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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


Os Escravos de Nowhere / Kurt Mahr
Os Escravos de Nowhere / Kurt Mahr

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

Os Escravos de Nowhere

 

Transformaram-se em criminosos, porque sua arte médica falhou...

O ano 2.326 do calendário terrano começou. Grandes modificações se verificaram na parte da Via Láctea explorada pelos terranos, depois dos acontecimentos relatados no volume 149.

O Império Solar deixou de existir em 1o de janeiro de 2.115, data em que Atlan renunciou ao título de Imperador de Árcon. Em lugar desses dois reinos surgiu o Império Unido, governado por Perry Rhodan, na qualidade de Grande Administrador. Atlan exerce as funções de Chefe da USO, cujos especialistas formam uma espécie de “corpo de bombeiros” da Galáxia.

Sempre que surgem problemas ou perigos que não são de âmbito puramente planetário, estendendo seus efeitos a toda a Galáxia, a USO, criada e dirigida pelo Lorde-Almirante Atlan, entra em ação.

A fuga precipitada do Ser espiritual do planeta artificial Peregrino e a disseminação da vida eterna multiplicada por vinte e cinco, sob a forma de ativadores celulares, criaram o tumulto entre todos os povos da Via Láctea. As espaçonaves vão de um planeta a outro.

Em geral as pessoas bem-sucedidas na busca da imortalidade relativa são os tripulantes das naves terranas. E desta vez não é uma nave da Frota Solar, mas um veículo espacial particular, que capta os inconfundíveis sinais de um ativador celular...

A pista leva os ocupantes da nave a tornarem-se Os Escravos de Nowhere.

 

                             

 

A busca da Pedra Filosofal, da essência da vida — ou, na expressão dos filósofos de Panderon, do caminho de fuga à vinculação não-causal da existência — está em pleno andamento. Nenhuma riqueza material jamais conseguiu provocar uma atividade tão febril, em um grupo de seres inteligentes como os vinte e cinco ativadores celulares. Trata-se de aparelhos que prolongam ao infinito a vida de quem os usa, e que o Ser de Peregrino espalhou pela Galáxia, antes de sair de cena.

Seres pertencentes a todas as raças, espaçonaves de todos os tipos percorrem as vias de navegação galáctica e outras rotas, penetrando nas profundezas do espaço desconhecido. Receptores dotados de todos os mecanismos imagináveis foram ajustados para a faixa de hiperfreqüência, em que se fará ouvir a tão ansiosamente esperada série de impulsos “breve-breve-longo-breve-breve”, sempre que o aparelho receptor se aproximar a determinada distância do lugar onde está escondido um ativador.

Da busca participam terranos e arcônidas, saltadores e acônidas, swoons e aras. São criminosos e pessoas honradas, homens decentes e indecentes. A ânsia de alcançar a vida eterna não recua diante de nada e, para as pessoas honradas e decentes, torna-se mais difícil fazer jus à boa fama de que gozam, quando constatam que alguém chegou alguns dias, horas ou mesmo minutos antes deles.

Até parece uma piada da História Cósmica, mas o fato é que nenhum fator fez avançar mais rapidamente a exploração dos espaços estelares desconhecidos que a febre de que foram atacadas as inteligências da Via Láctea, quando tiveram conhecimento dos ativadores celulares espalhados pela Galáxia.

 

Atrás de Marr Toss, a figura grosseira da Nova Brisbane erguia-se até a altura de trinta metros. Marr estava parado entre duas das amplas superfícies estabilizadoras de que a nave precisava quando percorria as atmosferas mais ou menos densas dos planetas. Por isso, a visão de Marr estava impedida tanto para a esquerda como para a direita. Em compensação, via acima de sua cabeça o azul desbotado de um céu estranho e, à frente, a alguma distância, os contornos de uma cidade de cuja existência o catálogo galáctico das civilizações não tomava conhecimento.

Entre ele e a cidade havia algumas pessoas, mais precisamente, três. Eram humanóides. Marr seria capaz de acreditar que fossem acônidas ou arcônidas, se os tivesse encontrado em outro lugar. O aspecto de duas dessas pessoas era bastante relaxado. As vestes pareciam ter sido talhadas de farrapos. Um deles caminhava com o auxílio de uma espécie de muleta primitiva, enquanto o outro exibia um hematoma verde-amarelado do lado direito da face. Por enquanto Marr não podia formar uma imagem precisa da terceira pessoa. Saiu de trás dos estabilizadores e viu que era uma mulher, ainda jovem. As vestes coloridas que usava pretendiam fazer as vezes de um uniforme.

De forma alguma Marr Toss teve a impressão de que o comitê de recepção representasse uma ameaça. Mas o simples fato de que um comitê desses existia num mundo que, segundo os catálogos, era desabitado e inexplorado, deixou-o desconfiado. Manteve a mão direita na altura do cinto e mostrava, a quem quisesse ver, que o polegar se encontrava a apenas cinco centímetros da coronha de sua arma de impulsos.

Agora, que as duas aletas de popa não impediam mais sua visão, Marr viu que a ampla área gramada, em que a Nova Brisbane pousara, jazia calma e silenciosa sob os raios do mortiço sol vermelho. Além das três criaturas esquisitas que se encontravam à sua frente, não apareceu nenhum habitante desse mundo. A moça, que se mantinha a alguns metros dos dois doentes, estava encostada a um veículo parecido com um turbocarro antiquado. Provavelmente era isso mesmo. Ao verem que a nave se preparava para pousar, deviam ter vindo na cidade com “aquilo”.

Marr saiu andando. Como a gravitação fosse de apenas 0,89 G, seus passos foram um pouco grandes, mas conseguiu manter o equilíbrio. Desde o início deixou perfeitamente claro com quem desejava falar. Olhando para além dos dois esfarrapados, fitava a moça. Quando Marr se aproximou, os dois homens afastaram-se, assustados, diante de seu vulto alto e espadaúdo. Parou a dois metros da moça, fez uma ligeira mesura e disse:

— Bom dia. Sinto-me muito feliz em ver uma... uma senhora por aqui.

Falou em intercosmo, que era a língua na qual costumavam comunicar-se as raças de astronautas da Galáxia.

A moça empertigou-se.

— Olá, grandalhão — respondeu. — Não sei por quanto tempo se sentirá feliz. Acontece que sou a polícia daqui.

— Sou Marr Toss, do planeta Terra — disse Marr. — Quem dera que em toda parte a polícia fosse assim.

A moça tinha o “tamanho” que se espera ver numa moça. O uniforme fora feito por um alfaiate que não entendia nada do seu ofício, mas isso não perturbava a impressão geral.

— Tenente Garika de Nowhere — disse ela, com a voz grave.

Marr deu uma risada.

— Deveriam ter-nos avisado.

Garika ficou zangada.

— Não temos transmissores! — exclamou. — Parece que o senhor gosta de divertir-se à nossa custa, não é mesmo?

Marr ergueu as mãos.

— Devagar, moça — disse para tranqüilizá-la. — Nem desconfiávamos de que...

— Não desconfiavam de quê!? — gritou a moça. — Ninguém desconfia de nada. Joopa, Trepik, vamos trabalhar.

Marr virou-se. Não deveria ter feito isso. Durante o movimento, um braço ligeiro estendeu-se em direção ao seu cinto. Antes que pudesse fazer qualquer coisa para impedir, a moça tirou-lhe a arma.

— Vamos com calma! — advertiu.

Os dois homens esfarrapados, que acabavam de ser chamados pelo nome de Joopa e Trepik, aproximaram-se.

— O que é que eles querem comigo? — perguntou Marr.

— Querem dar-lhe uma bofetada — respondeu Garika, que se encontrava atrás dele.

Joopa e Trepik já se encontravam junto a Marr. Pelo que este pôde ver, não usavam armas. Numa decisão rápida, Marr virou novamente a cabeça de maneira a encarar a moça.

— Entrego-me espontaneamente — disse. — Segure estes gorilas.

— Que nada — respondeu Garika, com um olhar chamejante. — O senhor será preso como manda o figurino.

Marr ouviu um chiado em cima de sua cabeça e levou uma pancada no crânio. Curvou-se e procurou segurar-se em Garika. Mas esta empurrou-o com o joelho. Tombou. Alguma coisa pesada caiu violentamente em suas costas! Um dos dois homens esmurrava seu crânio...

Marr Toss começou a sentir raiva. Ergueu-se subitamente sobre os joelhos. O esfarrapado que estivera sentado em suas costas foi atirado para longe. Marr levantou-se. Joopa ou Trepik estava à sua frente. Apoiava-se sobre a perna sadia enquanto uma das mãos brandia a muleta. Marr aparou o golpe, arrancou a muleta da mão do homem e bateu com ela em seu braço. O esfarrapado soltou um grito e saiu correndo.

O homem que estivera sentado nas costas de Marr não mais se interessou pelo prosseguimento da luta. Praguejou fortemente e correu aos tropeços atrás do companheiro.

Garika estava radiante.

— Gostei de ver — disse, dirigindo-se a Marr. — Hoje em dia é difícil encontrar alguém que saiba lutar de verdade.

Marr mediu-a com os olhos.

— A senhora é uma bela polícia — ironizou. — Acho que sua tarefa consiste unicamente em fazer com que as pessoas batam umas nas outras, não é mesmo?

Garika fez um gesto negativo.

— Engano seu. Minha tarefa também consiste em prender o senhor e os outros tripulantes e levá-los à cidade.

A expressão de seu rosto modificou-se de um instante para outro. A boca transformou-se num traço e as sobrancelhas subiram alguns milímetros. Os olhos pareciam ter escurecido um pouco. Marr sentiu-se fascinado diante da surpreendente mudança.

— Chame os outros tripulantes! — ordenou Garika.

Marr ainda não conseguiu levar o caso a sério. Levantou o braço esquerdo e falou em inglês para dentro do pequeno aparelho que trazia no pulso:

— Ei, Bran, Bakter. Travem a nave e saiam. A situação por aqui está muito engraçada.

A voz aguda de Bran respondeu:

— Tem certeza, Marr? A arma que aponta para você e o rosto da jovem me metem medo.

Marr deu uma risada.

— Não tenha medo. Venham logo.

— Está bem — respondeu Bakter, resmunguento como sempre. — Mas quero que você lhe diga que se não tiver bons modos levará um aperto...

Marr desligou e fitou a moça.

— Acho que a senhora não entendeu o que acabo de...

— Não — respondeu a moça em tom áspero. — Nem estou interessada.

Marr olhou para a arma. Era um tipo pesado. Apesar disso Garika a segurava firmemente, sem tremer.

— Escute — principiou. — A senhora não pode...

— Cale a boca! Quando quiser que o senhor me diga alguma coisa, avisarei.

Mar Toss calou-se. Estava perplexo. Aos poucos começou a desconfiar de que aquilo talvez não fosse tão engraçado como supusera. Bran Cathay e Bakter Brown desceram pela rampa da nave. Bran caminhava ao modo apressado e nervoso que lhe era habitual, e que, de forma alguma, combinava com seu corpo atarracado, com o rosto vivo, com os olhos inteligentes e com a cabeleira loura. Bran não era muito alto, mas via-se a força que estava encerrada em seu corpo.

Bakter Brown era bem diferente. Alto e magro, contemplava o mundo com uma expressão sombria. Os cabelos que lhe caíam pela testa, até o nariz, constituíam uma das suas características.

Bran bancava o chefe. Caminhou rapidamente em direção a Marr e à moça, mas pareceu um tanto desconfiado. De repente Marr teve a impressão de que, se não agisse logo, nunca mais conseguiria salvar a situação. Quis dar um grito de alerta para Bran, mas Garika logo percebeu sua intenção. Cutucou-o fortemente com o cano da arma.

— Silêncio! — chiou. — Quem fala aqui sou eu.

Agiu com muita habilidade. Bran e Bakter não poderiam ter percebido o incidente. Não se podia dizer que estivesse totalmente desprevenidos, mas o fato é que não tiveram a necessária cautela e aproximaram-se o suficiente para que Garika os pudesse atingir perfeitamente, com a arma que trazia na mão.

— Parem! — ordenou com voz dura e penetrante. — Soltem os cintos e deixem-nos cair.

Bakter fechou os olhos, pois não queria ver o resto do jogo pavoroso. Bran deu um passo indignado para a frente. No mesmo instante, um tiro de radiações penetrou no chão bem à sua frente, espalhando pedras incandescentes.

— Não faça isso! — disse Garika, com a maior tranqüilidade.

O resto foi fácil. Até mesmo uma criança compreenderia que todas as vantagens estavam do lado da moça. Bran e Bakter soltaram os cintos e deixaram-nos cair juntamente com as armas. Garika chamou seus dois ajudantes esfarrapados, que saíram de trás da nave, local onde se esconderam. Pegaram os cintos e entraram no turbocarro. Garika mandou que os prisioneiros também entrassem. Sentou-se junto à direção. Enquanto o veículo arrancava com um ligeiro zumbido dos turbo-propulsores, Joopa e Trepik seguravam as armas de que acabavam de apoderar-se e cuidavam para que os terranos não fizessem nenhuma tolice.

Marr Toss não conseguia livrar-se da impressão de que cometera uma idiotice.

 

Vista de perto, a cidade era muito menos impressionante do que do local em que pousara a Nova Brisbane. Quase se poderia dizer que a única coisa que realmente impressionava era o fato de que, em pleno século vinte e quatro do calendário terrano, ainda existia, num mundo que só podia ser alcançado por meio das conquistas da civilização moderna, um conglomerado de feiúra arquitetônica e falta de higiene como aquele.

Evidentemente as ruas só haviam sido abertas depois de construídas as casas dos nativos. Não havia calçamento ou outro tipo de pavimento. Uma confusão de trilhas serpeava entre as casas construídas ao acaso. As próprias casas eram uma coisa impressionante. Em sua construção haviam sido utilizadas todas as espécies de materiais, desde as superfolhas de plástico de computadores positrônicos ultramodernos até as folhas finíssimas e que estavam impressas as edições interestelares dos jornais. O único aspecto favorável das construções era o fato de serem bastante práticas...

O tráfego nas ruas era principalmente de pedestres. Todos pareciam ter algum defeito físico.

Marr viu gente cega, sem braços ou pernas, alguns que cambaleavam e gritavam e muita gente com pústulas. Sempre que Garika se aproximava com o turbocarro, eles paravam, sacudiam as muletas ou outros objetos que traziam nas mãos e começavam a gritar. Uns gritavam de entusiasmo, conforme constatou Marr Toss na passagem, e outros de raiva. Ao que parecia, o poder representado pelo uniforme de Garika provocava sentimentos divergentes.

Marr descobriu alguns não-humanóides entre os transeuntes. Havia criaturas esféricas de Kolaal — seres cinza-azulados, feitos de uma substância carnosa balofa — que se mantinham num movimento ininterrupto. Viu uma porção de bastões deslizantes. Eram seres em forma de estaca vindos de Akkadia, que tinham na parte inferior do corpo milhares de órgãos de locomoção em forma de grossos fios e pareciam planar junto ao solo. Havia ainda seres de outras raças, dos quais Marr nunca ouvira falar.

De vez em quando pessoas que usavam o mesmo uniforme de Garika apareciam na beira da rua. Marr só viu duas mulheres. Ao contrário dos outros habitantes do planeta, caminhavam bem eretos, não tinham manchas no rosto e pareciam sadios. Geralmente cumprimentavam Garika com gestos ligeiros. Alguns estavam tão absortos em observar alguma briga que nem notavam a passagem do turbocarro.

Marr Toss teve certeza de uma coisa: a polícia da cidade não fora criada para manter a ordem. Só o diabo sabia qual seria sua tarefa.

Ao lembrar-se de que procurara encontrar dados sobre o grande sol vermelho e seu sistema planetário, em todos os catálogos existentes a bordo da Nova Brisbane, Marr sacudiu a cabeça. Nas respectivas coordenadas, apenas fora feita uma anotação: o astro central do sistema era uma estrela Z-5, que possuía cinco planetas. Não havia outras informações sobre o sistema.

Concluiu que no catálogo havia um lapso... Por ali havia humanos! Pelo tamanho a cidade parecia ter de trinta a cinqüenta mil habitantes. Como e para que haviam chegado até aqui? E o que faziam neste planeta?

De repente Marr teve uma idéia. Como é que ele, Bran e Bakter haviam vindo parar ali? O que vieram fazer? A explicação era simples. Marr Toss, Bran Cathay e Bakter Brown eram ex-oficiais da Frota Imperial. Graças ao seu amplo relacionamento haviam conseguido, depois de terem dado baixa do serviço ativo, adquirir uma pequena espaçonave em condições bastante favoráveis. Ainda chegaram em tempo para participar, com alguma chance de sucesso, da caçada geral aos ativadores celulares, da busca da vida eterna. Batizaram sua nave com o nome Nova Brisbane e iniciaram sua viagem pelo espaço. Estavam vagando há alguns meses, sem rumo, já que os ativadores celulares haviam sido espalhados sem um esquema definido. Um belo dia ouviram a seqüência de impulsos em seus receptores: breve-breve-longo-breve-breve. Fizeram a determinação goniométrica da posição do transmissor e foram parar no lugar em que se encontravam. Esperavam pousar num mundo desabitado. No entanto, o lugar estava repleto de seres de várias raças. Ao que parecia, não se costumava demonstrar muita boa vontade para com os recém-chegados. Será que isso acontecia por causa do ativador? Teriam todos esses seres vindo para procurar o aparelho?

Marr logo abandonou a idéia. Muitas das casas eram bem mais velhas que todo esse movimento originalizado pela busca da vida eterna. O mundo em que se encontravam fora colonizado muito antes que a Galáxia tivesse conhecimento da fuga do Ser de Peregrino.

Garika mencionara um nome! Como costumava ser chamado este mundo? Marr refletiu por algum tempo e lembrou-se.

“Nowhere!”, concluiu mentalmente. “Essa gente não parece ser muito otimista.”

 

Marr viu que na cidade havia alguns edifícios de boa altura. Ficavam na área central e, ao que parecia, haviam sido construídos todos ao mesmo tempo e segundo um modelo uniforme. Estavam dispostos em torno de um quadrado de cerca de cem metros de lado. Nos fundos dos edifícios devia haver uma área interna, que não se via do lado de fora. Os edifícios tinham três andares. Na opinião de Marr abrigavam os serviços administrativos.

Garika parou à frente de um desses edifícios. Desceu e, por meio de gestos eloqüentes, ordenou aos prisioneiros que também descessem. Apontou o cano da arma para a porta central do edifício. Marr hesitou antes de obedecer. Bran e Bakter mantiveram-se logo atrás dele.

— Você nos meteu numa boa — cochichou Bran.

— Sei disso — respondeu Marr, em voz baixa. — Não acreditava que a moça estivesse falando sério. Temos de encontrar um meio de sair daqui. Vamos aproveitar qualquer oportunidade que se ofereça. Se conseguirmos pôr as mãos numa arma, poderemos enfrentar essa gente.

Antes que Marr atingisse a porta, esta abriu-se. Duas pessoas de armas apontadas mantinham-se na sombra da entrada. Uma dessas pessoas era uma mulher. Marr fitou-a. Tinha uns trinta ou quarenta anos. Não era muito bonita, mas interessante. Parecia nem enxergar Marr e seus acompanhantes. Olhou para o lugar em que estava Garika. Esta ergueu a mão livre e fez um sinal.

— Estamos de volta! — exclamou. — E conseguimos uma boa presa.

Marr não viu mais nada. Alguém agarrou-o pelo ombro e arrastou-o para dentro do edifício.

De ambos os lados havia portas abertas.

Joopa, Trepik e mais dois outros obrigaram-nos a passar por uma dessas portas. Entraram num recinto de cinco por sete metros. O sol espalhava uma luz mortiça, depois de atravessar uma janela incrivelmente suja. Logo abaixo da janela havia uma espécie de balcão, junto à parede. Atrás desse balcão estavam sentados três homens. O balcão e as peças sobre as quais os homens estavam sentados formavam o único mobiliário. Nem sequer havia uma lâmpada.

A porta fechou-se ruidosamente. Marr virou a cabeça e viu que Garika também havia entrado. Procurou encontrar seu olhar. Garika fitou-o por uma fração de segundo, mas logo olhou intensamente para o balcão.

— A audiência está aberta! — disse um dos homens que se encontravam atrás do balcão.

Marr examinou-o. Era difícil calcular sua idade. Era terrano ou arcônida. As pessoas que se encontravam em torno eram baixas e gordas.

“Lanthanon”, concluiu Marr, “o cadinho das raças galácticas, o centro de recrutamento da organização policial interestelar!”

Os dois homens que se encontravam ali provavelmente tinham sangue saltador, arcônida, acônida, ara e terrano em proporções idênticas.

— Não há dúvida quanto à matéria de fato — continuou a ranger a voz do arco-terrano. — Os acusados pousaram ilegalmente neste mundo. Segundo o artigo 15, inciso quatro, da Constituição, este delito é punido com a privação da liberdade até a morte, ou melhor, até a solução final. Além disso, o veículo dos acusados será confiscado pelo Estado. A audiência está encerrada.

“Foi o julgamento sumário mais rápido de que já ouvi falar”, constatou Marr, mentalmente.

Avançou em direção ao balcão. Como Joopa não quisesse sair do seu caminho, empurrou-o com o ombro. Parou à frente do balcão. O homem que se encontrava no centro estava a menos de metro e meio de distância.

— Que audiência foi essa? — perguntou Marr.

O arco-terrano parecia irritado. As sobrancelhas contraíram-se sob a testa baixa.

— Foi uma audiência do Supremo Tribunal de Nowhere — respondeu o homem à sua frente.

— Ah, é? Onde está meu defensor?

— Não existe nenhum defensor.

— Quer dizer que sua opinião é a única que vale, não é?

O homem de cabelos grisalhos e sobrancelhas hirsutas fez que sim.

— Perfeitamente — confirmou. — Minha opinião e a dos meus pares.

