20 - Chamas que saem do alto
O UNIFORME PRETO de homem-rã estava muito apertado. Doía no corpo todo. Por que cargas d'água Strangways não tinha se certificado de que o Almirantado tinha suas medidas corretas? E era muito escuro no fundo do mar, as correntes eram muito fortes, arrastavam-no para o banco de coral.
Era preciso nadar com todo o ímpeto para afastar-se dali. Mas agora algo lhe prendia o braço. Que diabo...?
— James! Pelo amor de Deus, James! — Ela apertou a boca ao ouvido dele. Desta vez ela beliscou-lhe o braço nu e ensanguentado com tanta força que, afinal, os olhos de Bond se abriram entre as pálpebras inchadas, e ele a contemplou do piso de madeira em que estava deitado e deu um suspiro de sobressalto.
Ela puxou-o para si, com medo que ele lhe escapasse outra vez. Ele pareceu entender e se revolveu, erguendo-se sobre as mãos e os joelhos, a cabeça pendida para o chão, como um animal ferido.
— Pode andar?
— Espere. — O murmúrio espesso que lhe atravessou os lábios arrebentados soou-lhe estranho aos ouvidos. Talvez ela não tivesse compreendido. — Espere — repetiu ele, enquanto sua mente passava a explorar o corpo para ver o que lhe tinha sobrado. Podia sentir os pés e as mãos. Podia mover a cabeça de um lado para outro. Podia ver as barras do luar nas pranchas de madeira. Pudera ouvir a moça. Devia estar inteiro, mas não queria mover-se. Sua força de vontade o tinha abandonado. Apenas desejava dormir. Ou talvez mesmo morrer. Qualquer coisa, contanto que mitigasse a dor que lhe avassalava o corpo todo, apunhalando-o, martelando-o, triturando-o — e matasse a lembrança das quatro botinas que o haviam golpeado e dos rosnados proferidos pelos dois vultos encapuzados.
Assim que pensou nos dois homens e em Mr. Spang, a vontade de viver retornou.
— Está bem — disse, e tornou a dizer para que ela compreendesse.
— Estamos na sala de espera — sussurrou a moça. — Temos de chegar ao extremo da estação. À esquerda, depois da porta. Está me ouvindo, James?
Ela estirou a mão e afagou-lhe os cabelos úmidos, viscosos, caídos na testa.
— Tenho de me arrastar — disse Bond. — Atrás de você.
A moça ergueu-se e abriu a porta. Bond trincou os dentes e saiu de rastros para a plataforma enluarada. E quando avistou a mancha escura no chão, a raiva e o desejo de vingança deram-lhe forças para se levantar.
Balançando a cabeça para não se afogar nas ondas negro-avermelhadas e amparado em Tiffany Case, cujo braço lhe envolvia a cintura, foi coxeando pelas tábuas até a rampa por onde desceram para o chão junto dos trilhos reluzentes.
E lá, no desvio, havia um vagonete.
Bond parou e olhou-o atentamente.
— Gasolina? — perguntou com ar vago.
Tiffany Case fez um gesto para uma fileira de latas encostadas no muro da estação. — Está cheio — sussurrou. — É usado na inspeção da linha. Eu sei colocá-lo em funcionamento. Já desloquei as agulhas. Depressa. Suba — soltou uma risadinha abafada. — Próxima parada: Rhyolite.
— Isso é que é uma garota — murmurou Bond. — Mas vai fazer um barulho danado quando esse troço começar a funcionar. Espere. Tenho uma ideia. Tem fósforos?
Metade da dor tinha desaparecido. Respirava forte quando deu as costas à moça e observou as silenciosas casas de madeira.
Ela estava usando calças compridas e blusa. Enfiou a mão no bolso das calças e entregou-lhe o isqueiro.
— O que é que vai fazer? — perguntou. — Já devíamos ter partido.
Mas Bond manquejou até as latas de gasolina e pôs-se a destampá-las e a arremessar o líquido sobre as paredes e a plataforma de madeira. Depois de esvaziar meia dúzia de latas, voltou para onde ela estava. — Ligue a bicha.
— Curvou-se com esforço e apanhou um jornal amassado ao lado dos trilhos. Ressoou o gemido raivoso do arranque automático, o motor de dois tempos pegou e começou a martelar.
Bond acendeu o isqueiro. O papel pegou fogo e Bond jogou-o entre as latas de gasolina. O espocar das labaredas quase o alcançou quando ele se lançou de costas ao estribo do vagonete. Mas então a. moça soltou a embreagem e o carro começou a deslizar pelos trilhos.
Houve um matracolejar e um sacolejo desagradável ao chegarem às agulhas; e depois, entrados na linha> principal, o velocímetro tremia marcando trinta milhas e os cabelos da moça flutuavam à frente de Bond como uma bandeira.
Bond voltou-se e contemplou a gigantesca floração de chamas que ia ficando para trás. Podia quase ouvir o crepitar das pranchas secas e os berros dos que despertavam. Se pelo menos o fogo pegasse Wint e Kidd, apanhasse a pintura do Pullman e se alastrasse pela lenha do tender do Cannonball e acabasse de uma vez com a caixa de brinquedos de Mr. Spang!
Mas ele e a moça tinham seus próprios problemas. Que horas eram?
Bond aspirou o ar fresco da noite e tentou colocar de novo a mente para trabalhar. A lua estava baixa. Quatro horas? Bond avançou com dificuldade pelo estribo até os dois assentos de encosto dobradiço e conseguiu sentar-se ao lado da moça.
Passou-lhe um braço em volta dos ombros, e ela voltou-se com um sorriso nos lábios. Levantando a voz acima do barulho da máquina e do matracolejar das rodas de ferro sobre os trilhos, ela falou: — Foi uma escapada e tanto. Parecia coisa de filme de Buster Keaton.
Como se sente? — Inspecionou o rosto combalido. — Você está massacrado, hein?
— Nenhuma fratura — disse Bond. — Acho que é isso que se entende por oitenta por cento. — Fez uma careta de dor. — É melhor ser tratado a pontapé do que a bala.
O rosto de Tiffany Case contraiu-se.
— E eu tive de ficar sentada lá e fingir que não ligava. Spang, ao meu lado, escutava e me observava. Depois, eles viram que você já estava nas últimas, atiraram você na sala de espera e todo mundo foi para a cama satisfeito da vida. Esperei uma hora em meu quarto e então resolvi agir. O
pior de tudo foi tentar despertar você.
Bond apertou-lhe os ombros com o braço.
— Direi o que penso de você quando estiver menos contundido. Mas, e você, Tiffany? Vai ficar em maus lençóis se eles nos pegarem. E quem são os dois encapuzados, Wint e Kidd? O que é que eles vão fazer agora?
Gostaria de vê-los de novo.
A moça olhou de viés para a feia equimose na boca de Bond.
— Nunca os vi sem os capuzes — confessou ela. — Suponho que eles são de Detroit. Pistoleiros. Encarregam-se dos trabalhos violentos e de missões especiais secretas. Virão em nosso encalço. Mas não se preocupe comigo. — Encarou-o de novo e seus olhos irradiavam felicidade. — A primeira coisa a fazer é levar essa joça a Rhyolite. Depois teremos de achar um carro e cruzar a fronteira com a Califórnia. Dinheiro não vai faltar-. Eu trouxe. Depois iremos a um médico, arranjaremos um banho e uma camisa nova pra você e pensaremos no que vamos fazer. Trouxe seu revólver. Foi encontrado por um dos rapazes que ajudaram a recolher os restos daqueles dois sujeitos que você arrasou no botequim. Apanhei a arma depois que Spang foi para a cama.
Ela desabotoou a blusa e enfiou a mão no cós das calças.
Bond recebeu a Beretta, e sentiu a quentura do corpo da moça no metal.
Removeu o pente. Sobravam três cartuchos, e um estava na agulha.
Recolocou o pente, fechou o registro de segurança e guardou a arma na cintura. Só então notou que estava sem paletó. Uma das mangas da camisa fora reduzida a um trapo. Arrancou-a e jogou-a fora. Apalpou o bolso traseiro direito da calça, à procura da cigarreira e não a encontrou. Mas no esquerdo estavam ainda o passaporte e a carteira de cédulas. Puxou-os do bolso. À luz da lua pôde ver que ambos estavam danificados. O dinheiro continuava na carteira. Pôs outra vez os objetos no bolso.
Durante algum tempo avançaram pela estrada. O silêncio da noite era cortado apenas pelo ronrom da máquina e pelo matraquear das rodas. Até onde a vista alcançava, havia somente uma interrupção da estreita linha prateada dos trilhos, assinalada pela alavanca de manobra das agulhas, no ponto em que um ramal enferrujado penetrava na massa escura dos montes Spectre à direita. À esquerda, descortinava-se o infindável chão do deserto em que o lampejo da aurora começava a debruar de azul as moitas de cactos contorcidos e, duas milhas além, o luar esparramava seu clarão cinza-chumbo sobre a Rodovia 95.
O vagonete cantarolava feliz nos trilhos. Os instrumentos de controle eram poucos: uma alavanca de freio e uma espécie de manche com um acelerador de cabo retorcido que a moça mantinha completamente aberto, com o velocímetro firme em trinta milhas. As milhas e os minutos passavam e, de vez em quando, Bond virava-se com dificuldade na cadeira e inspecionava o florescente rubor do céu às suas costas.
Fazia cerca de uma hora que tinham partido quando um leve zumbido, vibrando no ar ou nos trilhos, pôs Bond de sobreaviso. Novamente ele olhou por cima do ombro. Haveria um vago bruxoleio entre eles e o falso alvorecer da cidade em chamas?
Bond sentiu leve comichão no couro cabeludo.
— Veja se enxerga alguma coisa ali atrás.
A moça voltou-se. Depois, sem responder, diminuiu a marcha do carro que passou a deslizar suavemente.
Puseram-se à escuta. Sim. Era nos trilhos. Uma leve trepidação, nada mais do que um suspiro distante.
— É o Cannonball — disse Tiffany, categórica.
Deu um brusco repelão no acelerador, e o vagonete tornou a ganhar velocidade.
— Quanto pode fazer a locomotiva? — perguntou Bond.
— Talvez sessenta.
— E daqui pra Rhyolite?
— Trinta, mais ou menos.
Bond fez as contas em silêncio.
— Vai ser por um triz. Não é fácil dizer a que distância ela está de nós. E
esse treco pode dar mais alguma coisa?
— Que nada! — disse ela, — Nem que eu me chamasse Casey Jones em vez de Tiffany Case.
— Não tem importância — disse Bond. — Toca pra frente. Talvez ela vá prós ares com uma explosão.
— Ah, sim — disse ela. — Ou talvez a mola dê o prego, ou Spang se lembre que deixou a chave do motor em casa, no bolso da calça.
Viajaram mais quinze minutos em silêncio. Então, Bond divisou o grande farol da locomotiva varando a noite, a umas cinco milhas de distância, e as centelhas subindo pela chaminé. Os trilhos trepidavam e o que tinha sido um suspiro longínquo era agora um murmúrio baixo, ameaçador.
Talvez venha a faltar lenha, pensou Bond. Num impulso, ele perguntou despreocupadamente à moça:
— Será que temos bastante gasolina?
— Temos, sim — disse Tiffany. — Botei uma lata inteira. Não tem mostrador, mas esses motorzinhos giram a vida inteira com um galão.
Mal ela havia acabado de falar, e como se fizesse um comentário, o motorzinho deu uma tossidela de reprovação — cóf-cóf-cóf — e continuou a rodar alegremente.
— Ai, meu Deus! — exclamou Tiffany. — Ouviu isso? Bond ficou calado. Sentiu as mãos tornarem-se úmidas. Outra vez: cóf-cóf-cóf.
Tiffany Case acalentou delicadamente o acelerador.
— Ah, motorzinho querido — disse ela em tom de súplica. —' Vamos, motorzinho lindo, seja bonzinho, por favor...
— Cóf-cóf. Cóf-cóf. Chi. Cóf. Chiiiii...
E no instante seguinte estavam eles escorregando brandamente em silêncio. Vinte e cinco, dizia o velocímetro. Vinte... quinze... dez... cinco.
Um último e selvagem repelão no acelerador, um pontapé de Tiffany Case na armação do motor, e tinham parado.
— Porra! — disse Bond. Com esforço conseguiu saltar e manquejar até o tanque na traseira do vagonete. Tirou do bolso da calça o lenço ensanguentado, desatarraxou a tampa do funil e introduziu o lenço até tocar o fundo do tanque. Puxou-o para fora, apalpou-o e cheirou-o. Seco como um osso.
— Nada feito — disse ele para Tiffany. — Vamos pensar numa saída.
Olhou em volta. Nenhum abrigo à esquerda, e duas milhas pelo menos até à estrada de rodagem. À direita, as montanhas, talvez a um quarto de milha. Podiam chegar lá e esconder-se. Mas por quanto tempo? Contudo, era o melhor alvitre. O chão, sob seus pés, tremia. Esquadrinhou a linha férrea iluminada pelo olho incandescente, implacável. A que distância? Duas milhas? Spang enxergaria o vagonete? Teria tempo de parar? Haveria descarrilamento? Mas aí Bond lembrou-se do poderoso limpa-trilhos, que varreria da linha o vagonete como se fosse um feixe de palha.
— Vamos, Tiffany — bradou ele. — Temos de escalar as colinas.
Onde estava ela? Bond rodeou o carro. Ela vinha correndo pelo trecho da estrada que tinham pela frente. Aproximou-se arquejante.
— Há um desvio logo ali adiante — disse ela entre um ofego e outro. — Se a gente puder empurrar essa coisa até lá e se você puder manobrar as velhas agulhas, pode ser que a gente escape.
— Deus do céu! — disse Bond lentamente. E depois, com uma nota de pasmo na voz, acrescentou: — Há uma coisa melhor do que essa. Me ajude aqui — e, curvando-se, rilhou os dentes contra a dor e começou a empurrar o vagonete.
Recebido o impulso inicial, o carro moveu-se facilmente e eles precisavam apenas segui-lo e não deixar que parasse. Chegaram às agulhas, mas Bond continuou a empurrar até que pararam umas vinte jardas além.
— Que diabo é que você vai fazer? — arquejou Tiffany.
— Vamos pra cá — respondeu Bond, correndo aos tropeções para o ponto em que a chave enferrujada ressaltava ao lado dos trilhos. — Vamos colocar o Cannonball no desvio.
— Genial! — disse Tiffany Case com admiração. Puseram mãos à obra, e os músculos doloridos de Bond forcejavam por erguer a chave.
Lentamente o metal enferrujado começou a mover-se no leito onde jazia imóvel havia cinquenta anos, e milímetro a milímetro os trilhos mostraram uma fenda, que foi se alargando à medida que Bond puxava a alavanca.
Ao terminar, Bond caiu de joelhos no chão, com a cabeça dobrada para baixo, lutando contra a tontura que ameaçava dominá-lo.
Mas já então um feixe de luz iluminava o chão e Tiffany procurava arrastá-lo. Bond ergueu-se e voltou aos trambolhões para o vagonete. O ar estrondava e se enchia do plangente clangor do sino enquanto o flamejante cavalo de ferro galopava em direção a eles.
— Abaixe-se e não se mexa — bradou Bond por cima do barulho e lançou-a ao chão por trás do frágil biombo do vagonete. Depois, coxeou o mais rápido que pôde até a margem dos trilhos, puxou a arma, colocando-se de viés com o braço levantado como um duelista e voltou os olhos semicerrados para o gigantesco farol que avançava debaixo do vulcão de fogo e fumaça turbilhonantes.
Puxa, que monstro! Entraria ele na curva? Ou não respeitaria o desvio e os esmagaria? Lá vinha ele.
— Fittt.
Algo açoitou o chão ao lado de Bond e houve um clarão momentâneo na cabina.
— P-o-e-m-m-m.
Houve outro clarão, e a bala atingiu o trilho, gemendo na noite.
— Trac. Trac. Trac.
Agora era-lhe possível ouvir o revólver acima do trovejar da locomotiva.
Algo cantou em tom agudo no ouvido de Bond.
Bond não respondeu. Só quatro balas, e ele sabia quando devia disparar.
E então, a vinte jardas, a locomotiva entrou na curva e desembestou pelo desvio com uma guinada tão violenta que atirou as achas de lenha do alto do tender na direção de Bond.
Houve um grito roufenho de metal quando as bordas das rodas motrizes de seis pés de altura dobraram a curva, uma breve impressão de fumaça, chama e ruído de motor, e, depois, uma rápida visão da cabina e do vulto negro e prateado de Spang, de braços abertos e pernas estendidas, agarrando-se com uma das mãos ao costado da cabina e com a outra precipitando-se para a alavanca do acelerador.
A arma de Bond bradou suas quatro palavras. Houve um curto vislumbre de uma cara branca arremessada para o alto, e logo a enorme locomotiva preta e amarela distanciou-se, reboando rumo à muralha sombria dos montes Spectre, o feixe de luz do farol ceifando a treva e o sino dobrando tristemente dim-dão, dim-dão, dim-dão.
Bond guardou lentamente a Beretta no cós das calças, e ficou olhando o ataúde de Mr. Spang, enquanto a esteira de fumaça subia no ar e por um momento encobria a face da lua.
Tiffany veio correndo até onde ele estava, e lado a lado puseram-se a contemplar a bandeira de chamas que se elevava da alta chaminé e escutar as montanhas multiplicarem o atroar da locomotiva. A moça agarrou-lhe os braços quando o comboio deu uma guinada repentina e sumiu-se atrás de um esporão da pedra. E agora ouvia-se apenas um longínquo tamborilar nas montanhas e avistava-se um clarão vermelho que fazia tremular os penhascos enquanto Cannonball despencava no bojo da rocha.
E subitamente apareceu uma imensa língua de fogo, no mesmo instante em que se produziu tremendo choque metálico semelhante ao encontrão de um encouraçado num penedo. Debaixo de seus pés ressoou um estrépito abafado. Finalmente, um ribombo distante e profundo levantou-se das entranhas da terra, seguido por uma barragem de ecos os mais variados.
Então, findos todos os ruídos, zuniu, firme, o silêncio.
Bond soltou um suspiro profundo como se estivesse despertando. Aí estava o fim de um dos Spangs, de um dos enfatuados, cruéis, aparatosos, irrecuperáveis adultos que compunham a quadrilha dos Spangs. Fora um gangster teatral e vivera num ambiente de caixa de palco. Mas isso não alterava o fato de que pretendera liquidar Bond.
— Vamos embora daqui — disse Tiffany Case com sofre-guidão. — Para mim chega de Spectreville.
Bond sentiu a dor insinuar-se-lhe outra vez por todo o corpo à medida que passava a tensão. "Vamos" — respondeu, lacônico. Alegrava-o a ideia de voltar as costas à lembrança daquele rosto branco virado para cima, dentro da bela locomotiva negra em marcha. Estava ligeiramente tonto e duvidava se seria capaz de fazer o percurso.
— Temos de alcançar a estrada. Vai ser difícil. Mas vamos embora.
Levaram uma hora e meia para vencer as duas milhas e, no momento em que se prostrou no solo à margem da estrada de cimento, Bond estava delirante. Foi a moça que o conduziu até lá. Sem ela, ele não teria chegado.
Teria tropeçado no meio dos cactos, das pedras e da mica até que lhe faltassem as forças e o sol causticante se encarregasse de completar o serviço.
Agora ela lhe segurava a cabeça no regaço, falava-lhe docemente e lhe enxugava o suor da testa com a ponta da blusa.
E de vez em quando parava para examinar uma banda e outra da estrada retilínea de concreto, cujos horizontes já tremeluziam nas ondas de calor do amanhecer.
Uma hora depois, ela ergueu-se de um salto, enfiou a blusa por dentro das calças, correu e parou no meio da estrada. Um carro baixo e negro rompia a neblina esvoaçante que ocultava o distante vale de Las Vegas.
O carro estacou justamente diante dela. Um rosto adunco sob um topete desalinhado de cabelo cor de palha assomou à janela. Os penetrantes olhos cinzentos miraram-na de alto a baixo. Pousaram-se na figura do homem deitado no solo à margem da estrada e tornaram para a moça.
Então, com a amistosa fala arrastada dos texanos, o chofer rompeu o silêncio:
— Félix Leiter, senhorita. Às suas ordens. Em que posso servi-la nesta magnífica manhã?
21 - "Nada é tão apropinquante como a propinquidade"
—...E QUANDO CHEGUEI à cidade telefonei pra meu amigo Ernie Cureo. James sabe quem é. A mulher dele estava de ataque e Ernie no hospital. Corro pra lá e ele me passa o serviço e eu imagino que James pode precisar de reforços. Monto na minha égua preta cor de carvão e vou esquipando noite adentro e quando chego perto de Spectreville vejo o clarão no céu. Calculo então que Mr. Spang está preparando um churrasco. O
portão da cerca está aberto e eu resolvo tomar parte na festa. Bom, creiam-me vocês ou não, o fato é que não há vivalma no local, exceto um cara de perna arrebentada e contusões generalizadas, que vem se arrastando pela estrada, tentando dar o pira. E ele me dá a impressão de ser um arruaceiro de nome Frasso, de Detroit. Ernie Cureo tinha dito que era um dos caras que tinham levado James. Ele não estava em condições de negar isso e eu então manjei a situação toda e compreendi que Rhyolite era minha próxima parada. Aí eu digo pro nosso amigo que daí a pouco os bombeiros virão fazer companhia a ele, levo-o até o portão e deixo-o lá. E de uma hora para outra vejo uma guria no meio do deserto, com o ar de quem tinha sido disparada de um canhão. E aqui estamos todos. Agora é a vez de vocês contarem.
"Então tudo isto não é parte de um sonho e eu estou deitado no assento traseiro no Studillac e este é o colo de Tiffany debaixo da minha cabeça e aquele ali é Félix e nós estamos indo às carreiras pela estrada a caminho da segurança, de um médico, de um banho, de comida, de bebida e de um longo sono reparador." Bond mexeu-se e sentiu que a mão de Tiffany em seu cabelo dizia que tudo era real e tal como havia esperado. Imobilizou-se novamente e nada disse. Guardava cada momento para si e lhes escutava as vozes e o zunido dos pneus rolando pela estrada.
Ao fim da narrativa de Tiffany, Félix Leiter largou um assobio de estupefação.
— Puxa! — exclamou ele. — Então vocês dois abriram um rombo espetacular na quadrilha de Spang. Que diabo é que vai acontecer agora? Há muitos outros marimbondos na casa e isso de ficar zumbindo em volta não é do feitio deles. Eles vão exigir ação.
— Certo! — disse Tiffany. — Spang era membro da associação de Las Vegas, e esses camaradas são muito solidários. Há também Shady Tree e aqueles dois pistoleiros, Wint e Kidd. Só o diabo sabe quem são eles. Quanto mais cedo a gente cruzar a fronteira estadual, melhor. E depois, o que vamos fazer?
— Até aqui vai tudo em ordem — disse Félix Leiter. — Em dez minutos chegaremos a Beatty, depois pegaremos a 58 e passaremos nela uma meia hora. Em seguida, toparemos um longo trecho através do Vale da Morte e sobre as montanhas até Olancha, onde atingiremos a N.° 6. Poderíamos dar uma paradinha lá, levar James a um médico, comer alguma coisa e tomar um banho. Depois continuaremos na 6 até chegarmos a Los Angeles. Será muito puxado, mas poderemos estar em Los Angeles na hora do almoço. Aí podemos descansar um pouco e bolar algum plano. Meu palpite é que temos de tirar você e James do país o mais cedo possível. Os meninos tentarão pegar vocês dois de qualquer jeito, e se conseguirem eu não darei um níquel pela vida de nenhum dos dois. A melhor solução seria botá-los num avião para Nova York hoje de noite e despachá-los amanhã para a Inglaterra.
James pode embarcar lá.
— Acho que é razoável — disse a moça. — Mas, afinal, quem é esse Bond? O que é que ele faz? É um detetive ou coisa semelhante?
— Acho melhor que você mesma pergunte a ele — Bond ouviu Leiter dizer cautelosamente. — Mas eu, se fosse você, não me preocuparia com isso. Ele cuidará de você.
Bond sorriu para si mesmo e, no longo silêncio que se seguiu, caiu num sono intranquilo que durou até o momento em que atravessaram a Califórnia e o carro parou defronte de um portãozinho com a placa "Otis Fairplay, Médico".
E depois, enfaixado e pintado com mercúrio-cromo, banhado e barbeado, com um suculento café matinal no estômago, Bond voltou ao carro e ao mundo. Tiffany readquirira o velho ar irônico e intratável e Bond revelava-se útil na espionagem dos patrulheiros rodoviários, enquanto Leiter avançava a oitenta milhas pela interminável estrada estonteante, rumo à longínqua linha de nuvens que escondiam as High Sierras.
Mais tarde rolavam tranquilamente ao longo de Sunset Boulevard, ladeado pelas palmeiras e pelos gramados verdejantes. O Studillac coberto de poeira destoava no meio das cintilantes Corvettes e Jaguars. Finalmente, ao anoitecer, estavam sentados no bar escuro e refrigerado do Beverly Hills Hotel. Havia novas maletas no saguão, roupas novas adquiridas em Hollywood, e até mesmo o rosto de Bond, marcado de cicatrizes da luta, poderiam indicar que tinham terminado o trabalho nos estúdios.
Havia um telefone em cima da mesa, ao lado dos martinis. Félix Leiter acabava de falar com Nova York pela quarta vez desde que haviam chegado.
— Bom, está tudo arranjado — disse ele, desligando o telefone. — Meus colegas do escritório conseguiram passagens no Elizabeth. Adiou a partida por causa de uma greve nas docas. Sai amanhã de noite, às oito. Eles.irão ao encontro de vocês de manhã em La Guardiã, com as passagens, e vocês serão levados para bordo de tarde. Pegaram o resto de suas coisas no Astor, James. Uma pasta e os teus célebres tacos de golfe. E Washington oferece um passaporte a Tiffany. Haverá um homem do Departamento de Estado no aeroporto. Vocês terão que assinar uns formulários. Consegui que um dos meus antigos colegas da CIA arranjasse a coisa. Os vespertinos fizeram uni bruto estardalhaço com a estória. "Cidade Morta Desaparece" e outras manchetes desse tipo. Mas parece que ainda não descobriram nosso amigo Spang e os nomes de vocês não figuram no noticiário. Meu pessoal diz que não há nada com vocês na polícia, mas um de nossos informantes secretos diz que as quadrilhas estão à procura de vocês e espalharam por toda parte uma descrição de ambos. Com a promessa de dez mil. Assim, é melhor mesmo dar no pé o mais cedo possível. É aconselhável irem para bordo separadamente. Tomem o maior cuidado, vão para os camarotes e não saiam de lá. Vai haver o diabo quando eles chegarem ao fundo daquela velha mina.
Isso fará pelo menos três cadáveres a zero, e esse tipo de escore não é do agrado deles.
— Pinkerton é uma verdadeira máquina — disse Bond, com admiração.
— Mas ficarei satisfeito quando estivermos longe daqui. Eu pensava que os seus gangsters eram um bando de italianos untuosos, que se empanturravam de pizza e cerveja a semana toda e no sábado assaltavam uma garagem ou uma farmácia para arranjarem dinheiro para as corridas. Mas não há dúvida que eles incluem um bocado de violência na folha de pagamentos.
Tiffany Case riu zombeteiramente.
— Você precisa mandar examinar essa cabeça — disse ela, categórica.
— Se sairmos inteirinhos do Lizzie será um verdadeiro milagre. Por aí você pode ter uma ideia de como eles são. Se não fosse aqui o nosso Capitão Gancho-de-Aço, não sei o que seria de nós. Untuosos! Pois sim!
Félix Leiter soltou uma risadinha.
— Calma, pombinhos — disse ele, consultando o relógio. — Temos de partir. Preciso voltar a Las Vegas hoje de noite e começar a procurar o esqueleto do nosso Shy Smile. E vocês têm de pegar o avião. Poderão continuar a arenga a vinte mil pés de altura. De lá a perspectiva é mais interessante. É possível até que terminem como amigos. Lembrem-se do que se diz por aí. — Fez um aceno para o garçom. — Nada é tão apropinquante como a propinquidade.
Leiter levou-os ao aeroporto e deixou-os lá. Bond sentiu um nó na garganta quando o vulto magro saiu coxeando para o carro depois de ter sido efusivamente abraçado por Tiffany Case.
— Você pode dizer que tem um amigo de verdade — disse a moça ao ver Leiter bater a porta e ouvir o estrondo do escape enquanto o carro partia de volta ao deserto.
— Sim — disse Bond. — Félix é cem por cento.
O luar arrancou cintilações do gancho de aço quando Leiter acenou um último adeus. Depois, a poeira assentou na estrada e soou a voz de ferro do alto-falante: "Trans-World Airline, Voo 93. Embarque no Portão N.° 5 para Chicago e Nova York. Todos a bordo, por favor." Eles abriram caminho através das portas de vidro e deram os primeiros passos de sua longa viagem para Londres.
O novo Super-G Constellation roncou por cima do continente envolto em sombras, e Bond, deitado em seu confortável beliche, esperando que o sono lhe tomasse conta do corpo dolorido, pensava em Tiffany, que dormia no beliche de baixo, e no estágio em que se encontrava sua missão.
Pensou no lindo rosto adormecido sobre a mão aberta, inocente e indefeso, esvaecidos o desdém dos olhos cinzentos e rasos e a curva irônica dos cantos da boca ardente. Bond sabia que estava bem perto de apaixonar-se. Mas, e ela? Até onde ia aquela rebelião masculina gerada certa noite em São Francisco, quando os homens lhe invadiram o quarto e a ofenderam?
Chegariam a adolescente e a mulher a transpor a barricada que haviam começado a construir naquela noite contra todos os homens do mundo?
Romperia ela a concha que os anos de solidão e retraimento tornavam cada vez mais rija?
Bond recordou aqueles momentos das últimas vinte e quatro horas em que conhecera a resposta, momentos em que uma jovem arrebatada e terna surgira feliz, sem a máscara agressiva que usava entre os gangsters, no contrabando, no cassino, na mesa de vinte-e-um, e lhe dissera: — Toma-me pela mão. Abre a porta e caminharemos de mãos dadas no dia claro. Não te preocupes. Acertarei meu passo pelo teu. Sempre estive a teu lado em pensamento, mas tu não vieste e passei a vida escutando outra cadência.
Sim, pensou ele. Tudo correrá bem, por esse lado. Mas estava preparado para as consequências? Uma vez que a tomasse pela mão, seria para sempre.
Estaria no papel do médico, do psicanalista, a quem a paciente transfere seu amor e sua confiança, enquanto se liberta da doença. Não poderia haver maior crueldade do que soltar-lhe a mão depois de a ter tomado nas suas.
Estava preparado para as repercussões que esse ato teria em sua vida e em sua profissão?
Bond mexeu-se no beliche e descartou-se do problema. Era muito cedo ainda para enfrentá-lo. Estava indo muito depressa. Mais devagar. Cada coisa a seu tempo. E obstinadamente arquivou a questão, dirigindo os pensamentos para M e para a missão que lhe cumpria concluir antes de perder tempo com sua vida particular.
Bem, uma parte da serpente estava esmagada. A cabeça ou o rabo?
Difícil dizer, mas Bond tendia a julgar que Jack Spang e o misterioso ABC
eram os verdadeiros manipuladores do contrabando de diamantes e que Seraffimo se incumbia da receptação. Seraffimo podia ser substituído.
Tiffany podia ser dispensada. Shady Tree, a quem ela poderia implicar no contrabando, teria de ficar oculto até que a tormenta — se é que Bond era realmente um prenuncio de tempestade — se desencadeasse. Mas nada havia que pudesse implicar Jack Spang ou a House of Diamonds, e a única pista para ABC era o telefone londrino, cujo número Bond trataria de obter da moça o mais cedo possível. Mas este, e todo mecanismo dos contados a ele relacionados, seria alterado logo depois que todos os fatos da deserção de Tiffany e da fuga de Bond fossem comunicados a Londres, presumivelmente por Shady Tree. Assim, tudo isto, refletiu Bond, colocava Jack Spang e, através dele, ABC como seu próximo alvo. O que tinha a fazer de imediato, concluiu Bond antes de se abandonar ao sono, era relatar toda a situação a M
assim que embarcasse no Queen Elizabeth. Daí por diante Londres tomaria conta do caso. Os homens de Vallance sairiam a campo. Bond não teria muito que fazer quando regressasse. Relatórios e mais relatórios a escrever.
A mesma velha rotina no escritório. E de noite haveria Tiffany no quarto atualmente desocupado de seu apartamento, numa transversal de Kings Road. Precisava mandar um telegrama para May a fim de que ela arrumasse as coisas. Vejamos... flores, sais de banho de Floris, lençóis limpos...
Dez horas depois de terem deixado Los Angeles, sobrevoaram La Guardiã e viraram para o mar a fim de preparar o pouso.
Eram oito horas da manhã de domingo e havia pouca gente no aeroporto, mas um funcionário interrompeu-lhes a caminhada quando seguiam pela pista alcatroada e os conduziu para uma entrada lateral, onde os esperavam um homem de Pinkerton e um representante do Departamento de Estado.
Enquanto conversavam, a bagagem foi-lhes trazida. Depois, levaram-nos para fora da estação de passageiros, onde os aguardava um elegante Pontiac marrom, com o motor em movimento e as persianas do vidro traseiro abaixadas.
Passaram ainda algumas horas de ócio no apartamento do homem de Pinkerton até que, por volta das quatro da tarde, mas com um quarto de hora de diferença entre eles, galgaram a prancha de embarque, penetraram no negro, majestoso e seguro ventre britânico do Queen Elizabeth e, por fim, encerraram-se em seus camarotes no convés M, com as portas trancadas para o mundo.
Mas, quando, em primeiro lugar, Tiffany Case e, depois, Bond puseram os pés na prancha de embarque, um doqueiro do Sindicato de Estivadores de Anastásia correu para a cabina telefônica do galpão da alfândega.
E três horas mais tarde dois homens de negócios americanos saltavam de um sedan negro à porta de um armazém das docas, passavam às pressas pelo serviço de imigração e pela alfândega e galgavam a prancha de embarque, quando os alto-falantes começavam a pedir aos visitantes que desembarcassem.
Um dos homens de negócios era ainda jovem, de feições delicadas e fios de cabelos embranquecidos aparecendo sob o Stetson recoberto por uma capa impermeável. O nome impresso na pasta que carregava era B.
Kitteridge. O outro era um gorducho grandalhão, com um brilho nervoso nos olhos miúdos por trás das lentes bifocais. Suava em bicas e constantemente enxugava o rosto com um lenço enorme. O nome no cartão pendurado na alça da pasta era W. Winter. Em baixo do nome, lia-se em tinta vermelha: MEU GRUPO SANGuÍNEO É F.
22 - Amor e molho bearnês
Às OITO HORAS em ponto, o prolongado e ressoante apito da sirena do Queen Elizabeth fez tremer a vidraça dos arranha-céus. Com grande rebuliço, os rebocadores arrastaram-no para o meio do rio, abrindo-lhe o caminho. Por fim, desenvolvendo cautelosamente cinco nós, o transatlântico pôs-se a descer o rio, cortando as águas remansosas.
Após a parada para desembarcar o prático no Farol de Ambrose, as quádruplas hélices fustigariam o mar, convertendo-o em creme de leite, e o Queen Elizabeth, com um estremecimento de alívio, começaria a fender o longo arco achatado, entre os paralelos 45 e 50, a caminho de Southampton.
Sentado no camarote, escutando o ranger do madeiramento e contemplando o lápis rolar suavemente em cima da penteadeira, entre a escova de cabelo e a borda de seu passaporte, Bond recordava os dias em que outra era a rota da embarcação, os dias em que ela ziguezagueava no Atlântico Sul, brincando de esconde-esconde com os ferozes cardumes de submarinos alemães, a caminho da Europa em chamas. Ainda era uma aventura, mas agora o Queen Elizabeth — protegido num casulo de radar, rádio e sondador de ecos — movia-se com as precauções de um potentado oriental entre escoltas e batedores e, no que dizia respeito a Bond, tédio e indigestão eram os únicos riscos da viagem.
Pegou o telefone e pediu para falar com Miss Case. Quando ela lhe ouviu a voz, rompeu num gemido teatral.
— A loba do mar odeia o mar — disse ela. — Ainda não saímos do rio e eu já estou enjoada.
— Não faz mal — disse Bond. — Não saia do camarote e tome dramamina e champanha. Vou passar uns dois ou três dias em repouso. Vou mandar chamar o médico e o massagista dos banhos turcos pra ver se junto de novo as peças. E de qualquer modo não faz mal nenhum que a gente passe a maior parte da viagem no camarote. É possível que nos tenham localizado em Nova York.
— Bom, se você promete telefonar todos os dias — disse Tiffany — e promete me levar àquela Veranda Grill logo que eu puder engolir um pouco de caviar, eu concordo. Está bem assim?
Bond soltou uma gargalhada.
— Já que você insiste, eu prometo — disse ele. — E agora, escute. Em troca, eu quero que você tente lembrar-se de tudo o que puder a respeito de ABC e do lado londrino de nosso negócio. Aquele número de telefone e o mais que você julgar importante. Logo que puder, eu lhe direi por que estou interessado nisso. Por enquanto você tem de confiar em mim. Combinado?
— Combinado — disse a moça com indiferença, como se toda essa fase de sua vida tivesse perdido o interesse; e, durante dez minutos, Bond inquiriu-a minuciosa, mas (exceto no que tocava a pormenores insignificantes) inutilmente, acerca das atividades de ABC.
Depois desligou o telefone, chamou o camareiro, encomendou o jantar e sentou-se para escrever o longo relatório que teria de transpor em código e despachar naquela mesma noite.
O rebocador conduziu tranquilamente o navio para a treva, e a cidadezinha de três mil e quinhentos habitantes preparou-se para viver os cinco dias da viagem, durante os quais poderiam registrar-se todas as ocorrências naturais em qualquer outra comunidade desse porte — furtos, brigas, seduções, bebedeiras, embustes, talvez um ou dois partos, a possibilidade de um suicídio e, em cem travessias, até mesmo um homicídio.
Quando o burgo de ferro começou a sulcar serenamente a imensidão do Atlântico e a brisa suave da noite zuniu e gemeu no topo do mastro, as antenas de rádio já estavam transmitindo a mensagem do operador de serviço ao ouvido atento de Portishead.
E o que o operador enviava, precisamente às dez horas da noite, E. S. T., era um telegrama endereçado a ABC, CUIDADOS HOUSE OF DIAMONDS, HATTON GARDEN, LONDRES, e
que dizia:
LOCALIZADOS PT CASO ASSUNTO EXIJA SOLUÇÃO DRÁSTICA ESSENCIAL VOCÊ FIXAR PREÇO PAGO EM DÓLARES. Assinado: WINTER.
Uma hora depois, enquanto o operador do Queen Elizabeth lamentava ter de transmitir quinhentos grupos de cinco letras dirigidos ao DIRETOR PRESIDENTE, EXPORTADORA UNIVERSAL, REGENTS PARK, LONDRES, o rádio de Portishead enviava uma breve mensagem a WINTER, PASSAGEIRO PRIMEIRA CLASSE QUEEN ELIZABETH, que dizia:
DESEJO SOLUÇÃO IMEDIATA PROBLEMA CASE PT PAGAREI VINTE MIL PT
CUIDAREI PESSOALMENTE OUTRO ASSUNTO CHEGADA LONDRES CONFIRME ABC.
O operador procurou Winter na lista de passageiros, meteu a mensagem num envelope e enviou-a a um camarote no convés A, abaixo do de Bond e da moça, onde os dois homens jogavam cartas em mangas de camisa.
Quando o mensageiro saiu do camarote, ouviu o gorducho dizer para o homem dos cabelos brancos: — Pois é, Kidd. Vinte mil. É pra valer!
Não foi senão no terceiro dia que Bond e Tiffany resolveram encontrar-se no Observation Lounge, para um coquetel, e mais tarde no Veranda Grill, para jantar. Ao meio-dia, a calmaria era total, e depois do almoço no camarote Bond recebera um ultimato em redondo cursivo feminino numa folha de bloco do navio: "Marque um encontro comigo hoje. Não falhe".
Imediatamente Bond pegara o telefone.
Estavam sedentos da companhia um do outro depois dos três dias de separação, mas as defesas de Tiffany estavam de pé quando ela se reuniu a ele na escura mesa de canto que Bond havia escolhido na cintilante sala semicircular, situada na proa.
— Que espécie de mesa é esta? — perguntou ela com sarcasmo. — Está com vergonha de mim? Então eu ponho o mais belo modelo dos costureiros de Hollywood e você me esconde como se eu fosse Miss Reno 1914? Quero me divertir nessa geringonça e você me bota num canto como se eu fosse contagiosa.
— É isso mesmo — disse Bond. — O que você quer é elevar a temperatura de outros homens.
— Que é que você espera que uma moça faça no Queen Elizabeth?
Pescar?
Bond riu. Acenou para o garçom e pediu vodca-martini seco com casca de limão.
— Eu podia te oferecer uma alternativa.
— Já sei — disse a moça. — Meu querido diário: estou na maravilhosa companhia de um inglês bonitão. O que me aflige é saber que ele anda atrás das jóias da minha família. Que devo fazer? Sua criada, desorientada. — Num movimento súbito, ela inclinou o busto para a frente e pousou a mão na do homem. — Escute aqui, mestre Bond — disse ela. — Estou felicíssima.
Adoro isso aqui. Adoro estar com você. E adoro esta mesinha escura onde ninguém pode me ver segurando sua mão. Não ligue pra minha conversa. É que eu não posso me conter de tão feliz. Não faça caso das minhas brincadeiras.
Ela vestia uma blusa de xantungue de seda creme e uma saia de algodão e lã preto-carvão. As cores neutras ressaltavam-lhe a tez café-au-lait. O minúsculo relógio Cartier quadrado, com a pulseira preta, era sua única jóia, e as unhas curtas da mão pequena e morena que Bond tinha entre as suas estavam sem esmalte. A luz do sol, refletida do exterior, refulgia no ouro pálido das largas ondas do cabelo, nas profundezas dos cinzentos olhos opalescentes e nos alvos dentes que cintilavam entre os lábios sensuais.
— Não — disse Bond. — Não farei caso, Tiffany. Tudo em você é esplêndido.
Ela o encarou nos olhos e ficou satisfeita. O garçom trouxe-lhes a bebida. Ela retirou a mão e observou-o ironicamente por cima da borda de seu copo.
— Agora eu quero saber umas coisinhas — disse ela. — Em primeiro lugar, o que é que você faz e para quem trabalha? A princípio, no hotel, pensei que você era um vigarista. Mas, não sei por quê, quando você foi embora, vi que não era. Acho que devia ter avisado ABC, e com isso teria evitado essa onda toda. Não avisei, e pronto! Vamos, James. Responda.
— Trabalho para o governo — disse Bond —, que quer acabar com esse contrabando de diamantes.
— Espécie de agente secreto?
— Funcionário público, apenas.
— Está bem. E o que é que você vai fazer comigo quando chegarmos a Londres? Trancafiar-me?
— Sim. No quarto desocupado de meu apartamento.
— Assim é melhor. Terei de me tornar súdita da Rainha como você?
Gostaria de ser súdita.
— Acho que podemos arranjar isso pra você.
— É casado? — Fez uma pausa. — Ou tem alguma ligação?
— Não. Um caso ou outro de vez em quando.
— Quer dizer então que você é um desses sujeitos fora de moda que gostam de dormir com mulher? Por que não se casou?
— Creio que porque eu acho que posso manobrar melhor a minha vida sozinho. A maioria dos casamentos não soma duas pessoas. Subtrai uma da outra.
Tiffany Case refletiu um pouco.
— Talvez você tenha razão — disse ela, afinal. — Mas depende do que se soma. Pode ser algo humano ou inumano. Ninguém é auto-suficiente.
— E você?
A moça não gostou da pergunta.
— Talvez eu esteja do lado do inumano — respondeu com rispidez. — E com que diabo de homem você queria que eu me casasse? Com Shady Tree?
— Pode ter havido muitos outros.
— Não houve — disse ela com raiva. — Você é capaz de achar que eu não devia ter me misturado com esses calhordas. Bem, talvez eu tenha dado o passo que não devia dar. — A chama de cólera se apagou e a moça assumiu a defensiva. — Isso acontece com certas pessoas, James. Acontece mesmo. E às vezes não é culpa delas.
James Bond estirou o braço e apertou a mão da moça.
— Eu sei, Tiffany — disse ele. — Félix me contou. É por isso que não perguntei nada. Não pense mais nisso, não. O que importa é o dia de hoje, aqui, agora. Não o dia de ontem. — Desviou o assunto. — Agora é a sua vez de me fornecer alguns fatos. Por exemplo, de onde é que vem esse nome Tiffany e que tal ser banqueira no Tiara? Como é que você chegou a cartear tão bem? Simplesmente espetacular a maneira como você tratava aquele baralho. Se pode fazer aquilo, pode fazer qualquer outra coisa.
— Não diga — replicou a moça com ironia. — Fazer o quê, por exemplo? Brincar de sapateira? E quanto ao nome Tiffany a explicação é simples. Quando eu nasci, papai Case ficou tão zangado por eu não ser menino que deu à minha mãe mil dólares e uma lata de talco comprada em Tiffany e foi embora de casa. Foi ser fuzileiro naval. Terminou morrendo em Iwo Jima. Então minha mãe me botou o nome de Tiffany Case e tratou de ganhar a vida pra nós duas. Começou com uma espelunca e umas garotas e com o tempo foi ficando mais ambiciosa. Talvez essa história não seja muito do seu agrado.
Ela lhe lançou um olhar meio defensivo, meio suplicante.
— Não me preocupa — disse Bond secamente. — Você não era uma das pequenas.
Ela deu de ombros.
— Um dia o lugar foi invadido pelos gangsters. — Interrompeu-se para beber o resto do martini. — E eu dei no pé, por minha conta. Passei pelos empregos comuns a todas as moças. Depois fui para Reno. Lá eles mantêm uma escola de jogo e eu dei duro. Curso completo. Dados, roleta e vinte-e-um. Pode-se ganhar bom dinheiro nos cassinos. Duzentos por semana. Os homens gostam quando as moças bancam o jogo e as mulheres se sentem mais confiantes. Acreditam que a gente vai se mostrar bondosa com elas.
Pensam estar entre irmãs. Quando são homens que bancam o jogo, elas se apavoram. Mas não pense que essa estória toda é assim tão engraçada.
Contada, é uma coisa; vivida, é outra. — Fez uma pausa e sorriu. — Tenha a palavra, agora. É a sua vez. Pague mais um trago e me diga que tipo de mulher você acha que soma com você.
Bond chamou o garçom. Acendeu um cigarro e voltou-se para Tiffany.
— Alguém que saiba fazer molho bearnês e amor — disse ele.
— Já sei! Qualquer bruxa velha que saiba cozinhar e deitar-se de costas.
— Ah, não. Ela precisa ter todas essas coisas que as mulheres geralmente têm. — Bond examinou-a. — Cabelo cor de ouro. Olhos cinzentos. Boca pecadora. Silhueta perfeita. E naturalmente tem de contar piadas engraçadas, vestir-se bem e jogar cartas. As prendas naturais.
— E você casaria com uma mulher assim, se a encontrasse?
— Não necessariamente — disse Bond. — Pra falar com franqueza, já sou quase casado. Com um homem cujo nome começa com M. Teria de me divorciar dele antes de casar com uma mulher. E não sei se isso me agradaria. Ela me obrigaria a passar canapés de mão em mão numa sala de visita em forma de L. E haveria aquelas chatérrimas discussões "Foi você — Não, foi você" que parecem combinar tão bem com todos os casamentos.
Não daria certo. No primeiro acesso de claustro-fobia, iria embora pro Japão ou pra qualquer outra parte.
— E filhos?
— Gostaria de ter alguns — disse Bond. — Mas só quando me aposentasse. De outra forma, não seria justo. Meu trabalho não é lá muito seguro. — Olhou para o copo e bebeu todo o martini. — E você, Tiffany? — perguntou, a fim de mudar de assunto.
— Acho que toda moça gostaria de chegar em casa e encontrar um chapéu na mesinha do corredor — disse Tiffany, melancólica. — O diabo é que eu nunca encontrei nada que prestasse debaixo do chapéu. Talvez não tenha procurado bastante ou não tenha procurado nos lugares certos. Você sabe como é: quando a gente entra na rotina não quer mais sair. Assim fiz eu no meio dos Spangs. Sabia sempre de onde era que vinha a comida. Fiz algumas economias. Mas uma moça não pode ter amigos naquele ambiente.
Ou bota uma placa "Proibida a Entrada" ou de uma hora pra outra se vê cercada de malandros. Mas acho que já estou farta de viver só. Conhece o refrão das coristas da Broadway? "É triste a trouxa de roupa que não tem uma camisa de homem".
Bond riu.
— Mas agora você está fora da rotina — disse ele e olhou-a zombeteiramente. — E Mr. Seraffimo? E aqueles dois quartos de dormir no Pullman, a ceia para dois com champanha...?
Antes que concluísse, ela levantou-se da mesa, os olhos vermelhos, e caminhou para fora do bar.
Bond se amaldiçoou. Colocou algum dinheiro sobre a conta e saiu correndo atrás dela. Foi encontrá-la quase no meio do tombadilho de passeio.
— Por favor, Tiffany, escute — começou ele.
Ela voltou-se e encarou-o.
— Como se pode ser tão mesquinho? — disse ela, e lágrimas iradas brilharam-lhe nos cílios. — Por que você tem de estragar tudo com uma observação ferina como aquela? Oh, James! — Em desespero virou-se para as janelas, procurando um lencinho na bolsa. Enxugou os olhos. — Você simplesmente não compreende.
Bond cingiu-a com um braço e puxou-a para si.
— Meu amor! — Sabia que nada senão o grande passo do amor físico curaria esses mal-entendidos, mas que era necessário ;ainda desperdiçar tempo e palavras. — Não tive a intenção de magoar você. Eu queria somente ter certeza. Aquela mesa posta para a ceia no trem me feriu muito mais do que o que aconteceu depois. Tinha de lhe fazer aquela pergunta.
Ela ergueu a vista, ainda em dúvida.
— Está falando sério? — perguntou, observando-lhe o rosto. — Quer dizer que você já me queria bem?
— Não seja boba — disse Bond, impaciente. — Então você não sabe nada de nada?
Ela afastou-se e contemplou pela janela o infindável mar azul e as gaivotas que acompanhavam esse navio extraordinariamente pródigo.
Depois de algum tempo, perguntou:
— Você já leu Alice no País das Maravilhas?
— Há muitos anos — disse Bond, surpreso. — Por quê?
— Há lá umas linhas que muitas vezes me vêm à memória — disse ela.
— "Oh Ratinho, conheces o caminho que conduz para fora deste poço de lágrimas? Estou muito cansada de nadar dentro dele, oh Ratinho". Lembra-se dessa passagem? Pois bem, eu pensava que você ia me mostrar a saída e, em vez disso, você me empurra pra dentro do poço. Por isso é que fiquei transtornada. — Ergueu a vista. — Mas acredito que você não teve intenção de me magoar.
Bond olhou-lhe a boca demoradamente e depois beijou-a nos lábios.
Ela não retribuiu e esquivou-se. Seus olhos sorriam de novo. Deu o braço a ele e voltou-se para as portas abertas que conduziam ao elevador.
— Me leve lá pra baixo — disse ela. — Preciso recompor a fachada e, além disso, quero me preparar com cuidado para agradar ao candidato. — Ficou um instante em silêncio e depois colou a boca no ouvido dele. — Talvez isso lhe interesse, James Bond — disse baixinho. — Nunca em minha vida fiz o que você chama "dormir com um homem". — Puxou-o pelo braço. — Agora vamos — disse bruscamente. — Afinal, já é hora de tomar um "quente doméstico". Suponho que isso faz parte da língua dos súditos que você está querendo que eu aprenda. Vocês, súditos, escrevem as coisas mais loucas nos banheiros.
Bond levou-a até o camarote dela, voltou para o seu e tomou um "quente salgado" na banheira, seguido de um "frio doméstico" no chuveiro. Depois, estirou-se na cama, recordando com um sorriso algumas das coisas que ela havia dito, e pensou nela, deitada na banheira, intrigada com a floresta de torneiras e imaginando que os ingleses eram loucos varridos.
Soou uma pancada na porta e o camareiro entrou com uma bandejinha que colocou em cima da mesa.
— Que diabo é isso? — perguntou Bond.
— Foi enviado pelo cozinheiro-chefe, senhor — respondeu o camareiro, retirando-se em seguida e fechando a porta do camarote.
Bond desceu da cama e foi examinar o conteúdo da bandeja. Não pôde deixar de rir. Havia uma garrafinha de Bollinger, um rescaldeiro com quatro talhadas de bife em canapés de torrada, e uma tijelinha de molho. Debaixo desta, uma nota escrita a lápis dizia: "Este molho bearnês foi criado por Miss T. Case sem minha assistência". Assinado: "O Chefe".
Bond encheu uma taça de champanha, espalhou um pouco de molho numa talhada de bife e mastigou atentamente. Depois foi ao telefone.
— Tiffany?
Ouviu o risinho abafado e divertido no outro extremo do fio.
— Bem, não há dúvida de que você faz um maravilhoso molho bearnês...
Repôs o telefone no gancho.
23 - O trabalho fica em segundo plano
MOMENTO INEBRIANTE NUM CASO amoroso é aquele em que, pela primeira vez, em público, num restaurante ou num teatro, o homem pousa a mão na coxa da mulher e ela, tomando-a nas suas, aperta-a contra si.
Os dois movimentos dizem tudo o que pode ser dito. Concluem todos os acordos. Firmam-se todos os pactos. E há um longo minuto de silêncio durante o qual o sangue canta nas veias.
Eram onze horas e havia poucas pessoas espalhadas nos cantos da Veranda Grill. O mar arfava baixinho sob o luar lá fora e o magnífico paquete arava a negra pradaria do Atlântico. À popa, apenas um levíssimo galope mostrava uma suave ondulação, as doze lentas pulsações por minuto de um oceano adormecido, aos dois seres aconchegados atrás do quebra-luz cor-de-rosa.
O garçom trouxe-lhes a conta, e suas mãos se separaram. Mas agora dispunham de todo o tempo do mundo e não precisavam afirmar seus sentimentos com palavras e contactos. Quando o garçom retirou os pratos, a moça fitou Bond com um sorriso de felicidade os dois encaminharam-se para a porta.
Entraram no elevador para o Tombadilho de Passeio.
— Que faremos agora, James? — perguntou Tiffany. — Gostaria de tomar mais uma café e um Stinger preparado com creme de menthe branco, enquanto estivéssemos escutando o leilão. Já ouvi falar tanto dele e bem que poderíamos ganhar uma fortuna.
— Está bem — disse Bond. — O que você desejar. — Tomou-a pelo braço e atravessaram vagarosamente a grande sala de estar, onde o víspora ia em meio, e o salão de baile, onde os músicos afinavam os instrumentos. — Mas não me obrigue a comprar nenhum número. É um jogo como os outros, e cinco por cento destinam-se à beneficência. Quase a mesma coisa que em Las Vegas. Mas é divertido quando há um bom leiloeiro. E dizem também que há muito dinheiro a bordo.
O salão de fumar estava quase deserto. Escolheram uma mesinha longe da plataforma onde o Comissário arrumava os apetrechos do leiloeiro, a caixa com os papeluchos numerados, o martelo, a garrafa de água.
— A casa está fraca — disse Tiffany ao sentarem-se no meio da floresta de cadeiras e mesas vazias. Mas, quando Bond fez o pedido ao garçom, as portas do cinema se abriram e cerca de cem pessoas ocuparam o salão de fumar.
O leiloeiro, um comerciante dos Midlands, pançudo e jovial, com um cravo vermelho na lapela do dinner jacket, bateu na mesa pedindo silêncio e anunciou que a previsão do Capitão para o percurso do dia seguinte era de 720 a 739 milhas, que qualquer distância abaixo de 720 era o Campo Inferior e acima de 739 era o Campo Superior.
— E agora, minhas senhoras e meus senhores, vejamos se é possível quebrar o recorde estabelecido nesta viagem, que atinge a cifra impressionante de 2.400 libras esterlinas. (Aplausos). ; Um camareiro ofereceu a caixa com os números dobrados à mulher de ar mais aristocrático do salão e depois entregou ao leiloeiro o papelzinho que ela havia sorteado.
— Bem, senhoras e senhores, temos aqui, para começar, um número excepcionalmente bom. 738. Exatamente no limite máximo, e desde que vejo aqui, esta noite, tantas caras novas (risos), creio que todos concordaremos em que o mar está singularmente calmo. Senhoras e senhores. Quanto me dão por 738? Digamos... 50 libras? Quem me dará 50
libras por este número de sorte? 20, foi o que o senhor falou, cavalheiro?
Bem, temos de partir de alguma oferta. Quem dá... 25? Muito obrigado, minha senhora. E 30. 40 lá adiante, sr. camareiro. E 45 do meu amigo, Mr.
Rothblatt. Muito obrigado, Charlie. Quem dá mais pelo n.° 738? 50. Muito grato, minha senhora. E agora, sim, voltamos ao ponto de partida (risos). 50.
Quem dá 55? Então ficamos em 50. Dou-lhe uma... Dou-lhe duas... — e o martelo erguido bateu na mesa.
— Ainda bem que temos um bom leiloeiro — disse Bond.
— O número era bom. E barato, se o tempo continuar como está e ninguém se jogar no mar. O Campo Superior custará uma bolada esta noite.
Todo mundo espera que o navio faça mais de 739 milhas nesse tempo.
— Essa bolada quer dizer quanto? — perguntou Tiffany.
— Duzentas libras. Talvez mais. Acho que os números normais serão leiloados por umas cem libras. O primeiro número é sempre mais barato do que os outros. O pessoal ainda está frio. A única esperteza que se pode demonstrar neste jogo é arrematar o primeiro número sorteado. Qualquer número pode ganhar, mas o primeiro custa menos.
Quando Bond acabou de falar, o segundo número era entregue por 90
libras a uma jovenzinha bonita e excitada, que era abertamente financiada por seu companheiro, um indivíduo grisalho e bem conservado que parecia a caricatura de um Don Juan do Esquive.
— Vamos, James. Arremate um número pra mim — disse Tiffany. — Você não sabe mesmo agradar a uma moça. Veja como aquele cavalheiro é gentil com sua pequena.
— Ele já passou da idade-limite — disse Bond. — Deve estar na casa dos sessenta. Até os quarenta, as pequenas não custam nada. Daí por diante, é preciso gastar dinheiro ou contar uma estória. Das duas coisas, a estória é que dói mais. — Sorriu, fitando-a nos olhos. — Mas eu ainda não cheguei aos quarenta.
— Deixe de presunção — disse a moça, olhando-o na boca. — Dizem que os homens maduros são os melhores amantes. Também, por outro lado, sei que você não é unha-de-fome. Aposto que não quer me presentear um número porque o jogo é ilegal nos navios de Sua Majestade.
— Até que é permitido além do limite de três milhas da costa — disse Bond. — Mesmo assim, a Cunard toma todas as precauções para não envolver o nome da companhia. Escute isto — e apanhou um cartão alaranjado que estava em cima da mesa. — "Leilão de Apostas nas Distâncias Diárias percorridas pelo Navio" — leu para a moça. — "Para os fins de direito, é de toda a conveniência reiterar a posição da Companhia em relação ao supradito Leilão. Não é desejo da Companhia que o encarregado do salão de fumar ou quaisquer outros membros da tripulação desempenhem papel ativo na organização das apostas nas milhas diárias percorridas pelo navio". — Bond levantou a vista. — Está vendo? — perguntou. — Seguro morreu de velho. E tem mais: "A Companhia sugere que os passageiros elejam entre si uma Comissão encarregada de formular e controlar as normas... O encarregado do salão de fumar poderá, se instado e se seus deveres o permitirem, prestar a assistência de que a Comissão venha a necessitar para o leiloamento dos números". Como são cautelosos — comentou Bond. — É a comissão que tem de quebrar os galhos que forem aparecendo. Escute mais isto aqui. É onde entra o problema. — Continuou a leitura: — "A Companhia chama especialmente a atenção de todos para os dispositivos das normas financeiras do Reino Unido, no tocante à negociabilidade dos cheques em esterlinos e à limitação da entrada de cambiais bancárias em esterlinos no Reino Unido".
Bond atirou o cartão em cima da mesa..— E por aí vai — disse ele e sorriu para Tiffany Case. — Assim, eu arremato o número que está sendo leiloado e você ganha duas mil libras. Um montão de cédulas e cheques em dólares e libras. O único meio de gastar essa dinheirama, supondo que os cheques tenham fundos, o que é duvidoso, seria contrabandeá-la debaixo dos suspensórios. E lá estaríamos nós outra vez passando muamba. Só que eu estaria do lado do diabo.
A moça não se impressionou.
— Havia um sujeito na quadrilha chamado Abadaba — disse ela. — Era um malandro fino que tinha resposta para tudo. Calculava as vantagens nas corridas, marcava as percentagens no cassino, enfim, era o crânio do grupo.
Era considerado "O Feiticeiro das Apostas". Teve o azar de ser liquidado por engano ao lado de Dutch Schultz — ajuntou ela à guisa de parêntese. — Você está me saindo outro Abadaba com essa lengalenga que não tem outra finalidade senão evitar de gastar dinheiro com uma pequena. Já vi tudo. — Encolheu os ombros, resignada. — Está bem. Mas pelo menos financie outro Stinger pra sua garota.
Bond chamou o garçom. E quando este se afastou, ela aproximou a cabeça do ouvido dele e disse baixinho. — Eu não quero mais, não. Beba você. Quero estar inteiramente sóbria esta noite. — Empertigou-se. — Mas o que é que está se passando aqui? — perguntou com impaciência. — Vamos, um pouco de ação.
— Aí vem ela — disse Bond.
O leiloeiro levantou a voz e toda a sala pediu silêncio.
— E agora, minhas senhoras e meus senhores — rugiu o leiloeiro — vamos à pergunta mais importante da noite. Quem vai me dar 100 libras pela escolha entre o Campo Superior e o Inferior? Todos sabemos o que isto significa... o direito de escolher o Campo Superior, que, inclino-me a crer, será da preferência geral esta noite (risos), em vista das excelentes condições atmosféricas reinantes lá fora. Então, quem abrirá com cem libras os lances para a escolha do Campo Superior ou Inferior?
— Muito obrigado, cavalheiro! E 110. 120 e 130. Muito obrigado, minha senhora.
— Cento e cinquenta — disse uma voz de homem, não muito distante da mesa de Bond e Tiffany.
— Cento e sessenta.
Desta vez era uma mulher. Monótona, a voz do homem gritou: — 170.
— Oitenta — disse alguém.
— Duzentas libras.
Algo fez com que Bond se voltasse e olhasse o homem que tinha falado.
Era um tipo grandalhão. A cara tinha a aparência lisa, brilhante e escorregadia de um olho de boi. Olhos miúdos, frios e escuros fitavam o estrado do leiloeiro através de imóveis lentes bifocais. Todo o pescoço do homem parecia estar por trás da cabeça. O suor havia emaranhado as algas negras e encaracoladas do cabelo. Enquanto Bond o observava, ele tirou os óculos, pegou um guardanapo e passou a enxugar o suor, com um movimento circular que começou no lado esquerdo do rosto, estendeu-se à nuca, onde a mão esquerda cedeu a vez à mão direita, e esta completou o circuito, atingindo os pingos do nariz.
— Duzentas e dez — disse alguém.
A queixada do homem bamboleou, a boca se descerrou, e ele disse, com nítido sotaque americano:
— Duzentas e vinte.
O que havia nesse indivíduo capaz de ferir uma corda na memória de Bond? O inglês examinou o rosto largo, a imaginação percorrendo todo o arquivo do cérebro, abrindo e fechando gavetas, uma após outra à procura de uma pista. A cara? A voz? Inglaterra? América?
Bond abandonou a busca e voltou a atenção para o outro homem à mesa.
Ainda aqui, a mesma necessidade urgente de reconhecer. As feições jovens e estranhamente delicadas sob os cabelos brancos e lisos. Os olhos castanhos e plácidos sob as longas pestanas. O efeito geral era de delicadeza, perturbada pelo nariz roliço montado na boca larga de lábios finos, agora aberta num sorriso estúpido e vazio como a fenda de uma caixa postal.
— Duzentas e cinquenta — disse o grandalhão mecanicamente.
Bond tornou a olhar para Tiffany.
— Já viu aqueles dois alguma vez? — perguntou ele, e ela notou-lhe a ruga de preocupação entre os olhos.
— Não — disse ela, categórica. — Nunca. Talvez venham do Brooklyn. Podem ser dois comerciantes de roupas feitas da Quinta Avenida. Por quê? Eles lhe dizem alguma coisa?
Bond olhou-os outra vez.
— Não — disse, em dúvida. — Não, acho que não.
Palmas estrugiram na sala. Radiante, o leiloeiro bateu na mesa.
— Senhoras e senhores — disse ele, triunfante. — Isto é realmente maravilhoso. Trezentas libras é o lance daquela encantadora senhora de esplêndido vestido cor-de-rosa (Cabeças viravam-se, pescoços esticavam-se, e Bond ouviu a pergunta: — Quem é ela? E agora, cavalheiro — o leiloeiro indicava a mesa do homem gordo — posso anunciar 325 libras?
— Trezentas e cinquenta — disse o gordo.
— Quatrocentas — ganiu a mulher de vestido cor-de-rosa.
— Quinhentas.
A voz era incolor, indiferente.
A moça de cor-de-rosa tagarelou irritada com seu acompanhante. O homem assumiu um ar entediado. Acompanhou o olhar do leiloeiro e balançou a cabeça.
— Quem se dispõe a dar mais? — disse o leiloeiro. Sabia agora que a sala já dera o que tinha de dar. — Dou-lhe uma... Dou-lhe duas... — Pam! — Arrematado pelo cavalheiro. E eu acredito sinceramente que ele merece uma salva de palmas.
Deu início às palmas e os presentes o acompanharam, embora preferissem que a moça tivesse levado a melhor.
O gordo ergueu-se algumas polegadas e voltou a sentar-se. Não havia em seu rosto lustroso nenhum sinal de agradecimento aos aplausos, e seus olhos fixavam-se no leiloeiro.
— E agora temos de cumprir a formalidade de perguntar ao cavalheiro qual é o Campo que ele prefere. (Risos). Cavalheiro, o senhor escolhe o Campo Superior ou o Campo Inferior?
O tom do leiloeiro era irônico. A pergunta era ociosa.
— Campo Inferior.
Houve um momento de silêncio constrangedor no apinhado salão de fumar. E logo se seguiram os comentários à meia-voz. Nenhuma pergunta foi feita. Era óbvio que o homem devia escolher o Campo Superior. As condições atmosféricas eram ideais. O Queen Elizabeth vinha desenvolvendo pelo menos trinta nós. Estaria o homem a par de alguma coisa? Teria pago por alguma informação na ponte de comando? Haveria alguma tempestade à vista? Algum defeito nas máquinas?
O leiloeiro martelou na mesa, pedindo silêncio.
— Queira me perdoar, cavalheiro — disse ele — mas o senhor escolheu mesmo o Campo Inferior?
— Sim.
O leiloeiro tornou a martelar.
— Nesse caso, senhoras e senhores, comecemos agora a leiloar o Campo Superior. Minha senhora — voltou-se com uma curvatura para a moça de cor-de-rosa — quer ter a gentileza de fazer o primeiro lance?
Bond virou-se para Tiffany.
— Que coisa esquisita — disse ele. — É extraordinário. O mar está calmo como um lago. — Deu de ombros. — A única resposta é que eles devem estar informados de alguma coisa.
— A questão era desprovida de interesse, no fim de contas.
— Alguém deve ter dito alguma coisa àqueles dois. — Girou a cabeça e, depois, despreocupadamente, passeou o olhar pelos dois indivíduos. — Parece que eles estão interessadíssimos na gente.
Tiffany olhou por cima do ombro.
— Não estão olhando pra cá, não — disse ela. — A impressão que eu tenho é que são dois palermas. O grisalho tem um ar de idiota e o gordo está chupando o polegar. Dois malucos. Acho que nem sabem o que arremataram. Trocaram as bolas.
— Chupando o polegar? — perguntou Bond. Passou a mão pelo cabelo, distraidamente, uma vaga lembrança a verrumar-lhe o cérebro.
Talvez, se ela lhe tivesse permitido seguir o fio de seus pensamentos, ele tivesse dado no alvo. Mas ela colocou a mão sobre a dele e, aproximando-se, roçou-lhe o rosto com os cabelos.
— Esqueça isso, James — disse ela. — E não pense tanto naqueles dois imbecis. — Os olhos dela ardiam e exigiam. — Chega deste lugar. Leve-me a outra parte.
Sem se dizerem mais uma palavra, ergueram-se, afastaram-se da mesa e saíram da sala barulhenta, caminhando em direção à escada. Começaram a descer e, quando chegaram ao meio, o braço de Bond circundou a cintura da moça, e ela deitou a cabeça no ombro dele.
Chegaram à porta do camarote de Tiffany, mas ela deu meia volta e arrastou Bond pelo corredor comprido, macio e rangente.
— Eu quero que seja na sua casa, James — disse ela.
Bond só voltou a falar depois de ter fechado a porta de seu camarote com um pontapé e de se terem abraçado no meio daquele quartinho maravilhosamente reservado e anônimo. E dizendo, com ternura, "Meu amor" pôs uma das mãos sobre os cabelos dela de modo a manter-lhe a boca sob a sua.
Algum tempo depois, sua outra mão desceu até o fecho-relâmpago do vestido, por trás, e a moça, sem interromper o abraço, deixou cair o vestido e disse, ofegante, entre beijos:
— Quero tudo, James. Tudo o que você já fez com uma mulher. Agora.
Agora mesmo.
E Bond inclinou-se, envolveu-lhe as coxas com um braço, levantou-a e deitou-a suavemente no soalho.
24 - A morte é permanente
A ÚLTIMA COISA de que Bond se lembrou antes de soar a campainha do telefone foi de Tiffany debruçada sobre ele, na cama, beijando-o e dizendo-lhe: "Não durma sobre o lado esquerdo, meu amor. É ruim para o coração.
Pode parar de bater. Vire-se". E, obediente, ele se virava. E, quando a porta bateu de leve, ele estava dormindo de novo, embalado pela voz da moça, pela pulsação do Atlântico e pelo macio balanço do navio.
Depois, a campainha impertinente soou e tornou a soar no camarote escuro. Bond praguejou, estendeu o braço para o telefone, e uma voz disse: — Desculpe-me incomodá-lo, senhor. Aqui é o telegrafista, Acaba de chegar uma mensagem em código para o senhor, com um prefixo en clair "Urgentíssimo". Quer que leia pelo telefone ou envie pelo mensageiro?
— Envie pelo mensageiro, pode ser? — disse Bond. — Muito obrigado.
E que diabo queriam agora? Toda a beleza, todo o ardor, toda a exaltação da paixão amorosa foram postas de lado quando ele acendeu a lâmpada, pulou da cama e, balançando a cabeça, a fim de afastar o torpor, deu dois passos para o chuveiro.
Durante um bom minuto deixou que a água caísse sobre si. Depois, enxugou-se com a toalha, apanhou do chão as calças e a camisa e vestiu-as.
Houve uma pancada na porta. Bond recebeu o telegrama, sentou-se à escrivaninha, acendeu um cigarro e entregou-se ferozmente ao trabalho. E, à medida que os grupos paulatinamente se dissolviam em palavras, seus olhos se apertavam e a pele se lhe arrepiava no corpo.
O telegrama, passado pelo Chefe do Pessoal, dizia:
Primeiro vg busca clandestina escritório Saye revelou telegrama do QE endereçado ABC assinado Winter comunicando presença sua e Case a bordo solicitando instruções pt Resposta endereçada Winter assinado ABC ordena eliminação de Case vg preço vinte mil dólares pt Segundo vg consideramos Rufus B. Saye é ABC que é mais ou menos equivalente pronúncia suas iniciais em francês pt Terceiro vg possivelmente alarmado sinais de busca Saye voou Paris ontem e agora informa Polinter estar em Dakar pt Isto parece confirmar nossas suspeitas que diamantes provêm minas Serra Leoa daí contrabandeados fronteira Guiné Francesa pt Suspeitamos fortemente elemento clínica dentária de Sierra International em observação pt Quarto vg Canberra Raf espera você Boscombe Down para voo imediato amanhã noite a Serra Leoa assinado CDP.
Bond gelou na cadeira. De supetão, acudiu ao seu espírito o mais sinistro verso de toda a poesia: "Enganam-se os que me evitam. Quando voam de mim, eu sou as asas".
Então alguém da quadrilha de Spang estava a bordo e viajava com eles. Quem? Onde?
A mão agarrou o telefone: — Miss Case, por favor.
Ouviu o aparelho ao pé da cama dela produzir um estalido e em seguida disparar 'a primeira campainhada. A segunda. A terceira. Mais uma só. Bond colocou o receptor de volta no gancho e enfiou pelo corredor até o camarote de Tiffany. Nada. Vazio. A cama arrumada. As luzes acesas. Mas a bolsinha dela estava no tapete e os objetos espalhados ao redor. Tinha entrado no camarote. O homem se escondera atrás da porta. Talvez tivesse aplicado uma cacetada. E depois?
As vigias estavam fechadas. Examinou o banheiro. Nada.
Bond parou no meio do camarote. Seu cérebro estava frio como gelo. O que ele, Bond, teria feito? Antes de matá-la, tê-la-ia interrogado, descoberto o que ela sabia, o que fazia, quem era o homem que a acompanhava. Tê-la-ia levado depois para o camarote em que ele viajava a fim de poder agir sem ser perturbado. Se o encontrassem arrastando-a pelo corredor, bastaria piscar um olho e balançar a cabeça: "Bebeu muita champanha esta noite. Não, não precisa, muito obrigado, eu me arranjo". Mas, qual era o camarote? E havia quanto tempo ele a tinha levado?
Bond consultou o relógio quando ia no corredor. Três horas. Ela devia ter saído da cama dele pouco depois das duas. Devia telefonar para a ponte de comando? Dar alarma? Penosos instantes de explicações, suspeitas, obstáculos. "Meu caro senhor, isto parece incrível!" Tentativas para acalmá-lo. "Claro, senhor, faremos o que estiver ao nosso alcance". O olhar polido do funcionário, para quem tudo não passaria de embriaguez, ciúme e até mesmo de um meio de deter a marcha do navio e ganhar a aposta no Campo Inferior.
O Campo Inferior! Homem ao mar! O navio detido!
Bond fechou a porta de seu camarote e foi direto à Lista de Passageiros.
E por que não? Winter. Ei-lo aqui. A49. O convés de baixo. E então, de repente, o cérebro de Bond funcionou como um computador. Winter. Wint e Kidd. Os dois pistoleiros. Os encapuzados. Outra vez a lista de passageiros.
Kitteridge. No A49 também. O grisalho e o gordo do avião da BOAC na viagem de Londres a Nova York. "Meu grupo sanguíneo é F." A escolta secreta de Tiffany. E a descrição de Leiter. "Chamam-no Goela porque tem medo de viajar". "Um dia vai-se arrepender de não ter extraído aquela verruga". A verruga vermelha na primeira articulação do dedo que segurava o cão da arma apontada para Tingaling Bell. E Tiffany dizendo: "São dois palermas. O gordo está chupando o polegar!" E os dois, no salão de fumar, procurando ganhar dinheiro com a morte que haviam planejado. A mulher atirada ao mar. O alarma anônimo, no caso de passar o corpo despercebido pelo vigia da popa. O navio detido, a volta, a busca nas águas. E mais três mil libras para os bolsos dos assassinos.
Wint e Kidd. Os pistoleiros de Detroit.
Todo o carretel de filmes embaralhados desenovelou-se na mente de Bond no espaço de um segundo, e mesmo enquanto os esquadrinhava, ia ele abrindo a pasta e revolvendo o compartimento secreto à procura do silenciador. Como um autômato, retirou a Beretta do meio de suas coisas no fundo de um gavetão, examinou o pente e ajustou o silenciador à boca da arma. Simultaneamente, pesava as probabilidades e planejava os passos que devia dar.
Pegou a planta do navio que tinha vindo com o bilhete de passagem.
Esparramou-a à sua frente enquanto calçava as meias. A49. Exatamente debaixo de seu camarote. Haveria probabilidade de arrebentar a fechadura com um tiro e pegar os dois homens antes que eles o pegassem? Nenhuma, quase. Sem dúvida tinham fechado a porta com a chave e o trinco. Ou levar consigo alguns membros da tripulação, se pudesse persuadi-los do perigo que Tiffany corria? Enquanto ele tentasse convencê-los, os dois homens a atirariam pela vigia. E, quando, afinal, conseguissem entrar no camarote, Wint e Kidd estariam lendo calmamente ou jogando cartas e berrariam: — Que é que vocês querem aqui?
Bond meteu a arma nos cós das calças e com um violento puxão escancarou uma das duas vigias do camarote. Enfiou por ela os ombros e alegrou-se ao descobrir uma folga de uma ou duas-polegadas. Espichou o pescoço para baixo. Dois círculos mal iluminados, exatamente sob suas vigias. A que distância? Uns oito pés. A noite continuava parada, calma, tranquilizadora, e ele se achava no lado ensombrado do navio. Avistá-lo-iam da ponte volante? Estaria aberta alguma das vigias do A49?
Bond deixou-se cair novamente em seu camarote e arrancou os lençóis da cama. O nó de porco. Seria mais seguro. Mas teria de rasgar os lençóis e emendá-los para obter o comprimento necessário. Se tudo desse certo, teria de trazer alguns lençóis do A49 e deixar o camareiro intrigado com o desaparecimento. Se desse errado, tanto fazia.
Experimentou a "corda" com toda a força. Devia aguentar. Ao amarrar uma extremidade em volta da dobradiça da vigia, deu uma olhada no relógio.
Só doze minutos tinham passado desde que lera o telegrama. Demorara demais? Trincou os dentes, atirou a "corda" pelo costado do navio e introduziu a cabeça.
Não pense em nada. Não olhe para baixo. Não olhe para cima. Não se importe com os nós. Devagar, firme, uma mão, isto, a outra.
A brisa da noite tocava-o de leve e empurrava-o de encontro aos negros rebites de ferro, e lá embaixo soava o gemido cavo do mar. No alto, o vento zunia no cordame, e mais acima, no firmamento, as estrelas dançavam à volta dos mastros.
Os malditos, os bem-amados lençóis resistiriam? A vertigem o venceria?
Seus braços suportariam o peso? Não pense nisso. Não pense no imenso navio, no oceano faminto, nas quádruplas hélices gigantescas aguardando o momento de lhe retalhar o corpo. Você é um menino que está descendo da macieira. É tão fácil e seguro lá no pomar, com o relvado que apara a queda.
Bond expulsou da mente todos esses pensamentos. Olhou para as mãos e sentiu a aspereza da pintura contra os nós dos dedos. Os pés, sensíveis como antenas, tateavam em busca do primeiro contacto com a vigia.
Ali. Os dedos do pé direito haviam tocado o rebordo saliente. É preciso parar. É PRECISO ter paciência e deixar que o pé explore o terreno — a vigia aberta, presa pela grande tranqueta de latão; o contacto de fazenda por cima da meia: as cortinas cerradas. Agora podia continuar. Estava quase terminado.
Mais duas preensões na corda improvisada e o rosto estava à altura da vigia. Podia colocar uma das mãos na borda metálica do caixilho, subtraindo algum peso da alva corda retesada e dando merecido repouso a um braço e depois ao outro, deslocar a carga suportada pelos músculos, reunir as forças para soerguer-se vagarosamente, traspassar-se ao camarote e mergulhar, deitando a mão à arma.
Ficou à escuta, fitando o círculo da cortina balouçante, tentando esquecer que estava pendurado como um pêndulo, a meio costado do Queen Elizabeth, esforçando-se para não ouvir o marulho do oceano, lutando para abrandar a respiração ofegante e as marteladas do coração.
Do interior do cubículo vinha um resmungo indistinto. Depois, uma voz masculina proferiu algumas palavras e uma mulher gritou: — Não!
Seguiu-se um momento de silêncio, e logo uma bofetada. Sonora como um disparo de pistola, e isto lançou o corpo de Bond para o alto e para dentro como se ele tivesse sido arrastado por uma corda.
No momento mesmo em que mergulhava no círculo da vigia, perguntava-se onde iria bater, e instintivamente protegeu a cabeça com o braço esquerdo, enquanto o direito corria para a arma.
Foi cair sobre uma valise debaixo da vigia. Um estabanado salto mortal levou-o ao meio do camarote. Outra vez sobre seus pés, foi recuando, agachado, para o lado das vigias, a tensão branquejando os nós dos dedos da mão que segurava a arma e uma estreita linha branca circundando-lhe a boca cerrada.
Através das pálpebras entreabertas, os olhos cinzentos e gelados moviam-se de um lado para o outro. A arma, negra e cega, voltava-se para um ponto, no centro, entre os dois homens.
— Aqui estamos — disse Bond, erguendo-se vagarosamente.
Era a constatação de um fato. Ele tinha o controle da situação, e a boca de sua arma o confirmava.
— Quem chamou você aqui? — disse o gordo. — Você não entra nesta peça. — Havia na voz reservas latentes. Nada de pânico. Nem mesmo a dose normal de surpresa. — Veio completar a mesa para o jogo de cartas?
Estava sentado, em mangas de camisas, abotoado, de través para a penteadeira, e os olhos miúdos brilhavam na cara molhada. Dante dele, de costas para Bond, Tiffany Case estava sentada num tamborete estofado.
Vestia apenas uma calcinha cor-de-carne e tinha os joelhos presos entre as coxas do homem gordo. Voltara para Bond o rosto pálido entremeado de manchas vermelhas. Os olhos tinham uma expressão de desespero, como os de um animal apanhado numa armadilha, e a boca aberta traduzia incredulidade.
O grisalho jazia numa das camas. Tinha erguido o busto sobre um cotovelo e a outra mão na camisa, a meio caminho da arma guardada no boldrié preto debaixo do sovaco. Olhava para Bond sem demonstrar curiosidade e estampava aquele sorriso quadrado, vazio, da caixa postal. Do centro do sorriso ressaía um palito de madeira, que rompia os dentes fechados como a língua de uma cobra.
A arma de Bond assegurava o espaço neutro entre os dois homens.
Quando ele falou, a voz era baixa e tensa.
— Tiffany — disse Bond lenta e distintamente. — Ajoelhe-se. Afaste-se desse homem. Baixe a cabeça. Vá para o meio do quarto.
Não olhava para ela. Seus olhos continuavam a passear da cadeira para a cama, vigiando os dois homens. Agora ela estava longe dos dois alvos.
— Estou aqui, James.
A voz tremia de esperança e excitação.
— Levante-se e vá para o banheiro. Feche a porta. Entre na banheira e deite-se lá.
Moveu os olhos na direção dela para ver se era obedecido. Ela tinha-se erguido e o contemplava. Bond avistou a marca vermelha de uma mão na pele alva do corpo da moça. Ela obedeceu. Ouviu-se o clique da porta do banheiro ao fechar-se.
Agora ela estava a salvo das balas. E não presenciaria o que tinha de ser feito.
Mediavam umas cinco jardas entre os dois homens, e Bond refletiu que se eles sacassem com bastante rapidez estaria perdido. Com esse tipo de homens, na fração de segundo em que um fosse liquidado, o outro sacaria e dispararia. Conquanto sua arma fosse silenciosa, a ameaça era infinita. Mas, com o clarão da primeira bala a ameaça proviria do outro homem.
— Quarenta e oito, sessenta e cinco, oitenta e seis.
A variante do sinal convencionado do futebol americano —"uma das cinquenta combinações que deviam ter praticado juntos mil vezes — jorrou da boca do gordo. Simultaneamente, ele se atirou ao chão, e a mão foi direta ao cós da calça.
Num giro rápido, o homem que estava na cama puxou as pernas para o lado e para longe de Bond, de modo que seu corpo se reduziu a um alvo estreito, de que só se via a cabeça. A mão que estava sobre o peito se mexeu rápida.
— Paf.
A arma de Bond soltou um único gemido abafado. Um orifício azul abriu-se exatamente abaixo do cocuruto grisalho.
— Pum! — respondeu a pistola do morto, deflagrada pela última crispação do dedo, e a bala foi alojar-se na cama, debaixo do cadáver.
O homem gordo, deitado no soalho, deu um grito. Olhava para cima. na direção daquele olho preto e vazio que não se incomodava com ele, de forma alguma, e que só se interessava em localizar-lhe na pele o centímetro quadrado que abrigaria o próximo projétil.
O revólver de Wint só se tinha elevado até à altura dos joelhos de Bond e apontava em vão por entre suas pernas retesadas para a armação de ferro, pintada de branco, que estava atrás.
— Largue a arma.
O tapete abafou o ruído da queda da arma.
— Levante-se.
O gordo ergueu-se com dificuldade e fitou Bond nos olhos, como um tuberculoso fita seu lenço, em medrosa expectativa.
— Sente-se.
Houve um lampejo de alívio nos olhos submissos? Bond continuou tenso como um gato prestes a atacar.
O gordo voltou-se vagarosamente. Estendeu as mãos acima da cabeça, embora Bond não lhe tivesse exigido isso. Deu dois passos para a cadeira e lentamente virou-se como se fosse sentar-se.
Parou, contemplando Bond, e com naturalidade deixou cair as mãos ao longo do corpo. E as duas mãos, sossegadas, sacudiram-se para trás, a direita mais do que a esquerda. E então, de súbito, no movimento de retorno, o braço direito entesou-se, precipitou-se para a frente e a faca brilhou nas pontas dos dedos como uma chama branca.
— Paf.
A bala silenciosa e a faca muda cruzaram uma pela outra em pleno ar, e os olhos dos dois homens perturbaram-se simultaneamente quando as armas atingiram seus objetivos.
Mas a perturbação nos olhos do homem gordo converteu-se num reviramento do globo ocular quando ele caiu para trás, as mãos agarradas ao peito, enquanto os olhos de Bond pousaram sem curiosidade na mancha que se espalhava em sua camisa e no cabo chato da faca pendurada frouxamente nas dobras do pano.
Produziu-se um estardalhaço quando a cadeira se espatifou sob o peso do homem gordo. Seguiu-se um ruído roufenho e ouviu-se, por último, um baque surdo no soalho.
Bond olhou a cena uma vez e depois voltou-se para a vigia aberta.
Durante algum tempo ficou de costas para o quarto, o olhar fixo nas cortinas que se balançavam molemente. Sorveu o ar e escutou os maravilhosos sons marinhos do exterior, do mundo que ainda lhes pertencia, a ele e a Tiffany, mas não aos outros dois. Pouco a pouco, seu corpo e seus nervos tensos se relaxaram.
Instantes depois, puxou a faca que se lhe enfiara na camisa. Não olhou para ela. Apenas estirou o braço, afastou a cortina para um lado e atirou a faca pela vigia. Em seguida, ainda contemplando a noite quieta lá fora, prendeu o registro de segurança da Beretta e, com um braço que lhe pareceu de repente pesado como chumbo, introduziu de novo a arma no cós das calças.
Com certa relutância, deu meia volta e encarou a desordem reinante no camarote. Com ar pensativo, examinou tudo e, num gesto, inconsciente, enxugou as mãos nos lados das calças. Em seguida, caminhando cautelosamente até o banheiro, disse: "Tiffany, sou eu" numa voz cansada, deprimida, e abriu a porta.
Ela não o ouvira. Continuava deitada de bruços na banheira seca, as mãos sobre as orelhas. E quando ele a ergueu e tomou nos braços, ela ainda não acreditou no que via. Agarrou-se a ele e começou a tocar-lhe o rosto e o busto com as mãos para certificar-se de que era realidade.
Ele se retraiu quando ela lhe apalpou a costela cortada. Então ela afastou-se um pouco, examinou-lhe o rosto, depois o sangue que manchava seus dedos e por fim a camisa escarlate.
— Meu Deus! Você está ferido! — disse ela assustada; e, esquecendo seus pesadelos, arrancou-lhe a camisa, lavou-lhe a costela com água e sabão e amarrou-a com tiras da toalha cortada com a gilete de um dos homens mortos.
Não fez perguntas, nem mesmo quando Bond lhe trouxe as roupas que estavam espalhadas pelo soalho do camarote e lhe disse que não saísse enquanto ele não tivesse terminado de arrumar tudo e de apagar as impressões digitais de todos os objetos que ela havia tocado.
Ela apenas pousava nele os olhos brilhantes. E quando Bond a beijou nos lábios, continuou calada.
Bond deu-lhe um sorriso tranquilizador, saiu e fechou a porta do banheiro atrás de si. Pôs mãos à obra, fazendo cada coisa com grande determinação e parando antes de cada gesto a fim de imaginar o efeito que produziria diante dos olhos e do espírito dos detetives que subiriam a bordo em Southampton.
Primeiro amarrou um cinzeiro à sua camisa ensanguentada para torná-la pesada, aproximou-se da vigia e atirou o pacote o mais longe que pôde. Os smokings dos dois homens estavam pendurados atrás da porta. Tirou os lenços que estavam nos bolsinhos dos paletós, envolveu com eles as mãos e remexeu nos armários e cômodas até encontrar as camisas do grisalho.
Vestiu uma e ficou um momento no centro do camarote, meditando. Depois, cerrou os dentes e levantou o homem gordo até deixá-lo sentado, tirou-lhe a camisa, foi à vigia, sacou a Beretta, encostou a arma no orifício aberto na fazenda pelo tiro anterior e disparou outra bala no mesmo local. Agora havia uma nódoa de fumaça em volta do orifício para dar a impressão de suicídio.
Tornou a vestir a camisa no cadáver, limpou demoradamente a Beretta com o lenço, comprimiu os dedos da mão direita do morto sobre ela e, finalmente, ajustou a arma na mão do gordo, com o indicador no gatilho.
Após outra pausa no meio do quarto, retirou o smoking de Kidd do cabide e vestiu com ele o cadáver. Em seguida, arrastou o corpo até a vigia e, suando com o esforço, levantou-o e jogou-o ao mar.
Limpou as possíveis impressões digitais deixadas na vigia e interrompeu-se outra vez, tomando fôlego e inspecionando o cenário. Foi até a mesa de jogo, encostada à parede e com os objetos espalhados indicando que o jogo não fora concluído, e derrubou tudo, dispersando as cartas pelo tapete. Parou, refletiu mais um pouco, voltou ao cadáver de Wint, retirou-lhe do bolso traseiro da calça o rolo de cédulas e jogou-as entre as cartas.
O quadro era satisfatório, sem dúvida. Haveria o mistério da bala disparada na cama pelo moribundo Kidd, mas isso poderia ter sido parte da luta. Três balas tinham sido detonadas pela Beretta e havia três cartuchos no soalho. Duas das balas poderiam ter-se enterrado no corpo de Kidd que agora estava no Atlântico. Havia os dois lençóis que teria de roubar da segunda cama. A falta deles ficaria inexplicada. Talvez Wint houvesse enrolado neles o corpo de Kidd antes de empurrá-lo pela vigia. Isso se encaixava no remorso e no suicídio de Wint, posterior ao tiroteio motivado pelo desentendimento à mesa do jogo.
De qualquer maneira, refletiu Bond, o quadro se sustentaria até a chegada da polícia ao porto, mas nesse momento ele e Tiffany já estariam fora do navio e bastante longe, e o único vestígio deles no camarote seria a Beretta; e esta, como todas as outras armas pertencentes ao Serviço Secreto, não era numerada.
Soltou um suspiro e encolheu os ombros. Agora, restava apanhar os lençóis, conduzir Tiffany de volta ao seu camarote sem serem vistos, cortar a "corda" que se balançava na vigia, atirá-la ao mar com os pentes restantes da Beretta e o coldre vazio e, por fim, dormir à vontade com o corpo adorado de Tiffany enroscado no seu para sempre.
Para sempre?
Ao atravessar o camarote a caminho do banheiro, Bond encontrou os olhos vazios do cadáver no soalho.
E os olhos do homem cujo Grupo Sanguíneo fora F chamaram-no e lhe disseram:
— Mr. Bond. Nada existe para sempre. Só a morte é permanente. Nada é eterno, exceto o que você fez comigo.
25 - Fecha-se o canal
AGORA NÃO HAVIA escorpião morando nas raízes do frondoso espinheiro erguido na junção dos três Estados africanos. O contrabandista das minas não tinha outra coisa que lhe absorvesse a atenção senão o desfile infindável de um regimento de formigas de correição entre as baixas muralhas que as guerreiras haviam construído em ambos os lados da estradinha de três polegadas.
A noite era quente e úmida, e o homem escondido sob o espinheiro estava impaciente e intranquilo. Era esta a última vez que comparecia ao encontro marcado. Já tinha decidido. Que arranjassem outro, se quisessem.
Naturalmente não iria fazer sujeira com eles. Comunicaria a intenção de deixá-los e lhes daria o motivo: o novo assistente admitido no serviço dentário parecia entender muito pouco de odontologia; decerto era espião: o olhar indagador, o bigodinho amarelo-avermelhado, as unhas bem tratadas.
Pegaram alguém? Tomaram-lhe o depoimento?
O contrabandista trocou de posição. Por onde diabo andava o helicóptero? Apanhou um punhado de terra e atirou-o no meio das formigas.
Elas se atarantaram um pouco, mas com a chegada das últimas fileiras, as que iam na frente se dispersaram pelas muralhas. Então as guerreiras pegaram febrilmente a cavar e transportar a terra, e em poucos minutos a estrada estava outra vez transitável.
O homem tirou o sapato e jogou-o com força sobre o regimento em marcha. Houve outro curto instante de afobação. Depois, as formigas lançaram-se sobre as mortas e as devoraram. O caminho estava novamente desimpedido e o negro rio continuou a fluir.
O homem soltou uma praga em africaans e calçou o sapato. Filhas duma égua. Iam ver uma coisa. Acocorando-se e suspendendo um braço para se proteger contra os espinhos, saiu pisando pela estrada das formigas. Isso lhes serviria de lição.
Ao surgir sob o luar, o homem já tinha esquecido o ódio que dedicava a tudo quanto fosse negro e virou a cabeça para a banda do norte. Graças!
Rodeou o espinheiro para ir buscar as lanternas e o pacote dos diamantes guardados nas caixas de ferramentas.
A uma milha dali, sob a copa de um arbusto, o poderoso ouvido de ferro do detector de som já parará de investigar, e o operador, que vinha transmitindo os dados aos três homens agrupados ao lado do caminhão militar, informou: — Trinta milhas. Velocidade: cento e vinte. Altura: novecentos pés.
Bond consultou o relógio.
— Tudo indica que o encontro está marcado para a meia-noite,_na lua cheia — disse ele. — O nosso homem está uns dez minutos atrasado.
— Parece que o senhor tem razão — concordou o oficial da guarnição de Freetown, a seu lado, e voltou-se para o terceiro homem. — Cabo. Veja se não tem nenhum metal aparecendo na rede de camuflagem. Com este luar, é preciso ter cuidado.
O caminhão estava coberto pelo arbusto, à beira de uma estrada de barro, que atravessava a planície na direção da aldeia de Telebadu, na Guiné Francesa. Naquela noite, haviam deixado as colinas logo que o radiolocalizador captara o barulho da motocicleta do dentista na estrada paralela. Tinham vindo com os faróis apagados e pararam quando cessou o ruído da motocicleta. Haviam estendido a rede de camuflagem sobre o caminhão, o detector de som e o canhão Bofors. E puseram-se a esperar, sem saberem ao certo quem ou o que viria ao encontro do dentista — outra motocicleta, um homem a cavalo, um jipe, um avião?
Ao ouvir no céu o longínquo matraquear, Bond soltou uma gargalhada.
— Helicóptero — disse ele. — Era só o que faltava. Preparem-se para tirar a rede quando pousar. Talvez a gente tenha de dar um tiro de advertência. O detector está ligado?
— Está, sim — respondeu o cabo que operava o aparelho. — O nosso amigo está chegando. Poderão vê-lo num minuto. O senhor está vendo aquelas luzes acolá? Devem ser do campo de pouso.
Bond passeou o olhar pelos quatro feixes de luz e, depois, contemplou o imenso céu africano.
Então aí vinha o último de todos, o derradeiro elemento da quadrilha e também o primeiro. O homem que havia visto ligeiramente em Hatton Garden. O número um da turma de Spang, cuja cotação era tão alta em Washington. O único, excetuando o inofensivo e até simpático Shady Tree, que Bond ainda não fora obrigado a matar ou — pensou no botequim de Spectreville e nos dois homens de Detroit — quase. Não que tivesse desejado matar esses indivíduos. A missão que M lhe confiara fora apenas de investigação. Mas, um a um, eles haviam tentado contra sua vida e a de seus amigos. A violência fora o primeiro, não o último recurso deles.
Violência e crueldade, as armas escolhidas. Os dois homens do Chevrolet em Las Vegas, que tinham disparado contra ele e ferido Ernie Cureo. Os dois sujeitos do Jaguar, que haviam espancado Ernie e tinham sido os primeiros a sacar os revólveres quando começara a luta. Seraffimo Spang, que mandara torturá-lo, disparara contra ele e Tiffany e procurara esmagá-los na estrada de ferro. Wint e Kidd, que haviam supliciado Tingaling Bell, Bond e Tiffany Case. E, dos sete, matara cinco — não porque gostasse de matar, mas porque alguém tinha de fazê-lo. Tivera a seu lado a sorte e três bons amigos, Félix, Ernie e Tiffany. E os malvados tinham perecido.
Agora chegava a último dos malvados, o homem que planejara a sua morte e a de Tiffany, o homem que, segundo M, arquitetara o contrabando dos diamantes, montara o canal de escoamento e o vinha dirigindo com eficiência e mão de ferro através dos anos.
Ao telefone, para Boscombe Down, M falara pouco e com certa aspereza na voz. Usara a linha do Ministério da Aeronáutica, poucos minutos antes que o Canberra decolasse para Freetown. Bond recebera o telefonema do gabinete do comandante da base, tendo nos ouvidos o grito estridente das turbinas do Canberra.
— Satisfeito de tê-lo de volta são e salvo.
— Muito obrigado, senhor.
— Que estória é essa que os vespertinos noticiaram acerca de um duplo homicídio no Queen Elizabeth?
Havia algo mais do que suspeita na voz de M.
— Eram os dois pistoleiros da quadrilha. Viajavam sob os nomes de Winter e Kitteridge. Meu camareiro desconfia que eles se desentenderam quando jogavam baralho.
— Acha que a suposição do camareiro é correta?
— É possível. Houve uma pausa.
— E os policiais também pensam assim?
— Não vi nenhum deles.
— Vou falar com Vallance.
— Ótimo — disse Bond, sabendo que essa era a maneira de M dizer que, caso Bond tivesse liquidado os dois homens, tomaria providências para que o agente e o Serviço Secreto não fossem mencionados no inquérito.
— Bem, de qualquer modo — disse M — aqueles dois eram pouco importantes. Esse Jack Spang, ou Rufus B. Saye ou ABC, ou que nome tenha, esse eu quero que você agarre. Ao que parece, ele vai agora até o extremo do canal. Vai fechá-lo. Talvez matando o que encontrar pela frente. O ponto final é o dentista. Veja se consegue pegar os dois. Faz coisa de uma semana que destaquei 2804 para trabalhar ao lado do dentista. O pessoal de Freetown acha que já se pode agir. Mas eu quero encerrar este caso e ver você de novo em seu verdadeiro posto. Esse negócio foi uma trapalhada dos diabos. Não me agradou desde o princípio. E se, afinal, conseguimos chegar ao ponto em que estamos agora, foi mais uma questão de sorte do que de boa organização.
— Concordo com o senhor — disse Bond.
— E essa moça, Case? — perguntou M. — Conversei com Vallance. Ele não deseja processá-la, a menos que você insista.
Teria M carregado um pouco no tom de indiferença?
Bond procurou evitar uma resposta muito persuasiva.
— Ela foi de grande ajuda — disse ele, esperançoso.
— Talvez a gente possa resolver quando eu apresentar meu relatório final.
— E onde está ela agora?
O negro receptor começava a ficar escorregadio na mão de Bond.
— Está a caminho de Londres, num Daimler de aluguel. Vou colocá-la no meu apartamento. Quero dizer, no quarto vago. É muito boa dona de casa.
Ela se arranjará até que eu volte. É uma boa moça, estou certo disso.
Puxou o lenço do bolso e enxugou o suor do rosto.
— Sem dúvida — disse M. Não havia ironia em sua voz.
— Está bem, então. Boa sorte. — Houve uma pausa. — Tome cuidado.
E... — a voz no outro extremo da linha tornou-se subitamente áspera — não pense que não estou satisfeito com os resultados até agora obtidos. Foram além do programa, naturalmente, mas você parece que topou muito bem a parada desse pessoal. Até logo, James.
— Até logo, senhor.
Bond levantou a vista para o céu recamado de estrelas e pensou em M e Tiffany, esperando que agora fosse mesmo o fim e que fosse rápido e tranquilo, e que logo estivesse em casa.
De pé, empunhando a quarta lanterna, o contrabandista das minas esperava. Lá vinha o helicóptero. Cortando a trajetória da lua. Como sempre, o barulho era infernal. Outro risco de que ia livrar-se.
Baixava lentamente. Agora pairava a uns vinte pés de altura. A mão apontou na janela e piscou A. O homem no chão piscou, em resposta, B e c.
As lâminas do rotor diminuíram a velocidade e, suavemente, o gigantesco inseto de aço pousou no chão.
O pó assentou. O contrabandista retirou a mão dos olhos e ajudou o piloto a descer a escadinha. Usava capacete de voo e óculos de proteção.
Extraordinário. E parecia mais alto do que o alemão. O contrabandista sentiu uma picada na espinha. Quem era esse? Aproximou-se devagar.
— Trouxe?
Dois olhos frios, sob negras sobrancelhas retas, cintilaram por trás dos óculos. Ocultavam-se quando o homem moveu a cabeça e o luar incidiu sobre o vidro. Agora eram dois círculos brancos reluzentes no meio do negro e luzidio capacete de couro.
— Trouxe — disse, nervoso, o homem das minas. — Mas onde está o alemão?
— Não virá mais. — Os dois círculos brancos cegavam o contrabandista.
— Eu sou ABC. Vim fechar o canal.
A voz era americana. Enérgica, seca, inflexível.
— Oh!
Maquinalmente, a mão do contrabandista enfiou-se na abertura da camisa. Apanhou o embrulho úmido e entregou-o ao piloto como se fosse uma oferenda de paz. À semelhança do escorpião, um mês antes, o homem das minas pressentia a pedra erguida sobre sua cabeça.
— Ajude-me a encher o tanque.
Era a voz do feitor dando ordens ao escravo. Mas o contrabandista apressou-se a obedecer.
Fizeram o serviço em silêncio. Ao terminar, voltaram ao chão. O cérebro do contrabandista trabalhava furiosamente. Ele se esforçava por adotar a voz de um associado, a voz de alguém que estivesse a par dos negócios e exercesse a mesma autoridade.
Olhou com atenção para a nesga de treva cor-de-anil onde se achava o piloto com a mão sobre a escada.. — Estive pensando bem e acho que...
A voz estacou de supetão, a boca abriu-se espavorida e deixou escapar um ruído que era uma mescla de rosnado e uivo.
A arma na mão do piloto gaguejou três vezes. O contrabandista emitiu um "Oh" numa voz servil, caiu de costas no chão, fez um esforço para se soerguer e imobilizou-se.
— Fique onde está. — A voz ressoou na planície, transmitida pelo amplificador. — Você está cercado.
Ouviu-se o ruído de um motor que se punha em funcionamento.
O piloto não procurou saber de onde vinha a voz. Pulou para a escada. A porta da carlinga fechou-se com uma pancada e zumbiu o arranque automático. O motor começou a trabalhar, as lâminas do rotor giraram, pouco a pouco foram ganhando velocidade até que se transformaram em dois redemoinhos prateados. Então, com uma sacudidela, o helicóptero elevou-se verticalmente no ar.
Em terra, entre os arbustos, o caminhão freou e Bond saltou para a sela de aço do Bofors.
— Pra cima, cabo — gritou ele para o homem que manobrava a alavanca de suspensão. Baixou os olhos para a alça de mira quando a boca da arma se ergueu para a lua. Com a mão, puxou a alavanca do seletor de fogo, tirando-a da marca de segurança e colocando-a em "Fogo". — Esquerda, dez.
— Eu alimentarei.
O oficial ao lado de Bond tinha nas mãos dois depósitos de obuses pintados de amarelo.
Os pés de Bond firmaram-se nos pedais do gatilho. O helicóptero estava no centro da alça de mira.
— Firme — disse ele calmamente.
— Bumpa.
O obus reluzente rodou no alto a uma velocidade apenas menor do que a do som. Baixo e à esquerda. O cabo girou delicadamente as duas alavancas.
— Bumpa.
O obus deu a volta por cima do helicóptero. Bond inclinou-se para a frente e puxou a alavanca do seletor para "Fogo Automático". A mão relutava. Agora a morte era inevitável. Mais uma vez ele tinha de tomar essa decisão.
— Bumpa... bumpa... bumpa... bumpa... bumpa... O fogo vermelho espargiu-se no céu. O helicóptero continuou a avançar para a lua e depois rumou para o norte.
— Bumpa... bumpa...
Houve um espocar de luz amarela perto do rotor da cauda e um estrondo de explosão distante.
— Acertou — disse o oficial, pegando o binóculo. — O rotor da cauda está perdido — disse ele. E logo, agitado: — Puxa! Parece que toda a cabina está girando com o rotor principal! O piloto está atolado.
— Mais algum? — perguntou Bond, mantendo na mira o helicóptero em chamas.
— Não, senhor — disse o oficial. — Seria bom se conseguíssemos pegá-
lo vivo. Mas parece... é, sim, já perdeu o controle. Vem caindo de ponta.
Deve haver alguma coisa com as lâminas do rotor principal. Lá vem ele.
Bond levantou a vista e resguardou os olhos contra a claridade intensa.
— Sim. Lá vem ele. A cem pés, o motor ribombando e as hélices girando inutilmente enquanto a embrulhada metálica despencava do céu em cambaleios e guinadas de ébrio.
Jack Spang. O homem que ordenara o assassínio de Bond. Que ordenara o assassínio de Tiffany. O homem que Bond vira apenas uma vez, durante alguns minutos, numa sala superaquecida em Hatton Garden. Mr. Rufus B.
Saye. Da House oi Diamonds. Vice-Presidente para a Europa. O homem que jogava golfe em Sunningdale e visitava Paris uma vez por mês. "Cidadão exemplar", M dissera dele. Mr. Spang, da quadrilha de Spang, que acabara de matar um homem — o último de quantos?
Bond imaginava a cena dentro da estreita carlinga. O homem dirigindo com uma das mãos e com a outra mexendo desesperadamente nos controles, enquanto observava a agulha do altímetro baixar vertiginosamente. Nos olhos, o rubro clarão do terror. As centenas de milhares de libras esterlinas em diamantes reduzidas a peso morto. A arma, que desde a infância, fora um poderoso braço direito, agora inútil.
— Vai pra cima do espinheiro — bradou o cabo acima da barulheira.
— Está perdido — disse o capitão, a meia voz.
Contemplaram as últimas guinadas; depois, suspenderam a respiração quando o aparelho, num bamboleio desenfreado, empinou o nariz e, como se o espinheiro fosse seu inimigo, deu um mergulho irado, descrevendo uma curva de vinte jardas, e arremessou-se com os rotores desgovernados contra os espinhos.
Antes de se extinguirem os ecos da colisão, ouviu-se um ribombo cavo e uma bola de fogo, projetada no ar, ofuscou o clarão da lua e banhou a planície inteira num fulgor alaranjado.
O capitão foi o primeiro a falar.
— Opa! — exclamou, tirando o binóculo e voltando-se para Bond. — Bem — disse ele, resignado — nada a fazer. Acho que só quando amanhecer a gente vai poder se aproximar. E só com o dia alto é que se poderá revolver os destroços. Mas pode esperar que daqui a pouco os soldados franceses da fronteira estarão aqui. Felizmente estamos em boas relações com eles. O governo é que passará um bocado de tempo discutindo com Dakar. — O oficial previa as idas e vindas da papelada e sentia-se ainda mais exausto.
Homem prosaico, achava que o dia já lhe trouxera boa dose de canseiras. — O senhor se incomoda se a gente tirar uma pestana?
— À vontade — disse Bond, e consultou o relógio. — É melhor irem pra debaixo do caminhão. Eu mesmo não estou com sono. Vou ficar de olho.
Pode ser que o fogo ameace se alastrar.
O oficial lançou um olhar inquiridor a esse homem calmo e enigmático, que chegara de repente ao Protetorado no meio de uma enxurrada de recomendações de "Prioridade Absoluta". Se a gente nunca precisasse dormir... Bom, isso nada tinha que ver com Freetown. Era coisa de Londres.
— Muito obrigado, então — disse o oficial e jogou-se debaixo do caminhão.
Bond retirou vagarosamente os pés dos pedais do gatilho e reclinou-se no encosto da sela de aço. Maquinalmente, com os olhos pousados ainda nas chamas saltitantes, enfiou as mãos nos bolsos do desbotado blusão caqui, que lhe haviam arranjado na base, puxou um cigarro, acendeu-o e tornou a guardar a cigarreira e o isqueiro.
Aí estava o fim do contrabando de diamantes. A última página da estória. Deu uma tragada e expeliu a fumaça com um suspiro longo e calmo.
Seis cadáveres a zero. Vitória folgada.
Ergueu a mão e limpou a testa suada. Atirou para trás a mecha de cabelo que lhe caía por cima da sobrancelha direita, e o clarão vermelho iluminou-lhe o rosto duro e magro e cintilou nos olhos cansados.
Esse imenso e rubro ponto final assinalava o desmoronamento da Quadrilha de Spang e o término do fabuloso contrabando de diamantes. Não o fim dos diamantes que se tostavam do interior do braseiro. Eles sobreviveriam e outra vez iriam percorrer o mundo. Descoloridos, talvez, mas indestrutíveis, tão permanentes como a morte.
E Bond recordou, instantaneamente, os olhos do cadáver cujo sangue havia pertencido ao grupo F. Tinham-se enganado. A morte é eterna. Mas os diamantes também são eternos.
Bond desceu do caminhão e pôs-se a andar lentamente em direção à fogueira crepitante. Levava um sorriso sombrio nos lábios. Toda essa estória acerca de morte e diamantes era demasiado solene. Para Bond, era apenas o fim de outra aventura. Outra aventura que bem podia ter por epitáfio as palavras de Tiffany Case. E reviu a boca ardente e irônica que lhe dizia: — Contada é uma coisa, vivida é outra.
20 - Chamas que saem do alto
O UNIFORME PRETO de homem-rã estava muito apertado. Doía no corpo todo. Por que cargas d'água Strangways não tinha se certificado de que o Almirantado tinha suas medidas corretas? E era muito escuro no fundo do mar, as correntes eram muito fortes, arrastavam-no para o banco de coral.
Era preciso nadar com todo o ímpeto para afastar-se dali. Mas agora algo lhe prendia o braço. Que diabo...?
— James! Pelo amor de Deus, James! — Ela apertou a boca ao ouvido dele. Desta vez ela beliscou-lhe o braço nu e ensanguentado com tanta força que, afinal, os olhos de Bond se abriram entre as pálpebras inchadas, e ele a contemplou do piso de madeira em que estava deitado e deu um suspiro de sobressalto.
Ela puxou-o para si, com medo que ele lhe escapasse outra vez. Ele pareceu entender e se revolveu, erguendo-se sobre as mãos e os joelhos, a cabeça pendida para o chão, como um animal ferido.
— Pode andar?
— Espere. — O murmúrio espesso que lhe atravessou os lábios arrebentados soou-lhe estranho aos ouvidos. Talvez ela não tivesse compreendido. — Espere — repetiu ele, enquanto sua mente passava a explorar o corpo para ver o que lhe tinha sobrado. Podia sentir os pés e as mãos. Podia mover a cabeça de um lado para outro. Podia ver as barras do luar nas pranchas de madeira. Pudera ouvir a moça. Devia estar inteiro, mas não queria mover-se. Sua força de vontade o tinha abandonado. Apenas desejava dormir. Ou talvez mesmo morrer. Qualquer coisa, contanto que mitigasse a dor que lhe avassalava o corpo todo, apunhalando-o, martelando-o, triturando-o — e matasse a lembrança das quatro botinas que o haviam golpeado e dos rosnados proferidos pelos dois vultos encapuzados.
Assim que pensou nos dois homens e em Mr. Spang, a vontade de viver retornou.
— Está bem — disse, e tornou a dizer para que ela compreendesse.
— Estamos na sala de espera — sussurrou a moça. — Temos de chegar ao extremo da estação. À esquerda, depois da porta. Está me ouvindo, James?
Ela estirou a mão e afagou-lhe os cabelos úmidos, viscosos, caídos na testa.
— Tenho de me arrastar — disse Bond. — Atrás de você.
A moça ergueu-se e abriu a porta. Bond trincou os dentes e saiu de rastros para a plataforma enluarada. E quando avistou a mancha escura no chão, a raiva e o desejo de vingança deram-lhe forças para se levantar.
Balançando a cabeça para não se afogar nas ondas negro-avermelhadas e amparado em Tiffany Case, cujo braço lhe envolvia a cintura, foi coxeando pelas tábuas até a rampa por onde desceram para o chão junto dos trilhos reluzentes.
E lá, no desvio, havia um vagonete.
Bond parou e olhou-o atentamente.
— Gasolina? — perguntou com ar vago.
Tiffany Case fez um gesto para uma fileira de latas encostadas no muro da estação. — Está cheio — sussurrou. — É usado na inspeção da linha. Eu sei colocá-lo em funcionamento. Já desloquei as agulhas. Depressa. Suba — soltou uma risadinha abafada. — Próxima parada: Rhyolite.
— Isso é que é uma garota — murmurou Bond. — Mas vai fazer um barulho danado quando esse troço começar a funcionar. Espere. Tenho uma ideia. Tem fósforos?
Metade da dor tinha desaparecido. Respirava forte quando deu as costas à moça e observou as silenciosas casas de madeira.
Ela estava usando calças compridas e blusa. Enfiou a mão no bolso das calças e entregou-lhe o isqueiro.
— O que é que vai fazer? — perguntou. — Já devíamos ter partido.
Mas Bond manquejou até as latas de gasolina e pôs-se a destampá-las e a arremessar o líquido sobre as paredes e a plataforma de madeira. Depois de esvaziar meia dúzia de latas, voltou para onde ela estava. — Ligue a bicha.
— Curvou-se com esforço e apanhou um jornal amassado ao lado dos trilhos. Ressoou o gemido raivoso do arranque automático, o motor de dois tempos pegou e começou a martelar.
Bond acendeu o isqueiro. O papel pegou fogo e Bond jogou-o entre as latas de gasolina. O espocar das labaredas quase o alcançou quando ele se lançou de costas ao estribo do vagonete. Mas então a. moça soltou a embreagem e o carro começou a deslizar pelos trilhos.
Houve um matracolejar e um sacolejo desagradável ao chegarem às agulhas; e depois, entrados na linha> principal, o velocímetro tremia marcando trinta milhas e os cabelos da moça flutuavam à frente de Bond como uma bandeira.
Bond voltou-se e contemplou a gigantesca floração de chamas que ia ficando para trás. Podia quase ouvir o crepitar das pranchas secas e os berros dos que despertavam. Se pelo menos o fogo pegasse Wint e Kidd, apanhasse a pintura do Pullman e se alastrasse pela lenha do tender do Cannonball e acabasse de uma vez com a caixa de brinquedos de Mr. Spang!
Mas ele e a moça tinham seus próprios problemas. Que horas eram?
Bond aspirou o ar fresco da noite e tentou colocar de novo a mente para trabalhar. A lua estava baixa. Quatro horas? Bond avançou com dificuldade pelo estribo até os dois assentos de encosto dobradiço e conseguiu sentar-se ao lado da moça.
Passou-lhe um braço em volta dos ombros, e ela voltou-se com um sorriso nos lábios. Levantando a voz acima do barulho da máquina e do matracolejar das rodas de ferro sobre os trilhos, ela falou: — Foi uma escapada e tanto. Parecia coisa de filme de Buster Keaton.
Como se sente? — Inspecionou o rosto combalido. — Você está massacrado, hein?
— Nenhuma fratura — disse Bond. — Acho que é isso que se entende por oitenta por cento. — Fez uma careta de dor. — É melhor ser tratado a pontapé do que a bala.
O rosto de Tiffany Case contraiu-se.
— E eu tive de ficar sentada lá e fingir que não ligava. Spang, ao meu lado, escutava e me observava. Depois, eles viram que você já estava nas últimas, atiraram você na sala de espera e todo mundo foi para a cama satisfeito da vida. Esperei uma hora em meu quarto e então resolvi agir. O
pior de tudo foi tentar despertar você.
Bond apertou-lhe os ombros com o braço.
— Direi o que penso de você quando estiver menos contundido. Mas, e você, Tiffany? Vai ficar em maus lençóis se eles nos pegarem. E quem são os dois encapuzados, Wint e Kidd? O que é que eles vão fazer agora?
Gostaria de vê-los de novo.
A moça olhou de viés para a feia equimose na boca de Bond.
— Nunca os vi sem os capuzes — confessou ela. — Suponho que eles são de Detroit. Pistoleiros. Encarregam-se dos trabalhos violentos e de missões especiais secretas. Virão em nosso encalço. Mas não se preocupe comigo. — Encarou-o de novo e seus olhos irradiavam felicidade. — A primeira coisa a fazer é levar essa joça a Rhyolite. Depois teremos de achar um carro e cruzar a fronteira com a Califórnia. Dinheiro não vai faltar-. Eu trouxe. Depois iremos a um médico, arranjaremos um banho e uma camisa nova pra você e pensaremos no que vamos fazer. Trouxe seu revólver. Foi encontrado por um dos rapazes que ajudaram a recolher os restos daqueles dois sujeitos que você arrasou no botequim. Apanhei a arma depois que Spang foi para a cama.
Ela desabotoou a blusa e enfiou a mão no cós das calças.
Bond recebeu a Beretta, e sentiu a quentura do corpo da moça no metal.
Removeu o pente. Sobravam três cartuchos, e um estava na agulha.
Recolocou o pente, fechou o registro de segurança e guardou a arma na cintura. Só então notou que estava sem paletó. Uma das mangas da camisa fora reduzida a um trapo. Arrancou-a e jogou-a fora. Apalpou o bolso traseiro direito da calça, à procura da cigarreira e não a encontrou. Mas no esquerdo estavam ainda o passaporte e a carteira de cédulas. Puxou-os do bolso. À luz da lua pôde ver que ambos estavam danificados. O dinheiro continuava na carteira. Pôs outra vez os objetos no bolso.
Durante algum tempo avançaram pela estrada. O silêncio da noite era cortado apenas pelo ronrom da máquina e pelo matraquear das rodas. Até onde a vista alcançava, havia somente uma interrupção da estreita linha prateada dos trilhos, assinalada pela alavanca de manobra das agulhas, no ponto em que um ramal enferrujado penetrava na massa escura dos montes Spectre à direita. À esquerda, descortinava-se o infindável chão do deserto em que o lampejo da aurora começava a debruar de azul as moitas de cactos contorcidos e, duas milhas além, o luar esparramava seu clarão cinza-chumbo sobre a Rodovia 95.
O vagonete cantarolava feliz nos trilhos. Os instrumentos de controle eram poucos: uma alavanca de freio e uma espécie de manche com um acelerador de cabo retorcido que a moça mantinha completamente aberto, com o velocímetro firme em trinta milhas. As milhas e os minutos passavam e, de vez em quando, Bond virava-se com dificuldade na cadeira e inspecionava o florescente rubor do céu às suas costas.
Fazia cerca de uma hora que tinham partido quando um leve zumbido, vibrando no ar ou nos trilhos, pôs Bond de sobreaviso. Novamente ele olhou por cima do ombro. Haveria um vago bruxoleio entre eles e o falso alvorecer da cidade em chamas?
Bond sentiu leve comichão no couro cabeludo.
— Veja se enxerga alguma coisa ali atrás.
A moça voltou-se. Depois, sem responder, diminuiu a marcha do carro que passou a deslizar suavemente.
Puseram-se à escuta. Sim. Era nos trilhos. Uma leve trepidação, nada mais do que um suspiro distante.
— É o Cannonball — disse Tiffany, categórica.
Deu um brusco repelão no acelerador, e o vagonete tornou a ganhar velocidade.
— Quanto pode fazer a locomotiva? — perguntou Bond.
— Talvez sessenta.
— E daqui pra Rhyolite?
— Trinta, mais ou menos.
Bond fez as contas em silêncio.
— Vai ser por um triz. Não é fácil dizer a que distância ela está de nós. E
esse treco pode dar mais alguma coisa?
— Que nada! — disse ela, — Nem que eu me chamasse Casey Jones em vez de Tiffany Case.
— Não tem importância — disse Bond. — Toca pra frente. Talvez ela vá prós ares com uma explosão.
— Ah, sim — disse ela. — Ou talvez a mola dê o prego, ou Spang se lembre que deixou a chave do motor em casa, no bolso da calça.
Viajaram mais quinze minutos em silêncio. Então, Bond divisou o grande farol da locomotiva varando a noite, a umas cinco milhas de distância, e as centelhas subindo pela chaminé. Os trilhos trepidavam e o que tinha sido um suspiro longínquo era agora um murmúrio baixo, ameaçador.
Talvez venha a faltar lenha, pensou Bond. Num impulso, ele perguntou despreocupadamente à moça:
— Será que temos bastante gasolina?
— Temos, sim — disse Tiffany. — Botei uma lata inteira. Não tem mostrador, mas esses motorzinhos giram a vida inteira com um galão.
Mal ela havia acabado de falar, e como se fizesse um comentário, o motorzinho deu uma tossidela de reprovação — cóf-cóf-cóf — e continuou a rodar alegremente.
— Ai, meu Deus! — exclamou Tiffany. — Ouviu isso? Bond ficou calado. Sentiu as mãos tornarem-se úmidas. Outra vez: cóf-cóf-cóf.
Tiffany Case acalentou delicadamente o acelerador.
— Ah, motorzinho querido — disse ela em tom de súplica. —' Vamos, motorzinho lindo, seja bonzinho, por favor...
— Cóf-cóf. Cóf-cóf. Chi. Cóf. Chiiiii...
E no instante seguinte estavam eles escorregando brandamente em silêncio. Vinte e cinco, dizia o velocímetro. Vinte... quinze... dez... cinco.
Um último e selvagem repelão no acelerador, um pontapé de Tiffany Case na armação do motor, e tinham parado.
— Porra! — disse Bond. Com esforço conseguiu saltar e manquejar até o tanque na traseira do vagonete. Tirou do bolso da calça o lenço ensanguentado, desatarraxou a tampa do funil e introduziu o lenço até tocar o fundo do tanque. Puxou-o para fora, apalpou-o e cheirou-o. Seco como um osso.
— Nada feito — disse ele para Tiffany. — Vamos pensar numa saída.
Olhou em volta. Nenhum abrigo à esquerda, e duas milhas pelo menos até à estrada de rodagem. À direita, as montanhas, talvez a um quarto de milha. Podiam chegar lá e esconder-se. Mas por quanto tempo? Contudo, era o melhor alvitre. O chão, sob seus pés, tremia. Esquadrinhou a linha férrea iluminada pelo olho incandescente, implacável. A que distância? Duas milhas? Spang enxergaria o vagonete? Teria tempo de parar? Haveria descarrilamento? Mas aí Bond lembrou-se do poderoso limpa-trilhos, que varreria da linha o vagonete como se fosse um feixe de palha.
— Vamos, Tiffany — bradou ele. — Temos de escalar as colinas.
Onde estava ela? Bond rodeou o carro. Ela vinha correndo pelo trecho da estrada que tinham pela frente. Aproximou-se arquejante.
— Há um desvio logo ali adiante — disse ela entre um ofego e outro. — Se a gente puder empurrar essa coisa até lá e se você puder manobrar as velhas agulhas, pode ser que a gente escape.
— Deus do céu! — disse Bond lentamente. E depois, com uma nota de pasmo na voz, acrescentou: — Há uma coisa melhor do que essa. Me ajude aqui — e, curvando-se, rilhou os dentes contra a dor e começou a empurrar o vagonete.
Recebido o impulso inicial, o carro moveu-se facilmente e eles precisavam apenas segui-lo e não deixar que parasse. Chegaram às agulhas, mas Bond continuou a empurrar até que pararam umas vinte jardas além.
— Que diabo é que você vai fazer? — arquejou Tiffany.
— Vamos pra cá — respondeu Bond, correndo aos tropeções para o ponto em que a chave enferrujada ressaltava ao lado dos trilhos. — Vamos colocar o Cannonball no desvio.
— Genial! — disse Tiffany Case com admiração. Puseram mãos à obra, e os músculos doloridos de Bond forcejavam por erguer a chave.
Lentamente o metal enferrujado começou a mover-se no leito onde jazia imóvel havia cinquenta anos, e milímetro a milímetro os trilhos mostraram uma fenda, que foi se alargando à medida que Bond puxava a alavanca.
Ao terminar, Bond caiu de joelhos no chão, com a cabeça dobrada para baixo, lutando contra a tontura que ameaçava dominá-lo.
Mas já então um feixe de luz iluminava o chão e Tiffany procurava arrastá-lo. Bond ergueu-se e voltou aos trambolhões para o vagonete. O ar estrondava e se enchia do plangente clangor do sino enquanto o flamejante cavalo de ferro galopava em direção a eles.
— Abaixe-se e não se mexa — bradou Bond por cima do barulho e lançou-a ao chão por trás do frágil biombo do vagonete. Depois, coxeou o mais rápido que pôde até a margem dos trilhos, puxou a arma, colocando-se de viés com o braço levantado como um duelista e voltou os olhos semicerrados para o gigantesco farol que avançava debaixo do vulcão de fogo e fumaça turbilhonantes.
Puxa, que monstro! Entraria ele na curva? Ou não respeitaria o desvio e os esmagaria? Lá vinha ele.
— Fittt.
Algo açoitou o chão ao lado de Bond e houve um clarão momentâneo na cabina.
— P-o-e-m-m-m.
Houve outro clarão, e a bala atingiu o trilho, gemendo na noite.
— Trac. Trac. Trac.
Agora era-lhe possível ouvir o revólver acima do trovejar da locomotiva.
Algo cantou em tom agudo no ouvido de Bond.
Bond não respondeu. Só quatro balas, e ele sabia quando devia disparar.
E então, a vinte jardas, a locomotiva entrou na curva e desembestou pelo desvio com uma guinada tão violenta que atirou as achas de lenha do alto do tender na direção de Bond.
Houve um grito roufenho de metal quando as bordas das rodas motrizes de seis pés de altura dobraram a curva, uma breve impressão de fumaça, chama e ruído de motor, e, depois, uma rápida visão da cabina e do vulto negro e prateado de Spang, de braços abertos e pernas estendidas, agarrando-se com uma das mãos ao costado da cabina e com a outra precipitando-se para a alavanca do acelerador.
A arma de Bond bradou suas quatro palavras. Houve um curto vislumbre de uma cara branca arremessada para o alto, e logo a enorme locomotiva preta e amarela distanciou-se, reboando rumo à muralha sombria dos montes Spectre, o feixe de luz do farol ceifando a treva e o sino dobrando tristemente dim-dão, dim-dão, dim-dão.
Bond guardou lentamente a Beretta no cós das calças, e ficou olhando o ataúde de Mr. Spang, enquanto a esteira de fumaça subia no ar e por um momento encobria a face da lua.
Tiffany veio correndo até onde ele estava, e lado a lado puseram-se a contemplar a bandeira de chamas que se elevava da alta chaminé e escutar as montanhas multiplicarem o atroar da locomotiva. A moça agarrou-lhe os braços quando o comboio deu uma guinada repentina e sumiu-se atrás de um esporão da pedra. E agora ouvia-se apenas um longínquo tamborilar nas montanhas e avistava-se um clarão vermelho que fazia tremular os penhascos enquanto Cannonball despencava no bojo da rocha.
E subitamente apareceu uma imensa língua de fogo, no mesmo instante em que se produziu tremendo choque metálico semelhante ao encontrão de um encouraçado num penedo. Debaixo de seus pés ressoou um estrépito abafado. Finalmente, um ribombo distante e profundo levantou-se das entranhas da terra, seguido por uma barragem de ecos os mais variados.
Então, findos todos os ruídos, zuniu, firme, o silêncio.
Bond soltou um suspiro profundo como se estivesse despertando. Aí estava o fim de um dos Spangs, de um dos enfatuados, cruéis, aparatosos, irrecuperáveis adultos que compunham a quadrilha dos Spangs. Fora um gangster teatral e vivera num ambiente de caixa de palco. Mas isso não alterava o fato de que pretendera liquidar Bond.
— Vamos embora daqui — disse Tiffany Case com sofre-guidão. — Para mim chega de Spectreville.
Bond sentiu a dor insinuar-se-lhe outra vez por todo o corpo à medida que passava a tensão. "Vamos" — respondeu, lacônico. Alegrava-o a ideia de voltar as costas à lembrança daquele rosto branco virado para cima, dentro da bela locomotiva negra em marcha. Estava ligeiramente tonto e duvidava se seria capaz de fazer o percurso.
— Temos de alcançar a estrada. Vai ser difícil. Mas vamos embora.
Levaram uma hora e meia para vencer as duas milhas e, no momento em que se prostrou no solo à margem da estrada de cimento, Bond estava delirante. Foi a moça que o conduziu até lá. Sem ela, ele não teria chegado.
Teria tropeçado no meio dos cactos, das pedras e da mica até que lhe faltassem as forças e o sol causticante se encarregasse de completar o serviço.
Agora ela lhe segurava a cabeça no regaço, falava-lhe docemente e lhe enxugava o suor da testa com a ponta da blusa.
E de vez em quando parava para examinar uma banda e outra da estrada retilínea de concreto, cujos horizontes já tremeluziam nas ondas de calor do amanhecer.
Uma hora depois, ela ergueu-se de um salto, enfiou a blusa por dentro das calças, correu e parou no meio da estrada. Um carro baixo e negro rompia a neblina esvoaçante que ocultava o distante vale de Las Vegas.
O carro estacou justamente diante dela. Um rosto adunco sob um topete desalinhado de cabelo cor de palha assomou à janela. Os penetrantes olhos cinzentos miraram-na de alto a baixo. Pousaram-se na figura do homem deitado no solo à margem da estrada e tornaram para a moça.
Então, com a amistosa fala arrastada dos texanos, o chofer rompeu o silêncio:
— Félix Leiter, senhorita. Às suas ordens. Em que posso servi-la nesta magnífica manhã?
21 - "Nada é tão apropinquante como a propinquidade"
—...E QUANDO CHEGUEI à cidade telefonei pra meu amigo Ernie Cureo. James sabe quem é. A mulher dele estava de ataque e Ernie no hospital. Corro pra lá e ele me passa o serviço e eu imagino que James pode precisar de reforços. Monto na minha égua preta cor de carvão e vou esquipando noite adentro e quando chego perto de Spectreville vejo o clarão no céu. Calculo então que Mr. Spang está preparando um churrasco. O
portão da cerca está aberto e eu resolvo tomar parte na festa. Bom, creiam-me vocês ou não, o fato é que não há vivalma no local, exceto um cara de perna arrebentada e contusões generalizadas, que vem se arrastando pela estrada, tentando dar o pira. E ele me dá a impressão de ser um arruaceiro de nome Frasso, de Detroit. Ernie Cureo tinha dito que era um dos caras que tinham levado James. Ele não estava em condições de negar isso e eu então manjei a situação toda e compreendi que Rhyolite era minha próxima parada. Aí eu digo pro nosso amigo que daí a pouco os bombeiros virão fazer companhia a ele, levo-o até o portão e deixo-o lá. E de uma hora para outra vejo uma guria no meio do deserto, com o ar de quem tinha sido disparada de um canhão. E aqui estamos todos. Agora é a vez de vocês contarem.
"Então tudo isto não é parte de um sonho e eu estou deitado no assento traseiro no Studillac e este é o colo de Tiffany debaixo da minha cabeça e aquele ali é Félix e nós estamos indo às carreiras pela estrada a caminho da segurança, de um médico, de um banho, de comida, de bebida e de um longo sono reparador." Bond mexeu-se e sentiu que a mão de Tiffany em seu cabelo dizia que tudo era real e tal como havia esperado. Imobilizou-se novamente e nada disse. Guardava cada momento para si e lhes escutava as vozes e o zunido dos pneus rolando pela estrada.
Ao fim da narrativa de Tiffany, Félix Leiter largou um assobio de estupefação.
— Puxa! — exclamou ele. — Então vocês dois abriram um rombo espetacular na quadrilha de Spang. Que diabo é que vai acontecer agora? Há muitos outros marimbondos na casa e isso de ficar zumbindo em volta não é do feitio deles. Eles vão exigir ação.
— Certo! — disse Tiffany. — Spang era membro da associação de Las Vegas, e esses camaradas são muito solidários. Há também Shady Tree e aqueles dois pistoleiros, Wint e Kidd. Só o diabo sabe quem são eles. Quanto mais cedo a gente cruzar a fronteira estadual, melhor. E depois, o que vamos fazer?
— Até aqui vai tudo em ordem — disse Félix Leiter. — Em dez minutos chegaremos a Beatty, depois pegaremos a 58 e passaremos nela uma meia hora. Em seguida, toparemos um longo trecho através do Vale da Morte e sobre as montanhas até Olancha, onde atingiremos a N.° 6. Poderíamos dar uma paradinha lá, levar James a um médico, comer alguma coisa e tomar um banho. Depois continuaremos na 6 até chegarmos a Los Angeles. Será muito puxado, mas poderemos estar em Los Angeles na hora do almoço. Aí podemos descansar um pouco e bolar algum plano. Meu palpite é que temos de tirar você e James do país o mais cedo possível. Os meninos tentarão pegar vocês dois de qualquer jeito, e se conseguirem eu não darei um níquel pela vida de nenhum dos dois. A melhor solução seria botá-los num avião para Nova York hoje de noite e despachá-los amanhã para a Inglaterra.
James pode embarcar lá.
— Acho que é razoável — disse a moça. — Mas, afinal, quem é esse Bond? O que é que ele faz? É um detetive ou coisa semelhante?
— Acho melhor que você mesma pergunte a ele — Bond ouviu Leiter dizer cautelosamente. — Mas eu, se fosse você, não me preocuparia com isso. Ele cuidará de você.
Bond sorriu para si mesmo e, no longo silêncio que se seguiu, caiu num sono intranquilo que durou até o momento em que atravessaram a Califórnia e o carro parou defronte de um portãozinho com a placa "Otis Fairplay, Médico".
E depois, enfaixado e pintado com mercúrio-cromo, banhado e barbeado, com um suculento café matinal no estômago, Bond voltou ao carro e ao mundo. Tiffany readquirira o velho ar irônico e intratável e Bond revelava-se útil na espionagem dos patrulheiros rodoviários, enquanto Leiter avançava a oitenta milhas pela interminável estrada estonteante, rumo à longínqua linha de nuvens que escondiam as High Sierras.
Mais tarde rolavam tranquilamente ao longo de Sunset Boulevard, ladeado pelas palmeiras e pelos gramados verdejantes. O Studillac coberto de poeira destoava no meio das cintilantes Corvettes e Jaguars. Finalmente, ao anoitecer, estavam sentados no bar escuro e refrigerado do Beverly Hills Hotel. Havia novas maletas no saguão, roupas novas adquiridas em Hollywood, e até mesmo o rosto de Bond, marcado de cicatrizes da luta, poderiam indicar que tinham terminado o trabalho nos estúdios.
Havia um telefone em cima da mesa, ao lado dos martinis. Félix Leiter acabava de falar com Nova York pela quarta vez desde que haviam chegado.
— Bom, está tudo arranjado — disse ele, desligando o telefone. — Meus colegas do escritório conseguiram passagens no Elizabeth. Adiou a partida por causa de uma greve nas docas. Sai amanhã de noite, às oito. Eles.irão ao encontro de vocês de manhã em La Guardiã, com as passagens, e vocês serão levados para bordo de tarde. Pegaram o resto de suas coisas no Astor, James. Uma pasta e os teus célebres tacos de golfe. E Washington oferece um passaporte a Tiffany. Haverá um homem do Departamento de Estado no aeroporto. Vocês terão que assinar uns formulários. Consegui que um dos meus antigos colegas da CIA arranjasse a coisa. Os vespertinos fizeram uni bruto estardalhaço com a estória. "Cidade Morta Desaparece" e outras manchetes desse tipo. Mas parece que ainda não descobriram nosso amigo Spang e os nomes de vocês não figuram no noticiário. Meu pessoal diz que não há nada com vocês na polícia, mas um de nossos informantes secretos diz que as quadrilhas estão à procura de vocês e espalharam por toda parte uma descrição de ambos. Com a promessa de dez mil. Assim, é melhor mesmo dar no pé o mais cedo possível. É aconselhável irem para bordo separadamente. Tomem o maior cuidado, vão para os camarotes e não saiam de lá. Vai haver o diabo quando eles chegarem ao fundo daquela velha mina.
Isso fará pelo menos três cadáveres a zero, e esse tipo de escore não é do agrado deles.
— Pinkerton é uma verdadeira máquina — disse Bond, com admiração.
— Mas ficarei satisfeito quando estivermos longe daqui. Eu pensava que os seus gangsters eram um bando de italianos untuosos, que se empanturravam de pizza e cerveja a semana toda e no sábado assaltavam uma garagem ou uma farmácia para arranjarem dinheiro para as corridas. Mas não há dúvida que eles incluem um bocado de violência na folha de pagamentos.
Tiffany Case riu zombeteiramente.
— Você precisa mandar examinar essa cabeça — disse ela, categórica.
— Se sairmos inteirinhos do Lizzie será um verdadeiro milagre. Por aí você pode ter uma ideia de como eles são. Se não fosse aqui o nosso Capitão Gancho-de-Aço, não sei o que seria de nós. Untuosos! Pois sim!
Félix Leiter soltou uma risadinha.
— Calma, pombinhos — disse ele, consultando o relógio. — Temos de partir. Preciso voltar a Las Vegas hoje de noite e começar a procurar o esqueleto do nosso Shy Smile. E vocês têm de pegar o avião. Poderão continuar a arenga a vinte mil pés de altura. De lá a perspectiva é mais interessante. É possível até que terminem como amigos. Lembrem-se do que se diz por aí. — Fez um aceno para o garçom. — Nada é tão apropinquante como a propinquidade.
Leiter levou-os ao aeroporto e deixou-os lá. Bond sentiu um nó na garganta quando o vulto magro saiu coxeando para o carro depois de ter sido efusivamente abraçado por Tiffany Case.
— Você pode dizer que tem um amigo de verdade — disse a moça ao ver Leiter bater a porta e ouvir o estrondo do escape enquanto o carro partia de volta ao deserto.
— Sim — disse Bond. — Félix é cem por cento.
O luar arrancou cintilações do gancho de aço quando Leiter acenou um último adeus. Depois, a poeira assentou na estrada e soou a voz de ferro do alto-falante: "Trans-World Airline, Voo 93. Embarque no Portão N.° 5 para Chicago e Nova York. Todos a bordo, por favor." Eles abriram caminho através das portas de vidro e deram os primeiros passos de sua longa viagem para Londres.
O novo Super-G Constellation roncou por cima do continente envolto em sombras, e Bond, deitado em seu confortável beliche, esperando que o sono lhe tomasse conta do corpo dolorido, pensava em Tiffany, que dormia no beliche de baixo, e no estágio em que se encontrava sua missão.
Pensou no lindo rosto adormecido sobre a mão aberta, inocente e indefeso, esvaecidos o desdém dos olhos cinzentos e rasos e a curva irônica dos cantos da boca ardente. Bond sabia que estava bem perto de apaixonar-se. Mas, e ela? Até onde ia aquela rebelião masculina gerada certa noite em São Francisco, quando os homens lhe invadiram o quarto e a ofenderam?
Chegariam a adolescente e a mulher a transpor a barricada que haviam começado a construir naquela noite contra todos os homens do mundo?
Romperia ela a concha que os anos de solidão e retraimento tornavam cada vez mais rija?
Bond recordou aqueles momentos das últimas vinte e quatro horas em que conhecera a resposta, momentos em que uma jovem arrebatada e terna surgira feliz, sem a máscara agressiva que usava entre os gangsters, no contrabando, no cassino, na mesa de vinte-e-um, e lhe dissera: — Toma-me pela mão. Abre a porta e caminharemos de mãos dadas no dia claro. Não te preocupes. Acertarei meu passo pelo teu. Sempre estive a teu lado em pensamento, mas tu não vieste e passei a vida escutando outra cadência.
Sim, pensou ele. Tudo correrá bem, por esse lado. Mas estava preparado para as consequências? Uma vez que a tomasse pela mão, seria para sempre.
Estaria no papel do médico, do psicanalista, a quem a paciente transfere seu amor e sua confiança, enquanto se liberta da doença. Não poderia haver maior crueldade do que soltar-lhe a mão depois de a ter tomado nas suas.
Estava preparado para as repercussões que esse ato teria em sua vida e em sua profissão?
Bond mexeu-se no beliche e descartou-se do problema. Era muito cedo ainda para enfrentá-lo. Estava indo muito depressa. Mais devagar. Cada coisa a seu tempo. E obstinadamente arquivou a questão, dirigindo os pensamentos para M e para a missão que lhe cumpria concluir antes de perder tempo com sua vida particular.
Bem, uma parte da serpente estava esmagada. A cabeça ou o rabo?
Difícil dizer, mas Bond tendia a julgar que Jack Spang e o misterioso ABC
eram os verdadeiros manipuladores do contrabando de diamantes e que Seraffimo se incumbia da receptação. Seraffimo podia ser substituído.
Tiffany podia ser dispensada. Shady Tree, a quem ela poderia implicar no contrabando, teria de ficar oculto até que a tormenta — se é que Bond era realmente um prenuncio de tempestade — se desencadeasse. Mas nada havia que pudesse implicar Jack Spang ou a House of Diamonds, e a única pista para ABC era o telefone londrino, cujo número Bond trataria de obter da moça o mais cedo possível. Mas este, e todo mecanismo dos contados a ele relacionados, seria alterado logo depois que todos os fatos da deserção de Tiffany e da fuga de Bond fossem comunicados a Londres, presumivelmente por Shady Tree. Assim, tudo isto, refletiu Bond, colocava Jack Spang e, através dele, ABC como seu próximo alvo. O que tinha a fazer de imediato, concluiu Bond antes de se abandonar ao sono, era relatar toda a situação a M
assim que embarcasse no Queen Elizabeth. Daí por diante Londres tomaria conta do caso. Os homens de Vallance sairiam a campo. Bond não teria muito que fazer quando regressasse. Relatórios e mais relatórios a escrever.
A mesma velha rotina no escritório. E de noite haveria Tiffany no quarto atualmente desocupado de seu apartamento, numa transversal de Kings Road. Precisava mandar um telegrama para May a fim de que ela arrumasse as coisas. Vejamos... flores, sais de banho de Floris, lençóis limpos...
Dez horas depois de terem deixado Los Angeles, sobrevoaram La Guardiã e viraram para o mar a fim de preparar o pouso.
Eram oito horas da manhã de domingo e havia pouca gente no aeroporto, mas um funcionário interrompeu-lhes a caminhada quando seguiam pela pista alcatroada e os conduziu para uma entrada lateral, onde os esperavam um homem de Pinkerton e um representante do Departamento de Estado.
Enquanto conversavam, a bagagem foi-lhes trazida. Depois, levaram-nos para fora da estação de passageiros, onde os aguardava um elegante Pontiac marrom, com o motor em movimento e as persianas do vidro traseiro abaixadas.
Passaram ainda algumas horas de ócio no apartamento do homem de Pinkerton até que, por volta das quatro da tarde, mas com um quarto de hora de diferença entre eles, galgaram a prancha de embarque, penetraram no negro, majestoso e seguro ventre britânico do Queen Elizabeth e, por fim, encerraram-se em seus camarotes no convés M, com as portas trancadas para o mundo.
Mas, quando, em primeiro lugar, Tiffany Case e, depois, Bond puseram os pés na prancha de embarque, um doqueiro do Sindicato de Estivadores de Anastásia correu para a cabina telefônica do galpão da alfândega.
E três horas mais tarde dois homens de negócios americanos saltavam de um sedan negro à porta de um armazém das docas, passavam às pressas pelo serviço de imigração e pela alfândega e galgavam a prancha de embarque, quando os alto-falantes começavam a pedir aos visitantes que desembarcassem.
Um dos homens de negócios era ainda jovem, de feições delicadas e fios de cabelos embranquecidos aparecendo sob o Stetson recoberto por uma capa impermeável. O nome impresso na pasta que carregava era B.
Kitteridge. O outro era um gorducho grandalhão, com um brilho nervoso nos olhos miúdos por trás das lentes bifocais. Suava em bicas e constantemente enxugava o rosto com um lenço enorme. O nome no cartão pendurado na alça da pasta era W. Winter. Em baixo do nome, lia-se em tinta vermelha: MEU GRUPO SANGuÍNEO É F.
22 - Amor e molho bearnês
Às OITO HORAS em ponto, o prolongado e ressoante apito da sirena do Queen Elizabeth fez tremer a vidraça dos arranha-céus. Com grande rebuliço, os rebocadores arrastaram-no para o meio do rio, abrindo-lhe o caminho. Por fim, desenvolvendo cautelosamente cinco nós, o transatlântico pôs-se a descer o rio, cortando as águas remansosas.
Após a parada para desembarcar o prático no Farol de Ambrose, as quádruplas hélices fustigariam o mar, convertendo-o em creme de leite, e o Queen Elizabeth, com um estremecimento de alívio, começaria a fender o longo arco achatado, entre os paralelos 45 e 50, a caminho de Southampton.
Sentado no camarote, escutando o ranger do madeiramento e contemplando o lápis rolar suavemente em cima da penteadeira, entre a escova de cabelo e a borda de seu passaporte, Bond recordava os dias em que outra era a rota da embarcação, os dias em que ela ziguezagueava no Atlântico Sul, brincando de esconde-esconde com os ferozes cardumes de submarinos alemães, a caminho da Europa em chamas. Ainda era uma aventura, mas agora o Queen Elizabeth — protegido num casulo de radar, rádio e sondador de ecos — movia-se com as precauções de um potentado oriental entre escoltas e batedores e, no que dizia respeito a Bond, tédio e indigestão eram os únicos riscos da viagem.
Pegou o telefone e pediu para falar com Miss Case. Quando ela lhe ouviu a voz, rompeu num gemido teatral.
— A loba do mar odeia o mar — disse ela. — Ainda não saímos do rio e eu já estou enjoada.
— Não faz mal — disse Bond. — Não saia do camarote e tome dramamina e champanha. Vou passar uns dois ou três dias em repouso. Vou mandar chamar o médico e o massagista dos banhos turcos pra ver se junto de novo as peças. E de qualquer modo não faz mal nenhum que a gente passe a maior parte da viagem no camarote. É possível que nos tenham localizado em Nova York.
— Bom, se você promete telefonar todos os dias — disse Tiffany — e promete me levar àquela Veranda Grill logo que eu puder engolir um pouco de caviar, eu concordo. Está bem assim?
Bond soltou uma gargalhada.
— Já que você insiste, eu prometo — disse ele. — E agora, escute. Em troca, eu quero que você tente lembrar-se de tudo o que puder a respeito de ABC e do lado londrino de nosso negócio. Aquele número de telefone e o mais que você julgar importante. Logo que puder, eu lhe direi por que estou interessado nisso. Por enquanto você tem de confiar em mim. Combinado?
— Combinado — disse a moça com indiferença, como se toda essa fase de sua vida tivesse perdido o interesse; e, durante dez minutos, Bond inquiriu-a minuciosa, mas (exceto no que tocava a pormenores insignificantes) inutilmente, acerca das atividades de ABC.
Depois desligou o telefone, chamou o camareiro, encomendou o jantar e sentou-se para escrever o longo relatório que teria de transpor em código e despachar naquela mesma noite.
O rebocador conduziu tranquilamente o navio para a treva, e a cidadezinha de três mil e quinhentos habitantes preparou-se para viver os cinco dias da viagem, durante os quais poderiam registrar-se todas as ocorrências naturais em qualquer outra comunidade desse porte — furtos, brigas, seduções, bebedeiras, embustes, talvez um ou dois partos, a possibilidade de um suicídio e, em cem travessias, até mesmo um homicídio.
Quando o burgo de ferro começou a sulcar serenamente a imensidão do Atlântico e a brisa suave da noite zuniu e gemeu no topo do mastro, as antenas de rádio já estavam transmitindo a mensagem do operador de serviço ao ouvido atento de Portishead.
E o que o operador enviava, precisamente às dez horas da noite, E. S. T., era um telegrama endereçado a ABC, CUIDADOS HOUSE OF DIAMONDS, HATTON GARDEN, LONDRES, e
que dizia:
LOCALIZADOS PT CASO ASSUNTO EXIJA SOLUÇÃO DRÁSTICA ESSENCIAL VOCÊ FIXAR PREÇO PAGO EM DÓLARES. Assinado: WINTER.
Uma hora depois, enquanto o operador do Queen Elizabeth lamentava ter de transmitir quinhentos grupos de cinco letras dirigidos ao DIRETOR PRESIDENTE, EXPORTADORA UNIVERSAL, REGENTS PARK, LONDRES, o rádio de Portishead enviava uma breve mensagem a WINTER, PASSAGEIRO PRIMEIRA CLASSE QUEEN ELIZABETH, que dizia:
DESEJO SOLUÇÃO IMEDIATA PROBLEMA CASE PT PAGAREI VINTE MIL PT
CUIDAREI PESSOALMENTE OUTRO ASSUNTO CHEGADA LONDRES CONFIRME ABC.
O operador procurou Winter na lista de passageiros, meteu a mensagem num envelope e enviou-a a um camarote no convés A, abaixo do de Bond e da moça, onde os dois homens jogavam cartas em mangas de camisa.
Quando o mensageiro saiu do camarote, ouviu o gorducho dizer para o homem dos cabelos brancos: — Pois é, Kidd. Vinte mil. É pra valer!
Não foi senão no terceiro dia que Bond e Tiffany resolveram encontrar-se no Observation Lounge, para um coquetel, e mais tarde no Veranda Grill, para jantar. Ao meio-dia, a calmaria era total, e depois do almoço no camarote Bond recebera um ultimato em redondo cursivo feminino numa folha de bloco do navio: "Marque um encontro comigo hoje. Não falhe".
Imediatamente Bond pegara o telefone.
Estavam sedentos da companhia um do outro depois dos três dias de separação, mas as defesas de Tiffany estavam de pé quando ela se reuniu a ele na escura mesa de canto que Bond havia escolhido na cintilante sala semicircular, situada na proa.
— Que espécie de mesa é esta? — perguntou ela com sarcasmo. — Está com vergonha de mim? Então eu ponho o mais belo modelo dos costureiros de Hollywood e você me esconde como se eu fosse Miss Reno 1914? Quero me divertir nessa geringonça e você me bota num canto como se eu fosse contagiosa.
— É isso mesmo — disse Bond. — O que você quer é elevar a temperatura de outros homens.
— Que é que você espera que uma moça faça no Queen Elizabeth?
Pescar?
Bond riu. Acenou para o garçom e pediu vodca-martini seco com casca de limão.
— Eu podia te oferecer uma alternativa.
— Já sei — disse a moça. — Meu querido diário: estou na maravilhosa companhia de um inglês bonitão. O que me aflige é saber que ele anda atrás das jóias da minha família. Que devo fazer? Sua criada, desorientada. — Num movimento súbito, ela inclinou o busto para a frente e pousou a mão na do homem. — Escute aqui, mestre Bond — disse ela. — Estou felicíssima.
Adoro isso aqui. Adoro estar com você. E adoro esta mesinha escura onde ninguém pode me ver segurando sua mão. Não ligue pra minha conversa. É que eu não posso me conter de tão feliz. Não faça caso das minhas brincadeiras.
Ela vestia uma blusa de xantungue de seda creme e uma saia de algodão e lã preto-carvão. As cores neutras ressaltavam-lhe a tez café-au-lait. O minúsculo relógio Cartier quadrado, com a pulseira preta, era sua única jóia, e as unhas curtas da mão pequena e morena que Bond tinha entre as suas estavam sem esmalte. A luz do sol, refletida do exterior, refulgia no ouro pálido das largas ondas do cabelo, nas profundezas dos cinzentos olhos opalescentes e nos alvos dentes que cintilavam entre os lábios sensuais.
— Não — disse Bond. — Não farei caso, Tiffany. Tudo em você é esplêndido.
Ela o encarou nos olhos e ficou satisfeita. O garçom trouxe-lhes a bebida. Ela retirou a mão e observou-o ironicamente por cima da borda de seu copo.
— Agora eu quero saber umas coisinhas — disse ela. — Em primeiro lugar, o que é que você faz e para quem trabalha? A princípio, no hotel, pensei que você era um vigarista. Mas, não sei por quê, quando você foi embora, vi que não era. Acho que devia ter avisado ABC, e com isso teria evitado essa onda toda. Não avisei, e pronto! Vamos, James. Responda.
— Trabalho para o governo — disse Bond —, que quer acabar com esse contrabando de diamantes.
— Espécie de agente secreto?
— Funcionário público, apenas.
— Está bem. E o que é que você vai fazer comigo quando chegarmos a Londres? Trancafiar-me?
— Sim. No quarto desocupado de meu apartamento.
— Assim é melhor. Terei de me tornar súdita da Rainha como você?
Gostaria de ser súdita.
— Acho que podemos arranjar isso pra você.
— É casado? — Fez uma pausa. — Ou tem alguma ligação?
— Não. Um caso ou outro de vez em quando.
— Quer dizer então que você é um desses sujeitos fora de moda que gostam de dormir com mulher? Por que não se casou?
— Creio que porque eu acho que posso manobrar melhor a minha vida sozinho. A maioria dos casamentos não soma duas pessoas. Subtrai uma da outra.
Tiffany Case refletiu um pouco.
— Talvez você tenha razão — disse ela, afinal. — Mas depende do que se soma. Pode ser algo humano ou inumano. Ninguém é auto-suficiente.
— E você?
A moça não gostou da pergunta.
— Talvez eu esteja do lado do inumano — respondeu com rispidez. — E com que diabo de homem você queria que eu me casasse? Com Shady Tree?
— Pode ter havido muitos outros.
— Não houve — disse ela com raiva. — Você é capaz de achar que eu não devia ter me misturado com esses calhordas. Bem, talvez eu tenha dado o passo que não devia dar. — A chama de cólera se apagou e a moça assumiu a defensiva. — Isso acontece com certas pessoas, James. Acontece mesmo. E às vezes não é culpa delas.
James Bond estirou o braço e apertou a mão da moça.
— Eu sei, Tiffany — disse ele. — Félix me contou. É por isso que não perguntei nada. Não pense mais nisso, não. O que importa é o dia de hoje, aqui, agora. Não o dia de ontem. — Desviou o assunto. — Agora é a sua vez de me fornecer alguns fatos. Por exemplo, de onde é que vem esse nome Tiffany e que tal ser banqueira no Tiara? Como é que você chegou a cartear tão bem? Simplesmente espetacular a maneira como você tratava aquele baralho. Se pode fazer aquilo, pode fazer qualquer outra coisa.
— Não diga — replicou a moça com ironia. — Fazer o quê, por exemplo? Brincar de sapateira? E quanto ao nome Tiffany a explicação é simples. Quando eu nasci, papai Case ficou tão zangado por eu não ser menino que deu à minha mãe mil dólares e uma lata de talco comprada em Tiffany e foi embora de casa. Foi ser fuzileiro naval. Terminou morrendo em Iwo Jima. Então minha mãe me botou o nome de Tiffany Case e tratou de ganhar a vida pra nós duas. Começou com uma espelunca e umas garotas e com o tempo foi ficando mais ambiciosa. Talvez essa história não seja muito do seu agrado.
Ela lhe lançou um olhar meio defensivo, meio suplicante.
— Não me preocupa — disse Bond secamente. — Você não era uma das pequenas.
Ela deu de ombros.
— Um dia o lugar foi invadido pelos gangsters. — Interrompeu-se para beber o resto do martini. — E eu dei no pé, por minha conta. Passei pelos empregos comuns a todas as moças. Depois fui para Reno. Lá eles mantêm uma escola de jogo e eu dei duro. Curso completo. Dados, roleta e vinte-e-um. Pode-se ganhar bom dinheiro nos cassinos. Duzentos por semana. Os homens gostam quando as moças bancam o jogo e as mulheres se sentem mais confiantes. Acreditam que a gente vai se mostrar bondosa com elas.
Pensam estar entre irmãs. Quando são homens que bancam o jogo, elas se apavoram. Mas não pense que essa estória toda é assim tão engraçada.
Contada, é uma coisa; vivida, é outra. — Fez uma pausa e sorriu. — Tenha a palavra, agora. É a sua vez. Pague mais um trago e me diga que tipo de mulher você acha que soma com você.
Bond chamou o garçom. Acendeu um cigarro e voltou-se para Tiffany.
— Alguém que saiba fazer molho bearnês e amor — disse ele.
— Já sei! Qualquer bruxa velha que saiba cozinhar e deitar-se de costas.
— Ah, não. Ela precisa ter todas essas coisas que as mulheres geralmente têm. — Bond examinou-a. — Cabelo cor de ouro. Olhos cinzentos. Boca pecadora. Silhueta perfeita. E naturalmente tem de contar piadas engraçadas, vestir-se bem e jogar cartas. As prendas naturais.
— E você casaria com uma mulher assim, se a encontrasse?
— Não necessariamente — disse Bond. — Pra falar com franqueza, já sou quase casado. Com um homem cujo nome começa com M. Teria de me divorciar dele antes de casar com uma mulher. E não sei se isso me agradaria. Ela me obrigaria a passar canapés de mão em mão numa sala de visita em forma de L. E haveria aquelas chatérrimas discussões "Foi você — Não, foi você" que parecem combinar tão bem com todos os casamentos.
Não daria certo. No primeiro acesso de claustro-fobia, iria embora pro Japão ou pra qualquer outra parte.
— E filhos?
— Gostaria de ter alguns — disse Bond. — Mas só quando me aposentasse. De outra forma, não seria justo. Meu trabalho não é lá muito seguro. — Olhou para o copo e bebeu todo o martini. — E você, Tiffany? — perguntou, a fim de mudar de assunto.
— Acho que toda moça gostaria de chegar em casa e encontrar um chapéu na mesinha do corredor — disse Tiffany, melancólica. — O diabo é que eu nunca encontrei nada que prestasse debaixo do chapéu. Talvez não tenha procurado bastante ou não tenha procurado nos lugares certos. Você sabe como é: quando a gente entra na rotina não quer mais sair. Assim fiz eu no meio dos Spangs. Sabia sempre de onde era que vinha a comida. Fiz algumas economias. Mas uma moça não pode ter amigos naquele ambiente.
Ou bota uma placa "Proibida a Entrada" ou de uma hora pra outra se vê cercada de malandros. Mas acho que já estou farta de viver só. Conhece o refrão das coristas da Broadway? "É triste a trouxa de roupa que não tem uma camisa de homem".
Bond riu.
— Mas agora você está fora da rotina — disse ele e olhou-a zombeteiramente. — E Mr. Seraffimo? E aqueles dois quartos de dormir no Pullman, a ceia para dois com champanha...?
Antes que concluísse, ela levantou-se da mesa, os olhos vermelhos, e caminhou para fora do bar.
Bond se amaldiçoou. Colocou algum dinheiro sobre a conta e saiu correndo atrás dela. Foi encontrá-la quase no meio do tombadilho de passeio.
— Por favor, Tiffany, escute — começou ele.
Ela voltou-se e encarou-o.
— Como se pode ser tão mesquinho? — disse ela, e lágrimas iradas brilharam-lhe nos cílios. — Por que você tem de estragar tudo com uma observação ferina como aquela? Oh, James! — Em desespero virou-se para as janelas, procurando um lencinho na bolsa. Enxugou os olhos. — Você simplesmente não compreende.
Bond cingiu-a com um braço e puxou-a para si.
— Meu amor! — Sabia que nada senão o grande passo do amor físico curaria esses mal-entendidos, mas que era necessário ;ainda desperdiçar tempo e palavras. — Não tive a intenção de magoar você. Eu queria somente ter certeza. Aquela mesa posta para a ceia no trem me feriu muito mais do que o que aconteceu depois. Tinha de lhe fazer aquela pergunta.
Ela ergueu a vista, ainda em dúvida.
— Está falando sério? — perguntou, observando-lhe o rosto. — Quer dizer que você já me queria bem?
— Não seja boba — disse Bond, impaciente. — Então você não sabe nada de nada?
Ela afastou-se e contemplou pela janela o infindável mar azul e as gaivotas que acompanhavam esse navio extraordinariamente pródigo.
Depois de algum tempo, perguntou:
— Você já leu Alice no País das Maravilhas?
— Há muitos anos — disse Bond, surpreso. — Por quê?
— Há lá umas linhas que muitas vezes me vêm à memória — disse ela.
— "Oh Ratinho, conheces o caminho que conduz para fora deste poço de lágrimas? Estou muito cansada de nadar dentro dele, oh Ratinho". Lembra-se dessa passagem? Pois bem, eu pensava que você ia me mostrar a saída e, em vez disso, você me empurra pra dentro do poço. Por isso é que fiquei transtornada. — Ergueu a vista. — Mas acredito que você não teve intenção de me magoar.
Bond olhou-lhe a boca demoradamente e depois beijou-a nos lábios.
Ela não retribuiu e esquivou-se. Seus olhos sorriam de novo. Deu o braço a ele e voltou-se para as portas abertas que conduziam ao elevador.
— Me leve lá pra baixo — disse ela. — Preciso recompor a fachada e, além disso, quero me preparar com cuidado para agradar ao candidato. — Ficou um instante em silêncio e depois colou a boca no ouvido dele. — Talvez isso lhe interesse, James Bond — disse baixinho. — Nunca em minha vida fiz o que você chama "dormir com um homem". — Puxou-o pelo braço. — Agora vamos — disse bruscamente. — Afinal, já é hora de tomar um "quente doméstico". Suponho que isso faz parte da língua dos súditos que você está querendo que eu aprenda. Vocês, súditos, escrevem as coisas mais loucas nos banheiros.
Bond levou-a até o camarote dela, voltou para o seu e tomou um "quente salgado" na banheira, seguido de um "frio doméstico" no chuveiro. Depois, estirou-se na cama, recordando com um sorriso algumas das coisas que ela havia dito, e pensou nela, deitada na banheira, intrigada com a floresta de torneiras e imaginando que os ingleses eram loucos varridos.
Soou uma pancada na porta e o camareiro entrou com uma bandejinha que colocou em cima da mesa.
— Que diabo é isso? — perguntou Bond.
— Foi enviado pelo cozinheiro-chefe, senhor — respondeu o camareiro, retirando-se em seguida e fechando a porta do camarote.
Bond desceu da cama e foi examinar o conteúdo da bandeja. Não pôde deixar de rir. Havia uma garrafinha de Bollinger, um rescaldeiro com quatro talhadas de bife em canapés de torrada, e uma tijelinha de molho. Debaixo desta, uma nota escrita a lápis dizia: "Este molho bearnês foi criado por Miss T. Case sem minha assistência". Assinado: "O Chefe".
Bond encheu uma taça de champanha, espalhou um pouco de molho numa talhada de bife e mastigou atentamente. Depois foi ao telefone.
— Tiffany?
Ouviu o risinho abafado e divertido no outro extremo do fio.
— Bem, não há dúvida de que você faz um maravilhoso molho bearnês...
Repôs o telefone no gancho.
23 - O trabalho fica em segundo plano
MOMENTO INEBRIANTE NUM CASO amoroso é aquele em que, pela primeira vez, em público, num restaurante ou num teatro, o homem pousa a mão na coxa da mulher e ela, tomando-a nas suas, aperta-a contra si.
Os dois movimentos dizem tudo o que pode ser dito. Concluem todos os acordos. Firmam-se todos os pactos. E há um longo minuto de silêncio durante o qual o sangue canta nas veias.
Eram onze horas e havia poucas pessoas espalhadas nos cantos da Veranda Grill. O mar arfava baixinho sob o luar lá fora e o magnífico paquete arava a negra pradaria do Atlântico. À popa, apenas um levíssimo galope mostrava uma suave ondulação, as doze lentas pulsações por minuto de um oceano adormecido, aos dois seres aconchegados atrás do quebra-luz cor-de-rosa.
O garçom trouxe-lhes a conta, e suas mãos se separaram. Mas agora dispunham de todo o tempo do mundo e não precisavam afirmar seus sentimentos com palavras e contactos. Quando o garçom retirou os pratos, a moça fitou Bond com um sorriso de felicidade os dois encaminharam-se para a porta.
Entraram no elevador para o Tombadilho de Passeio.
— Que faremos agora, James? — perguntou Tiffany. — Gostaria de tomar mais uma café e um Stinger preparado com creme de menthe branco, enquanto estivéssemos escutando o leilão. Já ouvi falar tanto dele e bem que poderíamos ganhar uma fortuna.
— Está bem — disse Bond. — O que você desejar. — Tomou-a pelo braço e atravessaram vagarosamente a grande sala de estar, onde o víspora ia em meio, e o salão de baile, onde os músicos afinavam os instrumentos. — Mas não me obrigue a comprar nenhum número. É um jogo como os outros, e cinco por cento destinam-se à beneficência. Quase a mesma coisa que em Las Vegas. Mas é divertido quando há um bom leiloeiro. E dizem também que há muito dinheiro a bordo.
O salão de fumar estava quase deserto. Escolheram uma mesinha longe da plataforma onde o Comissário arrumava os apetrechos do leiloeiro, a caixa com os papeluchos numerados, o martelo, a garrafa de água.
