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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


OS DEUSES RIEM / A. J. Cronin
OS DEUSES RIEM / A. J. Cronin

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

                    1.º ATO
CENA 1 - A sala dos médicos no Hospital de Hopewell Towers. Tarde de inverno.
CENA 2 - O mesmo. Manhã de domingo, seis semanas depois. (O pano deve baixar durante essa cena para significar a passagem de cerca de oito horas.)
                    2.º ATO
CENA 1 - O mesmo. Tarde de primavera, um mês depois.
CENA 2 - O mesmo. Noite, dois dias depois.
                    3.º ATO
CENA 1 - O mesmo. Manhã, um mês depois.

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PRIMEIRO ATO
CENA 1
LOCAL
A sala dos médicos no Hospital de Hopewell Towers.
TEMPO
Pelas três e meia de uma tímida tarde de inverno.
A sala é grande, muito frequentada, servindo ao mesmo tempo como refeitório e sala de estar. Um bufete à esquerda, mesa de jantar no centro, um recanto com uma vitrola, uma janela e uma mesinha, ao fundo. À direita da janela, um- sofá de couro, bastante usado, um piano pequeno e duas poltronas de couro. Escaninhos de correspondência, cabides com aventais brancos pendurados. A lareira fica na parede à direita. Vêem-se três portas. A do centro, ao fundo, é a porta principal, dando para uma passagem interna. A da parede à esquerda dá acesso às dependências domésticas e apartamentos dos médicos. Na parede à direita, outra porta, de importância para a peça.
O DR. DREWETT é um velho, talvez acima dos setenta anos, magro, curvado, seco, de rosto escanhoado, calmo, com ar de intelectual, jeito de indiferença cética; faz uma paciência no recanto da vitrola.
O DR. THOROGOOD tem vinte e seis anos, é pesado, atlético, corretissimo, fuma cachimbo, usa gravata universitária e avental branco de médico; está de pé junto à mesinha, mexendo num vidro uma solução de líquido de Dakin.

DREWETT
- Por que é que eles não põem mais noves vermelhos nos baralhos?
THOROGOOD
- Estou preocupado.
DREWETT
- Não me diga!
THOROGOOD (sério)
- Estou preocupado com Foster! - (Dirige-se à vitrola e põe a tocar um disco de música popular.)
DREWETT (irritado)
- Isso lhe alivia a preocupação?
THOROGOOD
- Bonita canção. - (Pausa.) - O Chefe devia tomar providências.
DREWETT (continuando a paciência)
- Se eu fosse você não insuflava seu tio a interferir entre Venner e os doentes dele. - (Joga nova carta.)
THOROGOOD (irritado)
- Drewett, não fique todo o tempo falando que o Dr. Bragg é meu tio. Estou fazendo tanta força quanto qualquer um de vocês e realmente faço restrições à maneira pela qual Venner trata daquele caso.
DREWETT
- Há momentos, Thorogood - (joga uma carta), - em que eu tinha vontade de que você não fosse tão onisciente.
THOROGOOD (complacentemente)
- Entendo do meu ofício. E dou conta dele.
[O DR. VENNER entra abruptamente pela porta do centro, ao fundo, carregando um guarda-chuva a escorrer. PAUL VENNER tem cerca de vinte e oito anos, é delgado, moreno, sensível, com um leve ar de boémia; veste com descuido um paletó de "tweed" e calças de flanela cinza. Todos os seus movimentos são vivos, carregados de uma energia inquieta, desafiante, amarga. No momento, mostra-se fatigado e muito carecido de barbear-se.
Pendura o guarda-chuva à borda da mesa junto à qual está o DR. THOROGOOD.]
VENNER
- Acho que já lhe pedi como favor especial que não tocasse essa obra-prima.
THOROGOOD
- A gente tem que pôr um disco qualquer, para abafar o barulho que o seu doente predileto vem fazendo, a tarde inteira.
VENNER
- Então toque um disco de música!
THOROGOOD
- Algumas das composições do seu saudoso pai?
VENNER
- Meu pai era um compositor péssimo. Mas entendia de música, coitado. - (Tira o disco que ainda gira na vitrola.) - Se você ainda puser isso para tocar, racho essa droga em cima da sua ondulação permanente.
THOROGOOD
- Experimente! E não se esqueça de que, enquanto você andava bebericando pelos botequins de França e Alemanha, eu jogava boxe por Giggleswick...
VENNER (atirando o chapéu ao cabide)
- Mas não lhe ensinaram Ia savatc... por trás!
THOROGOOD (indignado)
Não, felizmente4f.r(jProcMraní o rixa.) Por que você não acalmou Foster com uma injeção?
VENNER
George, você é tão burro que até mesmo eu não posso deixar de reparar, de vez em quando. (Di-
(Dirige-se ao bufete e destampa a bandeja térmica com uma expressão de desagrado.) - É isto o meu almoço?
THOROGOOD (rindo)
- É.
VENNER (encaminha-se à porta à esquerda)
- Jennie! Jennie!
[Não respondem.]
(Mais alto.) - Jennie! Jennie!
DREWETT
- Você está chamando Jennie?
(VENNER volta-se e toca a campainha que fica junto à lareira.) [Entra a enfermeira-chefe, LEEMING. Ê uma mulher de quarenta e cinco anos, pálida, controlada, muito ereta. com um rosto frio, reservado. Há nela algo combativo, torturado, insidioso. Encara VENNER com ressentimento contido.]
MISS LEEMING
- Já não pedi ao senhor, Dr. Venner, que não gritasse chamando a servente? Já tenho trabalho demais com o pessoal. Jennie está ocupada, preparando o quarto da nova médica. Que é que o senhor quer?
VENNER
- Qualquer coisa para comer.
MISS LEEMING
- Seu almoço está na bandeja térmica.
VENNER
- Bandeja térmica! Aquilo é um forno crematório!
MISS LEEMING
- Não sou responsável pelo descuido do senhor em relação à hora das refeições, nem pelo tempo que perde ali. (Faz um aceno irado em direção à porta fechada, à direita.)
VENNER (olhando-a)
- Fanny, meu bem! Minha rosinha espinhenta!
MISS LEEMING (levantando a voz)
- Já lhe pedi para não me chamar de Fanny, Dr. Venner. Fique o senhor no seu lugar que eu fico no meu. Está bem?
VENNER (com uma risada irónica)
- Seu lugar! Minha querida Fanny, é você quem sai do seu! Teoricamente, esta sala é dos médicos; mas como fica perto da sua alcova de virgem, você está aqui o dia inteiro! Você se infiltra nas nossas conversas, preside às nossas refeições...
MISS LEEMING (respirando forte)
- Só uso esta sala porque sou obrigada a isso; porque não tenho uma sala de estar para mim. Toda a enfermeira-chefe de hospital tem uma sala própria. E pelo direito, aquela ali - (indica a porta à direita) - devia ser minha. Mas está sendo desperdiçada com as suas mirabolantes experiências.
VENNER
- Aquela sala já me servia de laboratório antes que o seu amigo Bragg comprasse este pardieiro. E pretendo continuar com ela.
MISS LEEMING
- O tempo decidirá, Dr. Venner. E uma coisa eu digo: - (dá um passo em direção a VENNER) - se eu fosse informar o Dr. Bragg de alguns fatos que sei, certo conhecido meu seria demitido.
VENNER (ri)
- É engraçado, Fanny, você ainda não conseguiu deixar de falar como uma cozinheira!
MISS LEEMING (furiosa, atira a VENNER um olhar venenoso, mas controla-se com grande esforço)
- Prefiro não continuar a discussão, Dr. Venner.
[Retira-se pela porta à esquerda.]
VENNER
- Graças a Deus!
DREWETT
- Acha isso prudente, Venner?
VENNER (atravessa à direita, apanha um jornal, senta-se na poltrona à direita)
- O quê?
THOROGOOD
- Na minha opinião, foi de péssimo gosto.
VENNER
- Não pedi sua opinião.
THOROGOOD
- Digo assim mesmo que é de péssimo gosto essa alusão ao tempo em que ela foi ajudante de cozinha, em Blackton.
VENNER
- Blackton fica apenas a vinte milhas daqui; ela não pode esperar, portanto, que o fato seja ignorado. Deveria era ter orgulho disso.
DREWETT
- De qualquer forma, ela nunca lhe perdoará a lembrança.
VENNER (amuado)
- Diabos levem a ela e aos seus perdões. Estou com fome. E agora ela vai atrasar nosso chá, só de raiva.
DREWETT (levanta-se e vai acender a lâmpada à direita)
- Pelo contrário, seremos servidos no momento em que chegar a nova médica. Nossa enfermeirachefe adora causar boas impressões; é uma das manifestações da sua líbido! - (Volta a sentar-se no sofá.)
VENNER
- Quando é que chega essa maldita mulher?
DREWETT
- Deve chegar a Parchester pelo trem das três horas.
THOROGOOD
- O chefe foi buscá-la com o carro.
VENNER
- Que maravilha. A ideia de ter uma médica nesta casa é um perfeito...
DREWETT (cínico)
- Idílio?
"VENNER
- Um perfeito vomitório!
THOROGOOD
- A moça só vai ficar aqui uns tempos - enquanto durar a ausência de Sargent. Ademais, não vejo por que uma mulher não possa trabalhar aqui.
DREWETT (distraído)
- Creio que ela vem da Escócia.
VENNER
- Deve ser uma escocesa escanifrada, de cabelo desbotado. (Imitando o sotaque escocês.) "O senhor usa cataplasma nos seus casos de pneumonia, doutor?" Conheço muito esse tipo.
DREWETT (seco)
- Que não é o seu tipo, vê-se logo.
THOROGOOD (arrolha o frasco, agora cheio de uma solução leitosa) - bom trabalho!
VENNER
- Olhe o projeto de cientista!
THOROGOOD
- É preciso que alguém tenha a paciência de cuidar da manipulação. Que fim levaram os três litros de éter que vieram outro dia do Glyster?
VENNER
- Ali! Meus pecados estão me traindo!
THOROGOOD
- Vi logo que você tinha gasto o éter com as suas malditas experiências! Topete não lhe falta, rapaz!
VENNER (rindo)
- Mas falta-me éter!
[THOROGOOD sai pela porta do centro, ao fundo.]
DREWETT (como por acaso)
- Como está Foster, hoje?
VENNER
- Fisicamente na mesma - você sabe que o coração dele não dá mais nada. Mas psiquicamente reagiu que foi uma maravilha à dosagem aumentada segundo o controle pela esinofilia. - (Sem sentir, volta a sentar-se, inteiramente mudado, com a expressão animada e tensa.) - O fato é, Drewett, que alterando a proporção do fosfato di-sódico para 0,01 em dez por cento de solução estéril, consegui duplicar a força e a pureza do meu betrazol original.
DREWETT
- Não é que isso me preocupe... Mas você pensa mesmo que pode curar o Foster?
VENNER (com calor)
- Juro que posso, Drewett! Mas não se trata de casos individuais. Se os meus cálculos estiverem certos, se realmente acertei!... - (Pula da cadeira, exaltado, tira uma chave do bolso e vai abrir a porta da direita.) - Espere que lhe mostro!
[Entra THOROGOOD enxugando as mãos numa toalha de rosto. ]
THOROGOOD
- Já chegaram.
[VENNER pára, põe novamente a chave no bolso. Fica de pé junto à porta da direita. THOROGOOD ajeita a gravata e alisa o cabelo com um pente de bolso. O DR. BRAGG entra pela porta do fundo acompanhado pela DOUTORA MARY MURRAY. O DR. EDGAR BRAGG é o tipo do triunfador, imponente, beirando os cinquenta. Veste-se com a maior propriedade profissional: paletó cintado, calças de listas, colarinho de ponta virada, punhos engomados, bastante visíveis. Por trás dele mostra-se MARY MURRAY - perfeita antítese do tipo imaginado: tem apenas vinte e dois anos e ê invulgarmente bonita. Sua expressão tem um doce e espiritual encanto. Usa um elegante costume de lã azul.]
BRAGG (adiantando-se com segurança)
- Boa tarde, meus senhores. - (Voltando-se com um aceno.) - Seus futuros colegas, Doutora Murray. O Dr. Drewett, antigo e valioso membro da nossa organização, maduro em anos, talvez, porém igualmente maduro em discrição e experiência.
MARY
- Muito prazer. - [DREWETT curva-se.]
BRAGG
- Meu sobrinho, Dr. Thorogood, centro-avante do nosso time de futebol, regente do nosso grupo coral, adepto entusiasta, tal como eu, do sábio adágio: Mens sana in corpore sano.
THOROGOOD (com um aperto de mão cordial)
- Muita satisfação em conhecê-la.
BRAGG
- E - (gesto de desculpas) - o Dr. Venner.
MARY
- Muito prazer.
[A enfermeira-chefe entra discretamente pela esquerda, acompanhada por JENNIE, que começa a pôr a mesa do chá.]
BRAGG
- Ah, a senhora sempre aparece no momento exato! Doutora Murray, apresento-lhe Míss Leeming, - nossa estimadíssima enfermeira-chefe. - (Atitude oratória.) - A mais competente da Inglaterra!
MISS LEEMING (adiantando-se, sensibilizada)
- Bondade sua, Dr. Bragg. É uma honra trabalhar para o Hospital de HOPEWELL TOWERS.
BRAGG
- É verdade, Doutora Murray. Não só temos aqui a clínica particular de neurologia mais seleta do país, como, graças à nossa filiação ao Parchester Board (do qual ocupei a cadeira de docente), admitimos um determinado número de elementos da classe operária, abrindo assim nossas portas a todos os doentes de moléstias nervosas. - (Dá alguns passos em direção à janela.) [MARY o acompanha.)
BRAGG
- Temos legumes de nossas próprias hortas, que a senhora deve ter visto ao chegar; produtos da nossa granja, e um poço artesiano que se aprofunda a oitocentos pés, até encontrar o lençol subterrâneo que brota de pedregulhos.
[VENNER atira o jornal ao chão e caminha para o fundo.]
BRAGG (olhando o relógio)
- Bem, peço-lhe que se apresente no meu gabinete às cinco horas em ponto. A enfermeirachefe acompanhá-la-á ao seu quarto.
MARY
- Muito obrigada. Gostaria de lavar o rosto antes do chá.
[Miss LEEMING atravessa para a direita a fim de apanhar o jornal que VENNER atirou ao chão. MARY a acompanha, supondo que ela se dirige à porta da direita.]
VENNER (com insultante polidez)
- Não é por aqui.
MARY (chocada)
- Desculpe.
Miss LEEMING (dirigindo-se à porta da esquerda)
- Tenha a bondade de me acompanhar, doutora. É aqui perto.
MARY
- Muito obrigada.
[MARY acompanha a ENFERMEIRA-CHEFE. A mesa já está posta para o chá. JENNIE sai pela porta da esquerda. VENNER dá uns passos na direção da porta à direita.]
BRAGG
- Dr. Venner! Um momento, por favor! - (Dirige-se cerimonioso a DREWETT e a THOROGOOD.) - Desculpem-me, senhores. - (Aproxima-se da mesa pela esquerda, enquanto VENNER se aproxima pela direita.) - Dr. Venner, o senhor anotou todas as observações relativas àqueles casos?
VENNER
- Ainda não.
BRAGG
- Por que não?
VENNER
- Não tive tempo.
BRAGG (irritando-se)
- Pois trate de arranjar tempo, Dr. Venner. Não permitirei que o ritmo de trabalho do meu hospital seja perturbado pelo seu relaxamento. E por que motivo o senhor hoje não se barbeou?
VENNER
- Há dias em que não me arrisco a usar uma navalha.
BRAGG
- Como?
VENNER.
- Isso mesmo.
BRAGG
- Pois sinto-me obrigado a lhe solicitar, mais uma vez, que se vista e de modo geral comporte-se de acordo com a ética exigida por este estabelecimento.
VENNER (zombeteiro)
- Quer apostar como eu em mangas de camisa sou capaz de curar muito mais doentes em seis meses do que o senhor, com o seu paletó cintado, em seis anos?
BRAGG (com a maior frieza)
- Eu não faço apostas, Dr. Venner. Mas sei que o doente no qual põe um cuidado todo especial lhe tem dado muito trabalho esta semana.
VENNER
- Eu já esperava que ele desse trabalho.
BRAGG
- Devia ter-lhe administrado um sedativo.
VENNER (irritando-se)
- Não o quero saturar de drogas até torná-lo insensível. Se se começar com isso, o homem está liquidado. - (Já calmo.) - Enquanto eu dirigir a sua enfermaria de psiquiatria, Dr. Bragg, hei-de dirigi-la cientificamente.
Abre-se a porta do fundo, ao centro, e entra GLADYS BRAGG. É mulher de uns trinta e quatro anos, atraente, muito cuidada, vestida com gosto, aparentemente sofisticada mas interessante no fundo.)
GLADYS
- Céus! Terei vindo perturbar uma sessão do comité funerário?
BRAGG (abranda-se, a sua expressão à vista de GLADYS, a quem sorri melosamente)
- Não veio perturbar coisa nenhuma, meu bem. Eu já disse tudo o que tinha a dizer.
GLADYS (sorrindo para VENNER)
- Mal guardei o carro, vim voando trazer os seus cigarros.
VENNER (recebendo mecanicamente o pacote)
- Obrigado, Mrs. Bragg.
GLADYS
- E a minha comissão?
VENNER
- Oh! (Abro a caixa e lhe oferece um cigarro.
BRAGG (rápido e carinhoso, acende o isqueiro)
- Você não acha que está fumando demais, meu bem?
GLADYS
- Que pergunta! E logo diante do Dr. Venner, que fuma cinquenta cigarros por dia. - (Tirando o cigarro.) - Obrigada.
BRAGG (implicante)
- Gladys, meu bem, temos que ir andando.
GLADYS
- Você, Edgar, vive a me apressar.
BRAGG
- É que o tal sujeito do Glyster está à minha espera.
GLADYS (THOROGOOD lhe acende o cigarro)
- Quero saber do veredicto a respeito da nova aquisição. - (Franzindo o nariz.) - Que achou, George? Não é um pouco.. etérea?...
THOROGOOD (crítico)
- Acho a moça demais!
GLADYS
- E o senhor, que acha, Dr. Drewett?
DREWETT (seco)
- A senhora não pode esperar de mim que arrase a moça, Mrs. Bragg. Mal a vi.
GLADYS
- Ora essa, Dr. Drewett! Se todos fossem tão discretos quanto o senhor, ninguém diria nada!
DREWETT
- Que bênção não seria isso!
[VENNER ri. Entra JENNIE pela esquerda, trazendo um grande bule de chá.]
BRAGG
- Vamos, querida, vamos. Você quando começa a falar, parece uma perfeita matraquinha. - (Segura o braço da esposa com possessivo carinho, e saem ambos pelo fundo, à esquerda.)
[JENNIE toca o gongo. DREWETT senta-se à mesa, ao fundo, à direita. THOROGOOD ao fundo também, à esquerda. VENNER senta-se à direita, à frente.]
THOROGOOD
- Bolinhos? Ou são torradas? - (Levanta a tampa do prato.) - Sonhos!
DREWETT
- Quer largar isso ai, Thorogood?
[Entram MARY e Miss LEEMING pela esquerda. A ENFERMEIRA-CHEFE dirige-se à mesa e indica um lugar a MARY.]
MISS LEEMING
- Quer sentar-se ali, Doutora Murray? Traga a chaleira, Jennie. Leite com açúcar, Doutora Murray?
MARY
- Obrigada, nem um nem outro.
VENNER (cortesmente)
- Tempo bem próprio para esta quadra do ano.
THOROGOOD (evidentemente atraído pela moça, com olhar de admiração)
- Espero que sua viagem não tenha sido demasiado cansativa.
MARY (animada)
- Não foi de todo má.
VENNER
- Sua família ficou bem?
MARY
- Não tenho familia.
VENNER (com voz triste)
- Que pena! Eu também sou órfão.
THOROGOOD
- Não dê importância a ele, doutora.
[VENNER leva a cadeira em que está sentado para junto da vitrola e traz outra.]
DREWETT (como todo o velho, absorto na comida)
- Nem a Thorogood! É sobrinho do Dr. Bragg. está bem de vida, mas já tem noiva! Que por sinal lhe escreve todos os dias.
THOROGOOD (agastado)
- Isso não é da sua conta.
VENNER
- Jennie, você quer que eu acabe com mania de perseguição?
JENNIE
- Oh, não senhor!
VENNER
- Então não ponha mais para mim esta cadeira de perna cambada.
JENNIE
- A enfermeira-chefe disse, doutor...
VENNER
- Logo vi.
MISS LEEMING
- De que parte da Escócia é a senhora, doutora?
MARY
- Do Ayrshire.
THOROGOOD
- Conheço o Ayrshire. Já joguei golfe no...
DREWETT
- A senhora também joga golfe, doutora?
MARY
- Não.
DREWETT
- De minha parte, considero o golfe um jogo ridículo.
THOROGOOD
- Não concordo. É um ótimo exercício.
MISS LEEMING (pondo termo à palestra geral)
- Jennie, não fique aí como um dois de paus. Há muito que fazer na cozinha.
JENNIE
- Sim, senhora. - (Sai pela esquerda.)
VENNER (trazendo outra cadeira para a mesa e sentando-se)
- E que providencial planeta encaminhou sua vinda para o Hospital de Hopewell Towers, doutora? Foi talvez atraída pelo renome do nosso proprietário?
MARY
- Não. Não tinha ouvido falar nele.
VENNER
- É impossível! Deus do céu! Drewett, e essa é a recompensa dada ao homem que introduziu o tratamento da esclerose generalizada por meio do brócoli produzido aqui!
MISS LEEMING
- Aceita um pouco de geléia feita em casa, Doutora Murray?
MARY
- Obrigada. - (Tira uma fatia de pão.)
VENNER (efusivo)
- Oh, aceite, doutora! Ou quem sabe prefere o nosso bolo de ameixas feito com farinha de nossa própria fabricação?
DREWETT
- Que aliás está excelente.
VENNER
- Temos que nos manter robustos. Não é, enfermeira-chefe? Mens sana in corporis sanitas...
THOROGOOD
- Ah, ah!
VENNER
- Quer dizer - "Coma quando puder, porque às vezes a gente quer mas o diabo da comida falta."
DREWETT
- Vai indo muito bem o seu latim.
THOROGOOD
- Será que agora já posso tirar um sonho?
VENNER
- Mas por que motivo a senhora veio para cá?
MARY (francamente)
- É simples: formei-me no mês passado e pretendo ser missionária - médica-missionária.
VENNER (estupefato)
- Como?
DREWETT
- Realmente? E em que parte do mundo?
MARY
- Sanchen, na China. Meu pai era missionário, trabalhou e morreu lá. E minha mãe também.
DREWETT
- Assim, também a senhora vai para lá. - (Para THOROGOOD.) - Não coma toda a geléia, Thorogood. - (Este passa adiante a geléia.)
MARY
- Assim que puder. O Dr. King ainda não tem lugar para mim no nosso hospital da missão. E ademais... eu desejava primeiro ganhar o suficiente para a minha passagem. E cá estou.
VENNER
- Valha-me Deus!
THOROGOOD
- Muito bonito. Mais água quente, Miss Leeming?
MISS LEEMING
- Sim, por favor.
