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OS DOIS PATETAS / Condessa de Ségur
OS DOIS PATETAS / Condessa de Ségur

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

OS DOIS PATETAS

 

Paris... Paris...

A senhora e o senhor Gargilier estavam sós no salão; os seus filhos, Simplícia e Inocêncio, tinham acabado de os deixar para se irem deitar. O Sr. Gargilier tinha um ar impaciente e Sr. a Gargilier estava triste e silenciosa.

- Sabes, querida - disse o Sr. Gargilier -, está-me a parecer que vou dar uma lição, talvez cruel mas necessária, à palerma da Simplícia e ao idiota do Inocêncio.

- O quê? Que queres fazer? - perguntou a Sr. a Gargilier, assustada.

- Muito simplesmente satisfazer o desejo que eles têm de ir passar o Inverno a Paris.

- Mas tu sabes que as nossas posses não nos permitem tão grande despesa; além disso, a tua presença aqui é indispensável para dirigir os trabalhos da quinta, as plantações...

- Mas eu conto ficar aqui contigo.

- Então como podem ir as crianças?

-Mando-os com a Prudência, que é uma criada boa e fiel. Simplícia vai para casa de minha irmã, a quem pedirei para a ter lá, pagando-lhe a pensão de ambos, porque ela não é rica para poder com essa despesa. Quanto ao Inocêncio, mando-o para um colégio de que me falaram, onde há uma disciplina séria e onde ele perderá o gosto pelos uniformes, que lhe põem a cabeça à roda.

- Mas, meu amigo, a tua irmã tem um carácter tão violento, tão arrebatado; possui ideias tão esquisitas que a Simplícia vai sentir-se muito infeliz junto dela.

- É precisamente o que eu quero: vai aprender a apreciar a vida calma que leva junto de nós e terá assim o castigo dos despeitos, das choradeiras e das zangas com que nos aborrece constantemente.

- E o pobre Inocêncio, que vida não lhe farão ter nesse tal colégio?

- Será óptima. Ele é que faz com que a irmã nos apoquente para os deixarmos ir a Paris e merece ser castigado. Para essa escola costumam ir os rapazes difíceis. Dar-lhe-ão uma vida dura e isso é o que eu quero. Quando estiver farto, tratará de nos escrever para o irmos buscar.

- E Prudência? É muito boa, muito dedicada, mas nunca saiu do campo e tenho medo de que se atrapalhe ao ir para Paris.

- Não tem nada que se atrapalhar. O condutor conhece-a e leva-a, com os pequenos, até ao combóio; depois são três horas de viagem e a minha irmã espera-os na estação e leva-os para casa.

A Sr. a Gargilier procurou ainda dissuadir o marido daquele projecto que a assustava, mas ele teimou, dizendo que já não podia suportar o aborrecimento e a irritação que lhe provocavam as lágrimas e os caprichos de Simplícia e de Inocêncio. Nessa mesma noite falou a Prudência, recomendando-lhe que, por enquanto, nada dissesse às crianças. Ela ficou muito contrariada por ter que deixar os patrões, mas ao mesmo tempo lisonjeada pela confiança que lhe testemunhavam. Detestava Paris, sem conhecer a cidade, e contava que as crianças depressa se aborrecessem e que a ausência não seria longa.

Alguns dias depois, Simplícia limpava, pela vigésima vez os olhos vermelhos e inchados. A mãe, que a olhava de quando em quando com ar descontente, encolheu os ombros e disse-lhe com frieza:

- Vamos, Simplícia, acaba com a choradeira; que aborrecimento! Já te disse que não queria ir passar o Inverno a Paris e não vou.

SIMPLÍCIA - Por isso é que eu choro. Imagina que é divertido para mim, que tenho quase doze anos, passar o Inverno na província, onde só há neve e lama?

SRa GARGILIER - Julgas que em Paris não há neve nem lama?

SIMPLÍCIA - Com certeza que não há; as meninas que eu conheço disseram-me que varrem as ruas todos os dias.

SRa GARGILIER - Bem podem varrer! A neve cai e a lama volta, como acontece nas estradas.

SIMPLÍCIA - Tanto me faz; quero ir para Paris.

SRa GARGILIER - Não sou eu que te levo, minha querida.

Simplícia recomeçou a derramar lágrimas amargas; depois também a soltar gritinhos agudos, que enervaram a mãe e chamaram a atenção do pai, que estava entretido a ler no quarto pegado.

  1. GARGILIER (impaciente) - Então! Que aconteceu? A Simplícia a chorar e a gritar!
  2. A GARGILIER - Sempre a mesma cantiga: Quero ir para Paris!
  3. GARGILIER-Ora a palerma! Fazes como o teu irmão, que já não me serve para nada. Sua Excelência meteu na cabeça a ideia de ir para um colégio em Paris e já não trabalha nem faz nada.

SR A GARGILIER - Ficava bem arranjado se fosse para o colégio. Mal alimentado, com uma cama dura, cheio de trabalho, com os professores a ralharem-lhe e os colegas a atormentá-lo, a sofrer com o frio no Inverno e com o calor no Verão; havia de ser uma vida muito agradável para Inocêncio, que é preguiçoso, comilão e rebelde. Ah! Lá vem ele com uma cara de palmo e meio.

Inocêncio entra sem olhar para ninguém. Senta-se junto de Simplícia. Estão ambos amuados com os olhos no chão.

SR A GARGILIER - Que tens, Inocêncio? Porque é que estás amuado?

INOCÊNCIO - Quero ir para Paris!

  1. GARGILIER - Todo o dia o mesmo estribilho: Quero ir para Paris... , Ah! Queres ir para Paris? Pois bem, meu rapaz, vais para Paris, ficas lá e hás-de ser feliz como nunca.

- E eu, e eu? - exclamou Simplícia, saltando da cadeira e correndo em direcção ao pai.

-Tu, pateta?... Também merecias ir para lá, para te castigar dessa aborrecida teimosia.

-Eu quero ir com o Inocêncio! Não quero ficar aqui, só, aborrecida.

-És palerma, filha! Mas, se queres, seja! Pensa bem antes de aceitares o que te proponho. Vou escre ver à tua tia, a Sr. a Bonbeck, pedindo para te receber em sua casa até ao Verão e, desde que lá estejas, ficas, mesmo que te lamentes e arrependas.

- Aceito, aceito - gritou, alegremente, Simplícia. SR a GARGILIER - Tu nunca viste a tua tia, mas sabes que ela tem mau génio, que não suporta que a contradigam.

- Sei, sei: aceito - apressou-se a dizer Simplícia. O pai olhou para Inocêncio e Simplícia, cuja alegria era visível; encolheu os ombros e saiu, seguido pela mulher.

As crianças ficaram um pouco silenciosas, entreolhando-se com um sorriso de triunfo. Assim que ficaram certos de estar sós, de que ninguém podia ouvi-los, deram largas á sua satisfação com bater de palmas, gritos de alegria e cabriolas extravagantes.

INOCÊNCIO - Eu bem te disse que os havíamos de convencer à força de tristeza e de lágrimas. Sei muito bem levar o papá e a mamã. Aborrecendo-os, consegue-se tudo.

SIMPLíCIA - Já era tempo que isto acabasse: não podia mais! É tão maçador estar sempre a amuar e a choramingar! E depois eu via que isto desgostava a mamã e começava a ter remorsos.

INOCÊNCIO - És estúpida! Remorsos de quê? Há algum mal em querer conhecer Paris? Toda a gente lá vai; cá da terra só nós é que nunca lá fomos!

SIMPLÍCIA - É verdade, mas o papá e a mamã vão ficar sós todo o Inverno, o que é triste.

INOCÊNCIO - A culpa é deles; porque não vão levar-nos a Paris? No outro dia, bem ouviste: a Camila, a Madalena, as amigas, os primos e as primas vão todos para Paris.

SIMPLÍCIA - Dizem que a tia não é muito boa; não deve ser condescendente como a mamã.

INOCÊNCIO - Que tem isso? Tu tens doze anos; precisas que tratem de ti como se fosses criança?

SIMPLÍCIA - Não, mas...

INOCÊNCIO -... mas, quê? Não vamos agora mudar de ideias! Já que o papá se decidiu, deixemo-lo à vontade.

SIMPLÍCIA - Oh! Não mudo de ideias, fica descansado. Simplesmente gostava mais que a mamã fosse connosco.

E as crianças dirigiram-se para o seu quarto, a fim de iniciarem os preparativos para a partida. Simplícia não se sentia tão contente como esperava; a sua consciência reprovava-lhe o abandono dos pais. Inocêncio, por seu lado, também não estava tão satisfeito como parecia; vinha- lhe à lembrança o que a mãe dissera acerca da vida no colégio e temia que aquilo fosse em parte verdade. Mas teria lá colegas, amigos. Além de que ia ver Paris, o que lhe parecia ser uma felicidade sem par.

Não se atreveram a falar novamente no assunto diante dos pais que, por sua vez, também nada disseram.

- Ter-se-iam esquecido? - disse um dia Simplícia. -Naturalmente quiseram fazer-nos calar - res pondeu Inocêncio.

- Que havemos de fazer?

- Esperar, e se dentro de dois dias não nos dizem nada, recomeçamos a chorar e a zangarmo-nos.

- Oxalá digam qualquer coisa: é tão aborrecido andar a chorar!

Passaram-se mais dois dias e não lhes diziam nada. O Sr. Gargilier olhava-os com um sorriso de troça. A Sr. a Gargilier parecia descontente e triste.

No terceiro dia, ao irem para a mesa à hora do almoço, Inocêncio disse em voz baixa à Simplícia:

- Começa: é tempo.

SIMPLÍCIA - E tu?

INOCÊNCIO - Eu também. Vou amuar. Não comas.

O pai e a mãe começam a refeição; as crianças não comem, têm os olhos fixos no prato, o beiço estendido e as narinas muito abertas.

PAI - Então, comam, que está a arrefecer. Não responderam.

PAI - Não ouvem? Estou-lhes a dizer que comam. INOCÊNCIO - Não tenho fome.

SIMPLÍCIA - Não tenho fome.

PAI - Então vão ter dores no estômago, grandes patetas.

INOCÊNCIO - Tenho um grande desgosto e não posso comer.

SIMPLÍCIA - Só posso comer quando tiver a certeza de que vou para Paris.

PAI - Então podem comer tudo que está na mesa, porque partem depois de amanhã. Escrevi à tia, que concorda em os receber. Vão com a Prudência e ficam lá todo o Inverno, a Primavera e uma parte do Verão. A vossa tia manda-vos nas férias do ano que vem.

Simplícia e Inocêncio esperavam tão pouco esta novidade, que ficaram mudos de espanto, de boca aberta, olhos esbugalhados e não sabendo como passar do amuo para a alegria.

- E vão-nos ver a Paris? - perguntou, enfim, Simplícia.

PAI - Nunca! Para quê? Deslocarmo-nos e gastarmos dinheiro por causa de umas crianças que pedem para nos deixar? Havemos de passar sem vocês, como vocês passam sem nós, pois então!

SIMPLÍCIA - Mas... escrevem-nos muitas vezes?

PAI - Responderemos quando nos escreverem e quando for necessário.

Simplícia contentou-se com esta garantia e começou a compensar o tempo perdido, comendo de tudo que estava na mesa. Inocêncio queria interrogar os pais a respeito do colégio, do uniforme, mas o ar triste da mãe e a expressão serena do pai forçaram-no a estar calado; fez como a irmã, e pôs-se a comer.

Quando se levantaram da mesa, os pais retiraram-se, deixando as crianças sós. Em vez de se entregarem a uma alegria louca como da primeira vez que lhe anunciaram a viagem, ficaram silenciosos, quase tristes.

Não estás com um ar muito contente - disse Inocêncio à irmã.

- Estou satisfeitíssima - respondeu Simplícia, com voz lúgubre - mas...

... mas o quê?

- Mas... também estás com uma cara tão séria, que já não sei se devo estar contente ou aborrecida.

- Estou muito contente, garanto-te - replicou tris temente Inocêncio. - É uma grande felicidade para nós: vamos-nos divertir muito.

SIMPLÍCIA - Dizes isso de uma forma! Parece que estás inquieto ou triste.

INOCÊNCIO - Mas afirmo-te que estou alegre. A tua cara de parva é que me aborrece.

SIMPLíCIA - Se visses a tua, aborrecias-te só de olhar para ela.

INOCÊNCIO - Deixa-me sossegado; a minha cara é

cem vezes melhor que a tua.

SIMPLÍCIA - É bonita a tua cara? Uns olhos verdes tão pequeninos! Um nariz delgado que parece uma faca e aguçado que nem uma agulha, uma boca sem lábios, um queixo que parece um espeto, as bochechas tão encovadas, os cabelos encarapinhados, orelhas de burro, um pescoço comprido, os ombros...

INOCÊNCIO -... Ora, ora, ora... É de inveja que tu falas, tu que tens uns olhos pretos, insignificantes, um nariz que parece uma corneta, uma boca com beiços grossos, cabelos ásperos e besuntados, orelhas achatadas, ombros sem pescoço, toda muito gorda. Vais fazer um sucesso em Paris, garanto-te, mas não como imaginas!

Simplícia ia ripostar, quando a porta se abriu e o Sr. Gargilier entrou com um alfaiate que trazia fatos novos e um uniforme do colégio para Inocêncio. Fize ram-se as provas; estavam muito bons... para o campo. Supondo que ele cresceria e engordaria, o Sr. Gargilier encomendara um casaco muito comprido e muito largo; as mangas iam até à ponta dos dedos; cabia um braço debaixo do colete abotoado. As calças chegavam aos calcanhares e flutuavam como saias à volta de cada perna; Inocêncio julgava-se soberbo, Simplícia estava radiante, o Sr. Gargilier satisfeito e o alfaiate orgulhoso com o seu trabalho. Todos os fatos tinham sido feitos com a mesma previsão e permitiam ao Inocêncio crescer meio metro e engordar cinquenta quilos.           

Simplícia, foi por sua vez, chamada a provar os vestidos que a criada lhe fizera de vestidos antigos da Sra Gargilier. Um era de seda cor de laranja e vermelho; outro de popelina com quadrados verdes, azuis, cor-de-rosa, violetas e amarelos: as cores do arco-íris estavam lá todas; outros dois, menos formosos, serviriam para de manhã. Eram todos um pouco antiquados e esfiados, mas tinham feito sucesso no seu tempo, e Simplícia, acostumada a olhá-los com admiração, sentiu-se feliz e orgulhosa pelo sacrifício que fazia sua mãe; na sua alegria, esqueceu-se de agradecer e correu a mostrar-se ao irmão, que não podia decidir-se a tirar o uniforme.

Passearam muito tempo no salão de um lado para o outro, olhando-se com orgulho e imaginando êxitos extraordinários em Paris.

SIMPLíCIA - Os teus colegas não se atrevem a implicar contigo, com esse fato tão bonito.

INOCÊNCIO - Também me parece! Não é como os fatos acanhados que eles usam! Nos meus não se poupou fazenda: impõem respeito, garanto-te!

SIMPLÍCIA - E eu? Quando as outras meninas me virem: Camila, Madalena, Isabel, Valentina, Henriqueta e as outras? Elas não têm nada tão bonito, com certeza.

INOCÊNCIO - Vão rebentar de inveja...

SIMPLÍCIA - Tanto mais que já não se encontram fazendas como estas, segundo disse a mamã.

INOCÊNCIO - Com que respeito nos vão tratar quando nos virem tão bem vestidos!

SIMPLÍCIA - Já não precisamos de amuar, não é verdade?

INOCÊNCIO - Não, não; pelo contrário, temos de estar alegres e amáveis.

A conversa foi interrompida por Prudência, que vinha buscar os fatos novos para os arrumar nas malas; Inocêncio e Simplícia despiram-se com desgosto e foram ajudar a mãe e a criada nos preparativos da partida, que devia efectuar-se dois dias depois.

 

A partida

Estes últimos dias passaram-se lenta e tristemente; o Sr. Gargilier quase lamentava ter decidido dar aquela lição de aborrecimento e decepção que os filhos tanto mereciam. A Sr. a Gargilier afligia-se e inquietava-se com esta longa separação em que consentira com pena; as próprias crianças começavam a antever que as suas esperanças de felicidade poderiam muito bem não se realizar.

Soou enfim a hora da partida; a Sr. a Gargilier chorava e o Sr. Gargilier estava muito comovido. Simplícia não podia reter as lágrimas e quase desejava não partir; Inocêncio procurava esconder a sua comoção e troçava das lágrimas da irmã. Prudência parecia muito descontente.

-Vamos, menina, suba para o carro; temos de partir porque foi a menina que assim o quis!

- Adeus, Simplícia; adeus, minha filha - disse a mãe, beijando a filha mais uma vez.

Simplícia respondeu somente com um beijo meigo; temia não ter coragem para a deixar se se entregasse à sua ternura, e ela queria à viva força ver Paris.

Subiu para a carruagem, onde Inocêncio já se encontrava. Prudência sentou-se em frente deles; estava mal disposta e não o escondia.

PRUDÊNCIA - Bonito passeio que vamos dar! Nunca pensei que os meninos tivessem tão pouco coração para abandonarem assim o papá e a mamã!

INOCÊNCIO - Mas, Prudência, é para ir a Paris! PRUDÊNCIA - Paris... Paris... Quero lá saber de Paris! Uma porcaria de cidade que nunca mais acaba, onde a gente nunca se encontra e se aborrece imenso, onde há gente má e ladrões a cada canto...

INOCÊNCIO - Prudência, tu não conheces Paris, não podes falar.

PRUDÊNCIA - Ora! Então só se pode falar daquilo que se conhece? Eu não conheço Nosso Senhor e, apesar disso, falo dele como se o tivesse visto. Não era ele que ia apoquentar a sua mamã, a boa e santa Virgem, para ir a Paris!

INOCÊNCIO - Nosso Senhor foi a Jerusalém: era a Paris dos Judeus.

PRUDÊNCIA - Deixe-se disso! Não me convence nem que me esfole viva!... Ao menos a menina Simplícia tem melhor coração que o Sr. Inocêncio, porque está a chorar.

INOCÊNCIO - É porque é rapariga e as raparigas são mais choramingas que os rapazes.

PRUDÊNCIA - Palavra de honra: se é verdade, como se diz, que as lágrimas vêm do coração, isso prova que elas têm melhor coração.

Inocêncio encolheu os ombros, e não prosseguiu naquela discussão inútil. Simplícia acabou por enxugar os olhos; tentou consolar-se com a perspectiva de ir para Paris. Em breve chegaram à estação; os seus lugares estavam marcados. Prudência mandou transportar a mala para a diligência; era uma única para os três viajantes; Prudência não era rica em vestuário, Inocêncio só levava o seu enxoval e Simplícia possuía, além dos seus quatro lindos vestidos, dois outros de lã e poucos acessórios.

- Partida! Viajantes para Redon! - gritou o condutor. - Três lugares no interior para o Sr. Gargilier!

Os nossos três viajantes tomaram os seus lugares.

-Sr. Boginski, dois lugares! Sr. a Courtermiche, dois lugares! Sr. a Petitbeaudoit, um lugar!

Os viajantes iam subindo. Os lugares eram seis e foram-se amontoando neles as pessoas que eram chamadas; a Sr. a Courtermiche tomara dois lugares, para si e para o cão, um animal amarelo, feio e gordo, mau e mal cheiroso; ficou ao lado de Prudência que, ao ver-se empurrada, se chegou para o lado; o animal, bem instalado no assento, rosnou e mostrou os dentes; Prudência empurrou-o com força; o animal atirou-se a Prudência, que aguentou o ataque, dando-lhe um soco vigoroso; o cão pôs-se aos latidos dilacerantes. A Sr. a Courtermiche vingou o seu querido animalejo com gritos e injúrias. O condutor chegou e meteu a cabeça pela portinhola.

- Então o que há? - disse, aborrecido.

SR a COURTERMICHE - Há que esta senhora quer usurpar o lugar do meu pobre Pequerruchinho, que ela injuriou, empurrou, bateu e talvez até o ferisse.

PRUDÊNCIA - A diligência é para pessoas e não para cães; então eu tenho que aceitar a companhia de um bicho mau e mal cheiroso, lá porque lhe agrada tratá-lo como uma criatura humana?

CONDUTOR - Os cães têm de ir no tejadilho com as bagagens; dê-me o cão que eu ponho-o lá.

SR a COURTERMICHE - Não, não lhe dou o meu pobre Pequerruchinho, não o abandono, nem que tenha de ir lá para cima com ele.

- Mas, é uma ideia - disse o condutor, rindo. Vamos, minha senhora, dê-me o seu cão.

- Nunca! - disse altivamente a Sr. a Courtermiche.

CONDUTOR - Então suba com ele para o tejadilho.

SR a COURTERMICHE - Eu paguei os meus lugares no interior.

CONDUTOR - Restitui-se-lhe o dinheiro.

SR A COURTERMICHE - Então está bem, eu subo:  não abandono o Pequerruchinho.

A Sr. a Courtermiche desceu e preparou-se para subir, atrás do condutor, a escada que estava encostada à carruagem. No segundo degrau tropeçou, largou o cão que foi cair a ganir aos pés de um viajante, e teria também ela caído se não lhe acode um moço, que estava junto da escada, e o próprio condutor, que a agarrou por um braço.    

- Empurra - gritou o condutor -, empurra ou eu largo.

- Puxa - gritou o moço -, puxa ou eu caio com este fardo em cima.

O condutor bem puxava e o moço bem empurrava, mas a Sr. a Courtermiche não saía do mesmo degrau, chamando pelo seu Pequerruchinho com voz dilacerante.

- Aqui está o seu Pequerruchinho - disse um viajante, aborrecido com a cena. - Tome lá, condutor!

- acrescentou, agarrando o cão e atirando-o para o tejadilho.

O viajante calculou mal o balanço e o cão não chegou até ao alto da carruagem; foi cair no colo da dona que, com o choque, tombou para cima do moço. Foram os três parar acima de uns molhos de palha que, felizmente, estavam ali para serem carregados, arrastando na queda o condutor, que não pudera libertar o braço a que estava agarrada a Sr. a Courtermiche. A palha amorteceu o choque. O cão, debaixo da dona, redobrou os latidos, o moço asfixiava e gritava por socorro, o condutor não conseguia libertar-se do xale da Sr. a Courtermiche, das patas do cão e dos pontapés do moço. Os viajantes riam a bandeiras despregadas da triste posição das quatro vítimas. Enfim, com uma ajuda, umas palmadas no cão, uns empurrões nos senhores e um auxílio ao moço, todos se levantaram mais ou menos zangados.

- A senhora deseja que a ponha lá em cima?disse um dos viajantes.

- Quero usar dos meus direitos - respondeu ela com voz de trovão.

E, agarrando no Pequerruchinho, com os seus vigorosos braços atirou-se com mais agilidade do que era de esperar, para a portinhola da diligência, que ainda estava aberta. Com duas cotoveladas, reconquistou o seu lugar e o do Pequerruchinho e declarou que dali não arredava pé.

Os companheiros do interior queriam reclamar, mas os outros viajantes encontravam-se impacientes por partir e o condutor via que estava atrasado; sem escutar as lamentações de Prudência, da Sr. a Petitbeaudoit e dos dois polacos (isto é, Boginski e o companheiro), subiu para a almofada, fustigou os cavalos e a diligência partiu.

PRUDÊNCIA - Então sempre voltou com esse malvado bicho! Tome cuidado em que ele não me incomode nem aos meus patrões, e que não nos suje.

  1. a COURTERMICHE - A que é que chama malvado bicho?

PRUDÊNCIA - A isso que a senhora tem nos braços.

  1. COURTERMICHE - Bicho será a senhora!

PRUDÊNCIA - E malvada é a senhora!

- Minhas senhoras, por favor - disse a Sr. a Petitbeaudoit -, tenham calma e compaixão!

- Sim, minhas senhoras... - repetiu um dos polacos, com um sotaque muito pronunciado - deixem-nos em paz.

PRUDÊNCIA - Não pretendo outra coisa, contanto que o cão não se intrometa comigo, como tem feito.

UM POLACO - Eu prometer, se cão abrir boca, fazer calar eu.

PRUDÊNCIA - Com quê?

UM POLACO - Com punhal que matou russos em Ostrolenka.

OUTRO POLACO - E com braço que matou russos em Varshama.

  1. a COURTERMICHE - Oh, céus! Meu pobre Pequerruchinho. Desgraçados polacos: a França que vos recebe, a França que vos alimenta, a França que vos protege! Atrevem-se a dilacerar o coração de um filho da França?

OUTRO POLACO - Cães não ser filho de França; eu matar cão e não matar francês.

PRUDÊNCIA (rindo) - Ah! ah! ah! isso é o que eu quero; o cão que esteja quieto e não nos aborreça.

Inocêncio e Simplícia, sentados em frente de Prudência, da Sr. a Courtermiche e do cão, estavam mais assustados que divertidos com tudo o que acontecera, desde que se encontravam instalados na diligência. O cão metia-lhes muito medo e a sua dona ainda mais. Estavam encolhidos no seu canto, não tirando os olhos do Pequerruchinho, sempre pronto a mostrar e a utilizar os dentes. A Sr. a Courtermiche lançava-lhes olhares terríveis, assim como aos polacos, que ela tomava por assassinos, por estranguladores.

Levava o cão em cima dos joelhos; Prudência, sentindo-se mais à vontade, recuperou completamente a calma: fatigada com as noites perdidas nos preparativos da partida, adormeceu. Inocêncio e Simplícia fecharam também os olhos. O silêncio reinava neste interior ainda havia pouco tão agitado. Todos dormiram até à estação de posta: faltavam ainda duas horas de caminho.

Mas durante esta calma, este silêncio, só a Sr. a Cour termiche velava. O Pequerruchinho farejava as provisões contidas no cesto, que Prudência colocara no chão, entre as pernas; lutava com a dona para conseguir verificar o seu conteúdo. A Sr. a Courtermiche segurava-o com dificuldade enquanto houve um olho aberto capaz de denunciá-lo. Mas quando o sono invadiu todos os seus companheiros de viagem, não resistiu mais ao desejo do guloso e mimado animal e, pondo-o cuidadosamente junto do cesto, não só o deixou à vontade mas até o ajudou a roubar, afastando, sem fazer barulho, o papel que embrulhava a carne. O Pequerruchinho meteu o focinho no cesto, agarrou um grande naco de vitela e pôs-se a devorá-lo, com um apetite que fazia... gosto à sua dona, estúpida e piegas. Mal acabara o último bocado, a diligência parou e todos acordaram. Na estação de posta atrelaram outros cavalos e a carruagem tornou a partir.

- É quase meio-dia - disse Prudência -, são horas de almoçar. O Sr. Inocêncio e a menina Simplícia têm fome?

- Muita fome - responderam os dois.

- Então podemos almoçar e, se estes senhores polacos têm apetite, temos muito gosto em os convidar.

Os olhos dos polacos brilharam e as suas bocas abriram-se; os desgraçados não tinham comido nada desde a véspera, para poupar a bolsa e poder pagar um jantar em Mans. Prudência tomara-lhes amizade por causa das suas ameaças contra o cão e recebeu com prazer os agradecimentos pressurosos dos dois esfomeados.

Curvou-se, agarrou o cesto, achou-o leve e dirigiu imediatamente para o lado um olhar desconfiado.

- Mexeram no cesto! - gritou ela. - Roubaram a carne! Um naco de vitela que até parecia galinha, sem um nervo sequer e que pesava dois quilos!

Prudência tem uma expressão fulgurante de cólera e percorre com o olhar todos os companheiros de viagem: os polacos, desapontados, e a Sr. a Petitbeaudoit estupefacta, não lhe despertam suspeitas. O ar seráfico e calmo da Sr. a Courtermiche fá-la desconfiar. O Pequerruchinho tem o focinho besuntado e lambe-se constantemente; a barriga está nitidamente inchada. e vêem-se-lhe na testa e numa das orelhas pequenos fragmentos de papel engordurado.

- Aqui está o ladrão! - gritou Prudência. - Foi este maldito cão que comeu o nosso almoço, o nosso melhor bocado! E eu que o escolhi tão bem no talho e que o assei com tanto esmero! Senhores polacos, vinguem-nos!

Assim que Prudência pronunciou estas últimas palavras, e sem dar tempo à Sr. a Courtermiche de tremer com a vingança que já pressentia, os dois polacos, obedecendo ao mesmo sentimento, precipitaram-se para o cão e atiraram-no à estrada, pela janela que estava aberta.

A estupefacção da Sr. a Courtermiche deu tempo à diligência, que corria a galope, de percorrer um trajecto bastante longo antes que ela se refizesse da surpresa. Reinava um silêncio solene no interior da diligência; todos contemplavam a Sr. a Courtermiche e perguntavam a si próprios a que extremos poderia conduzir a sua cólera. A cara tornou-se- lhe roxa, começara agora a empalidecer, o lábio inferior tremia, as mãos crispavam-se-lhe. Procurava vingar-se em Prudência, do socorro que lhe fora prestado pelos polacos, mas não se atrevia a atacá-la directamente; a amizade desta pelos seus jovens patrões orientou- lhe a direcção do ataque. Soltou um grito selvagem e, atirando-se a Inocêncio, antes que alguém pudesse agarrá-la, aplicou-lhe uma

série de bofetadas e de socos. Ainda Prudência não tivera tempo de se interpor entre aquela mulher furiosa... e a sua vítima, já os polacos tinham aberto a portinhola das traseiras do carro e, aproveitando uma pequena paragem, agarraram na Sr. a Courtermiche e instalaram-na, um pouco à bruta, na estrada, para onde tinham atirado o seu Pequerruchinho. Enquanto a diligência se afastava, ainda viram, durante muito tempo, a Sr. a Courtermiche, primeiro sentada na estrada, e depois em pé, ameaçando com o punho fechado a carruagem, que ia fugindo rapidamente da sua vista. Prudência aprovou e agradeceu o acto dos polacos; a Sr. Petitbeaudoit censurou-os e disse-lhes que poderiam vir a ter dissabores; os polacos não lhe ligaram importância e pediram a Prudência para ver o que ainda restava do farnel. Aproveitaram os lugares que tinham ficado vagos para se porem à vontade e vasculharam o cesto.

A providência da criada foi recompensada; encontraram um grande bocado de presunto, ovos cozidos, batatas, bolachas e abundantes peras e maçãs. O vinho não tinha sido esquecido. Com a alegria da sua vingança satisfeita, Prudência convidou também a Sr. Petitbeaudoit a compartilhar da refeição; mas ela tinha almoçado antes de partir e não queria ficar a dever favores a Prudência, cujas atitudes e linguagem lhe desagradavam.

Os outros cinco convivas desempenharam-se tão bem da sua missão que o cesto ficou completamente vazio. Os polacos tomaram três quartas partes à sua conta; quando Simplícia pediu uma pêra e uma bolacha, estava tudo comido. Prudência ficou arrependida de não ter vigiado e poupado mais as provisões; lançou um olhar de soslaio aos polacos; estes estavam saciados e contentes e não se mexeram mais até chegarem a Laval, onde os viajantes desceram para tomar o comboio que devia conduzi-los a Paris.

No comboio

- Espero que iremos melhor no comboio do que nesta maldita diligência - disse Simplícia.

Foram estas as primeiras palavras que ela pronunciou desde a sua partida; a Sr. a Courtermiche e o seu cão tinham-na atemorizado, assim como ao Inocêncio.

-Despachem as bagagens! - gritou um empregado.

- Onde é? - perguntou Prudência.

- Ali, minha senhora, na sala das bagagens.

- Comprem os bilhetes - disse um segundo empregado. - Não se despacham bagagens sem os bilhetes.

Prudência não sabia que fazer, nem onde ir, nem a quem se dirigir. Simplícia à sua direita e Inocêncio à esquerda, tolhiam-lhe os movimentos; pedia a sua mala aos viajantes, que a mandavam passear, uns rindo e outros praguejando. Por fim, os polacos vieram amavelmente em sua ajuda; um encarregou-se dos bilhetes e o outro da bagagem. Em poucos minutos tudo ficou em ordem.

Prudência agradeceu aos polacos, que estavam muito vaidosos; fizeram-nos entrar na sala de espera da terceira classe. Por hábito de economia, tinham comprado bilhetes de terceira para os seus protegidos, assim como para si próprios.

- Como se está mal aqui! - disse Inocêncio.

- Estão todos de boina e com blusas de trabalho - disse Simplícia.

- A blusa incomoda-a, menina? - gritou um operário de rosto jovial. - Olhe que a blusa não é má... desde que não a irritem.

- Gostava mais de espartilho a magoar as ancas!acrescentou uma mulheraça, olhando de soslaio para Inocêncio e Simplícia.

Simplícia assustou-se; chegou-se mais a Prudência. Esta levantou-se, empertigada, de punho na anca.

- Tome cuidado com a língua, mulherzinha. A menina Simplícia não está habituada a ouvir grosserias; o seu pai é o Sr. Gargilier, um grande proprietário a oito léguas daqui, e previno-a de que...

- Deixe-me em paz com o seu proprietário. Quero lá saber disso! Não admito que me desprezem e hei-de dizer o que me apetecer.

-Deixe lá, tiazinha! - disse o operário da cara jovial. - Tem o direito de se defender, mas olhe que a menina Simplícia, basta-lhe o nome, não disse aquilo por mal; veja como ela está assustada. Não tenha medo, menina; não está habituada à terceira classe, vê-se logo. Tome cuidado com a língua, que ninguém lhe diz nada, assim como a este rapagão que parece passado à fieira, nem a esta senhora que os defende como a galinha defende os pintos.

A bonomia do operário acalmou a boa mulher e sossegou Prudência, Inocêncio e Simplícia. Poucos momentos depois, o apito, o sino e os gritos dos empregados anunciaram a chegada do comboio; as portas abri ram-se e os viajantes precipitaram-se no cais, procurando todos lugares nas carruagens.

Prudência quis entrar na primeira classe e os empregados repeliram-na; depois na segunda e foi mandada para a terceira, cujo aspecto lhe desagradou tanto que começou a lutar para conseguir, pelo menos, lugar na segunda. Mas os empregados, muito ocupados para poderem discutir, afastaram-se, deixando-a no cais com as crianças.

- O comboio vai partir! - gritou um dos polacos instalado numa carruagem de terceira.

- Suba depressa! - gritou o segundo polaco. Prudência hesitava ainda; ouviu-se o primeiro apito; os dois polacos saltaram para o cais, agarraram Prudência, Inocêncio e Simplícia; arrastaram-nos para a carruagem e fecharam a porta. No mesmo instante, o comboio moveu-se e Prudência começou a cair em si. Estava entre os seus dois jovens patrões e em frente dos polacos; a carruagem ia cheia e levava três mães, cada uma com dois bebés, um homem bêbedo e um inglês muito alto com dentes muito compridos.

BOGINSW - Sem nós, a senhora ficar em Laval e perder lugares e malas.

PRUDÊNCIA - A mala, Jesus! Onde está a mala? Que fizeram dela?

BOGINSW - Foi despachada, minha senhora; estar sossegada, mala nunca perder comboio.

Prudência tinha confiança nos polacos; não se preocupou mais com a mala e começou a examinar os viajantes; os bebés gritavam, quer um de cada vez, quer todos ao mesmo tempo. As mães davam de beber a um, mudavam as fraldas ou embalavam o outro; as fraldas molhadas ficavam pelo chão a secar e a largar o cheiro. Simplícia debatia-se com uma das mulheres que queria pôr-lhe um pequeno nos braços e que não desistia, recomeçando sem cessar as suas tentativas. Simplícia sentiu um primeiro desgosto por ter abandonado a casa paterna; esta viagem, que ela supunha uma festa, que devia ser tão alegre, tão encantadora, começara de maneira terrível e continuava muito desagradavelmente.

- Prudência - disse ela por fim ao ouvido da sua criada -, vem para o meu lugar, peço-te, e deixa-me ir para o teu; esta mulher está sempre a pôr a criança suja em cima de mim; tu entendes-te melhor com ela.

Prudência acedeu prontamente; levantou-se, trocou o lugar com Simplícia e, olhando a mulherzinha com ar pouco conciliador, disse-lhe instalando-se decididamente no seu lugar:

- Não nos aborreça com o seu miúdo. É a si que compete tratar dele, não é verdade? Então guarde-o, que eu por mim não o quero: fica avisada; pior para ele se tenho que o empurrar. Olhe que eu empurro com força.

MULHER - Em que é que o meu filho a incomoda? O pobre inocente nem sequer sabe o que a senhora quer.

PRUDÊNCIA - Por isso não me dirijo a ele, mas a si. Eu só quero sossego e mais nada.

- A paz armada, quer-me parecer... - disse o inglês alto, com uma pronúncia típica.

MULHER - Ah! Você é lorde? Não se meta nos nossos negócios se faz favor! Quando aparece um inglês faz logo sarilho!

- Que ser sarilho? - perguntou o inglês. Um dos polacos quis explicar ao inglês, na sua gíria, o significado de sarilho; misturou na explicação algumas piadas contra a acção do governo inglês nos assuntos da Europa.

- Mim não compreender - disse o inglês, calmamente, e ficou silencioso; mas o rosto corado e o ar descontente provavam que tinha compreendido.

Prudência aprovava o polaco, com um sorriso. Mans estava próximo. Os polacos esperavam ser recompensados da ajuda e do apoio prestados a Prudência e às crianças, com um convite para jantar.

A sua esperança não foi iludida. Quando o comboio parou e os polacos explicaram a Prudência que os viajantes desciam para jantar, ela apeou-se da carruagem com Inocêncio e Simplícia, escoltada pelos seus dois guardas de corpo, que a conduziram até à mesa. Aí fizeram menção de se retirar, mas Prudência, assustada com o barulho e o movimento, propôs-lhes sentarem-se na sua mesa e jantarem juntos. Os polacos olharam-se com ar triunfante e tomaram os seus lugares, um à direita e o outro à esquerda dos seus três protegidos e      benfeitores. Serviram-nos rapidamente; Prudência e as Crianças comiam e bebiam como se tivessem toda a noite diante deles, mas os polacos devoravam com rapidez, porque conheciam o valor do tempo quando se viaja de comboio.

Assim que os empregados gritaram: Para as carruagens, meus senhores! Para as carruagens!, os polacos tinham bebido e comido tudo que estava diante deles e que fora servido. Prudência e as crianças haviam começado o assado.

- O quê? Para a carruagem! Mas ainda não acabámos. Diga ao condutor que espere; deixe-nos acabar - dizia Prudência, alarmada.