— A casa está fraca — disse Tiffany ao sentarem-se no meio da floresta de cadeiras e mesas vazias. Mas, quando Bond fez o pedido ao garçom, as portas do cinema se abriram e cerca de cem pessoas ocuparam o salão de fumar.
O leiloeiro, um comerciante dos Midlands, pançudo e jovial, com um cravo vermelho na lapela do dinner jacket, bateu na mesa pedindo silêncio e anunciou que a previsão do Capitão para o percurso do dia seguinte era de 720 a 739 milhas, que qualquer distância abaixo de 720 era o Campo Inferior e acima de 739 era o Campo Superior.
— E agora, minhas senhoras e meus senhores, vejamos se é possível quebrar o recorde estabelecido nesta viagem, que atinge a cifra impressionante de 2.400 libras esterlinas. (Aplausos). ; Um camareiro ofereceu a caixa com os números dobrados à mulher de ar mais aristocrático do salão e depois entregou ao leiloeiro o papelzinho que ela havia sorteado.
— Bem, senhoras e senhores, temos aqui, para começar, um número excepcionalmente bom. 738. Exatamente no limite máximo, e desde que vejo aqui, esta noite, tantas caras novas (risos), creio que todos concordaremos em que o mar está singularmente calmo. Senhoras e senhores. Quanto me dão por 738? Digamos... 50 libras? Quem me dará 50
libras por este número de sorte? 20, foi o que o senhor falou, cavalheiro?
Bem, temos de partir de alguma oferta. Quem dá... 25? Muito obrigado, minha senhora. E 30. 40 lá adiante, sr. camareiro. E 45 do meu amigo, Mr.
Rothblatt. Muito obrigado, Charlie. Quem dá mais pelo n.° 738? 50. Muito grato, minha senhora. E agora, sim, voltamos ao ponto de partida (risos). 50.
Quem dá 55? Então ficamos em 50. Dou-lhe uma... Dou-lhe duas... — e o martelo erguido bateu na mesa.
— Ainda bem que temos um bom leiloeiro — disse Bond.
— O número era bom. E barato, se o tempo continuar como está e ninguém se jogar no mar. O Campo Superior custará uma bolada esta noite.
Todo mundo espera que o navio faça mais de 739 milhas nesse tempo.
— Essa bolada quer dizer quanto? — perguntou Tiffany.
— Duzentas libras. Talvez mais. Acho que os números normais serão leiloados por umas cem libras. O primeiro número é sempre mais barato do que os outros. O pessoal ainda está frio. A única esperteza que se pode demonstrar neste jogo é arrematar o primeiro número sorteado. Qualquer número pode ganhar, mas o primeiro custa menos.
Quando Bond acabou de falar, o segundo número era entregue por 90
libras a uma jovenzinha bonita e excitada, que era abertamente financiada por seu companheiro, um indivíduo grisalho e bem conservado que parecia a caricatura de um Don Juan do Esquive.
— Vamos, James. Arremate um número pra mim — disse Tiffany. — Você não sabe mesmo agradar a uma moça. Veja como aquele cavalheiro é gentil com sua pequena.
— Ele já passou da idade-limite — disse Bond. — Deve estar na casa dos sessenta. Até os quarenta, as pequenas não custam nada. Daí por diante, é preciso gastar dinheiro ou contar uma estória. Das duas coisas, a estória é que dói mais. — Sorriu, fitando-a nos olhos. — Mas eu ainda não cheguei aos quarenta.
— Deixe de presunção — disse a moça, olhando-o na boca. — Dizem que os homens maduros são os melhores amantes. Também, por outro lado, sei que você não é unha-de-fome. Aposto que não quer me presentear um número porque o jogo é ilegal nos navios de Sua Majestade.
— Até que é permitido além do limite de três milhas da costa — disse Bond. — Mesmo assim, a Cunard toma todas as precauções para não envolver o nome da companhia. Escute isto — e apanhou um cartão alaranjado que estava em cima da mesa. — "Leilão de Apostas nas Distâncias Diárias percorridas pelo Navio" — leu para a moça. — "Para os fins de direito, é de toda a conveniência reiterar a posição da Companhia em relação ao supradito Leilão. Não é desejo da Companhia que o encarregado do salão de fumar ou quaisquer outros membros da tripulação desempenhem papel ativo na organização das apostas nas milhas diárias percorridas pelo navio". — Bond levantou a vista. — Está vendo? — perguntou. — Seguro morreu de velho. E tem mais: "A Companhia sugere que os passageiros elejam entre si uma Comissão encarregada de formular e controlar as normas... O encarregado do salão de fumar poderá, se instado e se seus deveres o permitirem, prestar a assistência de que a Comissão venha a necessitar para o leiloamento dos números". Como são cautelosos — comentou Bond. — É a comissão que tem de quebrar os galhos que forem aparecendo. Escute mais isto aqui. É onde entra o problema. — Continuou a leitura: — "A Companhia chama especialmente a atenção de todos para os dispositivos das normas financeiras do Reino Unido, no tocante à negociabilidade dos cheques em esterlinos e à limitação da entrada de cambiais bancárias em esterlinos no Reino Unido".
Bond atirou o cartão em cima da mesa..— E por aí vai — disse ele e sorriu para Tiffany Case. — Assim, eu arremato o número que está sendo leiloado e você ganha duas mil libras. Um montão de cédulas e cheques em dólares e libras. O único meio de gastar essa dinheirama, supondo que os cheques tenham fundos, o que é duvidoso, seria contrabandeá-la debaixo dos suspensórios. E lá estaríamos nós outra vez passando muamba. Só que eu estaria do lado do diabo.
A moça não se impressionou.
— Havia um sujeito na quadrilha chamado Abadaba — disse ela. — Era um malandro fino que tinha resposta para tudo. Calculava as vantagens nas corridas, marcava as percentagens no cassino, enfim, era o crânio do grupo.
Era considerado "O Feiticeiro das Apostas". Teve o azar de ser liquidado por engano ao lado de Dutch Schultz — ajuntou ela à guisa de parêntese. — Você está me saindo outro Abadaba com essa lengalenga que não tem outra finalidade senão evitar de gastar dinheiro com uma pequena. Já vi tudo. — Encolheu os ombros, resignada. — Está bem. Mas pelo menos financie outro Stinger pra sua garota.
Bond chamou o garçom. E quando este se afastou, ela aproximou a cabeça do ouvido dele e disse baixinho. — Eu não quero mais, não. Beba você. Quero estar inteiramente sóbria esta noite. — Empertigou-se. — Mas o que é que está se passando aqui? — perguntou com impaciência. — Vamos, um pouco de ação.
— Aí vem ela — disse Bond.
O leiloeiro levantou a voz e toda a sala pediu silêncio.
— E agora, minhas senhoras e meus senhores — rugiu o leiloeiro — vamos à pergunta mais importante da noite. Quem vai me dar 100 libras pela escolha entre o Campo Superior e o Inferior? Todos sabemos o que isto significa... o direito de escolher o Campo Superior, que, inclino-me a crer, será da preferência geral esta noite (risos), em vista das excelentes condições atmosféricas reinantes lá fora. Então, quem abrirá com cem libras os lances para a escolha do Campo Superior ou Inferior?
— Muito obrigado, cavalheiro! E 110. 120 e 130. Muito obrigado, minha senhora.
— Cento e cinquenta — disse uma voz de homem, não muito distante da mesa de Bond e Tiffany.
— Cento e sessenta.
Desta vez era uma mulher. Monótona, a voz do homem gritou: — 170.
— Oitenta — disse alguém.
— Duzentas libras.
Algo fez com que Bond se voltasse e olhasse o homem que tinha falado.
Era um tipo grandalhão. A cara tinha a aparência lisa, brilhante e escorregadia de um olho de boi. Olhos miúdos, frios e escuros fitavam o estrado do leiloeiro através de imóveis lentes bifocais. Todo o pescoço do homem parecia estar por trás da cabeça. O suor havia emaranhado as algas negras e encaracoladas do cabelo. Enquanto Bond o observava, ele tirou os óculos, pegou um guardanapo e passou a enxugar o suor, com um movimento circular que começou no lado esquerdo do rosto, estendeu-se à nuca, onde a mão esquerda cedeu a vez à mão direita, e esta completou o circuito, atingindo os pingos do nariz.
— Duzentas e dez — disse alguém.
A queixada do homem bamboleou, a boca se descerrou, e ele disse, com nítido sotaque americano:
— Duzentas e vinte.
O que havia nesse indivíduo capaz de ferir uma corda na memória de Bond? O inglês examinou o rosto largo, a imaginação percorrendo todo o arquivo do cérebro, abrindo e fechando gavetas, uma após outra à procura de uma pista. A cara? A voz? Inglaterra? América?
Bond abandonou a busca e voltou a atenção para o outro homem à mesa.
Ainda aqui, a mesma necessidade urgente de reconhecer. As feições jovens e estranhamente delicadas sob os cabelos brancos e lisos. Os olhos castanhos e plácidos sob as longas pestanas. O efeito geral era de delicadeza, perturbada pelo nariz roliço montado na boca larga de lábios finos, agora aberta num sorriso estúpido e vazio como a fenda de uma caixa postal.
— Duzentas e cinquenta — disse o grandalhão mecanicamente.
Bond tornou a olhar para Tiffany.
— Já viu aqueles dois alguma vez? — perguntou ele, e ela notou-lhe a ruga de preocupação entre os olhos.
— Não — disse ela, categórica. — Nunca. Talvez venham do Brooklyn. Podem ser dois comerciantes de roupas feitas da Quinta Avenida. Por quê? Eles lhe dizem alguma coisa?
Bond olhou-os outra vez.
— Não — disse, em dúvida. — Não, acho que não.
Palmas estrugiram na sala. Radiante, o leiloeiro bateu na mesa.
— Senhoras e senhores — disse ele, triunfante. — Isto é realmente maravilhoso. Trezentas libras é o lance daquela encantadora senhora de esplêndido vestido cor-de-rosa (Cabeças viravam-se, pescoços esticavam-se, e Bond ouviu a pergunta: — Quem é ela? E agora, cavalheiro — o leiloeiro indicava a mesa do homem gordo — posso anunciar 325 libras?
— Trezentas e cinquenta — disse o gordo.
— Quatrocentas — ganiu a mulher de vestido cor-de-rosa.
— Quinhentas.
A voz era incolor, indiferente.
A moça de cor-de-rosa tagarelou irritada com seu acompanhante. O homem assumiu um ar entediado. Acompanhou o olhar do leiloeiro e balançou a cabeça.
— Quem se dispõe a dar mais? — disse o leiloeiro. Sabia agora que a sala já dera o que tinha de dar. — Dou-lhe uma... Dou-lhe duas... — Pam! — Arrematado pelo cavalheiro. E eu acredito sinceramente que ele merece uma salva de palmas.
Deu início às palmas e os presentes o acompanharam, embora preferissem que a moça tivesse levado a melhor.
O gordo ergueu-se algumas polegadas e voltou a sentar-se. Não havia em seu rosto lustroso nenhum sinal de agradecimento aos aplausos, e seus olhos fixavam-se no leiloeiro.
— E agora temos de cumprir a formalidade de perguntar ao cavalheiro qual é o Campo que ele prefere. (Risos). Cavalheiro, o senhor escolhe o Campo Superior ou o Campo Inferior?
O tom do leiloeiro era irônico. A pergunta era ociosa.
— Campo Inferior.
Houve um momento de silêncio constrangedor no apinhado salão de fumar. E logo se seguiram os comentários à meia-voz. Nenhuma pergunta foi feita. Era óbvio que o homem devia escolher o Campo Superior. As condições atmosféricas eram ideais. O Queen Elizabeth vinha desenvolvendo pelo menos trinta nós. Estaria o homem a par de alguma coisa? Teria pago por alguma informação na ponte de comando? Haveria alguma tempestade à vista? Algum defeito nas máquinas?
O leiloeiro martelou na mesa, pedindo silêncio.
— Queira me perdoar, cavalheiro — disse ele — mas o senhor escolheu mesmo o Campo Inferior?
— Sim.
O leiloeiro tornou a martelar.
— Nesse caso, senhoras e senhores, comecemos agora a leiloar o Campo Superior. Minha senhora — voltou-se com uma curvatura para a moça de cor-de-rosa — quer ter a gentileza de fazer o primeiro lance?
Bond virou-se para Tiffany.
— Que coisa esquisita — disse ele. — É extraordinário. O mar está calmo como um lago. — Deu de ombros. — A única resposta é que eles devem estar informados de alguma coisa.
— A questão era desprovida de interesse, no fim de contas.
— Alguém deve ter dito alguma coisa àqueles dois. — Girou a cabeça e, depois, despreocupadamente, passeou o olhar pelos dois indivíduos. — Parece que eles estão interessadíssimos na gente.
Tiffany olhou por cima do ombro.
— Não estão olhando pra cá, não — disse ela. — A impressão que eu tenho é que são dois palermas. O grisalho tem um ar de idiota e o gordo está chupando o polegar. Dois malucos. Acho que nem sabem o que arremataram. Trocaram as bolas.
— Chupando o polegar? — perguntou Bond. Passou a mão pelo cabelo, distraidamente, uma vaga lembrança a verrumar-lhe o cérebro.
Talvez, se ela lhe tivesse permitido seguir o fio de seus pensamentos, ele tivesse dado no alvo. Mas ela colocou a mão sobre a dele e, aproximando-se, roçou-lhe o rosto com os cabelos.
— Esqueça isso, James — disse ela. — E não pense tanto naqueles dois imbecis. — Os olhos dela ardiam e exigiam. — Chega deste lugar. Leve-me a outra parte.
Sem se dizerem mais uma palavra, ergueram-se, afastaram-se da mesa e saíram da sala barulhenta, caminhando em direção à escada. Começaram a descer e, quando chegaram ao meio, o braço de Bond circundou a cintura da moça, e ela deitou a cabeça no ombro dele.
Chegaram à porta do camarote de Tiffany, mas ela deu meia volta e arrastou Bond pelo corredor comprido, macio e rangente.
— Eu quero que seja na sua casa, James — disse ela.
Bond só voltou a falar depois de ter fechado a porta de seu camarote com um pontapé e de se terem abraçado no meio daquele quartinho maravilhosamente reservado e anônimo. E dizendo, com ternura, "Meu amor" pôs uma das mãos sobre os cabelos dela de modo a manter-lhe a boca sob a sua.
Algum tempo depois, sua outra mão desceu até o fecho-relâmpago do vestido, por trás, e a moça, sem interromper o abraço, deixou cair o vestido e disse, ofegante, entre beijos:
— Quero tudo, James. Tudo o que você já fez com uma mulher. Agora.
Agora mesmo.
E Bond inclinou-se, envolveu-lhe as coxas com um braço, levantou-a e deitou-a suavemente no soalho.
24 - A morte é permanente
A ÚLTIMA COISA de que Bond se lembrou antes de soar a campainha do telefone foi de Tiffany debruçada sobre ele, na cama, beijando-o e dizendo-lhe: "Não durma sobre o lado esquerdo, meu amor. É ruim para o coração.
Pode parar de bater. Vire-se". E, obediente, ele se virava. E, quando a porta bateu de leve, ele estava dormindo de novo, embalado pela voz da moça, pela pulsação do Atlântico e pelo macio balanço do navio.
Depois, a campainha impertinente soou e tornou a soar no camarote escuro. Bond praguejou, estendeu o braço para o telefone, e uma voz disse: — Desculpe-me incomodá-lo, senhor. Aqui é o telegrafista, Acaba de chegar uma mensagem em código para o senhor, com um prefixo en clair "Urgentíssimo". Quer que leia pelo telefone ou envie pelo mensageiro?
— Envie pelo mensageiro, pode ser? — disse Bond. — Muito obrigado.
E que diabo queriam agora? Toda a beleza, todo o ardor, toda a exaltação da paixão amorosa foram postas de lado quando ele acendeu a lâmpada, pulou da cama e, balançando a cabeça, a fim de afastar o torpor, deu dois passos para o chuveiro.
Durante um bom minuto deixou que a água caísse sobre si. Depois, enxugou-se com a toalha, apanhou do chão as calças e a camisa e vestiu-as.
Houve uma pancada na porta. Bond recebeu o telegrama, sentou-se à escrivaninha, acendeu um cigarro e entregou-se ferozmente ao trabalho. E, à medida que os grupos paulatinamente se dissolviam em palavras, seus olhos se apertavam e a pele se lhe arrepiava no corpo.
O telegrama, passado pelo Chefe do Pessoal, dizia:
Primeiro vg busca clandestina escritório Saye revelou telegrama do QE endereçado ABC assinado Winter comunicando presença sua e Case a bordo solicitando instruções pt Resposta endereçada Winter assinado ABC ordena eliminação de Case vg preço vinte mil dólares pt Segundo vg consideramos Rufus B. Saye é ABC que é mais ou menos equivalente pronúncia suas iniciais em francês pt Terceiro vg possivelmente alarmado sinais de busca Saye voou Paris ontem e agora informa Polinter estar em Dakar pt Isto parece confirmar nossas suspeitas que diamantes provêm minas Serra Leoa daí contrabandeados fronteira Guiné Francesa pt Suspeitamos fortemente elemento clínica dentária de Sierra International em observação pt Quarto vg Canberra Raf espera você Boscombe Down para voo imediato amanhã noite a Serra Leoa assinado CDP.
Bond gelou na cadeira. De supetão, acudiu ao seu espírito o mais sinistro verso de toda a poesia: "Enganam-se os que me evitam. Quando voam de mim, eu sou as asas".
Então alguém da quadrilha de Spang estava a bordo e viajava com eles. Quem? Onde?
A mão agarrou o telefone: — Miss Case, por favor.
Ouviu o aparelho ao pé da cama dela produzir um estalido e em seguida disparar 'a primeira campainhada. A segunda. A terceira. Mais uma só. Bond colocou o receptor de volta no gancho e enfiou pelo corredor até o camarote de Tiffany. Nada. Vazio. A cama arrumada. As luzes acesas. Mas a bolsinha dela estava no tapete e os objetos espalhados ao redor. Tinha entrado no camarote. O homem se escondera atrás da porta. Talvez tivesse aplicado uma cacetada. E depois?
As vigias estavam fechadas. Examinou o banheiro. Nada.
Bond parou no meio do camarote. Seu cérebro estava frio como gelo. O que ele, Bond, teria feito? Antes de matá-la, tê-la-ia interrogado, descoberto o que ela sabia, o que fazia, quem era o homem que a acompanhava. Tê-la-ia levado depois para o camarote em que ele viajava a fim de poder agir sem ser perturbado. Se o encontrassem arrastando-a pelo corredor, bastaria piscar um olho e balançar a cabeça: "Bebeu muita champanha esta noite. Não, não precisa, muito obrigado, eu me arranjo". Mas, qual era o camarote? E havia quanto tempo ele a tinha levado?
Bond consultou o relógio quando ia no corredor. Três horas. Ela devia ter saído da cama dele pouco depois das duas. Devia telefonar para a ponte de comando? Dar alarma? Penosos instantes de explicações, suspeitas, obstáculos. "Meu caro senhor, isto parece incrível!" Tentativas para acalmá-lo. "Claro, senhor, faremos o que estiver ao nosso alcance". O olhar polido do funcionário, para quem tudo não passaria de embriaguez, ciúme e até mesmo de um meio de deter a marcha do navio e ganhar a aposta no Campo Inferior.
O Campo Inferior! Homem ao mar! O navio detido!
Bond fechou a porta de seu camarote e foi direto à Lista de Passageiros.
E por que não? Winter. Ei-lo aqui. A49. O convés de baixo. E então, de repente, o cérebro de Bond funcionou como um computador. Winter. Wint e Kidd. Os dois pistoleiros. Os encapuzados. Outra vez a lista de passageiros.
Kitteridge. No A49 também. O grisalho e o gordo do avião da BOAC na viagem de Londres a Nova York. "Meu grupo sanguíneo é F." A escolta secreta de Tiffany. E a descrição de Leiter. "Chamam-no Goela porque tem medo de viajar". "Um dia vai-se arrepender de não ter extraído aquela verruga". A verruga vermelha na primeira articulação do dedo que segurava o cão da arma apontada para Tingaling Bell. E Tiffany dizendo: "São dois palermas. O gordo está chupando o polegar!" E os dois, no salão de fumar, procurando ganhar dinheiro com a morte que haviam planejado. A mulher atirada ao mar. O alarma anônimo, no caso de passar o corpo despercebido pelo vigia da popa. O navio detido, a volta, a busca nas águas. E mais três mil libras para os bolsos dos assassinos.
Wint e Kidd. Os pistoleiros de Detroit.
Todo o carretel de filmes embaralhados desenovelou-se na mente de Bond no espaço de um segundo, e mesmo enquanto os esquadrinhava, ia ele abrindo a pasta e revolvendo o compartimento secreto à procura do silenciador. Como um autômato, retirou a Beretta do meio de suas coisas no fundo de um gavetão, examinou o pente e ajustou o silenciador à boca da arma. Simultaneamente, pesava as probabilidades e planejava os passos que devia dar.
Pegou a planta do navio que tinha vindo com o bilhete de passagem.
Esparramou-a à sua frente enquanto calçava as meias. A49. Exatamente debaixo de seu camarote. Haveria probabilidade de arrebentar a fechadura com um tiro e pegar os dois homens antes que eles o pegassem? Nenhuma, quase. Sem dúvida tinham fechado a porta com a chave e o trinco. Ou levar consigo alguns membros da tripulação, se pudesse persuadi-los do perigo que Tiffany corria? Enquanto ele tentasse convencê-los, os dois homens a atirariam pela vigia. E, quando, afinal, conseguissem entrar no camarote, Wint e Kidd estariam lendo calmamente ou jogando cartas e berrariam: — Que é que vocês querem aqui?
Bond meteu a arma nos cós das calças e com um violento puxão escancarou uma das duas vigias do camarote. Enfiou por ela os ombros e alegrou-se ao descobrir uma folga de uma ou duas-polegadas. Espichou o pescoço para baixo. Dois círculos mal iluminados, exatamente sob suas vigias. A que distância? Uns oito pés. A noite continuava parada, calma, tranquilizadora, e ele se achava no lado ensombrado do navio. Avistá-lo-iam da ponte volante? Estaria aberta alguma das vigias do A49?
Bond deixou-se cair novamente em seu camarote e arrancou os lençóis da cama. O nó de porco. Seria mais seguro. Mas teria de rasgar os lençóis e emendá-los para obter o comprimento necessário. Se tudo desse certo, teria de trazer alguns lençóis do A49 e deixar o camareiro intrigado com o desaparecimento. Se desse errado, tanto fazia.
Experimentou a "corda" com toda a força. Devia aguentar. Ao amarrar uma extremidade em volta da dobradiça da vigia, deu uma olhada no relógio.
Só doze minutos tinham passado desde que lera o telegrama. Demorara demais? Trincou os dentes, atirou a "corda" pelo costado do navio e introduziu a cabeça.
Não pense em nada. Não olhe para baixo. Não olhe para cima. Não se importe com os nós. Devagar, firme, uma mão, isto, a outra.
A brisa da noite tocava-o de leve e empurrava-o de encontro aos negros rebites de ferro, e lá embaixo soava o gemido cavo do mar. No alto, o vento zunia no cordame, e mais acima, no firmamento, as estrelas dançavam à volta dos mastros.
Os malditos, os bem-amados lençóis resistiriam? A vertigem o venceria?
Seus braços suportariam o peso? Não pense nisso. Não pense no imenso navio, no oceano faminto, nas quádruplas hélices gigantescas aguardando o momento de lhe retalhar o corpo. Você é um menino que está descendo da macieira. É tão fácil e seguro lá no pomar, com o relvado que apara a queda.
Bond expulsou da mente todos esses pensamentos. Olhou para as mãos e sentiu a aspereza da pintura contra os nós dos dedos. Os pés, sensíveis como antenas, tateavam em busca do primeiro contacto com a vigia.
Ali. Os dedos do pé direito haviam tocado o rebordo saliente. É preciso parar. É PRECISO ter paciência e deixar que o pé explore o terreno — a vigia aberta, presa pela grande tranqueta de latão; o contacto de fazenda por cima da meia: as cortinas cerradas. Agora podia continuar. Estava quase terminado.
Mais duas preensões na corda improvisada e o rosto estava à altura da vigia. Podia colocar uma das mãos na borda metálica do caixilho, subtraindo algum peso da alva corda retesada e dando merecido repouso a um braço e depois ao outro, deslocar a carga suportada pelos músculos, reunir as forças para soerguer-se vagarosamente, traspassar-se ao camarote e mergulhar, deitando a mão à arma.
Ficou à escuta, fitando o círculo da cortina balouçante, tentando esquecer que estava pendurado como um pêndulo, a meio costado do Queen Elizabeth, esforçando-se para não ouvir o marulho do oceano, lutando para abrandar a respiração ofegante e as marteladas do coração.
Do interior do cubículo vinha um resmungo indistinto. Depois, uma voz masculina proferiu algumas palavras e uma mulher gritou: — Não!
Seguiu-se um momento de silêncio, e logo uma bofetada. Sonora como um disparo de pistola, e isto lançou o corpo de Bond para o alto e para dentro como se ele tivesse sido arrastado por uma corda.
No momento mesmo em que mergulhava no círculo da vigia, perguntava-se onde iria bater, e instintivamente protegeu a cabeça com o braço esquerdo, enquanto o direito corria para a arma.
Foi cair sobre uma valise debaixo da vigia. Um estabanado salto mortal levou-o ao meio do camarote. Outra vez sobre seus pés, foi recuando, agachado, para o lado das vigias, a tensão branquejando os nós dos dedos da mão que segurava a arma e uma estreita linha branca circundando-lhe a boca cerrada.
Através das pálpebras entreabertas, os olhos cinzentos e gelados moviam-se de um lado para o outro. A arma, negra e cega, voltava-se para um ponto, no centro, entre os dois homens.
— Aqui estamos — disse Bond, erguendo-se vagarosamente.
Era a constatação de um fato. Ele tinha o controle da situação, e a boca de sua arma o confirmava.
— Quem chamou você aqui? — disse o gordo. — Você não entra nesta peça. — Havia na voz reservas latentes. Nada de pânico. Nem mesmo a dose normal de surpresa. — Veio completar a mesa para o jogo de cartas?
Estava sentado, em mangas de camisas, abotoado, de través para a penteadeira, e os olhos miúdos brilhavam na cara molhada. Dante dele, de costas para Bond, Tiffany Case estava sentada num tamborete estofado.
Vestia apenas uma calcinha cor-de-carne e tinha os joelhos presos entre as coxas do homem gordo. Voltara para Bond o rosto pálido entremeado de manchas vermelhas. Os olhos tinham uma expressão de desespero, como os de um animal apanhado numa armadilha, e a boca aberta traduzia incredulidade.
O grisalho jazia numa das camas. Tinha erguido o busto sobre um cotovelo e a outra mão na camisa, a meio caminho da arma guardada no boldrié preto debaixo do sovaco. Olhava para Bond sem demonstrar curiosidade e estampava aquele sorriso quadrado, vazio, da caixa postal. Do centro do sorriso ressaía um palito de madeira, que rompia os dentes fechados como a língua de uma cobra.
A arma de Bond assegurava o espaço neutro entre os dois homens.
Quando ele falou, a voz era baixa e tensa.
— Tiffany — disse Bond lenta e distintamente. — Ajoelhe-se. Afaste-se desse homem. Baixe a cabeça. Vá para o meio do quarto.
Não olhava para ela. Seus olhos continuavam a passear da cadeira para a cama, vigiando os dois homens. Agora ela estava longe dos dois alvos.
— Estou aqui, James.
A voz tremia de esperança e excitação.
— Levante-se e vá para o banheiro. Feche a porta. Entre na banheira e deite-se lá.
Moveu os olhos na direção dela para ver se era obedecido. Ela tinha-se erguido e o contemplava. Bond avistou a marca vermelha de uma mão na pele alva do corpo da moça. Ela obedeceu. Ouviu-se o clique da porta do banheiro ao fechar-se.
Agora ela estava a salvo das balas. E não presenciaria o que tinha de ser feito.
Mediavam umas cinco jardas entre os dois homens, e Bond refletiu que se eles sacassem com bastante rapidez estaria perdido. Com esse tipo de homens, na fração de segundo em que um fosse liquidado, o outro sacaria e dispararia. Conquanto sua arma fosse silenciosa, a ameaça era infinita. Mas, com o clarão da primeira bala a ameaça proviria do outro homem.
— Quarenta e oito, sessenta e cinco, oitenta e seis.
A variante do sinal convencionado do futebol americano —"uma das cinquenta combinações que deviam ter praticado juntos mil vezes — jorrou da boca do gordo. Simultaneamente, ele se atirou ao chão, e a mão foi direta ao cós da calça.
Num giro rápido, o homem que estava na cama puxou as pernas para o lado e para longe de Bond, de modo que seu corpo se reduziu a um alvo estreito, de que só se via a cabeça. A mão que estava sobre o peito se mexeu rápida.
— Paf.
A arma de Bond soltou um único gemido abafado. Um orifício azul abriu-se exatamente abaixo do cocuruto grisalho.
— Pum! — respondeu a pistola do morto, deflagrada pela última crispação do dedo, e a bala foi alojar-se na cama, debaixo do cadáver.
O homem gordo, deitado no soalho, deu um grito. Olhava para cima. na direção daquele olho preto e vazio que não se incomodava com ele, de forma alguma, e que só se interessava em localizar-lhe na pele o centímetro quadrado que abrigaria o próximo projétil.
O revólver de Wint só se tinha elevado até à altura dos joelhos de Bond e apontava em vão por entre suas pernas retesadas para a armação de ferro, pintada de branco, que estava atrás.
— Largue a arma.
O tapete abafou o ruído da queda da arma.
— Levante-se.
O gordo ergueu-se com dificuldade e fitou Bond nos olhos, como um tuberculoso fita seu lenço, em medrosa expectativa.
— Sente-se.
Houve um lampejo de alívio nos olhos submissos? Bond continuou tenso como um gato prestes a atacar.
O gordo voltou-se vagarosamente. Estendeu as mãos acima da cabeça, embora Bond não lhe tivesse exigido isso. Deu dois passos para a cadeira e lentamente virou-se como se fosse sentar-se.
Parou, contemplando Bond, e com naturalidade deixou cair as mãos ao longo do corpo. E as duas mãos, sossegadas, sacudiram-se para trás, a direita mais do que a esquerda. E então, de súbito, no movimento de retorno, o braço direito entesou-se, precipitou-se para a frente e a faca brilhou nas pontas dos dedos como uma chama branca.
— Paf.
A bala silenciosa e a faca muda cruzaram uma pela outra em pleno ar, e os olhos dos dois homens perturbaram-se simultaneamente quando as armas atingiram seus objetivos.
Mas a perturbação nos olhos do homem gordo converteu-se num reviramento do globo ocular quando ele caiu para trás, as mãos agarradas ao peito, enquanto os olhos de Bond pousaram sem curiosidade na mancha que se espalhava em sua camisa e no cabo chato da faca pendurada frouxamente nas dobras do pano.
Produziu-se um estardalhaço quando a cadeira se espatifou sob o peso do homem gordo. Seguiu-se um ruído roufenho e ouviu-se, por último, um baque surdo no soalho.
Bond olhou a cena uma vez e depois voltou-se para a vigia aberta.
Durante algum tempo ficou de costas para o quarto, o olhar fixo nas cortinas que se balançavam molemente. Sorveu o ar e escutou os maravilhosos sons marinhos do exterior, do mundo que ainda lhes pertencia, a ele e a Tiffany, mas não aos outros dois. Pouco a pouco, seu corpo e seus nervos tensos se relaxaram.
Instantes depois, puxou a faca que se lhe enfiara na camisa. Não olhou para ela. Apenas estirou o braço, afastou a cortina para um lado e atirou a faca pela vigia. Em seguida, ainda contemplando a noite quieta lá fora, prendeu o registro de segurança da Beretta e, com um braço que lhe pareceu de repente pesado como chumbo, introduziu de novo a arma no cós das calças.
Com certa relutância, deu meia volta e encarou a desordem reinante no camarote. Com ar pensativo, examinou tudo e, num gesto, inconsciente, enxugou as mãos nos lados das calças. Em seguida, caminhando cautelosamente até o banheiro, disse: "Tiffany, sou eu" numa voz cansada, deprimida, e abriu a porta.
Ela não o ouvira. Continuava deitada de bruços na banheira seca, as mãos sobre as orelhas. E quando ele a ergueu e tomou nos braços, ela ainda não acreditou no que via. Agarrou-se a ele e começou a tocar-lhe o rosto e o busto com as mãos para certificar-se de que era realidade.
Ele se retraiu quando ela lhe apalpou a costela cortada. Então ela afastou-se um pouco, examinou-lhe o rosto, depois o sangue que manchava seus dedos e por fim a camisa escarlate.
— Meu Deus! Você está ferido! — disse ela assustada; e, esquecendo seus pesadelos, arrancou-lhe a camisa, lavou-lhe a costela com água e sabão e amarrou-a com tiras da toalha cortada com a gilete de um dos homens mortos.
Não fez perguntas, nem mesmo quando Bond lhe trouxe as roupas que estavam espalhadas pelo soalho do camarote e lhe disse que não saísse enquanto ele não tivesse terminado de arrumar tudo e de apagar as impressões digitais de todos os objetos que ela havia tocado.
Ela apenas pousava nele os olhos brilhantes. E quando Bond a beijou nos lábios, continuou calada.
Bond deu-lhe um sorriso tranquilizador, saiu e fechou a porta do banheiro atrás de si. Pôs mãos à obra, fazendo cada coisa com grande determinação e parando antes de cada gesto a fim de imaginar o efeito que produziria diante dos olhos e do espírito dos detetives que subiriam a bordo em Southampton.
Primeiro amarrou um cinzeiro à sua camisa ensanguentada para torná-la pesada, aproximou-se da vigia e atirou o pacote o mais longe que pôde. Os smokings dos dois homens estavam pendurados atrás da porta. Tirou os lenços que estavam nos bolsinhos dos paletós, envolveu com eles as mãos e remexeu nos armários e cômodas até encontrar as camisas do grisalho.
Vestiu uma e ficou um momento no centro do camarote, meditando. Depois, cerrou os dentes e levantou o homem gordo até deixá-lo sentado, tirou-lhe a camisa, foi à vigia, sacou a Beretta, encostou a arma no orifício aberto na fazenda pelo tiro anterior e disparou outra bala no mesmo local. Agora havia uma nódoa de fumaça em volta do orifício para dar a impressão de suicídio.
Tornou a vestir a camisa no cadáver, limpou demoradamente a Beretta com o lenço, comprimiu os dedos da mão direita do morto sobre ela e, finalmente, ajustou a arma na mão do gordo, com o indicador no gatilho.
Após outra pausa no meio do quarto, retirou o smoking de Kidd do cabide e vestiu com ele o cadáver. Em seguida, arrastou o corpo até a vigia e, suando com o esforço, levantou-o e jogou-o ao mar.
Limpou as possíveis impressões digitais deixadas na vigia e interrompeu-se outra vez, tomando fôlego e inspecionando o cenário. Foi até a mesa de jogo, encostada à parede e com os objetos espalhados indicando que o jogo não fora concluído, e derrubou tudo, dispersando as cartas pelo tapete. Parou, refletiu mais um pouco, voltou ao cadáver de Wint, retirou-lhe do bolso traseiro da calça o rolo de cédulas e jogou-as entre as cartas.
O quadro era satisfatório, sem dúvida. Haveria o mistério da bala disparada na cama pelo moribundo Kidd, mas isso poderia ter sido parte da luta. Três balas tinham sido detonadas pela Beretta e havia três cartuchos no soalho. Duas das balas poderiam ter-se enterrado no corpo de Kidd que agora estava no Atlântico. Havia os dois lençóis que teria de roubar da segunda cama. A falta deles ficaria inexplicada. Talvez Wint houvesse enrolado neles o corpo de Kidd antes de empurrá-lo pela vigia. Isso se encaixava no remorso e no suicídio de Wint, posterior ao tiroteio motivado pelo desentendimento à mesa do jogo.
De qualquer maneira, refletiu Bond, o quadro se sustentaria até a chegada da polícia ao porto, mas nesse momento ele e Tiffany já estariam fora do navio e bastante longe, e o único vestígio deles no camarote seria a Beretta; e esta, como todas as outras armas pertencentes ao Serviço Secreto, não era numerada.
Soltou um suspiro e encolheu os ombros. Agora, restava apanhar os lençóis, conduzir Tiffany de volta ao seu camarote sem serem vistos, cortar a "corda" que se balançava na vigia, atirá-la ao mar com os pentes restantes da Beretta e o coldre vazio e, por fim, dormir à vontade com o corpo adorado de Tiffany enroscado no seu para sempre.
Para sempre?
Ao atravessar o camarote a caminho do banheiro, Bond encontrou os olhos vazios do cadáver no soalho.
E os olhos do homem cujo Grupo Sanguíneo fora F chamaram-no e lhe disseram:
— Mr. Bond. Nada existe para sempre. Só a morte é permanente. Nada é eterno, exceto o que você fez comigo.
25 - Fecha-se o canal
AGORA NÃO HAVIA escorpião morando nas raízes do frondoso espinheiro erguido na junção dos três Estados africanos. O contrabandista das minas não tinha outra coisa que lhe absorvesse a atenção senão o desfile infindável de um regimento de formigas de correição entre as baixas muralhas que as guerreiras haviam construído em ambos os lados da estradinha de três polegadas.
A noite era quente e úmida, e o homem escondido sob o espinheiro estava impaciente e intranquilo. Era esta a última vez que comparecia ao encontro marcado. Já tinha decidido. Que arranjassem outro, se quisessem.
Naturalmente não iria fazer sujeira com eles. Comunicaria a intenção de deixá-los e lhes daria o motivo: o novo assistente admitido no serviço dentário parecia entender muito pouco de odontologia; decerto era espião: o olhar indagador, o bigodinho amarelo-avermelhado, as unhas bem tratadas.
Pegaram alguém? Tomaram-lhe o depoimento?
O contrabandista trocou de posição. Por onde diabo andava o helicóptero? Apanhou um punhado de terra e atirou-o no meio das formigas.
Elas se atarantaram um pouco, mas com a chegada das últimas fileiras, as que iam na frente se dispersaram pelas muralhas. Então as guerreiras pegaram febrilmente a cavar e transportar a terra, e em poucos minutos a estrada estava outra vez transitável.
O homem tirou o sapato e jogou-o com força sobre o regimento em marcha. Houve outro curto instante de afobação. Depois, as formigas lançaram-se sobre as mortas e as devoraram. O caminho estava novamente desimpedido e o negro rio continuou a fluir.
O homem soltou uma praga em africaans e calçou o sapato. Filhas duma égua. Iam ver uma coisa. Acocorando-se e suspendendo um braço para se proteger contra os espinhos, saiu pisando pela estrada das formigas. Isso lhes serviria de lição.
Ao surgir sob o luar, o homem já tinha esquecido o ódio que dedicava a tudo quanto fosse negro e virou a cabeça para a banda do norte. Graças!
Rodeou o espinheiro para ir buscar as lanternas e o pacote dos diamantes guardados nas caixas de ferramentas.
A uma milha dali, sob a copa de um arbusto, o poderoso ouvido de ferro do detector de som já parará de investigar, e o operador, que vinha transmitindo os dados aos três homens agrupados ao lado do caminhão militar, informou: — Trinta milhas. Velocidade: cento e vinte. Altura: novecentos pés.
Bond consultou o relógio.
— Tudo indica que o encontro está marcado para a meia-noite,_na lua cheia — disse ele. — O nosso homem está uns dez minutos atrasado.
— Parece que o senhor tem razão — concordou o oficial da guarnição de Freetown, a seu lado, e voltou-se para o terceiro homem. — Cabo. Veja se não tem nenhum metal aparecendo na rede de camuflagem. Com este luar, é preciso ter cuidado.
O caminhão estava coberto pelo arbusto, à beira de uma estrada de barro, que atravessava a planície na direção da aldeia de Telebadu, na Guiné Francesa. Naquela noite, haviam deixado as colinas logo que o radiolocalizador captara o barulho da motocicleta do dentista na estrada paralela. Tinham vindo com os faróis apagados e pararam quando cessou o ruído da motocicleta. Haviam estendido a rede de camuflagem sobre o caminhão, o detector de som e o canhão Bofors. E puseram-se a esperar, sem saberem ao certo quem ou o que viria ao encontro do dentista — outra motocicleta, um homem a cavalo, um jipe, um avião?
Ao ouvir no céu o longínquo matraquear, Bond soltou uma gargalhada.
— Helicóptero — disse ele. — Era só o que faltava. Preparem-se para tirar a rede quando pousar. Talvez a gente tenha de dar um tiro de advertência. O detector está ligado?
— Está, sim — respondeu o cabo que operava o aparelho. — O nosso amigo está chegando. Poderão vê-lo num minuto. O senhor está vendo aquelas luzes acolá? Devem ser do campo de pouso.
Bond passeou o olhar pelos quatro feixes de luz e, depois, contemplou o imenso céu africano.
Então aí vinha o último de todos, o derradeiro elemento da quadrilha e também o primeiro. O homem que havia visto ligeiramente em Hatton Garden. O número um da turma de Spang, cuja cotação era tão alta em Washington. O único, excetuando o inofensivo e até simpático Shady Tree, que Bond ainda não fora obrigado a matar ou — pensou no botequim de Spectreville e nos dois homens de Detroit — quase. Não que tivesse desejado matar esses indivíduos. A missão que M lhe confiara fora apenas de investigação. Mas, um a um, eles haviam tentado contra sua vida e a de seus amigos. A violência fora o primeiro, não o último recurso deles.
Violência e crueldade, as armas escolhidas. Os dois homens do Chevrolet em Las Vegas, que tinham disparado contra ele e ferido Ernie Cureo. Os dois sujeitos do Jaguar, que haviam espancado Ernie e tinham sido os primeiros a sacar os revólveres quando começara a luta. Seraffimo Spang, que mandara torturá-lo, disparara contra ele e Tiffany e procurara esmagá-los na estrada de ferro. Wint e Kidd, que haviam supliciado Tingaling Bell, Bond e Tiffany Case. E, dos sete, matara cinco — não porque gostasse de matar, mas porque alguém tinha de fazê-lo. Tivera a seu lado a sorte e três bons amigos, Félix, Ernie e Tiffany. E os malvados tinham perecido.
Agora chegava a último dos malvados, o homem que planejara a sua morte e a de Tiffany, o homem que, segundo M, arquitetara o contrabando dos diamantes, montara o canal de escoamento e o vinha dirigindo com eficiência e mão de ferro através dos anos.
Ao telefone, para Boscombe Down, M falara pouco e com certa aspereza na voz. Usara a linha do Ministério da Aeronáutica, poucos minutos antes que o Canberra decolasse para Freetown. Bond recebera o telefonema do gabinete do comandante da base, tendo nos ouvidos o grito estridente das turbinas do Canberra.
— Satisfeito de tê-lo de volta são e salvo.
— Muito obrigado, senhor.
— Que estória é essa que os vespertinos noticiaram acerca de um duplo homicídio no Queen Elizabeth?
Havia algo mais do que suspeita na voz de M.
— Eram os dois pistoleiros da quadrilha. Viajavam sob os nomes de Winter e Kitteridge. Meu camareiro desconfia que eles se desentenderam quando jogavam baralho.
— Acha que a suposição do camareiro é correta?
— É possível. Houve uma pausa.
— E os policiais também pensam assim?
— Não vi nenhum deles.
— Vou falar com Vallance.
— Ótimo — disse Bond, sabendo que essa era a maneira de M dizer que, caso Bond tivesse liquidado os dois homens, tomaria providências para que o agente e o Serviço Secreto não fossem mencionados no inquérito.
— Bem, de qualquer modo — disse M — aqueles dois eram pouco importantes. Esse Jack Spang, ou Rufus B. Saye ou ABC, ou que nome tenha, esse eu quero que você agarre. Ao que parece, ele vai agora até o extremo do canal. Vai fechá-lo. Talvez matando o que encontrar pela frente. O ponto final é o dentista. Veja se consegue pegar os dois. Faz coisa de uma semana que destaquei 2804 para trabalhar ao lado do dentista. O pessoal de Freetown acha que já se pode agir. Mas eu quero encerrar este caso e ver você de novo em seu verdadeiro posto. Esse negócio foi uma trapalhada dos diabos. Não me agradou desde o princípio. E se, afinal, conseguimos chegar ao ponto em que estamos agora, foi mais uma questão de sorte do que de boa organização.
— Concordo com o senhor — disse Bond.
— E essa moça, Case? — perguntou M. — Conversei com Vallance. Ele não deseja processá-la, a menos que você insista.
Teria M carregado um pouco no tom de indiferença?
Bond procurou evitar uma resposta muito persuasiva.
— Ela foi de grande ajuda — disse ele, esperançoso.
— Talvez a gente possa resolver quando eu apresentar meu relatório final.
— E onde está ela agora?
O negro receptor começava a ficar escorregadio na mão de Bond.
— Está a caminho de Londres, num Daimler de aluguel. Vou colocá-la no meu apartamento. Quero dizer, no quarto vago. É muito boa dona de casa.
Ela se arranjará até que eu volte. É uma boa moça, estou certo disso.
Puxou o lenço do bolso e enxugou o suor do rosto.
— Sem dúvida — disse M. Não havia ironia em sua voz.
— Está bem, então. Boa sorte. — Houve uma pausa. — Tome cuidado.
E... — a voz no outro extremo da linha tornou-se subitamente áspera — não pense que não estou satisfeito com os resultados até agora obtidos. Foram além do programa, naturalmente, mas você parece que topou muito bem a parada desse pessoal. Até logo, James.
— Até logo, senhor.
Bond levantou a vista para o céu recamado de estrelas e pensou em M e Tiffany, esperando que agora fosse mesmo o fim e que fosse rápido e tranquilo, e que logo estivesse em casa.
De pé, empunhando a quarta lanterna, o contrabandista das minas esperava. Lá vinha o helicóptero. Cortando a trajetória da lua. Como sempre, o barulho era infernal. Outro risco de que ia livrar-se.
Baixava lentamente. Agora pairava a uns vinte pés de altura. A mão apontou na janela e piscou A. O homem no chão piscou, em resposta, B e c.
As lâminas do rotor diminuíram a velocidade e, suavemente, o gigantesco inseto de aço pousou no chão.
O pó assentou. O contrabandista retirou a mão dos olhos e ajudou o piloto a descer a escadinha. Usava capacete de voo e óculos de proteção.
Extraordinário. E parecia mais alto do que o alemão. O contrabandista sentiu uma picada na espinha. Quem era esse? Aproximou-se devagar.
— Trouxe?
Dois olhos frios, sob negras sobrancelhas retas, cintilaram por trás dos óculos. Ocultavam-se quando o homem moveu a cabeça e o luar incidiu sobre o vidro. Agora eram dois círculos brancos reluzentes no meio do negro e luzidio capacete de couro.
— Trouxe — disse, nervoso, o homem das minas. — Mas onde está o alemão?
— Não virá mais. — Os dois círculos brancos cegavam o contrabandista.
— Eu sou ABC. Vim fechar o canal.
A voz era americana. Enérgica, seca, inflexível.
— Oh!
Maquinalmente, a mão do contrabandista enfiou-se na abertura da camisa. Apanhou o embrulho úmido e entregou-o ao piloto como se fosse uma oferenda de paz. À semelhança do escorpião, um mês antes, o homem das minas pressentia a pedra erguida sobre sua cabeça.
— Ajude-me a encher o tanque.
Era a voz do feitor dando ordens ao escravo. Mas o contrabandista apressou-se a obedecer.
Fizeram o serviço em silêncio. Ao terminar, voltaram ao chão. O cérebro do contrabandista trabalhava furiosamente. Ele se esforçava por adotar a voz de um associado, a voz de alguém que estivesse a par dos negócios e exercesse a mesma autoridade.
Olhou com atenção para a nesga de treva cor-de-anil onde se achava o piloto com a mão sobre a escada.. — Estive pensando bem e acho que...
A voz estacou de supetão, a boca abriu-se espavorida e deixou escapar um ruído que era uma mescla de rosnado e uivo.
A arma na mão do piloto gaguejou três vezes. O contrabandista emitiu um "Oh" numa voz servil, caiu de costas no chão, fez um esforço para se soerguer e imobilizou-se.
— Fique onde está. — A voz ressoou na planície, transmitida pelo amplificador. — Você está cercado.
Ouviu-se o ruído de um motor que se punha em funcionamento.
O piloto não procurou saber de onde vinha a voz. Pulou para a escada. A porta da carlinga fechou-se com uma pancada e zumbiu o arranque automático. O motor começou a trabalhar, as lâminas do rotor giraram, pouco a pouco foram ganhando velocidade até que se transformaram em dois redemoinhos prateados. Então, com uma sacudidela, o helicóptero elevou-se verticalmente no ar.
Em terra, entre os arbustos, o caminhão freou e Bond saltou para a sela de aço do Bofors.
— Pra cima, cabo — gritou ele para o homem que manobrava a alavanca de suspensão. Baixou os olhos para a alça de mira quando a boca da arma se ergueu para a lua. Com a mão, puxou a alavanca do seletor de fogo, tirando-a da marca de segurança e colocando-a em "Fogo". — Esquerda, dez.
— Eu alimentarei.
O oficial ao lado de Bond tinha nas mãos dois depósitos de obuses pintados de amarelo.
Os pés de Bond firmaram-se nos pedais do gatilho. O helicóptero estava no centro da alça de mira.
— Firme — disse ele calmamente.
— Bumpa.
O obus reluzente rodou no alto a uma velocidade apenas menor do que a do som. Baixo e à esquerda. O cabo girou delicadamente as duas alavancas.
— Bumpa.
O obus deu a volta por cima do helicóptero. Bond inclinou-se para a frente e puxou a alavanca do seletor para "Fogo Automático". A mão relutava. Agora a morte era inevitável. Mais uma vez ele tinha de tomar essa decisão.
— Bumpa... bumpa... bumpa... bumpa... bumpa... O fogo vermelho espargiu-se no céu. O helicóptero continuou a avançar para a lua e depois rumou para o norte.
— Bumpa... bumpa...
Houve um espocar de luz amarela perto do rotor da cauda e um estrondo de explosão distante.
— Acertou — disse o oficial, pegando o binóculo. — O rotor da cauda está perdido — disse ele. E logo, agitado: — Puxa! Parece que toda a cabina está girando com o rotor principal! O piloto está atolado.
— Mais algum? — perguntou Bond, mantendo na mira o helicóptero em chamas.
— Não, senhor — disse o oficial. — Seria bom se conseguíssemos pegá-
lo vivo. Mas parece... é, sim, já perdeu o controle. Vem caindo de ponta.
Deve haver alguma coisa com as lâminas do rotor principal. Lá vem ele.
Bond levantou a vista e resguardou os olhos contra a claridade intensa.
— Sim. Lá vem ele. A cem pés, o motor ribombando e as hélices girando inutilmente enquanto a embrulhada metálica despencava do céu em cambaleios e guinadas de ébrio.
Jack Spang. O homem que ordenara o assassínio de Bond. Que ordenara o assassínio de Tiffany. O homem que Bond vira apenas uma vez, durante alguns minutos, numa sala superaquecida em Hatton Garden. Mr. Rufus B.
Saye. Da House oi Diamonds. Vice-Presidente para a Europa. O homem que jogava golfe em Sunningdale e visitava Paris uma vez por mês. "Cidadão exemplar", M dissera dele. Mr. Spang, da quadrilha de Spang, que acabara de matar um homem — o último de quantos?
Bond imaginava a cena dentro da estreita carlinga. O homem dirigindo com uma das mãos e com a outra mexendo desesperadamente nos controles, enquanto observava a agulha do altímetro baixar vertiginosamente. Nos olhos, o rubro clarão do terror. As centenas de milhares de libras esterlinas em diamantes reduzidas a peso morto. A arma, que desde a infância, fora um poderoso braço direito, agora inútil.
— Vai pra cima do espinheiro — bradou o cabo acima da barulheira.
— Está perdido — disse o capitão, a meia voz.
Contemplaram as últimas guinadas; depois, suspenderam a respiração quando o aparelho, num bamboleio desenfreado, empinou o nariz e, como se o espinheiro fosse seu inimigo, deu um mergulho irado, descrevendo uma curva de vinte jardas, e arremessou-se com os rotores desgovernados contra os espinhos.
Antes de se extinguirem os ecos da colisão, ouviu-se um ribombo cavo e uma bola de fogo, projetada no ar, ofuscou o clarão da lua e banhou a planície inteira num fulgor alaranjado.
O capitão foi o primeiro a falar.
— Opa! — exclamou, tirando o binóculo e voltando-se para Bond. — Bem — disse ele, resignado — nada a fazer. Acho que só quando amanhecer a gente vai poder se aproximar. E só com o dia alto é que se poderá revolver os destroços. Mas pode esperar que daqui a pouco os soldados franceses da fronteira estarão aqui. Felizmente estamos em boas relações com eles. O governo é que passará um bocado de tempo discutindo com Dakar. — O oficial previa as idas e vindas da papelada e sentia-se ainda mais exausto.
Homem prosaico, achava que o dia já lhe trouxera boa dose de canseiras. — O senhor se incomoda se a gente tirar uma pestana?
— À vontade — disse Bond, e consultou o relógio. — É melhor irem pra debaixo do caminhão. Eu mesmo não estou com sono. Vou ficar de olho.
Pode ser que o fogo ameace se alastrar.
O oficial lançou um olhar inquiridor a esse homem calmo e enigmático, que chegara de repente ao Protetorado no meio de uma enxurrada de recomendações de "Prioridade Absoluta". Se a gente nunca precisasse dormir... Bom, isso nada tinha que ver com Freetown. Era coisa de Londres.
— Muito obrigado, então — disse o oficial e jogou-se debaixo do caminhão.
Bond retirou vagarosamente os pés dos pedais do gatilho e reclinou-se no encosto da sela de aço. Maquinalmente, com os olhos pousados ainda nas chamas saltitantes, enfiou as mãos nos bolsos do desbotado blusão caqui, que lhe haviam arranjado na base, puxou um cigarro, acendeu-o e tornou a guardar a cigarreira e o isqueiro.
Aí estava o fim do contrabando de diamantes. A última página da estória. Deu uma tragada e expeliu a fumaça com um suspiro longo e calmo.
Seis cadáveres a zero. Vitória folgada.
Ergueu a mão e limpou a testa suada. Atirou para trás a mecha de cabelo que lhe caía por cima da sobrancelha direita, e o clarão vermelho iluminou-lhe o rosto duro e magro e cintilou nos olhos cansados.
Esse imenso e rubro ponto final assinalava o desmoronamento da Quadrilha de Spang e o término do fabuloso contrabando de diamantes. Não o fim dos diamantes que se tostavam do interior do braseiro. Eles sobreviveriam e outra vez iriam percorrer o mundo. Descoloridos, talvez, mas indestrutíveis, tão permanentes como a morte.
E Bond recordou, instantaneamente, os olhos do cadáver cujo sangue havia pertencido ao grupo F. Tinham-se enganado. A morte é eterna. Mas os diamantes também são eternos.
Bond desceu do caminhão e pôs-se a andar lentamente em direção à fogueira crepitante. Levava um sorriso sombrio nos lábios. Toda essa estória acerca de morte e diamantes era demasiado solene. Para Bond, era apenas o fim de outra aventura. Outra aventura que bem podia ter por epitáfio as palavras de Tiffany Case. E reviu a boca ardente e irônica que lhe dizia: — Contada é uma coisa, vivida é outra.
20 - Chamas que saem do alto
O UNIFORME PRETO de homem-rã estava muito apertado. Doía no corpo todo. Por que cargas d'água Strangways não tinha se certificado de que o Almirantado tinha suas medidas corretas? E era muito escuro no fundo do mar, as correntes eram muito fortes, arrastavam-no para o banco de coral.
Era preciso nadar com todo o ímpeto para afastar-se dali. Mas agora algo lhe prendia o braço. Que diabo...?
— James! Pelo amor de Deus, James! — Ela apertou a boca ao ouvido dele. Desta vez ela beliscou-lhe o braço nu e ensanguentado com tanta força que, afinal, os olhos de Bond se abriram entre as pálpebras inchadas, e ele a contemplou do piso de madeira em que estava deitado e deu um suspiro de sobressalto.
Ela puxou-o para si, com medo que ele lhe escapasse outra vez. Ele pareceu entender e se revolveu, erguendo-se sobre as mãos e os joelhos, a cabeça pendida para o chão, como um animal ferido.
— Pode andar?
— Espere. — O murmúrio espesso que lhe atravessou os lábios arrebentados soou-lhe estranho aos ouvidos. Talvez ela não tivesse compreendido. — Espere — repetiu ele, enquanto sua mente passava a explorar o corpo para ver o que lhe tinha sobrado. Podia sentir os pés e as mãos. Podia mover a cabeça de um lado para outro. Podia ver as barras do luar nas pranchas de madeira. Pudera ouvir a moça. Devia estar inteiro, mas não queria mover-se. Sua força de vontade o tinha abandonado. Apenas desejava dormir. Ou talvez mesmo morrer. Qualquer coisa, contanto que mitigasse a dor que lhe avassalava o corpo todo, apunhalando-o, martelando-o, triturando-o — e matasse a lembrança das quatro botinas que o haviam golpeado e dos rosnados proferidos pelos dois vultos encapuzados.
Assim que pensou nos dois homens e em Mr. Spang, a vontade de viver retornou.
— Está bem — disse, e tornou a dizer para que ela compreendesse.
— Estamos na sala de espera — sussurrou a moça. — Temos de chegar ao extremo da estação. À esquerda, depois da porta. Está me ouvindo, James?
Ela estirou a mão e afagou-lhe os cabelos úmidos, viscosos, caídos na testa.
— Tenho de me arrastar — disse Bond. — Atrás de você.
A moça ergueu-se e abriu a porta. Bond trincou os dentes e saiu de rastros para a plataforma enluarada. E quando avistou a mancha escura no chão, a raiva e o desejo de vingança deram-lhe forças para se levantar.
Balançando a cabeça para não se afogar nas ondas negro-avermelhadas e amparado em Tiffany Case, cujo braço lhe envolvia a cintura, foi coxeando pelas tábuas até a rampa por onde desceram para o chão junto dos trilhos reluzentes.
E lá, no desvio, havia um vagonete.
Bond parou e olhou-o atentamente.
— Gasolina? — perguntou com ar vago.
Tiffany Case fez um gesto para uma fileira de latas encostadas no muro da estação. — Está cheio — sussurrou. — É usado na inspeção da linha. Eu sei colocá-lo em funcionamento. Já desloquei as agulhas. Depressa. Suba — soltou uma risadinha abafada. — Próxima parada: Rhyolite.
— Isso é que é uma garota — murmurou Bond. — Mas vai fazer um barulho danado quando esse troço começar a funcionar. Espere. Tenho uma ideia. Tem fósforos?
Metade da dor tinha desaparecido. Respirava forte quando deu as costas à moça e observou as silenciosas casas de madeira.
Ela estava usando calças compridas e blusa. Enfiou a mão no bolso das calças e entregou-lhe o isqueiro.
— O que é que vai fazer? — perguntou. — Já devíamos ter partido.
Mas Bond manquejou até as latas de gasolina e pôs-se a destampá-las e a arremessar o líquido sobre as paredes e a plataforma de madeira. Depois de esvaziar meia dúzia de latas, voltou para onde ela estava. — Ligue a bicha.
— Curvou-se com esforço e apanhou um jornal amassado ao lado dos trilhos. Ressoou o gemido raivoso do arranque automático, o motor de dois tempos pegou e começou a martelar.
Bond acendeu o isqueiro. O papel pegou fogo e Bond jogou-o entre as latas de gasolina. O espocar das labaredas quase o alcançou quando ele se lançou de costas ao estribo do vagonete. Mas então a. moça soltou a embreagem e o carro começou a deslizar pelos trilhos.
Houve um matracolejar e um sacolejo desagradável ao chegarem às agulhas; e depois, entrados na linha> principal, o velocímetro tremia marcando trinta milhas e os cabelos da moça flutuavam à frente de Bond como uma bandeira.
Bond voltou-se e contemplou a gigantesca floração de chamas que ia ficando para trás. Podia quase ouvir o crepitar das pranchas secas e os berros dos que despertavam. Se pelo menos o fogo pegasse Wint e Kidd, apanhasse a pintura do Pullman e se alastrasse pela lenha do tender do Cannonball e acabasse de uma vez com a caixa de brinquedos de Mr. Spang!
Mas ele e a moça tinham seus próprios problemas. Que horas eram?
Bond aspirou o ar fresco da noite e tentou colocar de novo a mente para trabalhar. A lua estava baixa. Quatro horas? Bond avançou com dificuldade pelo estribo até os dois assentos de encosto dobradiço e conseguiu sentar-se ao lado da moça.
Passou-lhe um braço em volta dos ombros, e ela voltou-se com um sorriso nos lábios. Levantando a voz acima do barulho da máquina e do matracolejar das rodas de ferro sobre os trilhos, ela falou: — Foi uma escapada e tanto. Parecia coisa de filme de Buster Keaton.
Como se sente? — Inspecionou o rosto combalido. — Você está massacrado, hein?
— Nenhuma fratura — disse Bond. — Acho que é isso que se entende por oitenta por cento. — Fez uma careta de dor. — É melhor ser tratado a pontapé do que a bala.
O rosto de Tiffany Case contraiu-se.
— E eu tive de ficar sentada lá e fingir que não ligava. Spang, ao meu lado, escutava e me observava. Depois, eles viram que você já estava nas últimas, atiraram você na sala de espera e todo mundo foi para a cama satisfeito da vida. Esperei uma hora em meu quarto e então resolvi agir. O
pior de tudo foi tentar despertar você.
Bond apertou-lhe os ombros com o braço.
— Direi o que penso de você quando estiver menos contundido. Mas, e você, Tiffany? Vai ficar em maus lençóis se eles nos pegarem. E quem são os dois encapuzados, Wint e Kidd? O que é que eles vão fazer agora?
Gostaria de vê-los de novo.
A moça olhou de viés para a feia equimose na boca de Bond.
— Nunca os vi sem os capuzes — confessou ela. — Suponho que eles são de Detroit. Pistoleiros. Encarregam-se dos trabalhos violentos e de missões especiais secretas. Virão em nosso encalço. Mas não se preocupe comigo. — Encarou-o de novo e seus olhos irradiavam felicidade. — A primeira coisa a fazer é levar essa joça a Rhyolite. Depois teremos de achar um carro e cruzar a fronteira com a Califórnia. Dinheiro não vai faltar-. Eu trouxe. Depois iremos a um médico, arranjaremos um banho e uma camisa nova pra você e pensaremos no que vamos fazer. Trouxe seu revólver. Foi encontrado por um dos rapazes que ajudaram a recolher os restos daqueles dois sujeitos que você arrasou no botequim. Apanhei a arma depois que Spang foi para a cama.
Ela desabotoou a blusa e enfiou a mão no cós das calças.
Bond recebeu a Beretta, e sentiu a quentura do corpo da moça no metal.
Removeu o pente. Sobravam três cartuchos, e um estava na agulha.
Recolocou o pente, fechou o registro de segurança e guardou a arma na cintura. Só então notou que estava sem paletó. Uma das mangas da camisa fora reduzida a um trapo. Arrancou-a e jogou-a fora. Apalpou o bolso traseiro direito da calça, à procura da cigarreira e não a encontrou. Mas no esquerdo estavam ainda o passaporte e a carteira de cédulas. Puxou-os do bolso. À luz da lua pôde ver que ambos estavam danificados. O dinheiro continuava na carteira. Pôs outra vez os objetos no bolso.
Durante algum tempo avançaram pela estrada. O silêncio da noite era cortado apenas pelo ronrom da máquina e pelo matraquear das rodas. Até onde a vista alcançava, havia somente uma interrupção da estreita linha prateada dos trilhos, assinalada pela alavanca de manobra das agulhas, no ponto em que um ramal enferrujado penetrava na massa escura dos montes Spectre à direita. À esquerda, descortinava-se o infindável chão do deserto em que o lampejo da aurora começava a debruar de azul as moitas de cactos contorcidos e, duas milhas além, o luar esparramava seu clarão cinza-chumbo sobre a Rodovia 95.
O vagonete cantarolava feliz nos trilhos. Os instrumentos de controle eram poucos: uma alavanca de freio e uma espécie de manche com um acelerador de cabo retorcido que a moça mantinha completamente aberto, com o velocímetro firme em trinta milhas. As milhas e os minutos passavam e, de vez em quando, Bond virava-se com dificuldade na cadeira e inspecionava o florescente rubor do céu às suas costas.
Fazia cerca de uma hora que tinham partido quando um leve zumbido, vibrando no ar ou nos trilhos, pôs Bond de sobreaviso. Novamente ele olhou por cima do ombro. Haveria um vago bruxoleio entre eles e o falso alvorecer da cidade em chamas?
Bond sentiu leve comichão no couro cabeludo.
— Veja se enxerga alguma coisa ali atrás.
A moça voltou-se. Depois, sem responder, diminuiu a marcha do carro que passou a deslizar suavemente.
Puseram-se à escuta. Sim. Era nos trilhos. Uma leve trepidação, nada mais do que um suspiro distante.
— É o Cannonball — disse Tiffany, categórica.
Deu um brusco repelão no acelerador, e o vagonete tornou a ganhar velocidade.
— Quanto pode fazer a locomotiva? — perguntou Bond.
— Talvez sessenta.
— E daqui pra Rhyolite?
— Trinta, mais ou menos.
Bond fez as contas em silêncio.
— Vai ser por um triz. Não é fácil dizer a que distância ela está de nós. E
esse treco pode dar mais alguma coisa?
— Que nada! — disse ela, — Nem que eu me chamasse Casey Jones em vez de Tiffany Case.
— Não tem importância — disse Bond. — Toca pra frente. Talvez ela vá prós ares com uma explosão.
— Ah, sim — disse ela. — Ou talvez a mola dê o prego, ou Spang se lembre que deixou a chave do motor em casa, no bolso da calça.
Viajaram mais quinze minutos em silêncio. Então, Bond divisou o grande farol da locomotiva varando a noite, a umas cinco milhas de distância, e as centelhas subindo pela chaminé. Os trilhos trepidavam e o que tinha sido um suspiro longínquo era agora um murmúrio baixo, ameaçador.
Talvez venha a faltar lenha, pensou Bond. Num impulso, ele perguntou despreocupadamente à moça:
— Será que temos bastante gasolina?
— Temos, sim — disse Tiffany. — Botei uma lata inteira. Não tem mostrador, mas esses motorzinhos giram a vida inteira com um galão.
Mal ela havia acabado de falar, e como se fizesse um comentário, o motorzinho deu uma tossidela de reprovação — cóf-cóf-cóf — e continuou a rodar alegremente.
— Ai, meu Deus! — exclamou Tiffany. — Ouviu isso? Bond ficou calado. Sentiu as mãos tornarem-se úmidas. Outra vez: cóf-cóf-cóf.
Tiffany Case acalentou delicadamente o acelerador.
— Ah, motorzinho querido — disse ela em tom de súplica. —' Vamos, motorzinho lindo, seja bonzinho, por favor...
— Cóf-cóf. Cóf-cóf. Chi. Cóf. Chiiiii...
E no instante seguinte estavam eles escorregando brandamente em silêncio. Vinte e cinco, dizia o velocímetro. Vinte... quinze... dez... cinco.
Um último e selvagem repelão no acelerador, um pontapé de Tiffany Case na armação do motor, e tinham parado.
— Porra! — disse Bond. Com esforço conseguiu saltar e manquejar até o tanque na traseira do vagonete. Tirou do bolso da calça o lenço ensanguentado, desatarraxou a tampa do funil e introduziu o lenço até tocar o fundo do tanque. Puxou-o para fora, apalpou-o e cheirou-o. Seco como um osso.
— Nada feito — disse ele para Tiffany. — Vamos pensar numa saída.
Olhou em volta. Nenhum abrigo à esquerda, e duas milhas pelo menos até à estrada de rodagem. À direita, as montanhas, talvez a um quarto de milha. Podiam chegar lá e esconder-se. Mas por quanto tempo? Contudo, era o melhor alvitre. O chão, sob seus pés, tremia. Esquadrinhou a linha férrea iluminada pelo olho incandescente, implacável. A que distância? Duas milhas? Spang enxergaria o vagonete? Teria tempo de parar? Haveria descarrilamento? Mas aí Bond lembrou-se do poderoso limpa-trilhos, que varreria da linha o vagonete como se fosse um feixe de palha.
— Vamos, Tiffany — bradou ele. — Temos de escalar as colinas.
Onde estava ela? Bond rodeou o carro. Ela vinha correndo pelo trecho da estrada que tinham pela frente. Aproximou-se arquejante.
— Há um desvio logo ali adiante — disse ela entre um ofego e outro. — Se a gente puder empurrar essa coisa até lá e se você puder manobrar as velhas agulhas, pode ser que a gente escape.
— Deus do céu! — disse Bond lentamente. E depois, com uma nota de pasmo na voz, acrescentou: — Há uma coisa melhor do que essa. Me ajude aqui — e, curvando-se, rilhou os dentes contra a dor e começou a empurrar o vagonete.
Recebido o impulso inicial, o carro moveu-se facilmente e eles precisavam apenas segui-lo e não deixar que parasse. Chegaram às agulhas, mas Bond continuou a empurrar até que pararam umas vinte jardas além.
— Que diabo é que você vai fazer? — arquejou Tiffany.
— Vamos pra cá — respondeu Bond, correndo aos tropeções para o ponto em que a chave enferrujada ressaltava ao lado dos trilhos. — Vamos colocar o Cannonball no desvio.
— Genial! — disse Tiffany Case com admiração. Puseram mãos à obra, e os músculos doloridos de Bond forcejavam por erguer a chave.
Lentamente o metal enferrujado começou a mover-se no leito onde jazia imóvel havia cinquenta anos, e milímetro a milímetro os trilhos mostraram uma fenda, que foi se alargando à medida que Bond puxava a alavanca.
Ao terminar, Bond caiu de joelhos no chão, com a cabeça dobrada para baixo, lutando contra a tontura que ameaçava dominá-lo.
Mas já então um feixe de luz iluminava o chão e Tiffany procurava arrastá-lo. Bond ergueu-se e voltou aos trambolhões para o vagonete. O ar estrondava e se enchia do plangente clangor do sino enquanto o flamejante cavalo de ferro galopava em direção a eles.
— Abaixe-se e não se mexa — bradou Bond por cima do barulho e lançou-a ao chão por trás do frágil biombo do vagonete. Depois, coxeou o mais rápido que pôde até a margem dos trilhos, puxou a arma, colocando-se de viés com o braço levantado como um duelista e voltou os olhos semicerrados para o gigantesco farol que avançava debaixo do vulcão de fogo e fumaça turbilhonantes.
Puxa, que monstro! Entraria ele na curva? Ou não respeitaria o desvio e os esmagaria? Lá vinha ele.
— Fittt.
Algo açoitou o chão ao lado de Bond e houve um clarão momentâneo na cabina.
— P-o-e-m-m-m.
Houve outro clarão, e a bala atingiu o trilho, gemendo na noite.
— Trac. Trac. Trac.
Agora era-lhe possível ouvir o revólver acima do trovejar da locomotiva.
Algo cantou em tom agudo no ouvido de Bond.
Bond não respondeu. Só quatro balas, e ele sabia quando devia disparar.
E então, a vinte jardas, a locomotiva entrou na curva e desembestou pelo desvio com uma guinada tão violenta que atirou as achas de lenha do alto do tender na direção de Bond.
Houve um grito roufenho de metal quando as bordas das rodas motrizes de seis pés de altura dobraram a curva, uma breve impressão de fumaça, chama e ruído de motor, e, depois, uma rápida visão da cabina e do vulto negro e prateado de Spang, de braços abertos e pernas estendidas, agarrando-se com uma das mãos ao costado da cabina e com a outra precipitando-se para a alavanca do acelerador.
A arma de Bond bradou suas quatro palavras. Houve um curto vislumbre de uma cara branca arremessada para o alto, e logo a enorme locomotiva preta e amarela distanciou-se, reboando rumo à muralha sombria dos montes Spectre, o feixe de luz do farol ceifando a treva e o sino dobrando tristemente dim-dão, dim-dão, dim-dão.
Bond guardou lentamente a Beretta no cós das calças, e ficou olhando o ataúde de Mr. Spang, enquanto a esteira de fumaça subia no ar e por um momento encobria a face da lua.
Tiffany veio correndo até onde ele estava, e lado a lado puseram-se a contemplar a bandeira de chamas que se elevava da alta chaminé e escutar as montanhas multiplicarem o atroar da locomotiva. A moça agarrou-lhe os braços quando o comboio deu uma guinada repentina e sumiu-se atrás de um esporão da pedra. E agora ouvia-se apenas um longínquo tamborilar nas montanhas e avistava-se um clarão vermelho que fazia tremular os penhascos enquanto Cannonball despencava no bojo da rocha.
E subitamente apareceu uma imensa língua de fogo, no mesmo instante em que se produziu tremendo choque metálico semelhante ao encontrão de um encouraçado num penedo. Debaixo de seus pés ressoou um estrépito abafado. Finalmente, um ribombo distante e profundo levantou-se das entranhas da terra, seguido por uma barragem de ecos os mais variados.
Então, findos todos os ruídos, zuniu, firme, o silêncio.
Bond soltou um suspiro profundo como se estivesse despertando. Aí estava o fim de um dos Spangs, de um dos enfatuados, cruéis, aparatosos, irrecuperáveis adultos que compunham a quadrilha dos Spangs. Fora um gangster teatral e vivera num ambiente de caixa de palco. Mas isso não alterava o fato de que pretendera liquidar Bond.
— Vamos embora daqui — disse Tiffany Case com sofre-guidão. — Para mim chega de Spectreville.
Bond sentiu a dor insinuar-se-lhe outra vez por todo o corpo à medida que passava a tensão. "Vamos" — respondeu, lacônico. Alegrava-o a ideia de voltar as costas à lembrança daquele rosto branco virado para cima, dentro da bela locomotiva negra em marcha. Estava ligeiramente tonto e duvidava se seria capaz de fazer o percurso.
— Temos de alcançar a estrada. Vai ser difícil. Mas vamos embora.
Levaram uma hora e meia para vencer as duas milhas e, no momento em que se prostrou no solo à margem da estrada de cimento, Bond estava delirante. Foi a moça que o conduziu até lá. Sem ela, ele não teria chegado.
Teria tropeçado no meio dos cactos, das pedras e da mica até que lhe faltassem as forças e o sol causticante se encarregasse de completar o serviço.
Agora ela lhe segurava a cabeça no regaço, falava-lhe docemente e lhe enxugava o suor da testa com a ponta da blusa.
E de vez em quando parava para examinar uma banda e outra da estrada retilínea de concreto, cujos horizontes já tremeluziam nas ondas de calor do amanhecer.
Uma hora depois, ela ergueu-se de um salto, enfiou a blusa por dentro das calças, correu e parou no meio da estrada. Um carro baixo e negro rompia a neblina esvoaçante que ocultava o distante vale de Las Vegas.
O carro estacou justamente diante dela. Um rosto adunco sob um topete desalinhado de cabelo cor de palha assomou à janela. Os penetrantes olhos cinzentos miraram-na de alto a baixo. Pousaram-se na figura do homem deitado no solo à margem da estrada e tornaram para a moça.
Então, com a amistosa fala arrastada dos texanos, o chofer rompeu o silêncio:
— Félix Leiter, senhorita. Às suas ordens. Em que posso servi-la nesta magnífica manhã?
21 - "Nada é tão apropinquante como a propinquidade"
—...E QUANDO CHEGUEI à cidade telefonei pra meu amigo Ernie Cureo. James sabe quem é. A mulher dele estava de ataque e Ernie no hospital. Corro pra lá e ele me passa o serviço e eu imagino que James pode precisar de reforços. Monto na minha égua preta cor de carvão e vou esquipando noite adentro e quando chego perto de Spectreville vejo o clarão no céu. Calculo então que Mr. Spang está preparando um churrasco. O
portão da cerca está aberto e eu resolvo tomar parte na festa. Bom, creiam-me vocês ou não, o fato é que não há vivalma no local, exceto um cara de perna arrebentada e contusões generalizadas, que vem se arrastando pela estrada, tentando dar o pira. E ele me dá a impressão de ser um arruaceiro de nome Frasso, de Detroit. Ernie Cureo tinha dito que era um dos caras que tinham levado James. Ele não estava em condições de negar isso e eu então manjei a situação toda e compreendi que Rhyolite era minha próxima parada. Aí eu digo pro nosso amigo que daí a pouco os bombeiros virão fazer companhia a ele, levo-o até o portão e deixo-o lá. E de uma hora para outra vejo uma guria no meio do deserto, com o ar de quem tinha sido disparada de um canhão. E aqui estamos todos. Agora é a vez de vocês contarem.
"Então tudo isto não é parte de um sonho e eu estou deitado no assento traseiro no Studillac e este é o colo de Tiffany debaixo da minha cabeça e aquele ali é Félix e nós estamos indo às carreiras pela estrada a caminho da segurança, de um médico, de um banho, de comida, de bebida e de um longo sono reparador." Bond mexeu-se e sentiu que a mão de Tiffany em seu cabelo dizia que tudo era real e tal como havia esperado. Imobilizou-se novamente e nada disse. Guardava cada momento para si e lhes escutava as vozes e o zunido dos pneus rolando pela estrada.
Ao fim da narrativa de Tiffany, Félix Leiter largou um assobio de estupefação.
— Puxa! — exclamou ele. — Então vocês dois abriram um rombo espetacular na quadrilha de Spang. Que diabo é que vai acontecer agora? Há muitos outros marimbondos na casa e isso de ficar zumbindo em volta não é do feitio deles. Eles vão exigir ação.
— Certo! — disse Tiffany. — Spang era membro da associação de Las Vegas, e esses camaradas são muito solidários. Há também Shady Tree e aqueles dois pistoleiros, Wint e Kidd. Só o diabo sabe quem são eles. Quanto mais cedo a gente cruzar a fronteira estadual, melhor. E depois, o que vamos fazer?
— Até aqui vai tudo em ordem — disse Félix Leiter. — Em dez minutos chegaremos a Beatty, depois pegaremos a 58 e passaremos nela uma meia hora. Em seguida, toparemos um longo trecho através do Vale da Morte e sobre as montanhas até Olancha, onde atingiremos a N.° 6. Poderíamos dar uma paradinha lá, levar James a um médico, comer alguma coisa e tomar um banho. Depois continuaremos na 6 até chegarmos a Los Angeles. Será muito puxado, mas poderemos estar em Los Angeles na hora do almoço. Aí podemos descansar um pouco e bolar algum plano. Meu palpite é que temos de tirar você e James do país o mais cedo possível. Os meninos tentarão pegar vocês dois de qualquer jeito, e se conseguirem eu não darei um níquel pela vida de nenhum dos dois. A melhor solução seria botá-los num avião para Nova York hoje de noite e despachá-los amanhã para a Inglaterra.
James pode embarcar lá.
— Acho que é razoável — disse a moça. — Mas, afinal, quem é esse Bond? O que é que ele faz? É um detetive ou coisa semelhante?
— Acho melhor que você mesma pergunte a ele — Bond ouviu Leiter dizer cautelosamente. — Mas eu, se fosse você, não me preocuparia com isso. Ele cuidará de você.
Bond sorriu para si mesmo e, no longo silêncio que se seguiu, caiu num sono intranquilo que durou até o momento em que atravessaram a Califórnia e o carro parou defronte de um portãozinho com a placa "Otis Fairplay, Médico".
E depois, enfaixado e pintado com mercúrio-cromo, banhado e barbeado, com um suculento café matinal no estômago, Bond voltou ao carro e ao mundo. Tiffany readquirira o velho ar irônico e intratável e Bond revelava-se útil na espionagem dos patrulheiros rodoviários, enquanto Leiter avançava a oitenta milhas pela interminável estrada estonteante, rumo à longínqua linha de nuvens que escondiam as High Sierras.
Mais tarde rolavam tranquilamente ao longo de Sunset Boulevard, ladeado pelas palmeiras e pelos gramados verdejantes. O Studillac coberto de poeira destoava no meio das cintilantes Corvettes e Jaguars. Finalmente, ao anoitecer, estavam sentados no bar escuro e refrigerado do Beverly Hills Hotel. Havia novas maletas no saguão, roupas novas adquiridas em Hollywood, e até mesmo o rosto de Bond, marcado de cicatrizes da luta, poderiam indicar que tinham terminado o trabalho nos estúdios.
Havia um telefone em cima da mesa, ao lado dos martinis. Félix Leiter acabava de falar com Nova York pela quarta vez desde que haviam chegado.
— Bom, está tudo arranjado — disse ele, desligando o telefone. — Meus colegas do escritório conseguiram passagens no Elizabeth. Adiou a partida por causa de uma greve nas docas. Sai amanhã de noite, às oito. Eles.irão ao encontro de vocês de manhã em La Guardiã, com as passagens, e vocês serão levados para bordo de tarde. Pegaram o resto de suas coisas no Astor, James. Uma pasta e os teus célebres tacos de golfe. E Washington oferece um passaporte a Tiffany. Haverá um homem do Departamento de Estado no aeroporto. Vocês terão que assinar uns formulários. Consegui que um dos meus antigos colegas da CIA arranjasse a coisa. Os vespertinos fizeram uni bruto estardalhaço com a estória. "Cidade Morta Desaparece" e outras manchetes desse tipo. Mas parece que ainda não descobriram nosso amigo Spang e os nomes de vocês não figuram no noticiário. Meu pessoal diz que não há nada com vocês na polícia, mas um de nossos informantes secretos diz que as quadrilhas estão à procura de vocês e espalharam por toda parte uma descrição de ambos. Com a promessa de dez mil. Assim, é melhor mesmo dar no pé o mais cedo possível. É aconselhável irem para bordo separadamente. Tomem o maior cuidado, vão para os camarotes e não saiam de lá. Vai haver o diabo quando eles chegarem ao fundo daquela velha mina.
Isso fará pelo menos três cadáveres a zero, e esse tipo de escore não é do agrado deles.
— Pinkerton é uma verdadeira máquina — disse Bond, com admiração.
— Mas ficarei satisfeito quando estivermos longe daqui. Eu pensava que os seus gangsters eram um bando de italianos untuosos, que se empanturravam de pizza e cerveja a semana toda e no sábado assaltavam uma garagem ou uma farmácia para arranjarem dinheiro para as corridas. Mas não há dúvida que eles incluem um bocado de violência na folha de pagamentos.
Tiffany Case riu zombeteiramente.
— Você precisa mandar examinar essa cabeça — disse ela, categórica.
— Se sairmos inteirinhos do Lizzie será um verdadeiro milagre. Por aí você pode ter uma ideia de como eles são. Se não fosse aqui o nosso Capitão Gancho-de-Aço, não sei o que seria de nós. Untuosos! Pois sim!
Félix Leiter soltou uma risadinha.
— Calma, pombinhos — disse ele, consultando o relógio. — Temos de partir. Preciso voltar a Las Vegas hoje de noite e começar a procurar o esqueleto do nosso Shy Smile. E vocês têm de pegar o avião. Poderão continuar a arenga a vinte mil pés de altura. De lá a perspectiva é mais interessante. É possível até que terminem como amigos. Lembrem-se do que se diz por aí. — Fez um aceno para o garçom. — Nada é tão apropinquante como a propinquidade.
Leiter levou-os ao aeroporto e deixou-os lá. Bond sentiu um nó na garganta quando o vulto magro saiu coxeando para o carro depois de ter sido efusivamente abraçado por Tiffany Case.
— Você pode dizer que tem um amigo de verdade — disse a moça ao ver Leiter bater a porta e ouvir o estrondo do escape enquanto o carro partia de volta ao deserto.
— Sim — disse Bond. — Félix é cem por cento.
O luar arrancou cintilações do gancho de aço quando Leiter acenou um último adeus. Depois, a poeira assentou na estrada e soou a voz de ferro do alto-falante: "Trans-World Airline, Voo 93. Embarque no Portão N.° 5 para Chicago e Nova York. Todos a bordo, por favor." Eles abriram caminho através das portas de vidro e deram os primeiros passos de sua longa viagem para Londres.
O novo Super-G Constellation roncou por cima do continente envolto em sombras, e Bond, deitado em seu confortável beliche, esperando que o sono lhe tomasse conta do corpo dolorido, pensava em Tiffany, que dormia no beliche de baixo, e no estágio em que se encontrava sua missão.
Pensou no lindo rosto adormecido sobre a mão aberta, inocente e indefeso, esvaecidos o desdém dos olhos cinzentos e rasos e a curva irônica dos cantos da boca ardente. Bond sabia que estava bem perto de apaixonar-se. Mas, e ela? Até onde ia aquela rebelião masculina gerada certa noite em São Francisco, quando os homens lhe invadiram o quarto e a ofenderam?
Chegariam a adolescente e a mulher a transpor a barricada que haviam começado a construir naquela noite contra todos os homens do mundo?
Romperia ela a concha que os anos de solidão e retraimento tornavam cada vez mais rija?
Bond recordou aqueles momentos das últimas vinte e quatro horas em que conhecera a resposta, momentos em que uma jovem arrebatada e terna surgira feliz, sem a máscara agressiva que usava entre os gangsters, no contrabando, no cassino, na mesa de vinte-e-um, e lhe dissera: — Toma-me pela mão. Abre a porta e caminharemos de mãos dadas no dia claro. Não te preocupes. Acertarei meu passo pelo teu. Sempre estive a teu lado em pensamento, mas tu não vieste e passei a vida escutando outra cadência.
Sim, pensou ele. Tudo correrá bem, por esse lado. Mas estava preparado para as consequências? Uma vez que a tomasse pela mão, seria para sempre.
Estaria no papel do médico, do psicanalista, a quem a paciente transfere seu amor e sua confiança, enquanto se liberta da doença. Não poderia haver maior crueldade do que soltar-lhe a mão depois de a ter tomado nas suas.
Estava preparado para as repercussões que esse ato teria em sua vida e em sua profissão?
Bond mexeu-se no beliche e descartou-se do problema. Era muito cedo ainda para enfrentá-lo. Estava indo muito depressa. Mais devagar. Cada coisa a seu tempo. E obstinadamente arquivou a questão, dirigindo os pensamentos para M e para a missão que lhe cumpria concluir antes de perder tempo com sua vida particular.
Bem, uma parte da serpente estava esmagada. A cabeça ou o rabo?
Difícil dizer, mas Bond tendia a julgar que Jack Spang e o misterioso ABC
eram os verdadeiros manipuladores do contrabando de diamantes e que Seraffimo se incumbia da receptação. Seraffimo podia ser substituído.
Tiffany podia ser dispensada. Shady Tree, a quem ela poderia implicar no contrabando, teria de ficar oculto até que a tormenta — se é que Bond era realmente um prenuncio de tempestade — se desencadeasse. Mas nada havia que pudesse implicar Jack Spang ou a House of Diamonds, e a única pista para ABC era o telefone londrino, cujo número Bond trataria de obter da moça o mais cedo possível. Mas este, e todo mecanismo dos contados a ele relacionados, seria alterado logo depois que todos os fatos da deserção de Tiffany e da fuga de Bond fossem comunicados a Londres, presumivelmente por Shady Tree. Assim, tudo isto, refletiu Bond, colocava Jack Spang e, através dele, ABC como seu próximo alvo. O que tinha a fazer de imediato, concluiu Bond antes de se abandonar ao sono, era relatar toda a situação a M
assim que embarcasse no Queen Elizabeth. Daí por diante Londres tomaria conta do caso. Os homens de Vallance sairiam a campo. Bond não teria muito que fazer quando regressasse. Relatórios e mais relatórios a escrever.
A mesma velha rotina no escritório. E de noite haveria Tiffany no quarto atualmente desocupado de seu apartamento, numa transversal de Kings Road. Precisava mandar um telegrama para May a fim de que ela arrumasse as coisas. Vejamos... flores, sais de banho de Floris, lençóis limpos...
Dez horas depois de terem deixado Los Angeles, sobrevoaram La Guardiã e viraram para o mar a fim de preparar o pouso.
Eram oito horas da manhã de domingo e havia pouca gente no aeroporto, mas um funcionário interrompeu-lhes a caminhada quando seguiam pela pista alcatroada e os conduziu para uma entrada lateral, onde os esperavam um homem de Pinkerton e um representante do Departamento de Estado.
Enquanto conversavam, a bagagem foi-lhes trazida. Depois, levaram-nos para fora da estação de passageiros, onde os aguardava um elegante Pontiac marrom, com o motor em movimento e as persianas do vidro traseiro abaixadas.
Passaram ainda algumas horas de ócio no apartamento do homem de Pinkerton até que, por volta das quatro da tarde, mas com um quarto de hora de diferença entre eles, galgaram a prancha de embarque, penetraram no negro, majestoso e seguro ventre britânico do Queen Elizabeth e, por fim, encerraram-se em seus camarotes no convés M, com as portas trancadas para o mundo.
Mas, quando, em primeiro lugar, Tiffany Case e, depois, Bond puseram os pés na prancha de embarque, um doqueiro do Sindicato de Estivadores de Anastásia correu para a cabina telefônica do galpão da alfândega.
E três horas mais tarde dois homens de negócios americanos saltavam de um sedan negro à porta de um armazém das docas, passavam às pressas pelo serviço de imigração e pela alfândega e galgavam a prancha de embarque, quando os alto-falantes começavam a pedir aos visitantes que desembarcassem.
Um dos homens de negócios era ainda jovem, de feições delicadas e fios de cabelos embranquecidos aparecendo sob o Stetson recoberto por uma capa impermeável. O nome impresso na pasta que carregava era B.
Kitteridge. O outro era um gorducho grandalhão, com um brilho nervoso nos olhos miúdos por trás das lentes bifocais. Suava em bicas e constantemente enxugava o rosto com um lenço enorme. O nome no cartão pendurado na alça da pasta era W. Winter. Em baixo do nome, lia-se em tinta vermelha: MEU GRUPO SANGuÍNEO É F.
22 - Amor e molho bearnês
Às OITO HORAS em ponto, o prolongado e ressoante apito da sirena do Queen Elizabeth fez tremer a vidraça dos arranha-céus. Com grande rebuliço, os rebocadores arrastaram-no para o meio do rio, abrindo-lhe o caminho. Por fim, desenvolvendo cautelosamente cinco nós, o transatlântico pôs-se a descer o rio, cortando as águas remansosas.
Após a parada para desembarcar o prático no Farol de Ambrose, as quádruplas hélices fustigariam o mar, convertendo-o em creme de leite, e o Queen Elizabeth, com um estremecimento de alívio, começaria a fender o longo arco achatado, entre os paralelos 45 e 50, a caminho de Southampton.
Sentado no camarote, escutando o ranger do madeiramento e contemplando o lápis rolar suavemente em cima da penteadeira, entre a escova de cabelo e a borda de seu passaporte, Bond recordava os dias em que outra era a rota da embarcação, os dias em que ela ziguezagueava no Atlântico Sul, brincando de esconde-esconde com os ferozes cardumes de submarinos alemães, a caminho da Europa em chamas. Ainda era uma aventura, mas agora o Queen Elizabeth — protegido num casulo de radar, rádio e sondador de ecos — movia-se com as precauções de um potentado oriental entre escoltas e batedores e, no que dizia respeito a Bond, tédio e indigestão eram os únicos riscos da viagem.
Pegou o telefone e pediu para falar com Miss Case. Quando ela lhe ouviu a voz, rompeu num gemido teatral.
— A loba do mar odeia o mar — disse ela. — Ainda não saímos do rio e eu já estou enjoada.
— Não faz mal — disse Bond. — Não saia do camarote e tome dramamina e champanha. Vou passar uns dois ou três dias em repouso. Vou mandar chamar o médico e o massagista dos banhos turcos pra ver se junto de novo as peças. E de qualquer modo não faz mal nenhum que a gente passe a maior parte da viagem no camarote. É possível que nos tenham localizado em Nova York.
— Bom, se você promete telefonar todos os dias — disse Tiffany — e promete me levar àquela Veranda Grill logo que eu puder engolir um pouco de caviar, eu concordo. Está bem assim?
Bond soltou uma gargalhada.
— Já que você insiste, eu prometo — disse ele. — E agora, escute. Em troca, eu quero que você tente lembrar-se de tudo o que puder a respeito de ABC e do lado londrino de nosso negócio. Aquele número de telefone e o mais que você julgar importante. Logo que puder, eu lhe direi por que estou interessado nisso. Por enquanto você tem de confiar em mim. Combinado?
— Combinado — disse a moça com indiferença, como se toda essa fase de sua vida tivesse perdido o interesse; e, durante dez minutos, Bond inquiriu-a minuciosa, mas (exceto no que tocava a pormenores insignificantes) inutilmente, acerca das atividades de ABC.
Depois desligou o telefone, chamou o camareiro, encomendou o jantar e sentou-se para escrever o longo relatório que teria de transpor em código e despachar naquela mesma noite.
O rebocador conduziu tranquilamente o navio para a treva, e a cidadezinha de três mil e quinhentos habitantes preparou-se para viver os cinco dias da viagem, durante os quais poderiam registrar-se todas as ocorrências naturais em qualquer outra comunidade desse porte — furtos, brigas, seduções, bebedeiras, embustes, talvez um ou dois partos, a possibilidade de um suicídio e, em cem travessias, até mesmo um homicídio.
Quando o burgo de ferro começou a sulcar serenamente a imensidão do Atlântico e a brisa suave da noite zuniu e gemeu no topo do mastro, as antenas de rádio já estavam transmitindo a mensagem do operador de serviço ao ouvido atento de Portishead.
E o que o operador enviava, precisamente às dez horas da noite, E. S. T., era um telegrama endereçado a ABC, CUIDADOS HOUSE OF DIAMONDS, HATTON GARDEN, LONDRES, e
que dizia:
LOCALIZADOS PT CASO ASSUNTO EXIJA SOLUÇÃO DRÁSTICA ESSENCIAL VOCÊ FIXAR PREÇO PAGO EM DÓLARES. Assinado: WINTER.
Uma hora depois, enquanto o operador do Queen Elizabeth lamentava ter de transmitir quinhentos grupos de cinco letras dirigidos ao DIRETOR PRESIDENTE, EXPORTADORA UNIVERSAL, REGENTS PARK, LONDRES, o rádio de Portishead enviava uma breve mensagem a WINTER, PASSAGEIRO PRIMEIRA CLASSE QUEEN ELIZABETH, que dizia:
DESEJO SOLUÇÃO IMEDIATA PROBLEMA CASE PT PAGAREI VINTE MIL PT
CUIDAREI PESSOALMENTE OUTRO ASSUNTO CHEGADA LONDRES CONFIRME ABC.
O operador procurou Winter na lista de passageiros, meteu a mensagem num envelope e enviou-a a um camarote no convés A, abaixo do de Bond e da moça, onde os dois homens jogavam cartas em mangas de camisa.
Quando o mensageiro saiu do camarote, ouviu o gorducho dizer para o homem dos cabelos brancos: — Pois é, Kidd. Vinte mil. É pra valer!
Não foi senão no terceiro dia que Bond e Tiffany resolveram encontrar-se no Observation Lounge, para um coquetel, e mais tarde no Veranda Grill, para jantar. Ao meio-dia, a calmaria era total, e depois do almoço no camarote Bond recebera um ultimato em redondo cursivo feminino numa folha de bloco do navio: "Marque um encontro comigo hoje. Não falhe".
Imediatamente Bond pegara o telefone.
Estavam sedentos da companhia um do outro depois dos três dias de separação, mas as defesas de Tiffany estavam de pé quando ela se reuniu a ele na escura mesa de canto que Bond havia escolhido na cintilante sala semicircular, situada na proa.
— Que espécie de mesa é esta? — perguntou ela com sarcasmo. — Está com vergonha de mim? Então eu ponho o mais belo modelo dos costureiros de Hollywood e você me esconde como se eu fosse Miss Reno 1914? Quero me divertir nessa geringonça e você me bota num canto como se eu fosse contagiosa.
— É isso mesmo — disse Bond. — O que você quer é elevar a temperatura de outros homens.
— Que é que você espera que uma moça faça no Queen Elizabeth?
Pescar?
Bond riu. Acenou para o garçom e pediu vodca-martini seco com casca de limão.
— Eu podia te oferecer uma alternativa.
— Já sei — disse a moça. — Meu querido diário: estou na maravilhosa companhia de um inglês bonitão. O que me aflige é saber que ele anda atrás das jóias da minha família. Que devo fazer? Sua criada, desorientada. — Num movimento súbito, ela inclinou o busto para a frente e pousou a mão na do homem. — Escute aqui, mestre Bond — disse ela. — Estou felicíssima.
Adoro isso aqui. Adoro estar com você. E adoro esta mesinha escura onde ninguém pode me ver segurando sua mão. Não ligue pra minha conversa. É que eu não posso me conter de tão feliz. Não faça caso das minhas brincadeiras.
Ela vestia uma blusa de xantungue de seda creme e uma saia de algodão e lã preto-carvão. As cores neutras ressaltavam-lhe a tez café-au-lait. O minúsculo relógio Cartier quadrado, com a pulseira preta, era sua única jóia, e as unhas curtas da mão pequena e morena que Bond tinha entre as suas estavam sem esmalte. A luz do sol, refletida do exterior, refulgia no ouro pálido das largas ondas do cabelo, nas profundezas dos cinzentos olhos opalescentes e nos alvos dentes que cintilavam entre os lábios sensuais.
— Não — disse Bond. — Não farei caso, Tiffany. Tudo em você é esplêndido.
Ela o encarou nos olhos e ficou satisfeita. O garçom trouxe-lhes a bebida. Ela retirou a mão e observou-o ironicamente por cima da borda de seu copo.
— Agora eu quero saber umas coisinhas — disse ela. — Em primeiro lugar, o que é que você faz e para quem trabalha? A princípio, no hotel, pensei que você era um vigarista. Mas, não sei por quê, quando você foi embora, vi que não era. Acho que devia ter avisado ABC, e com isso teria evitado essa onda toda. Não avisei, e pronto! Vamos, James. Responda.
— Trabalho para o governo — disse Bond —, que quer acabar com esse contrabando de diamantes.
— Espécie de agente secreto?
— Funcionário público, apenas.
— Está bem. E o que é que você vai fazer comigo quando chegarmos a Londres? Trancafiar-me?
— Sim. No quarto desocupado de meu apartamento.
— Assim é melhor. Terei de me tornar súdita da Rainha como você?
Gostaria de ser súdita.
— Acho que podemos arranjar isso pra você.
— É casado? — Fez uma pausa. — Ou tem alguma ligação?
— Não. Um caso ou outro de vez em quando.
— Quer dizer então que você é um desses sujeitos fora de moda que gostam de dormir com mulher? Por que não se casou?
— Creio que porque eu acho que posso manobrar melhor a minha vida sozinho. A maioria dos casamentos não soma duas pessoas. Subtrai uma da outra.
Tiffany Case refletiu um pouco.
— Talvez você tenha razão — disse ela, afinal. — Mas depende do que se soma. Pode ser algo humano ou inumano. Ninguém é auto-suficiente.
— E você?
A moça não gostou da pergunta.
— Talvez eu esteja do lado do inumano — respondeu com rispidez. — E com que diabo de homem você queria que eu me casasse? Com Shady Tree?
— Pode ter havido muitos outros.
— Não houve — disse ela com raiva. — Você é capaz de achar que eu não devia ter me misturado com esses calhordas. Bem, talvez eu tenha dado o passo que não devia dar. — A chama de cólera se apagou e a moça assumiu a defensiva. — Isso acontece com certas pessoas, James. Acontece mesmo. E às vezes não é culpa delas.
James Bond estirou o braço e apertou a mão da moça.
— Eu sei, Tiffany — disse ele. — Félix me contou. É por isso que não perguntei nada. Não pense mais nisso, não. O que importa é o dia de hoje, aqui, agora. Não o dia de ontem. — Desviou o assunto. — Agora é a sua vez de me fornecer alguns fatos. Por exemplo, de onde é que vem esse nome Tiffany e que tal ser banqueira no Tiara? Como é que você chegou a cartear tão bem? Simplesmente espetacular a maneira como você tratava aquele baralho. Se pode fazer aquilo, pode fazer qualquer outra coisa.
— Não diga — replicou a moça com ironia. — Fazer o quê, por exemplo? Brincar de sapateira? E quanto ao nome Tiffany a explicação é simples. Quando eu nasci, papai Case ficou tão zangado por eu não ser menino que deu à minha mãe mil dólares e uma lata de talco comprada em Tiffany e foi embora de casa. Foi ser fuzileiro naval. Terminou morrendo em Iwo Jima. Então minha mãe me botou o nome de Tiffany Case e tratou de ganhar a vida pra nós duas. Começou com uma espelunca e umas garotas e com o tempo foi ficando mais ambiciosa. Talvez essa história não seja muito do seu agrado.
Ela lhe lançou um olhar meio defensivo, meio suplicante.
— Não me preocupa — disse Bond secamente. — Você não era uma das pequenas.
Ela deu de ombros.
— Um dia o lugar foi invadido pelos gangsters. — Interrompeu-se para beber o resto do martini. — E eu dei no pé, por minha conta. Passei pelos empregos comuns a todas as moças. Depois fui para Reno. Lá eles mantêm uma escola de jogo e eu dei duro. Curso completo. Dados, roleta e vinte-e-um. Pode-se ganhar bom dinheiro nos cassinos. Duzentos por semana. Os homens gostam quando as moças bancam o jogo e as mulheres se sentem mais confiantes. Acreditam que a gente vai se mostrar bondosa com elas.
Pensam estar entre irmãs. Quando são homens que bancam o jogo, elas se apavoram. Mas não pense que essa estória toda é assim tão engraçada.
Contada, é uma coisa; vivida, é outra. — Fez uma pausa e sorriu. — Tenha a palavra, agora. É a sua vez. Pague mais um trago e me diga que tipo de mulher você acha que soma com você.
Bond chamou o garçom. Acendeu um cigarro e voltou-se para Tiffany.
— Alguém que saiba fazer molho bearnês e amor — disse ele.
— Já sei! Qualquer bruxa velha que saiba cozinhar e deitar-se de costas.
— Ah, não. Ela precisa ter todas essas coisas que as mulheres geralmente têm. — Bond examinou-a. — Cabelo cor de ouro. Olhos cinzentos. Boca pecadora. Silhueta perfeita. E naturalmente tem de contar piadas engraçadas, vestir-se bem e jogar cartas. As prendas naturais.
— E você casaria com uma mulher assim, se a encontrasse?
— Não necessariamente — disse Bond. — Pra falar com franqueza, já sou quase casado. Com um homem cujo nome começa com M. Teria de me divorciar dele antes de casar com uma mulher. E não sei se isso me agradaria. Ela me obrigaria a passar canapés de mão em mão numa sala de visita em forma de L. E haveria aquelas chatérrimas discussões "Foi você — Não, foi você" que parecem combinar tão bem com todos os casamentos.
Não daria certo. No primeiro acesso de claustro-fobia, iria embora pro Japão ou pra qualquer outra parte.
— E filhos?
— Gostaria de ter alguns — disse Bond. — Mas só quando me aposentasse. De outra forma, não seria justo. Meu trabalho não é lá muito seguro. — Olhou para o copo e bebeu todo o martini. — E você, Tiffany? — perguntou, a fim de mudar de assunto.
— Acho que toda moça gostaria de chegar em casa e encontrar um chapéu na mesinha do corredor — disse Tiffany, melancólica. — O diabo é que eu nunca encontrei nada que prestasse debaixo do chapéu. Talvez não tenha procurado bastante ou não tenha procurado nos lugares certos. Você sabe como é: quando a gente entra na rotina não quer mais sair. Assim fiz eu no meio dos Spangs. Sabia sempre de onde era que vinha a comida. Fiz algumas economias. Mas uma moça não pode ter amigos naquele ambiente.
Ou bota uma placa "Proibida a Entrada" ou de uma hora pra outra se vê cercada de malandros. Mas acho que já estou farta de viver só. Conhece o refrão das coristas da Broadway? "É triste a trouxa de roupa que não tem uma camisa de homem".
Bond riu.
— Mas agora você está fora da rotina — disse ele e olhou-a zombeteiramente. — E Mr. Seraffimo? E aqueles dois quartos de dormir no Pullman, a ceia para dois com champanha...?
Antes que concluísse, ela levantou-se da mesa, os olhos vermelhos, e caminhou para fora do bar.
Bond se amaldiçoou. Colocou algum dinheiro sobre a conta e saiu correndo atrás dela. Foi encontrá-la quase no meio do tombadilho de passeio.
— Por favor, Tiffany, escute — começou ele.
Ela voltou-se e encarou-o.
— Como se pode ser tão mesquinho? — disse ela, e lágrimas iradas brilharam-lhe nos cílios. — Por que você tem de estragar tudo com uma observação ferina como aquela? Oh, James! — Em desespero virou-se para as janelas, procurando um lencinho na bolsa. Enxugou os olhos. — Você simplesmente não compreende.
Bond cingiu-a com um braço e puxou-a para si.
— Meu amor! — Sabia que nada senão o grande passo do amor físico curaria esses mal-entendidos, mas que era necessário ;ainda desperdiçar tempo e palavras. — Não tive a intenção de magoar você. Eu queria somente ter certeza. Aquela mesa posta para a ceia no trem me feriu muito mais do que o que aconteceu depois. Tinha de lhe fazer aquela pergunta.
Ela ergueu a vista, ainda em dúvida.
— Está falando sério? — perguntou, observando-lhe o rosto. — Quer dizer que você já me queria bem?
— Não seja boba — disse Bond, impaciente. — Então você não sabe nada de nada?
Ela afastou-se e contemplou pela janela o infindável mar azul e as gaivotas que acompanhavam esse navio extraordinariamente pródigo.
Depois de algum tempo, perguntou:
— Você já leu Alice no País das Maravilhas?
— Há muitos anos — disse Bond, surpreso. — Por quê?
— Há lá umas linhas que muitas vezes me vêm à memória — disse ela.
— "Oh Ratinho, conheces o caminho que conduz para fora deste poço de lágrimas? Estou muito cansada de nadar dentro dele, oh Ratinho". Lembra-se dessa passagem? Pois bem, eu pensava que você ia me mostrar a saída e, em vez disso, você me empurra pra dentro do poço. Por isso é que fiquei transtornada. — Ergueu a vista. — Mas acredito que você não teve intenção de me magoar.
Bond olhou-lhe a boca demoradamente e depois beijou-a nos lábios.
Ela não retribuiu e esquivou-se. Seus olhos sorriam de novo. Deu o braço a ele e voltou-se para as portas abertas que conduziam ao elevador.
— Me leve lá pra baixo — disse ela. — Preciso recompor a fachada e, além disso, quero me preparar com cuidado para agradar ao candidato. — Ficou um instante em silêncio e depois colou a boca no ouvido dele. — Talvez isso lhe interesse, James Bond — disse baixinho. — Nunca em minha vida fiz o que você chama "dormir com um homem". — Puxou-o pelo braço. — Agora vamos — disse bruscamente. — Afinal, já é hora de tomar um "quente doméstico". Suponho que isso faz parte da língua dos súditos que você está querendo que eu aprenda. Vocês, súditos, escrevem as coisas mais loucas nos banheiros.
Bond levou-a até o camarote dela, voltou para o seu e tomou um "quente salgado" na banheira, seguido de um "frio doméstico" no chuveiro. Depois, estirou-se na cama, recordando com um sorriso algumas das coisas que ela havia dito, e pensou nela, deitada na banheira, intrigada com a floresta de torneiras e imaginando que os ingleses eram loucos varridos.
Soou uma pancada na porta e o camareiro entrou com uma bandejinha que colocou em cima da mesa.
— Que diabo é isso? — perguntou Bond.
— Foi enviado pelo cozinheiro-chefe, senhor — respondeu o camareiro, retirando-se em seguida e fechando a porta do camarote.
Bond desceu da cama e foi examinar o conteúdo da bandeja. Não pôde deixar de rir. Havia uma garrafinha de Bollinger, um rescaldeiro com quatro talhadas de bife em canapés de torrada, e uma tijelinha de molho. Debaixo desta, uma nota escrita a lápis dizia: "Este molho bearnês foi criado por Miss T. Case sem minha assistência". Assinado: "O Chefe".
Bond encheu uma taça de champanha, espalhou um pouco de molho numa talhada de bife e mastigou atentamente. Depois foi ao telefone.
— Tiffany?
Ouviu o risinho abafado e divertido no outro extremo do fio.
— Bem, não há dúvida de que você faz um maravilhoso molho bearnês...
Repôs o telefone no gancho.
23 - O trabalho fica em segundo plano
MOMENTO INEBRIANTE NUM CASO amoroso é aquele em que, pela primeira vez, em público, num restaurante ou num teatro, o homem pousa a mão na coxa da mulher e ela, tomando-a nas suas, aperta-a contra si.
Os dois movimentos dizem tudo o que pode ser dito. Concluem todos os acordos. Firmam-se todos os pactos. E há um longo minuto de silêncio durante o qual o sangue canta nas veias.
Eram onze horas e havia poucas pessoas espalhadas nos cantos da Veranda Grill. O mar arfava baixinho sob o luar lá fora e o magnífico paquete arava a negra pradaria do Atlântico. À popa, apenas um levíssimo galope mostrava uma suave ondulação, as doze lentas pulsações por minuto de um oceano adormecido, aos dois seres aconchegados atrás do quebra-luz cor-de-rosa.
O garçom trouxe-lhes a conta, e suas mãos se separaram. Mas agora dispunham de todo o tempo do mundo e não precisavam afirmar seus sentimentos com palavras e contactos. Quando o garçom retirou os pratos, a moça fitou Bond com um sorriso de felicidade os dois encaminharam-se para a porta.
Entraram no elevador para o Tombadilho de Passeio.
— Que faremos agora, James? — perguntou Tiffany. — Gostaria de tomar mais uma café e um Stinger preparado com creme de menthe branco, enquanto estivéssemos escutando o leilão. Já ouvi falar tanto dele e bem que poderíamos ganhar uma fortuna.
— Está bem — disse Bond. — O que você desejar. — Tomou-a pelo braço e atravessaram vagarosamente a grande sala de estar, onde o víspora ia em meio, e o salão de baile, onde os músicos afinavam os instrumentos. — Mas não me obrigue a comprar nenhum número. É um jogo como os outros, e cinco por cento destinam-se à beneficência. Quase a mesma coisa que em Las Vegas. Mas é divertido quando há um bom leiloeiro. E dizem também que há muito dinheiro a bordo.
O salão de fumar estava quase deserto. Escolheram uma mesinha longe da plataforma onde o Comissário arrumava os apetrechos do leiloeiro, a caixa com os papeluchos numerados, o martelo, a garrafa de água.
— A casa está fraca — disse Tiffany ao sentarem-se no meio da floresta de cadeiras e mesas vazias. Mas, quando Bond fez o pedido ao garçom, as portas do cinema se abriram e cerca de cem pessoas ocuparam o salão de fumar.
O leiloeiro, um comerciante dos Midlands, pançudo e jovial, com um cravo vermelho na lapela do dinner jacket, bateu na mesa pedindo silêncio e anunciou que a previsão do Capitão para o percurso do dia seguinte era de 720 a 739 milhas, que qualquer distância abaixo de 720 era o Campo Inferior e acima de 739 era o Campo Superior.
— E agora, minhas senhoras e meus senhores, vejamos se é possível quebrar o recorde estabelecido nesta viagem, que atinge a cifra impressionante de 2.400 libras esterlinas. (Aplausos). ; Um camareiro ofereceu a caixa com os números dobrados à mulher de ar mais aristocrático do salão e depois entregou ao leiloeiro o papelzinho que ela havia sorteado.
— Bem, senhoras e senhores, temos aqui, para começar, um número excepcionalmente bom. 738. Exatamente no limite máximo, e desde que vejo aqui, esta noite, tantas caras novas (risos), creio que todos concordaremos em que o mar está singularmente calmo. Senhoras e senhores. Quanto me dão por 738? Digamos... 50 libras? Quem me dará 50
libras por este número de sorte? 20, foi o que o senhor falou, cavalheiro?
Bem, temos de partir de alguma oferta. Quem dá... 25? Muito obrigado, minha senhora. E 30. 40 lá adiante, sr. camareiro. E 45 do meu amigo, Mr.
Rothblatt. Muito obrigado, Charlie. Quem dá mais pelo n.° 738? 50. Muito grato, minha senhora. E agora, sim, voltamos ao ponto de partida (risos). 50.
Quem dá 55? Então ficamos em 50. Dou-lhe uma... Dou-lhe duas... — e o martelo erguido bateu na mesa.
— Ainda bem que temos um bom leiloeiro — disse Bond.
— O número era bom. E barato, se o tempo continuar como está e ninguém se jogar no mar. O Campo Superior custará uma bolada esta noite.
Todo mundo espera que o navio faça mais de 739 milhas nesse tempo.
— Essa bolada quer dizer quanto? — perguntou Tiffany.
— Duzentas libras. Talvez mais. Acho que os números normais serão leiloados por umas cem libras. O primeiro número é sempre mais barato do que os outros. O pessoal ainda está frio. A única esperteza que se pode demonstrar neste jogo é arrematar o primeiro número sorteado. Qualquer número pode ganhar, mas o primeiro custa menos.
Quando Bond acabou de falar, o segundo número era entregue por 90
libras a uma jovenzinha bonita e excitada, que era abertamente financiada por seu companheiro, um indivíduo grisalho e bem conservado que parecia a caricatura de um Don Juan do Esquive.
— Vamos, James. Arremate um número pra mim — disse Tiffany. — Você não sabe mesmo agradar a uma moça. Veja como aquele cavalheiro é gentil com sua pequena.
— Ele já passou da idade-limite — disse Bond. — Deve estar na casa dos sessenta. Até os quarenta, as pequenas não custam nada. Daí por diante, é preciso gastar dinheiro ou contar uma estória. Das duas coisas, a estória é que dói mais. — Sorriu, fitando-a nos olhos. — Mas eu ainda não cheguei aos quarenta.
— Deixe de presunção — disse a moça, olhando-o na boca. — Dizem que os homens maduros são os melhores amantes. Também, por outro lado, sei que você não é unha-de-fome. Aposto que não quer me presentear um número porque o jogo é ilegal nos navios de Sua Majestade.
— Até que é permitido além do limite de três milhas da costa — disse Bond. — Mesmo assim, a Cunard toma todas as precauções para não envolver o nome da companhia. Escute isto — e apanhou um cartão alaranjado que estava em cima da mesa. — "Leilão de Apostas nas Distâncias Diárias percorridas pelo Navio" — leu para a moça. — "Para os fins de direito, é de toda a conveniência reiterar a posição da Companhia em relação ao supradito Leilão. Não é desejo da Companhia que o encarregado do salão de fumar ou quaisquer outros membros da tripulação desempenhem papel ativo na organização das apostas nas milhas diárias percorridas pelo navio". — Bond levantou a vista. — Está vendo? — perguntou. — Seguro morreu de velho. E tem mais: "A Companhia sugere que os passageiros elejam entre si uma Comissão encarregada de formular e controlar as normas... O encarregado do salão de fumar poderá, se instado e se seus deveres o permitirem, prestar a assistência de que a Comissão venha a necessitar para o leiloamento dos números". Como são cautelosos — comentou Bond. — É a comissão que tem de quebrar os galhos que forem aparecendo. Escute mais isto aqui. É onde entra o problema. — Continuou a leitura: — "A Companhia chama especialmente a atenção de todos para os dispositivos das normas financeiras do Reino Unido, no tocante à negociabilidade dos cheques em esterlinos e à limitação da entrada de cambiais bancárias em esterlinos no Reino Unido".
Bond atirou o cartão em cima da mesa..— E por aí vai — disse ele e sorriu para Tiffany Case. — Assim, eu arremato o número que está sendo leiloado e você ganha duas mil libras. Um montão de cédulas e cheques em dólares e libras. O único meio de gastar essa dinheirama, supondo que os cheques tenham fundos, o que é duvidoso, seria contrabandeá-la debaixo dos suspensórios. E lá estaríamos nós outra vez passando muamba. Só que eu estaria do lado do diabo.
A moça não se impressionou.
— Havia um sujeito na quadrilha chamado Abadaba — disse ela. — Era um malandro fino que tinha resposta para tudo. Calculava as vantagens nas corridas, marcava as percentagens no cassino, enfim, era o crânio do grupo.
Era considerado "O Feiticeiro das Apostas". Teve o azar de ser liquidado por engano ao lado de Dutch Schultz — ajuntou ela à guisa de parêntese. — Você está me saindo outro Abadaba com essa lengalenga que não tem outra finalidade senão evitar de gastar dinheiro com uma pequena. Já vi tudo. — Encolheu os ombros, resignada. — Está bem. Mas pelo menos financie outro Stinger pra sua garota.
Bond chamou o garçom. E quando este se afastou, ela aproximou a cabeça do ouvido dele e disse baixinho. — Eu não quero mais, não. Beba você. Quero estar inteiramente sóbria esta noite. — Empertigou-se. — Mas o que é que está se passando aqui? — perguntou com impaciência. — Vamos, um pouco de ação.
— Aí vem ela — disse Bond.
O leiloeiro levantou a voz e toda a sala pediu silêncio.
— E agora, minhas senhoras e meus senhores — rugiu o leiloeiro — vamos à pergunta mais importante da noite. Quem vai me dar 100 libras pela escolha entre o Campo Superior e o Inferior? Todos sabemos o que isto significa... o direito de escolher o Campo Superior, que, inclino-me a crer, será da preferência geral esta noite (risos), em vista das excelentes condições atmosféricas reinantes lá fora. Então, quem abrirá com cem libras os lances para a escolha do Campo Superior ou Inferior?
— Muito obrigado, cavalheiro! E 110. 120 e 130. Muito obrigado, minha senhora.
— Cento e cinquenta — disse uma voz de homem, não muito distante da mesa de Bond e Tiffany.
— Cento e sessenta.
Desta vez era uma mulher. Monótona, a voz do homem gritou: — 170.
— Oitenta — disse alguém.
— Duzentas libras.
Algo fez com que Bond se voltasse e olhasse o homem que tinha falado.
Era um tipo grandalhão. A cara tinha a aparência lisa, brilhante e escorregadia de um olho de boi. Olhos miúdos, frios e escuros fitavam o estrado do leiloeiro através de imóveis lentes bifocais. Todo o pescoço do homem parecia estar por trás da cabeça. O suor havia emaranhado as algas negras e encaracoladas do cabelo. Enquanto Bond o observava, ele tirou os óculos, pegou um guardanapo e passou a enxugar o suor, com um movimento circular que começou no lado esquerdo do rosto, estendeu-se à nuca, onde a mão esquerda cedeu a vez à mão direita, e esta completou o circuito, atingindo os pingos do nariz.
— Duzentas e dez — disse alguém.
A queixada do homem bamboleou, a boca se descerrou, e ele disse, com nítido sotaque americano:
— Duzentas e vinte.
O que havia nesse indivíduo capaz de ferir uma corda na memória de Bond? O inglês examinou o rosto largo, a imaginação percorrendo todo o arquivo do cérebro, abrindo e fechando gavetas, uma após outra à procura de uma pista. A cara? A voz? Inglaterra? América?
Bond abandonou a busca e voltou a atenção para o outro homem à mesa.
Ainda aqui, a mesma necessidade urgente de reconhecer. As feições jovens e estranhamente delicadas sob os cabelos brancos e lisos. Os olhos castanhos e plácidos sob as longas pestanas. O efeito geral era de delicadeza, perturbada pelo nariz roliço montado na boca larga de lábios finos, agora aberta num sorriso estúpido e vazio como a fenda de uma caixa postal.
— Duzentas e cinquenta — disse o grandalhão mecanicamente.
Bond tornou a olhar para Tiffany.
— Já viu aqueles dois alguma vez? — perguntou ele, e ela notou-lhe a ruga de preocupação entre os olhos.
— Não — disse ela, categórica. — Nunca. Talvez venham do Brooklyn. Podem ser dois comerciantes de roupas feitas da Quinta Avenida. Por quê? Eles lhe dizem alguma coisa?
Bond olhou-os outra vez.
— Não — disse, em dúvida. — Não, acho que não.
Palmas estrugiram na sala. Radiante, o leiloeiro bateu na mesa.
— Senhoras e senhores — disse ele, triunfante. — Isto é realmente maravilhoso. Trezentas libras é o lance daquela encantadora senhora de esplêndido vestido cor-de-rosa (Cabeças viravam-se, pescoços esticavam-se, e Bond ouviu a pergunta: — Quem é ela? E agora, cavalheiro — o leiloeiro indicava a mesa do homem gordo — posso anunciar 325 libras?
— Trezentas e cinquenta — disse o gordo.
— Quatrocentas — ganiu a mulher de vestido cor-de-rosa.
— Quinhentas.
A voz era incolor, indiferente.
A moça de cor-de-rosa tagarelou irritada com seu acompanhante. O homem assumiu um ar entediado. Acompanhou o olhar do leiloeiro e balançou a cabeça.
— Quem se dispõe a dar mais? — disse o leiloeiro. Sabia agora que a sala já dera o que tinha de dar. — Dou-lhe uma... Dou-lhe duas... — Pam! — Arrematado pelo cavalheiro. E eu acredito sinceramente que ele merece uma salva de palmas.
Deu início às palmas e os presentes o acompanharam, embora preferissem que a moça tivesse levado a melhor.
O gordo ergueu-se algumas polegadas e voltou a sentar-se. Não havia em seu rosto lustroso nenhum sinal de agradecimento aos aplausos, e seus olhos fixavam-se no leiloeiro.
— E agora temos de cumprir a formalidade de perguntar ao cavalheiro qual é o Campo que ele prefere. (Risos). Cavalheiro, o senhor escolhe o Campo Superior ou o Campo Inferior?
O tom do leiloeiro era irônico. A pergunta era ociosa.
— Campo Inferior.
Houve um momento de silêncio constrangedor no apinhado salão de fumar. E logo se seguiram os comentários à meia-voz. Nenhuma pergunta foi feita. Era óbvio que o homem devia escolher o Campo Superior. As condições atmosféricas eram ideais. O Queen Elizabeth vinha desenvolvendo pelo menos trinta nós. Estaria o homem a par de alguma coisa? Teria pago por alguma informação na ponte de comando? Haveria alguma tempestade à vista? Algum defeito nas máquinas?
O leiloeiro martelou na mesa, pedindo silêncio.
— Queira me perdoar, cavalheiro — disse ele — mas o senhor escolheu mesmo o Campo Inferior?
— Sim.
O leiloeiro tornou a martelar.
— Nesse caso, senhoras e senhores, comecemos agora a leiloar o Campo Superior. Minha senhora — voltou-se com uma curvatura para a moça de cor-de-rosa — quer ter a gentileza de fazer o primeiro lance?
Bond virou-se para Tiffany.
— Que coisa esquisita — disse ele. — É extraordinário. O mar está calmo como um lago. — Deu de ombros. — A única resposta é que eles devem estar informados de alguma coisa.
— A questão era desprovida de interesse, no fim de contas.
— Alguém deve ter dito alguma coisa àqueles dois. — Girou a cabeça e, depois, despreocupadamente, passeou o olhar pelos dois indivíduos. — Parece que eles estão interessadíssimos na gente.
Tiffany olhou por cima do ombro.
— Não estão olhando pra cá, não — disse ela. — A impressão que eu tenho é que são dois palermas. O grisalho tem um ar de idiota e o gordo está chupando o polegar. Dois malucos. Acho que nem sabem o que arremataram. Trocaram as bolas.
— Chupando o polegar? — perguntou Bond. Passou a mão pelo cabelo, distraidamente, uma vaga lembrança a verrumar-lhe o cérebro.
Talvez, se ela lhe tivesse permitido seguir o fio de seus pensamentos, ele tivesse dado no alvo. Mas ela colocou a mão sobre a dele e, aproximando-se, roçou-lhe o rosto com os cabelos.
— Esqueça isso, James — disse ela. — E não pense tanto naqueles dois imbecis. — Os olhos dela ardiam e exigiam. — Chega deste lugar. Leve-me a outra parte.
Sem se dizerem mais uma palavra, ergueram-se, afastaram-se da mesa e saíram da sala barulhenta, caminhando em direção à escada. Começaram a descer e, quando chegaram ao meio, o braço de Bond circundou a cintura da moça, e ela deitou a cabeça no ombro dele.
Chegaram à porta do camarote de Tiffany, mas ela deu meia volta e arrastou Bond pelo corredor comprido, macio e rangente.
— Eu quero que seja na sua casa, James — disse ela.
Bond só voltou a falar depois de ter fechado a porta de seu camarote com um pontapé e de se terem abraçado no meio daquele quartinho maravilhosamente reservado e anônimo. E dizendo, com ternura, "Meu amor" pôs uma das mãos sobre os cabelos dela de modo a manter-lhe a boca sob a sua.
Algum tempo depois, sua outra mão desceu até o fecho-relâmpago do vestido, por trás, e a moça, sem interromper o abraço, deixou cair o vestido e disse, ofegante, entre beijos:
— Quero tudo, James. Tudo o que você já fez com uma mulher. Agora.
Agora mesmo.
E Bond inclinou-se, envolveu-lhe as coxas com um braço, levantou-a e deitou-a suavemente no soalho.
24 - A morte é permanente
A ÚLTIMA COISA de que Bond se lembrou antes de soar a campainha do telefone foi de Tiffany debruçada sobre ele, na cama, beijando-o e dizendo-lhe: "Não durma sobre o lado esquerdo, meu amor. É ruim para o coração.
Pode parar de bater. Vire-se". E, obediente, ele se virava. E, quando a porta bateu de leve, ele estava dormindo de novo, embalado pela voz da moça, pela pulsação do Atlântico e pelo macio balanço do navio.
Depois, a campainha impertinente soou e tornou a soar no camarote escuro. Bond praguejou, estendeu o braço para o telefone, e uma voz disse: — Desculpe-me incomodá-lo, senhor. Aqui é o telegrafista, Acaba de chegar uma mensagem em código para o senhor, com um prefixo en clair "Urgentíssimo". Quer que leia pelo telefone ou envie pelo mensageiro?
— Envie pelo mensageiro, pode ser? — disse Bond. — Muito obrigado.
E que diabo queriam agora? Toda a beleza, todo o ardor, toda a exaltação da paixão amorosa foram postas de lado quando ele acendeu a lâmpada, pulou da cama e, balançando a cabeça, a fim de afastar o torpor, deu dois passos para o chuveiro.
Durante um bom minuto deixou que a água caísse sobre si. Depois, enxugou-se com a toalha, apanhou do chão as calças e a camisa e vestiu-as.
Houve uma pancada na porta. Bond recebeu o telegrama, sentou-se à escrivaninha, acendeu um cigarro e entregou-se ferozmente ao trabalho. E, à medida que os grupos paulatinamente se dissolviam em palavras, seus olhos se apertavam e a pele se lhe arrepiava no corpo.
O telegrama, passado pelo Chefe do Pessoal, dizia:
Primeiro vg busca clandestina escritório Saye revelou telegrama do QE endereçado ABC assinado Winter comunicando presença sua e Case a bordo solicitando instruções pt Resposta endereçada Winter assinado ABC ordena eliminação de Case vg preço vinte mil dólares pt Segundo vg consideramos Rufus B. Saye é ABC que é mais ou menos equivalente pronúncia suas iniciais em francês pt Terceiro vg possivelmente alarmado sinais de busca Saye voou Paris ontem e agora informa Polinter estar em Dakar pt Isto parece confirmar nossas suspeitas que diamantes provêm minas Serra Leoa daí contrabandeados fronteira Guiné Francesa pt Suspeitamos fortemente elemento clínica dentária de Sierra International em observação pt Quarto vg Canberra Raf espera você Boscombe Down para voo imediato amanhã noite a Serra Leoa assinado CDP.
Bond gelou na cadeira. De supetão, acudiu ao seu espírito o mais sinistro verso de toda a poesia: "Enganam-se os que me evitam. Quando voam de mim, eu sou as asas".
Então alguém da quadrilha de Spang estava a bordo e viajava com eles. Quem? Onde?
A mão agarrou o telefone: — Miss Case, por favor.
Ouviu o aparelho ao pé da cama dela produzir um estalido e em seguida disparar 'a primeira campainhada. A segunda. A terceira. Mais uma só. Bond colocou o receptor de volta no gancho e enfiou pelo corredor até o camarote de Tiffany. Nada. Vazio. A cama arrumada. As luzes acesas. Mas a bolsinha dela estava no tapete e os objetos espalhados ao redor. Tinha entrado no camarote. O homem se escondera atrás da porta. Talvez tivesse aplicado uma cacetada. E depois?
As vigias estavam fechadas. Examinou o banheiro. Nada.
Bond parou no meio do camarote. Seu cérebro estava frio como gelo. O que ele, Bond, teria feito? Antes de matá-la, tê-la-ia interrogado, descoberto o que ela sabia, o que fazia, quem era o homem que a acompanhava. Tê-la-ia levado depois para o camarote em que ele viajava a fim de poder agir sem ser perturbado. Se o encontrassem arrastando-a pelo corredor, bastaria piscar um olho e balançar a cabeça: "Bebeu muita champanha esta noite. Não, não precisa, muito obrigado, eu me arranjo". Mas, qual era o camarote? E havia quanto tempo ele a tinha levado?
Bond consultou o relógio quando ia no corredor. Três horas. Ela devia ter saído da cama dele pouco depois das duas. Devia telefonar para a ponte de comando? Dar alarma? Penosos instantes de explicações, suspeitas, obstáculos. "Meu caro senhor, isto parece incrível!" Tentativas para acalmá-lo. "Claro, senhor, faremos o que estiver ao nosso alcance". O olhar polido do funcionário, para quem tudo não passaria de embriaguez, ciúme e até mesmo de um meio de deter a marcha do navio e ganhar a aposta no Campo Inferior.
O Campo Inferior! Homem ao mar! O navio detido!
Bond fechou a porta de seu camarote e foi direto à Lista de Passageiros.
E por que não? Winter. Ei-lo aqui. A49. O convés de baixo. E então, de repente, o cérebro de Bond funcionou como um computador. Winter. Wint e Kidd. Os dois pistoleiros. Os encapuzados. Outra vez a lista de passageiros.
Kitteridge. No A49 também. O grisalho e o gordo do avião da BOAC na viagem de Londres a Nova York. "Meu grupo sanguíneo é F." A escolta secreta de Tiffany. E a descrição de Leiter. "Chamam-no Goela porque tem medo de viajar". "Um dia vai-se arrepender de não ter extraído aquela verruga". A verruga vermelha na primeira articulação do dedo que segurava o cão da arma apontada para Tingaling Bell. E Tiffany dizendo: "São dois palermas. O gordo está chupando o polegar!" E os dois, no salão de fumar, procurando ganhar dinheiro com a morte que haviam planejado. A mulher atirada ao mar. O alarma anônimo, no caso de passar o corpo despercebido pelo vigia da popa. O navio detido, a volta, a busca nas águas. E mais três mil libras para os bolsos dos assassinos.
Wint e Kidd. Os pistoleiros de Detroit.
Todo o carretel de filmes embaralhados desenovelou-se na mente de Bond no espaço de um segundo, e mesmo enquanto os esquadrinhava, ia ele abrindo a pasta e revolvendo o compartimento secreto à procura do silenciador. Como um autômato, retirou a Beretta do meio de suas coisas no fundo de um gavetão, examinou o pente e ajustou o silenciador à boca da arma. Simultaneamente, pesava as probabilidades e planejava os passos que devia dar.
Pegou a planta do navio que tinha vindo com o bilhete de passagem.
Esparramou-a à sua frente enquanto calçava as meias. A49. Exatamente debaixo de seu camarote. Haveria probabilidade de arrebentar a fechadura com um tiro e pegar os dois homens antes que eles o pegassem? Nenhuma, quase. Sem dúvida tinham fechado a porta com a chave e o trinco. Ou levar consigo alguns membros da tripulação, se pudesse persuadi-los do perigo que Tiffany corria? Enquanto ele tentasse convencê-los, os dois homens a atirariam pela vigia. E, quando, afinal, conseguissem entrar no camarote, Wint e Kidd estariam lendo calmamente ou jogando cartas e berrariam: — Que é que vocês querem aqui?
Bond meteu a arma nos cós das calças e com um violento puxão escancarou uma das duas vigias do camarote. Enfiou por ela os ombros e alegrou-se ao descobrir uma folga de uma ou duas-polegadas. Espichou o pescoço para baixo. Dois círculos mal iluminados, exatamente sob suas vigias. A que distância? Uns oito pés. A noite continuava parada, calma, tranquilizadora, e ele se achava no lado ensombrado do navio. Avistá-lo-iam da ponte volante? Estaria aberta alguma das vigias do A49?
Bond deixou-se cair novamente em seu camarote e arrancou os lençóis da cama. O nó de porco. Seria mais seguro. Mas teria de rasgar os lençóis e emendá-los para obter o comprimento necessário. Se tudo desse certo, teria de trazer alguns lençóis do A49 e deixar o camareiro intrigado com o desaparecimento. Se desse errado, tanto fazia.
Experimentou a "corda" com toda a força. Devia aguentar. Ao amarrar uma extremidade em volta da dobradiça da vigia, deu uma olhada no relógio.
Só doze minutos tinham passado desde que lera o telegrama. Demorara demais? Trincou os dentes, atirou a "corda" pelo costado do navio e introduziu a cabeça.
Não pense em nada. Não olhe para baixo. Não olhe para cima. Não se importe com os nós. Devagar, firme, uma mão, isto, a outra.
A brisa da noite tocava-o de leve e empurrava-o de encontro aos negros rebites de ferro, e lá embaixo soava o gemido cavo do mar. No alto, o vento zunia no cordame, e mais acima, no firmamento, as estrelas dançavam à volta dos mastros.
Os malditos, os bem-amados lençóis resistiriam? A vertigem o venceria?
Seus braços suportariam o peso? Não pense nisso. Não pense no imenso navio, no oceano faminto, nas quádruplas hélices gigantescas aguardando o momento de lhe retalhar o corpo. Você é um menino que está descendo da macieira. É tão fácil e seguro lá no pomar, com o relvado que apara a queda.
Bond expulsou da mente todos esses pensamentos. Olhou para as mãos e sentiu a aspereza da pintura contra os nós dos dedos. Os pés, sensíveis como antenas, tateavam em busca do primeiro contacto com a vigia.
Ali. Os dedos do pé direito haviam tocado o rebordo saliente. É preciso parar. É PRECISO ter paciência e deixar que o pé explore o terreno — a vigia aberta, presa pela grande tranqueta de latão; o contacto de fazenda por cima da meia: as cortinas cerradas. Agora podia continuar. Estava quase terminado.
Mais duas preensões na corda improvisada e o rosto estava à altura da vigia. Podia colocar uma das mãos na borda metálica do caixilho, subtraindo algum peso da alva corda retesada e dando merecido repouso a um braço e depois ao outro, deslocar a carga suportada pelos músculos, reunir as forças para soerguer-se vagarosamente, traspassar-se ao camarote e mergulhar, deitando a mão à arma.
Ficou à escuta, fitando o círculo da cortina balouçante, tentando esquecer que estava pendurado como um pêndulo, a meio costado do Queen Elizabeth, esforçando-se para não ouvir o marulho do oceano, lutando para abrandar a respiração ofegante e as marteladas do coração.
Do interior do cubículo vinha um resmungo indistinto. Depois, uma voz masculina proferiu algumas palavras e uma mulher gritou: — Não!
Seguiu-se um momento de silêncio, e logo uma bofetada. Sonora como um disparo de pistola, e isto lançou o corpo de Bond para o alto e para dentro como se ele tivesse sido arrastado por uma corda.
No momento mesmo em que mergulhava no círculo da vigia, perguntava-se onde iria bater, e instintivamente protegeu a cabeça com o braço esquerdo, enquanto o direito corria para a arma.
Foi cair sobre uma valise debaixo da vigia. Um estabanado salto mortal levou-o ao meio do camarote. Outra vez sobre seus pés, foi recuando, agachado, para o lado das vigias, a tensão branquejando os nós dos dedos da mão que segurava a arma e uma estreita linha branca circundando-lhe a boca cerrada.
Através das pálpebras entreabertas, os olhos cinzentos e gelados moviam-se de um lado para o outro. A arma, negra e cega, voltava-se para um ponto, no centro, entre os dois homens.
— Aqui estamos — disse Bond, erguendo-se vagarosamente.
Era a constatação de um fato. Ele tinha o controle da situação, e a boca de sua arma o confirmava.
— Quem chamou você aqui? — disse o gordo. — Você não entra nesta peça. — Havia na voz reservas latentes. Nada de pânico. Nem mesmo a dose normal de surpresa. — Veio completar a mesa para o jogo de cartas?
Estava sentado, em mangas de camisas, abotoado, de través para a penteadeira, e os olhos miúdos brilhavam na cara molhada. Dante dele, de costas para Bond, Tiffany Case estava sentada num tamborete estofado.
Vestia apenas uma calcinha cor-de-carne e tinha os joelhos presos entre as coxas do homem gordo. Voltara para Bond o rosto pálido entremeado de manchas vermelhas. Os olhos tinham uma expressão de desespero, como os de um animal apanhado numa armadilha, e a boca aberta traduzia incredulidade.
O grisalho jazia numa das camas. Tinha erguido o busto sobre um cotovelo e a outra mão na camisa, a meio caminho da arma guardada no boldrié preto debaixo do sovaco. Olhava para Bond sem demonstrar curiosidade e estampava aquele sorriso quadrado, vazio, da caixa postal. Do centro do sorriso ressaía um palito de madeira, que rompia os dentes fechados como a língua de uma cobra.
A arma de Bond assegurava o espaço neutro entre os dois homens.
Quando ele falou, a voz era baixa e tensa.
— Tiffany — disse Bond lenta e distintamente. — Ajoelhe-se. Afaste-se desse homem. Baixe a cabeça. Vá para o meio do quarto.
Não olhava para ela. Seus olhos continuavam a passear da cadeira para a cama, vigiando os dois homens. Agora ela estava longe dos dois alvos.
— Estou aqui, James.
A voz tremia de esperança e excitação.
— Levante-se e vá para o banheiro. Feche a porta. Entre na banheira e deite-se lá.
Moveu os olhos na direção dela para ver se era obedecido. Ela tinha-se erguido e o contemplava. Bond avistou a marca vermelha de uma mão na pele alva do corpo da moça. Ela obedeceu. Ouviu-se o clique da porta do banheiro ao fechar-se.
Agora ela estava a salvo das balas. E não presenciaria o que tinha de ser feito.
Mediavam umas cinco jardas entre os dois homens, e Bond refletiu que se eles sacassem com bastante rapidez estaria perdido. Com esse tipo de homens, na fração de segundo em que um fosse liquidado, o outro sacaria e dispararia. Conquanto sua arma fosse silenciosa, a ameaça era infinita. Mas, com o clarão da primeira bala a ameaça proviria do outro homem.
— Quarenta e oito, sessenta e cinco, oitenta e seis.
A variante do sinal convencionado do futebol americano —"uma das cinquenta combinações que deviam ter praticado juntos mil vezes — jorrou da boca do gordo. Simultaneamente, ele se atirou ao chão, e a mão foi direta ao cós da calça.
Num giro rápido, o homem que estava na cama puxou as pernas para o lado e para longe de Bond, de modo que seu corpo se reduziu a um alvo estreito, de que só se via a cabeça. A mão que estava sobre o peito se mexeu rápida.
— Paf.
A arma de Bond soltou um único gemido abafado. Um orifício azul abriu-se exatamente abaixo do cocuruto grisalho.
— Pum! — respondeu a pistola do morto, deflagrada pela última crispação do dedo, e a bala foi alojar-se na cama, debaixo do cadáver.
O homem gordo, deitado no soalho, deu um grito. Olhava para cima. na direção daquele olho preto e vazio que não se incomodava com ele, de forma alguma, e que só se interessava em localizar-lhe na pele o centímetro quadrado que abrigaria o próximo projétil.
O revólver de Wint só se tinha elevado até à altura dos joelhos de Bond e apontava em vão por entre suas pernas retesadas para a armação de ferro, pintada de branco, que estava atrás.
— Largue a arma.
O tapete abafou o ruído da queda da arma.
— Levante-se.
O gordo ergueu-se com dificuldade e fitou Bond nos olhos, como um tuberculoso fita seu lenço, em medrosa expectativa.
— Sente-se.
Houve um lampejo de alívio nos olhos submissos? Bond continuou tenso como um gato prestes a atacar.
O gordo voltou-se vagarosamente. Estendeu as mãos acima da cabeça, embora Bond não lhe tivesse exigido isso. Deu dois passos para a cadeira e lentamente virou-se como se fosse sentar-se.
Parou, contemplando Bond, e com naturalidade deixou cair as mãos ao longo do corpo. E as duas mãos, sossegadas, sacudiram-se para trás, a direita mais do que a esquerda. E então, de súbito, no movimento de retorno, o braço direito entesou-se, precipitou-se para a frente e a faca brilhou nas pontas dos dedos como uma chama branca.
— Paf.
A bala silenciosa e a faca muda cruzaram uma pela outra em pleno ar, e os olhos dos dois homens perturbaram-se simultaneamente quando as armas atingiram seus objetivos.
Mas a perturbação nos olhos do homem gordo converteu-se num reviramento do globo ocular quando ele caiu para trás, as mãos agarradas ao peito, enquanto os olhos de Bond pousaram sem curiosidade na mancha que se espalhava em sua camisa e no cabo chato da faca pendurada frouxamente nas dobras do pano.
Produziu-se um estardalhaço quando a cadeira se espatifou sob o peso do homem gordo. Seguiu-se um ruído roufenho e ouviu-se, por último, um baque surdo no soalho.
Bond olhou a cena uma vez e depois voltou-se para a vigia aberta.
Durante algum tempo ficou de costas para o quarto, o olhar fixo nas cortinas que se balançavam molemente. Sorveu o ar e escutou os maravilhosos sons marinhos do exterior, do mundo que ainda lhes pertencia, a ele e a Tiffany, mas não aos outros dois. Pouco a pouco, seu corpo e seus nervos tensos se relaxaram.
Instantes depois, puxou a faca que se lhe enfiara na camisa. Não olhou para ela. Apenas estirou o braço, afastou a cortina para um lado e atirou a faca pela vigia. Em seguida, ainda contemplando a noite quieta lá fora, prendeu o registro de segurança da Beretta e, com um braço que lhe pareceu de repente pesado como chumbo, introduziu de novo a arma no cós das calças.
Com certa relutância, deu meia volta e encarou a desordem reinante no camarote. Com ar pensativo, examinou tudo e, num gesto, inconsciente, enxugou as mãos nos lados das calças. Em seguida, caminhando cautelosamente até o banheiro, disse: "Tiffany, sou eu" numa voz cansada, deprimida, e abriu a porta.
Ela não o ouvira. Continuava deitada de bruços na banheira seca, as mãos sobre as orelhas. E quando ele a ergueu e tomou nos braços, ela ainda não acreditou no que via. Agarrou-se a ele e começou a tocar-lhe o rosto e o busto com as mãos para certificar-se de que era realidade.
Ele se retraiu quando ela lhe apalpou a costela cortada. Então ela afastou-se um pouco, examinou-lhe o rosto, depois o sangue que manchava seus dedos e por fim a camisa escarlate.
— Meu Deus! Você está ferido! — disse ela assustada; e, esquecendo seus pesadelos, arrancou-lhe a camisa, lavou-lhe a costela com água e sabão e amarrou-a com tiras da toalha cortada com a gilete de um dos homens mortos.
Não fez perguntas, nem mesmo quando Bond lhe trouxe as roupas que estavam espalhadas pelo soalho do camarote e lhe disse que não saísse enquanto ele não tivesse terminado de arrumar tudo e de apagar as impressões digitais de todos os objetos que ela havia tocado.
Ela apenas pousava nele os olhos brilhantes. E quando Bond a beijou nos lábios, continuou calada.
Bond deu-lhe um sorriso tranquilizador, saiu e fechou a porta do banheiro atrás de si. Pôs mãos à obra, fazendo cada coisa com grande determinação e parando antes de cada gesto a fim de imaginar o efeito que produziria diante dos olhos e do espírito dos detetives que subiriam a bordo em Southampton.
Primeiro amarrou um cinzeiro à sua camisa ensanguentada para torná-la pesada, aproximou-se da vigia e atirou o pacote o mais longe que pôde. Os smokings dos dois homens estavam pendurados atrás da porta. Tirou os lenços que estavam nos bolsinhos dos paletós, envolveu com eles as mãos e remexeu nos armários e cômodas até encontrar as camisas do grisalho.
Vestiu uma e ficou um momento no centro do camarote, meditando. Depois, cerrou os dentes e levantou o homem gordo até deixá-lo sentado, tirou-lhe a camisa, foi à vigia, sacou a Beretta, encostou a arma no orifício aberto na fazenda pelo tiro anterior e disparou outra bala no mesmo local. Agora havia uma nódoa de fumaça em volta do orifício para dar a impressão de suicídio.
Tornou a vestir a camisa no cadáver, limpou demoradamente a Beretta com o lenço, comprimiu os dedos da mão direita do morto sobre ela e, finalmente, ajustou a arma na mão do gordo, com o indicador no gatilho.
Após outra pausa no meio do quarto, retirou o smoking de Kidd do cabide e vestiu com ele o cadáver. Em seguida, arrastou o corpo até a vigia e, suando com o esforço, levantou-o e jogou-o ao mar.
Limpou as possíveis impressões digitais deixadas na vigia e interrompeu-se outra vez, tomando fôlego e inspecionando o cenário. Foi até a mesa de jogo, encostada à parede e com os objetos espalhados indicando que o jogo não fora concluído, e derrubou tudo, dispersando as cartas pelo tapete. Parou, refletiu mais um pouco, voltou ao cadáver de Wint, retirou-lhe do bolso traseiro da calça o rolo de cédulas e jogou-as entre as cartas.
O quadro era satisfatório, sem dúvida. Haveria o mistério da bala disparada na cama pelo moribundo Kidd, mas isso poderia ter sido parte da luta. Três balas tinham sido detonadas pela Beretta e havia três cartuchos no soalho. Duas das balas poderiam ter-se enterrado no corpo de Kidd que agora estava no Atlântico. Havia os dois lençóis que teria de roubar da segunda cama. A falta deles ficaria inexplicada. Talvez Wint houvesse enrolado neles o corpo de Kidd antes de empurrá-lo pela vigia. Isso se encaixava no remorso e no suicídio de Wint, posterior ao tiroteio motivado pelo desentendimento à mesa do jogo.
De qualquer maneira, refletiu Bond, o quadro se sustentaria até a chegada da polícia ao porto, mas nesse momento ele e Tiffany já estariam fora do navio e bastante longe, e o único vestígio deles no camarote seria a Beretta; e esta, como todas as outras armas pertencentes ao Serviço Secreto, não era numerada.
Soltou um suspiro e encolheu os ombros. Agora, restava apanhar os lençóis, conduzir Tiffany de volta ao seu camarote sem serem vistos, cortar a "corda" que se balançava na vigia, atirá-la ao mar com os pentes restantes da Beretta e o coldre vazio e, por fim, dormir à vontade com o corpo adorado de Tiffany enroscado no seu para sempre.
Para sempre?
Ao atravessar o camarote a caminho do banheiro, Bond encontrou os olhos vazios do cadáver no soalho.
E os olhos do homem cujo Grupo Sanguíneo fora F chamaram-no e lhe disseram:
— Mr. Bond. Nada existe para sempre. Só a morte é permanente. Nada é eterno, exceto o que você fez comigo.
25 - Fecha-se o canal
AGORA NÃO HAVIA escorpião morando nas raízes do frondoso espinheiro erguido na junção dos três Estados africanos. O contrabandista das minas não tinha outra coisa que lhe absorvesse a atenção senão o desfile infindável de um regimento de formigas de correição entre as baixas muralhas que as guerreiras haviam construído em ambos os lados da estradinha de três polegadas.
A noite era quente e úmida, e o homem escondido sob o espinheiro estava impaciente e intranquilo. Era esta a última vez que comparecia ao encontro marcado. Já tinha decidido. Que arranjassem outro, se quisessem.
Naturalmente não iria fazer sujeira com eles. Comunicaria a intenção de deixá-los e lhes daria o motivo: o novo assistente admitido no serviço dentário parecia entender muito pouco de odontologia; decerto era espião: o olhar indagador, o bigodinho amarelo-avermelhado, as unhas bem tratadas.
Pegaram alguém? Tomaram-lhe o depoimento?
O contrabandista trocou de posição. Por onde diabo andava o helicóptero? Apanhou um punhado de terra e atirou-o no meio das formigas.
Elas se atarantaram um pouco, mas com a chegada das últimas fileiras, as que iam na frente se dispersaram pelas muralhas. Então as guerreiras pegaram febrilmente a cavar e transportar a terra, e em poucos minutos a estrada estava outra vez transitável.
O homem tirou o sapato e jogou-o com força sobre o regimento em marcha. Houve outro curto instante de afobação. Depois, as formigas lançaram-se sobre as mortas e as devoraram. O caminho estava novamente desimpedido e o negro rio continuou a fluir.
O homem soltou uma praga em africaans e calçou o sapato. Filhas duma égua. Iam ver uma coisa. Acocorando-se e suspendendo um braço para se proteger contra os espinhos, saiu pisando pela estrada das formigas. Isso lhes serviria de lição.
Ao surgir sob o luar, o homem já tinha esquecido o ódio que dedicava a tudo quanto fosse negro e virou a cabeça para a banda do norte. Graças!
Rodeou o espinheiro para ir buscar as lanternas e o pacote dos diamantes guardados nas caixas de ferramentas.
A uma milha dali, sob a copa de um arbusto, o poderoso ouvido de ferro do detector de som já parará de investigar, e o operador, que vinha transmitindo os dados aos três homens agrupados ao lado do caminhão militar, informou: — Trinta milhas. Velocidade: cento e vinte. Altura: novecentos pés.
Bond consultou o relógio.
— Tudo indica que o encontro está marcado para a meia-noite,_na lua cheia — disse ele. — O nosso homem está uns dez minutos atrasado.
— Parece que o senhor tem razão — concordou o oficial da guarnição de Freetown, a seu lado, e voltou-se para o terceiro homem. — Cabo. Veja se não tem nenhum metal aparecendo na rede de camuflagem. Com este luar, é preciso ter cuidado.
O caminhão estava coberto pelo arbusto, à beira de uma estrada de barro, que atravessava a planície na direção da aldeia de Telebadu, na Guiné Francesa. Naquela noite, haviam deixado as colinas logo que o radiolocalizador captara o barulho da motocicleta do dentista na estrada paralela. Tinham vindo com os faróis apagados e pararam quando cessou o ruído da motocicleta. Haviam estendido a rede de camuflagem sobre o caminhão, o detector de som e o canhão Bofors. E puseram-se a esperar, sem saberem ao certo quem ou o que viria ao encontro do dentista — outra motocicleta, um homem a cavalo, um jipe, um avião?
Ao ouvir no céu o longínquo matraquear, Bond soltou uma gargalhada.
— Helicóptero — disse ele. — Era só o que faltava. Preparem-se para tirar a rede quando pousar. Talvez a gente tenha de dar um tiro de advertência. O detector está ligado?
— Está, sim — respondeu o cabo que operava o aparelho. — O nosso amigo está chegando. Poderão vê-lo num minuto. O senhor está vendo aquelas luzes acolá? Devem ser do campo de pouso.
Bond passeou o olhar pelos quatro feixes de luz e, depois, contemplou o imenso céu africano.
Então aí vinha o último de todos, o derradeiro elemento da quadrilha e também o primeiro. O homem que havia visto ligeiramente em Hatton Garden. O número um da turma de Spang, cuja cotação era tão alta em Washington. O único, excetuando o inofensivo e até simpático Shady Tree, que Bond ainda não fora obrigado a matar ou — pensou no botequim de Spectreville e nos dois homens de Detroit — quase. Não que tivesse desejado matar esses indivíduos. A missão que M lhe confiara fora apenas de investigação. Mas, um a um, eles haviam tentado contra sua vida e a de seus amigos. A violência fora o primeiro, não o último recurso deles.
Violência e crueldade, as armas escolhidas. Os dois homens do Chevrolet em Las Vegas, que tinham disparado contra ele e ferido Ernie Cureo. Os dois sujeitos do Jaguar, que haviam espancado Ernie e tinham sido os primeiros a sacar os revólveres quando começara a luta. Seraffimo Spang, que mandara torturá-lo, disparara contra ele e Tiffany e procurara esmagá-los na estrada de ferro. Wint e Kidd, que haviam supliciado Tingaling Bell, Bond e Tiffany Case. E, dos sete, matara cinco — não porque gostasse de matar, mas porque alguém tinha de fazê-lo. Tivera a seu lado a sorte e três bons amigos, Félix, Ernie e Tiffany. E os malvados tinham perecido.
Agora chegava a último dos malvados, o homem que planejara a sua morte e a de Tiffany, o homem que, segundo M, arquitetara o contrabando dos diamantes, montara o canal de escoamento e o vinha dirigindo com eficiência e mão de ferro através dos anos.
Ao telefone, para Boscombe Down, M falara pouco e com certa aspereza na voz. Usara a linha do Ministério da Aeronáutica, poucos minutos antes que o Canberra decolasse para Freetown. Bond recebera o telefonema do gabinete do comandante da base, tendo nos ouvidos o grito estridente das turbinas do Canberra.
— Satisfeito de tê-lo de volta são e salvo.
— Muito obrigado, senhor.
— Que estória é essa que os vespertinos noticiaram acerca de um duplo homicídio no Queen Elizabeth?
Havia algo mais do que suspeita na voz de M.
— Eram os dois pistoleiros da quadrilha. Viajavam sob os nomes de Winter e Kitteridge. Meu camareiro desconfia que eles se desentenderam quando jogavam baralho.
— Acha que a suposição do camareiro é correta?
— É possível. Houve uma pausa.
— E os policiais também pensam assim?
— Não vi nenhum deles.
— Vou falar com Vallance.
— Ótimo — disse Bond, sabendo que essa era a maneira de M dizer que, caso Bond tivesse liquidado os dois homens, tomaria providências para que o agente e o Serviço Secreto não fossem mencionados no inquérito.
— Bem, de qualquer modo — disse M — aqueles dois eram pouco importantes. Esse Jack Spang, ou Rufus B. Saye ou ABC, ou que nome tenha, esse eu quero que você agarre. Ao que parece, ele vai agora até o extremo do canal. Vai fechá-lo. Talvez matando o que encontrar pela frente. O ponto final é o dentista. Veja se consegue pegar os dois. Faz coisa de uma semana que destaquei 2804 para trabalhar ao lado do dentista. O pessoal de Freetown acha que já se pode agir. Mas eu quero encerrar este caso e ver você de novo em seu verdadeiro posto. Esse negócio foi uma trapalhada dos diabos. Não me agradou desde o princípio. E se, afinal, conseguimos chegar ao ponto em que estamos agora, foi mais uma questão de sorte do que de boa organização.
— Concordo com o senhor — disse Bond.
— E essa moça, Case? — perguntou M. — Conversei com Vallance. Ele não deseja processá-la, a menos que você insista.
Teria M carregado um pouco no tom de indiferença?
Bond procurou evitar uma resposta muito persuasiva.
— Ela foi de grande ajuda — disse ele, esperançoso.
— Talvez a gente possa resolver quando eu apresentar meu relatório final.
— E onde está ela agora?
O negro receptor começava a ficar escorregadio na mão de Bond.
— Está a caminho de Londres, num Daimler de aluguel. Vou colocá-la no meu apartamento. Quero dizer, no quarto vago. É muito boa dona de casa.
Ela se arranjará até que eu volte. É uma boa moça, estou certo disso.
Puxou o lenço do bolso e enxugou o suor do rosto.
— Sem dúvida — disse M. Não havia ironia em sua voz.
— Está bem, então. Boa sorte. — Houve uma pausa. — Tome cuidado.
E... — a voz no outro extremo da linha tornou-se subitamente áspera — não pense que não estou satisfeito com os resultados até agora obtidos. Foram além do programa, naturalmente, mas você parece que topou muito bem a parada desse pessoal. Até logo, James.
— Até logo, senhor.
Bond levantou a vista para o céu recamado de estrelas e pensou em M e Tiffany, esperando que agora fosse mesmo o fim e que fosse rápido e tranquilo, e que logo estivesse em casa.
De pé, empunhando a quarta lanterna, o contrabandista das minas esperava. Lá vinha o helicóptero. Cortando a trajetória da lua. Como sempre, o barulho era infernal. Outro risco de que ia livrar-se.
Baixava lentamente. Agora pairava a uns vinte pés de altura. A mão apontou na janela e piscou A. O homem no chão piscou, em resposta, B e c.
As lâminas do rotor diminuíram a velocidade e, suavemente, o gigantesco inseto de aço pousou no chão.
O pó assentou. O contrabandista retirou a mão dos olhos e ajudou o piloto a descer a escadinha. Usava capacete de voo e óculos de proteção.
Extraordinário. E parecia mais alto do que o alemão. O contrabandista sentiu uma picada na espinha. Quem era esse? Aproximou-se devagar.
— Trouxe?
Dois olhos frios, sob negras sobrancelhas retas, cintilaram por trás dos óculos. Ocultavam-se quando o homem moveu a cabeça e o luar incidiu sobre o vidro. Agora eram dois círculos brancos reluzentes no meio do negro e luzidio capacete de couro.
— Trouxe — disse, nervoso, o homem das minas. — Mas onde está o alemão?
— Não virá mais. — Os dois círculos brancos cegavam o contrabandista.
— Eu sou ABC. Vim fechar o canal.
A voz era americana. Enérgica, seca, inflexível.
— Oh!
Maquinalmente, a mão do contrabandista enfiou-se na abertura da camisa. Apanhou o embrulho úmido e entregou-o ao piloto como se fosse uma oferenda de paz. À semelhança do escorpião, um mês antes, o homem das minas pressentia a pedra erguida sobre sua cabeça.
— Ajude-me a encher o tanque.
Era a voz do feitor dando ordens ao escravo. Mas o contrabandista apressou-se a obedecer.
Fizeram o serviço em silêncio. Ao terminar, voltaram ao chão. O cérebro do contrabandista trabalhava furiosamente. Ele se esforçava por adotar a voz de um associado, a voz de alguém que estivesse a par dos negócios e exercesse a mesma autoridade.
Olhou com atenção para a nesga de treva cor-de-anil onde se achava o piloto com a mão sobre a escada.. — Estive pensando bem e acho que...
A voz estacou de supetão, a boca abriu-se espavorida e deixou escapar um ruído que era uma mescla de rosnado e uivo.
A arma na mão do piloto gaguejou três vezes. O contrabandista emitiu um "Oh" numa voz servil, caiu de costas no chão, fez um esforço para se soerguer e imobilizou-se.
— Fique onde está. — A voz ressoou na planície, transmitida pelo amplificador. — Você está cercado.
Ouviu-se o ruído de um motor que se punha em funcionamento.
O piloto não procurou saber de onde vinha a voz. Pulou para a escada. A porta da carlinga fechou-se com uma pancada e zumbiu o arranque automático. O motor começou a trabalhar, as lâminas do rotor giraram, pouco a pouco foram ganhando velocidade até que se transformaram em dois redemoinhos prateados. Então, com uma sacudidela, o helicóptero elevou-se verticalmente no ar.
Em terra, entre os arbustos, o caminhão freou e Bond saltou para a sela de aço do Bofors.
— Pra cima, cabo — gritou ele para o homem que manobrava a alavanca de suspensão. Baixou os olhos para a alça de mira quando a boca da arma se ergueu para a lua. Com a mão, puxou a alavanca do seletor de fogo, tirando-a da marca de segurança e colocando-a em "Fogo". — Esquerda, dez.
— Eu alimentarei.
O oficial ao lado de Bond tinha nas mãos dois depósitos de obuses pintados de amarelo.
Os pés de Bond firmaram-se nos pedais do gatilho. O helicóptero estava no centro da alça de mira.
— Firme — disse ele calmamente.
— Bumpa.
O obus reluzente rodou no alto a uma velocidade apenas menor do que a do som. Baixo e à esquerda. O cabo girou delicadamente as duas alavancas.
— Bumpa.
O obus deu a volta por cima do helicóptero. Bond inclinou-se para a frente e puxou a alavanca do seletor para "Fogo Automático". A mão relutava. Agora a morte era inevitável. Mais uma vez ele tinha de tomar essa decisão.
— Bumpa... bumpa... bumpa... bumpa... bumpa... O fogo vermelho espargiu-se no céu. O helicóptero continuou a avançar para a lua e depois rumou para o norte.
— Bumpa... bumpa...
Houve um espocar de luz amarela perto do rotor da cauda e um estrondo de explosão distante.
— Acertou — disse o oficial, pegando o binóculo. — O rotor da cauda está perdido — disse ele. E logo, agitado: — Puxa! Parece que toda a cabina está girando com o rotor principal! O piloto está atolado.
— Mais algum? — perguntou Bond, mantendo na mira o helicóptero em chamas.
— Não, senhor — disse o oficial. — Seria bom se conseguíssemos pegá-
lo vivo. Mas parece... é, sim, já perdeu o controle. Vem caindo de ponta.
Deve haver alguma coisa com as lâminas do rotor principal. Lá vem ele.
Bond levantou a vista e resguardou os olhos contra a claridade intensa.
— Sim. Lá vem ele. A cem pés, o motor ribombando e as hélices girando inutilmente enquanto a embrulhada metálica despencava do céu em cambaleios e guinadas de ébrio.
Jack Spang. O homem que ordenara o assassínio de Bond. Que ordenara o assassínio de Tiffany. O homem que Bond vira apenas uma vez, durante alguns minutos, numa sala superaquecida em Hatton Garden. Mr. Rufus B.
Saye. Da House oi Diamonds. Vice-Presidente para a Europa. O homem que jogava golfe em Sunningdale e visitava Paris uma vez por mês. "Cidadão exemplar", M dissera dele. Mr. Spang, da quadrilha de Spang, que acabara de matar um homem — o último de quantos?
Bond imaginava a cena dentro da estreita carlinga. O homem dirigindo com uma das mãos e com a outra mexendo desesperadamente nos controles, enquanto observava a agulha do altímetro baixar vertiginosamente. Nos olhos, o rubro clarão do terror. As centenas de milhares de libras esterlinas em diamantes reduzidas a peso morto. A arma, que desde a infância, fora um poderoso braço direito, agora inútil.
— Vai pra cima do espinheiro — bradou o cabo acima da barulheira.
— Está perdido — disse o capitão, a meia voz.
Contemplaram as últimas guinadas; depois, suspenderam a respiração quando o aparelho, num bamboleio desenfreado, empinou o nariz e, como se o espinheiro fosse seu inimigo, deu um mergulho irado, descrevendo uma curva de vinte jardas, e arremessou-se com os rotores desgovernados contra os espinhos.
Antes de se extinguirem os ecos da colisão, ouviu-se um ribombo cavo e uma bola de fogo, projetada no ar, ofuscou o clarão da lua e banhou a planície inteira num fulgor alaranjado.
O capitão foi o primeiro a falar.
— Opa! — exclamou, tirando o binóculo e voltando-se para Bond. — Bem — disse ele, resignado — nada a fazer. Acho que só quando amanhecer a gente vai poder se aproximar. E só com o dia alto é que se poderá revolver os destroços. Mas pode esperar que daqui a pouco os soldados franceses da fronteira estarão aqui. Felizmente estamos em boas relações com eles. O governo é que passará um bocado de tempo discutindo com Dakar. — O oficial previa as idas e vindas da papelada e sentia-se ainda mais exausto.
Homem prosaico, achava que o dia já lhe trouxera boa dose de canseiras. — O senhor se incomoda se a gente tirar uma pestana?
— À vontade — disse Bond, e consultou o relógio. — É melhor irem pra debaixo do caminhão. Eu mesmo não estou com sono. Vou ficar de olho.
Pode ser que o fogo ameace se alastrar.
O oficial lançou um olhar inquiridor a esse homem calmo e enigmático, que chegara de repente ao Protetorado no meio de uma enxurrada de recomendações de "Prioridade Absoluta". Se a gente nunca precisasse dormir... Bom, isso nada tinha que ver com Freetown. Era coisa de Londres.
— Muito obrigado, então — disse o oficial e jogou-se debaixo do caminhão.
Bond retirou vagarosamente os pés dos pedais do gatilho e reclinou-se no encosto da sela de aço. Maquinalmente, com os olhos pousados ainda nas chamas saltitantes, enfiou as mãos nos bolsos do desbotado blusão caqui, que lhe haviam arranjado na base, puxou um cigarro, acendeu-o e tornou a guardar a cigarreira e o isqueiro.
Aí estava o fim do contrabando de diamantes. A última página da estória. Deu uma tragada e expeliu a fumaça com um suspiro longo e calmo.
Seis cadáveres a zero. Vitória folgada.
Ergueu a mão e limpou a testa suada. Atirou para trás a mecha de cabelo que lhe caía por cima da sobrancelha direita, e o clarão vermelho iluminou-lhe o rosto duro e magro e cintilou nos olhos cansados.
Esse imenso e rubro ponto final assinalava o desmoronamento da Quadrilha de Spang e o término do fabuloso contrabando de diamantes. Não o fim dos diamantes que se tostavam do interior do braseiro. Eles sobreviveriam e outra vez iriam percorrer o mundo. Descoloridos, talvez, mas indestrutíveis, tão permanentes como a morte.
E Bond recordou, instantaneamente, os olhos do cadáver cujo sangue havia pertencido ao grupo F. Tinham-se enganado. A morte é eterna. Mas os diamantes também são eternos.
Bond desceu do caminhão e pôs-se a andar lentamente em direção à fogueira crepitante. Levava um sorriso sombrio nos lábios. Toda essa estória acerca de morte e diamantes era demasiado solene. Para Bond, era apenas o fim de outra aventura. Outra aventura que bem podia ter por epitáfio as palavras de Tiffany Case. E reviu a boca ardente e irônica que lhe dizia: — Contada é uma coisa, vivida é outra.
