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OS DIAS DO DEMÔNIO / Roberto Gomes
OS DIAS DO DEMÔNIO / Roberto Gomes

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

OS DIAS DO DEMÔNIO

 

                   O PARAÍSO

ELE DISFARÇOU A TENSÃO ajeitando o chapéu na cabeça miúda. Apanhou um graveto para remexer a tinta. Ela ficou por alí, ciscando em volta, observando cada um de seus movimentos. Calada, parecia falar o tempo todo. Há pouco ele brincara, dizendo que a casa ia virar um palacete, que iam fazer uma festança das boas quando a pintura ficasse pronta. Mas ela não rira. Cara fechada, fincou os olhos no chão como se mirasse o fundo de um poço. Sabia no que ela pensava.

Sabia também que tinha lá suas razões. Mas não queria discutir. Hoje, não. Só quando ela apanhou o martelo e ficou golpeando o ar, os beiços espremidos entre os dentes, ele resolveu puxar conversa. Perguntou:

— Tá pensando no quê?

Ela resmungou:

— É perigoso ficar aqui.

— Bobagem.

— Devias garrar o mato.

Ele riu, golpeando o chapéu de leve:

— Não sou piriá, mulher.

— Tu sempre mandou os outros ficarem no mato.

— Isso foi antes.

Ela se fez de desentendida. Com a ponta do dedão do pé, bisbilhotou um torrão ressecado:

— Antes do quê?

— Antes da lista.

— Ah, a lista, ela resmungou, esquecendo o torrão e apertando ainda mais o cabo do martelo.

— É, a lista, repetiu ele. Está quase pronta.

Ela examinou para saber se brincava.

— É verdade, amanhã eu viajo.

Deixou o martelo cair no chão.

— Calma, pediu. Não tem perigo.

Uma viagem daquelas, ela costumava dizer, tu nem parece ter mulher e filho, só pensa nisso de política, a vida inteira provocando gente graúda. Não vê que tá bulindo com a morte? Te armam uma espera, fico eu aqui com os filhos pra criar.

— Compadre Tirso me disse — ela, muito sabida, deu uma volta na conversa — que encontrou ontem com dois homens alí no alto do morro.

— É? — disfarçado, apanhou o martelo.

— Diz que ficaram perguntando coisa. Queriam saber se tinha terra pra vender na região.

Ele fez cara de quem não tinha nada com o assunto.

— Tudo desconversa — a voz dela ficava mais fina e estridente quando estava com raiva — Queriam é saber de ti.

Ele confirmou a cara de desentendido, tirando um fiapo do cabo do martelo. Ajeitou a escada contra o beiral do rancho. Colocara uns pregos e sarrafos como reforços, mas ela estava podre e não conseguia mais se aprumar. Ficou pensa. Disse, sem olhar para a mulher:

— Já fiquei tempo demais escondido no mato.

O dia inteiro acoitado feito bicho, sabia o que era isso? O dia inteiro pensando asneira, espantando mosquito, sofrendo vontade de urinar a toda hora. Só entrava em casa quando noitinha. Vivendo vida de criminoso sem ter crime nenhum, largando a mulher e os filhos. Aquilo era vida? E se viessem os jagunços? Podiam judiar deles, não é? Não viu o que fizeram com os Bello? Não deixaria que matassem sua família, antes tirassem o couro dele. Tinha decidido dar um paradeiro naquilo de correr pelos matos, se escondendo feito réu farrapo, não era nem bicho nem criminoso. Se eles aparecessem, estava bem. Bateu na cintura, exibindo o revólver. Depois, viajo amanhã. Na volta vai ser diferente, quero ver a cara deles depois que o presidente receber a lista. Quero só ver.

Ela perguntou:

— Adianta não ser criminoso e ficar morto?

Apanhou a lata de tinta, removeu com cuidado a película endurecida. Limpou o pincel na lateral da escada. Examinou-o contra a luz. Experimentou as cerdas na palma da mão. Estavam limpas e macias.

Disse para a mulher:

— Não pensa nisso.

Ela insistiu:

— Pois o doutor Miguel...

Foi brusco:

— Sei o que ele pensa.

Há uns dias, atendendo aos recados, passara em Beltrão para conversar com o doutor Miguel. Ele o levou para uma saleta no final do corredor, fechou a porta, examinando para os cantos como se caçasse gente tocaiada. Sentou a seu lado e perguntou pela lista.

— Vai indo, disse.

Não explicou mais. Levava desconfiança, não no doutor, que era gente do lado dos colonos, mas desconfiança de que também ele achasse aquilo de lista uma maluqueira de matuto.

— Quantas assinaturas?

— Parei de contar nas três mil.

— Bom, muito bom... — Miguel hesitou: Eu...

Ele riu:

— Se avexe não, doutor. Com pouco mais já posso viajar pro Rio de Janeiro, fique descansado. Vai dar certo. — Parou, mediu o doutor, que continuava aflito — O senhor não acredita que o presidente converse com um colono, não é?

Doutor Miguel bateu as mãos contra as coxas, levantou-se, ameaçou andar de um lado para outro. Parou no meio da saleta, os punhos socados no fundo do bolso do guarda-pó.

— Não se trata disso. Tomara que consigas conversar com o presidente, vai ser uma grande vitória, mas... — Miguel suspirou — Sabe Deus! Não é isso que me preocupa.

— Que é então? perguntou, como se não soubesse.

— Veja bem — Miguel tornou a sentar a seu lado — Os homens querem te pegar, a região está cheia de jagunços. Essa coisa de lista de assinaturas já saiu em tudo quanto é jornal, no Rio, em Curitiba, São Paulo. Tá dando uma confusão dos diabos.

— Pois essa era minha tenção. Eles que se danem.

— Certo, certo. — Miguel agitava as mãos, impaciente — Mas tu sabes que eles decidiram que deves morrer, não sabes?

— Sei. Mas com a lista ou sem a lista, doutor, me apontaram faz tempo. Mesmo antes de ser vereador. Pois deviam ter matado antes. Esperaram demais. Agora, como o senhor disse, a lista tá falada em toda parte, me matar ficou meio perigoso.

Miguel se levantou. Estaria pensando: o diabo do caboclo era teimoso feito mula. Olhou através da janela e viu uma mulher se protegendo do sol com um guarda-chuva. Remexeu nuns vidrinhos de remédio espalhados sobre a mesa. Disse:

— Tomara que tu tenhas razão. Quer dizer: Deus queira que tu tenhas razão! A gente nunca sabe o que esta gente pode fazer. São bandidos, são impunes, têm as costas quentes. Fazem as maiores barbaridades por aí e nada acontece. Eu acho que devias sumir por uns tempos, te esconder. Podia ser aqui no hospital — Miguel arriscou um pouco mais — A gente continua juntando assinaturas no abaixo assinado e tu ficas escondido aqui.

— Eu fico aqui?

— Aqui — Miguel já se sabia derrotado.

— Fechado feito doente?

— Protegido. Ponho uns homens aqui na porta.

— Não.

Miguel largou os braços, que pareceram enormes e pesados.

— Sabe, doutor, eu gosto muito do senhor. Tem gente aí falando mal do senhor, dizendo que tá se aproveitando dos colonos. Não penso assim. Cada um é de um jeito, não é? O senhor já me tratou dos filhos, da mulher, de mim. É um doutor de verdade, nem parece. Mas o senhor se preocupa demais, é feito minha mulher. O perigo não é tanto. Eu já cuidei de tudo. Tem queixa dada na polícia, registrei no juiz, fiz discurso na câmara falando das ameaças. — Levantou-se e colocou as mãos nos ombros de Miguel — Já passou a hora deles mexerem comigo. É pouco defunto pra muita confusão. Daqui a dez ou quinze dias eu viajo, falo com o presidente, o senhor pode acreditar.

— Tomara, disse Miguel. Isso se não te acertarem um balaço no meio desses miolos duros que tu tens.

Ele riu:

— Pode que seja. Mas tem um coisa. Matam, mas não vão comer minha carne, doutor. Sempre fico por aí dum jeito ou doutro. Fico fedendo. O senhor mesmo me disse um dia que eu sou um cafuzo cabeçudo, não disse? Pois sou mesmo.

Pediu à mulher:

— Segura a escada.

Prendeu o pincel nos dentes e subiu equilibrando a lata de tinta. A madeira envelhecida do rancho, observava por entre os degraus, estava rachada e velha, cinzenta, a pintura só serviria para tapear a feiúra. Agora que não ia mais viver escondido no mato, queria cuidar do rancho, da mulher e das crianças. Voltando do Rio de Janeiro, já com a questão das terras resolvida, cuidaria da criação e da roça. Ia pôr ordem na vida que a política deixara numa confusão, nisso tinha razão a mulher.

Depois, planejava dar uns cuidados no rancho do pai, o velho Santoro. Com aquela idade — quantos anos teria ? — ele já não cuidava nem dele mesmo, quanto mais da casa. Fiziam limpeza a cada pouco, cuidavam para que não vivesse na maior porcaria. O velho Santoro só cuidava de duas coisas: da cruz feita com madeira sagrada pelo monge Zé Maria e do seu altar de santos e fotos, onde misturava até duas bonecas achadas na rua. O resto, deixava largado. Se não cuidassem, nem comer comia. Por isso estava decidido: terminada a luta na política, cuidaria da mulher, dos filhos e do pai. Já era bastante.

Dependurou a lata de tinta no prego e olhou para baixo. A mulher o olhava com os mesmos olhos cheios de medo. É igual ao doutor Miguel, pensou. Sempre descobrindo perigo por detrás de cada moita. Tá certo, também sentia medo. Não era louco, todo mundo sente. Ainda não nasceu aquele que não se borre diante de uma carabina de jagunço. Mas dava pra viver se borrando? Não dava. Precisavam viver, o povo todo tinha que viver — e não nos matos, pois não tinham parentesco com os piriás. Tinham que viver alí, junto com a família, cuidando da casa, da roça, da criação. Se abaixassem a cabeça, estariam perdidos. Logo não mandariam nem nas próprias cuecas. Isso o doutor Miguel não queria entender. Quer dizer: entendia muito bem, mas desconfiava que Pedrinho não sabia cuidar do próprio nariz.

Começou a pintar. A tinta sumia na madeira ressecada. Vai ficar uma boniteza, disse para a mulher, mas ela não escutou — as crianças chegaram fazendo estripulia. A mulher mandou se aquietarem e impediu que subissem na escada.

— O que o pai tá fazendo? perguntou uma delas.

Ele olhou para os filhos e pediu:

— Sentem alí no barranco. Olhem de lá.

Foi neste momento — pois o demônio surge assim, saltando de alguma fenda profunda na terra, vindo direto dos quintos dos infernos sem fazer ruído ou deixar pegada -, foi então que os dois homens apareceram ao lado da casa. Um era alto, pálido e meio bugre — trazia um chapéu enorme enterrado na cabeça. O outro era baixo, cabeça quadrada, e tinha uma boca muito grande.

O homem de chapéu grande perguntou:

— Tu és Pedro José da Silva?

O homem usava uma capa preta e por debaixo dela haveria uma arma apontada para sua cabeça.

— Eu mesmo.

— Pedrinho Barbeiro? quis saber o de cabeça quadrada.

— Eu, sim.

Tentou sacar o revólver, mas o homem de cabeça chata gritou:

— Tu vai é morrer, seu cachorro!

A última coisa que Pedrinho Barbeiro viu em vida foi a capa preta do jagunço explodindo numa labareda.

 

LAURA BEIJOU O ROSTO DO FILHO — agora ele poderia ter bons sonhos. Disse ao marido:

— Elpídio Bello, tu és um homem cabeçudo.

O rosto de Elpídio ensaiou um sorriso, mas, como sempre, desistiu a meio caminho.

— Que mal em ser cabeçudo? resmungou.

Laura acompanhou os movimentos do marido. Saltou do cavalo, ajeitou as calças na cintura e bateu as botas contra o chão. Depois ficou parado, olhando em volta.

Ele estava inquieto, logo remexeria os pés, querendo saber se pisava chão firme. Nunca era fácil saber no que Elpídio pensava, ainda que Laura adivinhasse, no fundo daqueles olhos miúdos, alguma alegria. Era mesmo um homem cabeçudo, pensou, sentindo um aperto no coração. Nem a dor sofrida com a notícia da morte do irmão iria abatê-lo — ficaria ainda mais amargo por uns tempos, fecharia a carranca cada vez que Eleutério fosse lembrado, praguejaria contra Deus e a Virgem a cada dois dias e confirmaria a ameaça de sangrar o cão que fizera aquela mortandade. Mas não vergaria. Já vira o marido ser atingido tantas vezes e tantas vezes se recuperar, que estava certa: dali por diante nada conseguiria derrubá-lo.

Ele se aproximou do carroção e estendeu as mãos para que descesse. Em seu colo, a criança fez caretas, desdobrou os beiços algumas vezes. Dorme, disse ela.

Laura olhou para o homem que os guiara até alí e perguntou, sem entender porque desejava aquela confirmação:

— Era aqui?

— Sim, dona — respondeu Deonísio Possenti, retirando o chapéu em sinal de respeito.

As trilhas vincadas pelas carroças desciam em duas voltas e se perdiam a uns trezentos metros, no meio do mato branco. Ao lado, o pasto aberto, cortado pelo arroio que haviam acompanhado no último quilômetro. O resto era o mato e os pinheiros, um negrume cercando os destroços dos ranchos. Caminharam na direção do pontilhão. Imitando Deonísio Possenti, os outros homens também tiraram os chapéus. Elpídio caminhava passo a passo, cuidadoso. Ela entendeu: aquelas eram terras sagradas. Haviam sido de Eleutério e agora seriam dele. Atravessaram os destroços de uma horta e Laura fez outra pergunta inútil:

— Há muito tempo sem chover?

— Vai pra mais de três meses, dona, disse Deonísio Possenti.

Laura conferiu o arroio. A terra das margens estava se dividindo em placas quebradiças. Atravessaram um quintal de chão batido e ela imaginou que alí Eleutério gostaria de fazer reuniões, churrascos, tomar chimarrão, tocar sanfona, contar mentiras e dançar. Um era tão alegre, pensou, tão festeiro. O outro, tão calado e sério. Eleutério só ia à igreja na Semana Santa — e apenas para não dar desgosto à família. Elpídio ia todos os domingos, feriados e dias santos de guarda. Tinham de igual apenas o tamanho, a cabeça grande e, isso sim, a teimosia — no mais, dois contrários.

Pararam diante dos restos carbonizados da casa de Eleutério Bello. Laura viu o rosto do marido se contrair. Agora era inútil falar com ele: não escutaria, e, caso escutasse, continuaria mudo. Sentiu de novo o aperto no peito e desejou não ter feito aquela viagem. Mas Elpídio Bello era um homem cabeçudo, pensou. Impossível desviá-lo das coisas que punha naquela cabeça dura. Lá estava no meio da madeira queimada, empurrando cuidadosamente com os pés os pedaços de carvão retorcido, talvez procurando entre aqueles destroços alguma lembrança do irmão. Pensava nele, era só observar nos veios riscando sua testa, repuxando o lado direito do seu rosto. Laura resignou-se: agora Elpídio estava longe. Ele considerava o sofrimento uma afronta pessoal e reagia amarrando a cara e se fechando num silêncio de túmulo. E isso não era o pior: desgraça era não se saber o que acontecia em sua cabeça.

Chamou:

— Elpídio.

Ele não ouviu. Ou não quis responder. De pé no meio das cinzas, juntou as mãos nas costas e ficou olhando o chão por longo tempo. Só deixaria aquele isolamento quando quisesse, talvez dando uma daquelas risadas roucas e sem alegria, talvez esbravejando um palavrão medonho, em italiano, o que deixaria Laura em pânico. Ela olhou para os homens e eles desviaram o olhar, cada um descobrindo algo de interessante no que estava em volta. Caminhou para junto de uma árvore e sentou-se no chão, à sombra. Deu o seio ao filho e ficou esperando.

Elpídio Bello vencera novamente: esta seria sua terra. Poderiam ter ido mais para o norte, onde, garantira seu Deonísio Possenti, conseguiriam uma boa colônia perto de conhecidos de Eleutério, os quais ficariam honrados em ajudar o irmão de um grande amigo. Elpídio não aceitou.

— Seu Possenti, disse ele, agradeço demais a ajuda do senhor, mas vou mesmo para as terras de meu irmão.

— Bem... — Deonísio Possenti coçou o pescoço vermelho e disparou dois dedos para o alto da cabeça, onde ficou furungando um começo de careca — Isso pode ser perigoso, seu Bello. Os jagunços vão achar provocação.

— Pois que achem. O que era de meu irmão agora é meu, disse — e Laura sabia que depois de estabelecer isso na idéia, Elpídio não arredaria pé da decisão de ficar naquelas terras.

Deonísio Possenti discutiu a questão com seus homens, tornou a explicar que estavam alí só para proteger os colonos recém-chegados, evitando que os jagunços obrigassem a assinatura de promissórias e contratos, mas, apesar dos riscos, entendia que era certo: as terras do irmão agora eram dele. Elpídio sorriu e disse:

— Não se preocupem. Não foi feito ainda o jagunço que vai matar dois filhos de Firmino Bello.

Agora, sentada debaixo daquela árvore, dando o seio ao filho e olhando o marido a remexer com os pés no meio das cinzas, Laura pensava no Rio Grande, onde deixaram amigos, um pedaço de terra vendido a preço de banana e tudo que haviam juntado na vida. Terra pouca, mal dava para eles, mas era o sustento.

Quando Eleutério viera para o sudoeste, Elpídio, o cabeça dura, achou loucura, uma aventura besta, outra daquelas invencionices do irmão destramelado, farrista e gaiteiro. Ainda tinham a terra, dizia, ainda podiam lutar com ela e viver. Não iria meter a família numa viagem daquelas, já não tinha idade para aventuras, arriscar a vida em lugar desconhecido. De nada adiantaram os argumentos de Eleutério, seu desejo de dividir a colônia com o irmão. Com o tempo, porém, Elpídio foi mudando de idéia. Não tanto pelas boas notícias que o irmão lhe mandava — a terra era boa, o comércio funcionava, tinham assistência da colonizadora do governo, viesse, trabalhariam juntos. Nada disso foi decisivo. Elpídio foi mudando porque, mesmo para a sua cabeça dura, a vida estava ficando difícil demais no Rio Grande. Ainda mais quando outros parentes partiram também. E Elpídio Bello foi cedendo — mas a seu modo. Não falava no assunto, repetia entre resmungos que um homem nasceu para lutar com a terra e não para fugir dela como um cigano. Só Laura entendia que estava cedendo: quando o marido ficava a resmungar contra alguma coisa, caindo depois num isolamento carrancudo, era sinal de que suas razões estavam enfraquecendo. Só esperava um bom pretexto para admitir que mudara de idéia. O que ele não sabia é que este pretexto ia lhe custar um pedaço da alma.

 

O PRIMEIRO HOMEM QUE VEIO PARECIA UM DOUTOR. De roupa ajeitada, terno de cidade, gravata cinza, parou o jipe lá na porteira, chamou ô de casa!, deu bons dias tirando o chapéu e pedindo para entrar. Seu Joanin conferiu a pose do cujo e concluiu que a única arma daquele cabra era a educação cheia de curvaturas e balanços e uma pastinha que carregava ensovacada para onde fosse, dava até agonia vê-lo com o ombro retesado, como se perder a pastinha pudesse causar uma desgraceira irreparável. Perguntou pelas crianças, quis saber os seus nomes, desejou que a mulher tivesse um bom parto, que beleza! , quase gritou quando soube que seria o quinto filho. E ficou um tempão só de conversa educada, narrando coisas da capital, falando muito no progresso da região, elogiando o trabalho desse bravo povo da interlândia, dizia, essa mistura bonita de italianos, alemães, caboclos, negros, coisa mais linda! Todos pensaram, mesmo fascinados pela conversa do homem, que estava alí para vender alguma coisa, sempre despencava por aqueles matos algum vendedor de bugigangas e quinquilharias fazendo seus briques, pois só vendedor, pensou Joanin, tratava tão bem e com tanta cortesia gente do mato que nunca vira na vida. E o homem seguiu assim, amaciando conversa, até que Nego Berto, que estava alí só de bobeira, perguntou: o doutor tá vendendo o quê, doutor? Ah, como ele se divertiu! Levantou-se — mas sem despregar a bendita pastinha do sovaco — para rir mais à vontade e abraçar Nego Berto, que abriu o branco dos olhos, assustado. E o homem — quem me dera, meu filho, quem me dera! — disse que não era doutor, deixassem daquelas gentilezas, era um homem comum feito eles e não era nem mesmo vendedor, não, não vendia nada, era... — fez uma pose com as mãos — era... corretor. Nego Berto esticou as beiçolas, balançou a moringa, olhou com cara de desentendido para seu Joanin, que pensou: esse negro safado tem nada que se meter na conversa, sujeito desabusado. E Joanin resolveu tomar as rédeas da conversa, deixando o negro de lado antes que ele aprontasse um rebosteio, como era de seu costume. Perguntou: mas que mal le pergunte, o que o senhor faz neste fim de mundo? O homem pareceu ficar distraído, feito não soubesse se explicar, então não sabiam o que era um corretor, estaria pensando. E foi então desfiando uma conversa comprida, cheia de esses e erres, pelo meio largou falação sobre um amontoado de leis e regulamentos, decretos e portarias, até de coisas do tempo do imperador Dom Pedro II ele falou, fazendo cara solene. Nego Berto, meio tonto com aquela prosa toda, sentou-se no chão e a mulher de Joanin, Cidália, descansou a barriga sobre as pernas enquanto a filharada parou com as correrias — e todos ficaram, Joanin sempre muito desconfiado, escutando a conversa do corretor, que parecia não ter mais fim e talvez não tivesse mesmo se Nego Berto de repente não pulasse feito macaco, plantando-se no chão batido com os dois pés enormes e perguntando na bucha: o doutor não tá querendo dizer que a terra que é de seu Joanin não é terra do seu Joanin, pois não é?

A mulher de Joanin, que não entendera quase nada da prosa bonita do doutor, sobressaltou-se tanto com a descoberta quanto com a petulância do negro — ergueu ligeiramente a barriga, abraçando-a, e assim ficou, esperando a reação do marido, que estava agora de olhos fechados, cofiando os bigodes e remexendo as pernas — e pondo na cara um jeito de tempestade, pensou ela. À frente deles, o tal doutor-vendedor-corretor abriu os braços — mas não o sovaco — abriu a boca, abriu muito os olhos e, não tendo mais nada para abrir, examinou para os lados por um tempo, como se procurasse alí, no meio do chão de barro batido, o que tinha a dizer. Joanin perguntou: então, doutor, esse negro metido entendeu direito? Absolutamente, saltou o homem, de modo algum, jamais pensara dizer tal coisa, fora mal interpretado — foi desfiando o homem e abrindo a pastinha preta, despregando uns botões, e lá de dentro retirando um mapa que estendeu no chão. A terra, é claro, é óbvio, é de seu Joanin, terra legítima, mas... precisa ser legalizada, compreendem? Coisa de papeladas, registros, títulos, uma questão antiga. E recomeçou a conversarada: faz mais de cinqüenta anos o governo deu estas terras em pagamento de uma estrada de ferro, terras do governo dadas em pagamento. Mas a estrada não foi concluída e as terras acabaram nas mãos de outro homem, tal de Rupp, que tinha um dinheiro para receber do governo — pois foi este aí que vendeu tudo para as companhias. Compreendiam? Não, despachou Nego Berto, fuzilado pelo olhar de Joanin, que no fundo estava se divertindo com o topete do negro. Não? Não. Pois bem. E tome mais explicações: as terras, que o governo havia dado em pagamento não eram mais do governo, não é mesmo?, se você dá um tanto de milho em troca de um porquinho, fica dono do porquinho, mas não é mais dono do milho, não é? É, fez Joanin, mastigando os bigodes com raiva, o doutor pode deixar que de porquinho e de milho a gente entende. O homem então se dobrou sobre o mapa, fez uma corcunda ameaçadora, espichando a fazenda do paletó como se quisesse sumir papel adentro, e mostrou onde estavam as terras de Joanin, bem no meio, aliás, quase no centro de toda a gleba, um lugar bonito, tiveram sorte, e explicou mais uma porção de decretos, leis, coisas de assembléia, de política, para concluir que seu Joanin era dono mas não era dono, dono legítimo, legal, compreendem?, dono mesmo era uma tal de companhia colonizadora chamada Citla. Pois, fez Joanin. Levantou-se, foi ao quarto, voltou com uns papéis nas mãos. E isso aqui não vale nada? perguntou. Ora, fez o homem ao examinar os papéis com uma risota e os ombros erguidos, aí é que está o busílis! exclamou. Seu Joanin se ofendeu: está o quê, doutor? Desculpe, disse ele, desculpe, aí é que está o nó do problema, a origem da confusão, compreende? Foi a vez de Joanin despachar: não. Bom, disse o homem, eu lamento, mas seus papéis não têm valor legal, é realmente uma pena mas não têm, é causa vencida na justiça. Nego Berto, que mal se agüentava dentro das calças, criou coragem e retomou a conversa nas mãos: e o doutor então quer que seu Joanin devolva estas terras para a tal companhia? O homem se escandalizou: absolutamente!, quase grita, pondo as mãos na cabeça, parecendo arrancar os cabelos, jamais pensassem uma coisa daquelas! Queria, isso sim — e espetava o mapa com o dedo -, queria legalizar a situação daquelas terras, as companhias tinham todo o empenho em manter alí aquelas nobres famílias de trabalhadores, disse. Afinal, não tinham sido eles que transformaram mato fechado em boas terras de plantio e de criação? Não eram eles que agora começavam a erguer vilas e cidades? Não, não entendessem assim. Mas... Mas? — Nego Berto espichou a beiçola de um modo que, a Joanin, pareceu um exagero. Mas..., coçou-se o homem, precisamos regularizar a situação. A companhia, afinal, cobrará apenas um pequeno valor, em muitas prestações, e não quer mais do que a madeira de lei que houver por aqui. Basta assinarem as promissórias e, aí sim, teriam os títulos definitivos de posse bem como as escrituras, tudo passado em cartório, o que garantiria a tranqüilidade deles para sempre, ninguém iria perturbá-los depois disso. E... E? — Joanin alarmou-se, pois Nego Berto conseguiu espichar as beiçolas outro tanto. ...E ficam livres de qualquer ação na justiça, disse o homem, a companhia não pediria reintegração de posse.

No meio da estripulia que se instalara na casa de seu Joanin desde a chegada daquele homem, com tanta falação e discurso, baixou então um silêncio atrapalhado. A mulher de Joanin olhou feio e suspirou fundo, largando a barriga a repousar sobre as coxas. As crianças, quietas, examinavam o homem, que no início lhes parecera divertido, e, sem entender o motivo, ficaram pensando que era um bestalhão que estava chateando o pai. Nego Berto, cara perplexa, foi sentando lentamente no chão, acendeu o palheiro que sacou das orelhas e jogou um olhar torto na direção do homem pelo meio da fumaça azulada, vendo que o cujo ria de beiços tensos, como um cavalo relinchando, o safado está mesmo é se cagando nas calças, pensou. Seu Joanin, examinando seus papéis de posse, ajeitou os bigodes e disse: seu moço, o senhor é dono dessa tal companhia? Não. Então é mandado, não é? Sou funcionário, corretor. Corretor, pois. Joanin dobrou cuidadosamente os seus documentos. Pois vai me adesculpar que eu não assino coisa nenhuma e nem vou querer mais conversa. Essa colônia aqui é minha, recebi do governo, paguei, isso faz tempo. Abri cada pedaço de mato por aqui, eu mais esse negro atrevido que o senhor vê. Luto todo dia com a terra e com a criação, fiz estes filhos aqui mesmo. Não vou sair daqui não. E não vou assinar essas notas nem nenhum contrato, que não vou pagar uma segunda vez pelo que já é meu. Mas entenda, seu Joanin, o senhor fica sujeito a uma ação na justiça. Pois que bem. Que venha o juiz. Eu tenho os meus documentos, o senhor tem os seus. Vamos ver qual é de mais valia. Nego Berto afinal terminou de espichar a beiçola, perdido de admiração diante de Joanin, ora vejam só que italianinho valente esse sujeito vermelho, baixinho, gordinho e narigudo, enfrentando assim um doutor todo apalavrado. Não sei se o senhor pensou bem nas conseqüências de sua recusa, seu Joanin, eu... Pensei, sim, e pensei ligeiro, sabe?, pois eu vivo aqui, vim prá cá quando isso aqui era o cu do mundo, trabalhei feito negro, fiz casa, truxe família, botei criação. Eu já pensei nisso durante todo esse tempo, não preciso pensar mais não, seu doutor. E muito boas tardes pro senhor. O homem juntou seus mapas e leis, enfiou tudo na pastinha ensovacada, disse: sei que vai pensar melhor, depois conversamos, tudo se ajeita, e deu com a mão, se despedindo de todos e desejando novamente um bom parto para Cidália, que o olhava com desprezo, sustentando a barriga com as mãos. Saiu de fininho, subiu no jipe, fez o giro e retomou a estradinha de terra, levantando poeira e corcoveando no cocuruto deixado pelo trilhar das carroças.

Nego Berto estalou as beiçolas que mantivera armadas até aquele momento e disse: esse não volta mais! Seu Joanin olhou para o negro, riu: negro intrometido! E concordou: não volta mesmo! Mas Cidália, erguendo-se com cuidado, as mãos sempre em volta da barriga, discordou: sei não, disse ela, nesses pressentimentos que mulher costuma pôr na cabeça e que tanto assustavam a Joanin: acho bom não fazer tanta festa. E foi enxotando a criançada, que precisava fazer o almoço.

 

A VERDADE É QUE ELPÍDIO BELLO CEDERA HÁ MUITO TEMPO. Não sendo homem de fraquezas, só mudaria de rumo se tivesse um bom motivo e pudesse gastar nesta decisão um bom tempo de cara amarrada. Seguiu na vida. Lutava com a terra, trabalhava de sol a sol, vendia o que sobrava, ia à missa e conversava com o padre e os amigos. O padre aconselhava a viagem, sabia das dificuldades que a família estava passando. Dizia: "O Sudoeste é terra de futuro, seu Bello, de muito futuro. Isso aqui já não dá pra gente pequena e, no Paraná, junto com o Eleutério, que parece ter colocado a cabeça no lugar, vocês podem recomeçar tudo." E desfiava alguma história de gente que havia partido pro sudoeste e que mandava boas notícias: muita terra, terra boa, dinheiro, trabalho. Elpídio Bello fechava a carranca medonha, retorcia os bigodes ralos e batia pé: nascera alí, era homem de coragem e dali não arredaria. O padre, exausto, alisava a careca e o olhava de lado, medindo o teimoso.

Mas até um homem como Elpídio Bello é capaz de fraquejar, descobriu Laura. Primeiro foi a morte da filha. Ela entrou em febre, teve convulsão, delirando seguido. Elpídio varou a madrugada a cavalo, mas, ao chegar com o médico, este só fez passar o atestado, recomendar calma, ânimo, eram jovens e teriam outros filhos. Infecção, disse — e Elpídio Bello atravessou dias sem trabalhar, caminhando em torno da casa. Infecção, resmungava, infecção. Preocupada com o tormento do marido, Laura adiou para mais tarde o próprio sofrimento e cuidou da casa, da horta, da roça, da criação. Elpídio não comia, não falava, não dormia. Ia todos os dias ao cemitério, entrava e saía várias vezes da igreja a passos largos, blasfemando aos berros, deixando o padre roxo de medo. E voltava para casa com a mesma cara atormentada de quem entrou numa guerra contra Deus.

Depois foi a geada. O pouco que tinham foi sendo consumido, não numa só geada, mas em várias. Laura viu o marido arriado na porta dos fundos, o palheiro apagado no canto da boca, ainda sem comer, sem dormir, resmungando palavras que ela não entendia. Tudo que era verde no mundo foi ardendo aos poucos, contorcendo-se, dobrando para o chão. O céu gelado e limpo parecia ainda mais claro em contraste com a cor de ferrugem que cobriu a terra. Não sobrou nada. Já não havia mais nada para vender, não dispunham de um tostão para recomeçar. E Elpídio Bello passou três dias sentado à porta de casa, os olhos vazios, sem falar, sem ouvir o que Laura lhe dizia, recusando seu abraço. Só foi se erguer no terceiro dia, ao anoitecer. Aterrorizada, Laura viu a silhueta negra do marido subir contra o vermelhão de incêndio que o sol punha no horizonte e socar os punhos cerrados contra o céu, berrando com uma voz rouca de animal:

"Dio óstia!"

Deste dia em diante, Elpídio só saía de seu mutismo para novamente golpear o céu e rosnar as piores blasfêmias. Para sobreviverem, Laura precisou se socorrer dos vizinhos. Mesmo com a gravidez no início, tratou de todos os assuntos de casa, plantou verduras, correu a pedir favores, implorando em nome de Deus que nada contassem a Elpídio, que era orgulhoso. Só muitos dias depois o marido voltou a falar, a ouvir, a andar pela casa. Só então Laura deixou de temer que acontecesse o mesmo que se dera com Olavo Rizzi, seu primo, que teve a plantação destruída, perdendo tudo de uma hora para outra, e ficara muitos dias calado, olhando seu trabalho sumir chão adentro. Depois dera para rir sem nexo, andando dia e noite sem direção, entrando em casas desconhecidas para oferecer negócios com terras e empréstimos nos bancos, anunciando vendas de boiadas inteiras, de terras na fronteira, só louqueira de doido. Não seria assim com Elpídio Bello, pensou, quando o viu, numa madrugada, levantar-se do degrau onde passara tantos dias e ir até a horta arrancar uma folha de mostarda. Ela o esperou na porta da casa e ele lhe disse: tá nascendo. Não seria assim com Elpídio Bello, não fosse ele um homem cabeçudo. No dia seguinte foi olhar de perto tudo que perdera, caminhou de um lado para outro e, pela primeira vez, teve um sono profundo, sem agitações, acordando sem o peso na carranca feroz que lhe endurecera ainda mais o rosto. Quando o padre apareceu — a pedido de Laura — o marido já estava melhor. O padre saltou da charrete, fez espalhafato, ergueu os braços negros da batina para agradecer aos céus e disse:

— Um homem como Elpídio Bello verga mas não quebra!

Laura examinou o olhar parado do marido e teve uma certeza: alguma coisa no coração de Elpídio Bello quebrara para sempre. Não ficaria louco como Olavo Rizzi, mas jamais seria o mesmo homem.

Quem sabe errara mais uma vez. Aquele homem sempre fazia com que errasse. Jamais saberia direito quem era, bem no fundo, aquele homem grandalhão e feio, que poderia ser muito bruto mas que sabia erguê-la nos braços como se ela não tivesse peso, jogando-a para o alto, rindo, deitando sobre seu corpo alí mesmo no chão de tábuas largas, transformando-se logo numa criança doce e fazendo de Laura a mulher mais feliz do mundo.

Pois Elpídio Bello não quebrou. A carranca dura e feia continuou a mesma, mas ele trocou de ares e de conversa. Saiu pelas redondezas a saber notícias do sudoeste, conseguiu mandar um recado para o irmão Eleutério: derrubasse mais um bocado de mato que ele ia para o Paraná. Providenciou a venda da terra para o mesmo fazendeiro que comprara as terras de todos que haviam partido, sempre chorando miséria, pagando pouco, afinal, dizia, eles sabiam que a terra alí não rendia nada, não era por isso que estavam partindo? Vendeu tudo que não poderia levar. E ficou esperando notícias do irmão. Quando elas chegaram, não eram boas. Elpídio Bello mal conseguiu acreditar que aquela fosse a letra do irmão, que fossem aquelas as suas palavras. O portador da carta confirmou tudo: não deveria ir, não agora, esperasse.

— Mas por quê, homem?

— Aquilo virou uma guerra, seu Bello. Um inferno. Tem por lá uma jagunçada que mata, que bate, que desrespeita até mulher e criança.

Elpídio Bello não acreditava e Laura sabia muito bem o que acontecia quando ele não queria acreditar em alguma coisa. Então o sudoeste não existia? perguntava aos berros. Eleutério havia mentido?

— Não, disse o homem. Agora é que ficou assim. Quem manda, faz e desfaz, é uma raça de jagunços das companhias, bandidos contratados. Por isso resolvi voltar. Acho que eles não sossegam enquanto não roubarem tudo que é dos colonos.

Elpídio Bello avermelhou a carranca, sempre incrédulo:

— E a polícia? E a justiça?

— Tudo do lado dos jagunços, seu Bello.

Levou dias para acreditar, se é que acreditou. É uma merda de mundo de ponta cabeça, rosnava. Laura esperava: Elpídio Bello só acreditava no que queria acreditar. A conselho do homem que trouxe a carta de Eleutério, foi conversar com o padre, que confirmou as notícias de banditismo chegadas nos últimos dias.

— Mas por acauso isso brotou da terra?! — queria saber Elpídio Bello — Era o sudoeste e agora é o inferno?

— Não, seu Bello. Banditismo já havia, mas coisa pouca, banditismo de advogado e político, entende? Agora é de jagunço mesmo.

— Sendo assim, eu tenho mesmo que ir para esse sudoeste.

O padre, os amigos, todos tentaram evitar. Laura sabia que era inútil.

— Já vendi tudo, argumentava ele.

— Compre de novo.

— Não vou pedir terra de volta praquele cretino, esbravejou, empacando de vez.

— Eu falo em seu nome, ofereceu-se o padre.

Elpídio encarou o padre com desprezo:

— Um homem fala por ele mesmo.

— Laura está grávida, a criança acaba nascendo na viagem.

— A outra filha, disse ele, também nasceu nas minhas mãos, no meio do mato — e encerrou a conversa.

Laura lutou de todas as formas, mas rendeu-se: Elpídio Bello era um homem cabeçudo. Um homem movido pelas coisas duras que punha nos miolos: o que vendera, estava vendido — se anunciara, iria para o sudoeste.

— Vou mudar de vida e ajudar meu irmão, disse, olhando nos olhos do padre e perguntando: Eu posso abandonar meu irmão?

O padre coçou a cabeça e retirou da manga da batina um lenço amarrotado e sujo, com o qual enxugou o rosto.

— Claro que não, seu Bello. Isso é muito bonito de sua parte, é o gesto de um cristão, mas deve pensar que é também muito perigoso.

Elpídio Bello fechou ainda mais a carranca:

— Perigoso é infecção, seu padre.

 

AMANDA ACORDOU SOBRESSALTADA.

— Que foi isso, Miguel?

— Nada. Dorme.

Miguel olhou desconsolado para o cigarro de palha. Pensou: vamos ter problemas, meu amigo. Poucas coisas conseguiam deixá-lo mais irritado do que interromper aquele ritual de todos os dias. Quando a cidade e seus doentes iam dormir, ele sentava junto à janela do quarto para preparar o último cigarro, que fumava bisbilhotando a escuridão, esvaziando a cabeça das canseiras do dia.

— Fica tranqüila, disse, os homens estão de guarda.

Amanda largou o corpo na cama, respirou fundo e fixou o olhar no teto do quarto. Lá fora os cães seguiam latindo. Isso não acaba nunca, pensou.

— Eu não agüento mais, disse.

— Tu exageras.

Miguel recomeçou a trabalhar no cigarro de palha. Quem sabe teria uma chance.

— Os cães, — Amanda não desgrudava o olhar do teto — os capangas, estas mortes, as ameaças... Que diabo de vida nós estamos levando, Miguel? A casa cercada de capangas, a gente dormindo com revólver na cabeceira. Te dás conta?

— Claro que sim.

— ...mas estamos metidos nisso até o fim, não é?

— É.

Observou o marido curvar-se e umedecer a palha, acertando as pontas do cigarro. Havia momentos em que desejava sumir daquela cidade, que virara um inferno. Mas, se pensava um pouco, queria ficar. Estavam naquele lugar há oito anos, haviam construído o hospital, a casa. Por que deveriam sair correndo como se os criminosos fossem eles? Esperar mais um pouco, dizia Miguel, é preciso ter paciência. Depois, nossa vida foi feita aqui, não podemos mudar de um momento para outro.

Quando chegaram ao sudoeste, ela não vira mais do que mato, pinhal, estradas enlameadas, uma gente bruta que se fartava em trabalhar. E havia ainda a solidão, o silêncio, o isolamento do resto do mundo. Meteram-se eles também naquela luta: a casa, o hospital, os doentes. Agora, eram parte daquilo — e o Rio Grande do Sul lhes parecia um lugar distante no qual nunca haviam vivido.

Quando começou o banditismo, pensaram que estivesse havendo apenas um aumento episódico na habitual safra de mortes. Não demoraram a perceber que agora era diferente. Era uma mortandade organizada, com endereço certo. Ao contrário dos crimes motivados por uma cerca mal colocada ou por um resultado de jogo de futebol, agora estavam diante de outro tipo de morte, mais determinada e cruel, mais constante, na qual a ausência de paixão precisava ser compensada com toda a crueldade possível.

Amanda procurou relaxar, evitando ouvir os cães — e lhe veio à memória um livro lido há muito tempo. Nele, um soldado foi o único a escapar de uma emboscada e, quando pensa em fugir, largando o uniforme e as armas, lembra que seria confundido com os inimigos. Ou pior: seria considerado inimigo das duas partes em guerra. Só lhe restava continuar uniformizado e seguir em frente. Amanda respirou fundo e pensou: exagero. Miguel estava certo. Aquilo não era exatamente uma guerra e eles tinham condições de se defender. Como terminara a história do soldado? Não lembrava. Ficou pensando naquele fragmento do livro até que os cães fizeram com que sentasse novamente na cama.

— Vem vindo alguém.

— É, resmungou Miguel, afinal derrotado: não conseguiria fumar o palheiro em paz.

— Que horas são?

Miguel olhou para além da porta do quarto e viu o relógio da sala marcando meia-noite.

— A hora do crime, brincou.

— Não brinca.

Ele riu:

— Não exagera. Meia-noite.

As três pancadas na porta, embora esperadas, fizeram com que Amanda se levantasse da cama. Miguel apenas inclinou o corpo, colocando o ouvido direito na direção das batidas.

— Doutor Miguel!

Levantou-se, fez um gesto pedindo para que Amanda voltasse para a cama. Abriu a janela.

— Que foi, Antero?

— Tem um cabra aqui que vem da parte de irmã Tereza.

Irmã Tereza, pensou, sempre ela. Disse:

— Já vou.

Fechou a janela. Com todo o cuidado, colocou o palheiro na borda da prateleira e amaldiçoou a irmã, que tinha o dom de inventar doentes e estropiados justo na hora sagrada de seu último cigarro do dia. Certa vez, brincara com a irmã:

— Madre, peça a seus doentes para terem crises antes ou depois do meu cigarro de palha.

A irmã, uma alemã vermelha e rígida, não entendera. Disse que era preciso escolher entre o vício e a caridade. Desistiu de novas brincadeiras.

Abriu a porta.

— Que houve, Tonho?

Tonho era um negro meio pancada, que fazia carretos para as freiras em troca de comida e de um canto do paiol para dormir.

— Um homem espancado, disse ele, abruptamente, como se não quisesse esquecer a lição decorada — Madre Tereza diz que ele morre.

Miguel fez cara de profundo espanto:

— Como é que ela sabe?

O negro se atrapalhou, mostrou o único dente, repetiu:

— Um homem espancado.

Miguel imaginou a freira repetindo várias vezes, pondo o autoritário indicador germânico no nariz de Tonho: um homem espancado, Tonho, ouviu bem? Um homem espancado.

— Está bem, eu já vou.

O negro olhou para Antero, querendo saber se estava dispensado, e, após um toque no chapéu, disparou na escuridão.

— Tu vais sair?

Amanda o esperava na porta do quarto.

— Vou. E tu voltas para a cama.

— A essa hora, Miguel?

— É uma boa hora para voltar para a cama.

— Pára de brincadeira!

Ele abraçou a mulher, ah, meu Deus, pensou, o medo que também sentia e a vontade de ficar em casa, fumar o palheiro, dispensar os capangas, calar aqueles cães.

— Tu sabes que eu preciso ir. A gente já falou sobre isso, lembra?

— E se for uma tocaia?

— Amanda...

Acariciou os cabelos da mulher, conferiu nas costas de sua mão, que já não era tão jovem, pensou que estavam prestes a decidir o resto de suas vidas. Beijou-a e disse:

— Vou com Antero, fique tranqüila. Não é tocaia, foi a madre quem mandou chamar.

— Quem garante? Esse negro é de confiança?

— Esse negro é uma santa alma, disse ele, apanhando a maleta e lançando um último olhar sofrido na direção do cigarro de palha.

— Te cuida.

— Me cuido.

Beijou Amanda e saiu.

 

O SEGUNDO HOMEM QUE VEIO NÃO PARECIA UM DOUTOR. Era grande, avermelhado, e usava um cabelo comprido que, num sujeito menos grande e forte, passaria por cabelo de mulher ou de homem afeminado, pensou Joanin. No jipe, ficou um outro homem, embrulhado numa capa preta e fazendo questão que todos vissem, mesmo de longe, que estava com uma winchester na mão. Baixou o pára-brisa, jogou as pernas cruzadas por cima do motor e descansou a arma entre as botas. Buenas! disse o homem avermelhado, o senhor é seu Joanin? Eu mesmo. Pois, fez o homem, e veio com o mesmo palavrório do outro, aquele engravatado e de pastinha no sovaco, mas o tom da palestra era diverso. Falou das terras, da mesma estrada de ferro, da companhia. Mas também não precisava falar muito. Joanin estava sabendo que todos os colonos, um por um, tinham sido visitados. Primeiro, por aquele com pinta de doutor e cheio de conversa macia e, depois, por aquele alí, de nome Zé Lara, criminoso de fama, agora governando a tropa de jagunços no sudoeste. Já tinha cometido desatinos por toda a parte, no Verê, em Realeza, não havia canto onde não tivesse feito algum barbarismo, parecendo um bicho capaz de estar em todos os lugares ao mesmo tempo, feito o velho Santoro dizia acontecer com o demônio. Seu Joanin olhou para a mulher, que ia parir dali a uns dias, e fez um sinal. Cidália recolheu as crianças e caminhou lentamente, sempre segurando a barriga, para dentro de casa. Na cara, um jeito de provocação. Se cuide, seu Joanin, dissera Pedrinho Barbeiro, colono esperto, quando Joanin dera uma de valente numa reunião, dizendo que ia receber os ditos jagunços com um revólver na mão. Se cuide, advertiu Pedrinho, pois eles atiram antes. E então? perguntou Joanin sem estar muito certo de que a cara feia que fazia fosse assustar o homem. Então, disse o homem, é bom o amigo se resolver logo com isso de assinar as promissórias e o contrato. Eu já disse, Joanin engrossou a voz, praquele que veio aqui, que podem trazer um juiz pra julgar nossos papéis. Se não for do meu direito, eu saio. O homem riu: aquele outro que o senhor diz, o advogado, seu Joanin, é homem de conversa, de muita educação, cheio de falas, um homem de leis. Eu sou outro tipo de gente, pois não? Eu não estou pra conversa fiada nem muita prosa. Vim aqui dizer que o senhor deve assinar os papéis pro seu próprio bem. O senhor é homem estabelecido aqui faz tempo, já tem casa, criação, estes plantados por aí, tem uma família e mulher prenha. O homem parou de falar, olhou na direção do jipe e tornou a olhar para Joanin: eu só tenho umas dúzias de gente como aquele cabra lá, compreende? Não tenho muita prosa nem muita lei. Joanin sentiu a cabeça avermelhar de ódio, não ódio de medo, mas ódio de raiva, ódio de não poder fazer nada. Passou a mão na cara para se acalmar e, quando olhou na direção da casa, viu os olhos arregalados de Nego Berto escondidos atrás do tanque de lavar roupa. Disse ao homem: o senhor vai fazer o quê? Nada, respondeu Zé Lara, abrindo as mãos para o alto, eu sou de paz, não quero confusão. O senhor é que vai assinar os papéis e, depois, nunca mais vai me ver na vida.

Assinar os papéis, pensou Joanin, comprar de novo o que era seu, deixar que levassem todo pinheiro e madeira de lei que encontrassem em sua colônia. E se não assinar? perguntou, vendo que os olhos de Nego Berto cresceram por detrás do tanque. É como le disse, explicou o homem, o senhor tem criação, filhos, mulher prenha... É um homem de responsabilidade, não vai querer confusão por causa de tão pouco, não é? Tão pouco!? — Joanin cuidava para não se enfurecer. — Comprar o que já é meu é pouco? Como le disse, o homem bateu de leve no chapéu, retorceu a boca num modo de sorriso e repetiu: como le disse, eu não sou de leis. Volto aqui dentro de uns dias, o senhor vai pensando, vai contando os pés de milho, os porquinhos, o pinhal, eu trago os papéis e o senhor assina. Acho que o senhor devia fazer como os outros colonos, todos estão assinando, ninguém quer confusão. Alguns colonos estavam mesmo assinando, pensou Joanin, essa era a raiva de Pedrinho Barbeiro, que deu soco no ar, na mesa, na cadeira e no próprio peito durante a reunião. Não assinem nada! gritava. É um roubo, a terra já é nossa! Só assinem esta lista de abaixo assinado que eu vou levar pro presidente da república! Perguntaram: e se eles vierem judiar da família? Protejam a família, cuidem-se, fiquem no mato, mas não assinem. Mandem passar outro dia, vigiem para não serem pegos de surpresa, enquanto isso me ajudem a arrumar assinaturas para a lista, é assim que a gente precisa fazer. Os colonos ficaram discutindo sem fim, uns querendo assinar, outros querendo pegar nas armas, outros achando que com duas tocaias corriam com todos aqueles jagunços do sudoeste. E Pedrinho insistia na lista. Joanin olhou nos olhos de Zé Lara, fez pose de pensar muito e, examinando o canto da casa, viu a carapinha de Nego Berto. Esse negro jaguara ainda me arruma confusão, pensou. Disse: eu já pensei. E então? quis saber Zé Lara. Não assino. Ah, pois, fez o jagunço, então pense de volta, com muito cuidado. Bateu no chapéu e fez: bons dias. Deu um passo, virou-se e avisou: diga praquele negro se esconder melhor da próxima vez, senão eu abro a tiro uma repartição na carapinha dele. Joanin engoliu em seco e jurou para si mesmo que ia dar uns cascudos no negro. O homem seguiu em frente e, quando já estava perto do jipe, se virou e, com o riso de satanás, disse: um bom parto pra sua senhora, seu Joanin.

Subiu no jipe e deu a partida. Antes que fizessem a volta, Nego Berto já estava ao lado de Joanin — mas que bandido, seu Joanin! mas que fim de mundo existir um cabra assim no mundo! Joanin esperou o jipe sumir na curva e se virou pro negro, gritando: Negro covarde! Eu!? — Nego Berto deu um pulo para trás, indignado, e desfiou as suas bravuras: quem mais falou naquela reunião com Pedrinho Barbeiro!? quem mais arrumara assinaturas para a lista do presidente!? Hein? Ora, seu Joanin! E perguntou: acauso vou dar minha cara presse bandido surrar? O senhor sabe quantas mortes isso aí tem no lombo? Joanin pegou na gola da camisa do negro, encostou uma cara enfurecida junto ao rosto dele e disse: pois fica sabendo, negro safado, que eu também estava me cagando nas calças! Os dois despencaram numa risada maluca que só parou de balançá-los quando a voz de Cidália gritou lá de dentro: Joanin, a criança! A criança! Foi Nego Berto, sim, foi ele, Nego Berto, esse negro atrapalhado, quem mais se apavorou, até parecia o pai. Os dois tropeçaram um no outro, Joanin gritando para o negro, que arregalava os olhos e jogava os beiços para a frente: a carroça! prepara a carroça! Despencou para dentro de casa, onde encontrou a mulher deitada na cama, as filhas chorando em volta, o colchão todo molhado entre as pernas da mulher. Dio, gritou, já soltou as águas! Joanin foi até a porta e berrou: o cavalo! vai buscar a parteira a cavalo! E foi como se o negro já soubesse e já estivesse em cima do cavalo, que passou na mesma hora na maior disparada, gritando: eia! eia! Ajeitou a mulher na cama, pensou no que devia fazer, mandou a filha mais velha esquentar água, mandou uma outra juntar as toalhas, pediu calma à mulher, meu Deus do céu, pensou, e se fosse praga daquele jagunço, um bom parto pra sua senhora, seu Joanin, dissera o assassino. Tentou acalmar a mulher, ralhou com as filhas para que ficassem quietas e, quando Cidália gritou de novo, contorcendo o corpo, ele viu que aquilo alí, no meio das pernas dela, era a cabeça da criança, só podia ser, madre de Dio, cosa fare?! Cidália suava, mordia os lábios, mas mesmo assim ia dizendo para que ele não ficasse tão nervoso, sossega! dizia, e foi indicando: apara a criança, apara! e ele alí ao pé da cama, segurando os joelhos de Cidália e tendo certeza de que estava fazendo tanta força quanto ela, sofrendo tanto quanto ela, e a cabeça da criança ia e vinha, a mulher se cobria de suor, gritava, a filha mais velha enxugava seu rosto enquanto ela mordia os lábios, os dois pedindo calma um ao outro, ela dizendo: não fica nervoso, não fica nervoso, e ele dizendo: é o quinto filho, Cidália, já vem fácil, colocando as mãos em concha entre as pernas da mulher e achando que agora sim a criança ia saltar de vez como um peixe para fora dágua.

Quando Nego Berto chegou com a parteira enroscada na garupa, encontrou Joanin sentado na cama, chorando, rodeado pelas filhas. Joanin olhou para o negro e disse: um menino, negro safado, um menino! Tu pensou que o velho aqui tava falhado, é? A parteira enxotou Joanin e Nego Berto para o quintal e terminou o serviço: cortou o cordão e cuidou da criança. Joanin foi se sentar debaixo de uma árvore e, sem pensar nas ameaças do jagunço Zé Lara, ficou olhando o mundo em volta como se tudo aquilo, a terra, o céu, o sol, o arroio, o verde claro do milho, o verde escuro do pinhal, fosse a coisa mais linda de se ver. Joanin se virou pra Nego Berto e perguntou: quer ser meu compadre, negro atrevido?

 

NUNCA SE DESCOBRIU como Pedrinho Barbeiro enfiou na cabeça aquela história de fazer uma lista. Podia ser coisa antiga, pois desde pequeno era metido a inventar proezas, segundo atestava o velho Santoro. Mas podia ser idéia que só aparecia na cabeça de um vereador meio maluco. Seja como for, a idéia disparou fuxicos e discussões em todo o sudoeste. Uns a acharam descabida e, outros, diziam que não precisavam de mais papel para empilhar por cima da papelama de contratos e promissórias das companhias e do governo. Os mais esquentados alardearam que o povo da região precisava juntar armas, mesmo que fossem paus e pedras, e, de tocaia em tocaia, mandar aquela jagunçada de volta pros quintos dos infernos, de onde nunca deveria ter saído. Mas não faltou quem achasse graça e risse muito, como presenciou a própria mulher de Pedrinho Barbeiro, ao ouvir a conversa de uns homens que jogavam bocha no armazém de seu Liseu.

— Lista? espantou-se um deles.

— É, lista, disse outro. De abaixo-assinado.

— Pra levar pro presidente?

— No Rio de Janeiro.

Ficaram rindo e um deles, Nego Berto, um negro desabusado que sempre estava por alí espiando o jogo dos outros, se divertiu:

— Esse Pedrinho é ruim da cabeça feito o pai dele!

Maria lembra que num instante estava no meio dos homens, espalhando aos chutes as bolas de bocha, o dedo metido no nariz do negro e de um brancão chamado Rolf.

— Escuta, disse, vocês não acham ele maluco quando vão pedir ajuda, não é?

Até seu Liseu, preocupado, saiu detrás do balcão do armazém e abriu o sorriso dentuço, pedindo calma. É brincadeira, dona Maria, não vê que aqui todo mundo é amigo do Pedrinho? Foi um custo acalmá-la e, só quando chegou em casa e contou o acontecido a Pedrinho — enquanto ele, o peste, dava risada -, se deu conta de que a cabeça ruim era a dela, se metendo no meio dos homens para discutir política.

Pedrinho levou na brincadeira e disse:

— Eu dobro eles, tu vais ver.

E dobrou. Foi de reunião em reunião, não perdeu missa e festa de igreja, andou pelos matos chamando os colonos para conversar. Logo quem falava era só ele. Todos escutavam, aceitando que era mesmo uma grande idéia fazer uma lista de abaixo-assinado para levar ao presidente da república. Pois não era o presidente quem mandava? Não mandava mais do que o governador, que tinha parte com as companhias e permitia aqueles desatinos? E Pedrinho, diante dos olhos arregalados da mulher e da admiração da platéia, arrematava:

— A gente deve falar com quem manda mais.

Mas não demorou para que a lista trouxesse problemas. Antes, os jagunços nem queriam saber o nome dos colonos, quem era esse ou aquele, só queriam mesmo ameaçar, tirar a terra, forçar a assinatura das promissórias e dos contratos. Qualquer um podia ser procurado por eles. Agora, Maria estava certa de que os jagunços queriam era a pele de seu marido. Os desatinos e as ameaças diminuíram — Pedrinho anunciava: viu? é medo! — mas os jagunços estavam era de campana, armando o bote. Começaram a aparecer na bocha, nas festas, ficavam de provocação, buscando pretexto. Maria sentiu: estavam fazendo a lista deles, com os nomes dos que se reuniam e buscavam assinaturas. Pedrinho pelo menos não era louco: deixou de ir ao armazém de seu Liseu, não foi mais a festas sem saber antes quem estava lá e sumia quando aparecia algum jagunço. Não vou dar trela, dizia. E desde então usava os caminhos mais complicados para ir de um lugar a outro, nunca andando por estradas abertas, nunca fazendo o mesmo caminho. Ia pelo meio dos matos, beirando rios, às vezes a cavalo, o mais das vezes a pé. Até correu a lenda de que Pedrinho era de outro mundo, feito o velho Santoro, que tinha fama de sumir de um lugar e aparecer noutro sem que ninguém o encontrasse pelo caminho.

Os jagunços mandavam avisos, foram até a prefeitura deixar recado dizendo que tinham um assunto com ele. Mandou dizer:

— É só vir aqui.

Era por isso que Maria se assustava cada vez mais com as idéias de Pedrinho. Pediu que desistisse da lista. Ele explicou:

— Já tem mais de seiscentas assinaturas.

Ela insistiu que aquilo era perigoso, ele bem sabia que estava bolindo com gente grande, querendo jogar eles contra o presidente.

— E quem garante, perguntou Maria, que o presidente vai ficar do lado dos colonos?

Foi a única vez que Maria viu Pedrinho mordido de raiva:

— Ele é presidente de todo mundo, Maria! Não é que nem governador, que manda só no Paraná. Ele vai pela lei.

— A lei, fez ela, pensando em dizer: essa vale pros grandes.

Ele, não querendo mais briga, abraçou Maria e disse que ela era mesmo uma mulher valente, todo mundo comentava como enfiara o dedo no nariz de Nego Berto e de seu Rolf, lá na bocha. Mas, falando a verdade, ela não entendia de política, que era coisa de homem.

— Em política, disse ele, é assim: quem tem a arma mais forte, ganha. Eu vou falar com o presidente.

Ela ainda insistiu, quis discutir, mas ele, aproveitando que as crianças já estavam dormindo, começou com cócegas, meteu a mão por debaixo do vestido dela, que tentou reagir, fechando as pernas e dizendo que queria conversa séria, parasse com aquilo. Eu também quero conversa séria, disse ele, rindo e apertando seu joelho, onde sentia cócegas. Não, disse ela, não faz. E ele: fala baixo, senão acorda as crianças. E Maria, tentando impedir que ele tirasse sua roupa, acabou rindo também. Tu não tem juízo, disse. E ele: prá quê?

Depois ficaram deitados lado a lado, quietos, por muito tempo, até que ela perguntou:

— Pensando no quê?

— No velho Santoro.

Fazia dias que ele ficava parado, pensando no pai.. Não é pressentimento ruim, dizia, mas... — e Pedrinho travava os dentes — ...e se ele morre de repente? Afinal andava pela casa dos noventa anos, ninguém sabia direito, podia morrer a qualquer hora, não podia? Maria balançou a cabeça e não disse nada. Ela sabia o quanto os dois se gostavam. O velho Santoro adorava contar causos para o filho e Pedrinho se divertia com as louqueiras do pai. Maria ficava com medo daquelas histórias do tempo do monge Zé Maria, da guerra, como dizia Santoro. Foi um tempo bom, de sofrimento, começava dizendo, mas bom porque era um tempo de gente religiosa, pura, temente a Deus e ao Monge. E Santoro saltava para o assunto preferido: a guerra, Pedrinho, nunca se sabe quem ganha uma guerra, nunca se sabe quem deu mais tiros, matou mais gente — alguém é louco de ficar contando? E sabe o motivo? Santoro piscava os olhos miúdos, desaparecidos por debaixo da pele cheia de dobras. Será que sabe? Não sabe. É ainda um piá, mal desgrudou dos cueiros. É por isso, meu filho: uma guerra nunca termina, é coisa que não tem fim. O que tem fim é tiroteio. Tiroteio começa, tiroteia o que pode, mata ou não mata uma porção de gente, acaba. A guerra, não. Tá sempre guerreando. Dum jeito ou doutro. Quando teu falecido avô levou a gente pro sertão, já tinha passado por uma porção de guerras. Lutava com a terra, com os bichos, que aqueles matos de Santa Catarina tinham toda razão de bichos: cobras, onças, jaguatiricas, aranhas. Era a guerra. Teus tios, os falecidos Jovino e Antenor, morreram nessa época. Tua avó também. Só eu e teu avô escapamos. Então, uma guerra não começa, não é? Está sempre. A gente vai ver, já tá metido no meio dela, já luta faz tempo. Depois, veio o Contestado. Nova guerra. Trabalho e reza. Trabalho e guerra. Depois, a guerra de novo, contra os soldados, os que eram da estrada de ferro, o exército, a polícia, todas estas forças do demônio. E depois a guerra continuou. Quantos sertanejos vieram para cá naquele tempo? Ninguém sabe. Ninguém parou pra contar. Mas tem gente feito eu vivendo por aí até hoje. Então, é por isso. A guerra nunca termina, tá sempre guerreando. A guerra é sempre. Também por isso não se sabe quem ganha. Adonde estão aqueles soldados que mataram nossa gente? Continuam soldados? Não. Velhos feito eu, se ainda não foram pro inferno, não são mais soldados, já acabaram aqui ou alí. Mas — e os olhinhos miúdos do velho Santoro faiscavam no rosto enrugado — eu era do mato naquele tempo e continuo do mato. Não mudei. Então, meu filho, te pergunto: quem ganhou?

Maria continuou olhando para o teto do rancho e sentiu orgulho de Pedrinho. Mas era um orgulho misturado com medo. Admirava tudo que Pedrinho fazia, mas tinha medo daquelas manias de guerra, de santos e monges do velho Santoro e temia que aquilo passasse para o filho. Tinha dias que Santoro ficava variando, falando de pessoas mortas há quarenta ou cinqüenta anos, rezando pelos cantos da casa, anunciando a volta do monge Zé Maria. Por isso estremecia quando Pedrinho lembrava das conversas do pai. Era como se a família dele, sempre metida em política, estivesse tomando conta do marido.

— Por que tá pensando nisso? perguntou.

— Não sei.

Ele colocou a mão em seu ventre:

— Não liga. Tô variando feito o velho Santoro.

Mas como não ia ligar? De onde Pedrinho tirava aquelas idéias todas? Como conseguira ficar tão falante, logo ele, que antes só falava de olho baixo? Como fora se meter em política e virar vereador, rodeado de gente que tinha estudo e dinheiro? E essa lista, pensou, querendo falar com o presidente do Brasil? O esquisito é que ela sabia que ele não era feito o pai. Não variava nem tinha manias. Era diferente. Santoro falava sempre em Deus, no Monge, nos santos, no demônio — Pedrinho só entrava em igreja para reunir a colonada, arrumar voto e, agora, as assinaturas para a tal lista. Era de outro jeito: punha umas coisas na cabeça e, até virando malcriado, ia fazendo o que achava certo. "Petulante! Vossa Excelência é um petulante!" ela escutara um dia um vereador enfrentando Pedrinho na câmara, o dedo espetado em sua direção. Maria ficara chocada. Jamais pensara em Pedrinho desse jeito, ele que era quieto, bom com as crianças e com ela. Petulante. Imaginou que Pedrinho fosse baixar a cabeça diante do outro vereador, que era um médico dono de madeireira. Mas não foi assim. Enquanto todo mundo pedia calma, Pedrinho riu e disse: "Vossa Excelência tá pondo os buchos pra fora à toa. Um homem só ameaça quando sabe que perdeu a questão."

Neste dia Maria descobriu um outro homem dentro daquele que julgava conhecer. Daí para a frente, a cada moda que ele inventava, ela acabava rindo: o desgramado é petulante mesmo.

 

ELPÍDIO BELLO SÓ CEDEU NUM PONTO: esperou a criança nascer. Era um menino loiro em cujo rosto Laura temia encontrar os traços feios do pai. Foi batizado como Lauro Firmino Bello e, com duas semanas de vida, enfrentou quinze dias de viagem num carroção. Trouxeram alguns móveis, ferramentas e três cavalos. Já no terceiro dia de viagem ouviram histórias de banditismo no sudoeste. Todos se admiravam com a decisão de Elpídio em continuar a viagem. O que bastava para que ele fincasse ainda mais o pé, querendo chegar logo nas terras do irmão, que de certo precisava de sua ajuda. Ademais, as histórias eram desencontradas. Umas falavam em desgraças, em jagunços e mortes. Outras falavam em terras férteis, em negócios, em ajuda do governo federal. Elpídio Bello alimentava a versão que bem entendia: o diabo nunca é tão feio quanto pintam, dizia.

Restava meio dia de viagem quando Elpídio enxergou ao longe uma casa queimando. Aceleraram o passo. A casa ficava no alto de uma elevação, cercada por árvores, e não havia na redondeza qualquer sinal de gente. Mais de perto, viram que da casa só restavam ruínas em meio à fumaça rala subindo contra o sol. Elpídio pediu que Laura esperasse e disparou a cavalo. Laura ajeitou o cobertor da criança e se pôs de pé sobre a boléia para enxergar melhor. Alguém estava sentado diante dos restos da casa. Elpídio aproximou-se e uma mulher se ergueu fazendo gestos furiosos com os braços, como se quisesse expulsá-lo. Elpídio deve ter dito alguma coisa, pois a mulher parou de se agitar, olhou na direção de Laura e tornou a sentar. Laura cotucou os cavalos e o tranco do carroção acordou a criança. Dorme, filho, dorme, disse ela, e tornou a cotucar os cavalos. Começaram a subir.

Era uma mulher velha. Estava metida num vestido imenso, que poderia abrigar duas mulheres do seu tamanho. A seu lado havia duas fileiras de pedras. Quando o carroção parou, a velha olhou para Laura com o canto dos olhos, torcendo o pescoço, e se virou para o outro lado, buscando um ponto fixo por cima das árvores que cobriam a encosta do morro.

Elpídio se aproximou de Laura:

— Ela não quer falar.

Laura passou a criança a Elpídio e desceu. Só então percebeu os cabelos sujos da mulher.

— A casa era sua, dona?

A velha não respondeu e nem olhou para ela. Continuou mirando por cima dos pés de tangerina que desciam a encosta. Tinha uma pedra enorme na mão direita e, com a esquerda, segurava uma sacola cheia de pedras. A seu redor, as duas filas de pedras. Laura examinou os pés de tangerina, mas nada viu que pudesse ameaçar a velha.

— A gente pode ajudar?

Os olhos da velha faiscaram e suas mãos se fecharam em torno da pedra e da sacola.

— A senhora está machucada?

A velha deu um berro e disparou a correr na direção dos pés de tangerina. Atirou uma pedra e mais outra, que retirou da sacola, sem parar o berreiro. Laura e Elpídio acompanharam a trajetória das pedras e viram dois urubus sustarem a descida, retomando o vôo. A velha atirou outra pedra e seguiu berrando, os braços golpeando o ar, até que os urubus se afastaram e foram pousar na copa de um pinheiro, onde outros urubus estavam empoleirados.