O sino tocou. Para as carruagens, meus senhores!, foi a única resposta que ela recebeu. Os polacos encarregaram-se do pagamento da conta com a bolsa de Prudência; ela aproveitou este momento para encher as algibeiras de galinha assada, bolos, maçãs e depois deixou-se arrastar pelos polacos. Estes conduziram-na à carruagem, que ela já não seria capaz de encontrar, e todos retomaram os seus lugares, excepto o inglês, que mudara de compartimento, e o bêbedo, que haviam tirado da carruagem para o estenderem num dos bancos da sala das bagagens.

 

Chegada e desilusão

Simplícia e Inocêncio acabaram a viagem silenciosamente, como a tinham começado. Ficaram satisfeitos por chegarem, enfim, a Paris, objecto dos seus anseios.

Esperavam ver a tia e as outras pessoas da casa, com um carro, aguardando-os na estação. Ninguém foi ter com eles. As crianças estavam desapontadas; Prudência assustada. Que ia ser deles, no meio daquele mundo agitado, daquele ruído enorme? Felizmente, os polacos encontravam-se ainda perto deles e ajudaram-nos, como em Redon, a sair de embaraços. Quando ela conseguiu deitar a mão à mala, quando os polacos chamaram um trem e os meteram lá dentro, perguntando-lhes para onde iam, a pobre Prudência ficou aterrorizada; tinha-se esquecido da morada da tia das crianças e não era capaz de encontrar a carta que o Sr. Gargilier lhe entregara para a irmã.

O terror de Prudência contagiou as crianças, que começaram a chorar. O cocheiro impacientava-se; os polacos nem se mexiam; uma nova esperança despontava nos seus corações. Prudência seria obrigada a dormir num hotel; eles ofereciam-se para a acompanhar até que encontrassem a tia perdida e assim viveriam sem despesas.

-Que havemos de fazer? Para onde vamos? gritou Prudência e lexa.

- Desgraçada viagem! - gritou Simplícia.

- Onde vamos dormir? - gritou Inocêncio.

- Não ser difícil - disse um dos polacos. - Eu conhecer hotel bom para deitar e comer.

-Excelentes polacos! Salvem-nos! Levem-nos a qualquer casa onde os meus meninos estejam em segurança, e não nos abandonem!

- Rua da Chave, 25! - gritaram os polacos, saltando para o trem.

É longe como o diabo - murmurou o cocheiro, fechando a porta, de mau humor.

O trem pôs-se a caminho; Prudência, tranquilizada com a presença dos seus salvadores, começou a olhar com admiração crescente para as lojas, os candeeiros, o movimento incessante dos carros e das pessoas.

O coração dos polacos saltava de alegria; a sua magra bolsa continuava intacta; tinham vivido todo o dia à custa dos Gargilier e estavam certos de que podiam continuar a sua interessada protecção durante mais dois ou três dias.

Inocêncio e Simplícia lamentavam as suas esperanças atraiçoadas; estavam humilhados, desolados e já desalentados. As exclamações de Prudência tiraram-nos do seu abatimento e passaram também a admirar, ao longo do cais, a extensa fila de luzes reflectidas na água e as lojas também iluminadas.

Por fim, chegaram à Rua da Chave, 25. A casa era de pobre aparência; os polacos desceram e pediram os necessários alojamentos. Foi preciso pagar adiantado. Tiraram a mala do tejadilho e levaram-na pela escada suja, sombria e infecta que conduzia aos quartos que tinham alugado. Entraram e viram dois quartos: um sem janelas e com duas camas para os polacos; o outro com uma janela e três camas para Prudência e as crianças. Levaram-lhes a mala, uma vela para eles e outra para o primeiro quarto.

- A senhora precisa de alguma coisa? - perguntou a criada.

- Nada, nada - respondeu tristemente Prudência. A rapariga retirou-se fechando a porta. Os polacos acenderam os cachimbos; fumavam e cantavam em voz baixa: Bozé cos Polski, em acção de graças pela boa sorte que Deus lhes enviara.

-Nós felizes! Nós felizes! - dizia em voz baixa Cozrgbrlewski.

-Oxalá isto continue! - respondeu Boginski. Se ela tivesse de escrever ao patrão para saber a morada...

COZRGBRLEWSKI - Não! assim não! Tudo se arranjar. Nós ajudar a desfazer embrulhos e procurar carta. Se eu encontro!

BOGINSKI - Que fazes?

COZRGBRLEWSKI - Vais ver! Fazemos junto as coisas.

- Senhores polacos, estão deitados? - disse a voz lacrimosa de Prudência.

- Não, não, minha senhora, sempre às suas ordens

- responderam ambos, precipitando-se para o quarto.

- Não encontro a chave da minha mala; a roupa de noite está lá dentro: não temos aqui nada.

- Com mil bombas! Que havemos de fazer, Boginski?

- Dá-me qualquer coisa. Tens um gancho? Cozrgbrlewski tirou da algibeira um gancho; ele próprio o meteu na fechadura da mala, virou-o e tornou-o a virar, e à força de dar voltas e de escarafunchar, conseguiu abri-la. A primeira coisa que viu foi a carta do Sr. Gargilier para a Sr. a Bonbeck, Rua Godot, n. " 15. Repetiu várias vezes para si este precioso endereço e soltou depois uma exclamação de surpresa como se acabasse de descobrir a carta.

- Que foi? gritou Prudência. - A mala está vazia?

-Boa notícia, minha senhora, boa notícia! Aqui estar a carta!

- Imbecil! - disse-lhe Boginski, ao ouvido.

-Depois vais ver; cala-te! - respondeu Cozrgbrlewski, da mesma forma.

-A minha carta! Obrigada, senhores, obrigada! Como lhe estamos gratos! Quantos serviços nos têm prestado!

Os polacos cumprimentaram com ar satisfeito e retiraram-se para o seu quarto, deixando Prudência e as crianças a remexer nas malas, à procura das coisas de que precisavam, quando fecharam a porta.

BOGINSKI - Porque entregares a carta, imbecil? Nós agora tornados inúteis.

COZRGBRLEWSKI - Imbecil tu! Não viste porquê? Eu correr à pressa a casa Bonbeck; dizer a ela que sobrinhos e senhora criada são perdidos, atrapalhados. Ela ficar contente e nós levar lá meninos e senhora; todos agradecer, contentes; convites para ti e para mim irem ver; nós almoçar, jantar, tudo. E eu começar a gostar de pequenos e senhora; eles tristes e ela muito boa confiar em nós.

- Muito bem - respondeu Boginski -, eu ficar, tu partires depressa a casa Bonbeck.

Cozrgbrlewski agarrou o seu velho chapéu, já consertado dez vezes; desceu a escada, saltou para a rua e partiu a correr.

Enquanto corria, as crianças olhavam tristemente para as camas sujas e velhas. Simplícia pensava no seu leito em casa da mãe e suspirava. Inocêncio fazia as mesmas reflexões e respondia com suspiros aos da irmã.

- Então, que têm, o senhor e a menina? Não estão contentes? Não nos encontramos porventura em Paris, na vossa bela Paris? Linda casa, sim senhores! Que prazer! Que viagem tão agradável! Vamos passar uma bela noite!

-Meu Deus, meu Deus! - exclamou Simplícia, deixando correr as lágrimas. - Se eu adivinhasse isto, não queria vir para cá.

INOCÊNCIO - Mas espera! Bem vês que nos perdemos! Amanhã vamos a casa da nossa tia e então ficaremos bem. A culpa foi da Prudência, que pôs a carta do papá na mala.

PRUDÊNCIA - E onde queria que eu a pusesse? INOCÊNCIO - Na algibeira! Assim que chegámos, tinha-a logo encontrado.

PRUDÊNCIA - É bom de dizer: na algibeira. A minha algibeira está tão cheia que não cabe lá nem um alfinete. Também tenho a culpa de que aquele cão vadio e a dona nos roubassem e comessem o que era nosso? E tudo o resto que aconteceu, foi também por minha culpa?

INOCÊNCIO - Não digo isso, Prudência; o que eu digo é que... que... enfim, a culpa é tua.

PRUDÊNCIA - Essa é boa! E eu digo que se não choramingassem, se não aborrecessem e entontecessem o papá e a mamã, não nos tinham mandado para Paris e estávamos agora sossegados em casa.

SIMPLÍCIA - A culpa é tua, Inocêncio: tu é que disseste para eu chorar e amuar.

INOCÊNCIO - E então, não triunfámos? Vais ver como amanhã estás contente!... Estou cansado, tenho sono - acrescentou, bocejando.

As crianças deitaram-se; Prudência também se deitou, depois de ter arrumado a mala, mas não para dormir. Assim que apagaram a vela, centenas, milhares de percevejos começaram a sua refeição nos corpos dos dorminhocos. Estes voltavam-se, agitavam-se nas camas, esmagavam centenas de percevejos, mas outros vinham, e sempre e sempre. Simplícia coçava-se, levantava-se, tornava-se a deitar, gemia, chorava. Inocêncio resmungava, zangava-se, e dava socos na cama. Prudência refreava a cólera, amaldiçoava Paris, sem ousar maldizer a fantasia absurda dos meninos e a incrível fraqueza dos pais. Rompeu o dia; os percevejos retiraram-se repletos com o sangue das suas vítimas, e os três infortunados, sucumbindo à fadiga, adormeceram tão profundamente que não ouviam os polacos chamar, a não ser ao terceiro murro, que fez estremecer a porta. Era dia claro: tinham batido 9horas.

- Que é? Quem é? Que querem? - exclamou Prudência, meio adormecida.

BOGINSKI - São nove horas, minha senhora. A tia Bonbeck espera às dez. Precisa partir depressa.

PRUDÊNCIA - Não compreendo. Como sabe a Sr. a Bonbeck que estamos aqui?

BOGINSKI - O meu amigo ir ontem dizer à noite, porque ler morada na carta, correu para ajudar.

PRUDÊNCIA - Excelentes polacos! Hão-de ser recompensados! Depressa, meninos, levantem-se!...

Levantem-se depressa, vamo-nos embora.

COZRGBRLEWSKI - Não partir sem comer; em Paris não ser bom sair sem estômago cheio. Café pronto agora.

PRUDÊNCIA - Obrigada, queridos salvadores! Em cinco minutos estamos prontos.

Não se demoraram; passaram a cara e as mãos por água, deram uma escovadela nos cabelos emaranhados e Prudência abriu a porta para dar entrada aos polacos, que traziam uma bandeja cheia de chávenas, café, leite, açúcar, pão e manteiga.

- Dão licença nós comer com vós? - disse Boginski.

- Com muito prazer e gratidão, queridos protectores - respondeu Prudência, enternecida.

Todos tinham fome e comeram com vontade, mas os polacos distinguiam-se por um apetite devorador: o pão enorme, o litro de café, a caneca do leite, a manteigueira e o açucareiro cheios, foram tragados pelos dois esfomeados. Assim que se acabou tudo que era de comer, levantaram-se, olharam Prudência e as crianças e não puderam deixar de sorrir ao ver as suas caras vermelhas e inchadas.

- Ser pulgas que comeram as caras? - perguntou Boginski, procurando arranjar um ar de compaixão.

PRUDÊNCIA - Não: foram percevejos; não dormimos até de manhã. Não imaginava que em Paris fôssemos comidos por percevejos.

COZRGBRLEWSKI - Paris grande! Lugar para todos.

- É preciso pagar cónta e ir embora, minha senhora - disse Boginski, com amabilidade.

PRUDÊNCIA - A quem devemos pagar?

BOGINSKI - Eu poupar maçada. Dar dinheiro e eu ir pagar.

Prudência agradeceu, cumprimentou e entregou ao seu protector o dinheiro necessário. Boginski voltou com o troco.

A Sr. a Bonbeck

Prudência arrumou a mala, que os polacos carregaram aos ombros, e desceram todos a escada suja e tortuosa, que os conduzia à rua. A mala foi colocada no chão; Cozrgbrlewski foi procurar um trem que não tardou a aparecer à porta. Colocaram a mala no tejadilho; Prudência, Inocêncio, Simplícia e os dois polacos amontoaram-se dentro.

- Rua Godot, IS - gritou Boginski.

E o trem partiu. Ao baterem as dez horas, parou na morada indicada. Desceram todos.

-A Sr. a Bonbeck? - perguntou Boginski ao porteiro, depois de ter pago o trem com o dinheiro de Prudência.

- No quinto andar, ao fim do corredor, primeira porta à esquerda - respondeu o porteiro, sem olhar para quem entrava.

Subiram todos; no terceiro andar começaram a retardar a marcha, ofegantes, parando de quando em quando.

- Mora alto, a minha tia! - disse Simplícia.

- A escada é bonita e clara - respondeu Inocêncio.

-Maldita cidade! - resmungou Prudência. Aqui é tudo incómodo e muito diferente da nossa terra.

Esta ideia de construir casas que nunca mais acabam; uns andares por cima dos outros! Que falta de juízo!

Uf! - disseram os polacos, largando a pesada carga à porta da Sr. a Bonbeck.

Boginski, que estava a par dos costumes de Paris, Puxou o cordão da campainha; uma mulher bastante suja e de aparência grosseira veio abrir a porta.

- Quem procuram? - perguntou, com voz rude.

- Foram os senhores que vieram ontem à noite para falar com a senhora?

-Sim, minha senhora, nós procurar Bonbeckdisse Cozrgbrlewski.

- Que é isso de Bonbeck? - replicou a criada, franzindo o sobrolho.

- A Sr.a Bonbeck, tia do Sr. Inocêncio e da menina Simplícia, que estão aqui - apressou-se a responder Prudência, fazendo numerosas reverências.

- Entrem... - disse a criada, tornando-se mais amável.

- E estes senhores, também entram? Que querem eles?

- Nós amigos de senhora e meninos; nós defender e ajudar muito a eles.

- São os nossos protectores, os nossos salvadores!

- acrescentou Prudência, com vivacidade.

- Entrem todos! - consentiu a criada, continuando a olhar os polacos com desconfiança.

- Saco de papel! - Espada de madeira! Deixas-me    andar ou não, jóia dos cães! gritou uma voz, quase nasculina.

No mesmo instante abriu-se a porta do salão e a Sr. a Bonbeck fez a sua entrada, segurando pelas orelhas um soberbo cão que dava pulos, não a deixando andar.

Era uma mulher de setenta anos, seca, vigorosa, decidida, de estatura mediana, cabelos grisalhos, cabeça descoberta, pequenos olhos cinzentos maliciosos, nariz encurvado, boca trocista; um todo pitoresco e conservando vestígios da sua beleza passada.

- Para o chão, jóia dos cães! Vai beijar os teus novos companheiros! Bom dia, Simpliciazita; bom dia, Inocêncio; bom dia Sr. a Prudência. Anunciaram-vos pa ra ontem à noite e estive à vossa espera; não fui buscá- los à estação, como queria meu irmão, porque tive música... em minha casa, mas imaginei que vocês se tirassem de apuros sem mim. Ah! ah! ah! que carantonhas!, Vamos, não façam essas caras! Que carinhas as vossas.. que corados e que engraçados. E vocês, grandes atletas Polacos, não é verdade? Já os matei, meus rapazes. Vamos, entrem todos na casa da velha tia. Nada de cerimónias e de ares afectados! Gosto que se riam! Quem não ri não tem a consciência limpa. Venha aqui, jóia dos cães, venha aqui; mostra como és bom amigo da jóia dos gatos... Olhem, vejam-me isto! Vejam esta jóia de gato! Está pelado porque é velho como a dona e porque anda sempre à pancada com a jóia dos cães. Quieto, quieto, jóia dos gatos! Vamos, nada de lutas. Quieto, jóia dos cães! Quieto, já disse!

A jóia dos cães e a jóia dos gatos não ouviam as palavras conciliadoras da dona e batiam-se como raivosos; a jóia dos cães arrancava às dentadas os pêlos já espatifados do seu amigo; a jóia dos gatos arranhava com toda a força o focinho, as orelhas e os olhos do seu camarada. A Sr.a Bonbeck gritava, punha-se entre eles, batia num, batia no outro, sem conseguir separá-los.

- Ah! que Bichos endiabrados - gritou ela.

E, agarrando num chicote, distribuiu uns conselhos tão contundentes, que o cão e o gato separaram-se e refugiaram-se nos seus cantos, ganindo e miando.

A Sr. a Bonbeck arrumou o chicote, aproximou-se, rindo, das crianças desoladas, de Prudência petrificada e dos polacos embasbacados.

- Resolvo as coisas num instante! Vamos, entrem no salão. Prudência, minha filha, vai para o teu quarto e arruma as coisas; o Papão ajuda-te. É a minha criada, chamo-lhe Papão, porque está sempre com cara de querer comer toda a gente. Então, - acrescentou empurrando com ambas as mãos as crianças e os polacos - quero que se riam. Ah! ah! ah! estão com cara de susto! Eu não os como, descansem!

COZRGBRLEWSKI - Eu não deixar engolir-me, ... não passar. Garganta pequena e eu grande!

SRa BONBECK - Boa piada. Como se chama. COZRGBRLEWSKI - Cozrgbrlewski Sr.a Bonbeck.

SR a BONBECK - Hem? Coz... quê?

COZRGBRLEWSKI - Cozrgbrlewski, Sr. a Bonbeck.

SR.a BONBECK - Que mafarrico de nome! Estes polacos arranjam cada nome que uma boca francesa não é capaz de os dizer.

BOGINSKI - Língua francesa doce, bonita, boa, como senhoras francesas.

SR a BONBECK - Olha olha, é o lisonjeiro do gru o! Muito bem, meu amigo; é a antiga delicadeza francesa. E o senhor como se chama?

BOGINSKI - Boginski, Sr. a Bonbeck.

SRa BONBECK - Ainda bem! Boginski! É um nome cristão, ao menos. Coz... ki! Não o hei-de chamar muitas vezes. E tu Simplícia, e tu Inocêncio, ficam aí? Tratem de mudar de atitude, caso contrário, usarei convosco o chicote da Jóia dos Cães e da Jóia dos Gatos. Simplícia estremeceu e olhou para a tia, com terror.

SRa BONBECK - E tu, Inocêncio, não tens uma vontade?

INOCÊNCIO - Sim, minha tia. Quero ir para o colégio. imbecil? Para

  1. BONBECK - Para fazer o quê? Morrer de aborrecimento?

INOCÊNCIO - Quero usar uma farda como o Leôncio que anda no Colégio Estanislau.

SRa BONBECK - Se é para usar uma farda, ponho-te na tropa, grande pateta; apanhavas algumas chibatadas e uns pontapés nos fundilhos, mas andavas pelo campo e não empalidecias a estudar grego e latim com gente que não sabe nada disso e diz que sabe.

INOCÊNCIO - O papá quer que eu entre para o colégio, tia, e disse-me que eu ia para o dos Jovens Sábios.

  1. A BONBECK - Burros Sábios, queres tu dizer, pateta.

Inocêncio não se atreveu a responder. A Sr. a Bonbeck deu-lhe, a rir, forte palmada nas costas; sentou-se numa poltrona e interrogou os polacos que lhe contaram as aventuras da viagem de Prudência e das crianças; ela riu a bandeiras despregadas; a sua alegria contagiou-os, assim como às crianças.

- Estou a ver que vocês são bons rapazes - disse aos polacos. - Onde moram? Que fazem?

BOGINSKI - Não temos residência nem nada que fazer.

SRa BONBECK - Então de que vivem?

BOGINSKI - Governo dar pequena pensão por dia.

SRA BONBECK - Mas é horrível! Como querem eles que vivam assim? Ouçam, meus amigos: eu não tenho como o governo dez ou quinze mil polacos a sustentar, ofereço-lhes um cubículo na minha casa. Não sou rica, mas tenho bom coração. Vocês ajudam-me na casa e ajudam o Papão. Fica entendido? Convém-lhes?

BOGINSKI - A Sr. a Bonbeck muito boa; o meu amigo e eu muito contentes, muito agradecidos. Nós fazer tudo para a Sr. a Bonbeck e Sr. a Papão.

SRa BONBECK - Muito bem; venham cá, vou-os instalar nos seus aposentos.

A Sr. a Bonbeck, seguida pelas crianças, os polacos, a jóia dos cães e a jóia dos gatos, encaminhou-se para a cozinha, atravessando a sala de jantar, o quarto da Sr. A Bonbeck, o quarto destinado a Inocêncio, a Simplícia e a Prudência, depois um trecho do corredor e, em seguida, entraram na cozinha, onde estava o Papão.

SRa BONBECK- Olha, Papão, trago-te dois bons rapazes que vão ajudar-te e fazer-nos rir.

PAPÃO - A senhora quer cá estes senhores. E onde vai pô-los?

SR.a BONBECK - Isso é contigo, mete-os onde quiseres, deita-os como puderes e põe-os a trabalhar direitinhos. Têm uns nomes engraçados; este chama-se Boinski e o outro é polaco puro sangue, Cozrrrbrrgrrg. Não sei que mais. Vamos chamar-lhe Coz para abreviar. Pronto! Os polacos já estão instalados. Vamos agora aos outros.

E conduziu-os para o quarto que lhes destinara; deu uma palmada num, puxou uma orelha a outro e deií xou-os, rindo, para ir estudar no seu violino um trecho de Mozart, que à noite teria de arranhar com três ou quatro velhos amigos que tocavam como ela violino e contrabaixo e sopravam em flautas.

- Inocêncio - disse Simplícia, quando ficaram sós com Prudência -, a tia é esquisita; mete medo.

INOCÊNCIO - A mim, não; basta responder-lhe e fazê-la rir. É boa pessoa.

SIMPLÍCIA - Boa! Então esqueceste como ela bateu no cão e no gato?

INOCÊNCIO - Não quer dizer nada. Eles brigam quando ela quer mostrar como são bons amigos!

SIMPLÍCIA - E depois, como ela grita, como ri alto, como pragueja! Meu Deus, vou ser tão infeliz!

Porque não fiquei com a mamã e o papá?

INOCÊNCIO - Deixa-te disso! Habituas-te. Afirmo-te que ela é muito boa pessoa.

PRUDÊNCIA - Não sei onde pôr as nossas coisas; não há cómoda nem armário neste quarto.

INOCÊNCIO - Mas está aqui um armário com seis prateleiras; põe tudo lá dentro.

PRUDÊNCIA - É fácil de dizer: põe tudo lá dentro! Onde quer que eu pendure os vestidos da menina e a sua farda?

INOCÊNCIO - Deixa-os na mala; de resto, quanto aos meus, espero levá-los em breve para o colégio.

PRUDÊNCIA - Mas os vestidos da menina ficam amarrotados na mala.

INOCÊNCIO - Ora! Que grande desgraça! Não tem importância.

SIMPLÍCIA - Falas muito bem! Não quero que os meus vestidos fiquem amarrotados: quero-os pendurados.

PRUDÊNCIA - Onde quer a menina que eu os ponha? Não há aqui guarda-fato.

SIMPLÍCIA - Mas eu quero os vestidos cá fora.

INOCÊNCIO - Mas não se podem tirar da mala.

SIMPLÍCIA - Mas eu quero: vou eu tirá-los.

Simplícia quis tirar os vestidos para fora da mala; Inocêncio agarrou-a e empurrou-a. Continuaram a lutar algum tempo silenciosamente, mas, pouco a pouco, animaram-se: das palavras passaram às pancadas e as crianças barafustavam ruidosamente, apesar das repreensões da criada, quando apareceu a tia Bonbeck a indagar a causa dos gritos e do barulho que perturbavam a sua música.

- Que demónios de crianças! Acabem com isso! Já se viram doidos assim? Será preciso o chicote para os separar como a jóia dos cães e a jóia dos gatos?

A ameaça fez efeito. Inocêncio deixou Simplícia, que agarrava pelas saias com uma das mãos enquanto lhe batia com a outra, e Simplícia pousou no chão os pés, com que batia nas costas do irmão como um tambor. A tia presenteou-os, a cada um, com um par de bofetadas e voltou, a rir, para o seu violino.

Prudência ficou embasbacada por ver tratar assim os seus patrõezinhos; Inocêncio e Simplícia esfregaram as bochechas, choramingando baixinho.

- Vês como ela é má? - disse Simplícia, a meia voz.

INOCÊNCIO - Bate com força, na verdade; tem a mão seca e dura que parece de ferro.

SIMPLÍCIA - Vou escrever à mamã a dizer que não quero ficar mais tempo aqui.

INOCÊNCIO - E para onde vais? Por mim, é diferente: vou para o colégio dos Jovens Sábios. Prudência, procura a carta que o papá escreveu ao director do colégio: vamos levá-la hoje.

PRUDÊNCIA - Está aqui na minha carteira, Sr. Inocêncio. Mas como havemos de encontrar a rua e a casa?

INOCÊNCIO - Pedimos a um dos polacos para nos guiar.

PRUDÊNCIA - É boa ideia. Vou arrumar depressa tudo isto e depois chamar os polacos.

Prudência, ajudada por Inocêncio e por Simplícia, conseguiu pôr tudo em ordem: colocou toalhas entre os colchões, embrulhou roupas em outras toalhas, arrumou como pode os seus vestidos e os de Simplícia nos dois compartimentos da mala; depois deu às crianças água, sabão, pentes e escovas. Acabaram de se arranjar e preparavam-se para sair, quando o Papão veio preveni-los de que era meio-dia e que a tia os esperava para almoçar. Não se atreveram a fazer objecções e, deixando Prudência com o Papão, foram para a sala de jantar.

- Então, vêm ou não? Gosto de pontualidade. Vamos para a mesa: tenho uma fome dos diabos. Vem para aqui, Simpliciazita, para a minha direita; e tu, pateta, fica aí na minha frente. Onde estão os polacos? Manda-os vir, Papão. Não gosto de esperar, bem sabes.

Dois minutos depois, os polacos, lavados, penteados e escovados, entravam, cumprimentando e agradecendo.

-Quando acabam com essas reverências? Não gosto dessas coisas. Para a mesa e toca a comer!

O Papão trouxe uma omoleta. A Sr. a Bonbeck dividiu-a em cinco partes, reservando um bocadinho para a Prudência e para o Papão.

- Toma, Papão, leva isso para comeres com a Prudência, que deve ter um buraco no estômago. Por mim tenho uma fome terrível!

Todos comeram a omoleta sem dar um pio. Quando acabaram, a Sr. a Bonbeck encheu os copos.

- Pouco vinho e muita água - disse ela rindo - é o meu sistema e o da minha bolsa, que é magra e muitas vezes está vazia. Isto não lhes agrada, hem, polacos? Preferiam muito vinho e pouca água, não é verdade?

COZRGBRLEWSKI - Não digo que não, Sr. a Bonbeck; mas ser preciso tomar o que é dado.

SR A BONBECK - E ainda agradecer, Sr. Coz. Com a sua pensão só pode ter água do rio e pão de terceira.

COZRGBRLEWSKI - Não digo que não, Sr. a Bonbeck; mas ser preciso tomar o que se tem.

SR A BONBECK - Oiça lá, amigo, não repita em cada frase: Sr. a Bonbeck. Tem medo que eu esqueça o meu nome, por acaso?

COZRGBRLEWSKI - Oh! Isso não, Sr. a Bon... SR. A BONBECK-... outra vez? Já me está a aborrecer, sabe? Deixe falar o Boginski; gosto mais dele que de você, com esse nariz vermelho e esses grandes bigodes ruivos. Vamos, Boginski, meu rapaz, conte-nos qualquer coisa.

BOGINSKI - Com muito gosto; eu saber muito. Eu contar como um dia estava muito cansado, com camaradas também cansados; estar a cavalo quinze dias; eu não tirava botas; os russos sempre perto; cavalos não tiravam rédeas nem selas; pés de mim muita comichão; cavalo bebia água fresca e eu tirar botas e ver pés em sangue, milhares de bichos correr nos pés e pernas de mim e comer a mim; eu lavar, lavar e os bichos morrer e afogar; eu contente; depois lavar botas cheias de bichos. Agora chegam os russos. Nós saltar cavalos, em pés nus, galopar, matar russos, abrir cabeças, furar peitos; russos com medo e fugir; eu rir, rir muito contente; camaradas também. Depois, não contente; eu sem botas, mas não estúpido; apear, tirar botas a russo morto, lavar muito e depois calçar; era muito bem, botas boas, não buracos como as minhas; boas, muito boas, eu sempre contente e galopar com camaradas para Ostrolenka.

SR.a BONBECK - Que é isso, Ostrolenka?

BOGINSKI - É batalha terrível; há muito tempo, 1831; eu quinze anos, matar vinte e cinco russos, depois fugir muito longe e chegar à boa França e ter pen são. Isto já é bom. Não morrer de fome, já é muito. Não morrer de frio, também bom e encontrar boa Sr. a Bonbeck, então ser excelente!

- Pobre rapaz! - disse a Sr. a Bonbeck, comovida com esta última frase. - Coz, vai buscar a travessa da carne.

Coz precipitou-se, desapareceu e voltou quase a seguir, trazendo uma grande travessa de carne de vaca com cebolas.

A Sr. a Bonbeck deu a cada pessoa uma porção suficiente.

- Leve ao Papão, amigo Coz - disse ela -, e volte depressa para comer o seu quinhão.

Coz voltou ainda mais depressa e comeu apressadamente o grande naco que lhe servira a Sr. a Bonbeck.

- Com a breca! Que apetite! - gritou ela. - Vocês são ambos verdadeiramente polacos. Tanto me faz. Vou pô-los a trabalhar. Que sabes fazer, Boginski?

- Eu fazer escriturações como um mestre; eu dar lições música.

- Música! - exclamou a Sr. a Bonbeck, dando um salto na cadeira. - Gosta de música? Sabe tocar algum instrumento?

-Eu gostar muito de música; eu tocar piano e flauta; eu saber consertar e afinar pianos, flautas e violinos.

-Meu amigo! Meu bom amigo! - exclamou a Sr. a Bonbeck, atirando-se ao pescoço de Boginski, surpreendido e encantado. - Gosta de música! Toca flauta e piano! É encantador! É admirável! Vamos tocar juntos.

- Todo o dia, se agradar a si - respondeu Boginski - eu nunca fatigado com música.

SR A BONBECK - Meu querido amigo, que felicidade! Como lhe agradeço por ter aceitado ficar em minha casa Mas riam vocês todos, andem Então, ri, Simplícia; ri, palerma; ri, diabo de Coz... E tu que sabes, meu pobre Coz?

COZRGBRLEWSKI - Eu sei encadernar livros, gravar música...

SRa BONBECK - Gravar música! Mas é uma bênção do céu! Vai-me gravar sonatas escritas à mão, velhas mas soberbas, admiráveis. Vamos vendê-las e ganhamos dinheiro; é que eu não sou rica, meus caros amigos, e não podia tê-los cá muito tempo se não ganhassem algum dinheiro.

-i INOCÊNCIO - Minha tia, gostava de sair depois de comer.

SRa BONBECK - Para ir aonde, pateta?

INOCÊNCIO - Para levar ao colégio a carta do papá.

SRa BONBECK - Estás muito apressado, meu rapaz; mas não te prendo. Vai aonde quiseres e fica se quiseres. Leva a Simplícia contigo. Eu fico com os meus polacos.

INOCÊNCIO - Tia, mas nós não sabemos o caminho; queríamos um polaco para nos conduzir.

SRa BONBECK - Palermas, que nem conhecem Paris! Coz, vai com eles e volta depressa. Eu fico com o meu amigo Boginski.

Durante este diálogo, o Papão trouxera salada e queijo; acabada a refeição, a Sr. a Bonbeck levantou-se da mesa, levando consigo Boginski. Pouco depois, ouviram raspar no violino e soprar na flauta. As crianças foram buscar Prudência e desceram, acompanhadas por Cozrgbrlewski, muito satisfeitos por irem tomar ar.

 

Primeiro passeio em Paris

O colégio estava situado numa rua próxima do Jardim do Luxemburgo; levaram perto de duas horas para lá chegar, porque as crianças e Prudência paravam, espantados, diante das lojas e não podiam deixar de admirar todas as montras. Os seus gritos de alegria faziam voltar e rir as pessoas que passavam; o pitoresco vestido de veludo azul de Simplícia, o ar apalermado de Inocêncio, a touca de camponesa de Prudência e o fato

coçado do polaco despertavam troças e ditos.            

- Que gente esquisita - dizia um. - Impagáveis fatos - dizia outro. - Fugiram do degredo - exclamava um terceiro. - Quanto se paga para os ver? São palhaços de circo. Bela família para mostrar numa feira! etc. - diziam os garotos, rebentando a rir.

Simplícia e Inocêncio não ouviam nada, não se apercebiam de nada; Prudência começava a convencer-se de que troçavam de alguém; julgou que era do polaco. Cozrgbrlewski compreendia bem que os seus três companheiros eram ridículos, mas não se atrevia a dizer nada; via com inquietação alguns garotos que teimavam em segui-los; outros garotos aumentavam o cortejo à maneira que eles avançavam. Chegaram assim até Pont-Neuf. Os risos dos garotos foram substituídos por algazarra e apupos; Prudência e as crianças perceberam enfim que os seguiam, que troçavam deles. Prudência estacou, de súbito, a meio da ponte e gritou para a sua escolta:

-Para quem é isso, vadios? De quem se riem? Que temos nós de esquisito?

- Ah! ah! ah! - responderam os garotos.

- Querem-se ir embora e deixar-nos em paz? Não admito que trocem dos meus patrões, ouviram?

- Ah... ah... ah... - responderam outra vez os garotos.

- Senhor polaco, corra com estes garotos.

- Minha senhora, como quer que faça? São muitos.

- Faça como em Ostrolenka: atire-se a eles, assuste- os.

O polaco não se mexeu. Prudência ficou indignada.

- Pois se um polaco não tem coragem, tenho-a eu para defender os meus patrões. Para trás, garotada.

Os garotos nem recuaram; mas o ar resoluto da pobre Prudência, tomando a defesa das crianças que ela acompanhava, agradou-lhes e um deles gritou:

- Viva a criada!

- Viva o polaco - acrescentou outro.

- Vivam os provincianos! Vivam todos! Viva a touca! Glória à touca! - berram todos em coro. - Vamos levar em triunfo a touca e os miúdos!

Num segundo, Prudência e as crianças foram rodeadas pelos garotos, que os escoltavam, apesar das suas súplicas e da sua resistência. O polaco corria atrás deles, mudo de terror; Prudência suplicava, em vão, que a deixassem com os seus patrões; as crianças revoltavam-se, mas os risos dos garotos abafavam as suas palavras. O polaco procurava com o olhar um guarda que lhes trouxesse socorro; não encontrava nenhum no caminho.

As pessoas que passavam desviavam-se deste grupo já tão grande; por fim um soldado, ao qual o polaco expôs a causa do tumulto, correu a procurar socorro no posto mais próximo. Quando os garotos viram aproximar-se um cabo e três soldados, não julgaram prudente esperá-los e escaparam-se em todas as direcções, empurrando e atirando de pernas ao ar Prudência, Inocêncio e Simplícia. Levantaram-se os três cheios de lama e aterrorizados. O polaco foi ter com eles, ofegante e pálido de medo. Os soldados chegaram para socorrer as vítimas, que julgavam feridas. Prudência explicou-lhes o que acontecera; aceitou a oferta do cabo, que lhes propôs levá-los ao posto da guarda para tirarem a lama de que estavam cobertos. Conduziram, então, ao posto, Prudência, as crianças e o polaco, que não quis abandoná-los. À sua passagem, ouviram comentários pouco agradáveis...

- Prenderam agora estes patifes.

- Uma quadrilha de gatunos, com certeza.

- Ou então estavam a brigar nalguma taberna.

- Os miúdos têm cara de bandidos.

- A mulher tem um ar mesmo feroz.

- Trazem sangue na cara e nos fatos.

- Se calhar é isso. Com certeza que assassinaram alguém.

- O rapaz tem uma cara de estúpido!

- E a rapariga, como é gorda e feia!

- E que vestimenta ela traz!

- O homem está com cara de palerma; parece que foi ele o assassinado.

- Imbecil! Como queres que ele esteja assassinado se vai ali a andar, tão direito como tu ou eu!

- Mesmo assim, está muito pálido.

- É com medo.

Quando entraram no posto da guarda, o polaco e os seus infelizes companheiros foram rodeados pelos soldados.

Quando estes souberam que, longe de serem malfeitores, eram vítimas do divertimento popular, apressaram-se a socorrê-los: trouxeram água para tirar a lama das caras e dos fatos. Simplícia chorava, Inocêncio tremia dos pés à cabeça, Prudência resmungava contra Paris e os seus habitantes. O polaco ia buscar água, torcia os lenços e as saias, ia dum lado para o outro e falava de Ostrolenka, dos russos de Varsóvia, com grande gozo dos soldados, que o tomavam por doido.

Quando os fatos já estavam sem lama e meio enxutos, correu a procurar um trem, meteu lá dentro a criada e os pequenos, entrou também e deu ao cocheiro o endereço dos Jovens Sábios. Prudência fizera numerosos agradecimentos e reverências aos soldados, que riam à custa da aventura burlesca dos pobres provincianos. O cocheiro chicoteou os cavalos e o trem pôs-se em marcha. Ninguém falava. Ao polaco não faltava vontade de lhes censurar os trajes e as atitudes ridículas, causa do tumulto, mas julgou prudente calar-se. Prudência desejava repreender o polaco, pela sua atitude excessivamente pacífica para com os garotos, mas engoliu as suas recriminações tardias e inúteis. Inocêncio teria ralhado de boa vontade com o polaco e Prudência, mas não ousou exprimir o seu descontentamento. Simplícia teria, da melhor vontade, testemunhado o seu desgosto por ter abandonado a tranquila casa paterna, mas não quis mostrar arrependimento de um desejo tão vivamente e por tanto tempo expresso. Chegaram assim ao colégio. Prudência, seguida pelas crianças e o polaco, e introduzida pelo porteiro, que lhe disse para esperar, entrou, sem ter ouvido esta recomendação, num pátio onde os alunos estavam em recreio. Prudência, segurando na mão a carta do Sr. Gargilier, avançou para um grupo de rapazes. Estes, espantados, responderam às suas reverências com sorrisos e murmurações.

- Qual dos senhores me pode indicar o Director?

- perguntou Prudência, com o ar mais amável.

-Minha senhora: eu sou o delegado do Director - respondeu o mais crescido do grupo. - Que deseja?

-Senhor Delegado do Director, aqui tem uma carta do meu patrão, o Sr. Gargilier.

- Que diz essa carta? - perguntou o rapaz, cuja audácia não chegava ao ponto de abrir a carta destinada ao director.

- O Sr. Gargilier, meu patrão, deseja internar na vossa estimada casa o meu jovem patrão que está aqui. Sr. Inocêncio; cumprimente o Sr. Delegado do Director e os seus colegas.

Inocêncio fez uma vénia, Simplícia dobrou-se toda, o polaco inclinou-se.

