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Num dia de verão em 1939, num parque em Detroit, Loren Hardeman, de sessenta e um anos, conheceu Angelo Perino, de oito anos. Hardeman estava numa cadeira de rodas, empurrado pelo parque por uma enfermeira. Angelo pedalava um carrinho de brinquedo, réplica de um Bugatti, que o avô mandara fabricar especialmente para ele na Itália.
Loren Hardeman observou que o carro não funcionava direito... isto é, não conseguia desenvolver qualquer velocidade num aclive suave, por mais que o menino pedalasse com empenho.
Talvez, disse Loren, ele pudesse dar um jeito; e pegou um bloco de desenho, traçou a planta de uma transmissão para o carrinho do menino.
Angelo não tinha a menor idéia de que o homem na cadeira de rodas era na verdade o principal executivo da Bethlehem Motors, a quarta maior fábrica de automóveis da nação. Ele criara a companhia e a comandava como um feudo. Era o mesmo tipo de homem que o primeiro Henry Ford: um mecânico inspirado que construíra seu primeiro carro com as próprias mãos, sem qualquer instrução em engenharia, depois construíra a empresa com as próprias mãos, sem qualquer instrução em administração. Parecia com Henry Ford em outros aspectos importantes: também era arrogante, arbitrário e extravagante.
Foi um capricho de Loren Hardeman gastar onze mil dólares do dinheiro de sua companhia para construir uma concatenação de correntes, rodas dentadas e alavancas que proporcionaram melhor proveito ao esforço de Angelo nos pedais e deram ao carro velocidade e força.
À medida que os anos passaram, Loren Hardeman foi ficando mais doente e mais amargurado com o que Deus lhe concede-ra. Só tinha um filho e era desventurado nele. Só tinha um neto e também era desventurado nele. O mundo passou a chamar os três Hardemans de Número Um, Número Dois e Número Três. Número Um jamais confiara no Número Dois ou no Número Três para dirigir sua companhia.
Angelo Perino cresceu para partilhar várias das características do Número Um. Era tão vigoroso e impetuoso quanto o velho.
Como o Número Um, era obcecado por automóveis: projetá-los, construí-los e pilotá-los. Como o Número Um, quase sempre conseguia o que queria. Primeiro, ele quis correr. Em 1963 foi o segundo colocado no circuito de Grand Prix; teria sido o primeiro se não subisse por um muro em Sebring, quase morrendo no carro em chamas, que quebrou seu corpo e deixou o rosto coberto de cicatrizes.
Número Um projetara uma nova transmissão para o carrinho de brinquedo de Angelo porque se sentia entediado. Adorava fazer, construir, realizar. O venerável Sundancer, o projeto que tornara a Bethlehem Motors uma potência na indústria, era um carro para a família. Em 1969 ele decidiu construir um carro esporte. Disse à sua bisneta adolescente, Elizabeth Hardeman, que daria seu nome ao novo carro: Betsy. A moça achou a idéia "legal".
Para projetar e construir o Betsy, Número Um chamou um homem em quem sabia que podia confiar, um piloto de corrida mas também um engenheiro automotivo, Angelo Perino. Mandou que Angelo procurasse um cirurgião plástico para reparar o rosto, alegando que não podia ter um alto executivo de sua companhia que mais parecia um monstro do cinema. Angelo concordou e se submeteu à cirurgia na Suíça. Número Um instalou-o em Detroit, com plenos poderes para construir o Betsy Mas havia um problema. Número Dois morrera e Loren Número Três achava que o futuro da Bethlehem Motors estava na fabricação de eletrodomésticos, não de carros, e se empenhava em impor sua vontade. Brigou com Número Um e tentou lhe tirar a companhia, usando táticas que eram às vezes legais, mas nunca deixavam de ser sórdidas. Não podia admitir que algum carcamano — ainda mais o neto de um contrabandista de bebidas mafioso — diminuísse sua autoridade como herdeiro dos negócios e da fortuna Hardeman. Ele chegou ao ponto de mandar que capangas dessem uma surra em Angelo.
Mas Angelo Perino também era capaz de brigar e a surra não o intimidou; só serviu para enfurecê-lo. Numa assembléia de confrontação entre acionistas, ele derrotou Loren Terceiro e salvou o controle da companhia pelo velho.
Número Um saboreou a vitória que Angelo conquistara para ele, mas mesmo assim não gostou. Não queria que o neto fosse derrotado e humilhado. Afinal, ele era família, e o sangue era mais grosso do que a água. O velho despediu Angelo abruptamente e ordenou que ele se retirasse das instalações da companhia.
Mas a história da fatídica ligação entre Angelo Perino e a família Hardeman não terminou por aí.
I
1972
1
O pai de Angelo, dr. John Perino, ergueu um copo de vinho tinto... um vinho carcamano, como os Hardemans chamariam.
Correu os olhos pela mesa, por cima de uma travessa de macarronada. Os outros pegaram a deixa e também levantaram seus copos: a mãe de Angelo, Jenny Perino, Angelo e Cindy Morris.
— A um futuro mais brilhante para você e Cindy, Angelo —
disse o médico. — Agradeço a Deus pelo velho tê-lo despedido.
Já perdeu tempo demais com os Hardemans. Nada poderá jamais redimir aquela família. O neto, Loren Terceiro, é tão ruim quanto o avô, o que costumam chamar de Número Um.
— Pior — murmurou Angelo, enquanto tomava um gole do vinho, junto com os outros.
Tinha de beber pelo canto direito da boca, porque o lado esquerdo dos maxilares continuava imobilizado por uma armação de ferro, os lábios ainda bastante inchados.
— Outro brinde, por favor — disse Cindy, suavemente. — A vocês, mãe e pai. Estou chamando-os assim porque Angelo e eu combinamos esta tarde que vamos casar.
Jenny Perino bebeu o brinde com lágrimas nos olhos, que escorreram pelas faces, enquanto enchia os pratos. Todos sabiam que ela só poderia ser mais feliz se sua futura nora fosse católica.
Também sabiam que ela aprendera a amar e respeitar Cindy e sentia-se satisfeita porque o filho ia casar com uma moça tão excepcional.
Segundo a tradição da família, ela serviu a cada pessoa mais do que qualquer um seria capaz de comer. Além do macarrão feito em casa, com um denso molho de carne, ela serviu também uma salada misturada de uma enorme tigela de madeira. Uma travessa com pão de alho circulou pela mesa.
— Teremos um grande casamento — disse Jenny.
— Queremos que seja rápido — disse Angelo, gentilmente.
— Partiremos para a Europa em breve. Procurarei o dr. Hans outra vez, para que ele possa consertar o que está quebrado, e depois tentar me fazer como eu era antes. Isto é, como eu era antes da outra cirurgia plástica.
Três anos antes, Número Um insistira que Angelo viajasse para a Suíça, objetivando que o famoso cirurgião plástico remo-vesse as cicatrizes de queimadura que ele sofrera em seu acidente final num Grand Prix. O cirurgião fizera mais do que isso. Enquanto acabava com as cicatrizes, dera a Angelo um rosto novo, mais jovem. Angelo gracejara que bem poucos homens conseguiam um segundo rosto; mas era de fato um segundo rosto, porque o fazia parecer como um jovem de vinte e cinco anos, quando já entrara na casa dos quarenta. Agora, com os ferimentos que sofrera na agressão, parecia grotesco outra vez. Tinha de con-sultar o dr. Hans de novo, mas agora pediria ao médico que o tornasse o homem maduro que era.
— Muitas mudanças em um ano — comentou o dr. Perino.
— Tenho certeza que todas serão para melhor.
— Algumas talvez não os agradem — disse Angelo. — Não vamos morar em Detroit. Cindy e eu conversamos muito a respeito esta tarde, no quarto do hotel. Queremos viver em outro lugar.
— Poderemos visitá-los com freqüência? — indagou a mãe.
— E nós estaremos aqui com freqüência — garantiu Cindy.
— O suficiente para se cansarem de nós.
— Terão filhos? — perguntou Jenny, com um sorriso se alar-gando.
— Seis ou sete — respondeu Jenny.
— Não gostam de Detroit? — indagou o dr. Perino.
— É uma cidade suja e perigosa — disse Angelo.
— Isso vai mudar — assegurou o doutor. — A medida que os negros assumirem o controle e transformarem Detroit em sua cidade, vão querer salvá-la e melhorá-la. Como nunca lhes per-tenceu, nunca se importaram com o que acontecia. Agora...
— Há dois outros motivos — acrescentou Cindy — Primeiro... Desculpem, já que são daqui, mas quando se conhece uma cidade atrasada, de gente tacanha, já se conheceu todas. Quero viver em Nova York.
— Outro motivo? — perguntou Jenny. — Disse que eram dois.
Cindy sorriu, irônica.
— Se ficarmos aqui, seremos obrigados a confraternizar com horríveis arrivistas como os Hardemans e os Fords. Juro que eu não poderia tolerar. Deus me livre de ir a um baile no country club
e dançar de novo com aquele ordinário, abusado e bêbado Henry Ford II. Acho que vomitaria.
Angelo sorriu.
— Teremos mesmo de sair daqui. Acham que eu conseguiria dissuadi-la?
— Nem vai querer — disse a mãe. — E não deve. Lembra de seu avô, Angelo?
— Claro.
— É uma pena que você não pudesse ir à Sicília para visitá-lo. Agora não vai poder mais vê-lo até se juntar a ele no céu. Mas talvez devesse ir à Sicília e visitar...
— Não, Mama — interrompeu o dr. Perino. — Talvez algum dia Cindy conheça tio Jake. Mas ir à Sicília? Não. Nossa família não mantém essa ligação.
— Meu avô foi deportado para a Sicília — explicou Angelo para Cindy. — Ele era supostamente um d on da Máfia.
— Meu bisavô Morris era um desonesto barão capitalista —
comentou Cindy, com um sorriso. — De que outra maneira eu poderia ter tanto dinheiro? Só raramente é obtido pelo trabalho honesto.
— Ela tem uma filosofia cética. — Angelo deu de ombros.
— A filosofia não importa — declarou Jenny Perino. — É
tempo de você fixar sua mente no que é importante, Angelo. Tem uma boa educação. Mas pilota carros de corrida... e sai ferido, quase morre. Tenta fabricar carros... com os nomes de outras pessoas. Envolve-se numa luta para ajudar um velho a controlar sua companhia... não a sua companhia, mas a companhia dele... e sai ferido, quase morre. Agora, está fora disso. Pois continue fora.
Case com esta moça adorável. Tenha uma família, Angelo... e tenha Cindy. Isso é que é importante.
2
— Por Deus! — exclamou Betsy van Ludwige ao contemplar Angelo em seu apartamento em Amsterdam. — Eles o deixaram arrebentado, Angelo.
— Havia algumas emoções fortes envolvidas, srta. Elizabeth.
— Ele inclinou-se no sofá e passou o braço pelos ombros de Cindy, sentada ao seu lado.
— Se me chamar de srta. Elizabeth mais uma vez, juro que jogarei alguma coisa em você. Construiu um carro para mim, o Betsy. Por que não pode me chamar de Betsy?
— Não sei. Talvez porrque pense em Betsy como o nome de um carro.
— É meu nome, Angelo. Por favor... — ela deu de ombros.
— Seja como for... Suíça?
Cindy interveio:
— O dr. Perino diz que tudo tem de sarar antes que o cirurgião plástico possa voltar a trabalhar. Passamos um mês em Londres. Ficaremos duas semanas em Amsterdam, depois iremos para a Riviera por algum tempo. Em seguida... a cirurgia.
— Espero que tudo corra bem para você — disse Max van Ludwige.
Betsy não queria casar com Max, que também não queria casar com ela. Mas os Hardemans — em particular o Número Um
— insistiram que o filho dela precisava ter um nome. Todos, com exceção de Betsy — cujos desejos não contavam muito —, com-binaram que a esposa de Max se divorciaria dele sem demora. Ele casaria com Betsy, para tornar a criança legítima, depois Betsy se divorciaria e Max tornaria a casar com a primeira esposa.
Sabendo de tudo isso, Angelo surpreendeu-se ao descobrir que Max van Ludwige era um sujeito decente. Afinal, o filho era seu e quisera fazer a coisa certa. Sua esposa permanecera na casa da família, enquanto ele e Betsy partilhavam um lindo apartamento no quarto andar de um prédio que datava do século XVII e dava para um canal.
Ao ver Max instalado ali com Betsy, de vinte anos, uma beleza extraordinária, Cindy especulou se a última parte do acordo seria algum dia consumada.
Ela sabia que Betsy sempre vivia em grande estilo, onde quer que estivesse, quaisquer que fossem as circunstâncias. As paredes brancas do apartamento eram decoradas com quadros holandeses... não Rembrandts ou Vermeers, nada tão grandioso assim, mas cenas urbanas claras e paisagens rurais, pintadas trezentos anos antes. Escola de Rembrandt, escola de Vermeer... esse tipo de coisa. Havia uma fragrância de flores cortadas, espalhadas por incontáveis vasos e tigelas.
Eles fizeram a visita obrigatória ao quarto do bebé para conhecer Loren van Ludwige, o menino que Loren já chamava de Loren Quarto. Uma babá inglesa fora contratada e estava com o bebê. Eles voltaram à sala de estar para drinques e uma amostra de queijos holandeses.
— Espero que gostem do restaurante em que reservamos uma mesa esta noite — disse Max. — A comida holandesa é ótima, mas se ainda não conhecem um rijsttafel, precisam conhecer logo.
3
O rijsttafel era um restaurante balinês em que quase cem pratos eram servidos. Uma imensa tigela com arroz era posta na mesa.
Depois de encherem seus pratos com arroz, eles acrescentavam tantas variedades quantas quisessem de quase uma centena de pequenas tigelas de carnes temperadas, frutas quentes e frias, levadas até a mesa em carrinhos.
Angelo nunca experimentara esse tipo de refeição antes, mas no mesmo instante sentiu-se contente por ter vindo. Por recomendação de Max, pediram copos do suave gim holandês, gene-bra; e pediram também uma garrafa de Borgonha e outra de Chablis.
— O que vai fazer, agora que não é mais um escravo dos Hardemans? — perguntou Betsy a Angelo.
— Tenho várias opções. Em primeiro lugar, minhas ações da Bethlehem Motors valem seis milhões de dólares. Posso vendê-las.
— Por favor, não faça isso — pediu Betsy, com a maior simplicidade. — Ou se precisa mesmo, venda para mim. Arrumarei o dinheiro de alguma forma. Pagou um milhão pelas ações.
— Então sabe disso — comentou Angelo, secamente.
— Meu pai quase teve um infarto quando descobriu. Número Um nunca transferiu suas ações para fora da família.
— Ele precisava de capital para o projeto do Betsy. Seu pai tentou fazê-lo desistir da idéia negando o dinheiro da companhia.
Isso foi antes de Número Um recuperar o controle absoluto.
— Quais são suas outras opções, Angelo? — indagou Max, obviamente ansioso em desviar a conversa para outro rumo.
— Posso também ir trabalhar com a concorrência — disse Angelo. — Recebi ofertas.
— Não posso imaginá-lo a fazer isso — declarou Betsy. —
Apesar de tudo.
— Teríamos de viver em Detroit — interveio Cindy. — E isso é inadmissível.
— Não precisamos decidir por algum tempo — ressaltou Angelo. — Só voltaremos aos Estados Unidos depois da cirurgia e da recuperação...
— Se pretendem passar tanto tempo na Europa, façam o favor de nos visitar de novo — disse Max.
— Max e eu podemos não continuar juntos por muito tempo
— anunciou Betsy. — Vamos cumprir o acordo, é claro.
— Mas não nos próximos dois ou três meses — garantiu Max.
— Acho que não — admitiu Betsy. — Não nos próximos dois ou três meses, mas com certeza antes que você me deixe numa encrenca outra vez.
Angelo sorriu.
— Vocês...? Desculpem. Não tenho o direito de perguntar.
— Melhor com Max do que com algum outro — explicou Betsy. — E não posso passar sem isso.
Ao deixarem o restaurante, Cindy disse que queria conhecer a famosa zona do meretrício de Amsterdam. Dava para ir a pé, e Max conduziu-os até lá. A zona estendia-se por duas ruas paralelas, a Oudezjids Voorburgwal e a Oudezjids Achterburgwal. Muitas das mulheres desfilavam pelas ruas ou faziam ponto em vãos de porta, tipicamente de capa; mas muitas sentavam em vitrines iluminadas, em vários estágios de nudez.
Os negócios eram realizados com um surpreendente decoro.
— Cada quarto ou quinto homem que vocês vêem por aqui é um policial à paisana — explicou Max. — Eles impõem o cumprimento das leis com rigor. As mulheres não têm permissão para abordar os homens, seja por palavras ou por gestos. O homem deve tomar a iniciativa da conversa. Mas se perguntar a uma delas que horas são, é provável que ela responda "Cinqüenta florins".
Como eram dois casais, ninguém sequer os fitou. Estava im-plícito que eram turistas, como muitas das pessoas naquelas ruas.
Enquanto Angelo, Cindy, Max e Betsy andavam por ali, uma chuva leve começou a cair. As mulheres nas ruas abriram guarda-chuvas ou tiraram chapéus dos bolsos das capas. Nenhuma delas deixou seu ponto.
Max andava ao lado de Cindy. Betsy ia com Angelo, e diminuiu os passos a fim de ficarem para trás.
— Pensei que você poderia esperar por mim — comentou ela.
— Como assim?
— O pequeno Loren deveria ser seu filho.
— Betsy... — Angelo hesitou, mas acabou dizendo: — Toda a família Hardeman teria entrado em órbita.
— Não se importa tão pouco quanto eu?
— É melhor se importar com seu bisavô. Número Um é capaz...
Como ele hesitasse novamente, Betsy concluiu a frase em seu lugar:
— Assassinato. Mas meu pai é que entraria em órbita. Ou-vi-o chamar você de neto do contrabandista de bebidas que for-necia as garrafas do Número Um durante a Lei Seca. Parece que ele não compreende que nós, os Hardemans, somos dinheiro novo. Número Um era mecânico de bicicletas. Construiu um carro, da mesma maneira que o primeiro Henry Ford. Os dois eram mecânicos inspirados, nada mais do que isso. Onde meu pai quer chegar pensando que é melhor do que o neto do homem que vendia bebida a seu avô? Por falar nisso, é verdade?
— É, sim. Meu avô era o fornecedor dele. E a bebida era de primeira. Número Um nunca cuspiu um gole durante todos aqueles anos.
— É o que ele mais detesta no que lhe aconteceu — murmurou Betsy — Não a cadeira de rodas, mas não poder beber seu uísque canadense.
— Posso compreender — disse Angelo.
Ela pegou a mão de Angelo por um momento.
— Você casou de verdade, não é. Ela está grávida?
— Não. Ainda não. Ou pelo menos achamos que não.
Betsy apertou a mão dele e largou-a em seguida.
— Angelo Perino, vou ter um filho seu. Já decidi. Espere só para ver.
— O que Betsy quer, Betsy consegue — entoou Angelo, en-saiando a melodia de Damn Yankees.
— E, meu caro, Betsy quer você — arrematou ela.
— Para parafrasear FDR, você terá primeiro de resolver com Cindy
Angelo riu.
4
Aquele era o seu terceiro rosto. Crescera com um, que fora arrebentado e queimado no acidente na pista de corrida. Nunca se sentira satisfeito com o segundo, que o dr. Hans lhe dera e os capangas haviam destruído num beco em Detroit. Esse segundo parecia falso, por ser juvenil demais para um homem de sua idade. Tinha agora um terceiro rosto, o segundo reconstruído em pouco mais de três anos.
Cindy insistiu em estar presente na sala quando as ataduras foram removidas, embora o dr. Hans e as irmãs advertissem-na de que Angelo não pareceria muito bem a princípio. Ela soltou uma exclamação de espanto.
— Ele dá a impressão de que passou muito tempo exposto ao sol!
— É assim mesmo — disse o cirurgião, calmamente. — Como explicamos, a pele fica vermelha. Dentro de uma semana...
Dentro de uma semana ele era um terceiro homem. Não era o mesmo rosto que tinha antes do acidente; a reconstituição de seu rosto original continuava a ser um feito impossível para o cirurgião plástico. Mas também não tinha o falso rosto jovem que usara durante os últimos anos. O nariz aquilino não fora restaurado; era reto agora, teutônico: o que o dr. Hans considerava correto e bonito. Os malares fraturados foram restaurados, em parte com enxerto de osso retirado da pélvis. Outro pedaço da pélvis foi usado no queixo, destruído pelos homens que o haviam massa-crado. O melhor em seu novo rosto era que as pessoas não mais se viravam para olhar.
— Eu gosto — declarou Cindy.
Para Angelo, isso era tudo o que contava.
5
Em Londres, Amsterdam e na Riviera, Angelo e Cindy receberam apenas um telefonema que não era de alguém de suas famílias: uma ligação do Presidente Nixon, dando os parabéns pelo casamento e desejando um pronto restabelecimento no hospital suíço. Ele disse que um homem como Angelo talvez considerasse um cargo no governo e que deveria procurá-lo assim que ficasse bom.
Durante as semanas que passaram no hospital, Angelo e Cindy cuidaram de sua correspondência e receberam alguns telefonemas. Ele atendeu uma ligação de Lee Iacocca, da Ford, que expressou seu apoio contra a agressão, desejou uma total recuperação e sugeriu que Angelo lhe telefonasse assim que voltasse para casa. Henry Ford II mandou flores para o hospital com um bilhete convidando Angelo a visitá-lo assim que voltasse a Detroit. As flores de Ford foram entregues no mesmo dia em que chegou um telegrama de Bunkie Knudsen, avisando-o para se manter longe da Ford. Ed Cole da General Motors ligou para sugerir uma reunião. Para sua completa surpresa, Angelo recebeu também um telegrama de Soichiro Honda.
A ligação mais interessante foi de Robert McNamara, do Banco Mundial. Ele sugeriu que Angelo considerasse a possibilidade de se tornar um consultor na área da engenharia e projeto automotivos. As pessoas em Wall Street, disse ele, sempre procuravam por opiniões de quem pudesse fornecer informações concretas e conselhos sobre a situação e futuro da indústria e das corporações que a integravam. Angelo podia se tornar um analista da indústria.
Como era o tipo de empreendimento amorfo que atraía Angelo e Cindy, eles decidiram explorar a idéia.
6
De volta aos Estados Unidos, eles foram para Detroit e fizeram as visitas obrigatórias. Os Perinos declararam-se felizes com o novo rosto de Angelo e para sempre gratos ao dr. Hans. ("Mas queira o bom Senhor que ele nunca mais tenha de fazer isso outra vez", suplicou Jenny) Almoçaram com Lee Iacocca, jantaram com Bunkie Knudsen e tomaram coquetéis com Ed Cole... e todos aplaudiram a decisão de Angelo de se tornar analista da indústria em vez de ingressar em outra companhia e tentar construir um novo carro.
— Soube que vocês estão prestes a lançar um carro novo sensacional — disse Angelo a Iacocca. — Como vão chamá-lo?
Mustang?
— Você dará um excelente analista — comentou Iacocca, irônico. — Sabe o que não deveria saber.
— Mas de que isso adiantará para você? — indagou Angelo. — Hank Ford vai ficar agradecido e lhe oferecer um cargo vitalício?
Iacocca deu de ombros.
— Sabem muito bem que não — interveio Cindy. — Se o carro for um sucesso, ele vai se convencer de que a idéia foi dele.
Se não for, a idéia será sua. Agora, Loren Hardeman Primeiro tem certeza que jamais quis construir o Betsy. E Loren Três está absolutamente convencido de que Angelo empurrou a idéia pela goela da companhia abaixo.
— Não sou tão cético quanto você, Cindy.
Ela sorriu para Iacocca e pôs a mão sobre a dele.
— Lee, vamos almoçar de novo aqui dentro de cinco anos.
Não estará mais na Ford Motor Company.
Lee Iacocca sorriu.
— E aposto que será a esposa do presidente da Bethlehem Motors, sra. Perino.
Em Nova York, eles se instalaram em caráter provisório numa suíte no Waldorf, até que ficasse pronto o apartamento que haviam alugado em Manhattan.
Uma noite Cindy entrou no banheiro para deparar com Angelo, que acabara de tomar um banho de chuveiro, parado nu diante do espelho, contemplando seu rosto.
— Sabe o que acontece com homens que passam muito tempo na frente do espelho examinando seus rostos? — perguntou ela. — Contemplar o próprio rosto desvia o homem do que é realmente importante. — Cindy se inclinou e pegou o pênis com as duas mãos.
— Ahn... — disse Angelo. Essa parte não é muito útil nos negócios.
— Mas é útil para foder. E tem mais, foi aprovado no teste.
— Que teste?
— O médico confirmou... estou grávida.
— Cindy!
— Ora, não banque o surpreso. O que pensava que aconteceria quando eu parei de tomar a pílula e continuamos a trepar?
Angelo virou-se e puxou-a para seus braços... cauteloso, como sempre acontece com um marido que acaba de tomar conhecimento do "estado delicado" da esposa. Ela apertou-o com força.
— Ei, não vou quebrar! E o bebê também não vai quebrar.
Quando chegar o momento de recuar, pode deixar que avisarei.
Mas agora... eu quero!
Angelo sorriu.
— Como sempre faz.
II
1973
Loren Hardeman Número Três sabia que era um homem de sorte. Caíra na merda e saíra cheirando como uma rosa. Sob mais de um aspecto.
Recuperara o controle da companhia. Seu avô, Número Um, fora para Palm Beach; e embora ele continuasse a ser o intrometi-do persistente de sempre, deixava a administração da companhia no dia-a-dia aos cuidados do neto e de outros diretores. Insistia para que a companhia continuasse a fabricar automóveis e por isso produziam o venerável Sundancer. Mas um dia... ora, um dia chegaria.
Ele se livrara de Angelo Perino. E Perino nem sequer vinha mais com freqüência a Detroit. Caíra fora; ainda mais do que isso, Número Um lhe dissera para não interferir nos negócios da companhia. Infelizmente, não se podia ignorar por completo um homem que possuía duzentas mil ações, mas Perino era bastante esperto para não desafiar o velho.
Número Um era esperto e duro. Sempre fora. Ele usara Perino e fizera com que aquele italiano filho da puta gostasse. Mas também fizera Perino compreender que o sangue fala mais alto; assim, mesmo quando ele, Loren, fazia a maior besteira, ainda era da família e contava mais para o avô do que alguém de fora jamais poderia contar.
Mas nada disso era o principal motivo para que Loren se jul-gasse um homem de sorte... afinal, eram negócios. Era um homem de sorte em casa, que era muito mais importante.
Alicia, sua primeira mulher, a mãe de Betsy, não importunava mais. Vivia em Connecticut e devia estar satisfeita com o golfe e o iatismo... e provavelmente um namorado. Possuía cinco por cento da Bethlehem Motors e lhe escrevera uma carta veemente, re-clamando da redução dos dividendos e da queda no valor da ação, mas com cinco por cento não havia muito mais que ela pudesse fazer.
Bobbie, Lady Ayres, a segunda mulher, obtivera o divórcio e não lhe custara muito. Durante uma forte discussão entre os dois uma noite, ela confessara que trepara com Perino. ("Aquele carcamano filho da puta e mentiroso jurou para mim que nunca tinha comido minha mulher!" Bobbie rira. "E não comeu. Ele apenas comeu sua namorada, antes de casarmos.") Ela não o odiava. Desprezava-o, o que era pior. Seja como for, dera um jeito de se livrar de Bobbie.
O casamento terminara no momento mais oportuno. Um mês depois ele conhecera Roberta, e estava livre para casar com ela. E
Roberta era a melhor coisa que já lhe acontecera.
Os bons tempos haviam voltado. Embora fosse um pouco extravagante sob alguns aspectos, Nixon era um bom presidente e defendia com firmeza os valores que fizeram a grandeza do país. Loren passara a usar um botão com a bandeira americana na lapela, como Nixon fazia; e também sentia-se contente por Nixon ter repopularizado o terno com colete. Loren gostava de coletes porque achava que disfarçavam sua barriga um tanto volumosa. Também era aceitável usar chapéu de novo, e, porque os cabelos agora estavam bastante ralos, Loren tinha prazer em cobrir a cabeça. Era um homem corpulento, não tão grande quanto Número Um fora, mas maior do que o pai. Com um pouco mais de exercício e um pouco menos de bebida, poderia ser um homem bonito, em sua opinião. Mas preferia ser um homem contente.
Ele sentava no banco traseiro de um Sundancer, guiado pelo motorista. O guarda-costas sentava ao lado do motorista. Desde que mandara dar uma surra em Angelo Perino, sempre andava com um guarda-costas. Mais cedo ou mais tarde aquele carcamano filho da puta tentaria se vingar, se não pessoalmente, então por intermédio de um dos vagabundos que aderiam à família Perino.
Seu erro fora o de não ter ordenado que espancassem Perino até a morte. Se algum dia surgisse outra ocasião, não cometeria o mesmo erro duas vezes. Perino era perigoso.
Roberta não o deixaria cometer esse erro.
O aspecto mais lamentável de ser presidente da Bethlehem Motors era a obrigação de andar numa droga de um Sundancer.
Pensara em introduzir uma linha de luxo, o Cadillac ou o Lincoln da companhia, talvez chamado Loren; mas sabia que Número Um se oporia veementemente à idéia. De qualquer forma, os revendedores nunca o aceitariam. Já tinham a maior dificuldade para vender o Sundancer.
Aquele Sundancer, seu carro pessoal, era o único de seu tipo que a companhia já fabricara. Tudo nele fora modificado para esconder um carro de luxo num chassi de Sundancer. O motor Sundancer fora retirado e instalado em seu lugar um potente motor Mercury de alta compressão. Uma transmissão Hurst de quatro marchas tirava o proveito máximo da potência do novo motor.
Para carregar o peso extra e suportar as tensões da nova aceleração, o chassis fora reforçado e o sistema de suspensão inteiramente substituído. Loren o guiava de vez em quando, e gostava de surpreender os motoristas de Mustangs e Chargers quando seu Sundancer os deixava para trás.
Na maioria das vezes, ele deixava o motorista levá-lo. O interior do carro era o que mais apreciava. Não havia vinil em parte alguma. Tudo fora substituído por couro e nogueira envernizada.
Em vez dos mostradores retangulares e luzes antiquadas do Sundancer comum, o painel de instrumentos daquele carro incluía tudo o que havia de mais moderno para indicar o desempenho de um motor potente. O banco traseiro era na verdade formado por duas confortáveis poltronas de couro, separadas por um bar.
O carro custara 550 mil dólares à Bethlehem Motors. Número Um nunca o vira, nem jamais veria. Os 550 mil dólares foram distribuídos por varias contas: Pesquisa & Desenvolvimento, propaganda, substituição de maquinaria e assim por diante.
Ele abriu o bar agora e serviu-se de um scotch. Fora imprati-cável instalar uma pequena geladeira, e por isso tivera de se con-tentar com uma caixa de gelo. Uma das funções do motorista era cuidar para que a caixa sempre estivesse cheia de gelo... e também providenciar para que houvesse no bar um bom suprimento das marcas corretas de scotch, gim e conhaque.
Estava sendo levado para casa... ou melhor, para a casa de Roberta, já que fora morar ali há quase três meses. Haviam combinado que não casariam antes de terem certeza um do outro, mas tinham certeza suficiente para decidirem viver juntos, dizendo um ao outro que casariam ou se separariam antes do final do ano.
O nome dela era Roberta Ford (não daquela família Ford) Ross. Harold Ross, o marido, morrera dois anos antes. Fora um arquiteto e construtor e acumulara uma razoável fortuna antes de sua morte. Deixara Roberta em boa situação. E nada mais justo.
Afinal, sem ela, ele não teria sido o sucesso que foi.
Roberta era formada em administração por Harvard, uma das primeiras mulheres a completarem o curso. Sua especialidade era marketing, e entrara no mercado imobiliário. Antes de casar com Ross, aos trinta e um anos, fora por cinco anos consecutivos do Clube do Milhão de Dólares dos Corretores Imobiliários do Condado de Wayne, significando que vendera mais de um milhão de dólares em imóveis em cada um desses anos. Ganhara mais de 75
mil dólares por ano em quatro desses cinco anos. Ao aceitar o pedido de casamento de Ross, deixara de lado um plano em que vinha trabalhando, o de abrir sua própria corretora.
Um ano depois de casar com Ross, ela descobrira que Kirk, um dos sócios na Duval, Kirk & Ross, estava desviando dinheiro da firma. Duval e Ross se mostraram dispostos a perdoar e esquecer. Roberta não. Levara o caso à justiça. O autor do desfalque passara três anos na prisão, e Roberta conseguira recuperar quarenta centavos de cada dólar que ele roubara.
Depois disso, ela assumira a administração da firma. Duval e Ross cuidavam dos projetos e da construção, enquanto Roberta dirigia os negócios. Duval, agradecido, aposentou-se aos sessenta e cinco anos. Roberta abrira o capital da firma e oferecera opções de compra de ações a jovens arquitetos, a fim de atraí-los. Ross & Associados tornara-se uma das maiores firmas de arquitetura e construção do Meio-Oeste.
E depois Ross morrera.
Roberta oferecera suas ações — e o controle da firma — aos jovens arquitetos. Propusera um plano pelo qual eles comprariam suas ações com uma porcentagem da receita bruta da firma. Exi-gira que a firma fosse auditada pela Touche, Ross e fazia visitas ocasionais ao escritório, para examinar as contas. Sua receita da firma era superior a meio milhão de dólares por ano.
Era uma mulher formidável, em todos os sentidos.
Era tão alta quanto Loren, até um ou dois centímetros mais alta. Se não fosse pelo trabalho de seu cabeleireiro, seria uma loura acinzentada. Não queria isso, mas também não queria se tornar diferente. Assim, usava uma tonalidade dourada, que parecia natural. Numa época em que os cabelos empilhados no alto da cabeça eram a moda, ela cortava os seus bem curtos: bem rentes nos lados, mais do que a maioria dos homens, e abundantes mas não empilhados em cima. Os olhos eram de um azul intenso. O nariz era grande demais para ser considerado ideal, mas ela nunca sequer considerara a idéia de deixar um cirurgião remover a cartilagem. A boca era estreita, os lábios finos.
O corpo de Roberta era robusto. Tinha ombros largos e braços fortes, pernas compridas e musculosas. Os quadris eram estreitos para uma mulher do seu tamanho, mas os seios não deixavam qualquer dúvida sobre sua feminilidade. Eram grandes.
Ela recebeu Loren na porta e beijou-o na boca, ardente.
— Como foi o dia?
— A mesma merda de sempre — respondeu ele. — Estão falando em aumentar de novo o preço dos plásticos. A droga do embargo de petróleo dos árabes. Vai nos custar oito dólares por unidade nas geladeiras, cento e quarenta e alguma coisa num Sundancer. Como podemos competir quando...
— Os outros não vão sofrer o mesmo aumento?
— Bem...
— Pois então trate de competir. Vai encontrar um meio de superar o problema. Eu o conheço, Loren. Você é um sacana esperto.
Ele largou a pasta no armário do vestíbulo e pendurou a capa.
Jurava sempre que trabalharia nos documentos na pasta durante a noite, mas nunca o fazia. A Bethlehem Motors tinha problemas, grandes problemas, mas ele contratava pessoas para trabalharem à noite, não precisava fazer isso também.
Roberta estava deslumbrante, como fazia questão de se mostrar quando ele voltava para casa à noite. Usava uma calça comprida de flanela cinza, mais justa do que o normal, para realçar suas pernas e bunda. Usava também um suéter branco de gola rulê. Por algum motivo, gostava de andar descalça em casa, e por isso não tinha sapatos.
— Bebeu alguma coisa? — perguntou ela.
— Um scotch no carro.
— Quer outro agora?
— Claro.
Eles atravessaram as salas de estar e jantar para uma sala íntima nos fundos. Era uma sala refinada, como todos os cómodos ali, e atraía Loren mais do que o resto da casa. Estava mobiliada por um piano Steinway, que Roberta costumava tocar, e por móveis de casa rural inglesa, dois sofás e duas poltronas, estofados com estampados florais. Quando as cortinas eram abertas, uma janela panorâmica na parede dos fundos dava para um jardim com rochas. Um enorme tapete persa cobria a maior parte do assoalho de carvalho. Quadros de cavalos puros-sangues e alegres spaniels, em cenários rurais, dominavam as paredes. Três abajures de latão espalhavam uma suave claridade pela sala.
Roberta levou dois drinques para o sofá em que Loren sentara.
Sentou ao seu lado, saudou-o, tomou um gole e depois beijou-o.
— Eu estava mesmo com sede — murmurou ela, num tom brusco.
Loren tomou um segundo gole d o scotch e balançou a cabeça.
— Ótimo — disse ele.
Levantou-se, largou o corpo na mesinha de café e começou a tirar as roupas.
Enquanto ele se despia, Roberta baixou a calça comprida e a calcinha, deixando-as nos tornozelos.
Ela se acomodou no canto do sofá. Loren, inteiramente nu, ajoelhou-se diante dela. Levantou a suéter e beijou os seios, demorou-se a sugar os mamilos. Depois, separou os joelhos de Roberta e estendeu o rosto para sua virilha. Usou a língua para encontrar o que sabia que ela queria que encontrasse. Passou a ponta da língua por cima. Depois lambeu. Recuou um pouco, passou a lamber todo o sulco cabeludo.
Se alguém lhe dissesse um ano antes que faria aquilo — e muitas outras coisas que Roberta lhe ensinara — teria rido. Ele, Loren Hardeman, nu, de joelhos, chupando a boceta de uma mulher? Pois agora ele fazia. E não apenas fazia, mas também gostava. Não sabia por que gostava. Não era capaz de explicar a si mesmo.
Roberta arqueou as costas e gemeu. Loren levou a língua de volta ao clitóris, ali concentrando toda a sua atenção. Persistiu até que ela alcançou o orgasmo, com um grito. E tornou a lamber de alto a baixo. Roberta gozou de novo antes mesmo que ele voltasse ao clitóris. Chupando-o de novo, levou-a a um terceiro orgasmo.
Roberta empurrou-o para trás.
— Foi bom? — sussurrou ele.
— Já fez melhor.
— Quer me punir?
— Um pouco.
Loren pegou sua calça, tirou o cinto, estendeu para ela. Ficou de quatro no chão, oferecendo a bunda.
— Vamos, querida! — balbuciou ele, a voz rouca.
Ela acertou-o com o cinto, meia dúzia de vezes, deixando vergões vermelhos na pele. Depois, abruptamente, Roberta jogou o cinto para o lado, virou-o de uma forma rude, engoliu seu órgão ereto. Loren gozou em meio minuto. Ela engoliu a ejaculação.
Ele permaneceu no chão, nu, enquanto ela levantava a calcinha e a calça. Roberta estendeu-lhe o que restava de seu drinque, depois pegou seu próprio copo, bebeu tudo.
Ela foi até o bar e serviu mais dois drinques. Olhou para o relógio e avisou:
— Temos exatamente dezoito minutos para chegarmos na casa dos Farbers. E você suou de novo. É melhor subir correndo para tomar um banho de chuveiro, meu doce querido. Eu vou assim como estou. Você ficaria ótimo com o casaco bege e a calça marrom escura.
Loren entornou a sua meia dose de scotch. Inclinou-se e beijou os pés de Roberta, antes de seguir correndo para a escada e o banheiro.
Ele passou as pontas dos dedos pela bunda e sentiu os vergões. Doíam — e como doíam! —, mas ele podia se considerar um homem de sorte.
III
1973
1
Anne, Princesa Alekhine, quem quer que tivesse sido outrora, como quer que tivesse nascido, era uma princesa por qualquer definição. O Príncipe Igor assim a tornara. Ou talvez ela sempre tivesse uma natureza real, e o casamento com o Príncipe Igor apenas lhe proporcionara a oportunidade de desabrochar.
Ela parecia com uma princesa: alta, esguia, com uma graciosidade refinada. O impecável vestido rosa que usava faria com que quase todas as mulheres parecessem elegantes, mas Anne se mostraria aristocrática mesmo nua.
Seja como for, ela podia perceber que os Hardemans eram nouveaux riches e americanos rudes. O dinheiro, ela refletiu mais uma vez, sentada à mesa de jantar de Número Um em Palm Beach, não comprava classe.
O velho não deveria mais beber. Mas continuava a beber. Uísque canadense. Só uma ou duas doses, mas entornava-as como um camponês, obviamente mais interessado no efeito do álcool do que no gosto do que bebia.
Ela mandara um dos criados de Número Um comprar uma garrafa de Tio Pepe. Outra princesa, bem mais velha, de nome Esterhazy, comentara um dia para ela que só se servia um xerez aos convidados, Tio Pepe, e só se servia em copos de Murano, de preferências taças com haste de cristal e bojo leitoso.
Número Um fora o tipo de selvagem que pensaria que o máximo da sofisticação era jogar seu copo na lareira. Preso numa cadeira de/odas, tornara-se mais comedido, mas continuava a ser um selvagem. Ela se lembrava dele como um homem enorme.
Era impossível para um homem encolher, mas ele devia ser pelo menos quinze quilos mais pesado quando ela o vira pela última vez. A calça pendia larga sobre as pernas há muito atrofiadas. Os ombros pareciam mais estreitos. Estavam agora arriados, os ló-bulos das orelhas quase encostando nos ombros. O rosto era en-carquilhado. Mesmo à mesa, usava um chapéu-panamá para esconder a calva cheia de pintas.
A Princesa Anne se tornara uma esnobe. Assim tencionara e apreciava muito. Número Um não tinha permissão para comer a maior parte da comida servida à sua hóspede.
— Afinal, o que devo comer? Nada que seja saboroso. Mas quer saber de uma coisa, Anne? Há mais de trinta e cinco anos que estou sob os cuidados desses carniceiros médicos, mas consegui sobreviver à maioria. Em grande parte por não fazer o que eles diziam que eu devia fazer. E estou com noventa e cinco anos. Anne, meu bem, não viva tanto assim. Não vale a pena.
— Não?
— Não. Pense em tudo o que perde! Por Deus, Anne, Elizabeth já morreu há quarenta e quatro anos! Meu filho morreu há mais de vinte. E sua mãe... — ele sacudiu a cabeça. — Sallv foi uma mulher maravilhosa, uma boa esposa para meu filho...
— E uma boa mãe para mim — ressaltou Anne.
— Claro, claro. Foi por isso que veio me ver, não é? Para partilhar recordações...
— Não — interrompeu Anne, com uma rispidez brutal. — Vim para descobrir se, depois de tantos anos, você não vai admitir a verdade.
— Que verdade?
— Você não é meu avô, seu velho mentiroso!
— Anne!
— É meu pai!
— Anne, pelo amor de Deus...
— Quando as pessoas estão morrendo dizem a verdade. Até mesmo a lei das provas reconhece isso. — Ela pegou a garrafa de Tio Pepe e tornou a encher o copo de Número Um. — Ao morrer, minha mãe me falou sobre vocês dois. Loren Dois sabia que não era meu pai, mas nunca me contou. E você nunca me contou.
— Não nos julgue, Anne — suplicou o velho. — Sabe o que meu filho era. Descobriu durante a assembléia dos acionistas, graças àquele desgraçado...
— Graças a Angelo Perino, cuja palavra vale mais do que a sua.
— Você não pode compreender — murmurou Número Um, em lágrimas. — Sally era tão linda, tão maravilhosa, e Loren Dois tão incapaz de...
— Por isso você resolveu o problema da maneira mais direta
— declarou Anne, com absoluta frieza. — E para ser franca, isso é indiferente para mim. Fiz minha vida fora da órbita desta família corrupta de arrivistas. Mas seria melhor saber que eu era sua filha, em vez de acreditar durante todos esses anos que era filha de um homem fraco, que acabou se matando. Fiquei especulando, assim como Igor, se não havia alguma coisa deturpada em meus genes, uma tendência para a autodestruição. Seria melhor saber que eu não era filha dele. Muito melhor... papai.
— Não deve falar sobre isso — protestou Número Um. —
Em primeiro, ninguém vai acreditar.
— Suponho que Loren Três não sabe. — Ela sorriu, balançou a cabeça. — Aquele homenzinho imprestável é na verdade meu sobrinho, não meu irmão.
— Loren não é um homem imprestável — murmurou Número Um, o rosto contraído em raiva.
— Seus descendentes masculinos não lhe fazem honra — declarou Anne, friamente. — Deveria confiar mais nas mulheres.
Sou muito melhor do que Loren. E Betsy também. Nós duas não mandaríamos que um homem fosse espancado quase até a morte.
Foi o que Loren fez. E ele tem sorte por continuar vivo. Angelo Perino é um homem relacionado. Sabe disso. Poderia esmagar Loren como se fosse uma mosca.
— Não superestime o carcamano. E não subestime o que chama de família arrivista. Construí um negócio de bilhões de dólares...
— E não aprendeu nada no processo, papai. Ainda é um mecânico de macacão. E meu sobrinho, no final das contas, não passa de um canalha.
O rosto de Número Um ficou vermelho.
— Acha mesmo? Pois você, minha cara Anne, não passa de um ornamento. E isso o que você é: um ornamento adquirido por uma família nobre, da mesma maneira como costumam comprar obras de arte, móveis bonitos e carros velozes. E Betsy é... uma ninfomaníaca. Tem um impulso sexual mais forte que o de qualquer homem.
— Tão forte quanto o seu?
2
Quando viu Cindy de vestido pela primeira vez, Número Um não a reconheceu. Não a vira com freqüência, mas em todas as ocasiões ela se apresentara como uma aficionada por corridas de carros e piloto de testes, sempre usando uma jeans desbotada e esfarrapada, com um blusão manchado de graxa. Era tão fascinada por corridas que gostava de tocar fitas de carros de Grand Prix roncando nas retas e baixando para um murmúrio nas curvas. Já fora pressionada a deixar vários hotéis porque gostava de tocar essas gravações alto demais. Tocava-as quando fazia amor, e os rugidos dos motores ajudavam-na a alcançar um orgasmo arreba-tado.
Quando Angelo se afastara das corridas, ela se afastara dele, de uma forma abrupta e total.
No ano passado, depois da surra e de sua dramática confrontação com o clã dos Hardemans, Cindy se afastara de tudo que ele pensava que importava para ela, da mesma forma abrupta e total com que o deixara. Subitamente, ela não se interessava mais por carros de corridas ou qualquer outro tipo.
Só então Angelo descobrira que ela possuía uma excepcional educação clássica. Seu tempo no mundo das corridas fora uma aventura, uma aventura de quatro anos, depois de uma criação respeitável e rígida. A garota aficionada por corridas de carros era na verdade uma dama.
Durante a prolongada viagem de núpcias pela Europa, Cindy o levara a galerias famosas e o introduzira nas glórias da arte.
Angelo já estivera duas vezes antes na Basílica de São Pedro, mas nunca fora levado por um guia tão bem informado quanto sua esposa.
Ela tinha seu próprio dinheiro, é claro, e de vez em quando despachava de navio um quadro ou escultura para casa. Estavam agora no apartamento do casal em Manhattan e Angelo vira o principal crítico de arte do New York Times estudar por minutos a fio uma outra peça, e depois proclamar que era "um exemplo excepcional" de alguma coisa.
O próprio apartamento era um exemplo excepcional de vida elegante... ao estilo de Manhattan. Ficava na Rua 74-Leste e fora outrora dois apartamentos. Em algum momento dos anos quarenta uma parede fora derrubada, e os dois apartamentos se tornaram um só. Angelo e Cindy alugaram-no antes de partirem para a Europa, para que as obras necessárias fossem realizadas enquanto viajavam. Os assoalhados de carvalho foram raspados e reformados. Todas as paredes foram pintadas de branco. Instalaram uma iluminação indireta no teto da sala de estar e do vestíbulo, a fim de que refletores pendurados incidissem diretamente sobre as peças de arte que Cindy esperava exibir.
As janelas grandes no lado leste davam para a FDR Drive eo East River. As cortinas podiam ser abertas e fechadas por um mecanismo elétrico. Ao voltarem da Europa, eles passaram quatro semanas no Waldorf, enquanto escolhiam móveis e esperavam a entrega. Não eram o que Angelo teria escolhido, mas ele sentiu-se contente em deixar Cindy selecionar o que apreciava: muita madeira de lei, aço inoxidável e estofamento em bege e preto.
Pouco depois de se mudaram para o apartamento, Cindy começou a receber. Angelo descobriu que não precisava se preocupar em deixá-la sozinha quando ele se ausentasse em viagens de trabalho; Cindy não ficaria sozinha. Muitas de suas colegas de curso superior viviam em Nova York, algumas nas proximidades.
Todas se sentiam fascinadas pelas histórias de Cindy sobre seus anos nas corridas. As experiências dela eram além da imaginação das amigas.
Também se mostravam curiosas sobre o homem com quem ela casara: um italiano grande e bonito, dezessete anos mais velho, antigo piloto campeão — o segundo lugar no mundo em 1963
—, agora um engenheiro automotivo. Uma delas foi bastante ousada para perguntar a Cindy, em tom de brincadeira, se ela estava grávida ao casar com Angelo.
— Não — respondeu Cindy — Mas estou agora.
— Ele é muito bom, hem?
— Shirley, com o cérebro, ele é um engenheiro. Com o pau, é um artista. Cada trepada é uma obra-prima.
O marido de uma de suas amigas disse a Angelo que estava em Sebring quando o carro se chocara contra um muro e se in-cendiara. Os maridos interessavam-se pela nova atividade de Angelo. Alguns operavam no mercado de valores e podiam aproveitar uma competente análise da indústria. Ele fez amizade com esses homens, que lhe seriam úteis enquanto desenvolvia seus negócios. Um deles o propôs para sócio do University Club. Angelo foi aceito e costumava almoçar ali com alguma freqüência.
Cindy comprou uma litografia de Leroy Neiman. Chamava-se Sautatuck e era um nu direto: uma mulher recostada conforta-velmente, com as pernas abertas, usando uma meia vermelha e outra verde. O dono da galeria que vendera.a obra foi ao apartamento para ajudar a pendurá-la e iluminá-la. Cindy, com a gravidez bem adiantada, não queria subir numa escada para instalar o refletor. Quando Angelo chegou em casa, era lá que o homem estava: na escada.
— Angelo — apresentou Cindy —, este é Dietz von Keyserling... mais formalmente, Dietrich von Keyserling. Ele me vendeu o Neiman.
— Apertarei sua mão quando descer — disse Angelo. — Não quero afetar seu equilíbrio.
Ele examinou a litografia e concluiu que gostava. Embora o tema nada tivesse de recatado, a técnica do artista lhe conferia um certo recato. Era erótico apenas de uma maneira sutil e contida.
Von Keyserling ajustou a luz e desceu. Era um jovem alto e esguio, mais ou menos da idade de Cindy, que tinha vinte e cinco anos. Era também bonito, embora Angelo o achasse um pouco...
atraente demais. Era louro, os malares pronunciados, os lábios cheios, um pouco mais vermelhos que na maioria dos homens.
Usava um blazer azul trespassado, com botões dourados, uma blusa branca de gola rulê e calça cinza com um vinco impecável.
— É um prazer conhecê-lo, sr. Perino — disse Von Keyserling.
— Corrija-me se estiver errado, mas creio que guiou um Porsche 908 em Nürbugring em 1968. Eu estava lá. Vi-o guiar, não é?
— Viu, sim. Foi no crepúsculo de minha carreira como piloto. Consegui não bater em nenhuma parede, não morrer queimado... mas isso foi praticamente tudo o que consegui naquele ano.
— Ele é modesto — interveio Cindy. — Foi um dos grandes pilotos de todos os tempos e ainda era temido pelos adversários em 1968.
— Chamavam o 908 de Rabo Curto, não é?
— Estou vendo que conhece corridas — comentou Angelo.
— O 917 era mais veloz, mas não tão flexível nas manobras quanto o 908. Eu adorava aquele carro.
— Guiou diversas marcas. Qual foi a sua predileta?
— Ora, Porsche... Ferrari.
— Conhaque?.— perguntou Cindy. — A esta altura, não estou bebendo, mas isso não é motivo para que vocês não bebam.
Os dois acenaram com a cabeça em concordância. Cindy foi buscar uma garrafa de Courvoisier e dois copos. Angelo levantou seu copo em cumprimento.
— Fico satisfeito por tê-lo conhecido, sr. Von Keyserling.
— Por favor, na América, todos me chamam de Dietz. Sou Dietrich Josef Maximilien von Keyserling, mas gosto da informalidade americana e prefiro ser chamado apenas de Dietz.
Era assim que minha mãe me chamava. De passagem, sou austrí-aco, não alemão. De Viena.
— Dietz... muito bem. Sou Angelo.
— Dietz e eu temos uma proposta de negócio — anunciou Cindy para Angelo. — Se pudermos concordar nas condições, ele está disposto a me vender uma sociedade em sua galeria.
— As condições seriam as de que trabalharíamos juntos —
explicou von Keyserling. — Ela está prestes a se tornar uma jovem mãe, e eu não esperaria que dedicasse muito tempo à galeria a princípio. Mas agora, como único proprietário da galeria, sinto que não posso tirar férias, não posso me afastar. Cindy me daria cobertura quando eu precisasse me afastar, especialmente durante as viagens de compras à Europa.
O jovem falava um inglês impecável. Era óbvio que o aprendera na Inglaterra, até agora pouco modificado por sua vida nos Estados Unidos. Só de vez em quando é que a pronúncia de uma ou outra palavra indicava sua convivência com os americanos.
— Acho que os dois devem pedir conselhos a advogados —
sugeriu Angelo. — Um contrato. E não creio que uma sociedade simples seja uma boa idéia. Devem fazer uma sociedade anônima e dividir as ações.
— Eu esperava pelos seus bons conselhos.
— Não vou fazer nenhuma objeção, é claro. — Angelo sorriu. — Como se eu pudesse.
— Posso lhe assegurar, Angelo, que eu não entraria num acordo comercial com sua mulher sem seu consentimento. Talvez eu seja antiquado nessas coisas.
IV
1973
1
Primeira classe ou não, 747 ou não, o vôo para Tóquio foi longo, chato e cansativo. Agora, ainda por cima, a viagem de táxi desde o aeroporto levaria uma hora e meia e talvez custasse cem dólares. O Japão nunca seria um alçapão para turistas, pensou Angelo. Apenas um alçapão.
Ele estava de mau humor, sentado no banco traseiro do pequeno carro, aturando a corrida. Não era de admirar que a Chrysler o tivesse enviado de primeira classe.
Fora o que eles haviam dito: primeira classe do princípio ao fim. Viajava pela Chrysler, que o contratara como consultor para visitar as fábricas de automóveis japonesas, a fim de tentar descobrir como os japoneses produziam carros confiaveis s econômicos, exigindo quase que apenas o serviço programa-do.
Angelo escrevera numa carta noticiosa sobre a industria que o segredo estava no controle de qualidade:
Na última vez em que adquiri um automóvel de fabricação americana (por motivos de caridade omiti-rei o nome), o vendedor me entregou um caderno de anotações e me pediu para mantê-lo no porta-luvas.
"Escreva todos os problemas que tiver e traga o carro de volta daqui a um mês, para que todos os defeitos sejam corrigidos de uma só vez", disse ele. Quando voltei, depois de dois meses, a revendedora teve de ficar com o carro por três dias para fazer a revisão completa. O pára-brisa vazava. Ainda vaza. A porta de passageiro às vezes não podia ser trancada e de vez em quando abria sozinha. As vezes o motor de arranque não pegava. O consumo de gasolina era absurdamente alto, em decorrência, como se verificou depois, de um vazamento no carburador. (Preciso dizer o que poderia ter acontecido com a gasolina pingando sobre um motor quente?) As rodas estavam desalinhadas. O rádio falhava a intervalos... e assim continua. Quando eu passava por poças nos dias de chuva, a água entrava por baixo do painel e molhava meus sapatos e meias.
O fato é que o carro deixara Detroit com todos esses defeitos. E não era uma exceção. Dezenas de milhares de compradores de carros comunicam problemas similares e ainda piores todos os anos.
Um americano que compra um Honda o leva de volta à revendedora depois de dez mil quilômetros para trocar os óleos e substituir os filtros. De um modo geral, não precisa fazer mais do que isso. Alguns americanos podem pensar que um Honda parece uma lambreta de quatro rodas ou um cortador de grama que anda na estrada, mas o carro é construído com padrões de qualidade que os fabricantes americanos não conseguem igualar. A indústria automobilística deste país está perdendo bilhões de dólares em revisões e com o tempo perderá seus clientes, porque seus carros deixam Detroit com defeitos e não contam com um serviço imediato e confiável.
A Chrysler queria saber como os japoneses faziam isso. Hou-vera muitos relatórios, a maioria citando uma ética de trabalho japonesa que nunca poderia ser implantada nas fábricas americanas, porque os sindicatos jamais permitiriam. A Chrysler tinha suas dúvidas e mandara Angelo Perino ao Japão para conferir tudo.
Quando ele finalmente chegou ao hotel, seu estado de espírito melhorou. O serviço era completo, eficiente e atencioso. Foi conduzido a uma luxuosa suíte no décimo oitavo andar, de onde tinha uma vista de um quarto da cidade e da baía de Tóquio. A suíte incluía uma pequena cozinha, onde Angelo encontrou garrafas de Johnnie Walker Black e gim Beefeater, além de vermute e cerveja. Um cartão junto das garrafas dizia: A ADMINISTRAÇÃO TEM O PRAZER DE PÔR À SUA DISPOSIÇÃO
OUTRAS GARRAFAS DE BEBIDAS.
SE DESEJAR, CHAME O SERVIÇO DE QUARTO.
Havia vasos com crisântemos em cada cômodo, inclusive na pequena cozinha.
O centro do banheiro era ocupado por uma banheira de mármore rebaixada, quase tão grande quanto uma pequena piscina.
Era exatamente o que ele queria. Adorava Jacuzzis, e aquela banheira prometia jatos fortes de uma bomba forte. Angelo tomou uma dose de uísque e levou outra para a banheira. Os jatos eram tão fortes quanto esperava. Recostou-se na água borbulhando e deixou que a tensão se esvaísse de seu corpo.
Já se encontrava no banho há cerca de dez minutos, quase dormindo, quando a porta do banheiro foi aberta e uma sorriden-te criada entrou. Ela trazia toalhas e mais sabonete. Acenou com a cabeça e murmurou alguma coisa, talvez um pedido de desculpas, enquanto se inclinava através da banheira para pôr o sabonete no lugar. Era muito bonita, não devia ter mais que dezesseis ou dezessete anos. Enquanto ajeitava as toalhas nas barras, lançou um olhar demorado e obviamente apreciador para a virilha de Angelo. Exibiu um sorriso largo, fez uma reverência e deixou o banheiro andando de costas.
Angelo balançou a cabeça e estendeu a mão para o copo de scotch, agora embaçado do vapor. Fora informado sobre o proto-colo de lidar com os executivos japoneses e calculou que seria considerado menos do que cortês se telefonasse para alguém no dia de sua chegada. Decidiu visitar Ginza no início da noite, e depois voltar ao hotel para jantar. A comida num lugar como aquele não podia ser ruim.
— Serviço de quarto!
O que aquilo significava? Deixara a porta destrancada, ou fora a criada? Ele fechou a água e estendeu a mão para uma toalha.
Não devia deixar que aquela criada o visse. Pela voz, parecia mais madura.
A porta do banheiro foi aberta.
Era Betsy!
— Torne a abrir a água, Angelo. Há espaço aí para duas pessoas.
Não importou que ele sacudisse a cabeça e dissesse não. Em menos de um minuto Betsy estava nua e na água com ele. Levantou a alavanca para acionar de novo os jatos d'água e abriu a tor-neira para pôr mais água quente. Depois, agarrou Angelo e beijou-o com tanto ardor que trouxe sangue aos lábios de ambos.
— O homem que eu sempre quis — murmurou ela, enquanto o beijava no pescoço, orelhas, olhos.
— Mas como...?
— Li em Automotive News que você viria a Tóquio. Estou dois andares abaixo. Cheguei há uma semana e viajei por todo o Japão. Ficarei por outra semana depois que você for embora. Mas nas duas próximas semanas...
— Estarei muito ocupado.
— Se estiver ocupado demais para voltar a este hotel e dormir comigo durante as noites de duas semanas gloriosas, sairei por aí contando histórias. Mandarei o aviso de que estou aqui, de que nós estamos aqui, juntos.
— Betsy..
— Se for o primeiro homem a me rejeitar, terei de concluir que é bicha.
— Não preciso provar coisa alguma nesse ponto.
Ela levantou o pênis com a mão direita.
— Pelo menos eu lhe dei uma ereção. Acho que é hetero. O
que vai fazer, Angelo?
Ele não sabia o que faria. Era casado há apenas um ano. Amava Cindy e haviam tido um menino. Mas Betsy... Ela tinha vinte e um anos e era perfeita.
— Bom...
— "Bom, uma trepada não custa nada"? É isso o que está pensando? Mesmo nesses termos, eu aceito. Gastei uma fortuna para ficar aqui com você. O hotel tem um serviço de quarto sensacional, com comida japonesa e americana. Deixe-me pedir para nós. Adquiri alguma experiência durante a última semana. Sabe o que é sashimi)
— Peixe cru — respondeu Angelo, torcendo o nariz.
— Mas nunca comeu com Betsy van Ludwige sentada à mesa nua com você.
— Tenho um pressentimento... — ele fez uma pausa, respirou fundo. — Não vou engravidá-la, Betsy. Se não está tomando a pílula...
— Claro que estou. Não quero ficar grávida neste momento, nem mesmo de você. A gravidez não é nada divertida, sabia? Estraga o corpo da gente.
Angelo passou as mãos pelos seios ainda jovens e firmes, embora ela já tivesse tido um filho.
— Não estragou o seu...
— Bingo! É a primeira coisa afetuosa que já me disse. Vamos, pode chupar meus seios. Enfie os dedos em outros lugares.
— Não podemos fazer isso na água, Betsy Acredite em mim.
— Não precisamos fazer neste instante. Só quero que me pro-porcione sensações agradáveis. E daqui a pouco... Ei, tenho um escândalo sensacional para você! Adivinhe? Número Um não é o avô de Anne! — Betsy soltou uma risada. — Ele...
— Mas que história é esta?
— Anne é filha dele! Antes de minha avó... Sally.. morrer, ela contou a Anne que ela e meu bisavô tiveram um caso, do qual Anne, a Princesa Alekhine, é o resultado. Dá para acreditar? Aquele velho sacana e cheio de tesão!
— Não era tão velho assim. Devia estar ainda na casa dos cinqüenta anos quando Anne nasceu.
Betsy deu de ombros.
— Não importa.
— Como sabe disso?
— Anne me contou. Número Um tentou fazê-la prometer que não contaria a ninguém, mas me telefonou assim que voltou à França. Eu ainda me encontrava em Amsterdam, arrumando as coisas, fechando a casa...
— Seu pai sabe disso?
— Sabe agora. Já ouviu um homem engasgar pelo telefone?
Anne não é a irmã dele. É sua tia. Anne acha que tem prevalência sobre ele na família.
— Não creio que Número Um pense assim.
— Tem razão. Mas Número Um tem noventa e cinco anos e a maneira como ele pensa não vai contar por muito mais tempo.
— Tome cuidado, Betsy Ele pode ainda causar muitos danos no tempo que lhe resta. Se você e Anne estão pensando que podem arrancar alguma coisa dele...
Betsy riu.
— Tudo o que eu quero agora é arrancar o seu pau, Angelo.
2
Cindy desligou o aparelho de televisão e voltou ao sofá para sentar ao lado de Dietz von Keyserling. Haviam acabado de assistir ao anúncio da renúncia de Spiro Agnew ao cargo de vice-presidente.
— Jamais compreenderei a política americana — comentou Dietz.
— Nem tente.
Dietz usava o que era praticamente um uniforme para ele: blazer azul trespassado e camisa branca de gola rulê. Na privacidade de sua casa, Cindy usava uma velha jeans desbotada e um blusão cinza manchado de graxa de automóvel... uma relíquia de sua aventura no mundo das corridas.
Ele pegou seu drinque, um copo com Courvoisier.
— Concorda sobre os realistas, Cindy?
— Quer eu goste ou não, venderão bem. Há sempre um mercado para esse tipo de arte, em particular para os nus. Gosto dos Pearlsteins.
— Poderia pendurar vários Pearlsteins aqui e oferecer um jantar. Quem sabe? É possível até que Philip venha. Convidando as pessoas certas, você pode ter a certeza de vender um dois quadros.
— Foi por isso que decorei o apartamento assim: para poder usá-lo como uma galeria.
Dietz franziu o cenho.
— Terei de pedir dinheiro emprestado para pagar minha parte do custo da exposição realista. Estou presumindo que o banco não será um problema, mas às vezes eles pedem garantias.
— Por que tomar emprestado num banco? — indagou Cindy
— Eu lhe emprestarei o suficiente para sua parte.
— Faria isso por mim?
— Você me dá uma promissória, tendo como garantia as obras que comprarmos. Se não pagar, toda a exposição me pertence.
Dietz sorriu. Largou o copo e inclinou-se para beijá-la. Cindy já permitira que ele a beijasse antes, e tornou a permitir agora, até retribuiu. Ele estendeu a mão para o seio esquerdo e acariciou-o, gentilmente. Como já adivinhara pela aparência dela, Cindy não usava sutiã. Logo ele passou a apertar. Ela nunca lhe permitira tocá-la antes, mas agora deixava.
Por um minuto ou mais, Dietz acariciou os seios, apertou-os, comprimiu-os em suas mãos.
— Você acaba de mudar a natureza do nosso relacionamento
— murmurou Cindy.
— Devo me arrepender?
— Não necessariamente. Mas é melhor definirmos o novo relacionamento.
— Você é irresistível, Cindy. Eu a quero. E quero tudo.
— Tudo... não sei o que "tudo" inclui. Pois deixe-me dizer o que pode incluir e o que não pode. Pode incluir o sexo recreativo.
Não pode incluir qualquer tipo de compromisso emocional. Sou casada com Angelo e pretendo continuar casada com ele.
— Se ele descobrir, vai me matar — comentou Dietz, muito sério.
— Não, não vai... e também não me matará. Não sou tão ingênua a ponto de pensar que ele mantém a abstinência no Japão. Na primeira vez em que um executivo japonês oferecer uma atraente companheira de cama, Angelo aceitará. Eu o conheço. E
ele me conhece. Não espera que eu seja mais casta do que ele. O
que Angelo espera... e também espero isso dele... é que não preju-diquemos nosso casamento. Se ele tiver algum motivo para desconfiar do contrário, não poderemos continuar como sócios na galeria. Está disposto a correr o risco?
— Devo correr.
— Não podemos ficar juntos numa base regular. Nem mesmo com alguma freqüência. Só quando as circunstâncias forem propícias. Quando Angelo estiver viajando e for a noite de folga da babá.
— Aceito essas condições. — Dietz começou a levantar o blusão, bem devagar. — Posso?
Cindy não respondeu e ele descobriu os seios.
— Nunca vi nenhum assim antes — murmurou ela, ao ver o pênis.
Era pequeno... e não era circuncidado. Ela puxou o prepúcio entre o dedo indicador e o polegar. Dietz suspirou.
— Na Europa, a bárbara mutilação do órgão masculino não é comum. Meu avô salvou sua vida ao mostrar o Glied intacto a vim Scharfuehrer da SS que o tomara por um judeu. Como não fora circuncidado, não podia ser um judeu.
Cindy inclinou-se e lambeu os colhões, para verificar se isso fazia o pênis crescer.
— Não é muito grande — disse ela, com franqueza.
— Mas cumpre o seu ofício. Não costumo receber queixas.
Ele tinha razão. Quando foi embora, cerca de uma hora depois, Cindy não tinha nenhuma queixa.
V
1974
— O que posso lhe dizer? — perguntou Cindy a Angelo. —
Tenho certeza de que será custoso, se não mesmo fatal. Pense ura pouco. Não acha que já chegou o momento em que Número Um não pode mais convocá-lo quando quiser?
— Ele quer falar comigo e não pode vir até aqui. É um velho frágil. Provavelmente não mais deixará Palm Beach pelo resto dc sua vida.
— Grande merda. — Cindv foi até a janela do escritório do marido e correu os olhos pela Terceira Avenida. A chuva caía com toda intensidade pelas ruas de Nova York.
— Será apenas uma noite — garantiu Angelo. — Pegarei um avião e jantarei com ele.
Ela contemplou a sala. Sentia-se satisfeita com a decoração. Comprara os móveis pessoalmente e os três quadros pendurados nas paredes eram da Galeria VKP — Von Keyserling-Perino. Angelo era peripatético. Não passava muito tempo no escritório, mas quando se encontrava ali podia desfrutar um ambiente agradável e bem projetado, o que deixava Cindy contente.
— Estará aqui para a inauguração da exposição realistar E
não se esqueça do jantar depois.
— Você investiu muita coisa nisso.
— Quer apostar como vou tirar todo o meu dinheiro e ainda obter um bom lucro?
— Se você e Dietz pensam assim, tenho de pensar a mesma coisa.
— Você virá...
— Se Deus quiser e o rio não subir.
2
— Quem você pensa que é? — gritou Número Um para Angelo. — Exijo que mantenha o nariz fora dos negócios da minha companhia!
— Não estou interessado no que você exige — respondeu Angelo. — Voei até aqui... à sua custa... sem muito entusiasmo pelo encontro. Não queria vê-lo de novo. E se pensa que pode me intimi-dar ou que ficarei sentado aqui a ouvir seus insultos, vá se danar!
Loren Hardeman Primeiro lançou um olhar furioso para Angelo, do alto de seus noventa e seis anos, mas não havia qualquer força em sua ira. O que Angelo tinha à sua frente, na cadeira de braços do outro lado da mesa de jantar, era um terno engomado que não chegava a ser preenchido de todo por um velho murcho.
A aba do chapéu-panamá projetava uma sombra sobre os olhos.
Betsy também sentava à mesa. Seus olhos faiscavam, enquanto observava e escutava a discussão entre Angelo e seu bisavó. Loren Número Três também se achava presente, um pouco embriagado e mal-humorado.
— Lembra como reformei seu Bugatti? — perguntou Número Um, a raiva desaparecendo de sua voz. — Lembra disso?
Claro que Angelo lembrava. Fora a ocasião em que conhecera Loren Hardeman Primeiro. Mesmo confinado a uma cadeira de rodas em 1939, Loren Hardeman Primeiro era um homem enorme e obviamente poderoso. Angelo não percebera de imediato o quanto. Mais tarde, compreenderia até demais. Havia gigantes em Detroit naquele tempo, e o primeiro Loren Hardeman fora um deles. Por décadas ele acreditara que se conseguisse ficar de pé de novo poderia voltar a ser um gigante... e não apenas entre os anões. Nunca renunciara a essa idéia.
— Acho que você me deve um pouco de respeito — acrescentou Número Um.
— E você também me deve um pouco, velho amigo — murmurou Angelo.
— Não está mais associado à companhia — argumentou Número Um.
— Foi isso mesmo que eu disse no primeiro parágrafo de minha análise. Expliquei que ainda possuo duzentas mil ações da Bethlehem Motors, mas não tenho absolutamente qualquer outro relacionamento com a família Hardeman ou com a administração da companhia.
Betsy franziu as sobrancelhas, numa expressão cética, e lançou um olhar divertido para Angelo, que os dois homens Hardemans não poderiam compreender.
— Diz que estamos perdendo dinheiro com o Sundancer. Por que pensa assim?
Angelo virou-se para Número Três.
— O que diz, Loren? Está perdendo dinheiro?
— Isso é uma informação confidencial — respondeu Loren, irritado.
— Diz que estamos perdendo espaço no mercado — continuou Número Um.
— Não preciso de informações confidenciais para saber disso — declarou Angelo. — Pode negar?
— Não precisamos negar ou afirmar qualquer coisa, Angelo
— respondeu Loren.
Angelo deu de ombros e olhou para Betsy.
— É do conhecimento comum.
— Não sei o que o torna um "analista da indústria" — resmungou Loren —, mas seu relatório fez com que a cotação de nossas ações caísse. Pior do que isso, perdemos oito revendedoras.
— Presta alguma atenção ao que eu escrevo ou apenas se irrita? — indagou Angelo.
— Não deveríamos mais estar fabricando automóveis — resmungou Loren Terceiro.
Número Um bateu com a mão na mesa.
— Não quero ouvir mais isso! Enquanto eu estiver vivo, a Bethlehem Motors vai produzir carros. E ponto final.
— Neste caso, é melhor fabricar carros que possa vender —
comentou Angelo.
— O Sundancer...
— Foi um bom carro, no seu tempo e contexto. A Bethlehem Motors não conquistou nenhum mercado como fez a Ford quando Lee Iacocca enfiou o Mustang pela goela de Henry II. Perde-ram esse mercado. Agora, vão perder outro se não saírem na frente.
— Li a droga de sua análise — disse Número Um. — É fácil ser um gênio quando não tem de fazer aquilo sobre o que escreve.
— Também li — interveio Betsy. — Diz que o Sundancer...
que eu concordo que foi um bom carro no seu tempo... é agora considerado um dinossauro, um bebedor de gasolina...
— Ora, não venha com essa! — protestou Loren Terceiro. —
George Romney achou que podia vender carros com eficiência de combustível. Mas hoje em dia não se pode encontrar um Rambler nem mesmo num ferro-velho!
Betsy continuou do ponto em que fora interrompida:
— Quando George Romney disse que eram os dinossauros de ferro de Detroit, a gasolina era vendida a trinta e cinco centavos o galão. Agora, o preço é um dólar e ainda vai subir para um dólar e meio. Por que acha que a Volkswagen vende dez vezes mais carros hoje do que há dez anos? Porque faz cinqüenta quilometros com um galão, em comparação com vinte de um Sundancer. O VW é feio e desconfortável, mas...
— Também funciona e não precisa de dias de trabalho de revisão — acrescentou Angelo.
— Então qual é a sua solução, Angelo? — perguntou Número Um. — Motor transverso acionando as rodas da frente...
— Nada de eixo comprido — disse Angelo.
— Quatro cilindros — continuou Número Um. — Quem vai comprar um carro com um motor de quatro cilindros?
— As mesmas pessoas que compram Volkswagens, Hondas, Toyotas...
— Claro, claro... — Loren Terceiro soltou uma risada. — Carrinhos de brinquedo. Fazem muito barulho. Não têm aceleração.
Angelo deu de ombros.
— O MG tem um motor de quatro cilindros. Assim como o Porsche 911. Carrinhos de brinquedo, Loren?
Betsy apontou para o pai e ria
— Touché!
Loren Terceiro lançou um olhar furioso para a filha.
Número Um enfiou a mão por dentro do paletó e tirou um recorte. Era um relatório de Angelo para corretores de valores de Nova York sobre a situação da Bethlehem Motors. Ele leu:
— "A Bethlehem carece das instalações para construir o motor transverso de quatro cilindros e seu sistema de propulsão associado; não pode, dentro de um prazo razoável, promover uma reforma e começar a fabricá-los." Não podemos, hem, meu jovem? Qual é a sua solução? Escreveu também: "Diversos fabricantes japoneses possuem essa capacidade de produção instalada, têm uma ampla experiência de projeto e produção nessa linha, contam até com uma certa capacidade ociosa. Estão prontos, dispostos e ansiosos em abastecer os fabricantes americanos com esses motores pequenos, potentes e econômicos. Companhias como a Bethlehem Motors poderiam fazer pior do que entrar em negociações para importá-los." Ou seja... um carro bastardo, meio americano, meio japonês.
É isso o que quer que fabriquemos, Angelo?
— Poderia salvar a companhia — respondeu Angela
— Durante toda a minha vida — declarou Número Um —, a expressão "Made in Japan" representou uma coisa barata e ordinária.
— Como os aparelhos de televisão Sony e as cameras Nikon?
— perguntou Betsy
Número Um bateu com a mão na mesa.
— Enquanto eu viver, nenhum automóvel de minha fábrica terá a porra de um motor japonês!
Angelo sorriu.
— Foi o que Hank Ford disse a Lee Iacocca. E, para ser franco, não me importo nem um pouco com o que você faça. Essa é a verdade, quer goste ou não. Não estou lhe pedindo para aceitar minhas recomendações. Não as apresentei para você, mas sim para os corretores de Nova York. Tentem levantar dinheiro, meus amigos. Tentem fazer um novo lançamento de ações.
— Já considerou que pode ser processado por difamar uma empresa? — indagou Loren Terceiro.
Angelo ignorou a pergunta.
— O conceito de vocês está por baixo. Suas ações têm a recomendação de "venda" dos principais analistas do mercado. A Bethlehem Motors tem uma expectativa de vida limitada.
— E eu também — murmurou Número Um. — Tome sua sopa antes que esfrie.
3
Angelo sabia que Betsy iria a seu quarto. E sabia que seria mais perigoso deixá-la do lado de fora do que permitir sua entrada. Além do mais, ele não queria impedir seu acesso.
— Você e eu somos perfeitos juntos — sussurrou ela, depois que fizeram amor.
Betsy pegou o copo de conhaque que trouxera para o quarto, tomou um gole e levou-o aos lábios de Angelo para que ele be-besse também, enquanto acrescentava:
— Tem de haver mais do que isso... mais do que uma noite furtiva nesta casa. Deixe aquela mulher, Angelo. Ofereça um bom acordo a ela e venha para mim.
— Ela é a mãe de meu filho.
Betsy recuperou o copo, tomou um gole maior e largou-o na mesinha-de-cabeceira.
— Seja como for, suponho que você a ama. Não é verdade?
Angelo acenou com a cabeça.
— Tenho certeza de que ela é uma boa esposa para você —
continuou Betsy. — Eu seria melhor.
— Você estava casada quando casei com Cindy, se já esqueceu.
— Sabia qual era o acordo, Angelo. Poderia ter esperado.
Ele sacudiu a cabeça.
— Os dois estão furiosos, o velho sacana e meu pai. Não estou exagerando. Teriam o maior prazer em matá-lo, se achas-sem que poderiam escapar impunes.
Angelo deu de ombros.
— Não os prejudiquei.
— Não é pelo que você publicou Calculam que é a fonte do que Thurman escreveu em sua grande denúncia. Sabe do que estou falando.
Claro que Angelo sabia. Guv Thurman publicara uma reportagem de vinte páginas sobre a família Hardeman numa das principais revistas nacionais:
As qualidades que fazem dos pais grandes homens quase nunca são herdadas pelos filhos. Na verdade, essas mesmas qualidades tendem a reprimir qualidades similares nos filhos. Foi o que aconteceu com Loren Hardeman, fundador da Bethlehem Motors. Seu filho e neto também receberam o nome de Loren Hardeman e surgiu o costume de chamar o mais velho de Número Um, o filho de Número Dois e o neto de Número Três.
Número Um deveria especular sobre o que Número Dois poderia ter sido se não fosse completamente ofuscado por um pai dominador. Ele acabou se tornando um homem fraco e vacilante, um homossexual enrustido que era chantageado. Em 1952 ele cometeu suicídio. Número Três revelou-se um homem invejoso e manipulador, que tentou mais de uma vez arrancar o controle da Bethlehem Motors de Número Um.
Procurando um homem que pudesse construir um carro esporte para a Bethlehem Motors, a ser chamado de Betsy em homenagem à bisneta, Número Um escolheu um jovem que conhecia desde menino, Angelo Perino.
Angelo Perino era formado em engenharia e tinha o mesmo empenho em construir automóveis que Número Um tivera. E mais ainda, ele tinha coragem. Passara cinco anos como piloto de corridas, chegara a ser o segundo do mundo e quase morrera num acidente.
Também tinha uma fortuna pessoal e estava disposto a assumir os riscos.
Para construir o Betsy, seria necessário superar a furiosa oposição de Loren Hardeman III, que faria qualquer coisa para frustrar o projeto... por inveja, é verdade, mas também pela convicção de que a Bethlehem Motors deveria mais cedo ou mais tarde sair do negócio de automóveis e concentrar-se no que daria muito mais dinheiro à companhia: a fabricação de eletrodomésticos.
A batalha se prolongou por três anos. Quando Número Três viu que estava perdendo, chegou ao ponto de sabotar o carro experimental. Essa tática falhou, e ele contratou capangas para darem uma surra em Angelo Perino...
Número Três processara Thurman, mas o caso fora logo arquivado, deixando-o com a obrigação de pagar as custas judiciais.
— Thurman diz muita coisa que só poderia saber de um informante interno — comentou Betsy.
— O que não faz com que esse informante seja eu. Juro por Deus que jamais me encontrei com Thurman, nunca falei com ele, nunca me correspondi.
— Não conseguirá fazer com que eles acreditem nisso. Tome cuidado com os dois, querido. Nunca lhes vire as costas. Eles... —
Betsy deu de ombros. — Ora, que se dane tudo isso. Temos coisas melhores em que pensar
Ela ficou de quatro e montou em Angelo. Balançou os seios por cima de sua virilha, roçando no pau.
— Vire de costas — exortou ela, num sussurro rouco.
Angelo obedeceu. Ela abriu suas nádegas com as mãos, comprimiu o rosto contra o ânus, começou a sondar com a língua.
Ele aspirou todo o ar que podia conter. A sensação não era orgástica. A língua de Betsy proporcionava um prazer cada vez mais intenso, embora não fosse orgástico. Ela lambeu sua bunda por cinco minutos, depois estendeu a mão entre suas pernas, encontrou o pau duro e começou a masturbá-lo. Angelo gozou em meio minuto, um orgasmo profundo, violento e prolongado.
— Hum... — murmurou Betsy — Aposto como ela nunca fez isso por você.
Angelo sorriu afetuosamente e balançou a cabeça. Era mentira. Betsy não precisava saber que Cindy também fazia aquilo.
VI
1975
A Galeria VKP ficava na Fark Avenue, alguns quarteirões ao norte do Waldorf, no lado oeste da avenida. Numa noite de segunda-feira, em abril, Cindy e Dietz presidiram a abertura da exposição individual de Amanda Finch, uma jovem pintora que Cindy descobrira através de seus contatos na universidade.
Amanda Finch nunca pertencera ao circulo de Cindy, mas Mary Wilkerson a conhecia. Mary, que morava em Greenwich, matri-culou-se num curso de arte na Silvermine Guild em que Amanda era modelo para turmas de desenho, pintura e escultura. As duas se tornaram conhecidas quando Amanda circulou entre os cavaletes para saber como estava sendo representada. Ela deu uma sugestão sobre o quadro de Mary, que soube então que Amanda também era pintora e posava como modelo para ganhar a vida de uma maneira que não a absorvesse demais, permitindo-lhe devo-tar a maior parte de seu tempo à arte. Mary foi ver algumas obras de Amanda, e em seguida convidou Cindy a ir a Connecticut para dar uma olhada.
A obra de Amanda Finch se enquadrava na categoria de realista que a Galeria VKP ainda promovia. Ela pintava com uma atenção meticulosa para o detalhe, de tal forma que a distância seus quadros podiam ser confundidos com fotografias muito bem
focalizadas. Os estames e pistilos de suas flores eram reproduzi-
dos de forma escrupulosa, assim como os veios nas pétalas. Seus
retratos eram reminiscentes de Rembrandt, na medida em que pareciam como fotografias em cores ampliadas de rostos e mãos, que descreviam com precisão as diversas cores da pele da pessoa, inclusive manchas e cicatrizes. Pestanas e sobrancelhas pareciam ter sido pintadas com um pincel de um só fio.
Suas obras mais impressivas eram os nus. Incapaz de pagar modelos pelas longas horas necessárias para se pintar de um modo tão realista, ela pintara a si mesma, diante de um espelho alto. Em dois dos quadros estava de pé, no terceiro sentada num banco, com os pés enganchados por trás das pernas. Essa pose lhe abria as pernas e a reprodução de suas partes íntimas era tão meticulosa quanto a de estames e pistilos.
Ficou patente para todos na galeria que a jovem insegura de saia cinza e blusa de seda branca — roupas a que obviamente não estava acostumada — era não apenas a pintora, mas também a modelo. O quadro das pernas abertas foi vendido na primeira noite da exposição por sete mil e quinhentos dólares.
Angelo conheceu-a na segunda noite da exposição. Ele chegara de avião de Chicago tarde demais para comparecer à vernissage. Amanda era uma jovem atraente, mas não chegava a ter uma beleza ideal. Deixava evidente que tinha coisas melhores em que pensar do que em sua aparência. Os cabelos castanhos escuros pendiam desarrumados. As sobrancelhas eram es-pessas demais. Os olhos castanhos eram míopes, por trás de óculos pequenos e redondos, de aros dourados... também reproduzidos com perfeição nos quadros. A boca era larga e fina. O
corpo era como os quadros o mostravam: comum. Além dos olhos flutuando por trás das lentes grossas, as únicas coisas dis-tintivas nela eram suas mãos, extraordinariamente grandes, desproporcionais ao resto do corpo, como as mãos do Davi de Michelangelo.
— Tenho uma dívida com a sra. Perino que nunca serei capaz de pagar — comentou ela para Angelo. — Esta exposição é tudo o que sempre desejei em minha vida. Se eu morresse esta noite, morreria realizada na vida.
Cindy ouviu e se adiantou para abraçar a moça.
— Aceitaria mil e quinhentos dólares pelas violetas? — indagou ela. — E temos uma oferta de três mil pelos gladíolos.
— Oh, Deus!
— Temos ainda um lance de quatro mil por um dos outros nus. Mas não vou aceitá-lo por enquanto.
— Ah...
— Planeje passar os próximos seis meses nua diante daquele espelho — sugeriu Cindy, sorrindo.
Cindy estava grávida de novo, ainda não volumosa, mas já visível quando ficava nua.
— Se não por seu estado, eu a contrataria para pintar você —
disse Angelo.
— É um belo estado — murmurou Amanda, com a maior simplicidade.
Angelo contemplou Cindy em silêncio por algum tempo.
— A ser pendurado num aposento íntimo em nosso apartamento — declarou ele. — Não aqui.
E assim foi tudo acertado. A partir de julho, Amanda mudou-se para o apartamento dos Perinos. Cindy posava quatro horas por dia, Amanda pintava por seis.
O resultado foi um quadro que Angelo julgou ser a mais linda obra de arte que já vira em toda a sua vida. Ela aparecia de pé, de perfil, de maneira a dramatizar a barriga estufada, da qual se orgulhava. Olhava para a barriga como se pudesse ver a vida ali dentro. Uma das mãos pousava sobre a barriga, perto do umbigo, a outra no quadril. Posando nos dias de verão, Cindy exibia um tênue brilho de suor. Amanda captou isso também, como fez com todos os outros detalhes do corpo de Cindy, com a habilidade consumada de uma pintora, não de uma ilus-tradora.
O retrato foi pendurado no quarto de Angelo e Cindy, mas uns poucos amigos de confiança foram convidados a conhecê-lo.
Dietz o viu, é claro. E Mary Wilkerson também.
Angelo pagou quinze mil dólares a Amanda pelo quadro e contratou-a para fazer um retrato dele, assim que pudesse encontrar tempo para posar.
2
Número Um tomou um gole do Canadian Club que lhe fora proibido. Sentava na cadeira de rodas na lanai, olhando distraído para o Atlântico. Loren Terceiro estava estendido numa chaise longue. Roberta, agora a sra. Hardeman, sentava numa cadeira de madeira com um estofamento de vinil florido, tomava scotch e fumava um Chesterfield.
— A ação fechou ontem em dezoito e três quartos — disse Número Um. — Há dois anos era vendida a sessenta. Estamos todos mais pobres do que antes.
— É a economia — protestou Loren. — Expulsaram Nixon da Casa Branca...
— Temos apenas dois por cento do mercado de automóveis
— continuou Número Um. — E as geladeiras também não vendem mal, apesar de terem contratado aquela mulher caríssima para abrir e fechar as portas na televisão.
— O preço do plástico subiu — alegou Loren.
— Subiu para todo mundo.
— Eles tratam de explorar as companhias menores — interveio Roberta. — É sempre assim. Economia básica. A General Motors e a General Electric podem alcançar economias de escala que nós não conseguimos. É um fato da vida.
Número Um notou o "nós". Alteou uma sobrancelha.
— Competi com eficiência por muitos anos. Como explica isso?
— Fez um automóvel que as pessoas queriam comprar —
disse Roberta. — Como aconteceu com o Studebaker. E o Packard.
O Hudson e o Nash. As pessoas sempre podiam comprar um Ford ou um Chevy, mas algumas preferiam um Sundancer. O
Studebaker tinha um formato estranho, mas atraía inúmeros compradores. Era distintivo. E o mesmo acontecia com o Sundancer.
— É verdade, e sobrevivemos a eles — murmurou Número Um. — Não se pode comprar um Studebaker hoje, mas ainda se compra um Sundancer.
— Perdemos dinheiro em cada unidade que produzimos —
disse Loren.
— Também temos prejuízo com as suas geladeiras! Não me diga de novo para sair do negócio de automóveis, porque não vou sair.
— A companhia vai afundar — murmurou Loren, desolado.
Número Um olhou para Roberta.
— Não vai, não — declarou ela. — Entre vocês dois há energia suficiente para refrescar o inferno. — Inclinou-se para afagar o ombro de Loren, enquanto acrescentava: — Tenho confiança neste homem, sr. Hardeman.
Número Um levantou o chapéu da cabeça por um momento, usando-o para abanar a calva.
— Filho — disse ele ao neto —, tire da cabeça essa idéia de sair do negócio automobilístico. Concentre-se em vender bem nossos carros. Sei que pode fazer isso.
Loren olhou para Roberta, que acenou com a cabeça.
— Avô, detesto dizer isso... mas acho que temos de encarar o fato de que Angelo Perino está certo. O Sundancer é grande demais. Queima muita gasolina. Temos de fabricar carros...
— Com as porras dos motores transversos! — berrou Número Um. — Só faltava essa... e daqui a pouco você vai me dizer que não podemos fabricá-los.
Loren sacudiu a cabeça.