Laura quis dar um passo na direção da velha, mas Elpídio fez um gesto, pedindo que prestasse atenção.

— O cheiro, disse.

Laura cheirou o ar. Dos lados dos pés de tangerina, a brisa trazia o odor podre.

— Gente? perguntou Laura.

— Gente, respondeu Elpídio.

A velha retornou à casa. Dava dois passos, olhava na direção dos urubus, xingava, dava outros dois passos. Não olhou para Laura e nem para Elpídio. Sentou novamente no degrau que sobrara da casa destruída e ajeitou com cuidado suas pedras, repondo aquelas que havia retirado da sacola, sem despregar os olhos da copa do pinheiro, de onde os urubus espreitavam.

— Sua família? perguntou Laura.

A velha rodou a cabeça e examinou Laura com dois olhos mortos.

— Família, disse a velha, voltando a olhar na direção dos urubus.

— O que aconteceu?

— Os demônios.

— Demônios?

— Saíram todos do inferno.

Laura olhou para Elpídio e tomou um susto quando a velha disparou aos berros, apedrejando três urubus que desciam na direção dos pés de tangerina. Um deles fugiu, mas dois chegaram a pousar e, aos pulos, mantinham-se longe do alcance das pedradas. A velha despejou sobre eles todas as pedras da sacola e, depois, de punhos cerrados, os perseguiu encosta abaixo, num berreiro desesperado. Um dos urubus retornou aos pinheiros, mas outro se refugiu a uns cem metros, no pasto. Laura e Elpídio caminharam até onde estava a velha e só então viram os corpos de cinco pessoas estendidos debaixo dos pés de tangerina. Dois adultos e três crianças, contou Elpídio. A velha, exausta, caiu de joelhos, chorando e socando o chão, enquanto o urubu ensaiava uma aproximação. Quando já estava a uns dez metros de um dos corpos, a velha conseguiu se erguer e, praguejando, avançou em sua direção. O urubu levantou vôo.

Elpídio entregou o filho a Laura, apanhou o chicote no carroção e desceu na direção dos corpos. Juntou várias pedras e foi estalando o chicote e jogando pedras até que os urubus abandonaram o pinheiro. Uns pousaram em outra árvore mais distante e dois se puseram a flutuar em círculos sobre os pés de tangerina.

Só então Elpídio olhou os corpos com atenção: um homem, uma mulher, dois meninos e uma menina que não teria três anos. As roupas ensangüentadas. O fedor era insuportável e Elpídio ajudou a velha a retornar encosta acima.

Aos pedaços, a velha foi contando o acontecido para Laura, enquanto Elpídio seguia espantando os urubus.

— Jagunços, disse ela, demônios.

Eles queriam as terras do genro. Atormentavam há meses. Um dia vinha um jipe. Noutro dia, um advogado. Depois, uma tropa de jagunços a cavalo, que ficavam fazendo judiaria com a criação, matando os porcos a tiros de winchester, derrubando o milharal. O genro passava nos matos, escondido, e só entrava em casa quando já era noite. Não podia plantar, não podia viver. Bateram nele duas vezes, uma dentro da bodega, outra aqui mesmo, alí na porteira. Até que ontem vieram dois jipes e mais uns jagunços a cavalo. O genro se escondeu no sótão. Os jagunços apanharam sua neta de quinze anos, fizeram uma roda e começaram a tirar a roupa dela. Era empurrada de um lado para outro. Quando iam jogar a menina no chão e se deitar nela, o genro pulou do sótão dando tiro.

Acertou um jagunço, mas já caíu pro lado varado de bala. E começou a matança. Um por um. A filha, os netos, a menina menor. Primeiro, a filha e a neta serviram aos homens — depois, a filha foi morta a tiros. Os menores foram furados pelo jagunço Sergipe — ele atirou a menina de três anos para o alto e aparou no facão. A velha ficara amarrada ao jipe — não mato gente velha, dissera o jagunço, dá azar — e ela vira tudo, tudo, tudo, repetia com a mão na cabeça. Só deixaram a neta de quinze anos viva. É que precisavam de uma mulher assim, explicaram.

— Levaram ela? perguntou Laura.

— Foi, disse a velha.

Elpídio, cansado de correr de um lado para outro atrás dos urubus, foi ao carroção e apanhou a cano 40 e deu um tiro de espalha chumbo na direção do pinheiro. Um urubu caíu. Os outros desapareceram.

Recarregou a espingarda e ficou de cócoras em frente à velha. Se ofereceu:

— A gente pode ajudar a enterrar seus parentes.

A velha ergueu uma pedra e ameaçou atirá-la em Elpídio:

— Não!

Laura pediu calma.

— Por que não? perguntou Laura.

A velha, sem que Elpídio pudesse se defender, derrubou-o com um chute no joelho — ele virou uma cambalhota e rolou de pernas para o ar. A velha agarrou a espingarda e apontou para Laura e a criança.

— Eu mato a criança! berrou.

— Calma, pediu ele.

— Eles vão voltar, disse a velha.

— Eles, quem? perguntou Laura.

— Os demônios.

Elpídio perguntou:

— Se enterrar, matam sua neta?

— Isso, disse ela. E eles voltam! Voltam sempre! Faz pouco, um deles chegou alí a cavalo. Viu os corpos, me viu. Eu atirei uma pedra nele. Foi embora dando risada, o demo — a velha se agitava de um lado para outro, a espingarda dançando de Elpídio a Laura. — É exemplo, disse o jagunço Sergipe, exemplo. Ele me disse: me chamam Sergipe, dona, e vou saber se enterrou os corpos. Se enterrar, mato a menina. E apontou os pés de tangerina: aqueles vão apodrecer alí mesmo. É exemplo.

A velha não se acalmava e seguia balançando de um lado para outro. Elpídio perguntou:

— Não vai enterrar?

— Não. Mas os urubus não vão comer daquela carne! Eu fico aqui cuidando.

Elpídio explicou que precisavam ir e pediu a espingarda de volta. A velha tornou a apontar na direção da criança.

— Não faça isso! gritou Elpídio.

Ela disse:

— As balas.

— Balas?

— Os cartuchos.

Elpídio foi ao carroção e trouxe a caixa de balas. A velha apanhou a caixa e se afastou. Disse:

— É pros urubus. E pros demônios.

Abriu a caixa, conferiu os cartuchos e sentou no degrau de pedra. Como se já nem pensasse em Elpídio e Laura, ajeitou as fileiras de pedras e conferiu a copa vazia do pinheiro.

Subiram no carroção. Antes de cotucar os cavalos, Elpídio perguntou:

— Quer ajuda da cidade?

A velha não respondeu. Talvez nem escutasse. Acompanhou a descida do carroção com o canto dos olhos e continuou vigiando os urubus.

 

A RESPOSTA DE NEGO BERTO foi sair pelo terreiro dançando feito louco, abraçado à filha mais nova de Joanin, Irene, enguizando umas palavras que não eram nem português, nem alemão, nem italiano, que estas Joanin reconheceria. Pára de macumba, negro! gritou Joanin, abraçado com a filha mais velha, Marlene, refestelando-se de encontro à parede da casa, rindo, olhando o negro naquela dança maluca de macumbeiro, escutando a risada alegre de Irene, pensando: ê! mundo bom, Deus do céu, era bem a hora de aprontarem uma festa, uma churrascada, e comemorar aquele filho homem pelo qual tanto esperara. Ia fazer a maior de todas as festas do sudoeste, não tivesse ele a fama de dançarino e bom gaiteiro, só perdendo mesmo para Eleutério Bello, que aquele era mais barulhento e maluco do que ele. Até padre Aníbal pedia a sua ajuda nas festas da igreja, embora ralhasse com ele, um católico guapeca, que só aparecia na igreja para festejo. Ah, se o padre soubesse que ele misturava as orações, iniciando a reza no Padre Nosso e, a meio caminho, engatando na Ave Maria. Pois ia mesmo fazer uma festança dos diabos, pensou, vendo Nego Berto cair no chão, rolar e fazer folia com Irene enquanto dona Maria Parteira gritava lá de dentro: me arruma outra toalha, Irene! Joanin mandou que Marlene fosse levar a toalha e perguntou: que tal uma festança neste sábado, negro? Nego Berto sorriu cheio de dentes e continuou rolando no chão, Irene fazendo cócegas.

Joanin espichou as pernas, jogou as mãos para trás da cabeça, fartou-se de olhar em volta, correu os olhos pela plantação de milho, ouviu com atenção o fuçar dos porcos, examinou a horta, o pasto, o pontilhão, e, distantes, os pinheiros enegrecendo o pé do morro. Aquilo tudo era mato fechado quando pusera os pés alí pela primeria vez. Viera sozinho e deixara, por obrigação e desejo, o noivado já feito, as festas previstas, o casamento com data certa lá em Santa Catarina. Mas só traria Cidália quanto tudo já estivesse no seu lugar. O povoado mais perto era um armazém cercado por meia dúzia de ranchos, a estrada era feia e enlameada. Veio até as terras que a colonizadora do governo lhe indicara e olhou tudo como se estivessem bolindo com ele: será mesmo que ia ter posse daquilo? Nem queria acreditar. Trouxe o documento enfiado dentro das calças, o mesmo documento que teve vontade de empurrar goela abaixo daquele corretor ensovacado, o tal de advogado. Quando chegou ao armazém, chovia muito e conheceu novos amigos: seu Liseu, o dono do armazém, homenzinho miúdo, alegre, com dois dentinhos saltados sobre os dentes de baixo e que até hoje acompanhava Joanin nos desafios de viola. E conhecera aquele negro bandido, Nego Berto, que estava roncando a um canto, sujo, bêbado, babando num saco de aniagem. Seu Liseu lhe serviu comida, uma pratada de brodo com pão, falou das terras, disse que alí era o fim do mundo e brincou: mais dez léguas e é só uma grota sem fim, vai dar nos infernos. Mas eram terras boas, logo viraria uma beleza, não fora por outro motivo que deixara tudo para trás e se estabelecera alí, vendendo fumo, açúcar, sal, cachaça, ferramentas, rádio e fogão a lenha. E minhas terras? perguntou Joanin, observando que, lá no canto, o negro fungava e se mexia de um lado para outro. Se entendi onde seja, explicou seu Liseu, são boas. Sorriu e fez saltarem os dois dentinhos de rato. Amanhã o senhor vai ver. Ia ver. Não podia esperar mais. Não fosse a chuva e a noite, iria agora mesmo. Nervoso, se distraíu escolhendo o que precisava comprar. Enxada, pá, machado, charque.

Quando já ia dormir — num quartinho dos fundos, preparado por seu Liseu — o negro resmungou forte, se mexeu, rolou no chão, se coçou, e disse umas palavras esquisitas. E esse? perguntou Joanin. Tá bêbado? Seu Liseu balançou a cabeça: esse é um negro vagabundo, vive bêbado por aí, não tem paradeiro. Como se houvesse escutado a conversa, o negro acordou, fez força para abrir os olhos, mirou Joanin com espanto, feito quem acorda em lugar desconhecido. Esfregou a cara e disse:

— Buenas!

— Buenas, respondeu Joanin, achando graça naquele cumprimento de gringo na boca de um negro.

Ele se levantou, examinou Joanin de alto a baixo e perguntou:

— Que mal le pergunte, vem de onde?

— Lajes.

— Huuum, fez o negro, e emendou: E vai pra onde?

— Pois vou ficar por aqui mesmo.

— Huuum, fez novamente o negro, limpando um resto de baba que lhe escorria pelo canto da boca.

Era alto e forte, daria um bom trabalhador, pensou Joanin, sem atinar qual o motivo de sua simpatia pelo patife, já esquecido das recomendações de seu Liseu: negro vagabundo. Bom sujeito, mas vagabundo.

— Como te chamas?

— Nego Berto — disse o negro — Seu criado e nego folgado... — a dentuça do negro brilhou no sorriso moleque.

— Tens trabalho?

— Íh, doutor, nessas bandas tem serviço não.

— Sacramenha! seu Liseu revirou os olhos e foi ajeitando uns copos em cima do balcão.

O negro não se deu por achado:

— Carrego umas coisas pro seu Liseu, faço carretos, corto lenha, é só o que tem.

Seu Liseu não se agüentou:

— Quando não tá bêbado, caído por aí.

— Êpa! fez o negro, não me ponha mal com o doutor, amigo.

— Que doutor! reclamou Joanin, achando que aquele negro era um sujeito divertido — Meu nome é Joanin, quer dizer, me chamam desse jeito.

Nego Berto fez uma cara de espanto:

— É alemão, né? — e despencou numa gargalhada.

— É, fez Joanin. Alemão com polenta. Mas olha, quero saber uma coisa: queres trabalho?

— Ah! Mas se quero!

Apalavraram um contrato alí mesmo, entre exageros e brincadeiras, acompanhados pelas advertências de seu Liseu: vai ter sarna pra se coçar!

O negro ajudaria a abrir o mato, a limpar a terra, a erguer o rancho. Depois, se ia ver. Quem sabe pudesse trabalhar na roça e na criação quando Joanin voltasse casado lá de Lages?

— Casado?!

O negro ficou eufórico e disse que, aquela sim, era uma notícia para ser comemorada com um gole de pinga.

O dia seguinte amanheceu cinzento e caía uma chuvinha miúda, destas que não terminam nunca, o que era de costume naquela época, explicou seu Liseu. Juntaram as ferramentas, os alimentos, encilharam os cavalos e saíram bem cedo, pois seu Joanin não agüentava esperar mais. Seu Liseu explicou onde ficava. Nego Berto ouviu com atenção, não entendeu, pediu que explicasse novamente — até que bateu na testa e exclamou: ah, mas lá tem um córgo! Já sabia, podiam ir. A metade do caminho seguiram por uma trilha que, segundo seu Liseu, ia dar nos fundos da serraria onde trabalhava o Alemão. Depois de hora e meia, abandonaram a estradinha e tomaram uma picada à esquerda, que os levou ao topo do morro. Daí desceram em direção a um vale no fundo do qual corria um arroio. Tá lá o córgo! explodiu Nego Berto. A descida era pelo meio do mato fechado e precisaram dar muitas voltas, abrindo caminho a facão, puxando os cavalos. Até que o mato se abriu e estavam em pleno vale. O sol já ia a prumo e Nego Berto girou os braços nas quatro direções dos ventos:

— É aqui nossa casa, seu Joanin.

Joanin pensou: negro atrevido. E, olhando nas direções apontadas pelos braços do negro, disse:

— Madona, que belo lugar!

O negro ouviu e concordou: belo lugar. Seu Joanin caminhou uns trinta metros, divisou melhor o limite do mato rasteiro em torno do arroio, e começou a imaginar o que ia fazer: a casa cairia certinha antes do pé do morro, logo alí onde começava a altear. Pro lado direito, na direção do riacho, poria a criação; mais atrás, onde o vale se abria, a roça, o milho, o feijão. Viu brotarem naquele mesmo instante a cerca, a casa, o pontilhão, o curral, tudo do jeito que imaginava. Nego Berto, se afastou, foi até o córrego, catou uma vareta e ficou batendo com ela no ar. Joanin pensou em Cidália. Ia ser bonito aquela moça loirinha, muito branca, com aqueles olhos azuis, caminhando pelo meio daquela terra, ajudando, cuidando, pisando o mato rasteiro, criando os filhos, Joanin correndo atrás dela, os dois caindo no chão, se abraçando, tirando a roupa, que não haveria viva alma a léguas de distância. E ficariam alí, sob o céu e o sol, e ele iria afinal descobrir como eram as pernas de Cidália, como seria seu ventre, seus seios, de que cor, de que cheiro, de que gosto. Cruzou os braços, sorriu, abraçou a si mesmo de tanta alegria, e foi então que Nego Berto berrou lá do córrego:

— Ei, seu Joanin! Tem lambari no córgo!

Joanin pensou: pra deixar Cidália nua naquelas terras, teria que dar um sumiço naquele negro metido.

— Tem o quê? perguntou.

— Lambari!

Disparou a correr na direção do córrego, gritando:

— É o paraíso, negro, o paraíso!

 

MIGUEL E ANTERO MONTARAM NOS CAVALOS e desceram na direção da cidade. Tomaram um atalho emaranhado pelo meio das árvores que só Antero podia distinguir naquela escuridão. Miguel se irritava com aquelas cautelas, mas não conseguia evitá-las. No início, tentou se convencer de que tudo aquilo era apenas para apaziguar as aflições de Amanda — e só por isso se submetia às normas daquele homem soturno e de fidelidade canina que agora ia a sua frente. Mas, quando sofreu a primeira tocaia, entendeu que a brincadeira era pra valer. Por isso desciam a cavalo pelo meio do mato, já que o jipe, dizia Antero, era um alvo fácil, ainda mais naquela descida cheia de curvas e buracos — bastaria jogarem uma tora no meio da estrada e estariam perdidos. "Ele entende de tocaias, Miguel", dissera Amanda, encerrando a conversa. Aceitou. Agora, gostaria de estar fumando o cigarro de palha que acabara de preparar — e sua cabeça talvez deixasse aos poucos de pensar na trabalheira do dia, na enfiada de mortos e doentes, na tensão em que viviam. Mas Antero advertia: fumar nesta escuridão é pedir para morrer. Estaria oferecendo a cabeça à mira de algum jagunço campanado por alí. Por isso não fumava, por isso haviam escolhido cavalos e roupas escuras, por isso escondiam o rosto entre as golas erguidas do casaco. E não falavam, o que deveria ser um alívio para Antero, homem de poucas palavras.

Lá em baixo, algumas luzes situavam a cidade na escuridão. Miguel sentiu o medo de sempre. Um medo que o circundava como se fosse um outro corpo que iniciasse nos limites do seu e se ampliasse naquela grande massa negra que o envolvia. Se esticasse a mão, talvez pudesse segurar uma nesga de escuridão entre os dedos. Talvez, de um momento para outro, o cavalo esbarrasse na escuridão como numa parede. Ou, quem sabe, no próximo passo o cavalo caísse num abismo sem fundo. Miguel fechou os olhos, tentando eliminar de sua mente o peso daquela massa negra. Bobagem. Sacudiu a cabeça. Abriu os olhos e buscou o vulto de Antero — o recorte negro do chapéu contrastava com as luzes distantes. Cada um tem seu modo de enfrentar o medo, pensou. Ele costumava reagir com estas fantasias doidas ou com as brincadeiras que irritavam seus adversários e deixavam Amanda em pânico.

Precisava destas pequenas ironias para lidar com o medo, a doença e a morte. Mas a morte na qual pensava neste momento não era aquela que via estampada no rosto dos doentes desenganados. Para esta ele estava preparado: tratava-se de algo previsível, ao menos explicável. Para enfrentá-la, dispunha de um aparato científico-militar: com ele conseguia domesticar as misérias humanas — hospital, equipe médica, tratados de medicina, drogas, bisturi, um conjunto estratégico cuja maior valia estava, não em vencer a dor e a morte, mas em criar um universo dentro do qual ela se tornava dócil: tinha nomes técnicos, explicações racionais, conselhos preventivos e só acontecia ao cabo de uma sucessão de fatos que na maioria dos casos podia ser controlada. Diante desta morte hospitalar se sentia onipotente, enfiado na pele de um guerreiro, alimentando a fantasia de que travava um combate entre iguais.

Não era esta a morte que agora o rondava, uma coisa brutal e inexplicável, que poderia de súbito explodir a saudável cabeça de um colono como o clarão que fulmina a cabeça de um fósforo. Manoel Tenente, por exemplo. Resistiu aos advogados, aos funcionários das companhias, aos jagunços. Andou batendo de porta em porta na tentativa de arregimentar colonos — queria que entrassem com uma ação coletiva contra as companhias. Um belo dia, Manoel Tenente está indo para a missa em sua carroça enfeitada. Os cavalos estão empenachados, a mulher e os filhos conversam e riem, os sapatos dominicais — que só seriam calçados ao entrarem na igreja — estão depositados no fundo da carroça, quando um tiro, um só tiro, foi disparado da beira da estrada e Manoel Tenente caiu de cabeça entre as patas dos cavalos. O corpo travou a carroça, a mulher e os filhos ficaram apalermados, esperando outro tiro, esperando cair sobre eles uma tropa de jagunços, esperando talvez que Manoel se erguesse dizendo que era só brincadeira — esperando, enfim, algo que fizesse sentido. Mas nada disso aconteceu.

Era a morte, pensou Miguel, apenas a morte. Não a morte científica, aquela contra a qual a medicina o preparara para lutar. Os colonos diziam: morreu feito cão. Numa tocaia, um tiro estoura os miolos de alguém. É só. A morte sem enfeites. Sem especulações ou grandezas. A morte.

Suspirou: Amanda tinha todos os motivos para viver aflita. E não só ela. Sabia de colonos que viviam escondidos nos matos, nos sótãos, enterrados vivos nos porões das casas. Não era só ele que temia que no próximo passo o cavalo fosse despencar num abismo. O mesmo temor estava nos modos estudados com que Antero vigiava a escuridão, no latido dos cãos, no susto de Amanda, nos apelos de irmã Tereza, nos olhos abobalhados de Tonho, nas brincadeiras que ele fazia. Mas Miguel aprendera outra coisa naquele inferno em que se transformara o sudoeste: o medo nada tinha a ver com a coragem de cada um deles. O perigo era um elemento de suas vidas — eles apenas o registravam, cada um a seu modo. Quando Miguel sofreu a primeira tentativa de chantagem — o silêncio em troca de vários alqueires de terras férteis às margens do Iguaçu — fora Amanda quem dissera: agora a gente não pode mais recuar. E ele respondera à tentativa de chantagem com um pronunciamento lido na rádio Colméia, denunciando as companhias e o governador. Não me calarão, repetia a cada frase. As ameaças, os jagunços, as mortes — não me calarão. O sofrimento imposto ao povo do sudoeste, as arbitrariedades, a prepotência dos poderosos — não me calarão. Mas faltou pouco, pensa agora, rindo. Três dias após, escapou de uma tocaia por pura sorte — ou teria sido o faro animal de Antero, que desviara o jipe alguns segundos antes? Desde então, os poderes de Antero se ampliaram, sob a aprovação de Amanda. Era o medo que os colocava de pé a cada dia.

Por isso Miguel gostava de brincar. De outro modo não suportaria. Ainda assim, advertia a todos, recomendava cautela, todo cuidado é pouco, dissera há dois dias ao teimoso do Pedrinho Barbeiro. Pedrinho não o levara a sério. Devia ter pedido à Amanda para falar com este cabeça dura, pensou. Quando Pedrinho se despediu, garantindo que a lista de assinaturas ia fazer com que o presidente ficasse ao lado dos colonos, Miguel sentou num banco do corredor do hospital e ficou imaginando que era isso mesmo, essa era a ordem das coisas. Ele cuidaria dos doentes e feridos, Tonho traria e levaria recados, Antero vigiaria os jagunços, Pedrinho Barbeiro continuaria correndo os matos em busca de mais assinaturas — era assim que iriam resistir. Pouco importava o resto, os jipes amarelos cheios de jagunços, as violências, as mortes, nada. Na próxima vez que aparecesse um colono espancado, ele recomendaria que dessem queixa à polícia. O colono diria que já falara com o delegado, que pouco se importara. E Miguel novamente poderia imaginar o cinismo do delegado Piva, explicando com sua magreza diabólica: isso é terra de gente braba, meu filho, por qualquer coisa puxam o gatilho, matam, isso acontece. Como é que vou pegar estes cabras se eles somem mato adentro?

Já estavam ao pé do morro e Miguel identificava alguns contornos da cidade. A praça com o obelisco, o casarão da rádio, a igreja. Logo sairiam daquele emaranhado de árvores e Miguel se sentiu aliviado. Enfiou mecanicamente a mão no bolso, mas reteve o gesto a tempo: não podia fumar, nem um mísero cigarro de papel. Ainda não. Acariciou o maço de cigarros e lembrou de seu avô, homem grande e brincalhão, que o erguia no colo e perguntava: então, tu já tem barba, bambino? tem barba? Deixa eu te passar um pouco de barba — e esfregava a cara áspera no rosto do menino, que se arrepiava e ria muito. Neste momento o cavalo de Antero deu um solavanco — é agora, pensou Miguel — e algo se mexeu no meio das árvores.

— Êêêê! fez Antero, controlando o cavalo e apontando a winchester.

— Que foi, Antero?

— Nada, doutor. Uma cobra.

Miguel sentiu o corpo arriar sobre a sela. Não fora a morte. Ainda não.

 

NÃO FAZIA MEIA HORA QUE HAVIAM DEIXADO A VELHA com seus mortos e seus urubus, quando Elpídio e Laura avistaram uma nuvem de poeira descendo em direção ao vale.

— Gente a cavalo, disse ele.

Fez sinal para que a mulher apanhasse o punhal e conferiu o tambor do revólver: seis balas. Lembrou da espingarda perdida e amaldiçoou:

— Velha dos diabos!

Laura abraçou o filho, cobrindo-o com a manta e, na mão direita, junto às costas da criança, segurou o punhal.

— Se perguntarem, a gente não viu a velha, disse Elpídio.

Laura suspirou:

— Santo Deus!

— Deixa Deus em paz, mulher!

A nuvem de poeira cresceu e eles calcularam que seriam uns dez homens a cavalo. Pararam o carroção e Elpídio Bello, com o revólver engatilhado por debaixo do poncho, se plantou em frente à parelha de cavalos. Os cavaleiros vieram em disparada, mas, a uns trinta metros, pararam. Eram sete. Só um deles avançou, a trote.

— Buenas, disse.

— Buenas, respondeu Elpídio.

— O amigo vem de onde?

— Rio Grande.

O homem sorriu e ergueu a mão. Os outros avançaram lentamente.

— Vindo morar na região?

— Sim.

— Tem terras?

Elpídio grudou os olhos no homem e ajeitou o revólver por baixo do poncho: mirou na cabeça. Disse:

— Que mal le pergunte, quem é o amigo?

O homem riu.

— Desculpe. Meu nome é Deonísio Possenti. Estes — o homem apontou para os outros seis — são meus vizinhos. Nos disseram que a casa de Pedro Saldanha foi atacada, estamos indo para lá.

Elpídio Bello respirou fundo e desengatilhou o revólver. Ouviu o soluço de Laura às suas costas.

— Foi um susto, disse.

— O amigo desculpe — o homem inclinou a cabeça.

— Está desculpado, disse Elpídio, guardando o revólver na cartucheira. Deu um passo na direção do homem, que desceu do cavalo, e explicou: Acho que essa família que estão procurando foi morta. Se é uma família de cinco ou seis, mais uma velha.

Deonísio Possenti olhou em direção ao sul, como se pudesse ver a casa de Pedro Saldanha, e perguntou:

— Vocês viram?

— Todos mortos, menos a velha. E uma menina que foi levada.

Os outros homens desceram dos cavalos.

— A velha, explicou Elpídio, diz que não pode enterrar os mortos. Ficou lá espantando os urubus.

Deonísio Possenti andou de um lado para outro, olhou novamente em direção ao sul, bateu com a bota no chão. Depois se apoiou na carroça e foi explicando: eles estavam cuidando da entrada na gleba, pois os jagunços fizeram uma tranqueira antes do Verê e não deixavam nenhum colono entrar sem a assinatura de contrato e promissórias. Era o trabalho que tinham agora: guardar a chegada dos colonos e cuidar para que pudessem entrar na gleba por outro caminho.

Elpídio Bello não desfez a cara de brabo, mas pensou que era de ficar meio tonto. Gleba, promissórias, tranqueira, contrato, jagunços, mortes. Que diabo estava acontecendo?

Deonísio perguntou:

— O amigo já tem terras?

Elpídio hesitou:

— Bem... as terras de meu irmão. A gente vai dividir a colônia com ele.

— E fica onde?

— No Verê. Meu irmão se chama Eleutério Bello.

O homem levou um choque. Olhou para os companheiros, baixou a cabeça.

Laura perguntou:

— O que houve?

Deonísio Possenti não tirou os olhos do chão:

— A casa dele também foi atacada.

Elpídio Bello aproximou-se:

— Fala, homem!

— Todos mortos, disse Deonísio Possenti.

Mais uma vez Laura não teve tempo para sofrer. Abraçou a criança, protegendo-a, e preocupou-se com Elpídio. Viu se armar a carranca de dor e tentou alcançá-lo com o braço, mas ele se afastou uns dez passos, e ficou de cabeça dura, olhando o horizonte. Laura dobrou-se sobre o filho e chorou. Meu Deus, pediu ela, faça com que Elpídio chore.

Os homens não sabiam o que fazer. Um deles se afastou e ficou remexendo na rédea do cavalo. Outro tirou o chapéu. Deonísio Possenti caminhou até onde estava Elpídio e disse:

— Seu irmão era um grande amigo. Homem de coragem. Não tinha medo dos jagunços.

Elpídio Bello não mexia um só músculo.

— Vou mandar três homens, disse Deonísio Possenti, acudirem a velha e enterrar os mortos. Eu levo o amigo até o Verê.

Deonísio aproximou-se do carroção e disse para Laura:

— Quer me passar a criança?

Laura entregou o filho e correu até Elpídio. Abraçou-se a ele e pediu:

— Chora! Chora!

Elpídio perguntou a Deonísio Possenti:

— Quem fez isso?

— Os jagunços.

— Sabe o nome deles?

— Não. Mas a gente descobre.

Elpídio lembrou-se da velha com os urubus e pensou: os demônios.

 

O CAVALO NEGACEOU.

— Eia, coisa ruim!

Era o quinto dia de viagem e o animal fraquejava. Índio acariciou seu pescoço e golpeou forte na ilharga.

— Eia!

O cavalo se afastou da trilha que vinha seguindo há várias horas e subiu o barranco. De lado, trocando as pernas, mas subiu.

Índio ergueu a aba do chapéu. Na medida em que se aproximava do alto do barranco, o céu se abria para os lados e caía por detrás do horizonte negro formado pelo pinhal. O cavalo hesitou. Índio repetiu o carinho no pescoço do animal e deu novo golpe na ilharga.

Lá estava a cidade. Tanto barulho, pensou, por causa de uma porcaria destas. Eram umas dez ruas que se cruzavam entre terrenos cheios de mato. Casas, ranchos, galpões. Praça, igreja, hospital. O rio corria no fundo do vale e, além dele, ficava o quartel do exército. Índio podia ver tudo de uma só mirada e parecia possível estender a mão e nela apanhar a cidade inteira, fechando-a no punho cerrado. Um jipe sacolejou ao atravessar a ponte e subiu a rua principal: veio jorrando poeira, cruzou a praça e sumiu por detrás da igreja. Na praça, alguns cavalos e três homens.

O sol batia forte nas costas de Índio, escaldando a capa negra e projetando sua sombra morro abaixo, até se perder no ar, contra a cidade. Acariciou novamente o pescoço do cavalo e apeou.

Pensou: não devia ter vindo. Se tivesse juízo, teria atravessado o sudoeste e retornado ao Paraguai, se metendo de novo com os gringos, começando outra vida. Não gostava dos gringos, mas eles não faziam perguntas e o deixavam em paz. Mas viera.

Ficou de cócoras e abriu o palheiro com destreza, alisando-o entre o indicador e o polegar. Perdeu um bom tempo naquele trabalho paciente, cortou o fumo e o ajeitou na palha. Olhou o negrume do pinhal no horizonte e lembrou das bochechas balofas do Dr. Rabello dizendo, entusiasmado: tudo somado, daria um milhão de pinheiros adultos.

Riscou o isqueiro de pedra e acendeu o cigarro. A cabeça continuou derivando. Um rabo de saia e cachaça demais, isso põe um homem a perder, dissera Nemésio. Olhara para o amigo sem saber se ria ou se metia a mão nos cornos do bobalhão. Ficou com pena. Sujeito estropiado por dois tiros no ombro, Nemésio tinha o braço direito murcho, dependurado ao longo do corpo, balançando sem controle. Parecia uma trouxa mal recheada. Nemésio lhe dissera aquilo na noite anterior a sua fuga. Com mulher de doutor a gente não deve se meter, falou baixinho. O diabo é que são estas que têm aquela coceirinha mais forte no meio das pernas, Nemésio. Riu e soltou uma baforada de fumaça contra a cidade. Pobre Nemésio. Viera correndo, quase sem fôlego, o braço bobo largado de um lado para outro: os homens vão te pegar, jurava.

Pegaram nada, pensou Índio, deixando o olhar se perder por detrás da cidade, além do rio, pelos pinhais, que pareciam a sombra de sua capa projetada pelo sol. Tragou e sentiu o calor da fumaça aquecer a garganta, o peito. Pegam merda nenhuma, pensou. Não era a primeira e nem seria a última vez que ficaria jurado de morte por causa de mulher de doutor. Não tinha culpa. Eles são ricos, tomam banho todo dia, fazem a barba, mas acabam roliços que nem capado. Aquelas barrigas estufadas, aquelas bundinhas cheias, a cara balofa. Que culpa tinha se as mulheres queriam conhecer um homem de verdade? Nemésio não respondia, ria um pouco, tu é doido mesmo, dizia — não queria dar corda, não concordava com aquelas idéias. Elas fazem assim, Nemésio. Num dia precisam de um cavalo encilhado, noutro é pra ajudar a mudar os móveis de lugar, noutro precisam consertar a caixa d'água — até que pedem companhia para visitar a fazenda a cavalo. Pronto. Nemésio balançava a cabeça. Pois le digo: até no Paraguai é assim. As gringas são direitinho que nem as brasileiras, sabia?

Nemésio não queria saber. Advertia, ralhava, fazia cara feia. Índio jogou o cigarro longe, morro abaixo. Levantou-se, caminhou até o cavalo, passou a mão no seu focinho, falou com ele:

— Descansado, sujeito?

Cinco dias de viagem, sempre pelas beiradas mais íngremes, pelos costões dos morros, beiras de ribeirão, buscando lugares onde não haveria de encontrar um só vivente. No terceiro dia, viu que precisava trocar de cavalo, mas achou perigoso buscar um povoado. Preferiu dar meio-dia de descanso ao animal. Se atrasaria, mas sem risco de abandonar o amigo, pensou, batendo no dorso do animal. Além de Nemésio, aquele era o único amigo. O cavalo, a capa, o revólver, a winchester. O resto não importava. Montou no cavalo e fez:

— Eia!

O cavalo desceu o morro. De lado, escorregando, temeroso. Talvez também sentisse medo daquela cidade e do que poderiam encontrar. Mas Índio sabia que alí ficaria livre de perseguições. Poderia se ajeitar, se tivesse juízo ganharia um bom dinheiro fazendo algum serviço, nestes lugares sempre há quem queira mandar alguém para o inferno antes da hora. Depois, iria para a Argentina. Para o Paraguai, não. Terra pobre, miserável, viveu por lá no meio de um bando de gente que não tinha onde cair morto. Juntaria dinheiro e iria para a Argentina. Enquanto isso, ficaria uns tempos acoitado por alí, no sudoeste, no meio da jagunçada, até chegar a hora de partir, ou... Sentiu um arrepio e lembrou da feiticeira índia lhe dizendo: o filho tem missão, tem obrigação. Não sabia qual, nem onde — mas desde que a velha índia lhe dissera aquilo, não esqueceu mais: uma obrigação. A cara grande de Zé Lara apareceu diante de seus olhos. Que jeito ele teria hoje? Calculou: seis anos, talvez sete anos depois. Fez um esforço para esquecer Zé Lara e lembrou novamente da velha índia. Sentado numa banqueta no meio do casebre imundo, ele olhava a dança da feiticeira, que jogava cinza num círculo a sua volta, rezando numa língua que diziam ser de bugre. Quando ele chegou, a velha teve um ataque e caíu no chão, se debatendo. Depois, ela se recuperou, ficou de pé. Com as mãos estendidas, se retorcia a sua frente, fazendo reverência.

— Homem forte, dizia ela, homem forte.

Ele não entendeu. Agora, lá estava ela dançando a seu redor, soltando palavras de bugre e uns gemidos esquisitos. Índio, enojado com o cheiro de fezes e de urina que emporcalhava o casebre, sentiu uma coisa esquisita no corpo, frio ou sono, não sabe, talvez medo, e amaldiçoou Nemésio, que inventara aquilo de se benzer e fechar o corpo.

— Deixa a velha cuidar do filho, disse ela, passando a mão pelas suas costas e pelos seus braços.

Índio viu que o sono aumentava, foi esquecendo a raiva de Nemésio, o fedor de podre, suas pálpebras quase se fecharam — e ficou ouvindo a espécie de zumbido que a velha fazia. De quando em quando, ela batia com as mãos no ar e estalava os dedos:

— Arreda! Arreda!

Foi lá no fundo do casebre e voltou com uma cordinha feita de cipó na qual estavam dependuradas algumas pedras e um dente humano. A velha benzeu o colar, colocando-o no pescoço de Índio:

— Pronto, filho. Fica sempre com o colar. A velha fez tudo.

— Tô de corpo fechado, velha?

Ela disse:

— Filho tem obrigação.

Índio quis falar, ia perguntar de novo se estava de corpo fechado, como prometera Nemésio, mas a velha ergueu a mão pedindo silêncio:

— O filho tem que sair daqui. Ir pra longe.

— Pra onde?

— O filho vai saber.

A velha fez um longo silêncio, enrugou ainda mais o rosto encarquilhado e, depois, foi falando muito lentamente, marcando o ritmo com a mão direita, como se tirasse cada palavra de algum canto muito escuro de sua cabeça. Os olhos e as sobrancelhas da velha se encheram de rugas.

Ela disse:

— O filho vai ver um sinal. Se entender bem, o filho se salva.

Dito isso, a velha pareceu se transformar noutra pessoa. A sua espinha se dobrou e ela se retorceu toda. A cara arrogante e os olhos de louca se esvaziaram e no lugar da velha feiticeira surgiu uma mulher murcha, pálida, de olhos mortos — e muito mais velha. Índio lhe deu um dinheiro e disparou a cavalo. Queria estar bem longe dali.

— Faz o que ela disse, insistiu Nemésio. Tem coisa que a gente não entende mesmo.

— Faço o quê? Nem sei o que ela disse.

— Nunca tira este colar. E reza.

— Rezar?

— É, rezar. Pai Nosso, Ave Maria. Já ouviu falar?

— Eu não sei rezar, porra!

— Eu também não sabia mais. Aprendi de volta.

Índio se irritou:

— E adiantou?

Nemésio também olhou para o braço murcho dependurado junto a seu corpo. Resmungou, com ódio:

— Isso foi antes de falar com a velha.

Sentindo que ferira o amigo, Índio bateu com a mão aberta na própria cara e pediu, a custo:

— Desculpa.

— Tá bem.

— Eu faço o que a velha mandou.

Deu um dinheiro a Nemésio, bateu no chapéu e disparou a galope. Nem olhou para trás. Por causa dum rabo de saia, ralhara Nemésio. Índio pensou: é, mas que rabo! e golpeou forte na ilharga do animal, que aumentou a disparada. Mais uma fuga. Agora, viveria nos matos, cada vez mais perto do fim do mundo.

Até descobrir o sinal.

 

JOANIN E NEGO BERTO COMEÇARAM A TRABALHAR DURO. Derrubaram mato, cortaram árvores, foram catar cipó e palha — e naquela noite dormiram abrigados numa palhoça baixa, na qual entravam agachados. Joanin ficou surpreso com Nego Berto, que não correspondia à fama de vagabundo que lhe pregara seu Liseu. O negro suava, estalava os beiços, lutava com o machado a golpes duros, como se estivesse resolvendo uma questão pessoal — advertia a madeira: te güenta, peste! e descia o machado. Parava uns instantes para correr o antebraço pela testa suada e reclamava: puta calor, seu Joanin! E tornava ao trabalho. Joanin conhecera uns sujeitos parecidos com Nego Berto, meio pancadas e fortes como um cavalo. O diabo é que, não se sabia o motivo, de hora pra outra eles murchavam, sumiam, não querendo mais trabalhar. Mas aquele negro parecia ter forças para mais um par de dias de trabalho pesado.

Ergueram a palhoça, limparam o terreno onde Joanin pensava erguer a casa, passaram um pontilhão de duas toras por cima do arroio. E, no quinto dia, Joanin acordou e não viu o negro por perto. Pensou: o negro fujão me deixou sozinho neste fim de mundo. Joanin desceu ao arroio, berrou o nome do negro de um lado para outro, se convenceu: estava sozinho. Jurou que pegaria aquele negro safado para lhe lascar uma surra. Voltou para a palhoça rogando praga e passou o resto do dia imaginando como faria, sozinho, o caminho de volta. Foi dormir exausto e com fome, pensando em ir até a bodega de seu Liseu na manhã seguinte — caso achasse o caminho — para contratar outro peão. Que não fosse nem negro nem beberrão.

Acordou com a gargalhada do negro:

— Ei! Seu Joanin!

O negro se debruçava sobre ele, cotucando seu peito com um graveto.

— Acorda, seu Joanin!

Disparou o dedo em riste, pronto para passar uma esculhambação no negro. Mas, do lado de fora da palhoça, deu com outro negro montado a cavalo. Ele tirou o chapéu e cumprimentou:

— Bons dias, seu Joanin.

Devolveu o cumprimento com os olhos quase fechados, protegendo-se do sol que batia de frente:

— Bons dias, disse.

Nego Berto brincou:

— Então achou que o negro fujão não ia voltar, não é?

Joanin não disse nada. Esfregou a cara com força, espantando o sono. Depois, provocou:

— Nego atrevido!

Nego Berto riu:

— Esse aí no cavalo trabalha na serraria. É o Alemão.

Joanin conferiu a cara do negro que estava a cavalo. Saiu da palhoça e deu uns três passos para o lado, escapando à cegueira provocada pelo sol. Fez cara de quem já não suportava as brincadeiras de Nego Berto:

— Alemão? Com essa cara?

— É, confirmou Nego Berto. Alemão.

Joanin examinou o cavaleiro — de tão negro parecia azulado, rebrilhando ao sol -, que desandou numa gargalhada e apeou. Disse, estendendo a mão para Joanin:

— Não estranhe. Me chamam assim mesmo. Alemão.

Joanin quis saber:

— Mas Alemão aonde?

— Bom — o negro era magro, alto, elegante, e se explicou com um sorriso alegre: fui pracinha, compreende, expedicionário. Como lutei com os alemães, virei Alemão.

Joanin balançou a cabeça — a gente vê de tudo nessa encrenca de vida, resmungou — e pediu desculpas:

— Pensei que esse negro safado estivesse mangando comigo de novo.

— Qué isso, seu Joanin!? Eu não sou de fazer brincadeira, reclamou Nego Berto, abrindo o sorriso maroto e mostrando todos os dentes.

Depois de acertarem a compra da madeira com Alemão, e depois que o pessoal da colonizadora veio fazer a demarcação, Joanin achou que tudo ia ser mais fácil. Era mesmo o paraíso. Só faltava trabalhar, plantar, e eles iriam progredir na terra. Pela primeira vez, sentia uma alegria por completo, por dentro, pensando que a vida duraria para sempre. Ele e Cidália, os filhos que teriam, os filhos dos filhos, os netos dos filhos, até não acabar mais. Era terra de fartura e de gente boa. Um dia chegaria alí no alto do morro trazendo Cidália na garupa e ela veria aquele paraíso.

O Alemão trouxe a madeira — Deus sabe como, pelo meio daquele mato -, foram comprar prego, martelo, serrote e pua no armazém de seu Liseu, além de uma garrafa de pinga, a pedido de Nego Berto, com a garantia de que ela duraria duas semanas.

Erguido o primeiro rancho em poucos dias. Três meses depois, com a casa — quarto, sala, cozinha, varanda — já pronta, trouxe Cidália. Nego Berto foi recebê-los em frente ao armazém de seu Liseu com uma carroça toda enfeitada — a carroça era do Alemão — e ele e Cidália vieram pela nova trilha que haviam aberto a facão e foice. Só que o negro quis pular na carroça e ir junto com os noivos. Seu Joanin teve que expulsá-lo. Deu a ele uns trocados e disse: uma semana de férias, negro, fica por conta. O negro ficou brabo, não quis receber o dinheiro. Seu Liseu recebeu, dizendo que iria mesmo parar em suas mãos, em troca de comida e pinga, enquanto Nego Berto reclamava: então não me querem, não é? Não me querem por perto, não é? Seu Joanin, lá da carroça, disse: te quero daqui a uma semana. Se apareceres por lá antes disso, te corro a tiro. Chicoteou o ar e os cavalos avançaram pela trilha.

Joanin abraçou Cidália e pensou: agora o paraíso estava completo e, porco Dío!, o sudoeste não era aquela desgraceira que pintavam seus parentes e os parentes da mulher. Quando da primeira viagem, tantas lhe puseram na cabeça, que imaginou que iria enfrentar floresta fechada, onças, bugres, um pistoleiro por detrás de cada toco. Mas não foi nada disso: encontrou terra boa, fácil, grande, e amigos como seu Liseu, Nego Berto, Alemão. Essa era a verdadeira vida de um homem, ia pensando, abraçado à noiva, e já imaginando como seriam aquele corpo branco e aqueles olhos verdes quando ele a deitasse à beira do arroio numa noite de luar. Como seria amá-la junto à terra, sentir o cheiro de seus cabelos misturados ao cheiro do mato, descobrir em seu corpo o sabor de todos os frutos — e ter filhos com ela, ver os filhos de seus filhos, ficar velhinho ao lado de Cidália e, ainda assim, fugirem os dois para a beira do arroio para que novamente a lua prateasse seus corpos. Essa era a verdadeira vida de um homem, repetiu muitas vezes durante aquela semana, fosse antes de dormir ou quando sentava no primeiro degrau da porta da casa e ficava tomando chimarrão, olhando ao longe sem prestar atenção em nada e se coçando sem parar, mania antiga que nem os ralhos de Cidália conseguiram que abandonasse. Parece macaco, dizia ela. A vida, pensava, essa era a vida, esse trabalho brabo, essa coisa de imaginar a casa, juntar a madeira, erguer a casa, imaginar a roça, lutar com a terra, isso era a vida. Bendita hora, pensou, ouvindo o choro do recém-nascido vindo lá de dentro, enquanto Nego Berto relinchava e fazia cavalinho para Irene. Bendita a hora em que viera para o sudoeste. A vida. O negro afinal se rendeu e disse para Irene: o cavalinho não agüenta mais. Mais, pediu Irene. Nada disso, fez o negro, tô velho pra estas folias. Mais, insistiu Irene. A vida, pensou Joanin. Irene entrou em casa meio chorosa e Nego Berto veio sentar-se a seu lado. Com cara de malandro, perguntou, feliz da vida:

— Que mal le pergunte, compadre, como vai se chamar o meu afilhadinho?

Joanin, sem ter pensado no assunto, respondeu na bucha:

— Alberto.

Desta vez o negro deu tantas cambalhotas malucas que Joanin temeu que quebrasse o pescoço.

 

ANTERO ENTROU PELOS FUNDOS DO COLÉGIO — evitava passar em frente à pensão dos jagunços, que ficava do outro lado da praça. Miguel protestou, embora soubesse inútil:

— Exagero, Antero!

— Perigo é perigo, doutor. Quanto mais longe a gente deixa ele, melhor.

— Mas sem exageros.

Antero encerrou a conversa:

— Me cuido pra morrer de velho, doutor.

Miguel interrompeu mais uma vez o gesto com o qual pegaria um cigarro e esfregou o rosto para espantar a irritação. Lembrou da conversa que tivera com padre Cirilo, há poucos dias.

— Três pês — dissera ao padre, a quem costumava assustar com piadas mais ou menos inofensivas — Eu sou uma mistura de três pês, como todo médico de interior: padre, pai, profeta.

Padre Cirilo balançara a cabeça e, num resmungo, recusara resposta àquela bobagem com ares de heresia.

— Isso — Miguel continuou a provocação — me dá mais autoridade do que o Papa. Afinal, ele só tem dois pês.

— Não brinque, doutor.

— Padre, se não faço uma piadinha aqui e alí, caio morto de medo.

— Pois eu lhe digo que está brincando com fogo. Um fogo pior do que o fogo do inferno. Fogo de carabina.

— Cuidado, padre, isso pode ser uma heresia.

O padre não considerou a provocação.

— Eu vou a muitos lugares, disse, ouço muitas histórias. A mim as pessoas contam coisas que não dizem a ninguém. Por isso conheço tão bem os donos destas terras e os colonos. E sei que o senhor está se expondo a grave perigo.

Miguel preferiu não brincar:

— Sei disso. Só não concordo com o senhor num ponto: os donos destas terras, padre, são os colonos.

O padre balançou a batina negra para os lados, esfregou as mãos várias vezes.

— Bem, doutor. Isso não é tão simples, o senhor mesmo sabe. E eu não sou político para tomar partido nestas disputas. Eu cuido das almas. Propriedade é coisa com que não me meto. Mas juízo não faz mal a ninguém. A verdade é que as companhias têm os títulos, não têm?

— Não. E se tivessem, seriam ilegais.

— Que seja, que seja. Já conversamos sobre isso, jamais chegaremos a um acordo, doutor — o padre passou o braço pelos ombros de Miguel e quase implorou que o escutasse — Veja, legais ou ilegais os títulos, isso não impede que te acertem um tiro, não é verdade? Não impede que os colonos venham a morrer inutilmente num confronto com estes homens aí, — apontou o queixo na direção da pensão — os tais jagunços. Ter a lei do teu lado não te transforma em imortal.

— Ora, padre Cirilo. — Miguel retornou ao tom brincalhão para não correr o risco de brigar com o padre — Logo o senhor! Um cristão! Não são bem-aventurados os que têm sede de justiça?

Foi a vez de padre Cirilo brincar:

— Pois é. Deles será o reino dos céus — e sublinhou — Dos céus.

Precisava admitir que o padre tinha lá seu senso de humor e alguma sabedoria. E estava certo num ponto: todos corriam perigo. Não só ele, Miguel, mas os colonos, as famílias, as crianças, Zé Miro, Pedrinho Barbeiro, Amanda, até os cães — talvez o único a não correr perigo fosse padre Cirilo. Mas todos sabiam que estava havendo abuso e crime. A questão era: que atitude tomar? Ou, como dizia Zé Miro: não há questão legal das terras, há roubalheira de um lado e, do outro, cagaço. As companhias matam e roubam e os outros ficam como cagaço. E Zé Miro arrematava: ou acabamos com o cagaço ou os jagunços acabam com os colonos. Zé Miro, aliás, considerava padre Cirilo o campeão do cagaço.

— Não deves sair à noite, meu filho — dizia ele — Não deves andar sozinho. Muito cuidado.

— Isso — perguntou Miguel — quer dizer que alguém vai me matar?

— Isso quer dizer o que tu ouviste: cuidado. Essa gente chegou à conclusão de que tu és o culpado de tudo que acontece de agitação por aqui. Tu, esse desbocado do Zé Miro, o Gaúcho metido a valente, aquele louco do Eleutério Bello, o ingênuo do Pedrinho Barbeiro. Eles acham que tu e teus partidários...

— ...somos todos comunistas? Separatistas? Adeptos de Moscou e do Estado do Iguaçu? Ora, padre, isso tudo é bobagem. Esses aí que o senhor citou são amigos meus, nem somos do mesmo partido. E por aqui ninguém sabe o que é comunismo.

— Sei, sei. É bobagem. Mas é o que eles pensam.

— E quem são eles, padre?

O padre sacudiu a irritada mão de colono diante de seu rosto e ralhou:

— Tu sabes muito bem, não me aborrece.

Como dizia Antero, perigo é perigo. Depois da conversa com o padre, Miguel ficou sem saber se ele lhe passara uma preocupação ou um recado. Os padres, dizia Zé Miro, deles só sabemos que estão do lado de dentro da batina.

Dias após essa conversa, Miguel recebeu outro recado, agora mais direto, sem os volteios cuidadosos de uma batina. Foi num encontro com o delegado Piva, em frente à prefeitura — e Miguel, sem atinar com o motivo, achava que não fora um encontro casual. Piva era um tipo esperto e ressecado, alto, a quem parecia faltar alguma junta de molejo no esqueleto. Tenso e nervoso, guardava, porém, um sorriso permanente no rosto.

— Gostaria de ter uma palavrinha com o senhor, doutor.

O delegado o conduziu para a frente da prefeitura.

— O doutor me desculpe, mas tenho que lhe passar um recado.

Miguel pensou em dizer: o senhor leva jeito para moleque de recado, mas se conteve. Se dissesse alguma coisa, o outro travaria a língua. Calado, poderia saber mais e meter um pouco de medo no delegado, que era conhecido pela brutalidade e covardia. Aliás, ele já procurara Miguel uma vez e, em tom de gozação, perguntara se era verdadeira a sua fama de bom atirador, treinado por Antero. Corria a notícia de que era homem de acertar passarinho em pleno vôo e de furar moeda jogada para o alto. Miguel estava quase certo de que o boato fora espalhado pelo próprio Antero, que, no entanto, não confirmou nem desmentiu: resmungou que espalhar boato não era do seu feitio.

— Sabe, doutor — disse o delegado, sorrindo o mesmo sorriso mecânico de sempre — todos nós andamos muito preocupados com o senhor. Essa região está agitada, tem gente morrendo à toa. Muita coisa acontece por esses grotões e nem se fica sabendo. Quer dizer, a gente acha que pode acontecer alguma coisa com o senhor, que é um homem bom, bom médico, mas, me desculpe, um pouco ingênuo no caso da política.

Piva continuou sorrindo. Esperou passar um homem vestido de negro que os cumprimentou batendo com a mão no chapéu. O homem entrou na prefeitura.

— O senhor não merece nenhuma violência, é um homem no qual o povo confia e do qual o povo precisa, não é? Aliás, um homem que nem tem pretensões de se meter em política, pelo que dizem, embora muita gente duvide. Mas, a verdade é que ficando mais uns dois anos na região, o doutor fica rico, junta o dinheiro e vai trabalhar na capital, como todos fazem. Não é?

Miguel sustentou a postura fria:

— Não é.

O esqueleto rijo de Piva se desconcertou

— Bem, delegado, o que o senhor está querendo me dizer?

O delegado afinou o sorriso.

— Pois quero lhe dizer que o senhor deve se cuidar. Tratar dos doentes, não se meter com reuniões e partidos, esquecer de aconselhar os colonos. Tem gente que não está gostando disso.

Era quase a mesma frase de padre Cirilo, pensou Miguel — e perguntou:

— E quem não está gostando?

O delegado tentou sacolejar o corpo numa risada de descaso, mas não conseguiu. Desenhou no rosto um sorriso de piedade.

— O senhor sabe. Gente que gosta do senhor e que não quer que nada de mal lhe aconteça.

— Só isso? perguntou Miguel.

Piva não respondeu. Sacudiu os ombros, como se encaixasse algum osso desconjuntado e afinal apagou o sorriso da cara.

— Pois o amigo, disse Miguel, veio trazer um recado e vai levar outro. Diga a quem mandou me dizer estas coisas que, se algo me acontecer, a culpa é de vocês todos — e não dos jagunços, que são pau mandado. Feito este cabra de preto que entrou na prefeitura agora há pouco. E, o amigo sabe, eu sou um homem de sorte. Provável que o bandido que vier me atirar leve uma bala antes. E a bala seguinte eu vou meter na sua testa, delegado.

Piva deu um passo para trás.

— Que é isso, doutor?! Sou seu amigo, só quero lhe deixar avisado.

— Sei. Mas tem mais. Se eu for morto, já tenho dois cabras contratados para matar vocês todos. Dei a eles o nome de cada um num papelzinho, para não haver erro. Não apontei, que é como vocês fazem.

— O senhor não pode...

— Posso, sim. O senhor, delegado, é que deveria pensar no tipo de gente que anda protegendo.

Miguel bateu uma continência marota e deixou o delegado plantado em frente à prefeitura, já de posse de seu sorriso mecânico. Não olhou para trás, ao contrário dos conselhos de Antero.

— Tu pensas que isso aqui é filme de mocinho, é?

Amanda ficou furiosa quando soube da façanha. E quis saber:

— O Antero e o Juvenal?

— O quê? perguntou ele.

— Os dois que estão com os nomes anotados.

Ele riu e fez um carinho no rosto da mulher.

— Tudo mentira, Amanda. Dei papelzinho pra ninguém.

— Tu és maluco mesmo!

Não era maluco. Apenas não suportava conviver com o medo de receber um tiro a qualquer momento. A morte tem destas exigências: vamos morrer, mas é preciso ir em frente como se fôssemos imortais, senão a vida fica insuportável. Não tentariam matá-lo — só queriam lhe dar um susto. Afinal, precisavam vencer as próximas eleições.

Chegaram ao colégio. Deixaram os cavalos ao lado do portão e entraram pela cozinha. Irmã Tereza vinha pelo corredor carregando uma bacia com água.

— Por que demoraram tanto? perguntou.

Miguel abriu os braços e apontou Antero, que retirou o chapéu diante da freira e pediu:

— A sua benção, irmã.

— Deus te abençôe, disse ela.

— Como está o homem? quis saber Miguel.

A freira indicou a porta do quarto:

— Nunca vi coisa mais horrível.

 

DEONÍSIO POSSENTI DISSE: não só eles, mas toda a redondeza, gente que asvez nem se sabia como, eram todos amigos de Eleutério Bello. Mal chegou, foi fazendo amizade, foi fazendo negócio com todos, sempre tinha um causo para contar, ajudava, conversava, dava conselhos que ficavam esquisitos ditos por ele, que era meio moleque, sempre inventando mais festas do que podia freqüentar. Era por conta daquele jeito brincalhão que todo mundo gostava dele. E logo nele os jagunços tomaram assinatura. É que tinha coragem, não mandava dizer, dizia, não se dobrava. Vieram com as conversas de sempre, assinar promissórias, contratos, depois ofereceram para que trabalhasse para as companhias, depois tocaram de cercar a casa, apareciam várias vezes por dia. Levavam um saco de milho, de feijão, um porquinho, quando Eleutério não estava. Diziam: depois a gente acerta. Eleutério ia engolindo tudo, sem ceder. Discutiu com os funcionários das companhias, encarou os jagunços, pediu providências ao delegado Piva, levou uma comissão de colonos à prefeitura, foi falar com o juiz. Nada. E ele seguia dizendo: não vamos perder a paciência nem fazer besteira. Bandido, dizia, a gente dobra devagar, sem mostrar medo e sem atiçar — só na precisão. Os jagunços retornavam: o jipe espetado pelas armas. Depois da comissão que foi à prefeitura, não deram mais descanso a Eleutério. Quiseram lhe dar uma surra, mas ele sumiu a tempo, deixando um recado: da próxima vez não ia fugir, receberia os jagunços a bala. Passou muitos dias escondido no mato, sem que se soubesse por onde andava. Quando caía a noite, voltava, sempre em hora diferente, e vinha comer o brodo com polenta que a mulher deixava no fogão. Antes do sol nascer, sumia de novo, levando um tanto de farinha e de pão. Os jagunços retornavam, ficavam campanados alí por perto. Revistavam a casa, furiosos se descobriam sinais de que Eleutério passara por alí, ameaçavam violentar a mulher, bater nos filhos, passavam a noite ao pé da porta. Eleutério não aparecia por causa do sinal combinado, um pano de prato na janela da cozinha. E os jagunços ficavam nisso: iam e vinham, ameaçavam. Não queriam a família, queriam Eleutério. Ele mesmo dizia: querem o meu couro. E continuou fazendo reuniões com os colonos. De dois ou três, no máximo uns cinco, que era perigoso. Mandava recado, a reunião era marcada pro anoitecer, no mato, sempre perto da casa de um deles. Ele se divertia dizendo que só faltava sanfona nas reuniões. Todo mundo preocupado, ele aparecia dando risada, nem semelhava que estava com a vida jurada e vivendo feito bicho caçado. Explicava os pontos que pensara, dizia que ficar nos matos até que era bom pra botar a cabeça em ordem, ria dizendo que não entendia como os bichos não pensavam. Ou pensavam?

Os jagunços continuavam acampados por perto. Eleutério foi o primeiro a ver uma metralhadora nas mãos de um jagunço, em Pato Branco. Estão armados até os dentes, a gente não pode se meter a valentão, dizia. São assassinos acobertados pela polícia e pelas autoridades, só ganhamos essa guerra se tivermos muito juízo e ficar todo mundo junto. Por isso ficou entusiasmado quando se falou no Pedrinho Barbeiro, que anda por aí até hoje juntando um abaixo assinado pro presidente da república. Eleutério marcou um encontro e disse: essa idéia é boa. Conhecia Pedrinho de passagem, os dois gostavam de festejo e churrasco, quis falar com ele. Se encontraram dias depois, Pedrinho achando que ele já ficara tempo demais nos matos, era preciso sair, mas primeiro protegendo a família. Eleutério recusou. Andava conhecendo muita gente, andar escondido também podia ser um trabalho importante, podia até ajuntar mais assinaturas para o abaixo-assinado. Pedrinho deu a ele algumas folhas de papel almaço e ele, quando foi encontrado morto, tinha para mais de cem assinaturas no bolso.

Foi nesse tempo que o delegado Piva apareceu pela primeira vez na casa de Eleutério. Veio com jagunços, uns três, e meia dúzia de polícia amarela. O delegado explicou à mulher: Eleutério precisa se entregar, não adianta fugir. E ela: e o que ele fez doutor? Não matou, não roubou, nada. E o delegado: fez agitação, minha senhora, anda pondo caraminholas na cabeça dos colonos. E lugar de baderneiro é na cadeia. Esse é o recado que a senhora deve de dar pro seu marido. Ela não tremeu. Disse: meu marido é trabalhador, seu delegado, e ao invés de perseguir um trabalhador, o senhor devia mesmo é combater essa raça de jagunço que vive judiando do povo. O delegado Piva ficou vermelho, mordeu o sorriso irônico e fechou os punhos. Antes de voltar ao jipe, disse: acho bom a senhora não discutir e dar o recado. Ele que se entregue se quer ficar vivo.

Até o dia em que mataram Manoel Tenente. Eleutério mandou chamar a gente:

— Agora, chega. Não adianta eu viver escondido feito bicho, isso não vai acabar nunca. Eles querem é o meu couro, não é? Só que vai ser duro me esfolar.

E não fugiu mais pro mato. Se armou, deixava sempre a casa fechada e ia pra roça como quem vai pra guerra: de winchester na mão. Que viessem os jagunços, dizia. Foi ao juiz e avisou: estou lá na minha terra com a família, trabalhando. E tem gente querendo me pegar. Se alguma coisa me acontecer, o senhor é culpado, seu juiz, pois o delegado e o prefeito, todo mundo sabe, estão do lado dos jagunços. O juiz, foi Eleutério mesmo quem me contou, não era desonesto não, nem era do lado das companhias — só era cagão. Ficou suando frio, gaguejou, passou um lenço na cara, perguntou a Eleutério se não seria melhor ir embora, trocar de terra, pro norte já não tinha mais destas brigas. Ou que fizesse o acerto com as companhias para proteger a família. Custava assinar as promissórias? Eleutério perguntou: e eu vou pagar outra vez pelo que já é meu, doutor? O juiz ficou se coçando e aconselhou que ele continuasse escondido no mato, quem sabe aquela questão se resolvia na justiça? Isso Eleutério não fez. Ficou em casa, trabalhando na terra e os jagunços não apareceram mais. Vinham, se informavam na bodega, iam embora. A gente pensando que eles iam descer numa meia dúzia para dar fim de Eleutério e nada. Só Eleutério não achava covardia: eles vão aprontar alguma.

Dias depois, estavam reunidos na bodega de seu Liseu, jogando bocha. Foi quando os jagunços apontaram em três jipes. Cada jipe mais parecia um porco espinho: as espingardas espetadas para cima. Eleutério foi pro fundo da bodega, cobriu a cabeça com um chapéu, fingiu dormir sobre a mesa. Continuaram jogando bocha. Os jagunços desceram dos jipes, ficaram lá fazendo poses, e um deles, o mais tinhoso, tal de Maringá, veio anunciando que iam acabar com a raça de um, era bom todos saberem que os valentes que cruzaram com ele estavam todos debaixo de sete palmos de terra.

Maringá encostou no balcão e perguntou pra seu Liseu:

— Tem vindo aqui um filho de uma égua chamado Eleutério?

Seu Liseu serviu a cachaça e mostrou os dentinhos da frente.

— Tá rindo de quê? quis saber Maringá.

Seu Liseu explicou:

— Tô rindo não — e continuou com os dentinhos risonhos do lado de fora da boca.

Maringá virou a cachaça, bateu com o copo no balcão e disse:

— Então, cara de rato, sabe do tal de Eleutério?

— Não, senhor.

— Ele não aparece por aqui?

— Asvez.

— Veio quando?

— Faz tempo.

O dentinho risonho de seu Liseu continuava do lado de fora, mas dava para ver o suor escorrendo de sua testa.

— Faz tempo, repetiu Maringá. Quer dizer que o amigo, além de ter cara de rato, é um cabra mentiroso, não é?

Seu Liseu, assustado, abriu ainda mais o sorriso.

— Pois olhe uma coisa, seu Liseu, eu conheço cada passo do amigo e sei que anda dando cobertura pro tal de Eleutério, ouviu bem?

— Não é verdade, disse seu Liseu.

— Não minta, seu rato!

Maringá suspendeu seu Liseu pelo colarinho e o puxou por cima do balcão:

— Onde vocês escondem aquele cretino?

— Eu não sei.

— Como não sabe?! Onde ele se esconde?

— Não sei.

— Sabe!

— Nos mato.

— Nos mato, é? E come capim? E dorme dentro do rio?

Maringá largou seu Liseu, sacou do revólver e ficou examinando em volta.

— Eu sei — falava para todo mundo ouvir, mesmo quem estava lá na bocha — que o tal de Eleutério saiu dos matos, que ele está no rancho dele, que anda por aí. Mas tem sempre quem o proteja. Pois vou dizer o seguinte: quem proteger esse cabra, é meu inimigo jurado. Entendido?

Maringá apontou o revólver para seu Liseu:

— E tu, seu rato, bem que eu devia te meter uma bala na cara pra colocar estes dentes no lugar.

Foi quando se ouviu o ronco vindo do fundo da bodega. Um ronco forte, engasgado. Maringá olhou o sujeito jogado por cima da mesa, a cabeça apoiada nos braços cruzados, ao lado da garrafa de pinga.

— Quem é aquele? perguntou.

— Tá bêbado, disse seu Liseu.

Os que estavam na bocha vieram grudar a cara nas janelas. Maringá disse:

— Acordem esse puto!

Dois jagunços se aproximaram dando risada e puxaram o pé da mesa. Entre a queda da mesa e as risadas dos jagunços, o revólver de Eleutério queimou todas as balas. Os dois jagunços caíram para trás, furados no peito, e Maringá, segurando o braço baleado, berrou de dor, rolando no chão. Antes que os outros jagunços entrassem na bodega para acudir, Eleutério se jogou pela janela, caiu no barranco e despencou no mundo.

Os jagunços acudiram Maringá e carregaram os dois mortos. Antes de ser colocado no jipe, Maringá gritou:

— Vocês me pagam!

Mas já não havia ninguém na bodega ou na bocha para ouvir.

