daqueles dois brutamontes do cartel, que deixam qualquer um de cabelo em pé.
— O.k., o.k. Vamos deixar isso pra lá, tudo bem? Tive uma noite agitada.
— Sorte sua.
— Não digo nesse sentido. Primeiro Cisco me acordou, depois foi a vez de Sly pai, que ligou para me encher o saco. Acabei dormindo só umas três horas, se tanto. Cisco pôs o vídeo no seu iPad para eu dar uma olhada?
— Pôs, está na bolsa aí atrás.
Estiquei o braço entre os bancos para pegar a bolsa no chão. Era do tamanho de uma sacola de mercado e pesava uma tonelada.
— O que você carrega dentro dessa coisa?
— Tudo.
Não pedi mais explicações. Dei um jeito de puxar a bolsa para o banco da frente, abri e encontrei seu iPad. Coloquei a bolsa no chão entre meus pés, para não correr o risco de distender um músculo ao tentar devolvê-la ao lugar de origem.
— Deve estar na tela e pronto para rodar — disse Lorna. — É só apertar o PLAY.
Abri o estojo do iPad, a tela se iluminou e vi a imagem congelada da porta de entrada de uma casa que eu sabia ser de Stratton Sterghos. O ângulo da câmera era baixo e a qualidade deixava a desejar, já que a única iluminação vinha de uma luz na varanda da casa ao lado. Presumi que os homens de Cisco tinham usado uma câmera pinhole escondida em um vaso de planta ou algum outro ornamento da varanda. A visão era em um ângulo lateral, de modo que, se alguém se aproximasse e batesse à porta, a câmera pegaria a pessoa de perfil.
Dei PLAY no vídeo e observei por alguns segundos enquanto nada se movia nem acontecia na tela. Então um homem entrou na varanda, hesitou e lançou um olhar furtivo para trás. Era Lankford. Depois ele virou e bateu à porta. Ficou esperando até alguém atender. Eu também esperei.
Nada aconteceu. Eu sabia que ninguém ia atender, mas mesmo assim foi um momento tenso.
— Por onde você prefere que eu vá hoje? — perguntou Lorna.
— Só um minuto — eu disse. — Deixa eu ver isso aqui.
O vídeo não tinha som. Lankford bateu outra vez, com mais força. Então olhou para trás outra vez e sacudiu a cabeça, aparentemente um sinal para alguém fora do quadro. Ele se virou e bateu de novo, com mais força ainda.
Ninguém atendeu. Um segundo homem subiu na varanda e passou pelo lado direito de Lankford, para olhar pela janela contígua à porta. Ele protegeu os olhos com as mãos em concha ao se curvar na direção do vidro. O rosto ficou escondido até que endireitou o corpo, virou para Lankford e disse algo. Era James Marco, da DEA.
Pausei o vídeo só para dar uma olhada nos dois. Eu sabia que a imagem ia causar uma mudança drástica no caso. Era perfeitamente cabível e aceitável que Lankford fosse bater à porta de um homem listado como testemunha da defesa em um caso em que fosse designado como investigador pelo Gabinete da Promotoria. Mas a combinação de Lankford e do agente James Marco naquela varanda mudava as coisas exponencialmente. Eu olhava para a evidência digital que ligava Marco a Lankford e aos acontecimentos que cercavam o assassinato de Gloria Dayton. No mínimo, sentia estar olhando para a dúvida razoável.
Falei com Lorna sem tirar os olhos da tela.
— Onde Cisco está agora?
— Ele chegou em casa, me deu isso e foi dormir. Disse que aparecia no tribunal às dez.
Balancei a cabeça. Ele merecia uma chance de dormir até mais tarde.
— É, ele se saiu bem.
— Você assistiu ao negócio todo? Ele disse para assistir até o fim.
Pressionei o PLAY. Lankford e Marco se cansaram de esperar e saíram da varanda. Aguardei. Nada aconteceu. Nenhuma ação na varanda.
— O que é para olh...
Então eu vi. Era praticamente só uma sombra do lado oposto da varanda, mas eu vi. Um deles ou os dois foram para a lateral da casa.
O vídeo então pulava para outra tomada — essa de uma câmera no quintal, apontada para os fundos da casa. Notei que o contador de tempo voltava dez segundos. Fiquei observando e então vi duas figuras surgindo pelas laterais da casa e se encontrando na porta dos fundos. Mais uma vez eram Lankford e Marco. Lankford bateu à porta, mas Marco não esperou por uma resposta. Agachou e começou a trabalhar na maçaneta, obviamente tentando abrir a fechadura.
— Isso é incrível — eu disse. — Não acredito que a gente conseguiu.
— O que exatamente é isso? — perguntou Lorna. — Cisco não quis me contar. Falou que era confidencial, mas que ia virar o jogo.
— E é... vai virar o jogo, quero dizer. Já falo para você, em um minuto. Não é confidencial.
Assisti em silêncio ao resto do vídeo. Marco segurou a porta aberta, virou para olhar para Lankford e fez um sinal. Em seguida desapareceu lá dentro, enquanto Lankford esperava do lado de fora, de costas para a porta, e ficava de sentinela.
O vídeo pulava para o interior da casa, para uma câmera fixada no teto da cozinha. Era uma lente olho de peixe, muito provavelmente escondida em um detector de fumaça. Marco passou sob a câmera, vindo dos fundos e em direção a um corredor, mas então deu meia-volta e retornou à cozinha. Foi até a geladeira, abriu o freezer e enfiou a mão. Começou a examinar os vários recipientes de comida congelada até escolher um com duas fatias de pizza. Por morar sozinho, eu conhecia bem a marca e a pizza. Marco abriu com cuidado a caixa, sem rasgar a aba. Então tirou uma das pizzas embaladas em plástico e a segurou sob o braço, enquanto levava a mão ao bolso da jaqueta preta de aviador e tirava algo. Sua mão se mexeu rápido demais para eu conseguir identificar o que estava segurando, mas seja lá o que fosse ele enfiou dentro da caixa e depois recolocou a fatia de volta à embalagem. Em seguida, pôs a caixa no freezer, debaixo de outros congelados, e virou para a porta dos fundos.
O vídeo pulava para a parte externa outra vez. Marco saiu da casa, acionou o trinco e fechou a porta. Tinha ficado menos de um minuto dentro da casa. Acenou para Lankford e os dois se separaram, cada um pela lateral de onde viera. O vídeo terminava aí.
Ergui o rosto para ver onde estávamos. Lorna já ia sair do Sunset Boulevard para pegar a 101. Dava para ver no fim da rampa que a via expressa estava bem engarrafada. Senti no peito um ligeiro aperto, que sempre vinha com os pensamentos de chegar atrasado ao tribunal.
— Por que está fazendo esse caminho?
— Porque perguntei o que era para fazer e você me mandou ficar quieta. Você tenta tantos caminhos diferentes todo dia que não dá para saber o que quer.
— Earl tinha o maior orgulho de escapar do trânsito. Ele sempre tentava caminhos diferentes.
— Bom, Earl não está aqui.
— Eu sei.
Deixei aquilo de lado e tentei pensar no que acabava de ver no vídeo. Ainda não tinha certeza de como usar as gravações, mas tinha certeza de que aquele material valia ouro em um tribunal. Havíamos registrado em filme um agente corrupto e seu cúmplice plantando drogas na casa de Stratton Sterghos, em algum tipo de esquema para eliminá-lo ou controlá-lo como testemunha. Isso levava as coisas muito mais longe do que eu havia esperado.
Assobiei baixo ao fechar o iPad e então comecei a guardar outra vez na bolsa de Lorna.
— Tudo bem, agora pode me dizer o que é isso e por que ficou tão empolgado a ponto de assobiar.
Assenti.
— Tudo bem. Você viu que a gente adicionou vários nomes à lista de testemunhas ontem, não é?
— Vi, e que a juíza quer conversar sobre isso hoje.
— Certo. Bom, isso foi parte de uma manobra.
— Você quer dizer, como as jogadas de Legal Siegel?
— É, só que a jogada é minha. A gente está chamando de Marco Polo. A lista acrescentada tinha um monte de nomes novos. Você ouviu o Forsythe reclamando disso.
— Ouvi.
— Tudo bem. Um dos nomes na lista era Stratton Sterghos. A lista foi planejada para parecer que a gente estava tentando esconder o sujeito, meio que torcendo para conseguir que ele passasse batido no meio dos outros. Ele aparecia no meio da lista com os nomes de todos os moradores do prédio da Gloria. A manobra foi fazer a equipe da promotoria pensar que a gente estava armando uma coisa e chamar a atenção deles para o nome que a gente tentou camuflar.
— Stratton Sterghos.
— Isso.
— Certo, mas quem é Stratton Sterghos?
— Não tem tanto a ver com quem ele é, na verdade. É mais onde ele mora. Esse vídeo é da residência dele em Glendale. Fica bem na frente de uma casa onde dois traficantes foram assassinados, dez anos atrás.
— E o que isso tem a ver com Gloria Dayton?
— Diretamente, nada. Mas a gente vem tentando fazer a ligação entre Lankford, o investigador da promotoria que estava seguindo Gloria antes de ela ser assassinada, e o agente Marco, da DEA, que era para quem ela dedurava. Para nossa teoria da defesa funcionar, esses dois precisam estar ligados em algum ponto da história. Era nisso que o Cisco estava trabalhando, e a gente achou que o link pudesse ser esse caso não resolvido de duplo homicídio. O investigador principal era ninguém menos que Lee Lankford, na época detetive da polícia de Glendale. E as duas vítimas tinham ligação com o cartel de Sinaloa: o mesmo grupo de Hector Moya. A gente sabe que Marco queria foder com o Moya na época, então nada mais lógico que ele e sua unidade, a ICE-T, estivessem sabendo e quem sabe até trabalhando em cima dos dois caras mortos naquela casa.
— O.k...
Esse era o jeito de Lorna dizer que ainda não estava entendendo.
— A gente achava que o duplo homicídio era a ligação, mas Cisco conseguiu cópias dos arquivos de investigação antigos de Lankford sobre o caso e em parte alguma do relatório existe qualquer menção a Marco ou à ICE-T. Então a gente bolou uma armação com a lista de testemunhas, achando que, se tivesse mesmo uma ligação, ia fisgar os dois.
Apontei para a bolsa dela, onde o iPad estava guardado.
— Dá para perceber no vídeo que Marco ficou um pouco mais para trás — continuei. — Lankford se aproximou da porta sozinho. Se Sterghos estivesse em casa e tivesse atendido, ele teria começado a fazer perguntas, como era para ser. Você sabe, aquela coisa de sempre, eu trabalho para o Gabinete da Promotoria, seu nome está na lista de testemunhas, o que o senhor sabe sobre tal e tal coisa e por aí vai. Marco ficaria só esperando, mas preparado caso Lankford determinasse que tinham um problema com Sterghos.
— Preparado para o quê? — perguntou Lorna.
— Para o que fosse necessário. Como no caso de Gloria e no de Earl. Esse cara não tem limites. Olha o que a gente tem no vídeo. Sterghos não estava em casa, então Marco entrou e plantou drogas no freezer, para eles voltarem depois e prenderem Sterghos, se precisassem. Isso impediria o homem de testemunhar ou arruinaria sua credibilidade, caso testemunhasse.
— Esse negócio é inacreditável.
— E no tribunal vai ser ouro puro. A gente só precisa pensar no momento certo de usar.
Eu mal conseguia me conter enquanto pensava nas possibilidades de utilização do vídeo.
— Você não tem que entregar isso para a polícia? — perguntou Lorna.
— Negativo. O vídeo é nosso. Estou pensando se não podemos usar para jogar um contra o outro, fazer arrebentar o elo mais fraco. Nada funciona melhor com um júri do que alguém de dentro do esquema colocando a boca no trombone. Melhor até do que a porra do DNA.
— E quanto a Sterghos? O que você vai fazer para proteger o homem? Você arrastou ele para dentro disso e ele não...
— Relaxa. Pra começar, tenho certeza que Cisco cuidou das drogas que o Marco plantou. Além disso, a gente tem o vídeo. Ninguém vai fazer nada com Stratton Sterghos. Ele está aproveitando o sol em alguma praia da Flórida, quatro paus mais feliz.
— Quatro paus! De onde saiu isso?
— Usei meu dinheiro.
— Mickey, acho bom você não estar usando o dinheiro da faculdade da Hayley. Se fizer uma coisa dessas, nunca mais vai conseguir ficar bem com sua filha.
— Pode acreditar, não fiz isso.
Ela não falou nada nem pareceu se tranquilizar, provavelmente porque conseguiu perceber que eu estava mentindo. Mas eu ainda tinha mais de um ano até precisar do dinheiro para a faculdade de Hayley.
Olhei o relógio e contemplei o moroso rio de aço diante de mim.
— Vê se consegue sair daqui e entrar na Alvarado — instruí. — A gente não vai chegar nunca, nesse ritmo.
— Como quiser.
Era o tom de despeito outra vez. Ela continuava irritada por eu ter chegado dez minutos atrasado para a carona. Ou talvez tivesse a ver com onde eu estava antes, para ter chegado dez minutos atrasado. Ou talvez fosse um resquício do bate-boca do dia anterior. De qualquer maneira, não fazia diferença. Senti falta de Earl. Ele nunca fazia insinuações em seus comentários, nunca se perdia e não era besta de parar no meio de uma via expressa entupida quando eu tinha hora para chegar ao tribunal.
— E se Marco Polo não tivesse funcionado? — perguntou Lorna.
— Como assim?
— E se eles não tivessem se interessado por Stratton Sterghos? O que teria acontecido, então?
Pensei por um momento.
— A gente tinha outras estratégias — falei. — E não estou me saindo tão mal assim nesse julgamento. Foi só o primeiro dia da defesa e já comecei a beliscar a estratégia da promotoria. Estamos com uma situação muito boa nesse caso.
Cutuquei a bolsa dela com o pé.
— Mas agora... tudo muda de figura.
— Vamos torcer.
34
Não sei como, mas consegui chegar ao Departamento 120 quando faltava um minuto para as nove. Forsythe já estava na mesa dele, com Lankford devidamente sentado atrás, junto à balaustrada. À mesa da defesa, Jennifer Aronson sentava sozinha. Não houve necessidade de trazerem La Cosse da cela, porque o júri só compareceria depois da audiência sobre a lista adicional de testemunhas.
Troquei olhares com Lankford antes de puxar minha cadeira e sentar.
— Achei que você não ia chegar a tempo — sussurrou Jennifer, em tom de pânico.
— Você ia tirar de letra. Mas escuta, as coisas mudaram. Preciso cuidar disso pessoalmente. Desculpa, mas não tenho tempo suficiente para explicar a mudança de estratégia agora. Aconteceram umas coisas ontem à noite.
— Que coisas?
Antes que eu pudesse responder, a assistente da juíza observou que todos os advogados estavam presentes e informou que a magistrada queria discutir a nova lista de testemunhas no gabinete. Levantamos e a assistente abriu a portinhola no cercado que dava acesso ao corredor atrás da sala do tribunal.
A juíza Leggoe havia esperado por dois advogados. Ao ver Jennifer, disse para puxar uma cadeira da mesa de reuniões e colocar ao lado das outras. Sentamos à frente de Leggoe, Jennifer entre mim e Forsythe. Sutilmente, eu pegara a cadeira da direita, de modo a ficar à esquerda do campo de visão da juíza.
— Achei melhor fazer a audiência na minha sala, assim quem sabe podemos conversar mais abertamente — disse Leggoe. — Rosa, vamos começar agora.
Ela estava falando com a estenógrafa, que sentava no canto esquerdo, atrás da juíza, com a máquina diante de si. Notei que Leggoe só deu instrução para iniciar o registro dos autos após o comentário sobre o desejo de manter a mídia afastada da pauta corrente.
Eu poderia ter objetado contra uma audiência a portas fechadas, mas achei que não ganharia nada com isso e que a atitude não me ajudaria a cair nas graças da juíza. Por isso dancei conforme a música, embora percebesse que Jennifer estava me encarando, à espera de um protesto meu. Via de regra, é sempre melhor para o réu que as audiências sejam públicas. Trata-se de uma precaução contra eventuais suspeitas de acordos feitos por baixo dos panos e ocultação de informações.
A juíza pronunciou o nome de todos os presentes, para constar dos autos, e prosseguiu.
— Dr. Forsythe, presumo que tenha tido tempo de estudar a lista de testemunhas retificada da defesa. Por que não começamos por sua resposta.
— Obrigado, Excelência. Meu investigador e eu mal tivemos tempo de revisar a lista de nomes. E chamar de lista retificada não condiz com a realidade, Excelência. Acrescentar trinta e três nomes não é uma retificação. É recomeçar do zero, algo que não tem justificativa. Não podemos esperar que a promotoria...
— Excelência — falei. — Preciso interromper o dr. Forsythe porque acho que a defesa pode oferecer uma solução conciliatória para contornar a maior parte do conflito. Talvez até a ponto de ser uma proposta satisfatória para a promotoria.
Do bolso interno, retirei uma cópia da lista que preparei no carro, depois de Lorna ter entrado na Alvarado Street e feito um bom progresso na direção do fórum. Havíamos parado de falar sobre os acontecimentos da noite anterior em Glendale e eu passara a trabalhar na lista e no que planejava apresentar à juíza.
— Prossiga, dr. Haller — disse a juíza. — O que o senhor propõe?
— Tenho uma cópia da lista retificada aqui e risquei todos os nomes que acho possível fazer uma concessão.
Estendi a folha. Eu não tinha uma cópia para entregar a Forsythe. Levou apenas cinco segundos para a juíza examinar o papel e erguer as sobrancelhas, demonstrando surpresa.
— Dr. Haller, o senhor riscou todos os nomes menos um, dois... quatro nomes. Como vinte e nove nomes que eram tão importantes para o senhor ontem podem ser descartados com tanta facilidade e rapidez?
Balancei a cabeça, como se concordasse com o absurdo de minhas ações.
— Só o que posso dizer, meritíssima, é que nas últimas 24 horas a defesa passou por uma reviravolta no modo como encara a melhor estratégia para defender o sr. La Cosse.
Olhei para Jennifer. Ela sabia sobre a manobra Marco Polo, mas não fazia ideia do que acontecera na noite anterior em Glendale. Mesmo assim, pegou a deixa e assentiu, concordando comigo.
— Isso mesmo, Excelência — disse ela. — Achamos que é possível prosseguir apenas com os quatro nomes restantes adicionados à lista de testemunhas original.
A juíza franziu o rosto, desconfiada, e estendeu o documento através da mesa para Forsythe. O promotor passou bem depressa os olhos pela folha, obviamente se concentrando nos nomes que eu queria manter, não nos que eu me propunha a descartar. Não demorou para franzir o cenho e fazer um movimento de cabeça. Eu não esperava mesmo que cedesse, sem mais nem menos.
— Meritíssima, se o doutor tivesse feito essa proposta ontem, eu teria poupado meu investigador de uma noite de trabalho, e os contribuintes deste condado de pagar o custo por suas horas extras. À parte isso, a promotoria agradece a boa vontade da defesa em diminuir o número de testemunhas adicionais. Entretanto, a promotoria ainda não está satisfeita com os nomes restantes na lista, e desse modo devo objetar aos acréscimos que permaneceram.
A juíza fez uma expressão de desagrado e olhou para o relógio. Provavelmente tinha imaginado que a questão seria resolvida sem demora e que poderia iniciar o julgamento antes das nove e meia. Não teria essa sorte.
— Tudo bem — ela disse. — Vamos repassar os nomes. Rápido... temos um júri esperando. Declare suas objeções.
Forsythe verificou a lista e elegeu a primeira pendenga, apontando com o dedo para o papel.
— O doutor incluiu meu investigador na lista, e não resta à promotoria senão protestar. Isso não passa de uma manobra para colocar meu investigador no banco das testemunhas e tentar descobrir a estratégia que estamos adotando para o caso.
Dei uma risada falsa.
— Excelência, a defesa garante que não vai fazer nenhuma pergunta ao investigador Lankford que envolva a assim chamada estratégia do dr. Forsythe. Quero observar também que entramos na fase da defesa do julgamento. A fase da promotoria terminou e qualquer estratégia empregada pelo estado já consta claramente dos autos, ou de qualquer maneira já ficou óbvia a essa altura. Devo acrescentar também que o sr. Lankford é um dos principais investigadores desse caso e a defesa tem o direito de questionar com veemência como o estado obtém e analisa as evidências e depoimentos das testemunhas. Lankford é uma testemunha importante e não existe precedente que a promotoria possa usar para impedir sua convocação pela defesa.
A juíza tirou os olhos de mim e colocou em Forsythe.
— Qual a próxima objeção, dr. Forsythe?
Deixando de fazer uma deliberação individual para cada testemunha, a juíza indicava que provavelmente tomaria uma decisão abrangendo os quatro nomes e levaria em consideração tanto a promotoria como a defesa. Tentaria dividir o bebê em dois, em uma solução salomônica. Eu já imaginava isso enquanto riscava os nomes da lista. Lankford era a única testemunha que eu queria. O nome de Stratton Sterghos não passava de um estratagema empregado para provocar uma reação — que fora a melhor possível, com aquele vídeo. Nunca tive intenção de convocá-lo de fato e podia abrir mão dele agora. Os outros dois nomes eram os de Sly Fulgoni pai e de uma vizinha de prédio de Gloria Dayton. Eu podia abrir mão dos dois também, embora Sly pai fosse ficar bastante irritado com o cancelamento de suas férias.
— Obrigado, meritíssima — respondeu Forsythe. — A promotoria também protesta contra a inclusão de Stratton Sterghos. Nossos esforços de investigação ontem à noite não estabeleceram a menor ligação entre ele e o presente caso. Sterghos mora em Glendale, longe dos acontecimentos que nos cercam. Fui informado de que é obstetra aposentado e está incomunicável no momento, aparentemente de férias. Como não pudemos conversar com ele, estamos incapacitados de compreender o que o dr. Haller espera conseguir convocando esse homem como testemunha.