[THOROGOOD apanha a chaleira de água quente no bufete.]
VENNER (com brandura)
- E naturalmente a senhora fala chinês?
MARY
- Um pouco. Quando criança, aprendi uma porção de palavras... e tenho estudado muito...
VENNER
- Esplêndido, esplêndido! Diga-me, doutora chu-chow chin chin cliung lung suf...
MARY (espantada)
- Creio que não...
VENNER
- Ah! (Imitando sotaque de chinês.) - Toda pessoa bonita ouve mal. Agora vai cantar hino: "Oh, Senhor, ajudai-nos."
DREWETT
- Basta, Venner!
MISS LEEMING (intervindo, exaltada)
- Dr. Venner, o senhor devia-se envergonhar do que está fazendo!
THOROGOOD
- Estou com vontade de mandar-lhe um murro no queixo.
VENNER
- Diante de senhoras, não, George.
MARY
- Oh, não se preocupem comigo! Dr. Venner, a ideia que o senhor faz de um missionário parece tirada de uma caricatura do século passado. O senhor teria um choque, se visse pessoalmente como são as coisas por lá. Acontece que está havendo uma guerra na China, com milhões de pessoas sem teto - reides aéreos, epidemia de cólera. Mulheres e criancinhas passando por sofrimentos inacreditáveis - clamando por pão...
VENNER
- E por que dar-lhes o pão enrolado numa página do catecismo?
MARY
- Para que eles vejam que o pão vem de Deus!
VENNER
- E as bombas também?
MARY
- As bombas vêm dos homens que se esqueceram de Deus!
VENNER
- Então por que não pregar o seu evangelho aos ditadores?
MARY
- Como se eles ligassem ao evangelho! - (Empolgando-se.) - Os ditadores deixariam de existir se todos os povos da terra acreditassem em Deus, obedecessem às Suas leis, e se lembrassem de como e para que foram criados por Ele!
VENNER (rindo)
- E assim, meus filhinhos, termina o conto de fada desta noite.
THOROGOOD
- Olhe aqui, Venner...
DREWETT
- Sente-se, Thorogood.
[Entra pelo fundo, ao centro, ALBERT CHIVERS. Parece exatamente aquilo que é: um próspero viajante comercial, e apesar de usar sapatos marrons com terno asul, revela no olhar uma certa esperteza.)
CHIVERS
- Boa tarde a todos. Espero não interromper.
DREWETT
- Felizmente interrompe. Doutora Murray, apresento-lhe Mr. Chivers - que é, segundo presumo, representante do laboratório Glyster neste distrito.
CHIVERS
- - O melhor laboratório do reino, sem nenhuma exceção. Prazer em
conhecê-la, senhorita, quero dizer, doutora. A coisa que mais lamento na vida é não ter me formado em medicina também. Quero ver se ao menos consigo formar o meu filho. Gosto da profissão. Ele tem apenas oito anos, note bem. Mas que menino!
VENNER
- Você está alegre, Chivers. Que aconteceu?
CHIVERS (com uma piscadela)
- Fui promovido! Chefe de vendas em Londres. Domingo passado eu disse à mulher lá em casa - "Blowden (ela é de Gales, doutora, casamos em Swansea), Blowden, falei, se eu tomar cuidado com os meus ff e rr - (nesse momento estava empurrando o cortador de grama), - duvido muito que na próxima primavera eu torne a aparar este gramado!
VENNER
- Se você tiver ainda uns restos daquela droga que mata ervas daninhas, ceda-me, para eu usar no Bragg!
THOROGOOD
- Engraçadinho!
CHIVERS
- Ah, ah! Qual, Dr. Venner, isso é brincadeira sua, pensa que não sei que é? Para falar a verdade, já tomei nota dos pedidos. - (Bate no bolso cheio.) - E o senhor mesmo é a pessoa que vim procurar!
MISS LEEMING
- O chá está bom, doutora?
CHIVERS
- Dr. Venner, o senhor pensou na proposta que lhe fez Mr. Glyster?
DREWETT
- Qual foi?
CHIVERS
- Ah! Quinhentas libras por ano não são para desprezar, Dr. Venner. Fora a distinção de ser um dos vinte médicos escolhidos para formar o corpo de assistentes do Laboratório de Pesquisas Glyster.
VENNER (troca um olhar com DREWETT; ambos riem)
- Desculpe, Mr. Chivers. Agradeço a honra da escolha, mas, como lhe disse, nada feito.
MISS LEEMING (para THOROGOOD)
- Quer me dar uma fatia de bolo?
CHIVERS
- Bem, ainda não me considero vencido, doutor. Talvez falando com o patrão eu ainda lhe possa aumentar a oferta de umas cinquenta libras. Sempre dá para comprar uns "havanas", hem?
DREWETT
- Ah. "Havanas"!
CHIVERS
- Ah, ah! E o trabalho, vai andando?
VENNER
- Que trabalho?
CHIVERS (rindo, de bom grado)
- Que trabalho! Ah... (Levanta-se e bate com o indicador no ombro de VENNER.) Essa é boa! Mas a mim o senhor não me engana, meu senhor! Tenho faro para descobrir uma pesquisa nova a uma légua de distância.
DREWETT
- Disso eu sabia.
MISS LEEMING
- Mais chá, Dr. Thorogood?
THOROGOOD
- Não, obrigado, Miss Leeming.
CHIVERS
- Ainda a noite passada, quando ia me deitar, sentei-me na cama e disse à patroa: "Blod, aquele mocinho Venner - desculpe a confiança, doutor - sabe o que está fazendo!" Sim senhor, disse estas palavras com esta mesma boca que a terra há-de comer! Bem! Não se esqueça da minha proposta, Dr. Venner! Tenho que ir andando.
THOROGOOD (levantando-se)
- Você, de caminho, podia-me acompanhar até ao dispensário. Acho que estamos com falta de alguma coisa. - (Para as senhoras.) - com licença. (Dirige-se à porta da esquerda.)
CHIVERS (caminhando com THOROGOOD)
- Vamos, doutor. "Nunca recusar um pedido ou uma boa companhia" - eis o lema do seu criado Albert Chivers. Boa sorte, Dr. Venner. Boa noite a todos.
[Saem THOROGOOD e CHIVERS.]
VENNER
- Desculpem. Mas preciso controlar um teste. - (Vai para a porta à direita, apaga o cigarro e mete a chave na fechadura.)
[Sai VENNER.]
MISS LEEMING (olhando a porta fechada)
- Creio que estamos todos prontos a lhe pedir desculpas pela atitude do Dr. Venner, doutora. E espero não estar-me excedendo se lhe digo que ele é uma pessoa impossível. - (com veneno na voz.) - Aqui em Hopewell Towers todos o detestam.
DREWETT
- Todos, Enfermeira-chefe?
MISS LEEMING
- Sua afeição por ele é um disparate, Dr. Drewett.
DREWETT
- Eu, neste mundo, só tenho afeição a mim mesmo.
MISS LEEMING (levantando-se de forma indelicada)
- Hoje é a minha noite de plantão na sala de espera. vou apanhar o meu tricô. com licença... - [Sai MISS LEEMING.]
DREWETT (puxa a cadeira para perto da DOUTORA MURRAY)
- Minha filha, a conduta de Venner foi realmente imperdoável. Não pense que o estou desculpando, mas - quero dizer-lhe - a vida não tem sido muito agradável para esse rapaz.
MARY
- Compreendo. De que modo?
DREWETT (secamente)
- De todos os modos. O pai dele era um desses homens de muita sensibilidade e pouca utilidade: começou como prodígio musical, um novo Mozart. E morreu arranhando um violino num café de Ostende. A mãe - ele me mostrou um retrato dela - deve ter sido uma beldade - (irónico.) - antes de dançar ao som da rabeca do marido. Bem, coitada, lutou até não poder lutar mais. Paul, com dez anos de idade, foi retirado semimorto de um quarto saturado de gás.
MARY (comovida)
- Oh, coitadinho!
DREWETT
- E isso foi só o começo, Depois disso o avô lhe custeou a educação.
MARY (lentamente)
- Mas ele é inteligentíssimo, não é?
DREWETT
- Claro. Você não ouviu falar no trabalho dele com o Von Reiter, em Budapeste?
MARY
- Não.
DREWETT
- Às vezes penso que aí está a explicação da amargura de Venner.
MARY
- Mas que aconteceu?
DREWETT
- Imagine que ele estava trabalhando no tratamento da esquizofrenia por meio de injeções endovenosas de betametilentetrazol. As reações de choque provocadas nos doentes eram tão severas que quaisquer bons resultados do tratamento ficavam praticamente anulados. Segundo a hipótese de Reiter, o choque era essencial à terapia. Venner negava isso. Ele acreditava que a melhora era devida a algum elemento componente da droga ainda desconhecido. E teve a coragem de dizer isso! Houve uma briga dos diabos. Reiter é muito importante e conseguiu a expulsão de Venner do país, sem papéis, sem aparelhos e sem os resultados de todas as experiências que tinha feito.
MARY (lentamente)
- Não admira a amargura dele. Qualquer um, no seu lugar, ficaria desanimado.
DREWETT
- Pois Venner não desanimou. Voltou para cá, aceitou este emprego, e
pôs-se a trabalhar para mostrar que estava com a razão. Agora, passados quatro anos, descobriu a substância, o betrazol, que, segundo ele...
MARY
- Estimula sem provocar choque.
DREWETT
- Exatamente. Regenera especificamente as células nervosas. Se é que não estou gago de todo, posso dizer que ele se encontra às portas de uma descoberta que vai revolucionar o tratamento das moléstias nervosas. Isso porém não o melhorou. Ele às vezes é muito ferino. Não se altere, pois, com o que ele disser.
MARY
- Não me altero assim tão facilmente. - (Pausadamente.) - Agradeço muito ao senhor ter-me contado isso. Gosto do Dr. Venner.
[Ouve-se uma campainha lá fora]
DREWETT (levantando-se)
- Essa amolação quer dizer que está na hora da ronda da tarde. - (Faz uma careta.) - Aliás, Bragg quer vê-la no gabinete dele. Vou-lhe mostrar onde é. - (Caminha com MARY em dirsção à porta da esquerda.) - Isto aqui é um casarão enorme, mas logo mais você há-de acostumar-se.
[Saem MARY e DREWETT pela esquerda.]
[Entra VENNER pela direita trazendo na mão um vidro pequeno com cristais amarelos tapado com algodão. Dirige-se à mesa, põe lá o frasco, apanha a vitrola, leva-a até a mesa de jogo e abre-a. Ao mesmo tempo, entra a ENFERMEIRA-chefe pela esquerda, tendo na mão um saco do qual pende um novelo de lã que se arrasta pelo chão.]
VENNER
- Boa noite, Fanny. Levando o cachorro a passeio?
MISS LEEMING
- Já tocou o sinal para a ronda da tarde.
VENNER
- Já sei.
[MISS LEEMING apaga as luzes no centro.]
VENNER
- Obrigado.
A ENFERMEIRA-CHEFE sai pela esquerda. VENNER, sem se apressar em atender ao sinal, acende um cigarro e põe um disco para tocar. É a sonata de Chopin em ré bemol menor. Opus35. Ele está escutando a música, quando entra GLADYS BRAGG pela esquerda. Ela caminha até ao centro.]
GLADYS
- Então, como vai, trabalhou muito?
VENNER
- Psiu!
GLADYS
- Por que é que você está sempre tocando essa música?
VENNER
- Ajuda-me a esquecer a tragédia idiota que é esta vida. E me dano de não ser capaz de executá-la eu próprio.
GLADYS
- É bonita. Mas eu queria lhe falar. - (Desliga a vitrola.) - Trouxe o seu troco. É isto. - (Enlaça-o e beija-o apaixonadamente.) - Quase não o tenho visto estes dias. Mas você ainda me ama, não?
VENNER
- Já lhe falei em amor alguma vez?
GLADYS
- Paul! Como é que eu poderia aturar isto aqui se não fosse você?
VENNER
- Você tem Edgar.
GLADYS
- Edgar! Ele passa horas sem falar em outra coisa além do tal discurso - até me dá vontade de gritar. Quem vê pensa que ele já é presidente daquela imbecilíssima associação.
VENNER
- Associação Psicológica, Gladys.
GLADYS
- Oh, que enjoo! Por que me casei com ele, Paul?
VENNER
- Não pergunte a mim. Só o conheço de dia.
GLADYS
- Meu Deus, como ele é cacete!
VENNER
- Você devia ter pensado nisso antes.
GLADYS
- Pensei. Mas nossa casa lá em Queens Gate era tão aborrecida, e mamãe só se dava com gente grã-fina...
VENNER
- Pare de fingir que não é grã-fina, Gladys.
GLADYS
- Não sou grã-fina, não; só se é grã-finismo detestar isto aqui. Oh, meu Deus, morar em Londres outra vez! Benzinho, vamos até lá um dia? Viajaríamos cada um num trem; ninguém ficaria sabendo. E passaríamos o dia juntos. Comeríamos coisas maravilhosas em maravilhosos restaurantes, cheios de luzes, de gente e de música.
VENNER
- E passaríamos o dia seguinte inteiro tomando bicarbonato de sódio.
GLADYS
- Vale a pena. Iríamos a uma première, ou coisa que o valha. E eu usaria para você o meu vestido de noite mais deslumbrante!
VENNER
- Aquele com que você me seduziu?
GLADYS
- Será um melhor ainda, desta vez.
VENNER
- Qual?
GLADYS
- Espere só, para ver. Querido, vamo-nos encontrar esta noite?
VENNER
- Esta noite? Não há trem.
GLADYS
- Idiota! Estou dizendo aqui, no lugar de costume.
VENNER
- Mas está chovendo, minha filha.
GLADYS
- Já passou. O tempo está lindo. O céu limpou e tem uma lua cheia simplesmente divina. Vamos olhar a lua e fazer a sorte da moeda, para obter nossos desejos.
VENNER
- Não posso.
GLADYS
- Por quê?
VENNER
- Não tenho um níquel no bolso, e além disso estou ocupado.
GLADYS
- Oh, Paul!
VENNER
- Nada de choro.
GLADYS
- Você quando quer sabe ser bruto.
VENNER
- Nada disso. Estou-lhe lembrando que tenho outras coisas a fazer além de...
GLADYS
- Além de quê?
VENNER
- Não comece uma cena.
GLADYS
- Desculpe. Não era intenção minha ocupar seu valiosíssimo tempo.
VENNER
- Deixe de sarcasmos.
GLADYS
- Por quê?
VENNER
- Por nada. Se isso a diverte...
GLADYS
- Oh, Paul, por favor! Por favor, seja bonzinho! Ando tão só e tão triste! E tão apaixonada por você!
VENNER
- Você não acha que é um erro me dizer isso?
GLADYS
- Não me importo. É verdade. Você me tem feito tão feliz nestes últimos seis meses! E eu não suportaria esta droga de lugar, se não fosse você. E eu também tenho feito você feliz, não tenho?
VENNER
- Claro.
GLADYS
- Foi você que me disse.
VENNER
- Há certos momentos em que qualquer homem é capaz de dizer a qualquer mulher que a adora.
GLADYS
- E eu posso-lhe proporcionar esses momentos, não posso? - (Passado um instante, com voz macia.) - Você vem esta noite, não vem?
VENNER- (hesita, depois beija-a)
- Está bem.
GLADYS
- Por favor, Paul! À hora de sempre. Atrás do ambulatório.
[Vai beijá-lo quando entra a ENFERMEIRA-CHEFE pelo centro, ao fundo, envergando a capa do uniforme. GLADYS afasta-se às pressas. VENNER apanha na mesa o frasco de cristais.]
GLADYS
- Oh, Miss Leeming, é a senhora? O Dr. Venner estava-me falando a respeito do novo preparado. Como é que vai se chamar, doutor?
VENNER (secamente)
- Betrazol.
GLADYS
- Isso mesmo! A cor é linda, não é, Miss Leeming?
MISS LEEMING (imóvel, compreendendo)
- Linda, Mrs. Bragg. - (Vai ao recanto e apanha uma meia de tricô inacabada.)
VENNER
- Ah, esqueceu a lã e precisou voltar. É outro par de meias para o Dr. Bragg?
Miss LEEMING (em atitude de desafio)
- Perfeitamente, são meias para o Dr. Bragg: ele as aprecia. E eu as faço à vista de todos.
VENNER
- com pura lã - não é, Enfermeira-chefe? Boa noite, Mrs. Bragg.
[VENNER sai pela esquerda, levando o frasco de betrazol.]
MISS LEEMING
- Engraçadinho, não é?
GLADYS
- Gosto mais dele quando está sério.
MISS LEEMING
- Oh, não levo isso em conta. Embora ele saiba, às vezes, ser bastante perverso.
GLADYS
- Creio que ele não tinha a intenção de ofendê-la, Miss Leeming. A senhora não deve se aborrecer.
MISS LEEMING
- Não me aborreço. Ele ficou assim irritado por causa das coisas que sofreu. E, é claro, com a senhora há-de ser diferente. - (Maliciosamente.) - São tão amigos, a senhora e ele, não são?
GLADYS
- Acho que ele não poupa nem os amigos.
MISS LEEMING
- Ora, Mrs. Bragg. Garanto que com a senhora ele é sempre gentil. Muitas vezes penso na sorte da senhora em tê-lo aqui... para palestras e etc... O Dr. Bragg vive sempre tão ocupado, não é mesmo?
[GLADYS empertiga-se ante a mal velada insinuação.]
- E isso me lembra uma coisa que eu queria contar à senhora. Uma noite destas - e já era tarde - estava eu na cama, acordada, quando de repente ouvi passos no caminho que corre por baixo da minha janela. A senhora sabe qual é - aquele caminho estreito que leva ao arvoredo de trás do ambulatório.
GLADYS (apreensiva)
- E daí?
MISS LEEMING
- Olhei bem e vi o Dr. Venner.
GLADYS
- E daí, Miss Leeming?
MISS LEEMING
- Foi só. Achei que devia dizer à senhora que o tinha visto.
GLADYS
- A mim? Por quê? Então o Dr. Venner não tem o direito de sair à hora em que bem entender?
MISS LEEMING
- Claro que tem. Eu estava pensando era no Dr. Bragg.
GLADYS
- Não acha que está com excessos de zelo, Miss Leeming? Se o Dr. Venner infringiu alguma regra do regulamento, o Dr. Bragg tem capacidade suficiente para tomar as medidas necessárias.
MISS LEEMING
- Mas não se trata do regulamento, Mrs. Bragg. Pode acontecer tanta coisa num hospital como este... tanta coisa que não fica bem, e o Dr. Bragg só irá saber delas quando for talvez tarde demais. Eu, de mim, tenho deveres para com ele; e não estaria cumprindo esses deveres se não lhe contasse as coisas de que tenho conhecimento.
GLADYS
- Ou de que pensa ter conhecimento!
MISS LEEMING
- Creio que não há muita dúvida a esse respeito - ou há, Mrs. Bragg?
GLADYS
- De qualquer forma, não me parece que a senhora deva-lhe falar a respeito disso.
MISS LEEMING
- Naturalmente, prefiro não falar, Mrs. Bragg. Não quero magoá-lo - se possível. E além disso, como diz respeito ao Dr. Venner, fico numa situação delicada - por causa da história da sala. A senhora compreende, se eu contar ao Dr. Bragg qualquer coisa que coloque mal o Dr. Venner, pode parecer que estou querendo expulsá-lo da sala. E isso não ficaria bem. não é mesmo?
GLADYS
- Não. Mas provavelmente seria verdade.
MISS LEEMING
- Não, Mrs. Bragg, não seria. Estou pensando unicamente no Dr. Bragg, só nele. E não vou ficar de braços cruzados, enquanto a senhora e o Dr. Venner...
GLADYS-
- Não diga absurdos, Miss Leeming! A senhora não sabe de nada, a respeito do Dr. Venner e de mim. E mesmo que fosse verdade isso que a senhora está insinuando, - seria da sua conta?
MISS LEEMING
- Tudo o que sou neste mundo devo-o ao Dr. Bragg. Por ele sou capaz de tudo. Só o que me preocupa é a felicidade dele!
GLADYS
- Ora, Miss Leeming! A senhora fala nessas coisas como uma servente apaixonada... Desculpe, não quis fazer alusão nenhuma.
MISS LEEMING
- Não precisa pedir desculpas, Mrs. Bragg.
GLADYS (olhando agudamente para a outra)
- Será que a senhora está apaixonada pelo meu marido? Acho que está! Ora muito bem!
MISS LEEMING
- Mrs. Bragg, seria muito melhor se o Dr. Venner deixasse o hospital. Seria melhor para todos.
GLADYS
- A honra do meu marido ficaria imaculada e a senhora ganharia a sua sala. O plano é magnífico, Miss Leeming; mas não tem muita probabilidade de êxito. Como sabe, o Dr. Venner provavelmente não irá embora antes de terminar as experiências que anda fazendo; e acha a sala muito conveniente, como laboratório.
MISS LEEMING
- Mas eu também a acharia muito conveniente, Mrs. Bragg. Não tenho uma sala de estar e preciso tê-la. E estou certa de que seria muito melhor para a senhora e o Dr. Venner se se descobrisse outro médico para trabalhar aqui.
GLADYS
- Muito obrigada, Miss Leeming; mas tanto eu como o Dr. Venner podemos cuidar da nossa vida sozinhos.
MISS LEEMING
- Quer dizer que a senhora não vai tomar providência nenhuma?
GLADYS
- Nenhuma, Miss Leeming. E se quer um conselho, não tome a senhora qualquer providência, também. Compreende, eu sabendo o que sei, não me será difícil convencer o Dr. Bragg a pedir à senhora que procure outro emprego. Desculpe, se lhe dou um xeque-mate... a senhora mesma me forçou a isso, não foi? Bem, tenho que escrever umas cartas antes do jantar... Boa noite, Enfermeira-chefe...
[Sai pela porta do centro, ao fundo.]
[Miss LEEMING fica imóvel, de pé; depois caminha lentamente até à porta do laboratório, encosta-se a ela e devagarinho torce a maçaneta. Entra JENNIE com uma bandeja, dirige-se à mesa e põe-se a reunir as xícaras e os pires.]
MISS LEEMING (voltando se, furiosa)
- Que é que você quer? Entra como um ladrão às costas da gente!
JENNIE
- Nada, Miss Leeming. Vim só apanhar a louça...
MISS LEEMING
- Não venha com respostas. - (Apanha o novelo de lã sobre a mesinha.) - Conheça o seu lugar e respeite o meu!
[Sai pela porta do centro do fundo.]
[JENNIE faz uma careta para a porta fechada, enquanto CAI O PANO]
CENA 2
CENÁRIO
O mesmo - a sala de estar dos médicos.
TEMPO
Seis semanas depois, às dez e quarenta e cinco, manhã de um domingo. Começam a tocar os sinos da capela de Hopewell Towers. Soam regularmente, suavemente. A sala está limpa e arranjada no seu asseio dominical.
Passado um momento, entra a ENFERMEIRA-CHEFE pela porta da esquerda, dirige-se ao centro da sala; vem enluvada, com o uniforme de sair e capa. Sua figura ereta e atenta fica um instante solitária na sala. Mas imediatamente entra o DR. BRAGG pela esquerda, irrompendo pela sala. Está vestido impecavelmente, de cartola e polainas.