 

O TERCEIRO HOMEM veio quando o pequeno Alberto já estava com quatro meses e Nego Berto se fartava de andar com ele no colo de um lado para outro, mostrando tudo que havia pela frente e explicando cada coisa que julgava importante um menino aprender: como se trata das vacas, como se tira o leite, como se corta a ração dos animais, como se limpa a horta, como se faz para tirar do rio uma água limpinha feito água de fonte. A criança olhava o negro com os olhinhos meio fechados, mexia as mãos, sorria, e o negro conferia, feliz: tá aprendendo tudo, né?, vai ser um sabido! Cidália ralhava: pára de andar com o menino no colo, vicia, depois quem cuida dele sou eu. É só me chamar, dizia o negro. Era verdade. Quando a criança chorava à noite, o primeiro a acordar era Nego Berto. Num instante estava de pé na porta do quarto com uma vela em punho, tentando manter abertos os olhos grudados. Quer ajuda, dona Cidália? Não carece, Alberto. A única pessoa a chamá-lo de Alberto. No começo o negro gostou, achou uma honraria, ficou até sentido com o resto das pessoas que ignoravam seu nome. Mas depois passou a ser apenas uma maneira de dona Cidália. Ela era assim: mais reservada, mais sisuda, não dava intimidades a ninguém. Alberto. Agora, que o afilhado tinha seu nome, o tratamento tornava a parecer uma honraria: era como se fosse um filho, alguém da família. Era o outro Alberto, o padrinho do pequeno Alberto. E quando o menino arranjou a primeira disenteria, foi Nego Berto que ficou a seu lado três noites seguidas, dando chazinho, trocando fralda, sem pregar o olho. A senhora pode descansar, dizia para Cidália, que não se agüentava em pé. E ficou com o menino no colo a noite inteira, cantando numa língua de macumba e acariciando a barriguinha do afilhado. Seu Joanin olhava o negro, achava que havia acertado na escolha do compadre, ninguém poderia ser mais carinhoso com seu filho. Ainda assim, inventava de dizer, só para chatear: não vai me ensinar língua de macumba pro menino! Nego Berto saía pelo quintal, dizia: faz que nem escuta, Alberto. Joanin gostava sempre mais do negro — e também gostava cada vez mais do seu filho, das suas filhas, de Cidália. O paraíso, pensava. Quanto ao negro, fazia questão de levá-lo a toda parte, apresentando-o como da família, pois já estava cheio daquela gente que torcia o nariz para o fato de ser amigo e compadre de um negro. Quando o assunto aparecia, Joanin virava bicho e, socando para todos os lados, encerrava a questão: italianada de merda! Pensam que são melhores do que um negro! Bando de cu cagado!

Mas quando o terceiro homem apareceu não foi possível saber como ele se parecia. Nem se era um só homem. Nem mesmo se era homem, bicho ou fera. Foi uma semana depois de matarem Manoel Tenente, primo de seu Liseu. Manoel era brabo, brigão, tinha os dentes de seu Liseu, saltados e sempre dando um risinho bobo, só que nele, talvez pela cara mais larga, talvez pelo vinco da queixada dura, talvez pelo nariz grosso e enorme, os dentes saltados davam ao sorriso um ar assustador, como se Manoel Tenente fosse virar lobisomem. Mas ele só era brabo mesmo quando bebia ou quando mexiam muito com ele no jogo de bocha, pois não gostava de perder. De resto, era caladão, trabalhador, tão calado e trabalhador que só casara já meio passado, depois da vida feita. Um primeiro homem tinha ido lá no seu sítio com as mesmas conversas e papéis, um segundo fez as mesmas ameaças e Manoel Tenente o recebeu de peito aberto, enquanto sua mulher e seus filhos, armados com a espingarda de caça, cercaram o que ficara no jipe. O homem teve que colocar a cola no meio das pernas. Mas avisou: a gente volta! Manoel revidou: volta e morre! Bêbado e falador, Manoel contou esta história no armazém do primo num dia em que todos estavam lá: Joanin, Nego Berto, Alemão. Tu não tem medo, Manoel? quis saber seu Joanin. Bêbado, não tinha medo de nada. Medo? Toco a fuzil o primeiro que aparecer dessa raça de jagunço!

Tocou mesmo, mas perdeu a criação — abatida a tiros de winchester. Dias depois, um tambor de gasolina rolou morro abaixo, incendiando o paiol. Daí em diante, Manoel passou a dormir no armazém do primo, só indo às suas terras para trabalhar, deixando a mulher e os filhos sob proteção. A vida virou um inferno. Quem sabe para manter a valentia, passou a beber cada vez mais e já não tinha paciência com a mulher, a filharada e mesmo com os amigos. Ficava bebendo em silêncio, num canto do armazém, resmungando que não queria jogar bocha, que merda! reclamava com os olhos enfiados nocopo de pinga, sob o olhar preocupado do primo Liseu, a única pessoa a quem atendia quando estava de porre. Lá pelas tantas, se punha a contar aos gritos como correra com os jagunços ou então saía porta afora atirando para os lados, jurando que vira um jagunço campanado por alí. Até que, num domingo, quando ia com a família para a igreja, levou um tiro na cabeça.

Seu Liseu recolheu os pertences da família do primo, deu um dinheiro para a mulher e mandou que fossem se proteger longe dali, perto de Barracão, onde ele tinha um irmão. Joanin emprestou a carroça, dirigida por Nego Berto, e a mulher e as crianças partiram. Seu Liseu, com sua carinha de rato alegre, deu então para ficar sisudo, os olhos parados nas gretas do assoalho de tábuas largas e, Joanin foi descobrir, andava agora acompanhado por duas espingardas que deixava enrustidas atrás do balcão. Foi então que ele virou amigo de Eleutério Bello e começou a participar das reuniões dos colonos.

E quando o terceiro homem chegou, a salvação de Joanin e de sua família foi o cachorro Leão, que Nego Berto achara na rua e trouxera para viver com eles fazia um tempo. O cão disparou a latir e acordou todo mundo. Não teve sorte: foi atravessado por uma bala e morto alí mesmo, em cima do mata-burro, no momento em que avançava na direção do jipe. Ainda bem que os jagunços, — era o que Joanin pensava, — não tinham vindo para matar, mas só para dar um susto e criar confusão. Abriram o potreiro, atiraram para cima, soltaram os animais, mataram os porcos. Quando Joanin abriu a folha da janela e deu o primeiro tiro, o ronco do jipe já sumira na escuridão.

 

PARADO NO ALTO DO MORRO, O CAVALEIRO parecia sair de dentro do sol e o cavalo era uma mancha escura que mal se agüentava sobre as pernas. É seu Bideca, pensou Gaúcho. O jipe sacolejou e ele segurou o tranco do volante: eia, tordilho! Seu Bideca se afastou da estradinha para dar passagem ao jipe e Gaúcho ergueu a mão:

— Oi, vivente!

Dois dentinhos magros e solitários se mostraram no sorriso do cavaleiro e o cavalo deixou pender a cabeça de uma forma preocupante, derretendo ao sol.

— Oi! respondeu seu Bideca, custando a erguer o braço.

Gaúcho deu com a mão e se agarrou ao volante. O jipe, na estradinha esburacada, era um tordilho brabo, guri xucro, parecia gente teimosa. Olhou para trás: lá continuava seu Bideca, de certo mascando os dois dentinhos. Se o cavalo não tomasse a iniciativa, passaria alí o resto do dia, olhando para coisa nenhuma com a mesma cara de bode embarcado.

Gaúcho se divertia, mas tinha pena de homens como seu Bideca, caboclo perdido naqueles matos, só com uma casinha velha, caindo aos pedaços, e sem a mulher, morta há dois anos. Os filhos estavam espalhados pelo mundo: um no Verê, outro em Barracão, outro não se sabia onde. A terra era pouca, seu Bideca foi ficando cada vez mais pobre, os filhos foram embora. Uma vez explicara a Gaúcho: fui vendendo a posse, trocando por revólver, por um par de botas, uns porquinhos ou junta de boi, acabei vindo cada vez mais pros matos, perdi tudo. E cavava fundo na memória em busca de algo de que pudesse se orgulhar: sabe que meu avô foi o primeiro nestas terras? Veio do Contestado junto com o velho Santoro. Dizia que por aqui só existia três espécies de bicho: ele, o velho Santoro e as onças.

A buraqueira da estrada jogou o jipe de um lado para outro. Pior se houvesse chovido. Controlou o sacolejo do volante e lembrou de Matilde: logo chove, não vais vender nada naquele fim de mundo.

— Vou, sim.

Já gastara dois dias na casa das mulheres, quase virando um prisioneiro do quarto de Matilde, era hora de partir. Beijou o pescoço dela e subiu as mãos pelas suas pernas, fazendo cócegas.

— Pára!

— Não páro.

No quarto ao lado, Angélica bateu na parede e debochou:

— Vamos acabar com essa pouca vergonha!

Gaúcho segurou o rosto de Matilde e pensou como seria bom ficar por alí mais uns dias. Beijou-a de leve e disse:

— Preciso ir. O Domício pensa que já estou voltando.

— Vai chover, ameaçou ela.

— Chuva é bom prá lavoura, riu ele.

— O jipe vai atolar.

— Não vai.

Quando saíram do quarto, Angélica estava no corredor:

— Não se cansam, não?

Ele deu um tapa na bunda de Angélica:

— Tá com inveja, beleza?

Angélica mostrou a língua e Matilde apertou ainda mais o abraço.

— Vai mesmo?

— Preciso.

Tomaram chimarrão na cozinha, enquanto Angélica contava a respeito da confusão havida na noite anterior: um jagunço, bêbado, ameaçou derrubar a casa se Gracinha não fosse pra cama com ele.

— Deus me livre, ele babava! — Gracinha fez cara de nojo.

Gaúcho provocou.

— Paixão antiga.

Angélica rebateu:

— Não te mete, que na hora da confusão, tu não saiu do quarto pra segurar o homem!

— E eu lá sou de segurar homem!

— Bobo.

Matilde enroscou ainda mais a cabeça no ombro de Gaúcho e Gracinha debochou: que amores...

Ficaria alí o dia inteiro, o mês inteiro, a vida inteira. Sentado ao lado do fogão, Gaúcho sentia preguiça ao olhar, além da janela, o pasto velado pela neblina. Ficaria o ano inteiro, a vida inteira. Mas não podia. Precisava aproveitar o tempo seco e percorrer aqueles buracos de fim de mundo, vendendo suas coisas, fazendo entregas e tirando pedidos. O destino. Senão, acamparia alí mesmo, passaria o resto da vida enrodilhado em Matilde. Deu um beijo em cada uma das mulheres e Matilde o acompanhou até o jipe.

— Volta quando?

— Qualquer hora.

— Não é jeito de responder! ralhou.

— No sábado, mentiu.

— Olha lá, fico esperando.

Ele acenou para Gracinha e Angélica, que continuavam fazendo micagens lá da porta da cozinha, gozando os apaixonados. Matilde se afastou e jogou um beijo.

— Te cuida!

O jipe, com o motor frio, saiu tossindo feito cão pestiado.

Vida boa, pensou. Era o quinto ano que gastava naquele sudoeste, para onde viera meio por malandragem, meio querendo ficar rico, meio querendo sumir no mundo. Fez um pouco de tudo: dirigiu caminhão, puxou tora do meio do mato, trabalhou de mecânico, foi sócio de uma serraria que faliu. Até se juntar a Domício Marconi, que tinha mais juízo do que ele, com quem fundou a Radiolar, loja onde vendiam de tudo um pouco: geladeira a querosene, geradores, máquinas de costura, rádios, baterias, pilhas, fogão a lenha, móveis, o que o freguês precisasse. Domício, que era organizado e que não gostava de movimento, ficava em Pato Branco, cuidando da loja e das papeladas, enquanto ele saía pelos matos, visitando a colônia, vendendo, conversando, fazendo entregas, vivendo mais ou menos a vida que pedira a Deus. Em pouco tempo, fizera amizades nos lugares mais distantes e era conhecido pelo apelido de Gaúcho. Ninguém o chamava pelo nome, José Luiz Medrani. Carregava o apelido pelo jeito desabusado de usar botas e bombachas, de contar vantagens e, segundo a maioria do povo do sudoeste, de mentir um pouco além da conta. Gaúcho papudo, brincara um dia Armindo Tomelin — e Gaúcho ficou. Ele achava que era um apelido sem sentido, pois o que mais tinha naquelas bandas do sudoeste era gaúcho e, além disso, não eram poucos os mentirosos jurados. O certo é que virou Gaúcho, se acostumara com o apelido. Há poucos dias, numa reunião, Armindo usou de novo a expressão que dera origem ao apelido. Depois de muito ouvir, Gaúcho se levantou e disse com todas as palavras:

— Vamos é correr com essa jagunçada a tiro. E se o Lupión aparecer, a gente taca fogo no rabo dele também!

Armindo deu um soco na mesa:

— Deixa de ser fanfarrão, gaúcho papudo!

Foi uma risada que encheu o salão. No fim, decidiram formar uma comissão e entregar um relatório às autoridades, em Curitiba. Gaúcho foi chamado, assinou a ata e, lá da mesa, disse para todo mundo ouvir:

— Não é com papelada que a gente vai espantar os jagunços!

Todos riram, alguns aplaudiram, e Armindo balançou a cabeça, inconformado:

— Preciso conversar contigo, Medrani.

Quando era chamado de Medrani, a conversa era séria, pensa agora, enquanto o jipe vai corcoveando pela estradinha. Mas era desse jeito que pensava: jagunço não é gente. Tinham as costas quentes, acobertados pelo dinheiro e pela política. Não iam fugir assim no mas, com medo de relatório. Só resolveriam aquela majorca no chumbo grosso, gostassem ou não, o Armindo que desculpasse. Era um homem esperto e corajoso, mas estava errado. Aquelas comissões eram pura bobagem e não levariam a lugar algum. Ou tacavam fogo no rabo dos jagunços ou viveriam com o rabo no meio das pernas.

Quanto a ele, se protegia. Andava com um revólver entre os bancos do jipe e com uma winchester no banco de trás, por cima das encomendas. Assustada com aquele armamento todo, Matilde dizia:

— Te cuida. Andas por aí, no meio do mato, não custa um jagunço te meter uma bala na cabeça.

— Eu atiro antes, dizia, com convicção.

Não atiraria. Quem morria de tocaia, morria de besta, pensando numa tolice qualquer, de certo nem escutava o tiro. Só com muita sorte poderia usar o revólver ou a espingarda. Quem fica na espera não erra tiro, só bate no gatilho na certeza e, de resto, já preparou tudo com cuidado — não tem errada. Ao contrário da vítima, que vai com a cabeça nas nuvens, quem sabe pensando numa noitada na casa das putas.

Parou o jipe no alto do morro e observou as casas do povoado. O mormaço sufocava, parando as pessoas dentro de casa ou na sombra das árvores. As ruas estavam desertas e, como não ventasse, nem uma só folha se mexia. Lá no fundo, atrás do cemitério, se via um pouco de poeira no ar — talvez houvesse passado por alí um cavalo ou uma carroça. Virou-se para o banco de trás e apanhou a winchester. Como sempre fazia ao chegar num povoado, ergueu a espingarda e deu um tiro para o alto. O estampido — seco, estalado — rebateu nos morros em volta e ficou tonteando, sempre mais fraco, até se perder por completo. O mesmo silêncio desceu sobre o povoado. Mas alguma coisa se moveu. Portas se abriram, gente veio para a rua. Gaúcho ficou de pé no jipe e gritou, como sempre:

— Tutti ladri!

Mas ninguém respondeu — "Gaúcho papudo!" — como era parte da brincadeira. Ecco! pensou, intrigado, guardando a espingarda. Ligou o jipe e desceu o resto de estrada. As pessoas foram se reunindo na rua principal. Quando estava a uns cem metros, ainda tentou armar a brincadeira:

— Tutti ladri!

Não houve resposta. Se viu rodeado por um bando carrancudo e triste.

— Que houve? perguntou. Viram mula sem cabeça?

Deonísio Possenti se aproximou do jipe, tirou o chapéu e disse:

— Mataram Pedrinho Barbeiro.

 

                   A GUERRA É SEMPRE

DOUTOR MONTEIRO golpeou a escrivaninha:

— Jornalistas! Bando de abutres!

O deputado, afundado na poltrona até as orelhas, observou o tinteiro descrever um meio-círculo sobre a mesa e rodopiar à beira do abismo. Imaginou que deveria dizer alguma coisa:

— Precisamos pensar...

— Pensar merda nenhuma! — Monteiro jogou as páginas dos jornais para todos os lados, aos bofetões — Eu mandei que pensassem faz tempo! Eu adverti que esse negócio acabaria fedendo!

O deputado achou melhor ficar quieto. Seguiu as passadas furiosas com que doutor Monteiro atravessou a sala. Na borda da mesa, o tinteiro ameaçava suicidar.

Monteiro abriu a porta do escritório e berrou:

— Lúcia! Me traz café!

Bateu a porta com estrondo.

— Agora me diga, deputado: eu não avisei?

O deputado não ia responder. Pensou que Monteiro perguntava por perguntar, mas se assustou com aquele homem parado a sua frente, curvando o corpo enorme sobre ele, os braços armados como se fosse desferir um golpe.

— Avisou, disse.

— Então! E aí está! — contou nos dedos — Avisei, expliquei, adverti, pedi, provei! Agora, me diga — curvou-se de novo sobre o deputado, que acabou de afundar na poltrona — Me diga: adiantou alguma coisa?!

Desta vez o deputado não demorou a responder:

— Não adiantou.

— Certo. Pois agora que se danem!

Uma mulher negra entrou no escritório carregando uma bandeja com dois cafezinhos. Antes que ela depositasse a bandeja sobre a mesa, Monteiro apanhou uma das xícaras e tomou o café de um só gole. O deputado olhava para ele com olhos muito abertos. Monteiro disse:

— Não se assuste, deputado — e, indicando a outra xícara de café que ficara na bandeja, — Vai querer?

— Não, obrigado.

Monteiro bebeu a segunda xícara. Acendeu um cigarro e tornou a andar de um lado para outro, chutando os jornais espalhados pelo chão e lendo as manchetes aos berros:

— Massacre no sudoeste! Verê: o terror está nas ruas! Governador omisso: morte e sangue no sudoeste

Os jornais se espalhavam por todo o escritório. O deputado, naufragado na poltrona, imaginava um modo de aplacar a fúria de Monteiro, mas só fazia observá-lo a andar de um lado para outro numa agitação espantosa para um homem enorme, gordo, vermelho de ódio.

— Entre ladrões e incompetentes! — gritou Monteiro, jogando-se na poltrona junto à janela na qual ardia um sol forte; o deputado precisou espremer as pálpebras para não ficar ofuscado — Sabe como me sinto? Entre ladrões e incompetentes! Um bando de ladrões quer se apossar das terras, instigados por demagogos irresponsáveis — Monteiro espalmou mãos piedosas: coitadinhos dos colonos! E um bando de incompetentes, cheios de ganância e corrupção, vai destruir todos os meus projetos! É assim que me sinto.

O deputado pensou em dizer que no momento precisavam imaginar uma maneira de reduzir a repercussão dos acontecimentos, o que não seria tão difícil — afinal, em todo o estado, apenas um jornal não estava nas mãos deles. Pensou em sugerir uma prensa no jornal da oposição, mas calou-se, paralisado pelo olhar duro que Monteiro dirigiu ao dedo indicador que ergueu timidamente, pedindo a palavra. Recolheu o dedo e fez cara de profunda preocupação.

Monteiro acendeu outro cigarro na ponta do que acabara de fumar e fechou os olhos. Sentia nojo ao olhar para o deputado. Faz parte do bando de incompetentes e corruptos, pensou. Sentia engulhos ao olhar para tudo que estava a sua volta. Dor no estômago ao ver tanta demagogia e imbecilidade. Melhor não tivesse saído de São Paulo, ou então retornado ao Rio Grande, ido para os quintos dos infernos.

— Temos uma grande oportunidade para o amigo.

O governador veio recebê-lo nos jardins de sua residência, um palácio rodeado por piscina, chafarizes, árvores, jardins. Monteiro não imaginara uma figura tão imponente: era alto, elegante, e tinha a voz e os gestos suaves de um bispo.

— A sua experiência como engenheiro vai nos ajudar em muito. Neste momento o Paraná precisa de homens dinâmicos.

Perguntou ao deputado:

— Sabe há quantos anos estou no sudoeste?

Não esperou a resposta do deputado.

— Dez anos. Dez anos de trabalho no meio deste mato fechado, deste fim de mundo. E era muito pior quando cheguei aqui. Dez anos. E os merdas vão jogar tudo por água abaixo. Os demagogos querendo entregar a terra aos pobrezinhos dos colonos, uns analfabetos que só pensam em tocar fogo no pinhal e em criar porco. E uma tropa de corruptos querendo embarrigar de tanto dinheiro. Ninguém pensa num projeto sério neste país!

O deputado tentou agradar:

— Ninguém compreende pessoas idealistas com o senhor.

Monteiro fuzilou o dedo na direção do deputado:

— Idealista é a puta que o pariu!

— Estou às suas ordens, governador.

Num salão ovalado, estavam dois secretários de estado e um engenheiro. Abriram um mapa a sua frente e a piteira do governador apontou o sudoeste do Paraná.

— Aqui.

A reunião que se seguiu não teve nenhuma surpresa para ele. Havia estudado a questão do sudoeste nas últimas três semanas, desde que recebera o convite. De início, tudo lhe parecera uma grande loucura, enfiar homens e máquinas numa região perdida, habitada por meia dúzia de caboclos que viviam isolados como índios, e na qual só se aventuravam os argentinos, que vinham roubar erva-mate e madeira.

O governador percorreu o mapa com a piteira e apontou as alternativas. Terras férteis, madeiras de lei, a maior reserva de pinheiros do mundo, água em abundância.

— Além disso, precisamos consolidar as fronteiras nacionais.

Monteiro pensa: um político sempre consegue incluir um objetivo patriótico em suas falcatruas.

Por fim, o governador empinou a piteira e disse:

— Alguns problemas: região isolada, sem estradas, sem recursos, quase uma selva bruta.

Ouviu atentamente, balançou a cabeça quando isso lhe pareceu conveniente, não pigarreou nenhuma vez. O governador concluiu:

— É uma grande tarefa. Uma obra histórica.

Monteiro deixou o corpo escorregar na poltrona e lembrou de sua mulher lhe dizendo: qualquer dia explodes num enfarte. Respirou fundo, tragou, foi soltando a fumaça do cigarro aos poucos, brincando com ela, sentindo aquecer o céu da boca. Calma, pensou. Era imbecil explodir daquela maneira. Há dois anos vinha advertindo a todos. Era coisa antiga, já deveria estar acostumado. Será? Argumentou contra si mesmo: não me acostumo com imbecilidade. Se viu no pequeno avião no qual tantas vezes sobrevoara o sudoeste: cinco milhões de pinheiros adultos, pensava. Cinco milhões. Uma riqueza fabulosa. Outros países, com muito menos, haviam criado uma forte indústria de celulose. Mas não o Brasil. Diabo de país mais imbecil, cheio de ladrões e de incompetentes. A riqueza está alí ao alcance de suas mãos, mas acabaria servindo apenas para demagogia e corrupção.

— Ah, o Brasil! suspirou.

— Como? perguntou o deputado.

Há dez anos, quando chegara, aquilo era mato fechado. Algumas trilhas, caminhos de carroça usados pelos caboclos e argentinos, casinhas pobres enfiadas nos pés dos morros. O resto era mato, pinhal, rios, terra fértil. A melhor terra do mundo e o pinhal, que ele ainda não avaliava em cinco milhões de pinheiros adultos, foram aos poucos virando sua obsessão. Acabou se empolgando com as idéias que vinham à sua cabeça numa enxurrada que mal conseguia controlar. Estava diante de uma mina de ouro. E não era só o pinhal: era jacarandá, tarumã, canela, ipê, imbúia, cabriúva, angico, louro. Imaginava abrir estradas, gerar energia elétrica, comprar maquinário moderno, instalar alí uma fábrica de celulose. Deitado de bruços dentro da pequena barraca de lona, perdeu dias traçando seus planos, enquanto lá fora a chuva despencava sem fim. Saía a andar pelo mato, a cavalo, a pé, de canoa, escudado pelo Teles, o topógrafo, e pelo Miranda, um homem de confiança. Os três descobriam picadas, abriam caminhos, encontravam casas de caboclos cuja primeira reação era se esconder. Bichos. Foi saber, estavam alí isolados há muito tempo. Plantavam milho, criavam porcos. Só saíam daqueles matos para tropear os porcos até Porto União. Alguns eram foragidos da justiça, tinham sentença nas costas, os chamados farrapos. Outros, descendiam de gente que fugira do contestado e falavam daquelas guerras como se o tempo não houvesse passado. Arredios, desconfiados, só o homem da casa saía para recebê-los.

Monteiro os julgava imprestáveis. Tocavam fogo na mata, deixavam arder o pinhal durante dias, depois faziam uma roça raquítica, sem valia. Gente primitiva, com quem não poderia contar. Além deles, os argentinos. Pareciam fantasmas, pois ninguém conseguia vê-los. Só se percebia a saída da erva-mate e da madeira. Vinham, pousavam no sudoeste por uns tempos, quatro, seis meses, carregavam o lombo dos burros e sumiam. Eram inimigos, pensava Monteiro, dando naquele momento razão ao governador: acabariam roubando um pedaço do território brasileiro.

Retornava ao acampamento e se enfiava na barraca. Ia escrevendo, desenhando, anotando. Fazia cálculos. Cinco milhões de pinheiros adultos transformados em madeira, pasta, papel. Anotava: a terra é fértil, o que era comprovado pela presença de uvaranas, cedros, canelas, açoita-cavalo, ortiga brava. Mas a principal riqueza continuava a ser o pinhal e as madeiras de lei. Traçou, no mapa que ia definindo aos poucos, os rios que encontrara e aqueles dos quais ouvira falar. Marcou os lugares mais acertados para se passar com as estradas e, na segunda viagem à capital, dez meses depois, conseguiu duas máquinas e alguns homens. As máquinas eram velhas e, os homens, despreparados — mas naquele momento nem ligou para isso. Seguiu no trabalho. Estudou as possibilidades de aproveitamento hidroelétrico do rio Chopin. Em Marrecas, abriu o primeiro campo de pouso para pequenos aviões. A partir de então, pode fazer os vôos de reconhecimento, estudando melhor a região, mapeando-a, localizando o percurso exato dos rios, avaliando os pinhais.

Abriu os olhos e disse ao deputado:

— Selva bruta, compreende? Diamante bruto.

O deputado balançou a cabeça. Não estava entendendo nada.

— Na Bíblia está dito que o primeiro homem deu nome a todas as coisas, não é?

Monteiro enlouquecera?

— O primeiro homem diante da natureza bruta, recém-saída das mãos de Deus — acendeu outro cigarro — Era ser um pouco como Deus, nomear as coisas, inventar o mundo, moldar a massa bruta, colocá-la de acordo com a sua vontade. Entende?

O deputado sacudiu a cabeça. Estava na mesma.

— Deus, disse Monteiro, também deve ter se sentido assim. O mesmo prazer e a mesma vontade de criar — levantou-se, caminhou até a escrivaninha, na qual uma última página de jornal resistia; apanhou-a e leu: "Uma comissão de políticos locais, do PTB e da UDN..." — largou o jornal e apontou o cigarro na direção do deputado: O que é difícil de entender é por que Deus teve vontade de fazer alguma coisa, não é? Tão perfeito, tão completo, podia apenas se fartar consigo mesmo, não acha?

O deputado balbuciou:

— É mesmo.

Monteiro pensou: este filho de uma puta não está entendendo o que digo. É como os outros, que pensam que sou louco, que viver no meio do mato me fodeu com os miolos. Sacos de merda, é isso que eles são.

Sentou-se à mesa e arranjou os papéis que sua fúria havia espalhado. Recolocou o tinteiro ao lado do porta-canetas. Os primeiros colonos, alemães e italianos, foram trazidos por ele mesmo, convocados por anúncios que fez publicar em jornais do Rio Grande do Sul e Santa Catarina. Vieram aos poucos. Gostavam, chamavam mais alguém da família, logo eram tantos que foi preciso tocar as serrarias com toda a força para dar conta da madeira para as casas que os próprios colonos construíam. Ouvindo o cantar nervoso das serras-fita ao longe, Monteiro gostava de olhar a região do alto dos morros: uma massa informe a moldar, pensava. E era capaz de ver claramente a grande fábrica de celulose em funcionamento, transformando aquele fim de mundo numa terra de riqueza e fazendo, daqueles analfabetos, uma gente capaz de olhar nos olhos dos outros sem sentir cagaço.

O deputado, que já não suportava a angústia, ouviu alguma coisa. Levantou-se e foi até a janela. Alvoroçado, disse:

— Eles estão chegando.

 

ZÉ LARA PAROU DE CAVOCAR junto à parede da cela e escondeu o cabo de colher numa fenda da privada. O andar metálico do carcereiro subiu os vinte degraus que levam ao primeiro andar, atravessou a ala 5, subiu outros vinte degraus e, felizmente, ao chegar ao segundo andar, virou à esquerda. Zé Lara respirou aliviado. Retomou o cabo de colher com o auxílio da unha crescida do dedo mindinho e voltou a cavocar.

Foi o cabo Miguel quem deu o aviso :

— Amanhã, disse ele, tu tens uma visita.

— Que visita? perguntou.

O cabo olhou em volta e pediu:

— Te segura e não faz escândalo.

Zé Lara prometeu não se alterar e perguntou:

— Quem?

— O Velha, disse o cabo.

O Velha, pensava agora Zé Lara, uma nojeira de dedo-duro e covarde. Um trapo que lambia as botinas da polícia, que já fora mulher de um delegado, que entregara meio mundo. Se ia ser colocado na mesma cela, alguma sujeira estava para acontecer.

A colher bateu no metal e Zé Lara levou um susto. Temeu que o som houvesse se espalhado por todo o pavilhão. Retirou com cuidado a massa restante e o estilete apareceu. Estava muito enferrujado, e por isso mesmo mais perigoso. Recolheu a massa de gesso e barro, misturou-a à água da privada e fechou o buraco. Sentou-se no chão da cela e esperou. O estilete escondido atrás do pé da cama.

O carcereiro desceu os mesmos vinte degraus, tossiu, brincou com alguém que lhe pediu um cigarro, veio pelo corredor. Dos lados da ala 9, veio o uivo longo, profundo, dolorido. Zé Lara se arrepiou. Era Dentinho, que tinha uns ataques e ficava uivando — agora só pararia no dia seguinte, após o nascer do sol ou quando o carcereiro resolvesse lhe dar umas bordoadas. Nas noites em que Dentinho ficava uivando, Zé Lara não dormia: ficava ouvindo aquele uivo contínuo, cada vez mais forte e próximo, que parecia sair de sua própria cabeça.

Ouviu passos pelo corredor. Alguém subia os degraus do primeiro andar. Zé Lara fechou os olhos e calculou: duas pessoas. O Velha. Subiram os degraus, atravessaram o corredor da ala 5, subiram outro vinte degraus e viraram à direita: estão chegado, pensou. Dentinho uivou.

A chave girou na fechadura e o carcereiro, segurando o Velha pelo braço, disse:

— Tem companhia, seu Lara.

E empurrou o Velha para dentro da cela. Ele deu um tranco contra a parede e já caiu gritando:

— Espera! Calma!

Zé Lara jogou-se sobre ele antes mesmo do carcereiro fechar a porta. O carcereiro riu e disse:

— Boa sorte, turma!

— Pelo amor de Deus! pediu o Velha.

Zé Lara continuou batendo com a cabeça do Velha contra o cimento e, quando sentiu que ele já estava de pescoço mole, largou-o no chão. O corpo do infeliz lembrava um saco vazio, mas ele ainda erguia os braços:

— Pelo amor de Deus!

— Tem Deus nenhum, seu cachorro! — e Zé Lara espetou o estilete na bochecha molóide do Velha.

— Ai!

— Não grita!

— Me ouve, por Deus!

O estilete desceu até o queixo do Velha, deixando um traço vermelho pelo caminho.

— Fala, seu cachorro. Quem te mandou?

— Não posso dizer.

O estilete cotucou forte e desceu até o pescoço.

— O deputado.

— O deputado? Desde quando ele fala com um trapo que nem tu?

— Foi o doutor Neves quem falou comigo.

— Onde?

— Em Barracão.

— Quando?

— Faz uma semana.

— E o que tu anda fazendo em Barracão?

— Me prenderam lá.

— Roubando galinha?

Velha não respondeu. O estilete rasgou mais um pouco.

— Não tô brincando. Fala.

— Contrabando, disse.

— Que chique! Melhorando de vida, hein?

Ergueu a arma e deu uma volta com ela no ar. O Velha sorriu aliviado e mostrou três dentes podres, no meio dos quais Zé Lara aproveitou para enfiar o estilete. Velha gemeu, sem gritar.

— O que eles querem comigo?

— Serviço. Coisa grande.

Observou a gengiva do Velha sangrando.

— Tu és um traste — aliviou a pressão do estilete.

— Coisa grande, repetiu o Velha.

Zé Lara mandou que ele sentasse no chão, contra a parede, com as pernas bem abertas.

— Me conta, disse, batendo com o estilete na palma da mão.

Velha foi falando o que sabia, sempre cuspindo um pouco de sangue. O doutor disse que vão formar uma guarda, um verdadeiro exército no sudoeste. Questão de terras. Precisam de gente boa, boa de tiro e que saiba como lidar com os colonos. Como Zé Lara estivera em Porecatu, queriam que ele comandasse na região do sudoeste.

— Então os putos lembram de mim, é?

— Lembram, sim. O doutor disse que estava difícil te tirar daqui.

— Sei. Não podiam me tirar daqui.

— Mas vão tirar.

— Como?

— Topa?

— Não disse isso. Quero saber como saio daqui.

O Velha se aproximou de arrasto pelo chão e explicou em voz baixa:

— Eles têm um plano. Daqui podem fugir tu e mais dez. Tu escolhes quem foge. Depois tu mesmo dizes quem vai fugir de outras prisões ou quem a gente precisa buscar em outros lugares.

Zé Lara examinou o rosto machucado do Velha, seguiu o filete de sangue que brilhava entre rugas e dobras do pescoço. Repetiu a pergunta:

— Como me tiram daqui?

Velha arrastou novamente os fundilhos no chão de cimento, feito aleijado sem pernas, e explicou o plano em voz baixa, como se as paredes estivessem cobertas de olhos e ouvidos.

 

ÍNDIO GASTOU CINCO DIAS DE VIAGEM até chegar à fazenda do doutor Rabello. Tomou seus cuidados. Dois quilômetros antes, vadeou o rio e veio pela margem, encoberto pelas árvores. Atravessou o pasto e alcançou a casa por trás. Rendeu dois vigias, amarrou um deles numa árvore e entrou no rancho dos empregados com o outro espetado no cano da winchester. Mandou que chamassem o doutor.

Ele não demorou. Enfeitado como sempre, as unhas pintadas, veio largando chispas de ódio pelas ventas:

— Mas que merda! Isso é jeito de entrar na fazenda?

Índio soltou o capanga e apontou a winchester para a barriga roliça do doutor:

— Jagunço nunca sabe como vai ser recebido.

— A casa cheia de visitas e você me entra como se estivéssemos em guerra!

— Depois do último serviço, o senhor disse que não me queria mais por estas bandas.

— Foi o que eu disse.

— Pois é. Quando precisam do serviço, o jagunço é um salvador. Depois, é feito leproso. Se chego na porteira, capaz de alguém me enfiar uma bala na cabeça.

— Bobagem! Ninguém faria isso!

— Pelo sim, pelo não...

Rabello deu uma corridinha até a porta do rancho, esticou a cabeça para fora e gritou: está tudo certo, diga ao deputado que já vamos. E, virando-se na direção de Índio:

— Por que demorou tanto?

Índio não entendeu.

— Quando recebeu o recado? insistiu o doutor.

— Recado?

— Mas é claro. Onde tu estavas?

Lembrou da velha índia: o sinal, meu filho, um sinal, e disse:

— É que não tenho parada faz tempo.

— Sei, fez Rabello, intrigado.

— Desde aquele serviço que ando revirando o mundo de um lado pra outro.

— Sei, sei. Mas não resmungue tanto. Foi bem pago. Por que não ficou no Paraguai?

— Não gosto de gringo.

— Pois devia ter ficado por lá. É seguro e fácil de te encontrar.

— E viver do quê?

— Sei, sei — Rabello, impaciente, apontou a porta — Vamos, disse.

Índio sorriu:

— O senhor vai na frente.

— Ah, meu Deus!

Abriu a porta. Índio espetou as costas de Rabello com a winchester.

— Que é isso? Está maluco?

— Não. Mas tô vendo duas espingardas apontadas para a minha cabeça.

Rabello gritou:

— Saiam daí! Sumam!

Os dois homens desengatilharam as winchester e se afastaram.

— Satisfeito?

— O senhor vai na frente.

Entraram na casa e Rabello afastou, com um gesto, os dois capangas que vigiavam o alpendre.

— Me espere aqui.

Atravessou o salão e apanhou o braço de um dos homens que conversavam junto à janela. Era um homem alto e pálido. O deputado, pensou Índio. Se Nemésio estivesse alí, diria: não se bole com polícia e com político, é tudo a mesma laia de lacraia. Não tenho escolha, pensou Índio, e lembrou: o sinal. Então andavam à procura dele? Mandaram recado e ele não sabia? Ou seria uma tramóia do gordinho? Sentiu que não poderia mais controlar o que estava acontecendo: a velha índia tinha razão. Viera pedir abrigo e eles é que estavam a sua procura.

— Está tudo certo, disse Rabello ao voltar. Precisamos de você.

— Onde?

— No sudoeste.

Índio franziu a cara.

— Em Beltrão, completou o doutor.

Índio estremeceu.

— Calma, disse o doutor. Tu não eras da turma do Zé Lara?

— Era.

— Então? Foi ele mesmo que disse que precisava de ti.

O sinal, pensou: com Zé Lara aprendera quase tudo que sabia, deixando de ser um moleque atrevido e virando um homem. Aprendera o tiro certeiro, a calma na hora de matar, o golpe exato de punhal para que um homem morresse sem estrebuchar muito e sem lambuzar a gente com sangue. Mas não era isso que o deixava cabreiro. Ficou pensando: ela estaria com Zé Lara?

— Então, homem?!

— Ele mandou me chamar?

— Sim, Zé Lara mandou te chamar.

— Por que?

— Pombas! Ele te explica.

— E vou fazer o quê?

— O de sempre.

Se a velha índia estivesse alí, poderia perguntar a ela se estava entendendo os sinais. Mas a velha apenas lhe criara uma maçaroca na cabeça e não estava alí para ajudar. Precisava decidir sozinho e, mesmo temendo uma armadilha, aceitou. Era assim que funcionava, em todos os casos: agora tinham um trabalho para ele. Depois, armariam uma tocaia, quem sabe o próprio Zé Lara pensasse em lhe dar um tiro. Zé Lara faria isso? Faria, decidiu. Ele próprio mataria Zé Lara se fosse preciso. Mas não se preocupava. Se quisessem matá-lo, teriam feito uma espera, não mandariam recado. Se bem que o tal recado podia ser mutreta de Rabello, quem garantia? Vou aceitar mesmo assim, pensou. Desde que a velha índia lhe dera a benção e o colar, estava certo de que não morreria de tocaia. Tinha uma missão a cumprir. Depois poderia ser morto, não antes. E não seria morto assim, no meio do caminho, por um tiro covarde. Os que morriam assim eram cães danados que se joga na estrada e se deixar apodrecer, pois não têm serventia senão para os urubus e os porcos do mato. Ele não morreria como um cão.

Rabello lhe deu uma carta, dinheiro e munição. Quis lhe dar outro cavalo, mas Índio não aceitou: o seu animal era aquele, não outro. Agora forçava o animal a descer o morro e a cidade ia aumentando de tamanho enquanto repensava as advertências da índia. Experimentava um certo alívio. Dissera isso a Nemésio:

— O que consome a gente não é a morte. Mas não saber quando e de que jeito a gente vai morrer.

Nemésio arrumou o braço mole sobre a perna cruzada e perguntou:

— Por que tá pensando nisso?

— A velha. Ela não marcou dia e hora, mas acho que ela sabe que vou morrer logo.

— Besteira! — Nemésio ficou furioso: se era pra enfiar bobagem na cabeça, não tinha te mandado lá.

Ele riu:

— Foi bom ir lá.

Era bom: era um alívio. O medo mudara de jeito. Não o medo de uma morte qualquer, de cão. Não o medo de uma morte besta que um dia viesse tomar conta dele no fundo de uma cama. A morte viria, é claro, mas a sua morte, feito alguém com quem fossem se enfrentar um dia. Isso lhe dava uma chance: lutar contra ela. Talvez meter uma bala na cara dela, talvez enfiar um soco no seu bucho. Talvez levar mais meia dúzia de desgraçados junto com ele.

O certo é que não morreria como um cão e nem como o dono de um hotel em Porecatu — o homem estava rindo, serviu uma mesa, chamou a filha para limpar o chão e, ainda com um sorriso na cara, caiu de boca no chão. Enfarte, disse o médico. Assim. Não viu a morte de frente, não teve jeito de lutar, não conseguiu espernear ou meter a mão na cara da morte, com ódio. Caiu como quem tropeça e está morto. Era um alívio saber que não morreria assim.

— Loqueira, homem! — Nemésio não se conformava.

Parou o cavalo ao pé do morro, vigiou as redondezas em busca de um esconderijo e decidiu só entrar na cidade depois do anoitecer.

 

O CACHORRO ESTAVA JOGADO SOBRE O PONTILHÃO, o corpo esfacelado pelos tiros. Um quarto de perna ficou dependurado, a dois metros do corpo, entre as tábuas. Nego Berto recolheu os restos do cão e Joanin achou que o negro era mesmo um homem diferente, parecia abraçar o cão com o mesmo carinho com que abraçava o pequeno Alberto, só faltava dizer aquelas palavras de macumba. Constrangido por ver o amigo chorando, deu as costas ao negro e engoliu com esforço o choro que ameaçou lhe subir pela goela; foi até o paiol apanhar a pá. Cavaram a sepultura, depositaram nela os restos do cão embrulhados num pano velho e depois ficaram olhando para aquele monte de terra remexida sobre a qual colocaram uma cruz e o nome Leão escrito com um lápis de marceneiro. Talvez devessem a vida aquele cachorro, pensou Joanin, que sempre implicara com o bicho por ser demasiado festeiro, guapeca, jogando as patas sujas nas pessoas e dando lambidas na boca de quem se descuidasse — um dia derrubara Irene com tanta festa. Nego Berto não reagiu quando Joanin lhe disse: vamos arrumar outro cão, é bicho necessário por estas bandas. Nego Berto pensou que fosse apenas um agrado do amigo, afinal ele vivia ralhando com o cão, que só tratava por jaguara. Como não gostava de cachorro, estava apenas querendo agradar o compadre.

Um outro cão veio morar com eles. Nego Berto o trouxe, a pedido de Joanin, e lhe deu o nome de Lobo — o diabo é que era guapeca, festeiro e lambedor feito o outro. Brincalhão com a família e brabo com os estranhos — como devia de ser, admitia Cidália. Nego Berto e Joanin passaram a se revesar na sentinela. Dormiam em turnos, um deles vigiando junto à janela, a espingarda apontada para fora com uma bala na agulha. Isso não é vida, dizia Cidália. Não era vida, pensava Joanin, sem dizer nada. O primeiro homem apareceu novamente. A mesma pastinha preta, as mesmas palavras rebuscadas e maliciosas, mas agora rodeado por jagunços e pela polícia amarela. Tentou uma conversa longa com Joanin — que pensava: se o puto vem sozinho, lhe quebro os ossos. Olhava para o sujeito com desprezo e achou de enfiar o dedo no próprio nariz e ficar cavoucando só para mostrar que não sentia medo ou respeito pela polícia e pelos jagunços, além do que, não dava importância à conversa. Entendesse, dizia o homem, que aquela questão estava perdida na justiça. Devia assinar senão viria um destacamento com mandado do juiz e eles seriam despejados, compreende? Não, disse Joanin, cavoucando fundo o nariz e olhando Nego Berto com jeito de malandro: não compreendo que o senhor me fale de lei e justiça depois que Manoel Tenente foi morto, depois que vieram uns cabras aqui atear fogo no paiol e matar um cachorro de estimação, nem entendo estes jagunços que estão aí do seu lado, acobertados pelos amarelos. Perdão, disse o homem, e repetiu, perdão, mas não temos nada com essas mortes. Isso é coisa de rixa entre colonos, guerra de vizinhos, de gente que deseja tumultuar o sudoeste. Nós só queremos cumprir a lei. Aqui não tem lei, doutor — intrometeu-se o desastrado do Nego Berto, o que fez com que Joanin, de nervoso, temendo uma diabrura do negro, parasse de cavoucar o nariz — Aqui não tem lei, dizia o negro, aqui tem é como diz o seu Liseu: artigo 45, parágrafo 38. A lei daqui é assim: a gente morre, morre a criação, morrem os cachorros. Ora, por favor, o homem abriu a pastinha preta, vejam que as prestações são baixas, nós temos boa vontade, tudo vendido a longo prazo, e o contrato dá ao senhor o direito legal, definitivo, com papel passado em cartório, a companhia quer apenas legalizar a situação da terra. Sei, disse Joanin, sei disso, e tornou a cavoucar com o dedo no nariz, no maior desprezo. Então, assina? perguntou o homem. Não. Nego Berto pôs um olho no homem da pastinha e outro no jipe carregado de jagunçada e de polícia amarela. É agora, pensou, é agora que vamos receber uma chumbarada e seu Joanin morre aí mesmo, com o dedo no nariz. Mas não houve chumbarada. O homem da pastinha entregou um papel a Joanin, dizendo que era uma intimação para que fosse ao escritório da companhia. Joanin recebeu o papel, deu com a mão no chapéu se despedindo do homem, que recomendou: pense bem, seu Joanin. O homem subiu no jipe e disse ao motorista: vamos. O jipe manobrou e, quando passava na frente de Joanin e Nego Berto, um jagunço ficou de pé, ergueu a winchester e fez pontaria. Nego Berto se jogou contra Joanin e os dois rolaram na direção do arroio. O jagunço, sem se perturbar, seguiu-os com a mira e, quando eles já tinham meio corpo dentro dágua, bateu no gatilho e fez o barulho com a boca: bang! bang! O jipe arrancou coberto pela gargalhada dos jagunços, da polícia e do homem com a pastinha. Joanin amaldiçoou entre dentes: porco cane!

 

O DEPUTADO REPETIU, espetando o dedo na direção da janela:

— Eles estão chegando.

Monteiro acendeu outro cigarro e constatou que estava mais calmo. Espichou a perna por debaixo da mesa e ficou se divertindo com a agitação do deputado. Pau mandado. Olhou para a janela. Como deveria agir? Sair dando bordoadas nos filhos da puta? Pegar um jipe e ir a Curitiba para enfiar a mão nos cornos do governador?

— Os seus projetos são bons, sem dúvida — foi assim que lhe passaram o recado do governador — mas um tanto avançados para o momento. Isso aqui é ainda uma região selvagem, isolada, e no Brasil não há capital que suporte tamanho investimento. As suas dificuldades financeiras são prova disso.

Ele era uma prova do próprio fracasso, pensou. Uma prova viva. Havia enterrado alí não apenas um pedaço de sua vida, mas todo o dinheiro que tinha e tudo que conseguira reunir através de empréstimos bancários. Foram lhe dando corda, ao ingênuo, ao idealista, o próprio governador avalizou os empréstimos, ele acreditava piamente nos tapinhas nas costas: vá em frente, o homem dá todo o apoio. Mas, quando perderam as eleições anteriores, as coisas não correram tão bem quanto eles esperavam. O novo governador não permitiu negócios com as terras da região, tudo parou. De volta ao poder, tinham presa. Seus projetos passaram a ser muito avançados, coisa de idealista. Revelavam enfim a verdadeira face: era preciso explorar rápido as terras, transformar as florestas em madeira, vender, devastar, se fartar. Seus projetos aguardariam outra década, quando, é claro, os pinhais se transformassem em deserto.

O primeiro a entrar foi Aurélio da Matta, carregando uma aflição que Monteiro reconheceu semelhante à sua, embora provocada por motivos diferentes. O grande homem solene, acima do bem e do mal, benfeitor do sudoeste com ares de senador vitalício da república, estava descobrindo aos poucos o tamanho da enrascada em que se metera. O segundo foi José Zenóbio Alves, sócio e amigo íntimo do governador, que, se tinha as mesmas maneiras delicadas e nobres do modelo, era no entanto um homem mais frio, ciente de seu poder e sempre deliciado com as oportunidades em que pudesse ostentá-lo. O terceiro foi o Lopes, braço direito, mordomo e capacho de Zenóbio.

— Como vai, doutor Monteiro? — perguntou Aurélio.

Não respondeu. Zenóbio e Lopes — este ficara um passo atrás — se plantaram em frente à escrivaninha de Monteiro.

— Pelo que vejo — disse Zenóbio, olhando as páginas espalhadas pela sala — o senhor já leu os jornais.

— Li.

— E não gostou... — sorriu Zenóbio.

— E o senhor, gostou? — perguntou Monteiro.

— É claro que não. Mas não estou certo de que esta seja uma boa hora para... — olhava os jornais — ...explosões.

Monteiro examinou o trio — sabem que estou liqüidado, pensou com ódio, mas sem mexer um só músculo do corpo — olhou para o deputado, agora mais aliviado, sem o medo a lhe entortar a cara.

— Desde o início, começou Monteiro, eu afirmei que os métodos que os senhores estavam usando terminariam por se voltar contra nós. Eu adverti. Fazer pressão sobre os colonos não era boa política. Seria preciso conquistá-los.

— O amigo certamente não esqueceu — Zenóbio procurou a poltrona onde estivera enterrado o deputado e sentou — que na ocasião eu defendi seu ponto de vista. Não é verdade?

Monteiro pensou: calma, homem, não saia por aí distribuindo patadas feito cavalo xucro.

— É verdade. Na ocasião, porém, todos defenderam meus pontos de vista. Não foi exclusividade sua.

— Pois bem, as coisas mudaram.

— Nem tanto. Os projetos são os mesmos, têm a mesma viabilidade, nada mudou.

— Monteiro... — Zenóbio percorreu os cantos da sala com o olhar, escolheu uma estatueta de gaúcho colocada sobre um balcão como ponto de chegada — ... meu caro Monteiro. As condições políticas não são as mesmas. Já não trabalhamos nem com o mesmo apoio na área federal e nem com o mesmo prazo.

— Sei — fez Monteiro — Já ouvi isso antes: é preciso agir com rapidez.

— Exatamente. Agir rápido. A política... — Zenóbio olhou para o Lopes, que prontamente abriu uma cigarreira e avançou com um isqueiro já aceso — ...a política não é uma senhora compreensiva. É uma mulher cruel, déspota, que não perdoa hesitações. Nós não temos escolha. O projeto de colonização do sudoeste tem que ser realizado com rapidez ou nada faremos, como querem, aliás, nossos inimigos. Tudo isso, inclusive o seu trabalho, irá apenas servir de pretexto para aqueles que querem prejudicar o governador junto à área federal, colocando mais lenha na fogueira desta asnice do Estado do Iguaçu ou de um pedido de intervenção. Os inimigos do governador e os politiqueiros de sempre só esperam nosso fracasso. Por isso querem nos paralisar.

Monteiro levantou-se, andou pela sala, sentiu no peito a dor fina, que sufocava. Disse:

— Nós não discordamos apenas nos métodos, Zenóbio — eliminou o “doutor”, pois o outro, ele sabia, não era doutor em coisa alguma e ficava furioso quando tratado como um simples mortal — Discordamos em tudo o mais. Os senhores na verdade me prepararam uma bela armadilha. Me deram apoio quando era do interesse de vocês e, agora, me deixam só.

— Por favor, disse Zenóbio, não se trata disso. Todos queremos que o senhor continue conosco e, além disso, estamos dispostos a socorrê-lo nas dificuldades atuais.

— Sei disso. Como?

Foi a vez de Zenóbio levantar-se:

— Nós podemos assumir suas dívidas. Já mantivemos um primeiro contato com os bancos, estudamos uma forma de amortização, só nos falta a sua concordância.

Monteiro riu:

— Minha concordância. Não precisam de mim para mais nada.

— Não é verdade. O senhor é o sócio majoritário. É quem dirige a companhia, de fato e de direito.

— E a proposta?

Zenóbio respirou fundo — sabe que venceu, pensa Monteiro — e entregou a xepa do cigarro ao Lopes, que a esmagou no cinzeiro.

— Assumiremos a dívida e a direção da companhia, naturalmente. Vamos criar subsidiárias para dar maior agilidade as nossas ações.

Monteiro passou a mão no rosto:

— E eu?

— Bem, existem as dívidas... seus projetos são talvez muito avançados para o momento. Isso aqui ainda é uma terra selvagem. O senhor — e todos nós, na ocasião — sonhamos demasiado alto. Em todos os casos, o amigo continuará com uma participação significativa.

Monteiro voltou à escrivaninha.

— Está bem, disse. Eu concordo.

Não viu qualquer reação no rosto de Zenóbio, que disse:

— Decisão sábia.

No rosto do deputado havia um alívio e uma ameaça de que poderia levitar. Só Aurélio da Matta continuou preocupado, sentindo, apesar do cheiro de santidade, o calibre da situação.

— Lopes! — fez Zenóbio, estendendo a mão — Os papéis.

Lopes abriu uma pasta e dela retirou um maço enorme de papéis.

— Você não vai se arrepender, disse Zenóbio. Quando puder examinar a questão mais friamente, vai agradecer aos céus pela decisão que tomou.

Monteiro apanhou a caneta e disse:

— Estou certo disso.

 

ÍNDIO NÃO PRECISOU QUEIMAR OS MIOLOS para descobrir o alojamento. Apenas seguiu a música. O rítmo sacudido da zabumba e da sanfona meio jaguara, rasgando uma enfiada de polcas e valsas. Logo enxergou o matagal indicado pelo doutor Rabello. Firmou o cavalo nos arreios e observou. Havia um galpão aberto e, dele, subia uma fumaça cinzenta. Sentiu o cheiro de churrasco. A luz vinha de vários lampiões dependurados acima das cabeças dos casais que dançavam, girando numa bagunceira doida. Jagunços e mulheres da vida, pensou. As mulheres riam alto e eram jogadas de um lado para outro. Os homens falavam aos berros. Se divertiam. A gente sempre se diverte, pensou Índio, quando não pensa na morte. Deixou o cavalo avançar mais um pouco e parou. Não reconhecia ninguém. O antigo bando havia acabado. Via uma jagunçada mais nova do que ele, de certo trazida de muito longe, que serviço de jagunço é coisa de quem não tem nome nem endereço. Um homem gordo se afastou do galpão e ergueu um foguete para o céu. Antes que o estouro riscasse a escuridão, ele gritou:

— Viva a Citla! Viva a Comercial!

O estrondo do foguete aumentou ainda mais o tom das vozes, a estridência do riso das mulheres e o ritmo da dança. A sanfona e a zabumba atacaram uma polca.

Índio esperou a festa retornar à confusão normal e desceu na direção do galpão, curvando-se para passar por debaixo de um parreiral. Veio lentamente, sem barulho, e ninguém deu pela sua chegada até que os cascos do cavalo bateram no assoalho de madeira. A música parou de soco e os casais abriram uma roda, olhando em sua direção.

O mesmo homem que havia soltado os foguetes pulou na sua frente, já de winchester engatilhada.

Índio levou a mão ao chapéu e cumprimentou:

— Buenas!

Pensou: e se ela contou alguma coisa a Zé Lara? Se alguém contou? Neste caso, ele me chamou só para me dar um tiro na cara. Sentiu o rosto e o pescoço tremerem como o pescoço de um cavalo espantando mosca. Medo.

O homem perguntou:

— Quem vem lá?

Contra a escuridão, eles viam apenas os olhos brancos e a pele pálida de Índio, protegido pelo chapéu e pela capa preta.

Índio quis saber:

— Zé Lara está?

— Eu perguntei antes! — gritou o homem, erguendo a winchester — É melhor desembuchar.

Na roda dos dançarinos, Índio percebeu os homens sacando as armas e as mulheres escapando para os fundos do galpão. Levantou a aba do chapéu, mostrando o rosto branco:

— Não fique brabo, valente. Estou procurando Zé Lara.

— Vem da parte de quem?

— Doutor Rabello.

— Quem garante?

— Tenho uma carta — ia levar a mão ao bolso, mas o grito do homem o deteve:

— Não te mexe!

O homem fez um sinal e um sujeito caminhou na direção de Índio e meteu a mão no seu bolso, retirando a carta. Levou-a até um lampião e disse:

— É verdade.

— Quem é ele? perguntou o homem, sem desgrudar os olhos de Índio.

Índio resolveu dizer:

— Meu nome é Índio. É assim que me chamam.

Sentiu com prazer o efeito que causara. Assim era bom, pensou: dominando a situação e a própria morte, como se ele, e não aquela porção de homens, estivesse com a winchester engatilhada. Notou que as respirações pararam e os punhos se contraíram nos cabos das armas.

— Está bem, disse uma voz vinda dos fundos do galpão.

A voz teve o efeito de abrir uma brecha na pequena multidão, dando passagem a um homem ruivo, cabeludo, coberto por um poncho vermelho.

— Está tudo bem, repetiu o homem, fazendo um sinal para que recolhessem as armas; ordenou ao sanfoneiro: Música!

A música recomeçou. Lenta, desafinada, a zabumba fúnebre, a sanfona arranhando nos baixos. Os casais foram se formando aos poucos, as cabeças sempre voltadas na direção do cavaleiro. O homem ruivo se aproximou de Índio:

— Demorou além da conta, homem. Perdeu o caminho?

Índio apeou do cavalo e jogou o chapéu para trás.

— Acertei umas coisas antes de vir.

Zé Lara riu:

— Tu já foi mais rápido. Tá ficando velho?

O rosto pálido rasgou uma risada horizontal:

— Acho que não.

— É, não parece. Continua brincando com a sorte, feito moleque — Zé Lara olhou para o galpão e disse: Sabe que poderiam te meter uma bala na cabeça sem perguntar teu nome?

Índio coçou o pescoço:

— Não vou morrer assim.

Zé Lara duvidou:

— Como sabe?

Índio recolheu o sorriso pálido.

— Nunca se sabe, não é? provocou Zé Lara.

— Nunca se sabe, concordou.

Zé Lara olhou para o galpão, onde a música quase cessara, os casais retorcidos na direção dos dois, e gritou:

— Estão olhando o quê?!

A sanfona, que mal gemia, atacou furiosa e os casais, nas batidas da zabumba, se engalfinharam a sério na polca.

— Venha, disse Zé Lara.

Atravessaram pelo meio dos dançarinos, que não pararam de se sacudir. Chegaram ao rancho que ficava atrás do galpão.

— Entra, disse Zé Lara.

Dois homens estavam junto à porta, armados. Lá dentro, outros dois, sentados nuns tocos que serviam de cadeira. Índio hesitou. Não por medo dos capangas, mas porque talvez ela, Isabel, estivesse alí.

— Entra, homem! — insistiu Zé Lara — O rancho é pobre mas tem pinga à vontade.

Índio entrou. Ela não estava alí.

— Senta — Zé Lara indicou um dos tocos, depois de enxotar os capangas com um gesto.

Do lado direito havia uma porta que dava para outra parte do rancho. Mas Índio não conseguiu enxergar além do cortinado. Viu a luz de um lampião e alguém que talvez cozinhasse — seria ela? Ficou atentando no que parecia barulho de panelas e xícaras, mas achou que era impressão, quem sabe um barulho vindo lá de fora.

— Quando recebi o recado, não acreditei, disse Índio.

— Não? Estamos te procurando faz uns meses.

Zé Lara ajeitou dois copos sobre um caixão de madeira, depois de limpar suas bordas com a palma da mão.

— Por onde tu andavas? perguntou.

— Pelo mundo.

— Sempre metido em confusão?

— Sempre.

— Aceita?

— Aceito.

Zé Lara encheu os dois copos.

 

TODAS AS MANHÃS Otto Germer repetia o mesmo ritual. Primeiro colocava as cadeiras de pernas para o ar, uma a uma, sobre as mesas. Depois corria uma vassoura pelo refeitório, jogava água no chão, passava um pano molhado, limpando cada canto, cada tábua, os rodapés. Um cuidado severo e meticuloso. Terminada a limpeza, repunha as cadeiras no lugar e estendia as toalhas sobre as mesas. Nunca deixou que um empregado, e nem mesmo uma de suas filhas, assumisse esta tarefa. Otto Germer gostava de limpeza e de ordem — e um empregado nunca faz as coisas como se deseja. Quando alguém o chamava de alemão pão-duro, dava com a mão no ar e dizia que o refeitório é o coração de um hotel: nele só deve mexer o patrão. E ele gostava do coração de seu hotel: sempre limpo e em ordem.

Foi por isso que Armindo Tomellin, deputado e velho amigo de Otto Germer, seu hóspede há vários anos, não acreditou no que viu ao chegar ao topo da escada. Cadeiras e mesas embaralhadas, sujeira pelo chão, toalhas caídas, a mesma bagunça da noite anterior, quando as portas do hotel foram fechadas. Sentado numa cadeira junto à janela da frente, estava Otto Germer, os cotovelos apoiados nos joelhos e o rosto enfiado nas mãos.

— O que houve, alemão?

Otto olhou na direção de Armindo e ergueu os braços:

— Desgraça.

Armindo desceu a escada correndo.

— Que desgraça?

Otto Germer tornou a erguer os braços:

— Mataram o Pedrinho.

Armindo, com o choque, ficou olhando atarantado para as cadeiras, as mesas, conferindo a sujeira do chão.

— Quando?

— Ontem. Atiraram ele.

— E por que não me acordou antes?

Otto respirou fundo:

— Estou sentado nessa cadeira faz quase uma hora. Não consigo me mexer daqui.

Armindo ergueu os punhos e berrou:

— Agora eles vão ver! Isso aqui vai pegar fogo!

— Vai, disse Otto, balançando a cabeça grande, com raros cabelos loiros — Mas o Pedrinho está morto.

O caminhão da prefeitura parou em frente ao hotel e Nego Berto pulou da carroceria, os olhos arregalados do mesmo jeito que, há mais de meia hora, descera do cavalo e dera a notícia a Otto Germer, entre soluços e gestos desconexos.

— A gente vai buscar ele, disse o negro.

— Eu vou junto, disse Armindo.

Em cima do caminhão já estavam três homens armados: Zé Rocha, Marinho Neves e Antenor Rizzi. É a guerra, pensou Otto. Ele conhecera a guerra, não queria encontrá-la de novo.

— Eu fico, disse.

Armindo lhe deu um abraço: ânimo. E saiu correndo na direção do caminhão, junto com Nego Berto, que parecia estar com os braços e as pernas desconjuntados. Ligaram o caminhão e a poeira subiu numa nuvem, entrando hotel adentro, sujando ainda mais o chão, as vidraças, as mesas — mas Otto Germer continuou imóvel, olhando o fim da rua por onde o caminhão sumiu aos sacolejos.

Nos últimos anos, aquela rua em frente ao hotel, que ele mesmo ajudara a abrir, quase com as próprias mãos, sempre estivera coberta de gente que ia e vinha. Colonos a cavalo, em carroças, mudanças de famílias que chegavam a todo instante ao único hotel das redondezas para uma refeição ou um pernoite, um banho, uma última conversa e muitos pedidos de informações antes de se embrenharem nos matos. Agora, nos últimos meses, aquela era uma rua deserta, até a poeira diminuíra. Isso dava menos trabalho na limpeza, mas não agradava a Otto Germer. Era mau sinal. Sinal da guerra que iria arrebentar, quisessem ou não. As pessoas andavam com medo, saíam pouco, ficavam escondidas em suas casas ou nos matos, enquanto os jagunços aprontavam tropelias por toda parte. A freguesia do hotel diminuíra, mesmo os viajantes se cuidavam com medo de uma bala perdida. E as famílias já não chegavam na mesma quantidade. Os jagunços fechavam as entradas do sudoeste, não deixavam os caminhões circularem, pediam documentos, exigiam assinaturas em promissórias e contratos. Alí mesmo, em frente ao hotel, ele assistira a um rebuliço em torno de um caminhão. Os jagunços impediam que seguisse viagem. Otto chamou Armindo, que desceu sem camisa e descalço, e foi pro meio da rua se encostar nos jagunços.

— Que houve? perguntou.

O jagunço, conhecido como Sergipe, olhou para ele, enfezado:

— Não é da sua conta.

— Todo assunto por aqui é da minha conta, rapaz.

Outro jagunço, Pé de Chumbo, se chegou:

— O homem aí é deputado.

Sergipe olhou para ele com a mesma cara:

— Pois não tenho satisfação pra dar.

Na boléia, uma mulher e duas crianças olhavam o tumulto como se houvessem estacionado no meio de uma conversa que não lhes dizia respeito. Um homem magro e de olhos azuis mantinha a porta aberta, sem saber se descia ou não, se seguia em frente ou não.

— Os senhores, Armindo ergueu a voz, não podem impedir esta gente de seguir viagem.

— Por que, doutor? quis saber Sergipe.

— Por que ninguém pode impedir um cidadão de andar pela rua — Armindo deu um passo na direção do homem de olhos azuis, que seguia encarapitado na boléia, e disse: Entra aí e toca em frente.

O jagunço Sergipe gritou:

— O senhor não se meta!

Otto Germer se encostou no caminhão, junto com uma pequena multidão. O jagunço, mantendo a cara feia, olhava para os lados, avaliando.

— Eu sou deputado, represento essa gente e vou me meter, sim senhor! O nosso amigo aí vai tocar o caminhão e ninguém vai impedir.

O outro jagunço disse:

— É melhor deixar.

— Deixar? Esse capiau não parou na barreira.

— E que direito o senhor tem de fazer barreira? quis saber Armindo.

— Não tem direito nenhum! gritou alguém por detrás da multidão.

— É isso mesmo, disse outro.

Otto Germer chegou-se no jagunço Sergipe e grudou os olhos na sua winchester. Se ele se coçasse, ia levar um manotaço nas ventas para sentir o quanto pesa a mão de um alemão brabo.

— Está bem! fez o jagunço. Podem ir! Mas a gente ainda se cruza!

Os jagunços se afastaram. O caminhão partiu.

— Estes bandidos pensam que são o quê?! disparou Armindo, que ficou alí na rua, rindo e festejando.

Otto Germer também ficou feliz e achou graça. Armindo gostava mesmo de um barulho, era dado a valentias. Uma semana depois, Otto Germer notou um sujeito estranho sentado numa mesa em frente a de Armindo — o homem olhava o deputado, que lia um jornal. Pedira uma cachaça e olhava a cada pouco para a janela. Otto abriu a gaveta do balcão, retirou o trinta e oito, conferiu as balas e viu o jipe amarelo vindo dos lados da prefeitura. Com o trinta e oito na mão, Otto Germer deixou o balcão e foi se sentar ao lado de Armindo, que mal abaixou o jornal. Otto descansou a arma sobre a mesa, armando o cão do trinta e oito. Armindo abaixou o jornal e perguntou:

— Que diabo é isso?!

Otto não desgrudava o olhar da cara do jagunço, que largou o copo de cachaça e abriu as mãos sobre a mesa.

— Já vai saber, deputado.

Armindo olhou para o jagunço e ouviu o ronco do jipe que acelerou forte e chegou em alta velocidade. O jagunço não se mexeu. O jipe freou em frente à porta do hotel e continuou com o motor acelerado. Armindo olhava para o homem que estava no jipe. Otto Germer apontava o revólver para a testa do jagunço. Este levantou com muito cuidado, e, com as mãos à mostra, foi andando de banda até a porta, de onde correu para o jipe. Logo havia apenas poeira ao final da rua.

Otto Germer e Armindo Tomelin se olharam em silêncio. Só depois de um tempo foi que seu Léo, o barbeiro, sentado na mesa ao lado, conseguiu suspirar:

— Essa foi por pouco.

Armindo colocou a mão no ombro de Otto Germer e agradeceu:

— Obrigado.

Otto resmungou:

— Se cuide.

Ainda sentado na cadeira junto à janela, Otto Germer pensava que ele era mesmo um alemão burro, que se imaginava capaz de desconfiar das manhas dos jagunços. Tolice. No dia anterior, os jagunços haviam entrado no hotel e, mandando que ele levantasse os braços e não se fizesse de besta, vasculharam todos os quartos. Graças a Deus, havia pensado, que Armindo ainda não chegara. Mas ele errara. Não era Armindo que eles queriam. Queriam Pedrinho Barbeiro, pois foram primeiro no quarto dos fundos, justo o que ele usava quando ficava em Pato Branco.

Mas só agora, sentado naquela cadeira que parecia aprisionar seu corpo, entendeu o acontecido. Se fosse de fato um sujeito esperto e não um alemão burro, teria avisado Pedrinho, impedindo sua morte. Fechou os olhos e pensou: o demônio é assim mesmo, Otto, nunca se sabe onde e como ele vai atacar. Esta é a arte do demônio: aparecer e desaparecer, semelhar uma coisa e ser outra, fazer com que se acredite que ele não virá, que ele não matará, que ele não existe. A arte do demônio: parecer outro, pensou Otto Germer, sem forças para erguer-se e cumprir, como fazia há tantos anos, o mesmo ritual.