Comecei a falar antes que a juíza tivesse tempo de se virar para mim e perguntar qual era minha resposta.
— Como bem sabe Vossa Excelência, a defesa está apresentando uma teoria alternativa na motivação por trás do assassinato de Gloria Dayton. Isso já foi extensamente debatido no momento da inclusão do agente James Marco, de Trina Rafferty e de Hector Moya na lista de testemunhas original. É a mesma coisa aqui, meritíssima. Acreditamos que Stratton Sterghos pode ser capaz de fornecer testemunho que ligue o assassinato de Dayton a um duplo homicídio que ocorreu diante de sua casa, do outro lado da rua, há dez anos.
— Como é?! — exclamou Forsythe. — O senhor só pode estar de brincadeira. Vossa Excelência não pode permitir que essa tática de jogar verde para colher maduro interfira no julgamento. Na falta de um termo legal, isso é puro devaneio. Um homicídio duplo de dez anos atrás estar de algum modo ligado ao assassinato de uma prostituta? Vamos, meritíssima, não permita que seu tribunal vire um circo. É exatamente isso que a corte estará fazendo se...
— Sua posição ficou clara, dr. Forsythe — disse a juíza, interrompendo-o. — Mais alguma objeção aos nomes na lista?
— Sim, Excelência, protesto contra a transferência de Sylvester Fulgoni da instituição correcional em Victorville. Sua contribuição para o julgamento será na melhor das hipóteses testemunho de ouvir dizer.
— Devo dizer que concordo — disse Leggoe. — Mais alguma coisa, dr. Haller?
— Gostaria de ceder a palavra final à minha colega, dra. Aronson.
Acenei com o queixo para ela e pude perceber que a pegara de surpresa com minha atitude. Mesmo assim, eu sabia que reagiria à altura.
— Excelência, com o devido respeito à corte e ao dr. Forsythe, tribunais de apelação por todo este país têm sustentado reiteradamente que os esforços para impedir a defesa de explorar todos os ângulos e bases de apoio para teorias alternativas são perigosos e passíveis de revogação de sentença. No presente caso, estamos propondo exatamente uma defesa alternativa, e a corte estaria incorrendo em equívoco ao obstar isso. Pedimos que considere isso, Excelência.
Jennifer habilidosamente inserira as expressões revogação de sentença e equívoco em sua argumentação final. Palavras que levaram a juíza a pensar duas vezes. Leggoe agradeceu a nós três e depois cruzou as mãos sobre a mesa. Se levou um minuto para considerar sua decisão, então foi um minuto bem rápido.
— Vou indeferir a objeção à convocação do investigador Lankford. Ele vai testemunhar. Quanto a Stratton Sterghos, no momento concordo com o dr. Forsythe. Portanto, ele está vetado. Porém, estou inclinada a reconsiderar se e quando a defesa construir um caminho crível que conduza até ele. Os outros dois nomes também estão vetados, até que o dr. Haller possa apresentar um argumento renovado para sua inclusão.
Por fora, fiz cara feia. Mas a deliberação foi perfeita. Sly Fulgoni pai não teria suas férias, mas eu consegui exatamente o que queria — Lankford. O fato de a juíza deixar a porta aberta para a questão de Sterghos era um bônus. Agora Forsythe e, por extensão, Lankford e Marco eram obrigados a levar em consideração que Sterghos estava em algum lugar lá fora, possivelmente à espera de desempenhar um papel no julgamento e virar a situação de cabeça para baixo. Em último caso, talvez servisse para distraí-los enquanto eu trabalhava em outros ângulos que eram reais e mais prejudiciais ao caso da promotoria.
— Mais alguma coisa? — quis saber a juíza. — Temos um julgamento para começar.
Não havia mais nada. Ela nos deu licença e voltamos à sala do tribunal. No caminho, Forsythe se aproximou para conversar, como eu esperava.
— Não sei aonde você pretende chegar com isso, Haller, mas quero que saiba que, se for jogar lama na reputação de pessoas de bem, haverá consequências.
Percebi que a guerra estava declarada entre nós. Forsythe não estava mais agindo como se aquilo tudo não o afetasse. Estava partindo para cima. Até onde lembrava, era a primeira vez que se dirigia a mim apenas pelo sobrenome, um sinal do fim da cordialidade.
Por mim, tudo bem. Eu já estava acostumado.
— Isso é uma ameaça? — perguntei.
— Não, é a realidade sobre em que pé estamos — ele falou.
— Pode dizer para Lankford que eu não reajo bem a ameaças. Ele devia saber disso, depois da última vez que a gente se cruzou em um caso.
— Isso não partiu de Lankford. Partiu de mim.
Olhei para ele.
— Ah, então acho melhor eu juntar minhas coisas, dizer ao meu cliente para se declarar culpado das acusações e implorar a clemência da corte. É isso que você espera? Porque não vai acontecer, Forsythe. E digo mais, se acha que pode me meter medo, então você não perguntou o suficiente sobre mim para seus colegas antes de a gente começar esse negócio.
Forsythe apertou o passo e me deixou para trás quando empurramos a porta para entrar no tribunal. Não havia mais nada a ser dito.
Passeei os olhos pela sala e vi Lorna sentada sozinha na primeira fileira. Sabia que Kendall não estaria no tribunal, em razão ao menos de uma das testemunhas que eu planejava chamar. Eram cinco para as dez, segundo o relógio na parede do fundo. Me aproximei da balaustrada para conversar com Lorna.
— Você ainda não viu o Cisco?
— Vi, ele está lá no corredor, com a testemunha.
Virei para olhar para a cadeira da juíza. Continuava vazia e La Cosse não fora trazido da cela. Eu sabia que, com Jennifer na mesa da defesa, as coisas começariam sem mim. Voltei a olhar para Lorna.
— Você me chama no corredor quando a juíza sair da sala dela?
— Claro.
Passei pela divisória e me dirigi depressa ao corredor. Cisco estava lá, sentado ao lado de Trina Rafferty. Ela se vestia de maneira bem mais recatada do que da última vez em que eu a vira. A barra da saia chegava a descer abaixo dos joelhos, e Trina acatara meu conselho de vestir um suéter para não passar frio no tribunal, pois a juíza Leggoe tinha o hábito de manter a temperatura baixa, de modo que os jurados permanecessem acordados e alerta.
Em relação ao decoro, Trina Trixxx não causaria confusão. Mas me dei conta do primeiro sinal de problemas quando ela deliberadamente evitou olhar para mim no momento em que me aproximei e lhe dirigi a palavra.
— Trina, obrigado por estar aqui hoje.
— Eu disse que vinha e vim.
— Bom, vou tentar facilitar o máximo possível para o seu lado. Não sei até que ponto a promotoria vai segurar você, mas eu não pretendo demorar muito.
Ela não respondeu nem olhou para mim. Virei para Cisco e ergui as sobrancelhas. Algum problema? Ele deu de ombros, sinalizando que não sabia.
— Trina — falei. — Se não se incomoda, vou andar um pouco pelo corredor com Cisco. A gente tem uns assuntos particulares para conversar. É rápido.
Cisco me acompanhou até a área dos elevadores. Dali poderíamos ficar de olho em Trina enquanto conversávamos.
— E aí, o que está rolando com a mulher? — perguntei.
— Não sei. Ela parece assustada com alguma coisa, mas não quer dizer. Eu já perguntei.
— Ótimo, só me faltava essa. Você sabe se ela conversou com alguém ontem à noite? Alguém do outro lado?
— Se conversou, não quer contar. Vai ver que ficou nervosa porque vai entrar em um julgamento.
Por cima do ombro dele, vi Lorna acenando para mim da porta da sala do tribunal. A juíza estava em seu lugar.
— Bom, seja o que for, é melhor ela esquecer logo. Daqui a cinco minutos ela entra. Preciso ir.
Fiz menção de passar por ele, então me lembrei de uma coisa e voltei.
— Bom trabalho, ontem à noite.
— Obrigado. Você deu uma olhada na gravação, não foi?
— É, quando estava vindo. Quanto eles plantaram na caixa de pizza?
— Quase noventa gramas de heroína preta.
Assobiei, como Cisco costumava fazer.
— Você tirou de lá, certo?
— Tirei. Mas o que eu faço com aquilo? Se eu passar para os índios, os caras vão vender ou usar.
— Então não passa.
— Mas não me agrada ficar de posse desse negócio.
Era um dilema, mas a única certeza que eu tinha era de que não podíamos simplesmente jogar a droga fora. Eu podia precisar dela como parte de minha apresentação do vídeo.
— Tudo bem, então eu fico com ela. Leva para minha casa hoje à noite que eu guardo no cofre.
— Tem certeza que quer correr o risco?
— Essa história toda vai terminar daqui a alguns dias. Eu seguro a onda.
Dei um tapa em seu ombro e segui para a sala do tribunal.
— Ei — ele exclamou, atrás de mim.
Virei e voltei.
— Você sacou o jeito como Lankford agia, no vídeo?
— Saquei, como se recebesse ordens de Marco.
— Exato. Marco é o cabeça.
— Pode crer.
35
Aestratégia da defesa era simples: deixar uma trilha que levasse os jurados a James Marco e à conclusão inequívoca de que estavam diante de um agente de narcóticos absolutamente corrupto, disposto a matar para evitar ser desmascarado. Trina Rafferty era parte dessa trilha, e eu a convoquei como minha primeira testemunha da terça-feira. Ela tivera ligação com Gloria Dayton, e ambas estiveram sob a influência e o controle de Marco.
Por mais conservador que fosse seu modo de se vestir, ainda assim havia alguma coisa em Trina que traía uma inegável vulgaridade. O cabelo loiro com aparência de sujo e os olhos fundos, o piercing no nariz e as tatuagens em torno dos pulsos... Você podia encontrar essas coisas em muitas mulheres respeitáveis, mas a combinação disso com a postura não deixava dúvidas sobre quem era aquela mulher que se encaminhava ao banco das testemunhas. Ao parar para fazer o juramento, lembrei que houve uma época em que Kendall, Trina e Gloria se revezavam para cobrir seus programas, de tão parecidas que eram. Agora as coisas tinham mudado, e não havia a mais remota semelhança entre Kendall e Trina. Olhando para Trina, eu sabia que estava olhando para o que poderia ter sido o futuro de Kendall.
Depois de Trina ter feito o juramento, não perdi tempo em confirmar o óbvio para os jurados.
— Trina, você também tem um nome de guerra, não tem?
— Tenho.
— Pode dizer qual é para o júri?
— Trina Trixxx, com três x.
Ela deu um sorriso recatado.
— E em que profissão usa esse nome?
— Sou acompanhante.
— Significa que faz sexo com as pessoas por dinheiro, correto?
— É, isso mesmo.
— E há quanto tempo essa é sua profissão?
— Doze anos, entre idas e vindas.
— E chegou a conhecer outra acompanhante chamada Gloria Dayton, que usava nomes como Glory Days e Giselle Dallinger?
— Eu conheci Glory Days, é.
— Em que época foi isso?
— Provavelmente dez anos atrás. A gente usava o mesmo serviço de atendimento.
— E você tinha algum tipo de arranjo de trabalho com ela?
— A gente cobria o programa uma da outra, quando alguém não podia, se é isso que você quer dizer. Éramos em três, e uma cobria a outra. Se uma estava ocupada com um cliente ou com a agenda lotada e alguém ligava, daí uma das outras ia no lugar. E às vezes, se um cliente queria duas garotas ou até três, a gente trabalhava junto.
Balancei a cabeça e parei por um momento. Essa última parte não viera à tona antes e atrapalhou minha concentração, já que a terceira garota, que ainda não fora nomeada, era Kendall Roberts.
— Dr. Haller? — insistiu a juíza. — Podemos ir logo com isso?
— Claro, Excelência. Ãhn, sra. Rafferty, teve algum contato com as autoridades durante esse período?
Trina pareceu confusa com a pergunta.
— Bom, eu fui presa duas vezes. Três, na verdade.
— Alguma vez foi presa pela DEA?
Ela fez um gesto de negação.
— Não, só pelo DPLA e pelo Sheriff’s Department.
— Nunca foi detida na época pela DEA, por um agente chamado James Marco?
Em minha visão periférica, percebi Forsythe se curvar para a frente. Ele sempre fazia isso antes de protestar. Mas, por algum motivo, ele não protestou. Virei para olhar para ele, ainda esperando a objeção, e observei que Lankford esticara o braço perto da balaustrada e tocara as costas de Forsythe. Entendi que Lankford, o investigador, estava instruindo Forsythe, o promotor, a não protestar.
— Acho que não.
Virei de volta para a testemunha, hesitante com o que acabara de escutar.
— Como é? — perguntei. — Pode repetir isso?
— Eu disse que não — afirmou Trina.
— Está dizendo que não conhece um agente da DEA chamado James Marco?
— Isso mesmo. Não conheço.
— Nunca nem mesmo se encontrou com ele?
— Ao que eu saiba, não... a menos que estivesse disfarçado ou qualquer coisa assim, e usando um nome diferente.
Virei e lancei um rápido olhar para Cisco na primeira fileira. Obviamente, Marco de algum modo chegara a Trina Rafferty, e agora eu queria saber como. Só que mais urgente do que a explicação era descobrir o que eu faria a partir daquele momento. Poderia atacar minha própria testemunha, mas o júri talvez não fosse gostar daquilo.
Decidi que não havia muita escolha.
— Trina — comecei —, você não me contou, antes de vir aqui hoje prestar seu testemunho, que foi uma informante confidencial a serviço do agente Marco e da DEA?
— Bom, eu falei um monte de coisas pra você porque você estava pagando a hora. Falei tudo que queria ouvir.
— Não, isso...
Me segurei e tentei manter a compostura. Marco e Lankford haviam feito mais do que chegar até ela, eles transformaram Trina em uma arma de destruição em massa. Se eu não desse um jeito nesse desastre, ela poderia comprometer toda a estratégia da defesa.
— Quando foi a última vez que falou com o agente Marco?
— Não sei quem é, então não falei com ele.
— Está dizendo a esse júri que não faz a menor ideia de quem seja o agente James Marco?
— Desculpe. Não sei. Eu precisava de um lugar para ficar e precisava comer. Posso ter dito umas coisas para que você me desse algo em troca.
Já tinha acontecido comigo de a testemunha mudar de lado desse jeito. Mas nunca de modo tão drástico e com tanto prejuízo para meu caso. Relanceei meu cliente na mesa da defesa. Andre parecia desnorteado. Olhei dele para Jennifer e ela estava com uma expressão constrangida no rosto — constrangida por mim.
Virei e olhei para a juíza, que estava igualmente perplexa. Fiz a única coisa que restava na situação.
— Excelência, não tenho mais perguntas — falei.
Lentamente, voltei à mesa da defesa, passando por Forsythe, que se dirigia ao atril para ampliar ainda mais o estrago. Ao cruzar o estreito vão entre a mesa da promotoria vazia e as cadeiras junto à balaustrada, tive de passar por Lankford. Escutei o investigador murmurando alguma coisa, mmm mmm mmmmm, de modo que só eu escutasse.
Parei, recuei um passo e me curvei para ele.
— O que você disse? — perguntei, em um sussurro.
— Eu disse, vai andando, Haller — sussurrou ele, em resposta.
Forsythe começou a contrainquirição perguntando a Trina Rafferty se os dois já se conheciam. Passei à minha cadeira e sentei. A única coisa boa em Forsythe se lançar tão avidamente à testemunha foi me poupar ter de informar a meu cliente como a coisa tinha ficado feia. O fiasco com Rafferty era um duro golpe contra nosso caso. Antes mesmo que Forsythe viesse com tudo para cima — coisa que estava prestes a fazer —, eu perdera uma testemunha-chave ligando Marco e Gloria Dayton. Para piorar ainda mais a situação, Trina estava dando a entender com todas as letras que recebera suborno para cometer perjúrio — eu teria pago dinheiro do aluguel para ela mentir.
Forsythe pareceu supor que me destruir correspondia a destruir o caso. Quase toda a contrainquirição girou em torno da declaração de Trina de que eu a instruíra sobre o que dizer no testemunho, em troca do apartamento poucas quadras atrás do Police Administration Building. Em seu afã por me derrubar, vi um modo de talvez salvar as coisas. Se eu conseguisse mostrar que ela havia mentido, tinha uma boa chance de rebater — aos olhos do júri, pelo menos — as acusações que fazia contra mim.
Forsythe encerrou após quinze minutos, acabando a contrainquirição no momento em que comecei a protestar contra praticamente todas as perguntas, com base no argumento de que já fora perguntado e respondido. Há um limite para o número de vezes que você pode bater na mesma tecla. Ele por fim desistiu e sentou.
Levantei vagarosamente para uma nova série de perguntas, dirigindo-me ao atril como um condenado à forca.
— Sra. Rafferty, a senhora forneceu o endereço desse apartamento que eu supostamente estaria pagando. Quando se mudou para lá?
— Em dezembro, um pouco antes do Natal.
— E lembra de quando me conheceu?
— Foi depois. Acho que março ou abril.
— Então como acha que eu estava pagando por esse apartamento quando só viemos a nos conhecer três ou quatro meses depois de a senhora ter ido morar lá?
— Porque você já estava se encontrando com o outro advogado, e foi ele que me levou para lá.
— E quem era esse advogado?
— Sly. O dr. Fulgoni.
— Está se referindo a Sylvester Fulgoni Jr.?
— Isso.
— Está dizendo que Sylvester Fulgoni Jr., junto comigo, está representando o sr. La Cosse?
Apontei para meu cliente quando falei, e fiz a pergunta com uma perplexidade reservada na voz.
— Bom, não — ela disse.
— Então quem ele estava representando quando supostamente cuidou para que a senhora fosse para esse apartamento?
— Hector Moya.
— Por que o dr. Fulgoni arrumou um apartamento para a senhora?
Forsythe protestou, alegando que Fulgoni e o caso Moya não eram relevantes. Eu contra-argumentei, é claro, mencionando mais uma vez a teoria da defesa alternativa que estava apresentando. A juíza indeferiu e fiz a pergunta outra vez.
— A mesma coisa — respondeu Trina. — Ele queria que eu dissesse que Gloria Dayton tinha me contado que o agente Marco pediu para ela plantar uma arma no quarto de hotel de Hector.
— E está dizendo que isso nunca aconteceu, que o dr. Fulgoni inventou.
— Isso mesmo.
— A senhora não testemunhou alguns minutos atrás que nunca tinha ouvido falar no agente Marco? Como agora diz que o dr. Fulgoni estava orientando um falso testemunho em relação a ele?
— Eu não disse que nunca tinha ouvido falar dele. Disse que nunca conheci ele e nunca dedurei para ele. Tem uma diferença, viu.
Balancei a cabeça, devidamente corrigido pela testemunha.
— Sra. Rafferty, a senhora recebeu um telefonema ou uma visita nas últimas 24 horas de alguma autoridade?
— Não, não que eu saiba.
— Alguém tentou coagi-la a dar esse depoimento aqui hoje?
— Não, só estou dizendo a verdade.
Eu delineara os fatos para o júri da melhor maneira possível, ainda que fosse na base de negações. Minha esperança era que os jurados instintivamente percebessem que Trina Rafferty era a mentirosa ali, que fora pressionada por alguém para mentir. Decidi que era arriscado demais continuar e encerrei a inquirição.
A caminho de minha cadeira, sussurrei para Lankford, ao passar.
— Onde está seu chapéu?
Continuei andando junto à balaustrada até me aproximar de Cisco. Inclinei-me para sussurrar também para ele.
— Você viu o Whitten?
— Ainda não. O que faço com Trina?
Dei uma olhada na frente da sala do tribunal. Forsythe não tinha mais perguntas, então a juíza estava dispensando Rafferty do banco das testemunhas. Cisco fora buscá-la nessa manhã em seu apartamento e a trouxera pelas três quadras até o fórum.
— Leva de volta. Vê se ela fala alguma coisa.
— Quer que eu fique de boa?
Hesitei, mas só por um momento. Eu sabia da ameaça e da pressão que pessoas como Marco e Lankford podiam fazer sobre alguém. Se o júri percebesse isso, então a virada de casaca de Trina talvez fosse mais valiosa do que um testemunho honesto.
— É, fica de boa.
Por cima do ombro de Cisco, vi o detetive Whitten entrar e tomar uma cadeira na fileira do fundo. Bem na hora.
36
Como investigador-chefe do homicídio de Gloria Dayton, o detetive Mark Whitten comparecera à maior parte do julgamento, muitas vezes sentando junto à balaustrada, perto de Lankford. Entretanto, eu tinha percebido no transcurso do processo que os dois não agiam exatamente como colegas de promotoria. Whitten parecia ficar mais na dele, quase reservado em relação a Forsythe, Lankford e todos os demais envolvidos no julgamento. Durante os intervalos, eu via Whitten voltando sozinho ao Police Administration Building. Certa vez, cheguei a vê-lo comendo sozinho no Pete’s.
Convoquei Whitten como minha testemunha seguinte. Ele já testemunhara por um dia e meio durante a fase da promotoria, sendo usado por Forsythe principalmente para apresentar evidências, como o vídeo com a inquirição de La Cosse na delegacia. De certa forma, era quem narrava a versão da promotoria, e por isso seu depoimento tinha sido o mais longo entre todas as testemunhas até então.
Naquela oportunidade, eu limitara a contrainquirição a aspectos do vídeo, repetindo muitas perguntas feitas a Whitten durante a malsucedida audiência para pleitear a exclusão da evidência. Eu queria que o júri escutasse Whitten negando que La Cosse era suspeito no momento em que ele e seu parceiro bateram à porta de Andre. Sabia que ninguém acreditaria naquilo e esperava plantar uma semente da dúvida sobre a investigação oficial que florescesse durante a fase da defesa.