20 - Chamas que saem do alto
O UNIFORME PRETO de homem-rã estava muito apertado. Doía no corpo todo. Por que cargas d'água Strangways não tinha se certificado de que o Almirantado tinha suas medidas corretas? E era muito escuro no fundo do mar, as correntes eram muito fortes, arrastavam-no para o banco de coral.
Era preciso nadar com todo o ímpeto para afastar-se dali. Mas agora algo lhe prendia o braço. Que diabo...?
— James! Pelo amor de Deus, James! — Ela apertou a boca ao ouvido dele. Desta vez ela beliscou-lhe o braço nu e ensanguentado com tanta força que, afinal, os olhos de Bond se abriram entre as pálpebras inchadas, e ele a contemplou do piso de madeira em que estava deitado e deu um suspiro de sobressalto.
Ela puxou-o para si, com medo que ele lhe escapasse outra vez. Ele pareceu entender e se revolveu, erguendo-se sobre as mãos e os joelhos, a cabeça pendida para o chão, como um animal ferido.
— Pode andar?
— Espere. — O murmúrio espesso que lhe atravessou os lábios arrebentados soou-lhe estranho aos ouvidos. Talvez ela não tivesse compreendido. — Espere — repetiu ele, enquanto sua mente passava a explorar o corpo para ver o que lhe tinha sobrado. Podia sentir os pés e as mãos. Podia mover a cabeça de um lado para outro. Podia ver as barras do luar nas pranchas de madeira. Pudera ouvir a moça. Devia estar inteiro, mas não queria mover-se. Sua força de vontade o tinha abandonado. Apenas desejava dormir. Ou talvez mesmo morrer. Qualquer coisa, contanto que mitigasse a dor que lhe avassalava o corpo todo, apunhalando-o, martelando-o, triturando-o — e matasse a lembrança das quatro botinas que o haviam golpeado e dos rosnados proferidos pelos dois vultos encapuzados.
Assim que pensou nos dois homens e em Mr. Spang, a vontade de viver retornou.
— Está bem — disse, e tornou a dizer para que ela compreendesse.
— Estamos na sala de espera — sussurrou a moça. — Temos de chegar ao extremo da estação. À esquerda, depois da porta. Está me ouvindo, James?
Ela estirou a mão e afagou-lhe os cabelos úmidos, viscosos, caídos na testa.
— Tenho de me arrastar — disse Bond. — Atrás de você.
A moça ergueu-se e abriu a porta. Bond trincou os dentes e saiu de rastros para a plataforma enluarada. E quando avistou a mancha escura no chão, a raiva e o desejo de vingança deram-lhe forças para se levantar.
Balançando a cabeça para não se afogar nas ondas negro-avermelhadas e amparado em Tiffany Case, cujo braço lhe envolvia a cintura, foi coxeando pelas tábuas até a rampa por onde desceram para o chão junto dos trilhos reluzentes.
E lá, no desvio, havia um vagonete.
Bond parou e olhou-o atentamente.
— Gasolina? — perguntou com ar vago.
Tiffany Case fez um gesto para uma fileira de latas encostadas no muro da estação. — Está cheio — sussurrou. — É usado na inspeção da linha. Eu sei colocá-lo em funcionamento. Já desloquei as agulhas. Depressa. Suba — soltou uma risadinha abafada. — Próxima parada: Rhyolite.
— Isso é que é uma garota — murmurou Bond. — Mas vai fazer um barulho danado quando esse troço começar a funcionar. Espere. Tenho uma ideia. Tem fósforos?
Metade da dor tinha desaparecido. Respirava forte quando deu as costas à moça e observou as silenciosas casas de madeira.
Ela estava usando calças compridas e blusa. Enfiou a mão no bolso das calças e entregou-lhe o isqueiro.
— O que é que vai fazer? — perguntou. — Já devíamos ter partido.
Mas Bond manquejou até as latas de gasolina e pôs-se a destampá-las e a arremessar o líquido sobre as paredes e a plataforma de madeira. Depois de esvaziar meia dúzia de latas, voltou para onde ela estava. — Ligue a bicha.
— Curvou-se com esforço e apanhou um jornal amassado ao lado dos trilhos. Ressoou o gemido raivoso do arranque automático, o motor de dois tempos pegou e começou a martelar.
Bond acendeu o isqueiro. O papel pegou fogo e Bond jogou-o entre as latas de gasolina. O espocar das labaredas quase o alcançou quando ele se lançou de costas ao estribo do vagonete. Mas então a. moça soltou a embreagem e o carro começou a deslizar pelos trilhos.
Houve um matracolejar e um sacolejo desagradável ao chegarem às agulhas; e depois, entrados na linha> principal, o velocímetro tremia marcando trinta milhas e os cabelos da moça flutuavam à frente de Bond como uma bandeira.
Bond voltou-se e contemplou a gigantesca floração de chamas que ia ficando para trás. Podia quase ouvir o crepitar das pranchas secas e os berros dos que despertavam. Se pelo menos o fogo pegasse Wint e Kidd, apanhasse a pintura do Pullman e se alastrasse pela lenha do tender do Cannonball e acabasse de uma vez com a caixa de brinquedos de Mr. Spang!
Mas ele e a moça tinham seus próprios problemas. Que horas eram?
Bond aspirou o ar fresco da noite e tentou colocar de novo a mente para trabalhar. A lua estava baixa. Quatro horas? Bond avançou com dificuldade pelo estribo até os dois assentos de encosto dobradiço e conseguiu sentar-se ao lado da moça.
Passou-lhe um braço em volta dos ombros, e ela voltou-se com um sorriso nos lábios. Levantando a voz acima do barulho da máquina e do matracolejar das rodas de ferro sobre os trilhos, ela falou: — Foi uma escapada e tanto. Parecia coisa de filme de Buster Keaton.
Como se sente? — Inspecionou o rosto combalido. — Você está massacrado, hein?
— Nenhuma fratura — disse Bond. — Acho que é isso que se entende por oitenta por cento. — Fez uma careta de dor. — É melhor ser tratado a pontapé do que a bala.
O rosto de Tiffany Case contraiu-se.
— E eu tive de ficar sentada lá e fingir que não ligava. Spang, ao meu lado, escutava e me observava. Depois, eles viram que você já estava nas últimas, atiraram você na sala de espera e todo mundo foi para a cama satisfeito da vida. Esperei uma hora em meu quarto e então resolvi agir. O
pior de tudo foi tentar despertar você.
Bond apertou-lhe os ombros com o braço.
— Direi o que penso de você quando estiver menos contundido. Mas, e você, Tiffany? Vai ficar em maus lençóis se eles nos pegarem. E quem são os dois encapuzados, Wint e Kidd? O que é que eles vão fazer agora?
Gostaria de vê-los de novo.
A moça olhou de viés para a feia equimose na boca de Bond.
— Nunca os vi sem os capuzes — confessou ela. — Suponho que eles são de Detroit. Pistoleiros. Encarregam-se dos trabalhos violentos e de missões especiais secretas. Virão em nosso encalço. Mas não se preocupe comigo. — Encarou-o de novo e seus olhos irradiavam felicidade. — A primeira coisa a fazer é levar essa joça a Rhyolite. Depois teremos de achar um carro e cruzar a fronteira com a Califórnia. Dinheiro não vai faltar-. Eu trouxe. Depois iremos a um médico, arranjaremos um banho e uma camisa nova pra você e pensaremos no que vamos fazer. Trouxe seu revólver. Foi encontrado por um dos rapazes que ajudaram a recolher os restos daqueles dois sujeitos que você arrasou no botequim. Apanhei a arma depois que Spang foi para a cama.
Ela desabotoou a blusa e enfiou a mão no cós das calças.
Bond recebeu a Beretta, e sentiu a quentura do corpo da moça no metal.
Removeu o pente. Sobravam três cartuchos, e um estava na agulha.
Recolocou o pente, fechou o registro de segurança e guardou a arma na cintura. Só então notou que estava sem paletó. Uma das mangas da camisa fora reduzida a um trapo. Arrancou-a e jogou-a fora. Apalpou o bolso traseiro direito da calça, à procura da cigarreira e não a encontrou. Mas no esquerdo estavam ainda o passaporte e a carteira de cédulas. Puxou-os do bolso. À luz da lua pôde ver que ambos estavam danificados. O dinheiro continuava na carteira. Pôs outra vez os objetos no bolso.
Durante algum tempo avançaram pela estrada. O silêncio da noite era cortado apenas pelo ronrom da máquina e pelo matraquear das rodas. Até onde a vista alcançava, havia somente uma interrupção da estreita linha prateada dos trilhos, assinalada pela alavanca de manobra das agulhas, no ponto em que um ramal enferrujado penetrava na massa escura dos montes Spectre à direita. À esquerda, descortinava-se o infindável chão do deserto em que o lampejo da aurora começava a debruar de azul as moitas de cactos contorcidos e, duas milhas além, o luar esparramava seu clarão cinza-chumbo sobre a Rodovia 95.
O vagonete cantarolava feliz nos trilhos. Os instrumentos de controle eram poucos: uma alavanca de freio e uma espécie de manche com um acelerador de cabo retorcido que a moça mantinha completamente aberto, com o velocímetro firme em trinta milhas. As milhas e os minutos passavam e, de vez em quando, Bond virava-se com dificuldade na cadeira e inspecionava o florescente rubor do céu às suas costas.
Fazia cerca de uma hora que tinham partido quando um leve zumbido, vibrando no ar ou nos trilhos, pôs Bond de sobreaviso. Novamente ele olhou por cima do ombro. Haveria um vago bruxoleio entre eles e o falso alvorecer da cidade em chamas?
Bond sentiu leve comichão no couro cabeludo.
— Veja se enxerga alguma coisa ali atrás.
A moça voltou-se. Depois, sem responder, diminuiu a marcha do carro que passou a deslizar suavemente.
Puseram-se à escuta. Sim. Era nos trilhos. Uma leve trepidação, nada mais do que um suspiro distante.
— É o Cannonball — disse Tiffany, categórica.
Deu um brusco repelão no acelerador, e o vagonete tornou a ganhar velocidade.
— Quanto pode fazer a locomotiva? — perguntou Bond.
— Talvez sessenta.
— E daqui pra Rhyolite?
— Trinta, mais ou menos.
Bond fez as contas em silêncio.
— Vai ser por um triz. Não é fácil dizer a que distância ela está de nós. E
esse treco pode dar mais alguma coisa?
— Que nada! — disse ela, — Nem que eu me chamasse Casey Jones em vez de Tiffany Case.
— Não tem importância — disse Bond. — Toca pra frente. Talvez ela vá prós ares com uma explosão.
— Ah, sim — disse ela. — Ou talvez a mola dê o prego, ou Spang se lembre que deixou a chave do motor em casa, no bolso da calça.
Viajaram mais quinze minutos em silêncio. Então, Bond divisou o grande farol da locomotiva varando a noite, a umas cinco milhas de distância, e as centelhas subindo pela chaminé. Os trilhos trepidavam e o que tinha sido um suspiro longínquo era agora um murmúrio baixo, ameaçador.
Talvez venha a faltar lenha, pensou Bond. Num impulso, ele perguntou despreocupadamente à moça:
— Será que temos bastante gasolina?
— Temos, sim — disse Tiffany. — Botei uma lata inteira. Não tem mostrador, mas esses motorzinhos giram a vida inteira com um galão.
Mal ela havia acabado de falar, e como se fizesse um comentário, o motorzinho deu uma tossidela de reprovação — cóf-cóf-cóf — e continuou a rodar alegremente.
— Ai, meu Deus! — exclamou Tiffany. — Ouviu isso? Bond ficou calado. Sentiu as mãos tornarem-se úmidas. Outra vez: cóf-cóf-cóf.
Tiffany Case acalentou delicadamente o acelerador.
— Ah, motorzinho querido — disse ela em tom de súplica. —' Vamos, motorzinho lindo, seja bonzinho, por favor...
— Cóf-cóf. Cóf-cóf. Chi. Cóf. Chiiiii...
E no instante seguinte estavam eles escorregando brandamente em silêncio. Vinte e cinco, dizia o velocímetro. Vinte... quinze... dez... cinco.
Um último e selvagem repelão no acelerador, um pontapé de Tiffany Case na armação do motor, e tinham parado.
— Porra! — disse Bond. Com esforço conseguiu saltar e manquejar até o tanque na traseira do vagonete. Tirou do bolso da calça o lenço ensanguentado, desatarraxou a tampa do funil e introduziu o lenço até tocar o fundo do tanque. Puxou-o para fora, apalpou-o e cheirou-o. Seco como um osso.
— Nada feito — disse ele para Tiffany. — Vamos pensar numa saída.
Olhou em volta. Nenhum abrigo à esquerda, e duas milhas pelo menos até à estrada de rodagem. À direita, as montanhas, talvez a um quarto de milha. Podiam chegar lá e esconder-se. Mas por quanto tempo? Contudo, era o melhor alvitre. O chão, sob seus pés, tremia. Esquadrinhou a linha férrea iluminada pelo olho incandescente, implacável. A que distância? Duas milhas? Spang enxergaria o vagonete? Teria tempo de parar? Haveria descarrilamento? Mas aí Bond lembrou-se do poderoso limpa-trilhos, que varreria da linha o vagonete como se fosse um feixe de palha.
— Vamos, Tiffany — bradou ele. — Temos de escalar as colinas.
Onde estava ela? Bond rodeou o carro. Ela vinha correndo pelo trecho da estrada que tinham pela frente. Aproximou-se arquejante.
— Há um desvio logo ali adiante — disse ela entre um ofego e outro. — Se a gente puder empurrar essa coisa até lá e se você puder manobrar as velhas agulhas, pode ser que a gente escape.
— Deus do céu! — disse Bond lentamente. E depois, com uma nota de pasmo na voz, acrescentou: — Há uma coisa melhor do que essa. Me ajude aqui — e, curvando-se, rilhou os dentes contra a dor e começou a empurrar o vagonete.
Recebido o impulso inicial, o carro moveu-se facilmente e eles precisavam apenas segui-lo e não deixar que parasse. Chegaram às agulhas, mas Bond continuou a empurrar até que pararam umas vinte jardas além.
— Que diabo é que você vai fazer? — arquejou Tiffany.
— Vamos pra cá — respondeu Bond, correndo aos tropeções para o ponto em que a chave enferrujada ressaltava ao lado dos trilhos. — Vamos colocar o Cannonball no desvio.
— Genial! — disse Tiffany Case com admiração. Puseram mãos à obra, e os músculos doloridos de Bond forcejavam por erguer a chave.
Lentamente o metal enferrujado começou a mover-se no leito onde jazia imóvel havia cinquenta anos, e milímetro a milímetro os trilhos mostraram uma fenda, que foi se alargando à medida que Bond puxava a alavanca.
Ao terminar, Bond caiu de joelhos no chão, com a cabeça dobrada para baixo, lutando contra a tontura que ameaçava dominá-lo.
Mas já então um feixe de luz iluminava o chão e Tiffany procurava arrastá-lo. Bond ergueu-se e voltou aos trambolhões para o vagonete. O ar estrondava e se enchia do plangente clangor do sino enquanto o flamejante cavalo de ferro galopava em direção a eles.
— Abaixe-se e não se mexa — bradou Bond por cima do barulho e lançou-a ao chão por trás do frágil biombo do vagonete. Depois, coxeou o mais rápido que pôde até a margem dos trilhos, puxou a arma, colocando-se de viés com o braço levantado como um duelista e voltou os olhos semicerrados para o gigantesco farol que avançava debaixo do vulcão de fogo e fumaça turbilhonantes.
Puxa, que monstro! Entraria ele na curva? Ou não respeitaria o desvio e os esmagaria? Lá vinha ele.
— Fittt.
Algo açoitou o chão ao lado de Bond e houve um clarão momentâneo na cabina.
— P-o-e-m-m-m.
Houve outro clarão, e a bala atingiu o trilho, gemendo na noite.
— Trac. Trac. Trac.
Agora era-lhe possível ouvir o revólver acima do trovejar da locomotiva.
Algo cantou em tom agudo no ouvido de Bond.
Bond não respondeu. Só quatro balas, e ele sabia quando devia disparar.
E então, a vinte jardas, a locomotiva entrou na curva e desembestou pelo desvio com uma guinada tão violenta que atirou as achas de lenha do alto do tender na direção de Bond.
Houve um grito roufenho de metal quando as bordas das rodas motrizes de seis pés de altura dobraram a curva, uma breve impressão de fumaça, chama e ruído de motor, e, depois, uma rápida visão da cabina e do vulto negro e prateado de Spang, de braços abertos e pernas estendidas, agarrando-se com uma das mãos ao costado da cabina e com a outra precipitando-se para a alavanca do acelerador.
A arma de Bond bradou suas quatro palavras. Houve um curto vislumbre de uma cara branca arremessada para o alto, e logo a enorme locomotiva preta e amarela distanciou-se, reboando rumo à muralha sombria dos montes Spectre, o feixe de luz do farol ceifando a treva e o sino dobrando tristemente dim-dão, dim-dão, dim-dão.
Bond guardou lentamente a Beretta no cós das calças, e ficou olhando o ataúde de Mr. Spang, enquanto a esteira de fumaça subia no ar e por um momento encobria a face da lua.
Tiffany veio correndo até onde ele estava, e lado a lado puseram-se a contemplar a bandeira de chamas que se elevava da alta chaminé e escutar as montanhas multiplicarem o atroar da locomotiva. A moça agarrou-lhe os braços quando o comboio deu uma guinada repentina e sumiu-se atrás de um esporão da pedra. E agora ouvia-se apenas um longínquo tamborilar nas montanhas e avistava-se um clarão vermelho que fazia tremular os penhascos enquanto Cannonball despencava no bojo da rocha.
E subitamente apareceu uma imensa língua de fogo, no mesmo instante em que se produziu tremendo choque metálico semelhante ao encontrão de um encouraçado num penedo. Debaixo de seus pés ressoou um estrépito abafado. Finalmente, um ribombo distante e profundo levantou-se das entranhas da terra, seguido por uma barragem de ecos os mais variados.
Então, findos todos os ruídos, zuniu, firme, o silêncio.
Bond soltou um suspiro profundo como se estivesse despertando. Aí estava o fim de um dos Spangs, de um dos enfatuados, cruéis, aparatosos, irrecuperáveis adultos que compunham a quadrilha dos Spangs. Fora um gangster teatral e vivera num ambiente de caixa de palco. Mas isso não alterava o fato de que pretendera liquidar Bond.
— Vamos embora daqui — disse Tiffany Case com sofre-guidão. — Para mim chega de Spectreville.
Bond sentiu a dor insinuar-se-lhe outra vez por todo o corpo à medida que passava a tensão. "Vamos" — respondeu, lacônico. Alegrava-o a ideia de voltar as costas à lembrança daquele rosto branco virado para cima, dentro da bela locomotiva negra em marcha. Estava ligeiramente tonto e duvidava se seria capaz de fazer o percurso.
— Temos de alcançar a estrada. Vai ser difícil. Mas vamos embora.
Levaram uma hora e meia para vencer as duas milhas e, no momento em que se prostrou no solo à margem da estrada de cimento, Bond estava delirante. Foi a moça que o conduziu até lá. Sem ela, ele não teria chegado.
Teria tropeçado no meio dos cactos, das pedras e da mica até que lhe faltassem as forças e o sol causticante se encarregasse de completar o serviço.
Agora ela lhe segurava a cabeça no regaço, falava-lhe docemente e lhe enxugava o suor da testa com a ponta da blusa.
E de vez em quando parava para examinar uma banda e outra da estrada retilínea de concreto, cujos horizontes já tremeluziam nas ondas de calor do amanhecer.
Uma hora depois, ela ergueu-se de um salto, enfiou a blusa por dentro das calças, correu e parou no meio da estrada. Um carro baixo e negro rompia a neblina esvoaçante que ocultava o distante vale de Las Vegas.
O carro estacou justamente diante dela. Um rosto adunco sob um topete desalinhado de cabelo cor de palha assomou à janela. Os penetrantes olhos cinzentos miraram-na de alto a baixo. Pousaram-se na figura do homem deitado no solo à margem da estrada e tornaram para a moça.
Então, com a amistosa fala arrastada dos texanos, o chofer rompeu o silêncio:
— Félix Leiter, senhorita. Às suas ordens. Em que posso servi-la nesta magnífica manhã?
21 - "Nada é tão apropinquante como a propinquidade"
—...E QUANDO CHEGUEI à cidade telefonei pra meu amigo Ernie Cureo. James sabe quem é. A mulher dele estava de ataque e Ernie no hospital. Corro pra lá e ele me passa o serviço e eu imagino que James pode precisar de reforços. Monto na minha égua preta cor de carvão e vou esquipando noite adentro e quando chego perto de Spectreville vejo o clarão no céu. Calculo então que Mr. Spang está preparando um churrasco. O
portão da cerca está aberto e eu resolvo tomar parte na festa. Bom, creiam-me vocês ou não, o fato é que não há vivalma no local, exceto um cara de perna arrebentada e contusões generalizadas, que vem se arrastando pela estrada, tentando dar o pira. E ele me dá a impressão de ser um arruaceiro de nome Frasso, de Detroit. Ernie Cureo tinha dito que era um dos caras que tinham levado James. Ele não estava em condições de negar isso e eu então manjei a situação toda e compreendi que Rhyolite era minha próxima parada. Aí eu digo pro nosso amigo que daí a pouco os bombeiros virão fazer companhia a ele, levo-o até o portão e deixo-o lá. E de uma hora para outra vejo uma guria no meio do deserto, com o ar de quem tinha sido disparada de um canhão. E aqui estamos todos. Agora é a vez de vocês contarem.
"Então tudo isto não é parte de um sonho e eu estou deitado no assento traseiro no Studillac e este é o colo de Tiffany debaixo da minha cabeça e aquele ali é Félix e nós estamos indo às carreiras pela estrada a caminho da segurança, de um médico, de um banho, de comida, de bebida e de um longo sono reparador." Bond mexeu-se e sentiu que a mão de Tiffany em seu cabelo dizia que tudo era real e tal como havia esperado. Imobilizou-se novamente e nada disse. Guardava cada momento para si e lhes escutava as vozes e o zunido dos pneus rolando pela estrada.
Ao fim da narrativa de Tiffany, Félix Leiter largou um assobio de estupefação.
— Puxa! — exclamou ele. — Então vocês dois abriram um rombo espetacular na quadrilha de Spang. Que diabo é que vai acontecer agora? Há muitos outros marimbondos na casa e isso de ficar zumbindo em volta não é do feitio deles. Eles vão exigir ação.
— Certo! — disse Tiffany. — Spang era membro da associação de Las Vegas, e esses camaradas são muito solidários. Há também Shady Tree e aqueles dois pistoleiros, Wint e Kidd. Só o diabo sabe quem são eles. Quanto mais cedo a gente cruzar a fronteira estadual, melhor. E depois, o que vamos fazer?
— Até aqui vai tudo em ordem — disse Félix Leiter. — Em dez minutos chegaremos a Beatty, depois pegaremos a 58 e passaremos nela uma meia hora. Em seguida, toparemos um longo trecho através do Vale da Morte e sobre as montanhas até Olancha, onde atingiremos a N.° 6. Poderíamos dar uma paradinha lá, levar James a um médico, comer alguma coisa e tomar um banho. Depois continuaremos na 6 até chegarmos a Los Angeles. Será muito puxado, mas poderemos estar em Los Angeles na hora do almoço. Aí podemos descansar um pouco e bolar algum plano. Meu palpite é que temos de tirar você e James do país o mais cedo possível. Os meninos tentarão pegar vocês dois de qualquer jeito, e se conseguirem eu não darei um níquel pela vida de nenhum dos dois. A melhor solução seria botá-los num avião para Nova York hoje de noite e despachá-los amanhã para a Inglaterra.
James pode embarcar lá.
— Acho que é razoável — disse a moça. — Mas, afinal, quem é esse Bond? O que é que ele faz? É um detetive ou coisa semelhante?
— Acho melhor que você mesma pergunte a ele — Bond ouviu Leiter dizer cautelosamente. — Mas eu, se fosse você, não me preocuparia com isso. Ele cuidará de você.
Bond sorriu para si mesmo e, no longo silêncio que se seguiu, caiu num sono intranquilo que durou até o momento em que atravessaram a Califórnia e o carro parou defronte de um portãozinho com a placa "Otis Fairplay, Médico".
E depois, enfaixado e pintado com mercúrio-cromo, banhado e barbeado, com um suculento café matinal no estômago, Bond voltou ao carro e ao mundo. Tiffany readquirira o velho ar irônico e intratável e Bond revelava-se útil na espionagem dos patrulheiros rodoviários, enquanto Leiter avançava a oitenta milhas pela interminável estrada estonteante, rumo à longínqua linha de nuvens que escondiam as High Sierras.
Mais tarde rolavam tranquilamente ao longo de Sunset Boulevard, ladeado pelas palmeiras e pelos gramados verdejantes. O Studillac coberto de poeira destoava no meio das cintilantes Corvettes e Jaguars. Finalmente, ao anoitecer, estavam sentados no bar escuro e refrigerado do Beverly Hills Hotel. Havia novas maletas no saguão, roupas novas adquiridas em Hollywood, e até mesmo o rosto de Bond, marcado de cicatrizes da luta, poderiam indicar que tinham terminado o trabalho nos estúdios.
Havia um telefone em cima da mesa, ao lado dos martinis. Félix Leiter acabava de falar com Nova York pela quarta vez desde que haviam chegado.
— Bom, está tudo arranjado — disse ele, desligando o telefone. — Meus colegas do escritório conseguiram passagens no Elizabeth. Adiou a partida por causa de uma greve nas docas. Sai amanhã de noite, às oito. Eles.irão ao encontro de vocês de manhã em La Guardiã, com as passagens, e vocês serão levados para bordo de tarde. Pegaram o resto de suas coisas no Astor, James. Uma pasta e os teus célebres tacos de golfe. E Washington oferece um passaporte a Tiffany. Haverá um homem do Departamento de Estado no aeroporto. Vocês terão que assinar uns formulários. Consegui que um dos meus antigos colegas da CIA arranjasse a coisa. Os vespertinos fizeram uni bruto estardalhaço com a estória. "Cidade Morta Desaparece" e outras manchetes desse tipo. Mas parece que ainda não descobriram nosso amigo Spang e os nomes de vocês não figuram no noticiário. Meu pessoal diz que não há nada com vocês na polícia, mas um de nossos informantes secretos diz que as quadrilhas estão à procura de vocês e espalharam por toda parte uma descrição de ambos. Com a promessa de dez mil. Assim, é melhor mesmo dar no pé o mais cedo possível. É aconselhável irem para bordo separadamente. Tomem o maior cuidado, vão para os camarotes e não saiam de lá. Vai haver o diabo quando eles chegarem ao fundo daquela velha mina.
Isso fará pelo menos três cadáveres a zero, e esse tipo de escore não é do agrado deles.
— Pinkerton é uma verdadeira máquina — disse Bond, com admiração.
— Mas ficarei satisfeito quando estivermos longe daqui. Eu pensava que os seus gangsters eram um bando de italianos untuosos, que se empanturravam de pizza e cerveja a semana toda e no sábado assaltavam uma garagem ou uma farmácia para arranjarem dinheiro para as corridas. Mas não há dúvida que eles incluem um bocado de violência na folha de pagamentos.
Tiffany Case riu zombeteiramente.
— Você precisa mandar examinar essa cabeça — disse ela, categórica.
— Se sairmos inteirinhos do Lizzie será um verdadeiro milagre. Por aí você pode ter uma ideia de como eles são. Se não fosse aqui o nosso Capitão Gancho-de-Aço, não sei o que seria de nós. Untuosos! Pois sim!
Félix Leiter soltou uma risadinha.
— Calma, pombinhos — disse ele, consultando o relógio. — Temos de partir. Preciso voltar a Las Vegas hoje de noite e começar a procurar o esqueleto do nosso Shy Smile. E vocês têm de pegar o avião. Poderão continuar a arenga a vinte mil pés de altura. De lá a perspectiva é mais interessante. É possível até que terminem como amigos. Lembrem-se do que se diz por aí. — Fez um aceno para o garçom. — Nada é tão apropinquante como a propinquidade.
Leiter levou-os ao aeroporto e deixou-os lá. Bond sentiu um nó na garganta quando o vulto magro saiu coxeando para o carro depois de ter sido efusivamente abraçado por Tiffany Case.
— Você pode dizer que tem um amigo de verdade — disse a moça ao ver Leiter bater a porta e ouvir o estrondo do escape enquanto o carro partia de volta ao deserto.
— Sim — disse Bond. — Félix é cem por cento.
O luar arrancou cintilações do gancho de aço quando Leiter acenou um último adeus. Depois, a poeira assentou na estrada e soou a voz de ferro do alto-falante: "Trans-World Airline, Voo 93. Embarque no Portão N.° 5 para Chicago e Nova York. Todos a bordo, por favor." Eles abriram caminho através das portas de vidro e deram os primeiros passos de sua longa viagem para Londres.
O novo Super-G Constellation roncou por cima do continente envolto em sombras, e Bond, deitado em seu confortável beliche, esperando que o sono lhe tomasse conta do corpo dolorido, pensava em Tiffany, que dormia no beliche de baixo, e no estágio em que se encontrava sua missão.
Pensou no lindo rosto adormecido sobre a mão aberta, inocente e indefeso, esvaecidos o desdém dos olhos cinzentos e rasos e a curva irônica dos cantos da boca ardente. Bond sabia que estava bem perto de apaixonar-se. Mas, e ela? Até onde ia aquela rebelião masculina gerada certa noite em São Francisco, quando os homens lhe invadiram o quarto e a ofenderam?
Chegariam a adolescente e a mulher a transpor a barricada que haviam começado a construir naquela noite contra todos os homens do mundo?
Romperia ela a concha que os anos de solidão e retraimento tornavam cada vez mais rija?
Bond recordou aqueles momentos das últimas vinte e quatro horas em que conhecera a resposta, momentos em que uma jovem arrebatada e terna surgira feliz, sem a máscara agressiva que usava entre os gangsters, no contrabando, no cassino, na mesa de vinte-e-um, e lhe dissera: — Toma-me pela mão. Abre a porta e caminharemos de mãos dadas no dia claro. Não te preocupes. Acertarei meu passo pelo teu. Sempre estive a teu lado em pensamento, mas tu não vieste e passei a vida escutando outra cadência.
Sim, pensou ele. Tudo correrá bem, por esse lado. Mas estava preparado para as consequências? Uma vez que a tomasse pela mão, seria para sempre.
Estaria no papel do médico, do psicanalista, a quem a paciente transfere seu amor e sua confiança, enquanto se liberta da doença. Não poderia haver maior crueldade do que soltar-lhe a mão depois de a ter tomado nas suas.
Estava preparado para as repercussões que esse ato teria em sua vida e em sua profissão?
Bond mexeu-se no beliche e descartou-se do problema. Era muito cedo ainda para enfrentá-lo. Estava indo muito depressa. Mais devagar. Cada coisa a seu tempo. E obstinadamente arquivou a questão, dirigindo os pensamentos para M e para a missão que lhe cumpria concluir antes de perder tempo com sua vida particular.
Bem, uma parte da serpente estava esmagada. A cabeça ou o rabo?
Difícil dizer, mas Bond tendia a julgar que Jack Spang e o misterioso ABC
eram os verdadeiros manipuladores do contrabando de diamantes e que Seraffimo se incumbia da receptação. Seraffimo podia ser substituído.
Tiffany podia ser dispensada. Shady Tree, a quem ela poderia implicar no contrabando, teria de ficar oculto até que a tormenta — se é que Bond era realmente um prenuncio de tempestade — se desencadeasse. Mas nada havia que pudesse implicar Jack Spang ou a House of Diamonds, e a única pista para ABC era o telefone londrino, cujo número Bond trataria de obter da moça o mais cedo possível. Mas este, e todo mecanismo dos contados a ele relacionados, seria alterado logo depois que todos os fatos da deserção de Tiffany e da fuga de Bond fossem comunicados a Londres, presumivelmente por Shady Tree. Assim, tudo isto, refletiu Bond, colocava Jack Spang e, através dele, ABC como seu próximo alvo. O que tinha a fazer de imediato, concluiu Bond antes de se abandonar ao sono, era relatar toda a situação a M
assim que embarcasse no Queen Elizabeth. Daí por diante Londres tomaria conta do caso. Os homens de Vallance sairiam a campo. Bond não teria muito que fazer quando regressasse. Relatórios e mais relatórios a escrever.
A mesma velha rotina no escritório. E de noite haveria Tiffany no quarto atualmente desocupado de seu apartamento, numa transversal de Kings Road. Precisava mandar um telegrama para May a fim de que ela arrumasse as coisas. Vejamos... flores, sais de banho de Floris, lençóis limpos...
Dez horas depois de terem deixado Los Angeles, sobrevoaram La Guardiã e viraram para o mar a fim de preparar o pouso.
Eram oito horas da manhã de domingo e havia pouca gente no aeroporto, mas um funcionário interrompeu-lhes a caminhada quando seguiam pela pista alcatroada e os conduziu para uma entrada lateral, onde os esperavam um homem de Pinkerton e um representante do Departamento de Estado.
Enquanto conversavam, a bagagem foi-lhes trazida. Depois, levaram-nos para fora da estação de passageiros, onde os aguardava um elegante Pontiac marrom, com o motor em movimento e as persianas do vidro traseiro abaixadas.
Passaram ainda algumas horas de ócio no apartamento do homem de Pinkerton até que, por volta das quatro da tarde, mas com um quarto de hora de diferença entre eles, galgaram a prancha de embarque, penetraram no negro, majestoso e seguro ventre britânico do Queen Elizabeth e, por fim, encerraram-se em seus camarotes no convés M, com as portas trancadas para o mundo.
Mas, quando, em primeiro lugar, Tiffany Case e, depois, Bond puseram os pés na prancha de embarque, um doqueiro do Sindicato de Estivadores de Anastásia correu para a cabina telefônica do galpão da alfândega.
E três horas mais tarde dois homens de negócios americanos saltavam de um sedan negro à porta de um armazém das docas, passavam às pressas pelo serviço de imigração e pela alfândega e galgavam a prancha de embarque, quando os alto-falantes começavam a pedir aos visitantes que desembarcassem.
Um dos homens de negócios era ainda jovem, de feições delicadas e fios de cabelos embranquecidos aparecendo sob o Stetson recoberto por uma capa impermeável. O nome impresso na pasta que carregava era B.
Kitteridge. O outro era um gorducho grandalhão, com um brilho nervoso nos olhos miúdos por trás das lentes bifocais. Suava em bicas e constantemente enxugava o rosto com um lenço enorme. O nome no cartão pendurado na alça da pasta era W. Winter. Em baixo do nome, lia-se em tinta vermelha: MEU GRUPO SANGuÍNEO É F.
22 - Amor e molho bearnês
Às OITO HORAS em ponto, o prolongado e ressoante apito da sirena do Queen Elizabeth fez tremer a vidraça dos arranha-céus. Com grande rebuliço, os rebocadores arrastaram-no para o meio do rio, abrindo-lhe o caminho. Por fim, desenvolvendo cautelosamente cinco nós, o transatlântico pôs-se a descer o rio, cortando as águas remansosas.
Após a parada para desembarcar o prático no Farol de Ambrose, as quádruplas hélices fustigariam o mar, convertendo-o em creme de leite, e o Queen Elizabeth, com um estremecimento de alívio, começaria a fender o longo arco achatado, entre os paralelos 45 e 50, a caminho de Southampton.
Sentado no camarote, escutando o ranger do madeiramento e contemplando o lápis rolar suavemente em cima da penteadeira, entre a escova de cabelo e a borda de seu passaporte, Bond recordava os dias em que outra era a rota da embarcação, os dias em que ela ziguezagueava no Atlântico Sul, brincando de esconde-esconde com os ferozes cardumes de submarinos alemães, a caminho da Europa em chamas. Ainda era uma aventura, mas agora o Queen Elizabeth — protegido num casulo de radar, rádio e sondador de ecos — movia-se com as precauções de um potentado oriental entre escoltas e batedores e, no que dizia respeito a Bond, tédio e indigestão eram os únicos riscos da viagem.
Pegou o telefone e pediu para falar com Miss Case. Quando ela lhe ouviu a voz, rompeu num gemido teatral.
— A loba do mar odeia o mar — disse ela. — Ainda não saímos do rio e eu já estou enjoada.
— Não faz mal — disse Bond. — Não saia do camarote e tome dramamina e champanha. Vou passar uns dois ou três dias em repouso. Vou mandar chamar o médico e o massagista dos banhos turcos pra ver se junto de novo as peças. E de qualquer modo não faz mal nenhum que a gente passe a maior parte da viagem no camarote. É possível que nos tenham localizado em Nova York.
— Bom, se você promete telefonar todos os dias — disse Tiffany — e promete me levar àquela Veranda Grill logo que eu puder engolir um pouco de caviar, eu concordo. Está bem assim?
Bond soltou uma gargalhada.
— Já que você insiste, eu prometo — disse ele. — E agora, escute. Em troca, eu quero que você tente lembrar-se de tudo o que puder a respeito de ABC e do lado londrino de nosso negócio. Aquele número de telefone e o mais que você julgar importante. Logo que puder, eu lhe direi por que estou interessado nisso. Por enquanto você tem de confiar em mim. Combinado?
— Combinado — disse a moça com indiferença, como se toda essa fase de sua vida tivesse perdido o interesse; e, durante dez minutos, Bond inquiriu-a minuciosa, mas (exceto no que tocava a pormenores insignificantes) inutilmente, acerca das atividades de ABC.
Depois desligou o telefone, chamou o camareiro, encomendou o jantar e sentou-se para escrever o longo relatório que teria de transpor em código e despachar naquela mesma noite.
O rebocador conduziu tranquilamente o navio para a treva, e a cidadezinha de três mil e quinhentos habitantes preparou-se para viver os cinco dias da viagem, durante os quais poderiam registrar-se todas as ocorrências naturais em qualquer outra comunidade desse porte — furtos, brigas, seduções, bebedeiras, embustes, talvez um ou dois partos, a possibilidade de um suicídio e, em cem travessias, até mesmo um homicídio.
Quando o burgo de ferro começou a sulcar serenamente a imensidão do Atlântico e a brisa suave da noite zuniu e gemeu no topo do mastro, as antenas de rádio já estavam transmitindo a mensagem do operador de serviço ao ouvido atento de Portishead.
E o que o operador enviava, precisamente às dez horas da noite, E. S. T., era um telegrama endereçado a ABC, CUIDADOS HOUSE OF DIAMONDS, HATTON GARDEN, LONDRES, e
que dizia:
LOCALIZADOS PT CASO ASSUNTO EXIJA SOLUÇÃO DRÁSTICA ESSENCIAL VOCÊ FIXAR PREÇO PAGO EM DÓLARES. Assinado: WINTER.
Uma hora depois, enquanto o operador do Queen Elizabeth lamentava ter de transmitir quinhentos grupos de cinco letras dirigidos ao DIRETOR PRESIDENTE, EXPORTADORA UNIVERSAL, REGENTS PARK, LONDRES, o rádio de Portishead enviava uma breve mensagem a WINTER, PASSAGEIRO PRIMEIRA CLASSE QUEEN ELIZABETH, que dizia:
DESEJO SOLUÇÃO IMEDIATA PROBLEMA CASE PT PAGAREI VINTE MIL PT
CUIDAREI PESSOALMENTE OUTRO ASSUNTO CHEGADA LONDRES CONFIRME ABC.
O operador procurou Winter na lista de passageiros, meteu a mensagem num envelope e enviou-a a um camarote no convés A, abaixo do de Bond e da moça, onde os dois homens jogavam cartas em mangas de camisa.
Quando o mensageiro saiu do camarote, ouviu o gorducho dizer para o homem dos cabelos brancos: — Pois é, Kidd. Vinte mil. É pra valer!
Não foi senão no terceiro dia que Bond e Tiffany resolveram encontrar-se no Observation Lounge, para um coquetel, e mais tarde no Veranda Grill, para jantar. Ao meio-dia, a calmaria era total, e depois do almoço no camarote Bond recebera um ultimato em redondo cursivo feminino numa folha de bloco do navio: "Marque um encontro comigo hoje. Não falhe".
Imediatamente Bond pegara o telefone.
Estavam sedentos da companhia um do outro depois dos três dias de separação, mas as defesas de Tiffany estavam de pé quando ela se reuniu a ele na escura mesa de canto que Bond havia escolhido na cintilante sala semicircular, situada na proa.
— Que espécie de mesa é esta? — perguntou ela com sarcasmo. — Está com vergonha de mim? Então eu ponho o mais belo modelo dos costureiros de Hollywood e você me esconde como se eu fosse Miss Reno 1914? Quero me divertir nessa geringonça e você me bota num canto como se eu fosse contagiosa.
— É isso mesmo — disse Bond. — O que você quer é elevar a temperatura de outros homens.
— Que é que você espera que uma moça faça no Queen Elizabeth?
Pescar?
Bond riu. Acenou para o garçom e pediu vodca-martini seco com casca de limão.
— Eu podia te oferecer uma alternativa.
— Já sei — disse a moça. — Meu querido diário: estou na maravilhosa companhia de um inglês bonitão. O que me aflige é saber que ele anda atrás das jóias da minha família. Que devo fazer? Sua criada, desorientada. — Num movimento súbito, ela inclinou o busto para a frente e pousou a mão na do homem. — Escute aqui, mestre Bond — disse ela. — Estou felicíssima.
Adoro isso aqui. Adoro estar com você. E adoro esta mesinha escura onde ninguém pode me ver segurando sua mão. Não ligue pra minha conversa. É que eu não posso me conter de tão feliz. Não faça caso das minhas brincadeiras.
Ela vestia uma blusa de xantungue de seda creme e uma saia de algodão e lã preto-carvão. As cores neutras ressaltavam-lhe a tez café-au-lait. O minúsculo relógio Cartier quadrado, com a pulseira preta, era sua única jóia, e as unhas curtas da mão pequena e morena que Bond tinha entre as suas estavam sem esmalte. A luz do sol, refletida do exterior, refulgia no ouro pálido das largas ondas do cabelo, nas profundezas dos cinzentos olhos opalescentes e nos alvos dentes que cintilavam entre os lábios sensuais.
— Não — disse Bond. — Não farei caso, Tiffany. Tudo em você é esplêndido.
Ela o encarou nos olhos e ficou satisfeita. O garçom trouxe-lhes a bebida. Ela retirou a mão e observou-o ironicamente por cima da borda de seu copo.
— Agora eu quero saber umas coisinhas — disse ela. — Em primeiro lugar, o que é que você faz e para quem trabalha? A princípio, no hotel, pensei que você era um vigarista. Mas, não sei por quê, quando você foi embora, vi que não era. Acho que devia ter avisado ABC, e com isso teria evitado essa onda toda. Não avisei, e pronto! Vamos, James. Responda.
— Trabalho para o governo — disse Bond —, que quer acabar com esse contrabando de diamantes.
— Espécie de agente secreto?
— Funcionário público, apenas.
— Está bem. E o que é que você vai fazer comigo quando chegarmos a Londres? Trancafiar-me?
— Sim. No quarto desocupado de meu apartamento.
— Assim é melhor. Terei de me tornar súdita da Rainha como você?
Gostaria de ser súdita.
— Acho que podemos arranjar isso pra você.
— É casado? — Fez uma pausa. — Ou tem alguma ligação?
— Não. Um caso ou outro de vez em quando.
— Quer dizer então que você é um desses sujeitos fora de moda que gostam de dormir com mulher? Por que não se casou?
— Creio que porque eu acho que posso manobrar melhor a minha vida sozinho. A maioria dos casamentos não soma duas pessoas. Subtrai uma da outra.
Tiffany Case refletiu um pouco.
— Talvez você tenha razão — disse ela, afinal. — Mas depende do que se soma. Pode ser algo humano ou inumano. Ninguém é auto-suficiente.
— E você?
A moça não gostou da pergunta.
— Talvez eu esteja do lado do inumano — respondeu com rispidez. — E com que diabo de homem você queria que eu me casasse? Com Shady Tree?
— Pode ter havido muitos outros.
— Não houve — disse ela com raiva. — Você é capaz de achar que eu não devia ter me misturado com esses calhordas. Bem, talvez eu tenha dado o passo que não devia dar. — A chama de cólera se apagou e a moça assumiu a defensiva. — Isso acontece com certas pessoas, James. Acontece mesmo. E às vezes não é culpa delas.
James Bond estirou o braço e apertou a mão da moça.
— Eu sei, Tiffany — disse ele. — Félix me contou. É por isso que não perguntei nada. Não pense mais nisso, não. O que importa é o dia de hoje, aqui, agora. Não o dia de ontem. — Desviou o assunto. — Agora é a sua vez de me fornecer alguns fatos. Por exemplo, de onde é que vem esse nome Tiffany e que tal ser banqueira no Tiara? Como é que você chegou a cartear tão bem? Simplesmente espetacular a maneira como você tratava aquele baralho. Se pode fazer aquilo, pode fazer qualquer outra coisa.
— Não diga — replicou a moça com ironia. — Fazer o quê, por exemplo? Brincar de sapateira? E quanto ao nome Tiffany a explicação é simples. Quando eu nasci, papai Case ficou tão zangado por eu não ser menino que deu à minha mãe mil dólares e uma lata de talco comprada em Tiffany e foi embora de casa. Foi ser fuzileiro naval. Terminou morrendo em Iwo Jima. Então minha mãe me botou o nome de Tiffany Case e tratou de ganhar a vida pra nós duas. Começou com uma espelunca e umas garotas e com o tempo foi ficando mais ambiciosa. Talvez essa história não seja muito do seu agrado.
Ela lhe lançou um olhar meio defensivo, meio suplicante.
— Não me preocupa — disse Bond secamente. — Você não era uma das pequenas.
Ela deu de ombros.
— Um dia o lugar foi invadido pelos gangsters. — Interrompeu-se para beber o resto do martini. — E eu dei no pé, por minha conta. Passei pelos empregos comuns a todas as moças. Depois fui para Reno. Lá eles mantêm uma escola de jogo e eu dei duro. Curso completo. Dados, roleta e vinte-e-um. Pode-se ganhar bom dinheiro nos cassinos. Duzentos por semana. Os homens gostam quando as moças bancam o jogo e as mulheres se sentem mais confiantes. Acreditam que a gente vai se mostrar bondosa com elas.
Pensam estar entre irmãs. Quando são homens que bancam o jogo, elas se apavoram. Mas não pense que essa estória toda é assim tão engraçada.
Contada, é uma coisa; vivida, é outra. — Fez uma pausa e sorriu. — Tenha a palavra, agora. É a sua vez. Pague mais um trago e me diga que tipo de mulher você acha que soma com você.
Bond chamou o garçom. Acendeu um cigarro e voltou-se para Tiffany.
— Alguém que saiba fazer molho bearnês e amor — disse ele.
— Já sei! Qualquer bruxa velha que saiba cozinhar e deitar-se de costas.
— Ah, não. Ela precisa ter todas essas coisas que as mulheres geralmente têm. — Bond examinou-a. — Cabelo cor de ouro. Olhos cinzentos. Boca pecadora. Silhueta perfeita. E naturalmente tem de contar piadas engraçadas, vestir-se bem e jogar cartas. As prendas naturais.
— E você casaria com uma mulher assim, se a encontrasse?
— Não necessariamente — disse Bond. — Pra falar com franqueza, já sou quase casado. Com um homem cujo nome começa com M. Teria de me divorciar dele antes de casar com uma mulher. E não sei se isso me agradaria. Ela me obrigaria a passar canapés de mão em mão numa sala de visita em forma de L. E haveria aquelas chatérrimas discussões "Foi você — Não, foi você" que parecem combinar tão bem com todos os casamentos.
Não daria certo. No primeiro acesso de claustro-fobia, iria embora pro Japão ou pra qualquer outra parte.
— E filhos?
— Gostaria de ter alguns — disse Bond. — Mas só quando me aposentasse. De outra forma, não seria justo. Meu trabalho não é lá muito seguro. — Olhou para o copo e bebeu todo o martini. — E você, Tiffany? — perguntou, a fim de mudar de assunto.
— Acho que toda moça gostaria de chegar em casa e encontrar um chapéu na mesinha do corredor — disse Tiffany, melancólica. — O diabo é que eu nunca encontrei nada que prestasse debaixo do chapéu. Talvez não tenha procurado bastante ou não tenha procurado nos lugares certos. Você sabe como é: quando a gente entra na rotina não quer mais sair. Assim fiz eu no meio dos Spangs. Sabia sempre de onde era que vinha a comida. Fiz algumas economias. Mas uma moça não pode ter amigos naquele ambiente.
Ou bota uma placa "Proibida a Entrada" ou de uma hora pra outra se vê cercada de malandros. Mas acho que já estou farta de viver só. Conhece o refrão das coristas da Broadway? "É triste a trouxa de roupa que não tem uma camisa de homem".
Bond riu.
— Mas agora você está fora da rotina — disse ele e olhou-a zombeteiramente. — E Mr. Seraffimo? E aqueles dois quartos de dormir no Pullman, a ceia para dois com champanha...?
Antes que concluísse, ela levantou-se da mesa, os olhos vermelhos, e caminhou para fora do bar.
Bond se amaldiçoou. Colocou algum dinheiro sobre a conta e saiu correndo atrás dela. Foi encontrá-la quase no meio do tombadilho de passeio.
— Por favor, Tiffany, escute — começou ele.
Ela voltou-se e encarou-o.
— Como se pode ser tão mesquinho? — disse ela, e lágrimas iradas brilharam-lhe nos cílios. — Por que você tem de estragar tudo com uma observação ferina como aquela? Oh, James! — Em desespero virou-se para as janelas, procurando um lencinho na bolsa. Enxugou os olhos. — Você simplesmente não compreende.
Bond cingiu-a com um braço e puxou-a para si.
— Meu amor! — Sabia que nada senão o grande passo do amor físico curaria esses mal-entendidos, mas que era necessário ;ainda desperdiçar tempo e palavras. — Não tive a intenção de magoar você. Eu queria somente ter certeza. Aquela mesa posta para a ceia no trem me feriu muito mais do que o que aconteceu depois. Tinha de lhe fazer aquela pergunta.
Ela ergueu a vista, ainda em dúvida.
— Está falando sério? — perguntou, observando-lhe o rosto. — Quer dizer que você já me queria bem?
— Não seja boba — disse Bond, impaciente. — Então você não sabe nada de nada?
Ela afastou-se e contemplou pela janela o infindável mar azul e as gaivotas que acompanhavam esse navio extraordinariamente pródigo.
Depois de algum tempo, perguntou:
— Você já leu Alice no País das Maravilhas?
— Há muitos anos — disse Bond, surpreso. — Por quê?
— Há lá umas linhas que muitas vezes me vêm à memória — disse ela.
— "Oh Ratinho, conheces o caminho que conduz para fora deste poço de lágrimas? Estou muito cansada de nadar dentro dele, oh Ratinho". Lembra-se dessa passagem? Pois bem, eu pensava que você ia me mostrar a saída e, em vez disso, você me empurra pra dentro do poço. Por isso é que fiquei transtornada. — Ergueu a vista. — Mas acredito que você não teve intenção de me magoar.
Bond olhou-lhe a boca demoradamente e depois beijou-a nos lábios.
Ela não retribuiu e esquivou-se. Seus olhos sorriam de novo. Deu o braço a ele e voltou-se para as portas abertas que conduziam ao elevador.
— Me leve lá pra baixo — disse ela. — Preciso recompor a fachada e, além disso, quero me preparar com cuidado para agradar ao candidato. — Ficou um instante em silêncio e depois colou a boca no ouvido dele. — Talvez isso lhe interesse, James Bond — disse baixinho. — Nunca em minha vida fiz o que você chama "dormir com um homem". — Puxou-o pelo braço. — Agora vamos — disse bruscamente. — Afinal, já é hora de tomar um "quente doméstico". Suponho que isso faz parte da língua dos súditos que você está querendo que eu aprenda. Vocês, súditos, escrevem as coisas mais loucas nos banheiros.
Bond levou-a até o camarote dela, voltou para o seu e tomou um "quente salgado" na banheira, seguido de um "frio doméstico" no chuveiro. Depois, estirou-se na cama, recordando com um sorriso algumas das coisas que ela havia dito, e pensou nela, deitada na banheira, intrigada com a floresta de torneiras e imaginando que os ingleses eram loucos varridos.
Soou uma pancada na porta e o camareiro entrou com uma bandejinha que colocou em cima da mesa.
— Que diabo é isso? — perguntou Bond.
— Foi enviado pelo cozinheiro-chefe, senhor — respondeu o camareiro, retirando-se em seguida e fechando a porta do camarote.
Bond desceu da cama e foi examinar o conteúdo da bandeja. Não pôde deixar de rir. Havia uma garrafinha de Bollinger, um rescaldeiro com quatro talhadas de bife em canapés de torrada, e uma tijelinha de molho. Debaixo desta, uma nota escrita a lápis dizia: "Este molho bearnês foi criado por Miss T. Case sem minha assistência". Assinado: "O Chefe".
Bond encheu uma taça de champanha, espalhou um pouco de molho numa talhada de bife e mastigou atentamente. Depois foi ao telefone.
— Tiffany?
Ouviu o risinho abafado e divertido no outro extremo do fio.
— Bem, não há dúvida de que você faz um maravilhoso molho bearnês...
Repôs o telefone no gancho.
23 - O trabalho fica em segundo plano
MOMENTO INEBRIANTE NUM CASO amoroso é aquele em que, pela primeira vez, em público, num restaurante ou num teatro, o homem pousa a mão na coxa da mulher e ela, tomando-a nas suas, aperta-a contra si.
Os dois movimentos dizem tudo o que pode ser dito. Concluem todos os acordos. Firmam-se todos os pactos. E há um longo minuto de silêncio durante o qual o sangue canta nas veias.
Eram onze horas e havia poucas pessoas espalhadas nos cantos da Veranda Grill. O mar arfava baixinho sob o luar lá fora e o magnífico paquete arava a negra pradaria do Atlântico. À popa, apenas um levíssimo galope mostrava uma suave ondulação, as doze lentas pulsações por minuto de um oceano adormecido, aos dois seres aconchegados atrás do quebra-luz cor-de-rosa.
O garçom trouxe-lhes a conta, e suas mãos se separaram. Mas agora dispunham de todo o tempo do mundo e não precisavam afirmar seus sentimentos com palavras e contactos. Quando o garçom retirou os pratos, a moça fitou Bond com um sorriso de felicidade os dois encaminharam-se para a porta.
Entraram no elevador para o Tombadilho de Passeio.
— Que faremos agora, James? — perguntou Tiffany. — Gostaria de tomar mais uma café e um Stinger preparado com creme de menthe branco, enquanto estivéssemos escutando o leilão. Já ouvi falar tanto dele e bem que poderíamos ganhar uma fortuna.
— Está bem — disse Bond. — O que você desejar. — Tomou-a pelo braço e atravessaram vagarosamente a grande sala de estar, onde o víspora ia em meio, e o salão de baile, onde os músicos afinavam os instrumentos. — Mas não me obrigue a comprar nenhum número. É um jogo como os outros, e cinco por cento destinam-se à beneficência. Quase a mesma coisa que em Las Vegas. Mas é divertido quando há um bom leiloeiro. E dizem também que há muito dinheiro a bordo.
O salão de fumar estava quase deserto. Escolheram uma mesinha longe da plataforma onde o Comissário arrumava os apetrechos do leiloeiro, a caixa com os papeluchos numerados, o martelo, a garrafa de água.
— A casa está fraca — disse Tiffany ao sentarem-se no meio da floresta de cadeiras e mesas vazias. Mas, quando Bond fez o pedido ao garçom, as portas do cinema se abriram e cerca de cem pessoas ocuparam o salão de fumar.
O leiloeiro, um comerciante dos Midlands, pançudo e jovial, com um cravo vermelho na lapela do dinner jacket, bateu na mesa pedindo silêncio e anunciou que a previsão do Capitão para o percurso do dia seguinte era de 720 a 739 milhas, que qualquer distância abaixo de 720 era o Campo Inferior e acima de 739 era o Campo Superior.
— E agora, minhas senhoras e meus senhores, vejamos se é possível quebrar o recorde estabelecido nesta viagem, que atinge a cifra impressionante de 2.400 libras esterlinas. (Aplausos). ; Um camareiro ofereceu a caixa com os números dobrados à mulher de ar mais aristocrático do salão e depois entregou ao leiloeiro o papelzinho que ela havia sorteado.
— Bem, senhoras e senhores, temos aqui, para começar, um número excepcionalmente bom. 738. Exatamente no limite máximo, e desde que vejo aqui, esta noite, tantas caras novas (risos), creio que todos concordaremos em que o mar está singularmente calmo. Senhoras e senhores. Quanto me dão por 738? Digamos... 50 libras? Quem me dará 50
libras por este número de sorte? 20, foi o que o senhor falou, cavalheiro?
Bem, temos de partir de alguma oferta. Quem dá... 25? Muito obrigado, minha senhora. E 30. 40 lá adiante, sr. camareiro. E 45 do meu amigo, Mr.
Rothblatt. Muito obrigado, Charlie. Quem dá mais pelo n.° 738? 50. Muito grato, minha senhora. E agora, sim, voltamos ao ponto de partida (risos). 50.
Quem dá 55? Então ficamos em 50. Dou-lhe uma... Dou-lhe duas... — e o martelo erguido bateu na mesa.
— Ainda bem que temos um bom leiloeiro — disse Bond.
— O número era bom. E barato, se o tempo continuar como está e ninguém se jogar no mar. O Campo Superior custará uma bolada esta noite.
Todo mundo espera que o navio faça mais de 739 milhas nesse tempo.
— Essa bolada quer dizer quanto? — perguntou Tiffany.
— Duzentas libras. Talvez mais. Acho que os números normais serão leiloados por umas cem libras. O primeiro número é sempre mais barato do que os outros. O pessoal ainda está frio. A única esperteza que se pode demonstrar neste jogo é arrematar o primeiro número sorteado. Qualquer número pode ganhar, mas o primeiro custa menos.
Quando Bond acabou de falar, o segundo número era entregue por 90
libras a uma jovenzinha bonita e excitada, que era abertamente financiada por seu companheiro, um indivíduo grisalho e bem conservado que parecia a caricatura de um Don Juan do Esquive.
— Vamos, James. Arremate um número pra mim — disse Tiffany. — Você não sabe mesmo agradar a uma moça. Veja como aquele cavalheiro é gentil com sua pequena.
— Ele já passou da idade-limite — disse Bond. — Deve estar na casa dos sessenta. Até os quarenta, as pequenas não custam nada. Daí por diante, é preciso gastar dinheiro ou contar uma estória. Das duas coisas, a estória é que dói mais. — Sorriu, fitando-a nos olhos. — Mas eu ainda não cheguei aos quarenta.
— Deixe de presunção — disse a moça, olhando-o na boca. — Dizem que os homens maduros são os melhores amantes. Também, por outro lado, sei que você não é unha-de-fome. Aposto que não quer me presentear um número porque o jogo é ilegal nos navios de Sua Majestade.
— Até que é permitido além do limite de três milhas da costa — disse Bond. — Mesmo assim, a Cunard toma todas as precauções para não envolver o nome da companhia. Escute isto — e apanhou um cartão alaranjado que estava em cima da mesa. — "Leilão de Apostas nas Distâncias Diárias percorridas pelo Navio" — leu para a moça. — "Para os fins de direito, é de toda a conveniência reiterar a posição da Companhia em relação ao supradito Leilão. Não é desejo da Companhia que o encarregado do salão de fumar ou quaisquer outros membros da tripulação desempenhem papel ativo na organização das apostas nas milhas diárias percorridas pelo navio". — Bond levantou a vista. — Está vendo? — perguntou. — Seguro morreu de velho. E tem mais: "A Companhia sugere que os passageiros elejam entre si uma Comissão encarregada de formular e controlar as normas... O encarregado do salão de fumar poderá, se instado e se seus deveres o permitirem, prestar a assistência de que a Comissão venha a necessitar para o leiloamento dos números". Como são cautelosos — comentou Bond. — É a comissão que tem de quebrar os galhos que forem aparecendo. Escute mais isto aqui. É onde entra o problema. — Continuou a leitura: — "A Companhia chama especialmente a atenção de todos para os dispositivos das normas financeiras do Reino Unido, no tocante à negociabilidade dos cheques em esterlinos e à limitação da entrada de cambiais bancárias em esterlinos no Reino Unido".
Bond atirou o cartão em cima da mesa..— E por aí vai — disse ele e sorriu para Tiffany Case. — Assim, eu arremato o número que está sendo leiloado e você ganha duas mil libras. Um montão de cédulas e cheques em dólares e libras. O único meio de gastar essa dinheirama, supondo que os cheques tenham fundos, o que é duvidoso, seria contrabandeá-la debaixo dos suspensórios. E lá estaríamos nós outra vez passando muamba. Só que eu estaria do lado do diabo.
A moça não se impressionou.
— Havia um sujeito na quadrilha chamado Abadaba — disse ela. — Era um malandro fino que tinha resposta para tudo. Calculava as vantagens nas corridas, marcava as percentagens no cassino, enfim, era o crânio do grupo.
Era considerado "O Feiticeiro das Apostas". Teve o azar de ser liquidado por engano ao lado de Dutch Schultz — ajuntou ela à guisa de parêntese. — Você está me saindo outro Abadaba com essa lengalenga que não tem outra finalidade senão evitar de gastar dinheiro com uma pequena. Já vi tudo. — Encolheu os ombros, resignada. — Está bem. Mas pelo menos financie outro Stinger pra sua garota.
Bond chamou o garçom. E quando este se afastou, ela aproximou a cabeça do ouvido dele e disse baixinho. — Eu não quero mais, não. Beba você. Quero estar inteiramente sóbria esta noite. — Empertigou-se. — Mas o que é que está se passando aqui? — perguntou com impaciência. — Vamos, um pouco de ação.
— Aí vem ela — disse Bond.
O leiloeiro levantou a voz e toda a sala pediu silêncio.
— E agora, minhas senhoras e meus senhores — rugiu o leiloeiro — vamos à pergunta mais importante da noite. Quem vai me dar 100 libras pela escolha entre o Campo Superior e o Inferior? Todos sabemos o que isto significa... o direito de escolher o Campo Superior, que, inclino-me a crer, será da preferência geral esta noite (risos), em vista das excelentes condições atmosféricas reinantes lá fora. Então, quem abrirá com cem libras os lances para a escolha do Campo Superior ou Inferior?
— Muito obrigado, cavalheiro! E 110. 120 e 130. Muito obrigado, minha senhora.
— Cento e cinquenta — disse uma voz de homem, não muito distante da mesa de Bond e Tiffany.
— Cento e sessenta.
Desta vez era uma mulher. Monótona, a voz do homem gritou: — 170.
— Oitenta — disse alguém.
— Duzentas libras.
Algo fez com que Bond se voltasse e olhasse o homem que tinha falado.
Era um tipo grandalhão. A cara tinha a aparência lisa, brilhante e escorregadia de um olho de boi. Olhos miúdos, frios e escuros fitavam o estrado do leiloeiro através de imóveis lentes bifocais. Todo o pescoço do homem parecia estar por trás da cabeça. O suor havia emaranhado as algas negras e encaracoladas do cabelo. Enquanto Bond o observava, ele tirou os óculos, pegou um guardanapo e passou a enxugar o suor, com um movimento circular que começou no lado esquerdo do rosto, estendeu-se à nuca, onde a mão esquerda cedeu a vez à mão direita, e esta completou o circuito, atingindo os pingos do nariz.
— Duzentas e dez — disse alguém.
A queixada do homem bamboleou, a boca se descerrou, e ele disse, com nítido sotaque americano:
— Duzentas e vinte.
O que havia nesse indivíduo capaz de ferir uma corda na memória de Bond? O inglês examinou o rosto largo, a imaginação percorrendo todo o arquivo do cérebro, abrindo e fechando gavetas, uma após outra à procura de uma pista. A cara? A voz? Inglaterra? América?
Bond abandonou a busca e voltou a atenção para o outro homem à mesa.
Ainda aqui, a mesma necessidade urgente de reconhecer. As feições jovens e estranhamente delicadas sob os cabelos brancos e lisos. Os olhos castanhos e plácidos sob as longas pestanas. O efeito geral era de delicadeza, perturbada pelo nariz roliço montado na boca larga de lábios finos, agora aberta num sorriso estúpido e vazio como a fenda de uma caixa postal.
— Duzentas e cinquenta — disse o grandalhão mecanicamente.
Bond tornou a olhar para Tiffany.
— Já viu aqueles dois alguma vez? — perguntou ele, e ela notou-lhe a ruga de preocupação entre os olhos.
— Não — disse ela, categórica. — Nunca. Talvez venham do Brooklyn. Podem ser dois comerciantes de roupas feitas da Quinta Avenida. Por quê? Eles lhe dizem alguma coisa?
Bond olhou-os outra vez.
— Não — disse, em dúvida. — Não, acho que não.
Palmas estrugiram na sala. Radiante, o leiloeiro bateu na mesa.
— Senhoras e senhores — disse ele, triunfante. — Isto é realmente maravilhoso. Trezentas libras é o lance daquela encantadora senhora de esplêndido vestido cor-de-rosa (Cabeças viravam-se, pescoços esticavam-se, e Bond ouviu a pergunta: — Quem é ela? E agora, cavalheiro — o leiloeiro indicava a mesa do homem gordo — posso anunciar 325 libras?
— Trezentas e cinquenta — disse o gordo.
— Quatrocentas — ganiu a mulher de vestido cor-de-rosa.
— Quinhentas.
A voz era incolor, indiferente.
A moça de cor-de-rosa tagarelou irritada com seu acompanhante. O homem assumiu um ar entediado. Acompanhou o olhar do leiloeiro e balançou a cabeça.
— Quem se dispõe a dar mais? — disse o leiloeiro. Sabia agora que a sala já dera o que tinha de dar. — Dou-lhe uma... Dou-lhe duas... — Pam! — Arrematado pelo cavalheiro. E eu acredito sinceramente que ele merece uma salva de palmas.
Deu início às palmas e os presentes o acompanharam, embora preferissem que a moça tivesse levado a melhor.
O gordo ergueu-se algumas polegadas e voltou a sentar-se. Não havia em seu rosto lustroso nenhum sinal de agradecimento aos aplausos, e seus olhos fixavam-se no leiloeiro.
— E agora temos de cumprir a formalidade de perguntar ao cavalheiro qual é o Campo que ele prefere. (Risos). Cavalheiro, o senhor escolhe o Campo Superior ou o Campo Inferior?
O tom do leiloeiro era irônico. A pergunta era ociosa.
— Campo Inferior.
Houve um momento de silêncio constrangedor no apinhado salão de fumar. E logo se seguiram os comentários à meia-voz. Nenhuma pergunta foi feita. Era óbvio que o homem devia escolher o Campo Superior. As condições atmosféricas eram ideais. O Queen Elizabeth vinha desenvolvendo pelo menos trinta nós. Estaria o homem a par de alguma coisa? Teria pago por alguma informação na ponte de comando? Haveria alguma tempestade à vista? Algum defeito nas máquinas?
O leiloeiro martelou na mesa, pedindo silêncio.
— Queira me perdoar, cavalheiro — disse ele — mas o senhor escolheu mesmo o Campo Inferior?
— Sim.
O leiloeiro tornou a martelar.
— Nesse caso, senhoras e senhores, comecemos agora a leiloar o Campo Superior. Minha senhora — voltou-se com uma curvatura para a moça de cor-de-rosa — quer ter a gentileza de fazer o primeiro lance?
Bond virou-se para Tiffany.
— Que coisa esquisita — disse ele. — É extraordinário. O mar está calmo como um lago. — Deu de ombros. — A única resposta é que eles devem estar informados de alguma coisa.
— A questão era desprovida de interesse, no fim de contas.
— Alguém deve ter dito alguma coisa àqueles dois. — Girou a cabeça e, depois, despreocupadamente, passeou o olhar pelos dois indivíduos. — Parece que eles estão interessadíssimos na gente.
Tiffany olhou por cima do ombro.
— Não estão olhando pra cá, não — disse ela. — A impressão que eu tenho é que são dois palermas. O grisalho tem um ar de idiota e o gordo está chupando o polegar. Dois malucos. Acho que nem sabem o que arremataram. Trocaram as bolas.
— Chupando o polegar? — perguntou Bond. Passou a mão pelo cabelo, distraidamente, uma vaga lembrança a verrumar-lhe o cérebro.
Talvez, se ela lhe tivesse permitido seguir o fio de seus pensamentos, ele tivesse dado no alvo. Mas ela colocou a mão sobre a dele e, aproximando-se, roçou-lhe o rosto com os cabelos.
— Esqueça isso, James — disse ela. — E não pense tanto naqueles dois imbecis. — Os olhos dela ardiam e exigiam. — Chega deste lugar. Leve-me a outra parte.
Sem se dizerem mais uma palavra, ergueram-se, afastaram-se da mesa e saíram da sala barulhenta, caminhando em direção à escada. Começaram a descer e, quando chegaram ao meio, o braço de Bond circundou a cintura da moça, e ela deitou a cabeça no ombro dele.
Chegaram à porta do camarote de Tiffany, mas ela deu meia volta e arrastou Bond pelo corredor comprido, macio e rangente.
— Eu quero que seja na sua casa, James — disse ela.
Bond só voltou a falar depois de ter fechado a porta de seu camarote com um pontapé e de se terem abraçado no meio daquele quartinho maravilhosamente reservado e anônimo. E dizendo, com ternura, "Meu amor" pôs uma das mãos sobre os cabelos dela de modo a manter-lhe a boca sob a sua.
Algum tempo depois, sua outra mão desceu até o fecho-relâmpago do vestido, por trás, e a moça, sem interromper o abraço, deixou cair o vestido e disse, ofegante, entre beijos:
— Quero tudo, James. Tudo o que você já fez com uma mulher. Agora.
Agora mesmo.
E Bond inclinou-se, envolveu-lhe as coxas com um braço, levantou-a e deitou-a suavemente no soalho.
24 - A morte é permanente
A ÚLTIMA COISA de que Bond se lembrou antes de soar a campainha do telefone foi de Tiffany debruçada sobre ele, na cama, beijando-o e dizendo-lhe: "Não durma sobre o lado esquerdo, meu amor. É ruim para o coração.
Pode parar de bater. Vire-se". E, obediente, ele se virava. E, quando a porta bateu de leve, ele estava dormindo de novo, embalado pela voz da moça, pela pulsação do Atlântico e pelo macio balanço do navio.
Depois, a campainha impertinente soou e tornou a soar no camarote escuro. Bond praguejou, estendeu o braço para o telefone, e uma voz disse: — Desculpe-me incomodá-lo, senhor. Aqui é o telegrafista, Acaba de chegar uma mensagem em código para o senhor, com um prefixo en clair "Urgentíssimo". Quer que leia pelo telefone ou envie pelo mensageiro?
— Envie pelo mensageiro, pode ser? — disse Bond. — Muito obrigado.
E que diabo queriam agora? Toda a beleza, todo o ardor, toda a exaltação da paixão amorosa foram postas de lado quando ele acendeu a lâmpada, pulou da cama e, balançando a cabeça, a fim de afastar o torpor, deu dois passos para o chuveiro.
Durante um bom minuto deixou que a água caísse sobre si. Depois, enxugou-se com a toalha, apanhou do chão as calças e a camisa e vestiu-as.
Houve uma pancada na porta. Bond recebeu o telegrama, sentou-se à escrivaninha, acendeu um cigarro e entregou-se ferozmente ao trabalho. E, à medida que os grupos paulatinamente se dissolviam em palavras, seus olhos se apertavam e a pele se lhe arrepiava no corpo.
O telegrama, passado pelo Chefe do Pessoal, dizia:
Primeiro vg busca clandestina escritório Saye revelou telegrama do QE endereçado ABC assinado Winter comunicando presença sua e Case a bordo solicitando instruções pt Resposta endereçada Winter assinado ABC ordena eliminação de Case vg preço vinte mil dólares pt Segundo vg consideramos Rufus B. Saye é ABC que é mais ou menos equivalente pronúncia suas iniciais em francês pt Terceiro vg possivelmente alarmado sinais de busca Saye voou Paris ontem e agora informa Polinter estar em Dakar pt Isto parece confirmar nossas suspeitas que diamantes provêm minas Serra Leoa daí contrabandeados fronteira Guiné Francesa pt Suspeitamos fortemente elemento clínica dentária de Sierra International em observação pt Quarto vg Canberra Raf espera você Boscombe Down para voo imediato amanhã noite a Serra Leoa assinado CDP.
Bond gelou na cadeira. De supetão, acudiu ao seu espírito o mais sinistro verso de toda a poesia: "Enganam-se os que me evitam. Quando voam de mim, eu sou as asas".
Então alguém da quadrilha de Spang estava a bordo e viajava com eles. Quem? Onde?
A mão agarrou o telefone: — Miss Case, por favor.
Ouviu o aparelho ao pé da cama dela produzir um estalido e em seguida disparar 'a primeira campainhada. A segunda. A terceira. Mais uma só. Bond colocou o receptor de volta no gancho e enfiou pelo corredor até o camarote de Tiffany. Nada. Vazio. A cama arrumada. As luzes acesas. Mas a bolsinha dela estava no tapete e os objetos espalhados ao redor. Tinha entrado no camarote. O homem se escondera atrás da porta. Talvez tivesse aplicado uma cacetada. E depois?
As vigias estavam fechadas. Examinou o banheiro. Nada.
Bond parou no meio do camarote. Seu cérebro estava frio como gelo. O que ele, Bond, teria feito? Antes de matá-la, tê-la-ia interrogado, descoberto o que ela sabia, o que fazia, quem era o homem que a acompanhava. Tê-la-ia levado depois para o camarote em que ele viajava a fim de poder agir sem ser perturbado. Se o encontrassem arrastando-a pelo corredor, bastaria piscar um olho e balançar a cabeça: "Bebeu muita champanha esta noite. Não, não precisa, muito obrigado, eu me arranjo". Mas, qual era o camarote? E havia quanto tempo ele a tinha levado?
Bond consultou o relógio quando ia no corredor. Três horas. Ela devia ter saído da cama dele pouco depois das duas. Devia telefonar para a ponte de comando? Dar alarma? Penosos instantes de explicações, suspeitas, obstáculos. "Meu caro senhor, isto parece incrível!" Tentativas para acalmá-lo. "Claro, senhor, faremos o que estiver ao nosso alcance". O olhar polido do funcionário, para quem tudo não passaria de embriaguez, ciúme e até mesmo de um meio de deter a marcha do navio e ganhar a aposta no Campo Inferior.
O Campo Inferior! Homem ao mar! O navio detido!
Bond fechou a porta de seu camarote e foi direto à Lista de Passageiros.
E por que não? Winter. Ei-lo aqui. A49. O convés de baixo. E então, de repente, o cérebro de Bond funcionou como um computador. Winter. Wint e Kidd. Os dois pistoleiros. Os encapuzados. Outra vez a lista de passageiros.
Kitteridge. No A49 também. O grisalho e o gordo do avião da BOAC na viagem de Londres a Nova York. "Meu grupo sanguíneo é F." A escolta secreta de Tiffany. E a descrição de Leiter. "Chamam-no Goela porque tem medo de viajar". "Um dia vai-se arrepender de não ter extraído aquela verruga". A verruga vermelha na primeira articulação do dedo que segurava o cão da arma apontada para Tingaling Bell. E Tiffany dizendo: "São dois palermas. O gordo está chupando o polegar!" E os dois, no salão de fumar, procurando ganhar dinheiro com a morte que haviam planejado. A mulher atirada ao mar. O alarma anônimo, no caso de passar o corpo despercebido pelo vigia da popa. O navio detido, a volta, a busca nas águas. E mais três mil libras para os bolsos dos assassinos.
Wint e Kidd. Os pistoleiros de Detroit.
Todo o carretel de filmes embaralhados desenovelou-se na mente de Bond no espaço de um segundo, e mesmo enquanto os esquadrinhava, ia ele abrindo a pasta e revolvendo o compartimento secreto à procura do silenciador. Como um autômato, retirou a Beretta do meio de suas coisas no fundo de um gavetão, examinou o pente e ajustou o silenciador à boca da arma. Simultaneamente, pesava as probabilidades e planejava os passos que devia dar.
Pegou a planta do navio que tinha vindo com o bilhete de passagem.
Esparramou-a à sua frente enquanto calçava as meias. A49. Exatamente debaixo de seu camarote. Haveria probabilidade de arrebentar a fechadura com um tiro e pegar os dois homens antes que eles o pegassem? Nenhuma, quase. Sem dúvida tinham fechado a porta com a chave e o trinco. Ou levar consigo alguns membros da tripulação, se pudesse persuadi-los do perigo que Tiffany corria? Enquanto ele tentasse convencê-los, os dois homens a atirariam pela vigia. E, quando, afinal, conseguissem entrar no camarote, Wint e Kidd estariam lendo calmamente ou jogando cartas e berrariam: — Que é que vocês querem aqui?
Bond meteu a arma nos cós das calças e com um violento puxão escancarou uma das duas vigias do camarote. Enfiou por ela os ombros e alegrou-se ao descobrir uma folga de uma ou duas-polegadas. Espichou o pescoço para baixo. Dois círculos mal iluminados, exatamente sob suas vigias. A que distância? Uns oito pés. A noite continuava parada, calma, tranquilizadora, e ele se achava no lado ensombrado do navio. Avistá-lo-iam da ponte volante? Estaria aberta alguma das vigias do A49?
Bond deixou-se cair novamente em seu camarote e arrancou os lençóis da cama. O nó de porco. Seria mais seguro. Mas teria de rasgar os lençóis e emendá-los para obter o comprimento necessário. Se tudo desse certo, teria de trazer alguns lençóis do A49 e deixar o camareiro intrigado com o desaparecimento. Se desse errado, tanto fazia.
Experimentou a "corda" com toda a força. Devia aguentar. Ao amarrar uma extremidade em volta da dobradiça da vigia, deu uma olhada no relógio.
Só doze minutos tinham passado desde que lera o telegrama. Demorara demais? Trincou os dentes, atirou a "corda" pelo costado do navio e introduziu a cabeça.
Não pense em nada. Não olhe para baixo. Não olhe para cima. Não se importe com os nós. Devagar, firme, uma mão, isto, a outra.
A brisa da noite tocava-o de leve e empurrava-o de encontro aos negros rebites de ferro, e lá embaixo soava o gemido cavo do mar. No alto, o vento zunia no cordame, e mais acima, no firmamento, as estrelas dançavam à volta dos mastros.
Os malditos, os bem-amados lençóis resistiriam? A vertigem o venceria?
Seus braços suportariam o peso? Não pense nisso. Não pense no imenso navio, no oceano faminto, nas quádruplas hélices gigantescas aguardando o momento de lhe retalhar o corpo. Você é um menino que está descendo da macieira. É tão fácil e seguro lá no pomar, com o relvado que apara a queda.
Bond expulsou da mente todos esses pensamentos. Olhou para as mãos e sentiu a aspereza da pintura contra os nós dos dedos. Os pés, sensíveis como antenas, tateavam em busca do primeiro contacto com a vigia.
Ali. Os dedos do pé direito haviam tocado o rebordo saliente. É preciso parar. É PRECISO ter paciência e deixar que o pé explore o terreno — a vigia aberta, presa pela grande tranqueta de latão; o contacto de fazenda por cima da meia: as cortinas cerradas. Agora podia continuar. Estava quase terminado.
Mais duas preensões na corda improvisada e o rosto estava à altura da vigia. Podia colocar uma das mãos na borda metálica do caixilho, subtraindo algum peso da alva corda retesada e dando merecido repouso a um braço e depois ao outro, deslocar a carga suportada pelos músculos, reunir as forças para soerguer-se vagarosamente, traspassar-se ao camarote e mergulhar, deitando a mão à arma.
Ficou à escuta, fitando o círculo da cortina balouçante, tentando esquecer que estava pendurado como um pêndulo, a meio costado do Queen Elizabeth, esforçando-se para não ouvir o marulho do oceano, lutando para abrandar a respiração ofegante e as marteladas do coração.
Do interior do cubículo vinha um resmungo indistinto. Depois, uma voz masculina proferiu algumas palavras e uma mulher gritou: — Não!
Seguiu-se um momento de silêncio, e logo uma bofetada. Sonora como um disparo de pistola, e isto lançou o corpo de Bond para o alto e para dentro como se ele tivesse sido arrastado por uma corda.
No momento mesmo em que mergulhava no círculo da vigia, perguntava-se onde iria bater, e instintivamente protegeu a cabeça com o braço esquerdo, enquanto o direito corria para a arma.
Foi cair sobre uma valise debaixo da vigia. Um estabanado salto mortal levou-o ao meio do camarote. Outra vez sobre seus pés, foi recuando, agachado, para o lado das vigias, a tensão branquejando os nós dos dedos da mão que segurava a arma e uma estreita linha branca circundando-lhe a boca cerrada.
Através das pálpebras entreabertas, os olhos cinzentos e gelados moviam-se de um lado para o outro. A arma, negra e cega, voltava-se para um ponto, no centro, entre os dois homens.
— Aqui estamos — disse Bond, erguendo-se vagarosamente.
Era a constatação de um fato. Ele tinha o controle da situação, e a boca de sua arma o confirmava.
— Quem chamou você aqui? — disse o gordo. — Você não entra nesta peça. — Havia na voz reservas latentes. Nada de pânico. Nem mesmo a dose normal de surpresa. — Veio completar a mesa para o jogo de cartas?
Estava sentado, em mangas de camisas, abotoado, de través para a penteadeira, e os olhos miúdos brilhavam na cara molhada. Dante dele, de costas para Bond, Tiffany Case estava sentada num tamborete estofado.
Vestia apenas uma calcinha cor-de-carne e tinha os joelhos presos entre as coxas do homem gordo. Voltara para Bond o rosto pálido entremeado de manchas vermelhas. Os olhos tinham uma expressão de desespero, como os de um animal apanhado numa armadilha, e a boca aberta traduzia incredulidade.
O grisalho jazia numa das camas. Tinha erguido o busto sobre um cotovelo e a outra mão na camisa, a meio caminho da arma guardada no boldrié preto debaixo do sovaco. Olhava para Bond sem demonstrar curiosidade e estampava aquele sorriso quadrado, vazio, da caixa postal. Do centro do sorriso ressaía um palito de madeira, que rompia os dentes fechados como a língua de uma cobra.
A arma de Bond assegurava o espaço neutro entre os dois homens.
Quando ele falou, a voz era baixa e tensa.
— Tiffany — disse Bond lenta e distintamente. — Ajoelhe-se. Afaste-se desse homem. Baixe a cabeça. Vá para o meio do quarto.
Não olhava para ela. Seus olhos continuavam a passear da cadeira para a cama, vigiando os dois homens. Agora ela estava longe dos dois alvos.
— Estou aqui, James.
A voz tremia de esperança e excitação.
— Levante-se e vá para o banheiro. Feche a porta. Entre na banheira e deite-se lá.
Moveu os olhos na direção dela para ver se era obedecido. Ela tinha-se erguido e o contemplava. Bond avistou a marca vermelha de uma mão na pele alva do corpo da moça. Ela obedeceu. Ouviu-se o clique da porta do banheiro ao fechar-se.
Agora ela estava a salvo das balas. E não presenciaria o que tinha de ser feito.
Mediavam umas cinco jardas entre os dois homens, e Bond refletiu que se eles sacassem com bastante rapidez estaria perdido. Com esse tipo de homens, na fração de segundo em que um fosse liquidado, o outro sacaria e dispararia. Conquanto sua arma fosse silenciosa, a ameaça era infinita. Mas, com o clarão da primeira bala a ameaça proviria do outro homem.
— Quarenta e oito, sessenta e cinco, oitenta e seis.
A variante do sinal convencionado do futebol americano —"uma das cinquenta combinações que deviam ter praticado juntos mil vezes — jorrou da boca do gordo. Simultaneamente, ele se atirou ao chão, e a mão foi direta ao cós da calça.
Num giro rápido, o homem que estava na cama puxou as pernas para o lado e para longe de Bond, de modo que seu corpo se reduziu a um alvo estreito, de que só se via a cabeça. A mão que estava sobre o peito se mexeu rápida.
— Paf.
A arma de Bond soltou um único gemido abafado. Um orifício azul abriu-se exatamente abaixo do cocuruto grisalho.
— Pum! — respondeu a pistola do morto, deflagrada pela última crispação do dedo, e a bala foi alojar-se na cama, debaixo do cadáver.
O homem gordo, deitado no soalho, deu um grito. Olhava para cima. na direção daquele olho preto e vazio que não se incomodava com ele, de forma alguma, e que só se interessava em localizar-lhe na pele o centímetro quadrado que abrigaria o próximo projétil.
O revólver de Wint só se tinha elevado até à altura dos joelhos de Bond e apontava em vão por entre suas pernas retesadas para a armação de ferro, pintada de branco, que estava atrás.
— Largue a arma.
O tapete abafou o ruído da queda da arma.
— Levante-se.
O gordo ergueu-se com dificuldade e fitou Bond nos olhos, como um tuberculoso fita seu lenço, em medrosa expectativa.
— Sente-se.
Houve um lampejo de alívio nos olhos submissos? Bond continuou tenso como um gato prestes a atacar.
O gordo voltou-se vagarosamente. Estendeu as mãos acima da cabeça, embora Bond não lhe tivesse exigido isso. Deu dois passos para a cadeira e lentamente virou-se como se fosse sentar-se.
Parou, contemplando Bond, e com naturalidade deixou cair as mãos ao longo do corpo. E as duas mãos, sossegadas, sacudiram-se para trás, a direita mais do que a esquerda. E então, de súbito, no movimento de retorno, o braço direito entesou-se, precipitou-se para a frente e a faca brilhou nas pontas dos dedos como uma chama branca.
— Paf.
A bala silenciosa e a faca muda cruzaram uma pela outra em pleno ar, e os olhos dos dois homens perturbaram-se simultaneamente quando as armas atingiram seus objetivos.
Mas a perturbação nos olhos do homem gordo converteu-se num reviramento do globo ocular quando ele caiu para trás, as mãos agarradas ao peito, enquanto os olhos de Bond pousaram sem curiosidade na mancha que se espalhava em sua camisa e no cabo chato da faca pendurada frouxamente nas dobras do pano.
Produziu-se um estardalhaço quando a cadeira se espatifou sob o peso do homem gordo. Seguiu-se um ruído roufenho e ouviu-se, por último, um baque surdo no soalho.
Bond olhou a cena uma vez e depois voltou-se para a vigia aberta.
Durante algum tempo ficou de costas para o quarto, o olhar fixo nas cortinas que se balançavam molemente. Sorveu o ar e escutou os maravilhosos sons marinhos do exterior, do mundo que ainda lhes pertencia, a ele e a Tiffany, mas não aos outros dois. Pouco a pouco, seu corpo e seus nervos tensos se relaxaram.
Instantes depois, puxou a faca que se lhe enfiara na camisa. Não olhou para ela. Apenas estirou o braço, afastou a cortina para um lado e atirou a faca pela vigia. Em seguida, ainda contemplando a noite quieta lá fora, prendeu o registro de segurança da Beretta e, com um braço que lhe pareceu de repente pesado como chumbo, introduziu de novo a arma no cós das calças.
Com certa relutância, deu meia volta e encarou a desordem reinante no camarote. Com ar pensativo, examinou tudo e, num gesto, inconsciente, enxugou as mãos nos lados das calças. Em seguida, caminhando cautelosamente até o banheiro, disse: "Tiffany, sou eu" numa voz cansada, deprimida, e abriu a porta.
Ela não o ouvira. Continuava deitada de bruços na banheira seca, as mãos sobre as orelhas. E quando ele a ergueu e tomou nos braços, ela ainda não acreditou no que via. Agarrou-se a ele e começou a tocar-lhe o rosto e o busto com as mãos para certificar-se de que era realidade.
Ele se retraiu quando ela lhe apalpou a costela cortada. Então ela afastou-se um pouco, examinou-lhe o rosto, depois o sangue que manchava seus dedos e por fim a camisa escarlate.
— Meu Deus! Você está ferido! — disse ela assustada; e, esquecendo seus pesadelos, arrancou-lhe a camisa, lavou-lhe a costela com água e sabão e amarrou-a com tiras da toalha cortada com a gilete de um dos homens mortos.
Não fez perguntas, nem mesmo quando Bond lhe trouxe as roupas que estavam espalhadas pelo soalho do camarote e lhe disse que não saísse enquanto ele não tivesse terminado de arrumar tudo e de apagar as impressões digitais de todos os objetos que ela havia tocado.
Ela apenas pousava nele os olhos brilhantes. E quando Bond a beijou nos lábios, continuou calada.
Bond deu-lhe um sorriso tranquilizador, saiu e fechou a porta do banheiro atrás de si. Pôs mãos à obra, fazendo cada coisa com grande determinação e parando antes de cada gesto a fim de imaginar o efeito que produziria diante dos olhos e do espírito dos detetives que subiriam a bordo em Southampton.
Primeiro amarrou um cinzeiro à sua camisa ensanguentada para torná-la pesada, aproximou-se da vigia e atirou o pacote o mais longe que pôde. Os smokings dos dois homens estavam pendurados atrás da porta. Tirou os lenços que estavam nos bolsinhos dos paletós, envolveu com eles as mãos e remexeu nos armários e cômodas até encontrar as camisas do grisalho.
Vestiu uma e ficou um momento no centro do camarote, meditando. Depois, cerrou os dentes e levantou o homem gordo até deixá-lo sentado, tirou-lhe a camisa, foi à vigia, sacou a Beretta, encostou a arma no orifício aberto na fazenda pelo tiro anterior e disparou outra bala no mesmo local. Agora havia uma nódoa de fumaça em volta do orifício para dar a impressão de suicídio.
Tornou a vestir a camisa no cadáver, limpou demoradamente a Beretta com o lenço, comprimiu os dedos da mão direita do morto sobre ela e, finalmente, ajustou a arma na mão do gordo, com o indicador no gatilho.
Após outra pausa no meio do quarto, retirou o smoking de Kidd do cabide e vestiu com ele o cadáver. Em seguida, arrastou o corpo até a vigia e, suando com o esforço, levantou-o e jogou-o ao mar.
Limpou as possíveis impressões digitais deixadas na vigia e interrompeu-se outra vez, tomando fôlego e inspecionando o cenário. Foi até a mesa de jogo, encostada à parede e com os objetos espalhados indicando que o jogo não fora concluído, e derrubou tudo, dispersando as cartas pelo tapete. Parou, refletiu mais um pouco, voltou ao cadáver de Wint, retirou-lhe do bolso traseiro da calça o rolo de cédulas e jogou-as entre as cartas.
O quadro era satisfatório, sem dúvida. Haveria o mistério da bala disparada na cama pelo moribundo Kidd, mas isso poderia ter sido parte da luta. Três balas tinham sido detonadas pela Beretta e havia três cartuchos no soalho. Duas das balas poderiam ter-se enterrado no corpo de Kidd que agora estava no Atlântico. Havia os dois lençóis que teria de roubar da segunda cama. A falta deles ficaria inexplicada. Talvez Wint houvesse enrolado neles o corpo de Kidd antes de empurrá-lo pela vigia. Isso se encaixava no remorso e no suicídio de Wint, posterior ao tiroteio motivado pelo desentendimento à mesa do jogo.
De qualquer maneira, refletiu Bond, o quadro se sustentaria até a chegada da polícia ao porto, mas nesse momento ele e Tiffany já estariam fora do navio e bastante longe, e o único vestígio deles no camarote seria a Beretta; e esta, como todas as outras armas pertencentes ao Serviço Secreto, não era numerada.
Soltou um suspiro e encolheu os ombros. Agora, restava apanhar os lençóis, conduzir Tiffany de volta ao seu camarote sem serem vistos, cortar a "corda" que se balançava na vigia, atirá-la ao mar com os pentes restantes da Beretta e o coldre vazio e, por fim, dormir à vontade com o corpo adorado de Tiffany enroscado no seu para sempre.
Para sempre?
Ao atravessar o camarote a caminho do banheiro, Bond encontrou os olhos vazios do cadáver no soalho.
E os olhos do homem cujo Grupo Sanguíneo fora F chamaram-no e lhe disseram:
— Mr. Bond. Nada existe para sempre. Só a morte é permanente. Nada é eterno, exceto o que você fez comigo.
25 - Fecha-se o canal
AGORA NÃO HAVIA escorpião morando nas raízes do frondoso espinheiro erguido na junção dos três Estados africanos. O contrabandista das minas não tinha outra coisa que lhe absorvesse a atenção senão o desfile infindável de um regimento de formigas de correição entre as baixas muralhas que as guerreiras haviam construído em ambos os lados da estradinha de três polegadas.
A noite era quente e úmida, e o homem escondido sob o espinheiro estava impaciente e intranquilo. Era esta a última vez que comparecia ao encontro marcado. Já tinha decidido. Que arranjassem outro, se quisessem.
Naturalmente não iria fazer sujeira com eles. Comunicaria a intenção de deixá-los e lhes daria o motivo: o novo assistente admitido no serviço dentário parecia entender muito pouco de odontologia; decerto era espião: o olhar indagador, o bigodinho amarelo-avermelhado, as unhas bem tratadas.
Pegaram alguém? Tomaram-lhe o depoimento?
O contrabandista trocou de posição. Por onde diabo andava o helicóptero? Apanhou um punhado de terra e atirou-o no meio das formigas.
Elas se atarantaram um pouco, mas com a chegada das últimas fileiras, as que iam na frente se dispersaram pelas muralhas. Então as guerreiras pegaram febrilmente a cavar e transportar a terra, e em poucos minutos a estrada estava outra vez transitável.
O homem tirou o sapato e jogou-o com força sobre o regimento em marcha. Houve outro curto instante de afobação. Depois, as formigas lançaram-se sobre as mortas e as devoraram. O caminho estava novamente desimpedido e o negro rio continuou a fluir.
O homem soltou uma praga em africaans e calçou o sapato. Filhas duma égua. Iam ver uma coisa. Acocorando-se e suspendendo um braço para se proteger contra os espinhos, saiu pisando pela estrada das formigas. Isso lhes serviria de lição.
Ao surgir sob o luar, o homem já tinha esquecido o ódio que dedicava a tudo quanto fosse negro e virou a cabeça para a banda do norte. Graças!
Rodeou o espinheiro para ir buscar as lanternas e o pacote dos diamantes guardados nas caixas de ferramentas.
A uma milha dali, sob a copa de um arbusto, o poderoso ouvido de ferro do detector de som já parará de investigar, e o operador, que vinha transmitindo os dados aos três homens agrupados ao lado do caminhão militar, informou: — Trinta milhas. Velocidade: cento e vinte. Altura: novecentos pés.
Bond consultou o relógio.
— Tudo indica que o encontro está marcado para a meia-noite,_na lua cheia — disse ele. — O nosso homem está uns dez minutos atrasado.
— Parece que o senhor tem razão — concordou o oficial da guarnição de Freetown, a seu lado, e voltou-se para o terceiro homem. — Cabo. Veja se não tem nenhum metal aparecendo na rede de camuflagem. Com este luar, é preciso ter cuidado.
O caminhão estava coberto pelo arbusto, à beira de uma estrada de barro, que atravessava a planície na direção da aldeia de Telebadu, na Guiné Francesa. Naquela noite, haviam deixado as colinas logo que o radiolocalizador captara o barulho da motocicleta do dentista na estrada paralela. Tinham vindo com os faróis apagados e pararam quando cessou o ruído da motocicleta. Haviam estendido a rede de camuflagem sobre o caminhão, o detector de som e o canhão Bofors. E puseram-se a esperar, sem saberem ao certo quem ou o que viria ao encontro do dentista — outra motocicleta, um homem a cavalo, um jipe, um avião?
Ao ouvir no céu o longínquo matraquear, Bond soltou uma gargalhada.
— Helicóptero — disse ele. — Era só o que faltava. Preparem-se para tirar a rede quando pousar. Talvez a gente tenha de dar um tiro de advertência. O detector está ligado?
— Está, sim — respondeu o cabo que operava o aparelho. — O nosso amigo está chegando. Poderão vê-lo num minuto. O senhor está vendo aquelas luzes acolá? Devem ser do campo de pouso.
Bond passeou o olhar pelos quatro feixes de luz e, depois, contemplou o imenso céu africano.
Então aí vinha o último de todos, o derradeiro elemento da quadrilha e também o primeiro. O homem que havia visto ligeiramente em Hatton Garden. O número um da turma de Spang, cuja cotação era tão alta em Washington. O único, excetuando o inofensivo e até simpático Shady Tree, que Bond ainda não fora obrigado a matar ou — pensou no botequim de Spectreville e nos dois homens de Detroit — quase. Não que tivesse desejado matar esses indivíduos. A missão que M lhe confiara fora apenas de investigação. Mas, um a um, eles haviam tentado contra sua vida e a de seus amigos. A violência fora o primeiro, não o último recurso deles.
Violência e crueldade, as armas escolhidas. Os dois homens do Chevrolet em Las Vegas, que tinham disparado contra ele e ferido Ernie Cureo. Os dois sujeitos do Jaguar, que haviam espancado Ernie e tinham sido os primeiros a sacar os revólveres quando começara a luta. Seraffimo Spang, que mandara torturá-lo, disparara contra ele e Tiffany e procurara esmagá-los na estrada de ferro. Wint e Kidd, que haviam supliciado Tingaling Bell, Bond e Tiffany Case. E, dos sete, matara cinco — não porque gostasse de matar, mas porque alguém tinha de fazê-lo. Tivera a seu lado a sorte e três bons amigos, Félix, Ernie e Tiffany. E os malvados tinham perecido.
Agora chegava a último dos malvados, o homem que planejara a sua morte e a de Tiffany, o homem que, segundo M, arquitetara o contrabando dos diamantes, montara o canal de escoamento e o vinha dirigindo com eficiência e mão de ferro através dos anos.
Ao telefone, para Boscombe Down, M falara pouco e com certa aspereza na voz. Usara a linha do Ministério da Aeronáutica, poucos minutos antes que o Canberra decolasse para Freetown. Bond recebera o telefonema do gabinete do comandante da base, tendo nos ouvidos o grito estridente das turbinas do Canberra.
— Satisfeito de tê-lo de volta são e salvo.
— Muito obrigado, senhor.
— Que estória é essa que os vespertinos noticiaram acerca de um duplo homicídio no Queen Elizabeth?
Havia algo mais do que suspeita na voz de M.
— Eram os dois pistoleiros da quadrilha. Viajavam sob os nomes de Winter e Kitteridge. Meu camareiro desconfia que eles se desentenderam quando jogavam baralho.
— Acha que a suposição do camareiro é correta?
— É possível. Houve uma pausa.
— E os policiais também pensam assim?
— Não vi nenhum deles.
— Vou falar com Vallance.
— Ótimo — disse Bond, sabendo que essa era a maneira de M dizer que, caso Bond tivesse liquidado os dois homens, tomaria providências para que o agente e o Serviço Secreto não fossem mencionados no inquérito.
— Bem, de qualquer modo — disse M — aqueles dois eram pouco importantes. Esse Jack Spang, ou Rufus B. Saye ou ABC, ou que nome tenha, esse eu quero que você agarre. Ao que parece, ele vai agora até o extremo do canal. Vai fechá-lo. Talvez matando o que encontrar pela frente. O ponto final é o dentista. Veja se consegue pegar os dois. Faz coisa de uma semana que destaquei 2804 para trabalhar ao lado do dentista. O pessoal de Freetown acha que já se pode agir. Mas eu quero encerrar este caso e ver você de novo em seu verdadeiro posto. Esse negócio foi uma trapalhada dos diabos. Não me agradou desde o princípio. E se, afinal, conseguimos chegar ao ponto em que estamos agora, foi mais uma questão de sorte do que de boa organização.
— Concordo com o senhor — disse Bond.
— E essa moça, Case? — perguntou M. — Conversei com Vallance. Ele não deseja processá-la, a menos que você insista.
Teria M carregado um pouco no tom de indiferença?
Bond procurou evitar uma resposta muito persuasiva.
— Ela foi de grande ajuda — disse ele, esperançoso.
— Talvez a gente possa resolver quando eu apresentar meu relatório final.
— E onde está ela agora?
O negro receptor começava a ficar escorregadio na mão de Bond.
— Está a caminho de Londres, num Daimler de aluguel. Vou colocá-la no meu apartamento. Quero dizer, no quarto vago. É muito boa dona de casa.
Ela se arranjará até que eu volte. É uma boa moça, estou certo disso.
Puxou o lenço do bolso e enxugou o suor do rosto.
— Sem dúvida — disse M. Não havia ironia em sua voz.
— Está bem, então. Boa sorte. — Houve uma pausa. — Tome cuidado.
E... — a voz no outro extremo da linha tornou-se subitamente áspera — não pense que não estou satisfeito com os resultados até agora obtidos. Foram além do programa, naturalmente, mas você parece que topou muito bem a parada desse pessoal. Até logo, James.
— Até logo, senhor.
Bond levantou a vista para o céu recamado de estrelas e pensou em M e Tiffany, esperando que agora fosse mesmo o fim e que fosse rápido e tranquilo, e que logo estivesse em casa.
De pé, empunhando a quarta lanterna, o contrabandista das minas esperava. Lá vinha o helicóptero. Cortando a trajetória da lua. Como sempre, o barulho era infernal. Outro risco de que ia livrar-se.
Baixava lentamente. Agora pairava a uns vinte pés de altura. A mão apontou na janela e piscou A. O homem no chão piscou, em resposta, B e c.
As lâminas do rotor diminuíram a velocidade e, suavemente, o gigantesco inseto de aço pousou no chão.
O pó assentou. O contrabandista retirou a mão dos olhos e ajudou o piloto a descer a escadinha. Usava capacete de voo e óculos de proteção.
Extraordinário. E parecia mais alto do que o alemão. O contrabandista sentiu uma picada na espinha. Quem era esse? Aproximou-se devagar.
— Trouxe?
Dois olhos frios, sob negras sobrancelhas retas, cintilaram por trás dos óculos. Ocultavam-se quando o homem moveu a cabeça e o luar incidiu sobre o vidro. Agora eram dois círculos brancos reluzentes no meio do negro e luzidio capacete de couro.
— Trouxe — disse, nervoso, o homem das minas. — Mas onde está o alemão?
— Não virá mais. — Os dois círculos brancos cegavam o contrabandista.
— Eu sou ABC. Vim fechar o canal.
A voz era americana. Enérgica, seca, inflexível.
— Oh!
Maquinalmente, a mão do contrabandista enfiou-se na abertura da camisa. Apanhou o embrulho úmido e entregou-o ao piloto como se fosse uma oferenda de paz. À semelhança do escorpião, um mês antes, o homem das minas pressentia a pedra erguida sobre sua cabeça.
— Ajude-me a encher o tanque.
Era a voz do feitor dando ordens ao escravo. Mas o contrabandista apressou-se a obedecer.
Fizeram o serviço em silêncio. Ao terminar, voltaram ao chão. O cérebro do contrabandista trabalhava furiosamente. Ele se esforçava por adotar a voz de um associado, a voz de alguém que estivesse a par dos negócios e exercesse a mesma autoridade.
Olhou com atenção para a nesga de treva cor-de-anil onde se achava o piloto com a mão sobre a escada.. — Estive pensando bem e acho que...
A voz estacou de supetão, a boca abriu-se espavorida e deixou escapar um ruído que era uma mescla de rosnado e uivo.
A arma na mão do piloto gaguejou três vezes. O contrabandista emitiu um "Oh" numa voz servil, caiu de costas no chão, fez um esforço para se soerguer e imobilizou-se.
— Fique onde está. — A voz ressoou na planície, transmitida pelo amplificador. — Você está cercado.
Ouviu-se o ruído de um motor que se punha em funcionamento.
O piloto não procurou saber de onde vinha a voz. Pulou para a escada. A porta da carlinga fechou-se com uma pancada e zumbiu o arranque automático. O motor começou a trabalhar, as lâminas do rotor giraram, pouco a pouco foram ganhando velocidade até que se transformaram em dois redemoinhos prateados. Então, com uma sacudidela, o helicóptero elevou-se verticalmente no ar.
Em terra, entre os arbustos, o caminhão freou e Bond saltou para a sela de aço do Bofors.
— Pra cima, cabo — gritou ele para o homem que manobrava a alavanca de suspensão. Baixou os olhos para a alça de mira quando a boca da arma se ergueu para a lua. Com a mão, puxou a alavanca do seletor de fogo, tirando-a da marca de segurança e colocando-a em "Fogo". — Esquerda, dez.
— Eu alimentarei.
O oficial ao lado de Bond tinha nas mãos dois depósitos de obuses pintados de amarelo.
Os pés de Bond firmaram-se nos pedais do gatilho. O helicóptero estava no centro da alça de mira.
— Firme — disse ele calmamente.
— Bumpa.
O obus reluzente rodou no alto a uma velocidade apenas menor do que a do som. Baixo e à esquerda. O cabo girou delicadamente as duas alavancas.
— Bumpa.
O obus deu a volta por cima do helicóptero. Bond inclinou-se para a frente e puxou a alavanca do seletor para "Fogo Automático". A mão relutava. Agora a morte era inevitável. Mais uma vez ele tinha de tomar essa decisão.
— Bumpa... bumpa... bumpa... bumpa... bumpa... O fogo vermelho espargiu-se no céu. O helicóptero continuou a avançar para a lua e depois rumou para o norte.
— Bumpa... bumpa...
Houve um espocar de luz amarela perto do rotor da cauda e um estrondo de explosão distante.
— Acertou — disse o oficial, pegando o binóculo. — O rotor da cauda está perdido — disse ele. E logo, agitado: — Puxa! Parece que toda a cabina está girando com o rotor principal! O piloto está atolado.
— Mais algum? — perguntou Bond, mantendo na mira o helicóptero em chamas.
— Não, senhor — disse o oficial. — Seria bom se conseguíssemos pegá-
lo vivo. Mas parece... é, sim, já perdeu o controle. Vem caindo de ponta.
Deve haver alguma coisa com as lâminas do rotor principal. Lá vem ele.
Bond levantou a vista e resguardou os olhos contra a claridade intensa.
— Sim. Lá vem ele. A cem pés, o motor ribombando e as hélices girando inutilmente enquanto a embrulhada metálica despencava do céu em cambaleios e guinadas de ébrio.
Jack Spang. O homem que ordenara o assassínio de Bond. Que ordenara o assassínio de Tiffany. O homem que Bond vira apenas uma vez, durante alguns minutos, numa sala superaquecida em Hatton Garden. Mr. Rufus B.
Saye. Da House oi Diamonds. Vice-Presidente para a Europa. O homem que jogava golfe em Sunningdale e visitava Paris uma vez por mês. "Cidadão exemplar", M dissera dele. Mr. Spang, da quadrilha de Spang, que acabara de matar um homem — o último de quantos?
Bond imaginava a cena dentro da estreita carlinga. O homem dirigindo com uma das mãos e com a outra mexendo desesperadamente nos controles, enquanto observava a agulha do altímetro baixar vertiginosamente. Nos olhos, o rubro clarão do terror. As centenas de milhares de libras esterlinas em diamantes reduzidas a peso morto. A arma, que desde a infância, fora um poderoso braço direito, agora inútil.
— Vai pra cima do espinheiro — bradou o cabo acima da barulheira.
— Está perdido — disse o capitão, a meia voz.
Contemplaram as últimas guinadas; depois, suspenderam a respiração quando o aparelho, num bamboleio desenfreado, empinou o nariz e, como se o espinheiro fosse seu inimigo, deu um mergulho irado, descrevendo uma curva de vinte jardas, e arremessou-se com os rotores desgovernados contra os espinhos.
Antes de se extinguirem os ecos da colisão, ouviu-se um ribombo cavo e uma bola de fogo, projetada no ar, ofuscou o clarão da lua e banhou a planície inteira num fulgor alaranjado.
O capitão foi o primeiro a falar.
— Opa! — exclamou, tirando o binóculo e voltando-se para Bond. — Bem — disse ele, resignado — nada a fazer. Acho que só quando amanhecer a gente vai poder se aproximar. E só com o dia alto é que se poderá revolver os destroços. Mas pode esperar que daqui a pouco os soldados franceses da fronteira estarão aqui. Felizmente estamos em boas relações com eles. O governo é que passará um bocado de tempo discutindo com Dakar. — O oficial previa as idas e vindas da papelada e sentia-se ainda mais exausto.
Homem prosaico, achava que o dia já lhe trouxera boa dose de canseiras. — O senhor se incomoda se a gente tirar uma pestana?
— À vontade — disse Bond, e consultou o relógio. — É melhor irem pra debaixo do caminhão. Eu mesmo não estou com sono. Vou ficar de olho.
Pode ser que o fogo ameace se alastrar.
O oficial lançou um olhar inquiridor a esse homem calmo e enigmático, que chegara de repente ao Protetorado no meio de uma enxurrada de recomendações de "Prioridade Absoluta". Se a gente nunca precisasse dormir... Bom, isso nada tinha que ver com Freetown. Era coisa de Londres.
— Muito obrigado, então — disse o oficial e jogou-se debaixo do caminhão.
Bond retirou vagarosamente os pés dos pedais do gatilho e reclinou-se no encosto da sela de aço. Maquinalmente, com os olhos pousados ainda nas chamas saltitantes, enfiou as mãos nos bolsos do desbotado blusão caqui, que lhe haviam arranjado na base, puxou um cigarro, acendeu-o e tornou a guardar a cigarreira e o isqueiro.
Aí estava o fim do contrabando de diamantes. A última página da estória. Deu uma tragada e expeliu a fumaça com um suspiro longo e calmo.
Seis cadáveres a zero. Vitória folgada.
Ergueu a mão e limpou a testa suada. Atirou para trás a mecha de cabelo que lhe caía por cima da sobrancelha direita, e o clarão vermelho iluminou-lhe o rosto duro e magro e cintilou nos olhos cansados.
Esse imenso e rubro ponto final assinalava o desmoronamento da Quadrilha de Spang e o término do fabuloso contrabando de diamantes. Não o fim dos diamantes que se tostavam do interior do braseiro. Eles sobreviveriam e outra vez iriam percorrer o mundo. Descoloridos, talvez, mas indestrutíveis, tão permanentes como a morte.
E Bond recordou, instantaneamente, os olhos do cadáver cujo sangue havia pertencido ao grupo F. Tinham-se enganado. A morte é eterna. Mas os diamantes também são eternos.
Bond desceu do caminhão e pôs-se a andar lentamente em direção à fogueira crepitante. Levava um sorriso sombrio nos lábios. Toda essa estória acerca de morte e diamantes era demasiado solene. Para Bond, era apenas o fim de outra aventura. Outra aventura que bem podia ter por epitáfio as palavras de Tiffany Case. E reviu a boca ardente e irônica que lhe dizia: — Contada é uma coisa, vivida é outra.
20 - Chamas que saem do alto
O UNIFORME PRETO de homem-rã estava muito apertado. Doía no corpo todo. Por que cargas d'água Strangways não tinha se certificado de que o Almirantado tinha suas medidas corretas? E era muito escuro no fundo do mar, as correntes eram muito fortes, arrastavam-no para o banco de coral.
Era preciso nadar com todo o ímpeto para afastar-se dali. Mas agora algo lhe prendia o braço. Que diabo...?
— James! Pelo amor de Deus, James! — Ela apertou a boca ao ouvido dele. Desta vez ela beliscou-lhe o braço nu e ensanguentado com tanta força que, afinal, os olhos de Bond se abriram entre as pálpebras inchadas, e ele a contemplou do piso de madeira em que estava deitado e deu um suspiro de sobressalto.
Ela puxou-o para si, com medo que ele lhe escapasse outra vez. Ele pareceu entender e se revolveu, erguendo-se sobre as mãos e os joelhos, a cabeça pendida para o chão, como um animal ferido.
— Pode andar?
— Espere. — O murmúrio espesso que lhe atravessou os lábios arrebentados soou-lhe estranho aos ouvidos. Talvez ela não tivesse compreendido. — Espere — repetiu ele, enquanto sua mente passava a explorar o corpo para ver o que lhe tinha sobrado. Podia sentir os pés e as mãos. Podia mover a cabeça de um lado para outro. Podia ver as barras do luar nas pranchas de madeira. Pudera ouvir a moça. Devia estar inteiro, mas não queria mover-se. Sua força de vontade o tinha abandonado. Apenas desejava dormir. Ou talvez mesmo morrer. Qualquer coisa, contanto que mitigasse a dor que lhe avassalava o corpo todo, apunhalando-o, martelando-o, triturando-o — e matasse a lembrança das quatro botinas que o haviam golpeado e dos rosnados proferidos pelos dois vultos encapuzados.
Assim que pensou nos dois homens e em Mr. Spang, a vontade de viver retornou.
— Está bem — disse, e tornou a dizer para que ela compreendesse.
— Estamos na sala de espera — sussurrou a moça. — Temos de chegar ao extremo da estação. À esquerda, depois da porta. Está me ouvindo, James?
Ela estirou a mão e afagou-lhe os cabelos úmidos, viscosos, caídos na testa.
— Tenho de me arrastar — disse Bond. — Atrás de você.
A moça ergueu-se e abriu a porta. Bond trincou os dentes e saiu de rastros para a plataforma enluarada. E quando avistou a mancha escura no chão, a raiva e o desejo de vingança deram-lhe forças para se levantar.
Balançando a cabeça para não se afogar nas ondas negro-avermelhadas e amparado em Tiffany Case, cujo braço lhe envolvia a cintura, foi coxeando pelas tábuas até a rampa por onde desceram para o chão junto dos trilhos reluzentes.
E lá, no desvio, havia um vagonete.
Bond parou e olhou-o atentamente.
— Gasolina? — perguntou com ar vago.
Tiffany Case fez um gesto para uma fileira de latas encostadas no muro da estação. — Está cheio — sussurrou. — É usado na inspeção da linha. Eu sei colocá-lo em funcionamento. Já desloquei as agulhas. Depressa. Suba — soltou uma risadinha abafada. — Próxima parada: Rhyolite.
— Isso é que é uma garota — murmurou Bond. — Mas vai fazer um barulho danado quando esse troço começar a funcionar. Espere. Tenho uma ideia. Tem fósforos?
Metade da dor tinha desaparecido. Respirava forte quando deu as costas à moça e observou as silenciosas casas de madeira.
Ela estava usando calças compridas e blusa. Enfiou a mão no bolso das calças e entregou-lhe o isqueiro.
— O que é que vai fazer? — perguntou. — Já devíamos ter partido.
Mas Bond manquejou até as latas de gasolina e pôs-se a destampá-las e a arremessar o líquido sobre as paredes e a plataforma de madeira. Depois de esvaziar meia dúzia de latas, voltou para onde ela estava. — Ligue a bicha.
— Curvou-se com esforço e apanhou um jornal amassado ao lado dos trilhos. Ressoou o gemido raivoso do arranque automático, o motor de dois tempos pegou e começou a martelar.
Bond acendeu o isqueiro. O papel pegou fogo e Bond jogou-o entre as latas de gasolina. O espocar das labaredas quase o alcançou quando ele se lançou de costas ao estribo do vagonete. Mas então a. moça soltou a embreagem e o carro começou a deslizar pelos trilhos.
Houve um matracolejar e um sacolejo desagradável ao chegarem às agulhas; e depois, entrados na linha> principal, o velocímetro tremia marcando trinta milhas e os cabelos da moça flutuavam à frente de Bond como uma bandeira.
Bond voltou-se e contemplou a gigantesca floração de chamas que ia ficando para trás. Podia quase ouvir o crepitar das pranchas secas e os berros dos que despertavam. Se pelo menos o fogo pegasse Wint e Kidd, apanhasse a pintura do Pullman e se alastrasse pela lenha do tender do Cannonball e acabasse de uma vez com a caixa de brinquedos de Mr. Spang!
Mas ele e a moça tinham seus próprios problemas. Que horas eram?
Bond aspirou o ar fresco da noite e tentou colocar de novo a mente para trabalhar. A lua estava baixa. Quatro horas? Bond avançou com dificuldade pelo estribo até os dois assentos de encosto dobradiço e conseguiu sentar-se ao lado da moça.
Passou-lhe um braço em volta dos ombros, e ela voltou-se com um sorriso nos lábios. Levantando a voz acima do barulho da máquina e do matracolejar das rodas de ferro sobre os trilhos, ela falou: — Foi uma escapada e tanto. Parecia coisa de filme de Buster Keaton.
Como se sente? — Inspecionou o rosto combalido. — Você está massacrado, hein?
— Nenhuma fratura — disse Bond. — Acho que é isso que se entende por oitenta por cento. — Fez uma careta de dor. — É melhor ser tratado a pontapé do que a bala.
O rosto de Tiffany Case contraiu-se.
— E eu tive de ficar sentada lá e fingir que não ligava. Spang, ao meu lado, escutava e me observava. Depois, eles viram que você já estava nas últimas, atiraram você na sala de espera e todo mundo foi para a cama satisfeito da vida. Esperei uma hora em meu quarto e então resolvi agir. O
pior de tudo foi tentar despertar você.
Bond apertou-lhe os ombros com o braço.
— Direi o que penso de você quando estiver menos contundido. Mas, e você, Tiffany? Vai ficar em maus lençóis se eles nos pegarem. E quem são os dois encapuzados, Wint e Kidd? O que é que eles vão fazer agora?
Gostaria de vê-los de novo.
A moça olhou de viés para a feia equimose na boca de Bond.
— Nunca os vi sem os capuzes — confessou ela. — Suponho que eles são de Detroit. Pistoleiros. Encarregam-se dos trabalhos violentos e de missões especiais secretas. Virão em nosso encalço. Mas não se preocupe comigo. — Encarou-o de novo e seus olhos irradiavam felicidade. — A primeira coisa a fazer é levar essa joça a Rhyolite. Depois teremos de achar um carro e cruzar a fronteira com a Califórnia. Dinheiro não vai faltar-. Eu trouxe. Depois iremos a um médico, arranjaremos um banho e uma camisa nova pra você e pensaremos no que vamos fazer. Trouxe seu revólver. Foi encontrado por um dos rapazes que ajudaram a recolher os restos daqueles dois sujeitos que você arrasou no botequim. Apanhei a arma depois que Spang foi para a cama.
Ela desabotoou a blusa e enfiou a mão no cós das calças.
Bond recebeu a Beretta, e sentiu a quentura do corpo da moça no metal.
Removeu o pente. Sobravam três cartuchos, e um estava na agulha.
Recolocou o pente, fechou o registro de segurança e guardou a arma na cintura. Só então notou que estava sem paletó. Uma das mangas da camisa fora reduzida a um trapo. Arrancou-a e jogou-a fora. Apalpou o bolso traseiro direito da calça, à procura da cigarreira e não a encontrou. Mas no esquerdo estavam ainda o passaporte e a carteira de cédulas. Puxou-os do bolso. À luz da lua pôde ver que ambos estavam danificados. O dinheiro continuava na carteira. Pôs outra vez os objetos no bolso.
Durante algum tempo avançaram pela estrada. O silêncio da noite era cortado apenas pelo ronrom da máquina e pelo matraquear das rodas. Até onde a vista alcançava, havia somente uma interrupção da estreita linha prateada dos trilhos, assinalada pela alavanca de manobra das agulhas, no ponto em que um ramal enferrujado penetrava na massa escura dos montes Spectre à direita. À esquerda, descortinava-se o infindável chão do deserto em que o lampejo da aurora começava a debruar de azul as moitas de cactos contorcidos e, duas milhas além, o luar esparramava seu clarão cinza-chumbo sobre a Rodovia 95.
O vagonete cantarolava feliz nos trilhos. Os instrumentos de controle eram poucos: uma alavanca de freio e uma espécie de manche com um acelerador de cabo retorcido que a moça mantinha completamente aberto, com o velocímetro firme em trinta milhas. As milhas e os minutos passavam e, de vez em quando, Bond virava-se com dificuldade na cadeira e inspecionava o florescente rubor do céu às suas costas.
Fazia cerca de uma hora que tinham partido quando um leve zumbido, vibrando no ar ou nos trilhos, pôs Bond de sobreaviso. Novamente ele olhou por cima do ombro. Haveria um vago bruxoleio entre eles e o falso alvorecer da cidade em chamas?
Bond sentiu leve comichão no couro cabeludo.
— Veja se enxerga alguma coisa ali atrás.
A moça voltou-se. Depois, sem responder, diminuiu a marcha do carro que passou a deslizar suavemente.
Puseram-se à escuta. Sim. Era nos trilhos. Uma leve trepidação, nada mais do que um suspiro distante.
— É o Cannonball — disse Tiffany, categórica.
Deu um brusco repelão no acelerador, e o vagonete tornou a ganhar velocidade.
— Quanto pode fazer a locomotiva? — perguntou Bond.
— Talvez sessenta.
— E daqui pra Rhyolite?
— Trinta, mais ou menos.
Bond fez as contas em silêncio.
— Vai ser por um triz. Não é fácil dizer a que distância ela está de nós. E
esse treco pode dar mais alguma coisa?
— Que nada! — disse ela, — Nem que eu me chamasse Casey Jones em vez de Tiffany Case.
— Não tem importância — disse Bond. — Toca pra frente. Talvez ela vá prós ares com uma explosão.
— Ah, sim — disse ela. — Ou talvez a mola dê o prego, ou Spang se lembre que deixou a chave do motor em casa, no bolso da calça.
Viajaram mais quinze minutos em silêncio. Então, Bond divisou o grande farol da locomotiva varando a noite, a umas cinco milhas de distância, e as centelhas subindo pela chaminé. Os trilhos trepidavam e o que tinha sido um suspiro longínquo era agora um murmúrio baixo, ameaçador.
Talvez venha a faltar lenha, pensou Bond. Num impulso, ele perguntou despreocupadamente à moça:
— Será que temos bastante gasolina?
— Temos, sim — disse Tiffany. — Botei uma lata inteira. Não tem mostrador, mas esses motorzinhos giram a vida inteira com um galão.
Mal ela havia acabado de falar, e como se fizesse um comentário, o motorzinho deu uma tossidela de reprovação — cóf-cóf-cóf — e continuou a rodar alegremente.
— Ai, meu Deus! — exclamou Tiffany. — Ouviu isso? Bond ficou calado. Sentiu as mãos tornarem-se úmidas. Outra vez: cóf-cóf-cóf.
Tiffany Case acalentou delicadamente o acelerador.
— Ah, motorzinho querido — disse ela em tom de súplica. —' Vamos, motorzinho lindo, seja bonzinho, por favor...
— Cóf-cóf. Cóf-cóf. Chi. Cóf. Chiiiii...
E no instante seguinte estavam eles escorregando brandamente em silêncio. Vinte e cinco, dizia o velocímetro. Vinte... quinze... dez... cinco.
Um último e selvagem repelão no acelerador, um pontapé de Tiffany Case na armação do motor, e tinham parado.
— Porra! — disse Bond. Com esforço conseguiu saltar e manquejar até o tanque na traseira do vagonete. Tirou do bolso da calça o lenço ensanguentado, desatarraxou a tampa do funil e introduziu o lenço até tocar o fundo do tanque. Puxou-o para fora, apalpou-o e cheirou-o. Seco como um osso.
— Nada feito — disse ele para Tiffany. — Vamos pensar numa saída.
Olhou em volta. Nenhum abrigo à esquerda, e duas milhas pelo menos até à estrada de rodagem. À direita, as montanhas, talvez a um quarto de milha. Podiam chegar lá e esconder-se. Mas por quanto tempo? Contudo, era o melhor alvitre. O chão, sob seus pés, tremia. Esquadrinhou a linha férrea iluminada pelo olho incandescente, implacável. A que distância? Duas milhas? Spang enxergaria o vagonete? Teria tempo de parar? Haveria descarrilamento? Mas aí Bond lembrou-se do poderoso limpa-trilhos, que varreria da linha o vagonete como se fosse um feixe de palha.
— Vamos, Tiffany — bradou ele. — Temos de escalar as colinas.
Onde estava ela? Bond rodeou o carro. Ela vinha correndo pelo trecho da estrada que tinham pela frente. Aproximou-se arquejante.
— Há um desvio logo ali adiante — disse ela entre um ofego e outro. — Se a gente puder empurrar essa coisa até lá e se você puder manobrar as velhas agulhas, pode ser que a gente escape.
— Deus do céu! — disse Bond lentamente. E depois, com uma nota de pasmo na voz, acrescentou: — Há uma coisa melhor do que essa. Me ajude aqui — e, curvando-se, rilhou os dentes contra a dor e começou a empurrar o vagonete.
Recebido o impulso inicial, o carro moveu-se facilmente e eles precisavam apenas segui-lo e não deixar que parasse. Chegaram às agulhas, mas Bond continuou a empurrar até que pararam umas vinte jardas além.
— Que diabo é que você vai fazer? — arquejou Tiffany.
— Vamos pra cá — respondeu Bond, correndo aos tropeções para o ponto em que a chave enferrujada ressaltava ao lado dos trilhos. — Vamos colocar o Cannonball no desvio.
— Genial! — disse Tiffany Case com admiração. Puseram mãos à obra, e os músculos doloridos de Bond forcejavam por erguer a chave.
Lentamente o metal enferrujado começou a mover-se no leito onde jazia imóvel havia cinquenta anos, e milímetro a milímetro os trilhos mostraram uma fenda, que foi se alargando à medida que Bond puxava a alavanca.
Ao terminar, Bond caiu de joelhos no chão, com a cabeça dobrada para baixo, lutando contra a tontura que ameaçava dominá-lo.
Mas já então um feixe de luz iluminava o chão e Tiffany procurava arrastá-lo. Bond ergueu-se e voltou aos trambolhões para o vagonete. O ar estrondava e se enchia do plangente clangor do sino enquanto o flamejante cavalo de ferro galopava em direção a eles.
— Abaixe-se e não se mexa — bradou Bond por cima do barulho e lançou-a ao chão por trás do frágil biombo do vagonete. Depois, coxeou o mais rápido que pôde até a margem dos trilhos, puxou a arma, colocando-se de viés com o braço levantado como um duelista e voltou os olhos semicerrados para o gigantesco farol que avançava debaixo do vulcão de fogo e fumaça turbilhonantes.
Puxa, que monstro! Entraria ele na curva? Ou não respeitaria o desvio e os esmagaria? Lá vinha ele.
— Fittt.
Algo açoitou o chão ao lado de Bond e houve um clarão momentâneo na cabina.
— P-o-e-m-m-m.
Houve outro clarão, e a bala atingiu o trilho, gemendo na noite.
— Trac. Trac. Trac.
Agora era-lhe possível ouvir o revólver acima do trovejar da locomotiva.
Algo cantou em tom agudo no ouvido de Bond.
Bond não respondeu. Só quatro balas, e ele sabia quando devia disparar.
E então, a vinte jardas, a locomotiva entrou na curva e desembestou pelo desvio com uma guinada tão violenta que atirou as achas de lenha do alto do tender na direção de Bond.
Houve um grito roufenho de metal quando as bordas das rodas motrizes de seis pés de altura dobraram a curva, uma breve impressão de fumaça, chama e ruído de motor, e, depois, uma rápida visão da cabina e do vulto negro e prateado de Spang, de braços abertos e pernas estendidas, agarrando-se com uma das mãos ao costado da cabina e com a outra precipitando-se para a alavanca do acelerador.
A arma de Bond bradou suas quatro palavras. Houve um curto vislumbre de uma cara branca arremessada para o alto, e logo a enorme locomotiva preta e amarela distanciou-se, reboando rumo à muralha sombria dos montes Spectre, o feixe de luz do farol ceifando a treva e o sino dobrando tristemente dim-dão, dim-dão, dim-dão.
Bond guardou lentamente a Beretta no cós das calças, e ficou olhando o ataúde de Mr. Spang, enquanto a esteira de fumaça subia no ar e por um momento encobria a face da lua.
Tiffany veio correndo até onde ele estava, e lado a lado puseram-se a contemplar a bandeira de chamas que se elevava da alta chaminé e escutar as montanhas multiplicarem o atroar da locomotiva. A moça agarrou-lhe os braços quando o comboio deu uma guinada repentina e sumiu-se atrás de um esporão da pedra. E agora ouvia-se apenas um longínquo tamborilar nas montanhas e avistava-se um clarão vermelho que fazia tremular os penhascos enquanto Cannonball despencava no bojo da rocha.
E subitamente apareceu uma imensa língua de fogo, no mesmo instante em que se produziu tremendo choque metálico semelhante ao encontrão de um encouraçado num penedo. Debaixo de seus pés ressoou um estrépito abafado. Finalmente, um ribombo distante e profundo levantou-se das entranhas da terra, seguido por uma barragem de ecos os mais variados.
Então, findos todos os ruídos, zuniu, firme, o silêncio.
Bond soltou um suspiro profundo como se estivesse despertando. Aí estava o fim de um dos Spangs, de um dos enfatuados, cruéis, aparatosos, irrecuperáveis adultos que compunham a quadrilha dos Spangs. Fora um gangster teatral e vivera num ambiente de caixa de palco. Mas isso não alterava o fato de que pretendera liquidar Bond.
— Vamos embora daqui — disse Tiffany Case com sofre-guidão. — Para mim chega de Spectreville.
Bond sentiu a dor insinuar-se-lhe outra vez por todo o corpo à medida que passava a tensão. "Vamos" — respondeu, lacônico. Alegrava-o a ideia de voltar as costas à lembrança daquele rosto branco virado para cima, dentro da bela locomotiva negra em marcha. Estava ligeiramente tonto e duvidava se seria capaz de fazer o percurso.
— Temos de alcançar a estrada. Vai ser difícil. Mas vamos embora.
Levaram uma hora e meia para vencer as duas milhas e, no momento em que se prostrou no solo à margem da estrada de cimento, Bond estava delirante. Foi a moça que o conduziu até lá. Sem ela, ele não teria chegado.
Teria tropeçado no meio dos cactos, das pedras e da mica até que lhe faltassem as forças e o sol causticante se encarregasse de completar o serviço.
Agora ela lhe segurava a cabeça no regaço, falava-lhe docemente e lhe enxugava o suor da testa com a ponta da blusa.
E de vez em quando parava para examinar uma banda e outra da estrada retilínea de concreto, cujos horizontes já tremeluziam nas ondas de calor do amanhecer.
Uma hora depois, ela ergueu-se de um salto, enfiou a blusa por dentro das calças, correu e parou no meio da estrada. Um carro baixo e negro rompia a neblina esvoaçante que ocultava o distante vale de Las Vegas.
O carro estacou justamente diante dela. Um rosto adunco sob um topete desalinhado de cabelo cor de palha assomou à janela. Os penetrantes olhos cinzentos miraram-na de alto a baixo. Pousaram-se na figura do homem deitado no solo à margem da estrada e tornaram para a moça.
Então, com a amistosa fala arrastada dos texanos, o chofer rompeu o silêncio:
— Félix Leiter, senhorita. Às suas ordens. Em que posso servi-la nesta magnífica manhã?
21 - "Nada é tão apropinquante como a propinquidade"
—...E QUANDO CHEGUEI à cidade telefonei pra meu amigo Ernie Cureo. James sabe quem é. A mulher dele estava de ataque e Ernie no hospital. Corro pra lá e ele me passa o serviço e eu imagino que James pode precisar de reforços. Monto na minha égua preta cor de carvão e vou esquipando noite adentro e quando chego perto de Spectreville vejo o clarão no céu. Calculo então que Mr. Spang está preparando um churrasco. O
portão da cerca está aberto e eu resolvo tomar parte na festa. Bom, creiam-me vocês ou não, o fato é que não há vivalma no local, exceto um cara de perna arrebentada e contusões generalizadas, que vem se arrastando pela estrada, tentando dar o pira. E ele me dá a impressão de ser um arruaceiro de nome Frasso, de Detroit. Ernie Cureo tinha dito que era um dos caras que tinham levado James. Ele não estava em condições de negar isso e eu então manjei a situação toda e compreendi que Rhyolite era minha próxima parada. Aí eu digo pro nosso amigo que daí a pouco os bombeiros virão fazer companhia a ele, levo-o até o portão e deixo-o lá. E de uma hora para outra vejo uma guria no meio do deserto, com o ar de quem tinha sido disparada de um canhão. E aqui estamos todos. Agora é a vez de vocês contarem.
"Então tudo isto não é parte de um sonho e eu estou deitado no assento traseiro no Studillac e este é o colo de Tiffany debaixo da minha cabeça e aquele ali é Félix e nós estamos indo às carreiras pela estrada a caminho da segurança, de um médico, de um banho, de comida, de bebida e de um longo sono reparador." Bond mexeu-se e sentiu que a mão de Tiffany em seu cabelo dizia que tudo era real e tal como havia esperado. Imobilizou-se novamente e nada disse. Guardava cada momento para si e lhes escutava as vozes e o zunido dos pneus rolando pela estrada.
Ao fim da narrativa de Tiffany, Félix Leiter largou um assobio de estupefação.
— Puxa! — exclamou ele. — Então vocês dois abriram um rombo espetacular na quadrilha de Spang. Que diabo é que vai acontecer agora? Há muitos outros marimbondos na casa e isso de ficar zumbindo em volta não é do feitio deles. Eles vão exigir ação.
— Certo! — disse Tiffany. — Spang era membro da associação de Las Vegas, e esses camaradas são muito solidários. Há também Shady Tree e aqueles dois pistoleiros, Wint e Kidd. Só o diabo sabe quem são eles. Quanto mais cedo a gente cruzar a fronteira estadual, melhor. E depois, o que vamos fazer?
— Até aqui vai tudo em ordem — disse Félix Leiter. — Em dez minutos chegaremos a Beatty, depois pegaremos a 58 e passaremos nela uma meia hora. Em seguida, toparemos um longo trecho através do Vale da Morte e sobre as montanhas até Olancha, onde atingiremos a N.° 6. Poderíamos dar uma paradinha lá, levar James a um médico, comer alguma coisa e tomar um banho. Depois continuaremos na 6 até chegarmos a Los Angeles. Será muito puxado, mas poderemos estar em Los Angeles na hora do almoço. Aí podemos descansar um pouco e bolar algum plano. Meu palpite é que temos de tirar você e James do país o mais cedo possível. Os meninos tentarão pegar vocês dois de qualquer jeito, e se conseguirem eu não darei um níquel pela vida de nenhum dos dois. A melhor solução seria botá-los num avião para Nova York hoje de noite e despachá-los amanhã para a Inglaterra.
James pode embarcar lá.
— Acho que é razoável — disse a moça. — Mas, afinal, quem é esse Bond? O que é que ele faz? É um detetive ou coisa semelhante?
— Acho melhor que você mesma pergunte a ele — Bond ouviu Leiter dizer cautelosamente. — Mas eu, se fosse você, não me preocuparia com isso. Ele cuidará de você.
Bond sorriu para si mesmo e, no longo silêncio que se seguiu, caiu num sono intranquilo que durou até o momento em que atravessaram a Califórnia e o carro parou defronte de um portãozinho com a placa "Otis Fairplay, Médico".
E depois, enfaixado e pintado com mercúrio-cromo, banhado e barbeado, com um suculento café matinal no estômago, Bond voltou ao carro e ao mundo. Tiffany readquirira o velho ar irônico e intratável e Bond revelava-se útil na espionagem dos patrulheiros rodoviários, enquanto Leiter avançava a oitenta milhas pela interminável estrada estonteante, rumo à longínqua linha de nuvens que escondiam as High Sierras.
Mais tarde rolavam tranquilamente ao longo de Sunset Boulevard, ladeado pelas palmeiras e pelos gramados verdejantes. O Studillac coberto de poeira destoava no meio das cintilantes Corvettes e Jaguars. Finalmente, ao anoitecer, estavam sentados no bar escuro e refrigerado do Beverly Hills Hotel. Havia novas maletas no saguão, roupas novas adquiridas em Hollywood, e até mesmo o rosto de Bond, marcado de cicatrizes da luta, poderiam indicar que tinham terminado o trabalho nos estúdios.
Havia um telefone em cima da mesa, ao lado dos martinis. Félix Leiter acabava de falar com Nova York pela quarta vez desde que haviam chegado.
— Bom, está tudo arranjado — disse ele, desligando o telefone. — Meus colegas do escritório conseguiram passagens no Elizabeth. Adiou a partida por causa de uma greve nas docas. Sai amanhã de noite, às oito. Eles.irão ao encontro de vocês de manhã em La Guardiã, com as passagens, e vocês serão levados para bordo de tarde. Pegaram o resto de suas coisas no Astor, James. Uma pasta e os teus célebres tacos de golfe. E Washington oferece um passaporte a Tiffany. Haverá um homem do Departamento de Estado no aeroporto. Vocês terão que assinar uns formulários. Consegui que um dos meus antigos colegas da CIA arranjasse a coisa. Os vespertinos fizeram uni bruto estardalhaço com a estória. "Cidade Morta Desaparece" e outras manchetes desse tipo. Mas parece que ainda não descobriram nosso amigo Spang e os nomes de vocês não figuram no noticiário. Meu pessoal diz que não há nada com vocês na polícia, mas um de nossos informantes secretos diz que as quadrilhas estão à procura de vocês e espalharam por toda parte uma descrição de ambos. Com a promessa de dez mil. Assim, é melhor mesmo dar no pé o mais cedo possível. É aconselhável irem para bordo separadamente. Tomem o maior cuidado, vão para os camarotes e não saiam de lá. Vai haver o diabo quando eles chegarem ao fundo daquela velha mina.
Isso fará pelo menos três cadáveres a zero, e esse tipo de escore não é do agrado deles.
— Pinkerton é uma verdadeira máquina — disse Bond, com admiração.
— Mas ficarei satisfeito quando estivermos longe daqui. Eu pensava que os seus gangsters eram um bando de italianos untuosos, que se empanturravam de pizza e cerveja a semana toda e no sábado assaltavam uma garagem ou uma farmácia para arranjarem dinheiro para as corridas. Mas não há dúvida que eles incluem um bocado de violência na folha de pagamentos.
Tiffany Case riu zombeteiramente.
— Você precisa mandar examinar essa cabeça — disse ela, categórica.
— Se sairmos inteirinhos do Lizzie será um verdadeiro milagre. Por aí você pode ter uma ideia de como eles são. Se não fosse aqui o nosso Capitão Gancho-de-Aço, não sei o que seria de nós. Untuosos! Pois sim!
Félix Leiter soltou uma risadinha.
— Calma, pombinhos — disse ele, consultando o relógio. — Temos de partir. Preciso voltar a Las Vegas hoje de noite e começar a procurar o esqueleto do nosso Shy Smile. E vocês têm de pegar o avião. Poderão continuar a arenga a vinte mil pés de altura. De lá a perspectiva é mais interessante. É possível até que terminem como amigos. Lembrem-se do que se diz por aí. — Fez um aceno para o garçom. — Nada é tão apropinquante como a propinquidade.
Leiter levou-os ao aeroporto e deixou-os lá. Bond sentiu um nó na garganta quando o vulto magro saiu coxeando para o carro depois de ter sido efusivamente abraçado por Tiffany Case.
— Você pode dizer que tem um amigo de verdade — disse a moça ao ver Leiter bater a porta e ouvir o estrondo do escape enquanto o carro partia de volta ao deserto.
— Sim — disse Bond. — Félix é cem por cento.
O luar arrancou cintilações do gancho de aço quando Leiter acenou um último adeus. Depois, a poeira assentou na estrada e soou a voz de ferro do alto-falante: "Trans-World Airline, Voo 93. Embarque no Portão N.° 5 para Chicago e Nova York. Todos a bordo, por favor." Eles abriram caminho através das portas de vidro e deram os primeiros passos de sua longa viagem para Londres.
O novo Super-G Constellation roncou por cima do continente envolto em sombras, e Bond, deitado em seu confortável beliche, esperando que o sono lhe tomasse conta do corpo dolorido, pensava em Tiffany, que dormia no beliche de baixo, e no estágio em que se encontrava sua missão.
Pensou no lindo rosto adormecido sobre a mão aberta, inocente e indefeso, esvaecidos o desdém dos olhos cinzentos e rasos e a curva irônica dos cantos da boca ardente. Bond sabia que estava bem perto de apaixonar-se. Mas, e ela? Até onde ia aquela rebelião masculina gerada certa noite em São Francisco, quando os homens lhe invadiram o quarto e a ofenderam?
Chegariam a adolescente e a mulher a transpor a barricada que haviam começado a construir naquela noite contra todos os homens do mundo?
Romperia ela a concha que os anos de solidão e retraimento tornavam cada vez mais rija?
Bond recordou aqueles momentos das últimas vinte e quatro horas em que conhecera a resposta, momentos em que uma jovem arrebatada e terna surgira feliz, sem a máscara agressiva que usava entre os gangsters, no contrabando, no cassino, na mesa de vinte-e-um, e lhe dissera: — Toma-me pela mão. Abre a porta e caminharemos de mãos dadas no dia claro. Não te preocupes. Acertarei meu passo pelo teu. Sempre estive a teu lado em pensamento, mas tu não vieste e passei a vida escutando outra cadência.
Sim, pensou ele. Tudo correrá bem, por esse lado. Mas estava preparado para as consequências? Uma vez que a tomasse pela mão, seria para sempre.
Estaria no papel do médico, do psicanalista, a quem a paciente transfere seu amor e sua confiança, enquanto se liberta da doença. Não poderia haver maior crueldade do que soltar-lhe a mão depois de a ter tomado nas suas.
Estava preparado para as repercussões que esse ato teria em sua vida e em sua profissão?
Bond mexeu-se no beliche e descartou-se do problema. Era muito cedo ainda para enfrentá-lo. Estava indo muito depressa. Mais devagar. Cada coisa a seu tempo. E obstinadamente arquivou a questão, dirigindo os pensamentos para M e para a missão que lhe cumpria concluir antes de perder tempo com sua vida particular.
Bem, uma parte da serpente estava esmagada. A cabeça ou o rabo?
Difícil dizer, mas Bond tendia a julgar que Jack Spang e o misterioso ABC
eram os verdadeiros manipuladores do contrabando de diamantes e que Seraffimo se incumbia da receptação. Seraffimo podia ser substituído.
Tiffany podia ser dispensada. Shady Tree, a quem ela poderia implicar no contrabando, teria de ficar oculto até que a tormenta — se é que Bond era realmente um prenuncio de tempestade — se desencadeasse. Mas nada havia que pudesse implicar Jack Spang ou a House of Diamonds, e a única pista para ABC era o telefone londrino, cujo número Bond trataria de obter da moça o mais cedo possível. Mas este, e todo mecanismo dos contados a ele relacionados, seria alterado logo depois que todos os fatos da deserção de Tiffany e da fuga de Bond fossem comunicados a Londres, presumivelmente por Shady Tree. Assim, tudo isto, refletiu Bond, colocava Jack Spang e, através dele, ABC como seu próximo alvo. O que tinha a fazer de imediato, concluiu Bond antes de se abandonar ao sono, era relatar toda a situação a M
assim que embarcasse no Queen Elizabeth. Daí por diante Londres tomaria conta do caso. Os homens de Vallance sairiam a campo. Bond não teria muito que fazer quando regressasse. Relatórios e mais relatórios a escrever.
A mesma velha rotina no escritório. E de noite haveria Tiffany no quarto atualmente desocupado de seu apartamento, numa transversal de Kings Road. Precisava mandar um telegrama para May a fim de que ela arrumasse as coisas. Vejamos... flores, sais de banho de Floris, lençóis limpos...
Dez horas depois de terem deixado Los Angeles, sobrevoaram La Guardiã e viraram para o mar a fim de preparar o pouso.
Eram oito horas da manhã de domingo e havia pouca gente no aeroporto, mas um funcionário interrompeu-lhes a caminhada quando seguiam pela pista alcatroada e os conduziu para uma entrada lateral, onde os esperavam um homem de Pinkerton e um representante do Departamento de Estado.
Enquanto conversavam, a bagagem foi-lhes trazida. Depois, levaram-nos para fora da estação de passageiros, onde os aguardava um elegante Pontiac marrom, com o motor em movimento e as persianas do vidro traseiro abaixadas.
Passaram ainda algumas horas de ócio no apartamento do homem de Pinkerton até que, por volta das quatro da tarde, mas com um quarto de hora de diferença entre eles, galgaram a prancha de embarque, penetraram no negro, majestoso e seguro ventre britânico do Queen Elizabeth e, por fim, encerraram-se em seus camarotes no convés M, com as portas trancadas para o mundo.
Mas, quando, em primeiro lugar, Tiffany Case e, depois, Bond puseram os pés na prancha de embarque, um doqueiro do Sindicato de Estivadores de Anastásia correu para a cabina telefônica do galpão da alfândega.
E três horas mais tarde dois homens de negócios americanos saltavam de um sedan negro à porta de um armazém das docas, passavam às pressas pelo serviço de imigração e pela alfândega e galgavam a prancha de embarque, quando os alto-falantes começavam a pedir aos visitantes que desembarcassem.
Um dos homens de negócios era ainda jovem, de feições delicadas e fios de cabelos embranquecidos aparecendo sob o Stetson recoberto por uma capa impermeável. O nome impresso na pasta que carregava era B.
Kitteridge. O outro era um gorducho grandalhão, com um brilho nervoso nos olhos miúdos por trás das lentes bifocais. Suava em bicas e constantemente enxugava o rosto com um lenço enorme. O nome no cartão pendurado na alça da pasta era W. Winter. Em baixo do nome, lia-se em tinta vermelha: MEU GRUPO SANGuÍNEO É F.
22 - Amor e molho bearnês
Às OITO HORAS em ponto, o prolongado e ressoante apito da sirena do Queen Elizabeth fez tremer a vidraça dos arranha-céus. Com grande rebuliço, os rebocadores arrastaram-no para o meio do rio, abrindo-lhe o caminho. Por fim, desenvolvendo cautelosamente cinco nós, o transatlântico pôs-se a descer o rio, cortando as águas remansosas.
Após a parada para desembarcar o prático no Farol de Ambrose, as quádruplas hélices fustigariam o mar, convertendo-o em creme de leite, e o Queen Elizabeth, com um estremecimento de alívio, começaria a fender o longo arco achatado, entre os paralelos 45 e 50, a caminho de Southampton.
Sentado no camarote, escutando o ranger do madeiramento e contemplando o lápis rolar suavemente em cima da penteadeira, entre a escova de cabelo e a borda de seu passaporte, Bond recordava os dias em que outra era a rota da embarcação, os dias em que ela ziguezagueava no Atlântico Sul, brincando de esconde-esconde com os ferozes cardumes de submarinos alemães, a caminho da Europa em chamas. Ainda era uma aventura, mas agora o Queen Elizabeth — protegido num casulo de radar, rádio e sondador de ecos — movia-se com as precauções de um potentado oriental entre escoltas e batedores e, no que dizia respeito a Bond, tédio e indigestão eram os únicos riscos da viagem.
Pegou o telefone e pediu para falar com Miss Case. Quando ela lhe ouviu a voz, rompeu num gemido teatral.
— A loba do mar odeia o mar — disse ela. — Ainda não saímos do rio e eu já estou enjoada.
— Não faz mal — disse Bond. — Não saia do camarote e tome dramamina e champanha. Vou passar uns dois ou três dias em repouso. Vou mandar chamar o médico e o massagista dos banhos turcos pra ver se junto de novo as peças. E de qualquer modo não faz mal nenhum que a gente passe a maior parte da viagem no camarote. É possível que nos tenham localizado em Nova York.
— Bom, se você promete telefonar todos os dias — disse Tiffany — e promete me levar àquela Veranda Grill logo que eu puder engolir um pouco de caviar, eu concordo. Está bem assim?
Bond soltou uma gargalhada.
— Já que você insiste, eu prometo — disse ele. — E agora, escute. Em troca, eu quero que você tente lembrar-se de tudo o que puder a respeito de ABC e do lado londrino de nosso negócio. Aquele número de telefone e o mais que você julgar importante. Logo que puder, eu lhe direi por que estou interessado nisso. Por enquanto você tem de confiar em mim. Combinado?
— Combinado — disse a moça com indiferença, como se toda essa fase de sua vida tivesse perdido o interesse; e, durante dez minutos, Bond inquiriu-a minuciosa, mas (exceto no que tocava a pormenores insignificantes) inutilmente, acerca das atividades de ABC.
Depois desligou o telefone, chamou o camareiro, encomendou o jantar e sentou-se para escrever o longo relatório que teria de transpor em código e despachar naquela mesma noite.
O rebocador conduziu tranquilamente o navio para a treva, e a cidadezinha de três mil e quinhentos habitantes preparou-se para viver os cinco dias da viagem, durante os quais poderiam registrar-se todas as ocorrências naturais em qualquer outra comunidade desse porte — furtos, brigas, seduções, bebedeiras, embustes, talvez um ou dois partos, a possibilidade de um suicídio e, em cem travessias, até mesmo um homicídio.
Quando o burgo de ferro começou a sulcar serenamente a imensidão do Atlântico e a brisa suave da noite zuniu e gemeu no topo do mastro, as antenas de rádio já estavam transmitindo a mensagem do operador de serviço ao ouvido atento de Portishead.
E o que o operador enviava, precisamente às dez horas da noite, E. S. T., era um telegrama endereçado a ABC, CUIDADOS HOUSE OF DIAMONDS, HATTON GARDEN, LONDRES, e
que dizia:
LOCALIZADOS PT CASO ASSUNTO EXIJA SOLUÇÃO DRÁSTICA ESSENCIAL VOCÊ FIXAR PREÇO PAGO EM DÓLARES. Assinado: WINTER.
Uma hora depois, enquanto o operador do Queen Elizabeth lamentava ter de transmitir quinhentos grupos de cinco letras dirigidos ao DIRETOR PRESIDENTE, EXPORTADORA UNIVERSAL, REGENTS PARK, LONDRES, o rádio de Portishead enviava uma breve mensagem a WINTER, PASSAGEIRO PRIMEIRA CLASSE QUEEN ELIZABETH, que dizia:
DESEJO SOLUÇÃO IMEDIATA PROBLEMA CASE PT PAGAREI VINTE MIL PT
CUIDAREI PESSOALMENTE OUTRO ASSUNTO CHEGADA LONDRES CONFIRME ABC.
O operador procurou Winter na lista de passageiros, meteu a mensagem num envelope e enviou-a a um camarote no convés A, abaixo do de Bond e da moça, onde os dois homens jogavam cartas em mangas de camisa.
Quando o mensageiro saiu do camarote, ouviu o gorducho dizer para o homem dos cabelos brancos: — Pois é, Kidd. Vinte mil. É pra valer!
Não foi senão no terceiro dia que Bond e Tiffany resolveram encontrar-se no Observation Lounge, para um coquetel, e mais tarde no Veranda Grill, para jantar. Ao meio-dia, a calmaria era total, e depois do almoço no camarote Bond recebera um ultimato em redondo cursivo feminino numa folha de bloco do navio: "Marque um encontro comigo hoje. Não falhe".
Imediatamente Bond pegara o telefone.
Estavam sedentos da companhia um do outro depois dos três dias de separação, mas as defesas de Tiffany estavam de pé quando ela se reuniu a ele na escura mesa de canto que Bond havia escolhido na cintilante sala semicircular, situada na proa.
— Que espécie de mesa é esta? — perguntou ela com sarcasmo. — Está com vergonha de mim? Então eu ponho o mais belo modelo dos costureiros de Hollywood e você me esconde como se eu fosse Miss Reno 1914? Quero me divertir nessa geringonça e você me bota num canto como se eu fosse contagiosa.
— É isso mesmo — disse Bond. — O que você quer é elevar a temperatura de outros homens.
— Que é que você espera que uma moça faça no Queen Elizabeth?
Pescar?
Bond riu. Acenou para o garçom e pediu vodca-martini seco com casca de limão.
— Eu podia te oferecer uma alternativa.
— Já sei — disse a moça. — Meu querido diário: estou na maravilhosa companhia de um inglês bonitão. O que me aflige é saber que ele anda atrás das jóias da minha família. Que devo fazer? Sua criada, desorientada. — Num movimento súbito, ela inclinou o busto para a frente e pousou a mão na do homem. — Escute aqui, mestre Bond — disse ela. — Estou felicíssima.
Adoro isso aqui. Adoro estar com você. E adoro esta mesinha escura onde ninguém pode me ver segurando sua mão. Não ligue pra minha conversa. É que eu não posso me conter de tão feliz. Não faça caso das minhas brincadeiras.
Ela vestia uma blusa de xantungue de seda creme e uma saia de algodão e lã preto-carvão. As cores neutras ressaltavam-lhe a tez café-au-lait. O minúsculo relógio Cartier quadrado, com a pulseira preta, era sua única jóia, e as unhas curtas da mão pequena e morena que Bond tinha entre as suas estavam sem esmalte. A luz do sol, refletida do exterior, refulgia no ouro pálido das largas ondas do cabelo, nas profundezas dos cinzentos olhos opalescentes e nos alvos dentes que cintilavam entre os lábios sensuais.
— Não — disse Bond. — Não farei caso, Tiffany. Tudo em você é esplêndido.
Ela o encarou nos olhos e ficou satisfeita. O garçom trouxe-lhes a bebida. Ela retirou a mão e observou-o ironicamente por cima da borda de seu copo.
— Agora eu quero saber umas coisinhas — disse ela. — Em primeiro lugar, o que é que você faz e para quem trabalha? A princípio, no hotel, pensei que você era um vigarista. Mas, não sei por quê, quando você foi embora, vi que não era. Acho que devia ter avisado ABC, e com isso teria evitado essa onda toda. Não avisei, e pronto! Vamos, James. Responda.
— Trabalho para o governo — disse Bond —, que quer acabar com esse contrabando de diamantes.
— Espécie de agente secreto?
— Funcionário público, apenas.
— Está bem. E o que é que você vai fazer comigo quando chegarmos a Londres? Trancafiar-me?
— Sim. No quarto desocupado de meu apartamento.
— Assim é melhor. Terei de me tornar súdita da Rainha como você?
Gostaria de ser súdita.
— Acho que podemos arranjar isso pra você.
— É casado? — Fez uma pausa. — Ou tem alguma ligação?
— Não. Um caso ou outro de vez em quando.
— Quer dizer então que você é um desses sujeitos fora de moda que gostam de dormir com mulher? Por que não se casou?
— Creio que porque eu acho que posso manobrar melhor a minha vida sozinho. A maioria dos casamentos não soma duas pessoas. Subtrai uma da outra.
Tiffany Case refletiu um pouco.
— Talvez você tenha razão — disse ela, afinal. — Mas depende do que se soma. Pode ser algo humano ou inumano. Ninguém é auto-suficiente.
— E você?
A moça não gostou da pergunta.
— Talvez eu esteja do lado do inumano — respondeu com rispidez. — E com que diabo de homem você queria que eu me casasse? Com Shady Tree?
— Pode ter havido muitos outros.
— Não houve — disse ela com raiva. — Você é capaz de achar que eu não devia ter me misturado com esses calhordas. Bem, talvez eu tenha dado o passo que não devia dar. — A chama de cólera se apagou e a moça assumiu a defensiva. — Isso acontece com certas pessoas, James. Acontece mesmo. E às vezes não é culpa delas.
James Bond estirou o braço e apertou a mão da moça.
— Eu sei, Tiffany — disse ele. — Félix me contou. É por isso que não perguntei nada. Não pense mais nisso, não. O que importa é o dia de hoje, aqui, agora. Não o dia de ontem. — Desviou o assunto. — Agora é a sua vez de me fornecer alguns fatos. Por exemplo, de onde é que vem esse nome Tiffany e que tal ser banqueira no Tiara? Como é que você chegou a cartear tão bem? Simplesmente espetacular a maneira como você tratava aquele baralho. Se pode fazer aquilo, pode fazer qualquer outra coisa.
— Não diga — replicou a moça com ironia. — Fazer o quê, por exemplo? Brincar de sapateira? E quanto ao nome Tiffany a explicação é simples. Quando eu nasci, papai Case ficou tão zangado por eu não ser menino que deu à minha mãe mil dólares e uma lata de talco comprada em Tiffany e foi embora de casa. Foi ser fuzileiro naval. Terminou morrendo em Iwo Jima. Então minha mãe me botou o nome de Tiffany Case e tratou de ganhar a vida pra nós duas. Começou com uma espelunca e umas garotas e com o tempo foi ficando mais ambiciosa. Talvez essa história não seja muito do seu agrado.
Ela lhe lançou um olhar meio defensivo, meio suplicante.
— Não me preocupa — disse Bond secamente. — Você não era uma das pequenas.
Ela deu de ombros.
— Um dia o lugar foi invadido pelos gangsters. — Interrompeu-se para beber o resto do martini. — E eu dei no pé, por minha conta. Passei pelos empregos comuns a todas as moças. Depois fui para Reno. Lá eles mantêm uma escola de jogo e eu dei duro. Curso completo. Dados, roleta e vinte-e-um. Pode-se ganhar bom dinheiro nos cassinos. Duzentos por semana. Os homens gostam quando as moças bancam o jogo e as mulheres se sentem mais confiantes. Acreditam que a gente vai se mostrar bondosa com elas.
Pensam estar entre irmãs. Quando são homens que bancam o jogo, elas se apavoram. Mas não pense que essa estória toda é assim tão engraçada.
Contada, é uma coisa; vivida, é outra. — Fez uma pausa e sorriu. — Tenha a palavra, agora. É a sua vez. Pague mais um trago e me diga que tipo de mulher você acha que soma com você.
Bond chamou o garçom. Acendeu um cigarro e voltou-se para Tiffany.
— Alguém que saiba fazer molho bearnês e amor — disse ele.
— Já sei! Qualquer bruxa velha que saiba cozinhar e deitar-se de costas.
— Ah, não. Ela precisa ter todas essas coisas que as mulheres geralmente têm. — Bond examinou-a. — Cabelo cor de ouro. Olhos cinzentos. Boca pecadora. Silhueta perfeita. E naturalmente tem de contar piadas engraçadas, vestir-se bem e jogar cartas. As prendas naturais.
— E você casaria com uma mulher assim, se a encontrasse?
— Não necessariamente — disse Bond. — Pra falar com franqueza, já sou quase casado. Com um homem cujo nome começa com M. Teria de me divorciar dele antes de casar com uma mulher. E não sei se isso me agradaria. Ela me obrigaria a passar canapés de mão em mão numa sala de visita em forma de L. E haveria aquelas chatérrimas discussões "Foi você — Não, foi você" que parecem combinar tão bem com todos os casamentos.
Não daria certo. No primeiro acesso de claustro-fobia, iria embora pro Japão ou pra qualquer outra parte.
— E filhos?
— Gostaria de ter alguns — disse Bond. — Mas só quando me aposentasse. De outra forma, não seria justo. Meu trabalho não é lá muito seguro. — Olhou para o copo e bebeu todo o martini. — E você, Tiffany? — perguntou, a fim de mudar de assunto.
— Acho que toda moça gostaria de chegar em casa e encontrar um chapéu na mesinha do corredor — disse Tiffany, melancólica. — O diabo é que eu nunca encontrei nada que prestasse debaixo do chapéu. Talvez não tenha procurado bastante ou não tenha procurado nos lugares certos. Você sabe como é: quando a gente entra na rotina não quer mais sair. Assim fiz eu no meio dos Spangs. Sabia sempre de onde era que vinha a comida. Fiz algumas economias. Mas uma moça não pode ter amigos naquele ambiente.
Ou bota uma placa "Proibida a Entrada" ou de uma hora pra outra se vê cercada de malandros. Mas acho que já estou farta de viver só. Conhece o refrão das coristas da Broadway? "É triste a trouxa de roupa que não tem uma camisa de homem".
Bond riu.
— Mas agora você está fora da rotina — disse ele e olhou-a zombeteiramente. — E Mr. Seraffimo? E aqueles dois quartos de dormir no Pullman, a ceia para dois com champanha...?
Antes que concluísse, ela levantou-se da mesa, os olhos vermelhos, e caminhou para fora do bar.
Bond se amaldiçoou. Colocou algum dinheiro sobre a conta e saiu correndo atrás dela. Foi encontrá-la quase no meio do tombadilho de passeio.
— Por favor, Tiffany, escute — começou ele.
Ela voltou-se e encarou-o.
— Como se pode ser tão mesquinho? — disse ela, e lágrimas iradas brilharam-lhe nos cílios. — Por que você tem de estragar tudo com uma observação ferina como aquela? Oh, James! — Em desespero virou-se para as janelas, procurando um lencinho na bolsa. Enxugou os olhos. — Você simplesmente não compreende.
Bond cingiu-a com um braço e puxou-a para si.
— Meu amor! — Sabia que nada senão o grande passo do amor físico curaria esses mal-entendidos, mas que era necessário ;ainda desperdiçar tempo e palavras. — Não tive a intenção de magoar você. Eu queria somente ter certeza. Aquela mesa posta para a ceia no trem me feriu muito mais do que o que aconteceu depois. Tinha de lhe fazer aquela pergunta.
Ela ergueu a vista, ainda em dúvida.
— Está falando sério? — perguntou, observando-lhe o rosto. — Quer dizer que você já me queria bem?
— Não seja boba — disse Bond, impaciente. — Então você não sabe nada de nada?
Ela afastou-se e contemplou pela janela o infindável mar azul e as gaivotas que acompanhavam esse navio extraordinariamente pródigo.
Depois de algum tempo, perguntou:
— Você já leu Alice no País das Maravilhas?
— Há muitos anos — disse Bond, surpreso. — Por quê?
— Há lá umas linhas que muitas vezes me vêm à memória — disse ela.
— "Oh Ratinho, conheces o caminho que conduz para fora deste poço de lágrimas? Estou muito cansada de nadar dentro dele, oh Ratinho". Lembra-se dessa passagem? Pois bem, eu pensava que você ia me mostrar a saída e, em vez disso, você me empurra pra dentro do poço. Por isso é que fiquei transtornada. — Ergueu a vista. — Mas acredito que você não teve intenção de me magoar.
Bond olhou-lhe a boca demoradamente e depois beijou-a nos lábios.
Ela não retribuiu e esquivou-se. Seus olhos sorriam de novo. Deu o braço a ele e voltou-se para as portas abertas que conduziam ao elevador.
— Me leve lá pra baixo — disse ela. — Preciso recompor a fachada e, além disso, quero me preparar com cuidado para agradar ao candidato. — Ficou um instante em silêncio e depois colou a boca no ouvido dele. — Talvez isso lhe interesse, James Bond — disse baixinho. — Nunca em minha vida fiz o que você chama "dormir com um homem". — Puxou-o pelo braço. — Agora vamos — disse bruscamente. — Afinal, já é hora de tomar um "quente doméstico". Suponho que isso faz parte da língua dos súditos que você está querendo que eu aprenda. Vocês, súditos, escrevem as coisas mais loucas nos banheiros.
Bond levou-a até o camarote dela, voltou para o seu e tomou um "quente salgado" na banheira, seguido de um "frio doméstico" no chuveiro. Depois, estirou-se na cama, recordando com um sorriso algumas das coisas que ela havia dito, e pensou nela, deitada na banheira, intrigada com a floresta de torneiras e imaginando que os ingleses eram loucos varridos.
Soou uma pancada na porta e o camareiro entrou com uma bandejinha que colocou em cima da mesa.
— Que diabo é isso? — perguntou Bond.
— Foi enviado pelo cozinheiro-chefe, senhor — respondeu o camareiro, retirando-se em seguida e fechando a porta do camarote.
Bond desceu da cama e foi examinar o conteúdo da bandeja. Não pôde deixar de rir. Havia uma garrafinha de Bollinger, um rescaldeiro com quatro talhadas de bife em canapés de torrada, e uma tijelinha de molho. Debaixo desta, uma nota escrita a lápis dizia: "Este molho bearnês foi criado por Miss T. Case sem minha assistência". Assinado: "O Chefe".
Bond encheu uma taça de champanha, espalhou um pouco de molho numa talhada de bife e mastigou atentamente. Depois foi ao telefone.
— Tiffany?
Ouviu o risinho abafado e divertido no outro extremo do fio.
— Bem, não há dúvida de que você faz um maravilhoso molho bearnês...
Repôs o telefone no gancho.
23 - O trabalho fica em segundo plano
MOMENTO INEBRIANTE NUM CASO amoroso é aquele em que, pela primeira vez, em público, num restaurante ou num teatro, o homem pousa a mão na coxa da mulher e ela, tomando-a nas suas, aperta-a contra si.
Os dois movimentos dizem tudo o que pode ser dito. Concluem todos os acordos. Firmam-se todos os pactos. E há um longo minuto de silêncio durante o qual o sangue canta nas veias.
Eram onze horas e havia poucas pessoas espalhadas nos cantos da Veranda Grill. O mar arfava baixinho sob o luar lá fora e o magnífico paquete arava a negra pradaria do Atlântico. À popa, apenas um levíssimo galope mostrava uma suave ondulação, as doze lentas pulsações por minuto de um oceano adormecido, aos dois seres aconchegados atrás do quebra-luz cor-de-rosa.
O garçom trouxe-lhes a conta, e suas mãos se separaram. Mas agora dispunham de todo o tempo do mundo e não precisavam afirmar seus sentimentos com palavras e contactos. Quando o garçom retirou os pratos, a moça fitou Bond com um sorriso de felicidade os dois encaminharam-se para a porta.
Entraram no elevador para o Tombadilho de Passeio.
— Que faremos agora, James? — perguntou Tiffany. — Gostaria de tomar mais uma café e um Stinger preparado com creme de menthe branco, enquanto estivéssemos escutando o leilão. Já ouvi falar tanto dele e bem que poderíamos ganhar uma fortuna.
— Está bem — disse Bond. — O que você desejar. — Tomou-a pelo braço e atravessaram vagarosamente a grande sala de estar, onde o víspora ia em meio, e o salão de baile, onde os músicos afinavam os instrumentos. — Mas não me obrigue a comprar nenhum número. É um jogo como os outros, e cinco por cento destinam-se à beneficência. Quase a mesma coisa que em Las Vegas. Mas é divertido quando há um bom leiloeiro. E dizem também que há muito dinheiro a bordo.
O salão de fumar estava quase deserto. Escolheram uma mesinha longe da plataforma onde o Comissário arrumava os apetrechos do leiloeiro, a caixa com os papeluchos numerados, o martelo, a garrafa de água.
