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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


OS ESPIÕES VIAJAM COMO DEFUNTOS / Lou Carrigan
OS ESPIÕES VIAJAM COMO DEFUNTOS / Lou Carrigan

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

— Táxi, madame?

Brigitte Montfort, a mais bonita mulher do mundo e ao mesmo tempo, sob o nome de “Baby”, a mais fabulosa espiã que jamais existiu, ergueu a cabeça, um tanto sobressaltada, esquecendo momentaneamente o trabalho que executava na máquina de escrever.

— Frankie! — exclamou. — Você não toma jeito?

Frank Minello, chefe da Seção Esportiva do “Morning News”, de Nova Iorque, entrou no correto escritório, “sancta santorum” da prestigiosa jornalista Brigitte. Estava muito bronzeado o seu rosto alegre e seu físico atlético realçava um impecável terno castanho-escuro.

— Devia ter dito mademoiselle... — corrigiu-se. — Isso quanto à realidade e aos meus conhecimentos de francês. Mas, como sou apenas um simples mortal apaixonado pela rainha do mundo, direi agora: Não é possível viver longe de você, querida! E tenho dito.

Brigitte, levantando-se, estendeu ambas as mãos a Minello, que se apressou a tomá-las nas suas, pondo-se a beijá-las com feroz entusiasmo, até que ela as retirou, rindo.

— Frankie, Frankie, você parece que não almoçou hoje. Diga-me: como se foi de México?

— Fatal.

— O clima não é bom?

— É formidável, embora alguns atletas tenham dito que não os beneficia muito na hora de empenhar-se a fundo. Mas, falando de mim mesmo, direi que... Oh, eu já disse, não é?

— Que não pode viver longe de mim? Claro que disse!

— Pois é a pura verdade.

— Mas sem dúvida! — tornou a rir “Baby”.

 

 

 

 

— Sente-se e conte-me a respeito do México. Como foram as provas pré-olímpicas?

— Oh, a mesma coisa de sempre! Não sei por que, nenhum acontecimento esportivo pode ocorrer em qualquer canto do mundo sem a minha inevitável presença.

— A resposta é facílima, querido: você é o comentarista esportivo mais eminente do país. E, portanto, claro está que do “Morning News”. Às vezes, Frankie, pergunto-me o que faria esse velho ranzinza de Miky Grogan sem você e sem mim.

— Por falar nele, querida: está querendo vê-la.

— Oh!

— Está sim. Cheguei ao seu horrendo escritório, muito sorridente, para apresentar-me e dizer-lhe que tinha regressado do México, onde já terminou essa abençoada Semana Pré-Olímpica. Saudei-o cortesmente, declarando-me pronto a reassumir meu posto na redação etc... e sabe você o que me respondeu?

—        Mmm... Suponho que lhe tenha dado as boas-vindas.

—        Nada disso. Resmungou simplesmente: “Muito bem, muito bem, Frank... Gostei das reportagens que enviou. Volte à sua Seção. Ah! Como naturalmente vai passar pela sala de Brigitte, diga-lhe que venha até aqui”.

— Só isso?

— Sim, foi só o que disse aquele...

— Psit! Você não deve dizer palavras feias, Frankie — riu outra vez “Baby”. — E agora, ao que parece, tenho que ir ver o que deseja o famoso Furibundo.

— Já imaginava que você fosse correr para lá. Por isso, repito meu oferecimento: Taxi, mademoiselle?

— Não me diga que conseguiu parquear seu carro dentro da redação!

— Nada disso. É um táxi oriental, um jelinxá confoltdvel. Eu leval senholita ao esclitólio de chefe cala amalada. Senhorita despleza ofelta de poble cule?

Enquanto Brigitte ria gostosamente, Frank Minello apanhou uma folha de cartolina azul, enrolou-a em forma de cone e, colocando na cabeça, pôs-se a repetir diante dela as mais cômicas inclinações chinesas.

— Cule plestal selviço, mas não quel dinheilo... Cule só quel beijinho de falmosa senhorlita.

Ainda rindo, Brigitte improvisou também um chapéu chinês de cartolina, que colocou na cabeça. E com humor infantil, entregaram-se a uma alegre pantomima, ambos tentando parecer chineses pelo simples fato de usarem aquelas ridículas cartolinas.

Brigitte, por sua vez, inclinou-se repetidamente, com as mãos juntas diante do peito.

— Senholita aceita jelinxá humano. Senholita pagalá pleço de cule camalada.

— Blavo.

Minello abriu a porta, ergueu “Baby” nos braços e saiu da sala, diretamente para a de Miky Grogan, diretor do jornal a que ambos prestavam seus serviços.

— Hei, Frank! — gritou alguém. — Tirando suas casquinhas?

— Você está é com inveja dele! — manifestou-se outro repórter.

O riso estendeu-se por toda a grande sala que precedia a de Miky Grogan.

— Brigitte! — gritou um terceiro jornalista. — Na próxima viagem conte comigo!

E foi assim que, quando Minello abriu com o pé a porta de Miky Grogan, a primeira coisa que entrou foi a gargalhada do pessoal daquele andar do “Morning News”. E Miky Grogan, que tinha levantado a cabeça, sobrancelhas contraídas, olhou atonitamente, incrédulo, aquele par risonho. E de imediato, como era habitual nele, seu rosto ficou rubro.

— Que negócio é esse? — bramiu.

Minello depositou Brigitte no chão, sorrindo.

— Cule tlazeu folmosa senholita...

— Fora daqui! — bradou Grogan. — Fora imediatamente!

— Poble cule ainda não lecebeu pagamento! — resistiu Minello.

— Fora! — repetiu Grogan. — E quero esta porta fechada!

Frank Minello Inclinou-se sobre Brigitte, beijou os lábios que ela lhe oferecia com os olhos fechados e saiu da sala em passinhos miúdos, gingando o corpo. Fora se ouviu a celebração geral em honra ao beijo com que fora premiado o simpático chefe da Seção Esportiva.

Brigitte fechou a porta, sorrindo e aproximou-se de Grogan, acenando com a cabeça, juntando ainda as mãos diante do peito, muito convicta em seu papel de chinesa. Deteve-se diante dele e murmurou, submissa:

— As suas oldens, honolável senhol...

Grogan abriu e fechou a boca várias vezes, faces congestionadas. Súbito, pareceu optar pela calma, muito mais benéfica para sua pressão arterial e sua digestão. Indicou o telefone e grunhiu;

— Há dez minutos que telefonou o tal de Pitzer. Quer falar com você imediatamente.

— E só agora que me diz isso?

— Não estou aqui a serviço da CIA, fique sabendo...

— Psit! Calma, calma, querido chefe. Por que não transferiu a ligação para a minha sala? Teria evitado o dissabor de minha presença, não?

— Estava muito ocupado. Ligue para esse sujeito e acabemos com o assunto. Como está o artigo sobre a recepção na Embaixada do...?

— Pronto e já em máquina. Que é que há? Não está satisfeito com o meu trabalho?

Sem esperar resposta, tirou o fone do gancho e discou um número. Enquanto esperava, acionou a pequena alavanca do viva-voz, de modo que Grogan também ouviu a chamada e, em seguida, a resposta na outra ponta do fio:

— “Floricultura Pitzer”. Pode falar.

— É Mr. Pitzer? — perguntou Brigitte, deixando o fone sobre a mesa e dedicando-se a acender um cigarro do maço de Grogan. — Sou miss Montfort, do “Morning News”... Estou informada de que ligou para mim há poucos minutos...

— Oh, sim, miss Montfort — soou claramente na sala a voz de Charles Pitzer. — É a respeito de uma reunião que espero seja de seu interesse.

“Baby” expeliu graciosamente a fumaça, tentando dar-lhe a forma de um circulo giratório.

— Uma reunião? Sobre que assunto?

— Bem... Sei perfeitamente que aprecia muito as flores, em especial as rosas vermelhas. Acontece que haverá esta tarde uma interessante filmagem, de rosas vermelhas justamente, e pensei que gostaria de assistir. Desejo, portanto, convidá-la.

— Muito obrigada. Não faltarei. Onde terá lugar essa filmagem?

— Na Matriz da Floricultura. Lembra-se onde fica?

— Naturalmente, meu caro Mr. Pitzer! A que horas?

— Oh, tem tempo de sobra. Pelas cinco da tarde.

— Perfeito, Mr. Pitzer. E como me transporto

— Prezada miss Montfort! Claro que num táxi, ou num dos seus carros... Não creio necessária a presença de um helicóptero ao Aeroporto Kennedy.

— Invejo seu bom humor, Mr. Pitzer. De acordo com tudo. Encontro com o senhor na Matriz?

— Não creio. A filmagem lhe interessará mais do que a mim. Já sei muito a respeito de rosas vermelhas e outras flores.

— É verdade. Pois bem, Mr. Pitzer, muito obrigada pelo aviso. Recomendações ao nosso querido Johnny.

— Não esquecerei. Boa tarde, miss Montfort.

— Au revoir!

Desligou e olhou para Miky Grogan, um tanto pensativa.

— Vocês, os espiões, com seus absurdos códigos! — resmungou o Furibundo. — Não gosto nada de ver isto aqui transformado numa sucursal da CIA. Que diabo vem a ser tudo isso de flores, filmagem, carros, helicóptero...?

— De que se queixa? — sorriu Brigitte, apagando o cigarro no cinzeiro. — Graças à CIA, o “Morning News” dispõe, por meu intermédio, de noticias com as quais nenhum outro jornal sonharia — consultou seu relógio de pulso. — Oh-oh! Estou com pouco tempo. Adeus, querido.

— Aonde vai?

Olhou-o com profunda comiseração, já na porta.

— Mas se é tão fácil, chefe querido! Tomar um helicóptero no Aeroporto Kennedy, naturalmente.

— Mas você disse que tomaria um táxi...!

Brigitte pareceu aniquilada.

— Ora, vamos, Miky! Você não pode ser assim tão bobo.

— Mmm... Eu... Está bem: você tomará um helicóptero! Mas aonde pensa ir com ele?

A agente “Baby” da CIA ergueu os olhos para o teto, definitivamente derrotada.

— Também isso foi dito, Miky: assistir a uma filmagem de flores na Matriz da Floricultura. Até a vista!

 

Os dois homens estavam encenados numa vasta sala de cujas paredes pendiam grandes mapas das cinco partes do mundo. Havia fichários, duas mesas de escritório, cadeiras, poltronas, um sofá, tapetes, livros, um bem sortido bar a um canto e, entre dois dos grandes mapas, uma tela branca de um metro por sessenta centímetros.

Em mangas de camisa ambos, sentados no sofá, eles examinavam atentamente todos e cada um dos papéis que o mais idoso retirava de uma pasta, aprovando cada vez que o mais jovem dava a resposta correta após um único e rápido olhar.

O mais velho dos dois devia ter uns cinqüenta anos, era magro, ossudo, de estatura mediana. Usava óculos sem aro e, por trás deles, seus olhos perspicazes pareciam perscrutar continuamente o rosto do mais jovem. Este, com mais de um metro e oitenta de altura, era louro, tinha algumas sardas, olhos azuis, lábios finos, queixo forte. Seus ombros eram Impressionantemente largos, em contraste com a esbelta cintura. Suas mãos eram grandes, belas e possantes, ao mesmo tempo. O cabelo caia-lhe um pouco sobre a testa ampla e quando ele sorria, de raro em raro e muito levemente, seu rosto iluminava-se como o de uma criança. Era, em suma, um magnífico exemplar humano, de aspecto simpático e inteligente. Seria difícil alguém não experimentar com relação a ele uma imediata simpatia, mesclada de um sentimento de admiração.

— Até aqui, tudo bem, Somerville — disse o outro. — Noto que, com efeito, também sua memória é excepcional.

— Muito obrigado.

— Passemos agora ao assunto em questão. Vou dizer-lhe em poucas palavras no que consistirá, especificamente, sua missão na Turquia. Depois ultimaremos os detalhes. De início, você irá a Istambul, de onde coordenará todas as operações de resgate de três projéteis dirigidos norte-americanos.

Richard Somerville ergueu vivamente as sobrancelhas, como se as palavras finais o tivessem sobressaltado.

— Perdão, mas...

— Pensa não ter compreendido bem, não é mesmo? — sorriu o mais velho.

— Sim, com efeito.

— Pois ouviu perfeitamente: restam ainda na Turquia três projéteis dirigidos, daqueles que, anos atrás, apontavam diretamente do litoral turco para Moscou.

— Mas constou que todos tinham sido retirados...

— Não foi exatamente assim, Somerville. O certo é que esses três foguetes estão ainda na Turquia. Prosseguimos?

— Pois não.

— Bem. O plano é... laborioso e não isento de perigo. Sem muito esforço, pode-se imaginar o que diriam os russos se soubessem que ainda temos lá três projéteis. Talvez o suspeitem, tal como suspeitamos que eles também deixaram alguns em Cuba, mas da. suspeita à certeza há uma grande distância. Esta certeza é o que queremos evitar a todo custo. Portanto, antes que na próxima Conferência de Desarmamento possa sequer ser Insinuado que os Estados Unidos conservam projéteis na Turquia, desejamos retirá-los.

— Compreendo isso. Mas retirar três artefatos semelhantes não vai ser nada fácil.

— Já lhe disse que será uma missão trabalhosa e perigosa essa que lhe caberá dirigir. O sistema que consideramos mais apropriado para resgatar esses projéteis é o desmonte. Você se encarregará disso. Dirigirá as operações de desmontagem e, quando tudo estiver terminado, nós lhe indicaremos o meio a utilizar para retirar as peças da Turquia. Parece-me que está bem claro, Somerville.

— Sim, sem dúvida. Suponho que não poderiam ser retirados de outro modo.

— Seria excessivamente comprometedor. Não podemos enviar nossa esquadra ao Mar Negro, bem nas barbas dos russos, e dedicar-nos a embarcar três enormes foguetes. Não! Isso é impossível. Portanto, terão que ser desmontados e retirados em peças com as menores dimensões possíveis.

— Este é o melhor plano — admitiu Somerville, pensativo. — Bem; onde estão instalados os foguetes?

— Esta informação lhe será facilitada no momento oportuno. Em circunstâncias ainda não terminadas, um agente especialíssimo da CIA entrara em contato com você quando o considere conveniente. E a partir de tal momento você deixará nas mãos desse agente o controle de toda a operação.

— Como o poderei reconhecer?

— Mediante uma senha especial, em russo: “Os espiões americanos estão malucos”. Não a esqueça. E tenha presente que Isso lhe será dito em russo. Complementarmente, poderá dar-lhe dados da CIA, que você deverá admitir como certos, de modo irrefutável.

— Mas esse agente me reconhecerá? Quero dizer, de modo físico?

— Sem dúvida. Ser-lhe-ão mostradas várias fotografias suas, em cores, e será posto ao corrente de certas características físicas, tal como a cicatriz de apendicectomia que você tem no abdômen.

Richard Somerville sorriu.

— Espero que não me obrigue a baixar as calças na rua!

— Esperemos que não — sorriu também o outro. — Um uisque, Somerville?

Este o olhou quase assustado.

— Agora? Não acho que seja oportuno.

— Ótimo — aprovou com satisfação o instrutor: — é preciso aprender a distinguir os momentos. Umas vezes, pode-se beber até rebentar; outras, a cabeça deve estar desanuviada de todo. Bem. Além desse agente especialissimo que se unirá a você em Istambul, no momento oportuno, um outro o espera lá. Veja-o.

Inclinou-se sobre a mesinha diante do sofá, abriu um envelope e sacou um diapositivo, que encaixou na ranhura de um projetor. Acendeu este e sobre a tela branca, pendente da parede, apareceu um rosto de homem. Olhos negros e astutos, pequena barba, fêz na cabeça, grande bigode. Junto ao olho direito, uma pequena cicatriz que se desviava para o pomulo.

— Este é Maulana Al-Din, turco. Até a data, tem sido um ativo e eficiente colaborador da CIA. Há vários anos lhe pagamos esplêndidamente para que se dedique a espionar em nosso beneficio, em especial o Mar Negro e a passagem das frotas russas pelo Estreito do Bósforo. Uma espionagem rotineira, digamos. Maulana Al-Din receberá pelo conduto habitual instruções para colocar-se às suas ordens e, quando chegar o-momento, lhe facilitará pessoal para o trabalho de desmonte dos projéteis.

— Devo confiar absolutamente em Maulana Al-Din?

O outro o olhou franzindo a testa.

— Somerville, a primeira coisa que um espião deve aprender é a não confiar nem no próprio pai. Não obstante, Al-Din tem até agora sido um homem leal, e não vejo motivo para que deixe de sê-lo... — o instrutor hesitou visivelmente. — Tem certeza de que está preparado para uma missão desta envergadura, Somerville?

— Claro que tenho! Por que me faz esta pergunta?

— Bem, você recebeu apenas três meses de instruções na CIA, tem apenas vinte e cinco anos e, com essa idade, os espiões costumam estar ainda muito verdes, salvo pouquíssimas exceções.

— Ora essa! O senhor sabe muito bem quais foram as minhas notas em todas as matérias que...