BRAGG (animadíssimo)
- Ah, já está pronta, Miss Leeming? - (Vai à janela do recanto e depois volta ao centro.) - Linda manhã. Mrs. Bragg está tirando o carro. Como temos muito tempo, acho que iremos a Blackton pela estrada de Downs.
MISS LEEMING
- Sim, é o caminho mais bonito. O senhor sabe, Dr. Bragg, - (baixa os olhos) - que eu já ocupei uma posição muito humilde em Blackton, não?
BRAGG (acena com a cabeça, aprovando a humildade da mulher)
- Bem, mas agora a honra é toda sua, Miss Leeming. Resolveu-se ontem que a sede da próxima reunião será Hopewell e não Blackton.
MISS LEEMING
- Eles vão ficar enciumados. Será formidável se elegerem o senhor para presidente, não, Dr. Bragg?
BRAGG
- Oh. minha cara Miss Leeming - se eles o fizerem, modéstia à parte, creio que não os envergonharei pela escolha!
(Dirige-se à janela.)
MISS LEEMING
- Oh, Dr. Bragg! O senhor dará o melhor presidente que já tiveram!
[Entram MARY e THOROGOOD pela esquerda. Ambos estão vestidos para ir à igreja. MARY trás na mão alguns livros de hinos.]
THOROGOOD
- bom dia, chefe.
BRAGG
- bom dia, George. bom dia, doutora. - (com aprovação.) - De caminho para a igreja? - (Olhando o relógio.) - Onde está Venner?
THOROGOOD
- Não apareceu à mesa do café.
BRAGG
- Como? Ainda não se levantou?
MARY (rapidamente)
- Oh, sim, já se levantou. Pelo menos...
MISS LEEMING
- A cama dele ficou intacta esta noite.
BRAGG
- Que quer dizer? Ele saiu do hospital?
MARY
- Oh, não, Dr. Bragg. Acho que passou a noite em claro... trabalhando no seu laboratório.
MISS LEEMING (com gelo na voz)
- Segundo creio, ele ainda está lá.
[Todos olham para a porta da direita.]
BRAGG
- Passar a noite em claro! Nunca ouvi falar em coisa tão irregular! Faça o favor de chamá-lo, Miss Leeming.
MISS LEEMING (avançando até à porta do laboratório e batendo)
- Dr. Venner! - (Não respondem; ela bate mais forte.) - Dr. Venner! Dr. Venner! O chefe quer falar com o senhor!
[Um momento de espera, depois abre-se a porta do laboratório e aparece VENNER, com o cabelo revolto, o colarinho aberto, com um maço de papéis nas mãos. Veste um velho avental de laboratório, parece exausto. Olha meio tonto para o grupo bem vestido cujo centro é ocupado por BRAGG.]
VENNER
- Sim? bom dia a todos. Estão preparados para o culto. Ah, não,
esqueci-me. - (Olhando para BRAGG.) - O senhor e Fanny hoje vão dar um passeio de carro.
BRAGG
- Eu e a Enfermeira-chefe vamos fazer uma visita oficial aos nossos amigos e colegas de Blackton Home. Minha mulher irá guiando o carro...
VENNER (bocejando)
- Ela vai gostar. - (Caminha com passo fatigado até ao bufete, levanta a tampa da bandeja térmica.) - Nada, é claro. Nem uma lâmina de infecto bacon, nem um destroço flutuante de rim carbonizado... - (Serve-se de um copo de uísque e soda.)
THOROGOOD
- Que é que você esperava?
VENNER
- É servido?
BRAGG (sem se poder conter)
- Desculpe que lhe diga, mas que bonito exemplo o senhor dá, Dr. Venner. Uísque, na manhã de um domingo!
VENNER
- com essa lógica o senhor já devia estar no Parlamento. - (com uma sombria carranca.) - Trabalhei durante doze horas consecutivas. Preciso de um estimulante. Que diferença faz que seja domingo pela manhã ou sábado à noite?
BRAGG
- Creio que faz pouca diferença para um homem que troca o dia pela noite. (com ar proposital, endireita a pilha de livros que está na mesinha à sua frente.)
MARY (nervosamente, com mu olhar para BRAGG)
- com licença, Dr. Bragg.
BRAGG (detendo-a com um gesto)
- Espere um momento! Ambos! O que tenho a dizer é melhor que seja dito em público. Dr. Venner, o senhor está vendo estes livros de observações?
VENNER
- Confusamente.
BRAGG
- Pela segunda vez em quatro meses eles estão com um atraso de seis semanas. Posso tolerar seus métodos revolucionários de tratamento, mas isto abala as próprias raízes da minha autoridade aqui. Se quando eu voltar, à noite, não encontrar estes livros em dia, faço um requerimento à direção pedindo a sua demissão. - [Soa uma buzina lá fora.]
BRAGG
- Vamos, Miss Leeming, minha mulher está esperando.
[Saem BRAGG e a ENFERMEIRA-CHEFE pela porta do centro, ao fundo.]
THOROGOOD
- Desta vez o chefe está falando sério, Venner. São cinco horas de escrita, pelo menos. Você vai se divertir muito. - (Ri para VENNER.) - Vamos, Mary.
MARY
- Espere um momento.
THOROGOOD - (com olhar afeluoso.)
- Aliás, aproveito para ir dar uma espiada na minha enfermaria. Espero você na entrada.
[Sai THOROGOOD pelo centro, ao fundo.]
MARY (ansiosa)
- O senhor vai pôr tudo em dia, não é, Dr. Venner?
VENNER (olhando lentamente em torno, quase sem se aperceber da presença dela)
- Afinal não sou um escriturário, sou? Métodos revolucionários de tratamento! Que suíno!
MARY
- Sim, foi injusto demais.
VENNER (cansado)
- Pensei que você estivesse do lado dele.
MARY (comovida)
- Dr. Venner, o senhor está completamente exausto. Não pode continuar se matando dessa maneira. Oh, claro, sei que o seu trabalho é brilhante, maravilhoso, mas afinal tudo isso não vale... não vale...
VENNER (olhando-a com curiosidade)
- Não?
MARY
- Se o deixa nesse estado, não. O senhor quase não tem comido, estes dias todos. Fuma demais. Perde noites de sono. Está magro, magríssimo.
VENNER
- E por que você se preocupa com isso?
MARY (falando lentamente, presa de um embaraço penoso)
- Magoa-me ver uma pessoa assim abatida... e infeliz. Nada mais.
VENNER
- Considerando-se o emprego que dei aos meus momentos de lazer durante estas seis últimas semanas - sua solicitude me surpreende.
MARY
- Nunca me importei com o que o senhor disse.
VENNER
- Essa capacidade de perdão faz parte da sua caridade cristã?
MARY
- Talvez.
VENNER (senta-se à mesa, derruba no assoalho os livros de observações e põe-se a fazer cálculos nos papéis que trás consigo)
- Oh, Senhor! Minha cabeça!
MARY
- Quer um pouco de café?
[O olhar de MARY demora-se sobre VENNER. com estranha compaixão. Ela resolve o que vai fazer. E sai pela esquerda, enquanto DREWETT entra pelo centro, ao fundo.]
DREWETT
- Olá, Venner, ainda está nisso? A propósito, passei pela sua enfermaria... a mulher do Foster está à sua procura.
VENNER
- Oh! (Continua trabalhando.} Não deixe a nossa evangelista de saias
vê-lo com esse baralho nas mãos. Olhe que isso é invenção do diabo!
DREWETT
- Você é tão pouco delicado com essa menina, Venner, que, desconfio, sente-se muito atraído por ela.
VENNER
- Não seja idiota. A concentração de Na no hidrogénio ionizado é constante... Oh, meu Deus! - (Atira o lápis.) - Drewett, estou diante do meu obstáculo... A estandardização química do betrazol... e não tenho força nas pernas para o salto.
DREWETT (à direita da mesa)
- Pare um pouco e respire.
VENNER (com fatigada intensidade)
- Você diria isso ao jóquei em cujo cavalo tivesse apostado?
DREWETT
- Sim, se ele fosse o único jóquei da corrida.
VENNER (reclina-se na cadeira, acende lentamente um cigarro e tira um longo trago)
- Ah, melhorou muito. Você nem sabe a falta que me faz o cigarro lá dentro.
DREWETT
- Por que você não fuma lá dentro?
VENNER
- Estou usando tri-toluol para a síntese de P-ion - e não parece, mas é um alto explosivo.
DREWETT
- Realmente?
VENNER
- Por mais limitados que sejam os seus conhecimentos, meu velho, você pode imaginar que se eu começasse a lançar fagulhas por lá, acabava fazendo, voar o teto... Oh, Senhor! Estou um trapo, esta manhã! E as implicâncias do Bragg me atacam os nervos. Estes cálculos estão zunindo no ar... E imagine se eu não conseguir fazer a estandardização? Imagine se o negócio todo for um fracasso? Diabos! Estou quase perdendo a fé nessa coisa. - [Batem à porta do centro, ao fundo.]
DREWETT
- Quem é?
[Entra MRS. FOSTER. Mulherzinha da classe operária, miúda, magra,
meia-idade. Limpa, respeitável, resolutamente "pessoa séria". Traz uma cesta. O seu caráter positivo não se deixa obscurecer pela gratidão que sente no momento.]
MRS. FOSTER
- bom dia, doutores.
DREWETT
- bom dia, Mrs, Foster.
MRS. FOSTER
- Desculpe a liberdade, Dr. Venner. Mas só tenho tempo de aparecer aqui ao domingo pela manhã. A enfermeira disse que o senhor talvez me recebesse...
VENNER
- Oh, é a senhora, Mrs. Foster. que posso servi-la? Entre.
MRS. FOSTER
- Não pode fazer mais do que está fazendo, doutor. Estive com o meu tom. Ótimo!
VENNER
- Está satisfeita?
MRS. FOSTER
- O senhor nem sabe o que foi isso para mim, doutor. Falou comigo, falou como nos velhos tempos. Perguntou pelas crianças. "Não demoro, Martha, a voltar ao trabalho nos tijolos". Foi assim que ele disse. Ah, que alegria para mim, doutor, no dia em que ele voltar a trabalhar!
VENNER (com bondade)
- Claro... Estou vendo se arranjo para o seu marido um sistema nervoso novo em folha, Mrs. Foster. Mas... a senhora compreende... não posso arranjar também para ele um coração novo.
MRS. FOSTER
- Não se preocupe com o coração dele, doutor. Se soubesse os pesos que ele levantava antigamente.
VENNER (abanando a cabeça)
- Pois é com isso que eu me preocupo!
MRS. FOSTER
- Agora que ele está recuperando o juízo, as forças também lhe hão-de voltar.
VENNER (hesitante)
- Sim, mas...
MRS. FOSTER
- Foi um alegrão ver, como vi hoje de manhã, o tom sentado na cama, saboreando o pedaço de pernil em conserva que eu trouxe para ele...
DREWETT
- Ah! Pernil.
MRS. FOSTER
- E isso me faz lembrar... Dá licença, doutor? - (Tira de dentro do cesto uma tigela envolta num guardanapo.) - Trouxe um pedaço especialmente para os senhores. É feito em casa - macio como galinha. Dizem que ninguém o faz melhor que eu!
VENNER
- É muita bondade sua, Mrs. Foster.
DREWETT
- Obrigado, Mrs. Foster.
MRS. FOSTER
- Oh, eu é que agradeço, doutor. vou pôr o prato aqui. - (Põe o embrulho no bufete.) - Domingo que vem levo a tigela. E não quero mais tomar o seu tempo. Mas tinha que vir aqui, para dizer como estou grata, doutor. O senhor não vai se descuidar de tom, não é?
VENNER
- Farei tudo que for possível.
MRS. FOSTER
- Obrigada, doutor. Até logo, Dr. Drewett.
DREWETT
- Até logo, até logo, Mrs. Foster.
[MRS. FOSTER sai.]
VENNER
- com os diabos! - (Zangado consigo próprio.) - Mas como poderia dizer a essa pobre mulher que o marido tem uma estenose coronária incurável!
DREWETT
- Pobre mulher! Será que você está ficando sentimental?
VENNER
- Dou essa impressão?
DREWETT
- E eu dou? E contudo, todas as noites, durante quatro anos, só me deitava com um retrato de mulher debaixo do travesseiro.
VENNER
- Quando você era prisioneiro de guerra?
DREWETT (acena que sim)
- Quase matei o russo do leito vizinho, o coitado que me ensinou esta paciência, só porque ele perguntou se a mulher era minha amante.
VENNER
- E não era?
DREWETT
- Não. Era amante de outro. - (Pausa.) - Fora minha mulher.
VENNER
- Drewett, você é a única pessoa nesta droga de lugar com quem me sinto com... poderei dizer com afinidade intelectual?
DREWETT
- Não me lisonjeie.
VENNER
- Creio que você não seria capaz de pôr em dia os livros de observação, para mim?
DREWETT
- E não se engana.
[VENNER vai ao bufete, serve-se de uma nova dose de uísque puro, bebe.]
DREWETT
- Há trinta anos passados, ao deixar a corte de divórcio, jurei que tinha praticado minha última boa ação.
VENNER
- Bem. Então tenho que dar conta deles de qualquer modo, hoje à tarde. Não posso correr o risco de ser mandado embora a esta altura.
[VENNER debruça-se sobre a mesa, mexe nos papéis, segura a cabeça entre as mãos e tenta apanhar o fio do cálculo. Os sinos da igreja tocam um final em crescendo.]
VENNER
- Sino desgraçado! Como diabo posso eu pensar?
[Os sinos se calam.]
DREWETT
- Eles devem tê-lo ouvido.
[Entra MARY pela esquerda; traz café e sanduíches numa bandeja que depõe em silêncio sobre a mesa à qual está sentado VENNER. Este ergue os olhos sobressaltado.]
MARY
- Aqui está.
VENNER
- Que é isso?
MARY
- Café. Tome um pouco.
VENNER
- O anjinho protetor.
MARY (nervosa)
- Vamos, beba o café.
VENNER (sua ironia soa falso)
- Vai chegar à igreja atrasada. E Nosso Senhor não mais a amará.
MARY
- Corro o risco.
VENNER
- Confiante na salvação ela afronta a tempestade. Hino 999.
MARY
- Errou o número.
VENNER
- Tem açúcar?
MARY
- Tem.
VENNER (recebe a xícara que ela enche, e bebe)
- Está bom. (com sinceridade.} Por que é que tenho sido tão espírito de porco com você?
MARY
- Não sei.
VENNER
- Você já estudou os hábitos da siba?
MARY
- Não.
VENNER
- A miseràvelzinha lança um jacto de tinta - não por maldade premeditada - mas pelo medo horrível que tem de que a façam sofrer.
MARY
- Compreendo.
VENNER
- Isto vale como pedido de desculpas. vou deixar de atormentá-la. Você é uma pessoa... decente.
MARY
- Obrigada.
VENNER
- E danada de bonita. Não se deixe namorar pelo nosso nobre cavalheiro inglês.
MARY
- Quem?
VENNER
- Thorogood.
MARY
- Ele está noivo.
VENNER
- Um anel de noivado não quer dizer nada para um desses palhaços apaixonados.
DREWETT
- - A menos que o use enfiado no nariz!
- MARY
- Tome o resto do café e trate de descansar um pouco. Precisa de repouso.
[MARY sai pela porta do centro, ao fundo.]
VENNER (vendo-a sair)
- É um anjo de garota. (com súbita intensidade.} Estou inclinado a concordar... meu venerando amigo... com aquele absurdo que você disse há pouco. - (com a voz pesada.) - Senhor, como estou cansado!
[Tenta escrever, joga fora o lápis e se atira no sofá. Adormece quase imediatamente.]
[DREWETT espera um momento, depois levanta-se em silêncio. Puxa uma colcha que está dobrada na ponta do sofá, cobre VENNER com ela. Fica um instante a olhar o homem adormecido, abana a cabeça de leve, depois volta a fazer a sua paciência. Quando levanta a primeira carta
CAI O PANO]
[O pano ergue-se quase imediatamente depois. São agora sete horas da noite, do mesmo dia. VENNER ainda está adormecido no sofá. As cortinas das janelas estão corridas. Uma lâmpada com abajur amarelo, perto do sofá, ilumina fracamente a sala, e lança uma lus estranha sobre o rosto de VENNER. Os livros foram apanhados do chão e estão arrumados numa pilha sobre a mesinha. O aposento está imerso num grande silêncio.] [Entra JENNIE com a cesta de carvão e tenazes. Encaminha-se à lareira, avista VENNER adormecido, passa a andar na ponta dos pés, com exagerada precaução, e imediatamente deixa cair as tenazes. VENNER desperta.]
JENNIE
- Oh, desculpe, doutor! Eu ia pôr a mesa da ceia.
VENNER (levantando-se, com o corpo rígido)
- Ceia? Dormi esse tempo todo?
JENNIE
- Dormiu, sim, senhor. E estava precisando bem desse sono. - (Ajoelha-se e começa a acender o fogo.)
VENNER (com um suspiro)
- Sim, precisava. - (Encara melancolicamente a pilha de livros.) - Acordar é que é a desgraça.
JENNIE
- Como, doutor?
VENNER
- Eu disse que a desgraça é acordar.
JENNIE _
- Oh, sim, senhor.
VENNER (pondo-se de pé, em tom amargo)
- Como você arrumou bem esses belos livros de observações.
JENNIE
- Não fui eu. Foi a Doutora Murray, Dr. Venner.
VENNER
- Oh! - (Dá um passo rápido e abre um dos livros.) - Meu Deus!
JENNIE
- Aconteceu alguma coisa, doutor?
VENNER
- Não... não.
[VENNER caminha até ao fundo da sala e encosta a testa à escarpa da lareira. Nesse momento, pela porta do centro, ao fundo, entra a ENFERMEIRA-CHEFE em trajes de rua.]
MISS LEEMING
- Jennie!
JENNIE (assustada)
- Boa noite, Miss Leeming. O dia foi agradável?
MISS LEEMING
- Muito agradável. Por que ainda não está posta a ceia? Eu lhe disse que voltaria antes das sete. Fez a salada?
JENNIE
- Ainda não, Miss Leeming.
MISS LEEMING
- Então vá tratar disso.
JENNIE
- Sim, senhora.
[JENNIE apanha o balde de carvão e sai às pressas pela esquerda.]
[Miss LEEMING fica parada um instante, ainda inconsciente da presença de VENNER; depois dá um passo rápido em direção aos livros. Examina-os apressadamente. VENNER, que está no recanto, vigiando-a, tosse. Ela se volta, como se tivesse levado um tiro.]
MISS LEEMING
- O senhor está me espionando?
VENNER
- Desta vez nossas posições se inverteram.
MISS LEEMING
- Eu sabia que o senhor prepararia os livros. Apesar de toda a sua garganta, acabaria entregando os pontos no fim.
VENNER
- Sabia mesmo? - (Volta a sentar-se no sofá.)
MISS LEEMING
- Sim, sabia.
VENNER
- De fato? E como é que sabia?
MISS LEEMING
- Porque o senhor é dos tais que sempre entregam os pontos no final das contas.
VENNER -
- Serei mesmo?
MISS LEEMING
- É. O senhor zombou de mim, Dr. Venner, como todas as enfermeiras, aliás, porque fui servente. Apanhei as praticantes rindo-se de mim pelas costas. "Escutem como ela dá ordens, nem se lembra de que já foi servente". Bem, não tem importância, uma vez que obedeçam às minhas ordens, não é mesmo? E como servente aprendi certas coisas que elas nunca saberão - nem o senhor saberá, Dr. Venner.
VENNER
- E o que é?
MISS LEENING
- É conseguir o que quero. Não preciso gritar quando quero uma coisa. Não preciso ser impaciente e intolerante como o senhor. Sei receber ordens e me manter em posição subalterna, quando é preciso.
VENNER
- E daí? - (Passa para a direita, em direção à lareira.)
MISS LEEMING
- Daí é que sou mais inteligente que o senhor, Dr. Venner. Como servente a gente aprende a ser humilde, a calar a boca e a deixar que os mandões caiam em falta. A gente aprende de que lado do pão está a manteiga e aprende a esperar.
VENNER
- E no fim tudo se arranja como quer, não é?
MISS LEEMING
- Se a gente sabe querer, é.
VENNER
- Mesmo a sala onde está o meu laboratório?
MISS LEEMING
- Mesmo essa sala.
VENNER
- Nós não podemos tê-la ambos, Miss Leeming.
MISS LEEMING
- Não, não podemos tê-la ambos. Eu é que vou ficar com ela. vou ficar com ela porque quero, porque preciso ficar com ela.
VENNER
- Não está perdendo um pouco o senso das proporções?
MISS LEEMING
- O senhor acha que o caso não tem importância, não é? Acha que é uma coisinha à toa.
VENNER
- Quando a gente passa a vida inteira em instituições desta espécie, as coisinhas à toa tomaram o aspecto de coisas grandes.
MISS LEEMING
- Mas isto não é uma coisinha à toa, doutor. É coisa importantíssima, para mim. É a coisa mais importante da minha vida - vou conseguir essa sala. Tem que ser minha.
VENNER
- E por isso faz os seus planinhos, arruma as suas armadilhas, não deixa pedra sobre pedra?
MISS LEEMING
- Não preciso fazer nada disso... o senhor é que está fazendo em meu lugar.
VENNER
- Compreendo; e quando chegar a ocasião, a senhora salta sobre ela como um gato em cima de um rato, e então era uma vez o Dr. Venner, hem? Olhe, não perca a sua oportunidade, Miss Leeming.
MISS LEEMING
- Não hei-de perder, Dr. Venner. Só tenho que esperar.
[Entra MARY pela porta da esquerda, do fundo. Os modos da
ENFERMEIRA-CHEFE se modificam. Ela sorri de modo falso e excessivo.]
MISS LEEMING
- Boa noite, doutora. Que dia lindo, hem? vou cuidar da ceia. Como sempre, tudo se atrasa quando saio.
[A ENFErmEIRA-CHEFE sai pela esquerda.]
[MARY olha de soslaio para VENNER. Parece confusa pela presença dele e caminha para sair pela esquerda.]
VENNER
- Espere, precisa ir?
MARY (meio encabulada)
- Não tenho pressa. Está melhor?
VENNER
- Nunca estou melhor.
MARY (calma)
- Que pena.
VENNER (amargo)
- Não... Comigo é questão de princípios... - (Senta-se ao piano e fita o teclado.) - Poupa muitos dissabores... e desapontamentos.
MARY
- Sinto muito.
VENNER
- Sente?
[Começa, mecanicamente, mas em surdina, a tocar os primeiros compassos da Sonata de Chopin. MARY o contempla um momento, depois se dirige à porta. Quando a mão dela toca a maçaneta, VENNER a detém com uma dissonância brusca.]
MARY (voltando-se)
- Que foi?
VENNER
- Nada. - (Sem a olhar.) - Por qualquer estranha razão não quero que você vá embora.
MARY
- Oh!
VENNER (ainda sem olhar)
- Idiota... não é? - (Pausa.) - Por que é que você fez aquilo?
MARY
- Aquilo o quê?
VENNER (indica os livros com a cabeça)
- Você sabe o que é.
MARY (olha involuntariamente para os livros, depois vira a cabeça)
- Espero que não tenha ficado ofendido. Não foi nada... mas eu lhe tinha dito... que desejava ajudá-lo.