— A casa está fraca — disse Tiffany ao sentarem-se no meio da floresta de cadeiras e mesas vazias. Mas, quando Bond fez o pedido ao garçom, as portas do cinema se abriram e cerca de cem pessoas ocuparam o salão de fumar.
O leiloeiro, um comerciante dos Midlands, pançudo e jovial, com um cravo vermelho na lapela do dinner jacket, bateu na mesa pedindo silêncio e anunciou que a previsão do Capitão para o percurso do dia seguinte era de 720 a 739 milhas, que qualquer distância abaixo de 720 era o Campo Inferior e acima de 739 era o Campo Superior.
— E agora, minhas senhoras e meus senhores, vejamos se é possível quebrar o recorde estabelecido nesta viagem, que atinge a cifra impressionante de 2.400 libras esterlinas. (Aplausos). ; Um camareiro ofereceu a caixa com os números dobrados à mulher de ar mais aristocrático do salão e depois entregou ao leiloeiro o papelzinho que ela havia sorteado.
— Bem, senhoras e senhores, temos aqui, para começar, um número excepcionalmente bom. 738. Exatamente no limite máximo, e desde que vejo aqui, esta noite, tantas caras novas (risos), creio que todos concordaremos em que o mar está singularmente calmo. Senhoras e senhores. Quanto me dão por 738? Digamos... 50 libras? Quem me dará 50
libras por este número de sorte? 20, foi o que o senhor falou, cavalheiro?
Bem, temos de partir de alguma oferta. Quem dá... 25? Muito obrigado, minha senhora. E 30. 40 lá adiante, sr. camareiro. E 45 do meu amigo, Mr.
Rothblatt. Muito obrigado, Charlie. Quem dá mais pelo n.° 738? 50. Muito grato, minha senhora. E agora, sim, voltamos ao ponto de partida (risos). 50.
Quem dá 55? Então ficamos em 50. Dou-lhe uma... Dou-lhe duas... — e o martelo erguido bateu na mesa.
— Ainda bem que temos um bom leiloeiro — disse Bond.
— O número era bom. E barato, se o tempo continuar como está e ninguém se jogar no mar. O Campo Superior custará uma bolada esta noite.
Todo mundo espera que o navio faça mais de 739 milhas nesse tempo.
— Essa bolada quer dizer quanto? — perguntou Tiffany.
— Duzentas libras. Talvez mais. Acho que os números normais serão leiloados por umas cem libras. O primeiro número é sempre mais barato do que os outros. O pessoal ainda está frio. A única esperteza que se pode demonstrar neste jogo é arrematar o primeiro número sorteado. Qualquer número pode ganhar, mas o primeiro custa menos.
Quando Bond acabou de falar, o segundo número era entregue por 90
libras a uma jovenzinha bonita e excitada, que era abertamente financiada por seu companheiro, um indivíduo grisalho e bem conservado que parecia a caricatura de um Don Juan do Esquive.
— Vamos, James. Arremate um número pra mim — disse Tiffany. — Você não sabe mesmo agradar a uma moça. Veja como aquele cavalheiro é gentil com sua pequena.
— Ele já passou da idade-limite — disse Bond. — Deve estar na casa dos sessenta. Até os quarenta, as pequenas não custam nada. Daí por diante, é preciso gastar dinheiro ou contar uma estória. Das duas coisas, a estória é que dói mais. — Sorriu, fitando-a nos olhos. — Mas eu ainda não cheguei aos quarenta.
— Deixe de presunção — disse a moça, olhando-o na boca. — Dizem que os homens maduros são os melhores amantes. Também, por outro lado, sei que você não é unha-de-fome. Aposto que não quer me presentear um número porque o jogo é ilegal nos navios de Sua Majestade.
— Até que é permitido além do limite de três milhas da costa — disse Bond. — Mesmo assim, a Cunard toma todas as precauções para não envolver o nome da companhia. Escute isto — e apanhou um cartão alaranjado que estava em cima da mesa. — "Leilão de Apostas nas Distâncias Diárias percorridas pelo Navio" — leu para a moça. — "Para os fins de direito, é de toda a conveniência reiterar a posição da Companhia em relação ao supradito Leilão. Não é desejo da Companhia que o encarregado do salão de fumar ou quaisquer outros membros da tripulação desempenhem papel ativo na organização das apostas nas milhas diárias percorridas pelo navio". — Bond levantou a vista. — Está vendo? — perguntou. — Seguro morreu de velho. E tem mais: "A Companhia sugere que os passageiros elejam entre si uma Comissão encarregada de formular e controlar as normas... O encarregado do salão de fumar poderá, se instado e se seus deveres o permitirem, prestar a assistência de que a Comissão venha a necessitar para o leiloamento dos números". Como são cautelosos — comentou Bond. — É a comissão que tem de quebrar os galhos que forem aparecendo. Escute mais isto aqui. É onde entra o problema. — Continuou a leitura: — "A Companhia chama especialmente a atenção de todos para os dispositivos das normas financeiras do Reino Unido, no tocante à negociabilidade dos cheques em esterlinos e à limitação da entrada de cambiais bancárias em esterlinos no Reino Unido".
Bond atirou o cartão em cima da mesa..— E por aí vai — disse ele e sorriu para Tiffany Case. — Assim, eu arremato o número que está sendo leiloado e você ganha duas mil libras. Um montão de cédulas e cheques em dólares e libras. O único meio de gastar essa dinheirama, supondo que os cheques tenham fundos, o que é duvidoso, seria contrabandeá-la debaixo dos suspensórios. E lá estaríamos nós outra vez passando muamba. Só que eu estaria do lado do diabo.
A moça não se impressionou.
— Havia um sujeito na quadrilha chamado Abadaba — disse ela. — Era um malandro fino que tinha resposta para tudo. Calculava as vantagens nas corridas, marcava as percentagens no cassino, enfim, era o crânio do grupo.
Era considerado "O Feiticeiro das Apostas". Teve o azar de ser liquidado por engano ao lado de Dutch Schultz — ajuntou ela à guisa de parêntese. — Você está me saindo outro Abadaba com essa lengalenga que não tem outra finalidade senão evitar de gastar dinheiro com uma pequena. Já vi tudo. — Encolheu os ombros, resignada. — Está bem. Mas pelo menos financie outro Stinger pra sua garota.
Bond chamou o garçom. E quando este se afastou, ela aproximou a cabeça do ouvido dele e disse baixinho. — Eu não quero mais, não. Beba você. Quero estar inteiramente sóbria esta noite. — Empertigou-se. — Mas o que é que está se passando aqui? — perguntou com impaciência. — Vamos, um pouco de ação.
— Aí vem ela — disse Bond.
O leiloeiro levantou a voz e toda a sala pediu silêncio.
— E agora, minhas senhoras e meus senhores — rugiu o leiloeiro — vamos à pergunta mais importante da noite. Quem vai me dar 100 libras pela escolha entre o Campo Superior e o Inferior? Todos sabemos o que isto significa... o direito de escolher o Campo Superior, que, inclino-me a crer, será da preferência geral esta noite (risos), em vista das excelentes condições atmosféricas reinantes lá fora. Então, quem abrirá com cem libras os lances para a escolha do Campo Superior ou Inferior?
— Muito obrigado, cavalheiro! E 110. 120 e 130. Muito obrigado, minha senhora.
— Cento e cinquenta — disse uma voz de homem, não muito distante da mesa de Bond e Tiffany.
— Cento e sessenta.
Desta vez era uma mulher. Monótona, a voz do homem gritou: — 170.
— Oitenta — disse alguém.
— Duzentas libras.
Algo fez com que Bond se voltasse e olhasse o homem que tinha falado.
Era um tipo grandalhão. A cara tinha a aparência lisa, brilhante e escorregadia de um olho de boi. Olhos miúdos, frios e escuros fitavam o estrado do leiloeiro através de imóveis lentes bifocais. Todo o pescoço do homem parecia estar por trás da cabeça. O suor havia emaranhado as algas negras e encaracoladas do cabelo. Enquanto Bond o observava, ele tirou os óculos, pegou um guardanapo e passou a enxugar o suor, com um movimento circular que começou no lado esquerdo do rosto, estendeu-se à nuca, onde a mão esquerda cedeu a vez à mão direita, e esta completou o circuito, atingindo os pingos do nariz.
— Duzentas e dez — disse alguém.
A queixada do homem bamboleou, a boca se descerrou, e ele disse, com nítido sotaque americano:
— Duzentas e vinte.
O que havia nesse indivíduo capaz de ferir uma corda na memória de Bond? O inglês examinou o rosto largo, a imaginação percorrendo todo o arquivo do cérebro, abrindo e fechando gavetas, uma após outra à procura de uma pista. A cara? A voz? Inglaterra? América?
Bond abandonou a busca e voltou a atenção para o outro homem à mesa.
Ainda aqui, a mesma necessidade urgente de reconhecer. As feições jovens e estranhamente delicadas sob os cabelos brancos e lisos. Os olhos castanhos e plácidos sob as longas pestanas. O efeito geral era de delicadeza, perturbada pelo nariz roliço montado na boca larga de lábios finos, agora aberta num sorriso estúpido e vazio como a fenda de uma caixa postal.
— Duzentas e cinquenta — disse o grandalhão mecanicamente.
Bond tornou a olhar para Tiffany.
— Já viu aqueles dois alguma vez? — perguntou ele, e ela notou-lhe a ruga de preocupação entre os olhos.
— Não — disse ela, categórica. — Nunca. Talvez venham do Brooklyn. Podem ser dois comerciantes de roupas feitas da Quinta Avenida. Por quê? Eles lhe dizem alguma coisa?
Bond olhou-os outra vez.
— Não — disse, em dúvida. — Não, acho que não.
Palmas estrugiram na sala. Radiante, o leiloeiro bateu na mesa.
— Senhoras e senhores — disse ele, triunfante. — Isto é realmente maravilhoso. Trezentas libras é o lance daquela encantadora senhora de esplêndido vestido cor-de-rosa (Cabeças viravam-se, pescoços esticavam-se, e Bond ouviu a pergunta: — Quem é ela? E agora, cavalheiro — o leiloeiro indicava a mesa do homem gordo — posso anunciar 325 libras?
— Trezentas e cinquenta — disse o gordo.
— Quatrocentas — ganiu a mulher de vestido cor-de-rosa.
— Quinhentas.
A voz era incolor, indiferente.
A moça de cor-de-rosa tagarelou irritada com seu acompanhante. O homem assumiu um ar entediado. Acompanhou o olhar do leiloeiro e balançou a cabeça.
— Quem se dispõe a dar mais? — disse o leiloeiro. Sabia agora que a sala já dera o que tinha de dar. — Dou-lhe uma... Dou-lhe duas... — Pam! — Arrematado pelo cavalheiro. E eu acredito sinceramente que ele merece uma salva de palmas.
Deu início às palmas e os presentes o acompanharam, embora preferissem que a moça tivesse levado a melhor.
O gordo ergueu-se algumas polegadas e voltou a sentar-se. Não havia em seu rosto lustroso nenhum sinal de agradecimento aos aplausos, e seus olhos fixavam-se no leiloeiro.
— E agora temos de cumprir a formalidade de perguntar ao cavalheiro qual é o Campo que ele prefere. (Risos). Cavalheiro, o senhor escolhe o Campo Superior ou o Campo Inferior?
O tom do leiloeiro era irônico. A pergunta era ociosa.
— Campo Inferior.
Houve um momento de silêncio constrangedor no apinhado salão de fumar. E logo se seguiram os comentários à meia-voz. Nenhuma pergunta foi feita. Era óbvio que o homem devia escolher o Campo Superior. As condições atmosféricas eram ideais. O Queen Elizabeth vinha desenvolvendo pelo menos trinta nós. Estaria o homem a par de alguma coisa? Teria pago por alguma informação na ponte de comando? Haveria alguma tempestade à vista? Algum defeito nas máquinas?
O leiloeiro martelou na mesa, pedindo silêncio.
— Queira me perdoar, cavalheiro — disse ele — mas o senhor escolheu mesmo o Campo Inferior?
— Sim.
O leiloeiro tornou a martelar.
— Nesse caso, senhoras e senhores, comecemos agora a leiloar o Campo Superior. Minha senhora — voltou-se com uma curvatura para a moça de cor-de-rosa — quer ter a gentileza de fazer o primeiro lance?
Bond virou-se para Tiffany.
— Que coisa esquisita — disse ele. — É extraordinário. O mar está calmo como um lago. — Deu de ombros. — A única resposta é que eles devem estar informados de alguma coisa.
— A questão era desprovida de interesse, no fim de contas.
— Alguém deve ter dito alguma coisa àqueles dois. — Girou a cabeça e, depois, despreocupadamente, passeou o olhar pelos dois indivíduos. — Parece que eles estão interessadíssimos na gente.
Tiffany olhou por cima do ombro.
— Não estão olhando pra cá, não — disse ela. — A impressão que eu tenho é que são dois palermas. O grisalho tem um ar de idiota e o gordo está chupando o polegar. Dois malucos. Acho que nem sabem o que arremataram. Trocaram as bolas.
— Chupando o polegar? — perguntou Bond. Passou a mão pelo cabelo, distraidamente, uma vaga lembrança a verrumar-lhe o cérebro.
Talvez, se ela lhe tivesse permitido seguir o fio de seus pensamentos, ele tivesse dado no alvo. Mas ela colocou a mão sobre a dele e, aproximando-se, roçou-lhe o rosto com os cabelos.
— Esqueça isso, James — disse ela. — E não pense tanto naqueles dois imbecis. — Os olhos dela ardiam e exigiam. — Chega deste lugar. Leve-me a outra parte.
Sem se dizerem mais uma palavra, ergueram-se, afastaram-se da mesa e saíram da sala barulhenta, caminhando em direção à escada. Começaram a descer e, quando chegaram ao meio, o braço de Bond circundou a cintura da moça, e ela deitou a cabeça no ombro dele.
Chegaram à porta do camarote de Tiffany, mas ela deu meia volta e arrastou Bond pelo corredor comprido, macio e rangente.
— Eu quero que seja na sua casa, James — disse ela.
Bond só voltou a falar depois de ter fechado a porta de seu camarote com um pontapé e de se terem abraçado no meio daquele quartinho maravilhosamente reservado e anônimo. E dizendo, com ternura, "Meu amor" pôs uma das mãos sobre os cabelos dela de modo a manter-lhe a boca sob a sua.
Algum tempo depois, sua outra mão desceu até o fecho-relâmpago do vestido, por trás, e a moça, sem interromper o abraço, deixou cair o vestido e disse, ofegante, entre beijos:
— Quero tudo, James. Tudo o que você já fez com uma mulher. Agora.
Agora mesmo.
E Bond inclinou-se, envolveu-lhe as coxas com um braço, levantou-a e deitou-a suavemente no soalho.
24 - A morte é permanente
A ÚLTIMA COISA de que Bond se lembrou antes de soar a campainha do telefone foi de Tiffany debruçada sobre ele, na cama, beijando-o e dizendo-lhe: "Não durma sobre o lado esquerdo, meu amor. É ruim para o coração.
Pode parar de bater. Vire-se". E, obediente, ele se virava. E, quando a porta bateu de leve, ele estava dormindo de novo, embalado pela voz da moça, pela pulsação do Atlântico e pelo macio balanço do navio.
Depois, a campainha impertinente soou e tornou a soar no camarote escuro. Bond praguejou, estendeu o braço para o telefone, e uma voz disse: — Desculpe-me incomodá-lo, senhor. Aqui é o telegrafista, Acaba de chegar uma mensagem em código para o senhor, com um prefixo en clair "Urgentíssimo". Quer que leia pelo telefone ou envie pelo mensageiro?
— Envie pelo mensageiro, pode ser? — disse Bond. — Muito obrigado.
E que diabo queriam agora? Toda a beleza, todo o ardor, toda a exaltação da paixão amorosa foram postas de lado quando ele acendeu a lâmpada, pulou da cama e, balançando a cabeça, a fim de afastar o torpor, deu dois passos para o chuveiro.
Durante um bom minuto deixou que a água caísse sobre si. Depois, enxugou-se com a toalha, apanhou do chão as calças e a camisa e vestiu-as.
Houve uma pancada na porta. Bond recebeu o telegrama, sentou-se à escrivaninha, acendeu um cigarro e entregou-se ferozmente ao trabalho. E, à medida que os grupos paulatinamente se dissolviam em palavras, seus olhos se apertavam e a pele se lhe arrepiava no corpo.
O telegrama, passado pelo Chefe do Pessoal, dizia:
Primeiro vg busca clandestina escritório Saye revelou telegrama do QE endereçado ABC assinado Winter comunicando presença sua e Case a bordo solicitando instruções pt Resposta endereçada Winter assinado ABC ordena eliminação de Case vg preço vinte mil dólares pt Segundo vg consideramos Rufus B. Saye é ABC que é mais ou menos equivalente pronúncia suas iniciais em francês pt Terceiro vg possivelmente alarmado sinais de busca Saye voou Paris ontem e agora informa Polinter estar em Dakar pt Isto parece confirmar nossas suspeitas que diamantes provêm minas Serra Leoa daí contrabandeados fronteira Guiné Francesa pt Suspeitamos fortemente elemento clínica dentária de Sierra International em observação pt Quarto vg Canberra Raf espera você Boscombe Down para voo imediato amanhã noite a Serra Leoa assinado CDP.
Bond gelou na cadeira. De supetão, acudiu ao seu espírito o mais sinistro verso de toda a poesia: "Enganam-se os que me evitam. Quando voam de mim, eu sou as asas".
Então alguém da quadrilha de Spang estava a bordo e viajava com eles. Quem? Onde?
A mão agarrou o telefone: — Miss Case, por favor.
Ouviu o aparelho ao pé da cama dela produzir um estalido e em seguida disparar 'a primeira campainhada. A segunda. A terceira. Mais uma só. Bond colocou o receptor de volta no gancho e enfiou pelo corredor até o camarote de Tiffany. Nada. Vazio. A cama arrumada. As luzes acesas. Mas a bolsinha dela estava no tapete e os objetos espalhados ao redor. Tinha entrado no camarote. O homem se escondera atrás da porta. Talvez tivesse aplicado uma cacetada. E depois?
As vigias estavam fechadas. Examinou o banheiro. Nada.
Bond parou no meio do camarote. Seu cérebro estava frio como gelo. O que ele, Bond, teria feito? Antes de matá-la, tê-la-ia interrogado, descoberto o que ela sabia, o que fazia, quem era o homem que a acompanhava. Tê-la-ia levado depois para o camarote em que ele viajava a fim de poder agir sem ser perturbado. Se o encontrassem arrastando-a pelo corredor, bastaria piscar um olho e balançar a cabeça: "Bebeu muita champanha esta noite. Não, não precisa, muito obrigado, eu me arranjo". Mas, qual era o camarote? E havia quanto tempo ele a tinha levado?
Bond consultou o relógio quando ia no corredor. Três horas. Ela devia ter saído da cama dele pouco depois das duas. Devia telefonar para a ponte de comando? Dar alarma? Penosos instantes de explicações, suspeitas, obstáculos. "Meu caro senhor, isto parece incrível!" Tentativas para acalmá-lo. "Claro, senhor, faremos o que estiver ao nosso alcance". O olhar polido do funcionário, para quem tudo não passaria de embriaguez, ciúme e até mesmo de um meio de deter a marcha do navio e ganhar a aposta no Campo Inferior.
O Campo Inferior! Homem ao mar! O navio detido!
Bond fechou a porta de seu camarote e foi direto à Lista de Passageiros.
E por que não? Winter. Ei-lo aqui. A49. O convés de baixo. E então, de repente, o cérebro de Bond funcionou como um computador. Winter. Wint e Kidd. Os dois pistoleiros. Os encapuzados. Outra vez a lista de passageiros.
Kitteridge. No A49 também. O grisalho e o gordo do avião da BOAC na viagem de Londres a Nova York. "Meu grupo sanguíneo é F." A escolta secreta de Tiffany. E a descrição de Leiter. "Chamam-no Goela porque tem medo de viajar". "Um dia vai-se arrepender de não ter extraído aquela verruga". A verruga vermelha na primeira articulação do dedo que segurava o cão da arma apontada para Tingaling Bell. E Tiffany dizendo: "São dois palermas. O gordo está chupando o polegar!" E os dois, no salão de fumar, procurando ganhar dinheiro com a morte que haviam planejado. A mulher atirada ao mar. O alarma anônimo, no caso de passar o corpo despercebido pelo vigia da popa. O navio detido, a volta, a busca nas águas. E mais três mil libras para os bolsos dos assassinos.
Wint e Kidd. Os pistoleiros de Detroit.
Todo o carretel de filmes embaralhados desenovelou-se na mente de Bond no espaço de um segundo, e mesmo enquanto os esquadrinhava, ia ele abrindo a pasta e revolvendo o compartimento secreto à procura do silenciador. Como um autômato, retirou a Beretta do meio de suas coisas no fundo de um gavetão, examinou o pente e ajustou o silenciador à boca da arma. Simultaneamente, pesava as probabilidades e planejava os passos que devia dar.
Pegou a planta do navio que tinha vindo com o bilhete de passagem.
Esparramou-a à sua frente enquanto calçava as meias. A49. Exatamente debaixo de seu camarote. Haveria probabilidade de arrebentar a fechadura com um tiro e pegar os dois homens antes que eles o pegassem? Nenhuma, quase. Sem dúvida tinham fechado a porta com a chave e o trinco. Ou levar consigo alguns membros da tripulação, se pudesse persuadi-los do perigo que Tiffany corria? Enquanto ele tentasse convencê-los, os dois homens a atirariam pela vigia. E, quando, afinal, conseguissem entrar no camarote, Wint e Kidd estariam lendo calmamente ou jogando cartas e berrariam: — Que é que vocês querem aqui?
Bond meteu a arma nos cós das calças e com um violento puxão escancarou uma das duas vigias do camarote. Enfiou por ela os ombros e alegrou-se ao descobrir uma folga de uma ou duas-polegadas. Espichou o pescoço para baixo. Dois círculos mal iluminados, exatamente sob suas vigias. A que distância? Uns oito pés. A noite continuava parada, calma, tranquilizadora, e ele se achava no lado ensombrado do navio. Avistá-lo-iam da ponte volante? Estaria aberta alguma das vigias do A49?
Bond deixou-se cair novamente em seu camarote e arrancou os lençóis da cama. O nó de porco. Seria mais seguro. Mas teria de rasgar os lençóis e emendá-los para obter o comprimento necessário. Se tudo desse certo, teria de trazer alguns lençóis do A49 e deixar o camareiro intrigado com o desaparecimento. Se desse errado, tanto fazia.
Experimentou a "corda" com toda a força. Devia aguentar. Ao amarrar uma extremidade em volta da dobradiça da vigia, deu uma olhada no relógio.
Só doze minutos tinham passado desde que lera o telegrama. Demorara demais? Trincou os dentes, atirou a "corda" pelo costado do navio e introduziu a cabeça.
Não pense em nada. Não olhe para baixo. Não olhe para cima. Não se importe com os nós. Devagar, firme, uma mão, isto, a outra.
A brisa da noite tocava-o de leve e empurrava-o de encontro aos negros rebites de ferro, e lá embaixo soava o gemido cavo do mar. No alto, o vento zunia no cordame, e mais acima, no firmamento, as estrelas dançavam à volta dos mastros.
Os malditos, os bem-amados lençóis resistiriam? A vertigem o venceria?
Seus braços suportariam o peso? Não pense nisso. Não pense no imenso navio, no oceano faminto, nas quádruplas hélices gigantescas aguardando o momento de lhe retalhar o corpo. Você é um menino que está descendo da macieira. É tão fácil e seguro lá no pomar, com o relvado que apara a queda.
Bond expulsou da mente todos esses pensamentos. Olhou para as mãos e sentiu a aspereza da pintura contra os nós dos dedos. Os pés, sensíveis como antenas, tateavam em busca do primeiro contacto com a vigia.
Ali. Os dedos do pé direito haviam tocado o rebordo saliente. É preciso parar. É PRECISO ter paciência e deixar que o pé explore o terreno — a vigia aberta, presa pela grande tranqueta de latão; o contacto de fazenda por cima da meia: as cortinas cerradas. Agora podia continuar. Estava quase terminado.
Mais duas preensões na corda improvisada e o rosto estava à altura da vigia. Podia colocar uma das mãos na borda metálica do caixilho, subtraindo algum peso da alva corda retesada e dando merecido repouso a um braço e depois ao outro, deslocar a carga suportada pelos músculos, reunir as forças para soerguer-se vagarosamente, traspassar-se ao camarote e mergulhar, deitando a mão à arma.
Ficou à escuta, fitando o círculo da cortina balouçante, tentando esquecer que estava pendurado como um pêndulo, a meio costado do Queen Elizabeth, esforçando-se para não ouvir o marulho do oceano, lutando para abrandar a respiração ofegante e as marteladas do coração.
Do interior do cubículo vinha um resmungo indistinto. Depois, uma voz masculina proferiu algumas palavras e uma mulher gritou: — Não!
Seguiu-se um momento de silêncio, e logo uma bofetada. Sonora como um disparo de pistola, e isto lançou o corpo de Bond para o alto e para dentro como se ele tivesse sido arrastado por uma corda.
No momento mesmo em que mergulhava no círculo da vigia, perguntava-se onde iria bater, e instintivamente protegeu a cabeça com o braço esquerdo, enquanto o direito corria para a arma.
Foi cair sobre uma valise debaixo da vigia. Um estabanado salto mortal levou-o ao meio do camarote. Outra vez sobre seus pés, foi recuando, agachado, para o lado das vigias, a tensão branquejando os nós dos dedos da mão que segurava a arma e uma estreita linha branca circundando-lhe a boca cerrada.
Através das pálpebras entreabertas, os olhos cinzentos e gelados moviam-se de um lado para o outro. A arma, negra e cega, voltava-se para um ponto, no centro, entre os dois homens.
— Aqui estamos — disse Bond, erguendo-se vagarosamente.
Era a constatação de um fato. Ele tinha o controle da situação, e a boca de sua arma o confirmava.
— Quem chamou você aqui? — disse o gordo. — Você não entra nesta peça. — Havia na voz reservas latentes. Nada de pânico. Nem mesmo a dose normal de surpresa. — Veio completar a mesa para o jogo de cartas?
Estava sentado, em mangas de camisas, abotoado, de través para a penteadeira, e os olhos miúdos brilhavam na cara molhada. Dante dele, de costas para Bond, Tiffany Case estava sentada num tamborete estofado.
Vestia apenas uma calcinha cor-de-carne e tinha os joelhos presos entre as coxas do homem gordo. Voltara para Bond o rosto pálido entremeado de manchas vermelhas. Os olhos tinham uma expressão de desespero, como os de um animal apanhado numa armadilha, e a boca aberta traduzia incredulidade.
O grisalho jazia numa das camas. Tinha erguido o busto sobre um cotovelo e a outra mão na camisa, a meio caminho da arma guardada no boldrié preto debaixo do sovaco. Olhava para Bond sem demonstrar curiosidade e estampava aquele sorriso quadrado, vazio, da caixa postal. Do centro do sorriso ressaía um palito de madeira, que rompia os dentes fechados como a língua de uma cobra.
A arma de Bond assegurava o espaço neutro entre os dois homens.
Quando ele falou, a voz era baixa e tensa.
— Tiffany — disse Bond lenta e distintamente. — Ajoelhe-se. Afaste-se desse homem. Baixe a cabeça. Vá para o meio do quarto.
Não olhava para ela. Seus olhos continuavam a passear da cadeira para a cama, vigiando os dois homens. Agora ela estava longe dos dois alvos.
— Estou aqui, James.
A voz tremia de esperança e excitação.
— Levante-se e vá para o banheiro. Feche a porta. Entre na banheira e deite-se lá.
Moveu os olhos na direção dela para ver se era obedecido. Ela tinha-se erguido e o contemplava. Bond avistou a marca vermelha de uma mão na pele alva do corpo da moça. Ela obedeceu. Ouviu-se o clique da porta do banheiro ao fechar-se.
Agora ela estava a salvo das balas. E não presenciaria o que tinha de ser feito.
Mediavam umas cinco jardas entre os dois homens, e Bond refletiu que se eles sacassem com bastante rapidez estaria perdido. Com esse tipo de homens, na fração de segundo em que um fosse liquidado, o outro sacaria e dispararia. Conquanto sua arma fosse silenciosa, a ameaça era infinita. Mas, com o clarão da primeira bala a ameaça proviria do outro homem.
— Quarenta e oito, sessenta e cinco, oitenta e seis.
A variante do sinal convencionado do futebol americano —"uma das cinquenta combinações que deviam ter praticado juntos mil vezes — jorrou da boca do gordo. Simultaneamente, ele se atirou ao chão, e a mão foi direta ao cós da calça.
Num giro rápido, o homem que estava na cama puxou as pernas para o lado e para longe de Bond, de modo que seu corpo se reduziu a um alvo estreito, de que só se via a cabeça. A mão que estava sobre o peito se mexeu rápida.
— Paf.
A arma de Bond soltou um único gemido abafado. Um orifício azul abriu-se exatamente abaixo do cocuruto grisalho.
— Pum! — respondeu a pistola do morto, deflagrada pela última crispação do dedo, e a bala foi alojar-se na cama, debaixo do cadáver.
O homem gordo, deitado no soalho, deu um grito. Olhava para cima. na direção daquele olho preto e vazio que não se incomodava com ele, de forma alguma, e que só se interessava em localizar-lhe na pele o centímetro quadrado que abrigaria o próximo projétil.
O revólver de Wint só se tinha elevado até à altura dos joelhos de Bond e apontava em vão por entre suas pernas retesadas para a armação de ferro, pintada de branco, que estava atrás.
— Largue a arma.
O tapete abafou o ruído da queda da arma.
— Levante-se.
O gordo ergueu-se com dificuldade e fitou Bond nos olhos, como um tuberculoso fita seu lenço, em medrosa expectativa.
— Sente-se.
Houve um lampejo de alívio nos olhos submissos? Bond continuou tenso como um gato prestes a atacar.
O gordo voltou-se vagarosamente. Estendeu as mãos acima da cabeça, embora Bond não lhe tivesse exigido isso. Deu dois passos para a cadeira e lentamente virou-se como se fosse sentar-se.
Parou, contemplando Bond, e com naturalidade deixou cair as mãos ao longo do corpo. E as duas mãos, sossegadas, sacudiram-se para trás, a direita mais do que a esquerda. E então, de súbito, no movimento de retorno, o braço direito entesou-se, precipitou-se para a frente e a faca brilhou nas pontas dos dedos como uma chama branca.
— Paf.
A bala silenciosa e a faca muda cruzaram uma pela outra em pleno ar, e os olhos dos dois homens perturbaram-se simultaneamente quando as armas atingiram seus objetivos.
Mas a perturbação nos olhos do homem gordo converteu-se num reviramento do globo ocular quando ele caiu para trás, as mãos agarradas ao peito, enquanto os olhos de Bond pousaram sem curiosidade na mancha que se espalhava em sua camisa e no cabo chato da faca pendurada frouxamente nas dobras do pano.
Produziu-se um estardalhaço quando a cadeira se espatifou sob o peso do homem gordo. Seguiu-se um ruído roufenho e ouviu-se, por último, um baque surdo no soalho.
Bond olhou a cena uma vez e depois voltou-se para a vigia aberta.
Durante algum tempo ficou de costas para o quarto, o olhar fixo nas cortinas que se balançavam molemente. Sorveu o ar e escutou os maravilhosos sons marinhos do exterior, do mundo que ainda lhes pertencia, a ele e a Tiffany, mas não aos outros dois. Pouco a pouco, seu corpo e seus nervos tensos se relaxaram.
Instantes depois, puxou a faca que se lhe enfiara na camisa. Não olhou para ela. Apenas estirou o braço, afastou a cortina para um lado e atirou a faca pela vigia. Em seguida, ainda contemplando a noite quieta lá fora, prendeu o registro de segurança da Beretta e, com um braço que lhe pareceu de repente pesado como chumbo, introduziu de novo a arma no cós das calças.
Com certa relutância, deu meia volta e encarou a desordem reinante no camarote. Com ar pensativo, examinou tudo e, num gesto, inconsciente, enxugou as mãos nos lados das calças. Em seguida, caminhando cautelosamente até o banheiro, disse: "Tiffany, sou eu" numa voz cansada, deprimida, e abriu a porta.
Ela não o ouvira. Continuava deitada de bruços na banheira seca, as mãos sobre as orelhas. E quando ele a ergueu e tomou nos braços, ela ainda não acreditou no que via. Agarrou-se a ele e começou a tocar-lhe o rosto e o busto com as mãos para certificar-se de que era realidade.
Ele se retraiu quando ela lhe apalpou a costela cortada. Então ela afastou-se um pouco, examinou-lhe o rosto, depois o sangue que manchava seus dedos e por fim a camisa escarlate.
— Meu Deus! Você está ferido! — disse ela assustada; e, esquecendo seus pesadelos, arrancou-lhe a camisa, lavou-lhe a costela com água e sabão e amarrou-a com tiras da toalha cortada com a gilete de um dos homens mortos.
Não fez perguntas, nem mesmo quando Bond lhe trouxe as roupas que estavam espalhadas pelo soalho do camarote e lhe disse que não saísse enquanto ele não tivesse terminado de arrumar tudo e de apagar as impressões digitais de todos os objetos que ela havia tocado.
Ela apenas pousava nele os olhos brilhantes. E quando Bond a beijou nos lábios, continuou calada.
Bond deu-lhe um sorriso tranquilizador, saiu e fechou a porta do banheiro atrás de si. Pôs mãos à obra, fazendo cada coisa com grande determinação e parando antes de cada gesto a fim de imaginar o efeito que produziria diante dos olhos e do espírito dos detetives que subiriam a bordo em Southampton.
Primeiro amarrou um cinzeiro à sua camisa ensanguentada para torná-la pesada, aproximou-se da vigia e atirou o pacote o mais longe que pôde. Os smokings dos dois homens estavam pendurados atrás da porta. Tirou os lenços que estavam nos bolsinhos dos paletós, envolveu com eles as mãos e remexeu nos armários e cômodas até encontrar as camisas do grisalho.
Vestiu uma e ficou um momento no centro do camarote, meditando. Depois, cerrou os dentes e levantou o homem gordo até deixá-lo sentado, tirou-lhe a camisa, foi à vigia, sacou a Beretta, encostou a arma no orifício aberto na fazenda pelo tiro anterior e disparou outra bala no mesmo local. Agora havia uma nódoa de fumaça em volta do orifício para dar a impressão de suicídio.
Tornou a vestir a camisa no cadáver, limpou demoradamente a Beretta com o lenço, comprimiu os dedos da mão direita do morto sobre ela e, finalmente, ajustou a arma na mão do gordo, com o indicador no gatilho.
Após outra pausa no meio do quarto, retirou o smoking de Kidd do cabide e vestiu com ele o cadáver. Em seguida, arrastou o corpo até a vigia e, suando com o esforço, levantou-o e jogou-o ao mar.
Limpou as possíveis impressões digitais deixadas na vigia e interrompeu-se outra vez, tomando fôlego e inspecionando o cenário. Foi até a mesa de jogo, encostada à parede e com os objetos espalhados indicando que o jogo não fora concluído, e derrubou tudo, dispersando as cartas pelo tapete. Parou, refletiu mais um pouco, voltou ao cadáver de Wint, retirou-lhe do bolso traseiro da calça o rolo de cédulas e jogou-as entre as cartas.
O quadro era satisfatório, sem dúvida. Haveria o mistério da bala disparada na cama pelo moribundo Kidd, mas isso poderia ter sido parte da luta. Três balas tinham sido detonadas pela Beretta e havia três cartuchos no soalho. Duas das balas poderiam ter-se enterrado no corpo de Kidd que agora estava no Atlântico. Havia os dois lençóis que teria de roubar da segunda cama. A falta deles ficaria inexplicada. Talvez Wint houvesse enrolado neles o corpo de Kidd antes de empurrá-lo pela vigia. Isso se encaixava no remorso e no suicídio de Wint, posterior ao tiroteio motivado pelo desentendimento à mesa do jogo.
De qualquer maneira, refletiu Bond, o quadro se sustentaria até a chegada da polícia ao porto, mas nesse momento ele e Tiffany já estariam fora do navio e bastante longe, e o único vestígio deles no camarote seria a Beretta; e esta, como todas as outras armas pertencentes ao Serviço Secreto, não era numerada.
Soltou um suspiro e encolheu os ombros. Agora, restava apanhar os lençóis, conduzir Tiffany de volta ao seu camarote sem serem vistos, cortar a "corda" que se balançava na vigia, atirá-la ao mar com os pentes restantes da Beretta e o coldre vazio e, por fim, dormir à vontade com o corpo adorado de Tiffany enroscado no seu para sempre.
Para sempre?
Ao atravessar o camarote a caminho do banheiro, Bond encontrou os olhos vazios do cadáver no soalho.
E os olhos do homem cujo Grupo Sanguíneo fora F chamaram-no e lhe disseram:
— Mr. Bond. Nada existe para sempre. Só a morte é permanente. Nada é eterno, exceto o que você fez comigo.
25 - Fecha-se o canal
AGORA NÃO HAVIA escorpião morando nas raízes do frondoso espinheiro erguido na junção dos três Estados africanos. O contrabandista das minas não tinha outra coisa que lhe absorvesse a atenção senão o desfile infindável de um regimento de formigas de correição entre as baixas muralhas que as guerreiras haviam construído em ambos os lados da estradinha de três polegadas.
A noite era quente e úmida, e o homem escondido sob o espinheiro estava impaciente e intranquilo. Era esta a última vez que comparecia ao encontro marcado. Já tinha decidido. Que arranjassem outro, se quisessem.
Naturalmente não iria fazer sujeira com eles. Comunicaria a intenção de deixá-los e lhes daria o motivo: o novo assistente admitido no serviço dentário parecia entender muito pouco de odontologia; decerto era espião: o olhar indagador, o bigodinho amarelo-avermelhado, as unhas bem tratadas.
Pegaram alguém? Tomaram-lhe o depoimento?
O contrabandista trocou de posição. Por onde diabo andava o helicóptero? Apanhou um punhado de terra e atirou-o no meio das formigas.
Elas se atarantaram um pouco, mas com a chegada das últimas fileiras, as que iam na frente se dispersaram pelas muralhas. Então as guerreiras pegaram febrilmente a cavar e transportar a terra, e em poucos minutos a estrada estava outra vez transitável.
O homem tirou o sapato e jogou-o com força sobre o regimento em marcha. Houve outro curto instante de afobação. Depois, as formigas lançaram-se sobre as mortas e as devoraram. O caminho estava novamente desimpedido e o negro rio continuou a fluir.
O homem soltou uma praga em africaans e calçou o sapato. Filhas duma égua. Iam ver uma coisa. Acocorando-se e suspendendo um braço para se proteger contra os espinhos, saiu pisando pela estrada das formigas. Isso lhes serviria de lição.
Ao surgir sob o luar, o homem já tinha esquecido o ódio que dedicava a tudo quanto fosse negro e virou a cabeça para a banda do norte. Graças!
Rodeou o espinheiro para ir buscar as lanternas e o pacote dos diamantes guardados nas caixas de ferramentas.
A uma milha dali, sob a copa de um arbusto, o poderoso ouvido de ferro do detector de som já parará de investigar, e o operador, que vinha transmitindo os dados aos três homens agrupados ao lado do caminhão militar, informou: — Trinta milhas. Velocidade: cento e vinte. Altura: novecentos pés.
Bond consultou o relógio.
— Tudo indica que o encontro está marcado para a meia-noite,_na lua cheia — disse ele. — O nosso homem está uns dez minutos atrasado.
— Parece que o senhor tem razão — concordou o oficial da guarnição de Freetown, a seu lado, e voltou-se para o terceiro homem. — Cabo. Veja se não tem nenhum metal aparecendo na rede de camuflagem. Com este luar, é preciso ter cuidado.
O caminhão estava coberto pelo arbusto, à beira de uma estrada de barro, que atravessava a planície na direção da aldeia de Telebadu, na Guiné Francesa. Naquela noite, haviam deixado as colinas logo que o radiolocalizador captara o barulho da motocicleta do dentista na estrada paralela. Tinham vindo com os faróis apagados e pararam quando cessou o ruído da motocicleta. Haviam estendido a rede de camuflagem sobre o caminhão, o detector de som e o canhão Bofors. E puseram-se a esperar, sem saberem ao certo quem ou o que viria ao encontro do dentista — outra motocicleta, um homem a cavalo, um jipe, um avião?
Ao ouvir no céu o longínquo matraquear, Bond soltou uma gargalhada.
— Helicóptero — disse ele. — Era só o que faltava. Preparem-se para tirar a rede quando pousar. Talvez a gente tenha de dar um tiro de advertência. O detector está ligado?
— Está, sim — respondeu o cabo que operava o aparelho. — O nosso amigo está chegando. Poderão vê-lo num minuto. O senhor está vendo aquelas luzes acolá? Devem ser do campo de pouso.
Bond passeou o olhar pelos quatro feixes de luz e, depois, contemplou o imenso céu africano.
Então aí vinha o último de todos, o derradeiro elemento da quadrilha e também o primeiro. O homem que havia visto ligeiramente em Hatton Garden. O número um da turma de Spang, cuja cotação era tão alta em Washington. O único, excetuando o inofensivo e até simpático Shady Tree, que Bond ainda não fora obrigado a matar ou — pensou no botequim de Spectreville e nos dois homens de Detroit — quase. Não que tivesse desejado matar esses indivíduos. A missão que M lhe confiara fora apenas de investigação. Mas, um a um, eles haviam tentado contra sua vida e a de seus amigos. A violência fora o primeiro, não o último recurso deles.
Violência e crueldade, as armas escolhidas. Os dois homens do Chevrolet em Las Vegas, que tinham disparado contra ele e ferido Ernie Cureo. Os dois sujeitos do Jaguar, que haviam espancado Ernie e tinham sido os primeiros a sacar os revólveres quando começara a luta. Seraffimo Spang, que mandara torturá-lo, disparara contra ele e Tiffany e procurara esmagá-los na estrada de ferro. Wint e Kidd, que haviam supliciado Tingaling Bell, Bond e Tiffany Case. E, dos sete, matara cinco — não porque gostasse de matar, mas porque alguém tinha de fazê-lo. Tivera a seu lado a sorte e três bons amigos, Félix, Ernie e Tiffany. E os malvados tinham perecido.
Agora chegava a último dos malvados, o homem que planejara a sua morte e a de Tiffany, o homem que, segundo M, arquitetara o contrabando dos diamantes, montara o canal de escoamento e o vinha dirigindo com eficiência e mão de ferro através dos anos.
Ao telefone, para Boscombe Down, M falara pouco e com certa aspereza na voz. Usara a linha do Ministério da Aeronáutica, poucos minutos antes que o Canberra decolasse para Freetown. Bond recebera o telefonema do gabinete do comandante da base, tendo nos ouvidos o grito estridente das turbinas do Canberra.
— Satisfeito de tê-lo de volta são e salvo.
— Muito obrigado, senhor.
— Que estória é essa que os vespertinos noticiaram acerca de um duplo homicídio no Queen Elizabeth?
Havia algo mais do que suspeita na voz de M.
— Eram os dois pistoleiros da quadrilha. Viajavam sob os nomes de Winter e Kitteridge. Meu camareiro desconfia que eles se desentenderam quando jogavam baralho.
— Acha que a suposição do camareiro é correta?
— É possível. Houve uma pausa.
— E os policiais também pensam assim?
— Não vi nenhum deles.
— Vou falar com Vallance.
— Ótimo — disse Bond, sabendo que essa era a maneira de M dizer que, caso Bond tivesse liquidado os dois homens, tomaria providências para que o agente e o Serviço Secreto não fossem mencionados no inquérito.
— Bem, de qualquer modo — disse M — aqueles dois eram pouco importantes. Esse Jack Spang, ou Rufus B. Saye ou ABC, ou que nome tenha, esse eu quero que você agarre. Ao que parece, ele vai agora até o extremo do canal. Vai fechá-lo. Talvez matando o que encontrar pela frente. O ponto final é o dentista. Veja se consegue pegar os dois. Faz coisa de uma semana que destaquei 2804 para trabalhar ao lado do dentista. O pessoal de Freetown acha que já se pode agir. Mas eu quero encerrar este caso e ver você de novo em seu verdadeiro posto. Esse negócio foi uma trapalhada dos diabos. Não me agradou desde o princípio. E se, afinal, conseguimos chegar ao ponto em que estamos agora, foi mais uma questão de sorte do que de boa organização.
— Concordo com o senhor — disse Bond.
— E essa moça, Case? — perguntou M. — Conversei com Vallance. Ele não deseja processá-la, a menos que você insista.
Teria M carregado um pouco no tom de indiferença?
Bond procurou evitar uma resposta muito persuasiva.
— Ela foi de grande ajuda — disse ele, esperançoso.
— Talvez a gente possa resolver quando eu apresentar meu relatório final.
— E onde está ela agora?
O negro receptor começava a ficar escorregadio na mão de Bond.
— Está a caminho de Londres, num Daimler de aluguel. Vou colocá-la no meu apartamento. Quero dizer, no quarto vago. É muito boa dona de casa.
Ela se arranjará até que eu volte. É uma boa moça, estou certo disso.
Puxou o lenço do bolso e enxugou o suor do rosto.
— Sem dúvida — disse M. Não havia ironia em sua voz.
— Está bem, então. Boa sorte. — Houve uma pausa. — Tome cuidado.
E... — a voz no outro extremo da linha tornou-se subitamente áspera — não pense que não estou satisfeito com os resultados até agora obtidos. Foram além do programa, naturalmente, mas você parece que topou muito bem a parada desse pessoal. Até logo, James.
— Até logo, senhor.
Bond levantou a vista para o céu recamado de estrelas e pensou em M e Tiffany, esperando que agora fosse mesmo o fim e que fosse rápido e tranquilo, e que logo estivesse em casa.
De pé, empunhando a quarta lanterna, o contrabandista das minas esperava. Lá vinha o helicóptero. Cortando a trajetória da lua. Como sempre, o barulho era infernal. Outro risco de que ia livrar-se.
Baixava lentamente. Agora pairava a uns vinte pés de altura. A mão apontou na janela e piscou A. O homem no chão piscou, em resposta, B e c.
As lâminas do rotor diminuíram a velocidade e, suavemente, o gigantesco inseto de aço pousou no chão.
O pó assentou. O contrabandista retirou a mão dos olhos e ajudou o piloto a descer a escadinha. Usava capacete de voo e óculos de proteção.
Extraordinário. E parecia mais alto do que o alemão. O contrabandista sentiu uma picada na espinha. Quem era esse? Aproximou-se devagar.
— Trouxe?
Dois olhos frios, sob negras sobrancelhas retas, cintilaram por trás dos óculos. Ocultavam-se quando o homem moveu a cabeça e o luar incidiu sobre o vidro. Agora eram dois círculos brancos reluzentes no meio do negro e luzidio capacete de couro.
— Trouxe — disse, nervoso, o homem das minas. — Mas onde está o alemão?
— Não virá mais. — Os dois círculos brancos cegavam o contrabandista.
— Eu sou ABC. Vim fechar o canal.
A voz era americana. Enérgica, seca, inflexível.
— Oh!
Maquinalmente, a mão do contrabandista enfiou-se na abertura da camisa. Apanhou o embrulho úmido e entregou-o ao piloto como se fosse uma oferenda de paz. À semelhança do escorpião, um mês antes, o homem das minas pressentia a pedra erguida sobre sua cabeça.
— Ajude-me a encher o tanque.
Era a voz do feitor dando ordens ao escravo. Mas o contrabandista apressou-se a obedecer.
Fizeram o serviço em silêncio. Ao terminar, voltaram ao chão. O cérebro do contrabandista trabalhava furiosamente. Ele se esforçava por adotar a voz de um associado, a voz de alguém que estivesse a par dos negócios e exercesse a mesma autoridade.
Olhou com atenção para a nesga de treva cor-de-anil onde se achava o piloto com a mão sobre a escada.. — Estive pensando bem e acho que...
A voz estacou de supetão, a boca abriu-se espavorida e deixou escapar um ruído que era uma mescla de rosnado e uivo.
A arma na mão do piloto gaguejou três vezes. O contrabandista emitiu um "Oh" numa voz servil, caiu de costas no chão, fez um esforço para se soerguer e imobilizou-se.
— Fique onde está. — A voz ressoou na planície, transmitida pelo amplificador. — Você está cercado.
Ouviu-se o ruído de um motor que se punha em funcionamento.
O piloto não procurou saber de onde vinha a voz. Pulou para a escada. A porta da carlinga fechou-se com uma pancada e zumbiu o arranque automático. O motor começou a trabalhar, as lâminas do rotor giraram, pouco a pouco foram ganhando velocidade até que se transformaram em dois redemoinhos prateados. Então, com uma sacudidela, o helicóptero elevou-se verticalmente no ar.
Em terra, entre os arbustos, o caminhão freou e Bond saltou para a sela de aço do Bofors.
— Pra cima, cabo — gritou ele para o homem que manobrava a alavanca de suspensão. Baixou os olhos para a alça de mira quando a boca da arma se ergueu para a lua. Com a mão, puxou a alavanca do seletor de fogo, tirando-a da marca de segurança e colocando-a em "Fogo". — Esquerda, dez.
— Eu alimentarei.
O oficial ao lado de Bond tinha nas mãos dois depósitos de obuses pintados de amarelo.
Os pés de Bond firmaram-se nos pedais do gatilho. O helicóptero estava no centro da alça de mira.
— Firme — disse ele calmamente.
— Bumpa.
O obus reluzente rodou no alto a uma velocidade apenas menor do que a do som. Baixo e à esquerda. O cabo girou delicadamente as duas alavancas.
— Bumpa.
O obus deu a volta por cima do helicóptero. Bond inclinou-se para a frente e puxou a alavanca do seletor para "Fogo Automático". A mão relutava. Agora a morte era inevitável. Mais uma vez ele tinha de tomar essa decisão.
— Bumpa... bumpa... bumpa... bumpa... bumpa... O fogo vermelho espargiu-se no céu. O helicóptero continuou a avançar para a lua e depois rumou para o norte.
— Bumpa... bumpa...
Houve um espocar de luz amarela perto do rotor da cauda e um estrondo de explosão distante.
— Acertou — disse o oficial, pegando o binóculo. — O rotor da cauda está perdido — disse ele. E logo, agitado: — Puxa! Parece que toda a cabina está girando com o rotor principal! O piloto está atolado.
— Mais algum? — perguntou Bond, mantendo na mira o helicóptero em chamas.
— Não, senhor — disse o oficial. — Seria bom se conseguíssemos pegá-
lo vivo. Mas parece... é, sim, já perdeu o controle. Vem caindo de ponta.
Deve haver alguma coisa com as lâminas do rotor principal. Lá vem ele.
Bond levantou a vista e resguardou os olhos contra a claridade intensa.
— Sim. Lá vem ele. A cem pés, o motor ribombando e as hélices girando inutilmente enquanto a embrulhada metálica despencava do céu em cambaleios e guinadas de ébrio.
Jack Spang. O homem que ordenara o assassínio de Bond. Que ordenara o assassínio de Tiffany. O homem que Bond vira apenas uma vez, durante alguns minutos, numa sala superaquecida em Hatton Garden. Mr. Rufus B.
Saye. Da House oi Diamonds. Vice-Presidente para a Europa. O homem que jogava golfe em Sunningdale e visitava Paris uma vez por mês. "Cidadão exemplar", M dissera dele. Mr. Spang, da quadrilha de Spang, que acabara de matar um homem — o último de quantos?
Bond imaginava a cena dentro da estreita carlinga. O homem dirigindo com uma das mãos e com a outra mexendo desesperadamente nos controles, enquanto observava a agulha do altímetro baixar vertiginosamente. Nos olhos, o rubro clarão do terror. As centenas de milhares de libras esterlinas em diamantes reduzidas a peso morto. A arma, que desde a infância, fora um poderoso braço direito, agora inútil.
— Vai pra cima do espinheiro — bradou o cabo acima da barulheira.
— Está perdido — disse o capitão, a meia voz.
Contemplaram as últimas guinadas; depois, suspenderam a respiração quando o aparelho, num bamboleio desenfreado, empinou o nariz e, como se o espinheiro fosse seu inimigo, deu um mergulho irado, descrevendo uma curva de vinte jardas, e arremessou-se com os rotores desgovernados contra os espinhos.
Antes de se extinguirem os ecos da colisão, ouviu-se um ribombo cavo e uma bola de fogo, projetada no ar, ofuscou o clarão da lua e banhou a planície inteira num fulgor alaranjado.
O capitão foi o primeiro a falar.
— Opa! — exclamou, tirando o binóculo e voltando-se para Bond. — Bem — disse ele, resignado — nada a fazer. Acho que só quando amanhecer a gente vai poder se aproximar. E só com o dia alto é que se poderá revolver os destroços. Mas pode esperar que daqui a pouco os soldados franceses da fronteira estarão aqui. Felizmente estamos em boas relações com eles. O governo é que passará um bocado de tempo discutindo com Dakar. — O oficial previa as idas e vindas da papelada e sentia-se ainda mais exausto.
Homem prosaico, achava que o dia já lhe trouxera boa dose de canseiras. — O senhor se incomoda se a gente tirar uma pestana?
— À vontade — disse Bond, e consultou o relógio. — É melhor irem pra debaixo do caminhão. Eu mesmo não estou com sono. Vou ficar de olho.
Pode ser que o fogo ameace se alastrar.
O oficial lançou um olhar inquiridor a esse homem calmo e enigmático, que chegara de repente ao Protetorado no meio de uma enxurrada de recomendações de "Prioridade Absoluta". Se a gente nunca precisasse dormir... Bom, isso nada tinha que ver com Freetown. Era coisa de Londres.
— Muito obrigado, então — disse o oficial e jogou-se debaixo do caminhão.
Bond retirou vagarosamente os pés dos pedais do gatilho e reclinou-se no encosto da sela de aço. Maquinalmente, com os olhos pousados ainda nas chamas saltitantes, enfiou as mãos nos bolsos do desbotado blusão caqui, que lhe haviam arranjado na base, puxou um cigarro, acendeu-o e tornou a guardar a cigarreira e o isqueiro.
Aí estava o fim do contrabando de diamantes. A última página da estória. Deu uma tragada e expeliu a fumaça com um suspiro longo e calmo.
Seis cadáveres a zero. Vitória folgada.
Ergueu a mão e limpou a testa suada. Atirou para trás a mecha de cabelo que lhe caía por cima da sobrancelha direita, e o clarão vermelho iluminou-lhe o rosto duro e magro e cintilou nos olhos cansados.
Esse imenso e rubro ponto final assinalava o desmoronamento da Quadrilha de Spang e o término do fabuloso contrabando de diamantes. Não o fim dos diamantes que se tostavam do interior do braseiro. Eles sobreviveriam e outra vez iriam percorrer o mundo. Descoloridos, talvez, mas indestrutíveis, tão permanentes como a morte.
E Bond recordou, instantaneamente, os olhos do cadáver cujo sangue havia pertencido ao grupo F. Tinham-se enganado. A morte é eterna. Mas os diamantes também são eternos.
Bond desceu do caminhão e pôs-se a andar lentamente em direção à fogueira crepitante. Levava um sorriso sombrio nos lábios. Toda essa estória acerca de morte e diamantes era demasiado solene. Para Bond, era apenas o fim de outra aventura. Outra aventura que bem podia ter por epitáfio as palavras de Tiffany Case. E reviu a boca ardente e irônica que lhe dizia: — Contada é uma coisa, vivida é outra.
20 - Chamas que saem do alto
O UNIFORME PRETO de homem-rã estava muito apertado. Doía no corpo todo. Por que cargas d'água Strangways não tinha se certificado de que o Almirantado tinha suas medidas corretas? E era muito escuro no fundo do mar, as correntes eram muito fortes, arrastavam-no para o banco de coral.
Era preciso nadar com todo o ímpeto para afastar-se dali. Mas agora algo lhe prendia o braço. Que diabo...?
— James! Pelo amor de Deus, James! — Ela apertou a boca ao ouvido dele. Desta vez ela beliscou-lhe o braço nu e ensanguentado com tanta força que, afinal, os olhos de Bond se abriram entre as pálpebras inchadas, e ele a contemplou do piso de madeira em que estava deitado e deu um suspiro de sobressalto.
Ela puxou-o para si, com medo que ele lhe escapasse outra vez. Ele pareceu entender e se revolveu, erguendo-se sobre as mãos e os joelhos, a cabeça pendida para o chão, como um animal ferido.
— Pode andar?
— Espere. — O murmúrio espesso que lhe atravessou os lábios arrebentados soou-lhe estranho aos ouvidos. Talvez ela não tivesse compreendido. — Espere — repetiu ele, enquanto sua mente passava a explorar o corpo para ver o que lhe tinha sobrado. Podia sentir os pés e as mãos. Podia mover a cabeça de um lado para outro. Podia ver as barras do luar nas pranchas de madeira. Pudera ouvir a moça. Devia estar inteiro, mas não queria mover-se. Sua força de vontade o tinha abandonado. Apenas desejava dormir. Ou talvez mesmo morrer. Qualquer coisa, contanto que mitigasse a dor que lhe avassalava o corpo todo, apunhalando-o, martelando-o, triturando-o — e matasse a lembrança das quatro botinas que o haviam golpeado e dos rosnados proferidos pelos dois vultos encapuzados.
Assim que pensou nos dois homens e em Mr. Spang, a vontade de viver retornou.
— Está bem — disse, e tornou a dizer para que ela compreendesse.
— Estamos na sala de espera — sussurrou a moça. — Temos de chegar ao extremo da estação. À esquerda, depois da porta. Está me ouvindo, James?
Ela estirou a mão e afagou-lhe os cabelos úmidos, viscosos, caídos na testa.
— Tenho de me arrastar — disse Bond. — Atrás de você.
A moça ergueu-se e abriu a porta. Bond trincou os dentes e saiu de rastros para a plataforma enluarada. E quando avistou a mancha escura no chão, a raiva e o desejo de vingança deram-lhe forças para se levantar.
Balançando a cabeça para não se afogar nas ondas negro-avermelhadas e amparado em Tiffany Case, cujo braço lhe envolvia a cintura, foi coxeando pelas tábuas até a rampa por onde desceram para o chão junto dos trilhos reluzentes.
E lá, no desvio, havia um vagonete.
Bond parou e olhou-o atentamente.
— Gasolina? — perguntou com ar vago.
Tiffany Case fez um gesto para uma fileira de latas encostadas no muro da estação. — Está cheio — sussurrou. — É usado na inspeção da linha. Eu sei colocá-lo em funcionamento. Já desloquei as agulhas. Depressa. Suba — soltou uma risadinha abafada. — Próxima parada: Rhyolite.
— Isso é que é uma garota — murmurou Bond. — Mas vai fazer um barulho danado quando esse troço começar a funcionar. Espere. Tenho uma ideia. Tem fósforos?
Metade da dor tinha desaparecido. Respirava forte quando deu as costas à moça e observou as silenciosas casas de madeira.
Ela estava usando calças compridas e blusa. Enfiou a mão no bolso das calças e entregou-lhe o isqueiro.
— O que é que vai fazer? — perguntou. — Já devíamos ter partido.
Mas Bond manquejou até as latas de gasolina e pôs-se a destampá-las e a arremessar o líquido sobre as paredes e a plataforma de madeira. Depois de esvaziar meia dúzia de latas, voltou para onde ela estava. — Ligue a bicha.
— Curvou-se com esforço e apanhou um jornal amassado ao lado dos trilhos. Ressoou o gemido raivoso do arranque automático, o motor de dois tempos pegou e começou a martelar.
Bond acendeu o isqueiro. O papel pegou fogo e Bond jogou-o entre as latas de gasolina. O espocar das labaredas quase o alcançou quando ele se lançou de costas ao estribo do vagonete. Mas então a. moça soltou a embreagem e o carro começou a deslizar pelos trilhos.
Houve um matracolejar e um sacolejo desagradável ao chegarem às agulhas; e depois, entrados na linha> principal, o velocímetro tremia marcando trinta milhas e os cabelos da moça flutuavam à frente de Bond como uma bandeira.
Bond voltou-se e contemplou a gigantesca floração de chamas que ia ficando para trás. Podia quase ouvir o crepitar das pranchas secas e os berros dos que despertavam. Se pelo menos o fogo pegasse Wint e Kidd, apanhasse a pintura do Pullman e se alastrasse pela lenha do tender do Cannonball e acabasse de uma vez com a caixa de brinquedos de Mr. Spang!
Mas ele e a moça tinham seus próprios problemas. Que horas eram?
Bond aspirou o ar fresco da noite e tentou colocar de novo a mente para trabalhar. A lua estava baixa. Quatro horas? Bond avançou com dificuldade pelo estribo até os dois assentos de encosto dobradiço e conseguiu sentar-se ao lado da moça.
Passou-lhe um braço em volta dos ombros, e ela voltou-se com um sorriso nos lábios. Levantando a voz acima do barulho da máquina e do matracolejar das rodas de ferro sobre os trilhos, ela falou: — Foi uma escapada e tanto. Parecia coisa de filme de Buster Keaton.
Como se sente? — Inspecionou o rosto combalido. — Você está massacrado, hein?
— Nenhuma fratura — disse Bond. — Acho que é isso que se entende por oitenta por cento. — Fez uma careta de dor. — É melhor ser tratado a pontapé do que a bala.
O rosto de Tiffany Case contraiu-se.
— E eu tive de ficar sentada lá e fingir que não ligava. Spang, ao meu lado, escutava e me observava. Depois, eles viram que você já estava nas últimas, atiraram você na sala de espera e todo mundo foi para a cama satisfeito da vida. Esperei uma hora em meu quarto e então resolvi agir. O
pior de tudo foi tentar despertar você.
Bond apertou-lhe os ombros com o braço.
— Direi o que penso de você quando estiver menos contundido. Mas, e você, Tiffany? Vai ficar em maus lençóis se eles nos pegarem. E quem são os dois encapuzados, Wint e Kidd? O que é que eles vão fazer agora?
Gostaria de vê-los de novo.
A moça olhou de viés para a feia equimose na boca de Bond.
— Nunca os vi sem os capuzes — confessou ela. — Suponho que eles são de Detroit. Pistoleiros. Encarregam-se dos trabalhos violentos e de missões especiais secretas. Virão em nosso encalço. Mas não se preocupe comigo. — Encarou-o de novo e seus olhos irradiavam felicidade. — A primeira coisa a fazer é levar essa joça a Rhyolite. Depois teremos de achar um carro e cruzar a fronteira com a Califórnia. Dinheiro não vai faltar-. Eu trouxe. Depois iremos a um médico, arranjaremos um banho e uma camisa nova pra você e pensaremos no que vamos fazer. Trouxe seu revólver. Foi encontrado por um dos rapazes que ajudaram a recolher os restos daqueles dois sujeitos que você arrasou no botequim. Apanhei a arma depois que Spang foi para a cama.
Ela desabotoou a blusa e enfiou a mão no cós das calças.
Bond recebeu a Beretta, e sentiu a quentura do corpo da moça no metal.
Removeu o pente. Sobravam três cartuchos, e um estava na agulha.
Recolocou o pente, fechou o registro de segurança e guardou a arma na cintura. Só então notou que estava sem paletó. Uma das mangas da camisa fora reduzida a um trapo. Arrancou-a e jogou-a fora. Apalpou o bolso traseiro direito da calça, à procura da cigarreira e não a encontrou. Mas no esquerdo estavam ainda o passaporte e a carteira de cédulas. Puxou-os do bolso. À luz da lua pôde ver que ambos estavam danificados. O dinheiro continuava na carteira. Pôs outra vez os objetos no bolso.
Durante algum tempo avançaram pela estrada. O silêncio da noite era cortado apenas pelo ronrom da máquina e pelo matraquear das rodas. Até onde a vista alcançava, havia somente uma interrupção da estreita linha prateada dos trilhos, assinalada pela alavanca de manobra das agulhas, no ponto em que um ramal enferrujado penetrava na massa escura dos montes Spectre à direita. À esquerda, descortinava-se o infindável chão do deserto em que o lampejo da aurora começava a debruar de azul as moitas de cactos contorcidos e, duas milhas além, o luar esparramava seu clarão cinza-chumbo sobre a Rodovia 95.
O vagonete cantarolava feliz nos trilhos. Os instrumentos de controle eram poucos: uma alavanca de freio e uma espécie de manche com um acelerador de cabo retorcido que a moça mantinha completamente aberto, com o velocímetro firme em trinta milhas. As milhas e os minutos passavam e, de vez em quando, Bond virava-se com dificuldade na cadeira e inspecionava o florescente rubor do céu às suas costas.
Fazia cerca de uma hora que tinham partido quando um leve zumbido, vibrando no ar ou nos trilhos, pôs Bond de sobreaviso. Novamente ele olhou por cima do ombro. Haveria um vago bruxoleio entre eles e o falso alvorecer da cidade em chamas?
Bond sentiu leve comichão no couro cabeludo.
— Veja se enxerga alguma coisa ali atrás.
A moça voltou-se. Depois, sem responder, diminuiu a marcha do carro que passou a deslizar suavemente.
Puseram-se à escuta. Sim. Era nos trilhos. Uma leve trepidação, nada mais do que um suspiro distante.
— É o Cannonball — disse Tiffany, categórica.
Deu um brusco repelão no acelerador, e o vagonete tornou a ganhar velocidade.
— Quanto pode fazer a locomotiva? — perguntou Bond.
— Talvez sessenta.
— E daqui pra Rhyolite?
— Trinta, mais ou menos.
Bond fez as contas em silêncio.
— Vai ser por um triz. Não é fácil dizer a que distância ela está de nós. E
esse treco pode dar mais alguma coisa?
— Que nada! — disse ela, — Nem que eu me chamasse Casey Jones em vez de Tiffany Case.
— Não tem importância — disse Bond. — Toca pra frente. Talvez ela vá prós ares com uma explosão.
— Ah, sim — disse ela. — Ou talvez a mola dê o prego, ou Spang se lembre que deixou a chave do motor em casa, no bolso da calça.
Viajaram mais quinze minutos em silêncio. Então, Bond divisou o grande farol da locomotiva varando a noite, a umas cinco milhas de distância, e as centelhas subindo pela chaminé. Os trilhos trepidavam e o que tinha sido um suspiro longínquo era agora um murmúrio baixo, ameaçador.
Talvez venha a faltar lenha, pensou Bond. Num impulso, ele perguntou despreocupadamente à moça:
— Será que temos bastante gasolina?
— Temos, sim — disse Tiffany. — Botei uma lata inteira. Não tem mostrador, mas esses motorzinhos giram a vida inteira com um galão.
Mal ela havia acabado de falar, e como se fizesse um comentário, o motorzinho deu uma tossidela de reprovação — cóf-cóf-cóf — e continuou a rodar alegremente.
— Ai, meu Deus! — exclamou Tiffany. — Ouviu isso? Bond ficou calado. Sentiu as mãos tornarem-se úmidas. Outra vez: cóf-cóf-cóf.
Tiffany Case acalentou delicadamente o acelerador.
— Ah, motorzinho querido — disse ela em tom de súplica. —' Vamos, motorzinho lindo, seja bonzinho, por favor...
— Cóf-cóf. Cóf-cóf. Chi. Cóf. Chiiiii...
E no instante seguinte estavam eles escorregando brandamente em silêncio. Vinte e cinco, dizia o velocímetro. Vinte... quinze... dez... cinco.
Um último e selvagem repelão no acelerador, um pontapé de Tiffany Case na armação do motor, e tinham parado.
— Porra! — disse Bond. Com esforço conseguiu saltar e manquejar até o tanque na traseira do vagonete. Tirou do bolso da calça o lenço ensanguentado, desatarraxou a tampa do funil e introduziu o lenço até tocar o fundo do tanque. Puxou-o para fora, apalpou-o e cheirou-o. Seco como um osso.
— Nada feito — disse ele para Tiffany. — Vamos pensar numa saída.
Olhou em volta. Nenhum abrigo à esquerda, e duas milhas pelo menos até à estrada de rodagem. À direita, as montanhas, talvez a um quarto de milha. Podiam chegar lá e esconder-se. Mas por quanto tempo? Contudo, era o melhor alvitre. O chão, sob seus pés, tremia. Esquadrinhou a linha férrea iluminada pelo olho incandescente, implacável. A que distância? Duas milhas? Spang enxergaria o vagonete? Teria tempo de parar? Haveria descarrilamento? Mas aí Bond lembrou-se do poderoso limpa-trilhos, que varreria da linha o vagonete como se fosse um feixe de palha.
— Vamos, Tiffany — bradou ele. — Temos de escalar as colinas.
Onde estava ela? Bond rodeou o carro. Ela vinha correndo pelo trecho da estrada que tinham pela frente. Aproximou-se arquejante.
— Há um desvio logo ali adiante — disse ela entre um ofego e outro. — Se a gente puder empurrar essa coisa até lá e se você puder manobrar as velhas agulhas, pode ser que a gente escape.
— Deus do céu! — disse Bond lentamente. E depois, com uma nota de pasmo na voz, acrescentou: — Há uma coisa melhor do que essa. Me ajude aqui — e, curvando-se, rilhou os dentes contra a dor e começou a empurrar o vagonete.
Recebido o impulso inicial, o carro moveu-se facilmente e eles precisavam apenas segui-lo e não deixar que parasse. Chegaram às agulhas, mas Bond continuou a empurrar até que pararam umas vinte jardas além.
— Que diabo é que você vai fazer? — arquejou Tiffany.
— Vamos pra cá — respondeu Bond, correndo aos tropeções para o ponto em que a chave enferrujada ressaltava ao lado dos trilhos. — Vamos colocar o Cannonball no desvio.
— Genial! — disse Tiffany Case com admiração. Puseram mãos à obra, e os músculos doloridos de Bond forcejavam por erguer a chave.
Lentamente o metal enferrujado começou a mover-se no leito onde jazia imóvel havia cinquenta anos, e milímetro a milímetro os trilhos mostraram uma fenda, que foi se alargando à medida que Bond puxava a alavanca.
Ao terminar, Bond caiu de joelhos no chão, com a cabeça dobrada para baixo, lutando contra a tontura que ameaçava dominá-lo.
Mas já então um feixe de luz iluminava o chão e Tiffany procurava arrastá-lo. Bond ergueu-se e voltou aos trambolhões para o vagonete. O ar estrondava e se enchia do plangente clangor do sino enquanto o flamejante cavalo de ferro galopava em direção a eles.
— Abaixe-se e não se mexa — bradou Bond por cima do barulho e lançou-a ao chão por trás do frágil biombo do vagonete. Depois, coxeou o mais rápido que pôde até a margem dos trilhos, puxou a arma, colocando-se de viés com o braço levantado como um duelista e voltou os olhos semicerrados para o gigantesco farol que avançava debaixo do vulcão de fogo e fumaça turbilhonantes.
Puxa, que monstro! Entraria ele na curva? Ou não respeitaria o desvio e os esmagaria? Lá vinha ele.
— Fittt.
Algo açoitou o chão ao lado de Bond e houve um clarão momentâneo na cabina.
— P-o-e-m-m-m.
Houve outro clarão, e a bala atingiu o trilho, gemendo na noite.
— Trac. Trac. Trac.
Agora era-lhe possível ouvir o revólver acima do trovejar da locomotiva.
Algo cantou em tom agudo no ouvido de Bond.
Bond não respondeu. Só quatro balas, e ele sabia quando devia disparar.
E então, a vinte jardas, a locomotiva entrou na curva e desembestou pelo desvio com uma guinada tão violenta que atirou as achas de lenha do alto do tender na direção de Bond.
Houve um grito roufenho de metal quando as bordas das rodas motrizes de seis pés de altura dobraram a curva, uma breve impressão de fumaça, chama e ruído de motor, e, depois, uma rápida visão da cabina e do vulto negro e prateado de Spang, de braços abertos e pernas estendidas, agarrando-se com uma das mãos ao costado da cabina e com a outra precipitando-se para a alavanca do acelerador.
A arma de Bond bradou suas quatro palavras. Houve um curto vislumbre de uma cara branca arremessada para o alto, e logo a enorme locomotiva preta e amarela distanciou-se, reboando rumo à muralha sombria dos montes Spectre, o feixe de luz do farol ceifando a treva e o sino dobrando tristemente dim-dão, dim-dão, dim-dão.
Bond guardou lentamente a Beretta no cós das calças, e ficou olhando o ataúde de Mr. Spang, enquanto a esteira de fumaça subia no ar e por um momento encobria a face da lua.
Tiffany veio correndo até onde ele estava, e lado a lado puseram-se a contemplar a bandeira de chamas que se elevava da alta chaminé e escutar as montanhas multiplicarem o atroar da locomotiva. A moça agarrou-lhe os braços quando o comboio deu uma guinada repentina e sumiu-se atrás de um esporão da pedra. E agora ouvia-se apenas um longínquo tamborilar nas montanhas e avistava-se um clarão vermelho que fazia tremular os penhascos enquanto Cannonball despencava no bojo da rocha.
E subitamente apareceu uma imensa língua de fogo, no mesmo instante em que se produziu tremendo choque metálico semelhante ao encontrão de um encouraçado num penedo. Debaixo de seus pés ressoou um estrépito abafado. Finalmente, um ribombo distante e profundo levantou-se das entranhas da terra, seguido por uma barragem de ecos os mais variados.
Então, findos todos os ruídos, zuniu, firme, o silêncio.
Bond soltou um suspiro profundo como se estivesse despertando. Aí estava o fim de um dos Spangs, de um dos enfatuados, cruéis, aparatosos, irrecuperáveis adultos que compunham a quadrilha dos Spangs. Fora um gangster teatral e vivera num ambiente de caixa de palco. Mas isso não alterava o fato de que pretendera liquidar Bond.
— Vamos embora daqui — disse Tiffany Case com sofre-guidão. — Para mim chega de Spectreville.
Bond sentiu a dor insinuar-se-lhe outra vez por todo o corpo à medida que passava a tensão. "Vamos" — respondeu, lacônico. Alegrava-o a ideia de voltar as costas à lembrança daquele rosto branco virado para cima, dentro da bela locomotiva negra em marcha. Estava ligeiramente tonto e duvidava se seria capaz de fazer o percurso.
— Temos de alcançar a estrada. Vai ser difícil. Mas vamos embora.
Levaram uma hora e meia para vencer as duas milhas e, no momento em que se prostrou no solo à margem da estrada de cimento, Bond estava delirante. Foi a moça que o conduziu até lá. Sem ela, ele não teria chegado.
Teria tropeçado no meio dos cactos, das pedras e da mica até que lhe faltassem as forças e o sol causticante se encarregasse de completar o serviço.
Agora ela lhe segurava a cabeça no regaço, falava-lhe docemente e lhe enxugava o suor da testa com a ponta da blusa.
E de vez em quando parava para examinar uma banda e outra da estrada retilínea de concreto, cujos horizontes já tremeluziam nas ondas de calor do amanhecer.
Uma hora depois, ela ergueu-se de um salto, enfiou a blusa por dentro das calças, correu e parou no meio da estrada. Um carro baixo e negro rompia a neblina esvoaçante que ocultava o distante vale de Las Vegas.
O carro estacou justamente diante dela. Um rosto adunco sob um topete desalinhado de cabelo cor de palha assomou à janela. Os penetrantes olhos cinzentos miraram-na de alto a baixo. Pousaram-se na figura do homem deitado no solo à margem da estrada e tornaram para a moça.
Então, com a amistosa fala arrastada dos texanos, o chofer rompeu o silêncio:
— Félix Leiter, senhorita. Às suas ordens. Em que posso servi-la nesta magnífica manhã?
21 - "Nada é tão apropinquante como a propinquidade"
—...E QUANDO CHEGUEI à cidade telefonei pra meu amigo Ernie Cureo. James sabe quem é. A mulher dele estava de ataque e Ernie no hospital. Corro pra lá e ele me passa o serviço e eu imagino que James pode precisar de reforços. Monto na minha égua preta cor de carvão e vou esquipando noite adentro e quando chego perto de Spectreville vejo o clarão no céu. Calculo então que Mr. Spang está preparando um churrasco. O
portão da cerca está aberto e eu resolvo tomar parte na festa. Bom, creiam-me vocês ou não, o fato é que não há vivalma no local, exceto um cara de perna arrebentada e contusões generalizadas, que vem se arrastando pela estrada, tentando dar o pira. E ele me dá a impressão de ser um arruaceiro de nome Frasso, de Detroit. Ernie Cureo tinha dito que era um dos caras que tinham levado James. Ele não estava em condições de negar isso e eu então manjei a situação toda e compreendi que Rhyolite era minha próxima parada. Aí eu digo pro nosso amigo que daí a pouco os bombeiros virão fazer companhia a ele, levo-o até o portão e deixo-o lá. E de uma hora para outra vejo uma guria no meio do deserto, com o ar de quem tinha sido disparada de um canhão. E aqui estamos todos. Agora é a vez de vocês contarem.
"Então tudo isto não é parte de um sonho e eu estou deitado no assento traseiro no Studillac e este é o colo de Tiffany debaixo da minha cabeça e aquele ali é Félix e nós estamos indo às carreiras pela estrada a caminho da segurança, de um médico, de um banho, de comida, de bebida e de um longo sono reparador." Bond mexeu-se e sentiu que a mão de Tiffany em seu cabelo dizia que tudo era real e tal como havia esperado. Imobilizou-se novamente e nada disse. Guardava cada momento para si e lhes escutava as vozes e o zunido dos pneus rolando pela estrada.
Ao fim da narrativa de Tiffany, Félix Leiter largou um assobio de estupefação.
— Puxa! — exclamou ele. — Então vocês dois abriram um rombo espetacular na quadrilha de Spang. Que diabo é que vai acontecer agora? Há muitos outros marimbondos na casa e isso de ficar zumbindo em volta não é do feitio deles. Eles vão exigir ação.
— Certo! — disse Tiffany. — Spang era membro da associação de Las Vegas, e esses camaradas são muito solidários. Há também Shady Tree e aqueles dois pistoleiros, Wint e Kidd. Só o diabo sabe quem são eles. Quanto mais cedo a gente cruzar a fronteira estadual, melhor. E depois, o que vamos fazer?
— Até aqui vai tudo em ordem — disse Félix Leiter. — Em dez minutos chegaremos a Beatty, depois pegaremos a 58 e passaremos nela uma meia hora. Em seguida, toparemos um longo trecho através do Vale da Morte e sobre as montanhas até Olancha, onde atingiremos a N.° 6. Poderíamos dar uma paradinha lá, levar James a um médico, comer alguma coisa e tomar um banho. Depois continuaremos na 6 até chegarmos a Los Angeles. Será muito puxado, mas poderemos estar em Los Angeles na hora do almoço. Aí podemos descansar um pouco e bolar algum plano. Meu palpite é que temos de tirar você e James do país o mais cedo possível. Os meninos tentarão pegar vocês dois de qualquer jeito, e se conseguirem eu não darei um níquel pela vida de nenhum dos dois. A melhor solução seria botá-los num avião para Nova York hoje de noite e despachá-los amanhã para a Inglaterra.
James pode embarcar lá.
— Acho que é razoável — disse a moça. — Mas, afinal, quem é esse Bond? O que é que ele faz? É um detetive ou coisa semelhante?
— Acho melhor que você mesma pergunte a ele — Bond ouviu Leiter dizer cautelosamente. — Mas eu, se fosse você, não me preocuparia com isso. Ele cuidará de você.
Bond sorriu para si mesmo e, no longo silêncio que se seguiu, caiu num sono intranquilo que durou até o momento em que atravessaram a Califórnia e o carro parou defronte de um portãozinho com a placa "Otis Fairplay, Médico".
E depois, enfaixado e pintado com mercúrio-cromo, banhado e barbeado, com um suculento café matinal no estômago, Bond voltou ao carro e ao mundo. Tiffany readquirira o velho ar irônico e intratável e Bond revelava-se útil na espionagem dos patrulheiros rodoviários, enquanto Leiter avançava a oitenta milhas pela interminável estrada estonteante, rumo à longínqua linha de nuvens que escondiam as High Sierras.
Mais tarde rolavam tranquilamente ao longo de Sunset Boulevard, ladeado pelas palmeiras e pelos gramados verdejantes. O Studillac coberto de poeira destoava no meio das cintilantes Corvettes e Jaguars. Finalmente, ao anoitecer, estavam sentados no bar escuro e refrigerado do Beverly Hills Hotel. Havia novas maletas no saguão, roupas novas adquiridas em Hollywood, e até mesmo o rosto de Bond, marcado de cicatrizes da luta, poderiam indicar que tinham terminado o trabalho nos estúdios.
Havia um telefone em cima da mesa, ao lado dos martinis. Félix Leiter acabava de falar com Nova York pela quarta vez desde que haviam chegado.
— Bom, está tudo arranjado — disse ele, desligando o telefone. — Meus colegas do escritório conseguiram passagens no Elizabeth. Adiou a partida por causa de uma greve nas docas. Sai amanhã de noite, às oito. Eles.irão ao encontro de vocês de manhã em La Guardiã, com as passagens, e vocês serão levados para bordo de tarde. Pegaram o resto de suas coisas no Astor, James. Uma pasta e os teus célebres tacos de golfe. E Washington oferece um passaporte a Tiffany. Haverá um homem do Departamento de Estado no aeroporto. Vocês terão que assinar uns formulários. Consegui que um dos meus antigos colegas da CIA arranjasse a coisa. Os vespertinos fizeram uni bruto estardalhaço com a estória. "Cidade Morta Desaparece" e outras manchetes desse tipo. Mas parece que ainda não descobriram nosso amigo Spang e os nomes de vocês não figuram no noticiário. Meu pessoal diz que não há nada com vocês na polícia, mas um de nossos informantes secretos diz que as quadrilhas estão à procura de vocês e espalharam por toda parte uma descrição de ambos. Com a promessa de dez mil. Assim, é melhor mesmo dar no pé o mais cedo possível. É aconselhável irem para bordo separadamente. Tomem o maior cuidado, vão para os camarotes e não saiam de lá. Vai haver o diabo quando eles chegarem ao fundo daquela velha mina.
Isso fará pelo menos três cadáveres a zero, e esse tipo de escore não é do agrado deles.
— Pinkerton é uma verdadeira máquina — disse Bond, com admiração.
— Mas ficarei satisfeito quando estivermos longe daqui. Eu pensava que os seus gangsters eram um bando de italianos untuosos, que se empanturravam de pizza e cerveja a semana toda e no sábado assaltavam uma garagem ou uma farmácia para arranjarem dinheiro para as corridas. Mas não há dúvida que eles incluem um bocado de violência na folha de pagamentos.
Tiffany Case riu zombeteiramente.
— Você precisa mandar examinar essa cabeça — disse ela, categórica.
— Se sairmos inteirinhos do Lizzie será um verdadeiro milagre. Por aí você pode ter uma ideia de como eles são. Se não fosse aqui o nosso Capitão Gancho-de-Aço, não sei o que seria de nós. Untuosos! Pois sim!
Félix Leiter soltou uma risadinha.
— Calma, pombinhos — disse ele, consultando o relógio. — Temos de partir. Preciso voltar a Las Vegas hoje de noite e começar a procurar o esqueleto do nosso Shy Smile. E vocês têm de pegar o avião. Poderão continuar a arenga a vinte mil pés de altura. De lá a perspectiva é mais interessante. É possível até que terminem como amigos. Lembrem-se do que se diz por aí. — Fez um aceno para o garçom. — Nada é tão apropinquante como a propinquidade.
Leiter levou-os ao aeroporto e deixou-os lá. Bond sentiu um nó na garganta quando o vulto magro saiu coxeando para o carro depois de ter sido efusivamente abraçado por Tiffany Case.
— Você pode dizer que tem um amigo de verdade — disse a moça ao ver Leiter bater a porta e ouvir o estrondo do escape enquanto o carro partia de volta ao deserto.
— Sim — disse Bond. — Félix é cem por cento.
O luar arrancou cintilações do gancho de aço quando Leiter acenou um último adeus. Depois, a poeira assentou na estrada e soou a voz de ferro do alto-falante: "Trans-World Airline, Voo 93. Embarque no Portão N.° 5 para Chicago e Nova York. Todos a bordo, por favor." Eles abriram caminho através das portas de vidro e deram os primeiros passos de sua longa viagem para Londres.
O novo Super-G Constellation roncou por cima do continente envolto em sombras, e Bond, deitado em seu confortável beliche, esperando que o sono lhe tomasse conta do corpo dolorido, pensava em Tiffany, que dormia no beliche de baixo, e no estágio em que se encontrava sua missão.
Pensou no lindo rosto adormecido sobre a mão aberta, inocente e indefeso, esvaecidos o desdém dos olhos cinzentos e rasos e a curva irônica dos cantos da boca ardente. Bond sabia que estava bem perto de apaixonar-se. Mas, e ela? Até onde ia aquela rebelião masculina gerada certa noite em São Francisco, quando os homens lhe invadiram o quarto e a ofenderam?
Chegariam a adolescente e a mulher a transpor a barricada que haviam começado a construir naquela noite contra todos os homens do mundo?
Romperia ela a concha que os anos de solidão e retraimento tornavam cada vez mais rija?
Bond recordou aqueles momentos das últimas vinte e quatro horas em que conhecera a resposta, momentos em que uma jovem arrebatada e terna surgira feliz, sem a máscara agressiva que usava entre os gangsters, no contrabando, no cassino, na mesa de vinte-e-um, e lhe dissera: — Toma-me pela mão. Abre a porta e caminharemos de mãos dadas no dia claro. Não te preocupes. Acertarei meu passo pelo teu. Sempre estive a teu lado em pensamento, mas tu não vieste e passei a vida escutando outra cadência.
Sim, pensou ele. Tudo correrá bem, por esse lado. Mas estava preparado para as consequências? Uma vez que a tomasse pela mão, seria para sempre.
Estaria no papel do médico, do psicanalista, a quem a paciente transfere seu amor e sua confiança, enquanto se liberta da doença. Não poderia haver maior crueldade do que soltar-lhe a mão depois de a ter tomado nas suas.
Estava preparado para as repercussões que esse ato teria em sua vida e em sua profissão?
Bond mexeu-se no beliche e descartou-se do problema. Era muito cedo ainda para enfrentá-lo. Estava indo muito depressa. Mais devagar. Cada coisa a seu tempo. E obstinadamente arquivou a questão, dirigindo os pensamentos para M e para a missão que lhe cumpria concluir antes de perder tempo com sua vida particular.
Bem, uma parte da serpente estava esmagada. A cabeça ou o rabo?
Difícil dizer, mas Bond tendia a julgar que Jack Spang e o misterioso ABC
eram os verdadeiros manipuladores do contrabando de diamantes e que Seraffimo se incumbia da receptação. Seraffimo podia ser substituído.
Tiffany podia ser dispensada. Shady Tree, a quem ela poderia implicar no contrabando, teria de ficar oculto até que a tormenta — se é que Bond era realmente um prenuncio de tempestade — se desencadeasse. Mas nada havia que pudesse implicar Jack Spang ou a House of Diamonds, e a única pista para ABC era o telefone londrino, cujo número Bond trataria de obter da moça o mais cedo possível. Mas este, e todo mecanismo dos contados a ele relacionados, seria alterado logo depois que todos os fatos da deserção de Tiffany e da fuga de Bond fossem comunicados a Londres, presumivelmente por Shady Tree. Assim, tudo isto, refletiu Bond, colocava Jack Spang e, através dele, ABC como seu próximo alvo. O que tinha a fazer de imediato, concluiu Bond antes de se abandonar ao sono, era relatar toda a situação a M
assim que embarcasse no Queen Elizabeth. Daí por diante Londres tomaria conta do caso. Os homens de Vallance sairiam a campo. Bond não teria muito que fazer quando regressasse. Relatórios e mais relatórios a escrever.
A mesma velha rotina no escritório. E de noite haveria Tiffany no quarto atualmente desocupado de seu apartamento, numa transversal de Kings Road. Precisava mandar um telegrama para May a fim de que ela arrumasse as coisas. Vejamos... flores, sais de banho de Floris, lençóis limpos...
Dez horas depois de terem deixado Los Angeles, sobrevoaram La Guardiã e viraram para o mar a fim de preparar o pouso.
Eram oito horas da manhã de domingo e havia pouca gente no aeroporto, mas um funcionário interrompeu-lhes a caminhada quando seguiam pela pista alcatroada e os conduziu para uma entrada lateral, onde os esperavam um homem de Pinkerton e um representante do Departamento de Estado.
Enquanto conversavam, a bagagem foi-lhes trazida. Depois, levaram-nos para fora da estação de passageiros, onde os aguardava um elegante Pontiac marrom, com o motor em movimento e as persianas do vidro traseiro abaixadas.
Passaram ainda algumas horas de ócio no apartamento do homem de Pinkerton até que, por volta das quatro da tarde, mas com um quarto de hora de diferença entre eles, galgaram a prancha de embarque, penetraram no negro, majestoso e seguro ventre britânico do Queen Elizabeth e, por fim, encerraram-se em seus camarotes no convés M, com as portas trancadas para o mundo.
Mas, quando, em primeiro lugar, Tiffany Case e, depois, Bond puseram os pés na prancha de embarque, um doqueiro do Sindicato de Estivadores de Anastásia correu para a cabina telefônica do galpão da alfândega.
E três horas mais tarde dois homens de negócios americanos saltavam de um sedan negro à porta de um armazém das docas, passavam às pressas pelo serviço de imigração e pela alfândega e galgavam a prancha de embarque, quando os alto-falantes começavam a pedir aos visitantes que desembarcassem.
Um dos homens de negócios era ainda jovem, de feições delicadas e fios de cabelos embranquecidos aparecendo sob o Stetson recoberto por uma capa impermeável. O nome impresso na pasta que carregava era B.
Kitteridge. O outro era um gorducho grandalhão, com um brilho nervoso nos olhos miúdos por trás das lentes bifocais. Suava em bicas e constantemente enxugava o rosto com um lenço enorme. O nome no cartão pendurado na alça da pasta era W. Winter. Em baixo do nome, lia-se em tinta vermelha: MEU GRUPO SANGuÍNEO É F.
22 - Amor e molho bearnês
Às OITO HORAS em ponto, o prolongado e ressoante apito da sirena do Queen Elizabeth fez tremer a vidraça dos arranha-céus. Com grande rebuliço, os rebocadores arrastaram-no para o meio do rio, abrindo-lhe o caminho. Por fim, desenvolvendo cautelosamente cinco nós, o transatlântico pôs-se a descer o rio, cortando as águas remansosas.
Após a parada para desembarcar o prático no Farol de Ambrose, as quádruplas hélices fustigariam o mar, convertendo-o em creme de leite, e o Queen Elizabeth, com um estremecimento de alívio, começaria a fender o longo arco achatado, entre os paralelos 45 e 50, a caminho de Southampton.
Sentado no camarote, escutando o ranger do madeiramento e contemplando o lápis rolar suavemente em cima da penteadeira, entre a escova de cabelo e a borda de seu passaporte, Bond recordava os dias em que outra era a rota da embarcação, os dias em que ela ziguezagueava no Atlântico Sul, brincando de esconde-esconde com os ferozes cardumes de submarinos alemães, a caminho da Europa em chamas. Ainda era uma aventura, mas agora o Queen Elizabeth — protegido num casulo de radar, rádio e sondador de ecos — movia-se com as precauções de um potentado oriental entre escoltas e batedores e, no que dizia respeito a Bond, tédio e indigestão eram os únicos riscos da viagem.
Pegou o telefone e pediu para falar com Miss Case. Quando ela lhe ouviu a voz, rompeu num gemido teatral.
— A loba do mar odeia o mar — disse ela. — Ainda não saímos do rio e eu já estou enjoada.
— Não faz mal — disse Bond. — Não saia do camarote e tome dramamina e champanha. Vou passar uns dois ou três dias em repouso. Vou mandar chamar o médico e o massagista dos banhos turcos pra ver se junto de novo as peças. E de qualquer modo não faz mal nenhum que a gente passe a maior parte da viagem no camarote. É possível que nos tenham localizado em Nova York.
— Bom, se você promete telefonar todos os dias — disse Tiffany — e promete me levar àquela Veranda Grill logo que eu puder engolir um pouco de caviar, eu concordo. Está bem assim?
Bond soltou uma gargalhada.
— Já que você insiste, eu prometo — disse ele. — E agora, escute. Em troca, eu quero que você tente lembrar-se de tudo o que puder a respeito de ABC e do lado londrino de nosso negócio. Aquele número de telefone e o mais que você julgar importante. Logo que puder, eu lhe direi por que estou interessado nisso. Por enquanto você tem de confiar em mim. Combinado?
— Combinado — disse a moça com indiferença, como se toda essa fase de sua vida tivesse perdido o interesse; e, durante dez minutos, Bond inquiriu-a minuciosa, mas (exceto no que tocava a pormenores insignificantes) inutilmente, acerca das atividades de ABC.
Depois desligou o telefone, chamou o camareiro, encomendou o jantar e sentou-se para escrever o longo relatório que teria de transpor em código e despachar naquela mesma noite.
O rebocador conduziu tranquilamente o navio para a treva, e a cidadezinha de três mil e quinhentos habitantes preparou-se para viver os cinco dias da viagem, durante os quais poderiam registrar-se todas as ocorrências naturais em qualquer outra comunidade desse porte — furtos, brigas, seduções, bebedeiras, embustes, talvez um ou dois partos, a possibilidade de um suicídio e, em cem travessias, até mesmo um homicídio.
Quando o burgo de ferro começou a sulcar serenamente a imensidão do Atlântico e a brisa suave da noite zuniu e gemeu no topo do mastro, as antenas de rádio já estavam transmitindo a mensagem do operador de serviço ao ouvido atento de Portishead.
E o que o operador enviava, precisamente às dez horas da noite, E. S. T., era um telegrama endereçado a ABC, CUIDADOS HOUSE OF DIAMONDS, HATTON GARDEN, LONDRES, e
que dizia:
LOCALIZADOS PT CASO ASSUNTO EXIJA SOLUÇÃO DRÁSTICA ESSENCIAL VOCÊ FIXAR PREÇO PAGO EM DÓLARES. Assinado: WINTER.
Uma hora depois, enquanto o operador do Queen Elizabeth lamentava ter de transmitir quinhentos grupos de cinco letras dirigidos ao DIRETOR PRESIDENTE, EXPORTADORA UNIVERSAL, REGENTS PARK, LONDRES, o rádio de Portishead enviava uma breve mensagem a WINTER, PASSAGEIRO PRIMEIRA CLASSE QUEEN ELIZABETH, que dizia:
DESEJO SOLUÇÃO IMEDIATA PROBLEMA CASE PT PAGAREI VINTE MIL PT
CUIDAREI PESSOALMENTE OUTRO ASSUNTO CHEGADA LONDRES CONFIRME ABC.
O operador procurou Winter na lista de passageiros, meteu a mensagem num envelope e enviou-a a um camarote no convés A, abaixo do de Bond e da moça, onde os dois homens jogavam cartas em mangas de camisa.
Quando o mensageiro saiu do camarote, ouviu o gorducho dizer para o homem dos cabelos brancos: — Pois é, Kidd. Vinte mil. É pra valer!
Não foi senão no terceiro dia que Bond e Tiffany resolveram encontrar-se no Observation Lounge, para um coquetel, e mais tarde no Veranda Grill, para jantar. Ao meio-dia, a calmaria era total, e depois do almoço no camarote Bond recebera um ultimato em redondo cursivo feminino numa folha de bloco do navio: "Marque um encontro comigo hoje. Não falhe".
Imediatamente Bond pegara o telefone.
Estavam sedentos da companhia um do outro depois dos três dias de separação, mas as defesas de Tiffany estavam de pé quando ela se reuniu a ele na escura mesa de canto que Bond havia escolhido na cintilante sala semicircular, situada na proa.
— Que espécie de mesa é esta? — perguntou ela com sarcasmo. — Está com vergonha de mim? Então eu ponho o mais belo modelo dos costureiros de Hollywood e você me esconde como se eu fosse Miss Reno 1914? Quero me divertir nessa geringonça e você me bota num canto como se eu fosse contagiosa.
— É isso mesmo — disse Bond. — O que você quer é elevar a temperatura de outros homens.
— Que é que você espera que uma moça faça no Queen Elizabeth?
Pescar?
Bond riu. Acenou para o garçom e pediu vodca-martini seco com casca de limão.
— Eu podia te oferecer uma alternativa.
— Já sei — disse a moça. — Meu querido diário: estou na maravilhosa companhia de um inglês bonitão. O que me aflige é saber que ele anda atrás das jóias da minha família. Que devo fazer? Sua criada, desorientada. — Num movimento súbito, ela inclinou o busto para a frente e pousou a mão na do homem. — Escute aqui, mestre Bond — disse ela. — Estou felicíssima.
Adoro isso aqui. Adoro estar com você. E adoro esta mesinha escura onde ninguém pode me ver segurando sua mão. Não ligue pra minha conversa. É que eu não posso me conter de tão feliz. Não faça caso das minhas brincadeiras.
Ela vestia uma blusa de xantungue de seda creme e uma saia de algodão e lã preto-carvão. As cores neutras ressaltavam-lhe a tez café-au-lait. O minúsculo relógio Cartier quadrado, com a pulseira preta, era sua única jóia, e as unhas curtas da mão pequena e morena que Bond tinha entre as suas estavam sem esmalte. A luz do sol, refletida do exterior, refulgia no ouro pálido das largas ondas do cabelo, nas profundezas dos cinzentos olhos opalescentes e nos alvos dentes que cintilavam entre os lábios sensuais.
— Não — disse Bond. — Não farei caso, Tiffany. Tudo em você é esplêndido.
Ela o encarou nos olhos e ficou satisfeita. O garçom trouxe-lhes a bebida. Ela retirou a mão e observou-o ironicamente por cima da borda de seu copo.
— Agora eu quero saber umas coisinhas — disse ela. — Em primeiro lugar, o que é que você faz e para quem trabalha? A princípio, no hotel, pensei que você era um vigarista. Mas, não sei por quê, quando você foi embora, vi que não era. Acho que devia ter avisado ABC, e com isso teria evitado essa onda toda. Não avisei, e pronto! Vamos, James. Responda.
— Trabalho para o governo — disse Bond —, que quer acabar com esse contrabando de diamantes.
— Espécie de agente secreto?
— Funcionário público, apenas.
— Está bem. E o que é que você vai fazer comigo quando chegarmos a Londres? Trancafiar-me?
— Sim. No quarto desocupado de meu apartamento.
— Assim é melhor. Terei de me tornar súdita da Rainha como você?
Gostaria de ser súdita.
— Acho que podemos arranjar isso pra você.
— É casado? — Fez uma pausa. — Ou tem alguma ligação?
— Não. Um caso ou outro de vez em quando.
— Quer dizer então que você é um desses sujeitos fora de moda que gostam de dormir com mulher? Por que não se casou?
— Creio que porque eu acho que posso manobrar melhor a minha vida sozinho. A maioria dos casamentos não soma duas pessoas. Subtrai uma da outra.
Tiffany Case refletiu um pouco.
— Talvez você tenha razão — disse ela, afinal. — Mas depende do que se soma. Pode ser algo humano ou inumano. Ninguém é auto-suficiente.
— E você?
A moça não gostou da pergunta.
— Talvez eu esteja do lado do inumano — respondeu com rispidez. — E com que diabo de homem você queria que eu me casasse? Com Shady Tree?
— Pode ter havido muitos outros.
— Não houve — disse ela com raiva. — Você é capaz de achar que eu não devia ter me misturado com esses calhordas. Bem, talvez eu tenha dado o passo que não devia dar. — A chama de cólera se apagou e a moça assumiu a defensiva. — Isso acontece com certas pessoas, James. Acontece mesmo. E às vezes não é culpa delas.
James Bond estirou o braço e apertou a mão da moça.
— Eu sei, Tiffany — disse ele. — Félix me contou. É por isso que não perguntei nada. Não pense mais nisso, não. O que importa é o dia de hoje, aqui, agora. Não o dia de ontem. — Desviou o assunto. — Agora é a sua vez de me fornecer alguns fatos. Por exemplo, de onde é que vem esse nome Tiffany e que tal ser banqueira no Tiara? Como é que você chegou a cartear tão bem? Simplesmente espetacular a maneira como você tratava aquele baralho. Se pode fazer aquilo, pode fazer qualquer outra coisa.
— Não diga — replicou a moça com ironia. — Fazer o quê, por exemplo? Brincar de sapateira? E quanto ao nome Tiffany a explicação é simples. Quando eu nasci, papai Case ficou tão zangado por eu não ser menino que deu à minha mãe mil dólares e uma lata de talco comprada em Tiffany e foi embora de casa. Foi ser fuzileiro naval. Terminou morrendo em Iwo Jima. Então minha mãe me botou o nome de Tiffany Case e tratou de ganhar a vida pra nós duas. Começou com uma espelunca e umas garotas e com o tempo foi ficando mais ambiciosa. Talvez essa história não seja muito do seu agrado.
Ela lhe lançou um olhar meio defensivo, meio suplicante.
— Não me preocupa — disse Bond secamente. — Você não era uma das pequenas.
Ela deu de ombros.
— Um dia o lugar foi invadido pelos gangsters. — Interrompeu-se para beber o resto do martini. — E eu dei no pé, por minha conta. Passei pelos empregos comuns a todas as moças. Depois fui para Reno. Lá eles mantêm uma escola de jogo e eu dei duro. Curso completo. Dados, roleta e vinte-e-um. Pode-se ganhar bom dinheiro nos cassinos. Duzentos por semana. Os homens gostam quando as moças bancam o jogo e as mulheres se sentem mais confiantes. Acreditam que a gente vai se mostrar bondosa com elas.
Pensam estar entre irmãs. Quando são homens que bancam o jogo, elas se apavoram. Mas não pense que essa estória toda é assim tão engraçada.
Contada, é uma coisa; vivida, é outra. — Fez uma pausa e sorriu. — Tenha a palavra, agora. É a sua vez. Pague mais um trago e me diga que tipo de mulher você acha que soma com você.
Bond chamou o garçom. Acendeu um cigarro e voltou-se para Tiffany.
— Alguém que saiba fazer molho bearnês e amor — disse ele.
— Já sei! Qualquer bruxa velha que saiba cozinhar e deitar-se de costas.
— Ah, não. Ela precisa ter todas essas coisas que as mulheres geralmente têm. — Bond examinou-a. — Cabelo cor de ouro. Olhos cinzentos. Boca pecadora. Silhueta perfeita. E naturalmente tem de contar piadas engraçadas, vestir-se bem e jogar cartas. As prendas naturais.
— E você casaria com uma mulher assim, se a encontrasse?
— Não necessariamente — disse Bond. — Pra falar com franqueza, já sou quase casado. Com um homem cujo nome começa com M. Teria de me divorciar dele antes de casar com uma mulher. E não sei se isso me agradaria. Ela me obrigaria a passar canapés de mão em mão numa sala de visita em forma de L. E haveria aquelas chatérrimas discussões "Foi você — Não, foi você" que parecem combinar tão bem com todos os casamentos.
Não daria certo. No primeiro acesso de claustro-fobia, iria embora pro Japão ou pra qualquer outra parte.
— E filhos?
— Gostaria de ter alguns — disse Bond. — Mas só quando me aposentasse. De outra forma, não seria justo. Meu trabalho não é lá muito seguro. — Olhou para o copo e bebeu todo o martini. — E você, Tiffany? — perguntou, a fim de mudar de assunto.
— Acho que toda moça gostaria de chegar em casa e encontrar um chapéu na mesinha do corredor — disse Tiffany, melancólica. — O diabo é que eu nunca encontrei nada que prestasse debaixo do chapéu. Talvez não tenha procurado bastante ou não tenha procurado nos lugares certos. Você sabe como é: quando a gente entra na rotina não quer mais sair. Assim fiz eu no meio dos Spangs. Sabia sempre de onde era que vinha a comida. Fiz algumas economias. Mas uma moça não pode ter amigos naquele ambiente.
Ou bota uma placa "Proibida a Entrada" ou de uma hora pra outra se vê cercada de malandros. Mas acho que já estou farta de viver só. Conhece o refrão das coristas da Broadway? "É triste a trouxa de roupa que não tem uma camisa de homem".
Bond riu.
— Mas agora você está fora da rotina — disse ele e olhou-a zombeteiramente. — E Mr. Seraffimo? E aqueles dois quartos de dormir no Pullman, a ceia para dois com champanha...?
Antes que concluísse, ela levantou-se da mesa, os olhos vermelhos, e caminhou para fora do bar.
Bond se amaldiçoou. Colocou algum dinheiro sobre a conta e saiu correndo atrás dela. Foi encontrá-la quase no meio do tombadilho de passeio.
— Por favor, Tiffany, escute — começou ele.
Ela voltou-se e encarou-o.
— Como se pode ser tão mesquinho? — disse ela, e lágrimas iradas brilharam-lhe nos cílios. — Por que você tem de estragar tudo com uma observação ferina como aquela? Oh, James! — Em desespero virou-se para as janelas, procurando um lencinho na bolsa. Enxugou os olhos. — Você simplesmente não compreende.
Bond cingiu-a com um braço e puxou-a para si.
— Meu amor! — Sabia que nada senão o grande passo do amor físico curaria esses mal-entendidos, mas que era necessário ;ainda desperdiçar tempo e palavras. — Não tive a intenção de magoar você. Eu queria somente ter certeza. Aquela mesa posta para a ceia no trem me feriu muito mais do que o que aconteceu depois. Tinha de lhe fazer aquela pergunta.
Ela ergueu a vista, ainda em dúvida.
— Está falando sério? — perguntou, observando-lhe o rosto. — Quer dizer que você já me queria bem?
— Não seja boba — disse Bond, impaciente. — Então você não sabe nada de nada?
Ela afastou-se e contemplou pela janela o infindável mar azul e as gaivotas que acompanhavam esse navio extraordinariamente pródigo.
Depois de algum tempo, perguntou:
— Você já leu Alice no País das Maravilhas?
— Há muitos anos — disse Bond, surpreso. — Por quê?
— Há lá umas linhas que muitas vezes me vêm à memória — disse ela.
— "Oh Ratinho, conheces o caminho que conduz para fora deste poço de lágrimas? Estou muito cansada de nadar dentro dele, oh Ratinho". Lembra-se dessa passagem? Pois bem, eu pensava que você ia me mostrar a saída e, em vez disso, você me empurra pra dentro do poço. Por isso é que fiquei transtornada. — Ergueu a vista. — Mas acredito que você não teve intenção de me magoar.
Bond olhou-lhe a boca demoradamente e depois beijou-a nos lábios.
Ela não retribuiu e esquivou-se. Seus olhos sorriam de novo. Deu o braço a ele e voltou-se para as portas abertas que conduziam ao elevador.
— Me leve lá pra baixo — disse ela. — Preciso recompor a fachada e, além disso, quero me preparar com cuidado para agradar ao candidato. — Ficou um instante em silêncio e depois colou a boca no ouvido dele. — Talvez isso lhe interesse, James Bond — disse baixinho. — Nunca em minha vida fiz o que você chama "dormir com um homem". — Puxou-o pelo braço. — Agora vamos — disse bruscamente. — Afinal, já é hora de tomar um "quente doméstico". Suponho que isso faz parte da língua dos súditos que você está querendo que eu aprenda. Vocês, súditos, escrevem as coisas mais loucas nos banheiros.
Bond levou-a até o camarote dela, voltou para o seu e tomou um "quente salgado" na banheira, seguido de um "frio doméstico" no chuveiro. Depois, estirou-se na cama, recordando com um sorriso algumas das coisas que ela havia dito, e pensou nela, deitada na banheira, intrigada com a floresta de torneiras e imaginando que os ingleses eram loucos varridos.
Soou uma pancada na porta e o camareiro entrou com uma bandejinha que colocou em cima da mesa.
— Que diabo é isso? — perguntou Bond.
— Foi enviado pelo cozinheiro-chefe, senhor — respondeu o camareiro, retirando-se em seguida e fechando a porta do camarote.
Bond desceu da cama e foi examinar o conteúdo da bandeja. Não pôde deixar de rir. Havia uma garrafinha de Bollinger, um rescaldeiro com quatro talhadas de bife em canapés de torrada, e uma tijelinha de molho. Debaixo desta, uma nota escrita a lápis dizia: "Este molho bearnês foi criado por Miss T. Case sem minha assistência". Assinado: "O Chefe".
Bond encheu uma taça de champanha, espalhou um pouco de molho numa talhada de bife e mastigou atentamente. Depois foi ao telefone.
— Tiffany?
Ouviu o risinho abafado e divertido no outro extremo do fio.
— Bem, não há dúvida de que você faz um maravilhoso molho bearnês...
Repôs o telefone no gancho.
23 - O trabalho fica em segundo plano
MOMENTO INEBRIANTE NUM CASO amoroso é aquele em que, pela primeira vez, em público, num restaurante ou num teatro, o homem pousa a mão na coxa da mulher e ela, tomando-a nas suas, aperta-a contra si.
Os dois movimentos dizem tudo o que pode ser dito. Concluem todos os acordos. Firmam-se todos os pactos. E há um longo minuto de silêncio durante o qual o sangue canta nas veias.
Eram onze horas e havia poucas pessoas espalhadas nos cantos da Veranda Grill. O mar arfava baixinho sob o luar lá fora e o magnífico paquete arava a negra pradaria do Atlântico. À popa, apenas um levíssimo galope mostrava uma suave ondulação, as doze lentas pulsações por minuto de um oceano adormecido, aos dois seres aconchegados atrás do quebra-luz cor-de-rosa.
O garçom trouxe-lhes a conta, e suas mãos se separaram. Mas agora dispunham de todo o tempo do mundo e não precisavam afirmar seus sentimentos com palavras e contactos. Quando o garçom retirou os pratos, a moça fitou Bond com um sorriso de felicidade os dois encaminharam-se para a porta.
Entraram no elevador para o Tombadilho de Passeio.
— Que faremos agora, James? — perguntou Tiffany. — Gostaria de tomar mais uma café e um Stinger preparado com creme de menthe branco, enquanto estivéssemos escutando o leilão. Já ouvi falar tanto dele e bem que poderíamos ganhar uma fortuna.
— Está bem — disse Bond. — O que você desejar. — Tomou-a pelo braço e atravessaram vagarosamente a grande sala de estar, onde o víspora ia em meio, e o salão de baile, onde os músicos afinavam os instrumentos. — Mas não me obrigue a comprar nenhum número. É um jogo como os outros, e cinco por cento destinam-se à beneficência. Quase a mesma coisa que em Las Vegas. Mas é divertido quando há um bom leiloeiro. E dizem também que há muito dinheiro a bordo.
O salão de fumar estava quase deserto. Escolheram uma mesinha longe da plataforma onde o Comissário arrumava os apetrechos do leiloeiro, a caixa com os papeluchos numerados, o martelo, a garrafa de água.
— A casa está fraca — disse Tiffany ao sentarem-se no meio da floresta de cadeiras e mesas vazias. Mas, quando Bond fez o pedido ao garçom, as portas do cinema se abriram e cerca de cem pessoas ocuparam o salão de fumar.
O leiloeiro, um comerciante dos Midlands, pançudo e jovial, com um cravo vermelho na lapela do dinner jacket, bateu na mesa pedindo silêncio e anunciou que a previsão do Capitão para o percurso do dia seguinte era de 720 a 739 milhas, que qualquer distância abaixo de 720 era o Campo Inferior e acima de 739 era o Campo Superior.
— E agora, minhas senhoras e meus senhores, vejamos se é possível quebrar o recorde estabelecido nesta viagem, que atinge a cifra impressionante de 2.400 libras esterlinas. (Aplausos). ; Um camareiro ofereceu a caixa com os números dobrados à mulher de ar mais aristocrático do salão e depois entregou ao leiloeiro o papelzinho que ela havia sorteado.
— Bem, senhoras e senhores, temos aqui, para começar, um número excepcionalmente bom. 738. Exatamente no limite máximo, e desde que vejo aqui, esta noite, tantas caras novas (risos), creio que todos concordaremos em que o mar está singularmente calmo. Senhoras e senhores. Quanto me dão por 738? Digamos... 50 libras? Quem me dará 50
libras por este número de sorte? 20, foi o que o senhor falou, cavalheiro?
Bem, temos de partir de alguma oferta. Quem dá... 25? Muito obrigado, minha senhora. E 30. 40 lá adiante, sr. camareiro. E 45 do meu amigo, Mr.
Rothblatt. Muito obrigado, Charlie. Quem dá mais pelo n.° 738? 50. Muito grato, minha senhora. E agora, sim, voltamos ao ponto de partida (risos). 50.
Quem dá 55? Então ficamos em 50. Dou-lhe uma... Dou-lhe duas... — e o martelo erguido bateu na mesa.
— Ainda bem que temos um bom leiloeiro — disse Bond.
— O número era bom. E barato, se o tempo continuar como está e ninguém se jogar no mar. O Campo Superior custará uma bolada esta noite.
Todo mundo espera que o navio faça mais de 739 milhas nesse tempo.
— Essa bolada quer dizer quanto? — perguntou Tiffany.
— Duzentas libras. Talvez mais. Acho que os números normais serão leiloados por umas cem libras. O primeiro número é sempre mais barato do que os outros. O pessoal ainda está frio. A única esperteza que se pode demonstrar neste jogo é arrematar o primeiro número sorteado. Qualquer número pode ganhar, mas o primeiro custa menos.
Quando Bond acabou de falar, o segundo número era entregue por 90
libras a uma jovenzinha bonita e excitada, que era abertamente financiada por seu companheiro, um indivíduo grisalho e bem conservado que parecia a caricatura de um Don Juan do Esquive.
— Vamos, James. Arremate um número pra mim — disse Tiffany. — Você não sabe mesmo agradar a uma moça. Veja como aquele cavalheiro é gentil com sua pequena.
— Ele já passou da idade-limite — disse Bond. — Deve estar na casa dos sessenta. Até os quarenta, as pequenas não custam nada. Daí por diante, é preciso gastar dinheiro ou contar uma estória. Das duas coisas, a estória é que dói mais. — Sorriu, fitando-a nos olhos. — Mas eu ainda não cheguei aos quarenta.
— Deixe de presunção — disse a moça, olhando-o na boca. — Dizem que os homens maduros são os melhores amantes. Também, por outro lado, sei que você não é unha-de-fome. Aposto que não quer me presentear um número porque o jogo é ilegal nos navios de Sua Majestade.
— Até que é permitido além do limite de três milhas da costa — disse Bond. — Mesmo assim, a Cunard toma todas as precauções para não envolver o nome da companhia. Escute isto — e apanhou um cartão alaranjado que estava em cima da mesa. — "Leilão de Apostas nas Distâncias Diárias percorridas pelo Navio" — leu para a moça. — "Para os fins de direito, é de toda a conveniência reiterar a posição da Companhia em relação ao supradito Leilão. Não é desejo da Companhia que o encarregado do salão de fumar ou quaisquer outros membros da tripulação desempenhem papel ativo na organização das apostas nas milhas diárias percorridas pelo navio". — Bond levantou a vista. — Está vendo? — perguntou. — Seguro morreu de velho. E tem mais: "A Companhia sugere que os passageiros elejam entre si uma Comissão encarregada de formular e controlar as normas... O encarregado do salão de fumar poderá, se instado e se seus deveres o permitirem, prestar a assistência de que a Comissão venha a necessitar para o leiloamento dos números". Como são cautelosos — comentou Bond. — É a comissão que tem de quebrar os galhos que forem aparecendo. Escute mais isto aqui. É onde entra o problema. — Continuou a leitura: — "A Companhia chama especialmente a atenção de todos para os dispositivos das normas financeiras do Reino Unido, no tocante à negociabilidade dos cheques em esterlinos e à limitação da entrada de cambiais bancárias em esterlinos no Reino Unido".
Bond atirou o cartão em cima da mesa..— E por aí vai — disse ele e sorriu para Tiffany Case. — Assim, eu arremato o número que está sendo leiloado e você ganha duas mil libras. Um montão de cédulas e cheques em dólares e libras. O único meio de gastar essa dinheirama, supondo que os cheques tenham fundos, o que é duvidoso, seria contrabandeá-la debaixo dos suspensórios. E lá estaríamos nós outra vez passando muamba. Só que eu estaria do lado do diabo.
A moça não se impressionou.
— Havia um sujeito na quadrilha chamado Abadaba — disse ela. — Era um malandro fino que tinha resposta para tudo. Calculava as vantagens nas corridas, marcava as percentagens no cassino, enfim, era o crânio do grupo.
Era considerado "O Feiticeiro das Apostas". Teve o azar de ser liquidado por engano ao lado de Dutch Schultz — ajuntou ela à guisa de parêntese. — Você está me saindo outro Abadaba com essa lengalenga que não tem outra finalidade senão evitar de gastar dinheiro com uma pequena. Já vi tudo. — Encolheu os ombros, resignada. — Está bem. Mas pelo menos financie outro Stinger pra sua garota.
Bond chamou o garçom. E quando este se afastou, ela aproximou a cabeça do ouvido dele e disse baixinho. — Eu não quero mais, não. Beba você. Quero estar inteiramente sóbria esta noite. — Empertigou-se. — Mas o que é que está se passando aqui? — perguntou com impaciência. — Vamos, um pouco de ação.
— Aí vem ela — disse Bond.
O leiloeiro levantou a voz e toda a sala pediu silêncio.
— E agora, minhas senhoras e meus senhores — rugiu o leiloeiro — vamos à pergunta mais importante da noite. Quem vai me dar 100 libras pela escolha entre o Campo Superior e o Inferior? Todos sabemos o que isto significa... o direito de escolher o Campo Superior, que, inclino-me a crer, será da preferência geral esta noite (risos), em vista das excelentes condições atmosféricas reinantes lá fora. Então, quem abrirá com cem libras os lances para a escolha do Campo Superior ou Inferior?
— Muito obrigado, cavalheiro! E 110. 120 e 130. Muito obrigado, minha senhora.
— Cento e cinquenta — disse uma voz de homem, não muito distante da mesa de Bond e Tiffany.
— Cento e sessenta.
Desta vez era uma mulher. Monótona, a voz do homem gritou: — 170.
— Oitenta — disse alguém.
— Duzentas libras.
Algo fez com que Bond se voltasse e olhasse o homem que tinha falado.
Era um tipo grandalhão. A cara tinha a aparência lisa, brilhante e escorregadia de um olho de boi. Olhos miúdos, frios e escuros fitavam o estrado do leiloeiro através de imóveis lentes bifocais. Todo o pescoço do homem parecia estar por trás da cabeça. O suor havia emaranhado as algas negras e encaracoladas do cabelo. Enquanto Bond o observava, ele tirou os óculos, pegou um guardanapo e passou a enxugar o suor, com um movimento circular que começou no lado esquerdo do rosto, estendeu-se à nuca, onde a mão esquerda cedeu a vez à mão direita, e esta completou o circuito, atingindo os pingos do nariz.
— Duzentas e dez — disse alguém.
A queixada do homem bamboleou, a boca se descerrou, e ele disse, com nítido sotaque americano:
— Duzentas e vinte.
O que havia nesse indivíduo capaz de ferir uma corda na memória de Bond? O inglês examinou o rosto largo, a imaginação percorrendo todo o arquivo do cérebro, abrindo e fechando gavetas, uma após outra à procura de uma pista. A cara? A voz? Inglaterra? América?
Bond abandonou a busca e voltou a atenção para o outro homem à mesa.
Ainda aqui, a mesma necessidade urgente de reconhecer. As feições jovens e estranhamente delicadas sob os cabelos brancos e lisos. Os olhos castanhos e plácidos sob as longas pestanas. O efeito geral era de delicadeza, perturbada pelo nariz roliço montado na boca larga de lábios finos, agora aberta num sorriso estúpido e vazio como a fenda de uma caixa postal.
— Duzentas e cinquenta — disse o grandalhão mecanicamente.
Bond tornou a olhar para Tiffany.
— Já viu aqueles dois alguma vez? — perguntou ele, e ela notou-lhe a ruga de preocupação entre os olhos.
— Não — disse ela, categórica. — Nunca. Talvez venham do Brooklyn. Podem ser dois comerciantes de roupas feitas da Quinta Avenida. Por quê? Eles lhe dizem alguma coisa?
Bond olhou-os outra vez.
— Não — disse, em dúvida. — Não, acho que não.
Palmas estrugiram na sala. Radiante, o leiloeiro bateu na mesa.
— Senhoras e senhores — disse ele, triunfante. — Isto é realmente maravilhoso. Trezentas libras é o lance daquela encantadora senhora de esplêndido vestido cor-de-rosa (Cabeças viravam-se, pescoços esticavam-se, e Bond ouviu a pergunta: — Quem é ela? E agora, cavalheiro — o leiloeiro indicava a mesa do homem gordo — posso anunciar 325 libras?
— Trezentas e cinquenta — disse o gordo.
— Quatrocentas — ganiu a mulher de vestido cor-de-rosa.
— Quinhentas.
A voz era incolor, indiferente.
A moça de cor-de-rosa tagarelou irritada com seu acompanhante. O homem assumiu um ar entediado. Acompanhou o olhar do leiloeiro e balançou a cabeça.
— Quem se dispõe a dar mais? — disse o leiloeiro. Sabia agora que a sala já dera o que tinha de dar. — Dou-lhe uma... Dou-lhe duas... — Pam! — Arrematado pelo cavalheiro. E eu acredito sinceramente que ele merece uma salva de palmas.
Deu início às palmas e os presentes o acompanharam, embora preferissem que a moça tivesse levado a melhor.
O gordo ergueu-se algumas polegadas e voltou a sentar-se. Não havia em seu rosto lustroso nenhum sinal de agradecimento aos aplausos, e seus olhos fixavam-se no leiloeiro.
— E agora temos de cumprir a formalidade de perguntar ao cavalheiro qual é o Campo que ele prefere. (Risos). Cavalheiro, o senhor escolhe o Campo Superior ou o Campo Inferior?
O tom do leiloeiro era irônico. A pergunta era ociosa.
— Campo Inferior.
Houve um momento de silêncio constrangedor no apinhado salão de fumar. E logo se seguiram os comentários à meia-voz. Nenhuma pergunta foi feita. Era óbvio que o homem devia escolher o Campo Superior. As condições atmosféricas eram ideais. O Queen Elizabeth vinha desenvolvendo pelo menos trinta nós. Estaria o homem a par de alguma coisa? Teria pago por alguma informação na ponte de comando? Haveria alguma tempestade à vista? Algum defeito nas máquinas?
O leiloeiro martelou na mesa, pedindo silêncio.
— Queira me perdoar, cavalheiro — disse ele — mas o senhor escolheu mesmo o Campo Inferior?
— Sim.
O leiloeiro tornou a martelar.
— Nesse caso, senhoras e senhores, comecemos agora a leiloar o Campo Superior. Minha senhora — voltou-se com uma curvatura para a moça de cor-de-rosa — quer ter a gentileza de fazer o primeiro lance?
Bond virou-se para Tiffany.
— Que coisa esquisita — disse ele. — É extraordinário. O mar está calmo como um lago. — Deu de ombros. — A única resposta é que eles devem estar informados de alguma coisa.
— A questão era desprovida de interesse, no fim de contas.
— Alguém deve ter dito alguma coisa àqueles dois. — Girou a cabeça e, depois, despreocupadamente, passeou o olhar pelos dois indivíduos. — Parece que eles estão interessadíssimos na gente.
Tiffany olhou por cima do ombro.
— Não estão olhando pra cá, não — disse ela. — A impressão que eu tenho é que são dois palermas. O grisalho tem um ar de idiota e o gordo está chupando o polegar. Dois malucos. Acho que nem sabem o que arremataram. Trocaram as bolas.
— Chupando o polegar? — perguntou Bond. Passou a mão pelo cabelo, distraidamente, uma vaga lembrança a verrumar-lhe o cérebro.
Talvez, se ela lhe tivesse permitido seguir o fio de seus pensamentos, ele tivesse dado no alvo. Mas ela colocou a mão sobre a dele e, aproximando-se, roçou-lhe o rosto com os cabelos.
— Esqueça isso, James — disse ela. — E não pense tanto naqueles dois imbecis. — Os olhos dela ardiam e exigiam. — Chega deste lugar. Leve-me a outra parte.
Sem se dizerem mais uma palavra, ergueram-se, afastaram-se da mesa e saíram da sala barulhenta, caminhando em direção à escada. Começaram a descer e, quando chegaram ao meio, o braço de Bond circundou a cintura da moça, e ela deitou a cabeça no ombro dele.
Chegaram à porta do camarote de Tiffany, mas ela deu meia volta e arrastou Bond pelo corredor comprido, macio e rangente.
— Eu quero que seja na sua casa, James — disse ela.
Bond só voltou a falar depois de ter fechado a porta de seu camarote com um pontapé e de se terem abraçado no meio daquele quartinho maravilhosamente reservado e anônimo. E dizendo, com ternura, "Meu amor" pôs uma das mãos sobre os cabelos dela de modo a manter-lhe a boca sob a sua.
Algum tempo depois, sua outra mão desceu até o fecho-relâmpago do vestido, por trás, e a moça, sem interromper o abraço, deixou cair o vestido e disse, ofegante, entre beijos:
— Quero tudo, James. Tudo o que você já fez com uma mulher. Agora.
Agora mesmo.
E Bond inclinou-se, envolveu-lhe as coxas com um braço, levantou-a e deitou-a suavemente no soalho.
24 - A morte é permanente
A ÚLTIMA COISA de que Bond se lembrou antes de soar a campainha do telefone foi de Tiffany debruçada sobre ele, na cama, beijando-o e dizendo-lhe: "Não durma sobre o lado esquerdo, meu amor. É ruim para o coração.
Pode parar de bater. Vire-se". E, obediente, ele se virava. E, quando a porta bateu de leve, ele estava dormindo de novo, embalado pela voz da moça, pela pulsação do Atlântico e pelo macio balanço do navio.
Depois, a campainha impertinente soou e tornou a soar no camarote escuro. Bond praguejou, estendeu o braço para o telefone, e uma voz disse: — Desculpe-me incomodá-lo, senhor. Aqui é o telegrafista, Acaba de chegar uma mensagem em código para o senhor, com um prefixo en clair "Urgentíssimo". Quer que leia pelo telefone ou envie pelo mensageiro?
— Envie pelo mensageiro, pode ser? — disse Bond. — Muito obrigado.
E que diabo queriam agora? Toda a beleza, todo o ardor, toda a exaltação da paixão amorosa foram postas de lado quando ele acendeu a lâmpada, pulou da cama e, balançando a cabeça, a fim de afastar o torpor, deu dois passos para o chuveiro.
Durante um bom minuto deixou que a água caísse sobre si. Depois, enxugou-se com a toalha, apanhou do chão as calças e a camisa e vestiu-as.
Houve uma pancada na porta. Bond recebeu o telegrama, sentou-se à escrivaninha, acendeu um cigarro e entregou-se ferozmente ao trabalho. E, à medida que os grupos paulatinamente se dissolviam em palavras, seus olhos se apertavam e a pele se lhe arrepiava no corpo.
O telegrama, passado pelo Chefe do Pessoal, dizia:
Primeiro vg busca clandestina escritório Saye revelou telegrama do QE endereçado ABC assinado Winter comunicando presença sua e Case a bordo solicitando instruções pt Resposta endereçada Winter assinado ABC ordena eliminação de Case vg preço vinte mil dólares pt Segundo vg consideramos Rufus B. Saye é ABC que é mais ou menos equivalente pronúncia suas iniciais em francês pt Terceiro vg possivelmente alarmado sinais de busca Saye voou Paris ontem e agora informa Polinter estar em Dakar pt Isto parece confirmar nossas suspeitas que diamantes provêm minas Serra Leoa daí contrabandeados fronteira Guiné Francesa pt Suspeitamos fortemente elemento clínica dentária de Sierra International em observação pt Quarto vg Canberra Raf espera você Boscombe Down para voo imediato amanhã noite a Serra Leoa assinado CDP.
Bond gelou na cadeira. De supetão, acudiu ao seu espírito o mais sinistro verso de toda a poesia: "Enganam-se os que me evitam. Quando voam de mim, eu sou as asas".
Então alguém da quadrilha de Spang estava a bordo e viajava com eles. Quem? Onde?
A mão agarrou o telefone: — Miss Case, por favor.
Ouviu o aparelho ao pé da cama dela produzir um estalido e em seguida disparar 'a primeira campainhada. A segunda. A terceira. Mais uma só. Bond colocou o receptor de volta no gancho e enfiou pelo corredor até o camarote de Tiffany. Nada. Vazio. A cama arrumada. As luzes acesas. Mas a bolsinha dela estava no tapete e os objetos espalhados ao redor. Tinha entrado no camarote. O homem se escondera atrás da porta. Talvez tivesse aplicado uma cacetada. E depois?
As vigias estavam fechadas. Examinou o banheiro. Nada.
Bond parou no meio do camarote. Seu cérebro estava frio como gelo. O que ele, Bond, teria feito? Antes de matá-la, tê-la-ia interrogado, descoberto o que ela sabia, o que fazia, quem era o homem que a acompanhava. Tê-la-ia levado depois para o camarote em que ele viajava a fim de poder agir sem ser perturbado. Se o encontrassem arrastando-a pelo corredor, bastaria piscar um olho e balançar a cabeça: "Bebeu muita champanha esta noite. Não, não precisa, muito obrigado, eu me arranjo". Mas, qual era o camarote? E havia quanto tempo ele a tinha levado?
Bond consultou o relógio quando ia no corredor. Três horas. Ela devia ter saído da cama dele pouco depois das duas. Devia telefonar para a ponte de comando? Dar alarma? Penosos instantes de explicações, suspeitas, obstáculos. "Meu caro senhor, isto parece incrível!" Tentativas para acalmá-lo. "Claro, senhor, faremos o que estiver ao nosso alcance". O olhar polido do funcionário, para quem tudo não passaria de embriaguez, ciúme e até mesmo de um meio de deter a marcha do navio e ganhar a aposta no Campo Inferior.
O Campo Inferior! Homem ao mar! O navio detido!
Bond fechou a porta de seu camarote e foi direto à Lista de Passageiros.
E por que não? Winter. Ei-lo aqui. A49. O convés de baixo. E então, de repente, o cérebro de Bond funcionou como um computador. Winter. Wint e Kidd. Os dois pistoleiros. Os encapuzados. Outra vez a lista de passageiros.
Kitteridge. No A49 também. O grisalho e o gordo do avião da BOAC na viagem de Londres a Nova York. "Meu grupo sanguíneo é F." A escolta secreta de Tiffany. E a descrição de Leiter. "Chamam-no Goela porque tem medo de viajar". "Um dia vai-se arrepender de não ter extraído aquela verruga". A verruga vermelha na primeira articulação do dedo que segurava o cão da arma apontada para Tingaling Bell. E Tiffany dizendo: "São dois palermas. O gordo está chupando o polegar!" E os dois, no salão de fumar, procurando ganhar dinheiro com a morte que haviam planejado. A mulher atirada ao mar. O alarma anônimo, no caso de passar o corpo despercebido pelo vigia da popa. O navio detido, a volta, a busca nas águas. E mais três mil libras para os bolsos dos assassinos.
Wint e Kidd. Os pistoleiros de Detroit.
Todo o carretel de filmes embaralhados desenovelou-se na mente de Bond no espaço de um segundo, e mesmo enquanto os esquadrinhava, ia ele abrindo a pasta e revolvendo o compartimento secreto à procura do silenciador. Como um autômato, retirou a Beretta do meio de suas coisas no fundo de um gavetão, examinou o pente e ajustou o silenciador à boca da arma. Simultaneamente, pesava as probabilidades e planejava os passos que devia dar.
Pegou a planta do navio que tinha vindo com o bilhete de passagem.
Esparramou-a à sua frente enquanto calçava as meias. A49. Exatamente debaixo de seu camarote. Haveria probabilidade de arrebentar a fechadura com um tiro e pegar os dois homens antes que eles o pegassem? Nenhuma, quase. Sem dúvida tinham fechado a porta com a chave e o trinco. Ou levar consigo alguns membros da tripulação, se pudesse persuadi-los do perigo que Tiffany corria? Enquanto ele tentasse convencê-los, os dois homens a atirariam pela vigia. E, quando, afinal, conseguissem entrar no camarote, Wint e Kidd estariam lendo calmamente ou jogando cartas e berrariam: — Que é que vocês querem aqui?
Bond meteu a arma nos cós das calças e com um violento puxão escancarou uma das duas vigias do camarote. Enfiou por ela os ombros e alegrou-se ao descobrir uma folga de uma ou duas-polegadas. Espichou o pescoço para baixo. Dois círculos mal iluminados, exatamente sob suas vigias. A que distância? Uns oito pés. A noite continuava parada, calma, tranquilizadora, e ele se achava no lado ensombrado do navio. Avistá-lo-iam da ponte volante? Estaria aberta alguma das vigias do A49?
Bond deixou-se cair novamente em seu camarote e arrancou os lençóis da cama. O nó de porco. Seria mais seguro. Mas teria de rasgar os lençóis e emendá-los para obter o comprimento necessário. Se tudo desse certo, teria de trazer alguns lençóis do A49 e deixar o camareiro intrigado com o desaparecimento. Se desse errado, tanto fazia.
Experimentou a "corda" com toda a força. Devia aguentar. Ao amarrar uma extremidade em volta da dobradiça da vigia, deu uma olhada no relógio.
Só doze minutos tinham passado desde que lera o telegrama. Demorara demais? Trincou os dentes, atirou a "corda" pelo costado do navio e introduziu a cabeça.
Não pense em nada. Não olhe para baixo. Não olhe para cima. Não se importe com os nós. Devagar, firme, uma mão, isto, a outra.
A brisa da noite tocava-o de leve e empurrava-o de encontro aos negros rebites de ferro, e lá embaixo soava o gemido cavo do mar. No alto, o vento zunia no cordame, e mais acima, no firmamento, as estrelas dançavam à volta dos mastros.
Os malditos, os bem-amados lençóis resistiriam? A vertigem o venceria?
Seus braços suportariam o peso? Não pense nisso. Não pense no imenso navio, no oceano faminto, nas quádruplas hélices gigantescas aguardando o momento de lhe retalhar o corpo. Você é um menino que está descendo da macieira. É tão fácil e seguro lá no pomar, com o relvado que apara a queda.
Bond expulsou da mente todos esses pensamentos. Olhou para as mãos e sentiu a aspereza da pintura contra os nós dos dedos. Os pés, sensíveis como antenas, tateavam em busca do primeiro contacto com a vigia.
Ali. Os dedos do pé direito haviam tocado o rebordo saliente. É preciso parar. É PRECISO ter paciência e deixar que o pé explore o terreno — a vigia aberta, presa pela grande tranqueta de latão; o contacto de fazenda por cima da meia: as cortinas cerradas. Agora podia continuar. Estava quase terminado.
Mais duas preensões na corda improvisada e o rosto estava à altura da vigia. Podia colocar uma das mãos na borda metálica do caixilho, subtraindo algum peso da alva corda retesada e dando merecido repouso a um braço e depois ao outro, deslocar a carga suportada pelos músculos, reunir as forças para soerguer-se vagarosamente, traspassar-se ao camarote e mergulhar, deitando a mão à arma.
Ficou à escuta, fitando o círculo da cortina balouçante, tentando esquecer que estava pendurado como um pêndulo, a meio costado do Queen Elizabeth, esforçando-se para não ouvir o marulho do oceano, lutando para abrandar a respiração ofegante e as marteladas do coração.
Do interior do cubículo vinha um resmungo indistinto. Depois, uma voz masculina proferiu algumas palavras e uma mulher gritou: — Não!
Seguiu-se um momento de silêncio, e logo uma bofetada. Sonora como um disparo de pistola, e isto lançou o corpo de Bond para o alto e para dentro como se ele tivesse sido arrastado por uma corda.
No momento mesmo em que mergulhava no círculo da vigia, perguntava-se onde iria bater, e instintivamente protegeu a cabeça com o braço esquerdo, enquanto o direito corria para a arma.
Foi cair sobre uma valise debaixo da vigia. Um estabanado salto mortal levou-o ao meio do camarote. Outra vez sobre seus pés, foi recuando, agachado, para o lado das vigias, a tensão branquejando os nós dos dedos da mão que segurava a arma e uma estreita linha branca circundando-lhe a boca cerrada.
Através das pálpebras entreabertas, os olhos cinzentos e gelados moviam-se de um lado para o outro. A arma, negra e cega, voltava-se para um ponto, no centro, entre os dois homens.
— Aqui estamos — disse Bond, erguendo-se vagarosamente.
Era a constatação de um fato. Ele tinha o controle da situação, e a boca de sua arma o confirmava.
— Quem chamou você aqui? — disse o gordo. — Você não entra nesta peça. — Havia na voz reservas latentes. Nada de pânico. Nem mesmo a dose normal de surpresa. — Veio completar a mesa para o jogo de cartas?
Estava sentado, em mangas de camisas, abotoado, de través para a penteadeira, e os olhos miúdos brilhavam na cara molhada. Dante dele, de costas para Bond, Tiffany Case estava sentada num tamborete estofado.
Vestia apenas uma calcinha cor-de-carne e tinha os joelhos presos entre as coxas do homem gordo. Voltara para Bond o rosto pálido entremeado de manchas vermelhas. Os olhos tinham uma expressão de desespero, como os de um animal apanhado numa armadilha, e a boca aberta traduzia incredulidade.
O grisalho jazia numa das camas. Tinha erguido o busto sobre um cotovelo e a outra mão na camisa, a meio caminho da arma guardada no boldrié preto debaixo do sovaco. Olhava para Bond sem demonstrar curiosidade e estampava aquele sorriso quadrado, vazio, da caixa postal. Do centro do sorriso ressaía um palito de madeira, que rompia os dentes fechados como a língua de uma cobra.
A arma de Bond assegurava o espaço neutro entre os dois homens.
Quando ele falou, a voz era baixa e tensa.
— Tiffany — disse Bond lenta e distintamente. — Ajoelhe-se. Afaste-se desse homem. Baixe a cabeça. Vá para o meio do quarto.
Não olhava para ela. Seus olhos continuavam a passear da cadeira para a cama, vigiando os dois homens. Agora ela estava longe dos dois alvos.
— Estou aqui, James.
A voz tremia de esperança e excitação.
— Levante-se e vá para o banheiro. Feche a porta. Entre na banheira e deite-se lá.
Moveu os olhos na direção dela para ver se era obedecido. Ela tinha-se erguido e o contemplava. Bond avistou a marca vermelha de uma mão na pele alva do corpo da moça. Ela obedeceu. Ouviu-se o clique da porta do banheiro ao fechar-se.
Agora ela estava a salvo das balas. E não presenciaria o que tinha de ser feito.
Mediavam umas cinco jardas entre os dois homens, e Bond refletiu que se eles sacassem com bastante rapidez estaria perdido. Com esse tipo de homens, na fração de segundo em que um fosse liquidado, o outro sacaria e dispararia. Conquanto sua arma fosse silenciosa, a ameaça era infinita. Mas, com o clarão da primeira bala a ameaça proviria do outro homem.
— Quarenta e oito, sessenta e cinco, oitenta e seis.
A variante do sinal convencionado do futebol americano —"uma das cinquenta combinações que deviam ter praticado juntos mil vezes — jorrou da boca do gordo. Simultaneamente, ele se atirou ao chão, e a mão foi direta ao cós da calça.
Num giro rápido, o homem que estava na cama puxou as pernas para o lado e para longe de Bond, de modo que seu corpo se reduziu a um alvo estreito, de que só se via a cabeça. A mão que estava sobre o peito se mexeu rápida.
— Paf.
A arma de Bond soltou um único gemido abafado. Um orifício azul abriu-se exatamente abaixo do cocuruto grisalho.
— Pum! — respondeu a pistola do morto, deflagrada pela última crispação do dedo, e a bala foi alojar-se na cama, debaixo do cadáver.
O homem gordo, deitado no soalho, deu um grito. Olhava para cima. na direção daquele olho preto e vazio que não se incomodava com ele, de forma alguma, e que só se interessava em localizar-lhe na pele o centímetro quadrado que abrigaria o próximo projétil.
O revólver de Wint só se tinha elevado até à altura dos joelhos de Bond e apontava em vão por entre suas pernas retesadas para a armação de ferro, pintada de branco, que estava atrás.
— Largue a arma.
O tapete abafou o ruído da queda da arma.
— Levante-se.
O gordo ergueu-se com dificuldade e fitou Bond nos olhos, como um tuberculoso fita seu lenço, em medrosa expectativa.
— Sente-se.
Houve um lampejo de alívio nos olhos submissos? Bond continuou tenso como um gato prestes a atacar.
O gordo voltou-se vagarosamente. Estendeu as mãos acima da cabeça, embora Bond não lhe tivesse exigido isso. Deu dois passos para a cadeira e lentamente virou-se como se fosse sentar-se.
Parou, contemplando Bond, e com naturalidade deixou cair as mãos ao longo do corpo. E as duas mãos, sossegadas, sacudiram-se para trás, a direita mais do que a esquerda. E então, de súbito, no movimento de retorno, o braço direito entesou-se, precipitou-se para a frente e a faca brilhou nas pontas dos dedos como uma chama branca.
— Paf.
A bala silenciosa e a faca muda cruzaram uma pela outra em pleno ar, e os olhos dos dois homens perturbaram-se simultaneamente quando as armas atingiram seus objetivos.
Mas a perturbação nos olhos do homem gordo converteu-se num reviramento do globo ocular quando ele caiu para trás, as mãos agarradas ao peito, enquanto os olhos de Bond pousaram sem curiosidade na mancha que se espalhava em sua camisa e no cabo chato da faca pendurada frouxamente nas dobras do pano.
Produziu-se um estardalhaço quando a cadeira se espatifou sob o peso do homem gordo. Seguiu-se um ruído roufenho e ouviu-se, por último, um baque surdo no soalho.
Bond olhou a cena uma vez e depois voltou-se para a vigia aberta.
Durante algum tempo ficou de costas para o quarto, o olhar fixo nas cortinas que se balançavam molemente. Sorveu o ar e escutou os maravilhosos sons marinhos do exterior, do mundo que ainda lhes pertencia, a ele e a Tiffany, mas não aos outros dois. Pouco a pouco, seu corpo e seus nervos tensos se relaxaram.
Instantes depois, puxou a faca que se lhe enfiara na camisa. Não olhou para ela. Apenas estirou o braço, afastou a cortina para um lado e atirou a faca pela vigia. Em seguida, ainda contemplando a noite quieta lá fora, prendeu o registro de segurança da Beretta e, com um braço que lhe pareceu de repente pesado como chumbo, introduziu de novo a arma no cós das calças.
Com certa relutância, deu meia volta e encarou a desordem reinante no camarote. Com ar pensativo, examinou tudo e, num gesto, inconsciente, enxugou as mãos nos lados das calças. Em seguida, caminhando cautelosamente até o banheiro, disse: "Tiffany, sou eu" numa voz cansada, deprimida, e abriu a porta.
Ela não o ouvira. Continuava deitada de bruços na banheira seca, as mãos sobre as orelhas. E quando ele a ergueu e tomou nos braços, ela ainda não acreditou no que via. Agarrou-se a ele e começou a tocar-lhe o rosto e o busto com as mãos para certificar-se de que era realidade.
Ele se retraiu quando ela lhe apalpou a costela cortada. Então ela afastou-se um pouco, examinou-lhe o rosto, depois o sangue que manchava seus dedos e por fim a camisa escarlate.
— Meu Deus! Você está ferido! — disse ela assustada; e, esquecendo seus pesadelos, arrancou-lhe a camisa, lavou-lhe a costela com água e sabão e amarrou-a com tiras da toalha cortada com a gilete de um dos homens mortos.
Não fez perguntas, nem mesmo quando Bond lhe trouxe as roupas que estavam espalhadas pelo soalho do camarote e lhe disse que não saísse enquanto ele não tivesse terminado de arrumar tudo e de apagar as impressões digitais de todos os objetos que ela havia tocado.
Ela apenas pousava nele os olhos brilhantes. E quando Bond a beijou nos lábios, continuou calada.
Bond deu-lhe um sorriso tranquilizador, saiu e fechou a porta do banheiro atrás de si. Pôs mãos à obra, fazendo cada coisa com grande determinação e parando antes de cada gesto a fim de imaginar o efeito que produziria diante dos olhos e do espírito dos detetives que subiriam a bordo em Southampton.
Primeiro amarrou um cinzeiro à sua camisa ensanguentada para torná-la pesada, aproximou-se da vigia e atirou o pacote o mais longe que pôde. Os smokings dos dois homens estavam pendurados atrás da porta. Tirou os lenços que estavam nos bolsinhos dos paletós, envolveu com eles as mãos e remexeu nos armários e cômodas até encontrar as camisas do grisalho.
Vestiu uma e ficou um momento no centro do camarote, meditando. Depois, cerrou os dentes e levantou o homem gordo até deixá-lo sentado, tirou-lhe a camisa, foi à vigia, sacou a Beretta, encostou a arma no orifício aberto na fazenda pelo tiro anterior e disparou outra bala no mesmo local. Agora havia uma nódoa de fumaça em volta do orifício para dar a impressão de suicídio.
Tornou a vestir a camisa no cadáver, limpou demoradamente a Beretta com o lenço, comprimiu os dedos da mão direita do morto sobre ela e, finalmente, ajustou a arma na mão do gordo, com o indicador no gatilho.
Após outra pausa no meio do quarto, retirou o smoking de Kidd do cabide e vestiu com ele o cadáver. Em seguida, arrastou o corpo até a vigia e, suando com o esforço, levantou-o e jogou-o ao mar.
Limpou as possíveis impressões digitais deixadas na vigia e interrompeu-se outra vez, tomando fôlego e inspecionando o cenário. Foi até a mesa de jogo, encostada à parede e com os objetos espalhados indicando que o jogo não fora concluído, e derrubou tudo, dispersando as cartas pelo tapete. Parou, refletiu mais um pouco, voltou ao cadáver de Wint, retirou-lhe do bolso traseiro da calça o rolo de cédulas e jogou-as entre as cartas.
O quadro era satisfatório, sem dúvida. Haveria o mistério da bala disparada na cama pelo moribundo Kidd, mas isso poderia ter sido parte da luta. Três balas tinham sido detonadas pela Beretta e havia três cartuchos no soalho. Duas das balas poderiam ter-se enterrado no corpo de Kidd que agora estava no Atlântico. Havia os dois lençóis que teria de roubar da segunda cama. A falta deles ficaria inexplicada. Talvez Wint houvesse enrolado neles o corpo de Kidd antes de empurrá-lo pela vigia. Isso se encaixava no remorso e no suicídio de Wint, posterior ao tiroteio motivado pelo desentendimento à mesa do jogo.
De qualquer maneira, refletiu Bond, o quadro se sustentaria até a chegada da polícia ao porto, mas nesse momento ele e Tiffany já estariam fora do navio e bastante longe, e o único vestígio deles no camarote seria a Beretta; e esta, como todas as outras armas pertencentes ao Serviço Secreto, não era numerada.
Soltou um suspiro e encolheu os ombros. Agora, restava apanhar os lençóis, conduzir Tiffany de volta ao seu camarote sem serem vistos, cortar a "corda" que se balançava na vigia, atirá-la ao mar com os pentes restantes da Beretta e o coldre vazio e, por fim, dormir à vontade com o corpo adorado de Tiffany enroscado no seu para sempre.
Para sempre?
Ao atravessar o camarote a caminho do banheiro, Bond encontrou os olhos vazios do cadáver no soalho.
E os olhos do homem cujo Grupo Sanguíneo fora F chamaram-no e lhe disseram:
— Mr. Bond. Nada existe para sempre. Só a morte é permanente. Nada é eterno, exceto o que você fez comigo.
25 - Fecha-se o canal
AGORA NÃO HAVIA escorpião morando nas raízes do frondoso espinheiro erguido na junção dos três Estados africanos. O contrabandista das minas não tinha outra coisa que lhe absorvesse a atenção senão o desfile infindável de um regimento de formigas de correição entre as baixas muralhas que as guerreiras haviam construído em ambos os lados da estradinha de três polegadas.
A noite era quente e úmida, e o homem escondido sob o espinheiro estava impaciente e intranquilo. Era esta a última vez que comparecia ao encontro marcado. Já tinha decidido. Que arranjassem outro, se quisessem.
Naturalmente não iria fazer sujeira com eles. Comunicaria a intenção de deixá-los e lhes daria o motivo: o novo assistente admitido no serviço dentário parecia entender muito pouco de odontologia; decerto era espião: o olhar indagador, o bigodinho amarelo-avermelhado, as unhas bem tratadas.
Pegaram alguém? Tomaram-lhe o depoimento?
O contrabandista trocou de posição. Por onde diabo andava o helicóptero? Apanhou um punhado de terra e atirou-o no meio das formigas.
Elas se atarantaram um pouco, mas com a chegada das últimas fileiras, as que iam na frente se dispersaram pelas muralhas. Então as guerreiras pegaram febrilmente a cavar e transportar a terra, e em poucos minutos a estrada estava outra vez transitável.
O homem tirou o sapato e jogou-o com força sobre o regimento em marcha. Houve outro curto instante de afobação. Depois, as formigas lançaram-se sobre as mortas e as devoraram. O caminho estava novamente desimpedido e o negro rio continuou a fluir.
O homem soltou uma praga em africaans e calçou o sapato. Filhas duma égua. Iam ver uma coisa. Acocorando-se e suspendendo um braço para se proteger contra os espinhos, saiu pisando pela estrada das formigas. Isso lhes serviria de lição.
Ao surgir sob o luar, o homem já tinha esquecido o ódio que dedicava a tudo quanto fosse negro e virou a cabeça para a banda do norte. Graças!
Rodeou o espinheiro para ir buscar as lanternas e o pacote dos diamantes guardados nas caixas de ferramentas.
A uma milha dali, sob a copa de um arbusto, o poderoso ouvido de ferro do detector de som já parará de investigar, e o operador, que vinha transmitindo os dados aos três homens agrupados ao lado do caminhão militar, informou: — Trinta milhas. Velocidade: cento e vinte. Altura: novecentos pés.
Bond consultou o relógio.
— Tudo indica que o encontro está marcado para a meia-noite,_na lua cheia — disse ele. — O nosso homem está uns dez minutos atrasado.
— Parece que o senhor tem razão — concordou o oficial da guarnição de Freetown, a seu lado, e voltou-se para o terceiro homem. — Cabo. Veja se não tem nenhum metal aparecendo na rede de camuflagem. Com este luar, é preciso ter cuidado.
O caminhão estava coberto pelo arbusto, à beira de uma estrada de barro, que atravessava a planície na direção da aldeia de Telebadu, na Guiné Francesa. Naquela noite, haviam deixado as colinas logo que o radiolocalizador captara o barulho da motocicleta do dentista na estrada paralela. Tinham vindo com os faróis apagados e pararam quando cessou o ruído da motocicleta. Haviam estendido a rede de camuflagem sobre o caminhão, o detector de som e o canhão Bofors. E puseram-se a esperar, sem saberem ao certo quem ou o que viria ao encontro do dentista — outra motocicleta, um homem a cavalo, um jipe, um avião?
Ao ouvir no céu o longínquo matraquear, Bond soltou uma gargalhada.
— Helicóptero — disse ele. — Era só o que faltava. Preparem-se para tirar a rede quando pousar. Talvez a gente tenha de dar um tiro de advertência. O detector está ligado?
— Está, sim — respondeu o cabo que operava o aparelho. — O nosso amigo está chegando. Poderão vê-lo num minuto. O senhor está vendo aquelas luzes acolá? Devem ser do campo de pouso.
Bond passeou o olhar pelos quatro feixes de luz e, depois, contemplou o imenso céu africano.
Então aí vinha o último de todos, o derradeiro elemento da quadrilha e também o primeiro. O homem que havia visto ligeiramente em Hatton Garden. O número um da turma de Spang, cuja cotação era tão alta em Washington. O único, excetuando o inofensivo e até simpático Shady Tree, que Bond ainda não fora obrigado a matar ou — pensou no botequim de Spectreville e nos dois homens de Detroit — quase. Não que tivesse desejado matar esses indivíduos. A missão que M lhe confiara fora apenas de investigação. Mas, um a um, eles haviam tentado contra sua vida e a de seus amigos. A violência fora o primeiro, não o último recurso deles.
Violência e crueldade, as armas escolhidas. Os dois homens do Chevrolet em Las Vegas, que tinham disparado contra ele e ferido Ernie Cureo. Os dois sujeitos do Jaguar, que haviam espancado Ernie e tinham sido os primeiros a sacar os revólveres quando começara a luta. Seraffimo Spang, que mandara torturá-lo, disparara contra ele e Tiffany e procurara esmagá-los na estrada de ferro. Wint e Kidd, que haviam supliciado Tingaling Bell, Bond e Tiffany Case. E, dos sete, matara cinco — não porque gostasse de matar, mas porque alguém tinha de fazê-lo. Tivera a seu lado a sorte e três bons amigos, Félix, Ernie e Tiffany. E os malvados tinham perecido.
Agora chegava a último dos malvados, o homem que planejara a sua morte e a de Tiffany, o homem que, segundo M, arquitetara o contrabando dos diamantes, montara o canal de escoamento e o vinha dirigindo com eficiência e mão de ferro através dos anos.
Ao telefone, para Boscombe Down, M falara pouco e com certa aspereza na voz. Usara a linha do Ministério da Aeronáutica, poucos minutos antes que o Canberra decolasse para Freetown. Bond recebera o telefonema do gabinete do comandante da base, tendo nos ouvidos o grito estridente das turbinas do Canberra.
— Satisfeito de tê-lo de volta são e salvo.
— Muito obrigado, senhor.
— Que estória é essa que os vespertinos noticiaram acerca de um duplo homicídio no Queen Elizabeth?
Havia algo mais do que suspeita na voz de M.
— Eram os dois pistoleiros da quadrilha. Viajavam sob os nomes de Winter e Kitteridge. Meu camareiro desconfia que eles se desentenderam quando jogavam baralho.
— Acha que a suposição do camareiro é correta?
— É possível. Houve uma pausa.
— E os policiais também pensam assim?
— Não vi nenhum deles.
— Vou falar com Vallance.
— Ótimo — disse Bond, sabendo que essa era a maneira de M dizer que, caso Bond tivesse liquidado os dois homens, tomaria providências para que o agente e o Serviço Secreto não fossem mencionados no inquérito.
— Bem, de qualquer modo — disse M — aqueles dois eram pouco importantes. Esse Jack Spang, ou Rufus B. Saye ou ABC, ou que nome tenha, esse eu quero que você agarre. Ao que parece, ele vai agora até o extremo do canal. Vai fechá-lo. Talvez matando o que encontrar pela frente. O ponto final é o dentista. Veja se consegue pegar os dois. Faz coisa de uma semana que destaquei 2804 para trabalhar ao lado do dentista. O pessoal de Freetown acha que já se pode agir. Mas eu quero encerrar este caso e ver você de novo em seu verdadeiro posto. Esse negócio foi uma trapalhada dos diabos. Não me agradou desde o princípio. E se, afinal, conseguimos chegar ao ponto em que estamos agora, foi mais uma questão de sorte do que de boa organização.
— Concordo com o senhor — disse Bond.
— E essa moça, Case? — perguntou M. — Conversei com Vallance. Ele não deseja processá-la, a menos que você insista.
Teria M carregado um pouco no tom de indiferença?
Bond procurou evitar uma resposta muito persuasiva.
— Ela foi de grande ajuda — disse ele, esperançoso.
— Talvez a gente possa resolver quando eu apresentar meu relatório final.
— E onde está ela agora?
O negro receptor começava a ficar escorregadio na mão de Bond.
— Está a caminho de Londres, num Daimler de aluguel. Vou colocá-la no meu apartamento. Quero dizer, no quarto vago. É muito boa dona de casa.
Ela se arranjará até que eu volte. É uma boa moça, estou certo disso.
Puxou o lenço do bolso e enxugou o suor do rosto.
— Sem dúvida — disse M. Não havia ironia em sua voz.
— Está bem, então. Boa sorte. — Houve uma pausa. — Tome cuidado.
E... — a voz no outro extremo da linha tornou-se subitamente áspera — não pense que não estou satisfeito com os resultados até agora obtidos. Foram além do programa, naturalmente, mas você parece que topou muito bem a parada desse pessoal. Até logo, James.
— Até logo, senhor.
Bond levantou a vista para o céu recamado de estrelas e pensou em M e Tiffany, esperando que agora fosse mesmo o fim e que fosse rápido e tranquilo, e que logo estivesse em casa.
De pé, empunhando a quarta lanterna, o contrabandista das minas esperava. Lá vinha o helicóptero. Cortando a trajetória da lua. Como sempre, o barulho era infernal. Outro risco de que ia livrar-se.
Baixava lentamente. Agora pairava a uns vinte pés de altura. A mão apontou na janela e piscou A. O homem no chão piscou, em resposta, B e c.
As lâminas do rotor diminuíram a velocidade e, suavemente, o gigantesco inseto de aço pousou no chão.
O pó assentou. O contrabandista retirou a mão dos olhos e ajudou o piloto a descer a escadinha. Usava capacete de voo e óculos de proteção.
Extraordinário. E parecia mais alto do que o alemão. O contrabandista sentiu uma picada na espinha. Quem era esse? Aproximou-se devagar.
— Trouxe?
Dois olhos frios, sob negras sobrancelhas retas, cintilaram por trás dos óculos. Ocultavam-se quando o homem moveu a cabeça e o luar incidiu sobre o vidro. Agora eram dois círculos brancos reluzentes no meio do negro e luzidio capacete de couro.
— Trouxe — disse, nervoso, o homem das minas. — Mas onde está o alemão?
— Não virá mais. — Os dois círculos brancos cegavam o contrabandista.
— Eu sou ABC. Vim fechar o canal.
A voz era americana. Enérgica, seca, inflexível.
— Oh!
Maquinalmente, a mão do contrabandista enfiou-se na abertura da camisa. Apanhou o embrulho úmido e entregou-o ao piloto como se fosse uma oferenda de paz. À semelhança do escorpião, um mês antes, o homem das minas pressentia a pedra erguida sobre sua cabeça.
— Ajude-me a encher o tanque.
Era a voz do feitor dando ordens ao escravo. Mas o contrabandista apressou-se a obedecer.
Fizeram o serviço em silêncio. Ao terminar, voltaram ao chão. O cérebro do contrabandista trabalhava furiosamente. Ele se esforçava por adotar a voz de um associado, a voz de alguém que estivesse a par dos negócios e exercesse a mesma autoridade.
Olhou com atenção para a nesga de treva cor-de-anil onde se achava o piloto com a mão sobre a escada.. — Estive pensando bem e acho que...
A voz estacou de supetão, a boca abriu-se espavorida e deixou escapar um ruído que era uma mescla de rosnado e uivo.
A arma na mão do piloto gaguejou três vezes. O contrabandista emitiu um "Oh" numa voz servil, caiu de costas no chão, fez um esforço para se soerguer e imobilizou-se.
— Fique onde está. — A voz ressoou na planície, transmitida pelo amplificador. — Você está cercado.
Ouviu-se o ruído de um motor que se punha em funcionamento.
O piloto não procurou saber de onde vinha a voz. Pulou para a escada. A porta da carlinga fechou-se com uma pancada e zumbiu o arranque automático. O motor começou a trabalhar, as lâminas do rotor giraram, pouco a pouco foram ganhando velocidade até que se transformaram em dois redemoinhos prateados. Então, com uma sacudidela, o helicóptero elevou-se verticalmente no ar.
Em terra, entre os arbustos, o caminhão freou e Bond saltou para a sela de aço do Bofors.
— Pra cima, cabo — gritou ele para o homem que manobrava a alavanca de suspensão. Baixou os olhos para a alça de mira quando a boca da arma se ergueu para a lua. Com a mão, puxou a alavanca do seletor de fogo, tirando-a da marca de segurança e colocando-a em "Fogo". — Esquerda, dez.
— Eu alimentarei.
O oficial ao lado de Bond tinha nas mãos dois depósitos de obuses pintados de amarelo.
Os pés de Bond firmaram-se nos pedais do gatilho. O helicóptero estava no centro da alça de mira.
— Firme — disse ele calmamente.
— Bumpa.
O obus reluzente rodou no alto a uma velocidade apenas menor do que a do som. Baixo e à esquerda. O cabo girou delicadamente as duas alavancas.
— Bumpa.
O obus deu a volta por cima do helicóptero. Bond inclinou-se para a frente e puxou a alavanca do seletor para "Fogo Automático". A mão relutava. Agora a morte era inevitável. Mais uma vez ele tinha de tomar essa decisão.
— Bumpa... bumpa... bumpa... bumpa... bumpa... O fogo vermelho espargiu-se no céu. O helicóptero continuou a avançar para a lua e depois rumou para o norte.
— Bumpa... bumpa...
Houve um espocar de luz amarela perto do rotor da cauda e um estrondo de explosão distante.
— Acertou — disse o oficial, pegando o binóculo. — O rotor da cauda está perdido — disse ele. E logo, agitado: — Puxa! Parece que toda a cabina está girando com o rotor principal! O piloto está atolado.
— Mais algum? — perguntou Bond, mantendo na mira o helicóptero em chamas.
— Não, senhor — disse o oficial. — Seria bom se conseguíssemos pegá-
lo vivo. Mas parece... é, sim, já perdeu o controle. Vem caindo de ponta.
Deve haver alguma coisa com as lâminas do rotor principal. Lá vem ele.
Bond levantou a vista e resguardou os olhos contra a claridade intensa.
— Sim. Lá vem ele. A cem pés, o motor ribombando e as hélices girando inutilmente enquanto a embrulhada metálica despencava do céu em cambaleios e guinadas de ébrio.
Jack Spang. O homem que ordenara o assassínio de Bond. Que ordenara o assassínio de Tiffany. O homem que Bond vira apenas uma vez, durante alguns minutos, numa sala superaquecida em Hatton Garden. Mr. Rufus B.
Saye. Da House oi Diamonds. Vice-Presidente para a Europa. O homem que jogava golfe em Sunningdale e visitava Paris uma vez por mês. "Cidadão exemplar", M dissera dele. Mr. Spang, da quadrilha de Spang, que acabara de matar um homem — o último de quantos?
Bond imaginava a cena dentro da estreita carlinga. O homem dirigindo com uma das mãos e com a outra mexendo desesperadamente nos controles, enquanto observava a agulha do altímetro baixar vertiginosamente. Nos olhos, o rubro clarão do terror. As centenas de milhares de libras esterlinas em diamantes reduzidas a peso morto. A arma, que desde a infância, fora um poderoso braço direito, agora inútil.
— Vai pra cima do espinheiro — bradou o cabo acima da barulheira.
— Está perdido — disse o capitão, a meia voz.
Contemplaram as últimas guinadas; depois, suspenderam a respiração quando o aparelho, num bamboleio desenfreado, empinou o nariz e, como se o espinheiro fosse seu inimigo, deu um mergulho irado, descrevendo uma curva de vinte jardas, e arremessou-se com os rotores desgovernados contra os espinhos.
Antes de se extinguirem os ecos da colisão, ouviu-se um ribombo cavo e uma bola de fogo, projetada no ar, ofuscou o clarão da lua e banhou a planície inteira num fulgor alaranjado.
O capitão foi o primeiro a falar.
— Opa! — exclamou, tirando o binóculo e voltando-se para Bond. — Bem — disse ele, resignado — nada a fazer. Acho que só quando amanhecer a gente vai poder se aproximar. E só com o dia alto é que se poderá revolver os destroços. Mas pode esperar que daqui a pouco os soldados franceses da fronteira estarão aqui. Felizmente estamos em boas relações com eles. O governo é que passará um bocado de tempo discutindo com Dakar. — O oficial previa as idas e vindas da papelada e sentia-se ainda mais exausto.
Homem prosaico, achava que o dia já lhe trouxera boa dose de canseiras. — O senhor se incomoda se a gente tirar uma pestana?
— À vontade — disse Bond, e consultou o relógio. — É melhor irem pra debaixo do caminhão. Eu mesmo não estou com sono. Vou ficar de olho.
Pode ser que o fogo ameace se alastrar.
O oficial lançou um olhar inquiridor a esse homem calmo e enigmático, que chegara de repente ao Protetorado no meio de uma enxurrada de recomendações de "Prioridade Absoluta". Se a gente nunca precisasse dormir... Bom, isso nada tinha que ver com Freetown. Era coisa de Londres.
— Muito obrigado, então — disse o oficial e jogou-se debaixo do caminhão.
Bond retirou vagarosamente os pés dos pedais do gatilho e reclinou-se no encosto da sela de aço. Maquinalmente, com os olhos pousados ainda nas chamas saltitantes, enfiou as mãos nos bolsos do desbotado blusão caqui, que lhe haviam arranjado na base, puxou um cigarro, acendeu-o e tornou a guardar a cigarreira e o isqueiro.
Aí estava o fim do contrabando de diamantes. A última página da estória. Deu uma tragada e expeliu a fumaça com um suspiro longo e calmo.
Seis cadáveres a zero. Vitória folgada.
Ergueu a mão e limpou a testa suada. Atirou para trás a mecha de cabelo que lhe caía por cima da sobrancelha direita, e o clarão vermelho iluminou-lhe o rosto duro e magro e cintilou nos olhos cansados.
Esse imenso e rubro ponto final assinalava o desmoronamento da Quadrilha de Spang e o término do fabuloso contrabando de diamantes. Não o fim dos diamantes que se tostavam do interior do braseiro. Eles sobreviveriam e outra vez iriam percorrer o mundo. Descoloridos, talvez, mas indestrutíveis, tão permanentes como a morte.
E Bond recordou, instantaneamente, os olhos do cadáver cujo sangue havia pertencido ao grupo F. Tinham-se enganado. A morte é eterna. Mas os diamantes também são eternos.
Bond desceu do caminhão e pôs-se a andar lentamente em direção à fogueira crepitante. Levava um sorriso sombrio nos lábios. Toda essa estória acerca de morte e diamantes era demasiado solene. Para Bond, era apenas o fim de outra aventura. Outra aventura que bem podia ter por epitáfio as palavras de Tiffany Case. E reviu a boca ardente e irônica que lhe dizia: — Contada é uma coisa, vivida é outra.