Com um gesto ligeiro apontou para a esquerda e a direita.

— Sua legislação considera a Declaração dos Direitos dos Seres, promulgada pela Aliança Galáctica há...

— Só quando isso nos convém — respondeu o grisalho, com a maior tranqüilidade. — No presente caso, achamos recomendável restringir sua liberdade pessoal e confiscar a nave em que vieram. Na verdade, não estamos muito interessados em que os senhores sejam livres ou não. O fato é que precisamos de sua nave e queremos ter certeza de que não nos causarão problemas.

De repente uma centelha surgiu na mente de Marr. Refletiu por alguns segundos sobre a idéia que acabara de ter.

— Os senhores foram largados aqui, não é mesmo? — perguntou. — E não lhes deixaram nenhum veículo. Apenas lhes forneceram algumas ferramentas antiquadas, para garantir sua sobrevivência, mas não lhes deram nenhuma espaçonave que lhes permitisse sair de Nowhere.

— É mais ou menos isso — confessou o arco-terrano.

— Por que recorrem a esses métodos para conseguir uma nave? Por que não procuram chegar a um entendimento conosco e...

O grisalho inclinou-se para a frente.

— Escute aí! — disse em tom irritado. — Deixem que nós mesmos pensemos quando é preciso. Temos nossos métodos. O senhor só tem direito de ouvir e obedecer.

Voltou a endireitar o corpo e gritou:

— Levem-nos!

Marr Toss resolveu que, dali em diante, levaria as coisas a sério. Virou-se. Joopa e Trepik aproximaram-se. Um dos homens que os recebera na entrada do edifício afastou-se, a fim de ter uma boa visão da cena. As duas mulheres mantinham-se encostadas à parede e desempenhavam apenas o papel de espectadoras.

“Eles precisam da nave”, pensou Marr. “Nós também precisamos. Mas se não conseguirmos fugir, então...”

Nesse instante Trepik fez uma tolice. Colocou-se à frente de Marr de tal forma, que o terrano ficou protegido contra as armas das outras pessoas que se encontravam presentes. Para um homem forte, isso não seria um erro imperdoável. Acontece que os movimentos de Trepik eram embaraçados pela muleta. Mantinha a arma apontada para Marr, mas este sabia como dominá-lo.

Fez de conta que tropeçou. Falando por entre os dentes, disse alguma coisa que parecia ser uma praga, mas que na realidade soava como quem diz: “Atenção!”

Durante a queda avançou rapidamente a perna esquerda e afastou a muleta de Trepik, que dobrou os joelhos. Marr levantou-se num instante. Quando estava novamente de pé, segurava a arma de Trepik. Bran e Bakter também se haviam mexido. Assustados com o grito de Trepik, Joopa e o terceiro homem esqueceram por um segundo as cautelas que deveriam tomar. Bakter correu para o terceiro homem e tomou-lhe a arma. Bran cuidou de Joopa, empurrando-o de encontro ao balcão. Segurou-o pelo ombro e fez girar seu corpo. Num movimento muito rápido pegou a arma com a mão esquerda, enquanto com a direita dava um soco em Joopa.

Com um olhar instantâneo Marr controlou a situação. As duas mulheres continuavam imóveis.

— Vamos sair daqui! — disse, ofegante.

Bakter foi o primeiro a chegar à porta.

Marr viu-o mexer na fechadura.

— Arrombe-a! — disse.

Bakter recuou dois passos e esteve a ponto de investir com o corpo contra a porta. De repente um lampejo ofuscante cruzou o campo de visão de Marr. Bakter caiu ao chão. Marr fechou os olhos.

— Chega! — rangeu a voz do arco-terrano. — Larguem as armas!

Marr ouviu um zumbido nos ouvidos. Fora tudo muito rápido. Teve de refletir para compreender o que acontecera. Não se lembrara dos três juízes. Acreditara que não estivessem armados. Como pudera ser tão estúpido! Um deles acabara de matar Bakter.

Marr abriu os dedos e deixou cair a arma. Virou-se. Ninguém o impediu de caminhar pesadamente em direção ao balcão. Quando chegou lá, estacou exatamente no mesmo lugar em que parará antes.

— Foi o senhor que o matou? — perguntou, dirigindo-se ao grisalho.

Marr fitou o homem como se quisesse hipnotizá-lo. O grisalho não fez o menor movimento.

— Qual é seu nome? — perguntou Marr.

O arco-terrano movimentou-se. Empurrou a mão que segurava a arma até a borda do balcão e inclinou-se para a frente. Começou a gritar para Marr:

— Meu nome é Lemmy Pert! Matei seu companheiro porque vocês precisam saber que nós mandamos em Nowhere. Entendido? É só isso, seu terrano fanfarrão? Ou quer saber mais alguma coisa?

Marr conseguiu manter-se bem calmo. Recuou um passo.

— É só, Lemmy... Preste atenção, Lemmy! Olhe! Não mexa na arma, pois não vou fazer-lhe nada.

Levantou a mão direita para que o grisalho visse o vistoso anel que trazia no dedo médio.

— Você queria uma nave, não é mesmo, Lemmy? Você sabe perfeitamente que nossa nave pode transportar no máximo umas cinco ou seis pessoas. Quer dizer que você fugiria com alguns amigos, abandonando os outros. Seus planos eram estes, não eram, Lemmy?

Abriu os dedos e colocou o polegar sobre a superfície sextavada do anel.

— Seus planos vão desmanchar-se, Lemmy. Preste atenção!

Os olhos do arco-terrano acompanharam todos os movimentos dos dedos de Marr. Com uma expressão de perplexidade fitou a mão de Marr, que pairava imóvel. A unha do polegar embranqueceu sob o efeito da pressão exercida sobre o anel.

As janelas tilintaram. Lemmy estremeceu. Ouviu-se um trovejar. O chão começou a tremer. O ruído cresceu e terminou num forte estrondo.

Marr baixou a mão.

— Foi “sua” nave, Lemmy — disse em tom tranqüilo. — Ficou sem propulsor, e aquilo que sobrou do casco não lhe servirá para muita coisa.

Lemmy Pert empalideceu. Continuava sentado atrás do balcão. Estava muito espantado, paralisado. Depois de algum tempo soltou um suspiro. Pareceu animar-se de novo. Num movimento lento, como se a arma fosse muito pesada, levantou a mão.

— Você vai pagar pelo que fez, terrano! — cochichou lentamente, como se estivesse falando uma língua estranha.

Marr viu a abertura afunilada do cano da arma.

— Pare!

O grito ressoou pelo recinto. O cano da arma desviou-se para o lado. Marr já não podia ver a abertura afunilada. Levantou os olhos. O homem gordo que se encontrava à direita de Lemmy levantou-se de um salto.

— Guarde isso, Lemmy! — disse num chiado.

Lemmy parecia estupefato. Apesar disso baixou a arma, fazendo com que desaparecesse atrás do balcão.

— Você sabe perfeitamente por que estou dizendo isso, Lemmy! — esbravejou o homem gordo. — Os três terranos que entraram aqui são os primeiros homens que vieram a este planeta, nos últimos vinte ou vinte e cinco anos. Não temos mais escravos. Os homens que vez por outra são condenados a penas privativas de liberdade já não interessam aos cidadãos. O que mais precisamos é de sangue novo. E você quer matá-los...? O que pensa que dirão as pessoas que se encontram lá fora?

Fez um gesto violento em direção à janela.

Ao que parecia, Lemmy Pert estava com uma resposta áspera na ponta da língua, mas no último instante resolveu aceitar a sugestão.

— Acho que você tem razão — disse. — Leve-os.

— Um momento! — protestou Marr. — Ouvi falar em escravos. É isso que vem a ser a pena privativa da liberdade?

Um sorriso odiento surgiu no rosto de Lemmy Pert.

— Isso mesmo. Sabe a quem dei vocês?

— Não. Diga quem é, Lemmy.

— A Garika.

Marr assustou-se. Pelo que vira e pelas experiências que fizera com essa mulher, esta não seria uma dona muito complacente. Virou-se. Garika estava parada junto à parede, com a arma apontada.

Marr acenou a cabeça em direção ao homem gordo que lhe salvara a vida.

— Seus motivos talvez não tenham sido muito humanitários, Kappak — disse com a voz tranqüila. — Apesar disso fico-lhe agradecido.

Depois disso virou ligeiramente a cabeça e fitou Lemmy Pert bem nos olhos. Não se apressou e obrigou o grisalho a retribuir seu olhar.

Finalmente disse:

— Oportunamente voltaremos a conversar, Lemmy... sobre Bakter!

 

Joopa e Trepik tiraram de algum lugar fitas de plástico azul. Marr e Bran foram obrigados a colocá-las nos braços. Garika dignou-se a ligar pessoalmente essas faixas à manga do seu uniforme por meio de um pequeno aparelho que, segundo parecia, sempre portava. Não havia como soltar as faixas. O único meio de livrar-se delas seria tirar a parte superior do uniforme.

O carro em que tinham vindo parecia pertencer a Garika. Ao menos esta mandou que voltassem a entrar nele, mantendo uma vigilância rigorosa sobre os prisioneiros. Pediu para que a outra mulher uniformizada que se encontrava ali também entrasse, e pôs o veículo em movimento. Marr resolveu gravar o caminho na memória para que, se necessário, pudesse orientar-se na cidade. Mas mal o carro se pôs em movimento, aconteceu alguma coisa que lhe fez esquecer seus planos...

As pessoas que se encontravam na rua viram as faixas azuis em seus braços. Marr já chegara à conclusão de que estas eram o marco característico dos escravos, mas não contava com a reação que viu nos transeuntes. As pessoas paravam. Seus rostos exprimiam uma enorme surpresa. Por alguns segundos pareciam imobilizadas, mas depois disso agitavam os braços e punham-se a gritar. A novidade espalhou-se com a velocidade do vento.

— Escravos! Temos dois escravos!

Marr não compreendeu o motivo daquele nervosismo. Devia haver alguma coisa na vida dos escravos de que nem desconfiava. E, a concluir pelas experiências já feitas, devia ser uma coisa nada agradável. Inclinou-se para a frente a fim de perguntar a Garika, mas esta parecia julgá-lo indigno de uma resposta. Fez como se não o tivesse ouvido. Marr desistiu.

— Parece que as coisas não estão nada boas — observou Bran, em tom nervoso. — Por que estão tão contentes?

Marr manteve-se calado. A multidão que se comprimia à beira do passeio tornava-se cada vez mais compacta. A gritaria aumentou.

Garika seguia calmamente seu caminho pelas ruas angulosas da estranha cidade, como se não tivesse nada a ver com o tumulto. Finalmente parou à frente de uma construção, que parecia mais sólida e conservada que as que Marr havia visto antes.

A outra mulher saltou do carro antes que Garika parasse de vez. A massa de curiosos comprimiu-se atrás dela. A moça barrou-lhes o caminho. Segurava uma pequena arma e, quando a apontou para as fileiras das pessoas que gritavam ininterruptamente, a marcha deteve-se de repente. O barulho diminuiu e Marr ouviu a moça gritar:

— Vão para casa! Temos dois escravos novos e agiremos com eles conforme manda a lei! Para trás!

Fez um disparo de advertência por cima da multidão. Os que se encontravam na frente viraram-se e bateram em retirada. A multidão dissolveu-se. Dali a alguns minutos, a rua ficou vazia.

— Desçam do carro! — ordenou a voz grave de Garika.

Marr saltou.

— Que lei é esta? — perguntou.

Garika não respondeu.

— Caminhe à minha frente!

Marr ficou parado. Sabia que Garika não o mataria. Pretendia fazer com ele e com Bran uma coisa tão importante, que até levara Lemmy Pert a dominar o impulso de matá-lo...

— Pouco me importa o que a senhora esteja pensando — resmungou Marr, em tom zangado. — Só sairei daqui quando souber o que há por trás disso.

Garika estava parada às suas costas. Ele não podia ver o que ela estava fazendo. Entesou o corpo, à espera de um tiro. Mas Garika não atirou. Marr ouviu os passos leves com que se aproximou dele. Fitou-a de frente. Em seus olhos havia uma raiva incontida.

— O senhor é meu escravo! — chiou, furiosa. — Só fale quando eu mandar. Antes disso, não. Muito menos pode ter o atrevimento de querer obrigar-me a dizer alguma coisa. Entendido? Vamos logo! Ande!

Marr hesitou um pouco, mas acabou fazendo o que a mulher queria. Foi caminhando em direção à entrada. Bran Cathay mantinha-se a seu lado. Naturalmente a construção não possuía porta automática, do tipo que se abre quando alguém chega perto. O grupo parou. A acompanhante de Garika cuidou dos escravos, enquanto esta abria a porta.

— Passe diretamente — ordenou a moça. — Saia pela porta dos fundos e vá ao pátio.

Atrás da porta havia um corredor largo. De ambos os lados, havia brechas irregulares nas paredes. Ao passar, Marr viu várias salas que o deixaram espantado pelas instalações ricas e pelo bom gosto da decoração. Ficou pensando sobre Garika, enquanto Bran Cathay, que caminhava à sua frente, sacudia a fechadura automática da porta dos fundos, tentando abri-la.

Admitindo que a casa tivesse sido construída por Garika, naturalmente com o auxílio de alguém, e fosse mantida em condições por ela, e ainda admitindo que a decoração das diversas peças, especialmente a idéia básica de sua decoração, também vinha dela, se poderia concluir que Garika era uma moça decidida e obstinada. Mas, por outro lado, não deixava de ser uma pessoa normal e tratável. Por que se teria transformado na pessoa dura e cínica que passara a ser?

Finalmente Bran conseguiu abrir a porta. Saíram para um pátio quadrado, cercado pela casa e por três trechos de muro de mais de dois metros de altura. O chão era liso e vazio. Não se via nenhum objeto no pátio, nenhuma indicação da finalidade que preenchia.

— Continuem! — ordenou Garika. — Para a parede oposta.

Marr e Bran obedeceram. Tiveram de virar-se e viram Garika parada na porta, com a arma na mão.

— Vocês ficarão aqui até que chegue a hora — disse a moça. — Receberão alimento duas vezes por dia. Não pensem em fugir.

Levantou a mão e apontou com a arma para as cumeadas do muro.

— A tecnologia de Nowhere não é muito avançada, mas é capaz de instalar uma rede de alta-tensão. Além disso solicitei proteção policial. Não ficarei só na minha casa. Fiquem quietos, e nada lhes acontecerá. As noites são quentes; vocês não sentirão frio.

Por um instante deu mostras de ser uma jovem perfeitamente normal. Mas, de repente, pareceu lembrar-se do papel que devia desempenhar, e acrescentou:

— Pelo menos até que chegue a hora...

Bateu ruidosamente a porta.

Marr sentou no chão.

— Bem examinadas as coisas — disse — os resultados que alcançamos em Nowhere não são muito brilhantes. Para dizer a verdade, apenas localizamos Nowhere e pousamos no planeta; de resto, não conseguimos absolutamente nada.

Bran Cathay estava encostado ao muro, perto dele.

— Além disso — afirmou — talvez teria sido melhor se tivéssemos ficado em casa. Nesse caso pelo menos ainda teríamos o dinheiro gasto com a Nova Brisbane.

— Pois bem — disse Marr. — É isso aí. Ficamos sem nave e fomos privados da liberdade de ir e vir. E temos pela frente alguma coisa da qual, por enquanto, só sabemos que não será nada agradável. Só nos resta encontrar um meio de produzir uma modificação radical na situação.

Bran fitou os muros com uma expressão de desconfiança.

— Vamos fazer um reconhecimento do terreno — sugeriu.

 

Minutos depois, chegaram à conclusão de que havia quatro perguntas que tinham de ser respondidas o quando antes. E uma dessas quatro perguntas tinha prioridade absoluta sobre as outras: O que os habitantes de Nowhere pretendiam fazer com eles?

As outras perguntas eram as seguintes:

Como surgira a civilização artificial de Nowhere? Onde estava o ativador celular, cujos sinais haviam seguido? E finalmente: Como fariam para sair de Nowhere?

Chegaram, ainda, à conclusão de que seria inútil tentar a fuga. O que os assustava não era tanto a rede de alta-tensão e as outras precauções que Garika poderia ter tomado, mas antes o fato de que eram escravos, e que os habitantes de Nowhere — só Deus sabia por quê — jamais deixavam ou deixariam escapar um escravo.

Havia outro modo de modificar a situação, se bem que as possibilidades de êxito eram bastante restritas. Marr Toss constatou que as chances chegavam a ser miseráveis. Mas sempre era preferível assumir logo um risco a manterem-se inativos, à espera de que fizessem o que tinham em mente, porque, depois disso, provavelmente não teriam mais a menor liberdade de ação.

O plano era simples. Procurariam dominar Garika, para obrigá-la a ajudá-los a fugir em segurança ou conceder-lhes o status de cidadãos livres. Além disso pretendiam formular algumas perguntas a Garika, a fim de adquirir a certeza sobre certas coisas que permaneciam bastante obscuras.

Provavelmente, ao dizer que não ficaria só, Garika não cometera nenhum exagero.

Restava saber quantos guardas teria consigo. Além disso precisariam saber onde ficava o gerador de alta-tensão que forneceria a energia para a rede. Uma coisa era certa: o único caminho de fuga, que oferecia alguma possibilidade de êxito, era por cima do muro. Se tentassem abrir a fechadura da porta, fariam muito barulho. Não possuíam ferramentas que lhes permitissem abrir uma fechadura trancada, enquanto estavam em condições de neutralizar o perigo representado por uma rede de alta-tensão. Além disso, o fato de que ninguém contaria com a possibilidade deles tentarem a fuga por cima do muro também representava uma vantagem. Para os habitantes de Nowhere, uma barreira formada por uma série de fios de alta-tensão representava uma coisa totalmente confiável. Se Garika mantinha guardas no local, estes ficariam de olho na porta dos fundos.

Talvez o gerador tivesse sido colocado num lugar que Garika ou os guardas vigiavam ininterruptamente. O corte da corrente não deixaria de ser notado. Restava saber se a reação seria muito rápida. Se ligassem imediatamente a falta da corrente com uma tentativa de fuga, a situação poderia tornar-se crítica. Nesse caso não haveria tempo de penetrar na casa, usando a porta da frente, que não costumava ser trancada.

Era um risco que tinham de assumir. Não havia outra alternativa.

Antes de tentar a fuga, teriam de fazer alguns preparativos. Resolveram esperar até que escurecesse. A parede dos fundos da casa não possuía nenhuma abertura, com exceção da porta compacta. Mas Marr não acreditava que Garika não tivesse nenhuma possibilidade de observar o pátio. Talvez houvesse uma viseira escondida no telhado, ou uma teleobjetiva.

Deram aos seus rostos a expressão de quem está conformado com o destino, e esperaram que o dia chegasse ao fim.

Depois de algumas horas que pareciam não querer terminar nunca, o sol vermelho desapareceu atrás do muro.

 

Tiraram as blusas do uniforme e estavam fazendo o possível para soltar as trilhas dos botões. Cada uma delas era formada por uma fita de plástico reforçada por fios metálicos, soldadas aos fortes botões através do tecido do uniforme. Era fácil tirar a trilha propriamente dita, mas a retirada dos fios metálicos era mais trabalhosa do que Marr supusera. As blusas estavam perto deles, para que pudessem vesti-las num instante, caso surgisse um ruído junto à porta. Garika ainda não lhes havia mandado nenhum alimento. Marr e Bran agiram assim recordando-se que ela poderia cumprir a promessa, mandando algum alimento, e então a tentativa de fuga seria descoberta.

Levaram duas horas para desprender os fios metálicos e uni-los, formando um só cabo. Tinham necessidade premente de realizar tal trabalho. Ao pensar na possibilidade de o mesmo esquentar e queimar-se antes de provocar maiores danos nos fios de alta-tensão, Marr não se sentiu nada à vontade. Precisariam de mais um fio, porém as trilhas dos botões não possuíam outros. Todo o metal fora utilizado no fio maior que acabavam de formar. Seu comprimento bastava para cobrir a distância do chão até o topo do muro e ultrapassá-lo. Talvez o gerador fosse de um tipo constituído exclusivamente para produzir uma tensão muito elevada, possuindo uma capacidade reduzida...

— Vamos logo! O que está esperando? — perguntou Bran, impaciente.

Marr reprimiu o medo, olhou cuidadosamente para cima, pesou o cabo na mão, e arremessou-o na direção do topo do muro. Viu-o baixar por sobre o paredão à luz difusa das estrelas. Soltou-o e esperou. Manteve os olhos semicerrados, para não ser ofuscado quando o metal entrasse em incandescência. Mas não aconteceu nada. Uma das pontas do fio estava pousada no topo do muro. Face à rigidez do metal, o fio formava um arco por cima do paredão, sem tocá-lo. Marr não sabia qual era o obstáculo que o prendia. Mas tinha certeza de que não estava havendo contato.

Abaixou-se e juntou um pouco de areia. Atirou-a para o alto. Alguns grãos atingiram o cabo e fizeram-no balançar. Marr repetiu a tentativa. Bran ajudou. O cabo começou a descrever movimentos pendulares, como se estivesse sendo atingido por uma forte ventania. Finalmente Marr conseguiu atingi-lo, fazendo com que o arco causado pela rigidez do material virasse para baixo. Caiu sobre a borda do muro. No mesmo instante, um fogo de artifício começou a chiar. Fagulhas choveram sobre os dois homens. Marr estendeu os braços e, assim que o fogo de artifício se apagou, deu um salto atlético, agarrou a borda do muro e puxou-se para cima.

O cabo continuava no mesmo lugar. Tocava o muro em vários lugares, enquanto a outra ponta estava presa a uma confusão de fios que, até poucos segundos antes, fora a rede de alta-tensão de Garika. Os fios não desprendiam mais nenhuma fagulha. Estava tudo quieto. O equipamento fora desligado ou danificado...