 

A TRISTEZA DE JOANIN acabou virando uma doença esquisita, deixando o pobre homem irreconhecível, sempre com uma dor lhe doendo na cabeça, por cima dos olhos, na nuca, descendo pelas costas, feito essas dores de mulher, pensava agoniado. Sem entender o que estava acontecendo, donde vinha aquela mania de falar baixo, quase resmungando, de fumar palheiro pelos cantos, meio escondido, desinteressado de tudo, já nem sabia direito se no dia seguinte ia fazer sol ou chuva e descuidava dos animais e da plantação, deixando de encontrar com os amigos no armazém de seu Liseu. Não jogava bocha fazia um par de dias e, desgraça final, nem mesmo para os filhos conseguia dar a atenção devida, sempre pensando em outras coisas, sempre achando que não daria tempo, que havia alguma coisa urgente para fazer, a impressão atrapalhada de que esquecera de terminar um serviço e no entanto ficava mesmo parado, fumando, coçando a cara, soltando um pigarro seco que não conhecera nunca, os problemas se ajuntando a sua volta. Nego Berto andava preocupado com a doença de uma égua, com a limpeza do chiqueiro, com o que precisavam comprar ou vender, enquanto Cidália ia e vinha com a criança no colo, num dia era dor de ouvido, noutro era diarréia, noutro estavam todos sorrindo ao seu redor e ele com a mesma cara de palerma, o mesmo desânimo, até custava a abrir os olhos, a luz andava ofuscando suas vistas, as costas sempre doendo, era mesmo uma doença esquisita, parecia coisa de mulher, pensava agoniado.

Não é vida, repetia pelos cantos, cuidando para que ninguém ouvisse, não querendo fazer mal aos filhos, à mulher, ao negro — não é vida. Nego Berto tentava inventar coisas para distraí-lo, convidava pro jogo de bocha, contava anedotas que ouvira no armazém de seu Liseu — todo mundo sentindo sua falta, seu Joanin — e ele ria e agradecia ao negro, mas não se animava. Quando nada adiantava, o negro recorria ao golpe que atingia fundo na alma de Joanin — trazia o filho, Alberto, alegando que o menino queria o pai, que estava com sono, que pedira um colo. Joanin sorria e aceitava a matreirice do negro, e só de olhar para o filho já estava rindo também, já era capaz de falar numa língua maluca que inventava, feito aquela língua de macumba que Nego Berto vivia falando com o menino, saía trotando com a criança no colo até que Cidália gritasse lá da casa: cuidado, homem! um neném pequeno destes! Neném pequeno: cinco meses e meio. Já dava risada, já reconhecia as birutices de Nego Berto, estendendo os braços para o padrinho quando ele anunciava bagunça. Isso era vida, pensava Joanin, vencendo a agonia. Também era vida se meter num jogo de bocha, tocar sanfona nas festas da igreja, comer churrasco nos jogos de futebol na fazenda Horizonte. Mas tudo isso acontecia cada vez menos. Todo mundo andava com medo, escondido em casa, a cada dia aparecia um morto boiando no rio Iguaçu, um espancado na beira do mato, nunca se sabia quando os jagunços iriam voltar. Nas reuniões dos colonos, Pedrinho Barbeiro advertia: olha, eles podem aproveitar briga de futebol para acabar com alguém. E aconteceu: dois foram mortos em Capanema, por besteira de um pênalti não marcado. Foram saber, era a mando das companhias. Então veio o golpe mortal: mataram Pedrinho Barbeiro. Quem trouxe a notícia, como sempre, foi Nego Berto, que chegou em casa meio azul, meio cinza, tinha passado pela casa de Pedrinho e o encontrou morto, nos braços da mulher, os filhos chorando em volta — o negro mal podia falar, as beiçolas frouxas de tanto sofrimento. Disparou em busca de auxílio, deixando Joanin parado em frente da casa, a cabeça doendo, um tremor subindo pelos braços e pelas pernas, mamma mia, pensava, olhando para longe, agora tudo isso vai pegar fogo. Aí não foi mais tristeza apenas, foi doença mesmo. Foi vontade de fugir, de ir embora, de sair dando tiro, de nunca mais colocar os pés naquelas terras que um dia ele pensara ser o paraíso. Se mataram Pedrinho Barbeiro, pensava, vão matar todo mundo. E Joanin sentia um corte frio nas costelas, do lado do coração e lembrava que o avô morrera assim: um dia, voltando da roça, sentara num banco da cozinha, tomara um copo dágua e caíra fulminado. Podiam matar todo mundo, até, Deus o livre, o seu filho Alberto, do mesmo jeito que mataram os filhos de Pedro Saldanha e o cachorro Leão. Joanin pensou muito, não dormiu três noites seguidas, conversou com seu Liseu, quis saber a opinião dos amigos — pensou e repensou. Até o dia em que reuniu a mulher e Nego Berto na cozinha, espantou as filhas para o quintal — Alberto estava dormindo — e declarou o que ia fazer: a gente vai embora pra Argentina.

Levaram duas semanas só discutindo o assunto. A mulher não queria ir, chorou, era apegada aos bichos, ao lugar, os filhos ficariam judiados numa viagem daquelas, dizia, e, depois, quem garantia que iam viver melhor na Argentina, uma terra estrangeira? Joanin garantiu. Muita gente estava indo embora, não seriam os primeiros nem os últimos, e enumerou uma porção de famílias que haviam partido. As terras eram melhores, não havia banditismo, poderiam trabalhar em paz. Não tem banditismo mas tem os gringos, advertiu Nego Berto, que não gostava de gringos. Cidália não argumentava. Apenas chorava e dizia, se é o que tu queres — e ficava olhando com tristeza para além da janela, ia andar pelo terreiro, inventava de olhar a criação de perto, abraçava os filhos com força, como se fosse deixá-los alí abandonados — e era parar num canto qualquer que começava a chorar. Chorava em todos os lugares: fazendo comida, cuidando dos filhos, lavando roupa, ordenhando as vacas, mexendo na terra.

Nego Berto reagiu doutro jeito: terra de gringo, seu Joanin?! De jeito maneira! Gringo não é gente que se possa confiar por inteiro, nem a língua arrevesada deles a gente vai entender direito, mandam os brasileiros fazer serviço de escravo, o compadre pode escrever o que lhe digo. Eu não vou, dizia. Não ia. Então, tu fica, disse um dia Joanin, não sabendo mais como insistir com o amigo e achando que aí mesmo é que não seria vida, enfiado num país de gringos e sem o melhor amigo que fizera no sudoeste. O negro fechou a cara e saiu batendo os pés no chão de tanta raiva. Joanin soube que ele comentou com Cidália: seu Joanin tá querendo se livrar de mim, não quer que eu vá pra Argentina com vocês. Procurou o negro, disse que eram compadres, amigos, eram quase irmãos, como é que estaria querendo se livrar dele? Tinha mais outra bobagem para pôr na cabeça, não? Tava variando, tava? Nego Berto reinou mais dois dias para retomar a conversa e veio com o argumento de sempre: gringos, seu Joanin, gente pior que jagunço. Mas Joanin foi dobrando a teimosia do compadre: ia agüentar longe do afilhadinho? E as meninas, quem faria cavalinho com elas? E Cidália, como ia ficar a comadre? O negro disse que ia pensar, inventou que precisava acertar umas coisas com seu Liseu, e Joanin já calculou, pela pressa com que Nego Berto disparou a cavalo: ia voltar bêbado de novo, cantando em língua de macumba, chorando feito criança, dizendo que todo mundo estava abandonando um amigo. E iria dormir no rancho, como fazia há um par de dias, desde que Joanin tomara a decisão de ir para a Argentina.

Aquelas conversas, preocupava-se Joanin, estavam consumindo tempo demais. Já haviam perdido duas levas de colonos que partiram. Tudo ficou acertado para irem na próxima semana, quando sairiam duas outras famílias. Iriam juntos, assim se protegeriam durante a viagem. No domingo anterior à partida, foram à fazenda Horizonte ver um jogo de futebol e comer um churrasco de despedida. Joanin desempoeirou a sanfona e prometeu tocar como nunca, para deixar saudades. Nego Berto foi proibido de beber e Cidália enfeitou as crianças como se fossem para a missa. Mas a festa foi triste e Joanin achou que nunca tocara tão mal quanto naquele dia. Ninguém se divertiu. Os colonos estavam todos preocupados, cada um comentando uma desgraça, volta e meia alguém contava um caso de morte, de ameaça, de violência. E as notícias corriam desencontradas. Uns diziam que o exército de Santa Catarina estava em Porto União, pronto a intervir, outros contavam que caminhões de soldados amarelos estavam entrando no sudoeste, rumo a Beltrão. E mais jagunços chegavam. Em Pato Branco e Beltrão eles já tinham acampamentos fora da cidade, pois não cabiam mais nas pensões. E as metralhadoras estavam agora de trincheira em frente ao escritório das companhias. Uns queriam fugir como Joanin, outros queriam atacar e destruir os jagunços, outros achavam que o exército ia resolver tudo, como pedia a cada dia o deputado Tomellin, para quem era preciso uma intervenção federal no Paraná, conforme eles ouviam nos programas da rádio Colméia. Agora o Lupión cai, comentavam depois de cada programa. E a polícia amarela, essa não escondia mais de que lado estava: patrulhava o sudoeste ao lado dos jagunços. Em meio a isso tudo, Joanin não conseguiu tocar sanfona direito, mas sentiu que ninguém havia reparado no seu desempenho jaguara, cada um pensando numa preocupação diferente. As crianças, como sempre, é que se divertiram bastante e Nego Berto, desobedecendo as ordens, encheu a caveira de pinga e ficou fazendo discurso por todo lado, prometendo correr com a raça dos jagunços na base do manotaço. No meio da conversarada, Joanin preferiu tomar Alberto no colo e sair passeando com o filho, que era o único realmente feliz.

Voltaram para casa bem mais cedo do que era costume e, apesar dos ralhos de Cidália, Nego Berto veio de porre, cantarolando macumba e dizendo que, se escapassem dos jagunços, iriam morrer nas mãos dos gringos, que eram piores, pois falavam uma língua enrolada de cigano e viviam de tapear todo mundo, aqueles ladrões de erva-mate e de madeira. Ao chegarem em casa, Joanin enfiou a cabeça de Nego Berto numa tina com água fria e fez com que bebesse café sem açúcar. O negro bufava de tão brabo e Joanin dizia: negro safado, não vê que amanhã a gente pega estrada!

 

ZÉ LARA PERGUNTOU:

— Não era um tempo bom?

Balançou a cabeça:

— Era.

Bom tinha sido, pensou, o tempo em que aqueles barulhos no quarto ao lado indicavam que Isabel estava preparando a comida. Logo apareceria na porta com um daqueles vestidos coloridos. Bom era quando ela o tratava como um filho, cheia de cuidados, lembrando do dia em que o encontraram todo sujo, olho inchado, bêbado, baleado no peito e quase morto. Parecia um pobrezinho, ela dizia.

— Tu era um moleque, disse Zé Lara.

E fez a pergunta que Índio não queria ouvir:

— Por que tu sumiu?

Quase tudo que sabia, aprendera com Zé Lara, que, além disso, o livrara da morte e da bebedeira. Funcionara como um pai, mas Índio nunca soubera se ele fazia aquilo por gostar dele ou por insistência de Isabel.

Olhou Zé Lara de lado, sabendo que o outro poderia adivinhar a mentira, e disse:

— Loqueira.

Um balde de água foi despejado da janela do quarto ao lado.

— Loqueira, repetiu Zé Lara.

Antes que ele continuasse com aquela conversa, Índio perguntou:

— O que vou fazer?

Zé Lara virou o resto da cachaça e remexeu os beiços com prazer. Disse:

— O doutor te acha útil para um serviço especial. O sudoeste é muito grande. Coisa imensa. Conto com mais de cinqüenta homens, mas falta comando.

Zé Lara pareceu sentir o traço de deboche no riso de Índio e completou:

— Gente de confiança. Se eu mandar matar, eles matam.

Índio recuperou o sorriso pálido:

— E se mandar que morram?

Zé Lara achou graça, encheu novamente os copos:

— Não de tanta confiança.

Uma panela caiu no quarto ao lado. Índio evitou olhar para a cortina.

— Vou te dar um comando para percorrer o interior. Fazer o giro, tu sabes. Conversar com os colonos, levar os contratos para assinarem. Se não assinarem, voltar lá. Na terceira vez é proibido ser gentil.

Lá fora a música foi interrompida pelo estouro de vários foguetes.

— Viva a Citla! Viva a Comercial!

Novos foguetes.

— Por que a festa? quis saber Índio, lutando para não lembrar do dia em que ficara com febre e Isabel se debruçara sobre ele, passando uma toalha morna em sua testa, os seios dela roçando em seus braços, aquele cheiro de mulher.

— Sempre tem festa por aqui, disse Zé Lara. Hoje foi liberada, pelo governador, a titulação de terras na região. Amanhã pode ter festa de novo. As companhias querem sempre uma festa. Para mostrar quem manda e quem está ganhando a questão na justiça, diz o doutor Rabello.

— Bom sistema, comentou Índio.

Quando Zé Lara recebeu uma bala no pulmão, eles ficaram sozinhos em casa por duas ou três semanas. Um dia Isabel se trancou no quarto, chorando. Índio abriu a porta, chegou perto dela e, quando ela queria apenas chorar no seu ombro, ele lhe deu um beijo na boca. Ela reagiu: não faça isso! Não faça isso! E o expulsou do quarto. Passaram dias sem se falar, um em cada canto da casa, esperando notícias de Zé Lara. Uma semana depois, vieram avisar que Zé Lara estava bem e que voltaria para casa no fim do mês. Foi só neste dia que Índio entendeu o perigo que haviam corrido: se Zé Lara morre, o que seria deles? Sentou-se na cama e ficou parado, cismando. Ficou assim a tarde inteira, enquanto lá fora chovia e da cozinha vinha o cheiro de comida. Era tardinha quando Isabel abriu a porta e veio abraçá-lo. Desculpe, disse, desculpe. Ele fechou os olhos, abraçou as pernas de Isabel e enfiou o rosto nas flores vermelhas e amarelas de seu vestido. Fiquei tão feliz, disse ela. A pele de Isabel era macia e os pelos da perna eram ásperos. Eu também, disse ele. O cheiro, pensa, aquele cheiro.

Outro foguete. A sanfona e a zabumba iam a todo vapor. Zé Lara ergueu o copo de cachaça e ficou sério:

— Um brinde, disse.

Índio lembrou de outros tempos e ergueu o copo:

— À morte!

Zé Lara recolheu o copo. Não bebeu.

— Que foi? perguntou Índio.

— Isso de morte.

— Desculpe. Mas não é nisso que a gente trabalha? Não era assim que a gente fazia no norte?

— Não brinca, Índio — Zé Lara colocou o copo sobre o cepo e endureceu a cara.

— Não é brincadeira.

— Pior ainda — Zé Lara falou como quem passa uma recomendação que não deve ser esquecida — Há muito dinheiro nessa coisa, Índio. Eu vou ganhar muito dinheiro neste sudoeste e, tendo juízo, tu ganhas também. Só tem um negócio — Zé Lara adiantou o tronco, a mão apoiada no joelho — tu sabes que eu não vou deixar ninguém estragar meus planos, não é?

Índio esticou o sorriso:

— Calma, homem. Eu também estou por dinheiro.

Zé Lara riu alto, bateu com a mão no joelho e apanhou o copo de cachaça:

— Tu? Por dinheiro? Não. Tu nunca pensou em dinheiro. Te falta juízo.

— Agora penso.

— Não. Por dinheiro não virias pra cá.

Índio não quis provocar mais. Aproveitou para virar outro trago.

— Me diga: por que tu veio?

O sinal, pensou Índio, e colocou o copo no cepo.

— Não tinha lugar de sossego. Polícia e capanga me perseguindo dia e noite. Por isso vim, me disseram que aqui polícia e jagunço é uma coisa só.

— Pode que seja. Mas por que não ficou na Argentina?

— Não gosto de gringo.

— Disso eu sei. Mas eu te conheço. Tu gosta de sarna pra te coçar. Gosta de arriscar. Tu não funciona pelo dinheiro.

— E tu?

— Já fui assim. Um louco.

— Lá no norte?

Zé Lara percorreu a barba com o indicador, ficou coçando o queixo.

— Naquele tempo. Agora, não.

— Mudou — disse Índio.

— Mudei. Mas te digo uma coisa: te chamei por que preciso de alguém de confiança. E te dou as garantias: aqui ninguém vai te perseguir ou tocaiar. Aqui tu é livre. Mas tem uma coisa: não tenho mais gosto por atrevimento de guri cheio de vontades. Dá um jeito de ser comportado, ou...

Índio retesou o pescoço e pensou que se não fosse Zé Lara que estivesse na sua frente, aquele homem já estaria com um balaço no meio dos cornos. Examinou as paredes do barraco e não viu nenhuma arma apontando para a sua cabeça.

— Ou... — ficou esperando.

— Tu sabes que é a última coisa que eu gostaria de fazer, mas... mando te matar. Quer dizer, eu mesmo te mato, pois isso não é serviço pra qualquer um — Zé Lara tentou sorrir — Veja bem. Eu quero sair daqui com o bolso forrado de dinheiro. É bom ter juízo.

— Tem perigo não, abrandou Índio. Eu mudei — mudei tanto, pensou, que, apesar das besteiras que estas dizendo, ainda não te meti uma faca na barriga e não te tirei as tripas para fora — Vou cuidar da minha vida e do meu bolso. Quando isso terminar, me enfio mesmo na Argentina. Com dinheiro no bolso, a gente dobra os gringos.

— Bom, agora vamos ao brinde, disse Zé Lara.

Bateram os copos e no quarto ao lado houve um barulho de pratos e talheres. Zé Lara percebeu a curiosidade de Índio, olhou para a porta que dava para o quarto e explicou:

— A gente tem uma boa tropa por aqui, gente firme. Mas me falta chefia. Acontece que estes homens — espichou o beiço na direção do galpão, onde a dança ia solta — são de coragem, mas pensam muito na própria pele. Se a colonada pegar em arma, não sei.

— Pensam em dinheiro — provocou Índio.

— É — fez Zé Lara, sentindo o golpe — pensam em dinheiro. Assim, tu fica numa chefia. Nas outras ficam o Sergipe e o Maringá. Mas, fora isso, tem um serviço especial pra ti.

— Que serviço?

— Tem tempo. Depois, quando for hora, te digo.

Quando for hora, pensou Índio, vendo os dedos com unhas pintadas de vermelho que afastaram a cortina. É ela, pensou. O cortinado abriu e a cara enrugada de uma velha sorriu sem dentes:

— Boas noites.

Não respondeu. Mal conseguia respirar.

— Que foi? Tá sentindo mal, moleque? perguntou Zé Lara, usando o tratamento de anos atrás.

O suor molhou sua testa e a mão tremeu.

— Não, disse.

— Tu já é branco, ficou transparente.

Índio tragou o ar numa golfada seca e disse:

— Preciso dormir. Onde é que fico?

Zé Lara tornou a perguntar:

— Tá doente?

— Não, não — ergueu-se e perguntou: Onde fico?

Zé Lara indicou a velha:

— Tia Honorina pode trazer uma comida. Não quer?

— Não.

— Tá bom, tá bom — fez Zé Lara, chamando um dos jagunços que ficara guardando a porta: Leva o Índio na pensão.

Índio saiu porta afora e não ia olhar para trás, mas Zé Lara chamou:

— Cedinho eu passo na pensão.

Índio olhou para trás:

— Tá certo.

A velha aproveitou para sorrir:

— Boa noite, meu filho.

O sinal, lembrou, fechando a capa negra em torno do corpo. Ao atravessar o galpão, a música rateou no ritmo e a dança parou. Mas ele não viu nem ouviu nada. Velha desgraçada, pensou.

 

MIGUEL VIU NOS OLHOS DE IRMÃ TEREZA uma agitação que não combinava com a disciplina germânica.

— Ele escapa, doutor?

— Escapa, disse.

Não tinha certeza, mas era melhor deixar a irmã tranqüila. Ela examinava o corpo inerte do balseiro.

— Ainda ontem ele esteve aqui. Veio procurar matrícula para a filha de um compadre.

Miguel também olhou mais uma vez para o balseiro. Era uma espécie de chaga, agora remendada pelo curativos e dopada pelos remédios. Quando chegou ao colégio tinha o rosto em carne viva, as costas desmanchadas em sangue. Nem irmã Tereza o reconheceu. Veio dependurado nos braços de dois homens, seu Célio e Manoel Sapateiro, que deram com a balsa à deriva no rio Marrecas, o corpo largado de bruços.

Os dois homens contaram o que o balseiro lhes dissera antes de desmaiar: os jagunços. Foram buscá-lo em casa, queriam atravessar o rio àquela hora, ele não quis atender — apanhou de corrente, foi arrastado até a balsa, terminaram de surrá-lo quando chegaram ao outro lado. Depois devem ter jogado o corpo na balsa, que soltaram na correnteza.

— Vou mandar uma ambulância para levar seu Lulu para o hospital. Não se preocupe, irmã.

Antero estava no mesmo lugar — ao lado da porta, a winchester na mão, esperando.

— Vamos, disse Miguel.

Montaram nos cavalos, mas Miguel corrigiu o caminho:

— Por aqui.

Antero sacudiu-se de tensão.

— Vamos até a casa de Zé Miro, explicou Miguel.

Antero fechou a cara e seguiu Miguel com a winchester em ponto de tiro.

Zé Miro abriu a porta segurando uma vela e resmungando que era bom terem um bom motivo para tirá-lo da cama àquela hora. Miguel contou o caso do balseiro.

— Diabo, fez Zé Miro. Um homem que não fazia mal a ninguém.

Antero achou de dizer, como se ralhasse com o balseiro:

— Morava sozinho na beira do rio.

— É, fez Miguel. Se eles se dão este direito, não vão respeitar mais nada daqui para a frente. Eu acho que chegou a hora. Ou a gente corre com esses jagunços, ou estamos perdidos.

Combinaram o que fazer.

Antes de mais nada, acordaram Ismael e gastaram mais de meia hora redigindo uma declaração a ser lida na rádio. No dia seguinte, bem cedo, iriam ter uma conversa com o delegado Piva e com o juiz. E Zé Miro iria a Pato Branco.

Enquanto Ismael, às sete horas, abria o programa de notícias da rádio Colméia, Miguel e Zé Miro chegavam à delegacia. Deixaram Antero junto à porta, trocando olhares com um grupo de policiais, e entraram na sala do delegado, que se espantou:

— A essa hora? O que houve?

O delegado balançou o corpo e largou um olhar rápido através da janela. Viu seus homens enfileirados, encarando Antero.

— O senhor já vai saber o que houve, disse Zé Miro, ligando o rádio que estava sobre o balcão. Escute.

A voz de Ismael, treinada em festas de igreja e em alto-falantes de rodeio, era ardida e saía aos trancos, o que lhe dava um grande sucesso na região:

"Mais um ato de violência acaba de sacudir o sudoeste. Seu Luciano Rodrigues, o Lulu da Balsa, conhecido por todos nesta cidade de Beltrão, foi na noite de ontem vítima de um ataque brutal por parte de dois famigerados jagunços, destes que nos últimos tempos infernizam a vida da região. Pois bateram em seu Lulu com as mesmas correntes com que o pobre trabalhador prende sua balsa às margens do rio Marrecas, no qual trabalha honestamente todos os dias para ganhar o seu sustento. E a sanha assassina dos bandidos, que largaram seu Lulu, inconsciente, sobre a balsa que vagava sem rumo pelo rio, foi provocada porque o balseiro, já esgotado pela lide de um dia de trabalho, não quis atravessá-los àquela hora tardia. Mais uma violência. Talvez mais uma morte, pois, segundo o doutor Miguel, que atendeu o balseiro no Colégio Santa Catarina, para onde ele foi levado por Célio Floriani e Manoel Sapateiro, a vítima ainda corre grave risco de vida. Fica a pergunta..."

Zé Miro abaixou o volume. Piva sentara na mesa e escutara com os olhos pregados no chão. Quando Zé Miro se plantou a sua frente, ao lado de Miguel, ele os encarou:

— Vão dizer que tenho algo a ver com isso?

Zé Miro deu na bucha:

— Pois tem.

Piva enfiou o punho na direção de Zé Miro:

— Não seja abusado! Eu sou uma autoridade e não aceito molecagem!

— Se é autoridade, prenda os jagunços.

— Ora, os jagunços! Primeiro, é preciso provar que foram os tais jagunços. Depois, descobrir quem são eles. Quem prova que foram eles?

— Esse é o seu trabalho, delegado.

— O meu trabalho! Eu devia lhe meter a mão na cara!

Miguel interferiu:

— Talvez o senhor não tenha parte nisso, delegado. Mas está ficando cada vez mais difícil explicar ao povo porque estas violências continuam sem que ninguém seja preso.

— Eu sei perfeitamente disso! — Piva, que não desligara sua atenção do rádio, estendeu a mão e aumentou o volume: "...assim, conclamamos toda a população a exigir das autoridades o cumprimento da lei. O vereador José Teixeira Miranda hoje mesmo estará encaminhando na câmara de vereadores de Beltrão um pedido de investigação das atividades das autoridades policiais no que se refere..."

— Isso não vai dar em nada! disse Piva para Zé Miro. É pura demagogia! Vocês sabem que não é assim que se decide esta questão.

— Nós queremos apenas... — começou Miguel.

— Vocês querem é tumultuar! Querem é seguir com essa coisa de comunistas! De separatistas!

Piva atravessou a sala, gritando:

— Sargento! Sargento!

O sargento apareceu na porta, mas veio espetado pelo punhal de Antero, que apontava a winchester para os outros policiais.

Piva olhou para Miguel e Zé Miro. Disse, como se mordesse os próprios dentes:

— Vocês estão saindo dos limites! Saiam daqui! Já!

Antes de saírem, Miguel recomendou:

— Acho bom o senhor escutar o resto da transmissão. É pra valer.

Vieram pelo corredor, protegidos por Antero, que continuava com o sargento espetado no punhal. Quando chegaram ao jipe, mandaram os outros policiais entrarem na delegacia. Miguel ligou o motor. Só então Antero largou o sargento. O jipe disparou na direção da rádio.

 

NO ESCURO, MAL SE DISTINGUIA O CASEBRE.

— Naquela baixada, disse Sergipe.

— Desgraceira de fim de mundo, rosnou Índio.

Percorreram os últimos metros quase de cócoras, evitando fazer ruídos, os olhos acesos de Sergipe indicando o caminho mais adequado. Índio já não reclamava. Era preciso ficar atento ao perigo, cuidar de cada movimento, a respiração suspensa.

O casebre estava quase todo coberto pela vegetação. Apenas uma porta e uma janela.

— Romário!

O rio Marrecas brilhava por detrás das árvores. Bateram na porta. Silêncio. Sergipe tornou a bater e, com a batida, a porta se abriu.

— Ninguém, disse Sergipe.

Quando Índio se virou, já era tarde. O vulto que ele pressentira já estava atrás deles:

— Procurando alguma coisa?

Romário apontava a espingarda para eles.

Sergipe abriu os braços:

— Êpa! recebe os amigos com tocaia?!

Romário perguntou:

— A que vêm numa hora destas?

— Calma, é coisa de paz.

— Quem é o grandão?

— É o Índio.

— Índio? — Romário pareceu curvar-se na escuridão — Então tu não morreu, desgraçado?

Índio tentou dar um passo à frente, mas Romário impediu:

— Cuidado! Fique aí mesmo.

Índio não se mexeu.

— Não morri, não. E vim te dar um abraço.

— Tá certo. Mas fica aí. O que vocês querem?

— Nada. A gente veio te ver.

— Aqui ninguém visita ninguém, disse Romário, a não ser quando tem alguma encomenda.

— Pois eu tenho este costume. Visito por visitar.

— Sei disso, fez Romário. Visitavas muita gente lá no norte...

Sergipe se irritou:

— Não confia...

— Confio, sim. Nasci abusado. Tu tá querendo me fazer de bobo. O Zé Lara mandou me pegar, não é?

— Quem te disse isso?

— Eu sei. Pelo faro. Sou jagunço velho.

Índio perguntou, apontando uma árvore caída:

— Posso sentar? Essa conversa de vocês tá demorada.

— Deixa a mão bem à vista.

Índio sentou-se, as mãos abertas sobre os joelhos, as palmas voltadas para cima.

— Não! — Romário gritou, apontando a espingarda para a cabeça de Sergipe — Tu fica aí mesmo. E fica em linha, que eu pego vocês dois num tiro só se alguém se coçar.

— Se querem te pegar — Índio perguntou — por que tu não foge?

Romário estalou a risada:

— Tu ficou besta com a idade, é? Te desconheço. Tem para onde fugir?

Índio balançou a cabeça:

— Tem e não tem.

— Pois então. Perdida a confiança, a gente descobre que é mesmo um jagunço. Não passa de jagunço. Mata aqui, morre alí. Perdeu a confiança ou a serventia, tá morto.

— E onde vais viver?

— Aí, fez Romário, apontando o casebre. Onde seria?

— Ficas aí pro resto da vida?

— Pode que sim. Pode que não. Antes quero receber o meu prometido. Depois, me enfio no mundo.

— E se eles te pegam antes disso?

— Faz parte. E não te mexe! gritou, apontando Sergipe.

Sergipe ergueu os braços.

— Besteira a gente ficar brigando — disse Índio — A gente é da mesma vida.

— Aí é que tu te engana, disse Romário. Ninguém aqui é da vida do outro. Cada um na sua vida. É da regra. A gente vende a alma pro diabo, depois não pode mais reclamar: é cada um no seu caminho. Ou mata ou morre. É da regra.

— Não, disse Índio, sabendo que o outro estava certo, a gente é igual. Eu vivi fugido, não fujo mais. Quem sabe se a gente fala com o Zé Lara...

— Aquilo lá é o diabo em forma de gente! disse Romário. Tu ainda vais ter a tua hora de saber disso. Escapou lá no norte, fugiu feito cagado, não vai escapar aqui não. Não pensa que ele gosta do enfeite que tu colocou na cabeça dele. Ele te pega. Ele tá esperando. Ele sabe fazer a morte do jeito dele.

Índio sentiu o arrepio gelado e o corpo endurecer. Fechou os punhos: o sinal, pensou.

— Acho bom tu cuidar com o que fala, disse.

Sergipe intrometeu-se:

— Calma. A gente te ajuda a fugir, Romário.

— Não. Eu me viro. E só saio com o dinheiro prometido.

— É muito? quis saber Índio.

— É meu, disse Romário.

— E se não te derem? perguntou Sergipe.

— Levo uma dúzia e meia comigo pro inferno.

Ficaram em silêncio.

— Bom, disse Sergipe, a gente vai indo. A gente só queria te ver.

— Não minta, homem. Tu veio me matar. Tu e mais essa assombração aí.

Romário firmou a espingarda e colocou os dois numa reta. Cuidado, disse, e foi a última coisa que disse antes de Índio se levantar e sacudir o braço em sua direção. O punhal voou direto do peito de Romário. Ele deu uma golfada surda e caiu, disparando a winchester na queda. Índio abaixou-se sobre o corpo, retirou o punhal, que limpou na camisa do morto, e disse:

— Filho da puta. Foi pro inferno sozinho.

Amarraram o corpo de Romário pelos pés e pelas mãos e desceram o barranco, até o rio.

— Aqui? perguntou Índio.

— Aqui, disse Sergipe.

Ataram uma pedra nos pés do cadáver e, com dois embalos, o atiraram no rio, que corria forte, agitado pela cheia.

— Pronto. Vamo embora, disse Sergipe.

— Caminhar tudo de volta? reclamou Índio, desanimado.

— Não. Agora a gente atravessa o rio. Mais uns trezentos metros mora o balseiro. Vamo lá acordar o puto.

 

OTTO GERMER só conseguiu se livrar daquela cadeira quando viu o caminhão da prefeitura apontar no final da rua. Lá vem o corpo do Pedrinho, pensou, sem acreditar no que estava pensando, sentindo o rosto arder num redemoinho de febre. Levantou-se e passou a mão nos braços, no rosto, no peito, na nuca, nas pernas, tentando se livrar de algo que ainda o prendia àquela cadeira. Caminhou na direção da rua e, quando descia o alpendre, o caminhão passou em frente ao hotel. Antenor Rizzi estava empoleirado na carroceria e, de Zé Rocha e Marinho Neves, ele só viu a tampa da cabeça e as mãos segurando as espingardas. Armindo Tomellin, ao lado do motorista e de Nego Berto, ergueu a mão e fez um aceno cansado, como se quisesse, à distância, colocar a mão nos seus ombros e dizer: força, alemão. O caminhão avançou na direção da prefeitura. Lá no fundo da carroceria, pensou Otto Germer, sem acreditar no que pensava, ia o corpo do amigo.

Na primeira casa após o hotel, dona Virgília abriu a cortina e espiou o cortejo com seus olhos quase cegos. Eram olhos enormes, de um azul muito claro, agora aumentados pelo medo — olharam para os vultos no caminhão e tornaram a sumir na escuridão da casa. Um homem magro, seu Olegário, telegrafista aposentado, abriu a porta, pôs meio corpo para fora, retirou o chapéu e o colocou contra o peito — mas logo recuou e fechou a porta. Em outras casas, Otto Germer viu se repetir a mesma cena: as cortinas entreabertas, os olhos medrosos, esvaziados, as portas abrindo e fechando, uma criança que foi agarrada pelo braço e colocada para dentro.

Agora a poeira erguida pelas rodas do caminhão, que seguia muito lentamente, era pouca. Antenor Rizzi continuava empoleirado na carroceria, mas a cada momento parecia dobrar-se sobre si mesmo, fechar os olhos, os braços enroscados na winchester. Está chorando, pensou Otto Germer, que não conseguia chorar.

Fez um esforço para pensar em Pedrinho morto, mas não conseguiu. Lembrou do primeiro encontro com o amigo. Foi há uns oito anos, na entrada da prefeitura. Ele era um caboclo baixo, magro, com dois olhinhos agitados na cara de meio índio, meio negro, meio brasileiro. Se aproximou, examinando para os lados, tirou o chapéu e perguntou a Otto Germer:

— Aqui é a prefeitura?

— Bom, disse Otto, brincando com o caboclo assustado, pelo menos é a única da cidade.

Pedrinho aceitou a brincadeira e riu. Otto se apresentou:

— Desculpe a brincadeira. Meu nome é Otto. Otto Germer.

— Não foi nada, disse Pedrinho, coçando a cabeça por cima da orelha, encabulado.

— Tá chegando agora?

— Sim.

— É de onde?

— Daqui de perto, pra cima um pouco do Verê.

— E nunca tinha vindo aqui?

— Não, senhor. Na prefeitura, não.

— Deixe isso de senhor.

Pedrinho explicou que precisava saber da demarcação de umas terras, ia casar e queria trazer a família mais para perto, para umas terras que eram do seu pai, o senhor talvez conheça, o velho Santoro.

— Êpa! fez Otto, quem é que não conhece o velho Santoro! Já quis me converter um par de vezes.

— O pai é assim, disse Pedrinho.

— Bom homem, fez Otto — apanhando o braço de Pedrinho e o conduzindo ao interior da prefeitura. Apresentou Pedrinho aos funcionários: — Esse é o filho do velho Santoro.

Agora Otto Germer pensa: como estaria o velho Santoro? Será que disseram a ele que o filho está morto? Otto tentou se envolver com estas dúvidas, mas foi inútil: o caminhão estacionou em frente à prefeitura, quase no mesmo lugar em que encontrara Pedrinho pela primeira vez, há oito anos. Armindo Tomellin saltou do caminhão, bateu a poeira do paletó e do chapéu e disse para Otto Germer: era verdade mesmo. Confessou que fizera a viagem até a casa de Pedrinho sem acreditar nas notícias de Nego Berto, devia haver um engano, vai ver que Pedrinho estava apenas ferido, tudo não passando de exagero do negro. Mesmo depois, quando viu o corpo de Pedrinho, continuou sem acreditar. Otto Germer também não acreditava. Observou os três homens descerem do caminhão, soltarem os pinos de ferro, liberando as laterais da carroceria. Lá estava Pedrinho Barbeiro deitado direto sobre o madeirame, o rosto virado na direção de Otto Germer, os olhos bem abertos, mas sem o brilho e a agitação de sempre. Maria e as crianças desceram ajudados por Armindo e Zé Rocha. Otto Germer colocou as mãos no rosto e só então chorou.

O caixão foi colocado na sala da frente, entre um arquivo e duas escrivaninhas, que foram afastadas. Maria, rodeada pelos cinco filhos, sentou-se num banco colocado ao fundo e ficou acompanhando o movimento dos homens como se não soubesse o que estava acontecendo. Alisou a cabeça do filho menor, ajeitou a blusa da filha, disse ao filho mais velho para ceder o lugar no banco a Otto Germer, que agradeceu e ficou de um lado para outro, querendo sair, querendo fazer alguma coisa que não sabia o que era, e acabou aceitando o lugar no banco quando sentiu as pernas tremerem além da conta. E alí ficou com a mesma cara de quem não acredita no que vê, de quem não tem a menor idéia do que está acontecendo. O caixão foi colocado sobre dois cavaletes e os homens trouxeram o corpo de Pedrinho. Maria soluçou, as crianças abriram a boca, espantadas, Otto Germer cruzou e descruzou os braços e as pernas, viu Armindo passar mais uma vez e mais outra vez a sua frente, sempre mais agitado, dando ordens, tomando providências. Que estaria acontecendo com Armindo? perguntou-se Otto Germer. Olhou através da janela e viu a rua deserta, as casas em torno da praça com as janelas e as portas fechadas. Pensou: bando de covardes. Foi preciso que matassem Pedrinho Barbeiro para que eles se sentissem ameaçados e acreditassem no perigo. Há muito tempo que ele vinha falando sobre as violências, as mortes, as expulsões de colonos. Mas era como se ninguém quisesse acreditar. Uns poucos se reuniam, discutiam, achavam que era preciso tomar providências, mas as pessoas julgavam que não era com elas. Os políticos diziam que aquilo passaria, o sudoeste sempre fora violento, o resto era invenção de comunistas e separatistas. Os padres evitavam o assunto, repetiam as caras beatas que tanto irritavam a Otto Germer, e continuavam freqüentando a casa dos poderosos da região. O prefeito fazia pouco caso. Só o promotor parecia compreender a gravidade da situação. Agora todos acreditariam. À custa de medo e morte. Se escondiam atrás das cortinas, fechavam as portas, no velório mesmo só estavam os filhos de Pedrinho, sua mulher, os homens que foram buscar seu corpo, Armindo. Lá fora apenas o calor, a poeira, o silêncio. O sol batia bem de frente na parede branca de uma casa no outro lado da praça e os olhos de Otto Germer ardiam. Um dos filhos de Pedrinho tropeçou no seu pé e ele segurou a criança ainda no ar, evitando que se machucasse. Maria ralhou com a criança, ajeitou sua roupa e, olhando para ele, disse: ai, seu Otto, que dor.

O enterro saiu quando já era tardinha. Maria ficou um tempo debruçada sobre o caixão, o filho menor no colo, beijou o marido pela última vez e se afastou, amparada por Armindo. Otto Germer perguntou se ela queria um pouco de água, ela disse que não carecia, os homens fecharam o caixão. Foi então que todos viram o jipe surgir no meio da poeira e frear em frente à prefeitura. Logo a voz estridente de Gaúcho já estava no corredor, perguntando sem parar: é verdade? foi ele mesmo?

Gaúcho entrou na sala e pediu aos homens para que abrissem o caixão. Parou ao lado do amigo morto, conferiu seu rosto, não acreditou — meu Deus, é mesmo o Pedrinho que está deitado aí — e assim ficou um tempo, apoiando-se no cavalete, sem dizer nada.

Otto Germer levantou-se, abraçou Gaúcho: venha. Gaúcho olhou o amigo pela última vez e disse:

— Eles não podiam, não podiam, não é, seu Otto?

— Não podiam.

Dirigiram-se ao banco onde estava Maria. Os homens fecharam o caixão.

Logo o sol iria se pôr, mas ainda fazia muito calor quando o enterro saiu. Otto Germer segurava numa das alças do caixão e Gaúcho ia no outro lado, ajudando a viúva a caminhar. As ruas estavam desertas, as janelas continuavam fechadas, uma ou outra cara espiava por detrás das cortinas. O cortejo contornou a praça, fazendo questão de passar em frente do escritório da Citla, que estava fechado, os funcionários haviam sumido ainda pela manhã. Subiram na direção da igreja, ao lado da qual ficava o pequeno cemitério. Gaúcho passou a alça do caixão a Antenor Rizzi e gritou:

— Esperem!

O cortejo parou. Gaúcho correu na direção da igreja, subiu as escadas que levam à torre e tocou o sino com violência. Depois colocou a cabeça para fora da janela e gritou:

— Saiam de casa!

As janelas e portas continuaram fechadas. Gaúcho se dependurou novamente na corda e o sino voltou a soar. Tornou a aparecer na janela:

— Saiam! Venham ao cemitério!

Foi a vez de Armindo Tomellin ser substituído na alça do caixão. Parou ao pé da torre e gritou:

— Desce, Gaúcho!

Ele não respondeu. Tornou a balançar o sino e a gritar:

— Todo mundo pra rua!

O sino seguia balançando, furioso, e Armindo pediu:

— Desce.

— Veja! apontou Gaúcho.

Dois homens vinham subindo a rua na direção da igreja. Várias portas se abriram e logo três pessoas atravessavam a praça: um homem e duas mulheres. Não demorou para que a rua se enchesse de gente, enquanto ainda sobravam no ar restos de som de sino.

 

ROMÁRIO PAROU DE CAVAR e enxugou o rosto com as costas das mãos. Disse:

— Por que os caras não abrem o portão de uma vez, hein?

Zé Lara olhou-o com ódio:

— Cala a boca e cava.

— Palhaçada, resmungou Romário, batendo com a pá contra a parede.

Zé Lara foi olhar o pátio. O Velha voltava, capengando e com as mãos no bolso, como sempre.

Às suas costas, Romário perguntou:

— Tu acha que isso vai dar certo?

— Cava, disse Zé Lara.

— Isso não vai dar certo. A gente sai daqui, faz uns serviços para eles, depois trancafiam a gente de novo.

— Eles garantiram, disse Zé Lara, querendo acabar com a conversa.

— Eles sempre garantem. E a gente tá aqui faz um tempão.

— É, mas vamos sair.

— Depois matam a gente.

— Não. Desta vez é trabalho grande — Zé Lara decidira que aquele seria o último trabalho de sua vida de jagunço. O sudoeste ficava encostado no Paraguai e na Argentina e, quando terminasse a encrenca, fugiria para nunca mais voltar, os bolsos forrados de dinheiro.

— E se for armadilha?

— Porra, seu merda! Se não topa, fica aí mofando nesta jaula, mas não me enche o saco!

Romário enfiou a pá na terra com violência.

O Velha chegou arrastando as pernas. Sentou-se ao lado de Zé Lara.

— Vão transferir o Sergipe. Vem depois do almoço.

— Tá bom, fez Zé Lara.

Entregou um saco de aniagem para o Velha segurar e começou a juntar terra com as mãos. Perguntou a Romário:

— Por que parou de cavar?

— Tô pensando.

— Tu anda pensando demais.

— Por que escolheram a gente?

— Eles não te escolheram. Eu te escolhi.

— Sei. Mas, se te escolheram, me escolheram também.

— Tem tanta certeza?

Os olhos de Romário brilharam na direção de Zé Lara:

— Tu seria capaz de me deixar aqui?

— Por que não? Tu pensa demais. E sujeito que pensa demais é muito chato.

— Eu não acredito.

— No quê?

— Que podias me trair.

— Trair? Larga de ser besta! Pára de falar e cava!

— Só não entendi uma coisa, disse Romário.

Zé Lara colocou um último punhado de terra dentro do saco de aniagem e se levantou:

— Não vai fechar a matraca?

— Não. Quero saber uma coisa.

— O quê?

— Por que tu faz questão de achar o Índio?

— É da minha conta.

— É. Mas a gente vai trabalhar junto. Tem gente que não gosta dele.

— Isso não importa. Eu também não gosto de ti.

— Mas é diferente.

— Não é.

— E tu acha que pode dar certo?

— Não sei.

— Onde tá o Índio?

— Ninguém sabe.

— Eles vão procurar?

— Vão.

— Quem sabe o peste já morreu, não é?

— Cala essa matraca!

— Foi o que disseram.

— Quem acaba morrendo és tu, se não fechas a boca!

Romário balançou a cabeça:

— O Índio... Tu tá armando alguma coisa.

O Velha viu quando o corpo enorme de Zé Lara subiu no ar, desferindo um coice no peito de Romário.

— Cala a boca, desgraçado!

Romário rolou pelo chão, armou-se com a pá.

— Vem! Vem!

— Te faço engolir essa pá, filho-da-puta!

— Já sei. Quer se vingar, não é?

Zé Lara agarrou o cabo da pá, puxando-o contra seu próprio peito e desferindo uma cabeçada no rosto de Romário, que caiu de costas, os braços em cruz. Segurou-o pelo pescoço e socou sua cabeça contra o chão várias vezes.

— Tá querendo morrer, seu porco?!

Velha puxou Zé Lara pelo ombro:

— Vem gente! Vem gente!

Zé Lara jogou Romário contra a parede. Lá no fim do pátio viu cruzar o carcereiro. Ele parou, colocou a mão no quepe: era hora de parar com o trabalho.

— Ajeita isso aí, disse Zé Lara.

Romário escondeu a pá num vão do muro e cobriu o buraco com a tábua.

— Palhaçada, disse, tentando ajustar o pescoço em cima dos ombros, de onde Zé Lara quase o arrancara — bem que a gente podia sair pela porta da frente. Pois não é pra fugir mesmo?

Zé Lara acompanhou a caminhada do carcereiro até o final do pátio. Ele olhou para o céu e retornou pelo mesmo caminho, com a mão direita no cinturão: poderiam cavar novamente quando já fosse noite.

— Olha, disse, voltando-se para Romário. Não te mato agora pra não estragar a festa. Mas pode escrever: é tu sair da linha que é um homem morto.

 

ÍNDIO NÃO ACEITOU o quarto oferecido pelo pequeno homenzinho que não parava de se curvar e de sorrir. Era o último do corredor e tinha uma janela que dava para o quintal. Recusou outros dois quartos e por fim foi ele mesmo abrindo várias portas e escolheu aquele que o homenzinho sorridente dizia reservar apenas para pessoas de fora. Era um quarto grande, com uma banheira de ferro encostada na parede da direita.

— É este aqui, disse Índio.

O homenzinho balançou, sorriu:

— É que seu Lara só paga o preço dos quartos menores.

— Não me diga?! Pois o amigo vai ter prejuízo. Boa noite.

O homenzinho desapareceu no corredor. Índio fechou a porta e examinou o quarto. As paredes e o teto, onde não viu buracos capazes de aceitar o cano de uma winchester; as janelas da frente, que dão para a rua, um andar abaixo; a janela dos fundos, acima do quintal e distante do telhado da cozinha. Era razoável. O perigo ficava por conta da tramela da porta, gasta e que saltaria com um único pontapé — arrastou a cômoda e se garantiu quanto à porta. Estava bem. Retirou as botas, a capa, o chapéu. Ia dormir muito, pensou, calculando que há duas semanas não encostava o corpo numa cama.

Retirou os lençóis da cama, o travesseiro e ajeitou o colchão dentro da banheira. Novamente envolveu o colchão com o lençol, colocou o travesseiro no lugar. Aquilo sim era uma cama segura. Deitou-se na banheira e as pernas ficaram sobrando para fora — mas o revólver estava ao alcance da mão. Antes de adormecer, bateu repetidas vezes com o cano do revólver na banheira e pensou: é ferro e dos bons.

Acordou no meio do tiroteio, lutando para não cair na armadilha que haviam preparado. Sacou da arma e deu no gatilho. Mas do cano do revólver só saiu um filete de fumaça azulada, de cigarro palheiro, e ele pensou: eu não fumo. Os homens saltaram a cerca e vieram pelo telhado da cozinha. Atirou uma, duas, três vezes, e agora o revólver funcionou. Não acertou um só tiro. Foi quando olhou para cima, imaginando fugir pelo sótão, e viu o tacho de óleo fervente ser despejado sobre ele.

Saltou da banheira, o revólver em punho, atento ao tiroteio na rua. Jogou-se no chão e, de arrasto, chegou à janela. Dois homens, na certa bêbados, dançavam abraçados no meio da rua. Um deles trazia vários rojões debaixo do braço — o outro ia disparando-os um após outro. Os dois gritavam, pouco antes dos rojões estourarem alguns metros acima do telhado da pensão:

— Viva a Citla! Viva a Comercial!

As poucas pessoas que estavam na rua caminhavam junto às casas. Índio respirou fundo e escorregou pela parede até sentar-se no chão, abaixo da janela. Putada, pensou, bando de putos! Guardou o revólver e sentiu que estava com o corpo encharcado de suor. O sol desenhava listas alongadas no assoalho. O céu recortado pela janela dos fundos estava liso, azul, ardente. Um calor dos infernos, pensou ele. Lá fora estourou outro rojão, precedido pelos gritos e aplausos dos dois bêbados.

Índio se levantou. Agora os bêbados estavam embaixo da janela. A rua deserta e no boteco em frente viu um homem de olhar fixo espiando por detrás do balcão. Era como Zé Lara dizia lá no norte: o terror, moleque, vamos matar estes caras de caganeira! No silêncio criado no intervalo entre os rojões, a atenção de Índio voltou-se para um jipe que avançou pela ponte, trepidando o madeirame num chacoalhar de tábuas que mesmo daqui se ouvia. Quando o jipe saiu da ponte, a velocidade aumentou ainda mais e ele deu uma guinada brusca, subindo a rua — foi o tempo dos dois bêbados se jogarem para os lados, espalhando rojões pelo chão. Índio ia dar uma risada, mas ficou paralisado: o jipe amarelo era dirigido por uma mulher. Isabel.

Isabel estacionou a duas quadras do hotel, em frente ao escritório da Comercial. Saltou do jipe e entrou escritório adentro, perguntando, sem olhar para ninguém:

— Cadê o Zé Lara?

Ninguém respondeu e ela não esperava que alguém o fizesse. De resto, sabia muito bem onde ele estava. Abriu a porta ao final do corredor e ordenou aos dois homens que estavam sentados diante de Zé Lara:

— Saiam! Ligeiro!

Os homens saíram, ela fechou a porta. Zé Lara se levantou, os braços abertos, conciliador:

— Pelo jeito, já te contaram.

— Já. Já me contaram.

Zé Lara quis abraçá-la, mas ela deu um tapa em sua mão:

— Sai pra lá!

— Quem contou? Tia Honorina?

— Ela, sim. E fez muito bem.

— É claro. Não era segredo.

— Pois fique sabendo, seu Lara — disse ela, dando outro tapa em sua mão, impedindo que ele a beliscasse — Pois fique sabendo que isso tá muito errado. Tu me prometeu que não ia mais chamar o Índio de volta.

— Eu sei. Eu sei. — Zé Lara desistiu de beliscá-la e sentou na escrivaninha — E tu não vai acreditar. Mandei dizer que não deviam mais procurar por ele. Que esquecessem. Pois não é que ele apareceu na fazenda do dr. Rabello?

— Apareceu como?

— Apareceu. O doutor me disse pelo rádio ele acha que o Índio não foi encontrado e nem recebeu recado nenhum. Apareceu por conta dele.

— Tu é um mentiroso de uma figa!

Zé Lara riu.

— Pára de rir! Tu sabe que eu não gosto desse sujeito!

— Não gosta?

— Não gosto mesmo!

— E posso saber o motivo?

— Seu puto! — Isabel avançou com fúria sobre Zé Lara, que quase cai da escrivaninha, derrubando papéis e carimbos no chão — Pára com isso!

Zé Lara fechou a cara.

— Eu pedi! gritou Isabel, os punhos cerrados.

— Eu sei. E eu não queria mais que ele viesse. Mas veio. Que posso fazer? O doutor desconfia que ele foi mandado por alguém.

— Pra que?

— Sei lá. A gente precisa descobrir.

— E por que não mandam ele embora?

Zé Lara balançou a cabeça:

— Tu parece que não entende disso. É perigoso. Se ele veio, a gente precisa saber o motivo.

— E ficar com ele por perto? Isso é que é perigoso.

— É. Mas assim fica vigiado.

Isabel andou pela sala, parou na frente da janela. Disse:

— Vocês são todos malucos!

Zé Lara lembrou: nunca entendera direito por que dera proteção a Índio. Era um moleque vagabundo, brigão, um ladrão barato. Podia ter mandado ele embora depois que o encontrou quase morto. Mas não. Se encheu de atenções pelo moleque, cuidou dele, achava uma graça enorme nas bobagens que ele dizia com cara de valente, na fúria que tinha de sair pelo mundo dando tiro em tudo que se mexesse. Era um tipo de bicho, achava Zé Lara. Um animal que queria sangrar outros animais. Uma força cega. Zé Lara acha que sentiu um tanto de pena e outro tanto de prazer em domar aquela força bruta. Ensinou o moleque a usar o revólver — como se desmonta uma arma, os entalhes nas balas, a limpeza, a colocação na cartucheira, a distância correta do cinturão, o movimento do braço. A faca — uma na cinta, outra na bota, pior que serpente, mais viva, mais mortal. Ensinou Índio a montar, a conversar com o cavalo, a exigir tudo de um animal. Moleque desajeitado mas esperto, Índio foi aprendendo rápido — só demorou para perder a gagueira e o jeito de falar como se estivesse sempre com a boca cheia de comida.

Isabel perguntara um dia: tu gosta do moleque, não é? Ele demorou a responder: gosto. Por que? Nova pausa. Não sei. E tu, tu não gosta dele? Eu? Tu mesmo. Ela se encolheu na cama e sussurrou: tenho medo dele. Por que? Não sei, o jeito de olhar, essa coisa de... de quem não é gente, sabe? Ele não é gente. Bobagem, disse Zé Lara, eu já fui assim. Mas ficou pensando: fora assim mesmo? Não lembrava. Havia uma coisa estranha na cabeça de Zé Lara: lembrava só das coisas recentes, de quando já era homem feito — do tempo de guri, não sobrara nada, era como se nunca tivesse existido. Quando pensava num lugar de sua infância, parecia que aquilo havia acontecido com outra pessoa. Uma história que lhe contaram.

Índio sumira quando já aprendera tudo, quando deixara de ser um animal xucro, quando até mesmo Isabel já não o temia e tinha por ele cuidados de mãe. Do dia pra noite. Não deixou recado, não se despediu. Zé Lara só foi saber dele alguns meses depois, por um de seus homens, que veio com a notícia de que Índio matara um homem em Dionísio Cerqueira. Mais tarde, soube que fizera outras mortes e que fugira para a Argentina, de onde retornava para os serviços. Mas isso foi muito tempo depois.

Na cabeça de Zé Lara ficou aquela coisa esquisita: por que ele sumira assim de repente? Depois que haviam lutado juntos, um salvando a vida do outro várias vezes. O que dera na cabeça do moleque? Quando saiu da prisão, deu uma lista de nomes ao dr. Rabello. Entre os nomes, o de Índio, que escreveu quase sem querer, ou melhor, querendo e não querendo, escrevendo a contragosto, mas sentindo que era obrigado a incluir aquele nome. Agora achava que era preciso resolver aquilo que ficara engatado no passado, atravessado na goela. Não lamentava o aparecimento inesperado de Índio.

— Tu vai me prometer uma coisa, disse Isabel.

Sorriu.

— Arranja um lugar bem longe pra ele. E manda ele embora assim que der.

Zé Lara pensou: quando der. E disse:

— Prometo.

 

ALOISIO TRENTIN RECLAMOU EM VOZ BAIXA: esses putos não vão chegar nunca! O suor grudava suas mãos ao cabo da winchester e ele evitava pensar que aquele suor fosse sinal de medo. Pedro Santin, deitado a seu lado e meio encoberto pelo mato, fez um sinal com o indicador pedindo silêncio e calma — eles já vão chegar, disse.

Aloisio ajeitou a winchester contra o ombro dolorido, enxugou as mãos na camisa e continuou vigiando o trecho de estrada que descia pelo meio do mato a uns duzentos metros. Em quarenta anos de vida, jamais pusera a mão numa arma de fogo, revólver ou espingarda. Agora alí estava na tocaia, aguardando o momento de dar no gatilho e acabar de vez com o assassino de seu irmão. Mas, além do suor, uma pergunta o atormentava: e se na última hora não conseguisse atirar? Atirar num homem, pensava, — mesmo sendo uma praga dos infernos feito Arlindo Silva — era bem diverso de atirar nas garrafas de pinga que Pedro Santin enfileirava em cima dos moirões. Desta vez haveria sangue, morte, um homem cairia lá do outro lado da winchester. Aloisio Trentin precisou enxugar novamente a testa: havia também o perigo de que do lado de cá da winchester alguém tombasse, ainda mais que iriam enfrentar um jagunço com dezenas de mortes nas costas.

Pedro Santin abriu um vão no mato e recomendou de novo: mire bem no meio da testa. Tantas vezes explicara: acompanhe o homem desde a hora em que ele aparecer no morro e venha respirando igual, lentamente, seguindo ele na mira da winchester, respirando sempre igual, isso é importante — na hora do tiro, bote na cabeça que não deve haver errada: prenda a respiração e puxe o gatilho: vai ser um tiro só. Balançou a cabeça dizendo a Pedro Santin que havia entendido e viu que dois cavaleiros                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                            ração, e ter certeza de que aquela bala sairia da espingarda com endereço certo: iria explodir a cabeça do jagunço.

Quando ele e Antenor Jahn resolveram, já ia pra mais de mês, reunir os colonos para tomar uma decisão a respeito das estripulias que os jagunços vinham aprontando na fronteira, nas redondezas de Barracão e Santo Antônio, não poderia imaginar que neste dia de hoje estaria alí caçando com a mira da winchester a cabeça daquele homem grande e muito branco, de peito largo e braços curtos, de cabeleira crespa e negra a escapar para fora do chapéu de aba larga

Fizeram a primeira reunião no galpão da chácara de Joaquim Miranda. Não queriam ninguém bisbilhotando. Eram uns dez. Aloísio Trentin, tão nervoso quanto no dia de seu casamento, chegou antes de todos, sentou-se e, por mais que quisesse ficar à vontade, só conseguiu abrir a boca quando a reunião já estava quase no fim. Sentia a garganta presa, tudo que imaginava falar lhe parecia uma bobagem que iria provocar risos. Antenor Jahn começou a reunião explicando que precisavam decidir o que fazer com as companhias de terra e com os jagunços que estavam tumultuando a região e, depois de perguntar se todos estavam de acordo, leu um edital que colhera em Barracão naquele dia:

 

                   EDITAL

Pelo presente a Clevelândia Industrial e Territorial Ltda., legítima possuidora das Glebas Missões e Chopin, leva ao conhecimento dos moradores dos municípios de Barracão, Santo Antônio e Capanema, que a partir desta data e pelo prazo de 30 (trinta) dias, manterá o preço de Cr$ 40.000,00 (quarenta mil cruzeiros) por colônia de 10 (dez) alqueires, para a venda de terras ocupadas pelos mesmos, sendo que o excedente de 10 (dez) alqueires será cobrado pelo preço do dia, constante da tabela de preços elaborada pela CITLA. Assim sendo, convidam-se os moradores dos municípios acima referidos a comparecerem nos escritórios da CITLA a fim de receber as respectivas escrituras e assinar com a mesma os necessários contratos de compromisso de compra e venda, legalizando desta forma a situação dentro do prazo estipulado, após o qual o preço de venda será o da tabela acima referida. Em 8 de agosto de l957. Clevelândia Industrial e Territorial Ltda.

 

Joaquim Miranda comentou:

— Eles convidam... eu agradeço!

E foi dizendo que na sua opinião não haveria mais paradeiro para aquela situação na fronteira e em todo o sudoeste. Não tinha dia sem uma morte em Santo Antônio, um espancamento em Capanema, uma ameaça em Barracão — estava na hora de uma decisão, arrematou, e todos já sabiam, ele nem precisava explicar melhor, qual era a decisão na qual estava pensando. José Empinotti, sentado ao lado de Antenor Jahn, tomou a palavra e disse que concordava, só que não sabia se era mesmo uma boa idéia buscar Pedro Santin na Argentina para ajudar no combate aos jagunços. Santin era um homem valente, era certo, mas aquilo podia ser perigoso. Uma violência começa e a gente não sabe nunca onde ela pode acabar — olhou para os companheiros e arrematou:

— E se acauso ela se virar contra a gente?

Foi só então que seu Aloísio conseguiu abrir a boca e falar. E se espantou com a calma com que foi dizendo que ele já havia perdido um filho numa tocaia, não iriam pois começar violência nenhuma, ela já existia faz tempo, e sempre contra eles, os culpados sendo o governo, o Lupión, que não toma as providências. A violência estava alí todos os dias, desde que os bandidos começaram a vender terras que já tinham donos, desde que lotearam a fronteira toda e desde que mandaram os jagunços para matar gente trabalhadora. Empinotti baixou a cabeça — é verdade, comentou, disso eu sei — e concordou com um gesto quando perguntaram se aceitava chamar Pedro Santin para treinar os colonos. Concorda, pois, registrou Antenor Jahn, que naquela reunião representava também seu irmão, Manoel, que ficara no sítio cuidando da família.

Pedro Santin chegou em dez dias. Uma comissão foi buscá-lo em Posadas, onde se refugiara desde março, pois estava jurado de morte pelos jagunços. Foram encontrar com ele fora da cidade e Aloísio, que nunca tinha visto Santin antes, conhecendo dele apenas a fama de farrapo valente, ficou analisando aqueles olhos grandes, aquela cara largada e triste, uma cara de boi magro, cortada no meio pelo bigodinho fino e arrematada, no alto, pelos cabelos cortados rentes, espetados para cima, e, nos lados, por duas orelhas grandes demais, de abano. Aloísio pensou: se o homem fosse tão valente quanto era feio, acabaria com a raça dos jagunços em dois tempos.

Primeiro Santin ouviu quieto o que cada um tinha a dizer. Fez questão que todos falassem, contando os acontecidos, dizendo o que esperavam dele. Ouvia de olhos caídos no chão, nem parecia ouvir — e eles foram contando tudo que havia se passado desde março, quando Santin fugira para a Argentina. Balançava a cabeça feia de quando em quando, fosse para expressar revolta, nojo, fosse para dizer que entendia perfeitamente. Depois Santin disse que não tinha um exército nem era militar, mas sabia combater. Enquanto ele falava, Aloísio Trentin se sentiu feliz, pois devia ser mesmo um homem decidido e danado de valente aquele Santin, era só ver a maneira firme como ia explicando o que podia e não podia fazer, as providências que tomaria. Pois tinha um plano. Sabia que com aquela raça de jagunço não dava pra bancar o bonzinho e nem gastar argumento. Muito menos jogar de peito aberto. Eles têm que sentir que a gente não vai mais baixar a cabeça, que não vão matar mais ninguém do nosso lado sem que a gente vá lá e mate uns cinco deles como troco.

— Boa proporção, comentou Joaquim Miranda.

A nossa arma, disse Santin, vai ser a surpresa: a gente faz tocaia, mata um aqui e outro alí mais adiante, combate aberto é pedir para morrer. Deviam matar de preferência os cabeças, os chefes dos bandos, que o resto da tropa é mesmo formado por uns cagados. Se cai o chefe, eles somem no mato.

Santin seguiu falando daquele modo lá dele, seco, duro, aos arrancos, com jeito de quem pensou muito antes de dizer o que está dizendo. Logo Aloísio Trentin não estava mais escutando direito o que ele dizia. Ficou lembrando das histórias que contavam daquele homem. Diziam que estava devendo duas mortes no Rio Grande e que por isso viera se refugiar no Paraná faz uns oito anos. Era um farrapo. Diziam também que não era de briga, de arruaça — gostava mesmo é de levar uma vidinha quieta, cuidando da família. Mas, se alguém mexia com ele, virava onça. E foi isso que os jagunços fizeram ao espancar a família da irmã de Pedro Santin e castrar seu cunhado, que depois se enforcou debaixo de uma ponte. Santin juntou umas armas e uns homens, atacou o acampamento dos jagunços e, naquele dia, o céu da fronteira se encheu de bala e de cheiro de pólvora e os rios viraram sangue. Morreu muita gente. Santin perdeu quatro companheiros, mas matou quase vinte jagunços e destruiu o acampamento. Depois disso, passou a viver sem pouso certo, mandou a família para longe e não passava semana sem que tocaiasse um jagunço. Incendiou um jipe da Citla em Capanema, justiçou mais dois cabras na estrada de Barracão. Quando chegou março, não agüentou a quantidade de jagunços que não lhe davam descanso. Resolveu reunir suas coisas, buscou a família e fugiu para a Argentina.

Agora alí estava ele e, embora feio daquele jeito, nem parecia tão perigoso, pensou Aloísio. Parece até calmo, de gestos lentos, falando bem. Quando terminou a explicação, quis saber com quanta gente poderiam contar e quantas armas teriam. Houve um silêncio e Santin arrematou: é bom saber que é pra matar ou morrer, não é pra brincadeira. Aloísio se apresentou e disse que, se tivesse paciência para ensinar, gostaria de aprender como se atira e teria todo o prazer em meter uma bala na cabeça de Arlindo Silva e de outros bandidos. Antenor Jahn garantiu que viriam ele mais o irmão Manoel. Joaquim Miranda também aceitou.

— E o povo daqui? perguntou Santin.

— Do nosso lado, garantiu Antenor.

— Bem, fez Santin, vamos precisar de mais gente. É bom marcar uma reunião de todo mundo para amanhã, aqui mesmo.

E só então se virou para trás e foi apresentando os homens que ficaram aquele tempo todo acocorados às suas costas, ouvindo e observando.

— Esse é o meu pessoal, disse Santin. — Apontou dois homens com cara de índio e cabelos muito pretos: Robertinho e Rojas, argentinos. E aqueles outros dois são irmãos: Lídio e Neto.

Para a reunião do dia seguinte vieram mais de vinte colonos. Pedro Santin começou o treinamento explicando como um jagunço caminha pelo mato, como ataca, do que tem medo. Depois ensinou como atirar, como plantar tocaia, usar facão, andar quieto pelo mato sem quebrar nem mesmo um galho seco. Em pouagir, o resto ele resolveria sozinho com sua cabeça. Foi assim com aquela tocaia para a qual Aloísio fora chamado, pois Santin sabia que Arlindo Silva havia matado seu irmão. Já na espera, Aloísio fez o pedido que Santin aguardava:

— Não sou atirador dos melhores, disse, mas será que posso dar o primeiro tiro?

Santin fez que sim e recomendou:

— Mas mire na cabeça, bem no meio.

Aponte na cabeça, no meio, ficou repetindo Aloísio, vendo a figura enorme de Arlindo Silva crescer na mira. Pedro Santin deu o sinal e Aloísio puxou o gatilho: a cabeça grandalhona de Arlindo recebeu o impacto e rolou destrambelhada em torno do pescoço, esguichando sangue feito pescoço de galinha.

— Acertei! gritou.

Pedro Santin deu-lhe um tranco, impedindo que se erguesse do chão. Da fuzilaria que se seguiu, Aloísio não participou. Viu Santin se levantar gritando: cerca! cerca! — sempre atirando. Robertinho desceu da árvore e correu morro abaixo. Rojas montou no cavalo e disparou pela estrada. Aloísio levantou-se e repetiu:

— Acertei!

Santin olhou para ele, furioso, sacudindo o cano da winchester no seu nariz:

— É, acertou. Mas por que não esperou o meu sinal?!

— Não esperei?

— Não. Por isso o outro fugiu!

Aloísio olhou para a estrada e viu o corpo de Arlindo Silva jogado de costas, os braços abertos, um vermelhão escorrendo da cabeça suja de barro. O outro fugiu, pensou.

— Me desculpe, seu Santin.

— Tá desculpado. Mas nunca mais me desobedeça!

— Não desobedeci. Entendi errado.