— Sei, sei. Por isso e por ser uma cara nova na espionagem internacional, pensamos em utilizá-lo nesta operação, que requer a mais absoluta cautela. Bom. Se realmente acredita estar preparado para isto, continuemos. Uma vez em contato com Al-Din, você passará a esperar, enquanto ele dá início ao recrutamento de homens para o trabalho de desmonte dos projéteis. Enquanto espera, você poderá passear por Istambul, tranqüilamente. Hospedará-se no “Hotel Paxá”, onde já foi reservada uma “suíte” em nome de... — apanhou um passaporte sobre a mesinha e entregou a Somerville — ... em nome de Mihail Posinov, cidadão russo ucraniano, jornalista. O motivo de sua permanência em Istambul será a coleta de material para vários artigos referentes à mistura de religiões naquela cidade habitada por judeus, ortodoxos, protestantes, católicos romanos, católicos do rito armênio, gregorianos, maometanos (que parecem constituir o grupo mais numeroso). Enfim, tudo isso.

— Vejo agora por que nos últimos dias me obrigaram a estudar religiões — sorriu Somerville.

— Exatamente.

— Claro... Isto é tudo?

— É tudo. Você partirá esta noite para Roma. Ficará lá apenas um dia. De Roma, seguirá para Istambul. Assim, sua chegada não será por avião procedente de vôo intercontinental.

— Compreendo. Podem confiar em mim: conseguirei retirar esses projéteis da Turquia. Mmm... Não posso saber agora Onde estão?

— É melhor que não saiba, por enquanto. Não seja impaciente, Somerville. Quando nosso agente se puser em contato com você, tudo começará a funcionar depressa. É sempre assim. Chega esse agente e as coisas se processam com rapidez vertiginosa. Não esqueça a senha.

— “Os espiões americanos estão malucos” — citou, rindo, Somerville.

— O que parece bastante certo, não é mesmo? — tentou sorrir o outro. — Bem, será melhor que você leve estes papéis e que os estude durante uma ou duas horas, até sua saída daqui, da Central. Gostaria ainda de lhe dizer uma coisa, Somerville.

— Escuto.

— Os russos não são uns idiotas.

— Oh, eu sei! E compreendo o que quer dizer.

— Não confie excessivamente em sua própria inteligência. Nem em sua força física. Nada de dar a cara, de entrar em choque: e melhor escorrer por entre os dedos do inimigo. E caso lhe interesse, direi que de acordo com informações fidedignas há várias semanas que agentes da MVD soviética estão perambulando por Istambul, além da conta, e que segundo parece tem certas suspeitas a respeito da existência desses foguetes, ou algo semelhante. Você é completamente novo na espionagem: não complique sua vida. Evite despertar suspeitas, pois de outro modo não demorará muito a aparecer flutuando nas águas do Corno de Ouro.

Richard Somerville passou a língua pelos lábios.

— Terei o maior cuidado para que isso não aconteça.

— E outra coisa. Se vir que...

Mr. Cavanagh apertou um dos botões de comando a distância e, enquanto na pequena, tela do televisor continuavam a aparecer os dois homens, sua voz quase se extinguiu, tornando-se um murmúrio apenas audível. Voltou-se um pouco para a direita.

— E então? — perguntou. — Que lhe pareceu?

— É um rapaz encantador, inteligente e forte. Mas tenho dúvida de que esteja de fato preparado para essa missão. A envergadura do assunto talvez exceda suas possibilidades.

Cavanagh, chefe direto de “Baby” na Central da CIA, ou na “Matriz da Floricultura”, assentiu com a cabeça. Foi lentamente a um dos armários metálicos, enquanto perguntava:

— Que tal a viagem de helicóptero?

— Oh, excelente! — riu Brigitte. — O senhor sempre manda rapazes muito de meu agrado. O Johnny do helicóptero era delicioso... e tive que dar-lhe um prêmio.

Cavanagh voltou com um dossiê nas mãos.

— Se for comentado que você anda beijando seus companheiros, todos os homens do país vão querer ingressar na CIA.

— Ah! — exclamou “Baby”. — Parece que está de excelente humor esta tarde.

— Assim é. A jogada que estamos preparando é tão sensacional, que estou me sentindo eufórico. Esperemos que tudo saia como foi planejado.

— Se se refere a esse rapaz, insisto em que não o julgo...

Cavanagh ergueu a mão pedindo silêncio e tornou a sentar-se junto de Brigitte. Abriu o dossiê, olhou-o, tornou a fechá-lo e ficou pensativo um instante.

— Esse rapaz chama-se Richard D. Somerville. É filho de um diplomata americano que serviu há muitos anos em Istambul, ou Constantinopla, quando esta era ainda a capital da Turquia. Faleceu há uns vinte anos num acidente de automóvel. Em Istambul, precisamente. Com ele perdeu também a vida sua esposa, Norma Somerville, née Norma Davidson. Após esse trágico acidente, o rapaz, que na época tinha sete anos de idade, ficou só na Turquia. Houve contatos por parte dos servos turcos de confiança com a família do pai, consultando a respeito da decisão a tomar. O tio do menino respondeu que mais adiante se encarregaria do assunto, visto que no momento sua mulher estava enferma e não poderia cuidar dele. Não obstante, fez remessas de dinheiro em quantidade suficiente para que ao pequeno Richard não faltasse absolutamente nada. Parece que a enfermidade da esposa se prolongou, tinham eles três filhos e as coisas se terminaram difíceis quanto à recuperação do rapazinho. Foi um caso algo complicado em nosso sistema de recuperação de cidadãos americanos.

Acendeu um cigarro e ficou pensativo. Brigitte estava muito atenta à sua explicação, mas olhava a tela do televisor, onde apareciam ainda Somerville e o experimentado agente que lhe ministrava instruções.

— Que mais? — perguntou.

— Bem... Quando o rapaz completou dezoito anos, fartou-se da Turquia. E veio para os Estados Unidos, por sua conta e risco, apresentando-se em casa dos tios.

— Um jovem decidido.

— Bastante. Ao que parece teve boa acolhida. A tia continuava em precário estado de saúde, mas claro que um rapaz de dezoito anos já não era a mesma coisa que um menino de sete, de modo que ele ficou com sua família. Cursou a Escola Secundária e ingressou na Universidade, obtendo diploma de Engenheiro Aeronáutico.

— Ora viva! — exclamou “Baby”. — Agora compreendo por que foi escolhido para este trabalho. Desmontar foguetes requer conhecimentos especiais...

— Que Richard Somerville possui de sobra. Prossigamos com sua trajetória: munido do diploma de engenheiro, conseguiu emprego numa firma não muito prestigiosa nem conhecida: “Maxwell Aircraft Corporation.” Estava então com vinte e pouco anos. E assim estiveram as coisas até que, haverá três meses, respondeu a um de nossos anúncios.

— A qual? — indagou Brigitte.

— Você sabe que, ocasionalmente, oferecemos através de jornais e revistas “empregos excelentes, interessantes, com possibilidade de uma vida intensa, aventuresca etc, etc...”

— E ele escreveu para o endereço indicado?

— Exato.

— Não lhe agradava o emprego que tinha?

— De um modo... normal. Ele foi investigado, selecionado e admitido em nossa academia especial, juntamente com outros oito que tinham respondido aos anúncios.

— Foi bom aluno?

— O melhor. Está quase à sua altura, “Baby”. Pelo menos no que concerne a, controle da personalidade, inteligência, reflexos, aproveitamento das oportunidades. Não é preciso dizer que seus conhecimentos de aeronáutica o colocam numa situação ímpar. Além disso, é um esportista excelente, dotado de fabulosa resistência. Superou provas de fadiga de um modo que causou assombro a seus instrutores. Seu coeficiente mental é elevadíssimo. Foi perfeitamente comprovada sua capacidade como aerotécnico. Conhece o judô, o caratê, a capoeira brasileira, o boxe. É um atirador de extraordinária perícia. Além do inglês, fala o russo, o turco, o grego e o italiano. Não se perturba nunca. Apenas sorri, por muito boa ou muito má que sei a uma situação.

— Mas esse rapaz é um diamante em bruto! — exclamou Brigitte.

— De fato. Só tem um defeito.

— Um defeito? Qual?

— É um traidor.

“Baby” conseguiu não se alterar. Apertou um pouco os lábios e olhou novamente para a tela, onde Richard Somerville assentia às palavras de seu instrutor. Elegante, bonito, simpático, capacitado para ser um excelente espião...

— Tem certeza, Mr. Cavanagh? — perguntou.

— Completa. Quando ele chegou aos Estados Unidos era um jovem surpreendente, que seus tios tiveram dificuldade em relacionar com o pequeno Dick levado para a Turquia com seus pais na idade de três anos. Mas era naturalismo que tivesse mudado, não?

— Sem dúvida. Muito lógico que o aceitassem Bem reservas.

— Sim. Isso devia estar calculado...

— Por quem?

— Bom... Quem senão os russos? Temos certeza de que o verdadeiro Richard Somerville, filho de um diplomata americano, foi retirado de circulação e substituído por outro rapaz. O servidor turco que ficou com ele era, provavelmente, um espião soviético colocado na residência de seu pai, diplomata americano... Está percebendo a grande jogada? Estiveram preparando aquele rapaz, o novo, durante anos e anos. Depois, enviaram-no aos Estados Unidos. Universidade, emprego numa companhia construtora de aviões e, finalmente, a oportunidade de ingressar nada menos que na CIA — Cavanagh indicou a. tela.

— E aí o temos.

A expressão da agente “Baby” era agora fria, quase gelada.

— Mas por que o deixaram entrar, se sabiam de tudo isso?

— Soubemos demasiado tarde. Sua história era perfeita. Mas, por ter permanecido tanto tempo na Turquia, achamos conveniente investigar um pouco mais. Depois que morreram seu pai e sua mãe, os tios nos Estados Unidos não receberam nem uma só fotografia do rapaz. Impossível identificar no homem de hoje o menino de três anos. Entretanto, seus traços faciais, certas características cranianas etc... foram objeto de meticulosa análise. Ao mesmo tempo, como sabíamos que tinha sido operado de apendicite aos cinco anos, procuramos o médico que o operou. O doutor Stephen McPherson está agora com sessenta e dois anos, quase aposentado. Efetivamente, esteve na Turquia, em Istambul, naquela época, adido à Embaixada Americana. Operou o garoto, lembrava-o vagamente. Não do garoto, mas do fato em si: um caso de urgência, já que o paciente estava muito mal. Pois esse que você vê ai — indicou a tela do televisor — também foi operado de apendicite. Como você bem pode supor, todos esses detalhes foram fotografados por nossos serviços de identificação para completar do modo mais inconfundível a ficha do novo agente, na previsão de que um dia seu cadáver tivesse que ser identificado em condições críticas quanto à possibilidade de reconhecimento. Você compreende.

— Compreendo.

— Pois mostramos a fotografia da cicatriz ao doutor McPherson. E ele disse que não.

— Não... quê?

— Que aquela não era uma de suas intervenções de vinte anos atrás. Insistimos, naturalmente, fazendo-o ver que dos cinco aos vinte e cinco anos o corpo de uma pessoa sofre logicamente um estirão considerável, que uma cicatriz pode desviar-se ou experimentar qualquer outra variação. Sugerimos algumas dezenas de possibilidades. No fim, após escutar-nos muito cortesmente, ele repetiu: “Não”. Aquela não era sua técnica de vinte anos atrás. A cicatriz era menor e mais vertical. Desenhou-nos alguns esquemas de técnicas de corte e sutura, quase que desde o início de sua carreira de cirurgião e, inclusive, de suas primeiras Intervenções quando ainda estudante de Medicina, num hospital de Nova Iorque. Alarmados, passamos aviso a um nosso agente de absoluta confiança em Istambul, pedindo-lhe que investigasse nesse sentido. A resposta tardou quinze dias a chegar: tudo quanto ele conseguira averiguar era que Selim Sunay, o servo fiel que estivera com o rapaz até a partida deste para os Estados Unidos, tinha desaparecido ao mesmo tempo. Nem o menor traço dele. Desaparecido completamente. É lógico isso?

— Suponho que não.

— E o detalhe da cicatriz. E os conhecimentos desse rapaz, sua habilidade, sua segurança de autêntico espião... Temos na CIA um desses espiões-robos preparados pela MVD. Só que já não é mais um robô.

— É um homem capaz de muitas coisas — murmurou Brigitte. — Está certo de que não há nenhum engano, Mr. Cavanagh?

— Certíssimo. É um agente soviético.

— Bem. Devo encarregar-me dele?

— Matá-lo? Não, não... Ainda não. A traição está na ordem do dia, em espionagem. Devemos tirar partido dela. Ouviu o nome do contato proporcionado a Richard Somerville em Istambul?

— Maulana Al-Din, não?

Cavanagh sorriu.

— Suspeitamos que seja outro traidor. Espero que tenha fixado bem seu rosto quando foi projetado na teia da sala onde estão Somerville e seu instrutor.

— Seria capaz de reconhecê-lo em qualquer momento.

— Ótimo. Agora, veja este outro, também de um turco — comprimiu um dos botões do dispositivo de comando a distância e solicitou projeção do Canal 15. A cara de outro turco apareceu no pequeno televisor, substituindo as imagens dos dois homens. — Aí o tem. Este sim, é um de nossos agentes mais leais: Yunuz Rumi. Completamente fiel à CIA, o que já foi comprovado uma dezena de vezes, duas delas durante o cumprimento de missões tão importantes ou mais que a retirada desses foguetes dirigidos.

— É consolador saber que ainda existem pessoas leais.

— Lembrará também esse rosto?

Brigitte fechou os olhos e citou:

— Yunuz Rum! Uns cinqüenta anos, cabelo grisalho, olhos negros e grandes, enorme bigode quase branco... Parece um pouco cigano. Orelhas muito salientes, lábios grossos e risonhos, queixo...

— Chega — cortou Cavanagh. — Muito bem, esse é o homem leal em Istambul. O outro, Maulana Al-Din, suspeitamos que sei a um traidor. Quanto a Richard Somerville ou Mihail Posinov, nome sob o qual o enviamos à, Turquia, é um traidor sem dúvida alguma.

— Suponho que o instrutor não lhe diga o lugar exato onde estão escondidos os três projéteis. Principalmente se levarmos em conta que, segundo parece, os russos estão farejando alguma coisa em Istambul.

— Pois creio que, em seu devido tempo, deixa­remos essa gente saber onde temos os projéteis.

— Que significa em seu devido tempo?

— Significa que os russos saberão onde se encontram os projéteis quando nos convier que o saibam. Mais ainda: nós os ofereceremos a eles praticamente numa bandeja.

— Vamos entregar-lhes os projéteis? — sobressaltou-se Brigitte. — Isso sim, é algo que escapa à minha compreensão. Se os russos conseguirem esses foguetes, não deixarão de fazer escândalo e acusar-nos de fraudulentos, já que eles retiraram os de Cuba, que nos comprometemos a fazer o mesmo com os que tínhamos na Turquia e...

— Prossiga — sorriu Cavanagh.

— Com essa Conferência de Desarmamento recentemente realizada, as assinaturas apostas, as promessas... Eles usarão contra nós toda a sua tremenda dialética, nos acusarão, nos insultarão diante de todo o mundo e com pleno direito. Além disso, terão excelente pretexto para tornar a montar suas bases em Cuba. Um desastre completo!

— De fato: seria um desastre se eles conseguissem capturar esses três projéteis na Turquia.

— Mas não disse que lhes serão entregues numa bandeja?

— Teoricamente.

— Mmm... Teoricamente?

— Cavanagh adotou uma expressão muitíssimo astuta.

— Você pensou na dificuldade de retirar da Turquia esses três projéteis, mesmo desmontados? É algo pouco menos que impossível.

— Eu poderia tentar...

— E talvez com êxito, porque de você já nada nos surpreende. Mas perguntamos a nós mesmos: por que complicarmos a vida? Por que trabalhar quando outros podem fazer o trabalho? Não seria Isso realmente absurdo e estúpido de nossa parte?

Brigitte ficou boquiaberta uns segundos. Subitamente fechou a boca e, contraindo as pálpebras, murmurou:

— É um plano arriscadíssimo... Terrivelmente audaz! Ficaria escrito na história de espionagem como algo inconcebível, inacreditável!

— Vejo que compreendeu — disse Cavanagh, satisfeito. — Não esperava menos de você. Acha a coisa realizável, sinceramente, Brigitte?

— É realmente tão difícil e perigoso esse plano, tão inédito e imprevisível, que não sei... Quem dirigirá a operação global? O “Senhor Europa”[1]?

— Isso seria complicar muito as coisas. Digamos que “Europa” poderia ficar em expectativa silenciosa, para o caso de que algo venha a falhar. Mas a verdade é que temos uma fé cega no agente que comandará esta operação. Até agora, nunca falhou.

— A agente “Baby”? — sorriu Brigitte.

— Exato. Aceita? Se você aceitar, e espero que sim, permanecerá dois dias na Central elaborando todo o plano até o último detalhe: contatos, escapatórias, armamento, veículos, pessoal... Se esta jogada nos sair bem a espionagem russa se ruborizará de vergonha. Eles mesmos retirarão para nós esses projéteis da Turquia. Depois, a agente “Baby” terá a palavra.

Brigitte acionou o comando do televisor até recuperar a imagem de Richard Somerville, que estudou em silêncio, durante quase dois minutos.

O novo espião da CIA, reconhecidamente traidor, conversava animado com seu companheiro, sorrindo. Agora estava fumando e tinha aceitado um uísque. A conversa parecia ter-se tornado mais amena versando sobre assuntos de caráter pessoal.

Um esplêndido tipo de homem. Alto, elegante, inteligente, simpático, saudável, culto...

Tudo isso. E também um traidor. Ou não?

— Não há erro possível a respeito dele?

— Nenhum.

— Poderei fazer as coisas à minha maneira?

Cavanagh suspirou com certo desalento.