Marr ajudou Bran a subir. Com alguns pontapés removeram a confusão de fios. O topo do muro tinha cerca de dois metros de largura. Era muita coisa para um simples muro de quintal. Os fios de alta-tensão não revelavam uma técnica muito avançada, mas haviam sido dispostos de tal maneira, que qualquer pessoa que tentasse fugir forçosamente entraria em contato com os mesmos.

Marr rastejou até a borda do muro e espiou para a semi-escuridão. Não ouviu nenhum ruído. Não havia o menor indício de que Garika tivesse postado guardas em torno do muro. Marr saltou do muro e esperou alguns segundos. Como tudo continuasse em silêncio, Bran seguiu-o. Foram avançando junto à parede da casa, até chegarem ao canto atrás do qual ficava a porta da frente. Bran apontou para uma sombra que estava parada à frente da casa.

— E o carro — cochichou. — Será que não deveríamos pegá-lo?

Marr teve suas dúvidas. De posse de um turbocarro, poderiam chegar rapidamente a um ponto bem distante da cidade. Era possível que os habitantes de outras cidades fossem mais amistosos. Acontecia que um turbocarro dependia de combustível. Conforme haviam observado antes do pouso, grandes extensões de Nowhere estavam cobertas de matas. Sem armas e combustível estariam praticamente perdidos. Não se sabia que tipos de animais existiam nas selvas do planeta.

— Não, Bran — respondeu Marr. — Isso não nos levaria muito longe.

Avançaram silenciosamente até a porta. Marr constatou que, conforme esperara, não estava trancada. Girou o botão e abriu uma fresta. Uma luz mortiça caía no corredor. Marr ouviu vozes pouco distintas.

Entrou rapidamente. Bran seguiu-o. Voltou a fechar cuidadosamente a porta. Não houve o menor ruído. Marr não demorou a orientar-se na casa. Havia pelo menos três pessoas que conversavam nas peças dos fundos. Marr reconheceu a voz grave de Garika, a voz cristalina de sua companheira e a fala de um homem.

Enquanto Marr avançava cuidadosamente pelo corredor, Bran permaneceu junto à porta. Parou junto à abertura pela qual estava saindo a luz. Orientou-se pelo som sobre a situação no interior do recinto. O homem devia estar bem perto dele. As duas mulheres provavelmente estavam sentadas ou de pé junto à parede oposta. Agindo com a maior cautela, Marr começou a avançar a cabeça. Depois de algum tempo conseguiu ver o que havia no interior do recinto.

Não se enganara. O homem estava a menos de um metro, de costas para o corredor. Encobria a amiga de Garika. A própria Garika estava acomodada numa confortável poltrona. Segurava um copo e não dava a menor atenção ao visitante. Olhava para o chão. Marr sentiu-se muito satisfeito por isso.

O homem que se encontrava à sua frente parecia ser muito robusto. Marr não poderia arriscar uma luta. Não era que temesse o resultado. Estava em condições de enfrentar o adversário. Mas, antes que conseguisse dominá-lo, Garika e a outra moça pegariam em armas. Seria o fim.

Marr procurou localizar as pistolas. Não as viu. O homem que se encontrava à sua frente não parecia estar armado. Marr não se sentiu muito à vontade. Era possível que Garika tivesse guardado sua arma do outro lado da poltrona. Em vez de entregar-se, inclinaria o corpo para o lado, pegaria a pistola e o mataria. Não poderia tirar os olhos dela.

Ouviu o homem dizer:

— Com essa teimosia, vocês não irão muito longe. Os habitantes desta cidade têm o direito de ser bem tratados. O que...

Garika interrompeu-o sem levantar os olhos.

— Unimo-nos às forças policiais. É só o que fazemos nesta cidade. Viemos para Nowhere contra a vontade e ninguém poderá obrigar-nos a ver nos habitantes da cidade outra coisa do que realmente são: pessoas doentes, aleijadas, malucas.

— Não seja tão arrogante, minha filha! — respondeu o homem em tom exaltado. — Nossa situação não é melhor que a sua. Também não viemos para cá de livre e espontânea vontade. Vocês sabem o que aconteceu. Estamos...

— E daí? Quer que sinta pena de vocês? — perguntou Garika, em tom de deboche. — Vá embora, Fordan, você é um chato.

Marr não queria ouvir mais nada.

Deu um passo rápido e silencioso e colocou-se logo atrás do homem de ombros largos, que estava levantando os braços e cerrando os punhos. Antes que Fordan tivesse tempo de responder às palavras de Garika, Marr ergueu ambos os braços e o golpeou bem embaixo do queixo. Fordan soltou um ligeiro suspiro e caiu pesadamente ao chão.

Marr não perdeu tempo com ele. Passou por cima do homem inconsciente e penetrou na ampla sala. Só parou quando se encontrava a apenas três passos de Garika e da outra moça. Podia ficar de olho nelas e cair sobre qualquer uma que quisesse pegar uma arma escondida.

A moça à sua esquerda fitou-o, estupefata.

Garika apenas avançou um pouco em sua poltrona e fitou Marr com os olhos semicerrados.

— Silêncio! — ordenou Marr. — Ninguém lhes fará nada.

Sem tirar os olhos de Garika, pôs as mãos no tecido do estofamento e arrancou alguns pedaços. Não levou mais de um minuto para amarrar a moça rígida de pavor, de tal forma que ela não poderia pegar numa arma.

— Onde está seu amigo? — perguntou Garika, de repente.

Estava completamente recuperada da surpresa. Marr fitou-a. Estava fascinado.

— Preferiu ficar no pátio — mentiu, não as fitando. — Não teve coragem para escalar o muro.

Garika tirou uma das mãos do copo e fez um gesto de desprezo.

— Então também é um desses tipos — disse em tom de deboche. — O que pretende fazer, garotão?

— Quero saber que tolice é essa que pretendem fazer conosco. Quando descobrir, provavelmente desaparecerei o quanto antes. Para isso preciso do seu auxílio.

Garika acenou com a cabeça. Aquilo parecia diverti-la.

— Como pode ter certeza de que não recusarei esse auxílio?

Marr sorriu.

— Na minha terra — começou — os homens têm muitas possibilidades de obrigar uma mulher rebelde a fazer o que querem. Especialmente quando se trata de uma mulher como você.

Garika soltou um suspiro.

— Que mundo é esse? Vai levar-me para lá?

A inteligência de Marr deu o alarma. Será que Garika não tinha outra coisa a fazer, senão entreter-se com uma conversa zombeteira com um escravo? Quais seriam suas intenções? Será que apenas queria ganhar tempo?

Marr olhou em torno.

— Há mais alguém na casa? Garika abanou a cabeça.

— Ninguém. Só Fordan, Hayda e eu.

— Onde estão as armas?

Garika tomou um gole e fitou-o por cima do copo. Havia uma expressão irônica em seus olhos azuis.

— Antes que eu lhe revele isso, você terá de dar prova de que suas intenções são honestas — respondeu e descansou o copo com um gesto violento sobre a mesinha à sua direita.

Marr aproximou-se dela.

— Escute aí, moça! A situação não é tão alegre como você acredita. O chão está quente embaixo dos meus pés... Quero ir embora. Quero sair desta cidade e de Nowhere. Preciso de armas, mantimentos e combustível para abastecer seu carro. Se não conseguir tudo isso dentro de uma hora, você vai ter uma surpresa.

Mal concluiu, ouviu um leve chiado. Esteve a ponto de virar-se para descobrir a causa do ruído, mas lembrou-se de que possivelmente era exatamente isso que Garika queria, para poder pegar sua arma.

— Levante-se! — gritou para a moça.

Garika viu que estava falando sério.

Obedeceu. Marr segurou-a pelo ombro e manteve-a afastada. Começou a virar a cabeça. O chiado vinha de um lugar próximo à porta. Marr descobriu um bocal achatado no ângulo formado pela parede e pelo teto. Teve a impressão de que desse bocal saía uma tênue neblina azulada, que se tornava invisível assim que se misturava com o ar. Um perfume inebriante começou a encher o recinto.

— Desligue isso! — ordenou. — Que neblina é essa? Algum gás narcotizante?

— É um gás dos nervos — disse Garika, rindo. — Não posso desligar isso. Dentro de alguns segundos, você estará deitado no chão, completamente imóvel. O gás não afetará Hayda nem a mim. Assim que tivermos arejado o quarto, chamaremos a polícia e lhe entregaremos o presente. Fordan deverá ser expulso. Será bem feito. Você voltará ao pátio onde está seu amigo. Não acha que fui muito esperta?

As idéias de Marr começaram a confundir-se. Os contornos dos objetos que o cercavam tornaram-se menos nítidos. O belo rosto de Garika alargava e encompridava a intervalos regulares, como se fosse de borracha. Marr sentiu que as forças o abandonavam.

— Bran! — gritou o mais alto que pôde. — Bran... prenda a respiração e venha!

Depois disso soltou o ombro de Garika e caiu. Estava inconsciente.

 

Quando recuperou os sentidos, constatou que estava deitado numa cama que, tanto em tamanho como em beleza, deixava para trás tudo que já havia visto. Virou a cabeça e viu Bran Cathay sentado a seu lado. O queixo de Bran apontou para o outro lado da cama. Marr fez um grande esforço e virou a cabeça. Viu Garika.

Ergueu-se.

— Devagar — recomendou Bran. — Você recebeu uma boa dose.

Marr sacudiu a cabeça, como se isso pudesse livrá-lo da dor.

— O que houve? — perguntou.

— Essa criatura encantadora — disse Bran, fazendo um gesto na direção de Garika — instalou um tanque de gás dos nervos embaixo de seu quarto. Esse gás pode sair pelo pequeno bocal que você deve ter visto. O engenho que aciona o dispositivo está embutido naquela mesinha. Naturalmente é invisível. Basta descansar o copo com certa violência sobre essa mesinha, para que a instalação entre em funcionamento. Quando cheguei na sala, havia um copo sobre a mesinha. Pois bem. Não consegui prender o ar por mais de um minuto. Mas, nesse minuto, quebrei a janela e cuidei da moça. Acho que não fui muito delicado. O fato é que ela desligou o gás. Depois disso levamos você para a cama. Garika arranjou-me uma arma, para que pudesse sentir-me como dono da situação. Fez isso de livre e espontânea vontade. A outra moça, cujo nome é Hayda, está na porta da frente. Assim que recebermos alguma “visita”, dará o alarma. Por enquanto é só.

Marr fez um gesto de agradecimento. Não se haviam dado ao trabalho de tirar suas roupas. Fez uma tentativa de pôr as pernas para fora da cama. Conseguiu, apesar dos espasmos de dores lancinantes que por pouco não o fazem desmaiar de novo. Só agora notou que pela cortina que cobria a janela penetrava a luz do dia. Devia ter ficado inconsciente pelo menos durante cinco horas.

Virou-se e fitou Garika. Não era mais a mesma que trazia na lembrança. Estava mudada. Seu rosto exprimia medo. Os grandes olhos azuis pareciam desorientados e intimidados. Marr sentiu que Garika não representava mais nenhum perigo.

— Agora você vai contar uma história longa e minuciosa, não é mesmo? — perguntou.

A moça fez que sim.

— Quem sabe se além da história você não nos quer oferecer um pouco de comida e bebida? — sugeriu Marr.

Garika concordou.

— Aliás, o que houve com Fordan?

— Ora, ele está bem guardado. Não está tão bem-disposto quanto você. Levará mais algumas horas para recuperar os sentidos. Quando acordar, perceberá que não pode fazer nenhum movimento. Gastamos pelo menos vinte metros de corda para amarrá-lo — informou Bran com um sorriso.

Garika contornou a cama. Quando ia passar por Marr, este segurou-a pelo ombro.

— Fordan deverá ser revezado? — perguntou. — Quando será?

— Ao meio-dia — respondeu a moça.

— Está bem. Até lá precisaremos encontrar uma saída...

 

Garika mostrou que também era muito hábil no preparo de alimentos. Serviu-os na mesma sala em que, na noite anterior, Marr havia golpeado Fordan. Hayda abandonou o posto e tomou parte no lanche. Pela primeira vez Marr teve tempo para examiná-la mais detidamente. Hayda era mais baixa que Garika e tinha cabelos escuros. Sua pele era amorenada. Tinha olhos castanhos. Eram grandes e ovais, e via-se neles um pouco de tristeza. Era estranho que uma moça como esta pudesse ser policial em Nowhere. Mas, no fundo, a situação de Garika não era menos estranha.

— Agora gostaria de ouvi-la falar — disse Marr, depois de ter engolido o último pedaço de sanduíche e se ter recostado confortavelmente em sua poltrona. — Por exemplo: há quanto tempo existe a colônia de Nowhere?

— Há cerca de dois mil anos — respondeu Garika, prontamente. — Foi criada pelos aras. Todos sabem que eles se intitulam como médicos galácticos. Praticamente são um povo de biomédicos. Seus conhecimentos sobre os segredos da vida superam os dos médicos de todas as outras raças reunidas. E sabem que são exclusivamente seus conhecimentos avançados que lhes garantem o lugar que ocupam. Mas, além dos segredos, têm uma reputação a guardar. É a reputação de que conseguem curar qualquer doença e de que qualquer doente que se confie a um ara está salvo... em troca de polpudos honorários, naturalmente.

Garika fez uma ligeira pausa e tomou um gole.

— Os aras podem ser geniais — prosseguiu — mas sua fama é exagerada. Existem doenças que nem mesmo eles conseguem curar. E um paciente insatisfeito representa um perigo para a reputação do médico. Os aras nunca foram muito escrupulosos na escolha dos meios de que lançam mão. Sempre que sua habilidade médica não é bem-sucedida, o doente é levado para Nowhere, quer ele queira, quer não. Os aras esforçam-se para pintar, em cores brilhantes, que a permanência em Nowhere é tal qual viver num paraíso inigualável, não muito povoado, um verdadeiro jardim, e por aí a fora. Se nem assim o doente concorda com a remoção, aplicam-lhe determinado medicamento, e quando acorda está em Nowhere. O senhor já viu como é este lugar. A população é de quarenta mil pessoas, e todas elas residem nesta cidade imunda, à qual dão o nome de Hopthah.

— O quê?! — exclamou Bran. — Este buraco é a única cidade de Nowhere?

Garika confirmou com um gesto e prosseguiu:

— Os aras tomam certas providências para evitar que os habitantes do planeta morram de fome ou em virtude dos ataques dos animais selvagens. Trazem equipamentos obsoletos, como, por exemplo, os turbocarros, que têm pelo menos cento e cinqüenta anos. De vez em quando chega uma remessa de mantimentos. Mas, em geral, os habitantes têm de providenciar seu sustento. Todos eles são doentes, sem nenhuma exceção, pois, do contrário, não estariam aqui. Imagine que tipo de sociedade formamos. O homem menos doente tira do mais doente aquilo de que precisa. Há dois mil anos já eram assim, e acho que nunca mudará.

— Mudará, sim! — disse, Bran, em tom resoluto. — Mudará assim que tivermos informado o Governo do Império sobre o estado de coisas reinante por aqui.

Garika fez um gesto de desânimo.

— Deixe-me concluir — gritou. — Em Nowhere existe uma espécie de constituição. Lemmy Pert exerce as funções de presidente, juiz supremo e legislador. Foi ele que organizou a força policial. As atribuições da mesma consistem unicamente em evitar que surjam partidos, pois isso representaria o caos. Nowhere não tem possibilidades para abastecer todas as pessoas que vivem aqui. As colheitas escassas produzidas pelos doentes não bastam. Por isso mesmo as pessoas que chegam ao planeta costumam ser transformadas em escravos, que têm de lutar para conquistar a liberdade.

Bran empalideceu.

— Não... não é possível! — gaguejou, apavorado. — Em pleno século vinte e quatro.

— É possível, sim — disse Hayda. — Isso acontece hoje em dia, em Nowhere.

A exposição de Garika já chegara ao fim. Marr Toss reclinou-se profundamente na poltrona e fitou-a de lado.

— Não é só isso, não é mesmo? — perguntou, depois de alguns minutos de silêncio.

A moça estremeceu.

— É, sim — respondeu Garika, perturbada. — Não há mais nada a contar.

Marr sacudiu a cabeça.

— Você não disse uma palavra a seu respeito. Como veio parar em Nowhere? Afinal, você não está doente. Ou está?

— Não! — exclamou Garika. — Não estou doente, e Hayda também não está.

— É mentira! — respondeu Marr, em tom áspero. — Vocês estão doentes. Sofrem de antropofobia. Odeiam os homens. Quem sabe se não participaram da experiência de Lysias? Naquele tempo não deviam ter mais de dez anos. Então, o que diz?

Garika baixou a cabeça. Hayda fitou Marr com os olhos arregalados.

— Estive... estive em Lysias, sim — disse em tom deprimido. — Meus pais estavam presentes quando um governo irresponsável procurou descobrir o que aconteceria com duzentos mil colonos que habitassem um planeta coberto de selvas, se de repente ficassem privados de toda e qualquer comunicação com o resto do mundo. Estava...

— Calma, minha filha — interrompeu Marr. — Aquilo foi um projeto da comunidade dos saltadores. Eles procuraram apoio para o projeto em tudo quanto foi mundo. Queriam descobrir, por assim dizer, se a pessoa que nunca nadou aprende a nadar, se alguém a atira numa água profunda. No caso tratava-se de um grupo de colonos, e a água foi substituída por um planeta selvagem. Lembro-me perfeitamente que o Governo do Império se opôs constante e insistentemente contra o projeto.

— Não culpo o Governo do Império — disse Hayda em tom exaltado. — Culpo o governo dos patriarcas saltadores que permitiram a execução de um projeto como este. Durante um ano e meio, o crime e a doença grassaram no planeta. Tivemos de lutar durante um ano e meio, até que aparecessem algumas naves terranas que nos resgataram. Durante esse tempo acumulamos tamanho ódio e repugnância contra tudo e todos, que não conseguimos conviver mais com outras pessoas. Meus pais não viveram mais por muito tempo, mas eu tive de conformar-me com este tipo de vida. Pedi auxílio aos aras. Dei-lhes tudo que possuía. Até eles falharam. Fui trazida para Nowhere. Em comparação com Lysias, isto aqui é um paraíso, se bem que não é o lugar ideal para aprender a amar o próximo.

— Acho que já estou compreendendo sua situação — disse Marr, em voz baixa. — Mas acredito que haveria outra saída. Você não precisaria acompanhar as tendências de Nowhere.

Depois ergueu a cabeça num movimento rápido e disparou uma pergunta:

— E com você, Garika, como foi?

Garika fitou-o com uma expressão distraída.

— Pakko... — respondeu com a voz apagada. — Uma equipe de engenheiros terranos... Fui a única mulher... Servi de assessora, secretária e moça para o que desse e viesse.

De repente ela adquiriu vida, mas parecia ser uma vivacidade perigosa.

— Já ouviu falar em Pakko? — indagou em voz zangada, dirigindo-se a Marr. — Cinco bilhões de habitantes. — Noventa e nove por cento são descendentes dos arcônidas imigrados há dez mil anos. Pelos nossos padrões são selvagens. Uma evolução regressiva os fez retornar às condições de vida primitivas. Usam a pólvora para atirar e seus únicos veículos são carros puxados por animais semelhantes aos cavalos, chamados de tarpais. Não tinham a menor idéia do que os engenheiros pretendiam fazer por lá. E nem poderiam saber o que vem a ser uma central de hiper-rádio.

“Pakko era o planeta ideal, pois ficava quase exatamente no ponto de intersecção de oito rotas de navegação interestelar. Os pakkos não tinham a menor idéia do que vem a ser uma nave interestelar. Mataram os engenheiros. Quanto a mim, fui caçada. Fiquei prisioneira deles durante algumas semanas.”

De repente seus olhos encheram-se de lágrimas.

— Depois de cinco semanas consegui fugir. Alcancei nossa nave e transmiti um pedido de socorro. Dali a algumas horas chegou um cruzador terrano que me salvou. Depois disso, Pakko recebeu a visita de uma expedição punitiva. Os assassinos dos engenheiros foram processados e ficaram presos. Mas quem iria importar-se comigo?

Durante alguns minutos o silêncio reinou no grande recinto. Depois o próprio Marr resolveu concluir a história.

— Você procurou os aras, que nem Hayda. Como estes não conseguissem curá-la, veio parar em Nowhere.

Esperou que Garika fizesse um sinal de assentimento.

— Quem conseguiu convencê-la a trabalhar como espiã dos aras em Nowhere? — perguntou.

 

Garika soltou um grito e encolheu-se em sua poltrona. Hayda permaneceu em silêncio. Bran sacudiu a cabeça, como se quisesse livrar-se de um inseto que o estivesse incomodando.

— Santo Deus! Quem foi que lhe deu essa idéia? — perguntou ela, depois de algum tempo.

— Isto não é nenhum absurdo — respondeu Marr. — Dê uma olhada nesse pátio. Foi construído para servir de prisão. Em nenhum outro lugar de Nowhere, você encontrará algum pátio como este. Ninguém se daria ao trabalho de cercar a área dos fundos de uma casa com um muro. Ainda mais com um muro de dois metros de espessura, em cuja parte superior pode ser colocada uma fiação, que dê a impressão de que os habitantes de Hopthah conseguiram construí-lo com os recursos de sua tecnologia atrasada. Fizeram tudo para não provocar suspeitas.

— Bem — objetou Bran. — Mas só o muro...

— Não é só o muro. Em algum lugar de Nowhere existe um ativador celular. Segundo as leis de probabilidade, os aras devem ter sido os primeiros a ter conhecimento do fato. Devem contar com a possibilidade de que um verdadeiro aluvião de pessoas apareça em Nowhere, para procurar o aparelho. Segundo as previsões, essas pessoas deveriam vir sós ou em pequenos grupos, até que a Frota do Império Unido tivesse conhecimento do fato. Pois bem. Nada os impede de irem pegando as pessoas que forem chegando, e colocá-las fora de ação.