— Não, não podemos fabricá-los. Isto é, claro que podemos fabricar qualquer coisa, com bastante tempo e investimento. Mas a competição já está na nossa frente. Se comprarmos as unidades no Japão...
— E construirmos carros mestiços...
— É a nossa última chance — declarou Loren, bruscamente.
— Está certo, filho. Mas quero que me fale expressamente.
Diga que temos de fabricar esses carros meio japoneses para per-manecermos no negócio de automóveis.
— Avô, precisamos fabricar esses carros meio japoneses para permaneceremos no negócio — repetiu Loren, sombrio.
— Temos as pessoas)
— Podemos descobri-las.
— Não tenho de lhe dizer de quem precisamos.
Loren sacudiu a cabeça.
— Não! De jeito nenhum! Aquele carcamano filho da puta...
— Mas precisamos dele! Sob uma condição. Ele trabalha para você. Não lhe ensinamos a lição de que quando trabalha para nós, trabalha para nós)
— Ele não virá.
Número Um sorriu.
— Posso atraí-lo. Ele estará aqui em vinte e quatro horas. E
nós dois faremos com que ele dance conforme a nossa música.
3
Número Um foi deitar cedo, logo depois do jantar. Ligara para Angelo Perino em Nova York, mas a secretária dissera que o sr. Perino só voltaria à cidade no dia seguinte. Loren e Roberta continuaram à mesa depois que Número Um foi levado em sua cadeira de rodas. Pensaram em sair, mas acabaram se contentando com um passeio pela praia e depois foram para a suíte.
Já eram dez horas antes que qualquer dos dois mencionasse o nome de Angelo Perino.
A esta altura, Roberta usava um negligê cor de pêssego, semitransparente, exceto por uma faixa completamente transparente na altura das axilas, que deixava os amplos seios à mostra.
Ela fumava um Chesterfield e tinha um scotch ao alcance da mão.
Loren estava nu. Sentara no chão, de vez em quando se inclinava para lamber os dedos dos pés de Roberta.
— O segredo é usar Perino e ao mesmo tempo mantê-lo sob controle — comentou Roberta.
— Tem toda razão. Mas como fazer isso?
— Seu avô o ajudará. E eu também.
— Tenho minhas dúvidas...
— Tenha confiança em si mesmo, Loren — declarou Roberta, com firmeza. — O velho jurou que nunca permitiria que um motor japonês fosse posto num carro da Bethlehem Motors. E você ganhou essa batalha hoje.
— Angelo Perino me odeia. E acho que ele tem bons motivos para isso.
Roberta inclinou-se e acariciou o rosto dele.
— Você cometeu um erro — murmurou ela, gentilmente. —
Todo mundo tem direito a cometer um erro, mesmo que grande.
Mas não fará isso de novo. Mamãe estará atenta e não o deixará.
Ele levantou um pouco o negligê e lambeu a parte interna de suas pernas.
— Além do mais, o velho está agora do seu lado — acrescentou Roberta.
— Nem podia ser de outra forma — resmungou Loren, amargurado. — Imagine só... meu avô comeu minha mãe! O que Anne é para mim? Minha meia-irmã ou minha tia?
— As duas coisas. Mas qual é a diferença? Ela fica com o príncipe na Europa e não se mete.
— E Perino também comeu minha segunda esposa.
— Só que antes dela se tornar sua esposa. Não pode odiá-lo por isso. Por acaso odeia meu primeiro marido?
— É diferente. Perino sabia que eu gostava de Bobbie e planejava...
— Esqueça, Loren. Tem outras coisas em que pensar.
— Não deixarei que aquele carcamano filho da puta me sacaneie de novo. Roberta, eu odeio Angelo Perino. Meu avô vai suplicar que ele volte para a companhia. Gostaria que o avião caísse na vinda para cá. Talvez eu possa providenciar um acidente.
Ela sorriu e sacudiu a cabeça.
— Acho melhor fazer alguma coisa por seu estado de espírito. — Roberta se levantou e suspendeu o negligê para os quadris.
Tornou a sentar e abriu as pernas. — Venha... e faça direito, para que mamãe não tenha de fazer novos vergões em sua bunda.
4
Cindy sentira-se a princípio meio constrangida por posar nua para Amanda. Não havia possibilidade de fazer isso sem ser vista pelas criadas. Além disso, Angelo entrava e saía, é claro. O bebe, John, também a via, mas era muito pequeno para perceber algo significativo no fato de sua mãe ser a única pessoa nua no apartamento.
Estava posando quando Angelo entrou com a notícia de que recebera outro telefonema de Número Um, que o queria na Flórida para uma breve visita.
— A voz do dono — disse Cindy. — Você vai?
— Acho que devo. É possível que ele queria se despedir. Está com noventa e sete anos.
Haviam se acostumado a discutir tudo na presença de Amanda, exceto os assuntos mais íntimos. Cindy soltou uma risada desdenhosa.
— Ele vai viver até que alguém o atinja no coração com uma bala de prata.
— Número Um tem o objetivo, como me disse muitas vezes, de viver até os cem anos.
— E se ele fizer alguma oferta?
— Por exemplo?
— O controle da companhia
Angelo sacudiu a cabeça.
— Ele não faria isso.
— É melhor fazer. A companhia está afundando.
Angelo olhou para Amanda. Ela dava a impressão de não prestar atenção, mas era evidente que ouvira tudo. Também era evidente que sabia do que eles falavam.
— Ele não pode contar com Número Três — continuou Cindy. — Isso é óbvio. Resolveu chamar você para salvá-lo. E se você for, é um idiota. Ele já tentou matá-lo uma vez. Como podc esquecer isso?
Angelo lançou outro olhar para Amanda.
— Vou até lá para saber o que ele quer. Mas não assumirei qualquer compromisso antes de falar de novo com você.
VII
1975
1
Sentados na lanai, eles olhavam para uma chuva ruidosa, que obscurecia a vista da praia, ainda mais do mar. Era uma dessas tempestades tropicais que às vezes desabam na Flórida: uma chuva que caía direto do céu escuro, sem qualquer vento para tangê-la, sem se lançar contra as telas. Mas esfriou e a enfermeira ajeitou um xale de tricô nos ombros de Número Um.
— Qual foi o rei que se metia sob as cobertas com virgens para ter calor na velhice? — indagou ele.
— Davi. — Angelo sorriu. — Se você não exigir virgens, podemos providenciar alguém.
Número Um conseguiu exibir um tênue sorriso.
— Quando se chega a este ponto na vida, quando não faz diferença se a garota deitada com você é virgem ou não, é tempo de... Oh, merda! Jurei que faria cem anos e receio que vou conseguir. Não faça promessas a si mesmo. Pode ter de cumpri-las.
Angelo viera direto do aeroporto. Prevendo uma confrontação, registrara-se num motel, pois assim teria um refúgio se fosse necessário. Usava um casaco de madras por cima de uma camisa pólo branca e uma calça bege.
Loren estava presente, numa tensão tão ostensiva que Angelo especulou se ele não tomara alguma coisa. Não importava o que vestisse, Loren Terceiro sempre se mostrava tenso e embaraçado, como um garoto que vai à escola no uniforme de escoteiro só para descobrir que a Semana do Escoteiro é a seguinte. O traje de golfista que ele vestia agora parecia deslocado na presença de Número Um.
O fator interessante ali era Roberta. Angelo já ouvira falar dela, mas nunca a encontrara pessoalmente. Seu nome todo era Roberta Ford (não aqueles Fords, ela se apressava em ressaltar) Ross Hardeman. Era uma mulher admirável, não havia a menor dúvida, embora ele desejasse poder pensar numa palavra melhor.
Poucas vezes vira uma mulher com uma segurança tão ousada.
Não era o tipo de mulher que Angelo imaginava que poderia se ligar a Loren.
Além de sua segurança genuína, era fisicamente uma mulher imponente. Angelo se interessou pelo corte dos cabelos: curtos e eriçados até o topo das orelhas, longos por cima. Não era bonita, mas tirava o máximo de proveito do que tinha e era sem dúvida atraente. Vestia uma calça comprida branca bem justa, esticada por estribos, com uma blusa pólo vermelha estufada por um busto formidável.
— Imagino que ainda acredita naquele carro esquisito que nos aconselha a fabricar — comentou Número Um.
Angelo empinou um pouco o queixo.
— Teria até um bom nome? F-Car.
— F de Fodido — murmurou Número Um. — Você veio aqui para contar piadas ou para falar sobre um carro?
— Vim aqui para uma visita social — respondeu Angelo. —
Não vim para falar de negócios.
— Loren — disse Número Um —, providencie para que Angelo receba um cheque de vinte e cinco mil dólares dentro de uma semana. Honorários de consultoria. Com isso, podemos falar de negócios.
— Não me ofereci para falar de negócios por qualquer preço
— protestou Angelo.
— Não seja teimoso. — Número Um virou-se para Roberta.
— Está vendo o que temos de suportar cada vez que ele nos visita? Não vamos fazer um jogo, Angelo. Queremos a sua colaboração.
— Que história é essa? Querem a minha colaboração? Desde quando?
Número Um virou-se e olhou para a chuva por meio minuto, enquanto os outros especulavam se ele perdera o fio da conversa.
— Lembra da ocasião em que eu lhe pedi que fosse minhas pernas? — perguntou ele a Angelo.
— E depois me despediu quando fiz um trabalho bom demais.
O velho sacudiu a mão, impaciente.
— Isso não importa. Diga-nos como fabricar o tal carro.
— O tempo passou desde que eu lhe disse o que tinha de fazer para salvar a Bethlehem Motors. A GM vem trabalhando num carro eficiente em combustível, com um motor transverso.
A Chrysler também. Portanto, sr. Hardeman, vai partir atrasado.
— Já sei, já sei. Li seus relatórios de Wall Street. Sei o que pensa. A questão é outra: o que nós vamos fazer?
Angelo olhou para Roberta, adivinhando que ela o escutava com a mente mais aberta que Número Um ou Número Três.
— É muito simples — respondeu ele. — Não podem fabricar o carro agora. Ao concluírem o projeto e aprontarem a fábrica para produzir o que for necessário, a concorrência já terá dominado o mercado. Mas há um meio de entrar na briga.
— Diga qual é — murmurou Loren, incapaz de esconder o desdém em sua voz.
— O motor e o sistema de tração de que precisam estão sendo fabricados pela Shizoka. São ótimos, produzidos com os mais altos padrões de qualidade. Eles não vendem muitos carros nos Estados Unidos porque... bom... o Chiisai é muito pequeno ou muito grande, dependendo da perspectiva. O mercado americano neste momento é para dois tipos de carro. Os compradores querem o carro da família... a idéia ainda sendo a de que se deve espremer seis pessoas num carro para um passeio numa tarde de domingo... ou o compacto, de bom desempenho. Com pouco trabalho relativamente, o Chiisai pode ser reformulado para ter uma carrocería em que caberão cinco americanos de tamanho médio, talvez mesmo seis. Se a carroceria for projetada com habilidade, vai se tornar atraente... isto é, estimulante, romântica.
— Conheço o Chiisai — interrompeu Loren, impaciente. —
Mas o que isso tem a ver com a Bethlehem Motors?
— Formam uma sociedade com a Shizoka — explicou Angelo. — Talvez possam até fundir as duas companhias, embora eu não creia que isso seja necessário. Juntos projetam, fabricam e vendem um único carro. No Japão, será o que a Shizoka quiser chamá-lo. Na América, o nome que vocês escolherem. E na Europa pode ter um terceiro nome. Mas será sempre o mesmo carro: tamanho médio, de bom desempenho, mas não com uma potência exagerada, sólido, fabricado com os mais altos padrões de controle de qualidade...
— Sociedade! — gritou Número Um. — Fusão! Com as porras dos japoneses! Prefiro afundar!
Loren sorriu, condescendente.
— Ora, Angelo, por honorários de consultoria de vinte e cinco mil dólares você pode com certeza encontrar algo melhor do que isso.
— Enfiem o dinheiro no rabo, Hardemans! — falou Angelo.
— Não preciso dele e não preciso de vocês!
— Nunca foi tão esperto quanto pensava que era — resmungou Número Um.
Angelo sacudiu a cabeça para o velho, tolerante.
— Meu caro amigo, em 1939, quando reformou meu carrinho de brinquedo, estava vivo com idéias e possibilidades, embora já imobilizado numa cadeira de rodas. Seu problema... e não posso culpá-lo por isso, já que viveu por tempo demais e de uma maneira muito dolorosa... é que morreu para qualquer coisa desde... ora, desde 1939. Sua companhia não vai sobreviver a você, porque perdeu toda a seiva. E nunca passou nem um pouco para seu filho e neto.
Número Um fitou Angelo em silêncio por um longo momento. Seu rosto manteve-se afável, sem deixar transparecer qualquer emoção ou pensamento. Ao final, ele acenou com a cabeça e murmurou:
— Adeus, Angelo.
2
Angelo verificou os horários dos vôos. Poderia ter voltado a Nova York naquela noite, mas envolveria uma corrida para o aeroporto e uma troca de avião em Atlanta. Em vez disso, decidiu passar uma noite tranqüila, depois de um bom jantar.
Telefonou para Cindy, disse que ela ficaria contente em saber que não recebera nenhuma oferta dos Hardemans. Dissera adeus para Número Um, e achava que nunca mais tornaria a vê-lo.
Pelas visitas anteriores a Palm Beach, Angelo sabia que se podia comer muito melhor fora da Casa Hardeman. Não era lá muito agradável sentar àquela mesa de jantar sombria, diante daquele velho ainda mais sombrio. Foi para um restaurante, sentou a uma mesa numa janela que dava para o mar, iluminado por potentes refletores. Tomou piñas coladas, depois pediu uma lagosta com uma garrafa de vinho branco. A garçonete disse que o vira pilotar em Daytona. Acrescentou que tinha um Pontiac Firebird no estacionamento e adoraria ser uma pas-sageira com ele ao volante. Angelo agradeceu e disse que teria o maior prazer em levá-la para um passeio num dia que não tivesse bebido.
Ele tinha uma garrafa de scotch em seu quarto, mas já bebera demais. Tirou as roupas e estendeu-se na cama. Havia uma parti-da de futebol americano profissional na televisão, ele ajeitou os travesseiros e começou a assistir.
Estava assistindo há menos de quinze minutos quando ouviu uma batida na porta.
— Quem é?
— Roberta Hardeman.
Angelo ficou consternado, mas gritou:
— Espere um minuto! Tenho de me vestir!
Ela vestia-se da mesma maneira como se apresentara na lanai, calça comprida justa e blusa estofada.
— Posso entrar? Preciso conversar com você.
Angelo acenou com a cabeça e deu um passo para o lado da porta.
— Onde está Loren?
— Dormindo o sono dos inocentes. Ou, em outras palavras, apagou. Ele nunca sabe o que perde.
Angelo indicou o sofá com um movimento de cabeça, mas sentou na poltrona.
— Sobre o que temos de conversar, sra. Hardeman?
— A primeira coisa é que sou Roberta, não sra. Hardeman.
Pode me oferecer um drinque? Ou devemos ir para o bar?
— Tenho scotch. Sem gelo.
— É um pecado capital pôr gelo no scotch.
— Água?
— Uma colher de chá.
— Admire meu copo de cristal — comentou Angelo, enquanto entregava o uísque num copo de plástico. Ele também se servia — Saúde. Agora, sobre o que podemos conversar?
— Pode acreditar que eu amo Loren Hardeman?
— Não.
— Sei por que pensa assim. Sei o que ele fez com você. Mesmo tendo ouvido a história do ponto de vista de Loren, acho que foi um ato desprezível. Mas... não casei com ele por dinheiro.
Tenho meu próprio dinheiro.
— Bom para você. Pode precisar. — Angelo falou com frieza e tomou um gole do scotch. Roberta contemplou seu copo por um momento, depois bebeu também.
— Independente do que pensa dele... e tem o direito de pensar o que desejar... não quer matá-lo. Estou certa?
Angelo deu de ombros.
— Não se preocupe. Se algum dia pensei em procurar meus amigos da Honrada Sociedade para me livrar dele, foi há muito tempo. Já curei. Tenho uma vida nova.
Roberta sorriu e balançou a cabeça.
— Ele também.
Angelo fitou-a de alto a baixo, sem a menor sutileza no que fazia: uma avaliação grosseira e profunda.
— Aposto que sim — disse Angelo.
— Aprecia o material — murmurou ela.
— Claro que sim.
— Outro assunto, para mais tarde. Neste momento, quero conversar com você sobre Loren. Sei o que ele fez com você, mandou aplicar uma surra brutal, deixou-o bastante ferido, cheio de cicatrizes. Esse é o preço que você pagou pelas manipulações inconcebíveis de Número Um. O velho usou você. Sabe disso.
Também usou Loren. Tem alguma idéia do preço que Loren pagou?
— Diga-me.
— Ele foi emasculado. O velho deixou-o no comando da companhia, mas primeiro cortou um dos seus colhões. Foi o que ele também fez com Número Dois... só que cortou os dois colhões, como sabe muito bem. O velho é diabólico, Angelo.
Angelo balançou a cabeça.
— Velho, frustrado, infeliz... concordo. Diabólico? Acho que não.
— Gosta mesmo dele, não é?
— Eu o admiro. Ele foi mais esperto do que eu. Não posso deixar de ter algum respeito por um homem que consegue isso.
Foi o motivo pelo qual nunca senti o menor respeito por seu marido. Ele nunca pôde ser mais esperto do que eu. Tentou me matar, mas não conseguiu ser mais esperto do que eu.
— Sua modéstia é irresistível. — Roberta tomou o resto do scotch em seu copo. — Posso tomar mais um pouco?
Ele se levantou e levou os copos para o banheiro, onde a garrafa esperava.
— Angelo — disse Roberta, quando ele ainda se encontrava no banheiro —, Loren vai ser castrado de novo. Compreende isso?
— Não posso dizer que sim. Nem que me importo.
— O velho entregou a ele o controle da Bethlehem Motors...
— Família — murmurou Angelo, enquanto voltava com os novos drinques. — Por maiores que fossem suas deficiências, Loren era um Hardeman.
— Mas não era Número Um. Ninguém jamais será Número Um. O velho não permitirá que isso aconteça. Você é tão bom quanto ele, e o velho sabe disso. Foi o motivo pelo qual o despediu. Loren é uma aposta mais segura. Nunca será bastante grande para ofuscar o nome do fundador. Assim...
— Assim o quê?
— Assim ele entregou a Loren o controle de uma companhia afundando. Número Um fez a Bethlehem Motors. Número Dois não foi bastante homem para comandá-la. Número Três...
Loren... vai presidir o colapso, o que cortará seu testículo remanescente.
Angelo deu de ombros.
— Você já fracassou, Perino? Já fracassou de verdade? Sabe como é? Duvido que saiba. Nunca aconteceu com você.
— E o que quer que eu faça? Por que veio me procurar, Roberta?
Ela se levantou, foi até a janela, abriu as cortinas, olhou para a estrada movimentada além do motel. Num gesto abrupto, ela puxou a blusa vermelha por cima da cabeça e virou-se para fitá-lo, mostrando o imponente sutiã que era necessário para aprisioná-la e moldá-la.
— Ahn... Roberta... nós...
— Muito bem, não nós. Não está escrito nas estrelas. Mas, por favor, deixe-me ficar mais confortável.
Ela estendeu as mãos para as costas, abriu o sutiã, soltou os seios: eram os maiores que Angelo já vira sem serem aberrações.
Eram seios de carne, não apenas gordura. E se mantinham suspensos, ao invés de caídos.
— Tem alguma idéia de como me sinto depois de usar um arreio assim por doze horas?
Roberta pegou a blusa, tornou a vesti-la.
— Você tem de usar um suporte adético, Angelo?
Ele foi à cozinha, pegou a garrafa de scotch, deixou-a na mesa entre os dois. Não sentira qualquer atração enquanto Roberta estivera moldada com firmeza por náilon e borracha, mas aqueles peitos tremendos, movimentando-se em liberdade dentro da blusa, agora lhe provocavam uma ereção.
— Perguntou por que eu vim aqui, não é? — Ela pegou a garrafa e serviu-se de outra dose. — Vim aqui na esperança de que pudéssemos salvar Loren.
— Não posso salvá-lo, mesmo que eu quisesse. E por que haveria de querer?
— Pode salvar a companhia, Angelo. O velho sabe que pode.
Sabe que você tem razão sobre o motor transverso e o acordo com a empresa japonesa. Loren sabe que você está certo. E vão lhe pedir para salvar a Bethlehem Motors. E quando você o fizer, terá emasculado Loren com a mesma eficácia do velho. Terá feito o que ele não foi capaz de fazer. O pai dele se matou. Loren é capaz de fazer a mesma coisa.
— Devo me importar? — indagou Angelo.
— Não é um homem tão duro quanto quer parecer, Angelo Perino. Vai me ajudar a salvar a vida de meu marido... se eu suplicar.
— Não quero que me suplique, Roberta.
— Ainda bem. Prefiro fazer uma proposta de negócios. Com benefícios mútuos. Para você e para mim.
— E para Loren?
— Depende do quanto Loren será capaz de provar que é homem.
— Não consigo perceber qualquer coisa benéfica para mim em me envolver de novo com os Hardemans.
— Quer construir um carro, não é, Angelo? É como o velho nesse ponto. Pode ser um consultor, pode ser isso ou aquilo, mas nada o deixa com mais tesão do que a perspectiva de construir um carro... da mesma forma como o velho produziu o Sundancer, ou Lee Iacocca produziu o Mustang. É por isso que Número Um não permite que Loren pare de fabricar carros. Uma dúzia de virgens sob suas cobertas não o esquentariam tanto quanto a possibilidade de construir um novo carro.
— Ele tem uma maneira estranha de dizer isso.
— Você e eu não nos importamos com o que pode despertar tesão num velho, Angelo. Você está interessado, assim como eu, no que desperta o tesão em Angelo. Os automóveis são a sua vida, Perino. A Bethlehem Motors é a única companhia em que pode pôr as mãos. Pode até...
— O velho...
— Estará morto em dezoito meses, se não mesmo antes.
— E Loren...
— Ele fará o que eu mandar.
— Então como vamos evitar que ele fique emasculado? Se eu me importasse.
— Nós trabalhamos juntos. Você me dá as idéias. Eu passo as idéias para ele na cama. Loren irá para o escritório cheio de entusiasmo por suas idéias.
— Ele é tão tolo assim?
Roberta sorriu.
— Você o conhece há mais tempo do que eu.
— Tenho a sensação... de que estou sendo sugado para um redemoinho.
— Eis uma boa palavra — murmurou Roberta, com um sorriso malicioso. — "Sugado." É o que vai acontecer com você. E mais.
Ela tornou a tirar a blusa e desta vez jogou-a para o outro lado do quarto.
— Vamos sacramentar o acordo entre nós... o que ninguém mais saberá sobre nós.
— Roberta, eu...
— Não me transforme numa inimiga, Angelo. Quero que você faça seu carro. Posso ajudá-lo ou posso bloqueá-lo. O Mustang não foi chamado de Lee, o novo carro não terá o nome de Angelo. Mas todo mundo saberá quem o fez.
Ela continuou a se despir e ficou nua em poucos segundos.
— Essa parte não é necessária... — murmurou Angelo.
— É um acordo da maior importância. E não pode ser escrito. Como o sacramentaria? Com um aperto de mão? Não. Ei...
lembra como costumavam demarcar as linhas de levantamento topográfico na Inglaterra medieval? Levavam um garoto para um ponto essencial da linha, mandavam que baixasse a calça e açoita-vam seu rabo até sangrar. Dessa maneira, podiam ter certeza de que ele jamais esqueceria o lugar. Não era apenas um lugar que haviam lhe mostrado; era o lugar em que fora açoitado e jamais o esqueceria. Pois você não vai esquecer esta noite. Nem eu. Não vamos esquecer o que combinamos na noite em que...
Angelo acenou com a cabeça.
— Tem razão. Será memorável.
— Só para ter certeza, quero que venha até o sofá. Vou deitar entre suas pernas, e quero que me espanque até deixar minha bunda vermelha.
— Roberta...
— Falo sério, Angelo. Até eu chorar e suplicar que pare. E
depois nos lembraremos de nosso acordo. Faremos em seguida duas ou três coisas que reforçarão nossa memória. Uma trepada com imaginação, Perino. Nada das coisas habituais.
Ela virou a cabeça para trás e riu, depois do primeiro tapa de Angelo em sua bunda. Estremeceu com o segundo, rangeu os dentes e fez uma careta depois disso. Com o tempo, começou a chorar, mas Angelo não parou, porque ela não suplicara.
O que Roberta acabou por fazer. Ainda chorando, ajoelhou-se e sugou o pênis entre os lábios. Chupou-o tanto que Angelo não teve certeza se poderia corresponder ao que ela prometera em seguida.
Na cama, Roberta grunhiu por baixo dele, soltou alguns gritinhos, num tom gutural.
— Ahn... Angelo é um homem de aço!
3
Ele acordou na manhã seguinte com a campainha do telefone. Era uma secretária, dizendo que o sr. Hardeman gostaria de vê-lo antes que pegasse o avião para Nova York. Seria possível?
O avião partia às dez e dez, e com isso ele tinha tempo para ir até a casa na praia e ver o velho outra vez.
Mas não foi o velho quem o recebeu. Foi Loren. Ele esperava na lanai, com um desjejum de café, biscoitos dinamarqueses e frutas.
O tempo melhorara e o sol do início da manhã era vermelho por cima das ondas que se desmanchavam de mansinho na praia.
Aguas-vivas encalhadas morriam lentamente, enquanto as ondas na maré baixa deixavam de alcançá-las.
— Número Um está dormindo — disse Loren.
— Na sua idade, ele tem esse direito.
— Serei breve, Angelo. Número Um e eu gostaríamos de afirmar que você está enganado sobre o carro novo, mas ambos sabemos que tem razão. Também temos de reconhecer que está certo sobre o negócio com a Shizoka. É óbvio que Número U m n ã o está mais projetando carros, nem negociando acordos. Minhas habilidades não se concentram na engenharia automotiva ou em negociar com executivos japoneses. Precisamos de você. Aí está. Já pensou alguma vez que poderia me ouvir dizer isso?
— Não preciso de você, Loren.
— Nunca precisou. É o tipo de cara que seria um sucesso em qualquer coisa que resolvesse fazer. Mas o que realmente lhe dá tesão é a idéia de fazer um carro novo, alguma coisa muito diferente. Lee Iacocca foi o responsável pelo Mustang. Seu nome não está nele; é um carro Ford, não Iacocca; mas todos sabem que foi ele quem o fez.
Quase que exatamente as palavras de Roberta, pensou Angelo. Ela voltara para casa depois do desempenho da noite anterior, acordara Loren, dissera tudo... a menos que já o tivesse preparado antes. O que quer que fosse, Loren enunciava as palavras dela como um boneco de ventríloquo.
— O que me deixa com tesão é ver esta companhia sobreviver e prosperar — continuou Loren. — Angelo, você tem bons motivos para me odiar. E eu tenho algumas razões para odiá-lo.
Mas não podemos deixar tudo isso para trás? Você quer fazer o carro em que acredita. A GM, a Ford e a Chrysler não vão lhe dar essa oportunidade. Nós daremos. Número Um e eu precisamos de um cara que possa fazer o carro que salvará a companhia. Não é nada fácil para mim, mas estou lhe pedindo. Volte, Angelo. Faça o carro.
— Vice-presidente de pesquisa e desenvolvimento — disse Angelo. — Não como um emprego, mas como um consultor. Um contrato de cinco anos. Se não der certo, terão de me pagar os cinco anos. Uma opção de compra de ações. Por escrito. Um outro acordo, tácito, não escrito... de que você não se meta, Loren. Receberá o crédito por ter sido bastante esperto para contratar Angelo Perino. E eu terei o crédito por criar um carro novo para você.
— Você diz as coisas de uma forma um tanto brusca.
— Tem alguma emenda para a proposta?
— Aceito tudo. Quanto em dinheiro?
— Digamos meio milhão de dólares por ano. Como Número Um vai reagir?
— Angelo, como Número Um vai reagir não contará muito.
Por quanto tempo mais ele pode viver? Ou quanto tempo mais antes que ele entre em coma? Agora, Angelo, somos nós dois, você e eu. É assim que tem de ser. Não precisamos mais de Número Um.
VIII
1977
1
Durante suas cinco visitas ao Japão em 1976, Angelo aprendeu a gostar do país mais do que na primeira visita. Por duas vezes levou Cindy junto. Ela fez um acordo com um marchand japonês para realizar uma exposição individual, em sua galeria em Nova York, de Cho Seichi, um escultor que fazia refinados bronzes pequenos de aves, animais terrestres e flores. Não pôde acompanhar o marido em sua primeira viagem ao Japão em 1977 porque esperava o terceiro filho para as próximas semanas.
O primeiro filho, John, nascera em 1973, e a filha, Anna, em 1975. Permanecendo em casa durante os meses finais da terceira gravidez, Cindy começou a procurar uma casa no condado de Westchester ou no outro lado da fronteira, em Connecticut. Angelo esperava que ela o levasse a ver algumas casas assim que voltasse do Japão.
Embora tivesse uma sala na fábrica em Detroit, ele não passava mais que dois dias por semana ali. Nos outros dias trabalhava em seu escritório em Nova York. Era parte do seu acordo com Loren não ter de passar todo o tempo em Detroit nem se mudar com a família para lá.
Cada vez que chegava sozinho em Tóquio, especulava se Betsy iria bater em sua porta. Ela acompanhava seu roteiro de viagens.
Uma noite fora procurá-lo em seu quarto em Chicago, outra noite em seu quarto em Dallas.
As negociações com a Shizoka transcorreram mais devagar do que ele previra. Foram concluídas agora e o negócio estava fechado. Os problemas a serem resolvidos de imediato envolviam as modificações no sistema de tração da Shizoka para que se ajustasse ao novo carro (problemas a serem resolvidos no Japão) e a fabricação de um chassi e carrocería que se ajustassem ao sistema de tração modificado (problemas a serem resolvidos nos Estados Unidos).
Angelo fez um esforço para aprender japonês, mas logo desistiu de falar a língua com seus novos associados. Descobriu que os japoneses preferiam ouvi-lo falar em inglês a qualquer coisa que não fosse um japonês perfeito e idiomático. Mais e mais ele compreendia o que diziam entre si, mas tomava o cuidado de não deixar que percebessem.
Keijo Shigeto era um engenheiro mecânico de trinta e nove anos, um dos principais colaboradores no projeto dos motores da Shizoka. Tinha sete anos de idade a 6 de agosto de 1945 e vivia na pequena cidade de Matsuyama, a cerca de vinte e cinco quilômetros do Mar Interior de Hiroxima. Lembrava um clarão intenso e prolongado de luz rosa, depois uma estranha nuvem se elevando ao norte, parecendo um palmeira para ele, não um cogumelo.
Aos seus olhos de criança, era uma nuvem cheia de raios, devia ser o centro de uma enorme tempestade. A mãe levou-o para dentro de casa. Ao olhar de novo, a nuvem começava a se desfazer e se deslocar para oeste.
Era um homem bonito, com fios brancos já aparecendo nas têmporas. Orgulhava-se de seu inglês, mas aceitava qualquer cor-reção. Quando Angelo ensaiou umas poucas frases em japonês, Keijo não pôde conter o riso.
Numa das visitas, Keijo convidou Angelo a jantar em sua casa.
Angelo não sabia se o jantar seria formal ou informal, mas aceitou o convite para se despir tanto quanto Keijo — ou seja, ficou apenas de cuecas — e usar um quimono de seda. Tirou as meias, como Keijo, e pôs meias brancas.
Angelo, Keijo, a mulher Toshiko e os filhos sentaram no chão de pernas cruzadas, a uma mesa baixa. As duas crianças, de onze e treze anos, falavam um inglês americano perfeito. Toshiko, pequena e bela, usava o traje japonês tradicional. Não falava inglês, mas tinha muitas perguntas sobre os hábitos e costumes americanos.
Keijo traduzia e iniciava cada pergunta com "A sra. Keijo gostaria de saber..." Cada resposta era recebida com uma risadinha nervosa. Angelo compreendeu que a risadinha era um meio polido de registrar e agradecer a resposta.
A refeição, servida na maior parte por uma criada atenciosa, foi deliciosa.
Vários meses depois, Keijo levou Angelo a uma casa de gueixas. O jantar ali foi muito mais formal. As gueixas toca-ram instrumentos de corda, cantaram em vozes artificiais de boneca, mantiveram uma conversa amena. A gueixa designada para Angelo falava inglês mais ou menos. Era linda, é claro...
no estilo formal das gueixas, que era um pouco desagradável para Angelo.
— Você gosta de Jack Kerouac? — perguntou ela, cordial.
— Nunca li nenhum de seus livros.
Ela franziu o rosto, como se estivesse chocada, logo se recuperou, sorriu e acrescentou:
— Sim. Não muito bom. Qual seu predileto?
— Para ser franco, sou bastante antiquado para gostar de Mark Twain mais do que qualquer outro escritor americano.
— Ah, sim, sim. Muito apreciado no Japão. Gosta de beisuboru?
Beisebol. Ele disse que gostava.
— Ah! Gosta Sanders Kewfack?
— Sandy Koufax. Gosto.
O sorriso se animou.
— Já viu o teatro kabuki?
— Não, mas tenho vontade.
— Deve ir. É lindo.
Quando chegou o momento, ele e Keijo foram embora. As gueixas — ou pelo menos aquelas gueixas — não estendiam sua hospitalidade além do jantar e saque, canções e conversa. Keijo perguntou-lhe no táxi se precisava de uma mulher para a noite, e Angelo respondeu que não.
E não precisava porque Betsy o esperava no hotel.
Betsy se tornara um problema para sua família e para ele. Separada de Max van Ludwige, sentindo um desprezo total pelo pai, quase tanto quanto pelo bisavô, ela parecia aspirar a ser uma das beautiful people. Além de algum dinheiro Hardeman deixado pela avó Sally e a mesada que recebia de Número Um, Betsy tinha um generoso acordo com Max van Ludwige. Considerava-se independente, e se tomasse cuidado com seus gastos, poderia permanecer independente.
Truman Capote escreveu a seu respeito:
Muito mais bonita do que Dóris Duke jamais sonhou ser, mas menos elegante e decididamente menos rica, ela parece procurar seu lugar, convivendo com pessoas abaixo de sua dignidade... algumas até abaixo da dignidade de qualquer um. Já foi vista, por exemplo, na companhia do Greaseball Junkie, o viciado ensebado. (É Elvis Presley, se alguém não sabe.) Melhor é o que pode ter sido uma breve ligação com William Holden. Ela bebe muito, viaja muito e dizem que tem escrúpulos de Lucrécia Bórgia. Tudo isso a torna uma mulher de vinte e quatro anos excepcionalmente interessante. Se ela se mantiver longe dos bebedores de Budweiser, pode ter um futuro fascinante em seu futuro.
Betsy mantinha uma casa em Londres, onde o pequeno Loren van Ludwige, de cinco anos, a via com uma freqüência surpreendente, considerando o estilo de vida descrito por Capote.
Mamãe viajava, é verdade, mas voltava e ficava em casa por semanas a fio, um tempo em que se devotava ao filho. Quase nunca saía antes do pequeno Loren dormir, e durante o dia o levava em longos passeios pelos parques de Londres e em cruzeiros pelo Tâmisa. Quando foi convidada ao iate de Richard Burton e Elizabeth Taylor, ancorado no Tâmisa, um pouco acima da Torre, ela levou o filho. Chamava-o de Loren Quatro e insinuava aos entrevistadores que ele sucederia o avô como principal executivo da Bethlehem Motors.
Jogava vinte-e-um nos clubes de Londres e irritava a administração por vencer. Já fora levada à presença de um juiz por dirigir alcoolizada e perdera a carteira de motorista... e vendera o carro. Os tablóides a adoravam, pelos decotes baixos, saias altas e disposição de parar por um instante e sorrir para as câmeras.
Número Um pouco sabia disso, mas se enfurecia com o que tomava conhecimento. Loren ficava lívido de raiva com as histórias que vinham de Londres.
Às vezes ela desaparecia. Naquela ocasião, conseguira realizar essa façanha, e nem os tablóides nem os Hardemans sabiam onde ela se encontrava. Em Tóquio.
3
— As gueixas o deixaram nas cinzas? — perguntou ela, quando Angelo entrou na suíte.
Betsy sentava no sofá da sala, praticamente nua, usando apenas uma sumária calcinha branca.
— Não parece ser parte do serviço — disse Angelo.
— Ouvi dizer que elas metem giletes na xoxota, e se algum cara enfia...
— Betsy!
Ela deu de ombros.
— Provavelmente não é verdade.
Angelo serviu-se de um scotch. Tirou a gravata e o paletó, sentou ao lado de Betsy e acariciou-lhe os seios.
— Tem mesmo negócios a tratar aqui, Angelo? Ou veio apenas para se divertir, pela oportunidade de ficarmos juntos?
— Tenho negócios aqui.
— Fale-me a respeito. Preciso saber. Não sou estúpida em questões de negócios, como era minha mãe, como Anne é.
— Uma das primeiras coisas em que temos de pensar é na conversão da Bethlehem Motors ao sistema métrico. Por algum tempo, pensei que poderíamos fabricar os sistemas de tração para combinar com carrocerías montadas de acordo com as medidas inglesas. As complexidades disso se mostraram insuperáveis. A Shizoka nem quer saber da conversão a polegadas. Não havia sentido em levantar o problema. Por isso, tudo no novo carro será no sistema métrico. Por sorte, não temos de reformular toda a operação em Detroit, porque os motores e tudo entre os motores e as rodas serão fabricados no Japão. Mas precisamos alterar os equipamentos que produzem chassis e carrocerías. A proxima pergunta é a seguinte: de onde tiramos o dinheiro?
— De onde? — ela perguntou.
— Entrei com algum dinheiro meu. Peguei ações em troca.
Loren e Número Um não ficaram muito satisfeitos, mas eu não ia dar de presente à companhia. Convenci um banco de Nova York a entrar com mais algum. A companhia está no limite. Em termos de finanças pessoais, acho que se poderia dizer que a companhia está lisa.
— Como será o carro? — ela quis saber.
— Diferente de tudo o que já se fabricou em Detroit. Compacto, mas não tão compacto quanto um Falcon ou um Corvair.
A antiga ênfase nas curvas será substituída por uma ênfase nos ângulos. O capô será inclinado para a frente. O encosto do banco traseiro poderá ser dobrado para a frente, aumentando o espaço de bagagem. Será mesmo um carro diferente.
— Como o velho e meu pai estão reagindo?
— Número Um insiste em devolver os desenhos, arredon-dando todos os ângulos.
— E meu pai?
— Não se intromete, como prometeu. Mas ferve de raiva, não tenho a menor dúvida. Olho para trás a todo instante.
— Não confie nele, Angelo. Lembre como ele tramou antes.
Lembre o que fez com você. Meu pai odeia você. Juro que é verdade. E agora ele tem aquela mulher, Roberta. Ela é mais esperta do que meu pai jamais sonhou ser. E mais dura. Domina-o por completo.
Angelo sorria
— Presumo que você não gosta dela.
— Há uma herança em jogo, Angelo. De Anne, minha e de meu filho. Meu bisavô tem falado em deixar todas as suas ações da Bethlehem Motors, mais todo o resto que possui, num fundo de investimentos da família Hardeman. Meu pai, é claro, seria um dos administradores. Teria testas-de-ferro em quantidade suficiente para assumir o controle do fundo, mesmo que Anne e eu também integrássemos o controle de administração.
Eu não ficaria surpresa se Roberta fosse designada para o conselho.
— Só estou interessado em fabricar carros, não nos problemas da família Hardeman.
— Não vai fabricar carros se meu pai assumir o controle completo da companhia — argumentou Betsy.
— Ele não vai deixar a companhia afundar, como aconteceria se repudiasse o acordo que fez comigo. O banco só concedeu o dinheiro à companhia porque eu estou no comando.
— A capacidade de ser insidioso de meu pai foi perigosa-mente multiplicada pelo casamento com Roberta. Não tenho certeza se ele não deixaria a companhia afundar só para arrastar você na queda. Poderia ser considerado um fracasso pelos outros, mas em sua mente não seria.
— Não esquecerei o que acaba de me dizer — declarou Angelo, encerrando o assunto.
— E agora você vai fazer amor comigo.
— Claro. Não posso resistir a você, Betsy. Bem que quero, mas não consigo.
— Sabe por quê? — perguntou ela.
— Porquê?
— Porque você sabe que eu o amo. Sem dúvida que tenho um bom corpo, mas o mesmo acontece com muitas outras mulheres que você já comeu e ainda comerá. Mas eu o amo, você sabe disso e não pode me repelir
Ele suspirou e balançou a cabeça.
— Tem razão. Não posso mesmo. E também não posso deixar minha esposa e filhos...
— Não vamos entrar nisso de novo. Não dispomos de tempo suficiente juntos para conversarmos a respeito. E agora vamos tomar um banho de chuveiro juntos, porque tem uma coisa que quero fazer.
Angelo levantou-se e puxou-a para ficar de pé também, depois abraçou-a e beijou-a.
— O que quer fazer? — sussurrou ele no ouvido de Betsy.
Ela começou a desabotoar a camisa dele.
— Quando era um adolescente cheio de tesão, alguma vez ouviu falar numa coisa chamada Volta ao Mundo? Fantasiou ter uma mulher a lamber todo o seu corpo, pela frente e por trás, das orelhas aos dedos dos pés? Pois é o que vou fazer com você. Nunca experimentei antes, e talvez minha boca fique ressequida antes de terminar, mas farei isso enquanto puder. Além disso, lembre onde já pus a língua antes. Eu me pergunto qual seria a sensação se molhasse a língua em conhaque primeiro.
— Já mergulhei o pau em conhaque uma vez. Arde.
— Mas conhaque em seu rabo pode arder de uma maneira deliciosa. Vamos descobrir.
Angelo acenou com a cabeça.
— Vamos descobrir...
4
No último dia da viagem ao Japão, Angelo viajou com Keijo Shigeto num trem veloz, no conforto de um compartimento de primeira classe, até Nagoya, que ficava a muitos quilômetros de Tóquio. Keijo oferecera-se para mostrar uma coisa que ele queria muito ver.
— Não podemos usar no carro que estamos fabricando agora — disse Keijo. — Mas num modelo futuro... acho que ficará impressionado.
Um motorista esperava-os na estação e levou-os para uma pista nos arredores da cidade, onde a Shizoka testava seus carros.
Era um lugar isolado, com uma cerca alta e espinheiros densos no lado de dentro, bem vigiado.
Um carro parecido com um Chiisai comum circulava pela pista em alta velocidade. Angelo já vira centenas de Chiisais, mas aquele era equipado com sensores que transmitiam informações para instrumentos de registro na garagem. Ele não pôde identificar todos os mostradores japoneses, mas conseguiu ler o suficiente para saber que o Chiisai desenvolvia nas retas mais de duzentos quilômetros horários. Parecia entrar depressa demais nas curvas, e Angelo se perguntou o que o piloto de teste estava querendo.
Keijo chamou o carro. O piloto saltou e aproveitou para ir ao banheiro.
— Está vendo? — disse Keijo. — Não tem uma aparência alarmante.
Angelo aproximou-se do carro e tocou-o. Bateu com os nós dos dedos. Pela sensação e o som, percebeu que não era de aço, mas de resina epóxi. Cada componente da carroceria era fabricado estendendo-se um pano sobre uma moldura, aplicando-se em seguida várias camadas de epóxi. A peça concluída era removida da moldura, que podia ser usada para a fabricação de outra, idên-tica.
Keijo avançou até o carro e bateu num painel da porta com um martelo de ponta redonda. O painel cedeu sob o golpe, mas depois voltou à posição original.
— Toda a carroceria é fabricada com o mesmo material, mas reforçada com uma armação de aço — explicou Keijo. — O material pode ser perfurado e juntado com rebites ou parafusos, mas quase todas as peças são presas com cola epóxi.
— Qual o teste que estão realizando agora? — perguntou Angelo.
— Acho que você sabe — respondeu Keijo, com um sorriso.
— Estresse. Entrando em curvas muito depressa para exigir o máximo da carroceria.
Keijo acenou com a cabeça, o movimento se originando da cintura, parecendo mais uma curta reverência.
— Vou lhe mostrar um carro submetido a um teste de acidente.
Num canto da garagem se encontrava um carro que fora lançado contra um muro. Estava quase tão intacto quanto qualquer outro carro que sofresse um impacto similar.
Keijo pegou uma chave de fenda e fez um arranhão profundo no pára-lama traseiro. O arranhão ficou quase invisível; o material era da mesma cor até o fundo. Ele pegou um pára-lama dianteiro solto e entregou a Angelo. O material era leve.
— Sai muito caro agora — informou Keijo. — Mas é possível desenvolver a tecnologia para reduzir o custo. Esperamos que nossos sócios americanos se juntem a nós nesse investimento.
Angelo não disse que a Bethlehem Motors não seria capaz de investir em qualquer coisa a menos que o carro que estavam fabricando agora conquistasse uma parcela respeitável do mercado e proporcionasse um bom lucro.
IX
1978
Foi difícil para a família Hardeman decidir se deveria assina-lar o centésimo aniversário de Loren Hardeman Primeiro, o Número Um, com qualquer tipo de celebração. Ele estava fraco e obviamente afundando pouco a pouco no longo sono. Por outro lado, ainda era capaz de ira e podia descarregá-la em qualquer pessoa que pudesse considerar como pouco deferente e pouco interessada em seu centenário.
Roberta tomou a decisão. Celebrariam com um jantar em família, a que só seriam convidados os parentes imediatos — Loren e ela, a Princesa Anne Alekhine, Betsy e seu filho, Loren van Ludwige. A Princesa Anne nem sequer respondeu ao convite. Betsy veio de Londres. Não pôde trazer o pequeno Loren porque ele contraíra sarampo. O grupo familiar que sentou à mesa, no final da tarde, era formado por Número Um, Número Três, Roberta e Betsy
O velho sentou à mesa de terno cinza, camisa branca, gravata listrada em azul e vermelho, com o chapéu-panamá na cabeça.
Betsy jogara tênis um pouco antes e não trocara o traje branco.
Roberta usava a sua calça comprida predileta, com estribo, com uma blusa de lamê prateado de mangas compridas. Loren parecia desconfortável num blazer azul e calça branca.
A Bethlehem Motors distribuíra um comunicado à imprensa, lembrando ao mundo que Loren Hardeman Primeiro, o fundador da companhia, completaria cem anos na terça-feira. Havia duas cestas grandes cheias de cartas e telegramas de congratula-ções numa mesa lateral. Número Um deu de ombros e recusou-se a ler qualquer mensagem.
Loren leu uma para ele. Era da Casa Branca, de Jimmy e Rosalyn Cárter. Número Um escutou, a cabeça balançando, e quando Loren entregou-lhe o cartão, ele empurrou-o para o lado e murmurou:
— Besteira.
Não deixou que Loren lesse os telegramas dos executivos da indústria automobilística.
— Mera formalidade — murmurou ele. — Sobrevivi aos avôs deles.
Número Um bebeu uísque canadense, como nos velhos tempos.
— Que diferença faz agora?
O jantar de aniversário veio de fora. Havia tantos alimentos proibidos para Número Um que há anos ele não contratava uma cozinheira, e limitava-se a comer as refeições insossas que a enfermeira punha na sua frente. Naquela noite, no entanto, ele se deliciou com uma salada de palmito e um pampo, acompanhados por um vinho do Reno gelado.
Quando terminaram de comer e tiraram a mesa, apareceu uma garrafa de conhaque. Mas Número Um não quis beber.
— Quero dizer uma coisa. — Ele empurrou a cadeira de rodas para trás, correu os olhos pela mesa, fixando-os por um momento em cada membro da família. — Acho que foi Maurice Chevalier quem disse que a única coisa pior do que viver até uma idade avançada é a alternativa. Se vocês têm ambições em viverem até minha idade, tratem de reprimi-las. Não vale a pena.
"Loren, aquele carro que Perino está desenvolvendo é uma merda. Vai parecer uma porra de uma caixa de morangos. Talvez até funcione direito; sempre leio que os motores japoneses são muito bons. Mas não vai vender porque não tem uma aparência moderna. Lembre-se disso... não se pode mais comprar um Studebaker, um Packard ou um Hudson, mas pode-se comprar um Sundancer. Isso acontece porque sempre mantive os garotos espertos na linha. Eu já fabricava carros antes do pai de Perino nascer.
"Roberta, cuide de manter a coluna de Loren dura. Sei que mantém outra coisa dura, mas a coluna é da maior importância.
"Betsy, tenho uma coisa para lhe dizer, mas deve ser em particular. Dê quinze minutos para a enfermeira me pôr na cama, e suba em seguida. Precisamos conversar.
Loren observou a enfermeira empurrar a cadeira de rodas de Número Um para fora da sala, depois virou-se para Betsy.
— Ele vai lhe dar um esporro.
Betsy pegou a garrafa de conhaque.
— Talvez não.
2
Número Um estava sentado na cama, recostado em quatro travesseiros grandes. Usava um pijama de flanela listrado azul e branco. Betsy pôde constatar agora por que ele sempre usava um chapéu. Havia apenas uma franja de cabelos brancos circulando a calva cheia de manchas de fígado, o que o fazia parecer ainda mais velho e mais frágil do que os seus cem anos.
O saiote branco e os sapatos de tênis de Betsy pareciam deslocados no que era sem dúvida a câmara-ardente do velho. Mas ela empinou os ombros, respirou fundo e pôs as mãos nos quadris. Número Um apontou para um aparelho numa mesa ao lado da televisão.
— Acha que pode fazer essa coisa funcionar?
Betsy olhou para o aparelho. Já vira dois ou três antes. O
aparelho podia gravar programas de televisão e projetá-los depois. Ela estudou os controles por um momento, antes de anunciar que não haveria problemas.
— Ótimo. Tire aquele dicionário grande da prateleira.
Betsy obedeceu. Havia uma fita por trás do dicionário.
— Ponha no aparelho.
Ela ajeitou a fita e empurrou para a frente a alavanca com a indicação de PLAY.
Uma imagem apareceu na tela da televisão. Era de uma cama vazia. Vozes começaram a soar...
— Você não deveria ter vindo aqui e sabe disso! — a voz de Angelo.
— Por que não? O velho peidorrento está dormindo. Meu pai também. E Roberta com ele. De qualquer maneira, eu quero você. Não pode nem imaginar o quanto.
Os dois surgiram na tela, Betsy ocupada a tirar as roupas. A luz era difusa, o foco impreciso, mas ninguém poderia duvidar de quem eram e o que faziam. Ela se estendeu na cama e abriu as pernas.
Angelo tirou a sunga, mas não a T-shirt branca, e montou nela.
— Isso aconteceu há quatro anos — murmurou Número Um.
— Já assisti à fita muitas vezes. Você é uma verdadeira vagabunda, Betsy. Eu gostaria de tê-la conhecido há cinqüenta anos.
— Sally era melhor?
— Sally... sua avó... era uma dama.
— E você era um cavalheiro...
O velho sacudiu a cabeça e fez uma careta.
— Angelo Perino — resmungou ele.
— Você e eu somos perfeitos juntos — sussurrou a imagem de Betsy na tela, a voz rouca captada por um microfone oculto.
Ela tomou um gole de conhaque e entregou o copo a Angelo. —
Tem de haver mais do que isso... mais do que uma noite furtiva nesta casa. Ora, Angelo, deixe-a! Dê uma boa metida e depois venha para mim.
— O melhor ainda está por vir — comentou Número Um.
E era verdade. Depois de mais um minuto de conversa sus-surrada, Angelo ficou de quatro e ofereceu sua bunda. Betsy comprimiu o rosto contra ela e, embora a câmera só focalizasse a parte posterior de sua cabeça, era óbvio que sua língua se projetava pelo ânus tanto quanto podia. Os grunhidos de ambos consti-tuíam uma prova adicional do que ela fazia.
— Pode desligar, Betsy. Essa era a parte mais interessante. Eu gostaria de ter conhecido uma mulher da sua laia mesmo há quarenta anos. Nenhuma mulher jamais fez isso por mim.
— Não posso acreditar...
— Gostaria de ver seu pai com Roberta? — perguntou Número Um. — Gostaria de vê-la batendo na bunda dele com o cinto? Ela deixa a bunda cheia de vergões. Gostaria de ouvi-lo dizer que é maravilhoso e suplicar por mais? Não pode acreditar, não é mesmo, criança, que eu permito que as pessoas tramem, conspirem, fodam e lambam um cu na minha casa sem fazer um registro? Como acha que consegui viver cem anos e enrabar todos os filhos da puta que...
— Eu ia chamá-lo de velho escroto, mas acho que já era escroto antes de se tornar velho. Quando se tornou escroto, bisavô? Foi quando comeu a mulher do meu avô e gerou Anne? Ou antes?
Número Um sorriu e sacudiu a cabeça.
— Gerei uma prole e tanto, hem? Meu filho era bicha e se matou. Meu neto... ora, ainda há esperança para ele. Pelo menos é insidioso e tem capacidade de odiar.
— Por que me mostrou isso? — indagou Betsy, acenando com a cabeça para o aparelho.
— Será conveniente como prova contra você se tentar contestar o novo testamento que meus advogados estão elaboran-do... e que assinarei antes da semana terminar Tem chamado seu filho de Número Quatro. Pois saiba que é apenas um sonho, sua pequena vagabunda. Seu filho nunca terá qualquer participação no controle da Bethlehem Motors. Deixarei tudo que possuo para um fundo. Você e Anne serão conselheiras, mas perderão em qualquer votação para Loren e os outros conselheiros.
— Terá de lutar com Roberta.
— Fiz um acordo com Roberta. Já pus um bom dinheiro num fundo em seu nome, com o que me livrarei dela. Roberta manipula Loren como se fosse um fantoche. Dirá a Loren que ele precisa de um herdeiro, mas ela não pode lhe dar. Assim que encontrar a garota certa para o propósito, ela vai se divorciar de Loren, deixar que ele case e engravide a garota, gerando o verdadeiro Número Quatro, que será um Hardeman. Quando isso acontecer, o fundo entregará todo o dinheiro a Roberta.
— Calculou tudo, não é, seu monte de bosta?
Número Um sorriu.
— Registrei que pediu a Angelo há quatro anos para deixar a esposa e ficar com você. Desde então, ele teve mais duas crianças com a esposa.
— Pensou em cada ângulo...
— Creio que sim. Os advogados estarão aqui com os novos documentos antes da semana terminar.
— Só esqueceu uma coisa, bisavó.
— É mesmo? O que foi?
— Eu.
Betsy arrancou um travesseiro de baixo da cabeça de Número Um e comprimiu-o contra o rosto dele. Número Um se debateu, mas era um velho fraco de cem anos, enquanto ela tinha vinte e seis, bastante forte para jogar três sets de tênis naquela tarde sem perder o fôlego.
Uma coisa boa aconteceu... boa para ele. Sentiu o velho se contrair e calculou que ele estava tendo um infarto. Talvez não morresse do travesseiro que não o deixava respirar. Talvez... Mesmo assim, Betsy manteve o travesseiro no lugar por cinco minutos. Quando removeu-o, Número Um já começava a ficar roxo, os olhos sem vida fixados no teto. Para ter certeza de que ele morrera, Betsy continuou sentada ao seu lado por mais dez minutos, mantendo o travesseiro sobre o rosto dele, gentilmente, para não causar nenhuma equimose.
3
Ela tirou a fita do videocassete e limpou suas impressões digi-tais dos controles.
Número Um não fizera aquela gravação sozinho. Alguém na casa ou em outro lugar cuidara disso para ele. Não seria bom se os investigadores descobrissem que só faltava a fita que a mostrava com Angelo. Betsy passou a puxar os livros. Encontrou mais meia dúzia de fitas. Gostaria de ver se uma delas realmente apre-sentava Roberta açoitando o rabo nu de seu pai. Só que não podia permanecer ali e rodar as fitas, e também não podia se arriscar a guardá-las.
Betsy saiu para a varanda do quarto de Número Um. A casa estava em silêncio, quase que completamente escura. Ficou imóvel por algum tempo, verificando se havia alguém lá fora. Não percebeu a presença de ninguém, e jogou todas as fitas no gramado.
Recolheu-as quando deixou a casa, alguns minutos mais tarde. Foi até a beira d'água. Inspirada, tirou o tênis e toda a roupa, saiu andando nua pela areia, carregando as fitas. Se alguém a visse e especulasse por que agia de maneira tão furtiva, a explicação seria a de que decidira fazer um passeio nua pela praia.
Se não conseguisse encontrar os remanescentes de uma fogueira, sentaria e arrancaria as fitas dos cartuchos. Depois, rasga-ria em pedaços, espalharia os fragmentos nas ondas.
Mas, cem metros ao sul, Betsy encontrou o que esperava descobrir: as brasas da fogueira de alguém. À beira da linha da maré havia pedaços de madeira e folhas de palmeira. Ela juntou um pouco de combustível. Mantendo o fogo baixo, tirou as fitas dos cartuchos — a sua em primeiro lugar — e largou nas chamas. As fitas queimaram depressa, fazendo um clarão um pouco mais intenso do que ela gostaria. Depois que todas as fitas arderam, ela deixou os cartuchos derreterem. Cobriu tudo com areia, para esfriar, esperou alguns minutos e levou para a água. Jogou os restos tão longe quanto podia, saiu da água e voltou para a casa.
4
Ninguém gritou. Quando ela desceu, pela manhã, Roberta interceptou-a antes que alcançasse a lanai e anunciou que Número Um morrera durante a noite de infarto fulminante.
— Pelo menos ele completou cem anos — comentou Betsy.
Ela não tinha mais nada a dizer. Já era meio-dia quando as formalidades foram concluídas. A notícia foi divulgada por todas as agências noticiosas: Loren Hardeman Primeiro morrera.
Um telegrama chegou de Nova York...
CHOCADO E CONSTERNADO AO SABER DA MORTE
DE LOREN HARDEMAN I. MINHA SIMPATIA PESSOAL
A TODOS DA FAMÍLIA E TODOS OS SEUS MUITOS
AMIGOS, ENTRE OS QUAIS ME INCLUO. ELE FOI UM
GIGANTE DA INDÚSTRIA AUTOMOBILÍSTICA, QUE
NUNCA MAIS SERÁ A MESMA SEM ELE.
ANGELO PERINO
X
1978
1
Amanda Finch, que a pintara nua, levou Cindy pela rua principal de Greenwich, Connecticut.
— Não sei, mas acho que me apaixonei por esta cidade —
comentou ela. — Há muitos artistas plásticos aqui. Algumas celebridades. Astros e estrelas dos esportes. Pessoal do show business.
A cidade é tranquila, de fácil convivência. Acho que você também vai gostar.
Cindy decidira que ela e Angelo precisavam deixar Nova York.
Adoravam o apartamento em Manhattan, mas concordavam que não era o lugar em que queriam criar os filhos. O pequeno John tinha cinco anos agora e precisava de mais vida ao ar livre do que os passeios pelos parques da cidade podiam proporcionar. Anna tinha três anos e era uma menina irrequieta. Morris era um bebê ruidoso e ativo, começando a andar, já exibia sinais de que em breve se ressentiria do espaço confinado de um apartamento. Cindy já procurara casas no condado de Westchester e em Nova Jersey.
Aquela era sua primeira incursão a Connecticut.
— Pode-se comprar qualquer coisa aqui — disse Amanda —, de um apartamento a uma casa na cidade, uma casa de madeira num terreno de meio hectare ou uma propriedade de um milhão de dólares.
Ela mesma residia num apartamento de cobertura num prédio de cinco andares, numa rua arborizada de construções em estilo edwardiano. Levou Cindy até lá e subiram no elevador. A sala principal do apartamento era uma estufa no telhado do prédio. Servia como o estúdio de Amanda. Havia dois quartos, um dos quais ela usava como sala, uma pequena cozinha e um banheiro. Amanda fez um café, levou Cindy para o estúdio, convidou-a a sentar num sofá.
Com um telhado de vidro e paredes também de vidro nos lados leste, norte e sul, o estúdio oferecia a luz ideal para um artista. Amanda instalara cortinas transparentes na parede de leste, para evitar que as pessoas no prédio mais alto no outro lado da rua pudessem ver suas modelos posando. Pelos outros lados, ninguém podia ver nada. Para o lado sul, a parede de vidro oferecia uma vista do estreito de Long Island e da praia norte da ilha. O
estúdio estava atravancado de cavaletes, paletas, pincéis, caixas de tubos espremidos, latas com panos, revistas, jornais, caixas de pizza e embalagens de sanduíches vazias.
Amanda ofereceu-se para ser beijada e Cindv beijou-a.
— Eu gostaria que se mudasse para cá, Cindy. Gostaria muito.
Cindy foi olhar o quadro inacabado no cavalete: um adolescente nu, no estilo realista de Amanda.
— Esse é Greg. Estará aqui a qualquer momento. É estudante, e assim que as aulas terminarem...
— Parece muito jovem — disse Cindy
— Tem dezesseis anos. Os pais me deram permissão por escrito para pintá-lo. A mãe às vezes o acompanha, e fica sentada aqui enquanto trabalho. Prefere que ele ganhe dinheiro para suas despesas pessoais como um modelo em vez de entregando jornais ou ensacando mercadorias no supermercado. Mas ele não posa para turmas, e duvido que eu queira pintar mais do que dois ou três quadros dele.
Amanda foi se postar atrás de Cindy, enlaçou-a, acariciou seus seios.
— Se você morasse aqui, poderia posar de novo para mim. E
eu alteraria um pouco seu rosto para que ninguém a reconhecesse.
A galeria vendera mais seis nus que Amanda pintara de si mesma. No momento, ela era a mais famosa modelo de artista do mundo, mais famosa como modelo do que como pintora. Havia um enorme espelho num cavalete de madeira num canto do estúdio.
— Não sei se quero tirar as roupas de novo na sua presença
— comentou Cindy. — Você já é bastante tesuda sem isso.
Amanda beijou-a na nuca.
— Eu amo você — murmurou ela.
Elas se falavam assim, mas Cindy tinha certeza de que a sinceridade de Amanda não era total. Não acreditava que Amanda estivesse apaixonada por ela no sentido romântico, apenas se sentia atraída e a considerava não só sua benfeitora, mas também sua melhor amiga. Deixara que Amanda beijasse seus seios e até a barriga, quando posava, mas nunca permitira que a língua desces-se além... e também, diga-se de passagem, Amanda não tentara.
Quando tinham um momento a sós, Cindy retribuía os beijos de Amanda, inclusive chupava seus mamilos oferecidos; mas nunca fizera mais do que isso.
A cafeteira apitou, Amanda foi até a cozinha e voltou com canecas fumegantes de seu café predileto, forte e puro.
— Vi nos noticiários que o sr. Hardeman morreu... o sr.
Hardeman original.
— Boa viagem — murmurou Cindy.
— Um infarto fulminante. Acho que ele tinha esse direito, na idade a que chegou.
— Ele demorou demais.
— Lembro que você disse um dia que ele viveria até que alguém o fuzilasse com uma bala de prata.
— A morte dele nos dá uma chance maior de lançar o novo carro — comentou Cindy. — Ele prometeu que não iria se intrometer, mas era o que sempre fazia, durante todo o tempo. Queria que o novo carro parecesse com o que ele achava que um carro deveria ser: como o que produziu há trinta anos. O carro teria barbatanas nos pára-lamas traseiros se dependesse dele.
— Assim que o novo carro for lançado tratarei de comprá-lo
— declarou Amanda, sincera. — Eu...
A campainha soou, e ela apertou um botão para abrir a porta do saguão.
— Deve ser Greg.
— Não podemos falar sobre os Hardemans ou o carro na frente dele — disse Cindy. — E acho melhor eu sair agora. Ele não vai querer posar...
— Não se preocupe. Greg é um garoto crescido.
Amanda apresentou-o como Gregory Hammersmith. O jovem modelo apertou a mão de Cindy e disse que tinha o maior prazer em conhecê-la.
— Amanda me disse que é sua amiga. Já ouvi falar do sr.
Perino, mas nunca o vi pilotar, nem mesmo na televisão.
— Greg, importa-se de posar com a sra. Perino aqui? — perguntou Amanda.
— Não tem problema.
Ele falou num tom tão despreocupado que por um momento Cindy pensou que suas próximas palavras poderiam ser "Quanto mais, melhor". Mas sem dizer mais nada, o rapaz começou a se despir. Tirou os sapatos, abaixou-se para puxar as meias, arrancou o blusão pela cabeça, baixou a calça jeans. Sem hesitação, tirou a cueca. Nu, subiu na plataforma baixa de modelo e assumiu a pose que exibia na tela inacabada. A atitude era solene, mas indiferente.
Cindy tentou não olhar com muita atenção, embora não fizesse qualquer diferença, já que a pose exigia que Greg virasse o rosto para o outro lado. Era um adolescente, o peito e os ombros ainda estreitos, embora músculos firmes nos braços e pernas sugerissem que era um atleta. A pele era clara. Não tinha cabelos no corpo, exceto uns poucos fios castanhos claros na virilha. Não dava para saber se ele estava inteiramente flácido ou semi-ereto.
Era bem comprido, mas fino como o de um menino, caía em curva sobre o escroto.
— Gosto dos quadros de Amanda — comentou ele para Cindy, sem virar a cabeça. — Saber que está posando para uma pintora boa e séria torna mais fácil fazer isto.
— Eu sei. Também já posei para ela.
— Assim?
— Assim.
O pênis do rapaz se agitou um pouco, como se a imagem mental de Cindy nua gerasse uma ereção incipiente.
— Greg — disse Amanda —, você mora no campo, não é?
— Há campo e campo. Não moramos numa das grandes propriedades.
— Os Perinos estão pensando em se mudarem para Greenwich.
— Meu tio é corretor imobiliário.
— Daremos o nome dele a Cindy.
— As escolas por aqui são ótimas — comentou Greg, muito sério.
Cindy foi até a cozinha e serviu mais café. Olhou através da porta para a pintora absorvida em sua tela e o adolescente despreocupado que posava nu com o consentimento dos pais, e concluiu que se aquela cena caracterizava o lugar, queria se mudar para Greenwich.
2
Não foi tão fácil, e duas semanas depois Cindy já achava que não queria viver ali. Mas a esta altura Angelo decidira que mora-riam ali de qualquer maneira.
O tio de Greg, o corretor David Schroeder, recebeu os Perinos em seu escritório e lhes mostrou uma lista de imóveis à venda. O
mercado imobiliário de Greenwich estava em alta, e eles logo descobriram que teriam de gastar pelo menos um quarto de milhão de dólares para comprar uma casa que lhes conviesse.
Depois de mostrar a lista, o corretor sugeriu que visitassem duas ou três casas. Um homem alto e bonito, de cabelos brancos e rosto corado, ele guiava um Mercedes cinza-prateado. Mostrou-se bastante polido com Cindy, abrindo a porta para ela e estendendo a mão para ajudá-la a entrar no carro.
Levou-os para uma parte da cidade chamada Cos Cob, e passaram por várias ruas comerciais desprovidas de atrativos, até entrarem numa área residencial. As casas que ele mostrou eram bastante atraentes, embora longe de imponentes. O bairro tinha gramados bem-cuidados e casas bem conservadas, mas Cindy notou que muitas casas tinham até cinco carros em garagens abertas, nas entradas do terreno e na rua. Alguns veículos pareciam velhos, em péssimo estado. Havia até pickups em algumas casas.
— Não posso acreditar que toda Greenwich seja assim — comentou ela. — Já ouvi falar nas casas no campo. Já ouvi falar em Riverside. Vamos ver algumas casas por lá.
David Schroeder encostou o Mercedes no meio-fio e desligou o motor. Virou-se para poder falar ao mesmo tempo com Angelo no banco da frente e Cindy no banco de trás.
— Poderíamos deparar com um pequeno problema, sr. e sra.
Perino. Devo ser franco com os dois.
— Qual é o problema? — perguntou Angelo.
Schroeder respirou fundo.
— É embaraçoso falar a respeito, e eu gostaria de não ter de dizer isso, mas há um esforço determinado em Greenwich... não completamente bem-sucedido... para manter as pessoas de des-cendência mediterrânea na área de Cos Cob.
— Ou seja, os italianos — murmurou Angelo, com uma expressão sombria.
Schroeder acenou com a cabeça.
— Também os espanhóis, e até os franceses. Lamento muito.
Não criei essa idéia, e não a apoio, mas estou preso a ela.
— Como assim?
— O primeiro problema seria encontrar um proprietário que vendesse para vocês. O segundo seria o conselho de corretores me expulsar se eu lhes vender uma casa fora de Cos Cob. De qualquer forma, os bancos encontrariam alguma falha em seu pedido de empréstimo, com toda certeza.
Angelo virou-se para Cindy e sorriu.
— Ora, ora, ora... Para ser franco, sr. Schroeder, até agora eu não me importava nem um pouco se viríamos morar nesta cidade ou não. Mas agora vamos morar de qualquer maneira. Quer apostar?
3
O irmão mais velho de Cindy, Henry Morris, era o presidente da Morris Mining. Depois da cerimônia de casamento e antes de partirem para a Europa, Angelo e Cindy foram visitá-lo e à esposa, em sua casa em Pittsburgh. Desde então, haviam se encontrado meia dúzia de vezes. Os Morris mandavam presentes generosos para as crianças Perinos em seus aniversários e presentes atenciosos para toda a família no Natal. Henry era bastante espirituoso.
— Admiro seu novo rosto — comentou ele uma ocasião para Angelo. — Espero que seja a versão final.
Henry herdara sua posição na vida, mas o fizera de uma maneira muito mais hábil do que Loren Hardeman Terceiro. Tinha um diploma da Escola de Minas do Colorado e servira como te-nente dos fuzileiros navais dos Estados Unidos no Vietnã. De-plorara mas não se ressentira da temporada de Cindy como aficionada das corridas de carros. Tinha trinta e nove anos, o que significava que a irmã caçula casara com um homem nove anos mais velho do que ele. Angelo tinha certeza que Henry teria preferido um cunhado diferente, mas parecia tê-lo aceitado e passara a respeitá-lo.
Henry Morris era mais ou menos da mesma altura e peso que Angelo. Na verdade, os dois eram bem parecidos. Henry era um pouco mais formal do que Angelo, invariavelmente usava um terno, exceto no campo de golfe. Ainda fumava um cigarro de vez em quando, tendo reduzido de dois maços por dia para meio maço ou até menos. Bebia vinho e cerveja, mas nada mais forte. Angelo achava-o um pouco sério demais, mas se esse era o único defeito que podia encontrar num cunhado, considerava-se afortunado.
Durante o jantar, em seu apartamento em Nova York, Angelo deixou que Cindy relatasse ao irmão a experiência em Greenwich.
— É uma tragédia que ainda haja pessoas que pensem assim
— disse Henry. — Se estão mesmo determinados a morar lá, há leis federais sobre a discriminação habitacional. Um processo num tribunal federal...
— Minha idéia é ser um pouco mais direto — interveio Angelo. — Peço que me desculpe, mas fiz algumas pesquisas. A Morris Mining opera com o Consolidated Pennsylvania Bank. O
Consolidated tem treze milhões de dólares em promissórias da Byram Digital Equipment, Incorporated, que é lenta no pagamento. O principal executivo da Byram é um certo Roger Murdoch, que por acaso é também o presidente do Partido Repu-blicano em Greenwich, o presidente da Sociedade Histórica de Greenwich, o presidente no ano passado da campanha Greenwich Unida etc. etc. etc. Uma palavra no ouvido do presidente do banco, resultando num aviso à Byram Digital, pode produzir um telefonema ansioso de Murdoch para o presidente do conselho de corretores. Está entendendo? Posso levá-los a um tribunal federal, sem dúvida, mas prefiro métodos mais rápidos.
Henry Morris sorriu.
— Eu não gostaria de me opor a você, Angelo. Posso fazer mais do que isso. O presidente do conselho de corretores também receberá um telefonema da Governadora Ella Grasso.
Angelo levantou seu copo.
— Se os Morris e os Perinos não podem superar o conselho de corretores de uma pequena cidade, de que valem? Ainda mais quando nossa causa é justa.
4
— Mille grazie, Signor DiCostanzo — disse Angelo. — Questo è per Lei. — Ele estendeu uma pequena caixa através da mesa para o velho. Este abriu-a e encontrou um relógio de ouro lá dentro.
Estavam num pequeno restaurante no bairro de Cos Cob, em Greenwich. Toda a conversa era conduzida em italiano. O Signor DiCostanzo sorriu, mas empurrou o relógio através da mesa.
— Não precisa fazer isso — disse ele. — É um homem de honra, fazendo um trabalho honrado.
Angelo tornou a estender a caixa para o velho.
— É minha honra reconhecer sua inestimável contribuição
— disse Angelo.
— Nossa gente pode agora morar em qualquer lugar da cidade. — O Signor DiCostanzo sorriu. — O conselho de corretores pôs seu pau na bigorna e nós vamos martelar. — Ele levantou o copo de vinho. — Aceitamos sua sugestão.
Angelo acenou com a cabeça e bebeu.
— Calculei tudo. O americano padrão pega os trens para Nova York todos os dias. Os carcamanos ficam aqui e dirigem a cidade.
Quando teve a licença de construção negada...
— O quarto pedido de licença de construção. As normas são tão complexas e detalhadas que ninguém consegue apresentar um pedido que possa ser concedido de qualquer maneira. —
DiCostanzo riu. — Podemos também deixá-los sepultados sobre seu próprio lixo. Recolhemos uma tonelada por dia.
— Signor, estou comprando uma casa na North Street. Minha esposa e eu nos sentiremos honrados se você e sua família, assim como os amigos que desejar chamar, forem nossos convidados logo depois que nos mudarmos.
O velho sorriu.
— Talvez você queira pensar melhor, Angelo.
— Meu avô foi um contrabandista de bebidas, signor. Vendia bebida ao primeiro Loren Hardeman. Agora, sou vice-presidente da Bethlehem Motors. O neto do contrabandista de bebidas controla a companhia de Número Um. Assim que estivermos na casa, vamos oferecer uma grande festa. Prezo a amizade, Signor DiCostanzo. Não viro as costas aos amigos depois que desfrutei os benefícios de sua amizade. Não concorda?
5
Como Cindy já notara antes, Greg não se cobria durante os intervalos. Em geral, ele ia até o cavalete para ver o que Amanda fizera. Ele aceitou um copo de Coca-Cola oferecido por Cindy, como já acontecera antes.
Ela ficou aturdida pela súbita descoberta de que se sentia muito mais perturbada por um olhar para um garoto nu de dezesseis anos do que ele por ser contemplado por uma mulher de trinta anos. Dois dias antes, Cindy ficara embaraçada quando se tornara patente que ele percebera que ela olhava para sua virilha. Greg parecera não se importar, apenas reconhecera o fato com um sorriso.
— Cindy — disse ele agora, encorajado por ela a tratá-la pelo primeiro nome —, eu gostaria de saber o que vocês fizeram com meu tio. O que quer que tenha sido, achei sensacional.
— Não fizemos nada com ele. Fizemos com algumas pessoas que faziam coisas com ele.
— Ele diz que Greenwich nunca mais será a mesma.
— Vamos torcer para que assim seja — interveio Amanda.
Greg foi embora às cinco horas.
— Tenho de parar de olhar para seu modelo adolescente —
comentou Cindy. — Está me dando nos nervos.
— Já trepamos.
— Essa não!
— Vamos deixar de brincadeiras...
Quando a campainha da porta lá embaixo tocou, pouco depois das seis horas, Cindy correu para o banheiro, a fim de se vestir e ajeitar a maquilagem antes que o elevador chegasse, trazendo Angelo.
Angelo aceitou um copo de conhaque e estudou o quadro no cavalete.
— Interessante...— murmurou ele.
— Acho que vou comprá-lo — anunciou Cindy
XI
1978
1
Uma semana antes do Natal, Angelo foi a Londres para se encontrar com um grupo de banqueiros e revendedores de automóveis britânicos, interessados na venda do novo carro da Bethlehem Motors, através de uma rede de franquias inglesas e escocesas. As reuniões foram longas, mas houve progressos para um acordo.
— Diga-nos uma coisa — pediu um deles, durante um almoço no Café Royale. — Qual será o nome do novo carro? Por favor, diga-nos que não será Sundancer.
— Não será Sundancer. Isso eu garanto.
— Então qual é o nome escolhido?
— Temos um grupo trabalhando nisso — respondeu Angelo.
Era verdade, havia realmente um grupo trabalhando na escolha do nome. Loren gostava de trabalhar através de comitês. Re-conhecia que pouco sabia de engenharia automotiva, mas imaginava que sabia muito sobre marketing, e designara um comitê para sugerir um nome para o novo carro.. .presumindo que o novo carro seria de fato fabricado, uma questão que ainda não fora de-finida.
A decisão era de Loren. Com Número Um morto, ele controlava a companhia. Angelo ouvira dizer que o velho mudara seu testamento para deserdar Betsy e seu filho, Loren, e para entregar todo o poder nas mãos de Loren Terceiro; mas o testamento apresentado para homologação nada tinha de surpreendente. Betsy herdava. A Princesa Anne Alekhine herdava. Mesmo assim, o controle ficava com Loren, que votaria com suas próprias ações e mais as ações da Fundação Hardeman, que controlava. A maioria dos conselheiros da fundação sempre votaria com Loren.
Isso também significava que Loren controlava o conselho diretor, agora reduzido a cinco membros: ele próprio, Roberta, Randolph e Mueller da fundação, e o Deputado Briley Se fosse bastante tolo para isso, Loren poderia abandonar o projeto do novo carro e concentrar a companhia, como sempre quisera, na fabricação de eletrodomésticos. Ou poderia vender a companhia e se aposentar. Poderia dizer — e com certeza diria — que Número Um deixara uma companhia à beira da falência e que nenhum homem conseguiria salvar, que era melhor reduzir o prejuízo da família e viver do que restasse.
Angelo sabia que a morte de Número Um deixara-o sem possibilidade de apelação se Número Três resolvesse cair fora.
Depois do almoço no Café Royale, Angelo acompanhou dois dos banqueiros de volta à City, para uma reunião adicional. Pouco antes das cinco, ele pegou um táxi e voltou à Regent Street.
Era raro o homem que não se sentisse animado pela ornamenta-ção de Natal na Regent Street, pensou ele, e por isso resolveu caminhar de lá até o hotel. Em Londres, em dezembro, já estava escuro às cinco horas, e as ornamentações refulgiam contra um céu escuro.
Angelo deixou a Regent Street e seguiu para oeste, por Piccadilly Ao chegar em Burlington Árcade, entrou e começou a olhar pelas vitrines das lojas.
Ele a viu. Roberta estava ali, comprando alguma coisa numa loja que oferecia cashmeres e lãs escocesas. Ela dissera que estaria ali por volta das cinco horas, e faria compras até se encontrarem.
Angelo sabia que não deveria se encontrar com ela assim. Mas tinha seus motivos. Roberta era trapaceira. Era uma mentirosa.
Mas era também ambiciosa. Talvez pudesse usá-la. Ela ainda não o conhecia direito.
2
Roberta estava hospedada no Hilton e fazia questão de chegar lá ao final da tarde, a fim de atender a ligação de Detroit, invariavelmente às seis horas. Para Loren, ela fora a Londres para as compras de Natal e o teatro. Talvez soubesse e talvez não soubesse que Angelo também se encontrava em Londres. De qualquer forma, ela sempre lhe dizia que passara o dia inteiro fazendo compras e iria ao teatro em seguida, para depois jantar sozinha na suíte. A esta altura seriam oito horas da noite em Detroit, e ela podia estar confiante de que Loren já teria ficado de porre o suficiente para ligar de novo.
Angelo se hospedava no Dukes Hotel, na St. James's Place.
Era um hotel pequeno, muito antigo e tradicional, que ele não conheceria se não fosse pela recomendação de Anne, Princesa Alekhine. Ele chegara na segunda-feira, uma semana antes do Natal, e voaria para casa na quinta. Roberta estava na cidade desde sexta-feira e só voltaria na próxima sexta. Tinham três noites juntos.
— Comprei um presente para você — anunciou ela, ao deixarem a Arcade.
Roberta entregou-lhe uma caixa. Pararam enquanto ele a abria.
Uma capa Burberry Angelo não sabia o preço exato, mas sabia que um casaco Burberry custava mais de quinhentos dólares. Um presente e tanto.
— Tenho de voltar ao hotel para atender o telefonema do idiota, Angelo. Vamos jantar cedo, está bem? Temos alguns negócios a discutir. Quero resolver tudo durante o jantar, para podermos foder pelo resto da noite.
Era o que já haviam combinado e Angelo acenou com a cabeça.
— A noite inteira — murmurou ele.
Enquanto ela ia para seu quarto no Hilton, a fim de receber a ligação de Loren, Angelo sentou no Harry's Bar, no porão do Park Lane Hotel, pediu um scotch e ficou esperando. Experimentou a capa. Perfeita. Teria de declará-la na alfândega no Aeroporto Kennedy, e depois explicar em casa que a comprara num súbito impulso.
Não gostava de seu relacionamento com Roberta. O que tinha com Betsy era muito diferente. Roberta era uma sacana vigo-rosa e ruidosa. Não dava para prever como ela reagiria se fosse rejeitada. Não confiava nela.
Sentado ali, tomando uísque, ele pensou em pegar um telefone e ligar para Cindy. Descobrira uma coisa que Cindy não imaginava que ele sabia: que ela o enganava com von Keyserling. Mas o que ele podia dizer? Betsy. Roberta.
Roberta era uma escrota. Ela podia ser útil. Não. Era útil não irritá-la. Betsy era... Ora, Betsy era muito mais. Como um homem podia dizer não a Betsy? Mas Cindy... ora, Cindy era a mãe de seus filhos. Mais do que isso. Ele a amava. E como a amava!
Tinha certeza disso. E ela o amava, o que também era certo; e se Cindy se divertia com Dietz, não passava disso, uma diversão, nada mais. Ele a deixava sozinha por tempo demais. O que podia esperar?
Roberta trocara de roupa, provavelmente também tomara um banho. Ao que parecia, comprara duas capas na Burberry, pois usava uma versão feminina da que lhe dera de presente. Quando a tirou e largou numa cadeira, revelou um vestido preto de tricô, bem justo, adornado com uma grossa corrente de ouro no pescoço. Ela levantou a corrente e sorriu para Angelo.
— Meu falecido marido me deu isto. Tinha uma cruz pendurada. — Roberta riu. — Pode imaginar?
Ela sentou ao seu lado, muito bem, os quadris roçando.
— Glenfiddich? — perguntou Angelo.
— O que Harry recomenda.
Havia bem poucas pessoas no bar àquela hora. Os turistas jantavam ou estavam a caminho do teatro. Angelo fez um sinal para o bartender.
— Quer saber de uma coisa? — murmurou Roberta. — Estou morrendo de fome.
— Até que ponto é uma aventureira?
Ela soltou uma risada gutural.
— Sente-se disposta a comer colhões de carneiro?
— Se você comer, eu também como.
Quando o bartender trouxe os drinques, Angelo pediu-lhe que telefonasse para o restaurante libanês no Shepherd Market e re-servasse uma mesa para dois.
3
Angelo pediu um prato de testículos de carneiro como antepasto para os dois. Os ocidentais os comiam mais pela aventura do que pelo sabor. Não chegavam a ser nauseantes, mas não havia a menor dúvida de que se tratava de um gosto adquirido.
Outras partes do carneiro também eram servidas como entrada.
Afora isso, eles comeram hummus espalhado no pão libanês, azeitonas gregas, verdes e pretas, tomates, rabanetes e cenouras...
tudo com duas garrafas do excelente vinho tinto libanês.
— Vamos aos negócios — disse Roberta, depois de comerem dois testículos de carneiro, enquanto limpavam o paladar com azeitonas e vinho. — Loren gostaria de chutar seu rabo.
Angelo olhou para dois homens do Oriente Médio na mesa ao lado, tão perto que sem dúvida poderiam ouvir tudo o que dissessem. Os dois conversavam em árabe, e se sabiam o que "chutar seu rabo" significava não deixaram transparecer.
— Eu também gostaria de chutar o dele, mas o que exatamente está acontecendo?
— Ele pensa em se opor ao novo carro. Mais para sacanear você do que por qualquer outro motivo que eu possa descobrir.
— Tudo bem. Farei o carro com outra empresa. Não preciso da Bethlehem Motors.
Roberta pegou a mão dele e apertou-a com força.
— Não preciso ver dois machos se dando marradas. Se a situação chegar a esse ponto, sei quem venceria. Eventualmente, depois de muita merda. Querido, você pode desarmar Loren. Pode conseguir o que quer e usar a companhia dele para isso. Use a cabeça e não seu machismo.
Angelo correu os olhos pelo restaurante.
— Este é um lugar um tanto público para se conversar a respeito.
O restaurante estava bem iluminado e movimentado. Os garçons circulavam apressados. Com uma eficiência precisa, o sommelier abria garrafas de vinho. Dois terços da clientela eram do Oriente Médio. Os outros eram turistas. As janelas grandes davam para uma rua em que as vigaristas mais conspícuas de Londres exerciam o seu ofício.
— Você sabe quem vencerá, Angelo. A única dúvida é se gosta o suficiente de mim para deixar meu marido capaz de sentar e comer.
— Seja clara, Roberta.
— Está bem. O segredo, como eu disse antes, é fazê-lo pensar que é importante. Qual o nome do novo carro? Se Loren escolher o nome, pode...
Angelo sorriu.
— Sei como quero chamá-lo. Muito bem, deixemos que Loren proponha o nome. Estou cansado... e acho que o público também está cansado... de nomes de automóveis diferentes. Mustang.
Pinto. Charger. Starfire. New Yorker. Duster. Impala. Já ouvi um vendedor dizer a um cliente: "Isto não é um Chevrolet, mas um Impala." Toronado. Regai. Roadmaster. Não há fim para isso.
Nosso novo carro... eu gostaria de chamá-lo de 1800. O deslocamento do motor é de mil e oitocentos centímetros cúbicos.
Roberta franziu o rosto.
— O que 1800?
— Pode ser BM 1800. Bethlehem, Pensilvânia, qualquer porra. Número Um deu ao seu carro o nome da cidade em que nasceu, onde ninguém jamais fabricou um automóvel. O nome ficou pendurado no pescoço da companhia como um albatroz. Loren quer dar a impressão de que é o cara no comando? Deixe-o propor aos diretores que o nome da companhia seja mudado para BM e o nome do novo carro seja BM 1800.
Roberta passou a língua pelos lábios.
— Não há a menor possibilidade. Posso concordar com você sobre os nomes graciosos, mas o público americano ainda não está preparado para um carro chamado apenas de 1800. Precisa ter um nome.
— Por exemplo?
Roberta sorriu, a princípio apenas divertida, mas depois o sorriso se tornou malicioso.
— Ei, Stallion! O garanhão. Por meu garanhão italiano. Falarei com Loren para sugerir esse nome, e ele nunca desconfiará do que significa. Será nosso segredo, e poderemos rir cada vez que o ouvirmos.
— Se ele adivinhar, se sequer suspeitar, vai liquidar o projeto.
— Acredite em mim, ele nunca vai saber. Deixe comigo. Afinal, é o tipo de coisa que o faz parecer grande a seus próprios olhos. Ele dá o nome do carro. Rebatiza a companhia. É o tipo de coisa que massageia seu ego. E pode ter certeza de que Loren é um homem que precisa ter o ego massageado.
— Não é necessário muito esforço para isso, não é mesmo?
— Não pense que Loren é um idiota total.
— Só cinqüenta por cento idiota. Ou nem mesmo isso. Apenas um cara que foi cagado pelo avô, que era um experto sem precedentes em cagar nas pessoas.
4
O elegante quarto no Dukes Hotel tinha uma lareira, com lenha à espera. Angelo só teve de riscar um fósforo e acender a mecha por baixo da lenha para que o fogo pegasse.
Enquanto ele fazia isso, Roberta tirava o vestido preto, o sutiã e a calcinha, esperava-o apenas com as ligas pretas segurando as meias pretas.
— Quero fazer uma coisa que nunca fizemos antes — anunciou ela. — Quero lhe dar uma coisa que nunca teve antes. O que seria, Angelo? Há alguma coisa com que sonhou fazer, mas nunca fez?
— Acho que sou meio quadrado. Gosto mais das coisas normais.
— Lembra da noite em que me bateu? Gostou daquilo?
— Bem...
— Não me venha com "bem", seu sacana. Deixou minha bunda empolada. É melhor que tenha gostado. E agora responda: Gostou?
— Roberta...
Ela sorriu.
— Exceto pelo fato de que persistem e teria de encontrar uma explicação para Loren, eu deixaria que você enchesse minha bunda de vergões... com o seu cinto.
— Prefiro fodê-la, Roberta.
— E acho melhor me foder! Mas eu estava pensando numa coisa para começar, para deixá-lo com o pau bem duro.
— Já estou com o pau bem duro agora, Roberta.
— E todo coberto. Vamos ver se é verdade. — Ela se inclinou e começou a abrir as roupas de Angelo. — Ei, não é que é verdade?
Roberta ajudou-o até que ele ficou nu, de pé, com o falo intu-mescido numa posição quase horizontal.
— Amor, gostaria de enfiar isso no meu cu?
— Já fez isso antes, Roberta?
Ela sacudiu a cabeça. Tinha o rosto afogueado, gotas de suor afloraram em sua testa.
Angelo balançou a cabeça.
— Não dá.
— Por que não? Acha que não posso agüentar? Eu...
— Tenho certeza que você agüentaria até um extintor de in-cêndio. Não é essa a questão. Se fizermos isso, não poderemos mais foder.
— Como assim?
Angelo sorriu.
— Os micróbios que existem nessa parte do corpo humano não são apropriados para a outra parte do corpo em que estou pensando. Causa infecção vaginal. Meu pai é médico. Ele costumava me dizer: "Angelo, você pode fazer qualquer coisa, menos..."
Minha mãe costumava especular se eu não poderia me tornar um padre. Meu pai sabia que isso nunca aconteceria, e por isso me deu alguns conselhos práticos.