-Em nome dos meus estimáveis colegas e do Sr. Director, de quem sou delegado - disse o aluno, sustendo com dificuldade uma gargalhada pronta a escapar-lhe -, recebo na minha estimável casa o jovem que aqui está e recebo-os a todos como a ele, pois que todos me parecem dignos desta honra.

- O senhor é muito gentil; mas eu tenho de levar a menina Simplícia à tia, à Sr. Bonbeck, e devo dizer que nunca falto ao meu dever.

-Honra lhe seja, estimável senhora! Venha para um lugar mais digno de si, esperar a recepção definitiva do seu digníssimo patrão.

Caminhando adiante deles e seguido por todos os estudantes, que iam muito contentes e a cochichar, dirigiu-se para um pequeno pátio isolado. Depois de ter feito passar Prudência, Simplícia e o polaco, fechou a porta no nariz de Inocêncio, estupefacto.

- Venha, jovem pretendente, venha para o meio dos seus futuros colegas, receber as honras devidas a todo o recém-vindo.

Arrastando Inocêncio para o grande pátio do recreio, colocaram-no no meio, e todos, dando as mãos, puseram-se a dançar em roda desenfreada em volta dele. Cada um por sua vez saiu da roda e, chegando-se a Inocêncio, dava-lhe um puxão ao casaco, excessivamente comprido, cantando uma canção em voga. Inocêncio não compreendia nada desta estranha recepção; estava inquieto com o casaco, ameaçado de ficar às tiras com os puxões repetidos. Quis fugir; todas as saídas estavam barradas. O medo começou a invadi-lo; atirou-se contra um grupo menos compacto que os outros; o grupo repeliu-o. Inocêncio estatelou-se, gritando como um possesso.

- Cala-te, imbecil! - disseram-lhe os alunos em voz baixa, porque viram aproximar-se o director do estudo.

E dispersaram, ficando só alguns junto de Inocêncio, pesarosos, como que a levantá-lo.

- Então que é isto? Quem é este rapaz? Porque foram os gritos?

- Foi este rapazinho que caiu. Ele vem com a família, que foi falar ao senhor Director, e estava a brincar quando caiu. Íamos agora ajudá-lo a levantar-se.

Inocêncio quis falar, mas um dos colegiais disse-lhe ao ouvido:

- Cala-te; se dizes uma palavra, apanhas.

O director do estudo olhou os alunos com descon fiança e Inocêncio com ar trocista e perguntou-lhe onde estava a família.

- Ali! - respondeu Inocêncio, apontando o pequeno pátio onde se encontravam encerrados Prudência e os restantes.

-O quê, ali! - exclamou o director de estudo lançando em redor um olhar ameaçador. - Quem foi que os levou para ali?

INOCÊNCIO - Foi o delegado.

DIRECTOR DO ESTUDO - Qual delegado? Delegado de quem?

INOCÊNCIO - Delegado do Director.

55

DIRECTOR DO ESTUDO - Ah! Então que estúpida brincadeira é esta? Qual dos senhores se atreveu a intitular-se delegado do senhor Director?

Silêncio geral. Ninguém se mexeu.

DIRECTOR DO ESTUDO (a Inocêncio) - Indique-me quem foi que disse ser o delegado do senhor director.

Inocêncio olhou à volta: o culpado tinha desaparecido. Inocêncio não respondeu.

DIRECTOR DO ESTUDO - Está bem... veremos isso mais tarde.

Foi abrir a porta do pequeno pátio e fez de lá sair, com muitas desculpas, Prudência, Simplícia e o polaco, bastante espantados com a demora e com o local em que os tinham feito esperar. O director do estudo cumprimentou-os, desculpou-se e propôs a Prudência conduzi-la ao senhor director, o que Prudência aceitou com prazer evidente. Depois de alguns minutos de

espera na sala, entrou o director, que cumprimentou, se apresentou e recebeu a carta que lhe estendia Prudência. Leu-a, sorrindo, examinou Inocêncio com um olhar e perguntou-lhe se estava pronto a entrar no colégio.

INOCÊNCIO - Sim, senhor, estou pronto, quando quiser.

DIRECTOR DO COLÉGIO - Então, meu amigo, já que está aqui, porque não fica? Seu pai pede-me para o admitir o mais cedo possível.

INOCÊNCIO - Não trouxe a farda nem a roupa, ficaram em casa.

DIRECTOR DO COLÉGIO - Pode-se mandar buscar.

INOCÊNCIO - Está muito bem. Prudência, manda-me tudo esta tarde, assim que chegares.

PRUDÊNCIA - Mas eu não tenho ninguém para mandar, Sr. Inocêncio.

INOCÊNCIO - Então os polacos! Sr. Cozrgbrlew ski, quer fazer o favor de me trazer um embrulho, não é verdade?

COZRGBRLEWSKI - Decerto, Sr. Inocêncio. Eu trazer tudo; eu trazer muito mais depois de Ostrolenka: sela, bagagem, comidas, tudo.

DIRECTOR DO COLÉGIO - Pronto, está tudo arranjado, meu amigo. O seu pai dá-me as necessárias informações a seu respeito, assim como a respeito do Banco onde hei-de receber o dinheiro. E fica assim admitido.

INOCÊNCIO - Senhor, peço-lhe que proíba aos meus colegas fazer-me mal; eles empurraram-me, atiraram-me ao chão, quase me rasgaram o casaco.

DIRECTOR DO COLÉGIO - Farei as recomendações necessárias, meu amigo. Despeça-se da sua família. Vou apresentá-lo aos seus professores e aos seus colegas.

Inocêncio beijou Prudência e Simplícia, sem mostrar o menor desgosto com a separação, e seguiu o director com visível prazer.

 

Vários divertimentos

Prudência, admirada com esta despedida tão brusca, chorou um pouco; Simplícia também se sentiu comovida. O polaco propôs o regresso a casa. Chegaram à residência da Sr. a Bonbeck, após uma ausência de quatro horas.

- Onde diabo estiveram todo este tempo? - perguntou a tia, vendo-os entrar.

Prudência contou os acontecimentos do dia e a entrada de Inocêncio para o colégio.

- Que estúpido! - exclamou a Sr. a Bonbeck. - É parvo de todo, esse rapaz! E tudo isto para usar uma farda que não tem pés nem cabeça! Coz, corre a levar a encomenda do meu sobrinho e não te atrases para o jantar, porque não esperamos, já te previno. Às seis horas em ponto vamos para a mesa; quem não estiver é que fica prejudicado.

Coz não deu tempo a que repetissem o recado. Aprontou o embrulho num instante, carregou-o às costas, levou-o a passo acelerado, voltou a correr e entrou no momento em que batiam as seis horas.

- Muito bem! Isto é que se chama ser pontual! Assim, sim! Gosto das pessoas pontuais - exclamou a Sr. a Bonbeck, dando uma palmada nas costas derreadas do pobre Coz. - Agora, para a mesa! Simpliciazita, vais comer, conversar e principalmente rir; não sendo assim, não seremos amigas.

- Sim, minha tia - respondeu, tristemente, Simplícia.

- Palerminha, tens sempre o ar de quem vem de um enterro. Então, ri, anda! Não gosto de choramingas.

Simplícia fez um esforço para sorrir, mas o seu ar assustado contrastava de tal maneira com o forçado sorriso, que a Sr. a Bonbeck desatou a rir e até os polacos não puderam deixar de a acompanhar na sua alegria. Felizmente para Simplícia, o riso também a contagiou e, quando o Papão trouxe a sopa, todos riam tanto que nem podiam falar.

- Ora ainda bem! Assim, gosto! Comigo, acima de tudo, é preciso rir. Agora toca a comer! Papão está zangado, a olhar para a gente.

- Se lhe parece! Deixar arrefecer uma sopa tão boa!

-Ainda a devoraremos mais depressa; não te zangues e vai buscar a carne e a salada.

À sopa, seguiu-se um excelente carneiro com feijão, depois salada e a seguir ameixas para sobremesa. Os polacos lambiam os beiços depois de terem devorado tudo o que a Sr. a Bonbeck lhes fora servindo. Simplícia, um pouco tranquilizada com a alegria da tia, passou uma noite bastante agradável a ouvir, primeiro, as histórias pitorescas dos polacos, as brincadeiras da Sr. a Bonbeck e, depois, o concerto com que terminou o serão. Boginski era realmente um bom músico; tocava bem piano e flauta e conseguiu achar maneira de ir a par da Sr. a Bonbeck e de disfarçar as notas falsas e discordantes e as fífias que ela arrancava do violino. A Sr. a Bonbeck estava entusiasmada; adorava os polacos, sobretudo Boginski, e foi com desgosto que o deixou retirar-se para ir descansar das fadigas da noite anterior.

Simplícia despediu-se da tia e retirou-se para o seu quarto, onde dormia com Prudência; sentou-se numa cadeira e pôs-se a chorar amargamente.

PRUDÊNCIA - Então, menina, que tem? Já estará farta de Paris?

SIMPLÍCIA - Se eu soubesse como isto era e tudo que nos havia de acontecer, nunca tinha pedido para vir para cá! - respondeu, soluçando.

PRUDÊNCIA - Eu bem dizia, mas não me quis acreditar! Há-de acontecer o mesmo com o Sr. Inocêncio; fartar-se-á depressa do colégio, vai ver.

SIMPLÍCIA - Bem feito, porque a culpa é dele. Foi quem me disse para eu amuar e chorar, a fim de nos mandarem para Paris; foi quem me disse que eu havia de me divertir muito. Que divertimento, o passeio desta manhã. Tanta gente que não nos deixava andar, uma lama terrível que se pegava aos vestidos e ao calçado, um barulho de carros que nem se podia conversar! É muito divertido, realmente!

PRUDÊNCIA - Então, menina, agora que o mal está feito, para que serve desgostar-se e chorar? A sua tia não é tão má como parece e a menina habituar-se-á aos aborrecimentos de Paris. E, além disso, não estou eu aqui para a consolar?

SIMPLíCIA - Queria voltar para casa.

PRUDÊNCIA - Isso é impossível; o seu papá proibiu-me de levá-la até me dar ordem para isso.

SIMPLÍCIA - Amanhã escrevo à mamã a dizer que estou aborrecida e quero voltar para casa.

PRUDÊNCIA - Escreva, menina. Eu também vou escrever, porque o seu pai me mandou.

Simplícia ia responder, quando ouviu bater na parede; a tia dormia no quarto ao lado.

- Quando é que se calam e me deixam dormir, faladoras? Apaguem a vela; não gosto que me gastem as velas inutilmente.

Simplícia e Prudência olharam-se com terror e despiram-se depressa. Cinco minutos depois, o quarto estava completamente às escuras. Fizeram as suas orações, deitaram-se às apalpadelas e não tardaram a adormecer. Simplícia estava cansada e dormiu até tarde. Prudência levantou-se cedo e escreveu a seguinte carta:

Minha senhora e meu senhor

Tenho a honra de lhes dar parte da nossa chegada. Tivemos muitas aventuras no caminho e nesta horrivel cidade, que não tem nada o aspecto que devia ter; as pessoas de cá não são decentes; riem-se na nossa cara, dão-nos encontrões e gritam, e depois atiram-nos para cima da lama. Os senhores bem vêem que isto não são maneiras. Na diligência um maldito cão devorou o belo naco de vitela assada que eu tinha arranjado para os meninos; felizmente um polaco atirou o cão pela janela fora e depois a dona atrás dele. Os polacos são homens valentes, mataram muitos russos, porque tinham as pernas roidas pelos bichos, foram muito bons para nós, levaram-nos para uma casa muito feia e escura onde não dormimos por causa dos percevejos que nos puseram a cara e os braços nuns trambolhos. A irmã do senhor não é má; o que tem é que grita muito e a menina tem muito medo dela. O Sr. Inocêncio entrou para a casa dos sábios, depois dos soldados nos terem limpado os fatos; o vestido da menina ficou estragado com tanta água e lama. O polaco ruivo foi connosco, mas fugiu, o que não é bem feito; levou-nos num carro muito feio; se vissem os cavalos e o cocheiro, riam-se, com certeZa. Que magros e que sujos! Não se pareciam com a linda caleça azul do senhor, nem com o charabã encarnado e verde. A menina riu ao jantar porque a senhora estava zangada, como sempre, o que divertiu a senhora e fez chorar muito a menina quando se deitou, pois tem muitas saudades do senhor e da minha senhora. E o Sr. Inocêncio tem uns colegas que parecem diabos e que nos fecharam num buraco sujo, que depois tornaram a abrir, com o polaco ruivo. E a senhora está tão contente com os polacos que os tem em casa e eles comem como esfomeados. O Sr. Boginski toca música com a senhora; ela arranha numas cordas que parece que estão a miar e ele sopra numa coisa que parece uma cana; tocam assim uma esquisita música de que a senhora gosta tanto que até dá vontade de rir. Foi depois disso que a menina, que está a dormir, chorou. Gastei bastante dinheiro do que me deu o senhor, mas ainda tenho a bolsa cheia. Apresento os meus respeitos ao senhor e à senhora; posso dizer que a menina já está arrependida da viagem e que a lição do senhor começa a fazer efeito e ela há-de ser boa e a menina volta mudada e o senhor não há-de ter mais razão de queixa.

Tenho a honra de cumprimentar respeitosamente o senhor e a senhora; envio saudades à Florência, ao Dagoberto, ao Carlinhos e à Amabilia.

Vossa dedicada serva para toda a vida,

Prudência Crépinet,

Estava a acabar de escrever o endereço quando Simplícia acordou, perguntando se já era dia.

- O quê, menina! Se já é dia? A senhora já perguntou duas vezes se a menina estava pronta.

- Ah! Meu Deus! - exclamou Simplícia, saltando da cama. - Porque não me acordaste, Prudência?

-Credo, menina! Dormia tão bem que não tive coragem.

- Depressa: água e sabonete!

- Aqui está, menina; tem aqui tudo pronto.

Simplícia lavou-se e penteou-se em menos de um quarto de hora. Acabara de se vestir e estava a terminar a sua oração, quando a porta se abriu com violência e a Sr. a Bonbeck apareceu.

- Que raio de hábitos vocês trazem! Parecem princesas! São nove horas e ainda por acabar de arranjar! E o café à espera há uma hora! Ah! Mas fica sabendo que não gosto disto. Quero pontualidade! Ouves, pequena?

- Perdão, minha tia; estava tão cansada que dormi até mais tarde. Eu não sabia... eu julgava...

- Bom, bom, depois te desculparás. Depressa, vem tomar o café, olha que os polacos têm os dentes grandes e até te podem devorar a ti.

Satisfeita com a sua graçola, a Sr. a Bonbeck retirou-se a rir, seguida por Simplícia. Os polacos cumprimentaram, puseram-se à mesa e comeram, como de costume, tudo que lhes foi servido.

A Sr. a Bonbeck entregou depois a Cozrgbrlewski música para gravar. Forneceu-lhe os apetrechos necessários e pô-lo a trabalhar até ao almoço. Boginski foi empregado a arrumar as músicas, afinar o piano e limpar os violinos e as flautas. Simplícia aborreceu-se, bocejou, ralharam com ela e retirou-se para o quarto a fim de escrever à mãe.

 

Primeira visita

Depois de almoçar, Simplícia, vendo que a tia se preparava para regressar ao violino, pediu-lhe autorização para ir ver as suas amigas com a criada.

- As tuas amigas? Que amigas tens tu aqui?

-As meninas Roubier e muitas outras que eu conheço de irem para o campo.

-Então vai, minha filha; faz o que quiseres; eu não sou nenhuma tirana, gosto da liberdade. Boginski, vamos tocar durante uma ou duas horas. Você, Coz, vá acompanhá-las e tome cuidado não se repitam as parvoíces de ontem.

- Sr. a Bonbeck, não culpa minha; é vestido esquisito e os modos e tudo; pessoas olhar, rir, garotos troçar e correr. Menina Simplícia deve não vestir vestido como ontem.

- Ah! Se é por isso, espera que eu já lá vou e faço-a vestir como deve ser.

A Sr. a Bonbeck partiu como uma flecha para o quarto onde Simplícia tinha acabado de abotoar o seu vestido de cetim castanho.

SR.a BONBECK - Que vem a ser esta maneira de vestir, menina? Estás doida? Queres que te sigam e façam gritaria, como ontem, todos os vadios da rua? Tira-me isso! Prudência, despe-a e torna a vesti-la à minha vista.

SIMPLÍCIA - Mas, minha tia...

SR.a BONBECK-... não há mas; vais tirar esse vestido e pôr outro imediatamente à minha vista.

PRUDÊNCIA - A menina não tem nenhum vestido mais simples, minha senhora.

SR.a BONBECK - Mas como diabo te enfeitaram? Que disparate! Põe o vestido que trouxeste na viagem, se não tens outro. Prudência tem dinheiro e amanhã vai com o Papão comprar-te um vestido; mas não quero que saias paramentada como um relicário.

SIMPLÍCIA - Minha tia, toda a gente se veste assim.

SR.a BONBECK - Ninguém, palerminha, ninguém. Vens dizer-me isso a mim, que vivo em Paris há cinquenta anos, sem sair de cá?

SIMPLÍCIA - Eu peço-lhe, minha tia, que me deixe pôr este vestido só hoje, para ir a casa das minhas amigas.

  1. A BONBECK - Para te insultarem como ontem! Não, não, cem vezes não!

SIMPLÍCIA - Vou de carro, minha tia! Não há perigo porque não me vêem.

SR.a BONBECK - De carro vai, se queres, fazes uma figura ridícula, troçam de ti nas casas onde fores, mas se isso te dá prazer, vai; contanto que não circules nas ruas, entendes?

SIMPLÍCIA - Não ando a pé, pode crer, minha tia.

SRa BONBECK - Ah! ah! ah! que figura a tua! É de morrer a rir. A minha cunhada perdeu o juízo para te embiocar com essas vestimentas.

Simplícia estava muito indignada por ver a tia a rir do que ela julgava tão belo e tão invejável, mas não se atreveu a dizer nada e acabou de se vestir, enquanto a Sr. a Bonbeck chamava Coz para ir buscar um trem.

-Vá depressa, meu amigo Coz, traga um trem e acompanhe-as, porque elas não conhecem coisa alguma; podiam levá-las ao matadouro ou ao jardim turco, que era o mesmo.

Coz despachou-se depressa. Simplícia estava pronta e Prudência esperava; subiram para o trem, Prudência disse a morada das meninas Roubier e o carro foi andando pelos bairros elegantes de Paris: as avenidas, a Praça da Concórdia, o Bairro de Saint-Germain, etc. Clara e Marta moravam na Rua de Grenelle. O trem parou no número 91. Coz desceu e ajudou Prudência e Simplícia a apearem-se. Acompanhou-as até junto do porteiro, a quem perguntaram pelas meninas Roubier.

-No primeiro andar, em frente - respondeu o porteiro...

Iam a subir, seguidas por Coz, quando o cocheiro do trem correu para eles:

- Eh, lá! Então, não me pagam?

COZRGBRLEWSKI - Paga-se depois das senhoras

voltarem.       !

COCHEIRO - Isso não! Não me contrataram à hora! têm de me pagar o serviço.           

Coz começou uma acesa discussão com o cocheiro;           

Prudência intrometeu-se para não deixar o seu amigo         

correr sozinho o perigo; já se ouviam palavras grosseiras; o cocheiro praguejava a valer. Coz demonstrou que conhecia bem este género de linguagem; Prudência, assustada, dirigia-se a um e a outro, sem se lembrar de acabar com o conflito, pagando ao cocheiro a importância que ele pedia; começavam a aparecer cabeças às janelas, até que o porteiro, cioso da honra da casa, conseguiu segredar a Prudência:

- Pague-lhe e acaba-se tudo.

-Tome, cocheiro, aqui tem o seu dinheiro; pegue lá, se faz favor, pegue lá - apressou-se a dizer Prudência, estendendo-lhe as moedas.

O cocheiro não esperou que lho dissessem duas vezes; agarrou no dinheiro e foi-se embora, resmungando. O porteiro voltou para o seu lugar, depois de olhar, espantado, para as fatiotas de Simplícia e de Prudência. Elas subiram a escada; Coz, fazendo o papel de criado, pediu para anunciarem Simplícia e ficou na antecâmara com Prudência.

Simplícia entrou, portanto, só, em casa de Clara e Marta, que se entretinham a fazer flores com as suas amigas Isabel, Valentina, Margarida e Sofia. O traje deslumbrante e ridículo de Simplícia causou o espanto de todas; olhavam-na mudas. Simplícia ficou um pouco embaraçada com estas demonstrações de surpresa; sentiu pela primeira vez que era ridícula, o que lhe deu um mal-estar tão visível que Clara notou-o e teve dó dela.

- Bom dia, Simplícia - disse-lhe, avançando para ela e apertando-lhe a mão. - Estás então em Paris! Desde quando? Vieste com a tua mãe?

- Não - respondeu Simplícia, com crescente embaraço - a mamã ficou em casa.

- Estás então só com o teu pai? - disse Marta.

- Não - respondeu Simplícia, ainda mais baixo -; o papá também ficou.

- Então porque vieste para Paris? - exclamaram elas.

Simplícia não sabia responder; começava a reparar no disparate que fizera; não sabia explicar a sua viagem e calava-se, enrolando o lenço nos dedos, de olhos baixos,

arriscando uma palavra, depois outra; por fim lembrou-se de responsabilizar a tia pela viagem.

- A minha tia não nos conhecia e gostava de nos ver. Mandaram-nos para casa dela com a Prudência, a minha criada.

MARGARIDA - Tenho pena de ti, Simplícia, pelo desgosto de estares separada da tua mãe e do teu pai. SOFIA - Mas porque aceitaste? Podias dizer a tua

mãe que não querias; não te mandavam à força.

SIMPLÍCIA - Mas... mas... o Inocêncio e eu tínhamos vontade de ver Paris.

As raparigas olhavam-na, surpreendidas, e, apesar do silêncio que todas conservavam, Simplícia adivinhou sem dificuldade que justamente este silêncio era uma censura e, se não lhe diziam que procedera mal, era só por delicadeza.

- Senta-te, Simplícia - disse-lhe por fim Clara. Olha as lindas flores que estamos a fazer. Podes ajudar-nos a cortar as tiras de papel, a arranjar os pés, os botões, as folhas...

Depois de ter trabalhado algum tempo, Simplícia perguntou:

-Como puderam fazer sozinhas estas flores tão bonitas?

MARTA - Tivemos uma professora de flores.

SIMPLÍCIA - Onde a arranjaram?

SOFIA - Em todas as lojas de flores há senhoras que vêm dar lições.

SIMPLÍCIA - Que bom! Há de tudo em Paris. No campo não há nada disso.

MARGARIDA - Sim, mas no campo vive-se mais à vontade; está-se mais em família, com os nossos pais e os nossos amigos.

SOFIA - Deves-te lembrar que Simplícia não se preocupa muito com a companhia dos pais, pois que preferiu vir para casa da sua tia.

CLARA - Porque dizes isso, Sofia? Provavelmente os pais mandaram-na vir.

SOFIA - Mas é verdade, Simplícia? Não gostarias mais de ficar em tua casa?

Simplícia corou, balbuciou e não sabia como responder sem mentir muito, quando Cozrgbrlewski veio tirá-la de embaraços, entreabrindo a porta. Espreitou, metendo a sua grande cabeça ruiva e, com um dedo, fez sinal a Simplícia para se aproximar. Como esta não respondesse ao sinal, ele introduziu metade do corpo, com grande espanto das crianças, e disse:

- Pst, pst, menina! Ser preciso vir já; Sr. a Prudência pedir para vir. Sr. a Bonbeck ralhar se menina demorar mais.

As crianças, surpreendidas e um pouco perturbadas a princípio, soltaram uma gargalhada que pôs Coz à vontade; este penetrou então completamente no aposento. As crianças, julgando-o doido, puseram-se aos gritos. Simplícia estava envergonhada e desolada. Coz continuava a avançar, sorrindo; as crianças recuaram até ao fundo do quarto, continuando a gritar pelas criadas. Abriram-se duas portas: a criada de Clara e de Marta entrou por uma, enquanto Prudência aparecia na outra. A criada, ao ver este homem ruivo, de cabelos compridos, bigode e barbicha, julgou que era um ladrão e chamou por socorro, a plenos pulmões; apareceram dois criados que participaram do erro da criada e se atiraram a Coz, que se debatia, gritando:

- Eu polaco; eu não fazer mal, eu procurar trem, eu amigo Sr. a Bonbeck... Deixem-me, deixem-me!... Polaco zangado é mau; eu matar muitos russos em Ostrolenka!

Quanto mais ele falava, maior era a ânsia dos criados em dominarem aquele doido perigoso. Tinham-no agarrado, seguravam-no com força e preparavam-se para o levar, quando Prudência, indo em seu socorro, gritou aos criados:

-Esperem, senhores; esse homem é nosso amigo, é o nosso salvador! É o Sr. Coz, um valente polaco. Acompanhou a menina Simplícia, protegeu-nos na viagem; deitou pela janela fora o maroto do cão que nos comeu a carne; vai connosco para toda a parte, é muito bom, podem ter a certeza.

A criada, que compreendeu o erro, disse aos criados que deixassem o polaco. Coz tinha o fato em desalinho; o nó da gravata na nuca, os cabelos desgrenhados. Ia arranjando o seu vestuário, os cabelos, a gravata, barafustando sempre:

- Eu, polaco, eu matar russos, eu procurar trem e chamar menina Simplícia; eu não contente e ir dizer à Sr. a Bonbeck.

Simplícia, corada e humilhada, conservava-se muda e imóvel; as crianças, que a criada tinha sossegado, compreendiam o seu equívoco e procuravam por sua vez tranquilizar Simplícia; Clara e Marta propuseram-lhe voltar depois de jantar para passarem mais tempo juntas; Sofia e Margarida pediram-lhe desculpa do que se passara e, de tal modo, que Simplícia ficou convencida de que a culpa era delas e não de Coz. Simplícia retomou a calma e retirou-se, prometendo voltar. Depois dela sair, as quatro meninas desataram a rir loucamente e rebolavam-se nas poltronas. A criada compartilhou deste acesso de alegria.

- Que visita tão divertida que nós tivemos! - exclamou, por fim, Margarida.

SOFIA - E que ridículo vestido o de Simplícia.

MARTA - E que figura a deste homem ruivo que a acompanha!

CLARA - Tive medo a valer! Estava convencida de que era doido!

MARGARIDA - Se ao menos Simplícia dissesse qualquer coisa para nos sossegar! Mas ficou muda que

nem um peixe!

CLARA - A pobre rapariga estava envergonhada. Sentia-se ridícula!

SOFIA - Porque lhe disseste para vir à noite, Clara? Vai-nos aborrecer horrivelmente.

CLARA - Porque ela estava tão atrapalhada que me fez pena. Como lhe disse para voltar, ficou convencida de que não a achámos ridícula nem aborrecida.

SOFIA - És muito caridosa; eu não lhe fazia esse convite.

CLARA - Fazias como eu, se tivesses reparado como a pobre rapariga estava envergonhada com o polaco e com a criada.

SOFIA - É bem feito! Para aprender a não deixar... os pais e vir divertir-se para Paris e aborrecer-nos com

as suas visitas.

CLARA - Não tens razão, Sofia; provavelmente os pais obrigaram-na a vir para a companhia da tia.

SOFIA - Deixa-te disso! Pode lá ser! Mandar a filha para Paris, contra vontade! Eu cá não acredito

nisso.

CLARA - Julga o que quiseres, mas não o digas.

SOFIA - Isso quer dizer que acreditas tanto como eu, mas por bondade finges pensar o contrário.

MARGARIDA - E, se assim for, faz a Clara muito bem e não deves censurá-la por isso.

SOFIA - Peço-te que não me aborreças; os teus sermões fazem-me perder a paciência.

MARGARIDA - Porque eu digo a verdade e não tens nada para me responder.

SOFIA - E tu tens a habilidade de irritar e falas... sem saber o que dizes, como as gralhas.

MARGARIDA - Onde é que esta menina teria ouvido gralhas a falar?

SOFIA - Deixa-me em paz! És muito aborrecida!

Margarida ia a replicar, mas Clara e Marta pediram-lhe que não continuasse a discussão e disseram o mesmo a Sofia; esta, acalmada, pôs-se a rir e abraçou afectuosamente Margarida, que se lhe lançou ao pescoço. As crianças contaram à mãe a visita de Simplícia e o medo infundado que tinham sentido. Sofia descreveu a maneira como Simplícia se vestia, censurando a sua permanência em Paris e rindo-se da figura e da linguagem do polaco e da Prudência. A Sr. a Roubier pôs termo a esta tagarelice, repreendendo-a pela sua pouca indulgência; contudo, achou que o convite de Clara era condescendente em demasia.

 

Cenas desagradáveis

Assim que Simplícia entrou para o trem, censurou Prudência por tê-la mandado buscar tão cedo e haver deixado entrar o polaco nos aposentos das suas amigas.

PRUDÊNCIA - Então que queria que eu fizesse, menina? Eu não me atrevia a entrar.

SIMPLÍCIA - Mas porque foste tão cedo?

PRUDÊNCIA - Porque o Sr. Coz tinha ido buscar o trem, e o cocheiro estava a protestar à porta em virtude de o fazerem esperar.

SIMPLÍCIA - Essa é boa! O que nos levou ao colégio do Inocêncio esperou muito mais tempo e não disse nada.

PRUDÊNCIA - Porque o preveniram de que era pago à hora, menina.

SIMPLÍCIA - E porque foi que Coz não disse o mesmo a este?

PRUDÊNCIA - Porque quando se ajusta um trem à hora, sai mais caro do que quando se paga à corrida.

SIMPLÍCIA - E que tem isso?

PRUDÊNCIA - É que o senhor seu pai recomendou-me que poupasse o dinheiro, e nós temos gasto muitíssimo até este momento.

SIMPLÍCIA - Ora! Agora, que estamos em casa da minha tia, já não gastamos mais.

PRUDÊNCIA - Desculpe, menina; o seu pai mandou-me pagar metade da despesa em casa da senhora sua tia, que não tem fortuna para nos dar hospedagem sem lhe pagarmos.

SIMPLÍCIA - Tudo isto é um aborrecimento. Este polaco é ridículo; aquelas meninas riram-se dele... e de mim também, com certeza.

PRUDÊNCIA - E que lhe importa que essas serigaitas se riam de si? Eu apoquento-me com isso, porventura? Não precisamos delas para nada. Imagina que me divirto em ir lá? Enquanto troçavam de si na sala, os criados riam-se de mim e do pobre Coz, cá fora.

SIMPLÍCIA - Que disseram eles? De que foi que troçaram?

PRUDÊNCIA - Sei lá! De tudo! Do cocheiro, do nosso trem, do seu lindo vestido, do meu, da minha boina bretã, como se eú estivesse para me mascarar de fantoche, como as filhas deles, com aquelas ridículas saias que parecem gaiolas a esbarrar em quem passa. Por isso é que Coz, que começava a enfurecer-se, foi procurar um trem para nos levar.

SIMPLÍCIA - É desagradável não ter podido ficar em casa das minhas amigas, por Coz e tu terem feito cenas ridículas.

PRUDÊNCIA - Como, menina? Que disse eu de ri dículo? Tomei partido por si, que é minha patroa, e hei-de fazer sempre assim, diga o que disser. Isto não é ridículo. E o pobre Coz é um rapaz muito bom, faz tudo que nós queremos, não se recusa a nada e só pede que lhe dêem de comer. Queria que ele a deixasse insultar sem responder?

SIMPLÍCIA - Quero mas é que me deixes sossegada; aborreces-me com as tuas explicações, tão estúpidas como tu.

PRUDÊNCIA - Ah, menina! Não é bonito o que está a dizer! Não, não é bonito!

A pobre Prudência pôs-se a chorar; Simplícia, impaciente, voltou-lhe as costas, censurando-se pela sua aspereza com a pobre criada, tão devotada e tão afeiçoada. Chegaram, sem terem dito mais palavras, à porta da Sr. a Bonbeck, no momento em que esta descia

a escada para sair. Prudência deu a Coz o dinheiro para pagar ao cocheiro e seguiu, tristemente, Simplícia, que ia ao encontro da tia.

  1. A BONBECK - Então já de volta? O teu lindo vestido não deve ter produzido o efeito que tu esperavas! Que cara de caso tu trazes! E tu, Prudência, porque estás a choramingar? Conta-me isso! Vocês hoje não trazem escolta de garotada!

PRUDÊNCIA - Hi! hi! hi! Minha senhora, é a me nina que ralha comigo, dá-me empurrões e chama-me estúpida. Mas eu não tenho culpa de que os criados em Paris sejam mal educados e trocem dos vestidos da menina e do Sr. Coz e do cocheiro. Que havia eu de fazer senão o que fiz? Defender a menina, que é a minha patroa, e o Sr. Coz, que tem muita paciência e é bom rapaz.

O rosto da Sr. a Bonbeck punha-se vermelho de cólera à medida que Prudência falava.

- Estúpida! - disse ela, agarrando Simplícia por um braço. - Ingrata! Pede desculpa a Prudência. Imediatamente!

Ouves? Dá-lhe um beijo e pede-lhe perdão.

SIMPLÍCIA - Mas, minha tia...

SR.a BONBECK - Não há mas. Deste um desgosto

a esta boa mulher, tão dedicada em te servir, e quero que lhe dês uma satisfação.

SIMPLÍCIA - Mas, minha tia...

  1. A BONBECK - Ah! Com os diabos! Tu resistes, malvada sem coração! De joelhos, agora de joelhos!...

Simplícia não obedeceu; o seu orgulho revoltava-se à ideia de se humilhar perante uma simples criada. A Sra. Bonbeck, cada vez mais encolerizada, sacudiu-lhe os ombros, fê-la dar uma pirueta, deu-lhe com um joelho nos rins e, com um berro, mandou-a recolher-se ao seu quarto, enquanto ela saía com Prudência e Coz.

Antes que Prudência e Coz pudessem cair em si, a Sr. a Bonbeck tinha-os agarrado pelos braços e arrastava-os para a rua.

- Vem, minha pobre Prudência, tu és boa rapariga.

Vens comigo comprar dois vestidos decentes à Simplícia, que é uma estúpida e uma ingrata; e também um chapéu, para substituir aquela extravagante carapuça de penas, e depois um casaco para completar o conjunto.

Amigo Coz: vai fazer o favor de nos acompanhar para trazer os embrulhos.

Coz fez uma vénia e seguiu-a, enquanto Prudência, mais embaraçada com a bondade da Sr. a Bonbeck do que com a sua cólera, a acompanhava a tremer e sem resistência.

Simplícia, sufocada de vergonha e de raiva por ter sido tratada tão brutalmente diante de testemunhas, apressou-se a ir para o quarto, atirou-se para cima da cama e pôs-se a soluçar violentamente.

- Como sou desgraçada - dizia ela -, por me ter entregue nas mãos desta mulher tão má! O papá não me devia ter mandado para casa dela! Se eu adivinhasse tudo o que me tem acontecido, não tinha dado ouvidos ao Inocêncio nem pedido para vir para Paris. Não me divirto nada! Aborreço-me de morte... estou mal instalada num quarto tão pequeno que até abafo, empoleirada, num quinto andar. Não tenho nada para me entreter. Sinto um medo horrível da minha tia! Meu Deus! Meu Deus! Como sou infeliz! E a estúpida da Prudência vai-se queixar à minha tia! Vai ouvir das boas esta noite.

Durante muito tempo, Simplícia continuou a formar projectos sinistros, a alimentar no seu coração sentimentos de cólera e de vingança, mas à força de chorar e de se aborrecer, teve por fim a ideia de pedir a ajuda de Deus, rezando. Deus escutou a sua prece, abrandou-lhe o coração e abriu-lhe os olhos para os seus próprios erros; ela compreendeu que tinha sido áspera e injusta para a pobre Prudência, a qual, pelo contrário, mostrara uma paciência e uma bondade enternecedoras, que também fora injusta para o polaco, que era benevolente e serviçal.

A sua cólera acalmou; só conservou ressentimento contra a tia, que a tratava com uma rudeza a que os pais não a tinham habituado, e pôs-se a escrever à mãe para lhe pedir, não para a fazer voltar já para junto dela, mas somente para a não deixar por muito tempo em Paris.

Já começo a aborrecer-me às vezes. A tia está sempre zangada; não sei que hei-de fazer para a pôr de bom humor; ela quer que eu esteja sempre a rir e eu tenho mais vezes vontade de chorar que de rir. Mas em breve vou-me divertir muito, porque as meninas Roubier convidaram-me para ir a casa delas e eu vou fazer visitas a todas as meninas que conheço. Espero ir ao teatro e aos passeios. Contar-lhe-ei tudo, minha querida mamã".

Enquanto ela se consolava escrevendo, a Sr. a Bonbeck comprava-lhe um vestido de fazenda azul-escuro e outro castanho com pintas azuis, um chapéu castanho e azul, enfeitado só com uma fita, e um casaco de pano preto. Entrou na sala, e disse a Coz que pousasse o embrulho.

- Vai buscar a Simplícia - disse à Prudência.

- A sua tia chama-a, menina - disse Prudência, entrando.

SIMPLÍCIA - Não quero lá ir, para ela não me bater. Prefiro ficar aqui contigo.

PRUDÊNCIA - Oh, menina, peço-lhe que vá; a Sr. a Bonbeck não tem paciência para esperar, bem sabe. Se ela se zanga outra vez!

SIMPLÍCIA - Se ela me bate, ponho-me a andar contigo.

PRUDÊNCIA - E para onde íamos, menina?

SIMPLÍCIA - Íamos tomar o combóio e voltávamos para casa. Decididamente, aborreço-me aqui.

PRUDÊNCIA - Sabe, porventura, se se aborrece? Só cá estamos há três dias!

A campaínha tocou.

- É a sua tia, menina! É a sua tia! - exclamou Prudência, assustada. - Vá lá, senão ela bate-lhe.

Simplícia, que partilhava o susto de Prudência e que tinha de se submeter às exigências da tia, foi ao seu encontro e viu-a já zangada.

- Que te prende, para não vires quando te chamo? Não gosto de esperar. Olha, aqui estão dois vestidos, um chapéu e um casaco, decentes; não sairás até um dos vestidos estar pronto. fá-lo com a Prudência; Papão também te pode ajudar. Leva isto e ao jantar não apareças com ar rabugento; não gosto disso. Já viste que sei servir-me das mãos e dos pés; não me faças recomeçar, que te chego com mais força que da primeira vez.

Simplícia não respondeu, agarrou no embrulho e levou-o para o quarto.