Eu me reservara o direito de reconvocá-lo para testemunhar e agora era a hora. Não precisava obter muito dele, mas o que tentaria era de vital importância. Seria o divisor de águas que faria o caso passar a pender para o lado da defesa. Whitten, que tinha quarenta e tantos anos e vinte de serviço, era uma testemunha calejada. Seu comportamento era calmo e ele falava em um tom de voz banal. Era hábil em não demonstrar a hostilidade que quase todos os policiais nutrem contra a defesa. Reservava isso para os momentos em que não havia jurados presentes.
Após algumas perguntas preliminares que serviram para lembrar o júri de seu papel no caso, passei às áreas que precisava explorar. O trabalho da defesa consiste em lançar as bases para as evidências e em introduzir os ângulos. Eu precisava de Whitten para isso, agora.
— Detetive, quando o senhor testemunhou na semana passada, falou bastante sobre a cena do crime e o que foi encontrado lá, correto?
— Isso mesmo, falei.
— E o senhor fez um inventário daquela cena do crime e do que foi encontrado, correto?
— Correto.
— E eram pertences e posses da vítima, certo?
— Isso mesmo.
— Pode falar sobre essa lista agora?
Com a permissão da juíza, Lankford trouxe o assim chamado murder book para Whitten. Se tivesse sido convocado pela promotoria, teria caminhado para o banco das testemunhas com o grosso fichário com todos os registros da investigação enfiado debaixo do braço. O fato de não carregar consigo quando o convoquei era um pequeno vislumbre dessa hostilidade que ele era tão hábil em ocultar.
Recorrendo a uma cópia da lista que recebera na publicação compulsória, continuei.
— O.k., com referência à lista do inventário, não estou vendo um celular. Isso está correto?
— Não encontramos nenhum celular na cena do crime. Isso está correto.
— Bem, o sr. La Cosse explicou que falara com a vítima um pouco antes naquela noite, não foi? Ele explicou que essa ligação foi o motivo de ter ido pessoalmente à casa de Gloria, ou não?
— É, foi isso que ele contou para a gente.
— Mas os senhores não encontraram nenhum telefone no apartamento, certo?
— Isso mesmo.
— O senhor e seu parceiro tentaram encontrar uma explicação para essa discrepância?
— A gente presumiu que o assassino pegou os telefones dela para apagar as pegadas.
— O senhor falou no plural. Tinha mais de um aparelho?
— Tinha, determinamos que a vítima e o réu usavam uma variedade de burners para tratar de negócios. A vítima também tinha um celular de uso privado.
— Pode explicar ao júri o que é um burner?
— São celulares baratos que vêm com um número limitado de minutos para ligações. Quando você queima os minutos, joga o aparelho fora ou em alguns casos pode recarregar com novos minutos, pagando.
— Eles foram usados por que o registro das chamadas seria difícil de ser obtido pelos investigadores se o celular fosse descartado e os senhores não soubessem por onde começar a procurar.
— Exato.
— E era assim que o sr. La Cosse e a srta. Dayton se comunicavam no andamento dos negócios, correto?
— Isso mesmo.
— Mas os senhores não encontraram nenhum desses celulares no apartamento depois do crime, correto?
— Correto.
— Muito bem, o senhor mencionou que a vítima também tinha um celular de uso privado. O que quis dizer com isso?
— A vítima tinha um iPhone que usava para ligações sem relação com o negócio de acompanhante.
— E esse iPhone também sumiu depois do crime?
— É, nós não encontramos.
— E na sua opinião quem levou foi o autor do crime.
— Isso.
— Qual era a teoria por trás disso?
— Achamos que era um indicativo de que o assassino conhecia a mulher e que devia ter entrado em contato por celular ou que o nome e o número dele deviam estar na lista de contatos do telefone. Então o assassino pegou todos os celulares, como medida de precaução, para não ser rastreado dessa forma.
— E os aparelhos nunca foram encontrados?
— Não, não foram.
— Bom, isso levou os senhores a entrarem em contato com a operadora e pedir os registros telefônicos desses aparelhos?
— A gente pediu os registros do iPhone, porque encontramos algumas contas no apartamento e ficamos sabendo do número. No caso dos burners não tinha como requisitar os registros, já que a gente não tinha os celulares nem os números. Não tinha por onde começar.
Balancei a cabeça como se estivesse ouvindo tudo isso pela primeira vez e chegando a uma compreensão mais aprofundada das dificuldades que Whitten enfrentava no caso.
— O.k., então voltando ao iPhone. Os senhores requisitaram os registros e havia alguns registros que tinham encontrado. Os senhores examinaram esses registros procurando pistas, correto?
— Foi.
— Encontraram alguma ligação feita para o sr. La Cosse, ou recebida do sr. La Cosse, nesse iPhone?
— Não, não encontramos.
— Encontraram alguma ligação significativa ou digna de nota nesses registros?
— Não, não encontramos.
Parei e fiz um gesto como se examinasse as anotações. Eu queria que o júri achasse que estava incomodado com a última resposta do detetive.
— Continuando, os registros que os senhores pediram continham todas as ligações feitas e recebidas do aparelho, correto?
— Isso mesmo.
— Até as ligações locais?
— É, a gente conseguiu obter as ligações locais.
— E o senhor investigou essas também?
— Foi.
— E encontrou alguma ligação, recebida ou feita, que considerasse significativa para sua investigação?
Forsythe protestou, dizendo que eu estava repetindo minhas perguntas. A juíza me autorizou a prosseguir. Pedi a Whitten para encontrar no murder book a cópia de três folhas do iPhone de Gloria.
— São suas essas iniciais no canto inferior direito da primeira folha desse documento?
— São.
— E o senhor escreveu a data de 26 de novembro aqui, correto?
— Sim, escrevi.
— Por que fez isso?
— Deve ter sido a data em que recebi o documento da operadora.
— Catorze dias depois do crime? Por que levou tanto tempo?
— Tive de conseguir um mandado de busca para obter os registros. Isso levou um tempo e depois demorou um pouco para a operadora coletar todos os dados.
— Então, no momento em que o senhor recebeu esses registros, Andre La Cosse já estava preso e acusado pelo crime, correto?
— Isso mesmo.
— O senhor acreditava que estava com o assassino na cadeia, correto?
— É, correto.
— Certo. Mas então qual seria a utilidade desses registros telefônicos?
— A investigação sempre continua depois de uma prisão. Nesse caso, todas as pistas foram seguidas e continuamos explorando todas as possibilidades válidas de investigação. O relatório sobre os registros telefônicos era uma delas.
— Tudo bem. Os senhores encontraram algum número nessa lista que estivesse ligado ao sr. La Cosse?
— Não.
— Nenhum?
— Nenhum.
— Tudo bem. Por acaso algum dos quase duzentos números da lista tinha valor investigativo para os senhores?
— Não, senhor, não tinham.
— A propósito, como os números estão ordenados?
— Por frequência de ligações. Os números que ela ligava com mais frequência são os de cima e daí eles vão descendo pela frequência cada vez menor.
Virei a última página e instruí Whitten a fazer o mesmo.
— Então, na última página, aparecem números para os quais ela só ligou uma vez?
— Correto.
— Por um período de quanto tempo?
— O mandado de busca pedia os registros dos últimos seis meses.
— Detetive, permita que eu chame sua atenção para o nono número da terceira folha. Pode ler em voz alta para o júri?
Escutei o ruído de papel enquanto Forsythe decidia que eu devia estar fazendo mais do que desperdiçar o tempo da corte e virava as folhas de sua cópia do documento.
— Código de área dois-um-três, meia-dois-um, meia-sete-zero-zero — leu Whitten.
— E quando esse número foi discado no iPhone de Gloria Dayton?
Whitten entrecerrou os olhos ao ler.
— Às 18h47 do dia 5 de novembro.
Forsythe agora entendia aonde eu queria chegar e se levantou para protestar.
— Relevância, Excelência — disse ele, com um tom de urgência na voz. — Permitimos ao advogado de defesa ampla liberdade de movimento, mas onde isso vai parar? Ele está indo muito além dos limites aqui, destrinchando os detalhes de uma ligação de três minutos. Não tem nada a ver com o presente caso ou com as acusações contra seu cliente.
Sorri e balancei a cabeça.
— Excelência, o dr. Forsythe sabe exatamente onde isso vai parar e não quer que o júri descubra porque sabe que o castelo de cartas que é o caso da promotoria corre grande risco de desabar.
A juíza fez um gesto com as mãos, unindo os dedos.
— Estabeleça a conexão, dr. Haller. Rápido.
— Imediatamente, Excelência.
Voltei a olhar para minhas anotações, me localizei e prossegui. A objeção de Forsythe nada mais era do que uma tentativa de quebrar meu ritmo. Ele sabia que não tinha mérito algum.
— Então, detetive Whitten, essa ligação foi feita às 18h47 do dia 5 de novembro, apenas sete dias antes do assassinato da srta. Dayton, correto?
— Correto.
— Quanto tempo durou a ligação?
Whitten verificou o documento.
— Aqui diz dois minutos e cinquenta e sete segundos.
— Obrigado. O senhor verificou esse número quando recebeu esta lista? Ligou para ele?
— Não me lembro se fiz isso ou não.
— O senhor tem celular, detetive?
— Tenho, mas não está aqui comigo.
Levei a mão ao bolso e tirei meu celular. Pedi à juíza permissão para entregá-lo a Whitten.
Forsythe protestou, chamando o que eu estava prestes a fazer de teatro e me acusando de fazer encenação para chamar a atenção do júri.
Argumentei que o que Forsythe chamava de teatro não passava de uma demonstração, em nada diferente daquela feita uma semana antes, quando ele pedira ao assistente do legista para demonstrar em Lankford como o osso hioide da vítima fora esmagado durante o estrangulamento. Acrescentei que instruir o detetive a fazer a ligação para o número em questão era o modo mais rápido e fácil de determinar para quem Gloria Dayton ligara às 18h47 do dia 5 de novembro.
A juíza me autorizou a prosseguir. Me aproximei e entreguei o celular para Whitten, após acionar o viva voz. Pedi a ele que ligasse para 213-621-6700. Ele fez isso e pousou o aparelho sobre o peitoril do banco das testemunhas.
A ligação foi atendida por uma voz feminina após o primeiro toque.
— DEA, divisão de Los Angeles, como posso ajudar?
Dei um passo à frente, pegando o celular.
— Desculpe, foi engano — eu disse, antes de desligar.
Recuei de volta ao atril, saboreando o silêncio absoluto que se seguira à voz da atendente da DEA. Lancei um rápido olhar a Mallory Gladwell, minha jurada alfa, e vi uma expressão que acalentou meu espírito: ela estava com a boca entreaberta, no que considerei um momento de Oh, meu Deus.
Olhei outra vez para Whitten ao pegar a fotografia que deixara preparada embaixo do bloco de anotações amarelo. Pedi permissão para me aproximar da testemunha com a primeira prova da defesa.
A juíza autorizou e dei a Whitten a foto 20x25 que Fernando Valenzuela havia tirado de Gloria Dayton no exato momento em que lhe entregava a intimação no caso Moya.
— Detetive, entreguei ao senhor uma foto que foi relacionada como prova número um da defesa. É uma foto da vítima deste caso no momento em que recebia a intimação em uma matéria cível intitulada Moya versus Rollins. Gostaria de chamar sua atenção para a hora e a data da fotografia. Peço que leia em voz alta para o júri, por favor.
— Aqui diz 18h06, 5 de novembro de 2012.
— Obrigado, detetive. Desse modo, com base na foto e nos registros telefônicos da vítima, está correto concluir que, exatamente 41 minutos após Gloria Dayton ter sido intimada a depor sobre o caso Moya, ela telefonou para a divisão de Los Angeles da DEA em seu celular pessoal.
Whitten hesitou enquanto pensava em um jeito de sair daquele aperto.
— É impossível para mim saber se ela fez a ligação — disse ele, enfim. — Ela pode ter emprestado o telefone para outra pessoa.
Eu adorava quando policiais dissimulavam no banco das testemunhas. Quando tentavam se furtar à resposta óbvia e acabavam ficando com cara de tacho.
— Então o senhor diria que, 41 minutos após a srta. Dayton ter sido intimada a servir de testemunha em um caso envolvendo um traficante de drogas, alguma outra pessoa que não ela usou seu celular para ligar para a DEA?
— Não, não estou dizendo isso. Não tenho opinião a respeito. Eu falei que não sabemos quem estava com o celular dela naquele momento. Além do mais, não posso chegar aqui e dizer com certeza que foi ela que fez a ligação.
Balancei a cabeça, em uma demonstração fingida de frustração. A verdade era que a resposta de Whitten tinha me deixado pulando de alegria.
— Muito bem, detetive, então vamos seguir em frente. O senhor chegou a investigar esse telefonema ou a ligação de Gloria Dayton com a DEA?
— Não, não investiguei.
— O senhor chegou em algum momento a investigar se ela havia sido informante da DEA?
— Não, não investiguei.
Dava para perceber que a fachada de frieza de Whitten estava prestes a desmoronar. Ele não ia conseguir nenhuma proteção de Forsythe que, sem contar com uma objeção válida, estava afundado em sua cadeira, esperando pelo fim do prejuízo.
— Por que não, detetive? Não lhe pareceu que essa seria uma daquelas “possibilidades válidas de investigação” que o senhor mencionou há pouco?
— Para começar, eu não fazia ideia da intimação na época. Além disso, informantes não ligam para o número principal da DEA. Isso seria como entrar pela porta da frente com uma placa nas costas. Não havia motivo para desconfiar de uma ligação rápida para a DEA.
— Agora fiquei confuso, detetive. Então o senhor está dizendo que tinha consciência da ligação e que apenas não ficou desconfiado? Ou, como acho que disse uns minutos atrás, o senhor nem mesmo se lembra de ter verificado o número ou a ligação? Qual das duas opções?
— O senhor está distorcendo o que eu disse.
— Acho que não, mas me permita reformular. Antes de testemunhar hoje, o senhor sabia ou não que uma ligação do celular pessoal da vítima tinha sido feita para a DEA uma semana antes de sua morte? Sim ou não, detetive?
— Não.
— O.k. Então podemos afirmar com segurança que os senhores deixaram isso escapar?
— Eu não diria assim. Mas o senhor pode dizer o que bem entender.
Virei e olhei para o relógio, que marcava quinze para o meio-dia. Eu pretendia levar Whitten em outra direção, mas queria deixar os jurados ruminando a ligação no celular de Gloria durante o almoço. No entanto, se sugerisse outra vez para a juíza o recesso para o almoço, sabia que passaria a hora seguinte dentro da cela junto com meu cliente.
Virei de novo para Whitten, precisando esticar as coisas pelo menos por mais quinze minutos. Olhei para minhas anotações.
— Dr. Haller — insistiu a juíza. — Tem mais alguma pergunta para a testemunha?
— Hum, tenho, Excelência. Algumas, na verdade.
— Então sugiro que dê prosseguimento.
— Sim, Excelência — falei. — Ãhn, detetive Whitten, o senhor acabou de testemunhar que não sabia que Gloria Dayton fora intimada em um caso envolvendo Hector Moya. Lembra-se de quando ficou sabendo?
— Alguns meses atrás, este ano — respondeu Whitten. — O fato veio à tona com uma troca de publicações compulsórias.
— Então, em outras palavras, o senhor ficou sabendo da intimação recebida por ela porque a defesa informou, correto?
— Correto.
— E o que o senhor fez com a informação fornecida pela defesa?
— Verifiquei, como verifico todas as pistas que chegam.
— E o que o senhor concluiu depois de fazer essa verificação?
— Que não tinha relação com o caso. Que foi uma coincidência.
— Coincidência. O senhor continua achando que foi uma coincidência, agora que sabe que o celular pessoal de Gloria Dayton foi usado para ligar para a DEA de Los Angeles menos de uma hora depois de ela ter recebido a intimação em um caso em que era acusada de plantar uma arma em um alvo da DEA?
Forsythe protestou contra a pergunta com base em inúmeros motivos, e Leggoe pôde escolher um. Ela deferiu a objeção e me instruiu a reformular a pergunta, se quisesse que fosse respondida. Simplifiquei a frase e perguntei outra vez.
— Detetive, se soubesse no dia do assassinato de Gloria Dayton que uma semana antes ela havia ligado para a DEA, o senhor teria ficado suficientemente interessado em descobrir por quê?
Forsythe se levantou outra vez antes que eu terminasse, cortando a pergunta na mesma hora com seu protesto.
— A pergunta incita à especulação — argumentou.
— Deferido — disse a juíza Leggoe, sem me dar oportunidade de argumentar.
Mas tudo bem. Eu não precisava mais da resposta de Whitten, e apreciei o modo como a pergunta ficou ali pairando como uma nuvem sobre os jurados.
Percebendo que era a hora certa para interromper, a juíza decretou o intervalo para almoço.
Fui para a mesa da defesa e fiquei ao lado de meu cliente enquanto o júri saía em fila. A sensação era de ter me recuperado do fiasco com Trina Trixxx e de estar de volta ao topo. Dei uma olhada na plateia e vi apenas os homens de Moya nas cadeiras reservadas ao público. Cisco pelo jeito não voltara depois de levar Trina Rafferty para casa. E não vi Lorna em parte alguma.
Ninguém assistira. Ninguém que importava para mim.
37
Julgamentos com júri sempre me deixavam com um buraco no estômago. Algo na energia gasta na atenção constante com as manobras da promotoria e na preocupação com minhas próprias manobras ia me deixando com uma fome que começava assim que a juíza sentava na cadeira e continuava aumentando ao longo da manhã. Na hora do almoço, em geral não era uma salada que me passava pela cabeça. Normalmente, eu estava ávido por uma refeição substanciosa que me sustentasse pelo resto da tarde.
Fiz algumas ligações e Jennifer, Lorna, Cisco e eu concordamos em nos encontrar no Traxx, em Union Station, assim eu poderia saciar minha fome. Faziam um hambúrguer excelente por lá. Cisco e eu devoramos o tradicional — carne vermelha, fritas e ketchup —, e as meninas saciaram o apetite com salada Niçoise e chá gelado.
Ninguém falou muito. Conversamos um pouco sobre Trina Rafferty, e Cisco se limitou a informar que alguma coisa ou alguém a deixara morrendo de medo e que ela se recusava a falar, mesmo informalmente. Porém, na maior parte do tempo, fiquei na minha, como um boxeador no canto, entre um assalto e outro, sem pensar nos rounds anteriores nem nos socos mal desferidos. Estava pensando apenas no gongo seguinte e em conseguir o nocaute.
— Alguma hora eles comem? — perguntou Jennifer.
A pergunta de algum modo interrompeu meus pensamentos e olhei para ela do outro lado da mesa, me perguntando o que eu não tinha percebido e qual era o assunto.
— Quem? — perguntei.
Ela gesticulou na direção do grande saguão da estação de trem.
— Aqueles caras.
Virei e olhei pela porta do restaurante para a gigantesca área de espera. Os homens de Moya estavam lá, sentados na primeira fila de poltronas estofadas de couro.
— Se comem, nunca vi — eu disse. — Quer mandar uma salada para eles?
— Eles não têm cara de apreciar salada — disse Lorna.
— São carnívoros — acrescentou Cisco.
Acenei, chamando a garçonete.
— Mickey, não — disse Jennifer.
— Relaxa — falei.
Pedi a conta para a garota. Era hora de voltar ao tribunal.
A sessão começou pontualmente à uma. Whitten voltou ao banco das testemunhas e parecia um pouco menos confiante do que pela manhã. Fiquei pensando que possivelmente tivesse dado uma calibrada para a tarde, virando um ou dois martínis na hora do almoço. Talvez todo aquele negócio do comportamento reservado na verdade encobrisse um problema com bebida.
Agora, tinha planejado usar Whitten para introduzir minha próxima testemunha. Meu caso era como um colar de testemunhas interligadas: a anterior servia para preparar o terreno para a seguinte. Chegara a vez de Whitten pavimentar o caminho para um homem chamado Victor Hensley, o supervisor de segurança no hotel Beverly Wilshire.
— Boa tarde, detetive Whitten — cumprimentei jovialmente, como se não fosse o mesmo advogado que o castigara na sessão da manhã. — Vamos voltar nossa atenção aqui para a vítima desse horrível crime, Gloria Dayton. Por acaso o senhor e seu parceiro, como parte da investigação, rastrearam os movimentos dela até a hora do crime?
Whitten fingiu que ajustava o microfone, de modo a ganhar tempo para pensar em como responder. Fiquei animado ao ver aquilo: significava que estava com o alerta ligado e precavido contra uma armadilha nas perguntas mais simples feitas por mim.
— Sim — ele disse, finalmente. — Fizemos uma linha do tempo para ela. Quanto mais perto da hora do crime, mais os detalhes nos interessavam.
— O.k., então os senhores verificaram o último programa que ela fez naquela noite?
— Verificamos.
— Conversaram com o homem que normalmente servia de motorista para ela ir aos pontos de encontro, correto?
— Isso, John Baldwin. Conversamos com ele.
— E o último programa dela foi no Beverly Wilshire, correto?
Forsythe se levantou e protestou, dizendo que eu repassava uma linha do tempo já estabelecida por Whitten durante a inquirição que ele próprio fizera na fase da promotoria. A juíza concordou e me pediu para avançar ou mudar de tópico.
— O.k., detetive, como testemunhado antes, houve um desentendimento naquela noite entre a vítima e o réu, estou correto?
— Se quiser chamar assim.
— Como o senhor chamaria, então?
— Está falando de antes de ele ter matado a garota?
Olhei para a juíza e abri as mãos, em um gesto fingido de perplexidade.
— Excelência...
— Detetive Whitten — disse a juíza —, por favor se abstenha de comentários tendenciosos. Cabe ao júri determinar a culpa ou a inocência do réu.
— Peço desculpas, Excelência — disse Whitten.
Fiz a pergunta outra vez.
— É. Eles tiveram um desentendimento.
— E esse desentendimento foi sobre dinheiro, correto?
— Sim. La Cosse queria a parte dele de um programa, e Gloria Dayton disse que não tinha tido programa nenhum, que não tinha ninguém no quarto para onde mandaram ela ir.
Apontei o chão, como se apontasse o momento que ele acabara de descrever.