— Já desistimos de lhe dar ordens, “Baby”. Nós lhe fornecemos os dados e meios materiais de trabalhar, sem limite de gastos ou de qualquer outra coisa. Nada de ordens a “Baby”. Nós lhe fornecemos recursos e queremos resultados. É tudo. Para que lhe pedir mais?

Brigitte assentiu com a cabeça. Apagou o televisor e voltou-se para Cavanagh.

— Começarei a trabalhar quando o senhor quiser.

— Que tal agora?

— Não sei de momento melhor.

 

A jovem estrangeira deteve-se diante da A suja montra de um dos bazares do bairro antigo de Istambul, contemplando os tapetes, almofadas, cafeteiras, vasos de cobre recamados de arabescos.

Uma estrangeira de grandes olhos azuis, corpo escultural, mas talvez um tanto delgado para o gosto dos turcos que passavam diante do velho bazar. Aos otomanos, segundo parecia, agradavam as mulheres com muitas libras de carne, especialmente em determinados lugares de sua anatomia. E aquela estrangeira, se comparada com a “formosa” mulher turca de cem quilos, tornava-se insignificante.

Ouvia-se incessantemente o rumor de pessoas passando diante do bazar, às costas da jovem de olhos azuis. Algumas palavras turcas, olhares ardentes, fumaça de cigarros de fumo louro, suave...

Do interior do bazar saiu um homem de uns cinqüenta anos, cabelo grisalho e abundante, Imenso bigode quase branco e olhos negríssimos. Parecia um cigano. Um cigano amável, sorridente e tão cortês que esperou que ela o olhasse para sugerir:

— Tenho de tudo, efendim[2]... De tudo, se me der a honra de entrar, poderei mostrar-me tudo quanto deseje.

A belíssima estrangeira de olhos azuis e cabelos negros olhou o turco, sorrindo com displicência. Pareceu que ia se afastar, mas dois gatos cruzaram diante de seus pés. Todo o bairro dos bazares estava cheio de gatos. Talvez fosse a mesma coisa em toda Istambul, em toda a Turquia.

— Poderia adivinhar meus desejos? — perguntou ela, num inglês muito mais perfeito que o do turco.

— Não. Não poderia. Mas posso dizer que seus desejos são ordens para mim, efendim.

Ela agora sorriu de um modo total, doce, simpático. Ver aquele sorriso era como ter encontrado o caminho que leva aos paraísos prometidos por Maomé.

— Ordens? — perguntou.

— Ordens severas. Mas, por favor, efendim, entre... Honre minha pobre loja com sua presença radiante.

O homem afastou-se para lhe dar passagem. Dentro do bazar as coisas se amontoavam em colorida desordem: cachimbos de narguilé, esteiras, vasos, tapetes, facas recurvas, cimitarras com punho de marfim e inscrições em ouro. De tudo. Absolutamente tudo.

— Estamos sós? — perguntou ela.

— Assim é, efendim.

— Bem. Então, talvez você possa dizer quem sou.

O turco com aspecto de cigano simpático e maroto sorriu, mostrando uns dentes branquíssimos.

— Espero que meu discernimento não me tenha falhado, efendim. Tenho a satisfação de estar em presença da agente “Baby”?

— Tem essa satisfação, sim, Yunuz Rumi — sorriu Brigitte.

— Ah! É maravilhoso... Maravilhoso! Há muitos anos que ouço esse nome no mundo da espionagem — seu inglês tinha melhorado consideravelmente. — Posso lhe oferecer café?

— Ficarei muito agradecida. Estamos em segurança, aqui, Yunuz?

— Oh, sim! Mas, além disso, passaremos à parte traseira. Esperava sua chegada hoje, a esta hora, de modo que minha esposa e meus nove filhos foram... convenientemente evacuados.

— Você tem nove filhos? — assombrou-se “Baby”.

— E logo terei dez. Minha mulher está... muito gorda. Gordíssima. É preciso viver bem com todos. Na Turquia, uma boa coisa, que ajuda muito um homem, é ter uma quantidade de filhos. Diferente dos Estados Unidos, não é?

— Sim. Diferente.

Yunuz Rumi tinha afastado uma cortina no fundo da loja, dando passagem a Brigitte, que olhou para o escuro corredor, depois para o amável e sorridente turco.

— Não há perigo. Não sou traidor, agente “Baby”. Yunuz sempre soube reconhecer a amizade americana. Por favor, siga em frente, depois à esquerda.

Ela obedeceu. Entrou no corredor, viu logo à sua esquerda uma cortina, afastou-a e encontrou-se numa pequena peça cheia de otomanas, cheirando intensamente a tabaco e café. Uma mesinha baixa com um livro sobre ela, uma lâmpada vermelha no teto.

— Aqui recebo meus amigos. Fumamos e tomamos café. Considere-se como uma boa amiga minha. Trarei café agora mesmo.

Quando ele voltou com o café, Brigitte estava fumando, pensativa, um dos cigarros turcos que tinha encontrado sobre a mesinha e contemplando o peludo e luzidio gato-de-ancara que se enroscava numa das otomanas. Yunuz serviu o café, sentou-se diante dela e acendeu também um cigarro.

— A viagem foi boa? — perguntou polidamente.

— Muito boa, Yunuz. Obrigada. Que sabemos do nosso traidor?

O turco tomou um gole do café quase fervente.

— De qual deles? Al-Din?

— Não. Esse é um traidor pequeno, do tipo comum. Não lhe devemos dar muita importância. Estou falando do americano que chegou aqui com o nome russo de Mihail Posinov.

— Ah, esse rapaz... Já se avistou com Maulana Al-Din. Não sei sobre que falaram, mas, Já que ambos são traidores, podemos Imaginar o tipo de conversa que mantiveram. A coisa está muito agitada, agente “Baby”. Tenho quase Certeza de que os russos estão procurando com muito afã esses projéteis norte-americanos. Algo vieram a saber, suponho que por Intermédio de Maulana Al-Din. Quanto ao falso americano que chegou munido de um passaporte russo com o nome de Mihail Posinov, está muito tranqüilo, de acordo com as Instruções que lhe foram dadas. Entrevistou-se com Al-Din, pediu-lhe homens para o desmonte dos projéteis e, enquanto este os recruta, ele se dedica a passear.

— Espero que Al-Din continue ignorando que você trabalha para a CIA, Yunuz.

— Ignora, é claro.

— Você o tem mantido sob vigilância?

— Não muito, esta é a verdade. E não me peça que lhe dê provas exatas de que é um traidor. Eu digo que é, e isso lhe deve bastar.

— De acordo. Que faz Mihail Posinov, nosso grande traidor?

— Nada. Passeia por Istambul.

— Não fez contato com ninguém mais?

— Até o momento, não. A menos que isto tenha ocorrido dentro do hotel onde se hospeda, o “Hotel Paxá”.

— Tudo é possível. Sabe quantos homens Al-Din recrutou para desmontar os foguetes?

— Seis ou sete. Não são muitos. Trabalha devagar, ganhando tempo... Suponho que espera sua visita, isto é, a visita do agente especial que lhes dirá onde estão os três foguetes, para que Mihail Posinov comece a estudar o desmonte. É de esperar que quando Maulana Al-Din souber onde estão os foguetes intervenham os agentes soviéticos. Seu objetivo lógico será apoderar-se desses projéteis dirigidos.

— Esperamos que assim seja. Como estão se comportando os russos, aqui em Istambul?

— Como sempre. Istambul é uma cidade privilegiada, digamos, quanto à abundância de espiões. Há de todos os tipos. Claro que se nota uma tensão especial entre os agentes da MVD, mas eles se contêm o melhor que podem. Há qualquer coisa que os torna impacientes.

— Os foguetes americanos — sorriu Brigitte: — eles os querem.

— Não os conseguirão.

— Pelo contrário, Yunuz — tornou a sorrir “Baby”. — O plano é que os consigam. Mas no devido tempo. Por enquanto, acho que a CIA deve atuar com certa naturalidade. Maulana Al-Din portou-se bastante mal ultimamente. Em conseqüência, o lógico é que a CIA lhe aplique um castigo.

— A morte?

— Com efeito. Não merece outra coisa. E isso é uma necessidade. Do contrário, os russos suspeitariam que estamos tentando uma jogada especial. É norma matar os traidores. Portanto, Al-Din será executado.

— Devo encarregar-me disso eu mesmo? — perguntou Yunuz.

— Teria alguma dificuldade em fazê-lo?

— Temo que sim. Maulana transformou-se num personagem de certa importância. Introduziu-se nos círculos políticos e diplomáticos. Não é corrente encontrá-lo em circunstâncias propicias, como, por exemplo, passeando, fazendo compras, saindo de um café... Leva uma vida retirada. Melhor dito: move-se dentro de um circulo fechado ao qual é difícil chegar. Por outro lado, os russos passaram a considerá-lo muito valioso, de modo que em torno dele há sempre uma vigilância severa.

— Você não poderia chegar até esse traidor?

— Poderia. Mas teria que ser de um modo declarado, pondo-me em evidência. Não obstante, se é preciso matá-lo, eu o farei.

— Não... — murmurou “Baby”. — Não, Yunuz. Temos que reduzir os riscos ao mínimo. Sabe onde se estão reunindo os homens recrutados por Maulana Al-Din?

— Num café, perto do mar, à direita do Corno de Ouro, na velha Istambul.

— São todos eles fiéis à CIA?

— Não sei. Mas é de supor que não, já que Al-Din se terá assegurado uma ajuda, para o caso de algo não lhe sair bem.

— Isto não é bom. Teremos que selecionar esses homens. Mas isso será feito quando chegue o momento. Por ora, o que interessa é liquidar Al-Din com a maior rapidez possível. Temos que dar aos russos a impressão de que estamos eliminando traidores para iniciar uma operação de envergadura.

— É uma boa idéia. Além disso, se eliminarmos Al-Din, eles se verão obrigados a descarregar todo o peso do trabalho em Mihail Posinov, esse simpático rapaz que está pretendendo enganar a CIA. Que se planeja fazer com ele?

— Utilizá-lo — sorriu Brigitte. — Apenas utilizá-lo, Yunuz, até que se torne inútil para nós. Onde posso encontrar Maulana Al-Din o mais depressa possível?

— Você mesma se encarregará de matá-lo? Acha que o poderá fazer?

— Sou uma especialista, Yunuz. Nunca falho. Diga-me onde ele está e, antes da meia-noite, esse traidor de segunda categoria terá deixado de existir.

— Bem — sorriu o turco — eis qualquer coisa que eu gostaria de ver. Justamente esta noite Maulana Al-Din estará... fora de nosso alcance.

— Porquê?

— Comparecerá a uma festa na Embaixada do Irã no bairro da Gálata. Sua posição como diplomata consente que esteja bem escoltado. Além disso, há homens da MVD que velam por sua segurança, que o vigiam na sombra.

— Compreendo. Podemos chegar de algum modo a essa Embaixada?

— Chegar, sim. Entrar, já será mais difícil. Minha opinião é que, para matar Al-Din hoje mesmo, seria necessário agir de um modo... fanático.

— Fanático?

— Sim. Um louco fanático que estivesse em desacordo com sua personalidade ou idéias políticas, e que se dispusesse a matá-lo... e a deixar-se matar.

— Ora, vamos, Yunuz, Isso é uma tolice! Diga-me onde está esse sujeito e eu o degolarei.

— Degolará? — brilharam os olhos negríssimos do turco. — Oh, por Maomé, efendim, seria maravilhoso para eu saber que esse asqueroso indivíduo teve a garganta cortada! Mas não poderá ser hoje, a menos que você mesma se disponha a ser a fanática determinada a sacrificar sua vida contanto que o traidor morra primeiro.

— Jamais sacrificaria minha vida por motivo semelhante. Haverá mulheres nessa festa da Embaixada do Irá?

— Sem dúvida! A Turquia está à altura de qualquer país ocidental. Já não há mulheres com o rosto coberto por um véu, nem são elas obrigadas a permanecer em casa. Circulam livremente por todo o país, trabalham, riem em público... e quase olham sorrindo para os homens!

— Isso é um escândalo! — comentou jocosamente Brigitte. — Um verdadeiro escândalo, Yunuz. Você tem um veículo fechado?

— Uma camioneta.

— Esplêndido! A que horas é essa festa?

— Às dez.

— Temos tempo de sobra. Você conhece a Embaixada? Poderia desenhar seus jardins, suas portas visíveis desde a rua...?

— Posso fazê-lo com os olhos fechados.

— Faça então... mas com os olhos bem abertos.

Yunuz Rumi saiu da saleta, voltou com papel e esferográfica, sentou-se diante de Brigitte e pôs-se a desenhar, acrescentando detalhes à medida que ela os ia pedindo. Por fim, “Baby” assentiu satisfeita.

— Perfeito, Yunuz.

— Pode ficar com o esboço, se quiser.

— Queime-o. Não o necessito mais. Preciso é de você e de sua camioneta.

— Eu estou às suas ordens, efendim.

— Volte para a loja. As nove, sairemos os dois daqui. Até lá, nada a fazer, Yunuz.

— Está bem, efendim.

O turco saiu da saleta e Brigitte esteve meditando uns cinco minutos, até que ouviu vozes fora, em turco. Pelo jeito, Yunuz Rumi tinha um cliente. Sorriu e abriu a maleta vermelha, companheira inseparável em todas suas missões. De uma bolsa de plástico, não maior que uma caixa de meias, sacou um vestido negro, de noite, feito de um tecido brilhante, finíssimo. Caíram no chão duas peças íntimas, também negras. Deixou tudo sobre uma das otomanas e despiu-se rapidamente, completamente. Estava colocando as calcinhas negras quando Yunuz apareceu na porta, com a boca aberta, disposto a dizer alguma coisa. Mas assim ficou, de boca aberta, imóvel, contemplando aquela nudez maravilhosa.

— Que é? — sorriu amavelmente “Baby”.

— Nada, nada...

— Você queria alguma coisa, suponho.

— Bem. Ia fazer um comentário sobre minha loja — disse ele, fazendo saltar algumas moedas na palma da mão. — Mas fui muito inoportuno.

Brigitte encolheu os ombros e colocou o sutiã.

— Qual era o comentário?

— A respeito da loja... Pergunto-me o que seria de mim e de meus filhos se não tivesse essa subvenção da CIA.

— Um bom comentário. E não se esqueça, Yunuz: a CIA lhe permite manter uma porção de filhos.

— Sim... Tem armas, efendim? Se precisar de alguma...

— Tenho tudo. Agora, dormirei até as nove menos quinze, hora em que você me acordará. E tenha a camioneta preparada: faremos uma visita à Embaixada do Irã.

Yunuz hesitou visivelmente.

— Olhe que é muito arriscado, efendim. Não deveria se expor pessoalmente. Se fracassar nesse trabalho secundário, não haverá ninguém para dirigir o assunto dos foguetes dirigidos.

— Nada me acontecerá. Além disso, Yunuz, não há um provérbio que diz: “Quem quer vai, quem não quer manda?”

— Há, sim, efendim.

 

Às dez e meia da noite, após dar duas voltas discretíssimas em torno da Embaixada, uma camioneta passou novamente muito próxima ao gradil dos jardins. E da camioneta em plena marcha saltou uma sombra negra, que correu para o gradil, escalou-o rapidamente e deixou-se cair do outro lado, tudo isto em menos de dez segundos.

Ao fundo, as luzes da Embaixada, som de música, de risos discretos... Tudo como acolchoado, distante.

Dois minutos mais tarde, aquela sombra negra aparecia à luz, transformada na agente “Baby”, magnífica em seu singelo vestido de noite, sem jóias de nenhuma espécie, sem nenhum adorno ou maquilagem. Simplesmente uma formosa mulher ataviada com um leve, simples, elegantíssimo vestido negro e tendo na mão esguia uma pequena bolsa de lamê, também negra. Num instante, depois de cruzar o umbral da porta-janela que abria para o jardim, Brigitte encontrou-se num grande salão, onde nada menos que cem convidados se entretinham sorridentes, tranqüilos, cada um se dedicando à exposição de suas próprias idéias.

Num ponto do salão, Maulana Al-Din, irrepreensível em seu summer-jacket, muito sorridente, palestrava com três cavalheiros, um deles ruivo, altíssimo, falando em voz cantante e apoiando suas palavras com uma eloqüente gesticulação. Pessoas de várias raças e de nacionalidades mais variadas ainda conversavam sossegadamente. Um ambiente muito tranqüilizador, se sob ele não estivesse sempre latejando a guerra-fria.

Durante uns dez minutos, pelo menos, Maulana Al-Din esteve escutando cortesmente seu interlocutor, segurando com certa impaciência uma taça cheia na mão direita. Depois disse qualquer coisa, sorrindo, e dirigiu-se ao aparador onde serviam as bebidas. Claro que não lhe interessavam as que contivessem álcool, pois que este é terminantemente proibido aos crentes do Islam. Diz-se que um maometano talvez transgrida esta prescrição religiosa na intimidade, nunca, porém em público.

Quanto a Maulana Al-Din, pelo menos, isto era certo, pois pediu:

— Scherbet. De rosas.

Isto, sim, era permitido aos maometanos, sendo o scherbet de rosas talvez o mais apreciado de todos, devido ao seu fragrante aroma e seu excelente sabor.

E justamente quando o garçom lhe servia o scherbet, Maulana Al-Din ouviu uma voz feminina bem junto a ele:

— Não me olhe, Al-Din. Não ostensivamente, pelo menos. Mas dentro de dois minutos vá ao jardim e encaminhe-se para a esquerda. Estarei à sua espera junto às romãzeiras.