Roberta soltou uma risada.
— Pois então deite de costas, meu amor. Vou montar em cima de você. Dessa maneira, pode me penetrar bem fundo. Quero sentir o pau subir até o umbigo. Depois disso, vou chupá-lo até que fique seco, até não poder mais gozar e suplicar misericórdia...
mesmo que já tenha gozado quatorze vezes. Vai se lembrar de Roberta como a melhor foda de sua vida. E tenho a impressão de que não sou a única mulher com o nome Hardeman que você já comeu.
XII
1979
1
— Está aberta a assembléia da Bethlehem Motors, Incorporated — declarou Loren, com grandiloqüência.
Angelo contara os votos... mesmo sabendo que não era necessário. Lá estavam Loren; sua irmã/tia, Princesa Anne Alekhine; sua esposa, Roberta; James Randolph, diretor da Fundação Hardeman; o Professor William Mueller, diretor-administrativo da fundação; o ex-deputado Alexander Briley; e Myron Goldman, vice-presidente do Continental Detroit Bank, que detinha promissórias suficientes da companhia para quebrá-la, se assim quisesse.
Loren controlava o conselho. Além de seu voto, podia contar com os votos de Randolph e Mueller, com toda certeza. Briley era um velho político astucioso que vivia de sua pensão de deputado e dos honorários que recebia como diretor de meia dúzia de companhias. Votaria como Loren sugerisse. Com isso, eram quatro votos, a maioria. Às vezes Roberta votava contra o marido, mas isso não aconteceria hoje. Anne votaria contra ele, se assim quisesse; e era imprevisível o que o banqueiro faria. Com toda a certeza, Loren tinha cinco votos. Se decidisse liquidar o carro novo, poderia fazê-lo sem grandes dificuldades.
Era óbvio que ele pensara com todo cuidado na disposição dos presentes. Os diretores sentavam em torno de uma mesa.
Angelo sentava por trás deles, a cadeira encostada na parede, ao lado do advogado da companhia. A taquígrafa que transcreveria a reunião em sua Stenotype sentava ao lado de Angelo.
— Todos receberam cópias das minutas de nossa última reunião — continuou Loren. — Se não há objeções, estão aprovadas como escritas. Receberam cópias do relatório do tesoureiro. Se não há objeções, está aprovado. Esta é a nossa primeira reunião desde a morte de meu avô, e temos importantes decisões a tomar.
A menos que alguém deseje levantar outro assunto, eu gostaria de tratar primeiro do relatório de nosso consultor e vice-presidente, sr. Angelo Perino, que propõe que esta companhia fabrique um novo automóvel. Nenhuma objeção? Sr. Perino.
Angelo levantou-se. Falou sem anotações.
— Como aconteceu com as minutas e o relatório do tesoureiro, todos receberam cópias do meu relatório e recomendações.
Antes de sua morte, o sr. Hardeman Primeiro chegou à conclusão, embora com alguma relutância, de que sua companhia não poderia sobreviver no mercado automobilístico se continuasse a fabricar o que podemos chamar de um carro americano tradicional. Na verdade, irei mais longe, dizendo que a indústria automobilística americana, como a conhecemos, não pode sobreviver se continuar a fabricar o que passou a ser considerado como o carro americano tradicional.
"É uma piada na América, senhoras e senhores, que quando se sai da revendedora com o carro há uma depreciação imediata no preço de cinqüenta por cento. Isso não está longe da verdade.
Mas não é o que acontece com um Volkswagen ou um Mercedes.
Dez dias depois da compra, vale apenas uns poucos dólares menos do que o preço pago. O mesmo ocorre com os carros japoneses, só que num grau ainda maior.
"O motivo é que os carros estrangeiros são mais bem projetados e mais bem construídos. Isto é, nem todos os carros estrangeiros. Os carros britânicos... ora, verifiquem por quanto conseguem vender seu Jaguar de duas semanas. Vi um Jaguar 1979 numa agência de automóveis há pouco tempo. A ferrugem era visível em vários pontos. Tenho um Riviera 76. Quando chove, há um vazamento no pára-brisa. A água pinga em meu colo. A revendedora não consegue consertar. Um amigo meu tem um Mercury. As janelas elétricas costumam emperrar, às vezes abertas, às vezes fechadas. Se está chovendo, ele pode ter certeza de que ficarão abertas. Quando se aproxima de uma cabine de pedágio, pode ter certeza de que ficarão fechadas. Não preciso me prolongar nesse ponto. O que acontece com seus carros?
— O que nos diz de um Sundancer? — indagou Roberta, com um sorriso contido.
Ela sentava afastada de Loren, como a sugerir que não se encontrava ali só porque era sua esposa. Vestia um austero tailleur de tweed preto e branco. Seus olhos se encontraram com os de Angelo quando fez a pergunta, e ele pensou que era uma sorte para ambos que Loren não percebesse as insinuações que faziam.
A Princesa Alekhine notou e lançou um olhar inquisitivo para Angelo. Ele poderia ter avisado a Roberta que a princesa era astuta, que não havia muita coisa que escapasse à sua atenção. Nesse ponto, ela era como Betsy. Vestindo um tailleur laranja de cashmere, a princesa exibia sua personalidade aristocrática assumida com total élan.
— Esta companhia não me paga o suficiente para pedir que eu guie um Sundancer — respondeu Angelo. — Por outro lado, a GM não poderia me pagar o suficiente para me pedir que guiasse um Plymouth. Eram ótimos carros em sua época, mas foram superados pela tecnologia. Quando se sai com um Shizoka da revendedora, não há uma depreciação de cinqüenta por cento em dez minutos; nem com um Honda ou um Toyota. Por quê? Porque esses carros não começam a desmontar na primeira vez em que se passa a mudança ou se pisa no acelerador.
— Controle de qualidade — interveio Loren, secamente. — O sr. Perino é obcecado por esse assunto.
— Controle de qualidade — repetiu Angelo. — Mas mais do que isso. Novas ideias. A GM lançou o Corvair. Era um projeto bom, inovador; mas os americanos não estavam preparados para motores traseiros, refrigerados a ar, e os clamores dos fanáticos de Nadar acabaram com o carro. Motores traseiros? Não, ainda não.
Refrigerado a ar? Não, ainda não. Mas viram o projeto. Um motor transverso. Com eficiência de combustível. Uma carrocería resistente, com altos padrões de controle de qualidade. Senhoras e senhores, eu gostaria de construir um carro que só precisará entrar na oficina duas vezes por ano... e apenas para a mudança de óleos e filtros, nada mais.
— Nossos revendedores têm grandes oficinas — comentou Randolph.
— Que a companhia paga, porque a maior parte dos reparos está dentro da garantia — ressaltou Angelo.
O ex-deputado Briley levantou-se e descobriu um desenho assentado num cavalete, anunciando:
— Este é o carro que o sr. Hardeman Primeiro queria fabricar
O desenho era do carro que a equipe de Angelo projetara, arredondado por Número Um.
A Princesa Anne Alekhine deixou escapar um suspiro ruidoso.
— Só há uma coisa boa que se pode dizer sobre Número Um. Ele está morto. E vamos agradecer a Deus por isso. Agradecer o fim de sua intromissão destrutiva em nossos negócios e em nossas vidas.
— Anne! — gritou Loren.
— Discorda, sobrinho? — indagou ela, friamente.
Poucos na sala sabiam o que significava aquele "sobrinho", e trocaram olhares contrafeitos. Loren fitou Roberta, tamborilan-do com os dedos na mesa, nervoso.
— Ahn... a presidência apresenta uma moção para que o projeto e o plano de fabricação recomendados pelo sr. Perino sejam aprovados.
— Apoiado — disse Anne.
— Apoiado — acrescentou Roberta.
Loren corou visivelmente.
— Podemos ter uma aprovação unânime?
Myron Goldman, o banqueiro, levantou a mão.
— A companhia tem condições, sr. Perino?
— Já temos o financiamento definido, senhor — respondeu Angelo. — Parte de Nova York, parte de Londres.
— Podemos analisar todo o esquema de financiamento, sr.
Perino?
— Terei o maior prazer em nos reunirmos para revisar cada detalhe, sr. Goldman.
— Neste caso, temos uma aprovação unânime? — insistiu Loren.
Ele tinha. Balançou a cabeça de uma forma dramática. Quase uma reverência.
— Portanto, nossa companhia se lança em um novo empreendimento. Eu gostaria de abrir champanhe, mas tenho mais alguns assuntos que preciso abordar nesta reunião.
— Antes de prosseguirmos — interrompeu-o a Princesa Anne
—, seria impróprio se constasse da ata uma moção de agradecimento ao sr. Angelo Perino por ter montado um projeto que pode ser a salvação da Bethlehem Motors?
— Será mais apropriado quando o carro do sr. Perino salvar de fato a Bethlehem Motors — declarou Roberta. — Mas, por enquanto, apoio uma moção de agradecimento ao sr. Perino.
Desta vez a Princesa Anne notou um olhar furtivo inconfun-divel que a esposa de Loren lançou para Angelo Perino.
— Ou seja, a sra. Hardeman concorda — disse Loren. —
Podemos ter uma aprovação por unanimidade?
Tiveram.
— Agora — continuou Loren —, eu gostaria de recomendar certas mudanças em... em questões básicas. Meu avô fabricou seu primeiro carro na oficina de bicicletas que tinha em Bethlehem, Pensilvânia. Todos conhecemos a história. Era um estranho, mas ele o trouxe para Detroit e o transformou num sucesso. Deu à companhia o nome de Bethlehem Motors, em homenagem à sua cidade natal. Poderia tê-la chamado de Hardeman Motors. Henry Ford deu o próprio nome à sua companhia, assim como Walter Chrysler. Mas o nome Bethlehem possui uma conotação religiosa e, na minha opinião, tornou-se um estorvo para a companhia. Eu gostaria de mudá-lo. Poderíamos chamar a companhia de BM, mas... — ele fez uma pausa, com um sorriso insinuante. — Creio que é óbvio por que não podemos. BM é como se chama em inglês a evacuação, bowel movement.
Desta vez Roberta sorriu para Angelo. BM fora o nome que ele sugerira em Londres... mostrando que também era capaz de cometer erros crassos. Angelo riu.
Loren sorriu para Angelo — um sorriso tão efusivo que Angelo especulou por um instante se Roberta não lhe contara que fora ele quem sugerira o nome — e depois continuou:
— Estamos iniciando um empreendimento conjunto com a Shizoka, mas também não podemos chamar nossa companhia de BS.
Todos riram. Sabiam que BS era a abreviação de bullshit.
— Contratei uma firma de consultoria que se especializa em nomes de produtos e empresas. Também são competentes na criação de logotipos. Acham que X é uma letra intrigante. EXXON, LEXIS e assim por diante. Deus nos livre de ficarmos presos a um nome como UNISYS. Mas, senhoras e senhores, aqui está o que eles sugerem...
O advogado removeu a capa que cobria um cavalete.
XB STALLION
Loren estava radiante de satisfação.
— O novo nome da companhia, senhoras e senhores... XB
Motors, Incorporated... e o nome para o nosso novo carro.
Todos sorriram e acenaram com a cabeça.
— Podem imaginar a desfaçatez de uma companhia que chama seu carro de Edsel ou Henry J? Houve quem sugerisse que déssemos a um novo carro o nome de Loren. — Ele fez uma pausa, sorrindo. — Até meu avô resistiu a isso.
— Não acha uma mudança bastante radical? — disse Goldman. — Afinal, abandonar o nome de Bethlehem Motors, que conquistou o respeito...
— Peço que me desculpe, sr. Goldman — interrompeu Angelo —, mas acho que o sr. Hardeman tem toda razão e quero agradecer sua contribuição à idéia.
2
Todos beberam champanhe antes de se dispersarem. Loren procurou e encontrou uma oportunidade de falar a sós com Angelo.
— Apostamos tudo, Angelo. Tudo o que posso lhe dizer é que não deve planejar a minha queda e sua sobrevivência. Se eu cair, você vai junto.
— E vice-versa, Loren. Eu não gostaria que fosse de outra forma.
Roberta aproximou-se e pegou o braço de Loren, enquanto Angelo se afastava.
— Calma, meu amor.
— Quantas vezes minha cara tem de ser arrastada na merda?
— murmurou ele, a voz trêmula. — Aquele carcamano filho da puta!
XIII
1979
1
Os nus que Amanda pintou do adolescente Greg tiveram a maior repercussão no mundo da arte. Aumentaram sua reputação como uma nova realista de talento, e foram vendidos a vinte mil, vinte e três mil e quinhentos e vinte e sete mil dólares. O quarto foi um presente para Cindy, esteve pendurado na Galeria VKP por um longo tempo, antes que ela o levasse para casa.
Os pais do garoto não queriam deixá-lo posar de novo, a não ser por muito mais dinheiro, alegando que a apresentação dos quadros em revistas e catálogos da galeria causaram um grande embaraço para Greg na escola em Greenwich. Sugeriram que ele recebesse uma porcentagem do preço de venda de qualquer quadro futuro. Amanda limitou-se a dar de ombros, e disse que não precisaria mais dos serviços de Greg.
Seus quadros de flores não vendiam tão bem. Tinha uma posição consolidada como pintora de nus com uma acurária foto-gráfica. Um crítico escreveu: "Os maiores fotógrafos — Weston, Steichen, Outerbridge — nunca foram tão bem-sucedidos quan-to Amanda Finch na representação das infinitas sutilezas do corpo humano. Ela é uma herdeira meritória da mais antiga tradição na arte gráfica."
Sua carreira assumiu um novo e estranho rumo quando Abraham e Corsica d'Alembert, dois corretores de Wall Street, contrataram-na para pintá-los nus, juntos, de mãos dadas e se fitando nos olhos. Amanda acrescentou uma dinâmica especial ao quadro ao fazer o marido posar na plataforma de modelo e a esposa no chão, com ele estendendo a mão para ajudá-la a subir. O casal queria um memorial dos primeiros anos de um casamento de meia-idade, e estavam dispostos a pagar cinqüenta mil dólares por isso.
Esse quadro se encontrava num cavalete no estúdio quando Dietz von Keyserling posou para Amanda. O quadro mostrava Dietz deitado sobre uma manta azul escura, estendida sobre um colchão na plataforma, lendo um livro, enquanto a pintora o re-tratava. Ele planejava exibi-lo com destaque na Galeria VKP e não vendê-lo.
Dietz e Amanda tornaram-se amantes. Ela não podia vê-lo hora após hora sem desenvolver algum interesse. Os quadros que ela fizera de si mesma haviam despertado um interesse similar de Dietz. Ficou tácito entre os dois que o caso era apenas uma atração física mútua, não incluía qualquer compromisso. Na verdade, se ele tinha compromisso com alguém, era com Cindy. Mas não podia estar com ela com freqüência, e não era o tipo de homem que pudesse fazer amor só de vez em quando.
Amanda era uma mulher com pouca experiência, contentava-se em deitar por baixo de um homem, abrir as pernas e recebê-lo, procurando extrair o prazer que fosse possível de uma coisa que não a satisfazia inteiramente.
Cindy a satisfazia muito mais. A língua era mais flexível e mais bem controlada do que o linga. O que Amanda mais desejava, no fundo, era ter os dois ao mesmo tempo.
E uma tarde, em julho, foi o que aconteceu.
2
Ela sugeriu com alguma hesitação a Cindy, na cozinha. Dietz estava nu na plataforma. Ele lia de fato o livro com que aparecia no quadro; se não fosse assim, dissera ele, as horas de pose que o realismo de Amanda exigia o teriam intimidado.
Cindy sacudiu a cabeça à sugestão.
— Nunca pensei que ouviria uma proposta assim.
— Espero não tê-la ofendido.
— Não...
Ela olhou através da porta para Dietz. Amanda estava pintando seu pênis pequeno e não-circuncidado exatamente como era; Cindy duvidava que ele quisesse mesmo expor aquilo em público.
Sabia que crescia quando ficava duro, mas ainda assim... Amanda viu-a olhar para Dietz, focalizou seus olhos um pouco míopes em Cindy. Era uma tarde quente no estúdio, e Amanda usava apenas
uma jeans com as pernas cortadas e uma blusa frente-única. Cindy inclinou-se para a frente e beijou-a. As duas vinham trocando beijos de línguas cada vez mais nos últimos tempos. Dietz por acaso levantou os olhos nesse momento e sorriu.
— Meninas, eu não fazia a menor idéia.
— Você é observador como um marchand, não como um artista — comentou Cindy.
— Se o que deixei de observar pode ser observado por qualquer artista, acho que vocês duas criaram um problema sério para vocês mesmas. Quem sabe quem é uma artista?
— Vejo que o pensamento está lhe provocando uma ereção, Dietz — zombou Cindy. — Meus parabéns. Sempre pode aproveitar. Amanda deve projetar filmes pornográficos enquanto você posa, para que...
— Não seja tão sacana, Cindy. Se quer se queixar de que não sou bom, este não é o momento.
— Sugeri a Cindy que experimentássemos um trio — interveio Amanda.
— Como?
— Use sua imaginação, Dietz — disse Cindy.
Seguindo as sugestões de sua própria imaginação, não a dele, Cindy deitou nua de costas no colchão coberto pela manta.
Amanda agachou-se sobre seu rosto e recebeu sua língua na xoxota.
Dietz montou em Cindy e penetrou-a com todo o vigor de que era capaz. Depois de algum tempo, mudaram as posições. Amanda ofereceu sua língua a Cindy, que tomou Dietz na boca.
Estranhamente, não foi satisfatório para Cindy. Não teve muito prazer, e pela primeira vez na vida sentiu-se envergonhada de uma coisa que fizera. Decidiu concentrar toda a sua energia sexual em Angelo. Foi o que fez, e três meses depois engravidou da quarta criança.
3
Quando Keijo Shigeto acenava com a cabeça, o movimento às vezes começava na cintura, e Angelo não tinha certeza se era uma reverência. Por mais que se esforçasse, ainda não dominava as sutilezas da etiqueta japonesa.
— Ainda não lhe contei que meu avô foi um brigadeiro no exército japonês — disse Keijo a Angelo um dia. — Serviu na campanha de conquista de Cingapura, depois na Birmânia. So-breviveu à guerra e não foi acusado de qualquer crime. Pouco me falava, um humilde neto. Mas disse uma coisa de que me lembro: "Seja sempre discreto. Ser discreto é da maior importância."
— Eu compreendo — respondeu Angelo, secamente.
Ele sabia que Keijo estava lhe dizendo, de uma forma indireta, para não se preocupar com o encontro momentâneo dos dois na noite passada, num restaurante de classe. Keijo passara por sua mesa e o vira com Betsy. O japonês não deixara transparecer qualquer sinal de reconhecimento. Mesmo assim, Angelo não tinha a menor dúvida de que Keijo o reconhecera e provavelmente adivinhara a identidade da jovem em sua companhia.
Betsy possuía uma capacidade fantástica de descobrir para onde ele ia e quando. Angelo achava que ela subornava um funcionário em sua agência de viagens para passar as informações, ou diversos funcionários em companhias aéreas. Nunca podia ter certeza quando ela apareceria, quando bateria na porta de seu quarto num hotel... ainda mais em Tóquio.
— Eu gostaria de lhe mostrar um questionário... creio que chamam assim... de uma firma de contabilidade representando a XB Motors, Incorporated. — Keijo empurrou por cima da mesa um questionário de quarenta páginas, indagando sobre todos os aspectos da situação financeira da Shizoka Motors. — Seria preciso muito tempo para providenciar todas essas informações, algumas das quais são confidenciais.
Angelo deu uma olhada rápida no questionário. Sorriu, balançou a cabeça, empurrou-o de volta para Keijo.
— Diga-lhes que todas as informações que vocês estão dispostos a prestar constam de documentos públicos, aos quais todos têm fácil acesso.
— Eu poderia reunir alguns relatórios e...
— Deixe que eles próprios descubram. Por que fazer o trabalho por eles? Contadores de moedas. Essa gente me irrita.
— Recebi um telefonema de um certo sr. Beacon. Ele quer um relatório detalhado sobre os aspectos de engenharia de nossas modificações no sistema de tração.
Angelo espetou o tampo da mesa com um dedo.
— Não. Quando eu me encontrar com Peter Beacon, direi a ele que as informações que deseja sobre o Stallion terão de partir de mim. Direi a ele para não fazer exigências a nossos sócios japoneses. Ignore-o. Se ele ligar de novo, diga apenas para me procurar. Melhor ainda, não atenda. Vou me encontrar com ele na semana que vem e lhe direi para não se meter no que não é da sua conta.
— Ele disse que falou com o sr. Hardeman.
— Não me importa se ele fala com Jesus Cristo. Mande-o se foder. Sabe o que significa essa expressão para os americanos?
Pela primeira vez, o suave e mentalmente ágil japonês ficou corado. Ele soltou uma risadinha.
— Sei.
— Ótimo. Não use essa expressão. Imagino que os japoneses têm outra, também boa e também aplicável. Use-a.
A sala de Keijo era muito parecida com a de Angelo em Nova York, embora não tão grande. Ficava num prédio de escritórios ao lado de uma grande fábrica da Shizoka Motors. Qualquer papel que não fosse imediatamente necessário era arquivado em algum lugar. Os únicos itens pessoais na sala eram uma fotografia da família de Keijo e um vaso com flores... naquela época do ano, crisântemos.
— Se eu tivesse de relatar qualquer coisa ao sr. Beacon —
disse Keijo —, seria que as adaptações necessárias estão sendo efetuadas conforme o planejado e dentro dos prazos previstos, exceto por uma coisa. A unidade vai custar cerca de cento e vinte e cinco dólares a mais que o projetado.
Angelo sacudiu a cabeça.
— Isso pode nos destruir no mercado. Será altamente com-petitivo. Precisa reduzir esse custo. Posso aceitar cinqüenta dólares extras, mas cento e vinte e cinco a mais podem fazer a diferença entre o sucesso e o fracasso.
Keijo tornou a fazer aquele aceno de cabeça profundo, que podia passar por uma reverência.
— Posso fazer uma pergunta? Sua companhia conseguirá manter os custos projetados?
— Uma boa pergunta. Estou brigando com todo mundo. E uma das minhas brigas é contra a incessante demanda de tempo pessoal para relatórios e projeções. É uma praga do modo americano de fazer negócios. Os contadores de moedas insistem que precisam saber quanto isso, quanto aquilo, por que uma coisa vai custar mil novecentos e oitenta e dois dólares, quando nem posso imaginar por que custaria mil novecentos e oitenta dólares.
— É o resultado da insegurança — comentou Keijo. — Os homens amedrontados querem saber como serão as coisas no próximo ano e no outro, quando deveriam focalizar este ano.
— É minha batalha e vou lutá-la. Enquanto isso, tente reduzir aqueles cento e vinte e cinco dólares.
— Faremos o melhor que pudermos.
— O chassi e a carrocería de um protótipo serão embarcados para o Japão no próximo mês. Fabricação artesanal. Vou mandá-lo num cargueiro 747, direto de Detroit para Tóquio. Estarei aqui para acompanhar a instalação da unidade de tração. Terão alguma pronta?
— Teremos.
— Vamos dirigi-lo numa pista de testes, você e eu... se cou-bermos.
— Caberemos — garantiu Keijo, com um sorriso largo.
— Sei disso. Agora... Você me viu ontem à noite. E viu a moça. Sabe quem ela é, não é mesmo?
— Não preciso saber.
— Suponho que não, mas sabe. Se eu o visse num hotel com uma mulher nos Estados Unidos saberia quem ela é... ou desco-briria. É negócio. Você pode confiar em mim para não falar a respeito, assim como confio em você. Somos amigos.
Keijo acenou com a cabeça e repetiu, firme:
— Somos amigos.
4
— Ele fez alguma menção? — perguntou Betsy.
— Fez, sim. Apenas para me assegurar que não preciso me preocupar com sua discrição.
— Para um sacana tão esperto quanto você, pode se mostrar às vezes bastante ingênuo.
— Confio no homem. — disse ele simplesmente.
— Não é disso que estou falando, mas sim do fato de que você parece pensar que meu pai virou de lado e banca o morto.
Pois saiba que ele observa tudo o que você faz e espera que trope-ce no próprio pau.
— Ele tem uma boa memória; não é o meu caso.
— Não? Foi o que você fez há sete anos. Número Um lhe mentiu e fez com que acreditasse nele. E você sacrificou tudo o que podia para realizar uma coisa que ele disse que queria, e acabou se dando mal. Meu pai não chega a ser tão bom quanto seu avô, mas ainda é um Hardeman.
— Vou tirar a porra da companhia dele, Betsy.
— Eu o ajudarei. Mas nunca deve confiar em meu pai. Mais importante ainda, não deve confiar em Roberta. Meu pai preferiria destruir a companhia a deixar que você a tome. Mas o que ele quer mesmo é destruir você.
Pediram o jantar no quarto, o tipo de comida mais dispendiosa que os japoneses serviam: bifes. Não era de admirar que a carne de vaca fosse tão cara no Japão, refletiu Angelo; o gado devia ser criado com leite, porque o bife era extremamente macio e sucu-lento. A manteiga no purê de batatas tinha o gosto de manteiga inglesa, porque continha um teor de gordura muito maior que a americana e era mais saborosa. O vinho era australiano, mas gostoso. Também tomaram conhaque e o café ficou num enorme bule elétrico.
Betsy estava como gostava de ficar quando os dois se encontravam: nua, exceto por uma calcinha branca mínima. Angelo usava uma sunga azul, mais nada.
Na noite seguinte viajariam para o campo e se hospedariam numa estalagem recomendada por Keijo, onde viveriam ao estilo japonês, tomando banho comunitário, comendo iguarias como cobra, dormindo num quarto separado dos outros apenas por telas de bambu.
Mas naquela noite...
— Pode me dar uma resposta honesta a uma pergunta honesta? — indagou Betsy.
— Claro.
— Já trepou com Roberta?
Ele franziu o rosto e balançou a cabeça.
— Está brincando? — perguntou ele.
Betsy pegou a mão dele.
— Número Um mantinha câmeras de vídeo escondidas nos quartos de sua casa em Palm Beach. Tinha fitas de todas as trepadas que ocorriam naqueles quartos. Na noite em que ele morreu, peguei todas essas fitas, levei para a praia, larguei em cima das brasas restantes de uma fogueira de piquenique, depois joguei os fragmentos derretidos no mar Uma dessas fitas mostrava você e eu.
— Como sabe?
— O que você acha? Nunca lhe passou pela cabeça que aquele velho era um escroto? Ele me mostrou a fita.
— E..?
— Talvez assistir de novo, vendo-me ao vivo ali, tenha causa-do o infarto... isto é, se não foi Deus quem o causou primeiro, finalmente fazendo justiça.
— Tem certeza que pegou todas as fitas?
— Todas as que estavam no quarto dele. Duvido que houvesse outras.
— Mas o que isso tem a ver com Roberta? Foi o assunto que você...
— Angelo, não tive tempo de examinar a coleção, mas se havia uma fita de você e Roberta, é bem provável que ele tenha mostrado a meu pai. Seria típico dele semear um ódio ainda mais profundo. Angelo, o velho era um canalha.
— Não havia nenhuma fita minha com Roberta.
— Ainda bem. Mas ela tem a mesma mentalidade de meu bisavô. Se algum dia trepou com ela em algum lugar, é melhor especular se ela o filmou. Aquela mulher é capaz de...
— Não sei muita coisa sobre Roberta, e não quero saber mais do que já sei.
— Outro problema. Número Um não poderia ter gravado aquelas fitas. Então quem foi? E quando teremos alguma notícia?
Temos uma chantagem em nosso futuro, meu amor.
— Só há duas maneiras de lidar com chantagistas. Um, você paga. Dois, você os mata.
— Angelo...
— Se alguém tentar uma chantagem com você, avise-me logo.
5
— Comprei uma coisa para você — anunciou Betsy, um pouco mais tarde. — Enquanto você cuidava de negócios, saí em campo.
Ele já notara um pequeno pacote na mesinha de café, e esperava que Betsy o abrisse mais cedo ou mais tarde. Ela lhe entregou para abrir. Angelo tirou o papel e encontrou uma pequena caixa de madeira, com uma tampa que deslizava para trás. Lá dentro, sobre um forro de seda rosa, havia três tiras de couro com fivelas e uma dúzia de anéis de borracha, mais as instruções, impressas em japonês, inglês, francês e alemão.
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Betsy ajudou-o a seguir as instruções. As tiras eram de couro preto macio, com pouco mais de um centímetro de largura, tinham fivelas de aço. Betsy ria enquanto lia as instruções, mas observou-o atentamente cumprir as indicações. Primeiro, Angelo passou a tira mais longa pelas alças nas extremidades das tiras mais curtas. Depois, passou a tira longa por baixo do escroto e sobre a raiz do pênis ereto, puxou com força e prendeu na fivela.
— Gosto da maneira como aperta seus colhões — comentou Betsy. — Só isso já me deixa com o maior tesão.
Os anéis de borracha vinham em três tamanhos. Angelo rolou um médio pelo pênis. Esticou-o para passar pelas duas tiras curtas, uma de cada lado. Finalmente, de acordo com as instruções, apertou e afivelou as duas tiras mais curtas. O pau, já ereto, enrijeceu ainda mais, tornou-se maior. Empinou, um pouco vermelho.
— Dói? — perguntou Betsy.
Angelo soltou uma risada.
— Não...
— As instruções dizem que se não apertar demais pode passar o dia inteiro com isso, deixando-o com a calça estofada.
— Como uma mulher num sutiã pontudo — comentou Angelo.
— Ponha a cueca. Quero ver como parece.
— Não sei se vou conseguir pô-la.
Ele tentou e conseguiu, formando uma enorme massa. Foi até o espelho e se contemplou. Baixou a cueca. Betsy apontou para a intumescência anormal.
— Quero isso — murmurou ela, tirando a calcinha.
Betsy soltou um grito quando Angelo a penetrou. Mas dois minutos depois ela gemeu e fez uma careta. O tirante causou a ejaculação prematura. Só que manteve a ereção, e ele nem sequer saiu de dentro. Continuou até gozar três vezes, enquanto Betsy gozava duas ou três.
Ela seguiu apressada até o banheiro, para se lavar. Ao voltar, serviu dois scotches.
— Gostou do seu presente?
Angelo sorriu.
— Foi o melhor que já recebi.
— Deixe-me ajudá-lo a tirar. Não quero que o danifique. —
Betsy abriu as fivelas, afrouxou as tiras. — O presente é todo seu, mas ficará comigo. Não quero que o use com outra mulher.
Ele beijou-a.
— E eu não quero que você deixe nenhum outro homem pôr.
— Não conheço outro homem que esteja disposto a tentar.
Talvez você não conheça outra mulher que esteja disposta a ir para a cama com você usando isso. Somos um casal único, Angelo, como eu sempre lhe disse.
XIV
1979
1
Cindy foi atender o telefone na cozinha, depois voltou à sala de jantar, onde ela e Angelo jantavam uma comida chinesa, enviada por um restaurante da Post Road. A refeição estava saborosa, apesar da deselegância do serviço — serviam-se de caixas de papelão em que a comida fora entregue.
— É Roberta — avisou ela. — Pede desculpas por ligar tão tarde.
Angelo balançou a cabeça.
— Ela se tornou mesmo uma Hardeman. Aprendeu com Número Um o péssimo hábito de ligar a qualquer hora do dia ou da noite.
— Eu disse que estávamos jantando, mas ela alegou que não demoraria muito.
Ele saiu da mesa e foi para a cozinha. Ficou parado a olhar para a neve, que começara a cair uma hora antes e agora se acu-
— Qual é o problema, Roberta?
— Loren marcou uma reunião da diretoria para a quinta-feira. Você será convocado.
— O quê? Uma reunião dois dias depois do Natal? O que há com ele?
— Nada importante. Está apenas sendo Loren. Acha que obrigá-lo a ir de Connecticut a Detroit dois dias depois do Natal vai irritá-lo e deixá-lo furioso na reunião. A raiva significa menos objetividade.
— O que ele está tentando fazer?
— Derrubar você. Quando você disse a Beacon que não podia falar com os japoneses e tinha de fazer todas as perguntas por seu intermédio, Loren ficou furioso. E também acha que é por sua causa que a Shizoka não está revelando suas contas. Seu ego foi atingido. Ele diz que ainda é o principal executivo e você é seu subordinado... o que tenciona deixar bem claro.
— Ligou para me alertar?
— Isso mesmo. Vai receber a notificação oficial da reunião por carta registrada amanhã.
— Obrigado, Roberta. Vou afiar minhas facas e pôr meu colete à prova de balas.
Cindy beliscava sua comida, sem muito entusiasmo, quando Angelo voltou. Estava grávida, e fora idéia sua pedir comida chinesa. Mas agora a fantasia parecia ter se desvanecido.
— O que ela queria, Angelo?
— Loren convocou uma reunião para a próxima quinta-feira.
— Na semana entre o Natal e o Ano-Novo? Angelo, sua família estará aqui!
— Meus pais passarão dez dias aqui, se não houver neve demais para fechar os aeroportos amanhã.
— Como pode viajar quando eles estão aqui?
Angelo sorriu.
— Como me chamaram a Detroit nesta semana em particular, vou deixar a companhia pagar um jato fretado. Posso sair daqui às oito horas, voar do aeroporto de Westchester a Detroit a tempo de pegar a reunião às dez horas, voltar logo em seguida e chegar aqui no meio da tarde. Será um desafio a Loren.
2
Os pais de Angelo visitaram a casa em Greenwich uma vez antes, pouco depois que Angelo e Cindy a compraram; mas não tinham voltado desde que Cindy completara a reforma.
A casa ficava num terreno de dois e meio hectares, coberto em parte por um bosque, ao longo da North Street, na área mais elegante de Greenwich. Era de pedra, com telhado de ardósia e calhas de cobre, construída no início da década de 1920 e submetida a reformas completas pelo menos duas vezes. Não era tão espetacular quanto algumas das casas vizinhas, mas era sólida e bonita, bastante espaçosa para uma família que em breve teria quatro crianças.
Como fizera no apartamento, Cindy mandou pintar todas as paredes de branco, o que ficava melhor para apresentar obras de arte. Mandou instalar trilhos de iluminação, mas não nos cômodos principais, pois ficaria incongruente com a madeira lavrada. Quase todos os móveis do apartamento foram banidos para os quartos e a sala de estar lá em cima. O estilo rural inglês era mais apropriado aos cômodos do térreo, e foi isso o que Cindy comprou — sofás e poltronas grandes e confortáveis, forrados com estampados de flores, tapetes orientais para os assoalhos de carvalho.
A maioria das obras de arte no apartamento também não tinha lugar na decoração do andar térreo. O longo corredor lá em cima tornou-se a sua galeria, vista apenas pelos parentes e amigos mais íntimos. Foi ali que pendurou o quadro que a mostrava nua e grávida, pintado por Amanda Finch. Os Perinos mais velhos pararam e olharam para o quadro por um longo momento, mas nenhum dos dois disse qualquer coisa. Também não fizeram qualquer comentário sobre o adolescente nu. As únicas obras de Amanda penduradas no térreo foram algumas de suas flores, que os Perinos não reconheceram como obras da mesma pintora, até que Cindy apontou o estilo idêntico usado num tema diferente.
A correspondência de sábado trouxe o aviso da reunião e uma convocação para a presença de Angelo. Ele tinha de explicar aos pais por que se ausentaria em parte de um dia durante a visita deles, e por isso mostrou-lhes a carta.
Os dois sentavam na sala de estar na ocasião. O pai olhava um catálogo da Galeria VKP, que largou para ler a carta.
— Nunca pude entender seu fascínio total pelos Hardemans
— comentou ele. — Pensei que, depois do que lhe fizeram em 1972, poria de lado toda e qualquer idéia de voltar a se relacionar com a família.
— Posso explicar o motivo — disse Angelo. — Vou tirar a companhia deles. Aquele filho da puta pensa que vai me liquidar.
Pois eu é que vou acabar com ele.
3
Na manhã de domingo, o dia anterior ao Natal, a babá das crianças atendeu o telefone e informou a Cindy que a sra.
Hardeman desejava lhe falar.
Roberta. O que Roberta poderia querer agora? E por que queria falar com ela, em vez de Angelo? Cindy foi para a biblioteca, sentou na poltrona de couro que havia ali e atendeu a ligação.
— Aqui é Cindy.
— Creio que não nos conhecemos pessoalmente. Se já nos encontramos, peço desculpas por não me lembrar. Sou Alicia Hardeman. O nome significa alguma coisa para você?
— Ahn... claro... você é...
— A primeira esposa de Loren. A mãe de Betsy. Alicia Grinwold Hardeman.
— Lembro agora.
— Vou receber alguns amigos no dia de Ano-Novo. Não na véspera. Todos os aparelhos de televisão estarão sintonizados em diversos jogos, e assim as pessoas poderão escolher o que quise-rem. Não costumo mandar convites por escrito. Telefono para as pessoas. Ficaria muito satisfeita se você e Angelo pudessem vir.
Moro em Greenwich, como já deve saber, e lamento não termos nos encontrado antes.
— Agradeço o convite, mas tenho um pequeno problema.
Os pais de Angelo estão nos visitando... o dr. e sra. Perino, de Detroit. Passarão apenas uns poucos dias aqui, e Angelo foi chamado a Detroit para uma reunião na quinta-feira. Por isso...
— O dr. e sra. Perino também estão convidados, é claro. Será bastante informal. Nada de gravatas. Nenhuma hora específica para chegar ou sair... qualquer momento entre uma da tarde e, digamos, sete horas da noite. Minha filha Betsy estará aqui. Nenhuma festa pode ser rígida ou formal com Betsy presente. Por favor, tente vir.
— É muita gentileza sua. Aceito o convite. Se por acaso não pudermos ir, ligarei para avisar.
— Se não puderem vir, vamos nos encontrar em outra ocasião, muito em breve. Mas tentem comparecer a esta festa. Será uma boa oportunidade de conhecerem pessoas. Só nos relaciona-mos com pessoas descontraídas, e por isso sei que não terá qualquer dificuldade em gostar de meu círculo de amizades.
De volta à sala de estar, onde Angelo conversava com o pai e a mãe, Cindy sorriu e disse:
— Meu bem, acabamos de receber um convite para uma festa. Todos nós. E não vai adivinhar de quem.
4
— Está atrasado — disse Loren, em tom brusco, quando Angelo entrou na sala de reunião.
— O tempo estava horrível para se voar — respondeu Angelo.
Na verdade, o Learjet fretado pousara meia hora antes, mas ele se demorara a tomar um drinque sem pressa no bar do aeroporto, antes de sair para a limusine que alugara. Se Loren queria entrar em jogos, ele podia fazer a mesma coisa. Vestia um blazer azul marinho com botões dourados, por cima de uma suéter rosa de cashmere, com uma camisa branca, de colarinho aberto. Afinal, era uma semana de feriado.
— Poderia ter embarcado num vôo anterior — insistiu Loren.
— Este já foi cedo demais.
Nem todos haviam cedido ao desejo de Loren de fazer uma reunião no dia 27 de dezembro. A Princesa Anne não viera. Nem o banqueiro, Myron Goldman. Peter Beacon, o vice-presidente de engenharia da XB Motors, sentava numa das cadeiras por trás dos lugares dos membros do conselho de administração.
Roberta, usando uma suéter branca e fumando um Chesterfield, sentava com a cadeira afastada da mesa. Não olhou para Angelo.
Loren fitou Angelo por um momento, como se tentado a comentar seu traje informal, depois aparentemente decidiu não fazê-lo.
— Quando vamos ver esse carro seu na pista de testes? —
indagou ele, de forma um tanto abrupta.
— Já está na pista de testes, no Japão.
— Sugere que voemos até lá para vê-lo?
— Se quiser ver antes de... março, digamos. Teremos meia dúzia de carros correndo na pista de testes aqui em março.
— Trazidos de avião do Japão — comentou Beacon. — Não carros montados aqui.
Angelo deu de ombros.
— Quando estiver com seu novo controle de qualidade instalado, poderemos começar a montá-los aqui. Não antes disso.
No ritmo de progresso atual, calculo que a Shizoka terá mil carros circulando pelo Japão antes de termos um só nos revendedores aqui.
— É um homem difícil, Angelo — queixou-se Loren. — Parece confiar mais nos japoneses do que em sua própria gente.
Tem um carro andando numa pista de testes lá que nenhum de nós por aqui jamais viu. Nem sequer assistimos a um filme.
— Assim que passar o Ano-Novo, Loren, nós dois podemos voar até lá. Poderá ver o carro, até dirigi-lo. Está à sua disposição.
Ninguém quer escondê-lo de você. Apenas não pode continuar sentado em Detroit se quer vê-lo.
— Não pode nem montar um protótipo em nossa fábrica?
— Custa caro montar um protótipo, e estamos tentando reduzir os custos — explicou Angelo. — Além do mais, se montar-mos um aqui e uma porta cair na pista de testes, todas as emisso-ras de televisão da cidade vão mostrar a cena no noticiário noturno. Não é apenas o controle de qualidade da XB que se situa abaixo dos padrões, mas também a segurança. Trarei seis ou sete carros de avião do Japão, e podemos organizar um bom espetáculo.
Com a certeza de que suas portas não vão cair.
— Como podemos saber disso? — indagou Beacon. — O pessoal da Shizoka não fala conosco.
— Claro que fala, mas por meu intermédio. Os japoneses são diferentes de nós. Estabeleci um bom contato com eles. Basta uma conversa desastrosa entre um deles e alguém daqui para aze-dar todo o nosso relacionamento. — Ele olhou para Loren. —
Quando formos para lá, eu o instruirei sobre o que dizer e como dizer... e o que não dizer.
Loren ficou vermelho.
— Você vai dizer a mim? Quem manda nesta companhia?
— Esta companhia só tem uma chance de sobreviver. O XB
Stallion... e agradeço pelo nome excepcional, Loren. Essa chance depende de uma estreita cooperação entre a Shizoka e nós. Se alguém arruinar o negócio... se o acordo for desfeito, Loren, não terá mais coisa alguma em que mandar.
— Também não terei se o carro não puder ser lançado no mercado por menos de seis mil dólares — disse Loren. — Mas seus amigos japoneses não respondem às perguntas de nossos contadores sobre custos. Quão perto eles ficarão de suas projeções de custo?
— Estou calculando cerca de quarenta dólares acima da pre-visão original — respondeu Angelo. — Pode chegar a cinqüenta dólares, mas não será mais do que isso.
— Como podemos saber, se eles não deixam nossos contadores examinarem...
— Saberão quando começarem a nos vender o sistema de tração por um preço determinado. E quão perto nós ficaremos das projeções para os chassis e carrocerias?
— Ainda não sabemos—informou Loren. — Mas todo mundo está trabalhando nos números.
— Sei disso — garantiu Angelo. — Esperam que o custo será de mais de quinhentos dólares além das projeções. Se o carro sair daqui com essa desvantagem, o modelo básico, despojado, sem acessórios, terá de ser vendido a seis mil e quinhentos dólares. Ou seja, duzentos e cinqüenta dólares a mais que o X da GM e quinhentos dólares a mais que o K da Chrysler. O que vai nos derru-bar?
— Custa dinheiro fazer negócios nos Estados Unidos — declarou Beacon.
— Mais do que custa à GM e Chrysler? — perguntou Angelo.
— As Três Grandes têm economias de volume que não podemos conseguir — interveio Roberta.
— Podemos, se fizermos o que temos de fazer. — Angelo levantou-se. — Senhores... e senhora, precisam cortar a folha de pagamento desta companhia em quinze por cento.
— A primeira reação seria uma greve — comentou Beacon.
— Não, não seria. Porque não é o pessoal sindicalizado da linha de produção que temos de cortar. Esta companhia tem excesso de pessoal. Há burocratas demais. Precisamos reduzi-los.
Ponto final.
O Professor Mueller, diretor-administrativo da Fundação Hardeman, sacudiu a cabeça.
— A proporção de funcionários administrativos para operarios na Bethlehem Motors... desculpem, na XB... é mais ou menos a mesma dos outros fabricantes de automóveis.
— É justamente esse o problema — disse Angelo. — E a deles é péssima. A diferença é que eles obtêm "economias de volume", o que não conseguimos.
— E por onde começaria? — indagou Loren.
— Para começar, eu me livraria daquela pequena firma de contabilidade de Detroit que Número Um contratou para cobrir seus disparates. Mandaram à Shizoka um questionário de quarenta páginas, em espaço um. Eu o vetei. Além do fato de que os japoneses o consideraram insultuoso, exigiria milhares de homens-horas para juntar os dados que seus burocratas pediam... sem precisarem. Não tenho as estatísticas, mas aposto que mais de vinte por cento dos homens-horas burocráticos são consumidos no que eles chamam de projeções e planos. Havia um questionário em minha mesa um dia desses. Entre outras coisas, alguém queria saber quanto eu gastaria com viagens, material de escritório e meia dúzia de outras coisas no terceiro trimestre de 1982. Ora, nem mesmo sei se haverá uma companhia XB em 1982, muito menos quanto vai gastar em clipes. Burocratas formados em administração, meus amigos. Quantos temos? Quantos de Harvard?
Despeçam todos os de Harvard e setenta e cinco por outros. Depois, mandem embora todas as pessoas que desperdiçam tempo gerando relatórios e estatísticas para os especialistas em administração. Precisamos ter aqui alguém que saiba construir carros... e eletrodomésticos também, já que vamos permanecer nesse negócio. Mostrem-me um burocrata que não saiba distinguir entre uma chave tubular e um martelo de bola, e ele é dispensável.
— Uma reestruturação radical — murmurou o Professor Mueller.
— "Reestruturação radical" porra nenhuma! —exclamou Angelo. — Estou falando em cortar gordura. Estou falando em reduzir o custo de fazer negócios. Estou falando em diminuir o preço do chassi e carrocería que vamos instalar no XB Stallion.
Estou falando de sobrevivência.
Angelo sentou. Para surpresa de todos, Roberta levantou-se.
— Não sei se o sr. Perino está certo ou errado, mas observei uma coisa... e tenho experiências em negócios, como sabem.
Durante vários anos, Número Um fingiu dirigir a companhia e interferiu em todos os esforços de meu marido para promover algumas dessas mudanças... ou seja, a adoção de modernos métodos de administração e o corte da gordura. Pois bem, Número Um morreu. Seu sucessor... alguns o chamam de Número Três...
tem liberdade agora para efetuar as mudanças. Sei que ele já vem estudando com todo cuidado algumas das coisas que o sr. Perino mencionou. Imagino que descobrirá que o sr. Perino está certo em algumas coisas, errado em outras. De qualquer forma, é ele que sabe como fazer.
Ela fez uma pausa, ofereceu um sorriso afetuoso a Loren.
— Não sei se meu marido conhece a diferença entre uma chave tubular e um martelo de bola. Sei que ele não compreende como funcionam os soldadores robóticos. Mas é por isso que o sr. Perino está conosco. E o sr. Beacon. Para o bem da companhia, sugiro que a administração deixe a engenharia fazer seu trabalho e a engenharia deixe a administração fazer o seu.
Roberta sentou. Por um longo momento, Loren permaneceu imóvel, em silêncio, como se estivesse abalado. Depois, sorriu e disse:
— Podem ver agora por que casei com ela. Ou pelo menos um dos motivos. — Ele olhou para Angelo. — Quero ir ao Japão com você. Quero conhecer o carro e dirigi-lo, como sugere.
Loren desviou os olhos para Beacon.
— Trabalhe no controle de qualidade, Pete. Angelo tem razão quando diz que não podemos ter portas caindo. Ou um pára-brisa vazando.
Loren tratou de assumir seu papel de árbitro supremo.
— Lamento ter de chamá-los aqui hoje, mas já verificaram que nos defrontamos com problemas que não podem esperar.
5
Roberta deu um jeito de encontrar um momento para falar a sós com Angelo.
— Encontre alguma coisa que ele possa mudar no carro — disse ela, em tom de urgência. — Passe para mim, e eu passarei para ele. Loren tem de pensar que está dando uma contribuição.
Angelo acenou com a cabeça.
— Onde passará esta noite? — perguntou Roberta.
— North Street, Greenwich, Connecticut. Meus filhos dormiam quando saí de casa, mas estarão acordados quando o pai voltar. Além do mais, meus pais estão lá em casa.
— Como pretende voltar tão depressa?
Angelo sorriu.
— Reduzi os custos. Fretei um jato e uma limusine.
Ela riu.
— Mas que filho da puta! Encontre algum tempo para nós, amor. Encontre tempo para nós.
6
Se havia um grupo que pudesse ser considerado como a alta sociedade de Greenwich, Alicia Grinwold Hardeman o integrava.
Sua casa ficava na Round Hill Road, branca, de madeira, construída na década de 1870, e fora outrora o solar de uma propriedade agrícola com centenas de hectares. O primeiro dono, um homem chamado Mead, ganhara sua fortuna como armador. Seu retrato estava pendurado por cima da parede, e a cidade enxameava com seus descendentes.
Alicia, a primeira mulher de Loren Hardeman Terceiro e mãe de sua única filha, Betsy, proporcionava à casa uma dignidade que provavelmente jamais conhecera. Aos quarenta e sete anos, era mais alta do que a maioria das mulheres, também mais magra, mantinha o controle confiante de uma vida que resultava do casamento na família Hardeman e de um acordo generoso do ex-marido. Possuía cinco por cento da companhia que era agora chamada de XB Motors, Incorporated; mas se a empresa afundasse, seu fundo de investimentos, criado quando Número Um e Número Três se encontravam mais seguros do que Número Três e a XB
agora, garantiria o mesmo estilo de vida enquanto vivesse. Na verdade, investimentos hábeis haviam melhorado sua segurança financeira e estilo de vida. Era uma mulher que não precisava se preocupar com nada... em termos de dinheiro.
Para a festa de Ano-Novo, ela usou um vestido de brocado justo, dourado, verde e vermelho sobre bege. Fumava Camels sem filtro e bebia gim puro, com apenas um ou dois cubos de gelo.
— Angelo! E você deve ser Cindy! Fico contente que tenham vindo. E estes devem ser o dr. e sra. Perino. Sejam bem-vindos!
Por favor... Minha filha, Betsy. Hardeman... van Ludwige, como preferirem chamá-la.
— Obrigada, mãe — disse Betsy. — É muita bondade sua me apresentar assim. Já conheço Angelo e Cindy Dr. e sra. Perino, é um prazer. Qualquer coisa que já ouviram falar a meu respeito provavelmente é verdade.
— Só ouvimos coisas boas a seu respeito — declarou o dr. Perino.
Betsy usava um vestido de tricô vermelho-laranja, com listras estreitas em verde e azul escuros. Era curto e bem justo no corpo.
— Eu lhe ofereceria um drinque, Cindy — disse ela —, se não tivesse parado de beber até...
— Até abril — informou Cindy.
— Meus parabéns — acrescentou Betsy, olhando para ela e para Angelo.
— Temos o maior orgulho de nossos netos — comentou Jenny Perino.
— E eu tenho muito orgulho de meu filho. — Betsy olhou para Alicia e Angelo. — Conto com minha mãe e Angelo para que ele herde tudo a que tem direito.
— Não sei se tenho alguma influência nisso — ressaltou Angelo.
— Claro que tem. — A expressão nos olhos de Betsy tornou-se dura. — E conto com você para providenciar que meu pai morra em breve.
— Betsy sempre foi uma criança difícil — interveio Alicia, com uma raiva fria e condescendente.
Betsy tratou de recuar.
— Falando em termos figurativos apenas, é claro.
O dr. Perino sorriu.
— Compreendemos que todos falam em termos figurativos e em enigmas. Mas por quê? Pude ir para a faculdade de medici-na porque durante a Lei Seca meu pai vendida bebidas ao primeiro sr. Hardeman. Quem violava mais a lei, o comprador ou o vendedor? Não conversamos mais sobre essas coisas do passado. Não falamos sobre quem explodiu Joe Warren, não é mesmo? Joe Warren era o Harry Bennett da Bethlehem Motors, mas morreu de repente, de maneira muito conveniente. Henry Ford II teve os maiores problemas para se livrar do capanga de seu avô. Para Número Um, foi mais fácil. Joe Warren morreu numa explosão que nunca foi explicada. Há uma antiga aliança entre as famílias Hardeman e Perino. Não creio que meu filho precise se submeter a qualquer Hardeman. Sem os Perinos, não haveria Hardemans.
As pessoas no grupo — Angelo, Cindy, Betsy, Alicia e Jenny Perino — estavam aturdidas. O dr. Perino continuou:
— Loren Terceiro mandou espancar meu filho, quase o matou. Eu poderia providenciar a morte de Loren em vinte e quatro horas. E não seria uma morte das mais tranqüilas. Mas não é assim que os problemas são resolvidos. Meu filho poderia exigir esse tipo de vingança, e seria consumada. Não exigiu. Meu filho é um homem digno.
Angelo interveio:
— Meu pai fala de um modo um canto simplista. Vamos fabricar o novo carro e transformá-lo num sucesso... quer alguém chamado Hardeman goste ou não.
7
— Seu pai disse coisas muito interessantes — comentou Betsy para Angelo um pouco mais tarde, quando estavam isolados, a contemplar o requintado bufê que Alicia espalhara sobre a mesa de jantar e três mesas laterais, na sala iluminada por velas. — Ele não poupa os golpes, hem?
— Nem os capangas de seu pai. E já que estamos falando nisso, você foi bastante rude.
— Quis dizer que queria vê-lo destruído, não morto.
— Pelo menos sabemos quais são nossos objetivos. Não se esqueça de que o meu é fabricar um carro.
— Você é como Número Um sob esse aspecto, não é mesmo? O XB Stallion é uma coisa a que quer dedicar o resto de sua vida?
— O Stallion é apenas o começo. Tenho outros planos. Depois que o Stallion se tornar um sucesso e recuperar a posição da companhia na indústria automobilística, faremos outra coisas.
— Angelo... — Ela sorriu, divertida. — Vai finalmente fabricar o Betsy para mim, depois de tanto tempo?
Ele sorriu.
— Por que não? Quando o carro para a família virar um sucesso, faremos um carro esporte.
— Considero isso como uma promessa. — Betsy olhou para a sala de estar. — Tem alguém aqui que você precisa conhecer. O
namorado de minha mãe. Venha.
O homem em cuja direção ela o levou era o que todos os ricos de Greenwich aspiravam a ser: bonito, com uma fenda no queixo, obviamente à vontade, em boa forma física, usando um blazer azul trespassado, uma camisa branca com listras azuis, uma gravata clássica, calça cinza de flanela e mocassins Gucci.
— Deixe-me informá-lo — murmurou Betsy. — Soube que você recomendou a demissão de todos os administradores formados, em particular os de Harvard. Pois o homem que vai conhecer agora se formou em administração em Harvard. É um banqueiro de investimentos. Foi capitão dos fuzileiros no Vietnã. Tenista.
Possui um lindo veleiro. É cinco anos mais moço do que minha mãe, o que significa que ela deve lhe oferecer uma foda sensacional. O nome dele é William Adams.
Betsy apresentou Angelo a Adams, que o convidou a tratá-lo por Bill antes mesmo de encerrarem o aperto de mão.
— Sempre me interessei por seus relatórios sobre a indústria automobilística — comentou ele. — Para ser franco, lamentei quando voltou à companhia. Começava a confiar em suas análises.
— Quando um homem tem em seu sangue fabricar automóveis, é difícil permanecer longe.
— Eu gostaria de falar com você a respeito outro dia — disse Adams. — Há um especialista em obter o controle acionário de empresas que pode tentar comprar a XB. Seu nome é Froelich, de Nova Jersey.
— É uma empresa de família. Pode ser difícil.
— Difícil, mas não impossível. Mas não vamos falar sobre isso agora. Fui apresentado há poucos minutos à sua encantadora mulher e sugeri que vocês dois poderiam passear de barco conosco, logo depois que a criança nascer. Adoramos velejar. Vocês gostam?
— Nunca experimentei.
— Você fazia uma coisa que me fascina. Pilotava carros de corrida. Estive na Europa em 1964 e o vi pilotar em Targa Florio.
Desculpe, mas não consigo me lembrar qual era o carro que guiava.
— Um Porsche 904 — disse Angelo.
— Pois bem, pilotar e velejar são dois esportes muito diferentes. Não entro mais em regatas. Alicia se tornou uma competente navegadora. Imagino que você e Cindy também serão ótimos.
— Ficarei feliz em tentar.
— Cindy diz que a criança deve nascer em abril. Em julho ou agosto ela já deve ter condições de velejar. Mas vamos torcer para que possamos nos encontrar de novo antes disso.
— Seria ótimo — murmurou Angelo.
Era a primeira vez na área mais elegante de Greenwich em que alguém lhe fazia uma oferta de amizade.
XV
1980
1
Roberta sentava à vontade numa poltrona na sala de estar.
Era uma noite de inverno, com muito vento lá fora, ela vestia um chambre verde e fumava um Chesterfield. Loren entrou na sala.
Estava nu e carregava uma bandeja com uma garrafa de scotch, soda e um balde de gelo. Serviu-lhe um drinque.
— Demorou demais — disse Roberta.
— Tive de abrir uma nova garrafa de uísque — murmurou ele humilde.
— Pois então trate de se mexer agora e vá logo buscar os hors-d'oeuvres — ordenou ela.
Loren voltou apressado à cozinha para buscar uma bandeja com pequenos sanduíches que a criada preparara antes. Ele se ajoelhou ao lado da mesinha baixa, passou alguns pães para um prato com uma espátula de prata. Havia duas pequenas tigelas de cristal com mostarda Gray Poupon e maionese. Usando as faquinhas, ele passou mostarda em dois pães, maionese em outros dois.
Roberta esmagou seu cigarro num cinzeiro. Ainda de joelhos, Loren pegou o cinzeiro e despejou a ponta e as cinzas numa lata com tampa. Limpou o cinzeiro com um lenço de papel, que em seguida jogou na lareira.
Roberta fumava, mas não gostava do fedor de guimbas perto de sua comida.
— Sirva os pepinos e cenouras — ordenou ela.
Loren pegou-os com uma pinça de prata comprida e ajeitou no prato.
— Agora, preste atenção, pois Mama vai lhe dizer o que faremos quando chegarmos ao Japão.
Enquanto ela falava, Loren inclinou-se e lambeu seus pés.
— Tudo indica que Angelo e os japoneses montaram um bom carro, mas não perfeito. Por isso, vamos encontrar um defeito nele, você e eu. Não pode ser alguma coisa que exija uma grande mudança. Mas descobriremos algo que ele e o pessoal da Shizoka terão de mudar. Será uma boa idéia o pessoal da Shizoka ver como você pode mandar que Angelo mude coisas. Entendido, Papai?
Loren suspirou.
— Não sei se poderei perceber alguma coisa que precise ser mudada. Eu gostaria que pudéssemos levar Beacon.
— E deixar os japoneses pensarem que é Beacon e não você quem dá as ordens? Não se preocupe. Encontraremos alguma coisa.
Durante o vôo, você pode ler aqueles dois livros que lhe dei. Eu já os li. Há boas idéias neles. Você se mostrou um executivo muito eficaz no dia 27 de dezembro. Será assim outra vez.
Loren ergueu-se, ainda de joelhos.
— Pode pegar alguma comida — disse Roberta. — Sirva-se de um drinque.
Ele pôs pães e vegetais em seu prato. Serviu-se de uma dose de uísque pura.
— Estou contente porque você vai comigo — murmurou ele.
— Seja um homem, amor.
Loren levantou os olhos e sorriu.
e meios de se ser um homem. Quando enfio o rosto entre suas pernas, estou sendo um homem. E...
— Seja um homem com Angelo Perino. O que não significa...
— Que ele tenha seu Stallion. Talvez salve a companhia. Mas ainda vou enrabar aquele carcamano. Não se esqueça disso, Roberta. E não será nada agradável para o sr. Angelo Perino. Vou tomar o carro dele, e ainda por cima vou enrabá-lo. Espere só para ver.
2
Loren e Roberta planejavam voar para o Japão na terça-feira, 22 de janeiro. Angelo partiria uma semana antes, a 15 de janeiro.
Por quatro vezes durante a semana anterior a seu vôo Angelo teve de atender telefonemas de Roberta. Numa ligação na quinta-feira, 10 de janeiro, ela anunciou que também iria. Insistiu que tinha de vê-lo antes da viagem, por motivos de negócios, além de pessoais.
— Ainda não combinamos tudo, Angelo.
Ele percebeu em sua voz um tom de urgência, até de pânico.
— Voarei para Tóquio de Detroit, pela Northwest Orient, se conseguir um lugar. Passarei a noite de terça-feira em Ann Arbor, pegarei o avião na quarta. Chegarei a Tóquio com um dia de atra-so, mas creio que Keijo e eu já somos bastante amigos agora para que ele não se sinta ofendido.
Na terça-feira ele voou para Detroit, alugou um Ford no Aeroporto Metro, seguiu para Ann Arbor e registrou-se num Holiday Inn. Tomou dois drinques e comeu um sanduíche de três camadas no restaurante. Estava deitado na cama, nu, lendo, quando Roberta chegou, por volta das duas horas da madrugada.
Ela tirou o casaco e sentou no sofá. Tirou as botas de cano alto. Usava uma saia de lã cinza e uma suéter creme.
Angelo serviu dois scotches.
— Os negócios primeiro — disse Roberta. — Ainda não me contou qual é o defeito que Loren encontrará no Stallion.
— Chegarei uma semana antes para aprontar tudo. É uma farsa absurda, Roberta. Eu concordei, mas...
— O que você faria se Loren vendesse suas ações na XB ? E se a Fundação Hardeman fizesse a mesma coisa?
— Quem compraria?
— Há um homem em New Jersey que já conversou duas vezes com Loren.
— Número Um o mataria!
— Número Um está morto. Pense do ponto de vista de Loren.
A companhia é uma grande fonte de problemas. Domina a vida dele. Sempre foi assim. E você é uma fonte de repetidas humilha-ções. Por isso, ele vende suas ações. Com dez ou doze milhões de dólares no banco, ele deixa Detroit e vai morar em outro lugar.
Paris, por exemplo.
— Você iria com ele, Roberta?
Ela hesitou.
— Ainda não decidi. Loren não irá se eu não for. Vai fazer cinqüenta e um anos e já foi derrotado vezes demais na vida. Recebe um bom dinheiro. E eu tenho meus recursos pessoais. Trata-mos de nos mudar para Paris, esquecemos tudo sobre Detroit e automóveis.
— Vai se desfazer de tudo o que família sempre representou
— comentou Angelo.
— E vai se desfazer também de outra coisa. Você. Desta vez sairá perdendo, Angelo. Os novos donos vão liquidar o patrimônio da companhia... saquear é a palavra mais apropriada... e jamais fabricarão o Stallion.
— Já ouvi falar desses caras. Eles podem ter alguma dificuldade para levantar o dinheiro.
— Loren não venderá se achar que pode se tornar o novo Hank Ford. Lee Iacocca fez um carro para ele e salvou-o. Hank nunca o perdoou por isso. Loren perdoará você se pudermos dar a impressão de que ele contribuiu com coisas importantes para o Stallion. E se fizermos o mundo acreditar nisso.
— Eu disse que aceitaria a farsa. — Angelo abriu sua pasta e entregou a ela desenhos do painel do Stallion. — Note que a parte superior do painel é plana, com rebordos nos lados e atrás, formando uma pequena bandeja, onde se pode pôr mapas, um lápis, moedas para o pedágio... ou uma xícara de café. Keijo está tirando isso do protótipo e instalando um painel inclinado. Qualquer coisa em cima vai rolar para o chão. E tem mais. Este é cinza escuro. O painel inclinado será bege. Vai refletir a luz do sol no pára-brisa e reduzir a visibilidade.
Roberta acenou com a cabeça.
— Ótimo, só que isto é basicamente cosmético. Não há algo mais fundamental?
— Se você quiser. Podemos providenciar um desvio sério na suspensão. Se Loren guiar o carro de teste e entrar numa curva derrapando, pode até capotar.
— E morrer.
— Ele vai guiar com o capacete e arreios do piloto de teste.
Além disso, o carro de teste é equipado com barras de proteção.
Podemos lhe dar uma oportunidade de fazer algo dramático e se enfurecer.
Roberta sorriu e balançou a cabeça.
— Angelo, você é um príncipe... e Roberta vai lhe mostrar como pode ser agradecida.
Ela despiu-se num instante.
— Já chega de falar de negócios, Angelo. Agora, vamos fazer negócios. Há duas semanas que venho pensando numa coisa.
— O que é?
— Uma coisa de que você vai gostar. Mas primeiro quero tomar um daqueles banhos de chuveiro juntos, como fizemos em Londres. Oh, Deus, sabe que já tem mais de um ano? E só fomos quatro vezes para a cama juntos desde então. Não cuida muito bem de mim, Angelo.
— Estou tentando salvar uma companhia.
— Eu diria que um homem que não trepa regularmente não é capaz de salvar coisa alguma, mas tenho certeza de que não é esse o seu caso.
— Nem o seu, Roberta — retrucou ele.
— Mas é muito diferente. Você é diferente, Angelo. É... é competente.
— Os italianos sabem como fazer grande arte e grande amor
— disse ele.
— Diga-me se foi mesmo grande depois que fizermos — falou ela.
Quando saíram do chuveiro, Roberta pegou-o pela mão e levou-o para a cama.
— Agora, amor, Roberta vai fazer você gozar com os lábios e a língua exclusivement. Sem qualquer contato das mãos. Pode até amarrar minhas mãos nas costas com seu cinto, se quiser.
Angelo sacudiu a cabeça.
— Vai demorar um pouco, mas quando você gozar, vai gozar de verdade. — Roberta sorriu. — E depois não haverá ejaculação prematura quando entrar em mim.
Ela estava com razão ao dizer que ia demorar. Em geral, a mulher usava as mãos quase no final, para acrescentar mais fricção e vigor, apressando o orgasmo. Roberta manteve as mãos longe, como dissera que faria. Lambeu-o. Sugou-o entre os lábios. Prendeu o pau entre os lábios e massageou a cabeça com a língua. Chupou-o por toda a extensão. Lambeu o saco.
Mergulhou a língua em seu copo, encostou no gelo por um momento, depois chupou-o com a língua gelada. As sensações de Angelo foram a princípio superficiais, mas pouco a pouco a excitação foi se tornando mais completa e profunda, até que ele sentiu que alguma coisa lá dentro ia se romper. Começou a ofegar.
De vez em quando Roberta levantava os olhos, alteava uma sobrancelha e sorria. Tinha o rosto corado, o suor brilhava na testa, nas faces e nos seios. Fazer o que ela fazia era um trabalho árduo: balançar a cabeça para cima e para baixo, comprimir o rosto contra a virilha para alcançar o saco com a língua sem levantá-lo com as mãos, depois subir de novo e engoli-lo até onde podia.
— Já vai gozar, hem? — murmurou ela.
Angelo gemeu e acenou com a cabeça. O corpo ficou rígido, as pernas estendidas, os violentos espasmos começaram. Ela fechou os lábios em torno do pau e sugou enquanto ele gozava.
Engoliu tudo. Só depois do último espasmo, quando começou a amolecer, é que ela levantou a cabeça. Mas logo tornou a baixá-la, lambeu-o de novo, para recolher as últimas gotas.
Só depois é que Roberta pegou seu copo e tomou o resto do scotcb.
Angelo inclinou-se para a frente. Sentia um princípio de cãi-bra nas pernas. Ainda estava enorme e duro, embora não pudesse acreditar que fosse possível.
— Diga-me que nunca teve melhor, Angelo — pediu Roberta.
Ele podia dizer, com toda sinceridade, que nunca tivera mesmo, e não hesitou em fazê-lo.
— E um gosto adquirido e uma habilidade aprendida — murmurou ela.
— Tive a impressão de que você também gostou, Roberta, que estava se divertindo.
— Claro que gostei... um pouco.
— "Gosto adquirido e habilidade aprendida" — repetiu Angelo. — Como adquiriu esse gosto e aprendeu a habilidade?
— Sabia de uma coisa? As meninas fazem isso hoje quando têm doze ou treze anos. Sabem que assim não podem engravidar.
Mas quando eu era adolescente... — Roberta balançou a cabeça.
— Eu também. Somos mais ou menos da mesma idade.
Quando éramos adolescentes, as boas meninas não chupavam o pau dos meninos. Se o fizessem, não eram mais boas meninas, adquiriam terríveis reputações e eram chamadas de nomes sórdidos.
— Há um antigo clichê — disse Roberta —, de que foi um bravo homem quem primeiro comeu uma ostra. Pois foi uma brava Roberta quem primeiro aceitou um pau na boca.
— E foi um bravo Angelo quem primeiro enfiou a língua na boceta de uma mulher.
— Por que fez isso?
— Para seduzi-la. Não estava conseguindo coisa alguma com ela, e por isso...
— Que idade você tinha?
— Vinte e seis ou vinte e sete anos.
— Gosta de fazer isso?
— Posso fazer, mas não sinto um grande entusiasmo.
— Não se preocupe, pois não vou pedir que me chupe.
Estou pensando em outra coisa. Eu tinha trinta e quatro quando chupei um pau pela primeira vez. Meu marido queria. Suplicou para que eu o chupasse. Eu tinha certeza de que ia engasgar, talvez até vomitar. Mas isso não aconteceu, e pouco a pouco fui me acostumando, até passei a gostar. Deixávamos o escritório nas noites de inverno quando já estava escuro, e ele me pedia para chupá-lo enquanto guiava. Dá para imaginar?
Aposto que chupei Harold umas cento e cinqüenta vezes na Jefferson Avenue. Se parávamos num engarrafamento, eu me sentava direito e só recomeçava quando voltávamos a andar.
Às vezes ele passava além de nossa rua porque queria que eu acabasse antes de voltarmos para casa. Foi assim que aprendi a engolir. Havia sujeira demais quando tentava cuspir num lenço de papel.
Angelo beijou-a. Ela tinha os lábios um pouco inchados e sensíveis.
— Você é uma mulher sensacional, Roberta. Espero que Loren a aprecie.
— Não acreditaria no quanto ele me aprecia. — Roberta soltou um suspiro alto. — Vamos tomar outro drinque. E depois quero que você meta em mim por trás. Duas vezes. Antes de eu voltar para casa. Tornaremos a nos encontrar em Tóquio.
3
Ao chegar ao laboratório de pesquisa e desenvolvimento da Shizoka, Angelo encontrou à sua espera um confuso Keijo Shigeto, que já instalara o painel deficiente no protótipo do Stallion. Angelo explicara pelo telefone por que tinham de modificar o carro, para introduzir defeitos. Era quase impossível fazê-lo entender as excentricidades da política empresarial americana.
Ou talvez não. Ocorreu a Angelo que talvez Keijo compreen-desse muito bem, mas se sentia inibido pelos padrões japoneses de cortesia de reconhecer.
No vôo de Detroit a Tóquio, Angelo revisara o melhor meio de fazer o carro derrapar. Keijo revisou as modificações propostas e concordou que poderia ser feito com facilidade... e com a mesma facilidade restabeleceriam a estabilidade anterior do carro.
Nessa ocasião, e somente nessa ocasião, Angelo ouviu um diálogo áspero entre dois japoneses. Não podia entender o que diziam, mas era óbvio que um dos assistentes de Keijo não queria efetuar a alteração. Ele alteou a voz ao protestar. Subitamente, Keijo falou num tom incisivo. Era evidente que dera uma ordem brusca. O assistente fez uma reverência curta e se afastou.
Dois dias depois Angelo testou o Stallion modificado, transportado de trem para a pista de testes.
O desvio era sutil. Não aparecia nas curvas mais suaves da pista de testes, nem mesmo em alta velocidade. Mas numa curva de noventa graus, como num cruzamento, o carro insistia na manobra, resistia a seguir em linha reta. Um motorista que não pre-visse isso, e carecesse de experiência em derrapagem, poderia se descobrir a bater no meio-fio.
Angelo assegurou-se de que o carro não representaria qualquer risco para Loren. Ele não faria curvas fechadas até sair da pista. Quando isso acontecesse, teria de virar bruscamente para passar por um portão. Se não fosse um excelente motorista, o carro escaparia ao seu controle. Mas já teria reduzido a velocidade a esta altura e não poderia se machucar.
Loren poderia então protestar com a maior fúria, e Angelo prometeria resolver o problema.
Que maneira de fazer negócios!
4
Loren precisava ser instruído sobre a maneira de lidar com os japoneses. Mas não teria esse privilégio. Seu vôo de Detroit chegaria no meio da manhã, ele teria algum tempo para dormir, e naquela mesma noite seria homenageado com um jantar oferecido pelo sr. Tadashi Komatsu, presidente executivo da Shizoka Motors.
O convite de Angelo, em caracteres japoneses, mas acompanhado por uma tradução em inglês datilografada, chegou a seu quarto com a bandeja do desjejum. Ele telefonou para Keijo pouco depois e soube que o sr. Tadashi teria o prazer de receber seus convidados americanos para um jantar ao estilo ocidental. Uma limusine pegaria Angelo e os Hardemans e os levaria a um country club nos arrredores da cidade. O jantar não seria a rigor.
Loren ligou para Angelo assim que chegou. Angelo disse-lhe para dormir tanto quanto pudesse; poderia enfrentar uma noite árdua.
Roberta foi à suíte de Angelo por volta das duas horas. Queria a garantia de que Loren não morreria se houvesse um acidente com o XB Stallion. Queria também uma trepada rápida. Obteve as duas coisas.
Ser sócio de um country club era um luxo evidente no Japão.
Dedicar uma terra valiosa à diversão era em geral considerado um arrogante desperdício de um recurso natural. Mesmo assim, alguns executivos ricos haviam comprado a propriedade, construído campos de golfe e acomodações luxuosas. A taxa inicial para ser sócio do clube que Angelo e os Hardemans visitaram naquela noite era de um milhão de dólares.
Os golfistas não trocavam as roupas de trabalho pelos trajes de golfe num vestiário. Cada sócio tinha uma suíte no andar térreo para esse propósito. Os sócios jogavam tênis em quadras internas e externas, handebol em quadras internas. Havia salas de jogos, salas de ginástica com instrutores, banhos a vapor e salas de massagem.
Muitos sócios tinham suítes adicionais em andares superiores, dispostas de tal maneira que lhes permitia entrarem e saírem com absoluta discrição, acompanhados por quem quisessem. Cerca de uma dúzia de jovens prostitutas viviam em chalés num bosque afastado da sede do clube. Podiam chegar lá através de um túnel, subindo para os andares superiores por um elevador particular.
O clube era em estilo ocidental. Só fazia duas concessões a seus poucos sócios tradicionalistas: um banheiro comunal em que os sócios e seus amigos podiam descansar em água escaldante e um pequeno restaurante que servia comida japonesa.
Para Angelo e os Hardemans, foram preparadas suítes de convidados, onde podiam — como o motorista-acompanhante explicou — descansar até o momento da recepção e do jantar. Uma criada de saia curta, avental e touca brancos recebeu-os ali, para servir drinques e oferecer pequenos hors-d'oeuvres.
Keijo Shigeto foi à suíte de Angelo, acompanhado pela mulher, a pequena e refinada Toshiko. Ela usara um traje japonês tradicional na última vez em que Angelo a vira. Parecia agora contrafeita num vestido de coquetel preto e justo e sapatos de salto alto.
— O sr. Tadashi sugeriu que minha mulher comparecesse por causa da presença da sra. Hardeman. Sentarão lado a lado, com um intérprete em seguida, a fim de poderem conversar.
— É muita amabilidade — comentou Angelo.
Seria uma provação para a pequena japonesa... e talvez também para Roberta, que seria obrigada a manter algum diálogo, embora preferisse participar da conversa de negócios dos homens.
Deixaram a suíte às sete horas e foram para a suíte do sr.
Tadashi, onde ele esperava com seus executivos.
Tadashi Komatsu fez uma reverência profunda para Loren, um pouco menos profunda para Roberta e Angelo, ainda menos profunda para Keijo, que já fizera sua mesura para ele. O rigoroso senso de hierarquia dos japoneses orientava suas cortesias. Também ditava o que diziam. Embora Angelo não percebesse as dis-tinções, sabia que Tadashi expressaria um pensamento para Keijo em termos um pouco diferentes do que Keijo usaria para expressar o mesmo pensamento para Tadashi, seu superior.
Angelo alertara Loren e Roberta para não tentar compreender e não tentar imitar seus anfitriões. O melhor que podiam fazer era serem corteses ao estilo americano. Os japoneses preferiam isso a tentativas falhas de emulá-los.
Tadashi era o típico alto executivo japonês: talvez sessenta anos, cabelos grisalhos, os olhos por trás de óculos de lentes grossas, as roupas impecáveis. Tinha cerca de um metro e setenta de altura.
Por trás do sorriso fácil não escondia uma intensidade que insinuava que era muito sério sobre quem era, onde estava e o que fazia.
Angelo já se encontrara várias vezes antes com Tadashi e sabia que seu inglês era idiossincrático.
— Encontrá-los é a diversão que eu esperava ter—disse ele a Loren e Roberta.
Durante a maior parte da noite ele falou através de um intérprete, ou Keijo ou um jovem que pairava ao seu lado e sentou atrás de sua cadeira ao jantar. Outro jovem serviu como intérprete para Roberta e Toshiko.
Ao jantar, Tadashi conversou quase que só com Loren, através do intérprete. Angelo tentou escutar o que diziam, torcendo para que Loren não cometesse nenhuma gafe, mas Keijo não parou de atraí-lo para uma conversa. Tadashi fez muitas perguntas a Loren, cada uma precedida pelo ritual "O sr. Tadashi gostaria de saber..." Perguntou quem Loren achava que seria eleito presidente dos Estados Unidos em 1980. Perguntou quem venceria os campeonatos americanos de basquete, beisebol e futebol americano. Queria saber qual era o filme americano predileto de Loren no ano passado e que escritores americanos ele recomendaria.
Angelo ouviu alguma coisa e achou graça. Sabia que Loren se encontrava num tormento. Loren não acompanhava o esporte, não ia ao cinema, lia muito pouco. Sua idéia de diversão era beber e assistir à televisão, talvez jogar um pouco de golfe.
— O sr. Hardeman joga golfe — comentou Angelo para Tadashi.
— Ah, eu também gosto!
Isso levou Tadashi a fazer uma série de perguntas, através do intérprete, sobre golfistas, clubes e campos de golfe americanos.
Loren lançou um olhar sinistro para Angelo e se esforçou em responder.
Angelo recostou-se e saboreou uma das melhores refeições que já comera. As costelas eram as mais macias e saborosas que já experimentara. O vinho era Château Lafite Rothschild. Keijo disse a Angelo, ansioso:
— Persuadi o sr. Tadashi a não ir a Nagoya amanhã. Ele não deve ver...
— Boa idéia — concordou Angelo.
— Irei para Nagoya com os Hardemans de trem. Um helicóptero virá buscá-lo aqui às nove horas.
— Por que aqui? Voltarei a Tóquio...
Keijo sacudiu a cabeça.
— Isso ofenderia o sr. Tadashi, que já providenciou sua permanência aqui.
Angelo franziu o rosto.
— Hem?
Keijo franziu o rosto.
— Só sei isso.
Nenhuma explicação sobre as disposições para a viagem foi oferecida a Loren ou Roberta. Se queriam objetar, não tiveram a chance. Tudo estava organizado. Antes de saberem que Angelo não os acompanharia, ele saiu da sala levado por Keijo e dois risonhos executivos da Shizoka. Tadashi acompanhou Loren e Roberta até a limusine e disse:
— Antes de voarem, devemos nos divertir de novo.
6
Keijo acompanhou Angelo apenas até o saguão para o elevador particular. Ali, entregou a Angelo uma chave, a da suíte 3B.
Disse que o desjejum seria levado à suíte às oito horas. O piloto do helicóptero o esperaria no saguão do elevador às nove.
Sem muito entusiasmo pelo que Tadashi lhe reservara, mas cheio de curiosidade, Angelo subiu no elevador para o terceiro andar e usou a chave para entrar na suíte 3B. Deparou com uma saleta, onde o desjejum seria deixado por um garçom que não veria os ocupantes da suíte. Ele abriu a segunda porta.
— Olá, Angelo...
— Betsy! Mas o que... Como armou tudo isso?
Ela não disse nada até se beijarem. E antes de se desfazer do chambre de seda e ficar nua nos braços de Angelo.
— Concluí que era do meu interesse, e provavelmente do seu também, conhecer o sr. Tadashi. E agora o conheço melhor do que você. Temos muito sobre que conversar, Angelo, além de coisas a fazer.
XVI
1980
1
O piloto de helicóptero japonês esperava no saguão do elevador às nove horas. Não falava inglês, mas reconheceu Angelo Perino. Levou-o até um carrinho de golfe elétrico, no qual seguiram para o heliporto, ao lado do primeiro fairway, encharcado de orvalho. O helicóptero era pequeno, para duas pessoas, e Angelo sentou ao lado do piloto, dentro da bolha de plástico, não se sentindo muito à vontade.
O pequeno aparelho era barulhento, mas isso não fez qualquer diferença, já que não podiam conversar; e de qualquer forma, o piloto nunca removeu os fones dos ouvidos. Falou por um microfone na garganta, ao que parecia com o controle de tráfego aéreo, depois alçou vôo e seguiu para o sul, sobre os arredores de Tóquio e Iocoama.
Pairava uma neblina sobre a paisagem e havia nuvens irregu-lares a cerca de dois mil metros de altitude.
Angelo sabia que havia montanhas entre Tóquio e Nagoya.
O próprio Fuji não ficava muito longe do curso direto entre as duas cidades. O piloto também sabia disso. E não seguiu direto.
Voou sobre o mar, tão longe que a neblina chegou a ocultar a praia, depois virou para oeste e passou sobre o pescoço estreito de uma península. Sobrevoou o mar por mais algum tempo, subiu para uma altitude muito acima da neblina, mas ainda bem abaixo das nuvens, continuou para oeste, sobre uma região montanhosa, rios, povoados e cidades, até chegar a Nagoya.
Uma hora e meia depois da decolagem ele pousou em Nagoya, num heliporto ao lado da pista de testes da Shizoka.
Tudo fora calculado com precisão. Loren, Roberta e Keijo haviam acabado de chegar, tomavam um chá enquanto examina-vam o protótipo do Stallion.
— Espero que tenha passado uma noite agradável — murmurou Roberta, sarcástica.
— Você nem acreditaria — respondeu Angelo.
2
— Não preciso de tudo isso — protestou Loren, enquanto um técnico afivelava os arreios que o manteriam no banco. Ele usava um capacete e um macacão prateado de proteção contra o fogo. — Por que temos de exagerar em tudo?
— Este é um protótipo — explicou Angelo. — Deve ser exi-gido ao máximo. Como esta é uma corrida de teste, devemos estar preparados como os pilotos de teste.
Roberta inclinou-se e disse a Loren, pela janela:
— Lembra como falamos que se deve deixar a engenharia aos engenheiros? Se Angelo afirma que você precisa estar vestido e preparado como um piloto de teste, isso é indispensável. Ele está.
— Mas deve ser um carro da família — resmungou Loren.
— Vamos exigi-lo ao máximo — repetiu Angelo.
Loren franziu o rosto.
— Não é nada luxuoso.
— Tem razão. Eu o levarei para duas voltas na pista, depois trocamos de lugar e você guia. Ou pode guiar sozinho.
O Stallion era menor que um Sundancer 1980, menor que um Chevy ou Ford, mas maior que um Mustang. Nada nele sugeria que era mais leve do que qualquer um desses carros. As linhas retas lhe proporcionavam uma aparência de sólida estabilidade.
Aquele era cinza-prateado. O banco traseiro fora removido para dar espaço às caixas de instrumentos e os rádios que transmitiam seus registros.
— O estofamento será mais elegante do que isto — informou Angelo. — E é claro que o painel de instrumentos será como o desenho que você viu. Terá todos os instrumentos, inclusive um tacômetro. Este protótipo está equipado com transmissão manual em quatro marchas. As posições da mudança são as normais.
Angelo entrou na pista e acelerou rapidamente. O Stallion desenvolveu velocidade com um mínimo de barulho... porque o motor não tinha muito peso. Angelo levou-o a cento e trinta quilômetros horários.
A pista não era oval, mas cheia de curvas, nas duas direções, algumas fechadas, outras bem abertas. O Stallion era firme nas curvas, nunca ameaçando derrapar, jamais se inclinando. Loren olhou para o velocímetro.
— Isto é o máximo?
— Pode dar mais e eu conseguiria controlá-lo. Não sei se você também conseguiria, nas curvas. Presumimos que nosso motorista da família não entrará nas curvas a mais de cento e trinta.
— E se ele entrar?
— Pode perder o controle. Mas o carro dará um aviso. Vou mostrar.
— Aceito sua palavra. Eu gostaria de guiá-lo agora.
— Claro. Só que não podemos parar na pista. Trocaremos de lugar atrás da cerca.
Angelo reduziu a velocidade para trinta quilômetros horários antes de fazer a curva de noventa graus para o portão. Mesmo a essa velocidade, sentiu a guinada do carro.
Os dois saltaram.
— Quer que eu vá com você, ou prefere ir sozinho? — perguntou Angelo.
— Irei sozinho. — Loren virou-se para Roberta. — Quer se espremer dentro de um desses trajes e ser amarrada no carro?
— Esperarei até podermos andar no carro sem essas coisas.
Enquanto Loren era ajustado no assento do motorista, Angelo inclinou-se e disse:
— O Stallion é absolutamente seguro nas curvas normais.
Mas tome algum cuidado nas curvas fechadas. Há uma tendência para sair de lado.
— Entendido — murmurou Loren.
Ele entrou na pista e acelerou na reta comprida na frente da oficina em que ficavam os instrumentos. Quando o Stallion sumiu, Angelo e Roberta olharam para o velocímetro. Loren não guiava tão depressa quanto Angelo o fizera. Entrava nas curvas a menos de cem, acelerava ao sair. Tornou-se um pouco mais ousado à medida que adquiria o domínio do carro.
— Tem certeza de que ele não vai se matar? — murmurou Roberta para Angelo.
Eles foram até a cerca para observá-lo entrar na reta e passar pela oficina. Acenaram, mas não puderam ver se ele retribuiu.
Na segunda volta, Loren aumentou um pouco a velocidade, mas não muito. Os instrumentos indicavam que entrava nas curvas um pouco fechado. Angelo não queria que ele derrapasse na pista e pensou em alertá-lo pelo rádio. Mas Loren ainda não tinha um problema.
— Como ele está se saindo? — indagou Roberta, quando Loren alcançou outra vez a reta da oficina.
— Até agora, tudo bem. Creio que ele vai sair nesta volta.
— E quando perderá o controle? — perguntou ela calmamente.
— Agora ou nunca — respondeu Angelo.
A entrada para a área da oficina era um portão simples. O piloto tinha de fazer uma curva de noventa graus para passar. Para
Loren, seria como fazer uma volta à direita num cruzamento. O portão era flanqueado por dois postes de madeira, pintados de branco, com cerca de dois metros de altura. Toda a área da oficina era delimitada por uma cerca de piquetes brancos.
Loren freou e reduziu o Stallion para menos de sessenta quilômetros horários, tornou a frear e diminuiu para cinqüenta, depois virou o volante para passar pelo portão.
O Stallion fez a curva, mas não voltou a endireitar. A traseira derrapou para a esquerda, a frente bateu na cerca. Lascas de madeira voaram, enquanto ia arrancando os piquetes da cerca.
Derrapando de lado e para a esquerda, o pneu furou. A roda desprendeu-se do eixo, e o pára-lama traseiro esquerdo foi ar-rancado.
— Santo Deus! — berrou Loren.
— Espetacular! — murmurou Angelo.
3
— A potra do seu carro não é apenas um fracasso, mas também uma AMEAÇA!
Loren não esperou para chegar a um lugar em que os japoneses não pudessem ouvi-lo. Pôs-se a berrar com Angelo assim que se livrou dos arreios e saiu do Stallion todo avariado.
— Calma, Loren, calma. Eu o avisei sobre a tendência para sair de lado. É um problema mínimo. Sabíamos a respeito e sabemos como repará-lo. Eu o avisei.
— Repará-lo? Nem se dê ao trabalho! O projeto está liquidado] Não quero que se gaste mais um único dólar nele!
Ele jogou o capacete no chão.
— Loren — interveio Roberta —, você tem muito em jogo nesse...
— Pôr um carro assassino nas ruas?
— Creio que já viu carros de teste terem problemas antes — disse Angelo. — Problemas de teste induzidos, filmados por gente traiçoeira. Lembra?
Loren empalideceu.
— Tinha que falar nisso, não é? Pensei que havíamos combinado que o passado...
Angelo apontou para o carro avariado.
— Eu disse para tomar cuidado com as curvas fechadas. Avisei que tínhamos um problema de derrapagem para resolver.
— Um problema de derrapagem? AJ. Foyt não conseguiria guiar esse carro com segurança!
— Dê-nos dois dias e poderá passar por aquele portão a mais de sessenta. Poderá fazer uma curva fechada e...
— Nunca mais vou dirigir aquele filho da puta! Nem ninguém mais! Não terá mais um único dólar, Angelo! Absolutamente nenhum!
— Tudo bem — disse Angelo, friamente. — Qual será seu preço para as máquinas que farão o chassi e a carroceria? Ou não vai querer vender?
— Do que está falando?
Angelo lançou um olhar para Roberta.
— O sr. Tadashi e eu vamos fabricar o carro. Com ou sem a XB. Com você ou sem você.
— Com que dinheiro?
— O sr. Tadashi lhe parece um homem sem recursos? E eu?
Venderei minhas ações da XB, para começar. Pouco depois de anunciarmos que seguiremos em frente sem a XB, as ações não terão o menor valor. Há uma diferença entre você e eu, Loren.
Você quer dinheiro, poder e prestígio. Eu quero fabricar um carro. Como Número Um sempre quis.
Loren deixou escapar um suspiro profundo. Olhou para Roberta, em busca de uma sugestão. Só que era uma sugestão que ela nunca poderia dar.