Robertinho e Rojas voltaram duas horas depois. O homem estava ferido, mas escapara. Santin só dirigiu a palavra a Aloísio dias depois, quando soube que o jagunço continuara a fuga até a Argentina:

— Agora são eles que fogem pra Argentina, homem!

 

O VELHO SANTORO ARDEU EM FEBRE. Houve momentos em que ficou imóvel, o rosto pálido e retorcido, a boca semi-aberta, os olhos presos ao teto do quarto. Agitou-se a maior parte da noite, revirando-se de um lado para outro, misturando um palavreado incompreensível com descrições de lutas havidas em Campos Novos, Irani, Taquaraçu, enquanto se agarrava ao vestido de Maria, se erguia do leito e murmurava preces, advertências, xingamentos, dizendo que os soldados amarelos estavam do outro lado da porta, pontos para atravessar o rio, ele ouvira, tinha certeza, alguma coisa se mexeu por lá, ela não escutara? perguntava a Maria, imaginando falar com Ernestina, sua mãe. Não, respondia ela, não vi nada, calma, e enxugava sua testa com um pano, pedindo que deitasse. Logo tornava a cair em prostração, o queixo apontando para o teto. Ficava assim, estático, por um longo tempo, até abrir os olhos, examinar para os lados, desconfiado, aflito. Queria saber:

— E o Pedrinho, cadê ele?

Será que ele desconfia? Nada contara a respeito da morte de Pedrinho e pedira às crianças para que não falassem no assunto perto do avô. Mas era como se o velho soubesse. Ele sempre parecia saber de tudo, o que provocava um medo enorme em Maria. A casa vivia cheia de gente pedindo conselhos, rezas, benzeduras. Uma vez ele benzeu umas verrugas que apareceram no filho mais velho de Maria. Esperou um dia de lua cheia e apareceu com um pedacinho de carne com o qual foi benzendo cada verruga. O filho mal segurava o riso, debochava: vô, não benze muito que vai cair o dedo! O velho ralhava: cala a boca, desgramado! E seguia benzendo. Depois foi embora com o pedaço de carne dizendo que ia jogá-lo num formigueiro. Dias depois, Maria examinou o braço e as pernas do filho: nenhuma verruga.

O temor aumentara desde então. Antes não acreditava que o velho tivesse qualquer poder, era apenas o pai amalucado de seu marido. Agora se perguntava se fora uma boa idéia vir morar com ele para não ficar sozinha no meio do mato. Afinal, que proteção poderia lhe dar aquele homem entrevado no fundo de uma cama? Talvez fosse melhor voltar para casa, os jagunços já haviam feito o que tinham que fazer. Mas Maria hesitava. Com o velho naquele estado, sentia-se na obrigação de cuidar dele, afinal era como cuidar de Pedrinho, era fazer o que Pedrinho faria. Se abandonasse o velho, sofreriam outra desgraça, ele não conseguia mais viver sozinho, era capaz de se machucar, de morrer de fome, de sair pela rua, se embrenhar nos matos, sabe Deus fazer o quê.

— Meu pai! gritou Santoro, agarrando-se ao braço de Maria e falando com ela como se falasse com Pedrinho: seu avô, onde está ele? onde?

Maria balançou a cabeça e não achou o que dizer. A voz do velho era muito fraca, mas cortante:

— Pedro José é capaz de se meter em confusão, — ralhou, olhando os cantos do quarto como se buscasse alguma coisa, a tal serpente na qual falara durante a noite. — Não há de ver que ele saiu pros mato numa hora destas, quando o reduto está cercado de polícia amarela!

Santoro se largou novamente na cama, o queixo apontando o teto. Respirava com dificuldade. Maria passou o pano em seu rosto e pediu: dorme, dorme. Ele sabe, pensou.

De manhã bem cedo chegaram os homens. Santoro agora dormia profundamente e Maria temia que ele parasse de respirar de um momento para outro. A febre cedera, mas de vez em quando ele tinha uns estremeções e batia o queixo como se quisesse falar.

Primeiro chegaram Alemão e Gaúcho. Depois, seu Elpídio. E, no rastro deles, mais uns trinta homens foram chegando e se reunindo. Primeiro na cozinha, depois no terreiro, que já não havia lugar dentro de casa. Maria entendeu que sentiam falta de Pedrinho, mas queria que fossem embora. A noite em claro a deixara exausta.

Os homens falaram a respeito de Pedrinho, contaram passagens, perguntaram mais uma vez como se pareciam os jagunços.

— Um é alto, repetia ela, vestido de capa preta e com uma cara muito branca.

— Esse é o Índio, disse Alemão.

— O outro era baixo, gordo e de beiço grosso.

— O tal Sergipe, emendou Gaúcho, amaldiçoando: filhos da puta!

Os homens continuaram discutindo, sem que Maria entendesse o que desejavam dela, o que estavam procurando alí. Não fosse pelo velho Santoro, iria para um lugar quieto até que terminasse aquela mortandade. Um dos homens perguntou:

— Ele sabe da morte do Pedrinho?

Ela disse:

— Não. Mas ficou ardendo em febre a noite inteira.

— Pressentimento, sentenciou Alemão, que estava querendo a toda força juntar um monte de homens armados e marchar sobre os escritórios da Citla. Eles têm obrigação de tirar estes jagunços da região, dizia, isso não pode seguir desse jeito.

Gaúcho concordava:

— É, é certo.

Gaúcho estava nervoso e pensava na conversa que tivera com Armindo Tomellin: muita calma, Gaúcho, muita calma, recomendara o amigo. Agora é preciso cabeça no lugar, todo mundo agindo em conjunto, mas sem valentias, entende? E dizia: precisamos juntar mais gente, falar com todo mundo e, depois, agir de uma vez só.

Foi mais ou menos isso que Gaúcho repetiu para os colonos.

— Mas olha aí, disse Alemão, olha aí, fez, apontando para o quintal da casa de Santoro, quanta gente reunida. Será que não chega para correr com aquela meia dúzia de jagunços que tem lá no escritório?

— Eles têm metralhadora, Alemão, explicou Gaúcho, segurando os dois braços do amigo e pensando em sacudí-lo para que entendesse o que queria dizer. Se a gente tirar eles do escritório, logo vem mais jagunço de Beltrão, de Barracão, Santo Antônio. E vem também polícia amarela.

— Pois corremos com eles também! gritou Alemão, emendando: Como é que tu pensa que a gente ganhou na guerra?

— Era diferente, disse Gaúcho. Nós vamos ganhar também, mas na hora certa.

Alemão não continuou o argumento, pois Maria pediu que falassem mais baixo, o velho Santoro tornara a delirar, não estavam escutando!? Os homens se dispersaram, discutindo em voz baixa durante um tempo, mas logo a gritaria retornou. Seu Elpídio Bello dizia:

— O Gaúcho tá certo, nós precisamos esfolar cada um destes jagunços, mas com o pensamento certo, sem afobação. Acho melhor a gente reunir todo mundo da região, ir até o juiz, falar com o prefeito, tomar satisfação e dar um prazo.

Alemão não aceitou.

— Ontem foi o Pedrinho, disse. Hoje eles pegam outro. Amanhã, mais um. É preciso dar um paradeiro nisso, conversar com esses assassinos não vai adiantar nada. E eu não acho que a gente precise ir lá no escritório brigar. A gente vai lá pacificamente, em grupo, exige a saída dos jagunços e deixa o aviso: se houver mais mortes e espancamentos, voltamos armados.

— Chega! Chega! — gritou Maria, tampando os ouvidos — Parem de falar!

Os homens se calaram e Maria repetiu:

— Chega!

No silêncio que se seguiu, eles escutaram o velho Santoro falando alto dentro da casa. Maria correu, abriu a porta e viu Santoro parado no meio do quarto, os braços abertos em cruz, murmurando uma reza em voz alta.

— Que foi, meu pai? perguntou ela, amparando-o e pe                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                               ueles que estão no coração do Senhor. O monge não morreu. O monge não morrerá. Um homem de Deus não pode ser abatido com as armas desta polícia amarela que tem partes com o demônio! Um homem de Deus vive para sempre e volta a viver com os seus e está entre aqueles que têm fé. Assim é com o monge Zé Maria. Esta noite o monge veio falar comigo nos meus sonhos. Disse que não devemos ter medo, que medo só devemos ter do Senhor Deus. Mas é preciso saber que a luta não termina antes de chegarmos ao céu. A guerra é sempre! Só no Senhor existe a paz! Fora dele, a morte, a imundície, o pecado, a sanha de Satanás que toma conta deste mundo!

O corpo de Santoro amoleceu e Alemão o amparou. Carregado no colo, Santoro foi colocado na cama, onde tornou a apontar o queixo duro para o teto e a abrir dois olhos vazios que olhavam para um outro mundo, pensou Maria.

— Não seria bom chamar um médico? perguntou Gaúcho.

Maria balançou a cabeça, concordando, e observou o suor que escorria da testa de Santoro.

— Eu vou chamar o médico, disse Gaúcho, subindo no jipe, seguido por Elpídio e três homens, que resolveram ir em comissão falar com o prefeito.

Alemão saiu do quarto de Santoro e veio até a porta da cozinha:

— Vamos reunir todo mundo na praça, disse ele.

Em pouco tempo estavam na praça mais de duzentos homens, cada um armado a sua maneira: espingardas, foices, enxadas, paus, pedras. O primeiro a falar foi Elpídio, que estivera com o prefeito e o juiz. O prefeito lhe disse que não podia fazer nada, era caso de polícia, que esperassem as investigações. Segundo o juiz, seria melhor que ficassem em casa, cuidando das famílias — a seu tempo, a justiça resolveria a questão. Em seguida, discursou Alemão. Disse que eles tinham ouvido o que o juiz e o prefeito haviam dito, não tinham? Achavam agora que ia sair alguma solução da boca dos dois? Não ia. Então, era preciso resolver este caso como um homem devia resolver: na marra, na valentia. Quantos eram? Uns trezentos. Pois era chegar na frente do escritório, espantar aquela meia dúzia de jagunços, mais dois ou três funcionários, e dizer: não ponham mais os pés aqui! Nós somos em maior número, vamos dar uma corrida neles!

Elpidio apoiou. Ele sabia, bem no fundo, que Alemão estava certo. Não tinham saída senão correr com aqueles criminosos, que não parariam de matar enquanto não sentissem que também os colonos tinham força. Quando Gaúcho, que levara o médico na casa de Santoro, chegou à praça, a multidão caminhava compacta em direção ao escritório. Atravessou o jipe na rua, gritando:

— Vão fazer uma loucura!

Alemão avançou:

— Se tu não quer, fica de lado. Nós vamos resolver isso como um homem deve resolver.

— Mas não está certo!

— E está certo o que eles fazem?

— Também não. Mas eles têm armas, estão atocaiados na rua com metralhadoras.

A voz de que havia metralhadoras postadas diante dos escritórios, rachou a multidão em duas partes. Alemão sentiu que ficaria sozinho e foi até a esquina conferir os jagunços com as metralhadoras. A multidão o acompanhou.

— São três, contou Elpídio Bello.

— E com isso vão nos parar? Eles não vão atirar assim, no meio da cidade! Eles atacam é homem desarmado, de tocaia no meio do mato! Eles sabem é violentar mulher e matar criança! Eles não vão atirar!

A multidão não reagiu como Alemão esperava.

— É bom pensar, disse um.

— Que pensar! Precisamos atacar agora, antes que eles chamem reforço, mais jagunços e os amarelos.

Só uns dez ficaram ao lado de Alemão, que virou as costas para a multidão.

— Covardes!

Foi então que ele olhou na direção do prédio do fórum e viu hasteada uma bandeira do Brasil, que lá estava por conta da semana da pátria, que começava dentro de dois dias. Saiu correndo, atravessou a praça, subiu no mastro que saía do balcão e voltou com a bandeira nas mãos.

— Vocês sabem porque sou conhecido por Alemão! Eu lutei na Itália! Eu fui pracinha!

Enrolou-se na bandeira do Brasil e disse:

— Eles não vão atirar na bandeira do Brasil!

Caminhou na direção do escritório e foi seguido, a uns dez metros, pela multidão. Iam a passos curtos, cuidados. Ele gritou:

— Qmer entrou em pânico. Não havia maneira de descobrir onde se escondia Pedro Santin, o que aumentava o número de desgraças. Otto largou o corpo, que terminou de rolar para dentro da valeta. O rosto coberto por hematomas e riscos de punhal. O olho direito saltado e, no pescoço, o vinco roxo: fora estrangulado.

Chegara ao hotel junto com Pedro Santin e não parara de beber. Otto chegou a ralhar com ele, mas, como todo bêbado, ele gritou que não estava bêbado, sabia cuidar da própria vida. Pedro Santin desconfiou, veio olhar de perto e disse:

— Homem, bêbado desse jeito tu fica de fora.

Silveirinha sorriu, fechou os olhos e, como Otto Germer largasse seu braço, arriou alí mesmo, na varanda do hotel. Em seguida estava roncando.

— Que faço com ele? perguntou Otto.

— Põe pra dormir, disse Pedro Santin.

— Eu? Colocar na cama um bruto marmanjo?

Pedro Santin chamou dois homens e perguntou:

— Onde tem um quarto?

Otto Germer indicou um quarto dos fundos, onde jogaram Silveirinha de qualquer maneira, metade do corpo sobre o colchão, metade largado para fora.

— Deixa ele aí, disse Pedro Santin. Quando curar o porre, manda que me encontre em Barracão.

Otto fechou o quarto e foi cuidar da vida. Pedro Santin tornou a se reunir com seus homens, nos fundos do restaurante. Ficaram conversando em voz baixa, sempre de olho na porta, na certa controlando a entrada de algum jagunço. Dois dos homens seguravam as espingardas quase em posição de tiro, mirando a entrada, e Santin falava muito, explicava com as mãos, fazia perguntas, fincando a cada momento o dedo indicador no tampo da mesa. Vem confusão por aí, pensou Otto, que sabia das vezes que Santin tiroteara com os jagunços das companhias.

Otto passou o resto do dia preocupado. Ao final da tarde, Pedro Santin pagou a conta, recomendou novamente que deixasse Silveirinha dormir até curar o porre e saiu com o seu bando. Otto respirou aliviado. Até aquele momento temera que um jipe amarelo, coberto de jagunços, parasse em frente ao hotel e começasse uma guerra alí mesmo. Foram embora, pensou, vendo os cavalos sumirem no final da rua. Mais aliviado ficou quando, uns quinze minutos mais tarde, chegou um jipe cheio de jagunços. Escapei por pouco, pensou — e foi para o balcão atender aos jagunços.

Mas não demorou a levar o primeiro choque: cambaleando, lá vinha Silveirinha. Entrou pela porta da frente, as pernas trocadas, segurando-se nas mesas e cadeiras. Vinha sorrindo, os olhos grudados pelo porre. Encostou-se no balcão:

— Põe uma pinga pra mim.

Otto Germer apanhou um cálice e serviu a pinga. Disse:

— Acho bom voltar para o quarto.

Silveirinha custou a firmar a mão para apanhar o cálice e continuou com o mesmo sorriso besta na cara.

— Tenho um trabalho, alemão.

— É melhor ir para a cama.

— A essa hora?

— Tu já bebeu o bastante.

Otto Germer viu que um dos jagunços cotucou Sergipe. Olharam na direção de Silveirinha, que largou o cálice sobre o balcão e pediu:

— Mais uma.

Otto segurou o pulso de Silveirinha e encostou o rosto em seu ouvido:

— Santin mandou tu ficares no quarto. E não deves sair de lá.

E completou, em voz alta:

— É a saideira. Depois, vai dormir.

Otto Germer viu, com o canto dos olhos, que Sergipe se aproximava. Saiu do balcão, enfiou uma garrafa nas mãos de Silveirinha:

— Toma, vai beber no quarto!

— Tudo isso, alemão? Tu pensa que eu sou...

— Um bêbado desgraçado! Te manda!

Sergipe parou junto aos dois:

— O sujeito tá dando trabalho, seu Otto?

— Não. Estou acostumado. Todo dia tem disso por aqui.

Sergipe olhou Silveirinha mais de perto e perguntou:

— Quem é esse cabra?

Otto Germer passou o braço esquerdo de Silveirinha por cima dos ombros e o agarrou pela cintura. Disse:

— Um bêbado.

— É, parece um bêbado — riu Sergipe — Mas será que não tem nome?

Otto virou uma meia volta brusca e saiu carregando Silveirinha. Sergipe veio até a porta e acompanhou a caminhada trôpega de Otto. Contornou o hotel e se dirigiu para os fundos, onde, Sergipe sabia, havia um mictório e alguns quartos.

Quando Otto voltou ao balcão, ajeitando o cabelo e compondo a roupa amarfanhada, Sergipe perguntou:

— Não estou com o olho pregado na cara de Otto Germer — Só tem uma coisa, seu Otto. Eu acho que já vi esse bêbado em algum lugar. Acho até que sei que o nome dele é Zéca Silveirinha. Acho também que ele é homem de Pedro Santin.

Quando os jagunços saíram, Otto Germer correu ao quarto, onde encontrou Silveirinha deitado no chão, agarrado ao litro de cachaça. Fez com que ele se ajeitasse na cama e catou um cadeado e uma corrente para fechar a porta. Deus ajude, pensou.

Antes de ir para a cama, Otto verificou se o cadeado e a corrente ainda estavam lá. Estavam. Dormiu preocupado e, mal acordou, correu até o quarto para descobrir que a porta havia sido arrombada. Foi encontrar o corpo de Silveirinha jogado na valeta, a uns trezentos metros do hotel.

 

PEDRO SANTIN SUBIU NO ALTO DA PEDRA e agitou o chapéu de um lado para outro, três vezes, conforme o combinado. No topo do morro, onde se via apenas um trecho de estrada cortando o mato, um lenço foi agitado três vezes. Tudo em ordem, pensou Santin. Desceu da pedra, caminhou pelo meio do mato, abrindo passagem com o facão, e veio até a beira da estrada. Fez um sinal para o homem que estava escondido atrás de um pinheiro. O homem respondeu, indicando que tudo corria bem. Santin observou o tronco grosso do pinheiro e subiu o olhar através da casca escura, nodosa, até o alto da copa. Examinou à direita e à esquerda e foi conferindo os homens, que acenaram um de cada vez. Sentiu um certo orgulho pela disciplina do grupo. Esse era o caminho certo, pensou. Nada de muita conversa. Jagunço se pega assim, na tocaia, um a um, sem piedade. Não havia lugar para conversa ou fingimento. Era preciso usar as armas que se usa para caçar bicho.

Lembrou do cunhado. Um homem bom e honesto. Se fosse comigo, pensou Santin, ainda daria um desconto. Nunca pensara em ser muito bonzinho. A vida sempre tivera um jeito duro com ele. Gostava de estar um dia aqui, outro alí, andando pelo mundo feito cigano, sem parada. Ia fazendo os serviços que apareciam, ganhava um no jogo, perdia dois na zona, recuperava algum no contrabando — ia indo. Mas o cunhado, não. Era um homem direito. Da última vez que Santin conversara com ele, estava apavorado, mas sempre decidido: não ia assinar coisa nenhuma, não ia comprar uma terra que era sua e na qual trabalhava há tantos anos. Isso mesmo, dissera Santin. Se vierem te incomodar, me chama. Venho aqui e passo bala na jagunçada. Não conseguiu ajudar. Os jagunços, como sempre, surgiram de uma hora para outra, destruíram a casa, violentaram a irmã de Santin, bateram nas crianças, castraram o cunhado e, depois, o deixaram sangrando feito porco, atado num toco.

Santin retirou o palheiro detrás da orelha, rolou-o entre os dedos. Riscou o isqueiro de pedra. Tragou forte. Ergueu os olhos de novo, observou o alto do pinheiro, girou o olhar até a pedra. Sentia em cada gesto um gosto de coisa definitiva e bem pensada — tudo calculado, exato. Era assim que gostava de agir. Com jagunço, dizia, a gente faz assim: põe na alça de mira e fica dormindo, na espera, sem pressa. Mira bem no meio do miolo. Não se pode errar, pois jagunço é bicho dissimulado — se escapa do primeiro tiro, cai fora da pontaria, acha uma moita onde sumir, desaparece, deixando como rastro o cheiro de enxofre. Então, é preciso paciência e espera. É preciso pensar em tudo e não cometer nenhum erro. Não carece de dar chance a jagunço, que é bicho do demônio e por bicho do demônio ninguém deve ter piedade. Se ele põe a mão na arma antes, a gente já tá morto — e sempre com um tiro pelas costas: a bala chega a fazer curva para cumprir este destino de traição. Por isso não se pode assustar o bicho, não se deve fazer ruído e é preciso cuidar da respiração para que nem o vento seja desviado de seu caminho pelo que a gente pensa. Jagunço pressente tudo, feito onça que cheira no ar a direção da caça ou do caçador. Então, nada de chance. Nem há razão de valentia. É descer a mira lentamente, achar o ponto e dar no gatilho. Uma vez só. Sem errada. Bem no meio da cabeça. Aí ele cai no chão, estrebucha e morre. E é um fedor que dá na hora, coisa do demo. Não fosse isso, era de tirar o couro do bicho, cortar a cabeça, dependurar num poste. Mas ninguém agüentaria o cheiro.

 

Pela segunda vez Zé Lara pediu a Sergipe para repetir a história que havia contado. Sergipe não entendeu. Repete, ordenou Zé Lara. Sergipe repetiu: o bêbado, Zéca Silveirinha, de Barracão, da turma do Santin, estava no bar... Tá bom, interrompeu Zé Lara.

Levantou-se, foi olhar através da janela, remexeu na cabeleira, na barba. Sergipe esperava.

Zé Lara perguntou:

— Quem sabe disso?

— Eu mais o Paulista.

— Tem certeza?

— Toda.

Tornou a olhar pela janela. Lá fora passou o jipe de Isabel, sempre na disparada, levantando uma nuvem de poeira. Zé Lara disse:

— Ela anda sempre correndo.

— É, fez o jagunço.

— Me diga: tu não suspendeu a ida pra Realeza, não é?

— Não.

— Fez bem.

Zé Lara passou novamente a mão na cabeleira, na barba. Mas seus olhos não estavam descansados, notou Sergipe.

— Pois vamos trocar a turma, disse Zé Lara. Dispensa aqueles que iam e chama o Biguá e o Dinho.

Sergipe arregalou os olhos:

— Vão os dois?

Zé Lara balançou a cabeça, confirmando:

— Os dois.

— Aviso eles? perguntou Sergipe, sabendo o que ia ouvir.

Zé Lara sorriu:

— Não. E manda o Paulista ficar de bico calado.

Zé Lara caminhou na direção do banco que ficava ao fundo da sala e Sergipe permaneceu alí, parado, sem ação.

— Que foi? perguntou Zé Lara.

Sergipe gaguejou:

— Se-Será que entendi?

— Entendeu.

 

Pedro Santin não desgrudara o olho daquele ponto escuro no alto do morro nos últimos trinta minutos. De vez em quando a vista cansava. Ele coçava as pálpebras, fazia umas caretas e tornava a fixar o mesmo ponto escuro enrodilhado por detrás de uma moita. Por isso, quando aquela massa escura se moveu e um lenço branco foi agitado três vezes, ele mal acreditou, pensando que fosse cansaço, estaria vendo coisas. Mas abriu bem os olhos e o lenço foi agitado outras três vezes, conforme o combinado. Se virou para a esquerda, na direção do pinheiro e ergueu a espingarda na vertical. Esperou um tempo, imaginando que agora o jipe estaria fazendo a primeira curva, ganhando embalo para enfrentar a subida cheia de barro que via pelo meio das árvores. Redobrou a atenção. Ouviu o ronco forte do motor do jipe no esforço de enfrentar a subida. Quando estava a uns cinqüenta metros, já sofrendo com a subida e a lama, desceu bruscamente a espingarda. Do outro lado da estrada, viu Valtinho se levantar atrás do pinheiro, erguer o machado no ar e, com um golpe só, cortar a corda que mantinha a árvore em pé. O pinheiro estremeceu, tentando se agarrar às copas e galhos a sua volta e despencou na direção de Santin, que o observou fascinado. Antes que o pinheiro batesse no chão, atravancando a estrada e fazendo um estrondo medonho, ele gritou:

— Fogo!

Com a freada brusca, o jipe dança na lama, os pneus travados escorregam, e, na mira de Santin, aparece um jagunço que se apóia no pára-brisa e salta. Esse morreu no ar, feito passarinho, pensa Santin, dando no gatilho e vendo o jagunço abrir os braços, largar a arma e girar na direção do barranco, onde foi se enterrar de cabeça. A fuzilaria deixa Santin atordoado por um momento, a fumaceira atrapalha a visão, os homens atiram desatinados. O jagunço que estava ao volante tentou dar a ré, mas com isso apenas facilitou os tiros, que cortaram ao meio os três que vinham no banco de trás, as cabeças cobertas com as mãos. O motorista se jogou para fora do jipe e correu para o mato descarregando uma metralhadora com todos os sons do inferno. Santin deu várias vezes no gatilho e viu o sujeito ser jogado para trás como se levasse um coice de mula nos peitos, caindo de barriga para cima, atravessado na valeta. Santin ergueu a espingarda no ar e deu um berro de alegria:

— Iarrú!

Gritos idênticos ecoaram na beira da estrada e os homens correram na direção do jipe. Os três do banco de trás estavam mortos, dobrados uns sobre os outros, pernas e braços dependurados do lado de fora do jipe. Aquele que Santin acertara no ar, ainda se mexia, enroscado no mato rasteiro da beira da estrada como caça ferida, os olhos imensos, medrosos, um filete vermelho no canto da boca. O outro, caído de costas na beira da estrada, parecia dormir.

— Sobrou um filho da puta vivo, disse Santin, aproximando-se do jagunço que agonizava.

Pensou em perguntar aos homens de que jeito eles queriam matar aquele bandido, quando ouviu às suas costas:

— Sacramenha!

Santin se virou e viu Valtinho apontando com a espingarda para os três corpos que estavam no jipe.

— Que foi, homem?

Valtinho disse:

— Não são jagunços.

Santin correu para o jipe e examinou os cadáveres.

— Não conheço — disse; mas pensou: não são jagunços.

— Eu conheço, disse Valtinho.

Santin largou o cadáver que segurava pela gola da camisa e se dirigiu ao jagunço que tentava se arrastar para o mato.

— Ei! berrou Santin — Olha pra mim!

A cabeça do jagunço rolou na direção de Santin e viu ele erguer o revólver, dormir na pontaria e atirar dentro de seu olho.

 

Sergipe chegou em disparada e saltou do jipe ainda em movimento, precipitando-se corredor adentro. Entrou sem bater na porta. Parou diante de Zé Lara, que disse:

— Tu anda tomando muito susto, sujeito.

Sergipe custou a recuperar a respiração.

— Tem notícias? perguntou Zé Lara.

Sergipe balançou a cabeça e disse, em voz baixa, segredando:

— Morreu o Biguá, o Dinho, e...

Zé Lara perdeu a paciência:

— E quem mais, porra?!

— Mais três colonos que pegaram carona.

Zé Lara sorriu, jogando-se contra o encosto da cadeira:

— Mais três?! — alisou a barba — Quer dizer que ainda deu lucro!

 

FOI ARMINDO TOMELLIN QUEM VEIO ABRIR A PORTA.

— Ô vivente! saudou Gaúcho.

Armindo não desarmou a cara de brabo. Fez um gesto com a cabeça, indicando que Gaúcho entrasse. Fechou a porta.

— Sempre atrasado, resmungou Armindo.

Gaúcho ia dizer que perdera tempo pelo caminho fazendo pontaria nuns jagunços, mas desistiu. Na sala cheia de gente não viu um só rosto capaz de rir da brincadeira. Lá estavam seu Joanin, Nego Berto, Liseu do armazém, Elpídio Bello, Deonísio Possenti, Dr.Miguel, Otto Germer, e, sentados à mesa, os presidentes locais dos partidos políticos: doutor Cardoso, da UDN, Seu Casemiro, do PTB, Paschoal, do PRP, e Zandoná, do PSD. Além deles, uma porção de colonos e comerciantes, todos amigos de Gaúcho, mas todos com a mesma cara fechada. A coisa é séria, pensou Gaúcho, procurando um lugar para sentar.

Armindo retornou à mesa, apanhou um jornal e, olhando na direção de Gaúcho, explicou: eu estava lendo um artigo que saiu no Estado do Paraná. Ergueu o jornal, escondendo o rosto, e leu:

"Toda a vasta região compreendida pelos municípios de Clevelândia, Pato Branco, Francisco Beltrão e Santo Antônio está sendo transformada num verdadeiro campo de batalha. Os sangrentos acontecimentos que alí se estão registrando lembram uma nova Porecatu e se repetem em proporções que podem reeditar a epopéia de Porecatu, porém de forma mais bárbara e dramática.

Centenas de pessoas, atemorizadas pelos desmandos e atrocidades cometidos pelos elementos da Companhia Comercial do Paraná Ltda, aliados a soldados dos destacamentos policiais locais, acorrem em romaria aos juízes de Direito de suas comarcas com o fim de pedir garantias que não são prometidas porque os próprios magistrados vivem na maior falta de segurança, aguardando reforços policiais solicitados e ansiosamente esperados por toda a população.

Apesar da grave denúncia formulada na Assembléia Legislativa do Estado pelo deputado Armindo Tomellin, em discurso que já chegou aqui pelos noticiários, o dia de ontem foi particularmente trágico, sangrento e acidentado, pelas tropelias que vêm dizimando os lavradores locais. E nenhuma providência tem sido tomada pelas autoridades competentes, face aos graves e lutuosos acontecimentos que assistimos nesta região, em especial nos distritos de Verê e Dois Vizinhos, na comarca de Pato Branco, num sucedâneo do já ocorrido em distritos dos municípios de Capanema, Santo Antônio, Marrecas. Estes acontecimentos enlutaram diversas famílias e foram levados a efeito por elementos pertencentes às companhias colonizadoras aqui sediadas, atacando, destruindo e mutilando famílias de bravos colonos radicados nesta região, tendo por égide o cruel assassinato de Pedro José da Silva, vereador representante do distrito do Verê e, mais recentemente, o assassinato de dois pacatos colonos no dia 6 de agosto último, culminando no bárbaro espancamento da família de Otto Schwarz, cidadão que se encontra desaparecido, talvez morto, além do saque e incêndio da casa do Sr. José Rodrigues, residente em Dois Vizinhos. Não deve causar surpresa, pois, o fato de que os colonos, justamente indignados, estejam organizando grupos armados para enfrentar os ataques constantes dos jagunços a serviço das companhias. Desgraçadamente, porém, no dia de ontem, numa tocaia a um jipe da Citla, alguns inocentes mais uma vez pagaram com a vida em função da desordem que reina no sudoeste. O assalto ao jipe foi praticado por posseiros que já não suportam a pressão exercida contra eles pelos funcionários e jagunços das colonizadoras. No jipe tocaiado, porém, viajavam, além de dois jagunços, três colonos que haviam tomado carona.

Além desse trágico acontecimento, no qual perderam a vida cinco pessoas, foi encontrado, com evidentes sinais de espancamento — a morte foi provocada por estrangulamento — o cadáver do Sr. José Augusto Silveira, vulgo Silveirinha, a uns cinqüenta metros do hotel onde passara a noite. Embora, como tantos outros, este crime ainda não tenha sido elucidado, tudo leva a crer que seja mais um da trama diabólica que transforma o sudoeste do Paraná num mar de sangue."

Armindo depositou o jornal sobre a mesa e deixou a palavra livre. Todos os olhares se voltaram de imediato para Gaúcho, que, além do hábito de chegar por último, era sempre o primeiro a falar. Mas dessa vez ele deixou o corpo escorregar na cadeira e fechou a cara, enquanto examinava minuciosamente as próprias botas. Foi Elpídio Bello quem se levantou.

— Conversei com Pedro Santin faz dois dias, disse ele. É um homem justo, ferido pela morte do cunhado e pela violência que fizeram com a família dele. Eu disse pra ele: eu não acho certo agir assim. Ele me olhou e disse que jagunço se mata assim mesmo, como bicho, lutando aqui e alí, de surpresa. Que é preciso fazer tocaia e ir matando os bichos aos poucos, até acabar com eles — Elpídio falava quase sem se mover, os olhos fixos em Armindo Tomellin — Foi onde discordamos, mesmo se eu acho ele um homem bom. A gente sabe que não se mata onça assustando o bicho. Onça é bicho covarde, mas, quando se assusta, é o demo. A gente tem é que reunir todo mundo e dar um golpe só. Um só. E liquidar com a conversa pra sempre.

Elpídio sentou-se e o silêncio pesou na sala. Armindo tomou a palavra:

— Além de discursar na Assembléia, eu fui ao comandante da região militar, em Curitiba. Acho que a gente tem uma coisa a nosso favor: ninguém se aventura a defender as colonizadoras. Só os cupinchas delas. O comandante da região me disse, porém, que não pode intervir em nosso favor, que isso é um questão séria que envolve o poder judiciário e os governos do estado e da união. Então, eu perguntei: e contra, o senhor pode intervir? Ele riu e disse que, se eu era tão esperto para fazer uma pergunta daquelas, podia ser esperto o bastante para descobrir a resposta.

Em seguida vários colonos falaram. Um contou das ameaças sofridas, disse que dormia nos matos há várias noites, queria saber de uma solução para logo, senão ia embora do sudoeste. Muita gente está indo, ele disse. Outro apoiou Santin: contra bandido, só arma que bandido respeita: bala, nada de leis e assembléias. Nesse momento Nego Berto se levantou gritando: apoiado! Seu Joanin o puxou pela camisa, mas o negro escapuliu e disse que ou davam um jeito de correr com aqueles bandidos do sudoeste ou acabariam usando saia. Os representantes dos partidos políticos também apoiavam que se tomasse uma iniciativa, mas política. É preciso reagir, começou a ser a voz dominante. Uns queriam continuar a idéia de Pedrinho Barbeiro e levar o abaixo-assinado ao presidente. Outros insistiam numa comissão para falar com o governador. E todos queriam formar uma comissão que passasse a defender os colonos, a exemplo das comissões de recepção dirigidas por Deonísio Possenti, defendendo os colonos que chegavam às glebas. Queriam também uma comissão para governar o sudoeste, já que as autoridades não faziam nada.

Só então Gaúcho resolveu falar:

— Tá todo mundo querendo dizer uma coisa que ninguém consegue dizer. É o seguinte: a briga é feia mesmo. Ou a gente corre ou a gente topa isso de uma vez só. Eu acho que a gente deve topar. Só não pode é ficar de conversa mole. Também acho que a gente deve criar comissões para orientar os colonos, também acho que o doutor Armindo deve continuar falando na Assembléia. Mas acho também que a gente tem que fazer um plano para liquidar de vez com as companhias. Quem mora no sudoeste? O Lupión? O Juscelino? Não. Quem mora aqui somos nós. Quem planta, quem nasce, quem morre aqui somos nós. Pois vamos mandar neste pedaço do Brasil! Ou por bem ou por mal. A gente deve dar uma decisão final: ou as companhias saem ou a gente corre com elas à bala!

Armindo quis interromper, mas Gaúcho não deixou:

— Momentinho — pediu e se virou de frente para a sala — O sudoeste é um beco, minha gente. Vamos comer estes bandidos pelas beiradas, feito mingau quente. Fechamos a entrada por Pato Branco, Barracão, queimamos as pontes, bloqueamos as estradas. Caiu dentro, a gente caça. E vamos cotucando a onça até Beltrão, que é o fim do beco. Lá, liquidamos com eles.

A reunião tumultuou. Todos falavam ao mesmo tempo. Armindo custou a pôr ordem na discussão e, ao final, se decidiu assinar uma comunicação pública, a ser levada aos jornais e autoridades, denunciando os desatinos que estavam sendo cometidos no sudoeste. Em protesto contra as mortes e a violência, o assassinato de Pedrinho Barbeiro, o incêndio da casa de José Rodrigues, a morte dos colonos na emboscada, o comércio fecharia as portas por três dias, em sinal de luto. Em segundo lugar, uma comissão, formada por representantes de todos os partidos locais, daria um ultimato ao governo do estado, exigindo que as companhias colonizadoras fossem retiradas da região num prazo de setenta e duas horas.

Terminada a reunião, Elpídio Bello procurou por Gaúcho:

— A gente pensa igual. Ou toma uma decisão ou foge.

Gaúcho estendeu a mão e disse:

— É isso mesmo, seu Elpídio. Vamos até o fim.

— Nem que seja pra morrer.

Gaúcho riu:

— Morrer nada, homem! A gente vai enterrar essa putada toda!

 

NA MANHÃ SEGUINTE à tocaia, Santin e seus homens começaram a entender o que havia acontecido. Antes, passaram um dia de cão. Santin se trancafiou no rancho, e não quis falar nem mesmo com Robertinho e Lídio. Preciso pensar, disse. Mas na verdade ficou remoendo uma mistura de culpa e ódio e só conseguia pensar em vingança. Era preciso matar o traidor, pensava, andando de um lado para outro. Quando planejaram atacar os escritórios da Citla, ele também havia sido traído — e naquela ocasião não descobrira o traidor. Fizera uma lista de nomes, foi eliminando um a um, chegou a três nomes de suspeitos, mas não podia ter certeza, acabou desistindo. Não podia fazer nada. Se o mesmo traidor voltara a agir, ele tinha que refazer a lista para descobrir quem era, mas logo sentiu que seria loucura: ele mesmo trouxera os homens, eram de confiança, só souberam da missão quando já estavam na estrada e não cruzaram com viva alma pelo caminho. Por isso se trancou no rancho e mandou que Robertinho e Lídio ficassem longe, apenas de guarda.

Na manhã seguinte chegou a notícia do espancamento e morte de Silveirinha. Santin tornou a se trancar no rancho, socou a cabeça contra a parede, esmurrou a própria cara, se sentiu um canalha por desconfiar de seus homens e por não ter se lembrado do bêbado que largara para trás. Robertinho é que desconfiou e foi até o hotel de Otto Germer. O alemão disse que chegou a pôr cadeado na porta do quarto, mas não adiantou. Amanheceu morto na beira da estrada. Santin perguntou:

— E os jagunços? Porque ele mandou os jagunços?

Lídio olhou penalizado para Santin:

— Eles sempre dão um jeito de eliminar algum jagunço que anda atrapalhando. Só que desta vez a gente fez o serviço para eles.

— Claro, claro — Santin balançou a cabeça e se sentiu um estúpido; não era a primeira vez que o ódio o deixava cego.

— Aqueles colonos eram casados?

— Um era.

— Tinha filhos?

— Quatro.

Santin mandou que pedissem ao pessoal de Santo Antônio para ajudar a viúva e fez um sinal para que Lídio o deixasse sozinho.

Não adianta ficar com raiva, pensou, novamente trancado no rancho. Era isso que eles queriam. Fora feito de palhaço, matara três colonos e dois jagunços dos quais os bandidos queriam se livrar. Agora ficariam felizes da vida se soubessem que estava furioso. Não seria desta vez. Chega. Calma, disse para si mesmo. Tentou pensar. Agora, com a repercussão da tocaia, não deveriam mais fazer pequenos ataques. Era preciso um grande ataque ao escritório da companhia, destruir tudo, criar uma confusão dos infernos que nada pudesse consertar. Deviam aproveitar a raiva dos colonos, que estavam ainda mais revoltados com a armadilha em que haviam caído. Ainda na estrada, Santin temera que os colonos se voltassem contra ele. Mas, ao anoitecer, recebeu um recado trazido por Lídio: mais uns cem homens haviam se juntado a eles, estavam armados e às ordens. Perto do meio dia Santin já tinha um plano. Atacariam imediatamente. Saiu do rancho e foi explicar a Lídio e Robertinho a decisão tomada.

Dois dias depois a cidade de Santo Antônio amanheceu cercada. Eram dois mil homens em armas. A decisão agora não era mais dele, nem mesmo a vontade de lutar. Bastava indicar as posições e dar as ordens para que tudo fosse executado com uma precisão de gente bem treinada. Em toda parte encontrou a mesma vontade e chegou a dizer a Robertinho, enquanto vistoriavam as entradas da cidade, que haviam guarnecido com toras e barris:

— Agora a gente não perde nem que o diabo atente.

Quando o cerco foi fechado, atacaram os escritórios.

Os jagunços, pegos de surpresa, mal conseguiam se esquivar da fuzilaria que esmigalhava as janelas e as portas do casarão. Lá dentro, pensou Santin, se instalou o inferno. Deveriam estar correndo de um lado para outro, se jogando das camas, agarrando-se às armas uns dos outros, tropeçando nos que caíam. E, ao imaginar estas cenas, Santin por instantes não sentiu a raiva que lhe ficara no peito naqueles dois dias. Desta vez não houvera traição, tinham armas, a cidade estava cercada. Não haveria erro. A partir das três da manhã ele mesmo percorrera a casa dos colonos, mandando que se vestissem, pegassem as armas e a munição e subissem no caminhão. Assim recolheram um a um, de casa em casa. Às cinco da manhã, o casarão estava cercado, as estradas e pontes bloqueadas.

Quando os primeiros tiros foram dados pelos jagunços, Santin mandou cessar fogo. Queria sentir, no ouvido, quantas armas tinham os inimigos. Eram muitas. De cada janela ou fresta saía uma espingarda ou revólver e, por detrás da porta aberta, uma metralhadora cuspia fogo e bala.

Os jagunços também pararam de atirar. Santin colocou as mãos em concha em frente da boca e berrou:

— Vocês estão cercados! Saiam desarmados ou vão morrer!

A resposta dos jagunços foi uma rajada de metralhadora na direção de Santin.

A fuzilaria continuou sem que pudessem invadir o casarão ou forçar a saída dos jagunços. Dali os jagunços não fugiriam, mas era certo que ninguém poderia, mesmo com muitos homens, retirá-los de lá. Santin mandou que atirassem menos, não podiam gastar toda a munição. Cuidassem apenas do movimento, atirando na certa. Em troca, como se fosse uma gentileza, os jagunços passaram a atirar menos.

— A gente não desentoca eles de lá, disse Robertinho.

— Pode deixar, fez Santin. Tem uma hora em que eles vão sentir fome e sede.

Às duas da tarde chegou a notícia de que os jagunços acampados em Capanema estavam tentando romper as barreiras e entrar na cidade. Santin mandou reforços. Às quatro e meia chegou um aviso de que um coronel do exército estava em Foz do Iguaçu, querendo conferenciar com os rebeldes, como os chamou. Enquanto os colonos se reuniam para tomar uma decisão, o tenente conversou com os jagunços, que retornaram a Capanema, onde tomaram a cidade e se prepararam para atacar Santo Antônio.

Cinco colonos foram até Foz do Iguaçu e acertaram as condições para uma trégua. Primeiro, os colonos mostraram que tinham total domínio sobre a cidade. Não recuariam sem garantias de que os jagunços seriam afastados do sudoeste. Segundo, só entregariam a cidade se pudessem continuar de posse das armas. As exigências foram atendidas. O coronel veio se encontrar com os colonos em Santo Antônio. Retirou os jagunços, que foram levados para Foz do Iguaçu.

Houve comemoração nas ruas, mas Santin ficou com um travo ruim de derrota na boca. Planejara agarrar aqueles jagunços a unha e desfilar com eles pelas ruas, amarrados uns aos outros. Queria que tudo aquilo saísse nos jornais, incomodasse o governador, e que o mundo inteiro olhasse para o sudoeste. No fundo, sentia não ter enfiado uma bala na cabeça de Zé Trinta, que agora contava com a proteção do coronel.

 

O INTERIOR DO FURGÃO era escuro e cheirava mal. Os homens estavam amontoados uns sobre os outros. Nas últimas três horas, sacolejaram como em lombo de cavalo xucro. Zé Lara se aproximou mais uma vez da pequena janela e viu, no alto de uma elevação, a casa de fazenda, pintada de azul e branco. O furgão reduziu a velocidade e, rosnando, contornou na direção de um galpão.

Zé Lara disse:

— Estamos chegando.

O Velha, encolhido no chão, resmungou:

— Sei.

— Sabe o quê?

— Que estamos chegando.

— Já esteve aqui?

— Não.

— E como sabe?

— Me disseram pra onde a gente vinha, ora.

O Velha encolheu os ombros diante da cara de ódio de Lara e perguntou:

— Que mal tem nisso?

— Nada.

Não gostou daquilo. Por que não fora avisado? Quem vai mandar deve ser avisado primeiro. Olhou pela janela e viu um homem negro sair de trás da casa e abrir a porta do galpão. O furgão avançou, mergulhando na escuridão e no silêncio. Zé Lara perguntou ao Velha:

— Onde estamos?

— Numa fazenda.

— Disso eu sei, porra! De quem é a fazenda?

Velha sacudiu os ombros e resmungou que estava com as pernas dormentes de tanto ficar encolhido.

— Pois elas vão dormir de uma vez se não dizes quem é o dono da fazenda!

— Que merda! Isso não é segredo, homem! Tu pensa que a toda hora tem alguém te tapeando, é?

— Diz o nome, seu merda!

— O deputado.

Zé Lara olhou pela janela, mas não enxergou nada. Perguntou:

— Ele tem fazenda por aqui também?

O Velha acariciou a perna dormente. Disse:

— Também. Essa aqui acho que vai até a Argentina.

A porta do furgão abriu e eles desceram. De cócoras, encostados na parede do galpão, lá estavam os velhos companheiros: Sergipe, Biguá, Dinho, Rude, Setembro, Maringá, Pernambuco, Pé de Chumbo, Lapa, Quarenta e Quatro. Zé Lara olhou cada um deles demoradamente, sem cumprimentar. Conhecia a fundo aqueles homens e achou que, examinando-os como quem passa uma revista, deixava claro que sabia das virtudes e defeitos de cada um. Quem atirava bem, quem era bom de braço, quem não podia ver o próprio sangue, quem sabia degolar com perfeição, quem se borrava na hora do pega pra capar. E sabia quem o odiava e o motivo do ódio. Assim, ficavam sabendo que estavam alí porque ele os escolhera. Deviam a ele a liberdade e a vida.

— Fez boa viagem? perguntou Romário.

Deste Zé Lara não gostava. Tinha um riso torto de cão raivoso, uma barbicha de bode fedorento. E sempre sabia demais, perguntava demais, se metia onde não era chamado. Mas era capaz de degolar um cabra com um golpe tão preciso que a cabeça continuava no lugar, esperando só um piparote pra despencar no chão.

— Viagem muito boa, disse Zé Lara, jogando a cabeça na direção de Velha e dos outros: E em muito boa companhia...

Todos riram. O Velha arrastou a perna torta para um canto do galpão, sentou no chão e ficou alisando-se com muito cuidado.

Sergipe perguntou:

— E então?

— Então, o quê? fez Zé Lara.

— Pra onde a gente vai agora?

Zé Lara não quis dizer que não sabia. Não ficaria bem para quem ia chefiar aquela tropa. Perguntou:

— Ninguém veio dizer a vocês?

Sergipe balançou a cabeça:

— Não.

— Já vais saber — e Zé Lara percebeu que o Velha parou de alisar a perna torta e olhou para ele com um sorriso sem-vergonha na cara. Pensou: um dia eu mato esse aleijado.

— Não sendo pra Porecatu... — Setembro, que estava deitado no chão, se espreguiçou, mostrando os dentes.

Os homens riram, enquanto Zé Lara ficou vigiando Velha e Romário com o canto do olho.

Não gostava de lembrar de Porecatu. Sentia a cabeça povoada de imagens confusas, como se fossem casas e lugares onde nunca houvesse morado. E no meio daquelas lembranças, Isabel. O rosto de Isabel, o corpo de Isabel, a voz de Isabel. A cachoeira onde ficava nua. A cama onde dormiam. Um pedaço da janela da cozinha. Não lembrava das mortes, das tocaias, dos ferimentos, dos tiroteios, das traições. Lembrava de lugares desconhecidos, feitos de pedaços de um mundo que esquecera. Às vezes lembrava de Índio. De novo estava jogado na beira da estrada, quase morto, do jeito que o acharam. Ou bancando o moleque valentão. Lembrava também de tudo que ensinara a ele. Mas sempre lembrava de Isabel deitada nua nas pedras ao lado da cachoeira enquanto ele olhava aquelas pernas lisas, firmes, cobertas por uma penugem aloirada, os pentelhos respingados pela água, a boca misturando traços de branco, de bugre e de negro. Bugrinha, dizia. E lembrava também que Índio se fora de repente, sumindo no mundo sem deixar traço, sinal, nada, do mesmo modo como havia aparecido. "Aquilo tem partes com o Demo", dissera Romário. Zé Lara lembra do que sentiu: falta de alguma coisa que não podia descrever, como quem perde um braço ou uma das mãos. A única pessoa, além de Isabel, de quem sentira necessidade de cuidar, de ensinar, de proteger. Era como se precisasse saber de alguma coisa que só Índio poderia lhe dizer. Por que o moleque foi embora? ele perguntava. Isabel sorria, acariciando seu peito: parece que perdeu um filho, dizia ela. Pensou que fosse covardia, mas isso não podia ser. Índio era um moleque doido, não tinha medo de nada. Era um tipo de bicho que gostava de arremeter contra o que passasse na sua frente, feito boi brabo e cego. Não era de sentir medo. Quem sabe haviam feito ou dito alguma coisa errada? Não sabia. Isabel encolhia os ombros. Aquilo atazanara sua cabeça durante todos aqueles anos. Mas agora, pensou, ia descobrir.

Zé Lara quebrou várias vezes o graveto que tinha nas mãos e deu com os olhos de Romário, a cara tinhosa de cão, a barba afoita de bode. Manteve os olhos nos de Romário e assim ficaram se mirando até que a porta do galpão se abriu e eles foram ofuscados pela luz do sol.

Duas silhuetas negras avançaram na direção deles. Uma era do homem negro que abrira a porta quando chegaram. Tinha um andar batido, pesado, como se afundasse os pés no chão a cada passada. A outra, do doutor Rabello: baixo, gordo, agitado — e, já podiam sentir, fedendo a perfume. Ele cumprimentou a cada um dos homens com muita cerimônia: conhecia a todos pelo nome verdadeiro, não pelo apelido, o pilantra. Ao dizer o nome de cada um era fácil sentir no ar uma ameaça. Por último, estendeu a mão a Zé Lara, que engoliu um bocado de perfume e deu uns tapinhas nas costas do doutor.

— Então? fez o doutor, enfiando as mãos nos bolsos do paletó — Prontos?

— Como sempre, doutor — foi Romário quem falou, o risinho safado na barba de bode.

— É claro, fez Rabello.

— Mas seria bom a gente saber pra onde vamos, completou Romário.

Rabello fechou a cara:

— Tu já vais saber, não tem pressa.

Virou-se para Zé Lara, colocou a mão perfumada em seu braço e fez o convite que o entronizava como chefe do grupo:

— Venha. Precisamos conversar.

Saíram. O negro fechou a porta, deixando os homens na escuridão.

 

A CARROÇA PENDIA PARA O LADO sob o peso desequilibrado das camas, das cadeiras, do armário, do baú, da caixa de ferramentas, de duas malas amarradas com barbante, de todas estas tralhas, pensava Joanin, que a gente vai juntando pela vida afora e que formavam agora o lombo esquisito de um bicho que Nego Berto amarrara com cuidado, sem dispensar vários palavrões quando a mobília escorregava de um lado para outro. Ao longo da viagem, precisaram parar várias vezes para firmar as cordas, ajeitar uma cadeira que estava escapulindo, em meio aos xingamentos de Nego Berto, e dos ralhos de Cidália: olha as crianças, seu Alberto! Joanin ajeitou uma trouxa de roupa, experimentou a tensão das cordas, sacudiu de leve a roda traseira, mas sabia que tudo aquilo era apenas um ritual, não estava na verdade arrumando coisa alguma nem examinando nada, apenas queria se manter atento, ocupado, um homem que zela pelas suas coisas, um pai cuidadoso, um marido preocupado.

Tomou Alberto no colo e deixou Cidália cuidando da comida e das meninas. Caminhou até a beira do rio Santo Antônio, onde encontrou o homem que cuidava da pousada.

Vinha curvado sob o peso de dois baldes de água atados numa vara que trazia sobre os ombros. Cumprimentou e se ofereceu para ajudar, mas o homem preferiu parar e descansar um pouco. Durante a viagem, Joanin ouvira várias vezes a recomendação: atravesse o rio Santo Antônio e vá por Missiones. Se saísse pela fronteira seca, que ficava mais abaixo, correria um risco muito grande: assaltos, violências, emboscadas. Se não fossem vítimas de bandidos, poderiam cair no fogo cruzado que andavam trocando farrapos e amarelos por aquelas bandas. Pensou na família, no risco, e decidiu seguir o conselho.

Agora alí estava ao lado daquele homem, segurando Alberto no colo, esperando o momento de cruzar o rio. No dia anterior, ao chegarem, o homem erguera o braço direito e apontara com um gesto largo o outro lado do rio: lá é a Argentina, dissera. Joanin avançara dois passos na direção da margem e olhara para baixo. Lá no fundo, a uns oito metros, corriam as águas do Santo Antônio. Nas margens erguiam-se as paredes de uma grota, mistura de pedra, barro e mato rasteiro. Alberto segurou os bigodes do pai e Joanin se pôs a rir. Beijou o filho e pensou: uma titica de riacho e já do outro lado é um país estrangeiro. Muitas vezes Joanin atravessara as divisas dos estados do sul, indo e vindo do Rio Grande ao Paraná, cruzando Santa Catarina em vários lugares, mas nunca atravessara a fronteira em direção a outro país. Agora pensava nisso: lá do outro lado era um país estrangeiro, nele moravam os gringos, com sua fala enrolada, sua mania pela erva-mate, que vinham roubar do lado de cá, usando outro dinheiro e com outro jeito na cara. E tudo isso por causa de um riozinho de titica, que ia dar um trabalho sério atravessar com a carroça empoleirada numa balsa.

— Quando o amigo vai partir? perguntou o homem.

— Pos, fez ele, uns dois dias.

Retirou com cuidado as mãos de Alberto dos seus bigodes e completou: é bom acabar com isso de uma vez.

— É mesmo, disse o homem, e alinhavou na conversa as novidades que gostava de contar, sempre ressaltando que não tinha nada com aquela briga, apenas cuidava da sua pousada, o que já dava muito trabalho: Vem estripulia da grossa por aí. Diz que Pedro Santin tocou fogo no escritório da Citla, em Santo Antônio. Vem troco. E não demora. É até bom que o amigo passe pro lado de lá o quanto antes.

Joanin perguntou, menos por interesse e mais para deixar o homem falando:

— Os jagunços não incomodam por aqui?

O homem tirou o chapéu, coçou o cocuruto e fez uma beiçola:

— Não, eu não sou colono. Não me meto e eles não incomodam. Depois, todo mundo precisa de alguém cuidando do pouso por estes lados.

— É verdade, aceitou Joanin, dando no chapéu e voltando na direção da carroça.

Podia ser implicância, mas Joanin não gostava daquele homem. No dia anterior, ele dissera que era bom Joanin sair do Brasil. As terras de Missiones são boas e sem conflito. Aqui anda morrendo gente feito mosca. Tá uma mortandade sem fim, o senhor não acha? Acho, disse, e ficou irritado: por isso estou indo embora, pensou. Ir embora. Aquele homem, falando sempre a respeito das maravilhas que encontraria no outro lado do rio, sempre contando casos de mortandade e de violência, fazia com que Joanin se sentisse mal. Era como se ele dissesse a toda hora que Joanin fugia, agindo como um covarde por não ficar nas suas terras ao lado dos outros colonos. E o homem falava, falava, contava os casos dos corpos boiando no rio ou espetados nas forquilhas das árvores. Joanin fazia força para não prestar muita atenção, tentava distrair Alberto, deixando que o filho esfolasse seus bigodes aos beliscões. É, estou indo embora, repetia de vez em quando. O diabo é que lembrava do sudoeste e do paraíso para o qual levara Cidália. Naquela época, não lhe passava pela cabeça que um dia sairia dali fugido. Mas agora iria se juntar àquelas trezentas e tantas famílias que já estavam do outro lado — e mais famílias chegavam a toda hora, surgindo do meio do mato em carroças, a cavalo, a pé, viajando em grupos para se defender de alguma emboscada, dormindo de olho pregado no escuro com medo de bala perdida, fugindo dos jagunços, da polícia, das mortes e de tudo que de pior estava para acontecer.

Ia sentir falta dos amigos, pensou. Seu Liseu com seus dentes de rato, a bocha, as churrascadas, o chimarrão indo de mão em mão, o futebol na fazenda Horizonte, a conversa fiada no fim do dia. Apertou Alberto no colo e pensou: assim era melhor. Ele não seria morto como um cão, feito Pedrinho Barbeiro, nem seria esfolado vivo, como Eleutério Bello. Não deixaria que os filhos passassem por aquele perigo. Terra era terra em qualquer parte, no sudoeste ou na Argentina, se lida com ela do mesmo jeito, o resto era bobagem que punha na cabeça, que merda podia representar um riozinho daqueles para dividir o mundo de Deus em dois países estrangeiros? Por isso nem ouviu direito quando o homem falou das necessidades pelas quais passavam os que já estavam na Argentina: o governo dos gringos, dissera o homem, teve que dar uma ajuda para cada família, senão, seu Joanin, ia haver do lado de lá mais mortandade por fome do que tá havendo aqui à custa de bala.

Bobagem. O paraíso, pensou Joanin, fica sempre naquele lugar para onde a gente tá indo. Caminhou até a carroça, ao lado da qual a mulher e as filhas estavam lidando com o fogareiro para fazer a mesma comida que comiam nos últimos dias: batatas e uns pedaços de galinha.

Agora Joanin olhou para o homem que se distanciava: não me agrada esse vivente, resmungou. Cidália o repreendeu com o olhar e Irene perguntou: que ele fez, pai? Nada, disse Joanin, ele não fez nada. A filha se distraiu com as batatas, mas Cidália continuou de olho nele. Perguntou:

— Que é isso nos teus olhos?

— Nos meus olhos? O quê? disfarçou, sabendo muito bem do que ela estava falando.

— Os olhos vermelhos, disse ela, olhando de relance para as filhas e dando a ordem: agora vão as três lá no poço buscar outro balde de água.

Elas pularam de alegria, não havia coisa da qual mais gostassem do que tirar água do poço.

— Que foi? insistiu Cidália.

— Nada, mulher.

Era melhor não mexer com aquilo, achava Joanin, era melhor por causa das crianças e deles mesmos. Abaixou a cabeça, entregou a Alberto um graveto que ele indicava com insistência e perguntou para a mulher:

— E o negro?

Cidália desistiu de fazer perguntas:

— Tornou a sumir, disse.

— Bah, fez Joanin, deve andar cagando aí pelos matos.

Nego Berto não passara bem a viagem inteira. Primeiro deu de ficar de boca fechada, mudo, só fazia rosnar, estalar os beiços, dizer que sim e que não. Apenas Alberto, quando ia para o colo dele, fazia com que o negro se animasse, inventando micagens, mostrando os dentes. Mas era Alberto retornar ao colo da mãe, que o negro mergulhava de novo naquele silêncio de doença. Depois, deu para dizer que andava com tonturas, dor, enjôo. Joanin debochara: Vai ver, tu tá prenho, negro. Nego Berto não achou graça. Fechou a cara, amarrou o bode, veio o resto da viagem sem fazer uma reclamação. Mas confiança não dava pra ninguém, sempre andando meio curvado, a mão nas cadeiras, os olhos quase vazios, olhando pra dentro. Agora que estavam na fronteira e que do outro lado estava a Argentina, o negro fora atacado por uma violenta diarréia.

Era a terceira ou quarta vez, naquele dia, que o negro garrava o mato, passava um tempo por lá e voltava lívido, acinzentado, os olhos caídos feito olho de boi na canga. Ele não vai ficar com a gente, dissera Cidália, adivinhando o que Joanin estava pensando sem ter coragem de admitir. Cê acha? perguntou. Acho, disse ela, jogando pedaços de galinha na bacia e pensando como um grande egoísta. Não pensara no que era melhor para Nego Berto, seu compadre, mas no que era melhor para ele, Joanin. Se afeiçoara tanto ao sujeito que não podia entender como é que ia viver sem ele por perto, de quem iria cuidar nas trapalhadas, de quem iria reclamar quando ficasse irritado. No meio daqueles matos, sozinho, com quem iria conversar fiado na hora de tomar chimarrão? Um homem não pode, pensou Joanin, viver apenas com a mulher e os filhos. Um homem precisa de amigos, de alguém que seja igual a ele e que o entenda direito. Alguém com quem possa trocar umas idéias, ficar lado a lado sem falar nada, observando a criação, a terra, o tempo.

Joanin conhecia o motivo de seu egoísmo. Sentia medo de ficar sozinho. No início se convenceu de que precisava carregar com Nego Berto porque o negro, miolo mole do jeito que era, seria capaz de se meter a valente no sudoeste, um dia já se atracara com a espingarda de Joanin e fora um trabalho convencer o doido a desistir de uma espera inventada por um bando de colonos. O perigo era verdadeiro, pensou Joanin, mas não queria ficar sozinho. Ia para a terra dos gringos, não sabia direito o que aconteceria por lá — e não esperava encontrar nenhum paraíso. Sentia que mais dia menos dia ele e Cidália gastariam tudo que tinham pra conversar e então ele ficaria perdido no meio do mato e mesmo as filhas e o filho Alberto não serviriam de companhia. Vai ver, pensa agora, também fora por medo que carregara com aquele negro, encontrado no chão do boteco de seu Liseu, babando feio e de porre. Qualquer sujeito de juízo não confiaria no primeiro bêbado que encontrasse caído no chão, ainda mais um negro. Havia uma coisa errada, pensou, como pensava a cada vez que olhava Nego Berto nos olhos e sentia que neles havia alguma censura: Joanin fugira de suas terras, desistira das lutas, quem sabe o filho Alberto não fora apenas uma desculpa para ele cuidar de seu egoísmo.

Cidália chamou as crianças e deu a cada uma delas um pedaço de galinha. Pegou Alberto no colo. Joanin, ao invés de se servir, se colocou de pé, ajeitou as costas, parou ao lado da carroça com as pernas abertas e as mãos na cintura. Lá do outro lado do rio viu uma árvore. A mesma que vira assim que chegaram. Aquela árvore fica na Argentina, pensou, achando que também nisso havia algo de errado, onde se viu um bocado de água separar um país do outro, a guerra do sudoeste da paz dos gringos.

— Não vai comer? perguntou Cidália.

— Não, agora não.

Contornou a carroça, olhou os cavalos pastando mais adiante e então viu Nego Berto surgir do meio do mato: lívido, alquebrado, mancando. Joanin caminhou ao encontro dele e perguntou:

— Tá melhor?

— Bueno, disse o negro, acho que desta vez caguei a alma!

E deu uma gargalhada como Joanin não ouvira desde que haviam saído do Verê. Como por milagre, o negro se animou todo, saiu aos pulos, atracou-se com uma coxa de galinha e uma batata e fez festas para as crianças. Joanin chegou perto dele, encheu o peito e, solene, perguntou:

— Tem certeza que tu queres atravessar para a Argentina?

Nego Berto parou a coxa de galinha diante da boca aberta, olhou Joanin nos olhos, se ofendeu:

— E o compadre acha que eu sou homem de deixar tarefa pela metade?

Joanin sorriu:

— Não acho.

Deu um tapa carinhoso nas costas do negro e julgou que ficara aquele tempo todo pensando bobagem. Tolices. Apanhou também um pedaço de galinha — a última galinha, daqui para a frente iam ter problemas — e achou que gostava mesmo da coragem daquele negro. O danado ia dando no mundo do jeito que vinha, sem pai nem mãe, sem ter onde cair morto, como quem entra pelo mato e vai abrindo caminho a facão. Joanin mordeu um pedaço de galinha e pensou: um grande companheiro.

 

ELPÍDIO COLOCOU A QUINTA LATA sobre o quinto moirão e se afastou. Gritou:

— Atira!

Ela hesitou.

— Atira, mulher!

Laura atirou. O estampido ecoou longe, criando um silêncio estranho ao sumir mato adentro. Elpídio riu:

— Nem perto!

Aproximou-se de Laura e repetiu a lição. Que encostasse com firmeza a winchester contra o ombro. Deixasse a espingarda solta, sem peso, não fazia mal se ela oscilasse um pouco. O importante era transformar a espingarda num pedaço de seu braço e de sua cabeça. A qualquer hora, explicou, tu pegas o dedo e apontas num direção certa, não é? Devia ser assim com a espingarda, como se fosse o dedo indicador. Depois, era só respirar com calma, profundamente, na certeza de que ia acertar.

— Se a gente não confia, o tiro sai errado.

Laura balançou a cabeça. Apoiou novamente a winchester no ombro, esperou a mira se acomodar e soltou a respiração lentamente. Deu no gatilho e uma lata virou cambalhotas no ar.

— Viva! — gritou Elpídio — Vai, atira de novo.

Laura foi acertando e errando. Quando as cinco latas haviam ido pelos ares, Elpídio correu para a cerca e tornou a enfileirá-las em cima dos moirões.

— Acho que chega, fez Laura.

Elpídio veio balançando o dedo:

— Não, senhora. Quero ver estas latas voarem de novo.

Ela dirigiu um olhar de sensura para o marido, mas ele estava de olho grudado nas latas, esperando pelos tiros. Ergueu a winchester, firmou-a contra o ombro e respirou fundo. Um tiro, uma lata. Outro, a lata voou longe. Quando derrubou a última lata, Elpídio fez uma cara severa de pai que aprova, relutante, a ação de uma filha, e veio abraçá-la.

— Pronto, moça. Isso tu já sabes.

Voltaram abraçados para casa. Laura pensando que talvez fosse melhor não ter aprendido a atirar. Uma coisa era acertar uma velha lata de azeite, outra seria puxar o gatilho com um jagunço na mira. Não teria tempo de fazer pontaria, controlar a respiração, firmar a espingarda no ombro. Talvez não tivesse coragem de atirar. Mas não disse nada disso ao marido: ele estava feliz, confiante, e ela sabia que era inútil querer tirar de sua cabeça aquele plano de defesa ou fazer com que desistisse de se meter naquela briga com as companhias.

— Já estou metido nisso até o pescoço, resmungara quando ela o repreendera pela primeira vez.

Ele não recuaria. Sentiu isso no modo como fechou a cara.

— Não tem lugar aqui no sudoeste para mim e pros assassinos do Eleutério. Os dois não ficam. Um de nós vai morrer.

E era assunto encerrado, entendeu Laura. Não restava saída: aprenderia a lidar com a arma. E como proteger o filho no caso de ataque e como fugir para o mato e sobreviver comendo frutas e raízes. Laura se aplicou a aprender tudo aquilo, pois Elpídio dizia que havia pressa, a qualquer momento podia estourar a revolução no sudoeste.

— Revolução? perguntou ela.

Elpídio olhou para ela com carinho:

— Revolução, mulher. É assim que a gente tá chamando. Vamos fazer uma revolução por estas bandas.

Ele só não sabia dizer quando e qual o caminho que as coisas tomariam. Pro seu gosto, os colonos estavam parados demais, confiando demais no tempo, nalguma decisão da justiça. Quando ouvia as conversas de Armindo Tomellin, voltava para casa desanimado: isso não vai dar em nada, dizia. Jagunço a gente pega na ponta da faca ou no gatilho. Conversa de político não vai tirar as companhias daqui.

Laura não entendia, ele sempre falara tão bem do deputado.

— Pos, dizia ele, é bom sujeito. Mas não sabe que cachorro não larga osso com conversa mole. Tem que levar pedrada.

Por isso ela se assustou quando ele veio falando em Pedro Santin, que já fizera tocaias contra os jagunços e, segundo se dizia, mandara um magote deles de volta pro inferno.

— De onde veio este Santin? quis saber Laura.

Ele hesitou:

— Da Argentina, disse.

— Não é brasileiro?

— É, fez Elpídio, amarrando a cara ao sentir o rumo da conversa: Ele andou escondido.

— Então, boa coisa não é.

Elpídio não ouviu. Só ouvia o que queria ouvir. Explicou que Santin era um homem de coragem. Tinha o plano de ir derrubando os jagunços aos poucos, um a um. Laura duvidou:

— Vem mais jagunço, não vai adiantar.