20 - Chamas que saem do alto
O UNIFORME PRETO de homem-rã estava muito apertado. Doía no corpo todo. Por que cargas d'água Strangways não tinha se certificado de que o Almirantado tinha suas medidas corretas? E era muito escuro no fundo do mar, as correntes eram muito fortes, arrastavam-no para o banco de coral.
Era preciso nadar com todo o ímpeto para afastar-se dali. Mas agora algo lhe prendia o braço. Que diabo...?
— James! Pelo amor de Deus, James! — Ela apertou a boca ao ouvido dele. Desta vez ela beliscou-lhe o braço nu e ensanguentado com tanta força que, afinal, os olhos de Bond se abriram entre as pálpebras inchadas, e ele a contemplou do piso de madeira em que estava deitado e deu um suspiro de sobressalto.
Ela puxou-o para si, com medo que ele lhe escapasse outra vez. Ele pareceu entender e se revolveu, erguendo-se sobre as mãos e os joelhos, a cabeça pendida para o chão, como um animal ferido.
— Pode andar?
— Espere. — O murmúrio espesso que lhe atravessou os lábios arrebentados soou-lhe estranho aos ouvidos. Talvez ela não tivesse compreendido. — Espere — repetiu ele, enquanto sua mente passava a explorar o corpo para ver o que lhe tinha sobrado. Podia sentir os pés e as mãos. Podia mover a cabeça de um lado para outro. Podia ver as barras do luar nas pranchas de madeira. Pudera ouvir a moça. Devia estar inteiro, mas não queria mover-se. Sua força de vontade o tinha abandonado. Apenas desejava dormir. Ou talvez mesmo morrer. Qualquer coisa, contanto que mitigasse a dor que lhe avassalava o corpo todo, apunhalando-o, martelando-o, triturando-o — e matasse a lembrança das quatro botinas que o haviam golpeado e dos rosnados proferidos pelos dois vultos encapuzados.
Assim que pensou nos dois homens e em Mr. Spang, a vontade de viver retornou.
— Está bem — disse, e tornou a dizer para que ela compreendesse.
— Estamos na sala de espera — sussurrou a moça. — Temos de chegar ao extremo da estação. À esquerda, depois da porta. Está me ouvindo, James?
Ela estirou a mão e afagou-lhe os cabelos úmidos, viscosos, caídos na testa.
— Tenho de me arrastar — disse Bond. — Atrás de você.
A moça ergueu-se e abriu a porta. Bond trincou os dentes e saiu de rastros para a plataforma enluarada. E quando avistou a mancha escura no chão, a raiva e o desejo de vingança deram-lhe forças para se levantar.
Balançando a cabeça para não se afogar nas ondas negro-avermelhadas e amparado em Tiffany Case, cujo braço lhe envolvia a cintura, foi coxeando pelas tábuas até a rampa por onde desceram para o chão junto dos trilhos reluzentes.
E lá, no desvio, havia um vagonete.
Bond parou e olhou-o atentamente.
— Gasolina? — perguntou com ar vago.
Tiffany Case fez um gesto para uma fileira de latas encostadas no muro da estação. — Está cheio — sussurrou. — É usado na inspeção da linha. Eu sei colocá-lo em funcionamento. Já desloquei as agulhas. Depressa. Suba — soltou uma risadinha abafada. — Próxima parada: Rhyolite.
— Isso é que é uma garota — murmurou Bond. — Mas vai fazer um barulho danado quando esse troço começar a funcionar. Espere. Tenho uma ideia. Tem fósforos?
Metade da dor tinha desaparecido. Respirava forte quando deu as costas à moça e observou as silenciosas casas de madeira.
Ela estava usando calças compridas e blusa. Enfiou a mão no bolso das calças e entregou-lhe o isqueiro.
— O que é que vai fazer? — perguntou. — Já devíamos ter partido.
Mas Bond manquejou até as latas de gasolina e pôs-se a destampá-las e a arremessar o líquido sobre as paredes e a plataforma de madeira. Depois de esvaziar meia dúzia de latas, voltou para onde ela estava. — Ligue a bicha.
— Curvou-se com esforço e apanhou um jornal amassado ao lado dos trilhos. Ressoou o gemido raivoso do arranque automático, o motor de dois tempos pegou e começou a martelar.
Bond acendeu o isqueiro. O papel pegou fogo e Bond jogou-o entre as latas de gasolina. O espocar das labaredas quase o alcançou quando ele se lançou de costas ao estribo do vagonete. Mas então a. moça soltou a embreagem e o carro começou a deslizar pelos trilhos.
Houve um matracolejar e um sacolejo desagradável ao chegarem às agulhas; e depois, entrados na linha> principal, o velocímetro tremia marcando trinta milhas e os cabelos da moça flutuavam à frente de Bond como uma bandeira.
Bond voltou-se e contemplou a gigantesca floração de chamas que ia ficando para trás. Podia quase ouvir o crepitar das pranchas secas e os berros dos que despertavam. Se pelo menos o fogo pegasse Wint e Kidd, apanhasse a pintura do Pullman e se alastrasse pela lenha do tender do Cannonball e acabasse de uma vez com a caixa de brinquedos de Mr. Spang!
Mas ele e a moça tinham seus próprios problemas. Que horas eram?
Bond aspirou o ar fresco da noite e tentou colocar de novo a mente para trabalhar. A lua estava baixa. Quatro horas? Bond avançou com dificuldade pelo estribo até os dois assentos de encosto dobradiço e conseguiu sentar-se ao lado da moça.
Passou-lhe um braço em volta dos ombros, e ela voltou-se com um sorriso nos lábios. Levantando a voz acima do barulho da máquina e do matracolejar das rodas de ferro sobre os trilhos, ela falou: — Foi uma escapada e tanto. Parecia coisa de filme de Buster Keaton.
Como se sente? — Inspecionou o rosto combalido. — Você está massacrado, hein?
— Nenhuma fratura — disse Bond. — Acho que é isso que se entende por oitenta por cento. — Fez uma careta de dor. — É melhor ser tratado a pontapé do que a bala.
O rosto de Tiffany Case contraiu-se.
— E eu tive de ficar sentada lá e fingir que não ligava. Spang, ao meu lado, escutava e me observava. Depois, eles viram que você já estava nas últimas, atiraram você na sala de espera e todo mundo foi para a cama satisfeito da vida. Esperei uma hora em meu quarto e então resolvi agir. O
pior de tudo foi tentar despertar você.
Bond apertou-lhe os ombros com o braço.
— Direi o que penso de você quando estiver menos contundido. Mas, e você, Tiffany? Vai ficar em maus lençóis se eles nos pegarem. E quem são os dois encapuzados, Wint e Kidd? O que é que eles vão fazer agora?
Gostaria de vê-los de novo.
A moça olhou de viés para a feia equimose na boca de Bond.
— Nunca os vi sem os capuzes — confessou ela. — Suponho que eles são de Detroit. Pistoleiros. Encarregam-se dos trabalhos violentos e de missões especiais secretas. Virão em nosso encalço. Mas não se preocupe comigo. — Encarou-o de novo e seus olhos irradiavam felicidade. — A primeira coisa a fazer é levar essa joça a Rhyolite. Depois teremos de achar um carro e cruzar a fronteira com a Califórnia. Dinheiro não vai faltar-. Eu trouxe. Depois iremos a um médico, arranjaremos um banho e uma camisa nova pra você e pensaremos no que vamos fazer. Trouxe seu revólver. Foi encontrado por um dos rapazes que ajudaram a recolher os restos daqueles dois sujeitos que você arrasou no botequim. Apanhei a arma depois que Spang foi para a cama.
Ela desabotoou a blusa e enfiou a mão no cós das calças.
Bond recebeu a Beretta, e sentiu a quentura do corpo da moça no metal.
Removeu o pente. Sobravam três cartuchos, e um estava na agulha.
Recolocou o pente, fechou o registro de segurança e guardou a arma na cintura. Só então notou que estava sem paletó. Uma das mangas da camisa fora reduzida a um trapo. Arrancou-a e jogou-a fora. Apalpou o bolso traseiro direito da calça, à procura da cigarreira e não a encontrou. Mas no esquerdo estavam ainda o passaporte e a carteira de cédulas. Puxou-os do bolso. À luz da lua pôde ver que ambos estavam danificados. O dinheiro continuava na carteira. Pôs outra vez os objetos no bolso.
Durante algum tempo avançaram pela estrada. O silêncio da noite era cortado apenas pelo ronrom da máquina e pelo matraquear das rodas. Até onde a vista alcançava, havia somente uma interrupção da estreita linha prateada dos trilhos, assinalada pela alavanca de manobra das agulhas, no ponto em que um ramal enferrujado penetrava na massa escura dos montes Spectre à direita. À esquerda, descortinava-se o infindável chão do deserto em que o lampejo da aurora começava a debruar de azul as moitas de cactos contorcidos e, duas milhas além, o luar esparramava seu clarão cinza-chumbo sobre a Rodovia 95.
O vagonete cantarolava feliz nos trilhos. Os instrumentos de controle eram poucos: uma alavanca de freio e uma espécie de manche com um acelerador de cabo retorcido que a moça mantinha completamente aberto, com o velocímetro firme em trinta milhas. As milhas e os minutos passavam e, de vez em quando, Bond virava-se com dificuldade na cadeira e inspecionava o florescente rubor do céu às suas costas.
Fazia cerca de uma hora que tinham partido quando um leve zumbido, vibrando no ar ou nos trilhos, pôs Bond de sobreaviso. Novamente ele olhou por cima do ombro. Haveria um vago bruxoleio entre eles e o falso alvorecer da cidade em chamas?
Bond sentiu leve comichão no couro cabeludo.
— Veja se enxerga alguma coisa ali atrás.
A moça voltou-se. Depois, sem responder, diminuiu a marcha do carro que passou a deslizar suavemente.
Puseram-se à escuta. Sim. Era nos trilhos. Uma leve trepidação, nada mais do que um suspiro distante.
— É o Cannonball — disse Tiffany, categórica.
Deu um brusco repelão no acelerador, e o vagonete tornou a ganhar velocidade.
— Quanto pode fazer a locomotiva? — perguntou Bond.
— Talvez sessenta.
— E daqui pra Rhyolite?
— Trinta, mais ou menos.
Bond fez as contas em silêncio.
— Vai ser por um triz. Não é fácil dizer a que distância ela está de nós. E
esse treco pode dar mais alguma coisa?
— Que nada! — disse ela, — Nem que eu me chamasse Casey Jones em vez de Tiffany Case.
— Não tem importância — disse Bond. — Toca pra frente. Talvez ela vá prós ares com uma explosão.
— Ah, sim — disse ela. — Ou talvez a mola dê o prego, ou Spang se lembre que deixou a chave do motor em casa, no bolso da calça.
Viajaram mais quinze minutos em silêncio. Então, Bond divisou o grande farol da locomotiva varando a noite, a umas cinco milhas de distância, e as centelhas subindo pela chaminé. Os trilhos trepidavam e o que tinha sido um suspiro longínquo era agora um murmúrio baixo, ameaçador.
Talvez venha a faltar lenha, pensou Bond. Num impulso, ele perguntou despreocupadamente à moça:
— Será que temos bastante gasolina?
— Temos, sim — disse Tiffany. — Botei uma lata inteira. Não tem mostrador, mas esses motorzinhos giram a vida inteira com um galão.
Mal ela havia acabado de falar, e como se fizesse um comentário, o motorzinho deu uma tossidela de reprovação — cóf-cóf-cóf — e continuou a rodar alegremente.
— Ai, meu Deus! — exclamou Tiffany. — Ouviu isso? Bond ficou calado. Sentiu as mãos tornarem-se úmidas. Outra vez: cóf-cóf-cóf.
Tiffany Case acalentou delicadamente o acelerador.
— Ah, motorzinho querido — disse ela em tom de súplica. —' Vamos, motorzinho lindo, seja bonzinho, por favor...
— Cóf-cóf. Cóf-cóf. Chi. Cóf. Chiiiii...
E no instante seguinte estavam eles escorregando brandamente em silêncio. Vinte e cinco, dizia o velocímetro. Vinte... quinze... dez... cinco.
Um último e selvagem repelão no acelerador, um pontapé de Tiffany Case na armação do motor, e tinham parado.
— Porra! — disse Bond. Com esforço conseguiu saltar e manquejar até o tanque na traseira do vagonete. Tirou do bolso da calça o lenço ensanguentado, desatarraxou a tampa do funil e introduziu o lenço até tocar o fundo do tanque. Puxou-o para fora, apalpou-o e cheirou-o. Seco como um osso.
— Nada feito — disse ele para Tiffany. — Vamos pensar numa saída.
Olhou em volta. Nenhum abrigo à esquerda, e duas milhas pelo menos até à estrada de rodagem. À direita, as montanhas, talvez a um quarto de milha. Podiam chegar lá e esconder-se. Mas por quanto tempo? Contudo, era o melhor alvitre. O chão, sob seus pés, tremia. Esquadrinhou a linha férrea iluminada pelo olho incandescente, implacável. A que distância? Duas milhas? Spang enxergaria o vagonete? Teria tempo de parar? Haveria descarrilamento? Mas aí Bond lembrou-se do poderoso limpa-trilhos, que varreria da linha o vagonete como se fosse um feixe de palha.
— Vamos, Tiffany — bradou ele. — Temos de escalar as colinas.
Onde estava ela? Bond rodeou o carro. Ela vinha correndo pelo trecho da estrada que tinham pela frente. Aproximou-se arquejante.
— Há um desvio logo ali adiante — disse ela entre um ofego e outro. — Se a gente puder empurrar essa coisa até lá e se você puder manobrar as velhas agulhas, pode ser que a gente escape.
— Deus do céu! — disse Bond lentamente. E depois, com uma nota de pasmo na voz, acrescentou: — Há uma coisa melhor do que essa. Me ajude aqui — e, curvando-se, rilhou os dentes contra a dor e começou a empurrar o vagonete.
Recebido o impulso inicial, o carro moveu-se facilmente e eles precisavam apenas segui-lo e não deixar que parasse. Chegaram às agulhas, mas Bond continuou a empurrar até que pararam umas vinte jardas além.
— Que diabo é que você vai fazer? — arquejou Tiffany.
— Vamos pra cá — respondeu Bond, correndo aos tropeções para o ponto em que a chave enferrujada ressaltava ao lado dos trilhos. — Vamos colocar o Cannonball no desvio.
— Genial! — disse Tiffany Case com admiração. Puseram mãos à obra, e os músculos doloridos de Bond forcejavam por erguer a chave.
Lentamente o metal enferrujado começou a mover-se no leito onde jazia imóvel havia cinquenta anos, e milímetro a milímetro os trilhos mostraram uma fenda, que foi se alargando à medida que Bond puxava a alavanca.
Ao terminar, Bond caiu de joelhos no chão, com a cabeça dobrada para baixo, lutando contra a tontura que ameaçava dominá-lo.
Mas já então um feixe de luz iluminava o chão e Tiffany procurava arrastá-lo. Bond ergueu-se e voltou aos trambolhões para o vagonete. O ar estrondava e se enchia do plangente clangor do sino enquanto o flamejante cavalo de ferro galopava em direção a eles.
— Abaixe-se e não se mexa — bradou Bond por cima do barulho e lançou-a ao chão por trás do frágil biombo do vagonete. Depois, coxeou o mais rápido que pôde até a margem dos trilhos, puxou a arma, colocando-se de viés com o braço levantado como um duelista e voltou os olhos semicerrados para o gigantesco farol que avançava debaixo do vulcão de fogo e fumaça turbilhonantes.
Puxa, que monstro! Entraria ele na curva? Ou não respeitaria o desvio e os esmagaria? Lá vinha ele.
— Fittt.
Algo açoitou o chão ao lado de Bond e houve um clarão momentâneo na cabina.
— P-o-e-m-m-m.
Houve outro clarão, e a bala atingiu o trilho, gemendo na noite.
— Trac. Trac. Trac.
Agora era-lhe possível ouvir o revólver acima do trovejar da locomotiva.
Algo cantou em tom agudo no ouvido de Bond.
Bond não respondeu. Só quatro balas, e ele sabia quando devia disparar.
E então, a vinte jardas, a locomotiva entrou na curva e desembestou pelo desvio com uma guinada tão violenta que atirou as achas de lenha do alto do tender na direção de Bond.
Houve um grito roufenho de metal quando as bordas das rodas motrizes de seis pés de altura dobraram a curva, uma breve impressão de fumaça, chama e ruído de motor, e, depois, uma rápida visão da cabina e do vulto negro e prateado de Spang, de braços abertos e pernas estendidas, agarrando-se com uma das mãos ao costado da cabina e com a outra precipitando-se para a alavanca do acelerador.
A arma de Bond bradou suas quatro palavras. Houve um curto vislumbre de uma cara branca arremessada para o alto, e logo a enorme locomotiva preta e amarela distanciou-se, reboando rumo à muralha sombria dos montes Spectre, o feixe de luz do farol ceifando a treva e o sino dobrando tristemente dim-dão, dim-dão, dim-dão.
Bond guardou lentamente a Beretta no cós das calças, e ficou olhando o ataúde de Mr. Spang, enquanto a esteira de fumaça subia no ar e por um momento encobria a face da lua.
Tiffany veio correndo até onde ele estava, e lado a lado puseram-se a contemplar a bandeira de chamas que se elevava da alta chaminé e escutar as montanhas multiplicarem o atroar da locomotiva. A moça agarrou-lhe os braços quando o comboio deu uma guinada repentina e sumiu-se atrás de um esporão da pedra. E agora ouvia-se apenas um longínquo tamborilar nas montanhas e avistava-se um clarão vermelho que fazia tremular os penhascos enquanto Cannonball despencava no bojo da rocha.
E subitamente apareceu uma imensa língua de fogo, no mesmo instante em que se produziu tremendo choque metálico semelhante ao encontrão de um encouraçado num penedo. Debaixo de seus pés ressoou um estrépito abafado. Finalmente, um ribombo distante e profundo levantou-se das entranhas da terra, seguido por uma barragem de ecos os mais variados.
Então, findos todos os ruídos, zuniu, firme, o silêncio.
Bond soltou um suspiro profundo como se estivesse despertando. Aí estava o fim de um dos Spangs, de um dos enfatuados, cruéis, aparatosos, irrecuperáveis adultos que compunham a quadrilha dos Spangs. Fora um gangster teatral e vivera num ambiente de caixa de palco. Mas isso não alterava o fato de que pretendera liquidar Bond.
— Vamos embora daqui — disse Tiffany Case com sofre-guidão. — Para mim chega de Spectreville.
Bond sentiu a dor insinuar-se-lhe outra vez por todo o corpo à medida que passava a tensão. "Vamos" — respondeu, lacônico. Alegrava-o a ideia de voltar as costas à lembrança daquele rosto branco virado para cima, dentro da bela locomotiva negra em marcha. Estava ligeiramente tonto e duvidava se seria capaz de fazer o percurso.
— Temos de alcançar a estrada. Vai ser difícil. Mas vamos embora.
Levaram uma hora e meia para vencer as duas milhas e, no momento em que se prostrou no solo à margem da estrada de cimento, Bond estava delirante. Foi a moça que o conduziu até lá. Sem ela, ele não teria chegado.
Teria tropeçado no meio dos cactos, das pedras e da mica até que lhe faltassem as forças e o sol causticante se encarregasse de completar o serviço.
Agora ela lhe segurava a cabeça no regaço, falava-lhe docemente e lhe enxugava o suor da testa com a ponta da blusa.
E de vez em quando parava para examinar uma banda e outra da estrada retilínea de concreto, cujos horizontes já tremeluziam nas ondas de calor do amanhecer.
Uma hora depois, ela ergueu-se de um salto, enfiou a blusa por dentro das calças, correu e parou no meio da estrada. Um carro baixo e negro rompia a neblina esvoaçante que ocultava o distante vale de Las Vegas.
O carro estacou justamente diante dela. Um rosto adunco sob um topete desalinhado de cabelo cor de palha assomou à janela. Os penetrantes olhos cinzentos miraram-na de alto a baixo. Pousaram-se na figura do homem deitado no solo à margem da estrada e tornaram para a moça.
Então, com a amistosa fala arrastada dos texanos, o chofer rompeu o silêncio:
— Félix Leiter, senhorita. Às suas ordens. Em que posso servi-la nesta magnífica manhã?
21 - "Nada é tão apropinquante como a propinquidade"
—...E QUANDO CHEGUEI à cidade telefonei pra meu amigo Ernie Cureo. James sabe quem é. A mulher dele estava de ataque e Ernie no hospital. Corro pra lá e ele me passa o serviço e eu imagino que James pode precisar de reforços. Monto na minha égua preta cor de carvão e vou esquipando noite adentro e quando chego perto de Spectreville vejo o clarão no céu. Calculo então que Mr. Spang está preparando um churrasco. O
portão da cerca está aberto e eu resolvo tomar parte na festa. Bom, creiam-me vocês ou não, o fato é que não há vivalma no local, exceto um cara de perna arrebentada e contusões generalizadas, que vem se arrastando pela estrada, tentando dar o pira. E ele me dá a impressão de ser um arruaceiro de nome Frasso, de Detroit. Ernie Cureo tinha dito que era um dos caras que tinham levado James. Ele não estava em condições de negar isso e eu então manjei a situação toda e compreendi que Rhyolite era minha próxima parada. Aí eu digo pro nosso amigo que daí a pouco os bombeiros virão fazer companhia a ele, levo-o até o portão e deixo-o lá. E de uma hora para outra vejo uma guria no meio do deserto, com o ar de quem tinha sido disparada de um canhão. E aqui estamos todos. Agora é a vez de vocês contarem.
"Então tudo isto não é parte de um sonho e eu estou deitado no assento traseiro no Studillac e este é o colo de Tiffany debaixo da minha cabeça e aquele ali é Félix e nós estamos indo às carreiras pela estrada a caminho da segurança, de um médico, de um banho, de comida, de bebida e de um longo sono reparador." Bond mexeu-se e sentiu que a mão de Tiffany em seu cabelo dizia que tudo era real e tal como havia esperado. Imobilizou-se novamente e nada disse. Guardava cada momento para si e lhes escutava as vozes e o zunido dos pneus rolando pela estrada.
Ao fim da narrativa de Tiffany, Félix Leiter largou um assobio de estupefação.
— Puxa! — exclamou ele. — Então vocês dois abriram um rombo espetacular na quadrilha de Spang. Que diabo é que vai acontecer agora? Há muitos outros marimbondos na casa e isso de ficar zumbindo em volta não é do feitio deles. Eles vão exigir ação.
— Certo! — disse Tiffany. — Spang era membro da associação de Las Vegas, e esses camaradas são muito solidários. Há também Shady Tree e aqueles dois pistoleiros, Wint e Kidd. Só o diabo sabe quem são eles. Quanto mais cedo a gente cruzar a fronteira estadual, melhor. E depois, o que vamos fazer?
— Até aqui vai tudo em ordem — disse Félix Leiter. — Em dez minutos chegaremos a Beatty, depois pegaremos a 58 e passaremos nela uma meia hora. Em seguida, toparemos um longo trecho através do Vale da Morte e sobre as montanhas até Olancha, onde atingiremos a N.° 6. Poderíamos dar uma paradinha lá, levar James a um médico, comer alguma coisa e tomar um banho. Depois continuaremos na 6 até chegarmos a Los Angeles. Será muito puxado, mas poderemos estar em Los Angeles na hora do almoço. Aí podemos descansar um pouco e bolar algum plano. Meu palpite é que temos de tirar você e James do país o mais cedo possível. Os meninos tentarão pegar vocês dois de qualquer jeito, e se conseguirem eu não darei um níquel pela vida de nenhum dos dois. A melhor solução seria botá-los num avião para Nova York hoje de noite e despachá-los amanhã para a Inglaterra.
James pode embarcar lá.
— Acho que é razoável — disse a moça. — Mas, afinal, quem é esse Bond? O que é que ele faz? É um detetive ou coisa semelhante?
— Acho melhor que você mesma pergunte a ele — Bond ouviu Leiter dizer cautelosamente. — Mas eu, se fosse você, não me preocuparia com isso. Ele cuidará de você.
Bond sorriu para si mesmo e, no longo silêncio que se seguiu, caiu num sono intranquilo que durou até o momento em que atravessaram a Califórnia e o carro parou defronte de um portãozinho com a placa "Otis Fairplay, Médico".
E depois, enfaixado e pintado com mercúrio-cromo, banhado e barbeado, com um suculento café matinal no estômago, Bond voltou ao carro e ao mundo. Tiffany readquirira o velho ar irônico e intratável e Bond revelava-se útil na espionagem dos patrulheiros rodoviários, enquanto Leiter avançava a oitenta milhas pela interminável estrada estonteante, rumo à longínqua linha de nuvens que escondiam as High Sierras.
Mais tarde rolavam tranquilamente ao longo de Sunset Boulevard, ladeado pelas palmeiras e pelos gramados verdejantes. O Studillac coberto de poeira destoava no meio das cintilantes Corvettes e Jaguars. Finalmente, ao anoitecer, estavam sentados no bar escuro e refrigerado do Beverly Hills Hotel. Havia novas maletas no saguão, roupas novas adquiridas em Hollywood, e até mesmo o rosto de Bond, marcado de cicatrizes da luta, poderiam indicar que tinham terminado o trabalho nos estúdios.
Havia um telefone em cima da mesa, ao lado dos martinis. Félix Leiter acabava de falar com Nova York pela quarta vez desde que haviam chegado.
— Bom, está tudo arranjado — disse ele, desligando o telefone. — Meus colegas do escritório conseguiram passagens no Elizabeth. Adiou a partida por causa de uma greve nas docas. Sai amanhã de noite, às oito. Eles.irão ao encontro de vocês de manhã em La Guardiã, com as passagens, e vocês serão levados para bordo de tarde. Pegaram o resto de suas coisas no Astor, James. Uma pasta e os teus célebres tacos de golfe. E Washington oferece um passaporte a Tiffany. Haverá um homem do Departamento de Estado no aeroporto. Vocês terão que assinar uns formulários. Consegui que um dos meus antigos colegas da CIA arranjasse a coisa. Os vespertinos fizeram uni bruto estardalhaço com a estória. "Cidade Morta Desaparece" e outras manchetes desse tipo. Mas parece que ainda não descobriram nosso amigo Spang e os nomes de vocês não figuram no noticiário. Meu pessoal diz que não há nada com vocês na polícia, mas um de nossos informantes secretos diz que as quadrilhas estão à procura de vocês e espalharam por toda parte uma descrição de ambos. Com a promessa de dez mil. Assim, é melhor mesmo dar no pé o mais cedo possível. É aconselhável irem para bordo separadamente. Tomem o maior cuidado, vão para os camarotes e não saiam de lá. Vai haver o diabo quando eles chegarem ao fundo daquela velha mina.
Isso fará pelo menos três cadáveres a zero, e esse tipo de escore não é do agrado deles.
— Pinkerton é uma verdadeira máquina — disse Bond, com admiração.
— Mas ficarei satisfeito quando estivermos longe daqui. Eu pensava que os seus gangsters eram um bando de italianos untuosos, que se empanturravam de pizza e cerveja a semana toda e no sábado assaltavam uma garagem ou uma farmácia para arranjarem dinheiro para as corridas. Mas não há dúvida que eles incluem um bocado de violência na folha de pagamentos.
Tiffany Case riu zombeteiramente.
— Você precisa mandar examinar essa cabeça — disse ela, categórica.
— Se sairmos inteirinhos do Lizzie será um verdadeiro milagre. Por aí você pode ter uma ideia de como eles são. Se não fosse aqui o nosso Capitão Gancho-de-Aço, não sei o que seria de nós. Untuosos! Pois sim!
Félix Leiter soltou uma risadinha.
— Calma, pombinhos — disse ele, consultando o relógio. — Temos de partir. Preciso voltar a Las Vegas hoje de noite e começar a procurar o esqueleto do nosso Shy Smile. E vocês têm de pegar o avião. Poderão continuar a arenga a vinte mil pés de altura. De lá a perspectiva é mais interessante. É possível até que terminem como amigos. Lembrem-se do que se diz por aí. — Fez um aceno para o garçom. — Nada é tão apropinquante como a propinquidade.
Leiter levou-os ao aeroporto e deixou-os lá. Bond sentiu um nó na garganta quando o vulto magro saiu coxeando para o carro depois de ter sido efusivamente abraçado por Tiffany Case.
— Você pode dizer que tem um amigo de verdade — disse a moça ao ver Leiter bater a porta e ouvir o estrondo do escape enquanto o carro partia de volta ao deserto.
— Sim — disse Bond. — Félix é cem por cento.
O luar arrancou cintilações do gancho de aço quando Leiter acenou um último adeus. Depois, a poeira assentou na estrada e soou a voz de ferro do alto-falante: "Trans-World Airline, Voo 93. Embarque no Portão N.° 5 para Chicago e Nova York. Todos a bordo, por favor." Eles abriram caminho através das portas de vidro e deram os primeiros passos de sua longa viagem para Londres.
O novo Super-G Constellation roncou por cima do continente envolto em sombras, e Bond, deitado em seu confortável beliche, esperando que o sono lhe tomasse conta do corpo dolorido, pensava em Tiffany, que dormia no beliche de baixo, e no estágio em que se encontrava sua missão.
Pensou no lindo rosto adormecido sobre a mão aberta, inocente e indefeso, esvaecidos o desdém dos olhos cinzentos e rasos e a curva irônica dos cantos da boca ardente. Bond sabia que estava bem perto de apaixonar-se. Mas, e ela? Até onde ia aquela rebelião masculina gerada certa noite em São Francisco, quando os homens lhe invadiram o quarto e a ofenderam?
Chegariam a adolescente e a mulher a transpor a barricada que haviam começado a construir naquela noite contra todos os homens do mundo?
Romperia ela a concha que os anos de solidão e retraimento tornavam cada vez mais rija?
Bond recordou aqueles momentos das últimas vinte e quatro horas em que conhecera a resposta, momentos em que uma jovem arrebatada e terna surgira feliz, sem a máscara agressiva que usava entre os gangsters, no contrabando, no cassino, na mesa de vinte-e-um, e lhe dissera: — Toma-me pela mão. Abre a porta e caminharemos de mãos dadas no dia claro. Não te preocupes. Acertarei meu passo pelo teu. Sempre estive a teu lado em pensamento, mas tu não vieste e passei a vida escutando outra cadência.
Sim, pensou ele. Tudo correrá bem, por esse lado. Mas estava preparado para as consequências? Uma vez que a tomasse pela mão, seria para sempre.
Estaria no papel do médico, do psicanalista, a quem a paciente transfere seu amor e sua confiança, enquanto se liberta da doença. Não poderia haver maior crueldade do que soltar-lhe a mão depois de a ter tomado nas suas.
Estava preparado para as repercussões que esse ato teria em sua vida e em sua profissão?
Bond mexeu-se no beliche e descartou-se do problema. Era muito cedo ainda para enfrentá-lo. Estava indo muito depressa. Mais devagar. Cada coisa a seu tempo. E obstinadamente arquivou a questão, dirigindo os pensamentos para M e para a missão que lhe cumpria concluir antes de perder tempo com sua vida particular.
Bem, uma parte da serpente estava esmagada. A cabeça ou o rabo?
Difícil dizer, mas Bond tendia a julgar que Jack Spang e o misterioso ABC
eram os verdadeiros manipuladores do contrabando de diamantes e que Seraffimo se incumbia da receptação. Seraffimo podia ser substituído.
Tiffany podia ser dispensada. Shady Tree, a quem ela poderia implicar no contrabando, teria de ficar oculto até que a tormenta — se é que Bond era realmente um prenuncio de tempestade — se desencadeasse. Mas nada havia que pudesse implicar Jack Spang ou a House of Diamonds, e a única pista para ABC era o telefone londrino, cujo número Bond trataria de obter da moça o mais cedo possível. Mas este, e todo mecanismo dos contados a ele relacionados, seria alterado logo depois que todos os fatos da deserção de Tiffany e da fuga de Bond fossem comunicados a Londres, presumivelmente por Shady Tree. Assim, tudo isto, refletiu Bond, colocava Jack Spang e, através dele, ABC como seu próximo alvo. O que tinha a fazer de imediato, concluiu Bond antes de se abandonar ao sono, era relatar toda a situação a M
assim que embarcasse no Queen Elizabeth. Daí por diante Londres tomaria conta do caso. Os homens de Vallance sairiam a campo. Bond não teria muito que fazer quando regressasse. Relatórios e mais relatórios a escrever.
A mesma velha rotina no escritório. E de noite haveria Tiffany no quarto atualmente desocupado de seu apartamento, numa transversal de Kings Road. Precisava mandar um telegrama para May a fim de que ela arrumasse as coisas. Vejamos... flores, sais de banho de Floris, lençóis limpos...
Dez horas depois de terem deixado Los Angeles, sobrevoaram La Guardiã e viraram para o mar a fim de preparar o pouso.
Eram oito horas da manhã de domingo e havia pouca gente no aeroporto, mas um funcionário interrompeu-lhes a caminhada quando seguiam pela pista alcatroada e os conduziu para uma entrada lateral, onde os esperavam um homem de Pinkerton e um representante do Departamento de Estado.
Enquanto conversavam, a bagagem foi-lhes trazida. Depois, levaram-nos para fora da estação de passageiros, onde os aguardava um elegante Pontiac marrom, com o motor em movimento e as persianas do vidro traseiro abaixadas.
Passaram ainda algumas horas de ócio no apartamento do homem de Pinkerton até que, por volta das quatro da tarde, mas com um quarto de hora de diferença entre eles, galgaram a prancha de embarque, penetraram no negro, majestoso e seguro ventre britânico do Queen Elizabeth e, por fim, encerraram-se em seus camarotes no convés M, com as portas trancadas para o mundo.
Mas, quando, em primeiro lugar, Tiffany Case e, depois, Bond puseram os pés na prancha de embarque, um doqueiro do Sindicato de Estivadores de Anastásia correu para a cabina telefônica do galpão da alfândega.
E três horas mais tarde dois homens de negócios americanos saltavam de um sedan negro à porta de um armazém das docas, passavam às pressas pelo serviço de imigração e pela alfândega e galgavam a prancha de embarque, quando os alto-falantes começavam a pedir aos visitantes que desembarcassem.
Um dos homens de negócios era ainda jovem, de feições delicadas e fios de cabelos embranquecidos aparecendo sob o Stetson recoberto por uma capa impermeável. O nome impresso na pasta que carregava era B.
Kitteridge. O outro era um gorducho grandalhão, com um brilho nervoso nos olhos miúdos por trás das lentes bifocais. Suava em bicas e constantemente enxugava o rosto com um lenço enorme. O nome no cartão pendurado na alça da pasta era W. Winter. Em baixo do nome, lia-se em tinta vermelha: MEU GRUPO SANGuÍNEO É F.
22 - Amor e molho bearnês
Às OITO HORAS em ponto, o prolongado e ressoante apito da sirena do Queen Elizabeth fez tremer a vidraça dos arranha-céus. Com grande rebuliço, os rebocadores arrastaram-no para o meio do rio, abrindo-lhe o caminho. Por fim, desenvolvendo cautelosamente cinco nós, o transatlântico pôs-se a descer o rio, cortando as águas remansosas.
Após a parada para desembarcar o prático no Farol de Ambrose, as quádruplas hélices fustigariam o mar, convertendo-o em creme de leite, e o Queen Elizabeth, com um estremecimento de alívio, começaria a fender o longo arco achatado, entre os paralelos 45 e 50, a caminho de Southampton.
Sentado no camarote, escutando o ranger do madeiramento e contemplando o lápis rolar suavemente em cima da penteadeira, entre a escova de cabelo e a borda de seu passaporte, Bond recordava os dias em que outra era a rota da embarcação, os dias em que ela ziguezagueava no Atlântico Sul, brincando de esconde-esconde com os ferozes cardumes de submarinos alemães, a caminho da Europa em chamas. Ainda era uma aventura, mas agora o Queen Elizabeth — protegido num casulo de radar, rádio e sondador de ecos — movia-se com as precauções de um potentado oriental entre escoltas e batedores e, no que dizia respeito a Bond, tédio e indigestão eram os únicos riscos da viagem.
Pegou o telefone e pediu para falar com Miss Case. Quando ela lhe ouviu a voz, rompeu num gemido teatral.
— A loba do mar odeia o mar — disse ela. — Ainda não saímos do rio e eu já estou enjoada.
— Não faz mal — disse Bond. — Não saia do camarote e tome dramamina e champanha. Vou passar uns dois ou três dias em repouso. Vou mandar chamar o médico e o massagista dos banhos turcos pra ver se junto de novo as peças. E de qualquer modo não faz mal nenhum que a gente passe a maior parte da viagem no camarote. É possível que nos tenham localizado em Nova York.
— Bom, se você promete telefonar todos os dias — disse Tiffany — e promete me levar àquela Veranda Grill logo que eu puder engolir um pouco de caviar, eu concordo. Está bem assim?
Bond soltou uma gargalhada.
— Já que você insiste, eu prometo — disse ele. — E agora, escute. Em troca, eu quero que você tente lembrar-se de tudo o que puder a respeito de ABC e do lado londrino de nosso negócio. Aquele número de telefone e o mais que você julgar importante. Logo que puder, eu lhe direi por que estou interessado nisso. Por enquanto você tem de confiar em mim. Combinado?
— Combinado — disse a moça com indiferença, como se toda essa fase de sua vida tivesse perdido o interesse; e, durante dez minutos, Bond inquiriu-a minuciosa, mas (exceto no que tocava a pormenores insignificantes) inutilmente, acerca das atividades de ABC.
Depois desligou o telefone, chamou o camareiro, encomendou o jantar e sentou-se para escrever o longo relatório que teria de transpor em código e despachar naquela mesma noite.
O rebocador conduziu tranquilamente o navio para a treva, e a cidadezinha de três mil e quinhentos habitantes preparou-se para viver os cinco dias da viagem, durante os quais poderiam registrar-se todas as ocorrências naturais em qualquer outra comunidade desse porte — furtos, brigas, seduções, bebedeiras, embustes, talvez um ou dois partos, a possibilidade de um suicídio e, em cem travessias, até mesmo um homicídio.
Quando o burgo de ferro começou a sulcar serenamente a imensidão do Atlântico e a brisa suave da noite zuniu e gemeu no topo do mastro, as antenas de rádio já estavam transmitindo a mensagem do operador de serviço ao ouvido atento de Portishead.
E o que o operador enviava, precisamente às dez horas da noite, E. S. T., era um telegrama endereçado a ABC, CUIDADOS HOUSE OF DIAMONDS, HATTON GARDEN, LONDRES, e
que dizia:
LOCALIZADOS PT CASO ASSUNTO EXIJA SOLUÇÃO DRÁSTICA ESSENCIAL VOCÊ FIXAR PREÇO PAGO EM DÓLARES. Assinado: WINTER.
Uma hora depois, enquanto o operador do Queen Elizabeth lamentava ter de transmitir quinhentos grupos de cinco letras dirigidos ao DIRETOR PRESIDENTE, EXPORTADORA UNIVERSAL, REGENTS PARK, LONDRES, o rádio de Portishead enviava uma breve mensagem a WINTER, PASSAGEIRO PRIMEIRA CLASSE QUEEN ELIZABETH, que dizia:
DESEJO SOLUÇÃO IMEDIATA PROBLEMA CASE PT PAGAREI VINTE MIL PT
CUIDAREI PESSOALMENTE OUTRO ASSUNTO CHEGADA LONDRES CONFIRME ABC.
O operador procurou Winter na lista de passageiros, meteu a mensagem num envelope e enviou-a a um camarote no convés A, abaixo do de Bond e da moça, onde os dois homens jogavam cartas em mangas de camisa.
Quando o mensageiro saiu do camarote, ouviu o gorducho dizer para o homem dos cabelos brancos: — Pois é, Kidd. Vinte mil. É pra valer!
Não foi senão no terceiro dia que Bond e Tiffany resolveram encontrar-se no Observation Lounge, para um coquetel, e mais tarde no Veranda Grill, para jantar. Ao meio-dia, a calmaria era total, e depois do almoço no camarote Bond recebera um ultimato em redondo cursivo feminino numa folha de bloco do navio: "Marque um encontro comigo hoje. Não falhe".
Imediatamente Bond pegara o telefone.
Estavam sedentos da companhia um do outro depois dos três dias de separação, mas as defesas de Tiffany estavam de pé quando ela se reuniu a ele na escura mesa de canto que Bond havia escolhido na cintilante sala semicircular, situada na proa.
— Que espécie de mesa é esta? — perguntou ela com sarcasmo. — Está com vergonha de mim? Então eu ponho o mais belo modelo dos costureiros de Hollywood e você me esconde como se eu fosse Miss Reno 1914? Quero me divertir nessa geringonça e você me bota num canto como se eu fosse contagiosa.
— É isso mesmo — disse Bond. — O que você quer é elevar a temperatura de outros homens.
— Que é que você espera que uma moça faça no Queen Elizabeth?
Pescar?
Bond riu. Acenou para o garçom e pediu vodca-martini seco com casca de limão.
— Eu podia te oferecer uma alternativa.
— Já sei — disse a moça. — Meu querido diário: estou na maravilhosa companhia de um inglês bonitão. O que me aflige é saber que ele anda atrás das jóias da minha família. Que devo fazer? Sua criada, desorientada. — Num movimento súbito, ela inclinou o busto para a frente e pousou a mão na do homem. — Escute aqui, mestre Bond — disse ela. — Estou felicíssima.
Adoro isso aqui. Adoro estar com você. E adoro esta mesinha escura onde ninguém pode me ver segurando sua mão. Não ligue pra minha conversa. É que eu não posso me conter de tão feliz. Não faça caso das minhas brincadeiras.
Ela vestia uma blusa de xantungue de seda creme e uma saia de algodão e lã preto-carvão. As cores neutras ressaltavam-lhe a tez café-au-lait. O minúsculo relógio Cartier quadrado, com a pulseira preta, era sua única jóia, e as unhas curtas da mão pequena e morena que Bond tinha entre as suas estavam sem esmalte. A luz do sol, refletida do exterior, refulgia no ouro pálido das largas ondas do cabelo, nas profundezas dos cinzentos olhos opalescentes e nos alvos dentes que cintilavam entre os lábios sensuais.
— Não — disse Bond. — Não farei caso, Tiffany. Tudo em você é esplêndido.
Ela o encarou nos olhos e ficou satisfeita. O garçom trouxe-lhes a bebida. Ela retirou a mão e observou-o ironicamente por cima da borda de seu copo.
— Agora eu quero saber umas coisinhas — disse ela. — Em primeiro lugar, o que é que você faz e para quem trabalha? A princípio, no hotel, pensei que você era um vigarista. Mas, não sei por quê, quando você foi embora, vi que não era. Acho que devia ter avisado ABC, e com isso teria evitado essa onda toda. Não avisei, e pronto! Vamos, James. Responda.
— Trabalho para o governo — disse Bond —, que quer acabar com esse contrabando de diamantes.
— Espécie de agente secreto?
— Funcionário público, apenas.
— Está bem. E o que é que você vai fazer comigo quando chegarmos a Londres? Trancafiar-me?
— Sim. No quarto desocupado de meu apartamento.
— Assim é melhor. Terei de me tornar súdita da Rainha como você?
Gostaria de ser súdita.
— Acho que podemos arranjar isso pra você.
— É casado? — Fez uma pausa. — Ou tem alguma ligação?
— Não. Um caso ou outro de vez em quando.
— Quer dizer então que você é um desses sujeitos fora de moda que gostam de dormir com mulher? Por que não se casou?
— Creio que porque eu acho que posso manobrar melhor a minha vida sozinho. A maioria dos casamentos não soma duas pessoas. Subtrai uma da outra.
Tiffany Case refletiu um pouco.
— Talvez você tenha razão — disse ela, afinal. — Mas depende do que se soma. Pode ser algo humano ou inumano. Ninguém é auto-suficiente.
— E você?
A moça não gostou da pergunta.
— Talvez eu esteja do lado do inumano — respondeu com rispidez. — E com que diabo de homem você queria que eu me casasse? Com Shady Tree?
— Pode ter havido muitos outros.
— Não houve — disse ela com raiva. — Você é capaz de achar que eu não devia ter me misturado com esses calhordas. Bem, talvez eu tenha dado o passo que não devia dar. — A chama de cólera se apagou e a moça assumiu a defensiva. — Isso acontece com certas pessoas, James. Acontece mesmo. E às vezes não é culpa delas.
James Bond estirou o braço e apertou a mão da moça.
— Eu sei, Tiffany — disse ele. — Félix me contou. É por isso que não perguntei nada. Não pense mais nisso, não. O que importa é o dia de hoje, aqui, agora. Não o dia de ontem. — Desviou o assunto. — Agora é a sua vez de me fornecer alguns fatos. Por exemplo, de onde é que vem esse nome Tiffany e que tal ser banqueira no Tiara? Como é que você chegou a cartear tão bem? Simplesmente espetacular a maneira como você tratava aquele baralho. Se pode fazer aquilo, pode fazer qualquer outra coisa.
— Não diga — replicou a moça com ironia. — Fazer o quê, por exemplo? Brincar de sapateira? E quanto ao nome Tiffany a explicação é simples. Quando eu nasci, papai Case ficou tão zangado por eu não ser menino que deu à minha mãe mil dólares e uma lata de talco comprada em Tiffany e foi embora de casa. Foi ser fuzileiro naval. Terminou morrendo em Iwo Jima. Então minha mãe me botou o nome de Tiffany Case e tratou de ganhar a vida pra nós duas. Começou com uma espelunca e umas garotas e com o tempo foi ficando mais ambiciosa. Talvez essa história não seja muito do seu agrado.
Ela lhe lançou um olhar meio defensivo, meio suplicante.
— Não me preocupa — disse Bond secamente. — Você não era uma das pequenas.
Ela deu de ombros.
— Um dia o lugar foi invadido pelos gangsters. — Interrompeu-se para beber o resto do martini. — E eu dei no pé, por minha conta. Passei pelos empregos comuns a todas as moças. Depois fui para Reno. Lá eles mantêm uma escola de jogo e eu dei duro. Curso completo. Dados, roleta e vinte-e-um. Pode-se ganhar bom dinheiro nos cassinos. Duzentos por semana. Os homens gostam quando as moças bancam o jogo e as mulheres se sentem mais confiantes. Acreditam que a gente vai se mostrar bondosa com elas.
Pensam estar entre irmãs. Quando são homens que bancam o jogo, elas se apavoram. Mas não pense que essa estória toda é assim tão engraçada.
Contada, é uma coisa; vivida, é outra. — Fez uma pausa e sorriu. — Tenha a palavra, agora. É a sua vez. Pague mais um trago e me diga que tipo de mulher você acha que soma com você.
Bond chamou o garçom. Acendeu um cigarro e voltou-se para Tiffany.
— Alguém que saiba fazer molho bearnês e amor — disse ele.
— Já sei! Qualquer bruxa velha que saiba cozinhar e deitar-se de costas.
— Ah, não. Ela precisa ter todas essas coisas que as mulheres geralmente têm. — Bond examinou-a. — Cabelo cor de ouro. Olhos cinzentos. Boca pecadora. Silhueta perfeita. E naturalmente tem de contar piadas engraçadas, vestir-se bem e jogar cartas. As prendas naturais.
— E você casaria com uma mulher assim, se a encontrasse?
— Não necessariamente — disse Bond. — Pra falar com franqueza, já sou quase casado. Com um homem cujo nome começa com M. Teria de me divorciar dele antes de casar com uma mulher. E não sei se isso me agradaria. Ela me obrigaria a passar canapés de mão em mão numa sala de visita em forma de L. E haveria aquelas chatérrimas discussões "Foi você — Não, foi você" que parecem combinar tão bem com todos os casamentos.
Não daria certo. No primeiro acesso de claustro-fobia, iria embora pro Japão ou pra qualquer outra parte.
— E filhos?
— Gostaria de ter alguns — disse Bond. — Mas só quando me aposentasse. De outra forma, não seria justo. Meu trabalho não é lá muito seguro. — Olhou para o copo e bebeu todo o martini. — E você, Tiffany? — perguntou, a fim de mudar de assunto.
— Acho que toda moça gostaria de chegar em casa e encontrar um chapéu na mesinha do corredor — disse Tiffany, melancólica. — O diabo é que eu nunca encontrei nada que prestasse debaixo do chapéu. Talvez não tenha procurado bastante ou não tenha procurado nos lugares certos. Você sabe como é: quando a gente entra na rotina não quer mais sair. Assim fiz eu no meio dos Spangs. Sabia sempre de onde era que vinha a comida. Fiz algumas economias. Mas uma moça não pode ter amigos naquele ambiente.
Ou bota uma placa "Proibida a Entrada" ou de uma hora pra outra se vê cercada de malandros. Mas acho que já estou farta de viver só. Conhece o refrão das coristas da Broadway? "É triste a trouxa de roupa que não tem uma camisa de homem".
Bond riu.
— Mas agora você está fora da rotina — disse ele e olhou-a zombeteiramente. — E Mr. Seraffimo? E aqueles dois quartos de dormir no Pullman, a ceia para dois com champanha...?
Antes que concluísse, ela levantou-se da mesa, os olhos vermelhos, e caminhou para fora do bar.
Bond se amaldiçoou. Colocou algum dinheiro sobre a conta e saiu correndo atrás dela. Foi encontrá-la quase no meio do tombadilho de passeio.
— Por favor, Tiffany, escute — começou ele.
Ela voltou-se e encarou-o.
— Como se pode ser tão mesquinho? — disse ela, e lágrimas iradas brilharam-lhe nos cílios. — Por que você tem de estragar tudo com uma observação ferina como aquela? Oh, James! — Em desespero virou-se para as janelas, procurando um lencinho na bolsa. Enxugou os olhos. — Você simplesmente não compreende.
Bond cingiu-a com um braço e puxou-a para si.
— Meu amor! — Sabia que nada senão o grande passo do amor físico curaria esses mal-entendidos, mas que era necessário ;ainda desperdiçar tempo e palavras. — Não tive a intenção de magoar você. Eu queria somente ter certeza. Aquela mesa posta para a ceia no trem me feriu muito mais do que o que aconteceu depois. Tinha de lhe fazer aquela pergunta.
Ela ergueu a vista, ainda em dúvida.
— Está falando sério? — perguntou, observando-lhe o rosto. — Quer dizer que você já me queria bem?
— Não seja boba — disse Bond, impaciente. — Então você não sabe nada de nada?
Ela afastou-se e contemplou pela janela o infindável mar azul e as gaivotas que acompanhavam esse navio extraordinariamente pródigo.
Depois de algum tempo, perguntou:
— Você já leu Alice no País das Maravilhas?
— Há muitos anos — disse Bond, surpreso. — Por quê?
— Há lá umas linhas que muitas vezes me vêm à memória — disse ela.
— "Oh Ratinho, conheces o caminho que conduz para fora deste poço de lágrimas? Estou muito cansada de nadar dentro dele, oh Ratinho". Lembra-se dessa passagem? Pois bem, eu pensava que você ia me mostrar a saída e, em vez disso, você me empurra pra dentro do poço. Por isso é que fiquei transtornada. — Ergueu a vista. — Mas acredito que você não teve intenção de me magoar.
Bond olhou-lhe a boca demoradamente e depois beijou-a nos lábios.
Ela não retribuiu e esquivou-se. Seus olhos sorriam de novo. Deu o braço a ele e voltou-se para as portas abertas que conduziam ao elevador.
— Me leve lá pra baixo — disse ela. — Preciso recompor a fachada e, além disso, quero me preparar com cuidado para agradar ao candidato. — Ficou um instante em silêncio e depois colou a boca no ouvido dele. — Talvez isso lhe interesse, James Bond — disse baixinho. — Nunca em minha vida fiz o que você chama "dormir com um homem". — Puxou-o pelo braço. — Agora vamos — disse bruscamente. — Afinal, já é hora de tomar um "quente doméstico". Suponho que isso faz parte da língua dos súditos que você está querendo que eu aprenda. Vocês, súditos, escrevem as coisas mais loucas nos banheiros.
Bond levou-a até o camarote dela, voltou para o seu e tomou um "quente salgado" na banheira, seguido de um "frio doméstico" no chuveiro. Depois, estirou-se na cama, recordando com um sorriso algumas das coisas que ela havia dito, e pensou nela, deitada na banheira, intrigada com a floresta de torneiras e imaginando que os ingleses eram loucos varridos.
Soou uma pancada na porta e o camareiro entrou com uma bandejinha que colocou em cima da mesa.
— Que diabo é isso? — perguntou Bond.
— Foi enviado pelo cozinheiro-chefe, senhor — respondeu o camareiro, retirando-se em seguida e fechando a porta do camarote.
Bond desceu da cama e foi examinar o conteúdo da bandeja. Não pôde deixar de rir. Havia uma garrafinha de Bollinger, um rescaldeiro com quatro talhadas de bife em canapés de torrada, e uma tijelinha de molho. Debaixo desta, uma nota escrita a lápis dizia: "Este molho bearnês foi criado por Miss T. Case sem minha assistência". Assinado: "O Chefe".
Bond encheu uma taça de champanha, espalhou um pouco de molho numa talhada de bife e mastigou atentamente. Depois foi ao telefone.
— Tiffany?
Ouviu o risinho abafado e divertido no outro extremo do fio.
— Bem, não há dúvida de que você faz um maravilhoso molho bearnês...
Repôs o telefone no gancho.
23 - O trabalho fica em segundo plano
MOMENTO INEBRIANTE NUM CASO amoroso é aquele em que, pela primeira vez, em público, num restaurante ou num teatro, o homem pousa a mão na coxa da mulher e ela, tomando-a nas suas, aperta-a contra si.
Os dois movimentos dizem tudo o que pode ser dito. Concluem todos os acordos. Firmam-se todos os pactos. E há um longo minuto de silêncio durante o qual o sangue canta nas veias.
Eram onze horas e havia poucas pessoas espalhadas nos cantos da Veranda Grill. O mar arfava baixinho sob o luar lá fora e o magnífico paquete arava a negra pradaria do Atlântico. À popa, apenas um levíssimo galope mostrava uma suave ondulação, as doze lentas pulsações por minuto de um oceano adormecido, aos dois seres aconchegados atrás do quebra-luz cor-de-rosa.
O garçom trouxe-lhes a conta, e suas mãos se separaram. Mas agora dispunham de todo o tempo do mundo e não precisavam afirmar seus sentimentos com palavras e contactos. Quando o garçom retirou os pratos, a moça fitou Bond com um sorriso de felicidade os dois encaminharam-se para a porta.
Entraram no elevador para o Tombadilho de Passeio.
— Que faremos agora, James? — perguntou Tiffany. — Gostaria de tomar mais uma café e um Stinger preparado com creme de menthe branco, enquanto estivéssemos escutando o leilão. Já ouvi falar tanto dele e bem que poderíamos ganhar uma fortuna.
— Está bem — disse Bond. — O que você desejar. — Tomou-a pelo braço e atravessaram vagarosamente a grande sala de estar, onde o víspora ia em meio, e o salão de baile, onde os músicos afinavam os instrumentos. — Mas não me obrigue a comprar nenhum número. É um jogo como os outros, e cinco por cento destinam-se à beneficência. Quase a mesma coisa que em Las Vegas. Mas é divertido quando há um bom leiloeiro. E dizem também que há muito dinheiro a bordo.
O salão de fumar estava quase deserto. Escolheram uma mesinha longe da plataforma onde o Comissário arrumava os apetrechos do leiloeiro, a caixa com os papeluchos numerados, o martelo, a garrafa de água.
— A casa está fraca — disse Tiffany ao sentarem-se no meio da floresta de cadeiras e mesas vazias. Mas, quando Bond fez o pedido ao garçom, as portas do cinema se abriram e cerca de cem pessoas ocuparam o salão de fumar.
O leiloeiro, um comerciante dos Midlands, pançudo e jovial, com um cravo vermelho na lapela do dinner jacket, bateu na mesa pedindo silêncio e anunciou que a previsão do Capitão para o percurso do dia seguinte era de 720 a 739 milhas, que qualquer distância abaixo de 720 era o Campo Inferior e acima de 739 era o Campo Superior.
— E agora, minhas senhoras e meus senhores, vejamos se é possível quebrar o recorde estabelecido nesta viagem, que atinge a cifra impressionante de 2.400 libras esterlinas. (Aplausos). ; Um camareiro ofereceu a caixa com os números dobrados à mulher de ar mais aristocrático do salão e depois entregou ao leiloeiro o papelzinho que ela havia sorteado.
— Bem, senhoras e senhores, temos aqui, para começar, um número excepcionalmente bom. 738. Exatamente no limite máximo, e desde que vejo aqui, esta noite, tantas caras novas (risos), creio que todos concordaremos em que o mar está singularmente calmo. Senhoras e senhores. Quanto me dão por 738? Digamos... 50 libras? Quem me dará 50
libras por este número de sorte? 20, foi o que o senhor falou, cavalheiro?
Bem, temos de partir de alguma oferta. Quem dá... 25? Muito obrigado, minha senhora. E 30. 40 lá adiante, sr. camareiro. E 45 do meu amigo, Mr.
Rothblatt. Muito obrigado, Charlie. Quem dá mais pelo n.° 738? 50. Muito grato, minha senhora. E agora, sim, voltamos ao ponto de partida (risos). 50.
Quem dá 55? Então ficamos em 50. Dou-lhe uma... Dou-lhe duas... — e o martelo erguido bateu na mesa.
— Ainda bem que temos um bom leiloeiro — disse Bond.
— O número era bom. E barato, se o tempo continuar como está e ninguém se jogar no mar. O Campo Superior custará uma bolada esta noite.
Todo mundo espera que o navio faça mais de 739 milhas nesse tempo.
— Essa bolada quer dizer quanto? — perguntou Tiffany.
— Duzentas libras. Talvez mais. Acho que os números normais serão leiloados por umas cem libras. O primeiro número é sempre mais barato do que os outros. O pessoal ainda está frio. A única esperteza que se pode demonstrar neste jogo é arrematar o primeiro número sorteado. Qualquer número pode ganhar, mas o primeiro custa menos.
Quando Bond acabou de falar, o segundo número era entregue por 90
libras a uma jovenzinha bonita e excitada, que era abertamente financiada por seu companheiro, um indivíduo grisalho e bem conservado que parecia a caricatura de um Don Juan do Esquive.
— Vamos, James. Arremate um número pra mim — disse Tiffany. — Você não sabe mesmo agradar a uma moça. Veja como aquele cavalheiro é gentil com sua pequena.
— Ele já passou da idade-limite — disse Bond. — Deve estar na casa dos sessenta. Até os quarenta, as pequenas não custam nada. Daí por diante, é preciso gastar dinheiro ou contar uma estória. Das duas coisas, a estória é que dói mais. — Sorriu, fitando-a nos olhos. — Mas eu ainda não cheguei aos quarenta.
— Deixe de presunção — disse a moça, olhando-o na boca. — Dizem que os homens maduros são os melhores amantes. Também, por outro lado, sei que você não é unha-de-fome. Aposto que não quer me presentear um número porque o jogo é ilegal nos navios de Sua Majestade.
— Até que é permitido além do limite de três milhas da costa — disse Bond. — Mesmo assim, a Cunard toma todas as precauções para não envolver o nome da companhia. Escute isto — e apanhou um cartão alaranjado que estava em cima da mesa. — "Leilão de Apostas nas Distâncias Diárias percorridas pelo Navio" — leu para a moça. — "Para os fins de direito, é de toda a conveniência reiterar a posição da Companhia em relação ao supradito Leilão. Não é desejo da Companhia que o encarregado do salão de fumar ou quaisquer outros membros da tripulação desempenhem papel ativo na organização das apostas nas milhas diárias percorridas pelo navio". — Bond levantou a vista. — Está vendo? — perguntou. — Seguro morreu de velho. E tem mais: "A Companhia sugere que os passageiros elejam entre si uma Comissão encarregada de formular e controlar as normas... O encarregado do salão de fumar poderá, se instado e se seus deveres o permitirem, prestar a assistência de que a Comissão venha a necessitar para o leiloamento dos números". Como são cautelosos — comentou Bond. — É a comissão que tem de quebrar os galhos que forem aparecendo. Escute mais isto aqui. É onde entra o problema. — Continuou a leitura: — "A Companhia chama especialmente a atenção de todos para os dispositivos das normas financeiras do Reino Unido, no tocante à negociabilidade dos cheques em esterlinos e à limitação da entrada de cambiais bancárias em esterlinos no Reino Unido".
Bond atirou o cartão em cima da mesa..— E por aí vai — disse ele e sorriu para Tiffany Case. — Assim, eu arremato o número que está sendo leiloado e você ganha duas mil libras. Um montão de cédulas e cheques em dólares e libras. O único meio de gastar essa dinheirama, supondo que os cheques tenham fundos, o que é duvidoso, seria contrabandeá-la debaixo dos suspensórios. E lá estaríamos nós outra vez passando muamba. Só que eu estaria do lado do diabo.
A moça não se impressionou.
— Havia um sujeito na quadrilha chamado Abadaba — disse ela. — Era um malandro fino que tinha resposta para tudo. Calculava as vantagens nas corridas, marcava as percentagens no cassino, enfim, era o crânio do grupo.
Era considerado "O Feiticeiro das Apostas". Teve o azar de ser liquidado por engano ao lado de Dutch Schultz — ajuntou ela à guisa de parêntese. — Você está me saindo outro Abadaba com essa lengalenga que não tem outra finalidade senão evitar de gastar dinheiro com uma pequena. Já vi tudo. — Encolheu os ombros, resignada. — Está bem. Mas pelo menos financie outro Stinger pra sua garota.
Bond chamou o garçom. E quando este se afastou, ela aproximou a cabeça do ouvido dele e disse baixinho. — Eu não quero mais, não. Beba você. Quero estar inteiramente sóbria esta noite. — Empertigou-se. — Mas o que é que está se passando aqui? — perguntou com impaciência. — Vamos, um pouco de ação.
— Aí vem ela — disse Bond.
O leiloeiro levantou a voz e toda a sala pediu silêncio.
— E agora, minhas senhoras e meus senhores — rugiu o leiloeiro — vamos à pergunta mais importante da noite. Quem vai me dar 100 libras pela escolha entre o Campo Superior e o Inferior? Todos sabemos o que isto significa... o direito de escolher o Campo Superior, que, inclino-me a crer, será da preferência geral esta noite (risos), em vista das excelentes condições atmosféricas reinantes lá fora. Então, quem abrirá com cem libras os lances para a escolha do Campo Superior ou Inferior?
— Muito obrigado, cavalheiro! E 110. 120 e 130. Muito obrigado, minha senhora.
— Cento e cinquenta — disse uma voz de homem, não muito distante da mesa de Bond e Tiffany.
— Cento e sessenta.
Desta vez era uma mulher. Monótona, a voz do homem gritou: — 170.
— Oitenta — disse alguém.
— Duzentas libras.
Algo fez com que Bond se voltasse e olhasse o homem que tinha falado.
Era um tipo grandalhão. A cara tinha a aparência lisa, brilhante e escorregadia de um olho de boi. Olhos miúdos, frios e escuros fitavam o estrado do leiloeiro através de imóveis lentes bifocais. Todo o pescoço do homem parecia estar por trás da cabeça. O suor havia emaranhado as algas negras e encaracoladas do cabelo. Enquanto Bond o observava, ele tirou os óculos, pegou um guardanapo e passou a enxugar o suor, com um movimento circular que começou no lado esquerdo do rosto, estendeu-se à nuca, onde a mão esquerda cedeu a vez à mão direita, e esta completou o circuito, atingindo os pingos do nariz.
— Duzentas e dez — disse alguém.
A queixada do homem bamboleou, a boca se descerrou, e ele disse, com nítido sotaque americano:
— Duzentas e vinte.
O que havia nesse indivíduo capaz de ferir uma corda na memória de Bond? O inglês examinou o rosto largo, a imaginação percorrendo todo o arquivo do cérebro, abrindo e fechando gavetas, uma após outra à procura de uma pista. A cara? A voz? Inglaterra? América?
Bond abandonou a busca e voltou a atenção para o outro homem à mesa.
Ainda aqui, a mesma necessidade urgente de reconhecer. As feições jovens e estranhamente delicadas sob os cabelos brancos e lisos. Os olhos castanhos e plácidos sob as longas pestanas. O efeito geral era de delicadeza, perturbada pelo nariz roliço montado na boca larga de lábios finos, agora aberta num sorriso estúpido e vazio como a fenda de uma caixa postal.
— Duzentas e cinquenta — disse o grandalhão mecanicamente.
Bond tornou a olhar para Tiffany.
— Já viu aqueles dois alguma vez? — perguntou ele, e ela notou-lhe a ruga de preocupação entre os olhos.
— Não — disse ela, categórica. — Nunca. Talvez venham do Brooklyn. Podem ser dois comerciantes de roupas feitas da Quinta Avenida. Por quê? Eles lhe dizem alguma coisa?
Bond olhou-os outra vez.
— Não — disse, em dúvida. — Não, acho que não.
Palmas estrugiram na sala. Radiante, o leiloeiro bateu na mesa.
— Senhoras e senhores — disse ele, triunfante. — Isto é realmente maravilhoso. Trezentas libras é o lance daquela encantadora senhora de esplêndido vestido cor-de-rosa (Cabeças viravam-se, pescoços esticavam-se, e Bond ouviu a pergunta: — Quem é ela? E agora, cavalheiro — o leiloeiro indicava a mesa do homem gordo — posso anunciar 325 libras?
— Trezentas e cinquenta — disse o gordo.
— Quatrocentas — ganiu a mulher de vestido cor-de-rosa.
— Quinhentas.
A voz era incolor, indiferente.
A moça de cor-de-rosa tagarelou irritada com seu acompanhante. O homem assumiu um ar entediado. Acompanhou o olhar do leiloeiro e balançou a cabeça.
— Quem se dispõe a dar mais? — disse o leiloeiro. Sabia agora que a sala já dera o que tinha de dar. — Dou-lhe uma... Dou-lhe duas... — Pam! — Arrematado pelo cavalheiro. E eu acredito sinceramente que ele merece uma salva de palmas.
Deu início às palmas e os presentes o acompanharam, embora preferissem que a moça tivesse levado a melhor.
O gordo ergueu-se algumas polegadas e voltou a sentar-se. Não havia em seu rosto lustroso nenhum sinal de agradecimento aos aplausos, e seus olhos fixavam-se no leiloeiro.
— E agora temos de cumprir a formalidade de perguntar ao cavalheiro qual é o Campo que ele prefere. (Risos). Cavalheiro, o senhor escolhe o Campo Superior ou o Campo Inferior?
O tom do leiloeiro era irônico. A pergunta era ociosa.
— Campo Inferior.
Houve um momento de silêncio constrangedor no apinhado salão de fumar. E logo se seguiram os comentários à meia-voz. Nenhuma pergunta foi feita. Era óbvio que o homem devia escolher o Campo Superior. As condições atmosféricas eram ideais. O Queen Elizabeth vinha desenvolvendo pelo menos trinta nós. Estaria o homem a par de alguma coisa? Teria pago por alguma informação na ponte de comando? Haveria alguma tempestade à vista? Algum defeito nas máquinas?
O leiloeiro martelou na mesa, pedindo silêncio.
— Queira me perdoar, cavalheiro — disse ele — mas o senhor escolheu mesmo o Campo Inferior?
— Sim.
O leiloeiro tornou a martelar.
— Nesse caso, senhoras e senhores, comecemos agora a leiloar o Campo Superior. Minha senhora — voltou-se com uma curvatura para a moça de cor-de-rosa — quer ter a gentileza de fazer o primeiro lance?
Bond virou-se para Tiffany.
— Que coisa esquisita — disse ele. — É extraordinário. O mar está calmo como um lago. — Deu de ombros. — A única resposta é que eles devem estar informados de alguma coisa.
— A questão era desprovida de interesse, no fim de contas.
— Alguém deve ter dito alguma coisa àqueles dois. — Girou a cabeça e, depois, despreocupadamente, passeou o olhar pelos dois indivíduos. — Parece que eles estão interessadíssimos na gente.
Tiffany olhou por cima do ombro.
— Não estão olhando pra cá, não — disse ela. — A impressão que eu tenho é que são dois palermas. O grisalho tem um ar de idiota e o gordo está chupando o polegar. Dois malucos. Acho que nem sabem o que arremataram. Trocaram as bolas.
— Chupando o polegar? — perguntou Bond. Passou a mão pelo cabelo, distraidamente, uma vaga lembrança a verrumar-lhe o cérebro.
Talvez, se ela lhe tivesse permitido seguir o fio de seus pensamentos, ele tivesse dado no alvo. Mas ela colocou a mão sobre a dele e, aproximando-se, roçou-lhe o rosto com os cabelos.
— Esqueça isso, James — disse ela. — E não pense tanto naqueles dois imbecis. — Os olhos dela ardiam e exigiam. — Chega deste lugar. Leve-me a outra parte.
Sem se dizerem mais uma palavra, ergueram-se, afastaram-se da mesa e saíram da sala barulhenta, caminhando em direção à escada. Começaram a descer e, quando chegaram ao meio, o braço de Bond circundou a cintura da moça, e ela deitou a cabeça no ombro dele.
Chegaram à porta do camarote de Tiffany, mas ela deu meia volta e arrastou Bond pelo corredor comprido, macio e rangente.
— Eu quero que seja na sua casa, James — disse ela.
Bond só voltou a falar depois de ter fechado a porta de seu camarote com um pontapé e de se terem abraçado no meio daquele quartinho maravilhosamente reservado e anônimo. E dizendo, com ternura, "Meu amor" pôs uma das mãos sobre os cabelos dela de modo a manter-lhe a boca sob a sua.
Algum tempo depois, sua outra mão desceu até o fecho-relâmpago do vestido, por trás, e a moça, sem interromper o abraço, deixou cair o vestido e disse, ofegante, entre beijos:
— Quero tudo, James. Tudo o que você já fez com uma mulher. Agora.
Agora mesmo.
E Bond inclinou-se, envolveu-lhe as coxas com um braço, levantou-a e deitou-a suavemente no soalho.
24 - A morte é permanente
A ÚLTIMA COISA de que Bond se lembrou antes de soar a campainha do telefone foi de Tiffany debruçada sobre ele, na cama, beijando-o e dizendo-lhe: "Não durma sobre o lado esquerdo, meu amor. É ruim para o coração.
Pode parar de bater. Vire-se". E, obediente, ele se virava. E, quando a porta bateu de leve, ele estava dormindo de novo, embalado pela voz da moça, pela pulsação do Atlântico e pelo macio balanço do navio.
Depois, a campainha impertinente soou e tornou a soar no camarote escuro. Bond praguejou, estendeu o braço para o telefone, e uma voz disse: — Desculpe-me incomodá-lo, senhor. Aqui é o telegrafista, Acaba de chegar uma mensagem em código para o senhor, com um prefixo en clair "Urgentíssimo". Quer que leia pelo telefone ou envie pelo mensageiro?
— Envie pelo mensageiro, pode ser? — disse Bond. — Muito obrigado.
E que diabo queriam agora? Toda a beleza, todo o ardor, toda a exaltação da paixão amorosa foram postas de lado quando ele acendeu a lâmpada, pulou da cama e, balançando a cabeça, a fim de afastar o torpor, deu dois passos para o chuveiro.
Durante um bom minuto deixou que a água caísse sobre si. Depois, enxugou-se com a toalha, apanhou do chão as calças e a camisa e vestiu-as.
Houve uma pancada na porta. Bond recebeu o telegrama, sentou-se à escrivaninha, acendeu um cigarro e entregou-se ferozmente ao trabalho. E, à medida que os grupos paulatinamente se dissolviam em palavras, seus olhos se apertavam e a pele se lhe arrepiava no corpo.
O telegrama, passado pelo Chefe do Pessoal, dizia:
Primeiro vg busca clandestina escritório Saye revelou telegrama do QE endereçado ABC assinado Winter comunicando presença sua e Case a bordo solicitando instruções pt Resposta endereçada Winter assinado ABC ordena eliminação de Case vg preço vinte mil dólares pt Segundo vg consideramos Rufus B. Saye é ABC que é mais ou menos equivalente pronúncia suas iniciais em francês pt Terceiro vg possivelmente alarmado sinais de busca Saye voou Paris ontem e agora informa Polinter estar em Dakar pt Isto parece confirmar nossas suspeitas que diamantes provêm minas Serra Leoa daí contrabandeados fronteira Guiné Francesa pt Suspeitamos fortemente elemento clínica dentária de Sierra International em observação pt Quarto vg Canberra Raf espera você Boscombe Down para voo imediato amanhã noite a Serra Leoa assinado CDP.
Bond gelou na cadeira. De supetão, acudiu ao seu espírito o mais sinistro verso de toda a poesia: "Enganam-se os que me evitam. Quando voam de mim, eu sou as asas".
Então alguém da quadrilha de Spang estava a bordo e viajava com eles. Quem? Onde?
A mão agarrou o telefone: — Miss Case, por favor.
Ouviu o aparelho ao pé da cama dela produzir um estalido e em seguida disparar 'a primeira campainhada. A segunda. A terceira. Mais uma só. Bond colocou o receptor de volta no gancho e enfiou pelo corredor até o camarote de Tiffany. Nada. Vazio. A cama arrumada. As luzes acesas. Mas a bolsinha dela estava no tapete e os objetos espalhados ao redor. Tinha entrado no camarote. O homem se escondera atrás da porta. Talvez tivesse aplicado uma cacetada. E depois?
As vigias estavam fechadas. Examinou o banheiro. Nada.
Bond parou no meio do camarote. Seu cérebro estava frio como gelo. O que ele, Bond, teria feito? Antes de matá-la, tê-la-ia interrogado, descoberto o que ela sabia, o que fazia, quem era o homem que a acompanhava. Tê-la-ia levado depois para o camarote em que ele viajava a fim de poder agir sem ser perturbado. Se o encontrassem arrastando-a pelo corredor, bastaria piscar um olho e balançar a cabeça: "Bebeu muita champanha esta noite. Não, não precisa, muito obrigado, eu me arranjo". Mas, qual era o camarote? E havia quanto tempo ele a tinha levado?
Bond consultou o relógio quando ia no corredor. Três horas. Ela devia ter saído da cama dele pouco depois das duas. Devia telefonar para a ponte de comando? Dar alarma? Penosos instantes de explicações, suspeitas, obstáculos. "Meu caro senhor, isto parece incrível!" Tentativas para acalmá-lo. "Claro, senhor, faremos o que estiver ao nosso alcance". O olhar polido do funcionário, para quem tudo não passaria de embriaguez, ciúme e até mesmo de um meio de deter a marcha do navio e ganhar a aposta no Campo Inferior.
O Campo Inferior! Homem ao mar! O navio detido!
Bond fechou a porta de seu camarote e foi direto à Lista de Passageiros.
E por que não? Winter. Ei-lo aqui. A49. O convés de baixo. E então, de repente, o cérebro de Bond funcionou como um computador. Winter. Wint e Kidd. Os dois pistoleiros. Os encapuzados. Outra vez a lista de passageiros.
Kitteridge. No A49 também. O grisalho e o gordo do avião da BOAC na viagem de Londres a Nova York. "Meu grupo sanguíneo é F." A escolta secreta de Tiffany. E a descrição de Leiter. "Chamam-no Goela porque tem medo de viajar". "Um dia vai-se arrepender de não ter extraído aquela verruga". A verruga vermelha na primeira articulação do dedo que segurava o cão da arma apontada para Tingaling Bell. E Tiffany dizendo: "São dois palermas. O gordo está chupando o polegar!" E os dois, no salão de fumar, procurando ganhar dinheiro com a morte que haviam planejado. A mulher atirada ao mar. O alarma anônimo, no caso de passar o corpo despercebido pelo vigia da popa. O navio detido, a volta, a busca nas águas. E mais três mil libras para os bolsos dos assassinos.
Wint e Kidd. Os pistoleiros de Detroit.
Todo o carretel de filmes embaralhados desenovelou-se na mente de Bond no espaço de um segundo, e mesmo enquanto os esquadrinhava, ia ele abrindo a pasta e revolvendo o compartimento secreto à procura do silenciador. Como um autômato, retirou a Beretta do meio de suas coisas no fundo de um gavetão, examinou o pente e ajustou o silenciador à boca da arma. Simultaneamente, pesava as probabilidades e planejava os passos que devia dar.
Pegou a planta do navio que tinha vindo com o bilhete de passagem.
Esparramou-a à sua frente enquanto calçava as meias. A49. Exatamente debaixo de seu camarote. Haveria probabilidade de arrebentar a fechadura com um tiro e pegar os dois homens antes que eles o pegassem? Nenhuma, quase. Sem dúvida tinham fechado a porta com a chave e o trinco. Ou levar consigo alguns membros da tripulação, se pudesse persuadi-los do perigo que Tiffany corria? Enquanto ele tentasse convencê-los, os dois homens a atirariam pela vigia. E, quando, afinal, conseguissem entrar no camarote, Wint e Kidd estariam lendo calmamente ou jogando cartas e berrariam: — Que é que vocês querem aqui?
Bond meteu a arma nos cós das calças e com um violento puxão escancarou uma das duas vigias do camarote. Enfiou por ela os ombros e alegrou-se ao descobrir uma folga de uma ou duas-polegadas. Espichou o pescoço para baixo. Dois círculos mal iluminados, exatamente sob suas vigias. A que distância? Uns oito pés. A noite continuava parada, calma, tranquilizadora, e ele se achava no lado ensombrado do navio. Avistá-lo-iam da ponte volante? Estaria aberta alguma das vigias do A49?
Bond deixou-se cair novamente em seu camarote e arrancou os lençóis da cama. O nó de porco. Seria mais seguro. Mas teria de rasgar os lençóis e emendá-los para obter o comprimento necessário. Se tudo desse certo, teria de trazer alguns lençóis do A49 e deixar o camareiro intrigado com o desaparecimento. Se desse errado, tanto fazia.
Experimentou a "corda" com toda a força. Devia aguentar. Ao amarrar uma extremidade em volta da dobradiça da vigia, deu uma olhada no relógio.
Só doze minutos tinham passado desde que lera o telegrama. Demorara demais? Trincou os dentes, atirou a "corda" pelo costado do navio e introduziu a cabeça.
Não pense em nada. Não olhe para baixo. Não olhe para cima. Não se importe com os nós. Devagar, firme, uma mão, isto, a outra.
A brisa da noite tocava-o de leve e empurrava-o de encontro aos negros rebites de ferro, e lá embaixo soava o gemido cavo do mar. No alto, o vento zunia no cordame, e mais acima, no firmamento, as estrelas dançavam à volta dos mastros.
Os malditos, os bem-amados lençóis resistiriam? A vertigem o venceria?
Seus braços suportariam o peso? Não pense nisso. Não pense no imenso navio, no oceano faminto, nas quádruplas hélices gigantescas aguardando o momento de lhe retalhar o corpo. Você é um menino que está descendo da macieira. É tão fácil e seguro lá no pomar, com o relvado que apara a queda.
Bond expulsou da mente todos esses pensamentos. Olhou para as mãos e sentiu a aspereza da pintura contra os nós dos dedos. Os pés, sensíveis como antenas, tateavam em busca do primeiro contacto com a vigia.
Ali. Os dedos do pé direito haviam tocado o rebordo saliente. É preciso parar. É PRECISO ter paciência e deixar que o pé explore o terreno — a vigia aberta, presa pela grande tranqueta de latão; o contacto de fazenda por cima da meia: as cortinas cerradas. Agora podia continuar. Estava quase terminado.
Mais duas preensões na corda improvisada e o rosto estava à altura da vigia. Podia colocar uma das mãos na borda metálica do caixilho, subtraindo algum peso da alva corda retesada e dando merecido repouso a um braço e depois ao outro, deslocar a carga suportada pelos músculos, reunir as forças para soerguer-se vagarosamente, traspassar-se ao camarote e mergulhar, deitando a mão à arma.
Ficou à escuta, fitando o círculo da cortina balouçante, tentando esquecer que estava pendurado como um pêndulo, a meio costado do Queen Elizabeth, esforçando-se para não ouvir o marulho do oceano, lutando para abrandar a respiração ofegante e as marteladas do coração.
Do interior do cubículo vinha um resmungo indistinto. Depois, uma voz masculina proferiu algumas palavras e uma mulher gritou: — Não!
Seguiu-se um momento de silêncio, e logo uma bofetada. Sonora como um disparo de pistola, e isto lançou o corpo de Bond para o alto e para dentro como se ele tivesse sido arrastado por uma corda.
No momento mesmo em que mergulhava no círculo da vigia, perguntava-se onde iria bater, e instintivamente protegeu a cabeça com o braço esquerdo, enquanto o direito corria para a arma.
Foi cair sobre uma valise debaixo da vigia. Um estabanado salto mortal levou-o ao meio do camarote. Outra vez sobre seus pés, foi recuando, agachado, para o lado das vigias, a tensão branquejando os nós dos dedos da mão que segurava a arma e uma estreita linha branca circundando-lhe a boca cerrada.
Através das pálpebras entreabertas, os olhos cinzentos e gelados moviam-se de um lado para o outro. A arma, negra e cega, voltava-se para um ponto, no centro, entre os dois homens.
— Aqui estamos — disse Bond, erguendo-se vagarosamente.
Era a constatação de um fato. Ele tinha o controle da situação, e a boca de sua arma o confirmava.
— Quem chamou você aqui? — disse o gordo. — Você não entra nesta peça. — Havia na voz reservas latentes. Nada de pânico. Nem mesmo a dose normal de surpresa. — Veio completar a mesa para o jogo de cartas?
Estava sentado, em mangas de camisas, abotoado, de través para a penteadeira, e os olhos miúdos brilhavam na cara molhada. Dante dele, de costas para Bond, Tiffany Case estava sentada num tamborete estofado.
Vestia apenas uma calcinha cor-de-carne e tinha os joelhos presos entre as coxas do homem gordo. Voltara para Bond o rosto pálido entremeado de manchas vermelhas. Os olhos tinham uma expressão de desespero, como os de um animal apanhado numa armadilha, e a boca aberta traduzia incredulidade.
O grisalho jazia numa das camas. Tinha erguido o busto sobre um cotovelo e a outra mão na camisa, a meio caminho da arma guardada no boldrié preto debaixo do sovaco. Olhava para Bond sem demonstrar curiosidade e estampava aquele sorriso quadrado, vazio, da caixa postal. Do centro do sorriso ressaía um palito de madeira, que rompia os dentes fechados como a língua de uma cobra.
A arma de Bond assegurava o espaço neutro entre os dois homens.
Quando ele falou, a voz era baixa e tensa.
— Tiffany — disse Bond lenta e distintamente. — Ajoelhe-se. Afaste-se desse homem. Baixe a cabeça. Vá para o meio do quarto.
Não olhava para ela. Seus olhos continuavam a passear da cadeira para a cama, vigiando os dois homens. Agora ela estava longe dos dois alvos.
— Estou aqui, James.
A voz tremia de esperança e excitação.
— Levante-se e vá para o banheiro. Feche a porta. Entre na banheira e deite-se lá.
Moveu os olhos na direção dela para ver se era obedecido. Ela tinha-se erguido e o contemplava. Bond avistou a marca vermelha de uma mão na pele alva do corpo da moça. Ela obedeceu. Ouviu-se o clique da porta do banheiro ao fechar-se.
Agora ela estava a salvo das balas. E não presenciaria o que tinha de ser feito.
Mediavam umas cinco jardas entre os dois homens, e Bond refletiu que se eles sacassem com bastante rapidez estaria perdido. Com esse tipo de homens, na fração de segundo em que um fosse liquidado, o outro sacaria e dispararia. Conquanto sua arma fosse silenciosa, a ameaça era infinita. Mas, com o clarão da primeira bala a ameaça proviria do outro homem.
— Quarenta e oito, sessenta e cinco, oitenta e seis.
A variante do sinal convencionado do futebol americano —"uma das cinquenta combinações que deviam ter praticado juntos mil vezes — jorrou da boca do gordo. Simultaneamente, ele se atirou ao chão, e a mão foi direta ao cós da calça.
Num giro rápido, o homem que estava na cama puxou as pernas para o lado e para longe de Bond, de modo que seu corpo se reduziu a um alvo estreito, de que só se via a cabeça. A mão que estava sobre o peito se mexeu rápida.
— Paf.
A arma de Bond soltou um único gemido abafado. Um orifício azul abriu-se exatamente abaixo do cocuruto grisalho.
— Pum! — respondeu a pistola do morto, deflagrada pela última crispação do dedo, e a bala foi alojar-se na cama, debaixo do cadáver.
O homem gordo, deitado no soalho, deu um grito. Olhava para cima. na direção daquele olho preto e vazio que não se incomodava com ele, de forma alguma, e que só se interessava em localizar-lhe na pele o centímetro quadrado que abrigaria o próximo projétil.
O revólver de Wint só se tinha elevado até à altura dos joelhos de Bond e apontava em vão por entre suas pernas retesadas para a armação de ferro, pintada de branco, que estava atrás.
— Largue a arma.
O tapete abafou o ruído da queda da arma.
— Levante-se.
O gordo ergueu-se com dificuldade e fitou Bond nos olhos, como um tuberculoso fita seu lenço, em medrosa expectativa.
— Sente-se.
Houve um lampejo de alívio nos olhos submissos? Bond continuou tenso como um gato prestes a atacar.
O gordo voltou-se vagarosamente. Estendeu as mãos acima da cabeça, embora Bond não lhe tivesse exigido isso. Deu dois passos para a cadeira e lentamente virou-se como se fosse sentar-se.
Parou, contemplando Bond, e com naturalidade deixou cair as mãos ao longo do corpo. E as duas mãos, sossegadas, sacudiram-se para trás, a direita mais do que a esquerda. E então, de súbito, no movimento de retorno, o braço direito entesou-se, precipitou-se para a frente e a faca brilhou nas pontas dos dedos como uma chama branca.
— Paf.
A bala silenciosa e a faca muda cruzaram uma pela outra em pleno ar, e os olhos dos dois homens perturbaram-se simultaneamente quando as armas atingiram seus objetivos.
Mas a perturbação nos olhos do homem gordo converteu-se num reviramento do globo ocular quando ele caiu para trás, as mãos agarradas ao peito, enquanto os olhos de Bond pousaram sem curiosidade na mancha que se espalhava em sua camisa e no cabo chato da faca pendurada frouxamente nas dobras do pano.
Produziu-se um estardalhaço quando a cadeira se espatifou sob o peso do homem gordo. Seguiu-se um ruído roufenho e ouviu-se, por último, um baque surdo no soalho.
Bond olhou a cena uma vez e depois voltou-se para a vigia aberta.
Durante algum tempo ficou de costas para o quarto, o olhar fixo nas cortinas que se balançavam molemente. Sorveu o ar e escutou os maravilhosos sons marinhos do exterior, do mundo que ainda lhes pertencia, a ele e a Tiffany, mas não aos outros dois. Pouco a pouco, seu corpo e seus nervos tensos se relaxaram.
Instantes depois, puxou a faca que se lhe enfiara na camisa. Não olhou para ela. Apenas estirou o braço, afastou a cortina para um lado e atirou a faca pela vigia. Em seguida, ainda contemplando a noite quieta lá fora, prendeu o registro de segurança da Beretta e, com um braço que lhe pareceu de repente pesado como chumbo, introduziu de novo a arma no cós das calças.
Com certa relutância, deu meia volta e encarou a desordem reinante no camarote. Com ar pensativo, examinou tudo e, num gesto, inconsciente, enxugou as mãos nos lados das calças. Em seguida, caminhando cautelosamente até o banheiro, disse: "Tiffany, sou eu" numa voz cansada, deprimida, e abriu a porta.
Ela não o ouvira. Continuava deitada de bruços na banheira seca, as mãos sobre as orelhas. E quando ele a ergueu e tomou nos braços, ela ainda não acreditou no que via. Agarrou-se a ele e começou a tocar-lhe o rosto e o busto com as mãos para certificar-se de que era realidade.
Ele se retraiu quando ela lhe apalpou a costela cortada. Então ela afastou-se um pouco, examinou-lhe o rosto, depois o sangue que manchava seus dedos e por fim a camisa escarlate.
— Meu Deus! Você está ferido! — disse ela assustada; e, esquecendo seus pesadelos, arrancou-lhe a camisa, lavou-lhe a costela com água e sabão e amarrou-a com tiras da toalha cortada com a gilete de um dos homens mortos.
Não fez perguntas, nem mesmo quando Bond lhe trouxe as roupas que estavam espalhadas pelo soalho do camarote e lhe disse que não saísse enquanto ele não tivesse terminado de arrumar tudo e de apagar as impressões digitais de todos os objetos que ela havia tocado.
Ela apenas pousava nele os olhos brilhantes. E quando Bond a beijou nos lábios, continuou calada.
Bond deu-lhe um sorriso tranquilizador, saiu e fechou a porta do banheiro atrás de si. Pôs mãos à obra, fazendo cada coisa com grande determinação e parando antes de cada gesto a fim de imaginar o efeito que produziria diante dos olhos e do espírito dos detetives que subiriam a bordo em Southampton.
Primeiro amarrou um cinzeiro à sua camisa ensanguentada para torná-la pesada, aproximou-se da vigia e atirou o pacote o mais longe que pôde. Os smokings dos dois homens estavam pendurados atrás da porta. Tirou os lenços que estavam nos bolsinhos dos paletós, envolveu com eles as mãos e remexeu nos armários e cômodas até encontrar as camisas do grisalho.
Vestiu uma e ficou um momento no centro do camarote, meditando. Depois, cerrou os dentes e levantou o homem gordo até deixá-lo sentado, tirou-lhe a camisa, foi à vigia, sacou a Beretta, encostou a arma no orifício aberto na fazenda pelo tiro anterior e disparou outra bala no mesmo local. Agora havia uma nódoa de fumaça em volta do orifício para dar a impressão de suicídio.
Tornou a vestir a camisa no cadáver, limpou demoradamente a Beretta com o lenço, comprimiu os dedos da mão direita do morto sobre ela e, finalmente, ajustou a arma na mão do gordo, com o indicador no gatilho.
Após outra pausa no meio do quarto, retirou o smoking de Kidd do cabide e vestiu com ele o cadáver. Em seguida, arrastou o corpo até a vigia e, suando com o esforço, levantou-o e jogou-o ao mar.
Limpou as possíveis impressões digitais deixadas na vigia e interrompeu-se outra vez, tomando fôlego e inspecionando o cenário. Foi até a mesa de jogo, encostada à parede e com os objetos espalhados indicando que o jogo não fora concluído, e derrubou tudo, dispersando as cartas pelo tapete. Parou, refletiu mais um pouco, voltou ao cadáver de Wint, retirou-lhe do bolso traseiro da calça o rolo de cédulas e jogou-as entre as cartas.
O quadro era satisfatório, sem dúvida. Haveria o mistério da bala disparada na cama pelo moribundo Kidd, mas isso poderia ter sido parte da luta. Três balas tinham sido detonadas pela Beretta e havia três cartuchos no soalho. Duas das balas poderiam ter-se enterrado no corpo de Kidd que agora estava no Atlântico. Havia os dois lençóis que teria de roubar da segunda cama. A falta deles ficaria inexplicada. Talvez Wint houvesse enrolado neles o corpo de Kidd antes de empurrá-lo pela vigia. Isso se encaixava no remorso e no suicídio de Wint, posterior ao tiroteio motivado pelo desentendimento à mesa do jogo.
De qualquer maneira, refletiu Bond, o quadro se sustentaria até a chegada da polícia ao porto, mas nesse momento ele e Tiffany já estariam fora do navio e bastante longe, e o único vestígio deles no camarote seria a Beretta; e esta, como todas as outras armas pertencentes ao Serviço Secreto, não era numerada.
Soltou um suspiro e encolheu os ombros. Agora, restava apanhar os lençóis, conduzir Tiffany de volta ao seu camarote sem serem vistos, cortar a "corda" que se balançava na vigia, atirá-la ao mar com os pentes restantes da Beretta e o coldre vazio e, por fim, dormir à vontade com o corpo adorado de Tiffany enroscado no seu para sempre.
Para sempre?
Ao atravessar o camarote a caminho do banheiro, Bond encontrou os olhos vazios do cadáver no soalho.
E os olhos do homem cujo Grupo Sanguíneo fora F chamaram-no e lhe disseram:
— Mr. Bond. Nada existe para sempre. Só a morte é permanente. Nada é eterno, exceto o que você fez comigo.
25 - Fecha-se o canal
AGORA NÃO HAVIA escorpião morando nas raízes do frondoso espinheiro erguido na junção dos três Estados africanos. O contrabandista das minas não tinha outra coisa que lhe absorvesse a atenção senão o desfile infindável de um regimento de formigas de correição entre as baixas muralhas que as guerreiras haviam construído em ambos os lados da estradinha de três polegadas.
A noite era quente e úmida, e o homem escondido sob o espinheiro estava impaciente e intranquilo. Era esta a última vez que comparecia ao encontro marcado. Já tinha decidido. Que arranjassem outro, se quisessem.
Naturalmente não iria fazer sujeira com eles. Comunicaria a intenção de deixá-los e lhes daria o motivo: o novo assistente admitido no serviço dentário parecia entender muito pouco de odontologia; decerto era espião: o olhar indagador, o bigodinho amarelo-avermelhado, as unhas bem tratadas.
Pegaram alguém? Tomaram-lhe o depoimento?
O contrabandista trocou de posição. Por onde diabo andava o helicóptero? Apanhou um punhado de terra e atirou-o no meio das formigas.
Elas se atarantaram um pouco, mas com a chegada das últimas fileiras, as que iam na frente se dispersaram pelas muralhas. Então as guerreiras pegaram febrilmente a cavar e transportar a terra, e em poucos minutos a estrada estava outra vez transitável.
O homem tirou o sapato e jogou-o com força sobre o regimento em marcha. Houve outro curto instante de afobação. Depois, as formigas lançaram-se sobre as mortas e as devoraram. O caminho estava novamente desimpedido e o negro rio continuou a fluir.
O homem soltou uma praga em africaans e calçou o sapato. Filhas duma égua. Iam ver uma coisa. Acocorando-se e suspendendo um braço para se proteger contra os espinhos, saiu pisando pela estrada das formigas. Isso lhes serviria de lição.
Ao surgir sob o luar, o homem já tinha esquecido o ódio que dedicava a tudo quanto fosse negro e virou a cabeça para a banda do norte. Graças!
Rodeou o espinheiro para ir buscar as lanternas e o pacote dos diamantes guardados nas caixas de ferramentas.
A uma milha dali, sob a copa de um arbusto, o poderoso ouvido de ferro do detector de som já parará de investigar, e o operador, que vinha transmitindo os dados aos três homens agrupados ao lado do caminhão militar, informou: — Trinta milhas. Velocidade: cento e vinte. Altura: novecentos pés.
Bond consultou o relógio.
— Tudo indica que o encontro está marcado para a meia-noite,_na lua cheia — disse ele. — O nosso homem está uns dez minutos atrasado.
— Parece que o senhor tem razão — concordou o oficial da guarnição de Freetown, a seu lado, e voltou-se para o terceiro homem. — Cabo. Veja se não tem nenhum metal aparecendo na rede de camuflagem. Com este luar, é preciso ter cuidado.
O caminhão estava coberto pelo arbusto, à beira de uma estrada de barro, que atravessava a planície na direção da aldeia de Telebadu, na Guiné Francesa. Naquela noite, haviam deixado as colinas logo que o radiolocalizador captara o barulho da motocicleta do dentista na estrada paralela. Tinham vindo com os faróis apagados e pararam quando cessou o ruído da motocicleta. Haviam estendido a rede de camuflagem sobre o caminhão, o detector de som e o canhão Bofors. E puseram-se a esperar, sem saberem ao certo quem ou o que viria ao encontro do dentista — outra motocicleta, um homem a cavalo, um jipe, um avião?
Ao ouvir no céu o longínquo matraquear, Bond soltou uma gargalhada.
— Helicóptero — disse ele. — Era só o que faltava. Preparem-se para tirar a rede quando pousar. Talvez a gente tenha de dar um tiro de advertência. O detector está ligado?
— Está, sim — respondeu o cabo que operava o aparelho. — O nosso amigo está chegando. Poderão vê-lo num minuto. O senhor está vendo aquelas luzes acolá? Devem ser do campo de pouso.
Bond passeou o olhar pelos quatro feixes de luz e, depois, contemplou o imenso céu africano.
Então aí vinha o último de todos, o derradeiro elemento da quadrilha e também o primeiro. O homem que havia visto ligeiramente em Hatton Garden. O número um da turma de Spang, cuja cotação era tão alta em Washington. O único, excetuando o inofensivo e até simpático Shady Tree, que Bond ainda não fora obrigado a matar ou — pensou no botequim de Spectreville e nos dois homens de Detroit — quase. Não que tivesse desejado matar esses indivíduos. A missão que M lhe confiara fora apenas de investigação. Mas, um a um, eles haviam tentado contra sua vida e a de seus amigos. A violência fora o primeiro, não o último recurso deles.
Violência e crueldade, as armas escolhidas. Os dois homens do Chevrolet em Las Vegas, que tinham disparado contra ele e ferido Ernie Cureo. Os dois sujeitos do Jaguar, que haviam espancado Ernie e tinham sido os primeiros a sacar os revólveres quando começara a luta. Seraffimo Spang, que mandara torturá-lo, disparara contra ele e Tiffany e procurara esmagá-los na estrada de ferro. Wint e Kidd, que haviam supliciado Tingaling Bell, Bond e Tiffany Case. E, dos sete, matara cinco — não porque gostasse de matar, mas porque alguém tinha de fazê-lo. Tivera a seu lado a sorte e três bons amigos, Félix, Ernie e Tiffany. E os malvados tinham perecido.
Agora chegava a último dos malvados, o homem que planejara a sua morte e a de Tiffany, o homem que, segundo M, arquitetara o contrabando dos diamantes, montara o canal de escoamento e o vinha dirigindo com eficiência e mão de ferro através dos anos.
Ao telefone, para Boscombe Down, M falara pouco e com certa aspereza na voz. Usara a linha do Ministério da Aeronáutica, poucos minutos antes que o Canberra decolasse para Freetown. Bond recebera o telefonema do gabinete do comandante da base, tendo nos ouvidos o grito estridente das turbinas do Canberra.
— Satisfeito de tê-lo de volta são e salvo.
— Muito obrigado, senhor.
— Que estória é essa que os vespertinos noticiaram acerca de um duplo homicídio no Queen Elizabeth?
Havia algo mais do que suspeita na voz de M.
— Eram os dois pistoleiros da quadrilha. Viajavam sob os nomes de Winter e Kitteridge. Meu camareiro desconfia que eles se desentenderam quando jogavam baralho.
— Acha que a suposição do camareiro é correta?
— É possível. Houve uma pausa.
— E os policiais também pensam assim?
— Não vi nenhum deles.
— Vou falar com Vallance.
— Ótimo — disse Bond, sabendo que essa era a maneira de M dizer que, caso Bond tivesse liquidado os dois homens, tomaria providências para que o agente e o Serviço Secreto não fossem mencionados no inquérito.
— Bem, de qualquer modo — disse M — aqueles dois eram pouco importantes. Esse Jack Spang, ou Rufus B. Saye ou ABC, ou que nome tenha, esse eu quero que você agarre. Ao que parece, ele vai agora até o extremo do canal. Vai fechá-lo. Talvez matando o que encontrar pela frente. O ponto final é o dentista. Veja se consegue pegar os dois. Faz coisa de uma semana que destaquei 2804 para trabalhar ao lado do dentista. O pessoal de Freetown acha que já se pode agir. Mas eu quero encerrar este caso e ver você de novo em seu verdadeiro posto. Esse negócio foi uma trapalhada dos diabos. Não me agradou desde o princípio. E se, afinal, conseguimos chegar ao ponto em que estamos agora, foi mais uma questão de sorte do que de boa organização.
— Concordo com o senhor — disse Bond.
— E essa moça, Case? — perguntou M. — Conversei com Vallance. Ele não deseja processá-la, a menos que você insista.
Teria M carregado um pouco no tom de indiferença?
Bond procurou evitar uma resposta muito persuasiva.
— Ela foi de grande ajuda — disse ele, esperançoso.
— Talvez a gente possa resolver quando eu apresentar meu relatório final.
— E onde está ela agora?
O negro receptor começava a ficar escorregadio na mão de Bond.
— Está a caminho de Londres, num Daimler de aluguel. Vou colocá-la no meu apartamento. Quero dizer, no quarto vago. É muito boa dona de casa.
Ela se arranjará até que eu volte. É uma boa moça, estou certo disso.
Puxou o lenço do bolso e enxugou o suor do rosto.
— Sem dúvida — disse M. Não havia ironia em sua voz.
— Está bem, então. Boa sorte. — Houve uma pausa. — Tome cuidado.
E... — a voz no outro extremo da linha tornou-se subitamente áspera — não pense que não estou satisfeito com os resultados até agora obtidos. Foram além do programa, naturalmente, mas você parece que topou muito bem a parada desse pessoal. Até logo, James.
— Até logo, senhor.
Bond levantou a vista para o céu recamado de estrelas e pensou em M e Tiffany, esperando que agora fosse mesmo o fim e que fosse rápido e tranquilo, e que logo estivesse em casa.
De pé, empunhando a quarta lanterna, o contrabandista das minas esperava. Lá vinha o helicóptero. Cortando a trajetória da lua. Como sempre, o barulho era infernal. Outro risco de que ia livrar-se.
Baixava lentamente. Agora pairava a uns vinte pés de altura. A mão apontou na janela e piscou A. O homem no chão piscou, em resposta, B e c.
As lâminas do rotor diminuíram a velocidade e, suavemente, o gigantesco inseto de aço pousou no chão.
O pó assentou. O contrabandista retirou a mão dos olhos e ajudou o piloto a descer a escadinha. Usava capacete de voo e óculos de proteção.
Extraordinário. E parecia mais alto do que o alemão. O contrabandista sentiu uma picada na espinha. Quem era esse? Aproximou-se devagar.
— Trouxe?
Dois olhos frios, sob negras sobrancelhas retas, cintilaram por trás dos óculos. Ocultavam-se quando o homem moveu a cabeça e o luar incidiu sobre o vidro. Agora eram dois círculos brancos reluzentes no meio do negro e luzidio capacete de couro.
— Trouxe — disse, nervoso, o homem das minas. — Mas onde está o alemão?
— Não virá mais. — Os dois círculos brancos cegavam o contrabandista.
— Eu sou ABC. Vim fechar o canal.
A voz era americana. Enérgica, seca, inflexível.
— Oh!
Maquinalmente, a mão do contrabandista enfiou-se na abertura da camisa. Apanhou o embrulho úmido e entregou-o ao piloto como se fosse uma oferenda de paz. À semelhança do escorpião, um mês antes, o homem das minas pressentia a pedra erguida sobre sua cabeça.
— Ajude-me a encher o tanque.
Era a voz do feitor dando ordens ao escravo. Mas o contrabandista apressou-se a obedecer.
Fizeram o serviço em silêncio. Ao terminar, voltaram ao chão. O cérebro do contrabandista trabalhava furiosamente. Ele se esforçava por adotar a voz de um associado, a voz de alguém que estivesse a par dos negócios e exercesse a mesma autoridade.
Olhou com atenção para a nesga de treva cor-de-anil onde se achava o piloto com a mão sobre a escada.. — Estive pensando bem e acho que...
A voz estacou de supetão, a boca abriu-se espavorida e deixou escapar um ruído que era uma mescla de rosnado e uivo.
A arma na mão do piloto gaguejou três vezes. O contrabandista emitiu um "Oh" numa voz servil, caiu de costas no chão, fez um esforço para se soerguer e imobilizou-se.
— Fique onde está. — A voz ressoou na planície, transmitida pelo amplificador. — Você está cercado.
Ouviu-se o ruído de um motor que se punha em funcionamento.
O piloto não procurou saber de onde vinha a voz. Pulou para a escada. A porta da carlinga fechou-se com uma pancada e zumbiu o arranque automático. O motor começou a trabalhar, as lâminas do rotor giraram, pouco a pouco foram ganhando velocidade até que se transformaram em dois redemoinhos prateados. Então, com uma sacudidela, o helicóptero elevou-se verticalmente no ar.
Em terra, entre os arbustos, o caminhão freou e Bond saltou para a sela de aço do Bofors.
— Pra cima, cabo — gritou ele para o homem que manobrava a alavanca de suspensão. Baixou os olhos para a alça de mira quando a boca da arma se ergueu para a lua. Com a mão, puxou a alavanca do seletor de fogo, tirando-a da marca de segurança e colocando-a em "Fogo". — Esquerda, dez.
— Eu alimentarei.
O oficial ao lado de Bond tinha nas mãos dois depósitos de obuses pintados de amarelo.
Os pés de Bond firmaram-se nos pedais do gatilho. O helicóptero estava no centro da alça de mira.
— Firme — disse ele calmamente.
— Bumpa.
O obus reluzente rodou no alto a uma velocidade apenas menor do que a do som. Baixo e à esquerda. O cabo girou delicadamente as duas alavancas.
— Bumpa.
O obus deu a volta por cima do helicóptero. Bond inclinou-se para a frente e puxou a alavanca do seletor para "Fogo Automático". A mão relutava. Agora a morte era inevitável. Mais uma vez ele tinha de tomar essa decisão.
— Bumpa... bumpa... bumpa... bumpa... bumpa... O fogo vermelho espargiu-se no céu. O helicóptero continuou a avançar para a lua e depois rumou para o norte.
— Bumpa... bumpa...
Houve um espocar de luz amarela perto do rotor da cauda e um estrondo de explosão distante.
— Acertou — disse o oficial, pegando o binóculo. — O rotor da cauda está perdido — disse ele. E logo, agitado: — Puxa! Parece que toda a cabina está girando com o rotor principal! O piloto está atolado.
— Mais algum? — perguntou Bond, mantendo na mira o helicóptero em chamas.
— Não, senhor — disse o oficial. — Seria bom se conseguíssemos pegá-
lo vivo. Mas parece... é, sim, já perdeu o controle. Vem caindo de ponta.
Deve haver alguma coisa com as lâminas do rotor principal. Lá vem ele.
Bond levantou a vista e resguardou os olhos contra a claridade intensa.
— Sim. Lá vem ele. A cem pés, o motor ribombando e as hélices girando inutilmente enquanto a embrulhada metálica despencava do céu em cambaleios e guinadas de ébrio.
Jack Spang. O homem que ordenara o assassínio de Bond. Que ordenara o assassínio de Tiffany. O homem que Bond vira apenas uma vez, durante alguns minutos, numa sala superaquecida em Hatton Garden. Mr. Rufus B.
Saye. Da House oi Diamonds. Vice-Presidente para a Europa. O homem que jogava golfe em Sunningdale e visitava Paris uma vez por mês. "Cidadão exemplar", M dissera dele. Mr. Spang, da quadrilha de Spang, que acabara de matar um homem — o último de quantos?
Bond imaginava a cena dentro da estreita carlinga. O homem dirigindo com uma das mãos e com a outra mexendo desesperadamente nos controles, enquanto observava a agulha do altímetro baixar vertiginosamente. Nos olhos, o rubro clarão do terror. As centenas de milhares de libras esterlinas em diamantes reduzidas a peso morto. A arma, que desde a infância, fora um poderoso braço direito, agora inútil.
— Vai pra cima do espinheiro — bradou o cabo acima da barulheira.
— Está perdido — disse o capitão, a meia voz.
Contemplaram as últimas guinadas; depois, suspenderam a respiração quando o aparelho, num bamboleio desenfreado, empinou o nariz e, como se o espinheiro fosse seu inimigo, deu um mergulho irado, descrevendo uma curva de vinte jardas, e arremessou-se com os rotores desgovernados contra os espinhos.
Antes de se extinguirem os ecos da colisão, ouviu-se um ribombo cavo e uma bola de fogo, projetada no ar, ofuscou o clarão da lua e banhou a planície inteira num fulgor alaranjado.
O capitão foi o primeiro a falar.
— Opa! — exclamou, tirando o binóculo e voltando-se para Bond. — Bem — disse ele, resignado — nada a fazer. Acho que só quando amanhecer a gente vai poder se aproximar. E só com o dia alto é que se poderá revolver os destroços. Mas pode esperar que daqui a pouco os soldados franceses da fronteira estarão aqui. Felizmente estamos em boas relações com eles. O governo é que passará um bocado de tempo discutindo com Dakar. — O oficial previa as idas e vindas da papelada e sentia-se ainda mais exausto.
Homem prosaico, achava que o dia já lhe trouxera boa dose de canseiras. — O senhor se incomoda se a gente tirar uma pestana?
— À vontade — disse Bond, e consultou o relógio. — É melhor irem pra debaixo do caminhão. Eu mesmo não estou com sono. Vou ficar de olho.
Pode ser que o fogo ameace se alastrar.
O oficial lançou um olhar inquiridor a esse homem calmo e enigmático, que chegara de repente ao Protetorado no meio de uma enxurrada de recomendações de "Prioridade Absoluta". Se a gente nunca precisasse dormir... Bom, isso nada tinha que ver com Freetown. Era coisa de Londres.
— Muito obrigado, então — disse o oficial e jogou-se debaixo do caminhão.
Bond retirou vagarosamente os pés dos pedais do gatilho e reclinou-se no encosto da sela de aço. Maquinalmente, com os olhos pousados ainda nas chamas saltitantes, enfiou as mãos nos bolsos do desbotado blusão caqui, que lhe haviam arranjado na base, puxou um cigarro, acendeu-o e tornou a guardar a cigarreira e o isqueiro.
Aí estava o fim do contrabando de diamantes. A última página da estória. Deu uma tragada e expeliu a fumaça com um suspiro longo e calmo.
Seis cadáveres a zero. Vitória folgada.
Ergueu a mão e limpou a testa suada. Atirou para trás a mecha de cabelo que lhe caía por cima da sobrancelha direita, e o clarão vermelho iluminou-lhe o rosto duro e magro e cintilou nos olhos cansados.
Esse imenso e rubro ponto final assinalava o desmoronamento da Quadrilha de Spang e o término do fabuloso contrabando de diamantes. Não o fim dos diamantes que se tostavam do interior do braseiro. Eles sobreviveriam e outra vez iriam percorrer o mundo. Descoloridos, talvez, mas indestrutíveis, tão permanentes como a morte.
E Bond recordou, instantaneamente, os olhos do cadáver cujo sangue havia pertencido ao grupo F. Tinham-se enganado. A morte é eterna. Mas os diamantes também são eternos.
Bond desceu do caminhão e pôs-se a andar lentamente em direção à fogueira crepitante. Levava um sorriso sombrio nos lábios. Toda essa estória acerca de morte e diamantes era demasiado solene. Para Bond, era apenas o fim de outra aventura. Outra aventura que bem podia ter por epitáfio as palavras de Tiffany Case. E reviu a boca ardente e irônica que lhe dizia: — Contada é uma coisa, vivida é outra.
20 - Chamas que saem do alto
O UNIFORME PRETO de homem-rã estava muito apertado. Doía no corpo todo. Por que cargas d'água Strangways não tinha se certificado de que o Almirantado tinha suas medidas corretas? E era muito escuro no fundo do mar, as correntes eram muito fortes, arrastavam-no para o banco de coral.
Era preciso nadar com todo o ímpeto para afastar-se dali. Mas agora algo lhe prendia o braço. Que diabo...?
— James! Pelo amor de Deus, James! — Ela apertou a boca ao ouvido dele. Desta vez ela beliscou-lhe o braço nu e ensanguentado com tanta força que, afinal, os olhos de Bond se abriram entre as pálpebras inchadas, e ele a contemplou do piso de madeira em que estava deitado e deu um suspiro de sobressalto.
Ela puxou-o para si, com medo que ele lhe escapasse outra vez. Ele pareceu entender e se revolveu, erguendo-se sobre as mãos e os joelhos, a cabeça pendida para o chão, como um animal ferido.
— Pode andar?
— Espere. — O murmúrio espesso que lhe atravessou os lábios arrebentados soou-lhe estranho aos ouvidos. Talvez ela não tivesse compreendido. — Espere — repetiu ele, enquanto sua mente passava a explorar o corpo para ver o que lhe tinha sobrado. Podia sentir os pés e as mãos. Podia mover a cabeça de um lado para outro. Podia ver as barras do luar nas pranchas de madeira. Pudera ouvir a moça. Devia estar inteiro, mas não queria mover-se. Sua força de vontade o tinha abandonado. Apenas desejava dormir. Ou talvez mesmo morrer. Qualquer coisa, contanto que mitigasse a dor que lhe avassalava o corpo todo, apunhalando-o, martelando-o, triturando-o — e matasse a lembrança das quatro botinas que o haviam golpeado e dos rosnados proferidos pelos dois vultos encapuzados.
Assim que pensou nos dois homens e em Mr. Spang, a vontade de viver retornou.
— Está bem — disse, e tornou a dizer para que ela compreendesse.
— Estamos na sala de espera — sussurrou a moça. — Temos de chegar ao extremo da estação. À esquerda, depois da porta. Está me ouvindo, James?
Ela estirou a mão e afagou-lhe os cabelos úmidos, viscosos, caídos na testa.
— Tenho de me arrastar — disse Bond. — Atrás de você.
A moça ergueu-se e abriu a porta. Bond trincou os dentes e saiu de rastros para a plataforma enluarada. E quando avistou a mancha escura no chão, a raiva e o desejo de vingança deram-lhe forças para se levantar.
Balançando a cabeça para não se afogar nas ondas negro-avermelhadas e amparado em Tiffany Case, cujo braço lhe envolvia a cintura, foi coxeando pelas tábuas até a rampa por onde desceram para o chão junto dos trilhos reluzentes.
E lá, no desvio, havia um vagonete.
Bond parou e olhou-o atentamente.
— Gasolina? — perguntou com ar vago.
Tiffany Case fez um gesto para uma fileira de latas encostadas no muro da estação. — Está cheio — sussurrou. — É usado na inspeção da linha. Eu sei colocá-lo em funcionamento. Já desloquei as agulhas. Depressa. Suba — soltou uma risadinha abafada. — Próxima parada: Rhyolite.
— Isso é que é uma garota — murmurou Bond. — Mas vai fazer um barulho danado quando esse troço começar a funcionar. Espere. Tenho uma ideia. Tem fósforos?
Metade da dor tinha desaparecido. Respirava forte quando deu as costas à moça e observou as silenciosas casas de madeira.
Ela estava usando calças compridas e blusa. Enfiou a mão no bolso das calças e entregou-lhe o isqueiro.
— O que é que vai fazer? — perguntou. — Já devíamos ter partido.
Mas Bond manquejou até as latas de gasolina e pôs-se a destampá-las e a arremessar o líquido sobre as paredes e a plataforma de madeira. Depois de esvaziar meia dúzia de latas, voltou para onde ela estava. — Ligue a bicha.
— Curvou-se com esforço e apanhou um jornal amassado ao lado dos trilhos. Ressoou o gemido raivoso do arranque automático, o motor de dois tempos pegou e começou a martelar.
Bond acendeu o isqueiro. O papel pegou fogo e Bond jogou-o entre as latas de gasolina. O espocar das labaredas quase o alcançou quando ele se lançou de costas ao estribo do vagonete. Mas então a. moça soltou a embreagem e o carro começou a deslizar pelos trilhos.
Houve um matracolejar e um sacolejo desagradável ao chegarem às agulhas; e depois, entrados na linha> principal, o velocímetro tremia marcando trinta milhas e os cabelos da moça flutuavam à frente de Bond como uma bandeira.
Bond voltou-se e contemplou a gigantesca floração de chamas que ia ficando para trás. Podia quase ouvir o crepitar das pranchas secas e os berros dos que despertavam. Se pelo menos o fogo pegasse Wint e Kidd, apanhasse a pintura do Pullman e se alastrasse pela lenha do tender do Cannonball e acabasse de uma vez com a caixa de brinquedos de Mr. Spang!
Mas ele e a moça tinham seus próprios problemas. Que horas eram?
Bond aspirou o ar fresco da noite e tentou colocar de novo a mente para trabalhar. A lua estava baixa. Quatro horas? Bond avançou com dificuldade pelo estribo até os dois assentos de encosto dobradiço e conseguiu sentar-se ao lado da moça.
Passou-lhe um braço em volta dos ombros, e ela voltou-se com um sorriso nos lábios. Levantando a voz acima do barulho da máquina e do matracolejar das rodas de ferro sobre os trilhos, ela falou: — Foi uma escapada e tanto. Parecia coisa de filme de Buster Keaton.
Como se sente? — Inspecionou o rosto combalido. — Você está massacrado, hein?
— Nenhuma fratura — disse Bond. — Acho que é isso que se entende por oitenta por cento. — Fez uma careta de dor. — É melhor ser tratado a pontapé do que a bala.
O rosto de Tiffany Case contraiu-se.
— E eu tive de ficar sentada lá e fingir que não ligava. Spang, ao meu lado, escutava e me observava. Depois, eles viram que você já estava nas últimas, atiraram você na sala de espera e todo mundo foi para a cama satisfeito da vida. Esperei uma hora em meu quarto e então resolvi agir. O
pior de tudo foi tentar despertar você.
Bond apertou-lhe os ombros com o braço.
— Direi o que penso de você quando estiver menos contundido. Mas, e você, Tiffany? Vai ficar em maus lençóis se eles nos pegarem. E quem são os dois encapuzados, Wint e Kidd? O que é que eles vão fazer agora?
Gostaria de vê-los de novo.
A moça olhou de viés para a feia equimose na boca de Bond.
— Nunca os vi sem os capuzes — confessou ela. — Suponho que eles são de Detroit. Pistoleiros. Encarregam-se dos trabalhos violentos e de missões especiais secretas. Virão em nosso encalço. Mas não se preocupe comigo. — Encarou-o de novo e seus olhos irradiavam felicidade. — A primeira coisa a fazer é levar essa joça a Rhyolite. Depois teremos de achar um carro e cruzar a fronteira com a Califórnia. Dinheiro não vai faltar-. Eu trouxe. Depois iremos a um médico, arranjaremos um banho e uma camisa nova pra você e pensaremos no que vamos fazer. Trouxe seu revólver. Foi encontrado por um dos rapazes que ajudaram a recolher os restos daqueles dois sujeitos que você arrasou no botequim. Apanhei a arma depois que Spang foi para a cama.
Ela desabotoou a blusa e enfiou a mão no cós das calças.
Bond recebeu a Beretta, e sentiu a quentura do corpo da moça no metal.
Removeu o pente. Sobravam três cartuchos, e um estava na agulha.
Recolocou o pente, fechou o registro de segurança e guardou a arma na cintura. Só então notou que estava sem paletó. Uma das mangas da camisa fora reduzida a um trapo. Arrancou-a e jogou-a fora. Apalpou o bolso traseiro direito da calça, à procura da cigarreira e não a encontrou. Mas no esquerdo estavam ainda o passaporte e a carteira de cédulas. Puxou-os do bolso. À luz da lua pôde ver que ambos estavam danificados. O dinheiro continuava na carteira. Pôs outra vez os objetos no bolso.
Durante algum tempo avançaram pela estrada. O silêncio da noite era cortado apenas pelo ronrom da máquina e pelo matraquear das rodas. Até onde a vista alcançava, havia somente uma interrupção da estreita linha prateada dos trilhos, assinalada pela alavanca de manobra das agulhas, no ponto em que um ramal enferrujado penetrava na massa escura dos montes Spectre à direita. À esquerda, descortinava-se o infindável chão do deserto em que o lampejo da aurora começava a debruar de azul as moitas de cactos contorcidos e, duas milhas além, o luar esparramava seu clarão cinza-chumbo sobre a Rodovia 95.
O vagonete cantarolava feliz nos trilhos. Os instrumentos de controle eram poucos: uma alavanca de freio e uma espécie de manche com um acelerador de cabo retorcido que a moça mantinha completamente aberto, com o velocímetro firme em trinta milhas. As milhas e os minutos passavam e, de vez em quando, Bond virava-se com dificuldade na cadeira e inspecionava o florescente rubor do céu às suas costas.
Fazia cerca de uma hora que tinham partido quando um leve zumbido, vibrando no ar ou nos trilhos, pôs Bond de sobreaviso. Novamente ele olhou por cima do ombro. Haveria um vago bruxoleio entre eles e o falso alvorecer da cidade em chamas?
Bond sentiu leve comichão no couro cabeludo.
— Veja se enxerga alguma coisa ali atrás.
A moça voltou-se. Depois, sem responder, diminuiu a marcha do carro que passou a deslizar suavemente.
Puseram-se à escuta. Sim. Era nos trilhos. Uma leve trepidação, nada mais do que um suspiro distante.
— É o Cannonball — disse Tiffany, categórica.
Deu um brusco repelão no acelerador, e o vagonete tornou a ganhar velocidade.
— Quanto pode fazer a locomotiva? — perguntou Bond.
— Talvez sessenta.
— E daqui pra Rhyolite?
— Trinta, mais ou menos.
Bond fez as contas em silêncio.
— Vai ser por um triz. Não é fácil dizer a que distância ela está de nós. E
esse treco pode dar mais alguma coisa?
— Que nada! — disse ela, — Nem que eu me chamasse Casey Jones em vez de Tiffany Case.
— Não tem importância — disse Bond. — Toca pra frente. Talvez ela vá prós ares com uma explosão.
— Ah, sim — disse ela. — Ou talvez a mola dê o prego, ou Spang se lembre que deixou a chave do motor em casa, no bolso da calça.
Viajaram mais quinze minutos em silêncio. Então, Bond divisou o grande farol da locomotiva varando a noite, a umas cinco milhas de distância, e as centelhas subindo pela chaminé. Os trilhos trepidavam e o que tinha sido um suspiro longínquo era agora um murmúrio baixo, ameaçador.
Talvez venha a faltar lenha, pensou Bond. Num impulso, ele perguntou despreocupadamente à moça:
— Será que temos bastante gasolina?
— Temos, sim — disse Tiffany. — Botei uma lata inteira. Não tem mostrador, mas esses motorzinhos giram a vida inteira com um galão.
Mal ela havia acabado de falar, e como se fizesse um comentário, o motorzinho deu uma tossidela de reprovação — cóf-cóf-cóf — e continuou a rodar alegremente.
— Ai, meu Deus! — exclamou Tiffany. — Ouviu isso? Bond ficou calado. Sentiu as mãos tornarem-se úmidas. Outra vez: cóf-cóf-cóf.
Tiffany Case acalentou delicadamente o acelerador.
— Ah, motorzinho querido — disse ela em tom de súplica. —' Vamos, motorzinho lindo, seja bonzinho, por favor...
— Cóf-cóf. Cóf-cóf. Chi. Cóf. Chiiiii...
E no instante seguinte estavam eles escorregando brandamente em silêncio. Vinte e cinco, dizia o velocímetro. Vinte... quinze... dez... cinco.
Um último e selvagem repelão no acelerador, um pontapé de Tiffany Case na armação do motor, e tinham parado.
— Porra! — disse Bond. Com esforço conseguiu saltar e manquejar até o tanque na traseira do vagonete. Tirou do bolso da calça o lenço ensanguentado, desatarraxou a tampa do funil e introduziu o lenço até tocar o fundo do tanque. Puxou-o para fora, apalpou-o e cheirou-o. Seco como um osso.
— Nada feito — disse ele para Tiffany. — Vamos pensar numa saída.
Olhou em volta. Nenhum abrigo à esquerda, e duas milhas pelo menos até à estrada de rodagem. À direita, as montanhas, talvez a um quarto de milha. Podiam chegar lá e esconder-se. Mas por quanto tempo? Contudo, era o melhor alvitre. O chão, sob seus pés, tremia. Esquadrinhou a linha férrea iluminada pelo olho incandescente, implacável. A que distância? Duas milhas? Spang enxergaria o vagonete? Teria tempo de parar? Haveria descarrilamento? Mas aí Bond lembrou-se do poderoso limpa-trilhos, que varreria da linha o vagonete como se fosse um feixe de palha.
— Vamos, Tiffany — bradou ele. — Temos de escalar as colinas.
Onde estava ela? Bond rodeou o carro. Ela vinha correndo pelo trecho da estrada que tinham pela frente. Aproximou-se arquejante.
— Há um desvio logo ali adiante — disse ela entre um ofego e outro. — Se a gente puder empurrar essa coisa até lá e se você puder manobrar as velhas agulhas, pode ser que a gente escape.
— Deus do céu! — disse Bond lentamente. E depois, com uma nota de pasmo na voz, acrescentou: — Há uma coisa melhor do que essa. Me ajude aqui — e, curvando-se, rilhou os dentes contra a dor e começou a empurrar o vagonete.
Recebido o impulso inicial, o carro moveu-se facilmente e eles precisavam apenas segui-lo e não deixar que parasse. Chegaram às agulhas, mas Bond continuou a empurrar até que pararam umas vinte jardas além.
— Que diabo é que você vai fazer? — arquejou Tiffany.
— Vamos pra cá — respondeu Bond, correndo aos tropeções para o ponto em que a chave enferrujada ressaltava ao lado dos trilhos. — Vamos colocar o Cannonball no desvio.
— Genial! — disse Tiffany Case com admiração. Puseram mãos à obra, e os músculos doloridos de Bond forcejavam por erguer a chave.
Lentamente o metal enferrujado começou a mover-se no leito onde jazia imóvel havia cinquenta anos, e milímetro a milímetro os trilhos mostraram uma fenda, que foi se alargando à medida que Bond puxava a alavanca.
Ao terminar, Bond caiu de joelhos no chão, com a cabeça dobrada para baixo, lutando contra a tontura que ameaçava dominá-lo.
Mas já então um feixe de luz iluminava o chão e Tiffany procurava arrastá-lo. Bond ergueu-se e voltou aos trambolhões para o vagonete. O ar estrondava e se enchia do plangente clangor do sino enquanto o flamejante cavalo de ferro galopava em direção a eles.
— Abaixe-se e não se mexa — bradou Bond por cima do barulho e lançou-a ao chão por trás do frágil biombo do vagonete. Depois, coxeou o mais rápido que pôde até a margem dos trilhos, puxou a arma, colocando-se de viés com o braço levantado como um duelista e voltou os olhos semicerrados para o gigantesco farol que avançava debaixo do vulcão de fogo e fumaça turbilhonantes.
Puxa, que monstro! Entraria ele na curva? Ou não respeitaria o desvio e os esmagaria? Lá vinha ele.
— Fittt.
Algo açoitou o chão ao lado de Bond e houve um clarão momentâneo na cabina.
— P-o-e-m-m-m.
Houve outro clarão, e a bala atingiu o trilho, gemendo na noite.
— Trac. Trac. Trac.
Agora era-lhe possível ouvir o revólver acima do trovejar da locomotiva.
Algo cantou em tom agudo no ouvido de Bond.
Bond não respondeu. Só quatro balas, e ele sabia quando devia disparar.
E então, a vinte jardas, a locomotiva entrou na curva e desembestou pelo desvio com uma guinada tão violenta que atirou as achas de lenha do alto do tender na direção de Bond.
Houve um grito roufenho de metal quando as bordas das rodas motrizes de seis pés de altura dobraram a curva, uma breve impressão de fumaça, chama e ruído de motor, e, depois, uma rápida visão da cabina e do vulto negro e prateado de Spang, de braços abertos e pernas estendidas, agarrando-se com uma das mãos ao costado da cabina e com a outra precipitando-se para a alavanca do acelerador.
A arma de Bond bradou suas quatro palavras. Houve um curto vislumbre de uma cara branca arremessada para o alto, e logo a enorme locomotiva preta e amarela distanciou-se, reboando rumo à muralha sombria dos montes Spectre, o feixe de luz do farol ceifando a treva e o sino dobrando tristemente dim-dão, dim-dão, dim-dão.
Bond guardou lentamente a Beretta no cós das calças, e ficou olhando o ataúde de Mr. Spang, enquanto a esteira de fumaça subia no ar e por um momento encobria a face da lua.
Tiffany veio correndo até onde ele estava, e lado a lado puseram-se a contemplar a bandeira de chamas que se elevava da alta chaminé e escutar as montanhas multiplicarem o atroar da locomotiva. A moça agarrou-lhe os braços quando o comboio deu uma guinada repentina e sumiu-se atrás de um esporão da pedra. E agora ouvia-se apenas um longínquo tamborilar nas montanhas e avistava-se um clarão vermelho que fazia tremular os penhascos enquanto Cannonball despencava no bojo da rocha.
E subitamente apareceu uma imensa língua de fogo, no mesmo instante em que se produziu tremendo choque metálico semelhante ao encontrão de um encouraçado num penedo. Debaixo de seus pés ressoou um estrépito abafado. Finalmente, um ribombo distante e profundo levantou-se das entranhas da terra, seguido por uma barragem de ecos os mais variados.
Então, findos todos os ruídos, zuniu, firme, o silêncio.
Bond soltou um suspiro profundo como se estivesse despertando. Aí estava o fim de um dos Spangs, de um dos enfatuados, cruéis, aparatosos, irrecuperáveis adultos que compunham a quadrilha dos Spangs. Fora um gangster teatral e vivera num ambiente de caixa de palco. Mas isso não alterava o fato de que pretendera liquidar Bond.
— Vamos embora daqui — disse Tiffany Case com sofre-guidão. — Para mim chega de Spectreville.
Bond sentiu a dor insinuar-se-lhe outra vez por todo o corpo à medida que passava a tensão. "Vamos" — respondeu, lacônico. Alegrava-o a ideia de voltar as costas à lembrança daquele rosto branco virado para cima, dentro da bela locomotiva negra em marcha. Estava ligeiramente tonto e duvidava se seria capaz de fazer o percurso.
— Temos de alcançar a estrada. Vai ser difícil. Mas vamos embora.
Levaram uma hora e meia para vencer as duas milhas e, no momento em que se prostrou no solo à margem da estrada de cimento, Bond estava delirante. Foi a moça que o conduziu até lá. Sem ela, ele não teria chegado.
Teria tropeçado no meio dos cactos, das pedras e da mica até que lhe faltassem as forças e o sol causticante se encarregasse de completar o serviço.
Agora ela lhe segurava a cabeça no regaço, falava-lhe docemente e lhe enxugava o suor da testa com a ponta da blusa.
E de vez em quando parava para examinar uma banda e outra da estrada retilínea de concreto, cujos horizontes já tremeluziam nas ondas de calor do amanhecer.
Uma hora depois, ela ergueu-se de um salto, enfiou a blusa por dentro das calças, correu e parou no meio da estrada. Um carro baixo e negro rompia a neblina esvoaçante que ocultava o distante vale de Las Vegas.
O carro estacou justamente diante dela. Um rosto adunco sob um topete desalinhado de cabelo cor de palha assomou à janela. Os penetrantes olhos cinzentos miraram-na de alto a baixo. Pousaram-se na figura do homem deitado no solo à margem da estrada e tornaram para a moça.
Então, com a amistosa fala arrastada dos texanos, o chofer rompeu o silêncio:
— Félix Leiter, senhorita. Às suas ordens. Em que posso servi-la nesta magnífica manhã?
21 - "Nada é tão apropinquante como a propinquidade"
—...E QUANDO CHEGUEI à cidade telefonei pra meu amigo Ernie Cureo. James sabe quem é. A mulher dele estava de ataque e Ernie no hospital. Corro pra lá e ele me passa o serviço e eu imagino que James pode precisar de reforços. Monto na minha égua preta cor de carvão e vou esquipando noite adentro e quando chego perto de Spectreville vejo o clarão no céu. Calculo então que Mr. Spang está preparando um churrasco. O
portão da cerca está aberto e eu resolvo tomar parte na festa. Bom, creiam-me vocês ou não, o fato é que não há vivalma no local, exceto um cara de perna arrebentada e contusões generalizadas, que vem se arrastando pela estrada, tentando dar o pira. E ele me dá a impressão de ser um arruaceiro de nome Frasso, de Detroit. Ernie Cureo tinha dito que era um dos caras que tinham levado James. Ele não estava em condições de negar isso e eu então manjei a situação toda e compreendi que Rhyolite era minha próxima parada. Aí eu digo pro nosso amigo que daí a pouco os bombeiros virão fazer companhia a ele, levo-o até o portão e deixo-o lá. E de uma hora para outra vejo uma guria no meio do deserto, com o ar de quem tinha sido disparada de um canhão. E aqui estamos todos. Agora é a vez de vocês contarem.
"Então tudo isto não é parte de um sonho e eu estou deitado no assento traseiro no Studillac e este é o colo de Tiffany debaixo da minha cabeça e aquele ali é Félix e nós estamos indo às carreiras pela estrada a caminho da segurança, de um médico, de um banho, de comida, de bebida e de um longo sono reparador." Bond mexeu-se e sentiu que a mão de Tiffany em seu cabelo dizia que tudo era real e tal como havia esperado. Imobilizou-se novamente e nada disse. Guardava cada momento para si e lhes escutava as vozes e o zunido dos pneus rolando pela estrada.
Ao fim da narrativa de Tiffany, Félix Leiter largou um assobio de estupefação.
— Puxa! — exclamou ele. — Então vocês dois abriram um rombo espetacular na quadrilha de Spang. Que diabo é que vai acontecer agora? Há muitos outros marimbondos na casa e isso de ficar zumbindo em volta não é do feitio deles. Eles vão exigir ação.
— Certo! — disse Tiffany. — Spang era membro da associação de Las Vegas, e esses camaradas são muito solidários. Há também Shady Tree e aqueles dois pistoleiros, Wint e Kidd. Só o diabo sabe quem são eles. Quanto mais cedo a gente cruzar a fronteira estadual, melhor. E depois, o que vamos fazer?
— Até aqui vai tudo em ordem — disse Félix Leiter. — Em dez minutos chegaremos a Beatty, depois pegaremos a 58 e passaremos nela uma meia hora. Em seguida, toparemos um longo trecho através do Vale da Morte e sobre as montanhas até Olancha, onde atingiremos a N.° 6. Poderíamos dar uma paradinha lá, levar James a um médico, comer alguma coisa e tomar um banho. Depois continuaremos na 6 até chegarmos a Los Angeles. Será muito puxado, mas poderemos estar em Los Angeles na hora do almoço. Aí podemos descansar um pouco e bolar algum plano. Meu palpite é que temos de tirar você e James do país o mais cedo possível. Os meninos tentarão pegar vocês dois de qualquer jeito, e se conseguirem eu não darei um níquel pela vida de nenhum dos dois. A melhor solução seria botá-los num avião para Nova York hoje de noite e despachá-los amanhã para a Inglaterra.
James pode embarcar lá.
— Acho que é razoável — disse a moça. — Mas, afinal, quem é esse Bond? O que é que ele faz? É um detetive ou coisa semelhante?
— Acho melhor que você mesma pergunte a ele — Bond ouviu Leiter dizer cautelosamente. — Mas eu, se fosse você, não me preocuparia com isso. Ele cuidará de você.
Bond sorriu para si mesmo e, no longo silêncio que se seguiu, caiu num sono intranquilo que durou até o momento em que atravessaram a Califórnia e o carro parou defronte de um portãozinho com a placa "Otis Fairplay, Médico".
E depois, enfaixado e pintado com mercúrio-cromo, banhado e barbeado, com um suculento café matinal no estômago, Bond voltou ao carro e ao mundo. Tiffany readquirira o velho ar irônico e intratável e Bond revelava-se útil na espionagem dos patrulheiros rodoviários, enquanto Leiter avançava a oitenta milhas pela interminável estrada estonteante, rumo à longínqua linha de nuvens que escondiam as High Sierras.
Mais tarde rolavam tranquilamente ao longo de Sunset Boulevard, ladeado pelas palmeiras e pelos gramados verdejantes. O Studillac coberto de poeira destoava no meio das cintilantes Corvettes e Jaguars. Finalmente, ao anoitecer, estavam sentados no bar escuro e refrigerado do Beverly Hills Hotel. Havia novas maletas no saguão, roupas novas adquiridas em Hollywood, e até mesmo o rosto de Bond, marcado de cicatrizes da luta, poderiam indicar que tinham terminado o trabalho nos estúdios.
Havia um telefone em cima da mesa, ao lado dos martinis. Félix Leiter acabava de falar com Nova York pela quarta vez desde que haviam chegado.
— Bom, está tudo arranjado — disse ele, desligando o telefone. — Meus colegas do escritório conseguiram passagens no Elizabeth. Adiou a partida por causa de uma greve nas docas. Sai amanhã de noite, às oito. Eles.irão ao encontro de vocês de manhã em La Guardiã, com as passagens, e vocês serão levados para bordo de tarde. Pegaram o resto de suas coisas no Astor, James. Uma pasta e os teus célebres tacos de golfe. E Washington oferece um passaporte a Tiffany. Haverá um homem do Departamento de Estado no aeroporto. Vocês terão que assinar uns formulários. Consegui que um dos meus antigos colegas da CIA arranjasse a coisa. Os vespertinos fizeram uni bruto estardalhaço com a estória. "Cidade Morta Desaparece" e outras manchetes desse tipo. Mas parece que ainda não descobriram nosso amigo Spang e os nomes de vocês não figuram no noticiário. Meu pessoal diz que não há nada com vocês na polícia, mas um de nossos informantes secretos diz que as quadrilhas estão à procura de vocês e espalharam por toda parte uma descrição de ambos. Com a promessa de dez mil. Assim, é melhor mesmo dar no pé o mais cedo possível. É aconselhável irem para bordo separadamente. Tomem o maior cuidado, vão para os camarotes e não saiam de lá. Vai haver o diabo quando eles chegarem ao fundo daquela velha mina.
Isso fará pelo menos três cadáveres a zero, e esse tipo de escore não é do agrado deles.
— Pinkerton é uma verdadeira máquina — disse Bond, com admiração.
— Mas ficarei satisfeito quando estivermos longe daqui. Eu pensava que os seus gangsters eram um bando de italianos untuosos, que se empanturravam de pizza e cerveja a semana toda e no sábado assaltavam uma garagem ou uma farmácia para arranjarem dinheiro para as corridas. Mas não há dúvida que eles incluem um bocado de violência na folha de pagamentos.
Tiffany Case riu zombeteiramente.
— Você precisa mandar examinar essa cabeça — disse ela, categórica.
— Se sairmos inteirinhos do Lizzie será um verdadeiro milagre. Por aí você pode ter uma ideia de como eles são. Se não fosse aqui o nosso Capitão Gancho-de-Aço, não sei o que seria de nós. Untuosos! Pois sim!
Félix Leiter soltou uma risadinha.
— Calma, pombinhos — disse ele, consultando o relógio. — Temos de partir. Preciso voltar a Las Vegas hoje de noite e começar a procurar o esqueleto do nosso Shy Smile. E vocês têm de pegar o avião. Poderão continuar a arenga a vinte mil pés de altura. De lá a perspectiva é mais interessante. É possível até que terminem como amigos. Lembrem-se do que se diz por aí. — Fez um aceno para o garçom. — Nada é tão apropinquante como a propinquidade.
Leiter levou-os ao aeroporto e deixou-os lá. Bond sentiu um nó na garganta quando o vulto magro saiu coxeando para o carro depois de ter sido efusivamente abraçado por Tiffany Case.
— Você pode dizer que tem um amigo de verdade — disse a moça ao ver Leiter bater a porta e ouvir o estrondo do escape enquanto o carro partia de volta ao deserto.
— Sim — disse Bond. — Félix é cem por cento.
O luar arrancou cintilações do gancho de aço quando Leiter acenou um último adeus. Depois, a poeira assentou na estrada e soou a voz de ferro do alto-falante: "Trans-World Airline, Voo 93. Embarque no Portão N.° 5 para Chicago e Nova York. Todos a bordo, por favor." Eles abriram caminho através das portas de vidro e deram os primeiros passos de sua longa viagem para Londres.
O novo Super-G Constellation roncou por cima do continente envolto em sombras, e Bond, deitado em seu confortável beliche, esperando que o sono lhe tomasse conta do corpo dolorido, pensava em Tiffany, que dormia no beliche de baixo, e no estágio em que se encontrava sua missão.
Pensou no lindo rosto adormecido sobre a mão aberta, inocente e indefeso, esvaecidos o desdém dos olhos cinzentos e rasos e a curva irônica dos cantos da boca ardente. Bond sabia que estava bem perto de apaixonar-se. Mas, e ela? Até onde ia aquela rebelião masculina gerada certa noite em São Francisco, quando os homens lhe invadiram o quarto e a ofenderam?
Chegariam a adolescente e a mulher a transpor a barricada que haviam começado a construir naquela noite contra todos os homens do mundo?
Romperia ela a concha que os anos de solidão e retraimento tornavam cada vez mais rija?
Bond recordou aqueles momentos das últimas vinte e quatro horas em que conhecera a resposta, momentos em que uma jovem arrebatada e terna surgira feliz, sem a máscara agressiva que usava entre os gangsters, no contrabando, no cassino, na mesa de vinte-e-um, e lhe dissera: — Toma-me pela mão. Abre a porta e caminharemos de mãos dadas no dia claro. Não te preocupes. Acertarei meu passo pelo teu. Sempre estive a teu lado em pensamento, mas tu não vieste e passei a vida escutando outra cadência.
Sim, pensou ele. Tudo correrá bem, por esse lado. Mas estava preparado para as consequências? Uma vez que a tomasse pela mão, seria para sempre.
Estaria no papel do médico, do psicanalista, a quem a paciente transfere seu amor e sua confiança, enquanto se liberta da doença. Não poderia haver maior crueldade do que soltar-lhe a mão depois de a ter tomado nas suas.
Estava preparado para as repercussões que esse ato teria em sua vida e em sua profissão?
Bond mexeu-se no beliche e descartou-se do problema. Era muito cedo ainda para enfrentá-lo. Estava indo muito depressa. Mais devagar. Cada coisa a seu tempo. E obstinadamente arquivou a questão, dirigindo os pensamentos para M e para a missão que lhe cumpria concluir antes de perder tempo com sua vida particular.
Bem, uma parte da serpente estava esmagada. A cabeça ou o rabo?
Difícil dizer, mas Bond tendia a julgar que Jack Spang e o misterioso ABC
eram os verdadeiros manipuladores do contrabando de diamantes e que Seraffimo se incumbia da receptação. Seraffimo podia ser substituído.
Tiffany podia ser dispensada. Shady Tree, a quem ela poderia implicar no contrabando, teria de ficar oculto até que a tormenta — se é que Bond era realmente um prenuncio de tempestade — se desencadeasse. Mas nada havia que pudesse implicar Jack Spang ou a House of Diamonds, e a única pista para ABC era o telefone londrino, cujo número Bond trataria de obter da moça o mais cedo possível. Mas este, e todo mecanismo dos contados a ele relacionados, seria alterado logo depois que todos os fatos da deserção de Tiffany e da fuga de Bond fossem comunicados a Londres, presumivelmente por Shady Tree. Assim, tudo isto, refletiu Bond, colocava Jack Spang e, através dele, ABC como seu próximo alvo. O que tinha a fazer de imediato, concluiu Bond antes de se abandonar ao sono, era relatar toda a situação a M
assim que embarcasse no Queen Elizabeth. Daí por diante Londres tomaria conta do caso. Os homens de Vallance sairiam a campo. Bond não teria muito que fazer quando regressasse. Relatórios e mais relatórios a escrever.
A mesma velha rotina no escritório. E de noite haveria Tiffany no quarto atualmente desocupado de seu apartamento, numa transversal de Kings Road. Precisava mandar um telegrama para May a fim de que ela arrumasse as coisas. Vejamos... flores, sais de banho de Floris, lençóis limpos...
Dez horas depois de terem deixado Los Angeles, sobrevoaram La Guardiã e viraram para o mar a fim de preparar o pouso.
Eram oito horas da manhã de domingo e havia pouca gente no aeroporto, mas um funcionário interrompeu-lhes a caminhada quando seguiam pela pista alcatroada e os conduziu para uma entrada lateral, onde os esperavam um homem de Pinkerton e um representante do Departamento de Estado.
Enquanto conversavam, a bagagem foi-lhes trazida. Depois, levaram-nos para fora da estação de passageiros, onde os aguardava um elegante Pontiac marrom, com o motor em movimento e as persianas do vidro traseiro abaixadas.
Passaram ainda algumas horas de ócio no apartamento do homem de Pinkerton até que, por volta das quatro da tarde, mas com um quarto de hora de diferença entre eles, galgaram a prancha de embarque, penetraram no negro, majestoso e seguro ventre britânico do Queen Elizabeth e, por fim, encerraram-se em seus camarotes no convés M, com as portas trancadas para o mundo.
Mas, quando, em primeiro lugar, Tiffany Case e, depois, Bond puseram os pés na prancha de embarque, um doqueiro do Sindicato de Estivadores de Anastásia correu para a cabina telefônica do galpão da alfândega.
E três horas mais tarde dois homens de negócios americanos saltavam de um sedan negro à porta de um armazém das docas, passavam às pressas pelo serviço de imigração e pela alfândega e galgavam a prancha de embarque, quando os alto-falantes começavam a pedir aos visitantes que desembarcassem.
Um dos homens de negócios era ainda jovem, de feições delicadas e fios de cabelos embranquecidos aparecendo sob o Stetson recoberto por uma capa impermeável. O nome impresso na pasta que carregava era B.
Kitteridge. O outro era um gorducho grandalhão, com um brilho nervoso nos olhos miúdos por trás das lentes bifocais. Suava em bicas e constantemente enxugava o rosto com um lenço enorme. O nome no cartão pendurado na alça da pasta era W. Winter. Em baixo do nome, lia-se em tinta vermelha: MEU GRUPO SANGuÍNEO É F.
22 - Amor e molho bearnês
Às OITO HORAS em ponto, o prolongado e ressoante apito da sirena do Queen Elizabeth fez tremer a vidraça dos arranha-céus. Com grande rebuliço, os rebocadores arrastaram-no para o meio do rio, abrindo-lhe o caminho. Por fim, desenvolvendo cautelosamente cinco nós, o transatlântico pôs-se a descer o rio, cortando as águas remansosas.
Após a parada para desembarcar o prático no Farol de Ambrose, as quádruplas hélices fustigariam o mar, convertendo-o em creme de leite, e o Queen Elizabeth, com um estremecimento de alívio, começaria a fender o longo arco achatado, entre os paralelos 45 e 50, a caminho de Southampton.
Sentado no camarote, escutando o ranger do madeiramento e contemplando o lápis rolar suavemente em cima da penteadeira, entre a escova de cabelo e a borda de seu passaporte, Bond recordava os dias em que outra era a rota da embarcação, os dias em que ela ziguezagueava no Atlântico Sul, brincando de esconde-esconde com os ferozes cardumes de submarinos alemães, a caminho da Europa em chamas. Ainda era uma aventura, mas agora o Queen Elizabeth — protegido num casulo de radar, rádio e sondador de ecos — movia-se com as precauções de um potentado oriental entre escoltas e batedores e, no que dizia respeito a Bond, tédio e indigestão eram os únicos riscos da viagem.
Pegou o telefone e pediu para falar com Miss Case. Quando ela lhe ouviu a voz, rompeu num gemido teatral.
— A loba do mar odeia o mar — disse ela. — Ainda não saímos do rio e eu já estou enjoada.
— Não faz mal — disse Bond. — Não saia do camarote e tome dramamina e champanha. Vou passar uns dois ou três dias em repouso. Vou mandar chamar o médico e o massagista dos banhos turcos pra ver se junto de novo as peças. E de qualquer modo não faz mal nenhum que a gente passe a maior parte da viagem no camarote. É possível que nos tenham localizado em Nova York.
— Bom, se você promete telefonar todos os dias — disse Tiffany — e promete me levar àquela Veranda Grill logo que eu puder engolir um pouco de caviar, eu concordo. Está bem assim?
Bond soltou uma gargalhada.
— Já que você insiste, eu prometo — disse ele. — E agora, escute. Em troca, eu quero que você tente lembrar-se de tudo o que puder a respeito de ABC e do lado londrino de nosso negócio. Aquele número de telefone e o mais que você julgar importante. Logo que puder, eu lhe direi por que estou interessado nisso. Por enquanto você tem de confiar em mim. Combinado?
— Combinado — disse a moça com indiferença, como se toda essa fase de sua vida tivesse perdido o interesse; e, durante dez minutos, Bond inquiriu-a minuciosa, mas (exceto no que tocava a pormenores insignificantes) inutilmente, acerca das atividades de ABC.
Depois desligou o telefone, chamou o camareiro, encomendou o jantar e sentou-se para escrever o longo relatório que teria de transpor em código e despachar naquela mesma noite.
O rebocador conduziu tranquilamente o navio para a treva, e a cidadezinha de três mil e quinhentos habitantes preparou-se para viver os cinco dias da viagem, durante os quais poderiam registrar-se todas as ocorrências naturais em qualquer outra comunidade desse porte — furtos, brigas, seduções, bebedeiras, embustes, talvez um ou dois partos, a possibilidade de um suicídio e, em cem travessias, até mesmo um homicídio.
Quando o burgo de ferro começou a sulcar serenamente a imensidão do Atlântico e a brisa suave da noite zuniu e gemeu no topo do mastro, as antenas de rádio já estavam transmitindo a mensagem do operador de serviço ao ouvido atento de Portishead.
E o que o operador enviava, precisamente às dez horas da noite, E. S. T., era um telegrama endereçado a ABC, CUIDADOS HOUSE OF DIAMONDS, HATTON GARDEN, LONDRES, e
que dizia:
LOCALIZADOS PT CASO ASSUNTO EXIJA SOLUÇÃO DRÁSTICA ESSENCIAL VOCÊ FIXAR PREÇO PAGO EM DÓLARES. Assinado: WINTER.
Uma hora depois, enquanto o operador do Queen Elizabeth lamentava ter de transmitir quinhentos grupos de cinco letras dirigidos ao DIRETOR PRESIDENTE, EXPORTADORA UNIVERSAL, REGENTS PARK, LONDRES, o rádio de Portishead enviava uma breve mensagem a WINTER, PASSAGEIRO PRIMEIRA CLASSE QUEEN ELIZABETH, que dizia:
DESEJO SOLUÇÃO IMEDIATA PROBLEMA CASE PT PAGAREI VINTE MIL PT
CUIDAREI PESSOALMENTE OUTRO ASSUNTO CHEGADA LONDRES CONFIRME ABC.
O operador procurou Winter na lista de passageiros, meteu a mensagem num envelope e enviou-a a um camarote no convés A, abaixo do de Bond e da moça, onde os dois homens jogavam cartas em mangas de camisa.
Quando o mensageiro saiu do camarote, ouviu o gorducho dizer para o homem dos cabelos brancos: — Pois é, Kidd. Vinte mil. É pra valer!
Não foi senão no terceiro dia que Bond e Tiffany resolveram encontrar-se no Observation Lounge, para um coquetel, e mais tarde no Veranda Grill, para jantar. Ao meio-dia, a calmaria era total, e depois do almoço no camarote Bond recebera um ultimato em redondo cursivo feminino numa folha de bloco do navio: "Marque um encontro comigo hoje. Não falhe".
Imediatamente Bond pegara o telefone.
Estavam sedentos da companhia um do outro depois dos três dias de separação, mas as defesas de Tiffany estavam de pé quando ela se reuniu a ele na escura mesa de canto que Bond havia escolhido na cintilante sala semicircular, situada na proa.
— Que espécie de mesa é esta? — perguntou ela com sarcasmo. — Está com vergonha de mim? Então eu ponho o mais belo modelo dos costureiros de Hollywood e você me esconde como se eu fosse Miss Reno 1914? Quero me divertir nessa geringonça e você me bota num canto como se eu fosse contagiosa.
— É isso mesmo — disse Bond. — O que você quer é elevar a temperatura de outros homens.
— Que é que você espera que uma moça faça no Queen Elizabeth?
Pescar?
Bond riu. Acenou para o garçom e pediu vodca-martini seco com casca de limão.
— Eu podia te oferecer uma alternativa.
— Já sei — disse a moça. — Meu querido diário: estou na maravilhosa companhia de um inglês bonitão. O que me aflige é saber que ele anda atrás das jóias da minha família. Que devo fazer? Sua criada, desorientada. — Num movimento súbito, ela inclinou o busto para a frente e pousou a mão na do homem. — Escute aqui, mestre Bond — disse ela. — Estou felicíssima.
Adoro isso aqui. Adoro estar com você. E adoro esta mesinha escura onde ninguém pode me ver segurando sua mão. Não ligue pra minha conversa. É que eu não posso me conter de tão feliz. Não faça caso das minhas brincadeiras.
Ela vestia uma blusa de xantungue de seda creme e uma saia de algodão e lã preto-carvão. As cores neutras ressaltavam-lhe a tez café-au-lait. O minúsculo relógio Cartier quadrado, com a pulseira preta, era sua única jóia, e as unhas curtas da mão pequena e morena que Bond tinha entre as suas estavam sem esmalte. A luz do sol, refletida do exterior, refulgia no ouro pálido das largas ondas do cabelo, nas profundezas dos cinzentos olhos opalescentes e nos alvos dentes que cintilavam entre os lábios sensuais.
— Não — disse Bond. — Não farei caso, Tiffany. Tudo em você é esplêndido.
Ela o encarou nos olhos e ficou satisfeita. O garçom trouxe-lhes a bebida. Ela retirou a mão e observou-o ironicamente por cima da borda de seu copo.
— Agora eu quero saber umas coisinhas — disse ela. — Em primeiro lugar, o que é que você faz e para quem trabalha? A princípio, no hotel, pensei que você era um vigarista. Mas, não sei por quê, quando você foi embora, vi que não era. Acho que devia ter avisado ABC, e com isso teria evitado essa onda toda. Não avisei, e pronto! Vamos, James. Responda.
— Trabalho para o governo — disse Bond —, que quer acabar com esse contrabando de diamantes.
— Espécie de agente secreto?
— Funcionário público, apenas.
— Está bem. E o que é que você vai fazer comigo quando chegarmos a Londres? Trancafiar-me?
— Sim. No quarto desocupado de meu apartamento.
— Assim é melhor. Terei de me tornar súdita da Rainha como você?
Gostaria de ser súdita.
— Acho que podemos arranjar isso pra você.
— É casado? — Fez uma pausa. — Ou tem alguma ligação?
— Não. Um caso ou outro de vez em quando.
— Quer dizer então que você é um desses sujeitos fora de moda que gostam de dormir com mulher? Por que não se casou?
— Creio que porque eu acho que posso manobrar melhor a minha vida sozinho. A maioria dos casamentos não soma duas pessoas. Subtrai uma da outra.
Tiffany Case refletiu um pouco.
— Talvez você tenha razão — disse ela, afinal. — Mas depende do que se soma. Pode ser algo humano ou inumano. Ninguém é auto-suficiente.
— E você?
A moça não gostou da pergunta.
— Talvez eu esteja do lado do inumano — respondeu com rispidez. — E com que diabo de homem você queria que eu me casasse? Com Shady Tree?
— Pode ter havido muitos outros.
— Não houve — disse ela com raiva. — Você é capaz de achar que eu não devia ter me misturado com esses calhordas. Bem, talvez eu tenha dado o passo que não devia dar. — A chama de cólera se apagou e a moça assumiu a defensiva. — Isso acontece com certas pessoas, James. Acontece mesmo. E às vezes não é culpa delas.
James Bond estirou o braço e apertou a mão da moça.
— Eu sei, Tiffany — disse ele. — Félix me contou. É por isso que não perguntei nada. Não pense mais nisso, não. O que importa é o dia de hoje, aqui, agora. Não o dia de ontem. — Desviou o assunto. — Agora é a sua vez de me fornecer alguns fatos. Por exemplo, de onde é que vem esse nome Tiffany e que tal ser banqueira no Tiara? Como é que você chegou a cartear tão bem? Simplesmente espetacular a maneira como você tratava aquele baralho. Se pode fazer aquilo, pode fazer qualquer outra coisa.
— Não diga — replicou a moça com ironia. — Fazer o quê, por exemplo? Brincar de sapateira? E quanto ao nome Tiffany a explicação é simples. Quando eu nasci, papai Case ficou tão zangado por eu não ser menino que deu à minha mãe mil dólares e uma lata de talco comprada em Tiffany e foi embora de casa. Foi ser fuzileiro naval. Terminou morrendo em Iwo Jima. Então minha mãe me botou o nome de Tiffany Case e tratou de ganhar a vida pra nós duas. Começou com uma espelunca e umas garotas e com o tempo foi ficando mais ambiciosa. Talvez essa história não seja muito do seu agrado.
Ela lhe lançou um olhar meio defensivo, meio suplicante.
— Não me preocupa — disse Bond secamente. — Você não era uma das pequenas.
Ela deu de ombros.
— Um dia o lugar foi invadido pelos gangsters. — Interrompeu-se para beber o resto do martini. — E eu dei no pé, por minha conta. Passei pelos empregos comuns a todas as moças. Depois fui para Reno. Lá eles mantêm uma escola de jogo e eu dei duro. Curso completo. Dados, roleta e vinte-e-um. Pode-se ganhar bom dinheiro nos cassinos. Duzentos por semana. Os homens gostam quando as moças bancam o jogo e as mulheres se sentem mais confiantes. Acreditam que a gente vai se mostrar bondosa com elas.
Pensam estar entre irmãs. Quando são homens que bancam o jogo, elas se apavoram. Mas não pense que essa estória toda é assim tão engraçada.
Contada, é uma coisa; vivida, é outra. — Fez uma pausa e sorriu. — Tenha a palavra, agora. É a sua vez. Pague mais um trago e me diga que tipo de mulher você acha que soma com você.
Bond chamou o garçom. Acendeu um cigarro e voltou-se para Tiffany.
— Alguém que saiba fazer molho bearnês e amor — disse ele.
— Já sei! Qualquer bruxa velha que saiba cozinhar e deitar-se de costas.
— Ah, não. Ela precisa ter todas essas coisas que as mulheres geralmente têm. — Bond examinou-a. — Cabelo cor de ouro. Olhos cinzentos. Boca pecadora. Silhueta perfeita. E naturalmente tem de contar piadas engraçadas, vestir-se bem e jogar cartas. As prendas naturais.
— E você casaria com uma mulher assim, se a encontrasse?
— Não necessariamente — disse Bond. — Pra falar com franqueza, já sou quase casado. Com um homem cujo nome começa com M. Teria de me divorciar dele antes de casar com uma mulher. E não sei se isso me agradaria. Ela me obrigaria a passar canapés de mão em mão numa sala de visita em forma de L. E haveria aquelas chatérrimas discussões "Foi você — Não, foi você" que parecem combinar tão bem com todos os casamentos.
Não daria certo. No primeiro acesso de claustro-fobia, iria embora pro Japão ou pra qualquer outra parte.
— E filhos?
— Gostaria de ter alguns — disse Bond. — Mas só quando me aposentasse. De outra forma, não seria justo. Meu trabalho não é lá muito seguro. — Olhou para o copo e bebeu todo o martini. — E você, Tiffany? — perguntou, a fim de mudar de assunto.
— Acho que toda moça gostaria de chegar em casa e encontrar um chapéu na mesinha do corredor — disse Tiffany, melancólica. — O diabo é que eu nunca encontrei nada que prestasse debaixo do chapéu. Talvez não tenha procurado bastante ou não tenha procurado nos lugares certos. Você sabe como é: quando a gente entra na rotina não quer mais sair. Assim fiz eu no meio dos Spangs. Sabia sempre de onde era que vinha a comida. Fiz algumas economias. Mas uma moça não pode ter amigos naquele ambiente.
Ou bota uma placa "Proibida a Entrada" ou de uma hora pra outra se vê cercada de malandros. Mas acho que já estou farta de viver só. Conhece o refrão das coristas da Broadway? "É triste a trouxa de roupa que não tem uma camisa de homem".
Bond riu.
— Mas agora você está fora da rotina — disse ele e olhou-a zombeteiramente. — E Mr. Seraffimo? E aqueles dois quartos de dormir no Pullman, a ceia para dois com champanha...?
Antes que concluísse, ela levantou-se da mesa, os olhos vermelhos, e caminhou para fora do bar.
Bond se amaldiçoou. Colocou algum dinheiro sobre a conta e saiu correndo atrás dela. Foi encontrá-la quase no meio do tombadilho de passeio.
— Por favor, Tiffany, escute — começou ele.
Ela voltou-se e encarou-o.
— Como se pode ser tão mesquinho? — disse ela, e lágrimas iradas brilharam-lhe nos cílios. — Por que você tem de estragar tudo com uma observação ferina como aquela? Oh, James! — Em desespero virou-se para as janelas, procurando um lencinho na bolsa. Enxugou os olhos. — Você simplesmente não compreende.
Bond cingiu-a com um braço e puxou-a para si.
— Meu amor! — Sabia que nada senão o grande passo do amor físico curaria esses mal-entendidos, mas que era necessário ;ainda desperdiçar tempo e palavras. — Não tive a intenção de magoar você. Eu queria somente ter certeza. Aquela mesa posta para a ceia no trem me feriu muito mais do que o que aconteceu depois. Tinha de lhe fazer aquela pergunta.
Ela ergueu a vista, ainda em dúvida.
— Está falando sério? — perguntou, observando-lhe o rosto. — Quer dizer que você já me queria bem?
— Não seja boba — disse Bond, impaciente. — Então você não sabe nada de nada?
Ela afastou-se e contemplou pela janela o infindável mar azul e as gaivotas que acompanhavam esse navio extraordinariamente pródigo.
Depois de algum tempo, perguntou:
— Você já leu Alice no País das Maravilhas?
— Há muitos anos — disse Bond, surpreso. — Por quê?
— Há lá umas linhas que muitas vezes me vêm à memória — disse ela.
— "Oh Ratinho, conheces o caminho que conduz para fora deste poço de lágrimas? Estou muito cansada de nadar dentro dele, oh Ratinho". Lembra-se dessa passagem? Pois bem, eu pensava que você ia me mostrar a saída e, em vez disso, você me empurra pra dentro do poço. Por isso é que fiquei transtornada. — Ergueu a vista. — Mas acredito que você não teve intenção de me magoar.
Bond olhou-lhe a boca demoradamente e depois beijou-a nos lábios.
Ela não retribuiu e esquivou-se. Seus olhos sorriam de novo. Deu o braço a ele e voltou-se para as portas abertas que conduziam ao elevador.
— Me leve lá pra baixo — disse ela. — Preciso recompor a fachada e, além disso, quero me preparar com cuidado para agradar ao candidato. — Ficou um instante em silêncio e depois colou a boca no ouvido dele. — Talvez isso lhe interesse, James Bond — disse baixinho. — Nunca em minha vida fiz o que você chama "dormir com um homem". — Puxou-o pelo braço. — Agora vamos — disse bruscamente. — Afinal, já é hora de tomar um "quente doméstico". Suponho que isso faz parte da língua dos súditos que você está querendo que eu aprenda. Vocês, súditos, escrevem as coisas mais loucas nos banheiros.
Bond levou-a até o camarote dela, voltou para o seu e tomou um "quente salgado" na banheira, seguido de um "frio doméstico" no chuveiro. Depois, estirou-se na cama, recordando com um sorriso algumas das coisas que ela havia dito, e pensou nela, deitada na banheira, intrigada com a floresta de torneiras e imaginando que os ingleses eram loucos varridos.
Soou uma pancada na porta e o camareiro entrou com uma bandejinha que colocou em cima da mesa.
— Que diabo é isso? — perguntou Bond.
— Foi enviado pelo cozinheiro-chefe, senhor — respondeu o camareiro, retirando-se em seguida e fechando a porta do camarote.
Bond desceu da cama e foi examinar o conteúdo da bandeja. Não pôde deixar de rir. Havia uma garrafinha de Bollinger, um rescaldeiro com quatro talhadas de bife em canapés de torrada, e uma tijelinha de molho. Debaixo desta, uma nota escrita a lápis dizia: "Este molho bearnês foi criado por Miss T. Case sem minha assistência". Assinado: "O Chefe".
Bond encheu uma taça de champanha, espalhou um pouco de molho numa talhada de bife e mastigou atentamente. Depois foi ao telefone.
— Tiffany?
Ouviu o risinho abafado e divertido no outro extremo do fio.
— Bem, não há dúvida de que você faz um maravilhoso molho bearnês...
Repôs o telefone no gancho.
23 - O trabalho fica em segundo plano
MOMENTO INEBRIANTE NUM CASO amoroso é aquele em que, pela primeira vez, em público, num restaurante ou num teatro, o homem pousa a mão na coxa da mulher e ela, tomando-a nas suas, aperta-a contra si.
Os dois movimentos dizem tudo o que pode ser dito. Concluem todos os acordos. Firmam-se todos os pactos. E há um longo minuto de silêncio durante o qual o sangue canta nas veias.
Eram onze horas e havia poucas pessoas espalhadas nos cantos da Veranda Grill. O mar arfava baixinho sob o luar lá fora e o magnífico paquete arava a negra pradaria do Atlântico. À popa, apenas um levíssimo galope mostrava uma suave ondulação, as doze lentas pulsações por minuto de um oceano adormecido, aos dois seres aconchegados atrás do quebra-luz cor-de-rosa.
O garçom trouxe-lhes a conta, e suas mãos se separaram. Mas agora dispunham de todo o tempo do mundo e não precisavam afirmar seus sentimentos com palavras e contactos. Quando o garçom retirou os pratos, a moça fitou Bond com um sorriso de felicidade os dois encaminharam-se para a porta.
Entraram no elevador para o Tombadilho de Passeio.
— Que faremos agora, James? — perguntou Tiffany. — Gostaria de tomar mais uma café e um Stinger preparado com creme de menthe branco, enquanto estivéssemos escutando o leilão. Já ouvi falar tanto dele e bem que poderíamos ganhar uma fortuna.
— Está bem — disse Bond. — O que você desejar. — Tomou-a pelo braço e atravessaram vagarosamente a grande sala de estar, onde o víspora ia em meio, e o salão de baile, onde os músicos afinavam os instrumentos. — Mas não me obrigue a comprar nenhum número. É um jogo como os outros, e cinco por cento destinam-se à beneficência. Quase a mesma coisa que em Las Vegas. Mas é divertido quando há um bom leiloeiro. E dizem também que há muito dinheiro a bordo.
O salão de fumar estava quase deserto. Escolheram uma mesinha longe da plataforma onde o Comissário arrumava os apetrechos do leiloeiro, a caixa com os papeluchos numerados, o martelo, a garrafa de água.