— Que motivo teriam eles para agir assim? Por que não pegam o ativador e vão embora?

— Talvez não seja tão fácil chegar a ele — ponderou Marr. — Quem sabe o aparelho está simplesmente escondido no meio do capim, à espera de que apareça alguém que o pegue?...

Bran refletiu um pouco.

— Bem — disse depois de algum tempo. — Talvez seja assim. E depois? Percebo que você tem outro argumento.

Marr apontou para a parede.

— O gás dos nervos — disse. — Num planeta que nem consegue alimentar quarenta mil habitantes não pode existir uma substância como esta, a não ser que os aras a tragam. Não é verdade, Garika?

Garika fez que sim.

— Não sei bem o que vem a ser um ativador celular, e muito menos sei se em Nowhere existe um aparelho desse tipo — disse a moça. — O fato é que os aras me incumbiram de observar os estranhos e interrogá-los. Esperam que nos próximos dias ou semanas cheguem muitas espaçonaves a Nowhere. Além disso supõem que as pessoas que chegarem primeiro talvez tenham conhecimento do deslocamento de maiores contingentes das frotas em direção a Nowhere. E é nisso que estão interessados. Os aras não têm motivo para preocupar-se com os primeiros desconhecidos que chegarem aqui. Afinal, Lemmy Pert costuma condenar os recém-chegados à escravidão, e quando estes lutam para conquistar a liberdade, são mortos. Mas existe o perigo de que um deles fuja antes da hora. O muro com os fios de alta-tensão deveria protegê-los contra esse perigo.

— Quer dizer que Lemmy sabe que em Nowhere existe uma base dos aras?

— Não; não sabe de nada. Deve haver gente que está informada sobre a presença dos aras. Mas não sei quem são. Afinal, alguém deve ter dado ordens para construir este muro. Os aras me informaram sobre o plano de construir o muro. Na manhã do dia seguinte apareceu um grupo de homens, vindos da cidade, e pôs-se a trabalhar. Falei com esses homens. Não tinham a menor idéia sobre a finalidade do muro. Não conheciam a pessoa que lhes dera ordens para fazer a construção. Não me interessei mais por isso.

Garika não demorou a explicar o resto. Não tinha a menor idéia sobre a situação da base dos aras. Recebia suas ordens através de um pequeno receptor de ondas curtas que, segundo parecia, só funcionava numa freqüência. Não soubera da existência dos aras em Nowhere, até que algumas semanas atrás um dos seus ex-médicos aparecera no meio da noite e a obrigara a engajar-se no serviço. Os atos praticados com Marr Toss e Bran Cathay representavam o início de sua execução. No começo não vira nisso nada que a repugnasse, e aceitara a oferta porque esta lhe trazia uma série de vantagens. O mesmo desconhecido que mandara construir o muro fabricara há pouco tempo, por sugestão de Garika, os móveis que embelezavam a casa. Entregara os desenhos ao encarregado dos trabalhos e, poucos dias depois, recebeu aquilo que desejava. Depois da visita noturna não vira mais o menor sinal dos aras.

O misterioso desconhecido que se mantinha numa posição discreta atiçou a curiosidade de Marr. Este pôs-se a refletir, para encontrar um meio de descobrir sua identidade. Finalmente lembrou-se de que faltava pouco para o meio-dia, e de que Hopthah se transformaria num lugar muito perigoso para eles, quando Fordan contasse sua história e revelasse a Lemmy Pert os acontecimentos que se haviam desenrolado na casa de Garika.

Antes que Fordan fosse revezado, teriam de abandonar a cidade. Marr não tinha nenhum plano sobre o que fariam depois. Por enquanto o importante era afastar-se a uma boa distância de Hopthah, a fim de fugir da morte organizada que lhes estaria reservada na qualidade de combatentes pela liberdade. Depois veriam o resto.

Garika e Hayda mostraram-se dispostas a fugir com os dois homens. Garika tentaria obter de Lemmy Pert uma quantidade maior de combustível. Estava confiante de conseguir convencê-lo a ceder-lhe a mesma. Por várias vezes realizara expedições exploradoras, e nessas oportunidades sempre conseguira uma quantidade adicional de combustível.

Não tiveram a menor dúvida em permitir que Garika se afastasse com o carro. Depois do que acontecera já não acreditavam que a jovem criasse problemas. Garika demorou cerca de uma hora. Quando voltou, havia vários latões de combustível no carro. Pelos cálculos de Hayda e Garika, esse combustível devia ser suficiente para percorrer um trecho de pelo menos mil e quinhentos quilômetros. Garika informou-os de que Lemmy perguntara pelos escravos. Provavelmente estava preocupado com a luta de libertação que se seguiria. Pedira à moça que tivesse cuidado para que os prisioneiros não escapassem. Bakter Brown já havia sido sepultado.

Os preparativos para a fuga foram tomados às pressas. O equipamento mais importante era o pequeno receptor de ondas curtas através do qual os aras se comunicavam com Garika. Marr pediu a Bran que retirasse cuidadosamente o revestimento do aparelho e revistasse seu interior, à procura de eventuais microespiões. Talvez tivessem de construir outro receptor e realizar a determinação goniométrica, a fim de localizar a base dos aras.

Marr Toss já compreendera que o destino de qualquer fuga sensata só poderia ser este. Os aras de Nowhere mantinham contato com outros aras. A única esperança de sair de Nowhere seria numa espaçonave dessa raça.

Quando o pequeno grupo estava pronto para partir já eram quinze para o meio-dia. Cada membro do grupo possuía sua arma, e a de Fordan foi carregada para servir de reserva.

Garika colocou o carro bem na frente da porta da rua, para que pudessem embarcar rapidamente e sem despertar suspeitas. Marr resolvera que no início tomaria a direção norte. Antes do pouso observara que era o único lugar em que havia montanhas. Num planeta coberto por selvas e de grandes oceanos, as áreas montanhosas, onde o clima era mais suave e o perigo das febres era menor, costumavam ser escolhidas para a construção das bases de uma raça inteligente.

Marr sentou-se junto à direção. Nunca pilotara um turbocarro. Mas era fácil lidar com o mesmo, e Marr acreditava que seria um bom motorista. Bran Cathay e as moças colocaram a bagagem no carro, enquanto Marr ficou de guarda, para ver se aparecia alguma visita inesperada. Por um instante teve de abandonar o posto. Foi quando Garika e Hayda já haviam embarcado e Bran teve de mudar um dos latões de combustível, para ter um lugar onde sentar. Marr levantou-se e ajudou-o. O latão era pesado. Quando concluíram o serviço, os dois estavam banhados em suor. Bran saltou para dentro do carro e espremeu-se num lugar de meio metro de largura, que ficava ao lado de Marr. Este ligou o motor e observou a rua...

Outro turbocarro dobrou e veio em direção à casa de Garika. Era um veículo aberto. No banco traseiro estavam sentados três homens que envergavam uniformes coloridos, outro homem estava na direção e ao lado deste ia Lemmy Pert!

Marr Toss não teve alternativa. A única área livre era a que o separava da rua. Se quisesse escapar, teria de ir ao encontro de Lemmy e passar por este. Sua única vantagem consistia no fato de que Lemmy não esperava os acontecimentos que se seguiriam. Olhou em sua direção. Marr notou a expressão de espanto em seu rosto. Ainda não compreendera muito bem a nova situação.

Marr acelerou. O carro deu um salto para a frente. A turbina uivante impeliu-o. Marr quase não deu atenção à direção. Ficou de olho em Lemmy Pert e os homens que o acompanhavam.

Naquela altura, Lemmy já havia compreendido que a situação não era a que esperava. Fez um movimento tão rápido que ninguém o julgaria capaz. Atirou-se para o lado e abrigou-se atrás da chapa da carroçaria de seu carro. O motorista freou de repente.

— Atirem! — gritou Marr.

Dali a uma fração de segundo seu carro estava lado a lado com o outro veículo. Marr ouviu o chiado furioso das armas de radiações e com o canto dos olhos viu uma luz fulgurante. Alguns homens soltaram gritos de pavor e outra turbina emitiu um som cantante.

O carro disparou pela rua. A visão estava desimpedida de ambos os lados. Um disparo passou bem acima da cabeça de Marr. Este dobrou para a esquerda. O veículo rangeu e cavou a terra ao entrar na curva. Um esguicho de sujeira levantou-se.

Alguns curiosos fugiram aos gritos. Enquanto atingia a potência máxima, a turbina zumbia. O carro percorreu a rua a uma velocidade incrível, derrapou perigosamente ao passar entre duas casas arruinadas e deixou a cidade para trás.

A rua terminava juntamente com a cidade. Seguiu-se uma área coberta de capim, que permanecia no mesmo estado em que fora criada pela natureza. Marr teve de reduzir a velocidade, mas os perseguidores seriam obrigados a fazer a mesma coisa. Felizmente o veículo estava em condições de enfrentar o terreno difícil.

Marr olhou para trás. Não viu nenhum veículo os perseguindo. Garika e Hayda travaram as armas e voltaram a colocá-las nos bolsos. Bran manteve a arma engatilhada. Fitou Marr de lado e disse:

— Foi por pouco, meu caro.

Marr confirmou com um gesto.

— Ainda haveremos de escapar por pouco de outras situações, Bran. Lemmy não pode dar-se ao luxo de nos perder. Há anos não têm vindo novos escravos. Tem de apresentar ao público de Hopthah uma guerra de libertação travada por atores completamente diferentes, pois, do contrário, perderá o cargo. Está atrás de nós. Não tenha a menor dúvida quanto a isso.

Nas horas que se seguiram, não se tinha a impressão de que a previsão de Marr se cumpriria. Perderam de vista a cidade.

Se é que Lemmy Pert realmente pretendia recapturar os escravos fugidos, estava seguindo um plano totalmente diverso do que Marr Toss imaginara.

Foi Marr quem primeiro teve esta idéia, que lhe causou uma sensação bastante desagradável. Bem que gostaria de saber qual era o truque de Lemmy. Mas, por mais que forçasse a mente, não descobriu.

 

Quando atingiram a floresta, já era meio-dia. Parecia que as montanhas ainda não estavam muito próximas. Pelos cálculos de Marr a distância era de setenta ou oitenta quilômetros. A extensão de terra, entre eles e as montanhas, estava coberta por uma mata fechada.

Ainda não se via o menor sinal de que estivessem sendo perseguidos. Marr chegou à conclusão de que não valeria a pena ficar olhando para trás. Tinha certeza de que Lemmy Pert pretendia armar-lhes uma cilada. Seu golpe viria de surpresa, no momento em que menos esperavam.

Descansaram um pouco e penetraram na floresta. Bran Cathay sentou-se no assento do motorista, que ficava em cima do revestimento da turbina. Sua arma funcionava quase ininterruptamente. Abriu ao máximo o feixe de raios e queimou uma vereda em meio à vegetação. A fumaça movia-se preguiçosamente em meio ao ar e envolvia o carro. O mau cheiro exalado pelas plantas queimadas irritava o nariz e os olhos. Muitas vezes a vista de Marr não alcançava mais de três metros.

Pelos cálculos de Marr, teriam de passar uma noite na floresta. Ninguém agüentaria mais de três horas ou três horas e meia naquela fumaça impregnada de dióxido de carbono.

Depois de terem avançado penosamente durante trinta minutos, Bran teve de constatar que a floresta não era tão inofensiva como parecera até então. A fumaça não estava muito densa. Bran e Marr viram ao mesmo tempo uma coisa branco-acinzentada precipitar-se da folhagem das árvores. Parecia uma cobra e um tentáculo ao mesmo tempo. Bran atirou-se para o lado e desceu de cima da turbina. Marr levantou-se de um salto e atirou por cima do pára-brisa contra a coisa repugnante que se contorcia no lugar em que pouco antes estivera Bran. Acertou. Ouviu-se um uivo estridente nas copas das árvores. Marr viu de relance uma massa do tamanho de uma copa de árvore fazendo movimentos convulsivos. O tentáculo desapareceu. O zumbido da turbina misturou-se ao farfalhar e aos estalos produzidos pelo terrível atacante, que se afastava em meio à folhagem.

Depois disso Bran ficou no interior do carro. De pé ao lado de Marr, cuidava da pilotagem. O incidente não se repetiu. Mas, ao pensar na noite que se aproximava, Marr ficou preocupado.

Garika mantinha seu pequeno receptor constantemente ao alcance da mão. Esperava a qualquer minuto um chamado dos aras. Mas estes não davam sinal de presença, tal qual os perseguidores. Marr já não sabia o que pensar, mas de repente Bran lhe deu uma idéia.

— Em Hopthah existe uma pessoa — afirmou — que está tão bem informada sobre a presença dos aras quanto Garika. Quer dizer — retificou — existe pelo menos uma pessoa. Talvez seja um dos membros do grupo de Lemmy Pert. E é perfeitamente possível que essa pessoa tenha constatado que nos encontramos na rota exata que leva à base dos aras. O que faria essa pessoa num caso destes?

— Provavelmente deixaria que os aras tomassem conta de nós — conjeturou Marr. — Não se daria ao trabalho estafante de caçar-nos na selva, pois acreditaria que, de qualquer maneira, cairíamos nas mãos dos aras.

— Desde que consiga convencer Lemmy de que seu ponto de vista é correto — completou Bran. — Afinal, quem manda é Lemmy.

Marr meneou a cabeça.

— Aliás, não há nenhum motivo para que Lemmy não seja informado. Não pode tornar-se perigoso para os aras. Por outro lado, estes podem usá-lo para influenciar a política da cidade de Hopthah, caso isso venha a tornar-se necessário. Não acredito que Lemmy tenha sido mantido na ignorância em virtude de uma política bem definida. Apenas não havia necessidade de que fosse informado.

Bran não formulou nenhuma objeção.

— Com isso, a solução torna-se muito mais simples — respondeu. — Lemmy sabe que acabaremos caindo nas mãos dos aras. Por que iria expor-se a todas essas canseiras?

— Isso também explica por que Garika não está recebendo nenhum chamado — acrescentou Marr. — Os aras foram informados e estão à nossa espera.

Bran confirmou com um gesto.

— As perspectivas não são nada agradáveis — queixou-se Hayda. — Por que não nos desviamos para escapar dos aras?

Marr fez um gesto negativo.

— Não é isso que queremos — observou. — Precisamos encontrar os aras, mesmo que corramos o risco de, antes disso, sermos descobertos e presos por eles.

 

Apesar de tudo fizeram uma tentativa de desviar-se. Não pretendiam escapar aos aras, mas queriam saber por que Lemmy Pert tinha tanta certeza de que não conseguiriam fugir. Não demoraram a descobrir. Depois de terem percorrido dois quilômetros na direção oeste, atingiram uma área pantanosa, que era impraticável para o carro. A leste, também havia uma área pantanosa, a menos de um quilômetro da rota que estavam percorrendo. Não era uma área tão difícil como a situada a oeste. Mas, em compensação, era seguida por uma ampla superfície de água, formada por um lago ou um grande rio, que representava um obstáculo intransponível para o turbocarro. Encontravam-se numa faixa de terra seca de pelo menos três quilômetros de largura, que se estendia para norte, em direção às montanhas. Atrás deles, Lemmy e seus homens haviam bloqueado a área, enquanto à frente deles os aras os esperavam.

— Quando não me deixam nenhuma liberdade de decisão, não fico nada contente, — disse Bran, em tom contrariado.

Puseram o veículo em movimento, mas já não se apressaram tanto.

Marr concebeu um plano. Assim que se tivessem aproximado bastante das montanhas, abandonariam o carro. A marcha não seria muito confortável, mas em compensação teriam uma relativa segurança. Havia uma coisa de que podiam ter certeza: os aras estariam à sua espera na beira da floresta.

Face a isso, Marr determinou que parassem três horas antes do ocaso. Juntamente com Bran, abriu com os longos facões que pertenciam ao equipamento do veículo um caminho pelo qual Garika conduzia o carro. Foram avançando até um lugar situado a cerca de um quilômetro do ponto em que Bran disparara o último tiro, produzindo uma nuvem de fumaça cinza-azulada que ainda continuava ali. Usaram outra vez os facões para abrir uma clareira circular de aproximadamente oito metros de diâmetro. Pegaram os arbustos, galhos e trepadeiras vitimados por seus esforços e construíram uma espécie de barreira em torno da clareira. Não valia muito como fortificação, mas qualquer animal que pretendesse atacá-los ficaria preso por alguns segundos, durante os quais constituiria um bom alvo para suas armas.

Ninguém teve apetite, mas Marr insistiu em que comessem alguma coisa. Distribuiu as sentinelas. Não queria que as moças ficassem a sós na escuridão, e por isso mandou que ele e Garika formassem um grupo, enquanto Bran e Hayda constituíam um segundo grupo. Esses grupos atuariam por períodos de quatro horas. Dessa forma teriam certeza de obterem pelo menos uma quantidade razoável de sono...

O sol continuava a espalhar a claridade diurna. Marr acabara de concluir seus preparativos, e logo constatou que seriam inúteis.

 

— Ouça! — cochichou Bran de repente e cutucou Marr.

Marr também ouvira o ruído. Parecia que alguém estava chamando.

Prenderam a respiração e puseram-se a escutar. Passaram-se alguns segundos até que voltaram a ouvir o ruído. Vinha de oeste. A vegetação densa abafava o som, mas Marr tinha certeza de que se tratava de uma voz articulada.

— O pântano! — cochichou. — Alguém caiu no pântano!

Marr levantou-se. A voz voltou a fazer-se ouvir. Desta vez era mais forte. Parecia um grito de terror e angústia.

— Vou dar uma olhada — disse.

— Irei com você — respondeu Bran.

Marr protestou. Pelo menos um homem teria de ficar no acampamento. Escolheu Garika para acompanhá-lo. Abriu caminho com o facão e conseguiu avançar mais depressa do que imaginara. Ainda se ouvia a voz, mas a mesma já estava diminuindo. A pessoa que corria perigo — fosse ela quem fosse — estava próxima ao fim.

Marr teve a impressão de que a mata se tornava cada vez menos espessa. A cada segundo que passava, conseguiam avançar mais rapidamente. O chão apresentava-se em ligeiro declive. Marr estava convencido de que o perigo que ameaçava o desconhecido provinha do pântano. Quando passou entre dois arbustos de cerca de dois metros de altura e viu o que acontecera na pequena clareira alongada de chão firme que se estendia à sua frente, estacou surpreso...

Uma coisa estranha, de cor marrom-acinzentada, rolava pelo chão. Parecia uma cobra peluda com seis saliências em forma de pernas, três de cada lado. Não se via nenhuma cabeça, mas ainda se ouviam os sons queixosos emitidos com nitidez, como se fossem palavras de alguma língua estranha.

A coisa tremia e contorcia-se em espasmos. Rolou um pedaço, deu um salto e voltou a cair. Emitia constantemente os sons estranhos que Marr acreditava serem palavras. Os gritos tornaram-se cada vez mais baixos, e os movimentos foram ficando mais lentos. Marr ainda não sabia o que pensar. De repente o estranho ser ficou deitado, completamente imóvel, como se estivesse morto ou inconsciente.

Marr examinou-o atentamente. Teve a impressão de reconhecer minúsculas aberturas, que formavam olhos e os contornos de uma boca, escondidas sob os pêlos espessos. Não se conseguia identificar os ombros, o pescoço, a cabeça... A parte dianteira do corpo era praticamente inarticulada.

Notou que, ao deparar-se com o estranho quadro, Garika se agarrara a ele, assustada. Segurava seu braço esquerdo e fitava o animal peludo com os olhos arregalados.

— O que será que aconteceu com ele? — cochichou.

Marr fez um gesto de indiferença.

— Estava doente; apenas isso. Talvez tenha comido algo venenoso e morreu.

Garika soltou seu braço e avançou cautelosamente em direção ao corpo imóvel do animal. Marr não a impediu. Aquela criatura peluda nunca mais se tornaria perigosa.

De repente Garika começou a rir.

— O que houve? — perguntou Marr, estupefato.

— Ora, Marr... — disse a moça, sem parar de rir. — Não sei o que é, mas acho isto tão engraçado.

Marr ficou preocupado. Foi caminhando na direção da moça. Era estranho que, depois de alguns minutos de medo e de nervosismo, aquela moça começasse a rir de repente. Talvez sua mente não estivesse funcionando bem. Tudo indicava que realmente era assim, pois a moça continuava parada e ria gostosamente. Mas, à medida que Marr se aproximava dela, suas preocupações foram diminuindo. Quando se encontrava bem perto da jovem e pousou as mãos em seus ombros, também começou a rir. Era bem verdade que, num canto de sua mente, surgiu a idéia de que não sabia por que estava rindo. Mas isso não importava! Era tão bom rir e ser alegre!

— Venha! — exclamou Garika, exaltada. — Vamos olhar de perto.

Referia-se ao animal. Já não sentia nem um pouco de medo. Avançou despreocupadamente em direção ao ser peludo e abaixou-se para levantá-lo.

Foi então que aconteceu.

Marr viu-a estremecer como se uma coisa invisível a tivesse golpeado. O grito penetrante da moça doeu em seus ouvidos. Quis correr em seu auxílio, mas a estranha alegria que sentia parecia um véu que cobria sua mente. Quando compreendeu que a situação era séria, Garika já se contorcia no chão, tal qual o animal fizera pouco antes.

Com um salto gigantesco, Marr colocou-se perto dela. Durante o salto, o objeto invisível atingiu-o com uma tremenda força. Soltou um grito, mas não perdeu os sentidos. Garika estava quase inconsciente e choramingava de dor. Estava deitada perto dele. Marr mal conseguia mexer-se, mas tinha de ajudar a moça...