— Quem é você?

— Eu não tenho importância. Mas a CIA tem. Dentro de dois minutos, não esqueça.

Maulana Al-Din tomou um pequeno gole do seu scherbet e voltou-se ligeiramente, a tempo de ver uma mulher elegantemente trajada de negro a caminho da saída para o jardim. Franziu a testa, tomou mais um gole e voltou-se para dois homens que o olhavam, mas que aparentemente não tinham percebido a aproximação da mulher e seu contato verbal com ele. Os dois homens captaram seu olhar, sendo que um assentiu com rápida piscadela quando ele começou a ao dirigir para a saída do salão.

Uma vez no jardim, desviou para a esquerda, encontrou imediatamente as romãzeiras e, quando já se estava mostrando perplexo, a mulher surgiu diante dele.

— Quem é você? — insistiu Al-Din.

— A agente “Baby”, da CIA. Fui notificada de que devia pôr-me em contato consigo para reforçar a segurança do homem que aqui se faz chamar Mihail Posinov. Ele está bem. Al-Din?

— Olhe, não sei absolutamente o que está dizendo...

— Talvez me entenda melhor se lhe disser que estou aqui para tratar do assunto dos projéteis dirigidos.

— De que está falando?

— Da retirada desses projéteis. E sei muito bem tudo quanto cancerne à operação, já que me foi confiada a direção da mesma.

— Sabe onde estão os projéteis?

— Claro que sei.

— E onde estão? — perguntou Al-Din com agudo interesse.

— Perto da Ponta Sakarya, uns oito quilômetros para a direita. Exatamente a cinqüenta quilômetros de Istambul e a seis de Kandira, num ponto à margem do rio.

— Do rio Sakarya?

— Precisamente. A menos de cem metros de sua desembocadura do Mar Negro. Satisfeita sua curiosidade, Al-Din?

— Não se trata de curiosidade pessoal. Deve saber que estou recrutando homens para... Que está fazendo? Que é isso?

— Uma pequena câmara fotográfica, derivada da “Polaroid”. É tão eficaz como esta para obter fotografias instantâneas, só que muito menor e mais manejável.

— Bem, mas... que pensa fazer com ela agora?

— Tirar uma fotografia.

— De mim? Por quê?

— Olhe, Al-Din, já satisfez sua curiosidade. Depois de muito tempo no escuro, conseguiu saber exatamente onde estão os três foguetes norte-americanos. Deverá compreender que não lhe dei tal informação impensadamente, mas sim por um motivo bem determinado.

— Que motivo?

— Sua morte.

— Minha mor...? Ouça, eu...!

A mão direita de “Baby” moveu-se velozmente e, com ela, algo muito brilhante. Ouviu-se um golpe surdo, um sinistro rasgar de carne, um estertor... Maulana Al-Din foi lançado pelo golpe contra a romãzeira que tinha às costas. Os terríveis e fortes ramos se moveram, pareceram a ponto de repeli-lo, mas finalmente deram a impressão de que o seguravam. Ele ficou tombado para trás, em suspenso, braços e pernas abertos, balançando sobre os ramos floridos da romãzeira. Sua cabeça pendeu inerte e seus olhos abertos, arregalados, defrontaram a lua. Viu-se o tremendo talho em sua garganta, limpamente secionada.

Com uma frialdade arrepiante, “Baby” aproximou-se um pouco mais do cadáver e fotografou-o com a pequena máquina. Guardou-a na bolsa, limpou o punhal no branco summer-jacket de Al-Din e guardou-o também. Moveu a cabeça em desaprovação, contemplando o morto.

— A traição sempre tem este preço, Al-Din efendi. (“meu senhor”)

Captou um ruído levíssimo às suas costas e apressou-se a desaparecer entre as romãzeiras, voltando a cabeça ainda a tempo de ver os dois homens que se sobressaltavam ao deparar com o cadáver de Maulana Al-Din.

Imediatamente, os dois sacaram revólveres, olhando para todos os lados. Um deles disse alguma coisa em russo, fazendo um gesto em direção a Brigitte. Mas esta compreendeu que ainda não a tinham visto e, aproveitando tal circunstância, bem como a escassa vantagem que levava, pôs-se a correr silenciosamente para o gradil, roçando apenas os floridos arbustos. Mas não tão silenciosamente como desejaria, já que ouviu novamente a voz de um dos homens, em russo, advertindo o companheiro num sussurro que ela se dirigia para o gradil.

E por entre roseiras e romãzeiras produziu-se uma curta perseguição, silenciosa, tenaz. Ouviu-se apenas o suave movimento das ramagens, o deslizar dos pés sobre a terra fofa, algum som de respiração mal contida.

Ela chegou ao gradil folgadamente na dianteira, mas ouvindo com absoluta clareza a aproximação dos dois homens. Após um cálculo em que punha em jogo sua vida, aferrou-se às grades, escalou-as e saltou para o outro lado. Mal havia tocado o solo Quando seus perseguidores apareceram entre as roseiras, revólver na mão. Viram-na encolher-se depois do salto, como se grudando ao chão. Precipitaram-se os dois, mas da mão direita de “Baby” brotou um clarão diminuto, soou um abafado “plop” e o homem que vinha na frente pareceu chocar-se contra um muro intransponível. Foi arremessado para trás e seus pés se levantaram, enquanto ele caia de costas, com um pequeno, mas mortal orifício negrejando no centro de sua testa.

O outro também disparou, mas a mulher pareceu transformar-se em fumaça, desaparecendo como por arte de magia. Na rua soou o veloz taque-taque de saltos femininos, por três ou quatro segundos. E o homem saltou para o gradil, disposto a não deixar escapulir aquela perigosa presa.

Foi um erro.

Um gravíssimo erro, desses que se compreendem demasiado tarde. A mulher não tinha escapulido, e após produzir aquele taque-taque, como se o estivesse fazendo, ficara imóvel ao pé do gradil, acocorada, a pequena pistola apontando para cima. No alto das grades o homem a viu, quis mover a mão armada, seu rosto se crispou...

Plop.

A pequena bala entrou matematicamente certeira em seu coração. Ele soltou o revólver, inclinou-se para frente, para fora e, quando parecia que despencava na calçada, ficou pendurado numa das pontas de lança do gradil, como um espantalho trágico, olhos abertos, forçando seu “smoking” para cima de tal modo que, se já não estivesse morto, teria então falecido por estrangulamento.

Uma camioneta apareceu muito perto dali e a espiã correu para ela, erguendo um braço. A camioneta não precisou deter-se. De um salto, Brigitte agarrou-se à borda da janelinha da direita e, como uma gata bem treinada, introduziu-se por ela, até encontrar-se sentada ao lado de Yunuz Rumi, suspirando.

— Conseguiu? — perguntou o turco, voz tensa.

Ela abriu sua bolsa, sacou a pequena câmara de fotos Instantâneas e, com um ligeiro puxão, destacou a que tirara no jardim. As luzes do bairro de Gálata entravam com rápidos intervalos dentro do veiculo e, valendo-se delas, Yunuz pode ver Maulana Al-Din, degolado, caído de costas, em meia suspensão, sobre uma romãzeira.

— É uma bonita fotografia — comentou alegremente.

 

Mihail Posinov, o homem que estava inscrito na CIA com o nome de Richard D. Somerville, fazia muito bem seu papel de russo. Já passava das onze horas da noite e ele se aborrecia em silêncio, solitário, com elegância.

Um cigarro na mão, um copo de vodca à sua frente, sobre o balcão, tinha ele o olhar perdido no transparente liquido, como se dentro daquele copo pudesse encontrar o segredo de tudo. Da Vida e da Morte, do Bem e do Mal, da Diversão e do Aborrecimento. Ali, talvez flutuando na vodca, podia estar o segredo do mundo, do universo inteiro.

No bar do “Hotel Paxá” o ambiente estava muito pouco animado. Dois casais europeus, italianos pelo jeito; três turcos que discutiam calorosamente, mas sem erguer a voz. Não usavam fez, o que podia desiludir um pouco. Kemal Ataturk, o grande reformador da velha Turquia, tinha proibido a seu povo o uso do fez, como tinha proibido que as mulheres ocultassem o rosto com um véu. Disso, fazia já muito tempo. E embora este famoso revolucionário não tivesse conseguido tudo de um modo completo, o certo é que se viam muito poucos homens de fez e quase nenhuma mulher de véu. Talvez em algumas aldeias ou pequenos povoados. Mas não em Istambul, a representação mais evidente da moderna Turquia.

Bem. Onze e meia da noite não era uma hora adequada para prolongar mais o aborrecimento. Os italianos estavam bebendo cuba-libres, enquanto os calorosos turcos tomavam café. Mihail Posinov deixou de olhar a sua vodca, optando por bebê-lo, o que era muito melhor. Deixou o copo sobre o balcão, despediu-se com um gesto do barman e dirigiu-se para a saída. A idéia de que o homem estava desejando fechar o bar para Ingerir uma boa dose de uísque, rum ou vodca quase o fez sorrir, enquanto cruzava a porta que abria para o vestíbulo do hotel, com seu balcão ao fundo e com...

Foi um encontrão violento. Mihail Posinov resistiu-o bem, firme como um rochedo, inabalável em seus cento e oitenta e tantos centímetros de altura e robustos músculos. A moça levou a pior.

Os papéis e a pasta que trazia nas mãos voaram pelo ar e ela retrocedeu quatro ou cinco passos, aos tropicões, antes de reequilibrar-se e, ainda vacilante, olhar com olhos muito abertos para o atlético russo.

— Desculpe — balbuciou Posinov, em turco. — Sinto muito. Deixe-me ajudá-la a recolher tudo isto.

Inclinou-se para apanhar os papéis espalhados pelo chão, mas, como visse que a jovem não se mexia, levantou a cabeça e olhou-a. O que devia ter feito com mais atenção desde o princípio, já que bem valia a pena. Em toda sua vida, Mihail Posinov nunca tinha visto uma mulher tão bonita como aquela, com uns olhos azuis tão maravilhosos, um rosto tão adorável, um corpo mórbido e elástico tão perfeito numa estreita sala azul-pálido e um simples jérsei negro com audacioso decote em ponta.

Os dois se olharam uns segundos. Muito poucos, apenas o tempo de que as demais pessoas presentes no vestíbulo necessitaram para compreender que aquilo tinha sido um incidente sem importância.

Sem saber por que, Posinov relacionou a jovem aos dois casais italianos.

— Suponho que não fale o turco — disse em italiano.

— Não — confirmou ela. — Mas o italiano sim.

Agachou-se junto dele, dedicando-se também a recolher os papéis e a pasta.

— Eu lhe disse em turco que sentia muito. Suponho que ia distraído, pois absolutamente não a vi até que...

Puseram-se ambos de pé, ela guardando os papéis e olhando para o bar, algo desconcertada.

— Eu é que ia distraída. Vim aqui a toda a pressa para entregar estes papéis a Chelebi efendi... Mas não o vejo.

— Trata-se de um turco, certamente?

— Sim, sim...

— Há três turcos dentro do bar. Talvez seja um deles.

— Não. Já olhei e ele não está ai. Não sei o que fazer agora com isto...

— Pode deixar a pasta na portaria — sugeriu sensatamente Mihail Posinov.

— Não me entenderam lá. Mas julgo ter compreendido que Chelebi efendi não está no hotel. O caso é que ele me disse que me esperaria aqui... Agora não sei o que fazer! Talvez tenha saído e o encarregado da portaria não me entende, ou não sabe transmitir-me seu recado... Oh, seria terrível!

— O quê? — Indagou Posinov, como fascinado.

— Que eu não tivesse entendido bem o nome do hotel. Talvez ele me esteja esperando em outro!

— Tudo é possível na vida. Quer que eu pergunte na portaria? Falo o turco e me farei entender bem.

— Eu lhe agradeceria muito!

— Por nada. Estive há pouco na Itália e lá fui tratado muito bem. O menos que posso fazer por uma italiana...

— Não, não... Eu não sou italiana. Sou norte-americana. Chamo-me Natalie Hobson.

Posinov franziu ligeiramente a, testa.

— Temo que não nos entenderíamos muito bem em seu idioma, miss Hobson — continuou falando em italiano. — Eu sou russo. Mihail Posinov é meu nome.

— Oh! — exclamou ela, os olhos muito abertos.

Posinov sorriu divertido.

— Vou perguntar por Chelebi efendi. Com licença...

Dirigiu-se ao balcão e esteve falando um minuto com o encarregado da portaria, em turco. Quando voltou para junto da jovem, não parecia trazer boas noticias.

E assim era.

— Não sabem absolutamente nada sabre a pessoa que procura. Não telefonou, não fez nenhuma reserva, nem há recado algum. Lamento. Se lhe puder ajudar em alguma coisa...

— Oh... Não sei. Não sei!

Posinov olhava-a atentamente, com uma expressão amável em seu rosto viril.

— Posso perguntar-me se está em alguma dificuldade?

— Bem... São tolices minhas, senhor Provinov...

— Posinov.

— Oh, desculpe...

— Há qualquer coisa que eu possa fazer?

— A verdade é que... Bem, eu creio que... O caso é que nunca fiquei sozinha numa barcaça e...

— Numa barcaça? Compreendi direito?

— Chelebi efendi tem uma frota de barcaças de transporte no Corno de Ouro, sob a Ponte de Gálata. Eu trabalho para ele numa delas...

— Sem falar o turco?

— Chelebi efendi fala inglês. Ele e eu nos entendemos nesta língua, e eu me incumbo da correspondência em inglês, francês e italiano. Talvez ele tenha viajado para a Itália, ou a França! Não seria a primeira vez que se vê obrigado a fazê-lo repentinamente.

— Compreendo. De qualquer modo, se não lhe agrada ficar sozinha na barcaça, pode hospedar-se neste mesmo hotel.

— Impossível! Chelebi efendi ficaria muito aborrecido.

— Talvez haja alguém mais na barcaça, ou algum tripulante de uma outra...

— Estão todas no Mar Negro. Exceto a nossa, que fica sempre na ponte. Nela estão os escritórios... e os meus aposentos.

— Ah... Não me ocorre nenhum modo de servi-la, miss Hobson. Porque suponho que a idéia de passar a noite a seu lado não lhe agradará.

— Se ficasse comigo, eu não teria medo...

— É um convite? — murmurou Posinov.

— Aceitaria? — perguntou ela, impulsivamente. — Estaríamos os dois sozinhos e...

Calou-se de repente, enrubesceu um pouco e inclinou a cabeça. Quando tornou a erguê-la, já não pode ver o brilho de triunfo nos olhos de Mihail Posinov, mas sim seu amável sorriso varonil, mais de acordo com a magnífica perspectiva que ela lhe oferecia.

— Que tal se tomarmos um táxi? — propôs.

 

O táxi se deteve quase no centro da Ponte de Gálata, sobre o grande estuário chamado Corno de Ouro, que separa a velha Istambul dos bairros mais elegantes de Pera e Gálata, onde estio as embaixadas e consulados. O Corno de Ouro, avançando mais de dez quilometros terra adentro e com seus quinhentos metros de largura permite facilmente a navegação, e às suas margens situam-se as mais importantes docas de Istambul, aos pés do Estreito do Bósforo, o qual une os mares Negro e de Mármara.

Atrás, destacando-se nas luzes da cidade, o Palácio Novo, algumas mesquitas, os minaretes esguios e altíssimos. Embaixo, a ambos os lados da ponte, as águas tranqüilas e obscuras, com suas barcaças, os rebocadores, os grandes paquetes de transporte de passageiros, os barcos de pesca pintados de cores vivas.

Saltaram do táxi e a jovem indicou o gradil que orlava o estuário. Chegaram a uma das escadas que permitem descer à segunda plataforma da ponte, sob a qual instalavam-se escritórios, fábricas e que era utilizada para carga e descarga. Em cima, passavam trepidando alguns veículos, já escassos àquela hora. Maior ruído faziam os carros elétricos de transporte coletivo. Quando estavam descendo a escada, o bonde 19 passou em boa marcha, ruidoso, quase vazio.

— A barcaça se chama “Bósforo” — informou a jovem.

— Um nome comum.

— Por aqui...

Tomou-lhe a mão, após olhá-lo rapidamente e sorrir com deliciosa timidez.

Tinham apenas dado uns trinta passos quando ela parou e mostrou a barcaça. Era grande, mas muito velha; tinha uma espaçosa cabina, com a pequena torre de madeira e vidro para o timoneiro.

— Dentro é bastante confortável, senhor Po...

— Posinov. Talvez lhe seja maia fácil chamar-me Mihail.

— Oh, sim! Venha... Não tenha cuidado, tudo está em boas condições, contanto que não nos laçamos ao mar.

Ela puxava-o pela mão, cruzando a prancha larga e sólida. Havia barcaças a ambos os lados da “Bósforo”, mas não se via ninguém nelas. Ouviu-se ao longe o som de uma sirena e, nitidamente, a voz de um homem gritando qualquer coisa em turco. A lua brilhava num céu límpido. Tinha uma cor entre laranja, branco e azul. Sentia-se cheiro de peixe, mas o odor do mar, misturando-se, transformava-o num estranho aroma acridoce, nada desagradável embora um tanto enervante.