SIMPLÍCIA - A minha tia quer que nós façamos osvestidos e diz que não saio até ter um feito.

PRUDÊNCIA - Esteja descansada, menina, que eu vou despachar-me; mesmo que tenha de fazer serões, há-de tê-lo depois de amanhã.

SIMPLÍCIA - Não é preciso que te canses muito, Prudência. Ajudar-te-ei o melhor que puder.

PRUDÊNCIA - Está bem, menina; ajude-me, se quiser. Vou já começar a talhar um. Qual deles quer em primeiro lugar, menina?

SIMPLÍCIA - O das pintas azuis, que é aquele de que mais gosto.

Prudência agarrou no corte castanho e azul e começou por talhar a saia para dar a Simplícia uma ocupação fácil. O dia acabou sossegadamente; a Sr. a Bonbeck parecia haver esquecido a sua cólera; só o olhar de Simplícia revelava o que tinha sucedido.

 

Inocêncio no colégio

Dois dias depois, Simplícia tinha o seu vestido pronto. Prudência passara quase toda a noite a acabá-lo e no dia seguinte teve que suportar uma valente descompostura da Sr. a Bonbeck, que não queria serões, para não gastar luz. Simplícia, que se aborrecia durante aqueles dois dias e que mais de uma vez se lembrara com saudades dos pais e do campo, ficou satisfeita por se vestir para ir ver Inocêncio. Desta vez não foi de trem nem parou em todas as montras, e Coz, que as acompanhava, não teve que fazer calar os garotos nem

dissipar ajuntamentos. Chegaram, sem aventuras, ao colégio, e perguntaram por Inocêncio; mandaram-nos entrar para a sala e esperaram.

Enquanto as visitas esperam, vamos contar como Inocêncio passou os primeiros dias com os seus novos colegas.

Quando o director do colégio conduziu Inocêncio para o pátio onde brincavam os alunos, chamou-os a todos.

- Senhores - disse-lhes ele -, recomendo-lhes indulgência e caridade para este novo aluno que lhes trago. Já o maltrataram e eu não quero estas brincadeiras brutais que prejudicam o bom nome desta casa.

-Nós não fizemos nada, senhor director; brincámos só uns com os outros - exclamaram os alunos.

- Não é verdade - disse Inocêncio -; puxaram pelo meu casaco, atiraram-me ao chão, e fecharam a Prudência, a Simplícia e o polaco ali dentro.

-Mentes! - disse um aluno já crescido. - Não fomos nós que fizemos isso.

INOCÊNCIO - Foram vocês todos; e você, que está a falar, disse que era o delegado do senhor Director.

DIRECTOR - Ah! Então foi você o culpado desta falta de respeito, desta grande inconveniência para a minha casa e para as pessoas que me traziam um novo aluno?

ALUNO - Não, senhor; ele mente, não fui eu. INOCÊNCIO - Foi você; reconheço-o perfeitamente. E quando Prudência, Simplícia e o polaco vierem ver-me, também o hão-de testemunhar.

DIRECTOR - Vejo, pela sua cara, que é culpado e a eXpressão deste rapaz é a da verdade.

ALUNO - Mas, senhor...

DIRECTOR - Não vale a pena falar nisso. Já sei que foi você e no próximo domingo fica proibido de sair.

ALUNO - Mas, senhor...

DIRECTOR - Já disse. Não sai!

O director retirou-se, deixando Inocêncio entregue à vingança dos seus inimigos.

-Intriguista! Hipócrita! - disse Leão, o aluno mais velho, atirando-lhe um soco às costas.

-Malvado! Má-língua! - disse outro aluno, puxando-lhe os cabelos.

-Espião! - gritaram os outros, puxando-lhe as orelhas e os cabelos e dando-lhe pontapés e socos.

- Ai, ai! Socorro! Batem-me, arrancam-me os cabelos, arranham-me! - gritava Inocêncio, debatendo-se.

O director de estudo, habituado a estes gritos e combates naquela casa mal-comportada e mal-educada, não prestou atenção, até que os gritos se tornaram agudos e violentos. Dirigiu-se então para o grupo e abriu caminho até Inocêncio, que libertou das mãos e dos pés dos seus inimigos, magoado e soluçante.

- É uma vergonha, senhores! Um abuso da força!

Uma cobardia! Caírem cinquenta de uma vez em cima de um pobrezinho, magro, fraco e incapaz de se defender! Ficam todos de castigo.

- Mas ele foi um espião, senhor professor, e fez com que o Leão fosse castigado: merece apanhar.

-Bem vêem que ele acabou de chegar e não conhece os costumes do colégio. Era preciso desancá-lo por isso? Ficam todos de castigo até ao fim do recreio.

A resistência era inútil. Os alunos alinharam todos com a cara voltada para a parede, deixando Inocêncio senhor do campo de batalha. Este pôs em ordem o fato e os cabelos, olhou para os alunos com ar de triunfo e passeou de um lado para o outro por trás deles. Quando se aproximava de mais recebia um pontapé habilmente atirado; outros deitavam-lhe a língua de fora, atiravam-lhe pequenas pedras de areia, lançavam-lhe injúrias e ameaças.

- Não te hás-de rir, espião maldito! - disse Leão.

- Havemos de te ensinar a não ser espião! - disse outro.

- Fico ao pé do professor - respondeu Inocêncio.

- Saberemos encontrar-te só, Judas.

- Senhor professor - disse Inocêncio, aproximando-se -, eles chamam-me Judas, espião, intriguista e não sei que mais.

PROFESSOR - Cale-se, aborrece-me com essas queixas. Não os irrite, que eles não dirão nada.

INOCÊNCIO - Eu não digo nada: ando a passear. PROFESSOR - Está a ofendê-los. Imagina que eu não vejo o seu ar trocista e insolente?

INOCÊNCIO - Mas eles chamam-me Judas!

PROFESSOR - E têm razão. Previno-o de que, se continua assim, eles quebram- lhe os ossos e esfolam-no vivo, sem que eu consiga impedi-lo.

INOCÊNCIO - Ah! Meu Deus! Não posso ficar aqui; quero ir para casa da minha tia.

PROFESSOR - Não há tia que lhe valha. Está aqui e tem de ficar, porque eu sou o responsável por si e ninguém tem o direito de o vir buscar.

INOCÊNCIO - Vou escrever ao papá e à mamã; não quero ficar aqui para me partirem os ossos e me arrancarem a pele. Malditos rapazes! Detesto-os.

PROFESSOR - Deteste-os se quiser, mas não os importune; é no seu interesse que lhe digo isto.

O professor afastou-se, deixando Inocêncio muito embaraçado no meio do pátio. Quando levantou os olhos para os colegas, todos lhe fizeram negaças. Inocêncio ficou imóvel perante eles, procurando, sem resultado, um meio de defesa contra as agressões que previa e temia. Mas que podia ele fazer contra tantos?

O sino tocou enquanto ele reflectia.

- Para a aula! - gritou o professor.

Os alunos afastaram-se da parede com viva satisfação e dirigiram-se para a aula, desfilando diante de Inocêncio, e cada um deles foi-lhe dando de passagem um piparote, um beliscão, uma palmada, um pontapé.

Inocêncio, em vez de se afastar, deixou-se ficar como um palerma e seguiu atrás, choramingando. O professor indicou-lhe o lugar e mandou entregar-lhe os cadernos e os livros necessários.

O vizinho de Inocêncio beliscou-lhe as partes carnudas.

- Deixa-me, malvado! Não me toques! Não me toques!

- Silêncio, lá em baixo! - disse o professor.

Momentos depois a mesma implicação e a mesma reclamação de Inocêncio.

- Se torna a falar, marco-lhe uma nota má.

INOCÊNCIO - Não tenho culpa; ele está a dar-me beliscões.

PROFESSOR - Cale-se...

INOCÊNCIO - Mas é ele...

PROFESSOR (escrevendo no quadro) - Uma nota má para Gargilier.

INOCêNCIO (chorando) - Isso não é justo; a culpa não é minha.

PROFESSOR (escrevendo) - Duas notas más para Gargilier.

INOCÊNCIO (soluçando) - Vou dizer ao Director; isso não é justo.

PROFESSOR - Tem duzentos versos para copiar, Gargilier, por insubordinação e impertinência.

Partiram bravos e palmas de vários lados.

PROFESSOR - Silêncio! Maus corações! É uma maldade divertirem-se com a infelicidade de um colega!

DIVERSAS VOZES - Mas ele foi impertinente para si!

PROFESSOR- Desgosta-os muito, não é verdade, que ele seja impertinente para mim? Dir-se-ia que vocês nunca o são; súcia de insolentes e barulhentos, de mandriões!

ALGUMAS VOZES - Mas, senhor...

PROFESSOR - Silêncio! O primeiro que abrir o bico tem trezentos versos para copiar.

A ameaça deu resultado; um silêncio absoluto reinou na sala, ouvindo-se só o ruído do virar das folhas, os aparos a raspar no papel e os soluços de Inocêncio.

PROFESSOR - Vamos a acabar com esses gemidos, Gargilier! Que aborrecimento! Se eu ouço mais um soluço ou úm suspiro, tem de copiar quinhentos versos em vez de duzentos.

Inocêncio assoou-se ruidosamente, limpou os olhos e susteve o choro. Começou a sua cópia, praguejando sempre contra o professor e os alunos e lamentando encontrar-se naquele colégio, objecto dos seus mais ardentes desejos há vários meses.

Vou ter uma linda vida nesta maldita casa!...

pensava ele, enquanto lhe caíam lágrimas silenciosas. Maus colegas, professores injustos e cruéis! Ralham comigo, castigam-me sem razão e não me deixam falar para me justificar! Se eu soubesse que o colégio era tão desagradável, nunca tinha pedido para vir para cá.

Os vizinhos de Inocêncio, contentes por o verem castigado, não o atormentaram mais e deixaram-no tranquilamente acabar os seus duzentos versos, o que foi fácil; como não tinha exercícios da aula anterior, empregou as duas horas do estudo a fazer a cópia.

Quando tocou o sino, Inocêncio entregou o caderno ao professor, que o examinou e o achou em ordem.

- Está bem. Tem uma nota boa.

- Obrigado. O senhor é muito bom – respondeu Inocêncio, satisfeito.

O professor, que não estava habituado a delicadezas e cumprimentos dos seus alunos, pareceu ficar muito bem impressionado e, sem dizer nada, apagou as notas más que tinha marcado antes.

A aula passou-se como todas as aulas do colégio: o professor foi aborrecido, severo, por vezes injusto; os alunos mostraram-se barulhentos, indisciplinados, insuportáveis; um santo teria perdido a paciência. Inocêncio estava espantado; teve dificuldade em compreender a lição, tantas foram as interrupções, o sussurro e as reclamações. Dois alunos foram expulsos da aula; Inocêncio imaginava encontrá-los tristes e envergonhados, mas ficou surpreendido ao ouvi- los, no recreio, rir da expulsão e contar que tinham conseguido esconder-se do director.

- Como fizeram isso? - perguntou Inocêncio.

ALUNOS - Não foi difícil: em lugar de ir para a sala de estudo, ficámos na sala a descansar e a brincar. E quando vocês vieram, misturámo-nos como se tivéssemos saído da aula.

INOCÊNCIO - E se entrasse alguém?

ALUNOS - Ora! Ninguém lá vai a esta hora; e se fosse, escondíamo-nos debaixo da mesa, que tem um pano muito grande por cima; ninguém nos via.

INOCÊNCIO - E se o professor diz ao Director que os expulsou?

ALUNOS - Não há perigo. Assim que sai da aula não pensa mais no caso e, além disso, encontra-se poucas vezes com ele.

- Ouve lá, Gargilier - exclamou um aluno -, não comes nada com o pão?

INOCÊNCIO - Não tenho nada.

ALUNO - E porque não compras qualquer coisa? INOCÊNCIO - O quê?

ALUNO - O quê? Chocolate, caramba! Pastéis, nozes, maçãs, qualquer coisa.

INOCÊNCIO - Mas onde?

ALUNO - No porteiro, imbecil: ele vende tudo.

INOCÊNCIO - Não sei como hei-de fazer.

ALUNO - Tens dinheiro? Compro-te o que quiseres!

INOCÊNCIO - Tenho vinte francos, mas, na algibeira, só trago vinte cêntimos.  

- Está bem; dá-mos cá: vais ver.

O aluno correu para o porteiro.

- Tio Frimousse, tem alguma coisa fresca?      

PORTEIRO - Creio que sim: escolha.   

ALUNO - Levo dez bolos, duas maçãs, um quarteirão de nozes e duas tortas. Quanto é tudo?

PORTEIRO - Dois francos e quinze cêntimos.

O aluno não se preocupou em verificar a conta e não reparou que lhe levavam trinta cêntimos a mais.

ALUNO - Tome: aqui tem um franco por conta; ponha o resto na conta do Gargilier.

PORTEIRO - Gargilier? Não conheço. Não abro crédito a desconhecidos.

          ALUNO - É o novo aluno que chegou esta manhã; o pai é muito rico e dá ao filho tudo que ele quer. Não há perigo de perder com ele.

PORTEIRO - É possível! Mas, apesar disso, não me importava de ter o meu dinheiro. Se amanhã não me pagarem, faço barulho.

ALUNO - Amanhã pagam-lhe, sou eu que lho digo.

PORTEIRO - Você, que nunca tem dinheiro! Os outros é que pagam sempre por si.

ALUNO - Que lhe importa, se nunca perde nada?

Eu desenvolvo o seu negócio.

PORTEIRO - E alimenta-se bem. Até já comeu metade das compras do seu protegido. Como se chama esse rapaz?

ALUNO - Gargilier! Uma boa peça! Estúpido como não há outro. Ingénuo como nunca se viu: um verdadeiro parvo.

PORTEIRO - Bom, bom, havemos de aproveitá-lo; obrigado. Olhe, não coma tudo!

ALUNO - Não, não; só como metade: o resto é para ele.

O aluno partiu a correr e pôs nas mãos impacientes de Inocêncio cinco bolos, uma maçã, dez nozes e uma torta.

ALUNO - Toma, Gargilier, vais-te regalar; chega-te para dois ou três dias; deves-me um franco e quinze, que paguei por ti.

INOCÊNCIO - Que caro! Dois francos e quinze por tão pouco!

ALUNO - Chamas a isso pouco! Cinco óptimos bolos...

INOCÊNCIO - Já não estão muito bons. São secos como arenques.

ALUNO - A maçã é magnífica...

INOCÊNCIO - Pequena e engelhada, e chamas-lhe magnífica!

ALUNO - Dez nozes, uma torta excelente!

Inocêncio provou a torta e disse-lhe, fazendo uma careta:

-A cozinheira da mamã faz melhores: sabe a ranço e a poeira!

ALUNO - Palavra de honra, meu caro, para outra vez compras tu e escolhes à tua vontade. Não te faço mais recados. Entretanto, dá-me cá o meu dinheiro.

INOCÊNCIO - Dou-to quando formos para o estudo: pus o dinheiro na carteira.

O aluno, satisfeito com o seu êxito, não insistiu. Inocêncio provou de tudo e tanto, que não lhe ficou nada para o dia seguinte. Ao voltarem para o estudo, deu ao aluno infiel uma moeda de cinco francos e pediu-lhe o troco.

-Agora não tenho, mas dou-to assim que tiver.

O aluno correu ao porteiro e disse, entregando-lhe a moeda de cinco francos:

-Tome, tio Frimousse: Gargilier manda-lhe cinco francos. Guarde-os para ficar em conta corrente. Ele dá-lhe uma ou duas moedas de cinco francos de tempos a tempos. Assim fica pago adiantado e o senhor tem a certeza de não perder.

O porteiro, contente com esta combinação, por meio da qual podia obter consideráveis lucros, agradeceu ao aluno que lhe prestava este serviço e testemunhou-lhe a sua satisfação oferecendo-lhe um pau de chocolate, que ele aceitou e devorou alegremente.

Inocêncio julgava ter entrado nas graças dos seus colegas; os últimos recreios tinham-se passado bem. O director de estudo, que os vigiava de perto, não teve nada que dizer sobre o comportamento moral dos alunos com Inocêncio, a quem ele honrava com uma protecção especial, procurando todas as ocasiões para lhe ser agradável. Os alunos reparavam bem nesta protecção e cochichavam, entre si acerca dela, mas não mostravam ciúmes nem ressentimentos. Tinham-se passado três dias desde a entrada de Inocêncio: ele parecia habituar-se aos seus colegas e, estes, por seu turno, pareciam não haver conservado nenhuma recordação das tempestades do primeiro dia. Mas esta calma era enganadora: o esquecimento do passado era só aparente.

Leão não perdia de vista a sua vingança, exasperado com a aproximação do domingo, que era o seu dia de castigo. Ele tinha esperado em vão um momento de ausência ou de distracção do professor, mas via-o sempre atento no seu posto. Na sexta-feira, o director mandou chamar o professor para a verificação das notas dos alunos. Leão notou a sua ausência e fez um sinal de antemão combinado com os alunos da classe mais adiantada; ouviu-se um hop! retumbante e toda a classe se precipitou sobre o infeliz Inocêncio: arrastaram-no para um canto e começaram aí o que eles chamavam a prensa ou o apertão. Atiraram-se todos para cima de Inocêncio para comprimi-lo, esmagá-lo contra a parede; os mais próximos esmagavam-no com o seu próprio peso e os que se seguiam ajudavam à compressão. O desgraçado Inocêncio, aterrorizado, desesperado, quis gritar, mas os seus gritos eram abafados pelas exclamações de alegria e de triunfo dos seus carrascos. Sufocava cada vez mais; o terror tirava-lhe a respiração; os olhos injectavam-se-lhe de sangue; a voz não lhe saía; o seu olhar suplicante pedia misericórdia - e os malvados empurravam, empurravam sempre, rindo-se dos gemidos da sua vítima, sem pensarem no mal que lhe causavam. Neste momento, ouviu-se um outro grande brado, partido de outro grupo. Era a classe média, a de Inocêncio, que, a princípio espectadora indiferente do apertão, começou a indignar-se e a comover-se quando viu a tortura que infligiam ao condiscípulo. Paulo, Luís e Jaime combinaram rapidamente libertar o seu colega; amotinaram a classe, puseram-se à sua frente e, soltando um formidável hurrah! atiraram-se como leões ao grupo dos que empurravam: agarraram-nos pelos fatos, puxaram-lhes as pernas, os cabelos, as orelhas, forçaram-nos a largar a presa e chegaram assim até junto de Inocêncio, que encontraram ofegante, sem fala e quase sem abrir os olhos. Enquanto Paulo, ajudado por outros colegas, levava Inocêncio para um sítio mais arejado, Luís e Jaime comandavam os amigos no combate contra os alunos mais adiantados, que sovaram e atiraram de pernas para o ar, apesar de mais fortes. No mais aceso da batalha, mas quando a derrota dos mais crescidos se verificava por uma fuga geral, apareceram o director e o professor, atraídos pelos estranhos gritos que tinham ouvido.

Inocêncio estava estendido no chão; Paulo, ajudado por três colegas, tinha-lhe desatado a gravata e desabotoado o casaco, e molhavam-lhe a testa e as fontes com água fria. Os olhos de Inocêncio estavam fechados, os dentes cerrados, as mãos crispadas convulsivamente e o rosto pálido e contraído.

O pátio do recreio era um vasto campo de batalha; combatia-se por toda a parte; os mais crescidos fugiam diante dos outros, que eram em maior número; alguns retiravam-se socando e insultando os seus perseguidores.

- Que vem a ser isto, por amor de Deus? - exclamava o director. - Hervé, trate de restabelecer a ordem enquanto eu vou saber o que aconteceu.

Aproximando-se do grupo que rodeava o ferido, perguntou a Paulo o que havia e porque estava Inocêncio em estado tão deplorável.

- O senhor - respondeu Paulo, com vigor e calma -, o senhor sabe que eu nunca denuncio um colega, mas hoje sentia-me culpado se lhe ocultasse a verdade. Por causa da denúncia de Gargilier contra o Leão Granier, este jurou, com o Jorge Crépu e o Almiro Dandin, vingar-se do pobre rapaz, que não conhecia os hábitos da casa e que imaginava proceder lealmente ao dizer a verdade. Eles esperaram a ausência do senhor Hervé e apertaram o Gargilier, empurraram-no até que ele ficou incapaz de se defender. Eu e os meus colegas corremos a libertá-lo quando reconhecemos que ele se encontrava em perigo, mas só o conseguimos a muito custo e depois de algum tempo; quando pudemos libertá-lo ele estava a perder os sentidos. Trouxemo-lo para aqui, enquanto os outros continuavam a luta, e não sabemos que fazer para ele voltar a si.

- Vai chamar depressa um médico - exclamou o director, dirigindo-se a um deles. - Vocês procederam bem, meus amigos- acrescentou, apertando fortemente a mão de Paulo, Luís e Jaime. - Quanto a esses tratantes, vão apanhar o castigo que merecem.

O director de estudo conseguira restabelecer a ordem: a classe dos mais crescidos, envergonhada e receosa, de olhos no chão e cabeça baixa, fora alinhada a um lado do pátio; a classe do meio, radiosa e triunfante, estava colocada em frente, de cabeça erguida e olhar brilhante.

- Senhores - disse o director, dirigindo-se à classe vitoriosa-, vocês comportaram-se valentemente, com humanidade e generosidade; como prova da minha satisfação, vão ser riscadas todas as vossas notas más.

Este anúncio foi recebido com entusiasmo aos gritos de: Viva o senhor director do colégio!

Depois voltou-se para a classe dos mais velhos.

- E vocês - disse-lhes - conduziram-se como selvagens e como covardes! (Sentiu-se no auditório um frémito de cólera. ) Sim, senhores, como covardes!repetiu o director, vigorosamente. - Lançaram-se todos contra um; serviram-se com covardia e com crueldade de um meio já de si bárbaro, e que rapazes honrados e de bom coração deviam repelir indignada mente. Fugiram diante dos mais novos, vencidos e expulsos: aqueles com a força do sentimento generoso que os arrebatou, e vocês com a fraqueza do sentimento da vossa própria degradação. Granier, Crépu e Dandin, considerem-se expulsos desta casa; ficam de castigo até que os vossos pais os venham buscar... Ah! Nada de reclamações! Seriam inúteis - continuou o director-, nunca perdoo as faltas de coração e de honra. E, quanto aos outros, ficam proibidos de sair até nova ordem; voltem para o estudo, o recreio acabou.

Toda a classe desfilou em silêncio e foi para a sala de estudo; a ausência do director permitiu-lhes meditar sobre os acontecimentos, em que tinham sido vítimas da sua maldade. Discutiram, censuraram-se mutuamente por se terem deixado arrastar àquilo e lamentaram a proibição que os obrigava a não sair no domingo seguinte. Um já combinara ir ao teatro, outro ia jantar com uns amigos, um terceiro tinha uma partida de xadrez estupenda, outro, ainda, tencionava ir a casa de um tio muito rico onde havia uma rifa com prémios em todos os números. Alguns gemiam e choravam, mas poucos se arrependiam sinceramente e se importavam com a má acção que tinham cometido; entre estes havia um, Heitor Froment, que tinha estado calado e com a cabeça entre as mãos, e que, de repente, deu um murro na mesa e exclamou:

- Pois bem, meus amigos, é bem feito! Só temos aquilo que merecemos! Há seis meses que nos deixamos arrastar por esses três malandros que vão ser expulsos, com o que eu fico muito contente; só temos proibições, castigos, repreensões; não sei se isso vos dá prazer, mas, por mim, declaro que me aborrece e que quero voltar a ser o que era: um bom aluno e uma pessoa honesta, como o Paulo River, que nos denunciou. Ele teve razão e...

- Ele é um patife e covarde! Não lhe torno a falar!

- exclamou um aluno, furioso.

- Garanto-te que é um rapaz valente e honesto. Os covardes somos nós, como disse o director.

- Ah! vais-te virar, grande fingido?

- Não me viro nem estou a fingir; digo aquilo que penso e penso o que digo.

- Imbecil! - exclamou o outro aluno, encolhendo os ombros.

Heitor não respondeu; agarrou no papel e pôs-se a escrever. Os outros, depois de algum tempo de discussão e de lamentações, fizeram como ele. O resultado foi os exercícios ficarem mais bem feitos que de costume, as lições bem apresentadas, o silêncio mais respeitoso. O director de estudo não teve que marcar más notas.

Enquanto os culpados se dirigiam, uns para o castigo e outros para o estudo, aquele que fora a toda a pressa procurar um médico, não o encontrara e andara de casa em casa, fazendo pequenas paragens, num café ou noutro, quando encontrava um amigo que lhe oferecia qualquer bebida; entretanto, Inocêncio refazia-se pouco a pouco do susto e do desmaio: abriu os olhos, a boca, respirou fundo, levantou-se, e olhou em volta com ar apatetado. Quis andar, mas teria caído se os seus novos amigos não o amparassem; olhou-os com surpresa, tentou falar, mas não conseguiu articular uma palavra.

O director e o professor Hervé mandaram vir um banco em que sentaram Inocêncio. Fizeram-no tomar uns goles de água fresca, esfregaram-lhe as fontes, a testa e a cara com água e vinagre. Voltou completamente a si e, quando pôde falar, agradeceu vivamente aos alunos que lhe prestaram estes cuidados e desfez-se em lágrimas.

- Isso faz bem - disse o director -, alivia. Deixem-no chorar à vontade.

Inocêncio chorou durante uns minutos; acalmou-se gradualmente e, voltando-se para o director, agradeceu-lhe a sua bondade; fez outro tanto ao professor; depois perguntou aos alunos o que acontecera desde que perdera o conhecimento, quem o tinha salvo e onde estavam os seus inimigos.

Paulo explicou-lhe o sucedido; o director completou o relato e fez grandes elogios a Paulo, Luís e Jaime. Inocêncio pediu-lhes que continuassem a protegê-lo cada vez mais.

- Podes estar descansado que não corres mais perigo. O senhor director expulsou os três patifes que eram sempre os organizadores das maldades; os outros apanharam um susto e hão-de acalmar. Mas, se quiserem atormentar-te, cá estamos nós. Alcançámos uma vitória retumbante! Vinte e três da nossa aula puseram em fuga doze dos adiantados!

- Somos os zuavos do colégio! - exclamou Luís.

-Isso mesmo! Vivam os zuavos! – respondeu Jaime.

- Meu rapazinho, devias ir para a enfermaria, e deitar-te - aconselhou o director.

- Sim, senhor - respondeu Inocêncio, levantando-se.

Os seus amigos pediram autorização para o conduzirem lá e recomendá-lo à enfermeira. O director consentiu, e Inocêncio e a sua escolta fizeram uma entrada triunfal e ruidosa na enfermaria. Felizmente não estava lá nenhum doente naquele dia. Contaram à enfermeira o que tinha acontecido a Inocêncio; a narrativa arrastava-se e foi recomeçada dez vezes; por fim, a classe foi obrigada a retirar-se para o estudo e Inocêncio ficou na cama, completamente só, sem ninguém para o lamentar, para o consolar, para o entreter. A enfermeira ia e vinha, lia, trabalhava e nem sequer olhava para ele.

Acabou tristemente o dia. Dormiu mal. Levantou-se no dia seguinte depois da visita do médico, que declarou não ter nada de importância. Trouxeram-lhe de comer; e ele, que tinha uma fome medonha, queria devorar quatro vezes mais do que aquilo que lhe davam, mas a enfermeira foi inflexível; Inocêncio passou mais um dia triste, sem qualquer ocupação. Alguns alunos da sua classe vieram vê-lo, por momentos. Paulo trouxe-lhe um livro engraçado, Jaime deu-lhe berlindes, Luís entregou-lhe, às escondidas, dois bolos e um pau de chocolate, que ele comeu deliciado; a enfermeira só reparou quando ele acabava e já não lhe podia apreender nada; limitou-se a ralhar, ameaçando fazer queixa. Inocêncio aborreceu-se, lamentando-se que tinha fome. Foi esta a única distracção. No segundo dia, que era domingo, estava tão bem que lhe permitiram sair da enfermaria e mesmo dar um passeio, se o viessem buscar. Mas infelizmente ninguém apareceu. Os alunos saíram todos, excepto os da classe mais adiantada, condenados à detenção, mas Inocêncio ficou; nem a tia, nem a irmã, nem Prudência se lembraram dele.

 

Na sala

Depois do almoço, Inocêncio retirou-se, tristemente, para um canto do pátio, quando ouviu chamar: Sr. Gargilier, à sala.

Brilharam-lhe os olhos, e precipitou-se para a porta que dava para a sala. Abrindo-a, deu de cara com Simplícia, Prudência e Cozrgbrlewski.

- Simplícia, Prudência - exclamou, com um tom que as surpreendeu-, como estou contente em ver-vos! Boa tarde, Sr. Coz. Como tem passado? Como está a minha tia?

SIMPLÍCIA - Estamos bem e a tia, também. Que tens tu? Porque estás tão contente por nos ver?

INOCÊNCIO - Oh, sim! Estou contente! Se soubesses como é triste estar só, sem amigos, sem ninguém que goste de nós, que se interesse por nós!

SIMPLÍCIA - Como, só? Aqui estão perto de cem rapazes.

INOCÊNCIO - Estão perto de cem e, contudo, é como se estivesse só.

COZRGBRLEWSKI - Ora, ora! Sr. Inocêncio não contente? Não gostar estar sem irmã e sem boa senhora?

INOCÊNCIO - Aborreço-me de estar só.

SIMPLÍCIA - A culpa é tua! Porque quiseste vir para um colégio de Paris? Eu também me aborreço e muito...

INOCÊNCIO - Mas estás com a tia.

SIMPLÍCIA - É muito agradável estar com a tia!

Dá-me bofetadas e ralha comigo constantemente. Detesta-me.

INOCÊNCIO - Tens a Prudência.

SIMPLÍCIA - Prudência é minha criada; não posso fazer dela uma companhia.

INOCÊNCIO - Mas gosta de ti, e aqui ninguém me estima.

SIMPLÍCIA - Porque vieste? A culpa é tua.

INOCÊNCIO - Sim, a culpa é minha; garanto-te que já me arrependi bastante.

SIMPLÍCIA - E então eu? Se pudesse voltar para casa, como ficava contente!

INOCÊNCIO - Em que te entreténs?

SIMPLÍCIA - Em nada; aborreço-me.

INOCÊNCIO - E tu, Prudência?

PRUDÊNCIA - Oh! Não me falta que fazer; não me aborreço. Lavo a roupa, passo a ferro, coso, lavo a loiça, ajudo na cozinha e passeio com a menina.

INOCÊNCIO - És muito feliz por não te aborreceres; quanto a mim aborreço-me muito.

SIMPLÍCIA - Então não fazes nada?

INOCÊNCIO - Nada.

SIMPLÍCIA - Em que gastas o tempo? Eu julgava que no colégio se trabalhava muito.

INOCÊNCIO - E é verdade; mas eu não pude fazer nada porque estive doente.

PRUDÊNCIA - Que teve?

INOCÊNCIO - Eles empurraram-me, esborracharam-me, por pouco morria abafado e caí sem sentidos. Paulo, Luís e Jaime livraram-me.

PRUDÊNCIA - Mas é abominável! E porquê? Que foi?

Inocêncio, satisfeito por excitar a compaixão, contou pormenorizadamente a agressão de que fora vítima e a expulsão dos três alunos que tinham levado os outros a fazer a prensa. Simplícia admirava mais a coragem dos defensores de Inocêncio do que lamentava o irmão. Quando acabou a narrativa, Prudência chorava copiosamente. Cozrgbrlewski olhava para o tecto com olhar feroz, cerrava os punhos e repetia:

- Se eu estar lá, eu matar todos, como em Ostrolenka. Desordeiros, bandidos, animais ferozes!

Simplícia conservava-se impassível e dizia de quando em quando:

- Ora aí está!... A culpa é tua! Quiseste vir para o colégio... ... Aí está o que ganhaste com a tua ideia...

INOCÊNCIO - Cala-te, já me estás a aborrecer! Eu sabia, porventura, que estes rapazes eram tão maus?

PRUDÊNCIA - Que vai ser de si, com tais malandros? Vão parti-lo aos bocados.

INOCÊNCIO - O director expulsou os três piores; os outros não se atrevem. E agora tenho amigos para me defenderem.

COZRGBRLEWSKI - Foi grande que fez isso?

INOCÊNCIO - Sim, era da classe dos mais crescidos.

COZRGBRLEWSKI - Patife! Grande contra pequeno! Covardes! Covardes!

No momento de maior indignação de Coz, entraram na sala dois alunos da classe mais adiantada. Coz precipitou-se para eles:

- Vocês, que classe? Pequena ou grande?

- Grande, como vê; já não somos meninos.

- Ah! Vocês grande! Vocês covarde! Vocês prensar

Sr. Inocêncio! Toma para grandes, toma para covardes, toma para prensa.

E cada toma era acompanhada de um sarilho de braços e de pernas que deitou por terra os dois rapazes antes que eles pudessem dar por isso. Prudência aplaudia, Simplícia gritava e Inocêncio estava boquiaberto.

Coz, de punhos ameaçadores, olhava, com um sorriso de satisfação, para os dois alunos estendidos a seus pés, os quais se levantaram lentamente, aterrados.

Uma vez de pé, lançaram a Coz um olhar ameaçador e saíram da sala. Coz, esfregando as mãos, a rir, andava a passos largos de um lado para o outro da sala.

INOCÊNCIO - O senhor fez mal, Coz; eles vão fi car furiosos contra mim.

COZRGBRLEWSKI - Eles covardes, não atrever fazer nada. Os seus amigos pequenos fazer medo aos grandes.

- Com certeza que fez muito mal, Sr. Coz - replicou Simplícia, com azedume. - Estes dois tinham ar de bons rapazes, e o senhor foi muito grosseiro com eles.

COZRGBRLEWSKI - Eu não grosseiro, menina, mas eu justo; castigar covardes, grandes e pequenos.

SIMPLÍCIA - Mas eles estão castigados porque não saem hoje, que é domingo.

COZRGBRLEWSKI - Isso não chegar, menina, não chegar; eu dar pancadas: ser melhor.

- Este polaco é insuportável - murmurou Simplícia, encolhendo os ombros.

- Não sai connosco, Sr. Inocêncio? – perguntou Prudência, depois de meia hora de conversa. - O domingo é para sair. Janta lá fora e Coz vem trazê-lo logo.

INOCÊNCIO - Bem queria, mas é preciso ter licença.

PRUDÊNCIA - Então como há-de ser?

INOCÊNCIO - Vou pedir ao Director. Esperem, que eu já volto.

Inocêncio levantou-se, abriu a porta, soltou um grito e tornou a entrar, de um salto, na sala. Coz, Prudência e Simplícia repetiram o grito, pois Inocêncio estava da cor de um preto; a cabeça, a cara, o fato e as mãos, estava tudo coberto de uma camada negra e viscosa. Continuaram os quatro a gritar, enquanto pela porta ainda aberta espreitavam cabeças de alunos, que apareciam e se retiravam a seguir; as gargalhadas no pátio respondiam aos gritos de angústia. Apareceu o porteiro, viu Inocêncio, adivinhou o que se passara e saiu precipitadamente, para ir procurar os professores. Estes não tardaram a aparecer e manifestaram a sua cólera ao verem esta nova maldade dos seus alunos. Os dois rapazes que Coz desancara tinham-se reunido em conselho com os colegas e decidiram que Coz ou Inocêncio apanhariam o baptismo. Com um cordel penduraram uma lata de graxa líquida por cima da porta, de tal maneira que, ao abrir-se esta, devia virar- se a lata, a qual se despejaria em cima da pessoa que saísse em primeiro lugar. Estavam seguros de que a vítima seria Inocêncio ou um dos seus companheiros, porque só eles estavam na sala. Vingaram-se, assim, da saraivada de pancada que Coz lhes dera.

Os professores levaram Inocêncio para a cozinha, onde foi ensaboado com água quente, da cabeça aos pés. Prudência quis acompanhá-lo e prestar os seus cuidados ao jovem patrão. Simplícia e Coz ficaram na sala; Simplícia a ralhar com Coz, censurando-o por ter excitado a cólera dos alunos, injuriando-os e batendo-lhes sem razão. Coz não dizia nada e suportava as acusações de Simplícia com uma paciência imperturbável.

Por fim, Inocêncio regressou, limpo como antes do baptismo da graxa, vestido com o seu famoso casaco a arrastar, com as suas grandes calças novas, com um laço de grandes pontas e as botas de verniz, de tacões muito altos. Prudência mostrava-se orgulhosa com o traje do seu patrão. Inocêncio estava tão contente por vestir o mais lindo fato, que já nem pensava no sucedido.

O director, que se preocupava com a reputação da casa, estava sombrio e descontente; disse a Prudência e a Simplícia para não se alarmarem com o que sucedera ao Inocêncio, e que castigaria severamente os culpados, para tal coisa não voltar a acontecer. Simplícia balbuciou algumas palavras de agradecimento, Prudência fez reverências umas atrás das outras, Coz inclinou-se três vezes, e depois saíram todos, com Inocêncio.

O director entrou no pátio, mandou formar todos os alunos e perguntou o nome dos novos culpados. O silêncio foi a única resposta.

- Os culpados não podem ficar impunes - disse o director -; toda a classe fica detida até que os culpados se apresentem; nem recreios nem passeios.

O director retirou-se. Os alunos olharam-se ansiosamente e todos rodearam Gregório e Honorato, os dois instigadores.

Vão-nos deixar apodrecer aqui até às férias, digam lá? Fizeram um bonito serviço! Ficamos todos fechados porque lhes apeteceu apanhar uma sova e vingar-se desse papalvo do Gargilier. Este rapaz traz enguiço.

Deu-nos mais aborrecimentos em oito dias do que os que tivemos num ano inteiro.

GREGÓRIO - Então porque se queixam? Ele só teve o que merecia. Detesto-o!

ALUNOS - Mas isso não é razão para fazer uma estupidez que nos obrigue a ficar presos.

GREGóRIO- Ora! Vocês todos disseram que sim, quando o Honorato e eu falámos em baptizá-lo com a graxa.

OUTRO ALUNO - Mesmo, tínhamos que dizer que sim, para também não ficarmos de mal convosco.

ALUNOS - Vocês vão confessar, e hoje mesmo, antes do recreio: senão, apanham das boas, podem ter a certeza.

Gregório e Honorato afastaram-se para conversarem, enquanto os alunos continuaram a agitar-se e a deliberar acerca das represálias a exercer sobre os

culpados. Decidiram assaltar-lhes as carteiras e rasgar-lhes os cadernos, despejar-lhes tinta nos livros, encharcar-lhes as camas, roubar-lhes o calçado, queimar-lhes as escovas do cabelo, deitar-lhes terra e cinza na comida, puxar-lhes os cabelos e as orelhas, retalhar-lhes os fatos, e ainda outras invenções deste género.