— Pode reparar o problema em dois dias? — perguntou ele.
— Fala sério?
— Claro que sim.
— Pois então não vamos exagerar. Deve compreender que um homem não pode deixar de ficar nervoso quando...
— Lamento o que aconteceu, Loren, mas vamos fazer o carro.
— Eu voltarei para ver o Stallion passar por aquele portão a mais de sessenta... e se você pode passar com o filho da puta por ali a sessenta, eu também poderei!
Loren entrou na oficina para tirar o traje de piloto de teste.
Roberta pegou o braço de Angelo.
— Não era exatamente isso o que deveria acontecer.
— Foi melhor assim. Quando ele passar por ali a sessenta...
— Você estava blefando — interrompeu Roberta. — Sobre Tadashi.
— O sr. Tadashi e eu vamos fabricar o carro — garantiu Angelo. — De qualquer maneira.
4
Betsy estava montada nele. Angelo acabara de gozar e ainda se encontrava bem fundo dentro dela, sentindo-a contrair os músculos internos.
— O que você faria se ele pagasse para ver seu blefe, Angelo?
— Não precisei pensar a respeito.
XVII
1980
1
Cindy deu a luz à quarta criança em abril. Ela e Angelo deram à menina o nome de "Valerie.
John, assim chamado pelo avô, tinha agora sete anos, Anna cinco, e Morris três.
Os proprietários anteriores deixaram que a piscina por trás da casa ficasse no abandono, depois a converteram num laguinho para peixes e plantas aquáticas. Naquela primavera Angelo contratou uma empresa de piscinas local para fazer uma nova piscina.
Mandou instalar um aquecedor, e com isso a água estava bastante quente em maio, quando o ar ainda era muito frio para se nadar; e mandou instalar também um detector de movimentos, que acionava um alarme alto se criança ou cachorro entrava na água quando não havia nenhum adulto à beira da piscina para observar.
O cachorro era um problema maior que as crianças. Cindy comprara um labrador preto — o cachorro mais em voga em Greenwich — e lhe dera o nome de Número Um. ("Porque ele mija em qualquer coisa que fica imóvel.") O cachorro adorava a piscina mais do que qualquer um na família e acionava o alarme pelo menos uma vez por dia. Na maioria das vezes era atendido pela governanta, que pediu a Angelo para fazer uma cerca em torno da piscina. A cerca ficou pronta em julho.
Durante meses os Perinos foram ignorados por Greenwich, mas passaram a ser convidados quase que para tudo a partir do momento em que foram vistos na companhia de Alicia Hardeman e Bill Adams. Ofereceram uma open home e convidaram todos os vizinhos. Recebiam mais convites do que podiam atender.
Angelo assentou numa rotina. Voava para Detroit na manhã de segunda-feira, ficava num apartamento mobiliado perto da fábrica até a noite de quinta-feira, trabalhava em seu escritório em Detroit na manhã de sexta, e de tarde voava para Nova York.
Variou essa rotina com mais duas viagens ao Japão e com três fins de semana prolongados no verão, quando ele e Cindy saíram a velejar com Alicia e Bill.
Em abril, a Shizoka embarcou dois mil sistemas de tração do Stallion para Detroit. Em maio, a XB Motors embarcou mil carrocerías e chassis para o Japão. Ficou acertado que o XB Stallion seria apresentado nos Estados Unidos, no dia 7 de outubro, uma terça-feira. Até essa data, cada revendedora teria um mínimo de dez Stallions para mostrar. Era um objetivo ambicioso, e Angelo empenhou-se ao máximo para realizá-lo.
2
— Nunca fizemos isso assim — protestou Peter Beacon.
— Pete, não quero saber como você sempre fez ou deixou de fazer.
Algum dia, pensou Angelo, ainda escreveria um artigo relacio-nando as desculpas mais fracas do mundo.
Entre as que ouvira nas últimas semanas, "Nunca fizemos assim" fora a mais freqüente. Outras eram "Número Um nunca teria aprovado", "Não há nada assim no projeto", "Não pode ser feito até que a idéia seja submetida..." e "o comitê ainda não examinou".
Ele chegara à conclusão de que Peter Beacon não queria que o Stallion fosse fabricado. O que ele queria na verdade era um futuro sem Angelo Perino. Beacon era vice-presidente de engenharia. Angelo era vice-presidente de pesquisa e desenvolvimento. Em termos hierárquicos, Beacon tinha o direito de se recusar a iniciar uma técnica de fabricação proposta por pesquisa e desenvolvimento enquanto não fosse aprovada por Loren, talvez mesmo pelo conselho de administração. Em termos políticos, no entanto, Angelo prevalecia. O que ele queria, sempre conseguia.
No momento, Loren sentia-se feliz. Mantinha o melhor ânimo desde o segundo teste com o protótipo do Stallion... com o sistema de suspensão restaurado e o pára-lama substituído. Observara Angelo passar pelo portão a sessenta, depois o levara no mesmo percurso a cinqüenta. O Stallion era um carro estável. E
bonito. Por isso, Loren se dedicava agora a fazer um carro.
— Vai custar dezoito dólares por unidade — declarou Beacon, balançando a cabeça.
— Não vai, não. Se não pode instalar no carro a sete dólares e cinqüenta centavos, farei um contrato com a Merckel para a compra e instalação.
— Os carros da Bethlehem Motors nunca foram degradados por peças de outros fabricantes.
— É um dos motivos pelos quais o Sundancer custa tão caro e está prestes a falir a companhia — respondeu Angelo. — Se não pode resolver o problema, apresente-me seu pedido de demissão.
— Apresentar meu pedido de demissão a você?
— Não me importo para quem o apresente. Mas tem de fazer as coisas direito ou cair fora. E nunca mais me diga o que Número Um faria. Número Um está morto!
3
Amanda estava cada vez mais famosa. Seus quadros eram vendidos por preços mais elevados. Ela experimentou um novo estilo: ainda decididamente realista, mas um pouco mais ousado, com pinceladas mais amplas. Parado a alguns passos do quadro, o espectador via um dedo indicador realista, com uma precisão foto-gráfica, ao lado do olho do modelo. Chegando mais perto, descobria que o dedo realista era feito por apenas quatro pinceladas hábeis.
Angelo acabou encontrando tempo para posar. Amanda queixou-se de que a tinta secava entre os momentos em que ele se levantava durante as sessões, mas concluiu o quadro e deu-o a Cindy. O quadro reproduzia a aparência de Angelo com fidelida-de. Na verdade, fazia mais do que isso. Como Angelo comentou, não se detinha na superfície, mas captava o que havia por baixo de sua pele.
Ele estava vestido. Recusara gentilmente, mas com firmeza, a posar nu.
Alicia Grinwold Hardeman posou nua e pagou vinte mil dólares a Amanda pelo quadro.
Como Alicia era acionista da XB Motors e mantinha uma amizade pessoal com Angelo, ele adquiriu o hábito de informá-la sobre o que acontecia em Detroit.
Numa tarde de sábado, em agosto, a caminho de casa, depois de uma visita ao barbeiro, Angelo passou pela casa na Round Hill Road, a fim de mostrar as fotografias que seriam usadas na campanha de propaganda impressa do Stallion.
Ficou surpreso ao descobrir que Bill Adams não estava presente. Era o que sempre acontecia, nas tardes de sábado. Alicia abriu a porta. Estivera sentada à beira da piscina e usava um casaco felpudo branco bem curto. Angelo presumiu que havia um biquíni por baixo.
— Pelo que me lembro, você era um aficionado em martíni seco — comentou ela, enquanto atravessavam a casa. — Quando trocou sua preferência para scotch?
— Não troquei. Acontece apenas que é mais fácil conseguir um scotch razoável do que um martini bem preparado.
— Quer experimentar o meu? — indagou ela, seguindo para a cozinha.
— Claro.
Ela tinha gim Beefeater. Quebrou os cubos de gelo na palma da mão, sob o impacto de um pequeno martelo, com uma mola no cabo. Numa coqueteleira de vidro pôs gelo, gim e um pouco de vermute. Mexeu com uma vareta de vidro. Com extrema habilidade, cortou um pedaço de casca de limão, que torceu num copo com haste comprida. Serviu o martini.
Angelo tomou um gole.
— Um martini seco bem preparado — comentou Alicia.
— Bem preparado — concordou Angelo, erguendo o copo para saudá-la.
Alicia cortou outro pedaço de casca de limão para seu copo e serviu-se de martini.
— Quando não se pode fabricar automóveis, fazer grandes lançamentos de ações ou concorrer ao Congresso, cultivam-se as pequenas habilidades civilizadas, como preparar um martini.
Angelo tornou a levantar seu copo em saudação.
— As estradas estão apinhadas de carros, e a maioria não presta. Mas os bons martinis são raros.
— Há americanos demais que se contentam com Bud Lite e pensam que é cerveja, com o descafeinado solúvel, e pensam que é café.
— O que se pode esperar de gerações criadas com hambúr-gueres e batatas fritas do McDonald's ou Burger King?
— Angelo... já viu o meu retrato pintado por Amanda Finch?
— Não. Mas soube que é...
— Claro que estou pelada. Ficou lindo. Algum dia, depois que eu morrer, será pendurado numa galeria. Não uma galeria comercial, para ser vendido, mas num museu. Venha comigo. Vou lhe mostrar. Eu o mantenho lá em cima. Não mostro a todo mundo. Mas juro por Deus que se o Museu Bruce quisesse exibi-lo eu deixaria.
Angelo seguiu-a pelo corredor comprido até seu quarto. O
quadro dominava uma parede; mais do que isso, dominava todo o quarto. Ele já calculara como Alicia Grinwold Hardeman pareceria nua, mas diante do quadro compreendeu que a mulher nua que o fitava com um ar de indolência era mais realisticamente Alicia do que a própria Alicia.
Ela sentava numa graciosa poltrona vitoriana de crina preta...
uma poltrona tirada da sala de estar do estúdio de Amanda. Como a Olympia de Manet, ela usava um camafeu numa fita preta pendurada no pescoço. Os cabelos castanhos escuros estavam presos atrás da cabeça. Exibia um tênue sorriso, talvez de desafio.
Tinha as pernas cruzadas nos tornozelos e relaxava num ângulo para a esquerda. A pose não mostrava a virilha, apenas a barriga, descendo até a beira dos pêlos pubianos, onde Amanda pintara uns poucos fios crespos.
Alicia tinha quarenta e oito anos, e Amanda não fizera qualquer tentativa de representá-la como mais jovem do que isso. Os seios eram caídos, um pouco flácidos. Ela era esguia, mas tinha uma barriga cheia. Amanda não deixara de indicar as estrias de-correntes do nascimento de sua única filha, Betsy.
— Nada mal para uma coroa, hem?
— Você é linda, Alicia — disse Angelo.
Ela suspirou.
— Eu queria que esse quadro fosse feito antes de ter de me enganar. Pedi a Bill que tirasse Polaroids de mim. Quando eu estiver mesmo velha, quero ter a prova de que nem sempre fui assim. Capisce?
Angelo acenou com a cabeça.
— Capisco.
Alicia atravessou o quarto até a janela, abriu as cortinas, olhou para fora.
— À medida que os anos passam, você sabe com uma nitidez cada vez maior que não viveu tudo o que poderia ter vivido. Pensa nas oportunidades que não aproveitou.
— Sei disso.
— Não é o seu caso. Piloto de corridas de carros... e todo o resto. E continua. Não perde coisa alguma, não é mesmo? Tem alguma idéia do quanto as pessoas o invejam?
— Alicia...
— Bill, por exemplo. Bill Adams. Você vai atrás do que quer!
— Alicia...
— Se ao menos... Pode adivinhar o que eu quero neste momento?
— Alicia...
— Quero que me leve para a cama e faça amor comigo, Angelo. Pode ser a última oportunidade que jamais terei...
— Pode ser um grande erro.
Ela sorriu e balançou a cabeça.
— Não estrague a imagem romântica e impetuosa de Angelo Perino. Não se transforme no Mister Cautela. Este momento é perfeito. Ninguém poderá saber. Talvez surja outra ocasião. Talvez não. Não sou uma histérica, Angelo. Sei que não há futuro para nós. Mas, por Deus, há o agora! Esta vez, e talvez nunca mais, Angelo...
Alicia tinha mesmo um biquíni por baixo do casaco. Um biquíni amarelo mínimo. Tirou-o e ficou imóvel por um momento, com as mãos nos quadris, para deixá-lo contemplar seu corpo nu.
Depois se ofereceu na posição missionária, murmurou e gemeu durante todo o tempo.
Foi uma estranha experiência para Angelo. Alicia não era um vulcão sexual como a filha, nem uma mulher de apetites incomuns como Roberta; era apenas uma mulher que gostava da cópula comum, que se sentia feliz apenas por sentir um pênis grande e duro a penetrá-la. Só depois que Angelo gozou é que Alicia envolveu-o com as pernas para imobilizá-lo dentro dela, impedi-lo de se retirar.
Ela o manteve assim por um longo tempo, enquanto gozava devagar.
— Algum dia de novo, Angelo — sussurrou ela. — Quando for absolutamente seguro. Não se preocupe. Não vou constrangê-lo. Sem riscos. Apenas... quando pudermos.
Voltando para casa, Angelo teve um pensamento indigno...
isto é, indigno da mulher excepcional que acabara de deixar. Já fodera agora todas as esposas e a filha de Loren.
4
Ao final da tarde de segunda-feira, 6 de outubro, o Porsche de Cindy foi posto na garagem e a porta fechada. Dois XB Stallions, um branco e outro azul-metálico, foram trazidos para a casa e estacionados na porta. Os motoristas partiram com o Sundancer de Angelo.
A família saiu para contemplar os carros. Uma das crianças, John, com apenas sete anos, compreendia o que eram, e procla-mou solene que eram muito bonitos. Pouco depois um terceiro Stallion chegou, guiado por Alicia, a quem entregaram um vermelho minutos antes. Bill Adams a acompanhava.
— Parece-me que você tem um vencedor aqui — comentou ele para Angelo.
— Só tenho uma pergunta — murmurou Cindy para Angelo. — Por quanto tempo terei de guiar esse carro antes de voltar a sair em meu Porsche de novo?
— Por uma semana. Pois eu estou no paraíso. Agora não preciso mais guiar aquela banheira que é o Sundancer.
Dois casais da vizinhança chegaram. Admiraram os Stallions, disseram que eram carros bonitos e com certeza seriam um sucesso.
Pouco depois, todos entraram na casa. O Stallion seria apresentado à América durante a transmissão de futebol americano em rede nacional na noite de segunda-feira.
O telefone começou a tocar. Loren ligou para dizer que o carro parecia ótimo, e Roberta acrescentou vima palavra de con-gratulações. O dr. John Perino ligou. O sr. Tadashi ligou do Japão para dizer que desejava "excelência" para Angelo Perino e Loren Hardeman.
Dietz von Keyserling chegou, trazendo Amanda Finch.
Alicia seguiu Angelo até a biblioteca, onde ele ligou outro aparelho de TV e sintonizou na WABC. Ficaram a sós por um momento.
— Preciso falar com você sobre uma coisa.
— Claro.
— Não sei o que há com Betsy — disse ela, sombria.
— Qual é o problema?
— Ela está grávida de novo!
— Ora, pode acontecer. Quem é o afortunado?
— Seu psiquiatra. Ou pelo menos é o que ela diz. Tem con-sultado esse analista em Londres, e ao que parece ele administrou sua terapia predileta.
— Ele é casado, eu suponho.
— Com três filhos. Quer que Betsy venha para os Estados Unidos e faça um aborto. Ela quer ter a criança. Diz que pode cuidar de outra. Tem uma casa e uma babá. O pequeno Loren já tem idade suficiente para ingressar numa escola interna inglesa, para que a babá possa dispensar toda a sua atenção à nova criança.
O mais estranho nela, Angelo, é que apesar de todos os seus des-varios e viagens pelo mundo, Betsy tem sido uma boa mãe. Diz que a maternidade lhe proporciona um propósito.
Angelo pegou a mão de Alicia entre as suas.
— Abriu a conversa dizendo que não sabia o que fazer com Betsy. Acho qUe terá de deixá-la fazer o que quiser. Além de dar conselhos, não sei como poderia influenciá-la.
— Suponho que não posso. E é mais do que certo que o pai também não pode influenciá-la. Acho que o tal analista se aproveitou dela.
— Ah, vocês estão aqui! — exclamou Bill Adams. — O jogo já vai começar. Quando será exibido o comercial, Angelo?
— Duas vezes no primeiro tempo do jogo, outras duas no segundo. Quatro comerciais diferentes, não o mesmo repetido.
No intervalo, todos foram ao bufê, serviram-se de comida, depois pegaram mais drinques no bar.
— Os comerciais são maravilhosos! — exclamou Amanda.
Angelo tinha a mesma opinião. Contratara uma agência de propaganda de Nova "York para fazê-los, tirando a conta da firma que cuidava da publicidade do Sundancer desde 1966. O Stallion tinha de ser apresentado por uma estrela fascinante... e não apenas isso, mas também uma estrela fascinante que fizera poucos ou nenhum comercial antes. A agência conseguira persuadir Natalie Wood a apresentar o novo carro. Cobrou um cachê exorbitante, mas a metade foi para instituições de caridade de sua escolha...
um fato noticiado por todas as três grandes redes nacionais de TV nas duas últimas semanas.
Pelo menos alguns espectadores ficariam na frente da TV para verem Natalie Wood.
Ela foi magnífica. Angelo autorizara sua fala:
— Não é um carro para mim, eu suponho. Vivo na Europa, onde as estradas são mais estreitas e não há limites de velocidade.
Tenho um Lamborghini. Mas quando volto para os Estados Unidos e tenho de alugar um carro, espero que possa ser um XB
Stallion. Para a maneira americana de guiar, é o melhor carro que se pode encontrar... seguro, confiável, econômico.
5
A secretária de Angelo em seu escritório em Nova York bateu na porta da sala e entrou.
— Atendi um estranho telefonema. O homem insiste em falar com você, diz que vai querer atendê-lo, com toda certeza, mas não quer dar seu nome.
— Darei um jeito nele. — Angelo pegou o telefone. — Alô?
— Já nos encontramos, sr. Perino.
— Não tenho como saber, já que não se identificou.
— Quem eu sou é irrelevante. Tenho uma coisa coisa que você quer. Posso providenciar a entrega, em troca... de uma recompensa.
— É mesmo? E do que se trata?
— É um videoteipe, sr. Perino. Foi feito na casa Hardeman em Palm Beach, em 1974. Talvez se lembre de minha mãe. Ela era secretária do sr. Hardeman.
— Sra. Craddock — murmurou Angelo.
— Já vi que se lembra. Também trabalhei para o sr. Hardeman.
Pode recordar que eu cuidava dos cães de guarda. E também mantinha em funcionamento o sistema de alarme. O sr. Hardeman me mandou instalar câmeras e microfones ocultos na casa, e que também registrasse certos acontecimentos, em determinados quartos. Foi exatamente o que eu fiz. Esta fita em particular era uma das prediletas do sr. Hardeman. Mostra-o com a srta. Elizabeth Hardeman. Preciso descrever o que há na fita?
Por um momento, Angelo especulou se o homem copiara as fitas de Número Um. Mas só por um momento. Número Um fora esperto demais para permitir que isso acontecesse.
De qualquer forma, por que aquele idiota esperara dois anos antes de tentar a chantagem? Não era verossímil. Betsy destru-íra as fitas, como dissera. Mas o homem no outro lado da linha as vira.
— O que tem em mente? — indagou Angelo, a voz fria.
— Os anos não foram gentis com minha mãe e comigo desde que o sr. Hardeman morreu. Ele não foi nada generoso conosco em seu testamento. Pensei que uns poucos milhares de dólares para pessoas que se esforçam para sobreviver...
— Deixe-me dizer uma coisa, Craddock. Em primeiro lugar, não há fitas. Foram destruídas.
— Acha mesmo? Não sabe como é fácil copiar uma fita, sr.
Perino?
— Segundo, só conheço duas maneiras de lidar com um chantagista: ou você paga, ou você o mata. Qual a maneira que acha que escolherei para lidar com você?
6
O XB Stallion não decolou que nem um foguete. Como um analista de Wall Street lembrou a seus leitores, vinha de uma companhia que quase falira nos últimos cinco anos, que se apegara por tempo demais ao superado Sundancer, e que ainda podia quebrar. Mesmo assim, as revendedoras venderam as cotas mínimas de dez carros antes do Natal e pediram mais alguns. Em fevereiro, estavam vendendo uma média de quatro Stallions por semana, e em março essa média subiu para seis.
A propaganda de boca em boca vendia o Stallion. Os compradores gostavam do carro. Em junho de 1981, a XB Motors anunciou que não ofereceria um modelo 1982. O Stallion original não precisava de grandes modificações, e as pessoas que o compravam ainda teriam o último modelo ao longo de 1982.
Pequenas alterações foram efetuadas e continuariam a ser feitas.
Nenhuma seria apenas cosmética.
O carro era sólido, estável, confortável e econômico.
Na reunião do conselho de administração em que recomendou que não houvesse um modelo 1982, Angelo também propôs que fosse interrompida a fabricação do Sundancer. Loren juntou-se a ele na proposta, e o venerável carro da família, lançado por Número Um, teve uma morte tranqüila. As revendedoras pararam de encomendá-lo. Queriam todo o espaço para o Stallion.
XVIII
1981
1
Em março de 1981, Betsy deu a luz a uma menina, que recebeu o nome de Sally, por sua avó. Seria Sally Hardeman, porque não podia usar o nome do pai, o psiquiatra.
Max von Ludwige tinha um profundo senso de honra. Voou para Londres e quebrou o queixo do psiquiatra, que depois disse a todo mundo que rolara numa escada.
Loren von Ludwige saiu de casa naquela primavera para se tornar interno na St. George's School. O pai combinara sua matrícula ali e concordara em pagar a escola, embora Betsy lhe de-clarasse que tinha condições de arcar com a despesa. Ela aceitou a argumentação de Max para que o menino recebesse parte de sua educação numa escola secundária francesa e depois fizesse um curso universitário nos Estados Unidos. Ele seria um cos-mopolita.
2
Em junho, Angelo voou para Londres, a fim de se reunir com os partidários britânicos da idéia de importar o XB Stallion. Concordaram que o carro seria montado numa fábrica em Manchester.
Os sistemas de tração viriam diretamente do Japão. A XB exportaria para a Inglaterra uma versão das carrocerías e chassis com a mão invertida.
Ele foi para o Dukes Hotel e no quarto, num vaso de flores, encontrou um bilhete de Betsy. Pior, também deparou com um recado telefônico de Roberta, avisando que estava no Hilton.
Alegando muitos compromissos, inclusive um jantar com seus associados britânicos, ele relegou Betsy na primeira noite e foi se encontrar com Roberta.
— Temos de pensar com muito cuidado numa coisa — disse ele, ao se encontrarem no Harry's Bar. — A filha de Loren mora em Londres. E não chego a ser um anônimo completo. Se alguém me reconhecer em sua companhia e contar a ela... Espero que compreenda.
— Acontece que eu sou anônima — disse Roberta. — Ninguém me conhece.
— Não é essa a questão.
— Não preciso vê-lo em público, amor. Só em particular.
— Está certo. Não poderemos nos encontrar amanhã de noite. Vão me levar ao teatro e depois para jantar.
— Pode me ligar às três horas da madrugada.
— E tratar de negócios no dia seguinte? Não dá.
— Precisamos conversar e foder, Angelo — insistiu Roberta, com uma expressão sombria. — As duas coisas.
Ele acenou com a cabeça.
— Aguardo ansioso por uma coisa, mas me sinto um pouco apreensivo com a outra.
— Quanto quer apostar como ninguém do círculo de Betsy conhece o nosso pequeno restaurante libanês? Quero comer de novo os colhões de cordeiro!
Eles seguiram a pé por ruas estreitas pela curta distância até o restaurante. Enquanto comiam os testículos de cordeiro, deliciosas azeitonas do Oriente Médio e um vinho libanês, Roberta falou sobre Loren:
— Hank Ford tinha de se livrar de Lee Iacocca. Não havia outro jeito. Como ele lembra com freqüência às pessoas, o nome no prédio é Ford. Mas se Hank Ford tivesse de arrumar um emprego de acordo com sua capacidade, não passaria de gerente de produto num supermercado. Loren sabe que se encontra mais ou menos na mesma situação.
— Não chego a esse ponto. Acho que ele poderia conseguir um cargo de gerente da Woolworth.
Roberta exibiu um sorriso amargurado.
— Todas as grandes reportagens sobre o Stallion... no Wall Street Journal, Time, Newsweek, Rrbes, Business Week e o resto...
indicam você como o homem que construiu o carro e salvou a companhia. Como Loren poderia deixar de odiá-lo?
— Imagino que nunca lhe ocorreria ser grato.
— Você o fez de tolo. Mais uma vez. Ele é o presidente de uma companhia, mas todo mundo diz que a companhia é sua.
Posso emasculá-lo, mas faço em particular. Você faz em público.
Angelo deu de ombros.
— O que devo fazer? Deitar e bancar o morto pelos colhões de Loren? Para ser franco, Roberta, estou me lixando para os colhões de Loren. Eu apenas o tolero. E já começo a me cansar de tolerá-lo.
— Não precisa ser tão óbvio em sua tolerância.
— Suponho que ele quer se livrar de mim.
Ela confirmou com um movimento de cabeça.
— Do jeito que puder.
— Não sei por que não aceito o conselho de meu pai. Ele já me disse uma centena de vezes: "Pare de salvar os Hardemans, Angelo. Eles não merecem. Crie o seu próprio negócio." Por que não faço isso?
— Por quê?
— Porque meu "negócio" é automóveis. Eu gostava de pilotá-los. Agora estou produzindo-os. O Stallion é meu automóvel, e é apenas o primeiro. Tenho aturado os Hardemans porque eles possuem a única companhia que posso controlar e usar para construir carros.
— Pode controlar?
— E não posso? Já não fiz isso antes?
— Loren preferiria deixar a companhia acabar a permitir que a tirem dele.
— Estou disposto a deixar que ele tenha o papel de Henry Ford. Podemos pôr seu nome no prédio. Desde que ele me dê liberdade para construir carros. Meus pares, as pessoas que respeito e que me respeitam, saberão quem está construindo os carros.
Roberta mexeu na comida em seu prato.
— Não é irônico? — murmurou ela. — Estamos falando de pôr os colhões de Loren numa bandeja com molho, como estes.
Angelo correu os olhos pelo restaurante. Não conseguia se livrar do pensamento de que Betsy poderia entrar a qualquer momento.
— Angelo...
— Se a situação chegar a esse ponto, Roberta, de que lado você ficará?
Ela respirou fundo, prendeu a respiração, hesitou por um longo momento, antes de responder:
— Não sei.
— Vamos torcer para que não tenha de decidir.
Os testículos de cordeiro eram um antepasto. Ela pegou o cardápio e começou a estudar as entradas.
— Amor, o que fará comigo quando chegarmos ao hotel? —
perguntou ela.
— O que você quer?
— Quero que bata em minha bunda. Juro que quero, Angelo.
Já pedi isso antes. Não voltarei a Detroit por mais oito dias. Os vergões já terão desaparecido a esta altura.
Ele baixou os olhos e balançou a cabeça.
— Não gosto disso, Roberta.
— Nem quando eu suplico? Porque é isso o que farei. Vou contar um segredo. Faço isso com Loren. Mas não deixo que ele faça comigo. É outra grande diferença entre vocês.
Angelo tornou a balançar a cabeça.
— Acha que sou estranha, não é? Pois não condene se nunca experimentou.
— De gustibus non est disputandum — disse Angelo.
— Chacun à son goût. Ora, sou eu quem vai receber os golpes. De qualquer forma, pense na confissão que estou fazendo, ao suplicar que me açoite. Quero isso, Angelo.
Ele sorriu e deu de ombros.
— Papai sempre disse: "Agrade as damas se puder."
3
O esplêndido apartamento de Betsy em Chester Terrace dava para o Regent's Park. Angelo torcia para que fosse um bairro em que Roberta não tivesse a oportunidade de se aventurar. Também torcia para que Betsy aceitasse jantar num restaurante do bairro, em vez de querer ir — Deus me livre! — para Mayfair, onde ficava o Hilton.
Por sorte, Betsy queria que ele conhecesse um pequeno restaurante tcheco perto da Marylebone Road. Ela era conhecida ali, e receberam uma mesa ao lado da janela para uma rua lateral, onde podiam ver as pessoas passarem.
Betsy ostentava uma beleza requintada, como sempre. Naquela noite usava um vestido grego simples: branco, com enfeites dourados, descendo até os joelhos, mas com um decote espetacular. Aos vinte e oito anos, ela ainda era jovem e viçosa. Suas aventuras não a haviam arruinado. Angelo sabia que não deveria encontrá-la assim, não deveria ter qualquer intimidade com ela; mas não podia resistir. Alem do mais, racionalizava ele, se tentasse se afastar por completo, Betsy poderia muito bem contar tudo.
— Qual é a história do psiquiatra, Betsy?
— Ele me seduziu — respondeu ela, com tanta inocência que Angelo quase que poderia acreditar. — Max é um homem antiquado. Veio de Amsterdam e deu uma surra nele.
— Foi o que me disseram.
— Sabia que Roberta está em Londres?
— Sabia.
— Vamos almoçar juntas amanhã. Ela virá visitar a pequena Sally e depois sairemos para algum lugar... um lugar elegante e caro. É por conta dela.
— Gosta de Roberta? — perguntou ele.
Betsy pensou por um instante.
— Vou dizer uma coisa sobre ela e meu pai. Acho que você deve saber. Meu avô, o que chamavam de Número Dois, tinha uma disfunção sexual. Pois meu pai também tem, à sua maneira.
— Está querendo dizer que ele é gay?
Betsy riu.
— Não temos tanta sorte. Ele é um masoquista. E Roberta é sádica. Bate nele.
Angelo experimentou uma momentânea pontada de apreensão. O que Betsy sabia? Ele se acalmou para perguntar:
— Como sabe? O que a faz pensar assim?
Betsy fitou-o através de olhos contraídos. Abriu a boca, passou a língua pelos dentes superiores.
— Número Um me contou, pouco antes de morrer.
— E como ele sabia?
— Angelo, ele sabia coisas demais. Já falei sobre o videoteipe que Número Um tinha de nós. Pois ele tinha outra fita com meu pai e Roberta. Não me mostrou, mas falou a respeito. Foi uma das fitas que queimei na praia na noite em que ele morreu.
Angelo pôs a mão sobre a dela.
— Carregamos um tremendo peso nas costas, não é mesmo, Betsy?
— Eu me sinto aflita sempre que penso naquelas fitas. Número Um não fez as gravações pessoalmente. Alguém cuidou disso por ele. E me pergunto por que essa pessoa nunca se apresentou para tentar nos chantagear. Três anos...
Angelo decidiu não falar nada sobre o telefonema de Craddock.
Não tivera mais notícias do homem.
— Ele não poderia fazer nada. Quando foi procurar as fitas, não as encontrou. E não ousou perguntar por elas.
— Mas ele sabe! Por Deus, ele sabe!
— E não ousa mencionar. Nossa palavra contra a dele. Se houvesse cópias, ou qualquer outra prova, já saberíamos a esta altura. Número Um tinha criados. Fingia confiar neles, mas jamais confiou. Para ele, não passavam de criados.
— E você sempre foi um empregado.
— Nunca fui um Hardeman.
— Nem eu, não é mesmo, Angelo?
— Srta. Elizabeth, você pode ser a mais Hardeman de toda a família.
— Não me sacaneie, Angelo!
— É a única verdadeira herdeira que Número Um deixou.
Possui a mesma coragem e inteligência.
— E ele me odiava.
— Nem podia ser de outro jeito.
— Ele era um homem terrível. Implacável. Sádico. Também vê isso em mim, Angelo?
— É o que ainda podemos ver. — Mas Angelo sabia que a resposta era sim; Roberta também tinha essas características. Era a verdadeira herdeira e seria uma inimiga muito mais formidável do que seu pai. — Você ainda não apresentou os sinais do lado sinistro dos Hardemans — mentiu Angelo.
Os dois partilhavam uma garrafa de vinho tinto húngaro com um antepasto de pequenos pastéis recheados com carne e condi-mentos misteriosos. Betsy pegou a garrafa e tornou a encher os copos. Ao se inclinar sobre a mesa para servi-lo, mostrou os seios no V profundo do vestido. No dia seguinte ela se encontraria com Roberta. Seria uma autêntica confrontação, pensou Angelo.
Loren era insignificante em comparação com qualquer das duas.
— Quero que faça uma coisa por mim, Angelo.
— Está bem... e concordo sem sequer saber o que você quer.
— Ainda não criou meu carro. O Stallion é um sucesso, mas eu não seria surpreendida a guiá-lo. O que aconteceu com o Betsy?
— Eu estava ocupado em evitar a falência... e em proteger minhas costas das facas de seu pai.
— Quero meu carro, Angelo. Não pode mais chamá-lo de Betsy. Mas quero que faça um carro de que você possa se orgulhar e eu também. É para isso que o Stallion serve: gerar receitas que permitirão a construção do meu carro.
— Eu me orgulho do Stallion, Betsy.
— Claro, claro. E com bons motivos. Mas range os dentes cada vez que o guia. Saiu uma notícia no Financial Times de que Cindy guiou o seu Stallion por duas semanas apenas, e depois voltou a andar de Porsche. Onde está o nosso Porsche, Herr Doktor Engenheiro Perino?
— Eu não poderia impor um carro esporte goela abaixo à diretoria da XB.
— O que Angelo quer, Angelo consegue. E o mesmo se pode dizer de Betsy. Quero guiar um carro de nossa companhia pelas estradas européias e ser capaz de dizer: "Olhem isso, seus sacanas, vejam o que minha companhia pode fazer! Minha companhia e meu amante, Angelo Perino, fabricaram isto!" Como escreviam nas obras de arte do final da era medieval: AP fecit. Significa "Angelo Perino fez isto". O que me diz?
— É tentador. A Shizoka está trabalhando com um novo material: resina epóxi. Pode-se construir com epóxi uma carrocería bastante forte, mas também bastante leve. Um carro potente não precisa de um motor potente se não é obrigado a arrastar toneladas de aço.
— Quero ser capaz de ultrapassar um Porsche ou um Ferrari na Comiche. Pode fabricar um carro assim?
Angelo acenou com a cabeça.
— Posso.
— Pois então faça-o!
Ele suspirou.
— É demais, Betsy! No momento em que tenho um sucesso nas mãos e...
— Esta é a sua vida, meu maravilhoso e adorado homem.
Não fica sentado de braços cruzados a se dar os parabéns. Você faz! Essa é a questão. Você faz. E Betsy estará atrás de você em cada passo do caminho, Angelo. Se eu tiver de matar meu pai para que não atrapalhe...
— Pelo amor de Deus, Betsy!
— Bom... você sabe quando falo sério e quando não falo.
— Betsy...
— Meu filho será o Número Quatro — declarou ela. — E será muito bom. Entre as coisas que ele será bastante bom para fazer estará a de reconhecer seu valor e deixá-lo fazer carros como quiser, sem qualquer interferência. Tudo o que temos de fazer é tirar Número Três do nosso caminho. Isso não deve exigir mais do que um mata-moscas para pessoas como você e eu. Talvez eu nunca me case com você, meu amor. Mas nós dois vamos assumir a companhia e comandá-la. E se houver escrúpulos que o desencorajem a fazer o que for necessário, pode deixar que eu cuidarei de tudo. Já fiz alguma coisa nesse sentido. Posso fazer de novo.
— Pelo amos de Deus, Betsy, sobre o que está falando?
— Deus não tem nada a ver com isso. Esqueça o que eu disse.
— Betsy...
Os olhos dela se tornaram brilhantes e duros como duas las-cas de gelo.
— Esqueça — murmurou ela.
Angelo suspirou e sacudiu a cabeça. Adivinhara que ela estivera próxima de uma confissão das mais significativas. Betsy sorriu.
— Lembra do tirante árabe? Está à espera em meu quarto.
Vamos comer e correr para lá.
XIX
1982
1
A reunião anual dos revendedores da XB foi realizada em Detroit, em abril.
Betsy compareceu. Abriu uma suíte de hospitalidade no Renaissance Center e convidou os revendedores. Ali presidia como uma princesa, uma personalidade exuberante e elegante, capaz de trocar piadas com revendedores de automóveis de pequenas cidades com a mesma facilidade com que discutia incunábulos com livreiros de Londres. Sua suíte de hospitalidade era muito mais popular que a de Loren.
Pendurado na parede por trás do bar, em sua suíte, havia um desenho emoldurado de um carro esporte amarelo. Havia também um logotipo:
XB 2000
— Ei, Tom, acha que pode vender isso?
Ela fazia a mesma pergunta a todos os revendedores. Uns poucos manifestaram dúvidas. A maioria disse que tinha certeza que poderia vender o 2000.
— Claro que eu poderia vendê-lo se a tivesse no salão de vendas, Miss Hardeman — respondeu Tom Mason.
Ela sorriu.
— Como o carro se sairia sem a minha presença?
— Para ser franco, há um mercado limitado. Mas acho que poderíamos vender alguns. O problema é...
— Espere um instante — pediu Betsy. — Aqui está Angelo.
Quero que ele ouça qual será o problema.
Ela gesticulou para Angelo. Ele atravessou a sala para se juntar aos dois.
— Tom Mason, Angelo Perino. Tom ia me falar sobre um problema que pode ter para vender o 2000. Achei que você deveria ouvir o que ele tem a dizer.
Angelo conhecia a maioria dos revendedores, inclusive aquele. Mason era jovial, corpulento, de rosto vermelho. Em sua agência em Louisville, Kentucky, também vendia Chiisais e BMWs.
Era objetivo e prático, vendera Sundancers e ficara contente quando o Stallion os substituíra. Angelo sabia que Mason, como a maioria dos revendedores, não sentia qualquer lealdade pela XB
Motors, largaria a linha e passaria a vender outra marca se visse algum motivo para isso. O trabalho de Angelo era fabricar carros; o de Mason era vendê-los. Era bom nisso. Continuara a vender Sundancers mesmo quando estavam perdendo rapidamente sua participação no mercado. Dizia que as pessoas iam à sua agência para comprar carros de Mason, e não se importavam com a linha que ele vendia.
— Qual é o problema que acha que teremos, Tom? — perguntou Angelo.
— Todos os seus revendedores terão de estocar uma nova linha de peças — respondeu Mason. — E provavelmente não ven-deremos uma grande quantidade desse carro.
— Vou lhe contar um pequeno segredo, Tom. Por baixo do 2000 haverá um sistema de tração e um chassi do Stallion. Vamos aumentar a potência para mais duzentas cilindradas. O combustível será injetado direto no motor, não haverá carburadores. Terá de estocar peças do sistema de combustível. E também do painel de instrumentos. Passemos para a carrocería. Será de resina epóxi.
Não terá de fazer lanternagem no sentido antigo. É um material extremamente flexível. Os pequenos amassados voltarão ao normal. Se for perfurado, pode ser remendado. Se uma parte for di-lacerada, pode removê-la e substituí-la. Não há pintura; a cor se espalha por todo o material.
— Ou seja, precisaremos ter partes da carrocería em todas as cores? — indagou Mason.
— Só haverá uma cor, pelo menos a princípio. Amarelo. Se for um grande sucesso, poderemos acrescentar o vermelho.
— A que preço?
— Ainda não temos certeza. Pense em termos de cento e cinqüenta por cento do preço de um Stallion.
— Olhe para o desenho — interveio Betsy. — Não é lindo?
O carro no desenho tinha uma frente em forma de cunha, subindo entre os pára-lamas. Os faróis ficavam na frente dos pára-lamas. O pára-brisa se inclinava para o teto baixo. O carro era tão baixo que o diâmetro das rodas tinha a metade de sua altura. Parecia elegante e veloz.
— Quando veremos esses carros? — perguntou Mason.
Angelo deu de ombros.
— É um desenho, Tom. Já realizamos uma parte do trabalho de engenharia, mas a companhia ainda não assumiu o compromisso de fabricá-lo.
— O sr. Hardeman está empenhado no projeto? — perguntou Mason a Betsy
Ela sorriu.
— Meu pai vai construí-lo quer goste ou não.
2
Já passava de meia-noite quando Angelo despediu-se do último revendedor e voltou para a suíte de Betsy. Ela fechara o bar e trancara a porta. Quando ele bateu, Betsy esvaziava cinzeiros, jogava as cinzas e pontas no vaso, puxava a descarga. Os empregados do hotel limpariam a suíte pela manha, mas ela não podia suportar por mais um minuto o fedor dos cinzeiros. Perguntou quem era antes de abrir a porta.
— Sirva-nos alguma coisa — disse Betsy, enquanto ele fechava a porta e passava a corrente. — Acabarei o que estou fazendo em um minuto.
Angelo decidiu tomar tempo para preparar martínis. Enquanto ele misturava e mexia, Betsy foi para seu quarto e despiu-se. Angelo estava atrás do bar. Ela parou e contemplou o desenho do XB 2000. Levantou e massageou os seios, agora livres do sutiã que os confinara durante o dia inteiro.
— Será um carro e tanto — murmurou ela.
— Se viermos a fabricá-lo — ressalvou Angelo.
— Vamos fabricá-lo — garantiu Betsy, confiante. Ela aceitou o martíni, tomou um gole. — Nós dois somos inven-cíveis.
— Eu espero...
Houve uma batida firme na porta.
— Betsy! Preciso falar com você!
— Era só o que me faltava — murmurou ela para Angelo. —
Meu pai.
Angelo compreendeu que a única saída da suíte era a porta em que Loren batia. Betsy empurrou-o para a porta do quarto.
— Não estou vestida, papai!
— Pois então vista-se e deixe-me entrar!
— Está bem! Espere um minuto!
Ela tinha um quimono de seda preta no armário do quarto.
Vestiu-o.
— Pode ser bom para você ouvir a conversa — sussurrou ela para Angelo, antes de sair do quarto e fechar a porta.
— Papai, o que você quer comigo no meio da noite?
Loren entrou cambaleando na suíte. Estava de porre. Apontou para o desenho do 2000.
— De onde tirou isso? E por que disse aos revendedores que vamos fabricar essa porcaria?
— Vamos fabricá-lo, papai. Éa o Betsy que Número Um me prometeu.
— Número Um está morto! Esse é o carro que Angelo Perino prometeu a você! Pensa que sou idiota?
— Meu bisavô me prometeu um carro de que eu poderia me orgulhar.
— Quantos milhões de dólares quer que joguemos nesse...
brinquedo?
— Quantos forem necessários.
Loren olhou ao redor.
— Quem está no seu quarto? — indagou ele.
— Quem quer que seja, vai arrebentá-lo se abrir aquela porta.
Loren deu alguns passos trôpegos, depois arriou abruptamente no sofá.
— Seu bisavô disse que você era uma vagabunda. Na minha cara, disse que minha filha era uma vagabunda.
— Sabe como ele chamou você?
— Não quero saber. Era um velho filho da puta e asqueroso.
Betsy foi até o bar e pegou o martíni que Angelo preparara.
— Não tem idéia do quanto ele era asqueroso. Chamou-o de masoquista. Disse que você deixava que Roberta o açoitasse com um cinto. De onde será que ele tirou essa idéia?
Loren empalideceu.
— Número Um era... louco!
— Era mesmo? Ele tinha videoteipes de você. E de mim. Havia câmeras ocultas por toda a sua casa.
— Onde estão essas fitas agora?
— Eu as peguei. Ele me mostrou em seu quarto naquela noite... na noite em que morreu. Eu estava lá quando aconteceu, como já sabe. Deve estar lembrado que ele me ordenou que fosse ao seu quarto naquela noite. Tinha assistido à fita e decidiu que eu poderia fazer a mesma coisa com ele. O que eu fazia era fora do comum. Ele...
— Está me dizendo que Número Um queria que você...
— Por que acha que ele me mandou ir ao seu quarto? Mostrou minha fita, mostrou sua fita, e me ordenou que fizesse com ele a mesma coisa que fazia na fita.
— Com quem?
— Não importa com quem. Deixe-me mostrar o que o matou, papai. — Betsy abriu o quimono. — Quando ele viu, começou a sufocar.
— Você não pediu ajuda?
— Ele não precisava de ajuda. Morreu num instante, por si mesmo. Mas sorte nossa que eu tivesse visto as fitas. Peguei todas.
— Onde estão agora?
Ela fechou o quimono.
— Não importa onde estão. Foram guardadas num lugar em que você não pode encontrá-las.
Loren levantou-se com alguma dificuldade.
— Por que eu deveria acreditar em tudo isso?
Betsy deu de ombros.
— Vai me dizer que Roberta não deixa vergões vermelhos em sua bunda das surras de cinto? Vai me dizer que não declara a ela que é maravilhoso e suplica por mais? Não a deixou fazer isso com você num quarto de hóspedes na casa em Palm Beach? Pense, papai! De que outra forma eu poderia saber?
Loren cambaleou até a porta da suíte. Parou e olhou para a porta do quarto.
— Aposto que o carcamano está lá dentro.
— Na verdade, é o garoto que veio limpar a suíte — escarne-ceu Betsy. — Ele irá embora assim que dermos uma trepadinha rápida.
Loren correu para a porta do quarto e abriu-a. Avançou bem a tempo de se encontrar com o punho de Angelo, que o acertou em cheio no queixo e o derrubou no chão. Ele ficou estendido de costas, atordoado, sacudindo a cabeça.
— Levante-se e saia daqui, Loren. E pare de me chamar de carcamano. Algumas outras pessoas podem fazer isso, mas você não.
Loren teve de fazer um grande esforço para ficar de pé.
— Vou telefonar para Cindy—murmurou ele. — Assim que chegar ao meu quarto.
Betsy deteve-o.
— Gostaria da divulgação pública de sua vida amorosa com Roberta, papai? Falo sério. Posso mostrar a fita a qualquer um, não apenas a Angelo.
Loren virou a cabeça bruscamente, lançando olhares furiosos para Betsy e Angelo.
— Isto não é o fim — murmurou ele, sombrio — entre nós.
Ambos viverão para se arrependerem desta noite.
3
Enquanto os empregados do hotel limpavam a sala da suíte, Betsy e Angelo tomavam um banho de chuveiro juntos e se diver-tiam mais uma vez um com o outro, antes que ela começasse a receber mais revendedores e ele fosse para a exposição de Stallions no Cobol Hall, onde também se encontraria com revendedores.
Loren seria o único orador no jantar dos revendedores, que seria oferecido naquela noite. Loren e Roberta sentariam à mesa principal, assim como Betsy e os outros membros do conselho de administração. Os vice-presidentes e os revendedores de vendas mais expressivas ficariam numa mesa mais baixa. Angelo sentaria a essa mesa. Figurava entre uma dúzia ou por aí de nomes que Loren mencionaria como tendo contribuído de forma significativa para o desenvolvimento do Stallion.
— No próximo ano em Jerusalém — disse Betsy, ao passarem os últimos minutos juntos na cama naquela manhã. — No próximo ano você será o astro, e ele nem sequer estará presente.
Angelo sacudiu a cabeça.
— Deixe Loren ter seus momentos de glória. Eu não faço discursos, apenas carros.
Ela virou a cabeça no travesseiro, ofereceu-lhe um sorriso afetuoso e sussurrou:
— Você pode ter tido algo mais na noite passada.
— O quê?
— Parei de tomar a pílula. Tive de fazê-lo, por algum tempo.
E você é o único homem com quem estive desde...
— Betsy!
Ela deu de ombros, tornou a virar a cabeça.
— Nosso, meu verdadeiro amor. Nosso carro, nosso filho.
4
Em Greenwich, Cindy e Amanda estavam deitadas juntas no sofá na sala de estar da casa dos Perinos, excitando uma à outra com dedos e línguas carinhosos. Não satisfaziam uma à outra. Na verdade, só conseguiam se excitar mais ainda.
— Vai querer ou não? — perguntou Amanda.
Cindy olhou para o relógio.
— As crianças chegarão daqui a pouco.
— Temos tempo suficiente.
Cindy acenou com a cabeça e tirou a calcinha. Contraiu-se quando Amanda encontrou seu clitóris com a língua e começou a acariciá-lo.
Ela estava determinada a não se entregar a qualquer outro homem além do marido. Angelo era homem suficiente para qualquer mulher. Mas ele viajava tanto! Cindy não podia deixar de querer o que uma mulher queria. Sabia que queria mais do que a maioria das mulheres. E Amanda também. Mas não era culpa delas.
De qualquer forma, ela conhecia Angelo muito bem. Com quem ele ia para a cama naquelas longas e freqüentes viagens de negócios? Betsy, ela adivinhava. E quem mais?
Haviam escolhido aquele estilo de vida. Angelo, ela disse a si mesma, poderia ter permanecido um mero consultor e analista, indo todos os dias de Greenwich para seu escritório em Nova York, ganhando reputação e dinheiro. Mas sem carros. E se ele não podia fazer carros, sentia-se desolado. Era essa a vida de Angelo; tudo o que ele queria e toleraria qualquer coisa em troca: a separação constante de uma família e um lar que amava, viver em hotéis, enfren-tando o cansaço, os riscos, as frustrações e os Hardemans.
E ela não era parte disso.
Amanda levantou os olhos por um instante.
— Dietz voltou — anunciou ela. — Gastou algum dinheiro na Europa. As coisas que comprou ainda não chegaram, mas ele me falou a respeito.
— Tive de fazer outro empréstimo para ele — disse Cindy.
— Não é da minha conta, mas você possui a galeria agora, não é? Dietz apenas trabalha para você.
— Sou a dona. Ele é consultor. Sob um contrato.
Amanda tornou a baixar a cabeça para a virilha de Cindy, mas acrescentou:
— Ele jantará em meu apartamento esta noite. Quer se juntar a nós?
— Às sete horas?
— Combinado.
Quando Amanda acabou de satisfazer Cindy já era tarde demais para continuar e correr o risco das crianças ou a empregada entrarem e surpreendê-las.
— Ponha na conta — murmurou Amanda, enquanto pegava suas roupas.
Ela deixou a casa antes que o ônibus escolar parasse na extremidade da rua.
John tinha nove anos. Largou os livros em seu quarto e disse que desceria até a cozinha para leite e biscoitos. Cindy saiu de seu quarto e o encontrou parado no corredor, olhando pensativo para o quadro que Amanda pintara dela, quando estava grávida de Anna. Já o notara a contemplar o quadro antes.
Desceram para a cozinha.
— Gosta do quadro? — indagou Cindy.
— Que quadro?
— O meu... nua e grávida.
John corou.
— Ahn... Gosto. É bonito.
— Perturba-o de alguma forma?
O rubor se aprofundou. O lábio inferior tremeu.
— Mãe... não posso levar meus amigos para meu quarto!
Cindy franziu o rosto. Seus lábios se entreabriram.
— Eu não tinha pensado nisso.
— Eles não compreenderiam.
— Tem razão. O quadro vai para o quarto.
Ele piscou e reprimiu as lágrimas.
— Desculpe...
Cindy se inclinou e afagou o rosto do filho.
— Não se preocupe, John. Alguns de seus amigos não compreenderiam. Está tudo bem enquanto você compreende. A srta.
Finch... Amanda... é uma artista de talento maravilhoso. Vende seus quadros a colecionadores e galerias do mundo inteiro. Ganha mais dinheiro do que os pais de alguns de seus amigos com os negócios que fazem. Quando posei para o quadro, eu esperava sua irmã Anna. Você me viu. Era pequeno demais para se lembrar. Seu pai acha que pode ser a mais linda obra de arte que ele já viu. Mas não a deixamos embaixo, e só mostramos a pessoas que podem compreender. Seus amigos não devem ver. Não na idade em que estão. Vou mudar o quadro de lugar.
— Sinto muito. Sei que é bonito. Mas acontece que... os garotos pensariam no que você fez para ficar assim.
Cindy sorriu e tornou a afagar o rosto de John.
— Seu pai e eu fizemos exatamente a mesma coisa que os pais e mães deles fizeram, ou você não teria esses amigos.
— Eu imagino...
— Não precisa imaginar, John. É assim que as crianças nas-cem. Não há outro meio. Cada homem, mulher e criança do mundo é o resultado do que seu pai e eu fizemos para ter você, Anna, Morris e Valerie. E você pode ter mais um irmão ou irmã algum dia.
— Quer dizer que vocês ainda fazem?
Cindy não pôde deixar de rir.
— Claro. O que você pensava?
— Ahn...
Ela relatou a conversa para Amanda e Dietz durante o jantar, no estúdio de Amanda.
— Isso me lembra uma coisa — disse Amanda. — Precisamos pintar outro retrato seu. Que idade você tinha quando fez aquele?
— Vinte e seis anos.
— É tempo de posar para outro.
— Boa idéia. Poderia ser um presente de Natal para Angelo.
— Assim que terminar de comer, tire as roupas e suba na plataforma. Arrumaremos uma pose e farei o esboço esta noite.
Quando Cindy estava na plataforma e Amanda trabalhava com seu enorme bloco de desenho e carvão, Dietz acomodou-se numa poltrona com um conhaque e examinou-a com um olhar crítico.
Sabia que já haviam passado os dias em que Cindy podia se divertir com ele. Passaria a noite com Amanda, mas não poderia ter Cindy.
— Você é boa como o vinho — comentou ele. — Melhora com o tempo.
— E você é como a Bíblia — disse Cindy. — É um tesouro de clichês.
— Minha linda mulher, tenho uma proposta de negócio a lhe fazer — anunciou Dietz. — Já ouviu falar de um marchand chamado Marcus Lincicombe?
— O nome é... acho que já ouvi falar dele.
— Lincicombe acha que pode gostar de se juntar a nós. Ele é um tremendo marchand, Cindy. Tem um olho que posso invejar.
Entre outras coisas, é um dos mais eminentes colecionadores de netsuke do mundo. Sabe o que é netsuke?
— Pequenas esculturas em marfim japonesas — respondeu Cindy.
— No Ocidente, Lincicombe é a maior autoridades nelas.
Seja como for, ele procura por uma associação. Gostaria de conversar com ele?
Cindy deu de ombros.
— Por que não?
XX
1982
1
— Ele extrapolou — disse Loren a Peter Beacon. — O XB
2000 não passa de uma bosta.
— Pior do que isso. Ele quer fechar a fábrica do Sundancer e abrir uma nova fábrica automatizada, cheia de robôs. Soldas feitas por robôs, essas coisas. E não apenas isso. Para trabalhar com essa resina epóxi, como ele está querendo, teremos de desenvolver toda uma nova tecnologia. Ninguém na indústria planeja usar esse material. Cada carro custará vinte mil dólares, a menos que enterremos dezenas de milhões nos novos equipamentos necessários para fabricar grandes quantidades de resina epóxi.
— Tem alguém fazendo alguma coisa com esse material? —
perguntou Loren.
— Bill Lear. Antes de sua morte, ele planejava um novo avião executivo chamado Lear Fan. Hélice atrás, impulsionado por duas turbinas. A alegação é de que voará quase tão depressa quanto um jato, pela metade do custo. O segredo seria a fuselagem feita de resina epóxi, que é tão forte quanto alumínio, mas tão leve que um homem pode levantar um pára-lama de automóvel de epóxi sem o menor esforço.
— E custa uma fortuna — comentou Loren.
— A menos que você construa uma fábrica com a nova tecnologia para a produção em massa — ressaltou Beacon.
— Estamos falando de dezenas de milhões de dólares.
— Vintenas de milhões.
— Estou sendo pressionado para fabricar esse carro. Minha filha quer. Minha... Anne também quer. Acho que até minha esposa quer.
Beacon alteou as sobrancelhas.
— Há uma possibilidade que não devemos ignorar.
— Qual?
— Se o XB 2000 fracassar, será o fim de Angelo Perino.
— Talvez valha o que custa — murmurou Loren. — Vamos supor que investíssemos na tecnologia para produzir essa resina epóxi. Poderíamos vender depois?
— Talvez sim. Pode ser usada para fabricar uma porção de coisas. Aviões... — respondeu Beacon.
— Ou automóveis — disse Loren.
— Ou automóveis. Vamos encarar os fatos. Pode revolucio-nar a indústria. Mas não vamos esquecer que Perino tende a tomar decisões temerárias. Lembre-se de que ele queria construir um carro de turbina.
— O Betsy.
— Perino comete erros. Talvez você devesse pôr o nome dele na frente desse projeto. Se der certo, teremos uma fonte de lucro.
Mas se fracassar...
— Pete... Ele está comendo minha filha. Quero acabar com o filho da puta. Não sei o que mais quero, se um sucesso de um bilhão de dólares com esse 2000 ou o couro de Perino. Aceitarei qualquer das duas coisas.
2
Betsy insistiu em acompanhar Angelo quando ele se reuniu com Marco Varallo, o projetista italiano que fizera o desenho que ela mostrara aos revendedores em abril.
Ele teve de voltar até Londres, a fim de que Betsy viajasse junto no vôo para Turim. Ocuparam quartos separados no hotel em Turim, para dar a impressão de que não dormiam juntos. Agora que Loren já sabia, tinham de ser um pouco mais cuidadosos.
Uma Xerox de uma ficha de registro — Sig./Sig.ra Angelo Perino
— poderia ser despachada "anonimamente" para Cindy. Nenhum dos dois queria que isso acontecesse.
Varallo recebeu-os em seu estúdio, uma sala grande e en-solarada, dominada por uma enorme prancheta e por modelos de carro em barro, um deles em tamanho natural.
— Vai assentar numa base de Volkswagen — informou Varallo, apontando para o modelo grande.
Era um homem baixo, quadrado, o rosto corado, cabelos brancos. Transbordava de entusiasmo por tudo o que fazia, tinha uma voz alta e estridente, gesticulava sem parar com os braços. Seu inglês era idiossincrático. Angelo poderia conversar com ele em italiano, mas neste caso Betsy não entenderia.
Varallo folheou algumas plantas numa mesa, tirou uma da pilha e levou para sua prancheta.
— Esta não é a plataforma do XB Stallion?
— É, sim. Aí está o Stallion sem a carroceria. É o que preten-demos usar, com bem poucas modificações.
— Trabalhei com essa suposição. Gostaram do desenho que mandei?
— Gostamos. E muito.
— Mas eu me pergunto se tem idéias alternativas — quis saber Betsy.
Varallo sorriu.
— As mulheres gostam de escolher, não é mesmo? Jamais compram a primeira mercadoria que vêem. Para dizer a verdade, tenho outros esboços.
Examinando-os, Angelo e Betsy constataram que ele favore-cia os carros baixos, com a frente afilada. As entradas de ar ficavam por baixo do pára-choque dianteiro. Isso não agradou Angelo.
— Já pilotei carros de corrida com radiadores quase no chão.
As entradas de ar recebem água e lama. E poeira. Por que não fazer uma abertura estreita na inclinação do capo?
— E estragar as linhas? — murmurou Varallo.
— Não vai estragar suas linhas, signor. Tenho certeza de que é capaz de fazer a alteração e tornar o carro ainda mais bonito.
— Haverá de qualquer forma uma intensa pressão na inclinação do capô — comentou Betsy.
Varallo pegou um lápis e desenhou uma fenda estreita de um pára-lama a outro.
— A largura vai depender dos testes — disse ele. — O ar para dentro passa por...
— Aberturas laterais — disse Angelo. — Logo depois das portas.
— Eu gostaria de faróis embutidos — sugeriu Betsy.
— Caro demais — objetou Angelo.
— Neste caso podem ficar em naceles de Plexiglass que acompanham a curva dos pára-lamas — disse ela. — Como estão, que-bram as linhas.
— É uma boa idéia — concordou Varallo.
— Gosto deste desenho — acrescentou Betsy, apontando para o esboço de um carro ainda mais baixo que o mostrado em Detroit.
— Dê-me três dias e farei um modelo em barro.
— Pode levar duas semanas, signor — disse Angelo. — Tenho de voar para o Japão.
3
Betsy tirou as roupas no quarto de Angelo e deitou na cama.
Ele serviu dois scotches. Estendeu um para Betsy, mas ela sacudiu a cabeça.
— Qual é o problema? Prefere outra coisa?
— Não posso beber por algum tempo, amor.
— Por que não?
Betsy sorriu.
— Estou grávida. De nossa criança. O que você prefere, menino ou menina?
Seria inútil perguntar se ela tinha certeza que era dele. Angelo sentou na cama e pegou a mão de Betsy.
— Fico contente, Betsy — sussurrou ele.
Seria crueldade dizer qualquer outra coisa.
4
Loren deitava nu, de barriga para baixo, na cama conjugal.
Tinha os pulsos e tornozelos amarrados nas colunas da cama.
Comprara recentemente um chicote de charrete para Roberta usar nele, e tinha seis vergões vermelhos na bunda.
Ela sentava numa poltrona, fumando um cigarro e bebendo um scotch. Usava um sutiã preto transparente e mais nada.
— A pequena vagabunda está grávida de novo — murmurou ele. — Telefonou de Londres esta manhã.
— E daí? Betsy é assim mesmo. Quem a engravidou?
— Essa é a pior parte. Ela não quis dizer, mas tenho quase certeza de quem foi.
— Quem?
— Angelo Perino — murmurou ele.
O rosto de Roberta se contraiu e ficou vermelho. Ela se levantou, pegou o chicote e bateu com toda força na bunda de Loren.
O golpe cortou-o, o sangue escorreu do vergão.
— Aiii! Deus, Roberta! Vá com calma!
Ela bateu de novo e uma terceira vez. Loren gritou.
Tiveram de especular se a pessoa que tocou a campainha da porta ouviu esse grito. Roberta soltou o pulso esquerdo de Loren e deixou-o a desamarrar o resto, enquanto ia atender à porta.
— Quem será? — murmurou ela, enquanto vestia o chambre.
Ela reconheceu o homem parado na porta. Burt Craddock. O factótum de Número Um. Filho da secretária desagradável e intrometida que ouvia os telefonemas do velho.
Calçando tênis brancos e vestindo uma suéter azul de gola rulê e uma calça caqui, Burt tinha o jeito de um dançarino, com os passos leves, na ponta dos pés. Estava grisalho agora, prematuramente. O rosto corado sugeria que ele se fortalecera com mais de um drinque antes de vir à casa dos Hardemans.
— Lembra-se de mim, sra. Hardeman?
Ela acenou com a cabeça, friamente.
— O que deseja?
— Vim falar sobre uma coisa. Tenho certeza de que vai se interessar.
Roberta hesitou por um instante, depois deu um passo atrás para deixá-lo entrar na casa. Levou-o para a sala íntima da família, nos fundos da casa.
— Ah, eu morreria por um Steinway assim! — murmurou ele. — Importa-se?
Sem esperar por uma resposta, Craddock sentou ao piano e tocou um acorde, depois uma frase musical.
— O que você deseja? — indagou Roberta.
— Ahn... acho que o sr. Hardeman devia ouvir também.
Roberta acendeu um Chesterfield.
— Aceita um drinque? — perguntou ela, enquanto ia até o bar e pegava uma garrafa de Black Label.
— Scotch? Aceito, sim, obrigado.
Loren entrou na sala, usando um chambre e a calça de pijama, andando um pouco rígido.
— Craddock — murmurou ele. — A que devemos o prazer?
Craddock permaneceu sentado no banco do piano. Tomou um gole do scotch que Roberta lhe servira.
— Bom... seu avô era um homem singular, não concorda?
Entre as coisas que fez, mandou instalar microfones em muitos cômodos na casa em Palm Beach, câmeras de vídeo em alguns.
Isso era parte do meu trabalho, instalar e cuidar da manutenção dos aparelhos. Para resumir o assunto, sr. e sra. Hardeman, o falecido sr. Hardeman pediu-me que os filmasse... na intimidade de seu quarto. O que eu fiz. A fita é muito interessante.
— Porra nenhuma! — explodiu Roberta.
Craddock alteou as sobrancelhas, inclinou a cabeça para o lado e sorriu.
— O falecido sr. Hardeman achava muito divertido ter um neto que é masoquista casado com uma sádica. Posso citar trechos do desempenho que tiveram na noite em que foram filmados. Preciso?
— Não importa — respondeu Loren, rígido, o rosto vermelho. — Está dizendo que possui essa fita?
Craddock acenou com a cabeça.
— Uma cópia. O sr. Hardeman tinha três aparelhos de gravação. Foi simples ligar dois e duplicar as fitas.
— Fitas... — murmurou Roberta. — Outras pessoas além de nós?
Craddock sorriu.
— Sr. Hardeman, sua filha é uma adeta sexual.
— Com...?
— O sr. Perino.
Loren suspirou.
— Suponho que você quer dinheiro.
Ele serviu-se de meio copo de scotch puro e tomou a metade.
Craddock fez uma careta e deu de ombros.
— Só o que é justo, sr. Hardeman. Seu avô foi um avarento no testamento. Deixou uma ninharia para minha mãe, nada para mim, por anos de serviços fiéis e confidenciais.
— Vai me entregar as fitas por um preço?
— Claro.
— Quanto?
— Duzentos mil dólares seria um absurdo?
— Um absurdo total. Mas suponhamos que eu pague. Onde estão as fitas e quando posso obtê-las?
— As fitas estão na Flórida.
— Vai trazê-las para cá?
— Se assim quiser.
— Está certo.
— Por favor, compreenda que ficamos muito pobres. Voar até aqui e alugar um carro... — Craddock deu de ombros, ergueu as mãos vazias. — Poderia me adiantar alguma coisa?
— Acho que sim. Não sei quanto tenho em casa. Terei de abrir um cofre. Espere um ou dois minutos.
Roberta balançou a cabeça para Craddock.
— Quero ouvir alguma coisa que meu marido diz nessa fita.
— Ele disse: "Oh, meu bem, isso é maravilhoso! Faça de novo!" Em outra ocasião, ele disse: "Não bata com tanta força!
Assim dói!" E depois a senhora disse: "Gosta quando dói, hem?"
Devo continuar?
— E Betsy? O que ela e Perino fizeram?
— Ahn... Talvez eu não deva dizer.
Roberta amassou o cigarro no cinzeiro.
— Como podemos saber que não vai duplicar as fitas de novo e depois pedir mais dinheiro?
Craddock sorriu.
— Terão de confiar em mim.
— Essa não! — exclamou Loren.
Ele estava parado na porta, com um revólver Smith & Wesson 38 na mão direita.
— Ei! — gritou Craddock, levantando-se de um pulo.
Loren atirou. Craddock se virara para correr na direção da porta dos fundos. A bala atingiu-o na nádega esquerda.
Craddock berrou e saltou, ainda tentando chegar à porta. Loren disparou outra vez. Errou por completo. A bala foi se cravar na parede.
Loren tremia enquanto apontava o revólver mais uma vez.
Suas mãos tremiam, os maxilares tremiam.
Craddock gritava e gritava.
Roberta arrancou a arma de Loren, mirou e puxou o gatilho.
O tiro acertou Craddock no peito. Ele não gritou mais.
Loren cambaleou para o bar.
— Não! — ordenou Roberta. — Temos toda essa sujeira para limpar. Temos de nos livrar de um corpo. E de um carro. Não pode beber mais nenhuma gota.
— Eu tinha de fazer isso — balbuciou Loren.
— Tem razão — concordou ela. — Mas não tinha de fazer tanta cagada.
5
Não houve nenhuma cagada no resto. Quando o corpo foi encontrado e identificado, a polícia interrogou-os, já que Burt Craddock fora empregado de Número Um. Mas a ligação entre Craddock e o sr. e sra. Loren Hardeman III era tão tênue que os detetives não se aprofundaram.
Chegaram à mesma conclusão sobre a ligação entre Craddock e Angelo Perino. Pelo telefone, Angelo confirmou que conhecera Craddock, mas não o via desde a última vez em que visitara a casa de Número Um em Palm Beach.
A sra. Craddock chorou muito, mas insistiu que não tinha a menor idéia do motivo pelo qual o filho fora a Detroit.
Tadashi Komatsu não fabricaria um XB 2000 japonês.
— Pode-se vender esse tipo de carro nos Estados Unidos e Europa, mas creio que em mais nenhum outro lugar — disse ele.
— Vocês o fabricam, nós o fabricamos, e depois competimos.
Não há mercado suficiente para isso.
— Eu esperava que pudéssemos ser sócios — disse Angelo.
O sr. Tadashi fez uma reverência, mas sacudiu a cabeça.
— Outras companhias além da sua estão desenvolvendo ma-teriais de resina epóxi e tecnologia para produzi-lo a um custo razoável—acrescentou Angelo. — Mas estou impressionado com os seus métodos. Podem nos autorizar a usar sua tecnologia?
— Claro.
— E pode me emprestar Keijo Shigeto? Ele e sua família poderiam viver nos Estados Unidos por um ou dois anos. Tenho o maior respeito pela capacidade dele como engenheiro.
— Não haverá problemas. Se ele estiver disposto.
7
Cindy estava grávida de novo, e queria velejar pelo Estreito antes de se tornar pesada demais. Bill Adams ensinara a ela e a Angelo os rudimentos de navegar o seu barco de trinta e cinco pés, Eve. Junto com Alicia, formavam uma tripulação de quatro que não precisava brigar para manobrar o barco.
Bill preferia não velejar nos fins de semana, e por isso foi numa terça-feira de agosto que eles saíram pelo estreito de Long Island e foram ancorar para almoçar em Little Neck Bay. Enquanto Cindy e Alicia desempacotavam o almoço na cozinha, Angelo e Bill sentaram na popa e conversaram.
— Não costumo falar de negócios quando saio para velejar — disse Bill —, mas a notícia em Wall Street é de que você está empenhando a XB Motors na fabricação de um carro esporte.
— É verdade. Quero expandir a linha. O Stallion foi um sucesso...
— Salvou a companhia.
— Aceito isso — murmurou Angelo, erguendo seu martíni em saudação.
— Dizem que vai fazer a carroceria com um material de resina epóxi.
Angelo inclinou a cabeça em confirmação.
— É tão forte quanto aço, com menos da metade do peso.
Podemos ter um desempenho melhor com um motor que não consome muita gasolina.
— Vou fazer uma sugestão. Importa-se?
— Claro que não.
— Eu lhe disse há muito tempo que um corsário de corporações de Nova Jersey estava de olho na XB. O nome dele é Herbet Froelich, presidente da Froelich & Green, Incorporated.
Eles já organizaram a tomada do poder acionário em meia dúzia de corporações industriais de tamanho médio durante os últimos oito ou nove anos. Nenhuma dessas companhias continua a exis-tir. Eles vendem todo o patrimônio por um lucro, depois liqui-dam a companhia. Agora que a XB parece muito mais sólida do que antes, eles estão procurando dinheiro para comprar as ações.
— Uma grande parte pertence à família — disse Angelo. —
Outra é da Fundação Hardeman. Não creio que estejam interessados em vender.
— Nunca se sabe. O dinheiro parece às vezes irresistível. Loren Terceiro é casado com uma mulher que pode querer sair de Detroit.
Poderiam ir para qualquer lugar que quisessem e viver como o Duque e a Duquesa de Windsor.
Angelo sacudiu a cabeça.
— Não sei o que posso fazer a respeito.
— É essa a sugestão que quero apresentar... o que pode fazer.
Você quer obter a licença para usar a tecnologia de resina epóxi da Shizoka. Compre a licença pessoalmente, fabrique o material você mesmo e venda à XB.
— Posso ver dois problemas — disse Angelo. — Primeiro, o financiamento para adquirir a licença...
— Podemos levantar o dinheiro. Os Perinos e os Morris não são pobres. Você tem uma boa ficha. A Shizoka também. Se Tadashi Komatsu conceder a licença para o uso da tecnologia, provavelmente lhe oferecerá melhores condições do que daria à companhia.
— O segundo problema é o conflito de interesses — declarou Angelo. — Já que sou vice-presidente da XB, como posso...
— Essencialmente, cuide para que a companhia fique informada de tudo o que fizer. O conflito de interesses em geral impli-ca sigilo. De qualquer forma, pode-se dar um jeito para que o sr.
Tadashi não conceda a licença à XB.
— Dar um jeito...?
— Deixe-me cuidar de tudo. Você não sabe de nada.
8
O conselho de administração sentava em torno da enorme mesa, na sala de reunião. Como sempre, Angelo Perino, vice-presidente de pesquisa e desenvolvimento, sentava numa cadeira encostada na parede, não junto da mesa. Peter Beacon, vice-presidente de engenharia, encontrava-se em posição similar.
Loren presidia. Roberta sentava à sua direita. James Randolph, o Professor Mueller e Alexander Briley sentavam nos lados da mesa. A Princesa Anne Alekhine, como acontecia quase sempre, decidira não vir de avião da Europa. Se estivesse presente, seria o único voto com que Loren não poderia contar como certo.
Angelo sentiu uma renovada hostilidade de Loren. E por que não? Ele perdera o controle naquela noite na suíte de Betsy e esmurrara o homem. Isso lhe custaria alguma coisa, mais cedo ou mais tarde. Mas Roberta? Por que ela se mostrava tão fria?
— O propósito desta reunião é decidir se a companhia deve continuar com o projeto do XB 2000, tendo em vista um recente e sério revés — disse Loren. — Parece que um elemento essencial do carro esporte do sr. Perino não nos será mais disponível. A Shizoka, a companhia japonesa que deveria fornecer a tecnologia para a fabricação do material de resina epóxi, não vai mais nos conceder a licença. Sem isso, o carro será pesado demais para o desempenho prometido. Não posso ver outra opção que não abandonar o projeto.
Todos fitaram Angelo.
— Essa é uma conclusão um tanto precipitada, senhor presidente. Há outros meios de adquirir a tecnologia.
— Eu bem que gostaria de saber por que a Shizoka não vai mais nos vender a tecnologia — comentou o Professor Mueller.
— O sr. Tadashi acha que nossa companhia corre o risco de ser adquirida por um corsário financeiro — explicou Loren. —
Esse corsário tem uma péssima reputação, na opinião do sr.
Tadashi, e ele não quer que a tecnologia caia em mãos de pessoas em quem não confia. Já que a maioria das ações se encontra representada nesta mesa, pelas minhas ações e da Fundação Hardeman, é óbvio que se trata de uma noção infundada.
— Ele ofereceu a licença à XB — lembrou Angelo —, sob a condição de que a companhia não caia sob o controle de uma nova administração.
— Nossos advogados dizem que não podemos aceitar isso
— informou Loren. — Pelo direito comercial americano, é ilegal firmar qualquer contrato que impossibilite a troca de administração de uma companhia.
— E o novo carro não pode ser fabricado sem esse material?
— perguntou Briley, o ex-deputado.
— Todo esse projeto absurdo depende disso e de mais algumas coisas que ainda não foram resolvidas—respondeu Loren, sombrio.
— Posso obter o material — garantiu Angelo.
— É mesmo? Como?
— O sr. Tadashi não dará a licença para a companhia, mas pode conceder para mim. Posso criar uma companhia para produzir a resina e vender à XB Motors.
— E com quanto dinheiro teríamos de entrar nessa companhia? — perguntou Loren.
— Nenhum, até eu entregar o produto — respondeu Angelo. — Minha companhia produzirá a resina epóxi, fabricará as carrocerías para o XB 2000 e venderá por um preço provavelmente inferior ao que custaria numa fábrica da XB Motors.
— Não dá para entender como um dirigente de uma companhia pode vender de forma legal e ética qualquer coisa para sua companhia — protestou James Randolph, o diretor da fundação.
Angelo levantou-se e entregou um papel a Loren.
— Este é o meu pedido de demissão do cargo de vice-presidente da XB Motors. Se a XB não vai fabricar o 2000, tenho outras coisas para fazer. Se for, venderei as carrocerías. E também continuarei a oferecer meus serviços como um consultor, se qui-serem. Meus advogados garantem que não há nada de ilegal nesse acordo. Também não há nada de antiético, porque acabei de esclarecer tudo.
— Posso perguntar como vai levantar o dinheiro para fazer tudo isso? — indagou Loren.
Angelo sorriu.
— Tenho algum dinheiro meu, como sabe. E Cindy também.
Ela é uma grande acionista da Morris Mining. E talvez eu venda minhas ações na XB Motors.
— Este conselho já decidiu empenhar a companhia na fabricação do 2000 — interveio Roberta. — O sr. Perino já nos comprometeu a todos nessa empreitada. O único motivo para revisar essa decisão seria o problema de garantir o material para a carrocería. Se podemos obtê-lo...
— Neste caso, não temos que pensar duas vezes. — Loren olhou para Roberta. — Acha que devemos continuar?
— Nada mudou. Nosso vice-presidente que acaba de se de-mitir já nos comprometeu no projeto.
— Muito bem. Eu gostaria da aprovação do conselho para negociar um contrato com o sr. Perino. Aceito seu pedido de demissão.
9
Roberta levou Angelo para um lado do corredor, ao saírem da sala de reunião.
— Algum dia vai ser mais esperto do que você mesmo — murmurou ela. — Pelo que presumo, o material de resina epóxi pode ser a única parte desse projeto que vale alguma coisa. Como fez o acerto com os japoneses?
— Roberta, juro por Deus que não fui eu. O sr. Tadashi não ouviu por meu intermédio o rumor sobre a transferência do controle acionário. Você me falou do corsário de Nova Jersey e da possibilidade de se mudarem para Paris, mas juro que não contei a ninguém, muito menos a qualquer um no Japão.
Ela suspirou.
— Está bem. É o que você diz. Vai ficar com a melhor parte do negócio.
— Talvez.
— Mas quero que me jure uma coisa.
— O quê?
— Jure que a criança que Betsy está esperando não é sua.
Angelo acenou com a cabeça.
— Juro.
Ela fitou-o com um olhar frio e firme por um longo momento, antes de murmurar:
— Não acredito em você.
— Quer fazer perguntas inconvenientes e duvidar das respostas? Pois também tenho uma pergunta para você e Loren. Pode me jurar que nada tiveram a ver com a morte de Burt Craddock?
— Quem é Burt Craddock?
— Obrigado. Acabou de responder à pergunta.
XXI
1983
1
A 28 de janeiro, Betsy deu à luz um menino. Angelo não pôde voar até Londres para ficar com ela. Isso revelaria muita coisa a muitas pessoas.
Mas ela não ficou sozinha. Max van Ludwige veio de Amsterdam e a Princesa Anne Alekhine do sul da França.
Quando Angelo chegou, a 3 de fevereiro, para uma reunião com os seis revendedores britânicos do Stallion, a Princesa Anne ainda continuava em Londres. Betsy lhe contara quem era o pai da criança. Os três sentaram na sala de estar do apartamento de Betsy, dando para o Regent's Park, e ela falou com toda franqueza, na presença de Anne:
— Mesmo querendo, não podia dar ao menino o nome de Angelo, não é? Por isso ele é John, em homenagem a seu pai, Angelo. John Hardeman. Não sei se vai querer dizer a seu pai que ele tem outro neto.
— Já contei. E quer saber o que ele fez? Ligou para Jacob Weinstein, no Arizona, o homem a quem chamamos de tio Jake e que cuida do dinheiro da família Perino. Ele mandou tio Jake pôr meio milhão de dólares num fundo de investimentos para este neto. Queria que o menino tivesse um bom pé-de-meia quando tiver idade suficiente para precisar. Tio Jake também administra um fundo de investimentos para mim, e investi meio milhão nesse novo fundo. O pequeno John já é um milionário e será muitas vezes mais na adolescência. Tio Jake é um gênio nos investimentos.
O bebê dormia num berço. A babá levara a pequena Sally, que tinha dois anos, para um passeio no parque.
— Estou amamentando-o — disse Betsy. — Não fiz isso com os outros dois, mas o médico me convenceu a fazê-lo com o pequeno John. O que é um pouco restritivo. Terão de vir jantar aqui. Não posso sair. Os dois, é claro. Às sete horas?
— Combinado. Vou me encontrar com os revendedores para almoçar e com alguns banqueiros à tarde, mas às sete horas estarei aqui.
Betsy lançou um olhar afetuoso para o pequeno John.
— Eu disse que teria um filho seu algum dia — murmurou ela.
2
Quando Angelo e a Princesa Anne deixaram o apartamento de Betsy, naquela noite, depois do jantar, partilharam um táxi. Ela estava hospedada no Savoy Ao chegarem ao hotel, Anne sugeriu que ele entrasse para um drinque.
— Eu não quis sugerir um drinque antes, já que a pobre Betsy não pode beber.
Ela levou-o para um bar pequeno e escuro, onde podiam conversar em vez de serem entretidos, e pediram conhaque. Mesmo no Savoy, onde as pessoas extraordinárias eram comuns, a Princesa Anne Alekhine atraiu alguns olhares. Era alta, e aos cinqüenta e três anos ainda mantinha um corpo esguio e impecável. Usava um casaco de pele comprido, aberto, deixando à mostra o vestido rosa de cashmere, com uma dupla fieira de pérolas em torno do pescoço. Ninguém podia ter a menor dúvida de que era uma aristocrata. Não nascera assim, mas estudara com afinco e aprendera o ofício. Cultivava com sucesso um ar de elegância e sofisticação.
— Não quero insinuar qualquer coisa indelicada sobre sua esposa, mas é realmente uma pena que você e Betsy não pudessem ter casado. Formam um casal perfeito.
Angelo sorriu.
— Em que sentido?
— Ambos são inteligentes. Sabem o que querem e correm atrás. Não têm medo de riscos.
— Eu não deveria tê-la engravidado. E na verdade, do meu ponto de vista, foi um acidente. Ela queria e...
— Betsy me contou.
— Fico contente que haja alguém em quem ela pode confiar.
Betsy é muito solitária, e só posso estar com ela de vez em quando.
— Ela não tem família, exceto a que está fazendo para si mesmo. Meu sobrinho é uma insignificância, e aquela mulher com quem casou está abaixo do desprezo.
— Serei pai de novo dentro de dois meses. Nossa quinta criança. E última. Cindy está com trinta e cinco anos. É tempo de parar. Embora... ela me deu um quadro de si mesma no Natal. Já ouviu falar de Amanda Finch?
— Ela pintou Alicia nua — disse Anne. — Ouvi dizer que é uma boa pintora.
— Também pintou Cindy quando ela estava grávida de nossa segunda criança. Nua. Cindy tinha vinte e seis anos na ocasião, esperava nossa pequena Anna. Amanda tornou a pintá-la no ano passado. E Amanda é implacável em seu realismo, mas Cindy parece apenas um ou dois anos mais velha do que antes. Não mais do que isso.
Ter filhos não a prejudica.
— Você a ama.
— Claro que sim.
— Você vem de uma família unida, o que lhe serve de modelo. Muitas vezes me pergunto o que Betsy e eu seríamos se não fôssemos Hardemans. Número Um era um monstro. Número Dois era um fraco. Número Três é um miserável. Exceto por mim, só nasceu uma criança em cada geração. Até agora. Betsy tem três... apenas uma legítima. Loren a odeia por isso, é claro.
— O problema com Loren é que ele odeia a si mesmo.
Anne pegou seu copo e girou o conhaque. Sorriu divertida.
— Diga-me uma coisa, Angelo. Quantas mulheres da família Hardeman você já possuiu?
— Não posso falar sobre isso.
Ela inclinou a cabeça para o lado.
— É óbvio que levou Betsy para a cama. E também Bobbie, Lady Ayres.
— Não quando ela era uma Hardeman.
— Alicia fala de você com uma afeição que é bastante su-gestiva. E é apenas coincidência que em suas viagens a Londres Roberta também venha? Fico surpresa que ela não esteja aqui agora.
Angelo levantou seu copo e tomou um gole do conhaque.
— A conversa está se tornando um pouco...
— Pessoal demais? Ora, Angelo, estou curiosa em saber qual é a atração especial. Para Betsy, não ser casada com você é a tragédia de sua vida. Ela o enganou para engravidá-la porque pensou que você não poderia abandoná-la se fosse a mãe de seu filho. —
Anne fez uma pausa, alteou as sobrancelhas. — Muitas mulheres casadas também pensam assim.
— "Abandoná-la" não é a expressão certa — comentou Angelo.
— Separar-se dela. Recusar-se a vê-la. Retirar seu amor. Há mais entre vocês dois do que apenas sexo, não é mesmo?
Angelo acenou com a cabeça.
— Claro que sim.
— Você é... vinte anos mais velho do que ela?
— Vinte e um.
Anne gesticulou para que o garçom trouxesse mais dois conhaques.
— Loren está convencido de que você é o pai desta criança.
— Dei minha palavra a Roberta de que não sou.
— Ainda bem. A vaca intrometida. Aposto como ela perguntou.
— É verdade.
Anne inclinou-se por cima da mesinha redonda e encostou o indicador de leve na mão de Angelo.
— Sei que não fez sexo com minha mãe. Fez com uma das esposas de Loren pelo menos, e meu dinheiro diz que foi para a cama com as três. E também com a filha dele. Gostaria de completar o circuito, Angelo?
— Porquê?
— Confrontei Número Um e disse tudo o que tinha a dizer.
Talvez algum dia eu confronte Número Três. Seria divertido poder dizer "Angelo Perino dormiu com todas as mulheres vivas da família Hardeman".
— Não é um motivo dos mais dignos, princesa. Não quero entrar nesses jogos.
— Está certo. Um motivo melhor. Além das mulheres Hardemans, você tem uma ficha e tanto. Deve ter alguma coisa muito boa. Por que eu não posso experimentar, se todas as outras já o fizeram?
— Não seria uma traição a Betsy?
Anne sorriu, divertida.
— Acha que é o único homem com quem ela vai para a cama... além do psiquiatra? Você só encontra com ela umas poucas vezes por ano. Pensa que ela é casta nos intervalos? Angelo...
seguindo a sua lógica, ou você trai sua esposa cada vez que faz amor com Betsy, ou trai Betsy cada vez que faz amor com sua esposa.
— Suponhamos que façamos isso. Pretende contar a ela?
— Claro que não.
— Não ficaremos ambos pensando nela durante todo o tempo?
— Isso o deixará incapacitado?
3
Beijaram-se no vestíbulo da suíte. Ela entreabriu os lábios, e Angelo enfiou a língua dentro de sua boca. Pararam ali por meio minuto, as línguas trabalhando juntas, antes de Anne se virar e levá-lo para a sala.
Ela tirou o colar de pérolas e deixou-o numa mesa, depois baixou o zíper do vestido e arrancou-o pela cabeça.
Usava apenas uma peça sob o vestido decashmere: uma malha preta transparente, que compreendia meias e uma sobre-saia.
Despir-se não afetou a elegante dignidade da Princesa Anne Alekhine. Ela pegou uma garrafa e dois corpos numa mesa junto da janela e serviu conhaque para ambos. Quando estendeu um copo para Angelo, ele puxou-a para seus braços e tornou a beijá-la.
Embora a cobrisse do busto às pontas dos pés, o traje era tão transparente que ele podia contemplá-la toda. Anne tinha as pernas compridas. Os seios eram pequenos. As linhas do biquíni que ela usava no banho de sol eram visíveis, nos limites entre pele bronzeada e branca.
Ela abriu a porta do quarto e fez um gesto gracioso para convidá-lo a entrar.
Angelo despiu-se, enquanto ela o observava. Ajudou-o a baixar a cueca, pegou o pênis, apertou-o gentilmente. Ajoelhou-se e beijou-o, apenas roçando os lábios e logo tornando a se levantar.
Anne tirou a malha e depois, num gesto surpreendente, tornou a calçar os sapatos. Através do traje transparente, Angelo tivera a impressão de que a virilha era raspada ou talvez depilada.
Constatou agora que acertara. Passou os dedos pelos lábios externos. A pele era tão lisa que ele calculou que Anne se depilava.
— Angelo, não gosto muito da posição missionária. E você?
Também não quero me apressar. Provavelmente já sabe a maneira como eu quero. Podemos?
Ele deixou que Anne tomasse a iniciativa. Nunca fizera amor exatamente daquela maneira antes. Sentaram na cama de frente um para o outro, com as pernas bem abertas. Anne se adiantou até as virilhas se encontrarem, para depois inseri-lo. Inclinou-se para trás e pediu a Angelo para fazer a mesma coisa. Quando os joelhos de Anne ficaram sob as axilas dele e vice-versa, ela pegou as mãos de Angelo. Puxaram os braços um do outro, o que fez com que ele a penetrasse ainda mais. Permaneceram assim por meia hora, em movimentos lentos, mexendo os quadris. Às vezes largavam as mãos e se inclinavam para trás, depois tornavam a se dar as mãos e puxavam.
As sensações eram prolongadas e profundas. Os movimentos eram lentos, cuidadosos e variados. Não ficaram esgotados, não suaram. Experimentaram diversos movimentos, lentos e cuidadosos, saboreando as sensações fortes que podiam gerar Nenhum dos dois alcançou o orgasmo. Cada vez que se aproximava, Angelo parava, a fim de não terminar a experiência.
A fragrância de Anne era parte da experiência. Ele já aspirara seu perfume. A isso se acrescentava agora um odor sutil e almiscarado de seu corpo, tênue, mas estimulante.
Ao final, Anne ergueu as pernas lentamente por cima dos ombros de Angelo, juntou os pés por trás de sua cabeça.
— Agora... — sussurrou ela, muito calma.
Ele arremeteu mais fundo em movimentos rápidos e vigorosos, que os levaram a orgasmos explosivos.
No chuveiro, pouco depois, ela beijou-o e comentou, numa voz gutural:
— Compreendo a atração fatal. Agora, admita. Todas as mulheres Hardemans vivas...
Angelo sentiu que podia confiar nela. Acenou com a cabeça.
4
Em março, Cindy deu à luz uma menina a que deram o nome de Mary.
Keijo Shigeto e sua esposa Toshiko chegaram a Greenwich na semana seguinte. Os filhos viriam mais tarde, quando terminasse o ano letivo no Japão. Até lá, ficariam com os avós em Tóquio.
Angelo decidira instalar Keijo em Greenwich, onde poderia ajudá-lo e onde ele estaria à mão para consultas, com a freqüência que fosse necessária. Forneceu-lhe uma sala no conjunto da Angelo Perino, Incorporated, na Terceira Avenida, e acompanhou-o no trem nas primeiras viagens.