Elpídio sentou no degrau da porta da cozinha e disse:

— Mas ele não fica de braço cruzado, não é? Vai matando quem mais aparecer.

Laura criou coragem:

— Não acha que tu ficou meio cego com a morte do Eleutério?

Elpídio olhou firme nos olhos de Laura:

— Isso é assunto meu. Vou acabar com toda raça de jagunço, vou acabar com o jagunço que matou meu irmão. É só chegar a hora.

Quando pela primeira vez apareceu um jagunço e um advogado para conversar com Elpídio, Laura, que vivia temendo aquele momento, se surpreendeu por não sentir medo, por não sentir nada. Só pensou em apanhar a winchester, em colocar o filho por detrás dos sacos de areia e caçar os dois homens na mira da espingarda. Elpídio foi conversar com eles em frente à casa, como haviam combinado, fazendo questão de deixar visível o revólver que trazia na cinta. O homem falou em títulos, em necess                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                               eu Elpídio.

O homem olhou para o jagunço, que não sabia se cuidava de Elpídio ou da winchester de Laura apontada para a sua cabeça. Elpídio encerrou a conversa:

— Moço, bote isso na cabeça: eu não vou sair daqui. E não vou fazer acordo nenhum. Vocês já mataram meu irmão e não vão me matar. Agora a vez de matar é minha, entende? E vou matar vocês quando chegar a hora. Pra empatar o jogo.

O homem fez um sinal para o jagunço e eles voltaram ao jipe. Laura os guardou na mira da winchester. Elpídio ficou plantado em frente à casa. Quando sumiram, Laura começou a chorar. Elpídio entrou em casa, abraçou a mulher e, olhando para o filho, perguntou:

— Ele não acordou?

— Não, disse Laura.

Elpídio sorriu:

— Tá vendo? Corremos com os patifes.

Laura enxugou o rosto, recolheu o filho do meio dos sacos de areia e pensou: ao menos desta vez.

 

ROBERTINHO RETIROU UM PEDAÇO DE LINGÜIÇA do meio das brasas e limpou-o com o punhal. Olhou Santin com o rabo dos olhos — ele continuava imóvel, as mesmas veias saltadas correndo pela testa, o olho fixo no caminhão. O silêncio só era quebrado pelo estalar do fogo e pelo ronco de Lídio, que dormia enrolado num pelego, debaixo da carroceria. Terminou de comer a lingüiça, acendeu um cigarro e ofereceu o maço a Santin.

— Obrigado.

Santin seguiu olhando para o caminhão.

— No quer?

— Não.

— Que te preocupa?

Santin sacudiu os ombros e indicou o caminhão com a cabeça.

— É uma armadilha.

— O jagunço?

— O jagunço. Aquele miserável me aprontou uma armadilha.

Santin voltou a sentir o mesmo tremor que experimentara quando o Chefe de Polícia, Neves Saldanha, o chamara a um canto da prefeitura:

— Quero reafirmar minha confiança em ti, Santin. Vou te confirmar como delegado especial e te encarregar de uma missão que fará de ti um homem livre desta maldição de ser farrapo.

— Que encargo? quis saber Santin.

— Já vais saber.

O prefeito e os vereadores estavam reunidos em frente ao prédio da prefeitura, juntamente com um bom número de colonos, a quem Santin pediu que ficassem de vigília — nunca se sabe o que estes políticos podem fazer. Neves Saldanha trouxe Santin pelo braço, parou no alto da escada. Começou falando da necessidade de se respeitar a ordem, mas acrescentou, matreiro, que só há verdadeira ordem quando se escuta a população.

— Eu estou aqui em nome do governador, disse ele, e quero que saibam que o governador deseja encontrar uma paz duradoura para o sudoeste.

Santin fechou a cara e sentiu a inquietação dos colonos.

— Foram os senhores que, não suportando mais o clima de violência, tomaram Santo Antônio e expulsaram daqui as companhias e seus homens. É, pois, aos senhores que eu devo ouvir. Por isso, desejo confirmar que a partir deste momento o senhor Pedro Santin é designado Delegado Especial de Capanema.

Os aplausos interromperam a fala do Chefe de Polícia, que sorriu aliviado.

— Além disso, quero deixar claro que, daqui para a frente, enquanto a situação não estiver totalmente normalizada, só designarei pessoas desta comunidade para integrar o corpo policial que dará apoio ao delegado Pedro Santin.

Novos aplausos. Antes que Ferreira continuasse, um colono se adiantou com o braço erguido:

— Quero falar, disse ele. Quero saber o seguinte — era Aloísio Trentin, que subiu as escadas até ficar no mesmo degrau em que estava o Chefe de Polícia — Como é que fica Santo Antônio? A cidade foi invadida pelos jagunços que fugiram daqui e por outros que vieram ajudar. Quero saber se a polícia vai retirar aquela gente da cidade ou nós mesmos é que vamos fazer o serviço?

Neves Saldanha tentou sorrir e olhou para Santin, que lhe devolveu uma careta dura, de quem não tinha nada a ver com a história.

— Empenho aqui minha palavra, não só de homem público, mas também de paranaense e pai de família: hoje mesmo irei a Santo Antônio e farei com que as companhias se retirem da cidade.

Ninguém aplaudiu. Ficaram olhando fixo para Neves Saldanha.

— Isso basta aos senhores?

Foi Pedro Santin quem respondeu:

— A gente quer que aqueles jagunços desapareçam da fronteira.

— Pois fiquem tranqüilos quanto a isso.

— A gente espera, disse Aloísio Trentin.

Neves Saldanha ergueu a mão num cumprimento de político, mas ninguém aplaudiu. Os colonos se afastaram e o Chefe de Polícia puxou Santin pelo braço, fazendo sinal para que o prefeito e o juiz os acompanhassem.

— Santin, disse ele, perante o prefeito e o juiz de direito desta cidade, te passo uma missão da mais alta importância pessoal e política. Pessoalmente, isso irá te livrar para sempre da condição de farrapo, e eu mesmo me encarregarei de lutar na justiça para que tudo que houver contra ti seja perdoado. Politicamente, porque daremos a todos, no Paraná e fora dele, uma mostra de que os culpados pelas arruaças no sudoeste serão exemplarmente punidos. Estás compreendendo?

— Estou. Mas que missão é essa?

— Tu vais levar pessoalmente o jagunço Zé Trinta a Foz do Iguaçu.

Santin sentiu o sangue sumir do rosto, das mãos, o coração disparado. Foi quando o primeiro tremor sacudiu suas pernas. O prefeito e o juiz se olharam.

— Mas que diabo de missão! — Santin reclamou — O que vocês querem com isso? Por que não mandam Zé Trinta com os outros jagunços?

— O impacto político, Santin. Os outros são jagunços quase sem importância. Nós temos é que dar um exemplo a todos. Nós, do governo, mostrando que vamos punir os culpados. E tu, mostrando que não és um homem rancoroso.

— Mas eu sou um homem rancoroso, o senhor sabe disso. Acha que vou perdoar quem matou gente da minha família?

— Ele vai ser punido, Santin. Isso é certo. E tu vais dar uma amostra de que não queres fazer justiça com as próprias mãos.

— E o que o senhor ganha com isso?

— Eu não ganho nada, homem! O governo se livra da acusação injusta de que protege assassinos.

— E não protege?

— É claro que não!

— Tem gente que acha o contrário.

— Pois é gente que não presta!

O prefeito segurou o braço de Neves Saldanha.

— Santin — disse o prefeito — acho que é uma boa oportunidade para ti. Todos aqui da cidade reconhecem que tu fizeste muito por eles, mas mesmo assim ninguém pode te livrar de um mandado de prisão que venha do Rio Grande, ninguém pode te livrar de uma acusação de desordem vinda do governo do Paraná. Com essa chance tu podes ter uma nova vida.

— Eu também acho — disse o juiz.

Novamente Santin sentiu o tremor nas pernas e imaginou que sabia de onde vinha aquele mal-estar: aquele homem de terno e gravata, cheiroso, de cabelos curtos e penteados para trás, o punha em completo embaraço. O que pretendia? Colocava em suas mãos o assassino de seu cunhado e de sua irmã, dizia que isso era bom para ele e também para o governo, quer dizer, era bom para o governador Lupión. Santin jamais pensara que alguma coisa no mundo pudesse ser boa para ele e para Lupión.

Há muito tempo desejava levar uma vida como a de todo mundo, sem o medo de ser perseguido que acompanhava todo farrapo. Imaginou que assim deixaria felizes sua mulher e seus filhos. Mas era um risco muito grande entregar aquele bandido nas mãos da polícia. Na certa armariam uma fuga para ele. Santin não conseguia chegar a nenhuma conclusão. Sabia apenas que aquele homem perfumado e de anel no dedo dominava alguma coisa que ele desconhecia. Disfarçou a sensação de ser um bronco com o truque de sempre: com um meio sorriso e um olhar de desconfiança. O tremor na perna era agora acompanhado por um peso no estômago.

Santin encarou o Chefe de Polícia:

— O senhor me dá sua palavra?

— Dou.

— Eu aceito.

Agora alí estavam — ele, Robertinho e Lídio, que roncava feito condenado — no meio da viagem. E alí estava o jagunço Zé Trinta enjaulado na carroceria do caminhão, arriscando de quando em quando um olho arregalado pelo meio das tábuas. E Santin continuava pensando. Se pensasse muito bem no que ia fazer, poderia dar um fim em toda a luta dos colonos de Santo Antônio e Capanema. Precisava levar aquele assassino até Foz do Iguaçu e mostrar ao doutor Ferreira que ele era capaz de respeitar a lei, mesmo quando a lei o impedia de arrancar as tripas de um jagunço covarde. Capaz, como dissera o juiz, de colocar o interesse dos colonos acima do seu ódio pessoal.

Isso estava pensado, resmungou Santin. Mas quem garantia que o Chefe de Polícia cumpriria a palavra? Quem garantia que em Foz ele não fosse preso ou atirado no rio Iguaçu com uma pedra bem grande amarrada nos pés? Que ganharia sendo delegado especial de Santo Antônio? Seu cunhado e sua irmã estavam mortos. Sua mulher e seus filhos estavam a salvo na Argentina. E o jagunço estava alí, vivo, talvez rindo dele depois de cada olhadela assustada através da carroceria. O doutor Ferreira e o Lupión queriam é se mostrar como gente limpa, que nada tinha a ver com jagunços                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                               pre na condição de farrapo. Mas podia ser também uma maneira de dar fuga a Zé Trinta, em Foz ou durante a viagem. Por isso Santin desviara do caminho e viera passar a noite longe da estrada.

Sentiu novamente o tremor nas pernas. Já havia fracassado várias vezes na vida, pensou, não queria cometer mais um erro.

Robertinho terminou o cigarro e jogou-o no meio das chamas. Comentou:

— O diabo, Pedro, é que os colonos esperam que a gente volte.

Isso acrescentou um novo problema no qual Santin deveria pensar.

 

NEGO BERTO SEMPRE IMPLICARA COM SEU TIBURCINHO, dono da madeireira onde trabalhava Alemão. Mas qualquer um via que aquilo era demais. Sentiu a raiva crescer enquanto ouvia a conversa do homem, seu deboche, aquilo de dizer que Gaúcho não passava de um fanfarrão, que vivia no meio do mato enganando os colonos com bugigangas que não funcionavam direito e namorando uma moça em cada lugarejo, na maior pouca vergonha. Por isso, dizia Tiburcinho, não iria à reunião marcada, pois não estava alí pra fazer cartaz de encrenqueiro e conquistador barato. Foi nesse ponto da conversa que Nego Berto perdeu as estribeiras e fez:

— Epa!

Seu Liseu, Elpídio, Alemão e Tiburcinho olharam assustados para o negro, que saltou do canto onde estava e se plantou no meio do armazém com as mãos na cintura, a cara de provocação.

— Epa o quê, negro?

— De primeiro, sou negro e não nego a raça. Depois, não acho o Gaúcho um pilantra.

Seu Tiburcinho debochou de Nego Berto:

— Tu não entendes de política, homem.

— Mas entendo quando um homem é macho e não tá abusando dos outros.

Seu Tiburcinho avermelhou o pescoço e mordeu o cigarro de palha. Liseu e Alemão esconderam uma risada e Elpídio ficou olhando para o negro com muito interesse.

— Vai dizer que o senhor não sabe — duvidou Nego Berto — como foi que Gaúcho enfrentou dia destes o chefão dos jagunços, o tal de Zé Lara? Não sabe?

— Fanfarronada, fez seu Tiburcinho, cuspindo no chão. Aquilo é um mentiroso.

— Ah, pois — fez o negro — Eu acho que ele fez coisa de homem muito macho, que se tivesse mais desse tipo aqui no sudoeste os jagunços não aprontavam essa majorca toda.

— Não me ofende, negro! seu Tiburcinho largou o cigarro sobre o balcão e ameaçou com o olhar.

— Calma, pediu Elpídio. Me diz uma coisa, Nego Berto, que foi que o Gaúcho fez?

Seu Elpídio não sabia? Nego Berto se ajeitou e foi contando, certo de que dobraria seu Tiburcinho, que estava mordido e assustado. Pois o amigo sabe que o Gaúcho vende coisas por aí pelos matos, não é? Rádio, geladeira, dínamos, máquinas de costura, baterias, mesa, cadeira, vende de tudo, o que for pedido. Mas não funciona, aparteou seu Tiburcinho. Que seja, cortou Nego Berto. Pois dia destes vendeu um gerador para a Comercial. Foi lá, entregou, recebeu um cheque. Foi retirar o dinheiro, tava sem fundo. Ah, pra quê! O Gaúcho meteu os peitos lá na Comercial, queria saber o que estava acontecendo, por que diacho o cheque era furado. Aí disseram assim pra ele: o gerador não funciona. Tá vendo?! exultou seu Tiburcinho. Tô vendo, sim, fez Nego Berto, e o senhor já vai ver. Pois o gerador funcionava direitinho, foi isso que o Gaúcho viu quando foi lá fazer a assistência. Aí ficou naquilo do cheque ir e vir, pode depositar hoje, amanhã, só daqui a quinze dias. Gaúcho se encheu de raiva, meteu dois revólveres na cinta e foi lá na Comercial procurar pelo tal Zé Lara, pois não queria mais conversa com o advogado que estava enrolando o negócio. Nego Berto abriu os braços, estufou o peito e soltou o beiço para fazer uma cara braba feito a de Zé Lara. Tava lá o homem rodeado de uns vinte jagunços. Gaúcho chegou, nem bola, foi logo cobrando do Zé Lara:

— Vim aqui receber o cheque.

Zé Lara — Nego Berto fechou os olhos, entortou a boca e deu dois passos pesados pelo armazém — se levantou da cadeira onde estava e fez um sinal pros jagunços ficarem quietos. Disse:

— Ah, então este moço é o famoso Gaúcho! Muito prazer!

— Pois não posso lhe dizer o mesmo, respondeu Gaúcho.

— Valente, hein?

— Dizem.

— E anda pondo coisas na cabeça dos colonos. Anda pelos matos dizendo que eles não devem assinar nada, que não devem negociar com as companhias. É verdade?

— Se é o que lhe contam, deve ser verdade.

Zé Lara ficou furioso — Nego Berto retorceu a cara, fez voz grossa e olhar duro:

— Olha aqui, piá, não te mete a besta comigo, que por mim já tinha te metido uma bala nos cornos.

— Eu só vim receber o cheque. Entreguei o gerador, está funcionando, quero o dinheiro que é meu.

— Tu vai ter o teu dinheiro, mas antes precisamos ter uma palavrinha — Zé Lara apontou os jagunços. Nego Berto deu um giro completo pelo armazém, parou com o olhar duro na cara de seu Tiburcinho, que já não conseguia esconder que estava impressionado com a história do negro — Além desses homens aqui, eu tenho pra mais de oitenta espalhados na redondeza. Gente braba, guri. Gente minha. Tu pensa que nós vamos ficar com medo de um piá que não pesa nem cinqüenta quilos?

— Isso é com vocês.

— Quantos anos tu tem?

— Vinte e cinco.

— Tu falas como valente porque não sabes o que nós somos capazes de fazer. Tu tem fama de conquistador, sabia? Pois te mando cortar os ovos só pra ver como é que tu vai cantar de galo por aí. Te corto os ovos e dou pro cachorro comer, guri!

Gaúcho não respondeu. Zé Lara deu uma volta em torno dele e Nego Berto circundou o balcão do armazém, examinando com desprezo um frasco de ovos cozidos.

— Tu já ouviu falar em Porecatu, guri? Pois deixamos lá 365 viúvas, só pra combinar com os dias do ano.

Nego Berto se aprumou, largou as mãos do lado dos revólveres que Gaúcho trazia na cintura e disse, o olho esquerdo ligeiramente fechado:

— Pode que seja, seu Zé Lara. Só que aqui o senhor vai ter que enfrentar outro tipo de gente. Aqui é tudo gaúcho brabo. Acho que o senhor vai se dar mal. Aqui não é Porecatu.

Seu Tiburcinho engolia em seco. Acompanhava a encenação de Nego Berto e, assustado, conferia a cara de interesse de seu Liseu, Elpídio e Alemão. O negro estava levando eles na conversa, mas Tiburcinho não atinava num jeito próprio de parar aquela história.

Gaúcho, rodeado pelos jagunços, pensou: agora ele manda atirarem em mim. Nego Berto sorriu: mas não atirou, não. Aquilo é tinhoso, sabe quando deve matar, onde deve matar. Não era hora e o Gaúcho não se dobrava. Zé Lara disse:

— Tu pode escrever, guri, não vais completar vinte e seis anos. Tua vida não vale um traque.

— E o meu dinheiro? quis saber Gaúcho, como se toda aquela conversa não tivesse existido.

— Teu dinheiro tu pega com o advogado.

Gaúcho saiu andando de costas. Subiu no jipe e se mandou na mesma hora pro escritório do advogado, o Albino Kozak. Quando chegou lá, o advogado quis falar em negócios, fez proposta, que tal Gaúcho se tornar proprietário da Rádio Colméia? Era um homem de liderança, jovem, podia usar a rádio para trabalhar pela região, quem sabe podia entrar na política, deixar de andar por aí pelos matos vendendo bugigangas feito um turco.

Gaúcho não disse palavra.

— A gente compra a rádio, deixa nas suas mãos, e o amigo nos paga em publicidade, a longo prazo, sem problemas. Que tal?

Gaúcho continuou em silêncio. O advogado esperava alguma reação.

— Já terminou, doutor? perguntou Gaúcho.

— Já.

— Pois vamos fazer o seguinte — Gaúcho se levantou da cadeira — Eu vim aqui receber o dinheiro do cheque, não foi?

O advogado balançou a cabeça.

— Então eu vou fazer assim: vou sair por aquela porta, vou entrar de novo e lhe perguntar pelo meu dinheiro. Aí, o senhor me paga, só isso. E eu faço de conta que não ouvi essa história da rádio Colméia, pois uma história dessas pode me chatear e eu sou capaz de, por conta dela, lhe dar um tiro nos miolos, compreende?

O doutor balançou a cabeça de novo.

Nego Berto foi até a porta do armazém. Gaúcho tornou a entrar, bateu um cumprimento no chapéu e disse:

— Doutor Albino Kozak, eu vim receber o meu dinheiro.

O advogado atentou aos dois revólveres que Gaúcho trazia na cintura e esmagou os lábios. Apanhou um molho de chaves, abriu uma gaveta e contou o dinheiro, que foi colocando sobre a mesa. Gaúcho jogou o cheque sobre a mesa e apanhou o dinheiro. Só então abriu um sorriso educado:

— Gracias, doutor!

Bateu um cumprimento e saiu porta afora.

Nego Berto sentiu o efeito da história que contara. Seu Tiburcinho estalou os beiços e disse que tudo aquilo era lorota. Alemão e seu Liseu riram, vingados. Elpídio afinal tirou o queixo das mãos e disse:

— Esse tal de Gaúcho é um homem de fato.

Tiburcinho saiu do armazém tirando faíscas do chão.

 

PENSOU: PODIA ESTAR NO PARAGUAI. Os gringos eram uma gente muito esquisita, mas a verdade é que nunca se meteram na vida dele. Mesmo assim, achava que só perdera tempo naquele fim de mundo. Co                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                             festas dos jagunços. Índio comentou e Zé Lara disse: pra manter o respeito. Procurou com a língua um fiapo de cana metido entre os dentes: estalou os lábios, cuspiu o fiapo no chão do bar. Bosta. Será que tinha vindo só por causa dela? Não. Viera de qualquer jeito, sem escolha. Alí não havia sinal algum.

— Está dormindo? perguntou Zé Lara.

Resmungou:

— Não.

Bem que aquele sol entrando pela janela da bodega dava vontade de dormir. Seguiu espichado na cadeira que apoiava nos dois pés traseiros, a cabeça jogada sobre o peito, as botas engatadas no batente da janela. O chapéu cobria seu rosto. Não se mexera nos últimos quinze minutos. Zé Lara olhou para a rua e viu dois colonos caminhando na direção da bodega. Um trazia uma mala embrulhada com barbante grosso e o outro caminhava segurando o chapéu contra a própria barriga. Quando deram com a cara de Zé Lara na janela, mudaram o rumo e foram parar na farmácia.

— Merda! resmungou Zé Lara.

— Que foi?

— Eles estão demorando.

— É.

Zé Lara se levantou, sempre olhando na direção da prefeitura, e foi pedir mais um copo de garapa. Na volta, se debruçou na janela. A garapa refrescou o calor abafado e foi então que viu os dois homens do outro lado da rua.

— Chegaram, disse.

Índio repôs a cadeira sobre os quatro pés, recolheu as pernas e ergueu o chapéu que lhe cobria a cara.

— Aqueles dois, está vendo?

— Estou.

— O magrelo é o delegado Piva.

Índio olhou demoradamente na direção dos dois homens.

— Que acha? perguntou Zé Lara.

— Esse Miguel é um baixinho.

— É baixinho, sim. Mas não te fia nisso.

— Um médico baixinho — caçoou Índio — Por que querem acabar com um merdinha daqueles?

Zé Lara não desgrudava os olhos dos dois homens que conversavam.

— Ele incomoda. E não é sozinho. Tem uma dúzia desse tipo por aí. São eles que colocam fogo em tudo.

Índio tornou a espichar o corpo e a apoiar a cadeira apenas em dois pés — mas desta vez não abaixou o chapéu sobre o rosto. Ficou observando os dois homens que conversavam.

— Por que ainda não deram um fim nele?

— Não é fácil. E não era a hora.

— Agora é?

Zé Lara resmungou:

— Agora é preciso.

— Sei.

— Está vendo aquele sujeito no jipe?

Índio se ajeitou para enxergar melhor.

— Se chama Antero. Pistoleiro. Osso duro. Foi ele que ensinou o doutor Miguel a atirar.

— Foi é? Fazendo pontaria em vidrinho de injeção?

— Não te fia. O baixinho é brabo e atira bem.

Índio baixou o chapéu sobre o rosto. Merda de calor, pensou. E aquele cretino do Zé Lara falando, falando. Quando é que poderia ver Isabel que não fosse andando de um lado para outro dentro daquele jipe? Tentou pensar na preguiça que sentia. Poderia ficar alí o dia inteiro, ardendo naquele sol, sem pensar em merda nenhuma e cochilando.

— Guardou a cara dele?

Balançou a cabeça e pensou que aquele serviço podia ser uma bela armadilha. Se o homem não era nenhum político graúdo ou fazendeiro, por que não chumbaram ele há mais tempo? E por que não mandaram um jagunço qualquer fazer o trabalho? O sinal. Sentiu o frio percorrendo a espinha. Se iam matar os líderes, aquilo ia ser o diabo, o sudoeste ia virar um inferno — ou só matariam quando se sentissem perdidos, como vingança? Seria uma estupidez: só se deve matar quando há um lucro nisso — matar por vingança, só por desafogo, era tolice. Toda morte tem que ser bem calculada, proveitosa, e quem mata tem que sair limpo. Doutro jeito, melhor deixar vivo. Por isso voltava à mesma pergunta de sempre: não seria uma armadilha? Bobagem. Zé Lara não o traria de tão longe só para isso. Se quisesse, teria mandado matá-lo no Paraguai ou já teria metido uma bala nos seus miolos. Perguntou:

— Pra quando é?

— Tem tempo. Quando for hora, te digo.

A hora, pensou. O sinal.

— Depois eu fico no sudoeste?

— Fica.

Quem sabe debaixo de sete palmos de terra, pensou.

— Está com medo?

Zé Lara sentiu o estremeção nas pernas de Índio.

— Calma, disse. É brincadeira.

— Tu sabe que eu não tenho medo.

Índio se levantou e disse:

— Vou ver o baixinho de perto.

Atravessou a rua em direção à prefeitura, deixando as mãos à vista para que o tal de Antero não pensasse bobagem. Ao passar pelos dois homens, bateu uma continência respeitosa e disse bom dia.

 

O SOL FOI ENCONTRAR PEDRO SANTIN sentado no mesmo lugar em que o deixara no dia anterior. Esfregou as vistas e olhou na direção do sol. Analisou a luz, o colorido das nuvens, e concluiu que aquele seria um dia quente, de derreter os miolos — e continuou sentado, observando o caminhão. Lídio dormia enrolado no pelego e Robertinho adormecera a seu lado. Os dois soldados ainda dormiam na cabine e Santin percebeu, pelo olho negro que o espiava mais uma vez pela fresta da carroceria, que Zé Trinta também não dormira. Ao menos assim o desgraçado sofreu um pouco. De madrugada, quando todos dormiam, Santin percebeu que Zé Trinta estava se mexendo demais. Então, falou: tá com coceira, cabra? O barulho parou. Santin enxergava apenas alguns brilhos na carroceria, nos aros dos pneus e nos vidros da cabine. Naquela hora já não dava para ver os olhos de Zé Trinta, mas era certo que eles estavam olhando para ele. Tu tá com medo, safado? Tu viu que eu parei o comboio fora da estrada, não é? Assim os teus amigos não vão te achar. Tá ouvindo? Se eles têm um plano para te soltar, pode continuar preocupado: eles não vão te achar. E se chegarem por perto, a primeira bala eu vou te enfiar no meio destes olhões pretos que tu tens. Tu vais morrer com estes olhões estourados. Santin calou-se e ficou olhando na mesma direção, buscando algum sinal do jagunço na escuridão. Mas Zé Trinta não se mexia.

Santin pensou que aquela era uma vida esquisita. Estavam perdidos num buraco escuro no meio da noite, enfiados naquele silêncio, só os dois acordados, ele e o jagunço. Santin pensava na armadilha em que havia caído, pensava no cunhado e na irmã, sentindo que tinha poucas chances de sair daquela enrascada sem complicar ainda mais a sua vida de farrapo. Não havia escolha. Era um farrapo e, no fim, levaria o pior pedaço daquela guerra. Já não era apenas um colono, como fora no Rio Grande, antes de fugir. Mas também não era um bandido, como o jagunço Zé Trinta, que ia enjaulado alí no caminhão. Era uma mistura disto: meio bandido, meio colono, farrapo e homem do mato. O que sabia fazer na vida era mexer com a terra, cuidar da criação — mas isso já não fazia há um bom tempo e era uma coisa que ficara cada vez mais distante desde que sua vida passara a ser uma fuga contínua. Andou por todas as cidades do sudoeste, esteve em Santa Catarina, tentou ir para o norte, acabou na Argentina. Logo descobriam quem era, vieram pedir algo em troca, um serviço, uma proteção. Na Argentina ao menos tinha um pouco de paz e a família não morria de fome. Mas faltava muita coisa para que ficasse em paz — por isso aceitara aquela empreitada de ensinar os colonos a lutar. Era a outra profissão dele — mas agora, a continuar naquela batida, iria se misturar cada vez mais com gente da política, e sentia medo. Junto daqueles tipos, sempre saía perdendo. Não tinha aqueles modos do doutor Neves Saldanha, a roupa bem feita, a palavra fácil, não tinha também a cara-de-pau do prefeito, que ia e vinha e estava sempre do lado bom da briga. Era feito de outra madeira, um pouco parecida com aquela com que fizeram os colonos, mas com um jeito daquela outra que serviu para fazer os jagunços. Era assim mesmo: quem começa a fugir, não pára nunca mais. É feito gado marcado: a marca é para sempre. Nem na Argentina estava livre — mesmo lá os gringos apareciam para contratá-lo para serviço de pistoleiro. Explicava que agora era apenas um colono, não acreditavam — então perdia os favores dos gringos. Mudava de lugar. Os próprios colonos só foram lembrar dele quando precisaram de alguém que lhes ensinasse a puxar um gatilho. Era a marca. Agora tinha uma oferta: levaria Zé Trinta para ser julgado em Foz e o doutor Ferreira ajudaria a apagar de seu passado a marca de farrapo. Será que ele cumpriria com a palavra? Não estaria preparando uma fuga para Zé Trinta? Mesmo que nada disso fosse verdade, e mesmo que o doutor Ferreira estivesse querendo ajudá-lo, ficava uma outra pergunta: era possível apagar a marca de farrapo?

Pedro Santin estava convencido de que não era possível apagar as marcas que a vida colocara em seu lombo. Jagunço é jagunço — no olhão medroso, na sombra de enxofre, na covardia. Político é político — naquelas unhas aparadas, no cabelo penteado, na palavra fácil. Um não vira outro, cada um condenado a seguir do seu modo. Mesmo os colonos, que agora pegavam em armas, nunca chegariam a ser um farrapo ou um jagunço. Voltariam a ser colonos porque era isso que eles eram: colonos. Por isso, pensou Santin, farrapo é farrapo — nun                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                             rinta seria para sempre um jagunço. Neves Saldanha, um político. O mundo estava bem feito.

Santin seguiu pensando nisso até que sua cabeça virou uma cabeça de maluco, que repetia, jagunço é jagunço, político é político, eu sou... — espantou a maluquice, esfregou a cara e atirou uma pedra na carroceria do caminhão: tá acordado, jagunço? Zé Trinta não respondeu. Sabe que seria uma boa hora pra te matar? Todo mundo dormindo, não tem viva alma vagando por aqui — podia te matar de uma porção de modos, escolher um deles com cuidado, tu não achas? Silêncio. Outra pedrada. Bate na carroceria, jagunço desgraçado! Bate senão vou aí e te mato! Zé Trinta deu duas batidas na madeira da carroceria. Assim tá bom, fez Santin. Assim eu fico só pensando em como podia te matar mas não te mato — só penso. Podia te enfiar um balaço na cabeça — mas isso seria rápido demais: tu merece morte mais lenta, merece sofrer, merece saber da morte chegando — só para sofrer mais, ter tempo de lembrar todas as maldades que fez. É isso, morto não sofre. Se te mato agora, não vais mais sofrer. Por isso tem que ser morte lenta, sabida antes. Melhor que fosse morte a punhal, não é? Bate aí na madeira, desgraçado! Duas batidas na madeira. Tá bom. Mas eu fico pensando: será que te dou uma chance? Tu tá aí enjaulado feito bicho, fica fácil te matar. Dá para matar como se mata uma galinha, um porco. Assim como tu fez com todo mundo: matou colono indefeso, violentou mulher, castrou homem amarrado, degolou criança. Eu podia fazer assim. Do mesmo jeito que tu fez uma porção de vezes, não é? Não é!? Duas batidas na carroceria. É claro, tu sabes que é isso mesmo. Te matar como se mata uma galinha — sem chance de defesa. Mas podia te dar uma chance, acho que podia. Tu é um merda mesmo, vais sair correndo por aí, largando um bosteiro desgraçado pelas calças, em dois minutos te pego no meio do mato. Aí te sangro, te dou um tiro, escolho o jeito da tua morte, mas só depois de te castrar. Ia ser divertido, não é? Acho que ia ser. O que não sei é se tu merece uma chance, uma morte de quem ainda pode se defender. Não sei. Mas, se te dou uma chance, vais sentir mais medo, vais esperar a morte. Tá difícil. Acabo te entregando para a polícia, espero para ver que fim os homens vão te dar, se te soltam ou se te enfiam numa cadeia. No fim vão te soltar ou então tu vais fugir — não vais ficar muito tempo preso, não é?! Duas batidas. Tá difícil. Eu podia tocar fogo neste caminhão contigo preso aí dentro — ia ser o diabo, tu ficarias berrando e soqueando para não morrer, eu ia até jogar um balde de água para prolongar tua pena. Morte pelo fogo. Era até um benefício: ia te preparando para o inferno, que é pra onde tu vai mais cedo ou mais tarde. Robertinho se mexeu e virou de lado. Santin tirou um cigarro, riscou o isqueiro — o calor da fumaça entrou em seu peito e fez com que se sentisse melhor no frio da madrugada. Era bom imaginar os modos como poderia matar aquele jagunço — se sentia mais calmo, imaginando continuar a luta ao lado dos colonos.

O primeiro a acordar foi Robertinho. Esfregou várias vezes a cara parda de bugre, encarou o sol com os olhos fechados, se espreguiçou:

— Vai fazer um calor dos diabos.

— É, fez Santin.

Robertinho se encostou na árvore e desembrulhou o poncho das pernas:

— Tu não dormiu?

— Não.

Robertinho olhou para o caminhão. O olho negro do jagunço estava vigiando.

— Que vais fazer com ele?

— Passei a noite pensando.

— E então?

— Ele não merece viver.

— Não precisava passar a noite acordado pra saber disso — Robertinho puxou os cabelos para trás, espantando o sono.

— É verdade.

Lídio acordou. Veio arrastando o pelego, olhando de lado para o jagunço. Perguntou a Santin:

— Já decidiu?

— Se eu mato esse jagunço, a gente vai ter que se esconder de novo na Argentina. Por isso acho bom vocês dois irem embora. Eu dou um fim nesta história.

Lídio e Robertinho se olharam.

— A gente fica, disse Lídio.

— Fica, sim, disse Robertinho.

— Não — os dois conheciam aquela maneira de dizer não — Vocês vão embora. Eu tenho os meus motivos, vocês não precisam se meter em mais confusão.

— Eu não acho certo a gente ir embora, disse Robertinho.

— Pois eu acho, disse Santin.

Os policiais acordaram e ficaram olhando para os três, desconfiados.

— Eles vão se cagar de medo, disse Lídio.

— Bom dia, disse um dos policiais, se aproximando.

— Bom dia, respondeu Santin.

O outro policial perguntou se iam partir em seguida ou se havia tempo para um mergulho no rio.

— Não tem tempo, disse Santin.

— A gente já vai?

— Vocês vão embora. Eu fico com o jagunço.

Os policiais se olharam. Robertinho tirou o punhal da cinta e ficou limpando as unhas.

— Ninguém vai ser herói por causa de um sujeito daqueles, não é? perguntou Santin.

— Isso não está certo, disse um deles.

Santin se levantou:

— Passei a noite inteira aí mesmo neste lugar, pensando no que é certo e no que é errado. E sabe o que eu descobri? Não tem certo e não tem errado. Tem apenas aquele que é mais rápido, mais forte, o que mexe melhor com o punhal. Certo e errado não tem. Todo mundo que eu conhecia e que estava certo, já está debaixo da terra. Meu pai, minha irmã, meu cunhado, meus sobrinhos. Agora, eu acho que só tem uma coisa certa: sangrar aquele cabra. Isso é certo. Agora.

O policial se perfilou:

— Quero deixar claro que esta é uma decisão sua, de sua inteira responsabilidade.

Santin balançou a cabeça:

— É uma decisão minha, sim. Vocês vão embora.

— Não!

O jagunço fez estremecer a jaula.

— Vocês não podem fazer isso!

O jagunço continuou berrando enquanto Lídio e Robertinho acompanharam os policiais até os cavalos — os dois montaram no cavalo de Santin, olharam mais uma vez para a camionete e ouviram os gritos do jagunço. Logo desciam na direção do rio, em busca da estrada principal. O jagunço se jogava contra o engradado.

Santin se aproximou e viu que as mãos e os braços dele estavam sangrando, os olhos negros saltados na cara, a respiração aos arrancos.

— Calma, sujeito. Tu já viu muita gente morrer, é coisa rápida e simples, tu sabes.

— Eu não matei teu cunhado, seu burro!

Santin abriu a caixa de ferramentas e dela retirou um martelo.

— Te encolhe, disse ao jagunço.

O jagunço se encolheu:

— O que tu vai fazer?

— Te dar uma chance. A chance que tu não deu pra ninguém.

Arrancou a primeira tábua.

— Sabe como vai ser?

O jagunço bufava, agarrado ao fundo da jaula, temendo receber um golpe de martelo na cabeça.

— Vou te soltar. Mas pra sair daí tu vai passar por mim. Aí eu vou te pegar, só no braço, sem armas. Vou te dar uma surra dos diabos, te quebrar os ossos. Depois, só depois, é que vou te capar como se capa um porco. Aí, te mato.

Arrancou outra tábua e disse:

— Vem cá, sujeito.

 

CANTÍDIO ROSSI, repórter enviado pelo jornal O Estado do Paraná, chegara a Pato Branco na manhã daquele dia. Carregava uma máquina de escrever e uma sacola onde socara, em igualdade de condições, peças de roupa e uma quantidade não sabida de laudas, as quais, como sempre, teria que alisar contra a borda de uma mesa antes de colocar na máquina. Na sacola havia também uma dezena de lápis de cor com os quais costumava rabiscar inúmeras vezes o texto datilografado, transformando a lauda, segundo os linotipistas, num emaranhado caótico. Homenzinho miúdo, de cara assustada e distraída, Rossi chamou a atenção de todos quando entrou no primeiro bar e perguntou por um hotel. Tinha o rosto suarento, as lentes dos óculos embaçadas e ria do fotógrafo, Américo Bernardes, que reclamava de sono e fome.

Eram oito horas da noite quando Rossi retornou ao hotel. Entrou no quarto com cuidado, procurando não acordar Bernardes, que dormia com os braços largados em cruz. Bernardes não suportava o calor e, depois de meia dúzia de cervejas, se trancara no quarto para dormir. Rossi retirou a máquina da valise, desamassou as laudas, fazendo-as correr na borda da mesa e acendeu um cigarro. O ritual, pensou. Talvez Bernardes acordasse, mas precisava registrar algumas idéias. De qualquer modo, o amigo já estava acostumado a dormir com o batucar da máquina de escrever. Rossi ajeitou os óculos, viu que estavam cobertos de suor, escreveu o título da matéria: CHACINA ENTRE POLICIAIS E POSSEIROS NO SUDOESTE DO PARANÁ. Ficou por momentos olhando através da janela do quarto, vendo o desenho das casas enfileiradas do outro lado da praça. A cinza do cigarro ameaçava despencar sobre a máquina, mas ele não deixou que caísse. Esticou o pescoço, calculou a queda da cinza no chão e bateu com o indicador no cigarro. A cinza caiu ao lado de seu sapato, quase sem perder a forma cilíndrica. Rossi ficou feliz com esta pequena vitória. Começou a escrever:

"Toda a vasta região compreendida pelos municípios de Clevelândia, Pato Branco, Francisco Beltrão e Santo Antônio, está sendo transformada num verdadeiro campo de batalha. Os sangrentos acontecimentos que alí se estão registrando lembram uma nova Porecatu e se repetem em proporções que podem reeditar a epopéia de Porecatu, porém de forma ainda mais bárbara e dramática."

O cigarro, obediente, rolou de um canto a outro da boca. Tragou fundo e sentiu o prazer do silêncio. Só faltava uma bebida, mas, antes de subir para o quarto, concluíra que já bebera o suficiente. Não falta nada, pensou. Retomou o texto.

Era curioso como aquela história lhe parecia familiar, como se a escrevesse pela décima vez — mudavam os nomes, os lugares, o número de mortos, mas era uma mesma história, a de sempre. Havia, pois, uma certa alegria despertada pela familiaridade com aquela história, mas também alguma aflição pelo fato de parecer uma coisa cíclica, que já vira acontecer, não só em Porecatu. Isso poderia ser objeto de ficção: uma história que fosse uma reunião de todas elas, mas que não fosse uma mera colagem; um conjunto de flagrantes que poderiam ir de Canudos ao Contestado, passando por Porecatu e pelo Sudoeste. Imaginou um personagem a cavalo, uma espécie de D. Sebastião faminto e esfarrapado, que não morria mesmo quando atravessado pelas balas e pelas adagas. Este cavaleiro desceria do nordeste brasileiro, atravessaria minas de cobre no Chile, terras de Santa Catarina, do Paraná, e... Parou de escrever. Catou um lápis de cor, o verde claro, e fez uma correção: suprimiu um advérbio inútil — são poucos os advérbios úteis, pensou — e mudou o tempo de um verbo. Respirou fundo: aquela não era uma boa história de ficção — e estava bêbado demais para escrever uma reportagem ou imaginar um enredo de ficção. Continuou: "Desesperados pelas perseguições e pelo desamparo em que se encontram..." Foi quando bateram na parede do quarto pela primeira vez:

— Vai dormir, ô vivente!

Parou de escrever e olhou o relógio: era muito tarde para o sudoeste. Um personagem múltiplo, tornou a imaginar, reiniciando a datilografia com cuidado, batendo de leve nas teclas, depois de colocar um travesseiro por debaixo da máquina. Um personagem que mudasse de cor, feito camaleão, reencarnando de várias formas. Não, não, pensou. Seria muito próximo de uma marionete. Havia algo de abstrato naquela idéia. Enfim, estava lidando com seres humanos de verdade.

Desta vez a batida na parede do quarto veio acompanhada de um palavrão. Rossi desistiu. Seria obrigado a escrever pela manhã, antes de sair, ou depois do almoço. Apanhou outro lápis, o vermelho, e repassou o que escrevera: foi podando, detalhando, colocando as frases noutra ordem, até que a lauda ficou coberta de setas que espetavam o texto em todas as direções. O Catarina vai ficar maluco, pensou Rossi, lembrando do linotipista que mais reclamava da bagunça de suas laudas. Levantou-se, bateu novamente com o indicador para derrubar a cinza do cigarro e foi até a janela. Sentiu no rosto e no peito o impacto do calor. Respirou fundo, debruçando-se no batente da janela. Só a luz de uma janela no outro lado da praça oscilava na escuridão. Quem estaria lá? se perguntou e, no mesmo momento, julgou que estava demasiado literário. O sudoeste, pensou. Ficava alí com seus devaneios de romancista frustrado e, talvez, a um palmo de seu nariz, envolto pela escuridão, estivesse se tecendo um momento importante da vida de toda aquela gente. E não era uma mera repetição, haveria naquilo mais variedade do que repetição.

Era um povo determinado, duro no modo de falar, de alma rude. Precisavam da imprensa e acreditavam no seu apoio. A história de Pedrinho Barbeiro pareceu a Rossi um achado exemplar. Com sua lista de assinaturas, queria editar um jornal: combativo, defensor dos oprimidos, que escandalizasse o Brasil inteiro e fizesse recuar os opressores. Era isso: quase isolados naquele pedaço do país que mal começava a ser ocupado, queriam que todo mundo soubesse o que estavam vivendo. "Se bem — como lhe dissera um sujeito chamado Gaúcho — que tem uns jornalistas aí que são bem jaguaras". É verdade, dissera Rossi, engolindo em seco. Admirava a determinação dos colonos, o modo severo de encararem seus problemas. O colono, pensava Rossi, é um crente em leis, em justiça, em autoridade — enfim, na ordem natural das coisas. O que não os impediria, caso pudessem, de levar de arrasto com todas as autoridades e leis existentes — mas sempre em nome de uma autoridade e de uma lei mais perfeitas. Para eles, tudo era simples, e Rossi se sentia feliz com essa derrota do cinismo: haviam pago pelas terras, queriam documentação legal. Ponto. Questão de honra. Quem ainda não terminara de pagar, queria pagar ao verdadeiro proprietário. Só.

Ocorre que agora, com a balbúrdia instalada, não pagariam a ninguém até que a justiça — ou melhor: A Justiça — dissesse quem era o verdadeiro dono. O diabo, pensou Rossi, é que a justiça era representada na região por alguns delegados não muito corretos e por alguns juízes que ficavam do lado das companhias. O que era trágico para os colonos: a justiça injusta, uma verdadeira corrupção na ordem natural das coisas, um prato indigesto para aqueles homens que julgavam que o branco é branco e o preto, preto. Para quem certo e errado jamais se misturam. Antes de subir para o quarto, Rossi conversara com Otto Germer. Primeiro prosearam fiado. O alemão fez gentilezas, ofereceu bebidas que escondia atrás do balcão. Rossi perguntou o que havia naquele casarão do outro lado da rua. Uma sociedade, foi a resposta. Uma sociedade? Ah, brincou Rossi, é alí que vocês fazem as festas? Otto balançou a cabeça, ajeitou o avental sobre as coxas e disse:

— Depende, seu Rossi.

— Depende?

— Se um é do PTB, faz festas alí. Se é da UDN, faz noutro salão que fica no início da rua, à direita. Se é do PSD, é num salão na entrada da cidade.

— Não se misturam? perguntou Rossi.

— Não.

Rossi notou que Otto Germer, contendo o riso, se divertia com seu espanto.

— E não é só nos bailes, disse. Aqui tem um barbeiro de cada partido. Seu Lino é do PTB, seu Afonsinho é da UDN e o velho Cordeiro é do PSD.

— Cada um com seu barbeiro?

— E com seu baile, seu boteco, seu armazém, seus bancos na igreja.

— E o seu hotel?

Rossi temeu que o alemão, um homem enorme, fosse cair da cadeira com a gargalhada que deu:

— Aqui é diferente. Aqui é a democracia!

Depois, mais sério, Otto Germer explicou: aqui mistura de tudo, gente de fora, gente da região, não tem partido.

Rossi apagou o cigarro num cinzeiro de madeira que havia sobre a mesa e observou que Bernardes seguia na mesma posição, dormindo como um justo. Pensou naquele mundo hierarquizado. Entrevistara um colono que viera à cidade para denunciar ao juiz a ameaça feita pelos jagunços. Perguntou se sentia medo. O colono olhou-o como se fosse um desaforo perguntar a um homem se sentia medo. O senhor ia ficar tranqüilo vendo sua família apontada pelos jagunços? Não, respondeu Rossi, que achou brilhante a substituição de uma resposta por uma pergunta. Pois então. E o que o senhor julga que deva ser feito? Só tem uma coisa a fazer: justiça. Rossi ficou esperando alguma explicação a mais, mas o colono parecia convencido de que já dissera o necessário. Justiça. É mesmo, fez Rossi, e encaixou a pergunta: mas o juiz não lhe disse que não pode fazer nada? Disse. E então? É um homem direito, mas não pode fazer nada. E o delegado? É do lado das companhias, vive arrodeado de jagunços, não vale a comida que come. E então? perguntou Rossi. Vamos aguardar, disse o homem, vamos continuar exigindo. O senhor acha que isso pode continuar o tempo todo? Não, mas tem gente que pensa como Pedro Santin, que os jagunços só vão embora à bala. O senhor pensa assim? O colono parou de balançar o corpo, fixou os olhos miúdos nos olhos de Rossi. Algumas perguntas não devem ser feitas, pensou. Pedro Santin está lutando contra essa gente do jeito que acha certo, disse o homem. Mas eu penso de outro jeito. Eu acho que a gente tem que continuar fazendo as comissões.

Duros, retos, obstinados. Metidos num mundo ordenado: quem era de um partido, ia a tal barbeiro, tal baile, tal armazém. Essas convicções deixavam Rossi estarrecido, ele que costumava não ter convicções nem a respeito das fases da lua. Era chocante ver a maneira como estes homens enfrentavam forças poderosas, organizadas como exército, sustentadas por políticos corruptos. Quem mais poderia se embrulhar numa bandeira do Brasil e avançar contra metralhadoras convicto de que ninguém teria coragem de atirar?

— O senhor conheceu Pedrinho Barbeiro? Rossi perguntara a Otto Germer.

Otto abaixara a cabeça, arriando o corpo enorme e os braços fortes, que perderam toda a musculatura.

— Conheci.

— E como ele era?

Otto se retorcia, evitando a emoção.

— Um caboclo macho. Um homem bom.

Macho, homem bom, pensou Rossi, admirado por auqelas palavras, na boca daquele homem, ainda guardarem sentido.

— Já devem ter contado pro senhor do abaixo-assinado que ele ia levar pro presidente. Dizia assim: vou falar com quem está acima de todos. Esse vai fazer justiça.

— Ele vinha muito a seu hotel?

— Toda hora — Otto deixou escapar um sorriso dolorido — Bebia umas cachaças, ficava proseando com todo mundo. Um homem de liderança.. Quase analfabeto, mas botava muito doutor no bolso.

Rossi afastou-se da janela, remexeu os bolsos do paletó em busca do cigarro. Acendeu um deles e voltou a sentar-se diante da máquina de escrever. Mas, olhando para a parede que fora golpeada, apanhou um lápis e anotou os tópicos que desenvolveria pela manhã, antes de retornar a Santo Antônio: 1º) armamentos de guerra; 2º) invasão iminente de Santo Antônio; 3º) depredação do fórum de Clevelândia. Depositou o lápis sobre a mesa e calculou que ainda fumaria outros dois cigarros antes que o sono pudesse derrubá-lo naquela cama dura, onde o esperava um ouriçado colchão de palha.

 

DESDE A CHEGADA NÃO PARARAM DE LUTAR a mesma luta: procurar comida, descer o rio em busca de água limpa, abrir caminho a facão, derrubar mato e fazer roça, cortar árvores para construir um barraco, sair correndo da chuva que caía duas vezes ao dia, dia após dia, andar com os pés atolados na lama, ouvir o choro das crianças — que choravam de fome, de gripe, de medo, de frio, de sono, talvez de saudades, pensava Joanin — cuidar da disenteria de Alberto, da dor de ouvido de Irene, Cidália se desdobrando na divisão da comida, fazendo milagre para que a farinha rendesse, Nego Berto voltando do mato abraçado aos gravetos, às vezes trazendo alguma raiz ou caça, correndo para segurar a lona que despencava de cima da carroça com o vento e a chuva. O mundo inteiro vindo abaixo, a água molhando o sal e o açúcar, estragando pedaços de pão, fazendo com que erguessem os olhos para o céu, exaustos, pedindo que Deus tivesse um mínimo de cuidado com eles, porco Dio!, urrava Joanin, que merda que parece que vai acabar o mundo!

Não era o paraíso. Joanin lembrou de sua chegada ao sudoeste, da fúria com que trabalhava, das piadas com as quais ele e Nego Berto enfrentavam o mau tempo, o frio, a lama, as picadas dos mosquitos, os calos estourando nas mãos — tudo numa alegria tão grande que os primeiros dias no sudoeste ficaram em sua memória como dias ensolarados e felizes, quando, no fim da noite, ainda encontrava tempo para ficar trocando a cuia de chimarrão com o negro e ouvindo aquelas histórias que ele gostava de contar, coisas de banditismo na região, as valentias dos farrapos, os acontecimentos que o velho Santoro narrara ao negro a respeito da guerra santa do monge Zé Maria — Santoro jurava que um dia ele ia voltar num cavalo de fogo — ou então as histórias engraçadas da mulher de um topógrafo que o enganava todos os dias com um colono diferente enquanto ele ficava subindo e descendo os morros, carregando um teodolito nas costas. E Joanin ria vendo os dentes brilhantes do negro reluzindo no escuro. Ficava até tarde olhando para o céu, cheirando o mato, até que o sono tomava conta de seu corpo, formigava em sua cabeça, adormecia seus braços e ele caía morto de cansaço por cima de um pelego e dormia como um anjo deve dormir, sem sentir o chão duro, sonhando com a vinda de Cidália para aquelas terras onde teriam os filhos e viveriam sob as estrelas. Agora, desanimado, pensava que estava ficando velho, só podia ser isso. Já não era o mesmo homem capaz de trabalhar dias seguidos sem parada, dormir pouco e esquecer das preocupações com uma brincadeira qualquer de Nego Berto.

O vento sacudiu a lona, que despencou, e Joanin chamou Nego Berto para ajudá-lo. Cidália cobriu as crianças com um cobertor. A chuva começara pela manhã e parecia disposta a varar o dia inteiro. Sacramenha! gritou, sentindo o olhar severo de Cidália. Conseguiram amarrar a lona. Joanin voltou a se encorujar debaixo da carroça e pensou que tinha horas em que trabalhava sem pensar, enfurecido, a cara vincada pelas rugas, sem ouvir as brincadeiras do negro e das crianças. Tinha horas que pensava em mandar tudo aquilo para os quintos do inferno, entrar mato adentro golpeando as árvores, o chão, gritando feito louco para que o mundo inteiro, os homens, Deus e o Diabo, ouvissem sua raiva. Mas não fazia nada disso. Apoiava-se na enxada ou sentava em alguma tora que estivesse serrando, passava o antebraço na testa suarenta, cuspia para o lado, olhava com os olhos quase fechados para conferir a família enrodilhada debaixo da lona, e continuava a trabalhar. Nestas horas admirava Nego Berto, que largara mão de viver mudo e ranzinza, voltando à alegria de sempre, capaz de fazer palhaçada só para alegrar Alberto, vencendo os ataques de caganeira. O negro estava como sempre: forte, disposto, alegre. Mas Joanin sabia que também aquilo era uma artimanha do compadre. Quando todos iam dormir, saía a andar pelo escuro, se sentava num toco, ficava alisando demoradamente um cigarro de palha, os olhos abatidos, sofrendo com a saudade e pensando no inferno em que estavam metidos. Mas era Joanin ou Cidália chegarem por perto, que se animava, mostrava os dentes, arranjava alguma coisa para distraí-los. Um grande amigo, pensava Joanin, sabendo que agora seu mundo estava reduzido àquelas coisas que mais amava: a mulher, os filhos, o amigo. Perdido no meio de um país de gringos, quase sem ter o que comer, mal sabendo o que ia lhes acontecer no dia seguinte — Nego Berto dizia: chega um tenente gringo aqui, manda a gente embora, o que é que vamos fazer? — Joanin não se via mais numa trilha que fosse dar no paraíso: era como se a vida estivesse indo por um rio que acabaria de repente ou que de repente sumisse numa cachoeira sem fundo. Mas não podia reclamar dos gringos. Eles apareciam de vez em quando, contavam quanta gente estava por alí, vinham autoridades, até um cônsul apareceu, apresentado com toda a cerimônia pelo delegado da cidade mais próxima. Fez perguntas, quis saber se estavam doentes, se eram bem tratados, se tinham o que comer. Depois foi embora dizendo que eles iam receber uma ajuda do governo argentino, ficassem calmos, tivessem paciência, eram mais de três mil pessoas precisando de auxílio.

Quando o tal cônsul foi embora, Joanin agradeceu aliviado, não por causa do pobre homem, que afinal estava querendo ajudar, mas porque queria ficar sozinho para terminar a construção do rancho ainda naquele dia, não agüentaria dormir mais um dia ao relento. Ele e Nego Berto trabalharam até anoitecer, mesmo no escuro continuaram trepados nas travessas, amontoando as palhas que eram erguidas do chão por Cidália, enquanto as crianças já dormiam debaixo da carroça. Devia ser umas dez horas quando trouxeram as crianças para dentro da casa, armaram as duas camas, amontoaram as roupas, os alimentos e as ferramentas pelos cantos. Joanin e Cidália se abraçaram e Nego Berto disse que ia andar um pouco, ia até o rio tomar um banho pois estava fedendo feito negro, riu fazendo troça. Na verdade, saiu porque estava querendo chorar e sabia que Joanin e Cidália acabariam chorando e ninguém agüentaria aquela choradeira. Foi andando e sumindo pelo meio do mato, parecia uma onça desgarrada, já sabia cada pedaço do caminho e, ao contrário de Joanin, não sentia medo do escuro.

Depois que o rancho ficou de pé, a vida melhorou um pouco, agora era lutar para que a comida ficasse mais fácil, para que pudessem plantar alguma coisa e criar umas galinhas. Uma semana depois, voltaram os funcionários do governo argentino e explicaram, naquela língua enrolada lá deles, que Nego Berto entendia melhor do que Joanin, que vinham trazer a ajuda prometida, estavam distribuindo mil pesos por família, não era muito mas já era alguma coisa. Entrevistaram Joanin, preencheram uns papéis. Na mesma camionete em que vieram os argentinos, Joanin e Nego Berto foram até Missiones fazer umas compras numa alegria de criança. Voltaram no fim do dia carregando duas sacolas, até chocolate trouxeram para os pequenos. Depois de muito tempo fizeram um jantar de gente e Joanin nem podia imaginar a surpresa que o destino lhe guardava para o dia seguinte. Quando se levantou, deu com Nego Berto todo paramentado, uma sacola no ombro, a espingarda na mão.

— Onde tu vai, negro? quis saber Joanin.

— Dona Cidália já acordou? perguntou o negro.

Cidália apareceu na porta do rancho e disse: já.

— Pois...

Nego Berto remexeu o pescoço de um lado para outro, passou a mão na cara várias vezes, coçou os pixacos com fúria. Joanin sentiu um frio gelar o estômago, o negro vai embora, pensou.

— Tu vai embora? perguntou.

Nego Berto chegou mais perto, ficou de olhos pregados no chão, foi dizendo que o pior já passara, já tinham um rancho, alguma coisinha plantada, já conheciam a região, a ajuda dos gringos daria para uns tempos...

— Tá certo, disse Joanin, mas tu não me respondeu.

— Vou embora, disse Nego Berto.

— Por quê?

— Pois... é que não posso deixar de pensar no sudoeste, seu Joanin. Tô aqui esse tempo todo lutando junto com vocês, que são a única família que tive no mundo, mas a cabeça não deixa de pensar no sudoeste. Inda ontem me disseram que houve um levante em Capanema, Pedro Santin e os farrapos tomaram a cidade, tocaram fogo no escritório da Citla e correram com os jagunços pra Santo Antônio. O sudoeste tá pegando fogo, eu não posso ficar aqui.

Cidália disse: tu tá certo, Alberto. A gente vai ficar aqui pensando em ti, com saudade. Joanin repassou os dedos nos bigodes: é, resmungou a custo, eu também só penso no sudoeste, nos companheiros, naquele pedaço de terra que a gente tem lá. Colocou a mão no ombro do amigo: Deus te acompanhe. Pode deixar, disse Nego Berto, eu volto pra buscar vocês — e não perdeu a chance de uma molecagem: Chego lá e num instante corro com os jagunços.

Subiu no cavalo, disse que deixava um beijo para as crianças. Não queria vê-las, senão fraquejava. Abriu a mão direita e acenou. Cidália e Joanin, sem trocarem palavra, acompanharam o cavaleiro sumindo contra o céu onde um sol vermelho amanhecia.

 

A CADA MOVIMENTO PEDRO SANTIN ERA GOLPEADO pela fisgada que rasgava seu braço. Faltava um metro para alcançar a beira do rio. Deixou a cabeça pender. Esperou. A dor rabiscava estilhaços brilhantes em suas vistas, mesmo fechadas. Ergueu a cabeça com cuidado e olhou para a mão direita: o punhal cortara dos dedos até o punho, deixando a carne à mostra. Santin fez uma alavanca com os cotovelos e arrastou-se até a margem. Largou os braços e a cabeça dentro da água. Ergueu o rosto e por duas vezes tornou a mergulhar. Depois, esticando o corpo, rolou para o lado direito e deitou-se de costas. No céu, o sol ardia enlouquecido. Deixou a nuca cair dentro do rio. Conforme previra, o calor derretia o juízo de qualquer cristão. Não havia nuvens e as folhas das árvores não se moviam. Dispôs os braços em cruz, vagarosamente, e ajeitou a perna: voltou a sentir a estocada do punhal. O sol. Concentrou-se no calor no rosto, nos braços, nas mãos, no peito. Viu uma porção de relâmpagos explodirem em seus olhos fechados. Tornou a virar de bruços e a mergulhar a cabeça na água. Permaneceu assim um longo tempo, até rolar novamente para a direita e, com muito cuidado, apoiando-se no braço esquerdo, se sentar.

Olhou na direção do pé de cerejeira. O corpo de Zé Trinta estava enganchado numa forquilha. Santin não acreditava que conseguira vencê-lo. Agora olhava a cara do jagunço e os olhos saltados fora da cara, como os olhos de um boi louco. Te dei uma chance, pensou. Dera uma chance e o assassino saltara de dentro da jaula com um punhal na mão. Santin agarrou o corte do punhal no ar, com a mão direita, e acertou uma joelhada no peito de Zé Trinta. Com a mão sangrando, desferiu um soco no jagunço e rolou pelo chão em busca da winchester. Zé Trinta jogou-se atrás dele e o atingiu na perna. Foi a desgraça do infeliz, pensa. O punhal prendeu contra o chão, debaixo do corpo de Santin, que teve tempo de se virar e chutar a testa do jagunço. O punhal sobrou no ar. Santin apanhou-o com a mão esquerda e avançou. Recebeu um chute, mas conseguiu segurar a perna de Zé Trinta. O primeiro golpe rasgou do joelho até a virilha. O segundo colocou as tripas do desgraçado à luz do sol.

Rolou para o lado e ficou esperando: não queria matá-lo. Ficou atento aos movimentos do outro. Procurou se recuperar. Dobrado sobre o ventre, o jagunço segurava as tripas com as mãos. Este filho da puta acaba morrendo antes do tempo, pensou Santin. Mostrou o punhal a Zé Trinta e perguntou: foi aquele amarelo do cão que te deu o punhal, não foi? O jagunço não respondeu. Foi ele?! gritou Santin, alcançando o ombro do jagunço com uma estocada. Zé Trinta caiu para o lado:

— Pelo amor de Deus, não me deixe morrer!

— E cão tem Deus?! Hein, cão tem Deus!?

A cada movimento brusco, Santin sentia a fisgada rasgando sua nuca. Gemeu e se dobrou, segurando a perna. O suor cobriu seu rosto de um momento para outro. Era preciso cuidado, pensou. Cuidado para que aquele demônio não lhe aplicasse um golpe, pois o demônio sempre pode ter outro punhal escondido. Cuidado para não morrer. Falou: eu até que não ia te matar, sabe? Ia te deixar vivo, pois assim tu ia sofrer mais. Mas tu tinhas que me atacar com esse punhalzinho de merda, não é? Santin desferiu outra estocada, mas a dor na perna fez com que encolhesse a mão antes de acertar as costas do jagunço. Esperou. Respirou fundo. Pois agora, disse, tu vai ficar aí de comida pros urubus! Entendeu? Eu ia só te capar, só isso. Ias ficar vivo. Capado e vivo. Era o que imaginei. Mas agora vais ficar morto. Capado e morto. Santin se apoiou no joelho e se ergueu: não adianta arregalar esse olhão aí. Já capei muito porquinho na vida, tu não vais sentir muita coisa. O jagunço, dobrado sobre o ventre, tentou se afastar de Santin, mas apenas rolou sobre si mesmo, largando um rastro de sangue na terra ressecada. Santin foi até o caminhão, apoiando-se no joelho direito e na mão esquerda. Trouxe uma corda. Fez um laço e amarrou as pernas e a cabeça de Zé Trinta, que foi obrigado a se desenrolar. Parou ao lado do jagunço para retomar o fôlego.

— Não me deixa morrer, pediu Zé Trinta.

— Não deixo, não, disse Santin, ainda respirando aos arrancos. Quero te capar ainda vivo, desgraçado. Tu tem que saber que vai ser capado e que vai ser morto.

Santin limpou o punhal na camisa do jagunço e disse: capado feito porquinho.

Agora Santin olhava para a cara enorme, intumescida, de olhos negros arregalados, com os testículos enfiados goela abaixo, que parecia olhá-lo da forquilha do pé de cerejeira. Lembrou dos colonos de Santo Antônio, lembrou do doutor Neves Saldanha. Tinha perdido mais uma vez. A primeira tentativa de ataque aos escritórios das companhias havia fracassado por causa de algum traidor, a tocaia do quilômetro 35 havia resultado na morte de gente inocente, e, agora, quando tudo parecia resolvido, o maldito Neves Saldanha o enfiara naquela armadilha. Era a vida, pensou. A vida de jagunço termina assim: espetado numa árvore, estrebuchado, morto em tocaia, jogado no rio. A vida de farrapo não era diferente.

Rastejou até o caminhão, rasgou a camisa em tiras, que amarrou em torno da coxa esquerda e do pulso. Ia viver, pensou. Esticou o braço esquerdo e alcançou o volante. Dependurou-se nele e, como se fosse uma cobra, conseguiu alcançar o banco. Olhou pela última vez o corpo garfeado na forquilha. Os olhos de boi pareciam luzir ao sol. Girou a chave. O motor do caminhão roncou engasgado. Na terceira tentativa, pegou. Vamos lá, pensou Santin, te güenta firme, que a Argentina fica longe.

 

LAURA OBSERVOU ELPÍDIO sentado na porta da cozinha, enrolando um palheiro. Estava preocupada com o marido. Alguma coisa mudara naquela cabeça dura. Devia andar com pensamentos. Não deixara de cuidar da plantação e dos bichos, mas adiava o trabalho o que era possível e passava a maior parte do tempo conversando com os homens que formavam a comissão. Que comissão? ela perguntara. Olhou para ela e fez a careta que significava que aquilo era assunto de homem. Insistiu: não vai me dizer? Comissão para defender os colonos. Do quê? Jogou a cabeça para trás, impaciente: ô Laura, tenha paciência, mulher! Ela sabia da comissão dirigida por Deonísio Possenti, que os recebera quando haviam chegado ao sudoeste. É a mesma? perguntou. Não. Essa agora tinha gente da cidade, da política, colonos — esperavam a hora de colocar os jagunços e as companhias para correr. Laura tremeu. Apanhou a chaleira de cima da chapa, começou a passar o café.

— Tu achas que isso resolve?

Ele não ouviu. Colocou o palheiro na boca, riscou o isqueiro de pedra.

— Sabe, Laura, me contaram que o jagunço Zé Lara andou dizendo que com uns vinte colonos mortos coloca o sudoeste em paz.

Ela descansou a chaleira sobre a chapa do fogão:

— E daí?

— É um porco. Não bastasse o que já fez, ainda ri da gente.

— Vai ver, disse ela, ele nem falou isso.

Elpídio retesou a cabeça dura:

— Se não disse, é bem isso que ele pensa.

Puxou a fumaça e escutou a correria dos cavalos vindo pela estrada. Deonísio Possenti, pensou, levantando-se.

— Buenas!

— Compadre, disse Deonísio, acho bom a gente ir até a cidade. Prenderam um jagunço, acho que vão linchar o homem.

Elpídio lembrou do pedido de Armindo Tomellin: tudo tem uma hora certa, vamos esperar. Prendeu o cigarro de palha nos dentes, correu até os fundos da casa, encilhou o cavalo. Partiram. Laura veio até a porta com a chaleira na mão e ficou olhando a poeira levantada pelos cavalos. Deus ajude, pensou.

O jagunço vinha de arrasto, tocado pela multidão. Antenor Rizzi parecia comandar a majorca: com o revólver em punho e um pedaço de pau na mão esquerda, cotucava o prisioneiro. Já tinham levado o pobre diabo até a frente da delegacia, agora estavam se dirigindo ao fórum — queriam mostrar para as autoridades que iam fazer justiça com as próprias mãos. Elpídio Bello e Deonísio Possenti fizeram com que a multidão parasse. Desceram dos cavalos e foram saudados com gritos e vivas.

— Tá aqui o desgraçado, apontou Antenor Rizzi.

— Quem é? perguntou Deonísio.

— Boca Rica.

Deonísio olhou para Elpídio Bello, que se aproximou, examinando a cara do jagunço. O lado direito do rosto estava arroxeado e, na boca arreganhada pelo medo e pelo deboche, apareceu o dente de ouro.

— É esse? perguntou Elpídio Bello, olhando para Deonísio.

— Deve de ser. Mas o compadre vá com calma.

Elpídio lembrou do que lhe contaram: no bando que andava rondando a casa de Eleutério, havia um jagunço com um dente de ouro, vulgo Boca Rica.

— Que foi? quis saber Antenor Rizzi.

Elpídio Bello não escutou. Encostou a cara feia na cara do jagunço, apertou as bochechas dele e examinou o dente de ouro.

— Tira a mão! berrou o jagunço.

Elpídio empurrou a cara do jagunço para trás.

— Tu deixa de valentia, sujeito — disse Elpídio Bello.

Antenor Rizzi prendeu com mais força os braços do jagunço, que se curvou e fez uma careta de dor, mostrando de novo o dente de ouro.