Abriu a porta que levava ao interior da grande barcaça. Acendeu a luz e Mihail compreendeu imediatamente que, de fato, ali se realizavam todos os dias trabalhos comuns de escritório. Era uma vasta sala um tanto desarrumada. Ao fundo havia uma porta, que ela indicou timidamente. Ao lado havia outra, entreaberta, de modo que Mihail Posinov pode ver os serviços sanitários do escritório. Um curto corredor, uma pesada e colorida cortina. Ela afastou-a, abriu a porta que havia atrás e acendeu outra luz.

Tudo mudou então. Uma peça bastante ampla, com uma bonita cama cheia de almofadas. Duas poltronas, um sofá, um armário. Tapetes, melhor iluminação, alguns quadros. Tudo em muito bom estado, limpo, impecável. A um canto, sob uma das vigias circulares, uma pequena escrivaninha, tendo em cima um vaso de cristal onde resplandeciam rosas vermelhas.

O ambiente era tão agradável, tão íntimo e sugestivo, que Mihail Posinov ficou sinceramente surpreso.

— Aqui moro eu — disse a formosa Natalie Hobson.

— É um bonito lugar... Sozinha?

— Geralmente, sim.

— Geralmente? Bem... Como disse que não gosta de ficar só na barcaça e não vi nenhum outro aposento...

— Quem fica para acompanhar-me costuma dormir ai fora, Mihail. Há duas camas de armar.

— Oh! Eu não quis dizer que...

Ela se desfizera da pasta e aproximou-se dele. Ergueu lentamente os braços e enlaçou-lhe o pescoço, enquanto seus olhos azuis brilhavam intensamente.

— Não é preciso que você use nenhuma dessas camas — murmurou.

Mihail Posinov rodeou-lhe a esbelta cintura e inclinou-se para beijá-la. Sentiu imediatamente um forte zumbido nas têmporas, o latejar do sangue em todo o seu corpo. Se havia algo indiscutivelmente certo naquela situação era que a americana Natalie Hobson sabia beijar. Teve que ser ela quem, lentamente, pôs fim ao beijo, deslizando os lábios pelo queixo de Mihail e suspirando:

— Você quer...?

— Sim! Sim!

Olhou-o sorrindo. Parecia feliz como uma menina perdida que subitamente encontra o caminho de casa.

— Ia perguntar-lhe se queria tomar alguma coisa.

— Ah... Quero sim.

— Está com pressa?

— Nenhuma.

Beijou-o na boca, devagar, comprimindo ternamente os lábios contra os dele.

— Mas não tenho vodca.

— Tem o quê?

— Penso que ainda me resta um pouco de uísque.

— Tomarei uísque, se você me acompanhar.

— Está lá fora, escondido. Chelebi efendi não gosta que eu tenha bebidas alcoólicas aqui.

— É natural...

— Volto num instante.

Tornou a beijá-lo, sempre lenta, profundamente. Mihail Posinov começava a encontrar-se numa situação realmente difícil. Ela deixou-o de súbito e dirigiu-se ao armário, que abriu. Estava de costas para ele, de modo que não viu seu gesto introduzindo a mão direita sob o casaco. Quando se voltou, com algumas peças de roupa nas mãos, o agente traidor da CIA simulou ajeitar a gravata. E isso foi tudo.

— Não demoro — disse ela, olhos brilhantes.

Saiu do quarto e Posinov foi imediatamente à pequena escrivaninha. Ouvia os passos dela, afastando-se em direção à proa da barcaça, pelo corredor. Ouvia-os com toda a clareza. E aquela roupa que tirara do armário... Mihail Posinov compreendia muito bem o jogo da mulher, sabendo assim que teria muito tempo para lançar uma olhadela aos papéis que houvesse ali. Baixou a tampa da escrivaninha e viu cartas recebidas, algumas faturas, recibos de compras feitas em Istambul, duas canetas, blocos de papel em branco... Havia uma carta iniciada, em letra miúda, graciosa: “Querida Susan: já estou ha sete meses neste país, mas não consigo aprender o turco. Sinto-me um tanto desanimada, muito sozinha e é possivel que resolva...” Aqui terminava.

Posinov abriu as gavetas, removendo papéis, com a testa franzida. Ali estava o passaporte americano: Natalie Hobson, nascida em Nova Iorque em 1940...

Mas o que lhe chamou a atenção foi a espessura da tábua vertical que tornava o fundo da pequena gaveta. Era quase duas vezes mais grossa que as tábuas de fundo das outras gavetas. Examinando-a mais atentamente, notou que não era uma tábua só, mas duas, muito ajustadas. Tentou meter a unha entre ambas, mas foi inútil. Apanhou um corta-papéis, introduziu a ponta na ranhura apenas visível... e as duas tábuas se separaram. Pareciam ter uma mola que as mantinha fortemente unidas, formando uma só tábua. Virou o corta-papéis transversalmente, mantendo-as separadas, e introduziu dois dedos no vão, com muito cuidado. Tocou em alguma coisa e, utilizando os dedos como pinças, retirou devagar o que segurara entre eles. Uma espécie de caderneta, em cuja capa viam-se as letras CCCP.

Retirou o corta-papéis, deixou-o em seu lugar, fechou as gavetas, arrumou tudo como estava e abriu o passaporte. Via-se ali também a fotografia da jovem. Só que o nome não era Natalie Hobson, mas Nadezda Sverekova, nascida em Minsk, Rússia Branca. Idade: vinte e cinco anos. Solteira...

O ruído de saltos femininos chegou como o toque de uma campainha de alarma até o simpático aposento particular de Natalie Hobson. Ou Nadezda Sverekova? Posinov guardou rapidamente o passaporte russo e sentou-se numa das pequenas poltronas. Mal decorridos cinco segundos, a jovem reaparecia.

Trajava um baby doll vermelho, algo transparente e prendera na nuca a massa compacta de seus cabelos. Tinha os olhos intensamente brilhantes.

— Demorei muito? — perguntou.

Posinov levantou-se lentamente.

— Não, quase nada.

— Trago o uísque.

Tinha uma garrafa numa das mãos e copos na outra. Levantou os braços, mostrando tudo. Posinov aproximou-se, abraçou-a pela cintura e apertou-a suavemente contra o peito. Ela fechou os olhos, oferecendo-lhe os lábios. E Posinov beijou-a.

— Mas não temos gelo...

— Nunca tomo bebidas fortes com gelo. Tornam-se muito pouco fortes para um russo.

Sentou-se no sofá. Ela derramou uísque nos dois copos, veio até ele e sentou-se em seus joelhos, sorrindo ainda com um pouco de timidez. Tinha-se a impressão de que aquela era sua primeira grande aventura.

— E como os russos gostam das mulheres?

— Preferem que também sejam russas — sorriu Posinov.

— Oh!

— Beba — disse ele, ainda sorrindo. — Não fique triste agora.

Ela bebeu e só então Posinov o fez. Um pequeno gole cauto, desconfiado.

— Você não gosta das americanas? — perguntou ela.

— Gosto. Mas prefiro as russas. Posso mostrar-lhe a fotografia de uma delas. A mulher mais bela que já vi na vida.

— Não está sendo muito amável comigo, Mihail...

— Pelo contrário. Olhe: esta é a mulher a quem me refiro.

Sacou o passaporte russo, após pousar o copo no braço do sof a. Abriu-o e colocou a fotografia diante dos olhos dela, que mordeu os lábios ao ver seu próprio rosto reproduzido naquela fotografia.

— Você encontrou...?

Emudeceu bruscamente ao ver a grande automática que Mihail Posinov apoiou de súbito na ponta de seu seio esquerdo, mal velado pelo semitransparente baby-doll.

— Assim é: encontrei-o, Nadezda Sverekova.

— Bem... Pouca sorte. Continuo em seus joelhos ou devo levantar-me?

— A situação... pessoal é agradável. Continue onde está. Como conseguiu localizar-me?

— Eu...

— Nadezda Sverekova, não percamos tempo. Sabe muito bem que sou um espião americano e tentou capturar-me. Imagino que esta noite você me teria narcotizado, ou assassinado... Isso já não importa. Quero apenas saber como me descobriu. Quem lhe falou de mim?

— Maulana Al-Din.

Os inteligentes olhos de Mihail Posinov se fecharam, talvez para ocultar a centelha de surpresa.

— Al-Din? É um traidor da CIA?

— Miserável! Disse-lhe alguma coisa sobre minha vinda a Istambul?

— Claro. É evidente que a MVD está a par da intenção americana de retirar alguns projéteis que ficaram na Turquia. Só nos falta saber onde estão estes projéteis.

— Oh! Só isso, hem? — perguntou Posinov, sarcástico. — Bem, não é muita coisa, afinal. E talvez você esperasse conseguir de mim essa informação?

— Exatamente.

— Pois perdeu seu tempo, Nadezda Sverekova. Não só pelo fato de que agora domino a situação, mas porque ainda não sei. De modo que nem me narcotizando e levando-me a um lugar onde pudessem torturar-me à vontade vocês conseguiriam saber onde estão esses foguetes.

— Que pensa fazer comigo?

— Poupar-lhe o incomodo de explicar à MVD que um agente da CIA foi mais esperto que você.

— Vai me matar?

— Sem dúvida.

— Poderíamos...

Mihail Posinov levantou-se, quase derrubando a jovem. Segurou-a por um braço e empurrou-a para a grande cama cheia de almofadas coloridas. Ela ficou de pé junto a esta, olhando-o fixamente com seus olhos azuis, nos quais brilhava uma chispa de astúcia.

— De frente ou de costas, Nadezda?

— De frente.

— Como queira. Se tiver alguma coisa a dizer...

Apontou a pistola para seu peito. E ela compreendeu que ele ia atirar. Ia fazê-lo, sem a mínima dúvida. Ia atirar, ia matá-la sem compaixão nem hesitação.

— Tenho... Tenho algo a dizer, agora que deverei empreender minha última viagem num ataúde... Na verdade, os espiões sempre viajam de ataúde, Mihail. Onde quer que estejamos, é como se nos achássemos num ataúde: a banheira, o carro, o avião, nosso próprio leito... Onde quer que estejamos, nosso ataúde está preparado, viajamos sempre nele, dispostos a morrer em qualquer momento...

— Não tenho tempo para escutar essas tolices. Mais alguma coisa?

— Sim.

— Que é?

— Os espiões americanos estão malucos.

 

E o disse em russo. Aquela mulher cujo passaporte estava em nome da cidadã russa Nadezda Sverekova falou pela primeira vez em russo, nitidamente, dando uma senha que, aparentemente, era a coisa que Mihail Posinov menos esperava ouvir naquele momento.

Ficou boquiaberto, atônito.. Ela o olhava agora com um sorriso divertido.

— Surpreso, Richard Somerville? — perguntou.

— Eu... Eu... Oh! Mas como pude ser tão idiota!

Guardou a pistola com um gesto violento, deixou-se cair no sofá, e terminou o uísque de um só gole. Rindo, a espiã internacional sentou-se a seu lado e também tomou um gole de uísque.

— Simplesmente pouco cauto, Somerville. Mmm... Creio que será melhor chamamo-nos Mihail e Nadezda.

— Por que pouco cauto?

— Se eu realmente fosse uma espiã russa, acha você que não teria tomado a precaução de postar alguns amigos aqui por perto?

— Já pensei nisso. Mas estava aqui e já não havia mais remédio que sair da situação como pudesse.

— As coisas devem ser feitas com mais astúcia. A violência só deve ser aplicada quando não houver outra solução mais conveniente. Como se tem ido em Istambul?

— Bem... Penso que, bem. Vi Maulana Al-Din e estava esperando por você... A menos que não seja você... O que quero dizer é que me surpreende o fato de que a CIA deixe em suas mãos a direção de uma empresa desta envergadura.

— A CIA sabe muito bem o que faz.

— Sim, é possível. Olhe: talvez eu esteja enganado, Nadezda, mas seria capaz de jurar que você fez toda esta encenação por algum motivo... Ou não? Acho que lhe teria sido mais fácil apresentar-se a mim e dar-me a senha, simplesmente.

— Muito mais fácil e cômodo — admitiu Brigitte. — Mas não há nada cômodo em nossa vida Mihail. Esperava que você encontrasse o passaporte com o nome de Nadezda Sverekova, naturalmente. E tratava-se apenas de saber qual seria sua reação.

— Parece-me que compreendo — resmungou Mihail: — você não confiava em mim. Se eu fosse um traidor, não estaria a ponto de matá-la julgando-a uma espiã russa, mas nos teríamos entendido... Não é assim?

— Mais ou menos.

Mihail Posinov parecia um tanto irritado.

— Dei à CIA algum motivo para que desconfiassem de mim?

— Não foi coisa da CIA propriamente, mas minha, pessoal.

— Por quê? Considera-me suspeito?

— Agora não — mentiu tranqüilamente “Baby”. — Mas a traição não é privilégio de um só Mihail.

— Não compreendo.

— Sempre há traidores.

— Sim, mas que tem isso a ver...?

— Maulana Al-Din, por exemplo.

— Como? — exclamou Posinov. — Está me dizendo que Maulana Al-Din é um traidor?

— Era. Veja esta fotografia.

Posinov olhou a fotografia de Maulana. Al-Din degolado sobre os ramos da romãzeira. Após impressionar-se ligeiramente, olhou para Brigitte.

— Foi executado? — perguntou.

— Lógico. Não está de acordo?

— Se era um traidor, merecia morrer. Quando e onde ocorreu isto?

— Há duas horas, na Embaixada do Irã.

— Bom... Não há dúvida de que quem o matou tem audácia de sobra. Posso saber o nome do executor?

— Oh, sim — sorriu angelicamente “Baby”. — Logo saberá. Teve algum contratempo?

— Nenhum.

— Não o seguiram ou...?

— Por que iriam seguir-me se esse cão de Maulana Al-Din podia dizer-lhes tudo o que quisessem? — grunhiu Posinov.

— É verdade. Mas não tudo: falta o lugar onde estão os foguetes, Mihail.

— Claro... Entendo que você conheça esse lugar.

— Com absoluta exatidão.

— Então poderíamos começar logo a... Não. Já não poderíamos.

— É evidente que não. Maulana Al-Din foi quem se encarregou de recrutar os homens para o trabalho de desmonte e, se ele era um traidor, deve haver outros nesse grupo.

— Bem. Eu diria que estamos numa situação Mihail, não lhe parece?

— Em absoluto — sorriu Brigitte.

— Em absoluto?

— Bom... Digamos que se terá que fazer uma purga entre esses homens, Mihail. Que lhe parece?

— Muito arriscado. Além disso, onde estão eles?

— Eu sei.

— Disse-lhe Al-Din?

— Não. Tenho outros amigos em Istambul, melhores do que ele. E não são traidores.

— Ah... Mas se há traidores nesse grupo, insisto em que é muito arriscado aproximar-se deles.

— Você parece estar sugerindo que os esqueçamos todos.

— Sem dúvida! É o mais sensato, não? Brigitte permaneceu pensativa alguns segundos, antes de murmurar:

— Sim, sem dúvida será o mais sensato. Mas não é assim que eu faço as coisas, Mihail. É para mim um prazer matar um traidor. Mas nunca deixei enrascado nenhum companheiro. E nesse grupo haverá alguém fiel à CIA, disposto a ajudar-nos.

— Pode ser que haja um fiel e nove traidores — opinou friamente Posinov.

— Talvez seja essa a proporção — admitiu “Baby”. — Mas por esse homem solitário eu farei o que possa.

— Você? Suponho queira dizer que mandará a mim ou a quem quer que seja para...

— Por que supõe isso?

— Você é o cérebro desta operação, não é? E parece-me pouco provável que esteja preparada para outra coisa, como matar, fugir, lutar em condições que talvez se apresentem de todo desfavoráveis...

— Bom — riu Brigitte, — nunca é tarde para aprender todas essas coisas. Quer tirar o casaco?

— O ca...?

— Por favor.

Mihail tirou o casaco e entregou-o a “Baby”, que procurou algo num ombro, tateando suavemente, roçando apenas o tecido com os dedos. Encontrou logo o que buscava: uma pequeníssima agulha, pouco maior que uma de vitrola. Estivera introduzida na ombreira do casaco de Posinov.

Este olhava a agulha com expressão estupefata.

— E isso? — perguntou.

— Como está vendo, é uma agulha... envenenada. Sentiu alguma agulhada no ombro, por pequena que fosse?

— Não...

— Pois teve sorte. Este veneno é bastante ativo.

Mihail empalideceu intensamente.

— Você me pôs isso no ombro? — balbuciou.

— Claro. Enquanto nos beijávamos.

— Ma-mas... não percebe que eu podia ter me espetado...?

— Foi apenas uma medida de precaução, Mihail. Não leve a mal.

— Mas eu podia ter morrido! — quase gritou ele.

— Não enquanto eu estivesse viva, já que tenho o antídoto — sorriu docemente Brigitte. — Mas, se você fosse um traidor e me matasse, em qualquer momento a agulha o teria espetado, Mihail. E eu não estaria para lhe oferecer o antídoto. Bem... Creio que podemos guardar esta agulha, não?

— Você — Posinov passou a língua pelos lábios — é verdadeiramente diabólica...

— Apenas uma espiã já muito farta de mentiras, Mihail. Só isso. Vou guardar a agulha.

Foi ao armário, sacou sua famosa maleta vermelha e guardou a mortal agulha numa caixinha. Quando se voltou, Mihail olhava-a fixamente. Parecia ao mesmo tempo aniquilado e perplexo.

— Não... Não é possível o que estou pensando, Nadezda...

— O quê?

— Você... é a agente “Baby”?

— Não pense tolices — sorriu Brigitte.