— O senhor e seu parceiro investigaram o desentendimento para determinar quem tinha razão e quem estava errado?
— Se está perguntando se a gente checou se a vítima estava mesmo escondendo alguma coisa de La Cosse, é, a gente fez isso. Determinamos que o quarto para onde La Cosse tinha mandado a vítima ir estava desocupado e que o nome que La Cosse disse ter fornecido era do hóspede que estava no quarto antes, mas que já tinha ido embora do hotel. Não tinha ninguém naquele quarto quando ela foi para o hotel. Ele matou a garota por ela esconder um dinheiro que não tinha.
Pedi à juíza para revogar a última frase de Whitten, por fugir da pergunta e ser tendenciosa. Ela concordou e instruiu o júri a ignorar o que ele dissera, se é que isso ajudava em alguma coisa. Fui em frente, bombardeando Whitten com uma nova série de perguntas.
— O senhor verificou se o Beverly Wilshire tinha câmeras de segurança instaladas no local, detetive Whitten?
— Verifiquei, e tinha.
— O senhor reviu algum vídeo da noite em questão?
— Fomos até a sala da segurança do hotel e checamos as gravações, sim.
— E o que conseguiram fazendo isso, detetive Whitten?
— Eles não têm câmeras nos corredores. Mas, pelo que vimos das câmeras no saguão e nos elevadores, concluímos que não tinha ninguém no quarto para onde ela foi mandada. Ela chegou até a conversar no balcão da recepção e confirmaram isso. Dá para ver na gravação.
— Por que o estado não apresentou esse vídeo para o júri durante a fase da promotoria no julgamento?
Forsythe protestou, dizendo que a pergunta era argumentativa e irrelevante. A juíza Leggoe concordou e deferiu a objeção, mas aqui também a pergunta era mais importante do que a resposta. Eu queria que os jurados desejassem ter visto o vídeo, fosse ou não pertinente para o caso.
Prossegui.
— Detetive, como o senhor explica a discrepância entre Andre La Cosse ter marcado o encontro no Beverly Wilshire e Gloria Dayton ter ido até lá e encontrado o quarto desocupado?
— Não tenho uma explicação.
— Isso não incomoda o senhor?
— Claro que sim, mas nem todas as pontas soltas são resolvidas.
— Bom, então nos diga, o que o senhor acha que aconteceu para explicar o que parece ter sido algum tipo de confusão por parte de Andre La Cosse?
Forsythe protestou, dizendo que a pergunta pedia especulação. Dessa vez a juíza indeferiu, dizendo que queria ouvir a resposta do detetive.
— Não tenho uma resposta para isso, na verdade — disse Whitten.
Olhei minhas anotações para conferir se esquecera alguma coisa e então lancei um olhar para a mesa da defesa, para ver se Jennifer tinha algo a me lembrar. Aparentemente não. Agradeci à testemunha e disse à juíza que não tinha mais perguntas.
Forsythe foi até o atril para ver se conseguia consertar os danos que eu causara à promotoria durante a sessão da manhã. Teria sido melhor para ele deixar para lá, porque ficou parecendo — ao menos para mim — que estava mais preocupado com firulas do que com a argumentação em si. Ele mencionou que Whitten trabalhara infiltrado como agente de narcóticos no começo da carreira. Desse modo, teve várias fontes confidenciais que lhe passavam informações. Nenhuma delas, testemunhou, o contatava ligando para o número principal da delegacia, o que teria sido raro e perigoso. Todos recebiam números particulares para entrar em contato.
Aquilo tudo era muito interessante, mas não esclarecia nada sobre as circunstâncias de Gloria Dayton e me propiciou um cenário fácil de montar no momento da contrainquirição. Nem sequer fui ao atril com meu bloco de anotações.
— Detetive Whitten, quanto tempo faz que o senhor trabalhou infiltrado como agente de narcóticos?
— Fiz isso por dois anos: em 2000 e em 2001.
— O.k., e o senhor ainda tem o mesmo número de celular daquela época?
— Não, estou na seção de homicídios, agora.
— O senhor tem um número novo.
— Isso.
— Certo, e se um de seus informantes de 2001 quisesse ligar para o senhor hoje para passar uma informação que julgasse ser útil?
— Bom, eu mandaria essa pessoa procurar os investigadores de narcóticos atuais.
— O senhor não está entendendo a pergunta. Como essa antiga fonte sua chegaria até o senhor, na medida em que o antigo método de contato não existe mais?
— Tem muitas maneiras diferentes.
— Como por exemplo ligar para o número principal da delegacia e mandar chamá-lo?
— Não imagino um informante que queira continuar sendo informante fazendo isso.
Whitten entendeu o que eu queria e se recusou obstinadamente a ceder. Mas não fazia diferença. Eu tinha certeza de que o júri entendera: não havia outra maneira de Gloria Dayton contatar o agente Marco após tantos anos a não ser ligando para o número principal da DEA.
Encerrei e me sentei. Whitten foi liberado e chamei minha testemunha seguinte, Victor Hensley.
Hensley era uma testemunha cavalo de Troia. Era o décimo sexto nome na lista de testemunhas original entregue pela defesa antes do início do julgamento. Seguindo o protocolo judiciário, cada nome na lista de testemunhas era seguido de uma breve descrição de quem era e o que se esperava do depoimento. Entretanto, ao colocar o nome de Hensley, eu não quis revelar para a promotoria meu verdadeiro propósito: o de usá-lo para introduzir os vídeos de segurança do Beverly Wilshire como provas da defesa. Assim, relacionei a ocupação de Hensley e simplesmente o descrevi como uma testemunha de corroboração. Minha esperança era de que Forsythe e seu investigador vissem Hensley como uma testemunha destinada apenas a confirmar que ninguém havia se hospedado no quarto à porta do qual Gloria Dayton bateu na noite de sua morte.
Como veríamos em uma ligação por formalidade, feita para confirmar sua presença, Hensley relatou a Cisco que, durante o período que precedeu o julgamento, recebera apenas uma breve visita de Lankford e em nenhum momento sequer conversara com Forsythe. Tudo isso me pareceu muito promissor. Quando Hensley, com uma pasta de couro muito elegante contendo suas anotações dentro, subiu ao banco das testemunhas, percebi que tinha uma boa chance de não só manter o embalo iniciado naquela manhã com Whitten, como também de intensificá-lo.
Hensley beirava os sessenta anos e tinha toda pinta de tira. Depois que fez o juramento, mencionei brevemente seu currículo: antigo detetive pelo Departamento de Polícia de Beverly Hills, Hensley passou a trabalhar na segurança do Beverly Wilshire após se aposentar. Em seguida perguntei se a equipe de segurança do hotel conduzira uma investigação própria sobre o papel desempenhado pelo estabelecimento nas horas que antecederam a morte de Gloria Dayton.
— Sim, nós investigamos — respondeu ele. — Assim que ficamos sabendo que o hotel tivera uma participação periférica no caso, fomos checar.
— E o senhor tomou parte na investigação?
— Tomei. Fui o encarregado dela.
Em seguida, conduzi Hensley por uma série de perguntas e respostas que esboçavam como ele havia trabalhado com os detetives do DPLA e confirmado que Gloria Dayton havia entrado no hotel aquela noite e batido na porta de um quarto. Ele confirmou também que o referido quarto estava vazio e que não havia ninguém hospedado nele.
Com meu cavalo de Troia dentro dos portões da cidadela, pus mãos à obra.
— Certo. Desde o início, o réu tem afirmado para a polícia que um suposto cliente ligou do Beverly Wilshire dizendo que estava nesse quarto. Isso é possível?
— Não. É impossível que tivesse alguém hospedado naquele quarto.
— Mas daria para alguém ter ficado naquele quarto de algum modo e ter feito a ligação?
— Tudo é possível. Teria de ser alguém com a chave.
— Uma chave eletrônica?
— Isso.
— O senhor verificou se alguém se hospedou naquele quarto na noite anterior?
— Claro, verificamos, e realmente havia hóspedes naquele quarto na noite anterior, um sábado. Tivemos uma recepção de casamento no hotel e os noivos se hospedaram naquela suíte.
— A que horas é o check-out?
— Meio-dia. Mas eles saíram mais tarde porque tinham um voo à noite para o Havaí. Como eram recém-casados, foi uma gentileza do hotel permitir que ficassem até mais tarde. Eles liberaram o quarto às 16h25, de acordo com nossos registros, ou seja, provavelmente saíram do quarto às 16h15, por aí. Tudo isso foi relatado na nossa investigação.
— Então o quarto ficou ocupado até por volta das 16h15 e depois só voltou a ser reservado no domingo à noite.
— Correto. Por causa do atraso no check-out, ele não entrou na lista de quartos disponíveis, porque as camareiras só iam deixar pronto bem mais tarde.
— E se alguém teve acesso a esse quarto, se conseguiu entrar de algum modo, então essa pessoa teria conseguido usar o telefone para ligar, não é?
— Isso mesmo.
— Uma ligação de fora do hotel teria sido transferida para o quarto, se a pessoa que ligou pedisse?
— A orientação no hotel é de que nenhuma ligação pode ser transferida para um quarto sem que a pessoa se refira ao hóspede pelo nome. Você não pode simplesmente ligar e pedir o quarto 1210, por exemplo. Precisa saber o nome do hóspede registrado. Então a resposta é não. Essa ligação não teria sido passada para o quarto.
Balancei a cabeça pensativamente antes de continuar.
— Qual era o nome dos recém-casados que ficaram na suíte na noite anterior?
— Daniel e...
Ele abriu a pasta amarela e verificou as anotações da investigação.
— ...Laura Price. Mas eles já tinham feito o check-out e estavam a caminho do Havaí no momento em que todos esses acontecimentos estavam ocorrendo.
— Alguns dias antes ao longo deste julgamento, a promotoria apresentou um vídeo do interrogatório da polícia com o réu, Andre La Cosse. O senhor está familiarizado com essa gravação?
— Não, eu não vi essa gravação.
Pedi permissão à juíza para mostrar outra vez parte do interrogatório na tela. No trecho, Andre La Cosse dizia ao detetive Whitten que ele recebeu uma ligação bloqueada de alguém chamado Daniel Price por volta das quatro e meia da tarde anterior ao assassinato. Como medida de segurança, Andre pediu um número para ligar de volta e o homem forneceu o telefone e o quarto no Beverly Wilshire. La Cosse disse que retornou a ligação para o hotel, pediu o quarto de Daniel Price e foi transferido. Eles agendaram o serviço de acompanhante de Giselle Dallinger para as oito da noite.
Desliguei o vídeo e olhei para Hensley.
— Sr. Hensley, seu hotel por acaso guarda registros de ligações de fora feitas para os quartos?
— Não, só das ligações feitas do hotel para fora, porque vão para a conta do hóspede.
— Como o senhor explicaria que o sr. La Cosse tinha o nome e o número do quarto corretos quando ligou para o hotel?
Hensley movimentou a cabeça.
— Não sei explicar.
— É possível que, em decorrência do check-out tardio dos recém-casados, o nome Daniel Price continuasse na lista de hóspedes usada pela telefonista do hotel?
— É possível. Mas, no momento em que fizessem o check-out, o nome teria sido removido da lista de hóspedes atualizada.
— Isso é um procedimento manual ou automático?
— Manual. O nome é deletado da lista de hóspedes atualizada no balcão da recepção quando a pessoa fecha a conta.
— Quer dizer que, se o funcionário encarregado da tarefa no balcão da recepção fica ocupado com outras coisas ou outros hóspedes, o procedimento pode demorar um pouco, correto?
— Pode ter acontecido.
— Pode ter acontecido — repeti. — O horário de check-in no hotel não é às três?
— É, isso mesmo.
— O balcão da recepção em geral não fica muito atarefado nessa hora?
— Tudo depende do dia da semana, e os check-ins de domingo normalmente são mais tranquilos. Mas o senhor tem razão, pode ser que estivesse agitado na recepção.
Aquilo tudo não me desagradava, mas achei que o júri podia estar começando a ficar entediado. Era hora de abrir o alçapão na barriga do cavalo de Troia. Hora de sair do esconderijo e atacar.
— Sr. Hensley, vamos avançar um pouco. O senhor disse em seu primeiro testemunho que a investigação do próprio hotel confirmou que a vítima, Gloria Dayton, entrara no hotel na noite do dia 11 de novembro. Como confirmaram isso?
— Assistimos ao vídeo das câmeras e não demorou para encontrar a garota.
— E puderam rastrear Gloria pelas diferentes câmeras e gravações conforme ela circulava pelo hotel, correto?
— Isso mesmo.
— O senhor trouxe uma cópia desse vídeo ao vir para o tribunal hoje?
— Sim, trouxe.
Ele pegou um disco em um dos bolsos da pasta de couro e segurou por um momento.
— O senhor chegou a entregar uma cópia dessa gravação de vídeo para os investigadores do DPLA que estavam trabalhando no caso?
— Os detetives apareceram no início da investigação e assistiram às imagens sem edição. Isso foi antes de montarmos um único vídeo acompanhando pelas câmeras a mulher em quem eles estavam interessados. Mais tarde juntamos tudo e deixamos o material à disposição, mas ninguém apareceu para pegar, a não ser a questão de dois meses atrás.
— Quem apareceu? O detetive Whitten ou seu parceiro?
— Não, foi o sr. Lankford, do Gabinete da Promotoria. Eles estavam se preparando para o julgamento e foram buscar o que a gente tinha.
Fiquei com vontade de virar e olhar para Forsythe, para tentar deduzir se ele havia assistido ao vídeo — porque tinha certeza absoluta de que aquilo nunca chegara até mim em nenhuma parte da publicação compulsória que me fora entregue.
Mas me segurei e não olhei para o promotor, porque não queria abrir o jogo. Ainda não, pelo menos.
— Está vendo o sr. Lankford aqui no tribunal hoje? — perguntei a Hensley.
— Sim, estou.
Então pedi à juíza que instruísse Lankford a ficar de pé, e Hensley o identificou. Lankford me fuzilou, com olhos cinzentos e frios como uma manhã de inverno. Depois que voltou a sentar, virei para a juíza e perguntei se ambas as partes podiam se aproximar. A juíza assentiu e sabia exatamente sobre o que eu ia falar.
— Não me diga, dr. Haller. O senhor não recebeu os vídeos.
— Isso mesmo, meritíssima. A testemunha diz que a promotoria ficou com esse material durante dois meses e nem sequer um segundo das imagens foi entregue à defesa na publicação compulsória. Isso é uma violação direta d...
— Excelência — interrompeu Forsythe. — Nem eu vi esses vídeos, então...
— Mas seu investigador recebeu a gravação — disse a juíza, em um tom de incredulidade que deixou claro para mim que ficaria do meu lado naquela questão.
— Excelência — gaguejou Forsythe —, não sei como explicar isso. Se puder questionar meu investigador a portas fechadas, tenho certeza de que existe uma explicação. O que importa é que ambas as partes estão de acordo quanto à vítima ter visitado esse hotel nas horas que precederam sua morte. Isso não é motivo de discórdia, então a transgressão aqui é mínima. Ninguém saiu no prejuízo, meritíssima. Peço que continuemos com o julgamento.
Assenti devagar.
— Meritíssima, não tenho como saber do prejuízo sem assistir aos vídeos.
A juíza fez um gesto com a cabeça, concordando.
— De quanto tempo precisa, dr. Haller?
— Não sei. Pode ser muita coisa. Uma hora?
— Tudo bem. Uma hora. Pode usar a sala de reuniões no fim do corredor. Meu assistente tem a chave. É só isso, senhores.
Enquanto voltava para a mesa da defesa, ergui o rosto na direção da balaustrada e peguei Lankford olhando para mim.
38
Tomei o iPad de Lorna emprestado após a juíza determinar o intervalo de uma hora. Como já examinara os vídeos do Beverly Wilshire à vontade, meu objetivo ao me queixar da violação das normas pela promotoria era na verdade uma tentativa de disfarçar minha própria violação ao não fornecer os mesmos vídeos para Forsythe. Fosse como fosse, eu não precisava de uma hora para estudá-los novamente. Em vez disso, aproveitei o tempo para assistir ao vídeo de vigilância da casa de Stratton Sterghos mais uma vez e planejar o melhor uso para essas imagens na estratégia de derrubar Marco e Lankford e obter o veredicto de inocente para Andre La Cosse. O vídeo era de fato a bomba-relógio que eu havia esperado obter. Estava só aguardando a promotoria passar por perto. Quando detonasse o explosivo, o caso de Forsythe iria pelos ares.
Meu plano para o caso era conduzir as coisas até a hora do encerramento na sexta-feira e finalizar a apresentação da defesa pouco antes de o júri ser liberado para o fim de semana. Isso deixaria os jurados com dois dias inteiros para considerar os fatos apresentados antes de passarmos aos arrazoados finais. Significava que muito provavelmente sexta de manhã seria o momento de introduzir o vídeo de Sterghos. Eu tinha muitas testemunhas para convocar até lá.
Às 15h25, bateram na porta uma única vez e o assistente de Leggoe entrou na sala. Dizia HERNANDEZ em seu crachá.
— Está na hora — falou.
Quando voltei à mesa da defesa, o controle remoto do vídeo e a caneta laser estavam à minha espera.
Assim como meu cliente. Percebi que a decadência de Andre agora podia ser medida em horas, não em dias. Ele efetivamente se deteriorara durante o tempo em que fiquei na sala de reuniões e ele na cela do fórum.
Apertei suavemente seu braço, sob a manga. Parecia fino como um cabo de vassoura.
— Estamos indo bem, Andre. Aguenta firme.
— Você já resolveu se eu posso testemunhar?
Aquela era uma conversa que vínhamos tendo durante o julgamento. Ele queria testemunhar e dizer publicamente que era inocente. Acreditava — não sem alguma razão — que homens culpados permanecem de boca fechada e inocentes se pronunciam. Eles testemunham.
O problema era que, embora Andre não fosse um assassino, era um homem envolvido em uma atividade criminosa. Além disso, seu deplorável estado físico provavelmente não serviria para atrair a simpatia do júri. Eu preferia que não testemunhasse e achava que não era necessário. Contrariando meus instintos iniciais, passei a acreditar que a melhor chance de conseguir inocentá-lo era mantê-lo na cadeira.
— Ainda não — falei. — Minha esperança é deixar tão óbvio que você é inocente que não vai fazer diferença.
Ele balançou a cabeça, desapontado com minha resposta. Percebi que a perda de peso desde o início da seleção do júri, há duas semanas, fora tão acentuada que eu precisava pensar em conseguir um terno que se ajustasse melhor em seu corpo. Havia apenas quatro ou cinco dias antes de os jurados começarem a deliberar, mas eu achava que era a coisa certa a fazer.
Escrevi uma anotação a respeito no bloco amarelo, arranquei a folha e estendi por cima da balaustrada para Lorna, no exato momento em que a juíza deixava o gabinete e sentava em sua cadeira.
Victor Hensley foi chamado de novo para o banco das testemunhas e a juíza Leggoe deu autorização para que eu me posicionasse no poço enquanto exibia a montagem de vídeos do Beverly Wilshire e fazia perguntas a Hensley.
Primeiro determinei, por intermédio de Hensley, a data e a hora do vídeo que iríamos assistir. Em seguida lhe pedi para explicar como as tomadas de várias câmeras eram editadas, de modo que Gloria Dayton pudesse ser rastreada circulando pelo hotel. Também fiz Hensley declarar que não havia câmeras nos corredores, por questão de política de privacidade. A gerência do hotel aparentemente achava que era ruim para os negócios filmar quem entrava e saía dos quartos e quando.
Entreguei a Hensley a caneta laser, para que pudesse, enquanto narrava, manter o ponto vermelho em Gloria à medida que ela se movia. Percebi que o vídeo era o primeiro vislumbre que os jurados tinham de Gloria com vida. Durante a fase da promotoria, tinham visto fotos da autópsia, fotos de identificação policial e imagens tiradas dos sites de Giselle Dallinger. Mas o vídeo mostrava Gloria em movimento e, quando olhei para os membros do júri, constatei que a observavam com muita concentração.
Era o que eu queria, porque minha próxima série de perguntas para Hensley levaria todos para uma nova direção. Peguei de volta o controle remoto e a caneta laser e recuei no poço. Comecei a passar a gravação desde o início e então paralisei a imagem quando Gloria passava pelo saguão, diante do homem de chapéu.
— Agora, sr. Hensley, pode olhar para a tela e dizer ao júri se há algum membro de sua equipe presente no saguão?
Hensley disse que o homem posicionado perto dos elevadores era parte da equipe de segurança.
— Mais alguém que o senhor consiga ver?
— Não, creio que não.
— E quanto a esse homem aqui?
Parei com o pontinho do laser no homem de chapéu, que estava sentado no divã circular, olhando para o telefone.
— Bom — disse Hensley. — Não dá para ver o rosto nesta imagem. Se puder passar até conseguirmos ver o rosto...
Acionei o botão do play e o vídeo avançou. Eu atraíra todos os olhares para o homem do chapéu, mas em nenhum momento ele mudava a posição da cabeça, de modo que seu rosto não podia ser visto. A gravação dava um pulo quando Gloria se dirigia à área dos elevadores e depois entrava em um deles. A tela ficava escura por alguns segundos e na sequência o vídeo mostrava Gloria voltando ao elevador no oitavo andar e descendo no saguão.
Quando o vídeo pulava outra vez para o momento em que Gloria atravessava o saguão para ir embora, acionei o botão de câmera lenta do controle remoto e pus o ponto do laser sobre o homem de chapéu mais uma vez, para orientar os jurados. Fiquei em silêncio. Todos os olhos permaneciam colados na tela. Segurei o ponto vermelho no homem do chapéu quando ele se levantava e saía atrás de Gloria. Então pausei a imagem um momento antes que sumisse da tela.
— Esse homem trabalha para o hotel? — perguntei.
— Não consegui ver o rosto dele, mas não, acho que não — disse Hensley.
— Se o senhor não conseguiu ver o rosto dele, como pode saber que não é um empregado?