Quando voltaram para as aulas, Gregório e Honorato, que tinham sabido por alguns colegas da decisão tomada contra eles, julgaram prudente confessar tudo e pediram ao professor para ir dizer ao director que eram eles os culpados da partida feita ao Inocêncio. O professor mandou-os irem eles próprios e autorizou-os a sair da aula.

- Que querem? Porque deixaram o estudo? - perguntou-lhes rudemente o director, ao vê-los entrar.

Os dois alunos balbuciaram palavras soltas para explicar que tinham sido eles que haviam pendurado a lata da graxa.

- Bom, fizeram bem em confessar a verdade; o castigo é assim mais leve. Em vez de os expulsar, como faria se os descobrisse sem terem confessado, limito-me a proibir-lhes o recreio durante três dias e o passeio no bosque na próxima quinta-feira. Podem ir-se embora.

Foi assim que terminou mais esta aventura de Inocêncio. Desde este dia, os vexames a que foi submetido foram menos desagradáveis e menos espectaculosos, mas a classe adiantada conservou sempre contra ele sentimentos de ódio e de vingança que muitas vezes o fizeram sofrer, como veremos depois.

 

A saída

Inocêncio saiu, contente por se encontrar com os seus. Não esperou por Simplícia, Prudência e Coz para subir a quatro e quatro as escadas da casa de sua tia e precipitar-se no salão onde ela tocava no violino uma sinfonia de Beethoven, acompanhada à flauta por Boginski.

- Bom dia, minha tia, como passa? - exclamou atirando-se ao pescoço, sem respeito pela sinfonia, pelo violino e pelo arco.

SR.a BONBECK - Diabos te levem! Fizeste-me cair o violino e por pouco não quebras o arco. Interrompeste-nos na passagem mais linda desta admirável sinfonia em lá bemol.

INOCÊNCIO - Desculpe, minha tia, mas fiquei tão contente ao vê-la!

SR A BONBECK - Ao ver-me? Essa é boa! Mal me conheces.

INOCÊNCIO - É verdade, minha tia, mas gosto muito de si e tive saudades, mais de uma vez, durante a semana que passei no colégio.

SR.a BONBECK-Isso não quer dizer que gostas de mim, meu rapaz, mas sim que detestas o colégio. Saíste então?

INOCÊNCIO - Sim tia, e venho acabar o dia consigo. SRa BONBECK - Mas não ficas na sala a aborrecer-me, a interromper a música, a quebrar os violinos e a irritar-me. Vai para o pé da Simplícia e volta à hora do jantar. Vamos, Boginski, continuemos o andante; painissimo, con amore, maestoso!

Assim que ela tirou umas notas do violino, nova interrupção veio irritá-la contra Inocêncio. Ao retirar-se, ele pisou, sem reparar, o rabo do gato, que estava deitado e encostado ao cão. Com a dor, o gato deu um grande salto; ao cair cravou as unhas das quatro patas na pele do cão que, por sua vez, também deu um salto, e se atirou ao gato e, depois, ao Inocêncio: o gato recebeu-o à unhada e o Inocêncio defendeu-se a pontapé. A tia atirou- se ao Inocêncio e quebrou-lhe o arco nas costas; com um pontapé atirou a jóia dos gatos para o outro canto da sala e com um murro derrubou a jóia dos cães; Inocêncio escapou-se para o quarto da irmã, o gato encolheu-se num sofá, o cão refugiou- se atrás de uma cortina e a Sr. a Bonbeck voltou para junto de Boginski, com o arco partido na mão, praguejando contra Inocêncio, lamentando o seu excelente arco, procurando substituí-lo entre uma centena que tinha de reserva e insultando os importunos, as crianças e os parentes incómodos. Boginski não dizia nada, mas procurava acalmá-la, aprovando-a com gestos, com olhares e oferecendo os seus serviços para consertar o arco partido. Enquanto ela ralhava, praguejava e ameaçava, Inocêncio e Simplícia pediram a Prudência para saírem a pé, a fim de passearem e se verem livres da tia até ao jantar. Prudência, sempre às ordens dos seus jovens patrões, acedeu sem dificuldade e saíram todos três, acompanhados pelo fiel Coz.

Inocêncio e Simplícia caminhavam à frente; Prudência seguia com Coz, que lhe ofereceu o braço, para terem o ar de bons burgueses dando o seu passeio de domingo com os filhos. Prudência, satisfeita por tomar uma aparência tão distinta, aceitou o braço de Coz e seguiram ambos atrás das crianças.

Caminharam bastante tempo e sempre em frente. Sem darem por isso, chegaram aos Campos Elísios; era para eles um espectáculo magnífico; as carruagens, as pessoas elegantes, as lojas, os teatros, provocaram-lhes tal admiração, que as crianças, esquecendo Prudência e Coz, perderam-se na multidão, e estes, esquecendo as crianças, perderam-nas de vista. Inocêncio e Simplícia andavam, paravam, olhavam! Sentaram-se em frente de um teatro de fantoches e viram todos os crimes do Polichinelo e o seu castigo pelo diabo. Quando acabou, uma mulher veio pedir-lhes o dinheiro dos lugares; como não tinham nenhum, voltaram-se para pedir a Prudência. Mas não a viram: estavam sós.

- Não temos dinheiro - disse, timidamente, Ìnocêncio.

-O quê? Não têm dinheiro! Então porque se sentaram nas cadeiras se não tinham dinheiro com que as pagar?

- Julgávamos que a criada estava ao pé de nós.

- A criada! Olhem este matulão a passear com a criada! Tudo isso é muito bonito, meu menino, mas quero o meu dinheiro e sei muito bem como lho hei-de fazer vomitar.

Inocêncio e Simplícia olharam à volta com terror; a multidão rodeava-os e tomava partido, uns pela mulher, outros pelas crianças. A mulher insistia, ameaçava mandá-los prender como vagabundos e aterrorizava cada vez mais as crianças, que acabaram por chorar e chamar a criada e Coz em seu socorro.

-Não há direito: estar a atormentar assim estas crianças! - disse uma boa mulher de cesto no braço. Bem vê que não têm com que pagar, deixe-os sossegados...

- Não deixo assim roubar-me o meu rico dinheiro! Se não têm dinheiro, têm roupa; a do matulão é tão grande que chega para dois. Estou mesmo a precisar de uns calções para o meu rapazito e podem fazer-se muito bem uns das abas daquele casaco. Vamos, meu rapaz, está quieto, que com esta tesoura vou-te cortar as abas.

- Socorro! Socorro! - gritou Inocêncio, perseguido pela mulher e escapando-se de uma cadeira para outra.

- Socorro... - repetia Simplícia, correndo atrás do irmão.

Apareceu um polícia que se informou da causa do tumulto.

           - Querem-me roubar o dinheiro - gritou a mulher.

- Ela quer cortar-me o casaco - balbuciou Inocêncio.

- Dêem a esta mulher o dinheiro que lhe roubaram, seus marotos - disse o polícia.

-Não roubámos nada; não temos dinheiro para pagar os lugares; a minha criada é que tem o dinheiro, e ela perdeu-se de nós.

Depois de algumas informações colhidas de uns e de outros, o polícia declarou à mulher furiosa que             tomava as crianças sob a sua protecção.

-Mas fique sossegada a respeito do dinheiro:

- acrescentou. - Estas crianças têm com certeza parentes na cidade; quando soubermos onde vivem, recebe o seu dinheiro. Onde mora, meu rapaz?

- Eu estou no colégio dos Jovens Sábios, mas saí hoje: fui a casa da minha tia.

           - Onde mora a sua tia? - perguntou o polícia.

- Na Rua Godot - respondeu Inocêncio.

- Que número?

- Não sei, esqueci-me.

- Então como é que há-de arranjar para pagar a esta mulher? - perguntou o polícia.

- Nós conhecemos a casa; tomamos um trem e vamos lá.

- Essa é muito estafada, meu anjinho - disse a mulher -, o trem leva-vos mas não é a casa da vossa tia e eu fico a ver navios.

-Meu Deus! Meu Deus! Que havemos de fazer?

- gritou Inocêncio, desatando aos soluços.

O polícia, que reconhecia em Inocêncio um tom de sinceridade, disse-lhe para se acalmar, que não lhe acontecia nada de mau e que ele próprio os levaria à Rua Godot.

- Eu emprestava-lhes o dinheiro, mulherzinha, mas não trago nenhum comigo - disse o polícia. - Sabe que estou todos os dias de guarda aqui e por isso encontra-me; eu tomo a responsabilidade.

Esta garantia acalmou a mulher, e o polícia ia a levar Inocêncio e Simplícia quando se ouviram gritos; a multidão foi violentamente afastada e uma mulher desvairada, seguida por um homem de feições estranhas; precipitou-se para o círculo, no meio do qual estàvam o polícia, a alugadora de cadeiras, e as crianças, ela empurrou a alugadora de cadeiras, fez cambalear o polícia e agarrou as crianças como se fossem náufragos.

-Meus pobres meninos, meus queridos patrõezinhos, que infelicidade! Perdê-los e saber agora que eram acusados de roubo por uma malvada criatura que...

- Que é lá isso de malvada criatura? - interrompeu a alugadora encolerizada. - Isso será você, não querem lá ver!...

-Encontrei os meus meninos e não quero saber das suas injúrias, velha bruxa! - respondeu Prudência, com majestade.

-Ah! Sim! Eu uma velha bruxa! Vamos ver isso sua palerma, que anda a perder as crianças, em vez de as vigiar.

-Silêncio, minhas senhoras. Nada de injúrias! Calma, moderação - disse o polícia.

-Meus pobres meninos! Meus pobres patrõezinhos! Perdoem a minha distracção. Não sei onde tinha a cabeça para os perder de vista ainda que por uns minutos que fosse! Desde que os perdi não fiz senão correr a chamá-los.

Prudência beijava-lhes as mãos e abraçava-os; nem pensava na alugadora de cadeiras nem nos seus insultos; interrogava as crianças, ouvia as suas explicações e agradecia ao polícia. A multidão enterneceu-se e soltou um murmúrio de desaprovação quando a alugadora de cadeiras, aproximando-se de Prudência, lhe pedia imperiosamente o seu dinheiro.

- Quero o meu dinheiro ou tem que se haver comigo.

O polícia explicou a Prudência a reclamação da alugadora. Prudência apressou-se a tirar da algibeira o dinheiro pedido e entregou-o à mulher, dizendo-lhe severamente:

- Aqui tem o preço dos insultos. Não lhe dará proveito, digo-lhe eu.

A mulher, contente por reaver um dinheiro que julgava perdido, guardou-o sem responder. A multidão dispersou e Prudência, levando Inocêncio por uma das mãos e Simplícia pela outra, e seguida por Coz, pôs-se a caminho de casa, depois de tornar a agradecer ao polícia a protecção que dispensara aos seus patrões. O polaco estava envergonhado de ter cumprido tão mal o seu papel.

- Se Sr. a Prudência e menina e senhor querem dizer nada a tia de Boginski; eu não fazer bem; eu esquecer olhar crianças, olhar cavalos e Sr. Prudência. Eu mau, mal feito! Tia ralhar! Eu pobre, triste! Peço não dizer nada do pobre Coz.

PRUDÊNCIA - Não, meu pobre Sr. Coz, não digo nada e os meus patrões também não; a culpa é mais minha do que sua, eu é que sou a criada e fui eu que os criei! Eu é que sou a culpada.

INOCÊNCIO - Não, não, Prudência, consola-te; nós somos muito mais culpados do que tu; nós andávamos e palrávamos sem pensar em ti e sem nos voltarmos para ver se tu nos seguias. Não falaremos nisto à tia; naturalmente zangava-se.

SIMPLÍCIA - E nós tínhamos bofetadas para nos consolarmos.

COZRGBRLEWSKI - E eu expulso; não ter quarto nem jantar; ter só dinheiro do governo; não chegar para viver.

PRUDÊNCIA - Não tenha medo, Sr. Coz; a Sr. a Bonbeck e o seu amigo não hão-de saber o que se passou. Vamos depressa para não chegarmos atrasados. A senhora não gosta de esperar.

 

A gratidão dos polacos

Foram tão depressa, que chegaram a casa justamente a tempo de jantar. Quando entraram na sala, batiam seis horas. Coz e Prudência, que tinham corrido muito tempo à procura das crianças, estavam vermelhos e suados; foram aos respectivos quartos para mudar a roupa, mas Coz só teve tempo de passar a cara por água; chamaram-no e ele dirigiu-se para a sala de jantar, onde a Sr.a Bonbeck já estava a sentar-se à mesa com Boginski e as crianças.

SR.a BONBECK - Ora cá está o nosso amigo Coz. Que diabo de cara você traz! Mais encarnada que os cabelos! Onde esteve para ficar nesse estado?

COZ - Eu não encarnado, Sr. a Bonbeck; eu não ficar em estado; eu como sempre.

SR A BONBECK - Não tenho a vista turva. Garanto-lhe que está encarnado como quem puxou uma carroça. E quero saber porque está encarnado. Que diabo! Tenho o direito de saber porque está encarnado!

COZ - Eu não poder saber, Sr. a Bonbeck.

SRa BONBECK - Como não poder saber? Ah!, Bem percebo, está-me a esconder qualquer coisa. Simplícia, que foi? Quero que me digas.

SIMPLÍCIA - Não sei, minha tia. O Sr. Coz está encarnado naturalmente porque tem calor.

SRa BONBECK - E porque é que ele tem calor?

SIMPLÍCIA - Não sei, minha tia; talvez porque está calor.

SRa BONBECK - Então porque é que tu não estás encarnada nem o Inocêncio?

SIMPLÍCIA - Não sei, minha tia.

  1. A BONBECK-Estúpida! Sempre a mesma resposta: Não sei, minha tia. Inocêncio, tu não és hipócrita, diz-me: porque está o Coz encarnado?

INOCÊNCIO - Minha tia, foi porque se quis fazer bonito e apertou tanto o nó da gravata, que está sufocado e a suar.

SR.a BONBECK - Obrigado, meu amigo; e tu, grande imbecil, desaperta imediatamente essa gravata!

Já se viu uma estupidez assim?

Coz não respondeu. Estava estupefacto com a intervenção de Inocêncio e não sentia nenhuma necessidade de desapertar a gravata.

- Cabeçudo! Vaidoso! - gritou a Sr. a Bonbeck, levantando-se da mesa e dirigindo-se a Coz. - Espera, meu rapaz, que vais respirar à vontade.

Agarrou as pontas da gravata de Coz, que, querendo fugir, se inclinou para trás; a gravata desatou-se e ficou nas mãos da Sr. a Bonbeck; viram então, com grande atrapalhação do pobre Coz, que ele não tinha camisa e que por baixo da gravata estava uma folha de papel a fingir de peitilho. A Sr. a Bonbeck notou logo a miséria do infeliz polaco.

- Pobre rapaz! - disse ela. - Porque não me disse que não tinha roupa? E você, Boginski, está tão pobre como Coz?

Boginski não respondeu, corou e baixou a cabeça. A Sr. a Bonbeck examinou-lhe a gravata e viu que também tinha por baixo um bocado de papel como o Coz. Não disse nada; tornou a sentar-se, serviu a sopa e todos comeram em silêncio. O resto do jantar decorreu gravemente. A Sr. a Bonbeck serviu os polacos com mais abundância que de costume. Depois de jantar chamou o Papão, disse-lhe algumas palavras, passou-lhe dinheiro para as mãos e voltou para o salão; deu a Coz a música para gravar, pôs Boginski a afinar o piano e os violinos, não se preocupando com as crianças que se entretiveram a ver Coz a trabalhar. Esteve agitada durante uma hora, que tanto durou a ausência do Papão. Por fim, Papão voltou, trazendo um grande embrulho que entregou à Sr. a Bonbeck, que o abriu e examinou.

- Coz, Boginski, venham cá. Tomem, para aprenderem a não vir jantar a minha casa sem camisadisse a Sr. a Bonbeck, atirando-lhes à cabeça dois embrulhos, de que eles se afastaram com dificuldade.

Reuniram tudo o que se espalhara pelo chão, e viram, com alegria, que cada um dos pacotes tinha seis boas camisas, sendo três brancas e três de cor. Agarraram nas mãos da Sr. a Bonbeck e beijaram-nas repetidas vezes, com afecto e respeito.

- Está bem, está bem, meus amigos - disse ela, comovida. - Para outra vez, quando não tiverem o que é necessário, digam-me. Não deixo terem necessidades pessoas honestas, expulsas do seu país por um tirano abominável.

Boginski e Coz enxugaram às costas das mãos (não tinham lenços) as lágrimas de reconhecimento que vertiam sem querer; a Sr. a Bonbeck assoou-se duas ou três vezes, fez uma pirueta e exclamou alegremente:

-Vamos, vamos, estamos aqui a descobrir uma coisa que não existe, ao que dizem: a camisa de um homem feliz. Quero que em minha casa todas as camisas sejam camisas de pessoas felizes.

- Nunca o há-de ser a minha! - disse Simplícia a meia voz.

-Nem a minha - acrescentou Inocêncio, da mesma forma, suspirando.

SRa BONBECK - Que estão para aí vocês a resmungar? Porque suspiram? Quero que se riam, quero que toda a gente seja feliz.

INOCÊNCIO - Minha tia, suspiro porque não sou feliz e não me sinto feliz porque vivo longe da minha tia, naquele horrível colégio onde me aborreço mortalmente.

  1. A BONBECK - Que te dizia eu, meu rapaz? Assim o Quiseste, e agora aí tens. Mas está bem. Vamos tratar disso; escrevo ao meu irmão para te tirar do colégio, fica descansado. E tu, Simplícia, porque fazes beicinho?

SIMPLÍCIA - Não sei, minha tia.

SR.a BONBECK - Que raio de estúpida! Nunca se viu uma rapariga tão irritante. Não sei, minha tia?

Porque não te explicas, como o teu irmão? Esse, sim.

Fala e fala muito bem. Olha, tenho vontade de te dar um par de bofetadas! Vai-te embora! Vai, que não respondo por mim; a mão foge-me sem eu dar por isso.

Simplícia não a deixou repetir a advertência; apressou-se a fugir às tentações da tia e atirou-se para cima de uma cadeira, no seu quarto; reflectiu, tristemente,             na vida que levava em Paris: sem um prazer, sem mesmo descansar e com muitas contrariedades, desgostos e aborrecimentos. Começou a reconhecer o vazio que lhe provocava o afastamento dos pais,

da sua protecção, da sua ternura. A sua dedicação revelou-se-lhe em toda a verdade; acusou-se de ingratidão e de maldade; sentiu como os tinha ferido e desgostado; pensou com terror no muito tempo que ainda tinha de viver longe deles e junto daquela tia que a apavorava. Depois de hesitar, decidiu-se a escrever à mãe, pedindo-lhe que a deixasse voltar para casa.

A Sr. a Bonbeck ficou tão satisfeita com a lisonja de Inocêncio que o reteve até à manhã do dia seguinte. Coz foi encarregado de o levar ao colégio, onde o receberam, anunciando-lhe uma detenção à hora do recreio por não ter regressado na véspera. Bem reclamou, mas o director de estudo respondia-lhe sempre: É do regulamento! Não posso alterá-lo.

Submeteu-se, chorando; e, como Simplícia, reflectiu com amargura na suave vida familiar de que se encontrava privado e nos penosos aborrecimentos que lhe valiam a sua teimosia e a sua ingratidão. Pensou nas privações diárias que sofria, na hora matutina a que se levantava, na alimentação má e insuficiente, na tirania dos alunos, na extensão das lições, nos castigos pela menor negligência. Arrependeu-se, amargamente, por ter forçado o pai a mandá-lo para aquela casa de educação.

 

A polícia correccional

Alguns dias depois da visita de Inocêncio, quando a Sr. a Bonbeck se levantou da mesa com os seus reconhecidos polacos, trazendo ambos as suas camisas novas, entrou o Papão, entregando, com a mão a tremer, um papel à sua patroa. A Sr. a Bonbeck agarrou nele precipitadamente, percorreu-o com a vista, bateu o pé, deixou escapar uma praga e disse, virando-se para os polacos:

-É um horror! Uma infâmia! Meus pobres amigos! Chamam-nos à Polícia! Acusam-nos de tentativa de assassinato da Sr. a Courtermiche e do seu cão...

- Ah! Ah! Ah! - desatou Boginski, a rir. - Eu saber o que é; não ter importância. Não perigoso. Sr. aCourtermiche velha maluca; o cão mau animal. Coz e eu atirar cão pela janela, depois Sr. a Courtermiche com o cão; só isto.

SRa BONBECK - O quê, só isso? Mas é muitíssimo! Com uma mulher furiosa que os quer processar, vocês são condenados a multa e a prisão.

BOGINSKI - Então, não muito mau! Multa não pagar, não ter dinheiro; prisão não ser grande desgraça, governo alimentar e dar cama. Pobres polacos habituados a mal dormir e mal comer. Ser raro encontrar Bonbecks tão bons, tão excelentes.

Boginski acabou a frase, beijando ternamente as mãos enrugadas da sua benfeitora, que explodiu em soluços.

SR.a BONBECK - Meu pobre rapaz! Hi! hi! hi! Estou tão triste! hi! hi! hi! Tem que ir amanhã ao tribuH nal; vai ser interrogado. O papel diz que é à uma hora. Hi! hi! hi! Eu vou consigo, meu amigo, vou protegê-lo; e ao pobre Coz, porque ele é também chamado ao tribunal.

Mal acabara esta frase, entrou Prudência, desvairada.

-Minha senhora! minha senhora! Que desgraça, meu Deus! Que havemos de fazer? Oh! Minha senhora! Ainda tinha que me acontecer isto! Os meus pobres

patrõezinhos! Eles não podem ir lá, não é verdade, minha senhora? É impossível! Meus pobres meninos!

SRa BONBECK - Mas que é isso? Que aconteceu? Fala, anda, fala, estás doida!... Porque estás a gri tar?... A que desgraça te referes? Fala, ave agoirenta, se não queres que te chegue a roupa ao pêlo:

PRUDÊNCIA - É isto, minha senhora! Leia! Os meus patrões e eu, chamados ao tribunal, à polícia correccional, por termos batido è atirado à estrada a Sr. a Courtermiche e o Pequerruchinho.

SR.a BONBECK - Que diabo! Não é razão para gritar! Vamos todos e veremos quem se atreve a apoquentar os meus valentes polacos e vocês. Amanhã veremos! Venha para cá a polícia! Eu lhe direi e também a essa Courtermiche. Levo a jóia dos cães que se entenderá com o Pequerruchinho, o qual me parece ser um vadio, um bicho muito màl educado.

PRUDÊNCIA - Lá isso é, minha senhora! Muitíssimo mal educado! Resmungão, quezilento, mau, ladrão! Não lhe falta nada. Tudo ao contrário da jóia.

  1. A BONBECK - O quê da jóia? Qual jóia?

PRUDÊNCIA - A jóia da senhora, que dorme debaixo da mesa.

  1. A BONBECK - Ah... ah... ah... Queres dizer o Folo... Eu é que lhe chamo a jóia dos cães, mas não é esse o nome dele.

PRUDÊNCIA - Desculpe, minha senhora, eu julgava...

SR A BONBECK - Está bem, está bem. Vamo-nos preparar para amanhã. Conta-me o que se passou, com todos os pormenores.

PRUDÊNCIA - Uma coisa muito simples, minha senhora: esse cão maldito comeu toda a minha vitela, um naco soberbo que tinha escolhido com o maior cuidado.

SR A BONBECK - Não é grande crime, Prudência; se fosses cão, fazias com certeza o mesmo.

PRUDÊNCIA (agastada) - Mas não sou, minha senhora; não tenho a honra de ser cão, e um cão resmungão, quezilento, mau e ladrão e, por isso, não lhe posso dizer o que faria se tivesse essa sorte.

SR A BONBECK - Está bem, está bem! Não vale a pena zangares-te, Prudência; podias ser pior do que cão.

Mas então que mais fez esse animal?

           PRUDêNCIA - Se a senhora acha que isto não chega, sempre lhe digo que ele cheirava horrivelmente, que mostrava os dentes, que rosnava e queria fazer-nos mal.

SR A BONBECK - Continua a não ser coisa de importância. Se cheirava mal é porque a dona não o lavava; se mostrava os dentes é porque eram bonitos e julgava que vos agradaria; se rosnava é porque vocês não o tratavam com delicadeza. Bem vês, Prudência, que um cão tem amor-próprio como toda a gente; não devemos ofendê-lo.

PRUDÊNCIA - Pois se a senhora encontra desculpas para todas as parvoíces desse animal, não tenho mais nada a dizer.

SRa BONBECK - Boginski, meu amigo, conte-me o que aconteceu; a Prudência parece uma matraca: fala e não diz nada.

BOGINSKI - Foi assim, Sr. a Bonbeck. Cão mau, senhora má, zangada; dar bofetadas terríveis em Sr. Inocêncio; Sr. a Prudência gritar. Eu castigar Courtermiche e deitar cão à estrada. Courtermiche gritar, gritar; querer bater todos, furar olhos a todos. Diligência parar; camarada e eu agarrar Courtermiche e empurrar para a porta; Courtermiche gorda, não passar, dar pontapés; eu empurrar, camarada empurrar, Courtermiche cair sentada em estrada, mostrar punhos, gritar, zangar; diligência andar depressa; nós rir e dizer adeus Courtermiche. Ser assim.

SR.a BONBECK - Ah... Ah... A Courtermiche vai obrigá-los a pagar a despesa de um trem até Paris.

BOGINSKI - Eu não pagar; eu e camarada não ter dinheiro.

SRa BONBECK - Isso não é uma razão, meu amigo; com uma Courtermiche dessas é preciso fabricar dinheiro.

BOGINSKI - Eu gostar mas não saber.

SRa BONBECK - Amanhã veremos. Estejam descansados, meus amigos, que os não deixo apodrecer na prisão.

Os polacos, seguindo o conselho da Sr. a Bonbeck, ficaram muito tranquilos; Prudência continuou desgostosa, inquieta pelos seus patrões. A Sr. a Bonbeck agarrou-se ao violino; os polacos aproveitaram uma sonata que ela se obstinava em estropear, a compasso ou fora dele, para se escaparem e darem um passeio pelas ruas. Simplícia ficou no quarto, aborrecendo-se, bocejando, choramingando e recordando, saudosamente, a sua casa.

No dia seguinte, a Sr. a Bonbeck, escoltada pelos polacos, Prudência e Simplícia e trazendo o Folo à trela, partiu a caminho do Palácio da Justiça. Esperaram muito tempo, porque se estavam a julgar outras causas.

A certa altura introduziram-nos na sala; a sua entrada causou certa surpresa, pela estranheza das suas figuras. A Sr. a Courtermiche e o Pequerruchinho ocuparam o banco dos queixosos. A Sr.a Bonbeck e o seu séquito sentaram-se no banco dos acusados.

O presidente do tribunal vai falar: ouve-se rosnar e depois ladrar; é o Pequerruchinho que não aceita Folo como testemunha.

OFICIAL DE DILIGÊNCIAS - Silêncio, meus senhores...

O Pequerruchinho ladra furiosamente.

PRESIDENTE (rindo) - Senhor oficial de diligências: faça calar o queixoso.

Toda a gente ri; a Sr. a Courtermiche procura apaziguar o Pequerruchinho...

PRESIDENTE - A Sr. a Courtermiche e o assim chamado Pequerruchinho, por intermédio da sua dona acusam de vias de facto e de injúrias graves Prudência Crépinet, Inocêncio e Simplícia Gargilier e mais dois polacos que os acompanhavam. Sr. a Courtermiche, que tem a dizer contra os acusados?

SR A COURTERMICHE - Sr. Presidente, muita coisa: crueldade, malvadez, injustiça, assassinato.

PRESIDENTE - Faça favor de precisar as suas acusações.

SRa COURTERMICHE - Sim, Sr. Presidente, preciso, acusando-os de tudo o que se pode censurar a entes com cara de gente, mas que são mais brutos que os brutos e animais.

PRESIDENTE - Não diga injúrias, e explique-se com mais clareza.

  1. COURTERMICHE - Mas o que eu estou a dizer é muito claro, Sr. Presidente. São pessoas para enforcar, é muito simples.

PRESIDENTE - Se continua a não querer dizer nada de positivo, passamos a julgar outra causa e mandamos embora os acusados.

SR.a COURTERMICHE - Mande-os embora, uma ova, Sr. Presidente, mande-os para a prisão, para o degredo tanto me importa, contanto que fiquem lá. Não é verdade, Pequerruchinho, que também queres que eles fiquem presos?

O Pequerruchinho respondeu com um ladrar furioso, a que Folo replicou com surdo rosnar. O Pequerruchinho, soltando-se dos braços da dona, atirou-se às orelhas de Folo, que o recebeu à dentada. Exasperado com esta defesa inesperada, lançou-se de novo a Folo e mordeu-o profundamente no pescoço.

- Agarra, Folo! - gritou-lhe a Sr. a Bonbeck, irritada com a teimosia do outro cão.

Folo não esperou mais; maior e mais forte que o Pequerruchinho, derrubou-o e cobriu-o de mordeduras, sem lhe dar tempo a levantar-se.

A Sr. a Courtermiche gritava; a Sr. a Bonbeck aplaudia; os juízes riam; os espectadores divertiam-se; os polacos batiam palmas. Os ladridos dos cães e os gritos da Sr. a Courtermiche, os aplausos da Sr. a Bonbeck e dos polacos, impediam que se ouvisse a voz do presidente. Por fim, os oficiais de diligências conseguiram agarrar os cães e entregaram à Sr. a Courtermiche o seu favorito, mordido e derreado; Folo foi receber as carícias da dona e as felicitações da multidão.

PRESIDENTE - Esta cena é inconveniente, Sr. aCourtermiche; pela última vez, explique-se, ou saia.

SRa COURTERMICHE - Explicar! Dar explicações num tribunal que deixa insultar e devorar o meu Pequerruchinho, o meu amigo, o meu filho! Seria dar explicações a pessoas sem coração e sem miolos...

PRESIDENTE - Sr. a Courtermiche, está a insultar o tribunal. Convido-a a calar-se.

SR.a COURTERMICHE - Ah! Quer que eu me cale? Pois eu quero falar; quero que se saiba como o Governo presta justiça; que é uma vergonha, uma humilhação para o país eu ser tratada como fui por essa malta...

PRESIDENTE - Senhor oficial de diligências, expulse a queixosa. Está a abusar da paciência do tribunal.

SRa COURTERMICHE - Pois não hei-de sair. Deixem-me; não me toquem. Quero dizer-lhes... Ai! ai! Não me puxem... Quero dizer-lhes que são uma corja...

Ai! ai! Socorro, que me matam! Não me empurrem!

O resto perdeu-se nos corredores do tribunal; os oficiais de diligências resolveram-se a usar da força e tinham conseguido expulsar a Sr. a Courtermiche e o cão. A Sr. a Bonbeck, triunfante, aproximou-se do presidente, com grande surpresa de todos os assistentes, e deu-lhe um aperto de mão, dizendo:

- Muito bem, Sr. Presidente! O senhor é um homem às direitas! Folo também se portou valentemente; o outro é um covarde, um cão sem coração e mal educado. Boa tarde, Sr. Presidente. Meus senhores, apresento-lhes dois valentes polacos...

BOGINSKI - Eu e camarada matar muitos russos; em Ostrolenka matar muitos. Eu pedir Presidente dar Pensão maior; Sr. Bonbeck boa, muito boa, mas não rica; eu... - leve esta gente... - disse o presidente, ao oficial de diligências. - Os acusados são tão doidos como a queixosa. É a causa mais ridícula que tenho julgado.

O oficial de diligências convidou a Sr. a Bonbeck e os polacos a saírem; os polacos curvaram-se humildemente; a Sr. a Bonbeck recalcitrou e quis resistir. O oficial de diligências tentou agarrar-lhe no braço.

- Não me toque, com os diabos! Se me põe a mão, faço-o devorar pelo meu cão. Aqui, Folo, vamos embora, meu amigo. A justiça é sempre a mesma coisa; nós a faremos bem melhor.

Antes que o presidente se decidisse a castigar a frase injuriosa da Sr. a Bonbeck, ela partira como uma seta, seguida pelos polacos, Prudência e Simplícia, estas últimas assustadas e perturbadas.

-Ora bem, meus amigos, escapámos lindamente.

Bravo, Folo! Ao menos tu fizeste justiça. Ah! ah! Foste um valente, jóia dos cães! Já se viu um fraldiqueiro ordinário, um cão de nada, mostrar os dentes ao meu lindo e bravo Folo e ainda por cima saltar-lhe! Mas teve a paga, esse vadio, esse animal digno da sua dona!

Entraram em casa satisfeitos com o resultado feliz da questão, que podia ter sido desagradável para os polacos se fosse apresentada por uma pessoa menos estúpida que a Sr. a Courtermiche. A Sr. a Bonbeck presenteou Folo com um frango, para o recompensar do seu belo procedimento. Prudência e Simplícia não diziam nada, mas nunca puderam compreender como e porquê a Sr. a Bonbeck estava tão orgulhosa de Folo, porque tinha agradecido ao presidente, porque lhe dissera insultos ao retirar-se e por que razão Folo merecera um frango. Os polacos deitaram-se contentes sem saberem porquê, e despertaram no dia seguinte esperando, também sem saberem porquê, um aumento da pensão " que Ihes dava o Governo.

 

Um serão em casa das amigas

Alguns dias depois da cena do tribunal, a Sr. a Bonbeck disse a Simplícia para se vestir, a fim de irem passar o serão a casa da Sr. a de Roubier. Simplícia, que ainda não pusera os seus vestidos bonitos, correu a chamar Prudência.

- Depressa, Prudência, vem vestir-me.

PRUDÊNCIA - Que vestido quer a menina pôr?

SIMPLÍCIA- O mais bonito; o de tafetá aos quadrados.

PRUDÊNCIA - E o chapéu?

SIMPLÍCIA - Ah! Meu Deus! Não pensei no chapéu. Não tenho!

PRUDÊNCIA - Felizmente, a menina tem o cabelo bonito, brilhante; eu penteio-a, e fica bem.

SIMPLÍCIA - Não fica nada bem. Vai depressa dizer ao Coz que me compre uma grinalda de flores.

PRUDÊNCIA - Sim, menina.

Prudência correu em busca de Coz que, por sua vez, correu a executar a encomenda de Simplícia. Um quarto de hora depois, voltava Coz ofegante, trazendo uma linda grinalda de peónias vermelhas.

SIMPLICIA - Que flores tão grandes! São enormes!

PRUDÊNCIA - A florista disse a Coz que se usam estas; é a grande moda.

SIMPLÍCIA - Com certeza? Então fico com elas.

Põe-me a grinalda na cabeça, Prudência.

PRUDÊNCIA - Sim, menina; vai ficar óptima.

Como Prudência não sabia colocar os ganchos, pôs-se a coser a grinalda aos cabelos de Simplícia, que estava imóvel pelo desejo que tinha de ficar bem. Quando Prudência acabou, olhou para Simplícia, com admiração.

- Oh!, menina, como está bonita! Que linda! Quer ver ao espelho? Estas peónias são quase tão grandes como a cabeça da menina! E vermelhas, tanto como as suas faces!

Simplícia levantou-se, mirou-se com prazer, admirou o arco de flores sobre a cabeça, já de si grande, acabando de se vestir.

-SIMPLÍCIA - E tu, Prudência, vai mudar de vestido para me acompanhares.     

PRUDÊNCIA - Mas eu não vou para a sala com a menina; para ficar cá fora, este vestido serve muito bem.  

SIMPLÍCIA - Nada disso, os criados riam-se de ti e eu é que pagava as culpas; diriam que tenho uma criada mal vestida. Não quero que se repitam as humilhações do outro dia.       

A pobre Prudência, um pouco aborrecida, mas sempre dedicada aos seus patrões, deixou o quarto sem dizer palavra e voltou, passados dez minutos, paramentada como um relicário. Uma grande touca bretã, um xaile de muitas cores, um vestido de riscas vermelhas, uma fivela... formava tudo um conjunto autenticamente bretão. Simplícia examinou-a da cabeça aos pés e ficou contente; o seu amor-próprio encontrava-se satisfeito.

- Está bem - disse ela -; diz a Coz que vá buscar o trem.

Momentos depois, Simplícia, Prudência e Coz, iam a caminho de Saint-Germain. Desta vez não houve discussão entre Coz e o cocheiro. Simplícia entrou na sala, deixando Prudência e Coz na antecâmara. Clara deixou escapar um a! involuntário à aparição do extravagante traje. A exclamação de Clara fez voltar uma dúzia de primas e amigas que estavam reunidas na sala, e

todas repetiram o Ah! de Clara; um sorriso generalizado sucedeu a este primeiro momento de surpresa.

Simplícia avançava para cumprimentar todas as meninas; julgou-se na obrigação de fazer uma reverência a cada uma delas. À quinta vez, Sofia exclamou:

- Basta, Simplícia; não estamos numa recepção de cerimónia; Clara, leva-a a cumprimentar a mamã.

Clara, abafando um sorriso, conduziu Simplícia à sala do lado.

- Mamã - disse ela.

- Que é, Clara? - perguntou a Sr. a Roubier, sem se voltar.

CLARA - É a Simplícia Gargilier que vem cumprimentá-la.

SRa ROUBIER - Ah! Menina... Ah meu Deus!

Mas que brincadeira! Clara, porque mascaraste esta menina de maneira tão ridícula?

CLARA - Não fui eu, mamã. Ela chegou agora mesmo.

SRa ROUBIER - Ah! ah! ah! Mas vejam que vestido! Que ideia esquisita! Minha pobre Simplícia, em Paris não é costume as pessoas mascararem-se fora dos dias de Entrudo, e ainda estamos longe deles. Deixa-te ficar com o vestido que deves trazer por baixo e tira esse, que é próprio de uma avó, e não te fica nada bem.

SIMPLÍCIA - Mas, minha senhora...

  1. A ROUBIER - Clara, explica-lhe que isso é ridículo.

CLARA (rindo) - Mas, mamã...

SRa ROUBIER - Vá lá, Simplícia, bem vê que toda a gente se ri desse disfarce.           

Simplícia corou e parecia agitada; acabava de compreender o ridículo da sua maneira de vestir.     

SR A ROUBIER - Então que tem, minha filha? Está doente?          