VENNER
- Ajudar-me! Depois de todas as graçolas baratas com que procurei
irritá-la?
MARY (procurando sorrir)
- Você sabe que sou dessas pessoas horrorosas que têm a mania de oferecer a outra face!
VENNER (intensamente)
- É por isso que fez o que fez?
MARY (confusa)
- Bem... em parte, foi.
VENNER (em voz baixa)
- Você é tão maravilhosamente... e tão infernalmente sincera!
MARY (ainda tentando sair)
- É uma maneira delicada de me chamar de boba!
VENNER (rápido, sincero)
- Não, não quis dizer isso! - (Pausa, amargo.) - Você devia me pregar um pontapé por esta... exibição.
MARY (desviando a cabeça)
- Devia?
VENNER
- Deve achar... embaraçoso.
MARY
- Não, não é.
VENNER (amargo)
- Pois é embaraçoso para mim. O fato é que... esta noite deixei de ser o sujeito brilhante e irónico que fui até aqui.
MARY
- Não me parece mudado.
VENNER (sombrio)
- Bem, como esta deliciosa crise de psicanálise não deve ser nada divertida para você, sugiro que dê o fora e me deixe mergulhado no meu ego.
MARY (lentamente)
- Está se sentindo muito deprimido, não?
VENNER
- Sinto-me é... Oh, meu Deus! Mary, alguém já lhe disse quanto você é bonita?
MARY (com um sorriso alvoroçado)
- Pelo menos... ninguém que tivesse muita importância.
VENNER
- Não serei eu tampouco que irá ter alguma importância. Mas preciso
dizer-lhe. - (Subitamente apaixonado.) - Você é adorável, Mary, tão adorável, tão menina. Você me tira o fôlego. E eu não sou digno sequer de lhe amarrar o cordão dos sapatos.
MARY
- Não diga isso.
VENNER
- Não devia dizer - é uma chapa tão batida... mas tenho que dizer. - (Ansioso.) - Então não compreende... como gosto de você... e foi por isso que tentei magoá-la?
MARY
- Não me magoou.
VENNER
- Levante a cabeça, Mary. O que você está tremendo. E eu... quando olho o seu rosto... me sinto perdido. Como se estivesse levitando... num vale estranho, cheio de sol.
MARY (vencida)
- Pensei que você fosse um cientista... não um poeta.
VENNER
- Não sou nada - junto de você. Foi a compreensão súbita... como uma dor. Não estou mentindo. É a verdade. Mary, como é que hei-de poder convencê-la?
MARY (em voz baixa)
- Não precisa.
VENNER (estranhamente sério)
- Mary! Você não quer dizer...
MARY (singelamente)
- Gostei de você no primeiro momento em que o vi. Rezei para que você me quisesse. Nunca amei antes. Nem nunca hei de amar ninguém mais em minha vida.
VENNER
- Mary!
[Beijam-se.]
[DREWETT entra pelo fundo...Observa os dois e fica curiosamente imóvel. Há no seu rosto, no seu vulto, como que uma estranha e triste previsão.]
[PANO]
SEGUNDO ATO
CENA 1
LOCAL
O mesmo.
TEMPO
Um mês depois. Pelas três horas de uma linda tarde de primavera;
a sala está cheia de sol.
MARY, de avental branco, estetoscópio no bolso, arranja alegremente nos vasos um grande ramo de narcisos silvestres. Entra JENNIE, carregando uma grande folha de mata-borrão, que põe sobre a mesa.
MARY
- Para que é isso?
JENNIE
- Para a reunião desta tarde, Miss. Vai ser às três em ponto, aqui.
[JENNIE vai atravessando o fundo da cena, quando MARY lhe nota a mão atada num lenço.]
MARY
- Que é que aconteceu com sua mão, Jennie?
JENNIE
- Cortei-me numa lata, Miss.
MARY
- Venha cá, deixe ver.
JENNIE
- Não foi nada, Miss. Deixei escorrer em cima a água fria da torneira.
MARY (examinando-lhe o dedo)
- Foi fundo. E pode infeccionar. É melhor pedir à Enfermeira-chefe que ponha aí um pouco de iodo.
JENNIE (puxando a mão)
- Oh, não, Miss.
MARY
- Será que você tem medo de iodo?
JENNIE
- Não é pelo iodo... é quem vai pôr, Miss.
MARY
- Está bem. Então vá lá em cima, na minha enfermaria, e peça à enfermeira para tratar do seu dedo. Aliás, acho que o Dr. Venner anda por lá agora. Você pode pedir a ele.
JENNIE
- Oh, não tenho coragem de pedir a ele, Miss.
MARY
- Por quê? Ele não vai comê-la.
JENNIE
- Eu sei, Miss. Ele é muito bonzinho comigo. Sempre dá bom dia, e tudo mais. Mas é tão inteligente... - (Pausa.) - Muitos daqui não gostam dele. Eu gosto.
MARY
- Muito bem, Jennie.
JENNIE
- Gostei muito quando a senhora ficou noiva dele. Nunca tinha acontecido uma coisa dessas aqui. Parece um filme, não é?
MARY
- Estimo que você ficasse satisfeita, Jennie.
JENNIE
- Todo o mundo está. Até mesmo a Enfermeirachefe. E é raro uma coisa agradar a ela.
MARY (surpresa)
- Miss Leeming ficou satisfeita!
JENNIE
- Ficou, sim, Miss. "Ótimo", foi o que ela falou. E-quase dá cabo de mim porque disse que eu estava olhando fixo para ela. Velha rabugenta.
MARY (mau grado seu)
- Cale a boca, Jennie!
JENNIE
- Mas é verdade, Miss.
MARY
- Acho que é. Mas são verdades que não se dizem. Além disso, a gente precisa ter paciência com os outros.
JENNIE
- Eu tenho medo dela.
MARY
- E eu também tenho um pouco, Jennie.
JENNIE
- A senhora? Acho que todo o mundo tem - menos o Dr. Venner.
MARY (pensativa)
- Sim. - (Uma pausa.) - Jennie!
JENNIE
- Senhora?
MARY (após um momento de hesitação)
- Miss Leeming não gosta do Dr. Venner, não é? Quero dizer - já não gostava, mesmo antes de eu chegar aqui?
JENNIE
- Não gostava, não, senhora. Sempre foi assim com ele. Detesta o moço. Mas ele sempre tem na ponta da língua uma resposta para ela.
MARY
- Esse é que é o mal... - (Pausa.) - Jennie!
JENNIE
- Senhora?
MARY
- Você me faria um favor?
JENNIE
- Sim, senhora.
MARY
- Sei que não é direito andar repetindo as coisas que se ouve, mas acho que neste caso é diferente. Se você alguma vez escutar alguém dizer qualquer coisa a respeito do Dr. Venner - que faça você supor que esse alguém está com intenção de fazer mal a ele - você me conta, sim?
JENNIE
- Naturalmente, Miss. A senhora pensa que alguém quer matar o Dr. Venner?
MARY (rindo, a despeito de sua inquietação)
- Valha-me Deus, matar não! Você é muito sanguinária. Há muitas outras maneiras de fazer mal a ele.
JENNIE
- Sim, senhora. Pode estar certa que eu conto.
MARY
- E não fala a ninguém?
JENNIE
- Oh, não, senhora. Fica em segredo, entre nós. Vamos nós duas zelar por ele.
MARY
- Obrigada, Jennie. E agora o melhor é você correr, antes de fazer qualquer outra coisa, e dizer à minha enfermeira que eu lhe mando pedir que veja a sua mão.
JENNIE
- Sim, senhora. Muito obrigada.
[Sai JENNIE pela esquerda.]
[Entra THOROGOOD com uma bola de futebol. Está -vestido com calções de jogador, suéter e chuteiras, e trás nas mãos um par de halteres.]
MARY
- Alo! - (Mostrando os narcisos.) - Não são lindos?
THOROGOOD (sombrio)
- Oh... acho que são.
MARY (felis)
- O bosquezinho no fim de South Avenue está tapetado deles. Tive apenas que parar e apanhá-los. Quer um para a lapela?
THOROGOOD (com ar de censura)
- Eu? Não se preocupe comigo. Não sou romântico. Só cuido de dar conta do meu trabalho.
MARY (ocupada com as flores)
- Não se zangue. Você fica muito alinhado com esses shorts de jogador.
THOROGOOD
- Tenho que treinar os meus rapazes, antes do jogo de Blackton. - (Erguendo os halteres.) - Gosto de homens fortes.
MARY
- Gosta?
THOROGOOD (exibindo-se com os halteres)
- Não se vê Venner fazendo isto.
MARY (rindo-se)
- Nem sei se eu queria ver.
THOROGOOD (largando os halteres)
- Mary, que é que você vê naquele sujeito? Sabe que Foster está pior?
MARY
- Foster? Está maravilhosamente melhor - normal de todo - mentalmente.
THOROGOOD
- Mas fisicamente está acabado.
MARY
- Paul não tem culpa do estado do coração dele.
THOROGOOD
- Não tem! Mas podia parar com aquelas malditas injeções.
MARY
- Por quê?
THOROGOOD
- Betrazol! Qual! Não têm aplicação, são tóxicas, e Venner é um cretino! Se Foster esticar as canelas ele vai se ver numa encrenca...
MARY (severa, interrompendo)
- Não quero escutar isso. - (Caminha, passa diante dos escaninhos de correspondência.) - Olhe! Sua carta chegou. - [THOROGOOD põe a carta no bolso.] - Você não vai ler?
THOROGOOD
- Leio mais tarde. Venha comigo assistir ao treino, Mary.
MARY
- Tenho que engessar uma das minhas velhas.
THOROGOOD
- Então vamos esta noite dar um passeio a Parchester.
MARY (com intenção)
- Desculpe, mas tenho um compromisso.
THOROGOOD (impulsivo)
- Mary, quero falar com você.
MARY
- Sim?
THOROGOOD
- Você é atraente demais... na verdade - se quer saber - você me deixa tonto!
MARY (ríspida)
- Acho que não quero saber.
THOROGOOD
- Mas, Mary...
[Entra DREWETT pelo centro, ao fundo, e dirige-se à direita.]
DREWETT
- Os seus amigos atletas estão ardendo de impaciência, Thorogood.
THOROGOOD
- Estão? vou já. - (Caminha pesadamente em direção à direita, apanhando a bola.) - A propósito, Drewett, o chefe chega às três horas para discutir os arranjos do dia do discurso. A reunião é aqui. Daqui a pouco eu volto. DREWETT (gravemente)
- vou oferecer a ele os seus conselhos e cooperação.
THOROGOOD
- Gratíssimo!
DREWETT (apanha um haltere)
- Oh, Thorogood, você talvez queira malhar a oposição.
THOROGOOD (com um muxôxo)
- Ora!
[Sai pelo centro, ao fundo.]
MARY
- Onde está Paul?
DREWETT
- - Vem já. Foi dar uma volta na enfermaria... e aplicar nova injeção no Foster.
MARY (assustada)
- Nova injeção?
DREWETT
- - Sim.
MARY (perturbada)
- - Dr. Drewett, ontem, durante a ronda, ouvi o Dr. Bragg e a
Enfermeira-chefe discutindo a respeito de Paul... Essa recaída de Foster... estou... estou preocupada.
DREWETT
- - Isso, minha filha, é uma das alegrias do amor. - (Pausa.) - Há sempre um ou outro elemento dramático num lugar como este. Não se deixe abater por isso. É o que jaz sob a superfície do lago... - (Encolhe os ombros, significativamente.)
MARY (singularmente assustada)
- Que é que o senhor quer dizer?
DREWETT
- Os pequeninos demónios... que se retorcem e revolvem... invisíveis... nas profundidades da alma humana.
[Há um momento de tensão estranha, quase aterradora.]
MARY (voltando lentamente de arranjar as flores)
- Só queria estar com Paul longe daqui.
DREWETT
- Ah!
MARY
- Recebi ontem uma carta do Dr. King - o diretor no nosso hospital em Sanchen. Deu lá uma epidemia infantil de meningite cérebro-espinhal. Quando penso no que podíamos estar fazendo lá!
DREWETT (olhando-a estranhamente)
- Diga-me uma coisa - como é que Paul reage à... misteriosa invocação do Oriente?
MARY (intrigada)
- Como, reage?
DREWETT
- Que é que ele diz quando você fala na China?
MARY (refletindo)
- Acho que em geral ele me beija.
DREWETT (achando graça)
- Estranho!
MARY (lentamente)
- Dr. Drewett, sou tremendamente feliz. Todas as noites agradeço a Deus, de joelhos, mas de certo modo... não posso evitar... tenho medo... por causa de Paul.
DREWETT (está quase a falar seriamente, mas controla-se e volta ao seu ceticismo habitual)
- A despeito do leite extra que você lhe dá todos os dias, na hora do almoço?
[Entra VENNER pelo centro, com um estojo de metal na mão. Está cuidado, barbeado, bem tratado, com o avental limpo. Seus modos são exuberantes.]
VENNER (atira à mesa o estojo com a seringa, dá um abraço rápido em MARY)
- Sinto-me bem! Será que ouvi a fatal palavra: leite? Brr! - (Sorri.}
DREWETT
- Por que tanta exuberância?
VENNER
- Porque verifiquei os meus cálculos finais; hoje pela manhã, escrevi a última palavra da tese. - (Faz um aceno com a cabeça à direita.) - Está ali; completa.
MARY
- Estou tão contente, Paul!
DREWETT
- - Esplêndido!
VENNER (senta-se na poltrona à direita)
- Que alívio! É como dar à luz um filho!
DREWETT (com intenção)
- E como feliz mãe, agora você irá pensar... a respeito do futuro.
VENNER
- Não me importo com o futuro, papaizinho!
DREWETT
- Ser espirituoso não é ser leviano, Venner. Ora, ora, ora! Deixei meu baralho novo lá em cima!
MARY (intrigada)
- O senhor não se cansa de fazer aquela paciência, Dr. Drewett?
DREWETT
- - Nunca consegui completá-la. Há vinte anos que tento e não consigo. Vou-lhe contar uma coisa: meu amigo Boronoff - que me ensinou essa paciência - profetizou um dia mau para mim no dia em que eu a terminar.
VENNER
- Oh!
MARY
- Mas, por quê?
DREWETT
- Não tenho a menor ideia. Mas ele era um sujeito melancólico - sabe como são esses russos; tinha a mania de se enforcar com os suspensórios.
[DREWETT sai pelo centro, à esquerda.]
MARY
- Ele alguma vez fala a sério?
VENNER
- Você sabe que ele fechou um consultório de primeira classe assim que começou a primeira guerra? Dentro de dez dias estava na linha de frente; mais dez estava num campo de prisioneiros na Floresta Negra. Foi quase tão ligeiro quanto se tirasse passagens na Agência Cook! Durante quatro anos ficou apreciando a paisagem - uma parede de tijolo através de uma janela de trinta centímetros por sessenta. Ao voltar, descobriu que perdera a mulher - deixara-a perto demais de um aeródromo.
MARY (comovida)
- Oh! Foi vítima de um algum reide aéreo?
VENNER
- Não. De um oficial da aeronáutica. Ficou em pedaços, o pobre Drewett. Não se incomodou sequer em reunir os próprios destroços. E desde então faz paciências.
MARY (séria)
- Oh, que injustiça!
VENNER
- A recompensa de um herói! Gosto do velho. Não lhe resta mais no corpo uma só emoção.
MARY
- Paul...
VENNER
- Hem?
MARY
- Não sei que é que eu tenho hoje... Estou com os nervos como uma pilha! VENNER (guardando a seringa)
- - Por que, meu bem?
MARY
- Oh, ideias tolas, pressentimentos. Acho que é este hospital... essa nossa vida estranha... trancados entre quatro paredes... nós todos...
feito marionetes num arame...
VENNER
- Meu amor, você está nervosa.
MARY (com resolução súbita)
- Paul! Eu me sentiria muito melhor se você recebesse uma coisa que lhe quero dar. Recebe?
VENNER
- Bem - claro que sim!
MARY
- Passei a semana toda criando coragem. - (Tira do bolso um livrinho vermelho, usado.) - Mas faça você o que fizer, não zombe. - (Oferece-lhe o livro.} VENNER (lendo) - O Novo Testamento.
MARY
- Pertenceu a meu pai.
VENNER
- Oh, não, Mary! Eu não gosto de harpas... e você me odiaria se me visse de auréola!
MARY (ansiosa)
- Receba para me agradar. Pelo menos é boa literatura.
VENNER (pausa)
- Oh, está certo. - (Vai pô-lo em cima da mesa.)
MARY (com um sorriso nervoso)
- Não lide com ele como se fosse uma batata quente!
VENNER
- - Como é que se lida com isso?
MARY
- Faça o que meu pai fazia. Abra o livro e ponha o dedo numa linha, ao acaso.
VENNER
- Meu pai também fazia isso. Procurando recuperar a fortuna da família.
MARY
- Por favor.
VENNER (de má vontade)
- Tenho que tomar o remédio, doutora? (Abre o Testamento, fecha os olhos e coloca o dedo numa página.)
MARY
- Que é que diz?
VENNER
- Ovelha negra no 3.30.
MARY
- Não zombe, querido.
VENNER (lendo)
- "Mesmo então, porque assim parecia como dantes". Bem, não valeu.
MARY (rindo a contragosto)
- Oh, Paul, você é um caso perdido. Mas prometa uma coisa. Você vai ler um pouco disso aí - uma vez ou outra - por amor a mim?
[Entra DREWETT. VENNER põe o Testamento no bolso do paletó. MARY consulta o relógio.]
MARY
- Valha-me Deus! são quase três horas! E eu disse à enfermeira que preparasse o gesso! Tenho que ir voando.
VENNER
- Pense em mim, enquanto corta os ares.
MARY
- Se eu não pensasse... não voaria.
[Sai MARY pelo centro, ao fundo.]
DREWETT
- Dou-lhe os parabéns, Venner. Essa menina -é a imagem da felicidade.
VENNER
- Você acha?
DREWETT (calmo)
- Claro que dentro de três meses você lhe terá despedaçado o coração.
VENNER (encolerizado)
- Que diabo você quer dizer?
DREWETT
- Você está resolvido a partir para a China no mês que vem, levando numa das mãos um capacete de cortiça e na outra um tamborim de missionário?
VENNER (pausa)
- Não, não estou.
DREWETT
- E já disse isso a ela?
VENNER
- Claro que não!
DREWETT
- Por que não?
VENNER
- Ora, com o diabo! Porque estou apaixonado por ela.
DREWETT
- Francamente, meu caro Venner, você, como psicólogo, me desaponta. Então não compreende... você está votado à ciência... ela está votada a Deus... Não existe maior incompatibilidade no mundo, desde que o Verbo se fez ouvir sobre o Éden.
VENNER
- O que eu digo é que não posso evitar isso. E assim mesmo lhe repito que a amo. Esse amor há de romper caminho, se a gente lhe der uma oportunidade.
DREWETT
- Não pense que você há-de abalá-la. Ela é irremovível. E quanto à outra coisa, se está esperando...
VENNER
- Cale essa boca! Oh, desculpe, Drewett.
DREWETT
- Bem, provavelmente já estou caducando e além disso pouco me incomodo... Mas diga uma coisa, Venner, você não está apaixonado por Mrs. Bragg?
VENNER
- Deus do céu, não! Só andei suficientemente maluco para me embriagar um pouco com aquilo. E além disso, divertia-me fazer o Bragg de palhaço.
DREWETT
- Agora o palhaço não é ele.
VENNER
- Quer dizer que sou eu?
DREWETT
- Afinal, você não está propriamente simplificando a sua existência, está? Já disse a Mrs. Bragg que ficou noivo?
VENNER
- Já.
DREWETT
- E como recebeu ela a notícia?
VENNER
- Que é que você esperava? Fez uma cena, e depois sugeriu que fugíssemos para um chalé na Suíça.
DREWETT
- Sugeriu só?
VENNER
- Suplicou, chorou, implorou, se quer saber.
DREWETT
- E que é que você disse?
VENNER
- Que provavelmente nós ficaríamos com rachaduras de frio, lá.
DREWETT
- Deve ter sido um grande consolo para ela. Em matéria de tato, você não tem rival.
VENNER
- com mil diabos! Ela e eu somos ambos adultos! Estávamos aborrecidos, gozamos um episódio divertido que agora acabou. Não há razão para não sermos amigos.
DREWETT
- Oh, razão nenhuma. Embora me pareça uma maneira singular de começar uma amizade. Ela ainda está apaixonada por você?
VENNER (irritado)
- Nunca se tratou de paixão, de amor. Fui totalmente franco com ela, durante o caso todo.
DREWETT
- Meu caro Venner - só há duas maneiras da gente tolerar você: uma é
amá-lo, a outra é ter-lhe pena. Não creio que jamais Mrs. Bragg tenha tido pena de você, portanto deve-se tratar de outra coisa, e...
VENNER
- A culpa não é minha.
DREWETT
- Escute, Venner. Mrs. Bragg é moça de sangue quente, com toda a incapacidade característica do seu tipo para controlar as próprias emoções. Se ela estivesse na terra dela, em Knightsbridge, teria facilidade em substituí-lo rapidamente, e a coisa se liquidaria por si mesma. Mas aqui, a escolha dela é limitada. Existe Thorogood: não passa de um adolescente. Eu já estou caduco. E Bragg, esse deve ferrar no sono mal encosta a cabeça no travesseiro. Você se tornou tão necessário a Mrs. Bragg quanto o alimento e a água, e sem aviso bateu-lhe com a porta da despensa no rosto... Se você não tomar cuidado, ela acabará odiando-o com o mesmo abandono com que se atirou nos seus braços.
VENNER
- Mas que é que devo fazer, então?
DREWETT
- O conselho que lhe dou é que tenha cuidado.
VENNER
- Obrigado pelo aviso.
DREWETT
- Não é da minha conta, é claro, e você fez sua cama, livre-se dela como puder. Mas quando encontrasse a pessoa em questão, eu, se fosse você, não deixaria que a sua chamada "franqueza" entrasse em acção.
[Entram BRAGG e GLADYS.]
BRAGG
- Boa tarde, senhores.
GLADYS (dando as costas a VENNER)
- Boa tarde, Dr. Drewett.
DREWETT
- Boa tarde, Mrs. Bragg.
BRAGG
- Miss Leeming não está aqui? Não importa, ainda não bateram três horas. Bem, doutores, é este o programa de amanhã: - (lê) - "Recepção e almoço, à uma hora. Reunião e eleição, às duas. Jogo de futebol, às três. Dança, às sete". Como anfitriã oficial, meu bem, você concordará que está bem feito.
- Está ótimo! Edgar e eu estivemos recordando as nossas danças, Dr. Drewett. Não foi, querido?
BRAGG
- Foi. Especialmente a... como é?... a rumba. Eu tenho um excelente senso de ritmo, Drewett. Ta-rum-tum-tum. Ta-rum turn.
VENNER (a BRAGG)
- O senhor não precisa mais de mim, Dr. Bragg?
BRAGG (levantando os olhos do seu caderno de notas; brusco)
- Oh, não, não.
[VENNER vai até à porta do laboratório, tira a chave do bolso, coloca-a na fechadura.]
[Entra a ENFERMEIRA-CHEFE pelo centro, ao fundo.]