— Porque ele precisaria ser um floater e não temos floaters.
— Pode explicar para o júri o que quer dizer com isso?
— Nossa segurança é treinada para ocupar um posto. Temos pessoas em determinados postos, como o homem perto dos elevadores. Ficamos posicionados de forma visível. Crachás com nome, paletós verdes. Não usamos profissionais à paisana. Não temos esses floaters, caras que circulam por aí e fazem o que bem entendem.
Comecei a andar de um lado para outro diante da bancada do júri, primeiro indo na direção do banco das testemunhas e depois fazendo meia-volta para atravessar o poço. De costas para Hensley e olhando para Lankford, sentado junto à balaustrada, fiz a pergunta seguinte.
— E quanto a um segurança particular, sr. Hensley? Seria possível esse homem estar trabalhando como guarda-costas para alguém hospedado no hotel?
— É possível. Mas em geral os seguranças particulares avisam a gente de sua presença no hotel.
— Entendo. Então o que o senhor acha que esse homem estava fazendo ali?
Forsythe protestou, dizendo que eu incitava a testemunha a especular.
— Excelência — respondi. — O sr. Hensley tem vinte anos de experiência como policial e detetive. Depois de se aposentar, passou os últimos dez anos trabalhando na segurança do hotel. Ele esteve nesse saguão milhares de vezes e precisou resolver diversas situações. Acho que está mais do que qualificado para fornecer uma observação sobre o que está vendo neste vídeo.
— Protesto indeferido — disse Leggoe.
Acenei para que Hensley respondesse à pergunta.
— Pode apostar que está seguindo a mulher — sentenciou.
Esperei um pouco, querendo enfatizar a resposta com o silêncio.
— O que leva o senhor a dizer isso, sr. Hensley?
— Bom, pelo jeito ele já estava ali esperando antes mesmo dela chegar. Depois, quando ela volta para o térreo e sai, ele segue. Dá para perceber quando ela faz meia-volta de repente para dar uma passada no balcão da recepção. Isso pega o sujeito de surpresa e ele precisa mudar de direção. Depois, quando ela vai embora, ele vai atrás.
— Vamos assistir de novo.
Passei o vídeo todo outra vez, agora em tempo real, mantendo o laser sobre o chapéu.
— Que outras observações o senhor tem a fazer sobre o vídeo, sr. Hensley? — perguntei em seguida.
— Bom, para começar, ele sabia sobre nossas câmeras — disse Hensley. — Em momento algum a gente vê o rosto, por causa do chapéu. Ele sabia exatamente onde sentar e como usar o chapéu para não ser visto. É um homem misterioso, sem dúvida.
Fiz força para não sorrir. Hensley era a testemunha perfeita: honesto e direto. Mas chamar o homem do chapéu de “homem misterioso” estava além das minhas expectativas. Foi perfeito.
— Vamos resumir, sr. Hensley. O que hoje contou aqui é que Gloria Dayton chegou ao hotel na noite de 11 de novembro e subiu para o oitavo andar. Lá presumivelmente bateu à porta de um quarto onde não havia ninguém hospedado. Isso está correto?
— Sim, correto.
— E quando ela voltou a descer pelo elevador e saiu do hotel, foi seguida por um “homem misterioso”, que não era empregado do hotel. Correto?
— Correto, também.
— E duas horas depois estava morta.
Forsythe protestou com pouca convicção, alegando que a pergunta estava além do conhecimento e da competência de Hensley.
Leggoe deferiu o protesto, mas não fazia diferença.
— Então não tenho mais perguntas — eu disse.
Forsythe se levantou para a contrainquirição, mas em seguida me surpreendeu.
— Excelência, a promotoria não tem perguntas desta vez.
Devia ter concluído que o melhor caminho para fugir do desastre do “homem misterioso” era deixar a questão de lado, não lhe dar qualquer credibilidade, agir como se não fizesse diferença — e depois bater em retirada com Lankford e bolar algum tipo de resposta na refutação.
O problema era que eu não queria pôr outra testemunha no banco. Porém, eram apenas quatro e dez, provavelmente cedo demais na estimativa da juíza para encerrar o julgamento nesse dia.
Fui até a balaustrada atrás da mesa da defesa e me curvei para sussurrar para Cisco.
— Fala alguma coisa para mim — eu disse.
— Falar o quê? — respondeu ele.
— Finge que você está me contando sobre nossa próxima testemunha e balança a cabeça.
— Bom, é... Quer dizer, a gente não tem outra testemunha, a menos que você queira que eu vá até o hotel onde escondemos Budwin Dell e traga ele aqui.
Ele balançou a cabeça, fazendo a simulação perfeitamente, depois continuou.
— Mas agora são quatro e dez e quando eu estiver de volta já vai ser cinco horas.
— Está ótimo.
Balancei a cabeça e voltei para a mesa da defesa.
— Dr. Haller, pode chamar sua próxima testemunha — disse a juíza.
— Meritíssima... eu, ãhn, não estou neste momento com minha próxima testemunha pronta. Achei que o dr. Forsythe teria ao menos algumas perguntas para o sr. Hensley e que isso duraria até as quatro e meia ou cinco horas.
A juíza franziu o rosto.
— Não gosto de encerrar mais cedo. Disse isso para o senhor no começo do julgamento. Avisei que tivesse suas testemunhas prontas.
— Compreendo, Excelência. Eu de fato tenho uma testemunha, mas ela está em um hotel a vinte minutos daqui. Se quiser, posso pedir para meu investigador...
— Não seja ridículo. Só conseguiríamos começar perto das cinco. E quanto ao sr. Lankford? Ele está na sua lista de testemunhas.
Virei e olhei para Lankford, como que levando isso em consideração. Depois voltei a fitar a juíza.
— Não estou preparado hoje para o sr. Lankford, Excelência. Não poderíamos encerrar por hoje e compensar o tempo perdido encurtando nossos recessos durante os próximos dias?
— E penalizar o júri por sua falta de preparo? Não, não vamos fazer isso.
— Lamento, meritíssima.
— Muito bem, estou encerrando a sessão da corte por hoje. Ficaremos em recesso até as nove horas de amanhã. Sugiro que esteja preparado para começar então, dr. Haller.
— Sim, Excelência.
Ficamos de pé enquanto o júri saía em fila única. Andre precisou agarrar meu braço para se levantar.
— Tudo bem com você? — perguntei.
— Tudo bem. Você foi ótimo hoje, Mickey. Muito bom.
— Assim espero.
Os guardas vieram buscá-lo em seguida. Andre seria levado outra vez para a cela na lateral do fórum. Lá trocaria o terno folgado por um uniforme laranja, depois seria enfiado em um ônibus e despachado de volta para a Men’s Central. Se houvesse algum atraso no processo, perderia a hora da refeição na cadeia e iria para a cama de estômago vazio.
— Só mais alguns dias, Andre.
— Eu sei. Estou aguentando firme.
Fiz que sim e os guardas o levaram. Fiquei observando conforme era conduzido pela porta de aço.
— Isso não foi comovente?
Virei. Era Lankford, que tinha se aproximado da mesa da defesa. Olhei por cima do ombro dele para Forsythe. O promotor estava de pé atrás de sua mesa, tentando enfiar uma grossa pilha de papéis em sua pasta executiva. Não estava prestando atenção em nós. A plateia estava vazia. Lorna saíra para buscar o carro, acompanhada por um dos homens de Moya. O outro tinha ido para o corredor, esperar que eu saísse. Cisco e Jennifer também já haviam deixado a sala do tribunal.
— É mesmo comovente, Lankford — eu disse. — Sabe por quê? Porque é um homem inocente, e não se vê muito disso por aqui.
Ergui a mão, como que dizendo, “quem eu quero enganar?”.
— Mas é claro que você, mais do que ninguém, sabe disso, não é? Quer dizer, essa parte sobre ser inocente.
Lankford balançou a cabeça, como se não entendesse.
— Acha mesmo que vai livrar a cara dele com essa defesa do homem misterioso?
Sorri enquanto começava a guardar documentos e anotações na pasta.
— Na verdade, estamos chamando de a defesa “Gato do Chapéu”. E, acredite em mim, é tiro e queda.
Ele não retrucou nada e parei o que estava fazendo para encará-lo.
— Um-Eco-Robert-cinco-seis-sete-seis.
— O que é isso, o telefone da sua mãe?
— Não, Lankford, é a placa do seu carro.
Vi a mudança em seus olhos, em uma fração de segundo. Era compreensão, ou talvez medo. Fui em frente, improvisando, mas seguindo um caminho instintivo rumo a um destino incerto.
— Los Angeles é uma cidade vigiada por câmeras. Você devia ter esfriado a placa antes de começar a seguir Gloria. Sabe a testemunha seguinte que a juíza queria escutar hoje? Está trazendo um vídeo de fora do hotel e vai identificar você como o gato do chapéu.
A expressão nos olhos de Lankford deixou de ser fugaz. Era o olhar feroz de uma fera encurralada.
— E depois você vai ter que explicar para o júri por que estava seguindo Gloria Dayton antes de ela ser assassinada e antes de você ser designado para o caso.
Lankford de repente partiu para cima de mim, agarrando minha gravata para me puxar do outro lado da mesa. Mas a gravata saiu na sua mão e ele quase caiu para trás, desequilibrado.
— Ei! Algum problema aí?
Forsythe percebera. Lankford se recompôs e olhou para o promotor.
— Não, problema nenhum.
Calmamente peguei a gravata de volta da mão de Lankford. Ele estava de costas para Forsythe e ficou me fuzilando com as duas bolas de gude pretas de seus olhos. Comecei a prender a gravata no lugar e me curvei para sussurrar.
— Lankford, vou fazer uma aposta no escuro, aqui. Não acho que você seja o assassino. Meu palpite é que você se meteu em algo complicado demais para o seu bico e depois não conseguiu mais tirar a mão da merda. Você foi usado. Encontrou ela para alguém e o cara cuidou do resto. Talvez você soubesse o que estava por vir, talvez não. De um jeito ou de outro, vai deixar um homem inocente pagar por isso?
— Vai se foder, Haller. Seu cliente é um lixo. Eles todos são.
Forsythe se aproximou de nós.
— Estou de saída, senhores. Vou perguntar mais uma vez, tem algum problema aqui? Será que preciso ficar para tomar conta dos dois?
Nenhum de nós olhou para o promotor. Eu me limitei a responder.
— Tudo bem. Eu só estava explicando para o... investigador Lankford por que uso gravata de presilha.
— Fascinante. Boa noite.
— Boa noite.
Forsythe passou pela porta divisória e atravessou o corredor central do tribunal vazio. Retomei com Lankford de onde havia parado antes da interrupção.
— Você tem menos de 24 horas para pensar como quer resolver essa parada. Amanhã seu amigão Marco vai dançar. Você pode dançar com ele ou usar a massa encefálica para sair dessa inteiro. Tem um jeito, você sabe.
Lankford balançou a cabeça devagar.
— Você não sabe de que porra está falando, Haller. Nunca soube. Não sabe com quem está lidando. Na verdade, não sabe porra nenhuma.
Balancei a cabeça como se achasse que havia sido devidamente repreendido.
— Então acho que a gente se vê amanhã.
Bati em seu braço como se me despedisse de um bom amigo.
— Não encosta a mão em mim, seu filho da puta — ele disse.
39
Instruído por Lorna, Cisco foi até o delivery do Mozza e trouxe pizza e vinho para a reunião pós-tribunal da noite. Avisei que estava liberado porque, pela primeira vez em duas semanas de julgamento e após mais de sete meses de preparação, parecia haver motivo para comemorar.
Embora fosse inesperada uma comemoração no meio do julgamento, minha maior surpresa foi ver Legal Siegel em uma cadeira de rodas na ponta da mesa. Ele tinha um tubo de oxigênio na cadeira e mastigava animado uma fatia de pizza.
— Quem soltou você? — perguntei.
— Sua garota aqui — disse Legal, apontando com a pizza para Jennifer. — Ela me salvou daquela gente. Bem na hora.
Fez um brinde com a fatia de pizza, segurando-a no alto com as duas mãos brancas e ossudas.
Balancei a cabeça e olhei para todo mundo. Acho que a relutância em comemorar qualquer coisa estava estampada no meu rosto.
— Vamos lá, finalmente tivemos um dia bom — disse Lorna, me passando uma taça de vinho tinto. — Aproveita.
— Só vou festejar quando isso terminar e a palavra “inocente” for escrita naquele quadro — falei, apontando para o quadro branco com a estratégia de defesa delineada.
Mesmo assim, aceitei a taça de vinho e uma fatia de pizza de calabresa, e sorri para os outros ao me dirigir à cadeira ao lado de Legal Siegel. Assim que todo mundo sentou, Lorna ofereceu um brinde a mim e, muito constrangido, ergui minha taça. Então aproveitei o momento para fazer meu próprio brinde.
— Aos deuses da culpa — disse. — Que eles possam soltar Andre La Cosse em breve.
Essas palavras foram um balde de água fria na animação geral, mas não pude evitar. Conseguir ou não uma sentença favorável era um tiro no escuro. Mesmo sabendo lá no fundo que você está sentado ao lado de um homem inocente na mesa da defesa, você também sabe que o veredicto é dado a contragosto por um sistema projetado para lidar apenas com culpados. Eu devia me dar por satisfeito em saber, independente da sentença, que fizera tudo ao meu alcance por Andre La Cosse.
Então limpei a garganta, ergui a taça e propus outro brinde.
— E a Gloria Dayton e Earl Briggs. Que nosso trabalho possa trazer justiça a eles.
Os demais fizeram coro, e um momento improvisado de silêncio se seguiu, como a lembrança de que havia vítimas demais nesse caso.
Quebrei o encanto fazendo todos voltarem ao caso em questão.
— Antes que todo mundo fique bêbado, vamos conversar sobre amanhã por alguns minutos.
Fui de um em um, apontando conforme dava ordens e fazia perguntas.
— Lorna, quero chegar um pouco mais cedo. Então me pega às sete e quarenta e cinco, o.k.?
— Bom, eu vou estar lá se você estiver lá.
Uma referência não muito velada ao meu atraso daquela manhã.
— Jennifer, você vai estar comigo amanhã ou tem compromissos na agenda?
— Vou estar lá de manhã. À tarde tenho uma audiência para alteração de hipoteca.
Mais um caso de execução, os únicos que ainda nos traziam algum dinheiro.
— Tudo bem. Cisco, como estamos com as testemunhas?
— Bom, você tem o Budwin escondido no Checkers. É só me dizer quando chegar a hora de levar o sujeito para o tribunal. Tem o cara da concessionária Ferrari em stand-by, pronto para comprovar o vídeo. E depois a grande questão. Marco. Ele vai aparecer ou não?
— Ele tem até as dez, então seria melhor eu conseguir pôr alguém no banco das testemunhas às nove, quando a juíza entrar. Então traz Budwin, primeira coisa.
— Pode deixar.
— Quando Moya chega?
— Eles não divulgam a hora exata por questão de segurança. Mas ele vai ser transportado de Victorville amanhã. Acho que você só pode contar com ele no tribunal na quinta.
— Serve.
As coisas pareciam encaixadas. Eu preferia segurar Budwin Dell, o negociante de armas, até saber se Marco iria testemunhar, mas não tinha escolha. Um julgamento era sempre uma obra em andamento e quase nunca se desenrolava do jeito planejado ou imaginado inicialmente.
— E que tal pôr Lankford antes de Marco? — perguntou Jennifer, examinando a ordem das testemunhas que eu escrevera na lateral do quadro branco. — Será que não dá certo?
— Não sei, preciso pensar sobre isso — eu disse. — Talvez dê.
— Não existe “não sei” nem “talvez” em um julgamento — proclamou Legal Siegel. — Você precisa ter certeza.
Pus meu braço em seu ombro e assenti, agradecendo o conselho.
— Ele tem razão. Legal sempre tem razão.
Todo mundo riu, inclusive o próprio Legal. Depois de resolver os assuntos de trabalho, voltamos a comer. Peguei uma segunda fatia de pizza e logo o vinho operou sua magia em todos os presentes. Os gracejos e as risadas continuaram, e tudo parecia às mil maravilhas no mundo da Haller & Associados. Ninguém pareceu notar que na verdade eu não tinha tocado no meu vinho.
Foi quando meu celular começou a vibrar. Retirei o aparelho do bolso, verificando a identificação da chamada antes de atender, porque não queria ser interrompido naquele momento.
L. A. COUNTY JAIL
Normalmente eu não atenderia um telefonema da cadeia depois do horário de expediente. Na maioria das vezes, trata-se de uma ligação a cobrar de alguém que pegou meu nome e meu número com outro detento. Em noventa por cento dos casos é alguém que alega ter dinheiro para um advogado particular, mas que no fim está mentindo sobre isso e sobre tudo mais. Mas eu sabia que daquela vez existia uma boa chance de ser Andre La Cosse, que se acostumara a me ligar da cadeia depois da sessão do tribunal para discutir os acontecimentos do dia e os próximos passos. Levantei e contornei a mesa, para sair da sala de reuniões e conseguir atender a ligação.
— Alô?
— Gostaria de falar com Michael Haller.
Não era Andre e não era uma ligação a cobrar. Instintivamente, fechei a porta da sala para me isolar um pouco mais do barulho.
— Aqui é Haller. Quem está falando?
— Aqui é o sargento Rowley, da Men’s Central. Estou ligando para informar que houve um incidente envolvendo seu cliente, Andre La Cosse.
Ele pronunciou “La Cosse” errado.
— Como assim? Que incidente?
Comecei a andar pelo loft, procurando me afastar da sala de reuniões.
— O detento foi atacado no início da noite, no centro de transporte do Criminal Courts Building. Outro preso está sendo investigado.
— Atacado? O que isso quer dizer? Como ele está?
— Ele foi esfaqueado diversas vezes, senhor.
Fechei os olhos.
— Ele morreu? Andre está morto?
— Não, senhor. Ele foi encaminhado em condições críticas para a ala penitenciária do County/USC Medical Center. Nenhum outro detalhe sobre seu estado está disponível no momento.
Abri os olhos, virei e inconscientemente ergui a mão esquerda, em um gesto de impotência. Uma dor aguda percorreu meu cotovelo, lembrando-me do meu ferimento, e baixei o braço para a lateral do corpo.
— Como pode ter acontecido uma coisa dessas? O que exatamente é o centro de transporte no CCB?
— O centro de transporte é uma área controlada no subsolo do fórum, onde as pessoas sob custódia entram nos ônibus para serem transportadas outra vez para os presídios e as detenções. Seu cliente ia ser transportado de volta para a Men’s Central quando ocorreu o ataque.
— Essas pessoas não ficam acorrentadas? Como é poss...
— Senhor, o incidente está sendo investigado e não posso...
— Quem é o investigador? Quero o número dele.
— Não estou autorizado a fornecer essa informação. Estou ligando apenas por cortesia para informar que houve um incidente e que seu cliente está no County/USC. Seu nome é o único aqui no formulário.
— Ele vai sobreviver?
— Não tenho essa informação, senhor.
— Você não sabe porra nenhuma, sabe?
Desliguei antes de escutar uma resposta. Comecei a voltar para a sala de reunião. Lorna, Cisco e Jennifer estavam atrás do janelão de vidro, me observando. Eles perceberam que tinha alguma coisa acontecendo.
— Pessoal — falei, assim que entrei. — Andre foi esfaqueado no fórum antes de entrar no ônibus de volta para a cadeia, agora à noite. Ele está no County/USC.
— Ai, meu Deus! — exclamou Jennifer, levando as mãos ao rosto.
Jennifer ficara sentada ao lado de Andre durante vários dias do julgamento, muitas vezes sussurrando em seu ouvido explicações sobre como eu estava procedendo com as testemunhas. Como eu estava ocupado demais trabalhando, ela tinha se tornado o contato mais próximo de Andre, o que criou um vínculo entre os dois.
— Como? — disse Cisco. — Quem?
— Não sei. Disseram que tem outro detento sendo investigado. Vamos fazer o seguinte. Estou indo para o County/USC para descobrir qual é o estado de saúde dele e para ver se consigo uma visita. Cisco, quero você na investigação. Não quiseram me dizer o nome do suspeito. Quero que descubra quem foi e qual a ligação que pode ter com Marco e Lankford.
— Você acha que eles estão por trás disso? — perguntou Lorna.
— Tudo é possível. Eu falei com Lankford hoje, depois do tribunal. Tentei dar uma balançada no investigador, mas ele não entregou os pontos. Vai ver que sabia do que estava para acontecer.
— Pensei que você tivesse arrumado o pessoal de Moya para proteger Andre — disse Jennifer.
— Na cadeia, sim — falei. — Mas seria impossível cobrir os ônibus e o tribunal. Não tinha como arrumar um guarda-costas.
— O que você quer que eu faça? — ela perguntou.
— Primeiro, quero que leve Legal de volta. Depois preciso que esboce um argumento contra a anulação do julgamento.
Jennifer pareceu voltar a si do choque momentâneo e se concentrar pela primeira vez no que eu acabara de falar.
— Isso signi...
— Fui informado de que ele está em estado crítico. Não sei o que isso quer dizer, se vai sobreviver ou não, mas duvido que possa comparecer ao tribunal em um futuro próximo. A decisão padrão em casos assim é a anulação do julgamento e o reinício depois da recuperação do réu. Se a própria Leggoe não deliberar dessa maneira, Forsythe vai fazer o requerimento, porque ele percebeu que as coisas começaram a desandar para a promotoria hoje. A gente precisa impedir isso. Estamos quase ganhando o caso. Vamos prosseguir com o julgamento.
Jennifer tirou um bloco e uma caneta de sua bolsa, que estava no chão.
— Então queremos continuar o julgamento com Andre in absentia? Não tenho certeza se vai colar.
— Eles prosseguem com casos em que acusados fugiram no meio do julgamento. Por que não nesse? Tem que ter um precedente. Se não tiver, a gente precisa criar um.
Jennifer fez um movimento com a cabeça.