Simplícia não respondeu; saiu da sala e voltou para aquela em que estavam as crianças; encontrou-as a rirem às gargalhadas; o riso contagiou Clara, apesar dos seus esforços para conservar a seriedade. Margarida e Sofia cochichavam e riam até não poderem mais. Simplícia, envergonhada, desolada, estava de pé, de cabeça baixa, mais ridícula ainda pelo contraste das suas enormes flores e do vestido em arco-íris, com o rosto tristonho e os olhos lacrimejantes.

CLARA - Troçaram de si, Simplícia, quando a vestiram e a pentearam assim. Deixe-me tirar estas flores horríveis, que já fica mais razoável.       

MADALENA - Vamos ajudar. Sente-se aqui, que é um instante.

Simplícia sentou-se; as meninas agruparam-se em volta dela, Sofia puxou por uma das peónias.

SIMPLÍCIA - Ai! Que me arranca os cabelos!   

SOFIA - Eu mal puxei; só mexi numa peónia, e, por sinal, bem bonita.     

Margarida e Valentina vieram ajudar e puxaram também; Simplícia gritou.         

 

MARGARIDA - Mas que têm estas peónias? Não se podem arrancar dos cabelos!       

- Estão cosidas! - exclamou Sofia.

- Cosidas! - repetiram as crianças, empurrando-se umas às outras para verem.

SOFIA - Cosidas! Esta é boa! Uma tesoura! Tragam uma tesoura!

Foram buscar várias tesouras e uma dúzia de mãos disputaram a cabeça de Simplícia para cortar as linhas que seguravam as peónias.

As tesouras agitavam-se, empurravam-se, cortavam de tal maneira que, momentos depois, a grinalda de peónias estava tirada; mas ai dela! - com um acompanhamento formidável de cabelos.

Clara soltou um grito. Simplícia levantou a cabeça e viu as peónias com uma franja de cabelos agarrados.

SIMPLÍCIA - Os meus cabelos! Os meus ricos cabelinhos!

Levantou-se precipitadamente, correu a um espelho e deparou-se-lhe um triste espectáculo: a cabeça esgrouviada, os cabelos cortados em escova, saindo por todos os lados, viam-se apenas madeixas penduradas e restos de caracóis. Ficou imóvel e consternada. Depois voltou-se, furiosa:

- Vocês são todas umas malvadas. Foi de propósito que me puseram assim, horrível e ridícula.

MARGARIDA - Horrível, não está mais do que antes; e ridícula, está menos do que estava.

SIMPLÍCIA - Foi com inveja que me estragaram as flores e o cabelo.

VALENTINA - Foi por caridade, para não troçarem de si.

SIMPLÍCIA - Só vocês é que troçam de mim; na minha casa e em casa de minha tia ninguém faz troça.

SOFIA - Então porque vem cá? Imagina que precisamos de si para nos entreter? Porventura fomos nós que a trouxemos?

SIMPLÍCIA - Então porque me convidaram?

MARGARIDA - Foi a Clara, sempre bondosa, para a consolar da sua aventura do outro dia.

CLARA - Oiça, Simplícia: garanto-lhe que estamos muito aborrecidas com a nossa falta de jeito; deixe-nos penteá-la; vai ver que fica bem.

SIMPLÍCIA - Não, não quero que me toquem; arrancavam-me o resto dos cabelos. Quero a minha criada; ela penteia-me.

CLARA - Onde está a sua criada?

SIMPLÍCIA - Está na antecâmara... Prudência! Prudência!

Clara foi abrir a porta e chamou Prudência, que se apressou a responder à chamada; soltou um grito de espanto ao ver a cabeça eriçada de Simplícia, despojada das suas lindas flores.

SIMPLÍCIA - Arranja-me, Prudência, penteia-me. Vê o que elas fizeram com inveja das minhas peónias.

PRUDÊNCIA - Não pode ser. menina! Com inveja! Meninas tão distintas! Não pode ser!

SIMPLÍCIA - Olha os meus cabelos: como elas os cortaram...

- PRUDÊNCIA - Oh! meninas! Será possível? Coitada da menina Simplícia! Nunca imaginei...

CLARA - Tem razão em não acreditar que foi por inveja que cortámos, desta maneira, os cabelos da sua menina; fomos desastradas porque queríamos desembaraçá-la das flores, que eram ridículas.

PRUDÊNCIA - A menina achava, mas olhe que eram bem bonitas. Cosi-as bem e faziam um lindo efeito na cabeça da menina.

Enquanto falava, Prudência desfazia as madeixas da sua jovem patroa, para o que lhe tinham trazido um pente e uma escova. Quando ficou tudo desembaraçado, viu-se que não restava a quarta parte dos cabelos de Simplícia. Ela chorava e Prudência lamentava-a. As crianças estavam consternadas, apesar de Simplícia não lhes inspirar muita compaixão.

- Que havemos de fazer? - exclamou Clara. Como se há-de pentear? Vou pedir à mamã para vir ver.

Clara foi contar à mãe o que acontecera. A Sr. Roubier não se incomodou com esta lição dada à vaidade de Simplícia; foi julgar por si própria, com as irmãs e amigas, da extensão do desastre. Sorriu do estranho aspecto de Simplícia e entendeu que só um cabeleireiro podia remediar a obra das pequenas. Tocou a

campainha e disse a um criado para chamar o cabeleireiro; consolou Simplícia, dizendo-lhe que ia ficar com um penteado à Caracalla, de cabelos curtos e todos frisados. O cabeleireiro chegou, sorriu, cortou as madeixas que restavam, aparou os cabelos mal cortados e frisou o cabelo todo a ferro. Simplícia olhou para o espelho, gostou e recuperou o bom humor. O resto do serão passou-se a gracejar sem maldade, sobre a desventura de Simplícia; algumas piadas de Margarida e de Sofia feriram-na um pouco, mas ela não as compreendeu todas, e divertiu-se muito; com chá, bolos e refrescos, terminou o serão. Quando Simplícia se despediu da Sr. a Roubier, esta disse-lhe:

- Minha querida filha, se voltar a visitar as minhas filhas, vista-se com simplicidade, como elas fazem; a

           maneira de agradar não é vestir fatos ridículos, mas trajar simplesmente, não atrair a atenção dos outros, mas esquecer-se de si própria e não procurar ser melhor do que as outras pessoas. Lamento que os seus cabelos fossem para o caixote do lixo em vez de ficarem na sua cabeça, mas a culpa é do seu mau gosto e da sua vaidade.

Simplícia corou, não disse nada, mas revoltou-se no seu íntimo contra o bom conselho da Sr. a Roubier. Coz dormia profundamente num banco da antecâmara, enquanto Prudência cabeçeava numa cadeira. Tiveram dificuldade em acordar o pobre Coz. Ele correu logo a ir buscar um trem e conduziu Prudência e Simplícia, sem mais aventuras, ao domicílio da Sr.a Bonbeck. Simplícia estava longe de imaginar a tempestade que se acumulara na sua ausência e que devia rebentar, no regresso, em cima da sua cabeça frisada à Caracalla.

 

A fúria da Sr. a Bonbeck

Enquanto Simplícia se dirigia para casa da Sr. a Roubier, a Sr. a Bonbeck esperava na sala que Boginski vestisse o belo fato que lhe mandara fazer. Ela também tinha um vestido aprimorado; os seus cabelos grisalhos estavam enfeitados com um chapéu de tule, com flores; as mãos enrugadas calçavam luvas brancas, de pele de gamo; pusera meias de seda e sapatos mais delicados do que os habituais. Boginski entrou, bem penteado, bem engravatado e bem vestido.

-Está magnífico, meu amigo - disse-lhe depois de o ter inspeccionado. - Está assim muito bem! Vá ver se Simplícia já se encontra pronta e mande o Coz chamar um trem.

Boginski voltou, de cara assustada.

- Sr. a Bonbeck, menina sair, Coz sair; ninguém lá. SR. A BONBECK - Saíram! O quê? Saíram! Para onde foram?

BOGINSKI - Eu não saber, Sr. a Bonbeck. Não ver ninguém; quarto vazio.

SR.a BONBECK (impaciente) - Meu amigo, já lhe disse para não estar sempre a repetir: Bonbeck. Aborrece-me; não gosto disso... Vá procurar Prudência.

Vou-lhé abaixar a grimpa. Se já se viu uma parvoíce destas: deixar sair aquela salta-pocinhas com o polaco ruivo...

Boginski saiu assim que ouviu a ordem de procurar Prudência e voltou quando ela acabava de falar.

BOGINSKI - Minha senhora, Prudência sair; ninguém. Quarto vazio...

SR.a BONBECK - Também ela! É de mais! Miserável! Arranjo-lhe uma dança que fica de cama! Ah!

Imaginam que podem fazer pouco de mim e deixar-me para aqui como um farrapo? Julgam que vão para a festa e que eu fico a guardar a casa?... E que vamos fazer agora, meu amigo? Onde iremos para nos divertirmos?... Então, fale! Onde quer que vá?

BOGINSKI - Eu poder levá-la senhora Bon... (Boginski suspendeu a tempo) ao Café Musard. Muito bonito! Senhoras soberbas! Música boa! Mas o pior...

SR.a BONBECK - O pior, o quê?... Então, fale, homem do diabo.

BOGINSKI -O pior é que eu não tenho dinheiro para pagar a entrada.

SR.a BONBECK - Eu pago, imbecil! Dê-me o braço e venha comigo.

A Sr. a Bonbeck a espumar de raiva, agarrou no braço de Boginski aterrorizado, desceu a escada a quatro e quatro, atravessou as ruas, caminhou pelos passeios, emPurrando tudo à sua passagem, e acabou por esbarrar com um homem que tinha um charuto entre os dentes.

- Mais devagar, minha filha - disse o homem, estendendo os braços e barrando-lhe a passagem.

A Sr. a Bonbeck empurrou-o e pretendeu passar. O homem, que estava um pouco toldado pelo vinho, e que, na obscuridade, julgava tratar-se da irmã por quem esperava, quis puxá-la para a luz do candeeiro a fim de se fazer reconhecer.

- Deixe-me! - gritou a Sr. a Bonbeck.

O homem agarrou-lhe as mãos. A Sr. a Bonbeck retirou-as com violência, agarrou o charuto do homem, arrancando-lho da boca, e atirou-o para a valeta, exclamando:

- Malandro!

O candeeiro iluminava neste momento o rosto furioso e a figura estranha da Sr. a Bonbeck.

O homem recuou espantado e gritando:

- O diabo!

A este grito, a multidão não tardou a juntar-se, Boginski, embaraçado com a atitude da senhora, pediu-lhe para se retirarem.

- Não, meu amigo, nunca fugi do perigo! Que se atrevam a tocar-me e verão o que pode uma mulher! uma mulher velha, contra uma súcia de covardes e de          malandros.  

A Sr. a Bonbeck recuara para o passeio e colocara-se em atitude de boxeur, a multidão ria e ia aumentando; o homem esquivara-se, sentindo o ridiculo da luta com uma mulher, ainda por cima idosa.

- Ninguém? - disse ela, respirando com força. Ninguém se atreve a atacar-me?... Muito bem, meus amigos, são uns valentes... Deixem-me passar... Muito        

obrigado; são bons rapazes.

E a Sr. a Bonbeck afastou-se com Boginski, de quem tomara o braço, deixando a multidão estupefacta e divertidíssima com as atitudes e a linguagem da velha.

- Voltemos para casa, meu rapaz - disse a Sr. A Bonbeck. - Esta cena abalou-me; não estou com            disposição para me divertir; além disso, quero estar lá quando a parva da Simplícia voltar com Prudência e o Coz; vão todos receber uma lembrança.

- Boa minha senhora - disse Boginski, com a sua voz mais meiga -, não ralhar muito pobre Coz; ele não tem culpa; ele fazer como dizer menina e Sr. a Prudência; ele não saber preciso não sair. Ele gostar boa senhora; ele triste, triste, se senhora ralhar; ele sofrer, o pobre Coz.

- Bem, bem, meu amigo - respondeu a Sr. a Bonbeck, com voz enternecida -, você é um belo rapaz, uma boa criatura; não ralho com o seu amigo; digo-lhe

só que tem de me pedir licença quando aquelas palermas quiserem sair.           

- A senhora não dizer com muita força ao pobre amigo! - tornou Boginski, olhando-a inquieto.

- Não, meu amigo, não. Já lhe disse com os diabos, e pode acreditar-me! - exclamou a Sr. a Bonbeck, começando a irritar-se.     

Boginski julgou prudente calar-se; limitou-se a apertar a mão da velha senhora em sinal de reconhecimento e continuaram o caminho em silêncio. A Sr. a Bonbeck caminhava rapidamente; entraram em casa, e ela disse a Boginski que se deitasse e ficou sozinha à espera de Simplícia e de Prudência.

Andava na sala a grandes passadas e a cólera crescia à medida que esperava; a sua irritação estava no máximo, quando sentiu abrir a porta; caminhou logo ao encontro de Simplícia e de Prudência.

Trás! Trás! Ai! ai! Duas bofetadas e dois gritos foram o sinal da chegada. Depois um violento encontrão em Prudência, estupefacta, a qual foi cair numa cadeira.

- Insolentes! Eu as ensinarei a pregarem-me partidas, a andarem na pândega, a deixarem-me apodrecer em casa, a desencaminharem os meus pobres polacos!

Ah! Querem armar em princesas? Imaginam que podem brincar comigo?

E a Sr. a Bonbeck, no auge da cólera, agarrou nos cabelos frisados de Simplícia, deu a esta mais um par de bofetadas e atirou-a para fora da sala; voltou-se para Prudência, encolhida é a tremer, agarrou-lhe num braço, arrancou-lhe a touca e, com um pontapé, mandou-a fazer companhia a Simplícia. Ambas gritavam de modo a deitar as paredes abaixo. Boginski, temendo que o seu amigo Coz sofresse as consequências da cólera da Sr. Bonbeck, retinha-o no patamar, com toda a força. Coz conseguiu por fim libertar-se e entrou na sala onde foi dar com a Sr. a Bonbeck a espumar de raiva, de olhos a fuzilar, a boca a tremer, o rosto medonhamente contraído, os punhos crispados, ofegante, quase sufocada.

- Oh! Sr. a Bonbeck!

- Cale-se! - berrou ela.

- Porquê bater pobre menina e boa Sr. a Prudência?

- Cale-se! - repetiu ela.

- Não! Eu não calar! Senhora boa para mim, para Boginski; porquê má para menina e pobre criada? Porquê bater, a senhora forte, tia em pobre criança e criada que não fez maldades? Sr. a Prudência gostar menina, acompanhar sempre e senhora bater, castigar como se Sr. a Prudência ser má! Não bom, Sr. a Bonbeck, não bom. Em mim bater, se gostar, eu homem, eu forte; mas criança pequena, fraca, não bom!

À medida que Coz falava, a cólera da Sr. a Bonbeck decaía; acabou por se envergonhar da sua violência, enterneceu-se e agarrou as mãos de Coz:

-Tem razão, meu amigo, tem razão: procedi mal! Procedi como um animal selvagem... Eu estava enfurecida contra si, meu pobre Coz.

COZ - Eu? Eu fazer nada para zangar. Porquê enfurecida contra Coz?

SR.a BONBECK - Porque saíu com Simplícia e Prudência, sem me pedir licença, quando eu tencionava ir também com o Boginski a casa da Sr. a Roubier.

COZ - Ah! Bom! Eu compreender! Mas não saber! Elas julgar ir sós, sem tia nem Boginski. Eu, outra vez, pedir licença à senhora.

  1. A BONBECK - Está bem, meu amigo. Vá ter com a Prudência e a Simplícia; traga-as cá, diga-lhes que... que... que lhes peço perdão porque procedi mal.

Coz, contente com a transformação do humor da Sr. a Bonbeck, correu a bater à porta de Prudência e de Simplícia; ninguém respondeu. Bateu outra vez; o mesmo silêncio.

- Menina! Sr. a Prudência! Sr. a Bonbeck pedir perdão; vir à sala agora.

Continuou o silêncio. Coz, com mais força, chamou, suplicou que abrissem; continuou a não obter resposta.

- Menina e Sr. a Prudência não responder – veio dizer Coz, consternado, à Sr. a Bonbeck, cuja cólera lhe metia medo.

-Elas estão furiosas - disse a Sr. a Bonbeck, julgando as outras por si mesma. - Amanhã estarão calmas e peço-lhes desculpa, pois devo confessar que as tratei um bocado mal. Boa noite, meu amigo; são perto de onze horas; vá-se deitar; vou fazer o mesmo.

Coz cumprimentou, saiu e juntou-se ao seu amigo Boginski, que esperava com inquietação o resultado das censuras arrojadas do seu amigo. Quando soube da reviravolta da Sr. a Bonbeck e do êxito evidente de Coz, ficou contente e disse, esfregando as mãos:

-Bom! Sr. a Bonbeck zangada, furiosa, mas não má. Mas diz muito: Está mal; não bom. Não zangar Sr. a Bonbeck; ela boa para nós, dar cama, dar camisas, fatos e pão, carne, vinho. Nós, pobres; nós felizes em casa Bonbeck; nós ficar sempre. Entender, Coz! Tu não continuar a dizer: Mau, não ser bom.

COZ - Eu dizer sempre quando Bonbeck bahtter menina e boa mulher. Eu não gostar covarde, não gostar furiosa.

BOGINSKI - E se Bonbeck zangar e expulsar a nós?

COZ - Eu então ir procurar Prudência e Simplícia; ela tem papá e mamã bons. Eu lá trabalhar, servir; não gostar música; eu gostar correr, trabalhar terra, mexer o corpo.

BOGINSKI -Eu gostar música e jantar com Bonbeck; para mim Bonbeck muito bom. Tu sair se queres, eu ficar.

Coz não respondeu, despiu-se e deitou-se; Boginski fez o mesmo e não tardaram ambos a ressonar.

 

A fuga

No dia seguinte, cedo, Coz foi despertado por três pancadas leves à porta do seu quarto. Levantou-se, vestiu-se rapidamente, entreabriu a porta e viu, com surpresa, Prudência, que lhe fazia sinal para a seguir.

Quis falar, mas ela fez-lhe entender que se conservasse calado. Surpreendido com este mistério, Coz seguiu-a silenciosamente até ao quarto, onde estava Simplícia, já vestida, desfigurada pelas bofetadas que lhe dera a tia e, sobretudo, pelas lágrimas que não cessara de verter, desde a véspera. Prudência, pálida e extenuada, passara a noite a lamentá-la, a consolá-la; tinha por fim consentido em deixar, com Simplícia, a detestada casa da tia Bonbeck e procurar refúgio em casa da Sr. a Roubier. Era-lhes necessária a ajuda de Coz para transportar a mala, procurar um trem e conduzi- las lá. Prudência arrumara a mala durante a noite, pois Simplícia, aterrorizada com a violência da tia, não queria tornar a vê-la, e precisavam de partir antes das oito horas, para a evitar quando acordasse.

- Meu bom Coz - disse Prudência, em voz baixa... veja o estado em que a Sr. a Bonbeck pôs a minha pobre menina; ela quer ir-se embora e eu levo-a; precisamos que nos ajude. Vá buscar-nos um trem, ponha a nossa mala lá em baixo e venha connosco a casa da Sr. a Roubier. Tenho receio de que não nos queiram lá, então que seria de nós nesta maldita cidade, sós, abandonadas? Tenha piedade de nós, meu bom Coz, ajude-nos a sair daqui e não nos deixe!

- Pobre Sr. a Prudência! Pobre menina! - respondeu Coz, enternecido. - Eu fazer tudo ajudar tudo, ir toda a parte, pôr senhoras bem. Mandem pobre Coz; eu não mau como Bonbeck, fazer tudo para servir, não abandonar boa Sr. a Prudência e pobre menina.

- Obrigada, meu bom Coz! Foi Deus que nos enviou o senhor. Vá depressa, meu amigo, vá buscar o trem.

Coz partiu como uma seta; antes de sair, acabou de se arranjar à pressa, fez um embrulho das suas coisas, correu a buscar o trem e voltou, sem barulho, a prevenir Prudência de que o trem estava à porta.

- Vamos os dois levar as malas - disse Prudência.

- Eu levar só, Sr. a Prudência; mala pesada para si, leve para mim.

Carregando a mala nos seus ombros robustos, desceu lentamente os cinco andares da Sr. a Bonbeck seguido por Prudência e Simplícia. O medo de serem pressentidos e apanhados pela Sr. a Bonbeck, dava-lhes asas; o seu terror só se dissipou quando se encontraram instalados no trem.

Chegaram a casa da Sr. a Roubier, eram oito horas. O porteiro, surpreendido por vê-los tão cedo, mais surpreendido ainda por descarregarem uma mala e despedirem o trem, e reconhecendo o polaco ruivo que tivera a cena violenta com o cocheiro, quinze dias antes, hesitava em atendê-los.

- A Sr. a Roubier não recebe tão cedo. Tenham a bondade de voltar mais tarde e de me afastarem do caminho esta mala.

PRUDÊNCIA - Onde quer que a gente vá? Onde quer que eu ponha a menina, se a Sr. a Roubier não a recebe?

PORTEIRO - Mas, minha senhora, isso não é da minha conta; estou encarregado de guardar a porta e não posso deixar entrar ninguém antes de uma hora conveniente. Também não posso transformar a entrada num depósito de bagagens.

PRUDÊNCIA - Meu Deus! Meu Deus! Minha pobre menina! Por mim, não tem importância, mas ela, coitada; peço-lhe que nos deixe entrar ou então aguardar em sua casa as ordens da Sr. a Roubier; ela conhece bem a menina e os pais, porque a nossa casa fica perto do seu solar.

O porteiro era bom homem e ficou ainda mais embaraçado; olhava, indeciso, para Prudência e para a cara inchada e manchada de vermelho de Simplícia; faziam-lhe pena. O ar decidido e a cor ruiva de Coz é que lhe inspiravam desconfiança.

- Entre, minha senhora, com a menina - disse por fim. - O senhor espera cá em baixo.

Coz não disse nada e encostou-se à parede, de braços cruzados. Prudência fez-lhe sinal para ficar ali e entrou na casa com Simplícia. A porta estava aberta; dirigiram-se para o quarto de Clara e de Marta e entraram, sem bater. Clara penteava-se, Marta vestia-se e a Sr. a Roubier estava junto das filhas. Todas soltaram uma exclamação de surpresa.

SR.a ROUBIER - Que é isto? Que lhes aconteceu? Porque tem a cara inchada e vermelha, Simplícia? Porque vêm tão cedo?

SIMPLÍCIA - A minha tia bateu-me ontem à noite quando eu cheguei a casa; também bateu na Prudência.            

Não quero estar mais em casa dela. É muito má, e sou muito infeliz.

SR.a ROUBIER - Mas minha filha, em lugar de vir para aqui, porque não volta para casa dos seus pais?

Simplícia, embaraçada, não respondeu; Prudência tomou a palavra:

- A menina não pode voltar para lá sem licença dos pais, porque eles estão zangados com a menina e o irmão; tanto choraram e tanto atormentaram os senhores para virem para Paris, que subiu a mostarda ao nariz do senhor; ele chamou-me e disse-me:

Prudência, tu viste nascer os meus filhos, tens dedicação por eles; queres acompanhá-los a Paris? senhor - disse eu -, vou para onde o senhor mandar; consigo e com a senhora não tenho medo de ir a Paris.

- É sem nós que tens de ir, Prudência – disse ele, então -; vais levá-los, sozinha, para Paris.

- Ai! meu senhor - respondi eu a seguir -, tenho tanto medo que aconteça qualquer fatalidade aos meninos; não conheço nada dessa terra tão grande e posso-me perder.

- Está descansada, que eu dou-te uma carta para a minha irmã; ela é boa pessoa, apesar de ter mau génio; casei-me há quinze anos e não me tornou a ver, mas gosta de mim e estou certo de que a Prudência fica bem entregue.

Isto disse o Sr. Gargilier e eu respondi-lhe que sim, porque era o meu dever. O senhor deu-me muito dinheiro e proibiu-me de voltar com os meninos se eles se aborrecessem em Paris e pedissem para ir embora.

- Quero dar-lhes uma lição - disse ele também.

- Sei que se vão aborrecer e sentir-se infelizes; mas eles merecem-no pela falta de ternura e de gratidão por mim e pela mãe. Quero que passem lá o período escolar e só voltem nas férias.

A senhora bem vê que não posso contrariar as ordens do meu patrão e levar a menina ao fim de um mês, deixando o Sr. Inocêncio naquele colégio de bandidos e de assassinos, sem ninguém para o ir buscar aos domingos e aos dias feriados.

Assim falou Prudência.

  1. A ROUBIER - Mas o que quer que eu faça, mulherzinha? Não posso tê-los cá em casa; não tenho onde os pôr.

PRUDÊNCIA - Se a senhora não se importasse que passássemos cá o dia e arranjasse um sítio onde a menina ficasse em segurança até o meu patrão responder...

SR.a ROUBIER-Vou tratar de as instalar num quarto qualquer, enquanto não tiverem melhor. Quanto a ficarem em minha casa, na companhia dos meus filhos, digo-lhe francamente que não quero; Simplícia é muito mal-educada, muito vaidosa, muito egoísta, para servir de companhia às minhas filhas. Venha comigo, vou ver se as ponho em qualquer parte.

A Sr. a Roubier saiu, seguida por Prudência, consternada com tais palavras, e por Simplícia, profundamente humilhada com tão merecidas censuras. A Sr. a Roubier chamou um criado, deu as suas ordens e, depois de uma pequena espera, Prudência e Simplícia foram conduzidas para um pequeno apartamento, constituído por dois quartos, uma cozinha e uma casa de banho, habitualmente ocupado pela despenseira, mas vago naquela altura.

- A Sr. a Roubier é bastante impertinente - disse Simplícia, de mau humor, quando ficaram sós.

PRUDÊNCIA - Olhe, menina: ela disse a verdade. Eu, no lugar dela, dizia a mesma coisa.

SIMPLÍCIA - Ah... É assim que gostas de mim e me proteges, como o papá disse para fazeres?

PRUDÊNCIA - Se gosto de si, menina! Deus é testemunha de que gosto, com todo o meu coração. Para a proteger, para a salvar de uma desgraça, era capaz de me deixar partir aos bocados. Mas isto não impede que eu veja as coisas e que ache, como as outras pessoas, que a menina não se portou bem com o seu papá e a sua mamã. Lá porque o queijo cheira mal, a gente não deixa de gostar dele e de o comer com prazer. Se as pessoas têm defeitos, não é uma razão para que se não goste delas.

- Agradeço-te a comparação - disse Simplícia, ferida e humilhada. - Comparar-me a um queijo malcheiroso, é forte!

PRUDÊNCIA - Oh! menina, eu não disse que era um queijo; eu só disse...

SIMPLÍCIA -... disseste coisas ridículas e mal- intencionadas; é favor calares-te; não te quero ouvir, não quero que me tornes a falar.

- Como a menina quiser - disse Prudência, suspirando e enxugando uma lágrima que lhe corria pela face.

Um criado veio trazer o pequeno-almoço: café com leite e torradas com manteiga. Simplícia comeu como um tubarão, apesar do desgosto e da irritação. Prudência, apesar da inquietação e da tristeza, também a imitou. Quando o criado levou a bandeja, pediu-lhe para se ocupar do pobre Coz e de o mandar vir com a mala, depois de ter tomado o pequeno-almoço. Assim que tinham acabado, entrou Coz com ar inquieto.

- Sr. a Prudência, onde ficar eu? Eu querer proteger senhora e menina. Criado dizer: Polaco não entrar, polaco não ficar. Não conhecer polaco, não gostar polaco. Sr. Prudência saber, eu não mau, eu bom, eu prestar serviços, eu gostar Sr. a Prudência, muito boa, menina triste e pequena. Eu querer ficar para guardar e servir Sr. a Prudência e menina.

SIMPLÍCIA - Oh! Sim, Coz, fique connosco; precisamos muito de si.

PRUDÊNCIA - Mas que vai dizer a Sr.a Bonbeck? Vai ficar zangada com Coz e connosco.

SIMPLÍCIA - Quero lá saber da minha tia! Agora, não estou em casa dela nem quero tornar a vê-la na minha vida.

COZRGBRLEWSKI - Bonbeck não poder zangar. Porquê zangar? Eu não escravo de Bonbeck. Eu gostar mais Sr. a Prudência e menina e eu partir.

PRUDÊNCIA - Muito bem, meu bravo Coz, traga a mala que ficou no pátio. Pode ficar connosco, dorme na entrada e ajuda- nos a tratar disto. Tenho bastante dinheiro; comemos aqui, e não incomodamos ninguém.

Coz, satisfeito, foi, num salto, ao pátio buscar a mala. A criada de quarto da Sr. a Roubier trouxe lençois e o que era necessário para habitar aqueles aposentos; e disse-lhes, da parte da sua patroa, que podiam ficar até ao regresso da despenseira, que ficava na terra ainda um mês.

- Têm tudo o que é preciso para a cozinha e para a casa; a despenseira vive aqui com duas filhas. Vou-lhes arranjar uma criada para lhes tratar da cozinha.

- Muito obrigado, mas não precisamos de ninguém - respondeu Prudência -; temos o Sr. Coz para nos ajudar e comprar-nos o que for necessário.

- Se precisar de qualquer coisa, espero que não se acanhe de mo pedir a mim ou na cozinha.

-Se for preciso, aproveitarei a sua amabilidade, mas espero não ter que incomodar ninguém.

A criada retirou-se; Prudência abriu a mala, tirou e arrumou tudo, enquanto Simplícia, amuada, estava sentada numa cadeira e Coz corria ao mercado a comprar provisões para o almoço e para o jantar. Quando ele trouxe todas as coisas - pão, carne, vinho, ovos e provisões várias-, Prudência, com a sua ajuda, arrumou-as nos sítios respectivos. Simplícia acabou por serenar e ajudá-los nas arrumações e nos preparativos do almoço; quis pôr três pratos na mesa, mas Prudência opôs-se.

- Não, menina, os patrões não comem com os criados; Coz e eu servimos a menina e, depois, almoçamos lá dentro.

Quando o almoço ficou pronto, Simplícia sentou-se à mesa; Prudência trouxe-lhes ovos mexidos, duas costeletas e uma chávena de café com leite e bolos. Simplícia comeu com apetite e achou o almoço muito bom. Coz aplicara toda a sua inteligência e boa vontade, Prudência o seu amor- próprio e a estima pela sua jovem patroa.

Depois da refeição, enquanto Prudência e Coz comiam, Simplícia, só, sem livros, sem ocupação, reflectiu muito e, em consequência destas reflexões, começou a comover-se com a dedicação de Prudência, que nem sequer era recompensada por amizade e boas palavras de Simplícia, que tinha sempre que dizer e nunca lhe mostrava o menor reconhecimento, a menor afeição. A pobre Prudência, como um cão fiel, suportava tudo, não se queixava de nada, não pedia recompensas nem agradecimentos e julgava cumprir somente um dever, quando, afinal, dava provas da mais humilde devoção e do mais vivo afecto. As censuras da Sr. a Roubier vieram à memória de Simplícia: o seu orgulho, primeiro revoltado, foi obrigado a reconhecer a verdade das acusações; corou, ao pensar na pouca estima que inspirava; lamentava estar relegada para um canto da casa em vez de brincar com as meninas, tão amáveis, tão boas, tão estimadas. Não estava ainda mudada, mas começava a reconhecer que tinha de mudar e a envergonhar- se dos seus defeitos. Teve tempo de reflectir, de suspirar, de se lamentar, porque, depois da refeição, Prudência e Coz arrumaram a casa e, em seguida, lavaram e enxugaram a louça.

Eram duas horas quando acabaram o serviço; nesta altura, bateram à porta.

- Entre! - gritou Prudência.

Era a Sr. a Roubier, com Clara e Marta, que vinham saber notícias de Simplícia e ver se precisava de alguma coisa ou se desejava livros.

Prudência abriu a porta; Simplícia, estendida numa poltrona, adormecera profundamente; não ouviu entrar as visitantes, que examinaram com curiosidade e dó os sinais das bofetadas da tia.

- Como essa senhora pôde chegar a tais violências! E porque foi que lhes bateu? - perguntou a Sr. a Roubier.

Prudência contou a cena que tinham suportado ao regressarem a casa na véspera à noite.

- Porquê, é que não sei dizer. Por algumas palavras que lhe escaparam, parece-me que queria ter vindo com a menina a sua casa; mas, como ela não disse nada antes de sairmos, nem a menina nem eu tivemos culpa. Calcule que a menina, que não está habituada a apanhar pancada, ficou impressionada a ponto de julgar que ia morrer; a pobre criança passou a noite a chorar e a tremer. Eu própria não estava mais contente do que ela e não achava maneira de a consolar, a não ser quando lhe propus fugirmos de manhã cedo. Então, animou-se um pouco e, depois, resolvemos vir pedir-lhe refúgio, porque não conhecemos mais ninguém em Paris. Cidade maldita, onde só encontramos aborrecimentos! Pode julgar que é mentira, mas considero o tempo que passei aqui como se estivesse no degredo. Eu espero que o meu patrão consinta em que eu leve embora a menina e o Sr. Inocêncio, que também não vive feliz no colégio. Está bem arranjado com aquela farda que lhe chega aos calcanhares. Dá-lhe muito respeito, não haja dúvida!

Simplícia continuava a dormir; sonhava, gemia, torcia as mãos; corriam-lhe as lágrimas pela cara inchada; Clara e Marta tiveram dó dela.

- Mamã, quando ela acordar, pode vir a nossa casa, não é verdade? Veja como ela tem um ar infeliz, como ela geme!

- A sonhar, minha filha, a sonhar. É provável que, ao acordar, fique no seu estado habitual.

- Mas podemos vir vê-la para a entreter?

-Sim, voltaremos depois do passeio; entretanto, deixa ficar os livros que trouxemos.

A Sr. a Roubier saiu com as filhas, deixando Simplícia ainda a dormir.

 

Inocêncio sofre

Inocêncio não tinha qualquer suspeita do que se passara. Continuava no colégio a sua vida penosa e acidentada pelas inúmeras partidas que lhe pregavam os colegas. Paulo, Jaime e Luís protegiam-no o melhor que podiam, mas não eram da mesma classe e não podiam prever nem impedir as maldades de que ele era vítima.

Um dia, durante o silêncio do estudo, manifestou-se ligeira agitação nos bancos. A maioria da classe preparava uma revolta para se vingar dos professores daquele colégio, onde os alunos eram mal tratados, mal alimentados, tinham más camas e nenhuma das distracções nem das comodidades que há nos bons colégios. Inocêncio fora designado para servir de pretexto à projectada insurreição. Os alunos empurravam-se uns aos outros com os cotovelos, riam à sucapa, arriscavam-se mesmo a cochichar. Todos os olhares se dirigiam furtivamente para Inocêncio, cujo ar idiota e cujos fatos desmedidamente longos e folgados provocavam a troça dos colegas. O professor olhara várias vezes, de sobrolho franzido, para os alunos, mas estes pareciam adivinhar o instante em que ele os observava e, por isso, ainda não pudera surpreender um único culpado. Inocêncio olhava também sem compreender a causa desta desordem; sorria e não tomava qualquer precaução para se ocultar, precisamente porque não tinha conhecimento da conspiração. Aconteceu que o professor surpreendeu um sorriso de Inocêncio, que voltava a cabeça para a direita e para a esquerda, à procura do motivo da alegria dos seus colegas.

- Gargilier! - exclamou o professor, que imaginava ter descoberto o culpado. - Gargilier, venha cá!

Inocêncio levantou-se, mas, ao primeiro passo, tropeçou; recuperou o equilíbrio, tropeçou de novo, debatendo-se com um cordel que o prendia ao seu banco, e caiu. Foi o sinal para um tumulto generalizado: uns precipitaram-se para o levantar, outros para ajudarem aqueles que lhe pegavam, os restantes para mudar de lugar e fazer barulho sob o pretexto de o socorrerem. O professor dava palmadas na secretária e gritava:

- Para os seus lugares, meus senhores!

Mas eles fingiam não ouvir e preocuparem-se muito com a queda de Inocêncio.

- Uma nota má para Gargilier! - gritou o professor. - Duzentos versos a copiar para Gargilier!acrescentou, vendo que Inocêncio continuava no chão.

E como poderia ele levantar-se? Os colegas, que vinham socorrê-lo, puxavam-lhe pelas pernas, esborrachavam-no, rebolavam-no para debaixo do banco, com o pretexto de o ajudarem. Por fim, o professor, fora de si, chegou junto deles, dispersou os alunos com a ajuda dos pés e dos punhos e deu um sopapo em Inocêncio, que continuava estendido. Este encolheu as pernas, e o banco seguiu o seu movimento; levantou-se e deu um passo, sempre seguido pelo banco, com grande surpresa do professor e enorme alegria dos alunos, que deixaram escapar os risos até então contidos.

O professor abaixou-se e viu que uma das pernas de Inocêncio tinha sido amarrada ao banco.

- Os senhores são todos uma súcia de patifes! gritou o professor, irritado. - Verdadeiros diabos, um rebanho de Mefistófeles, a vergonha desta casa! É uma infâmia, uma ignomínia! Quando acabarão as patifarias com este pobre Inocêncio, que vocês transformaram num mártir, seus carrascos? Fazem dele um imbecil, um idiota, à força de torturas! Toda a classe fica detida até ordem do senhor Director. Ficam proibidos de rir, de falar, de mexer, de respirar...

O professor foi interrompido por risos que partiam de todos os cantos da sala.

- Fora! Abaixo o tirano! - gritaram de todos os lados.

- Senhores...

- Rua com ele! Rua! Vamos fazê-lo dançar!

- Senhores...

Uma multidão compacta de rapazes cortou-lhe a palavra, atirando-se a ele; num segundo viu-se rodeado por quarenta furiosos: uns puxavam-lhe pelas pernas, outros mordiam-no, outros crivavam-no de socos e pontapés, arranhavam-no, beliscavam-no e sacudiam-no. Perante o perigo, o professor julgou prudente não esperar; desembaraçou-se dos seus inimigos como pôde e, com grande dificuldade, conseguiu alcançar a porta, abriu-a, precipitou-se para fora, fechou-a à chave e correu a prevenir o director, da insurreição que acabava de rebentar. O director não estava no seu gabinete; foi preciso procurá-lo por toda a casa e, antes que o professor o encontrasse e conduzisse à aula, os pequenos miseráveis, excitados por quatro ou cinco marotos que tinham tramado a conspiração e que haviam atado a perna de Inocêncio para desencadearem a desordem, julgaram-se no direito de fazer sofrer ao pobre Inocêncio o castigo da sua pretensa traição.

Uma vez encerrados na aula, compreenderam o abismo em que se encontravam e a calma restabeleceu-se subitamente.