Cindy esperara ser capaz de ajudar Toshiko a se estabelecer em Greenwich, mas a mudança fora planejada durante os estágios finais de sua gravidez e consumada uma semana depois do nascimento de Mary. Por sorte, ela não teve de ajudar a família a encontrar uma casa. A Shizoka cuidou disso. Havia uma agência imobiliária japonesa em Greenwich. As companhias japonesas compravam casas e alugavam a seus empregados e a empregados de outras empresas durante sua permanência nos Estados Unidos. Keijo alugou uma casa numa ladeira, no bairro de Cos Cob, em Greenwich, mobiliada e pronta para a família se mudar.
Não era o lugar que Cindy indicaria. Keijo tinha de guiar por cinco quilômetros até a estação ferroviária. Toshiko teria de percorrer três quilômetros até a mercearia ou a agência do correio.
Duas semanas depois de chegar, a família adquiriu dois carros: um Buick e um Chrysler. Keijo seguia no Buick até a estação.
Toshiko circulava no Chrysler por toda parte. Sentiam-se fascinados pelos enormes carros americanos. Nenhum dos dois guiava bem, mas guiavam.
Angelo descobrira uma instalação industrial desativada em Danbury como um possível local para fabricar o material de resina epóxi que se tornaria a carroceria do XB 2000. O processo de fabricação não era de indústria pesada. O material líquido era convertido em folhas finas e grandes, que podiam ser esticadas sobre formas de fibra de vidro para se transformarem em pára-lamas, portas, capôs e assim por diante. Até vinte camadas eram sobre-postas, com cimento epóxi, formando peças laminadas que seriam bastante fortes e flexíveis, além de leves.
As folhas isoladas podiam ser aparadas com facilidade, usando-se uma tesoura comum. O conjunto era aparado por uma tesoura elétrica especial, que cortava pela vibração, não pelo movimento mecânico. A fábrica não teria ferramentas perigosas, nem muito peso a ser levantado. Seria preciso tomar algum cuidado com as substâncias químicas, mas os operários seriam treinados para se protegerem. Depois que uma folha endurecia, comentara alguém, podia com toda segurança ser usada num berço de criança, no lugar do lençol de borracha.
A fabricação das folhas de resina epóxi empregaria, a princípio, cerca de cem operários. As mulheres seriam a maioria. A pequena cidade de Danbury acolheu Angelo Perino e Keijo Shigeto com entusiasmo. Foram convidados a falar num jantar oferecido pela Câmara do Comércio, participaram também de reuniões no Rotary, Kiwanis e Lions.
Angelo planejava fabricar protótipos da carrocería em Danbury. Depois que os protótipos do XB 2000 fossem testados, ele embarcaria as folhas de resina epóxi para Detroit, onde seriam convertidas em carrocerías na fábrica da XB Motors.
Ele criou uma companhia para contratar o processo e fabricar o material. Deu o nome de CINDY Corporation.
5
Toshiko se tornou como uma americana tão depressa quanto podia. Para um jantar na casa dos Perinos, ela apareceu numa saia pregueada de tartã, com um cardigã azul marinho sobre a blusa branca.
— Academia Greenwich — murmurou Cindy para Angelo, quando se encontraram na cozinha, preparando drinques.
Falar inglês ainda era um desafio para Toshiko, mas ela insistia e já conseguia se fazer entender de alguma forma nas lojas locais.
— Tem gim — disse ela, saboreando o martíni. — Gosta disso. Não muito como iscote.
— Scotch — corrigiu Keijo, em tom brusco.
— Escote.
— Scotch.
— Scotch. Ser bom. Gim mais bom.
À meia-noite, Angelo e Cindy foram para a cama. Haviam se divertido com as tentativas de Toshiko de falar inglês, ao mesmo tempo em que sentiam um respeito sincero pela maneira como ela enfrentava o desafio de viver num país tão diferente de sua pátria. Riram ao repetirem algumas das coisas que ela dissera.
Os momentos como aquele, as noites juntos na cama, quando não se encontravam exaustos das demandas do dia, tornaram-se bastante raros para Cindy e Angelo; e tinham aprendido a prezá-los. Deitavam abraçados, confortáveis na carne contra carne, já que nenhum dos dois usava qualquer roupa para dormir.
— Querido...
— Hum?
— Você se sente satisfeito?
Angelo acenou com a cabeça.
— Eu também. Mas talvez não devêssemos. Talvez estejamos satisfeitos demais. Já pensou nisso? Não somos do tipo de nos sentirmos satisfeitos. Mas aqui estamos, domesticados e tranqüilos. Nunca pensei que chegaríamos a esse ponto. Em 1963 você era o segundo piloto de corridas do mundo... e teria chegado a primeiro se aquele acidente não o deixasse fora das pistas por tanto tempo. Quando o conheci, você ainda era um dos grandes. Eu adorava as corridas. Não deixavam uma mulher competir, mas você me permitiu ser piloto de testes. E vivíamos ansiosos.
— Não sei aonde está querendo chegar, Cindy — disse ele.
— Talvez eu também não saiba, mas tenho a sensação de que caímos no tédio da meia-idade... isto é, em nossas vidas pessoais; sua vida profissional é bastante aventureira. Saímos para velejar, mas Bill não entra em regatas. Não há desafio em velejar com ele.
Eu gostaria de tomar aulas de vôo, mas suponho que uma mãe de cinco filhos...
Angelo sorriu.
— Se você voasse, haveria de querer fazer acrobacias aéreas.
E eu também... se voasse. Está me dizendo que se sente entediada, Cindy?
Ela deu de ombros.
— É clichê demais.
— A galeria...
— Eu deveria passar mais tempo lá. Deixei Dietz cuidar de tudo por tempo demais. E Marcus Lincicombe. Marcus é um marchand competente... bom demais para ser um sócio júnior.
— Não vejo razão para que não passe mais tempo na galeria.
Confia na governanta, não é?
— Claro. Ela é excelente.
— Neste caso...
Cindy passou as mãos pelas faces, desceu para os seios, e levantou-os.
— Lembra do momento e m O Poderoso Chefão quando Mikc diz a Kay que lhe permitirá fazer uma pergunta sobre os seus negócios, mas nunca outra?
Angelo acenou com a cabeça.
— Ela perguntou se Mike matara o cunhado, ele mentiu ao dizer que não.
— Isso mesmo. Vai me permitir fazer uma pergunta sobre sua vida pessoal, Angelo?
— Claro.
— Você é o pai do último filho de Betsy?
Angelo não hesitou por mais que um momento. Respirou fundo e disse:
— Sou.
— Foi o que pensei — murmurou Cindy, calmamente. — Não vou perdoá-lo, porque não creio que seja uma coisa de que precise ser perdoado. Posso compreender. Ela é muito bonita. É
inteligente. É vital. E estava presente em muitas ocasiões em que eu não podia estar. Além do mais, é uma Hardeman. Ao fodê-la, você fode todo o clã.
— Desculpe, Cindy.
— Vou mostrar o quanto o amo, Angelo. Poderia usar isso contra você, mas prefiro dizer que também o traí uma ou outra vez. Se você fosse o tipo de homem que volta no trem para casa todasas noites, acho que nenhum dos dois encontraria uma oportunidade de fazer qualquer coisa fora do casamento. Mas não é o que acontece. Você a ama?
— Bom...
— É melhor que a ame. Não pode deixar de amar a mãe de seu filho. Não tem problema... desde que me ame mais.
— Eu a amo mais, Cindy. Muito mais.
Ela sorriu e estendeu as mãos.
— Pois então me prove...
XXII
1984
1
Dois protótipos do XB 2000 foram preparados juntos — uma condição de Angelo — ao final de fevereiro de 1984. Ele alugara a fábrica desativada em Danbury, instalara os equipamentos necessários para a fabricação do material de resina epóxi em chapas, mandara fazer as fôrmas de acordo com o projeto de Varallo e produzira duas carrocerías. Despachara de avião para Detroit, onde foram montadas sobre estruturas e chassis de Stallion, com o motor modificado. Tinham a caixa de engrenagem, o painel de instrumentos e outros componentes internos do Stallion, e por isso não eram de fato o 2000. Apesar disso, pareciam com o novo carro; e na pista de testes, o motor modificado proporcionava ao veículo leve um desempenho semelhante ao do novo carro.
Betsy foi a Detroit e pediu um dos protótipos. Guiou-o na pista de testes, depois nas ruas, saiu para as estradas de Michigan, recebeu uma multa por excesso de velocidade e deixou para trás o segundo carro da polícia que a perseguiu.
A Princesa Anne mostrou-se interessada e foi a Detroit com Igor, guiou um dos protótipos. Detida por uma radiopatrulha em Grosse Pointe, ela mostrou indignada o visto em seu passaporte, provando que não era a mulher que dirigia o carro esporte amarelo na noite em que se distanciara do mesmo carro da polícia.
Não foi possível ter dois XB 2000s disponíveis para cada revendedor por ocasião da reunião anual em abril. Havia dois carros prontos para exposição no Cobol Hall — aquele par, completo, com caixa de engrenagem, instrumentação e todos os ape-trechos internos do XB 2000.
Betsy mostraria o carro no jantar para os revendedores. Era popular entre eles, em particular com todos os que se lembravam de sua suíte de hospitalidade dois anos antes. Quando foi apresentada pelo pai, os revendedores se levantaram e lhe deram uma ovação de pé... como haviam feito para Angelo Perino poucos minutos antes.
2
Loren e Roberta sentaram lado a lado à mesa principal, ela quase que oculta dos revendedores por uma enorme cesta com cravos brancos.
— Eu não deveria ter deixado que você me persuadisse a concordar com isso — murmurou Loren, enquanto Betsy, esplêndida num vestido branco de seda, pegava o microfone e olhava radiante para os revendedores aplaudindo e gritando.
— Procure se controlar, amor — sussurrou Roberta em resposta. — O 2000 vai fracassar. E quando isso acontecer, de quem era o carro? Deixe que Betsy e Perino tenham sua hora de glória.
O mel dos dois vai se transformar em vinagre muito em breve. E será muito melhor assim. Perino sabe demais.
Betsy fez um discurso curto. Espalhou crédito para todos os lados. Era um projeto de Angelo Perino, disse ela. Aplausos. Baseado numa coisa que ela vinha exortando-o a fazer. Aplausos.
Porque seu bisavô lhe prometera que a companhia faria um carro assim. Aplausos. Era possível por causa do apoio de seu pai. Aplausos. Com a ajuda de seu vice-presidente de engenharia, Peter Beacon. Aplausos.
— A XB Motors, antes Bethlehem Motors, manteve uma posição segura numa indústria dominada cada vez mais pelas Três Grandes, porque nossa companhia sempre ofereceu ao consumi-dor americano o que ele queria. O Sundancer foi um grande carro. O XB Stallion é um grande carro... como indicam claramente os registros de vendas todos os meses. E agora, para aqueles americanos que querem uma coisa diferente...
Betsy fez uma pausa.
— Eu já o guiei, senhoras e senhores... como pode testemu-nhar um simpático guarda da polícia de Grosse Pointe que não conseguiu me alcançar. Eu...
Ela riu. Pegou um microfone portátil com um técnico já de prontidão.
— O guarda Bill Mclntosh pode se adiantar, por favor?
Betsy desceu do pódio e esperou que o guarda avançasse entre as mesas. Ele estivera comendo e bebendo numa mesa de revendedores, e seus passos não eram muito firmes.
— Bill tem uma coisa para mim — anunciou Betsy.
O guarda, à paisana, aproximou-se dela, enfiou a mão no bolso do paletó e entregou um papel. Betsy inclinou o rosto e beijou-o. Levantou a mão e acenou com o papel.
— Isto é minha multa por excesso de velocidade. Bem mere-cida. Obrigada, Bill... vai querer me algemar e me levar para a cadeia?
O guarda ficou vermelho e sacudiu a cabeça.
— Pois então fique aqui ao meu lado e dê uma boa olhada no carro que perseguiu naquela noite.
As luzes se apagaram. Um 2000, iluminado por um potente refletor, atravessou a sala e parou na frente de Betsy.
O público levantou-se e aclamou o carro. Era ainda mais baixo que o carro mostrado em desenho na suíte de Betsy em 1982.
Era amarelo. Parecia um gato agachado, pronto para saltar. Betsy e o guarda, parados no outro lado, pairavam acima do carro e eram visíveis para todos os revendedores.
— Aí está! — gritou Betsy. — OS Stallion... Super Stallion!
Vocês o terão em outubro! Quantos vão vender?
3
— Seis — disse Tom Mason, o revendedor de Louisville, à sua mulher e aos outros revendedores à mesa. — Posso colocar BMWs mais depressa do que conseguirei vender esse carro.
Ele fez uma pausa, balançou a cabeça.
— Dois lugares. Tecnologia radical com a carrocería de resina epóxi. É um carro de corrida. Vamos vendê-lo, é claro, mas não teremos muitas encomendas.
— Querem saber o que esse carro fará? — disse um dos outros revendedores, Greene, de Albany. — Vai atrair caras para examiná-los. Não comprarão, mas levarão outro carro em exposição. Podemos exibir um ou dois para atrair a clientela. Mas a XB não é uma companhia bastante grande para agüentar isso.
— Pois eu farei uma coisa — anunciou Mason. — Este será o meu carro.
— Não há a menor possibilidade — protestou sua esposa.
— Por que não?
— Em primeiro lugar, porque terá de se contorcer e se espremer todo para passar pela porta cada vez que quiser entrar nele.
Em segundo lugar, se me levar, não haverá mais espaço sequer para uma sacola de compras. O carro é um brinquedo, Tom, e não são muitas as famílias de Louisville que podem ter um carro que não passa de um brinquedo.
— Ainda mais quando souberem que por baixo dessa carrocería só há um motor e um chassi de Stallion.
— Com uma transmissão de corrida — ressaltou Mason.
— Pelo preço... de iam Porsche? — interveio outro revendedor.
— Não se pode comprar um Porsche por esse preço — disse Mason.
— Mas quando compra um, você tem um Porsche.
— Ei! — exclamou um revendedor mais jovem, do outro lado da mesa. — Sendo solteiro, eu adoraria ter um Super Stallion.
Aonde quer que eu fosse, as pessoas me notariam.
— As mulheres — murmurou a mulher de Mason, sorrindo.
— Por falar nisso... — disse Mason, acenando com a cabeça para Betsy.
— Circula por aí a história de que o pai do último filho de Betsy Hardeman é Angelo Perino — acrescentou Greene.
— Bom para Angelo — comentou Mason. — Eis aí um cara em quem eu confio. O Stallion foi idéia dele e salvou a companhia. Salvou todos os revendedores da Bethlehem. Eu teria largado a linha do Sundancer mais cedo ou mais tarde. Foi um grande carro em seu tempo, mas estava ultrapassado.
— Ele não é mais um vice-presidente — lembrou Greene. —
Não consigo entender o acordo.
— Sem Perino, não há companhia — garantiu Mason. — Sabem por quê? Ele tem um fogo para construir carros. Número Um também tinha. E acho que Betsy tem. Loren Terceiro não tem. Sem Perino, não haverá mais carros da XB. E se eles se livra-rem de Perino, eu caio fora.
4
Angelo e Cindy sentavam a uma mesa abaixo da plataforma, junto com Keijo e Toshiko, Alicia Hardeman e Bill Adams.
Cindy observou Betsy receber a multa por excesso de velocidade do guarda de Grosse Pointe. Cutucou Angelo e sussurrou:
— E mais fácil compreender. Ela é mesmo especial.
Ele apertou a mão de Cindy por baixo da mesa, murmu-rando:
— Obrigado pela compreensão. Percebe o que ela está fazendo?
— Esfregando a cara de Loren na merda.
— Você entendeu.
Bill Adams inclinou-se para Angelo através da mesa.
— O carro é sem dúvida uma beleza — disse ele. — Pode vender uma quantidade suficiente de unidades para torná-lo um produto viável?
— Não.
— É mesmo?
— O carro é de Betsy — explicou Angelo. — Uma massagem em seu ego. Ela e a Princesa Anne Alekhine vão apresentá-lo pessoalmente por todo o país. Mas jamais conseguirão vender esse carro. As pessoas que comprarem vão adorá-lo. É o meu caso.
Mas o país ainda não está preparado para um carro assim. Não tem lugar no mercado. O Thunderbird original era um lindo carrinho de dois lugares e todos adoraram, mas não vendeu. trans-formaram-no numa banheira sobre rodas e então passou a ser vendido.
— Então por que o está fabricando?
Angelo olhou para Cindy
— Betsy pode ser muito persuasiva. De qualquer forma, permitiu-nos aprender algumas lições importantes. O material de resina epóxi é um sucesso total.
— E você tem isso sozinho — comentou Bill, sorrindo.
— Nós temos — disse Angelo. — A CINDY, Incorporated tem muitos pais.
Alicia interveio:
— Quem disse que o sucesso sempre tem muitos pais, mas o fracasso é órfão?
5
Cindy passou a andar em seu S Stallion, deixando o Porsche na garagem. Logo descobriu suas deficiencias. A visão da reta-guarda era limitada pela janela estreita e inclinada. O motorista dependia dos espelhos laterais. Era tão baixo que se tornava invisível para motoristas em outras faixas, em particular os motoristas de caminhão. Ela aprendeu a acelerar depressa quando ficava paralela a um caminhão no lado direito... depois que dois motoristas de caminhão inocentemente tentaram mudar de faixa para a direita e quase a atropelaram.
Foi o que aconteceu com um motorista de S Stallion em Boston. O acidente fatal foi noticiado por todos os meios de co-municação.
Mesmo assim, Marcus Lincicombe estava determinado a ter um Super Stallion. Depois de guiar o seu por três meses, Cindy obteve permissão de Angelo para vendê-lo a Marcus. Quando ele foi atingido de lado por um táxi na Lexington Avenue, a carrocería de resina epóxi cedeu, mas depois voltou ao lugar. O táxi ficou com um pára-lama amassado, mas o Super Stallion não tinha qualquer dano visível. Essa história também teve repercussão nacional.
Marcus Lincicombe era um homem pequeno, meticuloso e determinado, de trinta e três anos. Era calvo, e tinha apenas uma franja de cabelos pretos nos lados da cabeça. Usava óculos redondos de aros de ouro e fumava cachimbo, que costumava guardar no bolso do casaco de tweed. Era meticuloso com o cachimbo, limpava-o constantemente. Era meticuloso na maneira como o enchia com um fumo aromático. Na verdade, algumas pessoas achavam que ele era meticuloso em tudo.
Tornara-se um trunfo para a galeria. Como Dietz dissera, ele tinha um ótimo olho para a arte; e por sua causa passaram a expor e vender uma variedade maior de obras do que em qualquer outra ocasião anterior. Comprara uma participação na Galeria VKP, mas mesmo assim não exigiu que o nome fosse trocado para indicar seu interesse. Dietz era agora um empregado. Marcus era sócio minoritário.
Era um dos maiores colecionadores do mundo e uma grande autoridade em netsukes, as pequenas esculturas em marfim que outrora eram usadas como botões nas faixas dos aristocratas japoneses. Pequenos pertences pessoais que outrora pendiam das faixas, os netsukes funcionavam como prendedores. Os autênticos netsukes antigos eram valiosas peças de colecionador. Eram também a base de uma indústria artesanal no Japão do século XX.
Valia também a pena colecionar algumas das peças modernas. Os netsukes eram esculpidos com as imagens de homens e mulheres, aves e animais terrestres. Alguns dos mais valiosos mostravam homens e mulheres fazendo sexo.
Marcus expunha peças de sua coleção pessoal na galeria, que também vendia netsukes... sua proveniência determinada com cla-reza. Cindy chegara a pensar que a venda de netsukes poderia transformar a Galeria VKP numa fornecedora ao estilo da Quinta Avenida de porcarias pseudo-orientais e pseudo-antigas, mas logo aprendeu a apreciar o valor artístico do que Marcus colecionava e vendia.
Ele era igual a Cindy: herdeiro de algum dinheiro da família, o que lhe permitia ser um colecionador de arte e marchand. Ele vivia além dos ganhos que obtinha na galeria.
Seu lugar predileto para almoçar era o Buli & Bear, no Waldorf.
Convidou Cindy para almoçar ali. Apresentou-a ao maítre.
— Não se esqueça dela. Esta é a sra. Angelo Perino... Cindy Perino. Se ela vier sem mim, dê-lhe a mesa que me daria.
Martínis enormes eram uma especialidade da casa; e livre por fim da gravidez e amamentação, Cindy pediu um martíni de Beefeater com gelo.
Com os drinques na mesa, conversaram durante alguns minutos sobre uma exposição que estavam organizando. Marcus usava seu apartamento da maneira como Cindy usara o dela: como uma galeria íntima para mostrar pequenas coleções a pequenos grupos de prováveis compradores. Não era um admirador de Amanda Finch, não do mesmo modo que Cindy e Dietz. Comentou que não queria oferecer nenhuma obra dela num jantar que planejavam.
— Não precisamos expô-la cada vez que convidamos pessoas para alguma coisa especial — disse Cindy — Mas você tem de admitir que ela nos dá lucro.
— Uma consideração não inconsiderável — declarou Marcus, solene.
Era difícil para Cindy saber se ele estava sendo sincero ou jocoso quando fazia um pronunciamento assim. Ela sorriu e não respondeu.
Marcus não era um homem fácil de se conhecer. Era misterioso, de uma forma provavelmente intencional. Seus pequenos sorrisos eram significativos, mas era quase impossível adivinhar o significado. Ele sorriu agora.
— Eu gostaria de lhe oferecer um pequeno presente. Você aceitaria?
— Não sei, Marcus. O que é?
Ele tirou do bolso do casaco — não o que guardava o cachimbo — um pequeno saco de veludo vermelho, fechado com um cordão. Entregou-o a Cindy.
Ela abriu e tirou um delicado netsuke. Não tinha mais que quatro centímetros em qualquer dimensão, esculpido com tanto requinte que não apenas era acurado, mas também mostrava tudo em detalhes. Duas pequenas figuras em marfim faziam sexo. A mulher tinha a língua de fora, lambendo o linga do homem. O
dedo médio da mão direita do homem estava na vagina da mulher. Eram representados com tanto cuidado que a tensão em seus corpos era evidente.
Cindy compreendeu que a pequena escultura valia milhares de dólares. Aceitá-la de Marcus — e aceitar uma peça tão erótica
— mudaria a natureza do relacionamento dos dois.
— Não sei o que dizer, Marcus.
— Diga que é uma linda peça.
Ela acenou com a cabeça.
— Acho que é uma linda peça.
— Tem cerca de cem anos. Foi feita por um dos melhores artesãos. Ele parece ter se especializado nesse tipo de coisa.
— Hesito em aceitar um presente assim de você.
— Pelo assunto?
— Pelo valor.
— Eu gostaria que fosse sua.
— O que sugere, Marcus? Que este casal poderia ser você e eu?
Ele corou.
— Oh, não! Embora... embora nada poderia ser mais maravilhoso. Mas não. Apenas pensei nela como uma das melhores peças de minha coleção e quis que fosse sua... como sinal de meu respeito.
Cindy sorriu.
— Está sendo dissimulado.
Ele pegou o netsuke e virou-o na mão.
— Não nego que eu gostaria que nos tornássemos amigos mais íntimos a este ponto.
Marcus tornou a pôr o netsuke na mão dela, deixou que seus dedos perdurassem. Cindy guardou o netsuke no saco de veludo e largou-o em sua bolsa.
— Isso é mais do que apenas gentileza de sua parte, Marcus.
E Cindy deixou que ele se tornasse um amigo mais íntimo.
XXIII
1984
1
— Ele não consegue decidir se é feliz ou triste — comentou Roberta para Angelo.
Os dois jantavam na suíte. Como o garçom não voltaria até ser chamado, Roberta se despira, deixando apenas as ligas e meias. Exultava por se exibir assim para ele e queixava-se de que Angelo não mais lhe proporcionava oportunidades suficientes para fazê-lo. Não tinha a menor idéia de que ele não queria mais. Não tinha a menor idéia de que ele a considerava vulgar... e desconfia-va de que ela poderia ter tramado com Loren o assassinato de Burt Craddock. Por outro lado, Angelo não sabia mais o que a motivava a procurá-lo.
Loren estava na Flórida, em reunião com os revendedores sulistas, o que a deixava livre para ficar até de noite, embora não para passar a noite toda, na suíte de Angelo no hotel no Renaissance Center. Num certo sentido, ela o lembrava da maneira como Betsy outrora fora, quando se recusava a vê-la; não sabia como ela reagiria ou o que faria.
Não podia pedir a Roberta que se vestisse de novo, mas não sentia mais o menor prazer em contemplá-la. Sabia que ela tencionava usá-lo por todos os meios que pudesse. Muito bem. Ele podia entrar nesse jogo pelo menos tão bem quanto Roberta. O que podia arrancar dela?
— Sei com o que ele está feliz — murmurou Angelo. — Com o S Stallion.
Ela deu de ombros.
— Tive de dissuadi-lo a não oferecer uma festa com champanhe para comemorar o encerramento da produção.
— Um cara adorável, o Loren. Deu sua pequena contribuição para a morte do S.
— Como assim?
— Ele plantou histórias em todos os jornais e revistas que pôde, dizendo que o carro era um fracasso, que era perigoso. Tudo nos bastidores, tentando evitar o envolvimento de seu nome. Loren fez com o Super Stallion a mesma coisa que Nader fez com o Corvair.
— Essa você entendeu errado, Angelo.
— Claro que não. Ele realmente pensou que eu não desco-briria?
— Loren tem motivos para odiá-lo.
— Estou pouco ligando.
— Também não me importo com ele, Angelo, mas me importo comigo. A sobrevivência da XB Motors é mais importante para mim do que para ele.
— Também estou pouco ligando para isso — declarou Angelo. — Deixei de me importar.
— Você não me engana. Já admitiu para mim mais de uma vez que a única coisa real em sua vida é fazer carros. Gosta de fazer carros mais do que gosta de ter seu pau chupado. É a coisa que lhe dá mais tesão.
Angelo respirou fundo e suspirou.
— E a XB é a única companhia que posso controlar para fazer carros da maneira como eu quero.
— As Três Grandes o aceitariam com a maior satisfação. Mas teria de trabalhar...
— Dentro de comitês — concluiu Angelo. — Sob uma administração.
— E Angelo Perino não trabalha assim. Angelo Perino não gosta de organizações, não se submete à hierarquia, não chama ninguém de chefe. Gosto disso em você. Também não chamo ninguém de chefe. Nunca chamei e nunca chamarei.
— Pus meu pau na bigorna pelo S Stallion. Posso compreender por que Loren está feliz com o fracasso.
— O carro não fracassou, amor. A América é que fracassou.
O país não estava à altura do carro.
— Dá no mesmo — murmurou Angelo. — As racionaliza-ções não ajudam.
Roberta levantou-se e foi até a janela, carregando um copo com vinho tinto. Ficou parada ali por um momento. Era visível para centenas de pessoas olhando por centenas de janelas do vasto complexo do Renaissance Center. Angelo adiantou-se apressado e puxou o cordão que fechava as cortinas.
Roberta sorriu para ele, indolente, deixando-o perceber que gostara da idéia de que as pessoas poderiam vê-la. Voltou à mesa e sentou.
— O Stallion enfrenta problemas — murmurou ela.
— Já tem quatro anos. Foi idéia minha manter o mesmo modelo por vários anos, para que os compradores não ficassem logo com a noção de que tinham um carro velho. Efetuamos algumas pequenas mudanças cosméticas, mas essencialmente ainda estamos oferecendo o carro de oitenta e um. Chegou o momento para um modelo novo. Só que Loren e seu conselho não querem fazê-lo.
— Por uma questão de dinheiro — justificou ela.
— Nenhuma empresa ganha dinheiro sem gastar dinheiro —
retrucou Angelo.
— Eles estão decididos a não fabricarem um carro com carrocería de resina epóxi. Dizem que você quer assim porque possui os direitos americanos do processo de resina epóxi da Shizoka.
Angelo deu de ombros.
— Loren e seus conselheiros pensam em termos de sua própria moral. Porque são desonestos, acham que todos os outros também são.
— Além disso, o que você faria com o Stallion? — indagou Roberta.
— Trataria de reformulá-lo. Diminuiria um pouco o tamanho. Não há mais muito mercado para o que se costumava chamar de carro americano da família, um carro bastante grande para transportar seis pessoas. As famílias que querem andar juntas compram vans. Observe os carros nas estradas. Noventa por cento levam apenas uma pessoa.
— Um modelo todo novo.
— Que não poderemos fabricar e vender por um preço aceitável usando a velha e obsoleta fábrica do Sundancer. Falei sobre robôs fazendo soldas e todos os outros tipos de nova tecnologia.
Isso é essencial, Roberta. Não disse que quer que a companhia sobreviva? O século XXI está chegando. A XB tem de ser uma companhia do século XXI.
— Gostaria de voltar como vice-presidente, se pudesse fazer as mudanças que deseja?
— Não. Keijo e eu estamos indo muito bem com a resina epóxi. Um novo avião feito com o material estará pronto no mês que vem. Ainda sou um consultor bem pago da XB. Faço minhas recomendações, mesmo que não sejam adotadas. Na XB, Roberta, vivo no meio de anões. Só tenho frustrações. Além do fato de que Loren e os outros adorariam... talvez não me matar literalmente, mas me destruir. Tenho de proteger as costas a cada minuto. Não quero isso. E não preciso.
— E não está fazendo carros. O que aconteceu com o seu tesão?
— Posso ir para o Japão. Talvez me saia melhor com a Shizoka.
— Não se engane. Nenhuma companhia japonesa vai lhe dar autonomia.
— E Loren daria?
— Loren se defronta com duas possibilidades, Angelo. A companhia enfrenta dificuldades de novo. Ou ela muda, ou vende.
— Os corsários ainda rondam?
— Acham que podem comprar barato e tirar um bom lucro.
— Ela sorriu. — E a primeira coisa que farão, se assumirem a companhia, será lhe oferecer a presidência.
Angelo sacudiu a cabeça.
— E me deixarem fabricar carros? Duvido muito.
— Contenha um pouco o seu orgulho, Angelo. Usando um pouco de habilidade, pode ser vice-presidente de novo, com mais poder do que jamais teve.
Ele tornou a sacudir a cabeça.
— Que se dane, Roberta. Por que eu haveria de querer comprar problemas? Além do mais, o que acha que Loren e seus lacaios fariam...
— Deixe-me dizer o que me faz pensar assim... me f az saber...
se você não é bastante esperto para perceber. Os revendedores, amor.
Os revendedores estão do seu lado e de Betsy Se eles caírem fora...
— Não há mais nada.
— Isso mesmo. Sem revendedores, não há companhia. Ponto final.
Roberta começou a flexionar os ombros, torcer o pescoço, esfregar os seios... fitando Angelo com um sorriso que o fazia saber com precisão o que ela tinha em mente.
— Autonomia — disse ele, com firmeza. — Autonomia absoluta.
— Posso arrumar isso para você — respondeu Roberta, com alguma impaciência. — Cuidarei de Loren, como sempre. E agora você cuida de mim. Vou lhe dar tudo de bom esta noite. Ainda sou a melhor que já teve.
— Tem o maior ego que alguém já teve.
Isso não a desencorajou. E pôs-se a trabalhar em Angelo. Ele ainda não estava pronto para convertê-la em inimiga implacável, e por isso aceitou tanto quanto podia.
2
— Deixe-me cuidar do sr. Angelo Perino — disse Roberta a Loren. — E agora faça o que mandei. Não precisa se despir imediatamente.
Ela levantou a saia preta para a cintura, baixou a calcinha até os tornozelos e abriu as pernas. Loren largou o paletó de lado, mas vestindo todo o resto ajoelhou-se na frente de Roberta. Comprimiu o rosto contra a virilha dela e se pôs a chupá-la.
Roberta acendeu um Chesterfield e recostou-se no sofá con-fortavelmente.
Loren usou as mãos para abrir um pouco mais suas pernas.
Lambeu os lábios vaginais, encontrou o clitóris, depois inclinou a cabeça para passar a língua por todo o rego, para cima e para baixo.
— Você se tornou muito melhor do que na época em que começamos — murmurou ela, a voz gutural.
— A prática cria a perfeição. — Loren fez uma pausa. —
Perino, hem? Precisamos mesmo?
— Ou veremos a companhia afundar. Teremos de tomar dinheiro emprestado. Perino é essencial. Sem ele, os bancos não nos ajudarão. Haverá tempo para chutá-lo mais tarde.
— Chutá-lo não será suficiente. Quero acabar com ele.
— Vai conseguir.
Loren acenou com a cabeça, depois tornou a comprimir o rosto contra a virilha. Lambeu com vigor, e Roberta gentilmente desmanchou seus cabelos.
— A princípio você não gostava disso, Loren, e só fazia porque eu queria. Mas agora tenho certeza que você adora.
— Hummm... — murmurou ele. — Hummm...
— Ainda bem que você gosta do que eu gosto. Porque nós dois estamos ligados um ao outro pelo resto da vida. Temos um assassinato entre nós, amor. A perspectiva de sentar numa cela na penitenciária de Michigan até o fim dos meus dias não me atrai.
3
— Há outra vantagem em deixar a XB Motors endividada
— comentou Bill Adams. — Tornará a companhia muito menos atraente para os corsários. A Froelich & Green vai se afastar depressa quando descobrir que a companhia contraiu um empréstimo de quatrocentos e setenta e cinco milhões de dólares.
— Não tenho como lhe agradecer — disse Angelo.
Bill soltou uma risada.
— Cobrarei meus honorários.
Jantariam no Indian Harbor Yacht Club. Angelo e Bill esperavam no bar. Cindy e Alicia viriam separadas, mas ainda não haviam chegado.
— Já tenho a opção sobre o terreno — informou Angelo. —
Gostaria de construir a fábrica em outro lugar, mas o prefeito de Detroit foi muito persuasivo sobre os prejuízos para a cidade se fizéssemos isso. De qualquer forma, nossos fornecedores estão preparados para a entrega em Detroit. Teríamos de fazer mudanças demais.
— Sabia que algumas pessoas aqui de Greenwich criaram um clube de proprietários de S Stallion?
— Sabia. Pediram-me para fazer um discurso. Não sei como explicarei por que Cindy e eu não usamos mais o carro.
— Quer falar alguma coisa sobre o novo Stallion?
— Será menor. O conceito do seda para seis passageiros está praticamente liquidado e para a XB morreu por completo. Encontrei forte resistência à carrocería de resina epóxi para um carro de tamanho comum, e por isso será de aço outra vez. Posso usar o motor básico; não há nada de errado com ele. Será um carro de tração dianteira. Irei a Turim para me reunir com Marco Varallo.
Creio que ele pode projetar o que eu quero: um carro americano de duas portas, para quatro pessoas, não um carro esporte, nem um enorme carro para a família.
4
Cindy exortou-o a parar em Londres a caminho de Turim e ver o filho... e Betsy.
O menino parecia um Perino. Apontando para Angelo, Betsy disse que aquele era o papai. O menino pareceu compreender e deixou que Angelo o pegasse no colo.
Betsy afirmou que o pequeno John sabia quem era seu pai desde o início. Loren van Ludwige, com doze anos, fora informado, assim como a pequena Sally, que estava com três anos.
Depois que a babá levou o menino, Betsy serviu conhaque.
Ficaram de pé, lado a lado, diante da janela que dava para o Regent's Park. Betsy usava uma jeans azul desbotada e uma T-shirt branca, sem sutiã por baixo.
Cindy escrevera uma carta para Betsy, dizendo que sabia que Angelo era o pai de seu filho, que esperava que pudessem ser amigas e que Betsy levasse o pequeno John aos Estados Unidos para conhecer os avós, enquanto ainda eram vivos. Assegurara a Betsy que seriam bem recebidos na casa em Greenwich, onde as crianças Perinos conheceriam o menino como seu meio-irmão.
— Fico grata a Cindy, mas é uma atitude um pouco civilizada demais para se acreditar — comentou Betsy.
— Cindy também teve pelo menos um caso extraconjugal.
— Tenho notícias para você. Se planejava dormir comigo esta noite... sinto muito.
— Eu também sinto. Contava com isso.
— Vou casar de novo, Angelo. Daqui a um ou dois meses.
— Perdoe-me, mas...
— Quer saber se estou grávida? — interrompeu ela. — Não.
— Quem é o afortunado?
Betsy suspirou.
— Não é Angelo Perino. Essa é a tragédia da minha vida: não pude casar com o homem que amava... que ainda amo e sempre amarei. Tenho trinta e dois anos e nunca poderei casar com esse homem. Sou uma mulher sozinha com três filhos. Passo tempo demais sozinha. Sei que meu pai não é o único a pensar que sou uma tremenda sacana. Mas não sou; fico com meus filhos durante quase todo o tempo.
— Quem é o homem, Betsy?
— Um homem muito decente. Isso o condena, não é? Ele sabe de tudo, inclusive que eu o deixarei no mesmo instante e correrei para você se alguma coisa acontecer com Cindy e você me chamar. Apesar de tudo isso, ele está disposto a criar meus filhos.
— Como se chama? O que ele faz?
— George Neville. Não ria, Angelo. Ele é George Visconde Neville, e quando me casar serei a Viscondessa Neville. A família está escandalizada porque ele vai casar com uma mulher divorcia-da, com dois filhos ilegítimos. Não se escandalizam tanto por ele ter um filho ilegítimo. George é advogado, especializado em patentes e questões de copyright. É quatro anos mais velho do que eu. Ele me levou para pescar num pequeno riacho na Escócia, Angelo... o tipo de coisa que eu adoro, como pode imaginar... e durante a tarde, enquanto eu me atrapalhava naquelas enormes botas de borracha e tentava pegar o jeito de lançar o anzol, ele encontrou com um amigo e me apresentou. Desconfio que foi tudo combinado, mas isso não faz a menor diferença. O amigo era Charles, Príncipe de Gales!
Angelo terminou seu conhaque.
— Espero que ele a faça feliz.
— Não posso continuar sentada à espera de que você apareça uma vez por mês ou a cada dois meses. Você vai conhecê-lo. Continue a vir aqui para visitar John sempre que puder e encontrará George.
Angelo acenou com a cabeça.
— Quero que compreenda que eu ainda amo você, Angelo.
Ele beijou-a.
— Também amo você, Betsy.
5
Ele jantou com Betsy, para ficar no apartamento e passar tanto tempo quanto possível com o filho. O menino tornou-se irre-quieto depois do jantar, e a babá levou-o para dar um banho e pôr na cama.
A conversa arrastou-se ao jantar. Já disseram tudo o que havia para dizer sobre amar um ao outro. Angelo falou sobre a nova fábrica e o novo Stallion. Ela disse que ainda guiava seu S Stallion e que todos admiravam o carro. Angelo não disse que Cindy considerava o carro inseguro e que ele se preocupava com ações judiciais pedindo indenização.
Ele foi embora pouco depois das oito, prometendo parar em Londres quando voltasse de Turim.
Ao pegar sua chave na recepção no Dukes Hotel, o recepcionista entregou-lhe um pequeno envelope azul claro, com um brasão.
— Foi trazido por um mensageiro, senhor. Do Savoy.
Angelo só abriu no quarto. Adivinhava quem mandara o bilhete, embora não reconhecesse o brasão. O bilhete dizia: Por acaso me encontro em Londres no momento de sua atual visita. Sei que não passará a noite com Betsy. Se quiser partilhar um drinque e... qualquer coisa, telefone para mim no Savoy. Estarei em minha suíte depois das nove.
Anne
Ela o esperava em sua suíte no Savoy. Quando Angelo a abraçou e a beijou no vestíbulo, ela usava uma chemise preta de jacquard.
Como antes, Anne excitou-o com seu perfume, uma fragrância sutil, sem nada de enjoativa. Beberam conhaque, depois foram para o quarto.
Angelo jamais conhecera uma mulher assim. Nada perturba-va seu equilíbrio.
Primeiro, ela tirou da bolsa um pequeno frasco de uma essência, com que se esfregou, antes que Angelo encostasse a língua.
Era um sabor suave, como conhaque, embora contivesse pouco ou nenhum álcool. Era uma variação agradável. Angelo lera em algum lugar — teria sido em Philip Roth? — que lamber a xoxota de uma mulher era como lamber fígado cru; você podia fazer isso, mas era difícil dizer que o gosto era um prazer. Ele sentiu-se contente por Anne ter comprado a essência de conhaque.
Ela gozou duas vezes. Angelo só soube porque ela se contraiu e fechou os olhos. Anne não gemeu.
Com uma graça refinada, ela limpou o batom com um lenço de papel, depois baixou a cabeça e pôs-se a acariciar o pênis com a ponta da língua. Mordiscou. Sugou. Observá-la era como observá-la a comer uma refeição: com comedimento e elegância. Manipu-lou-o como manipulava garfo e faca: com habilidade, sem um único movimento desajeitado. Angelo nunca fora chupado com tanta habilidade e calma, e foi uma tremenda experiência erótica.
Quando gozou, os espasmos foram profundos e violentos. Anne recebeu na boca tudo o que ele ejaculou, depois cuspiu num chumaço de lenços de papel... e depois usou a língua e os lábios para recolher as últimas gotas, enxugando-as em seguida.
Sentaram na frente de uma lareira apagada, com dois enormes cestos de flores amarelas... ambos ainda nus, tomando conhaque.
— Uma vez por ano, Angelo? Para mim, a espera valeu a pena. E para você?
— Mais do que valeu.
— Uma vez por ano não é suficiente.
— Vamos melhorar a freqüência. A necessidade de discrição e...
— Um fardo. Mas, como você disse, uma necessidade. Temos bons casamentos, eu suponho. Ainda assim, estes momentos com você são... memoráveis. Nos intervalos, eu os revivo na memória.
— Eu também.
Foi a primeira vez que ele a viu acender um cigarro. Era Gauloise, um cigarro francês forte e sem filtro, que não combina-va com o gosto americano.
— Igor diz que deixar a XB Motors com uma dívida de quatrocentos e setenta e cinco milhões de dólares é a manobra mais hábil que você já fez — comentou Anne.
— Se queremos competir, temos de nos modernizar.
— Claro. Mas não era nisso que Igor pensava. Recebi uma oferta por minhas ações. Foi de oitocentos e cinqüenta dólares por ação, muito superior ao preço de mercado. Não tenho a menor dúvida de que a mesma oferta foi apresentada a Betsy e Alicia, embora nenhuma das duas o tenha dito.
— Fizeram uma oferta a Alicia — confirmou Angelo. — Duvido que tenham feito a Betsy. Acho que ela me contaria. Claro que não me propuseram nada.
— Fizeram a Loren, é óbvio... e à Fundação Hardeman. Esse é o risco. Mas há duas semanas retiraram a oferta.
Anne largou o cigarro numa caixa de metal e fechou-a, deixando-o para apagar por si mesmo... depois de apenas três ou quatro tragadas.
— Por enquanto, você se mostrou mais esperto do que eles.
— Não é bem assim. No momento, estou levando a companhia a fazer o que tem de fazer para competir no mercado automobilístico. O fato do empréstimo servir como uma pílula vene-nosa é apenas um benefício adicional.
— Angelo... Loren vai vender. A fundação também. Por mais que eu odiasse Número Um, sinto-me perturbada ao ver sua companhia nas mãos de pessoas que só querem desmontá-la e vender as partes pelo máximo que puderem obter.
— Ele era um velho sórdido, mas quero que sua companhia sobreviva. Por você, por mim, por Cindy, Betsy e Alicia... e por Loren Quarto. Tenho mais surpresas à espera dos corsários.
O sorriso de Angelo era letal.
XXIV
1985
1
A presença constante de Angelo era necessária no local em que estava sendo construída a nova fábrica da XB Motors. Embora fosse outra vez um vice-presidente, com autonomia quase completa, ele sabia que suas ordens expressas podiam não ser cumpri-das se não supervisionasse tudo pessoalmente.
Nos dias em que não podia comparecer, Keijo Shigeto fis-calizava a obra; mas tudo o que ele podia fazer era comunicar a Angelo se via alguma coisa errada; ninguém acatava ordens dele.
Angelo arrendara um pequeno Learjet para transportá-lo e a Keijo entre o aeroporto de Detroit e o aeroporto de Westchester.
Com isso, ele sempre podia estar no local da obra horas depois de receber um telefonema de Keijo. Apesar de tudo, as circunstâncias o obrigavam a ficar longe de casa muito mais do que desejava ou tencionara. Providenciara para que a companhia alugasse duas suítes num Ramada Inn perto da nova fábrica, para ele e para Keijo. Passava mais noites ali do que gostaria.
As crianças Perinos haviam se acostumado à idéia de que o pai não era um homem comum, com um horário de trabalho comum. A maioria dos pais de seus amigos, diga-se de passagem, também não era comum. Os homens e mulheres que residiam na área mais exclusiva de Greenwich não costumavam ter um expediente de nove às cinco.
John, que tinha quase treze anos, estudava numa escola particular masculina. Anna estava numa escola feminina. Morris, aos oito anos, sentia-se feliz na escola primária próxima, onde sua irmã Valerie também estava matriculada. Durante a semana apenas Mary, de dois anos, costumava ficar em casa; e em muitas tardes ela ia com a babá brincar no parque ou passear na praia.
Como dissera que deveria fazer, Cindy começou a passar mais tempo na Galeria VKP.
Marcus Lincicombe exercia agora uma nova e poderosa influência no negócio. Convencera Cindy de que deveriam alugar o segundo andar do prédio que alojava a galeria, instalar escadas de aço em espiral e ampliar a atuação, adquirindo novas linhas de arte. Mostruários de vidro numa das salas lá em cima exibiam netsukes. Duas outras salas expunham quadros da vida inglesa dos séculos XVIII e XIX, cavalos em particular, mas também cenas de estábulos, chalés e caçadas.
— Sei que vocês não gostam muito desses quadros, e eu também não gosto — comentou Marcus para Cindy e Dietz —, mas um segmento significativo do público os aprecia... significativo no sentido de ter dinheiro para comprá-los. Não encontram quadros assim nas casas em Greenwich? Também estão em apartamentos na Park Avenue. As pessoas prósperas se sentem confortáveis com cavalos bonitos e coisas do tipo. São arte e todos podem reconhecer isso. Além do mais, são quadros com mais de cem anos.
— São insossos — disse Cindy.
— Seu gosto em arte, Cindy, é tão eclético que confunde a maioria dos convidados que vão à sua casa. E as pessoas não gostam de se sentir confusas, não gostam de ser desafiadas.
Marcus tinha razão. Os quadros tradicionais de cães e cavalos vendiam bem.
Uma exposição de obras da escola americana Leica — isto é, mais quadros tão fotograficamente realistas quanto os de Amanda Finch — não vendeu tão bem.
As obras de Amanda continuavam a vender. Ficou patente, à medida que os anos passavam, que sua atração era o erotismo ostensivo de seus nus realistas. Ela contratou mais modelos adolescentes, sempre com o consentimento dos pais, e quase sempre com o pai ou mãe presente às sessões. Contratou um garoto de dezesseis anos e sua irmã de doze e pintou-os juntos, em poses inocentes de irmãos nus, empenhados em jogos inocentes, como damas e Monopólio. Sem qualquer explicação sobre o motivo pelo qual uma menina pré-adolescente e um rapaz adolescente jogavam nus, os quadros inspiraram especulações e venderam num instante, por altos preços. Cindy compreendia que Amanda desenvolvera um senso do que vendia. Pintava o que vendia, e se abandonava sua liberdade artística por dinheiro, Amanda não se importava.
De vez em quando Marcus ia a Greenwich. Visitava a casa só raramente, com mais freqüência seguia direto da estação ferroviária para o apartamento e o estúdio, onde Cindy ia se encontrar com os dois. Saíam para almoçar. Em três ocasiões, Cindy e Marcus voltaram do almoço para passarem uma hora no quarto de Amanda. Com muito mais freqüência, Cindy pegava o trem para Nova York, passava algum tempo na Galeria VKP, almoçava com Marcus, muitas vezes na companhia também de Dietz ou de um artista, de vez em quando passava uma hora no meio da tarde no apartamento de Marcus.
Era quase que inconcebível, disse Cindy a si mesma, que uma mulher casada com Angelo Perino pudesse se entregar a Marcus Lincicombe. Angelo era tudo que Marcus não era. Só que a ausência de Angelo era freqüente demais. Marcus estava ali. Ele tinha tempo. E arrumava tempo para ela.
Marcus quase nunca via os filhos dela, mas perguntava por eles, era paciente com as histórias que Cindy contava sobre seus ditos e feitos. Ele a convencia de que estava interessado... e talvez estivesse mesmo. Mostrava-se contido na presença de Angelo e tentava fazer perguntas relevantes, mas não bisbilhoteiras, sobre a XB.
A única objeção que Cindy tinha a ele era o cachimbo sempre presente. Quando se encontravam num lugar em que Marcus podia acendê-lo, ela lhe pedia para escovar os dentes antes de terem qualquer contato. O cheiro de fumo aderia nas roupas e até na pele. Só depois de um banho de chuveiro é que ele se livrava do cheiro.
Marcus era um amante insinuante. Parecia ter dúvidas se era capaz de satisfazê-la, e se empenhava em provar que podia... provar para si mesmo talvez tanto quanto para ela. Embora fosse um homem pequeno, era bem-proporcionado. E experiente. Monta-va-a como um garanhão, mas efetuava pequenos ajustamentos nas posturas de ambos para penetrá-la tão fundo quanto possível e variava as sensações tanto quanto podia.
Como Cindy parara de tomar a pílula, usavam preservativos.
3
No outono de 1985 o novo Stallion foi entregue aos revendedores. Era mais baixo. Era mais aerodinâmico. Cindy não protestou por ter de guiar um por várias semanas. Era um pouco mais potente do que o modelo anterior. Quase todas as unidades vendidas tinham ar-condicionado e precisavam de mais potência para o compressor, sem necessidade de reduzir nas subidas. Foi um sucesso imediato.
As publicações especializadas e até mesmo revistas de assuntos gerais publicaram reportagens sobre a fábrica em que o Stallion era produzido. Os revendedores informaram que pelo menos alguns dos compradores foram atraídos para o carro por ouvirem dizer que tinham sido fabricados com os mais altos padrões de qualidade e na mais moderna das fábricas automatizadas.
O novo Stallion foi também considerado outro grande sucesso de Angelo Perino.
1986
4
Todos que conheciam John Perino, aos treze anos de idade, achavam-no um garoto bonito, porque era alto e musculoso, com cabelos e olhos escuros. Ele jogava lacrosse e tênis, já ganhara medalhas e um troféu na natação. As meninas começavam a se interessar por ele. Começava a receber telefonemas, alguns dos quais se arrastavam por horas, com uma garota ou várias soltan-do risadinhas no outro lado da linha. Era convidado para festas, algumas das quais festas de beijo.
Sondra Mead faria quinze anos na primavera, e os pais lhe prometeram uma festa de aniversário de adulta... uma festa sem a presença deles. Arrancaram a promessa de que os convidados não beberiam, mas afora isso podiam se divertir na festa como dese-jassem.
Os Meads moravam numa grande propriedade. Transforma-ram uma construção de pedra, que outrora servia como estábulo, em uma casa de festas. Os próprios pais de Sondra usavam o lugar. Tinha uma mesa de sinuca e outra de pingue-pongue, uma mesa com uma roleta e um bar que podia ser trancado.
Sondra, que era chamada por todos de Buffy, convidou John Perino para sua festa. Ele não era seu namorado; vários outros rapazes foram chamados; mas quando John aceitou o convite, ela anunciou seu triunfo para as colegas de turma na Academia Greenwich.
— Adivinhem quem vai? John Perino!
— Puxa!
A festa começou às sete horas. Cindy tencionava passar por lá às dez, a fim de levar John para casa, mas a mãe de Sondra disse que teria de levar vima adolescente que morava perto dos Perinos e não se incomodaria de deixar John.
Ele vestiu uma suéter marrom de cashmere sobre uma camisa branca aberta no pescoço, com uma calça cinza escura. Levava o presente que Cindy comprara para a garota: unia echarpe de seda.
John não era tímido. Tinha controle. Não ficou embaraçado quando entregou o presente e Buffy beijou-o.
Nenhum daqueles adolescentes se sentia inibido ou constran-gido na companhia de representantes do sexo oposto. As garotas e rapazes não recuavam para lados opostos da sala, a fim de con-versarem em voz baixa. Conversavam juntos, e logo começaram a dançar. Buffy procurou John e esperou que ele a convidasse para dançar. Foi o que aconteceu.
Era uma garota recém-desenvolvida, loura, com uma beleza suave. Era mais alta do que alguns dos rapazes na festa, embora não mais do que John. Tinha um corpo cheio, talvez o máximo a que chegaria, o que a distinguia da maioria das garotas. Passara um batom rosa nos lábios. Os cabelos louros caíam pelos ombros.
— Ei, Perino! — gritou um rapaz, dançando com uma garota perto de John e Buffy. — Você me deu um empurrão no treino na terça-feira.
— Desculpe, Ken. Não tive a intenção. Pedi desculpa na ocasião.
— Tem certeza que foi um acidente?
— Se fosse intencional, você não ficaria de pé.
Buffy apertou John.
— Você é demais!
Apesar da promessa de Buffy de que ninguém beberia em sua festa de aniversário, havia bebida alcoólica disponível. Um dos rapazes provocou risadas nos outros quando entraram no banheiro e ele tirou, com todo cuidado, um preservativo amarrado na perna. Continha quase meio litro de vodca, despejado em dois copos.
A vodca era a bebida predileta, porque não podia ser percebi-da no bafo dos jovens quando chegavam em casa. Além da vodca no preservativo, havia mais em frascos diversos. Misturaram com Coca-Cola e ginger ale. Alguns beberam puro.
John nunca experimentara antes, mas não podia recusar. Ken cuidou para que a Coca-Cola dele tivesse uma dose de vodca bastante generosa.
Ninguém recusou. E ninguém ficou de porre — não havia vodca suficiente para isso —, mas uma hora depois de a festa começar todos se sentiam felizes e inebriados.
Alguns dos rapazes começaram a entoar: "Peitos, peitos, peitos!"
Era um jogo. Os rapazes desceram para o porão, onde agora se guardavam as ferramentas de jardim. As garotas tiraram suéteres, blusas e sutiãs. Cada rapaz era vendado, subia a escada para a sala de jogos. No alto da escada, uma garota o pegava pela mão e o levava para as outras. Ele podia apalpar os seios de cada uma e tentar adivinhar de quem eram.
Todos os rapazes identificaram Buffy Ela era a mais desenvolvida. John identificou-a, e ela o beijou no rosto. Foi a única que ele reconheceu. Alguns dos outros rapazes já haviam partici-pado daquele jogo antes e sabiam como eram algumas garotas.
Outros podiam reconhecer os seios de suas namoradas. Todas riam a cada adivinhação.
Depois começou outro coro, este das garotas: 'Tica, pica, pica!"
Elas desceram para o porão. Os rapazes tiraram a calça e a cueca, postaram-se em torno da mesa de sinuca. Cada garota vendada circulava a mesa, rindo enquanto apalpava pênis e escrotos, corando ao dizer um nome.
Buffy levantou o pênis rígido de John com a mão esquerda, passou os dedos da mão direita por cima.
— É John — sussurrou ela.
Todos os rapazes aplaudiram. Ela beijou-o na boca antes de voltar para o porão.
Na cozinha, um pouco mais tarde, enquanto todos se serviram de vodca em seus copos de Coca-Cola, ela pegou a mão de John e disse:
— Eu sabia que era você. E agora que já toquei, quero ver também.
5
Buffy não podia conter seu excitamento. Pelo telefone, na manhã seguinte, contou tudo à sua amiga Linda Falstaff.
— Oh, Deus! Você não vai acreditar!
— Está me dizendo que você...?
— Isso mesmo! Foi perfeito! Como nunca imaginei! Oh, Lin, foi maravilhoso!
— Mas como conseguiu? Como fez para ficarem a sós?
— Pura sorte. Lembra que nós duas fomos assistir ao filme A Honra do Poderoso Prizzi na semana passada? Pois falei do filme para papai e mamãe... sem jamais sonhar que isso poderia ser tão importante! Mas eu sabia quando surgiu a oportunidade. Sabia que eles não voltariam para casa antes de onze e quinze. E as mães e pais vieram buscar todo mundo por volta das dez horas. Sua mãe...
— Meticulosa e pontual como sempre, ela me pegou às dez em ponto.
— Certo. Quinze minutos depois só restavam John, eu e Muffy. Mamãe dissera que levaria Muffy em casa, porque os pais dela foram ao teatro em Nova York ontem à noite. Ela aproveita-ria para deixar John em casa. Assim, tínhamos uma hora para...
— Mas o que Muffy fez? Sentou e ficou olhando?
— Servimos para ela toda a vodca que sobrou. Ela estava com um maço de cigarros. Sentou no banco lá fora, bebendo e fumando. Além de nos dar privacidade, ela serviu como cão de guarda, para qualquer emergência. Uma amiga e tanto.
— E o que vocês fizeram?
— Ora... você sabe. O que queríamos fazer.
— Buffy Mead, se não me contar todos os detalhes, não somos mais amigas. Fizemos um acordo há muito tempo, lembra?
A primeira teria de contar à outra até o último detalhe, para que a outra se beneficiasse da experiência. Portanto...
— Está bem! Você não ia mesmo me impedir de contar!
— Muito bem. Como foi?
— Tenho de admitir uma coisa. Confrontada com o momento, fiquei com medo. E ele também. Ambos dissemos que não éramos obrigados. Ele disse que eu não precisava. Perguntei se ele queria realmente, e John respondeu que sim. Se eu recuasse, seria uma sacana provocadora. Por isso... nós fizemos.
— Se parar agora, eu vou matá-la!
— Tivemos de tirar as roupas, é claro. Foi o que fizemos e depois nos beijamos. Ele acariciou meus peitos. Mas... você não vai acreditar... John estava meio mole. Isto é, não parecia mais como ficou quando o peguei durante o jogo. O que me deixou contente. Tinha medo daquela coisa enorme e dura. Peguei-o com as duas mãos, esfreguei-o contra minha barriga... e logo voltou a ficar grande e duro de novo!
— Peguei na pica de todo mundo durante o jogo, mas acreditaria se eu dissesse que nunca vi?
— Lin, é uma coisa linda! O símbolo total do poder masculino! Experimentamos no sofá. Não havia espaço suficiente. Subi para a mesa de sinuca, ele também... e foi ali... sabe o que aconteceu.
— Claro que sei, mas quero que me conte!
— Hum... não é tão fácil quanto se pensa, Lin. Abri as pernas, John se postou por cima de mim, começou a arremeter e...
Ora, não foi nada fácil. Eu era muito apertada para ele. E depois ficou mole de novo. Usei as mãos para deixá-lo duro, e ele tentou outra vez. E depois... Tive de me inclinar e cuspir nele, para deixá-lo mais escorregadio. Deu certo. Ele entrou dentro de mim, e...
Por Deus, Lin, foi o paraíso! Ele deu um firme empurrão e foi fundo!
— Não doeu?
— Doeu, mas foi uma dor gostosa! Se papai e mamãe entras-sem naquele momento, Lin, continuaríamos até acabar e falaría-mos a respeito mais tarde.
— Vocês não usaram camisinha?
— Teremos de pensar nisso na próxima vez.
— Buffy, sua sacana de sorte! John Perino!
— Eu o amo, Lin. E ele também me ama. Conversamos sobre o nosso casamento quando terminarmos a escola.
6
Loren van Ludwige tinha quatorze anos. O pai orgulhava-se dele. E a mãe também. Como fora ajustado, ele concluiu o curso primário numa escola interna inglesa e agora estudava na École St. François Xavier, em Paris.
Se a opção fosse sua, Loren não estaria ali. Nem teria cursado a St. George, onde era açoitado nas nádegas expostas, primeiro pelos professores, depois por alunos mais velhos, cumprindo seu dever. Não queria jogar rúgbi, nem correr pelos campos, nem remar um barco. Mas fizera tudo isso... e depois tomava um banho de chuveiro gelado. Sabia que iria mais tarde para uma escola em Paris, e por isso estudou francês com afinco, tirando as notas máximas. Também se destacou em matemática, mas os professores consideraram-no deficiente em filosofia moral e economia.
Na École St. François Xavier ele não foi mais espancado. Sua pior punição ali era o tédio. Sabia todo o francês que precisaria saber, e não se interessava pelas sutilezas da gramática dos séculos XVII e XVIII, como se encontrava nas peças de Racine e nos ensaios de Montesquieu. Condicionado na St. George a considerar Napoleão um monstro, ele ficou intrigado ao descobrir que o imperador era um grande herói nacional para os franceses. Os professores admiravam o domínio dos números por Loren, mas não havia cursos de engenharia disponíveis na escola. O currículo enfatizava as artes. Esperava-se que ele soubesse desenhar e pintar, compor uma peça musical e escrever uma peça teatral... tudo ao estilo de algum artista francês de outro século, identificando com precisão a influência e esclarecendo tudo em notas que acompanhavam o trabalho.
Nenhum dos alunos tinha permissão para deixar a escola, a não ser quando iam juntos, acompanhados por um professor, visitar o Louvre, Les Invalides, algum outro museu ou monu-mento.
Loren era bastante inteligente para saber que estava recebendo uma magnífica instrução. Mas aguardava ansioso o dia em que se transferiria para uma universidade americana, onde saborearia a liberdade que ouvira dizer que os estudantes americanos desfrutavam.
As escolas internas escolhidas pelos pais haviam lhe proporcionado mais uma coisa que ele apreciava. Na St. George, os colegas, como ele, não gostavam do nome Loren. Chamavam-no de Ren. Os franceses pronunciavam Loren como Lô-rã, e o teriam chamado de Ron se ele não protestasse. Pediu aos colegas que o chamassem de Van, por van Ludwige. Para os franceses, "Van"
era vin, vinho. Alguns professores, inocentes, chamavam-no de Van van Ludwige. Para contrariedade do pai, ele passou a se assinar van Ludwige. Betsy achou divertido que ele tivesse abando-nado o primeiro nome, mas ainda pensava no filho como Loren Quarto, e não contou a seu pai que o neto renunciara ao nome.
Van herdara o melhor dos genes dos Hardemans, mais alguns bons de Max van Ludwige. Era um jovem excepcionalmente bonito, alto e forte.
Aos quatorze anos, tinha o mesmo problema de muitos rapazes de sua idade: era sexualmente maduro e sexualmente privado.
O que também acontecia com seu colega de quarto, Charles Bizien.
Recorreram um ao outro para resolver o problema... mas garan-tindo que não eram "esse tipo de homem" e que passariam para as mulheres assim que a oportunidade surgisse.
Os embates sexuais eram perigosos. Monitores patrulhavam os corredores do dormitório e podiam surpreendê-los a qualquer momento. O primeiro que acordava, provavelmente para ir ao banheiro, talvez às três ou quatro horas da madrugada, acordava o outro.
Faziam uma coisa que era tradição na École St. François Xavier: em vez de percorrerem todo o corredor de madrugada para chegarem ao banheiro, urinavam pela janela. Era tão comum que as janelas do dormitório eram chamadas de pissoirs. Quem acordasse primeiro sacudia o colega de quarto antes de ir até a janela. O que não acordara primeiro teria de pagar uma pena: receber na boca as últimas gotas de urina. Chupavam um ao outro na hora que antecedia ao amanhecer. Quase nunca perdiam uma noite. E quase todos os outros estudantes faziam a mesma coisa.
Como Van e Charles eram europeus, nenhum dos dois era circuncidado. Nenhum dos dois podia imaginar como um homem podia apreciar o sexo se seus nervos mais sensíveis tivessem sido cortados. Puxavam o prepúcio um do outro, usavam a língua e os lábios para animarem ainda mais os pênis pulsando.
Não tentavam a penetração anal. Não os atraía, embora outros garotos na Ecole St. François Xavier gostassem. Para variação, eles se masturbavam, às vezes esfregando os paus juntos. Cada um podia masturbar a si mesmo ou ao outro.
Proclamavam-se amigos pelo resto da vida, que se amariam para sempre. Cada um, no entanto, declarava que queria uma mulher e que a amaria ainda mais.
7
Na noite em que John Perino tirou a virgindade de Buffy Mead
— e deu a sua a ela — Van Ludwige e Charles Bizien chuparam um ao outro pela centésima vez, ou mais. Por causa da diferença de horário, podia ter ocorrido na mesma ocasião.
Também naquela hora, Cindy estava na cama com Marcus, no estúdio de Amanda. Betsy, que àquela altura já tivera uma filha do Visconde Neville e acabara de saber que estava grávida de novo, acordou e despertou Angelo. Seu marido participava de um julgamento num tribunal em Winchester, e ela fora incapaz de resistir à oportunidade de ir para a cama com Angelo pelo menos mais uma vez.
XXV
1987
1
Loren e Roberta almoçavam com Betsy na casa de Neville - em Londres, na Grosvenor Square. Era uma casa ao estilo Re-gência, não elegante quanto o apartamento a que Betsy renunciara no Regent's Park, mas mais espaçosa, com bastante espaço para as três crianças que ali viviam, John Hardeman e Charlotte e George Neville. A mãe do visconde saíra da casa, com a maior relutância, só consentindo em fazê-lo quando soubera que as três crianças se mudariam para lá. Levara quase todos os móveis, o que fora bastante conveniente para Betsy.
Por sugestão de Angelo — embora quase ninguém soubesse que a idéia era dele —, ela contratara Marcus Lincicombe como consultor para ajudá-la a explorar as lojas de Londres, em busca de móveis e obras de arte que transformassem a casa numa autêntica galeria.
A maior parte do dinheiro usado na redecoração da Casa Neville era de Betsy.
Ela estava com trinta e cinco anos. Outro segredo, conhecido apenas por Angelo e seu marido, mais ninguém, era que Betsy, agora mãe de cinco filhos, submetera-se a uma cirurgia que tornava impossível engravidar de novo. Não era mais a boêmia que fora por tantos anos, mas também ainda não era a matrona incipiente; era uma mulher extremamente bonita, intemporal na beleza que prometia permanecer por toda sua vida.
Sua elegância não se comparava com a da Princesa Anne Alekhine — era pragmática demais para isso —, mas a Viscondessa Neville fora apresentada à rainha, apesar de ter um filho e uma filha ilegítimos. Saíra-se tão bem que os tablóides de Londres a enalteceram e proclamaram uma nova celebridade.
O primeiro prato do almoço foi borscht fria. O terceiro scotch de Loren ficou ao lado do prato de sopa. Ele estava num ânimo Hardeman.
— Pode garantir a seu marido que as crianças são dele e não de Angelo Perino? — perguntou ele.
— Vá se foder — respondeu Betsy — Pode garantir a alguém que sou mesmo sua filha? Anne não era filha de seu pai.
Sou sua? Ou Número Um fez a mesma coisa de novo?
Loren ficou vermelho.
— Você está indo longe demais.
Roberta ergueu as mãos.
— Parem com isso, vocês dois! Loren... Betsy. Por favor.
Betsy suspirou.
— Ninguém sabe quem é o que na família Hardeman. Como qualquer de nós pode ter certeza de qualquer coisa? Só estou certa de uma coisa. Você tem dois filhos, pai, que na verdade são de Angelo.
— Betsy!
— Os dois XB Stallions. Foi o que manteve a companhia viva.
Sem eles...
— Ninguém vai contestar isso — interveio Roberta. — O
homem é um gênio em matéria de automóveis.
— O homem é um gênio dos ladrões! — exclamou Loren. —
Pretende roubar tudo o que é nosso. Tudo mesmo! Será que nunca vai entrar na cabeça de vocês que Perino é um mafioso?
— Sem ele, não haveria nada para roubar — declarou Betsy, sem perder a calma. — Salvou a pele de Número Um e também a sua.
— Você dá crédito demais a ele — comentou Roberta. — E seu pai merece mais crédito do que lhe concede.
— Pelo quê? — indagou Betsy, desdenhosa.
— Diz que não haveria companhia sem os Stallions. Pois não haveria Stallions sem seu pai. Angelo Perino é um engenheiro.
Sem uma administração competente, não haveria dinheiro para fabricar os carros.
— Foi o nome de Angelo que levou os bancos de Nova York a emprestarem os quatrocentos e setenta e cinco milhões de dólares — disse Betsy
— Porque ele se intrometeu — garantiu Loren. — Eu poderia ter providenciado o dinheiro.
— Onde?
— Meu amigo Herbert Froelich poderia nos financiar.
Betsy sorriu e balançou a cabeça.
— E você teria de oferecer como garantia todas as suas ações e mais as ações da Fundação Hardeman. Froelich pressionaria para receber o pagamento antes do Stallion começar a dar lucro e aca-baria assumindo o controle da companhia.
— E quais são os planos de Perino?
— Ele será o próximo presidente executivo da XB Motors — respondeu Betsy, bruscamente.
— Só por cima de meu cadáver.
— Desse jeito ou de outro.
— Tenho uma grande surpresa para você, sua vagabunda.
Quando eu vender minhas ações...
Betsy acenou com a cabeça.
— Já sei. Não haverá mais uma XB Motors para que Angelo possa tirá-la de você. Mas não conte com isso. Pode não dar certo.
— Posso dar um jeito — declarou Loren, obstinado. — Espere para ver.
2
Angelo e Betsy se encontravam nos braços um do outro, na vasta cama da suíte dele no hotel em Tóquio. Angelo fora até lá para conversar com Tadashi Komatsu. Com sua habitual perspicácia, Betsy descobria que ele ia ao Japão e onde se hospedaria.
Persuadira o marido que precisava ir a Detroit, onde apenas trocara de avião.
— Tinha de me encontrar com você o mais depressa possível — disse ela. — Meu pai vai mesmo vender a companhia.
— Ele tem o controle — murmurou Angelo.
— É verdade. A situação é a seguinte... Número Um deu a meu pai e a Anne dez por cento de cada uma das ações da Bethlehem Motors, há muitos anos. Meu pai perdeu a metade quando minha mãe se divorciou dele. Agora, ela tem cinco por cento. Pelo testamento de Número Um, meu pai recebeu mais vinte e cinco por cento, o que o deixou com trinta por cento. Mas ele deu cinco por cento a Roberta. Eu recebi quinze por cento.
Número Um distribuiu três por cento aos empregados que considerava leais. Entregou trinta e cinco por cento à Fundação Hardeman. A fundação votará da maneira como meu pai determinar, o que lhe dá o controle.
— Você e Anne são conselheiras da fundação, mas estão em inferioridade — comentou Angelo.
— Randolph e Mueller fazem o que meu pai manda... e ele ainda pôs Roberta como conselheira. Número Um foi estúpido quando deixou meu pai indicar Randolph e Mueller para a fundação. Naquele tempo, ele não prestava a atenção necessária.
— Ou seja, você tem quinze por cento, Anne tem dez, Alicia tem cinco e eu tenho dois.
— Estamos longe da maioria.
— Esses trinta e dois por cento podem ser mais significativos do que você imagina. Conversei com Paul Burger. Os acionistas minoritários também têm direitos. Se eu fosse você, conversaria com Paul. Podemos eleger um membro do conselho. Talvez até dois.
— Que diferença isso faria?
— Vou confrontar Loren com uma nova proposta. É por isso que vim ao Japão. Um carro novo. Totalmente novo. Para o século XXI.
Betsy aconchegou-se contra ele.
— Com que freqüência nos encontramos, meu único amor?
— sussurrou ela. — Fodam-se os carros. Podemos conversar sobre carros e conselheiros da companhia num restaurante em Londres, com George escutando. Agora, quero fazer amor com você.
Por que acha que voei até o Japão? Por duas noites... três no máximo. E depois voltarei para casa. Diga que me ama, Angelo Perino! Diga isso e o recompensarei. Diga isso e a Viscondessa Neville, amiga da rainha, vai chupar seu pau até não conseguir mais gozar!
3
— Assim que pagarmos todos os empréstimos, Froelich ata-cará de novo — comentou Angelo para Bill Adams, enquanto comiam casquinhas de siri no Four Seasons.
— Ele quer aquela fábrica moderna que você construiu para fabricar o novo Stallion. Pode vendê-la... e com facilidade... a várias companhias. É uma concepção magnífica. Qualquer uma das Três Grandes montadoras gostaria de tê-la. Os japoneses a comprariam. Ou os alemães. Até mesmo os russos, se conseguissem levantar o dinheiro. Seja como for, ele...
— Froelich só precisa parar de fabricar carros — disse Angelo. — Acabar com o Stallion.
Bill Adams balançou a cabeça.
— Ele pode vender a fábrica pelo dinheiro com que comprará as ações. Depois liquida o resto da companhia como lucro.
— Betsy diz que Loren venderá suas ações. Além disso, dirá aos conselheiros da Fundação Hardeman para vender também...
e como foram escolhidos por Número Um e agora são controlados por ele, farão o que Loren mandar. Uma fundação está melhor com cem milhões de dólares em dinheiro do que...
— Essa é a chave — disse Bill.
— Como assim?
— Em dinheiro. Vamos supor que a Froelich & Green não seja capaz de levantar dinheiro suficiente para comprar as ações da Fundação Hardeman e mais as de Loren. Neste caso, vão oferecer outra coisa para complementar o dinheiro, como ações de sua própria companhia, promissórias, títulos diversos. Loren Hardeman pode ser bastante tolo para aceitar a oferta. Mas a fundação está sujeita às leis de Michigan, que limitam os tipos de títulos que um fundo beneficente pode comprar e manter. Os títulos de valor duvidoso a serem oferecidos pela Froelich & Green não serão aceitos.
— E se eles entrarem com o dinheiro? Afinal, devem ter algum apoio financeiro. Já conseguiram comprar e liquidar outras companhias antes. Talvez consigam levantar os recursos necessários.
Bill Adams sorriu.
— Duvido muito que possam fazer isso. Não são bem con-ceituados em Wall Street.
4
Angelo retirou de Keijo Shigeto todas as responsabilidades relacionadas com o Stallion. Certo de que seu sócio japonês era um gênio da engenharia, queria que ele concentrasse toda a sua atenção em um novo projeto.
Os quatro sentavam na sala de estar da casa dos Perinos, Angelo e Cindy, Keijo e Toshiko. A esta altura, já haviam abandona-do a farsa de que Keijo se encontrava ali como um favor a Angelo.
Há cinco anos que a família vivia nos Estados Unidos, e nenhum deles expressava o menor desejo de voltar ao Japão, a não ser em visitas familiares.
Três fábricas de aviões usavam o material de resina epóxi para fuselagens e asas, e a licença de fabricação acabara de ser renovada pela Shizoka. A CINDY, Incorporated vinha tendo um bom lucro. Na verdade, Tadashi Komatsu reconhecera o valor das melhorias de fabricação introduzidas pela CINDY e o novo contrato era mais um acordo de sociedade que uma simples licença.
A Shizoka continuava convencida de que a resina epóxi seria usada em carrocerías de automóveis. Seu sucesso no S Stallion era uma prova incontestável de viabilidade.
Os quatro conversavam antes do jantar, tomando martínis, quando Angelo sorriu e disse:
— Mas é claro que essa não é a grande mudança inevitável.
Haverá algo muito mais fundamental.
Keijo acenou com a cabeça.
— O carro elétrico.
— Li duas matérias em revistas de economia na semana passada proclamando que não pode ser fabricado... e pior ainda, que nunca será — disse Angelo. — Pois estou convencido de que é possível. Mais do que isso, tem de ser feito. Não podemos continuar a queimar combustíveis fósseis. Mesmo que jamais esgotas-sem, o que vai acontecer mais cedo ou mais tarde, são caros, ineficientes e poluentes.
— Viram o cartum? — indagou Cindy — O que mostrava um carro puxando um reboque com toneladas de baterias?
— Baterias químicas — disse Angelo. — Baterias de chumbo, com ácido. As baterias químicas estão para a nova tecnologia como as máquinas de escrever para os editores de texto de computador.
— Ou pior — ressaltou Keijo. — Como os navios a vela para os aviões a jato intercontinentais.
— Célula de combustível — sugeriu Toshiko, com um sorriso radiante.
— Uma possibilidade — murmurou Angelo.
— Como se pode abastecer um carro com hidrogênio? — perguntou Cindy. — A substância é perigosa. Pode-se ter uma explosão como a que destruiu o Hindenburg. E como um posto de abastecimento operaria?
— A experiência mais bem-sucedida neste momento é com metanol, que se dissolve em dióxido de carbono e hidrogênio — disse Angelo. — O hidrogênio entra na célula de combustível, enquanto o C 0 2 é descarregado no ar. Uma célula bastante pequena para caber sob o capô de um automóvel convencional pode gerar a mesma potência de um motor de oitenta cavalos. Claro que há desvantagens... e uma delas é o custo.
— Há outras possibilidades — acrescentou Keijo. — A bateria volante é uma delas.
— Esperam mesmo que a XB Motors venha a fabricar um carro elétrico? — indagou Cindy — Loren...
— Loren que se dane — interrompeu Angelo. — Vamos fabricar o carro com ou sem ele.
— A diferença é que com ele vocês terão uma grande capacidade de produção e uma rede de revendedoras — lembrou Cindy
—, enquanto sem ele terão apenas uma pequena companhia fabricando carros experimentais numa garagem.
— Foi mais ou menos assim que a Apple Computers e a Microsoft começaram — disse Keijo, com um sorriso contido.
5
— É um garoto bonito — sussurrou Amanda para Cindy, acenando com a cabeça na direção de John, de pé na plataforma de modelo, nu.
— E acho que ele não é mais virgem — comentou Cindy, também em voz baixa.
— Aos quatorze anos?
— Se vocês duas vão ficar paradas aí falando de mim — interveio John —, não sei se poderei fazer isso.
— Desculpe, John — disse Cindy.
Ela se afastou de Amanda e do cavalete e foi sentar no sofá no estúdio.
— Tem certeza absoluta de que quer fazer isso? — indagou Amanda, enquanto desenhava com carvão numa tela estendida. — Não quero um modelo que esteja posando sem vontade.
— É uma tradição de família — comentou John, sorrindo.
— Discutimos o assunto — informou Cindy. — Não queria que ele pensasse que eu o estava pressionando.
— Serei o único da minha turma a ser pintado assim — disse John. — Mas nem pensaria nisso se você não fosse uma pintora séria e famosa. Gosto dos quadros que fez de minha mãe. E de meu pai.
— Mas tenho que lhe dar um aviso — declarou Amanda. — Um rapaz que posou para mim há muitos anos disse mais tarde que estava arrependido. Ficou embaraçado quando os colegas viram seus retratos nas galerias.
— Não sou tão acanhado assim — comentou John.
Cindy e Amanda trocaram olhares divertidos. Não sabiam por quê, mas enquanto ele mantinha sua pose o membro não se mantinha de todo flácido, mas sim um pouco afastado do escroto, numa ereção incipiente.
Aos quatorze anos, ele tinha a musculatura e o órgão de um homem. Era anguloso, não mais arredondado. O pai era peludo, e tudo indicava que John também o seria; já tinha pêlos escuros no peito, não apenas nas axilas e virilha. Sua segurança era im-pressionante.
Cindy sentia-se contente pela decisão de levar a família da cidade de Nova York para Greenwich e matricular os filhos em escolas particulares. Os amigos de John eram inteligentes, equili-brados e com boas maneiras, como ele. O mesmo acontecia com as amigas de Anna. Sua única preocupação era quão cedo eles seriam expostos às drogas e ao álcool, quão cedo se tornariam sexualmente ativos. Amanda pagaria a John para posar, e Cindy se perguntava o que ele tencionava fazer com o dinheiro. Seria todo dele; não teria de dar explicações a ela ou ao pai. Cindy especulava se isso — e não sua admiração pelo talento artístico de Amanda — não era o principal motivo para o filho concordar em posar.
De qualquer forma, o retrato para o qual ele posava agora seria dela. Já o comprara. John posaria para cinco. Os outros quatro seriam postos à venda na Galeria VKP.
1988
6
John e Buffy foram a Nova York de trem, numa tarde fria de sábado, em fevereiro. Ele a levou à VKE
— Oh, John!
Ela não vira o quadro que a mãe dele comprara, pendurado no quarto do casal.
Uma mulher varrendo a galeria reconheceu John como o modelo para dois dos quadros pendurados na sala principal do primeiro andar e sorriu para ele.
— Não gostaria de posar também? — perguntou ele a Buffy.
— Amanda paga um bom cachê.
— Meus pais ficariam furiosos.
John deu de ombros.
— Minha mãe é dona da galeria. Acho que isso faz uma diferença. Afinal, toda a nossa família está envolvida com a arte.
— Eu gostaria de poder persuadir meus pais a comprarem um desses quadros — murmurou Buffy.
— Eu preferia que não fizesse isso.
XXVI
1988
1
Às dez horas da manhã Loren Hardeman Terceiro bateu na mesa com uma caneta esferográfica e abriu a assembléia de 1988
dos acionistas da XB Motors, Incorporated. Além dele, estavam presentes Betsy, Roberta, Angelo e James Randolph, diretor da Fundação Hardeman.
— A presidência registra que Elizabeth, Viscondessa Neville
— disse Loren, com um tom de sarcasmo —, tem procurações de sua mãe, Alicia Hardeman, e de sua tia, Anne, Princesa Alekhine.
Isso significa que minha filha Betsy estará votando por trezentas mil ações.
Betsy fitou-o com uma expressão irritada.
— Não é exatamente assim — protestou ela. — Durante sua vida, meu bisavô fez algumas pequenas doações de ações a seis empregados que considerava leais e merecedores de sua gratidão.
Cinco desses seis, ou seus herdeiros, também me deram procurações. Os herdeiros do sexto não votarão. Além disso, o sr. Perino me passou uma procuração. Portanto, estarei votando por trezentas e quarenta e seis mil e quinhentas ações. Apresento essas procurações.
Loren virou-se para o advogado da companhia, Ned Hogan, _ sentado atrás dele, contrafeito.
— Ela pode apresentar novas procurações no próprio dia da assembléia?
O advogado acenou com a cabeça.
— Muito bem — disse Loren, descartando Betsy com um gesto desdenhoso. — Vai votar por trezentas e poucas mil ações.
Por que os seis empregados ou seus herdeiros lhe deram procuração?
Betsy sorriu.
— Talvez porque eu tenha pedido, enquanto você os ignora-va. Ou talvez porque me considerem uma herdeira de Número um mais digna que você.
— Claro, claro — resmungou Loren, impaciente. — Então você vota por pouco mais que um terço das ações.
Betsy balançou a cabeça e sorriu.
— Espero que a presidência também tenha registrado o aviso por escrito que foi apresentado há dez dias.
— Foi analisado pelo departamento jurídico — disse Loren.
— Esse... "aviso de intenção de voto cumulativo" significa, segundo os advogados, que um acionista votando por trinta por cento das ações tem direito a eleger um membro do conselho diretor.
— É o que determina a lei — ressaltou Betsy — A proteção dos direitos dos acionistas minoritários. Com mais de trinta e quatro por cento das ações, quase trinta e cinco por cento, a mi-noria tem direito a eleger dois dos cinco membros do conselho.
Loren lançou um olhar furioso para o advogado, que alteou as sobrancelhas e acenou com a cabeça. Ele inclinou-se para a frente e murmurou no ouvido de Loren:
— Talvez não com trinta por cento, mas com quase trinta e cinco...
Loren fitou Betsy, o rosto vermelho de raiva.
— Quais são os membros do conselho que você propõe dispensar? E quem vai indicar para substituí-los?
— Afaste os que se tornaram inúteis — respondeu ela, rindo.
— Mas deixarei ao seu encargo decidir quem são. E indico eu mesma e Angelo Perino.
Roberta interveio:
— Proponho que esta assembléia dos acionistas seja suspensa durante uma hora.
Depois do almoço, os membros do novo conselho se reuniram em torno da mesma mesa. Lá estavam Loren, Roberta, James Randolph, Betsy e Angelo. Faltavam o Professor Mueller e o ex-congressista Briley.
— Que lindo encontro! — exclamou Loren.
Roberta tocou na mão dele por baixo da mesa. Depois da conclusão da assembléia dos acionistas e durante o intervalo do almoço, ela se empenhara em acalmá-lo, em sua sala. Dera-lhe sexo, em vez de receber apenas; e como isso não o acalmasse, servira uma dose reforçada de scotch.
— Proponho que o sr. Loren Hardeman Terceiro seja reeleito presidente do conselho diretor e presidente executivo da XB
Motors, Incorporated — disse Betsy, abruptamente.
— Apoio a proposta — declarou Angelo.
— Os que estão a favor? — balbuciou Loren.
Todos levantaram a mão.
— Proponho que o sr. Angelo Perino seja eleito vice-presidente do conselho e vice-presidente executivo da companhia —
acrescentou Betsy.
O rosto de Loren ficou ainda mais vermelho, mas Roberta se apressou em dizer:
— Apoio a proposta.
Loren suspirou e indagou:
— Os que estão a favor?
Quando sua esposa levantou a mão, ele fez a mesma coisa.
Vendo isso, Randolph seguiu o exemplo.
Betsy sorriu para Angelo por cima da mesa de jantar no hotel no Renaissance Center.
— Só foi preciso uma votação, Angelo. Para dizer a verdade, fiquei surpresa com Roberta. Nunca imaginei que ela pudesse agir assim. O controle incontestado de meu pai foi rompido.
Angelo sacudiu a cabeça.
— Não conte com isso. Roberta não é nenhuma idiota, e não se rende. Acho que ela concluiu que aquela não era a questão por que lutar. E acho também que ela quer nos dar uma chance de tropeçar-mos. Foi fácil demais. A verdadeira batalha não será tão fácil.
— Quando vai apresentar a idéia do carro elétrico?
— Ainda não sei. Será o momento em que a batalha começará.
— Talvez mais cedo, quando ele tentar vender as ações para Froelich.
Angelo tornou a sacudir a cabeça.
— Froelich não comprará se não puder obter também as ações da fundação e assumir o controle. E para isso ele terá de levantar todo o dinheiro.
Betsy sorriu.
— Torço para que você nunca passe a perna em si mesmo.
Ela se inclinou para pegar a mão dele, mas Angelo retirou-a.
— Ainda não percebeu que estamos sendo seguidos e vigiados, Betsy?
— Do que está falando?
— Não olhe agora, mas tem um casal no outro lado do cha-fariz. O cara grande com a cabeça redonda. A loura desgrenhada.
— Tem certeza?
Angelo deu de ombros.
— Vou descobrir.
— Que coisa horrivel!
— Vou dar um telefonema. Não olhe para eles. Apenas corra os olhos ao redor, como se estivesse distraída, finja que não os notou. Voltarei em poucos minutos.
4
Uma hora e meia depois Angelo e Betsy deixaram o restaurante. Em vez de subirem para seus quartos, foram para o estacionamento por trás do hotel. Passaram por várias fileiras de carros estacionados antes de voltarem ao hotel.
O homem que os seguia a alguma distância recebeu uma pan-cada de um cassetete curto atrás da cabeça, arriou contra um Vol-vo sem fazer barulho, caiu de joelhos e depois de cara no asfalto.
A mulher recebeu um golpe na cara, que esmagou o nariz e fratu-rou o malar. Também caiu sem sentidos.
Dez minutos depois Angelo ouviu uma batida discreta na porta de sua suíte, no décimo oitavo andar. Não foi imediatamente até a porta. Sabia o suficiente para esperar um minuto. Só depois é que se adiantou e pegou o cartão que encontrou ali, enfiado por baixo da porta. Havia um pingo de sangue ressequido no canto.
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Ele foi ao telefone e ligou para o quarto de Betsy
— A barra está limpa — murmurou ele. — Sua suíte ou a minha?
Cindy deitava ao lado de Marcus, no quarto de Amanda.
Amanda saíra e a secretária eletrônica atendia às chamadas. Estava no quarto e podiam ouvir os recados.
Um foi de Dietz, avisando que viria no trem de 4:07h da Grand Central, que chegaria às 4:45h. Sugeriu que fizessem uma reserva para o jantar.
Outro foi da sra. Marna Mead, mãe de Buffy, pedindo que Amanda lhe telefonasse o mais depressa possível. Ela conhecia os quadros de Greg Hammersmith, admirava-os muito, dizia, e se interessara pela sugestão de Buffy para que comprasse um dos quadros de John.
A ligação foi feita no momento em que Cindy ajustava um preservativo em Marcus. A voz soou incisiva e séria; a sra. Mead queria comprar um quadro de John Perino, e se todos já tivessem sido vendidos, desejava encomendar outro. Enquanto escutava, Cindy inclinou-se e lambeu o saco escuro e enrugado de Marcus. Sorriu ao levantar os olhos e terminou de pôr o preservativo.
— Resta algum para vender? — perguntou ele.
— Não.
— Ele posaria para outro?
— Não.
— Está arrependido de ter posado?
— Não.
O sexo entre Cindy e Marcus não variava muito. Ambos eram imaginativos, mas nenhum dos dois esgotara as possibilidades do ato mais simples... não um com o outro. Para ela, um dos elementos satisfatórios era a ternura que acompanhava o tesão. Marcus era afetuoso, não apenas ardente.
Ele dissera que lamentava que Cindy fosse casada e mãe de cinco filhos. Era óbvio que não podia lhe pedir que abandonasse o marido e os filhos. Mas acrescentara que esperaria. Se depois que todas as crianças crescessem ela...
Não, respondera Cindy Isso nunca aconteceria. Confidenciara a ele que Angelo era o pai de John, filho de Betsy. Ela amava Angelo. Ela amava Marcus. Betsy amava Angelo. Angelo amava Betsy. Era uma confusão.
Cindy não lhe dissera — e ele não adivinhara — que também amava Amanda, não com o mesmo fervor, sem compromisso, mas com intensidade suficiente para não querer renunciar. Ela e Amanda faziam amor de uma forma quase casual, não mais que de duas em duas semanas, mas sabiam quando queriam uma à outra; e de uma forma misteriosa o sentimento aflorava em ambas ao mesmo tempo, e sempre encontravam tempo e ocasião para satisfazê-lo.