As ondas de dor lancinante percorriam seu corpo com a violência de descargas elétricas. Os músculos estendiam-se e contraíam-se sob os efeitos dos impulsos narcotizantes. Marr levantou o braço direito para pegar Garika. Um golpe atingiu-o no ombro e pôs em ação — contra a sua vontade — a musculatura do braço. Sua própria mão atingiu-o no rosto como se fosse um ser estranho. A pele parecia arder. Mas o choque que se seguiu ajudou-o. Por uma fração de segundo, seus músculos se entesaram quase até o ponto de ruptura. Seus olhos se anuviaram sob os efeitos da dor. Quando recuperou os sentidos, estava deitado ao lado de Garika. O movimento inconsciente fizera seu corpo descrever um giro em torno do próprio eixo.

Segurou as costas do uniforme colorido da moça. Crispou as mãos com tamanha força que mesmo os impulsos dolorosos não poderiam desprendê-las. Cerrou os dentes com tanta força, chegando a sentir o sabor desagradável do sangue. Reprimiu o estado de inconsciência que queria dominá-lo. Os golpes continuavam a atingi-lo com a mesma violência, insuflando ondas de dor em seu corpo. Acontece que entre os golpes havia uma pausa de meio segundo e, nessas pausas, Marr puxava o corpo da moça por alguns milímetros.

Sua mente ainda estava funcionando. Sabia que o animal fora vitimado pelo mesmo fenômeno que o estava atingindo, juntamente com Garika. Fosse o que fosse, estava ali há bastante tempo; não aparecera há poucos instantes. Se conseguisse arrastar-se juntamente com a moça até o lugar em que haviam estado de pé, ficariam a salvo.

A idéia conferiu-lhe a força do desespero. Seguiu-se um golpe que moveu seus músculos na direção desejada. Bastaria girar o corpo mais uma vez, arrastar Garika, e estariam livres.

Marr caiu de bruços, com o rosto colado ao capim úmido.

Fez um grande esforço e conseguiu virar a cabeça. Viu Garika deitada a seu lado. Estava com os olhos fechados, mas sua respiração era regular. A luta com o invisível deixara-a inconsciente. Satisfeito, Marr deixou pender a cabeça e entregou-se ao torpor agradável que ia tomando conta de seu corpo.

Dois pontos teriam de ser esclarecidos. A irrupção de alegria sem motivo, à qual os dois se haviam entregue, devia ter sido causada por um fator externo. Ainda havia a coisa invisível que desferira golpes mortíferos contra o animal, contra Garika e contra ele mesmo. O que seria? Algum ser invisível ao olho humano? Marr já andara bastante pelo espaço e sabia que essas coisas existem. Mas abandonou a idéia. Se fosse um ser vivo empenhado em provocar dores em outros seres ou até matá-los, não permaneceria no mesmo lugar, deixando suas vítimas em paz assim que se tivessem afastado a uma distância de dois metros. A coisa que se encontrava ali — Marr não conseguiu imaginar seu nome — era estacionaria. Era uma coisa construída por alguém. Talvez fosse uma armadilha!...

Lembrou-se dos aras. Nunca ouvira falar em qualquer campo energético que agisse sobre o sistema nervoso, a não ser os campos alternados de alta freqüência produzidos pelas radiações mecano-hipnóticas. Se existisse um campo desse tipo, os aras seriam os primeiros a manipulá-lo. A área de estudos mais importante da Bioquímica era o sistema nervoso das criaturas orgânicas, especialmente a dos seres inteligentes. À medida que refletia sobre o assunto, mas se firmava a certeza de que os aras tinham algo a ver com aquele fenômeno.

Se fosse um campo de choque, devia haver um gerador por perto. Os campos desse tipo eram tão complicados que não podiam ser transmitidos a grande distância por meio de um projetor. E devia haver uma explicação para o fato de o campo ter sido instalado justamente ali. Sem dúvida, o campo não tinha a menor relação com os acontecimentos que se desenrolavam em Hopthah e sua finalidade não consistia em capturar escravos fugidos. Afinal, a probabilidade de que o turbocarro dos fugitivos fosse passar justamente nesse local era extremamente reduzida. Quem sabe se os aras não tinham colocado o animal por ali para que ele atraísse os fugitivos com seus gritos semelhantes aos de um homem? Não... isso seria muito complicado. Os aras descobririam um meio mais simples de capturar os fugitivos. O que estava acontecendo ali não tinha a menor relação com a fuga dos escravos de Lopthah nem com a equipe de captura de Lemmy.

De repente Marr ficou muito curioso, e a curiosidade restituiu-lhe parte das forças perdidas. Conseguiu erguer o corpo e olhou em torno.

Não demorou em encontrar aquilo que queria. Mas não teve muito tempo para alegrar-se. No momento em que pretendia pôr-se de pé, Hayda e Bran saíram da mata. E Bran gritava em tom exaltado:

— Os aras estão chamando! O receptor deu o sinal!...

 

Bran não viu o animal e nem se impressionou com o fato de Garika estar inconsciente. Correu para junto de Marr e agachou-se a seu lado.

— A recepção é bastante estranha — disse, ofegante, e entregou o pequeno receptor a Marr. — Há uma tremenda distorção. Não se entende uma única palavra. Parece duas pessoas conversando. Tenho a impressão de que a mensagem nem se destina a Garika.

Esteve a ponto de dizer mais alguma coisa, mas nesse instante o receptor voltou a fazer-se ouvir: um chiado e uma série de arranhões, seguidos pelos sons deformados de uma voz humana. Marr não entendeu nada.

Era claro que Bran tinha razão. Os aras não estavam falando com Garika. A faixa de ondas abrangida pelo receptor era bastante ampla. Captava freqüências muito mais elevadas ou mais baixas que aquelas para as quais fora construído. Ao que tudo indicava, estava havendo uma palestra, entre dois aras, conduzida por uma faixa situada fora da do receptor.

— Desde quando está ouvindo isso? — perguntou Marr.

— Há seis ou sete minutos — respondeu Bran apressadamente. — De início era bem fraco, quase imperceptível. Mas vem se tornando cada vez mais forte.

Era o que Marr supunha. Um dos dois transmissores-receptores, que participavam do intercâmbio, aproximava-se do lugar em que se encontravam. Lançou um olhar para o animal morto. Lembrou-se da alegria sem motivo que Garika e ele haviam sentido e dos golpes que desabaram sobre eles. Naquele momento teve uma idéia maluca.

Bran já havia descoberto o cadáver. Também constatou que Garika estava inconsciente e Marr tinha de fazer um grande esforço para executar qualquer movimento.

— O que houve por aqui? — perguntou em tom de surpresa.

Marr relatou os acontecimentos em palavras lacônicas. Enquanto falava, o receptor de Garika voltou a chamar várias vezes. Bran ouvira bem. Sempre que o receptor entrava em funcionamento, uma das duas vozes que participavam da palestra era mais forte e nítida que antes.

— Olhe! — disse Marr, ao concluir seu relato, e apontou para um lugar situado a cerca de cinqüenta centímetros da cabeça do ser peludo. — O que está vendo?

Bran estreitou os olhos.

— Uma coisa parecida com a parte superior de um recipiente de combustível. Deve ser feita de folha de flandres. Vejo uma coisa presa à mesma. Será que é carne?

Marr fez que sim.

— Isso mesmo; carne crua. Trata-se de uma armadilha. O animal foi atraído pelo cheiro da carne. Quando começou a comer, acionou o gerador.

Bran passou as mãos pelo cabelo.

— Mas, por quê? Que motivo tinham os aras para capturar o animal?

— Ele desprende um gás que afeta os centros nervosos do corpo humano. Talvez queiram recolher o gás ou aprender como produzi-lo.

Depois disso explicou sua idéia maluca.

— Provavelmente alguma coisa indica aos aras, que se encontram na base, que o animal caiu na armadilha. Provavelmente um dos dois aras, cujas vozes ouvimos, está a caminho para levar o cadáver. Acho que devemos preparar-nos para a chegada dele.

Hayda estava cuidando de Garika. Acariciou-a e disse-lhe palavras carinhosas. Finalmente conseguiu fazer com que recuperasse os sentidos. A moça ergueu-se e olhou em torno com uma expressão de espanto.

— O que houve?... — perguntou, estonteada.

Marr levantou-se. A fraqueza tinha desaparecido quase por completo. Havia um encontro muito importante pela frente, e essa idéia restituíra-lhe as forças.

— Tudo bem — disse para consolar Garika. — Estamos esperando “visita”, mas é preferível que não apareçamos...

Auxiliado por Bran, ajudou a moça a pôr-se de pé. Abandonaram a clareira e penetraram na mata. A meio caminho do acampamento esperaram a chegada do ara. Bran correu até o carro para trazer mais uma arma e alguns alimentos. Não sabia para que serviriam os mantimentos, mas Marr mandara que fosse buscá-los.

Marr ficou de olho no receptor. Uma das vozes tornava-se cada vez mais compreensível, mas a palestra era tão rápida que até parecia tratar-se de uma conversa particular... Por algum tempo Marr sentiu-se perplexo, mas finalmente uma terceira voz, mais enérgica, interveio no intercâmbio. As palavras proferidas não pareciam ser muito amáveis. Depois disso, o receptor silenciou.

Marr deu uma risadinha. A situação era bem simples. O piloto do veículo que se dirigia ao lugar em que se encontravam tivera uma conversa particular com o radioperador da estação fixa. Tal comportamento era facilmente explicável por alguém que já esteve só num veículo, viajando num mundo desconhecido e dispondo de um rádio capaz de colocá-lo em contato com outro homem... Mas, por outro lado, havia o regulamento que proibia qualquer utilização particular da faixa de freqüência oficial...

Não havia por que preocupar-se. O ara continuava a viajar em direção ao lugar em que se encontrava o cadáver do animal. Não se ouvia mais sua voz, pois algum superior proibira que falasse. Porém, dentro de alguns minutos, apareceria por ali.

Bran voltou com a arma e os mantimentos. Marr começou a expor seu plano.

— Ele vem só — cochichou, parecendo até que o ara já estivesse bem perto. — Provavelmente abandonará o veículo para pegar o cadáver e carregá-lo. Será nossa oportunidade.

— E o gerador? — perguntou Bran. — Será que o ara está protegido contra o campo de choque? Ou terá de desligar o aparelho?

— Ele o desligará quando ainda estiver no veículo — disse Marr. — Os aparelhos desse tipo costumam ser dirigidos por controle remoto.

Bran não parecia muito convencido de que realmente era assim.

— Se você pensa que é assim, tudo bem. Só não quero que o ara tenha o prazer de nos ver cair sobre ele, para sermos atingidos pelo campo de choque.

— Não se preocupe — disse Marr para tranqüilizá-lo. — Tenho a impressão de que esse campo age sobre qualquer ser orgânico, inclusive o ara. Portanto terá de desligar o aparelho antes de aproximar-se do animal.

— Está certo. O que acontecerá quando o veículo se encontrar em nosso poder?

Um sorriso irônico apareceu no rosto de Marr.

— Deixe por minha conta — disse, encerrando a palestra.

 

A primeira coisa que ouviram foi o ruído cantante do motor. Era um som estranho num mundo em que a turbina de gás representava a conquista mais recente da tecnologia. O ruído foi-se aproximando.

Bran foi o primeiro a ver a sombra em cima das árvores. Sem dizer uma palavra, levantou o braço e apontou. Marr viu uma coisa preta, de formato circular, que tomava lentamente a direção da clareira, afastando com a maior facilidade os galhos das árvores mais próximas. O círculo tinha uns cinco metros de diâmetro. Se necessário, poderia pousar na clareira, mas nesse caso soterraria a criatura peluda. O piloto desconhecido resolveu o problema. Fez o veículo parar a uns dois metros do solo e estabilizou-o, provavelmente por meio do neutralizador gravitacional.

Marr observou-o. Estava muito tenso. Durante um minuto não viu nenhum movimento junto ao veículo. A saliência em forma de abóbada achatada, que aparecia por cima da superfície circular, não tinha janelas. Não se via o que acontecia atrás daquelas paredes foscas. Entretanto Marr imaginava que o piloto lia as indicações dos instrumentos, para certificar-se de que a área estava limpa.

Finalmente, a cobertura da saliência começou a mover-se. Uma superfície larga, de metal liso, deslocou-se para o lado deixando livre uma abertura, da qual veio uma luz branco-azulada. Uma criatura alta e muito magra saiu com o corpo agachado e saltou para o solo.

Marr esperou mais um pouco. Fitou atentamente o ara enquanto este se inclinava sobre o animal, erguia-lhe a cauda e procurava alguma coisa que Marr não via. Parecia estar satisfeito com o resultado do exame. Quando suas mãos ficaram livres, bateu palmas. Era um gesto típico dos aras, que exprimia afirmação. Afastou-se para o lado e olhou para seu disco voador, como se quisesse medi-lo. Provavelmente estava refletindo sobre a melhor maneira de acondicionar o cadáver.

Sem fazer o menor ruído, Marr levantou-se. Bran também. O ara estava de costas para os dois.

— Ponha as mãos em cima da cabeça e vire-se — ordenou Marr, em intercosmo.

O ara estremeceu. Permaneceu imóvel por alguns segundos.

— Rápido! — gritou Marr.

O ara obedeceu. Foi erguendo lentamente os braços longos e magros. Suas mãos estavam vazias. O ara não parecia desarmado. Seus braços imobilizaram-se no momento em que as mãos iam descendo.

— Vire-se!

Os aras não eram muito combativos. A nova ordem também foi cumprida sem resistência.

— Venha cá! — ordenou Marr.

O ara aproximou-se. Marr voltou a guardar a arma no cinto. O ara parou a um metro. O terrano revistou os bolsos de seu traje e achou uma pequena arma de choque. Não encontrou mais nada.

Dali em diante foi tudo muito fácil. O ara não ofereceu a menor resistência. Respondia prontamente às perguntas que lhe eram dirigidas. Explicou que pretendia carregar o animal com uma espécie de roldana. Bran entrou no veículo, encontrou o aparelho no lugar indicado pelo ara e usou-o. Em apenas alguns minutos colocou o cadáver no veículo. Bran levou mais cinco minutos para examinar o painel de instrumentos do veículo. Constatou que era fácil de manobrar. Notou que o veículo poderia abrigar três pessoas no máximo. Talvez coubessem quatro pessoas bem apertadas, juntamente com o cadáver. O ara teria de ficar para trás. Provavelmente sabia que naquela área estavam sendo procurados dois fugitivos de Hopthah e tentaria estabelecer contato com o grupo de busca de Lemmy Pert.

Ao ver Marr entrar no disco voador, depois que os outros já haviam entrado, o ara não se comoveu. Na tela instalada no interior do aparelho, Marr viu-o dar cautelosamente alguns passos para trás, a fim de afastar-se do campo de sucção que se formou em torno do disco voador. Não fez mais nenhum movimento. Quando o disco entrou em movimento, levantou os olhos. E assim que Marr passou a deslocar o aparelho na vertical, baixou a cabeça.

 

Dali a cinco minutos Marr percebeu que o disco voador obedecia a um sistema de pilotagem automática. A única coisa que o piloto tinha de fazer era ligar o propulsor. O raio direcional cuidava do resto.

Pelos cálculos de Marr, o vôo não deveria durar mais de trinta minutos, a não ser que a base dos aras ficasse muito além das montanhas.

Expôs seu plano a Bran e às duas moças.

— É tudo automatizado — informou. — Este disco é dirigido por um raio direcional. Pousará automaticamente. Sabemos perfeitamente que os aras nunca instalaram uma base acima da superfície de um planeta. Com certeza, a base que possuem neste mundo também está escondida no subsolo. Deve haver um hangar, e o veículo será introduzido no mesmo. Pousaremos tranqüilamente e depois veremos o resto. Fiquem sempre atentos ao nosso objetivo. Queremos sair de Nowhere. Devemos criar uma situação que nos permita impor condições aos aras. Quando tivermos chegado, veremos se seremos obrigados a prender alguns deles para usá-los como reféns ou se nos colocamos junto à chave mestra de sua usina energética e ameaçamos explodir tudo, caso não atendam aos nossos desejos. Por enquanto, a coisa mais importante é entrar na base. O resto fica para depois.

O disco voador foi vencendo um quilômetro após o outro. As montanhas foram crescendo. Marr notou que suas dimensões eram respeitáveis.

Um grande paredão de rocha erguia-se quase na vertical em cima de uma encosta suave coberta por mata virgem. Lá, a vegetação não conseguira medrar. A rocha tocada pelos raios do sol emitia um brilho cinza-avermelhado. O paredão era liso e sua altura devia chegar a uns mil metros. Na parte superior subdividia-se. A abertura que separava essas partes tinha o formato de um V maiúsculo e esguio. A fenda parecia penetrar vários quilômetros no interior da montanha.

Marr interessou-se por tudo que veio depois. O acesso à base secreta dos aras só podia ser feito através da fenda. Marr observou a rota da máquina voadora e ficou satisfeito ao constatar que, antes de chegar ao pé das montanhas, ela realmente começou a subir. Não havia a menor dúvida de que estava tomando a direção da fenda. Um tanto deprimido, Marr viu a encosta selvática deslizar lá embaixo, enquanto o paredão subia à sua frente. A fenda abria-se bem no centro. Era negra que nem os abismos do inferno.

Aconteceu o que Marr esperara. O disco voador penetrou na fenda. De um instante para outro, a imagem projetada na tela modificou-se, passando da luz escaldante do sol vermelho para uma escuridão total. Por alguns segundos o corte do V pareceu uma tocha luminosa, projetada na tela de popa do veículo. Mas, à medida que o disco ia em frente, a claridade da tocha ia diminuindo. Antes que os olhos se acostumassem à escuridão, a fenda descreveu uma curva. O V luminoso desapareceu e a claridade difusa que restava não era suficiente nem mesmo para provocar uma reação nos dispositivos óticos externos.

A sensação de viajar pela escuridão do desconhecido, guiado por um raio direcional invisível, não era nada agradável.

O veículo prosseguiu por alguns minutos no escuro. De repente seus ocupantes sentiram a compressão provocada pela frenagem. O disco estava desacelerando. Além disso Marr notou perfeitamente que descrevia uma curva fechada. De repente perceberam uma luminosidade, vinda não se sabia de onde. Marr, que observava as telas laterais, virou-se abruptamente. Bem à sua frente, uma mancha de luz ofuscante branco-azulada surgiu na tela de proa. A mancha crescia rapidamente. Atrás da torrente de luz viam-se os contornos vagos de alguns objetos. Estonteado, Marr notou alguns discos voadores do mesmo tipo daquele em cujo interior se encontravam. Ao que tudo indicava, o veículo seguia em direção à abertura da qual saía a claridade. As bordas da abertura cresceram até tomarem toda a tela. Desenvolvendo pouca velocidade, o disco penetrou num pavilhão comprido e estreito. Só podia ser o campo de pouso e hangar da base dos aras.

Marr desatou os cintos. Acompanhou atentamente os movimentos do veículo. Viu outros discos pousados no solo, bem alinhados em longas filas. Teve a impressão de que o veículo em que viajavam procurava o lugar bem definido no interior do hangar. Era possível que cada um desses discos tivesse uma vaga cativa, para a qual voltava depois de cada vôo. Pelos cálculos de Marr, o pavilhão devia ter uns duzentos metros de comprimento. Quando haviam percorrido mais ou menos metade dessa distância, o disco dobrou repentinamente para a direita, logo voltou a descrever uma curva para a esquerda e passou a deslocar-se ao longo de uma fileira de veículos.

Mais atrás havia uma brecha, uma área livre. Marr compreendeu que suas suposições eram corretas. O lugar livre que estava vendo era a vaga cativa do disco. A carga que trazia devia revestir-se de grande importância para a base.

E cinco aras cercavam o lugar vago, à espera do disco voador...

— Não usem as armas! — ordenou Marr. — Talvez a arma de choque seja suficiente.

Num movimento elegante e bastante preciso, o disco desceu na pequena área livre, de tal maneira, que os cinco aras o cercavam num círculo estreito. No momento em que pousou com um ligeiro solavanco, Marr já se encontrava junto à escotilha, com a arma de choque em punho. Bran Cathay mantinha-se atrás dele, pronto para intervir nos acontecimentos. Garika acomodara-se na poltrona do piloto. Hayda estava sentada a seu lado.

Marr fez um sinal para Garika. A moça calcou um botão do painel de instrumentos e a escotilha abriu-se. Em comparação com a claridade branco-azulada do pavilhão, a luz do interior do veículo era bastante fraca. Marr aproveitou a vantagem resultante do contraste. Esperou que a escotilha se abrisse de vez. Dois aras entraram em seu campo de visão.

Só então avançou rapidamente, passou pela escotilha e paralisou os dois com ligeiros disparos. Lançou um olhar rápido para a escotilha. Bran estava a postos. Nenhum dos três aras estava desconfiando. Com mais dois ou três passos ao longo da curvatura do veículo, Marr colocou-se no campo de visão de mais um homem. Este caminhava em direção à escotilha. Provavelmente pretendia ajudar na descarga do veículo. Marr fez um disparo ligeiro, que deixou o homem inconsciente antes que compreendesse o que estava acontecendo.

Alguém que se encontrava do lado oposto chamou em voz alta. Marr ouviu passos apressados. De que direção vinham? Se atingissem a escotilha antes dele, Bran seria obrigado a usar sua arma, e dali resultariam ferimentos ou mesmo a morte do ara.

Marr recuou. E agira corretamente. No instante em que os aras contornaram a curvatura do lado oposto, atingiu a escotilha. Bastou um movimento ligeiro do dedo no gatilho e um desvio instantâneo do cano da arma de choque para remover o perigo.

— A área está limpa! — fungou Marr. — Vamos.

Dali a alguns segundos, só restou o cadáver do ser peludo no interior do disco voador.