Inocêncio estava ainda atado ao banco e procurava, em vão, partir o forte cordel que o prendia.

-Tira-te daí, se puderes, intrujão! - gritou um dos alunos. - Vai depois denunciar-nos.

- Temos de impedir que ele saia! - gritou outro.

-E castigá-lo pelas suas intrujices - disse um terceiro.

- Vamos julgá-lo: temos que proceder legalmente.

- Isso, que é para ele fugir enquanto o julgamos.

- A porta está fechada por fora. Como queres que a abra?

- Salta pela janela.

- Nós não deixamos.

- Nada de perder tempo e vamos fazer o julgamento. Começo por declará-lo culpado e condeno-o a apanhar cinquenta vezes com a régua nas costas.

- Eu também! Eu também! - gritou a maior parte dos alunos.

Uns vinte, dos piores, lançaram-se a Inocêncio que, de mãos postas e olhos esgazeados e cheios de lágrimas, lhes suplicava que tivessem piedade dele e não lhe fizessem mal.

- Eu não fiz nada, juro que não fiz nem disse nada; peço-lhes, meus amigos, que tenham piedade de mim.

- Nós não somos teus amigos, tartufo! Fizeste com que todos fôssemos castigados, mas agora também vais ser castigado.

Sem ouvirem as suas súplicas e os seus gritos, atiraram-no a terra, arrancaram-lhe o casaco e caíram-lhe em cima, armados de réguas. Inocêncio soltava gritos lastimosos e pedia misericórdia. Os malvados, animando-se uns aos outros, batiam-lhe sempre.

O grupo que não tomava parte na execução começava a murmurar e a comover-se.

- Basta! - gritou uma voz que ninguém ouviu.

- Basta! - repetiram três ou quatro vozes.

- Basta! - gritou o grupo em coro, sem resultado.

O grupo agitou-se, fez uma rápida combinação, e todos, atirando-se, de comum acordo, sobre os maus colegas, libertaram o infeliz Inocêncio, que estava com o fato roto e gritando desesperadamente.

Enquanto alguns alunos aguentavam à força os dez ou doze que se tinham encarniçado mais no suplício do Pobre Inocêncio, os outros levantavam-no e socorriam-no o melhor que podiam. Mal tinham tido tempo de lhe limpar a cara e de o sossegarem com promessas de protecção, quando ouviram ruído fora; abriu-se a porta, e o director, acompanhado pelo professor e alguns homens da casa, apareceu e percorreu com o olhar os diferentes grupos que se encontravam na sala. Num canto, ainda havia combate entre os inimigos de Inocêncio e os seus defensores. No outro lado conservavam-se imóveis e medrosos aqueles que tinham feito o julgamento e executada a sentença, mas que haviam depois desistido sem darem luta aos libertadores de Inocêncio. No meio da sala estava um grupo numeroso que amparava Inocêncio e procurava pôr um pouco de ordem no seu fato às tiras. Tinha a cara coberta de sangue por causa de um grande soco que apanhara no nariz.

Com um golpe de vista, o director compreendeu o que acabava de se passar. Começou por chamar dois criados:

- Levem este infeliz Gargilier para a enfermaria e digam à enfermeira para ver se estes patifes lhe fizeram qualquer mal de gravidade. Aqueles que estão ao canto, de régua na mão, levem-nos para o castigo. Aprontem dois homens para levar as cartas aos pais desses alunos. Quanto aos outros, que são todos culpados mas em menor grau, ficam sem saídas nem recreios até nova ordem. Vamos fazer um inquérito para averiguar quais são os piores.

As ordens do director foram executadas sem qualquer oposição; os alunos mostravam-se todos mais ou menos consternados, conforme se sentiam mais ou menos culpados, pois nenhum estava inocente.

O resultado do inquérito foi a expulsão de cinco alunos, que, nessa mesma tarde, foram mandados para casa dos pais; proibição de saídas durante um mês para doze outros, e proibição de uma saída e de um passeio para os restantes.

Inocêncio, ferido e magoado, ficou alguns dias na enfermaria. A notícia da sua doença e da cena que a ocasionara espalhou-se rapidamente em todas as classes; todos mostraram grande curiosidade e quiseram visitar Inocêncio e testemunhar-lhe a sua simpatia. Os mais caridosos foram, como sempre, Paulo, Jaime e Luís, que se encontravam ausentes no dia do acontecimento; eles inspiraram a Inocêncio uma amizade que o predispôs às confidências. Contou-lhes então tudo o que fizera para obrigar os pais a autorizá-lo a vir para Paris; mostrou-se desgostoso, e os seus amigos aproveitaram a ocasião para lhe dar bons conselhos. Fizeram-lhe ver como o seu procedimento fora censurável e como Deus o castigava com a própria satisfação dos seus desejos.

- Se tivesses ficado em tua casa, terias sempre o desejo de vir para cá, não terias estes desgostos, ficavas maldisposto com o teu pai e não podias apreciar-lhe a bondade.

- Oh! Sim, tu tens razão, meu bom Paulo. Agora, quando tiver a felicidade de voltar para casa, só pedirei

um favor ao meu pai, que é nunca mais o deixar. Hei-de ser obediente e estudioso em vez de revoltado e preguiçoso. Sim, meus amigos, graças a vocês, vejo agora como fui culpado e como devo agradecer a Deus ter-me castigado assim.

Ao sair da enfermaria, Inocêncio tornou-se, como os seus amigos, um excelente aluno; quando ficou inteiramente restabelecido, escreveu ao pai a seguinte carta:

Meu pai, meu Querido pai. Perdoe-me, porque eu sou muito culpado; tenha dó de mim, pois tenho sofrido muito. Posso dizer que o obriguei a separar-se de mim e a mandar-me para este colégio, por causa das minhas zangas, das minhas tristezas hipócritas, das minhas desobediências. Arrastei a Simplícia a proceder como eu, a amuar, a chorar, para o obrigar, à força de aborrecimentos e de contrariedades, a mandá-la vir, também, comigo. Sou tão desgraçado nesta casa, tenho sido aqui tão mal tratado, que o meu pai teria piedade de mim se visse a minha tristeza, o meu arrependimento e todos os meus sofrimentos. Os professores são bastante bons, mas alguns são muito severos. Os alunos são de uma maldade que eu nunca seria capaz de imaginar: uma vez quase me asfixiaram e fiquei doente três dias; outra vez bateram-me tanto com as réguas, que me rasgaram o fato e deixaram-me todo magoado e fui para a enfermaria também; ainda tenho nódoas negras e mal me posso sentar. Não vejo Prudência e Simplicia há quinze dias. Ignoro porque não vêm ver-me.

Peço-lhe, meu querido papá, que me mande voltar para junto de si, para eu ficar lá para sempre. Que felicidade quando puder estar ao pé do papá e da mamã e pensar que nunca os hei-de deixar e que nunca voltarei a esta cidade, que detesto! Espero a sua resposta, com grande impaciência. Não posso acreditar que recuse o que lhe suplico, pois sinto que morreria de desgosto se ficasse aqui.

Beija-os muito, meu querido papá e minha querida mamã, o vosso filho muito arrependido e muito infeliz,

Inocêncio Gargilier

Acabando de escrever esta carta, Inocêncio sentiu o coração aliviado; ele sabia como os pais o amavam e não duvidava de que viriam imediatamente buscá-lo. Com esta esperança, escreveu a Prudência para lhe pedir que viesse vê-lo, contando- lhe o que acontecera e o pedido que dirigia ao pai.

O director do colégio escreveu também ao Sr. Gargilier:

Ex. mo Senhor

Devo preveni-lo de que seu filho caiu na antipatia dos seus colegas, depois de uma denúncia que fez, na ignorância dos hábitos de um colégio. Submeteram-no a duas provas em que ele correu sérios perigos e sem que os professores pudessem impedi-lo. Ele está sempre sujeito a vexames de toda a espécie. Nestas condições e no seu próprio interesse, não posso conservá-lo por mais tempo e ficar-lhe-ia grato se me pudesse libertar o mais cedo possivel, da inquietação em que estou a respeito dele.

Seu dedicado servidor,

  1. Doguin

 

Estas duas cartas chegaram ao destino no dia seguinte ao da partida do Sr. e da Sr. a Gargilier para uma viagem de quinze dias. Só no regresso tomaram conhecimento da triste situação do filho.

 

Simplícia no circo

Simplícia dormiu ainda durante muito tempo depois da saída da Sr. a Roubier. Ao despertar, viu os livros que Clara e Marta tinham tido a gentileza de lhe trazer e, como estava aborrecida, ficou satisfeita por poder ler enquanto se encontrava só. Prudência, que entrara dez vezes para ver quando ela acordava, não tardou a entreabrir a porta, para espreitar.

- Até que enfim acordou, menina; gostei de a ver dormir tão bem. Já tem a cara desinchada e descansada. As meninas vieram vê-la com a Sr. a Roubier mas, como estava a dormir, voltaram depois do passeio e ainda dormia. Quer que lhes vá dizer que já acordou?

SIMPLÍCIA - Não; prefiro vê-las depois, amanhã; a Sr. a Roubier não gosta de mim e eu tenho vergonha de a ver.

PRUDÊNCIA - Vergonha! E porque tem vergonha, menina? Não tem culpa de que a sua tia lhe batesse.

SIMPLÍCIA - Oh! Não é por isso! É porque ela disse coisas tão desagradáveis de mim, e eu vejo bem que tem razão.

PRUDÊNCIA - Não deve pensar assim, menina; dizem- se coisas que não se pensam. Era só para explicar que não gostava que as lições das meninas fossem perturbadas.

SIMPLÍCIA - Não, não, garanto-te que sinto e que penso que ela tem razão. Agora vejo como era estúpida ao querer vir para Paris, como era má com a mamã e o papá em estar sempre a implicar e a chorar, a atormentá-los para nos deixar vir para Paris. Inocêncio foi o culpado, mas eu não devia ter-lhe dado ouvidos e devia ter ficado com a mamã. Eu queria divertir-me, não pensava noutra coisa, e agora estou bem castigada; nunca fui tão infeliz como desde que deixei a mamã. E a minha tia foi tão má para mim! Se eu soubesse, não tinha querido vir. Aborreço-me mortalmente; estamos sempre presas, não se pode passear e correr à vontade, as ruas estão enlameadas e cheias de gente, não se conhece ninguém. Quero escrever à mamã a pedir que me deixe voltar. Queres ir, Prudência?

PRUDÊNCIA - Oh! Eu quero! Ficava tão contente! Também me aborreço em Paris! Não mostrei todo o desgosto que tive em me vir embora e o que tenho de estar aqui, nesta maldita cidade. Escreva, escreva, menina! Meu Deus, como hei-de ficar contente quando partirmos de regresso à nossa terra! Só de uma coisa terei saudades: é do pobre Coz, que nos foi tão útil, que é tão prestável e que parece realmente gostar de nós...

SIMPLÍCIA - Então porque não o levamos?

PRUDÊNCIA - Não pode ser, menina. Que diria o seu pai? Nem sequer o conhece! Além disso, Coz não teria lá nada que fazer, não serviria para nada.

Coz tinha ouvido a conversa porque a porta ficara entreaberta, e entrou ao ouvir as últimas palavras de Prudência.

- Eu bom para tudo, Sr. a Prudência - disse ele - eu saber fazer tudo: tratar cavalos, cavar, ceifar, servir em casa, escrever contas. Eu mordomo na casa do conde Wielzikorgaczki; eu tudo dizer, tudo mandar, tudo fazer. Eu gostar patrão, eu gostar vocês todos.

Prudência estava indecisa e Simplícia ria.

SIMPLÍCIA - Prudência, como vês, o Coz ser- nos-ia muito útil. Se a mamã consentir no nosso regresso, levaremos o Coz. O papá não o despede, com certeza, tenho a certeza.

COZ - Obrigado, menina. Eu ensinar polaco à menina e irmão. Eu gostar campo, eu gostar tudo, só não gostar russos, eu matar russos em Ostrolenka, em Varshava, em toda a parte.

Simplícia continuava a rir; Prudência tranquilizava-se.

COZ - Sr.a Prudência, se menina quer jantar jantar pronto; eu arranjar tudo. E se menina e senhora aborrecidas, eu levar ao espectáculo muito bonito; cavalos correm, homens saltam; senhoras, crianças dançam e correm em cima de cavalos; muito bonito, muito bonito.

Os olhos de Simplícia brilharam; saltou da cadeira e disse a Prudência que aceitasse a proposta de Coz.            

PRUDÊNCIA - Mas a menina está cansada e ma goada; precisa de se deitar cedo.

SIMPLÍCIA - Não, não, já não estou cansada nem magoada. Vamos jantar depressa.

Prudência suspirou e acedeu. Simplícia comeu, fez jantar à pressa Prudência e Coz, pôs o chapéu e foram todos para o circo dos Campos Elísios. Coz levou-as para a primeira fila e sentou-se atrás delas. Ia começar o espectáculo, quando um tumulto de vozes zangadas lhes fez voltar a cabeça. Qual não foi o espanto de Simplícia ao reconhecer a tia, acompanhada por Boginski, que queria, à viva força, penetrar na primeira fila!

- Bem vê, minha senhora - disse um dos espectadores -, que está tudo cheio como um ovo. Os lugares encontram-se todos ocupados.

SR A BONBECK - Quero lá saber dos lugares ocupados! Comprei dois bilhetes de primeira fila e hei-de ir para lá nem que todos os diabos se oponham.

ESPECTADOR - Pois não passa, fique sabendo!

  1. a BONBECK - Hei-de passar! O pior é para quem se atravessar no meu caminho.

Saltando por cima do homem que estava em frente, ia a atirar-se sobre uma senhora, quando o homem lhe puxou pelas saias com tanta força, que a perna lhe ficou no ar; outro homem agarrou naquela perna para ajudar o vizinho. A Sr. a Bonbeck pôs-se a praguejar como um carroceiro e a querer abrir caminho com os cotovelos e os joelhos. O público, impaciente, gritava: Rua! Fora! Esperava-se uma batalha em regra quando, com estupefacção geral, a Sr. a Bonbeck ficou imóvel, com a perna agarrada pelas mãos do homem, as suas mãos em cima dos ombros de uma senhora e de uma menina, a boca aberta, os olhos esgazeados: acabava de ver Simplícia, Prudência e Coz.

-Simplícia! - gritou - Prudência! Coz! Como demónio estão aqui?

Tornando-se mansa como um cordeiro, desculpou-se a uns e a outros e retirou-se para a última fila com Boginski, que escorria em suor. Pôs-se depois a chamar, com a sua voz mais meiga, Simplícia, Prudência e Coz.

Simplícia, aterrorizada, suplicara a Prudência que a levasse dali; Prudência, ainda mais assustada que a sua jovem patroa, não podia fazer um movimento nem pronunciar uma palavra. Coz olhava para a Sr. a Bonbeck com ar feroz e para Boginski com ar de censura. Boginski não via nem ouvia nada, de tal maneira estava envergonhado com a cena que acabava de se passar. A Sr. a Bonbeck continuava a chamar Simplícia, Prudência e Coz, em voz alta.

-Cale-se, velha doida! - disse-lhe um sujeito idoso.

SRa BONBECK - Não me quero calar; não recebo ordens de ninguém. Não proíbo ninguém de falar e falo se me apetecer.

SUJEITO IDOSO - Tem obrigação de estar calada, como todos nós. Não tem o direito de perturbar o espectáculo.

SRa BONBECK - Mas eu quero a minha sobrinha.

SUJEITO IDOSO - Qual sobrinha? A senhora veio só com esse desgraçado que está a suar de vergonha.

A Sr. a Bonbeck voltou-se para Boginski.

- Venha aqui para o pé de mim, meu rapaz. Não está envergonhado, pois não?

BOGINSKI - Não, Sr. a Bonbeck.

- Ah! ah! ah! - riram as pessoas que estavam ao pé da Sr. a Bonbeck. - O nome está bem escolhido!

SRa BONBECK - Imbecil, Quantas vezes disse já que não queria que repetisses constantemente o meu nome!

- Sim, Sr. a Bonbeck - disse o infeliz Boginski, cada vez mais atrapalhado.

SRa BONBECK - Outra vez?...

BOGINSKI - Sim, Sr. a Bonbeck.

SR.a BONBECK - Animal! O que tu merecias...

BOGINSKI - Sim, Sr. a Bonbeck.

- Ah! ah! ah! - continuavam os espectadores próximos. - Que bom número! É mais divertido que os cavalos.

- Súcia de imbecis! - gritou-lhes a Sr. a Bonbeck. Mais gargalhadas, foi a única resposta que lhe deram os circunstantes.

- Silêncio! - gritavam de todos os lados. - Vai começar o espectáculo!

A Sr. a Bonbeck voltou-se outra vez para Simplícia: os lugares estavam vazios; Coz aproveitara a discussão

Trocadilho com bon bec, isto é, que fala muito e depressa (N. do T. )

com Boginski para arrastar Prudência e Simplícia, semimortas de medo. Elas tremiam tanto, que as fez subir para um trem, e foi boa ideia, pois tinham andado poucos metros, quando apareceu à porta do teatro a Sr. a Bonbeck, procurando Simplícia, Prudência e Coz. olhou para todos os lados, deu a volta ao edifício e não vendo o que procurava, retomou, a praguejar, o braço de Boginski.

  1. A BONBECK - A culpa é sua, palavra! Se não fosse você, não me escapavam.

BOGINSKI - A culpa é minha porquê, senhora Bon...

SRa BONBECK - Pois claro... Esse hábito estúpido de repetir a propósito de tudo: Sr.a Bonbeck, Sr. a Bonbeck, fez rir aqueles parvos; eu zanguei-me, perdi-os de vista e eles escaparam-se, enquanto você dizia asneiras.

BOGINSKI - É verdade, Sr. a Bon... senhora, eu não recomeçar.

  1. A BONBECK - Vem a tempo; por esta vez perdoo-lhe ainda. Vamos mais depressa; sinto a cabeça a arder. Que gente tão estúpida! O diabo da Simplícia!

E eu a procurá-la desde manhã.

E a Sr.a Bonbeck corria, corria com tal furor, que Boginski tinha dificuldade em a acompanhar. Por duas vezes, a polícia mandou-os parar; julgaram-nos malfeitores em fuga. À terceira vez, um polícia, que pensou o mesmo, barrou-lhes o caminho e só consentiu em deixá-los seguir com a condição de os acompanhar até à morada que eles indicavam, para se assegurar de que estavam realmente inocentes de roubo ou de qualquer outro delito.

A Sr. a Bonbeck estava furiosa. Boginski, entristecido com a vida a que estava condenado e quase decidido a fazer como o seu amigo Coz e a procurar outra maneira de ter casa, mesa e roupa lavada de graça.

Simplícia voltou para casa, desolada por não ter visto o espectáculo com que julgava ir divertir-se tanto; Prudência, inquieta com o medo de serem descobertos pela Sr. a Bonbeck; Coz contente por ter salvo as suas protegidas dos desvairos daquela fúria. Ao entrarem, souberam que as meninas Roubier tinham voltado a ir ver Simplícia, ficando espantadas ao saberem que tinha saído.

Simplícia deitou-se e dormiu profundamente; Prudência fez o mesmo. Coz pôs a sua cama atravessada na porta da entrada. Tranquilizado com esta medida contra ataques nocturnos, não tardou a ressonar até ao dia seguinte.

Passaram-se assim vários dias; Simplícia encontrava-se todas as tardes com as meninas Roubier e, na companhia delas, ia-se tornando melhor e sentia cada vez mais as suas atitudes ridículas e os seus defeitos. Esperava, ansiosamente, uma resposta à carta que dirigira a sua mãe, no mesmo dia em que Inocêncio escrevera ao pai, e que era redigida nos seguintes termos:

Minha querida mamã

Já não estou em casa da nossa tia; fugi com a Prudência e o Coz. A minha tia bateu-me tanto, que fiquei com a cara inchada e vermelha. Ela também bateu na Prudência, não sabemos porquê. A minha tia já me tinha dado várias bofetadas. Ela zanga-se tanto e eu tenho tanto medo dela, que fugi com Prudência para casa da Sra Roubier, que nos cedeu um pequeno apartamento, onde vivemos com Coz, que é uma excelente pessoa. A Sra Roubier disse que eu era má, vaidosa, ridicula e não sei que mais. Ela tem razão, e é por isso, minha querida mamã, que lhe peço perdão de ter sido tão má, de ter querido abandoná-la e de lhe ter dado um desgosto tão grande. Mas Deus castigou-me: a minha tia é má como uma peste; Paris é horrivelmente aborrecido. Estou muito triste e sinto-me infeliz, e a pobre Prudência também.

Peço-lhe, minha querida mamã, que me deixe voltar para junto de si; nunca me hei-de aborrecer, nem fugir, nem amuar. Peço-lhe, também, minha querida mamã, que deixe o pobre Coz ir connosco. Ele é tão bom que eu não sei o que seria de nós sem ele; sabe fazer tudo e será muito útil ao papá.

Adeus, minha querida mamã, beijo-a de todo o meu coração, assim como ao papá.

Sua infeliz e arrependida filha,

Simplicia

 

Visita ao colégio

Dívidas de Inocêncio

SIMPLÍCIA - Prudência, há quinze dias que não vemos o Inocêncio. Se lhe fôssemos fazer uma visita ao colégio?

PRUDÊNCIA - Acho muito bem; vamos com o Coz, para não nos perdermos.

Prudência foi prevenir Coz e puseram-se todos a caminho, seguindo Coz atrás de Simplícia e de Prudência.

O passeio era longo, mas estava um tempo soberbo e Simplícia ia contente por poder andar e respirar. Chegados ao colégio, foram introduzidos na sala, e esperaram Inocêncio. Quando ele entrou, Prudência e Simplícia soltaram uma exclamação de surpresa.

SIMPLÍCIA - Ah! Como estás mudado! Estiveste doente?

PRUDÊNCIA - Ai, o meu pobre Sr. Inocêncio, coimo está pálido e magro!

INOCÊNCIO - Estive uns dias na enfermaria.

SIMPLÍCIA - Porquê? Que tiveste?

INOCÊNCIO - Os alunos bateram-me tanto com as réguas, que fiquei todo magoado, da cabeça aos pés.

- Miseráveis! - exclamou Prudência.

SIMPLÍCIA - Mas porque os deixaste bater?

INOCÊNCIO - Como é que eu podia impedi-los? Eram mais de vinte contra mim.

SIMPLÍCIA - Porque é que o professor não te acudiu? INOCÊNCIO - Foi obrigado a sair para procurar o Director, porque a classe revoltara-se; quase que o espancaram.

PRUDÊNCIA - E nenhum deles teve coragem para o defender? Puseram-se todos contra si?

INOCÊNCIO - Ao princípio, sim; depois, como me ouviram gritar muito, vários deles socorreram-me e livraram-me dos malvados que não paravam de me bater.

PRUDÊNCIA - Mas o Sr. Inocêncio não pode ficar nesta caverna de assassinos! Matam-no, matam-no! É preciso sair daqui.

INOCÊNCIO - Eu escrevi ao papá a pedir-lhe que me mande voltar para casa; estou à espera da resposta. É espantoso que ainda a não tenha recebido! E tu também, Simplícia, como estás mudada! Emagreceste muito. E os cabelos! Porque os cortaste?

Simplícia contou a Inocêncio os acontecimentos que ele ignorava e a fuga da casa de sua tia.

- Como vês - disse ela, acabando -, não fui muito mais feliz do que tu; também escrevi à mamã, para me mandar voltar. Ai! como hei-de ficar contente quando me encontrar ao pé dela!

E pôs-se a chorar.

- E eu, então! Como serei feliz quando estivermos em casa! - disse Inocêncio, que começou também a chorar. - Que viagem esta! Quem me dera vê-la acabada!

Prudência soluçava. Estavam os três a chorar amargamente, quando se abriu a porta e entrou Coz, seguido pelo porteiro.

- Porque chorar todos! - exclamou Coz. - Que dar tristeza a menina, Sr. a Prudência e Sr. Inocêncio? Eu que poder fazer?

PRUDÊNCIA - Não é nada... hi, hi, hi... meu bom Coz. Nós estamos... hi, hi, hi... muito contentes... Não é... hi, hi, hi... preciso nada.

COZ - Sr. a Prudência enganar Coz; não chorar todos por estar contentes; Coz não estúpido; saber bem o que ser chorar, sofrer.

INOCÊNCIO - Coz, garanto-lhe que estamos a chorar de alegria, ao pensar no regresso a casa, daqui a pouco tempo; compreende isto, não é verdade?

- Sim - disse Coz, com tristeza -, compreender, mas não contente como senhores; eu nunca voltar a casa dos pais, amigos, pátria, nunca. Eu sempre só, sempre triste; ninguém lamentar Coz, gostar de Coz.

- Meu pobre Coz - disse Prudência, enternecida -, a menina e eu gostamos muito de si e lamentamo- lo, pode ter a certeza.

-Mas ir embora e eu ficar, rir e eu chorar!           respondeu Coz.

- Eu pedi licença à mamã para o levar - exclamou Simplícia, com entusiasmo.

COZ - É verdade, menina? Então eu contente. E o rosto de Coz iluminou-se.

O porteiro esperava à porta o fim deste diálogo; vendo que ele se prolongava, deu alguns passos e entregou a Inocêncio uma folha de papel cheia de algarismos. INOCÊNCIO - Que é isto, tio Frimousse?

PORTEIRO - É a sua conta. Não será tempo de me pagar?

INOCÊNCIO - Eu? Só uma vez é que comi dos seus bolos e das suas nozes e não tive nenhuma vontade de repetir.

PORTEIRO - Perdão, mas tudo isto foi gasto em seu nome e reclamo o pagamento, aproveitando a presença desta senhora, que com certeza é quem tem o dinheiro.

INOCÊNCIO - Já lhe disse que não lhe devo nada e, por isso, não lhe pago.

-Essa é forte. Olhe que isto não fica assim. disse o porteiro, de punho na anca. - Paga-me tudo, pode ter a certeza. Vou já queixar-me ao Sr. Director e ele presenteia-o com uma salada de castigos e proibições de passeios e saídas. E veremos se eu perco os bolos, as nozes, as maçãs, os chocolates e outras guloseimas! Paga-me, já lhe disse, e a senhora não sai daqui sem me pagar túdo ou passar-me um papel declarando que me deve trinta e cinco francos e vinte e cinco cên timos, nem mais nem menos.

- Meu pobre Sr. Inocêncio, se deve este dinheiro, confesse, que eu pago - disse Prudência, em voz baixa.

INOCÊNCIO - Garanto-te, Prudência, que não devo nada; pelo contrário, ele é que me deve três francos e tal de troco de uma moeda de cinco francos.

-Ainda por cima está a mentir! - exclamou o porteiro.

Não pôde continuar, porque Coz, agarrando-o pelo fato, sacudiu-o rudemente, dizendo:

- Tu calar! Tu ir embora! Tu insolente para Sr. Inocêncio e Sr. a Prudência! Eu não querer! Vai guardar porta...

- Sim, vou guardar a porta, grande malandro, vadio ruivo; guardo-a tão bem que nem tu nem os teus patrões saem daqui. Imaginam que me deixo comer? Que uns provincianos intrujões podem vir explorar a gente de Paris e depois pst!, desaparecer? Vocês vão ver!

Antes que Coz pudesse deixar cair o punho que levantara sobre a cabeça do porteiro, este esquivou-se e fechou a porta atrás de si.

- Sr. Inocêncio - disse Coz -, eu pensar ser preciso não ficar aqui: casa má, porteiro ladrão, rapazes maus. Não bom. Sr. a Prudência e eu levar Sr. Inocêncio, é melhor.

- E o papá que vai dizer? Comunicam-lhe que eu fugi, e ele zanga-se.

- Não, não, Sr. Inocêncio, não zanga, não dizer nada, achar bom. Eu procurar roupa, professores; Sr. Inocêncio dizer adeus e depois sair.

Prudência achava boa a ideia de Coz e dava as suas razões a Inocêncio, quando entrou o director.

- Sr. Gargilier - disse ele -, o porteiro reclama o dinheiro que lhe deve das coisas que comeu; se as comprou à doida, isso não quer dizer que não seja obrigado a pagá-las, e admira-me que se recuse a efectuar um pagamento que tem obrigação de fazer.

INOCÊNCIO - Juro-lhe que não devo nada ao porteiro e que só uma vez comprei uns bolos e bolachas, que paguei; ele ainda me deve mais de três francos de troco.

  1. DOGUIN - Meu amigo, compreendo que tenha medo de confessar diante desta senhora, que podia dizê-lo a seu pai, mas isso não é honesto, e tem de pagar.

PRUDÊNCIA - O Sr. Inocêncio não tem medo de mim e sabe que eu não ia queixar-me dele a seu pai; ofereci-me para fazer o pagamento dessa dívida, mas... ele recusou, garantindo-me que não deve nada.

INOCÊNCIO - Veja a conta, Sr. Director. Como é que eu podia comprar bolos na enfermaria? Veja, todos os dias bolos, bolachas, maçãs e nozes, e eu sem poder mexer-me nem comer.

- É verdade! - disse o Sr. Doguin, examinando a conta. - Aqui há coisa! Olá, tio Frimousse! ...

- Aqui estou, Sr. Director - respondeu o porteiro, acorrendo ao apelo, julgando que lhe iam pagar por ordem do director.

  1. DOGUIN - Tio Frimousse: nesta conta estão, todos os dias, compras do Sr. Gargilier, mas eu tenho a certeza de que ele não saiu da enfermaria durante vários dias.

PORTEIRO - É possível, Sr. Director, não digo que não.

  1. DOGUIN - Então como pôde ele comprar as coisas que estão na conta?

PORTEIRO - Eu não disse que fosse ele próprio a fazer as compras: foi por procuração.

  1. DOGUIN - Qual procuração? Por intermédio de quem fez ele as compras?

PORTEIRO - Por intermédio do Sr. Félix Oursinet. INOCÊNCIO - Eu nunca encarreguei Oursinet de fazer compras.

PORTEIRO - Perdão, mas o Sr. Félix pediu-me um crédito para si e deu-me cinco francos adiantados.

INOCÊNCIO - Oursinet é um gatuno. Peço ao Sr. Director que faça o favor de o mandar chamar.

  1. DOGUIN - Tio Frimousse, traga-me o Oursinet.

O porteiro apressou-se a obedecer; cheio de inquietação pelo pagamento da conta, não tardou a fazer comparecer perante o director aquele que já supunha ter abusado da sua boa-fé.

- Sabe porque me chamam? - perguntou Oursinet.

- Como é que hei-de saber? Talvez para lhe darem uma saída como prémio... - e acrescentou consigo mesmo: Aguenta-te, que vais ter uma boa dança; e eu sacudo-te até ter os meus trinta e cinco francos e vinte e cinco cêntimos.

Entraram na sala. Quando Oursinet viu Inocêncio, adivinhou o que se ia passar e resolveu ser audacioso.

- O Senhor Director mandou-me chamar? - disse ele com ar hipócrita.

  1. DOGUIN - Sim, senhor. Precisamos da sua presença para esclarecer um assunto mais do que desagradável.

OURSINET - Adivinho o que me vai dizer. É o tio Frimousse que reclama trinta e cinco francos do Gargilier.

PORTEIRO - Trinta e cinco francos e vinte e cinco cêntimos.

OURSINET - E Gargilier não quer pagar?

INOCÊNCIO - E porque havia de pagar o que não devo? Tu, que foste buscar tudo ao tio Frimousse, sabes bem que nunca te encarreguei disso; tu é que comeste tudo, se foste lá buscar alguma coisa.

Oursinet sorriu e não respondeu.

  1. DOGUIN - Responda claramente, Oursinet. Foi buscar por conta de Gargilier tudo que está na conta do tio Frimousse?

OURSINET - Não quero conferir a conta; é inútil, porque todos conhecemos a honestidade do tio Frimousse, mas posso responder, claramente, que sim.

  1. DOGUIN - E porque foi comprar em nome de Gargilier o que era para si, para satisfazer a sua gulodice?

OURSINET - Não comprei nada para mim, Sr. Director. Foi tudo para Gargilier.

  1. DOGUIN - Sim, mas comeu tudo como um gulutão e não lhe disse nada.

OURSINET - Perdão, Sr. Director: Gargilier é que recebia e comia tudo.

- Mentiroso! - exclamou Inocêncio, saltando da cadeira. - Nem sequer te vi, enquanto estive na enfermaria, e, fora disso, não cheguei a dizer-te três palavras.

OURSINET - Ouve, Gargilier: o tio Frimousse não te obriga a pagar tudo já; ele sabe que nós não temos sempre trinta e cinco francos na mão...

PORTEIRO - Trinta e cinco francos e vinte e cinco cêntimos.

OURSINET - Foi pena ele ter pedido o dinheiro diante de toda a gente; compreendo que não queiras confessar. Deixe-nos, tio Frimousse - acrescentou em segredo -, eu arranjo tudo.

- Tu és um caluniador, um mentiroso, um ladrão!

- exclamou Inocêncio, fora de si. - Fique, fique, tio Frimousse. Peço ao Sr. Director o favor de se informar junto da enfermeira e dos meus camaradas, se me viram comer ou distribuir, uma única vez, esses bolos; se, pelo contrário, não nos admirámos muitas vezes de ver o Oursinet voltar do porteiro com as mãos e a boca cheias, em todos os recreios. De resto, declaro ao Sr. Director que, se a mentira e a deslealdade de Oursinet não se provarem, estou pronto a pagar tudo, apesar de nada dever, porque não quero que o tio Frimousse perca tanto dinheiro por minha causa.

- Valente rapaz! - exclamou o porteiro. - Se o Sr. Oursinet nos quis enganar, há-de pagar, porque eu escrevo ao pai.

- Eu me encarrego de deslindar este negóciodisse o directór -; mas, de futuro, fica expressamente proibido de vender coisas a crédito a qualquer aluno. Vu já tratar disto; daqui a um quarto de hora digo-lhes o resultado. Esperem-me todos aqui.

O director saiu, deixando na ansiedade os autores da cena. Inocêncio tinha medo que os alunos, por ódio contra ele, fizessem falsos testemunhos. Oursinet temia que eles, por não estarem prevenidos, dissessem a verdade, ficando demonstrada a sua culpabilidade. O tio Frimousse inquietava-se com os seus trinta e cinco francos e vinte e cinco cêntimos, cujo pagamento podia ser recusado pelos pais de Oursinet. Prudência desolava-se por ver o seu jovem patrão falsamente acusado. Simplícia aborrecia-se por estar tanto tempo retida naquela sala. Coz continha dificilmente a sua cólera contra o caluniador, que ele de boa vontade faria em postas, e contra o porteiro insolente que ousava duvidar da sinceridade de Inocêncio. Os seus olhos exprimiam tal furor, que o tio Frimousse e Oursinet se afastaram, instintivamente, até ao canto mais recuado. O director não tardou a voltar. Vinha com uma expressão de severidade.

- Gargilier, aproxime-se.

Inocêneio colocou-se em frente dele, com o olhar calmo e a cabeça levantada.

- Oursinet, venha também.

Oursinet aproximou-se, lentamente, de cabeça inclinada e olhar baixo.

Coz deu alguns passos; os seus olhos lançavam faíscas.

- Gargilier, a sua inocência está perfeitamente reconhecida. Tive a prova de que Félix Oursinet se serviu do seu nome para devorar as guloseimas e de que o Inocêncio não deve nada ao tio Frimousse.

Coz recuou, mais calmo.

- Oursinet, está provado que é um mentiroso, um gatuno, um caluniador covarde; que a sua presença é uma humilhação para os seus colegas e uma vergonha para a minha casa. Por isso, vou metê-lo no castigo e prevenir os seus pais a fim de que o venham buscar.

Coz esfregava as mãos.

- Perdão! Misericórdia! - gritou Oursinet, caindo de joelhos. - Não diga nada a meus pais, suplico-lhe. Eles batem-me.

- Covarde! - disse o director, indignado. - Treme do castigo que merece e não tem vergonha de fazer passar Gargilier por guloso, mentiroso e ladrão. Esse terror não me inspira piedade.

- Repugnante! Repugnante! - disse Coz, a meia voz.

- Tio Frimousse, leve Oursinet para o castigo e dê-lhe pão e água para o jantar.

O tio Frimousse agarrou Oursinet pela gola e, apesar da sua resistência, levou-o para o castigo.

- Minha senhora - disse o director a Prudência

-, escrevi há poucos dias ao Sr. Gargilier, pedindo-lhe para retirar o filho do meu colégio; ele não se pode aguentar aqui, porque os alunos tomaram-no de ponta. Apesar da maior vigilância, é impossível impedir cenas deploráveis, como aquelas que ele com certeza lhe contou. Julgo perigoso para ele prolongar a sua permanência nesta casa e peço-lhe, no seu interesse, que o leve o mais cedo possível. A cena de hoje vai-se propalar, vai ser maldosamente interpretada pelos colegas e pode resultar em qualquer conspiração, a rebentar por estes dias.

- Eu levo-o imediatamente, Sr. Director, imediatamente - apressou-se a responder Prudência, aterrorizada.

- Oh! Também não há tanta pressa - replicou o director, sorrindo. - Amanhã vai muito a tempo. Até lá ele arranja a bagagem.

- Sim, sim, eu preferia amanhã - disse Inocêncio

-, porque hoje vamos à aula de natação; divertir-me-ei e faz-me bem.

- Então, até amanhã, meu querido senhor. Tome muito cuidado com os seus maus colegas. Coz e eu voltamos amanhã, à hora que quiser.

- Ao meio-dia, antes do recreio - disse Inocêncio.

- Está bem! Ao meio-dia estaremos cá.

E separaram-se.

 

O banho

Os alunos dirigiram-se para o banho às quatro horas. Ainda estava calor, e era sempre motivo de grande alegria, porque constituía novidade e representava uma longa hora de estudo a menos. Inocêncio desejara gozar este último pequeno prazer. Chegaram ao banho; os alunos repartiram-se pelas cabinas. Inocêncio ficou com três inimigos e quatro amigos, de modo que se julgou bem protegido. Despiram-se, vestiram os fatos de banho e foram atirar-se à grande piscina. Inocêncio sabia nadar um pouco; dirigiu-se para a parte mais funda da piscina, onde se encontravam vários alunos da sua classe.

- Um mergulho ao Gargilier! - disse um deles. E, apoiando as mãos sobre a cabeça de Inocêncio, fê-lo ir ao fundo.

- Um mergulho ao Gargilier! - disse o segundo, vendo-o voltar ao de cima.