MISS LEEMING
- Um momento, Dr. Venner. - (Há algo de imperioso na sua voz.) - Desculpe a demora, Dr. Bragg. - (Pausa.) - Mas houve um acidente na enfermaria do Dr. Venner. Foster teve um colapso...
VENNER (alto)
- Foster! Por que não me chamaram?
MISS LEEMING
- Porque ele já morreu.
VENNER
- Morreu! - (Passa por MISS LEEMING, quase empurrando-a.)
DREWETT
- Espere, Venner.
[VENNER sai pelo fundo, ao centro. DREWETT o segue.]
BRAGG
- Quem estava de plantão, Miss Leeming?
MISS LEEMING (imóvel)
- Miss Hall. Não houve tempo para se fazer nada. O Dr. Venner deu a injeção às duas e meia. Logo depois Foster sentou-se e pediu um copo de água. Antes que a enfermeira o pudesse segurar, ele caiu morto.
BRAGG
- Deus do céu! - (Alarmado, indeciso.) - melhor é ir à enfermaria já.
MISS LEEMING
- Dr. Bragg!
BRAGG
- Que é?
MISS LEEMING
- Desculpe o atrevimento - mas não é uma diminuição para o senhor ir correndo à enfermaria?
BRAGG
- Sim, sim... Leeming. Talvez a senhora tenha razão, Miss.
MISS LEEMING
- Todos sabemos que o senhor foi contra essa experiência desde o início. O senhor disse que era perigosa... e que depunha toda responsabilidade nas mãos do Dr. Venner. Não foi, Mrs. Bragg?
GLADYS
- Foi... Você disse, Edgar.
BRAGG
- Minha querida, afinal de contas...
GLADYS
- Se você abafar este caso, pode prejudicar a sua carreira... perde a eleição para presidente... atiram-lhe a culpa toda.
BRAGG
- Sim... é claro... Eu praticamente proibi o Dr. Venner de continuar o tratamento.
GLADYS
- Sei que você proibiu. Ele porém sempre fez
questão de desafiá-lo.
[Irrompe THOROGOOD pelo centro, ao fundo.]
THOROGOOD
- - O senhor já sabe da morte de Foster?
BRAGG (erguendo a mão, autoritário)
- com efeito, Dr. Thorogood, acho que sou capaz de lidar com esse caso sem o seu auxílio.
THOROGOOD
- Está bem, doutor.
GLADYS
- Você tem que se proteger, Edgar. Não deve permitir que ele continue com as pesquisas.
BRAGG
- vou detê-lo imediatamente!
MISS LEEMING
- Não devia fechar o laboratório dele, Dr. Bragg? Olhe. a chave está na fechadura.
BRAGG
- Faça-me o favor de fechar a porta, Miss Leeming. E guarde a chave.
[Miss LEENING obedece. Quando ela enfia a chave no bolso, entra VENNER. Vem a passo rápido. Por um momento reina silêncio na sala.]
VENNER
- com efeito... Foi-se o coitado... Estenose coronária... Embolia singular. A autópsia deve ser interessante - além de me permitir exame do cérebro.
BRAGG (exaltado)
- Já lhe dei permissão para fazer alguma autópsia?
VENNER
- Não, mas dará.
BRAGG (furioso)
- Como o senhor se atreve a antecipar as minhas ações?
VENNER
- Por que estão me olhando dessa maneira?
THOROGOOD
- O chefe não está satisfeito. Nenhum de nós está.
VENNER
- O quê? Foi um óbito inteiramente natural... um processo cardíaco intercorrente... - (Interrompendo-se.) - Mas... - (Olha em torno.) - E por que diabo todo esse barulho? Nenhum de vocês dava a menor importância a Foster... era um simples indigente...
BRAGG
- O senhor está sendo insultante. Mas não importa. Breve saberemos se a morte foi inteiramente natural ou se esse tratamento...
VENNER
- Deixe de pilhérias. O betrazol não tem nenhuma ação trombótica.
BRAGG (com fúria solene)
-Longe de mim a ideia de medir meus conhecimentos com um talento como o seu. De qualquer forma considero do meu dever apresentar este caso e tudo que a ele se refere ao julgamento da comissão.
VENNER
- E que é que o seu magote de cretinos entende a respeito de pesquisa científica? O senhor se serve deles para lhe darem o rótulo de dono deste hospital!
BRAGG
- Darei parte a eles da opinião que o senhor faz das suas capacidades. Enquanto isso, vou telefonar ao legista.
VENNER
- Ao legista?
BRAGG ""
- Sim, ao legista.
VENNER (pausa)
- Espere um pouco! Porque, com os diabos... Oh, Senhor, de que adianta... Mas pense melhor, antes de fazer um papel idiota.
[Volta-se abruptamente para a porta à direita, experimenta abri-la, vê que está fechada, procura a chave em vários bolsos.]
BRAGG
- O senhor não entrará aí, Dr. Venner.
VENNER (virando-se)
- Onde está minha chave?
BRAGG
- A chave não é sua, Dr. Venner. É a chave de uma sala do meu hospital.
VENNER
- O senhor não pode fechar o meu laboratório.
BRAGG
- Pois fechei-o. E fechado ficará ale à inspeção do comité.
VENNER (avançando)
- Dê-me essa chave.
BRAGG (apressado)
- Não está comigo.
VENNER
- com quem está? - (Olhando furioso ao redor de si.) - Fanny! Sua cadela! THOROGOOD (de perto do sofá)
- Repita isso e eu lhe quebro a cara.
VENNER
- Você... Isso tudo é tão idiotamente infantil. Que importância tem agora que o laboratório fique fechado um dia ou dois? - (Volta-se e vai sentar-se no banco do piano.)
BRAGG
- No momento oportuno o senhor poderá retirar o seu material.
VENNER
- Isso é bem inglês! - (Toca os primeiros compassos de "Terra da Glória e da Esperança".)
BRAGG
- A insolência não o ajudará, Dr. Venner. Dr. Thorogood, Enfermeira-Chefe, continuaremos nossa conferência no meu gabinete. Vamos, Gladys.
[Sai BRAGG pelo centro, ao fundo, seguido de Miss LEEMING e THOROGOOD. Enquanto eles saem, VENNER toca com força a "Grande Marcha" de Blake.]
VENNER (pára de tocar)
- Está satisfeita por não ter ido para a Suíça?
GLADYS (em "voz baixa)
- Você ainda tem tempo para mudar de ideia.
VENNER (amargo)
- Que ótima esperança!
BRAGG (carinhoso, através da janela)
- Gladys!
GLADYS
- Já vou, Edgar.
VENNER (cantando com voz de falsete)
- La-la-la-i-tiii.
[Sai GLADYS pelo centro, ao fundo. Quando ela desaparece, VENNER abandona sua dissimulada indiferença. Fica sentado, rígido, pensando. Entra DREWETT pelo centro.]
DREWETT
- O que foi?
VENNER
- Mandei-o para o necrotério.
DREWETT
- Foi.
VENNER
- Drewett! Quer me ajudar na autópsia?
DREWETT
- Pois não. Quando?
VENNER
- Agora. Hoje à tarde!
DREWETT (espantado)
- Mas não pode ser hoje à tarde!
VENNER
- De qualquer jeito, é o que vou fazer!
DREWETT
- Mas... É impossível. Você precisa da permissão dos parentes... cumprir as formalidades!
VENNER (tenso)
- Escute. Você sabe por que escolhi Foster para experimentar a droga? Não era porque quisesse devolver o juízo ao pobre diabo enquanto ele estava aqui, mas porque eu sabia que ele não tardaria a me fornecer as provas patológicas necessárias à minha tese.
DREWETT (compreendendo)
- Já entendo!
VENNER (furioso)
- E agora Bragg tomou o freio nos dentes, já fechou o meu laboratório, e irá me atrapalhar de todas as maneiras, pretendendo fazer ele próprio a autópsia. E com os diabos! Você conhece a técnica dele! Não posso correr o risco de vê-lo inutilizar esses espécimes vitais! Tenho que tomar-lhe a dianteira! Agora!
DREWETT
- Compreendo... é claro... não é da minha conta.
VENNER (com nervosa violência)
- Você não quer me ajudar?
DREWETT
- Não. - (Pausa.) - Quando é que você pretende começar?
VENNER
- Assim que a gente possa. Antes que Bragg apareça com o legista. Você tem a chave do necrotério?
DREWETT
- Tenho.
VENNER
- Então fique com ela. Eles são capazes de apanhá-la, também. E vou precisar de um pouco de formol para as lâminas.
DREWETT (dirigindo-se à porta)
- Está certo. Daqui a pouco estou de volta.
[Entra MARY pelo centro, ao fundo.]
MARY (rapidamente)
- Paul, meu amor! - {Adianta-se vivamente, com expressão preocupada, carinhosa.} - Acabo de saber... sinto tanto...
[Sai DREWETT.]
VENNER
- Não fique com essa cara, como se acabassem de me enterrar, meu bem. Não foi nada. Só a infernal impertinência disso tudo.
MARY
- Eu sei, querido.
VENNER
- O mal é a ignorância deles... A imensa, escandalosa, repimpada ignorância deles!... Oh! de qualquer forma, acho que é inevitável... Mas é perigoso, e não posso fazer nada! Bragg me põe para fora... - (Um pensamento súbito o fere.) - E aí... todos os hospitais do país me fecharão as portas!
MARY (meiga)
- E isso teria tanta importância assim?
VENNER
- Não tem importância? Eu ficar sem o meu laboratório? Você está maluca?
MARY
- Mas, Paul! De qualquer forma não estaremos de partida, em breve? VENNER (chocado, depois abrandando)
- Oh, sim!
MARY
- Você sabe, eu acho que tudo acontece para o bem - talvez até mesmo isso.
VENNER
- Então está tudo no melhor dos mundos!
MARY
- Paul!
VENNER
- Mary, meu amor, você realmente quer me levar para Sanchen?
[Há um silêncio.]
MARY
- Você disse que iria comigo. Disse... - (murmurando) - que iria até aos confins do mundo...
VENNER
- Quando estou de veia sou capaz das frases mais poéticas.
MARY
- Oh, Paul...
VENNER
- Faria tudo neste mundo para não magoar você. Mary. Mas você também sabe o que o meu trabalho significa para mim.
MARY
- Sim, eu sei.
VENNER
- Então como é que quer que eu o abandone?
MARY
- Não, não. Você vai encontrar um laboratório formidável em Sanchen.
VENNER (exasperado)
- Posso encontrar outro no Tibéte! Mas não posso trabalhar com o Grande Lama me entoando cantochao nos ouvidos... Oh, Mary! Por que é que você acha que tem de me arrastar para lá?
MARY
- Oh, Paul, não o quero arrastar; mas às vezes a mulher enxerga mais claro do que o homem especialmente quando o ama!
VENNER (impaciente)
- Oh, meu bem, isso é uma chapa tão batida!
MARY (teimosa)
- Coisas batidas podem significar verdades!
VENNER (irritado)
- Pois então vamos examiná-las. Você quer fazer de mim um homem novo, salvar-me, pôr-me no caminho reto e estreito!
MARY
- Quero que sejamos felizes. E não seremos felizes muito tempo - se não tivermos algo em comum... espiritualmente.
VENNER
- Você me ama?
MARY
- Tremendamente.
VENNER
- Então que é que desejamos mais? Eu também a amo e tenho intenção de me casar com você.
MARY
- Tem intenção...
VENNER
- Oh, meu Deus, estou dizendo tudo errado. Estou louco por você. Mas você tem de abrir mão... dessa ideia maluca.
MARY
- Minha ideia maluca é tão importante para mim quanto a sua o é para você.
VENNER
- Concordo. Mas a minha é, provavelmente, mais importante para a humanidade.
MARY
- Oh, querido, será, será? Você não pode enxergar para além do fundo de um tubo de ensaio, para além de um microscópio? Que foi que toda a sua ciência fez pelo mundo - com os aviões, os gases asfixiantes, as metralhadoras? Só trouxe ruína! Se descobrirem um modo de dividir o átomo, só o usarão como explosivo. As pessoas culpam a Deus, ou o renegam, por causa do terrível estado em que vivemos hoje. E esquecem que toda essa desgraça provém do abandono das leis que Deus nos deu! Que poderemos esperar, se adoramos máquinas, em vez de adorarmos o nosso Criador!
VENNER
- Deus, Deus, Deus! Você pensa nele como em algo indiscutível. Mas não pode provar que Deus existe.
MARY
- Por que hei de provar - quando Ele, todos os dias, o prova a mim?
VENNER
- A mim nunca me deu nenhuma prova!
MARY
- Querido, com toda a sua inteligência, você é o mesmo que um menino teimoso. Então não compreende - a gente tem que cumprir certas condições... para fazer um amigo, é preciso andar metade do caminho até ele...
VENNER (com súbita amargura)
- Não tenho amigos, parece que só inimigos.
MARY
- Oh, Paul, não quero lhe pregar sermões - mas se você levantasse os olhos... e compreendesse que as coisas materiais não têm importância... Mesmo você e eu...
VENNER (interrompendo-a)
- Naturalmente, não posso entrar em competição com Deus.
MARY (baixo)
- Paul, você me apavora, quando fala assim!
VENNER
- Para mim, tudo isso é um conto de fadas, Mary.
MARY
- Você não pode negar os fatos históricos. Cristo viveu neste mundo. Foi visto e conhecido por homens que não podiam estar mentindo, homens que viram tudo que ele fez... todos os milagres... todos os...
VENNER
- Alucinações visuais!
MARY
- Está bem! - (com firmeza.) - Vamos supor que o foram. Vamos supor que tudo o que você diz é verdade! Milagres, divindade, tudo! ainda ficam as bases do cristianismo. Mas...
VENNER
- Você quer que eu seja cristão sem acreditar em Cristo?
MARY
- Eu quero que você acredite em sacrifício, em sacrificar algo por amor dos outros.
VENNER
- Compreendo! A velha concepção do humanitarismo!
MARY
- Por que não?
VENNER
- Pois eu não vou nisso! Trabalho porque a ciência me interessa - a ciência pura. Pouco me incomodo com a humanidade. E a sua ideia básica - a ideia de sacrifício, morrer de amor por outrem - simplesmente me deixa frio.
MARY
- Dói-me muito que os seus sentimentos sejam esses. Oh, como é que o hei de convencer? Amo-o tanto, que me despedaça o coração pensar que estamos separados.
VENNER
- Se você e o Todo-Poderoso são tão bons amigos, peça-lhe que dê um jeito nisso.
MARY
- Sim, isso é muito mais verdadeiro do que você pensa. Posso pedir ajuda a Deus e é o que vou fazer.
[Entra DREWETT pelo fundo, trazendo dois aventais brancos, avental de autópsia e grossas luvas de borracha.]
DREWETT
- Está pronto?
VENNER
- E o formol?
DREWETT
- Está aqui. E o álcool absoluto.
VENNER
- Vamos.
MARY
- Que é que vão fazer?
VENNER
- Realizar o único milagre! Ressuscitar a verdade... dos mortos.
[Saem DREWETT e VENNER pela esquerda.]
[MARY fica só, emocionalmente exausta; por fim, num impulso, junta as mãos e ergue a cabeça, como se orasse.]
[Entra GLADYS. Embora procure controlar-se, vê-se que está agitada.]
GLADYS
- Oh, perturbei-a?
MARY
- Não faz mal.
GLADYS
- Vim aqui... com certa esperança de ajudá-la.
MARY
- Como é que a senhora pode me ajudar?
GLADYS
- Oh, não sei! E, naturalmente, você talvez repugne minha interferência... que é realmente imperdoável. Contudo...
MARY
- Por favor, que quer dizer com isso?
GLADYS
- Bem - é a seu respeito e do Dr. Venner. (Grande dificuldade. ) Você é tão nova, tão inexperiente... e não acha que o casamento... é um preço alto demais para um primeiro entusiasmo?
MARY
- Não é um entusiasmo.
GLADYS
- Era o que eu também pensava quando tinha a sua idade. Mas depois a gente descobre. E então... hão-de sentir-se os dois tão infelizes!
MARY
- Não. Não seremos infelizes. E ademais -? prefiro ser infeliz com ele a...
GLADYS
- Eu sabia que você diria isso: o que mostra como anda inteiramente no ar. Que é que sabe a respeito do Dr. Venner?
MARY
- O suficiente para amá-lo.
GLADYS
- Você não devia sair com ele tão tarde da noite... como faz... não é direito.
MARY
- Não fiz nada de que deva me envergonhar! E não sei o que a senhora quer dizer com isso. Mas não darei ouvidos...
GLADYS
- Desculpe, minha filha. (Rapidamente.) Não estou dizendo nada contra ele. É um homem brilhante, encantador. Mas não é da sua espécie. Há-de apenas zombar de tudo aquilo em que você acredita!
MARY
- Não, não zombará!
GLADYS
- Mais tarde zombará. Você tem a sua missão a cumprir, não tem? Não lhe acontece acordar, em plena noite, e ficar cismando se não está traindo a causa à qual dedicou sua vida?
MARY
- Não é pecado... amar-se alguém...
GLADYS
- - E quando você está acordada - na escuridão sua consciência não fica a lhe repetir que é pecado... a lhe aconselhar que abra mão dele... que faça esse grande sacrifício... por amor de Deus?
MARY
- Deus não pode querer que eu abra mão dele.
GLADYS
- Você só diz isso porque o sacrifício é duro. Se você o deixasse seguir o caminho dele, e seguisse o seu... encontraria a felicidade...
MARY
- Por que a senhora me diz isso tudo?
GLADYS
- Não sei, acho que sou uma pessoa totalmente egoísta. Mas - por qualquer motivo estranho - gosto de você.
MARY
- Não. É mais do que isso.
GLADYS
- Não, não. Penso só na melhor solução para todos nós.
MARY
- Para todos nós. - (Vendo algo nos olhos de GLADYS.) - Oh, não... Não! A senhora, não!
GLADYS
- Por que não? Isso apenas significa que eu disse a verdade. Se você não aparecesse... ele ainda seria... o meu amante.
[As duas se defrontam, de pé, encarando-se.]
[PANO]
CENA 2
LOCAL
O mesmo.
TEMPO
Cerca das seis e meia da tarde de quarta-feira, 14 de abril, primeiro dia da reunião, no Hospital de Hopewell Towers.
As cortinas estão corridas, todas as luzes acesas. Na pequena mesa do recanto, DREWETT, sem paletó, de camisa engomada, gravata preta e suspensórios, está sentado, jogando uma paciência.
Entra THOROGOOD pela esquerda, muito vermelho, vestido a rigor.
THOROGOOD (explodindo com as notícias)
- Arre! Agora vai ser o diabo!
DREWETT
- Hem?
THOROGOOD
- Eu estava no gabinete do chefe - ele me pedia que fizesse sala ao Prefeito e aos outros convidados de honra -- quando, imagine quem me irrompe porta adentro? - (Vai até ao bufete e põe-se a preparar um drinque.)
DREWETT
- Não tenho a menor ideia! Quer me servir um uísque com soda? Bem forte! O discurso de posse de seu tio, hoje, foi divertidíssimo - mas já não sou tão jovem quanto antigamente!
THOROGOOD (oferecendo-lhe um copo)
- Foi Mrs. Foster!
DREWETT
- Realmente! E que tem ela?
THOROGOOD
- Foi a pessoa que entrou pelo gabinete do chefe.
DREWETT
- Oh!
THOROGOOD
- Queria que o senhor ouvisse - meu Deus! Foi uma delícia. - (Subitamente. ) - A propósito, Drewett, o que foi que Venner encontrou na autópsia?
DREWETT
- Por que você não pergunta a ele?
THOROGOOD
- Já perguntei!
DREWETT (jogando uma carta)
- E que é que ele disse?
THOROGOOD
- Procure adivinhar.
DREWETT
- Não me admira. Acho que você terá que esperar até que ele seja arrasado amanhã na reunião do Comité.
THOROGOOD (rindo)
- O Comité! Acho que a coisa vai mais longe! Pode me acreditar - nosso amigo cientista vai ter a sua conta amanhã. E bem o merece. É muito insolente para o meu gosto
DREWETT (lentamente)
- Não creio que ele tenha se mostrado muito insolente nestes últimos dias. [Entra a ENFERMEIRA-CHEFE pelo centro, ao fundo.]
THOROGOOD
- Oh, alo, Miss Leeming! - (Jovial.) Um cálice de vinho?
MISS LEEMING
- Bem, um só. Vejo que o dr. Bragg teve a gentileza de nos enviar o vinho. Que dia, este, para ele! - (Expressão de êxtase.) - E quando foi anunciado que entre todos os médicos da Grã-Bretanha fora o Dr. Bragg eleito presidente...
DREWETT (curvando-se sobre as cartas)
- Como os doentes deram vivas!
MISS LEEMING (atirando um olhar desconfiado a DREWETT)
- Como todos deram vivas!
THOROGOOD
- Ao nosso ilustre Chefe!
MISS LEEMING (tocando no copo de THOROGOOD)
- Ao Dr. Bragg!
[Miss LEEMING e THOROGOOD bebem.]
[Entra VENNER pelo centro. Ainda está vestido para a
solenidade. Seus modos são ásperos, amargos.]
THOROGOOD (rígido)
- Então, é você, Venner?
VENNER
- Suponho que sim.
THOROGOOD
- Quer beber?
VENNER
- O quê? E só eu é que levo a culpa? - (Serve-se de um uísque.) - Deus do céu! Então a nossa preciosa Enfermeira-chefe faz uma ligeira farra?
MISS LEEMING
- Tomei um cálice de vinho - (despeitada ) - para brindar a eleição do Dr. Bragg.
VENNER
- Ora, ora! Então não sabe que licores fermentados deixam o nariz vermelho?
MISS LEEMING
- Quer me deixar em paz, Dr. Venner?
VENNER
- E olhe a combustão espontânea! Suas exalações alcoólicas - mais a exaltação romanística de Edgar! Pense na tragédia: você explode por cima do peito duro da melhor camisa do novo Presidente.
MISS LEEMING
- O senhor ainda aprenderá, Dr. Venner, que fazer graças à custa dos outros não é tão divertido como parece.
VENNER (bebendo)
- Meus melhores votos!
[com tremendo esforço de vontade MISS LEEMING, controla-se, contentando-se em olhar longamente para VENNER. Sai afinal pela esquerda.]
THOROGOOD (brandamente)
- Tenho algumas notícias para você, Venner.
VENNER
- Oh! - (anda inquieto dum lado para outro, o copo na mão.) - Não me diga que a sua noiva chega hoje.
THOROGOOD
- Não!
VENNER
- Ah!
THOROGOOD
- Que quer dizer com esse "Ah"!?
VENNER
- Nada, apenas ah! Mas acho que a pobre pequena tem pouca sorte - você passa o ano inteiro perseguindo-a com cartas, e não a diverte nem de raro em raro.
THOROGOOD
- Cale a boca; é muito longe para ela vir! De qualquer modo, quem lhe pediu opinião?
VENNER
- Pensei que você ia pedir.
THOROGOOD
- Pois não ia.
DREWETT (excitado)
- Calem a boca, vocês dois! A paciência - parece que está dando certo!
VENNER (aproxima-se, põe-se a mexer nas cartas de DREWETT)
- Este rei cabe aqui.
DREWETT
- Eu ia pô-lo aí.
VENNER
- E a dama depois do rei.
DREWETT
- Pelo amor de Deus, Venner!