— Claro que é! Tem quer ser! Oh, estou-me convencendo de que sou o mais estúpido dos es­piões... Uma mulher mais bela que nenhuma, uma execução de traidor em plena Embaixada do Irã, uma astúcia sem paralelo, recurso para tudo, três foguetes que poderiam causar um grande desgosto aos Estados Unidos se encontrados na Turquia... Você é a agente “Baby”! Não o negue!

Brigitte sentou-se novamente junto a ele e acariciou-lhe as mãos.

— Não se perturbe... riu. — Não é próprio de um espião, querido.

— Estúpido, estúpido que sou! E esse talvez único homem que você quer salvar do grupo... “Baby” jamais abandona seus companheiros. Parece-me que sou menos esperto do que pensava.

— Pois tome cuidado, amor: Isso pode lhe custar a vida. Não devemos superestimar nossa inteligência, nem subestimar a dos outros. E agora, falemos desse talvez único homem que deve ser salvo. Mas esperemos que sejam mais, já que precisamos de um bom número para. a tarefa de desmonte.

— Tem algum plano para salvá-lo?

— Claro. Mas isso direi amanhã à noite, quando o pusermos em prática.

— E durante o dia, que faremos?

— Nós dois? Nada. Já estão sendo recrutados homens por outro lado, com maior segurança. Até amanhã à noite não poderemos fazer absolutamente nada.

— Bem... Suponho que não pensa pôr-me ao corrente de nada até que chegue o momento de atuar.

— Assim é, Mihail. Lamente.

— Não importa. Compreendo sua atitude, sem dúvida. Mas... pergunto-me o que faço eu aqui, então.

— Você saberá — sorriu Brigitte.

— Mmm... Será melhor que eu volte ao hotel, não?

Brigitte levantou-se e foi a uma das vigias circulares. Ali ficou, braços cruzados sobre o peito, como se a brisa estivesse demasiado fresca.

— Há uma lua muito bonita no céu — disse.

Posinov colocou-se atrás dela e pôs as mãos em seus ombros.

— Alguns chamam-na a Lua do Oriente — sussurrou. — Tem uma cor rara, um brilho tão intenso que é capaz de produzir alucinações...

— Sim...

Fê-la voltar-se.

— Nos despedimos aqui? — perguntou num murmúrio.

— Não sei de nenhum motivo para que você se vá, Mihail. E talvez haja algum para que fique.

E beijou-o.

Beijou-o tão profundamente, que ele sentiu seu sangue se acelerar. Talvez fosse o influxo mágico da Lua do Oriente. E talvez porque agora, sem o casaco, sentia com mais nitidez os elásticos seios de “Baby” contra seu peito.

— Você está-se entregando a mim? — perguntou ao final do beijo.

— Nós espiões, que viajamos sempre de ataúde, merecemos um pouco das coisas boas da vida, Mihail. Eu sempre ofereço certas compensações a meus amigos, e aceito as que eles me oferecem. Talvez amanhã estejamos mortos os dois. Mas hoje estamos vivos... e você é meu companheiro de viagem em ataúde, além de se um homem bonito e forte.

— Você sim, que ó bonita — sorriu Mihail.

— Pois se lhe agrado, possua-me. Tornaram a beijar-se, apaixonadamente. Depois, ele levou-a nos braços para a cama. Arrebatou-lhe o baby-doll semitransparente e afastou algumas almofadas redondas, das muitas que ali havia.

Ela virou os olhos, que pareciam lançar labaredas azuis.

— Não... — murmurou. — Na cama... o... Nas almofadas, Mihail...

Posinov apanhou rapidamente todas as almofadas e amontoou-as no chão. Brigitte estendeu-se sobre aquele tálamo improvisado, brilhantemente colorido e puxou-o pela mão.

— Aqui sim, Mihail. Venha... Ele não a fez esperar. Estavam sob o influxo da Lua do Oriente.

 

As onze e meia da manha seguinte, Mihail Posinov despertou, quase sobressaltado, no seu leito do “Hotel Paxá”. Sentou-se, após empunhar a automática silenciosa que tinha escondido sob o travesseiro, ao regressar da barcaça “Bósforo”.

Mas, realmente, nada estava acontecendo. Apenas o pequeno rádio de bolso, sobre a mesa de cabeceira, emitia uma tênue chamada, um discreto “bip-bip-bip”...

Apanhou-o, admitiu a chamada e murmurou:

— Alo.

— É você, Mihail?

— Os americanos... Quero dizer: os espiões americanos estão malucos — disse sorrindo. — Como está, Nadezda?

— Otimamente — soou a voz de Brigitte. — Teve algum contratempo em seu regresso ao hotel?

— Nenhum. Há alguma novidade?

— Duas. Uma delas é que não posso esquecer você. Mas é uma questão que deixaremos para resolver mais tarde.

— De acordo — sorriu Posinov. — Qual a outra questão?

— Você poderá esperar-me na barcaça, quanto antes. Procure fazer com que não o sigam.

— Seguir-me? Gostaria que tentassem.

— Lembre-se que não devemos confiar em ninguém. Nem superestimar nossa própria inteligência. Uma coisa, Mihail: é possível que quando você chegar eu não esteja na barcaça. Tudo quanto tem a fazer é esperar-me.

— Bem. E se chegar o tal Chelebi efendi, ou algum de seus empregados?

— Não seja tolo! — riu “Baby”. — Não existe nenhum Chelebi efendi e a barcaça não é mais que uma das pequenas bases secretas da CIA em Istambul. Que estava pensando?

— Pois pensava exatamente isso. São... onze e meia, mais dois minutos. Está bem que eu chegue as doze e quinze?

— É uma boa hora. Seja discreto. E lembre-se: se eu não estiver, espere-me sem se impacientar. É só, Mihail.

— Até logo, então.

Desligou o rádio e continuou sentado na cama. Sentia-se entorpecido, cansado. Foi ao chuveiro e deixou-se ficar durante dez minutos sob o jorro de água fria. Voltou ao quarto com muito melhor disposição, refrescado, a mente lúcida. Hesitou uns instantes, depois dirigiu-se ao interruptor da luz do pequeno salão da suíte. Acendeu um cigarro, apos sentar-se junto ao interruptor, e disse:

— Penso que você ouviu tudo, Máximo. Para trocarmos impressões e já que não o posso ouvir, seria conveniente que você descesse um momento à minha suíte.

Deixou o interruptor, foi até a porta, abriu-a e regressou ao sofá, aparentemente distraído. Um minuto mais tarde a porta da suíte se abria e um homem alto, de ombros quadrados, olhos frios, aparecia no pequeno salão, testa franzida.

— Você se arrisca demasiado — disse o que chegara.

— Sente-se. Tudo vai bem. Você ouviu?

— Claro que ouvi.

— Ela parece que é a agente “Baby”, essa famosa espiã americana que há anos põe todos vocês doidos. Tenho o pressentimento de que — riu desdenhosamente — poderei servi-la à MVD numa bandeja.

— Não esteja tão certo disso. Ela não é... uma mulher.

— Não? Pois lhe asseguro que sim. Muito mulher. Absolutamente uma mulher.

— Já sei a que você se refere. Mas esse não é o caso. O que nos mantém a todos bastante preocupados é sua intervenção neste assunto dos foguetes americanos.

— Preocupados? — sorriu Mihail.

— Olhe, rapaz: ela não é comum. Não é humana.

— Não diga tolices! Garanto-lhe que é completamente humana, em todos os sentidos!

— Mihail: durante anos, devido à sua permanência nos Estados Unidos, você esteve afastado da espionagem internacional, enquanto se preparava para uma missão importante, que segundo parece vai ser esta dos foguetes. Está claro que não vamos “queimar” você neste assunto, se possível; teremos que fazer as coisas de maneira que possa regressar a Washington e continuar nos prestando serviços. Tudo terá que ser bem pensado, calculado com precisão cronométrica, levando-se em conta qualquer fator, por pequeno que seja...

— Você está falando como se temesse o fracasso, Máximo; e não haverá tal fracasso. Tudo sairá bem.

— Tomara, O que eu queria dizer é que durante anos, exatamente desde que completou dezoito, você esteve completamente isolado de nós. Agora eu estou com quarenta e três. Dezoito mais que você. É uma boa idade para ver as coisas de um modo objetivo, frio. Ensinou-me a experiência que, salvo casos muito excepcionais, todos os espiões são mais ou menos idênticos. Na MVD tivemos alguns muito bons. Alguns deles enfrentaram a agente “Baby” da CIA. E nenhum destes voltou.

— Tiveram azar — comentou Posinov.

— É possível — admitiu sorrindo Máximo Zorian, subchefe da MVD em Moscou e destacado a Istambul para o assunto dos foguetes norte-americanos. — Sim, é possível, certamente. Mas nenhum deles voltou. Em compensação, agentes que dávamos por perdidos, regressaram ao fim de alguns meses. E agora vou dar-lhe uma surpresa: sabe quem tornou possível seu regresso?

— “Baby”?

— Exato! Tem que me ouvir com muita atenção, Mihail. Esta mulher não é... normal. Já sei, já sei que me poderia contar a respeito do que sucedeu esta noite! Mas não me refiro a isso. Ela tem uma mentalidade fora do comum. E isto vai deixá-lo ainda mais assombrado: ela não é da CIA.

— Como...!

— Calma, calma. Espere. Claro que ela trabalha para a CIA. Entretanto, sabemos que perdoou a vida de alguns agentes nossos. De vários. E de agentes de outras nacionalidades: chineses, franceses, espiões particulares, ingleses... Na MVD a agente “Baby” foi definida de um modo especial. Trabalha para a CIA porque é o serviço secreto que mais se adapta ao seu modo de pensar. Não obstante, se a CIA fosse empreender algo contra a Rússia e que ao mesmo tempo prejudicasse o resto do mundo, a agente “Baby” trabalharia contra a CIA e a favor da Rússia. Entende?

— Entendo... — balbuciou Posinov. — Mas tudo isso me parece tolice. Ela é uma agente americana, e pronto.

Máximo Zorian esteve pensativo uns segundos, acariciando o queixo quadrado e sombreado de azul devido à sua forte barba.

— Mihail, nós respeitamos essa mulher. Oh, sim! Claro que a mataremos à menor Oportunidade, mas nós a respeitamos Não é dessas que se pode matar vulgarmente, sem lhe dar importância. Oh, não. Nada disso. Pense bem, Mihail: entre todos os agentes russos que regressaram após serem dados por perdidos, entre todos aqueles que salvaram a vida “milagrosamente”, não há um só que se lembre do rosto de “Baby” para orientar nossos desenhistas...

— Impossível! Se a viram, têm que recordar seu rosto... Eu o recordo perfeitamente...

— Todos o recordam — atalhou Zorian, incisivo. — Mas nenhum, embora sendo eles agentes russos e ela uma espiã americana, pode “descrevê-lo”.

— Isso é uma traição que...

— Não. Nenhum é traidor, eles estão agradecidos a “Baby”. A vida é uma boa coisa, Mihail. E eles a, têm, a conservam, graças a “Baby”.

— Eu não...

Ia dizer que não devia a vida a “Baby”. Súbita, como num sonho tenebroso, viu a bonita mão de Brigitte retirando uma pequena agulha de seu casaco. Uma agulha envenenada, que simplesmente roçando-lhe a pele teria posto um ponto final em sua vida.

— Que ia dizer? — sorriu Zorian.

— Nada, nada...

— Bem. Não quero estender-me demasiado sobre essa mulher. Insisto apenas em que ela não é normal. Seu cérebro é como um extraordinário computador eletrônico. É capaz de...

— Você certamente está exagerando! — cortou Posinov.

— Estou dizendo uma verdade que há anos foi meticulosamente comprovada pela MVD! — afirmou Zorian, corando violentamente.

— Desculpe... — balbuciou Mihail. — Desculpe, Máximo. Mas eu não creio nessas... personalidades superiores.

— Não importa o que você creia, Mihail Posinov. — Pense sempre, em todo momento, que a agente “Baby” tem um cérebro rápido como um raio, uma ação destruidora como um ciclone, uma, astúcia ainda não vista na história da espionagem. Não nos enganemos: se durante mais de cinco anos ela tem escapado de tudo, triunfando sempre, não foi por casualidade.

— Muito bem. Suponhamos que admito tudo isto... Aonde quer você chegar exatamente?

— A dois pontos. Primeiro: nunca confie nela, em momento algum, porque se sabe perdoar também sabe matar. Não me pergunte como o faz. Mata quando é conveniente matar, e pronto. Nunca falhou. Lembro-me de certo caso que há pouco menos de um ano nos deixou simplesmente atordoados. Sabíamos que uma agente americana estava levando certo microfilme nada menos que a Demodedovo, o aeroporto de Moscou. Ao próprio coração da Rússia! Por motivos longos de explicar agora, não nos interessava que aquele microfilme chegasse oficialmente às nossas mãos. Pois bem: durante seu percurso, por terra, através de toda a Europa, essa agente foi assaltada por não menos de dez de nossos homens. Resultado final: ela chegou a Moscou, entregou o microfilme e foi-se embora. Enquanto isto, por toda a Europa, eram encontrados os cadáveres de nossos agentes[3].

— Fantasias!

Máximo Zorian moveu pesarosamente a cabeça. Não insistiu.

— Segundo ponto: acima de tudo, no momento, nosso objetivo é um apenas. Um objetivo único: apoderarmo-nos desses foguetes americanos. Só isso, Mihail. Não importa o que você pense de “Baby”, o que faça com ela, ou a maneira como decida agir neste caso dos foguetes. Mas não falhe. Compreende?

— Não falharei.

— Desejo isto de todo o coração. Nós, os russos, estamos precisando de um triunfo mundial. Algo que convença nossos inimigos, que acalme os amigos que começam a murmurar seu descontentamento. Necessitamos esse triunfo, Mihail. Com toda a urgência.

— Eu conseguirei os foguetes. E “Baby”.

Máximo Zorian mal conseguiu reprimir o riso. Era divertido, sim, bastante divertido.

— Como fará isso?

— No momento — disse Posinov com astúcia, você poderia fotografá-la quando nos reunirmos na barcaça. Isso já será um passo para, pelo menos, cortar-lhe o caminho de volta aos Estados Unidos, não?

— A idéia não é má — admitiu Zorian. — Nada má, realmente.

— Mas lembre-se que ela não deverá morrer enquanto não me tiver informado sobre o lugar onde estão os foguetes.

— Sei disso muito bem. Você teve uma grande idéia, Mihail. Veremos se é possível obter uma fotografia de “Baby”, mesmo a distância.

— Bastará que você me siga até a Ponte de Gálata. Lá está a barcaça “Básforo”, onde ela tem seu quartel-general em Istambul. Você a verá, pois terá que sair da barcaça em qualquer momento. Não será difícil conseguir fotografá-la.

Zorian assumiu uma expressão cética.

— Hum.

— Que quer dizer com isso? — perguntou Mihail.

— Nada. Fiz apenas “hum”. Saia do hotel daqui a vinte minutos. Estarei pronto para. segui-lo. E você, não se fie.

— Ela me deu provas bem claras que não dúvida de mim.

Máximo Zorian olhou quase apiedado para Mihail Posinov. Pareceu a ponto de dizer alguma coisa, mas após encolher os ombros dirigiu-se para a, porta, ar fatigado.

— Insisto no mesmo, Mihail: tudo o que nos interessa, no momento, são os foguetes.

— Teremos os foguetes e “Baby” também. Tudo.

— Não pedimos tanto. Dosvidana, tovarich[4].

Bem em frente à mesquita do sultão Ahmed há uma grande esplanada onde, ocasionalmente, são carregados e descarregados carneiros. Vê-se a mesquita ao fundo, com sua cúpula redonda e seus seis minaretes pontiagudos, com três mirantes cada um. É uma vista de pitoresco exotismo para um ocidental.

Mas para um turco, Istambul é a visão de cada dia. Nada há que o assombre ali. E ante a mesquita famosa do sultão Omar é capaz de dedicar-se a atirar migalhas de pão às pombas. Dir-se-ia que um turco entregue a este mister nem ao menos vê uma bonita mulher que se aproxime e detenha-se a seu lado, olhando com muita curiosidade para ele e para as pombas.

Também pode parecer surdo, o turco. Isso pensaria qualquer um que o visse de longe, pois nem uma só vez desviou os olhos para a jovem e sorridente ocidental.

— Já o chamei, Yunuz.

— Bem.Ele irá logo à barcaça. E é de supor que vá também alguns dos seus... Não tem medo que a matem, efendim?

— Não podem matar-me ainda: sou a única pessoa que conhece o esconderijo dos três foguetes.

— Que Maomé a proteja! Eu não estaria tão confiante.

— Bom — quase riu Brigitte, — o certo é que estou confiante e nada me acontecerá porque não penso comparecer ao encontro. Quero apenas que MihaIl Posinov, nosso grande traidor, me deixe o campo livre em sua suíte.

— Ali! Está bem. Quando nos veremos?

— Procurarei você depois da oração da tarde Suponho que não queira faltar a ela.

— Maomé se compadeça de mim! Vai me pedia isso, efendim?

— Não — riu Brigitte. — Por enquanto, faça sua vida normal. Depois veremos.

Yunuz Rumi emitiu um profundo suspiro.

— Outra coisa, efendim — disse depois. — Você tinha razão: há mais de uma dúzia de barco! de pesca, russos, rondando a costa norte da Turquia, no Mar Negro. Parecem Indecisos. Seis dele: navegam por águas do Cabo Kerempe e os outros, mais perto de Istambul, pela Ponta Sakarya Para um bom observador, esses pesqueiros, mal: que se dedicar a seu trabalho, estão patrulhando a costa meridional do Mar Negro.