Cindy tinha quarenta anos. Precisava da garantia de que ama-durecera ainda bonita, e a melhor garantia seria outro quadro de Amanda. Estava no cavalete. Posaria por mais algum tempo quando Amanda voltasse para casa. Sabia que podia confiar em Amanda para não retocar, não lisonjear, apenas representá-la com a hones-tidade implacável de uma fotografia.
O quadro inacabado mostrava-a exatamente como era: uma mulher com umas poucas estrias na barriga cheia e arredondada, os seios um poucos mais moles e não tão firmes quanto quinze anos antes, os dentes um pouco mais soltos do que antes, mas ainda uma mulher com muito de que se orgulhar, que nada perdera que não pudesse ser perdido sem pesar. Ela vira Buffy à beira da piscina e não podia deixar de invejar a carne firme e esticada da moça. Mas a única maneira de permanecer assim era não fazer outra coisa, não se preocupar com outra coisa, e mesmo assim no final perderia a batalha.
Amanda guardaria aquele quadro. Seria pendurado em seu quarto.
Em geral, Marcus fazia amor de um modo deliberado, não se permitindo disparar na frente dela e terminar cedo demais.
Nesse ponto, tanto quanto em outros, ele se controlava rácionalmente. Às vezes Cindy desejava que ele se soltasse e arre-metesse frenético, indiferente por uma vez se ela ficaria ou não satisfeita. Ao invés disso, Marcus entrava e saía num ritmo controlado. As sensações eram deliciosas, mas nunca desenfrea-das.
Talvez ele tentasse evitar a ruptura do preservativo. Só que foi o que aconteceu desta vez. Quando Marcus saiu e se acocorou, o preservativo era como um colar em torno de seu pênis diminuindo. A glande cinza-rosa brilhava com a ejaculação que esguichara dentro dela.
Cindy não tinha uma ducha. Abriram a água na banheira, ela sentou e se lavou tão meticulosamente quanto podia, mas sem confiança.
6
Leonard Bragg estava sentado a uma mesa no Red Fox Inn, com sua sócia, Patricia Warner.
Len Bragg era um homem corpulento, de ombros largos, a barriga estofada. Era calvo. As sobrancelhas assomavam por cima dos olhos, quase obscurecendo-os. O terno cinza não se ajustava direito; engordara alguns quilos desde que o comprara.
Trish Warner era uma mulher de aparência dura. Talvez não houvesse nada que pudesse fazer a respeito, mas dava a impressão de que não efetuara qualquer tentativa de abrandar sua imagem.
Os cabelos eram louros e cortados bem curtos. O rosto era quadrado, com um queixo mais proeminente que na maioria das mulheres. O nariz era um pouco menos do que reto e havia uma pequena cicatriz branca na face direita.
Loren entrou e sentou à mesa deles.
— Tenho outra conta do médico — anunciou Trish. — De mil, oitocentos e setenta e cinco dólares.
— Não tenho esse dinheiro aqui comigo — disse Loren. —
Vou providenciar.
— Ele diz que pode tirar a cicatriz. — Trish levou a mão ao rosto. — Mas o nariz nunca ficará direito.
— Ainda tenho dores de cabeça — resmungou Len.
— O pior é que estou com medo — murmurou Trish. — Tiraram um cartão de Len. Sabem quem somos.
— Você não nos avisou — ressaltou Len, sombrio.
— Eu disse que pagaria a cirurgia plástica para endireitar seu rosto — disse Loren a Trish. — E foi o que fiz. Não sei se devia isso, mas estou pagando.
— Que história é essa que não devia? — indagou Len.
— Vocês têm um ofício perigoso. Vão me dizer que é a primeira vez que são agredidos?
— Deveríamos apenas seguir Perino e a mulher. E bater algumas fotos, se fosse possível. Não me disse quem era Perino.
— Quem pensou que ele fosse?
— Não me disse quem era o avô dele. Esse é o ponto.
Loren olhou para o garçom que se aproximava da mesa. Pediu um scotch duplo com um pouco de soda. Depois que o garçom se afastou, ele disse:
— Levaram umas porradas. Por que estão furiosos comigo?
Faziam um trabalho legal, seguir alguém e tentar tirar umas fotos.
Foi Perino quem mandou bater em vocês. Pe rino, não eu. Mas durante seis meses se limitaram a lamentar suas dores e reclamar da injustiça da situação. Não querem fazer uma coisa concreta?
— Por exemplo? — Trish desceu os dedos pelo nariz, um gesto que se tornara um tique nervoso. — O que gostaria que fizéssemos? Matá-lo?
Loren alteou as sobrancelhas.
— Fariam isso por meio milhão de dólares?
Len sacudiu a cabeça.
— Nunca viveríamos para aproveitar o dinheiro.
— Podem viver, se forem espertos. Em primeiro lugar, não o matem em Detroit.
— Uma boa idéia...
— Sei disso. Eu lhes daria dez mil dólares para as despesas.
Posso informar onde ele mora, os lugares a que vai, quando viaja e todo o resto. Vocês entram com um plano.
— E depois?
— Ficam com o plano pronto. Mas não fazem nada até que eu mande. Quero que seja feito, mais cedo ou mais tarde, mas no momento certo. Vocês têm quase tanta razão quanto eu para odi-arem Angelo Perino. Mas não deixem que isso os atrapalhe. Man-tenham-se frios e formulem um plano. Eu lhes darei algum dinheiro dentro de um ou dois dias... inclusive os mil, oitocentos e setenta e cinco dólares para a conta do médico.
7
O dr. John Perino morreu a 6 de agosto de 1988. Tinha oitenta e dois anos.
O telefonema veio às duas horas da madrugada. Angelo não se encontrava em casa, e Cindy atendeu. Passou as quatro horas seguintes tentando localizar Angelo, até que finalmente conseguiu, com a ajuda de Keijo. Angelo estava com Tadashi Komatsu no country club nos arredores de Tóquio, discutindo o desenvolvimento do carro elétrico.
Angelo pegou um vôo da Northwest para Detroit e ali chegou depois que o choque se atenuara para um torpor. Cindy já chegara, com John e Anna. As outras três crianças ficaram em casa com a governanta.
O irmão de Angelo e a mulher vieram com os três filhos e cinco netos da Flórida. A irmã mais velha veio sem o marido, mas com quatro filhos e quatro netos. A irmã mais moça veio com o segundo marido e os filhos de cada casamento.
A viúva, Jenny, recebeu todas essas pessoas e muitas outras com uma dignidade reservada, enxugando os olhos de vez em quando com o lenço que apertava na mão esquerda; afora isso, mantinha-se empertigada e ouvia com atenção cada condolência. Cumprimen-tava a maioria das pessoas em inglês, algumas em italiano.
O serviço fúnebre, realizado em St. Jude, atraiu mais de quinhentas pessoas. Betsy veio de avião de Londres. Alicia Hardeman veio de Greenwich. Loren e Roberta compareceram. O idoso e frágil Jacob Weinstein chegou do Arizona num jato particular.
Um contingente de quatro sicilianos veio de Palermo: dois velhos e dois homens de meia-idade, todos de terno preto e gravata preta lustrosa de seda. Foram cumprimentados com respeitosos abbracci por uma vintena de homens morenos, falando italiano. O gover-nador de Michigan esteve no velório, assim como o prefeito de Detroit. Pelo menos cinqüenta médicos lá estiveram.
— Como podem ver, seu avô era um grande homem — sussurrou Cindy para John e Anna.
John acenou com a cabeça, solene. Anna, levada às lágrimas pela ocasião, cobriu o rosto e chorou.
Uma dúzia de câmeras de televisão focalizava os degraus da igreja quando o caixão saiu, carregado por amigos e parentes.
Quatro carros abertos levavam as coroas. Sessenta carros seguiram o cortejo fúnebre.
A casa não era bastante grande para a recepção que se seguiria ao enterro, e por isso foi realizada no jardim do Italian-American Club, o local de muitas recepções tristes e também de alegres festas de casamento.
Entre os filhos e filhas do dr. John Perino, apenas Angelo continuava a falar um italiano fluente. Ele cumprimentou os visitantes da Sicília em nome da família e agradeceu a presença.
— Buongiorno, Signore Calabrese. Molte grazie, molte grazie.
Questa è mia moglie, Cindy. Anche mio figlio e mia figlia, Giovanni ed Anna.
Todos os filhos e filhas convidaram Jenny a ir para suas casas.
Mas ela insistiu que permaneceria na casa em que vivera com seu amado marido por tantos anos. Tinha muitos amigos nas vizinhanças e não ficaria sozinha.
Cindy c Betsy ficaram juntas, tomando vinho tinto. Como Betsy sabia que Cindy compreendia quem era o pai de seu filho John e não brigara por isso, sentia-se atraída por ela.
— Sempre especulei como seria fazer parte de uma família grande, afetuosa e unida — comentou Betsy.
— Pode ser sufocante — respondeu Cindy — Claro que nunca sufocaram Angelo, mas...
— Quem poderia sufocar Angelo? — indagou Betsy.
— Estou criando uma família grande — disse Cindy. — Espero que não sufoquem uns aos outros.
— Número Um teve dois filhos — disse Betsy. — Número Dois morreu pensando que também tivera duas crianças, mas Anne não era sua filha. Meu pai só teve a mim. E fez um comentário desdenhoso sobre eu ter cinco crianças. E também falou mal de você.
Cindy sorriu e balançou a cabeça. Não revelara a Angelo e não contou a Betsy agora que esperava uma sexta criança.
XXVII
1988
1
Cindy confidenciou a Amanda:
— Não tenho medo do que Angelo dirá — declarou ela. —
Afinal, ele tem um filho que não é meu. De qualquer forma, pode muito bem acreditar que este é seu.
— Até que a criança cresça, e se torne prematuramente calva
— comentou Amanda. — E não sei se você será capaz de guardar o segredo. Não vai querer viver com isso. Mas como pôde deixar acontecer?
— Eu queria filhos quando casamos. Tivemos um no primeiro ano. Depois, tomei a pílula por algum tempo, abrindo um intervalo de dois anos entre John e Anna. Fiz a mesma coisa com Morris e Valerie e depois separei Mary de Valerie por quatro anos.
Depois de Mary, voltei a tomar a pílula por cinco anos. Até que meu ginecologista disse que era hora de parar, pelo menos por algum tempo. Foi isso...
Amanda ainda trabalhava no terceiro retrato de Cindy, que estava na plataforma. Saindo de trás do cavalete, Amanda foi até a plataforma, beijou Cindy, primeiro na boca, depois em cada mamilo. Acariciou-a e abraçou-a, antes de voltar ao trabalho.
— Marcus quer contar a Angelo. Quer a criança.
— Ele não é obrigado a criá-la — ressaltou Amanda.
— Não disponho de muito tempo. Preciso tomar uma decisão.
— É difícil para você? Isto é, se decidir fazer um aborto, será difícil para você?
Cindy acenou com a cabeça.
— Quando estivemos em Detroit para o funeral, a mãe de Angelo me perguntou se as crianças haviam sido batizadas. Tive de responder que não. Ela me pediu que prometesse que seriam batizadas. Claro que ela quer que todos sejam batizados como católicos. Não posso fazer isso. Um padre não concordaria com os batizados sem que os pais assumam o compromisso de criar os filhos como católicos. Ainda não tomei nenhuma providência.
Fui batizada numa igreja presbiteriana. Angelo foi criado como católico. E se eu fizer um aborto, não sei se poderei contar a ele.
Acho que conheço Angelo, mas...
— Deixe-me fazer uma pergunta, Cindy. Ele confidenciou a você sobre o filho que teve com Betsy. Confidenciou mais alguma coisa? Que esteve com outras mulheres, além de Betsy?
Cindy deu de ombros.
— Também nunca contei a ele sobre Dietz, muito menos sobre nós duas. Ou Marcus. Não sei o que ele pensa. Angelo é um realista...
— Como se chama o que vocês têm? Um casamento aberto?
Cindy sorriu.
— Sou uma criança dos anos sessenta. Nunca me tornei uma yuppie. Quando levei Mary para o pré-escolar, era a mãe mais velha ali. Durante o chá com bolo, uma das jovens mães comentou que provavelmente eu não era tão séria quanto ela, já que as pessoas de minha geração não partilhavam os mesmos valores de sua geração.
Amanda riu.
— Valores... Essa palavra me deixa nauseada.
— Seja como for, preciso decidir.
Amanda tornou a se adiantar, mas desta vez não subiu na plataforma, apenas inclinou-se para a frente e beijou a fenda de Cindy.
— Não posso! — balbuciou Cindy, para depois soluçar: —
Não posso de jeito nenhum ter outro filho!
Amanda passou os braços pelos quadris de Cindy, encostou o rosto em sua barriga.
— Eu a ajudarei, meu bem. Já fiz dois abortos. Há uma clínica em New Haven. Eu me trato com uma mulher. Ela cuidará bem de você. E eu a levarei de carro até lá.
Na semana seguinte, na clínica em New Haven, o feto foi retirado. A médica aconselhou Cindy a não tomar mais a pílula.
Sugeriu uma ligadura tubária. Na outra semana, quando Angelo se encontrava em Detroit e a caminho do Japão, Cindy voltou a New Haven e fez a operação.
Não contou a Marcus. Ele foi a um cirurgião com consultório na Park Avenue South e fez uma vasectomia. Informou Cindy a respeito antes que ela pudesse lhe falar sobre a ligadura. Cindy decidiu não lhe dizer que fizera algo desnecessário... pelo menos para os dois.
2
Trish Warner não se hospedou num hotel ou motel em Greenwich. Alugou um carro no Aeroporto LaGuardia e foi para o Stouffer's Inn, na via expressa Cross — Westchester. Combinara com Len que seria melhor se ela explorasse Greenwich sozinha. Poderia mudar sua aparência até certo ponto. Len não podia.
Ela passou um barbeador na cabeça, deixando os cabelos bem curtos. Assim, a peruca castanha escura, bonita e cara, ajustava-se com perfeição, diminuindo a possibilidade de ser reconhecida.
Perino nunca vira o que o cassetete de seu capanga fizera com o rosto de Trish, e por isso o disfarce era perfeito.
O carro alugado era um Ford comum. Ela levava uma câmera Nikon com uma teleobjetiva compacta. Despachou os filmes para Len em Detroit, da agência do correio em Rye, estado de Nova York.
Durante quatro dias, ela fotografou a casa dos Perinos, de vários ângulos, com diversas pessoas entrando e saindo. Identificou Cindy. E os filhos. Tinha uma excelente noção de toda a área.
O trabalho poderia ser realizado com um rifle. No momento que Hardeman determinasse.
1989
Herbert Froelich tinha sessenta e sete anos. Os cabelos eram brancos, assim como o bigode cerrado. A carne do rosto era flácida, com rugas profundas. Usava óculos redondos de aros de chifre, assumia o ar de um homem justo e honesto, mas que tinha de se precaver durante todo o tempo contra calúnias e ataques.
— Já lidei muitas vezes com os herdeiros de homens que criaram impérios — disse ele, em tom pontificial. — O trabalho deles era tão desafiador, tão estimulante e tão satisfatório que não queriam mais em suas vidas. Mas seus herdeiros... ora, a tarefa de manter o que seus ancestrais construíram não é tão desafiadora, não é uma coisa a que estejam dispostos a sacrificar suas vidas, ao custo de todo o resto. Eles têm direito a alguma segurança e conforto.
Loren, Roberta e Froelich estavam sentados na casa dos Hardemans, em Detroit. Loren voltara ao bar e despejara mais scotch em seu copo, depois que Roberta parara de servi-lo. Ele estava um pouco embriagado.
— Meu marido herdou o controle de uma companhia em profundas dificuldades — comentou Roberta. — O Sundancer perdia sua participação no mercado. O primeiro sr. Hardeman perdera o contato com a realidade em seus últimos anos.
Froelich balançou a cabeça e ergueu um copo de vinho em saudação a Loren.
— E o sr. Hardeman teve a perspicácia de contratar Angelo Perino como seu engenheiro automotivo e formar uma sociedade com a Shizoka para fabricar o XB Stallion, assim retirando a companhia da beira da falência.
— Foi exatamente o que aconteceu — murmurou Loren.
Froelich acenou com a cabeça e tornou a erguer o copo, ainda mais alto. Usava um terno cinza com colete. Um maço de Marlboro sobressaía do bolso do colete.
— Meus associados e eu analisamos meticulosamente sua companhia. Como as ações não têm negociação pública, torna-se difícil fixar um valor. Em determinada ocasião, estávamos dispostos a oferecer oitocentos e cinqüenta dólares por ação. Até fizemos contato. Mas creio que é desnecessário lhe dizer que o colapso do mercado em 1987 alterou de forma radical todos os valores de ações. Neste momento, estou pensando mais em termos de seiscentos dólares por ação. Talvez possa convencer meus associados a oferecerem seiscentos e cinqüenta.
— É uma redução considerável, sr. Froelich — comentou Roberta.
— O dinheiro anda difícil, sra. Hardeman. Duvido que possa encontrar outro comprador disposto a oferecer mais que quinhentos e cinqüenta dólares. Embora a companhia esteja dando lucro, tem muitas dívidas.
— O que o desgraçado do Perino tomou emprestado para construir a nova fábrica — resmungou Loren.
— Que é hoje o seu melhor patrimônio — disse Froelich.
Roberta sacudiu a cabeça.
— A nova oferta é um desapontamento — ela disse.
— Olhem do meu ponto de vista — disse Froelich. — Numa situação em que o dinheiro anda escasso. Se ofereço seiscentos e cinqüenta dólares por ação, tenho de oferecer a mesma coisa a todos os acionistas. Se todos aceitarem, tenho de levantar seiscentos e cinqüenta milhões de dólares. E agora olhem pelo ponto de vista de vocês. A seiscentos e cinqüenta dólares por ação, valerão cento e sessenta e dois milhões e quinhentos mil dólares. Admito que a oitocentos e cinqüenta por ação teriam cinqüenta milhões a mais, mas ainda assim ficarão muito ricos. E sem a preocupação de administrar a companhia.
Loren acenou com a cabeça.
— Acho que depois de todos os impostos, ainda poderei comprar uma casa de primeira classe em Paris e manter um iate em St.
Tropez.
— Vai nos apresentar uma oferta por escrito? — perguntou Roberta.
— Claro — respondeu Froelich. — Tenho de impor algumas condições. Preciso adquirir o controle... o que significa que devo ter também as ações da Fundação Hardeman, além das suas. Além disso, é claro que não podem esperar que eu entre com seiscentos e cinqüenta milhões de dólares em dinheiro... cento e sessenta dois milhões e quinhentos mil dólares para vocês. Meus associados e eu vamos oferecer um acordo, pagando parte em dinheiro, parte em notas promissórias e parte em títulos da própria companhia. Estes terão um preço fixado que lhes permitirá obter um bom lucro quando venderem. Como eu disse antes, sairão do negócio como pessoas excepcionalmente ricas. O apartamento em Paris e o iate em St. Tropez serão coisas pequenas para você.
Loren sorriu.
— Preciso ver os documentos e deixar que meus advogados e contadores os analisem — disse ele. — Mas acho que vamos fechar o negócio.
4
— Acho que você não tem negócio nenhum — disse Roberta, depois que Froelich foi embora.
Ela estava sentada na cozinha, tomando café. Loren, nu, limpava a louça e punha na lavadora. Nos últimos tempos ele supli-cava para que Roberta não o espancasse, dizendo que não podia mais suportar a dor. Mesmo assim, às vezes ela ainda usava o chicote. Encontrava-se na mesa agora, e por duas vezes, desde que ele começara a tirar a mesa e arrumar tudo, Roberta o acertara nas nádegas, fazendo-o saltar e gritar.
— Venha até aqui.
Loren adiantou-se e ajoelhou-se diante dela.
— Primeiro ele ofereceu oitocentos e cinqüenta dólares por ação — continuou Roberta. — Agora baixou para seiscentos e cinqüenta... e não em dinheiro vivo, mas uma parte em papel. O
que diminui o valor ainda mais.
— Vou fazer sessenta anos. Mesmo que só recebêssemos vinte milhões, ainda poderíamos nos aposentar e viver... Não precisa ser em Paris.
— É isso o que você quer?
— Quero ter alguma espécie de vida, Roberta. Quero ir para um lugar em que nunca mais ouvirei o nome Angelo Perino. Ele será o mais sacaneado no negócio. Número Um não foi capaz de sacaneá-lo mais.
— A decisão é sua.
Ele ergueu o rosto e fitou-a nos olhos. Balançou a cabeça.
— Vou vender.
5
Roberta estava no sofá na suíte de Angelo no Hyatt Regency, em Houston. Eram dez horas da manhã. Ela o avistara no bar ao
302 HAROLD ROBBINS
lado do saguão quando chegara, na noite anterior. Angelo estava com uma mulher. Roberta só ligara para o quarto dele quando tivera certeza de que a mulher, quem quer que fosse, já se retirara.
Mencionara-a, mas Angelo rira, alegara que a ruiva era uma guru dos computadores, capaz de contribuir de alguma forma para o projeto do carro elétrico. Depois, passaram a falar sobre o carro e a companhia.
— Por que me enganar? — indagou Roberta. — Não sei para que lado devo minha lealdade. Não consigo me decidir.
— Onde Loren pensa que você está?
— Sabe que estou aqui. Pensa que vim avaliar Houston como um possível lugar para a nossa aposentadoria.
— O que aconteceu com Paris?
— Falam francês em Paris. Desconfio que ele acha que nunca vai aprender.
— Ele também nunca vai aprender a falar texano — senten-ciou Angelo.
Ela sacudiu a cabeça.
— Loren não é tão horrível quanto você pensa.
Roberta tomou um gole do café que Angelo servira, antes de acrescentar:
— Sob alguns aspectos, ele é até pior.
— Sob alguns aspectos, sou mais o herdeiro de Número Um do que ele — comentou Angelo. — Não vou deixar que Loren a destrua.
— Pode realmente impedi-lo? — indagou Roberta.
— Não me faça perguntas que não lhe direi mentiras. Como não sabe para que lado pende sua lealdade, é melhor não falar a respeito.
Ela tornou a sacudir a cabeça.
— Salvei uma companhia, e quem se importa com isso? Meu primeiro marido morreu e...
— Há pessoas que se importam, Roberta. Famílias em Detroit que trabalharam para a Bethlehem Motors e agora para a XB
Motors por mais de cinqüenta anos. Pessoas que têm guiado Sundancers e agora Stallions também por muitos anos... e não admitem outro tipo de carro.
Roberta inclinou-se para pegar a mão dele.
— Vamos foder? — indagou Roberta.
Angelo sorriu, irônico.
— Você sabe para onde pende sua lealdade.
— Não zombe de mim, Angelo. — Ela beijou-o no pescoço, logo abaixo da orelha. — Betsy e eu partilhamos uma tragédia.
Ela não pode casar com você, nem eu.
— Não sabia que você tinha pensado a respeito.
— Não pensei, não para valer. E minha tragédia, no fundo, não é que eu não pudesse casar com você, mas sim que nunca poderia casar com um homem como você. Dominei dois maridos.
Tive de fazer isso. Se não fizesse...
— Não me fale demais.
Roberta empurrou a xícara de café para o lado.
— O que eu gostaria mesmo neste momento é de tomar um scotch. O que diz muita coisa a meu respeito, não é? Um scotch antes de meio-dia.
— Que tal um martíni? Gelado. Um gosto agradável que não fica na boca. E eu a acompanharei.
Ela acenou com a cabeça, e Angelo foi até o bar.
— Devo me despir?
— Não poderemos trepar se continuar vestida.
— Para o que planejo fazer primeiro, amor, não precisamos tirar roupa nenhuma. Venha até aqui. Vai saber qual é a sensação quando uma mulher tem um martíni gelado nos lábios.
6
A Viscondessa Neville tinha meios de conseguir o que queria.
Queria que seu primeiro filho, Loren van Ludwige — agora conhecido por todos como Van —, estudasse em Harvard. Ele foi aceito para começar no outono de 1989.
Ela telefonou para Cindy e pediu um favor. Van poderia ir para os Estados Unidos em junho e morar com os Perinos até se mudar para Cambridge? Ele nunca visitara o país e era importante que se adaptasse, antes de se instalar num dormitório em Harvard.
Cindy fez uma sugestão. Betsy traria Van para os Estados Unidos, em vez de despachá-lo, e viria também com John, que assim poderia conhecer seus meios-irmãos.
Ficou tudo combinado. Eles chegariam no dia 3 de junho: Betsy com os dois filhos, Van, dezessete, e John, seis. Três hóspedes fariam a casa transbordar, e por isso Betsy e John ficariam com Alicia. Só Van permaneceria na casa dos Perinos, onde passaria todo o verão, e já estaria pelo menos meio americanizado, ao que se esperava, quando chegasse o momento de seguir para a universidade.
7
Len Bragg usava o seu melhor terno, azul marinho com listras. A camisa era branca, e a gravata, azul marinho com bolinhas brancas. Era um fim de tarde quente de primavera e ele não precisava de um sobretudo ou capa. Trish vestia um tailleur de linho grená.
Ela guiaria. Conhecia a área. Além do mais, Len estava um pouco nervoso e não queria correr o risco de cometer um erro na direção que pudesse atrair a atenção da polícia.
Partilhavam um quarto num Courtyard Inn, no condado de Westchester: sr. e sra. David Englehardt, de Boston. O pagamento em dinheiro faria com que o recepcionista se lembrasse dele, e por isso Len pedira e recebera um cartão Visa em nome de Englehardt. Só o usaria aquela vez, pagaria logo e nunca mais tornaria a usá-lo. Trish alugara um Chevrolet com o cartão de crédito da agência deles em Detroit. Mas fora em LaGuardia, onde milhares de carros eram alugados todos os dias.
Len comprara o rifle em Indiana há um ano. Pagou em dinheiro. Era um Remington de ferrolho, equipado com um visor telescópico. Podia acertar o alvo a cem metros de distância. Não precisaria chegar mais perto. E não era só isso: podia atingi-lo com dois ou três tiros num tempo de dez a doze segundos. Depois que o homem caísse, seria um alvo mais fácil do que em pé, provavelmente em movimento. A cem metros de distância. Não precisaria se aproximar mais.
Trish efetuara um bom levantamento da área. Naquela parte de Greenwich, Connecticut, as pessoas tendiam a construir muros de pedra na frente das casas. O que significava que era impro-vável que os vizinhos de Perino avistassem aquele carro parado à beira da estrada.
A maneira como executariam o trabalho era simples. Do estacionamento no aeroporto de Westchester, poderiam reconhecer o jato da XB quando pousasse. Tinha o logotipo na cauda. Ficariam atentos à saída de Perino do prédio da aviação geral — o terminal para os vôos não-comerciais — para pegar seu carro. Alvejá-lo ali era uma alternativa que Trish sugerira que considerassem. Mas haveria muitas pessoas por ali. E a polícia, como eles descobriram quando estacionaram. Nada disso. O melhor mesmo era acertá-lo quando saísse do carro em sua casa.
Trish constatara que Cindy Perino estacionava seu Porsche dentro da garagem. A filha guiava um Stallion, que também deixava na garagem. Perino estacionava seu Stallion na calça-da.
Trish só precisava seguir na frente pela estrada — o que podia conseguir por deixar o estacionamento do aeroporto primeiro —
e manter uma boa dianteira, para que Perino não a alcançasse e ultrapassasse. Também não queria chegar na frente da casa cedo demais. Se passassem mais que dois ou três minutos parados na beira da estrada, poderiam atrair alguma atenção. E tinha mais: Greenwich era uma cidade com intensa presença policial. Sempre havia carros patrulhando as estradas.
Era o final da tarde de quinta-feira. Se Perino mantivesse seu horário habitual, chegaria a Westchester mais ou menos ao pôr-do-sol. Se tal não acontecesse, teriam de esperá-lo no dia seguinte. Ele passava quase todos os fins de semana em casa.
A sorte não estava com eles. O jato da XB não pousou. Esperaram até dez horas da noite.
Len e Trish não eram amantes. Alojados no mesmo quarto, numa cama de casal, gratificaram um ao outro, sem muito pensamento nem entusiasmo. Qualquer outra pessoa teria servido da mesma forma.
Pela manhã, voltaram ao aeroporto de Westchester para verificar se o jato não aterrissara durante a noite e agora esperava ao lado da pista. Não o viram.
Não passaram pela casa durante toda a sexta-feira. Era uma rua residencial e tranqüila e um carro estranho, com placas de Nova York, poderia ser notado se aparecesse demais.
Passaram o dia sentados no quarto no motel, assistindo à televisão, nervosos. A intervalos de cinco minutos, Len ia até a janela e olhava para o carro... obcecado pela idéia de que alguém poderia encontrar o rifle escondido na mala. Comeram também com o maior nervosismo, quase não beberam.
Às seis horas voltaram para o aeroporto.
A medida que a claridade se desvanecia, tornava-se mais e mais difícil identificar os jatos que aterrissavam. Mas logo avista-ram o Lear executivo da XB. Era bastante fácil identificá-lo, pelo logotipo proeminente na cauda...
XB
Perino deixou o terminal logo em seguida. Reconheceram-no... o que não foi difícil, pois haviam-no observado por horas naquela noite no Renaissance Center. Era um homem maior do que se lembravam. Sabendo a idade dele, quase sessenta anos, pensavam que fosse menor. Ele carregava uma pequena pasta e uma capa dobrada sobre o braço.
Trish ligou o Chevy alugado, foi até a saída do estacionamento, pagou, pegou a estrada para Greenwich. Estavam bem à frente de Perino, mas podiam ter certeza de que ele os seguia, a não mais que dois ou três minutos atrás.
Nenhum dos dois disse nada. No curso de suas carreiras como investigadores particulares já haviam feito muitas coisas despre-zíveis. Haviam cometido assaltos. Agressões. Grampeado telefones ilegalmente. Poderiam estar na prisão. Trish até cumprira trinta dias de detenção por violação de domicílio. Mas nenhum dos dois jamais matara alguém. Nunca havia sequer cogitado tal coisa.
Mas aquilo... Odiavam Perino. Ele mandara agredi-los. Trish tinha no rosto as marcas deixadas pelo golpe violento de um pequeno cassetete. Ainda se lembrava do terror e da dor. Além disso, Hardeman pagaria meio milhão de dólares pelo trabalho. Já tinham recebido a metade. Haviam rido do que fora até então seu pior problema: o que fazer com um dinheiro que obviamente não podiam declarar ao imposto de renda.
Planejaram o trabalho com todo cuidado, quase com satisfação. Agora, no entanto, subitamente, a enormidade do crime os sufocava. Iam matar um homem! Era por isso que se mantinham calados e pensativos.
Chegaram à rua. Trish parou o carro no ponto que identificara semanas antes como o melhor lugar. Apagou as luzes.
Len inclinou-se para o banco traseiro e pegou o rifle. Tirou a manta com que o enrolara. O Remington era um rifle de caça, o pente tinha cartuchos compridos e finos. As balas tinham as pontas achatadas, para se expandirem ao penetrarem na carne, provocando um ferimento fatal no veado. Fariam a mesma coisa com um homem. Len alvejara árvores e ficara impressionado com os danos que as balas causavam, mesmo em madeira.
Ele baixou a janela. Acionou o ferrolho para pôr um cartucho do pente na câmara. Por enquanto, deixou a trava de segurança no. lugar.
Perino passou e foi em direção à entrada de sua casa.
Len puxou a trava de segurança e encostou o olho no visor telescópico. Perino sairia do carro sob as luzes fortes no telhado da garagem. Era um dos lugares em que podia ser baleado: bem na frente da garagem, ao sair do carro. O outro era na porta de casa, quando ficava de costas para a rua, enquanto enfiava a chave na fechadura. O segundo era melhor, pois nesse instante ele estaria parado; e Len decidira que o mataria ali.
Ele constatou que seu julgamento era acertado. Perino era um homem de movimentos abruptos. Saltou do carro, pegou a pasta e a capa, encaminhou-se para a casa: um péssimo alvo. Mas na porta da casa...
E de repente a porta foi aberta de dentro. Duas meninas correram para Perino. Abraçaram-no, aos pulos, puxaram-no para o interior da casa. Outra garota passou pela porta, uma bela adolescente, pegou a mão de Perino. Ele estava cercado pelas filhas.
— Oh, Deus... — murmurou Len.
— Não pode! — sussurrou Trish, estridente.
— Não.
— Haverá outra oportunidade.
— Tem de haver. Hardeman já nos pagou um quarto de milhão de dólares.
8
— Podem suspender por enquanto — disse Loren. — Há fatos novos acontecendo. Talvez seja vantajoso para mim deixá-lo vivo por mais algum tempo. Mas não fiquem com meu dinheiro e esqueçam. Voltarei a procurá-los, mais cedo ou mais tarde.
9
Outra oportunidade não viria tão cedo. Angelo ficou em casa por uma semana, com o filho que quase nunca via e para passar mais tempo com o resto da família. Foram todos à cidade de Nova York para conhecer as paisagens que seus filhos de Connecticut nunca tinham visto: a Estátua da Liberdade, a cidade contempla-da do alto do Empire State Building, Manhattan admirada a bordo de um navio da Circle Line.
Cindy ofereceu a Angelo e a Betsy uma oportunidade de ficarem a sós. Eles não aproveitaram.
Na cama, na terceira noite da visita de Betsy a Greenwich, Angelo murmurou para Cindy:
— Não mereço uma esposa tão perfeita como você. Aceitar meu filho com Betsy...
— Também não sou santa, Angelo.
— Sei disso. Ou pelo menos adivinhei. Dietz? Marcus?
— Por favor. Eu não fiz tantas perguntas a você.
— Não vou dizer que não me importo... mas eu a amo mais, não menos.
Cindy estendeu a mão para a sunga do marido e apertou de leve.
— Eu acho... provavelmente todas as mulheres na família Hardeman. Inclusive Alicia. Mãe e filha. E... Oh, Deus! Até Roberta, hem? E por isso que ela às vezes se mostra tão prestativa?
Angelo sorriu e beijou-a.
— Negócios são negócios.
— Mas você ainda me ama mais do que todas as outras juntas, não é? Eu o amo mais do que todos os outros com quem já estive juntos.
— Eu a amo mais do que todas as outras mulheres do mundo juntas.
Nesse momento de franqueza mútua, desprovido de recrimi-nações, Cindy sentiu-se tentada a falar sobre o aborto. Informara-o sobre a ligadura, explicando que a fizera porque seu médico dissera que não podia mais tomar a pílula. Mas o aborto... não.
Não podia contar a ele.
1 0
Para Van, o ajustamento aos costumes americanos foi fascinante, bem-vindo... e difícil. Não podia acreditar que deveria chamar o sr. e sra. Perino de Angelo e Cindy. John e Anna Perino apresenta-ram-no aos jovens americanos. Espantou-se ao ouvi-los dizerem palavras como "pau", "boceta" e, ainda mais incrível, "foder". Pareciam não ter o menor senso de conveniência ou decoro.
Van corou quando John o levou ao quarto dos pais e mostrou os retratos nus da sra. Perino e dele próprio.
Ao se despedir da mãe e do meio-irmão pequeno, John Hardeman, que voltariam para Londres, Van se perguntou se não ficaria numa terra bárbara, com uma família bárbara.
Mas havia uma pessoa na família Perino que Van achava muito agradável: Anna Perino, de quatorze anos. Era a moça mais linda que ele já conhecera. E não apenas linda, mas também gentil e terna: parecia compreender a confusão em que ele se encontrava e demonstrava compaixão por sua situação. Conhecia Anna há menos de uma semana quando chegou à conclusão de que a amava. Mas não tinha a menor idéia do que fazer a respeito.
Van sentia-se perplexo com a liberdade que os americanos desfrutavam. Ele e Charles viviam no terror de que alguém pudesse descobrir o que faziam à noite. Não tinha certeza se os americanos se importariam.
John levou-o a festas em que os jovens americanos bebiam, usavam drogas, se acariciavam e se mostravam uns aos outros. Só Deus sabia o que mais faziam. Era a liberdade com que sempre sonhara... ele e Charles, que nunca a conheceria porque permaneceria na França por toda a sua vida. A diferença entre ele e Charles e seus novos amigos americanos era a de que os dois se envergo-nhavam do que faziam... enquanto os americanos não sentiam a menor vergonha. Como jovens animais, eles seguiam seus desejos para onde quer que os levassem e pareciam não pensar duas vezes a respeito.
John Perino era íntimo de uma moça chamada Buffy. Seus melhores amigos eram um casal chamado Jeff e Kara. Buffy tinha dezoito anos e iria para Wellesley no outono. Era dois anos mais velha do que John, que só completaria o curso secundário dentro de um ano. Jeff e Kara tinham dezessete anos e também ainda não haviam concluído o curso secundário.
O pai de Kara, que era cirurgião no Greenwich Hospital, possuía uma lancha de trinta pés, que atracava na enseada de Cos Cob. Jeff demonstrara tanta habilidade e responsabilidade com a lancha que o pai de Kara lhe permitia dar um passeio de tarde durante a semana. Numa tarde de quinta-feira, em agosto, os três casais — John e Buffy, Jeff e Kara, Van e Anna — levaram cestas de piquenique para a lancha e partiram para leste, pelo estreito de Long Island. Não tinham nenhum destino específico. Planejavam ancorar em alguma enseada, onde comeriam e talvez tomassem um banho de mar.
As garotas usavam biquínis coloridos. Kara enchia o seu com carne transbordando. Os rapazes usavam White Stag Speedos, bem justos, exibindo orgulhosos suas protuberâncias.
A lancha, chamada Finisterre, podia ser controlada de uma ponte de comando por cima da cabine principal ou de um centro de controle dentro da cabine. Ao sair do atracadouro e deixar a enseada, Jeff manobrou da ponte de comando, de onde tinha melhor visibilidade. Usou uma potência mínima, quase sem deixar ondulações na esteira. Só quando deixou a enseada é que acelerou, fazendo a lancha arremeter para a frente, sobre as ondas.
Os outros cinco ficaram sentados no convés, sentindo nos pés as vibrações dos motores. John abriu uma geladeira e distribuiu garrafas de cerveja.
Quando se encontravam a três quilômetros da praia, passando por Shippan Point, em Stamford, Buffy tirou a parte de cima do biquíni e jogou-a para o lado. Kara imediatamente seguiu seu exemplo. Anna exibiu uma relutância óbvia, mas também reluta-va em ser diferente. Fez a mesma coisa, mostrando os seios pequenos e pontudos de uma garota de quatorze anos.
Kara subiu para a ponte de comando, levando uma cerveja para Jeff.
Van notou que ninguém parecia embaraçado. Ao que tudo indicava, seus novos amigos apenas faziam uma coisa habitual.
Especulou se em seguida os rapazes tirariam os Speedos e se ex-poriam nus. Não tinha certeza se seria capaz de fazer isso.
Enquanto seguiam para leste, pelo estreito, o céu por trás es-cureceu, o vento aumentou e tornou-se mais frio, o mar ficou encapelado. Jeff ligou o rádio na ponte de comando e sintonizou na freqüência da Guarda Costeira.
— Não há nenhum problema — garantiu ele aos outros. —
Uma tempestade de passagem. Vou alcançar as ilhas bem à frente e encontrar uma enseada onde possamos ancorar.
As três garotas foram para a cabine. John e Van foram para a proa, a fim de lançarem a âncora no momento em que Jeff man-dasse. Ao chegarem a uma enseada abrigada, a chuva reduzira a visibilidade a quase zero. Os rapazes estavam molhados quando entraram na cabine. Kara pegou toalhas num armário, e os três se enxugaram. Os Speedos estavam molhados. Jeff e John tiraram os seus. Van hesitou, mas decidiu que pareceria um idiota para os outros se não fizesse a mesma coisa. Jeff ajoelhou-se no fundo da cabine, abriu uma porta na antepara e pendurou os calções em ganchos no compartimento do motor, onde o calor os secaria.
As garotas pegaram sanduíches e batatas fritas, os rapazes abriram mais cervejas. A lancha balançava nas ondas crescentes, mas não havia qualquer ameaça.
— Muito agradável — murmurou Kara, aconchegando-se contra Jeff. Ele passou o braço esquerdo em torno dela, cobriu seu seio com a mão. — Hummm... — sussurrou ela. — Ainda mais gostoso.
John inclinou-se e beijou os mamilos de Buffy, deixando-os brilhantes com a saliva em sua língua.
Van virou-se para Anna e percebeu a apreensão nos olhos dela.
Passou o braço por seus ombros, ela sorriu, tímida, deu-lhe um beijo rápido no rosto.
Enquanto comiam, os jovens americanos falaram de suas escolas e da iminente temporada do futebol americano. Todos riram ao tentarem explicar a Van os elementos fundamentais do futebol americano.
Assim que Jeff e Kara terminaram de comer seus sanduíches e de beber as cervejas, desceram por uma pequena escada e abriram a porta para uma cabine estreita.
John e Buffy deitaram no sofá ao lado direito da cabine principal e começaram a se beijar e acariciar.
Van beijou Anna. Era a primeira vez que a beijava na boca.
Ficou emocionado. Os olhos escuros e solenes de Anna fixaram-se nos dele, e ela ergueu os lábios macios e úmidos, convidando-o a outro beijo. Ele queria tocar naqueles pequenos seios à mostra.
Mas... o irmão dela estava no outro lado da cabine!
John baixara a parte de baixo do biquíni de Buffy. Apertava a bunda pequena e firme.
Van, gentilmente, encostou a mão direita no seio esquerdo de Anna. Ela ofegou, mas não se afastou, não tentou repelir sua mão.
Apenas fitou-o nos olhos, com uma crescente solenidade. Ele tornou a beijá-la. Relaxaram, recostaram-se no sofá, continuaram a se beijar.
A chuva diminuiu, a visibilidade ao redor da lancha melhorou. Van e Anna podiam ver as ilhas ao redor, a praia no continen-te. Havia outras embarcações ancoradas nas proximidades, e Van se perguntou se as pessoas nelas estariam fazendo a mesma coisa.
A porta foi aberta, Jerf e Kara subiram a escada, sorrindo.
— Os próximos!
John e Buffy desceram para a cabine da frente. Jeff e Kara sentaram e abriram mais duas cervejas. Van e Anna disseram que não beberiam mais, por enquanto. Jeff sorriu, malicioso, e comentou...
— Não circuncidam todo mundo na Europa, não é?
— Não. Só se os pais pedirem expressamente.
— Aqui todo mundo tem de fazer. É a lei.
— Não é, não — garantiu Kara.
— Sempre ouvi dizer que era — insistiu Jeff.
— Meu pai é médico. Deve saber dessas coisas.
— Pensando bem, nem todos os caras na escola são circun-cindados. De qualquer forma... não fizeram isso com você, hein, Van?
— Não. — Os outros três olhavam para seu pênis e ele sabia que estava corando. Era demais, mas não tinha como escapar. —
Em Amsterdam, onde nasci, é considerado apenas como um ritual religioso.
— Fazia algum esporte na escola?
— Como assim?
— Praticava algum esporte?
— Claro. O rúgbi especialmente.
— Não é um jogo duro?
— Pode ser muito duro. Já ouviram a piada a respeito? O rúgbi é um jogo de arruaceiros, praticado por cavalheiros. O futebol é um jogo para cavalheiros, praticado por arruaceiros. E o hóquei no gelo é um jogo para arruaceiros, praticado por arruaceiros.
Os outros riram. Van sentiu-se contente por terem desviado a atenção de sua virilha.
Jeff retomou sua explicação sobre o futebol americano.
John e Buffy subiram. John acenou com a cabeça para Van.
— Ahn... talvez... — murmurou Van.
— Não seja tão tímido — disse John. — Anna não é.
Uma lâmpada na antepara iluminava a cabine. Era pequena, quente e aconchegante. Tinha dois beliches estreitos, quase não havendo espaço para se ficar de pé no meio. Van e Anna deitaram de frente um para o outro. Ele ficou embaraçado ao descobrir que seu membro ereto se comprimia entre as pernas dela. Anna não deixou transparecer qualquer consternação, apenas o fitou com aqueles fascinantes olhos escuros e ofereceu a boca para um beijo.
Van beijou-a com ternura, com mais ternura do que ardor, e sussurrou:
— Anna, não vamos tirar o resto do seu biquíni.
— Não — respondeu ela. — Não devemos.
— Mas pode tocar em mim, se quiser.
Anna pegou o pênis e instintivamente soube o que tinha de fazer. Apenas um minuto passou até ele ejacular em sua mão e pernas.
— Anna, quero que você saiba que a amo. Não sairei com outras garotas até termos idade suficiente para casar.
XXVIII
1989
1
Alicia convidou a família Perino para o jantar do Dia de Ação de Graças. Seu neto Van Ludwige viera de Harvard e estava hospedado em sua casa. Todos se reuniram na sala de estar, diante do fogo crepitando na lareira formal, margeada de mármore. Comeram hors d'oeuvres e tomaram drinques.
Angelo e Bill Adams se afastaram do grupo para alguns minutos de conversa particular.
A Froelich & Green finalmente apresentara sua oferta. Era de 625 dólares por ação, sob a condição de que a F & G adquirisse um mínimo de 51 por cento das ações da XB Motors. O preço seria pago com 150 dólares por ação em dinheiro, 400 dólares em opções de ações da Froelich & Green e 75 dólares em notas promissórias.
— Eu já começava a pensar que eles tinham desistido — comentou Angelo, tomando um gole do seu martíni.
— Encontraram alguma dificuldade para levantar o dinheiro — explicou Bill. — Espalhei notícias que não os ajudaram.
— Mas acabaram conseguindo — disse Angelo.
— Há alguns caras muito espertos trabalhando com eles. Pro-videnciaram os cento e cinqüenta milhões de dólares necessários se todos os acionistas da XB Motors aceitarem a oferta. Podem garantir as promissórias. Venderam bastantes títulos especulativos para ter uma cobertura. As opções é que são duvidosas. Cotaram sua ação a quatrocentos e cinqüenta dólares e oferecem opções a quatrocentos. Mas as opções podem não ter qualquer valor.
— Se a ação deles não valer quatrocentos dólares.
— Exatamente.
Angelo sacudiu a cabeça.
— Não compreendo como esses caras conseguem levantar o dinheiro. Mas Boesky já está na cadeia. Milken vai para lá. O mundo precisa estar cheio de otários.
— Inclusive um chamado Loren Hardeman Terceiro — arrematou Bill Adams.
2
Nem Van nem Anna podiam ocultar o que seus olhos diziam a qualquer um que fosse bastante sagaz para observar. A maneira como ela o fitava e a maneira como Van a cercava, atencioso e afetuoso, eram ostensivas demais.
— O que está havendo entre aqueles dois? — perguntou Angelo a Cindy, quando ficaram a sós em seu quarto.
— Estão apaixonados.
— Mas ela só tem quatorze anos!
— Van prometeu que não sairia com outra garota e esperaria até ela ter idade suficiente para casarem. Anna fez a mesma promessa.
— Essa não! Não me diga que eles...
— Não. Arina jura que não, e acredito nela. Disse que tiveram muitas oportunidades no verão passado, mas concordaram em não fazê-lo. Eu gostaria de poder dizer a mesma coisa sobre John e Buffy Ele não me conta nada, mas estou convencida de que já aconteceu.
— Eu comecei aos dezesseis anos — comentou Angelo.
— Você nunca pediu minha biografia íntima, mas perdi a virgindade... perdi? Não é a maneira certa de dizer. Eu a dei com a maior satisfação quando tinha quatorze anos.
Cindy postou-se diante de um espelho comprido, examinando com olhos críticos as marcas vermelhas na cintura deixadas pela meia-calça que usara durante toda a tarde e noite. Levariam horas para desaparecer. As cintas-ligas não deixavam marcas assim. Ela resolveu não usar mais meia-calça. Também evitava os sutiãs ao máximo possível; e quando usava, era transparente e leve, não muito apertado, para evitar as marcas.
— Talvez tenhamos sorte, de certa forma, Angelo. Nossos filhos parecem ser monógamos. Na era da AIDS não se pode deixar de pensar nisso.
— Eles também não usam drogas... ou será que estou enganado?
— Anna toma uma cerveja de vez em quando. Foi ela própria quem me contou. Imagino que John bebe também coisas mais fortes. Mas ainda não vi qualquer problema.
Angelo estava deitado na cama, esperando por Cindy. Balançou a cabeça.
— Já fiz uma porção de coisas na vida, mas nunca consumi cocaína. Houve uma época em que fumei maconha, mas não passou disso.
— Eu também. No tempo em que acompanhava as corridas eu costumava partilhar baseados. Não se podia viver com aquela turma sem fazer isso. Mas nunca experimentei nada mais pesado.
— Quer saber de uma coisa? Somos um casal de velhos chatos. Daqui a dois anos estarei com sessenta!
Cindy fitou-o e sorriu. Ele deitava de costas na cama e seu pau, de pé por trás do saco, parecia vagamente com a estaca por trás dos dois últimos arcos na quadra de croqué.
— Ainda é jovem e bonito, meu marido. Quer me fazer um favor?
— Qual?
— Deixe que Amanda o pinte. Porei o retrato de John em outro lugar e o seu ao meu lado.
Angelo passou as mãos pelo rosto.
— Se eu puder encontrar tempo — disse ele, com um gemi-do zombeteiro.
3
— Trinta e sete milhões! — berrou Roberta. — O que aconteceu com os duzentos e vinte milhões?
— Já discutimos isso — protestou Loren, impaciente. — Mais dezenove milhões das promissórias. O que dá cinqüenta e seis milhões. E a ação da Froelich & Green vale quatrocentos e vinte e cinco dólares. Quando exercer minhas opções, receberei mais cento e seis milhões.
— Se acredita nisso, então acredita também na fada dos dentes.
— Mesmo que eu receba apenas trinta e sete milhões, não terei de pagar o imposto de ganhos de capital e acabarei como um homem rico, que pode se aposentar com conforto, em companhia da mulher que ele ama, em algum lugar em que possam contemplar o mar.
— O mar porra nenhuma! Que mar? Vamos viver cm Paris!
Roberta estava de porre. Loren a encontrara bêbada quando chegara em casa. Por alguma estranha razão, ela vestia uma blue jeans, algo que nunca fazia, e um sutiã branco simples. Não estava apenas embriagada, mas num porre total. O próprio Loren exagerara no scotch antes de voltar para casa, mas ela perdera o controle, chorava e dizia palavrões, as pernas trôpegas.
Não havia como argumentar com ela, não quando se encontrava naquele estado. Loren já a vira de porre antes, mas nunca como agora.
E nada que ela dissesse poderia fazer qualquer diferença. Naquela tarde ele assinara os papéis, vendendo suas 250 mil ações da XB Motors para a Froelich & Green. O cheque de 37.500 mil dólares estava no banco, em suspenso até 1o de março. As promissórias e opções também se encontravam no banco.
Os conselheiros da Fundação Hardeman haviam sido consul-tados por telefone, e ele obtivera autorização para vender também as ações da fundação. Depositara 52.500 mil dólares numa conta condicionada para a fundação.
O negócio estava fechado. As condições já haviam sido aten-didas. Ele vendera sessenta por cento da XB Motors para a Froelich
& Green: ou seja, o controle acionário. Era por isso que Roberta estava tão transtornada. Acostumara-se a dominá-lo. Mas uma coisa era amarrá-lo na cama e bater em sua bunda com um cinto; outra muito diferente era tentar intimidá-lo nos negócios.
— Já está feito, Roberta. Você disse que eu tenho tino para os negócios. E disse várias vezes. Pois foi o que demonstrei agora.
— Só fez isso porque odeia Angelo Perino mais do que ama a companhia que seu avô construiu!
Loren sorriu.
— Aquele filho da puta e seu carro elétrico estão liquidados.
Agora, se eu puder acabar com ele...
4
Betsy pegou um táxi no Aeroporto Kennedy e seguiu direto para a casa dos Perinos em Greenwich. Aceitou um martini e sentou na sala de estar, quase em lágrimas.
— Está acabado! Ele vendeu. Tinha lacaios suficientes entre os conselheiros da Fundação Hardeman para...
— Não tem nada acabado — declarou Angelo. — Aqui está o Wall Street Journal de ontem. Primeira página. Leia.
A reportagem dizia:
Aquisição da XB Motors Contestada na Justiça Pelo Procurador-Geral de Michigan
Especial para o Wall Street Journal De Jane Loughlin
A venda das ações da XB Motors pela Fundação Hardeman foi contestada numa ação judicial apresentada ontem pelo procurador-geral de Michigan, Frank Fairfield. Uma injunção temporária, concedida de imediato pelo Juiz Homer Wilkinson, do Tribunal Geral de Detroit, impede por enquanto que a Froelich & Green, Incorporated assuma o controle do quarto maior fabricante de automóveis dos Estados Unidos.
A Fundação Hardeman, instituída pelo primeiro Loren Hardeman, o fundador da Bethlehem Motors, antecessora da XB Motors, possui 35 por cento das ações da XB. Essas ações constituem o único patrimônio da fundação. As ações quase nunca são negociadas e seu valor estimado vai de 800 a 550 dólares por ação. A Froelich & Green ofereceu 625 dólares, dos quais apenas 150 em dinheiro, sendo o restante em promissórias e opções.
A petição do procurador-geral descreve as promissórias e opções como sendo "de valor altamente duvidoso". De qualquer forma, continua a petição, os fundos beneficentes no estado são obrigados por lei a investir em tipos determinados de títulos. As promissórias e opções, alega o procurador, não atendem às exigências das normas legais de Michigan.
"A Fundação Hardeman é o principal apoio de maternidades, escolas profissionais e centros de retreinamento de trabalhadores em várias cidades de Michigan", disse Fairfield. "Não podemos ficar de braços cruzados e deixar que seu patrimônio seja dilapidado."
Loren Hardeman IH, o neto do fundador, comentou que de vez em quando, ao longo dos anos, a grande companhia deixou de pagar dividendos ou pagou dividendos mínimos. "Esta venda proporciona à fundação mais de cinqüenta e dois milhões de dólares em dinheiro", disse ele. "A fundação pode investir esse dinheiro em blue-chips e títulos do governo, passando a contar com uma base melhor que agora para suas obras beneficentes."
O advogado Paul Burger, que já integrou o Tribunal Superior de Michigan, representando vários acionistas minoritários, inclusive o vice-presidente executivo da XB, Angelo Perino, e a filha de Loren Hardeman III, Elizabeth, Viscondessa Neville, discordou e declarou que a venda "acarreta um grave risco para a Fundação Hardeman".
— Mas vamos ganhar a ação? — indagou Betsy. — A Froelich
& Green, com toda certeza, estudou a lei antes de levantar o dinheiro e apresentar a oferta.
— Eu diria que eles pensaram que tudo estaria acabado antes que alguém pudesse detê-los — comentou Angelo. — Eu diria que Loren não acreditou que você e eu pudéssemos recorrer ao procurador-geral de Michigan.
Betsy sorriu, insinuante.
— Como conseguiu isso, Angelo? Amigos de família?
— Não. O procurador-geral trabalhou por dois anos com Paul Burger, quando ele era juiz. Outra coisa que seu pai e os amigos dele não sabiam.
Betsy bateu no jornal com um dedo.
— Mas esta ação tem uma base sólida?
— Se Paul Burger acha que tem, então tem mesmo — respondeu Angelo, com absoluta convicção.
Loren sentava à sua mesa na sede da XB. Estivera bebendo e tinha um copo com scotch em cima da mesa. Ali estavam também Herbert Froelich, James Randolph, diretor da Fundação Hardeman, e Ned Hogan, advogado da companhia. Os outros haviam recusado polidamente sua oferta de um drinque.
— Qualquer que seja o resultado, esta ação judicial vai se prolongar por anos — disse Loren. — Enquanto isso, o sr. Froelich votará por meus vinte e cinco por cento das ações, e Jim Randolph pelos trinta e cinco por cento da fundação. Com esses sessenta por cento e três dos cinco conselheiros, podemos livrar a companhia de uma vez por todas de um vice-presidente executivo que teve a desfaçatez de estimular uma ação judicial contra nós... isso e aquele seu projeto ridículo de um carro elétrico.
— Receio que não — disse Randolph. — Aqui está uma citação que recebi ao passar pelo portão.
Ele entregou o documento a Hogan e acrescentou:
— O tribunal designou um interventor para cuidar do patrimônio da fundação até que a ação judicial seja decidida. O
interventor é Benjamin Marple, vice-presidente assistente do City Bank de Detroit. Até o final do processo, ele votará pelas ações da fundação.
Fazendo um esforço para focalizar, Loren virou-se para o advogado.
— Esse papel é válido?
— É uma ordem judicial — respondeu Hogan. — Marple deve zelar pelo patrimônio da fundação etc. etc, e apresentar relatórios mensais ao tribunal. Não pode vender patrimônio sem a aprovação expressa por escrito do tribunal. Ele votará pelas ações da fundação na XB Motors.
Loren ficou vermelho.
— Está me dizendo que perdemos o controle da XB Motors?
Hogan confirmou com um aceno de cabeça.
— Até uma nova decisão judicial.
Loren olhou para Froelich.
— O que você quer fazer? — perguntou ele, apreensivo.
Froelich sacudiu a cabeça.
— Receio que não tenho opção que não invocar a cláusula do nosso contrato que anula a operação se não pudermos assumir o controle acionário.
— É uma questão que permanece em aberto até o final do processo — ressaltou Loren.
— Não é, não. Nossa oferta é válida até 1º de março de 1990.
Se até então o controle acionário não for vendido à Froelich & Green, Incorporated, a oferta perde sua validade. Entreguei um cheque de trinta e sete milhões e quinhentos mil dólares, mas foi depositado no banco sob condição. Se até lº de março...
— Estou fodido! — berrou Loren.
6
Foi o que ele também gritou para Roberta assim que passou pela porta da frente da casa.
— Estou fodido!
Ela sacudiu a cabeça. Roberta estava sóbria, embora tivesse um scotch numa das mãos, um Chesterfield na outra. Vestia uma calça branca justa e uma suéter branca volumosa.
— Não, Loren, não está fodido. Acalme-se.
— A partir de hoje estou trinta e sete milhões e quinhentos mil dólares mais pobre do que ontem e você me diz que não estou fodido? Angelo Perino mais uma vez! Angelo Perino me sacaneou!
— Não está fodido, Loren. Tem suas ações de volta. Valem quatro vezes mais que os trinta e sete milhões. Em vez de um quarto do valor e uma porrada de papéis imprestáveis emitidos por um bando de safados, você possui vinte e cinco por cento da XB Motors. Pessoalmente, estou grata a Angelo Perino e você deve ficar também.
Loren tirou o sobretudo preto e deixou-o cair no chão do vestíbulo.
— O homem fodeu minha filha e me fode em todas as oportunidades que encontra. Preciso da porra de um drinque.
Ele deixou o vestíbulo, atravessou a sala de estar e entrou na sala íntima.
— O que você precisa mesmo é relaxar. Tire as roupas, amor.
Vai fazer com que eu me sinta bem, e depois farei com que você se sinta bem.
Por um momento, Loren ficou parado no meio da sala, fitando-a nos olhos.
— Preciso realmente de um drinque. — Ele começou a se despir. — Não acabou entre Perino e eu. Ainda vou acabar com ele, mais cedo ou mais tarde. De um jeito ou de outro.
— Use seu cérebro, Loren — declarou Roberta, com firmeza, enquanto lhe servia um scotch. — Apenas por uma vez, pense com o cérebro, não com sua raiva. Ajude Angelo a fabricar um carro novo e revolucionário que possa fazer com que a ação da companhia valha mil dólares, ou até dois mil dólares! Pode se tornar tão rico que nenhum Ford chegaria perto de você. Lute contra ele e pode matar a galinha dos ovos de ouro.
Loren estava nu quando pegou o copo com scotch.
— Quero que me garanta uma coisa, Roberta.
— O quê?
— Que ele não trepou também com você.
— Loren... Essa não! Angelo Perino? Não, meu amor. Por que eu haveria de querer Angelo Perino quando tenho você?
— Prefiro morrer a perdê-la, Roberta — sussurrou Loren, enquanto caía de joelhos diante dela. — Prefiro até perder a companhia. Perino pode ficar com tudo. Eu só quero você. Preciso de você.
Ela se inclinou e acariciou o rosto de Loren, depois deixou que ele beijasse suas mãos.
— Deve escutar mamãe — murmurou ela. — E o que quero que você faça neste momento é relaxar. Vamos, amor, relaxe. Quer que eu esquente um pouco sua bunda?
As lágrimas escorriam pelas faces de Loren quando ele levantou os olhos e acenou com a cabeça.
XXIX
1990
1
— Toda a família é degenerada — comentou Alicia para Angelo. — Todos sem exceção, até minha filha. Betsy tem pavio curto. Devo lhe avisar.
— O que Betsy quer, Betsy consegue.
— Exceto a única coisa que ela queria mais do que qualquer outra... casar com você. Betsy é capaz de odiá-lo, Angelo. E, como sabe, é bem tênue a linha entre o amor e o ódio.
Há mais de dez anos que ele fazia questão de visitar Alicia de vez em quando, informando-a sobre as atividades da XB Motors.
Afinal, ela possuía cinco por cento das ações, e na maioria das empresas isso fazia com que a pessoa fosse uma importante acionista.
Uma ou duas vezes por ano eles encontravam tempo e oportunidade para se esgueirarem até o quarto de Alicia e deitarem na cama, às vezes apenas se beijando e se acariciando, mas em outras se despindo e fazendo sexo. Ela não se mostrava indiferente, mas também não vivia para as ocasiões em que podia fazer amor com Angelo Perino.
Angelo saíra de cima dela pouco antes, Alicia acendera um cigarro e desatara a falar sobre os Hardemans.
Das três esposas de Loren, pensou Angelo, Alicia era a mais satisfatória na cama. Lady Ayres fora uma atleta, às vezes violenta. Roberta era instável e exigente. Alicia era apenas uma companhia agradável, tranqüila e íntima. Não cobrava. Entregava-se li-vremente, por completo, experimentava um prazer óbvio. E mais ainda, Angelo podia perceber que ela se preocupava com o prazer dele. Loren cometera outro de seus erros ao renunciar à mãe de Betsy
— Acho que teria sido melhor se Elizabeth... e me refiro à esposa de Número Um... tivesse vivido mais. Nunca a conheci, é claro. Ela morreu antes de Loren nascer. Mas pessoas que a conheceram disseram que ela era uma influência estabilizadora.
— Foi o que meu pai disse.
— A família degringolou, Angelo. Pode ter começado quando a Elizabeth de Número Um morreu.
Angelo acenou com a cabeça.
— É possível.
Alicia pôs o cigarro num cinzeiro na mesinha-de-cabeceira.
Acariciou o rosto de Angelo... não a virilha; nunca o tocava ali depois que faziam amor.
— Meu neto, Van — murmurou ela. — Está apaixonado por Anna.
— Foi o que me disseram. Eles são muito jovens.
— São a chave para tudo, Angelo. E se casassem e tivessem filhos? Isso resolveria tudo. O filho de Betsy. A sua filha. Deve salvar a companhia para eles. Esse é o ponto.
— Estamos sendo um pouco prematuros, Alicia. Os dois ainda são crianças.
— Van é também neto de Loren. Quando ele descobrir que seu neto está apaixonado pela filha de Angelo Perino e pode casar com ela um dia...
Angelo balançou a cabeça e sorriu, irônico.
— Já entendi.
2
A assembléia de acionistas de 1990 da XB Motors foi convocada para a segunda-feira, 13 de fevereiro de 1990. Como ainda faltavam duas semanas e um dia para a oferta da Froelich & Green expirar e a ação judicial do procurador-geral de Michigan perder a validade, a intervenção na Fundação Hardeman permanecia em vigor. Benjamin Marple, não James Randolph, votaria pelas ações da fundação. Loren quisera adiar a assembléia, mas os estatutos da companhia não permitiam.
Betsy estava presente, com as mesmas procurações que apresentara no ano passado. Angelo também compareceu, além de Loren e Roberta.
O primeiro assunto na pauta era a eleição dos conselheiros.
Betsy falou:
— Os atuais conselheiros são meu pai, Loren Hardeman Terceiro, sua mulher, Roberta Ford Ross Hardeman, James Randolph, Angelo Perino e eu. O sr. Perino e eu somos conselheiros porque os acionistas minoritários exerceram seu direito de voto cumulativo... o que tornaremos a fazer este ano. Proponho que meu pai, sua esposa, o sr. Perino e eu sejamos reeleitos. Proponho também que o sr. Randolph seja substituído pelo sr. Marple.
Marple, que era um homem compacto, com cabelos prematuramente brancos, sacudiu a cabeça.
— Milady — disse ele, tratando Betsy por seu título formal
—, sinto-me lisonjeado, mas não posso servir como conselheiro da XB Motors. Como minha intervenção vai expirar dentro de duas semanas, não mais estarei envolvido nos negócios da companhia. Não poderia dar ao cargo o tempo que exigiria.
— O que eu quero, sr. Marple, é um conselheiro que não seja lacaio de meu pai — declarou Betsy — O próprio fato de o sr.
Randolph concordar com o negócio oferecido pela Froelich & Green lança dúvidas sobre sua integridade, sem falar na compe-tência.
— Está indo longe demais! — berrou Loren.
— O conselheiro representando a fundação deve ser alguém com um julgamento firme — continuou Betsy. — Não peço que o lacaio de meu pai seja substituído por alguém ligado a mim.
Precisamos de um conselheiro neutro.
Paul Bürger sugerira que ela e Angelo efetuassem essa manobra.
Marple não votaria pelas ações da fundação para conceder o controle da XB Motors aos acionistas minoritários, dissera ele; mas provavelmente concordaria com a eleição de um conselheiro neutro.
— Tem alguém em mente? — perguntou Marple. — Isto é, além de mim.
— Pensei que era o homem perfeito, sr. Marple — respondeu Betsy, presenteando-o com um sorriso cativante. — Não me con-centrei numa alternativa. Angelo...?
— Tenho uma idéia. Uma das nossas maiores revendedoras é a de Louisville, Kentucky., que pertence a Thomas Mason. Tom era revendedor do Sundancer. Número Um o conhecia e respeita-va. Seria ótimo se tivéssemos um representante de vendas no conselho. Thomas Mason trabalha conosco há décadas e conhece o negócio pelo ângulo das vendas. Já temos uma representação das áreas de projeto, fabricação e finanças. Podemos aproveitar alguém de vendas.
— Creio que também o conheço — murmurou Loren, hesi-tante.
— Lembro dele — acrescentou Betsy. — Conversamos quando estive aqui para a reunião com os revendedores em... quando foi mesmo? Seja como for, proponho o nome do sr. Mason para o conselho.
— Ei, espere um pouco! — protestou Loren. — É uma proposta que surge de repente, sem qualquer análise prévia. O que sabemos sobre esse sujeito? Como podemos ter certeza de que ele servirá se for eleito?
— Imagino que ele se sentirá lisonjeado — sugeriu Betsy.
Ela já sabia disso. Junto com Angelo, falara com Mason pelo telefone no dia anterior. Ele enviara seu currículo, que fora analisado naquela manhã. Tom Mason formara-se em Marketing na Universidade de Kentucky Servira por quatro mandatos na assembléia legislativa do estado. Pertencia ao conselho de várias companhias de Louisville. Tinha qualificações que impressiona-riam Benjamin Marple.
— Acho melhor adiarmos a assembléia por duas ou três semanas, até termos a oportunidade de investigá-lo e interrogá-lo — propôs Loren.
Betsy sorriu e sacudiu a cabeça.
— Boa tentativa. Sem muita sutileza, mas competente. Proponho um adiamento até duas horas desta tarde. Durante esse período, podemos telefonar para o sr. Mason e perguntar se ele está interessado. Se estiver, ele viria de avião para cá amanhã, poderíamos entrevistá-lo, examinar suas qualificações e nos reunirmos na quinta ou sexta-feira para decidir.
Loren ficou furioso.
— Não vejo motivo para não conversar com o homem —
disse Marple.
Ele votou a favor da proposta de Betsy. Tom Mason voou para Detroit, trazendo o currículo que Angelo e Betsy já tinham visto. O interventor ficou impressionado. Na quinta-feira, ele votou pela eleição de Mason para o conselho.
Na sexta-feira, os cinco conselheiros se reuniram. Loren foi eleito presidente do conselho e Angelo presidente executivo da XB Motors.
3
Angelo alugara um apartamento de luxo em Detroit. Passava tanto tempo ali que concluiu que era um desperdício ficar em hotéis. Advertiu Betsy para não ir a esse apartamento. Queria desencorajar possíveis investigadores particulares, pois duvidava que Loren tivesse desistido de fotografá-lo junto com Betsy.
Angelo esperou no apartamento até oito horas antes de sair para jantar, pensando que ela telefonaria e poderiam se encontrar em algum lugar. Como Betsy não ligasse, ele foi para o Red Fox Inn — recordando que fora o restaurante de onde Jimmy Hoffa desaparecera —, pediu um filé e uma garrafa de Châteauneuf du Pape.
4
Betsy tinha um programa diferente para aquela noite.
Quando Tom Mason apareceu na porta de sua suíte no Renaissance Center, ela vestia uma calça preta justa e uma suéter larga, que a todo instante escorregava de um ombro, sugerindo que a qualquer momento poderia cair de ambos.
— Srta. Betsy.. Perdoe-me por não chamá-la de viscondessa qualquer coisa. Angelo Perino vai jantar conosco?
— Acredite ou não, ele é pai de cinco filhos e voltou correndo para Connecticut, por algum motivo.
— Ahn...
— Sente-se, Tom. Bourbon?
Tom Mason sorriu.
— Acredite ou não, sou um kentuckiano diferente. Prefiro scotch.
— Gosta de martínis?
— Eu costumava tomar — murmurou ele, com um sorriso infantil.
Betsy retribuiu ao sorriso.
— Venha até aqui me ajudar. Com gelo picado?
— Isso mesmo, srta. Betsy.
— Pode prepará-lo para mim, por favor?
Tom pôs-se a trabalhar.
— O que aconteceu, srta. Betsy? Tive a impressão de que tiramos a companhia do controle de seu pai.
— Tem toda razão... a menos que ele recupere as ações da fundação, o que pode acontecer. E se não parar de me chamar de srta. Betsy, vou brigar com você.
— Que tal Lady Neville?
Ela riu.
— A Honorável Viscondessa Neville. Que idade eu tinha quando me conheceu, Tom?
— Vinte, vinte e um anos.
— Quando Angelo me conheceu eu tinha dezesseis. Ele me chamou de Betsy até... ele é o pai de meu filho John. Sabia disso?
— Ouvi falar.
— Então não me chame de srta. Betsy, Tom.
Eles sentaram com os martínis. Betsy trouxe da geladeira uma bandeja com queijos, frutas e biscoitos... fornecida pelo hotel.
— Não o trouxemos a Detroit para se tornar submisso a mim e a Angelo. Já ressaltamos isso. Angelo e eu o indicamos porque queríamos alguém que pudesse usar seu julgamento e cérebro.
Ben Marple foi o voto fundamental, e ele o aceitou só por causa disso. Angelo e eu queríamos alguém que pudesse discordar de nós, mas discordaria por motivos válidos, não apenas por ser o fantoche de meu pai. A companhia passará a ser dirigida de uma maneira diferente.
— Se me dá licença de dizer isso, já não era sem tempo.
— Número Um era um monstro, Tom. Acho que você não faz a menor idéia.
— Tenho idade suficiente para me lembrar que o Henry Ford original era um grande admirador de Hider.
Betsy concordou:
— Por outro lado, tudo depende das pessoas que formarem o conselho.
— Se bem conheço Angelo, ele vai dirigir a companhia com mão de ferro.
— Enquanto durar.
Tom terminou de tomar seu martíni ao mesmo tempo que Betsy. Ele pegou a coqueteleira e serviu os dois.
— Fale-me sobre o carro elétrico — pediu ele.
— Angelo terá de lhe falar a respeito. Não será um carro para velhinhas, posso lhe garantir. Tudo depende disso. E no início pode depender de você, de seu voto como conselheiro.
— Tenho o maior respeito por Angelo.
— Eu também, Tom. Queria casar com ele, foder com ele em todos os momentos possíveis. Mas eu gostaria do seu julgamento se esse carro elétrico é ou não... se é vida ou morte para a XB Motors.
Tom balançou a cabeça, tomou a metade do segundo martíni.
— Onde vamos jantar? — perguntou ele.
— Aqui mesmo. Não seria sensato se fôssemos vistos juntos num restaurante de Detroit.
— Ahn...
— Tom... — ela sorriu de novo. — ...nas poucas ocasiões em que nos encontramos, você pareceu passar a metade do tempo olhando para os meus peitos.
— Ahn... desculpe, srta. Betsy.
— Quer mesmo vê-los?
Betsy mexeu com os ombros, deixando a suéter deslizar.
5
Em sua casa, Loren deitou com a cabeça no colo de Roberta e chorou.
— Os desgraçados me tiraram a companhia! — queixou-se ele, várias vezes.
— Só temporariamente, Loren. Tome este drinque. Vai fazer com que se sinta melhor.
Às três horas da madrugada, quando Roberta estava dormindo e roncando, ele desceu e telefonou para Len Bragg.
— Pensei que tivesse desistido da idéia — resmungou Bragg, sonolento e impaciente.
— Não desisti de nada. Disse a você para ficar de prontidão.
Tem outro plano?
— Trish voltou a Greenwich e tornou a observá-lo. Podemos acertá-lo quando ele sair numa manhã de segunda-feira. As crianças não o acompanham até o carro. Enquanto ele estiver largando a mala e a pasta no carro.
— Pois acerte-o!
6
Alexandria McCullough era a ruiva dos computadores que Roberta vira com Angelo no bar do Hyatt Regency Hotel, em Houston. Ela trabalhara para a Texas Instruments, mas era agora uma consultora independente. Aos quarenta e quatro anos, era uma corredora determinada, que cobria oito quilômetros todas as manhãs, qualquer que fosse o tempo. Tinha o corpo firme. Bebia e comia tudo o que quisesse, mas mantinha o corpo duro e esguio, porque além de correr todos os dias ainda malhava numa academia três noites por semana. Tinha os cabelos flamejantes, os olhos azuis claros. O rosto era redondo, os lábios franzidos, sardas pontilha-vam as faces e a testa.
Ela e Angelo trabalharam durante a tarde inteira em seu escritório e agora jantavam no restaurante do Hyatt Regency, ao lado do saguão. Haviam comido ostras e agora consumiam patas de caranguejo.
— Sou uma ecologista convicta — comentou ela para Angelo. — É por isso que seu carro elétrico me interessa muito. Não vai poluir a atmosfera com a queima dos produtos de combustíveis de hidrocarboneto.
— De onde virá a energia que usaremos para carregar as baterias? As usinas termoelétricas ainda queimam combustíveis fósseis.
— De uma maneira mais bem controlada. De qualquer forma, assim que os fanáticos antinucleares saírem de cena, passare-mos a gerar nossa energia da fissão e fusão... além de usarmos a energia solar, aquática e eólica.
— As baterias também são minha preocupação, é claro — comentou Angelo. — Tenho examinado células combustíveis, sistemas de baterias giratórias e células de lítio e polímeros.
— Não posso ajudá-lo na tecnologia de bateria. O que posso fazer é mostrar como usar a tecnologia de computador para obter o desempenho máximo de sua fonte de energia.
— Um motor elétrico em cada uma das quatro rodas — disse ele, resumindo o que haviam discutido naquela tarde.
— Cada motor usando apenas tanta potência quanta for absolutamente necessária. Qualquer pessoa ao volante sabe que se rola para a frente em boa parte do tempo sem usar a potência do motor... não apenas ao se descer uma ladeira, mas também ao se aproximar de um sinal de trânsito com a transmissão em neutro.
Você dispende energia para pôr uma tonelada ou mais de aço em movimento, depois a desperdiça ao frear. Sua idéia é usar essa energia cinética para acionar um gerador e recarregar. Minha contribuição é desenvolver um sistema de computador que analise a necessidade de energia e a use instantaneamente, aproveitando cada erg de energia para movimentar o carro.
— Quatro motores... — murmurou Angelo.
— Um carro virando à direita é levado pela roda dianteira esquerda, com alguma ajuda da traseira direita. Por que a potência nas rodas dianteira direita e traseira esquerda quando não estão participando do trabalho? Você aciona as rodas que estão contribuin-do com alguma coisa além de sustentarem o peso do carro... e deixa as outras descansarem, pelo menos em questão de potência. Mas é preciso um computador para analisar o que está acontecendo com bastante rapidez e distribuir a potência de acordo.
— Podemos obter...
— Já sei, Angelo. Um automóvel convencional não usa mais que vinte por cento de sua energia com eficácia. Por que não usar noventa por cento com eficácia?
— Alex, você me assusta.
— Você é que me assusta, seu garanhão italiano. Sabe que a reputação corre na sua frente. Mas tenho uma surpresa para você.
Estou apaixonada e cem por cento comprometida... com Lucy.
Angelo pegou a mão de Alexandria.
— Talvez isso torne mais fácil para nós trabalharmos juntos.
Ela acenou com a cabeça.
— Talvez. Não posso negar que me sinto curiosa. Mas... —
Alexandria deu de ombros. — Se Lucy não se incomodasse...
— Converse a respeito com Lucy. Enquanto isso, vamos nos concentrar em automóveis.
7
Na manhã da segunda-feira seguinte, quando Angelo saía de casa, Len Bragg e Trish Warner esperavam na estrada. Desta vez usavam um Cadillac preto comprido, alugado no aeroporto de Newark. Haviam se registrado no Holiday Inn de Fort Lee, Nova Jersey, de onde seguiram para Greenwich às quatro horas da madrugada. Desta vez não conseguiram ser tão precisos na hora e tiveram de andar de um lado para outro da estrada, à espera das luzes se acenderem na casa dos Perinos.
O que finalmente aconteceu, e Len pôde ver, através do visor telescópico, Perino e a esposa se movimentando dentro da casa.
— Oh, Deus!
Len avistou o reflexo bem a tempo e enfiou o rifle por baixo do banco, ao máximo possível. O reflexo era das luzes piscando de um carro da polícia, que parou atrás deles.
O guarda se adiantou. Trish baixou o vidro.
— Estão perdidos ou qualquer coisa assim? — indagou o guarda.
— Isso mesmo. — Trish tivera a presença de espírito de des-dobrar o mapa de Greenwich em seu colo. — Round Hill Road?
O guarda sacudiu a cabeça.
— Estão muito longe de lá. Deixe-me mostrar no mapa.
Enquanto o guarda explicava a Trish o caminho para a Round Hill Road, Len simulou interesse, mas manteve os calcanhares empurrando o rifle com toda a força.
— Obrigada. Acho que posso encontrar agora.
No momento em que eles se afastavam, Angelo Perino saiu de casa e entrou em seu carro. O carro da polícia seguiu-os por alguns minutos... porque o guarda estava desconfiado ou porque queria se certificar de que não errariam o caminho, eles jamais souberam.
— Porra! — murmurou Len. — Mas que azar!
— Azar coisa nenhuma. Tivemos sorte. Já imaginou se ele visse o rifle? Bastaria olhar para baixo.
— Perino é que teve sorte. O filho da puta tem uma vida encantada.
8
— Despesas. Tivemos despesas. Esse foi o acordo: meio milhão, mas as despesas correm por nossa conta.
— E quanto do meu dinheiro já gastaram? — perguntou Loren.
Ele estava reunido com Len e Trish em seu carro, no estacionamento de um centro comercial. Não ousava levá-los para o escritório ou para sua casa. Roberta nada sabia sobre eles.
— Também devemos ser compensados pelo tempo que gas-tamos.
— Quanto?
— Em torno de quinze mil dólares.
— Ou seja, vocês ainda têm duzentos e trinta e cinco mil dólares?
Len acenou com a cabeça.
— Por aí.
— Posso supor que não tencionam devolver o dinheiro?
— O negócio está cancelado?
Loren respirou fundo, franziu o rosto e pensou por um longo momento. Ao final, sacudiu a cabeça.
— Não podem mais agir na casa de Perino. Aquele guarda pode muito bem ter ficado desconfiado. Quem sabe? Pode até ter falado com Perino sobre vocês, dado o aviso.
— Onde mais então? Não pode ser em Detroit e não pode ser em Greenwich...
— Vamos deixar em suspenso por algum tempo. Voltarei a procurá-los assim que tiver uma idéia.
XXX
1991
— Boa tarde. Meu nome é Robert Carpenter. Tenho o prazer de falar com a sra. Perino?
Cindy levantou os olhos de uma pilha de gravuras do século XVIII que examinava na galeria. O homem era alto e louro, os olhos azuis fixados atentamente nela, com um sorriso sensual.
Tinha uma barba grisalha rente e vestia-se com elegância, num terno cinza escuro listrado e colete creme de tartã.
Ela acenou com a cabeça e deixou-o ver um sorriso cauteloso.
— Um de seus concorrentes me disse que pode ter algumas figuras DeCombes. Eu as aprecio bastante. Tenho uma e estou pensando em adquirir outra.
— Temos três DeCombes. Estão na galeria ao lado. — Cindy fechou a pasta com as gravuras. — Vou lhe mostrar.
François DeCombe era um escultor que fazia bronzes pequenos e refinados, no estilo realista tão favorecido pela Galeria VKP.
Os três DeCombes ali eram uma figura de vinte e cinco centímetros de um garoto deitado de barriga para baixo, lendo, uma bailarina do mesmo tamanho na ponta de um pé, e um nu maior, de um homem barrigudo, ao final da meia-idade, deitado de lado, com uma perna levantada, também lendo.
— Muito boas... — murmurou Robert Carpenter, enquanto contornava as esculturas, estudando-as com os olhos contraídos.
— Temos também um catálogo — informou Cindy. — Podemos pedir qualquer coisa que ainda não foi vendida. E ele também trabalha por encomenda. Pode dizer o que quer e ele fará a peça. Mas sugiro que vá a Quebec visitá-lo se fizer isso. Terá de ser bastante específico. Também seria uma boa idéia ver o modelo em barro antes que ele passe para o bronze.
— Quais são os preços destas três peças, sra. Perino?
— O garoto deitado e a bailarina estão a quinze mil dólares cada. O homem custa vinte e cinco mil.
Carpenter sorriu.
— Comprei minha figura há quatro anos. Vejo agora que fiz um bom investimento.
— É verdade. Os preços de DeCombe estão bem mais altos agora. Ele ganhou alguns prêmios e teve uma exposição individual no Centro Pompidou. Esse tipo de coisa sempre eleva os preços.
— Mais do que a morte — comentou Carpenter.
— Pelo menos sob um aspecto — concordou Cindy.
Carpenter soltou uma risada.
— Vou deixar meu cartão. Posso estar interessado em comprar uma destas figuras... a bailarina, eu acho.
Ele ofereceu um cartão.
Robert J. Carpenter
Hollyridge Drive, 100
Los Angeles, Califórnia 90068
— Se eu decidir comprar, mandarei um cheque e é claro que não esperarei receber a obra enquanto não for compensado. O preço é estável?
— Todas as peças DeCombes têm um preço estável.
Ele olhou ao redor.
— Sua galeria é muito interessante. Acho que vou dar uma olhada.
— Permita que eu lhe mostre algumas coisas que considera-mos muito interessantes.
Mais tarde, durante um almoço no Quilted Giraffe, ele preen-cheu um cheque de quinze mil dólares.
Roberta tirou a bailarina DeCombe da embalagem. Cindy a acondicionara com todo cuidado, numa caixa de madeira rechea-da com maravalhas. Carpenter a trouxera de Nova York no avião como bagagem de mão.
— Quinze mil dólares... — murmurou Loren, balançando a cabeça.
— O primeiro pagamento — comentou Carpenter. — É bem pequeno. Terá uma tremenda coleção de arte.
— Já que decidiu fazer isso, Loren — interveio Roberta —, não pode economizar e esperar que dê certo.
— Além do mais — acrescentou Carpenter, fazendo uma pausa para tomar um gole de Courvoisier —, o que tem aqui vale até o último centavo dos quinze mil dólares. Pode vender neste momento por doze ou mais, com a maior facilidade... talvez até pelos quinze. Dentro de dois ou três anos, valerá de vinte a vinte e cinco. Pense nisso como um investimento. Meus honorários e despesas é que nunca mais tornará a ver.
— É linda — comentou Roberta. — Não podemos lamentar os quinze mil dólares.
— Suponho que não descobriu coisa alguma — resmungou Loren.
— Claro que não. Nem mesmo disse que sabia que o marido dela está na indústria automobilística. Não fiz perguntas pessoais, nem ela. Falamos apenas sobre arte.
— Quando tornará a vê-la? — indagou Loren.
— Não antes que você faça outro depósito em minha conta no United Califórnia Bank. Depois... ora, seria um erro aparecer cedo demais, não é mesmo? Pelo menos não antes de um mês.
— Quem ela pensa que você é?
— Um homem que aprecia obras de arte e tem dinheiro para comprá-las. Se a questão aflorar, é provável que eu diga que sou um corretor de iates. ´É uma atividade bastante obscura para desencorajar qualquer tentativa de confirmação.
— Ainda tem algum problema?
— Só um. Marcus Lincicombe. Ele me olhou de uma maneira estranha. Não posso imaginar onde teria me visto antes da visita à VKP, mas o mundo da arte é pequeno, um autêntico clã. Não é impossível que tenhamos nos cruzado em algum lugar e ele se lembre.
— Disse que nunca havia trabalhado no Leste ou na Europa.
— Nunca ensinei em qualquer outro lugar além do Sudoeste e Califórnia. Mas Lincicombe, eu suponho, pode ter vindo à Califórnia para alguma exposição ou festival e...
— Está bem, professor. Vamos torcer para que não. Onde ficará até sua próxima viagem a Nova York?
— Em casa, é claro. Ainda sou um professor de história da arte. Tenho de dar aulas. E uma exposição a preparar. — Ele sorriu. — E também tenho uma falsificação muito competente para esconder.
— Não corra nenhum risco, professor — recomendou Loren.
— Trabalha para mim agora, por muito dinheiro. Adie as vendas de falsificações até que nosso negócio seja concluído.
— Creio que posso tirar uma licença-prêmio de um ano no próximo ano, a fim de me dedicar em tempo integral ao seu projeto.
— Faça isso. Não gosto de empregados de meio expediente e de compromissos parciais.
Uma hora depois, Loren estava deitado de barriga para baixo no chão do quarto. Roberta andava pelo quarto, um copo com scotch numa das mãos, um Chesterfield na outra, alternando sua atenção entre a escultura da bailarina e o marido nu, estendido com as mãos algemadas nas costas. Uma mesinha redonda, em que antes havia um abajur, servia agora como pedestal temporá-rio para a peça de bronze.
Ela largou o cigarro e pegou um chicote. Loren se arrepiou todo, mas sorriu e ergueu a bunda, à espera da punição. Roberta brandiu o chicote e acrescentou outro estreito vergão vermelho aos quatro que já marcavam as nádegas.
— Um! — gemeu ele. — Esse foi um pouco demais, meu bem.
— É uma pena que tenhamos de esconder a estátua no quarto — murmurou Roberta.
— Não será para sempre.
Roberta fitou-o. Ele era repulsivo. Há muito que ela deixara de sentir qualquer estimulo em amarrá-lo, algemá-lo e açoitá-lo.
Fazia isso e continuaria a fazer, porque sabia que nunca poderia suportar a vida com ele se não o dominasse.
— O avião de Betsy deve estar chegando. Devemos convidá-la para ficar aqui, Loren. Afinal, ela é sua filha.
— Betsy nunca aceitaria um convite. Se ficasse aqui, em vez de um hotel, não poderia dormir com Perino... ou com quem quer que seja que ande dormindo agora.
— Quero conversar com você sobre a assembléia dos acionistas.
Loren sorriu.
— Talvez seja melhor deixarmos para mais tarde. Não estou exatamente na postura de um executivo, não é mesmo?
Roberta ergueu o chicote acima de seus ombros e acertou-o com força nos ombros. Ele gritou.
— Quero falar a respeito agora, enquanto você está assim.
Quero tentar impedir que destrua a si mesmo.
Loren se contorceu todo, virou o pescoço, tentando descobrir se ela lhe tirara sangue. Tirara.
— Preste atenção — ordenou Roberta. — Com Randolph tornando a votar pelas ações da fundação, você pode reintegrá-lo no conselho.
— Tem toda razão — murmurou ele.
— Pois não faça isso.
— Porquê?
— Randolph era lacaio de Número Um. Agora é seu. O tribunal afastou-o e pôs um interventor em seu lugar uma vez. Pode acontecer de novo. A avaliação dele no negócio da Froelich & Green foi tão obviamente errada que...
— A avaliação foi minha.
Ela golpeou-o nas pernas.
— Faça o que quiser, mas escute o que tenho a dizer. Tom Mason não é um conselheiro ruim. Não é controlado por Perino.
Os revendedores gostam da idéia de ter um dos seus no conselho.
Se o afastar depois de um ano...
— Não tenho o controle do meu próprio conselho!
— Nem deveria ter. Não pode dirigir a companhia como Número Um fazia.
— Não posso dirigi-la de maneira alguma. Pouco a pouco, estão tírando-a de mim.
— Você odeia Angelo Perino. Mas tem de lutar contra ele com habilidade, como fez ao contratar o professor. Dê a isso uma chance de funcionar. Uma confrontação amanhã poderia ser o tiroteio no OK Corral.
— Serei mais esperto do que ele ou vou destruí-lo. De um jeito ou de outro...
3
A assembléia dos acionistas foi uma surpresa para Angelo e Betsy. Loren propôs que os conselheiros atuais fossem reeleitos por mais um ano. Esperavam uma confrontação violenta, mas não aconteceu.
Os conselheiros reuniram-se depois do almoço para ouvir uma apresentação do presidente executivo.
Angelo expôs detalhes específicos, alguns registrados em gráficos.
— Os dias do carro de combustível fóssil estão contados — declarou ele. — Esta é a base de tudo o que tenho a lhes dizer.
As Três Grandes já trabalham em carros elétricos. Sofrem uma intensa pressão do governo federal e da Califórnia para isso.