VENNER
- Desculpe, desculpe! - (Afasta-se uns passos.}
DREWETT
- Você enxerga daí? Preciso de um dez preto.
VENNER
- Ali!
DREWETT
- Acho que... Não, é impossível!
VENNER
- Calma, calma!
DREWETT
- Se eu arranjar um nove vermelho - está feita!
THOROGOOD (tirando uma carta)
- Está aqui!
DREWETT
- Oh, Senhor!
VENNER (tirando uma carta)
- E o seis de paus.
DREWETT (jogando)
- Cinco, quatro, três, dois!
VENNER (virando a última carta)
- É o ás!
THOROGOOD
- Bem, nunca pensei!
VENNER
- Afinal!
[DREWETT levanta-se, curiosamente perturbado, olha para VENNER, abana a cabeça, como num pressentimento, e caminha lentamente em direção à porta da esquerda.]
THOROGOOD (cruelmente)
- Feliz nas cartas, infeliz no amor. - (Ri.} - Drewett, você nunca mais arranjará outra mulher!
DREWETT (pára, volta-se para THOROGOOD)
- Como sempre, você tomou o bonde errado.
[Sai pela esquerda.]
THOROGOOD (olhando na direção de DREWETT)
- Que diabo tem hoje todo o mundo?
VENNER
- Você nunca descobrirá. Sua pele é danada de...
THOROGOOD
E? Bem, e o melhor era que a sua fosse grossa também. Deixe lhe dizer... - (Batem à porta do centro, ao fundo.) - Oh, entre!
[Entra MRS. FOSTER, nervosa, mas ardendo com o sentimento de ter sofrido indevidamente.]
MRS. FOSTER
- Dr. Venner?
VENNER
- Que é que há?
MRS. FOSTER
- O Dr. Bragg disse que eu poderia dar uma palavrinha ao senhor.
VENNER
- Claro. Mas não tenho muito tempo.
MRS. FOSTER (adianta-se para ele)
- Vai à festa, não é? E o pobre do meu tom no caixão!
VENNER (com muda compaixão)
- Que posso fazer, Mrs. Foster?
MRS. FOSTER
- É o que eu gostaria de saber.
VENNER
- Escute, Mrs. Foster. O que foi que o Dr. Bragg lhe disse?
MRS. FOSTER
- Ele é bastante cavalheiro para não dizer o que estava pensando - mas eu posso dizer - embora seja apenas uma pobre operária. - (Alto.) - O senhor não devia ter retalhado o pobre do meu marido, depois de morto, Dr. Venner.
VENNER
- Já lhe expliquei, Mrs. Foster. Eu precisava daquelas peças o mais cedo possível, Mrs. Foster, por motivos científicos. Para benefício de milhares de pessoas tão doentes quanto seu marido.
MRS. FOSTER
- E que benefício ele tirou disso? - (Mais alto. ) - O senhor deveria ter pedido o meu consentimento - por escrito, legalmente - o próprio Dr. Bragg me disse.
VENNER
- Que é que ele tem com isso?
MRS. FOSTER
- Ele é uma autoridade. E eu confio nele! Não fez nada escondido, nem escuso.
VENNER (exasperado)
- Quer insinuar que eu fiz?
MRS. FOSTER
- Não quero fazer acusações. Aqui não. O Dr. Thorogood me servirá de testemunha. Mas vou defender meus direitos.
VENNER
- Direitos?
MRS. FOSTER
- Confesso que o senhor no começo me iludiu. Mas há outros médicos no mundo. - (Olha para THOROGOOD.) - Não é verdade, doutor?
THOROGOOD
- Oh, decerto, decerto, Mrs. Foster.
MRS. FOSTER (com um aceno de cabeça significativo, falando ainda a THOROGOOD)
- Sei o que o senhor está pensando, doutor.
THOROGOOD
- A senhora não deve interrogar-me sobre isso, Mrs. Foster.
VENNER (zangado)
- Ora, pelo amor de Deus! Onde a senhora quer chegar?
MRS. FOSTER (erguendo a cabeça)
- O senhor não me faz calar com gritos, Dr. Venner. Sei dos meus direitos... E, já que pergunta, eu digo! Não estou satisfeita com o tratamento de meu marido!
VENNER
- Fiz tudo que foi humanamente possível!
MRS. FOSTER
- Desumanamente - digo eu - com sua carnificina! E lhe digo mais - se houve algum erro, o senhor não poderia descobrir melhor maneira de encobrir esse erro!
VENNER -
- Deus do céu!
MRS. FOSTER
- Faz bem em invocar a Deus! Porque estou lhe avisando - vou tomar medidas legais.
VENNER
- Estou vendo.
MRS. FOSTER
- Depois que falei com o Dr. Bragg, tomei uma decisão. - (Caminha para a porta.) - vou agora mesmo à delegacia policial de Parchester.
VENNER
- Muito bem. Pode ir!
MRS. FOSTER
- Hei-de defender meus direitos, nem que seja a última coisa que eu faça neste mundo!
[Sai MRS. FOSTER pelo centro.]
THOROGOOD
- Puxa! Eu bem lhe disse, Venner. - (Fingindo condolência.) - Sinto muitíssimo, meu velho.
VENNER (amargo)
- Isso ajuda muitíssimo! - (Afastando-se.) - Nunca se deve confiar em parentes!
[Sai VENNER pela esquerda.
Satisfeito, THOROGOOD prepara mais um uísque e toma-o.
Entra MARY pelo fundo, ao centro.]
THOROGOOD (efusivo)
- Alo! É justamente a pessoinha que eu procurava. Quer um cálice de xerez?
MARY
- Não, obrigada.
[Caminha para a esquerda.]
THOROGOOD
- Não fuja. Trago aqui aquele instantâneo que tirei de vocês na semana passada. Olhe. - (Entrega-lhe o instantâneo. Ela olha rapidamente, com total indiferença.) - Seu namorado saiu de olhos fechados, está vendo? Mary, você é tão linda que devia ser melhor apreciada.
MARY (pondo o instantâneo sobre o banco, caminha para a direita)
- Não entendo o que quer dizer.
THOROGOOD
- Bem, todos compreendemos quanto você está ansiosa para fazer a sua viagem. Ele, porém, nunca a acompanhará.
MARY (seca)
- Não?
THOROGOOD
- Ainda mesmo que se livre de ser expulso do Registro Médico. Não foi talhado para essa espécie de vida.
MARY (cortante)
- Como é que você sabe?
THOROGOOD
- Lembro-me de um sujeito que nos foi visitar na escola. Vinha da Birmânia, ou dum lugar assim, - o tipo do sahib! Senhor! Ele fêz-me desejar ir para os confins do Império!
MARY (afastando-se, com frieza)
- É pena que não tenha ido.
THOROGOOD (num imppulso)
- Mas eu iria. Iria com você, ficaria ao seu lado. Sou um homem muito útil numa hora de aperto, Mary.
MARY
- Você não está se esquecendo de uma coisa?
THOROGOOD
- Não, não. Sei bem - Phyllis. - Mas que adianta estragar nossas duas vidas - o melhor é cortar de uma vez.
MARY (procura afastar-se)
- Que péssimo cirurgião você se revelaria!
THOROGOOD (segura-lhe o braço)
- Mas Mary - escute. O melhor é ser sincero. Estou louco de todo por você... MARY
- Largue-me, por favor!
THOROGOOD
- Temos tantas coisas em comum. Phyllis esquecerá. Eu amo-a, Mary...
amo-a...
[Entra JENNIE, dirige-se ao bufete e apanha os copos.]
THOROGOOD (a JENNIE)
- Que é que você veio fazer aqui?
JENNIE
- Vim buscar os copos.
THOROGOOD
- Bem, apanhe-os e vá embora.
JENNIE
- Sim, senhor. Desculpe.
MARY
- Jennie, pode demorar o tempo que quiser.
JENNIE
- Obrigada, Miss.
THOROGOOD
- Mas eu disse...
MARY
- Não é melhor você ir receber o Prefeito?
THOROGOOD
- O Prefeito que vá para o inferno!
[Sai THOROGOOD pela esquerda. MARY senta-se desanimadamente no sofá.]
JENNIE
- A senhora tem alguma coisa, Miss?
MARY
- Não, Jennie. Estou muito bem.
JENNIE
- Não se incomode com o Dr. Thorogood, Miss. Ele não faz por mal.
MARY (vagamente)
- Não, Jennie?
JENNIE
- É o que os outros dizem. Mas eu, como não tenho certeza, sempre que o vejo chegando perto trato de me esconder.
MARY
- É mesmo, Jennie?
JENNIE
- No inverno ele não amola tanto. Dizem que é porque nessa época fica distraído com o seu futebol.
[JENNIE sai pela esquerda,
MARY senta-se à mesa, apanha uma folha de papel, começa lentamente a escrever. Depois de um momento, deixa cair a cabeça entre as mãos.
VENNER, de dinner-jacket, entra pela esquerda.]
VENNER (grave)
- Mary, tenho andado a procurá-la a tarde inteira.
MARY (igualmente tensa, sem erguer os olhos)
- Eu estava na reunião.
VENNER (amargo)
- Que pantomima!
[Pausa. MARY continua a escrever.]
VENNER
- Então - você não tem nada a dizer?
MARY
- Que posso dizer?
VENNER
- Qualquer coisa! Qualquer coisa! Não se ponha aí a escrever cartas, com esse inferno entre nós.
MARY (lentamente)
- Não é uma carta. - (Pausa.) - É meu pedido de demissão.
VENNER
- Seu pedido de demissão?
MARY
- Estou confirmando o que disse ao Dr. Bragg esta tarde. (Desolada.) vou embarcar para a China de hoje a um mês.
VENNER
- Mary! Você não pode fazer isso!
MARY
- Tenho que fazer!
VENNER
- O supremo sacrifício!
MARY
- Oh, Paul, será preciso zombar!
VENNER
- Sinto vontade de zombar. Que dispersão, que futilidade!
MARY (rígida)
- Não torne tudo ainda mais difícil para nós ambos.
VENNER (com nervosa violência)
- Querida! Por que você não fica - e não trabalha para Deus na sua terra?
MARY (quase em lágrimas)
- Você riria de mim, de tudo que considero sagrado, - tal como riu ainda agora.
VENNER
- Juro por Deus que nunca hei-de rir
MARY
- Você não acredita em Deus.
VENNER (tensíssimo)
- Estamos discutindo teologia - ou será que nos amamos?
MARY
- Você sabe que eu o amo. - (Triste.) - Mas agora me pergunto se você... VENNER (interrompendo-a)
- Amo-a, amo-a. Quando você entra nesta sala, não há uma célula do meu corpo que não se agite e grite.
MARY
- E será isso para você uma sensação nova?
VENNER
- Que quer dizer?
MARY
- Então não sabe?
VENNER
- Já entendo - Gladys. - (Dá uns dois passos à direita.) - Eu devia prever que isso aconteceria. - (Volta em direção a Mary.) - Mary, como é que lhe poderei explicar uma coisa dessas? Mas gosto de você. Amo-a, Mary. Pela primeira vez na minha vida compreendo o sentido dessa palavra.
MARY
- E assim mesmo não fará o que lhe peço.
VENNER
- Não posso. Não posso seguir as suas pegadas até à China.
MARY
- Paul, você é injusto!
VENNER
- Você é que é injusta! Muitas outras mulheres renunciaram à carreira pelo casamento.
MARY
- Você chama a isso de carreira!
VENNER
- Que importa o nome que eu lhe dou? Mary, você não vê o que está fazendo? Atirando fora uma coisa que talvez nunca mais recuperemos. - (Dá um passo em direção a ela.) - Não estou pedindo muito, Mary. Só um momento - tirado à sua eternidade.
MARY
- Mas eu dei minha palavra, Paul. Que me estará reservado na eternidade, se quebrar essa promessa?
VENNER
- No fundo, você pouco se incomoda comigo! - (Afasta-se.}
MARY (senta-se junto à mesa)
- Se você soubesse o que tenho sofrido por sua causa. Tenho ficado sem dormir estas noites todas... apavorada com o que eles são capazes de fazer com você...
VENNER
- Não quero sua piedade!
MARY
- Não é piedade. Tenho medo, um medo desesperado. Rezei, rezei e não recebi resposta; já não sei mais o que fazer. - (Pausa.) (Cegamente. ) - Paul... você seria... você seria bom para mim... se eu ficasse?
VENNER
- Como é que você duvida?
[MARY rasga o pedido de demissão.]
VENNER
- Mary! Meu amor!
MARY
- Oh, Paul!
VENNER
- Eu não poderia viver sem você. - (Beijam-se.)
MARY (sem fôlego)
- Nunca me deixe ir embora.
[Subitamente, irresistivelmente, caem nos braços um do outro.]
VENNER
- Meu amor! Se soubesse o desespero com que desejei isto!
MARY
- Então você me ama?
VENNER
- Eu a adoro, Mary!
[GLADYS entra rapidamente pelo fundo. Está muito elegante, com um vestido decotado de noite, uma écharpe leve nos ombros. Fica de pé à porta.]
GLADYS (de mão na cintura)
- Parece que cheguei num momento impróprio.
MARY (em voz baixa)
- Vou-me embora, agora, Paul...
VENNER
- Não, espere, querida.
MARY (andando para a esquerda)
- Até mais tarde - no salão de entrada.
[Sai MARY pela esquerda.]
GLADYS
- Paul, peço desculpas por ter entrado neste momento. Por favor, não pense que eu... vim de propósito.
VENNER
- Não penso nada.
GLADYS
- Paul, você dança comigo esta noite?
VENNER
- Não pretendo dançar muito.
GLADYS
- Mas eu queria lhe falar. Tenho a certeza de que poderíamos concertar tudo.
VENNER
- Já não discutimos isso antes?
GLADYS
- As coisas não estavam no ponto em que estão. Já que ela vai embora... Paul, Edgar me disse que ela vai embora de hoje...
VENNER
- Ele como sempre se engana.
GLADYS
- Oh, Paul - querido!
VENNER (afastando-se)
- Faça o favor de parar aí, sim? Ando farto da sua mania de apossar-se das pessoas!
GLADYS
- Tenha cuidado, Paul. Você não pode me man dar embora pela segunda vez.
VENNER
- Vá para o inferno!
GLADYS
- Não me fale assim!
VENNER
- Será que não pode compreender que estou farto de você, que detesto até
vê-la?
GLADYS
- Como é que você se atreve!
VENNER
- Você... até me dá repugnância!
GLADYS (com as mãos crispadas uma na outra)
- Como você se atreve! Como se atreve a me falar assim!
VENNER
- Falo porque é assim que me sinto a seu respeito.
[VENNER sai pelo centro, ao fundo. GLADYS fica de pé, num paroxismo de cólera e humilhação.
Entra Miss LEEMING pelo centro à esquerda, vestida para a festa. Observa GLADYS intensamente.]
MISS LEEMING **146 (curiosa)
- O Dr. Venner sabe enfrentar as coisas, não é?
GLADYS
- Demais.
MISS LEEMING
- Nada o abate. E parece apaixonadíssimo pela doutora. Também ela é linda, não é? Uma noite destas, quando entrei aqui, estavam os dois, abraçados, aos beijos!
GLADYS (tremendo)
- O Dr. Venner ainda comete um engano sério, algum dia.
MISS LEEMING (com um risinho)
- É isso que todo mundo vem dizendo há anos, mas ele sempre encontra meio de se safar.
GLADYS
- Espere até amanhã. Espere até que meu marido - espere até que todos comecem a dar em cima dele. Quero ver a cara dele quando o demitirem, quando o expulsarem daqui.
MISS LEEMING (interrompendo-a, sensata)
- No seu lugar eu não teria tanta certeza assim, Mrs. Bragg. Ele é inteligente! - (com súbita malícia.) - Sim, inteligentíssimo. - (Sorrindo.) - Espere que ele comece a ler, destrinchar aquelas notas, aqueles papéis. Parece que estou vendo o Dr. Venner lendo provando as coisas que fez, e diminuindo o Dr. Bragg diante do comité e do legista. Ah, se ao menos ele não contasse com aqueles papéis! - (Outra risada.) - É horrível, não é? - (Caminha para a mesa.) - Mas é assim... a gente não pode dominar os próprios pensamentos. E muitas vezes quando passo pelo seu laboratório, com todos os papéis lá dentro... muitas vezes - (com voz intensa) - tenho pensado - deve haver algo importante neles - e não seria justo - se... - (rápida) - se fossem queimados, destruídos.
GLADYS (volta-se)
- Miss Leeming!
MISS LEEMING
- Não quero fazer mal a ele - a despeito de todas as coisas cruéis que ele me diz. - (Sem olhar para Gladys.) - Mas essa seria a maneira de o ferir, a única maneira. É a única coisa a que ele dá importância, (mais depressa} é o trabalho dele... a única coisa para a qual vive... e está tudo escrito... cálculos, algarismos, tudo, naqueles papéis... naquele quartinho. - (Súbita mudança de tom.) - Já está quase na hora do meu plantão! vou chamar Jennie. - (Dirige-se à campainha.) - O que me faz lembrar - posso não ter oportunidade de ver o Dr. Bragg ainda hoje. A senhora quer ter a bondade de entregar isto a ele? É a chave do Dr. Venner. O Dr. Bragg vai precisar dela de manhã cedinho, para o comité. - (oferece a chave a GLADYS.)
GLADYS (recua)
- Não. - (Abana a cabeça... Por fim recebe a chave.)
MISS LEEMING
- Que houve, Mrs. Bragg?
GLADYS (senta-se rigidamente)
- Estou... com dor de cabeça.
MISS LEEMING
- Oh, que pena! A senhora deve repousar um minuto. Quer que lhe traga alguma coisa?
GLADYS
- Não, não.
[Entra JENNIE pela esquerda, muito arrumada, de avental limpo e touca.]
MISS LEEMING
- Oh, Jennie, você já acabou?
JENNIE
- Já, sim senhora.
[Ouve-se à distância um som de música de dança.]
MISS LEEMING
- Não precisaremos mais de você esta noite. Pode ir para a sala, diretamente... para a festa.
JENNIE (alegre)
- Obrigada, Miss Leeming. - (Caminha para a direita.)
MISS LEEMING (detendo-a)
- Por hoje pode ir por aqui.
JENNIE
- Oh, obrigada, Miss Leeming.
[Sai JENNIE rapidamente pelo fundo, ao centro. Enquanto a porta se abre, a música de dança entra mais alta, depois ensurdece.]
MISS LEEMING
- Menina tola! Essas moças de hoje só pensam em divertimento. Bem, tenho que ir também. - (Pausa.) - Quer ir comigo, Mrs. Bragg? - (Solícita.) - Ou quer descansar um pouco aqui no silêncio, para melhorar a dor de cabeça?
GLADYS (com voz estrangulada)
- vou... descansar um momento.
MISS LEEMING (com voz estranha)
- vou apagar estas luzes. A penumbra há-de ser-lhe mais agradável.
[Miss LEEMING apaga as luzes, deixando apenas a do abajur no centro. Fica um momento de pé, figura silenciosa e inescrutável, fitando GLADYS; por fim envolve os ombros na capa, volta-se e sai pelo fundo, ao centro.
Continua-se a ouvir distante a música da festa. GLADYS permanece sentada, como que ferida; de repente, como por uma resolução histérica, levanta-se, marcha até à porta da direita, gira a chave na fechadura, escancara-a. Agitadíssima, olha para dentro do laboratório e logo depois, virando-se rapidamente, apanha a caixa de fósforos da escarpa da lareira e entra no laboratório. Enquanto ela está lá, entra MARY, vestida de branco, muito simples. Sem se aperceber da presença de GLADYS no laboratório, MARY avista o velho avental de trabalho de VENNER atirado a uma cadeira. Sorri de leve, apanha o avental, pendura-o, com estranha ternura. Nesse momento volta GLADYS, sem fechar direito a porta atrás de si.]
MARY (abruptamente)
- Mrs. Bragg!
GLADYS (histérica)
- É você - estimo muito! Estimo muito que seja você!
MARY (com veemência)
- Que é que a senhora estava fazendo ali?
GLADYS (abatida)
- Estava só... só...
[MARY empurra GLADYS e corre para o laboratório. No
mesmo momento entra VENNER pela porta central, ao fundo.]
VENNER
- Quem... meu Deus! - (Corre ao laboratório.) - Mary! - (gritando) - pelo amor de Deus, cuidado com esse éter! - (Entra correndo no laboratório. Nesse momento escuta-se uma detonação abafada, mas violenta, que provoca um clarão enceguecente. Segue-se um silêncio mortal.)
VENNER (do laboratório)
- Mary! Mary!
[GLADYS desmaia no sofá.]
[PANO]
TERCEIRO ATO
LOCAL
O mesmo.
TEMPO
Quinta-feira pela manhã, um mês depois.
A sala está iluminada, as janelas abertas, deixando entrar um sol vivo.
JENNIE, com um uniforme de listas vermelhas e brancas, acaba de espanar o recanto do fundo. Enquanto espana, olha de vês em quando para CHIVERS, que está sentado à esquerda da mesa, com o chapéu descaído para a nuca.
CHIVERS (levanta-se e dirige-se a JENNIE)
- Escute aqui, minha filha - você tem a certeza de que não sabe onde ele está?
JENNIE
- Não, já lhe disse, Mr. Chivers. - (Espana a escrivaninha. )
CHIVERS (atravessando para o fundo)
- Está bem, não se zangue. Não posso deixar de me sentir um pouco nervoso. Que me adianta ficar aqui, com o estômago dando horas, se não consigo apanhar o homem?
JENNIE
- Ele pode aparecer a qualquer minuto.
CHIVERS
- Você disse isso mesmo há um quarto de hora atrás. - (Senta-se junto à lareira.)
[Pela esquerda entra DREWETT de gravata preta.]
CHIVERS
- bom dia, doutor.
DREWETT
- Bom dia. O correio chegou, Jennie?
JENNIE
- Não, senhor. - (Olhando pela janela.) - Oh, lá está... é o carteiro, entrando no portão.
DREWETT
- - Seja boazinha, corra e vá ver que é que ele trouxe.
[Sai JENNIE pela esquerda.
DREWETT dirige-se ao cabide da esquerda, tira o seu paletó, pendura-o, veste o avental.]
CHIVERS (levantando-se)
- Dolorosa tragédia a que sucedeu aqui, doutor, após a última vez em que tive o prazer de vê-los. Pelo que soube, a moça morreu instantaneamente.
DREWETT (mudando o conteúdo dos bolsos do paletó para os do avental)
- É verdade.
CHIVERS
- Uma pena! E era uma linda moça. Achei esquisito ela estar no laboratório, na hora da explosão.
DREWETT
- Ela entrou lá para salvar um manuscrito que estava se queimando. Mas derramou um pouco de éter, o éter incendiou-se, e fez explodir um frasco de tritoluol.
CHIVERS
- Foi isso que li nas notícias do inquérito.
DREWETT
- Pois é. Aliás eu calculava que você não haveria de perder de vista esses detalhes.
CHIVERS
- Mas como foi que o manuscrito pegou fogo? Isso é que eu gostaria de saber. DREWETT (apanha um cigarro à esquerda da mesa)
- Você não acredita no que lê nos jornais?
CHIVERS
- Oh, a respeito do Dr. Venner ter provocado um circuito ligando mal a tomada do aparelho elétrico em que trabalhava?