O local em que estava pousado o veículo ficava a mais de trinta metros da parede dos fundos do pavilhão. Tudo continuava em silêncio. Marr e seus companheiros avançaram sem incidentes até a parede. Uma vez chegando lá, Marr viu-se obrigado a refletir seriamente sobre a maneira de levar avante a ação que estavam realizando. A parede era interrompida por inúmeras passagens. Em algumas havia portas; em outras, não. Marr logo constatou que as passagens sem portas levavam a pequenos depósitos onde estavam guardados instrumentos e peças sobressalentes. As portas das outras passagens abriram-se sem dificuldades. Provavelmente os aras nunca haviam contado com a possibilidade de um dia receberem uma visita indesejada. Acontece que os corredores atrás das portas, bem iluminados e não oferecendo nenhuma comodidade além dos tetos e das paredes nuas, não mostravam para onde levavam. Qualquer um deles poderia terminar numa cilada, e não havia possibilidade de descobrir por meio da simples reflexão qual deles seria o mais favorável.

Assim que chegou a esta conclusão, Marr escolheu ao acaso uma das portas. Eram em quatro, e todos eles possuíam armas eficientes. Os aras ainda ignoravam o que havia acontecido no pavilhão. Pelo menos por alguns minutos, os intrusos teriam a vantagem do fator surpresa. Marr esperava que nesses minutos descobririam qual seria o objetivo mais vantajoso.

O corredor descrevia uma curva suave, penetrando uns cinqüenta metros na rocha. Não tinha ramificações e havia poucas portas. Marr abriu-as, mas só encontrou recintos vazios. A base dos aras em Nowhere devia ser nova. Os aras ainda não se haviam instalado completamente.

Enquanto refletia sobre isso, Marr deu-se conta de que era muito estranho que os aras possuíssem instalações tão extensas e dispendiosas em Nowhere. Até então, sempre pensara que o único objetivo que os levava a esse planeta era o ativador, que também havia atraído a Nova Brisbane. Acontece que, para procurar um ativador, não se precisaria de uma base como esta.

Havia algum outro motivo para a permanência dos aras em Nowhere? Será que o estranho animal peludo tinha algo a ver com isso?

De repente Marr enxergou toda a operação sob um ângulo totalmente diverso. Havia bases dos aras espalhadas por toda a Galáxia... Sempre que a fauna ou a flora planetária apresentava peculiaridades bioquímicas, os aras estavam presentes no respectivo mundo. Quem sabe se sua presença em Nowhere não tinha nada a ver com o ativador?

Depois de algum tempo, Marr chegou a supor que os aras nem tinham conhecimento da existência do ativador. Face a isso, voltou a perguntar a si mesmo por que Garika fora obrigada a realizar um trabalho de espionagem. Seria muito difícil encontrar a resposta para essa pergunta, caso não se supusesse que os aras receavam a chegada de verdadeiras frotas que estivessem à procura do ativador e queriam ser informados em tempo. De qualquer maneira, Marr concluiu que a situação em Nowhere era bem diferente e muito mais complicada do que supusera...

Enquanto avançavam pelo corredor, observou as duas mulheres. Pareciam muito valentes.

O corredor alargou-se, transformando-se num pavilhão retangular não muito grande. Marr olhou em torno. Enquanto estava parado, sentiu um ligeiro tremor do chão. Era um sinal de que havia uma máquina pesada funcionando por perto.

Garika notou que Marr tivera a atenção despertada por alguma coisa.

— Acho que isso vem de baixo — observou.

Marr também pensava assim. Ainda tinha a intenção de apoderar-se de um centro vital da base, para obrigar os aras a realizar negociações. Uma máquina que causava vibrações tão fortes devia ter certo valor para os aras...

Marr examinou as portas existentes em todas as paredes. Não queria revistá-las uma por uma, pois isso acarretaria uma perda de tempo precioso. Mas não havia outra possibilidade. Deixou certo número de portas a cargo de cada um dos seus acompanhantes, reservando para si as que ficavam na parede dos fundos. De início observou as duas moças. Só se pôs a trabalhar depois de convencer-se de que estavam agindo com a necessária cautela.

Ou melhor, pretendia pôr-se a trabalhar. Ainda estava a mais de um metro da primeira porta, quando um som agudo e penetrante encheu o pavilhão. Marr sobressaltou-se e olhou para trás. O pavilhão continuava vazio. O ruído era produzido por algum instrumento mecânico. Não era nada melódico e não obedecia a qualquer ritmo. Mas não era necessário estar versado na arte do som praticada pelos aras para compreender que aquilo era um sinal de alarma!

Os cinco homens inconscientes deixados no hangar haviam sido encontrados...

 

Depois de algum tempo, as sereias silenciaram. Em compensação ouviram-se outros ruídos. Marr quase chegou a ter a sensação física de que a base estava acordando do torpor em que se encontrava. Provavelmente os aras tinham um plano bem definido para o caso da entrada de algum intruso. Já não valia a pena examinar as diversas portas. Atrás de qualquer uma delas, eles poderiam encontrar aras, e por enquanto ainda estariam mais seguros nos lugares em que não havia nenhum deles.

Vários minutos passaram-se. O pequeno pavilhão continuava vazio. O zumbido e as vozes confusas atingiram o auge, foram diminuindo rapidamente e cessaram de vez. Os aras haviam ocupado seus postos de emergência e mantinham-se na expectativa. Não havia o menor indício do lugar em que se encontravam. A incerteza deixou Marr nervoso.

— Não adianta! — exclamou Bran em tom nervoso. — Não podemos ficar parados por toda vida. Temos de ir a algum lugar.

— Ah, é? — gritou Marr. — Para onde?

— Para qualquer lugar. Se continuarmos parados por aqui, os aras introduzirão algum gás neste pavilhão. Será o fim.

Marr reconheceu que Bran estava com a razão. Provavelmente naquele momento os aras verificavam em que lugares os intrusos não estavam, a fim de encher os demais recintos com o gás dos nervos.

Garika e Hayda já haviam examinado outras portas. Marr não prestara atenção ao que estavam fazendo. Depois do alarma, as moças não abriram mais as portas. Pararam junto às mesmas e puseram-se a escutar.

Garika fez sinal para que Marr se aproximasse.

— Atrás desta porta não se ouve absolutamente nada — cochichou.

Apontou para a última porta existente na parede lateral direita.

— O que há atrás das outras portas? — perguntou Marr, também aos cochichos.

Garika parecia indecisa.

— Há ruídos — respondeu. — São ruídos muito fracos. Não sei por quê, mas a gente sente que há alguém por lá.

— E aqui não há ninguém?

— Não. Ninguém.

A moça abanou a cabeça. Parecia ter certeza do que estava dizendo.

Marr virou-se e mandou que os outros se aproximassem. Apontou para a porta. Depois avançou em direção à mesma, com a arma de choques e a pistola de radiações em punho. A porta abriu-se. O quadro que se apresentou à sua frente resumiu-se a um quadrângulo estreito... e a escuridão era total. A luz forte do pequeno pavilhão em que se encontravam lançou uma réstia de luz sobre um pedaço do soalho poeirento. Foi tudo que Marr conseguiu ver. Entrou cautelosamente. Garika tinha razão. Parecia que a peça estava vazia. Em seu interior fazia muito frio.

Bran e as duas moças seguiram-no. Marr deu mais alguns passos. Ouviu vozes. Alguém estava dando ordens. Marr tateou para a direita, até sentir o contato da parede. Comprimiu o ouvido contra o plástico frio e pôs-se a escutar. O material compacto transmitia as vozes e o ruído dos passos. Não havia dúvida de que, no recinto vizinho, encontravam-se muitos aras. Provavelmente também estavam à espreita atrás da maior parte das outras portas.

De repente Marr teve uma idéia. Naturalmente devia haver um sistema de escuta e observação. Os aras souberam desde o início onde estavam os intrusos. Mantinham ocupadas as peças que cercavam o pavilhão, para que estes não tivessem nenhuma possibilidade de escapar. Restava o lugar escuro em que se encontravam. Por que não o haviam ocupado? Teriam esquecido? Ou será que o caminho que passava por ali levava a uma armadilha ainda mais perfeita que o pavilhão em que estiveram há pouco?

Marr achou que esta última alternativa era a mais provável. Os aras tinham pouca experiência na técnica da luta corpo a corpo, mas eram muito sistemáticos. Nunca cometeriam o erro ridículo de deixar aberto um caminho por onde o inimigo encurralado pudesse escapar.

De qualquer maneira, não tinham outra alternativa senão prosseguir, para descobrir onde iriam parar. Marr afastou-se da parede. Ultrapassou a porta e continuou a andar. Garika vinha atrás dele, depois Hayda. Bran caminhava no fim do grupo e foi o último a entrar. A porta fechou-se às suas costas. A escuridão era completa. Marr só poderia confiar no tato.

Quando tinha caminhado alguns metros, percebeu que o recinto se estreitara, transformando-se num corredor. E o corredor descia. Ao mesmo tempo, notou que as leves vibrações que notara no pequeno pavilhão tornavam-se cada vez mais fortes. E constatou mais uma coisa: um cheiro estranho e desagradável vinha lá de baixo. Marr parou.

— Escutem! — disse em voz alta. — Não sei onde iremos parar. Provavelmente vocês estão sentindo o cheiro tão bem quanto eu. É possível que, se continuarmos por aqui, acabemos caindo numa cova de leões. Alguém é de opinião que devemos regressar e acenar a bandeira branca para os aras?

Ninguém respondeu.

— Bran... — gritou Marr.

— As moças, primeiro — respondeu Bran.

— Que arrogância, meu jovem! — disse Hayda em tom sarcástico. — Vamos em frente.

A voz grave e suave de Garika rompeu a escuridão:

— Vamos, Marr! Não estamos com medo.

— Você ouviu — disse Bran, em tom zombeteiro. — Por que pensou que logo agora poderíamos fraquejar?

Mar engoliu em seco. Não disse uma palavra. Virou-se e prosseguiu na caminhada. Enfiou a arma de choques no cinto, para ter ao menos uma das mãos livre.

Num movimento resoluto deu mais um passo na escuridão e... constatou que seus pés não encontraram apoio!

 

Foi tudo muito rápido. Não sofreu uma queda vertical, apenas deslizou rapidamente por uma rampa em declive. Depois de alguns segundos, a rampa voltou à horizontal. Marr deslizou mais devagar e parou de vez. O mau cheiro era quase insuportável e a máquina invisível já não vibrava, mas batia com a força de um martelete mecânico.

Marr gritara durante a descida, a fim de prevenir seus companheiros. Por algum tempo, tudo permaneceu em silêncio em torno dele. De repente ouviu um ligeiro farfalhar, que cresceu rapidamente e se misturou ao praguejar de uma voz zangada. Marr atirou-se para o lado. Foi no último instante. Dali a pouco um corpo humano passou em disparada e parou a alguns metros do terrano. Depois vieram mais dois...

— Marr...? — gritou alguém.

— Estou aqui — respondeu Marr. — Seus idiotas! Por que não ficaram onde estavam?

— Ora bolas! — respondeu Bran, irônico. — Não queríamos ficar sozinhos. Tivemos medo. Aliás, o que é isto aqui?

Marr levantou-se cautelosamente.

— Abra os olhos e veja — sugeriu.

— Obrigado pela sugestão — resmungou Bran.

Marr sentiu que eles estavam fazendo movimentos. Ouviu a respiração apressada das duas moças. Achavam-se próximas dele. Marr notou que procuravam apalpar as redondezas em conjunto. Provavelmente seguravam-se pelas mãos.

— A máquina deve ficar bem perto daqui — disse Bran, que se encontrava mais à frente.

Sua voz parecia oca e abafada, como se estivesse falando por um tubo comprido.

— Acontece que pelo menos uma parede nos separa da máquina — constatou Marr. — Os ruídos ainda são muito confusos.

— Acha que está à nossa direita? — perguntou Bran.

— Isso mesmo. Caso você fique de frente para o escorrega pelo qual acabamos de descer.

Marr escutou Bran murmurar baixinho. De vez em quando ouvia-se um pequeno estalo, produzido pelos passos desajeitados que davam na escuridão. As moças encontravam-se à esquerda. Marr ouviu seus cochichos e o farfalhar de suas roupas. De repente teve a impressão de que havia outro ruído. Alguma coisa arranhava e produzia pequenos estalos enquanto se moviam na escuridão.

— Prestem atenção, as duas! — gritou Marr. — Parece que há alguma coisa por aí. Fiquem onde estão.

As moças não responderam. Em compensação, Bran chamou de repente:

— Por aqui há uma parede!

— Não fale tão alto! — exclamou Marr, furioso. — A parede não nos serve para nada. Precisamos de uma porta.

Bran não respondeu. Mais à esquerda, Hayda fez uma observação em voz baixa. Provavelmente a mesma fora dirigida a Garika. Esta respondeu em tom assustado:

— O mau cheiro está cada vez mais forte. Há mesmo alguma coisa. Posso...

Interrompeu-se em meio à frase. De repente soltou um grito tão estridente que o sangue pareceu congelar nas veias de Marr.

Este permaneceu imóvel por um instante. O grito apavorante ainda continuava a vibrar.

Repentinamente Marr avançou pela escuridão, quase inconsciente de raiva. Esbarrou num corpo, tropeçou por cima de outro e teve o inimigo pela frente, bem ao alcance da mão! Alguma coisa peluda tremia e envolveu seu braço com uma tremenda força. Duas fileiras de dentes bateram junto ao seu rosto e um hálito quente tocou-lhe a pele. Com um movimento violento, que quase lhe destrancou o braço, Marr conseguiu libertar a mão que segurava a arma. Disparou às cegas e, por uma fração de segundo, viu em meio às pálpebras entreabertas as convulsões do corpo peludo que o atacara.

Encostou o cano da arma com toda força no couro peludo e voltou a disparar. Uma luz ofuscante espalhou-se pelo recinto. A fera gritou, ergueu-se abruptamente, esticou o corpo, soltou o inimigo e caiu com um forte baque. O cheiro do couro queimado ardia no nariz de Marr. Este avançou cautelosamente o pé e tocou no corpo do animal, que permanecia imóvel. Os músculos estavam flácidos. Não ofereciam a menor resistência aos movimentos. O perigo fora afastado. Ao menos por enquanto.

— Garika! — gritou Marr.

— Está aqui — respondeu Hayda, com a voz calma. — Não aconteceu nada com ela. Foi apenas o choque.

Marr soltou um suspiro de alívio.

— Encontrei uma porta — gritou Bran, que se achava nos fundos do recinto. — O que houve por aí?

Marr não respondeu prontamente. Mas depois gritou:

— Está aberta?

— Não, ainda não. Parece que tem uma trava especial. Um momento...!

Marr ouviu os gemidos de Bran.

De repente uma voz vinda de outra direção falou em intercosmo, com uma ironia causticante:

— Não se incomodem mais. Já nos divertimos que chega. O jogo terminou.

Marr pareceu sofrer um golpe. Era o homem que tinha conhecimento da presença dos aras! O manipulador oculto... O construtor do muro que cercava a prisão de Garika...

Era Kappak, o assistente de Lemmy Pert no Supremo Tribunal de Nowhere!

 

As luzes acenderam-se. De um instante para outro uma luminosidade profusa encheu o recinto. Nos fundos, a rampa lisa que acabara de transportar Marr e seus companheiros descia do teto. A parede que ficava do lado esquerdo estreitava-se em funil, transformando-se num corredor que continuava às escuras. Era dali que viera o animal que jazia morto aos pés de Marr. As duas moças estavam entre Marr e a rampa. Garika apoiava-se em Hayda. Bran se encontrava ajoelhado junto à parede do lado oposto, entre duas frestas estreitas que indicavam a presença de uma porta. Estava visivelmente aborrecido por ter sido perturbado em meio aos esforços de encontrar a trava secreta.

Marr mediu a situação num relance. Olhou para a gigantesca tela de imagem, que cobria os cinco metros de comprimento e três de altura da parede que ficava à sua esquerda.

O aparelho exibia um recinto escassamente mobiliado. Havia três homens sentados nas cadeiras estreitas e desconfortáveis dos aras. Infelizmente Marr conhecia dois desses homens. Eram Kappak e Lemmy Pert, chefe de governo de Hopthah. O terceiro homem era-lhe desconhecido. Alto e muito magro, jamais poderia negar que era um ara.

Marr fez um esforço para recuperar o autocontrole.

— A comunicação funciona em ambos os sentidos? — perguntou.

Kappak acenou com a cabeça. Havia um sorriso irônico em seus lábios.

— Perfeitamente. Ouvimos o que você diz, terrano.

Marr deu-lhe as costas. As duas moças continuavam no mesmo lugar em que Garika fora atacada pelo animal. Marr segurou seu queixo e levantou a cabeça para que o fitasse nos olhos.

— Sei que este é o momento mais impróprio para dizer uma gentileza — disse com um sorriso. — Fique firme, moça. Teremos muito que conversar, quando tivermos saído daqui.

Garika arregalou os olhos de espanto. Mas finalmente retribuiu o sorriso, num gesto hesitante e um tanto incrédulo.

Marr voltou a ficar de frente para a tela.

— E agora, Kappak? — perguntou com a maior tranqüilidade.

— Permita-me, por enquanto, que a conversa seja conduzida por mim — observou o ara. — Meu nome é Gerpo-Kha. Sou o diretor da estação experimental de Nowhere. Lamento que o senhor tenha entrado num projeto que nosso Conselho Supremo considera altamente secreto. Fez um gesto de lamentação.

— Sei que os terranos têm uma tendência de aparecer justamente nos momentos em que os aras não os querem ver. Já nos causaram grandes prejuízos com isso. Vou...

— Deixe de conversa fiada! — exclamou Marr em tom áspero. — Qual é o jogo? O que pretendem fazer conosco? É só o que queremos saber.

O ara bateu palmas.

— Era exatamente o assunto que eu pretendia abordar. Vamos à primeira pergunta. Qual é o jogo? — fez uma pausa de efeito. — Veja se descobre.

De repente ouviu-se um ruído surdo vindo do lado oposto da sala. Marr virou a cabeça, perplexo, e viu a parede, na qual Bran pretendera abrir a porta, afundar no chão. Atrás dessa parede havia um recinto bem iluminado, que era muito maior que aquele no qual se encontravam os terranos. Era tão amplo que Marr não conseguia ver a parede oposta. No local havia fileiras de reluzentes mesas de ensaios, cobertas de azulejos brancos e repletas de instrumentos. As fileiras eram interrompidas a intervalos regulares por altas caixas de metal plastificado e recipientes de vidro, em cujo interior se podia trabalhar à prova de ar. Bem nos fundos via-se a abóbada impressionante de um gigantesco gerador. Era a máquina que produzia as vibrações ininterruptas do chão. Marr não sabia muito bem qual seria a finalidade do gerador. Nem mesmo um laboratório gigantesco e bem equipado, como o que se estendia à sua frente, consumiria o volume de energia produzido por essa máquina. Por que teria sido instalada ali? Por que os aras não se contentavam com uma máquina menor?

Marr estreitou os olhos para enxergar melhor. Reconheceu uma série de painéis de controle, presos à parede externa da abóbada do gerador. Teve a impressão de que a disposição dos painéis já lhe era familiar, mas não conseguia estabelecer qualquer ligação entre estes e o gerador. Que aparelhagem seria esta?

Não havia ninguém no laboratório. Marr deixou de olhar para os pontos mais afastados do recinto e passou a dedicar sua atenção aos objetos próximos. Um tanto distraído, com a mente ainda ocupada pela indagação sobre as finalidades do gerador. Marr pôs os olhos na mesa mais próxima.

Alguma coisa despertou sua curiosidade... Entre as dezenas de instrumentos de medição, havia objetos metálicos, de formato oval, muito bem arrumados. De início Marr admirou-se por ter percebido sua presença. Face ao resto pareciam insignificantes.

De repente lembrou-se das informações que ele, Bran e Bakter haviam colhido, com tamanho cuidado, antes de partirem na Nova Brisbane. Saíram à procura de um ativador celular. Sabiam que esse aparelho irradiava uma seqüência característica de impulsos em ondas ultracurtas e hiperondas. Qual era o aspecto do aparelho? Evidentemente devia ser pequeno, para não despertar a atenção. Certas pessoas que mantinham relações com as autoridades mais elevadas disseram-lhe que a forma externa do ativador celular era a de um ovo.

Ao ver centenas de objetos que se encontravam sobre as mesas de laboratório, Marr teve uma terrível suspeita. Eram centenas de ativadores celulares!

No mesmo instante compreendeu o significado da disposição dos painéis de controle presos ao revestimento do gerador.

Acabara de descobrir a maior fraude galáctica de todos os tempos!

— Aquilo que o senhor vê na mesa da frente — prosseguiu o ara — são ativadores celulares. Ou melhor, quem encontrasse esses objetos acreditaria que são ativadores. É claro que são... mas fabricados por nós. Irradiam a seqüência característica de impulsos, e quem os usa sobre o corpo experimenta uma sensação de força, resistência e vitalidade. O efeito dura algum tempo, mais precisamente algumas semanas. Depois disso esses objetos transformam-se em simples peças de metal.

Gerpo-Kha ficou calado. Marr esforçou-se para não dar a perceber o susto pelo qual estava passando. Já há alguns minutos compreendera que os objetos ali encontrados eram imitações de ativadores, que os aras queriam utilizar em alguma manobra obscura. Mas o fato de Gerpo-Kha revelar toda a verdade, levava à conclusão de que este tinha certeza de que seus prisioneiros nunca mais circulariam por aí.

— Acho que o senhor está interessado em saber o que pretendemos fazer com estes pseudo-ativadores. Como sabe, certo número de ativadores genuínos foi espalhado pela Galáxia. O Ser incompreensível e poderoso diverte-se em ver os seres inteligentes da Via Láctea lutar por esses aparelhos. Para os aras, os verdadeiros ativadores são apenas objetos de estudos. Queremos apoderar-nos deles para aprender mais alguma coisa sobre o segredo da vida eterna.

“Acontece que nossa raça não é poderosa. Não temos possibilidade de conseguir uma frota de duas mil unidades para afastar os bandos de pessoas que correrão atrás de cada ativador, assim que forem captados os impulsos característicos. Temos, então, de lançar mão de outros meios para atingir nossos objetivos. O que acontecerá quando os trezentos pseudo-aparelhos forem espalhados pela Galáxia?”