— A casa está fraca — disse Tiffany ao sentarem-se no meio da floresta de cadeiras e mesas vazias. Mas, quando Bond fez o pedido ao garçom, as portas do cinema se abriram e cerca de cem pessoas ocuparam o salão de fumar.
O leiloeiro, um comerciante dos Midlands, pançudo e jovial, com um cravo vermelho na lapela do dinner jacket, bateu na mesa pedindo silêncio e anunciou que a previsão do Capitão para o percurso do dia seguinte era de 720 a 739 milhas, que qualquer distância abaixo de 720 era o Campo Inferior e acima de 739 era o Campo Superior.
— E agora, minhas senhoras e meus senhores, vejamos se é possível quebrar o recorde estabelecido nesta viagem, que atinge a cifra impressionante de 2.400 libras esterlinas. (Aplausos). ; Um camareiro ofereceu a caixa com os números dobrados à mulher de ar mais aristocrático do salão e depois entregou ao leiloeiro o papelzinho que ela havia sorteado.
— Bem, senhoras e senhores, temos aqui, para começar, um número excepcionalmente bom. 738. Exatamente no limite máximo, e desde que vejo aqui, esta noite, tantas caras novas (risos), creio que todos concordaremos em que o mar está singularmente calmo. Senhoras e senhores. Quanto me dão por 738? Digamos... 50 libras? Quem me dará 50
libras por este número de sorte? 20, foi o que o senhor falou, cavalheiro?
Bem, temos de partir de alguma oferta. Quem dá... 25? Muito obrigado, minha senhora. E 30. 40 lá adiante, sr. camareiro. E 45 do meu amigo, Mr.
Rothblatt. Muito obrigado, Charlie. Quem dá mais pelo n.° 738? 50. Muito grato, minha senhora. E agora, sim, voltamos ao ponto de partida (risos). 50.
Quem dá 55? Então ficamos em 50. Dou-lhe uma... Dou-lhe duas... — e o martelo erguido bateu na mesa.
— Ainda bem que temos um bom leiloeiro — disse Bond.
— O número era bom. E barato, se o tempo continuar como está e ninguém se jogar no mar. O Campo Superior custará uma bolada esta noite.
Todo mundo espera que o navio faça mais de 739 milhas nesse tempo.
— Essa bolada quer dizer quanto? — perguntou Tiffany.
— Duzentas libras. Talvez mais. Acho que os números normais serão leiloados por umas cem libras. O primeiro número é sempre mais barato do que os outros. O pessoal ainda está frio. A única esperteza que se pode demonstrar neste jogo é arrematar o primeiro número sorteado. Qualquer número pode ganhar, mas o primeiro custa menos.
Quando Bond acabou de falar, o segundo número era entregue por 90
libras a uma jovenzinha bonita e excitada, que era abertamente financiada por seu companheiro, um indivíduo grisalho e bem conservado que parecia a caricatura de um Don Juan do Esquive.
— Vamos, James. Arremate um número pra mim — disse Tiffany. — Você não sabe mesmo agradar a uma moça. Veja como aquele cavalheiro é gentil com sua pequena.
— Ele já passou da idade-limite — disse Bond. — Deve estar na casa dos sessenta. Até os quarenta, as pequenas não custam nada. Daí por diante, é preciso gastar dinheiro ou contar uma estória. Das duas coisas, a estória é que dói mais. — Sorriu, fitando-a nos olhos. — Mas eu ainda não cheguei aos quarenta.
— Deixe de presunção — disse a moça, olhando-o na boca. — Dizem que os homens maduros são os melhores amantes. Também, por outro lado, sei que você não é unha-de-fome. Aposto que não quer me presentear um número porque o jogo é ilegal nos navios de Sua Majestade.
— Até que é permitido além do limite de três milhas da costa — disse Bond. — Mesmo assim, a Cunard toma todas as precauções para não envolver o nome da companhia. Escute isto — e apanhou um cartão alaranjado que estava em cima da mesa. — "Leilão de Apostas nas Distâncias Diárias percorridas pelo Navio" — leu para a moça. — "Para os fins de direito, é de toda a conveniência reiterar a posição da Companhia em relação ao supradito Leilão. Não é desejo da Companhia que o encarregado do salão de fumar ou quaisquer outros membros da tripulação desempenhem papel ativo na organização das apostas nas milhas diárias percorridas pelo navio". — Bond levantou a vista. — Está vendo? — perguntou. — Seguro morreu de velho. E tem mais: "A Companhia sugere que os passageiros elejam entre si uma Comissão encarregada de formular e controlar as normas... O encarregado do salão de fumar poderá, se instado e se seus deveres o permitirem, prestar a assistência de que a Comissão venha a necessitar para o leiloamento dos números". Como são cautelosos — comentou Bond. — É a comissão que tem de quebrar os galhos que forem aparecendo. Escute mais isto aqui. É onde entra o problema. — Continuou a leitura: — "A Companhia chama especialmente a atenção de todos para os dispositivos das normas financeiras do Reino Unido, no tocante à negociabilidade dos cheques em esterlinos e à limitação da entrada de cambiais bancárias em esterlinos no Reino Unido".
Bond atirou o cartão em cima da mesa..— E por aí vai — disse ele e sorriu para Tiffany Case. — Assim, eu arremato o número que está sendo leiloado e você ganha duas mil libras. Um montão de cédulas e cheques em dólares e libras. O único meio de gastar essa dinheirama, supondo que os cheques tenham fundos, o que é duvidoso, seria contrabandeá-la debaixo dos suspensórios. E lá estaríamos nós outra vez passando muamba. Só que eu estaria do lado do diabo.
A moça não se impressionou.
— Havia um sujeito na quadrilha chamado Abadaba — disse ela. — Era um malandro fino que tinha resposta para tudo. Calculava as vantagens nas corridas, marcava as percentagens no cassino, enfim, era o crânio do grupo.
Era considerado "O Feiticeiro das Apostas". Teve o azar de ser liquidado por engano ao lado de Dutch Schultz — ajuntou ela à guisa de parêntese. — Você está me saindo outro Abadaba com essa lengalenga que não tem outra finalidade senão evitar de gastar dinheiro com uma pequena. Já vi tudo. — Encolheu os ombros, resignada. — Está bem. Mas pelo menos financie outro Stinger pra sua garota.
Bond chamou o garçom. E quando este se afastou, ela aproximou a cabeça do ouvido dele e disse baixinho. — Eu não quero mais, não. Beba você. Quero estar inteiramente sóbria esta noite. — Empertigou-se. — Mas o que é que está se passando aqui? — perguntou com impaciência. — Vamos, um pouco de ação.
— Aí vem ela — disse Bond.
O leiloeiro levantou a voz e toda a sala pediu silêncio.
— E agora, minhas senhoras e meus senhores — rugiu o leiloeiro — vamos à pergunta mais importante da noite. Quem vai me dar 100 libras pela escolha entre o Campo Superior e o Inferior? Todos sabemos o que isto significa... o direito de escolher o Campo Superior, que, inclino-me a crer, será da preferência geral esta noite (risos), em vista das excelentes condições atmosféricas reinantes lá fora. Então, quem abrirá com cem libras os lances para a escolha do Campo Superior ou Inferior?
— Muito obrigado, cavalheiro! E 110. 120 e 130. Muito obrigado, minha senhora.
— Cento e cinquenta — disse uma voz de homem, não muito distante da mesa de Bond e Tiffany.
— Cento e sessenta.
Desta vez era uma mulher. Monótona, a voz do homem gritou: — 170.
— Oitenta — disse alguém.
— Duzentas libras.
Algo fez com que Bond se voltasse e olhasse o homem que tinha falado.
Era um tipo grandalhão. A cara tinha a aparência lisa, brilhante e escorregadia de um olho de boi. Olhos miúdos, frios e escuros fitavam o estrado do leiloeiro através de imóveis lentes bifocais. Todo o pescoço do homem parecia estar por trás da cabeça. O suor havia emaranhado as algas negras e encaracoladas do cabelo. Enquanto Bond o observava, ele tirou os óculos, pegou um guardanapo e passou a enxugar o suor, com um movimento circular que começou no lado esquerdo do rosto, estendeu-se à nuca, onde a mão esquerda cedeu a vez à mão direita, e esta completou o circuito, atingindo os pingos do nariz.
— Duzentas e dez — disse alguém.
A queixada do homem bamboleou, a boca se descerrou, e ele disse, com nítido sotaque americano:
— Duzentas e vinte.
O que havia nesse indivíduo capaz de ferir uma corda na memória de Bond? O inglês examinou o rosto largo, a imaginação percorrendo todo o arquivo do cérebro, abrindo e fechando gavetas, uma após outra à procura de uma pista. A cara? A voz? Inglaterra? América?
Bond abandonou a busca e voltou a atenção para o outro homem à mesa.
Ainda aqui, a mesma necessidade urgente de reconhecer. As feições jovens e estranhamente delicadas sob os cabelos brancos e lisos. Os olhos castanhos e plácidos sob as longas pestanas. O efeito geral era de delicadeza, perturbada pelo nariz roliço montado na boca larga de lábios finos, agora aberta num sorriso estúpido e vazio como a fenda de uma caixa postal.
— Duzentas e cinquenta — disse o grandalhão mecanicamente.
Bond tornou a olhar para Tiffany.
— Já viu aqueles dois alguma vez? — perguntou ele, e ela notou-lhe a ruga de preocupação entre os olhos.
— Não — disse ela, categórica. — Nunca. Talvez venham do Brooklyn. Podem ser dois comerciantes de roupas feitas da Quinta Avenida. Por quê? Eles lhe dizem alguma coisa?
Bond olhou-os outra vez.
— Não — disse, em dúvida. — Não, acho que não.
Palmas estrugiram na sala. Radiante, o leiloeiro bateu na mesa.
— Senhoras e senhores — disse ele, triunfante. — Isto é realmente maravilhoso. Trezentas libras é o lance daquela encantadora senhora de esplêndido vestido cor-de-rosa (Cabeças viravam-se, pescoços esticavam-se, e Bond ouviu a pergunta: — Quem é ela? E agora, cavalheiro — o leiloeiro indicava a mesa do homem gordo — posso anunciar 325 libras?
— Trezentas e cinquenta — disse o gordo.
— Quatrocentas — ganiu a mulher de vestido cor-de-rosa.
— Quinhentas.
A voz era incolor, indiferente.
A moça de cor-de-rosa tagarelou irritada com seu acompanhante. O homem assumiu um ar entediado. Acompanhou o olhar do leiloeiro e balançou a cabeça.
— Quem se dispõe a dar mais? — disse o leiloeiro. Sabia agora que a sala já dera o que tinha de dar. — Dou-lhe uma... Dou-lhe duas... — Pam! — Arrematado pelo cavalheiro. E eu acredito sinceramente que ele merece uma salva de palmas.
Deu início às palmas e os presentes o acompanharam, embora preferissem que a moça tivesse levado a melhor.
O gordo ergueu-se algumas polegadas e voltou a sentar-se. Não havia em seu rosto lustroso nenhum sinal de agradecimento aos aplausos, e seus olhos fixavam-se no leiloeiro.
— E agora temos de cumprir a formalidade de perguntar ao cavalheiro qual é o Campo que ele prefere. (Risos). Cavalheiro, o senhor escolhe o Campo Superior ou o Campo Inferior?
O tom do leiloeiro era irônico. A pergunta era ociosa.
— Campo Inferior.
Houve um momento de silêncio constrangedor no apinhado salão de fumar. E logo se seguiram os comentários à meia-voz. Nenhuma pergunta foi feita. Era óbvio que o homem devia escolher o Campo Superior. As condições atmosféricas eram ideais. O Queen Elizabeth vinha desenvolvendo pelo menos trinta nós. Estaria o homem a par de alguma coisa? Teria pago por alguma informação na ponte de comando? Haveria alguma tempestade à vista? Algum defeito nas máquinas?
O leiloeiro martelou na mesa, pedindo silêncio.
— Queira me perdoar, cavalheiro — disse ele — mas o senhor escolheu mesmo o Campo Inferior?
— Sim.
O leiloeiro tornou a martelar.
— Nesse caso, senhoras e senhores, comecemos agora a leiloar o Campo Superior. Minha senhora — voltou-se com uma curvatura para a moça de cor-de-rosa — quer ter a gentileza de fazer o primeiro lance?
Bond virou-se para Tiffany.
— Que coisa esquisita — disse ele. — É extraordinário. O mar está calmo como um lago. — Deu de ombros. — A única resposta é que eles devem estar informados de alguma coisa.
— A questão era desprovida de interesse, no fim de contas.
— Alguém deve ter dito alguma coisa àqueles dois. — Girou a cabeça e, depois, despreocupadamente, passeou o olhar pelos dois indivíduos. — Parece que eles estão interessadíssimos na gente.
Tiffany olhou por cima do ombro.
— Não estão olhando pra cá, não — disse ela. — A impressão que eu tenho é que são dois palermas. O grisalho tem um ar de idiota e o gordo está chupando o polegar. Dois malucos. Acho que nem sabem o que arremataram. Trocaram as bolas.
— Chupando o polegar? — perguntou Bond. Passou a mão pelo cabelo, distraidamente, uma vaga lembrança a verrumar-lhe o cérebro.
Talvez, se ela lhe tivesse permitido seguir o fio de seus pensamentos, ele tivesse dado no alvo. Mas ela colocou a mão sobre a dele e, aproximando-se, roçou-lhe o rosto com os cabelos.
— Esqueça isso, James — disse ela. — E não pense tanto naqueles dois imbecis. — Os olhos dela ardiam e exigiam. — Chega deste lugar. Leve-me a outra parte.
Sem se dizerem mais uma palavra, ergueram-se, afastaram-se da mesa e saíram da sala barulhenta, caminhando em direção à escada. Começaram a descer e, quando chegaram ao meio, o braço de Bond circundou a cintura da moça, e ela deitou a cabeça no ombro dele.
Chegaram à porta do camarote de Tiffany, mas ela deu meia volta e arrastou Bond pelo corredor comprido, macio e rangente.
— Eu quero que seja na sua casa, James — disse ela.
Bond só voltou a falar depois de ter fechado a porta de seu camarote com um pontapé e de se terem abraçado no meio daquele quartinho maravilhosamente reservado e anônimo. E dizendo, com ternura, "Meu amor" pôs uma das mãos sobre os cabelos dela de modo a manter-lhe a boca sob a sua.
Algum tempo depois, sua outra mão desceu até o fecho-relâmpago do vestido, por trás, e a moça, sem interromper o abraço, deixou cair o vestido e disse, ofegante, entre beijos:
— Quero tudo, James. Tudo o que você já fez com uma mulher. Agora.
Agora mesmo.
E Bond inclinou-se, envolveu-lhe as coxas com um braço, levantou-a e deitou-a suavemente no soalho.
24 - A morte é permanente
A ÚLTIMA COISA de que Bond se lembrou antes de soar a campainha do telefone foi de Tiffany debruçada sobre ele, na cama, beijando-o e dizendo-lhe: "Não durma sobre o lado esquerdo, meu amor. É ruim para o coração.
Pode parar de bater. Vire-se". E, obediente, ele se virava. E, quando a porta bateu de leve, ele estava dormindo de novo, embalado pela voz da moça, pela pulsação do Atlântico e pelo macio balanço do navio.
Depois, a campainha impertinente soou e tornou a soar no camarote escuro. Bond praguejou, estendeu o braço para o telefone, e uma voz disse: — Desculpe-me incomodá-lo, senhor. Aqui é o telegrafista, Acaba de chegar uma mensagem em código para o senhor, com um prefixo en clair "Urgentíssimo". Quer que leia pelo telefone ou envie pelo mensageiro?
— Envie pelo mensageiro, pode ser? — disse Bond. — Muito obrigado.
E que diabo queriam agora? Toda a beleza, todo o ardor, toda a exaltação da paixão amorosa foram postas de lado quando ele acendeu a lâmpada, pulou da cama e, balançando a cabeça, a fim de afastar o torpor, deu dois passos para o chuveiro.
Durante um bom minuto deixou que a água caísse sobre si. Depois, enxugou-se com a toalha, apanhou do chão as calças e a camisa e vestiu-as.
Houve uma pancada na porta. Bond recebeu o telegrama, sentou-se à escrivaninha, acendeu um cigarro e entregou-se ferozmente ao trabalho. E, à medida que os grupos paulatinamente se dissolviam em palavras, seus olhos se apertavam e a pele se lhe arrepiava no corpo.
O telegrama, passado pelo Chefe do Pessoal, dizia:
Primeiro vg busca clandestina escritório Saye revelou telegrama do QE endereçado ABC assinado Winter comunicando presença sua e Case a bordo solicitando instruções pt Resposta endereçada Winter assinado ABC ordena eliminação de Case vg preço vinte mil dólares pt Segundo vg consideramos Rufus B. Saye é ABC que é mais ou menos equivalente pronúncia suas iniciais em francês pt Terceiro vg possivelmente alarmado sinais de busca Saye voou Paris ontem e agora informa Polinter estar em Dakar pt Isto parece confirmar nossas suspeitas que diamantes provêm minas Serra Leoa daí contrabandeados fronteira Guiné Francesa pt Suspeitamos fortemente elemento clínica dentária de Sierra International em observação pt Quarto vg Canberra Raf espera você Boscombe Down para voo imediato amanhã noite a Serra Leoa assinado CDP.
Bond gelou na cadeira. De supetão, acudiu ao seu espírito o mais sinistro verso de toda a poesia: "Enganam-se os que me evitam. Quando voam de mim, eu sou as asas".
Então alguém da quadrilha de Spang estava a bordo e viajava com eles. Quem? Onde?
A mão agarrou o telefone: — Miss Case, por favor.
Ouviu o aparelho ao pé da cama dela produzir um estalido e em seguida disparar 'a primeira campainhada. A segunda. A terceira. Mais uma só. Bond colocou o receptor de volta no gancho e enfiou pelo corredor até o camarote de Tiffany. Nada. Vazio. A cama arrumada. As luzes acesas. Mas a bolsinha dela estava no tapete e os objetos espalhados ao redor. Tinha entrado no camarote. O homem se escondera atrás da porta. Talvez tivesse aplicado uma cacetada. E depois?
As vigias estavam fechadas. Examinou o banheiro. Nada.
Bond parou no meio do camarote. Seu cérebro estava frio como gelo. O que ele, Bond, teria feito? Antes de matá-la, tê-la-ia interrogado, descoberto o que ela sabia, o que fazia, quem era o homem que a acompanhava. Tê-la-ia levado depois para o camarote em que ele viajava a fim de poder agir sem ser perturbado. Se o encontrassem arrastando-a pelo corredor, bastaria piscar um olho e balançar a cabeça: "Bebeu muita champanha esta noite. Não, não precisa, muito obrigado, eu me arranjo". Mas, qual era o camarote? E havia quanto tempo ele a tinha levado?
Bond consultou o relógio quando ia no corredor. Três horas. Ela devia ter saído da cama dele pouco depois das duas. Devia telefonar para a ponte de comando? Dar alarma? Penosos instantes de explicações, suspeitas, obstáculos. "Meu caro senhor, isto parece incrível!" Tentativas para acalmá-lo. "Claro, senhor, faremos o que estiver ao nosso alcance". O olhar polido do funcionário, para quem tudo não passaria de embriaguez, ciúme e até mesmo de um meio de deter a marcha do navio e ganhar a aposta no Campo Inferior.
O Campo Inferior! Homem ao mar! O navio detido!
Bond fechou a porta de seu camarote e foi direto à Lista de Passageiros.
E por que não? Winter. Ei-lo aqui. A49. O convés de baixo. E então, de repente, o cérebro de Bond funcionou como um computador. Winter. Wint e Kidd. Os dois pistoleiros. Os encapuzados. Outra vez a lista de passageiros.
Kitteridge. No A49 também. O grisalho e o gordo do avião da BOAC na viagem de Londres a Nova York. "Meu grupo sanguíneo é F." A escolta secreta de Tiffany. E a descrição de Leiter. "Chamam-no Goela porque tem medo de viajar". "Um dia vai-se arrepender de não ter extraído aquela verruga". A verruga vermelha na primeira articulação do dedo que segurava o cão da arma apontada para Tingaling Bell. E Tiffany dizendo: "São dois palermas. O gordo está chupando o polegar!" E os dois, no salão de fumar, procurando ganhar dinheiro com a morte que haviam planejado. A mulher atirada ao mar. O alarma anônimo, no caso de passar o corpo despercebido pelo vigia da popa. O navio detido, a volta, a busca nas águas. E mais três mil libras para os bolsos dos assassinos.
Wint e Kidd. Os pistoleiros de Detroit.
Todo o carretel de filmes embaralhados desenovelou-se na mente de Bond no espaço de um segundo, e mesmo enquanto os esquadrinhava, ia ele abrindo a pasta e revolvendo o compartimento secreto à procura do silenciador. Como um autômato, retirou a Beretta do meio de suas coisas no fundo de um gavetão, examinou o pente e ajustou o silenciador à boca da arma. Simultaneamente, pesava as probabilidades e planejava os passos que devia dar.
Pegou a planta do navio que tinha vindo com o bilhete de passagem.
Esparramou-a à sua frente enquanto calçava as meias. A49. Exatamente debaixo de seu camarote. Haveria probabilidade de arrebentar a fechadura com um tiro e pegar os dois homens antes que eles o pegassem? Nenhuma, quase. Sem dúvida tinham fechado a porta com a chave e o trinco. Ou levar consigo alguns membros da tripulação, se pudesse persuadi-los do perigo que Tiffany corria? Enquanto ele tentasse convencê-los, os dois homens a atirariam pela vigia. E, quando, afinal, conseguissem entrar no camarote, Wint e Kidd estariam lendo calmamente ou jogando cartas e berrariam: — Que é que vocês querem aqui?
Bond meteu a arma nos cós das calças e com um violento puxão escancarou uma das duas vigias do camarote. Enfiou por ela os ombros e alegrou-se ao descobrir uma folga de uma ou duas-polegadas. Espichou o pescoço para baixo. Dois círculos mal iluminados, exatamente sob suas vigias. A que distância? Uns oito pés. A noite continuava parada, calma, tranquilizadora, e ele se achava no lado ensombrado do navio. Avistá-lo-iam da ponte volante? Estaria aberta alguma das vigias do A49?
Bond deixou-se cair novamente em seu camarote e arrancou os lençóis da cama. O nó de porco. Seria mais seguro. Mas teria de rasgar os lençóis e emendá-los para obter o comprimento necessário. Se tudo desse certo, teria de trazer alguns lençóis do A49 e deixar o camareiro intrigado com o desaparecimento. Se desse errado, tanto fazia.
Experimentou a "corda" com toda a força. Devia aguentar. Ao amarrar uma extremidade em volta da dobradiça da vigia, deu uma olhada no relógio.
Só doze minutos tinham passado desde que lera o telegrama. Demorara demais? Trincou os dentes, atirou a "corda" pelo costado do navio e introduziu a cabeça.
Não pense em nada. Não olhe para baixo. Não olhe para cima. Não se importe com os nós. Devagar, firme, uma mão, isto, a outra.
A brisa da noite tocava-o de leve e empurrava-o de encontro aos negros rebites de ferro, e lá embaixo soava o gemido cavo do mar. No alto, o vento zunia no cordame, e mais acima, no firmamento, as estrelas dançavam à volta dos mastros.
Os malditos, os bem-amados lençóis resistiriam? A vertigem o venceria?
Seus braços suportariam o peso? Não pense nisso. Não pense no imenso navio, no oceano faminto, nas quádruplas hélices gigantescas aguardando o momento de lhe retalhar o corpo. Você é um menino que está descendo da macieira. É tão fácil e seguro lá no pomar, com o relvado que apara a queda.
Bond expulsou da mente todos esses pensamentos. Olhou para as mãos e sentiu a aspereza da pintura contra os nós dos dedos. Os pés, sensíveis como antenas, tateavam em busca do primeiro contacto com a vigia.
Ali. Os dedos do pé direito haviam tocado o rebordo saliente. É preciso parar. É PRECISO ter paciência e deixar que o pé explore o terreno — a vigia aberta, presa pela grande tranqueta de latão; o contacto de fazenda por cima da meia: as cortinas cerradas. Agora podia continuar. Estava quase terminado.
Mais duas preensões na corda improvisada e o rosto estava à altura da vigia. Podia colocar uma das mãos na borda metálica do caixilho, subtraindo algum peso da alva corda retesada e dando merecido repouso a um braço e depois ao outro, deslocar a carga suportada pelos músculos, reunir as forças para soerguer-se vagarosamente, traspassar-se ao camarote e mergulhar, deitando a mão à arma.
Ficou à escuta, fitando o círculo da cortina balouçante, tentando esquecer que estava pendurado como um pêndulo, a meio costado do Queen Elizabeth, esforçando-se para não ouvir o marulho do oceano, lutando para abrandar a respiração ofegante e as marteladas do coração.
Do interior do cubículo vinha um resmungo indistinto. Depois, uma voz masculina proferiu algumas palavras e uma mulher gritou: — Não!
Seguiu-se um momento de silêncio, e logo uma bofetada. Sonora como um disparo de pistola, e isto lançou o corpo de Bond para o alto e para dentro como se ele tivesse sido arrastado por uma corda.
No momento mesmo em que mergulhava no círculo da vigia, perguntava-se onde iria bater, e instintivamente protegeu a cabeça com o braço esquerdo, enquanto o direito corria para a arma.
Foi cair sobre uma valise debaixo da vigia. Um estabanado salto mortal levou-o ao meio do camarote. Outra vez sobre seus pés, foi recuando, agachado, para o lado das vigias, a tensão branquejando os nós dos dedos da mão que segurava a arma e uma estreita linha branca circundando-lhe a boca cerrada.
Através das pálpebras entreabertas, os olhos cinzentos e gelados moviam-se de um lado para o outro. A arma, negra e cega, voltava-se para um ponto, no centro, entre os dois homens.
— Aqui estamos — disse Bond, erguendo-se vagarosamente.
Era a constatação de um fato. Ele tinha o controle da situação, e a boca de sua arma o confirmava.
— Quem chamou você aqui? — disse o gordo. — Você não entra nesta peça. — Havia na voz reservas latentes. Nada de pânico. Nem mesmo a dose normal de surpresa. — Veio completar a mesa para o jogo de cartas?
Estava sentado, em mangas de camisas, abotoado, de través para a penteadeira, e os olhos miúdos brilhavam na cara molhada. Dante dele, de costas para Bond, Tiffany Case estava sentada num tamborete estofado.
Vestia apenas uma calcinha cor-de-carne e tinha os joelhos presos entre as coxas do homem gordo. Voltara para Bond o rosto pálido entremeado de manchas vermelhas. Os olhos tinham uma expressão de desespero, como os de um animal apanhado numa armadilha, e a boca aberta traduzia incredulidade.
O grisalho jazia numa das camas. Tinha erguido o busto sobre um cotovelo e a outra mão na camisa, a meio caminho da arma guardada no boldrié preto debaixo do sovaco. Olhava para Bond sem demonstrar curiosidade e estampava aquele sorriso quadrado, vazio, da caixa postal. Do centro do sorriso ressaía um palito de madeira, que rompia os dentes fechados como a língua de uma cobra.
A arma de Bond assegurava o espaço neutro entre os dois homens.
Quando ele falou, a voz era baixa e tensa.
— Tiffany — disse Bond lenta e distintamente. — Ajoelhe-se. Afaste-se desse homem. Baixe a cabeça. Vá para o meio do quarto.
Não olhava para ela. Seus olhos continuavam a passear da cadeira para a cama, vigiando os dois homens. Agora ela estava longe dos dois alvos.
— Estou aqui, James.
A voz tremia de esperança e excitação.
— Levante-se e vá para o banheiro. Feche a porta. Entre na banheira e deite-se lá.
Moveu os olhos na direção dela para ver se era obedecido. Ela tinha-se erguido e o contemplava. Bond avistou a marca vermelha de uma mão na pele alva do corpo da moça. Ela obedeceu. Ouviu-se o clique da porta do banheiro ao fechar-se.
Agora ela estava a salvo das balas. E não presenciaria o que tinha de ser feito.
Mediavam umas cinco jardas entre os dois homens, e Bond refletiu que se eles sacassem com bastante rapidez estaria perdido. Com esse tipo de homens, na fração de segundo em que um fosse liquidado, o outro sacaria e dispararia. Conquanto sua arma fosse silenciosa, a ameaça era infinita. Mas, com o clarão da primeira bala a ameaça proviria do outro homem.
— Quarenta e oito, sessenta e cinco, oitenta e seis.
A variante do sinal convencionado do futebol americano —"uma das cinquenta combinações que deviam ter praticado juntos mil vezes — jorrou da boca do gordo. Simultaneamente, ele se atirou ao chão, e a mão foi direta ao cós da calça.
Num giro rápido, o homem que estava na cama puxou as pernas para o lado e para longe de Bond, de modo que seu corpo se reduziu a um alvo estreito, de que só se via a cabeça. A mão que estava sobre o peito se mexeu rápida.
— Paf.
A arma de Bond soltou um único gemido abafado. Um orifício azul abriu-se exatamente abaixo do cocuruto grisalho.
— Pum! — respondeu a pistola do morto, deflagrada pela última crispação do dedo, e a bala foi alojar-se na cama, debaixo do cadáver.
O homem gordo, deitado no soalho, deu um grito. Olhava para cima. na direção daquele olho preto e vazio que não se incomodava com ele, de forma alguma, e que só se interessava em localizar-lhe na pele o centímetro quadrado que abrigaria o próximo projétil.
O revólver de Wint só se tinha elevado até à altura dos joelhos de Bond e apontava em vão por entre suas pernas retesadas para a armação de ferro, pintada de branco, que estava atrás.
— Largue a arma.
O tapete abafou o ruído da queda da arma.
— Levante-se.
O gordo ergueu-se com dificuldade e fitou Bond nos olhos, como um tuberculoso fita seu lenço, em medrosa expectativa.
— Sente-se.
Houve um lampejo de alívio nos olhos submissos? Bond continuou tenso como um gato prestes a atacar.
O gordo voltou-se vagarosamente. Estendeu as mãos acima da cabeça, embora Bond não lhe tivesse exigido isso. Deu dois passos para a cadeira e lentamente virou-se como se fosse sentar-se.
Parou, contemplando Bond, e com naturalidade deixou cair as mãos ao longo do corpo. E as duas mãos, sossegadas, sacudiram-se para trás, a direita mais do que a esquerda. E então, de súbito, no movimento de retorno, o braço direito entesou-se, precipitou-se para a frente e a faca brilhou nas pontas dos dedos como uma chama branca.
— Paf.
A bala silenciosa e a faca muda cruzaram uma pela outra em pleno ar, e os olhos dos dois homens perturbaram-se simultaneamente quando as armas atingiram seus objetivos.
Mas a perturbação nos olhos do homem gordo converteu-se num reviramento do globo ocular quando ele caiu para trás, as mãos agarradas ao peito, enquanto os olhos de Bond pousaram sem curiosidade na mancha que se espalhava em sua camisa e no cabo chato da faca pendurada frouxamente nas dobras do pano.
Produziu-se um estardalhaço quando a cadeira se espatifou sob o peso do homem gordo. Seguiu-se um ruído roufenho e ouviu-se, por último, um baque surdo no soalho.
Bond olhou a cena uma vez e depois voltou-se para a vigia aberta.
Durante algum tempo ficou de costas para o quarto, o olhar fixo nas cortinas que se balançavam molemente. Sorveu o ar e escutou os maravilhosos sons marinhos do exterior, do mundo que ainda lhes pertencia, a ele e a Tiffany, mas não aos outros dois. Pouco a pouco, seu corpo e seus nervos tensos se relaxaram.
Instantes depois, puxou a faca que se lhe enfiara na camisa. Não olhou para ela. Apenas estirou o braço, afastou a cortina para um lado e atirou a faca pela vigia. Em seguida, ainda contemplando a noite quieta lá fora, prendeu o registro de segurança da Beretta e, com um braço que lhe pareceu de repente pesado como chumbo, introduziu de novo a arma no cós das calças.
Com certa relutância, deu meia volta e encarou a desordem reinante no camarote. Com ar pensativo, examinou tudo e, num gesto, inconsciente, enxugou as mãos nos lados das calças. Em seguida, caminhando cautelosamente até o banheiro, disse: "Tiffany, sou eu" numa voz cansada, deprimida, e abriu a porta.
Ela não o ouvira. Continuava deitada de bruços na banheira seca, as mãos sobre as orelhas. E quando ele a ergueu e tomou nos braços, ela ainda não acreditou no que via. Agarrou-se a ele e começou a tocar-lhe o rosto e o busto com as mãos para certificar-se de que era realidade.
Ele se retraiu quando ela lhe apalpou a costela cortada. Então ela afastou-se um pouco, examinou-lhe o rosto, depois o sangue que manchava seus dedos e por fim a camisa escarlate.
— Meu Deus! Você está ferido! — disse ela assustada; e, esquecendo seus pesadelos, arrancou-lhe a camisa, lavou-lhe a costela com água e sabão e amarrou-a com tiras da toalha cortada com a gilete de um dos homens mortos.
Não fez perguntas, nem mesmo quando Bond lhe trouxe as roupas que estavam espalhadas pelo soalho do camarote e lhe disse que não saísse enquanto ele não tivesse terminado de arrumar tudo e de apagar as impressões digitais de todos os objetos que ela havia tocado.
Ela apenas pousava nele os olhos brilhantes. E quando Bond a beijou nos lábios, continuou calada.
Bond deu-lhe um sorriso tranquilizador, saiu e fechou a porta do banheiro atrás de si. Pôs mãos à obra, fazendo cada coisa com grande determinação e parando antes de cada gesto a fim de imaginar o efeito que produziria diante dos olhos e do espírito dos detetives que subiriam a bordo em Southampton.
Primeiro amarrou um cinzeiro à sua camisa ensanguentada para torná-la pesada, aproximou-se da vigia e atirou o pacote o mais longe que pôde. Os smokings dos dois homens estavam pendurados atrás da porta. Tirou os lenços que estavam nos bolsinhos dos paletós, envolveu com eles as mãos e remexeu nos armários e cômodas até encontrar as camisas do grisalho.
Vestiu uma e ficou um momento no centro do camarote, meditando. Depois, cerrou os dentes e levantou o homem gordo até deixá-lo sentado, tirou-lhe a camisa, foi à vigia, sacou a Beretta, encostou a arma no orifício aberto na fazenda pelo tiro anterior e disparou outra bala no mesmo local. Agora havia uma nódoa de fumaça em volta do orifício para dar a impressão de suicídio.
Tornou a vestir a camisa no cadáver, limpou demoradamente a Beretta com o lenço, comprimiu os dedos da mão direita do morto sobre ela e, finalmente, ajustou a arma na mão do gordo, com o indicador no gatilho.
Após outra pausa no meio do quarto, retirou o smoking de Kidd do cabide e vestiu com ele o cadáver. Em seguida, arrastou o corpo até a vigia e, suando com o esforço, levantou-o e jogou-o ao mar.
Limpou as possíveis impressões digitais deixadas na vigia e interrompeu-se outra vez, tomando fôlego e inspecionando o cenário. Foi até a mesa de jogo, encostada à parede e com os objetos espalhados indicando que o jogo não fora concluído, e derrubou tudo, dispersando as cartas pelo tapete. Parou, refletiu mais um pouco, voltou ao cadáver de Wint, retirou-lhe do bolso traseiro da calça o rolo de cédulas e jogou-as entre as cartas.
O quadro era satisfatório, sem dúvida. Haveria o mistério da bala disparada na cama pelo moribundo Kidd, mas isso poderia ter sido parte da luta. Três balas tinham sido detonadas pela Beretta e havia três cartuchos no soalho. Duas das balas poderiam ter-se enterrado no corpo de Kidd que agora estava no Atlântico. Havia os dois lençóis que teria de roubar da segunda cama. A falta deles ficaria inexplicada. Talvez Wint houvesse enrolado neles o corpo de Kidd antes de empurrá-lo pela vigia. Isso se encaixava no remorso e no suicídio de Wint, posterior ao tiroteio motivado pelo desentendimento à mesa do jogo.
De qualquer maneira, refletiu Bond, o quadro se sustentaria até a chegada da polícia ao porto, mas nesse momento ele e Tiffany já estariam fora do navio e bastante longe, e o único vestígio deles no camarote seria a Beretta; e esta, como todas as outras armas pertencentes ao Serviço Secreto, não era numerada.
Soltou um suspiro e encolheu os ombros. Agora, restava apanhar os lençóis, conduzir Tiffany de volta ao seu camarote sem serem vistos, cortar a "corda" que se balançava na vigia, atirá-la ao mar com os pentes restantes da Beretta e o coldre vazio e, por fim, dormir à vontade com o corpo adorado de Tiffany enroscado no seu para sempre.
Para sempre?
Ao atravessar o camarote a caminho do banheiro, Bond encontrou os olhos vazios do cadáver no soalho.
E os olhos do homem cujo Grupo Sanguíneo fora F chamaram-no e lhe disseram:
— Mr. Bond. Nada existe para sempre. Só a morte é permanente. Nada é eterno, exceto o que você fez comigo.
25 - Fecha-se o canal
AGORA NÃO HAVIA escorpião morando nas raízes do frondoso espinheiro erguido na junção dos três Estados africanos. O contrabandista das minas não tinha outra coisa que lhe absorvesse a atenção senão o desfile infindável de um regimento de formigas de correição entre as baixas muralhas que as guerreiras haviam construído em ambos os lados da estradinha de três polegadas.
A noite era quente e úmida, e o homem escondido sob o espinheiro estava impaciente e intranquilo. Era esta a última vez que comparecia ao encontro marcado. Já tinha decidido. Que arranjassem outro, se quisessem.
Naturalmente não iria fazer sujeira com eles. Comunicaria a intenção de deixá-los e lhes daria o motivo: o novo assistente admitido no serviço dentário parecia entender muito pouco de odontologia; decerto era espião: o olhar indagador, o bigodinho amarelo-avermelhado, as unhas bem tratadas.
Pegaram alguém? Tomaram-lhe o depoimento?
O contrabandista trocou de posição. Por onde diabo andava o helicóptero? Apanhou um punhado de terra e atirou-o no meio das formigas.
Elas se atarantaram um pouco, mas com a chegada das últimas fileiras, as que iam na frente se dispersaram pelas muralhas. Então as guerreiras pegaram febrilmente a cavar e transportar a terra, e em poucos minutos a estrada estava outra vez transitável.
O homem tirou o sapato e jogou-o com força sobre o regimento em marcha. Houve outro curto instante de afobação. Depois, as formigas lançaram-se sobre as mortas e as devoraram. O caminho estava novamente desimpedido e o negro rio continuou a fluir.
O homem soltou uma praga em africaans e calçou o sapato. Filhas duma égua. Iam ver uma coisa. Acocorando-se e suspendendo um braço para se proteger contra os espinhos, saiu pisando pela estrada das formigas. Isso lhes serviria de lição.
Ao surgir sob o luar, o homem já tinha esquecido o ódio que dedicava a tudo quanto fosse negro e virou a cabeça para a banda do norte. Graças!
Rodeou o espinheiro para ir buscar as lanternas e o pacote dos diamantes guardados nas caixas de ferramentas.
A uma milha dali, sob a copa de um arbusto, o poderoso ouvido de ferro do detector de som já parará de investigar, e o operador, que vinha transmitindo os dados aos três homens agrupados ao lado do caminhão militar, informou: — Trinta milhas. Velocidade: cento e vinte. Altura: novecentos pés.
Bond consultou o relógio.
— Tudo indica que o encontro está marcado para a meia-noite,_na lua cheia — disse ele. — O nosso homem está uns dez minutos atrasado.
— Parece que o senhor tem razão — concordou o oficial da guarnição de Freetown, a seu lado, e voltou-se para o terceiro homem. — Cabo. Veja se não tem nenhum metal aparecendo na rede de camuflagem. Com este luar, é preciso ter cuidado.
O caminhão estava coberto pelo arbusto, à beira de uma estrada de barro, que atravessava a planície na direção da aldeia de Telebadu, na Guiné Francesa. Naquela noite, haviam deixado as colinas logo que o radiolocalizador captara o barulho da motocicleta do dentista na estrada paralela. Tinham vindo com os faróis apagados e pararam quando cessou o ruído da motocicleta. Haviam estendido a rede de camuflagem sobre o caminhão, o detector de som e o canhão Bofors. E puseram-se a esperar, sem saberem ao certo quem ou o que viria ao encontro do dentista — outra motocicleta, um homem a cavalo, um jipe, um avião?
Ao ouvir no céu o longínquo matraquear, Bond soltou uma gargalhada.
— Helicóptero — disse ele. — Era só o que faltava. Preparem-se para tirar a rede quando pousar. Talvez a gente tenha de dar um tiro de advertência. O detector está ligado?
— Está, sim — respondeu o cabo que operava o aparelho. — O nosso amigo está chegando. Poderão vê-lo num minuto. O senhor está vendo aquelas luzes acolá? Devem ser do campo de pouso.
Bond passeou o olhar pelos quatro feixes de luz e, depois, contemplou o imenso céu africano.
Então aí vinha o último de todos, o derradeiro elemento da quadrilha e também o primeiro. O homem que havia visto ligeiramente em Hatton Garden. O número um da turma de Spang, cuja cotação era tão alta em Washington. O único, excetuando o inofensivo e até simpático Shady Tree, que Bond ainda não fora obrigado a matar ou — pensou no botequim de Spectreville e nos dois homens de Detroit — quase. Não que tivesse desejado matar esses indivíduos. A missão que M lhe confiara fora apenas de investigação. Mas, um a um, eles haviam tentado contra sua vida e a de seus amigos. A violência fora o primeiro, não o último recurso deles.
Violência e crueldade, as armas escolhidas. Os dois homens do Chevrolet em Las Vegas, que tinham disparado contra ele e ferido Ernie Cureo. Os dois sujeitos do Jaguar, que haviam espancado Ernie e tinham sido os primeiros a sacar os revólveres quando começara a luta. Seraffimo Spang, que mandara torturá-lo, disparara contra ele e Tiffany e procurara esmagá-los na estrada de ferro. Wint e Kidd, que haviam supliciado Tingaling Bell, Bond e Tiffany Case. E, dos sete, matara cinco — não porque gostasse de matar, mas porque alguém tinha de fazê-lo. Tivera a seu lado a sorte e três bons amigos, Félix, Ernie e Tiffany. E os malvados tinham perecido.
Agora chegava a último dos malvados, o homem que planejara a sua morte e a de Tiffany, o homem que, segundo M, arquitetara o contrabando dos diamantes, montara o canal de escoamento e o vinha dirigindo com eficiência e mão de ferro através dos anos.
Ao telefone, para Boscombe Down, M falara pouco e com certa aspereza na voz. Usara a linha do Ministério da Aeronáutica, poucos minutos antes que o Canberra decolasse para Freetown. Bond recebera o telefonema do gabinete do comandante da base, tendo nos ouvidos o grito estridente das turbinas do Canberra.
— Satisfeito de tê-lo de volta são e salvo.
— Muito obrigado, senhor.
— Que estória é essa que os vespertinos noticiaram acerca de um duplo homicídio no Queen Elizabeth?
Havia algo mais do que suspeita na voz de M.
— Eram os dois pistoleiros da quadrilha. Viajavam sob os nomes de Winter e Kitteridge. Meu camareiro desconfia que eles se desentenderam quando jogavam baralho.
— Acha que a suposição do camareiro é correta?
— É possível. Houve uma pausa.
— E os policiais também pensam assim?
— Não vi nenhum deles.
— Vou falar com Vallance.
— Ótimo — disse Bond, sabendo que essa era a maneira de M dizer que, caso Bond tivesse liquidado os dois homens, tomaria providências para que o agente e o Serviço Secreto não fossem mencionados no inquérito.
— Bem, de qualquer modo — disse M — aqueles dois eram pouco importantes. Esse Jack Spang, ou Rufus B. Saye ou ABC, ou que nome tenha, esse eu quero que você agarre. Ao que parece, ele vai agora até o extremo do canal. Vai fechá-lo. Talvez matando o que encontrar pela frente. O ponto final é o dentista. Veja se consegue pegar os dois. Faz coisa de uma semana que destaquei 2804 para trabalhar ao lado do dentista. O pessoal de Freetown acha que já se pode agir. Mas eu quero encerrar este caso e ver você de novo em seu verdadeiro posto. Esse negócio foi uma trapalhada dos diabos. Não me agradou desde o princípio. E se, afinal, conseguimos chegar ao ponto em que estamos agora, foi mais uma questão de sorte do que de boa organização.
— Concordo com o senhor — disse Bond.
— E essa moça, Case? — perguntou M. — Conversei com Vallance. Ele não deseja processá-la, a menos que você insista.
Teria M carregado um pouco no tom de indiferença?
Bond procurou evitar uma resposta muito persuasiva.
— Ela foi de grande ajuda — disse ele, esperançoso.
— Talvez a gente possa resolver quando eu apresentar meu relatório final.
— E onde está ela agora?
O negro receptor começava a ficar escorregadio na mão de Bond.
— Está a caminho de Londres, num Daimler de aluguel. Vou colocá-la no meu apartamento. Quero dizer, no quarto vago. É muito boa dona de casa.
Ela se arranjará até que eu volte. É uma boa moça, estou certo disso.
Puxou o lenço do bolso e enxugou o suor do rosto.
— Sem dúvida — disse M. Não havia ironia em sua voz.
— Está bem, então. Boa sorte. — Houve uma pausa. — Tome cuidado.
E... — a voz no outro extremo da linha tornou-se subitamente áspera — não pense que não estou satisfeito com os resultados até agora obtidos. Foram além do programa, naturalmente, mas você parece que topou muito bem a parada desse pessoal. Até logo, James.
— Até logo, senhor.
Bond levantou a vista para o céu recamado de estrelas e pensou em M e Tiffany, esperando que agora fosse mesmo o fim e que fosse rápido e tranquilo, e que logo estivesse em casa.
De pé, empunhando a quarta lanterna, o contrabandista das minas esperava. Lá vinha o helicóptero. Cortando a trajetória da lua. Como sempre, o barulho era infernal. Outro risco de que ia livrar-se.
Baixava lentamente. Agora pairava a uns vinte pés de altura. A mão apontou na janela e piscou A. O homem no chão piscou, em resposta, B e c.
As lâminas do rotor diminuíram a velocidade e, suavemente, o gigantesco inseto de aço pousou no chão.
O pó assentou. O contrabandista retirou a mão dos olhos e ajudou o piloto a descer a escadinha. Usava capacete de voo e óculos de proteção.
Extraordinário. E parecia mais alto do que o alemão. O contrabandista sentiu uma picada na espinha. Quem era esse? Aproximou-se devagar.
— Trouxe?
Dois olhos frios, sob negras sobrancelhas retas, cintilaram por trás dos óculos. Ocultavam-se quando o homem moveu a cabeça e o luar incidiu sobre o vidro. Agora eram dois círculos brancos reluzentes no meio do negro e luzidio capacete de couro.
— Trouxe — disse, nervoso, o homem das minas. — Mas onde está o alemão?
— Não virá mais. — Os dois círculos brancos cegavam o contrabandista.
— Eu sou ABC. Vim fechar o canal.
A voz era americana. Enérgica, seca, inflexível.
— Oh!
Maquinalmente, a mão do contrabandista enfiou-se na abertura da camisa. Apanhou o embrulho úmido e entregou-o ao piloto como se fosse uma oferenda de paz. À semelhança do escorpião, um mês antes, o homem das minas pressentia a pedra erguida sobre sua cabeça.
— Ajude-me a encher o tanque.
Era a voz do feitor dando ordens ao escravo. Mas o contrabandista apressou-se a obedecer.
Fizeram o serviço em silêncio. Ao terminar, voltaram ao chão. O cérebro do contrabandista trabalhava furiosamente. Ele se esforçava por adotar a voz de um associado, a voz de alguém que estivesse a par dos negócios e exercesse a mesma autoridade.
Olhou com atenção para a nesga de treva cor-de-anil onde se achava o piloto com a mão sobre a escada.. — Estive pensando bem e acho que...
A voz estacou de supetão, a boca abriu-se espavorida e deixou escapar um ruído que era uma mescla de rosnado e uivo.
A arma na mão do piloto gaguejou três vezes. O contrabandista emitiu um "Oh" numa voz servil, caiu de costas no chão, fez um esforço para se soerguer e imobilizou-se.
— Fique onde está. — A voz ressoou na planície, transmitida pelo amplificador. — Você está cercado.
Ouviu-se o ruído de um motor que se punha em funcionamento.
O piloto não procurou saber de onde vinha a voz. Pulou para a escada. A porta da carlinga fechou-se com uma pancada e zumbiu o arranque automático. O motor começou a trabalhar, as lâminas do rotor giraram, pouco a pouco foram ganhando velocidade até que se transformaram em dois redemoinhos prateados. Então, com uma sacudidela, o helicóptero elevou-se verticalmente no ar.
Em terra, entre os arbustos, o caminhão freou e Bond saltou para a sela de aço do Bofors.
— Pra cima, cabo — gritou ele para o homem que manobrava a alavanca de suspensão. Baixou os olhos para a alça de mira quando a boca da arma se ergueu para a lua. Com a mão, puxou a alavanca do seletor de fogo, tirando-a da marca de segurança e colocando-a em "Fogo". — Esquerda, dez.
— Eu alimentarei.
O oficial ao lado de Bond tinha nas mãos dois depósitos de obuses pintados de amarelo.
Os pés de Bond firmaram-se nos pedais do gatilho. O helicóptero estava no centro da alça de mira.
— Firme — disse ele calmamente.
— Bumpa.
O obus reluzente rodou no alto a uma velocidade apenas menor do que a do som. Baixo e à esquerda. O cabo girou delicadamente as duas alavancas.
— Bumpa.
O obus deu a volta por cima do helicóptero. Bond inclinou-se para a frente e puxou a alavanca do seletor para "Fogo Automático". A mão relutava. Agora a morte era inevitável. Mais uma vez ele tinha de tomar essa decisão.
— Bumpa... bumpa... bumpa... bumpa... bumpa... O fogo vermelho espargiu-se no céu. O helicóptero continuou a avançar para a lua e depois rumou para o norte.
— Bumpa... bumpa...
Houve um espocar de luz amarela perto do rotor da cauda e um estrondo de explosão distante.
— Acertou — disse o oficial, pegando o binóculo. — O rotor da cauda está perdido — disse ele. E logo, agitado: — Puxa! Parece que toda a cabina está girando com o rotor principal! O piloto está atolado.
— Mais algum? — perguntou Bond, mantendo na mira o helicóptero em chamas.
— Não, senhor — disse o oficial. — Seria bom se conseguíssemos pegá-
lo vivo. Mas parece... é, sim, já perdeu o controle. Vem caindo de ponta.
Deve haver alguma coisa com as lâminas do rotor principal. Lá vem ele.
Bond levantou a vista e resguardou os olhos contra a claridade intensa.
— Sim. Lá vem ele. A cem pés, o motor ribombando e as hélices girando inutilmente enquanto a embrulhada metálica despencava do céu em cambaleios e guinadas de ébrio.
Jack Spang. O homem que ordenara o assassínio de Bond. Que ordenara o assassínio de Tiffany. O homem que Bond vira apenas uma vez, durante alguns minutos, numa sala superaquecida em Hatton Garden. Mr. Rufus B.
Saye. Da House oi Diamonds. Vice-Presidente para a Europa. O homem que jogava golfe em Sunningdale e visitava Paris uma vez por mês. "Cidadão exemplar", M dissera dele. Mr. Spang, da quadrilha de Spang, que acabara de matar um homem — o último de quantos?
Bond imaginava a cena dentro da estreita carlinga. O homem dirigindo com uma das mãos e com a outra mexendo desesperadamente nos controles, enquanto observava a agulha do altímetro baixar vertiginosamente. Nos olhos, o rubro clarão do terror. As centenas de milhares de libras esterlinas em diamantes reduzidas a peso morto. A arma, que desde a infância, fora um poderoso braço direito, agora inútil.
— Vai pra cima do espinheiro — bradou o cabo acima da barulheira.
— Está perdido — disse o capitão, a meia voz.
Contemplaram as últimas guinadas; depois, suspenderam a respiração quando o aparelho, num bamboleio desenfreado, empinou o nariz e, como se o espinheiro fosse seu inimigo, deu um mergulho irado, descrevendo uma curva de vinte jardas, e arremessou-se com os rotores desgovernados contra os espinhos.
Antes de se extinguirem os ecos da colisão, ouviu-se um ribombo cavo e uma bola de fogo, projetada no ar, ofuscou o clarão da lua e banhou a planície inteira num fulgor alaranjado.
O capitão foi o primeiro a falar.
— Opa! — exclamou, tirando o binóculo e voltando-se para Bond. — Bem — disse ele, resignado — nada a fazer. Acho que só quando amanhecer a gente vai poder se aproximar. E só com o dia alto é que se poderá revolver os destroços. Mas pode esperar que daqui a pouco os soldados franceses da fronteira estarão aqui. Felizmente estamos em boas relações com eles. O governo é que passará um bocado de tempo discutindo com Dakar. — O oficial previa as idas e vindas da papelada e sentia-se ainda mais exausto.
Homem prosaico, achava que o dia já lhe trouxera boa dose de canseiras. — O senhor se incomoda se a gente tirar uma pestana?
— À vontade — disse Bond, e consultou o relógio. — É melhor irem pra debaixo do caminhão. Eu mesmo não estou com sono. Vou ficar de olho.
Pode ser que o fogo ameace se alastrar.
O oficial lançou um olhar inquiridor a esse homem calmo e enigmático, que chegara de repente ao Protetorado no meio de uma enxurrada de recomendações de "Prioridade Absoluta". Se a gente nunca precisasse dormir... Bom, isso nada tinha que ver com Freetown. Era coisa de Londres.
— Muito obrigado, então — disse o oficial e jogou-se debaixo do caminhão.
Bond retirou vagarosamente os pés dos pedais do gatilho e reclinou-se no encosto da sela de aço. Maquinalmente, com os olhos pousados ainda nas chamas saltitantes, enfiou as mãos nos bolsos do desbotado blusão caqui, que lhe haviam arranjado na base, puxou um cigarro, acendeu-o e tornou a guardar a cigarreira e o isqueiro.
Aí estava o fim do contrabando de diamantes. A última página da estória. Deu uma tragada e expeliu a fumaça com um suspiro longo e calmo.
Seis cadáveres a zero. Vitória folgada.
Ergueu a mão e limpou a testa suada. Atirou para trás a mecha de cabelo que lhe caía por cima da sobrancelha direita, e o clarão vermelho iluminou-lhe o rosto duro e magro e cintilou nos olhos cansados.
Esse imenso e rubro ponto final assinalava o desmoronamento da Quadrilha de Spang e o término do fabuloso contrabando de diamantes. Não o fim dos diamantes que se tostavam do interior do braseiro. Eles sobreviveriam e outra vez iriam percorrer o mundo. Descoloridos, talvez, mas indestrutíveis, tão permanentes como a morte.
E Bond recordou, instantaneamente, os olhos do cadáver cujo sangue havia pertencido ao grupo F. Tinham-se enganado. A morte é eterna. Mas os diamantes também são eternos.
Bond desceu do caminhão e pôs-se a andar lentamente em direção à fogueira crepitante. Levava um sorriso sombrio nos lábios. Toda essa estória acerca de morte e diamantes era demasiado solene. Para Bond, era apenas o fim de outra aventura. Outra aventura que bem podia ter por epitáfio as palavras de Tiffany Case. E reviu a boca ardente e irônica que lhe dizia: — Contada é uma coisa, vivida é outra.
20 - Chamas que saem do alto
O UNIFORME PRETO de homem-rã estava muito apertado. Doía no corpo todo. Por que cargas d'água Strangways não tinha se certificado de que o Almirantado tinha suas medidas corretas? E era muito escuro no fundo do mar, as correntes eram muito fortes, arrastavam-no para o banco de coral.
Era preciso nadar com todo o ímpeto para afastar-se dali. Mas agora algo lhe prendia o braço. Que diabo...?
— James! Pelo amor de Deus, James! — Ela apertou a boca ao ouvido dele. Desta vez ela beliscou-lhe o braço nu e ensanguentado com tanta força que, afinal, os olhos de Bond se abriram entre as pálpebras inchadas, e ele a contemplou do piso de madeira em que estava deitado e deu um suspiro de sobressalto.
Ela puxou-o para si, com medo que ele lhe escapasse outra vez. Ele pareceu entender e se revolveu, erguendo-se sobre as mãos e os joelhos, a cabeça pendida para o chão, como um animal ferido.
— Pode andar?
— Espere. — O murmúrio espesso que lhe atravessou os lábios arrebentados soou-lhe estranho aos ouvidos. Talvez ela não tivesse compreendido. — Espere — repetiu ele, enquanto sua mente passava a explorar o corpo para ver o que lhe tinha sobrado. Podia sentir os pés e as mãos. Podia mover a cabeça de um lado para outro. Podia ver as barras do luar nas pranchas de madeira. Pudera ouvir a moça. Devia estar inteiro, mas não queria mover-se. Sua força de vontade o tinha abandonado. Apenas desejava dormir. Ou talvez mesmo morrer. Qualquer coisa, contanto que mitigasse a dor que lhe avassalava o corpo todo, apunhalando-o, martelando-o, triturando-o — e matasse a lembrança das quatro botinas que o haviam golpeado e dos rosnados proferidos pelos dois vultos encapuzados.
Assim que pensou nos dois homens e em Mr. Spang, a vontade de viver retornou.
— Está bem — disse, e tornou a dizer para que ela compreendesse.
— Estamos na sala de espera — sussurrou a moça. — Temos de chegar ao extremo da estação. À esquerda, depois da porta. Está me ouvindo, James?
Ela estirou a mão e afagou-lhe os cabelos úmidos, viscosos, caídos na testa.
— Tenho de me arrastar — disse Bond. — Atrás de você.
A moça ergueu-se e abriu a porta. Bond trincou os dentes e saiu de rastros para a plataforma enluarada. E quando avistou a mancha escura no chão, a raiva e o desejo de vingança deram-lhe forças para se levantar.
Balançando a cabeça para não se afogar nas ondas negro-avermelhadas e amparado em Tiffany Case, cujo braço lhe envolvia a cintura, foi coxeando pelas tábuas até a rampa por onde desceram para o chão junto dos trilhos reluzentes.
E lá, no desvio, havia um vagonete.
Bond parou e olhou-o atentamente.
— Gasolina? — perguntou com ar vago.
Tiffany Case fez um gesto para uma fileira de latas encostadas no muro da estação. — Está cheio — sussurrou. — É usado na inspeção da linha. Eu sei colocá-lo em funcionamento. Já desloquei as agulhas. Depressa. Suba — soltou uma risadinha abafada. — Próxima parada: Rhyolite.
— Isso é que é uma garota — murmurou Bond. — Mas vai fazer um barulho danado quando esse troço começar a funcionar. Espere. Tenho uma ideia. Tem fósforos?
Metade da dor tinha desaparecido. Respirava forte quando deu as costas à moça e observou as silenciosas casas de madeira.
Ela estava usando calças compridas e blusa. Enfiou a mão no bolso das calças e entregou-lhe o isqueiro.
— O que é que vai fazer? — perguntou. — Já devíamos ter partido.
Mas Bond manquejou até as latas de gasolina e pôs-se a destampá-las e a arremessar o líquido sobre as paredes e a plataforma de madeira. Depois de esvaziar meia dúzia de latas, voltou para onde ela estava. — Ligue a bicha.
— Curvou-se com esforço e apanhou um jornal amassado ao lado dos trilhos. Ressoou o gemido raivoso do arranque automático, o motor de dois tempos pegou e começou a martelar.
Bond acendeu o isqueiro. O papel pegou fogo e Bond jogou-o entre as latas de gasolina. O espocar das labaredas quase o alcançou quando ele se lançou de costas ao estribo do vagonete. Mas então a. moça soltou a embreagem e o carro começou a deslizar pelos trilhos.
Houve um matracolejar e um sacolejo desagradável ao chegarem às agulhas; e depois, entrados na linha> principal, o velocímetro tremia marcando trinta milhas e os cabelos da moça flutuavam à frente de Bond como uma bandeira.
Bond voltou-se e contemplou a gigantesca floração de chamas que ia ficando para trás. Podia quase ouvir o crepitar das pranchas secas e os berros dos que despertavam. Se pelo menos o fogo pegasse Wint e Kidd, apanhasse a pintura do Pullman e se alastrasse pela lenha do tender do Cannonball e acabasse de uma vez com a caixa de brinquedos de Mr. Spang!
Mas ele e a moça tinham seus próprios problemas. Que horas eram?
Bond aspirou o ar fresco da noite e tentou colocar de novo a mente para trabalhar. A lua estava baixa. Quatro horas? Bond avançou com dificuldade pelo estribo até os dois assentos de encosto dobradiço e conseguiu sentar-se ao lado da moça.
Passou-lhe um braço em volta dos ombros, e ela voltou-se com um sorriso nos lábios. Levantando a voz acima do barulho da máquina e do matracolejar das rodas de ferro sobre os trilhos, ela falou: — Foi uma escapada e tanto. Parecia coisa de filme de Buster Keaton.
Como se sente? — Inspecionou o rosto combalido. — Você está massacrado, hein?
— Nenhuma fratura — disse Bond. — Acho que é isso que se entende por oitenta por cento. — Fez uma careta de dor. — É melhor ser tratado a pontapé do que a bala.
O rosto de Tiffany Case contraiu-se.
— E eu tive de ficar sentada lá e fingir que não ligava. Spang, ao meu lado, escutava e me observava. Depois, eles viram que você já estava nas últimas, atiraram você na sala de espera e todo mundo foi para a cama satisfeito da vida. Esperei uma hora em meu quarto e então resolvi agir. O
pior de tudo foi tentar despertar você.
Bond apertou-lhe os ombros com o braço.
— Direi o que penso de você quando estiver menos contundido. Mas, e você, Tiffany? Vai ficar em maus lençóis se eles nos pegarem. E quem são os dois encapuzados, Wint e Kidd? O que é que eles vão fazer agora?
Gostaria de vê-los de novo.
A moça olhou de viés para a feia equimose na boca de Bond.
— Nunca os vi sem os capuzes — confessou ela. — Suponho que eles são de Detroit. Pistoleiros. Encarregam-se dos trabalhos violentos e de missões especiais secretas. Virão em nosso encalço. Mas não se preocupe comigo. — Encarou-o de novo e seus olhos irradiavam felicidade. — A primeira coisa a fazer é levar essa joça a Rhyolite. Depois teremos de achar um carro e cruzar a fronteira com a Califórnia. Dinheiro não vai faltar-. Eu trouxe. Depois iremos a um médico, arranjaremos um banho e uma camisa nova pra você e pensaremos no que vamos fazer. Trouxe seu revólver. Foi encontrado por um dos rapazes que ajudaram a recolher os restos daqueles dois sujeitos que você arrasou no botequim. Apanhei a arma depois que Spang foi para a cama.
Ela desabotoou a blusa e enfiou a mão no cós das calças.
Bond recebeu a Beretta, e sentiu a quentura do corpo da moça no metal.
Removeu o pente. Sobravam três cartuchos, e um estava na agulha.
Recolocou o pente, fechou o registro de segurança e guardou a arma na cintura. Só então notou que estava sem paletó. Uma das mangas da camisa fora reduzida a um trapo. Arrancou-a e jogou-a fora. Apalpou o bolso traseiro direito da calça, à procura da cigarreira e não a encontrou. Mas no esquerdo estavam ainda o passaporte e a carteira de cédulas. Puxou-os do bolso. À luz da lua pôde ver que ambos estavam danificados. O dinheiro continuava na carteira. Pôs outra vez os objetos no bolso.
Durante algum tempo avançaram pela estrada. O silêncio da noite era cortado apenas pelo ronrom da máquina e pelo matraquear das rodas. Até onde a vista alcançava, havia somente uma interrupção da estreita linha prateada dos trilhos, assinalada pela alavanca de manobra das agulhas, no ponto em que um ramal enferrujado penetrava na massa escura dos montes Spectre à direita. À esquerda, descortinava-se o infindável chão do deserto em que o lampejo da aurora começava a debruar de azul as moitas de cactos contorcidos e, duas milhas além, o luar esparramava seu clarão cinza-chumbo sobre a Rodovia 95.
O vagonete cantarolava feliz nos trilhos. Os instrumentos de controle eram poucos: uma alavanca de freio e uma espécie de manche com um acelerador de cabo retorcido que a moça mantinha completamente aberto, com o velocímetro firme em trinta milhas. As milhas e os minutos passavam e, de vez em quando, Bond virava-se com dificuldade na cadeira e inspecionava o florescente rubor do céu às suas costas.
Fazia cerca de uma hora que tinham partido quando um leve zumbido, vibrando no ar ou nos trilhos, pôs Bond de sobreaviso. Novamente ele olhou por cima do ombro. Haveria um vago bruxoleio entre eles e o falso alvorecer da cidade em chamas?
Bond sentiu leve comichão no couro cabeludo.
— Veja se enxerga alguma coisa ali atrás.
A moça voltou-se. Depois, sem responder, diminuiu a marcha do carro que passou a deslizar suavemente.
Puseram-se à escuta. Sim. Era nos trilhos. Uma leve trepidação, nada mais do que um suspiro distante.
— É o Cannonball — disse Tiffany, categórica.
Deu um brusco repelão no acelerador, e o vagonete tornou a ganhar velocidade.
— Quanto pode fazer a locomotiva? — perguntou Bond.
— Talvez sessenta.
— E daqui pra Rhyolite?
— Trinta, mais ou menos.
Bond fez as contas em silêncio.
— Vai ser por um triz. Não é fácil dizer a que distância ela está de nós. E
esse treco pode dar mais alguma coisa?
— Que nada! — disse ela, — Nem que eu me chamasse Casey Jones em vez de Tiffany Case.
— Não tem importância — disse Bond. — Toca pra frente. Talvez ela vá prós ares com uma explosão.
— Ah, sim — disse ela. — Ou talvez a mola dê o prego, ou Spang se lembre que deixou a chave do motor em casa, no bolso da calça.
Viajaram mais quinze minutos em silêncio. Então, Bond divisou o grande farol da locomotiva varando a noite, a umas cinco milhas de distância, e as centelhas subindo pela chaminé. Os trilhos trepidavam e o que tinha sido um suspiro longínquo era agora um murmúrio baixo, ameaçador.
Talvez venha a faltar lenha, pensou Bond. Num impulso, ele perguntou despreocupadamente à moça:
— Será que temos bastante gasolina?
— Temos, sim — disse Tiffany. — Botei uma lata inteira. Não tem mostrador, mas esses motorzinhos giram a vida inteira com um galão.
Mal ela havia acabado de falar, e como se fizesse um comentário, o motorzinho deu uma tossidela de reprovação — cóf-cóf-cóf — e continuou a rodar alegremente.
— Ai, meu Deus! — exclamou Tiffany. — Ouviu isso? Bond ficou calado. Sentiu as mãos tornarem-se úmidas. Outra vez: cóf-cóf-cóf.
Tiffany Case acalentou delicadamente o acelerador.
— Ah, motorzinho querido — disse ela em tom de súplica. —' Vamos, motorzinho lindo, seja bonzinho, por favor...
— Cóf-cóf. Cóf-cóf. Chi. Cóf. Chiiiii...
E no instante seguinte estavam eles escorregando brandamente em silêncio. Vinte e cinco, dizia o velocímetro. Vinte... quinze... dez... cinco.
Um último e selvagem repelão no acelerador, um pontapé de Tiffany Case na armação do motor, e tinham parado.
— Porra! — disse Bond. Com esforço conseguiu saltar e manquejar até o tanque na traseira do vagonete. Tirou do bolso da calça o lenço ensanguentado, desatarraxou a tampa do funil e introduziu o lenço até tocar o fundo do tanque. Puxou-o para fora, apalpou-o e cheirou-o. Seco como um osso.
— Nada feito — disse ele para Tiffany. — Vamos pensar numa saída.
Olhou em volta. Nenhum abrigo à esquerda, e duas milhas pelo menos até à estrada de rodagem. À direita, as montanhas, talvez a um quarto de milha. Podiam chegar lá e esconder-se. Mas por quanto tempo? Contudo, era o melhor alvitre. O chão, sob seus pés, tremia. Esquadrinhou a linha férrea iluminada pelo olho incandescente, implacável. A que distância? Duas milhas? Spang enxergaria o vagonete? Teria tempo de parar? Haveria descarrilamento? Mas aí Bond lembrou-se do poderoso limpa-trilhos, que varreria da linha o vagonete como se fosse um feixe de palha.
— Vamos, Tiffany — bradou ele. — Temos de escalar as colinas.
Onde estava ela? Bond rodeou o carro. Ela vinha correndo pelo trecho da estrada que tinham pela frente. Aproximou-se arquejante.
— Há um desvio logo ali adiante — disse ela entre um ofego e outro. — Se a gente puder empurrar essa coisa até lá e se você puder manobrar as velhas agulhas, pode ser que a gente escape.
— Deus do céu! — disse Bond lentamente. E depois, com uma nota de pasmo na voz, acrescentou: — Há uma coisa melhor do que essa. Me ajude aqui — e, curvando-se, rilhou os dentes contra a dor e começou a empurrar o vagonete.
Recebido o impulso inicial, o carro moveu-se facilmente e eles precisavam apenas segui-lo e não deixar que parasse. Chegaram às agulhas, mas Bond continuou a empurrar até que pararam umas vinte jardas além.
— Que diabo é que você vai fazer? — arquejou Tiffany.
— Vamos pra cá — respondeu Bond, correndo aos tropeções para o ponto em que a chave enferrujada ressaltava ao lado dos trilhos. — Vamos colocar o Cannonball no desvio.
— Genial! — disse Tiffany Case com admiração. Puseram mãos à obra, e os músculos doloridos de Bond forcejavam por erguer a chave.
Lentamente o metal enferrujado começou a mover-se no leito onde jazia imóvel havia cinquenta anos, e milímetro a milímetro os trilhos mostraram uma fenda, que foi se alargando à medida que Bond puxava a alavanca.
Ao terminar, Bond caiu de joelhos no chão, com a cabeça dobrada para baixo, lutando contra a tontura que ameaçava dominá-lo.
Mas já então um feixe de luz iluminava o chão e Tiffany procurava arrastá-lo. Bond ergueu-se e voltou aos trambolhões para o vagonete. O ar estrondava e se enchia do plangente clangor do sino enquanto o flamejante cavalo de ferro galopava em direção a eles.
— Abaixe-se e não se mexa — bradou Bond por cima do barulho e lançou-a ao chão por trás do frágil biombo do vagonete. Depois, coxeou o mais rápido que pôde até a margem dos trilhos, puxou a arma, colocando-se de viés com o braço levantado como um duelista e voltou os olhos semicerrados para o gigantesco farol que avançava debaixo do vulcão de fogo e fumaça turbilhonantes.
Puxa, que monstro! Entraria ele na curva? Ou não respeitaria o desvio e os esmagaria? Lá vinha ele.
— Fittt.
Algo açoitou o chão ao lado de Bond e houve um clarão momentâneo na cabina.
— P-o-e-m-m-m.
Houve outro clarão, e a bala atingiu o trilho, gemendo na noite.
— Trac. Trac. Trac.
Agora era-lhe possível ouvir o revólver acima do trovejar da locomotiva.
Algo cantou em tom agudo no ouvido de Bond.
Bond não respondeu. Só quatro balas, e ele sabia quando devia disparar.
E então, a vinte jardas, a locomotiva entrou na curva e desembestou pelo desvio com uma guinada tão violenta que atirou as achas de lenha do alto do tender na direção de Bond.
Houve um grito roufenho de metal quando as bordas das rodas motrizes de seis pés de altura dobraram a curva, uma breve impressão de fumaça, chama e ruído de motor, e, depois, uma rápida visão da cabina e do vulto negro e prateado de Spang, de braços abertos e pernas estendidas, agarrando-se com uma das mãos ao costado da cabina e com a outra precipitando-se para a alavanca do acelerador.
A arma de Bond bradou suas quatro palavras. Houve um curto vislumbre de uma cara branca arremessada para o alto, e logo a enorme locomotiva preta e amarela distanciou-se, reboando rumo à muralha sombria dos montes Spectre, o feixe de luz do farol ceifando a treva e o sino dobrando tristemente dim-dão, dim-dão, dim-dão.
Bond guardou lentamente a Beretta no cós das calças, e ficou olhando o ataúde de Mr. Spang, enquanto a esteira de fumaça subia no ar e por um momento encobria a face da lua.
Tiffany veio correndo até onde ele estava, e lado a lado puseram-se a contemplar a bandeira de chamas que se elevava da alta chaminé e escutar as montanhas multiplicarem o atroar da locomotiva. A moça agarrou-lhe os braços quando o comboio deu uma guinada repentina e sumiu-se atrás de um esporão da pedra. E agora ouvia-se apenas um longínquo tamborilar nas montanhas e avistava-se um clarão vermelho que fazia tremular os penhascos enquanto Cannonball despencava no bojo da rocha.
E subitamente apareceu uma imensa língua de fogo, no mesmo instante em que se produziu tremendo choque metálico semelhante ao encontrão de um encouraçado num penedo. Debaixo de seus pés ressoou um estrépito abafado. Finalmente, um ribombo distante e profundo levantou-se das entranhas da terra, seguido por uma barragem de ecos os mais variados.
Então, findos todos os ruídos, zuniu, firme, o silêncio.
Bond soltou um suspiro profundo como se estivesse despertando. Aí estava o fim de um dos Spangs, de um dos enfatuados, cruéis, aparatosos, irrecuperáveis adultos que compunham a quadrilha dos Spangs. Fora um gangster teatral e vivera num ambiente de caixa de palco. Mas isso não alterava o fato de que pretendera liquidar Bond.
— Vamos embora daqui — disse Tiffany Case com sofre-guidão. — Para mim chega de Spectreville.
Bond sentiu a dor insinuar-se-lhe outra vez por todo o corpo à medida que passava a tensão. "Vamos" — respondeu, lacônico. Alegrava-o a ideia de voltar as costas à lembrança daquele rosto branco virado para cima, dentro da bela locomotiva negra em marcha. Estava ligeiramente tonto e duvidava se seria capaz de fazer o percurso.
— Temos de alcançar a estrada. Vai ser difícil. Mas vamos embora.
Levaram uma hora e meia para vencer as duas milhas e, no momento em que se prostrou no solo à margem da estrada de cimento, Bond estava delirante. Foi a moça que o conduziu até lá. Sem ela, ele não teria chegado.
Teria tropeçado no meio dos cactos, das pedras e da mica até que lhe faltassem as forças e o sol causticante se encarregasse de completar o serviço.
Agora ela lhe segurava a cabeça no regaço, falava-lhe docemente e lhe enxugava o suor da testa com a ponta da blusa.
E de vez em quando parava para examinar uma banda e outra da estrada retilínea de concreto, cujos horizontes já tremeluziam nas ondas de calor do amanhecer.
Uma hora depois, ela ergueu-se de um salto, enfiou a blusa por dentro das calças, correu e parou no meio da estrada. Um carro baixo e negro rompia a neblina esvoaçante que ocultava o distante vale de Las Vegas.
O carro estacou justamente diante dela. Um rosto adunco sob um topete desalinhado de cabelo cor de palha assomou à janela. Os penetrantes olhos cinzentos miraram-na de alto a baixo. Pousaram-se na figura do homem deitado no solo à margem da estrada e tornaram para a moça.
Então, com a amistosa fala arrastada dos texanos, o chofer rompeu o silêncio:
— Félix Leiter, senhorita. Às suas ordens. Em que posso servi-la nesta magnífica manhã?
21 - "Nada é tão apropinquante como a propinquidade"
—...E QUANDO CHEGUEI à cidade telefonei pra meu amigo Ernie Cureo. James sabe quem é. A mulher dele estava de ataque e Ernie no hospital. Corro pra lá e ele me passa o serviço e eu imagino que James pode precisar de reforços. Monto na minha égua preta cor de carvão e vou esquipando noite adentro e quando chego perto de Spectreville vejo o clarão no céu. Calculo então que Mr. Spang está preparando um churrasco. O
portão da cerca está aberto e eu resolvo tomar parte na festa. Bom, creiam-me vocês ou não, o fato é que não há vivalma no local, exceto um cara de perna arrebentada e contusões generalizadas, que vem se arrastando pela estrada, tentando dar o pira. E ele me dá a impressão de ser um arruaceiro de nome Frasso, de Detroit. Ernie Cureo tinha dito que era um dos caras que tinham levado James. Ele não estava em condições de negar isso e eu então manjei a situação toda e compreendi que Rhyolite era minha próxima parada. Aí eu digo pro nosso amigo que daí a pouco os bombeiros virão fazer companhia a ele, levo-o até o portão e deixo-o lá. E de uma hora para outra vejo uma guria no meio do deserto, com o ar de quem tinha sido disparada de um canhão. E aqui estamos todos. Agora é a vez de vocês contarem.
"Então tudo isto não é parte de um sonho e eu estou deitado no assento traseiro no Studillac e este é o colo de Tiffany debaixo da minha cabeça e aquele ali é Félix e nós estamos indo às carreiras pela estrada a caminho da segurança, de um médico, de um banho, de comida, de bebida e de um longo sono reparador." Bond mexeu-se e sentiu que a mão de Tiffany em seu cabelo dizia que tudo era real e tal como havia esperado. Imobilizou-se novamente e nada disse. Guardava cada momento para si e lhes escutava as vozes e o zunido dos pneus rolando pela estrada.
Ao fim da narrativa de Tiffany, Félix Leiter largou um assobio de estupefação.
— Puxa! — exclamou ele. — Então vocês dois abriram um rombo espetacular na quadrilha de Spang. Que diabo é que vai acontecer agora? Há muitos outros marimbondos na casa e isso de ficar zumbindo em volta não é do feitio deles. Eles vão exigir ação.
— Certo! — disse Tiffany. — Spang era membro da associação de Las Vegas, e esses camaradas são muito solidários. Há também Shady Tree e aqueles dois pistoleiros, Wint e Kidd. Só o diabo sabe quem são eles. Quanto mais cedo a gente cruzar a fronteira estadual, melhor. E depois, o que vamos fazer?
— Até aqui vai tudo em ordem — disse Félix Leiter. — Em dez minutos chegaremos a Beatty, depois pegaremos a 58 e passaremos nela uma meia hora. Em seguida, toparemos um longo trecho através do Vale da Morte e sobre as montanhas até Olancha, onde atingiremos a N.° 6. Poderíamos dar uma paradinha lá, levar James a um médico, comer alguma coisa e tomar um banho. Depois continuaremos na 6 até chegarmos a Los Angeles. Será muito puxado, mas poderemos estar em Los Angeles na hora do almoço. Aí podemos descansar um pouco e bolar algum plano. Meu palpite é que temos de tirar você e James do país o mais cedo possível. Os meninos tentarão pegar vocês dois de qualquer jeito, e se conseguirem eu não darei um níquel pela vida de nenhum dos dois. A melhor solução seria botá-los num avião para Nova York hoje de noite e despachá-los amanhã para a Inglaterra.
James pode embarcar lá.
— Acho que é razoável — disse a moça. — Mas, afinal, quem é esse Bond? O que é que ele faz? É um detetive ou coisa semelhante?
— Acho melhor que você mesma pergunte a ele — Bond ouviu Leiter dizer cautelosamente. — Mas eu, se fosse você, não me preocuparia com isso. Ele cuidará de você.
Bond sorriu para si mesmo e, no longo silêncio que se seguiu, caiu num sono intranquilo que durou até o momento em que atravessaram a Califórnia e o carro parou defronte de um portãozinho com a placa "Otis Fairplay, Médico".
E depois, enfaixado e pintado com mercúrio-cromo, banhado e barbeado, com um suculento café matinal no estômago, Bond voltou ao carro e ao mundo. Tiffany readquirira o velho ar irônico e intratável e Bond revelava-se útil na espionagem dos patrulheiros rodoviários, enquanto Leiter avançava a oitenta milhas pela interminável estrada estonteante, rumo à longínqua linha de nuvens que escondiam as High Sierras.
Mais tarde rolavam tranquilamente ao longo de Sunset Boulevard, ladeado pelas palmeiras e pelos gramados verdejantes. O Studillac coberto de poeira destoava no meio das cintilantes Corvettes e Jaguars. Finalmente, ao anoitecer, estavam sentados no bar escuro e refrigerado do Beverly Hills Hotel. Havia novas maletas no saguão, roupas novas adquiridas em Hollywood, e até mesmo o rosto de Bond, marcado de cicatrizes da luta, poderiam indicar que tinham terminado o trabalho nos estúdios.
Havia um telefone em cima da mesa, ao lado dos martinis. Félix Leiter acabava de falar com Nova York pela quarta vez desde que haviam chegado.
— Bom, está tudo arranjado — disse ele, desligando o telefone. — Meus colegas do escritório conseguiram passagens no Elizabeth. Adiou a partida por causa de uma greve nas docas. Sai amanhã de noite, às oito. Eles.irão ao encontro de vocês de manhã em La Guardiã, com as passagens, e vocês serão levados para bordo de tarde. Pegaram o resto de suas coisas no Astor, James. Uma pasta e os teus célebres tacos de golfe. E Washington oferece um passaporte a Tiffany. Haverá um homem do Departamento de Estado no aeroporto. Vocês terão que assinar uns formulários. Consegui que um dos meus antigos colegas da CIA arranjasse a coisa. Os vespertinos fizeram uni bruto estardalhaço com a estória. "Cidade Morta Desaparece" e outras manchetes desse tipo. Mas parece que ainda não descobriram nosso amigo Spang e os nomes de vocês não figuram no noticiário. Meu pessoal diz que não há nada com vocês na polícia, mas um de nossos informantes secretos diz que as quadrilhas estão à procura de vocês e espalharam por toda parte uma descrição de ambos. Com a promessa de dez mil. Assim, é melhor mesmo dar no pé o mais cedo possível. É aconselhável irem para bordo separadamente. Tomem o maior cuidado, vão para os camarotes e não saiam de lá. Vai haver o diabo quando eles chegarem ao fundo daquela velha mina.
Isso fará pelo menos três cadáveres a zero, e esse tipo de escore não é do agrado deles.
— Pinkerton é uma verdadeira máquina — disse Bond, com admiração.
— Mas ficarei satisfeito quando estivermos longe daqui. Eu pensava que os seus gangsters eram um bando de italianos untuosos, que se empanturravam de pizza e cerveja a semana toda e no sábado assaltavam uma garagem ou uma farmácia para arranjarem dinheiro para as corridas. Mas não há dúvida que eles incluem um bocado de violência na folha de pagamentos.
Tiffany Case riu zombeteiramente.
— Você precisa mandar examinar essa cabeça — disse ela, categórica.
— Se sairmos inteirinhos do Lizzie será um verdadeiro milagre. Por aí você pode ter uma ideia de como eles são. Se não fosse aqui o nosso Capitão Gancho-de-Aço, não sei o que seria de nós. Untuosos! Pois sim!
Félix Leiter soltou uma risadinha.
— Calma, pombinhos — disse ele, consultando o relógio. — Temos de partir. Preciso voltar a Las Vegas hoje de noite e começar a procurar o esqueleto do nosso Shy Smile. E vocês têm de pegar o avião. Poderão continuar a arenga a vinte mil pés de altura. De lá a perspectiva é mais interessante. É possível até que terminem como amigos. Lembrem-se do que se diz por aí. — Fez um aceno para o garçom. — Nada é tão apropinquante como a propinquidade.
Leiter levou-os ao aeroporto e deixou-os lá. Bond sentiu um nó na garganta quando o vulto magro saiu coxeando para o carro depois de ter sido efusivamente abraçado por Tiffany Case.
— Você pode dizer que tem um amigo de verdade — disse a moça ao ver Leiter bater a porta e ouvir o estrondo do escape enquanto o carro partia de volta ao deserto.
— Sim — disse Bond. — Félix é cem por cento.
O luar arrancou cintilações do gancho de aço quando Leiter acenou um último adeus. Depois, a poeira assentou na estrada e soou a voz de ferro do alto-falante: "Trans-World Airline, Voo 93. Embarque no Portão N.° 5 para Chicago e Nova York. Todos a bordo, por favor." Eles abriram caminho através das portas de vidro e deram os primeiros passos de sua longa viagem para Londres.
O novo Super-G Constellation roncou por cima do continente envolto em sombras, e Bond, deitado em seu confortável beliche, esperando que o sono lhe tomasse conta do corpo dolorido, pensava em Tiffany, que dormia no beliche de baixo, e no estágio em que se encontrava sua missão.
Pensou no lindo rosto adormecido sobre a mão aberta, inocente e indefeso, esvaecidos o desdém dos olhos cinzentos e rasos e a curva irônica dos cantos da boca ardente. Bond sabia que estava bem perto de apaixonar-se. Mas, e ela? Até onde ia aquela rebelião masculina gerada certa noite em São Francisco, quando os homens lhe invadiram o quarto e a ofenderam?
Chegariam a adolescente e a mulher a transpor a barricada que haviam começado a construir naquela noite contra todos os homens do mundo?
Romperia ela a concha que os anos de solidão e retraimento tornavam cada vez mais rija?
Bond recordou aqueles momentos das últimas vinte e quatro horas em que conhecera a resposta, momentos em que uma jovem arrebatada e terna surgira feliz, sem a máscara agressiva que usava entre os gangsters, no contrabando, no cassino, na mesa de vinte-e-um, e lhe dissera: — Toma-me pela mão. Abre a porta e caminharemos de mãos dadas no dia claro. Não te preocupes. Acertarei meu passo pelo teu. Sempre estive a teu lado em pensamento, mas tu não vieste e passei a vida escutando outra cadência.
Sim, pensou ele. Tudo correrá bem, por esse lado. Mas estava preparado para as consequências? Uma vez que a tomasse pela mão, seria para sempre.
Estaria no papel do médico, do psicanalista, a quem a paciente transfere seu amor e sua confiança, enquanto se liberta da doença. Não poderia haver maior crueldade do que soltar-lhe a mão depois de a ter tomado nas suas.
Estava preparado para as repercussões que esse ato teria em sua vida e em sua profissão?
Bond mexeu-se no beliche e descartou-se do problema. Era muito cedo ainda para enfrentá-lo. Estava indo muito depressa. Mais devagar. Cada coisa a seu tempo. E obstinadamente arquivou a questão, dirigindo os pensamentos para M e para a missão que lhe cumpria concluir antes de perder tempo com sua vida particular.
Bem, uma parte da serpente estava esmagada. A cabeça ou o rabo?
Difícil dizer, mas Bond tendia a julgar que Jack Spang e o misterioso ABC
eram os verdadeiros manipuladores do contrabando de diamantes e que Seraffimo se incumbia da receptação. Seraffimo podia ser substituído.
Tiffany podia ser dispensada. Shady Tree, a quem ela poderia implicar no contrabando, teria de ficar oculto até que a tormenta — se é que Bond era realmente um prenuncio de tempestade — se desencadeasse. Mas nada havia que pudesse implicar Jack Spang ou a House of Diamonds, e a única pista para ABC era o telefone londrino, cujo número Bond trataria de obter da moça o mais cedo possível. Mas este, e todo mecanismo dos contados a ele relacionados, seria alterado logo depois que todos os fatos da deserção de Tiffany e da fuga de Bond fossem comunicados a Londres, presumivelmente por Shady Tree. Assim, tudo isto, refletiu Bond, colocava Jack Spang e, através dele, ABC como seu próximo alvo. O que tinha a fazer de imediato, concluiu Bond antes de se abandonar ao sono, era relatar toda a situação a M
assim que embarcasse no Queen Elizabeth. Daí por diante Londres tomaria conta do caso. Os homens de Vallance sairiam a campo. Bond não teria muito que fazer quando regressasse. Relatórios e mais relatórios a escrever.
A mesma velha rotina no escritório. E de noite haveria Tiffany no quarto atualmente desocupado de seu apartamento, numa transversal de Kings Road. Precisava mandar um telegrama para May a fim de que ela arrumasse as coisas. Vejamos... flores, sais de banho de Floris, lençóis limpos...
Dez horas depois de terem deixado Los Angeles, sobrevoaram La Guardiã e viraram para o mar a fim de preparar o pouso.
Eram oito horas da manhã de domingo e havia pouca gente no aeroporto, mas um funcionário interrompeu-lhes a caminhada quando seguiam pela pista alcatroada e os conduziu para uma entrada lateral, onde os esperavam um homem de Pinkerton e um representante do Departamento de Estado.
Enquanto conversavam, a bagagem foi-lhes trazida. Depois, levaram-nos para fora da estação de passageiros, onde os aguardava um elegante Pontiac marrom, com o motor em movimento e as persianas do vidro traseiro abaixadas.
Passaram ainda algumas horas de ócio no apartamento do homem de Pinkerton até que, por volta das quatro da tarde, mas com um quarto de hora de diferença entre eles, galgaram a prancha de embarque, penetraram no negro, majestoso e seguro ventre britânico do Queen Elizabeth e, por fim, encerraram-se em seus camarotes no convés M, com as portas trancadas para o mundo.
Mas, quando, em primeiro lugar, Tiffany Case e, depois, Bond puseram os pés na prancha de embarque, um doqueiro do Sindicato de Estivadores de Anastásia correu para a cabina telefônica do galpão da alfândega.
E três horas mais tarde dois homens de negócios americanos saltavam de um sedan negro à porta de um armazém das docas, passavam às pressas pelo serviço de imigração e pela alfândega e galgavam a prancha de embarque, quando os alto-falantes começavam a pedir aos visitantes que desembarcassem.
Um dos homens de negócios era ainda jovem, de feições delicadas e fios de cabelos embranquecidos aparecendo sob o Stetson recoberto por uma capa impermeável. O nome impresso na pasta que carregava era B.
Kitteridge. O outro era um gorducho grandalhão, com um brilho nervoso nos olhos miúdos por trás das lentes bifocais. Suava em bicas e constantemente enxugava o rosto com um lenço enorme. O nome no cartão pendurado na alça da pasta era W. Winter. Em baixo do nome, lia-se em tinta vermelha: MEU GRUPO SANGuÍNEO É F.
22 - Amor e molho bearnês
Às OITO HORAS em ponto, o prolongado e ressoante apito da sirena do Queen Elizabeth fez tremer a vidraça dos arranha-céus. Com grande rebuliço, os rebocadores arrastaram-no para o meio do rio, abrindo-lhe o caminho. Por fim, desenvolvendo cautelosamente cinco nós, o transatlântico pôs-se a descer o rio, cortando as águas remansosas.
Após a parada para desembarcar o prático no Farol de Ambrose, as quádruplas hélices fustigariam o mar, convertendo-o em creme de leite, e o Queen Elizabeth, com um estremecimento de alívio, começaria a fender o longo arco achatado, entre os paralelos 45 e 50, a caminho de Southampton.
Sentado no camarote, escutando o ranger do madeiramento e contemplando o lápis rolar suavemente em cima da penteadeira, entre a escova de cabelo e a borda de seu passaporte, Bond recordava os dias em que outra era a rota da embarcação, os dias em que ela ziguezagueava no Atlântico Sul, brincando de esconde-esconde com os ferozes cardumes de submarinos alemães, a caminho da Europa em chamas. Ainda era uma aventura, mas agora o Queen Elizabeth — protegido num casulo de radar, rádio e sondador de ecos — movia-se com as precauções de um potentado oriental entre escoltas e batedores e, no que dizia respeito a Bond, tédio e indigestão eram os únicos riscos da viagem.
Pegou o telefone e pediu para falar com Miss Case. Quando ela lhe ouviu a voz, rompeu num gemido teatral.
— A loba do mar odeia o mar — disse ela. — Ainda não saímos do rio e eu já estou enjoada.
— Não faz mal — disse Bond. — Não saia do camarote e tome dramamina e champanha. Vou passar uns dois ou três dias em repouso. Vou mandar chamar o médico e o massagista dos banhos turcos pra ver se junto de novo as peças. E de qualquer modo não faz mal nenhum que a gente passe a maior parte da viagem no camarote. É possível que nos tenham localizado em Nova York.
— Bom, se você promete telefonar todos os dias — disse Tiffany — e promete me levar àquela Veranda Grill logo que eu puder engolir um pouco de caviar, eu concordo. Está bem assim?
Bond soltou uma gargalhada.
— Já que você insiste, eu prometo — disse ele. — E agora, escute. Em troca, eu quero que você tente lembrar-se de tudo o que puder a respeito de ABC e do lado londrino de nosso negócio. Aquele número de telefone e o mais que você julgar importante. Logo que puder, eu lhe direi por que estou interessado nisso. Por enquanto você tem de confiar em mim. Combinado?
— Combinado — disse a moça com indiferença, como se toda essa fase de sua vida tivesse perdido o interesse; e, durante dez minutos, Bond inquiriu-a minuciosa, mas (exceto no que tocava a pormenores insignificantes) inutilmente, acerca das atividades de ABC.
Depois desligou o telefone, chamou o camareiro, encomendou o jantar e sentou-se para escrever o longo relatório que teria de transpor em código e despachar naquela mesma noite.
O rebocador conduziu tranquilamente o navio para a treva, e a cidadezinha de três mil e quinhentos habitantes preparou-se para viver os cinco dias da viagem, durante os quais poderiam registrar-se todas as ocorrências naturais em qualquer outra comunidade desse porte — furtos, brigas, seduções, bebedeiras, embustes, talvez um ou dois partos, a possibilidade de um suicídio e, em cem travessias, até mesmo um homicídio.
Quando o burgo de ferro começou a sulcar serenamente a imensidão do Atlântico e a brisa suave da noite zuniu e gemeu no topo do mastro, as antenas de rádio já estavam transmitindo a mensagem do operador de serviço ao ouvido atento de Portishead.
E o que o operador enviava, precisamente às dez horas da noite, E. S. T., era um telegrama endereçado a ABC, CUIDADOS HOUSE OF DIAMONDS, HATTON GARDEN, LONDRES, e
que dizia:
LOCALIZADOS PT CASO ASSUNTO EXIJA SOLUÇÃO DRÁSTICA ESSENCIAL VOCÊ FIXAR PREÇO PAGO EM DÓLARES. Assinado: WINTER.
Uma hora depois, enquanto o operador do Queen Elizabeth lamentava ter de transmitir quinhentos grupos de cinco letras dirigidos ao DIRETOR PRESIDENTE, EXPORTADORA UNIVERSAL, REGENTS PARK, LONDRES, o rádio de Portishead enviava uma breve mensagem a WINTER, PASSAGEIRO PRIMEIRA CLASSE QUEEN ELIZABETH, que dizia:
DESEJO SOLUÇÃO IMEDIATA PROBLEMA CASE PT PAGAREI VINTE MIL PT
CUIDAREI PESSOALMENTE OUTRO ASSUNTO CHEGADA LONDRES CONFIRME ABC.
O operador procurou Winter na lista de passageiros, meteu a mensagem num envelope e enviou-a a um camarote no convés A, abaixo do de Bond e da moça, onde os dois homens jogavam cartas em mangas de camisa.
Quando o mensageiro saiu do camarote, ouviu o gorducho dizer para o homem dos cabelos brancos: — Pois é, Kidd. Vinte mil. É pra valer!
Não foi senão no terceiro dia que Bond e Tiffany resolveram encontrar-se no Observation Lounge, para um coquetel, e mais tarde no Veranda Grill, para jantar. Ao meio-dia, a calmaria era total, e depois do almoço no camarote Bond recebera um ultimato em redondo cursivo feminino numa folha de bloco do navio: "Marque um encontro comigo hoje. Não falhe".
Imediatamente Bond pegara o telefone.
Estavam sedentos da companhia um do outro depois dos três dias de separação, mas as defesas de Tiffany estavam de pé quando ela se reuniu a ele na escura mesa de canto que Bond havia escolhido na cintilante sala semicircular, situada na proa.
— Que espécie de mesa é esta? — perguntou ela com sarcasmo. — Está com vergonha de mim? Então eu ponho o mais belo modelo dos costureiros de Hollywood e você me esconde como se eu fosse Miss Reno 1914? Quero me divertir nessa geringonça e você me bota num canto como se eu fosse contagiosa.
— É isso mesmo — disse Bond. — O que você quer é elevar a temperatura de outros homens.
— Que é que você espera que uma moça faça no Queen Elizabeth?
Pescar?
Bond riu. Acenou para o garçom e pediu vodca-martini seco com casca de limão.
— Eu podia te oferecer uma alternativa.
— Já sei — disse a moça. — Meu querido diário: estou na maravilhosa companhia de um inglês bonitão. O que me aflige é saber que ele anda atrás das jóias da minha família. Que devo fazer? Sua criada, desorientada. — Num movimento súbito, ela inclinou o busto para a frente e pousou a mão na do homem. — Escute aqui, mestre Bond — disse ela. — Estou felicíssima.
Adoro isso aqui. Adoro estar com você. E adoro esta mesinha escura onde ninguém pode me ver segurando sua mão. Não ligue pra minha conversa. É que eu não posso me conter de tão feliz. Não faça caso das minhas brincadeiras.
Ela vestia uma blusa de xantungue de seda creme e uma saia de algodão e lã preto-carvão. As cores neutras ressaltavam-lhe a tez café-au-lait. O minúsculo relógio Cartier quadrado, com a pulseira preta, era sua única jóia, e as unhas curtas da mão pequena e morena que Bond tinha entre as suas estavam sem esmalte. A luz do sol, refletida do exterior, refulgia no ouro pálido das largas ondas do cabelo, nas profundezas dos cinzentos olhos opalescentes e nos alvos dentes que cintilavam entre os lábios sensuais.
— Não — disse Bond. — Não farei caso, Tiffany. Tudo em você é esplêndido.
Ela o encarou nos olhos e ficou satisfeita. O garçom trouxe-lhes a bebida. Ela retirou a mão e observou-o ironicamente por cima da borda de seu copo.
— Agora eu quero saber umas coisinhas — disse ela. — Em primeiro lugar, o que é que você faz e para quem trabalha? A princípio, no hotel, pensei que você era um vigarista. Mas, não sei por quê, quando você foi embora, vi que não era. Acho que devia ter avisado ABC, e com isso teria evitado essa onda toda. Não avisei, e pronto! Vamos, James. Responda.
— Trabalho para o governo — disse Bond —, que quer acabar com esse contrabando de diamantes.
— Espécie de agente secreto?
— Funcionário público, apenas.
— Está bem. E o que é que você vai fazer comigo quando chegarmos a Londres? Trancafiar-me?
— Sim. No quarto desocupado de meu apartamento.
— Assim é melhor. Terei de me tornar súdita da Rainha como você?
Gostaria de ser súdita.
— Acho que podemos arranjar isso pra você.
— É casado? — Fez uma pausa. — Ou tem alguma ligação?
— Não. Um caso ou outro de vez em quando.
— Quer dizer então que você é um desses sujeitos fora de moda que gostam de dormir com mulher? Por que não se casou?
— Creio que porque eu acho que posso manobrar melhor a minha vida sozinho. A maioria dos casamentos não soma duas pessoas. Subtrai uma da outra.
Tiffany Case refletiu um pouco.
— Talvez você tenha razão — disse ela, afinal. — Mas depende do que se soma. Pode ser algo humano ou inumano. Ninguém é auto-suficiente.
— E você?
A moça não gostou da pergunta.
— Talvez eu esteja do lado do inumano — respondeu com rispidez. — E com que diabo de homem você queria que eu me casasse? Com Shady Tree?
— Pode ter havido muitos outros.
— Não houve — disse ela com raiva. — Você é capaz de achar que eu não devia ter me misturado com esses calhordas. Bem, talvez eu tenha dado o passo que não devia dar. — A chama de cólera se apagou e a moça assumiu a defensiva. — Isso acontece com certas pessoas, James. Acontece mesmo. E às vezes não é culpa delas.
James Bond estirou o braço e apertou a mão da moça.
— Eu sei, Tiffany — disse ele. — Félix me contou. É por isso que não perguntei nada. Não pense mais nisso, não. O que importa é o dia de hoje, aqui, agora. Não o dia de ontem. — Desviou o assunto. — Agora é a sua vez de me fornecer alguns fatos. Por exemplo, de onde é que vem esse nome Tiffany e que tal ser banqueira no Tiara? Como é que você chegou a cartear tão bem? Simplesmente espetacular a maneira como você tratava aquele baralho. Se pode fazer aquilo, pode fazer qualquer outra coisa.
— Não diga — replicou a moça com ironia. — Fazer o quê, por exemplo? Brincar de sapateira? E quanto ao nome Tiffany a explicação é simples. Quando eu nasci, papai Case ficou tão zangado por eu não ser menino que deu à minha mãe mil dólares e uma lata de talco comprada em Tiffany e foi embora de casa. Foi ser fuzileiro naval. Terminou morrendo em Iwo Jima. Então minha mãe me botou o nome de Tiffany Case e tratou de ganhar a vida pra nós duas. Começou com uma espelunca e umas garotas e com o tempo foi ficando mais ambiciosa. Talvez essa história não seja muito do seu agrado.
Ela lhe lançou um olhar meio defensivo, meio suplicante.
— Não me preocupa — disse Bond secamente. — Você não era uma das pequenas.
Ela deu de ombros.
— Um dia o lugar foi invadido pelos gangsters. — Interrompeu-se para beber o resto do martini. — E eu dei no pé, por minha conta. Passei pelos empregos comuns a todas as moças. Depois fui para Reno. Lá eles mantêm uma escola de jogo e eu dei duro. Curso completo. Dados, roleta e vinte-e-um. Pode-se ganhar bom dinheiro nos cassinos. Duzentos por semana. Os homens gostam quando as moças bancam o jogo e as mulheres se sentem mais confiantes. Acreditam que a gente vai se mostrar bondosa com elas.
Pensam estar entre irmãs. Quando são homens que bancam o jogo, elas se apavoram. Mas não pense que essa estória toda é assim tão engraçada.
Contada, é uma coisa; vivida, é outra. — Fez uma pausa e sorriu. — Tenha a palavra, agora. É a sua vez. Pague mais um trago e me diga que tipo de mulher você acha que soma com você.
Bond chamou o garçom. Acendeu um cigarro e voltou-se para Tiffany.
— Alguém que saiba fazer molho bearnês e amor — disse ele.
— Já sei! Qualquer bruxa velha que saiba cozinhar e deitar-se de costas.
— Ah, não. Ela precisa ter todas essas coisas que as mulheres geralmente têm. — Bond examinou-a. — Cabelo cor de ouro. Olhos cinzentos. Boca pecadora. Silhueta perfeita. E naturalmente tem de contar piadas engraçadas, vestir-se bem e jogar cartas. As prendas naturais.
— E você casaria com uma mulher assim, se a encontrasse?
— Não necessariamente — disse Bond. — Pra falar com franqueza, já sou quase casado. Com um homem cujo nome começa com M. Teria de me divorciar dele antes de casar com uma mulher. E não sei se isso me agradaria. Ela me obrigaria a passar canapés de mão em mão numa sala de visita em forma de L. E haveria aquelas chatérrimas discussões "Foi você — Não, foi você" que parecem combinar tão bem com todos os casamentos.
Não daria certo. No primeiro acesso de claustro-fobia, iria embora pro Japão ou pra qualquer outra parte.
— E filhos?
— Gostaria de ter alguns — disse Bond. — Mas só quando me aposentasse. De outra forma, não seria justo. Meu trabalho não é lá muito seguro. — Olhou para o copo e bebeu todo o martini. — E você, Tiffany? — perguntou, a fim de mudar de assunto.
— Acho que toda moça gostaria de chegar em casa e encontrar um chapéu na mesinha do corredor — disse Tiffany, melancólica. — O diabo é que eu nunca encontrei nada que prestasse debaixo do chapéu. Talvez não tenha procurado bastante ou não tenha procurado nos lugares certos. Você sabe como é: quando a gente entra na rotina não quer mais sair. Assim fiz eu no meio dos Spangs. Sabia sempre de onde era que vinha a comida. Fiz algumas economias. Mas uma moça não pode ter amigos naquele ambiente.
Ou bota uma placa "Proibida a Entrada" ou de uma hora pra outra se vê cercada de malandros. Mas acho que já estou farta de viver só. Conhece o refrão das coristas da Broadway? "É triste a trouxa de roupa que não tem uma camisa de homem".
Bond riu.
— Mas agora você está fora da rotina — disse ele e olhou-a zombeteiramente. — E Mr. Seraffimo? E aqueles dois quartos de dormir no Pullman, a ceia para dois com champanha...?
Antes que concluísse, ela levantou-se da mesa, os olhos vermelhos, e caminhou para fora do bar.
Bond se amaldiçoou. Colocou algum dinheiro sobre a conta e saiu correndo atrás dela. Foi encontrá-la quase no meio do tombadilho de passeio.
— Por favor, Tiffany, escute — começou ele.
Ela voltou-se e encarou-o.
— Como se pode ser tão mesquinho? — disse ela, e lágrimas iradas brilharam-lhe nos cílios. — Por que você tem de estragar tudo com uma observação ferina como aquela? Oh, James! — Em desespero virou-se para as janelas, procurando um lencinho na bolsa. Enxugou os olhos. — Você simplesmente não compreende.
Bond cingiu-a com um braço e puxou-a para si.
— Meu amor! — Sabia que nada senão o grande passo do amor físico curaria esses mal-entendidos, mas que era necessário ;ainda desperdiçar tempo e palavras. — Não tive a intenção de magoar você. Eu queria somente ter certeza. Aquela mesa posta para a ceia no trem me feriu muito mais do que o que aconteceu depois. Tinha de lhe fazer aquela pergunta.
Ela ergueu a vista, ainda em dúvida.
— Está falando sério? — perguntou, observando-lhe o rosto. — Quer dizer que você já me queria bem?
— Não seja boba — disse Bond, impaciente. — Então você não sabe nada de nada?
Ela afastou-se e contemplou pela janela o infindável mar azul e as gaivotas que acompanhavam esse navio extraordinariamente pródigo.
Depois de algum tempo, perguntou:
— Você já leu Alice no País das Maravilhas?
— Há muitos anos — disse Bond, surpreso. — Por quê?
— Há lá umas linhas que muitas vezes me vêm à memória — disse ela.
— "Oh Ratinho, conheces o caminho que conduz para fora deste poço de lágrimas? Estou muito cansada de nadar dentro dele, oh Ratinho". Lembra-se dessa passagem? Pois bem, eu pensava que você ia me mostrar a saída e, em vez disso, você me empurra pra dentro do poço. Por isso é que fiquei transtornada. — Ergueu a vista. — Mas acredito que você não teve intenção de me magoar.
Bond olhou-lhe a boca demoradamente e depois beijou-a nos lábios.
Ela não retribuiu e esquivou-se. Seus olhos sorriam de novo. Deu o braço a ele e voltou-se para as portas abertas que conduziam ao elevador.
— Me leve lá pra baixo — disse ela. — Preciso recompor a fachada e, além disso, quero me preparar com cuidado para agradar ao candidato. — Ficou um instante em silêncio e depois colou a boca no ouvido dele. — Talvez isso lhe interesse, James Bond — disse baixinho. — Nunca em minha vida fiz o que você chama "dormir com um homem". — Puxou-o pelo braço. — Agora vamos — disse bruscamente. — Afinal, já é hora de tomar um "quente doméstico". Suponho que isso faz parte da língua dos súditos que você está querendo que eu aprenda. Vocês, súditos, escrevem as coisas mais loucas nos banheiros.
Bond levou-a até o camarote dela, voltou para o seu e tomou um "quente salgado" na banheira, seguido de um "frio doméstico" no chuveiro. Depois, estirou-se na cama, recordando com um sorriso algumas das coisas que ela havia dito, e pensou nela, deitada na banheira, intrigada com a floresta de torneiras e imaginando que os ingleses eram loucos varridos.
Soou uma pancada na porta e o camareiro entrou com uma bandejinha que colocou em cima da mesa.
— Que diabo é isso? — perguntou Bond.
— Foi enviado pelo cozinheiro-chefe, senhor — respondeu o camareiro, retirando-se em seguida e fechando a porta do camarote.
Bond desceu da cama e foi examinar o conteúdo da bandeja. Não pôde deixar de rir. Havia uma garrafinha de Bollinger, um rescaldeiro com quatro talhadas de bife em canapés de torrada, e uma tijelinha de molho. Debaixo desta, uma nota escrita a lápis dizia: "Este molho bearnês foi criado por Miss T. Case sem minha assistência". Assinado: "O Chefe".
Bond encheu uma taça de champanha, espalhou um pouco de molho numa talhada de bife e mastigou atentamente. Depois foi ao telefone.
— Tiffany?
Ouviu o risinho abafado e divertido no outro extremo do fio.
— Bem, não há dúvida de que você faz um maravilhoso molho bearnês...
Repôs o telefone no gancho.
23 - O trabalho fica em segundo plano
MOMENTO INEBRIANTE NUM CASO amoroso é aquele em que, pela primeira vez, em público, num restaurante ou num teatro, o homem pousa a mão na coxa da mulher e ela, tomando-a nas suas, aperta-a contra si.
Os dois movimentos dizem tudo o que pode ser dito. Concluem todos os acordos. Firmam-se todos os pactos. E há um longo minuto de silêncio durante o qual o sangue canta nas veias.
Eram onze horas e havia poucas pessoas espalhadas nos cantos da Veranda Grill. O mar arfava baixinho sob o luar lá fora e o magnífico paquete arava a negra pradaria do Atlântico. À popa, apenas um levíssimo galope mostrava uma suave ondulação, as doze lentas pulsações por minuto de um oceano adormecido, aos dois seres aconchegados atrás do quebra-luz cor-de-rosa.
O garçom trouxe-lhes a conta, e suas mãos se separaram. Mas agora dispunham de todo o tempo do mundo e não precisavam afirmar seus sentimentos com palavras e contactos. Quando o garçom retirou os pratos, a moça fitou Bond com um sorriso de felicidade os dois encaminharam-se para a porta.
Entraram no elevador para o Tombadilho de Passeio.
— Que faremos agora, James? — perguntou Tiffany. — Gostaria de tomar mais uma café e um Stinger preparado com creme de menthe branco, enquanto estivéssemos escutando o leilão. Já ouvi falar tanto dele e bem que poderíamos ganhar uma fortuna.
— Está bem — disse Bond. — O que você desejar. — Tomou-a pelo braço e atravessaram vagarosamente a grande sala de estar, onde o víspora ia em meio, e o salão de baile, onde os músicos afinavam os instrumentos. — Mas não me obrigue a comprar nenhum número. É um jogo como os outros, e cinco por cento destinam-se à beneficência. Quase a mesma coisa que em Las Vegas. Mas é divertido quando há um bom leiloeiro. E dizem também que há muito dinheiro a bordo.
O salão de fumar estava quase deserto. Escolheram uma mesinha longe da plataforma onde o Comissário arrumava os apetrechos do leiloeiro, a caixa com os papeluchos numerados, o martelo, a garrafa de água.
— A casa está fraca — disse Tiffany ao sentarem-se no meio da floresta de cadeiras e mesas vazias. Mas, quando Bond fez o pedido ao garçom, as portas do cinema se abriram e cerca de cem pessoas ocuparam o salão de fumar.
O leiloeiro, um comerciante dos Midlands, pançudo e jovial, com um cravo vermelho na lapela do dinner jacket, bateu na mesa pedindo silêncio e anunciou que a previsão do Capitão para o percurso do dia seguinte era de 720 a 739 milhas, que qualquer distância abaixo de 720 era o Campo Inferior e acima de 739 era o Campo Superior.
— E agora, minhas senhoras e meus senhores, vejamos se é possível quebrar o recorde estabelecido nesta viagem, que atinge a cifra impressionante de 2.400 libras esterlinas. (Aplausos). ; Um camareiro ofereceu a caixa com os números dobrados à mulher de ar mais aristocrático do salão e depois entregou ao leiloeiro o papelzinho que ela havia sorteado.
— Bem, senhoras e senhores, temos aqui, para começar, um número excepcionalmente bom. 738. Exatamente no limite máximo, e desde que vejo aqui, esta noite, tantas caras novas (risos), creio que todos concordaremos em que o mar está singularmente calmo. Senhoras e senhores. Quanto me dão por 738? Digamos... 50 libras? Quem me dará 50
libras por este número de sorte? 20, foi o que o senhor falou, cavalheiro?
Bem, temos de partir de alguma oferta. Quem dá... 25? Muito obrigado, minha senhora. E 30. 40 lá adiante, sr. camareiro. E 45 do meu amigo, Mr.
Rothblatt. Muito obrigado, Charlie. Quem dá mais pelo n.° 738? 50. Muito grato, minha senhora. E agora, sim, voltamos ao ponto de partida (risos). 50.
Quem dá 55? Então ficamos em 50. Dou-lhe uma... Dou-lhe duas... — e o martelo erguido bateu na mesa.
— Ainda bem que temos um bom leiloeiro — disse Bond.
— O número era bom. E barato, se o tempo continuar como está e ninguém se jogar no mar. O Campo Superior custará uma bolada esta noite.
Todo mundo espera que o navio faça mais de 739 milhas nesse tempo.
— Essa bolada quer dizer quanto? — perguntou Tiffany.
— Duzentas libras. Talvez mais. Acho que os números normais serão leiloados por umas cem libras. O primeiro número é sempre mais barato do que os outros. O pessoal ainda está frio. A única esperteza que se pode demonstrar neste jogo é arrematar o primeiro número sorteado. Qualquer número pode ganhar, mas o primeiro custa menos.
Quando Bond acabou de falar, o segundo número era entregue por 90
libras a uma jovenzinha bonita e excitada, que era abertamente financiada por seu companheiro, um indivíduo grisalho e bem conservado que parecia a caricatura de um Don Juan do Esquive.
— Vamos, James. Arremate um número pra mim — disse Tiffany. — Você não sabe mesmo agradar a uma moça. Veja como aquele cavalheiro é gentil com sua pequena.
— Ele já passou da idade-limite — disse Bond. — Deve estar na casa dos sessenta. Até os quarenta, as pequenas não custam nada. Daí por diante, é preciso gastar dinheiro ou contar uma estória. Das duas coisas, a estória é que dói mais. — Sorriu, fitando-a nos olhos. — Mas eu ainda não cheguei aos quarenta.
— Deixe de presunção — disse a moça, olhando-o na boca. — Dizem que os homens maduros são os melhores amantes. Também, por outro lado, sei que você não é unha-de-fome. Aposto que não quer me presentear um número porque o jogo é ilegal nos navios de Sua Majestade.
— Até que é permitido além do limite de três milhas da costa — disse Bond. — Mesmo assim, a Cunard toma todas as precauções para não envolver o nome da companhia. Escute isto — e apanhou um cartão alaranjado que estava em cima da mesa. — "Leilão de Apostas nas Distâncias Diárias percorridas pelo Navio" — leu para a moça. — "Para os fins de direito, é de toda a conveniência reiterar a posição da Companhia em relação ao supradito Leilão. Não é desejo da Companhia que o encarregado do salão de fumar ou quaisquer outros membros da tripulação desempenhem papel ativo na organização das apostas nas milhas diárias percorridas pelo navio". — Bond levantou a vista. — Está vendo? — perguntou. — Seguro morreu de velho. E tem mais: "A Companhia sugere que os passageiros elejam entre si uma Comissão encarregada de formular e controlar as normas... O encarregado do salão de fumar poderá, se instado e se seus deveres o permitirem, prestar a assistência de que a Comissão venha a necessitar para o leiloamento dos números". Como são cautelosos — comentou Bond. — É a comissão que tem de quebrar os galhos que forem aparecendo. Escute mais isto aqui. É onde entra o problema. — Continuou a leitura: — "A Companhia chama especialmente a atenção de todos para os dispositivos das normas financeiras do Reino Unido, no tocante à negociabilidade dos cheques em esterlinos e à limitação da entrada de cambiais bancárias em esterlinos no Reino Unido".
Bond atirou o cartão em cima da mesa..— E por aí vai — disse ele e sorriu para Tiffany Case. — Assim, eu arremato o número que está sendo leiloado e você ganha duas mil libras. Um montão de cédulas e cheques em dólares e libras. O único meio de gastar essa dinheirama, supondo que os cheques tenham fundos, o que é duvidoso, seria contrabandeá-la debaixo dos suspensórios. E lá estaríamos nós outra vez passando muamba. Só que eu estaria do lado do diabo.
A moça não se impressionou.
— Havia um sujeito na quadrilha chamado Abadaba — disse ela. — Era um malandro fino que tinha resposta para tudo. Calculava as vantagens nas corridas, marcava as percentagens no cassino, enfim, era o crânio do grupo.
Era considerado "O Feiticeiro das Apostas". Teve o azar de ser liquidado por engano ao lado de Dutch Schultz — ajuntou ela à guisa de parêntese. — Você está me saindo outro Abadaba com essa lengalenga que não tem outra finalidade senão evitar de gastar dinheiro com uma pequena. Já vi tudo. — Encolheu os ombros, resignada. — Está bem. Mas pelo menos financie outro Stinger pra sua garota.
Bond chamou o garçom. E quando este se afastou, ela aproximou a cabeça do ouvido dele e disse baixinho. — Eu não quero mais, não. Beba você. Quero estar inteiramente sóbria esta noite. — Empertigou-se. — Mas o que é que está se passando aqui? — perguntou com impaciência. — Vamos, um pouco de ação.
— Aí vem ela — disse Bond.
O leiloeiro levantou a voz e toda a sala pediu silêncio.
— E agora, minhas senhoras e meus senhores — rugiu o leiloeiro — vamos à pergunta mais importante da noite. Quem vai me dar 100 libras pela escolha entre o Campo Superior e o Inferior? Todos sabemos o que isto significa... o direito de escolher o Campo Superior, que, inclino-me a crer, será da preferência geral esta noite (risos), em vista das excelentes condições atmosféricas reinantes lá fora. Então, quem abrirá com cem libras os lances para a escolha do Campo Superior ou Inferior?
— Muito obrigado, cavalheiro! E 110. 120 e 130. Muito obrigado, minha senhora.
— Cento e cinquenta — disse uma voz de homem, não muito distante da mesa de Bond e Tiffany.
— Cento e sessenta.
Desta vez era uma mulher. Monótona, a voz do homem gritou: — 170.
— Oitenta — disse alguém.
— Duzentas libras.
Algo fez com que Bond se voltasse e olhasse o homem que tinha falado.
Era um tipo grandalhão. A cara tinha a aparência lisa, brilhante e escorregadia de um olho de boi. Olhos miúdos, frios e escuros fitavam o estrado do leiloeiro através de imóveis lentes bifocais. Todo o pescoço do homem parecia estar por trás da cabeça. O suor havia emaranhado as algas negras e encaracoladas do cabelo. Enquanto Bond o observava, ele tirou os óculos, pegou um guardanapo e passou a enxugar o suor, com um movimento circular que começou no lado esquerdo do rosto, estendeu-se à nuca, onde a mão esquerda cedeu a vez à mão direita, e esta completou o circuito, atingindo os pingos do nariz.
— Duzentas e dez — disse alguém.
A queixada do homem bamboleou, a boca se descerrou, e ele disse, com nítido sotaque americano:
— Duzentas e vinte.
O que havia nesse indivíduo capaz de ferir uma corda na memória de Bond? O inglês examinou o rosto largo, a imaginação percorrendo todo o arquivo do cérebro, abrindo e fechando gavetas, uma após outra à procura de uma pista. A cara? A voz? Inglaterra? América?
Bond abandonou a busca e voltou a atenção para o outro homem à mesa.
Ainda aqui, a mesma necessidade urgente de reconhecer. As feições jovens e estranhamente delicadas sob os cabelos brancos e lisos. Os olhos castanhos e plácidos sob as longas pestanas. O efeito geral era de delicadeza, perturbada pelo nariz roliço montado na boca larga de lábios finos, agora aberta num sorriso estúpido e vazio como a fenda de uma caixa postal.
— Duzentas e cinquenta — disse o grandalhão mecanicamente.
Bond tornou a olhar para Tiffany.
— Já viu aqueles dois alguma vez? — perguntou ele, e ela notou-lhe a ruga de preocupação entre os olhos.
— Não — disse ela, categórica. — Nunca. Talvez venham do Brooklyn. Podem ser dois comerciantes de roupas feitas da Quinta Avenida. Por quê? Eles lhe dizem alguma coisa?
Bond olhou-os outra vez.
— Não — disse, em dúvida. — Não, acho que não.
Palmas estrugiram na sala. Radiante, o leiloeiro bateu na mesa.
— Senhoras e senhores — disse ele, triunfante. — Isto é realmente maravilhoso. Trezentas libras é o lance daquela encantadora senhora de esplêndido vestido cor-de-rosa (Cabeças viravam-se, pescoços esticavam-se, e Bond ouviu a pergunta: — Quem é ela? E agora, cavalheiro — o leiloeiro indicava a mesa do homem gordo — posso anunciar 325 libras?
— Trezentas e cinquenta — disse o gordo.
— Quatrocentas — ganiu a mulher de vestido cor-de-rosa.
— Quinhentas.
A voz era incolor, indiferente.
A moça de cor-de-rosa tagarelou irritada com seu acompanhante. O homem assumiu um ar entediado. Acompanhou o olhar do leiloeiro e balançou a cabeça.
— Quem se dispõe a dar mais? — disse o leiloeiro. Sabia agora que a sala já dera o que tinha de dar. — Dou-lhe uma... Dou-lhe duas... — Pam! — Arrematado pelo cavalheiro. E eu acredito sinceramente que ele merece uma salva de palmas.
Deu início às palmas e os presentes o acompanharam, embora preferissem que a moça tivesse levado a melhor.
O gordo ergueu-se algumas polegadas e voltou a sentar-se. Não havia em seu rosto lustroso nenhum sinal de agradecimento aos aplausos, e seus olhos fixavam-se no leiloeiro.
— E agora temos de cumprir a formalidade de perguntar ao cavalheiro qual é o Campo que ele prefere. (Risos). Cavalheiro, o senhor escolhe o Campo Superior ou o Campo Inferior?
O tom do leiloeiro era irônico. A pergunta era ociosa.
— Campo Inferior.
Houve um momento de silêncio constrangedor no apinhado salão de fumar. E logo se seguiram os comentários à meia-voz. Nenhuma pergunta foi feita. Era óbvio que o homem devia escolher o Campo Superior. As condições atmosféricas eram ideais. O Queen Elizabeth vinha desenvolvendo pelo menos trinta nós. Estaria o homem a par de alguma coisa? Teria pago por alguma informação na ponte de comando? Haveria alguma tempestade à vista? Algum defeito nas máquinas?
O leiloeiro martelou na mesa, pedindo silêncio.
— Queira me perdoar, cavalheiro — disse ele — mas o senhor escolheu mesmo o Campo Inferior?
— Sim.
O leiloeiro tornou a martelar.
— Nesse caso, senhoras e senhores, comecemos agora a leiloar o Campo Superior. Minha senhora — voltou-se com uma curvatura para a moça de cor-de-rosa — quer ter a gentileza de fazer o primeiro lance?
Bond virou-se para Tiffany.
— Que coisa esquisita — disse ele. — É extraordinário. O mar está calmo como um lago. — Deu de ombros. — A única resposta é que eles devem estar informados de alguma coisa.
— A questão era desprovida de interesse, no fim de contas.
— Alguém deve ter dito alguma coisa àqueles dois. — Girou a cabeça e, depois, despreocupadamente, passeou o olhar pelos dois indivíduos. — Parece que eles estão interessadíssimos na gente.
Tiffany olhou por cima do ombro.
— Não estão olhando pra cá, não — disse ela. — A impressão que eu tenho é que são dois palermas. O grisalho tem um ar de idiota e o gordo está chupando o polegar. Dois malucos. Acho que nem sabem o que arremataram. Trocaram as bolas.
— Chupando o polegar? — perguntou Bond. Passou a mão pelo cabelo, distraidamente, uma vaga lembrança a verrumar-lhe o cérebro.
Talvez, se ela lhe tivesse permitido seguir o fio de seus pensamentos, ele tivesse dado no alvo. Mas ela colocou a mão sobre a dele e, aproximando-se, roçou-lhe o rosto com os cabelos.
— Esqueça isso, James — disse ela. — E não pense tanto naqueles dois imbecis. — Os olhos dela ardiam e exigiam. — Chega deste lugar. Leve-me a outra parte.
Sem se dizerem mais uma palavra, ergueram-se, afastaram-se da mesa e saíram da sala barulhenta, caminhando em direção à escada. Começaram a descer e, quando chegaram ao meio, o braço de Bond circundou a cintura da moça, e ela deitou a cabeça no ombro dele.
Chegaram à porta do camarote de Tiffany, mas ela deu meia volta e arrastou Bond pelo corredor comprido, macio e rangente.
— Eu quero que seja na sua casa, James — disse ela.
Bond só voltou a falar depois de ter fechado a porta de seu camarote com um pontapé e de se terem abraçado no meio daquele quartinho maravilhosamente reservado e anônimo. E dizendo, com ternura, "Meu amor" pôs uma das mãos sobre os cabelos dela de modo a manter-lhe a boca sob a sua.
Algum tempo depois, sua outra mão desceu até o fecho-relâmpago do vestido, por trás, e a moça, sem interromper o abraço, deixou cair o vestido e disse, ofegante, entre beijos:
— Quero tudo, James. Tudo o que você já fez com uma mulher. Agora.
Agora mesmo.
E Bond inclinou-se, envolveu-lhe as coxas com um braço, levantou-a e deitou-a suavemente no soalho.
24 - A morte é permanente
A ÚLTIMA COISA de que Bond se lembrou antes de soar a campainha do telefone foi de Tiffany debruçada sobre ele, na cama, beijando-o e dizendo-lhe: "Não durma sobre o lado esquerdo, meu amor. É ruim para o coração.
Pode parar de bater. Vire-se". E, obediente, ele se virava. E, quando a porta bateu de leve, ele estava dormindo de novo, embalado pela voz da moça, pela pulsação do Atlântico e pelo macio balanço do navio.
Depois, a campainha impertinente soou e tornou a soar no camarote escuro. Bond praguejou, estendeu o braço para o telefone, e uma voz disse: — Desculpe-me incomodá-lo, senhor. Aqui é o telegrafista, Acaba de chegar uma mensagem em código para o senhor, com um prefixo en clair "Urgentíssimo". Quer que leia pelo telefone ou envie pelo mensageiro?
— Envie pelo mensageiro, pode ser? — disse Bond. — Muito obrigado.
E que diabo queriam agora? Toda a beleza, todo o ardor, toda a exaltação da paixão amorosa foram postas de lado quando ele acendeu a lâmpada, pulou da cama e, balançando a cabeça, a fim de afastar o torpor, deu dois passos para o chuveiro.
Durante um bom minuto deixou que a água caísse sobre si. Depois, enxugou-se com a toalha, apanhou do chão as calças e a camisa e vestiu-as.
Houve uma pancada na porta. Bond recebeu o telegrama, sentou-se à escrivaninha, acendeu um cigarro e entregou-se ferozmente ao trabalho. E, à medida que os grupos paulatinamente se dissolviam em palavras, seus olhos se apertavam e a pele se lhe arrepiava no corpo.
O telegrama, passado pelo Chefe do Pessoal, dizia:
Primeiro vg busca clandestina escritório Saye revelou telegrama do QE endereçado ABC assinado Winter comunicando presença sua e Case a bordo solicitando instruções pt Resposta endereçada Winter assinado ABC ordena eliminação de Case vg preço vinte mil dólares pt Segundo vg consideramos Rufus B. Saye é ABC que é mais ou menos equivalente pronúncia suas iniciais em francês pt Terceiro vg possivelmente alarmado sinais de busca Saye voou Paris ontem e agora informa Polinter estar em Dakar pt Isto parece confirmar nossas suspeitas que diamantes provêm minas Serra Leoa daí contrabandeados fronteira Guiné Francesa pt Suspeitamos fortemente elemento clínica dentária de Sierra International em observação pt Quarto vg Canberra Raf espera você Boscombe Down para voo imediato amanhã noite a Serra Leoa assinado CDP.
Bond gelou na cadeira. De supetão, acudiu ao seu espírito o mais sinistro verso de toda a poesia: "Enganam-se os que me evitam. Quando voam de mim, eu sou as asas".
Então alguém da quadrilha de Spang estava a bordo e viajava com eles. Quem? Onde?
A mão agarrou o telefone: — Miss Case, por favor.
Ouviu o aparelho ao pé da cama dela produzir um estalido e em seguida disparar 'a primeira campainhada. A segunda. A terceira. Mais uma só. Bond colocou o receptor de volta no gancho e enfiou pelo corredor até o camarote de Tiffany. Nada. Vazio. A cama arrumada. As luzes acesas. Mas a bolsinha dela estava no tapete e os objetos espalhados ao redor. Tinha entrado no camarote. O homem se escondera atrás da porta. Talvez tivesse aplicado uma cacetada. E depois?
As vigias estavam fechadas. Examinou o banheiro. Nada.
Bond parou no meio do camarote. Seu cérebro estava frio como gelo. O que ele, Bond, teria feito? Antes de matá-la, tê-la-ia interrogado, descoberto o que ela sabia, o que fazia, quem era o homem que a acompanhava. Tê-la-ia levado depois para o camarote em que ele viajava a fim de poder agir sem ser perturbado. Se o encontrassem arrastando-a pelo corredor, bastaria piscar um olho e balançar a cabeça: "Bebeu muita champanha esta noite. Não, não precisa, muito obrigado, eu me arranjo". Mas, qual era o camarote? E havia quanto tempo ele a tinha levado?
Bond consultou o relógio quando ia no corredor. Três horas. Ela devia ter saído da cama dele pouco depois das duas. Devia telefonar para a ponte de comando? Dar alarma? Penosos instantes de explicações, suspeitas, obstáculos. "Meu caro senhor, isto parece incrível!" Tentativas para acalmá-lo. "Claro, senhor, faremos o que estiver ao nosso alcance". O olhar polido do funcionário, para quem tudo não passaria de embriaguez, ciúme e até mesmo de um meio de deter a marcha do navio e ganhar a aposta no Campo Inferior.
O Campo Inferior! Homem ao mar! O navio detido!
Bond fechou a porta de seu camarote e foi direto à Lista de Passageiros.
E por que não? Winter. Ei-lo aqui. A49. O convés de baixo. E então, de repente, o cérebro de Bond funcionou como um computador. Winter. Wint e Kidd. Os dois pistoleiros. Os encapuzados. Outra vez a lista de passageiros.
Kitteridge. No A49 também. O grisalho e o gordo do avião da BOAC na viagem de Londres a Nova York. "Meu grupo sanguíneo é F." A escolta secreta de Tiffany. E a descrição de Leiter. "Chamam-no Goela porque tem medo de viajar". "Um dia vai-se arrepender de não ter extraído aquela verruga". A verruga vermelha na primeira articulação do dedo que segurava o cão da arma apontada para Tingaling Bell. E Tiffany dizendo: "São dois palermas. O gordo está chupando o polegar!" E os dois, no salão de fumar, procurando ganhar dinheiro com a morte que haviam planejado. A mulher atirada ao mar. O alarma anônimo, no caso de passar o corpo despercebido pelo vigia da popa. O navio detido, a volta, a busca nas águas. E mais três mil libras para os bolsos dos assassinos.
Wint e Kidd. Os pistoleiros de Detroit.
Todo o carretel de filmes embaralhados desenovelou-se na mente de Bond no espaço de um segundo, e mesmo enquanto os esquadrinhava, ia ele abrindo a pasta e revolvendo o compartimento secreto à procura do silenciador. Como um autômato, retirou a Beretta do meio de suas coisas no fundo de um gavetão, examinou o pente e ajustou o silenciador à boca da arma. Simultaneamente, pesava as probabilidades e planejava os passos que devia dar.
Pegou a planta do navio que tinha vindo com o bilhete de passagem.
Esparramou-a à sua frente enquanto calçava as meias. A49. Exatamente debaixo de seu camarote. Haveria probabilidade de arrebentar a fechadura com um tiro e pegar os dois homens antes que eles o pegassem? Nenhuma, quase. Sem dúvida tinham fechado a porta com a chave e o trinco. Ou levar consigo alguns membros da tripulação, se pudesse persuadi-los do perigo que Tiffany corria? Enquanto ele tentasse convencê-los, os dois homens a atirariam pela vigia. E, quando, afinal, conseguissem entrar no camarote, Wint e Kidd estariam lendo calmamente ou jogando cartas e berrariam: — Que é que vocês querem aqui?
Bond meteu a arma nos cós das calças e com um violento puxão escancarou uma das duas vigias do camarote. Enfiou por ela os ombros e alegrou-se ao descobrir uma folga de uma ou duas-polegadas. Espichou o pescoço para baixo. Dois círculos mal iluminados, exatamente sob suas vigias. A que distância? Uns oito pés. A noite continuava parada, calma, tranquilizadora, e ele se achava no lado ensombrado do navio. Avistá-lo-iam da ponte volante? Estaria aberta alguma das vigias do A49?
Bond deixou-se cair novamente em seu camarote e arrancou os lençóis da cama. O nó de porco. Seria mais seguro. Mas teria de rasgar os lençóis e emendá-los para obter o comprimento necessário. Se tudo desse certo, teria de trazer alguns lençóis do A49 e deixar o camareiro intrigado com o desaparecimento. Se desse errado, tanto fazia.
Experimentou a "corda" com toda a força. Devia aguentar. Ao amarrar uma extremidade em volta da dobradiça da vigia, deu uma olhada no relógio.
Só doze minutos tinham passado desde que lera o telegrama. Demorara demais? Trincou os dentes, atirou a "corda" pelo costado do navio e introduziu a cabeça.
Não pense em nada. Não olhe para baixo. Não olhe para cima. Não se importe com os nós. Devagar, firme, uma mão, isto, a outra.
A brisa da noite tocava-o de leve e empurrava-o de encontro aos negros rebites de ferro, e lá embaixo soava o gemido cavo do mar. No alto, o vento zunia no cordame, e mais acima, no firmamento, as estrelas dançavam à volta dos mastros.
Os malditos, os bem-amados lençóis resistiriam? A vertigem o venceria?
Seus braços suportariam o peso? Não pense nisso. Não pense no imenso navio, no oceano faminto, nas quádruplas hélices gigantescas aguardando o momento de lhe retalhar o corpo. Você é um menino que está descendo da macieira. É tão fácil e seguro lá no pomar, com o relvado que apara a queda.
Bond expulsou da mente todos esses pensamentos. Olhou para as mãos e sentiu a aspereza da pintura contra os nós dos dedos. Os pés, sensíveis como antenas, tateavam em busca do primeiro contacto com a vigia.
Ali. Os dedos do pé direito haviam tocado o rebordo saliente. É preciso parar. É PRECISO ter paciência e deixar que o pé explore o terreno — a vigia aberta, presa pela grande tranqueta de latão; o contacto de fazenda por cima da meia: as cortinas cerradas. Agora podia continuar. Estava quase terminado.
Mais duas preensões na corda improvisada e o rosto estava à altura da vigia. Podia colocar uma das mãos na borda metálica do caixilho, subtraindo algum peso da alva corda retesada e dando merecido repouso a um braço e depois ao outro, deslocar a carga suportada pelos músculos, reunir as forças para soerguer-se vagarosamente, traspassar-se ao camarote e mergulhar, deitando a mão à arma.
Ficou à escuta, fitando o círculo da cortina balouçante, tentando esquecer que estava pendurado como um pêndulo, a meio costado do Queen Elizabeth, esforçando-se para não ouvir o marulho do oceano, lutando para abrandar a respiração ofegante e as marteladas do coração.
Do interior do cubículo vinha um resmungo indistinto. Depois, uma voz masculina proferiu algumas palavras e uma mulher gritou: — Não!
Seguiu-se um momento de silêncio, e logo uma bofetada. Sonora como um disparo de pistola, e isto lançou o corpo de Bond para o alto e para dentro como se ele tivesse sido arrastado por uma corda.
No momento mesmo em que mergulhava no círculo da vigia, perguntava-se onde iria bater, e instintivamente protegeu a cabeça com o braço esquerdo, enquanto o direito corria para a arma.
Foi cair sobre uma valise debaixo da vigia. Um estabanado salto mortal levou-o ao meio do camarote. Outra vez sobre seus pés, foi recuando, agachado, para o lado das vigias, a tensão branquejando os nós dos dedos da mão que segurava a arma e uma estreita linha branca circundando-lhe a boca cerrada.
Através das pálpebras entreabertas, os olhos cinzentos e gelados moviam-se de um lado para o outro. A arma, negra e cega, voltava-se para um ponto, no centro, entre os dois homens.
— Aqui estamos — disse Bond, erguendo-se vagarosamente.
Era a constatação de um fato. Ele tinha o controle da situação, e a boca de sua arma o confirmava.
— Quem chamou você aqui? — disse o gordo. — Você não entra nesta peça. — Havia na voz reservas latentes. Nada de pânico. Nem mesmo a dose normal de surpresa. — Veio completar a mesa para o jogo de cartas?
Estava sentado, em mangas de camisas, abotoado, de través para a penteadeira, e os olhos miúdos brilhavam na cara molhada. Dante dele, de costas para Bond, Tiffany Case estava sentada num tamborete estofado.
Vestia apenas uma calcinha cor-de-carne e tinha os joelhos presos entre as coxas do homem gordo. Voltara para Bond o rosto pálido entremeado de manchas vermelhas. Os olhos tinham uma expressão de desespero, como os de um animal apanhado numa armadilha, e a boca aberta traduzia incredulidade.
O grisalho jazia numa das camas. Tinha erguido o busto sobre um cotovelo e a outra mão na camisa, a meio caminho da arma guardada no boldrié preto debaixo do sovaco. Olhava para Bond sem demonstrar curiosidade e estampava aquele sorriso quadrado, vazio, da caixa postal. Do centro do sorriso ressaía um palito de madeira, que rompia os dentes fechados como a língua de uma cobra.
A arma de Bond assegurava o espaço neutro entre os dois homens.
Quando ele falou, a voz era baixa e tensa.
— Tiffany — disse Bond lenta e distintamente. — Ajoelhe-se. Afaste-se desse homem. Baixe a cabeça. Vá para o meio do quarto.
Não olhava para ela. Seus olhos continuavam a passear da cadeira para a cama, vigiando os dois homens. Agora ela estava longe dos dois alvos.
— Estou aqui, James.
A voz tremia de esperança e excitação.
— Levante-se e vá para o banheiro. Feche a porta. Entre na banheira e deite-se lá.
Moveu os olhos na direção dela para ver se era obedecido. Ela tinha-se erguido e o contemplava. Bond avistou a marca vermelha de uma mão na pele alva do corpo da moça. Ela obedeceu. Ouviu-se o clique da porta do banheiro ao fechar-se.
Agora ela estava a salvo das balas. E não presenciaria o que tinha de ser feito.
Mediavam umas cinco jardas entre os dois homens, e Bond refletiu que se eles sacassem com bastante rapidez estaria perdido. Com esse tipo de homens, na fração de segundo em que um fosse liquidado, o outro sacaria e dispararia. Conquanto sua arma fosse silenciosa, a ameaça era infinita. Mas, com o clarão da primeira bala a ameaça proviria do outro homem.
— Quarenta e oito, sessenta e cinco, oitenta e seis.
A variante do sinal convencionado do futebol americano —"uma das cinquenta combinações que deviam ter praticado juntos mil vezes — jorrou da boca do gordo. Simultaneamente, ele se atirou ao chão, e a mão foi direta ao cós da calça.
Num giro rápido, o homem que estava na cama puxou as pernas para o lado e para longe de Bond, de modo que seu corpo se reduziu a um alvo estreito, de que só se via a cabeça. A mão que estava sobre o peito se mexeu rápida.
— Paf.
A arma de Bond soltou um único gemido abafado. Um orifício azul abriu-se exatamente abaixo do cocuruto grisalho.
— Pum! — respondeu a pistola do morto, deflagrada pela última crispação do dedo, e a bala foi alojar-se na cama, debaixo do cadáver.
O homem gordo, deitado no soalho, deu um grito. Olhava para cima. na direção daquele olho preto e vazio que não se incomodava com ele, de forma alguma, e que só se interessava em localizar-lhe na pele o centímetro quadrado que abrigaria o próximo projétil.
O revólver de Wint só se tinha elevado até à altura dos joelhos de Bond e apontava em vão por entre suas pernas retesadas para a armação de ferro, pintada de branco, que estava atrás.
— Largue a arma.
O tapete abafou o ruído da queda da arma.
— Levante-se.
O gordo ergueu-se com dificuldade e fitou Bond nos olhos, como um tuberculoso fita seu lenço, em medrosa expectativa.
— Sente-se.
Houve um lampejo de alívio nos olhos submissos? Bond continuou tenso como um gato prestes a atacar.
O gordo voltou-se vagarosamente. Estendeu as mãos acima da cabeça, embora Bond não lhe tivesse exigido isso. Deu dois passos para a cadeira e lentamente virou-se como se fosse sentar-se.
Parou, contemplando Bond, e com naturalidade deixou cair as mãos ao longo do corpo. E as duas mãos, sossegadas, sacudiram-se para trás, a direita mais do que a esquerda. E então, de súbito, no movimento de retorno, o braço direito entesou-se, precipitou-se para a frente e a faca brilhou nas pontas dos dedos como uma chama branca.
— Paf.
A bala silenciosa e a faca muda cruzaram uma pela outra em pleno ar, e os olhos dos dois homens perturbaram-se simultaneamente quando as armas atingiram seus objetivos.
Mas a perturbação nos olhos do homem gordo converteu-se num reviramento do globo ocular quando ele caiu para trás, as mãos agarradas ao peito, enquanto os olhos de Bond pousaram sem curiosidade na mancha que se espalhava em sua camisa e no cabo chato da faca pendurada frouxamente nas dobras do pano.
Produziu-se um estardalhaço quando a cadeira se espatifou sob o peso do homem gordo. Seguiu-se um ruído roufenho e ouviu-se, por último, um baque surdo no soalho.
Bond olhou a cena uma vez e depois voltou-se para a vigia aberta.
Durante algum tempo ficou de costas para o quarto, o olhar fixo nas cortinas que se balançavam molemente. Sorveu o ar e escutou os maravilhosos sons marinhos do exterior, do mundo que ainda lhes pertencia, a ele e a Tiffany, mas não aos outros dois. Pouco a pouco, seu corpo e seus nervos tensos se relaxaram.
Instantes depois, puxou a faca que se lhe enfiara na camisa. Não olhou para ela. Apenas estirou o braço, afastou a cortina para um lado e atirou a faca pela vigia. Em seguida, ainda contemplando a noite quieta lá fora, prendeu o registro de segurança da Beretta e, com um braço que lhe pareceu de repente pesado como chumbo, introduziu de novo a arma no cós das calças.
Com certa relutância, deu meia volta e encarou a desordem reinante no camarote. Com ar pensativo, examinou tudo e, num gesto, inconsciente, enxugou as mãos nos lados das calças. Em seguida, caminhando cautelosamente até o banheiro, disse: "Tiffany, sou eu" numa voz cansada, deprimida, e abriu a porta.
Ela não o ouvira. Continuava deitada de bruços na banheira seca, as mãos sobre as orelhas. E quando ele a ergueu e tomou nos braços, ela ainda não acreditou no que via. Agarrou-se a ele e começou a tocar-lhe o rosto e o busto com as mãos para certificar-se de que era realidade.
Ele se retraiu quando ela lhe apalpou a costela cortada. Então ela afastou-se um pouco, examinou-lhe o rosto, depois o sangue que manchava seus dedos e por fim a camisa escarlate.
— Meu Deus! Você está ferido! — disse ela assustada; e, esquecendo seus pesadelos, arrancou-lhe a camisa, lavou-lhe a costela com água e sabão e amarrou-a com tiras da toalha cortada com a gilete de um dos homens mortos.
Não fez perguntas, nem mesmo quando Bond lhe trouxe as roupas que estavam espalhadas pelo soalho do camarote e lhe disse que não saísse enquanto ele não tivesse terminado de arrumar tudo e de apagar as impressões digitais de todos os objetos que ela havia tocado.
Ela apenas pousava nele os olhos brilhantes. E quando Bond a beijou nos lábios, continuou calada.
Bond deu-lhe um sorriso tranquilizador, saiu e fechou a porta do banheiro atrás de si. Pôs mãos à obra, fazendo cada coisa com grande determinação e parando antes de cada gesto a fim de imaginar o efeito que produziria diante dos olhos e do espírito dos detetives que subiriam a bordo em Southampton.
Primeiro amarrou um cinzeiro à sua camisa ensanguentada para torná-la pesada, aproximou-se da vigia e atirou o pacote o mais longe que pôde. Os smokings dos dois homens estavam pendurados atrás da porta. Tirou os lenços que estavam nos bolsinhos dos paletós, envolveu com eles as mãos e remexeu nos armários e cômodas até encontrar as camisas do grisalho.
Vestiu uma e ficou um momento no centro do camarote, meditando. Depois, cerrou os dentes e levantou o homem gordo até deixá-lo sentado, tirou-lhe a camisa, foi à vigia, sacou a Beretta, encostou a arma no orifício aberto na fazenda pelo tiro anterior e disparou outra bala no mesmo local. Agora havia uma nódoa de fumaça em volta do orifício para dar a impressão de suicídio.
Tornou a vestir a camisa no cadáver, limpou demoradamente a Beretta com o lenço, comprimiu os dedos da mão direita do morto sobre ela e, finalmente, ajustou a arma na mão do gordo, com o indicador no gatilho.
Após outra pausa no meio do quarto, retirou o smoking de Kidd do cabide e vestiu com ele o cadáver. Em seguida, arrastou o corpo até a vigia e, suando com o esforço, levantou-o e jogou-o ao mar.
Limpou as possíveis impressões digitais deixadas na vigia e interrompeu-se outra vez, tomando fôlego e inspecionando o cenário. Foi até a mesa de jogo, encostada à parede e com os objetos espalhados indicando que o jogo não fora concluído, e derrubou tudo, dispersando as cartas pelo tapete. Parou, refletiu mais um pouco, voltou ao cadáver de Wint, retirou-lhe do bolso traseiro da calça o rolo de cédulas e jogou-as entre as cartas.
O quadro era satisfatório, sem dúvida. Haveria o mistério da bala disparada na cama pelo moribundo Kidd, mas isso poderia ter sido parte da luta. Três balas tinham sido detonadas pela Beretta e havia três cartuchos no soalho. Duas das balas poderiam ter-se enterrado no corpo de Kidd que agora estava no Atlântico. Havia os dois lençóis que teria de roubar da segunda cama. A falta deles ficaria inexplicada. Talvez Wint houvesse enrolado neles o corpo de Kidd antes de empurrá-lo pela vigia. Isso se encaixava no remorso e no suicídio de Wint, posterior ao tiroteio motivado pelo desentendimento à mesa do jogo.
De qualquer maneira, refletiu Bond, o quadro se sustentaria até a chegada da polícia ao porto, mas nesse momento ele e Tiffany já estariam fora do navio e bastante longe, e o único vestígio deles no camarote seria a Beretta; e esta, como todas as outras armas pertencentes ao Serviço Secreto, não era numerada.
Soltou um suspiro e encolheu os ombros. Agora, restava apanhar os lençóis, conduzir Tiffany de volta ao seu camarote sem serem vistos, cortar a "corda" que se balançava na vigia, atirá-la ao mar com os pentes restantes da Beretta e o coldre vazio e, por fim, dormir à vontade com o corpo adorado de Tiffany enroscado no seu para sempre.
Para sempre?
Ao atravessar o camarote a caminho do banheiro, Bond encontrou os olhos vazios do cadáver no soalho.
E os olhos do homem cujo Grupo Sanguíneo fora F chamaram-no e lhe disseram:
— Mr. Bond. Nada existe para sempre. Só a morte é permanente. Nada é eterno, exceto o que você fez comigo.
25 - Fecha-se o canal
AGORA NÃO HAVIA escorpião morando nas raízes do frondoso espinheiro erguido na junção dos três Estados africanos. O contrabandista das minas não tinha outra coisa que lhe absorvesse a atenção senão o desfile infindável de um regimento de formigas de correição entre as baixas muralhas que as guerreiras haviam construído em ambos os lados da estradinha de três polegadas.
A noite era quente e úmida, e o homem escondido sob o espinheiro estava impaciente e intranquilo. Era esta a última vez que comparecia ao encontro marcado. Já tinha decidido. Que arranjassem outro, se quisessem.
Naturalmente não iria fazer sujeira com eles. Comunicaria a intenção de deixá-los e lhes daria o motivo: o novo assistente admitido no serviço dentário parecia entender muito pouco de odontologia; decerto era espião: o olhar indagador, o bigodinho amarelo-avermelhado, as unhas bem tratadas.
Pegaram alguém? Tomaram-lhe o depoimento?
O contrabandista trocou de posição. Por onde diabo andava o helicóptero? Apanhou um punhado de terra e atirou-o no meio das formigas.
Elas se atarantaram um pouco, mas com a chegada das últimas fileiras, as que iam na frente se dispersaram pelas muralhas. Então as guerreiras pegaram febrilmente a cavar e transportar a terra, e em poucos minutos a estrada estava outra vez transitável.
O homem tirou o sapato e jogou-o com força sobre o regimento em marcha. Houve outro curto instante de afobação. Depois, as formigas lançaram-se sobre as mortas e as devoraram. O caminho estava novamente desimpedido e o negro rio continuou a fluir.
O homem soltou uma praga em africaans e calçou o sapato. Filhas duma égua. Iam ver uma coisa. Acocorando-se e suspendendo um braço para se proteger contra os espinhos, saiu pisando pela estrada das formigas. Isso lhes serviria de lição.
Ao surgir sob o luar, o homem já tinha esquecido o ódio que dedicava a tudo quanto fosse negro e virou a cabeça para a banda do norte. Graças!
Rodeou o espinheiro para ir buscar as lanternas e o pacote dos diamantes guardados nas caixas de ferramentas.
A uma milha dali, sob a copa de um arbusto, o poderoso ouvido de ferro do detector de som já parará de investigar, e o operador, que vinha transmitindo os dados aos três homens agrupados ao lado do caminhão militar, informou: — Trinta milhas. Velocidade: cento e vinte. Altura: novecentos pés.
Bond consultou o relógio.
— Tudo indica que o encontro está marcado para a meia-noite,_na lua cheia — disse ele. — O nosso homem está uns dez minutos atrasado.
— Parece que o senhor tem razão — concordou o oficial da guarnição de Freetown, a seu lado, e voltou-se para o terceiro homem. — Cabo. Veja se não tem nenhum metal aparecendo na rede de camuflagem. Com este luar, é preciso ter cuidado.
O caminhão estava coberto pelo arbusto, à beira de uma estrada de barro, que atravessava a planície na direção da aldeia de Telebadu, na Guiné Francesa. Naquela noite, haviam deixado as colinas logo que o radiolocalizador captara o barulho da motocicleta do dentista na estrada paralela. Tinham vindo com os faróis apagados e pararam quando cessou o ruído da motocicleta. Haviam estendido a rede de camuflagem sobre o caminhão, o detector de som e o canhão Bofors. E puseram-se a esperar, sem saberem ao certo quem ou o que viria ao encontro do dentista — outra motocicleta, um homem a cavalo, um jipe, um avião?
Ao ouvir no céu o longínquo matraquear, Bond soltou uma gargalhada.
— Helicóptero — disse ele. — Era só o que faltava. Preparem-se para tirar a rede quando pousar. Talvez a gente tenha de dar um tiro de advertência. O detector está ligado?
— Está, sim — respondeu o cabo que operava o aparelho. — O nosso amigo está chegando. Poderão vê-lo num minuto. O senhor está vendo aquelas luzes acolá? Devem ser do campo de pouso.
Bond passeou o olhar pelos quatro feixes de luz e, depois, contemplou o imenso céu africano.
Então aí vinha o último de todos, o derradeiro elemento da quadrilha e também o primeiro. O homem que havia visto ligeiramente em Hatton Garden. O número um da turma de Spang, cuja cotação era tão alta em Washington. O único, excetuando o inofensivo e até simpático Shady Tree, que Bond ainda não fora obrigado a matar ou — pensou no botequim de Spectreville e nos dois homens de Detroit — quase. Não que tivesse desejado matar esses indivíduos. A missão que M lhe confiara fora apenas de investigação. Mas, um a um, eles haviam tentado contra sua vida e a de seus amigos. A violência fora o primeiro, não o último recurso deles.
Violência e crueldade, as armas escolhidas. Os dois homens do Chevrolet em Las Vegas, que tinham disparado contra ele e ferido Ernie Cureo. Os dois sujeitos do Jaguar, que haviam espancado Ernie e tinham sido os primeiros a sacar os revólveres quando começara a luta. Seraffimo Spang, que mandara torturá-lo, disparara contra ele e Tiffany e procurara esmagá-los na estrada de ferro. Wint e Kidd, que haviam supliciado Tingaling Bell, Bond e Tiffany Case. E, dos sete, matara cinco — não porque gostasse de matar, mas porque alguém tinha de fazê-lo. Tivera a seu lado a sorte e três bons amigos, Félix, Ernie e Tiffany. E os malvados tinham perecido.
Agora chegava a último dos malvados, o homem que planejara a sua morte e a de Tiffany, o homem que, segundo M, arquitetara o contrabando dos diamantes, montara o canal de escoamento e o vinha dirigindo com eficiência e mão de ferro através dos anos.
Ao telefone, para Boscombe Down, M falara pouco e com certa aspereza na voz. Usara a linha do Ministério da Aeronáutica, poucos minutos antes que o Canberra decolasse para Freetown. Bond recebera o telefonema do gabinete do comandante da base, tendo nos ouvidos o grito estridente das turbinas do Canberra.
— Satisfeito de tê-lo de volta são e salvo.
— Muito obrigado, senhor.
— Que estória é essa que os vespertinos noticiaram acerca de um duplo homicídio no Queen Elizabeth?
Havia algo mais do que suspeita na voz de M.
— Eram os dois pistoleiros da quadrilha. Viajavam sob os nomes de Winter e Kitteridge. Meu camareiro desconfia que eles se desentenderam quando jogavam baralho.
— Acha que a suposição do camareiro é correta?
— É possível. Houve uma pausa.
— E os policiais também pensam assim?
— Não vi nenhum deles.
— Vou falar com Vallance.
— Ótimo — disse Bond, sabendo que essa era a maneira de M dizer que, caso Bond tivesse liquidado os dois homens, tomaria providências para que o agente e o Serviço Secreto não fossem mencionados no inquérito.
— Bem, de qualquer modo — disse M — aqueles dois eram pouco importantes. Esse Jack Spang, ou Rufus B. Saye ou ABC, ou que nome tenha, esse eu quero que você agarre. Ao que parece, ele vai agora até o extremo do canal. Vai fechá-lo. Talvez matando o que encontrar pela frente. O ponto final é o dentista. Veja se consegue pegar os dois. Faz coisa de uma semana que destaquei 2804 para trabalhar ao lado do dentista. O pessoal de Freetown acha que já se pode agir. Mas eu quero encerrar este caso e ver você de novo em seu verdadeiro posto. Esse negócio foi uma trapalhada dos diabos. Não me agradou desde o princípio. E se, afinal, conseguimos chegar ao ponto em que estamos agora, foi mais uma questão de sorte do que de boa organização.
— Concordo com o senhor — disse Bond.
— E essa moça, Case? — perguntou M. — Conversei com Vallance. Ele não deseja processá-la, a menos que você insista.
Teria M carregado um pouco no tom de indiferença?
Bond procurou evitar uma resposta muito persuasiva.
— Ela foi de grande ajuda — disse ele, esperançoso.
— Talvez a gente possa resolver quando eu apresentar meu relatório final.
— E onde está ela agora?
O negro receptor começava a ficar escorregadio na mão de Bond.
— Está a caminho de Londres, num Daimler de aluguel. Vou colocá-la no meu apartamento. Quero dizer, no quarto vago. É muito boa dona de casa.
Ela se arranjará até que eu volte. É uma boa moça, estou certo disso.
Puxou o lenço do bolso e enxugou o suor do rosto.
— Sem dúvida — disse M. Não havia ironia em sua voz.
— Está bem, então. Boa sorte. — Houve uma pausa. — Tome cuidado.
E... — a voz no outro extremo da linha tornou-se subitamente áspera — não pense que não estou satisfeito com os resultados até agora obtidos. Foram além do programa, naturalmente, mas você parece que topou muito bem a parada desse pessoal. Até logo, James.
— Até logo, senhor.
Bond levantou a vista para o céu recamado de estrelas e pensou em M e Tiffany, esperando que agora fosse mesmo o fim e que fosse rápido e tranquilo, e que logo estivesse em casa.
De pé, empunhando a quarta lanterna, o contrabandista das minas esperava. Lá vinha o helicóptero. Cortando a trajetória da lua. Como sempre, o barulho era infernal. Outro risco de que ia livrar-se.
Baixava lentamente. Agora pairava a uns vinte pés de altura. A mão apontou na janela e piscou A. O homem no chão piscou, em resposta, B e c.
As lâminas do rotor diminuíram a velocidade e, suavemente, o gigantesco inseto de aço pousou no chão.
O pó assentou. O contrabandista retirou a mão dos olhos e ajudou o piloto a descer a escadinha. Usava capacete de voo e óculos de proteção.
Extraordinário. E parecia mais alto do que o alemão. O contrabandista sentiu uma picada na espinha. Quem era esse? Aproximou-se devagar.
— Trouxe?
Dois olhos frios, sob negras sobrancelhas retas, cintilaram por trás dos óculos. Ocultavam-se quando o homem moveu a cabeça e o luar incidiu sobre o vidro. Agora eram dois círculos brancos reluzentes no meio do negro e luzidio capacete de couro.
— Trouxe — disse, nervoso, o homem das minas. — Mas onde está o alemão?
— Não virá mais. — Os dois círculos brancos cegavam o contrabandista.
— Eu sou ABC. Vim fechar o canal.
A voz era americana. Enérgica, seca, inflexível.
— Oh!
Maquinalmente, a mão do contrabandista enfiou-se na abertura da camisa. Apanhou o embrulho úmido e entregou-o ao piloto como se fosse uma oferenda de paz. À semelhança do escorpião, um mês antes, o homem das minas pressentia a pedra erguida sobre sua cabeça.
— Ajude-me a encher o tanque.
Era a voz do feitor dando ordens ao escravo. Mas o contrabandista apressou-se a obedecer.
Fizeram o serviço em silêncio. Ao terminar, voltaram ao chão. O cérebro do contrabandista trabalhava furiosamente. Ele se esforçava por adotar a voz de um associado, a voz de alguém que estivesse a par dos negócios e exercesse a mesma autoridade.
Olhou com atenção para a nesga de treva cor-de-anil onde se achava o piloto com a mão sobre a escada.. — Estive pensando bem e acho que...
A voz estacou de supetão, a boca abriu-se espavorida e deixou escapar um ruído que era uma mescla de rosnado e uivo.
A arma na mão do piloto gaguejou três vezes. O contrabandista emitiu um "Oh" numa voz servil, caiu de costas no chão, fez um esforço para se soerguer e imobilizou-se.
— Fique onde está. — A voz ressoou na planície, transmitida pelo amplificador. — Você está cercado.
Ouviu-se o ruído de um motor que se punha em funcionamento.
O piloto não procurou saber de onde vinha a voz. Pulou para a escada. A porta da carlinga fechou-se com uma pancada e zumbiu o arranque automático. O motor começou a trabalhar, as lâminas do rotor giraram, pouco a pouco foram ganhando velocidade até que se transformaram em dois redemoinhos prateados. Então, com uma sacudidela, o helicóptero elevou-se verticalmente no ar.
Em terra, entre os arbustos, o caminhão freou e Bond saltou para a sela de aço do Bofors.
— Pra cima, cabo — gritou ele para o homem que manobrava a alavanca de suspensão. Baixou os olhos para a alça de mira quando a boca da arma se ergueu para a lua. Com a mão, puxou a alavanca do seletor de fogo, tirando-a da marca de segurança e colocando-a em "Fogo". — Esquerda, dez.
— Eu alimentarei.
O oficial ao lado de Bond tinha nas mãos dois depósitos de obuses pintados de amarelo.
Os pés de Bond firmaram-se nos pedais do gatilho. O helicóptero estava no centro da alça de mira.
— Firme — disse ele calmamente.
— Bumpa.
O obus reluzente rodou no alto a uma velocidade apenas menor do que a do som. Baixo e à esquerda. O cabo girou delicadamente as duas alavancas.
— Bumpa.
O obus deu a volta por cima do helicóptero. Bond inclinou-se para a frente e puxou a alavanca do seletor para "Fogo Automático". A mão relutava. Agora a morte era inevitável. Mais uma vez ele tinha de tomar essa decisão.
— Bumpa... bumpa... bumpa... bumpa... bumpa... O fogo vermelho espargiu-se no céu. O helicóptero continuou a avançar para a lua e depois rumou para o norte.
— Bumpa... bumpa...
Houve um espocar de luz amarela perto do rotor da cauda e um estrondo de explosão distante.
— Acertou — disse o oficial, pegando o binóculo. — O rotor da cauda está perdido — disse ele. E logo, agitado: — Puxa! Parece que toda a cabina está girando com o rotor principal! O piloto está atolado.
— Mais algum? — perguntou Bond, mantendo na mira o helicóptero em chamas.
— Não, senhor — disse o oficial. — Seria bom se conseguíssemos pegá-
lo vivo. Mas parece... é, sim, já perdeu o controle. Vem caindo de ponta.
Deve haver alguma coisa com as lâminas do rotor principal. Lá vem ele.
Bond levantou a vista e resguardou os olhos contra a claridade intensa.
— Sim. Lá vem ele. A cem pés, o motor ribombando e as hélices girando inutilmente enquanto a embrulhada metálica despencava do céu em cambaleios e guinadas de ébrio.
Jack Spang. O homem que ordenara o assassínio de Bond. Que ordenara o assassínio de Tiffany. O homem que Bond vira apenas uma vez, durante alguns minutos, numa sala superaquecida em Hatton Garden. Mr. Rufus B.
Saye. Da House oi Diamonds. Vice-Presidente para a Europa. O homem que jogava golfe em Sunningdale e visitava Paris uma vez por mês. "Cidadão exemplar", M dissera dele. Mr. Spang, da quadrilha de Spang, que acabara de matar um homem — o último de quantos?
Bond imaginava a cena dentro da estreita carlinga. O homem dirigindo com uma das mãos e com a outra mexendo desesperadamente nos controles, enquanto observava a agulha do altímetro baixar vertiginosamente. Nos olhos, o rubro clarão do terror. As centenas de milhares de libras esterlinas em diamantes reduzidas a peso morto. A arma, que desde a infância, fora um poderoso braço direito, agora inútil.
— Vai pra cima do espinheiro — bradou o cabo acima da barulheira.
— Está perdido — disse o capitão, a meia voz.
Contemplaram as últimas guinadas; depois, suspenderam a respiração quando o aparelho, num bamboleio desenfreado, empinou o nariz e, como se o espinheiro fosse seu inimigo, deu um mergulho irado, descrevendo uma curva de vinte jardas, e arremessou-se com os rotores desgovernados contra os espinhos.
Antes de se extinguirem os ecos da colisão, ouviu-se um ribombo cavo e uma bola de fogo, projetada no ar, ofuscou o clarão da lua e banhou a planície inteira num fulgor alaranjado.
O capitão foi o primeiro a falar.
— Opa! — exclamou, tirando o binóculo e voltando-se para Bond. — Bem — disse ele, resignado — nada a fazer. Acho que só quando amanhecer a gente vai poder se aproximar. E só com o dia alto é que se poderá revolver os destroços. Mas pode esperar que daqui a pouco os soldados franceses da fronteira estarão aqui. Felizmente estamos em boas relações com eles. O governo é que passará um bocado de tempo discutindo com Dakar. — O oficial previa as idas e vindas da papelada e sentia-se ainda mais exausto.
Homem prosaico, achava que o dia já lhe trouxera boa dose de canseiras. — O senhor se incomoda se a gente tirar uma pestana?
— À vontade — disse Bond, e consultou o relógio. — É melhor irem pra debaixo do caminhão. Eu mesmo não estou com sono. Vou ficar de olho.
Pode ser que o fogo ameace se alastrar.
O oficial lançou um olhar inquiridor a esse homem calmo e enigmático, que chegara de repente ao Protetorado no meio de uma enxurrada de recomendações de "Prioridade Absoluta". Se a gente nunca precisasse dormir... Bom, isso nada tinha que ver com Freetown. Era coisa de Londres.
— Muito obrigado, então — disse o oficial e jogou-se debaixo do caminhão.
Bond retirou vagarosamente os pés dos pedais do gatilho e reclinou-se no encosto da sela de aço. Maquinalmente, com os olhos pousados ainda nas chamas saltitantes, enfiou as mãos nos bolsos do desbotado blusão caqui, que lhe haviam arranjado na base, puxou um cigarro, acendeu-o e tornou a guardar a cigarreira e o isqueiro.
Aí estava o fim do contrabando de diamantes. A última página da estória. Deu uma tragada e expeliu a fumaça com um suspiro longo e calmo.
Seis cadáveres a zero. Vitória folgada.
Ergueu a mão e limpou a testa suada. Atirou para trás a mecha de cabelo que lhe caía por cima da sobrancelha direita, e o clarão vermelho iluminou-lhe o rosto duro e magro e cintilou nos olhos cansados.
Esse imenso e rubro ponto final assinalava o desmoronamento da Quadrilha de Spang e o término do fabuloso contrabando de diamantes. Não o fim dos diamantes que se tostavam do interior do braseiro. Eles sobreviveriam e outra vez iriam percorrer o mundo. Descoloridos, talvez, mas indestrutíveis, tão permanentes como a morte.
E Bond recordou, instantaneamente, os olhos do cadáver cujo sangue havia pertencido ao grupo F. Tinham-se enganado. A morte é eterna. Mas os diamantes também são eternos.
Bond desceu do caminhão e pôs-se a andar lentamente em direção à fogueira crepitante. Levava um sorriso sombrio nos lábios. Toda essa estória acerca de morte e diamantes era demasiado solene. Para Bond, era apenas o fim de outra aventura. Outra aventura que bem podia ter por epitáfio as palavras de Tiffany Case. E reviu a boca ardente e irônica que lhe dizia: — Contada é uma coisa, vivida é outra.