DREWETT
- Foi esse o depoimento dele.
CHIVERS
- Eu sei. Mas isso não me parece coisa do "Venner. Não é homem descuidado - pelo menos com o trabalho dele, não o é.
DREWETT
- Humanum est errare, Mr. Chivers.
CHIVERS
- Lá isso é verdade também. Grego é uma língua formidável! Aconteça o que acontecer, sempre se descobre...
DREWETT
- Aconteça o que acontecer, sempre se descobre uma frase grega que serve... nem que seja em latim.
[Dirige-se à direita da mesa, e depois ao recanto, olha pela janela procurando ver JENNIE.]
CHIVERS
- É admirável. Bem, se Venner é o responsável, segundo diz, já pagou pelo que fez. Ouvi dizer que sofreu umas queimaduras horríveis, além de perder dois dedos.
DREWETT
- Nada lhe escapa, hem?
CHIVERS
- Não ando de olhos fechados. Meu trabalho exige olho atento. E é o que me faz pensar que esse negócio talvez esteja mesmo certo. Afinal de contas, a menos que ele tenha mudado muito, Venner não é homem para assumir a culpa, quando o erro é dos outros.
DREWETT
- Quanta sabedoria, Mr. Chivers!
CHIVERS
- Não, bom senso, apenas.
DREWETT (vendo JENNIE passar junto à janela)
- Ah, Jennie!
JENNIE (chegando à janela)
- Só veio o "Jornal", doutor.
DREWETT
- Ah, era ele mesmo que eu queria. Seja boazinha, dê cá.
[JENNIE entrega-lhe o "Jornal" através da janela e desaparece pela esquerda. DREWETT, visivelmente ansioso, começa a abrir o pacote.]
CHIVERS
- O senhor não saberá quando é que ele aparece, doutor?
DREWETT (olhando para trás)
- Ele às vezes dá um passeio pela alameda da frente, depois que lhe fazem o curativo.
CHIVERS
- A alameda! vou tentar. Não posso demorar mais! - (Dirige-se à porta da esquerda, encontra-se com JENNIE que entra, fá-la parar, e diz-lhe confidencialmente:) - Se aparecer aqui um senhor, dizendo-se representante da firma Mamley, e perguntar pelo Dr. Venner, tenha a presença de espírito de dizer - (tira do bolso um xelim) - que não sabe onde ele está.
JENNIE
- Mas não sei mesmo, não senhor.
[Sai CHIVERS, enfiando de novo a moeda no bolso. JENNIE apanha o espanador de sobre o piano.]
JENNIE
- A mão do Dr. Venner vai indo bem, Dr. Drewett?
DREWETT
- Otimamente. Não demora o teremos de novo bom.
JENNIE
- Oh, estimo muito. - (Põe-se a cantar, e vai polir vigorosamente os ferros da lareira.)
[Entra a ENFERMEIRA-CHEFE e fica de pé, à porta da esquerda.]
MISS LEEMING
- Você ainda não acabou isso aqui?
JENNIE
- Estou acabando, Miss Leeming.
DREWETT (abrindo o "Jornal")
- Ah!
MISS LEEMING
- O senhor parece muito interessado, Dr. Drewett.
DREWETT
- E estou mesmo.
MISS LEEMING
- Alguma coisa de novo?
DREWETT
- Sim.
[Sai pelo centro, ao fundo, lendo o "Jornal"}
[JENNIE deixa cair a escova.]
MISS LEEMING
- Oh, rapariga desajeitada! Já poliu os metais?
JENNIE
- Já, sim senhora.
MISS LEEMING
- Então vá dizer à cozinheira que arrume aquelas laranjas estragadas porque nós vamos devolvêlas para Parchester. Ande depressa. O carro sai às doze horas.
JENNIE
- Sim, senhora.
[JENNIE sai pela esquerda.
Entra THOROGOOD pelo centro, ao fundo, rapidamente, de roupa escura e gravata preta, com um número do "Jornal" aberto na mão.]
THOROGOOD
- Escute, onde está o Chefe?
MISS LEEMING
- Não o vejo desde as dez horas.
THOROGOOD
- Fui informado de que ele estava aqui. Oh, Senhor! Que é que está acontecendo com todo o mundo, hoje de manhã? Anda tudo de pernas para o ar.
MISS LEEMING
- Posso ajudar?
THOROGOOD
- Não, não, não posso esperar. Tenho que achar o Chefe. É importante.
[Sai THOROGOOD pelo fundo.
MISS LEEMING, sozinha, dirige-se lentamente para a porta da direita.
Abre-a, deixando entrar uma réstia de sol, que lhe revela a expressão satisfeita, triunfante. Nesse momento VENNER entra lentamente pela esquerda. Sua entrada é estranhamente dramática. Tem o braço esquerdo numa tipóia, e a mão esquerda envolta em ataduras. Está pálido, abatido, doente, sua expressão, embora irónica, e altiva, está mais calma do que dantes. MISS LEEMING se volta.]
VENNER
- Muito bem! Examinando suas novas instalações, Miss Leeming?
MISS LEEMING
- E se eu estivesse, quê mal haveria nisso?
VENNER
- É uma salinha acolhedora. Quando é que os operários começam o trabalho?
MISS LEEMING
- Amanhã.
VENNER (dirige-se ao piano, senta-se na banqueta e tira indolentemente alguns acordes com a mão direita)
- Eu agora devia levar o piano a sério. Todas as pessoas que dantes me detestavam ouvir tocar, hoje diriam: "Coitado! Não é que ele toca maravilhosamente com uma mão só!"
MISS LEEMING (rigidamente)
- O senhor não liga ao que aconteceu?
VENNER (levemente irónico)
- Que é que você acha? De qualquer modo, dizem que uma pequena mutilação é boa para a alma e foi praticada por todos os grandes místicos! Quem sabe - dentro de poucos anos talvez eu esteja me achando em condições de deitar-me sobre tachinhas.
MISS LEEMING
- E o senhor ainda brinca! Devia pelo menos fingir alguma tristeza pela morte dela.
VENNER (com súbita rudeza)
- Cale a boca! Apesar de toda essa choradeira, nenhum de vocês liga a mínima a que ela esteja viva ou morta!
MISS LEEMING
- E só o senhor se importa, é claro?
VENNER (gritando)
- Não se envolva com os meus sentimentos! Oh, com os diabos! Por que é que eu consinto que você me aborreça? - (Põe o cigarro na boca, tenta abrir a caixa de fósforos com a única mão sã.) - Quer fazer o favor? Ainda não aprendi.
[Miss LEEMING olha-o impassível, depois lhe acende o cigarro. Quando ela se vira para sair, ele a detém.]
VENNER
- Mas há uma coisa que eu admiro em você: continua heroicamente irregenerável.
MISS LEEMING
- Não sei o que o senhor quer dizer.
VENNER
- Não foi Montaigne que disse: "Há heróis tanto no mal quanto no bem"! Se você de repente aparecesse com uma natureza boa, acho que eu dava cabo de si, de puro nojo.
MISS LEEMING
- Que quer dizer?
[Entra BRAGG pelo centro, ao fundo, com um impresso na mão.]
BRAGG
- Ah, bom dia, Miss Leeming. Trago aqui uma coisa que irá interessar à senhora. A planta de sua nova sala de estar.
MISS LEEMING
- Oh, Dr. Bragg!
BRAGG
- Sei que mulher não entende isto aqui... mas olhe... isto é a sacada nova que estão construindo, com uma janela francesa.
MISS LEEMING
- Sim, Dr. Bragg.
BRAGG
- A senhora vai ter uma boa quantidade de sol. Bem - cá está.
MISS LEEMING (de olhos baixos, mordendo os lábios)
- Posso afirmar que agradeço seu gesto do fundo do coração, Dr. Bragg. Tem sido tão... difícil... durante todos estes anos... dada a minha posição... Será que posso levar a planta comigo um momento, só para ver melhor?
BRAGG
- Claro, claro, se lhe dá prazer.
MISS LEEMING
- Muito obrigada, doutor.
[Vai para a direita, lança um olhar a VENNER e sai.]
BRAGG
- Então, Venner! - (com afabilidade forçada.) - Como vai a mão?
VENNER
- Praticamente boa.
BRAGG (cordialmente)
- Estimo muito! Porque... bem... receio... - (Pausa.) - Venner, modéstia à parte, creio que me portei com elogiável controle. Nunca bati num homem que estivesse por terra, e portanto nada lhe dei durante estas semanas em que você esteve doente. Agora, contudo...
VENNER
- Deve-se fazer justiça?
BRAGG
- Precisamente. A reunião do comité, tão adiada, realiza-se afinal amanhã. É à tarde, como magistrado principal, devo lhe pedir que compareça em Parchester.
VENNER
- Muito, muito bem!
BRAGG
- Naturalmente não quero... que haja nenhum escândalo a respeito do falecimento da Doutora Murray!
VENNER
- É muita bondade sua.
BRAGG
- Mas o fracasso das suas experiências e a morte de Foster, foram muitíssimo agravados por este último caso. Você não deve esperar nenhuma condescendência.
VENNER
- O senhor está me deixando nervoso!
BRAGG (com crescente indignação)
- Hoje, à uma hora, tenho entrevista marcada com dois candidatos: ambos têm boas recomendações. Um é campeão de ténis e o outro é um flautista de talento.
VENNER
- Oh!
BRAGG
- O senhor está me entendendo?
VENNER
- Perfeitamente.
BRAGG
- Porém o senhor se mostra muito displicente.
VENNER
- O senhor desejaria que eu rebentasse um vaso sanguíneo?
BRAGG (mais indignado)
- Devo-lhe dizer que durante toda a minha longa experiência jamais encontrei alguém tão desprovido de sensibilidade quanto o senhor.
[Entra THOROGOOD pelo centro, ao fundo, com o "Jornal" em mão.]
THOROGOOD
- Ah, cá está o senhor, Chefe!
BRAGG
- com efeito, Dr. Thorogood...
THOROGOOD
- Desculpe, Chefe. Mas o senhor já viu isto?
BRAGG
- Vi o quê?
THOROGOOD
- O número de hoje do "Jornal Médico". - (Oferece-o a BRAGG.)
[VENNER se afasta do grupo, dirige-se ao piano, senta-se na banqueta.]
BRAGG
- Palavra de honra, Thorogood - (recebendo o "Jornal") - você sabe que eu vivo tão ocupado que não tenho tempo para dar uma olhada no "Jornal" nem mesmo depois do café. - (Irritado, batendo os bolsos do casaco.) - E deixei os óculos na escrivaninha. Que é que diz?
THOROGOOD (explicando-se o melhor que pode)
- É... É a tese de Venner, Chefe.
[VENNER dá um acorde brando, no piano.]
BRAGG
- Tese? Que tese?
THOROGOOD
- Vinte páginas - quase a metade do "Jornal" dedicada a ela. E um prefácio especial por Sir GeOrge Gadsby - declarando que se trata do maior passo dado no assunto, depois de Charcot...
[Outro arpejo ao piano, dado por VENNER.]
BRAGG
- Que é que você está dizendo? Vinte páginas? Aqui?
THOROGOOD
- Sim senhor. Não se pode negar. Venner provou sua tese - totalmente - e nós é que estávamos errados.
BRAGG
- Deus do céu!
THOROGOOD (apontando para o "Jornal", sobre o braço de Bragg)
- Veja aí o que diz Sir George: "Não temos conhecimento de nada mais importante..." onde é mesmo... olhe aqui... "do que esta pesquisa brilhantemente levada a efeito em Hopewell Towers!"
BRAGG
- Hopewell Towers!
[Duplo acorde grave, de VENNER, no piano.]
BRAGG (dirige-se a VENNER, caminhando em direção do piano)
- Bem, realmente, Dr. Venner... parece-me que - hem? - devemos dar-lhe os parabéns.
VENNER (quase a pedir desculpas)
- Foi malandragem da minha parte, deixar a coisa cair assim de repente em cima de vocês, não foi?
[Levanta-se.]
BRAGG
- Longe disso, meu caro. Foi uma surpresa agradável, agradabilíssima.
VENNER
- Eles deixaram de publicar mais da metade das equações de importância, porém que mal faz? Talvez não houvesse seis pessoas neste país que as entendessem.
BRAGG
- Sir George Gadsby ficou convencido.
VENNER
- Gadsby! Ele não tem a menor ideia do que se trata.
[Caminha em direção do sofá.} [Entra CHIVERS pela esquerda.]
CHIVERS (caminhando para o centro)
- Bom dia, meus senhores. Ah, Dr. Venner, ando procurando o senhor pelo hospital inteiro. Na verdade, sem desfazer da sua estimada presença, Dr. Bragg, preciso ter uns dois minutos de conferência com o Dr. Venner.
BRAGG
- Sinto muito, Chivers, mas o Dr. Venner e eu estamos ocupados no momento.
CHIVERS
- Bem - é assim que se faz o burro do dinheiro, não é? Permita, doutor. - (Oferece-lhe a carteira de cigarros.}
BRAGG
- Não, obrigado.
CHIVERS
- Dr. Venner?
VENNER
- Obrigado, já estou fumando.
CHIVERS (servindo-se de um cigarro)
- Sempre achei que os cigarros têm melhor sabor quando saem de uma cigarreira bonita. Esta aqui é de dezoito quilates. Pesada. - (Vira-se para THOROGOOD, dá-lhe um cigarro.) - com licença. - (Acende o cigarro de THOROGOOD.)
[Entra JENNIE pela esquerda.]
JENNIE
- Estão aí dois senhores que desejam falar com o Dr. Bragg.
BRAGG
- Quem são?
JENNIE
- Não conheço, doutor.
BRAGG
- Está bem, está bem. - (JENNIE sai.) - George!
THOROGOOD
- Senhor?
BRAGG
- Vá pedir a minha mulher que os receba. Estou ocupado aqui.
THOROGOOD
- Sim senhor, Chefe.
[Sai THOROGOOD pela esquerda.]
BRAGG
- Escute, Mr. Chivers - disponho de pouco tempo; como o senhor próprio viu, estou sendo procurado - e o Dr. Venner e eu temos negócios urgentes a tratar.
CHIVERS
- Nem mais uma palavra, Dr. Bragg, nem mais uma palavra. Irei direto ao ponto. O fato é que tenho uma proposta a fazer ao Dr. Venner.
BRAGG
- Muito bem, mas por favor seja rápido.
CHIVERS
- E é a melhor proposta que já tive a sorte de fazer. Posso sentar?
VENNER
- Sim, sente-se. - (Ele próprio senta-se no braço da cadeira à direita.)
CHIVERS (senta-se no sofá)
- O senhor aqui luta com dificuldades...
BRAGG
- Como? - (Caminha para o centro.)
CHIVERS
- Não se zangue, Dr. Bragg, não se zangue. - (BRAGG dirige-se ao recanto.) CHIVERS
- O senhor verá o que quero dizer, agora mesmo... - (para VENNER) - dificuldades que são: - trabalhar sozinho, equipamento insuficiente, segurança de vida precária, - como o prova o seu recente e lamentável acidente.
VENNER
- Não discutamos esse ponto, Mr. Chivers.
CHIVERS
- Claro, Claro! Pois doutor, o senhor sabe que há bastante tempo lhe ofereço continuar suas pesquisas, amparado por todos os recursos da firma Glyster. - (Levanta-se.) - Pense bem, doutor. Nossos maravilhosos laboratórios! Azulejos brancos por toda a parte! Eletricidade! Duas mil cobaias para experiências! Estenógrafas hábeis, bem treinadas.
VENNER
- Também para experiências? - (Levanta-se, dirige-se à mesa, sobre cuja borda direita se senta.)
CHIVERS
- Isso não, doutor. Mas pense em tudo o mais. Fileiras de tubos de ensaio. Aparelhos de precisão. O nosso aparelho centrifugador, movido a vapor, é o maior do seu género, na Europa.
E não vou mais com rodeios: dou-lhe a boa-nova imediatamente.
Oferecemos-lhe o lugar - não de assistente, veja bem, mas de Chefe de Pesquisãs de Física nos Laboratórios Glyster!
VENNER (a CHIVERS)
- E naturalmente, os senhores desejam que leve comigo a minha fórmula, não?
CHIVERS
- Claro, doutor. Isto faz parte do nosso plano de amparo ao senhor.
VENNER
- E qual é a ideia de vocês? Fabricar uma solução mais fraca? Serviria como tónico nervoso!
CHIVERS
- Ah, o senhor sabe o que diz! Já está começando a enxergar as possibilidades do negócio!
VENNER
- E quanto devo receber por isso tudo?
CHIVERS
- Seu salário, doutor. A bela quantia de mil libras.
BRAGG (impressionado)
- Mil libras! - (Adianta-se um passo.)
CHIVERS
- Por ano! O nosso caro Mr. Glyster não tem nada de pão-duro. Passou-me um telegrama hoje pela manhã, dizendo-me que o convidasse.
VENNER
- Pois telegrafe em resposta dizendo que não conseguiu nada.
BRAGG
- Isso mesmo! - (Dirige-se também à mesa.)
CHIVERS (aproximando-se de VENNER)
- Naturalmente, doutor. Compreendo a sua hesitação. É o grande momento da sua vida. Acaba de ver o seu trabalhinho publicado pelo "Jornal", e a natureza humana sendo o que é, não o censuro por querer fazer dinheiro com a oportunidade. Pois vou pôr todas as minhas cartas na mesa. Provavelmente não haverá nada na sua invenção; mas dinheiro não tem importância para os laboratórios Glyster. Afora qualquer interesse comercial, nós achamos que serve muito à nossa reputação amparar as pesquisas particulares. Portanto, doutor, em nome da minha firma, subo a oferta para mil e cem libras, e é esta a minha última palavra.
[VENNER levanta-se.]
CHIVERS (rapidamente)
- Mil e duzentas!
[VENNER atravessa o palco.]
CHIVERS
- Mil, duzentas e cinquenta!
BRAGG
- Mr. Chivers! - (Torna ao centro.) - O Dr. Venner sabe ser leal à instituição que lhe auxiliou o trabalho. Prefere ficar conosco.
CHIVERS
- O senhor acha? Pois escute. - (Para Venner. ) - Mil e quinhentas e um contrato de cinco anos.
VENNER (com um olhar a BRAGG)
- Oh, vá para o inferno!
BRAGG
- Exatamente!
CHIVERS
- O senhor é um homem duro para se negociar, Dr. Venner; mas, meu Deus, sei que não é nenhum tolo. Estou com um pressentimento de que deseja uma gratificação. Pois escute confidencialmente - Mr. Glyster está vindo para cá, em pessoa. Já está a caminho, para falar a verdade. Dê-me tempo para conversar com ele, antes de o senhor fechar negócio com o Laboratório Mamly.
VENNER
- Não fecho negócio com ninguém.
CHIVERS
- Está combinado. Mal tenho tempo de ir receber o expresso em Parchester. Suspenda tudo, doutor, até que eu me aviste com o patrão. Au revoir, cavalheiros - até o próximo encontro.
[Sai CHIVERS pela esquerda.]
[VENNER encaminha-se para o recanto.]
BRAGG
- Que sujeito cacete! É insistente! Mas acho que você lhe resistiu magnificamente. Bem, quanto a nós, Venner, receio que não possamos competir com Glyster em matéria de salário; mas verei que é que se pode fazer; e quanto à reunião de hoje, posso lhe garantir que receberá ampla reparação.
[Entra a ENFERMEIRA-CHEFE pela direita.]
VENNER
- Oh - e a respeito do inquérito policial?
BRAGG (dá uns passos para a direita)
- Suspenso imediatamente, meu caro. Como membro do Comité, posso lhe garantir...
VENNER
- Formidável.
BRAGG (para Miss LEEMING)
- Ah, Miss Leeming! Faremos tudo para não perder o Dr. Venner, não é mesmo? - (Para Venner.) - Não, vamos quebrar a flecha da paz, de uma vez por todas. O senhor tem que ficar aqui e trabalhar para honra e glória de Hopewell Towers.
VENNER
- Muito obrigado.
BRAGG (à esquerda da mesa)
- E quanto ao seu laboratório, claro que precisa mantê-lo.
MISS LEEMING
- Dr. Bragg? - (Dirige-se para o centro.)
BRAGG
- Sim?
MISS LEEMING
- Não diga isso, por favor!
BRAGG
- Mas...
MISS LEEMING
- O senhor me cedeu a sala, Dr. Bragg. Ainda há pouco me mostrou a planta.
BRAGG
- Não foi nada iniciado ainda.
MISS LEEMING
- Mas, Dr. Bragg, o senhor prometeu! O senhor não sabe o que isso significa para mim?
BRAGG (começando a aborrecer-se)
- Se o trabalho do Dr. Venner é importante para o hospital e para a humanidade, naturalmente o laboratório tem que ficar à disposição dele.
MISS LEEMING
- Mas o senhor me deu a sala do laboratório! Agora não a pode tomar! Faz anos que a desejo. Trabalhei para obtê-la. Escravizei-me por ela. Abri mão de tudo o mais. E agora ela é minha - minha! A sala tem que ser minha. Tem que ser.
ERAGG
- Tem que ser, Miss Leeming?
MISS LEEMING (exaltada)
- Sim - tem que ser.
BRAGG
- A senhora estará louca?
MISS LEEMING
- Dr. Bragg, o senhor vai ou não vai devolver a minha sala?
BRAGG
- Não!
MISS LEEMING
- Muito bem - então vou lhe contar - vou lhe contar uma coisa que não contei a ninguém nem mesmo ao senhor - para o não magoar. Se o senhor não houvesse feito isso comigo...
BEAGG
- Que está querendo dizer?
VENNER (aproximando-se de MISS LEEMING)
- Não será melhor calar a boca?
MISS LEEMING
- Por que é que eu hei-de calar a boca? Por que hei-de ser a única a sofrer? Quero que também os outros fiquem humilhados. Quero também que riam dos outros, que ridicularizem os outros... Quero que ele saiba o que foram para mim todos estes anos...
[VENNER dirige-se ao recanto.]
BRAGG
- Cale-se. E ou diga imediatamente o que pretende dizer, ou vá para o seu quarto e fique lá até poder controlar-se.
MISS LEEMING (mais calina)
- Posso dizer o que pretendo dizer. Já o disse a mim mesma muitas vezes - muitíssimas vezes - durante noites inteiras... esperando... esperando...
BRAGG
- Miss Leeming!
MISS LEEMING
- Está bem, Dr. Bragg. vou dizer. Sua mulher tem um amante.
BRAGG
- Minha mulher... - (Encara-a um momento, depois começa a rir, um riso de absoluta incredulidade.)
MISS LEEMING
- O senhor não está acreditando?
BRAGG
- Claro que não, Miss Leeming. Que disparate! Daqui a pouco a senhora estará dizendo que o amante é aqui o Venner, ou o meu velho e caro Drewett. Poderá favorecer-nos com o nome do meu rival?
[Entra GLADYS pela esquerda.]
GLADYS
- Oh, Edgar, aqueles homens que chegaram aqui... Que houve?
BRAGG
- Você chegou em tempo, Gladys. Aqui a nossa Miss Leeming acaba de me presentear com um resplandecente par de cornos.
GLADYS
- Par de quê?
BRAGG
- De chifres, minha cara. Uma expressão usada por Shakespeare e pelos franceses. Parece que tenho um competidor nas suas afeições.