Marr podia imaginar perfeitamente. De repente, os impulsos produzidos pelos ativadores seriam ouvidos em toda parte. Não com uma freqüência excessiva, é claro, porém muito mais vezes que antes! Todas as pessoas que estavam à procura do grande tesouro seguiriam as novas pistas. As frotas de guerra do Império Unido interviriam nos acontecimentos. A conseqüência inevitável seria uma confusão total. Os pseudo-ativadores seriam encontrados um após o outro. Antes que o possuidor percebesse que fora vítima de uma fraude, algumas semanas se passariam. Não havia dúvida de que os impulsos irradiados pelos pseudo-ativadores tinham uma característica imperceptível aos ouvidos não familiarizados, que permitia aos aras distingui-los dos verdadeiros ativadores. Enquanto os caçadores da longa vida se arrebentassem em outras áreas estelares, as naves dos aras percorreriam a Galáxia e procurariam encontrar os verdadeiros ativadores, ou ao menos alguns deles.

“É um plano extremamente simples, mas muito seguro”, concluiu mentalmente Marr.

— Não tivemos nenhuma dificuldade — prosseguiu Gerpo-Kha — em construir um pseudo-ativador que provocasse uma sensação de força no portador. As peculiaridades da fauna de Nowhere deram-nos os meios para isso. Faz bastante tempo que encontramos por aqui o animal ao qual demos o nome de cobra-peluda. Na verdade, é uma criatura de seis pernas cujo nível intelectual é muito superior ao da cobra. No corpo da cobra-peluda é produzida uma secreção, uma espécie de gás dos nervos, que, quando administrado em doses concentradas, produz acessos violentos de euforia. Em doses reduzidas, produz uma sensação de bem-estar físico.

“Ainda não conseguimos realizar a produção sintética desse gás. Felizmente a cobra-peluda é muito abundante em Nowhere. Costumamos capturá-la em armadilhas instaladas em toda parte. O campo de choque da armadilha não mata o animal, apenas produz um estado de inconsciência que dura alguns dias. Por algum motivo desconhecido o animal expele todas as reservas de gás dos nervos no momento exato em que é atingido pelo campo de choque. Chega às nossas mãos completamente vazio, por assim dizer. Mas nos dias de inconsciência suas reservas de gás são restauradas, e a única coisa que temos de fazer é extraí-lo do corpo do animal por meio de um processo relativamente simples.

“Cada um dos pseudo-ativadores possui um pequeno reservatório de gás, que transmite um fluxo débil, mas constante ao corpo do futuro portador, incutindo nele a crença de estar de posse de um aparelho genuíno. Mas quando o reservatório estiver esgotado...”

Gerpo-Kha fez um gesto bastante expressivo.

— A esta hora o senhor já deve ter adivinhado que, para nós, Nowhere é um campo experimental valioso sob mais de um ponto de vista. A série de impulsos emitida pelos ativadores é formada por uma modulação complicada composta de pelo menos duas mil freqüências básicas. Nossos técnicos tiveram muito trabalho em criar uma imitação do esquema. Mesmo depois disso tivemos de fazer uma experiência para verificar se o resultado seria favorável.

“Nosso transmissor vem irradiando há bastante tempo os impulsos característicos dos ativadores. Os receptores de sua nave captaram esses impulsos mais depressa do que esperávamos. Não demoraram a chegar. Nem mesmo o fato de Nowhere ficar a uma distância tão grande de sua nave, que a mesma não poderia ser vencida pelo transmissor de um verdadeiro ativador, fez com que desconfiassem. Vejam só até que ponto a ânsia de alcançar a vida eterna cega os homens. Temos certeza de que outras pessoas estão a caminho. São apenas naves particulares. Não terão vontade de ficar, pois nosso amigo Lemmy Pert, que é um dos nossos colaboradores, conseguirá convencê-los de que Hopthah é uma colônia de pessoas que sofrem de doenças hereditárias, que foram deixadas aqui há duas gerações por uma frota de naves colonizadoras.

“Até lá, a série de impulsos já não será transmitida, e não haverá mais nada que fará com que os que vêm em busca da vida eterna queiram permanecer em Nowhere.”

Gerpo-Kha levantou-se numa atitude compenetrada.

— Acontece que nós estaremos a caminho, para colher os frutos do nosso trabalho.

Fez uma ligeira mesura e concluiu com uma ironia inconfundível.

— Quanto aos senhores, acabam de voltar ao papel que lhes é destinado. São escravos dos cidadãos livres de Hopthah, e nessa qualidade volto a entregá-los aos nossos amigos Lemmy e Kappak.

Uma vez concluída sua fala, Gerpo-Kha saiu tranqüilamente do campo de visão.

 

A mente de Marr realizava uma atividade febril. Sem mover a cabeça, olhou em torno para localizar as objetivas que transmitiam a imagem projetada na outra tela. Precisava descobrir se havia um ângulo morto, onde Kappak e Lemmy não poderiam vê-lo.

Tudo, mas tudo mesmo dependia de que ele chegasse ao gerador instalado no fundo do laboratório, antes que fosse tarde. Além de chegar lá sem ser visto, precisava ficar sossegado durante alguns minutos para fazer aquilo que tinha de ser feito.

Lemmy e Kappak não deveriam perceber nada. Provavelmente não tinham a menor idéia do que havia embaixo dessa abóbada. Acontece que, a qualquer momento, Gerpo-Kha ou outro ara poderia aparecer.

— Então... O que pretende fazer conosco, Lemmy? — perguntou Marr.

Notava-se perfeitamente que Lemmy ainda não sabia lidar muito bem com a situação em que se vira envolvido nas últimas horas. A presença dos aras, a base secreta situada nas montanhas, a ligação entre os aras e certas pessoas de Hopthah e finalmente aquela história dos ativadores, da qual compreendia muito pouco. Mas não se podia negar que se esforçava para dominar a estranha situação. Ao ouvir as palavras de Marr, esboçou um sorriso de deboche.

— São coisas formidáveis, terrano! — exclamou. — Os habitantes de Hopthah não assistirão a uma luta de libertação igual àquela que vai se realizar. Esta luta será toda especial. Serão dois homens e duas mulheres contra cem habitantes da cidade e um verdadeiro exército de cobras-peludas.

Ao ouvir a alusão às cobras-peludas, Marr assustou-se.

— Os aras deixarão algumas para você, não deixarão? — perguntou irônico.

— Deixarão todas — gritou Lemmy, inocentemente. — São quase oitenta animais. Será uma luta muito bonita. Naturalmente permitiremos que cada um de vocês use uma arma, para que o espetáculo não termine muito depressa. Com cada uma das armas poderão disparar cinco tiros ligeiros. Depois disso terão de defender-se apenas com as mãos e os pés.

— Você não se divertirá muito com isso, Lemmy — disse com a maior tranqüilidade. — Lembra-se de Bakter, o outro homem que veio conosco?

Lemmy sobressaltou-se.

— É claro que sim.

— Eu lhe disse que ainda ajustaremos nossas contas por causa dele. Você não viverá para ver a luta, Lemmy. Isso deixará Kappak muito contente. Já faz tempo que ele espera o momento de ocupar seu posto. Não é mesmo, Kappak?

Lemmy levantou-se de um salto. Seu rosto anguloso ficou vermelho de raiva.

— Seu fanfarrão! — gritou. — Ora veja! Ameaçar-me numa situação destas...!

Soltou uma risada de desprezo e fitou Kappak de lado.

— Kappak estava informado da presença dos aras — prosseguiu Marr. — Você não estava.

Viu que Lemmy começava a sentir-se inseguro. Deu dois ou três passos rápidos para o lado. Kappak, que não tirava os olhos dele, disse em tom furioso:

— Permaneça no campo da objetiva, terrano! Nem mais um passo!

O coração de Marr deu um salto de alegria. A câmera devia estar acima de sua cabeça. Provavelmente já se encontrava na extremidade da tela. Mais um passo ou dois, e seus interlocutores não o veriam mais.

— Até parece que você ainda não teve tempo para refletir, Lemmy — prosseguiu em tom de deboche. — Pense bem. Por que Kappak teve um segredo diante de você?

Muito nervoso e cego de raiva, Lemmy Pert caiu na armadilha. Foi para junto de Kappak, inclinou-se em sua direção e perguntou em tom desconfiado:

— É mesmo, Kappak. Por quê?

Kappak fez um gesto de indiferença.

— Pare com isso, seu idiota! Ainda não percebeu que ele quer incitar-nos um contra o outro?

— O que é que ele poderia ganhar com isso? — objetou Lemmy. — Está lá embaixo e não pode fazer-nos nada. E o fato de dizer estas coisas não lhe poderá trazer nenhuma vantagem.

De repente as mãos carnudas de Lemmy precipitaram-se na direção de Kappak e seguraram-no pela gola.

— Vamos, responda, seu traiçoeiro!

A cabeça gorda de Kappak balançava de um lado para outro. Lemmy continuava a gritar. Kappak também gritou. Ninguém deu atenção aos prisioneiros. Marr virou-se. Garika foi a única a notar seu movimento. Marr fez um gesto tranqüilizador e, num movimento rapidíssimo, desviou-se para o lado. Atravessou a linha em que antes estivera a parede que separava o hall do laboratório.

Correu apressadamente entre as fileiras de mesas. O sangue latejava em suas têmporas. A cada momento, esperava ouvir o grito de advertência que Lemmy ou Kappak soltaria quando notasse que havia desaparecido da tela. Parou uma vez para certificar-se. Mas a única coisa que ouviu foram os gritos furiosos dos dois homens que continuavam a discutir.

Continuou a correr na direção do gerador.

Levou uma eternidade para chegar lá. O esforço foi tamanho que sentiu falta de ar. Teve de encostar-se por alguns segundos ao revestimento metálico do gerador para recuperar as forças. Depois começou a trabalhar. Obrigou suas mãos a ficarem tranqüilas e começou a movimentar as chaves e os botões de controle. Antes de cada movimento esperava um segundo. As luzes de controle coloridas acenderam-se silenciosamente. Quando o gerador passou a ativar outras fontes de energia, Marr ouviu uma palestra...

Chegou ao último controle. Ainda não tinha certeza sobre se as observações que fizera no hall eram corretas. Lançou um olhar sobre o amplo painel de controle e convenceu-se de que estava no caminho certo. Viu o regulador de freqüências em dois estágios, o posicionador das antenas, o regulador de potência de entrada e saída, o direcionamento dos feixes de ondas.

O aparelho que se encontrava à sua frente era o potente hiper-transmissor da base dos aras! Era o mesmo que transmitira os impulsos enganadores que fizeram com que a Nova Brisbane se dirigisse a Nowhere.

Acontece que Marr pretendia utilizar o transmissor para outro fim...

Regulou o feixe para o máximo, fazendo com que o transmissor enviasse seus impulsos em todas as direções ao mesmo tempo. Também regulou para o máximo a potência de entrada e de saída, para que o alcance fosse o maior possível. Não modificou a posição da antena, pois esta desempenhava apenas uma função secundária. Escolheu uma faixa de freqüência que pudesse ser captada por qualquer dos receptores em uso nas naves. Não havia tempo para escolher uma das freqüências reservadas à troca de mensagens da Frota do Império.

O texto da transmissão já fora preparado. Há seis ou sete anos, quando ainda estava a serviço da Frota, havia uma série de sinais que exprimiam um perigo agudo e transmitiam um pedido urgente. Caso os sinais ainda estivessem em uso, a Frota provavelmente o processaria porque ele, que era agora um civil, os utilizava. Acontece que para processá-lo teriam de libertá-lo. E era o que queria.

O transmissor de impulsos dos aras não fora construído para irradiar os sinais morse dos terranos. Marr teve de usar a tecla manual para formar os impulsos. Lançou um olhar rápido para o hall. Bran e as duas moças continuavam no mesmo lugar, mas estavam olhando novamente para a tela. Ouviu apenas a voz furiosa de Lemmy. Sua discussão com Kappak chegara ao fim. Provavelmente os dois já tinham percebido que havia algo de errado.

Marr comprimiu a tecla. Numa pressa estonteante seus dedos formaram os sinais:

C-1-Q-1-D-O... C-1-Q-1-D-O C-1-Q-1-D-O

Repetiu-os ininterruptamente. Fazia votos fervorosos de que alguma nave terrana de guerra captasse a seqüência na primeira tentativa e tivesse tempo de realizar a determinação goniométrica precisa da posição do transmissor. Seu desejo era tão forte que o suor começou a porejar-lhe por todo o corpo, fazendo com que os dedos escorregassem várias vezes de cima da tecla.

O significado da mensagem era: “Venham quanto antes! Precisamos de ajuda! Venham!”

Quando um ruído surdo fez com que se virasse, Marr não sabia quantas vezes já havia batido na tecla. A parede que Gerpo-Kha fizera desaparecer estava subindo de novo! Notou, num relance, o rosto pálido de Garika, que o fitava com uma expressão assustada. Logo viu-se só no recinto.

...C-1-Q-1-D-O...

Deixou cair a mão cansada. O gerador parara de zumbir. As luzes de controle apagaram-se. Os aras haviam percebido o que estava acontecendo e desligaram o aparelho.

“Fiz tudo que me foi possível fazer. O resto fica por conta da Frota do Império”, pensou Marr.

 

Na verdade as coisas não eram tão simples. De repente Marr lembrou-se das complicações de que ainda não se dera conta. Naquele instante, Bran e as duas moças provavelmente já haviam sido desarmados e guardados em lugar seguro. Não poderiam escapar do pequeno hall em que se encontravam.

Logo seria a vez dele.

Com isso os aras teriam quatro reféns que poderiam ser usados nas negociações com a Frota, caso esta realmente aparecesse. Não era que Marr acreditava seriamente que a Frota se preocuparia com dois oficiais reformados e duas moças. Se as negociações com os aras não produzissem o resultado desejado, as armas falariam, e...

Acontece que Marr não gostou da idéia de sacrificar a vida para servir a uma causa justa, desde que isso pudesse ser evitado.

Pôs-se a refletir intensamente. Os aras suporiam que continuaria a fugir na mesma direção que vinha seguindo. Se voltasse ao lugar do qual havia vindo, obteria uma pequena vantagem. Há pouco Bran descobrira os contornos de uma porta. Provavelmente essa porta realmente existia, muito embora toda a parede pudesse ser recolhida. Isso acontecia para permitir a entrada ou a saída de alguma carga pesada e volumosa. Por certo, um ara que quisesse sair do laboratório usaria a porta. Marr dirigiu-se lentamente até a possível porta. Tentava poupar suas forças, e ainda permitir que os aras que se encontravam no hall removessem os presos, para que a área ficasse livre.

Não teve nenhuma dificuldade em localizar a porta. E o mecanismo de trava era muito mais fácil de ser encontrado pela parte interna do que pela externa. Marr comprimiu o ouvido à parede por alguns minutos e pôs-se a escutar. Depois de certificar-se de que não ouvia absolutamente nada, comprimiu o botão que acionava o mecanismo de trava.

A porta rolou para o lado. O hall estava mergulhado numa completa escuridão. Marr saiu. Sentiu imediatamente o odor das cobras-peludas que os aras mantinham presas por ali. A idéia de que as feras poderiam atacá-lo no escuro fê-lo estremecer. Sua mão direita segurava firmemente a arma. Mantinha o dedo encostado ao gatilho.

“E agora?”, indagou-se.

O caminho pela rampa acima seria difícil, talvez impraticável. Só restava o corredor afunilado que ficava do outro lado do recinto. A cobra-peluda viera de lá, e era provável que as setenta e nove restantes, a que aludira Lemmy Pert, também estariam nessa direção.

Marr hesitou por alguns segundos. De repente, aconteceu alguma coisa que o livrou do trabalho de tomar uma decisão, apontando-lhe o único caminho que continuava aberto. Um forte estalo fê-lo estremecer. Seu instinto lhe disse que a objetiva voltara a ser ligada. Atravessou o recinto de um salto, caiu ao chão, rolou por sobre o ombro e entrou no funil que ficava do lado oposto. Tudo isso devia ter durado cerca de três segundos. Quando bateu com a cabeça numa das paredes do corredor, compreendeu que estava em segurança. Nesse momento, a luz acendeu-se lá fora.

— Aqui também não está — disse Lemmy Pert, em tom de perplexidade.

A voz saíra do alto-falante. A suposição de Marr fora correta. Haviam ligado novamente a transmissão de imagem e procuravam localizá-lo no hall. Provavelmente a essa hora já sabiam que não havia saído do laboratório pelo caminho que esperavam.

Não tinha mais escolha. Só lhe restava entrar no corredor que levava ao lugar em que estavam as cobras-peludas.

Cerrou os dentes e prosseguiu. Sentiu-se sacudido pelo medo e pela repugnância. A cada cinco passadas parava e procurava escutar na escuridão. A luz vinda do hall não permitia que enxergasse um metro à frente do nariz. Mas tudo continuava calmo. As cobras-peludas ainda não estavam atacando.

Praguejou ao notar que o corredor descrevia uma curva que o isolava de toda claridade. Seguiu às apalpadelas, com o braço esquerdo para a frente e a mão direita segurando firmemente a arma.

Não sabia por quanto tempo tinha andado. O corredor descreveu nova curva. Até parecia que iria voltar ao mesmo lugar. Marr espantou-se. De repente, depois de um tempo infinitamente longo, viu uma mancha de luz à sua frente. No início pensou que seus olhos lhe estivessem pregando uma peça. Mas, à medida que caminhava, a luz tornava-se cada vez mais forte. Correu na direção da qual vinha a mesma, até que de repente escutou uma voz. Estacou. Ouviu algumas palavras pronunciadas na língua dos aras. Era somente uma voz que falava. Marr foi avançando lentamente. Quando seu campo de visão se ampliou em meio à claridade, viu o que acontecia...

A luminosidade que estava vendo era a luz diurna. O corredor terminava num dos flancos da montanha, em cujo interior estava escondida a base. Provavelmente era uma das saídas que ficavam no paredão do desfiladeiro, do lado oposto do hangar. O corredor terminava num corte não muito largo, cercado de paredes de pedra muito altas. Junto às paredes havia várias fileiras de jaulas e, pelo que Marr pôde ver, havia em cada uma delas uma cobra-peluda. A porta de uma das jaulas estava aberta. O animal aprisionado havia saído e mantinha-se imóvel à frente de um ara, que dizia palavras tranqüilizadoras ao animal. Era a voz que Marr ouvira.

O ara ainda não havia notado que tinha um espectador. Marr saiu para a luz do dia. Em virtude dos paredões elevados, o mau cheiro ainda era bastante intenso. Mas Marr não se incomodou com isso. Acabara de encontrar uma saída, e um ara que lhe mostraria o caminho que levava para junto de Bran e das moças...

Os animais começaram a inquietar-se. Haviam notado a presença do estranho. Estava na hora de agir. Apontou tranqüilamente para a fera peluda com a qual o ara se ocupava e puxou o gatilho. O raio chiante de energia concentrada atirou o animal a alguns metros de distância e matou-o numa questão de segundos. O ara virou-se e soltou um grito de pavor. Quando viu a arma, atirou os braços para o alto e enlaçou-os em cima da cabeça.

As cobras-peludas enjauladas faziam um barulho ensurdecedor. Marr aproximou-se do ara e gritou:

— Acalme os animais! Depressa!

O guarda trêmulo virou a cabeça e emitiu alguns sons que Marr não compreendeu. O resultado foi espantoso. De um instante para outro, as feras acalmaram-se e encolheram-se nos fundos das jaulas.

— Você sabe lidar com elas, não é mesmo? — perguntou Marr, com um sorriso.

Amedrontado, o guarda bateu as mãos.

— Qual é seu nome?

— Lobkoj... — balbuciou o ara.

Marr acenou com a cabeça. Parecia satisfeito.

— Muito bem, Lobkoj. Quero que você me mostre outro corredor que leve para dentro da base.

Lobkoj era, agora, um prisioneiro muito solícito. Apontou a encosta acima, de um lado para o outro. Os olhos de Marr acompanharam o gesto com uma expressão de desconfiança.

— Ali? Como é que se sobe?

Lobkoj apontou as jaulas. Só agora Marr viu que em alguns lugares havia passagens estreitas entre as grades.

— São elevadores antigravitacionais — disse Lobkoj, que já estava bem mais calmo. Seus olhos escuros, bem afundados nas órbitas, fitavam Marr com uma expressão de confiança.

— Preste atenção, Lobkoj! — pediu Marr. — Dentro de alguma horas chegará a Frota do Império. Até lá preciso encontrar Lemmy Pert e Kappak, juntamente com as pessoas que eles mantêm presas. Preciso libertar os prisioneiros, para que Lemmy e Kappak não possam utilizá-los como reféns. Ajude-me, e pedirei ao comandante da Frota que não lhe aplique nenhum castigo. O destino de Gerpo-Kha e seus homens não será nada agradável. Acho que você sabe que eles violaram intencionalmente as leis do Império Unido.

Lobkoj bateu palmas.

— Ajudarei — prometeu com os lábios trêmulos.

A expressão de medo desapareceu de seus olhos.

— Está bem. Vamos andando! — disse Marr.

— Antes de mais nada — disse Lobkoj, apontando para cima — teremos de subir ali, passando pelo velho posto de controle. Depois...

— Que posto de controle é esse?

— Antigamente — começou a explicar o ara — os guardas não queriam chegar muito perto das jaulas. Sempre que se queria levar um dos animais ao laboratório, a respectiva jaula era aberta por meio desses controles. O animal só podia entrar no corredor. As cobras-peludas são muito perigosas. O animal seguia pelo corredor e chegava ao pavilhão, onde era narcotizado para ser carregado até o laboratório.

— Ah, sim — fez Marr. — O equipamento ainda funciona?