— Em casos de fuga, o réu perde o direito de estar presente por conta das próprias atitudes. É diferente.
Sem interesse na discussão legal, Cisco passou da sala ao loft, para começar a fazer suas ligações.
— Não. É diferente mas é a mesma coisa — eu disse. — Tudo depende do juiz e do poder discricionário.
— Poder discricionário é um guarda-chuva gigante — disse Legal.
Concordei e apontei para ele.
— Ele tem razão, e a gente precisa encontrar espaço debaixo desse guarda-chuva.
— Bom, eu diria que no mínimo a gente vai precisar de uma procuração do Andre — disse Jennifer. — A juíza não vai nem considerar esse negócio todo se o Andre não tiver assinado uma, e a gente não sabe se ele está em condições de assinar ou de entender qualquer coisa.
— Pega seu computador e vamos redigir a procuração agora mesmo.
Havia uma impressora no balcão, sob o quadro branco. Tínhamos arrumado um jeito de imprimir no loft depois do acidente que destruiu meu carro e, de quebra, a impressora.
— Tem certeza de que ele vai ser capaz de assinar em sã consciência? — perguntou Jennifer.
— Não se preocupe — falei. — Escreve aí, eu consigo a assinatura.
Passei seis horas em uma sala de espera para familiares no andar de segurança máxima do County/USC. Durante as primeiras quatro, fui informado diversas vezes de que meu cliente estava na cirurgia. Depois, disseram que estava em recuperação, mas que eu não podia vê-lo porque ele não recobrara os sentidos. Durante todo esse tempo, em nenhum momento perdi a calma com ninguém. Não reclamei nem ergui a voz.
Mas às duas da manhã eu chegara ao limite da paciência e comecei a exigir o direito de ver meu cliente em intervalos de dez minutos. Tentei usar todo meu arsenal, ameaçando entrar com uma ação, chamar a mídia e até pedir a intervenção do FBI. Nada adiantou.
Mas então acabei recebendo duas atualizações de Cisco em sua investigação. No primeiro telefonema, ele confirmou grande parte do que já suspeitávamos: um outro detento que estivera no fórum para seu próprio julgamento atacara Andre, improvisando uma faca com um pedaço de metal. Embora algemado na cintura, como todos os homens que esperavam em fila para embarcar nos ônibus penitenciários, o suspeito deitou no chão e conseguiu passar a corrente da cintura por baixo dos pés, liberando seus movimentos o suficiente para atacar Andre e esfaqueá-lo sete vezes no peito e no abdômen, antes que fosse dominado pelos guardas do fórum.
No segundo telefonema, Cisco forneceu o nome do suspeito — Patrick Sewell — e disse que até o momento não encontrara nenhuma ligação, na presente circunstância ou por outros meios, do detento com o agente da DEA, James Marco, nem com o investigador da promotoria, Lee Lankford. O nome do suspeito me era familiar, e então me dei conta de que Sewell era réu em um julgamento de pena de morte que contava com a participação de meu meio-irmão policial. Lembrei que Harry dissera que Sewell fora trazido de San Quentin, onde já cumpria prisão perpétua. Isso me levou à conclusão de que Sewell era o assassino de aluguel perfeito. Ele não tinha nada a perder.
Instruí Cisco a continuar trabalhando naquilo. Se ele conseguisse obter a mais tênue conexão entre Sewell e Marco ou Lankford, eu seria capaz de fazer fumaça suficiente para obrigar a juíza Leggoe a pensar duas vezes antes de anular o julgamento.
— Deixa comigo — disse Cisco.
Eu não esperava menos do que isso.
Às três e dez da manhã, finalmente pude ver meu cliente. Fui escoltado por uma enfermeira e um agente penitenciário para a unidade de recuperação de cirurgia, anexa à UTI da ala médica. Por conta do risco de infecção para Andre, precisei vestir uma camisola hospitalar antes de entrar no quarto onde repousava seu frágil corpo, ligado a uma profusão de aparelhos, tubos e bolsas plásticas.
Parei na ponta do leito e fiquei observando a enfermeira verificar os aparelhos e erguer o cobertor sobre Andre para checar as bandagens que enfaixavam seu tronco todo. O corpo estava apoiado em um ângulo baixo no leito e notei que, junto à mão direita, havia um controle remoto para ajustar a inclinação. O pulso esquerdo estava algemado a um grosso aro de metal ligado à estrutura da cama. Mesmo com a vida do prisioneiro por um fio, não queriam correr o risco de uma possível fuga.
Os olhos de Andre estavam inchados e entreabertos, mas ele não olhava para nada.
— Ele... ele vai sair dessa? — perguntei.
— Não estou autorizada a dizer nada — respondeu a enfermeira.
— Mas poderia.
— As primeiras 24 horas determinam isso.
Ao menos era alguma coisa.
— Obrigado.
Ela tocou em meu braço e saiu do quarto, deixando o agente penitenciário na porta. Fui até lá e comecei a fechá-la.
— O senhor não pode fechar a porta — disse o homem.
— Claro que posso. Isso é uma reunião entre advogado e cliente.
— Ele nem está acordado.
— No momento não, mas isso não interessa. É meu cliente e a Constituição dos Estados Unidos nos dá direito a uma conferência privada. Você quer ficar na frente de um juiz amanhã e explicar por que deixou de fornecer a esse homem, vítima de um crime violento, o direito inalienável de conferenciar com seu advogado?
No Sheriff’s Department, os recém-formados da academia de polícia são transferidos direto para a divisão penitenciária, de modo a passar os dois primeiros anos na função. O agente diante de mim não parecia ter mais do que vinte e quatro anos e talvez ainda estivesse em fase de treinamento. Eu sabia que cederia, e foi o que aconteceu.
— Tudo bem — falou. — O senhor tem dez minutos. Depois disso, precisa ir embora. Ordens médicas.
— Muito bem.
— Não vou sair daqui.
— Ótimo. Já me sinto mais seguro.
Fechei a porta.
40
A primeira coisa que a juíza Leggoe fez pela manhã foi chamar os advogados em sua sala. Lankford foi convidado a entrar com Forsythe, para que pudesse informar a juíza sobre o que sabia a respeito do esfaqueamento de Andre La Cosse. Lankford, é claro, alegou ter sido o tipo de violência gratuita que acontece com frequência entre presos.
— Muito provavelmente vão determinar que foi um crime passional — disse ele. — O sr. La Cosse é homossexual. O suspeito já foi condenado por um assassinato e está sendo julgado por outro.
A juíza meneou a cabeça pensativamente. Eu não podia refutar as insinuações de Lankford, porque até o momento Cisco não tinha encontrado nenhuma ligação entre Patrick Sewell — o suspeito de esfaquear La Cosse — e Marco e Lankford. Minha resposta foi fraca, quando muito.
— Ainda tem muita água para rolar na investigação — falei. — Eu não tiraria nenhuma conclusão precipitada.
— Tenho certeza de que ninguém vai fazer isso — disse Lankford.
Já não estava com o habitual sorrisinho de presunção no rosto. Interpretei isso como um indicativo de que alguma coisa mudara em Lankford. Talvez fosse o peso de saber que a barra não estava limpa para seu lado. Se o ataque contra La Cosse tivesse sido, como eu acreditava, uma tentativa de encerrar o caso eliminando o réu, então havia fracassado. A questão era até que ponto.
— Excelência — disse Forsythe. — À luz dos acontecimentos e do tempo de recuperação que a vítima vai precisar, a promotoria defende a anulação do julgamento. Realmente não vejo alternativa. Caso o processo tenha continuidade, não seremos capazes de garantir a integridade do julgamento ou do júri até que o réu esteja em condições de voltar ao tribunal, se é que isso vai acontecer.
A juíza assentiu e olhou para mim.
— Está de acordo com isso, dr. Haller?
— Não, Excelência, de maneira nenhuma. Mas gostaria que minha colega, a srta. Aronson, respondesse ao dr. Forsythe. Ela está mais bem preparada do que eu. Passei a noite no hospital com meu cliente.
A juíza virou o rosto para Jennifer, que respondeu com uma argumentação belíssima, não ensaiada, contra o pedido de anulação do julgamento. A cada frase eu ficava mais orgulhoso por tê-la contratado para a equipe. Sem dúvida, um dia ela me deixaria comendo poeira. Mas, enquanto esse dia não chegasse, ela trabalhava para mim, em parceria, e eu não poderia ter feito escolha melhor.
Seu argumento tinha três pontos concisos. O primeiro era que declarar o julgamento nulo seria prejudicial para o réu. Ela citou o custo de preparar a defesa e de continuar mantendo Andre La Cosse preso e o ônus físico que isso acarretaria para nosso cliente. Além disso, pelo simples fato de a defesa ter exposto a maior parte de sua estratégia durante o processo, uma anulação constituiria a oportunidade da promotoria se reorganizar e se preparar para o novo julgamento.
— Excelência, isso não é equânime sob nenhum ponto de vista — disse ela. — É prejudicial.
Na minha opinião, esse arrazoado por si só bastava para sairmos com uma decisão favorável. Mas Jennifer o reforçou ainda mais com dois outros argumentos. Ela mencionou o custo para o contribuinte acarretado por um novo julgamento. E concluiu dizendo que a melhor aplicação da justiça nesse caso seria permitir que o julgamento continuasse.
Esses dois últimos pontos foram particularmente brilhantes, pois apelavam a questões essenciais da magistratura. Juízes eram eleitos para o cargo e nenhum magistrado queria ser chamado a prestar contas para um adversário ou para a mídia por desperdiçar o dinheiro dos contribuintes. E “aplicação da justiça” era uma referência ao arbítrio exercido por um juiz ao tomar sua decisão. O objetivo último de Leggoe era a aplicação da justiça na questão, e a juíza precisava considerar se bater em retirada seria o que possibilitaria ou inviabilizaria isso.
— Srta. Aronson — disse a juíza, depois que Jennifer encerrou sua arguição —, seus argumentos são convincentes e persuasivos, mas seu cliente se encontra em um leito hospitalar de uma UTI. Sem dúvida não está sugerindo que levemos o júri até ele. Creio que a corte nesse caso enfrenta um dilema com uma única solução.
Essa era a única parte ensaiada. A melhor maneira de alcançarmos nosso objetivo era conduzir a juíza à conclusão que queríamos, não tentar empurrá-la para isso.
— Não, meritíssima — disse Jennifer. — Achamos que Vossa Excelência deve prosseguir com o julgamento sem a presença do acusado, após advertir o júri para desconsiderar a ausência do réu.
— Isso é impossível — rosnou Forsythe. — Se conseguirmos uma condenação, ela vai ser revogada em cinco minutos. O réu tem o direito de ver seus denunciantes.
— Não vai ser revogada se o réu em sã consciência abrir mão desse direito — disse Jennifer.
— Ah, isso é ótimo — respondeu Forsythe, com sarcasmo —, mas pelo que fiquei sabendo seu cliente está inconsciente em um leito do hospital e temos um júri sentado lá dentro, pronto para continuar.
Levei a mão ao bolso interno do paletó e tirei a procuração que levara ao County/USC na noite anterior. Entreguei para a juíza, do outro lado da mesa.
— Isso é uma procuração assinada com a renúncia, meritíssima — eu disse.
— Espera só um minuto, espera aí — disse Forsythe, com as primeiras notas de desespero começando a dominar sua voz. — Como isso é possível? O homem está em coma. Duvido que possa ter assinado alguma coisa, ainda mais em sã consciência.
A juíza estendeu o documento para Forsythe. Lankford curvou-se na cadeira para olhar a assinatura.
— Estive no hospital a noite toda, meritíssima. A consciência de meu cliente ia e vinha, o que não é o mesmo que estado de coma. O dr. Forsythe está se valendo de expressões médicas sem conhecimento de causa. Afora isso, durante os períodos em que voltou a si, meu cliente expressou o forte desejo de prosseguir com o julgamento, mesmo em sua ausência. Ele não quer esperar. Não quer ter que passar por isso outra vez.
Forsythe balançou a cabeça.
— Olha, meritíssima, não quero acusar ninguém de nada, mas isso é impossível. Simplesmente não tem como...
— Excelência — eu disse sem me alterar, como se não me incomodasse o fato de Forsythe ter me chamado de mentiroso. — Se contribuir para sua decisão, tenho isso.
Peguei o celular e abri o aplicativo de fotos. Fui para as imagens da câmera e ampliei a foto que havia tirado de meu cliente no quarto do hospital. Mostrava Andre no leito, apoiado em um ângulo de 45 graus, com uma mesinha de cama posicionada diante do torso. Sua mão direita estava sobre a mesa, segurando uma caneta e assinando o documento. A foto tinha sido tirada de um ângulo alto, à direita de Andre. O ângulo e o inchaço ao redor dos olhos tornavam impossível identificar se os olhos de Andre estavam abertos ou fechados.
Passei o celular para a juíza.
— Eu tinha o pressentimento de que o dr. Forsythe protestaria, então bati essa foto rapidamente. Algo que aprendi com meu entregador de intimações. Tinha também um agente penitenciário chamado Evanston no quarto. Se precisar, podemos acordar o homem e trazê-lo ao tribunal para atestar a assinatura.
A juíza devolveu deliberadamente o telefone para mim, em vez de permitir que Forsythe olhasse.
— A foto não era necessária, dr. Haller. Sua palavra como integrante do sistema de justiça me basta.
— Excelência? — perguntou Forsythe.
— Pois não, doutor?
— Eu gostaria de solicitar um breve adiamento para que a promotoria tenha tempo de considerar e formular uma resposta para a defesa.
— Dr. Forsythe, é de sua própria petição que estamos tratando aqui. Além do mais, quero recordar que o senhor lembrou a esta corte poucos minutos atrás que o júri estava aguardando para prosseguir.
— Nesse caso, Excelência, a promotoria roga à corte que proceda a um exame completo do réu e assegure que a suposta procuração exibida pelo dr. Haller tenha sido assinada de maneira realmente voluntária e em sã consciência pelo acusado.
Eu precisava rechaçar aquilo antes que uma das tentativas desesperadas de Forsythe de interromper o julgamento acabasse colando.
— Excelência, o dr. Forsythe é um homem desesperado, que obviamente vai falar qualquer coisa para interromper o julgamento. Se nos perguntarmos o porquê, creio que a resposta é clara: ele sabe que vai perder. Estamos demonstrando que o sr. La Cosse é inocente nesta história e o júri, o público, todo mundo sabe disso, incluindo o próprio dr. Forsythe. Por isso ele quer a interrupção do julgamento. Quer uma nova tentativa sancionada pela corte. Meritíssima, pretende realmente permitir algo assim? Meu cliente é um homem inocente que foi mandado para a cadeia, agredido, privado de tudo, talvez até da própria vida. A aplicação da justiça exige a continuidade do julgamento. Imediatamente. Hoje mesmo.
Forsythe estava prestes a retrucar, mas a juíza ergueu a mão para interrompê-lo. Quando ia pronunciar sua decisão, foi interrompida pelo barulho do interfone na mesa.
— Minha assistente — disse ela, informando desse modo que precisava atender.
Estremeci. Eu sentia que tinha convencido a magistrada e que ela estava prestes a indeferir a petição para anular o julgamento.
Ela atendeu e escutou algo breve, então desligou.
— James Marco está no tribunal com um advogado da DEA — avisou. — Pronto para testemunhar.
Parou para refletir por um momento e depois continuou.
— A petição de anulação foi indeferida. Dr. Haller, o senhor deve chamar sua próxima testemunha dentro de dez minutos.
— Excelência, quero protestar veementemente contra isso — disse Forsythe.
— Veementemente anotado — respondeu Leggoe, com aspereza na voz.
— Solicito que o processo judicial seja suspenso enquanto a promotoria submete a matéria à apelação.
— Dr. Forsythe, o senhor pode dar entrada em sua notificação de apelação a qualquer momento que desejar, mas nada vai ser suspenso. Entraremos outra vez em sessão dentro de dez minutos.
Ela deu a Forsythe um momento para replicar. Como o promotor ficou em silêncio, ela encerrou a sessão.
— Acho que terminamos por aqui.
Ao voltar para a sala do tribunal, a equipe da defesa tomou uma cuidadosa distância de cinco metros do time da promotoria. Curvei-me e sussurrei para Jennifer.
— Você foi perfeita — falei. — A gente vai ganhar esse negócio.
Ela sorriu, orgulhosa.
— Legal me ajudou com os pontos importantes durante a carona, ontem à noite. Continua afiado como uma navalha.
— Nem me diga. Ele continua melhor do que noventa por cento dos advogados neste tribunal.
Mais adiante no corredor vi Lankford segurando a porta do tribunal aberta, esperando por nós depois de Forsythe ter passado. Trocamos um olhar quando me aproximei e tomei o gesto na porta como um sinal. Um convite. Toquei o cotovelo de Jennifer e acenei para que fosse na frente. Parei quando passei por Lankford. Ele não era burro. Sabia que a tentativa de me deter e de interromper o julgamento fracassara. Eu lhe dera aquela brecha porque ainda precisava que um dos lados da conspiração cedesse. E, por mais que Lankford e eu tivéssemos nos estranhado no passado, era Marco quem eu mais queria derrubar.
— Tenho um negócio que você precisa dar uma olhada — eu disse.
— Não estou interessado — respondeu ele. — Vai indo, babaca.
Mas não vi convicção em suas palavras. Era apenas uma maneira de começar a negociação.
— Acho que é uma coisa que vai deixar você bem interessado.
Ele deu de ombros. Precisava de mais informação para tomar sua decisão.
— E se não estiver interessado, seu amigão, Marco, vai estar.
Lankford balançou a cabeça.
Passei pela porta e entrei no tribunal. Vi Forsythe na mesa da promotoria, falando ao celular. Presumi que fosse com um supervisor ou com alguém da corte de apelação. Não fiquei muito curioso.
Lankford passou por mim e foi sentar junto à balaustrada. Fui para a mesa da defesa e peguei o iPad emprestado de Lorna. Destravei a tela e acionei o vídeo da casa de Sterghos, depois fui até a balaustrada e deixei o aparelho na cadeira vazia ao lado de Lankford, enquanto apoiava meu pé direito para amarrar o sapato. Sussurrei, sem olhar para ele.
— Assiste até o fim.
Ao endireitar o corpo, passeei os olhos pela sala do tribunal. A notícia de que as coisas estavam esquentando de verdade no Departamento 120 já se espalhara pelo fórum. Além dos homens de Moya em seu lugar de sempre, havia pelo menos seis membros da mídia nas duas primeiras fileiras, uma série de homens de terno que identifiquei como advogados e um dos maiores aglomerados que eu já tinha visto de curiosos de carteirinha — aposentados, desempregados e solitários que vagavam diariamente pelos tribunais em busca de drama, dor e sofrimento. Eu não tinha certeza se o atrativo era a presença de Marco ou o fato de que o réu fora esfaqueado quase até a morte na noite anterior, no subsolo do CCB, mas o recado fora transmitido e o público apareceu.
Vi Marco quatro fileiras atrás. Estava sentado ao lado de um homem de terno, que presumi ser seu advogado. Marco não se deu ao trabalho de vestir uma roupa para a ocasião. Estava outra vez usando camisa polo preta e jeans, a camisa por dentro da calça, de modo a deixar bem visível a arma no coldre do lado direito do quadril. O típico look policial esquadrão de extermínio.
Decidi que precisava tentar fazer alguma coisa a respeito.
Abaixei o rosto e vi que Lankford já tinha assistido ao vídeo silencioso e pusera o iPad de volta na cadeira vazia. Permaneceu no que parecia ser um estado de torpor, talvez compreendendo que sua vida mudaria irreversivelmente antes do fim daquele dia. Apoiei o outro sapato na cadeira para amarrar. Me curvei outra vez, os olhos fixos em Marco, na plateia, ao sussurrar para Lankford:
— Eu quero Marco, não você.
41
Ajuíza foi para sua cadeira, como prometido, e observou brevemente o número de pessoas na plateia.
— Estamos prontos para o júri? — ela perguntou.
Levantei para me dirigir à corte.
— Excelência, antes da convocação do júri, gostaria de abordar algumas questões que acabam de vir à tona.
— O que foi, dr. Haller?
Ela fez a pergunta com clara exasperação na voz.
— Bem, o agente Marco está aqui presumivelmente como testemunha convocada pela defesa. Gostaria de pedir permissão para tratá-lo como testemunha hostil e pediria também que a corte instruísse o agente a remover a arma de fogo, que porta com ostentação em seu cinto.
— Uma coisa de cada vez, dr. Haller. Primeiro, o senhor convocou o agente Marco como testemunha da defesa e até o momento ele ainda não respondeu uma única pergunta. Com base no que o senhor deve receber permissão para tratar sua própria testemunha como hostil?
Classificar uma testemunha como hostil me proporcionaria mais liberdade para interrogar Marco. Eu poderia conduzir seu depoimento necessitando apenas de um sim ou não como resposta.
— Excelência, o agente Marco procurou evitar seu testemunho neste julgamento. Trouxe até mesmo seu advogado hoje. Além disso, na única vez em que me encontrei com o agente Marco, fui ameaçado. Acho que isso faz dele... bem, hostil.
Forsythe se levantou para responder, assim como o advogado de Marco, mas a juíza rechaçou os dois com um gesto de mão.
— Pedido indeferido. Vamos começar os testemunhos e ver o andamento. Agora, qual é sua preocupação com a arma do agente Marco?
Perguntei se poderia instruir o agente Marco a se levantar na plateia de modo que pudesse ver sua arma. Ela concordou e ordenou que ele ficasse de pé.
— Excelência — eu disse —, acredito que o uso de uma arma de maneira tão ostensiva é um comportamento ameaçador e prejudicial.
— Mas ele é um agente da lei — disse Leggoe. — E presumo que isso será estabelecido quando seu testemunho começar.
— Sim, Excelência, mas o agente vai passar diante do júri a caminho do banco das testemunhas como se fosse Wyatt Earp. Estamos em um tribunal, meritíssima, não no Velho Oeste.