GLADYS (tomando rapidamente a deixa da atitude de BRAGG)
- Oh, com efeito, Miss Leeming! E sem que eu estivesse presente para me defender! Que deslealdade!
MISS LEEMING (aproxima-se de GLADYS, fala por sobre a mesa)
- A senhora é esperta, não é, Mrs. Bragg? Querendo se livrar disso e de tudo o mais! Mas disto a senhora não se livra. Porque é verdade: a senhora sabe que é verdade. Eu a avisei. E avisei a ele. - (Aponta para VENNER.)
GLADYS
- Como é que a senhora se atreve a me falar desta maneira!
MISS LEEMING
- Porque a senhora não passa de uma...
BRAGG
- Miss Leeming! Saia daqui imediatamente!
MISS LEEMING
- Não saio, antes de o senhor acreditar no que é verdade.
GLADYS
- É mentira!
MISS LEEMING
- Mentira, é? Então que é que vocês dois estavam fazendo na noite em que os encontrei juntos? Por que foram para a sebe por trás do ambulatório? Diga a verdade! Diga que está apaixonada por ele! Diga que se apossou da chave do laboratório! Diga que queimou os papéis! Diga! Diga! A sala tem que ser minha! Oh, meu Deus, a sala já era minha! E tem que ser, tem que ser! - (Soluçando, afunda-se na cadeira à direita da mesa, com a cabeça entre os braços, caídos sobre a mesa.)
GLADYS (aproximando-se)
- Miss Leeming!
[Põe-lhe a mão no ombro. Mas Miss LEEMING não lhe presta atenção.]
BRAGG (já despido de toda a sua pompa)
- Gladys! Venner! Que significa isso? Pelo amor de Deus, digam se é verdade!
VENNER (junto ao sofá)
- O senhor não confia na sua mulher, Dr. Bragg?
BRAGG
- Eu... eu... claro que confio!
VENNER
- Então não há nada mais a acrescentar. Pois não é? - (Atravessa em direção do fundo.)
BRAGG
- Mas... e a chave... e os papéis! Vocês ouviram o que ela disse. Vamos, Gladys, fale.
GLADYS
- Edgar, eu...
VENNER (interrompendo)
- Dr. Bragg, o senhor ouviu, quando declarei no inquérito, que era eu o responsável, o único responsável, pelo incêndio daqueles papéis.
[GLADYS caminha para a esquerda, por trás da mesa.]
BRAGG
- Ouvi!
VENNER
- Fiz essa declaração sob juramento.
BRAGG (depois de um momento)
- Obrigado, Venner.
VENNER
- E quanto a esta sala, Miss Leeming pode ficar com ela.
BRAGG
- Mas...
VENNER (erguendo a mão envolta em ataduras)
- É evidente que não poderei utilizá-la durante algum tempo. Mais tarde veremos.
[Miss LEEMING levanta-se. VENNER - volta-se para ela.]
VENNER
- Como já o disse antes outro heróico inglês mutilado: "Foi uma vitória gloriosíssima", não foi, Fanny?
MISS LEEMING
- Sinto ter-me excedido. Peço que me desculpe, Dr. Bragg.
[Sai pela esquerda.]
BRAGG
- Venner, espero que isso não signifique alguma decisão sua de nos abandonar, hem?
VENNER
- Será que alguém admite a ideia de me ver resistir às seduções do maior centrifugador da Europa?
[Entra THOROGOOD pela esquerda.]
THOROGOOD
- Escute só, Chefe! Mais três repórteres indagando a respeito do betrazol.
BRAGG
- Repórteres! Por que não me avisaram?
GLADYS
- Eu vim para lhe dizer, Edgar.
BRAGG
- Ótimo, ótimo. Deixe estar que eu falo com eles, Venner. Dou conta deles num instante. George, quero mais fotografias. Especialmente da granja.
Traga-as logo, sim? Estão no escritório, Pasta P.
[Sai THOROGOOD pela esquerda.]
BRAGG
- Gladys, mande qualquer coisa para se beber. Mas não o melhor xerez.
GLADYS
- Está bem, Edgar.
BRAGG
- Venner, tenho a esperança de que você medite bem, antes de resolver partir. Tanto Gladys como eu ficaríamos sentidíssimos se verificássemos que as histórias da Enfermeira-chefe de alguma forma alteraram a nossa amizade, felizmente reatada. Quero dizer... isso de trás do ambulatório, que ideia absurda!
[Sai pela esquerda.]
GLADYS
- Paul, posso lhe dizer uma palavra?
VENNER
- Por que é que você não vai falar com os jornalistas?
GLADYS
- Que é que eles querem? - (Dá volta à mesa.)
VENNER
- Que é que todo jornalista quer? Amanhã, dirão as manchetes: "Nova Esperança para os Infelizes. Brilhante Descoberta Proporciona a um Cientista Obscuro um Emprego de Duas Mil Libras". E se tivermos sorte, talvez digam: "Mulher Heróica. Imola a própria Vida à Ciência." - (GLADYS chega até ao centro.) - E embaixo das manchetes, duas colunas cerradas - (conheço muito bem seu marido!) - fazendo propaganda de Hopewell Towers.
GLADYS
- Oh, Paul! Você não terá uma única palavra para me dizer?
VENNER
- Você não gostaria de ouvir o que tenho para lhe dizer.
GLADYS
- Não acredita no que tenho sofrido?
VENNER
- Oh, acredito que o caso todo tenha sido uma grande experiência espiritual para você!
GLADYS
- Você é desapiedado... para comigo... e para com todos! Nunca foi ao túmulo dela, foi?
VENNER
- Nunca.
GLADYS
- Pois mando flores para lá, diariamente. E olhe a cor da sua gravata!
VENNER
- Só tenho esta gravata. Não é culpa sua, se o preto lhe fica tão bem.
GLADYS (anda pelo centro do palco)
- Pelo amor de Deus! Você tem mesmo um coração de pedra! - (Volta-se para ele.) - Será que não compreenderá nunca... que eu não queria fazer mal a ela? Tinha ciúmes, naturalmente... mas gostava dela... Tudo que aconteceu... tudo... foi por causa do meu amor por você.
VENNER (levanta-se e anda em direção da mesa)
- E eu, afinal de contas, não assumi toda a culpa?
GLADYS (senta-se na banqueta)
- Oh, meu Deus! Que é que eu hei de dizer? Que é que eu hei de fazer? Será tarde demais... Será que não poderíamos... nós dois... começar tudo de novo?
VENNER
- Caminhar de mãos dadas... sob a rósea luz do sol poente?
GLADYS (levanta-se e se aproxima dele)
- Você não poderá nunca me perdoar? Sei que sou egoísta e vaidosa. Mas posso tentar me corrigir...
VENNER (afasta-se)
- Daqui a pouco você estará dando as roupas velhas de Edgar para o Asilo dos Desamparados...
ou querendo entrar para um convento... ou se oferecendo para ter um bebêzinho! A não ser que no mês que vem se acomode com o campeão de ténis, ou com o professor de flauta!
GLADYS
- Você é uma fera... Por Deus do céu, antes você houvesse morrido, em lugar dela!
VENNER (voltando-se para ela)
- Gladys, é assim que eu gosto de você.- Provavelmente é sincera quando diz que se sente abalada. Mas infelizmente, a mim, o que me abala é me sentir sincero!
GLADYS
- Bem, creio que está tudo acabado. - (Senta-se no braço esquerdo do sofá.) - E que fim! Mas pelo menos tenho uma satisfação: conservei você para o seu trabalho. Evitei que fosse se enterrar na China.
VENNER
- A posteridade lhe será grata.
[Entra THOROGOOD pela esquerda.]
THOROGOOD
- Puxa, parece que a Fleet Street se mudou para cá! O Patrão está falando para o mundo inteiro. Esgotou o assunto da granja e entrou no do quadro de futebol. Mandou-me buscar a taça.
VENNER
- Permita-me. - (Entrega-lhe a taça.)
THOROGOOD
- Obrigado. - (Recebe a taça, esfrega-a com o lenço.) - E a propósito, Mrs. Bragg, ele me pediu que lhe lembrasse o vinho. Acho que está ficando de garganta seca...
GLADYS
- Está bem. - (Levanta-se e se dirige à porta da esquerda.)
VENNER
- Mas lembre-se que não deve mandar o melhor xerez, Mrs. Bragg.
GLADYS
- Por que não? Nada é bom demais para celebrar os seus triunfos.
[Sai.]
THOROGOOD
- Escute aqui, Venner. - (Põe a taça em cima da mesa.)
VENNER
- Oh, meu Deus, você também! Isso não!
THOROGOOD
- É duro de a gente fazer - mas quero lhe pedir desculpas.
VENNER
- Acha que precisa?
THOROGOOD
- Sinceramente, acho! Você foi para mim um adversário terrível. Mas farei o possível por reparar...
VENNER
- Ótimo!
THOROGOOD
- E sinto muitíssimo ter ameaçado lhe quebrar a cara. Espero que nos entendamos bem, no futuro.
VENNER
- Nunca mais será dita entre nós outra palavra áspera.
[Atravessa o palco e detém-se diante da mesa.]
THOROGOOD
- Não, não se afaste, Venner. Sou um sujeito de poucas palavras, mas
posso-lhe afirmar que compartilhei do golpe que você sofreu. Estou noivo da pequena mais meiga deste mundo, e se alguma coisa acontecesse que... que nos separasse... acho que eu ficaria louco.
VENNER
- Acha mesmo?
THOROGOOD
- Phyllis é tão sensata - tenho a impressão de que contarei sempre com ela - que é uma criatura absolutamente normal. Não é da minha conta, Venner, mas para falar cientificamente, sempre achei que a pobrezinha da Mary sofria de um complexo de Édipo!
VENNER (subitamente rígido)
- Faça o favor de calar a boca!
THOROGOOD
- Mas será que você não via... aquela fixação em Deus e no pai missionário... - coisa nenhuma a teria abalado.
VENNER (furioso)
- Seu cretino! - (Derruba THOROGOOD com um soco.)
THOROGOOD
- Seu...
VENNER
- Há meses que eu queria fazer isto.
THOROGOOD (erguendo-se lentamente)
- Evidentemente não posso bater num homem que está com um braço na tipóia.
VENNER
- Mais uma prova de que é mesmo um cretino. Nunca terá oportunidade melhor.
THOROGOOD
- Mais tarde nós resolveremos isto, Venner. - (Segurando o queixo.) - O Chefe está me esperando.
[Sai. Entra JENNIE pela esquerda.]
JENNIE
- Mr. Chivers quer falar com o senhor no telefone.
VENNER
- Diga que aceitei a proposta.
JENNIE
- Sim, senhor.
VENNER
- Oh, Jennie! Tenho uma mala, no meu quarto! Quer atirar dentro dela as minhas coisas?
JENNIE (espantada)
- Quer dizer... é para eu arrumar sua mala, D r. Venner?
VENNER
- Sim, Jennie. - (Pausa.)
JENNIE
- Sim, senhor. - (Sai.)
[VENNER caminha lentamente em direção da lareira. Entra DREWETT. Pela primeira vez o velho parece haver abandonado a sua indiferença.]
DREWETT
- Sim, senhor, Venner! Você desta vez saiu vitorioso!
VENNER
- Será?
DREWETT
- O hospital inteiro está fervilhando. Atingiu até as enfermarias. Miss Hall está tão alvoroçada que desandou a quebrar as xícaras.
VENNER
- Será?
DREWETT
- No remate de contas você acaba tendo um sarau civico, em sua homenagem.
VENNER
- Será?
DREWETT
- Eu dava um doce para ver a cara do Bragg.
VENNER (com esforço)
- Espero que ele ainda esteja à vista.
DREWETT (rindo, passando a VENNER um pacote de telegramas)
- Oh, a propósito, acabam de chegar estes telegramas para você. De certo são felicitações de todos aqueles hipócritas de Harley Street. Para mim não querem dizer nada, é claro, Venner. Mas eu sempre jurei comigo que você era muito menos palhaço do que parecia!
VENNER
- Nunca me senti mais palhaço do que agora! - (Enfia os telegramas no bolso, sem os abrir.) - com as melhores intenções deste mundo, acabo de provocar um chilique na Enfermeira-chefe, de insultar Mrs. Bragg e de derrubar Thorogood com um soco.
DREWETT
- Oh, esplêndido! Bem, li o número do "Jornal" com todo o cuidado... Desculpe se lhe digo que não entendi uma palavra!
[Entra JENNIE pela esquerda.]
JENNIE
- Já que o senhor aceitou a proposta, Dr. Venner. Mr. Chivers pediu que eu lhe desse um recado. Se o senhor pode almoçar com ele e Mr. Glyster à uma hora no Leão Hotel, em Parchester.
VENNER
- Diga a ele que o Dr. Venner sente muito, mas que não pode almoçar hoje.
JENNIE
- Sim, senhor. - (Sai.)
DREWETT
- Você não gosta de champanha?
VENNER
- Champanha misturado com botinas amarelas e palmadinhas nas costas, não gosto.
DREWETT
- Lembro-me bem, quando eles adotaram aquele austríaco meio morto de fome que descobriu o mesonyl. Da última vez em que ouvi falar dele, já andava comprando quadros de Renoir.
VENNER
- Acho as mulheres de Renoir muito gordas.
DREWETT
- As de Manet são mais bonitas.
VENNER
- Bonitas demais.
[Entra JENNIE.]
JENNIE
- Mr. Chivers vem para cá de automóvel com Mr. Glyster. Já saiu de lá e conta estar aqui pela uma e quinze, sem falta.
DREWETT
- Querem mesmo que você tenha uma coleção de arte!
JENNIE
- E o Dr. Bragg também lhe deixou um recado pelo telefone interno, Dr. Venner. Diz que estão lá quatro jornalistas esperando para lhe falar. Quer saber quando é que o senhor pode aparecer para tomar um coquetel.
DREWETT
- Oh! Desta vez não é o xerez ordinário!
VENNER
- Oh, diga... que estou de saída.
JENNIE
- Sim, senhor. - (Dirige-se à porta. VENNER chama-a.)
VENNER
- Jennie!
JENNIE
- Senhor?
VENNER
- Arrumou a minha mala?
JENNIE
- vou arrumá-la, doutor.
VENNER
- Então, quando acabar, seja boazinha e traga a" mala até aqui.
JENNIE
- com todo gosto, doutor.
VENNER
- E traga minha capa e o chapéu.
JENNIE
- Sim, senhor.
[JENNIE sai. O céu, lá fora, escureceu.]
DREWETT
- Vai passar fora o fim de semana para fugir a esse pessoal?
VENNER
- Um fim de semana bem comprido.
DREWETT
- É uma boa ideia. Vamos ter mau tempo, ao que parece. Vem por aí uma tempestade. Para onde vai?
VENNER
- Para a China.
DREWETT
- Para onde?
VENNER (com um sorriso apagado)
- Sempre tive vontade de provar uma autêntica sopa de ninhos de andorinha.
DREWETT (em voz alta)
- com todos os demónios, homem! Largue, por favor, o diabo desse seu ar de caçoada! Não é possível que você vá mesmo para a China!
VENNER
- Pois vou. Às doze horas sai daqui o carro, com uma caixa de laranjas estragadas. Pois irei junto - o que será muito adequado - até Parchester. Espero chegar hoje à noite a Liverpool. O navio zarpa amanhã. Dentro de quatro semanas estarei em Sanchen.
DREWETT (ainda falando alto)
- Mas por quê?
VENNER
- Puro interesse científico!
DREWETT (mais alto)
- Pura loucura!
VENNER
- Quero experimentar o betrazol em casos de febre cérebro-espinhal. É o que eles têm lá: uma autêntica epidemia em plena virulência, num ótimo ambiente tropical. Exatamente o que preciso.
DREWETT
- Você como mentiroso é um errado!
VENNER
- Sou mesmo? Bem..." sou errado em tudo.
DREWETT
- Que foi que lhe aconteceu?
VENNER
- Não sei! Sei que estou por terra! Não sei mais no que acredito! Mas não posso mais acreditar que tudo isso acabe em pó, Drewett! Tenho que acreditar em alguma coisa - que eu pensava ser impossível!
DREWETT
- Ah, é isso?
VENNER
- Felizmente você não está rindo!
DREWETT
- Provavelmente só hei-de rir mais tarde!
VENNER
- Imagine a minha zombaria, há um mês atrás! Eu estava por demais intelectualizado, Drewett, satirizava demais minhas próprias emoções! Mas quando a segurei nos braços, no laboratório, e ela olhou para mim, com a última centelha de vida nos olhos - oh, meu Deus, não posso lhe dizer o que senti. A agonia de um milhão de anos. E através daquilo senti quanto eu fora mesquinho, quanto eu fora corrupto. Senti toda a minha inutilidade, minha condescendência comigo próprio, esses amores baratos em que me metia. Mas o que senti, acima de tudo, é que nas convicções, na concepção da vida, ela tinha razão e eu estava errado.
DREWETT
- De modo que você hoje acredita no Deus dela?
VENNER
- Prouvera a Deus que acreditasse! Por ora o que aconteceu... foi que me perdi a mim próprio. Mas se existe mesmo um Deus - como ele deve ter-se rido! Eu que considerava o amor e o sacrifício uma pilhéria de mau gosto! Pois vem ele, e faz a pilhéria comigo!
DREWETT
- Mulheres! São danadas para atrapalhar tudo. Você devia amá-la muito.
VENNER
- Sim, amava-a realmente, Drewett. E sinto, constantemente, que ela morreu porque me amava... - (Aproxima-se de DREWETT.) - Então não vê porque não posso ficar? Tenho que andar. Uma coisa dentro de mim me impele. Morro de impaciência por conhecer o lugar para onde ela ia - o hospital, o trabalho que estão fazendo lá... - e o tal King, que me telegrafa a toda à hora, feito uma metralhadora. Provavelmente vou brigar com ele o tempo todo! Mas assim mesmo tenho que ir, tenho que ir!
DREWETT
- Acho... que entendo... Sabe de uma coisa, Venner? Estou velho demais para pensar em outra vida - e em todos esses deprimentes problemas de eternidade, que nos parecem terríveis aos quarenta anos, e sem a menor importância aos setenta. Se você tivesse a minha idade, que é que pensaria se eu lhe perguntasse de repente por que estamos neste mundo? Haverá outro motivo que não seja comer, dormir e reproduzirse? Muita gente pensa assim, e vive muito bem. Ou será que vive mesmo? Porque de vez em quando acontece de repente uma coisa esmagadora - uma trovoada, um escrito na parede, uma gargalhada irónica vinda lá do céu. Acontecimentos menos importantes que o que o feriu e talvez mais importantes também. Lembra-se daquele verso da cantiga: "Ele anota até a queda de um pardal"? É horrível, eu sei, mas suponha alguém a tomar nota dos movimentos destes pardais que somos nós todos - do nosso adejar leviano, esganado, egoísta e de vez em quando a arrancar-nos cruelmente das nossas explorações pelos beirais das casas. Suponha que toda a catástrofe na vida tenha um objetivo predeterminado! Lembro-me que li, há muito tempo, num ensaio idiota, que alma nenhuma se perde sem ter visto o caminho às claras pelo menos uma vez, sem receber pelo menos um exemplo de contrição. E fico pensando - Paul - terá sido essa a sua lição?
VENNER (encarando-o)
- Meu Deus! Você está me fazendo pensar nisso, também!
[Entra JENNIE trazendo a mala e a capa.]
JENNIE
- Ponho aqui, doutor? - (Depõe capa e mala.)
VENNER
- Muito obrigado, Jennie.
[JENNIE sai.]
DREWETT (olhando tristemente para a mala)
- Já? Bem - vai ser até um alívio - a gente deixar de ver essa sua cara feia, todo o dia, na mesa do café...
VENNER
- O que eu não sei é como você me tolerou!
DREWETT
- Confesso... que uma vez ou outra... foi uma luta bastante penosa...
[DREWETT começa a rir mas a risada subitamente falha. Ele tosse e vira as costas.]
VENNER
- Naturalmente... você se sente muito desapontado... por me ver interromper meu trabalho...
DREWETT
- Seu trabalho! - (Mudando de tom.) - Você acredita, sinceramente, que eu ligo a mínima, se um milhão de esquizofrênicos ficam curados, ou se levam a breca, enforcados num milhão de camisas de forças?
VENNER
- Mas eu pensei...
DREWETT (com calma sinceridade)
- Pensou! Estou ficando caduco, e ainda sou um sentimental. Meu casamento não foi propriamente um êxito. Ou antes, minha vida inteira foi um fracasso completo. Contudo, no fim da vida, senti-me muito feliz - imaginando - como uma solteirona boba - imaginando que tinha um filho.
[Pausa.]
VENNER
- Também vou sentir sua falta, Drewett. Terei notícias suas?
DREWETT
- Hei-de amolá-lo tanto, que nem Phyllis me ganhará. - (Suspira.)
VENNER
- Anime-se, homem. Lembre-se de quanto vai se divertir, recebendo meus ilustres visitantes.
DREWETT
- Que direi a eles?
VENNER
- Oh, diga que a Enfermeira-chefe me instalou numa casa de Bognor.
DREWETT
- Talvez lá seja mais salubre do que Sanchen.
VENNER
- Nada disso! Segundo afirma o Baedeker da China - Sanchen não deixa de ter as suas atrações. Foi bombardeada três vezes, na semana passada. Deixe estar que lhe mando um instantâneo: "O Dr. Paul Venner, montando "ChopStick", o seu dromedário favorito." - (Olha o relógio.) - Preciso não me descuidar da hora.
DREWETT
- Será que posso fazer qualquer coisa por você?
VENNER
- Fique de olho no carro para mim. Tenho que apanhar uma porção de coisas por aqui, para levar. E não quero perder a condução.
DREWETT
- Fique descansado. Você vai ficar muito engraçadinho, no meio daquelas laranjas podres.
VENNER
- Muito obrigado.
. DREWETT (após uma pausa)
- Vai cair uma chifrada, a qualquer minuto. - (Outra pausa.) - Não há dúvida.
[DREWETT sai lentamente.
VENNER fica só na sala. Vai até à escrivaninha, apanha os seus livros, e está a colocá-los na mala, quando entra JENNIE.]
JENNIE
- É o telefone outra vez, Doutor Venner...
VENNER (fazendo-a calar-se)
- Psiu!
JENNIE (aproximando-se de VENNER)
- Adeus, doutor.
[Trocam um aperto de mão.]
VENNER
- Adeus, Jennie.
[VENNER dirige-se à vitrola, apanha um disco, faz um gesto como se o fosse quebrar, mas num impulso, põe-no a tocar. Escuta por um momento, depois se dirige à esquerda, apanha do cabide o seu avental de laboratório, e se encaminha para onde está a mala, na mesa. Tira do bolso do avental o retrato de MARY, e o guarda na mala, que fecha depois. Nesse momento, cai o Novo Testamento do bolso do avental. Ele apanha o livro, examina-o, esboça o gesto de atirar à cesta de papéis, contém-se e lentamente enfia o livro no bolso do paletó. Apanha rápido o chapéu e a capa, a mala. A vitrola ainda está tocando quando ele sai.
Passado um momento, ouve-se, como uma gargalhada, o ribombar de um trovão.]
[PANO]

 

 

                                                                  A. J. Cronin

 

 

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