Somos a quarta empresa na indústria. Entramos nos anos oitenta vendendo um carro dos anos sessenta, o Sundancer, que quase liquidou a companhia. O Stallion é um sucesso maior do que qualquer um de nós poderia esperar. Mas estamos prestes a ingressar no século XXI ainda vendendo carros do século XX. A GM, a Ford e Chrysler podem sobreviver por mais tempo que nós, mesmo fazendo isso. Se estiverem à nossa frente no desenvolvimento do carro elétrico, isso vai nos liquidar. Temos de ser os primeiros.
Os outros conselheiros — Loren e Roberta, Betsy e Tom Mason — não estavam convencidos. Até mesmo Betsy expressou suas dúvidas.
— Está falando em apostar todas as fichas, Angelo — disse ela. — Mas precisamos ter certeza absoluta. As Três Grandes podem cometer erros dispendiosos e sobreviver. Nós não podemos.
Quase ao final da reunião, Tom Mason falou:
— Tenho de pensar se posso vender carros elétricos em Louisville, Kentucky Se eu não puder, então ninguém mais pode, porque sou um bom vendedor de carros. Essa é a chave, não é mesmo? Podemos vendê-los? A questão não é se vão funcionar, mas sim se alguém vai comprar.
— Tom — respondeu Angelo —, não posso citar com exatidão, mas alguém disse uma ocasião que o segredo para vender um produto é fazer algo em que acredite e levar os outros a pensar que era aquilo que queriam durante todo o tempo.
— Estamos considerando um compromisso extenso da companhia — comentou Roberta. — Como você reagiria, Angelo, se eu propusesse o adiamento de uma decisão por seis meses, enquanto você explora a tecnologia e refina sua idéia ainda mais?
— Aceitarei os seis meses, mas com duas condições — disse Angelo. — Primeiro, fica acertado que gastaremos algum dinheiro em pesquisa e desenvolvimento durante esse prazo. E
segundo, fica compreendido que construirei esse carro, com ou sem a XB Motors. Se este conselho decidir não construir o novo carro, pedirei demissão e o farei por minha própria conta.
— Esta companhia possuirá todas as suas pesquisas — declarou Loren.
Angelo sacudiu a cabeça.
— Se minhas conclusões forem rejeitadas, estarei liberado para seguir em frente sozinho. Em outras palavras, Loren, o que a XB tem é o direito à primeira recusa.
4
Antes que o Learjet executivo da XB entrasse na pista, um carro parou ao seu lado, um passageiro adicional subiu a escada e embarcou, antes que qualquer um pudesse verificar quem era.
Era Betsy. O jato pousaria em Boston antes de seguir para o aeroporto de Westchester. Ela voaria de Boston para Londres.
Angelo já comunicara ao piloto e co-piloto que precisaria de privacidade absoluta durante aquele vôo.
Betsy não esperou que o jato percorresse a pista e alçasse vôo para o céu noturno de Detroit antes de se despir.
— Diga a eles para voarem mais devagar — sussurrou ela. — Uma hora e meia não é suficiente para eu lhe dar seu presente de aniversário.
Era mesmo o aniversário de Angelo. Sessenta anos. Enquanto Betsy se despia, ele abriu a garrafa de Dom Pérignon na geladeira por baixo do banco da frente. Também havia caviar ali. Betsy sabia que uma festa de aniversário o aguardava em Greenwich, onde ele estaria em pouco mais de duas horas. Mas lhe prometera, quase ao ouvido do pai, que aquela festa seria melhor.
— Tire logo suas roupas! — exortou ela. — Afinal, não temos muito tempo.
Depois de um rápido brinde com champanhe e um pouco de caviar, eles deitaram no sofá formado pelas poltronas juntas.
— Não posso dar o que eu gostaria que ganhasse em seus sessenta anos, Angelo. Um carro. Um barco. Nem mesmo um relógio. Cindy é uma mulher maravilhosa, mas não... Ora, não importa. Mas há outra coisa que posso lhe dar. Relaxe...
— Betsy..
Ela começou por lamber os colhões, sugando cada testículo gentilmente para a boca, chupando antes de soltar. Com movimentos longos da língua, lambeu o pênis da base até a ponta, depois ao redor. Cobriu-o com a boca, subiu e desceu, sempre sugando.
— Você sabe que eu o amo — murmurou ela. — Nunca foi de outro jeito.
— Eu a amo também, Betsy... Ahn...
Betsy sugou com tanta força que ele parou de falar. Mur-murando palavras que Angelo não podia entender e provavelmente nem deveria, ela subiu e desceu a cabeça, misturando os fluidos que ele começava a produzir com os de sua própria boca.
— Senhor... — a voz fria e firme soou pelo interfone. —
Lamento muito, senhor, mas temos uma ligação do exterior.
Betsy pegou o telefone embutido na antepara.
— Quem...?
Os olhos dela ficaram marejados de lágrimas. Estendeu o telefone para Angelo sem dizer nada.
Ele encostou no ouvido.
— Papai? Aqui é John. — A voz de menino tinha o sotaque de colegial inglês. — Feliz aniversário!
Por um segundo, Angelo foi incapaz de falar.
— Foi maravilhoso de sua parte me ligar.
— Já é muito tarde aqui, como sabe. Liguei primeiro para sua casa. A sra. Cindy deu este telefone para Babá, dizendo que o encontraria num avião. Está mesmo voando, papai?
— Estou, sim, filho, entre Detroit e Boston. Mamãe está comigo. Ela vai pegar o avião de Boston para Londres e chegará em casa amanhã.
Betsy chorava. Angelo fazia um esforço para reprimir as lágrimas.
— Eu queria desejar um feliz aniversário, papai. Sei que tem sessenta anos. É uma boa idade para se ter. Feliz aniversário, papai!
— Ahn... obrigado, John. Foi maravilhoso você me telefonar.
Sei que ligou porque me ama. Eu também o amo. E muito.
— Eu amo você, papai. Quando virá me visitar?
— Estarei em Londres em breve, John. E neste verão vamos passear de barco juntos nos Estados Unidos.
— Que bom! Babá está dizendo que esses telefonemas são muito caros. Vou dizer boa-noite. Já é tarde aqui. Babá teve de me acordar. Boa noite, papai.
— Boa noite, John.
Lágrimas faiscavam nas faces de Angelo quando repôs o fone no gancho. Betsy chorava.
— Juro que não armei isso — soluçou ela.
Ele puxou-a para seus braços.
— Eu gostaria que tivesse. Foi um grande presente de aniversário.
350 HAROLD ROBBINS
— Melhor do que o meu. — Betsy suspirou alto. — Deixe-me acabar de dar o meu..
Angelo beijou-a com ardor. Ela se desvencilhou dos beijos, baixou o rosto para a virilha. Chupou-o com renovada energia. O que ela fazia era quase doloroso. Mas era o melhor tipo de dor que um homem podia imaginar.
XXXI
1991
— Eu gostaria de saber se seria possível conhecer François DeCombe — disse Robert Carpenter a Cindy. — E me pergunto se, quando comprar outra escultura, não terei a maior coleção particular de sua obra.
— Ficará com três. Um homem em Paris tem cinco. Mesmo assim, será um dos seus melhores colecionadores. Se quiser voar até Quebec e encontrá-lo, posso ligar e avisar.
Eles almoçavam no La Grenouille. Carpenter, ao que parecia, era desconhecido em Nova York, mas capaz de obter reservas onde quer que desejasse ir.
— Eu agradeceria. Tenho o maior interesse por ele e me pergunto se aceitaria fazer uma escultura de uma pessoa amiga. Com base em fotografias. Para um presente.
— Não sei. Terá de perguntar a ele. Mas duvido que DeCombe trabalhe com base em fotos. Sempre usa modelos ao vivo. Talvez...
Carpenter sorriu.
— Uma mudança de assunto. Descobri que tenho sido de uma tremenda ignorância. Não sabia que era a sra. Angelo Perino, a esposa de um eminente engenheiro e projetista automotivo, presidente executivo da XB Motors. Pensava que era apenas uma marcband.
— Para ser franca, fui há alguns anos uma fanática por corridas de carros e até piloto de testes. — Ela ofereceu um sorriso largo. — E agora me diga que já foi um homem-rã da marinha, sr.
Carpenter.
— Eu lhe direi que sou Bob e não sr. Carpenter.
— E eu, é claro, sou Cindy.
— Lamento, Cindy, mas nunca fui um homem-rã. A coisa mais aventureira que já fiz foi voar pela Força Aérea... e num enorme e pesado avião de radar. A coisa mais emocionante que já me aconteceu foi conhecê-la.
Cindy sacudiu a cabeça.
— Não, não, não, Bob.
— Desculpe.
— Não vou negar que me sinto lisonjeada. Mas sou a mulher mais comprometida que já conheceu.
Carpenter respirou fundo, fez uma pausa, coroa
— Diga-me uma coisa, Cindy. Quem é aquele homem ali?
Com a mulher de vermelho. Ele me parece familiar.
— É Vincent Gardênia, Bob.
— Tentando mudar de assunto... Pode me perdoar por ter dado a impressão de ser abusado?
— Já conheci abordagens mais grosseiras.
— Não pude evitar.
— Talvez pudesse. Quer que eu ligue para DeCombe?
— Não sei. Acho que vou explorar suas ofertas e ver se há alguma coisa diferente que eu aprecie mais.
Cindy sorriu, maliciosa.
— Sei o que pode apreciar mais. Vamos falar de arte.
2
Em abril, as pessoas não precisavam apresentar passes para ir às praias de Greenwich. O tempo estava quente, mas a água ainda não esquentara o suficiente para se nadar. Van veio de Cambridge no fim de semana e ficou na casa da avó, Alicia. Ele e Anna estavam sentados na areia em Greenwich Point, observando uma tempestade de primavera se concentrar a oeste.
O sol ainda brilhava através de aberturas nas nuvens cinzentas. O mar estava verde e picado, todo encapelado.
Van usava um training azul escuro. Anna vestia um blusão cinza com capuz e um short vermelho. O sol esquentava suas pernas.
Estavam sozinhos ali, exceto por um homem passeando com seu cachorro. Passara por eles com um aceno de cabeça amável e agora se encontrava a uns duzentos metros de distância. Van, com o braço em torno da cintura de Anna, enfiou a mão por baixo do blusão e acariciou os seios. Eram pequenos, firmes e pontudos quando ele os vira e tocara pela primeira vez. Agora haviam se tornado amadurecidos, maiores e mais macios. Anna quase nunca usava sutiã.
Van concluía seu segundo ano em Harvard. Tirava boas notas e tudo indicava que seria aceito se se candidatasse à Faculdade de Direito de Harvard. Ainda não decidira fazer isso, mas era sem dúvida uma opção que vinha considerando. Anna se formaria na Academia Greenwich no ano seguinte.
— Não precisamos necessariamente esperar até nos formar-mos — disse Van. — Podemos casar depois que você terminar seu segundo ano em Radcliffe.
— Temos três anos para pensar a respeito.
— Somos afortunados, Anna. Nossos pais e mães não fazem objeções ao casamento.
— Quero conhecer seu pai.
— Não o vejo com freqüência. Houve um acordo. Ele e minha mãe casaram e se divorciaram, e depois meu pai tornou a casar com a primeira esposa. Sabia disso?
— Sabia. — Ela fez uma pausa, fitando-o nos olhos, com um sorriso largo. — Nossas famílias têm um jeito próprio de fazer as coisas. Sua mãe e meu pai, por exemplo. E há outras... anomalias.
— Somos afortunados — repetiu Van. — Embora meu avô possa ser desagradável. Ele não vai aprovar nossa união.
— Não ouço palavras favoráveis sobre ele — comentou Anna.
— Nem eu. Mas não posso deixar de especular se não há um outro lado da história. Afinal, só ouvimos os comentários de pessoas que o detestam.
— Você deveria procurá-lo.
— Não. Já nos encontramos uma vez. Ele não se mostrou muito amigável.
— Ele ficará furioso quando souber de nós.
— A opinião de meu avô é uma questão de completa indiferença para mim, Anna. Até aprendi a maneira americana de dizer isso: estou pouco ligando.
3
Angelo nunca fechara seu escritório em Nova York. Ainda tinha alguns interesses sem qualquer relação com a XB Motors...
acima de tudo a CINDY, Incorporated, que tinha a licença para fabricar o material de resina epóxi e desenvolvera um mercado próprio. Keijo Shigeto, sempre recebido com hostilidade e desdém em Detroit, era vice-presidente da CINDY, Incorporated.
Três modelos de jatos executivos agora voavam com fuselagens de resina epóxi. O material substituíra a fibra de vidro em quinze barcos de corrida de classe ilimitada. A NASA vinha considerando a possibilidade de usar resina epóxi na fuselagem dos ônibus espaciais da classe Rampart.
Muitas vezes Angelo passava a segunda ou sexta-feira em Nova York. Vários dos negócios da XB envolviam financiamento e re-crutamento, e ele podia cuidar dessas coisas em Nova York melhor do que em Detroit. Estava em seu escritório em Nova York na sexta-feira quando recebeu dois telefonemas, quase que ao mesmo tempo.
O primeiro foi de Tom Mason, de Louisville.
— Leu o Wall Street Journal desta manhã?
— Você é o primeiro a telefonar, Tom. Espero outras ligações.
— Não acredito numa só palavra, mas é terrível.
— Preciso sugerir de onde saiu a história, Tom? Preciso lhe dizer quem está em ação?
— Acha que o homem faria isso?
— Isso e muito mais.
— É preciso tomar uma providência, Angelo. Não podemos permitir esse tipo de coisa.
— Pode deixar que farei alguma coisa, Tom. Não se preocupe.
A ligação seguinte foi de Betsy.
— Meu pai é um desgraçado! — berrou ela pelo telefone —
Um desgraçado!
— Acha mesmo que ele é a fonte?
— Quem mais poderia ser?
— Pretendo tomar providências.
— Diga-me uma coisa: quanto dano ele pode causar?
Angelo fez uma pausa, enquanto respirava fundo.
— A XB Motors depende de financiamento bancário. Esse tipo de merda não facilita nada.
— O que você pode fazer?
— Várias coisas. Loren já deve saber a esta altura que não somos indefesos.
— Fale com Tom Mason.
— Já falei. Ele ligou antes de você.
Houve um momento de silêncio.
— Van telefonou, Angelo. Anna sugeriu que ele fosse para Detroit e confrontasse o avô. Com sua intenção de casar com ela.
Eu disse que não, pelo menos não agora.
— Ela tem dezessete anos, Betsy. Não vai casar com ninguém tão cedo. Vamos lidar com os problemas relevantes quando chegar o momento.
Betsy deixou escapar um suspiro alto.
— Mate o filho da puta, Angelo!
— Em termos figurativos, talvez — respondeu ele.
A matéria que saíra naquela manhã no Wall Street Journal dizia:
Executivo Playboy na XB Motors?
AUDITORES SUGEREM INCONVENIÊNCIAS E
USO INDEVIDO DE RECURSOS DA COMPANHIA
Especial para The Wall Street Journal De Wilma Worth
Bennet & Pringle, uma firma de contabilidade de Detroit que faz auditoria para a XB Motors, Inc., sugeriu que o presidente da companhia Angelo Perino pode ser culpado de mau uso do dinheiro da companhia, usando seus recursos para promover interesses pessoais.
Mason Pringle, sócio sênior na firma de contabilidade, deu essa opinião numa entrevista a esta repórter na última quinta-feira.
Quando o sr. Perino foi eleito para o conselho diretor e depois para a presidência da XB, ficou acertado que o antigo piloto de corridas continuaria a manter seus interesses externos, inclusive uma empresa de consultoria e o controle acionário da CINDY, Incorporated, uma companhia que detém os direitos exclusivos de fabricação de um material de resina epóxi. O
sr. Perino usou esse material no malogrado XB Super Stallion e se propõe a usá-lo outra vez num carro elétrico, que comprometeu a XB a fabricar.
O sr. Pringle sugere que se a XB usar o material da CINDY, Inc. no novo cano, isso envolveria um conflito de interesses, em violação do dever fiduciário dos diretores com os acionistas.
Os auditores sugerem também que Perino usa o jato executivo da XB como transporte pessoal, entre Detroit e Westchester, de acordo com as conveniências de seus diversos interesses. Numa semana típica, dizem os auditores, o sr. Perino chega a Detroit ao final da tarde de segunda-feira ou início da manhã de terça, e voa de volta a Nova York na tarde de quinta-feira ou manhã de sexta. Raramente passa mais de três dias por semana cuidando dos negócios da companhia, dizem os auditores, e consome o mesmo tempo tratando de suas outras empresas e questões pessoais.
O texto acrescentava que o conselho cogitava repreender Angelo Perino na próxima reunião.
4
Durante quase vinte anos Angelo fora um orador convidado pelo menos duas vezes por ano num fórum para banqueiros, conselheiros de investimentos e executivos de grandes corporações.
Eram reuniões semanais, que funcionavam como fontes de informações sobre uma variedade de indústrias. A indústria automobilística era tema pelo menos dez vezes por ano, e Angelo tinha uma reputação de oferecer uma visão global objetiva.
Ele já tinha uma presença acertada nessa reunião para dez dias depois da publicação da matéria, e atraiu uma audiência excepcional. Em circunstâncias normais, não era permitida a gravação dos discursos, mas desta vez Angelo consentiu que se gravasse tudo.
Também consentiu a presença de uma equipe de televisão e a cobertura ao vivo de sua conferência pela CNBC.
O presidente da reunião bateu com uma colher num copo e atraiu a atenção da audiência com uma certa facilidade. As pessoas se encontravam ali para ouvir o que Angelo tinha a dizer.
Usando um terno azul-marinho, camisa branca e gravata listrada marrom e branca, Angelo era uma figura imponente, parado e confiante por trás do pódio, enquanto ajustava o microfone.
— Estou aqui, é claro, para apresentar minhas opiniões sobre a situação da indústria automobilística. Talvez me perdoem se eu tirar alguns minutos para responder ao texto do Journal que me chamou de executivo playboy e insinuou que sou culpado de todas as indignidades. Primeiro, deixem-me dizer que estou satisfeito por ter conhecido Wilma Worth. Quero dar os parabéns a ela pelo relato acurado do que o sr. Mason Pringle tinha a dizer. Não tenho qualquer objeção ao que ela escreveu, com a possível exceção do que poderia ter me perguntado, para tomar conhecimento de meu ponto de vista a respeito. Estou confiante que ela vai relatar minhas declarações hoje com a mesma acurácia e justiça.
A audiência riu... até mesmo Wilma Worth.
— De que questões devo tratar? — continuou Angelo. —
Em primeiro lugar, vamos falar sobre o conflito de interesses. É um problema de integridade. Minha mulher e eu temos o controle acionário da CINDY, Incorporated, e espero usar seus mate-riais de resina epóxi nos novos carros que a XB vai fabricar. Senhoras e senhores, todos os executivos e conselheiros da XB Motors sabem quem possui a CINDY e sabem que terei um lucro razoável com a venda de seus produtos à XB. E tem mais, pelo menos noventa e cinco por cento dos acionistas sabem disso... e quem não sabe só precisava se dar ao trabalho de ler os relatórios anuais que recebe. O conflito de interesses é uma coisa secreta e escusa.
Se todos os envolvidos conhecem todos os elementos da operação, não existe conflito de interesses. E neste caso havia pleno conhecimento.
Wilma Worth batia furiosa — e de forma conspícua — em seu computador laptop. Olhou ao redor e ouviu alguns aplausos esparsos. Muitos ali tinham negócios similares e não gostavam de ouvir aquilo ser classificado de conflito de interesses.
— Por que adquiri a licença do processo japonês de fabricar o material de resina epóxi? A oportunidade foi primeiro oferecida à XB Motors. Mas a direção da XB na ocasião flertava com um corsário financeiro, com o qual a companhia japonesa não estava disposta a negociar. Para não perder a oportunidade, minha mulher e eu investimos recursos pessoais na licença. Talvez tenha sido o melhor investimento que nossas famílias já fizeram, e a XB se beneficia agora do nosso comprometimento de capital de risco.
Os aplausos soaram mais altos.
Angelo fez uma pausa, sorriu, olhou para Wilma Worth.
— Por acaso sou um playboy? Estou sempre viajando entre Detroit e Nova York. Senhoras e senhores, também vou a Tóquio, Londres, Zurique, Houston, Los Angeles e Washington.
Vamos encarar os fatos. Detroit é um lugar atrasado. Podemos fabricar carros ali, mas não podemos financiar a produção ali, não podemos fazer os projetos, não podemos obter as novas tecnologias indispensáveis numa cidade que ainda pensa que o auge da modernidade e progresso é descarregar barcaças de miné-rio transportados com correias.
Ele fez outra pausa.
— Por isso, passo dois ou três dias por semana em Nova York e em outros lugares que não Detroit. E vôo no jato da companhia. Senhoras e senhores, realizo mais trabalho útil numa hora de vôo entre Detroit e Nova York do que em duas horas em qualquer das duas cidades. O telefone quase nunca toca no avião...
embora possa e às vezes aconteça. Acho que os auditores da XB
preferiam que eu passasse meu tempo sentado no aeroporto de Detroit ou no LaGuardia em Nova York, esperando por um vôo comercial. Pois muito bem, meus amigos, os auditores podem enfiar isso vocês sabem onde.
Wilma Worth continuava a bater sem parar no laptop, mas acompanhou as pessoas ao redor nas risadas. Muitas aplaudiram.
Angelo riu.
— Gostariam de pertencer a essa firma de auditoria? Ela pertence ao passado. O Loren Hardeman original, o homem que chamávamos de Número Um, sempre achou que a companhia automobilística por ele fundada era seu feudo pessoal, que podia usar seu patrimônio como bem quisesse. Podia mentir, trapacear e roubar, se assim desejasse, porque a companhia lhe pertencia.
Contratou pessoas que nunca discordavam dele. A partir da próxima semana, a auditoria da XB Motors, Incorporated ficará por conta da Deloite & Touche.
Betsy chegou no Concorde. Foi encontrar Angelo em seu escritório, ao final da tarde. Ele ainda não conseguira se livrar dos telefonemas e partir para Greenwich.
— Ligue para Cindy e avise que você tem de ficar em Nova York. Precisamos conversar, Angelo.
Betsy tinha uma suíte no Waldorf. Chegaram lá às dez horas, e ela pediu o jantar na suíte. Serviu scotch e permaneceu vestida.
— Mentiroso, trapaceiro e ladrão! Meu bisavô era um mentiroso, trapaceiro e ladrão?
— Era exatamente isto — disse Angelo. — Basta um exame dos antigos registros para confirmar. Além disso...
— Além disso o quê?
— Número Um pensava na companhia como um feudo pessoal. Trapaceava com todos com quem negociava, inclusive com o governo nos impostos, porque a Bethlehem Motors lhe pertencia e não tinha de dar satisfações a ninguém do que fazia. Foi um dos últimos dos antigos magnatas ladrões. Henry Ford era pior.
Ainda usando a calça branca de linho com que partira de Londres, Betsy tomou o scotch e avançou pela sala.
— A reputação da companhia não depende até certo ponto da reputação de meu bisavô? Ou melhor, não dependia} Você destruiu a reputação dele hoje. Ainda não vi os jornais da tarde, mas posso imaginar o que dirão.
— Betsy, diga-me a verdade.
Ele nunca a vira chorar antes. Não de verdade. Agora, Betsy largou seu copo e soluçou:
— O que você quer de mim, Angelo? O que você quer?
— Diga-me a verdade, só isso.
— Ele ia me deserdar. E a meu filho. Van. Tencionava deixar tudo para meu pai. Eu... Ele tinha o videoteipe. Você e eu fazendo amor.
— Acho que sei o que você fez, Betsy Mas vamos deixar isso em aberto.
— O que pensa que eu fiz? Adivinhou. Eu o matei. Sufo-quei-o com um travesseiro. Enquanto se debatia, ele sofreu um infarto.
— Foi o que pensei.
— Mas deixei a porra da reputação...
— Por tempo demais. Acabei com isso agora. É o fim de Loren Hardeman Primeiro.
— Você não vai...
— Não vou o quê?
— Não vai me denunciar...
— Acusar a mãe de meu filho de assassina? Mas que idéia, Betsy! Você assassinou o homem. Eu assassinei o nome dele.
— Somos cúmplices? — balbuciou ela.
— Amantes — declarou Angelo.
6
De cueca e T-shirt, Loren limpou a louça e pôs na lavadora, Roberta sentava à mesa da cozinha, fumando um Chesterfield.
Ainda usava o vestido de coquetel do jantar que terminara pouco
— Não posso acreditar que fez isso, Loren. O que estava querendo?
Loren fez um esforço para manter a voz sob controle.
— Vou acabar com aquele filho da puta, de um jeito ou de outro. — Ele pegou seu copo e tomou um gole de scotch. — Vou matá-lo antes que ele me mate!
— Angelo não está a fim de matá-lo. Quer apenas destruí-lo.
— Há alguma diferença?
— É melhor você acreditar que sim. Ele o destrói e conti-nuará a ser o orador de fóruns em Nova York. Você o mata e passará a almoçar numa cantina de prisão pelo resto de sua vida.
Ou pagará enquanto viver a chantagem daqueles vagabundos que se intitulam "detetives particulares". Escapamos impunes com Craddock. Nunca escaparemos com a morte de Perino.
— Ele está roubando tudo que temos!
— Sutileza, amor, sutileza. Carpenter...
— Você e a porra da sua sutileza! Uma ação direta...
— Preste atenção! Seu porre é tão grande que pode cair a qualquer instante. Eu gostaria de uma língua na boceta, mas acho que você não tem condições de resolver meu problema. Não quero que vomite em mim. Preste atenção! Vire-se e olhe para mim!
Olhe para mim! Pois está vendo a única chance que ainda tem!
— Eu amo você, Roberta.
— Quero os nomes e os telefones de seus detetives particulares. E nunca mais tente manter qualquer coisa escondida de mim!
7
Roberta encontrou-se com Len Bragg e Trish Warner no saguão de motel Pontiac.
— É muito simples — disse ela. — Meu marido deu a vocês dez mil dólares para as despesas, mais duzentos e cinqüenta mil dólares de adiantamento pelo meio milhão para fazerem o trabalho. Só que vocês estragaram tudo. Não apenas não conseguiram acertar o alvo, mas também atraíram a atenção da polícia de Greenwich. Quero cento e cinqüenta mil dólares de volta. E quero que desapareçam. Nunca mais farão qualquer contato com meu marido. Nem comigo. E muito menos, é claro, com Perino.
— É esse o acordo? — perguntou Trish, com um sorriso largo-
— Exatamente. Quero a quantia em dinheiro. Esta semana.
Trish sorriu.
— Vá se foder.
— Eu posso acabar com você, mulher — garantiu Roberta, ameaçadora.
— É mesmo?
— É, sim. Levou uma porrada na cara com um cassetete curto há três anos. É mais um dinheiro que o idiota do meu marido desperdiçou: o custo de endireitar seu nariz e rosto... mais ou menos. Quem você pensa que a acertou desse jeito, srta. Warner?
— Roberta fez uma pausa, olhou para Len. — E quem você pensa que acertou uma porrada violenta atrás de sua cabeça? Se me criarem algum problema, transmitirei o aviso de que aceitaram um contrato contra Angelo Perino e tentaram executá-lo duas vezes. Ele pode verificar com a polícia de Greenwich, onde há um guarda que talvez se lembre muito bem de que no ano passado deparou com um carro estranho diante da casa dos Perinos ao amanhecer. — Ela deu de ombros, antes de acrescentar: — Nem mesmo preciso dessa confirmação. Os caras envolvidos aceitarão minha palavra.
— E perguntariam por que aceitamos um contrato contra Perino — ressaltou Len.
— Não necessariamente. Mas mesmo que descobrissem, Perino diria aos caras para acabarem com você, não com meu marido. Há um certo... relacionamento de família.
Len suspirou e balançou a cabeça.
— Tivemos muitas despesas. Que tal a devolução de cem mil dólares, em vez de cento e cinqüenta mil?
— Ninguém jamais me acusou de ser intransigente — declarou Roberta. — Negócio fechado. Mas se algum dia eu tornar a saber de vocês, ou se procurarem meu marido, o acordo fica cancelado.
1991
— Onde está Angelo? — perguntou Amanda.
Ela e Cindy estavam no estúdio em Greenwich. Amanda trabalhava no retrato de um banqueiro de Wall Street. Ele posava quando Cindy chegara, mas agora já tinha ido embora. Amanda continuava a trabalhar, enquanto Cindy bebia um conhaque, sentada no sofá.
— Foi a Houston, se encontrar com uma ruiva deslumbrante.
— Ahn...
— Não tem nenhum ahn. Ela é lésbica.
Amanda riu.
— Também somos, querida.
— A rigor, não. Somos bi. Afinal, sou mãe de cinco filhos. E
você é amante de Dietz há dezoito anos.
— Carpenter...?
— Não. — Cindy sorriu, pensativa. — Ele é muito atraente, mas... Ora, veremos.
— Agradeço a apresentação. Bem que estou precisando de um bom dinheiro.
Amanda ainda vendia suas obras regularmente, mas não era mais uma novidade atraente como ao final dos anos setenta. Cada vez mais fazia retratos por encomenda, alterando as pessoas o suficiente para deixá-las felizes. O banqueiro no cavalete tinha os olhos um pouco mais claros e o queixo mais quadrado do que na realidade. Ela detestava esse tipo de trabalho. Ainda pintava jovens nus, que ainda vendia, mas não havia mais a mesma demanda da ocasião em que a Galeria VKP os apresentara ao público comprador de arte.
Robert Carpenter admirara seus quadros na galeria e dissera que gostaria de conhecê-la. Ele deveria chegar às sete horas. Depois de conversar com Amanda e conhecer algumas de suas obras recentes, os três sairiam para jantar.
Carpenter chegou na hora, até um pouco antes. Usava um terno azul marinho impecável, camisa branca e gravata listrada. Passara muito tempo ao sol em algum lugar, e o contraste vivido entre a barba e a pele fazia quase que um chiaroscuro em vermelho e branco.
— Assim que vi seus quadros, decidi me tornar um colecionador seu, em pequena escala — comentou ele para Amanda, ao pegar o copo de conhaque que ela ofereceu. — Ele franziu o rosto para a tela no cavalete.
— É uma peça do meu período Norman Rockwell — murmurou Amanda.
— Ele pagará muito bem — disse Carpenter, secamente.
— É verdade. Infelizmente, terei de assinar.
— Seus nus são magistrais — disse ele.
— Tenho apenas dois aqui.
— Vendem depressa — informou Cindy.
— Tem algum dos seus adolescentes? Os dois na galeria são fascinantes.
— Lamento, mas não tenho nenhum aqui neste momento.
Mas quero lhe mostrar um quadro... ele é jogador de futebol americano universitário posou para mim no verão passado.
O quadro era de um atleta jovem e corpulento, grosso do pescoço aos pés. Tinha as pernas abertas, as mãos nos quadris, oferecendo seu corpo musculoso para aprovação e dizendo com a inclinação da cabeça e o sorriso insinuante que desafiava qualquer um a não aprová-lo.
— Notável... — murmurou Carpenter.
— E tem este aqui... Ela é garçonete. Espalhou-se a notícia de que pago. E ela tinha perdido uma prestação do carro.
Uma medida do talento de Amanda era o fato de seus melhores quadros serem biografias dos modelos. Qualquer um que olhasse para o retrato da garçonete podia imaginar que a moça posara nua com uma relutância angustiada, tangida pela necessidade. Os cabelos lisos desgrenhados, as sobrancelhas arrancadas e o batom vermelho exagerado sugeriam que ela era desprovida de sofisticação. Fitava a pintora e o espectador com vergonha, mas também com uma evidente deter-minação.
— Incrível! — exclamou Carpenter.
— Um dos melhores de Amanda, na minha opinião — comentou Cindy.
— Conversaremos ao jantar sobre um preço para os dois quadros — propôs Carpenter.
2
— Um lixo! — berrou Loren.
Carpenter olhou para Roberta e depois fitou Loren com um ar despreocupado.
— Acha mesmo? Pois muito bem, então farei uma proposta.
Está me devendo honorários por três meses. Mais três e serão seis. Ficarei com os quadros de Amanda Finch em troca desses seis meses de honorários. Concorda?
— Concordo — respondeu Loren. — Não quero essas porcarias em minha casa.
— Acaba de cometer um erro, Loren — comentou Roberta.
— Estou pouco ligando. O que ganho com estes quadros?
— Algumas coisas interessantes — continuou Carpenter. — Quando estive com a sra. Perino em Greenwich, soube que Perino vem trabalhando com uma expert em computação de Houston, chamada Alexandria McCullough. Encontrarão um vôo para Houston em minha relação de despesas. A formidável Alex McCullough é uma notória lésbica. Mas ela e Perino se tornaram amigos íntimos.
— Não vale o custo — resmungou Loren. — O que mais?
— Também encontrarão um vôo para Londres. A sra. Perino foi bastante franca para informar que o marido iria a Londres. Ele visitou a Viscondessa Neville três vezes durante sua permanência na cidade.
— Ele visitou o filho que teve com ela — disse Loren.
— Talvez. Mas a viscondessa também o visitou no hotel. Passou uma manhã com ele no Dukes Hotel. E naquela noite ele não voltou a seu hotel. Passou-a no Savoy, numa suíte, com a Princesa Anne Alekhine.
— Mas que filho da puta!
Roberta suspirou e balançou a cabeça.
— Isso é mexerico, sr. Carpenter. Interessante, mas não vale o custo de um DeCombe e dois Finchs, mais as despesas.
— Muito bem. Viram o sr. Perino recentemente?
— Estive com ele anteontem — informou Loren.
— Ele tinha uma bandagem na mão esquerda? E se tinha, explicou por quê?
— Disse que estava fritando ovos e a gordura respingou em sua mão.
Carpenter sacudiu a cabeça.
— Ele disse à Viscondessa Neville... e a babá ouviu... que queimou a mão quando uma pelota de lítio pegou fogo. O
hidróxido de lítio é usado para aumentar a capacidade das baterias secas. O metal é corrosivo e se incendeia quando exposto ao ar. É uma substância perigosa.
3
Carpenter dormia há duas horas quando foi despertado por uma batida na porta do seu quarto no motel. Levantou-se com alguma dificuldade, enrolou uma toalha na cintura e foi até a porta.
— Quem é?
— Sra. Hardeman. Abra a porta.
— Não estou vestido.
— E eu estou parada num corredor de motel. Abra logo essa porta!
Ele tirou a corrente de segurança, puxou a tranca e abriu a porta. Roberta entrou no quarto. Usava uma capa por cima da jeans.
— Devo parecer uma vigarista por aqui — resmungou ela.
— Tem scotch
— Sinto muito.
— Sempre tenha scotch à mão. Quando estiver trabalhando conosco, sempre tenha scotch.
Era evidente que ela já bebera algum scotch. Desabotoou a capa e jogou-a na cama. Usava um blusão da universidade de Michigan.
— Vou me vestir — disse Carpenter, encaminhando-se para o banheiro.
— Não precisa se incomodar. Não ficarei muito tempo. Sente-se.
Ele sentou.
— Precisa mudar a maneira como está conduzindo o caso —
acrescentou Roberta.
— Como assim?
— Não queremos saber com quem Perino dorme. Entendido? Não entre nessa. Se puder levar a esposa dele para a cama, ótimo. Mas só para descobrir mais sobre o que ele vem fazendo.
— Pensei que o fato de Perino estar dormindo com...
— Já sabemos disso.
Roberta tirou do bolso um maço de Chesterfield, acendeu um cigarro. Carpenter ergueu o queixo.
— É impossível que eu possa encontrá-lo com alguém que ainda não sabe? É possível que eu possa vê-lo com alguém que não quer que eu saiba?
— Eis uma pergunta que não deveria fazer — declarou Roberta, friamente. — E quero também avisá-lo de uma coisa.
Um detetive particular que seguiu Angelo e a Viscondessa Neville acabou com uma fratura no crânio. A sócia do detetive teve o nariz e o malar fraturados. Queremos informações, não escândalo.
Carpenter balançou a cabeça, pensativo.
— A única informação concreta que obtive veio de um relacionamento com a babá da Viscondessa Neville. Se me diz para ficar longe de suas mulheres, acaba com minha eficiência. Não sou um espião industrial. Contratou-me pela ligação com a arte.
— Para você levar Cindy Perino para a cama — disse Roberta.
— Essa é toda a idéia. Queremos informações. Ela pode lhe contar coisas que queremos saber. Além disso, meu marido quer destruir Angelo Perino. Quando ele descobrir que sua leal e honesta esposa, a mãe de seus filhos...
— Ele vai me matar — disse Carpenter.
— É possível, se você não tomar cuidado.
— Ela não é uma trepada fácil.
Roberta sacudiu a cabeça.
— Não imagino que seja. Mas poderá resistir a um colecionador de arte refinado, com dinheiro para gastar... e que ainda por cima é um belo garanhão?
Carpenter sorriu.
— Sinto-me lisonjeado.
— Ei, o que é isso? Está de pau duro! — Roberta pegou a toalha e puxou-a. Era verdade: o membro enorme de Carpenter estava rígido. — Incrível! Ficou de pau duro por mim?
— Sra. Hardeman...
— Não tenho muito tempo — disse ela. — Quer alguma coisa ou não?
— É um cachorro estúpido...
— ...o que caga em sua própria cama. Esqueça os clichês.
Sim ou não?
— Sim.
— Muito bem. — Roberta tirou o blusão pela cabeça. — Que idade você tem, Bob?
— Trinta e seis anos.
— Estou com cinqüenta e nove. Já tive muitas experiências.
E Cindy Perino também. Deixe-me ver se você é bastante bom para ela. Vamos, suba na sela. Começaremos assim.
Ela se estendeu de costas na cama e abriu as pernas. Ele montou-a, penetrou-a no mesmo instante, sem sequer dar um beijo antes. Arremeteu com os quadris contra ela, indo o mais fundo possível.
A chuva cessara e o céu estava cinzento do amanhecer iminente quando ela deixou o motel. Carpenter estava exausto, mas Roberta exultava.
4
Angelo estava num sofá de pelúcia rosa no apartamento de Alexandria McCullough em Houston. Tirara o paletó, a camisa de colarinho e a gravata, sentava de calça e camiseta, um martíni na mesa à sua frente. Alex estava na cozinha, visível além de um balcão, e cortava vegetais para uma salada. Também tirara a maior parte de suas roupas e trabalhava de sutiã e biquíni brancos. Também usando apenas calcinha e sutiã, sua amiga Lucy estava sentada na frente de Angelo, fumando um cigarro de maconha. Através da fumaça, ela avaliava Angelo Perino.
— Espero que não se ofenda — disse ela a Angelo. — Mas não posso dar minha aprovação. Se Alex quiser se entregar a um homem, não posso impedi-la; mas também não vou emitir uma autorização.
Ele olhou para Alex.
— Se eu quisesse levar isto em consideração, diria que ela deveria ir para a cama comigo, ainda que como uma experiência — disse tão baixo que Alex podia ou não ter ouvido. — Mas isso iria atrapalhar uma linda amizade. Por que deveria fazer isso?
Lucy tinha trinta e oito anos, um pouco mais jovem do que Alex. Embora tivesse abundantes cabelos crespos castanhos escuros, o rosto podia ser considerado masculinizado, quadrado, com um queixo saliente. O corpo estava longe de ser masculinizado.
Ela era professora de aeróbica numa academia local e guarda-vidas na piscina. Se alguma vez já vira uma mulher de corpo perfeito, pensou Angelo, era Lucy.
As duas tinham uma amizade tão completa quanto a de um casal casado. O apartamento não era de Alex, mas delas. Angelo tinha a impressão de que Alex desempenhava o papel feminino no relacionamento, e Lucy, o masculino; mas essa era uma descri-ção simplista do relacionamento. Seria mais preciso dizer que formavam um casal afetuoso — mas não ardente —, com um sincero amor mútuo.
— Ambas somos experientes — disse Lucy. — Não há nada que você possa fazer por qualquer das duas que nós não possamos.
— Exceto engravidá-la — comentou Angelo, secamente.
— Há muitas pessoas para cuidarem disso — garantiu Lucy.
— Em termos culturais, vivemos numa era em que não é necessário que todos procriem. Os antigos israelitas tinham de fazer isso.
Os primeiros cristãos também. Para sobreviverem. Hoje, não há raça ou nação neste mundo que não possa dispensar algumas pessoas desse fardo.
Angelo sorriu.
— Pensa em vocês como uma elite, poupada do trabalho...
— Exatamente — confirmou Lucy.
Alex veio da cozinha. Trazia dois martínis, um novo para Angelo, outro para ela; mas pegou o baseado de Lucy e puxou fundo, antes de tomar um gole de seu copo.
Ela e Angelo haviam terminado um trabalho de dois dias de revisão dos detalhes do projeto do carro elétrico. O computador a bordo ligaria os limpadores de pára-brisa quando fosse necessário, mediria a chuva caindo no carro, ajustaria a velocidade dos limpadores de acordo. Acenderia os faróis quando houvesse necessidade. Reconheceria seis impressões de vozes diferentes e des-trancaria as portas quando recebesse a ordem. Mas todas essas coisas eram secundárias em comparação com a função básica que o computador desempenharia: o uso eficiente da potência do carro.
Alex dissera que o carro poderia aproveitar noventa por cento de sua potência. Faria melhor do que isso.
O grande problema persistente era a fonte de energia. Os projetistas de Angelo vinham experimentando diversas possibilidades. Nenhuma fora adotada até agora.
Alex sentou ao lado de Lucy. Estendendo a mão por trás dela, Lucy desabotoou o sutiã da amiga e começou a chupar seus mamilos.
— Nós o embaraçamos, Angelo? — perguntou Alex.
— Não existe mais nada neste mundo que possa me embara-çar.
— Eu não aceitaria esse seu pau enfiado em mim por nada neste mundo — disse Lucy. — Mas podemos fazer outra coisa por ele. Nós duas, ao mesmo tempo. O que me diz, Alex?
— Acho que nós três adoraríamos — murmurou Alex.
Elas não o queriam no quarto, e por isso Angelo deitou de costas no chão. Enquanto Alex lambia seu pênis, Lucy sugava o escroto. Depois, Lucy meteu-o na boca, enquanto Alex lambia ao redor. Ao final, as duas trabalharam juntas. Lucy sugou e engoliu a ejaculação, enquanto Alex usava os lábios e a língua para limpar.
Angelo sentou no sofá e observou-as chuparem uma à outra.
Foi evidente que tiveram orgasmos múltiplos, enquanto ele só tivera um. As duas sabiam disso e acharam graça... e depois se empenharam em levá-lo a outro orgasmo.
5
— Pelo menos ele não comprou nenhuma obra de arte —
comentou Roberta.
Ela sentava à mesa de Loren, na sede da XB. Loren, o rosto vermelho de raiva, entregara-lhe uma carta para ler. Era de Robert Carpenter e dizia:
Ao final da tarde de 8 de julho, Loren van Ludwige voou para Londres, acompanhado por uma moça de dezesseis anos, Anna Perino, filha de Angelo e Cindy Perino. Chegaram lá na manhã de 9 de julho e foram levados imediatamente para a residência do Visconde e Viscondessa Neville. Nesse mesmo dia, Max van Ludwige chegou de Amsterdam. A conversa na casa durante a visita, segundo minha informante, não apenas sugere mas indica de forma inequívoca que o rapaz tenciona casar com a moça. Eles não partilharam um quarto durante sua estada.
— Meu neto e a filha daquele carcamano! — exclamou Loren, furioso.
— Já desconfiávamos — lembrou Roberta.
— O filho mais velho de minha única filha! Casando com a bisneta do contrabandista de bebida mafioso que vendia uísque a meu avô durante a Lei Seca! Aquela família desgraçada continua ligada a nós! Não entendo como Betsy pode...
— Você fez questão ao longo dos anos de tratar Betsy como um monte de bosta, Loren.
— Ela me tratava como merda! Ela... até teve um bastardo do carcamano! Ela me processou! Ela...
— É sua filha e seria melhor se fizesse as pazes com ela.
1991
O prazo de seis meses que o conselho concedeu a Angelo para resolver os problemas restantes do projeto e apresentar suas recomendações finais expirou no meio do verão.
Todos os conselheiros — o próprio Angelo, Loren e Roberta, Betsy e Tom Mason — estavam em Detroit para a reunião crucial.
— Temos um carro — declarou Angelo. — A única questão é se Tom acha que poderá vendê-lo.
— Como será, Angelo? — perguntou Tom.
Angelo levantou-se e descobriu um desenho num cavalete. O
carro parecia moderno, mas não chegava a exibir uma mudança radical em relação aos carros existentes. Era pequeno e aerodinâmico, mas não um carro esporte.
— O carro do próximo ano — anunciou Tom. — E todos os carros de 1993 serão iguais.
— Projetado na Itália? — perguntou Loren.
Angelo acenou com a cabeça.
— Em Turim, por Marco Varallo.
— Ele anda ótimo — comentou Loren, secamente. — A carrocería do Stallion foi um sucesso. O S Stallion...
Betsy interrompeu:
— OS Stallion não fracassou por causa da carroceria.
— Não se podia ver o desgraçado — insistiu Loren.
— Um ponto discutível — disse Roberta. — Olhando para esse carro... é óbvio que não se trata de um seda da família.
— O seda da família está morto — garantiu Angelo. — Olhem para os carros nas ruas. A vasta maioria leva apenas uma pessoa.
Outros levam duas. É raro ver três ou quatro pessoas num carro.
A van é o veículo da família hoje em dia. E, diga-se de passagem, proponho construirmos uma van elétrica também.
— Já resolveu todos os problemas de engenharia? — indagou Loren.
— Só falta um. As baterias. E...
— Ora, se não tem as baterias, então não tem nada!
— É uma questão de opção — disse Angelo. — Encontrei meios alternativos de impulsionar o carro. Apenas ainda não to-mamos uma decisão sobre o sistema de bateria que funcionará melhor.
— Não acha que está arriscando demais a companhia? — perguntou Roberta. — Tudo o que li sobre o assunto diz que é impossível obter desempenho e autonomia razoáveis de baterias.
— Alexandria McCullough projetou um sistema de computador de bordo que vai permitir o aproveitamento máximo da energia da bateria. Esse é o segredo. O carro usará toda a energia fornecida pela bateria. Os carros de combustão interna desperdiçam até oitenta por cento da energia de seus combustíveis fósseis.
O calor somente dissipa...
— Pode vendê-lo, Tom? — interrompeu Roberta.
— Eventualmente — disse Tom —, teremos de fazê-lo, porque mais cedo ou mais tarde este velho mundo vai deparar com o esgotamento dos combustíveis fósseis... ou pelo menos os líquidos. Meu problema é só um: quanto tempo vai levar para as pessoas compreenderem que este será o carro que terão de guiar, quer gostem ou não? O DeSoto Airflow era o carro do futuro, mas foi projetado quase vinte anos antes do público começar a comprar carros assim. O Cord era um grande carro. E o mesmo se pode dizer do Tucker. Mas... — ele sacudiu a cabeça.
— Se não fizermos este carro, a XB Motors está perdida — declarou Angelo, incisivo.
— Porque você já comprometeu a companhia a fabricá-lo — disse Loren, furioso. — Recursos que poderiam ser aplicados no desenvolvimento de um novo modelo do Stallion foram gastos...
— O Stallion foi até onde pôde ir — afirmou Angelo. — Está próximo de ser um projeto perfeito, do jeito como é. Tudo o que poderíamos fazer agora seria acrescentar novos cromados, reformular os faróis, criar um novo painel de instrumentos e proclamar que é um carro novo. Mas não seria um carro novo. Seria o mesmo carro antigo, com uma reforma cosmética. É o que acontece com cada novo modelo de cada carro do mundo, e o público sabe disso.
— As Três Grandes não parecem propensas a mudanças radicais — comentou Loren.
— Elas podem sobreviver por mais algum tempo sem encarar o futuro — disse Angelo. — Nós não podemos. E por falar nisso, antes do final do século serão as Quatro Grandes.
— Duvido muito. — Loren partiu um lápis amarelo ao meio.
— Há seis meses o conselho lhe concedeu um prazo para desenvolver uma proposta. Nesses seis meses, você agiu como se tivesse autoridade para desenvolver o novo carro, virtualmente redu-zindo o Stallion a ferro velho. Não o autorizamos a nos comprometer. Você o fez apesar disso.
— O coração fraco jamais conquistou uma bela dama — declarou Angelo. — Nem o sucesso num negócio implacável.
— Creio que Angelo cortou nossas opções — sugeriu Betsy, sombria.
— Tom, você é o voto de qualidade no conselho — interveio Roberta. — Foi eleito para isso. Podemos vender o carro?
— Parece-me que não poderemos fazer outra coisa. No final das contas, será tudo o que teremos para vender. Portanto... Tenho muita confiança em Angelo. Não sei de ninguém na indústria que conheça projeto e engenharia automobilística melhor do que ele...
e quando Angelo não sabe, contrata os experts que têm o conhecimento. Podemos vender esse tipo de carro? É o que ele não sabe.
E, para ser franco, eu também não sei. Mas sei de uma coisa: teremos de oferecer algo melhor que o Stallion nos próximos anos.
Mantivemos o Sundancer vivo por tempo demais, e não podemos nos dar ao luxo de fazer a mesma coisa com o Stallion. Temos de apostar nesse caso. — Ele fez uma pausa, fitou Angelo nos olhos e acrescentou: — E no homem que aposta a companhia nele.
— Como vai chamar o carro? — perguntou Betsy.
— Zero-Zero-Zero — respondeu Angelo. — Porque não terá deslocamento de pistom.
2
Betsy foi ao apartamento de Angelo em Detroit naquela noite. Não fazia mais sentido tentar esconder o relacionamento entre os dois.
Ela tirou quase toda a roupa. Nem precisava sugerir que fizessem amor. Sabia que fariam. Circulou pelo apartamento de calcinha preta, sutiã preto, ligas pretas com meias pretas, sapatos pretos.
Pela longa experiência com Angelo Perino, sabia que ele achava esse traje excitante. Angelo preparou os martínis.
— Percebo que está começando a ter dúvidas, Betsy?
— Ocorre-me que estamos jogando tudo o que temos.
— Número Um fez isso. Mais de uma vez.
— Eu não gostaria de me tornar dependente de meu marido.
Angelo sorriu, enquanto estendia um copo.
— É a pior coisa em que pode pensar? — perguntou ele.
— Meu pai ainda quer acabar com você. Ficou furioso quando você despediu os auditores. Foi uma surpresa para mim ele não ter levantado o assunto na reunião.
— Há muito tempo que a companhia precisa de auditores confiáveis e independentes. É melhor você já ficar sabendo: o estado de Michigan vai exigir vima auditoria independente na Fundação Hardeman.
— O que Michigan quer?
— A Fundação Hardeman deveria ser uma entidade independente. Mas nunca foi. Número Um criou-a assim. E foi por isso que seu pai conseguiu usá-la contra ele em 1972. Número Um deu uma boa parcela das ações à fundação... e se beneficiou do desconto fiscal por essa doação de caridade... mas continuou a votar por essas ações como se fossem suas, através de fantoches.
— Meu pai usa a fundação da mesma maneira — comentou Betsy.
Angelo acenou com a cabeça.
— Para controlar a companhia. Ele aceitou me fazer presidente. E eleger Tom Mason para conselheiro. Mas pode se livrar de mim como presidente e de Tom como conselheiro no momento em que quiser.
— Ou seja, na próxima assembléia dos acionistas — disse Betsy
— Isso mesmo.
— Ele não o fará, Angelo. A esta altura, a XB Motors estará tão comprometida no projeto do Zero-Zero-Zero que qualquer tentativa de recuar poderia acarretar a falência. E a XB não pode fabricar o carro sem você.
— Eu bem que gostaria de acreditar nisso, Betsy. Mas ninguém é indispensável. Tenho alguns jovens brilhantes trabalhando no Triplo Zero. Se o Lear caísse e eu morresse, eles poderiam continuar.
— Só que eles não seriam capazes de resistir à oposição.
Angelo franziu o rosto e balançou a cabeça.
— Como Peter Beacon. A aversão que ele tem a mim é quase tão intensa quanto a de seu pai.
Betsy beijou-o com extrema ternura.
— Não deixe que nada lhe aconteça, meu amor — murmurou ela. — Muitas pessoas dependem de você para serem felizes.
3
Roberta recebeu Van no aeroporto em Detroit. Ele nunca a vira antes, e Roberta fora ao aeroporto determinada a não parecer como sua avó, ou avó postiça. Embora não tivesse jogado tênis, foi num traje branco de tenista. A saia curta deixava à mostra as pernas bonitas e bronzeadas. Pequenos pompons rosas nos sapatos sugeriam uma divertida juventude. Tencionava surpreendê-lo e conseguiu.
Guiava um S Stallion. Era um dos poucos que ainda andavam por Detroit.
— Fico contente por termos algum tempo antes do seu encontro com Loren — disse ela, evitando a palavra "avô". — Posso lhe dar uma ou duas idéias.
— E preciso disso?
Van viera em resposta a uma convocação, quase, e não demonstrava a menor sutileza. Roberta desviou os olhos do caminho, fitou-o por um instante, deu de ombros.
— Talvez não. Mas eu lhe direi algumas coisas assim mesmo.
Deve compreender, Van, que você é um Hardeman, quer goste ou não. Eu não sou. Tenho o nome apenas pelo casamento. Por isso, posso lhe dizer que toda a família é muito excêntrica. Não conheceu seu tataravô, que era chamado de Número Um. Nos anos em que o conheci, ele me lembrava o personagem Tibério, como apresentado no filme Calígula, de Bob Guccione.
— Nunca vi esse filme.
— Pois veja. Vou lhe dizer uma coisa sobre os Hardemans.
Eles podem ser... Ora, são corruptos, brutais. Isto é, nem todos, suponho. É difícil acreditar que sua mãe seja uma Hardeman...
exceto por sua vontade inabalável. Seja como for, eles construíram um império industrial do nada; e isso exige certas qualidades. Devem ser implacáveis, sem dúvida, mas também é preciso ter percepção, visão e coragem.
— Meu avô é corrupto e brutal? — perguntou Van, abruptamente.
— Faça o seu próprio julgamento. Eu ia lhe oferecer uma ou duas idéias para ajudá-lo.
— Está certo.
— Loren está desapontado por não vê-lo com mais freqüência. Ele ama sua mãe. Os dois vivem brigando, mas ele a ama.
Deseja que você use o nome Loren, em vez de Van. E gostaria de ter a oportunidade de dar uma contribuição maior à sua vida.
— De que maneira?
— Deixarei que ele próprio diga. Tudo o que tenho a pedir-lhe é que o escute. Não feche a mente. Ele não tem nenhum motivo escuso para querer conhecê-lo.
4
Loren levou Van pela linha de montagem dos XB Stallions.
Usavam capacetes, ambos pintados com o nome Loren. Loren usava um terno escuro. Van usava blazer azul marinho e calça caqui.
— Estes são robôs que fazem soldas — explicou Loren. —
Controlados por computador. Os soldadores humanos, por mais competentes que fossem, às vezes cometiam erros, o que nos custa em termos de controle de qualidade. Estudei esta nova técnica e encomendei-a para esta nova fábrica. Uma solda num Stallion nunca se rompe.
Van estava impressionado. A fábrica era imensa. Intensamen-te iluminada, limpa, sem vapores. Não era barulhenta, como ele pensava que seria. Os homens e mulheres que trabalhavam ali eram quase todos inspetores, verificando o trabalho realizado pelas máquinas que moviam peças e as ajustavam em seus lugares.
Usavam camisa branca, gravatas em listras finas azuis e vermelhas, calça azul marinho, capacete com o logotipo da companhia e escudo de plástico transparente sobre o rosto... o que, naquele ambiente aparentemente sem riscos, parecia desnecessário a Van.
Peças deslocavam-se em correntes no teto e eram baixadas para a linha de montagem nos lugares apropriados. Peças menores eram transportadas pelo chão em carros elétricos, através de percursos marcados, com luzes piscando e campainhas de aviso.
Toda a operação era muito mais ordenada do que Van imaginara.
— Deve compreender... que se às vezes eu parecia remoto e distante, como sua mãe sempre pensou, o motivo está aqui. A XB
Motors não acontece por acaso, Loren. Exige muitas horas de trabalho, todos os dias. Exige um compromisso.
Van acenou com a cabeça.
Deixaram a fábrica, e um motorista levou-os ao escritório de Loren. Um bufê e um bar foram montados, com tudo pronto à espera.
— Fique com o capacete como souvenir — sugeriu Loren. —
Pode não caber em sua bagagem no avião, e por isso mandarei de navio para você. O que vai querer beber?
Van aceitou vm scotch ao estilo inglês, com um pouco de água, sem gelo.
— Lamento termos ficado tão apartados, Loren — continuou Loren Terceiro. — Aceito minha parcela de responsabilidade por isso... a pressão dos negócios e assim por diante, a desculpa universal. Experimente os cogumelos. São feitos assim especialmente para mim. Idéia de Roberta. Ela é uma mulher sensacional...
não que sua avó Alicia também não seja.
Van experimentou os cogumelos, embora se lembrasse de que Claudio morrera por comer cogumelos envenenados.
— Você é um herdeiro do que viu — continuou Loren. —
Talvez não o herdeiro... embora por que não?... mas com certeza um herdeiro.
Van nunca pensara de outra forma. Tomou um gole do drinque e acenou com a cabeça.
— Há uma tradição. Uma tradição de família. Sua mãe é uma viscondessa. Anne é uma princesa. Sou o presidente do conselho de uma grande corporação. Esta família tem um registro de dis-tinção e sucesso.
Van tornou a acenar com a cabeça.
— Loren, você é o quarto com o nosso nome. Eu me sentiria honrado se passasse a usar o nome Loren.
— Estou matriculado em Harvard como Loren. Assino meus cheques como Loren. Mas adquiri um apelido.
Loren Terceiro sorriu.
— Não há nada de errado com isso. Eu não gostaria de lhe contar sobre alguns pelos quais meus amigos da escola me chamavam.
Van pegou um pedaço de queijo.
— Lamento nunca ter conhecido meu tataravô. Tinha apenas seis anos quando ele morreu.
— Ele não era universalmente admirado. Os homens que al-cançam um grande sucesso quase nunca o são.
— Rockefeller... Carnegie... — disse Van.
— Ford — acrescentou Loren Terceiro. — Número Um, como o chamávamos, podia ser um tirano. Mas foi um grande homem. Devemos nos sentir honrados por descender dele.
Van ergueu seu copo:
— A ele — disse.
Loren Terceiro enfiou outro cogumelo na boca.
— Fui informado... de que você mantém um relacionamento íntimo com a filha mais velha de Angelo Perino.
Van inclinou a cabeça.
— Anna e eu somos muito ligados.
— Fico satisfeito em ouvir isso. Não a conheço, mas aceitarei seu julgamento de que é uma boa moça. Angelo Perino é um homem brilhante. Nem sempre concordamos, mas acho que há um respeito mútuo entre nós que supera as divergências.
Van não disse nada. Limitou-se a balançar a cabeça e tomou um gole do scotch.
— Mas peço que se lembre de uma coisa, Loren. Seu tataravô Loren Hardeman Primeiro foi um industrial que construiu uma corporação respeitada no mundo inteiro. O tataravô de Anna foi um criminoso, deportado para a Sicília... e poderia ter sido enviado para uma penitenciária. A família Perino, como se diz, tem cone-xões, indicando uma associação com o crime organizado. Não faz muito tempo contratei um investigador particular para descobrir se Angelo Perino vinha tirando alguma vantagem indevida de sua mãe. Pois esse homem e sua sócia foram espancados até quase a morte, aqui em Detroit. Não sei, é claro, se Angelo pediu para que isso fosse feito. Mas aconteceu
— A Máfia? — indagou Van.
— Não estou sugerindo que Angelo Perino é um mafioso.
Longe disso. Mas achei que você devia ter conhecimento da possibilidade. Pondo isso de lado, espero que você faça um julgamento se o filho de Max van Ludwige e da Viscondessa Neville, herdeiro do nome e reputação Hardeman, deve ter uma estreita associação com o nome Perino. Deixo a seu critério. Tenho certeza de que ela é uma boa moça. As famílias italianas produzem anjos como filhas.
5
Robert Carpenter tirou a cueca e subiu na plataforma de modelo de Amanda. Posar nu fora a única maneira em que pudera pensar de se tornar rapidamente mais íntimo de Cindy Perino.
Concordara em pagar dezoito mil dólares pelo quadro. Loren Hardeman o autorizara expressamente. O quadro seria seu pagamento por mais dois meses de trabalho de rotina e por aquele sacrifício acima e além do cumprimento do dever.
Ele se sentia bastante embaraçado, a tal ponto que não sabia se seria capaz de agüentar. Tinha a respiração ofegante ao observar as duas mulheres, Amanda e Cindy, avaliarem-no como se fosse uma estátua em bronze, usando o mesmo olhar crítico. Em sua carreira como pintor em potencial, depois como professor de história da arte, já vira muitos modelos masculinos e sempre tivera empatia por eles. Sabia para onde ele olhava primeiro, e sabia agora para onde Amanda e Cindy olhavam. Agradeceu a Deus por não ser deficiente nesse ponto, e por não estar barrigudo, aos trinta e seis anos de idade, nem ter carne flácida sob o queixo ou axilas.
— Bob — disse Amanda —, você não se sentiria mais confortável se posasse sentado?
— Como achar melhor — respondeu ele.
— Quer aparecer olhando direto do quadro, ou com os olhos perdidos em algum ponto?
— Bem, eu...
— Ou você diz para o espectador, "Aqui estou, tranqüilo por me encontrar nu, feliz por deixar que me veja", ou diz, "Meu caro espectador, você me surpreendeu. De outra forma, nunca deixaria que me visse nu".
— Ninguém fica de pé e posa hora após hora por acaso —
comentou Carpenter. — Qualquer um que veja o quadro saberá disso. A última coisa que quero é parecer recatado.
— Neste caso, experimente cruzar as mãos nas costas. Não.
Ponha as mãos nos quadris. Incline um pouco os quadris. E agora incline um pouco os ombros para o outro lado.
Carpenter seguiu as instruções. Seu intenso embaraço era tem-perado pelo conhecimento de que Amanda Finch criaria uma obra de arte distinta, que de outra maneira ele não teria condições de possuir. Com os dois quadros que comprara antes e aceitara como parte de seus honorários, teria uma das melhores coleções de Finchs na Califórnia... talvez a melhor. Começou a especular como poderia adquirir mais. Sempre podia tentar vendê-los, é claro... embora duvidasse que algum dia venderia aquele. A rigor, não seria parte de sua coleção, pois não imaginava pendurá-lo onde as pessoas poderiam vê-lo.
— Está confortável? — perguntou Amanda. — Pode manter essa pose por quinze minutos?
— Estou confortável. Mas não é uma pose artificial?
— Talvez seja. Faça uma pose que lhe pareça natural.
Ele apoiou o peso do corpo no pé esquerdo e estendeu o direito para a frente, apenas um pouco, o suficiente para manter o equilíbrio. Levou o polegar e dois dedos para a barba no queixo e encostou a mão direita na coxa direita.
— Perfeito — murmurou Amanda, ela começou a desenhar.
— Gosto de seu senso estético, Bob — comentou Cindy. —
Você aprecia a arte certa; e posando agora exibe uma graça tranqüila que bem poucos homens poderiam alcançar.
6
Os dois estavam deitados juntos no quarto dele no Hyatt Regency, saciados, suados e ofegantes. Bob tinha o rosto no colo de Cindy. Embora estivessem exaustos, ele entreabria os lábios vaginais com os dedos e estudava a configuração íntima, umedecen-do um dedo de vez em quando para explorar ainda mais fundo.
— Tenho uma confissão a fazer, Cindy.
— Faça.
— Nunca tinha feito nada mais difícil em minha vida do que tirar as roupas e me postar nu na sua frente e de Amanda. Quer saber por que eu fiz isso?
— Pensou que, depois de vê-lo, eu não seria capaz de resistir.
Ele sacudiu a cabeça.
— Pensei que criaria uma intimidade entre nós que não poderia obter de outra forma. Depois de me ver assim, eu poderia lhe falar e me escutaria.
— Parece-me que escutei — disse Cindy
— Eu amo você, Cindy. Tem de compreender isso. Não é apenas uma diversão.
Ela ergueu o corpo, apoiada num cotovelo, franziu o rosto para Carpenter.
— Quem é você, Bob? Não minta para mim. Posso descobrir em uma hora. Não é um corretor de iates.
— Meu pai era... e dos mais bem-sucedidos. Sou professor de história da arte por ser um pintor fracassado. Compro obras de arte porque herdei algum dinheiro para me permitir esse luxo.
Aprecio de fato as obras de Amanda. Tenho um pouco de medo do que dirá o quadro que ela está pintando de mim. Serei apresentado como um impostor. Cindy... onde está seu marido?
— Por que pergunta?
— Posso posar para Amanda todos os dias por uma semana, e nós dois poderemos nos encontrar todas as noites por uma semana.
— Angelo está na Alemanha. Voltará para casa na noite de sexta-feira.
— Alemanha? Ele viaja pelo mundo inteiro, hein?
— Tecnologia de bateria — disse Cindy.
1992
Os testes de eficiência de motores elétricos acoplados a baterias, através do sistema de computação McCullough, começaram em março de 1992. Os primeiros OOOs eram apenas chassis de Stallion sem as carrocerías e sem os motores, impulsionados por quatro motores, nas quatro rodas. As baterias eram arranjos de vinte baterias comuns de automóvel, compradas em quantidade da Sears Roebuck. Os veículos circularam pela pista de testes a cinqüenta quilômetros horários, descarregando as baterias, enquanto instrumentos monitoravam a quantidade de energia que saíam das baterias para as rodas.
No primeiro teste, o sistema de computação conseguiu transferir setenta e oito por cento da energia de bateria para as rodas; era uma tremenda melhoria sobre o mais eficiente aproveitamento da energia produzida pelos motores de combustão interna.
As carrocerías do S Stallion foram instaladas sobre os chassis de Stallion: carrocerías leves de resina epóxi. A área do banco traseiro era ocupada por baterias. As carrocerías aerodinâmicas, cortando a resistência do ar, melhoravam a eficiência a tal ponto que a energia transferida através do sistema de computação movi-mentava os carros por quarenta quilômetros numa carga, em vez dos trinta a trinta e cinco alcançados com os chassis sem nada.
A aceleração era lenta. As montagens de baterias proporcionavam sua energia num ritmo controlado, não podiam oferecer surtos de potência.
As baterias eram a chave. Tinham de oferecer potência depressa quando havia necessidade. Precisavam conter mais energia. E não podiam ocupar toda a área do banco traseiro e pesar uma tonelada.
Apesar das rigorosas medidas de segurança em torno da pista de testes, os paparazzi conseguiram tirar fotos dos chassis andando com pilhas de baterias sobre plataformas de madeira compensada por trás do piloto. Também fotografaram os carros com a carroceria de Super Stallion e baterias empilhadas lá dentro. Foi nessa ocasião que o 000 ganhou o apelido de Oh! Oh! Oh!
2
Em maio, Betsy voou de Londres para Detroit, a fim de participar de uma reunião do conselho. O pai convidou os membros do conselho para um coquetel em sua casa. Todos compareceram, Angelo, Betsy, Tom Mason, Loren e Roberta. Cindy foi convidada, mas declinou. Van também foi convidado, mas enviou um pedido de desculpas, alegando que os exames iminentes exigiam sua permanência em Harvard. Peter Beacon, ainda vice-presidente de engenharia da XB Motors, foi com a mulher, assim como James Randolph, diretor da Fundação Hardeman.
A reunião foi amistosa, mas cada convidado parecia determinado a se manter a uma distância polida dos outros. Até mesmo Betsv parecia indiferente a Angelo.
Loren seguira o conselho de Roberta para tentar diminuir a distância que o separava da filha. Ele conversou com Betsy apenas sobre o marido e os filhos.
— Até que ponto é séria a paixão entre Loren e Anna Perino, Betsy? — perguntou ele.
— Suponho que é tão séria quanto pode ser uma paixão entre crianças dessa idade. Ele acaba de completar vinte anos. Ela tem apenas dezessete. Não fizeram sexo, tenho certeza.
— O pai dela o mataria.
— Duvido muito. Ainda não conversei com Angelo a respeito.
— Não tenho qualquer influência no caso, é claro. Meu julgamento não conta. Mas acha que uma aliança entre nossa família e os Perinos seria sensata?
— Eles ainda são jovens — disse Betsy. — Muita coisa pode acontecer daqui até o momento em que tiverem idade suficiente para formarem uma aliança, para usar sua palavra.
— Bem... Como estão seus outros filhos? A pequena Sally?
— Ela quer ser bailarina. É dedicada a essa idéia. A professora diz que ela é bastante boa... desde que não se torne alta demais.
— Não a deixe passar fome num esforço para impedir que isso aconteça.
— Já tenho esse problema. Terei sorte se ela não se tornar anoréxica.
— Eu gostaria de ir a Londres para ver as crianças... todas as crianças.
— Por favor, faça isso — murmurou Betsy, sorrindo contra a vontade.
3
Anna formou-se na Academia Greenwich em junho. Angelo veio de Berlim. Van fora para Londres ao final de maio, mas voou de volta. John Perino, de dezenove anos, voou para a Flórida, a fim de ajudar a avó de oitenta e dois anos, Jenny, a viajar para Nova York. Henry Morris, tio de Anna, compareceu com a esposa e o filho mais velho.
Entre os presentes enviados para Anna havia um pesada pul-seira de ouro de Betsy, que assinou o cartão como "Tia Betsy", e uma fieira de pérolas de Loren, que assinou como "Loren Hardeman III". O presente de Amanda foi um retrato de Anna, para o qual a moça posou por cinco horas. Dietz von Keyserling mandou um netsuke de marfim: uma jovem japonesa cheirando uma flor. Marcus Lincicombe foi à casa para entregar o presente: duas echarpes de seda Hermes.
Bob Carpenter passou o fim de semana da formatura numa suíte no Hyatt Regency. Cindy encontrou tempo duas vezes para passar uma hora em sua companhia.
No gramado atrás da casa ela levou o irmão para um canto, querendo ter uma conversa particular.
— Você tem meios de descobrir coisas — disse Cindy. — Eu também tenho, mas não quero que Angelo saiba.
— O que quer que eu descubra? — perguntou Henry, parecendo mais solene do que o habitual. — Tem algum problema?
— Surpresa! Ficaria espantado se soubesse que sua irmã de quarenta e quatro anos vem se encontrando com um homem?
— Ficaria surpreso se não estivesse.
— O nome dele é Robert Carpenter. É professor de história da arte na Universidade do Estado da Califórnia, em Long Beach.
Parece ter uma abundância de dinheiro para comprar obras de arte. Além disso, parece não passar muito tempo dando aulas.
Não posso deixar de me sentir curiosa.
— Professor Robert Carpenter — murmurou Henry. — Vou investigá-lo.
4
Depois do fim de semana da formatura, Angelo voou de volta para a Alemanha. Alexandria McCullough e Keijo Shigeto o acompanharam. Keijo iria a Turim para se reunir com o projetista. Alex se encontraria em Berlim, ao lado de Angelo, com um fabricante de baterias.
— Estamos próximos de uma decisão a respeito. — Os três estavam sentados no andar superior de um 747, sobrevoando o Atlântico. Angelo virou-se para Alex. — Se puder ajustar seu programa de computador a bateria que vamos ver em Berlim, estou pronto para comprá-lo.
— Tem sido um tanto sigiloso a respeito — comentou ela.
— Tenho é me sentido um pouco frustrado — disse Angelo.
— Precisamos fundir duas tecnologias, ambas de ponta.
Alex atraía atenções. Usava um minivestido verde que realça-va seus cabelos ruivos, e as pernas que apareciam por baixo da saia curta eram espetaculares. Os homens sentados no salão inveja-vam Angelo. Não podiam imaginar que o coração dela pertencia a Lucy.
— Acho que teremos de usar a célula de lítio — continuou Angelo. — Resolve a maioria dos nossos problemas.
Keijo acenou com a cabeça.
— Tudo sólido — disse ele. — Não há perigo do ácido de bateria se derramar no caso de um acidente.
— Funciona a frio e quase não gera calor — acrescentou Angelo. — Trabalha com a mesma eficiência no dia mais frio do inverno ou no dia mais quente do verão.
— Quanto a célula vai pesar? — indagou Alex.
— Estou prevendo mais de trezentos quilos.
— E a aceleração?
— É onde entra a segunda tecnologia. Vamos complementar a célula de lítio com uma bateria volante. A bateria vai receber a corrente elétrica da célula de lítio e usá-la para girar uma roda sobre rolamentos magnéticos. Gira a trinta mil rpm ou por aí.
Tem duas grandes vantagens. Primeiro, pode proporcionar um surto de potência de repente, para aceleração. Segundo, recaptura uma energia que de outra forma seria perdida... no momento de frear, por exemplo.
— A coisa não começou a se tornar um tanto complexa? — perguntou Alex. — Muitos fatores têm de dar certo.
Angelo deu de ombros.
— Um motor a gasolina não é complexo? Você precisa bom-bear o combustível líquido de um tanque, vaporizá-lo, misturá-lo com a quantidade certa de ar, levar para cilindros, explodir o vapor com uma faísca no momento certo, aproveitar a potência da explosão, descarregar os vapores...
— Et cetera — interrompeu Alex. — Certo. Quando tudo isso era uma tecnologia nova, não funcionava direito.
— Tem que ser testado de maneira exaustiva — concordou Angelo. — Ser testado e testado e testado.
5
No bar do Bristol-Kempinski Hotel, em Berlim, Angelo olhou para o relógio.
— Vou ter de deixá-la — murmurou ele para Alex.
Ela sorriu.
— Espero que aproveite, quem quer que ela seja.
— Ela é adorável, mas será um encontro profissional. Você também é adorável, mas...
— Será que sou a única mulher que conheceu que não se mostrava ansiosa por ter seu pau entre as pernas? — perguntou Alex.
— Seria embaraçoso admitir quantas vezes já fui recusado.
— As outras provavelmente eram como eu. Compreendo a atração. Se eu quisesse um homem...
Angelo sorriu.
— Por favor!
Alex olhou para a porta do bar.
— Vai se encontrar com aquela mulher elegante que está ali?
Ele sorriu e confirmou com um aceno de cabeça.
— Eu a verei pela manhã, Alex. Assine a conta. A XB está pagando.
Angelo encaminhou-se para a mulher elegante, que era a Princesa Anne Alekhine. Ela estendeu a mão, que Angelo virou para beijar a palma.
— Estou interrompendo alguma coisa? — indagou ela, lançando um olhar para Alex.
— Ela sabe tudo de computador. Contratei-a como consultora.
— Consultora de quê?
— Não no que está insinuando. Ela pode se interessar por você, mas nunca por mim.
Anne olhou para Alex.
— Ela..?
— Isso mesmo.
Eles deixaram o Bristol-Kempinski e foram andando pela movimentada Kurfürstendamm, com uma multidão ansiosa, ad-mirando as mercadorias nas vitrines. Anne passou o braço pelo de Angelo, ignorando tudo que não fosse ele. Angelo lembrou como ela possuía uma capacidade quase singular de focalizar sua atenção.
Anne estava hospedada num dos hotéis mais antigos e tradicionais, o que os alemães chamavam de hotel-parque. Foram direto para o quarto, que era um perfeito exemplo da idéia teutônica de luxo no século XIX: as paredes cobertas por painéis de carvalho escuro, dois chifres de veado montados nas paredes, uma cama pesada e escura sobre patas de leão, três palmeirinhas em vasos e um retrato do Kaiser Wilhelm a cavalo, usando seu capacete com ama ponta de ferro em cima.
Anne despiu-se no meio de tudo isso, mas ficou de ligas, meias e sapatos. O contraste entre a mulher e o quarto era dramático.
Fazer amor com ela era invariavelmente memorável. Mais uma vez, Angelo observou que a elegância e a moderação não arrefe-ciam a ousadia. Ela nada negava, mas fazia tudo com uma urbani-dade confiante.
Era a única mulher com quem já fizera amor que raramente tirava os sapatos e nunca as meias. Ele adivinhava o motivo: porque Anne tinha um senso profundo do que era erótico.
Anne tinha uma aversão acentuada à posição missionária.
Naquela noite ofereceu-se na posição do cachorro, de quatro na cama, a bunda levantada. Angelo penetrou-a fundo. Ser urbana e contida não a impedia de ofegar e gemer. A Princesa Anne Alekhine jamais fingia que não gostava de ser fodida.
6
Embora a decoração do restaurante do hotel fosse escura e tradicional, o cardápio oferecia uma ampla variedade de escolhas, a maioria de pratos franceses e alguns leves.
E mais ainda, o bartender sabia como preparar um bom martíni americano. Anne confessou que desenvolvera um gosto por martínis. Sentaram a bebê-los, examinando o cardápio distraídos, enquanto conversavam.
— Meu sobrinho não desistiu — comentou ela, abruptamente.
— Nunca pensei que ele desistiria.
— É com Roberta que você tem de se preocupar, Angelo. É
mais inteligente e mais dura do que Loren.
— Ele não pode recuar do projeto do Triplo Zero. Levaria a companhia à falência.
— Ele pode optar por esse caminho. Você o agarrou pelos colhões... mais do que imagino. Loren sente-se ferido.
— Em termos específicos?
— Loren Quarto e sua filha Anna. A idéia de que o neto pode casar com sua filha é absolutamente angustiante para ele.
Angelo deu de ombros.
— Antes da morte dele, eu disse a Número Um que os Hardemans são uma família de arrivistas corruptos. Ele quase sofreu o infarto fatal naquela noite. Eu gostaria que isso tivesse acontecido. Número Um desenvolvera certas ilusões... as mesmas de Henry Ford... e era obcecado por elas. Loren é tão obcecado quanto o avô. Sou uma princesa legítima. Betsy é uma viscondessa legítima. Mas não nos iludimos sobre nossas origens.
— O que devo fazer?
— Tome cuidado com sua filha. Não farão mal a ela, é claro.
Até mesmo Loren e Roberta carecem da crueldade para tanto.
Mas tentarão separá-la de Van. Não sei como. Só sei que farão alguma coisa.
7
Anna experimentou uma profusa felicidade durante seu primeiro ano em Radcliffe. As aulas eram estimulantes, ela fez várias novas amigas e, o mais importante de tudo, Van estava próximo durante todo o tempo, não apenas nas férias. Encontravam-se quase todas as noites e nos fins de semana.
Ela ficou chorosa quando o viu embarcar no 747 da British Airways no Aeroporto Logan, em Boston. Van achava que tinha de passar uma parte dos feriados de Natal com o pai e a mãe. Voltaria no dia seguinte ao Natal, e passariam o Ano-Novo juntos.
Anna observou o avião até desaparecer. Levaria o Amtrak para Stamford pela manhã, onde a mãe iria buscá-la com a caminho-nete.
Van tomara uma decisão. Aproveitaria a semana em Londres para atravessar o Canal da Mancha até Amsterdam, onde compraria, com a ajuda do pai, um diamante que ofereceria a Anna, como anel de noivado. Chegara o momento de formalizar o que já sabiam e anunciar para suas famílias.
Seu avô... ora, que se danasse o avô!
8
Duas noites depois Van foi assistir a Os miseráveis. A mãe já assistira e não queria ir de novo, por isso comprara um ingresso e o despachara sozinho para o teatro. Durante o intervalo, ele foi ao bar do teatro e tomou um uísque.
— Ei, você não é Loren van Ludwige?
A jovem era uma loura de beleza extraordinária, usando um minivestido rosa. Van sorriu
— Eu... sou, sim.
— Sou Penny.. formalmente, Lady Penélope Horrocks. Estou tentando lembrar de onde nos conhecemos. Você nunca foi a um campeonato de curling em Edimburgo, aquele esporte de fazer pedras deslizarem sobre o gelo para atingirem um alvo?
— Fui, sim.
— Lembra de Billy? Ele não foi a esse campeonato, mas...
— Billy Baines?
— O próprio. Um sujeito extraordinário, não é? Não o vejo há anos. Mas você... você foi para os Estados Unidos! Foi o que me contaram. É verdade?
— É, sim. Minha mãe queria que eu estudasse na Universidade de Harvard.
— Extraordinário! Nunca estive nos Estados Unidos. Se eu fosse até lá, você me mostraria os lugares?
Van sorriu.
— Não seria fácil. É um vasto país. Mas posso lhe mostrar o que conheço... Nova York e Boston.
— É um prazer tornar a vê-lo. Só faltam uns poucos minutos para a cortina tornar a abrir. Vamos tomar um drinque depois?
9
A campainha soou e Roberta foi até a porta de sua suíte no Hilton de Londres. "Lady Penelope" estava ali, vestindo agora uma jeans e um blusão.
— Quero minhas cem libras. Mais o aluguel do carro. Aqui está o recibo. Ele ficou muito impressionado com o Jaguar.
Roberta sorriu.
— Entre. Você o ganhou, hem?
— Se é como chamam nos Estados Unidos. Num quarto de hotel na Bayswater Road. Jantamos no Wheeler's Sovereign, no Soho, depois fomos para o hotel. Ele teve de telefonar para a mãe e avisar que encontrara colegas do colégio, chegaria tarde em casa.
E tem mais, ele se levantou por volta das duas horas da madrugada e foi para casa. Juro que acho que o garoto era virgem!
— Combinou de se encontrarem de novo?
— Claro. Ele vai passar apenas uma semana em Londres, mas darei um jeito de levá-lo de novo para a cama.
Roberta abriu a bolsa e contou cem libras.
— Tome mais isto, além dos cinqüenta que recebeu adianta-dos. Ou seja, terá cento e cinqüenta libras cada vez que o levar para a cama. Alugue aquele carro de novo. Cuide para que seja o mesmo, ou explique que sua família tem vários. E assim por diante. Mas lembre-se do que tem de fazer, Becky Não o está apenas ajudando a adquirir experiência. Tem de fazer com que ele se apaixone por você. É o grande objetivo.
— Vou ganhar uma visita aos Estados Unidos por conta deste trabalho — disse Becky.
— Pode apostar que sim.
1993
1
— Cindy, eu gostaria de poder dar o quadro a você — disse Bob Carpenter sobre o seu retrato nu, feito por Amanda. Permanecia no estúdio. Ele ainda não o levara para a Califórnia. — Eu sei...
— Eu não poderia ter um retrato seu nu.
— Claro que não... mas eu bem que gostaria.
Amanda saíra, e os dois tinham todo o estúdio e o quarto só para eles.
Carpenter postava-se diante de seu retrato, num cavalete perto do sofá. Ele o admirava. Ninguém que o visse poderia deixar de admirá-lo. Mais do que isso, ele prezava o quadro. Ter sido pintado tão bem por Amanda Finch era uma massagem em seu ego. Perguntara meia dúzia de vezes a Cindy se Amanda não o favorecera; e quando ela garantia que não, Carpenter sorria por dentro e se enchia de orgulho.
Cindy se tornara um problema. Começava a gostar dela.
Era impossível não gostar de Cindy. Era sete anos mais velha do que ele, embora fosse difícil imaginar, pois ela ainda tinha o rosto e o corpo jovens. Era inteligente, esperta, ousada, otimista, sensual, preocupada. Até onde ele podia perceber, Cindy não se ressentia das freqüentes e prolongadas ausências do marido. Era devotada à família, e sua filha mais nova completaria dez anos naquele ano; mas não se permitira ficar limitada aos papéis de dona de casa e mãe. Mas também não era o que se poderia chamar de pilar da sociedade local. Tinha um negócio em Nova York e só dispunha de um tempo limitado para as campanhas beneficentes locais.
Como professor de história da arte, Carpenter tinha de respeitá-la como marchand. Se Cindy não era tão erudita quanto ele, pelo menos sabia o que era válido e possuía um bom instinto.
Se não fosse pelos Hardemans, ele nunca a teria conhecido, nem adquirido os quadros de Amanda Finch. Apesar disso, sabia agora que se ligara a uma dupla impiedosa, que o usava para pre-judicar Cindy e seu marido. Sentia-se tentado a entregar os Finchs e lhes dizer que ia cair fora. Mas apenas ficava tentado. Tinha medo deles. Ele virou as costas ao seu retrato.
— É uma sorte para nos que seu marido passe tanto tempo fora dos Estados Unidos, Cindy. Mas não posso deixar de especular sobre o que isso representa para a indústria americana. Uma grande parte do novo carro será alemã e japonesa? Nós, americanos, perdemos a capacidade de fazer os tipos de coisas...
— As Três Grandes podem se dar ao luxo de manter grandes departamentos de pesquisa e desenvolvimento — explicou ela. —
Já a XB não pode investir milhões no desenvolvimento de novas tecnologias. Angelo precisa descobri-las e comprar as licenças para Bá-las.
— Ele deve ser brilhante para conseguir identificar o que é viável e o que não passa de fogo-fátuo tecnológico.
Cindy assentiu com a cabeça.
— Meu marido é um grande homem. Ser casada com ele é algo como ser casada com o presidente dos Estados Unidos. Não se pode deixar de respeitá-lo pelo que está fazendo, mas é preciso tolerar seu compromisso, que o mantém longe de casa com freqüência e ao telefone quando chega.
— Eu gostaria de poder compreender mais o que ele está fazendo. As baterias...
— Uma bateria volante. Funciona porque gira. Quanto mais Angelo explica por que funciona, menos compreendo. Mas ele está confiante em sua eficiência.
— Pretende assistir aos primeiros testes, Cindy? Afinal, era piloto de testes...
— Eu adoraria guiar o carro. Uma aceleração que se compara aos melhores carros de estrada americanos. Sem freios, exceto como apoio secundário...
— Sem freios?
— Vai diminuir e parar pela inversão da polaridade dos motores... mais ou menos como um jato reduz a velocidade pela reversão do impulso de seus motores. A energia cinética do carro em movimento é transmitida para a bateria, que a converte em energia elétrica, obtendo assim uma carga.
— Incrível! Eu...
— Estou falando demais.
Ela pegou seu copo de conhaque, como se isso sugerisse uma justificativa.
Carpenter parou atrás dela e acariciou suas coxas e seu pescoço.
— Te amo, Cindy — murmurou.
E era a pura verdade.
2
Depois da meia-noite, Carpenter ligou seu aparelho de fax portátil no telefone do quarto e mandou uma mensagem para a casa dos Hardemans em Detroit:
A tecnologia de bateria que AP foi estudar em Berlim envolve uma bateria giratória chamada bateria "volante". Ele está prestes a obter uma licença para usá-la.
O 000 não terá freios, exceto como apoio secundário. Vai desacelerar e parar pela reversão da polaridade nos motores elétricos. No processo, isso mandará energia de volta para a bateria, que será recarregada. Ou pelo menos é o que ele diz.
3
Loren e Roberta sentaram para o desjejum. Peter Beacon estava com eles, chamado à casa por um telefonema ao amanhecer.
Viera acompanhado por dois outros jovens engenheiros, nenhum dos quais empregado da XB Motors.
Beacon acenou com a cabeça para um dos jovens, cujo nome era Simoson, e perguntou:
— É viável?
Simpson deu de ombros.
— Não é impossível. Diversas companhias, nos Estados Unidos e em outros países, estão trabalhando nessa tecnologia. Nenhuma delas, ao que eu saiba, chegou a um ponto em que se poderá impulsionar um automóvel no tráfego de maneira satisfatória.
— Há duas possibilidades — continuou Beacon. — Ou Perino baseia-se numa tecnologia nova e ousada, que pode ou não funcionar, ou tenciona fazer uma concessão e incluir um pequeno motor de gasolina em seu carro para complementar a bateria volante.
Loren olhou para Simpson.
— É viável?
— Já foi feito antes — respondeu Simpson. — Vinte ou trinta cavalos de força, mais a bateria volante...
— Uma porra híbrida! — exclamou Loren. — Uma mistura...
— Não subestimem Angelo Perino — interveio Roberta. —
Se ele...
— Concordei outra vez este ano pela maneira como a companhia está organizada — disse Roberta —, porque ele nos envolveu a tal ponto no empreendimento que seria a ruína se tentásse-mos cair fora. Eu bem que gostaria de poder realizar de novo aquela assembléia dos acionistas de 1991.
Roberta olhou para Simpson.
— Ele pode mesmo recuperar uma parte da energia que o carro usou para acelerar, tirando-a das rodas enquanto o carro desacelera?
Simpson confirmou com um aceno de cabeça.
— É um conceito engenhoso. Não sei como vai funcionar na prática, mas é certo que se pode recuperar alguma energia.
— Angelo Perino é um homem ousado — murmurou Roberta.
— Mas há uma diferença entre ousado e temerário — comentou Simpson.
4
O primeiro carro de teste com a célula de lítio e bateria volante foi levado para a pista em abril. Angelo pilotou-o. O banco da frente direito e toda a área do banco traseiro eram ocupados por instrumentos de controle, e por isso ele saiu sozinho para a pista.
Cindy e Roberta observavam de trás da cerca. Loren e Beacon ficaram dentro do galpão de instrumentos, acompanhando o desempenho pelos mostradores. Keijo Shigeto e Alex McCullough seguiam Angelo num Stallion convencional. Levavam alguns instrumentos que Alex monitorava, enquanto Keijo guiava.
Na primeira volta, Angelo não exigiu muito do carro. Acelerou devagar, completou o circuito em cinqüenta quilômetros horários. Manteve contato pelo rádio com Alex.
— Normal — anunciou ela, ao término da primeira volta.
— Vou dar a seu computador uma coisa em que pensar — anunciou Angelo.
— Não parou de pensar em momento nenhum. A descarga da bateria se mantém dentro dos parâmetros previstos.
— Ok. Vamos ver agora se pode acelerar.
Porque gerações de motoristas estavam acostumados a ter o acelerador no carro como um pedal comprido e fino sob o pé direito, o 000 estava configurado assim. Angelo apertou o pedal.
O carro arremeteu para a frente. Ele reduziu quando chegou a oitenta quilômetros horários.