A juíza pensou por um momento e então balançou a cabeça.
— Não fiquei convencida, dr. Haller. Estou indeferindo também esse pedido.
Eu havia esperado que a juíza lesse as entrelinhas e compreendesse o que eu estava buscando. Eu pretendia forçar Marco para fora de sua zona de conforto e, dependendo do andamento das coisas, possivelmente até fazer uma acusação de homicídio. Nunca se sabe como uma pessoa vai reagir a isso, mesmo em caso de agentes da lei. Saber que Marco estava desarmado me deixaria bem mais confortável.
— Mais alguma coisa, dr. Haller? O júri está demonstrado a maior paciência em nos aguardar.
— Sim, meritíssima, mais uma coisa. Esta manhã vou convocar o agente Marco, seguido do investigador Lankford. Gostaria de pedir que Vossa Excelência instruísse o sr. Lankford a permanecer no tribunal, de modo que eu possa ter a garantia de seu testemunho.
— Não vou fazer uma coisa dessas. O sr. Lankford ficará onde esperamos que fique, mas não vou restringir seus movimentos nesse meio-tempo. Vamos trazer o júri agora.
Relanceei Lankford após a deliberação da juíza e vi seus olhos frios colados em mim.
Quando o júri enfim tomou seu lugar, a juíza levou cinco minutos para explicar para os membros que o réu provavelmente não estaria presente pelo restante do processo. Disse que a causa era uma hospitalização que nada tinha a ver com o julgamento ou o caso em questão. Advertiu os jurados que não permitissem que a ausência do réu afetasse suas considerações ou a opinião sobre o julgamento.
Então assumi meu lugar diante do atril e convoquei James Marco para o banco das testemunhas. O agente federal se levantou na plateia e avançou com inegável confiança e tranquilidade.
Após as perguntas preliminares para identificá-lo como agente da DEA e membro da equipe ICE-T, rapidamente passei ao roteiro trabalhado mentalmente durante a noite insone anterior.
— Agente Marco, por favor diga ao júri como conheceu a vítima deste caso, Gloria Dayton.
— Eu não conheci.
— Obtivemos testemunho aqui de que ela era sua informante. Isso não é verdade?
— Isso não é verdade.
— Ela ligou para o senhor no dia 5 de novembro para informar que tinha sido intimada em um caso de habeas corpus envolvendo Hector Arrande Moya?
— Não, não ligou.
— O senhor está familiarizado com Hector Arrande Moya?
— Estou.
— De que maneira?
— É um traficante de drogas que foi preso pelo DPLA cerca de oito anos atrás. O caso acabou sendo assumido pela procuradoria federal e caiu na minha mão. Eu passei a ser o agente desse caso, na época. Moya foi condenado por várias acusações na corte federal e sentenciado à prisão perpétua.
— E, no decurso de seu trabalho no caso, o senhor alguma vez escutou o nome Gloria Dayton?
— Não, não escutei.
Fiz uma pausa e consultei minhas anotações. Até ali, Marco se mostrara educado nas respostas e aparentava despreocupação em ter de testemunhar. Suas negativas já eram esperadas. Meu trabalho era de algum modo encontrar uma brecha na fachada e passar a explorá-la.
— Certo. No momento o senhor está envolvido em um caso federal com Hector Moya, correto?
— Não sei dos detalhes porque os advogados é que estão cuidando disso.
— Hector Moya está processando o governo federal, alegando que o senhor armou para ele naquela batida, oito anos atrás, não está?
— Moya está na prisão e é um homem desesperado. Qualquer um pode processar quem quiser por qualquer motivo, mas o fato é que eu não estava presente naquela batida e o caso não era meu. O caso chegou depois até mim e é só isso que eu sei sobre a história toda.
Balancei a cabeça, como se estivesse satisfeito com a resposta.
— Certo, vamos em frente. E quanto aos demais atores do presente caso, agente? O senhor conhece ou teve contato com algum deles?
— Atores? Não tenho certeza do que está querendo dizer.
— Por exemplo, o senhor conhece o promotor, o dr. Forsythe?
Virei e fiz um gesto na direção de Forsythe.
— Não, não conheço — disse Marco.
— E quanto ao investigador-chefe designado para este caso, o detetive Whitten? — perguntei. — Já teve algum contato com ele?
Forsythe protestou, perguntando aonde eu pretendia chegar com essa inquirição tortuosa. Solicitei a indulgência da corte e prometi ir depressa ao ponto. A juíza permitiu que eu prosseguisse.
— Não, também não conheço o detetive Whitten — respondeu Marco.
— E quanto ao investigador do Gabinete da Promotoria, o sr. Lankford?
Apontei para Lankford, que olhava para o vazio, bem atrás de Forsythe.
— A gente se conhece faz dez anos, mais ou menos — disse Marco. — Eu conheci o investigador nessa época.
— Como foi? — perguntei.
— A gente se cruzou na época em que ele estava trabalhando para o Departamento de Polícia de Glendale em um caso.
— Qual era o caso?
— Um homicídio duplo. As vítimas eram traficantes. Lankford assumiu o caso e veio me consultar umas duas, talvez três vezes.
— Por que o senhor?
— Porque sou agente da DEA, eu acho. Os caras que morreram na casa eram traficantes. Foram encontradas drogas na cena do crime.
— E o detetive Lankford queria saber o quê? Se o senhor sabia alguma coisa a respeito das vítimas ou de quem tinha matado os dois?
— É. Coisas do tipo.
— O senhor foi capaz de ajudar?
— Na verdade, n...
Forsythe protestou outra vez, citando relevância.
— Estamos julgando um caso que envolve um homicídio ocorrido sete meses atrás — disse ele. — O dr. Haller não mostrou nenhuma relevância para esse caso de dez anos atrás.
— A relevância está perto, Excelência — respondi. — E o dr. Forsythe sabe disso.
— Rápido, dr. Haller — respondeu a juíza.
Balancei a cabeça, agradecendo.
— Agente Marco, por acaso acabou de dizer que não foi capaz de ajudar o detetive Lankford?
— Acho que não. Pelo que sei, ninguém nunca foi acusado pelo crime.
— O senhor estava familiarizado com as vítimas daquele caso?
— Eu sabia quem eram. Estavam no nosso radar, mas não eram objeto de investigação ativa.
— E quanto a este caso, agente Marco? O caso Gloria Dayton. O investigador Lankford consultou o senhor?
— Não, não consultou.
— E o senhor consultou o investigador Lankford?
— Não, não consultei.
— Então não houve nenhuma comunicação entre os senhores?
— Nenhuma.
Aí estava minha brecha. Vi que conseguira entrar.
— Bem, esse homicídio duplo de dez anos atrás que o senhor mencionou, por acaso foi o da Salem Street, em Glendale?
— Ãhn... isso, acredito que sim.
— O senhor está familiarizado com o nome Stratton Sterghos?
Forsythe protestou e pediu para se aproximar, e a juíza sinalizou para nós dois. Como esperado, o promotor se queixou de que eu estava tentando uma jogada traiçoeira para chamar Sterghos como testemunha quando a própria juíza já havia derrubado esse nome da lista.
— Meritíssima, não é o que estou tentando fazer e pode mandar constar dos autos agora mesmo que não vou convocar o dr. Sterghos como testemunha. Ele nem sequer se encontra em Los Angeles. A única coisa que estou tentando fazer aqui é determinar se a testemunha sabia que eu tinha incluído Sterghos na lista. A testemunha disse que não teve contato com ninguém ligado a este caso, mas vou introduzir prova em contrário.
Forsythe balançou a cabeça, como se estivesse cansado de minhas artimanhas.
— Não existe prova nenhuma, Excelência. Isso é só mais uma encenação. Ele está tentando monopolizar o caso enquanto vai atrás de seus devaneios.
Sorri e balancei a cabeça. Olhei para trás e peguei Lankford andando pelo corredor central, em direção à porta da sala do tribunal.
— Onde seu investigador está indo? — perguntei a Forsythe. — Vou colocar ele no banco das testemunhas daqui a alguns minutos.
A pergunta dirigida a Forsythe alertou a juíza. Ela ergueu a cabeça para olhar além de nós.
— Sr. Lankford! — exclamou.
Lankford parou a dois passos da porta e olhou para trás.
— Aonde está indo? — perguntou a juíza. — O senhor vai ser convocado para testemunhar em breve.
Lankford ergueu as mãos, como se não estivesse muito seguro do que responder.
— Ãhn, ao banheiro.
— Não demore, por favor. O senhor será requisitado em breve e já perdemos bastante tempo esta manhã. Não quero mais atrasos.
Lankford fez que sim e continuou na direção da saída.
— Com licença um momento, senhores — disse a juíza.
Ela rolou sua cadeira para a esquerda e se inclinou sobre a beirada da bancada para conversar com a assistente. Pude escutar a magistrada pedindo à assistente para instruir um dos guardas do tribunal a garantir que Lankford voltasse depressa à sala.
Isso me fez sentir melhor em relação às coisas.
A juíza rolou a cadeira de volta e retomou a discussão. Advertiu-me que sua paciência estava quase no limite e que eu precisava recolher logo a rede que ela me permitira lançar.
— Certo, Excelência.
Voltei ao atril.
— Agente Marco, por acaso alguém lhe contou que o nome Stratton Sterghos tinha sido acrescentado à lista de testemunhas adicionais que a defesa apresentou esta semana?
Marco exibiu os primeiros sinais de desconforto, movimentando a cabeça sem muita convicção.
— Não. Não conheço esse nome. Nunca ouvi falar do homem antes de o senhor acabar de mencionar.
Balancei a cabeça e fiz uma anotação em meu bloco amarelo. Dizia Peguei você, seu filho da puta.
— Pode dizer ao júri onde o senhor estava na noite de 11 de novembro do ano passado?
Forsythe se levantou.
— Excelência!
— Fique sentado, dr. Forsythe.
Marco mexeu a cabeça casualmente.
— Não consigo lembrar ao certo o que eu estava fazendo, já passou muito tempo.
— Foi um domingo.
Ele deu de ombros.
— Então provavelmente eu estava assistindo ao Sunday Night Football. Não tenho certeza. Isso me torna culpado de alguma coisa?
Esperei, mas ele não disse mais nada.
— A maneira como normalmente funciona aqui é que eu faço as perguntas — alfinetei.
— Claro — disse ele. — Manda.
— E duas noites atrás, na segunda? O senhor se lembra de onde estava?
Marco não respondeu por um longo momento. Acho que percebeu que podia estar pisando em um campo minado. No silêncio, escutei a porta no fundo da sala sendo aberta e, quando virei, observei Lankford de volta, com um dos guardas do tribunal atrás de si.
— Eu estava em uma operação de vigilância — disse Marco, enfim.
Virei de novo para o banco das testemunhas.
— Vigiando quem? — perguntei.
— É um caso. Não vou falar sobre isso em pleno tribunal.
— Por acaso a vigilância era na Salem Street, em Glendale?
Ele balançou a cabeça.
— Não vou falar sobre uma investigação em andamento no meio de um tribunal.
Olhei para ele por um bom tempo, pensando até que ponto devia pressioná-lo. Finalmente, decidi esperar e olhei para a juíza.
— Excelência, não tenho mais perguntas no momento, mas solicito que a corte retenha o agente Marco como testemunha, para que eu possa convocá-lo novamente mais tarde.
A juíza franziu o cenho.
— Por que não pode encerrar já sua inquirição, dr. Haller?
— Preciso colher o depoimento de mais uma testemunha agora de manhã. Desse depoimento vou extrair as perguntas finais que terei para o agente Marco. Agradeço a presente indulgência da corte com a apresentação da defesa.
Leggoe perguntou a Forsythe se ele tinha algum problema com aquele pedido.
— Meritíssima, a promotoria está se cansando cada vez mais das estratégias mirabolantes do advogado de defesa, mas concorda mais uma vez em embarcar nessa montanha-russa. Sei que não vai passar de mais um grande fiasco e peço que me perdoe, mas é simplesmente impossível não ficar curioso para ver como todos esses devaneios vão acabar.
A juíza perguntou a Forsythe se ele queria a oportunidade de contrainquirir Marco antes que o agente descesse do banco das testemunhas. Isso, claro, não interferiria na oportunidade que o procurador teria depois que eu trouxesse o agente da DEA de volta para testemunhar, à tarde. Sem pensar muito, ele optou por esperar e conduzir uma única contrainquirição ininterrupta. E, como medida de segurança, reservou-se o direito de chamar Marco de volta mesmo que eu não o fizesse.
A juíza então instruiu Marco a descer, mas ordenou que regressasse ao tribunal à uma da tarde. Em seguida, me disse para convocar a próxima testemunha.
— A defesa chama Lee Lankford.
Virei e olhei para Lankford. Ele começou lentamente a se levantar.
— Excelência, vamos precisar do equipamento audiovisual para uma exibição de vídeo.
Fiz questão de fazer esse pedido antes que Marco e seu advogado tivessem saído do tribunal. Queria que ficassem pensando no vídeo que eu planejava passar.
42
Lankford se dirigiu com passos firmes mas vagarosos para o banco das testemunhas, com os olhos fitando um ponto fixo na parede ao fundo. Observei-o com atenção. Parecia um homem realizando equações na cabeça enquanto o corpo se movia no piloto automático. Achei que era um bom sinal, que ele estava percebendo que a única maneira de escapar seria com minha ajuda. Concluí que descobriria bem rápido a direção que ele escolheria para o testemunho.
Como o investigador da promotoria designado para o caso, fora aberta a exceção de costume para que Lankford pudesse permanecer no tribunal mesmo relacionado como testemunha da defesa. Isso significava que desde a seleção do júri ele fora uma presença corriqueira para os jurados, sentando todos os dias junto da balaustrada atrás de Forsythe. No entanto, ele não havia sido apresentado até o momento em que eu o instruíra a ficar de pé e se identificar durante o testemunho de Hensley, no dia anterior.
Pedi para o investigador se apresentar, explicar quem era e o que fazia, e incluí seu histórico como antigo detetive de homicídio de Glendale, ainda que essa informação tivesse sido revelada pela manhã por Marco. Em seguida passei a questões intrínsecas ao caso da defesa. Parecia que todos os tentáculos do caso haviam me conduzido a essa única testemunha. Tudo desembocava nesse momento.
— Muito bem — disse eu. — Agora vamos falar sobre este caso específico. Como aconteceu? O senhor foi designado para a promotoria ou pediu para ser nomeado?
Lankford sentava com os olhos voltados para o chão. Sua postura e seu comportamento indicavam que não ouvira a pergunta. Ele permaneceu mudo e imóvel por vários segundos. O silêncio se prolongou a tal ponto que senti a juíza prestes a se dirigir a ele, até que finalmente falou.
— Normalmente a gente faz rodízio, quando são casos de homicídio.
Estava formulando a questão seguinte quando Lankford continuou.
— Mas nesse caso eu solicitei a nomeação pessoalmente.
Fiz uma pausa, esperando que Lankford dissesse mais, mas ele ficou em silêncio. Mesmo assim, interpretei a resposta como um forte indicativo de que chegáramos a um acordo tácito um pouco antes.
— Por que fez essa solicitação?
— Eu tinha sido nomeado antes para um caso de homicídio em que o promotor era Bill Forsythe e a gente tinha se dado bem trabalhando junto. Pelo menos, foi essa minha alegação.
Lankford olhou diretamente para mim quando acrescentou a última sentença. Acreditei que havia algum tipo de mensagem ali. Seus olhos exibiam uma expressão quase suplicante.
— Está dizendo que o senhor teve um motivo inconfesso para requisitar o caso?
— É, tive.
Quase pude escutar a tensão em Forsythe quando ele sentava à mesa perto do atril.
— Que motivo foi esse?
— Eu queria estar no caso para que pudesse monitorar de dentro.
— Por quê?
— Porque me mandaram fazer isso.
— Está querendo dizer que foi o pedido de um supervisor?
— Não, não estou falando de um supervisor.
— Então de quem?
— James Marco.
Acho que em todas as horas que passei em tribunais ao longo da carreira, nunca havia tido um momento de tanta clareza quanto aquele. Eu sabia que, se sobrevivesse, no instante em que Lankford dissesse o nome James Marco, meu cliente ficaria livre. Baixei o rosto para a primeira folha do bloco de anotações amarelo e me acalmei por um segundo, antes de continuar.
E nesse momento Forsythe se levantou em câmera lenta, como que sabendo por reflexo que tinha de dar um basta, mas sem ter segurança de como fazê-lo. Ele pediu para conferenciar e a juíza acenou para nos aproximarmos. Quando paramos diante dela, senti até pena de Forsythe, pensando no terrível apuro em que a promotoria se metera.
— Meritíssima — disse ele. — Gostaria de requisitar um recesso de quinze minutos, para conversar com meu investigador.
— Isso não vai acontecer, dr. Forsythe — respondeu Leggoe. — Ele é uma testemunha agora. Mais alguma coisa?
— Estou contra a parede aqui, meritíssima. Isso...
— ... é culpa do dr. Haller ou de seu próprio investigador?
Forsythe ficou paralisado.
— Voltem a seus lugares, senhores. E, dr. Haller, prossiga com a testemunha.
Voltei ao atril. Forsythe sentou e ficou olhando diretamente para a frente, preparando-se para o que estava por vir.
— O senhor disse que o agente Marco o instruiu a monitorar esse caso? — perguntei a Lankford.
— Exato — disse ele.
— Por que isso?
— Porque ele queria descobrir tudo o que pudesse sobre a investigação do assassinato de Gloria Dayton.
— Ele conhecia a vítima?
— Ele me contou que ela havia sido sua informante muito tempo antes.
Fiz uma marca na folha em meu bloco, eliminando um dos pontos que almejara elucidar com o testemunho de Lankford. Relanceei a bancada do júri. Cada um dos doze membros, assim como os dois suplentes, estavam hipnotizados. E eu também. Eu optara por Lankford e não Marco como o elo mais fraco da conspiração. O investigador viu o vídeo da casa de Sterghos e, claro, sabia quem era o homem do chapéu, assim como sabia que a única saída que restava era tentar cuidadosamente avançar passo a passo no depoimento, sem incorrer em perjúrio nem se autoincriminar. Seria um caminho penoso para ele.
— Vamos voltar um minuto — falei. — O senhor está familiarizado com as gravações feitas pelas câmeras de segurança do hotel Beverly Wilshire que mostram Gloria Dayton na noite do assassinato, não está?
Lankford fechou os olhos por um longo momento, antes de abrir.
— É, estou.
— Estou me referindo ao vídeo mostrado pela primeira vez para o júri ontem.
— Sim, eu sei.
— Quando o senhor assistiu àquele vídeo pela primeira vez?
— Uns dois meses atrás. Não me lembro ao certo da data.
— Bom, ontem, durante o testemunho, Victor Hensley, um supervisor de segurança do hotel, afirmou acreditar que o vídeo mostrava Gloria Dayton sendo seguida no momento em que saía do hotel. O senhor tem uma opinião a respeito?
Forsythe protestou, dizendo que eu estava induzindo a testemunha e que a pergunta estava além do conhecimento e da competência de Lankford. A juíza deferiu e reformulei a pergunta.
— O senhor acha que Gloria Dayton estava sendo seguida na noite em que foi assassinada?
— Sim, acho — disse Lankford.
— Por que diz isso?
— Porque era eu quem a estava seguindo.
A essa resposta sobreveio o que deve ter sido o silêncio mais retumbante que já escutei em uma sala de tribunal.
— Está dizendo que é o senhor naquele vídeo, o homem do chapéu?
— Isso. Sou eu o homem do chapéu.
A resposta gerou outra rápida riscada no bloco de anotações e mais um silêncio pesado. Percebi que Lankford talvez estivesse exorcizando seus demônios com a confissão, mas até o momento ele não admitira que fosse efetivamente um crime. Continuava a me lançar o mesmo olhar suplicante. Fui levado a crer que ele e eu estávamos fazendo um acordo tácito. Era o vídeo, percebi. Ele não queria que fosse exibido. Queria contar a história como testemunha cooperante, não ter o vídeo enfiado goela abaixo enquanto ficava ali sentado.
Eu estava disposto a aceitar os termos do trato.
— Por que estava seguindo Gloria Dayton?
— Me pediram para encontrar a garota e descobrir onde estava morando.
— O agente Marco?
— É.
— Ele chegou a explicar por quê?
— Não. Na hora, não.
— O que ele disse ao senhor?
Forsythe protestou outra vez, dizendo que eu incitava um testemunho de ouvir dizer. A juíza afirmou que ia permitir, e pensei no que Legal Siegel dissera na noite anterior sobre o poder discricionário ser um guarda-chuva. Sem dúvida eu estava sob a proteção desse guarda-chuva bem agora.
Instruí Lankford a responder à pergunta.
— Ele só disse que precisava encontrar a garota. Falou que ela era um dedo-duro que tinha se mandado há muitos anos e que depois tinha voltado, mas que ele não conseguia encontrar o paradeiro, então achou que devia estar usando outro nome.
— Foi quando incumbiu o senhor de encontrá-la.
— Foi.
— Quando isso aconteceu exatamente?
— Em novembro do ano passado, uma semana antes de ela ser assassinada.
— Como o senhor encontrou a vítima?
— Rico me passou uma foto que tinha dela.
— Quem é Rico?
— Rico é Marco. Esse era o apelido dele, porque trabalhava nos casos de extorsão.
— O senhor está se referindo à lei de combate ao crime organizado, a lei RICO, Racketeer Influenced and Corrupt Organizations Act?
— Isso mesmo.
— Que foto era essa que ele lhe deu?
— Ele enviou para o meu celular. Tirou na noite que ela dançou. Era velha, de uns oito ou nove anos atrás. Ele tinha prendido a garota, mas fez um acordo de não fichar se ela dedurasse para ele. Rico tirou a foto para um arquivo de delatores e continuava com ela.
— O senhor ainda tem essa foto?
— Não, eu deletei.
— Quando?
— Depois que fiquei sabendo que ela havia sido assassinada.
Dei uma pausa após a resposta, pelo efeito dramático.