- Um mergulho ao Gargilier! - disse um terceiro. Inocêncio mergulhava, debatia-se, voltava à superfície, procurava respirar, tornava a mergulhar; ao quarto mergulho estava ofegante, quase sufocado; fazia esforços desesperados para soltar um grito, um único, com a esperança de ser ouvido pelos amigos, mas não lhe davam tempo. Os rapazes, não vendo o perigo dos repetidos mergulhos, faziam-no mergulhar incessantemente; o seu ar de angústia, os seus movimentos convulsivos divertiam-nos, em lugar de os impressionar. Por fim, depois de mais um mergulho, Inocêncio não tornou à superfície; ficou no fundo, sem conhecimento. Neste instante chegavam os alunos mais crescidos; Paulo sentiu um corpo debaixo dos seus pés; mergulhou e retirou o pobre Inocêncio, de olhos fechados e mãos crispadas.

- Socorro! - gritou ele. - Socorro! Gargilier afogou-se.

Vinte alunos e os professores chegaram junto de Paulo e ajudaram-no a transportar o corpo de Inocêncio. Foram-lhe prodigalizados todos os cuidados necessários em tais casos. Só meia hora depois, e à custa dos maiores esforços, é que deu sinal de vida: abriu os olhos, mas fechou-os logo a seguir. O médico, que dirigia tudo, garantiu ao director que ele estava vivo. Não tardaram a ver Inocêncio voltar completamente a si, falar e querer levantar-se. O director mandou envolvê-lo em cobertores e transportá-lo num trem que o esperava. Mais uma vez deu entrada na enfermaria. Inocêncio pensou, cheio de felicidade, que era a última noite passada naquela casa, que ele tanto desejara habitar, e que fora para ele um lugar de tortura e desgraça.

Agradeceu a Deus tê-lo salvo deste último perigo e, como testemunho de reconhecimento, resolveu não indicar os nomes dos alunos, que reconhecera, perfeitamente, e que o iam matando. Esta resolução custou-lhe muito, mas não a quebrou, e quando o director e o professor vieram, no dia seguinte, saber notícias e interrogá-lo sobre o acidente de que fora vítima, respondeu, vagamente, que perdera os sentidos sem saber como.

DIRECTOR - Mas os alunos mais novos disseram, depois, que viram os seus colegas fazê-lo dar mergulhos uns atrás dos outros.

INOCÊNCIO - É possível; dentro da água não se tem a noção bem clara do que se passa; mergulhei, senti-me sufocado e depois desmaiei.

DIRECTOR - Mas com certeza que sabe quais eram os alunos que se encontravam à sua volta quando mergulhou.

INOCÊNCIO - Não reparei em ninguém; entretinha-me a nadar e não prestava atenção aos outros.

DIRECTOR - Vejo que não quer dizer os nomes; é uma grande generosidade para esses patifes.

Inocêncio não respondeu; sentia-se feliz por ter tido a coragem de se calar. O director deixou-o, apertando-lhe a mão.

Tinha passado a noite bem e o médico autorizou-o a levantar-se, tomar o pequeno-almoço e preparar-se para sair do colégio. Quando Prudência e Coz chegaram, Inocêncio contou-lhes o acidente da véspera. Prudência ia desmaiando de terror e desgosto. Foi, a tremer, liquidar as contas com o director, que se mostrou satisfeito com a retirada de Inocêncio.

- Fiquei desolado - disse - de não a ter deixado levá-lo ontem, quando tornei a vê-lo vítima da maldade dos colegas. Mas ei-lo, enfim, livre de maçadas; deixe-o, agora, ficar em casa e não o mandem, outra vez, para colégios; será sempre joguete dos outros.

Coz levara a bagagem de Inocêncio para o trem. Prudência subiu com o seu jovem patrão. O polaco tomou o seu lugar habitual, ao lado do cocheiro, e, minutos depois, a Sr. a Roubier tinha mais um hóspede.

 

Visita inesperada

Simplícia tinha ficado só em casa; preparava o apartamento para receber o irmão, cujo regresso esperava com impaciência. Ouviram-se passos na escada.

- É o Inocêncio, conheço-lhe os passos - disse Simplícia, correndo, alegremente, a abrir a porta. - És tu, Inocêncio?... Ah!

E Simplícia, aterrorizada, empurrou a porta e foi esconder-se.

A seguir, a porta abriu-se novamente; ouviram-se os mesmos passos dentro da casa, mas mais precipitados; Simplícia ouviu andar de um lado para o outro, procurar e remexer. Mais morta do que viva, nem se mexia pois, ao correr ao encontro de Inocêncio, deparara com a tia, acompanhada por Boginski.

SR A BONBECK - Para onde diabo se meteu ela? Procure, Boginski. Está para aí como uma estátua; procure, abra tudo.

BOGINSKI - Vejo nada, minha senhora.

SR A BONBECK - Procure aí, na lavandaria; ela talvez esteja lá.

Boginski entrou, e viu Simplícia encolhida a um canto. Ela juntou as mãos em atitude suplicante, para que ele não a denunciasse. Boginski, que era bom rapaz e que sabia como ela seria infeliz se a tia a agarrasse, fez um sinal discreto para tranquilizar Simplícia, fingiu procurar pelos cantos, remexeu os objectos, pôs uma panela virada em cima da cabeça de Simplícia, uma vassoura adiante e pendurou um pano na panela.

- Nada - disse ele -, ninguém; espantoso! Saiu, mas a Sr.a Bonbeck olhou-o e, ameaçando-o com um dedo, proferiu:

- Parece-me que me estás a enganar, meu rapaz; eu vou ver.

Entrou, olhou para todos os lados, não viu nada, saiu e ia retirar-se quando um barulho estrondoso a fez voltar atrás, vendo, então, Simplícia estendida no chão, porque caíra, enfraquecida pelo medo e pela emoção; a panela desabou, a vassoura tombou e Simplícia ficou exposta aos olhares ferozes da tia.

- Eu sou, então, um diabo, um Satanás? É assim que se trata uma tia? Vamos, sai daí, que eu perdoo-te; põe o chapéu e vem comigo.

-Não, não, não quero. Boginski, pelo amor de Deus, salve-me, não a deixe levar-me! Guarde-me até chegarem Prudência e Coz, que foram buscar o Inocêncio.

A Sr. a Bonbeck atirou-se à sobrinha para a levar à força, mas Boginski pôs-se diante de Simplícia.

- Não, não, Sr. Bonbeck, eu não deixar agarrar pobre menina. Não bom, isso, não bom.

- Parvo, miserável, ingrato! - gritou a Sr. a Bonbeck.

Atirando-se a Boginski, pretendeu passar; ele repeliu-a delicadamente; ela encheu-o de injúrias e de pancadas, que ele suportou sem se desviar um passo.

- Não bom, Sr. a Bonbeck, não bom. Bater em mim não faz nada, eu não faz mal; bater menina é mau. Pobre menina! Ter medo, não querer vir, sim ficar; deve deixar ela.

- Animal! - disse a Sr. a Bonbeck, afastando- se.

- Julgava-te mais manso. Prefiro assim, não gosto das pessoas que me obedecem sempre. Tem razão, meu amigo, temos de deixar esta serigaita. Afinal, que havia eu de fazer dela? Que vá para o diabo! Tanto me faz.

A Sr. a Bonbeck olhou Simplícia com desdém e, voltando costas, encaminhou-se para a porta de entrada.

- Abra! - disse ela, majestosamente, a Boginski. Boginski abriu e esperou para a deixar passar.

- Passe, ande, já que está aí - disse ela. Boginski passou. Assim que ele transpôs a porta, a Sr. a Bonbeck fechou-a com violência, deu volta à chave e voltou-se para Simplícia com ar de triunfo:

-Estás agarrada, minha filha; não escapas à tua velha tia. O que eu quero, quero a valer! Será muito finório quem me levar a palma... Acabas com esse barulho, tu, ó polaco? - gritou ela a Boginski, que batia à porta. - Sim, sim, toca tambor, meu rapaz, rabeia para aí. Ah! ah! ah! Agora tenho-os nas mãos!

Boginski gritava, chamava e batia; a Sr. a Bonbeck ria, praguejava e esfregava as mãos. A infeliz Simplícia, desesperada, pálida como a morte, a tremer toda, não se atrevia a responder aos gritos de Boginski nem a fazer um movimento. A Sr. a Bonbeck olhava-a, com ar trocista; pôs-se-lhe adiante, de braços cruzados; Simplícia recuou até à parede, e a tia seguiu-a até os seus braços cruzados tocarem no peito de Simplícia.

- Não tenhas medo, que não te bato (os seus olhos lançavam faíscas). Não estou zangada. Quero somente provar-te que comigo não se brinca como uma criança, que Boginski não me pode impedir de fazer o que eu quero, que, se me apetecer levar-te, levo-te mesmo.

Simplícia soltou um grito, ao qual respondeu outro grito selvagem; reconheceu a voz de Coz.

-Socorro! Socorro! - gritou ela. - Coz, salva-me.

A Sr. a Bonbeck agarrou-a nos seus braços vigorosos, apesar da idade, levou-a para o compartimento seguinte, fechou a porta à chave, abriu outra porta que dava para uma escada de serviço, viu que ninguém estava no pátio, desceu os degraus, arrastando Simplícia, e correu para o trem que a trouxera. Empurrou Simplícia lá para dentro, subindo depois, e mandou o cocheiro voltar à Rua Godot. Simplícia encontrava-se mais uma vez nas garras da tia. O seu desespero foi terrível; a sua imaginação mostrou-lhe as cenas mais horrorosas; soluçava e torcia as mãos.

- Simpliciazinha - disse a Sr.a Bonbeck, com voz meiga -, no dia seguinte àquele em que te bati, procurei-te por toda a parte sem te encontrar. Também fui a casa da Sr.a Roubier, mas não me deixaram entrar, apesar de todos os meus esforços. Fiquei aborrecida com a tua fuga; tenho medo de te deixar sem outra protecção que não seja a de uma bretã es túpida e de um polaco grosseiro. Vi a Prudência e o Coz descerem de um trem à porta do colégio. Corri imediatamente para aqui, sabendo que estavas só. Perguntei por ti delicadamente ao porteiro, e ele indicou-me a porta. Agora, ouve: não quero que fiques em casa da Sr.a Roubier; sou tua tia e é em minha casa que deves ficar, e, portanto, ficas... Oh! bem podes chorar e espernear, vais para lá e ficas só comigo; não quero a Prudência, que te dá mimo e te deixa fazer parvoíces. Não quero o Coz, que te ajudou a fugir, e não quero o Inocêncio, que é um parvo. Levo-te a passear e trabalhas...

- E eu mato-me, se o papá me deixa em sua casa!

- Ora, ora, ora! Ninguém se mata por tão pouco. Mas chegámos; apeia-te e sobe a escada, enquanto eu pago ao cocheiro.

A Sr.a Bonbeck, que fora tão esperta com Boginski, foi-o menos com Simplícia; esta, assim que se apeou, partiu como uma seta, a correr pela rua; a Sr.a Bonbeck, estupefacta, primeiro chamou-a, depois quis correr, mas o cocheiro não a deixou.

- O meu dinheiro, se faz favor.

- Eu já pago, um momento...

-Nada, nada! Já conheço essa história! Quer andar de trem e depois desaparecer para não pagar.

-Desgraçado, que me fazes perder a sobrinha! Pronto, já virou a esquina!

- Pois sim! Não faz mal; ela já não estava contente quando a meteu no trem, como se fosse uma trouxa de roupa suja.

- Miserável... Afirmo-te... não há insultos que lhe valham... Tem a língua comprida, mas eu nem a ouço. Quero o meu dinheiro, e não a largo enquanto não o puser nesta mão.

E o cocheiro, agarrando com força o braço da Sr. a Bonbeck, estendia-lhe a outra mão aberta.

A Sr.a Bonbeck praguejou, bateu com os pés, mas pagou. Já era tarde para correr atrás de Simplícia. Voltou para casa, de muito mau humor, insultando toda a gente e prometendo que Boginski se arrependeria do que tinha feito.

 

Regresso de Prudência e de Coz

Enquanto Simplícia se encontrava nas garras da Sr. a Bonbeck, Coz e Prudência, informados por Boginski do que se tinha passado, empregavam os seus esforços para arrombar a porta, a fim de libertarem Simplícia. Prudência foi procurar reforços; só encontrou o porteiro, que subiu precipitadamente com outra chave do apartamento. A chave deu a volta, mas o ferrolho estava corrido. Que fazer? Coz, desesperado, atirou-se com um ombro contra a porta, com tanta força, que ela caiu; as ferragens ficaram rebentadas. Precipitaram-se todos para dentro e não viram ninguém. Abriram a porta do quarto de dormir, onde também não havia vivalma; a porta de serviço, aberta, denunciou-lhes o rapto de Simplícia.

- Vou correr - disse, então, Boginski -; Sr. a Bonbeck levar pobre menina, eu trazer.

Prudência chorava e Inocêncio estava muito triste; Coz continuava pensativo, de braços cruzados e de cabeça baixa.

- Sr. a Prudência - disse ele, com ar resolutoeu ajudar. Eu correr a casa Bonbeck, pedir menina; se Bonbeck não querer dar, eu partir tudo, abrir portas, arrancar menina e trazer cá.

PRUDÊNCIA - É impossível, meu pobre Coz; a Sr. a Bonbeck fazia queixa à polícia e você era condenado e expulso de França.

COZ - Eu não querer deixar França; eu ficar em casa de menina e Sr. Inocêncio. Mas então, eu que fazer para ajudar?

PRUDÊNCIA - Esperemos o regresso de Boginski, talvez ele a traga.

COZ - E se não trazer?

PRUDÊNCIA - Então escrevo ao Sr. Gargilier, para que venha tirar a pobre pequena das garras desta mulher abominável, e vamos todos para casa do Sr. Gargilier.

COZ - Que bom quando estar lá!

Coz resignou-se a esperar; Prudência encarregou-o de cuidar de Inocêncio enquanto ela ia informar a Sr. a Roubier do que se passara e pedir-lhe conselho sobre o que havia a fazer para reaver Simplícia.

Boginski dirigia-se para a Rua Godot, enquanto Simplícia corria para a Rua Grenelle. Ela tinha percorrido muitas vezes este caminho. Ao atravessar as Tulheiras a toda a velocidade, sentiu-se subitamente agarrada. Um polícia segurava-a por um braço, julgando-a uma ladra que fugia.

- Aonde vai a menina a correr com tanta pressa? Parece que traz cem diabos às canelas.

-Oh! Deixe-me, deixe-me! Ela vem aí e agarra- me; bate-me, mata-me - disse Simplícia, desesperada.

-Mas quem é ela? - perguntou o polícia, surpreendido.

- Ela, a minha tia! Oh! Peço-lhe, deixe-me. Se ela me agarra, estou perdida.

- Pelo contrário, já foi encontrada.

- Socorro! Deixe-me; quero ir para a minha criada.

- Onde está a sua criada? Porque fugiu da criada?

- Não fugi dela, a minha tia é que me roubou. A minha criada está em casa da Sr. a Roubier.

- A Sr. a Roubier? Na Rua Grenelle?

- Sim, sim, n.o 91; é aí que eu moro e quero ir para lá.

- Ora esta! É estranho - disse o polícia, a meia voz - contudo, ela não tem cara de pertencer a uma boa casa, esta pequena.

Ele não sabia se havia de a deixar seguir ou retê-la, quando Simplícia soltou um grande grito, deu um safanão tão violento, que o polícia a deixou escapar e voltou a correr, ainda com mais velocidade do que antes, gritando:

-Socorro! Boginski, leve-me!

O polícia correu atrás dela a toda a velocidade e ia justamente a agarrá-la no momento em que Simplícia caía ofegante e semimorta nos braços de Boginski.

A multidão, que se juntara quando o polícia interrogava Simplícia e que correra atrás deles para assistir ao fim da cena, tornou-se mais compacta e escutou com interesse as explicações de Boginski, as palavras entrecortadas e as exclamações de Simplícia.

- Pobre menina - disse o polaco. - Sr.a Prudência esperar muito triste. Nós imaginar menina em casa da Sr. a Bonbeck; eu correr para arrancar pobre menina. Como estar menina aqui?

- Fugi enquanto a minha tia pagava ao cocheiro e corri, corri, tão depressa, que já me faltava o ar. Tinha tanto medo de que ela me agarrasse!

O polícia retirou-se, abrindo caminho a Simplícia e a Boginski. Dirigiram-se para o pequeno apartamento onde Boginski entrou, triunfante. Prudência, Inocêncio e Coz esperavam-no, desolados. O regresso de Simplícia foi acolhido com gritos de alegria; Prudência beijou-a até quase a sufocar; Inocêncio demonstrou-lhe mais afecto do que era habitual. Coz, ao vê-la, deu um salto de alegria e pegou-lhe ao colo. Mandaram Boginski prevenir a Sr. a Roubier do feliz regresso de Simplícia.

Prudência quis festejar este agradável acontecimento com uma boa refeição. Fez um excelente bolo coberto de creme de baunilha e rodeado de uma muralha de frutas cristalizadas. Beberam moscatel para celebrar o regresso de Inocêncio ao seio da família e a volta de Simplícia. Convidaram Boginski para jantar; este honrou largamente o banquete e, depois, voltou para casa da Sr. a Bonbeck.

Só faltava preparar a cama de Inocêncio; Coz cedeu-lhe a sua, que levou para o primeiro compartimento.

- E o Coz onde dorme? - perguntou-lhe Prudência.

- Eu dormir em chão; eu habituado, eu dormir toda a parte!

- Mas vai ter frio!

- Eu enrolar em manta; não ter frio, não mau, muito bom.

Assim fez, e dormiu tão bem, que ressonou mais do que nunca.

Passaram-se mais três dias e não se recebia nenhuma resposta nem da senhora nem do Sr. Gargilier. Prudência inquietava-se com este silêncio; Inocêncio e Simplícia aborreciam-se; Coz estava triste, com medo que o deixassem em Paris; redobrava de cuidados e de actividade para se fazer aceitar. Prudência fazia- lhe os maiores elogios; Simplícia e Inocêncio já não podiam passar sem ele e davam-lhe todas as garantias possíveis de que o pai o contrataria.

Quatro dias depois da chegada de Inocêncio, o carteiro anunciou:

- Uma carta para a Sr. a Prudência.

Era do Sr. Gargilier. As crianças estavam tão impacientes como Prudência, por saber o conteúdo dela.

- Lê alto! - exclamaram.

Prudência leu o seguinte:

Minha boa Prudência

Minha mulher e eu passámos dez dias em casa de meu irmão e ontem, ao regressarmos, encontrámos, as cartas de nossos filhos, a sua e a do director do colégio. Não percam mais um dia, nem mais um minuto, a tirarem o nosso pobre Inocêncio dessa casa, onde entrou pela sua teimosia e pela minha fraqueza. Quanto a Simplicia, também não quero que ela fique em casa de minha irmã; há quinze anos que vivemos afastados, ela em Paris e eu no campo, e parece que o seu génio violento fez progressos consideráveis. Concedo, portanto, a Simplicia e a Inocêncio o perdão do seu procedimento absurdo e espero-os com uma impaciência igual à deles. Nunca teria consentido na separação que tão ardentemente desejaram, se pudesse adivinhar os desgostos e sofrimentos que daí resultaram para eles e para si, minha boa Prudência, tão dedicada aos meus filhos e à minha casa. Gostava de ir eu próprio buscá-los, mas minha mulher teve uma entorse e não se pode mexer. Fico junto dela para a tratar e distrair. Venham o mais depressa possivel e tratem de arranjar um homem seguro para os acompanhar até aqui. Veja se a pessoa, a que Simplicia se refere na sua carta, merece confiança.

Adeus, minha boa Prudência, beije por nós os nossos queridos filhos. Não lamento ter cedido aos seus desejos, porque a lição foi boa e completa, e voltam, com certeza, melhores do que foram. Diga-lhes que lhes perdoamos de todo o coração, e agradeçam à Sr. a Roubier a hospitalidade que quis ter a gentileza de conceder à Simplicia. Os nossos cumprimentos, minha boa Prudência, e toda a estima que nos merece. Escrevo também a minha irmã para a prevenir da minha decisão.

-Que felicidade! Oh! Prudência, como sou feliz! i Vou ver a mamã e o papá!

E Simplícia derreteu-se em lágrimas, e Inocêncio participou da sua alegria e do seu enternecimento. Prudência estava radiante. Só Coz se mostrava triste e silencioso.

-Então, meu bom Coz, que tem? Não está contente com as boas notícias que recebemos?

-Porquê eu contente? Eu ver partir e eu gostar todos! Eu ficar só, triste! Triste, ninguém para consolar pobre Coz...

- Meu pobre amigo, mas não percebe que o Sr. Gargilier diz que, se o homem indicado pela menina merece confiança, nos acompanhe; este homem é você! Você é que nos acompanhará!

- Eu confiança? Eu acompanhar? Depois ficar? Eu não deixar? Obrigado, Sr. a Prudência! Obrigado, meni na! Obrigado, senhor!

Dizendo estas palavras, Coz ria, girava como um pião, asfixiava Prudência, sacudia os braços de Simplícia, esmagava as mãos de Inocêncio. Estava louco de          alegria; pedia para partirem imediatamente, com medo de que mudassem de opinião. Prudência teve dificuldade em lhe fazer compreender que precisavam de esperar até ao dia seguinte.

- Precisamos de tempo para arranjar tudo - disse ela.

- Eu fazer tudo numa hora - respondeu Coz.

PRUDÊNCIA - Temos que nos despedir da Sr. a Roubier e agradecer-lhe as suas amabilidades.

COZ - Isso não muito tempo; eu dizer por si. PRUDÊNCIA - Não, não era delicado. Temos que ir nós próprios, depois do meio-dia. Em seguida, levaremos as crianças a despedirem-se da tia.

- Ah! - exclamaram os pequenos, com terror. Não quero ir! Tenho medo.

PRUDÊNCIA - Comigo e com Coz, não há perigo nenhum.

SIMPLÍCIA - Mas se ela me prende como no outro dia?

PRUDÊNCIA - Agora não pode, porque o papá mandou-nos ir e escreveu-lhe.

SIMPLÍCIA - Meu Deus! Meu Deus! Que visita terrível! Felizmente é a última maçada em Paris.

Prudência, ajudada por Coz e pelas crianças, arrumou tudo na mala. A roupa de Coz não ocupou muito lugar; só trouxera de casa da Sr. a Bonbeck alguma roupa que esta lhe dera e outra que comprara com o pouco dinheiro que lhe dava o Governo, e um par de botas; fora isso, só possuía o fato que trazia vestido.

Depois do álmoço, Prudência levou as crianças a casa da Sr. a Roubier, que lhes disse coisas amáveis e aprovou muito a transformação que se operara na Simplícia.

- A menina pode estar certa de que não lhe faço hoje as censuras que lhe dirigi quando chegou; corrigiu-se dos seus defeitos e estou certa de que, quando voltarmos ao campo, no ano que vem, será tão gentil, simples, boa e amável como era dantes. E ao Inocêncio digo o mesmo: os seus desgostos no colégio serviram para o melhorar sensivelmente. Então, adeus, meus filhos, e até ao próximo ano. Adeus, Prudência; você não tem nada a ambicionar; é tão boa e tão dedicada quanto é possível.

- V. Ex. a é muito boa - respondeu Prudência, fazendo uma profunda vénia, muito lisonjeada com os elogios que a Sr. a Roubier dirigira aos seus meninos e também a ela.

-Eu cumprimentar boa senhora, agradecer boa senhora - disse Coz, que entrara sem darem por isso.

A Sr. a Roubier sorriu e estendeu a mão ao valente rapaz, de quem ouvira os seus criados fazer boas referências. Coz, encantado, julgou proceder bem apertando a mão que lhe estendiam; e com tal força, que a Sr. a Roubier soltou um grito.

- Que mão tão forte, meu rapaz! - disse ela, rindo. - Por pouco partia-me os ossos.

Prudência fez sinal a Coz para se afastar, ao que ele obedeceu com uma prontidão que demonstrava o seu respeito pelas ordens da boa mulher.

Depois desta visita, Prudência e Coz levaram as crianças a casa da Sr. a Bonbeck, que encontraram muito descontente com a fuga de Simplícia e com a carta que acabava de receber do irmão. Mostrou-se meio zangada e meio risonha. Disse a Coz que ele era um ingrato por a ter deixado.

- Perdão, Sr. a Bonbeck, eu não querer aborrecer, mas eu gostar pobre menina e boa Sr. a Prudência; eu triste quando ver bater pobre menina e zangado quando Sr. a Bonbeck bater Sr. a Prudência. Elas precisarem Coz; a senhora ter Boginski, que saber mais que Coz; eu em Polónia criado; ele administrador.

- Não me fale nesse diabo do Boginski, já não faço nada dele; zango-me dez vezes ao dia, bato-lhe e nada feito. Rresponde-me sempre com um ar calmo e imbecil: Sr. a Bonbeck boa para Boginski, eu deixar bater se gostar. Grande animal! Como se eu gostasse de bater naquele estúpido! E então ontem não se lembra de se recusar a tocar violino! Deita-se e diz que lhe dói a cabeça! Hoje nem sequer o vi! Coz, vá ver o que está a fazer esse idiota; nem almoçou!

Coz foi ver e não tardou a voltar dizendo que o seu amigo estava doente, que tinha febre e dores de cabeça. A Sr. a Bonbeck alarmou-se e mandou chamar o médico; instalou-se junto da sua cama e tratou-o, dia e noite, durante uma semana. Coz tinha-se retirado com Prudência e as crianças; o resto do dia pareceu-lhes insuportavelmente comprido. No dia seguinte, às nove horas, depois do pequeno-almoço, Coz foi buscar um trem, para onde subiram todos com o coração a saltar de alegria.

 

Conclusão

Os nossos quatro viajantes, radiantes e felizes, tomaram os seus lugares numa carruagem do comboio. Nenhum incidente desagradável contrariou a sua felicidade. Os companheiros de viagem não disseram nada que os melindrasse e não os incomodaram. Prudência, sempre digna do seu nome, levara abundantes provisões. A alegria, em vez de lhes tirar o apetite, estimulou-o tanto, que o cesto estava vazio quando chegaram.

Do comboio passaram para a diligência; desta vez nem a Sr. a Courtermiche nem os polacos a atravancavam; desceram, sem mais aventuras, na estação em que os esperava a carruagem do Sr. Gargilier. Inocêncio e Simplícia quase saltavam ao pescoço do cocheiro, com a felicidade de tornarem a ver uma cara amiga. Prudência beijou-o nas duas faces.

- Bom dia, primo.

- Bom dia, prima.

Na Bretanha, como na Normandia, são todos primos e primas, três léguas em redor, porque os parentescos nunca se perdem e muitas gerações não destroem o tronco comum do vigésimo antepassado. Germano, o cocheiro, levando Coz à sua esquerda na almofada, partiu a trote largo; os cavalos animaram-se Germano perdeu a cabeça e abandonou as rédeas. Os cavalos corriam como o vento e teriam atirado com todos para um profundo barranco se Coz não agarrasse nas rédeas, acalmando-os e metendo-os no trote certo de bons normandos. Prudência e as crianças não perderam esta boa ocasião de gritar e pedir socorro.

- Não gritar - dizia Coz. - Cavalos assustar correr mais depressa.

Quando os cavalos abrandaram a marcha, os gritos cessaram. Coz virou-se.

- Como vêem, não perigoso. Coz saber conduzir cavalos. Cocheiro não segurar bem, deixar ir muito largo, ser mau; cavalos preciso segurar.

Quis entregar as rédeas ao cocheiro, mas ele queixou-se:

- Não gosto destes cavalos, são muito vivos, correm muito. O patrão comprou-os há pouco e fazia bem se os vendesse.

-Não vender; cavalos bons, muito bons, mesmo muito bons.

- Então o patrão que arranje um cocheiro melhor que eu, pois não me encarrego de conduzir estes animais, que se alarmam por nada.

- Eu conduzir; não se alarmam com Coz, eu segurar eles.

Chegaram ao pequeno solar de Gargilier. Inocêncio e Simplícia precipitaram-se nos braços do pai, que os esperava ao portão.

-Perdão, papá, perdão! - disseram os dois. Como foi bom em nos perdoar, e nos deixar vir!

Enquanto eles corriam a beijar a mãe, que a entorse retinha no quarto, o Sr. Gargilier abraçou a criada e, fazendo-lhe perguntas sobre os últimos acontecimentos, cujos pormenores ignorava, ia travando conhecimento com Coz, que Prudência lhe apresentava com tantos elogios, que ele compreendeu logo a qualidade dos serviços que Coz devia ter prestado para ser assim elogiado pela sensata mulher. Interrogou-o sobre a sua posição e os seus meios de existência.

- Eu ter nada - disse Coz -, eu pobre polaco, não feliz. Se eu ficar aqui, muito contente, eu fazer tudo para senhor, senhora, Sr. Inocêncio, menina e boa Sr. a Prudência. Eu gostar Sr. a Prudência e meninos e não querer deixar.

  1. GARGILIER - Mas, meu pobre rapaz, não tenho emprego para lhe dar aqui; não posso fazer de si um criado, um operário.

COZ - Porquê? Eu saber tudo: criado, cocheiro, cavar, ceifar, fazer tudo.

  1. GARGILIER - Não duvido dos seus talentos, mas com certeza está habituado a ganhar muito dinheiro, e não posso pagar como os grandes senhores.

COZ - Eu! Muito dinheiro? Eu pedir nada; só cama e comer. Eu ter pensão do Governo; ser bastante, até de mais.

  1. GARGILIER - Havemos de pensar nisso, meu amigo; hei-de ver como trabalha.

O Sr. Gargilier foi ter com os filhos; encontrou-os ajoelhados junto da mãe, beijando-lhe as mãos e demonstrando-lhe uma ternura a que ela não estava habituada, e que a enchia de alegria.

Passaram-se alguns dias nos mesmos sentimentos de felicidade; o campo mostrava-se às crianças sob um aspecto novo e encantador. Nem compreendiam como tinham podido querer trocar essa vida tranquila, feliz e útil da aldeia, pela agitação, os cuidados e o isolamento de Paris. Fizeram uma descrição tão horrível da capital, do colégio e da tia Bonbeck, que o senhor e a senhora de Gargilier riram sem querer. Prudência não se cansava de fazer o elogio dos polacos, principalmente de Coz, e declarou que, sem ele, teriam morrido dez vezes. Coz trabalhava como um negro, metia-se a tudo, estava em toda a parte, fazia serviço de três homens; nunca o Sr. Gargilier tivera tão excelente servidor, e não tardou a tomá-lo, definitivamente, ao seu serviço, na qualidade de vigilante, cocheiro, operário, criado, etc. Coz sentia-se mais feliz que todos os reis da Terra; só Boginski faltava para a sua felicidade, e não tinha notícias dele.

Um dia, o correio trouxe ao Sr. Gargilier uma carta, que ele leu em voz alta à mulher e aos filhos, meio risonho e meio zangado.

Querido irmão:

Os seus filhos são uns patetas, principalmente a Simplicia, que não quis ficar comigo. A Sr.a Prudência é uma tola que deve pôr na rua, e que dá muito mimo aos seus filhos. Eles levaram um dos meus polacos: é um ingrato e não tenho pena dele. E agora é que o imbecil do meu Boginski resolveu adoecer; já está melhor, mas não pode tocar. O médico mandou-o passar quinze dias ao campo; como não tenho outro sitio, mando-o, amanhã, para aí: Tive cá essas palermas durante um mês, agora pode receber-me o polaco durante quinze dias. Não deixe de mo tornar a mandar, assim que ele puder tocar violino.

Adeus, meu irmão. Diga à Simplicia que é mais parva do que um pato. Educou muito mal os seus filhos; se fosse comigo, educava-os de outra maneira.

Sua irmã,

Ambrósia Bonbeck

 

SIMPLÍCIA - Olha! a minha tia vai mandar o Bo ginski! Vou dizer à Prudência.

INOCÊNCIO - Ó Prudência! Boginski chega hoje. É a tia que o manda.

PRUDÊNCIA - Que bom! Como o Coz vai ficar contente!... Coz, Coz!... O seu amigo Boginski chega hoje. A Sr. a Bonbeck mandou-o para cá!

- Óptimo! - exclamou Coz. - Obrigado, Sr. a Prudência, ser boa, vir dizer a Coz; senhora sempre boa. Eu ajudar a preparar tudo para amigo.

Coz e Prudência arranjaram um quarto para Boginski, e Coz, por ordem do Sr. Gargilier, saiu com um carro para trazer o amigo.

Quando Boginski chegou, nem Prudência nem as crianças o reconheceram, de tal forma se encontrava mudado, emagrecido e pálido. Estivera muito doente; a Sr. a Bonbeck fora muito boa para ele, mas era tão agitada, tão barulhenta, falava e ralhava tanto, que o médico declarou que o doente morreria se o não mandassem para o campo descansar; ele próprio tinha pedido insistentemente para ir para casa do Sr. Gargilier.

Não tardou a sentir-se melhor e a refazer-se, inteiramente, mas não falava em partir, apesar das insistentes cartas da Sr. a Bonbeck. Procurava tornar-se útil em casa. Pôs a biblioteca em ordem e catalogou os livros com uma inteligência que espantou o Sr. Gargilier. Ofereceu-se para dar lições a Inocêncio e a Simplícia e fê-lo tão bem, desenvolveu-os tanto, que o Sr. Gargilier interrogou-o sobre o seu passado e soube que ele pertencia a uma família distinta, que recebera uma educação muito boa e era capaz de instruir os filhos; somente, não aprendera francês.

Ao fim de um mês tornou-se necessário responder à Sr. a Bonbeck, que ameaçava ir em pessoa buscar o polaco.

O Sr. Gargilíer chamou Boginski, mostrou-lhe a carta da irmã e disse:

- Que devo responder, meu amigo? Quer deixar-nos e voltar para casa de minha irmã?

BOGINSKI - Oh! Meu desejo é nunca os deixar; eu muito feliz aqui. Em casa da Sr. a Bonbeck ser terrível; eu doente de tristeza e cansaço. Se voltar outra vez, doente; vida tão má em casa dela: sempre música ou zanga!

  1. GARGILIER - Mas, então, fica bem em minha casa, junto dos meus filhos?

BOGINSKI - Não só bem, mas feliz, feliz junto de Coz! Oh! se ficar eu, pobre polaco, nunca o esquecer; ficar sempre obrigado. Aprender francês depressa; já falar melhor. Num ano falar mesmo bem.

  1. GARGILIER - Então, meu caro, é assunto arrumado. Você convém-me; é um bom rapaz, dedicado e agradecido. Não preciso de um sábio para o meu filho; basta aquilo que sabe, e encarrego-o da educação de Inocêncio.

Boginski apertou a mão do Sr. Gargilier entre as suas, beijou-a à moda da Polónia, e correu a dar a boa nova ao seu amigo Coz, que saltou de alegria. Boginski escreveu à Sr. a Bonbeck, agradecendo-lhe a sua generosidade e explicando-lhe que a sua saúde, muito abalada, exigia repouso com ares de campo.

A Sr. a Bonbeck, furiosa, respondeu com uma carta cheia de injúrias e acusou o irmão de ter transviado os seus dois polacos. Dois dias depois Boginski recebeu úm embrulho com tudo o que lhe pertencia - dois fatos novos, um violino, músicas - e uma carta nestes termos:

Meu amigo

Você é um bom rapaz, eu é que sou uma velha má; teve razão em me deixar. Fi-lo infeliz e doente. Gostava de ser boa, mas não posso; o mau génio arrebata-me. Diga à Simplicia e à Prudência que lhes peço perdão, assim como a si. Quando estiver emendada, vou visitá-lo, mas receio que esse dia nunca chegue.

O meu irmão irrita-me com a sua calma, e os filhos dele são uns patetas que me fazem ferver o sangue. Adeus, meu amigo, pense algumas vezes, sem ressentimento, na sua velha amiga,

Ambrósia Bonbeck"

A vida em casa do Sr. Gargilier decorria feliz e sossegada. Inocêncio tornou-se um belo rapaz, instruído e bem-educado, graças aos cuidados de Boginski. Simplícia cresceu, fez-se bonita e uma rapariga agradável e amável; casou com um vizinho, cuja irmã se tornou, mais tarde, mulher de Inocêncio. Continuaram a viver felizes, no campo, ocupando-se dos seus haveres e protegendo os pobres, sem saudades de Paris. Boginski ficou sendo o amigo da casa e dos seus alunos; a sua felicidade foi suficiente para não desejar o regresso à Pátria. Coz acabou, também, ali a sua vida, na companhia de Prudência que, depois de cinco anos de recusa, consentiu em se tornar sua mulher. Durante cinco anos respondeu sempre às propostas de Coz:

-Nunca consentirei em usar um nome que ninguém sabe pronunciar. Sejamos amigos, trabalhemos juntos para a casa, mas fique solteiro e deixe-me continuar, também, assim.

Finalmente, um dia Coz veio anunciar-lhe, muito feliz, que acabava de se naturalizar cidadão francês e que, em vez de se chamar Cozrgbrlewski, se inscrevera com o nome da mãe: Véniska.

-E agora, Sr. a Prudência, recusa usar o meu nome?

- Já não é tão feio chamar-se uma pessoa Véniska

- respondeu Prudência, sorrindo.

-Então, diga que sim; é o que me falta para ser completamente feliz. Agora tenho uma pátria, mas não possuo família, nem mulher, nem lar!

-Pois bem, sim, meu pobre Coz; não quero torturá-lo mais. Não fazemos um casal muito jovem: você tem quarenta e sete anos e eu trinta e cinco.

O Sr. e a Sr. a Gargilier ficaram muito contentes com a decisão de Prudência e a felicidade de Coz, que, desta forma, viveria e morreria em casa deles. A festa de casamento foi soberba e o banquete magnífico. Os noivos bailaram como se fossem jovens; Inocêncio e Simplícia estavam encantados e dançaram todo o dia. Tiveram uma indigestão, por comerem muito de todos os pratos que foram servidos aos convidados, mas no dia seguinte estavam óptimos, não precisando dos cuidados da Sr. a Véniska.

A Sr. a Bonbeck nunca foi a casa do irmão; morreu de uma apoplexia, depois de uma discussão terrível. Boginski foi o único a lamentá-la e a sustentar que ela era boa, apesar do seu mau génio.

O colégio dos Jovens Sábios não tardou a desaparecer; as aventuras de Inocêncio prejudicaram muito o Sr. Doguin; depois das férias seguintes, quase todos os pais deixaram de mandar para lá os seus filhos. O Sr. Doguin, ajudado pelo Sr. Hervé, fundou outro colégio, em Lião, e teve o cuidado de aceitar, unicamente, meninos bem-educados.

 

                                                                                 Condessa de Ségur  

 

                      

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