20 - Chamas que saem do alto
O UNIFORME PRETO de homem-rã estava muito apertado. Doía no corpo todo. Por que cargas d'água Strangways não tinha se certificado de que o Almirantado tinha suas medidas corretas? E era muito escuro no fundo do mar, as correntes eram muito fortes, arrastavam-no para o banco de coral.
Era preciso nadar com todo o ímpeto para afastar-se dali. Mas agora algo lhe prendia o braço. Que diabo...?
— James! Pelo amor de Deus, James! — Ela apertou a boca ao ouvido dele. Desta vez ela beliscou-lhe o braço nu e ensanguentado com tanta força que, afinal, os olhos de Bond se abriram entre as pálpebras inchadas, e ele a contemplou do piso de madeira em que estava deitado e deu um suspiro de sobressalto.
Ela puxou-o para si, com medo que ele lhe escapasse outra vez. Ele pareceu entender e se revolveu, erguendo-se sobre as mãos e os joelhos, a cabeça pendida para o chão, como um animal ferido.
— Pode andar?
— Espere. — O murmúrio espesso que lhe atravessou os lábios arrebentados soou-lhe estranho aos ouvidos. Talvez ela não tivesse compreendido. — Espere — repetiu ele, enquanto sua mente passava a explorar o corpo para ver o que lhe tinha sobrado. Podia sentir os pés e as mãos. Podia mover a cabeça de um lado para outro. Podia ver as barras do luar nas pranchas de madeira. Pudera ouvir a moça. Devia estar inteiro, mas não queria mover-se. Sua força de vontade o tinha abandonado. Apenas desejava dormir. Ou talvez mesmo morrer. Qualquer coisa, contanto que mitigasse a dor que lhe avassalava o corpo todo, apunhalando-o, martelando-o, triturando-o — e matasse a lembrança das quatro botinas que o haviam golpeado e dos rosnados proferidos pelos dois vultos encapuzados.
Assim que pensou nos dois homens e em Mr. Spang, a vontade de viver retornou.
— Está bem — disse, e tornou a dizer para que ela compreendesse.
— Estamos na sala de espera — sussurrou a moça. — Temos de chegar ao extremo da estação. À esquerda, depois da porta. Está me ouvindo, James?
Ela estirou a mão e afagou-lhe os cabelos úmidos, viscosos, caídos na testa.
— Tenho de me arrastar — disse Bond. — Atrás de você.
A moça ergueu-se e abriu a porta. Bond trincou os dentes e saiu de rastros para a plataforma enluarada. E quando avistou a mancha escura no chão, a raiva e o desejo de vingança deram-lhe forças para se levantar.
Balançando a cabeça para não se afogar nas ondas negro-avermelhadas e amparado em Tiffany Case, cujo braço lhe envolvia a cintura, foi coxeando pelas tábuas até a rampa por onde desceram para o chão junto dos trilhos reluzentes.
E lá, no desvio, havia um vagonete.
Bond parou e olhou-o atentamente.
— Gasolina? — perguntou com ar vago.
Tiffany Case fez um gesto para uma fileira de latas encostadas no muro da estação. — Está cheio — sussurrou. — É usado na inspeção da linha. Eu sei colocá-lo em funcionamento. Já desloquei as agulhas. Depressa. Suba — soltou uma risadinha abafada. — Próxima parada: Rhyolite.
— Isso é que é uma garota — murmurou Bond. — Mas vai fazer um barulho danado quando esse troço começar a funcionar. Espere. Tenho uma ideia. Tem fósforos?
Metade da dor tinha desaparecido. Respirava forte quando deu as costas à moça e observou as silenciosas casas de madeira.
Ela estava usando calças compridas e blusa. Enfiou a mão no bolso das calças e entregou-lhe o isqueiro.
— O que é que vai fazer? — perguntou. — Já devíamos ter partido.
Mas Bond manquejou até as latas de gasolina e pôs-se a destampá-las e a arremessar o líquido sobre as paredes e a plataforma de madeira. Depois de esvaziar meia dúzia de latas, voltou para onde ela estava. — Ligue a bicha.
— Curvou-se com esforço e apanhou um jornal amassado ao lado dos trilhos. Ressoou o gemido raivoso do arranque automático, o motor de dois tempos pegou e começou a martelar.
Bond acendeu o isqueiro. O papel pegou fogo e Bond jogou-o entre as latas de gasolina. O espocar das labaredas quase o alcançou quando ele se lançou de costas ao estribo do vagonete. Mas então a. moça soltou a embreagem e o carro começou a deslizar pelos trilhos.
Houve um matracolejar e um sacolejo desagradável ao chegarem às agulhas; e depois, entrados na linha> principal, o velocímetro tremia marcando trinta milhas e os cabelos da moça flutuavam à frente de Bond como uma bandeira.
Bond voltou-se e contemplou a gigantesca floração de chamas que ia ficando para trás. Podia quase ouvir o crepitar das pranchas secas e os berros dos que despertavam. Se pelo menos o fogo pegasse Wint e Kidd, apanhasse a pintura do Pullman e se alastrasse pela lenha do tender do Cannonball e acabasse de uma vez com a caixa de brinquedos de Mr. Spang!
Mas ele e a moça tinham seus próprios problemas. Que horas eram?
Bond aspirou o ar fresco da noite e tentou colocar de novo a mente para trabalhar. A lua estava baixa. Quatro horas? Bond avançou com dificuldade pelo estribo até os dois assentos de encosto dobradiço e conseguiu sentar-se ao lado da moça.
Passou-lhe um braço em volta dos ombros, e ela voltou-se com um sorriso nos lábios. Levantando a voz acima do barulho da máquina e do matracolejar das rodas de ferro sobre os trilhos, ela falou: — Foi uma escapada e tanto. Parecia coisa de filme de Buster Keaton.
Como se sente? — Inspecionou o rosto combalido. — Você está massacrado, hein?
— Nenhuma fratura — disse Bond. — Acho que é isso que se entende por oitenta por cento. — Fez uma careta de dor. — É melhor ser tratado a pontapé do que a bala.
O rosto de Tiffany Case contraiu-se.
— E eu tive de ficar sentada lá e fingir que não ligava. Spang, ao meu lado, escutava e me observava. Depois, eles viram que você já estava nas últimas, atiraram você na sala de espera e todo mundo foi para a cama satisfeito da vida. Esperei uma hora em meu quarto e então resolvi agir. O
pior de tudo foi tentar despertar você.
Bond apertou-lhe os ombros com o braço.
— Direi o que penso de você quando estiver menos contundido. Mas, e você, Tiffany? Vai ficar em maus lençóis se eles nos pegarem. E quem são os dois encapuzados, Wint e Kidd? O que é que eles vão fazer agora?
Gostaria de vê-los de novo.
A moça olhou de viés para a feia equimose na boca de Bond.
— Nunca os vi sem os capuzes — confessou ela. — Suponho que eles são de Detroit. Pistoleiros. Encarregam-se dos trabalhos violentos e de missões especiais secretas. Virão em nosso encalço. Mas não se preocupe comigo. — Encarou-o de novo e seus olhos irradiavam felicidade. — A primeira coisa a fazer é levar essa joça a Rhyolite. Depois teremos de achar um carro e cruzar a fronteira com a Califórnia. Dinheiro não vai faltar-. Eu trouxe. Depois iremos a um médico, arranjaremos um banho e uma camisa nova pra você e pensaremos no que vamos fazer. Trouxe seu revólver. Foi encontrado por um dos rapazes que ajudaram a recolher os restos daqueles dois sujeitos que você arrasou no botequim. Apanhei a arma depois que Spang foi para a cama.
Ela desabotoou a blusa e enfiou a mão no cós das calças.
Bond recebeu a Beretta, e sentiu a quentura do corpo da moça no metal.
Removeu o pente. Sobravam três cartuchos, e um estava na agulha.
Recolocou o pente, fechou o registro de segurança e guardou a arma na cintura. Só então notou que estava sem paletó. Uma das mangas da camisa fora reduzida a um trapo. Arrancou-a e jogou-a fora. Apalpou o bolso traseiro direito da calça, à procura da cigarreira e não a encontrou. Mas no esquerdo estavam ainda o passaporte e a carteira de cédulas. Puxou-os do bolso. À luz da lua pôde ver que ambos estavam danificados. O dinheiro continuava na carteira. Pôs outra vez os objetos no bolso.
Durante algum tempo avançaram pela estrada. O silêncio da noite era cortado apenas pelo ronrom da máquina e pelo matraquear das rodas. Até onde a vista alcançava, havia somente uma interrupção da estreita linha prateada dos trilhos, assinalada pela alavanca de manobra das agulhas, no ponto em que um ramal enferrujado penetrava na massa escura dos montes Spectre à direita. À esquerda, descortinava-se o infindável chão do deserto em que o lampejo da aurora começava a debruar de azul as moitas de cactos contorcidos e, duas milhas além, o luar esparramava seu clarão cinza-chumbo sobre a Rodovia 95.
O vagonete cantarolava feliz nos trilhos. Os instrumentos de controle eram poucos: uma alavanca de freio e uma espécie de manche com um acelerador de cabo retorcido que a moça mantinha completamente aberto, com o velocímetro firme em trinta milhas. As milhas e os minutos passavam e, de vez em quando, Bond virava-se com dificuldade na cadeira e inspecionava o florescente rubor do céu às suas costas.
Fazia cerca de uma hora que tinham partido quando um leve zumbido, vibrando no ar ou nos trilhos, pôs Bond de sobreaviso. Novamente ele olhou por cima do ombro. Haveria um vago bruxoleio entre eles e o falso alvorecer da cidade em chamas?
Bond sentiu leve comichão no couro cabeludo.
— Veja se enxerga alguma coisa ali atrás.
A moça voltou-se. Depois, sem responder, diminuiu a marcha do carro que passou a deslizar suavemente.
Puseram-se à escuta. Sim. Era nos trilhos. Uma leve trepidação, nada mais do que um suspiro distante.
— É o Cannonball — disse Tiffany, categórica.
Deu um brusco repelão no acelerador, e o vagonete tornou a ganhar velocidade.
— Quanto pode fazer a locomotiva? — perguntou Bond.
— Talvez sessenta.
— E daqui pra Rhyolite?
— Trinta, mais ou menos.
Bond fez as contas em silêncio.
— Vai ser por um triz. Não é fácil dizer a que distância ela está de nós. E
esse treco pode dar mais alguma coisa?
— Que nada! — disse ela, — Nem que eu me chamasse Casey Jones em vez de Tiffany Case.
— Não tem importância — disse Bond. — Toca pra frente. Talvez ela vá prós ares com uma explosão.
— Ah, sim — disse ela. — Ou talvez a mola dê o prego, ou Spang se lembre que deixou a chave do motor em casa, no bolso da calça.
Viajaram mais quinze minutos em silêncio. Então, Bond divisou o grande farol da locomotiva varando a noite, a umas cinco milhas de distância, e as centelhas subindo pela chaminé. Os trilhos trepidavam e o que tinha sido um suspiro longínquo era agora um murmúrio baixo, ameaçador.
Talvez venha a faltar lenha, pensou Bond. Num impulso, ele perguntou despreocupadamente à moça:
— Será que temos bastante gasolina?
— Temos, sim — disse Tiffany. — Botei uma lata inteira. Não tem mostrador, mas esses motorzinhos giram a vida inteira com um galão.
Mal ela havia acabado de falar, e como se fizesse um comentário, o motorzinho deu uma tossidela de reprovação — cóf-cóf-cóf — e continuou a rodar alegremente.
— Ai, meu Deus! — exclamou Tiffany. — Ouviu isso? Bond ficou calado. Sentiu as mãos tornarem-se úmidas. Outra vez: cóf-cóf-cóf.
Tiffany Case acalentou delicadamente o acelerador.
— Ah, motorzinho querido — disse ela em tom de súplica. —' Vamos, motorzinho lindo, seja bonzinho, por favor...
— Cóf-cóf. Cóf-cóf. Chi. Cóf. Chiiiii...
E no instante seguinte estavam eles escorregando brandamente em silêncio. Vinte e cinco, dizia o velocímetro. Vinte... quinze... dez... cinco.
Um último e selvagem repelão no acelerador, um pontapé de Tiffany Case na armação do motor, e tinham parado.
— Porra! — disse Bond. Com esforço conseguiu saltar e manquejar até o tanque na traseira do vagonete. Tirou do bolso da calça o lenço ensanguentado, desatarraxou a tampa do funil e introduziu o lenço até tocar o fundo do tanque. Puxou-o para fora, apalpou-o e cheirou-o. Seco como um osso.
— Nada feito — disse ele para Tiffany. — Vamos pensar numa saída.
Olhou em volta. Nenhum abrigo à esquerda, e duas milhas pelo menos até à estrada de rodagem. À direita, as montanhas, talvez a um quarto de milha. Podiam chegar lá e esconder-se. Mas por quanto tempo? Contudo, era o melhor alvitre. O chão, sob seus pés, tremia. Esquadrinhou a linha férrea iluminada pelo olho incandescente, implacável. A que distância? Duas milhas? Spang enxergaria o vagonete? Teria tempo de parar? Haveria descarrilamento? Mas aí Bond lembrou-se do poderoso limpa-trilhos, que varreria da linha o vagonete como se fosse um feixe de palha.
— Vamos, Tiffany — bradou ele. — Temos de escalar as colinas.
Onde estava ela? Bond rodeou o carro. Ela vinha correndo pelo trecho da estrada que tinham pela frente. Aproximou-se arquejante.
— Há um desvio logo ali adiante — disse ela entre um ofego e outro. — Se a gente puder empurrar essa coisa até lá e se você puder manobrar as velhas agulhas, pode ser que a gente escape.
— Deus do céu! — disse Bond lentamente. E depois, com uma nota de pasmo na voz, acrescentou: — Há uma coisa melhor do que essa. Me ajude aqui — e, curvando-se, rilhou os dentes contra a dor e começou a empurrar o vagonete.
Recebido o impulso inicial, o carro moveu-se facilmente e eles precisavam apenas segui-lo e não deixar que parasse. Chegaram às agulhas, mas Bond continuou a empurrar até que pararam umas vinte jardas além.
— Que diabo é que você vai fazer? — arquejou Tiffany.
— Vamos pra cá — respondeu Bond, correndo aos tropeções para o ponto em que a chave enferrujada ressaltava ao lado dos trilhos. — Vamos colocar o Cannonball no desvio.
— Genial! — disse Tiffany Case com admiração. Puseram mãos à obra, e os músculos doloridos de Bond forcejavam por erguer a chave.
Lentamente o metal enferrujado começou a mover-se no leito onde jazia imóvel havia cinquenta anos, e milímetro a milímetro os trilhos mostraram uma fenda, que foi se alargando à medida que Bond puxava a alavanca.
Ao terminar, Bond caiu de joelhos no chão, com a cabeça dobrada para baixo, lutando contra a tontura que ameaçava dominá-lo.
Mas já então um feixe de luz iluminava o chão e Tiffany procurava arrastá-lo. Bond ergueu-se e voltou aos trambolhões para o vagonete. O ar estrondava e se enchia do plangente clangor do sino enquanto o flamejante cavalo de ferro galopava em direção a eles.
— Abaixe-se e não se mexa — bradou Bond por cima do barulho e lançou-a ao chão por trás do frágil biombo do vagonete. Depois, coxeou o mais rápido que pôde até a margem dos trilhos, puxou a arma, colocando-se de viés com o braço levantado como um duelista e voltou os olhos semicerrados para o gigantesco farol que avançava debaixo do vulcão de fogo e fumaça turbilhonantes.
Puxa, que monstro! Entraria ele na curva? Ou não respeitaria o desvio e os esmagaria? Lá vinha ele.
— Fittt.
Algo açoitou o chão ao lado de Bond e houve um clarão momentâneo na cabina.
— P-o-e-m-m-m.
Houve outro clarão, e a bala atingiu o trilho, gemendo na noite.
— Trac. Trac. Trac.
Agora era-lhe possível ouvir o revólver acima do trovejar da locomotiva.
Algo cantou em tom agudo no ouvido de Bond.
Bond não respondeu. Só quatro balas, e ele sabia quando devia disparar.
E então, a vinte jardas, a locomotiva entrou na curva e desembestou pelo desvio com uma guinada tão violenta que atirou as achas de lenha do alto do tender na direção de Bond.
Houve um grito roufenho de metal quando as bordas das rodas motrizes de seis pés de altura dobraram a curva, uma breve impressão de fumaça, chama e ruído de motor, e, depois, uma rápida visão da cabina e do vulto negro e prateado de Spang, de braços abertos e pernas estendidas, agarrando-se com uma das mãos ao costado da cabina e com a outra precipitando-se para a alavanca do acelerador.
A arma de Bond bradou suas quatro palavras. Houve um curto vislumbre de uma cara branca arremessada para o alto, e logo a enorme locomotiva preta e amarela distanciou-se, reboando rumo à muralha sombria dos montes Spectre, o feixe de luz do farol ceifando a treva e o sino dobrando tristemente dim-dão, dim-dão, dim-dão.
Bond guardou lentamente a Beretta no cós das calças, e ficou olhando o ataúde de Mr. Spang, enquanto a esteira de fumaça subia no ar e por um momento encobria a face da lua.
Tiffany veio correndo até onde ele estava, e lado a lado puseram-se a contemplar a bandeira de chamas que se elevava da alta chaminé e escutar as montanhas multiplicarem o atroar da locomotiva. A moça agarrou-lhe os braços quando o comboio deu uma guinada repentina e sumiu-se atrás de um esporão da pedra. E agora ouvia-se apenas um longínquo tamborilar nas montanhas e avistava-se um clarão vermelho que fazia tremular os penhascos enquanto Cannonball despencava no bojo da rocha.
E subitamente apareceu uma imensa língua de fogo, no mesmo instante em que se produziu tremendo choque metálico semelhante ao encontrão de um encouraçado num penedo. Debaixo de seus pés ressoou um estrépito abafado. Finalmente, um ribombo distante e profundo levantou-se das entranhas da terra, seguido por uma barragem de ecos os mais variados.
Então, findos todos os ruídos, zuniu, firme, o silêncio.
Bond soltou um suspiro profundo como se estivesse despertando. Aí estava o fim de um dos Spangs, de um dos enfatuados, cruéis, aparatosos, irrecuperáveis adultos que compunham a quadrilha dos Spangs. Fora um gangster teatral e vivera num ambiente de caixa de palco. Mas isso não alterava o fato de que pretendera liquidar Bond.
— Vamos embora daqui — disse Tiffany Case com sofre-guidão. — Para mim chega de Spectreville.
Bond sentiu a dor insinuar-se-lhe outra vez por todo o corpo à medida que passava a tensão. "Vamos" — respondeu, lacônico. Alegrava-o a ideia de voltar as costas à lembrança daquele rosto branco virado para cima, dentro da bela locomotiva negra em marcha. Estava ligeiramente tonto e duvidava se seria capaz de fazer o percurso.
— Temos de alcançar a estrada. Vai ser difícil. Mas vamos embora.
Levaram uma hora e meia para vencer as duas milhas e, no momento em que se prostrou no solo à margem da estrada de cimento, Bond estava delirante. Foi a moça que o conduziu até lá. Sem ela, ele não teria chegado.
Teria tropeçado no meio dos cactos, das pedras e da mica até que lhe faltassem as forças e o sol causticante se encarregasse de completar o serviço.
Agora ela lhe segurava a cabeça no regaço, falava-lhe docemente e lhe enxugava o suor da testa com a ponta da blusa.
E de vez em quando parava para examinar uma banda e outra da estrada retilínea de concreto, cujos horizontes já tremeluziam nas ondas de calor do amanhecer.
Uma hora depois, ela ergueu-se de um salto, enfiou a blusa por dentro das calças, correu e parou no meio da estrada. Um carro baixo e negro rompia a neblina esvoaçante que ocultava o distante vale de Las Vegas.
O carro estacou justamente diante dela. Um rosto adunco sob um topete desalinhado de cabelo cor de palha assomou à janela. Os penetrantes olhos cinzentos miraram-na de alto a baixo. Pousaram-se na figura do homem deitado no solo à margem da estrada e tornaram para a moça.
Então, com a amistosa fala arrastada dos texanos, o chofer rompeu o silêncio:
— Félix Leiter, senhorita. Às suas ordens. Em que posso servi-la nesta magnífica manhã?
21 - "Nada é tão apropinquante como a propinquidade"
—...E QUANDO CHEGUEI à cidade telefonei pra meu amigo Ernie Cureo. James sabe quem é. A mulher dele estava de ataque e Ernie no hospital. Corro pra lá e ele me passa o serviço e eu imagino que James pode precisar de reforços. Monto na minha égua preta cor de carvão e vou esquipando noite adentro e quando chego perto de Spectreville vejo o clarão no céu. Calculo então que Mr. Spang está preparando um churrasco. O
portão da cerca está aberto e eu resolvo tomar parte na festa. Bom, creiam-me vocês ou não, o fato é que não há vivalma no local, exceto um cara de perna arrebentada e contusões generalizadas, que vem se arrastando pela estrada, tentando dar o pira. E ele me dá a impressão de ser um arruaceiro de nome Frasso, de Detroit. Ernie Cureo tinha dito que era um dos caras que tinham levado James. Ele não estava em condições de negar isso e eu então manjei a situação toda e compreendi que Rhyolite era minha próxima parada. Aí eu digo pro nosso amigo que daí a pouco os bombeiros virão fazer companhia a ele, levo-o até o portão e deixo-o lá. E de uma hora para outra vejo uma guria no meio do deserto, com o ar de quem tinha sido disparada de um canhão. E aqui estamos todos. Agora é a vez de vocês contarem.
"Então tudo isto não é parte de um sonho e eu estou deitado no assento traseiro no Studillac e este é o colo de Tiffany debaixo da minha cabeça e aquele ali é Félix e nós estamos indo às carreiras pela estrada a caminho da segurança, de um médico, de um banho, de comida, de bebida e de um longo sono reparador." Bond mexeu-se e sentiu que a mão de Tiffany em seu cabelo dizia que tudo era real e tal como havia esperado. Imobilizou-se novamente e nada disse. Guardava cada momento para si e lhes escutava as vozes e o zunido dos pneus rolando pela estrada.
Ao fim da narrativa de Tiffany, Félix Leiter largou um assobio de estupefação.
— Puxa! — exclamou ele. — Então vocês dois abriram um rombo espetacular na quadrilha de Spang. Que diabo é que vai acontecer agora? Há muitos outros marimbondos na casa e isso de ficar zumbindo em volta não é do feitio deles. Eles vão exigir ação.
— Certo! — disse Tiffany. — Spang era membro da associação de Las Vegas, e esses camaradas são muito solidários. Há também Shady Tree e aqueles dois pistoleiros, Wint e Kidd. Só o diabo sabe quem são eles. Quanto mais cedo a gente cruzar a fronteira estadual, melhor. E depois, o que vamos fazer?
— Até aqui vai tudo em ordem — disse Félix Leiter. — Em dez minutos chegaremos a Beatty, depois pegaremos a 58 e passaremos nela uma meia hora. Em seguida, toparemos um longo trecho através do Vale da Morte e sobre as montanhas até Olancha, onde atingiremos a N.° 6. Poderíamos dar uma paradinha lá, levar James a um médico, comer alguma coisa e tomar um banho. Depois continuaremos na 6 até chegarmos a Los Angeles. Será muito puxado, mas poderemos estar em Los Angeles na hora do almoço. Aí podemos descansar um pouco e bolar algum plano. Meu palpite é que temos de tirar você e James do país o mais cedo possível. Os meninos tentarão pegar vocês dois de qualquer jeito, e se conseguirem eu não darei um níquel pela vida de nenhum dos dois. A melhor solução seria botá-los num avião para Nova York hoje de noite e despachá-los amanhã para a Inglaterra.
James pode embarcar lá.
— Acho que é razoável — disse a moça. — Mas, afinal, quem é esse Bond? O que é que ele faz? É um detetive ou coisa semelhante?
— Acho melhor que você mesma pergunte a ele — Bond ouviu Leiter dizer cautelosamente. — Mas eu, se fosse você, não me preocuparia com isso. Ele cuidará de você.
Bond sorriu para si mesmo e, no longo silêncio que se seguiu, caiu num sono intranquilo que durou até o momento em que atravessaram a Califórnia e o carro parou defronte de um portãozinho com a placa "Otis Fairplay, Médico".
E depois, enfaixado e pintado com mercúrio-cromo, banhado e barbeado, com um suculento café matinal no estômago, Bond voltou ao carro e ao mundo. Tiffany readquirira o velho ar irônico e intratável e Bond revelava-se útil na espionagem dos patrulheiros rodoviários, enquanto Leiter avançava a oitenta milhas pela interminável estrada estonteante, rumo à longínqua linha de nuvens que escondiam as High Sierras.
Mais tarde rolavam tranquilamente ao longo de Sunset Boulevard, ladeado pelas palmeiras e pelos gramados verdejantes. O Studillac coberto de poeira destoava no meio das cintilantes Corvettes e Jaguars. Finalmente, ao anoitecer, estavam sentados no bar escuro e refrigerado do Beverly Hills Hotel. Havia novas maletas no saguão, roupas novas adquiridas em Hollywood, e até mesmo o rosto de Bond, marcado de cicatrizes da luta, poderiam indicar que tinham terminado o trabalho nos estúdios.
Havia um telefone em cima da mesa, ao lado dos martinis. Félix Leiter acabava de falar com Nova York pela quarta vez desde que haviam chegado.
— Bom, está tudo arranjado — disse ele, desligando o telefone. — Meus colegas do escritório conseguiram passagens no Elizabeth. Adiou a partida por causa de uma greve nas docas. Sai amanhã de noite, às oito. Eles.irão ao encontro de vocês de manhã em La Guardiã, com as passagens, e vocês serão levados para bordo de tarde. Pegaram o resto de suas coisas no Astor, James. Uma pasta e os teus célebres tacos de golfe. E Washington oferece um passaporte a Tiffany. Haverá um homem do Departamento de Estado no aeroporto. Vocês terão que assinar uns formulários. Consegui que um dos meus antigos colegas da CIA arranjasse a coisa. Os vespertinos fizeram uni bruto estardalhaço com a estória. "Cidade Morta Desaparece" e outras manchetes desse tipo. Mas parece que ainda não descobriram nosso amigo Spang e os nomes de vocês não figuram no noticiário. Meu pessoal diz que não há nada com vocês na polícia, mas um de nossos informantes secretos diz que as quadrilhas estão à procura de vocês e espalharam por toda parte uma descrição de ambos. Com a promessa de dez mil. Assim, é melhor mesmo dar no pé o mais cedo possível. É aconselhável irem para bordo separadamente. Tomem o maior cuidado, vão para os camarotes e não saiam de lá. Vai haver o diabo quando eles chegarem ao fundo daquela velha mina.
Isso fará pelo menos três cadáveres a zero, e esse tipo de escore não é do agrado deles.
— Pinkerton é uma verdadeira máquina — disse Bond, com admiração.
— Mas ficarei satisfeito quando estivermos longe daqui. Eu pensava que os seus gangsters eram um bando de italianos untuosos, que se empanturravam de pizza e cerveja a semana toda e no sábado assaltavam uma garagem ou uma farmácia para arranjarem dinheiro para as corridas. Mas não há dúvida que eles incluem um bocado de violência na folha de pagamentos.
Tiffany Case riu zombeteiramente.
— Você precisa mandar examinar essa cabeça — disse ela, categórica.
— Se sairmos inteirinhos do Lizzie será um verdadeiro milagre. Por aí você pode ter uma ideia de como eles são. Se não fosse aqui o nosso Capitão Gancho-de-Aço, não sei o que seria de nós. Untuosos! Pois sim!
Félix Leiter soltou uma risadinha.
— Calma, pombinhos — disse ele, consultando o relógio. — Temos de partir. Preciso voltar a Las Vegas hoje de noite e começar a procurar o esqueleto do nosso Shy Smile. E vocês têm de pegar o avião. Poderão continuar a arenga a vinte mil pés de altura. De lá a perspectiva é mais interessante. É possível até que terminem como amigos. Lembrem-se do que se diz por aí. — Fez um aceno para o garçom. — Nada é tão apropinquante como a propinquidade.
Leiter levou-os ao aeroporto e deixou-os lá. Bond sentiu um nó na garganta quando o vulto magro saiu coxeando para o carro depois de ter sido efusivamente abraçado por Tiffany Case.
— Você pode dizer que tem um amigo de verdade — disse a moça ao ver Leiter bater a porta e ouvir o estrondo do escape enquanto o carro partia de volta ao deserto.
— Sim — disse Bond. — Félix é cem por cento.
O luar arrancou cintilações do gancho de aço quando Leiter acenou um último adeus. Depois, a poeira assentou na estrada e soou a voz de ferro do alto-falante: "Trans-World Airline, Voo 93. Embarque no Portão N.° 5 para Chicago e Nova York. Todos a bordo, por favor." Eles abriram caminho através das portas de vidro e deram os primeiros passos de sua longa viagem para Londres.
O novo Super-G Constellation roncou por cima do continente envolto em sombras, e Bond, deitado em seu confortável beliche, esperando que o sono lhe tomasse conta do corpo dolorido, pensava em Tiffany, que dormia no beliche de baixo, e no estágio em que se encontrava sua missão.
Pensou no lindo rosto adormecido sobre a mão aberta, inocente e indefeso, esvaecidos o desdém dos olhos cinzentos e rasos e a curva irônica dos cantos da boca ardente. Bond sabia que estava bem perto de apaixonar-se. Mas, e ela? Até onde ia aquela rebelião masculina gerada certa noite em São Francisco, quando os homens lhe invadiram o quarto e a ofenderam?
Chegariam a adolescente e a mulher a transpor a barricada que haviam começado a construir naquela noite contra todos os homens do mundo?
Romperia ela a concha que os anos de solidão e retraimento tornavam cada vez mais rija?
Bond recordou aqueles momentos das últimas vinte e quatro horas em que conhecera a resposta, momentos em que uma jovem arrebatada e terna surgira feliz, sem a máscara agressiva que usava entre os gangsters, no contrabando, no cassino, na mesa de vinte-e-um, e lhe dissera: — Toma-me pela mão. Abre a porta e caminharemos de mãos dadas no dia claro. Não te preocupes. Acertarei meu passo pelo teu. Sempre estive a teu lado em pensamento, mas tu não vieste e passei a vida escutando outra cadência.
Sim, pensou ele. Tudo correrá bem, por esse lado. Mas estava preparado para as consequências? Uma vez que a tomasse pela mão, seria para sempre.
Estaria no papel do médico, do psicanalista, a quem a paciente transfere seu amor e sua confiança, enquanto se liberta da doença. Não poderia haver maior crueldade do que soltar-lhe a mão depois de a ter tomado nas suas.
Estava preparado para as repercussões que esse ato teria em sua vida e em sua profissão?
Bond mexeu-se no beliche e descartou-se do problema. Era muito cedo ainda para enfrentá-lo. Estava indo muito depressa. Mais devagar. Cada coisa a seu tempo. E obstinadamente arquivou a questão, dirigindo os pensamentos para M e para a missão que lhe cumpria concluir antes de perder tempo com sua vida particular.
Bem, uma parte da serpente estava esmagada. A cabeça ou o rabo?
Difícil dizer, mas Bond tendia a julgar que Jack Spang e o misterioso ABC
eram os verdadeiros manipuladores do contrabando de diamantes e que Seraffimo se incumbia da receptação. Seraffimo podia ser substituído.
Tiffany podia ser dispensada. Shady Tree, a quem ela poderia implicar no contrabando, teria de ficar oculto até que a tormenta — se é que Bond era realmente um prenuncio de tempestade — se desencadeasse. Mas nada havia que pudesse implicar Jack Spang ou a House of Diamonds, e a única pista para ABC era o telefone londrino, cujo número Bond trataria de obter da moça o mais cedo possível. Mas este, e todo mecanismo dos contados a ele relacionados, seria alterado logo depois que todos os fatos da deserção de Tiffany e da fuga de Bond fossem comunicados a Londres, presumivelmente por Shady Tree. Assim, tudo isto, refletiu Bond, colocava Jack Spang e, através dele, ABC como seu próximo alvo. O que tinha a fazer de imediato, concluiu Bond antes de se abandonar ao sono, era relatar toda a situação a M
assim que embarcasse no Queen Elizabeth. Daí por diante Londres tomaria conta do caso. Os homens de Vallance sairiam a campo. Bond não teria muito que fazer quando regressasse. Relatórios e mais relatórios a escrever.
A mesma velha rotina no escritório. E de noite haveria Tiffany no quarto atualmente desocupado de seu apartamento, numa transversal de Kings Road. Precisava mandar um telegrama para May a fim de que ela arrumasse as coisas. Vejamos... flores, sais de banho de Floris, lençóis limpos...
Dez horas depois de terem deixado Los Angeles, sobrevoaram La Guardiã e viraram para o mar a fim de preparar o pouso.
Eram oito horas da manhã de domingo e havia pouca gente no aeroporto, mas um funcionário interrompeu-lhes a caminhada quando seguiam pela pista alcatroada e os conduziu para uma entrada lateral, onde os esperavam um homem de Pinkerton e um representante do Departamento de Estado.
Enquanto conversavam, a bagagem foi-lhes trazida. Depois, levaram-nos para fora da estação de passageiros, onde os aguardava um elegante Pontiac marrom, com o motor em movimento e as persianas do vidro traseiro abaixadas.
Passaram ainda algumas horas de ócio no apartamento do homem de Pinkerton até que, por volta das quatro da tarde, mas com um quarto de hora de diferença entre eles, galgaram a prancha de embarque, penetraram no negro, majestoso e seguro ventre britânico do Queen Elizabeth e, por fim, encerraram-se em seus camarotes no convés M, com as portas trancadas para o mundo.
Mas, quando, em primeiro lugar, Tiffany Case e, depois, Bond puseram os pés na prancha de embarque, um doqueiro do Sindicato de Estivadores de Anastásia correu para a cabina telefônica do galpão da alfândega.
E três horas mais tarde dois homens de negócios americanos saltavam de um sedan negro à porta de um armazém das docas, passavam às pressas pelo serviço de imigração e pela alfândega e galgavam a prancha de embarque, quando os alto-falantes começavam a pedir aos visitantes que desembarcassem.
Um dos homens de negócios era ainda jovem, de feições delicadas e fios de cabelos embranquecidos aparecendo sob o Stetson recoberto por uma capa impermeável. O nome impresso na pasta que carregava era B.
Kitteridge. O outro era um gorducho grandalhão, com um brilho nervoso nos olhos miúdos por trás das lentes bifocais. Suava em bicas e constantemente enxugava o rosto com um lenço enorme. O nome no cartão pendurado na alça da pasta era W. Winter. Em baixo do nome, lia-se em tinta vermelha: MEU GRUPO SANGuÍNEO É F.
22 - Amor e molho bearnês
Às OITO HORAS em ponto, o prolongado e ressoante apito da sirena do Queen Elizabeth fez tremer a vidraça dos arranha-céus. Com grande rebuliço, os rebocadores arrastaram-no para o meio do rio, abrindo-lhe o caminho. Por fim, desenvolvendo cautelosamente cinco nós, o transatlântico pôs-se a descer o rio, cortando as águas remansosas.
Após a parada para desembarcar o prático no Farol de Ambrose, as quádruplas hélices fustigariam o mar, convertendo-o em creme de leite, e o Queen Elizabeth, com um estremecimento de alívio, começaria a fender o longo arco achatado, entre os paralelos 45 e 50, a caminho de Southampton.
Sentado no camarote, escutando o ranger do madeiramento e contemplando o lápis rolar suavemente em cima da penteadeira, entre a escova de cabelo e a borda de seu passaporte, Bond recordava os dias em que outra era a rota da embarcação, os dias em que ela ziguezagueava no Atlântico Sul, brincando de esconde-esconde com os ferozes cardumes de submarinos alemães, a caminho da Europa em chamas. Ainda era uma aventura, mas agora o Queen Elizabeth — protegido num casulo de radar, rádio e sondador de ecos — movia-se com as precauções de um potentado oriental entre escoltas e batedores e, no que dizia respeito a Bond, tédio e indigestão eram os únicos riscos da viagem.
Pegou o telefone e pediu para falar com Miss Case. Quando ela lhe ouviu a voz, rompeu num gemido teatral.
— A loba do mar odeia o mar — disse ela. — Ainda não saímos do rio e eu já estou enjoada.
— Não faz mal — disse Bond. — Não saia do camarote e tome dramamina e champanha. Vou passar uns dois ou três dias em repouso. Vou mandar chamar o médico e o massagista dos banhos turcos pra ver se junto de novo as peças. E de qualquer modo não faz mal nenhum que a gente passe a maior parte da viagem no camarote. É possível que nos tenham localizado em Nova York.
— Bom, se você promete telefonar todos os dias — disse Tiffany — e promete me levar àquela Veranda Grill logo que eu puder engolir um pouco de caviar, eu concordo. Está bem assim?
Bond soltou uma gargalhada.
— Já que você insiste, eu prometo — disse ele. — E agora, escute. Em troca, eu quero que você tente lembrar-se de tudo o que puder a respeito de ABC e do lado londrino de nosso negócio. Aquele número de telefone e o mais que você julgar importante. Logo que puder, eu lhe direi por que estou interessado nisso. Por enquanto você tem de confiar em mim. Combinado?
— Combinado — disse a moça com indiferença, como se toda essa fase de sua vida tivesse perdido o interesse; e, durante dez minutos, Bond inquiriu-a minuciosa, mas (exceto no que tocava a pormenores insignificantes) inutilmente, acerca das atividades de ABC.
Depois desligou o telefone, chamou o camareiro, encomendou o jantar e sentou-se para escrever o longo relatório que teria de transpor em código e despachar naquela mesma noite.
O rebocador conduziu tranquilamente o navio para a treva, e a cidadezinha de três mil e quinhentos habitantes preparou-se para viver os cinco dias da viagem, durante os quais poderiam registrar-se todas as ocorrências naturais em qualquer outra comunidade desse porte — furtos, brigas, seduções, bebedeiras, embustes, talvez um ou dois partos, a possibilidade de um suicídio e, em cem travessias, até mesmo um homicídio.
Quando o burgo de ferro começou a sulcar serenamente a imensidão do Atlântico e a brisa suave da noite zuniu e gemeu no topo do mastro, as antenas de rádio já estavam transmitindo a mensagem do operador de serviço ao ouvido atento de Portishead.
E o que o operador enviava, precisamente às dez horas da noite, E. S. T., era um telegrama endereçado a ABC, CUIDADOS HOUSE OF DIAMONDS, HATTON GARDEN, LONDRES, e
que dizia:
LOCALIZADOS PT CASO ASSUNTO EXIJA SOLUÇÃO DRÁSTICA ESSENCIAL VOCÊ FIXAR PREÇO PAGO EM DÓLARES. Assinado: WINTER.
Uma hora depois, enquanto o operador do Queen Elizabeth lamentava ter de transmitir quinhentos grupos de cinco letras dirigidos ao DIRETOR PRESIDENTE, EXPORTADORA UNIVERSAL, REGENTS PARK, LONDRES, o rádio de Portishead enviava uma breve mensagem a WINTER, PASSAGEIRO PRIMEIRA CLASSE QUEEN ELIZABETH, que dizia:
DESEJO SOLUÇÃO IMEDIATA PROBLEMA CASE PT PAGAREI VINTE MIL PT
CUIDAREI PESSOALMENTE OUTRO ASSUNTO CHEGADA LONDRES CONFIRME ABC.
O operador procurou Winter na lista de passageiros, meteu a mensagem num envelope e enviou-a a um camarote no convés A, abaixo do de Bond e da moça, onde os dois homens jogavam cartas em mangas de camisa.
Quando o mensageiro saiu do camarote, ouviu o gorducho dizer para o homem dos cabelos brancos: — Pois é, Kidd. Vinte mil. É pra valer!
Não foi senão no terceiro dia que Bond e Tiffany resolveram encontrar-se no Observation Lounge, para um coquetel, e mais tarde no Veranda Grill, para jantar. Ao meio-dia, a calmaria era total, e depois do almoço no camarote Bond recebera um ultimato em redondo cursivo feminino numa folha de bloco do navio: "Marque um encontro comigo hoje. Não falhe".
Imediatamente Bond pegara o telefone.
Estavam sedentos da companhia um do outro depois dos três dias de separação, mas as defesas de Tiffany estavam de pé quando ela se reuniu a ele na escura mesa de canto que Bond havia escolhido na cintilante sala semicircular, situada na proa.
— Que espécie de mesa é esta? — perguntou ela com sarcasmo. — Está com vergonha de mim? Então eu ponho o mais belo modelo dos costureiros de Hollywood e você me esconde como se eu fosse Miss Reno 1914? Quero me divertir nessa geringonça e você me bota num canto como se eu fosse contagiosa.
— É isso mesmo — disse Bond. — O que você quer é elevar a temperatura de outros homens.
— Que é que você espera que uma moça faça no Queen Elizabeth?
Pescar?
Bond riu. Acenou para o garçom e pediu vodca-martini seco com casca de limão.
— Eu podia te oferecer uma alternativa.
— Já sei — disse a moça. — Meu querido diário: estou na maravilhosa companhia de um inglês bonitão. O que me aflige é saber que ele anda atrás das jóias da minha família. Que devo fazer? Sua criada, desorientada. — Num movimento súbito, ela inclinou o busto para a frente e pousou a mão na do homem. — Escute aqui, mestre Bond — disse ela. — Estou felicíssima.
Adoro isso aqui. Adoro estar com você. E adoro esta mesinha escura onde ninguém pode me ver segurando sua mão. Não ligue pra minha conversa. É que eu não posso me conter de tão feliz. Não faça caso das minhas brincadeiras.
Ela vestia uma blusa de xantungue de seda creme e uma saia de algodão e lã preto-carvão. As cores neutras ressaltavam-lhe a tez café-au-lait. O minúsculo relógio Cartier quadrado, com a pulseira preta, era sua única jóia, e as unhas curtas da mão pequena e morena que Bond tinha entre as suas estavam sem esmalte. A luz do sol, refletida do exterior, refulgia no ouro pálido das largas ondas do cabelo, nas profundezas dos cinzentos olhos opalescentes e nos alvos dentes que cintilavam entre os lábios sensuais.
— Não — disse Bond. — Não farei caso, Tiffany. Tudo em você é esplêndido.
Ela o encarou nos olhos e ficou satisfeita. O garçom trouxe-lhes a bebida. Ela retirou a mão e observou-o ironicamente por cima da borda de seu copo.
— Agora eu quero saber umas coisinhas — disse ela. — Em primeiro lugar, o que é que você faz e para quem trabalha? A princípio, no hotel, pensei que você era um vigarista. Mas, não sei por quê, quando você foi embora, vi que não era. Acho que devia ter avisado ABC, e com isso teria evitado essa onda toda. Não avisei, e pronto! Vamos, James. Responda.
— Trabalho para o governo — disse Bond —, que quer acabar com esse contrabando de diamantes.
— Espécie de agente secreto?
— Funcionário público, apenas.
— Está bem. E o que é que você vai fazer comigo quando chegarmos a Londres? Trancafiar-me?
— Sim. No quarto desocupado de meu apartamento.
— Assim é melhor. Terei de me tornar súdita da Rainha como você?
Gostaria de ser súdita.
— Acho que podemos arranjar isso pra você.
— É casado? — Fez uma pausa. — Ou tem alguma ligação?
— Não. Um caso ou outro de vez em quando.
— Quer dizer então que você é um desses sujeitos fora de moda que gostam de dormir com mulher? Por que não se casou?
— Creio que porque eu acho que posso manobrar melhor a minha vida sozinho. A maioria dos casamentos não soma duas pessoas. Subtrai uma da outra.
Tiffany Case refletiu um pouco.
— Talvez você tenha razão — disse ela, afinal. — Mas depende do que se soma. Pode ser algo humano ou inumano. Ninguém é auto-suficiente.
— E você?
A moça não gostou da pergunta.
— Talvez eu esteja do lado do inumano — respondeu com rispidez. — E com que diabo de homem você queria que eu me casasse? Com Shady Tree?
— Pode ter havido muitos outros.
— Não houve — disse ela com raiva. — Você é capaz de achar que eu não devia ter me misturado com esses calhordas. Bem, talvez eu tenha dado o passo que não devia dar. — A chama de cólera se apagou e a moça assumiu a defensiva. — Isso acontece com certas pessoas, James. Acontece mesmo. E às vezes não é culpa delas.
James Bond estirou o braço e apertou a mão da moça.
— Eu sei, Tiffany — disse ele. — Félix me contou. É por isso que não perguntei nada. Não pense mais nisso, não. O que importa é o dia de hoje, aqui, agora. Não o dia de ontem. — Desviou o assunto. — Agora é a sua vez de me fornecer alguns fatos. Por exemplo, de onde é que vem esse nome Tiffany e que tal ser banqueira no Tiara? Como é que você chegou a cartear tão bem? Simplesmente espetacular a maneira como você tratava aquele baralho. Se pode fazer aquilo, pode fazer qualquer outra coisa.
— Não diga — replicou a moça com ironia. — Fazer o quê, por exemplo? Brincar de sapateira? E quanto ao nome Tiffany a explicação é simples. Quando eu nasci, papai Case ficou tão zangado por eu não ser menino que deu à minha mãe mil dólares e uma lata de talco comprada em Tiffany e foi embora de casa. Foi ser fuzileiro naval. Terminou morrendo em Iwo Jima. Então minha mãe me botou o nome de Tiffany Case e tratou de ganhar a vida pra nós duas. Começou com uma espelunca e umas garotas e com o tempo foi ficando mais ambiciosa. Talvez essa história não seja muito do seu agrado.
Ela lhe lançou um olhar meio defensivo, meio suplicante.
— Não me preocupa — disse Bond secamente. — Você não era uma das pequenas.
Ela deu de ombros.
— Um dia o lugar foi invadido pelos gangsters. — Interrompeu-se para beber o resto do martini. — E eu dei no pé, por minha conta. Passei pelos empregos comuns a todas as moças. Depois fui para Reno. Lá eles mantêm uma escola de jogo e eu dei duro. Curso completo. Dados, roleta e vinte-e-um. Pode-se ganhar bom dinheiro nos cassinos. Duzentos por semana. Os homens gostam quando as moças bancam o jogo e as mulheres se sentem mais confiantes. Acreditam que a gente vai se mostrar bondosa com elas.
Pensam estar entre irmãs. Quando são homens que bancam o jogo, elas se apavoram. Mas não pense que essa estória toda é assim tão engraçada.
Contada, é uma coisa; vivida, é outra. — Fez uma pausa e sorriu. — Tenha a palavra, agora. É a sua vez. Pague mais um trago e me diga que tipo de mulher você acha que soma com você.
Bond chamou o garçom. Acendeu um cigarro e voltou-se para Tiffany.
— Alguém que saiba fazer molho bearnês e amor — disse ele.
— Já sei! Qualquer bruxa velha que saiba cozinhar e deitar-se de costas.
— Ah, não. Ela precisa ter todas essas coisas que as mulheres geralmente têm. — Bond examinou-a. — Cabelo cor de ouro. Olhos cinzentos. Boca pecadora. Silhueta perfeita. E naturalmente tem de contar piadas engraçadas, vestir-se bem e jogar cartas. As prendas naturais.
— E você casaria com uma mulher assim, se a encontrasse?
— Não necessariamente — disse Bond. — Pra falar com franqueza, já sou quase casado. Com um homem cujo nome começa com M. Teria de me divorciar dele antes de casar com uma mulher. E não sei se isso me agradaria. Ela me obrigaria a passar canapés de mão em mão numa sala de visita em forma de L. E haveria aquelas chatérrimas discussões "Foi você — Não, foi você" que parecem combinar tão bem com todos os casamentos.
Não daria certo. No primeiro acesso de claustro-fobia, iria embora pro Japão ou pra qualquer outra parte.
— E filhos?
— Gostaria de ter alguns — disse Bond. — Mas só quando me aposentasse. De outra forma, não seria justo. Meu trabalho não é lá muito seguro. — Olhou para o copo e bebeu todo o martini. — E você, Tiffany? — perguntou, a fim de mudar de assunto.
— Acho que toda moça gostaria de chegar em casa e encontrar um chapéu na mesinha do corredor — disse Tiffany, melancólica. — O diabo é que eu nunca encontrei nada que prestasse debaixo do chapéu. Talvez não tenha procurado bastante ou não tenha procurado nos lugares certos. Você sabe como é: quando a gente entra na rotina não quer mais sair. Assim fiz eu no meio dos Spangs. Sabia sempre de onde era que vinha a comida. Fiz algumas economias. Mas uma moça não pode ter amigos naquele ambiente.
Ou bota uma placa "Proibida a Entrada" ou de uma hora pra outra se vê cercada de malandros. Mas acho que já estou farta de viver só. Conhece o refrão das coristas da Broadway? "É triste a trouxa de roupa que não tem uma camisa de homem".
Bond riu.
— Mas agora você está fora da rotina — disse ele e olhou-a zombeteiramente. — E Mr. Seraffimo? E aqueles dois quartos de dormir no Pullman, a ceia para dois com champanha...?
Antes que concluísse, ela levantou-se da mesa, os olhos vermelhos, e caminhou para fora do bar.
Bond se amaldiçoou. Colocou algum dinheiro sobre a conta e saiu correndo atrás dela. Foi encontrá-la quase no meio do tombadilho de passeio.
— Por favor, Tiffany, escute — começou ele.
Ela voltou-se e encarou-o.
— Como se pode ser tão mesquinho? — disse ela, e lágrimas iradas brilharam-lhe nos cílios. — Por que você tem de estragar tudo com uma observação ferina como aquela? Oh, James! — Em desespero virou-se para as janelas, procurando um lencinho na bolsa. Enxugou os olhos. — Você simplesmente não compreende.
Bond cingiu-a com um braço e puxou-a para si.
— Meu amor! — Sabia que nada senão o grande passo do amor físico curaria esses mal-entendidos, mas que era necessário ;ainda desperdiçar tempo e palavras. — Não tive a intenção de magoar você. Eu queria somente ter certeza. Aquela mesa posta para a ceia no trem me feriu muito mais do que o que aconteceu depois. Tinha de lhe fazer aquela pergunta.
Ela ergueu a vista, ainda em dúvida.
— Está falando sério? — perguntou, observando-lhe o rosto. — Quer dizer que você já me queria bem?
— Não seja boba — disse Bond, impaciente. — Então você não sabe nada de nada?
Ela afastou-se e contemplou pela janela o infindável mar azul e as gaivotas que acompanhavam esse navio extraordinariamente pródigo.
Depois de algum tempo, perguntou:
— Você já leu Alice no País das Maravilhas?
— Há muitos anos — disse Bond, surpreso. — Por quê?
— Há lá umas linhas que muitas vezes me vêm à memória — disse ela.
— "Oh Ratinho, conheces o caminho que conduz para fora deste poço de lágrimas? Estou muito cansada de nadar dentro dele, oh Ratinho". Lembra-se dessa passagem? Pois bem, eu pensava que você ia me mostrar a saída e, em vez disso, você me empurra pra dentro do poço. Por isso é que fiquei transtornada. — Ergueu a vista. — Mas acredito que você não teve intenção de me magoar.
Bond olhou-lhe a boca demoradamente e depois beijou-a nos lábios.
Ela não retribuiu e esquivou-se. Seus olhos sorriam de novo. Deu o braço a ele e voltou-se para as portas abertas que conduziam ao elevador.
— Me leve lá pra baixo — disse ela. — Preciso recompor a fachada e, além disso, quero me preparar com cuidado para agradar ao candidato. — Ficou um instante em silêncio e depois colou a boca no ouvido dele. — Talvez isso lhe interesse, James Bond — disse baixinho. — Nunca em minha vida fiz o que você chama "dormir com um homem". — Puxou-o pelo braço. — Agora vamos — disse bruscamente. — Afinal, já é hora de tomar um "quente doméstico". Suponho que isso faz parte da língua dos súditos que você está querendo que eu aprenda. Vocês, súditos, escrevem as coisas mais loucas nos banheiros.
Bond levou-a até o camarote dela, voltou para o seu e tomou um "quente salgado" na banheira, seguido de um "frio doméstico" no chuveiro. Depois, estirou-se na cama, recordando com um sorriso algumas das coisas que ela havia dito, e pensou nela, deitada na banheira, intrigada com a floresta de torneiras e imaginando que os ingleses eram loucos varridos.
Soou uma pancada na porta e o camareiro entrou com uma bandejinha que colocou em cima da mesa.
— Que diabo é isso? — perguntou Bond.
— Foi enviado pelo cozinheiro-chefe, senhor — respondeu o camareiro, retirando-se em seguida e fechando a porta do camarote.
Bond desceu da cama e foi examinar o conteúdo da bandeja. Não pôde deixar de rir. Havia uma garrafinha de Bollinger, um rescaldeiro com quatro talhadas de bife em canapés de torrada, e uma tijelinha de molho. Debaixo desta, uma nota escrita a lápis dizia: "Este molho bearnês foi criado por Miss T. Case sem minha assistência". Assinado: "O Chefe".
Bond encheu uma taça de champanha, espalhou um pouco de molho numa talhada de bife e mastigou atentamente. Depois foi ao telefone.
— Tiffany?
Ouviu o risinho abafado e divertido no outro extremo do fio.
— Bem, não há dúvida de que você faz um maravilhoso molho bearnês...
Repôs o telefone no gancho.
23 - O trabalho fica em segundo plano
MOMENTO INEBRIANTE NUM CASO amoroso é aquele em que, pela primeira vez, em público, num restaurante ou num teatro, o homem pousa a mão na coxa da mulher e ela, tomando-a nas suas, aperta-a contra si.
Os dois movimentos dizem tudo o que pode ser dito. Concluem todos os acordos. Firmam-se todos os pactos. E há um longo minuto de silêncio durante o qual o sangue canta nas veias.
Eram onze horas e havia poucas pessoas espalhadas nos cantos da Veranda Grill. O mar arfava baixinho sob o luar lá fora e o magnífico paquete arava a negra pradaria do Atlântico. À popa, apenas um levíssimo galope mostrava uma suave ondulação, as doze lentas pulsações por minuto de um oceano adormecido, aos dois seres aconchegados atrás do quebra-luz cor-de-rosa.
O garçom trouxe-lhes a conta, e suas mãos se separaram. Mas agora dispunham de todo o tempo do mundo e não precisavam afirmar seus sentimentos com palavras e contactos. Quando o garçom retirou os pratos, a moça fitou Bond com um sorriso de felicidade os dois encaminharam-se para a porta.
Entraram no elevador para o Tombadilho de Passeio.
— Que faremos agora, James? — perguntou Tiffany. — Gostaria de tomar mais uma café e um Stinger preparado com creme de menthe branco, enquanto estivéssemos escutando o leilão. Já ouvi falar tanto dele e bem que poderíamos ganhar uma fortuna.
— Está bem — disse Bond. — O que você desejar. — Tomou-a pelo braço e atravessaram vagarosamente a grande sala de estar, onde o víspora ia em meio, e o salão de baile, onde os músicos afinavam os instrumentos. — Mas não me obrigue a comprar nenhum número. É um jogo como os outros, e cinco por cento destinam-se à beneficência. Quase a mesma coisa que em Las Vegas. Mas é divertido quando há um bom leiloeiro. E dizem também que há muito dinheiro a bordo.
O salão de fumar estava quase deserto. Escolheram uma mesinha longe da plataforma onde o Comissário arrumava os apetrechos do leiloeiro, a caixa com os papeluchos numerados, o martelo, a garrafa de água.
— A casa está fraca — disse Tiffany ao sentarem-se no meio da floresta de cadeiras e mesas vazias. Mas, quando Bond fez o pedido ao garçom, as portas do cinema se abriram e cerca de cem pessoas ocuparam o salão de fumar.
O leiloeiro, um comerciante dos Midlands, pançudo e jovial, com um cravo vermelho na lapela do dinner jacket, bateu na mesa pedindo silêncio e anunciou que a previsão do Capitão para o percurso do dia seguinte era de 720 a 739 milhas, que qualquer distância abaixo de 720 era o Campo Inferior e acima de 739 era o Campo Superior.
— E agora, minhas senhoras e meus senhores, vejamos se é possível quebrar o recorde estabelecido nesta viagem, que atinge a cifra impressionante de 2.400 libras esterlinas. (Aplausos). ; Um camareiro ofereceu a caixa com os números dobrados à mulher de ar mais aristocrático do salão e depois entregou ao leiloeiro o papelzinho que ela havia sorteado.
— Bem, senhoras e senhores, temos aqui, para começar, um número excepcionalmente bom. 738. Exatamente no limite máximo, e desde que vejo aqui, esta noite, tantas caras novas (risos), creio que todos concordaremos em que o mar está singularmente calmo. Senhoras e senhores. Quanto me dão por 738? Digamos... 50 libras? Quem me dará 50
libras por este número de sorte? 20, foi o que o senhor falou, cavalheiro?
Bem, temos de partir de alguma oferta. Quem dá... 25? Muito obrigado, minha senhora. E 30. 40 lá adiante, sr. camareiro. E 45 do meu amigo, Mr.
Rothblatt. Muito obrigado, Charlie. Quem dá mais pelo n.° 738? 50. Muito grato, minha senhora. E agora, sim, voltamos ao ponto de partida (risos). 50.
Quem dá 55? Então ficamos em 50. Dou-lhe uma... Dou-lhe duas... — e o martelo erguido bateu na mesa.
— Ainda bem que temos um bom leiloeiro — disse Bond.
— O número era bom. E barato, se o tempo continuar como está e ninguém se jogar no mar. O Campo Superior custará uma bolada esta noite.
Todo mundo espera que o navio faça mais de 739 milhas nesse tempo.
— Essa bolada quer dizer quanto? — perguntou Tiffany.
— Duzentas libras. Talvez mais. Acho que os números normais serão leiloados por umas cem libras. O primeiro número é sempre mais barato do que os outros. O pessoal ainda está frio. A única esperteza que se pode demonstrar neste jogo é arrematar o primeiro número sorteado. Qualquer número pode ganhar, mas o primeiro custa menos.
Quando Bond acabou de falar, o segundo número era entregue por 90
libras a uma jovenzinha bonita e excitada, que era abertamente financiada por seu companheiro, um indivíduo grisalho e bem conservado que parecia a caricatura de um Don Juan do Esquive.
— Vamos, James. Arremate um número pra mim — disse Tiffany. — Você não sabe mesmo agradar a uma moça. Veja como aquele cavalheiro é gentil com sua pequena.
— Ele já passou da idade-limite — disse Bond. — Deve estar na casa dos sessenta. Até os quarenta, as pequenas não custam nada. Daí por diante, é preciso gastar dinheiro ou contar uma estória. Das duas coisas, a estória é que dói mais. — Sorriu, fitando-a nos olhos. — Mas eu ainda não cheguei aos quarenta.
— Deixe de presunção — disse a moça, olhando-o na boca. — Dizem que os homens maduros são os melhores amantes. Também, por outro lado, sei que você não é unha-de-fome. Aposto que não quer me presentear um número porque o jogo é ilegal nos navios de Sua Majestade.
— Até que é permitido além do limite de três milhas da costa — disse Bond. — Mesmo assim, a Cunard toma todas as precauções para não envolver o nome da companhia. Escute isto — e apanhou um cartão alaranjado que estava em cima da mesa. — "Leilão de Apostas nas Distâncias Diárias percorridas pelo Navio" — leu para a moça. — "Para os fins de direito, é de toda a conveniência reiterar a posição da Companhia em relação ao supradito Leilão. Não é desejo da Companhia que o encarregado do salão de fumar ou quaisquer outros membros da tripulação desempenhem papel ativo na organização das apostas nas milhas diárias percorridas pelo navio". — Bond levantou a vista. — Está vendo? — perguntou. — Seguro morreu de velho. E tem mais: "A Companhia sugere que os passageiros elejam entre si uma Comissão encarregada de formular e controlar as normas... O encarregado do salão de fumar poderá, se instado e se seus deveres o permitirem, prestar a assistência de que a Comissão venha a necessitar para o leiloamento dos números". Como são cautelosos — comentou Bond. — É a comissão que tem de quebrar os galhos que forem aparecendo. Escute mais isto aqui. É onde entra o problema. — Continuou a leitura: — "A Companhia chama especialmente a atenção de todos para os dispositivos das normas financeiras do Reino Unido, no tocante à negociabilidade dos cheques em esterlinos e à limitação da entrada de cambiais bancárias em esterlinos no Reino Unido".
Bond atirou o cartão em cima da mesa..— E por aí vai — disse ele e sorriu para Tiffany Case. — Assim, eu arremato o número que está sendo leiloado e você ganha duas mil libras. Um montão de cédulas e cheques em dólares e libras. O único meio de gastar essa dinheirama, supondo que os cheques tenham fundos, o que é duvidoso, seria contrabandeá-la debaixo dos suspensórios. E lá estaríamos nós outra vez passando muamba. Só que eu estaria do lado do diabo.
A moça não se impressionou.
— Havia um sujeito na quadrilha chamado Abadaba — disse ela. — Era um malandro fino que tinha resposta para tudo. Calculava as vantagens nas corridas, marcava as percentagens no cassino, enfim, era o crânio do grupo.
Era considerado "O Feiticeiro das Apostas". Teve o azar de ser liquidado por engano ao lado de Dutch Schultz — ajuntou ela à guisa de parêntese. — Você está me saindo outro Abadaba com essa lengalenga que não tem outra finalidade senão evitar de gastar dinheiro com uma pequena. Já vi tudo. — Encolheu os ombros, resignada. — Está bem. Mas pelo menos financie outro Stinger pra sua garota.
Bond chamou o garçom. E quando este se afastou, ela aproximou a cabeça do ouvido dele e disse baixinho. — Eu não quero mais, não. Beba você. Quero estar inteiramente sóbria esta noite. — Empertigou-se. — Mas o que é que está se passando aqui? — perguntou com impaciência. — Vamos, um pouco de ação.
— Aí vem ela — disse Bond.
O leiloeiro levantou a voz e toda a sala pediu silêncio.
— E agora, minhas senhoras e meus senhores — rugiu o leiloeiro — vamos à pergunta mais importante da noite. Quem vai me dar 100 libras pela escolha entre o Campo Superior e o Inferior? Todos sabemos o que isto significa... o direito de escolher o Campo Superior, que, inclino-me a crer, será da preferência geral esta noite (risos), em vista das excelentes condições atmosféricas reinantes lá fora. Então, quem abrirá com cem libras os lances para a escolha do Campo Superior ou Inferior?
— Muito obrigado, cavalheiro! E 110. 120 e 130. Muito obrigado, minha senhora.
— Cento e cinquenta — disse uma voz de homem, não muito distante da mesa de Bond e Tiffany.
— Cento e sessenta.
Desta vez era uma mulher. Monótona, a voz do homem gritou: — 170.
— Oitenta — disse alguém.
— Duzentas libras.
Algo fez com que Bond se voltasse e olhasse o homem que tinha falado.
Era um tipo grandalhão. A cara tinha a aparência lisa, brilhante e escorregadia de um olho de boi. Olhos miúdos, frios e escuros fitavam o estrado do leiloeiro através de imóveis lentes bifocais. Todo o pescoço do homem parecia estar por trás da cabeça. O suor havia emaranhado as algas negras e encaracoladas do cabelo. Enquanto Bond o observava, ele tirou os óculos, pegou um guardanapo e passou a enxugar o suor, com um movimento circular que começou no lado esquerdo do rosto, estendeu-se à nuca, onde a mão esquerda cedeu a vez à mão direita, e esta completou o circuito, atingindo os pingos do nariz.
— Duzentas e dez — disse alguém.
A queixada do homem bamboleou, a boca se descerrou, e ele disse, com nítido sotaque americano:
— Duzentas e vinte.
O que havia nesse indivíduo capaz de ferir uma corda na memória de Bond? O inglês examinou o rosto largo, a imaginação percorrendo todo o arquivo do cérebro, abrindo e fechando gavetas, uma após outra à procura de uma pista. A cara? A voz? Inglaterra? América?
Bond abandonou a busca e voltou a atenção para o outro homem à mesa.
Ainda aqui, a mesma necessidade urgente de reconhecer. As feições jovens e estranhamente delicadas sob os cabelos brancos e lisos. Os olhos castanhos e plácidos sob as longas pestanas. O efeito geral era de delicadeza, perturbada pelo nariz roliço montado na boca larga de lábios finos, agora aberta num sorriso estúpido e vazio como a fenda de uma caixa postal.
— Duzentas e cinquenta — disse o grandalhão mecanicamente.
Bond tornou a olhar para Tiffany.
— Já viu aqueles dois alguma vez? — perguntou ele, e ela notou-lhe a ruga de preocupação entre os olhos.
— Não — disse ela, categórica. — Nunca. Talvez venham do Brooklyn. Podem ser dois comerciantes de roupas feitas da Quinta Avenida. Por quê? Eles lhe dizem alguma coisa?
Bond olhou-os outra vez.
— Não — disse, em dúvida. — Não, acho que não.
Palmas estrugiram na sala. Radiante, o leiloeiro bateu na mesa.
— Senhoras e senhores — disse ele, triunfante. — Isto é realmente maravilhoso. Trezentas libras é o lance daquela encantadora senhora de esplêndido vestido cor-de-rosa (Cabeças viravam-se, pescoços esticavam-se, e Bond ouviu a pergunta: — Quem é ela? E agora, cavalheiro — o leiloeiro indicava a mesa do homem gordo — posso anunciar 325 libras?
— Trezentas e cinquenta — disse o gordo.
— Quatrocentas — ganiu a mulher de vestido cor-de-rosa.
— Quinhentas.
A voz era incolor, indiferente.
A moça de cor-de-rosa tagarelou irritada com seu acompanhante. O homem assumiu um ar entediado. Acompanhou o olhar do leiloeiro e balançou a cabeça.
— Quem se dispõe a dar mais? — disse o leiloeiro. Sabia agora que a sala já dera o que tinha de dar. — Dou-lhe uma... Dou-lhe duas... — Pam! — Arrematado pelo cavalheiro. E eu acredito sinceramente que ele merece uma salva de palmas.
Deu início às palmas e os presentes o acompanharam, embora preferissem que a moça tivesse levado a melhor.
O gordo ergueu-se algumas polegadas e voltou a sentar-se. Não havia em seu rosto lustroso nenhum sinal de agradecimento aos aplausos, e seus olhos fixavam-se no leiloeiro.
— E agora temos de cumprir a formalidade de perguntar ao cavalheiro qual é o Campo que ele prefere. (Risos). Cavalheiro, o senhor escolhe o Campo Superior ou o Campo Inferior?
O tom do leiloeiro era irônico. A pergunta era ociosa.
— Campo Inferior.
Houve um momento de silêncio constrangedor no apinhado salão de fumar. E logo se seguiram os comentários à meia-voz. Nenhuma pergunta foi feita. Era óbvio que o homem devia escolher o Campo Superior. As condições atmosféricas eram ideais. O Queen Elizabeth vinha desenvolvendo pelo menos trinta nós. Estaria o homem a par de alguma coisa? Teria pago por alguma informação na ponte de comando? Haveria alguma tempestade à vista? Algum defeito nas máquinas?
O leiloeiro martelou na mesa, pedindo silêncio.
— Queira me perdoar, cavalheiro — disse ele — mas o senhor escolheu mesmo o Campo Inferior?
— Sim.
O leiloeiro tornou a martelar.
— Nesse caso, senhoras e senhores, comecemos agora a leiloar o Campo Superior. Minha senhora — voltou-se com uma curvatura para a moça de cor-de-rosa — quer ter a gentileza de fazer o primeiro lance?
Bond virou-se para Tiffany.
— Que coisa esquisita — disse ele. — É extraordinário. O mar está calmo como um lago. — Deu de ombros. — A única resposta é que eles devem estar informados de alguma coisa.
— A questão era desprovida de interesse, no fim de contas.
— Alguém deve ter dito alguma coisa àqueles dois. — Girou a cabeça e, depois, despreocupadamente, passeou o olhar pelos dois indivíduos. — Parece que eles estão interessadíssimos na gente.
Tiffany olhou por cima do ombro.
— Não estão olhando pra cá, não — disse ela. — A impressão que eu tenho é que são dois palermas. O grisalho tem um ar de idiota e o gordo está chupando o polegar. Dois malucos. Acho que nem sabem o que arremataram. Trocaram as bolas.
— Chupando o polegar? — perguntou Bond. Passou a mão pelo cabelo, distraidamente, uma vaga lembrança a verrumar-lhe o cérebro.
Talvez, se ela lhe tivesse permitido seguir o fio de seus pensamentos, ele tivesse dado no alvo. Mas ela colocou a mão sobre a dele e, aproximando-se, roçou-lhe o rosto com os cabelos.
— Esqueça isso, James — disse ela. — E não pense tanto naqueles dois imbecis. — Os olhos dela ardiam e exigiam. — Chega deste lugar. Leve-me a outra parte.
Sem se dizerem mais uma palavra, ergueram-se, afastaram-se da mesa e saíram da sala barulhenta, caminhando em direção à escada. Começaram a descer e, quando chegaram ao meio, o braço de Bond circundou a cintura da moça, e ela deitou a cabeça no ombro dele.
Chegaram à porta do camarote de Tiffany, mas ela deu meia volta e arrastou Bond pelo corredor comprido, macio e rangente.
— Eu quero que seja na sua casa, James — disse ela.
Bond só voltou a falar depois de ter fechado a porta de seu camarote com um pontapé e de se terem abraçado no meio daquele quartinho maravilhosamente reservado e anônimo. E dizendo, com ternura, "Meu amor" pôs uma das mãos sobre os cabelos dela de modo a manter-lhe a boca sob a sua.
Algum tempo depois, sua outra mão desceu até o fecho-relâmpago do vestido, por trás, e a moça, sem interromper o abraço, deixou cair o vestido e disse, ofegante, entre beijos:
— Quero tudo, James. Tudo o que você já fez com uma mulher. Agora.
Agora mesmo.
E Bond inclinou-se, envolveu-lhe as coxas com um braço, levantou-a e deitou-a suavemente no soalho.
24 - A morte é permanente
A ÚLTIMA COISA de que Bond se lembrou antes de soar a campainha do telefone foi de Tiffany debruçada sobre ele, na cama, beijando-o e dizendo-lhe: "Não durma sobre o lado esquerdo, meu amor. É ruim para o coração.
Pode parar de bater. Vire-se". E, obediente, ele se virava. E, quando a porta bateu de leve, ele estava dormindo de novo, embalado pela voz da moça, pela pulsação do Atlântico e pelo macio balanço do navio.
Depois, a campainha impertinente soou e tornou a soar no camarote escuro. Bond praguejou, estendeu o braço para o telefone, e uma voz disse: — Desculpe-me incomodá-lo, senhor. Aqui é o telegrafista, Acaba de chegar uma mensagem em código para o senhor, com um prefixo en clair "Urgentíssimo". Quer que leia pelo telefone ou envie pelo mensageiro?
— Envie pelo mensageiro, pode ser? — disse Bond. — Muito obrigado.
E que diabo queriam agora? Toda a beleza, todo o ardor, toda a exaltação da paixão amorosa foram postas de lado quando ele acendeu a lâmpada, pulou da cama e, balançando a cabeça, a fim de afastar o torpor, deu dois passos para o chuveiro.
Durante um bom minuto deixou que a água caísse sobre si. Depois, enxugou-se com a toalha, apanhou do chão as calças e a camisa e vestiu-as.
Houve uma pancada na porta. Bond recebeu o telegrama, sentou-se à escrivaninha, acendeu um cigarro e entregou-se ferozmente ao trabalho. E, à medida que os grupos paulatinamente se dissolviam em palavras, seus olhos se apertavam e a pele se lhe arrepiava no corpo.
O telegrama, passado pelo Chefe do Pessoal, dizia:
Primeiro vg busca clandestina escritório Saye revelou telegrama do QE endereçado ABC assinado Winter comunicando presença sua e Case a bordo solicitando instruções pt Resposta endereçada Winter assinado ABC ordena eliminação de Case vg preço vinte mil dólares pt Segundo vg consideramos Rufus B. Saye é ABC que é mais ou menos equivalente pronúncia suas iniciais em francês pt Terceiro vg possivelmente alarmado sinais de busca Saye voou Paris ontem e agora informa Polinter estar em Dakar pt Isto parece confirmar nossas suspeitas que diamantes provêm minas Serra Leoa daí contrabandeados fronteira Guiné Francesa pt Suspeitamos fortemente elemento clínica dentária de Sierra International em observação pt Quarto vg Canberra Raf espera você Boscombe Down para voo imediato amanhã noite a Serra Leoa assinado CDP.
Bond gelou na cadeira. De supetão, acudiu ao seu espírito o mais sinistro verso de toda a poesia: "Enganam-se os que me evitam. Quando voam de mim, eu sou as asas".
Então alguém da quadrilha de Spang estava a bordo e viajava com eles. Quem? Onde?
A mão agarrou o telefone: — Miss Case, por favor.
Ouviu o aparelho ao pé da cama dela produzir um estalido e em seguida disparar 'a primeira campainhada. A segunda. A terceira. Mais uma só. Bond colocou o receptor de volta no gancho e enfiou pelo corredor até o camarote de Tiffany. Nada. Vazio. A cama arrumada. As luzes acesas. Mas a bolsinha dela estava no tapete e os objetos espalhados ao redor. Tinha entrado no camarote. O homem se escondera atrás da porta. Talvez tivesse aplicado uma cacetada. E depois?
As vigias estavam fechadas. Examinou o banheiro. Nada.
Bond parou no meio do camarote. Seu cérebro estava frio como gelo. O que ele, Bond, teria feito? Antes de matá-la, tê-la-ia interrogado, descoberto o que ela sabia, o que fazia, quem era o homem que a acompanhava. Tê-la-ia levado depois para o camarote em que ele viajava a fim de poder agir sem ser perturbado. Se o encontrassem arrastando-a pelo corredor, bastaria piscar um olho e balançar a cabeça: "Bebeu muita champanha esta noite. Não, não precisa, muito obrigado, eu me arranjo". Mas, qual era o camarote? E havia quanto tempo ele a tinha levado?
Bond consultou o relógio quando ia no corredor. Três horas. Ela devia ter saído da cama dele pouco depois das duas. Devia telefonar para a ponte de comando? Dar alarma? Penosos instantes de explicações, suspeitas, obstáculos. "Meu caro senhor, isto parece incrível!" Tentativas para acalmá-lo. "Claro, senhor, faremos o que estiver ao nosso alcance". O olhar polido do funcionário, para quem tudo não passaria de embriaguez, ciúme e até mesmo de um meio de deter a marcha do navio e ganhar a aposta no Campo Inferior.
O Campo Inferior! Homem ao mar! O navio detido!
Bond fechou a porta de seu camarote e foi direto à Lista de Passageiros.
E por que não? Winter. Ei-lo aqui. A49. O convés de baixo. E então, de repente, o cérebro de Bond funcionou como um computador. Winter. Wint e Kidd. Os dois pistoleiros. Os encapuzados. Outra vez a lista de passageiros.
Kitteridge. No A49 também. O grisalho e o gordo do avião da BOAC na viagem de Londres a Nova York. "Meu grupo sanguíneo é F." A escolta secreta de Tiffany. E a descrição de Leiter. "Chamam-no Goela porque tem medo de viajar". "Um dia vai-se arrepender de não ter extraído aquela verruga". A verruga vermelha na primeira articulação do dedo que segurava o cão da arma apontada para Tingaling Bell. E Tiffany dizendo: "São dois palermas. O gordo está chupando o polegar!" E os dois, no salão de fumar, procurando ganhar dinheiro com a morte que haviam planejado. A mulher atirada ao mar. O alarma anônimo, no caso de passar o corpo despercebido pelo vigia da popa. O navio detido, a volta, a busca nas águas. E mais três mil libras para os bolsos dos assassinos.
Wint e Kidd. Os pistoleiros de Detroit.
Todo o carretel de filmes embaralhados desenovelou-se na mente de Bond no espaço de um segundo, e mesmo enquanto os esquadrinhava, ia ele abrindo a pasta e revolvendo o compartimento secreto à procura do silenciador. Como um autômato, retirou a Beretta do meio de suas coisas no fundo de um gavetão, examinou o pente e ajustou o silenciador à boca da arma. Simultaneamente, pesava as probabilidades e planejava os passos que devia dar.
Pegou a planta do navio que tinha vindo com o bilhete de passagem.
Esparramou-a à sua frente enquanto calçava as meias. A49. Exatamente debaixo de seu camarote. Haveria probabilidade de arrebentar a fechadura com um tiro e pegar os dois homens antes que eles o pegassem? Nenhuma, quase. Sem dúvida tinham fechado a porta com a chave e o trinco. Ou levar consigo alguns membros da tripulação, se pudesse persuadi-los do perigo que Tiffany corria? Enquanto ele tentasse convencê-los, os dois homens a atirariam pela vigia. E, quando, afinal, conseguissem entrar no camarote, Wint e Kidd estariam lendo calmamente ou jogando cartas e berrariam: — Que é que vocês querem aqui?
Bond meteu a arma nos cós das calças e com um violento puxão escancarou uma das duas vigias do camarote. Enfiou por ela os ombros e alegrou-se ao descobrir uma folga de uma ou duas-polegadas. Espichou o pescoço para baixo. Dois círculos mal iluminados, exatamente sob suas vigias. A que distância? Uns oito pés. A noite continuava parada, calma, tranquilizadora, e ele se achava no lado ensombrado do navio. Avistá-lo-iam da ponte volante? Estaria aberta alguma das vigias do A49?
Bond deixou-se cair novamente em seu camarote e arrancou os lençóis da cama. O nó de porco. Seria mais seguro. Mas teria de rasgar os lençóis e emendá-los para obter o comprimento necessário. Se tudo desse certo, teria de trazer alguns lençóis do A49 e deixar o camareiro intrigado com o desaparecimento. Se desse errado, tanto fazia.
Experimentou a "corda" com toda a força. Devia aguentar. Ao amarrar uma extremidade em volta da dobradiça da vigia, deu uma olhada no relógio.
Só doze minutos tinham passado desde que lera o telegrama. Demorara demais? Trincou os dentes, atirou a "corda" pelo costado do navio e introduziu a cabeça.
Não pense em nada. Não olhe para baixo. Não olhe para cima. Não se importe com os nós. Devagar, firme, uma mão, isto, a outra.
A brisa da noite tocava-o de leve e empurrava-o de encontro aos negros rebites de ferro, e lá embaixo soava o gemido cavo do mar. No alto, o vento zunia no cordame, e mais acima, no firmamento, as estrelas dançavam à volta dos mastros.
Os malditos, os bem-amados lençóis resistiriam? A vertigem o venceria?
Seus braços suportariam o peso? Não pense nisso. Não pense no imenso navio, no oceano faminto, nas quádruplas hélices gigantescas aguardando o momento de lhe retalhar o corpo. Você é um menino que está descendo da macieira. É tão fácil e seguro lá no pomar, com o relvado que apara a queda.
Bond expulsou da mente todos esses pensamentos. Olhou para as mãos e sentiu a aspereza da pintura contra os nós dos dedos. Os pés, sensíveis como antenas, tateavam em busca do primeiro contacto com a vigia.
Ali. Os dedos do pé direito haviam tocado o rebordo saliente. É preciso parar. É PRECISO ter paciência e deixar que o pé explore o terreno — a vigia aberta, presa pela grande tranqueta de latão; o contacto de fazenda por cima da meia: as cortinas cerradas. Agora podia continuar. Estava quase terminado.
Mais duas preensões na corda improvisada e o rosto estava à altura da vigia. Podia colocar uma das mãos na borda metálica do caixilho, subtraindo algum peso da alva corda retesada e dando merecido repouso a um braço e depois ao outro, deslocar a carga suportada pelos músculos, reunir as forças para soerguer-se vagarosamente, traspassar-se ao camarote e mergulhar, deitando a mão à arma.
Ficou à escuta, fitando o círculo da cortina balouçante, tentando esquecer que estava pendurado como um pêndulo, a meio costado do Queen Elizabeth, esforçando-se para não ouvir o marulho do oceano, lutando para abrandar a respiração ofegante e as marteladas do coração.
Do interior do cubículo vinha um resmungo indistinto. Depois, uma voz masculina proferiu algumas palavras e uma mulher gritou: — Não!
Seguiu-se um momento de silêncio, e logo uma bofetada. Sonora como um disparo de pistola, e isto lançou o corpo de Bond para o alto e para dentro como se ele tivesse sido arrastado por uma corda.
No momento mesmo em que mergulhava no círculo da vigia, perguntava-se onde iria bater, e instintivamente protegeu a cabeça com o braço esquerdo, enquanto o direito corria para a arma.
Foi cair sobre uma valise debaixo da vigia. Um estabanado salto mortal levou-o ao meio do camarote. Outra vez sobre seus pés, foi recuando, agachado, para o lado das vigias, a tensão branquejando os nós dos dedos da mão que segurava a arma e uma estreita linha branca circundando-lhe a boca cerrada.
Através das pálpebras entreabertas, os olhos cinzentos e gelados moviam-se de um lado para o outro. A arma, negra e cega, voltava-se para um ponto, no centro, entre os dois homens.
— Aqui estamos — disse Bond, erguendo-se vagarosamente.
Era a constatação de um fato. Ele tinha o controle da situação, e a boca de sua arma o confirmava.
— Quem chamou você aqui? — disse o gordo. — Você não entra nesta peça. — Havia na voz reservas latentes. Nada de pânico. Nem mesmo a dose normal de surpresa. — Veio completar a mesa para o jogo de cartas?
Estava sentado, em mangas de camisas, abotoado, de través para a penteadeira, e os olhos miúdos brilhavam na cara molhada. Dante dele, de costas para Bond, Tiffany Case estava sentada num tamborete estofado.
Vestia apenas uma calcinha cor-de-carne e tinha os joelhos presos entre as coxas do homem gordo. Voltara para Bond o rosto pálido entremeado de manchas vermelhas. Os olhos tinham uma expressão de desespero, como os de um animal apanhado numa armadilha, e a boca aberta traduzia incredulidade.
O grisalho jazia numa das camas. Tinha erguido o busto sobre um cotovelo e a outra mão na camisa, a meio caminho da arma guardada no boldrié preto debaixo do sovaco. Olhava para Bond sem demonstrar curiosidade e estampava aquele sorriso quadrado, vazio, da caixa postal. Do centro do sorriso ressaía um palito de madeira, que rompia os dentes fechados como a língua de uma cobra.
A arma de Bond assegurava o espaço neutro entre os dois homens.
Quando ele falou, a voz era baixa e tensa.
— Tiffany — disse Bond lenta e distintamente. — Ajoelhe-se. Afaste-se desse homem. Baixe a cabeça. Vá para o meio do quarto.
Não olhava para ela. Seus olhos continuavam a passear da cadeira para a cama, vigiando os dois homens. Agora ela estava longe dos dois alvos.
— Estou aqui, James.
A voz tremia de esperança e excitação.
— Levante-se e vá para o banheiro. Feche a porta. Entre na banheira e deite-se lá.
Moveu os olhos na direção dela para ver se era obedecido. Ela tinha-se erguido e o contemplava. Bond avistou a marca vermelha de uma mão na pele alva do corpo da moça. Ela obedeceu. Ouviu-se o clique da porta do banheiro ao fechar-se.
Agora ela estava a salvo das balas. E não presenciaria o que tinha de ser feito.
Mediavam umas cinco jardas entre os dois homens, e Bond refletiu que se eles sacassem com bastante rapidez estaria perdido. Com esse tipo de homens, na fração de segundo em que um fosse liquidado, o outro sacaria e dispararia. Conquanto sua arma fosse silenciosa, a ameaça era infinita. Mas, com o clarão da primeira bala a ameaça proviria do outro homem.
— Quarenta e oito, sessenta e cinco, oitenta e seis.
A variante do sinal convencionado do futebol americano —"uma das cinquenta combinações que deviam ter praticado juntos mil vezes — jorrou da boca do gordo. Simultaneamente, ele se atirou ao chão, e a mão foi direta ao cós da calça.
Num giro rápido, o homem que estava na cama puxou as pernas para o lado e para longe de Bond, de modo que seu corpo se reduziu a um alvo estreito, de que só se via a cabeça. A mão que estava sobre o peito se mexeu rápida.
— Paf.
A arma de Bond soltou um único gemido abafado. Um orifício azul abriu-se exatamente abaixo do cocuruto grisalho.
— Pum! — respondeu a pistola do morto, deflagrada pela última crispação do dedo, e a bala foi alojar-se na cama, debaixo do cadáver.
O homem gordo, deitado no soalho, deu um grito. Olhava para cima. na direção daquele olho preto e vazio que não se incomodava com ele, de forma alguma, e que só se interessava em localizar-lhe na pele o centímetro quadrado que abrigaria o próximo projétil.
O revólver de Wint só se tinha elevado até à altura dos joelhos de Bond e apontava em vão por entre suas pernas retesadas para a armação de ferro, pintada de branco, que estava atrás.
— Largue a arma.
O tapete abafou o ruído da queda da arma.
— Levante-se.
O gordo ergueu-se com dificuldade e fitou Bond nos olhos, como um tuberculoso fita seu lenço, em medrosa expectativa.
— Sente-se.
Houve um lampejo de alívio nos olhos submissos? Bond continuou tenso como um gato prestes a atacar.
O gordo voltou-se vagarosamente. Estendeu as mãos acima da cabeça, embora Bond não lhe tivesse exigido isso. Deu dois passos para a cadeira e lentamente virou-se como se fosse sentar-se.
Parou, contemplando Bond, e com naturalidade deixou cair as mãos ao longo do corpo. E as duas mãos, sossegadas, sacudiram-se para trás, a direita mais do que a esquerda. E então, de súbito, no movimento de retorno, o braço direito entesou-se, precipitou-se para a frente e a faca brilhou nas pontas dos dedos como uma chama branca.
— Paf.
A bala silenciosa e a faca muda cruzaram uma pela outra em pleno ar, e os olhos dos dois homens perturbaram-se simultaneamente quando as armas atingiram seus objetivos.
Mas a perturbação nos olhos do homem gordo converteu-se num reviramento do globo ocular quando ele caiu para trás, as mãos agarradas ao peito, enquanto os olhos de Bond pousaram sem curiosidade na mancha que se espalhava em sua camisa e no cabo chato da faca pendurada frouxamente nas dobras do pano.
Produziu-se um estardalhaço quando a cadeira se espatifou sob o peso do homem gordo. Seguiu-se um ruído roufenho e ouviu-se, por último, um baque surdo no soalho.
Bond olhou a cena uma vez e depois voltou-se para a vigia aberta.
Durante algum tempo ficou de costas para o quarto, o olhar fixo nas cortinas que se balançavam molemente. Sorveu o ar e escutou os maravilhosos sons marinhos do exterior, do mundo que ainda lhes pertencia, a ele e a Tiffany, mas não aos outros dois. Pouco a pouco, seu corpo e seus nervos tensos se relaxaram.
Instantes depois, puxou a faca que se lhe enfiara na camisa. Não olhou para ela. Apenas estirou o braço, afastou a cortina para um lado e atirou a faca pela vigia. Em seguida, ainda contemplando a noite quieta lá fora, prendeu o registro de segurança da Beretta e, com um braço que lhe pareceu de repente pesado como chumbo, introduziu de novo a arma no cós das calças.
Com certa relutância, deu meia volta e encarou a desordem reinante no camarote. Com ar pensativo, examinou tudo e, num gesto, inconsciente, enxugou as mãos nos lados das calças. Em seguida, caminhando cautelosamente até o banheiro, disse: "Tiffany, sou eu" numa voz cansada, deprimida, e abriu a porta.
Ela não o ouvira. Continuava deitada de bruços na banheira seca, as mãos sobre as orelhas. E quando ele a ergueu e tomou nos braços, ela ainda não acreditou no que via. Agarrou-se a ele e começou a tocar-lhe o rosto e o busto com as mãos para certificar-se de que era realidade.
Ele se retraiu quando ela lhe apalpou a costela cortada. Então ela afastou-se um pouco, examinou-lhe o rosto, depois o sangue que manchava seus dedos e por fim a camisa escarlate.
— Meu Deus! Você está ferido! — disse ela assustada; e, esquecendo seus pesadelos, arrancou-lhe a camisa, lavou-lhe a costela com água e sabão e amarrou-a com tiras da toalha cortada com a gilete de um dos homens mortos.
Não fez perguntas, nem mesmo quando Bond lhe trouxe as roupas que estavam espalhadas pelo soalho do camarote e lhe disse que não saísse enquanto ele não tivesse terminado de arrumar tudo e de apagar as impressões digitais de todos os objetos que ela havia tocado.
Ela apenas pousava nele os olhos brilhantes. E quando Bond a beijou nos lábios, continuou calada.
Bond deu-lhe um sorriso tranquilizador, saiu e fechou a porta do banheiro atrás de si. Pôs mãos à obra, fazendo cada coisa com grande determinação e parando antes de cada gesto a fim de imaginar o efeito que produziria diante dos olhos e do espírito dos detetives que subiriam a bordo em Southampton.
Primeiro amarrou um cinzeiro à sua camisa ensanguentada para torná-la pesada, aproximou-se da vigia e atirou o pacote o mais longe que pôde. Os smokings dos dois homens estavam pendurados atrás da porta. Tirou os lenços que estavam nos bolsinhos dos paletós, envolveu com eles as mãos e remexeu nos armários e cômodas até encontrar as camisas do grisalho.
Vestiu uma e ficou um momento no centro do camarote, meditando. Depois, cerrou os dentes e levantou o homem gordo até deixá-lo sentado, tirou-lhe a camisa, foi à vigia, sacou a Beretta, encostou a arma no orifício aberto na fazenda pelo tiro anterior e disparou outra bala no mesmo local. Agora havia uma nódoa de fumaça em volta do orifício para dar a impressão de suicídio.
Tornou a vestir a camisa no cadáver, limpou demoradamente a Beretta com o lenço, comprimiu os dedos da mão direita do morto sobre ela e, finalmente, ajustou a arma na mão do gordo, com o indicador no gatilho.
Após outra pausa no meio do quarto, retirou o smoking de Kidd do cabide e vestiu com ele o cadáver. Em seguida, arrastou o corpo até a vigia e, suando com o esforço, levantou-o e jogou-o ao mar.
Limpou as possíveis impressões digitais deixadas na vigia e interrompeu-se outra vez, tomando fôlego e inspecionando o cenário. Foi até a mesa de jogo, encostada à parede e com os objetos espalhados indicando que o jogo não fora concluído, e derrubou tudo, dispersando as cartas pelo tapete. Parou, refletiu mais um pouco, voltou ao cadáver de Wint, retirou-lhe do bolso traseiro da calça o rolo de cédulas e jogou-as entre as cartas.
O quadro era satisfatório, sem dúvida. Haveria o mistério da bala disparada na cama pelo moribundo Kidd, mas isso poderia ter sido parte da luta. Três balas tinham sido detonadas pela Beretta e havia três cartuchos no soalho. Duas das balas poderiam ter-se enterrado no corpo de Kidd que agora estava no Atlântico. Havia os dois lençóis que teria de roubar da segunda cama. A falta deles ficaria inexplicada. Talvez Wint houvesse enrolado neles o corpo de Kidd antes de empurrá-lo pela vigia. Isso se encaixava no remorso e no suicídio de Wint, posterior ao tiroteio motivado pelo desentendimento à mesa do jogo.
De qualquer maneira, refletiu Bond, o quadro se sustentaria até a chegada da polícia ao porto, mas nesse momento ele e Tiffany já estariam fora do navio e bastante longe, e o único vestígio deles no camarote seria a Beretta; e esta, como todas as outras armas pertencentes ao Serviço Secreto, não era numerada.
Soltou um suspiro e encolheu os ombros. Agora, restava apanhar os lençóis, conduzir Tiffany de volta ao seu camarote sem serem vistos, cortar a "corda" que se balançava na vigia, atirá-la ao mar com os pentes restantes da Beretta e o coldre vazio e, por fim, dormir à vontade com o corpo adorado de Tiffany enroscado no seu para sempre.
Para sempre?
Ao atravessar o camarote a caminho do banheiro, Bond encontrou os olhos vazios do cadáver no soalho.
E os olhos do homem cujo Grupo Sanguíneo fora F chamaram-no e lhe disseram:
— Mr. Bond. Nada existe para sempre. Só a morte é permanente. Nada é eterno, exceto o que você fez comigo.
25 - Fecha-se o canal
AGORA NÃO HAVIA escorpião morando nas raízes do frondoso espinheiro erguido na junção dos três Estados africanos. O contrabandista das minas não tinha outra coisa que lhe absorvesse a atenção senão o desfile infindável de um regimento de formigas de correição entre as baixas muralhas que as guerreiras haviam construído em ambos os lados da estradinha de três polegadas.
A noite era quente e úmida, e o homem escondido sob o espinheiro estava impaciente e intranquilo. Era esta a última vez que comparecia ao encontro marcado. Já tinha decidido. Que arranjassem outro, se quisessem.
Naturalmente não iria fazer sujeira com eles. Comunicaria a intenção de deixá-los e lhes daria o motivo: o novo assistente admitido no serviço dentário parecia entender muito pouco de odontologia; decerto era espião: o olhar indagador, o bigodinho amarelo-avermelhado, as unhas bem tratadas.
Pegaram alguém? Tomaram-lhe o depoimento?
O contrabandista trocou de posição. Por onde diabo andava o helicóptero? Apanhou um punhado de terra e atirou-o no meio das formigas.
Elas se atarantaram um pouco, mas com a chegada das últimas fileiras, as que iam na frente se dispersaram pelas muralhas. Então as guerreiras pegaram febrilmente a cavar e transportar a terra, e em poucos minutos a estrada estava outra vez transitável.
O homem tirou o sapato e jogou-o com força sobre o regimento em marcha. Houve outro curto instante de afobação. Depois, as formigas lançaram-se sobre as mortas e as devoraram. O caminho estava novamente desimpedido e o negro rio continuou a fluir.
O homem soltou uma praga em africaans e calçou o sapato. Filhas duma égua. Iam ver uma coisa. Acocorando-se e suspendendo um braço para se proteger contra os espinhos, saiu pisando pela estrada das formigas. Isso lhes serviria de lição.
Ao surgir sob o luar, o homem já tinha esquecido o ódio que dedicava a tudo quanto fosse negro e virou a cabeça para a banda do norte. Graças!
Rodeou o espinheiro para ir buscar as lanternas e o pacote dos diamantes guardados nas caixas de ferramentas.
A uma milha dali, sob a copa de um arbusto, o poderoso ouvido de ferro do detector de som já parará de investigar, e o operador, que vinha transmitindo os dados aos três homens agrupados ao lado do caminhão militar, informou: — Trinta milhas. Velocidade: cento e vinte. Altura: novecentos pés.
Bond consultou o relógio.
— Tudo indica que o encontro está marcado para a meia-noite,_na lua cheia — disse ele. — O nosso homem está uns dez minutos atrasado.
— Parece que o senhor tem razão — concordou o oficial da guarnição de Freetown, a seu lado, e voltou-se para o terceiro homem. — Cabo. Veja se não tem nenhum metal aparecendo na rede de camuflagem. Com este luar, é preciso ter cuidado.
O caminhão estava coberto pelo arbusto, à beira de uma estrada de barro, que atravessava a planície na direção da aldeia de Telebadu, na Guiné Francesa. Naquela noite, haviam deixado as colinas logo que o radiolocalizador captara o barulho da motocicleta do dentista na estrada paralela. Tinham vindo com os faróis apagados e pararam quando cessou o ruído da motocicleta. Haviam estendido a rede de camuflagem sobre o caminhão, o detector de som e o canhão Bofors. E puseram-se a esperar, sem saberem ao certo quem ou o que viria ao encontro do dentista — outra motocicleta, um homem a cavalo, um jipe, um avião?
Ao ouvir no céu o longínquo matraquear, Bond soltou uma gargalhada.
— Helicóptero — disse ele. — Era só o que faltava. Preparem-se para tirar a rede quando pousar. Talvez a gente tenha de dar um tiro de advertência. O detector está ligado?
— Está, sim — respondeu o cabo que operava o aparelho. — O nosso amigo está chegando. Poderão vê-lo num minuto. O senhor está vendo aquelas luzes acolá? Devem ser do campo de pouso.
Bond passeou o olhar pelos quatro feixes de luz e, depois, contemplou o imenso céu africano.
Então aí vinha o último de todos, o derradeiro elemento da quadrilha e também o primeiro. O homem que havia visto ligeiramente em Hatton Garden. O número um da turma de Spang, cuja cotação era tão alta em Washington. O único, excetuando o inofensivo e até simpático Shady Tree, que Bond ainda não fora obrigado a matar ou — pensou no botequim de Spectreville e nos dois homens de Detroit — quase. Não que tivesse desejado matar esses indivíduos. A missão que M lhe confiara fora apenas de investigação. Mas, um a um, eles haviam tentado contra sua vida e a de seus amigos. A violência fora o primeiro, não o último recurso deles.
Violência e crueldade, as armas escolhidas. Os dois homens do Chevrolet em Las Vegas, que tinham disparado contra ele e ferido Ernie Cureo. Os dois sujeitos do Jaguar, que haviam espancado Ernie e tinham sido os primeiros a sacar os revólveres quando começara a luta. Seraffimo Spang, que mandara torturá-lo, disparara contra ele e Tiffany e procurara esmagá-los na estrada de ferro. Wint e Kidd, que haviam supliciado Tingaling Bell, Bond e Tiffany Case. E, dos sete, matara cinco — não porque gostasse de matar, mas porque alguém tinha de fazê-lo. Tivera a seu lado a sorte e três bons amigos, Félix, Ernie e Tiffany. E os malvados tinham perecido.
Agora chegava a último dos malvados, o homem que planejara a sua morte e a de Tiffany, o homem que, segundo M, arquitetara o contrabando dos diamantes, montara o canal de escoamento e o vinha dirigindo com eficiência e mão de ferro através dos anos.
Ao telefone, para Boscombe Down, M falara pouco e com certa aspereza na voz. Usara a linha do Ministério da Aeronáutica, poucos minutos antes que o Canberra decolasse para Freetown. Bond recebera o telefonema do gabinete do comandante da base, tendo nos ouvidos o grito estridente das turbinas do Canberra.
— Satisfeito de tê-lo de volta são e salvo.
— Muito obrigado, senhor.
— Que estória é essa que os vespertinos noticiaram acerca de um duplo homicídio no Queen Elizabeth?
Havia algo mais do que suspeita na voz de M.
— Eram os dois pistoleiros da quadrilha. Viajavam sob os nomes de Winter e Kitteridge. Meu camareiro desconfia que eles se desentenderam quando jogavam baralho.
— Acha que a suposição do camareiro é correta?
— É possível. Houve uma pausa.
— E os policiais também pensam assim?
— Não vi nenhum deles.
— Vou falar com Vallance.
— Ótimo — disse Bond, sabendo que essa era a maneira de M dizer que, caso Bond tivesse liquidado os dois homens, tomaria providências para que o agente e o Serviço Secreto não fossem mencionados no inquérito.
— Bem, de qualquer modo — disse M — aqueles dois eram pouco importantes. Esse Jack Spang, ou Rufus B. Saye ou ABC, ou que nome tenha, esse eu quero que você agarre. Ao que parece, ele vai agora até o extremo do canal. Vai fechá-lo. Talvez matando o que encontrar pela frente. O ponto final é o dentista. Veja se consegue pegar os dois. Faz coisa de uma semana que destaquei 2804 para trabalhar ao lado do dentista. O pessoal de Freetown acha que já se pode agir. Mas eu quero encerrar este caso e ver você de novo em seu verdadeiro posto. Esse negócio foi uma trapalhada dos diabos. Não me agradou desde o princípio. E se, afinal, conseguimos chegar ao ponto em que estamos agora, foi mais uma questão de sorte do que de boa organização.
— Concordo com o senhor — disse Bond.
— E essa moça, Case? — perguntou M. — Conversei com Vallance. Ele não deseja processá-la, a menos que você insista.
Teria M carregado um pouco no tom de indiferença?
Bond procurou evitar uma resposta muito persuasiva.
— Ela foi de grande ajuda — disse ele, esperançoso.
— Talvez a gente possa resolver quando eu apresentar meu relatório final.
— E onde está ela agora?
O negro receptor começava a ficar escorregadio na mão de Bond.
— Está a caminho de Londres, num Daimler de aluguel. Vou colocá-la no meu apartamento. Quero dizer, no quarto vago. É muito boa dona de casa.
Ela se arranjará até que eu volte. É uma boa moça, estou certo disso.
Puxou o lenço do bolso e enxugou o suor do rosto.
— Sem dúvida — disse M. Não havia ironia em sua voz.
— Está bem, então. Boa sorte. — Houve uma pausa. — Tome cuidado.
E... — a voz no outro extremo da linha tornou-se subitamente áspera — não pense que não estou satisfeito com os resultados até agora obtidos. Foram além do programa, naturalmente, mas você parece que topou muito bem a parada desse pessoal. Até logo, James.
— Até logo, senhor.
Bond levantou a vista para o céu recamado de estrelas e pensou em M e Tiffany, esperando que agora fosse mesmo o fim e que fosse rápido e tranquilo, e que logo estivesse em casa.
De pé, empunhando a quarta lanterna, o contrabandista das minas esperava. Lá vinha o helicóptero. Cortando a trajetória da lua. Como sempre, o barulho era infernal. Outro risco de que ia livrar-se.
Baixava lentamente. Agora pairava a uns vinte pés de altura. A mão apontou na janela e piscou A. O homem no chão piscou, em resposta, B e c.
As lâminas do rotor diminuíram a velocidade e, suavemente, o gigantesco inseto de aço pousou no chão.
O pó assentou. O contrabandista retirou a mão dos olhos e ajudou o piloto a descer a escadinha. Usava capacete de voo e óculos de proteção.
Extraordinário. E parecia mais alto do que o alemão. O contrabandista sentiu uma picada na espinha. Quem era esse? Aproximou-se devagar.
— Trouxe?
Dois olhos frios, sob negras sobrancelhas retas, cintilaram por trás dos óculos. Ocultavam-se quando o homem moveu a cabeça e o luar incidiu sobre o vidro. Agora eram dois círculos brancos reluzentes no meio do negro e luzidio capacete de couro.
— Trouxe — disse, nervoso, o homem das minas. — Mas onde está o alemão?
— Não virá mais. — Os dois círculos brancos cegavam o contrabandista.
— Eu sou ABC. Vim fechar o canal.
A voz era americana. Enérgica, seca, inflexível.
— Oh!
Maquinalmente, a mão do contrabandista enfiou-se na abertura da camisa. Apanhou o embrulho úmido e entregou-o ao piloto como se fosse uma oferenda de paz. À semelhança do escorpião, um mês antes, o homem das minas pressentia a pedra erguida sobre sua cabeça.
— Ajude-me a encher o tanque.
Era a voz do feitor dando ordens ao escravo. Mas o contrabandista apressou-se a obedecer.
Fizeram o serviço em silêncio. Ao terminar, voltaram ao chão. O cérebro do contrabandista trabalhava furiosamente. Ele se esforçava por adotar a voz de um associado, a voz de alguém que estivesse a par dos negócios e exercesse a mesma autoridade.
Olhou com atenção para a nesga de treva cor-de-anil onde se achava o piloto com a mão sobre a escada.. — Estive pensando bem e acho que...
A voz estacou de supetão, a boca abriu-se espavorida e deixou escapar um ruído que era uma mescla de rosnado e uivo.
A arma na mão do piloto gaguejou três vezes. O contrabandista emitiu um "Oh" numa voz servil, caiu de costas no chão, fez um esforço para se soerguer e imobilizou-se.
— Fique onde está. — A voz ressoou na planície, transmitida pelo amplificador. — Você está cercado.
Ouviu-se o ruído de um motor que se punha em funcionamento.
O piloto não procurou saber de onde vinha a voz. Pulou para a escada. A porta da carlinga fechou-se com uma pancada e zumbiu o arranque automático. O motor começou a trabalhar, as lâminas do rotor giraram, pouco a pouco foram ganhando velocidade até que se transformaram em dois redemoinhos prateados. Então, com uma sacudidela, o helicóptero elevou-se verticalmente no ar.
Em terra, entre os arbustos, o caminhão freou e Bond saltou para a sela de aço do Bofors.
— Pra cima, cabo — gritou ele para o homem que manobrava a alavanca de suspensão. Baixou os olhos para a alça de mira quando a boca da arma se ergueu para a lua. Com a mão, puxou a alavanca do seletor de fogo, tirando-a da marca de segurança e colocando-a em "Fogo". — Esquerda, dez.
— Eu alimentarei.
O oficial ao lado de Bond tinha nas mãos dois depósitos de obuses pintados de amarelo.
Os pés de Bond firmaram-se nos pedais do gatilho. O helicóptero estava no centro da alça de mira.
— Firme — disse ele calmamente.
— Bumpa.
O obus reluzente rodou no alto a uma velocidade apenas menor do que a do som. Baixo e à esquerda. O cabo girou delicadamente as duas alavancas.
— Bumpa.
O obus deu a volta por cima do helicóptero. Bond inclinou-se para a frente e puxou a alavanca do seletor para "Fogo Automático". A mão relutava. Agora a morte era inevitável. Mais uma vez ele tinha de tomar essa decisão.
— Bumpa... bumpa... bumpa... bumpa... bumpa... O fogo vermelho espargiu-se no céu. O helicóptero continuou a avançar para a lua e depois rumou para o norte.
— Bumpa... bumpa...
Houve um espocar de luz amarela perto do rotor da cauda e um estrondo de explosão distante.
— Acertou — disse o oficial, pegando o binóculo. — O rotor da cauda está perdido — disse ele. E logo, agitado: — Puxa! Parece que toda a cabina está girando com o rotor principal! O piloto está atolado.
— Mais algum? — perguntou Bond, mantendo na mira o helicóptero em chamas.
— Não, senhor — disse o oficial. — Seria bom se conseguíssemos pegá-
lo vivo. Mas parece... é, sim, já perdeu o controle. Vem caindo de ponta.
Deve haver alguma coisa com as lâminas do rotor principal. Lá vem ele.
Bond levantou a vista e resguardou os olhos contra a claridade intensa.
— Sim. Lá vem ele. A cem pés, o motor ribombando e as hélices girando inutilmente enquanto a embrulhada metálica despencava do céu em cambaleios e guinadas de ébrio.
Jack Spang. O homem que ordenara o assassínio de Bond. Que ordenara o assassínio de Tiffany. O homem que Bond vira apenas uma vez, durante alguns minutos, numa sala superaquecida em Hatton Garden. Mr. Rufus B.
Saye. Da House oi Diamonds. Vice-Presidente para a Europa. O homem que jogava golfe em Sunningdale e visitava Paris uma vez por mês. "Cidadão exemplar", M dissera dele. Mr. Spang, da quadrilha de Spang, que acabara de matar um homem — o último de quantos?
Bond imaginava a cena dentro da estreita carlinga. O homem dirigindo com uma das mãos e com a outra mexendo desesperadamente nos controles, enquanto observava a agulha do altímetro baixar vertiginosamente. Nos olhos, o rubro clarão do terror. As centenas de milhares de libras esterlinas em diamantes reduzidas a peso morto. A arma, que desde a infância, fora um poderoso braço direito, agora inútil.
— Vai pra cima do espinheiro — bradou o cabo acima da barulheira.
— Está perdido — disse o capitão, a meia voz.
Contemplaram as últimas guinadas; depois, suspenderam a respiração quando o aparelho, num bamboleio desenfreado, empinou o nariz e, como se o espinheiro fosse seu inimigo, deu um mergulho irado, descrevendo uma curva de vinte jardas, e arremessou-se com os rotores desgovernados contra os espinhos.
Antes de se extinguirem os ecos da colisão, ouviu-se um ribombo cavo e uma bola de fogo, projetada no ar, ofuscou o clarão da lua e banhou a planície inteira num fulgor alaranjado.
O capitão foi o primeiro a falar.
— Opa! — exclamou, tirando o binóculo e voltando-se para Bond. — Bem — disse ele, resignado — nada a fazer. Acho que só quando amanhecer a gente vai poder se aproximar. E só com o dia alto é que se poderá revolver os destroços. Mas pode esperar que daqui a pouco os soldados franceses da fronteira estarão aqui. Felizmente estamos em boas relações com eles. O governo é que passará um bocado de tempo discutindo com Dakar. — O oficial previa as idas e vindas da papelada e sentia-se ainda mais exausto.
Homem prosaico, achava que o dia já lhe trouxera boa dose de canseiras. — O senhor se incomoda se a gente tirar uma pestana?
— À vontade — disse Bond, e consultou o relógio. — É melhor irem pra debaixo do caminhão. Eu mesmo não estou com sono. Vou ficar de olho.
Pode ser que o fogo ameace se alastrar.
O oficial lançou um olhar inquiridor a esse homem calmo e enigmático, que chegara de repente ao Protetorado no meio de uma enxurrada de recomendações de "Prioridade Absoluta". Se a gente nunca precisasse dormir... Bom, isso nada tinha que ver com Freetown. Era coisa de Londres.
— Muito obrigado, então — disse o oficial e jogou-se debaixo do caminhão.
Bond retirou vagarosamente os pés dos pedais do gatilho e reclinou-se no encosto da sela de aço. Maquinalmente, com os olhos pousados ainda nas chamas saltitantes, enfiou as mãos nos bolsos do desbotado blusão caqui, que lhe haviam arranjado na base, puxou um cigarro, acendeu-o e tornou a guardar a cigarreira e o isqueiro.
Aí estava o fim do contrabando de diamantes. A última página da estória. Deu uma tragada e expeliu a fumaça com um suspiro longo e calmo.
Seis cadáveres a zero. Vitória folgada.
Ergueu a mão e limpou a testa suada. Atirou para trás a mecha de cabelo que lhe caía por cima da sobrancelha direita, e o clarão vermelho iluminou-lhe o rosto duro e magro e cintilou nos olhos cansados.
Esse imenso e rubro ponto final assinalava o desmoronamento da Quadrilha de Spang e o término do fabuloso contrabando de diamantes. Não o fim dos diamantes que se tostavam do interior do braseiro. Eles sobreviveriam e outra vez iriam percorrer o mundo. Descoloridos, talvez, mas indestrutíveis, tão permanentes como a morte.
E Bond recordou, instantaneamente, os olhos do cadáver cujo sangue havia pertencido ao grupo F. Tinham-se enganado. A morte é eterna. Mas os diamantes também são eternos.
Bond desceu do caminhão e pôs-se a andar lentamente em direção à fogueira crepitante. Levava um sorriso sombrio nos lábios. Toda essa estória acerca de morte e diamantes era demasiado solene. Para Bond, era apenas o fim de outra aventura. Outra aventura que bem podia ter por epitáfio as palavras de Tiffany Case. E reviu a boca ardente e irônica que lhe dizia: — Contada é uma coisa, vivida é outra.
20 - Chamas que saem do alto
O UNIFORME PRETO de homem-rã estava muito apertado. Doía no corpo todo. Por que cargas d'água Strangways não tinha se certificado de que o Almirantado tinha suas medidas corretas? E era muito escuro no fundo do mar, as correntes eram muito fortes, arrastavam-no para o banco de coral.
Era preciso nadar com todo o ímpeto para afastar-se dali. Mas agora algo lhe prendia o braço. Que diabo...?
— James! Pelo amor de Deus, James! — Ela apertou a boca ao ouvido dele. Desta vez ela beliscou-lhe o braço nu e ensanguentado com tanta força que, afinal, os olhos de Bond se abriram entre as pálpebras inchadas, e ele a contemplou do piso de madeira em que estava deitado e deu um suspiro de sobressalto.
Ela puxou-o para si, com medo que ele lhe escapasse outra vez. Ele pareceu entender e se revolveu, erguendo-se sobre as mãos e os joelhos, a cabeça pendida para o chão, como um animal ferido.
— Pode andar?
— Espere. — O murmúrio espesso que lhe atravessou os lábios arrebentados soou-lhe estranho aos ouvidos. Talvez ela não tivesse compreendido. — Espere — repetiu ele, enquanto sua mente passava a explorar o corpo para ver o que lhe tinha sobrado. Podia sentir os pés e as mãos. Podia mover a cabeça de um lado para outro. Podia ver as barras do luar nas pranchas de madeira. Pudera ouvir a moça. Devia estar inteiro, mas não queria mover-se. Sua força de vontade o tinha abandonado. Apenas desejava dormir. Ou talvez mesmo morrer. Qualquer coisa, contanto que mitigasse a dor que lhe avassalava o corpo todo, apunhalando-o, martelando-o, triturando-o — e matasse a lembrança das quatro botinas que o haviam golpeado e dos rosnados proferidos pelos dois vultos encapuzados.
Assim que pensou nos dois homens e em Mr. Spang, a vontade de viver retornou.
— Está bem — disse, e tornou a dizer para que ela compreendesse.
— Estamos na sala de espera — sussurrou a moça. — Temos de chegar ao extremo da estação. À esquerda, depois da porta. Está me ouvindo, James?
Ela estirou a mão e afagou-lhe os cabelos úmidos, viscosos, caídos na testa.
— Tenho de me arrastar — disse Bond. — Atrás de você.
A moça ergueu-se e abriu a porta. Bond trincou os dentes e saiu de rastros para a plataforma enluarada. E quando avistou a mancha escura no chão, a raiva e o desejo de vingança deram-lhe forças para se levantar.
Balançando a cabeça para não se afogar nas ondas negro-avermelhadas e amparado em Tiffany Case, cujo braço lhe envolvia a cintura, foi coxeando pelas tábuas até a rampa por onde desceram para o chão junto dos trilhos reluzentes.
E lá, no desvio, havia um vagonete.
Bond parou e olhou-o atentamente.
— Gasolina? — perguntou com ar vago.
Tiffany Case fez um gesto para uma fileira de latas encostadas no muro da estação. — Está cheio — sussurrou. — É usado na inspeção da linha. Eu sei colocá-lo em funcionamento. Já desloquei as agulhas. Depressa. Suba — soltou uma risadinha abafada. — Próxima parada: Rhyolite.
— Isso é que é uma garota — murmurou Bond. — Mas vai fazer um barulho danado quando esse troço começar a funcionar. Espere. Tenho uma ideia. Tem fósforos?
Metade da dor tinha desaparecido. Respirava forte quando deu as costas à moça e observou as silenciosas casas de madeira.
Ela estava usando calças compridas e blusa. Enfiou a mão no bolso das calças e entregou-lhe o isqueiro.
— O que é que vai fazer? — perguntou. — Já devíamos ter partido.
Mas Bond manquejou até as latas de gasolina e pôs-se a destampá-las e a arremessar o líquido sobre as paredes e a plataforma de madeira. Depois de esvaziar meia dúzia de latas, voltou para onde ela estava. — Ligue a bicha.
— Curvou-se com esforço e apanhou um jornal amassado ao lado dos trilhos. Ressoou o gemido raivoso do arranque automático, o motor de dois tempos pegou e começou a martelar.
Bond acendeu o isqueiro. O papel pegou fogo e Bond jogou-o entre as latas de gasolina. O espocar das labaredas quase o alcançou quando ele se lançou de costas ao estribo do vagonete. Mas então a. moça soltou a embreagem e o carro começou a deslizar pelos trilhos.
Houve um matracolejar e um sacolejo desagradável ao chegarem às agulhas; e depois, entrados na linha> principal, o velocímetro tremia marcando trinta milhas e os cabelos da moça flutuavam à frente de Bond como uma bandeira.
Bond voltou-se e contemplou a gigantesca floração de chamas que ia ficando para trás. Podia quase ouvir o crepitar das pranchas secas e os berros dos que despertavam. Se pelo menos o fogo pegasse Wint e Kidd, apanhasse a pintura do Pullman e se alastrasse pela lenha do tender do Cannonball e acabasse de uma vez com a caixa de brinquedos de Mr. Spang!
Mas ele e a moça tinham seus próprios problemas. Que horas eram?
Bond aspirou o ar fresco da noite e tentou colocar de novo a mente para trabalhar. A lua estava baixa. Quatro horas? Bond avançou com dificuldade pelo estribo até os dois assentos de encosto dobradiço e conseguiu sentar-se ao lado da moça.
Passou-lhe um braço em volta dos ombros, e ela voltou-se com um sorriso nos lábios. Levantando a voz acima do barulho da máquina e do matracolejar das rodas de ferro sobre os trilhos, ela falou: — Foi uma escapada e tanto. Parecia coisa de filme de Buster Keaton.
Como se sente? — Inspecionou o rosto combalido. — Você está massacrado, hein?
— Nenhuma fratura — disse Bond. — Acho que é isso que se entende por oitenta por cento. — Fez uma careta de dor. — É melhor ser tratado a pontapé do que a bala.
O rosto de Tiffany Case contraiu-se.
— E eu tive de ficar sentada lá e fingir que não ligava. Spang, ao meu lado, escutava e me observava. Depois, eles viram que você já estava nas últimas, atiraram você na sala de espera e todo mundo foi para a cama satisfeito da vida. Esperei uma hora em meu quarto e então resolvi agir. O
pior de tudo foi tentar despertar você.
Bond apertou-lhe os ombros com o braço.
— Direi o que penso de você quando estiver menos contundido. Mas, e você, Tiffany? Vai ficar em maus lençóis se eles nos pegarem. E quem são os dois encapuzados, Wint e Kidd? O que é que eles vão fazer agora?
Gostaria de vê-los de novo.
A moça olhou de viés para a feia equimose na boca de Bond.
— Nunca os vi sem os capuzes — confessou ela. — Suponho que eles são de Detroit. Pistoleiros. Encarregam-se dos trabalhos violentos e de missões especiais secretas. Virão em nosso encalço. Mas não se preocupe comigo. — Encarou-o de novo e seus olhos irradiavam felicidade. — A primeira coisa a fazer é levar essa joça a Rhyolite. Depois teremos de achar um carro e cruzar a fronteira com a Califórnia. Dinheiro não vai faltar-. Eu trouxe. Depois iremos a um médico, arranjaremos um banho e uma camisa nova pra você e pensaremos no que vamos fazer. Trouxe seu revólver. Foi encontrado por um dos rapazes que ajudaram a recolher os restos daqueles dois sujeitos que você arrasou no botequim. Apanhei a arma depois que Spang foi para a cama.
Ela desabotoou a blusa e enfiou a mão no cós das calças.
Bond recebeu a Beretta, e sentiu a quentura do corpo da moça no metal.
Removeu o pente. Sobravam três cartuchos, e um estava na agulha.
Recolocou o pente, fechou o registro de segurança e guardou a arma na cintura. Só então notou que estava sem paletó. Uma das mangas da camisa fora reduzida a um trapo. Arrancou-a e jogou-a fora. Apalpou o bolso traseiro direito da calça, à procura da cigarreira e não a encontrou. Mas no esquerdo estavam ainda o passaporte e a carteira de cédulas. Puxou-os do bolso. À luz da lua pôde ver que ambos estavam danificados. O dinheiro continuava na carteira. Pôs outra vez os objetos no bolso.
Durante algum tempo avançaram pela estrada. O silêncio da noite era cortado apenas pelo ronrom da máquina e pelo matraquear das rodas. Até onde a vista alcançava, havia somente uma interrupção da estreita linha prateada dos trilhos, assinalada pela alavanca de manobra das agulhas, no ponto em que um ramal enferrujado penetrava na massa escura dos montes Spectre à direita. À esquerda, descortinava-se o infindável chão do deserto em que o lampejo da aurora começava a debruar de azul as moitas de cactos contorcidos e, duas milhas além, o luar esparramava seu clarão cinza-chumbo sobre a Rodovia 95.
O vagonete cantarolava feliz nos trilhos. Os instrumentos de controle eram poucos: uma alavanca de freio e uma espécie de manche com um acelerador de cabo retorcido que a moça mantinha completamente aberto, com o velocímetro firme em trinta milhas. As milhas e os minutos passavam e, de vez em quando, Bond virava-se com dificuldade na cadeira e inspecionava o florescente rubor do céu às suas costas.
Fazia cerca de uma hora que tinham partido quando um leve zumbido, vibrando no ar ou nos trilhos, pôs Bond de sobreaviso. Novamente ele olhou por cima do ombro. Haveria um vago bruxoleio entre eles e o falso alvorecer da cidade em chamas?
Bond sentiu leve comichão no couro cabeludo.
— Veja se enxerga alguma coisa ali atrás.
A moça voltou-se. Depois, sem responder, diminuiu a marcha do carro que passou a deslizar suavemente.
Puseram-se à escuta. Sim. Era nos trilhos. Uma leve trepidação, nada mais do que um suspiro distante.
— É o Cannonball — disse Tiffany, categórica.
Deu um brusco repelão no acelerador, e o vagonete tornou a ganhar velocidade.
— Quanto pode fazer a locomotiva? — perguntou Bond.
— Talvez sessenta.
— E daqui pra Rhyolite?
— Trinta, mais ou menos.
Bond fez as contas em silêncio.
— Vai ser por um triz. Não é fácil dizer a que distância ela está de nós. E
esse treco pode dar mais alguma coisa?
— Que nada! — disse ela, — Nem que eu me chamasse Casey Jones em vez de Tiffany Case.
— Não tem importância — disse Bond. — Toca pra frente. Talvez ela vá prós ares com uma explosão.
— Ah, sim — disse ela. — Ou talvez a mola dê o prego, ou Spang se lembre que deixou a chave do motor em casa, no bolso da calça.
Viajaram mais quinze minutos em silêncio. Então, Bond divisou o grande farol da locomotiva varando a noite, a umas cinco milhas de distância, e as centelhas subindo pela chaminé. Os trilhos trepidavam e o que tinha sido um suspiro longínquo era agora um murmúrio baixo, ameaçador.
Talvez venha a faltar lenha, pensou Bond. Num impulso, ele perguntou despreocupadamente à moça:
— Será que temos bastante gasolina?
— Temos, sim — disse Tiffany. — Botei uma lata inteira. Não tem mostrador, mas esses motorzinhos giram a vida inteira com um galão.
Mal ela havia acabado de falar, e como se fizesse um comentário, o motorzinho deu uma tossidela de reprovação — cóf-cóf-cóf — e continuou a rodar alegremente.
— Ai, meu Deus! — exclamou Tiffany. — Ouviu isso? Bond ficou calado. Sentiu as mãos tornarem-se úmidas. Outra vez: cóf-cóf-cóf.
Tiffany Case acalentou delicadamente o acelerador.
— Ah, motorzinho querido — disse ela em tom de súplica. —' Vamos, motorzinho lindo, seja bonzinho, por favor...
— Cóf-cóf. Cóf-cóf. Chi. Cóf. Chiiiii...
E no instante seguinte estavam eles escorregando brandamente em silêncio. Vinte e cinco, dizia o velocímetro. Vinte... quinze... dez... cinco.
Um último e selvagem repelão no acelerador, um pontapé de Tiffany Case na armação do motor, e tinham parado.
— Porra! — disse Bond. Com esforço conseguiu saltar e manquejar até o tanque na traseira do vagonete. Tirou do bolso da calça o lenço ensanguentado, desatarraxou a tampa do funil e introduziu o lenço até tocar o fundo do tanque. Puxou-o para fora, apalpou-o e cheirou-o. Seco como um osso.
— Nada feito — disse ele para Tiffany. — Vamos pensar numa saída.
Olhou em volta. Nenhum abrigo à esquerda, e duas milhas pelo menos até à estrada de rodagem. À direita, as montanhas, talvez a um quarto de milha. Podiam chegar lá e esconder-se. Mas por quanto tempo? Contudo, era o melhor alvitre. O chão, sob seus pés, tremia. Esquadrinhou a linha férrea iluminada pelo olho incandescente, implacável. A que distância? Duas milhas? Spang enxergaria o vagonete? Teria tempo de parar? Haveria descarrilamento? Mas aí Bond lembrou-se do poderoso limpa-trilhos, que varreria da linha o vagonete como se fosse um feixe de palha.
— Vamos, Tiffany — bradou ele. — Temos de escalar as colinas.
Onde estava ela? Bond rodeou o carro. Ela vinha correndo pelo trecho da estrada que tinham pela frente. Aproximou-se arquejante.
— Há um desvio logo ali adiante — disse ela entre um ofego e outro. — Se a gente puder empurrar essa coisa até lá e se você puder manobrar as velhas agulhas, pode ser que a gente escape.
— Deus do céu! — disse Bond lentamente. E depois, com uma nota de pasmo na voz, acrescentou: — Há uma coisa melhor do que essa. Me ajude aqui — e, curvando-se, rilhou os dentes contra a dor e começou a empurrar o vagonete.
Recebido o impulso inicial, o carro moveu-se facilmente e eles precisavam apenas segui-lo e não deixar que parasse. Chegaram às agulhas, mas Bond continuou a empurrar até que pararam umas vinte jardas além.
— Que diabo é que você vai fazer? — arquejou Tiffany.
— Vamos pra cá — respondeu Bond, correndo aos tropeções para o ponto em que a chave enferrujada ressaltava ao lado dos trilhos. — Vamos colocar o Cannonball no desvio.
— Genial! — disse Tiffany Case com admiração. Puseram mãos à obra, e os músculos doloridos de Bond forcejavam por erguer a chave.
Lentamente o metal enferrujado começou a mover-se no leito onde jazia imóvel havia cinquenta anos, e milímetro a milímetro os trilhos mostraram uma fenda, que foi se alargando à medida que Bond puxava a alavanca.
Ao terminar, Bond caiu de joelhos no chão, com a cabeça dobrada para baixo, lutando contra a tontura que ameaçava dominá-lo.
Mas já então um feixe de luz iluminava o chão e Tiffany procurava arrastá-lo. Bond ergueu-se e voltou aos trambolhões para o vagonete. O ar estrondava e se enchia do plangente clangor do sino enquanto o flamejante cavalo de ferro galopava em direção a eles.
— Abaixe-se e não se mexa — bradou Bond por cima do barulho e lançou-a ao chão por trás do frágil biombo do vagonete. Depois, coxeou o mais rápido que pôde até a margem dos trilhos, puxou a arma, colocando-se de viés com o braço levantado como um duelista e voltou os olhos semicerrados para o gigantesco farol que avançava debaixo do vulcão de fogo e fumaça turbilhonantes.
Puxa, que monstro! Entraria ele na curva? Ou não respeitaria o desvio e os esmagaria? Lá vinha ele.
— Fittt.
Algo açoitou o chão ao lado de Bond e houve um clarão momentâneo na cabina.
— P-o-e-m-m-m.
Houve outro clarão, e a bala atingiu o trilho, gemendo na noite.
— Trac. Trac. Trac.
Agora era-lhe possível ouvir o revólver acima do trovejar da locomotiva.
Algo cantou em tom agudo no ouvido de Bond.
Bond não respondeu. Só quatro balas, e ele sabia quando devia disparar.
E então, a vinte jardas, a locomotiva entrou na curva e desembestou pelo desvio com uma guinada tão violenta que atirou as achas de lenha do alto do tender na direção de Bond.
Houve um grito roufenho de metal quando as bordas das rodas motrizes de seis pés de altura dobraram a curva, uma breve impressão de fumaça, chama e ruído de motor, e, depois, uma rápida visão da cabina e do vulto negro e prateado de Spang, de braços abertos e pernas estendidas, agarrando-se com uma das mãos ao costado da cabina e com a outra precipitando-se para a alavanca do acelerador.
A arma de Bond bradou suas quatro palavras. Houve um curto vislumbre de uma cara branca arremessada para o alto, e logo a enorme locomotiva preta e amarela distanciou-se, reboando rumo à muralha sombria dos montes Spectre, o feixe de luz do farol ceifando a treva e o sino dobrando tristemente dim-dão, dim-dão, dim-dão.
Bond guardou lentamente a Beretta no cós das calças, e ficou olhando o ataúde de Mr. Spang, enquanto a esteira de fumaça subia no ar e por um momento encobria a face da lua.
Tiffany veio correndo até onde ele estava, e lado a lado puseram-se a contemplar a bandeira de chamas que se elevava da alta chaminé e escutar as montanhas multiplicarem o atroar da locomotiva. A moça agarrou-lhe os braços quando o comboio deu uma guinada repentina e sumiu-se atrás de um esporão da pedra. E agora ouvia-se apenas um longínquo tamborilar nas montanhas e avistava-se um clarão vermelho que fazia tremular os penhascos enquanto Cannonball despencava no bojo da rocha.
E subitamente apareceu uma imensa língua de fogo, no mesmo instante em que se produziu tremendo choque metálico semelhante ao encontrão de um encouraçado num penedo. Debaixo de seus pés ressoou um estrépito abafado. Finalmente, um ribombo distante e profundo levantou-se das entranhas da terra, seguido por uma barragem de ecos os mais variados.
Então, findos todos os ruídos, zuniu, firme, o silêncio.
Bond soltou um suspiro profundo como se estivesse despertando. Aí estava o fim de um dos Spangs, de um dos enfatuados, cruéis, aparatosos, irrecuperáveis adultos que compunham a quadrilha dos Spangs. Fora um gangster teatral e vivera num ambiente de caixa de palco. Mas isso não alterava o fato de que pretendera liquidar Bond.
— Vamos embora daqui — disse Tiffany Case com sofre-guidão. — Para mim chega de Spectreville.
Bond sentiu a dor insinuar-se-lhe outra vez por todo o corpo à medida que passava a tensão. "Vamos" — respondeu, lacônico. Alegrava-o a ideia de voltar as costas à lembrança daquele rosto branco virado para cima, dentro da bela locomotiva negra em marcha. Estava ligeiramente tonto e duvidava se seria capaz de fazer o percurso.
— Temos de alcançar a estrada. Vai ser difícil. Mas vamos embora.
Levaram uma hora e meia para vencer as duas milhas e, no momento em que se prostrou no solo à margem da estrada de cimento, Bond estava delirante. Foi a moça que o conduziu até lá. Sem ela, ele não teria chegado.
Teria tropeçado no meio dos cactos, das pedras e da mica até que lhe faltassem as forças e o sol causticante se encarregasse de completar o serviço.
Agora ela lhe segurava a cabeça no regaço, falava-lhe docemente e lhe enxugava o suor da testa com a ponta da blusa.
E de vez em quando parava para examinar uma banda e outra da estrada retilínea de concreto, cujos horizontes já tremeluziam nas ondas de calor do amanhecer.
Uma hora depois, ela ergueu-se de um salto, enfiou a blusa por dentro das calças, correu e parou no meio da estrada. Um carro baixo e negro rompia a neblina esvoaçante que ocultava o distante vale de Las Vegas.
O carro estacou justamente diante dela. Um rosto adunco sob um topete desalinhado de cabelo cor de palha assomou à janela. Os penetrantes olhos cinzentos miraram-na de alto a baixo. Pousaram-se na figura do homem deitado no solo à margem da estrada e tornaram para a moça.
Então, com a amistosa fala arrastada dos texanos, o chofer rompeu o silêncio:
— Félix Leiter, senhorita. Às suas ordens. Em que posso servi-la nesta magnífica manhã?
21 - "Nada é tão apropinquante como a propinquidade"
—...E QUANDO CHEGUEI à cidade telefonei pra meu amigo Ernie Cureo. James sabe quem é. A mulher dele estava de ataque e Ernie no hospital. Corro pra lá e ele me passa o serviço e eu imagino que James pode precisar de reforços. Monto na minha égua preta cor de carvão e vou esquipando noite adentro e quando chego perto de Spectreville vejo o clarão no céu. Calculo então que Mr. Spang está preparando um churrasco. O
portão da cerca está aberto e eu resolvo tomar parte na festa. Bom, creiam-me vocês ou não, o fato é que não há vivalma no local, exceto um cara de perna arrebentada e contusões generalizadas, que vem se arrastando pela estrada, tentando dar o pira. E ele me dá a impressão de ser um arruaceiro de nome Frasso, de Detroit. Ernie Cureo tinha dito que era um dos caras que tinham levado James. Ele não estava em condições de negar isso e eu então manjei a situação toda e compreendi que Rhyolite era minha próxima parada. Aí eu digo pro nosso amigo que daí a pouco os bombeiros virão fazer companhia a ele, levo-o até o portão e deixo-o lá. E de uma hora para outra vejo uma guria no meio do deserto, com o ar de quem tinha sido disparada de um canhão. E aqui estamos todos. Agora é a vez de vocês contarem.
"Então tudo isto não é parte de um sonho e eu estou deitado no assento traseiro no Studillac e este é o colo de Tiffany debaixo da minha cabeça e aquele ali é Félix e nós estamos indo às carreiras pela estrada a caminho da segurança, de um médico, de um banho, de comida, de bebida e de um longo sono reparador." Bond mexeu-se e sentiu que a mão de Tiffany em seu cabelo dizia que tudo era real e tal como havia esperado. Imobilizou-se novamente e nada disse. Guardava cada momento para si e lhes escutava as vozes e o zunido dos pneus rolando pela estrada.
Ao fim da narrativa de Tiffany, Félix Leiter largou um assobio de estupefação.
— Puxa! — exclamou ele. — Então vocês dois abriram um rombo espetacular na quadrilha de Spang. Que diabo é que vai acontecer agora? Há muitos outros marimbondos na casa e isso de ficar zumbindo em volta não é do feitio deles. Eles vão exigir ação.
— Certo! — disse Tiffany. — Spang era membro da associação de Las Vegas, e esses camaradas são muito solidários. Há também Shady Tree e aqueles dois pistoleiros, Wint e Kidd. Só o diabo sabe quem são eles. Quanto mais cedo a gente cruzar a fronteira estadual, melhor. E depois, o que vamos fazer?
— Até aqui vai tudo em ordem — disse Félix Leiter. — Em dez minutos chegaremos a Beatty, depois pegaremos a 58 e passaremos nela uma meia hora. Em seguida, toparemos um longo trecho através do Vale da Morte e sobre as montanhas até Olancha, onde atingiremos a N.° 6. Poderíamos dar uma paradinha lá, levar James a um médico, comer alguma coisa e tomar um banho. Depois continuaremos na 6 até chegarmos a Los Angeles. Será muito puxado, mas poderemos estar em Los Angeles na hora do almoço. Aí podemos descansar um pouco e bolar algum plano. Meu palpite é que temos de tirar você e James do país o mais cedo possível. Os meninos tentarão pegar vocês dois de qualquer jeito, e se conseguirem eu não darei um níquel pela vida de nenhum dos dois. A melhor solução seria botá-los num avião para Nova York hoje de noite e despachá-los amanhã para a Inglaterra.
James pode embarcar lá.
— Acho que é razoável — disse a moça. — Mas, afinal, quem é esse Bond? O que é que ele faz? É um detetive ou coisa semelhante?
— Acho melhor que você mesma pergunte a ele — Bond ouviu Leiter dizer cautelosamente. — Mas eu, se fosse você, não me preocuparia com isso. Ele cuidará de você.
Bond sorriu para si mesmo e, no longo silêncio que se seguiu, caiu num sono intranquilo que durou até o momento em que atravessaram a Califórnia e o carro parou defronte de um portãozinho com a placa "Otis Fairplay, Médico".
E depois, enfaixado e pintado com mercúrio-cromo, banhado e barbeado, com um suculento café matinal no estômago, Bond voltou ao carro e ao mundo. Tiffany readquirira o velho ar irônico e intratável e Bond revelava-se útil na espionagem dos patrulheiros rodoviários, enquanto Leiter avançava a oitenta milhas pela interminável estrada estonteante, rumo à longínqua linha de nuvens que escondiam as High Sierras.
Mais tarde rolavam tranquilamente ao longo de Sunset Boulevard, ladeado pelas palmeiras e pelos gramados verdejantes. O Studillac coberto de poeira destoava no meio das cintilantes Corvettes e Jaguars. Finalmente, ao anoitecer, estavam sentados no bar escuro e refrigerado do Beverly Hills Hotel. Havia novas maletas no saguão, roupas novas adquiridas em Hollywood, e até mesmo o rosto de Bond, marcado de cicatrizes da luta, poderiam indicar que tinham terminado o trabalho nos estúdios.
Havia um telefone em cima da mesa, ao lado dos martinis. Félix Leiter acabava de falar com Nova York pela quarta vez desde que haviam chegado.
— Bom, está tudo arranjado — disse ele, desligando o telefone. — Meus colegas do escritório conseguiram passagens no Elizabeth. Adiou a partida por causa de uma greve nas docas. Sai amanhã de noite, às oito. Eles.irão ao encontro de vocês de manhã em La Guardiã, com as passagens, e vocês serão levados para bordo de tarde. Pegaram o resto de suas coisas no Astor, James. Uma pasta e os teus célebres tacos de golfe. E Washington oferece um passaporte a Tiffany. Haverá um homem do Departamento de Estado no aeroporto. Vocês terão que assinar uns formulários. Consegui que um dos meus antigos colegas da CIA arranjasse a coisa. Os vespertinos fizeram uni bruto estardalhaço com a estória. "Cidade Morta Desaparece" e outras manchetes desse tipo. Mas parece que ainda não descobriram nosso amigo Spang e os nomes de vocês não figuram no noticiário. Meu pessoal diz que não há nada com vocês na polícia, mas um de nossos informantes secretos diz que as quadrilhas estão à procura de vocês e espalharam por toda parte uma descrição de ambos. Com a promessa de dez mil. Assim, é melhor mesmo dar no pé o mais cedo possível. É aconselhável irem para bordo separadamente. Tomem o maior cuidado, vão para os camarotes e não saiam de lá. Vai haver o diabo quando eles chegarem ao fundo daquela velha mina.
Isso fará pelo menos três cadáveres a zero, e esse tipo de escore não é do agrado deles.
— Pinkerton é uma verdadeira máquina — disse Bond, com admiração.
— Mas ficarei satisfeito quando estivermos longe daqui. Eu pensava que os seus gangsters eram um bando de italianos untuosos, que se empanturravam de pizza e cerveja a semana toda e no sábado assaltavam uma garagem ou uma farmácia para arranjarem dinheiro para as corridas. Mas não há dúvida que eles incluem um bocado de violência na folha de pagamentos.
Tiffany Case riu zombeteiramente.
— Você precisa mandar examinar essa cabeça — disse ela, categórica.
— Se sairmos inteirinhos do Lizzie será um verdadeiro milagre. Por aí você pode ter uma ideia de como eles são. Se não fosse aqui o nosso Capitão Gancho-de-Aço, não sei o que seria de nós. Untuosos! Pois sim!
Félix Leiter soltou uma risadinha.
— Calma, pombinhos — disse ele, consultando o relógio. — Temos de partir. Preciso voltar a Las Vegas hoje de noite e começar a procurar o esqueleto do nosso Shy Smile. E vocês têm de pegar o avião. Poderão continuar a arenga a vinte mil pés de altura. De lá a perspectiva é mais interessante. É possível até que terminem como amigos. Lembrem-se do que se diz por aí. — Fez um aceno para o garçom. — Nada é tão apropinquante como a propinquidade.
Leiter levou-os ao aeroporto e deixou-os lá. Bond sentiu um nó na garganta quando o vulto magro saiu coxeando para o carro depois de ter sido efusivamente abraçado por Tiffany Case.
— Você pode dizer que tem um amigo de verdade — disse a moça ao ver Leiter bater a porta e ouvir o estrondo do escape enquanto o carro partia de volta ao deserto.
— Sim — disse Bond. — Félix é cem por cento.
O luar arrancou cintilações do gancho de aço quando Leiter acenou um último adeus. Depois, a poeira assentou na estrada e soou a voz de ferro do alto-falante: "Trans-World Airline, Voo 93. Embarque no Portão N.° 5 para Chicago e Nova York. Todos a bordo, por favor." Eles abriram caminho através das portas de vidro e deram os primeiros passos de sua longa viagem para Londres.
O novo Super-G Constellation roncou por cima do continente envolto em sombras, e Bond, deitado em seu confortável beliche, esperando que o sono lhe tomasse conta do corpo dolorido, pensava em Tiffany, que dormia no beliche de baixo, e no estágio em que se encontrava sua missão.
Pensou no lindo rosto adormecido sobre a mão aberta, inocente e indefeso, esvaecidos o desdém dos olhos cinzentos e rasos e a curva irônica dos cantos da boca ardente. Bond sabia que estava bem perto de apaixonar-se. Mas, e ela? Até onde ia aquela rebelião masculina gerada certa noite em São Francisco, quando os homens lhe invadiram o quarto e a ofenderam?
Chegariam a adolescente e a mulher a transpor a barricada que haviam começado a construir naquela noite contra todos os homens do mundo?
Romperia ela a concha que os anos de solidão e retraimento tornavam cada vez mais rija?
Bond recordou aqueles momentos das últimas vinte e quatro horas em que conhecera a resposta, momentos em que uma jovem arrebatada e terna surgira feliz, sem a máscara agressiva que usava entre os gangsters, no contrabando, no cassino, na mesa de vinte-e-um, e lhe dissera: — Toma-me pela mão. Abre a porta e caminharemos de mãos dadas no dia claro. Não te preocupes. Acertarei meu passo pelo teu. Sempre estive a teu lado em pensamento, mas tu não vieste e passei a vida escutando outra cadência.
Sim, pensou ele. Tudo correrá bem, por esse lado. Mas estava preparado para as consequências? Uma vez que a tomasse pela mão, seria para sempre.
Estaria no papel do médico, do psicanalista, a quem a paciente transfere seu amor e sua confiança, enquanto se liberta da doença. Não poderia haver maior crueldade do que soltar-lhe a mão depois de a ter tomado nas suas.
Estava preparado para as repercussões que esse ato teria em sua vida e em sua profissão?
Bond mexeu-se no beliche e descartou-se do problema. Era muito cedo ainda para enfrentá-lo. Estava indo muito depressa. Mais devagar. Cada coisa a seu tempo. E obstinadamente arquivou a questão, dirigindo os pensamentos para M e para a missão que lhe cumpria concluir antes de perder tempo com sua vida particular.
Bem, uma parte da serpente estava esmagada. A cabeça ou o rabo?
Difícil dizer, mas Bond tendia a julgar que Jack Spang e o misterioso ABC
eram os verdadeiros manipuladores do contrabando de diamantes e que Seraffimo se incumbia da receptação. Seraffimo podia ser substituído.
Tiffany podia ser dispensada. Shady Tree, a quem ela poderia implicar no contrabando, teria de ficar oculto até que a tormenta — se é que Bond era realmente um prenuncio de tempestade — se desencadeasse. Mas nada havia que pudesse implicar Jack Spang ou a House of Diamonds, e a única pista para ABC era o telefone londrino, cujo número Bond trataria de obter da moça o mais cedo possível. Mas este, e todo mecanismo dos contados a ele relacionados, seria alterado logo depois que todos os fatos da deserção de Tiffany e da fuga de Bond fossem comunicados a Londres, presumivelmente por Shady Tree. Assim, tudo isto, refletiu Bond, colocava Jack Spang e, através dele, ABC como seu próximo alvo. O que tinha a fazer de imediato, concluiu Bond antes de se abandonar ao sono, era relatar toda a situação a M
assim que embarcasse no Queen Elizabeth. Daí por diante Londres tomaria conta do caso. Os homens de Vallance sairiam a campo. Bond não teria muito que fazer quando regressasse. Relatórios e mais relatórios a escrever.
A mesma velha rotina no escritório. E de noite haveria Tiffany no quarto atualmente desocupado de seu apartamento, numa transversal de Kings Road. Precisava mandar um telegrama para May a fim de que ela arrumasse as coisas. Vejamos... flores, sais de banho de Floris, lençóis limpos...
Dez horas depois de terem deixado Los Angeles, sobrevoaram La Guardiã e viraram para o mar a fim de preparar o pouso.
Eram oito horas da manhã de domingo e havia pouca gente no aeroporto, mas um funcionário interrompeu-lhes a caminhada quando seguiam pela pista alcatroada e os conduziu para uma entrada lateral, onde os esperavam um homem de Pinkerton e um representante do Departamento de Estado.
Enquanto conversavam, a bagagem foi-lhes trazida. Depois, levaram-nos para fora da estação de passageiros, onde os aguardava um elegante Pontiac marrom, com o motor em movimento e as persianas do vidro traseiro abaixadas.
Passaram ainda algumas horas de ócio no apartamento do homem de Pinkerton até que, por volta das quatro da tarde, mas com um quarto de hora de diferença entre eles, galgaram a prancha de embarque, penetraram no negro, majestoso e seguro ventre britânico do Queen Elizabeth e, por fim, encerraram-se em seus camarotes no convés M, com as portas trancadas para o mundo.
Mas, quando, em primeiro lugar, Tiffany Case e, depois, Bond puseram os pés na prancha de embarque, um doqueiro do Sindicato de Estivadores de Anastásia correu para a cabina telefônica do galpão da alfândega.
E três horas mais tarde dois homens de negócios americanos saltavam de um sedan negro à porta de um armazém das docas, passavam às pressas pelo serviço de imigração e pela alfândega e galgavam a prancha de embarque, quando os alto-falantes começavam a pedir aos visitantes que desembarcassem.
Um dos homens de negócios era ainda jovem, de feições delicadas e fios de cabelos embranquecidos aparecendo sob o Stetson recoberto por uma capa impermeável. O nome impresso na pasta que carregava era B.
Kitteridge. O outro era um gorducho grandalhão, com um brilho nervoso nos olhos miúdos por trás das lentes bifocais. Suava em bicas e constantemente enxugava o rosto com um lenço enorme. O nome no cartão pendurado na alça da pasta era W. Winter. Em baixo do nome, lia-se em tinta vermelha: MEU GRUPO SANGuÍNEO É F.
22 - Amor e molho bearnês
Às OITO HORAS em ponto, o prolongado e ressoante apito da sirena do Queen Elizabeth fez tremer a vidraça dos arranha-céus. Com grande rebuliço, os rebocadores arrastaram-no para o meio do rio, abrindo-lhe o caminho. Por fim, desenvolvendo cautelosamente cinco nós, o transatlântico pôs-se a descer o rio, cortando as águas remansosas.
Após a parada para desembarcar o prático no Farol de Ambrose, as quádruplas hélices fustigariam o mar, convertendo-o em creme de leite, e o Queen Elizabeth, com um estremecimento de alívio, começaria a fender o longo arco achatado, entre os paralelos 45 e 50, a caminho de Southampton.
Sentado no camarote, escutando o ranger do madeiramento e contemplando o lápis rolar suavemente em cima da penteadeira, entre a escova de cabelo e a borda de seu passaporte, Bond recordava os dias em que outra era a rota da embarcação, os dias em que ela ziguezagueava no Atlântico Sul, brincando de esconde-esconde com os ferozes cardumes de submarinos alemães, a caminho da Europa em chamas. Ainda era uma aventura, mas agora o Queen Elizabeth — protegido num casulo de radar, rádio e sondador de ecos — movia-se com as precauções de um potentado oriental entre escoltas e batedores e, no que dizia respeito a Bond, tédio e indigestão eram os únicos riscos da viagem.
Pegou o telefone e pediu para falar com Miss Case. Quando ela lhe ouviu a voz, rompeu num gemido teatral.
— A loba do mar odeia o mar — disse ela. — Ainda não saímos do rio e eu já estou enjoada.
— Não faz mal — disse Bond. — Não saia do camarote e tome dramamina e champanha. Vou passar uns dois ou três dias em repouso. Vou mandar chamar o médico e o massagista dos banhos turcos pra ver se junto de novo as peças. E de qualquer modo não faz mal nenhum que a gente passe a maior parte da viagem no camarote. É possível que nos tenham localizado em Nova York.
— Bom, se você promete telefonar todos os dias — disse Tiffany — e promete me levar àquela Veranda Grill logo que eu puder engolir um pouco de caviar, eu concordo. Está bem assim?
Bond soltou uma gargalhada.
— Já que você insiste, eu prometo — disse ele. — E agora, escute. Em troca, eu quero que você tente lembrar-se de tudo o que puder a respeito de ABC e do lado londrino de nosso negócio. Aquele número de telefone e o mais que você julgar importante. Logo que puder, eu lhe direi por que estou interessado nisso. Por enquanto você tem de confiar em mim. Combinado?
— Combinado — disse a moça com indiferença, como se toda essa fase de sua vida tivesse perdido o interesse; e, durante dez minutos, Bond inquiriu-a minuciosa, mas (exceto no que tocava a pormenores insignificantes) inutilmente, acerca das atividades de ABC.
Depois desligou o telefone, chamou o camareiro, encomendou o jantar e sentou-se para escrever o longo relatório que teria de transpor em código e despachar naquela mesma noite.
O rebocador conduziu tranquilamente o navio para a treva, e a cidadezinha de três mil e quinhentos habitantes preparou-se para viver os cinco dias da viagem, durante os quais poderiam registrar-se todas as ocorrências naturais em qualquer outra comunidade desse porte — furtos, brigas, seduções, bebedeiras, embustes, talvez um ou dois partos, a possibilidade de um suicídio e, em cem travessias, até mesmo um homicídio.
Quando o burgo de ferro começou a sulcar serenamente a imensidão do Atlântico e a brisa suave da noite zuniu e gemeu no topo do mastro, as antenas de rádio já estavam transmitindo a mensagem do operador de serviço ao ouvido atento de Portishead.
E o que o operador enviava, precisamente às dez horas da noite, E. S. T., era um telegrama endereçado a ABC, CUIDADOS HOUSE OF DIAMONDS, HATTON GARDEN, LONDRES, e
que dizia:
LOCALIZADOS PT CASO ASSUNTO EXIJA SOLUÇÃO DRÁSTICA ESSENCIAL VOCÊ FIXAR PREÇO PAGO EM DÓLARES. Assinado: WINTER.
Uma hora depois, enquanto o operador do Queen Elizabeth lamentava ter de transmitir quinhentos grupos de cinco letras dirigidos ao DIRETOR PRESIDENTE, EXPORTADORA UNIVERSAL, REGENTS PARK, LONDRES, o rádio de Portishead enviava uma breve mensagem a WINTER, PASSAGEIRO PRIMEIRA CLASSE QUEEN ELIZABETH, que dizia:
DESEJO SOLUÇÃO IMEDIATA PROBLEMA CASE PT PAGAREI VINTE MIL PT
CUIDAREI PESSOALMENTE OUTRO ASSUNTO CHEGADA LONDRES CONFIRME ABC.
O operador procurou Winter na lista de passageiros, meteu a mensagem num envelope e enviou-a a um camarote no convés A, abaixo do de Bond e da moça, onde os dois homens jogavam cartas em mangas de camisa.
Quando o mensageiro saiu do camarote, ouviu o gorducho dizer para o homem dos cabelos brancos: — Pois é, Kidd. Vinte mil. É pra valer!
Não foi senão no terceiro dia que Bond e Tiffany resolveram encontrar-se no Observation Lounge, para um coquetel, e mais tarde no Veranda Grill, para jantar. Ao meio-dia, a calmaria era total, e depois do almoço no camarote Bond recebera um ultimato em redondo cursivo feminino numa folha de bloco do navio: "Marque um encontro comigo hoje. Não falhe".
Imediatamente Bond pegara o telefone.
Estavam sedentos da companhia um do outro depois dos três dias de separação, mas as defesas de Tiffany estavam de pé quando ela se reuniu a ele na escura mesa de canto que Bond havia escolhido na cintilante sala semicircular, situada na proa.
— Que espécie de mesa é esta? — perguntou ela com sarcasmo. — Está com vergonha de mim? Então eu ponho o mais belo modelo dos costureiros de Hollywood e você me esconde como se eu fosse Miss Reno 1914? Quero me divertir nessa geringonça e você me bota num canto como se eu fosse contagiosa.
— É isso mesmo — disse Bond. — O que você quer é elevar a temperatura de outros homens.
— Que é que você espera que uma moça faça no Queen Elizabeth?
Pescar?
Bond riu. Acenou para o garçom e pediu vodca-martini seco com casca de limão.
— Eu podia te oferecer uma alternativa.
— Já sei — disse a moça. — Meu querido diário: estou na maravilhosa companhia de um inglês bonitão. O que me aflige é saber que ele anda atrás das jóias da minha família. Que devo fazer? Sua criada, desorientada. — Num movimento súbito, ela inclinou o busto para a frente e pousou a mão na do homem. — Escute aqui, mestre Bond — disse ela. — Estou felicíssima.
Adoro isso aqui. Adoro estar com você. E adoro esta mesinha escura onde ninguém pode me ver segurando sua mão. Não ligue pra minha conversa. É que eu não posso me conter de tão feliz. Não faça caso das minhas brincadeiras.
Ela vestia uma blusa de xantungue de seda creme e uma saia de algodão e lã preto-carvão. As cores neutras ressaltavam-lhe a tez café-au-lait. O minúsculo relógio Cartier quadrado, com a pulseira preta, era sua única jóia, e as unhas curtas da mão pequena e morena que Bond tinha entre as suas estavam sem esmalte. A luz do sol, refletida do exterior, refulgia no ouro pálido das largas ondas do cabelo, nas profundezas dos cinzentos olhos opalescentes e nos alvos dentes que cintilavam entre os lábios sensuais.
— Não — disse Bond. — Não farei caso, Tiffany. Tudo em você é esplêndido.
Ela o encarou nos olhos e ficou satisfeita. O garçom trouxe-lhes a bebida. Ela retirou a mão e observou-o ironicamente por cima da borda de seu copo.
— Agora eu quero saber umas coisinhas — disse ela. — Em primeiro lugar, o que é que você faz e para quem trabalha? A princípio, no hotel, pensei que você era um vigarista. Mas, não sei por quê, quando você foi embora, vi que não era. Acho que devia ter avisado ABC, e com isso teria evitado essa onda toda. Não avisei, e pronto! Vamos, James. Responda.
— Trabalho para o governo — disse Bond —, que quer acabar com esse contrabando de diamantes.
— Espécie de agente secreto?
— Funcionário público, apenas.
— Está bem. E o que é que você vai fazer comigo quando chegarmos a Londres? Trancafiar-me?
— Sim. No quarto desocupado de meu apartamento.
— Assim é melhor. Terei de me tornar súdita da Rainha como você?
Gostaria de ser súdita.
— Acho que podemos arranjar isso pra você.
— É casado? — Fez uma pausa. — Ou tem alguma ligação?
— Não. Um caso ou outro de vez em quando.
— Quer dizer então que você é um desses sujeitos fora de moda que gostam de dormir com mulher? Por que não se casou?
— Creio que porque eu acho que posso manobrar melhor a minha vida sozinho. A maioria dos casamentos não soma duas pessoas. Subtrai uma da outra.
Tiffany Case refletiu um pouco.
— Talvez você tenha razão — disse ela, afinal. — Mas depende do que se soma. Pode ser algo humano ou inumano. Ninguém é auto-suficiente.
— E você?
A moça não gostou da pergunta.
— Talvez eu esteja do lado do inumano — respondeu com rispidez. — E com que diabo de homem você queria que eu me casasse? Com Shady Tree?
— Pode ter havido muitos outros.
— Não houve — disse ela com raiva. — Você é capaz de achar que eu não devia ter me misturado com esses calhordas. Bem, talvez eu tenha dado o passo que não devia dar. — A chama de cólera se apagou e a moça assumiu a defensiva. — Isso acontece com certas pessoas, James. Acontece mesmo. E às vezes não é culpa delas.
James Bond estirou o braço e apertou a mão da moça.
— Eu sei, Tiffany — disse ele. — Félix me contou. É por isso que não perguntei nada. Não pense mais nisso, não. O que importa é o dia de hoje, aqui, agora. Não o dia de ontem. — Desviou o assunto. — Agora é a sua vez de me fornecer alguns fatos. Por exemplo, de onde é que vem esse nome Tiffany e que tal ser banqueira no Tiara? Como é que você chegou a cartear tão bem? Simplesmente espetacular a maneira como você tratava aquele baralho. Se pode fazer aquilo, pode fazer qualquer outra coisa.
— Não diga — replicou a moça com ironia. — Fazer o quê, por exemplo? Brincar de sapateira? E quanto ao nome Tiffany a explicação é simples. Quando eu nasci, papai Case ficou tão zangado por eu não ser menino que deu à minha mãe mil dólares e uma lata de talco comprada em Tiffany e foi embora de casa. Foi ser fuzileiro naval. Terminou morrendo em Iwo Jima. Então minha mãe me botou o nome de Tiffany Case e tratou de ganhar a vida pra nós duas. Começou com uma espelunca e umas garotas e com o tempo foi ficando mais ambiciosa. Talvez essa história não seja muito do seu agrado.
Ela lhe lançou um olhar meio defensivo, meio suplicante.
— Não me preocupa — disse Bond secamente. — Você não era uma das pequenas.
Ela deu de ombros.
— Um dia o lugar foi invadido pelos gangsters. — Interrompeu-se para beber o resto do martini. — E eu dei no pé, por minha conta. Passei pelos empregos comuns a todas as moças. Depois fui para Reno. Lá eles mantêm uma escola de jogo e eu dei duro. Curso completo. Dados, roleta e vinte-e-um. Pode-se ganhar bom dinheiro nos cassinos. Duzentos por semana. Os homens gostam quando as moças bancam o jogo e as mulheres se sentem mais confiantes. Acreditam que a gente vai se mostrar bondosa com elas.
Pensam estar entre irmãs. Quando são homens que bancam o jogo, elas se apavoram. Mas não pense que essa estória toda é assim tão engraçada.
Contada, é uma coisa; vivida, é outra. — Fez uma pausa e sorriu. — Tenha a palavra, agora. É a sua vez. Pague mais um trago e me diga que tipo de mulher você acha que soma com você.
Bond chamou o garçom. Acendeu um cigarro e voltou-se para Tiffany.
— Alguém que saiba fazer molho bearnês e amor — disse ele.
— Já sei! Qualquer bruxa velha que saiba cozinhar e deitar-se de costas.
— Ah, não. Ela precisa ter todas essas coisas que as mulheres geralmente têm. — Bond examinou-a. — Cabelo cor de ouro. Olhos cinzentos. Boca pecadora. Silhueta perfeita. E naturalmente tem de contar piadas engraçadas, vestir-se bem e jogar cartas. As prendas naturais.
— E você casaria com uma mulher assim, se a encontrasse?
— Não necessariamente — disse Bond. — Pra falar com franqueza, já sou quase casado. Com um homem cujo nome começa com M. Teria de me divorciar dele antes de casar com uma mulher. E não sei se isso me agradaria. Ela me obrigaria a passar canapés de mão em mão numa sala de visita em forma de L. E haveria aquelas chatérrimas discussões "Foi você — Não, foi você" que parecem combinar tão bem com todos os casamentos.
Não daria certo. No primeiro acesso de claustro-fobia, iria embora pro Japão ou pra qualquer outra parte.
— E filhos?
— Gostaria de ter alguns — disse Bond. — Mas só quando me aposentasse. De outra forma, não seria justo. Meu trabalho não é lá muito seguro. — Olhou para o copo e bebeu todo o martini. — E você, Tiffany? — perguntou, a fim de mudar de assunto.
— Acho que toda moça gostaria de chegar em casa e encontrar um chapéu na mesinha do corredor — disse Tiffany, melancólica. — O diabo é que eu nunca encontrei nada que prestasse debaixo do chapéu. Talvez não tenha procurado bastante ou não tenha procurado nos lugares certos. Você sabe como é: quando a gente entra na rotina não quer mais sair. Assim fiz eu no meio dos Spangs. Sabia sempre de onde era que vinha a comida. Fiz algumas economias. Mas uma moça não pode ter amigos naquele ambiente.
Ou bota uma placa "Proibida a Entrada" ou de uma hora pra outra se vê cercada de malandros. Mas acho que já estou farta de viver só. Conhece o refrão das coristas da Broadway? "É triste a trouxa de roupa que não tem uma camisa de homem".
Bond riu.
— Mas agora você está fora da rotina — disse ele e olhou-a zombeteiramente. — E Mr. Seraffimo? E aqueles dois quartos de dormir no Pullman, a ceia para dois com champanha...?
Antes que concluísse, ela levantou-se da mesa, os olhos vermelhos, e caminhou para fora do bar.
Bond se amaldiçoou. Colocou algum dinheiro sobre a conta e saiu correndo atrás dela. Foi encontrá-la quase no meio do tombadilho de passeio.
— Por favor, Tiffany, escute — começou ele.
Ela voltou-se e encarou-o.
— Como se pode ser tão mesquinho? — disse ela, e lágrimas iradas brilharam-lhe nos cílios. — Por que você tem de estragar tudo com uma observação ferina como aquela? Oh, James! — Em desespero virou-se para as janelas, procurando um lencinho na bolsa. Enxugou os olhos. — Você simplesmente não compreende.
Bond cingiu-a com um braço e puxou-a para si.
— Meu amor! — Sabia que nada senão o grande passo do amor físico curaria esses mal-entendidos, mas que era necessário ;ainda desperdiçar tempo e palavras. — Não tive a intenção de magoar você. Eu queria somente ter certeza. Aquela mesa posta para a ceia no trem me feriu muito mais do que o que aconteceu depois. Tinha de lhe fazer aquela pergunta.
Ela ergueu a vista, ainda em dúvida.
— Está falando sério? — perguntou, observando-lhe o rosto. — Quer dizer que você já me queria bem?
— Não seja boba — disse Bond, impaciente. — Então você não sabe nada de nada?
Ela afastou-se e contemplou pela janela o infindável mar azul e as gaivotas que acompanhavam esse navio extraordinariamente pródigo.
Depois de algum tempo, perguntou:
— Você já leu Alice no País das Maravilhas?
— Há muitos anos — disse Bond, surpreso. — Por quê?
— Há lá umas linhas que muitas vezes me vêm à memória — disse ela.
— "Oh Ratinho, conheces o caminho que conduz para fora deste poço de lágrimas? Estou muito cansada de nadar dentro dele, oh Ratinho". Lembra-se dessa passagem? Pois bem, eu pensava que você ia me mostrar a saída e, em vez disso, você me empurra pra dentro do poço. Por isso é que fiquei transtornada. — Ergueu a vista. — Mas acredito que você não teve intenção de me magoar.
Bond olhou-lhe a boca demoradamente e depois beijou-a nos lábios.
Ela não retribuiu e esquivou-se. Seus olhos sorriam de novo. Deu o braço a ele e voltou-se para as portas abertas que conduziam ao elevador.
— Me leve lá pra baixo — disse ela. — Preciso recompor a fachada e, além disso, quero me preparar com cuidado para agradar ao candidato. — Ficou um instante em silêncio e depois colou a boca no ouvido dele. — Talvez isso lhe interesse, James Bond — disse baixinho. — Nunca em minha vida fiz o que você chama "dormir com um homem". — Puxou-o pelo braço. — Agora vamos — disse bruscamente. — Afinal, já é hora de tomar um "quente doméstico". Suponho que isso faz parte da língua dos súditos que você está querendo que eu aprenda. Vocês, súditos, escrevem as coisas mais loucas nos banheiros.
Bond levou-a até o camarote dela, voltou para o seu e tomou um "quente salgado" na banheira, seguido de um "frio doméstico" no chuveiro. Depois, estirou-se na cama, recordando com um sorriso algumas das coisas que ela havia dito, e pensou nela, deitada na banheira, intrigada com a floresta de torneiras e imaginando que os ingleses eram loucos varridos.
Soou uma pancada na porta e o camareiro entrou com uma bandejinha que colocou em cima da mesa.
— Que diabo é isso? — perguntou Bond.
— Foi enviado pelo cozinheiro-chefe, senhor — respondeu o camareiro, retirando-se em seguida e fechando a porta do camarote.
Bond desceu da cama e foi examinar o conteúdo da bandeja. Não pôde deixar de rir. Havia uma garrafinha de Bollinger, um rescaldeiro com quatro talhadas de bife em canapés de torrada, e uma tijelinha de molho. Debaixo desta, uma nota escrita a lápis dizia: "Este molho bearnês foi criado por Miss T. Case sem minha assistência". Assinado: "O Chefe".
Bond encheu uma taça de champanha, espalhou um pouco de molho numa talhada de bife e mastigou atentamente. Depois foi ao telefone.
— Tiffany?
Ouviu o risinho abafado e divertido no outro extremo do fio.
— Bem, não há dúvida de que você faz um maravilhoso molho bearnês...
Repôs o telefone no gancho.
23 - O trabalho fica em segundo plano
MOMENTO INEBRIANTE NUM CASO amoroso é aquele em que, pela primeira vez, em público, num restaurante ou num teatro, o homem pousa a mão na coxa da mulher e ela, tomando-a nas suas, aperta-a contra si.
Os dois movimentos dizem tudo o que pode ser dito. Concluem todos os acordos. Firmam-se todos os pactos. E há um longo minuto de silêncio durante o qual o sangue canta nas veias.
Eram onze horas e havia poucas pessoas espalhadas nos cantos da Veranda Grill. O mar arfava baixinho sob o luar lá fora e o magnífico paquete arava a negra pradaria do Atlântico. À popa, apenas um levíssimo galope mostrava uma suave ondulação, as doze lentas pulsações por minuto de um oceano adormecido, aos dois seres aconchegados atrás do quebra-luz cor-de-rosa.
O garçom trouxe-lhes a conta, e suas mãos se separaram. Mas agora dispunham de todo o tempo do mundo e não precisavam afirmar seus sentimentos com palavras e contactos. Quando o garçom retirou os pratos, a moça fitou Bond com um sorriso de felicidade os dois encaminharam-se para a porta.
Entraram no elevador para o Tombadilho de Passeio.
— Que faremos agora, James? — perguntou Tiffany. — Gostaria de tomar mais uma café e um Stinger preparado com creme de menthe branco, enquanto estivéssemos escutando o leilão. Já ouvi falar tanto dele e bem que poderíamos ganhar uma fortuna.
— Está bem — disse Bond. — O que você desejar. — Tomou-a pelo braço e atravessaram vagarosamente a grande sala de estar, onde o víspora ia em meio, e o salão de baile, onde os músicos afinavam os instrumentos. — Mas não me obrigue a comprar nenhum número. É um jogo como os outros, e cinco por cento destinam-se à beneficência. Quase a mesma coisa que em Las Vegas. Mas é divertido quando há um bom leiloeiro. E dizem também que há muito dinheiro a bordo.
O salão de fumar estava quase deserto. Escolheram uma mesinha longe da plataforma onde o Comissário arrumava os apetrechos do leiloeiro, a caixa com os papeluchos numerados, o martelo, a garrafa de água.