— Ótimo!

— Estimo que pense assim, efendim.

— Você não compreende? Isso quer dizer que tudo vai bem! Já temos nossos “colaboradores” dispostos a ajudar-nos! Essa é uma noticia magnífica, Yunuz.

— São apenas barcos de pesca.

Brigitte riu satisfeita.

— Claro, claro: apenas barcos de pesca. Nos veremos mais tarde. Saúde para os seus filhos.

— E para os seus, efendim.

Brigitte se afastou sorridente. Ainda não tinha os quatro filhos que lhe havia prognosticado a feiticeira Mabanga[5] e, mas talvez ainda chegasse a tê-los. A intenção de Yunuz era a melhor.

Tomou um táxi pouco mais além e fez-se transportar até as proximidades do “Hotel Paxá”...

 

Entrar numa suíte alheia jamais constituíra problema para a espiã internacional. E muito menos deslizar pelo vestíbulo e escadas de um hotel, sem dar tempo a ninguém para ver sequer a cor de seus olhos. Assim, meia hora depois da conversa mantida com Yunuz Rumi, “Baby” entrava tranqüilamente na suíte de Mihail Posinov. Fechou a porta, deixou cair a pequena gazua em seu maravilhoso decote e considerou com desagrado a espaçosa habitação. Tinha muito trabalho pela frente, mas o remédio era fazê-lo.

E para terminar uma coisa, o melhor é começa-la quanto antes.

Uma hora mais tarde, plantava-se no centro do pequeno salão da entrada da suíte, entre fatigada e furiosa consigo mesma: não encontrara nada e isso não tinha a menor lógica. Ali, naquela suíte, devia haver pelos menos um microfone. Inevitavelmente, já que de outro modo Mihail Posinov não teria podido nunca justificar uma falha que cometesse mais adiante.

Claro que se posteriormente fosse encontrado um microfone em sua suíte, toda sua atuação ficaria justificada pela simples existência de tal microfone. Todos já sabendo da traição de Maulana Al-Din, era natural que este tivesse notificado à MVD a presença de um “agente americano” no “Hotel Paxá” e que a espionagem russa se tivesse ocupado em vigiá-lo por meio de microfones. Assim, se mais adiante os russos demonstrassem saber coisas demais, Posinov justificaria sua posição com o microfone: os russos simplesmente teriam sabido de tudo graças ao microfone colocado ali pelo traidor Maulana Al-Din e o “fracasso” de Mihail Posinov ficaria justificado aos olhos da CIA.

Portanto, tinha que haver um microfone na suíte. Mas talvez não fosse de bateria. Então, seria dos antigos, com fio condutor.

Examinou o telefone, procurou fios por todos os cantos... E nada. Mas, como não estava disposta a ceder, a deixar-se convencer, continuou procurando sem esmorecimento.

Quase uma hora e meia depois de entrar na suíte, após ter examinado novamente os condutos telefônicos e o próprio aparelho, olhou para os fios elétricos... Dez minutos mais tarde tinha o pequeno microfone na mão.

Uma perfeita maravilha em miniatura, estava colocado na minúscula pêra presa à extremidade do cordão que pendia de uma lâmpada de pé. Uma dessas lâmpadas que se acende e apaga puxando uma correntinha ou cordão. Cordão, neste caso. Um grosso cordão de seda, dentro do qual estava o fio do microfone, que seguia até o porta-lâmpada, introduzia-se neste, continuava pelo tubo metálico que o sustinha e aparecia no chão, sempre metido no fio de condução elétrica normal. Dali, ia à parede, onde se separava do fio condutor e introduzia-se por um lado da placa isolante. Um exame atento permitiu a Brigitte ver a fina ranhura que depois seguia pela parede, paralelamente ao solo; o fio do microfone estava recoberto de matéria plástica de cor idêntica à da parede. E assim, até um canto do pequeno salão. Depois, subia pelo ângulo da parede, sempre oculto pela matéria plástica de cor idêntica à. da mesma. Finalmente, desaparecia no teto.

Brigitte saiu daquela suíte e subiu ao andar imediato. Sem hesitar um segundo, entrou na suíte situada justamente em cima da de Posinov. Seu ocupante não devia estar ali, mas empenhado em coisas de maior importância. Afinal, não se encontrando Posinov em sua suíte, nada poderia falar com ninguém, de modo que o outro estaria aproveitando o tempo em coisa diferente.

Guardou a gazua, fechou silenciosamente a porta e dirigiu-se ao mesmo canto onde, no andar de baixo, o fio se perdia no teto. Aparecia ali por um diminuto orifício praticado certamente por uma pua elétrica especial, silenciosa. Também todo seu percurso estava recoberto por aquele material plástico. Finalmente, entrava no armário do quarto, por trás, e ficava solto, mostrando na ponta um pequeno plugue de conexão.

Em menos de cinco minutos, “Baby” tinha diante de si, no fundo duplo daquela maleta, o pequeno aparelho receptor-gravador, no qual se encaixava perfeitamente o diminuto plugue.

Após examiná-lo durante alguns segundos, incorporou-se e relanceou o olhar pelo quarto, pensando que depois de todo aquele tempo gasto disporia apenas de cinco minutos. Encontrou na mesinha de cabeceira o passaporte turco com o nome de Ismet Veled. Lá estava sua fotografia. Quarenta e tantos anos, rosto quadrado, olhos penetrantes, barba muito forte. Com a diminuta câmara contida em seu isqueiro adornado de pequenos brilhantes, fotografou a fotografia de Ismet Veled, depois deixou tudo em seu lugar. Tinha nos lábios um sorriso divertido.

 

“Bip-bip-bip-bip”...

Mihail Posinov sacou precipitadamente o rádio de bolso e admitiu a chamada: Alô!

— Você está bem, Mihail? — ouviu a voz de Brigitte.

— Mmm... Estou bem, sim. Que aconteceu? Você está demorando muito... Há duas horas que a espero nesta barcaça.

— Desculpe, querido. Mas não me foi possível Ir ai. E nem irei. Volte para o hotel, que mais tarde lhe darei instruções.

— Mas... você não virá mesmo?

— Não posso. Isto o aborrece de algum modo... especial?

O tom da pergunta era doce, cheio de intenção. E Mihail Posinov percebeu o que ela esperava ouvi-lo dizer. De modo que disse:

— Bem... Tinha esperança de vê-la aqui novamente, a sós... Você compreende.

— Compreendo — murmurou calidamente “Baby”. — Mas não podemos comprometer o bom resultado de nossa missão por satisfações pessoais, Mihail. Depois de tudo terminado, sim, nos veremos com maior freqüência nos Estados Unidos.

— Está bem. Claro que é o mais razoável. Que faço agora?

— Nada. Vá para o hotel, almoce... Vida normal de visitante que se informa sobre as diversas religiões em Istambul. A partir das sete, procure estar só e atento ao meu chamado pelo rádio. É tudo, por enquanto.

— Bem, mas...

— Não posso continuar, Mihail. Até logo.

Posinov ficou olhando irritado para o rádio. Guardou-o raivosamente e saiu da barcaça. Quando chegou á plataforma superior da ponte, viu Máximo Zorian, o subchefe da MVD que em Istambul se fazia chamar Ismet Veled. Estava apoiado na balaustrada, como se contemplasse a passagem dos rebocadores e demais embarcações. Houve um sorriso irônico, mordaz, nos lábios do russo quando Mihail Posinov passou por ele, cenho carregado, sem olhá-lo.

Claro que Máximo Zorian não se surpreendeu muito com aquele pequeno fracasso. Afinal de contas, já há muitos anos a MVD não ignorava que a agente americana “Baby” era desesperadamente escorregadia.

Ficava para outra vez.

 

O chamado pelo rádio de bolso produziu-se antes do previsto, quando Mihail Posinov se estava perguntando até que ponto lhe convinha sair de sua suíte para dar um passeio. O clássico zumbido monótono sobressaltou-o, pois não o esperava absolutamente às cinco e meia da tarde.

— Alo! — respondeu.

— Mihail, a coisa está em marcha. Pode me escutar bem ou há perigo de alguma orelha indiscreta?

— Não, não... Estou sozinho em minha suíte.

— Ótimo. Você deve sair do hotel agora mesmo e esperar-me na Praça do Minarete de Omar, extremidade norte... Sabe onde fica?

— Saberei. Que tenho que fazer exatamente?

— Nada. Apenas esperar-me, por muito que eu demore.

— Esta manhã você marcou encontro comigo na barcaça e...

— Assim são as coisas; devemos aceitá-las como vêm. Esta tarde espero comparecer, mas de qualquer modo, se não o fizer será porque não me pareceu conveniente para a boa marcha da operação. Creio que a iniciaremos esta noite mesmo.

— Iremos esta noite ao lugar onde estão os foguetes?

— Assim é. Vá á Praça do Minarete de Omar e espere por mim o tempo que fâr necessário... E tome cuidado, querido.

— Não se preocupe. Sigo Imediatamente para lá.

— Bem. Até logo, amor.

— Até logo.

Mihail fechou o rádio com um duro sorriso nos lábios. De certo modo fora uma grande sorte que Maulana Al-Din tivesse sido executado. Isso significava que qualquer traição verificada durante o resgate dos foguetes poderia ser atribuída a ele, já que era impossível saber até onde se estendera sua ação como traidor... e ele não estaria vivo para explicar. Mihail Posinov, com a morte de Maulana Al-Din, tinha as costas bem resguardadas.

Foi à sala da suíte e sentou-se, de modo que a pequena pêra da lâmpada de pé ficou perto de seu rosto.

— Você nos ouviu, Máximo? — perguntou. — Se assim é e se está me escutando agora, bata uma vez no chão.

A batida produziu-se imediatamente no teto e Posinov prosseguiu:

— Ela me chamou. Tenho que encontrá-la para iniciar os preparativos. Disse ser possível que tudo comece esta noite, portanto seria conveniente que você chamasse pelo rádio os barcos pesqueiros, para que fiquem na expectativa. Vá ao lugar secreto onde ternos o rádio e faça a comunicação. Depois, regresse ao hotel, pois a qualquer momento poderei saber o local exato onde estão os foguetes e lhe informarei para cá, seja por telefone, por meio de um bilhete ou utilizando este mesmo microfone. Como me for possível, lhe passarei a informação imediatamente. E como não há telefone naquele porão do rádio, nem convém que eu leve outro além do que me foi proporcionado por Nadezda Sverekova, isto é, “Baby”, você não terá mais remédio que esperar aqui minha próxima chamada para saber onde os foguetes estão. Enquanto isso, seria conveniente que você fosse ao porão do rádio para avisar os pesqueiros que se agrupem e aproximem o mais possível de Istambul, a toda a velocidade. Isto é tudo, por ora. Se compreendeu bem e está de acordo, dê duas batidas no chão.

Soaram as duas batidas. Mihail Posinov sorriu, levantou-se e abandonou a suíte. Pouco depois saia do hotel e dirigia-se à Praça do Minarete de Omar.

Cinco minutos mais tarde, saía Máximo Zorian, que se pôs ao volante de um carro e partiu em boa velocidade.

Decorridos vinte minutos, após estacionar o carro numa pequena praça para onde convergiam sete ou oito vielas atulhadas de tendas de mercadores turcos e árabes, tomava por uma delas, logo deixando para trás o mundo vociferante dos vendedores, sem prestar a menor atenção ao colorido daquela cena tão pitoresca. E pouco depois Máximo Zorian se detinha diante de uma porta, na qual bateu fortemente com os nós dos dedos. Primeiro duas vezes, depois mais duas, finalmente três.

A porta se abriu logo em seguida e um homem de aspecto rude, vestido à européia olhou-o fixamente, em silêncio.

— Tudo bem, Molov — disse Zorian. — Tenho que enviar uma mensagem urgente pelo rádio.

Molov afastou-se para lhe dar passagem, depois fechou a porta e precedeu-o por estreitos corredores para os quais davam vários aposentos. Por fim, desembocaram numa peça ampla e limpa, onde encontraram dois homens de revólver na mão, mas que se apressaram a guardá-los quando reconheceram Máximo.

— Tenho que usar o rádio, Firian — disse este. — Comunique-me imediatamente com o pesqueiro de comando.

— Está bem.

Foi questão de segundos conseguir a comunicação, com aquele possante rádio instalado no porão do prédio. Firian levantou-se do carcomido caixote, cedendo seu lugar a Máximo, que começou a falar já antes de sentar-se:

— Falando Máximo Zorian. Verifiquem audição clara. Câmbio.

— Ouvindo perfeitamente, camarada Zorian. Câmbio.

— Também eu ouço perfeitamente. Atenção: nosso homem foi agora ao encontro da agente “Baby” da CIA, que está dirigindo a operação americana. Esta operação terá inicio, provavelmente, hoje à noite. A intenção dos americanos, como sabemos, é desmontar os projéteis, para depois fazer o transporte das peças com mais comodidade, discretamente. Nós não podemos permitir esse desmonte, de modo que vamos atuar antes que eles tenham tocado nos foguetes. Portanto, todos os barcos pesqueiros designados para esta missão devem tomar agora mesmo o rumo de Istambul, a toda a velocidade, e permanecer na expectativa de novas ordens. Quero saber se até este ponto tudo foi compreendido. Câmbio.

— Tudo foi compreendido. Que mais? Câmbio.

— Nosso homem assegura que a qualquer momento poderá saber o local exato onde estão escondidos os projéteis americanos. Assim, tenho que voltar Imediatamente ao hotel, pois lá é que deverei esperar sua comunicação. Voltarei cm seguida a este rádio, indicarei exatamente o esconderijo dos projéteis e, a partir de tal momento, a ação deverá realizar-se imediatamente e sem hesitação de espécie alguma. Esses projéteis têm que atravessar o Mar Negro rumo ao norte. Nós os queremos. E agora estão praticamente em nossas mãos. Alguma dúvida? Câmbio.

— Nenhuma dúvida, camarada Zorian. Uma vez conhecedores do esconderijo, procederemos de acordo com o plano previsto, seja por terra ou por mar. Em qualquer caso, podemos já considerar esses projéteis na Rússia. Mais alguma instrução? Câmbio.

— Nenhuma. Câmbio e fora.

Deixou o rádio, levantou-se e olhou pensativa-mente para o chão, testa franzida.

— Tudo está saindo demasiado bem... — murmurou. — Mas, certamente, um grupo terá que ganhar. Por que não seremos nós?

— Seremos nós! — exclamou o russo Stenko.

— Claro... Permaneçam vigilantes e não descuidem o rádio um só momento. Sivanov e Gakian?

— Têm a lancha fundeada no ponto combina­do do Corno de Ouro. Limitam-se a esperar nosso chamado. Podemos entrar em contato com eles a qualquer momento por meio dos rádios pequenos.

— Por enquanto, isto é desnecessário.

— Também é desnecessário que você leve um?

— Não quero me expor a nenhum contratempo. Afinal de contas, estou trabalhando na sombra, não intervenho diretamente. Mas qualquer descuido poria tudo a perder. Se tiver que lhes dizer algo mais, além da localização desses foguetes, virei pessoalmente. É um método velho, mas a espionagem também se praticava assim. Outra coisa que também não me agrada muito é o microfone instalado na suíte de nosso homem com sua própria ajuda. Creio que o tirarei quando me tiver dado a última informação. Bem... Até logo. Esperemos que ela não demore.

— Vai ser um golpe duro para os americanos! — disse Firian.

— Sim, muito duro. Há muito tempo que o estão merecendo. Adeus.

 

Meia hora mais tarde, Máximo Zorian estava de volta à sua suíte no “Hotel Paxá”. Olhou impaciente o pequeno receptor-gravador, apesar de saber impossível que Mihail Posinov se pusesse em contato com ele apenas uma hora depois de ter saído. Ou teria ele chamado antes, por qualquer meio...?

A campainha do telefone sobressaltou-o e o cigarro que estava acendendo quase escapou de seus dedos. Sentia-se demasiado nervoso e isso não era próprio de sua idade, nem de sua experiência. Claro que só ao pensar no golpe preparado contra os americanos era justo que ele tremesse de emoção...

— Pode faltar — atendeu, em turco.

— Não entendo o turco, senhor — disse uma voz de homem. — Mas posso dar-lhe o recado em russo: faça voltar a fita do seu receptor-gravador e escute o que nela está registrado.

— Quem é..

Clic.

A comunicação tinha sido cortada.

Zorian ficou olhando o fone em sua mão, incrédulo. E um pouco sobressaltado, quase assustado... Que era aquilo de fazer voltar a...?

Aproximou-se do pequeno aparelho receptor-gravador, ligado ao microfone instalado na suíte de Mihail Posinov. Quem havia telefonado, falando em ....... e o que quisera dizer sugerindo-lhe que escutasse o que estava gravado na fita?

Fez esta retroceder em seu carretel, depois comprimiu o botão de play-back. Após alguns segundos em que a fita desenrolou-se em silêncio, ouviu-se uma voz de mulher, em russo, expondo os fatos de tal modo que o sangue de Máximo Zorian gelou em suas veias, tanto de medo como de desencanto.

O que disse a voz feminina, em russo impecável, foi isto:

“Ismet Veled, efendi: quem está falando é a agente “Baby”, da CIA. Evidentemente, esta gravação demonstra que localizei o microfone na suíte de Mihail Posinov, a, respeito do qual estamos perfeitamente conscientes de que é um traidor. Por este fato, Mihail Posinov será executado oportunamente. Devo sugerir-lhe e a seus companheiros que não percam mais tempo preparando uma ação que, afinal de contas, foi calculada por nós, e portanto só poderá redundar em nosso beneficio. Se ainda lhe resta um pouco de prudência e quiser agir Inteligentemente, seu próximo passo será o regresso Imediato a Moscou. Saudações da agente americana “Baby”.