— Funciona, sim. Mas não está sendo usado. Conseguimos ajeitar-nos muito bem com as cobras-peludas. Como sabe, não queremos fazer-lhes nenhum mal. — Fitou Marr com uma expressão de dúvida. — Pelo menos acredito que o senhor saiba...

Marr fitou as fileiras de jaulas com uma expressão de perplexidade.

— Ainda acabarão descobrindo — disse em voz baixa — que estes animais são muito simpáticos. — Fez um gesto animador para Lobkoj. — Vamos andando! Mantenha-me informado sobre seus planos, rapaz.

Lobkoj entrou numa das passagens estreitas. No fim da mesma havia um buraco escuro na rocha. Lobkoj entrou e no mesmo instante começou a subir planando. Marr seguiu-o de perto. Não tirou os olhos do ara.

Dali a alguns segundos viram-se sobre uma estreita faixa de rocha, que ficava uns cinco metros acima do fundo do corte em que estavam guardadas as jaulas. A faixa prosseguia obliquamente e terminava junto à saída do corredor pelo qual Marr viera, próximo de um paredão de rocha vertical. Os aras haviam construído uma entrada nesse local. Marr viu uma débil claridade que saía do interior da rocha.

Lobkoj penetrou na abertura antes dele. Entraram num recinto alongado, cujas paredes estavam cheias de painéis bem simples.

— É aqui que são abertas as jaulas? — perguntou Marr, em tom insistente.

Lobkoj bateu palmas.

— É — confirmou.

Marr apontou para a saída, que ficava do lado oposto do recinto.

— Para onde vai dar essa porta?

— Para os aposentos residenciais e para os gabinetes particulares de estudos — respondeu Lobkoj. — Além disso chega-se à cantina e...

Marr interrompeu-o com um gesto impaciente. Acabara de ouvir vozes. Lobkoj obedeceu. Ficou calado. Marr constatou que não se enganara. Os sons vinham do lado de fora. Alguém estava falando perto das jaulas. Marr voltou para a entrada, sem tirar os olhos de Lobkoj, e pôs-se a escutar.

Em poucos segundos compreendeu que mais uma vez a situação sofrerá uma modificação radical.

Ouviu a voz de Lemmy Pert, que anunciou em tom sarcástico:

— São estes os animaizinhos queridos que terão de enfrentar. Vocês e o sem-vergonha que ainda temos de agarrar.

 

Marr comprimiu-se contra o paredão. Parecia ter sido atingido por um choque. Ouviu passos pouco abaixo do lugar em que se encontrava. Lemmy e seus companheiros dirigiam-se à extremidade do corte na pedra. Quando os passos se afastaram, Marr ergueu-se cautelosamente e olhou para baixo.

Estavam todos reunidos: Lemmy e Kappak, Gerpo-Kha, Bran e as moças. Hayda cobrira o rosto com as mãos e estava sendo conduzida por Garika.

Marr sentiu-se trêmulo. Não se iludiu. Se disparasse um tiro contra Lemmy e Kappak, o resultado seria incerto. Os dois estavam entre os prisioneiros. Mesmo que o tiro pusesse fora de combate um deles, ainda sobraria o outro que poderia usar os prisioneiros para proteger-se. Isso sem falar de Gerpo-Kha que, apesar de sua repugnância por qualquer luta aberta, talvez poderia intervir no conflito.

Só havia uma saída. Sabia que seria uma carga pesada para seus nervos, mas teria de arriscar. Precisava fazer com que a situação permanecesse sem solução até a chegada da Frota.

Voltou rastejando. Lobkoj continuava no mesmo lugar. Com isso, suas dúvidas sobre a lealdade do guarda se desvaneceram.

— Mostre-me o mecanismo! — pediu Marr. — Como se faz para abrir as jaulas?

Lobkoj apontou para os painéis.

— É simples — disse. — São cem jaulas, e cada uma delas possui um botão. Para abrir a jaula, comprime-se o botão. Basta comprimi-lo mais uma vez, e a jaula volta a fechar-se.

— São cem jaulas? Algumas delas devem estar vazias.

— Isso mesmo. As jaulas que ficam do lado de fora estão vazias.

— Quais são os botões que abrem as jaulas que ficam perto da entrada?

— São estas — respondeu Lobkoj, apontando para uma série de botões.

Marr parecia satisfeito. Começou a expor seu plano ao ara.

A exposição não foi muito detalhada, mas Marr não permitiu que Lobkoj tivesse dúvidas.

— Gritarei os comandos — concluiu Marr. — Gritarei de tal forma que você não vai poder deixar de entendê-los. E execute minhas ordens bem depressa. Estou em situação desesperadora e posso vê-lo perfeitamente do lado de fora. Se fizer alguma tolice...

Apontou-lhe a arma. Lobkoj empalideceu.

— Obedecerei — disse num cochicho.

Marr saiu. Quando se encontrava embaixo da entrada, Lobkoj disse:

— Tenha cuidado, que lá em cima existe outro acesso. Não se preocupe comigo. Tranquei esta porta. Ninguém poderá entrar na sala de controle.

Marr virou a cabeça e sorriu para o ara.

— Muito bem, meu velho. Obrigado. Depois saiu cautelosamente.

 

— Será o maior espetáculo da História de Hopthah — anunciou Lemmy Pert. — Daqui a dez anos todo mundo ainda estará falando nisso. Nunca houve uma luta como esta. A cidade sentir-se-á grata porque Lemmy Pert e Kappak lhe proporcionaram um show tão sensacional. Os terranos uivarão de medo, implorarão...

Não conseguiu prosseguir. Num movimento súbito, Garika colocou-se bem à sua frente e gritou:

— Cale a boca! Pense no que lhe acontecerá quando Marr conseguir agarrá-lo!

Lemmy tirou a arma e apontou-a para Garika.

Marr ergueu-se.

— Lemmy! — gritou.

No espaço estreito que ficava entre os paredões sua voz altissonou.

Lemmy estacou em meio ao movimento.

— Fique quieto, Lemmy! — gritou Marr. — Tire o dedo do gatilho, e nada lhe acontecerá. Pelo menos por enquanto.

Lemmy estava atrás de Bran. Se não fosse assim, Marr poderia atirar. Kappak e Gerpo-Kha não pareciam estar armados. Lemmy começou a mexer-se muito devagar. O susto devia ter-lhe gelado o sangue. A pele de seu rosto estava cinzenta quando se dirigiu a Marr.

— Seu sem-vergonha!...

— Pare de bancar o importante, Lemmy — interrompeu-o Marr, sem abalar-se.

— Eu o matarei! — gritou Lemmy, fora de si.

Marr começou a inquietar-se. Naquele momento, era a única pessoa que sabia perfeitamente que nenhum dos lados tinha uma chance de decidir a situação a seu favor. Devia explicar isso a Lemmy, pois, do contrário, a raiva faria com que atirasse, perturbando o equilíbrio. Estava desesperado e não recuaria diante de nada, mesmo que isso significasse a morte para ele. Por estranho que parecesse, tentando proteger Bran e as moças, teria de explicar-lhe que suas chances eram maiores do que pensava.

— Pare de bancar o arrogante, Lemmy — gritou. — Preste atenção! Fique bem quieto. Atrás de mim está um homem que tem os dedos encostados aos botões que abrem as jaulas. Basta um movimento em falso de sua parte, e as jaulas serão abertas. Se isso acontecer, você sentirá na própria carne como é agradável lidar com uma cobra-peluda.

— É mentira! — gritou Lemmy. — Ninguém vai cair num truque desses!

— Pergunte ao ara! — sugeriu Marr.

O fato de Lemmy aceitar a sugestão era um bom sinal. Inclinou-se para Gerpo-Kha, sem sair de trás de Bran. Marr viu os dois confabularem em voz baixa. Lemmy voltou a endireitar o corpo.

— Ele diz que existe alguns painéis que controlam as jaulas! — gritou. — Acontece que mente quando diz que lá está um homem que obedece às suas ordens!

Marr levantou o braço. Sem tirar os olhos de Lemmy, gritou:

— Abra uma jaula vazia!

Viu de relance que Lobkoj se moveu no interior da sala de controle. Dali a dois ou três segundos ouviu-se um rangido. Uma das grades foi subindo. Lemmy virou abruptamente a cabeça. Marr baixou o braço, e a grade voltou a fechar-se. Lemmy pareceu desmoronar...

— Nossas chances são iguais, Lemmy — gritou Marr. — Não posso atirar em você, porque me arriscaria a atingir os prisioneiros, e você não me poderá fazer nada, pois, nesse caso, ficará exposto às feras. O homem que está lá dentro abrirá em primeiro lugar as jaulas que ficam junto à entrada. Você não terá a menor chance de escapar.

Lemmy apoiou-se em uma das jaulas. A cobra-peluda espantou-se. Deu um salto e foi subindo pela grade, soltando gritos. Lemmy estremeceu e afastou-se da jaula.

— Quais são suas intenções, terrano? — gritou com uma voz que não revelava muita vontade de resistir.

— Esperaremos até que escureça — respondeu Marr. — Se até lá acontecer uma coisa que decida a situação, bem. Se não acontecer, você terá ótima chance de escapar na escuridão. Vamos esperar até lá, Lemmy.

Durante todo o tempo, Kappak e o ara se mantiveram imóveis.

Na opinião de Marr, Kappak era muito mais perigoso. Provavelmente Gerpo-Kha também era um estrategista melhor que Lemmy Pert. Foi ele que levantou a cabeça e disse:

— Faça-me o favor! O senhor não tem nenhuma chance. É verdade que conseguiu pôr em funcionamento nosso transmissor e utilizou-o por um pequeno lapso de tempo, mas nenhuma nave dará atenção a uma mensagem tão breve. Por que não se entrega logo, em vez de obrigar-nos a passar um dia inteiro no sol?

Via-se que Gerpo-Kha não sabia que Marr utilizara o antigo código da frota de guerra terrana. E não tinha a menor idéia da rapidez com que a Frota atenderia a qualquer chamado CQD, mesmo que o respectivo sinal já tivesse sido eliminado do código.

— Não farei acordo com o senhor, Gerpo-Kha! — gritou Marr. — Esperaremos!

— Faremos com que o senhor pague por isso — resmungou Kappak. — Atirá-lo-emos às cobras-peludas sem nenhuma arma, terrano!

Marr não respondeu. Dali em diante, o silêncio passou a reinar na pequena depressão situada em meio à rocha.

 

Marr havia prendido Lobkoj nas primeiras horas da manhã. Naquela latitude, a noite de Nowhere era muito breve. Em compensação, o dia seria longo, e a possibilidade da Frota do Império encontrar seu objetivo se tornava maior.

O sol foi subindo lentamente e penetrou na depressão. Ao meio-dia, o calor quase chegou a ser insuportável. As seis pessoas que se encontravam lá embaixo estavam agachadas.

Lemmy, Kappak e Gerpo-Kha observavam Marr, e este os observava. Nenhum deles podia fazer um movimento que o outro não visse. Lemmy continuava com a arma na mão.

Bran estava inquieto. Marr chegou a sentir que seu intelecto procurava ansiosamente por uma saída, uma possibilidade de terminar o prazo de espera antes da hora.

“Não há saída,” pensou Marr.

Pensou intensamente, como se pudesse hipnotizar Bran.

De vez em quando Garika levantava os olhos para o lugar em que estava Marr. Quando seus olhares se encontravam, a moça sorria.

De uma dessas vezes, Marr viu que seus olhos se estreitaram de repente. Ergueu-se de um salto. Garika abriu a boca para soltar um grito. No mesmo, instante, Marr ouviu um leve ranger acima de sua cabeça. Virou-se abruptamente. Um ara estava parado no paredão. Com a mão esquerda segurava-se numa saliência, enquanto a direita equilibrava a arma pesada, procurando apontá-la para Marr. Este não deu a menor chance ao inimigo. Tinha certeza de que iria acertar o alvo. O raio concentrado subiu com um chiado e atingiu o ara.

Perto das jaulas, tudo continuava na mesma. O tempo fora muito curto para dar uma chance real a Lemmy. Marr voltou a sentar-se. Os aras que se encontravam no interior da base sabiam o que estava acontecendo por ali. Marr tinha certeza quase absoluta de que, depois desse incidente, ninguém mais tentaria usar o acesso que ficava acima dele para atacá-lo pelas costas. Os aras tinham muito medo da morte violenta.

E a espera continuou.

 

De tarde Lemmy começou a fazer propostas. De início ofereceu salvo-conduto a Marr, e depois tornou-o extensivo aos seus companheiros. O calor afetara-o bastante.

Chegara a um ponto em que queria livrar-se da situação em que se encontrava, custasse o que custasse.

“Que pena que o dia não é mais longo”, pensou Marr. “Com mais cinco horas de calor, Lemmy poderia ser preso sem resistência.”

Kappak não participou da palestra.

— Deixe de conversa mole, Lemmy — disse Marr, com a maior calma. — Você matou Bakter Brown e será condenado por um tribunal do Império.

Depois disso Lemmy permaneceu calado.

Dali a duas horas, a situação mudou. O sol já descera em direção à linha do horizonte, fazendo com que a depressão ficasse na sombra. O calor foi diminuindo. Lemmy voltou a criar coragem. Começou a debochar de Marr.

— Daqui a três ou quatro horas você não enxergará mais um palmo à frente do nariz, terrano — disse com a voz rouca.

Marr não respondeu. Tinha medo de revelar suas preocupações.

Depois de mais duas horas, Lemmy levantou-se e deu-se ao luxo de dar um pequeno passeio. Era quase o mesmo de antes. Falava ininterruptamente com Marr, cobrindo-o de observações irônicas.

De repente, Lemmy parou. Kappak estava procurando uma posição mais confortável para a perna direita. Parou em meio ao movimento, deixando o joelho encurvado. Bran pretendia cocar a cabeça e fez a mão parar a meio caminho. Algumas das cobras-peludas puseram-se a caminhar de um lado para outro no interior das jaulas. Pararam e ergueram as cabeças.

O silêncio desceu sobre a pequena depressão. Era um silêncio absoluto, tão profundo que se podia ouvir perfeitamente o ligeiro zumbido que vinha das alturas. O céu já assumira a coloração azul-escura do anoitecer. A débil luminosidade vermelha do sol contornava as pedras angulosas. Por um instante o cenário parecia exalar uma paz profunda.

A única coisa que perturbava a tranqüilidade era o rugido vindo do alto. Parecia um sino que vibrava e envolvia as montanhas de todos os lados, aproximando-se da depressão estreita.

Marr levantou-se de um salto. Quase no mesmo instante Kappak, companheiro de Lemmy Pert, levantou-se na frente das jaulas. Pôs-se de pé com uma rapidez de que ninguém o teria julgado capaz. Sua voz estridente gritou:

— Estão chegando, Lemmy! Agora é pra valer!

Marr já contara com isso. Tanto ele como Bran sabiam que os acontecimentos tomariam esse rumo. Kappak abrigara-se atrás de Hayda. Bran aproximou-se de um salto e empurrou a moça. Hayda caiu e Kappak virou-se rapidamente.

Marr atirou. O raio reluzente atingiu Kappak no ombro e fê-lo rodopiar.

Lemmy acordou. Era a grande incógnita naquele jogo. Marr sabia que Kappak seria o primeiro a reagir aos ruídos dos propulsores das naves. Restava saber quanto tempo levaria Lemmy para compreender a nova situação. Se agisse juntamente com Kappak, Marr não teria nenhuma chance. Não poderia defender-se contra dois homens armados. Mas se Lemmy hesitasse haveria alguma esperança.

Lemmy hesitou muito; hesitou bastante. Firmara-se demais na convicção de que tudo acabaria bem, e por isso não compreendia a mensagem simbolizada naquele ruído que crescia cada vez mais.

Virou-se lentamente e levantou a mão que segurava a arma.

— Você não me escapa, terrano! — disse com o rosto desfigurado.

De repente, a raiva de Marr desapareceu. Sentiu pena daquele homem. Era uma criatura cujo mundo intelectual era condicionado pelo ambiente... pelo ambiente de um planeta em que os direitos humanos não valiam nada. De repente já não tinha o menor desejo de castigar Lemmy Pert pela morte de Bakter Brown. Dar-se-ia por satisfeito se Lemmy tivesse de enfrentar um tribunal.

Mas o braço de Lemmy continuava a levantar-se.

Marr fez um esforço para controlar-se e atirou. No último instante reduziu a potência da arma a um mínimo e resolveu só ferir Lemmy. O tiro atingiu-o no joelho. Foi mais o susto que a dor que fez Lemmy dar um salto. Soltou um grito e caiu. Tombou num lugar em que o solo descia num declive bastante acentuado, em direção à beira do precipício. Lemmy debateu-se com os braços. Sua arma foi atirada para longe. Seus pés não encontraram mais apoio. Despencou nas profundezas...

Gerpo-Kha gritou em tom assustado:

— Pare, terrano! Não atire mais. Não estou armado. A base rende-se incondicionalmente à Frota do Império.

Marr recuou e encostou-se à pedra. Pela primeira vez sentiu o cansaço infinito que os minutos de espera lhe haviam causado.

Mal tinha forças para manter-se de pé. Escorregou rocha abaixo, até acomodar-se tranqüilamente na trilha horizontal. Lobkoj saiu da sala de comando. Parecia curioso e olhou em torno. O crepúsculo começava a descer sobre o planeta.

— Garika! — gritou Marr. — Bran... Hayda! Subam para onde estou. Há uma passagem entre as jaulas. Usem o elevador antigravitacional.

Viu que as pessoas que acabara de chamar se colocavam em movimento. Desapareceram entre as jaulas. Marr levantou os olhos para o céu.

O rugido era tão forte que fazia tremer a rocha. Marr viu uma rede de pontinhos vermelho-prateados que se estendia pelo firmamento.

Sua conta estava fechando!

 

O camarote espaçoso da gigantesca nave capitania parecia uma coisa de outro mundo. Bran e Marr olharam em torno, perplexos. Encontravam-se há várias horas a bordo da nave. Haviam sido recolhidos. Garika e Hayda também haviam subido a bordo. Marr sentiu-se descansado e bem disposto. Concluiu que devia ter dormido pelo menos doze horas.

As instalações da sala para a qual haviam sido convocados podiam ser consideradas ricas, ao menos para uma nave de guerra interestelar. Uma gigantesca tela cobria toda a parede dos fundos. Parecia uma enorme janela. A grande escrivaninha junto a essa janela realçava a importância da pessoa sentada à mesma. Havia poltronas espalhadas por toda a sala. Plantas subiam em armações delicadas. Até faziam a gente esquecer que, se o neutralizador antigravitacional falhasse durante uma luta, a pressão da aceleração poderia reduzir tudo a escombros.

O que mais impressionava era o homem sentado atrás da escrivaninha. Era um arcônida alto, de cabelos brancos, cujo retrato era conhecido de qualquer criança de escola dos mundos terranos.

Era Atlan, o imortal. Atlan, o ex-imperador de Árcon. Atlan, chefe da USO.

O arcônida levantou-se.

— Não quero que nosso encontro seja prejudicado por preconceitos históricos ou por qualquer tipo de veneração injustificada — principiou. — Façam o favor de sentar. Fiquem à vontade.

— Quero dar-lhes uma idéia do que aconteceu nestas últimas horas. Acho que merecem estar bem informados. Por favor... Apontou para duas poltronas próximas à escrivaninha. Bran e Marr sentaram-se. Atlan seguiu seu exemplo. Prosseguiu imediatamente:

— A base dos aras está em nosso poder. Encontramos os pseudo-ativadores e as espaçonaves escondidas nos hangares subterrâneos. O plano originário dos aras não será executado. Os presos que capturamos aqui terão de responder por seus atos perante um tribunal interestelar.

“O Império foi informado sobre a existência da colônia chamada de Hopthah, sobre sua origem e sua situação atual. A colônia será dissolvida imediatamente. Proporcionaremos uma existência digna aos seus habitantes.

“É o que tenho a dizer sobre Nowhere. E os senhores? Quais são seus desejos? Afinal, os senhores perderam sua nave durante a operação. O mínimo que a Frota pode fazer é deixá-los num lugar escolhido pelos senhores. A propósito, a Nova Brisbane estava no seguro?”

Marr respondeu que sim.

— Nesse caso não precisamos preocupar-nos com isso. O seguro os indenizará pela perda da nave. Então, para onde querem ir?

Marr engoliu em seco.

— Para a Terra — conseguiu dizer, depois de algum tempo.

Atlan confirmou com um aceno de cabeça.

— Um momento — disse Bran, em tom apressado. — Não é só isto. Como deve saber, não estamos sós. Ainda existem...

O prazer que a conversa provocava no arcônida era tão visível que Bran se interrompeu.

— Sim, eu sei — respondeu Atlan. — Há duas jovens, cujos nomes são Hayda e Garika. Manifestaram o desejo de ir para qualquer lugar que os senhores forem. É bem verdade que só querem fazê-lo se os senhores as quiserem. Do contrário... querem ser levadas também para a Terra. Como vêem, muitas vezes os problemas mais difíceis acabam numa situação agradável.

Levantou-se. Marr e Bran seguiram seu exemplo.

— Os senhores viajarão nesta nave — disse o arcônida ao despedir-se. — Ainda teremos outras oportunidades de encontrar-nos.

Fez uma ligeira mesura. Marr e Bran dirigiram-se à porta ampla, que se abriu com um zumbido à sua aproximação.

— Ah, quase ia me esquecendo! — gritou Atlan, com a voz alegre. — Não se preocupem por causa da utilização do código CQD. O mesmo ainda está em uso na Frota, mas graças ao excelente trabalho que os senhores fizeram em Nowhere, desta vez não se pretende abrir um processo criminal.

Marr retirou-se. Estava perplexo. Uma vez do lado de fora, esperou que a porta se fechasse atrás dele. Fitou Bran.

— Até parece que esse homem sabe ler pensamentos — disse.

 

                                                                                            Kurt Mahr  

 

                      

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