— Tu sabe quem eu sou? perguntou Elpídio.

— Não.

— Pois eu sou irmão de Eleutério Bello.

Boca Rica torceu a cara:

— Não conheço.

— Larga o bicho, disse Elpídio.

— Largar? espantou-se Antenor Rizzi.

— É. Eu quero dar uns manotaços neste filho da puta. E não bato em quem tá preso.

Antenor olhou em volta, conferiu a cara dos companheiros e largou o braço do jagunço.

— Olha, sujeito. Eu vou repetir. Eu sou irmão de Eleutério Bello.

— E daí?

O punho de Elpídio Bello entrou pelo meio dos braços de Boca Rica e feriu seu estômago. Dobrou o corpo e soltou um ronco de quem ia vomitar.

— Vamos começar de novo, disse Elpídio. Eu sou irmão de Eleutério Bello. Quem matou meu irmão?

— Não sei.

Boca Rica aparou o primeiro soco, mas os dois outros acertaram no olho e no nariz.

— Na próxima vez, vou dar três socos, disse Elpídio.

O jagunço conferiu o círculo de homens a sua volta e debochou:

— É muito valente no meio dessa tropa toda.

Dos três socos, um acertou no queixo do jagunço, que rodou e foi amparado por Antenor Rizzi.

— E se eu soubesse quem matou, de que adiantaria?

— Não muita coisa. Mas te prometo que vou te deixar vivo.

— Quem garante?

— Ninguém. Aqui a gente não fica devendo palavra pra jagunço. Ou tu aceita o que digo ou esse pessoal aí vai te pendurar num poste.

Elpídio Bello esperou. O jagunço ria mostrando o dente de ouro tingido pelo sangue.

— Tá bom, fez Elpídio Bello, podem matar este porco.

Antenor Rizzi voltou a chavear o braço do jagunço, e uma chuva de bordoadas desmanchou o riso de deboche.

— Eu digo! Eu digo!

Elpídio e Deonísio distribuíram alguns safanões nos companheiros para livrar o jagunço da morte alí mesmo no meio da rua, debaixo de pau.

— Pelo amor de Deus! gritou o jagunço.

Deonísio Possenti deu um tapa na boca do jagunço:

— Não fala em Deus!

— Vai contar? perguntou Elpídio.

— Vou.

— Então, fala. Quem foi?

— Sergipe.

Elpídio Bello achou que ia perder o fôlego. Abriu a boca e puxou o ar com força.

— Como tu sabes disso?

— Sabendo.

O soco de Elpídio acertou no queixo. Antenor Rizzi levantou o jagunço e disse:

— O homem é brabo, sujeito. Brabo e forte. Se eu tô na tua pele, eu falo logo.

— Tu estava junto?

— Não. No dia, não.

— Como a gente pode acreditar nisso?

— Passei pra turma do Índio.

Elpídio Bello fechou a carranca, segurou o punho direito com a mão esquerda e deu as costas ao jagunço.

— Levem este desgraçado daqui!

Deonísio segurou o braço de Elpídio:

— Calma, pediu. Agora tu já sabe o principal.

Boca Rica aproveitou para sair correndo, mas foi alcançado a poucos metros e recebeu outra saraivada de golpes.

— Vamos matar esse desgraçado!

Deonísio Possenti correu até o outro lado da rua e pediu para que não matassem. Elpídio Bello tinha dado a palavra.

Antenor Rizzi encarou:

— Não cedi minha palavra pra ele.

— Tu não cedeu, é verdade. Mas o Armindo Tomellin já explicou que matança covarde só vai atrapalhar. Tu não lembra daquela vez em que morreu o Alemão?

Antenor Rizzi empurrou o jagunço, que caiu de cara no chão:

— Merda!

— O que a gente faz?

O jagunço gemia, enroscado sobre si mesmo. Deonísio Possenti olhou para Elpídio Bello, que estava parado no outro lado da rua, alheio a tudo, e disse:

— Eu acho que já sei.

Deixaram Boca Rica trancado no mesmo quarto em que Silveirinha passara a última noite de sua vida, no hotel de Otto Germer. O domingo ainda não amanhecera, quando cinco homens entraram no quarto, reforçaram as tiras de couro que prendiam as mãos do jagunço nas costas e, com várias passadas, amarraram a boca de suas calças. Fizeram com que bebesse cinco vidros de óleo de rícino. Largaram Boca Rica no meio da praça e avisaram: tu fica aí no meio. A gente vai deixar um homem em cada canto da praça com uma winchester. Não te mexe!

Às sete horas, quando todo mundo — o prefeito, o promotor, o juiz, suas mulheres e filhas — passavam para a missa, viram o jagunço se retorcendo no meio da praça. Cobriram o nariz e entraram na igreja. Quem levou azar foi o sargento que abriu a porta da delegacia: Boca Rica enfiou-se porta adentro, espantando o sargento e dois praças, que fugiram para a rua. Por uma semana a sala da delegacia ficou vazia: o fedor espantava qualquer valente.

 

ISABEL LEMBRA: nunca vira Zé Lara tão nervoso. O rapaz apareceu no rancho de um dos homens, pedindo pelo amor de Deus para que o ajudassem. De tanto cair e se arrastar pelos matos, estava todo cortado e tinha ferimentos de bala no braço e no estômago. Estava morto de fome, fraco, pálido, e todos juraram que não ia sobreviver. Zé Lara, sob o olhar desconfiado de Romário, mandou chamar um médico, enquanto Isabel limpou os ferimentos com um pano úmido.

— Carece de tanto cuidado? perguntou Romário.

Zé Lara quis saber:

— E se a pele fosse tua?

— A gente nem sabe quem é o sujeito.

— Pois vamos descobrir.

— Pode ser espião.

— Vamos ver, disse Zé Lara. Se for, a gente degola.

— Aí pode ser tarde. Não lembra do Sargento?

O Sargento aparecera dizendo que vinha se juntar ao grupo. Era falador, festeiro. Depois descobriram: fora contratado para acabar com Zé Lara. A sorte é que o revólver de Romário disparara antes.

— Não tem perigo. Esse aqui é um menino.

Isabel lembra: o rosto infantil, a pele branca e lisa, sem barba — depois ele diria: sou neto de índio, índio não tem barba — os cabelos pretos. Mesmo assim, era difícil entender os cuidados do Zé Lara, dia e noite preocupado com o guri, como o chamaram até que acordou, no dia seguinte, e disse:

— Me chamam de Índio.

Nunca perguntaram pelo nome verdadeiro, pois ninguém por alí tinha nome verdadeiro, cada um trazia o seu apelido: Sergipe, Zé Lara, Velha, Trinta, Pé de Chumbo, Pau Queimado, Nego Tião.

Sondaram se alguém o vira chegar — ninguém sabia de nada. Viera pelo meio do mato, se escondendo, comendo folhas e raízes, conforme ele mesmo contou.

Romário não se conformava:

— Fugindo de quem?

Índio olhou para Romário e não respondeu. Dias depois, foram saber. Fugira de marido traído, dono de terras na fronteira com o Paraguai.

— Então, é dos bons, brindou Zé Lara.

— Por mim, mandava andar, resmungou Romário.

Até Isabel começou a sentir medo: não seria uma armadilha? Conversou com Zé Lara, mandou que tomasse cuidado, ele fica aí pela redondeza, disse, não custa te meter uma bala na cabeça. Zé Lara sorriu:

— É um menino, Isabel. Um menino metido a valente.

Índio ficou. Isabel para sempre lembraria da primeira noite em que ele dormiu estirado num colchão que colocaram na cozinha do rancho. Ardia em febre, o médico insistindo que deveria ser levado para Curitiba ou Foz, se ficasse alí iria morrer, ainda que retirassem a bala. Zé Lara negou. Ele delirou a noite inteira. Isabel, esgotada, dormiu parte da noite sentada numa cadeira, revezando-se com Zé Lara na tarefa de enxugar o rosto do guri. Romário perguntou no dia seguinte: o que será que ele viu nesse guri? Isabel pensara em fazer a mesma pergunta, mas ainda assim repreendeu Romário: tu fica quieto e não contraria Zé Lara. Quero é ficar seguro, disse ele.

O médico voltou nos dias seguintes, até completar uma semana. Dizia, espantado: é um sujeito forte, nunca vi coisa igual. Fosse outro, estaria morto. No final daquela primeira semana, Índio já era capaz de se apoiar na cama, de se erguer, de ficar sentado, de tomar o caldo de galinha que Isabel lhe oferecia pacientemente, sob o olhar cuidadoso de Zé Lara. Não deu dez dias, já andava pela casa, meio curvado, lento, mas com um apetite de leão.

Um dia Isabel tomou coragem e repetiu a pergunta de Romário de outro jeito:

— Por que tu te interessa tanto pelo guri?

Demorou para responder. Ficou parado, olhando de um lado para outro, como se só agora, depois de tanta trabalheira e aflição com o doente, parasse para pensar.

— Não sei, disse.

— Deve ter um motivo. Tu parece gostar dele.

— Gosto, sim.

Zé Lara seguiu quieto, na certa cavoucando na cabeça um motivo para tanta preocupação. Só no dia seguinte veio dizer, sem que Isabel tivesse voltado ao assunto:

— Sabe, já fiquei perdido no mato depois de uma emboscada. Passei uma semana de sofrimento, vivendo feito bicho.

— Alguém te salvou?

— Segui o rio e cheguei numa fazenda. Lá cuidaram de mim.

Isabel desconfiou que aquilo, mesmo que fosse verdade, era uma história mal contada. Não explicava de onde Zé Lara fora tirar aquele jeito de pai cuidadoso que usava com o guri. Quem sabe, precisava de um filho, pensou ela, se esforçando para esquecer o assunto, senão ficaria cismada também. Por isso, quando Romário voltou com as desconfianças, ela encerrou a conversa: Zé Lara sabe o que está fazendo.

Quando Índio sarou, Zé Lara saiu com ele pra todo lado, fazendo questão de lhe ensinar cada uma das coisas do ofício: como atirar, o uso da montaria, como tratar do cavalo, como armar tocaia. Ficavam conversando até tarde da noite, tomando chimarrão, sentados na porta da frente. Índio acabou morando na casa deles, dormindo no quartinho da lenha. No começo, Isabel achava que o guri era meio sinistro, sempre de cara amarrada, rabugento feito um velho. Depois, desajeitado que era, mudou de figura: sempre agindo, ia e vinha pelos matos, fiel a Zé Lara, a quem parecia adorar como a um pai. Logo era um dos melhores atiradores e tinha, apesar de guri, liderança entre os homens, o que fazia com que Romário o odiasse ainda mais.

Mas continuava fechado e rabugento. Nunca conseguiram fazer com que falasse de seus amigos, de sua família, do lugar onde nascera. Ele olhava duro sempre que Isabel perguntava alguma coisa de sua vida e parecia decidido a esquecer tudo e começar vida nova — sem nome, sem pai nem mãe, sem passado. Não era muito diferente de todo mundo por alí, mas tinha um jeito ruim de defender seu mundo. Era nestas horas que sentia medo daquele olhar determinado que dirigia a ela, recusando as respostas.

Isabel lembra que só muito tempo depois foi pensar nele como um homem e não como um guri. Mas não lembra o motivo da mudança. Ele continuava o mesmo, ou quase: de poucas palavras, lado a lado com Zé Lara em todos os lugares e a cada dia fazendo crescer mais a fama de valente, metendo medo até mesmo em Romário. Quando Zé Lara saía para encontrar com fazendeiros ou gente da política, deixava ele em casa, para cuidar de Isabel. Se sentava num canto do rancho, fazia suas coisas sem despregar o olho dela, cumprindo o pedido de Zé Lara: fica cuidando de Isabel e, se eu não voltar, leva ela pro sul. Foi numa destas vezes que o guri caiu doente, com febre. Isabel lhe deu um remédio, mandou um homem buscar o médico e passou a noite a seu lado, enxugando o suor de seu rosto, dando água para ele beber.

Foi então que notou, e disso lembra muito bem, que ele tinha um cheiro forte de homem, não mais aquele cheiro macio que têm os meninos. E o rosto já trazia algumas marcas profundas, o queixo deixara de ser arredondado, a voz ficara rouca, as mãos, agora repousando sobre o peito, eram largas e de veias saltadas. Eram as mãos de um homem. Ficou admirando aquele homem grande, cujos pés saltavam para fora da cama, a dormir feito criança. Passou a mão em seus cabelos, desceu os dedos pelo seu rosto, viu que não era bonito, tinha um rosto pálido e a boca caída nos cantos. Isabel colocou a mão sobre seu peito e, curvando-se, beijou aquele homem com um carinho que desconhecia.

 

NAQUELES DIAS JOANIN FOI E VEIO, subiu e desceu, disse e não disse, ralhou com as crianças, excomungou todos os santos, andou de um lado para outro, deu soco em ponta de faca, esbravejou de punhos cerrados, dirigiu aos céus todos os palavrões que sabia em italiano e português e, de sobra, dois em alemão, resmungou, não dormiu noites inteiras, arranjou confusão com um vizinho, foi comprar charque e tomou um porre desgraçado com aquela pinga traiçoeira lá dos gringos, veio andando pela estrada, caiu numa valeta, algum carcamano filho de uma égua ou então um daqueles argentinos ladrões, passou e roubou o charque, chegou em casa vomitando a alma, disse para Cidália que estava bêbado porra nenhuma, acordou os filhos com a barulheira que aprontou na cozinha, derrubando panelas e quebrando pratos, não admitiu que a mulher dissesse que estava desorientado, ora porra agora uma mulher resolvia de dar ordens em casa, daqui a pouco estaria mandando na cor de suas cuecas, foi dormir ao relento, se cobrindo com um pala velho, chorou um pedaço da noite, roncou o resto, acordou com a cabeça girando na altura dos pinheiros do sudoeste, cambaleou até a casa, Cidália o olhou zangada, as filhas se encolheram num canto, só o pequeno Alberto abriu os braços pedindo colo, mas Joanin desistiu, pois, ao se abaixar para pegar o filho, suas costas arderam, estalaram, a cabeça se desmanchou, espancada por um pedaço de ferro que ia e vinha, socando a testa e a nuca a cada movimento, puta merda, pensou, que porre filho da puta acabei tomando — e Joanin começou então a ficar com vergonha, foi até o tanque, mergulhou a cabeça dentro da água, foi andando até a beira do mato, sentou num toco podre, e viu como a casa, o milharal, os pés de alface, de mostarda, a cerca, como tudo aquilo balançava de um lado para outro, fazendo com que os pobres dos porquinhos fossem e viessem no ar, levinhos feito bexiga cheia. Dio, pensou, que vergonheira será que eu andei aprontando?!, e aceitou tomar a caneca de café preto sem açúcar que Cidália lhe estendeu, a bola de ferro e fogo saiu de sua cabeça, e Joanin se sentiu melhor, só restou a vergonha e a raiva que vinha sentindo naqueles dias de solidão: a culpa era toda do desgraçado do negro com aquela cara de santo, com aqueles beiços enormes, com aqueles dentões brilhantes, com aqueles braços grandes balançando ao lado do corpo, a culpa era do petulante, do aborrecido, do atrevido, do enxerido, do bobão do Nego Berto, que se mandara com seu cavalo de herói para o sudoeste e o deixara alí no meio daquele mato argentino com a mulher e os filhos para criar, onde já se viu?! um negro safado daqueles querendo bancar o herói, o patife, querendo fazer pose de farrapo às suas custas, e Joanin debruçou-se no toco no qual passara a noite e quase na mesma hora estava dormindo, roncando alto, tão alto, que Cidália teve que mandar as crianças pararem de rir, fechando a janela da cozinha para que ela pudesse fazer as coisas da casa sem ouvir aquela ronqueira maluca.

Foi acordar já era noite alta e sentiu o frio queimando suas costas e um pedaço da bunda que as calças meio arriadas deixaram ao vento, se ajeitou, segurou a cabeça com as duas mãos, sentiu que a bola de ferro e fogo havia diminuído de tamanho e a garganta agora ardia em brasa e ele andou passo a passo até a cozinha, encheu várias canecas, bebeu de um gole só, se esticou na cama procurando não fazer barulho para as crianças e para Cidália, mas ela estava acordada e perguntou se ele estava melhor. Sim, respondeu seco. Ainda não estava no ponto de ficar dando conversa pra ela, com mulher a gente tinha mesmo que agir assim, hoje mandam na mão, amanhã no braço, depois de amanhã ninguém sabe aonde elas vão querer chegar. Mas Cidália insistiu, foi fazer um café preto, que ele tomou sem açúcar, colocou a cabeça dele no colo, fez carinho na sua nuca, ele fazendo que pouco se importava, se ela quisesse, parecia dizer, até que ela começou a falar no meio da noite e ele ficou espantado com tudo que ela observava, com tudo que ela sabia, chegou mesmo a pensar que, é verdade, as mulheres acabam sabendo mais do que parece, às vezes podem ter razão.

Ela disse que sentia que há muitos dias ele não pensava em outra coisa, andava triste e distraído até mesmo com os filhos, até mesmo com o pequeno Alberto, que vivia de braços estendidos para ele sem que se importasse, nem parecia o mesmo pai. Mas ela sabia que ele ainda gostava dos filhos do mesmo jeito: era só por causa da preocupação que tinha na cabeça. Não conseguia pensar noutra coisa, não é? Pensava no sudoeste, pensava no que Alberto andava fazendo por lá, queria porque queria estar com ele, conversar nas bodegas, saber dos jagunços, aprontar defesas com os colonos, ir até as reuniões e esbravejar contra aquela vergonheira em que se transformara o paraíso. E queria que ela não se incomodasse com isso, não é? Ela sabia que ele viera para aquele fim de mundo da Argentina só para salvar o filho homem, disse, o que fez com que ele saltasse de seu colo, a cara tentando ficar braba, o dedo já subindo para ralhar, mas ela tomou sua cabeça, dentro da qual a pequena bola de ferro e fogo pipocou da testa até a nuca, e disse que se acalmasse, ela sabia que era por causa do pequeno Alberto que fizera aquele sacrifício. Ele rosnou: também pelas filhas e por tua causa. Sim, fez ela, não dando muita importância, mas o que decidiu mesmo foi o pequeno Alberto. Gosto de todos os filhos do mesmo jeito, insistiu. É, fez ela, eu sei disso, mas com filho homem é diferente, é igual a ti, tu és homem. Ficou quieto, não achou por onde argumentar, o diabo da mulher parecia ter pensado em tudo e não lhe deixava nada a dizer.

Então ela disse uma coisa que ele não esperava: eu quero que tu voltes pro sudoeste. Deu um pulo e sentou na cama. Ficou de dedo em pé sem dizer nada. Calma, disse ela, eu quero mesmo que tu voltes, cuides lá de nossas terras, ajudes os nossos amigos, eu e as crianças agora estamos em segurança, a gente fica por aqui esperando a hora de voltar. Ela não tinha medo? perguntou. Não. E se acontecesse alguma coisa com ele? Não vai acontecer nada. Posso morrer por lá. Tu não vais morrer. É bem mais fácil morrer aqui mesmo, de tristeza. E puxou a cabeça dele, aninhou-a no seu colo, seguiu nos carinhos, fazendo cafuné. Eu te conheci doutro jeito, compreende? Não compreendia. Tu vivia rindo, tocando sanfona, contando as tuas mentiras. Mentiras?! Ela fez com que de novo se deitasse, sossega! É mesmo: tu mente um bocado, estas tuas histórias, coisas de gaiteiro. E mentes mal, todo mundo sabe. Um dia o Alberto me disse... Não me fale daquele negro safado! reclamou, sem convicção. Cala a boca, disse ela, é nosso amigo, amigo das crianças, padrinho do Alberto. E não adianta fazer cara de brabo porque eu sei que gostas dele como de um filho ou de um irmão. Joanin calou-se, viu que estava perdido, não restava nem mais uma palavra a dizer. Cidália seguiu fazendo cafuné e dizendo que devia partir. Ela ficaria esperando a hora de ir para o sudoeste, feito quando eram noivos, lembra? Fiquei lá em Santa Catarina te esperando, passaram meses, os vizinhos dizendo que naquela hora tu já estavas enrabichado por alguma paranaense. Mas um dia vieram me dizer: ele voltou. Ah, que eu senti um apertão bem quente aqui no peito quando te vi entrando porta adentro, empoeirado da viagem, a cara de quem viajara dias sem dormir direito, e a gente no meio daquele povo, a parentela toda, eu com vontade de pular no teu pescoço, de te beijar, de dar um grito, mas ficamos só de mãos dadas, lembra?, e eu comecei a chorar. Depois casamos, depois fizemos a maior festa, depois viajamos, não foi? Balançou a cabeça, metendo a mão no rosto e escondendo uma lágrima, puta merda que esta mulher me faz passar vergonha, eu chorando aqui desse jeito, pensou e puxou Cidália pelos ombros, abriu bem a boca e sentiu como se fosse, naquele beijo, sugá-la toda, grudar-se para sempre a ela, meu Deus, meu Deus, pensou, um cara que tem uma mulher dessas não precisa de mais nada na vida. Cuidaram para não fazer barulho demais para as crianças. Escorregaram na cama. Joanin enrolou lentamente a camisola de Cidália, pensou no mesmo corpo branco deitado à beira do córrego onde tantas vezes, antes dos filhos e quando mandavam Nego Berto chatear em outra freguesia, a deitara à luz da lua, sugando de seu corpo aquele mel que era a paz de seus pecados, a força de seus braços, o motivo de suas risadas. Ela veio se ajeitando, beijando seu pescoço, seu peito, ah! meu Deus, eu vou mesmo pro sudoeste à procura daquele negro sem-vergonha, vou mesmo botar pra correr aqueles jagunços de merda, pensou, sentindo um alívio percorrer suas costas, seus ombros, sua nuca, era como se Cidália tivesse retirado do meio dos seus miolos a bola de ferro e fogo que ardia em brasa.

 

                   AS PORTAS DO INFERNO

O FRIO DA MADRUGADA ainda lhe ardia nas juntas e o sol era apenas uma mancha vermelha no horizonte, quando Otto Germer descansou a vassoura contra a porta do hotel, bocejou com algum estrondo, enfiou a mão no bolso do avental e dele retirou o chaveiro. Escolheu uma chave grande e escura, a mesma que Armindo Tomellin dizia ser a chave do céu. Riu ao lembrar da brincadeira do amigo e girou-a na fechadura sem saber que naquele momento estava abrindo as portas do inferno.

Viu três sombras, pequenas e tortas, que avançavam com dificuldade, presas umas às outras. Depois que acostumou a vista e franziu a testa, juntando ainda mais os olhos azuis, as sombras cresceram. Eram três crianças e o vermelho a escorrer do rosto de uma delas não era reflexo do sol. Era sangue. Otto Germer deixou cair o molho de chaves e disparou pela rua deserta. Pensou, sem entender o motivo, que havia algo de errado com o silêncio daquela manhã como se, de um momento para outro, tudo que havia a sua volta fosse explodir em berros, gemidos, gritos, palavrões, algo de errado com o resto de frio a anunciar um dia em que seria bom continuar debaixo das cobertas deixando apenas o nariz de fora, meu Deus, pensou, tomando nos braços a criança menor, aquela de cuja testa escorria sangue. Aproximou as outras duas de seu corpo, olhou para a estrada e não viu ninguém por perto. Notou que elas não choravam. Tinham os olhos abertos, respiravam pela boca, aos arrancos, e olhavam para ele com expressão de medo, dor, fome. Só então descobriu que abrira as portas do inferno.

Vamos, disse, vamos ligeiro. Mas as crianças mal conseguiam andar. Dobrou-se, apanhou também o menino no colo e fez um sinal para a mais velha, encorajando-a a seguí-lo. Vamos para o hotel, disse. Quando colocou os pés no varandão, começou a gritar feito um louco, chamou Zézinho, a filha Isaura, a mulher, Gerda. Deitou as crianças num banco. A maior delas, mal passou pela porta, sentou-se no chão e, só então, chorou. Meu Deus, repetia Otto Germer, sentindo na cara rosada de alemão um calor que não combinava com o frio daquela manhã e com aquele sol preguiçoso.

Zézinho foi o primeiro a aparecer, o pijama caindo pelas pernas, a cara apavorada. Otto mandou que fosse voando buscar um médico. Ele foi até a porta, voltou, disse que era melhor irem direto para o hospital. Então busca a carroça, ordenou Otto. Zézinho repuxou o pijama para a cintura e disparou porta afora — e, como naquele dia as coisas mais absurdas estivessem aparecendo na cabeça de Otto Germer, pensou que Zézinho, com aquele pijama velho e rasgado, ia morrer de frio lá na rua.

A criança mais velha, que teria uns doze anos, contou: foram os jagunços. Rondavam a chácara fazia uns dias. Ontem invadiram a casa e encontraram as crianças dormindo. Elas foram acordadas aos socos, os jagunços querendo saber onde estavam o pai e a mãe. Sabiam que estavam escondidos nos matos, mas não disseram nada. Foi por isso que apanharam de açoiteira até cair no chão. E onde estão? — quis saber Otto. Agora a gente não sabe. Os jagunços vasculharam o rancho, deram tiros, andaram pela redondeza. As crianças aproveitaram para fugir.

Isaura trouxe três cobertores, Gerda foi esquentar água para fazer um café bem forte e bem quente, e, enquanto a menina falava, Otto Germer notou um dente quebrado. Te quebraram este dente? perguntou. A menina cobriu a boca com a mão e balançou a cabeça: sim. Quando os jagunços foram embora, acharam de se enfiar ainda mais nos matos e passaram a noite inteira se lanhando no escuro, correndo de um lado para outro, procurando pelos pais, mas sem dar um grito, pois os jagunços poderiam voltar. Até que amanheceu e chegaram ao rio. Tá pronto, disse Zézinho, apontando a carroça. Vieram acompanhando a margem. Otto Germer notou que Zézinho, embora continuasse segurando a calça do pijama, que ameaçava despencar joelho abaixo, não tremia, nem parecia sentir frio. Só avermelhava cada vez mais e não piscava os olhos, grudados nas crianças. Vai botar roupa, disse Otto Germer, com pena de Zézinho. Colocou as crianças na carroça, mandou que a filha fosse avisar ao Armindo, e logo Zézinho estava de volta, enfiara uma calça e uma blusa por cima do pijama.

Deixou as crianças no hospital e foi à delegacia. Sentia agora que havia muitas coisas que precisava fazer. Era como se tivesse engolido uma bomba e precisasse se mexer de um lado para outro para não explodir de vez, pensou, notando que seus braços não lhe obedeciam, que suas pernas se jogavam para a frente com uma força desconhecida, ah, miseráveis, pensava, e entrou delegacia adentro, dando um encontrão na porta e assustando o soldado sonolento, que olhou para ele como se fosse assombração: que foi, seu Otto? Só depois, quando lhe contaram, soube que dera um berro cujo estrondo foi ouvido na vizinhança, fazendo oscilar o delegado, que chegava naquele momento:

— Onde está o delegado?!

O soldado, branco de susto, não conseguiu falar. Apontou para a porta onde surgiu um vulto correndo, o chapéu na mão: que foi? que foi? veio perguntando.

Otto espetou o dedo no ar e, com uma cara de alucinado, berrou a ponto de lhe doer a garganta:

— Isso não pode continuar! Não pode, doutor!

O delegado abriu os braços, pediu calma, perguntou:

— O que não pode continuar, seu Otto?

Foi só então que Otto Germer notou o quanto estava exaltado e só então descobriu que ainda vestia o avental com o qual fazia limpeza no hotel. Retirou o avental com fúria e tornou a espetar o dedo no ar. E foi assim, esbravejando, que contou ao delegado o que estava acontecendo. O delegado ouviu com a boca e os olhos abertos, mas Otto não se impressionou: é um homem fraco, pensou, quando viu que se mexia de um lado para outro, abria e fechava a boca bigoduda, desgrudava o colarinho do pescoço, meu Deus, dizia em aflição, o que é que eu posso fazer?! O senhor sabe que eu não posso concordar com o que está acontecendo, mas... Estes homens matam, espancam, depois somem pelos matos. Não têm pouso certo, não têm nome, só apelido. Todos têm a mesma cara, não se sabe onde se escondem e estão sempre muito bem armados, melhor que os meus homens. Otto Germer não perdeu a chance: e eles têm as costas quentes, não é, doutor? O delegado quis reagir, talvez se enfurecer, mas achou melhor ficar quieto, o alemão estava com uma cara de louco furioso, não era boa política desafiá-lo naquele momento. O senhor interprete como quiser, disse, eu vou ouvir as crianças, mandar chamar os pais delas, abrir inquérito, investigar, mas não posso fazer muito, minhas mãos estão amarradas. Além disso, não tenho nem homens nem armas para enfrentar estes bandidos. Está bem, doutor, disse Otto Germer, subitamente calmo, controlado, está bem, repetiu, se o senhor não pode, a gente pode. E espetando o dedo no ar:

— Eu lhe digo: isso não vai ficar assim!

Só então, saindo da delegacia e atravessando a rua, é que Otto Germer percebeu que o avental ainda estava dependurado em sua cintura. Fez um gesto brusco, transformou o avental numa maçaroca de pano que enfiou debaixo do braço e entrou no fórum perguntando pelo juiz. Está em casa, disse o sujeito que saltou de um banco.

Otto seguiu a caminhada enlouquecida. O juiz veio abrir a porta de casa, sentiu que ele estava transtornado, examinou o pequeno grupo que, a esta altura, já sabendo do acontecido pelas notícias espalhadas por Isaura e pelos berros de Otto Germer, acompanhava sua andança pela cidade. Mandou que entrasse, fechando a porta com esperteza e rapidez, deixando do lado de fora a multidão de curiosos. O homem o ouviu com a mesma cara seca e braba de sempre, foi ajeitando os suspensórios, deu nó na gravata, fechou o paletó e, logo, estava completo diante de Otto Germer: limpo e bem vestido, severo e bem penteado como se houvesse saído do banho.

— O senhor sabe, seu Otto, qual a minha posição nesta história. Eu não preciso me defender. Já fiz tudo que podia, já abri inquéritos, chamei gente para depor, mandei prender estes bandidos, tudo isso que o senhor acompanhou. Mas o senhor sabe que há gente que não está de acordo comigo, não é verdade?

Otto temeu que, continuasse ouvindo a conversa educada e bem falante do juiz, acabaria perdendo a força daquela bomba que ameaçava explodir no seu peito desde o momento em que vira as crianças açoitadas. Mas não quis interrompê-lo; o juiz, era mesmo uma das poucas autoridades do lado dos colonos.

— Há dois dias, se o senhor não tomou conhecimento, mandei solicitar reforços para podermos combater este banditismo. Como das vezes anteriores, não recebi qualquer resposta. Portanto, seu Otto — Otto Germer estava paralisado, mas com vontade de sair rua afora, bosta, pensou, eu sei muito bem o que tem que ser feito, não tenho nada que ficar aqui ouvindo conversa de juiz — só posso lhe dizer uma coisa muito triste: eu não posso fazer nada.

Otto já ia esticar as pernas numa daquelas passadas loucas que andava dando desde que a explosão tomara conta de seu peito e de sua cabeça, mas o juiz pediu que ouvisse. Eu vou lhe dizer, seu Otto, pelo respeito que tenho pelo senhor, pela amizade, eu vou lhe dizer uma coisa ainda mais importante do que esta minha confissão de impotência: vocês precisam tomar uma posição firme. Esta terra aqui é de vocês, eu mesmo estou aqui de passagem, se alguém deve sair daqui são os jagunços e as companhias. Pois é isso que eu quero lhe dizer: façam o que precisa ser feito, eu darei a cobertura que puder.

Otto conseguiu dizer, comovido: é bom saber que o senhor está do nosso lado — e saiu porta afora, pensando daquele jeito doido que se instalara em sua cabeça: é preciso fazer o que é preciso fazer. Do lado de fora, o grupo aumentara e, em meio ao relato que Otto Germer fazia da conversa com o juiz, alguém lembrou: vamos falar com o Gaúcho. Saíram em passo ligeiro, mas antes Otto encarregou uns vinte sujeitos de espalhar as notícias pela cidade.

Otto Germer entrou na Radiolar sem perceber que suas passadas ameaçavam destruir o assoalho onde pisava, e deu com Gaúcho dependurado no alto de uma escada, remexendo nas prateleiras. Gaúcho abriu os braços e cumprimentou: Oi, vivente! Otto fez um gesto brusco e disse: desce, precisamos conversar. Os homens entraram loja adentro, se apinhando em frente ao balcão. Gaúcho desceu rápido, ouviu a história das crianças, a reação do delegado, o compromisso do juiz. Mais tarde, quando enfim retornou ao hotel, Otto Germer lembraria: foi nessa hora que o Gaúcho ficou louco, como se aquela bomba que fermentava em seu peito houvesse saltado para o peito do amigo lhe destrambelhando os gestos, queimando as palavras, esbugalhando os olhos, pondo em seu corpo um vermelhão feito aquele que Otto vira ao nascer do sol, antes de avistar as crianças.

Gaúcho ouviu tudo de cara parada, coçando de quando em quando o nariz rombudo, famoso pelo tamanho e pela batata que trazia na ponta. Pigarreou várias vezes, o que era cacoete velho, e quando os homens começaram a falar todos ao mesmo tempo, disse:

— Pois agora, chega, seu Otto!

Sentiu que a voz do amigo devia estar tão estridente quanto a sua.

— Pois agora chega! Chega!

Passou a mão num molho de chaves, tirou dois revólveres de uma gaveta, conferiu se estavam carregados, colocou um deles na cinta e levou outro na mão, como se fosse atirar em seguida. E avançou na direção da delegacia. Antes, disse para Otto: — avisem a cidade inteira, mandem recado pro pessoal do interior, chamem o Armindo, a gente precisa se reunir. Otto espalhou o resto dos homens e saíu à procura de Armindo.

Só no dia seguinte, quando tiveram tempo para conversar, Otto soube o que ocorreu quando Gaúcho entrou na delegacia. O delegado deu um pulo da cadeira, esfregando as mãos, como se espantasse o frio:

— Bom dia, Gaúcho.

— Não é um bom dia não, doutor. Já fiquei sabendo que o senhor disse que não vai tomar providências.

— Eu... — o delegado abriu os braços roliços.

— Já sei, está com os braços amarrados, não é? Pois se estão amarrados, vão continuar assim entendeu? Se não pode agir contra os jagunços, não vai querer se mexer contra o povo, não é? Porque, se for se mexer, a gente vai ter uma briga muito feia entre nós, doutor. A cidade já está toda avisada, nós vamos nos reunir e tomar as providências. Se o senhor quiser aparecer na reunião, está convidado. Mas fique sabendo que a partir deste minuto o senhor não manda mais merda nenhuma nesta cidade de Pato Branco.

Antes que o delegado pudesse esboçar qualquer reação, Gaúcho saiu porta afora dando as mesmas passadas enormes que haviam tomado conta das pernas de Otto Germer.

A reunião foi realizada perto do meio-dia, no pavilhão da igreja. Veio gente de toda a cidade, dos matos chegaram dois caminhões e umas dez carroças, estavam presentes os representantes de todos os partidos — uns querendo briga feito guri novo, outros assustados com o alvoroço que tomara conta do mundo. Pela primeira vez se via sob um mesmo teto gente do PSD, do PTB, da UDN, do PSP, os mesmos que não iam na mesma barbearia por causa de política. A voz era uma só: a região tinha que ficar nas mãos do povo, não iriam recuar, hoje mesmo começariam a expulsar aqueles bandidos.

Tomaram as decisões: o comércio ia cerrar as portas em sinal de protesto e apoio ao movimento. Os bares seriam fechados, não se venderia bebidas alcoólicas, os prédios da prefeitura, da delegacia, do fórum, do hospital, seriam guardados por grupos de homens da cidade. Em meio a aplausos que ajudavam a espantar a tensão, elegeram a Junta Governativa Revolucionária. Armindo ficou com a chefia da Junta e Gaúcho foi nomeado para cuidar da defesa da cidade. Decidiram passar um rádio para todas as autoridades do país, informando da formação da junta e das reivindicações da população. O radiotelegrafista, cercado pela multidão que apinhava sua saleta, foi convocado a passar o rádio.

— Olha lá, disse Armindo Tomellin, a gente não sabe esse negócio de código morse, mas tu passa direitinho o que a gente tá mandando!

O telegrafista balançou a cabeça e passou o mesmo texto para vários destinatários: o governador, o presidente, os governadores de outros estados, os presidentes das assembléias, câmara federal, do senado, prefeitos. O texto, fielmente transmitido em morse, dizia:

 

NESTA DATA JUNTA GOVERNATIVA VG FORMADA POR MORADORES E REPRESENTANTES DE PARTIDOS POLÍTICOS DE PATO BRANCO VG ASSUMIU O CONTROLE DA CIDADE PT SÓ ACEITAREMOS RETORNO AUTORIDADES CONSTITUÍDAS SUAS FUNÇÕES APÓS RETIRADA INCONDICIONAL E DEFINITIVA DA REGIÃO DAS COMPANHIAS DE TERRAS QUE TANTAS DESGRAÇAS ESTÃO GERANDO ENTRE NÓS VG BEM COMO RETIRADA DOS BANDOS ARMADOS DE JAGUNÇOS QUE INFELICITAM REGIÃO VG CONSTITUINDO VERGONHA NACIONAL PT SAUDAÇÕES JUNTA GOVERNATIVA DE PATO BRANCO.

 

Uma hora depois vieram duas respostas. A primeira era do governador do Rio Grande do Sul, que dizia se solidarizar com os filhos de gaúchos que alí estavam lutando para criar um Brasil maior e mais justo. Armindo leu o telegrama retorcendo o canto da boca e passou-o aos outros: o pilantra quer ser presidente, disse. O outro telegrama vinha do Ministério da Guerra:

 

ORDENAMOS AOS SENHORES ENTREGAR IMEDIATAMENTE CONTROLE CIDADE PATO BRANCO AUTORIDADES CONSTITUÍDAS PT ATITUDES REBELDES SERÃO PRONTAMENTE REPRIMIDAS E DE MODO ALGUM RECONHECEREMOS A JUNTA GOVERNATIVA PRETENDIDA PELOS SENHORES PT SAUDAÇÕES MAL HENRIQUE TEIXEIRA LOTT.

 

Armindo leu o telegrama em voz alta e comentou: é isso mesmo que ele tinha que responder. Otto Germer resmungou que agora era tarde, nem o exército meteria medo neles. Gaúcho rabiscou um telegrama num pedaço de papel e pediu aprovação para passá-lo. Dizia assim:

 

"V.EXCIA PODE NÃO RECONHECER A JUNTA GOVERNATIVA DE PATO BRANCO VG MAS QUEM MANDA NA REGIÃO SOMOS NÓS PT SAUDAÇÕES.

 

ÍNDIO DESCANSOU A WINCHESTER NA FORQUILHA da goiabeira e acompanhou o percurso do jipe: desceu a rua do hospital, se escondeu algumas vezes por detrás de casas e árvores, surgiu em frente à prefeitura. Roncou forte ao passar pelo prédio da Comercial, entrou na rua principal e veio em sua direção. Ainda era um ponto escuro no meio da poeira, os pneus cobertos de marrom sujo, o pára-brisa jogando a cada volteio um reflexo brusco da luz do sol, mas ainda assim Índio contou: eram quatro passageiros e o jipe sacolejava muito, pareciam estar com pressa. Pensou: com pressa de morrer. Conferiu, olhando para trás, o lugar onde estava o seu cavalo e viu o morro que desceria em disparada tão logo explodisse a cabeça do Dr. Miguel com uma bala de winchester. Ouviu, nítida, a voz de Zé Lara:

— Porra! É a terceira chance que tu perde de acabar com o homem! Que tá havendo? Afrouxou?!

Índio não respondera. Engolira a ofensa. Havia uma hora para ouvir, pensou, e outra para cobrar os desaforos. Olhou com desprezo a cara descontrolada de Zé Lara e pensou que também ele não sabia o que estava acontecendo. Era a quarta vez que ia colocar o tal doutor Miguel na mira da winchester e não estava certo de que atiraria. Zé Lara ordenara: mate amanhã, é nossa última chance! Saíra do prédio da companhia, fora até a casa do doutor Miguel, examinara de longe sem ver ninguém. Só uns cachorros enormes, negros, que andavam soltos de um lado para outro, como se perseguissem caça. Foi ao hospital e disseram que o doutor viajara. Desceu a rua principal da cidade, deixou um recado para Zé Lara, dizendo que o homem viajara, e foi para o rancho na beira do rio Marrecas, onde estava morando há dois meses, não mais se misturando com o bando no acampamento, sempre bêbados e fazendo desaforo, estava vendo o dia em que meteria uma bala na cabeça de um deles.

O rancho ficava na beira do rio, dependurado a uns cinco metros de altura, suspenso por umas escoras — por alí ninguém subiria. Em frente, descia um caminho quase vertical, sempre enlameado, e por isso Índio achou que aquele era o lugar ideal. Zé Lara discordou. Primeiro não achou seguro. Depois criticou a sua mania de ser diferente dos outros, custava morar no acampamento? Tá pensando que é algum príncipe? Continuou no rancho mesmo assim, Zé Lara que fosse para o inferno. Fazia o serviço que devia fazer, não gostava de ajuntamento, ninguém tinha nada a ver com a sua vida.

O cavalo atolou as patas no barro revolto. Índio deu-lhe uns cutucões na virilha e ele avançou. Parou em frente ao rancho e sentiu que o animal estava indócil, o pescoço tenso, a cabeça revirando para os lados, nervosa. Examinou o mato em volta, o trecho do rio e descobriu marcas de bota junto à porta. Fez o cavalo seguir em frente e retirou a winchester da cartucheira. Contornou o rancho e conferiu: não havia ninguém cercando a casa, sabia disso pelo silêncio só perturbado pelo rolar do rio. Estão dentro de casa, pensou. Desceu do cavalo e, agachado, veio se colar à parede. Se queriam pegá-lo, iam se dar mal. Esperou. Apontou a winchester na direção da porta e ficou imóvel, mal respirando. Não demorou para que a porta se abrisse. Índio engatilhou a winchester. A porta se abriu e, meio cego pela tensão, Índio quase atira em Isabel.

— Não vê o perigo!? gritou. Podia estar morta!

Ela riu:

— Tu também, assim que tua cabeça apontou na curva.

Embora a tensão ainda lhe deixasse a respiração aos arrancos, Índio sentiu algum prazer em pensar que alí estava a mesma Isabel de sempre, meio índia, meio bicho, capaz de enfrentar um homem de igual para igual.

— O que tu veio fazer aqui?

— Vim falar contigo.

— Que houve?

— É melhor a gente entrar.

Vigiou para os lados, conferiu os olhos de Isabel.

— Entra, disse ela.

Não entrou.

— Pensa que é tocaia? Tu pensa que eu ia fazer uma tocaia pra ti?

Disse: não — mas entrou com o corpo quase colado no de Isabel, a winchester pronta para disparar.

— Viu? Estou sozinha.

— Veio a pé?

— Deixei o jipe na estrada.

Índio encostou a winchester contra a parede. Olhou Isabel como em outros tempos, os mesmos cabelos negros, a mesma boca generosa, muito pintada, a pose orgulhosa de bugra bonita.

— Acertou o doutor Miguel?

— Não — procurou disfarçar a surpresa — O que tu sabes disso?

— Eu sei. E sei mais.

— O quê?

— Que tu deves ir embora.

— Era isso que tu querias pedir?

— É.

— Já pediu uma vez.

— Pois peço outra. Tu não sabes o que o Lara tá aprontando.

— Vai me matar?

— Isso eu não sei.

— Mas tu achas que vai tentar.

— Acho. Ele desconfia de tudo.

— Verdade?

— Está só esperando a hora certa de se livrar de ti.

— Eu sei.

— E por que não vai embora?

— Não posso. Comecei alguma coisa faz muito tempo, deixei sem acabar. Agora preciso fazer tudo direito.

— Tu voltou para matar o Lara, não é?

— Não sei. Vim dar um rumo na minha vida.

— Ou dar um fim.

— Também é um rumo.

— Índio! — Isabel aproximou-se — Tu anda fazendo loucura! O Lara tem mais de oitenta homens na região, deve ter avisado a todos, a qualquer momento pode te apontar.

— Ele te contou o que vai fazer?

— Não. Mas eu sei que tá na hora de explodir uma confusão danada. O Lara acha que vai ficar sem apoio, diz que vai sair daqui levando meio mundo pro inferno, dando tiro pra todo lado.

— É, fez Índio, percorrendo com o olhar os cabelos negros de Isabel — Acho que o tempo bom já passou. Esses colonos tão abusados, tão se juntando, até o governo tá ficando meio de banda. A coisa tá no fim.

— Pois então?

— Que tem?

— Então tu deve ir embora!

— Tá preocupada à toa.

— Tu e o Lara não vão sair vivos daqui.

— Quem sabe...

— E por que não vai embora?!

— Destino.

— Bobagem.

— Não é bobagem. Eu vim aqui para saber de ti e acabar com o Lara — ou dar a ele uma chance de me matar. Só vou embora junto contigo.

Isabel se assustou:

— Ir embora contigo?

— É.

— Tu enlouqueceu.

— Pode que seja. Mas só vou contigo. Eu não tenho mais descanso desde aquela época no norte.

— Foi loucura. Esquece aquilo.

— Já quis. Não deu.

Ela caminhou até a porta.

— Eu só espero uma chance de ir embora, disse. Mas só vou sair com o Lara.

Índio sorriu:

— Tá vendo? É destino. O meu é descobrir o que vim fazer aqui. Só isso. Ninguém tá louco não.

Ela abriu a porta:

— Vai enquanto é tempo.

— Não.

Índio viu a porta abrir um clarão no interior do rancho e, depois, fechando-se, cobrir tudo que estava a sua volta com uma escuridão pesada. Apanhou o rifle, sentou-se numa caixa encostada na parede dos fundos e ficou escutando o rolar sem fim do rio, cinco metros abaixo. Destino, pensou.

Agora o jipe avançava em sua direção em meio à nuvem de poeira. Um dos quatro passageiros era uma mulher, sentada ao lado do doutor Miguel. O jipe corcoveou e Miguel abraçou a mulher, ajudando-a a suportar o balanço. Na mira da winchester, Índio viu o motorista do jipe, um italiano loiro e forte, que já vira na porta do hospital, e, ao lado dele, Antero, que não parecia ligar a mínima para a trepidação, segurando com a mão esquerda no pára-brisa e, com a direita, mantendo a winchester na vertical. Dizem que nunca erra um tiro. Mas Índio sabia que não iria morrer por causa de um tiro qualquer. Se o sinal da velha índia fosse aquele, estava salvo. Seguiu mirando nos olhos de Antero — indiferente aos pinotes do jipe, eles vasculhavam os lados da estrada, capazes de olhar em todas as direções. Índio esperou o jipe iniciar a subida para colocar doutor Miguel na mira. Acompanhou aquela cabeça pequena, meio quadrada, o bigode fino e debochado, os olhos saltados na cara, sempre vendo mais do que deviam, sem se convencer de que tinha na ponta da bala um homem perigoso. Pensou: eu dou no gatilho e o que acontece? O sudoeste vira um inferno. Por que Zé Lara queria aquela morte? Índio sentiu um arrepio nas costas: o sinal. Zé Lara dissera a Isabel que iria levar a todos para o inferno. Voltou a prestar atenção no doutor Miguel. Poderia escolher em que olho atirar, mas o doutor abraçou a mulher, inclinando a cabeça. Assim, para evitar a mulher, deveria atirar no corpo, no coração. O jipe negaceou, a mulher ergueu o braço e apontou alguma coisa na beira do mato, o que fez com que o doutor e o motorista olhassem para a direita — só Antero manteve a cabeça e os olhos atentos, vasculhando os lados da estrada. Quando a mulher abaixou o braço e o doutor voltou à posição normal, Índio pensou: daqui não erro nem que Deus queira — e percebeu que na ponta da mira o pescoço do doutor parecia tão grosso quanto uma tora de pinheiro.

 

ARMINDO DEU A ORDEM: decisão e cabeça fresca. Não vamos fazer bobagens, dizia e repetia. Em primeiro lugar, cercaram a prefeitura, o fórum, a delegacia. O lugar da reuniões ficou sendo o pavilhão da igreja. Colocaram homens armados em todos os lugares, e, sem ordem direta da Junta, ninguém podia sair ou entrar na cidade. O campo de aviação foi coberto com toras e guardado por um grupo de vinte e cinco homens. No entusiasmo, Gaúcho sugeriu que queimassem as pontes, pois havia o temor de que uma guarnição do exército, que estava acampada em Palmas, marchasse sobre Pato Branco. Armindo impediu:

— Se queimarmos as pontes, eles não entram, mas a gente também não sai.

As pontes foram cobertas de toras e rolos de arame farpado. Elpídio Bello, encarregado de comandar os grupos que cercavam a cidade, dizia: não passa nem mosquito.

Como faltassem armas — a maioria dos homens trouxera apenas facões e foices — Gaúcho foi ao fórum e explicou ao juiz que estava requisitando as armas alí depositadas. Cada colono assinou um recibo, comprometendo-se a devolver a arma depois do levante.

— E agora? perguntou Gaúcho.

Armindo olhou para a multidão que se comprimia em frente à igreja sem acreditar no que via. Eram perto de trezentos homens, que atenderam aos chamados da rádio Colméia. Num instante estavam desembarcando na praça, vindos em caminhões, carroças, camionetes. Armados com o que lhes caíra nas mãos: foices, pedaços de pau, revólveres velhos, espingardas pica-pau.

Armindo riu, abriu mais um botão da camisa suada e disse:

— Vamos em frente.

Perto das dez horas veio a notícia de que um tenente do exército estava numa das pontes, querendo entrar. Dizia representar o governador do estado. Armindo mandou que deixassem o tenente passar, mas escoltado e sozinho. O tenente Miranda era um homem conhecido no sudoeste, respeitado pelos colonos. O governador sabe escolher, pensou Armindo, quando viu o tenente chegando no jipe dirigido por Elpídio Bello. Saíra de madrugada de Curitiba e vinha, segundo explicou, como observador, nomeado delegado especial por Lupión.

— Pois, disse Gaúcho, o tenente me desculpe, mas o delegado agora sou eu.

O tenente Miranda endureceu a cara, conferiu o olhar de Armindo, que disse:

— A situação é séria, tenente. A região está, como o senhor sabe, sob o governo de uma Junta Revolucionária.

Miranda coçou a cabeça, largou um suspiro impaciente, perguntou:

— Será que vocês não estão fazendo uma besteira?

— Não, tenente. A paciência do povo daqui chegou ao fim. Agora, ou as companhias e os jagunços se vão e o governador toma providências, ou vai haver a maior guerra no sudoeste.

— Acho que o senhor, como deputado, sabe o que significa agir desta forma.

— Sei muito bem.

Gaúcho completou:

— A gente sabe, tenente. Mas a gente sabe também que chegou a hora de acabar com isso. O senhor é um homem respeitado no sudoeste, acho que entende o que queremos fazer.

— E o que vocês querem fazer?

— Dar um fim neste inferno — disse Armindo. — O senhor sabe das mortes, das violências, do descaso das autoridades. Já andamos pra baixo e pra cima reclamando providências e ninguém nos ouviu. Já tentamos de tudo, agora vamos resolver à nossa maneira: na valentia.

Gaúcho, surpreso, cumprimentou Armindo com um tapa nas costas:

— É bem isso que vamos fazer, vivente.

O tenente pensou por alguns instantes e deu a cartada final:

— Então não me resta mais nada a fazer aqui.

E fez menção de sair.

— Me desculpe, tenente — disse Gaúcho. Eu respeito muito o senhor, mas... o senhor está preso.

— O quê?

— É isso mesmo, tenente — disse Armindo — O senhor está preso.

O tenente não acreditava. Olhou para os lados, achou uma cadeira, sentou-se:

— Vocês estão loucos! Loucos! Eu vim aqui a mando do governador! Vocês entendem o que significa me prender?

— Sabemos, disse Armindo. Mas vai ter que ser assim.

Lá fora, a multidão queria saber o que se passava. Armindo foi até a janela, acenou pedindo calma.

Nego Berto entrou porta adentro e perguntou:

— Seu Armindo, tem aí um repórter querendo falar com o senhor e com o tenente.

— Aquele baixinho?

— Ele.

— Diz pra esperar.

Nego Berto revirou os olhos:

— O homem não pára de chatear, seu Armindo.

— Deixa que chateie.

Armindo esperou Nego Berto sair da sala e disse ao tenente:

— O senhor está vendo que não podemos mais recuar. Agora é tudo ou nada.

O tenente concordou com um gesto de cabeça:

— Acho que vocês sabem que eu nunca hostilizei os colonos.

— Sabemos.

— Pois bem. Gostaria ao menos de cumprir parte do meu papel.

— Qual? quis saber Armindo.

— Me deixem falar pela rádio. Vou pedir calma e prometer que, como observador, farei um relato fiel do que está se passando aqui.

Armindo e Gaúcho se olharam.

— Está bem, disse Armindo.

O tenente foi levado ao prédio da rádio, passando pelo meio da multidão que, calada, o media de alto a baixo. Aos microfones da rádio, disse que não estava alí para tomar partido de ninguém. Era um militar e queria cumprir sua missão: relatar fielmente o que estava vendo. Prometia levar as reivindicações dos colonos ao governador e pedia, em troca, que a população alí reunida defendesse seus direitos da maneira mais ordeira possível.

Ao sair do prédio da rádio, o tenente foi ovacionado pela multidão. O repórter Rossi foi o primeiro a grudar nele.

— Como o senhor avalia a atitude dos colonos?

— Vim como observador. Amanhã poderei responder a sua pergunta.

Rossi se assustou com a resposta e parou no meio da rua, o que fez com que quase fosse derrubado pela multidão que acompanhava o tenente.

Era perto do meio-dia quando Gaúcho saiu à praça e reuniu os seus homens. Disse que não bastava cercarem a cidade, era preciso prender os jagunços que ainda não haviam fugido na direção de Beltrão. Soubera que alguns deles estavam escondidos nas barrancas do rio Iguaçu, em especial o Maringá, que tanta desgraça causara. Gaúcho não queria obrigar ninguém a acompanhá-lo.

— Nós vamos sair para caçar os jagunços, disse. Tô precisando de voluntários.

O primeiro a saltar na frente de Gaúcho foi Nego Berto:

— Eu vou.

O segundo, foi um homem gorducho e baixinho, que abriu caminho pelo meio da multidão com o cano de uma espingarda velha que Nego Berto reconheceu de pronto.

— Eu também, disse o homem.

Nego Berto arregalou os olhos, sem acreditar:

— Pelo amor de Deus, seu Joanin, o que o senhor está fazendo aqui?

Joanin aprumou a velha espingarda e olhou de lado para o negro:

— Ora, seu Alberto, estou fazendo o mesmo que o senhor.

O rosto de Nego Berto, aos olhos de Joanin, se encheu de luz e de um sorriso maroto:

— Mas fique sabendo, seu Joanin, que eu sou o comandante deste grupo. Só obedeço ao Gaúcho.

— Pois assim é que está certo, disse Joanin.

Gaúcho veio abraçar Joanin, perguntou por Cidália e pelas crianças, quis saber se tudo ia bem na Argentina.

— Bem não vai, explicou Joanin. Mas acho que a gente não demora e vai lá buscar aquele povo todo.

O grupo em volta aplaudiu.

Gaúcho saiu acompanhado por Nego Berto, Joanin, Antenor Rizzi, dois soldados, por jornalistas e fotógrafos. Seguiram informações que Gaúcho recebera há duas horas. Eram três da tarde, quando, depois de percorrerem todos os cantos do Baixo Verê, eles viram um homem caminhando pela estrada. Era baixo, forte, mais troncudo do que gordo, com uma cabeça grande. O primeiro a dar o grito de alerta foi Nego Berto:

— É ele, gritou.

O jagunço Maringá se jogou mato adentro e os homens o cercaram. Os dois soldados ficaram de espera na estrada. Joanin e Antenor Rizzi deram a volta e retornaram pelo rio. Nego Berto e Gaúcho seguiram a carreira do bicho pelo meio do mato. Sem poder atravessar o rio, Maringá se viu perdido. Desorientado, acabou saindo num terreno aberto. Gaúcho gritou:

— Pare!

Maringá apressou a carreira, curvando-se, o 38 na mão direita.

— Fogo! gritou Gaúcho.

A fuzilaria disparou. Maringá deu duas vezes no gatilho e se jogou por cima de uma cerca. Deve ter sido neste momento que uma bala o atingiu. Nego Berto ia correr na direção dele, mas Gaúcho o segurou.

— Vamos com calma, disse, jagunço é bicho dissimulado.

Aproximaram-se com cuidado. Maringá segurava o braço direito, que fora atingido de raspão. Antenor Rizzi, furioso, encostou o cano da winchester na cabeça de Maringá:

— Filho de um cão!

Gaúcho impediu:

— Deixa vivo!

Gaúcho ergueu Maringá pelo braço ferido e lhe deu uma cusparada no rosto:

— Isso é pra tu saber quem é o valente. Se não fosse pelo que tu sabe, a gente te sangrava aqui mesmo.

No improviso, Maringá foi amarrado com a correia da máquina de um fotógrafo, pois não haviam trazido corda. Colocado na traseira do jipe, não levantou a cabeça durante o trajeto.

Em Dois Vizinhos, foram recebidos por cerca de mil homens armados. Tinham vindo com a idéia de incendiar o escritório da Citla, mas o encontraram vazio e estavam naquele momento discutindo se deveriam ou não incendiar o prédio. Quando viram Maringá no jipe, foi um custo impedir o linchamento — depois de muita conversa, se contentaram em xingá-lo com todos os palavrões que sabiam em português e italiano. Mesmo assim, alguns queriam pendurá-lo num poste. Gaúcho carregou Maringá pelo braço e entrou no prédio da Citla. Largou o jagunço na guarda de Nego Berto, recomendando que não deixasse ninguém se aproximar, e subiu ao primeiro andar. Da janela, falou aos colonos:

— Olha aqui, minha gente. Eu sou o Gaúcho que vocês conhecem. Eu não tinha nada com essa briga, sou vendedor de fogão e outras bugigangas, faço meus briques, mas, quando entrei nessa briga foi para valer. Por isso peço a colaboração de todos. Esse traste que a gente prendeu tem mais valia se continuar vivo. O patife sabe quem mandou matar, quem matou, quem dava as ordens! O deputado Armindo está esperando por ele e me pediu para fazer isso: é preciso que esse jagunço chegue vivo a Pato Branco para ser interrogado sobre as barbaridades que foram cometidas no sudoeste. É isso. Não vamos pensar em vingança. Vamos pensar em correr com as companhias!

A multidão delirou. Nego Berto, distraído com o falatório de Gaúcho, ficou junto ao pé da escada ouvindo o discurso. Quando deu pela coisa, o jagunço se arrastava na direção da porta dos fundos. Correu e encostou a espingarda no nariz de Maringá.

— Tu não ouviu o Gaúcho? Fica quieto que tu vive. Mas não te mete a besta, senão te passo uma bala.

Lá fora, os colonos concordaram com as palavras de Gaúcho: melhor do que matar Maringá seria interrogá-lo sobre os crimes que havia cometido, apontando culpados e mandantes. Foi quando, um colono lembrou que, ora diabos, estavam alí desde a madrugada, sentindo fome e olha só quem pastava logo alí nos fundos do escritório? Duas vacas olhavam, abúlicas e entediadas, para os colonos.

— Bom, disse ele, já que não podemos comer os jagunços, vamos comer estas vacas aí.

Gaúcho aproveitou o rebuliço da churrascada e levou Maringá para Pato Branco.

 

MIGUEL ESTICOU A CABEÇA PARA FORA DA JANELA e examinou o céu. Resmungou um palavrão. Atravessou a sala, quase atropelando Zé Celso, foi olhar da outra janela.

Amanda o repreendeu:

— Sossega, homem.

Parou no meio da sala, olhou Amanda, observou a cara debochada de Zé Celso. Abriu os braços:

— Vai chover.

— É, disse Amanda, vai chover. Não é o fim do mundo.

Era o fim do mundo, pensou. Já não temia um ataque dos jagunços, que estavam apinhados no escritório da Comercial, armados até os dentes, nem temia a chegada das tropas do exército que Gaúcho que estavam acampadas em Palmas. Temia a chuva. Na véspera, chovera quase o dia inteiro. Voltara de Jacutinga com o jipe enlameado, Antero lançando mão de toda a sua habilidade para não despencar pelos barrancos, a estrada convertida num lamaçal revolto que as rodas do jipe revolviam com as correntes. Ficara impressionado com os colonos com quem fora conversar. Eles o receberam com a mesma determinação de sempre, não discutiram se era ou não hora de correr com as companhias e com os jagunços. Apenas não queriam mais esperar e, como sempre, detestavam muita conversa. Só perguntaram a hora em que deveriam partir e quiseram saber se toda a região estava avisada. Zé Celso, disse Miguel, foi ao Rio do Mato. Vilhena foi a Jacaré. Todo mundo ia ser avisado, nem que fosse só pela rádio, que já estava irradiando a convocação. Ah, bom, fez seu Fortunato, que tinha liderança sobre aquele povo de Jacutinga. E mandou, na hora, que cada um fosse cuidar de suas coisas, armas e alguma comida, conforme pedira o doutor. Os homens saíram debaixo de chuva e Miguel aceitou um chimarrão antes de retornar a Beltrão. Agora pensa naquelas estradas cobertas de lama, olha a chuva que ameaça cair novamente e teme que os caminhões trazendo os colonos fiquem atolados, presos no meio do mato.

Amanda é otimista:

— Cada caminhão traz quantos homens?

Miguel, nervoso, não consegue calcular. Zé Celso responde:

— Uns cinqüenta.

Amanda não se impressiona:

— Se atolar, eles tiram o caminhão nas costas.

Miguel sorri e pensa novamente no espírito prático de Amanda, nesta determinação que as mulheres costumam ter e neste pânico que os homens costumam experimentar em situações de perigo. Ela não se assusta mais, não teme pelo pior, não pode perder tempo. Agora a canoa já virou, repetia nos últimos dias. Miguel acende um cigarro, diz: é mesmo, e caminha na direção da janela. Lá fora segue caindo um chuvisco miúdo, continuado, fino, irritante, destes que não param nunca. O sudoeste vai virar um lodaçal, pensa.

No dia anterior, antes de irem até a colônia dar os avisos, se reuniram na casa de Zé Celso. Lá estavam Amanda, dona Firmina, mulher de Zé Celso, Vilhena. Miguel acabara de conversar com Gaúcho, que viera de Pato Branco buscar uns policiais requisitados pelo tenente Machado. Ele lhe contara que as coisas por lá haviam se precipitando quando Otto Germer, o alemão dono do Hotel Germer, encontrou três crianças que haviam sido espancadas pelos jagunços. Agora é a vez de Beltrão, dissera Gaúcho. Miguel colocou todos a par da conversa mas, depois de uns quinze minutos, já não agüentava mais:

— Olha, gente, chega de falação. Temos mesmo é que correr com estes jagunços.

— E os riscos? perguntou Miguel.

— Risco a gente corre ficando com eles por aqui.

Era verdade. Zé Celso balançou a cabeça grande e vermelha e disse que concordava. Vilhena resmungou:

— Eu também.

Miguel aceitou:

— Eu também concordo, é claro. Mas não podemos nos meter em loucura. É preciso organizar a coisa, senão, mesmo com razão, a gente quebra a cara.

— Pois vamos começar, disse Vilhena, dando um pulo da cadeira.

Miguel olhou para Amanda, que sorriu.

— Que tu achas? perguntou.

Ela disse:

— A canoa virou...

— É, fez Miguel, mas eu não quero iludir nenhum de vocês. Quando eu me meti nisso foi para valer, me enfiei até o pescoço. Mas tem uma diferença. Se a gente quebrar a cara, eu posso sair daqui amanhã mesmo. Sou médico, carrego minha mulher e uma maleta e vou trabalhar em outro lugar, em qualquer lugar do mundo. Vocês, não. Vocês são comerciantes, precisam ficar na cidade. Os outros são colonos que não podem abandonar a terra. Quer dizer, é preciso que a gente pense bem. Depois não vai ter arrependimento. O risco de vocês é maior do que o meu.

Miguel escutou um soluço às suas costas. Era dona Firmina, gorda e chorosa. Zé Celso foi abraçá-la, dizendo: deixa disso, Firmina. E confirmou:

— Eu já pensei. Topo.

Vilhena não se continha:

— Todo mundo topa. Agora vamos acertar as coisas.

Foram falar com os membros da comissão. Todos concordaram. O levante ficou para o dia seguinte. Se dividiram pelos distritos para avisar aos colonos e estouraram vários cristais fazendo com que a rádio transmitisse as convocações na mais alta potência. A estas horas, pensou Miguel, eles já estariam vindo, lutando decerto com as estradas enlameadas, logo começariam a chegar. Correriam o risco de encontrar jagunços nas estradas, de sofrer alguma tocaia, mas, com o levante já desencadeado em Pato Branco, os jagunços estavam acoitados nos matos ou amontoados no escritório da Comercial, na frente do qual Miguel e Zé Celso haviam passado naquela manhã: estava cheio de jagunços, cada um com sua arma, os olhos arregalados vigiando a rua. Estão com medo, dissera Zé Celso. Agora era torcer e esperar que o medo também não impedisse a vinda dos colonos, já que a lama, conforme avaliava Amanda, eles venceriam.

Os primeiros caminhões começaram a chegar pelas dez horas. Vinham apinhados de colonos armados com pica-paus, revólveres velhos, pistolas emperradas, foices, enxadas, pedaços de pau, açoiteiras. Vilhena ficou encarregado de reuni-los na praça da matriz, lugar alto onde ficariam protegidos e de onde seriam vistos pelos jagunços tocaiados na Comercial — isso lhes aumentaria o medo, calculou Miguel. Logo os caminhões formavam um cerco em torno da praça e os colonos, carregando uma arma qualquer, tomavam suas posições. Zé Celso tentava contar quantos seriam, mas ninguém conseguia chegar a um acordo quanto aos números. Já passavam de mil, dissera convicto, alí pelas onze e meia. Perto do meio-dia já eram mais de quatro mil colonos reunidos na praça. Já passa de seis mil, calculou Zé Celso no início da tarde.

A chuva miúda continuava a cair quando Miguel e Zé Celso se dirigiram à praça, conversaram com os colonos e formaram diversos grupos encarregados da defesa. Em seguida, acompanhados por três homens, os dois foram à casa do juiz. O homem abriu a porta com cuidado, após espiar repetidas vezes por detrás das cortinas.

— Boa tarde, doutor Miguel.

— Boa tarde, doutor. — Miguel retirou os óculos, coçou a cara. — O senhor já deve estar sabendo dos acontecimentos. A gente chegou à conclusão de que a situação não pode continuar. Em sinal de respeito a seu cargo, viemos lhe avisar que vamos tomar a cidade. Pela força.

— Isso é uma temeridade — a pose de juiz não se desmanchava.

— Pode ser. Mas vamos tomar assim mesmo.

— Eu não posso concordar com isso.

— É claro que não, doutor. Mas somos nós que vamos tomar a cidade. E como o senhor não é benquisto por aqui, pensamos em sua segurança e resolvemos prendê-lo a partir deste momento. Sua casa vai ficar cercada por gente nossa. Por dois motivos: para evitar que o senhor cometa a bobagem de fugir e para evitar que alguém resolva lhe dar um tiro.

— O senhor não tem autoridade para agir desta forma.

— Tenho, doutor. O senhor já deu uma olhada lá na praça da matriz?

O juiz não respondeu. Encarou Miguel e disse:

— O senhor será responsabilizado por isso.

— Talvez, fez Miguel.

O juiz olhou para o interior da casa.

— O senhor vai me fazer um favor, doutor Miguel.

— Pois não.

— Leve minha mulher e meu filho para o seu hospital.

Uma escolta levou-os ao hospital. Miguel pediu as chaves da casa e trancafiou o juiz. Três colonos ficaram de guarda.

O resto do grupo seguiu Miguel e Zé Celso na direção da delegacia. Os policiais estavam em frente ao prédio, observando. Não reagiram.

— Onde está o delegado? perguntou Miguel.

— Viajou, disse um sargento.