— A casa está fraca — disse Tiffany ao sentarem-se no meio da floresta de cadeiras e mesas vazias. Mas, quando Bond fez o pedido ao garçom, as portas do cinema se abriram e cerca de cem pessoas ocuparam o salão de fumar.
O leiloeiro, um comerciante dos Midlands, pançudo e jovial, com um cravo vermelho na lapela do dinner jacket, bateu na mesa pedindo silêncio e anunciou que a previsão do Capitão para o percurso do dia seguinte era de 720 a 739 milhas, que qualquer distância abaixo de 720 era o Campo Inferior e acima de 739 era o Campo Superior.
— E agora, minhas senhoras e meus senhores, vejamos se é possível quebrar o recorde estabelecido nesta viagem, que atinge a cifra impressionante de 2.400 libras esterlinas. (Aplausos). ; Um camareiro ofereceu a caixa com os números dobrados à mulher de ar mais aristocrático do salão e depois entregou ao leiloeiro o papelzinho que ela havia sorteado.
— Bem, senhoras e senhores, temos aqui, para começar, um número excepcionalmente bom. 738. Exatamente no limite máximo, e desde que vejo aqui, esta noite, tantas caras novas (risos), creio que todos concordaremos em que o mar está singularmente calmo. Senhoras e senhores. Quanto me dão por 738? Digamos... 50 libras? Quem me dará 50
libras por este número de sorte? 20, foi o que o senhor falou, cavalheiro?
Bem, temos de partir de alguma oferta. Quem dá... 25? Muito obrigado, minha senhora. E 30. 40 lá adiante, sr. camareiro. E 45 do meu amigo, Mr.
Rothblatt. Muito obrigado, Charlie. Quem dá mais pelo n.° 738? 50. Muito grato, minha senhora. E agora, sim, voltamos ao ponto de partida (risos). 50.
Quem dá 55? Então ficamos em 50. Dou-lhe uma... Dou-lhe duas... — e o martelo erguido bateu na mesa.
— Ainda bem que temos um bom leiloeiro — disse Bond.
— O número era bom. E barato, se o tempo continuar como está e ninguém se jogar no mar. O Campo Superior custará uma bolada esta noite.
Todo mundo espera que o navio faça mais de 739 milhas nesse tempo.
— Essa bolada quer dizer quanto? — perguntou Tiffany.
— Duzentas libras. Talvez mais. Acho que os números normais serão leiloados por umas cem libras. O primeiro número é sempre mais barato do que os outros. O pessoal ainda está frio. A única esperteza que se pode demonstrar neste jogo é arrematar o primeiro número sorteado. Qualquer número pode ganhar, mas o primeiro custa menos.
Quando Bond acabou de falar, o segundo número era entregue por 90
libras a uma jovenzinha bonita e excitada, que era abertamente financiada por seu companheiro, um indivíduo grisalho e bem conservado que parecia a caricatura de um Don Juan do Esquive.
— Vamos, James. Arremate um número pra mim — disse Tiffany. — Você não sabe mesmo agradar a uma moça. Veja como aquele cavalheiro é gentil com sua pequena.
— Ele já passou da idade-limite — disse Bond. — Deve estar na casa dos sessenta. Até os quarenta, as pequenas não custam nada. Daí por diante, é preciso gastar dinheiro ou contar uma estória. Das duas coisas, a estória é que dói mais. — Sorriu, fitando-a nos olhos. — Mas eu ainda não cheguei aos quarenta.
— Deixe de presunção — disse a moça, olhando-o na boca. — Dizem que os homens maduros são os melhores amantes. Também, por outro lado, sei que você não é unha-de-fome. Aposto que não quer me presentear um número porque o jogo é ilegal nos navios de Sua Majestade.
— Até que é permitido além do limite de três milhas da costa — disse Bond. — Mesmo assim, a Cunard toma todas as precauções para não envolver o nome da companhia. Escute isto — e apanhou um cartão alaranjado que estava em cima da mesa. — "Leilão de Apostas nas Distâncias Diárias percorridas pelo Navio" — leu para a moça. — "Para os fins de direito, é de toda a conveniência reiterar a posição da Companhia em relação ao supradito Leilão. Não é desejo da Companhia que o encarregado do salão de fumar ou quaisquer outros membros da tripulação desempenhem papel ativo na organização das apostas nas milhas diárias percorridas pelo navio". — Bond levantou a vista. — Está vendo? — perguntou. — Seguro morreu de velho. E tem mais: "A Companhia sugere que os passageiros elejam entre si uma Comissão encarregada de formular e controlar as normas... O encarregado do salão de fumar poderá, se instado e se seus deveres o permitirem, prestar a assistência de que a Comissão venha a necessitar para o leiloamento dos números". Como são cautelosos — comentou Bond. — É a comissão que tem de quebrar os galhos que forem aparecendo. Escute mais isto aqui. É onde entra o problema. — Continuou a leitura: — "A Companhia chama especialmente a atenção de todos para os dispositivos das normas financeiras do Reino Unido, no tocante à negociabilidade dos cheques em esterlinos e à limitação da entrada de cambiais bancárias em esterlinos no Reino Unido".
Bond atirou o cartão em cima da mesa..— E por aí vai — disse ele e sorriu para Tiffany Case. — Assim, eu arremato o número que está sendo leiloado e você ganha duas mil libras. Um montão de cédulas e cheques em dólares e libras. O único meio de gastar essa dinheirama, supondo que os cheques tenham fundos, o que é duvidoso, seria contrabandeá-la debaixo dos suspensórios. E lá estaríamos nós outra vez passando muamba. Só que eu estaria do lado do diabo.
A moça não se impressionou.
— Havia um sujeito na quadrilha chamado Abadaba — disse ela. — Era um malandro fino que tinha resposta para tudo. Calculava as vantagens nas corridas, marcava as percentagens no cassino, enfim, era o crânio do grupo.
Era considerado "O Feiticeiro das Apostas". Teve o azar de ser liquidado por engano ao lado de Dutch Schultz — ajuntou ela à guisa de parêntese. — Você está me saindo outro Abadaba com essa lengalenga que não tem outra finalidade senão evitar de gastar dinheiro com uma pequena. Já vi tudo. — Encolheu os ombros, resignada. — Está bem. Mas pelo menos financie outro Stinger pra sua garota.
Bond chamou o garçom. E quando este se afastou, ela aproximou a cabeça do ouvido dele e disse baixinho. — Eu não quero mais, não. Beba você. Quero estar inteiramente sóbria esta noite. — Empertigou-se. — Mas o que é que está se passando aqui? — perguntou com impaciência. — Vamos, um pouco de ação.
— Aí vem ela — disse Bond.
O leiloeiro levantou a voz e toda a sala pediu silêncio.
— E agora, minhas senhoras e meus senhores — rugiu o leiloeiro — vamos à pergunta mais importante da noite. Quem vai me dar 100 libras pela escolha entre o Campo Superior e o Inferior? Todos sabemos o que isto significa... o direito de escolher o Campo Superior, que, inclino-me a crer, será da preferência geral esta noite (risos), em vista das excelentes condições atmosféricas reinantes lá fora. Então, quem abrirá com cem libras os lances para a escolha do Campo Superior ou Inferior?
— Muito obrigado, cavalheiro! E 110. 120 e 130. Muito obrigado, minha senhora.
— Cento e cinquenta — disse uma voz de homem, não muito distante da mesa de Bond e Tiffany.
— Cento e sessenta.
Desta vez era uma mulher. Monótona, a voz do homem gritou: — 170.
— Oitenta — disse alguém.
— Duzentas libras.
Algo fez com que Bond se voltasse e olhasse o homem que tinha falado.
Era um tipo grandalhão. A cara tinha a aparência lisa, brilhante e escorregadia de um olho de boi. Olhos miúdos, frios e escuros fitavam o estrado do leiloeiro através de imóveis lentes bifocais. Todo o pescoço do homem parecia estar por trás da cabeça. O suor havia emaranhado as algas negras e encaracoladas do cabelo. Enquanto Bond o observava, ele tirou os óculos, pegou um guardanapo e passou a enxugar o suor, com um movimento circular que começou no lado esquerdo do rosto, estendeu-se à nuca, onde a mão esquerda cedeu a vez à mão direita, e esta completou o circuito, atingindo os pingos do nariz.
— Duzentas e dez — disse alguém.
A queixada do homem bamboleou, a boca se descerrou, e ele disse, com nítido sotaque americano:
— Duzentas e vinte.
O que havia nesse indivíduo capaz de ferir uma corda na memória de Bond? O inglês examinou o rosto largo, a imaginação percorrendo todo o arquivo do cérebro, abrindo e fechando gavetas, uma após outra à procura de uma pista. A cara? A voz? Inglaterra? América?
Bond abandonou a busca e voltou a atenção para o outro homem à mesa.
Ainda aqui, a mesma necessidade urgente de reconhecer. As feições jovens e estranhamente delicadas sob os cabelos brancos e lisos. Os olhos castanhos e plácidos sob as longas pestanas. O efeito geral era de delicadeza, perturbada pelo nariz roliço montado na boca larga de lábios finos, agora aberta num sorriso estúpido e vazio como a fenda de uma caixa postal.
— Duzentas e cinquenta — disse o grandalhão mecanicamente.
Bond tornou a olhar para Tiffany.
— Já viu aqueles dois alguma vez? — perguntou ele, e ela notou-lhe a ruga de preocupação entre os olhos.
— Não — disse ela, categórica. — Nunca. Talvez venham do Brooklyn. Podem ser dois comerciantes de roupas feitas da Quinta Avenida. Por quê? Eles lhe dizem alguma coisa?
Bond olhou-os outra vez.
— Não — disse, em dúvida. — Não, acho que não.
Palmas estrugiram na sala. Radiante, o leiloeiro bateu na mesa.
— Senhoras e senhores — disse ele, triunfante. — Isto é realmente maravilhoso. Trezentas libras é o lance daquela encantadora senhora de esplêndido vestido cor-de-rosa (Cabeças viravam-se, pescoços esticavam-se, e Bond ouviu a pergunta: — Quem é ela? E agora, cavalheiro — o leiloeiro indicava a mesa do homem gordo — posso anunciar 325 libras?
— Trezentas e cinquenta — disse o gordo.
— Quatrocentas — ganiu a mulher de vestido cor-de-rosa.
— Quinhentas.
A voz era incolor, indiferente.
A moça de cor-de-rosa tagarelou irritada com seu acompanhante. O homem assumiu um ar entediado. Acompanhou o olhar do leiloeiro e balançou a cabeça.
— Quem se dispõe a dar mais? — disse o leiloeiro. Sabia agora que a sala já dera o que tinha de dar. — Dou-lhe uma... Dou-lhe duas... — Pam! — Arrematado pelo cavalheiro. E eu acredito sinceramente que ele merece uma salva de palmas.
Deu início às palmas e os presentes o acompanharam, embora preferissem que a moça tivesse levado a melhor.
O gordo ergueu-se algumas polegadas e voltou a sentar-se. Não havia em seu rosto lustroso nenhum sinal de agradecimento aos aplausos, e seus olhos fixavam-se no leiloeiro.
— E agora temos de cumprir a formalidade de perguntar ao cavalheiro qual é o Campo que ele prefere. (Risos). Cavalheiro, o senhor escolhe o Campo Superior ou o Campo Inferior?
O tom do leiloeiro era irônico. A pergunta era ociosa.
— Campo Inferior.
Houve um momento de silêncio constrangedor no apinhado salão de fumar. E logo se seguiram os comentários à meia-voz. Nenhuma pergunta foi feita. Era óbvio que o homem devia escolher o Campo Superior. As condições atmosféricas eram ideais. O Queen Elizabeth vinha desenvolvendo pelo menos trinta nós. Estaria o homem a par de alguma coisa? Teria pago por alguma informação na ponte de comando? Haveria alguma tempestade à vista? Algum defeito nas máquinas?
O leiloeiro martelou na mesa, pedindo silêncio.
— Queira me perdoar, cavalheiro — disse ele — mas o senhor escolheu mesmo o Campo Inferior?
— Sim.
O leiloeiro tornou a martelar.
— Nesse caso, senhoras e senhores, comecemos agora a leiloar o Campo Superior. Minha senhora — voltou-se com uma curvatura para a moça de cor-de-rosa — quer ter a gentileza de fazer o primeiro lance?
Bond virou-se para Tiffany.
— Que coisa esquisita — disse ele. — É extraordinário. O mar está calmo como um lago. — Deu de ombros. — A única resposta é que eles devem estar informados de alguma coisa.
— A questão era desprovida de interesse, no fim de contas.
— Alguém deve ter dito alguma coisa àqueles dois. — Girou a cabeça e, depois, despreocupadamente, passeou o olhar pelos dois indivíduos. — Parece que eles estão interessadíssimos na gente.
Tiffany olhou por cima do ombro.
— Não estão olhando pra cá, não — disse ela. — A impressão que eu tenho é que são dois palermas. O grisalho tem um ar de idiota e o gordo está chupando o polegar. Dois malucos. Acho que nem sabem o que arremataram. Trocaram as bolas.
— Chupando o polegar? — perguntou Bond. Passou a mão pelo cabelo, distraidamente, uma vaga lembrança a verrumar-lhe o cérebro.
Talvez, se ela lhe tivesse permitido seguir o fio de seus pensamentos, ele tivesse dado no alvo. Mas ela colocou a mão sobre a dele e, aproximando-se, roçou-lhe o rosto com os cabelos.
— Esqueça isso, James — disse ela. — E não pense tanto naqueles dois imbecis. — Os olhos dela ardiam e exigiam. — Chega deste lugar. Leve-me a outra parte.
Sem se dizerem mais uma palavra, ergueram-se, afastaram-se da mesa e saíram da sala barulhenta, caminhando em direção à escada. Começaram a descer e, quando chegaram ao meio, o braço de Bond circundou a cintura da moça, e ela deitou a cabeça no ombro dele.
Chegaram à porta do camarote de Tiffany, mas ela deu meia volta e arrastou Bond pelo corredor comprido, macio e rangente.
— Eu quero que seja na sua casa, James — disse ela.
Bond só voltou a falar depois de ter fechado a porta de seu camarote com um pontapé e de se terem abraçado no meio daquele quartinho maravilhosamente reservado e anônimo. E dizendo, com ternura, "Meu amor" pôs uma das mãos sobre os cabelos dela de modo a manter-lhe a boca sob a sua.
Algum tempo depois, sua outra mão desceu até o fecho-relâmpago do vestido, por trás, e a moça, sem interromper o abraço, deixou cair o vestido e disse, ofegante, entre beijos:
— Quero tudo, James. Tudo o que você já fez com uma mulher. Agora.
Agora mesmo.
E Bond inclinou-se, envolveu-lhe as coxas com um braço, levantou-a e deitou-a suavemente no soalho.
24 - A morte é permanente
A ÚLTIMA COISA de que Bond se lembrou antes de soar a campainha do telefone foi de Tiffany debruçada sobre ele, na cama, beijando-o e dizendo-lhe: "Não durma sobre o lado esquerdo, meu amor. É ruim para o coração.
Pode parar de bater. Vire-se". E, obediente, ele se virava. E, quando a porta bateu de leve, ele estava dormindo de novo, embalado pela voz da moça, pela pulsação do Atlântico e pelo macio balanço do navio.
Depois, a campainha impertinente soou e tornou a soar no camarote escuro. Bond praguejou, estendeu o braço para o telefone, e uma voz disse: — Desculpe-me incomodá-lo, senhor. Aqui é o telegrafista, Acaba de chegar uma mensagem em código para o senhor, com um prefixo en clair "Urgentíssimo". Quer que leia pelo telefone ou envie pelo mensageiro?
— Envie pelo mensageiro, pode ser? — disse Bond. — Muito obrigado.
E que diabo queriam agora? Toda a beleza, todo o ardor, toda a exaltação da paixão amorosa foram postas de lado quando ele acendeu a lâmpada, pulou da cama e, balançando a cabeça, a fim de afastar o torpor, deu dois passos para o chuveiro.
Durante um bom minuto deixou que a água caísse sobre si. Depois, enxugou-se com a toalha, apanhou do chão as calças e a camisa e vestiu-as.
Houve uma pancada na porta. Bond recebeu o telegrama, sentou-se à escrivaninha, acendeu um cigarro e entregou-se ferozmente ao trabalho. E, à medida que os grupos paulatinamente se dissolviam em palavras, seus olhos se apertavam e a pele se lhe arrepiava no corpo.
O telegrama, passado pelo Chefe do Pessoal, dizia:
Primeiro vg busca clandestina escritório Saye revelou telegrama do QE endereçado ABC assinado Winter comunicando presença sua e Case a bordo solicitando instruções pt Resposta endereçada Winter assinado ABC ordena eliminação de Case vg preço vinte mil dólares pt Segundo vg consideramos Rufus B. Saye é ABC que é mais ou menos equivalente pronúncia suas iniciais em francês pt Terceiro vg possivelmente alarmado sinais de busca Saye voou Paris ontem e agora informa Polinter estar em Dakar pt Isto parece confirmar nossas suspeitas que diamantes provêm minas Serra Leoa daí contrabandeados fronteira Guiné Francesa pt Suspeitamos fortemente elemento clínica dentária de Sierra International em observação pt Quarto vg Canberra Raf espera você Boscombe Down para voo imediato amanhã noite a Serra Leoa assinado CDP.
Bond gelou na cadeira. De supetão, acudiu ao seu espírito o mais sinistro verso de toda a poesia: "Enganam-se os que me evitam. Quando voam de mim, eu sou as asas".
Então alguém da quadrilha de Spang estava a bordo e viajava com eles. Quem? Onde?
A mão agarrou o telefone: — Miss Case, por favor.
Ouviu o aparelho ao pé da cama dela produzir um estalido e em seguida disparar 'a primeira campainhada. A segunda. A terceira. Mais uma só. Bond colocou o receptor de volta no gancho e enfiou pelo corredor até o camarote de Tiffany. Nada. Vazio. A cama arrumada. As luzes acesas. Mas a bolsinha dela estava no tapete e os objetos espalhados ao redor. Tinha entrado no camarote. O homem se escondera atrás da porta. Talvez tivesse aplicado uma cacetada. E depois?
As vigias estavam fechadas. Examinou o banheiro. Nada.
Bond parou no meio do camarote. Seu cérebro estava frio como gelo. O que ele, Bond, teria feito? Antes de matá-la, tê-la-ia interrogado, descoberto o que ela sabia, o que fazia, quem era o homem que a acompanhava. Tê-la-ia levado depois para o camarote em que ele viajava a fim de poder agir sem ser perturbado. Se o encontrassem arrastando-a pelo corredor, bastaria piscar um olho e balançar a cabeça: "Bebeu muita champanha esta noite. Não, não precisa, muito obrigado, eu me arranjo". Mas, qual era o camarote? E havia quanto tempo ele a tinha levado?
Bond consultou o relógio quando ia no corredor. Três horas. Ela devia ter saído da cama dele pouco depois das duas. Devia telefonar para a ponte de comando? Dar alarma? Penosos instantes de explicações, suspeitas, obstáculos. "Meu caro senhor, isto parece incrível!" Tentativas para acalmá-lo. "Claro, senhor, faremos o que estiver ao nosso alcance". O olhar polido do funcionário, para quem tudo não passaria de embriaguez, ciúme e até mesmo de um meio de deter a marcha do navio e ganhar a aposta no Campo Inferior.
O Campo Inferior! Homem ao mar! O navio detido!
Bond fechou a porta de seu camarote e foi direto à Lista de Passageiros.
E por que não? Winter. Ei-lo aqui. A49. O convés de baixo. E então, de repente, o cérebro de Bond funcionou como um computador. Winter. Wint e Kidd. Os dois pistoleiros. Os encapuzados. Outra vez a lista de passageiros.
Kitteridge. No A49 também. O grisalho e o gordo do avião da BOAC na viagem de Londres a Nova York. "Meu grupo sanguíneo é F." A escolta secreta de Tiffany. E a descrição de Leiter. "Chamam-no Goela porque tem medo de viajar". "Um dia vai-se arrepender de não ter extraído aquela verruga". A verruga vermelha na primeira articulação do dedo que segurava o cão da arma apontada para Tingaling Bell. E Tiffany dizendo: "São dois palermas. O gordo está chupando o polegar!" E os dois, no salão de fumar, procurando ganhar dinheiro com a morte que haviam planejado. A mulher atirada ao mar. O alarma anônimo, no caso de passar o corpo despercebido pelo vigia da popa. O navio detido, a volta, a busca nas águas. E mais três mil libras para os bolsos dos assassinos.
Wint e Kidd. Os pistoleiros de Detroit.
Todo o carretel de filmes embaralhados desenovelou-se na mente de Bond no espaço de um segundo, e mesmo enquanto os esquadrinhava, ia ele abrindo a pasta e revolvendo o compartimento secreto à procura do silenciador. Como um autômato, retirou a Beretta do meio de suas coisas no fundo de um gavetão, examinou o pente e ajustou o silenciador à boca da arma. Simultaneamente, pesava as probabilidades e planejava os passos que devia dar.
Pegou a planta do navio que tinha vindo com o bilhete de passagem.
Esparramou-a à sua frente enquanto calçava as meias. A49. Exatamente debaixo de seu camarote. Haveria probabilidade de arrebentar a fechadura com um tiro e pegar os dois homens antes que eles o pegassem? Nenhuma, quase. Sem dúvida tinham fechado a porta com a chave e o trinco. Ou levar consigo alguns membros da tripulação, se pudesse persuadi-los do perigo que Tiffany corria? Enquanto ele tentasse convencê-los, os dois homens a atirariam pela vigia. E, quando, afinal, conseguissem entrar no camarote, Wint e Kidd estariam lendo calmamente ou jogando cartas e berrariam: — Que é que vocês querem aqui?
Bond meteu a arma nos cós das calças e com um violento puxão escancarou uma das duas vigias do camarote. Enfiou por ela os ombros e alegrou-se ao descobrir uma folga de uma ou duas-polegadas. Espichou o pescoço para baixo. Dois círculos mal iluminados, exatamente sob suas vigias. A que distância? Uns oito pés. A noite continuava parada, calma, tranquilizadora, e ele se achava no lado ensombrado do navio. Avistá-lo-iam da ponte volante? Estaria aberta alguma das vigias do A49?
Bond deixou-se cair novamente em seu camarote e arrancou os lençóis da cama. O nó de porco. Seria mais seguro. Mas teria de rasgar os lençóis e emendá-los para obter o comprimento necessário. Se tudo desse certo, teria de trazer alguns lençóis do A49 e deixar o camareiro intrigado com o desaparecimento. Se desse errado, tanto fazia.
Experimentou a "corda" com toda a força. Devia aguentar. Ao amarrar uma extremidade em volta da dobradiça da vigia, deu uma olhada no relógio.
Só doze minutos tinham passado desde que lera o telegrama. Demorara demais? Trincou os dentes, atirou a "corda" pelo costado do navio e introduziu a cabeça.
Não pense em nada. Não olhe para baixo. Não olhe para cima. Não se importe com os nós. Devagar, firme, uma mão, isto, a outra.
A brisa da noite tocava-o de leve e empurrava-o de encontro aos negros rebites de ferro, e lá embaixo soava o gemido cavo do mar. No alto, o vento zunia no cordame, e mais acima, no firmamento, as estrelas dançavam à volta dos mastros.
Os malditos, os bem-amados lençóis resistiriam? A vertigem o venceria?
Seus braços suportariam o peso? Não pense nisso. Não pense no imenso navio, no oceano faminto, nas quádruplas hélices gigantescas aguardando o momento de lhe retalhar o corpo. Você é um menino que está descendo da macieira. É tão fácil e seguro lá no pomar, com o relvado que apara a queda.
Bond expulsou da mente todos esses pensamentos. Olhou para as mãos e sentiu a aspereza da pintura contra os nós dos dedos. Os pés, sensíveis como antenas, tateavam em busca do primeiro contacto com a vigia.
Ali. Os dedos do pé direito haviam tocado o rebordo saliente. É preciso parar. É PRECISO ter paciência e deixar que o pé explore o terreno — a vigia aberta, presa pela grande tranqueta de latão; o contacto de fazenda por cima da meia: as cortinas cerradas. Agora podia continuar. Estava quase terminado.
Mais duas preensões na corda improvisada e o rosto estava à altura da vigia. Podia colocar uma das mãos na borda metálica do caixilho, subtraindo algum peso da alva corda retesada e dando merecido repouso a um braço e depois ao outro, deslocar a carga suportada pelos músculos, reunir as forças para soerguer-se vagarosamente, traspassar-se ao camarote e mergulhar, deitando a mão à arma.
Ficou à escuta, fitando o círculo da cortina balouçante, tentando esquecer que estava pendurado como um pêndulo, a meio costado do Queen Elizabeth, esforçando-se para não ouvir o marulho do oceano, lutando para abrandar a respiração ofegante e as marteladas do coração.
Do interior do cubículo vinha um resmungo indistinto. Depois, uma voz masculina proferiu algumas palavras e uma mulher gritou: — Não!
Seguiu-se um momento de silêncio, e logo uma bofetada. Sonora como um disparo de pistola, e isto lançou o corpo de Bond para o alto e para dentro como se ele tivesse sido arrastado por uma corda.
No momento mesmo em que mergulhava no círculo da vigia, perguntava-se onde iria bater, e instintivamente protegeu a cabeça com o braço esquerdo, enquanto o direito corria para a arma.
Foi cair sobre uma valise debaixo da vigia. Um estabanado salto mortal levou-o ao meio do camarote. Outra vez sobre seus pés, foi recuando, agachado, para o lado das vigias, a tensão branquejando os nós dos dedos da mão que segurava a arma e uma estreita linha branca circundando-lhe a boca cerrada.
Através das pálpebras entreabertas, os olhos cinzentos e gelados moviam-se de um lado para o outro. A arma, negra e cega, voltava-se para um ponto, no centro, entre os dois homens.
— Aqui estamos — disse Bond, erguendo-se vagarosamente.
Era a constatação de um fato. Ele tinha o controle da situação, e a boca de sua arma o confirmava.
— Quem chamou você aqui? — disse o gordo. — Você não entra nesta peça. — Havia na voz reservas latentes. Nada de pânico. Nem mesmo a dose normal de surpresa. — Veio completar a mesa para o jogo de cartas?
Estava sentado, em mangas de camisas, abotoado, de través para a penteadeira, e os olhos miúdos brilhavam na cara molhada. Dante dele, de costas para Bond, Tiffany Case estava sentada num tamborete estofado.
Vestia apenas uma calcinha cor-de-carne e tinha os joelhos presos entre as coxas do homem gordo. Voltara para Bond o rosto pálido entremeado de manchas vermelhas. Os olhos tinham uma expressão de desespero, como os de um animal apanhado numa armadilha, e a boca aberta traduzia incredulidade.
O grisalho jazia numa das camas. Tinha erguido o busto sobre um cotovelo e a outra mão na camisa, a meio caminho da arma guardada no boldrié preto debaixo do sovaco. Olhava para Bond sem demonstrar curiosidade e estampava aquele sorriso quadrado, vazio, da caixa postal. Do centro do sorriso ressaía um palito de madeira, que rompia os dentes fechados como a língua de uma cobra.
A arma de Bond assegurava o espaço neutro entre os dois homens.
Quando ele falou, a voz era baixa e tensa.
— Tiffany — disse Bond lenta e distintamente. — Ajoelhe-se. Afaste-se desse homem. Baixe a cabeça. Vá para o meio do quarto.
Não olhava para ela. Seus olhos continuavam a passear da cadeira para a cama, vigiando os dois homens. Agora ela estava longe dos dois alvos.
— Estou aqui, James.
A voz tremia de esperança e excitação.
— Levante-se e vá para o banheiro. Feche a porta. Entre na banheira e deite-se lá.
Moveu os olhos na direção dela para ver se era obedecido. Ela tinha-se erguido e o contemplava. Bond avistou a marca vermelha de uma mão na pele alva do corpo da moça. Ela obedeceu. Ouviu-se o clique da porta do banheiro ao fechar-se.
Agora ela estava a salvo das balas. E não presenciaria o que tinha de ser feito.
Mediavam umas cinco jardas entre os dois homens, e Bond refletiu que se eles sacassem com bastante rapidez estaria perdido. Com esse tipo de homens, na fração de segundo em que um fosse liquidado, o outro sacaria e dispararia. Conquanto sua arma fosse silenciosa, a ameaça era infinita. Mas, com o clarão da primeira bala a ameaça proviria do outro homem.
— Quarenta e oito, sessenta e cinco, oitenta e seis.
A variante do sinal convencionado do futebol americano —"uma das cinquenta combinações que deviam ter praticado juntos mil vezes — jorrou da boca do gordo. Simultaneamente, ele se atirou ao chão, e a mão foi direta ao cós da calça.
Num giro rápido, o homem que estava na cama puxou as pernas para o lado e para longe de Bond, de modo que seu corpo se reduziu a um alvo estreito, de que só se via a cabeça. A mão que estava sobre o peito se mexeu rápida.
— Paf.
A arma de Bond soltou um único gemido abafado. Um orifício azul abriu-se exatamente abaixo do cocuruto grisalho.
— Pum! — respondeu a pistola do morto, deflagrada pela última crispação do dedo, e a bala foi alojar-se na cama, debaixo do cadáver.
O homem gordo, deitado no soalho, deu um grito. Olhava para cima. na direção daquele olho preto e vazio que não se incomodava com ele, de forma alguma, e que só se interessava em localizar-lhe na pele o centímetro quadrado que abrigaria o próximo projétil.
O revólver de Wint só se tinha elevado até à altura dos joelhos de Bond e apontava em vão por entre suas pernas retesadas para a armação de ferro, pintada de branco, que estava atrás.
— Largue a arma.
O tapete abafou o ruído da queda da arma.
— Levante-se.
O gordo ergueu-se com dificuldade e fitou Bond nos olhos, como um tuberculoso fita seu lenço, em medrosa expectativa.
— Sente-se.
Houve um lampejo de alívio nos olhos submissos? Bond continuou tenso como um gato prestes a atacar.
O gordo voltou-se vagarosamente. Estendeu as mãos acima da cabeça, embora Bond não lhe tivesse exigido isso. Deu dois passos para a cadeira e lentamente virou-se como se fosse sentar-se.
Parou, contemplando Bond, e com naturalidade deixou cair as mãos ao longo do corpo. E as duas mãos, sossegadas, sacudiram-se para trás, a direita mais do que a esquerda. E então, de súbito, no movimento de retorno, o braço direito entesou-se, precipitou-se para a frente e a faca brilhou nas pontas dos dedos como uma chama branca.
— Paf.
A bala silenciosa e a faca muda cruzaram uma pela outra em pleno ar, e os olhos dos dois homens perturbaram-se simultaneamente quando as armas atingiram seus objetivos.
Mas a perturbação nos olhos do homem gordo converteu-se num reviramento do globo ocular quando ele caiu para trás, as mãos agarradas ao peito, enquanto os olhos de Bond pousaram sem curiosidade na mancha que se espalhava em sua camisa e no cabo chato da faca pendurada frouxamente nas dobras do pano.
Produziu-se um estardalhaço quando a cadeira se espatifou sob o peso do homem gordo. Seguiu-se um ruído roufenho e ouviu-se, por último, um baque surdo no soalho.
Bond olhou a cena uma vez e depois voltou-se para a vigia aberta.
Durante algum tempo ficou de costas para o quarto, o olhar fixo nas cortinas que se balançavam molemente. Sorveu o ar e escutou os maravilhosos sons marinhos do exterior, do mundo que ainda lhes pertencia, a ele e a Tiffany, mas não aos outros dois. Pouco a pouco, seu corpo e seus nervos tensos se relaxaram.
Instantes depois, puxou a faca que se lhe enfiara na camisa. Não olhou para ela. Apenas estirou o braço, afastou a cortina para um lado e atirou a faca pela vigia. Em seguida, ainda contemplando a noite quieta lá fora, prendeu o registro de segurança da Beretta e, com um braço que lhe pareceu de repente pesado como chumbo, introduziu de novo a arma no cós das calças.
Com certa relutância, deu meia volta e encarou a desordem reinante no camarote. Com ar pensativo, examinou tudo e, num gesto, inconsciente, enxugou as mãos nos lados das calças. Em seguida, caminhando cautelosamente até o banheiro, disse: "Tiffany, sou eu" numa voz cansada, deprimida, e abriu a porta.
Ela não o ouvira. Continuava deitada de bruços na banheira seca, as mãos sobre as orelhas. E quando ele a ergueu e tomou nos braços, ela ainda não acreditou no que via. Agarrou-se a ele e começou a tocar-lhe o rosto e o busto com as mãos para certificar-se de que era realidade.
Ele se retraiu quando ela lhe apalpou a costela cortada. Então ela afastou-se um pouco, examinou-lhe o rosto, depois o sangue que manchava seus dedos e por fim a camisa escarlate.
— Meu Deus! Você está ferido! — disse ela assustada; e, esquecendo seus pesadelos, arrancou-lhe a camisa, lavou-lhe a costela com água e sabão e amarrou-a com tiras da toalha cortada com a gilete de um dos homens mortos.
Não fez perguntas, nem mesmo quando Bond lhe trouxe as roupas que estavam espalhadas pelo soalho do camarote e lhe disse que não saísse enquanto ele não tivesse terminado de arrumar tudo e de apagar as impressões digitais de todos os objetos que ela havia tocado.
Ela apenas pousava nele os olhos brilhantes. E quando Bond a beijou nos lábios, continuou calada.
Bond deu-lhe um sorriso tranquilizador, saiu e fechou a porta do banheiro atrás de si. Pôs mãos à obra, fazendo cada coisa com grande determinação e parando antes de cada gesto a fim de imaginar o efeito que produziria diante dos olhos e do espírito dos detetives que subiriam a bordo em Southampton.
Primeiro amarrou um cinzeiro à sua camisa ensanguentada para torná-la pesada, aproximou-se da vigia e atirou o pacote o mais longe que pôde. Os smokings dos dois homens estavam pendurados atrás da porta. Tirou os lenços que estavam nos bolsinhos dos paletós, envolveu com eles as mãos e remexeu nos armários e cômodas até encontrar as camisas do grisalho.
Vestiu uma e ficou um momento no centro do camarote, meditando. Depois, cerrou os dentes e levantou o homem gordo até deixá-lo sentado, tirou-lhe a camisa, foi à vigia, sacou a Beretta, encostou a arma no orifício aberto na fazenda pelo tiro anterior e disparou outra bala no mesmo local. Agora havia uma nódoa de fumaça em volta do orifício para dar a impressão de suicídio.
Tornou a vestir a camisa no cadáver, limpou demoradamente a Beretta com o lenço, comprimiu os dedos da mão direita do morto sobre ela e, finalmente, ajustou a arma na mão do gordo, com o indicador no gatilho.
Após outra pausa no meio do quarto, retirou o smoking de Kidd do cabide e vestiu com ele o cadáver. Em seguida, arrastou o corpo até a vigia e, suando com o esforço, levantou-o e jogou-o ao mar.
Limpou as possíveis impressões digitais deixadas na vigia e interrompeu-se outra vez, tomando fôlego e inspecionando o cenário. Foi até a mesa de jogo, encostada à parede e com os objetos espalhados indicando que o jogo não fora concluído, e derrubou tudo, dispersando as cartas pelo tapete. Parou, refletiu mais um pouco, voltou ao cadáver de Wint, retirou-lhe do bolso traseiro da calça o rolo de cédulas e jogou-as entre as cartas.
O quadro era satisfatório, sem dúvida. Haveria o mistério da bala disparada na cama pelo moribundo Kidd, mas isso poderia ter sido parte da luta. Três balas tinham sido detonadas pela Beretta e havia três cartuchos no soalho. Duas das balas poderiam ter-se enterrado no corpo de Kidd que agora estava no Atlântico. Havia os dois lençóis que teria de roubar da segunda cama. A falta deles ficaria inexplicada. Talvez Wint houvesse enrolado neles o corpo de Kidd antes de empurrá-lo pela vigia. Isso se encaixava no remorso e no suicídio de Wint, posterior ao tiroteio motivado pelo desentendimento à mesa do jogo.
De qualquer maneira, refletiu Bond, o quadro se sustentaria até a chegada da polícia ao porto, mas nesse momento ele e Tiffany já estariam fora do navio e bastante longe, e o único vestígio deles no camarote seria a Beretta; e esta, como todas as outras armas pertencentes ao Serviço Secreto, não era numerada.
Soltou um suspiro e encolheu os ombros. Agora, restava apanhar os lençóis, conduzir Tiffany de volta ao seu camarote sem serem vistos, cortar a "corda" que se balançava na vigia, atirá-la ao mar com os pentes restantes da Beretta e o coldre vazio e, por fim, dormir à vontade com o corpo adorado de Tiffany enroscado no seu para sempre.
Para sempre?
Ao atravessar o camarote a caminho do banheiro, Bond encontrou os olhos vazios do cadáver no soalho.
E os olhos do homem cujo Grupo Sanguíneo fora F chamaram-no e lhe disseram:
— Mr. Bond. Nada existe para sempre. Só a morte é permanente. Nada é eterno, exceto o que você fez comigo.
25 - Fecha-se o canal
AGORA NÃO HAVIA escorpião morando nas raízes do frondoso espinheiro erguido na junção dos três Estados africanos. O contrabandista das minas não tinha outra coisa que lhe absorvesse a atenção senão o desfile infindável de um regimento de formigas de correição entre as baixas muralhas que as guerreiras haviam construído em ambos os lados da estradinha de três polegadas.
A noite era quente e úmida, e o homem escondido sob o espinheiro estava impaciente e intranquilo. Era esta a última vez que comparecia ao encontro marcado. Já tinha decidido. Que arranjassem outro, se quisessem.
Naturalmente não iria fazer sujeira com eles. Comunicaria a intenção de deixá-los e lhes daria o motivo: o novo assistente admitido no serviço dentário parecia entender muito pouco de odontologia; decerto era espião: o olhar indagador, o bigodinho amarelo-avermelhado, as unhas bem tratadas.
Pegaram alguém? Tomaram-lhe o depoimento?
O contrabandista trocou de posição. Por onde diabo andava o helicóptero? Apanhou um punhado de terra e atirou-o no meio das formigas.
Elas se atarantaram um pouco, mas com a chegada das últimas fileiras, as que iam na frente se dispersaram pelas muralhas. Então as guerreiras pegaram febrilmente a cavar e transportar a terra, e em poucos minutos a estrada estava outra vez transitável.
O homem tirou o sapato e jogou-o com força sobre o regimento em marcha. Houve outro curto instante de afobação. Depois, as formigas lançaram-se sobre as mortas e as devoraram. O caminho estava novamente desimpedido e o negro rio continuou a fluir.
O homem soltou uma praga em africaans e calçou o sapato. Filhas duma égua. Iam ver uma coisa. Acocorando-se e suspendendo um braço para se proteger contra os espinhos, saiu pisando pela estrada das formigas. Isso lhes serviria de lição.
Ao surgir sob o luar, o homem já tinha esquecido o ódio que dedicava a tudo quanto fosse negro e virou a cabeça para a banda do norte. Graças!
Rodeou o espinheiro para ir buscar as lanternas e o pacote dos diamantes guardados nas caixas de ferramentas.
A uma milha dali, sob a copa de um arbusto, o poderoso ouvido de ferro do detector de som já parará de investigar, e o operador, que vinha transmitindo os dados aos três homens agrupados ao lado do caminhão militar, informou: — Trinta milhas. Velocidade: cento e vinte. Altura: novecentos pés.
Bond consultou o relógio.
— Tudo indica que o encontro está marcado para a meia-noite,_na lua cheia — disse ele. — O nosso homem está uns dez minutos atrasado.
— Parece que o senhor tem razão — concordou o oficial da guarnição de Freetown, a seu lado, e voltou-se para o terceiro homem. — Cabo. Veja se não tem nenhum metal aparecendo na rede de camuflagem. Com este luar, é preciso ter cuidado.
O caminhão estava coberto pelo arbusto, à beira de uma estrada de barro, que atravessava a planície na direção da aldeia de Telebadu, na Guiné Francesa. Naquela noite, haviam deixado as colinas logo que o radiolocalizador captara o barulho da motocicleta do dentista na estrada paralela. Tinham vindo com os faróis apagados e pararam quando cessou o ruído da motocicleta. Haviam estendido a rede de camuflagem sobre o caminhão, o detector de som e o canhão Bofors. E puseram-se a esperar, sem saberem ao certo quem ou o que viria ao encontro do dentista — outra motocicleta, um homem a cavalo, um jipe, um avião?
Ao ouvir no céu o longínquo matraquear, Bond soltou uma gargalhada.
— Helicóptero — disse ele. — Era só o que faltava. Preparem-se para tirar a rede quando pousar. Talvez a gente tenha de dar um tiro de advertência. O detector está ligado?
— Está, sim — respondeu o cabo que operava o aparelho. — O nosso amigo está chegando. Poderão vê-lo num minuto. O senhor está vendo aquelas luzes acolá? Devem ser do campo de pouso.
Bond passeou o olhar pelos quatro feixes de luz e, depois, contemplou o imenso céu africano.
Então aí vinha o último de todos, o derradeiro elemento da quadrilha e também o primeiro. O homem que havia visto ligeiramente em Hatton Garden. O número um da turma de Spang, cuja cotação era tão alta em Washington. O único, excetuando o inofensivo e até simpático Shady Tree, que Bond ainda não fora obrigado a matar ou — pensou no botequim de Spectreville e nos dois homens de Detroit — quase. Não que tivesse desejado matar esses indivíduos. A missão que M lhe confiara fora apenas de investigação. Mas, um a um, eles haviam tentado contra sua vida e a de seus amigos. A violência fora o primeiro, não o último recurso deles.
Violência e crueldade, as armas escolhidas. Os dois homens do Chevrolet em Las Vegas, que tinham disparado contra ele e ferido Ernie Cureo. Os dois sujeitos do Jaguar, que haviam espancado Ernie e tinham sido os primeiros a sacar os revólveres quando começara a luta. Seraffimo Spang, que mandara torturá-lo, disparara contra ele e Tiffany e procurara esmagá-los na estrada de ferro. Wint e Kidd, que haviam supliciado Tingaling Bell, Bond e Tiffany Case. E, dos sete, matara cinco — não porque gostasse de matar, mas porque alguém tinha de fazê-lo. Tivera a seu lado a sorte e três bons amigos, Félix, Ernie e Tiffany. E os malvados tinham perecido.
Agora chegava a último dos malvados, o homem que planejara a sua morte e a de Tiffany, o homem que, segundo M, arquitetara o contrabando dos diamantes, montara o canal de escoamento e o vinha dirigindo com eficiência e mão de ferro através dos anos.
Ao telefone, para Boscombe Down, M falara pouco e com certa aspereza na voz. Usara a linha do Ministério da Aeronáutica, poucos minutos antes que o Canberra decolasse para Freetown. Bond recebera o telefonema do gabinete do comandante da base, tendo nos ouvidos o grito estridente das turbinas do Canberra.
— Satisfeito de tê-lo de volta são e salvo.
— Muito obrigado, senhor.
— Que estória é essa que os vespertinos noticiaram acerca de um duplo homicídio no Queen Elizabeth?
Havia algo mais do que suspeita na voz de M.
— Eram os dois pistoleiros da quadrilha. Viajavam sob os nomes de Winter e Kitteridge. Meu camareiro desconfia que eles se desentenderam quando jogavam baralho.
— Acha que a suposição do camareiro é correta?
— É possível. Houve uma pausa.
— E os policiais também pensam assim?
— Não vi nenhum deles.
— Vou falar com Vallance.
— Ótimo — disse Bond, sabendo que essa era a maneira de M dizer que, caso Bond tivesse liquidado os dois homens, tomaria providências para que o agente e o Serviço Secreto não fossem mencionados no inquérito.
— Bem, de qualquer modo — disse M — aqueles dois eram pouco importantes. Esse Jack Spang, ou Rufus B. Saye ou ABC, ou que nome tenha, esse eu quero que você agarre. Ao que parece, ele vai agora até o extremo do canal. Vai fechá-lo. Talvez matando o que encontrar pela frente. O ponto final é o dentista. Veja se consegue pegar os dois. Faz coisa de uma semana que destaquei 2804 para trabalhar ao lado do dentista. O pessoal de Freetown acha que já se pode agir. Mas eu quero encerrar este caso e ver você de novo em seu verdadeiro posto. Esse negócio foi uma trapalhada dos diabos. Não me agradou desde o princípio. E se, afinal, conseguimos chegar ao ponto em que estamos agora, foi mais uma questão de sorte do que de boa organização.
— Concordo com o senhor — disse Bond.
— E essa moça, Case? — perguntou M. — Conversei com Vallance. Ele não deseja processá-la, a menos que você insista.
Teria M carregado um pouco no tom de indiferença?
Bond procurou evitar uma resposta muito persuasiva.
— Ela foi de grande ajuda — disse ele, esperançoso.
— Talvez a gente possa resolver quando eu apresentar meu relatório final.
— E onde está ela agora?
O negro receptor começava a ficar escorregadio na mão de Bond.
— Está a caminho de Londres, num Daimler de aluguel. Vou colocá-la no meu apartamento. Quero dizer, no quarto vago. É muito boa dona de casa.
Ela se arranjará até que eu volte. É uma boa moça, estou certo disso.
Puxou o lenço do bolso e enxugou o suor do rosto.
— Sem dúvida — disse M. Não havia ironia em sua voz.
— Está bem, então. Boa sorte. — Houve uma pausa. — Tome cuidado.
E... — a voz no outro extremo da linha tornou-se subitamente áspera — não pense que não estou satisfeito com os resultados até agora obtidos. Foram além do programa, naturalmente, mas você parece que topou muito bem a parada desse pessoal. Até logo, James.
— Até logo, senhor.
Bond levantou a vista para o céu recamado de estrelas e pensou em M e Tiffany, esperando que agora fosse mesmo o fim e que fosse rápido e tranquilo, e que logo estivesse em casa.
De pé, empunhando a quarta lanterna, o contrabandista das minas esperava. Lá vinha o helicóptero. Cortando a trajetória da lua. Como sempre, o barulho era infernal. Outro risco de que ia livrar-se.
Baixava lentamente. Agora pairava a uns vinte pés de altura. A mão apontou na janela e piscou A. O homem no chão piscou, em resposta, B e c.
As lâminas do rotor diminuíram a velocidade e, suavemente, o gigantesco inseto de aço pousou no chão.
O pó assentou. O contrabandista retirou a mão dos olhos e ajudou o piloto a descer a escadinha. Usava capacete de voo e óculos de proteção.
Extraordinário. E parecia mais alto do que o alemão. O contrabandista sentiu uma picada na espinha. Quem era esse? Aproximou-se devagar.
— Trouxe?
Dois olhos frios, sob negras sobrancelhas retas, cintilaram por trás dos óculos. Ocultavam-se quando o homem moveu a cabeça e o luar incidiu sobre o vidro. Agora eram dois círculos brancos reluzentes no meio do negro e luzidio capacete de couro.
— Trouxe — disse, nervoso, o homem das minas. — Mas onde está o alemão?
— Não virá mais. — Os dois círculos brancos cegavam o contrabandista.
— Eu sou ABC. Vim fechar o canal.
A voz era americana. Enérgica, seca, inflexível.
— Oh!
Maquinalmente, a mão do contrabandista enfiou-se na abertura da camisa. Apanhou o embrulho úmido e entregou-o ao piloto como se fosse uma oferenda de paz. À semelhança do escorpião, um mês antes, o homem das minas pressentia a pedra erguida sobre sua cabeça.
— Ajude-me a encher o tanque.
Era a voz do feitor dando ordens ao escravo. Mas o contrabandista apressou-se a obedecer.
Fizeram o serviço em silêncio. Ao terminar, voltaram ao chão. O cérebro do contrabandista trabalhava furiosamente. Ele se esforçava por adotar a voz de um associado, a voz de alguém que estivesse a par dos negócios e exercesse a mesma autoridade.
Olhou com atenção para a nesga de treva cor-de-anil onde se achava o piloto com a mão sobre a escada.. — Estive pensando bem e acho que...
A voz estacou de supetão, a boca abriu-se espavorida e deixou escapar um ruído que era uma mescla de rosnado e uivo.
A arma na mão do piloto gaguejou três vezes. O contrabandista emitiu um "Oh" numa voz servil, caiu de costas no chão, fez um esforço para se soerguer e imobilizou-se.
— Fique onde está. — A voz ressoou na planície, transmitida pelo amplificador. — Você está cercado.
Ouviu-se o ruído de um motor que se punha em funcionamento.
O piloto não procurou saber de onde vinha a voz. Pulou para a escada. A porta da carlinga fechou-se com uma pancada e zumbiu o arranque automático. O motor começou a trabalhar, as lâminas do rotor giraram, pouco a pouco foram ganhando velocidade até que se transformaram em dois redemoinhos prateados. Então, com uma sacudidela, o helicóptero elevou-se verticalmente no ar.
Em terra, entre os arbustos, o caminhão freou e Bond saltou para a sela de aço do Bofors.
— Pra cima, cabo — gritou ele para o homem que manobrava a alavanca de suspensão. Baixou os olhos para a alça de mira quando a boca da arma se ergueu para a lua. Com a mão, puxou a alavanca do seletor de fogo, tirando-a da marca de segurança e colocando-a em "Fogo". — Esquerda, dez.
— Eu alimentarei.
O oficial ao lado de Bond tinha nas mãos dois depósitos de obuses pintados de amarelo.
Os pés de Bond firmaram-se nos pedais do gatilho. O helicóptero estava no centro da alça de mira.
— Firme — disse ele calmamente.
— Bumpa.
O obus reluzente rodou no alto a uma velocidade apenas menor do que a do som. Baixo e à esquerda. O cabo girou delicadamente as duas alavancas.
— Bumpa.
O obus deu a volta por cima do helicóptero. Bond inclinou-se para a frente e puxou a alavanca do seletor para "Fogo Automático". A mão relutava. Agora a morte era inevitável. Mais uma vez ele tinha de tomar essa decisão.
— Bumpa... bumpa... bumpa... bumpa... bumpa... O fogo vermelho espargiu-se no céu. O helicóptero continuou a avançar para a lua e depois rumou para o norte.
— Bumpa... bumpa...
Houve um espocar de luz amarela perto do rotor da cauda e um estrondo de explosão distante.
— Acertou — disse o oficial, pegando o binóculo. — O rotor da cauda está perdido — disse ele. E logo, agitado: — Puxa! Parece que toda a cabina está girando com o rotor principal! O piloto está atolado.
— Mais algum? — perguntou Bond, mantendo na mira o helicóptero em chamas.
— Não, senhor — disse o oficial. — Seria bom se conseguíssemos pegá-
lo vivo. Mas parece... é, sim, já perdeu o controle. Vem caindo de ponta.
Deve haver alguma coisa com as lâminas do rotor principal. Lá vem ele.
Bond levantou a vista e resguardou os olhos contra a claridade intensa.
— Sim. Lá vem ele. A cem pés, o motor ribombando e as hélices girando inutilmente enquanto a embrulhada metálica despencava do céu em cambaleios e guinadas de ébrio.
Jack Spang. O homem que ordenara o assassínio de Bond. Que ordenara o assassínio de Tiffany. O homem que Bond vira apenas uma vez, durante alguns minutos, numa sala superaquecida em Hatton Garden. Mr. Rufus B.
Saye. Da House oi Diamonds. Vice-Presidente para a Europa. O homem que jogava golfe em Sunningdale e visitava Paris uma vez por mês. "Cidadão exemplar", M dissera dele. Mr. Spang, da quadrilha de Spang, que acabara de matar um homem — o último de quantos?
Bond imaginava a cena dentro da estreita carlinga. O homem dirigindo com uma das mãos e com a outra mexendo desesperadamente nos controles, enquanto observava a agulha do altímetro baixar vertiginosamente. Nos olhos, o rubro clarão do terror. As centenas de milhares de libras esterlinas em diamantes reduzidas a peso morto. A arma, que desde a infância, fora um poderoso braço direito, agora inútil.
— Vai pra cima do espinheiro — bradou o cabo acima da barulheira.
— Está perdido — disse o capitão, a meia voz.
Contemplaram as últimas guinadas; depois, suspenderam a respiração quando o aparelho, num bamboleio desenfreado, empinou o nariz e, como se o espinheiro fosse seu inimigo, deu um mergulho irado, descrevendo uma curva de vinte jardas, e arremessou-se com os rotores desgovernados contra os espinhos.
Antes de se extinguirem os ecos da colisão, ouviu-se um ribombo cavo e uma bola de fogo, projetada no ar, ofuscou o clarão da lua e banhou a planície inteira num fulgor alaranjado.
O capitão foi o primeiro a falar.
— Opa! — exclamou, tirando o binóculo e voltando-se para Bond. — Bem — disse ele, resignado — nada a fazer. Acho que só quando amanhecer a gente vai poder se aproximar. E só com o dia alto é que se poderá revolver os destroços. Mas pode esperar que daqui a pouco os soldados franceses da fronteira estarão aqui. Felizmente estamos em boas relações com eles. O governo é que passará um bocado de tempo discutindo com Dakar. — O oficial previa as idas e vindas da papelada e sentia-se ainda mais exausto.
Homem prosaico, achava que o dia já lhe trouxera boa dose de canseiras. — O senhor se incomoda se a gente tirar uma pestana?
— À vontade — disse Bond, e consultou o relógio. — É melhor irem pra debaixo do caminhão. Eu mesmo não estou com sono. Vou ficar de olho.
Pode ser que o fogo ameace se alastrar.
O oficial lançou um olhar inquiridor a esse homem calmo e enigmático, que chegara de repente ao Protetorado no meio de uma enxurrada de recomendações de "Prioridade Absoluta". Se a gente nunca precisasse dormir... Bom, isso nada tinha que ver com Freetown. Era coisa de Londres.
— Muito obrigado, então — disse o oficial e jogou-se debaixo do caminhão.
Bond retirou vagarosamente os pés dos pedais do gatilho e reclinou-se no encosto da sela de aço. Maquinalmente, com os olhos pousados ainda nas chamas saltitantes, enfiou as mãos nos bolsos do desbotado blusão caqui, que lhe haviam arranjado na base, puxou um cigarro, acendeu-o e tornou a guardar a cigarreira e o isqueiro.
Aí estava o fim do contrabando de diamantes. A última página da estória. Deu uma tragada e expeliu a fumaça com um suspiro longo e calmo.
Seis cadáveres a zero. Vitória folgada.
Ergueu a mão e limpou a testa suada. Atirou para trás a mecha de cabelo que lhe caía por cima da sobrancelha direita, e o clarão vermelho iluminou-lhe o rosto duro e magro e cintilou nos olhos cansados.
Esse imenso e rubro ponto final assinalava o desmoronamento da Quadrilha de Spang e o término do fabuloso contrabando de diamantes. Não o fim dos diamantes que se tostavam do interior do braseiro. Eles sobreviveriam e outra vez iriam percorrer o mundo. Descoloridos, talvez, mas indestrutíveis, tão permanentes como a morte.
E Bond recordou, instantaneamente, os olhos do cadáver cujo sangue havia pertencido ao grupo F. Tinham-se enganado. A morte é eterna. Mas os diamantes também são eternos.
Bond desceu do caminhão e pôs-se a andar lentamente em direção à fogueira crepitante. Levava um sorriso sombrio nos lábios. Toda essa estória acerca de morte e diamantes era demasiado solene. Para Bond, era apenas o fim de outra aventura. Outra aventura que bem podia ter por epitáfio as palavras de Tiffany Case. E reviu a boca ardente e irônica que lhe dizia: — Contada é uma coisa, vivida é outra.
20 - Chamas que saem do alto
O UNIFORME PRETO de homem-rã estava muito apertado. Doía no corpo todo. Por que cargas d'água Strangways não tinha se certificado de que o Almirantado tinha suas medidas corretas? E era muito escuro no fundo do mar, as correntes eram muito fortes, arrastavam-no para o banco de coral.
Era preciso nadar com todo o ímpeto para afastar-se dali. Mas agora algo lhe prendia o braço. Que diabo...?
— James! Pelo amor de Deus, James! — Ela apertou a boca ao ouvido dele. Desta vez ela beliscou-lhe o braço nu e ensanguentado com tanta força que, afinal, os olhos de Bond se abriram entre as pálpebras inchadas, e ele a contemplou do piso de madeira em que estava deitado e deu um suspiro de sobressalto.
Ela puxou-o para si, com medo que ele lhe escapasse outra vez. Ele pareceu entender e se revolveu, erguendo-se sobre as mãos e os joelhos, a cabeça pendida para o chão, como um animal ferido.
— Pode andar?
— Espere. — O murmúrio espesso que lhe atravessou os lábios arrebentados soou-lhe estranho aos ouvidos. Talvez ela não tivesse compreendido. — Espere — repetiu ele, enquanto sua mente passava a explorar o corpo para ver o que lhe tinha sobrado. Podia sentir os pés e as mãos. Podia mover a cabeça de um lado para outro. Podia ver as barras do luar nas pranchas de madeira. Pudera ouvir a moça. Devia estar inteiro, mas não queria mover-se. Sua força de vontade o tinha abandonado. Apenas desejava dormir. Ou talvez mesmo morrer. Qualquer coisa, contanto que mitigasse a dor que lhe avassalava o corpo todo, apunhalando-o, martelando-o, triturando-o — e matasse a lembrança das quatro botinas que o haviam golpeado e dos rosnados proferidos pelos dois vultos encapuzados.
Assim que pensou nos dois homens e em Mr. Spang, a vontade de viver retornou.
— Está bem — disse, e tornou a dizer para que ela compreendesse.
— Estamos na sala de espera — sussurrou a moça. — Temos de chegar ao extremo da estação. À esquerda, depois da porta. Está me ouvindo, James?
Ela estirou a mão e afagou-lhe os cabelos úmidos, viscosos, caídos na testa.
— Tenho de me arrastar — disse Bond. — Atrás de você.
A moça ergueu-se e abriu a porta. Bond trincou os dentes e saiu de rastros para a plataforma enluarada. E quando avistou a mancha escura no chão, a raiva e o desejo de vingança deram-lhe forças para se levantar.
Balançando a cabeça para não se afogar nas ondas negro-avermelhadas e amparado em Tiffany Case, cujo braço lhe envolvia a cintura, foi coxeando pelas tábuas até a rampa por onde desceram para o chão junto dos trilhos reluzentes.
E lá, no desvio, havia um vagonete.
Bond parou e olhou-o atentamente.
— Gasolina? — perguntou com ar vago.
Tiffany Case fez um gesto para uma fileira de latas encostadas no muro da estação. — Está cheio — sussurrou. — É usado na inspeção da linha. Eu sei colocá-lo em funcionamento. Já desloquei as agulhas. Depressa. Suba — soltou uma risadinha abafada. — Próxima parada: Rhyolite.
— Isso é que é uma garota — murmurou Bond. — Mas vai fazer um barulho danado quando esse troço começar a funcionar. Espere. Tenho uma ideia. Tem fósforos?
Metade da dor tinha desaparecido. Respirava forte quando deu as costas à moça e observou as silenciosas casas de madeira.
Ela estava usando calças compridas e blusa. Enfiou a mão no bolso das calças e entregou-lhe o isqueiro.
— O que é que vai fazer? — perguntou. — Já devíamos ter partido.
Mas Bond manquejou até as latas de gasolina e pôs-se a destampá-las e a arremessar o líquido sobre as paredes e a plataforma de madeira. Depois de esvaziar meia dúzia de latas, voltou para onde ela estava. — Ligue a bicha.
— Curvou-se com esforço e apanhou um jornal amassado ao lado dos trilhos. Ressoou o gemido raivoso do arranque automático, o motor de dois tempos pegou e começou a martelar.
Bond acendeu o isqueiro. O papel pegou fogo e Bond jogou-o entre as latas de gasolina. O espocar das labaredas quase o alcançou quando ele se lançou de costas ao estribo do vagonete. Mas então a. moça soltou a embreagem e o carro começou a deslizar pelos trilhos.
Houve um matracolejar e um sacolejo desagradável ao chegarem às agulhas; e depois, entrados na linha> principal, o velocímetro tremia marcando trinta milhas e os cabelos da moça flutuavam à frente de Bond como uma bandeira.
Bond voltou-se e contemplou a gigantesca floração de chamas que ia ficando para trás. Podia quase ouvir o crepitar das pranchas secas e os berros dos que despertavam. Se pelo menos o fogo pegasse Wint e Kidd, apanhasse a pintura do Pullman e se alastrasse pela lenha do tender do Cannonball e acabasse de uma vez com a caixa de brinquedos de Mr. Spang!
Mas ele e a moça tinham seus próprios problemas. Que horas eram?
Bond aspirou o ar fresco da noite e tentou colocar de novo a mente para trabalhar. A lua estava baixa. Quatro horas? Bond avançou com dificuldade pelo estribo até os dois assentos de encosto dobradiço e conseguiu sentar-se ao lado da moça.
Passou-lhe um braço em volta dos ombros, e ela voltou-se com um sorriso nos lábios. Levantando a voz acima do barulho da máquina e do matracolejar das rodas de ferro sobre os trilhos, ela falou: — Foi uma escapada e tanto. Parecia coisa de filme de Buster Keaton.
Como se sente? — Inspecionou o rosto combalido. — Você está massacrado, hein?
— Nenhuma fratura — disse Bond. — Acho que é isso que se entende por oitenta por cento. — Fez uma careta de dor. — É melhor ser tratado a pontapé do que a bala.
O rosto de Tiffany Case contraiu-se.
— E eu tive de ficar sentada lá e fingir que não ligava. Spang, ao meu lado, escutava e me observava. Depois, eles viram que você já estava nas últimas, atiraram você na sala de espera e todo mundo foi para a cama satisfeito da vida. Esperei uma hora em meu quarto e então resolvi agir. O
pior de tudo foi tentar despertar você.
Bond apertou-lhe os ombros com o braço.
— Direi o que penso de você quando estiver menos contundido. Mas, e você, Tiffany? Vai ficar em maus lençóis se eles nos pegarem. E quem são os dois encapuzados, Wint e Kidd? O que é que eles vão fazer agora?
Gostaria de vê-los de novo.
A moça olhou de viés para a feia equimose na boca de Bond.
— Nunca os vi sem os capuzes — confessou ela. — Suponho que eles são de Detroit. Pistoleiros. Encarregam-se dos trabalhos violentos e de missões especiais secretas. Virão em nosso encalço. Mas não se preocupe comigo. — Encarou-o de novo e seus olhos irradiavam felicidade. — A primeira coisa a fazer é levar essa joça a Rhyolite. Depois teremos de achar um carro e cruzar a fronteira com a Califórnia. Dinheiro não vai faltar-. Eu trouxe. Depois iremos a um médico, arranjaremos um banho e uma camisa nova pra você e pensaremos no que vamos fazer. Trouxe seu revólver. Foi encontrado por um dos rapazes que ajudaram a recolher os restos daqueles dois sujeitos que você arrasou no botequim. Apanhei a arma depois que Spang foi para a cama.
Ela desabotoou a blusa e enfiou a mão no cós das calças.
Bond recebeu a Beretta, e sentiu a quentura do corpo da moça no metal.
Removeu o pente. Sobravam três cartuchos, e um estava na agulha.
Recolocou o pente, fechou o registro de segurança e guardou a arma na cintura. Só então notou que estava sem paletó. Uma das mangas da camisa fora reduzida a um trapo. Arrancou-a e jogou-a fora. Apalpou o bolso traseiro direito da calça, à procura da cigarreira e não a encontrou. Mas no esquerdo estavam ainda o passaporte e a carteira de cédulas. Puxou-os do bolso. À luz da lua pôde ver que ambos estavam danificados. O dinheiro continuava na carteira. Pôs outra vez os objetos no bolso.
Durante algum tempo avançaram pela estrada. O silêncio da noite era cortado apenas pelo ronrom da máquina e pelo matraquear das rodas. Até onde a vista alcançava, havia somente uma interrupção da estreita linha prateada dos trilhos, assinalada pela alavanca de manobra das agulhas, no ponto em que um ramal enferrujado penetrava na massa escura dos montes Spectre à direita. À esquerda, descortinava-se o infindável chão do deserto em que o lampejo da aurora começava a debruar de azul as moitas de cactos contorcidos e, duas milhas além, o luar esparramava seu clarão cinza-chumbo sobre a Rodovia 95.
O vagonete cantarolava feliz nos trilhos. Os instrumentos de controle eram poucos: uma alavanca de freio e uma espécie de manche com um acelerador de cabo retorcido que a moça mantinha completamente aberto, com o velocímetro firme em trinta milhas. As milhas e os minutos passavam e, de vez em quando, Bond virava-se com dificuldade na cadeira e inspecionava o florescente rubor do céu às suas costas.
Fazia cerca de uma hora que tinham partido quando um leve zumbido, vibrando no ar ou nos trilhos, pôs Bond de sobreaviso. Novamente ele olhou por cima do ombro. Haveria um vago bruxoleio entre eles e o falso alvorecer da cidade em chamas?
Bond sentiu leve comichão no couro cabeludo.
— Veja se enxerga alguma coisa ali atrás.
A moça voltou-se. Depois, sem responder, diminuiu a marcha do carro que passou a deslizar suavemente.
Puseram-se à escuta. Sim. Era nos trilhos. Uma leve trepidação, nada mais do que um suspiro distante.
— É o Cannonball — disse Tiffany, categórica.
Deu um brusco repelão no acelerador, e o vagonete tornou a ganhar velocidade.
— Quanto pode fazer a locomotiva? — perguntou Bond.
— Talvez sessenta.
— E daqui pra Rhyolite?
— Trinta, mais ou menos.
Bond fez as contas em silêncio.
— Vai ser por um triz. Não é fácil dizer a que distância ela está de nós. E
esse treco pode dar mais alguma coisa?
— Que nada! — disse ela, — Nem que eu me chamasse Casey Jones em vez de Tiffany Case.
— Não tem importância — disse Bond. — Toca pra frente. Talvez ela vá prós ares com uma explosão.
— Ah, sim — disse ela. — Ou talvez a mola dê o prego, ou Spang se lembre que deixou a chave do motor em casa, no bolso da calça.
Viajaram mais quinze minutos em silêncio. Então, Bond divisou o grande farol da locomotiva varando a noite, a umas cinco milhas de distância, e as centelhas subindo pela chaminé. Os trilhos trepidavam e o que tinha sido um suspiro longínquo era agora um murmúrio baixo, ameaçador.
Talvez venha a faltar lenha, pensou Bond. Num impulso, ele perguntou despreocupadamente à moça:
— Será que temos bastante gasolina?
— Temos, sim — disse Tiffany. — Botei uma lata inteira. Não tem mostrador, mas esses motorzinhos giram a vida inteira com um galão.
Mal ela havia acabado de falar, e como se fizesse um comentário, o motorzinho deu uma tossidela de reprovação — cóf-cóf-cóf — e continuou a rodar alegremente.
— Ai, meu Deus! — exclamou Tiffany. — Ouviu isso? Bond ficou calado. Sentiu as mãos tornarem-se úmidas. Outra vez: cóf-cóf-cóf.
Tiffany Case acalentou delicadamente o acelerador.
— Ah, motorzinho querido — disse ela em tom de súplica. —' Vamos, motorzinho lindo, seja bonzinho, por favor...
— Cóf-cóf. Cóf-cóf. Chi. Cóf. Chiiiii...
E no instante seguinte estavam eles escorregando brandamente em silêncio. Vinte e cinco, dizia o velocímetro. Vinte... quinze... dez... cinco.
Um último e selvagem repelão no acelerador, um pontapé de Tiffany Case na armação do motor, e tinham parado.
— Porra! — disse Bond. Com esforço conseguiu saltar e manquejar até o tanque na traseira do vagonete. Tirou do bolso da calça o lenço ensanguentado, desatarraxou a tampa do funil e introduziu o lenço até tocar o fundo do tanque. Puxou-o para fora, apalpou-o e cheirou-o. Seco como um osso.
— Nada feito — disse ele para Tiffany. — Vamos pensar numa saída.
Olhou em volta. Nenhum abrigo à esquerda, e duas milhas pelo menos até à estrada de rodagem. À direita, as montanhas, talvez a um quarto de milha. Podiam chegar lá e esconder-se. Mas por quanto tempo? Contudo, era o melhor alvitre. O chão, sob seus pés, tremia. Esquadrinhou a linha férrea iluminada pelo olho incandescente, implacável. A que distância? Duas milhas? Spang enxergaria o vagonete? Teria tempo de parar? Haveria descarrilamento? Mas aí Bond lembrou-se do poderoso limpa-trilhos, que varreria da linha o vagonete como se fosse um feixe de palha.
— Vamos, Tiffany — bradou ele. — Temos de escalar as colinas.
Onde estava ela? Bond rodeou o carro. Ela vinha correndo pelo trecho da estrada que tinham pela frente. Aproximou-se arquejante.
— Há um desvio logo ali adiante — disse ela entre um ofego e outro. — Se a gente puder empurrar essa coisa até lá e se você puder manobrar as velhas agulhas, pode ser que a gente escape.
— Deus do céu! — disse Bond lentamente. E depois, com uma nota de pasmo na voz, acrescentou: — Há uma coisa melhor do que essa. Me ajude aqui — e, curvando-se, rilhou os dentes contra a dor e começou a empurrar o vagonete.
Recebido o impulso inicial, o carro moveu-se facilmente e eles precisavam apenas segui-lo e não deixar que parasse. Chegaram às agulhas, mas Bond continuou a empurrar até que pararam umas vinte jardas além.
— Que diabo é que você vai fazer? — arquejou Tiffany.
— Vamos pra cá — respondeu Bond, correndo aos tropeções para o ponto em que a chave enferrujada ressaltava ao lado dos trilhos. — Vamos colocar o Cannonball no desvio.
— Genial! — disse Tiffany Case com admiração. Puseram mãos à obra, e os músculos doloridos de Bond forcejavam por erguer a chave.
Lentamente o metal enferrujado começou a mover-se no leito onde jazia imóvel havia cinquenta anos, e milímetro a milímetro os trilhos mostraram uma fenda, que foi se alargando à medida que Bond puxava a alavanca.
Ao terminar, Bond caiu de joelhos no chão, com a cabeça dobrada para baixo, lutando contra a tontura que ameaçava dominá-lo.
Mas já então um feixe de luz iluminava o chão e Tiffany procurava arrastá-lo. Bond ergueu-se e voltou aos trambolhões para o vagonete. O ar estrondava e se enchia do plangente clangor do sino enquanto o flamejante cavalo de ferro galopava em direção a eles.
— Abaixe-se e não se mexa — bradou Bond por cima do barulho e lançou-a ao chão por trás do frágil biombo do vagonete. Depois, coxeou o mais rápido que pôde até a margem dos trilhos, puxou a arma, colocando-se de viés com o braço levantado como um duelista e voltou os olhos semicerrados para o gigantesco farol que avançava debaixo do vulcão de fogo e fumaça turbilhonantes.
Puxa, que monstro! Entraria ele na curva? Ou não respeitaria o desvio e os esmagaria? Lá vinha ele.
— Fittt.
Algo açoitou o chão ao lado de Bond e houve um clarão momentâneo na cabina.
— P-o-e-m-m-m.
Houve outro clarão, e a bala atingiu o trilho, gemendo na noite.
— Trac. Trac. Trac.
Agora era-lhe possível ouvir o revólver acima do trovejar da locomotiva.
Algo cantou em tom agudo no ouvido de Bond.
Bond não respondeu. Só quatro balas, e ele sabia quando devia disparar.
E então, a vinte jardas, a locomotiva entrou na curva e desembestou pelo desvio com uma guinada tão violenta que atirou as achas de lenha do alto do tender na direção de Bond.
Houve um grito roufenho de metal quando as bordas das rodas motrizes de seis pés de altura dobraram a curva, uma breve impressão de fumaça, chama e ruído de motor, e, depois, uma rápida visão da cabina e do vulto negro e prateado de Spang, de braços abertos e pernas estendidas, agarrando-se com uma das mãos ao costado da cabina e com a outra precipitando-se para a alavanca do acelerador.
A arma de Bond bradou suas quatro palavras. Houve um curto vislumbre de uma cara branca arremessada para o alto, e logo a enorme locomotiva preta e amarela distanciou-se, reboando rumo à muralha sombria dos montes Spectre, o feixe de luz do farol ceifando a treva e o sino dobrando tristemente dim-dão, dim-dão, dim-dão.
Bond guardou lentamente a Beretta no cós das calças, e ficou olhando o ataúde de Mr. Spang, enquanto a esteira de fumaça subia no ar e por um momento encobria a face da lua.
Tiffany veio correndo até onde ele estava, e lado a lado puseram-se a contemplar a bandeira de chamas que se elevava da alta chaminé e escutar as montanhas multiplicarem o atroar da locomotiva. A moça agarrou-lhe os braços quando o comboio deu uma guinada repentina e sumiu-se atrás de um esporão da pedra. E agora ouvia-se apenas um longínquo tamborilar nas montanhas e avistava-se um clarão vermelho que fazia tremular os penhascos enquanto Cannonball despencava no bojo da rocha.
E subitamente apareceu uma imensa língua de fogo, no mesmo instante em que se produziu tremendo choque metálico semelhante ao encontrão de um encouraçado num penedo. Debaixo de seus pés ressoou um estrépito abafado. Finalmente, um ribombo distante e profundo levantou-se das entranhas da terra, seguido por uma barragem de ecos os mais variados.
Então, findos todos os ruídos, zuniu, firme, o silêncio.
Bond soltou um suspiro profundo como se estivesse despertando. Aí estava o fim de um dos Spangs, de um dos enfatuados, cruéis, aparatosos, irrecuperáveis adultos que compunham a quadrilha dos Spangs. Fora um gangster teatral e vivera num ambiente de caixa de palco. Mas isso não alterava o fato de que pretendera liquidar Bond.
— Vamos embora daqui — disse Tiffany Case com sofre-guidão. — Para mim chega de Spectreville.
Bond sentiu a dor insinuar-se-lhe outra vez por todo o corpo à medida que passava a tensão. "Vamos" — respondeu, lacônico. Alegrava-o a ideia de voltar as costas à lembrança daquele rosto branco virado para cima, dentro da bela locomotiva negra em marcha. Estava ligeiramente tonto e duvidava se seria capaz de fazer o percurso.
— Temos de alcançar a estrada. Vai ser difícil. Mas vamos embora.
Levaram uma hora e meia para vencer as duas milhas e, no momento em que se prostrou no solo à margem da estrada de cimento, Bond estava delirante. Foi a moça que o conduziu até lá. Sem ela, ele não teria chegado.
Teria tropeçado no meio dos cactos, das pedras e da mica até que lhe faltassem as forças e o sol causticante se encarregasse de completar o serviço.
Agora ela lhe segurava a cabeça no regaço, falava-lhe docemente e lhe enxugava o suor da testa com a ponta da blusa.
E de vez em quando parava para examinar uma banda e outra da estrada retilínea de concreto, cujos horizontes já tremeluziam nas ondas de calor do amanhecer.
Uma hora depois, ela ergueu-se de um salto, enfiou a blusa por dentro das calças, correu e parou no meio da estrada. Um carro baixo e negro rompia a neblina esvoaçante que ocultava o distante vale de Las Vegas.
O carro estacou justamente diante dela. Um rosto adunco sob um topete desalinhado de cabelo cor de palha assomou à janela. Os penetrantes olhos cinzentos miraram-na de alto a baixo. Pousaram-se na figura do homem deitado no solo à margem da estrada e tornaram para a moça.
Então, com a amistosa fala arrastada dos texanos, o chofer rompeu o silêncio:
— Félix Leiter, senhorita. Às suas ordens. Em que posso servi-la nesta magnífica manhã?
21 - "Nada é tão apropinquante como a propinquidade"
—...E QUANDO CHEGUEI à cidade telefonei pra meu amigo Ernie Cureo. James sabe quem é. A mulher dele estava de ataque e Ernie no hospital. Corro pra lá e ele me passa o serviço e eu imagino que James pode precisar de reforços. Monto na minha égua preta cor de carvão e vou esquipando noite adentro e quando chego perto de Spectreville vejo o clarão no céu. Calculo então que Mr. Spang está preparando um churrasco. O
portão da cerca está aberto e eu resolvo tomar parte na festa. Bom, creiam-me vocês ou não, o fato é que não há vivalma no local, exceto um cara de perna arrebentada e contusões generalizadas, que vem se arrastando pela estrada, tentando dar o pira. E ele me dá a impressão de ser um arruaceiro de nome Frasso, de Detroit. Ernie Cureo tinha dito que era um dos caras que tinham levado James. Ele não estava em condições de negar isso e eu então manjei a situação toda e compreendi que Rhyolite era minha próxima parada. Aí eu digo pro nosso amigo que daí a pouco os bombeiros virão fazer companhia a ele, levo-o até o portão e deixo-o lá. E de uma hora para outra vejo uma guria no meio do deserto, com o ar de quem tinha sido disparada de um canhão. E aqui estamos todos. Agora é a vez de vocês contarem.
"Então tudo isto não é parte de um sonho e eu estou deitado no assento traseiro no Studillac e este é o colo de Tiffany debaixo da minha cabeça e aquele ali é Félix e nós estamos indo às carreiras pela estrada a caminho da segurança, de um médico, de um banho, de comida, de bebida e de um longo sono reparador." Bond mexeu-se e sentiu que a mão de Tiffany em seu cabelo dizia que tudo era real e tal como havia esperado. Imobilizou-se novamente e nada disse. Guardava cada momento para si e lhes escutava as vozes e o zunido dos pneus rolando pela estrada.
Ao fim da narrativa de Tiffany, Félix Leiter largou um assobio de estupefação.
— Puxa! — exclamou ele. — Então vocês dois abriram um rombo espetacular na quadrilha de Spang. Que diabo é que vai acontecer agora? Há muitos outros marimbondos na casa e isso de ficar zumbindo em volta não é do feitio deles. Eles vão exigir ação.
— Certo! — disse Tiffany. — Spang era membro da associação de Las Vegas, e esses camaradas são muito solidários. Há também Shady Tree e aqueles dois pistoleiros, Wint e Kidd. Só o diabo sabe quem são eles. Quanto mais cedo a gente cruzar a fronteira estadual, melhor. E depois, o que vamos fazer?
— Até aqui vai tudo em ordem — disse Félix Leiter. — Em dez minutos chegaremos a Beatty, depois pegaremos a 58 e passaremos nela uma meia hora. Em seguida, toparemos um longo trecho através do Vale da Morte e sobre as montanhas até Olancha, onde atingiremos a N.° 6. Poderíamos dar uma paradinha lá, levar James a um médico, comer alguma coisa e tomar um banho. Depois continuaremos na 6 até chegarmos a Los Angeles. Será muito puxado, mas poderemos estar em Los Angeles na hora do almoço. Aí podemos descansar um pouco e bolar algum plano. Meu palpite é que temos de tirar você e James do país o mais cedo possível. Os meninos tentarão pegar vocês dois de qualquer jeito, e se conseguirem eu não darei um níquel pela vida de nenhum dos dois. A melhor solução seria botá-los num avião para Nova York hoje de noite e despachá-los amanhã para a Inglaterra.
James pode embarcar lá.
— Acho que é razoável — disse a moça. — Mas, afinal, quem é esse Bond? O que é que ele faz? É um detetive ou coisa semelhante?
— Acho melhor que você mesma pergunte a ele — Bond ouviu Leiter dizer cautelosamente. — Mas eu, se fosse você, não me preocuparia com isso. Ele cuidará de você.
Bond sorriu para si mesmo e, no longo silêncio que se seguiu, caiu num sono intranquilo que durou até o momento em que atravessaram a Califórnia e o carro parou defronte de um portãozinho com a placa "Otis Fairplay, Médico".
E depois, enfaixado e pintado com mercúrio-cromo, banhado e barbeado, com um suculento café matinal no estômago, Bond voltou ao carro e ao mundo. Tiffany readquirira o velho ar irônico e intratável e Bond revelava-se útil na espionagem dos patrulheiros rodoviários, enquanto Leiter avançava a oitenta milhas pela interminável estrada estonteante, rumo à longínqua linha de nuvens que escondiam as High Sierras.
Mais tarde rolavam tranquilamente ao longo de Sunset Boulevard, ladeado pelas palmeiras e pelos gramados verdejantes. O Studillac coberto de poeira destoava no meio das cintilantes Corvettes e Jaguars. Finalmente, ao anoitecer, estavam sentados no bar escuro e refrigerado do Beverly Hills Hotel. Havia novas maletas no saguão, roupas novas adquiridas em Hollywood, e até mesmo o rosto de Bond, marcado de cicatrizes da luta, poderiam indicar que tinham terminado o trabalho nos estúdios.
Havia um telefone em cima da mesa, ao lado dos martinis. Félix Leiter acabava de falar com Nova York pela quarta vez desde que haviam chegado.
— Bom, está tudo arranjado — disse ele, desligando o telefone. — Meus colegas do escritório conseguiram passagens no Elizabeth. Adiou a partida por causa de uma greve nas docas. Sai amanhã de noite, às oito. Eles.irão ao encontro de vocês de manhã em La Guardiã, com as passagens, e vocês serão levados para bordo de tarde. Pegaram o resto de suas coisas no Astor, James. Uma pasta e os teus célebres tacos de golfe. E Washington oferece um passaporte a Tiffany. Haverá um homem do Departamento de Estado no aeroporto. Vocês terão que assinar uns formulários. Consegui que um dos meus antigos colegas da CIA arranjasse a coisa. Os vespertinos fizeram uni bruto estardalhaço com a estória. "Cidade Morta Desaparece" e outras manchetes desse tipo. Mas parece que ainda não descobriram nosso amigo Spang e os nomes de vocês não figuram no noticiário. Meu pessoal diz que não há nada com vocês na polícia, mas um de nossos informantes secretos diz que as quadrilhas estão à procura de vocês e espalharam por toda parte uma descrição de ambos. Com a promessa de dez mil. Assim, é melhor mesmo dar no pé o mais cedo possível. É aconselhável irem para bordo separadamente. Tomem o maior cuidado, vão para os camarotes e não saiam de lá. Vai haver o diabo quando eles chegarem ao fundo daquela velha mina.
Isso fará pelo menos três cadáveres a zero, e esse tipo de escore não é do agrado deles.
— Pinkerton é uma verdadeira máquina — disse Bond, com admiração.
— Mas ficarei satisfeito quando estivermos longe daqui. Eu pensava que os seus gangsters eram um bando de italianos untuosos, que se empanturravam de pizza e cerveja a semana toda e no sábado assaltavam uma garagem ou uma farmácia para arranjarem dinheiro para as corridas. Mas não há dúvida que eles incluem um bocado de violência na folha de pagamentos.
Tiffany Case riu zombeteiramente.
— Você precisa mandar examinar essa cabeça — disse ela, categórica.
— Se sairmos inteirinhos do Lizzie será um verdadeiro milagre. Por aí você pode ter uma ideia de como eles são. Se não fosse aqui o nosso Capitão Gancho-de-Aço, não sei o que seria de nós. Untuosos! Pois sim!
Félix Leiter soltou uma risadinha.
— Calma, pombinhos — disse ele, consultando o relógio. — Temos de partir. Preciso voltar a Las Vegas hoje de noite e começar a procurar o esqueleto do nosso Shy Smile. E vocês têm de pegar o avião. Poderão continuar a arenga a vinte mil pés de altura. De lá a perspectiva é mais interessante. É possível até que terminem como amigos. Lembrem-se do que se diz por aí. — Fez um aceno para o garçom. — Nada é tão apropinquante como a propinquidade.
Leiter levou-os ao aeroporto e deixou-os lá. Bond sentiu um nó na garganta quando o vulto magro saiu coxeando para o carro depois de ter sido efusivamente abraçado por Tiffany Case.
— Você pode dizer que tem um amigo de verdade — disse a moça ao ver Leiter bater a porta e ouvir o estrondo do escape enquanto o carro partia de volta ao deserto.
— Sim — disse Bond. — Félix é cem por cento.
O luar arrancou cintilações do gancho de aço quando Leiter acenou um último adeus. Depois, a poeira assentou na estrada e soou a voz de ferro do alto-falante: "Trans-World Airline, Voo 93. Embarque no Portão N.° 5 para Chicago e Nova York. Todos a bordo, por favor." Eles abriram caminho através das portas de vidro e deram os primeiros passos de sua longa viagem para Londres.
O novo Super-G Constellation roncou por cima do continente envolto em sombras, e Bond, deitado em seu confortável beliche, esperando que o sono lhe tomasse conta do corpo dolorido, pensava em Tiffany, que dormia no beliche de baixo, e no estágio em que se encontrava sua missão.
Pensou no lindo rosto adormecido sobre a mão aberta, inocente e indefeso, esvaecidos o desdém dos olhos cinzentos e rasos e a curva irônica dos cantos da boca ardente. Bond sabia que estava bem perto de apaixonar-se. Mas, e ela? Até onde ia aquela rebelião masculina gerada certa noite em São Francisco, quando os homens lhe invadiram o quarto e a ofenderam?
Chegariam a adolescente e a mulher a transpor a barricada que haviam começado a construir naquela noite contra todos os homens do mundo?
Romperia ela a concha que os anos de solidão e retraimento tornavam cada vez mais rija?
Bond recordou aqueles momentos das últimas vinte e quatro horas em que conhecera a resposta, momentos em que uma jovem arrebatada e terna surgira feliz, sem a máscara agressiva que usava entre os gangsters, no contrabando, no cassino, na mesa de vinte-e-um, e lhe dissera: — Toma-me pela mão. Abre a porta e caminharemos de mãos dadas no dia claro. Não te preocupes. Acertarei meu passo pelo teu. Sempre estive a teu lado em pensamento, mas tu não vieste e passei a vida escutando outra cadência.
Sim, pensou ele. Tudo correrá bem, por esse lado. Mas estava preparado para as consequências? Uma vez que a tomasse pela mão, seria para sempre.
Estaria no papel do médico, do psicanalista, a quem a paciente transfere seu amor e sua confiança, enquanto se liberta da doença. Não poderia haver maior crueldade do que soltar-lhe a mão depois de a ter tomado nas suas.
Estava preparado para as repercussões que esse ato teria em sua vida e em sua profissão?
Bond mexeu-se no beliche e descartou-se do problema. Era muito cedo ainda para enfrentá-lo. Estava indo muito depressa. Mais devagar. Cada coisa a seu tempo. E obstinadamente arquivou a questão, dirigindo os pensamentos para M e para a missão que lhe cumpria concluir antes de perder tempo com sua vida particular.
Bem, uma parte da serpente estava esmagada. A cabeça ou o rabo?
Difícil dizer, mas Bond tendia a julgar que Jack Spang e o misterioso ABC
eram os verdadeiros manipuladores do contrabando de diamantes e que Seraffimo se incumbia da receptação. Seraffimo podia ser substituído.
Tiffany podia ser dispensada. Shady Tree, a quem ela poderia implicar no contrabando, teria de ficar oculto até que a tormenta — se é que Bond era realmente um prenuncio de tempestade — se desencadeasse. Mas nada havia que pudesse implicar Jack Spang ou a House of Diamonds, e a única pista para ABC era o telefone londrino, cujo número Bond trataria de obter da moça o mais cedo possível. Mas este, e todo mecanismo dos contados a ele relacionados, seria alterado logo depois que todos os fatos da deserção de Tiffany e da fuga de Bond fossem comunicados a Londres, presumivelmente por Shady Tree. Assim, tudo isto, refletiu Bond, colocava Jack Spang e, através dele, ABC como seu próximo alvo. O que tinha a fazer de imediato, concluiu Bond antes de se abandonar ao sono, era relatar toda a situação a M
assim que embarcasse no Queen Elizabeth. Daí por diante Londres tomaria conta do caso. Os homens de Vallance sairiam a campo. Bond não teria muito que fazer quando regressasse. Relatórios e mais relatórios a escrever.
A mesma velha rotina no escritório. E de noite haveria Tiffany no quarto atualmente desocupado de seu apartamento, numa transversal de Kings Road. Precisava mandar um telegrama para May a fim de que ela arrumasse as coisas. Vejamos... flores, sais de banho de Floris, lençóis limpos...
Dez horas depois de terem deixado Los Angeles, sobrevoaram La Guardiã e viraram para o mar a fim de preparar o pouso.
Eram oito horas da manhã de domingo e havia pouca gente no aeroporto, mas um funcionário interrompeu-lhes a caminhada quando seguiam pela pista alcatroada e os conduziu para uma entrada lateral, onde os esperavam um homem de Pinkerton e um representante do Departamento de Estado.
Enquanto conversavam, a bagagem foi-lhes trazida. Depois, levaram-nos para fora da estação de passageiros, onde os aguardava um elegante Pontiac marrom, com o motor em movimento e as persianas do vidro traseiro abaixadas.
Passaram ainda algumas horas de ócio no apartamento do homem de Pinkerton até que, por volta das quatro da tarde, mas com um quarto de hora de diferença entre eles, galgaram a prancha de embarque, penetraram no negro, majestoso e seguro ventre britânico do Queen Elizabeth e, por fim, encerraram-se em seus camarotes no convés M, com as portas trancadas para o mundo.
Mas, quando, em primeiro lugar, Tiffany Case e, depois, Bond puseram os pés na prancha de embarque, um doqueiro do Sindicato de Estivadores de Anastásia correu para a cabina telefônica do galpão da alfândega.
E três horas mais tarde dois homens de negócios americanos saltavam de um sedan negro à porta de um armazém das docas, passavam às pressas pelo serviço de imigração e pela alfândega e galgavam a prancha de embarque, quando os alto-falantes começavam a pedir aos visitantes que desembarcassem.
Um dos homens de negócios era ainda jovem, de feições delicadas e fios de cabelos embranquecidos aparecendo sob o Stetson recoberto por uma capa impermeável. O nome impresso na pasta que carregava era B.
Kitteridge. O outro era um gorducho grandalhão, com um brilho nervoso nos olhos miúdos por trás das lentes bifocais. Suava em bicas e constantemente enxugava o rosto com um lenço enorme. O nome no cartão pendurado na alça da pasta era W. Winter. Em baixo do nome, lia-se em tinta vermelha: MEU GRUPO SANGuÍNEO É F.
22 - Amor e molho bearnês
Às OITO HORAS em ponto, o prolongado e ressoante apito da sirena do Queen Elizabeth fez tremer a vidraça dos arranha-céus. Com grande rebuliço, os rebocadores arrastaram-no para o meio do rio, abrindo-lhe o caminho. Por fim, desenvolvendo cautelosamente cinco nós, o transatlântico pôs-se a descer o rio, cortando as águas remansosas.
Após a parada para desembarcar o prático no Farol de Ambrose, as quádruplas hélices fustigariam o mar, convertendo-o em creme de leite, e o Queen Elizabeth, com um estremecimento de alívio, começaria a fender o longo arco achatado, entre os paralelos 45 e 50, a caminho de Southampton.
Sentado no camarote, escutando o ranger do madeiramento e contemplando o lápis rolar suavemente em cima da penteadeira, entre a escova de cabelo e a borda de seu passaporte, Bond recordava os dias em que outra era a rota da embarcação, os dias em que ela ziguezagueava no Atlântico Sul, brincando de esconde-esconde com os ferozes cardumes de submarinos alemães, a caminho da Europa em chamas. Ainda era uma aventura, mas agora o Queen Elizabeth — protegido num casulo de radar, rádio e sondador de ecos — movia-se com as precauções de um potentado oriental entre escoltas e batedores e, no que dizia respeito a Bond, tédio e indigestão eram os únicos riscos da viagem.
Pegou o telefone e pediu para falar com Miss Case. Quando ela lhe ouviu a voz, rompeu num gemido teatral.
— A loba do mar odeia o mar — disse ela. — Ainda não saímos do rio e eu já estou enjoada.
— Não faz mal — disse Bond. — Não saia do camarote e tome dramamina e champanha. Vou passar uns dois ou três dias em repouso. Vou mandar chamar o médico e o massagista dos banhos turcos pra ver se junto de novo as peças. E de qualquer modo não faz mal nenhum que a gente passe a maior parte da viagem no camarote. É possível que nos tenham localizado em Nova York.
— Bom, se você promete telefonar todos os dias — disse Tiffany — e promete me levar àquela Veranda Grill logo que eu puder engolir um pouco de caviar, eu concordo. Está bem assim?
Bond soltou uma gargalhada.
— Já que você insiste, eu prometo — disse ele. — E agora, escute. Em troca, eu quero que você tente lembrar-se de tudo o que puder a respeito de ABC e do lado londrino de nosso negócio. Aquele número de telefone e o mais que você julgar importante. Logo que puder, eu lhe direi por que estou interessado nisso. Por enquanto você tem de confiar em mim. Combinado?
— Combinado — disse a moça com indiferença, como se toda essa fase de sua vida tivesse perdido o interesse; e, durante dez minutos, Bond inquiriu-a minuciosa, mas (exceto no que tocava a pormenores insignificantes) inutilmente, acerca das atividades de ABC.
Depois desligou o telefone, chamou o camareiro, encomendou o jantar e sentou-se para escrever o longo relatório que teria de transpor em código e despachar naquela mesma noite.
O rebocador conduziu tranquilamente o navio para a treva, e a cidadezinha de três mil e quinhentos habitantes preparou-se para viver os cinco dias da viagem, durante os quais poderiam registrar-se todas as ocorrências naturais em qualquer outra comunidade desse porte — furtos, brigas, seduções, bebedeiras, embustes, talvez um ou dois partos, a possibilidade de um suicídio e, em cem travessias, até mesmo um homicídio.
Quando o burgo de ferro começou a sulcar serenamente a imensidão do Atlântico e a brisa suave da noite zuniu e gemeu no topo do mastro, as antenas de rádio já estavam transmitindo a mensagem do operador de serviço ao ouvido atento de Portishead.
E o que o operador enviava, precisamente às dez horas da noite, E. S. T., era um telegrama endereçado a ABC, CUIDADOS HOUSE OF DIAMONDS, HATTON GARDEN, LONDRES, e
que dizia:
LOCALIZADOS PT CASO ASSUNTO EXIJA SOLUÇÃO DRÁSTICA ESSENCIAL VOCÊ FIXAR PREÇO PAGO EM DÓLARES. Assinado: WINTER.
Uma hora depois, enquanto o operador do Queen Elizabeth lamentava ter de transmitir quinhentos grupos de cinco letras dirigidos ao DIRETOR PRESIDENTE, EXPORTADORA UNIVERSAL, REGENTS PARK, LONDRES, o rádio de Portishead enviava uma breve mensagem a WINTER, PASSAGEIRO PRIMEIRA CLASSE QUEEN ELIZABETH, que dizia:
DESEJO SOLUÇÃO IMEDIATA PROBLEMA CASE PT PAGAREI VINTE MIL PT
CUIDAREI PESSOALMENTE OUTRO ASSUNTO CHEGADA LONDRES CONFIRME ABC.
O operador procurou Winter na lista de passageiros, meteu a mensagem num envelope e enviou-a a um camarote no convés A, abaixo do de Bond e da moça, onde os dois homens jogavam cartas em mangas de camisa.
Quando o mensageiro saiu do camarote, ouviu o gorducho dizer para o homem dos cabelos brancos: — Pois é, Kidd. Vinte mil. É pra valer!
Não foi senão no terceiro dia que Bond e Tiffany resolveram encontrar-se no Observation Lounge, para um coquetel, e mais tarde no Veranda Grill, para jantar. Ao meio-dia, a calmaria era total, e depois do almoço no camarote Bond recebera um ultimato em redondo cursivo feminino numa folha de bloco do navio: "Marque um encontro comigo hoje. Não falhe".
Imediatamente Bond pegara o telefone.
Estavam sedentos da companhia um do outro depois dos três dias de separação, mas as defesas de Tiffany estavam de pé quando ela se reuniu a ele na escura mesa de canto que Bond havia escolhido na cintilante sala semicircular, situada na proa.
— Que espécie de mesa é esta? — perguntou ela com sarcasmo. — Está com vergonha de mim? Então eu ponho o mais belo modelo dos costureiros de Hollywood e você me esconde como se eu fosse Miss Reno 1914? Quero me divertir nessa geringonça e você me bota num canto como se eu fosse contagiosa.
— É isso mesmo — disse Bond. — O que você quer é elevar a temperatura de outros homens.
— Que é que você espera que uma moça faça no Queen Elizabeth?
Pescar?
Bond riu. Acenou para o garçom e pediu vodca-martini seco com casca de limão.
— Eu podia te oferecer uma alternativa.
— Já sei — disse a moça. — Meu querido diário: estou na maravilhosa companhia de um inglês bonitão. O que me aflige é saber que ele anda atrás das jóias da minha família. Que devo fazer? Sua criada, desorientada. — Num movimento súbito, ela inclinou o busto para a frente e pousou a mão na do homem. — Escute aqui, mestre Bond — disse ela. — Estou felicíssima.
Adoro isso aqui. Adoro estar com você. E adoro esta mesinha escura onde ninguém pode me ver segurando sua mão. Não ligue pra minha conversa. É que eu não posso me conter de tão feliz. Não faça caso das minhas brincadeiras.
Ela vestia uma blusa de xantungue de seda creme e uma saia de algodão e lã preto-carvão. As cores neutras ressaltavam-lhe a tez café-au-lait. O minúsculo relógio Cartier quadrado, com a pulseira preta, era sua única jóia, e as unhas curtas da mão pequena e morena que Bond tinha entre as suas estavam sem esmalte. A luz do sol, refletida do exterior, refulgia no ouro pálido das largas ondas do cabelo, nas profundezas dos cinzentos olhos opalescentes e nos alvos dentes que cintilavam entre os lábios sensuais.
— Não — disse Bond. — Não farei caso, Tiffany. Tudo em você é esplêndido.
Ela o encarou nos olhos e ficou satisfeita. O garçom trouxe-lhes a bebida. Ela retirou a mão e observou-o ironicamente por cima da borda de seu copo.
— Agora eu quero saber umas coisinhas — disse ela. — Em primeiro lugar, o que é que você faz e para quem trabalha? A princípio, no hotel, pensei que você era um vigarista. Mas, não sei por quê, quando você foi embora, vi que não era. Acho que devia ter avisado ABC, e com isso teria evitado essa onda toda. Não avisei, e pronto! Vamos, James. Responda.
— Trabalho para o governo — disse Bond —, que quer acabar com esse contrabando de diamantes.
— Espécie de agente secreto?
— Funcionário público, apenas.
— Está bem. E o que é que você vai fazer comigo quando chegarmos a Londres? Trancafiar-me?
— Sim. No quarto desocupado de meu apartamento.
— Assim é melhor. Terei de me tornar súdita da Rainha como você?
Gostaria de ser súdita.
— Acho que podemos arranjar isso pra você.
— É casado? — Fez uma pausa. — Ou tem alguma ligação?
— Não. Um caso ou outro de vez em quando.
— Quer dizer então que você é um desses sujeitos fora de moda que gostam de dormir com mulher? Por que não se casou?
— Creio que porque eu acho que posso manobrar melhor a minha vida sozinho. A maioria dos casamentos não soma duas pessoas. Subtrai uma da outra.
Tiffany Case refletiu um pouco.
— Talvez você tenha razão — disse ela, afinal. — Mas depende do que se soma. Pode ser algo humano ou inumano. Ninguém é auto-suficiente.
— E você?
A moça não gostou da pergunta.
— Talvez eu esteja do lado do inumano — respondeu com rispidez. — E com que diabo de homem você queria que eu me casasse? Com Shady Tree?
— Pode ter havido muitos outros.
— Não houve — disse ela com raiva. — Você é capaz de achar que eu não devia ter me misturado com esses calhordas. Bem, talvez eu tenha dado o passo que não devia dar. — A chama de cólera se apagou e a moça assumiu a defensiva. — Isso acontece com certas pessoas, James. Acontece mesmo. E às vezes não é culpa delas.
James Bond estirou o braço e apertou a mão da moça.
— Eu sei, Tiffany — disse ele. — Félix me contou. É por isso que não perguntei nada. Não pense mais nisso, não. O que importa é o dia de hoje, aqui, agora. Não o dia de ontem. — Desviou o assunto. — Agora é a sua vez de me fornecer alguns fatos. Por exemplo, de onde é que vem esse nome Tiffany e que tal ser banqueira no Tiara? Como é que você chegou a cartear tão bem? Simplesmente espetacular a maneira como você tratava aquele baralho. Se pode fazer aquilo, pode fazer qualquer outra coisa.
— Não diga — replicou a moça com ironia. — Fazer o quê, por exemplo? Brincar de sapateira? E quanto ao nome Tiffany a explicação é simples. Quando eu nasci, papai Case ficou tão zangado por eu não ser menino que deu à minha mãe mil dólares e uma lata de talco comprada em Tiffany e foi embora de casa. Foi ser fuzileiro naval. Terminou morrendo em Iwo Jima. Então minha mãe me botou o nome de Tiffany Case e tratou de ganhar a vida pra nós duas. Começou com uma espelunca e umas garotas e com o tempo foi ficando mais ambiciosa. Talvez essa história não seja muito do seu agrado.
Ela lhe lançou um olhar meio defensivo, meio suplicante.
— Não me preocupa — disse Bond secamente. — Você não era uma das pequenas.
Ela deu de ombros.
— Um dia o lugar foi invadido pelos gangsters. — Interrompeu-se para beber o resto do martini. — E eu dei no pé, por minha conta. Passei pelos empregos comuns a todas as moças. Depois fui para Reno. Lá eles mantêm uma escola de jogo e eu dei duro. Curso completo. Dados, roleta e vinte-e-um. Pode-se ganhar bom dinheiro nos cassinos. Duzentos por semana. Os homens gostam quando as moças bancam o jogo e as mulheres se sentem mais confiantes. Acreditam que a gente vai se mostrar bondosa com elas.
Pensam estar entre irmãs. Quando são homens que bancam o jogo, elas se apavoram. Mas não pense que essa estória toda é assim tão engraçada.
Contada, é uma coisa; vivida, é outra. — Fez uma pausa e sorriu. — Tenha a palavra, agora. É a sua vez. Pague mais um trago e me diga que tipo de mulher você acha que soma com você.
Bond chamou o garçom. Acendeu um cigarro e voltou-se para Tiffany.
— Alguém que saiba fazer molho bearnês e amor — disse ele.
— Já sei! Qualquer bruxa velha que saiba cozinhar e deitar-se de costas.
— Ah, não. Ela precisa ter todas essas coisas que as mulheres geralmente têm. — Bond examinou-a. — Cabelo cor de ouro. Olhos cinzentos. Boca pecadora. Silhueta perfeita. E naturalmente tem de contar piadas engraçadas, vestir-se bem e jogar cartas. As prendas naturais.
— E você casaria com uma mulher assim, se a encontrasse?
— Não necessariamente — disse Bond. — Pra falar com franqueza, já sou quase casado. Com um homem cujo nome começa com M. Teria de me divorciar dele antes de casar com uma mulher. E não sei se isso me agradaria. Ela me obrigaria a passar canapés de mão em mão numa sala de visita em forma de L. E haveria aquelas chatérrimas discussões "Foi você — Não, foi você" que parecem combinar tão bem com todos os casamentos.
Não daria certo. No primeiro acesso de claustro-fobia, iria embora pro Japão ou pra qualquer outra parte.
— E filhos?
— Gostaria de ter alguns — disse Bond. — Mas só quando me aposentasse. De outra forma, não seria justo. Meu trabalho não é lá muito seguro. — Olhou para o copo e bebeu todo o martini. — E você, Tiffany? — perguntou, a fim de mudar de assunto.
— Acho que toda moça gostaria de chegar em casa e encontrar um chapéu na mesinha do corredor — disse Tiffany, melancólica. — O diabo é que eu nunca encontrei nada que prestasse debaixo do chapéu. Talvez não tenha procurado bastante ou não tenha procurado nos lugares certos. Você sabe como é: quando a gente entra na rotina não quer mais sair. Assim fiz eu no meio dos Spangs. Sabia sempre de onde era que vinha a comida. Fiz algumas economias. Mas uma moça não pode ter amigos naquele ambiente.
Ou bota uma placa "Proibida a Entrada" ou de uma hora pra outra se vê cercada de malandros. Mas acho que já estou farta de viver só. Conhece o refrão das coristas da Broadway? "É triste a trouxa de roupa que não tem uma camisa de homem".
Bond riu.
— Mas agora você está fora da rotina — disse ele e olhou-a zombeteiramente. — E Mr. Seraffimo? E aqueles dois quartos de dormir no Pullman, a ceia para dois com champanha...?
Antes que concluísse, ela levantou-se da mesa, os olhos vermelhos, e caminhou para fora do bar.
Bond se amaldiçoou. Colocou algum dinheiro sobre a conta e saiu correndo atrás dela. Foi encontrá-la quase no meio do tombadilho de passeio.
— Por favor, Tiffany, escute — começou ele.
Ela voltou-se e encarou-o.
— Como se pode ser tão mesquinho? — disse ela, e lágrimas iradas brilharam-lhe nos cílios. — Por que você tem de estragar tudo com uma observação ferina como aquela? Oh, James! — Em desespero virou-se para as janelas, procurando um lencinho na bolsa. Enxugou os olhos. — Você simplesmente não compreende.
Bond cingiu-a com um braço e puxou-a para si.
— Meu amor! — Sabia que nada senão o grande passo do amor físico curaria esses mal-entendidos, mas que era necessário ;ainda desperdiçar tempo e palavras. — Não tive a intenção de magoar você. Eu queria somente ter certeza. Aquela mesa posta para a ceia no trem me feriu muito mais do que o que aconteceu depois. Tinha de lhe fazer aquela pergunta.
Ela ergueu a vista, ainda em dúvida.
— Está falando sério? — perguntou, observando-lhe o rosto. — Quer dizer que você já me queria bem?
— Não seja boba — disse Bond, impaciente. — Então você não sabe nada de nada?
Ela afastou-se e contemplou pela janela o infindável mar azul e as gaivotas que acompanhavam esse navio extraordinariamente pródigo.
Depois de algum tempo, perguntou:
— Você já leu Alice no País das Maravilhas?
— Há muitos anos — disse Bond, surpreso. — Por quê?
— Há lá umas linhas que muitas vezes me vêm à memória — disse ela.
— "Oh Ratinho, conheces o caminho que conduz para fora deste poço de lágrimas? Estou muito cansada de nadar dentro dele, oh Ratinho". Lembra-se dessa passagem? Pois bem, eu pensava que você ia me mostrar a saída e, em vez disso, você me empurra pra dentro do poço. Por isso é que fiquei transtornada. — Ergueu a vista. — Mas acredito que você não teve intenção de me magoar.
Bond olhou-lhe a boca demoradamente e depois beijou-a nos lábios.
Ela não retribuiu e esquivou-se. Seus olhos sorriam de novo. Deu o braço a ele e voltou-se para as portas abertas que conduziam ao elevador.
— Me leve lá pra baixo — disse ela. — Preciso recompor a fachada e, além disso, quero me preparar com cuidado para agradar ao candidato. — Ficou um instante em silêncio e depois colou a boca no ouvido dele. — Talvez isso lhe interesse, James Bond — disse baixinho. — Nunca em minha vida fiz o que você chama "dormir com um homem". — Puxou-o pelo braço. — Agora vamos — disse bruscamente. — Afinal, já é hora de tomar um "quente doméstico". Suponho que isso faz parte da língua dos súditos que você está querendo que eu aprenda. Vocês, súditos, escrevem as coisas mais loucas nos banheiros.
Bond levou-a até o camarote dela, voltou para o seu e tomou um "quente salgado" na banheira, seguido de um "frio doméstico" no chuveiro. Depois, estirou-se na cama, recordando com um sorriso algumas das coisas que ela havia dito, e pensou nela, deitada na banheira, intrigada com a floresta de torneiras e imaginando que os ingleses eram loucos varridos.
Soou uma pancada na porta e o camareiro entrou com uma bandejinha que colocou em cima da mesa.
— Que diabo é isso? — perguntou Bond.
— Foi enviado pelo cozinheiro-chefe, senhor — respondeu o camareiro, retirando-se em seguida e fechando a porta do camarote.
Bond desceu da cama e foi examinar o conteúdo da bandeja. Não pôde deixar de rir. Havia uma garrafinha de Bollinger, um rescaldeiro com quatro talhadas de bife em canapés de torrada, e uma tijelinha de molho. Debaixo desta, uma nota escrita a lápis dizia: "Este molho bearnês foi criado por Miss T. Case sem minha assistência". Assinado: "O Chefe".
Bond encheu uma taça de champanha, espalhou um pouco de molho numa talhada de bife e mastigou atentamente. Depois foi ao telefone.
— Tiffany?
Ouviu o risinho abafado e divertido no outro extremo do fio.
— Bem, não há dúvida de que você faz um maravilhoso molho bearnês...
Repôs o telefone no gancho.
23 - O trabalho fica em segundo plano
MOMENTO INEBRIANTE NUM CASO amoroso é aquele em que, pela primeira vez, em público, num restaurante ou num teatro, o homem pousa a mão na coxa da mulher e ela, tomando-a nas suas, aperta-a contra si.
Os dois movimentos dizem tudo o que pode ser dito. Concluem todos os acordos. Firmam-se todos os pactos. E há um longo minuto de silêncio durante o qual o sangue canta nas veias.
Eram onze horas e havia poucas pessoas espalhadas nos cantos da Veranda Grill. O mar arfava baixinho sob o luar lá fora e o magnífico paquete arava a negra pradaria do Atlântico. À popa, apenas um levíssimo galope mostrava uma suave ondulação, as doze lentas pulsações por minuto de um oceano adormecido, aos dois seres aconchegados atrás do quebra-luz cor-de-rosa.
O garçom trouxe-lhes a conta, e suas mãos se separaram. Mas agora dispunham de todo o tempo do mundo e não precisavam afirmar seus sentimentos com palavras e contactos. Quando o garçom retirou os pratos, a moça fitou Bond com um sorriso de felicidade os dois encaminharam-se para a porta.
Entraram no elevador para o Tombadilho de Passeio.
— Que faremos agora, James? — perguntou Tiffany. — Gostaria de tomar mais uma café e um Stinger preparado com creme de menthe branco, enquanto estivéssemos escutando o leilão. Já ouvi falar tanto dele e bem que poderíamos ganhar uma fortuna.
— Está bem — disse Bond. — O que você desejar. — Tomou-a pelo braço e atravessaram vagarosamente a grande sala de estar, onde o víspora ia em meio, e o salão de baile, onde os músicos afinavam os instrumentos. — Mas não me obrigue a comprar nenhum número. É um jogo como os outros, e cinco por cento destinam-se à beneficência. Quase a mesma coisa que em Las Vegas. Mas é divertido quando há um bom leiloeiro. E dizem também que há muito dinheiro a bordo.
O salão de fumar estava quase deserto. Escolheram uma mesinha longe da plataforma onde o Comissário arrumava os apetrechos do leiloeiro, a caixa com os papeluchos numerados, o martelo, a garrafa de água.
— A casa está fraca — disse Tiffany ao sentarem-se no meio da floresta de cadeiras e mesas vazias. Mas, quando Bond fez o pedido ao garçom, as portas do cinema se abriram e cerca de cem pessoas ocuparam o salão de fumar.
O leiloeiro, um comerciante dos Midlands, pançudo e jovial, com um cravo vermelho na lapela do dinner jacket, bateu na mesa pedindo silêncio e anunciou que a previsão do Capitão para o percurso do dia seguinte era de 720 a 739 milhas, que qualquer distância abaixo de 720 era o Campo Inferior e acima de 739 era o Campo Superior.
— E agora, minhas senhoras e meus senhores, vejamos se é possível quebrar o recorde estabelecido nesta viagem, que atinge a cifra impressionante de 2.400 libras esterlinas. (Aplausos). ; Um camareiro ofereceu a caixa com os números dobrados à mulher de ar mais aristocrático do salão e depois entregou ao leiloeiro o papelzinho que ela havia sorteado.
— Bem, senhoras e senhores, temos aqui, para começar, um número excepcionalmente bom. 738. Exatamente no limite máximo, e desde que vejo aqui, esta noite, tantas caras novas (risos), creio que todos concordaremos em que o mar está singularmente calmo. Senhoras e senhores. Quanto me dão por 738? Digamos... 50 libras? Quem me dará 50
libras por este número de sorte? 20, foi o que o senhor falou, cavalheiro?
Bem, temos de partir de alguma oferta. Quem dá... 25? Muito obrigado, minha senhora. E 30. 40 lá adiante, sr. camareiro. E 45 do meu amigo, Mr.
Rothblatt. Muito obrigado, Charlie. Quem dá mais pelo n.° 738? 50. Muito grato, minha senhora. E agora, sim, voltamos ao ponto de partida (risos). 50.
Quem dá 55? Então ficamos em 50. Dou-lhe uma... Dou-lhe duas... — e o martelo erguido bateu na mesa.
— Ainda bem que temos um bom leiloeiro — disse Bond.
— O número era bom. E barato, se o tempo continuar como está e ninguém se jogar no mar. O Campo Superior custará uma bolada esta noite.
Todo mundo espera que o navio faça mais de 739 milhas nesse tempo.
— Essa bolada quer dizer quanto? — perguntou Tiffany.
— Duzentas libras. Talvez mais. Acho que os números normais serão leiloados por umas cem libras. O primeiro número é sempre mais barato do que os outros. O pessoal ainda está frio. A única esperteza que se pode demonstrar neste jogo é arrematar o primeiro número sorteado. Qualquer número pode ganhar, mas o primeiro custa menos.
Quando Bond acabou de falar, o segundo número era entregue por 90
libras a uma jovenzinha bonita e excitada, que era abertamente financiada por seu companheiro, um indivíduo grisalho e bem conservado que parecia a caricatura de um Don Juan do Esquive.
— Vamos, James. Arremate um número pra mim — disse Tiffany. — Você não sabe mesmo agradar a uma moça. Veja como aquele cavalheiro é gentil com sua pequena.
— Ele já passou da idade-limite — disse Bond. — Deve estar na casa dos sessenta. Até os quarenta, as pequenas não custam nada. Daí por diante, é preciso gastar dinheiro ou contar uma estória. Das duas coisas, a estória é que dói mais. — Sorriu, fitando-a nos olhos. — Mas eu ainda não cheguei aos quarenta.
— Deixe de presunção — disse a moça, olhando-o na boca. — Dizem que os homens maduros são os melhores amantes. Também, por outro lado, sei que você não é unha-de-fome. Aposto que não quer me presentear um número porque o jogo é ilegal nos navios de Sua Majestade.
— Até que é permitido além do limite de três milhas da costa — disse Bond. — Mesmo assim, a Cunard toma todas as precauções para não envolver o nome da companhia. Escute isto — e apanhou um cartão alaranjado que estava em cima da mesa. — "Leilão de Apostas nas Distâncias Diárias percorridas pelo Navio" — leu para a moça. — "Para os fins de direito, é de toda a conveniência reiterar a posição da Companhia em relação ao supradito Leilão. Não é desejo da Companhia que o encarregado do salão de fumar ou quaisquer outros membros da tripulação desempenhem papel ativo na organização das apostas nas milhas diárias percorridas pelo navio". — Bond levantou a vista. — Está vendo? — perguntou. — Seguro morreu de velho. E tem mais: "A Companhia sugere que os passageiros elejam entre si uma Comissão encarregada de formular e controlar as normas... O encarregado do salão de fumar poderá, se instado e se seus deveres o permitirem, prestar a assistência de que a Comissão venha a necessitar para o leiloamento dos números". Como são cautelosos — comentou Bond. — É a comissão que tem de quebrar os galhos que forem aparecendo. Escute mais isto aqui. É onde entra o problema. — Continuou a leitura: — "A Companhia chama especialmente a atenção de todos para os dispositivos das normas financeiras do Reino Unido, no tocante à negociabilidade dos cheques em esterlinos e à limitação da entrada de cambiais bancárias em esterlinos no Reino Unido".
Bond atirou o cartão em cima da mesa..— E por aí vai — disse ele e sorriu para Tiffany Case. — Assim, eu arremato o número que está sendo leiloado e você ganha duas mil libras. Um montão de cédulas e cheques em dólares e libras. O único meio de gastar essa dinheirama, supondo que os cheques tenham fundos, o que é duvidoso, seria contrabandeá-la debaixo dos suspensórios. E lá estaríamos nós outra vez passando muamba. Só que eu estaria do lado do diabo.
A moça não se impressionou.
— Havia um sujeito na quadrilha chamado Abadaba — disse ela. — Era um malandro fino que tinha resposta para tudo. Calculava as vantagens nas corridas, marcava as percentagens no cassino, enfim, era o crânio do grupo.
Era considerado "O Feiticeiro das Apostas". Teve o azar de ser liquidado por engano ao lado de Dutch Schultz — ajuntou ela à guisa de parêntese. — Você está me saindo outro Abadaba com essa lengalenga que não tem outra finalidade senão evitar de gastar dinheiro com uma pequena. Já vi tudo. — Encolheu os ombros, resignada. — Está bem. Mas pelo menos financie outro Stinger pra sua garota.
Bond chamou o garçom. E quando este se afastou, ela aproximou a cabeça do ouvido dele e disse baixinho. — Eu não quero mais, não. Beba você. Quero estar inteiramente sóbria esta noite. — Empertigou-se. — Mas o que é que está se passando aqui? — perguntou com impaciência. — Vamos, um pouco de ação.
— Aí vem ela — disse Bond.
O leiloeiro levantou a voz e toda a sala pediu silêncio.
— E agora, minhas senhoras e meus senhores — rugiu o leiloeiro — vamos à pergunta mais importante da noite. Quem vai me dar 100 libras pela escolha entre o Campo Superior e o Inferior? Todos sabemos o que isto significa... o direito de escolher o Campo Superior, que, inclino-me a crer, será da preferência geral esta noite (risos), em vista das excelentes condições atmosféricas reinantes lá fora. Então, quem abrirá com cem libras os lances para a escolha do Campo Superior ou Inferior?
— Muito obrigado, cavalheiro! E 110. 120 e 130. Muito obrigado, minha senhora.
— Cento e cinquenta — disse uma voz de homem, não muito distante da mesa de Bond e Tiffany.
— Cento e sessenta.
Desta vez era uma mulher. Monótona, a voz do homem gritou: — 170.
— Oitenta — disse alguém.
— Duzentas libras.
Algo fez com que Bond se voltasse e olhasse o homem que tinha falado.
Era um tipo grandalhão. A cara tinha a aparência lisa, brilhante e escorregadia de um olho de boi. Olhos miúdos, frios e escuros fitavam o estrado do leiloeiro através de imóveis lentes bifocais. Todo o pescoço do homem parecia estar por trás da cabeça. O suor havia emaranhado as algas negras e encaracoladas do cabelo. Enquanto Bond o observava, ele tirou os óculos, pegou um guardanapo e passou a enxugar o suor, com um movimento circular que começou no lado esquerdo do rosto, estendeu-se à nuca, onde a mão esquerda cedeu a vez à mão direita, e esta completou o circuito, atingindo os pingos do nariz.
— Duzentas e dez — disse alguém.
A queixada do homem bamboleou, a boca se descerrou, e ele disse, com nítido sotaque americano:
— Duzentas e vinte.
O que havia nesse indivíduo capaz de ferir uma corda na memória de Bond? O inglês examinou o rosto largo, a imaginação percorrendo todo o arquivo do cérebro, abrindo e fechando gavetas, uma após outra à procura de uma pista. A cara? A voz? Inglaterra? América?
Bond abandonou a busca e voltou a atenção para o outro homem à mesa.
Ainda aqui, a mesma necessidade urgente de reconhecer. As feições jovens e estranhamente delicadas sob os cabelos brancos e lisos. Os olhos castanhos e plácidos sob as longas pestanas. O efeito geral era de delicadeza, perturbada pelo nariz roliço montado na boca larga de lábios finos, agora aberta num sorriso estúpido e vazio como a fenda de uma caixa postal.
— Duzentas e cinquenta — disse o grandalhão mecanicamente.
Bond tornou a olhar para Tiffany.
— Já viu aqueles dois alguma vez? — perguntou ele, e ela notou-lhe a ruga de preocupação entre os olhos.
— Não — disse ela, categórica. — Nunca. Talvez venham do Brooklyn. Podem ser dois comerciantes de roupas feitas da Quinta Avenida. Por quê? Eles lhe dizem alguma coisa?
Bond olhou-os outra vez.
— Não — disse, em dúvida. — Não, acho que não.
Palmas estrugiram na sala. Radiante, o leiloeiro bateu na mesa.
— Senhoras e senhores — disse ele, triunfante. — Isto é realmente maravilhoso. Trezentas libras é o lance daquela encantadora senhora de esplêndido vestido cor-de-rosa (Cabeças viravam-se, pescoços esticavam-se, e Bond ouviu a pergunta: — Quem é ela? E agora, cavalheiro — o leiloeiro indicava a mesa do homem gordo — posso anunciar 325 libras?
— Trezentas e cinquenta — disse o gordo.
— Quatrocentas — ganiu a mulher de vestido cor-de-rosa.
— Quinhentas.
A voz era incolor, indiferente.
A moça de cor-de-rosa tagarelou irritada com seu acompanhante. O homem assumiu um ar entediado. Acompanhou o olhar do leiloeiro e balançou a cabeça.
— Quem se dispõe a dar mais? — disse o leiloeiro. Sabia agora que a sala já dera o que tinha de dar. — Dou-lhe uma... Dou-lhe duas... — Pam! — Arrematado pelo cavalheiro. E eu acredito sinceramente que ele merece uma salva de palmas.
Deu início às palmas e os presentes o acompanharam, embora preferissem que a moça tivesse levado a melhor.
O gordo ergueu-se algumas polegadas e voltou a sentar-se. Não havia em seu rosto lustroso nenhum sinal de agradecimento aos aplausos, e seus olhos fixavam-se no leiloeiro.
— E agora temos de cumprir a formalidade de perguntar ao cavalheiro qual é o Campo que ele prefere. (Risos). Cavalheiro, o senhor escolhe o Campo Superior ou o Campo Inferior?
O tom do leiloeiro era irônico. A pergunta era ociosa.
— Campo Inferior.
Houve um momento de silêncio constrangedor no apinhado salão de fumar. E logo se seguiram os comentários à meia-voz. Nenhuma pergunta foi feita. Era óbvio que o homem devia escolher o Campo Superior. As condições atmosféricas eram ideais. O Queen Elizabeth vinha desenvolvendo pelo menos trinta nós. Estaria o homem a par de alguma coisa? Teria pago por alguma informação na ponte de comando? Haveria alguma tempestade à vista? Algum defeito nas máquinas?
O leiloeiro martelou na mesa, pedindo silêncio.
— Queira me perdoar, cavalheiro — disse ele — mas o senhor escolheu mesmo o Campo Inferior?
— Sim.
O leiloeiro tornou a martelar.
— Nesse caso, senhoras e senhores, comecemos agora a leiloar o Campo Superior. Minha senhora — voltou-se com uma curvatura para a moça de cor-de-rosa — quer ter a gentileza de fazer o primeiro lance?
Bond virou-se para Tiffany.
— Que coisa esquisita — disse ele. — É extraordinário. O mar está calmo como um lago. — Deu de ombros. — A única resposta é que eles devem estar informados de alguma coisa.
— A questão era desprovida de interesse, no fim de contas.
— Alguém deve ter dito alguma coisa àqueles dois. — Girou a cabeça e, depois, despreocupadamente, passeou o olhar pelos dois indivíduos. — Parece que eles estão interessadíssimos na gente.
Tiffany olhou por cima do ombro.
— Não estão olhando pra cá, não — disse ela. — A impressão que eu tenho é que são dois palermas. O grisalho tem um ar de idiota e o gordo está chupando o polegar. Dois malucos. Acho que nem sabem o que arremataram. Trocaram as bolas.
— Chupando o polegar? — perguntou Bond. Passou a mão pelo cabelo, distraidamente, uma vaga lembrança a verrumar-lhe o cérebro.
Talvez, se ela lhe tivesse permitido seguir o fio de seus pensamentos, ele tivesse dado no alvo. Mas ela colocou a mão sobre a dele e, aproximando-se, roçou-lhe o rosto com os cabelos.
— Esqueça isso, James — disse ela. — E não pense tanto naqueles dois imbecis. — Os olhos dela ardiam e exigiam. — Chega deste lugar. Leve-me a outra parte.
Sem se dizerem mais uma palavra, ergueram-se, afastaram-se da mesa e saíram da sala barulhenta, caminhando em direção à escada. Começaram a descer e, quando chegaram ao meio, o braço de Bond circundou a cintura da moça, e ela deitou a cabeça no ombro dele.
Chegaram à porta do camarote de Tiffany, mas ela deu meia volta e arrastou Bond pelo corredor comprido, macio e rangente.
— Eu quero que seja na sua casa, James — disse ela.
Bond só voltou a falar depois de ter fechado a porta de seu camarote com um pontapé e de se terem abraçado no meio daquele quartinho maravilhosamente reservado e anônimo. E dizendo, com ternura, "Meu amor" pôs uma das mãos sobre os cabelos dela de modo a manter-lhe a boca sob a sua.
Algum tempo depois, sua outra mão desceu até o fecho-relâmpago do vestido, por trás, e a moça, sem interromper o abraço, deixou cair o vestido e disse, ofegante, entre beijos:
— Quero tudo, James. Tudo o que você já fez com uma mulher. Agora.
Agora mesmo.
E Bond inclinou-se, envolveu-lhe as coxas com um braço, levantou-a e deitou-a suavemente no soalho.
24 - A morte é permanente
A ÚLTIMA COISA de que Bond se lembrou antes de soar a campainha do telefone foi de Tiffany debruçada sobre ele, na cama, beijando-o e dizendo-lhe: "Não durma sobre o lado esquerdo, meu amor. É ruim para o coração.
Pode parar de bater. Vire-se". E, obediente, ele se virava. E, quando a porta bateu de leve, ele estava dormindo de novo, embalado pela voz da moça, pela pulsação do Atlântico e pelo macio balanço do navio.
Depois, a campainha impertinente soou e tornou a soar no camarote escuro. Bond praguejou, estendeu o braço para o telefone, e uma voz disse: — Desculpe-me incomodá-lo, senhor. Aqui é o telegrafista, Acaba de chegar uma mensagem em código para o senhor, com um prefixo en clair "Urgentíssimo". Quer que leia pelo telefone ou envie pelo mensageiro?
— Envie pelo mensageiro, pode ser? — disse Bond. — Muito obrigado.
E que diabo queriam agora? Toda a beleza, todo o ardor, toda a exaltação da paixão amorosa foram postas de lado quando ele acendeu a lâmpada, pulou da cama e, balançando a cabeça, a fim de afastar o torpor, deu dois passos para o chuveiro.
Durante um bom minuto deixou que a água caísse sobre si. Depois, enxugou-se com a toalha, apanhou do chão as calças e a camisa e vestiu-as.
Houve uma pancada na porta. Bond recebeu o telegrama, sentou-se à escrivaninha, acendeu um cigarro e entregou-se ferozmente ao trabalho. E, à medida que os grupos paulatinamente se dissolviam em palavras, seus olhos se apertavam e a pele se lhe arrepiava no corpo.
O telegrama, passado pelo Chefe do Pessoal, dizia:
Primeiro vg busca clandestina escritório Saye revelou telegrama do QE endereçado ABC assinado Winter comunicando presença sua e Case a bordo solicitando instruções pt Resposta endereçada Winter assinado ABC ordena eliminação de Case vg preço vinte mil dólares pt Segundo vg consideramos Rufus B. Saye é ABC que é mais ou menos equivalente pronúncia suas iniciais em francês pt Terceiro vg possivelmente alarmado sinais de busca Saye voou Paris ontem e agora informa Polinter estar em Dakar pt Isto parece confirmar nossas suspeitas que diamantes provêm minas Serra Leoa daí contrabandeados fronteira Guiné Francesa pt Suspeitamos fortemente elemento clínica dentária de Sierra International em observação pt Quarto vg Canberra Raf espera você Boscombe Down para voo imediato amanhã noite a Serra Leoa assinado CDP.
Bond gelou na cadeira. De supetão, acudiu ao seu espírito o mais sinistro verso de toda a poesia: "Enganam-se os que me evitam. Quando voam de mim, eu sou as asas".
Então alguém da quadrilha de Spang estava a bordo e viajava com eles. Quem? Onde?
A mão agarrou o telefone: — Miss Case, por favor.
Ouviu o aparelho ao pé da cama dela produzir um estalido e em seguida disparar 'a primeira campainhada. A segunda. A terceira. Mais uma só. Bond colocou o receptor de volta no gancho e enfiou pelo corredor até o camarote de Tiffany. Nada. Vazio. A cama arrumada. As luzes acesas. Mas a bolsinha dela estava no tapete e os objetos espalhados ao redor. Tinha entrado no camarote. O homem se escondera atrás da porta. Talvez tivesse aplicado uma cacetada. E depois?
As vigias estavam fechadas. Examinou o banheiro. Nada.
Bond parou no meio do camarote. Seu cérebro estava frio como gelo. O que ele, Bond, teria feito? Antes de matá-la, tê-la-ia interrogado, descoberto o que ela sabia, o que fazia, quem era o homem que a acompanhava. Tê-la-ia levado depois para o camarote em que ele viajava a fim de poder agir sem ser perturbado. Se o encontrassem arrastando-a pelo corredor, bastaria piscar um olho e balançar a cabeça: "Bebeu muita champanha esta noite. Não, não precisa, muito obrigado, eu me arranjo". Mas, qual era o camarote? E havia quanto tempo ele a tinha levado?
Bond consultou o relógio quando ia no corredor. Três horas. Ela devia ter saído da cama dele pouco depois das duas. Devia telefonar para a ponte de comando? Dar alarma? Penosos instantes de explicações, suspeitas, obstáculos. "Meu caro senhor, isto parece incrível!" Tentativas para acalmá-lo. "Claro, senhor, faremos o que estiver ao nosso alcance". O olhar polido do funcionário, para quem tudo não passaria de embriaguez, ciúme e até mesmo de um meio de deter a marcha do navio e ganhar a aposta no Campo Inferior.
O Campo Inferior! Homem ao mar! O navio detido!
Bond fechou a porta de seu camarote e foi direto à Lista de Passageiros.
E por que não? Winter. Ei-lo aqui. A49. O convés de baixo. E então, de repente, o cérebro de Bond funcionou como um computador. Winter. Wint e Kidd. Os dois pistoleiros. Os encapuzados. Outra vez a lista de passageiros.
Kitteridge. No A49 também. O grisalho e o gordo do avião da BOAC na viagem de Londres a Nova York. "Meu grupo sanguíneo é F." A escolta secreta de Tiffany. E a descrição de Leiter. "Chamam-no Goela porque tem medo de viajar". "Um dia vai-se arrepender de não ter extraído aquela verruga". A verruga vermelha na primeira articulação do dedo que segurava o cão da arma apontada para Tingaling Bell. E Tiffany dizendo: "São dois palermas. O gordo está chupando o polegar!" E os dois, no salão de fumar, procurando ganhar dinheiro com a morte que haviam planejado. A mulher atirada ao mar. O alarma anônimo, no caso de passar o corpo despercebido pelo vigia da popa. O navio detido, a volta, a busca nas águas. E mais três mil libras para os bolsos dos assassinos.
Wint e Kidd. Os pistoleiros de Detroit.
Todo o carretel de filmes embaralhados desenovelou-se na mente de Bond no espaço de um segundo, e mesmo enquanto os esquadrinhava, ia ele abrindo a pasta e revolvendo o compartimento secreto à procura do silenciador. Como um autômato, retirou a Beretta do meio de suas coisas no fundo de um gavetão, examinou o pente e ajustou o silenciador à boca da arma. Simultaneamente, pesava as probabilidades e planejava os passos que devia dar.
Pegou a planta do navio que tinha vindo com o bilhete de passagem.
Esparramou-a à sua frente enquanto calçava as meias. A49. Exatamente debaixo de seu camarote. Haveria probabilidade de arrebentar a fechadura com um tiro e pegar os dois homens antes que eles o pegassem? Nenhuma, quase. Sem dúvida tinham fechado a porta com a chave e o trinco. Ou levar consigo alguns membros da tripulação, se pudesse persuadi-los do perigo que Tiffany corria? Enquanto ele tentasse convencê-los, os dois homens a atirariam pela vigia. E, quando, afinal, conseguissem entrar no camarote, Wint e Kidd estariam lendo calmamente ou jogando cartas e berrariam: — Que é que vocês querem aqui?
Bond meteu a arma nos cós das calças e com um violento puxão escancarou uma das duas vigias do camarote. Enfiou por ela os ombros e alegrou-se ao descobrir uma folga de uma ou duas-polegadas. Espichou o pescoço para baixo. Dois círculos mal iluminados, exatamente sob suas vigias. A que distância? Uns oito pés. A noite continuava parada, calma, tranquilizadora, e ele se achava no lado ensombrado do navio. Avistá-lo-iam da ponte volante? Estaria aberta alguma das vigias do A49?
Bond deixou-se cair novamente em seu camarote e arrancou os lençóis da cama. O nó de porco. Seria mais seguro. Mas teria de rasgar os lençóis e emendá-los para obter o comprimento necessário. Se tudo desse certo, teria de trazer alguns lençóis do A49 e deixar o camareiro intrigado com o desaparecimento. Se desse errado, tanto fazia.
Experimentou a "corda" com toda a força. Devia aguentar. Ao amarrar uma extremidade em volta da dobradiça da vigia, deu uma olhada no relógio.
Só doze minutos tinham passado desde que lera o telegrama. Demorara demais? Trincou os dentes, atirou a "corda" pelo costado do navio e introduziu a cabeça.
Não pense em nada. Não olhe para baixo. Não olhe para cima. Não se importe com os nós. Devagar, firme, uma mão, isto, a outra.
A brisa da noite tocava-o de leve e empurrava-o de encontro aos negros rebites de ferro, e lá embaixo soava o gemido cavo do mar. No alto, o vento zunia no cordame, e mais acima, no firmamento, as estrelas dançavam à volta dos mastros.
Os malditos, os bem-amados lençóis resistiriam? A vertigem o venceria?
Seus braços suportariam o peso? Não pense nisso. Não pense no imenso navio, no oceano faminto, nas quádruplas hélices gigantescas aguardando o momento de lhe retalhar o corpo. Você é um menino que está descendo da macieira. É tão fácil e seguro lá no pomar, com o relvado que apara a queda.
Bond expulsou da mente todos esses pensamentos. Olhou para as mãos e sentiu a aspereza da pintura contra os nós dos dedos. Os pés, sensíveis como antenas, tateavam em busca do primeiro contacto com a vigia.
Ali. Os dedos do pé direito haviam tocado o rebordo saliente. É preciso parar. É PRECISO ter paciência e deixar que o pé explore o terreno — a vigia aberta, presa pela grande tranqueta de latão; o contacto de fazenda por cima da meia: as cortinas cerradas. Agora podia continuar. Estava quase terminado.
Mais duas preensões na corda improvisada e o rosto estava à altura da vigia. Podia colocar uma das mãos na borda metálica do caixilho, subtraindo algum peso da alva corda retesada e dando merecido repouso a um braço e depois ao outro, deslocar a carga suportada pelos músculos, reunir as forças para soerguer-se vagarosamente, traspassar-se ao camarote e mergulhar, deitando a mão à arma.
Ficou à escuta, fitando o círculo da cortina balouçante, tentando esquecer que estava pendurado como um pêndulo, a meio costado do Queen Elizabeth, esforçando-se para não ouvir o marulho do oceano, lutando para abrandar a respiração ofegante e as marteladas do coração.
Do interior do cubículo vinha um resmungo indistinto. Depois, uma voz masculina proferiu algumas palavras e uma mulher gritou: — Não!
Seguiu-se um momento de silêncio, e logo uma bofetada. Sonora como um disparo de pistola, e isto lançou o corpo de Bond para o alto e para dentro como se ele tivesse sido arrastado por uma corda.
No momento mesmo em que mergulhava no círculo da vigia, perguntava-se onde iria bater, e instintivamente protegeu a cabeça com o braço esquerdo, enquanto o direito corria para a arma.
Foi cair sobre uma valise debaixo da vigia. Um estabanado salto mortal levou-o ao meio do camarote. Outra vez sobre seus pés, foi recuando, agachado, para o lado das vigias, a tensão branquejando os nós dos dedos da mão que segurava a arma e uma estreita linha branca circundando-lhe a boca cerrada.
Através das pálpebras entreabertas, os olhos cinzentos e gelados moviam-se de um lado para o outro. A arma, negra e cega, voltava-se para um ponto, no centro, entre os dois homens.
— Aqui estamos — disse Bond, erguendo-se vagarosamente.
Era a constatação de um fato. Ele tinha o controle da situação, e a boca de sua arma o confirmava.
— Quem chamou você aqui? — disse o gordo. — Você não entra nesta peça. — Havia na voz reservas latentes. Nada de pânico. Nem mesmo a dose normal de surpresa. — Veio completar a mesa para o jogo de cartas?
Estava sentado, em mangas de camisas, abotoado, de través para a penteadeira, e os olhos miúdos brilhavam na cara molhada. Dante dele, de costas para Bond, Tiffany Case estava sentada num tamborete estofado.
Vestia apenas uma calcinha cor-de-carne e tinha os joelhos presos entre as coxas do homem gordo. Voltara para Bond o rosto pálido entremeado de manchas vermelhas. Os olhos tinham uma expressão de desespero, como os de um animal apanhado numa armadilha, e a boca aberta traduzia incredulidade.
O grisalho jazia numa das camas. Tinha erguido o busto sobre um cotovelo e a outra mão na camisa, a meio caminho da arma guardada no boldrié preto debaixo do sovaco. Olhava para Bond sem demonstrar curiosidade e estampava aquele sorriso quadrado, vazio, da caixa postal. Do centro do sorriso ressaía um palito de madeira, que rompia os dentes fechados como a língua de uma cobra.
A arma de Bond assegurava o espaço neutro entre os dois homens.
Quando ele falou, a voz era baixa e tensa.
— Tiffany — disse Bond lenta e distintamente. — Ajoelhe-se. Afaste-se desse homem. Baixe a cabeça. Vá para o meio do quarto.
Não olhava para ela. Seus olhos continuavam a passear da cadeira para a cama, vigiando os dois homens. Agora ela estava longe dos dois alvos.
— Estou aqui, James.
A voz tremia de esperança e excitação.
— Levante-se e vá para o banheiro. Feche a porta. Entre na banheira e deite-se lá.
Moveu os olhos na direção dela para ver se era obedecido. Ela tinha-se erguido e o contemplava. Bond avistou a marca vermelha de uma mão na pele alva do corpo da moça. Ela obedeceu. Ouviu-se o clique da porta do banheiro ao fechar-se.
Agora ela estava a salvo das balas. E não presenciaria o que tinha de ser feito.
Mediavam umas cinco jardas entre os dois homens, e Bond refletiu que se eles sacassem com bastante rapidez estaria perdido. Com esse tipo de homens, na fração de segundo em que um fosse liquidado, o outro sacaria e dispararia. Conquanto sua arma fosse silenciosa, a ameaça era infinita. Mas, com o clarão da primeira bala a ameaça proviria do outro homem.
— Quarenta e oito, sessenta e cinco, oitenta e seis.
A variante do sinal convencionado do futebol americano —"uma das cinquenta combinações que deviam ter praticado juntos mil vezes — jorrou da boca do gordo. Simultaneamente, ele se atirou ao chão, e a mão foi direta ao cós da calça.
Num giro rápido, o homem que estava na cama puxou as pernas para o lado e para longe de Bond, de modo que seu corpo se reduziu a um alvo estreito, de que só se via a cabeça. A mão que estava sobre o peito se mexeu rápida.
— Paf.
A arma de Bond soltou um único gemido abafado. Um orifício azul abriu-se exatamente abaixo do cocuruto grisalho.
— Pum! — respondeu a pistola do morto, deflagrada pela última crispação do dedo, e a bala foi alojar-se na cama, debaixo do cadáver.
O homem gordo, deitado no soalho, deu um grito. Olhava para cima. na direção daquele olho preto e vazio que não se incomodava com ele, de forma alguma, e que só se interessava em localizar-lhe na pele o centímetro quadrado que abrigaria o próximo projétil.
O revólver de Wint só se tinha elevado até à altura dos joelhos de Bond e apontava em vão por entre suas pernas retesadas para a armação de ferro, pintada de branco, que estava atrás.
— Largue a arma.
O tapete abafou o ruído da queda da arma.
— Levante-se.
O gordo ergueu-se com dificuldade e fitou Bond nos olhos, como um tuberculoso fita seu lenço, em medrosa expectativa.
— Sente-se.
Houve um lampejo de alívio nos olhos submissos? Bond continuou tenso como um gato prestes a atacar.
O gordo voltou-se vagarosamente. Estendeu as mãos acima da cabeça, embora Bond não lhe tivesse exigido isso. Deu dois passos para a cadeira e lentamente virou-se como se fosse sentar-se.
Parou, contemplando Bond, e com naturalidade deixou cair as mãos ao longo do corpo. E as duas mãos, sossegadas, sacudiram-se para trás, a direita mais do que a esquerda. E então, de súbito, no movimento de retorno, o braço direito entesou-se, precipitou-se para a frente e a faca brilhou nas pontas dos dedos como uma chama branca.
— Paf.
A bala silenciosa e a faca muda cruzaram uma pela outra em pleno ar, e os olhos dos dois homens perturbaram-se simultaneamente quando as armas atingiram seus objetivos.
Mas a perturbação nos olhos do homem gordo converteu-se num reviramento do globo ocular quando ele caiu para trás, as mãos agarradas ao peito, enquanto os olhos de Bond pousaram sem curiosidade na mancha que se espalhava em sua camisa e no cabo chato da faca pendurada frouxamente nas dobras do pano.
Produziu-se um estardalhaço quando a cadeira se espatifou sob o peso do homem gordo. Seguiu-se um ruído roufenho e ouviu-se, por último, um baque surdo no soalho.
Bond olhou a cena uma vez e depois voltou-se para a vigia aberta.
Durante algum tempo ficou de costas para o quarto, o olhar fixo nas cortinas que se balançavam molemente. Sorveu o ar e escutou os maravilhosos sons marinhos do exterior, do mundo que ainda lhes pertencia, a ele e a Tiffany, mas não aos outros dois. Pouco a pouco, seu corpo e seus nervos tensos se relaxaram.
Instantes depois, puxou a faca que se lhe enfiara na camisa. Não olhou para ela. Apenas estirou o braço, afastou a cortina para um lado e atirou a faca pela vigia. Em seguida, ainda contemplando a noite quieta lá fora, prendeu o registro de segurança da Beretta e, com um braço que lhe pareceu de repente pesado como chumbo, introduziu de novo a arma no cós das calças.
Com certa relutância, deu meia volta e encarou a desordem reinante no camarote. Com ar pensativo, examinou tudo e, num gesto, inconsciente, enxugou as mãos nos lados das calças. Em seguida, caminhando cautelosamente até o banheiro, disse: "Tiffany, sou eu" numa voz cansada, deprimida, e abriu a porta.
Ela não o ouvira. Continuava deitada de bruços na banheira seca, as mãos sobre as orelhas. E quando ele a ergueu e tomou nos braços, ela ainda não acreditou no que via. Agarrou-se a ele e começou a tocar-lhe o rosto e o busto com as mãos para certificar-se de que era realidade.
Ele se retraiu quando ela lhe apalpou a costela cortada. Então ela afastou-se um pouco, examinou-lhe o rosto, depois o sangue que manchava seus dedos e por fim a camisa escarlate.
— Meu Deus! Você está ferido! — disse ela assustada; e, esquecendo seus pesadelos, arrancou-lhe a camisa, lavou-lhe a costela com água e sabão e amarrou-a com tiras da toalha cortada com a gilete de um dos homens mortos.
Não fez perguntas, nem mesmo quando Bond lhe trouxe as roupas que estavam espalhadas pelo soalho do camarote e lhe disse que não saísse enquanto ele não tivesse terminado de arrumar tudo e de apagar as impressões digitais de todos os objetos que ela havia tocado.
Ela apenas pousava nele os olhos brilhantes. E quando Bond a beijou nos lábios, continuou calada.
Bond deu-lhe um sorriso tranquilizador, saiu e fechou a porta do banheiro atrás de si. Pôs mãos à obra, fazendo cada coisa com grande determinação e parando antes de cada gesto a fim de imaginar o efeito que produziria diante dos olhos e do espírito dos detetives que subiriam a bordo em Southampton.
Primeiro amarrou um cinzeiro à sua camisa ensanguentada para torná-la pesada, aproximou-se da vigia e atirou o pacote o mais longe que pôde. Os smokings dos dois homens estavam pendurados atrás da porta. Tirou os lenços que estavam nos bolsinhos dos paletós, envolveu com eles as mãos e remexeu nos armários e cômodas até encontrar as camisas do grisalho.
Vestiu uma e ficou um momento no centro do camarote, meditando. Depois, cerrou os dentes e levantou o homem gordo até deixá-lo sentado, tirou-lhe a camisa, foi à vigia, sacou a Beretta, encostou a arma no orifício aberto na fazenda pelo tiro anterior e disparou outra bala no mesmo local. Agora havia uma nódoa de fumaça em volta do orifício para dar a impressão de suicídio.
Tornou a vestir a camisa no cadáver, limpou demoradamente a Beretta com o lenço, comprimiu os dedos da mão direita do morto sobre ela e, finalmente, ajustou a arma na mão do gordo, com o indicador no gatilho.
Após outra pausa no meio do quarto, retirou o smoking de Kidd do cabide e vestiu com ele o cadáver. Em seguida, arrastou o corpo até a vigia e, suando com o esforço, levantou-o e jogou-o ao mar.
Limpou as possíveis impressões digitais deixadas na vigia e interrompeu-se outra vez, tomando fôlego e inspecionando o cenário. Foi até a mesa de jogo, encostada à parede e com os objetos espalhados indicando que o jogo não fora concluído, e derrubou tudo, dispersando as cartas pelo tapete. Parou, refletiu mais um pouco, voltou ao cadáver de Wint, retirou-lhe do bolso traseiro da calça o rolo de cédulas e jogou-as entre as cartas.
O quadro era satisfatório, sem dúvida. Haveria o mistério da bala disparada na cama pelo moribundo Kidd, mas isso poderia ter sido parte da luta. Três balas tinham sido detonadas pela Beretta e havia três cartuchos no soalho. Duas das balas poderiam ter-se enterrado no corpo de Kidd que agora estava no Atlântico. Havia os dois lençóis que teria de roubar da segunda cama. A falta deles ficaria inexplicada. Talvez Wint houvesse enrolado neles o corpo de Kidd antes de empurrá-lo pela vigia. Isso se encaixava no remorso e no suicídio de Wint, posterior ao tiroteio motivado pelo desentendimento à mesa do jogo.
De qualquer maneira, refletiu Bond, o quadro se sustentaria até a chegada da polícia ao porto, mas nesse momento ele e Tiffany já estariam fora do navio e bastante longe, e o único vestígio deles no camarote seria a Beretta; e esta, como todas as outras armas pertencentes ao Serviço Secreto, não era numerada.
Soltou um suspiro e encolheu os ombros. Agora, restava apanhar os lençóis, conduzir Tiffany de volta ao seu camarote sem serem vistos, cortar a "corda" que se balançava na vigia, atirá-la ao mar com os pentes restantes da Beretta e o coldre vazio e, por fim, dormir à vontade com o corpo adorado de Tiffany enroscado no seu para sempre.
Para sempre?
Ao atravessar o camarote a caminho do banheiro, Bond encontrou os olhos vazios do cadáver no soalho.
E os olhos do homem cujo Grupo Sanguíneo fora F chamaram-no e lhe disseram:
— Mr. Bond. Nada existe para sempre. Só a morte é permanente. Nada é eterno, exceto o que você fez comigo.
25 - Fecha-se o canal
AGORA NÃO HAVIA escorpião morando nas raízes do frondoso espinheiro erguido na junção dos três Estados africanos. O contrabandista das minas não tinha outra coisa que lhe absorvesse a atenção senão o desfile infindável de um regimento de formigas de correição entre as baixas muralhas que as guerreiras haviam construído em ambos os lados da estradinha de três polegadas.
A noite era quente e úmida, e o homem escondido sob o espinheiro estava impaciente e intranquilo. Era esta a última vez que comparecia ao encontro marcado. Já tinha decidido. Que arranjassem outro, se quisessem.
Naturalmente não iria fazer sujeira com eles. Comunicaria a intenção de deixá-los e lhes daria o motivo: o novo assistente admitido no serviço dentário parecia entender muito pouco de odontologia; decerto era espião: o olhar indagador, o bigodinho amarelo-avermelhado, as unhas bem tratadas.
Pegaram alguém? Tomaram-lhe o depoimento?
O contrabandista trocou de posição. Por onde diabo andava o helicóptero? Apanhou um punhado de terra e atirou-o no meio das formigas.
Elas se atarantaram um pouco, mas com a chegada das últimas fileiras, as que iam na frente se dispersaram pelas muralhas. Então as guerreiras pegaram febrilmente a cavar e transportar a terra, e em poucos minutos a estrada estava outra vez transitável.
O homem tirou o sapato e jogou-o com força sobre o regimento em marcha. Houve outro curto instante de afobação. Depois, as formigas lançaram-se sobre as mortas e as devoraram. O caminho estava novamente desimpedido e o negro rio continuou a fluir.
O homem soltou uma praga em africaans e calçou o sapato. Filhas duma égua. Iam ver uma coisa. Acocorando-se e suspendendo um braço para se proteger contra os espinhos, saiu pisando pela estrada das formigas. Isso lhes serviria de lição.
Ao surgir sob o luar, o homem já tinha esquecido o ódio que dedicava a tudo quanto fosse negro e virou a cabeça para a banda do norte. Graças!
Rodeou o espinheiro para ir buscar as lanternas e o pacote dos diamantes guardados nas caixas de ferramentas.
A uma milha dali, sob a copa de um arbusto, o poderoso ouvido de ferro do detector de som já parará de investigar, e o operador, que vinha transmitindo os dados aos três homens agrupados ao lado do caminhão militar, informou: — Trinta milhas. Velocidade: cento e vinte. Altura: novecentos pés.
Bond consultou o relógio.
— Tudo indica que o encontro está marcado para a meia-noite,_na lua cheia — disse ele. — O nosso homem está uns dez minutos atrasado.
— Parece que o senhor tem razão — concordou o oficial da guarnição de Freetown, a seu lado, e voltou-se para o terceiro homem. — Cabo. Veja se não tem nenhum metal aparecendo na rede de camuflagem. Com este luar, é preciso ter cuidado.
O caminhão estava coberto pelo arbusto, à beira de uma estrada de barro, que atravessava a planície na direção da aldeia de Telebadu, na Guiné Francesa. Naquela noite, haviam deixado as colinas logo que o radiolocalizador captara o barulho da motocicleta do dentista na estrada paralela. Tinham vindo com os faróis apagados e pararam quando cessou o ruído da motocicleta. Haviam estendido a rede de camuflagem sobre o caminhão, o detector de som e o canhão Bofors. E puseram-se a esperar, sem saberem ao certo quem ou o que viria ao encontro do dentista — outra motocicleta, um homem a cavalo, um jipe, um avião?
Ao ouvir no céu o longínquo matraquear, Bond soltou uma gargalhada.
— Helicóptero — disse ele. — Era só o que faltava. Preparem-se para tirar a rede quando pousar. Talvez a gente tenha de dar um tiro de advertência. O detector está ligado?
— Está, sim — respondeu o cabo que operava o aparelho. — O nosso amigo está chegando. Poderão vê-lo num minuto. O senhor está vendo aquelas luzes acolá? Devem ser do campo de pouso.
Bond passeou o olhar pelos quatro feixes de luz e, depois, contemplou o imenso céu africano.
Então aí vinha o último de todos, o derradeiro elemento da quadrilha e também o primeiro. O homem que havia visto ligeiramente em Hatton Garden. O número um da turma de Spang, cuja cotação era tão alta em Washington. O único, excetuando o inofensivo e até simpático Shady Tree, que Bond ainda não fora obrigado a matar ou — pensou no botequim de Spectreville e nos dois homens de Detroit — quase. Não que tivesse desejado matar esses indivíduos. A missão que M lhe confiara fora apenas de investigação. Mas, um a um, eles haviam tentado contra sua vida e a de seus amigos. A violência fora o primeiro, não o último recurso deles.
Violência e crueldade, as armas escolhidas. Os dois homens do Chevrolet em Las Vegas, que tinham disparado contra ele e ferido Ernie Cureo. Os dois sujeitos do Jaguar, que haviam espancado Ernie e tinham sido os primeiros a sacar os revólveres quando começara a luta. Seraffimo Spang, que mandara torturá-lo, disparara contra ele e Tiffany e procurara esmagá-los na estrada de ferro. Wint e Kidd, que haviam supliciado Tingaling Bell, Bond e Tiffany Case. E, dos sete, matara cinco — não porque gostasse de matar, mas porque alguém tinha de fazê-lo. Tivera a seu lado a sorte e três bons amigos, Félix, Ernie e Tiffany. E os malvados tinham perecido.
Agora chegava a último dos malvados, o homem que planejara a sua morte e a de Tiffany, o homem que, segundo M, arquitetara o contrabando dos diamantes, montara o canal de escoamento e o vinha dirigindo com eficiência e mão de ferro através dos anos.
Ao telefone, para Boscombe Down, M falara pouco e com certa aspereza na voz. Usara a linha do Ministério da Aeronáutica, poucos minutos antes que o Canberra decolasse para Freetown. Bond recebera o telefonema do gabinete do comandante da base, tendo nos ouvidos o grito estridente das turbinas do Canberra.
— Satisfeito de tê-lo de volta são e salvo.
— Muito obrigado, senhor.
— Que estória é essa que os vespertinos noticiaram acerca de um duplo homicídio no Queen Elizabeth?
Havia algo mais do que suspeita na voz de M.
— Eram os dois pistoleiros da quadrilha. Viajavam sob os nomes de Winter e Kitteridge. Meu camareiro desconfia que eles se desentenderam quando jogavam baralho.
— Acha que a suposição do camareiro é correta?
— É possível. Houve uma pausa.
— E os policiais também pensam assim?
— Não vi nenhum deles.
— Vou falar com Vallance.
— Ótimo — disse Bond, sabendo que essa era a maneira de M dizer que, caso Bond tivesse liquidado os dois homens, tomaria providências para que o agente e o Serviço Secreto não fossem mencionados no inquérito.
— Bem, de qualquer modo — disse M — aqueles dois eram pouco importantes. Esse Jack Spang, ou Rufus B. Saye ou ABC, ou que nome tenha, esse eu quero que você agarre. Ao que parece, ele vai agora até o extremo do canal. Vai fechá-lo. Talvez matando o que encontrar pela frente. O ponto final é o dentista. Veja se consegue pegar os dois. Faz coisa de uma semana que destaquei 2804 para trabalhar ao lado do dentista. O pessoal de Freetown acha que já se pode agir. Mas eu quero encerrar este caso e ver você de novo em seu verdadeiro posto. Esse negócio foi uma trapalhada dos diabos. Não me agradou desde o princípio. E se, afinal, conseguimos chegar ao ponto em que estamos agora, foi mais uma questão de sorte do que de boa organização.
— Concordo com o senhor — disse Bond.
— E essa moça, Case? — perguntou M. — Conversei com Vallance. Ele não deseja processá-la, a menos que você insista.
Teria M carregado um pouco no tom de indiferença?
Bond procurou evitar uma resposta muito persuasiva.
— Ela foi de grande ajuda — disse ele, esperançoso.
— Talvez a gente possa resolver quando eu apresentar meu relatório final.
— E onde está ela agora?
O negro receptor começava a ficar escorregadio na mão de Bond.
— Está a caminho de Londres, num Daimler de aluguel. Vou colocá-la no meu apartamento. Quero dizer, no quarto vago. É muito boa dona de casa.
Ela se arranjará até que eu volte. É uma boa moça, estou certo disso.
Puxou o lenço do bolso e enxugou o suor do rosto.
— Sem dúvida — disse M. Não havia ironia em sua voz.
— Está bem, então. Boa sorte. — Houve uma pausa. — Tome cuidado.
E... — a voz no outro extremo da linha tornou-se subitamente áspera — não pense que não estou satisfeito com os resultados até agora obtidos. Foram além do programa, naturalmente, mas você parece que topou muito bem a parada desse pessoal. Até logo, James.
— Até logo, senhor.
Bond levantou a vista para o céu recamado de estrelas e pensou em M e Tiffany, esperando que agora fosse mesmo o fim e que fosse rápido e tranquilo, e que logo estivesse em casa.
De pé, empunhando a quarta lanterna, o contrabandista das minas esperava. Lá vinha o helicóptero. Cortando a trajetória da lua. Como sempre, o barulho era infernal. Outro risco de que ia livrar-se.
Baixava lentamente. Agora pairava a uns vinte pés de altura. A mão apontou na janela e piscou A. O homem no chão piscou, em resposta, B e c.
As lâminas do rotor diminuíram a velocidade e, suavemente, o gigantesco inseto de aço pousou no chão.
O pó assentou. O contrabandista retirou a mão dos olhos e ajudou o piloto a descer a escadinha. Usava capacete de voo e óculos de proteção.
Extraordinário. E parecia mais alto do que o alemão. O contrabandista sentiu uma picada na espinha. Quem era esse? Aproximou-se devagar.
— Trouxe?
Dois olhos frios, sob negras sobrancelhas retas, cintilaram por trás dos óculos. Ocultavam-se quando o homem moveu a cabeça e o luar incidiu sobre o vidro. Agora eram dois círculos brancos reluzentes no meio do negro e luzidio capacete de couro.
— Trouxe — disse, nervoso, o homem das minas. — Mas onde está o alemão?
— Não virá mais. — Os dois círculos brancos cegavam o contrabandista.
— Eu sou ABC. Vim fechar o canal.
A voz era americana. Enérgica, seca, inflexível.
— Oh!
Maquinalmente, a mão do contrabandista enfiou-se na abertura da camisa. Apanhou o embrulho úmido e entregou-o ao piloto como se fosse uma oferenda de paz. À semelhança do escorpião, um mês antes, o homem das minas pressentia a pedra erguida sobre sua cabeça.
— Ajude-me a encher o tanque.
Era a voz do feitor dando ordens ao escravo. Mas o contrabandista apressou-se a obedecer.
Fizeram o serviço em silêncio. Ao terminar, voltaram ao chão. O cérebro do contrabandista trabalhava furiosamente. Ele se esforçava por adotar a voz de um associado, a voz de alguém que estivesse a par dos negócios e exercesse a mesma autoridade.
Olhou com atenção para a nesga de treva cor-de-anil onde se achava o piloto com a mão sobre a escada.. — Estive pensando bem e acho que...
A voz estacou de supetão, a boca abriu-se espavorida e deixou escapar um ruído que era uma mescla de rosnado e uivo.
A arma na mão do piloto gaguejou três vezes. O contrabandista emitiu um "Oh" numa voz servil, caiu de costas no chão, fez um esforço para se soerguer e imobilizou-se.
— Fique onde está. — A voz ressoou na planície, transmitida pelo amplificador. — Você está cercado.
Ouviu-se o ruído de um motor que se punha em funcionamento.
O piloto não procurou saber de onde vinha a voz. Pulou para a escada. A porta da carlinga fechou-se com uma pancada e zumbiu o arranque automático. O motor começou a trabalhar, as lâminas do rotor giraram, pouco a pouco foram ganhando velocidade até que se transformaram em dois redemoinhos prateados. Então, com uma sacudidela, o helicóptero elevou-se verticalmente no ar.
Em terra, entre os arbustos, o caminhão freou e Bond saltou para a sela de aço do Bofors.
— Pra cima, cabo — gritou ele para o homem que manobrava a alavanca de suspensão. Baixou os olhos para a alça de mira quando a boca da arma se ergueu para a lua. Com a mão, puxou a alavanca do seletor de fogo, tirando-a da marca de segurança e colocando-a em "Fogo". — Esquerda, dez.
— Eu alimentarei.
O oficial ao lado de Bond tinha nas mãos dois depósitos de obuses pintados de amarelo.
Os pés de Bond firmaram-se nos pedais do gatilho. O helicóptero estava no centro da alça de mira.
— Firme — disse ele calmamente.
— Bumpa.
O obus reluzente rodou no alto a uma velocidade apenas menor do que a do som. Baixo e à esquerda. O cabo girou delicadamente as duas alavancas.
— Bumpa.
O obus deu a volta por cima do helicóptero. Bond inclinou-se para a frente e puxou a alavanca do seletor para "Fogo Automático". A mão relutava. Agora a morte era inevitável. Mais uma vez ele tinha de tomar essa decisão.
— Bumpa... bumpa... bumpa... bumpa... bumpa... O fogo vermelho espargiu-se no céu. O helicóptero continuou a avançar para a lua e depois rumou para o norte.
— Bumpa... bumpa...
Houve um espocar de luz amarela perto do rotor da cauda e um estrondo de explosão distante.
— Acertou — disse o oficial, pegando o binóculo. — O rotor da cauda está perdido — disse ele. E logo, agitado: — Puxa! Parece que toda a cabina está girando com o rotor principal! O piloto está atolado.
— Mais algum? — perguntou Bond, mantendo na mira o helicóptero em chamas.
— Não, senhor — disse o oficial. — Seria bom se conseguíssemos pegá-
lo vivo. Mas parece... é, sim, já perdeu o controle. Vem caindo de ponta.
Deve haver alguma coisa com as lâminas do rotor principal. Lá vem ele.
Bond levantou a vista e resguardou os olhos contra a claridade intensa.
— Sim. Lá vem ele. A cem pés, o motor ribombando e as hélices girando inutilmente enquanto a embrulhada metálica despencava do céu em cambaleios e guinadas de ébrio.
Jack Spang. O homem que ordenara o assassínio de Bond. Que ordenara o assassínio de Tiffany. O homem que Bond vira apenas uma vez, durante alguns minutos, numa sala superaquecida em Hatton Garden. Mr. Rufus B.
Saye. Da House oi Diamonds. Vice-Presidente para a Europa. O homem que jogava golfe em Sunningdale e visitava Paris uma vez por mês. "Cidadão exemplar", M dissera dele. Mr. Spang, da quadrilha de Spang, que acabara de matar um homem — o último de quantos?
Bond imaginava a cena dentro da estreita carlinga. O homem dirigindo com uma das mãos e com a outra mexendo desesperadamente nos controles, enquanto observava a agulha do altímetro baixar vertiginosamente. Nos olhos, o rubro clarão do terror. As centenas de milhares de libras esterlinas em diamantes reduzidas a peso morto. A arma, que desde a infância, fora um poderoso braço direito, agora inútil.
— Vai pra cima do espinheiro — bradou o cabo acima da barulheira.
— Está perdido — disse o capitão, a meia voz.
Contemplaram as últimas guinadas; depois, suspenderam a respiração quando o aparelho, num bamboleio desenfreado, empinou o nariz e, como se o espinheiro fosse seu inimigo, deu um mergulho irado, descrevendo uma curva de vinte jardas, e arremessou-se com os rotores desgovernados contra os espinhos.
Antes de se extinguirem os ecos da colisão, ouviu-se um ribombo cavo e uma bola de fogo, projetada no ar, ofuscou o clarão da lua e banhou a planície inteira num fulgor alaranjado.
O capitão foi o primeiro a falar.
— Opa! — exclamou, tirando o binóculo e voltando-se para Bond. — Bem — disse ele, resignado — nada a fazer. Acho que só quando amanhecer a gente vai poder se aproximar. E só com o dia alto é que se poderá revolver os destroços. Mas pode esperar que daqui a pouco os soldados franceses da fronteira estarão aqui. Felizmente estamos em boas relações com eles. O governo é que passará um bocado de tempo discutindo com Dakar. — O oficial previa as idas e vindas da papelada e sentia-se ainda mais exausto.
Homem prosaico, achava que o dia já lhe trouxera boa dose de canseiras. — O senhor se incomoda se a gente tirar uma pestana?
— À vontade — disse Bond, e consultou o relógio. — É melhor irem pra debaixo do caminhão. Eu mesmo não estou com sono. Vou ficar de olho.
Pode ser que o fogo ameace se alastrar.
O oficial lançou um olhar inquiridor a esse homem calmo e enigmático, que chegara de repente ao Protetorado no meio de uma enxurrada de recomendações de "Prioridade Absoluta". Se a gente nunca precisasse dormir... Bom, isso nada tinha que ver com Freetown. Era coisa de Londres.
— Muito obrigado, então — disse o oficial e jogou-se debaixo do caminhão.
Bond retirou vagarosamente os pés dos pedais do gatilho e reclinou-se no encosto da sela de aço. Maquinalmente, com os olhos pousados ainda nas chamas saltitantes, enfiou as mãos nos bolsos do desbotado blusão caqui, que lhe haviam arranjado na base, puxou um cigarro, acendeu-o e tornou a guardar a cigarreira e o isqueiro.
Aí estava o fim do contrabando de diamantes. A última página da estória. Deu uma tragada e expeliu a fumaça com um suspiro longo e calmo.
Seis cadáveres a zero. Vitória folgada.
Ergueu a mão e limpou a testa suada. Atirou para trás a mecha de cabelo que lhe caía por cima da sobrancelha direita, e o clarão vermelho iluminou-lhe o rosto duro e magro e cintilou nos olhos cansados.
Esse imenso e rubro ponto final assinalava o desmoronamento da Quadrilha de Spang e o término do fabuloso contrabando de diamantes. Não o fim dos diamantes que se tostavam do interior do braseiro. Eles sobreviveriam e outra vez iriam percorrer o mundo. Descoloridos, talvez, mas indestrutíveis, tão permanentes como a morte.
E Bond recordou, instantaneamente, os olhos do cadáver cujo sangue havia pertencido ao grupo F. Tinham-se enganado. A morte é eterna. Mas os diamantes também são eternos.
Bond desceu do caminhão e pôs-se a andar lentamente em direção à fogueira crepitante. Levava um sorriso sombrio nos lábios. Toda essa estória acerca de morte e diamantes era demasiado solene. Para Bond, era apenas o fim de outra aventura. Outra aventura que bem podia ter por epitáfio as palavras de Tiffany Case. E reviu a boca ardente e irônica que lhe dizia: — Contada é uma coisa, vivida é outra.
Ian Fleming
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