— Já não parece tão bem — informou Alex. — A descarga da bateria está além dos parâmetros aceitáveis. Não muita coisa, mas mais do que podemos aceitar.
— Suponho que está anotando — disse Angelo. — Precisamos saber em que temos de trabalhar.
— Experimente a desaceleração — pediu ela.
Outra vez, para não fabricar um carro que mudaria de forma radical os hábitos de motorista de milhões de pessoas, Angelo mandara projetar o freio do Triplo Zero para ser acionado através de um pedal. O carro de teste não tinha freios de apoio tradicionais. Diminuiria a velocidade quando a polarização nos motores fosse revertida, ou não pararia.
Não parou.
— Merda! — berrou Alex. — Já sei por quê. A porra do computador não está recebendo a ordem. Mantenha o pé longe de acelerador e deixe andar até parar.
O carro de teste acabou perdendo velocidade, e Angelo saiu pela rampa a cinco quilômetros horários.
Quando ele saltou, Cindy era a única espectadora que ainda se encontrava ali. Loren e Roberta já haviam se retirado, acompanhados pelos engenheiros.
— Um bom primeiro teste — comentou Shigeto.
Angelo deu um tapa no pára-lama do carro.
— É verdade — respondeu ele. — E temos uma semana para fazê-lo melhorar.
5
Uma semana porque...
Wilma Worth, a repórter do Wall Street Journal que chamara Angelo de executivo playboy, era uma mulher baixa, gorducha e solene, em torno dos trinta e dois anos de idade.
— Sei que a ética jornalística não permite que você voe pelo país no jato de uma companhia — disse Angelo para ela —, mas eu vou para Detroit, você também, então qual é o problema? E, de qualquer forma, não gostaria de dar uma olhada no jato sobre o qual escreveu?
Eles embarcaram no Lear às oito horas da manhã. Para surpresa de Angelo, ela aceitou um Bloody Mary, e depois outro.
— A sabedoria convencional a seu respeito, sr. Perino, é a de que o mundo ainda não conheceu uma mulher que pudesse resistir a seu charme.
— O mundo pode não conhecê-las, mas eu conheço. Seja como for, havia na Idade Média o que chamavam de Trégua de Deus, significando que por um período determinado todas as guerras eram suspensas para que as pessoas pudessem cuidar de outras coisas. Que tal promovermos uma Trégua de Deus, hoje e amanhã? Depois disso... — Angelo sorriu e deu de ombros. Ela também sorriu.
— Muito bem, temos a Trégua de Deus — concordou ela.
— O que significa que você pode me chamar de Angelo.
— E você pode me chamar de Wilma. Agora, diga-me uma coisa: esse carro vai mesmo funcionar para o passeio que está me levando?
— É melhor funcionar. A Trégua de Deus não inclui qualquer obrigação de sua parte de esconder defeitos que encontrar.
— Combinado — disse Wilma.
— Fez-me uma pergunta, mas tenho de lhe fazer outra. For-neceram-lhe a história de que o carro não funciona, certo?
— Hum... vamos mudar a terminologia. Não se pode fornecer nenhuma história a meu jornal. Por outro lado, recebemos informações de que o carro fracassou por completo no primeiro teste.
Angelo balançou a cabeça.
— Isso está meio certo. Sob alguns aspectos, correspondeu às expectativas. O que já não ocorreu em aspectos importantes.
Mas também foi o primeiro teste. O carro passou pelo segundo e terceiro testes na semana passada e teve um desempenho bem melhor. Mas ainda não foi aperfeiçoado. Ainda não corresponde a todas as expectativas.
— Ainda estou surpresa por você ter me convidado para assistir a um teste.
— Do meu ponto de vista, você é a repórter perfeita para dar uma olhada antecipada no Zero-Zero-Zero. Escreveu uma matéria a meu respeito. Considerei-a crítica, não hostil. Mas, de qualquer forma... não é com certeza a minha repórter predileta. Assim, você terá a primeira visão oficial de qualquer repórter.
6
Zero-Zero-Zero da XB Anda Mesmo
NOTÍCIAS DE FRACASSO FORAM PREMATURAS
Um Passeio pela Pista de Teste
De Wilma Worth
Um carro de teste é um veículo de aparência insó-lita. Você não haveria de querer um para seu carro da família. A área do banco traseiro é ocupada por caixas de aço que contêm misteriosos equipamentos eletrôni-cos. Todo o carro tem um ar de impermanencia... porque um carro de teste está sempre sendo mudado e refinado.
Os engenheiros da XB me deixaram ver tudo. É
como eles disseram; não há motor a gasolina escondido em algum lugar lá dentro. O 000 é impulsionado por quatro motores elétricos, um em cada roda. A corrente sai de uma combinação de baterias, tudo misterioso demais para esta repórter. Toda a coisa é controlada por um sofisticado computador, que usa a energia elétrica com tanta eficiência que teoricamente o carro pode andar por horas sem precisar recarregar as baterias.
Além de sentar no meio de todas essas caixas com instrumentos, andar no 000 é muito parecido com andar em qualquer carro de passeio americano. O sr. Angelo Perino, presidente da XB, guiou o carro de teste.
O carro acelerou sem qualquer dificuldade para cem quilômetros horários e circulou depressa pela pista de testes. Demos cinco ou seis voltas. A pista tem oito quilômetros, e assim percorremos de quarenta a cinqüenta quilômetros sem recarregar as baterias.
O sr. Perino propôs então me deixar guiar. Aceitei.
Foi como guiar qualquer carro americano... até que pus o pé no freio. Só então ele me disse que o carro não tinha freio! O carro diminuiu a velocidade pela resistência dos motores elétricos, através da reversão da polaridade. O carro terá freios convencionais como apoio, mas este carro de teste não tem freio nenhum.
Eu não saberia a diferença. O carro diminuiu a velocidade e parou como se tivesse freios.
Guiei-o por cinco ou seis voltas. Ao final, ainda tinha bastante aceleração. O sr. Perino disse que os instrumentos indicavam que poderíamos continuar por uma dúzia ou mais de voltas antes de começarmos a esgotar as baterias. Não precisaríamos recarregar por duzentos e cinqüenta quilômetros, disse ele. A companhia espera dobrar isso antes que o carro seja lançado no mercado.
Independente do que venha a acontecer com o XB
000, ainda é muito cedo para chamá-lo de fracasso...
ou talvez, a esta altura, de sucesso.
7
Henry Morris foi a Nova York. Ele e Cindy deixaram a galeria e foram para o Buli & Bear, no Waldorf.
— Mandei o nosso departamento de pessoal levantar a ficha do seu Professor Carpenter — disse Henry. — Essencialmente, ele é o que proclama: um professor de história da arte na Universidade Estadual da Califórnia, em Long Beach. Está de licença por um ano neste momento. Mora num apartamento modesto e guia um Chevrolet de quatro anos.
— De onde ele tira o dinheiro para comprar obras de arte? —
indagou Cindy, perplexa. — É esse o mistério.
— Ele não herdou, isso é certo. O pai era um barbeiro.
— Então ele mentiu para mim. Disse que o pai era corretor de iates.
— Quanto dinheiro ele gastou?
— Comprou uma escultura de DeCombe por quinze mil dólares. E gastou cinqüenta e três mil dólares com nus de Amanda Finch... inclusive dele próprio. Além disso, está sempre voando entre a Califórnia e Nova York; e quando está aqui, hospeda-se cm hotéis caros.
— Seus cheques têm fundos?
— Têm.
Hénry Morris franziu as sobrancelhas.
— Acho que teremos de investigar mais a fundo. Falarei com a empresa de segurança que trabalha para a Morris Mining.
— Em que será que me meti? — murmurou Cindy. — O que está acontecendo? Por que esse homem se insinuou em minha
— Tome cuidado. Não deixe que ele perceba que está des-confiada. Os cheques dele são de que banco?
— United Califórnia.
— Alguma vez viu-o usar um cartão de crédito?
Cindy sorriu.
— Espero que não pense que sua irmã é desprovida de esper-teza. — Ela abriu a bolsa e tirou um recibo de cartão de crédito.
— Um homem nunca deve deixar seu recibo na mesa quando se levanta para ir ao banheiro.
Henry Morris podia ser incapaz de rir, mas teve de sorrir ao guardar o recibo no bolso.
8
George, Visconde Neville, partiu o ovo do desjejum com a colher. Estivera lendo o Times, mas largara-o momentos antes, quando Betsy entrara na sala. Era o seu hábito. Tentava chegar à mesa do desjejum alguns minutos antes de Betsy, a fim de dar uma olhada rápida no jornal e depois ficar livre para a conversa. A mulher era uma conversadora fascinante, sempre com alguma coisa interessante a dizer, e por isso ele rompera o hábito de uma vida inteira de sempre ler o Times ao longo do desjejum.
Homem alto e esguio, de cabeça branca, o Visconde Neville tinha olhos empapuçados, que sugeriam altivez, mas era na verdade democrático, sempre cumprimentando efusivamente garis e motoristas de táxi, o que às vezes espantava seus vizinhos e amigos. Também não era um tolo. Sabia muito bem que sua linda mulher americana mantinha um relacionamento antigo com Angelo Perino e ligações temporárias com outros homens. Ele se importava, mas não queria criar um caso que pudesse pôr em risco seu casamento. Orgulhava-se do casamento por diversos motivos, entre os quais o de ter durado muito mais do que sua família e amigos escandalizados haviam previsto. Betsy cumpria seus deveres conjugais com ele, e vice-versa. Nenhum dos dois tinha qualquer queixa nesse ponto.
— Tenho uma coisa que quero discutir com você esta manhã — anunciou Betsy.
— Espero que não haja nada de sinistro nesta abertura.
— Pois há, sim. Van estará aqui amanhã. É a segunda vez que ele voa para Londres desde os feriados do Natal, e sei por quê. É uma mulher.
— E acha isso sinistro?
— Ele é um inocente, George. Foi de uma escola interna na Inglaterra para outra na França, depois partiu para os Estados Unidos, onde logo se apaixonou por Anna Perino. Conheceu essa nova moça durante um intervalo no teatro. E está louco por ela. A moça quer ir para os Estados Unidos. Se isso acontecer, ela causa-rá o rompimento do relacionamento dele com Anna. E isso seria uma tragédia.
— Raramente se pode fazer alguma coisa nesses casos.
— Mas pode fazer uma coisa por mim, George. Ela diz que seu nome é Lady Penélope Horrocks. Descubra quem é Lady Penélope. Consiga a história dela, seus antecedentes.
— Não é a minha especialidade, sabe disso.
— Mas deve conhecer alguém com acesso a um investigador particular que possa fazer um levantamento dela. Preciso saber, George... e preciso saber o mais depressa possível!
XXXVI
1993
1
Van formou-se em Harvard em junho. Não solicitou a admis-são na faculdade de direito e disse que queria passar o verão em Londres.
Alicia ofereceu uma festa para ele. Betsy compareceu. Assim como Max van Ludwige. Loren e Roberta voaram de Detroit.
Todos os Perinos estavam lá, assim como Amanda, Dietz e Marcus.
Ao menos uma vez, Angelo e Loren concordavam numa coisa. Ambos levaram Van para um canto e perguntaram por que não solicitara a matrícula na Faculdade de Direito de Harvard. E o mesmo fez seu pai.
O jovem se aborreceu e foi mais do que um pouco brusco ao descartar as perguntas.
Betsy não perguntou por quê. Sabia o motivo.
No dia seguinte à festa, ele fez as malas em seu quarto, na casa de Alicia. Anna estava com ele, chorando.
— Não vou vê-lo até... até quando, Van? Quando tornaremos a nos ver?
— Eu... bem, eu voltarei, é claro. Acontece apenas que passei muito tempo longe de minha mãe e de meu pai. Sinto que tenho a obrigação de passar algum tempo com eles, algo mais do que uns poucos dias de vez em quando.
— E a faculdade de direito? Você não...
— Outras pessoas decidiram que devo ser um advogado. Não tenho certeza. Preciso de algum tempo para pensar a respeito.
Anna sentou na cama, removendo as lágrimas com o dorso da mão.
— Você se tornou frio comigo, Van. É porque não fizemos sexo?
Porque se for, dou para você logo de uma vez. Agora mesmo!
— Não, Anna, não é esse o problema.
— Então qual é?
— Apenas... não somos bastante adultos. Nenhum dos dois.
Devemos ter tempo para pensar direito em tudo.
Anna saiu chorando da casa.
Betsy não viu Anna. Subiu a escada e chegou à porta do quarto de Van cinco minutos mais tarde. Ela bateu uma vez, depois abriu a porta e entrou.
— Mãe?
Betsy sentou na cama, onde Anna estivera. Vestia-se de maneira informal, jeans e uma blusa branca de golfe. Fitou-o nos olhos por um longo momento.
— Mãe...?
— Tenho uma coisa para lhe contar. — O tom era frio. —
Poupei-o até a formatura e sua festa ontem. Não tenciono poupá-lo por mais tempo.
— O que é, mãe?
Ela estava com uma pequena fotografia na mão direita. Era da ficha policial de uma moça, virada para a câmera, com o rosto impassível. Betsy entregou a fotografia ao filho e esperou que ele a examinasse.
— Reconhece-a, Van?
— Claro. É Penny.
— Lady Penélope Horrocks?
— Isso mesmo. O que... o que é isto? — O rapaz empalide-cera.
— Lady Penélope Horrocks tem setenta e dois anos e vive em Kensington. A moça na fotografia tem vinte e cinco anos. Seu nome é Rebecca Mugrage e vive em Camden Town. A fotografia foi fornecida a meu marido pela polícia metropolitana. Foi tirada na Prisão Holloway no dia em que ela entrou ali para cumprir uma pena de um ano por fraude com cartão de crédito. Também foi levada três vezes ao tribunal pela acusação de prostituição.
Van jogou a fotografia na cama.
— Não acredito — murmurou ele.
— É melhor acreditar. Já fez o exame de HIV? Pois ela é uma boa candidata a lhe transmitir o vírus.
— Por quê? — soluçou Van. — Por que ela...?
— É o que tenciono descobrir — declarou Betsy, sombria.
— Ela conhecia um amigo meu. Lembrou onde nos conhecemos, num campeonato de curling.
— Informações que ela não poderia obter sozinha, Van. Alguém a ajudou. E juro por Deus que vou descobrir quem foi.
Você, seu tolo, traiu a moça que ama e que o ama por uma vagabunda profissional.
— Oh, mãe!
— A sua Penny não passa disso. E pior. Por ela, você não quis tentar a faculdade de direito. Acho que não tenho sido uma boa mãe. Max ou eu deveríamos ter ensinado a você alguns fatos da vida.
Van chorava.
— O que devo fazer com Anna?
— Conte a verdade. E não toque nela até fazer um exame médico. Depois, procure a Faculdade de Direito de Harvard e veja se eles aceitam uma solicitação atrasada. Você foi um excelente aluno, e talvez ainda reste uma vaga no curso que começa no outono. Fique aqui. Pedirei a Angelo que lhe arrume algum emprego. E aprenda a saber quem são seus amigos.
3
Não foi difícil descobrir quem se encontrava por trás de Rebecca Mugrage. Ela se apresentara como Lady Penélope Horrocks não apenas para Van, mas também para a agência em que alugara o Jaguar. Para alugar o carro sem problemas, ela usara uma carteira de motorista falsificada, em nome de Lady Penélope. De volta à cadeia e diante de uma sentença de fraude, ela prestou um depoimento completo.
Angelo parou em Londres a caminho de Berlim. Jantou na Casa Neville com o Visconde George e a Viscondessa Elizabeth.
Para o jantar à luz de velas, Betsy tirou do armário a prataria antiga da família Neville, peças maciças e lavradas, que haviam sobre-vivido às guerras e aos impostos. Embora soubesse do relacionamento entre sua mulher e o convidado, o visconde não poderia ser mais gentil.
Só depois do jantar, quando continuaram sentados à mesa para o café e conhaque, é que Betsy explicou a Angelo por que o exortara a parar em Londres na viagem para a Alemanha.
— Aqui está uma cópia da transcrição do depoimento da mulher — disse Betsy. — Vai encontrar na segunda página a informação sobre quem a contratou e financiou. Roberta.
Angelo olhou para o visconde.
— As pessoas costumam fazer coisas assim na Inglaterra?
O Visconde Neville acenou com a cabeça.
— Receio que sim. Gostamos de pensar que somos mais...
civilizados do que os americanos. Mas não somos.
Angelo devolveu o documento.
— Betsy, isso significa que vou entrar em guerra com seu pai.
Vou destruí-lo. Prefere ficar de fora ou está comigo?
Betsy hesitou por um momento.
— Depende de como você vai fazer, Angelo.
— Não dessa forma.
4
Loren jogou uma pasta de arquivo através da sala. Papéis voaram para todos os lados.
— Merda! — berrou ele. — Os filhos da puta declararam guerra! Sabe o que isso significa?
Por esta vez, Roberta ficou vermelha e aturdida. Ned Hogan, advogado da XB, olhou para os papéis no chão, mas não fez o menor esforço para recolhê-los... como outrora faria.
— Muito bem — acrescentou Loren, a voz rouca. — Vamos à guerra. Sabemos quem eles são. Perino. Burger. Fairfield. Então o Procurador-Geral Fairfield entra com uma ação judicial...
— Devo dizer que pode ter ganho de causa — comentou Hogan.
— Deixe-me ver se estou entendendo direito. Número Um transferiu trinta e cinco por cento das ações do que era então a Bethlehem Motors para a Fundação Hardeman. Mas agora o procurador-geral de Michigan diz que a fundação tem de vender uma porrada de ações porque...
— Porque a fundação está comprometida demais com uma única ação — explicou Hogan. — Um fundo beneficente...
— Sei que é um fundo beneficente! Não dei o golpe em Número Um em 1972 porque ele conservara o controle da Bethlehem Motors ao designar fantoches para administradores e...
— E você se comportou de maneira diferente? — indagou Hogan. — A fundação é uma entidade semipública. Seus investimentos estão sujeitos à supervisão do estado. Foi assim que Número Um obteve uma grande dedução fiscal. Mas ele nunca cedeu realmente o controle dessas ações... nem você.
Loren arriou na cadeira e olhou para Roberta.
— A mulher que você arrumou em Londres foi presa — resmungou ele. — E tudo isso é o resultado da sua sutileza.
— Não me jogue a culpa — protestou ela, a voz ríspida. — Você sabia o que eu estava fazendo e aprovou tudo.
Loren arriou ainda mais, como se quisesse desaparecer dentro de suas roupas.
— Se o procurador-geral ganhar a ação, o que exatamente acontece?
— Uma parte das ações da XB que pertencem à fundação terá de ser vendida para que a fundação possa diversificar seus investimentos.
— Vendida?
— Em oferta pública. No mercado. Deve prever que muitos investidores estarão interessados. AXB, que sempre foi uma empresa da família Hardeman, vai se tornar uma companhia de capital aberto. Em vez de uns dez acionistas, você passará a ter mil.
Loren deixou escapar um suspiro ruidoso.
— Perino vai convocar uma reunião de acionistas... aquele carcamano escroto sabe se mostrar simpático... e convencer os idiotas...
— A mudar o comando — arrematou Roberta.
Loren acenou com a cabeça. Seus olhos se contraíram.
— Só se a porra do seu carro for um sucesso.
5
Henry Morris telefonou para Cindy, dizendo que gostaria de lhe passar um fax. Ela respondeu que não havia problema, pois estava sozinha em casa. Poucos minutos depois o fax saiu do aparelho no escritório de Angelo. Era um relatório para Henry da Agência de Segurança Blakoff.
Conseguimos obter as seguintes informações sobre o Professor Robert Carpenter.
Seu salário como professor-assistente de história da arte é de 56 mil dólares por ano. Durante os dois últimos anos, no entanto, ele depositou em sua conta vários cheques vultosos, perfazendo o salário de um ano.
Conseguimos obter o saldo de seu débito com o cartão Visa. No momento, ele deve ao Visa 6.325,87
dólares. Não pudemos, é claro, levantar em que esse dinheiro foi gasto.
Também conseguimos obter algumas informações sobre seus telefonemas. Um número para o qual ele liga com freqüência, tanto de sua casa quanto dos hotéis em que se hospeda, tem o código de área 313. Isso pareceu significativo, já que é para Detroit. Uma simples verificação na lista de assinantes forneceu a informação de que o número chamado é o da residência de um certo Loren Hardeman.
6
Robert Carpenter ouviu a batida na porta do seu quarto no Hyatt Regency. Cindy! Não precisava se vestir. Usando apenas uma sunga branca, ele foi destrancar a porta.
Foi empurrada com força, impelindo-o para trás.
O homem era maior do que ele, mas também muito mais velho... não constituía uma ameaça, concluiu Carpenter, enquanto adivinhava quem era o homem.
Ele se enganou em sua conclusão. O homem acertou uma joelhada em sua virilha; e enquanto ele se dobrava em agonia, o homem segurou-o pelos cabelos e puxou seu rosto para baixo, ao mesmo tempo em que levantava o joelho. Carpenter sentiu o nariz quebrar. Solto, ele cambaleou para trás e se estatelou no chão.
— Imagino que já sabe quem sou eu, professor.
Carpenter acenou com a cabeça. Já adivinhara. Perino.
Ele aparou o sangue que escorria do nariz com as mãos.
Escapuliu e se derramou em seu peito e barriga. Perino foi até o banheiro e pegou uma toalha, que jogou para ele. Carpenter en-xugou o sangue na toalha.
— Tenho amigos que teriam o maior prazer em lhe proporcionar uma dor de cabeça — comentou Perino. — Conhece o termo?
Carpenter acenou com a cabeça.
— Fodendo minha esposa. Não, mais do que isso... brincando com as afeições dela. Não sei... Qual é a coisa certa a fazer com um cara como você?
— Oh, sr. Perino, eu a amo!
— Claro. Por quanto dinheiro? Vamos, responda, quanto Loren lhe pagou?
Carpenter cobriu todo o rosto com a toalha.
— Não importa quanto foi — acrescentou Angelo.
Carpenter fitou o rosto aparentemente calmo do marido de Cindy.
— Como descobriu? — murmurou ele.
— Foi ela quem descobriu. Como todos os conquistadores do mundo, você se superestima e subestima as mulheres com quem se diverte.
— Eu juro que a amo!
— Diga isso a ela. E explique os telefonemas para Loren Hardeman.
Carpenter olhou para a toalha. Estava encharcada de sangue, nas a hemorragia já diminuía. Ele tossiu.
— O que posso dizer? O que posso fazer?
Angelo viu a garrafa de scotch na mesinha do telefone. Claro, Para Cindy. Ele se adiantou e pegou a garrafa. Serviu duas doses puras. Entregou um copo a Carpenter.
— Eu poderia lhe providenciar uma terrível enxaqueca, professor. Não aqui. Nem agora. Em algum momento posterior, como uma grande surpresa. Mas acho que não passa de um merdinha que se envolveu numa coisa que não pode entender. Até Loren Hardeman... — Angelo balançou a cabeça. — .. .é um homem maior do que você.
— Um homem mais rico do que eu — murmurou Carpenter.
— Se quer pensar assim — disse Angelo, desdenhoso. — Qual é a sua, professor? A notícia a seu respeito é que sabe das coisas, apenas não sabe em que coisa se meteu.
Carpenter baixou a cabeça por um momento.
— Posso me levantar? — perguntou ele.
— Claro. Vá ao banheiro e lave o rosto. Trate de se comportar e lhe darei o nome de um médico que pode deixar seu nariz como era antes. Ele mora na Suíça e pode até lhe dar um rosto novo, se assim desejar.
Carpenter voltou. Molhara o rosto com água fria. Tinha o nariz achatado, começando a ficar roxo.
— Oh, merda! — murmurou ele, arriando no sofá.
— Gostaria de tomar uma linda pílula capaz de afastar o so-frimento e garantir uma vida longa? — indagou Angelo.
— Como assim?
— Preste atenção e repita o que eu disser.
Carpenter sentou na beira da cama, ainda usando apenas a sunga branca, o peito e a barriga ainda sujos de sangue. Olhou para Angelo Perino e esperou enquanto o telefone tocava.
— Alô?
— Roberta? Bob Carpenter.
— Qual é a notícia, Carpenter?
— Eles vêm tendo problemas com as baterias. As coisas explodem.
— Baterias sólidas explodem? A última informação é a de que usavam baterias sólidas.
— Parece que surgiu algum problema. Continuam a usar as baterias volantes, mas combinadas com baterias líquidas.
— E explodem?
— Ao impacto. Não são seguras se o carro bate em alguma coisa ou é atingido. Um carro de teste bateu num muro. As baterias explodiram e o ácido de bateria foi projetado por quinze metros pelo ar. Estão tentando projetar uma caixa blindada, mas vai acrescentar muito peso ao carro. Chegaram a um impasse.
— Não parece com alguma coisa que já ouvimos?
— É possível. Quem está mentindo para quem? Perino para Cindy? Ou Cindy para mim?
— Loren está dormindo. Vou acordá-lo e contar tudo.
Carpenter desligou. Angelo entregou-lhe o scotch.
8
O rosto de Van estava molhado de lágrimas quando abraçou Anna e beijou-a na testa, olhos, faces, boca, pescoço.
— Um homem tem permissão para bancar o tolo uma vez na vida? — indagou ele.
— Mais de uma vez — sussurrou Anna.
— Voaremos para Amsterdam. Já tenho as passagens e o consentimento de sua mãe para levá-la.
Anna passou os lábios úmidos pelo rosto dele.
— Por que Amsterdam?
— Para ver os diamantes. Com a ajuda de meu pai, compra-remos os diamantes para seu anel de noivado.
Ela sorriu.
— Van, você ainda não me pediu em casamento.
— Já pedi, sim! — Ele sorriu também. — Anna, minha linda e adorável jovem, quer casar comigo?
Ela acenou com a cabeça.
— Claro.
— E vai me perdoar por ser um completo idiota?
— Uma vítima completa. Seu avô Hardeman é um ogro, casado com uma bruxa. Meu pai vai destruir os dois. Aceita isso, Van? Que meu pai se empenhe em destruir seu avô?
— Não posso acreditar que minha mãe tenha saído daquele homem. Ela é tão generosa, gentil, incapaz de... — Van fez uma pausa. — Mas Rebecca Mugrage está na Prisão Holloway porque...
— Porque sua mãe é um mulher eficiente, que consegue o que quer. Meu pai é um homem eficiente, que consegue o que quer.
Van sorriu.
— Deus nos proteja então do pequeno John Hardeman... o filho dos dois.
— Vamos deixar que fique para eles, Van.
— O quê?
— A herança. Você é Loren Quarto. Mas não precisa ser. É
uma maldição. Deixe que passe para o pequeno John, o filho de meu pai e de sua mãe. Você faz a Faculdade de Direito de Harvard.
Seremos independentes da herança de Número Um.
Ele sacudiu a cabeça.
— Nunca presumi que ia herdar qualquer coisa.
Anna beijou-o.
— Será nosso segredo, Van. Vamos deixar que eles briguem.
Não é a nossa luta.
— Tem razão — declarou ele, solene. — Todos eles vão...
— Não nos odiar. Respeitar-nos, no final.
— Mas há uma guerra entre nossas famílias, Anna. Vem ocor rendo há gerações e só será resolvida com a vitória de alguém e a derrota de outro.
Anna deu de ombros, tranqüila.
— Ninguém derrota meu pai.
1993
Em agosto, Angelo redobrou a segurança em torno da pista de testes da XB. Enfureceu Loren e Beacon ao lhes negar acesso à pista, a não ser em sua companhia. Levou-os para assistirem aos testes do 000, mas manteve todo o seu pessoal longe deles. Os jovens engenheiros da equipe eram totalmente dedicados a Angelo Perino. Nenhum deles dava uma importância maior à XB
Motors. Compreendiam que estariam desempregados se o 000
fracassasse, mas sabiam também que haveria outros empregos à espera de qualquer homem ou mulher que tivesse trabalhado no carro elétrico de Angelo Perino.
Os carros de testes ainda usavam chassis de Stallion, aos quais se podia acrescentar com facilidade as carrocerías de resina epóxi do S Stallion. Isso fazia com que os carros de testes tivessem mais ou menos o mesmo peso do protótipo do 000. Cindy foi a Michigan e guiou um desses carros. Quando Betsy veio a Detroit para uma reunião do conselho, Angelo levou-a para dar uma volta.
— É emocionante! — Betsy soltou uma risada. — Um carro incrível!
Cindy foi mais analítica e disse a Angelo:
— Não me senti à vontade com o sistema de freios. É como empurrar uma alavanca. Faz o que deve, mas a gente não sente qualquer pressão contrária.
— Estamos trabalhando nisso — respondeu Angelo. — Quando você pressiona o pedal do freio, comprime uma mola que faz com que diversos contatos sejam interrompidos. Você controla a quantidade de poder de freio que aplica, mas não se sente à vontade quando não há pressão contrária. Vamos deixar que o computador gere uma pressão contrária artificial. Os futuros motoristas não vão esperar uma pressão contrária do pedal do freio, mas esta geração ainda precisa e não vai se sentir tranquila sem isso.
Um dos dez mil pequenos problemas que temos de resolver.
— A grande dúvida é a distância que se pode percorrer com uma carga.
— Pode-se ir de Nova York a Washington sem precisar de uma carga, na posição em que estamos agora.
Cindy sorriu.
— Antes disso, a pessoa terá de parar de qualquer maneira para fazer um pipi.
2
O nu do Professor Robert Carpenter pintado por Amanda foi exibido num lugar proeminente na Galeria VKP A quem pertencia era irrelevante; não estava à venda. Não demorou muito para que alguém o reconhecesse. Espalhou-se pelo mundo da arte a notícia de que o professor podia ser visto por inteiro, pintado com o realismo de Finch; e logo apareceram visitantes na galeria apenas para ver o Finch de Carpenter. Nenhum desses visitantes tinha dinheiro para comprar, mesmo que o quadro estivesse à venda; só queriam ver; e os acadêmicos, para surpresa de Cindy, se mostraram mais do que um pouco tacanhos. Alguns ficaram escandalizados.
Carpenter desapareceu por algumas semanas. Na verdade, estava no Hospital Yale New Haven, onde seu nariz foi conserta-do. Angelo Perino pagou a cirurgia, sob a condição de Carpenter continuar a telefonar para Loren e Roberta, transmitindo desinformação fornecida por Angelo.
3
Durante duas semanas em setembro, um tribunal de Michigan examinou provas e argumentos para determinar se a Fundação Hardeman deveria ou não diversificar sua carteira de investimentos. O procurador-geral alegou que a fundação se expunha e às suas obras beneficentes a um risco desnecessário, investindo todo o seu capital em ações de uma única companhia... e ainda por cima uma companhia familiar, quase sem acionistas fora da família. Sessenta por cento das ações pertenciam a apenas cinco pessoas da família Hardeman: sr. e sra. Loren Hardeman; Elizabeth Hardeman, Viscondessa Neville; Anne Elizabeth Hardeman, Princesa Alekhine; e Alicia Hardeman. A propriedade familiar da XB
Motors tornava as ações um investimento ainda mais arriscado.
Acrescentava-se a isso o fato de que a XB Motors se compromete-ra profundamente no desenvolvimento de um carro experimental, que poderia fracassar.
Angelo Perino, presidente da XB Motors, prestou depoimento na manhã da quarta-feira da segunda semana.
— É um investidor nas ações da XB, sr. Perino?
— Sou, sim.
— Qual a sua participação no capital?
— Possuo dois por cento das ações.
— Que porcentagem isso representa em seu patrimônio pes-líquido, sr. Perino?
— Não tenho certeza, mas acho que dez por cento.
— Portanto, se ? companhia falir, isso não vai deixá-lo sem nada?
— Correto.
— Durante os anos em que esteve associado à companhia, de um jeito ou de outro, quantos carros radicalmente novos tentou fabricar?
— Dependendo de sua definição de "radicalmente novos", eu diria que quatro.
— E que são...?
— O carro que chamamos de Betsy, o que chamamos de Stallion, o que chamamos de S Stallion ou Super Stallion, e o que temos em desenvolvimento no momento, chamado de Zero-Zero-Zero ou E Stallion, significando Electric Stallion.
— Se o novo carro fracassar, qual será o impacto no valor das ações da XB Motors, Incorporated?
— Haverá um impacto negativo considerável.
Na sexta-feira, 1o de outubro, o tribunal determinou que a Fundação Hardeman reduzisse o seu patrimônio de ações da XB Motors em 75 por cento e investisse os recursos obtidos em títulos diversificados, de acordo com as normas do estado de Michigan.
Não havia mercado para ações da XB Motors. Sempre foram negociadas particularmente, entre as poucas pessoas que as pos-suíam. Um banco de Detroit e um de Nova York concordaram em oferecê-las no mercado. Antes que o tribunal ordenasse a venda compulsória, as poucas ações vendidas pelos espólios de empregos falecidos estavam cotadas de 775 a 800 dólares por unidade. Quando os bancos puseram à venda, os lances variavam de 550 a 600 dólares. Para impulsionar a ação e expressar sua confiança, Angelo deu um lance de 600 dólares por ação, investindo um total de um milhão e duzentos mil dólares, o que dobrou sua participação acionária na companhia. Em duas semanas, a cotação subiu para 675 dólares e a ação passou a vender, pouco a pouco. Ao final, a cotação já se elevara para 750 dólares por ação.
A participação da Fundação Hardeman no capital fora reduzida a quatorze por cento. Mais seis por cento teriam de ser vendidos em cumprimento da decisão judicial.
Havia agora 518 acionistas. Um deles, com cem ações, era Tom Mason. Vinte e oito outros acionistas eram revendedores da XB.
4
Duas famílias e seus convidados reuniram-se para o Natal, em duas casas em Greenwich, com algumas pessoas no Hotel Hyatt Regency. A ceia de Natal foi na casa dos Perinos, preparada e servida por um serviço de bufê que armara seis mesas extras.
Angelo e Cindy foram os anfitriões — ele de black tie, ela num reluzente vestido branco de coquetel —, recebendo os convidados diante de uma árvore de Natal de três metros de altura.
Os filhos todos estavam ali. John, com vinte anos, há muito que rompera com Buffy Mead, mas convidara Deirdre Logan, que tinha dezoito anos e estava visivelmente apaixonada por ele.
Anna e Van nunca se separavam. Morris tinha dezesseis anos e r i r
estava ansioso em provar que podia beber champanhe sem ficar de porre. Valerie estava com quatorze anos e era tão bonita quanto Anna. Mary tinha apenas dez anos e parecia um pouco intimi-dada com a festa.
O Visconde e a Viscondessa Neville vieram de Londres com todos os filhos. Sally, filha do psiquiatra de Betsy, tinha doze anos e era uma garota tímida, que usava óculos. Permanecia esguia e se movia com a graciosidade da bailarina que estava determinada a tornar. John, o filho que Betsy partilhava com Angelo, estava com dez anos e era bonito. Charlotte e George, os filhos de Betsy com Neville, tinham sete e oito anos, e decidiram que não iriam para a cama antes da festa terminar.
Alicia compareceu, acompanhada por Bill Adams. Van estava hospedado em sua casa, assim como mais dois filhos de Betsy, Sally e John.
Max van Ludwige veio de Amsterdam com a mulher, Gretchen.
Amanda também foi, assim como Marcus Lincicombe e Dietz von Keyserling.
Keijo Shigeto, Toshiko e os filhos também foram convidados para as comemorações.
Jenny Perino não pôde viajar da Flórida naquele Natal.
Alicia convidara Loren e Roberta, mas eles alegaram que não poderiam ir. Ela também convidara a Princesa Anne e o Príncipe Igor Alekhine, que mandaram presentes mas não puderam comparecer.
A festa foi bastante confusa para as crianças e também para a maioria dos adultos.
— Estarei na próxima assembléia dos acionistas — anunciou Bill Adams para Angelo. — Comprei algumas ações da XB, reco-mendei-as a outros e terei suas procurações. Não tenho a menor dúvida de que você assumirá o controle completo da XB. Tudo o que precisa agora é de um carro bem-sucedido, e estou certo que de conseguirá isso.
— Tenho dois meses para acertar tudo — disse Angelo.
Nem todas as mesas podiam ser armadas em uma única sala.
Pouco antes de todos circularem apressados à procura dos respec-tivos lugares, indicados por um cartão, Angelo e Cindy chamaram seus convidados para a sala de estar. Os garçons providencia-ram para que todos tivessem champanhe, até mesmo as crianças menores.
Angelo não bateu num copo para atrair a atenção de todos.
Em vez disso, golpeou um pequeno gongo.
— Vou pedir a Anna e Van para se juntarem a Cindy e a mim ao lado da árvore — disse ele. — E também Betsy e George e Max e Gretchen. Antes de irmos jantar, quero fazer um feliz anúncio.
Houve silêncio.
— Amigos, Cindy e eu nos sentimos felizes, muito felizes, em anunciar o noivado de nossa filha Anna e do filho de Betsy e Max, Loren. Não acham que eles formam um lindo casal?
Todos aplaudiram.
— Agora, Loren... todos o conhecemos como Van... vai pôr o anel de noivado no dedo de Anna. Já vi o diamante. É bastante grande para ancorar um barco.
A mão de Van tremia ao enfiar o anel no dedo de Anna. Suas faces brilhavam com as lágrimas.
— Um brinde à felicidade deles — disse Angelo. — E a essa união de nossas famílias... Perino, Hardeman, Van Ludwige. Eu não poderia estar mais orgulhoso.
5
Naquela noite, Van e Anna partilharam um quarto — e uma cama — no Hyatt Regency. As famílias concordaram que eles já estavam bastante amadurecidos para isso e mereciam, com a bên-ção dos pais. O casamento esperaria enquanto ele fazia o curso de direito em Harvard e ela concluía seus estudos em Radcliffe.
Van beijou-a com ternura e murmurou:
— Não precisamos fazer esta noite. Se você ainda não se sente preparada...
Anna sacudiu a cabeça.
— Estou pronta, Van. Há muito que me sinto preparada.
— Então...
— Venho tomando a pílula. Estou pronta.
Ele piscou os olhos para remover as lágrimas que o ofuscavam.
— Pode sequer imaginar o quanto eu a amo, Anna?
— Puxe o zíper atrás do meu vestido.
Van já a vira se despir antes, mas nunca na expectativa de uma noite de amor. Tudo era novidade, uma aventura. Ele já tirara o sutiã e beijara os seios de Anna, mas nunca daquele jeito. Ajoelhou-se diante dela para tirar a calcinha, as ligas e as meias.
Quando ela ficou nua, Van ainda estava vestido. Anna baixou o zíper da calça, puxou o pênis, ficou acariciando-o, enquanto ele tirava a gravata e desabotoava a camisa.
Foram para a cama. Anna era inexperiente, mas tinha um instinto seguro. Sabia o que ia fazer e sentia-se ansiosa. Pensara muito naquilo. Sonhara com aquilo. Não conversara a respeito com as amigas. Não lera manuais de sexo. Apenas sabia. Deitou de costas e abriu-se para ele. Van penetrou-a, e foi tudo o que ela esperava.
1994
Loren estava de porre. Roberta estava de porre. Haviam saído de casa e voado para West Palm Beach naquela manhã. Numa suíte no motel Marriott, onde ninguém podia encontrá-los, riram ao pensar como os telefones na casa tocariam e tocariam, sem que ninguém atendesse. E depois os repórteres iriam até a casa, mas ninguém abriria a porta.
Na privacidade da suíte, alugada sob o nome de Smith, Roberta vestiu-se para seu papel de sádica com seu masoquista. Usava sapatos pretos de couro envernizado, saltos bem altos, meias rendadas presas por ligas pretas, uma calcinha preta aberta na frente, um sutiã preto transparente, com buracos para os mamilos. Na semana passada, ela mandara cortar os cabelos ainda mais curtos, ao estilo de um sapatão.
Sabia que, depois de vinte e um anos de casamento, já não era a mesma mulher do tempo em que açoitara Loren pela primeira vez. Até mesmo cinco anos antes não usaria sutiã, mas agora seus seios estavam flácidos. Os mamilos não eram mais bem definidos e lustrosos, pareciam borrados. A carne era caída sob as axilas e o queixo. À barriga saltava por cima da calcinha. Ela sabia — e com que angústia sabia! — que era uma caricatura grotesca da dominadora, um papel que não mais se adequava à sua pessoa.
Loren... ora, que papel ele podia desempenhar? Estava agachado no chão, nu. Ela passara a corrente entre os grilhões nas pernas e as algemas. Loren podia engatinhar pelo chão, mas não podia se levantar ou mesmo rastejar. Ela despejara seu scotch numa tigela que ficara do jantar servido na suíte. Loren tinha de inclinar a cabeça para beber, já que não podia segurar um copo. Ele estava impotente, e era assim que Roberta o queria.
Loren não envelhecera tanto quanto ela. Talvez estivesse um pouco mais volumoso, mas ainda era quase que o mesmo homem com quem ela casara; e Roberta não podia deixar de especular se ele já percebera as diferenças entre os dois.
O pensamento incitou-a a pegar seu chicote e acertá-lo na bunda. Mas que filho da puta!
— Ai, meu bem! — gemeu ele.
— Podemos parar com isso quando você quiser. Não sou obrigada a açoitá-lo na bunda.
— Só peço para não bater com tanta força — sussurrou ele, a voz rouca. — Ei, está na hora de ligar a TV!
Roberta deixou o sofá em que sentava e foi ligar a televisão.
Comerciais. Intermináveis comerciais. Irritada, ela acertou-o entre os ombros. Loren gemeu, mas não protestou.
E finalmente...
— América! Desperte, América, e junte-se a nós. ..Behind the Scenes! Este é o programa que o leva aos bastidores, aos lugares a que eles não querem que você vá! O que mostra tudo que eles não querem que você veja! Que conta tudo o que eles não querem que você saiba! Este é o programa que mostra o que está por trás.
O locutor continuou:
— Esta noite! Uma suposta cura para a calvície que na verdade mata os folículos capilares remanescentes! Um cereal que con-tém todas as vitaminas e minerais que o corpo humano pode precisar, mas apenas uma vaca é capaz de digerir! E um carro elétrico que... ora, você vai ver! Se guiar um desses carros vai precisar de um guarda-chuva, porque pode se descobrir encharcado por urna chuva de ácido de bateria!
Durante vinte minutos de discurso vertiginoso sobre folículos capilares e nutrientes contidos em celulose — mais comerciais de laxativos e adesivos de dentadura —, Roberta açoitou Loren na maior impaciência, com bastante força para que ele grunhisse. O enorme vergão na bunda inchou e ficou roxo. Os outros estavam apenas rosados.
E depois...
— Não vamos dizer o que o videoteipe seguinte realmente mostra. Não sabemos. Você assiste. Você decide. A XB Motors está no processo de desenvolver um carro elétrico, que andaria à base de baterias. Está sendo desenvolvido dentro das mais rigorosas medidas de segurança já adotadas numa pista de testes em Detroit. Mas este programa conseguiu obter a fita que agora vamos apresentar. Você reconhecerá o carro como um XB Stallion.
Estão usando o chassi e carroceria de Stallion como uma plataforma para o novo sistema de tração elétrico. Não sabemos exatamente o que é isso que você verá agora. Mas observe, em câmera lenta...
A imagem na TV passou para uma fita em preto-e-branco, um tanto desfocada. Um Stallion apareceu pelo lado esquerdo e avançou devagar para um muro. Houve a batida. Em câmera lenta, a carroceria se desmanchou. Depois, houve uma explosão de fluido, que irrompeu pelo pára-brisa e janelas estilhaçados, co-brindo o carro. Por um quarto de minuto em câmera lenta, o carro teve a aparência de uma cachoeira, até que a erupção se desvaneceu, deixando o Stallion todo arrebentado e fumegando.
— O que isso significa, senhoras e senhores? Este programa deixa a decisão para cada um. Amanhã de noite... talvez... teremos uma explicação da XB Motors.
Loren rolou de costas e sorriu para Roberta.
— O que acha, menina? — indagou ele. — Acabamos com Perino? Ou não?
7
Dois dias depois da estréia nacional em Behind the Scenes, a fita do Stallion explodindo já fora exibida em todas as grandes redes de televisão. Em todas as ocasiões, o locutor descrevia a fita como um exemplo de sensacionalismo barato... mas mesmo assim era apresentada.
A cotação da ação da XB Motors caiu para 450 dólares.
Wilma Worth telefonou para Angelo.
— Ainda sou ou não a sua repórter predileta?
— Temos uma assembléia dos acionistas dentro de dez dias
— disse Angelo. — Não deixe de comparecer.
Betsy telefonou de Londres.
— Como essas baterias podem explodir? Pensei que você tinha dito...
— Srta. Betsy — interrompeu Angelo —, seu pai pôs o pau na bigorna... e baixou o martelo com toda força. Observe que ele fez isso a si mesmo. Não fui eu.
XXXVIII
1994
1
Pela primeira vez na história da XB Motors, Incorporated (antiga Bethlehem Motors), a assembléia anual dos acionistas não pôde ser realizada na sala de reunião ao lado do gabinete do presidente da companhia. Angelo, como presidente, providenciara para que a assembléia fosse no Cobol Hall. Mais de quatrocentos lugares foram reservados para os acionistas, que agora se eleva-vam a 631. Poucas ações não seriam representadas, quer pessoalmente ou por procuração. Além disso, duzentos lugares foram reservados para a mídia e mais cem para espectadores curiosos.
Quando a assembléia foi aberta, às dez horas da manhã de quarta-feira, 16 de fevereiro, todos os Hardemans sentavam à mesa principal, Loren e Roberta, Betsy, Anne e Alicia. Num camarote lateral especial sentavam Cindy, Van e Anna, John Perino e John Hardeman, George, Visconde Neville, e Igor, Príncipe Alekhine.
Tom Mason sentava entre os acionistas, assim como Bill Adams.
Angelo presidia à assembléia, com Loren à direita. A primeira providência foi verificar os acionistas presentes e as procurações apresentadas, a fim de determinar quem tinha o direito de votar.
Os funcionários levaram meia hora para efetuar o levantamento.
Angelo leu o relatório apresentado. Não houve objeções.
— Senhoras e senhores — continuou ele —, todos têm à sua frente a ata da última assembléia e o relatório do tesoureiro. Se não houver objeções, nenhum desses documentos será lido, sendo aprovados como apresentados. Alguém faz alguma objeção? Não havendo nenhuma, a ata e o relatório estão aprovados.
Angelo fez uma pausa.
— Antes de passar para outros itens da agenda, solicito o consentimento para apresentar um pequeno videoteipe.
Era a deixa para o pessoal do audiovisual. Enquanto uma enorme tela descia por trás da mesa principal, as luzes diminuíram.
Uma imagem foi projetada na tela. Era a gravação de Behind the Scenes. O Stallion passou pela tela, bateu no muro e explodiu.
As luzes tornaram a ser acesas.
— Senhoras e senhores — disse Angelo —, aqui está o XB
Zero-Zero-Zero, o E Stallion, em dois modelos: o primeiro é o carro como será posto à venda e o segundo o mesmo carro sem a carrocería.
Os dois carros, dirigidos por atraentes modelos em saias curtas, entraram no salão, sob o clarão de refletores, e foram parar diante da mesa principal.
— Com o consentimento de todos os interessados — acrescentou Angelo —, interrompo esta assembléia por trinta minutos, para que todos os presentes possam examinar estes carros e procurar por baterias líquidas que podem explodir numa colisão.
O E Stallion, como poderão verificar, é impulsionado por uma célula de lítio e uma bateria volante. Não tem bateria líquida que pudesse explodir e criar uma chuva de ácido. Venham verificar pessoalmente.
2
Passada a meia hora, Angelo bateu com o martelo e esperou alguns minutos para que os acionistas e repórteres voltassem aos lugares.
— A presidência aceitará uma moção, se alguém quiser apresentá-la, para que esta assembléia seja suspensa até amanha, a fim de permitir aos acionistas e jornalistas a oportunidade de irem à pista de testes e verem os carros em ação... e guiá-los, se desejarem. Convido a todos para conferirem que não há nenhum lugar na pista em que o videoteipe do acidente no teste pudesse ter sido feito.
No momento de confusão que se seguiu, Bill Adams se levantou.
— Senhor presidente, proponho que o número de conselheiros da XB Motors seja aumentado de cinco para nove.
Tom Mason gritou apoiando.
A proposta foi aprovada sem discussão.
— Senhor presidente — disse Adams em seguida —, eu gostaria de indicar uma lista de conselheiros.
Angelo concordou.
— Senhor presidente, indico seu nome. Indico também o sr.
Loren Hardeman e Elizabeth Hardeman, Viscondessa Neville.
Indico o sr. Thomas Mason, o mais bem-sucedido revendedor da companhia. Indico o sr. Keijo Shigeto, um engenheiro que tanto contribuiu para o desenvolvimento do Stallion. Indico a srta.
Alexandria McCullough, cujo projeto de computação movimenta o novo carro. Indico o sr. Henry Morris, presidente da Morris Mining. Indico o Juiz Paul Burger. E, finalmente, senhor presidente, indico a mim mesmo, como proprietário de ações e com procurações de muitos outros.
Betsy levantou-se.
— Senhor presidente, apoio todas as indicações do sr. Adams e proponho uma votação.
Angelo bateu com o martelo.
— Todos os acionistas têm direito de indicar outros candida-tos. — Ele esperou por um minuto inteiro, sem que ninguém falasse. — Os que são a favor dos conselheiros indicados pelo sr.
Adams dirão "sim". Os que se opõem dirão "não". Os sins ganha-ram e os novos conselheiros estão eleitos.
3
Havia ônibus para transportar todos os acionistas que quisessem ir à pista de testes. Seria servido um lanche, e dez E Stallions aguardavam para quem quisesse guiá-los.
Os nove conselheiros encontraram-se na sala de reunião do prédio de administração da XB Motors. Numa reunião que durou menos de uma hora, elegeram Angelo Perino para presidente do conselho e presidente-executivo da companhia; Elizabeth, Viscondessa Neville, para vice-presidente executiva; Keijo Shigeto para vice-presidente de engenharia; Alicia Hardeman para secretária-geral; e William Adams para tesoureiro.
Os conselheiros autorizaram o presidente a transferir a sede administrativa da companhia para Nova York e a vender a antiga fábrica em que o Sundancer era fabricado. A nova fábrica automatizada de onde sairia o E Stallion se tornaria a única instalação industrial da XB Motors.
Loren não fez objeções a nada. Todas as votações foram por unanimidade.
4
Na pista, Roberta estava em uma cadeira de jardim, sombria, e observava os E Stallions passarem em alta velocidade. Alguns acionistas testavam os limites do carro.
— Vamos, Roberta — chamou Cindy. — Eu a levarei para dar uma volta.
Roberta franziu o cenho, concordou e se levantou para acompanhá-la até um dos carros. Cindy esperou que Roberta pren-desse o cinto de segurança antes de sair com o carro para a pista e acelerar até cento e dez quilômetros horários.
— Já houve um tempo em que fui piloto de testes — comentou Cindy — Dava milhares de volta em pistas assim.
— Quero um destes carros — murmurou Roberta.
— Agora que tem certeza que as baterias não vão explodir.
Como foi preparado aquele Stallion na fita?
— Um enorme balão de borracha cheio de água, com uma pequena carga explosiva — informou Roberta. — Foi feito no Canadá.
— Imaginamos que era algo assim.
— Loren estava tentando defender sua herança — explicou Roberta.
— Destruindo a companhia? Que ele herdou, além de suas ações? Loren é um homem rico, e meu marido está tornando-o ainda mais rico. Aceitem isso, Roberta. Chega de manobras.
— O que mais posso fazer?
— Pode levar Loren para a Riviera ou para algum outro lugar distante e mantê-lo sossegado. Esperamos sua cooperação.
Roberta sorriu, amargurada.
— O que mais podem fazer por nós? — perguntou ela.
Cindy levou o E Stallion por uma curva em S com extrema habilidade.
— Betsy conferiu o inventário do espólio de Número Um.
Havia um item ali, três milhões de dólares, relacionados como
"recuperação de fundo de investimentos". Sabe o que foi isso, Roberta?
— Não tenho a menor idéia.
— Os advogados de Betsy descobriram. Antes de morrer, Número Um disse a Betsy que pusera dinheiro num fundo de investimentos para você, que lhe pertenceria quando cumprisse certas condições. Quando ele morreu, você ainda não tivera tempo para cumprir as condições, e o dinheiro foi entregue ao espólio. Lembra disso?
Roberta contraiu os lábios, sem dizer nada.
— Você receberia três milhões de dólares quando se divor-ciasse de Loren... para que ele pudesse casar de novo e gerar um herdeiro Hardeman. Você deveria encontrar uma mulher para ele e facilitar os motivos para um pedido de divórcio. Isso refresca sua memória?
— Não podem provar.
— Por que não? O registro do fundo constava dos arquivos do espólio.
— Se Loren descobrir...
— Ele não vai descobrir, Roberta. Dará uma volta com Angelo e Betsy, a fim de poderem conversar em particular, da mesma maneira como nós duas estamos conversando. Há muita coisa a tratar. A proposta que Número Um lhe fez, de encerrar seu casamento com Loren... uma proposta que você aceitou... não será mencionada.
— Por que não? — perguntou Roberta, num sussurro.
— Porque temos um emprego para você. Manter Loren feliz. Evite que ele pense em conspirações destrutivas. Se Loren tentar mais alguma manobra escusa, as condições do fundo serão apenas um dos segredos que serão revelados. Você tem meios de manipulá-lo. Sabemos que pode fazer isso.
Roberta acenou com a cabeça.
— Posso mesmo. Mas não continuem a humilhar Loren.
— Não o humilhamos. Ele ainda é conselheiro. Sua filha é vice-presidente. O nome Hardeman permanece na companhia.
Enquanto Cindy fazia uma curva profunda, Roberta olhava fixamente para a frente e permanecia em silêncio. Depois, respirou fundo.
— Quem nos fodeu? — indagou ela.
— Vocês mesmos se foderam, Roberta.
5
Os conselheiros chegaram à pista. Comeram alguma coisa e esperaram que um carro voltasse para darem uma volta.
— Vamos embora — disse Betsy a Angelo. — Usei toda a minha influência e consegui um carro. Meu pai está esperando nele.
Loren sentava no banco traseiro de um E vermelho, arriado, com uma expressão azeda. Betsy guiou, sombria e agressiva. Angelo sentou no banco de passageiro, impassível, pronto para o que desse e viesse.
— Você me deve uma, pai querido — disse Betsy.
— Não imagino como eu poderia lhe dever alguma coisa — resmungou Loren.
— Pois saiba que deve. Número Um tinha um videoteipe que mostrava Roberta batendo em sua bunda com um cinto.
— Isso é impossível.
— Nada era impossível para Número Um, quando ele deci-dia fazer alguma coisa. Todos os cômodos da casa em Palm Beach tinham microfones secretos, com cameras de TV nos quartos de hóspedes. Ele filmou você e Roberta. Tinha outra fita em que eu aparecia com Angelo.
— Você está com as fitas? — indagou Loren, ansioso. — Onde? Em Londres?
— Eu as destruí.
— Como obteve essas fitas?
— Matei o velho sacana — declarou Betsy, calmamente. — Ele morreu de infarto, enquanto eu o sufocava com um travesseiro, logo depois que me mostrou a fita em que eu aparecia com Angelo.
— Diz isso na frente de...
— Angelo sabe há muito tempo. Supôs e eu confirmei.
— Se alguém me perguntar — interveio Angelo —, negarei jamais ter ouvido qualquer coisa contrária ao relatório do médico-legista sobre a morte de Número Um.
— Porque, Betsy? Por que você...? Ah, posso imaginar. Ele ia mudar o testamento!
Betsy acenou com a cabeça.
— Excluindo-me. E excluindo meus filhos.
— E você cometeu... assassinato! — exclamou Loren.
— Certo — concordou ela, despreocupada.
— Para me privar da minha herança! Ele teria deixado tudo para mim!
— Certo.
— E agora vocês dois me roubaram do que herdei — murmurou Loren, amargurado.
— Ainda é um homem muito rico — ressaltou Angelo.
— Deveria estar grato por termos lhe tirado o controle da XB — declarou Betsy. — Não é lá muito inteligente, pai. E o que é pior, não é capaz de controlar suas emoções. Mais cedo ou mais tarde destruiria a companhia e suas ações perderiam o valor.
— É o que pensa, não é? Mas pelo menos sou incapaz de matar alguém.
— Foi capaz de mandar espancar Angelo quase até a morte
— lembrou Betsy, friamente.
— Adquirindo assim sua eterna hostilidade, que me perse-gue há vinte e dois anos.
Angelo sacudiu a cabeça.
— Está enganado nesse ponto, Loren. Sempre achei que você era um idiota, mas não o odiava... até o ano passado.
— Até o ano passado?
— Negócios são negócios, Loren, e podem às vezes se tornar sujos. Meu avô não era apenas o contrabandista de bebidas de Número Um. Sabe que Joe Warren era amante de seu pai e o chantageava. O que você talvez não saiba é que quando Número Um decidiu se livrar de Joe Warren de uma vez por todas, chamou meu avô, que providenciou para que Joe Warren fosse ex-plodido. Lembra que ele morreu numa explosão?
— Eu... não acredito — disse Loren.
— Pois eu acredito — declarou Betsy — Não foi sobre isso que seu pai falou naquela noite na casa de Alicia, Angelo?
Angelo deu de ombros.
— Como queira, Loren. Mas tudo era apenas negócios. Até a surra que você mandou me aplicar. Mas ultimamente você se tornou pessoal... pessoal demais. Isso mudou tudo.
— Mudou as coisas para mim também — acrescentou Betsy.
— Eu até me sentia meio disposta a tentar uma reconciliação com você, mas...
— Não sei do que estão falando — protestou Loren, em tom brusco.
— Rebecca Mugrage — disse Betsy. — Tentou arruinar duas vidas jovens ao contratar uma prostituta para seduzir meu filho.
Isso é pessoal. Até demais.
— Além disso — continuou Angelo —, você contratou um vigarista para se insinuar na afeição de minha esposa e me espio-nar. Isso também é pessoal, Loren. E imperdoável.
Angelo virou a cabeça para o banco traseiro e ofereceu um sorriso a Loren.
— Como se costuma dizer na CIA? Viramos o espião contra você. Nunca houve nenhuma bateria líquida. Usamos Carpenter para transmitir desinformação.
— Eu tentava defender o que era meu — murmurou Loren.
— Estava jogando fora de sua turma — comentou Betsy, sem desviar os olhos da pista.
— Tentava defender...
— Vá se foder! — explodiu Betsy. — Nós lhe prestamos um grande favor. Não anunciamos quem era o culpado pelo videoteipe falso. E mantivemos você no conselho.
— Um voto em nove — murmurou Loren.
— E tem sorte por manter esse voto, pai.
Loren olhou para Angelo.
— Por quanto tempo acha que a companhia será sua?
— Apenas pelo tempo suficiente. Número Um tentou mantê-la até completar cem anos. Não vai acontecer comigo.
Pretendo me retirar quando chegar o momento oportuno.
— Quando Loren Quarto estiver pronto?
— Provavelmente não — interveio Betsy. — Van está fascinado pela faculdade de direito. Anna não quer saber da XB Motors.
Tem péssimas associações para ela. Talvez mudem de idéia, mas...
— Então quem? — interrompeu Loren.
— Talvez o filho de Angelo, John — respondeu Betsy. — Ele se mostra interessado. E talvez... apenas talvez, o outro John. Ele só tem onze anos, ainda resta muito tempo para crescer e decidir.
— Seu filho? O filho que vocês dois tiveram?
— Se ele quiser — disse Betsy. — Talvez ele não queira. Talvez sejam os dois Johns, John Perino e John Hardeman, em su-cessão.
— Vocês previram tudo.
— E é melhor você não tentar interferir — declarou Betsy, um tom de ameaça inconfundível na voz. — Foi superado, não tem como revidar. Aproveite sua aposentadoria, pai querido. Vamos fazer com que suas ações valham muito mais dinheiro.
— Vamos jantar no Ren Center e dar a impressão de que estamos nos divertindo — disse Roberta a Loren.
Angelo reservara um salão particular, onde as famílias se reu-niriam: Betsy, o marido e filhos, Angelo e Cindy com o filhos, Alicia com Bill Adams, o Príncipe e Princesa Alekhine, Loren e Roberta.
— Tenho que deixar que eles tripudiem sobre mim? — indagou Loren.
— Vamos nos comportar como pessoas civilizadas. Além do mais, a ausência seria uma terrível confissão.
Loren olhou para seu scotch com soda.
— Acho que tenho de me acostumar a isso.
— Tem razão, Loren. O jogo acabou. Nós perdemos.
Loren sorriu.
— A menos...
— A menos quê?
— A menos que a porra do carro se torne um fracasso, como aconteceu com o Super Stallion. Podemos torcer por isso.
7
Para o jantar, Cindy usou um vestido floral de seda, em dourado e verde, com algumas tonalidades de laranja e vermelho. Era um modelo de Karl Lagerfeld e mereceu elogios sinceros de Anne, Princesa Alekhine. Mais tarde, no quarto do hotel, ela tirou o vestido. Sem ele, continuava tão espetacular quanto se mostrara durante toda a noite. As meias pretas transparentes, subindo até as coxas, tinham faixas de renda preta no topo, escondendo o elás-tico que as prendia sem as ligas. O sutiã preto era armado, projetando os seios para cima e para a frente, com aberturas na altura dos mamilos. A calcinha preta rendada era aberta na frente, deixando à mostra o rego e uma faixa estreita de cabelos pubianos.
Quando Angelo a tomou nos braços, ela sussurrou em seu ouvido:
— Posso competir com qualquer uma delas.
Angelo beijou-a no pescoço.
— Nem precisa — murmurou ele.
Abril de 1995
O XB 000 — oficialmente o E Stallion, mas quase sempre chamado apenas de Stallion — não era atraente em sua aparência externa: um pequeno cupê esporte preto, com alguma coisa que lembrava um Mazda MX-6. Era um carro sólido, assentado confiante sobre um chassi baixo. Em abril, partiu numa viagem de Los Angeles a Nova York, como um teste e uma demonstração.
A mídia ficou imediatamente encantada com a equipe de jovens bonitos e simpáticos que Angelo escolheu para levar o carro de costa a costa. Loren van Ludwige — Van — era o motorista principal, tendo John Perino como seu ajudante. Anna e Valerie Perino viajavam no banco traseiro. Van tinha vinte e três anos, John vinte e dois, Anna vinte e Valerie dezesseis.
O percurso era Los Angeles, Flagstaff, Albuquerque, Amarillo, Oklahoma City, Tulsa, St. Louis, Indianapolis, Columbus, Akron, onde finalmente pegariam a Interestadual 80, atravessariam a Ponte George Washington e entrariam em Nova York, onde o carro seria mostrado no Centro de Exposições e Convenções. A idéia era os quatro jovens viajarem como uma família de turistas, parando para almoçar, passando a noite em motéis. Deveriam manter o carro no limite de velocidade ou um pouco acima. O ar-condicionado seria ligado quando fosse necessário. Usariam o toca-fitas, escutariam as notícias pelo rádio. Em suma, o E Stallion deveria ser usado exatamente como um carro de propulsão a gasolina.
Mas é claro que a viagem através do país não podia ser tão comum assim. Eram seguidos por um caminhão transportando o gerador de que precisavam para recarregar as baterias. Só em Oklahoma City, St. Louis e Columbus é que podiam recarregar em postos de abastecimento. Como ressaltava o constante fluxo de notícias da XB para a mídia, os equipamentos de recarregar podiam ser acrescentados aos postos com a mesma facilidade com que outrora se acrescentara o diesel... ainda melhor, já que haveria um mercado muito mais amplo.
A grande vantagem era que o E Stallion podia ser recarregado enquanto o motorista e os passageiros almoçavam, ou durante a primeira meia hora num motel. Não precisava ser recarregado durante uma noite inteira. Em St. Louis, onde a XB instalara um equipamento de recarregar num McDonald's, Van sorriu para as cameras de televisão enquanto ligava o Stallion no recarregador, muito parecido com uma bomba de gasolina. O carro foi recarregado em vinte minutos, enquanto os jovens comiam Big Macs e batatas fritas e bebiam Coca-Cola. Van pagou dezesseis dólares pela carga.
Passaram a noite de segunda-feira num motel nos arredores de Akron. No dia seguinte atravessariam a Pensilvânia até Stroudsburg, onde ficariam na última noite de estrada, aprontan-do-se para uma entrada triunfal em Nova York por volta de meio-dia de quarta-feira.
Anna também partilhava a direção. Quando pararam numa área de serviço, a oeste de DuBois, ela sentou ao volante. Esperaram alguns minutos para que o caminhão de apoio os alcançasse.
Van conversou por um ou dois minutos com os técnicos. A norma era o caminhão permanecer quatro ou cinco quilômetros atrás, para não se tornar conspícuo nem aparecer nas fotos tiradas do carro em toda parte. Van voltou a sentar no banco de passageiro, e Anna pegou a estrada. Guiaria pelos próximos cento e cinqüenta quilômetros.
Sem saber, ela escolhera um dos trechos mais montanhosos de todo o percurso de costa a costa. Mas ela era uma motorista competente e aquela era uma rodovia interestadual. Mais ainda, o Stallion há muito que demonstrara sua potência e confiabilidade em longas subidas, que muitas vezes causavam um superaqueci-mento nos motores de combustão interna. Até passaram por dois carros com gêiseres de água e vapor saindo dos radiadores. Riram quando notaram que um deles era um velho Sundancer.
Passaram por uma crista alta e a estrada começou a descer, na encosta leste dos Apalaches.
Os caminhões de dezoito rodas desenvolviam altas velocidades nos longos trechos em declive, chegando a cento e dez quilômetros horários ou mais. As placas insistiam para que reduzissem a velocidade, mas poucos obedeciam. Os motoristas sentiam-se ansiosos em recuperar um pouco do tempo perdido na lenta subida. O tráfego de caminhões também era intenso, já que a 1-80 era uma importante rota de transporte de mercadorias.
Um enorme caminhão amarelo surgiu por trás do Stallion, o motor rugindo. O motorista começou a piscar os faróis.
— O que ele quer que eu faça, que saia da estrada? — indagou Anna.
— Parece que é isso mesmo o que ele quer — comentou Van.
Uma carreta vermelha ocupava a pista à frente, as luzes de freio acesas, diminuindo a velocidade. Anna teve de frear para se manter a uma distância segura.
— Vai ter de ultrapassar a carreta — avisou John, do banco traseiro. — O filho da puta por trás está quase colado na gente.
Anna ligou a seta para virar à esquerda e começou a se desviar para a pista da esquerda, a fim de efetuar a ultrapassagem, mas o caminhão amarelo deslocou-se abruptamente para a esquerda e emparelhou com o Stallion.
— Ei! — berrou Van. — Olhem só para o desgraçado à nossa frente! Não tem placas!
Não era apenas isso. Os números de identificação pintados na carroceria haviam sido cobertos por papel e adesivo.
Anna apertava o volante com as duas mãos. Olhou para a direita. Apenas um guardrail separava a estrada de uma longa queda para o bosque lá embaixo.
— Estão tentando nos forçar para o guardrail — murmurou Van.
— Não vão conseguir! — grunhiu Anna.
A imensa roda dianteira da carreta amarela rolava um pouco à esquerda da frente do Stallion. Anna chegou mais perto, e abruptamente bateu no enorme pneu com seu pára-choque dianteiro.
Uma lufada de fumaça saiu do pneu, fragmentos de borracha voaram, atingindo o capô e o pára-brisa do Stallion. Anna bateu de novo. O pneu estourou.
Ela deu uma guinada para a direita e freou. Subitamente, o Stallion ficou atrás dos dois caminhões. O que tinha o pneu es-tourado começou a derrapar. Fora de controle, bateu na traseira do caminhão vermelho, empurrando-o contra o guardrail. O impacto arrancou um pedaço do g uardrail. O motorista freou e foi atingido de novo pela carreta amarela, desta vez por trás, um impacto em cheio. A carreta amarela virou para a direita, arrancou mais um trecho do guardrail, saiu da estrada, foi descendo a encosta, virou e rolou.
Anna foi para a pista da esquerda e acelerou. Fitou Van, com os olhos cheios de lágrimas.
— Acho que acabei de matar um homem — balbuciou ela.
— Alguém acaba de tentar nos matar — disse Van. — Eu não gostaria de ser essa pessoa quando seu pai descobrir.
Naquela noite, no estacionamento de um motel nos arredores de Stroudsburg, os técnicos do caminhão de serviço trocaram o pára-choque dianteiro do Stallion, a única parte avariada do carro.
As notícias sobre a colisão entre os dois caminhões — com a morte do motorista da carreta amarela — registraram que um pequeno carro de passeio preto escapara por milagre à armadilha criada pelos dois enormes veículos; mas todas as testemunhas se encontravam a centenas de metros de distância no mínimo, e ninguém sabia que tipo de carro era ou para onde ia.
2
Quando os quatro jovens saíram do motel em Stroudsburg, Angelo ainda não sabia o que lhes acontecera. Fora à suite de Betsy no Waldorf... para o desjejum, dissera ela.
Betsy deitava ao lado dele, brilhando do suor misturado dos dois. Angelo aspirou o odor singular e inconfundível que os corpos humanos exalam no êxtase.
Betsy era de uma beleza excepcional. Já fora aos dezesseis anos de idade, quando ele a conhecera. Agora, aos quarenta e dois anos, se alguma diferença havia, parecia ainda mais bela, com aqueles olhos azuis claros memoráveis, calmos e desafiadores, que haviam perturbado tantos homens. Ainda usava os cabelos louros compridos e lisos, o corpo continuava tão esguio quanto antes, a bunda lisa, sem barriga. Nadava nua e era bronzeada em todo o corpo; o sol até escurecera os mamilos grandes e lustrosos nos seios-cheios e firmes.
— Angelo Perino — murmurou ela, a voz rouca —, você é a porra de um fugitivo do Medicare, mas ainda é a melhor trepada que já conheci.
Ele desconfiou que ela falava a verdade.
— É que você me inspira, Betsy.
— Seria um elogio maravilhoso se eu não pudesse contar cem outras mulheres que também o inspiram.
Angelo Perino tinha sessenta e quatro anos. Sob alguns aspectos, parecia ter a idade que tinha; em outros, não. Estava grisalho apenas nas têmporas. As mulheres sempre o consideraram bonito, e as rugas que pouco a pouco surgiram em seu rosto, ao longo dos últimos vinte anos, acrescentaram-lhe maturidade, tornando-o bonito de uma nova maneira. Sua carne permanecera compacta; não ficara flácido, como acontecia com tantos homens.
Pessoas que o conheceram no tempo em que era piloto de corridas ainda o identificavam sem dificuldade.
Duas semanas antes ele começara a posar para Amanda Finch, nu, a pedido de Cindy. Era uma experiência nova e estimulante, uma coisa que ele nunca pensara que poderia fazer, mas com a qual se sentia agora tranqüilo. Seu retrato e o de Cindy ficariam pendurados lado a lado no quarto.
— Mas você me inspira demais, viscondessa.
Ela suspirou.
— Pelo menos não me chama mais de Srta. Betsy.
Angelo sorriu.
— Não parece mais apropriado. Não desde que... Ora, não é mais apropriado do que a maneira como todos chamávamos o velho de Número Um.
— Ele foi o único capaz de matá-lo. E quando descobriu sobre nós, bem que teve vontade.
— E tentou ao máximo.
— Nem tanto assim, Angelo. Acho que você nunca o entendeu direito. Jamais avaliou como ele era de uma maldade total, como podia ser insidioso... e quanto respeito e admiração tinha por você.
— Creio que fui o único que o compreendeu... finalmente, depois de uma dolorosa experiência.
— Meu bem — murmurou Betsy —, ainda tem vigor suficiente para mais uma? Precisa se apressar. Afinal, tem de atravessar a Ponte George Washington. Uma rapidinha?
Ela passou as mãos pelo corpo ainda firme e musculoso de Angelo, pegou o pênis semi-ereto.
— Só mais uma vez?
— Que se dane o E! Se eu não tiver tempo para mais uma, juro por Deus que encontrarei.
3
No final das contas, ele voaria pelo Hudson, em vez de cruzar a ponte, e por isso tinha tempo. Quarenta minutos depois que concordou em dar uma última, um pequeno helicóptero Bell decolou de um heliporto à beira do rio, subiu sobre Manhattan e cruzou o rio Hudson, numa altitude inferior ao topo das torres da Ponte George Washington.
Não importava quantas vezes voasse num daqueles pequenos aparelhos ruidosos, Angelo nunca deixava de ficar fascinado e apreensivo. Não era como voar num avião, que o levava tão acima da paisagem que tudo lá embaixo se tornava irreal, como se fosse de brinquedo. Era assim que o mundo devia parecer para os deuses: visto de uma altura superior, mas em detalhes. Ele podia olhar para os carros na ponte e ver as mulheres com a saia levantada, mostrando pernas bonitas. Apesar disso, era assustador. O
pequeno helicóptero vibrava e era sacudido pelas rajadas de vento. Angelo também podia ver que pilotar aquele aparelho era como coçar a barriga e esfregar a cabeça ao mesmo tempo: um exercício intimidativo de concentração contra-intuitiva.
O piloto falava sem parar pelo rádio com a torre de Teterboro.
Sobrevoou a área metropolitana de Nova Jersey, mantendo-se durante a maior parte do tempo cerca de sessenta metros acima dos telhados, até pousar no Aeroporto Caldwell-Wright. A Interestadual 80 esteve à vista durante grande parte do vôo. Angelo a observara, pensativo. Aquela estrada e a 1-95 seriam o seu percurso para voltar a Manhattan.
Ele nunca se sentia disposto a deixar um helicóptero até que os rotores parassem de girar. Por isso, ficou angustiado quando viu Anna se aproximar correndo, de mãos dadas com Van. Eles mantinham a cabeça abaixada, para evitar o potencial de decapita-ção dos rotores. Valerie esperou que os rotores parassem, provavelmente contida pelo irmão mais velho, John.
Cameras de televisão e repórteres comprimiam-se contra o cordão de isolamento estendido pela polícia. As lentes registraram cada expressão, enquanto Angelo descia do helicóptero e abra-çava Anna e Van.
Anna pediu a Angelo para entrar com ela e Van no Stallion, a fim de poderem conversar por alguns minutos. Relataram o que havia acontecido na descida da serra. O rosto de Angelo se tornou vermelho e rígido, mas ele conseguiu dizer:
— Muito bem, temos um espetáculo a apresentar. Esqueçam o que aconteceu. Eu cuidarei disso.
4
Poucos minutos depois um cortejo motorizado deixou o aeroporto, tendo à frente dois carros da polícia estadual de Nova Jersey.
O Stallion seguia atrás, dirigido por Van, com Anna sentada ao seu lado.
Um van de família acompanhava o Stallion. Mantinha vivo o nome Sundancer, embora oficialmente fosse o Modelo 000 V
Também era um veículo elétrico, guiado por Angelo Perino. Cindy sentava ao seu lado. Nos bancos traseiros viajavam Morris Perino, Mary Perino e John Hardeman.
Um caminhão com câmeras de televisão seguia os dois carros elétricos, com meia dúzia de carros cheios de repórteres por trás.
Dois helicópteros pairavam sobre o cortejo, proporcionando uma visão ampla às câmeras de televisão. Mais dois carros da polícia fechavam o cortejo.
— Um triunfo — comentou Cindy para Angelo.
Ele acenou com a cabeça.
— Desde que cheguemos ao centro de convenções sem qualquer problema.
Cindy inclinou-se para o marido e sussurrou:
— Loren adoraria se houvesse algum.
— É por isso que os dois veículos têm sido vigiados por guardas em quantidade suficiente para se travar uma pequena guerra... com armas em quantidade suficiente para uma grande guerra.
— Ele não ousaria tentar qualquer coisa.
— Espere só até eu lhe contar o que ele já tentou. Vou matá-lo. Juro que vou matá-lo.
— Não pode ter sido tão terrível assim.
— Não? Eu lhe contarei mais tarde.
Angelo lançou um olhar para a mulher que era sua esposa.
Cindy era a mãe de seus cinco filhos. Mas era também muito mais do que isso. A garota de calça jeans rasgada que circulava pelas pistas de corridas se revelara uma mulher instruída e sofisticada.
Amava Angelo. Ele nunca duvidara disso. Mas nunca fora dependente dele. Cindy era Cindy: adorável, fascinante, erótica, sim, mas também inteligente, astuta, objetiva e realista.
Ela envelhecera bem. Dezessete anos mais jovem do que Angelo, não poderia mais vaguear pelos circuitos como uma aficionada das corridas, mas não ficaria deslocada se freqüentasse os cais em que atracavam os iates. Os pilotos de corrida, em sua maioria, careceriam da perspicácia para apreciarem-na. Já os iatistas, mais sofisticados em seus gostos, mais maduros, have-riam de considerá-la maravilhosa. Tudo que ela tinha outrora continuava a ter... inclusive um espírito aventureiro.
Além disso, Cindy possuía um corpo sensacional, as marcas da maturidade que acompanhavam os anos só servindo para torná-lo ainda mais interessante. Angelo conservava uma imagem especial de sua mulher: uma calça jeerns rasgada bem apertada na bunda, os seios balançando soltos dentro de uma T-shirt branca, a aficionada por corridas que ele só vira num vestido um ano depois de conhecê-la. Essa imagem era complementada pelos retratos de Cindy pintados por Amanda.
Nenhum casamento era perfeito. Ela permanecia aventureira c tinha suas aventuras, talvez até estivesse tendo uma naquele momento. Tudo bem. Ele também tinha as suas. Mas Cindy era o amor de sua vida. Não gostaria de tê-la de outra maneira.
Na praça de pedágio para a pista superior da ponte os carros da polícia de Nova Jersey se afastaram e foram substituídos pelas radiopatrulhas azuis e brancas da polícia de Nova York. Atraves-sando a ponte, foram acompanhados por mais dois helicópteros da imprensa.
Ainda falando baixo para Angelo, Cindy disse:
— De qualquer forma, é um tremendo triunfo... e é um triunfo Perino, não um triunfo Hardeman.
— Partilhado — ressaltou Angelo. — É por isso que Van está guiando.
— Ele é filho de Betsy, não o neto de Loren Terceiro. Às vezes tenho dúvidas se ele é mesmo um Hardeman.
— Não se iluda, Cindy. Ele pode ser um van Ludwige, mas é também um Hardeman. E o mesmo acontece com Betsy.
Cindy deu de ombros e olhou para o sul, na direção do World Trade Center e de todo o resto de Manhattan, visível da pista superior da Ponte George Washington num dia claro como aquele.
O cortejo deixou a ponte e desceu pelos segmentos de nomes diversos da West Side Highway, até a Rua 57. Atravessou a cidade até a Broadway, desceu pela rua que levava ao Centro de Convenções Javits.
A idéia de dar toda essa volta era a de oferecer a mais nova-iorquinos a possibilidade de ver o E Stallion e o van Sundancer.
Poucos olharam. Para os enfastiados nova-iorquinos, o cortejo era apenas outra desculpa para engarrafar ainda mais o tráfego no centro da cidade.
O pessoal da mídia podia ser atraído com mais facilidade. Ficavam de olhos esbugalhados a qualquer deixa. Enquanto o Stallion e o novo Sundancer entravam no centro e ocupavam seus lugares no salão, onde ficariam em exposição por uma semana, refletores foram acesos, e os jornalistas cercaram os dois veículos.
O que os quatro jovens tinham a dizer já fora ouvido diversas vezes durante a viagem. Televisões e jornais já haviam noticiado que o carro andava muito bem, era confortável, tinha bastante aceleração, nunca chegara nem perto de esgotar a energia elétrica.
Agora os repórteres queriam ouvir Angelo Perino.
— Quando o carro será lançado no mercado, sr. Perino?
Angelo foi para uma plataforma com microfones, montada para que pudesse responder às perguntas.
— No próximo ano. Os primeiros E Stallions serão vendidos na área de Los Angeles. Fechamos um contrato com duas grandes distribuidoras de gasolina para acrescentarem equipamentos de recarregar a seus postos.
— Quanto vai custar recarregar as baterias?
— Um pouco mais que um tanque de gasolina cheio. Cerca de dois dólares a mais. Guiar o Stallion elétrico deverá custar um centavo a mais por quilômetro do que um carro impulsionado por gasolina. Por outro lado, você nunca precisa trocar o óleo ou o fluido da transmissão, não precisa mudar os filtros, nunca tem de acrescentar anticongelante, não tem velas para queimar, e assim por diante. Creio que o carro terá um desempenho econômico tanto quanto um carro convencional... e talvez mais tarde, quando as distribuidoras reduzirem o custo da carga, pode até ser mais barato.
— Quanto vai custar a substituição das baterias? Não é essa a grande questão?
Angelo acenou com a cabeça.
— Nossos carros de testes andaram cerca de centro e trinta mil quilômetros com um jogo de baterias. O custo aproximado para a substituição é de dois mil dólares. Quantos carros convencionais andam cento e trinta mil quilômetros sem mais de dois mil dólares de custo de manutenção? Aos cento e trinta mil quilômetros, você já está trocando os anéis de segmento, válvulas, partes do carburador, bobinas, bomba-d'água e assim por diante...
para não mencionar as velas trocadas.
Dois seguranças abriram caminho entre os repórteres para a passagem de Elizabeth, Viscondessa Neville: Betsy. Roberta a acompanhava.
— Senhoras e senhores, aqui estão a Viscondessa Neville, bisneta do fundador da XB Motors, e Roberta Hardeman, mulher do neto do fundador.
Betsy correu para o filho Van e abraçou-o, efusiva.
Assim que pôde, Angelo levou Betsy e Roberta para um lado e perguntou:
— Onde ele está?
— Ele quem?
— Loren. Onde ele está?
Betsy olhou para Roberta.
— Você não me disse.
Roberta corou e balançou a cabeça.
— Ele foi para a Flórida ontem à noite. Palm Beach. Ainda conserva a casa que era de Número Um. Por quê?
— Porque eu vou matá-lo!
5
Angelo não foi à casa em Palm Beach por uma semana. Acabou aparecendo, largado por um táxi. Loren renovara o antigo hábito de Número Um de manter dois ferozes cães de guarda no terreno.
Quando Angelo se encaminhou para a casa, os cachorros avança-ram em sua direção, rosnando. Ele viera preparado para isso. Tirou do bolso do paletó uma lata de Mace e derrubou os animais. Enquanto os cachorros se contorciam no chão, ele esguichou uma dose extra, para ter certeza de que não tornariam a incomodá-lo.
Ele tocou a campainha e Roberta abriu a porta. Ela apontou para a lanai. Betsy estava lá. Loren se refestelava numa chaise longue, com um revólver 38 na mão direita. As pernas cabeludas estavam à mostra, os pés descalços.
— Esperava me ver mais cedo, Loren? — perguntou Angelo.
— Claro. Por onde andou?
— Dei-me ao trabalho de verificar que estava certo. Não queria vir até aqui e acusá-lo antes de ter certeza.
— Mas do que está falando?
— A polícia estadual da Pensilvânia tinha dificuldade para determinar como aquele motorista de caminhão morrera, por que seu veículo não tinha placas e os números de identificação foram cobertos por papel pardo e adesivos, e por que o outro caminhão se encontrava na mesma situação. A dificuldade só cessou quando apresentei os depoimentos juramentados de quatro testemunhas.
— Ora, Angelo, do que está falando? — indagou Betsy.
Ele virou-se para Betsy.
— Loren tentou matar Van, Anna, John e Valerie... três filhos meus, um seu. Contratou dois caminhoneiros para jogarem o Stallion fora da estrada na descida da serra. A tentativa fracassou, mas um dos caminhoneiros morreu.
Loren apontou o revólver para Angelo.
— Tome cuidado com suas palavras insidiosas a meu respeito, meu amigo carcamano. Quer saber de uma coisa? Se eu desse um tiro em você, várias testemunhas poderiam depor que ameaçou me matar. Seria legítima defesa.
— Que testemunhas? — perguntou Betsy
— Você mesma me disse que ele...
— Não conte com meu depoimento de que ele ameaçou matá-lo — declarou Betsy, friamente.
— Pode provar essa acusação, Angelo? — indagou Roberta, o rosto vermelho, a voz trêmula.
— Não preciso provar nada. O promotor distrital do Centre County, na Pensilvânia, vai provar tudo.
— Que mentiras você disse a ele? — gritou Loren.
— Nem precisei falar com ele. A polícia estadual da Pensilvânia está conduzindo a investigação. Os quatro garotos vão depor que dois enormes caminhões tentaram jogar o Stallion para fora da estrada, em alta velocidade. Anna guiava no momento e graças a Deus foi bastante hábil para escapar da armadilha... embora no processo provocasse uma colisão dos dois caminhões, causando a morte de um motorista.
— Então foi ela quem o matou, não eu. E será a palavra dos garotos contra...
— O caminhoneiro sobrevivente não conseguiu explicar por que tirara as placas e guardara na cabine, nem por que cobrira os números de identificação. Ele está preso. Sabe que se meteu numa tremenda encrenca e vai confessar tudo em juízo... a conselho de seu advogado.
— Muito bem, ele e o outro tentaram jogar o Stallion para fora da estrada. O que eu tenho a ver com isso?
— Os dois motoristas eram donos dos caminhões. Ambos deviam várias prestações. Muito estranho. As dívidas foram sal-dadas uma semana antes do acidente. Com dinheiro... cento e cinqüenta e cinco mil dólares. O promotor vai pedir seu extrato bancário. Não retirou cento e cinqüenta e cinco mil dólares do banco em dinheiro recentemente, não é, Loren?
Roberta soltou um grito.
— Você fez isso? Tentou matar aqueles garotos? Seu idiota, bêbado, maluco...
Loren sorriu.
— Assassinato... isto nunca a incomodou antes.
Roberta olhou para Angelo e Betsy.
— Burt Craddock. Ele tentou fazer chantagem conosco. —
Ela tornou a se virar para Loren, o rosto rígido. — Largue a porra desse revólver. Se atirar em Angelo, não terá uma única testemunha favorável. Muito menos eu, pode ter certeza. E não se esqueça de que está na Flórida. Por aqui eles aplicam a pena de morte.
Loren olhou para o revólver por mais um momento, talvez como se estivesse pensando em enfiá-lo na boca. Depois, deu de ombros e largou a arma, que Betsy se apressou em pegar.
— É melhor pôr uma escova de dentes na mala, Loren —
disse Angelo, sem a menor compaixão. — Um grande júri da Pensilvânia vai aceitar o indiciamento. E depois a Pensilvânia pe-dirá sua extradição.
Betsy despejou scotch num copo de água e entregou-o ao pai.
— Tome um trago, velho — murmurou ela, desdenhosa. —
Vai fazer com que se sinta melhor.
6
Ao final da tarde de 24 de junho, Anna Perino casou com Loren van Ludwige. O casamento foi realizado sob um toldo de listras vermelhas e brancas, no gramado por trás da casa dos Perinos. Um quarteto de cordas tocou, só parando durante a cerimônia propriamente dita. Todas as mulheres usavam longos e algumas tinham chapéus de aba larga. O sol ainda brilhava, e Amanda Finch comentou que as mulheres em suas muitas cores pareciam com flores.
Anna tinha a beleza mediterrânea suave e fascinante de seus ancestrais. Os olhos escuros eram meigos. Aos vinte anos de idade, era madura sob todos os aspectos. A maturidade física aparecia através do casto vestido de noiva branco.
Van era um jovem alto e bonito, o que se podia esperar de um filho de Betsy Hardeman e Max van Ludwige. Max era um homem bonito, mas os genes dos Hardemans predominavam em Loren... como em todas as crianças daquele clã. Ele herdara o rosto simples e forte da mãe, os olhos azuis.
O jovem casal era profundamente apaixonado, de uma maneira ostensiva e comovente.
— Nem m e s m o s reconheço todo mundo — comentou Betsy para Angelo, enquanto tomava champanhe ao lado do Visconde Neville. — Não posso apresentar George.
— Todos estão aqui — disse Angelo. — Ou quase todos.
Todos estavam... as crianças das duas famílias; Jenny Perino, de oitenta e cinco anos, avó da noiva, feliz, cumprimentando as pessoas de uma cadeira de vime de encosto alto; um radiante Max van Ludwige e sua sempre bela mulher; os elegantes Príncipe e Princesa Alekhine; a distinta Alicia Grinwold Hardeman e Bill Adams; Henry Morris e sua família, todos confusos, sem saberem da identidade da maioria dos convidados; Amanda Finch, Mareias Lincicombe e Dietz von Keyserling, bastante impressionados; Keijo Shigeto, Toshiko e os filhos, sempre polidos e for-mais; o jovial Tom Mason; uma aturdida Alexandria McCullough; o Signor Giovanni DiCostanzo e uns poucos exuberantes membros da comunidade italiana local, que trouxera generosos presentes em dinheiro para a noiva; e muitos vizinhos, amigos e colegas de escola.
— Nem todos, graças a Deus — disse Betsy. — Mas pela primeira vez na vida tenho sentimentos meio humanos em relação a meu pai. Afinal, ele está na prisão. É uma queda muito maior do que você tencionava, Angelo.
— Ele tentou...
— Eu sei, eu sei. Mesmo assim.
— Loren vai se declarar culpado, e estará livre dentro de seis ou sete anos.
Betsy olhou ao redor.
— Desculpe tê-lo mencionado. Não quero mais pensar nele.
O quarteto, que fizera uma pausa, começou agora a tocar música para dançar.
— Vocês deveriam dançar — disse Angelo. — Já que armei uma pista de dança, todos precisam aproveitar.
O sol poente ainda brilhava. O vento era quente, suave e fra-grante. Van dançou com a esposa. Depois, Angelo dançou com a filha.
— Obrigada, papai — sussurrou ela, com lágrimas nos olhos.
— Por tudo.
— Eu também agradeço — murmurou Angelo. — Sinto o maior orgulho de você. A vida é boa... para os bons.
Harold Robbins
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