— Em quantos vocês são aqui?

— Oito.

Miguel contou: oito.

— Entrem, ordenou.

Entraram, recuando de costas, de olhos nos colonos.

— Quantos presos? perguntou Miguel.

— Quatro.

— Soltem eles.

— O senhor não pode...

— Posso, sim — Miguel fez um sinal e Zé Celso apanhou as chaves.

Abertas as grades, os quatro presos saíram e os oito soldados foram trancafiados.

— Vocês vão ficar aí até isso tudo acabar. É melhor para a saúde de vocês.

Reuniu os quatro presos e perguntou pelos crimes que haviam cometido. Roubo de um porco, arruaça, bebedeira.

— Olha, vocês estão soltos. Mas nós vamos anotar aqui o nome de vocês. Quando tudo acabar, mandamos chamar vocês pelo rádio. Ai daquele que não voltar!

Os quatro balançaram a cabeça, concordando, e saíram.

— Não voltam mais, disse Zé Celso.

— Voltam, disse Miguel.

Deixaram cinco colonos tomando conta da delegacia.

Quando saíram, Miguel disse a Zé Celso:

— Você vai ao quartel falar com o capitão. Conte o que já fizemos e o que vamos fazer. Eu vou para a rádio.

Miguel subiu a rua e viu que mais dois caminhões chegavam. Além disso, a quantidade de carroças e de cavalos aumentava a cada momento. Na ponte sobre o rio Marrecas, um grupo armado vinha chegando a pé, subindo na direção da praça. A chuva continuava, mas Miguel já não a temia.

 

HÁ DIAS ÍNDIO NÃO SAÍA DO BARRACO. Apenas naquela manhã fora à cidade comprar remédio para a febre. Poucas vezes se levantara da caixa de madeira na qual estava sentado, as costas apoiadas contra a parede, as pernas largadas para a frente, os braços descansando sobre a winchester que trazia no colo, pronta para entrar em ação. Já sentira fome, sede, dor, febre. Agora não sentia nada. Apenas esperava. A única janela do barraco, um pequeno buraco na parede, estava coberta por um pano grosso, sujo, de aniagem. Índio afastara o pano com um graveto e era através daquela abertura que olhara nestes últimos dias para o mesmo trecho da picada que via por entre as árvores. Às vezes lhe doía o pescoço ou as pernas ficavam dormentes. Largava então a winchester e massageava a nuca, virando a cabeça de um lado para outro. Levantava por instantes, sacudindo as pernas em golpes bruscos. Quando sentia sede, apanhava o cantil que largara ao lado do caixão, tomava um gole, umedecia os lábios e voltava a pregar os olhos no mesmo trecho visto através da janela. Ouvia todos os ruídos à sua volta. Escutava o barulho do rio que, só agora descobria, nunca era o mesmo, estava sempre mudando, parecendo obedecer a algum comando que vinha do sol ou da lua, das horas do dia, dos ventos, de águas vindas de longe — às vezes parecia escutar a água roçando as pedras, às vezes a água parecia se precipitar ou calar-se por instantes, às vezes era possível adivinhar um graveto sendo carregado rio abaixo. Depois ouvia os pássaros, as rãs, os grilos, o rastejar das cobras, e a multidão de animais que tomavam conta do mato quando o sol se punha: piriás, ratos, coelhos, gambás, macacos — estes vinham aos bandos, alvoroçando as aves e bulindo com os galhos das árvores. Enquanto isso, Índio pensava: lá fora está havendo uma guerra.

Naquela manhã se assustara com a agitação dos colonos. Quando entrou na farmácia, deu com homens armados com foices e facões, que o encararam firme — e o farmacêutico o atendeu com um olhar duro. Em outros tempos teria imitado Maringá, que matara um bodegueiro que recusara pendurar uma conta. Desta vez, não. Saiu. Na quadra acima viu chegavam dois caminhões carregados de colonos — traziam pica-paus, revólveres, facões, foices, enxadas e uma bandeira do Brasil. Um jipe amarelo apontou na esquina e Índio se escondeu. O jipe avançou meia-quadra, parou de soco e nele estavam Sergipe e Zé Lara. Se puseram de pé, segurando no pára-brisa, e examinaram na direção do escritório da Comercial. No meio de um grupo de colonos, alguém falava alto, agitando uma pica-pau no ar e apontando na direção do escritório para onde Sergipe e Zé Lara estavam indo. O homem que falava alto era negro, tinha uma dentuça grande e seus gestos eram desordenados. Ao se afastar, Índio, ouviu o grito: "Jagunço assassino!" Segurou o cavalo nas rédeas, olhou na direção da farmácia. Agora deviam ser uns vinte colonos — estavam parados em fila e o desafiavam empunhando paus e pedras. Índio tentou descobrir se estava na hora. Bobagem. Não seria se metendo numa briga com um bando de colonos.

Deu ao animal um passo curto, firme, e se afastou lentamente. Não iria fugir feito coelho. Lá do armazém vieram outros gritos. Desceu na direção da ponte. Já não ouvia os gritos. Dois homens armados estavam ao lado da guarda da ponte. Índio enfiou a mão por debaixo da capa negra e engatilhou o revólver. Vinha com o corpo curvado, o chapéu quase cobrindo os olhos. Os dois homens trouxeram as espingardas à altura do peito. Índio puxou as rédeas e pensou que chegara a hora. Poderia começar um rebosteio furando a cabeça daqueles colonos, mas achou que não era isso que devia fazer. Fez com que o cavalo girasse para a direita e entrasse no pasto, caminhando em direção ao rio. Enfiou-se no mato e ficou olhando de longe, acompanhando o movimento dos colonos. Logo uns dez que guarneciam a ponte. Lá no alto, na praça, continuavam a chegar caminhões e carroças, cheios de homens armados com foices, pica-paus, gritando como se fossem a uma festa. Eram recebidos com vivas e respondiam erguendo as armas e gritando ainda mais. As portas e janelas da Comercial continuavam fechadas. Dez minutos depois, uns homens saíram de lá de dentro — um deles era Zé Lara — e empilharam caixotes e sacos no meio da rua, fazendo uma barricada. Sergipe trouxe uma metralhadora e a depositou no meio dos sacos. Vários homens postaram-se em posição de tiro. Não demorou para que lá da praça os colonos erguessem os braços e vaiassem suas providências. O jipe chegou junto à ponte e o grupo de guarda se reuniu em torno dele. Um homem ergueu-se no jipe e falou apontando em várias direções, como se desse ordens e explicasse como deveriam agir. Índio sorriu: o doutor continua bem vivo. Doutor Miguel tornou a sentar e Antero fez a volta no jipe, dirigindo-se para a praça, onde foram recebidos por um berreiro. Mais um caminhão chegou. Um grupo a cavalo atravessou o pontilhão. Índio puxou as rédeas e seguiu no mesmo passo lento, na direção do barraco. Aquela movimentação não o interessava mais. Agora precisava esperar — e não fizera outra coisa naqueles dias. Esperar. Apanhou o cantil, tomou um gole e umedeceu os lábios. Um bando de tirivas enlouquecidas passou pelo céu. Tentou pensar em Isabel, mas não conseguiu. As imagens de Isabel vinham de longe, atrapalhadas pela figura enorme de Zé Lara, que o olhava com desprezo e ódio, exigindo que cumprisse o prometido e matasse o doutor Miguel. Tu afrouxou? perguntava a cara barbuda de Zé Lara. Ele sabe, pensou Índio. Tem quase certeza de que Zé Lara sabia há muito tempo, desde Porecatu. Nemésio, tinha razão, o aleijado: aquele homem quer o teu fígado, ele sabe de tudo. De tudo, pensou Índio. Os cabelos negros, longos, a cachoeira, o cheiro de mulher nova, a gente não devia, dissera, é loucura, como dizem todas as mulheres casadas. Mas não era como as outras. Melhor seria se os homens de Zé Lara o tivessem encontrado morto. Teriam enterrado aquele corpo, nem o seu nome saberiam. Perderiam algum tempo, nos dias seguintes, comentando o estranho aparecimento daquele cadáver e logo se esqueceriam que existira. Mas não foi assim. Precisou viver de novo, ganhar a profissão de pistoleiro, ficar ainda mais forte, ter aquela cara de bugre que lhe dera o apelido, entrar numa guerra, entrar noutra guerra. Ergueu a mão esquerda e enxugou o suor que escorria da testa: uma vida, pensou, era uma coisa arrumada desde cedo, quando se é pequeno, aquela índia miserável tinha razão: a gente nasce com uma sina, meu filho, e a tua é de andar pelo mato procurando o que tu veio fazer neste fim de mundo. Andar pelo mato — tinha a impressão de que já andara naquela vida uma distância que dava a volta ao mundo, mas acontece que nunca saíra dali mesmo: o norte, o sudoeste, o Paraguai, a Argentina, de novo o sudoeste. Esse é que era o mundo, pensou. Não havia outro.

Uma vez Zé Lara lhe contou que, levado para uma prisão em Florianópolis, havia conhecido o mar. Abria os braços enormes e dizia: o mar. Índio ficava pensando como seria o mar. Fechava os olhos e imaginava um rio que não tivesse a outra margem e que fosse grande e que balançasse como Zé Lara dizia. Não dava certo — não era do seu mundo. Zé Lara falava do barulho do mar, de como eram as ondas. Não conseguia imaginar. Zé Lara explicava: é assim feito o vento no alto do pinhal, cortando, indo e vindo, chiando forte, mistura de chuva fria e ventania. Agora Índio apura os ouvidos, esquece o recorte da janela, esquece os passos que pressente na trilha, o ruído das aves, do rio, das tirivas, e tenta escutar o vento cortando o pinhal. É um barulho que não acaba nunca, pensa, uma coisa que sempre recomeça, o chiar das folhas, dos galhos, como se num outro mundo as águas corressem pelo alto dos pinheiros. Zé Lara abriria os braços: aquele mar grandão na minha frente, repetia, balançando-se de modo ridículo. Índio tornou a prestar atenção na trilha que via além da abertura na janela e pensou: ele virá por alí. Sabia disso. Não só porque seria difícil chegar pelo rio ou pelo meio do mato, mas porque Índio sabia que agora iria encontrá-lo em campo aberto, cara a cara — por isso ele viria por alí. Desde muitos anos, e mesmo que o mundo fosse outro, ele viria por alí. Ergueria a mão enorme diante da cara e diria, aos berros: filho de uma égua! bastardo de bosta! Índio não se mexeria. Os bofetões jogariam seu rosto para os lados até que, sem reação, retirasse o revólver da cintura do outro e lhe desse um tiro, dois, três, todos no mesmo lugar, na barriga. E corpo de Zé Lara cairia por cima de Índio, imenso, pesado. Levaria um tempo enorme para se livrar daquele morto, na verdade jamais se livraria dele. A vida é assim mesmo, escrita quando a gente é pequeno, dissera a desgraçada da índia macumbeira, balançando uns colares. Não tinha errada: os matos e o mar ficam em mundos diferentes. Ficam em vidas diferentes. Agora Índio ergue as duas mãos e enxuga o suor que encharca seu rosto, seu peito, grudando a camisa no corpo e ressecando os lábios. Febre, pensa. Era a febre de novo. Toma outro gole de água e pensa que poderia descer até o rio para aliviar aquele fogo que estava cozinhando suas tripas e seus miolos, mas lembra que precisa continuar atento como em todas as horas destes últimos dias. Se fosse surpreendido dentro da água, não teria chance. É preciso não vacilar, ficar atento. Move o pescoço de um lado para outro, esfrega o rosto com violência e agita as pernas que ameaçam adormecer. O suor desce pelo rosto com a facilidade com que as águas lá fora correm pelo rio, vencem as sobrancelhas, ficam represadas nos cílios, que Índio pisca e esfrega a cada momento para se manter vivo, desperto, alerta, vencendo o sono, o cansaço, a febre, a visão embaçada. Não demora, pensa, não demora, continua pensando repetidamente durante mais algumas horas até que arregala os olhos, vence o tremor que sacode seu corpo e fixa a atenção além da janela, na trilha. Respira fundo e pensa: pronto, ele chegou.

 

LOGO SERIA IMPOSSÍVEL CONTROLAR A MULTIDÃO reunida na praça. Os homens improvisavam discursos, subiam nos caminhões para contar como sofreram a ação dos jagunços, advertiam que, ao menor descuido, as companhias continuariam no sudoeste.

— Eles querem atacar, disse Zé Celso.

Miguel se aproximou da janela:

— Calma. Eu vou prender os jagunços.

Mandou que espalhassem a ordem: ninguém se afastasse da praça enquanto ia ao escritório da Comercial. Zé Celso coçou a cabeça vermelha e perguntou:

— E se tu não voltas?

— Volto. Eles não vão se arriscar.

Zé Celso insistiu:

— Se reagirem?

— Vocês atacam. Mas vão me dar meia hora.

— Tá certo, disse Zé Celso.

Miguel fez um sinal para Antero:

— Deixa a arma aí.

Antero arregalou os olhos, examinou o revólver que Miguel apontava em sua cintura e não entendeu.

— É isso mesmo, disse Miguel. Nós vamos desarmados. E tu não vais sair do jipe.

Antero, relutante, entregou o revólver a Zé Celso. Caminharam na direção do jipe.

— O que eu vou fazer, doutor?

— Só dirigir. E dar o aviso se eles reagirem.

— Era bom ter um revólver...

— Esquece do revólver, Antero.

Antero balançou a cabeça, desanimado, e entrou no jipe. Miguel fez um sinal para Zé Celso: segurasse o pessoal na praça. Certo, respondeu Zé Celso, com um golpe de cabeça.

O jipe desceu as quatro quadras que separam a praça da sede da Comercial. À medida que se aproximavam, foram distinguindo os sacos de areia e os caixotes sobre os quais os jagunços descansavam as armas em posição de tiro. As janelas da casa estavam com os vidros quebrados e de cada uma delas saía o cano de uma winchester. Antero estacionou o jipe a uns dez metros.

— Jagunço não é gente, doutor. Acho que o senhor tá se arriscando demais.

— Calma, Antero. Eles sabem que nós temos uns quatro mil colonos lá na praça querendo comer o fígado deles. Eles não são gente, mas também não são burros.

Miguel desceu do jipe. Ergueu os braços, mostrando que estava desarmado. A porta se abriu. Distinguiu vultos empunhando armas e, no meio deles, Zé Lara. Entrou na casa. De início não conseguiu enxergar direito. Depois ficou alarmado com a quantidade de homens. Os jagunços mais temidos no sudoeste estavam alí: Breda, Chapéu de Couro, 44, Pé de Chumbo, Sergipe, Lapa, Gauchinho, Abetino, Velha, João Pedro, Lourenço, Pedro Leodato, Paraíba, Mato Grosso.

— Quanta honra, doutor — Zé Lara avançou um passo na direção de Miguel — Veio dar uma de valente?

Miguel observava os homens que o cercavam. Só no rosto de Zé Lara não havia medo. Lembrou do que Antero lhe dissera um dia: melhor enfrentar um valente do que um covarde — esses dão no gatilho se uma mosca senta no nariz dele. É gente assustada.

— Nenhuma valentia, seu Lara. Vim aqui para ver se tiro vocês desta arapuca enquanto estão vivos.

— Nós estamos bem armados, doutor. Arma pesada, até metralhadora, como o senhor viu alí fora. Não vamos ficar com medo dessa colonada com meia dúzia de pica-paus.

Miguel explicou: não tinham chance, a cidade estava cercada, as outras cidades também, ninguém entrava ou saía do sudoeste se os colonos não deixassem. Depois, a polícia não iria ajudá-los: os que não fugiram, estão presos.

— E mais uma coisa, Lara: vocês são uns cinqüenta ou sessenta. Lá fora — Miguel quis apontar a janela, mas não a encontrou por detrás da parede de jagunços — estão uns quatro ou cinco mil colonos. Estão furiosos e são capazes de matar só com as unhas e os dentes.

Zé Lara olhou para Sergipe, que resmungou:

— Eu não me entrego nem morto. Prefiro passar uma bala neste doutor filho-da-puta e enfrentar os colonos.

Zé Lara fez um gesto pedindo para que Sergipe ficasse quieto.

— E se a gente se entregar?

Miguel temeu que justo nessa hora uma mosca pousasse no nariz de Sergipe.

— Podemos fazer o seguinte: vocês me entregam as armas e eu chamo umas viaturas do exército para colocá-los a salvo lá no quartel.

— E depois? quis saber Zé Lara.

— Depois o exército leva vocês para fora do sudoeste. Daí pra frente não é mais com a gente. Mas devem prometer que nunca mais colocarão os pés aqui.

— E quem garante a nossa pele?

— Eu garanto.

— O senhor pode trair a gente.

— Bem. Ou vocês confiam em mim ou enfrentam os colonos.

Sergipe encarou Zé Lara:

— Se a gente entrega as armas, fica nas mãos dele.

Zé Lara, com o olhar, cobrou de Miguel uma resposta.

— Vocês já estão nas minhas mãos, Sergipe — disse Miguel — Podem fazer uma loucura, me dar um tiro, mas estão perdidos. Só vão sair vivos daqui se confiarem em mim.

O suor escorria do rosto de Sergipe. Zé Lara correu o olhar pelos jagunços. Disse:

— Calma, Sergipe. Eu decido — e, virando-se para Miguel — Pois bem, eu vou confiar no senhor. E aqui tá a prova da minha confiança.

Zé Lara entregou um 38 a Miguel.

Apanhou o revólver e esperou. Nenhum dos jagunços se mexeu. Sergipe colocou a mão no cabo do seu revólver, não para sacá-lo, mas para protegê-lo. Zé Lara disse:

— Sergipe, a gente já enfrentou muita coisa juntos. Tu sempre confiou em mim. Pois agora larga a arma aí na mão do doutor.

Sergipe não se mexeu. Lá de fora, apesar da distância, crescia o alarido e Miguel pensou na trabalheira que Zé Celso estaria passando para segurar a multidão. Zé Lara olhou a cara de cada um dos jagunços.

— Vamos, Sergipe.

Sergipe retirou o revólver da cartucheira e o entregou a Miguel.

— Agora, disse Zé Lara, todo mundo coloca as armas alí no canto.

O canto da sala se encheu de revólveres e espingardas.

— É tudo? perguntou Miguel.

— É, disse Zé Lara.

— Pois eu cansei de ver o jipe de vocês com quatro ou cinco metralhadoras.

— Afora a que está lá na rua, as outras não estão aqui.

— Estão onde?

— No mato. Em algum lugar.

— Onde?

— Doutor, é melhor ficar por isso mesmo. O senhor pode revistar a casa, não temos mais armas. O resto ficou enterrado pelos matos, uma em cada lugar. Eu confiei no senhor, o senhor confia em mim.

— Está bem, disse Miguel.

Foi até a porta e chamou Antero.

— Põe estas armas no jipe, disse Miguel.

Antero recolheu as armas.

— Eu vou até a praça. Vou explicar a decisão de vocês aos colonos.

Miguel bateu no chapéu e subiu no jipe. Rumaram para a praça.

 

ZÉ CELSO SE DESTACOU DA MULTIDÃO e correu na direção do jipe, que lutava contra a lama. Veio gritando:

— O seu Bello! O seu Bello!

Apontava na direção do escritório da Comercial. Miguel virou-se e viu que três quadras abaixo um grupo saía de uma transversal e descia a avenida. Era um grupo de duzentos colonos. Zé Celso explicou: seu Elpídio Bello não se conforma e diz que vai esfolar vivo o jagunço que matou o irmão dele. Juntou aquela gente e garantiu que vai atacar a Comercial.

Miguel ordenou a Antero:

— Volte.

O jipe rosnou, patinando na lama, respingando barro na roupa de Zé Celso, e desceu na direção do grupo. Tô desgraçado, pensou Miguel. Disse a Antero:

— Mais depressa!

Quatro jipes e um caminhão saíram em disparada por detrás do prédio da Comercial: o comboio ia apinhado de jagunços. Danou-se, fez Miguel, pondo a mão na cabeça. Os carros atravessaram a ponte e tomaram a direção do campo de aviação. O problema agora era encontrar seu Elpídio, que Miguel lembrava como um colono feio, muito alto, com a mesma fama de valente do irmão Eleutério. Alcançaram o grupo de colonos. Miguel perguntou por Elpídio. Ninguém respondeu.

— Onde ele está?

Os colonos sacudiram os ombros, olhando os últimos jipes subirem o morro. Merda, pensou Miguel. Na certa se metera no mato para caçar os jagunços.

— Escutem, disse Miguel. Vocês vão voltar para a praça. Eu vou ao quartel descobrir um jeito de se evitar uma desgraça. E que ninguém se meta em vinganças contra os jagunços! Eu vou prender o primeiro valente!

Miguel encontrou o capitão Nogueira plantado na sala do radiotelegrafista, com os binóculos enfiados nos olhos. Explicou que, estando os jagunços espalhados pelo mato, era preciso evitar uma verdadeira batalha entre eles e os colonos. Sugeriu que o exército prendesse os jagunços até as coisas voltarem ao normal.

— Não é tão simples, disse o capitão. Estou aqui ao lado do rádio esperando que me digam o que fazer. Só posso agir com ordens superiores.

— O senhor evitaria uma chacina.

— Não posso.

— E não pode passar um rádio?

Passaram um rádio consultando a respeito da sugestão de Miguel. Voltou um pedido de confirmação e, depois, outros rádios solicitando explicações: número de jagunços, número de colonos, por onde andavam as autoridades da cidade. Miguel e o capitão, enquanto esperavam as respostas, ficavam examinando na direção da praça.

— São quantos jagunços? perguntou o capitão.

— Uns cinqüenta, oitenta, não sei.

— Três jipes e um caminhão! o capitão bateu na cabeça com a palma da mão e mandou passarem outro rádio.

Mas a ordem não veio. Mandaram esperar.

— Isso é assim mesmo, disse o capitão, tentando acalmar Miguel.

Hora e meia depois, chegou um colono a cavalo. Era Zézinho Rocha. Plantou-se em posição de sentido diante do capitão e de Miguel e comunicou a decisão dos colonos reunidos na praça. Ou o exército prende os jagunços antes do anoitecer, ou iriam caçá-los nos matos. Como estavam alí na cidade, os jagunços poderiam atacar as famílias que ficaram no interior. E, de noite, poderiam fugir, talvez matassem alguém.

— Eles estão desarmados, disse Miguel.

— Não, doutor. Acho que tinham armas escondidas na Comercial. A jagunçada saiu armada de lá.

— Armas escondidas, resmungou Miguel, falando sozinho.

— Então — quis saber o colono — o que digo para os outros?

— Eu peço mais uma hora para dar uma resposta, disse o capitão.

Zézinho Rocha subiu no cavalo, fez uma continência e despencou morro abaixo. Escutaram o tropel sobre a ponte e, depois, acompanharam a subida do animal através da lama. Miguel e o capitão sentaram-se num banco ao lado do rádio e ficaram olhando para um relógio dependurado na parede.

O prazo esgotou e eles continuavam em silêncio a olhar para a aparelhagem de rádio. O capitão Nogueira acendeu o quarto cigarro e Miguel continuou com a cabeça enfiada entre as mãos.

— Eles não vão responder, disse Miguel.

— É, fez o capitão, acho que não.

Foi quando ouviram uma cantoria forte que veio crescendo morro acima, na direção do quartel. Miguel e o capitão aproximaram-se da janela. No começo sentiram apenas o impacto de um coro de umas quatro mil vozes.

— Estão cantando! assustou-se Miguel.

— Espere! pediu o capitão.

Fizeram silêncio.

— Porra! É o hino nacional! gritou o capitão.

A multidão vinha pela rua principal.

— Agora fodeu-se!

Miguel largou o corpo no banco de madeira.

 

NAQUELA NOITE, seu Joanin e Nego Berto protegeram-se do chuvisco debaixo da carroceria de um caminhão e, em volta da cuia que corria de mão em mão, ficaram relembrando as proezas do dia, contando os acontecidos, enquanto, espalhados pela praça e pelas ruas em volta, abrigados de qualquer jeito, centenas de colonos ainda conversavam, discutiam, mostravam uns aos outros os restos dos papéis que haviam arrancado do escritório da Comercial. Antes, ao anoitecer, haviam feito um churrasco com dois boizinhos requisitados pelo doutor Miguel e, depois, decidiram passar a noite em claro, uns por necessidade de fazer o rodízio no patrulhamento da cidade e, outros, aproveitando o tempo para comemorar a vitória e fazer planos. Era o paraíso de novo, pensou Joanin, que pegou uma sanfona — desde que partira para a Argentina não havia tocado sanfona — e, com Nego Berto fazendo a segunda voz, cantou uns versos que andavam girando pelo sudoeste fazia um tempo.

"Quando foi no mês de abril no distrito do Verê mataram Pedro José da Silva vereador do PTB: Estava fazendo uma lista para entregar a Juscelino foi morto pelos bandidos mas não era seu destino. Prestamos nossa homenagem ao bom Pedrinho Barbeiro morreu o pobre inocente só por ser bom brasileiro. Morto na sua própria casa nunca se viu crime igual por assassinos mandados pelos chefes da Comercial A polícia nada via nessa cruel ocasião e essa morte aumentou a tristeza no sertão Esses bandidos sem alma não escondem seu papel. Não há justiça que puna, virá justiça do céu. Aos jagunços da Bahia de Minas e de Sergipe e aos bandidos crioulos deram camionetes e jipes Corriam pelo sertão perseguindo os moradores desrespeitando as famílias num cortejo de horrores A ordem era severa diziam os assassinos que não respeitavam homens nem mulheres nem meninos. Compre o lote, não reclame ou volte lá pro Rio Grande que nós resolvemos tudo a bala ou folha de Flande Mas o caboclo aprendeu muito nesta lição que foi dura A corvoada está voando Há corpos sem sepultura As viúvas estão chorando a sua triste desventura Pedrinho Barbeiro morreu no distrito de Verê não era destino seu todo mundo pode ver A jagunçada do sudoeste um dia vai ter de correr.

Joanin e Nego Berto se abraçaram, agradecendo os aplausos. Seu Tobias, da Secção Progresso, se levantou, aplaudiu mais uma vez os cantadores e disse que ia dormir um pouco, dentro de duas horas pegaria no plantão. Guido Sassi, que viera de São Miguel, aproveitou para ir até a churrasqueira, retirou um naco de carne gorda e voltou dizendo: se tivesse uma zabumba, umas mulheres, a gente fazia um baile. Nego Berto se refestelou no rodado do caminhão e olhou o céu escuro, carregado de chuva. Pois, disse, eu gostei mesmo foi da papelama esparramada pelo chão. Êta festa! Fechou os olhos e, no lugar do céu escuro, viu surgir a rua toda branca, coberta de promissórias e recibos, como se estivesse coberta de geada.

Caminhavam cantando o hino nacional. A seu lado estavam seu Joanin e seu Tobias. Uns pedaços do hino sabia direito, outros enrolava na língua nos conformes da melodia. Olhou para trás e se sentiu cada vez mais forte com aquele amontoado de gente que descia rua abaixo como se fosse uma coisa só.

Quem deu o primeiro chute na porta da Comercial foi seu Joanin. Pequenino e gordo, quase vira de costas com o impacto. Outros bateram com as coronhas das pica-paus e deram chutes, até que chegou seu Albino Borges, grandalhão e brabo, e disse: pode deixar. A porta veio abaixo com uma patada só.

Num primeiro momento, se amontoaram no batente, paralisados. No interior daquela casa haviam sido ameaçados sob a mira de revólveres, muitos deles foram espancados depois de recusar a assinatura em papéis e contratos. Por isso foram entrando aos poucos, em silêncio, resistindo, empurrados pelos outros que ainda estavam na rua, esperando que a qualquer momento um jagunço saltasse de um canto ou que um grupo deles varresse a multidão com um golpe de metralhadora. Percorreram cada cômodo da casa para se certificar de que estavam sozinhos e, aos poucos, começaram a falar, a rir sem motivo, a gritar.

"Eco! se cagaram os jagunços!" gritou um. "Vamos quebrar tudo!" Começou a voar papelada para todo lado. Eram promissórias, cheques, recibos, contratos, jornais. Uns abriam gavetas, outros abriam armários, arquivos, e iam passando os papéis para os que estavam em volta. Alguém achou a promissória assinada por Vinícius Fiamoncini, gritou, ô Fiamoncini! e saiu porta afora até encontrar o amigo e lhe entregar a promissória que o outro ficou olhando sem saber o que fazer, meio sem acreditar, meio querendo dar risada de alegria, até que saiu dando uns pulos doidos pelo meio da multidão mostrando a um e outro — olha aqui! olha aqui! — e foi se sentar no degrau em frente a uma casa, onde ficou olhando a promissória, dizendo que pensara em guardar aquele papel maldito e pôr num quadro para depois mostrar pros netos, mas que ia mesmo era rasgar tudinho, amassar, pôr fogo, que a gente nunca sabe o que pode acontecer se uma desgraça dessas cai nas mãos de alguém que quer fazer mal aos outros.

Nego Berto esvaziou um arquivo, que foi passado pela janela, e seu Joanin pôs abaixo o que estava empilhado dentro de um guarda-roupa. Quando quiseram subir para o primeiro andar, foram empurrados para os fundos da casa pela multidão que entrava e acabaram quase se espatifando no quintal, no meio de uma lamaceira dos diabos. Contornaram a casa e, voltando à rua principal, viram os estragos que haviam feito. Aquela beleza, pensou Joanin, a rua toda forrada de branco, nem a lama se via mais, as pessoas catando aqui e alí um pedaço de papel, lendo, jogando fora, dando risada quando reconheciam uma assinatura, rasgando e, pensa agora Nego Berto, enquanto seu Joanin volta a tocar a sanfona, foi então que as janelas do andar de cima começaram a estourar, respingando vidros, que caíam na cabeça de quem estava embaixo. Riam, segurando os chapéus, saíam dando pulos por cima dos papéis, vinham olhar mais de longe, do outro lado da rua, se cumprimentando aos abraços como se fossem amigos desde o tempo da infância. Aí começaram a sair os móveis, escrivaninhas, cadeiras, guarda-roupas, que foram amontoados no meio da rua.

— Vamos fazer uma fogueira! sugeriu alguém, mas outros acharam que podia pegar fogo na rua toda, coberta de papéis. Resolveram largar os móveis alí mesmo. Dona Hercília, que tinha um bar em frente da Comercial, se lembrou das inúmeras vezes em que os jagunços entraram em seu bar e pediram pinga, café, pão, pacote de erva e saíram sem pagar. Mirou os móveis, escolheu um sofá e uma penteadeira e resolveu que aquilo pagava as dívidas acumuladas pelos jagunços — chamou dois de seus filhos e carregou o sofá e a penteadeira para casa.

No resto do dia a casa da Comercial foi visitada pelos colonos, mesmo por aqueles que não queriam quebrar nada, só olhar a destruição e se garantir de que, dali para a frente, não teriam mais jagunços esfregando notas promissórias nas suas caras, como se eles fossem uns vigaristas que não garantiam suas contas.

— Êta coisa boa! faz agora Nego Berto, se espichando todo de tanto rir, lembrando que no fim do dia a pilha de móveis estava destroçada no chão, fora o que um e outro levara em pagamento. Perguntou a seu Joanin:

— Quando a gente vai buscar a comadre Cidália na Argentina?

Joanin parou de remexer nas teclas da sanfona, fez uma cara preocupada: vamos esperar um pouco, vamos ver a coisa ficar resolvida. É, disse seu Tobias, que desistira de dormir e estava preparando outro chimarrão, é preciso ter cuidado. Se a gente facilita, concordou Guido Sassi, eles voltam com toda a força que o Lupión tem. Verdade, concordou Joanin, mas a gente também tem uma forcinha, não é? Riram e fizeram correr a cuia de chimarrão.

 

ERAM QUATRO HORAS quando o pequeno avião apontou no céu, vindo de Fóz do Iguaçú. Nego Berto achou que aquela coisa zumbindo mais parecia um mosquito de pernas arreganhadas que não ameaçava ninguém, bastaria lhe dar um tabefe para que despencasse do céu. Parece um mosquito, foi o que disse, fazendo brincadeira. Mas ninguém riu. Joanin bateu no joelho, juntou a espingarda e se levantou. Os homens se levantaram das toras nas quais estavam sentados há quae uma hora e ninguém falou nada: acompanharam o vôo do pequeno mosquito que zumbia nos céus, oscilando de leve como se a brisa suave e fria o jogasse de um lado para outro. É agora, disse Guido Sassi, e Nego Berto olhou para trás e viu o doutor Miguel na mesma pose dos colonos, olhando o avião. Ele dissera: não digam quem eu sou, quero primeiro cheirar o bicho de perto. Joanin também olhou para o doutor, correu os olhos pela fila de uma vintena de homens, examinou no beiço caído de Nego Berto, nos olhos fixos de Zézinho Rocha, nas mãos de Guido Sassi, que abriam e fechavam como se estivessem a cada segundo disparando a winchester, e pensou: é agora. Lembrou de Elpídio Bello, sumido desde o dia anterior, que dissera: a gente só deve aceitar uma conversa com o governador. Na votação, porém, ele perdeu. Doutor Miguel e Zé Miro achavam que não era possível exigir tanto. É melhor ir com calma, diziam. Calma. Organizaram a retirada das toras que impediam o pouso no campo de aviação e, quando tudo estava pronto, dispararam os três tiros combinados, avisando Zé Miro, que ficara lá embaixo: podia passar o rádio. Logo, pensaram, um avião estaria levantando vôo, vindo de Foz do Iguaçu. Agora era esperar.

— É uma Cesna 190, disse doutor Miguel, quando o avião sobrevoou o campo num mergulho rasante, avaliando a situação, se perdendo na direção sul. Nego Berto tentou outra brincadeira:

— Êta vontade de atirar!

Ninguém riu. O avião inclinou, fez uma volta demorada, abrindo as asas contra o céu, e apontou na direção da pista. Visto de frente, parecia não sair do lugar e as duas rodas lembravam ainda mais as pernas arreganhadas de um mosquito. Tocou na cabeceira da pista, sacudiu-se, veio rolando até onde estavam. Cercaram o avião, as armas apontadas e com bala no gatilho, conforme pedira doutor Miguel. Conferiram, colando as caras nos vidros da porta: conforme o combinado, vieram apenas o piloto e um homem grandalhão, forte, bem vestido. Doutor Miguel, por debaixo do chapéu de palha de colono, fez o sinal combinado com a cabeça: era o Chefe de Polícia.

A porta se abriu, os colonos recuaram dois passos e o homem desceu ajeitando as roupas e olhando em volta com arrogância, na certa se borrando de medo, pensou Nego Berto, mas fica aí fazendo cara de valente. Olhou cada um dos que o cercavam como se quisesse no futuro se lembrar deles e perguntou:

— Onde está esse doutor Miguel?

Seu Borges se adiantou sem pressa e sem baixar o cano da winchester. Disse:

— Lá embaixo, na cidade.

— Mas devia estar aqui. Foi o combinado.

Doutor Miguel se aproximou — sem óculos e com o chapéu de palha, até que passava por caboclo, pensou Joanin — e disse:

— A reunião vai ser na cidade.

— Não foi o combinado — o homem não perdia a pose — Quero que venha me receber aqui.

— Não dá, doutor, disse seu Borges. O senhor vai com a gente até a rádio.

— Rádio? Vou coisa nenhuma!

O homem fez menção de voltar ao avião, mas, ao virar-se, viu que estava cercado. Nego Berto, seu Borges, Zézinho Rocha, estavam parados às suas costas.

— Está certo — disse ao piloto — Você me espera aqui que eu vou lá embaixo resolver esta majorca num minuto — e, virando-se para os colonos, como se desse uma ordem: Vamos!

Seu Borges apontou na direção do jipe e os colonos abriram caminho. Deonísio Possenti foi de motorista. A seu lado, o Chefe de Polícia. Atrás, Nego Berto e doutor Miguel.

Assim que o jipe partiu, os colonos tornaram a cercar o avião, para desespero do piloto. Joanin bateu de leve na porta, como quem chama uma pessoa de casa, disse:

— Tem gente?

A gargalhada foi geral e a testa do piloto se encheu de suor. Ele abriu a porta e balançou a cabeça sem dizer nada.

— Agora — disse Joanin — a gente vai fazer o seguinte: o senhor liga esta pinóia aí e vai embora.

— Mas, o doutor...

— O doutor vai ficar, não se preocupe.

Com os olhos duros, o piloto procurou o jipe, mas não encontrou nada.

Alguém gritou:

— Vamos tocar fogo que esta droga é mesmo do Lupión!

O piloto buscou os olhos de Joanin, pedindo socorro.

— Pois — disse Joanin — o amigo vai levantar este avião antes que a gente encha ele de chumbo. E vai levar um recado pro governador. Diga lá que o tal Chefe de Polícia está preso e só vai sair daqui quando atenderem os pedidos da gente.  

O piloto balançou a cabeça, fechou a porta e ligou o motor. Os colonos se afastaram.

Guido Sassi disse:

— Bem que valia um tiro nesta bosta.

O piloto manobrou, apontando o final da pista, e levantou vôo sob os aplausos e os gritos dos colonos.

— Mas o que é isso?!

O Chefe de Polícia se pôs de pé no jipe e apontou o avião que zumbia no céu.

— O que estão fazendo? É um crime!

— Senta, doutor, disse Deonísio Possenti. Lá embaixo o senhor vai entender.

— O avião deveria me esperar! Vocês não cumpriram o acordo!

— É verdade, disse Deonísio. Mas também tem uma porção de acordos que o governo não cumpriu, não é?

— Vocês vão se arrepender!

— Pode que seja, doutor.

O Chefe de Polícia permaneceu com os olhos postos nos céus, procurando seu aviãozinho, como se ele pudesse retirá-lo daquela arapuca.

— O governador vai saber disso!

Deonísio concordou:

— Vai, sim...

Quando o avião levantou vôo, Zé Miro fez um sinal com o polegar para a massa de colonos que estava na praça em frente à rádio, mas eles não acreditaram. Permaneceram em silêncio, as bocas abertas, segurando os chapéus e mirando o céu à procura do avião. Assim que ouviram o ruído do motor, começaram a comemorar. Voaram chapéus e maçarocas feitas com notas promissórias. Zé Miro acompanhou o vôo do pequeno avião e aplaudiu na direção da multidão.

— Pronto. Podemos pedir a ligação.

Embora o combinado fosse não fazer provocação, a chegada do Chefe de Polícia virou tumulto. Ao atravessarem a ponte sobre o rio Marrecas, o homem perdeu um pouco da pose e segurou no banco do jipe com as duas mãos, os braços retos ao lado do corpo.

— Os senhores são responsáveis, disse em voz baixa e decidida.

Deonísio Possenti diminuiu a velocidade e conduziu o jipe na direção da multidão, que veio descendo da praça. Quando estavam a uns quinze metros, parou o jipe e olhou para aquela massa cujas cabeças pareciam espetadas por centenas de foices, espingarda, porretes, ancinhos, e fez um gesto pedindo para que dessem passagem. A multidão abriu aos poucos, acompanhando a lentidão do jipe. Mesmo Nego Berto ficou assustado com aqueles olhos duros do Chefe de Polícia, que fechava o queixo com força, o pescoço teso feito socó na espreita. Atravessaram os primeiros dez metros sem que se ouvisse outro barulho além do motor do jipe, que girava baixo. Alguém gritou:

— Morra Lupión! Morra a jagunçada!

A multidão balançou de um lado para outro e os gritos não cessaram mais, enquanto as espingardas, os revólveres, os pedaços de pau e os ancinhos e foices se cruzavam no ar. O homem de nariz grande e orelhas enormes, que carregava a bandeira do Brasil, se plantou na frente do jipe. Deonísio Possenti freou e pediu passagem.

— Momento! — fez o homem.

Subiu no paralama do jipe. De pernas e braços abertos, provocou um silêncio total na multidão. Depois, ergueu a bandeira com os dois braços e berrou:

— Ganhemo!

Dezenas de chapéus voaram sobre a multidão e os revólveres, as espingardas e os pedaços de pau, as foices e os ancinhos voltaram a se agitar. Chega! fez Deonísio para o homem, puxando-o pela barra das calças, mas nem foi preciso insistir: saltou de cima do jipe e, aos pulos, se misturou à multidão. Já se divertiu, pensou Miguel, olhando o Chefe de Polícia com o canto dos olhos — o homem não mexia um músculo e seus olhos não abandonavam um ponto fixo que elegera adiante, atravessando a multidão com o olhar. Apesar da euforia do homem com a bandeira, Miguel calculou que não seria fácil. Esse cabra tem fibra. O jipe tornou a andar e os gritos de vivas, os xingamentos, prosseguiram crescendo. Na entrada da rádio, foi um custo abrir caminho. Só depois de Zé Miro improvisar um pequeno discurso, conseguiram fechar a porta e indicar a escada ao Chefe de Polícia, que não perdeu a dignidade posuda: ajeitou o terno, a gravata, passou a mão nos cabelos, como se preparasse uma declaração definitiva, e disse:

— Isso, eu asseguro, não ficará assim.

Zé Miro indicou novamente a escada:

— Vamos, doutor.

Lentamente, como se medisse degrau por degrau, o Chefe de Polícia subiu a escada. Ia de cabeça erguida e com o ar de quem tinha um profundo desprezo pelo que se passava a sua volta. Miguel disse a Deonísio Possenti:

— Não vai ser fácil.

 

ZÉ LARA SE PLANTOU NA TRILHA de pernas abertas, as mãos cruzando a winchester contra o peito. Gritou:

— Índio!

Se jogou no chão, contra a parede do barraco. Buscou com o cano da espingarda o pano de aniagem que cobria a janela.

— Índio! Aparece, desgraçado!

Índio viu a mancha azulada na entrada da trilha: Zé Lara. Ficou de joelhos, passou o pano de aniagem no rosto, esfregou as vistas com as mãos. A visão não melhorou. Mordeu os próprios lábios e sentiu o tremor nas pernas quando se pôs de pé. Febre, pensou.

— Sai, seu cretino!

Índio estendeu a mão e ela demorou muito para vencer a distância que a separava da porta do barraco.

— Sai! berrou Zé Lara.

Índio colocou o corpo na porta do barraco. Lá no meio das árvores, a figura de Zé Lara se agigantava, virava de cabeça para baixo, crescia e sumia contra o verde.

Zé Lara não reagiu. Estranhou o modo como Índio oscilava de um lado para outro, parecendo bêbado, a winchester volteando no ar.

— Que palhaçada é essa? perguntou.

— Palhaçada é a mãe!

— Moleque!

Índio disparou a winchester. Zé Lara se jogou no mato e viu que os dois tiros de Índio foram dados sem direção. Talvez estivesse ferido, pensou. Ou bêbado. Quem sabe está morrendo?

Zé Lara se arrastou pelo mato. Viu o cano da winchester na janela do barraco. Desgraçado, pensou.

— Por que tu não matou o doutor Miguel?

Antes que o tiro fosse dado, Zé Lara já rolara pelo mato, para a direita.

— Pra que matar um baixinho de merda?!

— Pois o baixinho de merda vai acabar com a gente!

— Deixa de ser burro!

Zé Lara não respondeu.

— E aquela colonada lá na praça? Não é nada? perguntou Índio.

Zé Lara aproveitou para se arrastar por uns dez metros. Desta vez o tiro quase lhe arranca o nariz.

— Tu sabe o que merece quem me trai?

Índio apanhou o cantil e bebeu um pouco de água. Sentiu a garganta arder e a água chiando como se caísse em chapa fervente. Derramou o resto do líquido, que tanto economizara naqueles dias, na cabeça, no rosto, no peito, lambeu demoradamente os lábios ressecados. Jogou o cantil no canto do barraco. Já não precisaria dele. Olhou para fora e viu um verde bonito, pintado de manchas amarelas, brancas, azuis — a vista melhorava.

Escuta com atenção. Ouve o rio correndo entre as pedras, o mar se debatendo nas copas do pinhal, e sente que Zé Lara rasteja no mato, ao lado esquerdo do barraco. Vai à janela e quase acerta a cabeça do miserável. Espantado pelo tiro, Zé Lara rolou para a esquerda e Índio conseguiu colocá-lo na mira. A visão clareou e ele deu no gatilho duas vezes. Acertei. Zé Lara rosnou baixo, sufocado, engolindo o berro. Mas até pelo barulho surdo de bala rompendo carne, Índio sabia que acertara.

Zé Lara segurou o grito mas não conseguiu evitar que o braço direito desse um estremeção brusco, jogando a espingarda barranco abaixo. Se enroscou no próprio corpo, segurou o braço com força e conferiu o estrago feito pelas balas. Uma passara de raspão, e, a outra, deixara o braço direito bambo, sem obediência.

Apertou o ombro e riu. Era isso mesmo, um dia tudo terminaria assim, o destino, como dizia aquele desgraçado do Índio. O destino. Mesmo Isabel acabara tomada por aquela desgraça de falar em destino. E agora a mesma coisa havia tomado conta dele. Por isso, ao fugir na direção do mato que ficava atrás do campo de aviação, Zé Lara já sabia o que precisava fazer. Espalhou os homens, recomendou que não fizessem a bobagem de aparecer, e disse que, anoitecendo, iriam fugir. Mandou desenterrarem as armas — que saíram da terra embrulhadas em lona e barro -, entre elas a winchester que agora estava jogada a uns cinco metros, no fundo do barranco, perto do rio. Isabel perguntou:

— O que vai fazer?

Desembrulhou a espingarda e disse:

— Tu sabes.

— Tu vais fazer uma loucura.

— Já fiz muitas.

— E de que adianta?

Não adianta nada, pensa agora, arrastando-se até a beira do barranco, o braço rasgando a cada movimento, jamais alcançaria a arma, pensa. A esperança era que Índio estivesse ferido ou doente — mas por se fiar demais nisso é que estava com o braço estuporado.

Isabel disse:

— Eu fui falar com ele.

Zé Lara não olhou para ela.

— Depois a gente conversa sobre isso.

— Conversa agora.

— Não. Vou lá meter uma bala na cabeça daquele moleque.

— Ele não te fez nada!

— Tu tem certeza?

Zé Lara sentiu o mesmo corpo que possuíra tantas vezes ser violado por outro homem. Com o cheiro de outro homem. Com as pernas ainda molhadas pela porra de outro homem.

— Tu ficou doido.

— Eu sempre fui doido, entendeu?

Conferiu as peças da espingarda, puxou o gatilho várias vezes, visando um pinheiro a sua frente.

— Tu dormiu com ele.

— Não.

— Ele sempre andou te procurando.

— Mentira!

— Tu sempre pensou nele.

Isabel soltou o bofetão com toda a violência, mas conseguiu apenas afundar a mão na barba de Zé Lara. Ele segurou seu pulso e disse:

— Por que o disgramado não matou o doutor?

— Não sei.

— Por que odiava tanto o Romário?

— Tu mandou que ele matasse o Romário.

— E matou, fez Zé Lara.

Deu ordem para que Sergipe cuidasse de Isabel. Desceu na direção do rio, certo de que Índio o esperava naquele barraco imundo onde vivia isolado feito um animal, sempre se imaginando muito especial, muito diferente para morar na pensão ou no acampamento. Mas agora ia ter a vez dele. Ficou escutando. A winchester já não aparecia na janela.

— Índio! gritou.

Silêncio. O rio. As árvores. Arrastou-se outros dois metros e sentiu que algo se movia atrás dele. Virou-se e o braço direito rasgou mais fundo. Índio estava a uns três metros, a winchester fazendo círculos na direção de sua cabeça, a capa negra cobrindo o corpo trêmulo.

— E agora? perguntou Índio.

Zé Lara tentou se erguer, mas soltou um grito de dor e caiu mais próximo da beira do barranco.

— Tu é um covarde, disse. Atira, que eu estou desarmado.

Índio limpou a cara, esfregou os olhos, o corpo oscilando para a frente para trás.

— Atira!

Índio ergueu a espingarda. Zé Lara viu a arma volteando no ar. Apoiou o peso do corpo sobre o braço esquerdo e, soltando um grito de dor, jogou-se barranco abaixo. Índio quis avançar um passo, mas se desequilibrou e caiu para a frente. Arrastou-se até a beira do barranco, descansou a arma no chão e viu Zé Lara erguendo a espingarda na sua direção. Deu duas vezes no gatilho e ouviu um terceiro tiro ecoar no mato. Caiu de bruços sobre a beira do barranco. Ficou esperando que a terceira bala viesse lhe atravessar os miolos. Não sentia os braços, as pernas, e em sua cabeça havia uma movimentação retorcida de árvores, de ondas de mar, de animais noturnos, de clarões de luz amarela. Abriu os olhos e viu apenas a mancha azul a sua frente. Um mundo todo igual, pensou. Fechou os olhos. Esperou. Nenhuma bala estourando seus miolos. Abriu os olhos e distinguiu por cima do azul uma mancha marrom jogada na beira do rio, entre as pedras. Era como se Zé Lara tivesse caído de costas, pernas e braços abertos, e, no meio do azul, houvesse manchas pretas, marrons, cinzas, e uma mancha vermelha que descia em seu rosto. Índio se deitou de costas e agora sim o mundo era azul, cinza, amarelo. O sinal. Era isso? perguntou Índio, vendo o azul mover-se, juntar-se ao amarelo, ao verde, ao vermelho e formar o rosto de Isabel, logo alí onde o mar agitava a copa das árvores. Como seriam as ondas do mar? Sorriu.

 

NEVES SALDANHA plantou-se no centro da pequena sala onde os homens se comprimiam, examinou para os lados. Perguntou:

— Onde está o doutor Miguel?

Miguel estava atrás dele.

— Eu estou aqui, doutor.

Tirou o chapéu de palha, ajeitou o cabelo ralo e colocou os óculos.

— Já nos vimos no aeroporto. Eu ouvi o senhor dizer que ia resolver esta majorca em um minuto.

— Me perdoe a expressão, disse Neves Saldanha, recuperando-se do susto, mas é isso mesmo que eu vim fazer. É preciso acabar com esta baderna de uma vez.

— Acontece que isso não é baderna, doutor. O povo daqui chama isso de revolução. É uma coisa séria. Como o senhor sabe, seu avião já foi mandado embora e eu devo lhe comunicar que o senhor está preso.

— Eu suponho que o senhor saiba o que está fazendo.

— Todos nós sabemos. O senhor só sairá daqui quando as reivindicações dos colonos forem atendidas.

— Pois bem — sem se abalar, Neves Saldanha abriu o paletó, retirou uma elegante cigarreira do bolso interno: Vamos conversar aqui mesmo?

— Aqui mesmo. As pessoas que estão nesta sala formam a comissão que comanda o movimento.

Neves Saldanha bateu o cigarro demoradamente contra a cigarreira. Colocou-o na boca e riscou o isqueiro.

— Pois vamos conversar, disse.

Lá fora os colonos não paravam de gritar. Ora gritos isolados — morra Lupión! — ora uma gritaria na qual não se podia distinguir o que era dito. Zé Miro foi até a janela, abriu os braços e pediu silêncio à multidão. O berreiro aumentou ainda mais.

Neves Saldanha, impassível, disse:

— Vim aqui para resolver, em nome do governador, esta situação de um modo definitivo. Não é a primeira vez que faço isso. Como o senhor sabe, já estive em Barracão e Santo Antônio em missão semelhante, faz menos de um mês. E não houve o que não se resolvesse.

— Sinto muito, disse Miguel, mas a situação agora é diferente. Neste momento o sudoeste está nas mãos dos colonos. Por isso nós queremos uma solução definitiva.

— É isso mesmo, secundou Zé Miro.

Os homens resmungaram uma aprovação às palavras de Miguel.

— Muito bem, disse Neves Saldanha. O que os senhores querem?

Deonísio Possenti se adiantou:

— De primeiro a gente quer que todo mundo saiba, pelos jornais, o que aconteceu no sudoeste. Isso aqui virou um banditismo só. Uma terra de ninguém onde o que vale é um revólver na mão, tudo acobertado pela polícia e por gente que devia respeitar o cargo que ocupa.

— Bom, fez Neves Saldanha, os jornais não estão proibidos de noticiar nada. Aliás, é o que têm feito, de forma distorcida, segundo me parece.

— Mas agora a gente não quer mais desmentidos do governo. Queremos que o senhor reconheça que a situação é de revolução. Que os crimes existem e que não há tranqüilidade na região.

Neves Saldanha balançou a cabeça:

— Eu não vou reconhecer revolução nenhuma — olhou em volta e completou: No máximo posso me dispor a ouvir o relato que os senhores têm a fazer sobre os tais crimes.

— Pois vai ouvir muito, disse Zé Miro.

— Está bem, e o que mais? perguntou Neves Saldanha.

Miguel abriu a mão na frente do Chefe de Polícia e foi enumerando nos dedos:

— Substituição do delegado de polícia, do juiz e do promotor. Os colonos vão continuar armados e cuidando da cidade, por isso não precisamos de policiais por aqui. Queremos anistia geral e que as companhias sejam expulsas da região, juntamente com os jagunços.

Neves Saldanha foi duro:

— Eu não sei se os senhores podem pedir tanto.

Miguel não respondeu. No silêncio que se fez, aumentou o berreiro que vinha da rua. Ao pé da escada, a porta se abriu e foi um custo ser fechada novamente. Miguel continuou calado, olhando Neves Saldanha nos olhos, deixando que os gritos da multidão tomassem conta da sala.

— Podemos, sim, doutor. E além dos colonos que estão lá fora, além do sudoeste estar todo em armas, o senhor sabe que o Paraná corre o risco de intervenção. Há uns oito mil homens do exército em Porto União, prontos para entrar na região. Se não chegarmos a um acordo, o Lupión não fica no palácio nem mais um dia.

Neves Saldanha terminou de fumar o cigarro, procurou um cinzeiro, não achou. Aflito, encarou Miguel.

— Jogue no chão, disse Miguel.

Jogou o cigarro no chão, esmagando-o com o sapato, no qual Nego Berto admirou o brilho do verniz.

— Pois bem, fez Neves Saldanha. Aceito, mas devo consultar o governador. E tem uma condição. O senhor será nomeado Delegado Especial e ficará responsável pela ordem na região.

— Não há necessidade disso, disse Miguel. A região não corre risco de desordem. Desordem havia antes. Isso aqui é tudo gente ordeira e boa.

— Sei, fez Neves Saldanha. Mas o senhor é o único que pode governar a cidade neste momento.

Miguel olhou para os companheiros. Sentiu que aprovavam com gestos de cabeça. Amanda se opôs:

— Esse povo não vai aceitar.

— Vai, minha senhora, disse Neves Saldanha.

— E como tu ficas, Miguel, sendo nomeado pelo Lupión?

Deonísio Possenti pediu licença:

— Não vai ser nomeado pelo Lupión, dona Amanda. Vai ser nomeado pela gente.

Neves Saldanha apontou a janela:

— Acho que o senhor poderia falar daqui.

Miguel abriu a janela. Só então teve uma idéia completa da multidão que se juntara diante da rádio. Compacta, espetada pelas armas e pela mesma bandeira do Brasil. Miguel respirou fundo e o suor grudou a camisa em seu corpo. Achou melhor falar de forma quase telegráfica. Disse que o Chefe de Polícia alí presente reconhecia a situação de revolução em que estava o sudoeste e que aceitara todas as condições, só faltando falar com o governador. A multidão gritou e agitou as armas. Miguel ergueu os braços. O delegado, o juiz e o promotor seriam demitidos. Novos aplausos e gritos. As companhias sairão da região para não mais voltar, juntamente com os jagunços, que seriam levados para fora do sudoeste. As paredes de madeira da Rádio Colméia vibraram. Para garantia, continuou Miguel, eu fui nomeado Delegado Especial de Beltrão até que estas exigências sejam atendidas. Por alguns segundos a multidão ficou paralisada e, logo em seguida, explodiu em gritos e vivas. Miguel acenou com o braço direito e sentiu que estava respirando aos solavancos.

Na sala, os colonos se abraçavam. Zé Miro sorria erguendo os braços de Deonísio Possenti. Só Neves Saldanha continuava imóvel e solene, guardando o sorriso superior nos lábios, sem trair derrota. Amanda veio abraçar Miguel e lhe disse aos ouvidos:

— Ainda bem que eu estava enganada.

E ele:

— Que suador!

Desceram as escadas formando um cordão de proteção em torno de Neves Saldanha, que no entanto caminhou com a mesma elegância através da praça. Entraram no jipe e foram ao quartel do exército, no outro lado do rio. De lá passaram um radiograma que Zé Miro e Miguel foram rabiscando numa carteira de cigarros, aos solavancos do jipe. Quando chegaram, Zé Miro passou o texto a Neves Saldanha. Sem discutir, autorizou a transmissão:

 

POR IMPOSIÇÃO DOS POSSEIROS DE FRANCISCO BELTRÃO O DR MIGUEL ALVES PEREIRA DEVERÁ SER NOMEADO DELEGADO ESPECIAL DESTA CIDADE PT AS COMPANHIAS DEVEM SER RETIRADAS DA REGIÃO IMEDIATAMENTE VG ASSUMINDO O GOVERNO DO ESTADO O COMPROMISSO DE QUE NÃO RETORNARÃO PT DEVEM SER DEMITIDOS O PROMOTOR E O JUIZ DESTA COMARCA PT SAUDAÇÕES LUIZ NEVES SALDANHA CHEFE DE POLÍCIA.

 

Esperaram meia hora, tempo durante o qual não trocaram uma só palavra. Então veio a resposta. O governador aceitava todas as condições.

 

                   CANTÍDIO ROSSI ESCREVIA:

"O subtenente que naquele momento respondia pela delegacia de Santo Antônio, não conseguiu impedir a entrada dos colonos. Momentos após, chegou, vindo de Curitiba, o dr. Marcondes Lessa, delegado especial, que disse não aceitar a entrega da delegacia aos revoltosos. Os colonos lhe deram voz de prisão e o dr. Marcondes ordenou que seus homens atirassem. Ao término da fuzilaria, seis pessoas estavam feridas com gravidade, entre elas o dr. Marcondes, que foi transportado de imediato para Barracão. Estava decidida a tomada da cidade."

Rossi repousou as mãos ao lado da máquina de escrever, olhou para o maço de cigarros, resistiu ao impulso, e só então observou que o fotógrafo, sentado na cama a seu lado, acompanhava o que escrevia.

— Acabou?

Cantídio ergueu os ombros.

— Quem sabe?!

Américo lhe entregou um envelope.

— Aqui estão as fotos.

Cantídio, resistindo ainda ao impulso de apanhar mais um cigarro, retirou as fotos do envelope. Um colono, que lembrava ter visto em Beltrão, erguia uma bandeira do Brasil. Tinha um queixo duro, pontudo, e os olhos muito próximos do nariz avantajado. Noutras fotos viu um mar de gente apinhando várias praças. As caras pareciam as mesmas, as casas eram quase iguais, as praças girando em torno da mesma igreja. Outras fotos registravam a prisão de Maringá. Depois eram caminhões cheios de colonos, grupos em marcha, gente de braços erguidos. Um último conjunto de fotos flagravam a retirada dos jagunços: sob a proteção do exército, foi formado um comboio de mais de vinte veículos — jipes, caminhões, camionetes. O cortejo, que Rossi e o fotógrafo haviam acompanhado, rumara na direção de Pato Branco. Alguns jagunços iam de pé sobre as carrocerias e fugiam do olhar da câmara.

Rossi não resistiu. Apanhou um cigarro. Mas não o acendeu. Voltou a escrever:

"Se neste momento reina a paz no sudoeste, ainda não foram..."

O olhar de Rossi foi atraído por uma foto. Colocou-a em cima da máquina e, derrotado, acendeu o cigarro.

— O que é isso? perguntou.

Américo debruçou-se sobre a foto.

— Isso, o quê?

O dedo de Rossi apontou o fundo de uma foto. No primeiro plano, uma fila de uns cem homens caminhava rua abaixo. E, lá atrás, atravessando o campo aberto, descobriram o recorte de uma mancha negra surgindo contra as árvores. Alguém a cavalo. Mas o cavaleiro parecia dobrado para a frente, quase deitado sobre o animal. Alguém caminhava a dois passos, segurando as rédeas. Era uma imagem nublada, mas os olhos treinados do fotógrafo apostaram que a figura que caminhava era uma mulher.

— Esquisito! disse Rossi.

E voltou à máquina de escrever.

 

LAURA ESCUTOU o ronco agoniado do pequeno caminhão que jogava duas setas de luz sobre a estrada. No carroceria havia muitos homens. Estavam de pé, encostados uns nos outros, e pareciam voltar de uma festa. Alguns cantavam. Outros davam gritos de quando em quando. Riam sem parar. O caminhão embicou sobre o mata-burro e freou. Chegamos, disse alguém. Ela viu a figura grande e desajeitada de Elpídio Bello se apoiar em um homem, colocar o pé direito sobre a carroceria e saltar. Os homens gritaram. Elpídio virou-se para eles e acenou, retirando o chapéu. Os fachos de luz recuaram, fizeram uma volta completa e retornaram à estrada.

Elpídio parou ao lado do pontilhão, acenando. Depois recolocou o chapéu e se virou na direção da casa. Deve ter sido neste momento que viu Laura parada junto à porta. Ela quis correr para abraçá-lo, mas, conhecendo o marido que tinha, resolveu esperar — será que aceitaria que pulasse em seu pescoço? Laura ergueu a mão e acenou, tentando descobrir, pela resposta do marido, o que deveria fazer. Ele caminhava como se nada tivesse acontecido, sem responder ao aceno. Quando chegou a uns três metros, retirou o chapéu, abriu os braços e veio abraçá-la. Laura não fez qualquer pressão contra o corpo de Elpídio, deixando que a envolvesse como estava fazendo: sem força, lentamente. Ficaram parados junto à porta. Elpídio segurou o rosto de Laura, virou-o na direção do seu e lhe deu um beijo. Sentiu o rosto molhado do marido. De seus olhos também escorriam lágrimas. Perguntou:

— Como foi?

— Acabou.

— Acabou?

Pegou Laura no colo e entrou em casa. Foram até o quarto, onde Elpídio parou ao lado do berço do filho. Debruçou-se sobre a criança e lhe deu um beijo. Depois retomou Laura no colo e levou-a até a cama. Deitaram-se.

— Eu estou todo sujo, disse, rindo.

— Não faz mal.

Jogou as roupas sujas de lama no chão, apanhou uma toalha, molhou-a na bacia e esfregou o corpo.

— Está bom, fez ela.

Deitou-se. Havia, porém, muita coisa a vencer. Sentia a cabeça pesada, o corpo exausto, e não parava de pensar no que acontecera. Despiu Laura lentamente, beijando cada parte de seu corpo que deixava sem roupa. Pensou naquela mulher correndo pelo mato, surgindo de repente no pasto aberto. Foi como se um vento forte estourasse na sua cara. A mulher de Zé Lara, pensou, se escondendo. Vinha em correria e estava descontrolada. O vestido vermelho ardia ao sol e ele não conseguiu pensar em mais nada, deitando-se sobre o corpo de Laura, sentindo a maciez de seu corpo, a pele branca, doce, que beijou, sugou, agradeceu a Deus.

— Calma, disse ela, calma.

Aquela mulher não estava sozinha. Alí por perto, por detrás da primeira cortina de pinheiros, estariam os jagunços. Mas por que corria? Foi quando Elpídio escutou três tiros. O mato em volta se agitou e um bando de tirivas disparou do alto das árvores, sumindo no céu. A mulher correu na direção dos tiros e ele viu o olhar de pavor que lançou para trás, denunciando o homem que a perseguia. Sergipe, pensou Elpídio.

— O quê? perguntou Laura.

— Nada.

— Calma, calma.

Nunca mais deixar aquele corpo, nunca mais se afastar do filho, nunca mais sair daquelas terras em que Eleutério vivera. Sentiu o cheiro quente dos cabelos de Laura, colocou a perna esquerda entre as pernas dela, correu a mão em seus seios. O jagunço Sergipe abriu o mato com as mãos, achou o vestido vermelho sumindo pinhal adentro. Gritou:

— Isabel, pare!

E veio correndo, quase na direção de Elpídio, que contornou algumas árvores e jogou-se no chão. Sergipe gritava pela mulher e não viu quando Elpídio golpeou suas pernas com a coronha da winchester. Soltou um berro e caiu enroscado no chão.

— Tu estás suando, disse Laura.

Rolou na cama, esticou o braço, apanhou a toalha que jogara no chão. Entregou-a a Laura, que enxugou seu corpo.

— Me conta o que aconteceu, Elpídio.

Sorriu. Já não havia o que temer, pensou. Agora poderia pensar no irmão sem sofrimento, como se pensa numa lembrança antiga, boa, divertida. Eleutério tocando sanfona, girando pelo salão feito alucinado, beliscando a bunda das mulheres. Nunca entendera como o irmão podia fazer aquilo. Se outro homem beliscasse a bunda de alguma mulher, casada ou solteira, levaria um tabefe, senão um tiro. Já Eleutério fazia isso com um jeito tão natural que todo mundo ria e achava engraçado. As mulheres davam um pulo, cobriam a bunda com as mãos e riam. Mas o jagunço não riu. A cara retorcida de dor, as mãos segurando as canelas, virou os olhos aterrorizados na direção de Elpídio Bello.

— Desgraçado! gritou.

Elpídio apontou a espingarda para o peito do jagunço:

— Tu me conhece?

Sergipe abriu bem os olhos.

— Elpídio Bello.

O jagunço pareceu não entender. Ficou retorcendo a cara e esfregando as canelas. Mas algo mais forte do que a dor fez com que parasse o olhar.

O tiro da winchester explodiu a cabeça de Sergipe.

— Está mais calmo?

Laura deitou-se sobre ele, afagou seu rosto, tentou limpar uma mecha de cabelo grudada pelo barro.

— Estou.

Encostou o rosto na testa de Elpídio Bello:

— Seu cabeçudo!

Ele riu e sentiu sono. Os homens no caminhão fazendo farra, as pessoas rindo nas ruas. E aquele sujeito que não parava de correr de um lado para outro com a bandeira do Brasil. Fez com que Laura deitasse em seus ombros e fechou os olhos. Ficou olhando o corpo de Sergipe, o estrago que a bala fizera em sua cabeça. Largou a winchester no chão. Olhou pela última vez o corpo do jagunço. Caminhou até o rio e lavou os braços, o rosto. Ficou um tempo observando a água rolar sobre as pedras. Estava ficando escuro e sentiu o cansaço. Chegou ao pasto, olhou os pinheiros, à esquerda, viu as luzes da cidade à direita. Um rastro amarelo queimava o capim na direção do sol. Elpídio sentiu que levaria muito tempo para alcançar a cidade, as suas pernas não ajudavam. Mesmo assim avançou, passo a passo, a bota afundando no terreno enlameado e fofo. Várias vezes parou, sentou-se no chão ou num tronco, recuperou as forças. Estava exausto. Era como se só agora, desde que chegara ao sudoeste, sentisse o cansaço, desabando sob seu peso. Quando estava a uns dez metros da ponte sobre o rio Marrecas, encontrou um grupo de colonos que vinha do quartel do exército. Eles se assustaram com seu estado, vieram lhe dizer que enfim havia chegado a ordem para que o exército prendesse os jagunços. Ele riu e alguém disse que, per la Madona, era a primeira vez que via Elpídio Bello sorrir.

— Vamos? convidaram os homens.

Elpídio assentiu com um movimento de cabeça e olhou pela última vez na direção do mato onde estava o corpo de Sergipe. Os homens acompanharam seu olhar e viram uma sombra se movendo na escuridão, junto às árvores. Parecia gente, mas parecia também um animal. A sombra saiu de perto das árvores e caminhou contra o sol. Era um homem a cavalo e uma mulher que puxava o animal pelas rédeas. O homem estava deitado sobre o dorso do animal e seu corpo oscilava. A mulher, vestida de vermelho, olhava para a frente como se caminhasse sem rumo. Atravessaram o pasto, alcançaram a estrada e vieram na direção dos homens, que engatilharam as armas. A mulher avançou como se não houvesse ninguém a sua frente.

— Alto! fez um dos homens.

Pararam. O cavaleiro ergueu o corpo e girou a cabeça na direção dos homens. Abaixo da aba do chapéu negro dois olhos vazados tentavam se agarrar aos restos amarelos do sol.

 

                                                                                Roberto Gomes  

 

                      

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