— O senhor usou a foto para encontrá-la para Marco?
— É, comecei a procurar nos sites de acompanhantes locais e acabei encontrando, com o nome de Giselle. O cabelo estava diferente, mas era ela.
— Depois, o que o senhor fez?
— O contato com acompanhantes desse nível em geral é protegido. Elas não vão dando simplesmente o endereço e o número do celular. A página de Giselle mencionava um tal de “encontro padrão Linda Mulher” no Beverly Wilshire. Pedi para Rico... Marco... conseguir um quarto para mim usando um dos apelidos restritos dele.
— Por apelido restrito o senhor quer dizer usado sob disfarce?
— É, disfarce.
— Qual era o nome, o senhor lembra?
— Ronald Weldon.
Eu sabia que a informação podia ser verificada com Hensley e com os registros do hotel caso precisasse corroborar a história de Lankford mais tarde. O julgamento de repente mudara de dimensões com o testemunho de Lankford.
— Certo, o que aconteceu a seguir?
— Marco conseguiu um quarto e me deu a chave. Era no oitavo andar. Fui até lá e, quando estava abrindo a porta, chegou o carregador com um carrinho para o quarto da frente.
— Quer dizer, parecia que as pessoas daquele quarto estavam de saída?
— Isso.
— O que o senhor fez em seguida?
— Entrei no quarto reservado por Marco e fiquei espiando pelo olho-mágico. Tinha um casal no quarto da frente. O carregador saiu primeiro, com a bagagem, depois o casal. Eles fecharam a porta mas não trancaram quando saíram. Então fui lá e entrei no quarto.
— O que o senhor fez ali dentro.
— Primeiro, olhei. E dei sorte. Tinha vários envelopes na lata do lixo, endereçados para Daniel e Laura, ou senhor e senhora Price. Sabe como é, cartões desejando felicidades aos recém-casados, essas coisas. Eu saquei que o nome do noivo devia ser Daniel Price. Então usei esse nome e esse número de quarto para armar a cilada para Giselle Dallinger naquela noite.
— Por que todo esse trabalho?
— Porque, para começar, eu sei que dá para rastrear qualquer coisa. Qualquer coisa. Eu não queria aquele negócio voltando para mim. Além disso, eu trabalhei em um esquadrão de combate à prostituição quando era da polícia. Sei como prostitutas e cafetões operam para evitar a lei. Giselle ia ligar de volta para mim, no hotel, independente de ser ou não uma armação. Era o modo como tentavam confirmar que eu não era da polícia. Dava para ter feito isso com o quarto que Marco arranjou para mim, mas eu vi a outra porta aberta e achei que seria melhor, porque não teria como rastrear aquilo de volta até mim. Ou até Marco.
Com essa resposta, Lankford cruzou a linha da negação plausível para a conspiração em perpetrar um crime. Se fosse cliente meu, eu teria feito com que parasse aí mesmo. Mas eu tinha meu próprio cliente para inocentar. Fui em frente.
— Está dizendo que sabia o que ia acontecer com Giselle naquela noite?
— Não, de jeito nenhum. Eu só estava tomando precauções.
Examinei Lankford, sem saber se era uma maneira elaborada de encobrir sua própria culpabilidade no homicídio ou se realmente falava a verdade.
— Então o senhor armou o programa para aquela noite e depois foi esperar por ela no saguão, correto?
— É.
— Usando o chapéu como escudo para se proteger das câmeras?
— É.
— E depois o senhor seguiu a vítima até a casa dela, na Franklin Avenue.
— Foi.
A juíza interrompeu nesse momento e se dirigiu ao júri.
— Senhoras e senhores, sei que parece que estamos apenas começando aqui, mas vamos fazer um intervalo de cinco minutos. Quero que se dirijam à sala do júri e fiquem de prontidão. Quero que os advogados e as testemunhas permaneçam no lugar, por favor.
Levantamos enquanto os jurados saíam em fila. Eu sabia o que estava por vir. A juíza não podia simplesmente ficar ali sentada sem advertir Lankford do risco a que estava se expondo. Assim que a porta da sala se fechou, ela virou para minha testemunha.
— Sr. Lankford, o senhor está legalmente representado aqui nesta sala?
— Não, não estou — respondeu Lankford, em um tom calmo.
— Quer que interrompa seu testemunho para que possa se aconselhar com um advogado?
— Não, Excelência. Eu quero continuar. Não cometi nenhum crime.
— Tem certeza?
A pergunta podia ser entendida de duas maneiras. Lankford tinha certeza de que não queria um advogado ou tinha certeza de que não cometera crime algum.
— Quero prosseguir com o testemunho.
A juíza olhou para Lankford por um longo momento, como que o avaliando de algum modo. Então virou e sinalizou para que o guarda do tribunal se aproximasse de sua bancada. Ela sussurrou para o homem, que na mesma hora se dirigiu ao banco das testemunhas e ficou posicionado perto de Lankford. O guarda levou a mão à arma, e parecia prestes a dar voz de prisão.
— Sr. Lankford, pode por favor se levantar.
Parecendo surpreso, Lankford ficou de pé. Olhou para o policial e depois para a juíza.
— Está portando arma de fogo, sr. Lankford? — perguntou Leggoe.
— Ãhn, sim, estou.
— Quero que entregue a arma para o guarda Hernandez. Ele vai ficar com ela até o fim de seu testemunho.
Lankford não se moveu. Ficou claro que Leggoe estava preocupada com o fato de que o investigador estivesse armado e pudesse tentar ferir os outros ou a si próprio. Foi uma boa medida.
— Sr. Lankford — disse a juíza, com rispidez. — Por favor, entregue a arma para o guarda Hernandez.
Hernandez reagiu abrindo o coldre com a mão e acionando o microfone de ombro com a outra. Presumi que estivesse transmitindo um código de emergência para os demais agentes da segurança no tribunal.
Lankford enfim levou a mão ao lado interno do paletó esportivo. Lentamente tirou sua arma e entregou ao guarda Hernandez.
— Obrigada, sr. Lankford — disse a juíza. — Pode sentar, agora.
— Tenho uma faca retrátil também — disse Lankford. — Algum problema?
— Não, sr. Lankford, isso não vai ser problema. Por favor, sente-se.
Houve um suspiro coletivo de alívio no tribunal quando Lankford sentou e Hernandez levou a arma para sua mesa, trancando em uma gaveta. Quatro guardas entraram na sala pela porta dos fundos e pela entrada dos réus. A juíza disse na mesma hora para manterem a calma e ordenou que o júri fosse trazido de volta à bancada.
Três minutos depois, as coisas pareciam ter voltado ao normal. O júri e a testemunha estavam no lugar e a juíza acenou para mim.
— Dr. Haller, pode prosseguir.
Agradeci à juíza e depois tentei retomar do ponto interrompido.
— Investigador Lankford, o senhor disse ao agente Marco para ir ao seu encontro no endereço da Franklin?
— Não. Eu liguei para ele e passei o endereço. Um pouco depois, fui embora. Dei por terminado. Eu fui para casa.
— E duas horas mais tarde, Gloria Dayton, a mulher que usava o nome Giselle Dallinger, estava morta. Não é isso?
Lankford baixou o rosto e balançou a cabeça.
— Isso.
Mais uma vez olhei para o júri e vi que nada mudara. Estavam vidrados na confissão de Lankford.
— Vou perguntar outra vez, investigador. O senhor sabia que ela ia morrer naquela noite?
— Não, não sabia. Se tivesse...
— O quê?
— Nada. Não sei o que eu teria feito.
— O que achou que aconteceria depois de ter passado o endereço de Gloria Dayton para Marco?
Forsythe protestou, dizendo que a pergunta incitava a especulação, mas a juíza indeferiu e disse a Lankford que podia responder. Como todo mundo no tribunal, Leggoe queria ouvir a resposta.
— Não sei — respondeu. — Antes de passar o endereço naquela noite, eu perguntei outra vez para ele o que estava acontecendo. Falei que não queria me envolver se a garota fosse se machucar. Ele insistiu que só queria conversar. Admitiu que ficou sabendo que a garota tinha voltado para a cidade depois que ela ligou de um número bloqueado e comentou com ele que tinha recebido uma intimação em um caso cível. Ele falou para mim que só precisava achar a garota para conversar sobre isso.
Enfatizei essa resposta com um pouco de silêncio. Na essência, a apresentação do meu caso estava completa. Mas era difícil encerrar o depoimento de Lankford.
— Por que fez isso pelo agente Marco?
— Porque ele podia me obrigar a fazer o que quisesse. Eu estava nas mãos dele.
— Como assim?
— Dez anos atrás, eu trabalhei naquele caso de homicídio duplo em Glendale. Na Salem Street. Eu conheci Marco naquela ocasião e cometi um erro...
A voz de Lankford tremeu ligeiramente. Esperei. Ele se acalmou e continuou.
— Ele veio falar comigo. Disse que tinha umas pessoas... umas pessoas que iam pagar para o caso ficar sem solução. Você sabe, me pagar para não resolver o caso. A verdade era que nós, meu parceiro e eu, provavelmente não íamos mesmo conseguir solucionar. Não tinha uma migalha de evidência naquele lugar. Foi uma execução, e os assassinos contratados provavelmente tinham atravessado a fronteira e desaparecido. Então eu pensei, que diferença vai fazer? Eu precisava da grana. Estava divorciado e minha esposa, minha ex, queria levar nosso filho embora. Ela ia se mudar para o Arizona e levar o menino, e eu precisava da grana para conseguir um bom advogado e brigar na justiça. Meu filho tinha só nove anos. Ele precisava de mim. Então aceitei o dinheiro. Vinte e cinco paus. Marco cuidou do negócio, me trouxe o pagamento e depois disso...
Ele fez uma pausa e pareceu se perder em um turbilhão de pensamentos. Achei que a juíza podia intervir outra vez, porque, apesar da prescrição, Lankford sem dúvida confessara um crime. Só que a juíza continuou tão imóvel quanto os demais na sala do tribunal.
— Depois disso o quê? — insisti.
Foi um erro. A pergunta deixou Lankford com raiva outra vez.
— O que foi, quer que eu desenhe para você? Eu fiquei nas mãos do cara. Está entendendo? Eu virei o pau-mandado dele. Aquele servicinho no hotel não foi a primeira vez que ele me usou ou me disse o que era para fazer. Teve outras vezes. Um monte de vezes. Ele me tratava como tratava os delatores dele.
Balancei a cabeça e olhei para minhas anotações. Eu sabia que o julgamento estava encerrado. Não precisava chamar Marco outra vez nem pôr qualquer outra testemunha no banco. Moya, Budwin Dell — nenhum deles era necessário, nenhum deles importava. O julgamento terminava bem ali.
Lankford ficou com a cabeça baixa, de modo que não dava para ver seus olhos.
— Investigador Lankford, depois de passar o endereço, o senhor chegou a perguntar ao agente Marco o que aconteceu naquela noite com Gloria?
Lankford balançou a cabeça devagar.
— Eu perguntei na lata se ele tinha matado a garota, porque não queria aquilo na minha consciência. Ele disse que não, que foi até o apartamento mas que, quando chegou lá, ela já estava morta. Falou que pôs fogo no lugar porque não sabia se tinha alguma coisa que podia ligar os dois. Mas garantiu que a garota já estava morta.
— O senhor acreditou nisso?
Lankford fez uma pausa antes de responder.
— Não — disse finalmente. — Não acreditei.
Fiz uma pausa. Eu queria que aquele momento durasse pelo resto da minha vida. Mas então olhei para a juíza.
— Excelência, não tenho mais perguntas.
Passei por trás de Forsythe a caminho da mesa da defesa. Ele permaneceu na cadeira, aparentemente ainda decidindo se partia para a contrainquirição ou apenas pedia à juíza para extinguir o processo. Sentei ao lado de Jennifer e ela sussurrou com força em meu ouvido.
— Puta merda!
Me curvei na direção dela para sussurrar de volta quando escutei a voz de Lankford, no banco das testemunhas.
— Meu filho está maior agora e vai ficar bem.
Virei para ver com quem o investigador estava falando, mas ele se curvara no banco, ocultado pelo painel de madeira. Parecia estar pegando alguma coisa caída no chão.
Então, enquanto eu olhava, Lankford empertigou o corpo e levou a mão direita ao pescoço. Vi os dedos segurando uma pequena pistola — uma arma de carregar na bota. Sem hesitar, ele pressionou o cano na pele macia sob o queixo e puxou o gatilho.
O estouro abafado da pistola suscitou um uivo vindo da bancada dos jurados. A cabeça de Lankford deu um coice para trás e depois para a frente. Seu corpo pendeu devagar para a direita e então desabou atrás do painel do banco das testemunhas, fora do campo de visão.
Gritos de horror e medo ecoaram de todos os cantos do tribunal, embora Jennifer Aronson não tivesse emitido um som. Assim como eu, ela permaneceu sentada, em silêncio, olhando para o que agora parecia ser o banco das testemunhas vazio.
A juíza começou a gritar para que a sala do tribunal fosse evacuada, mas tive a sensação de que até mesmo seu timbre agudo de pânico despareceu diante do ruído de fundo. Logo, era como se eu não pudesse escutar mais nada.
Olhei para o júri e vi Mallory Gladwell, meu membro alfa, de pé e com os olhos fechados, as mãos pressionadas contra a boca aberta. Atrás dela e de ambos os lados, outros jurados reagiam ao horror do que acabavam de presenciar. Nunca mais vou me esquecer desse quadro. Doze pessoas — os deuses da culpa — tentando apagar da mente o que tinham acabado de ver.
PARTE QUATRO
OS DEUSES
DA CULPA
Segunda-feira, 2 de dezembro
RESUMO DE ENCERRAMENTO
O caso Gloria Dayton terminou há muito tempo. Seis meses depois, seus círculos concêntricos na superfície de minha vida continuam se movendo com uma agitação muito particular. Naturalmente, o julgamento foi encerrado quando Lankford puxou a arma de reserva e tirou a própria vida na frente do júri. A juíza Leggoe decretou a anulação do julgamento e o processo não foi além do Departamento 120. Como era de se esperar, o Gabinete da Promotoria retirou todas as acusações contra Andre La Cosse, mencionando a “probabilidade” de inocência e outras circunstâncias atenuantes. Claro, ninguém no Gabinete da Promotoria nem no DPLA admitiu pura e simplesmente que estavam errados desde o início.
Após ganhar liberdade, Andre foi transferido para o Cedars-Sinai, onde recebeu o melhor tratamento possível, passou por novas cirurgias e se recuperou durante seis semanas em um ambiente médico de última geração. Mandei todas as faturas dos médicos e do hospital para Damon Kennedy, no Gabinete da Promotoria. Nunca tive uma resposta.
Quando Andre enfim recebeu alta, passou a caminhar com a ajuda de uma muleta e provavelmente será assim para sempre. Grato pelo desfecho do processo criminal, ele concordou em me deixar entrar com uma ação civil contra o município e o condado, pleiteando indenização por detenção e encarceramento injustificados e pelos danos físicos e mentais oriundos disso. Nenhum dos dois poderes acusados queria chegar perto de um tribunal nesse caso, e negociamos um acordo. Comecei reivindicando um milhão de dólares por cada facada desferida contra meu cliente, mas no fim nos contentamos com 2,4 milhões e o ressarcimento das despesas médicas.
Minha parte representou o maior pagamento de honorários da história da Michael Haller & Associados. Dei bônus para todo mundo na equipe de defesa e enviei um cheque de cem mil dólares para a mãe de Earl Briggs. Achei que era o mínimo que podia fazer.
Ainda me sobrou mais do que o suficiente para férias de três semanas no Havaí com Kendall e para comprar dois Lincoln Town Cars. Um seria para uso imediato, o outro seria guardado para anos futuros. Eram dois modelos com baixa quilometragem de 2011, último ano de fabricação desses automóveis de luxo, uma produção que durou trinta anos.
Por algum tempo depois do julgamento, minha imagem pública não teve trégua. Tornei-me mais uma vez o vilão para a mídia e para o sistema de justiça, dessa vez como o advogado que pressionou de modo tão duro e maldoso a testemunha que a levou a tirar a própria vida em pleno tribunal. Mas no fim minha reputação foi resgatada por uma matéria publicada em três partes no Times em setembro, intitulada “As provações de um homem inocente”. Os artigos detalharam exaustivamente o julgamento, o esfaqueamento e a reabilitação de Andre La Cosse. Acabei saindo muito bem na história como o advogado que acreditou na inocência de seu cliente até o fim e fez tudo que precisava para obter sua liberdade.
A série de artigos contribuiu muito para que conseguisse o acordo financeiro com o município e o condado. Contribuiu mais ainda para que restabelecesse a relação com minha filha. Depois de ler a matéria no jornal, Hayley retomou aos poucos o contato comigo. Passamos a conversar e a trocar mensagens de texto algumas vezes por semana e cheguei a ir até Ventura para vê-la competindo em provas de hipismo.
Os artigos só não contribuíram com relação à Ordem dos Advogados da Califórnia. Um investigador da unidade de ética profissional iniciou uma diligência contra mim logo após a publicação da segunda parte da matéria no Times. O relatório continha entrevistas com os médicos que trataram Andre depois do esfaqueamento e aventava sérias dúvidas quanto ao fato de Andre ter condições de estar acordado e ciente de suas ações no momento em que supostamente assinara a procuração abrindo mão do comparecimento ao tribunal. A investigação da Ordem dos Advogados continua em andamento, mas não estou preocupado. Andre forneceu uma declaração juramentada atestando discernimento legal e relatando que estava em sã consciência no momento da assinatura do documento em questão.
Meu outro cliente, Hector Arrande Moya, saiu vitorioso e derrotado no decurso do ano. Auxiliado por mim e seu pai, Sly Fulgoni Jr. ganhou o processo de habeas corpus e a sentença de prisão perpétua de Moya foi revogada pelo U.S. District Court. No entanto, assim que se viu solto da prisão em Victorville, Moya foi imediatamente detido sob a custódia dos funcionários da imigração e deportado para o México como estrangeiro indesejável.
Até o momento, o destino e o paradeiro de James Marco permanecem oficialmente um mistério. O agente fugiu do tribunal naquele dia em junho, saindo de fininho durante a confusão e o pânico generalizado depois do suicídio de Lankford. Não foi visto desde então, e hoje seu rosto figura nos cartazes de PROCURA-SE do mesmo prédio federal em que um dia trabalhou. Marco é objeto de uma ampla investigação pelo FBI e pela própria DEA. Segundo fontes anônimas citadas no artigo do Times, foram gravíssimos os crimes de corrupção cometidos pela equipe ICE-T liderada por ele durante uma década, e um grande júri federal continuará analisando provas e testemunhos até o ano que vem. Na matéria, as fontes anônimas diziam acreditar que Marco se aliara a uma das facções em uma interminável guerra interna do cartel de Sinaloa. Segundo os depoimentos, o agente aplicaria as ordens recebidas por essa facção no sul da Califórnia. Aventou-se até a hipótese de que a tentativa de colocar Hector Moya em prisão perpétua tenha sido uma determinação dos chefes de Marco no México.
Entre as demais pautas que o grande júri está avaliando, segundo o Times, há o suposto relacionamento entre Marco e a advogada que representava Patrick Sewell, o homem acusado de atacar Andre no centro de transporte do fórum.
O U.S. Marshal’s Office concentra a busca por Marco principalmente no sul do México, onde os federais acreditam que ele possa ter escapado com a ajuda dos líderes do cartel. Mas aposto todas as minhas fichas que nunca vão encontrá-lo. Hector Moya certa vez me contou sobre como seus inimigos desapareciam para sempre. Duas semanas atrás, recebi um e-mail de remetente desconhecido, com o assunto “Saludos Del Fuego”. Abri o e-mail e vi que tinha um vídeo em anexo, mais nada. A duração era de apenas quinze segundos, mas o vídeo equivalia ao horror de uma vida inteira. Mostrava um homem pendurado pelo pescoço em uma árvore. Morto, obviamente, com o rosto muito surrado, inchado e sangrando, a pele e as roupas enegrecidas por queimaduras em alguns pontos.
Tenho certeza quase absoluta de que o homem morto é Marco. Repassei o vídeo para o agente encarregado de sua busca. Uma vez comprovada a autenticidade da gravação, imagino que será anunciada sua possível morte, embora seja pouco provável que alguém encontre o corpo, um dia.
Deletei o vídeo do computador, mas jamais vou conseguir apagar a imagem da memória. Não tenho dúvida de que veio de Moya e não tenho dúvida de que ele queria que eu soubesse qual foi o fim de Marco. Quando penso no destino do agente corrupto, me lembro daquela noite de junho, no loft, quando cercado por minha equipe ergui um brinde à justiça por Gloria Dayton e Earl Briggs. Algumas formas de justiça são mais horríveis do que outras. Mas nesse caso acho que a justiça foi devidamente feita.
Oficialmente, o homicídio de Gloria Dayton continua em aberto, porque ninguém foi nem nunca será condenado pelo crime. A memória de Gloria Days agora reside na consciência da cidade, e ela assume seu lugar no panteão das vítimas públicas.
Nesse meio-tempo, não foi dada muita atenção a Earl Briggs. Seu caso também permanece em aberto e é objeto das atuais investigações do grande júri. Seja como for, meu luto por ele é maior do que por Gloria ou por qualquer outra pessoa. Penso com frequência nos quilômetros que cobrimos juntos, no chão que percorremos pelas ruas da vida.
Todo mundo tem um júri, as vozes que carrega dentro de si. Earl Briggs está em meu júri, assim como Gloria Dayton. Estão na bancada com Katie e Sandy, minha mãe, meu pai e, em breve, Legal Siegel também. Aqueles que amei e aqueles que magoei. Aqueles que me abençoam e aqueles que me amaldiçoam. Meus deuses da culpa. Todos os dias dou um passo depois do outro e eles andam comigo, muito próximos. Todos os dias me encaminho ao poço do tribunal diante deles e faço a defesa de meu caso.
Michael Connelly
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