Máximo Zorian ficou como se lhe tivesse caído um penhasco em cima: achatado, derrotado, aniquilado. Tantos anos preparando aquele rapaz, tanta paciência, tanta confiança num plano que outras vezes tinha dado bons resultados! E os foguetes... Os foguetes!

As mandíbulas do russo se crisparam com um sonoro entrechocar de seus fortes dentes. Pensavam os americanos que já estava tudo decidido? Acreditavam. que ele se daria por vencido e retornaria a Moscou com as mãos vazias, somente Porque uma mulher lhe enviara aquela mensagem?

Mas, realmente... o que podia fazer? A única probabilidade que tinha de saber a tempo o lugar onde estavam os foguetes era o aviso de Mihail Posinov. E este aviso não lhe seria dado. Talvez Mihail Posinov já estivesse morto... Sim. Talvez já tivesse sido executado pelos homens da CIA, ou pela própria “Baby”. Em cujo caso, ele já não teria, que aguardar seu chamado. Não podia alimentar esperança alguma quanto a saber onde estavam ocultos os projéteis dirigidos americanos.

A menos... Sim, a menos que algum dos homens recrutados por Maulana Al-Din e colocados no grupo de desmonte tivesse ocasião de dizer-lhe. Mas como se a ele, Zorian, nem sequer conhecia?

Passou as mãos pela cabeça, lentamente, sentindo uma raiva surda que logo assumiu a forma de violento ódio por aquela maldita agente “Baby” que, mais uma vez, ganhava a partida. Embora... talvez ela tornasse a aparecer, a um momento qualquer, na barcaça chamada “Bósforo”, fundeada sob a Ponte de Gálata!

Por que não? Muito bem. Tinha perdido, mas pelo menos seria o homem que conseguira eliminar a agente “Baby”.

Retirou todas as suas coisas do armário e, com movimentos bruscos, começou a colocá-las na mala, inclusive o aparelho receptor-gravador. Lá estava a voz da agente “Baby”. Talvez, em alguma ocasião, conhecer aquela voz fosse de utilidade para o MVD.

A última coisa que apanhou foi seu revólver. Ajustou bem o silenciador e guardou-o no bolso interno do paletó. Sabia perfeitamente o que devia fazer: sair do hotel, levar sua bagagem para a lancha onde se encontravam Gakian e Sivanov, e dedicar-se a vigiar a barcaça “Bósforo”. A agente “Baby” não poderia evitar o choque com ele.

Lançou uma olhadela ao redor, apanhou a mala, saiu do quarto, cruzou o pequeno salão, abriu a porta que dava para o corredor...

— Ismet Veled, efendi?

Perguntou-lhe uma sorridente jovem loura. Européia, evidentemente. Seus olhos eram negros. Uma saia estreita, uma blusa azul de agudo decote e uma pequena pistola na mão. Mas isto já quase não importou a Máximo Zorian. O que o deixou gelado foi a voz. Aquela voz!

— Certamente é Ismet Veled, efendi — continuou sorrindo a loura. — Tive ocasião de ver sua fotografia no falso passaporte turco que teve a... astúcia de deixar bem à vista em seu quarto. Por favor: entremos. Recue, ou eu o obrigarei a fazê-lo.

Máximo Zorian retrocedeu, como um autômato. Ela entrou, fechou a porta e mostrou então a maleta que levava na mão esquerda.

— Agente “Baby” — apresentou-se. — Mas não se alegre por conhecer-me, Ismet Veled. Tenha a bondade de deixar cair sua mala no chão e recuar mais meia dúzia de passos. Compreenda que não o posso deixar partir com uma gravação de minha voz. Isso poderia causar-me um desgosto qualquer dia. Não é verdade? Ficou mudo?

Zorian recuou, ainda sem pronunciar palavra. Que podia dizer?

“Baby” ajoelhou-se junto à mala e abriu-a, sem perder o russo de vista. Meteu a mão e esteve tateando até tocar no receptor-gravador. Retirou-o.

— Imagino que não tenha consigo nenhuma outra coisa interessante. Seria excessivamente comprometedor... Claro que, enquanto Mihail Posinov está à minha espera, dei-me ao trabalho de seguir o senhor através de Istambul. É naquela velha rua que tem o rádio para comunicar-se com os barcos pesqueiros?

Máximo Zorian corou intensamente. Era possível aquilo? Era mesmo verdade que aquela bonita jovem estava zombando dele, de Mihail Posinov, de todos os agentes soviéticos que intervinham naquela operação?

— Ainda não ganhou a partida — murmurou, seguindo o curso de seus pensamentos.

— Ainda não, com efeito. Mas vai demorar pouco, muito pouco. Tão logo seus pesqueiros se apoderem dos três foguetes, a partiria estará

— Nossos pesqueiros conseguirão isso? — pasmou-se deveras Máximo Zorian.

— Sem dúvida. O trabalho de desmonte seria excessivamente pesado, caro senhor.

Agora Máximo Zorian enrubesceu mais violentamente ainda que antes, ao compreender, de golpe, toda a magnitude da jogada urdida pela CIA e representada pela agente “Baby”. Sentiu tanta raiva, tão incontrolável furor, que perdeu completo a equanimidade, a serenidade! Emitia um grito abafado de ódio e saltou para um lado, sacando o revólver...

Plop. Plop. Plop.

Recebeu os três balaços no peito, com intervalos cronométricos de meio segundo, e foi girando até cair de bruços, soltando o revólver. O mundo pareceu escurecer de súbito e um frio terrível apoderou-se de seu corpo. Um frio, tremendo, como jamais sentira em sua vida, nem mesmo quando passara um inverno na Sibéria. Como num sonho penumbroso, viu a loura agachada junto à sua maleta. Olhava-o, mas estava tirando a peruca e umas lentes de contato... Tirou também a saia e ficou com outra mais estreita ainda, toda preta. Depois, viu-a aproximar-se dele, com suas pernas magníficas... Parecia que ambos estivessem na coberta de um barco apanhado por terrível tormenta. Tudo balançava e cada vez o negro era mais negro.

Ela se tinha ajoelhado a seu lado e virou-lhe o corpo, deixando-o de cara para cima. Compreendeu que a agente “Baby” estava examinando suas feridas. Conservava a pistola na mão e Zorian teve plena certeza de que, se suas feridas não fossem mortais, ela lhe daria o tiro de misericórdia. Mas deviam ser mortais, pois a pequena pistola desapareceu.

Então, ouviu-lhe a voz, sempre em russo:

— Sinto muito, camarada espião. Mas para que eu consiga o que quero, você tinha que morrer. Penso que compreende isso, não é mesmo?

Máximo Zorian apenas moveu as pálpebras. Sim. Compreendia muito bem. Na verdade, não podia censurar “Baby”. Os dois sabiam perfeitamente o que estava em jogo. Sim. Ele a entendia.

— Obrigada — ouviu-a dizer. — Acredite que lamento sinceramente. Adeus, camarada espião.

 

O Muezim estava no alto do Minarete de Omar, lançando sua prece com voz cantada, audível a longa distância, enquanto os fiéis maometanos permaneciam prostrados por terra, voltados para o azimute santo de Meca. O cântico religioso soava claramente na tranqüilidade da tarde. Nada mais sagrado para o islamita que a prece vespertina, a invocação de seu deus único:

Na ponta norte da praça, Mihail Posinov olhava quase irritado a figura do velho muezim, que aparecia diminuta no alto do minarete. Parecia que Istambul tinha parado de pulsar poderosamente como uma grande cidade. Os braços do ancião se agitavam e sua voz tornava-se mais e mais alta e dolente.

Mihail Posinov consultou outra vez o relógio e outra vez franziu a testa. Aquela mulher parecia decidida a brincar com ele, fazendo-o ir de um lado a outro de Istambul, sem comparecer aos encontros marcados.

O nome de Alá, proferido sonoramente por mais de três mil gargantas, sobressaltou o traidor da CIA, que se tinha esquecido do momento e do lugar. Mas, felizmente, tudo já estava terminado. A multidão começava a incorporar-se, o muezim se tinha calado e não estava mais no alto do minarete. Os maometanos puseram-se a desfilar. Ouviam-se vozes de chamada, gritos. Um bando de meninos morenos passou roçando o mal-humorado Mihail.

E um homem puxou-o pela manga, inesperadamente.

— Por aqui, efendi.

— Quem é você? — perguntou Posinov, desvencilhando-se com um gesto brusco.

— Um amigo dela — sorriu o turco com cara de cigano. — Um bom amigo de Nadezda Sverekova.

— E onde está Nadezda?

— À nossa espera num carro, perto daqui. Eu vim rezar... — sorriu maliciosamente — e certificar-me de que ninguém o estava vigiando. Acompanhe-me, por favor.

— Está bem.

A conversa tinha sido travada em turco, com toda normalidade. Ambos o falavam perfeitamente. Depois o homem com cara de cigano foi abrindo passagem entre a multidão que se dispersava lentamente, sem voltar uma só vez a cabeça. Devia estar bem certo de que Mihail o seguia. Um atrás do outro, deixaram a Praça do Minarete de Omar e logo desembocaram na Avenida Paxá Beyar. O turco, sempre sem voltar, dirigiu-se para um carro preto, fechado, já bastante velho.

Simplesmente, entrou nele, sentando-se ao volante. Mihail Posinov deteve-se junto ao veículo e, quando parecia disposto a perguntar alguma coisa, o rosto risonho de Brigitte apareceu brevemente pela janela.

— Entre, Mihail — disse apenas.

Segundos depois, com o carro já em marcha, Posinov estava sentado junto a Nadezda, que o olhava docemente.

— Então — perguntou ela, — não se alegra por tornar a ver-me?

O traidor sorriu de leve, antes de abraçá-la. Ela apressou-se a lhe oferecer os lábios. Os dele deslizaram depois por seu pescoço, pelo decote em ponta...

— Mihail... — suspirou ela. — Era suficiente um beijo. Nada mais agora, suplico-lhe.

Mas dizendo isto, foi ela quem levou sua boca até a dele, beijando-o intensamente. Parecia estar disposta a tudo, mas separou-se de súbito, com um sorriso perturbador.

— Teremos tempo mais tarde — sussurrou. — Agora há muitas coisas que fazer. Yunuz, estamos a caminho do café junto ao mar, no velho bairro?

— Estamos, efendim.

— Muito bem.

— Que café é esse? — perguntou Posinov.

— O “Café Hassan”, efendi. É um bom lugar para reuniões privadas.

Posinov ergueu as sobrancelhas, olhando para Brigitte.

— Com quem nos vamos reunir lá?

— Com os homens que Maulana Al-Din recrutou para o trabalho de desmonte. Não se lembra? Eu lhe falei a respeito, querido...

— Lembro-me, é claro. — sua expressão endureceu. — Quer dizer que vamos nos meter na boca do lobo.

— De certo modo. Já disse a você qual a minha maneira de pensar: devemos salvar os que não sejam traidores.

— Estão todos à nossa espera nesse café?

— Todos. Os leais, porque assim lhes foi ordenado; os traidores, porque lhes convém.

— Lógico que lhes convém! Você não pensou que algum deles pode matá-la, ou fotografá-la e enviar sua foto à...?

— Está tudo previsto, amor — riu Brigitte. E beijou-lhe alegremente o queixo. — Não tenha receio. Nós, você e eu, temos ainda muita vida à nossa frente.

Parecia ter realizado esforços para conter-se, mas certamente já não podia mais e tornou a abraçar Posinov, oferecendo-lhe mais uma vez os lábios. E quase em seguida, como zangada consigo mesma, separou-se dele.

— Acho que estou um pouca louca, Mihail... —           murmurou. — Devemos esquecer que existimos como pessoas, até que haja terminado nosso trabalho. Yunuz nos levará a uma velha loja que fica atrás do “Café Hassan” e lá irá buscar os homens.

— E quando estiverem todos reunidos?

— Yunuz esteve antes no café e os viu. Garante que entre eles não pode haver mais que dois traidores, para um total de nove homens recrutados por Al-Din, este deve ter considerado que dois seriam suficientes.

— Muito bem. Serão dois. Mas como poderemos identifica-los?

— Yunuz e eu já resolvemos isso — sorriu “Baby”. — Tenho uma, notícia não muito boa para você, querido.

— Não muito boa? — Inquietou-se Posinov.

— Sim. — Ela levou a mão atrás e, ao reaparecer, sua mão segurava o pequeno receptor-gravador de Máximo Zorian. — Você estava sendo vigiado.

Mihail Posinov empalideceu intensamente ao ver aquele aparelho. Por sorte, pensou, o sol estava já no ocaso e dentro do carro a visibilidade era muito precária.

— Não... Não é possível!

— Mas... Onde você conseguiu isto?

— Lembra-se que esta manhã não compareci ao encontro na barcaça?

— Clara — grunhiu ele.

— Estive em sua suíte e revistei tudo. Você já o tinha feito?

— Sim, mas não pude encontrar nada...

— Oh, eu compreendo, querido. Foi uma instalação muito astuta, de fato. Está claro que Maulana Al-Din e o outro homem a fizeram logo que você reservou a suíte...

— Pois eu revistei tudo meticulosamente e não vi...

— É natural. Estou há vários anos metida nisso e você não pode imaginar o que me custou encontrar o pequeno microfone na lâmpada de pé. Tão-somente a certeza, de que Maulana Al-Din e os russos tinham que havê-lo colocado me deu forças para, procurar durante mala de duas horas, até que o encontrei.

— Você devia ter-me avisado...

— Não. Queria que a pessoa à escuta nada pudesse notar de especial em você.

— Compreendo. E quem era? Onde está agora?

— Parece que seu nome, pelo menos em Istambul, era Ismet Veled. Agora está morto em sua suíte. É tudo.

— Você o matou? — perguntou Posinov, garganta apertada.

— Sem dúvida, querido. Tinha que recuperar as gravações que ele tivesse feito. De modo que chamei você às cinco e meia, sabendo que ele escutaria. Esperei que você saísse do hotel, entrei e cheguei à sua porta justamente quando ele a abria. Foi muito fácil matá-lo... mas lamentável.

— Lamentável? Por quê?

— Eu me entendo. Falta muito, Yunuz?

— Não, efendim. Chegaremos em cinco minutos, no máximo. Deixarei os dois na velha tenda de Cemal.

— De acordo. Lá ficaremos à espera... Que tem você, Mihail?

Posinov olhava como hipnotizado o pequeno gravador.

— Deve... deve haver alguma coisa gravada aí, Nadezda.

— É lógico.

— Você... escutou essas gravações?

— Para quê? Suponho que só ouvirei sua voz, e talvez a minha, das vezes que nos comunicamos pelo rádio de bolso. Claro que pode haver algo mais importante, talvez, mas isso vamos deixar para mais tarde... Primeiro, resolvamos o assunto desses dota traidores. De acordo?

— Por minha parte sim, sem dúvida.

Não sem esforço, Mihail Posinov desviou o olhar daquele maldito aparelho que, com toda probabilidade, conteria as conversas travadas entre ele e Máximo Zorian... Bem não exatamente as conversas, mas as instruções por ele dadas a Zorian, recomendando-lhe que se tinha ouvido e estava de acordo batesse com o pé no chão... Pequenas gotas de suor apareceram em sua testa ante a perigosa realidade. Quando Nadezda Sverekova, ou como diabo se chamasse aquela mulher, pusesse em marcha o aparelho, tudo estaria perdido para ele, para o assunto dos foguetes! Nada teria servido de nada! A menos... sim, a menos que ele encontrasse antes uma solução.

— Mihail!

— Hã?

— Já chegamos — ela o olhava com curiosidade; o carro se detinha. — Em que estava pensando tão intensamente?

— Nesse homem que você matou, neste aparelho... A coisa está-se tornando muito perigosa, Nadezda.

— Não importa. Se fará o que se tenha a fazer. Bem, Yunuz, vá ao café buscar esses homens.

— Vou já efendim. Olhe, essa é a tenda. Chame, que um amigo fiel abrirá.

— Está bem. Vá depressa. Não esqueceu a senha?

— Não, efendim. Eles sairão atrás de mim, disfarçadamente, quando eu a der. E eu os trarei à tenda de Cemal, tão velha como ele mesmo, ou mais.

Yunuz Rumi afastou-se para o “Café Hassan”, e Brigitte e Posinov saltaram do carro quase em frente a uma carcomida porta, pouco visível na escuridão daquele tenebroso beco que cheirava a peixe e a maresia. Mas o cheiro não era o mesmo que na Ponte de Gálata. Era muito pior. Certamente devido à presença de tantos gatos.

O velho Cemal cheirava mais nauseabundantemente ainda. Não só a peixe podre e a excremento de gato, mas também a suor, a urina, a tudo... Era cego e apoiava-se num retorcido cajado, mais alto que ele. Brigitte suportou melhor que Posinov o hálito pestífero que saiu da boca do velho quando este Indagou, em turco:

— Quem é? Quem está batendo à porta de Cemal?

Posinov dispunha-se a dizer que eram amigos de Yunuz quando Brigitte o precedeu, em inglês:

— Sou a odalisca esperada, Cemal.

Um riso rascante, mordaz, brotou da boca tumefata do cego sarnento e remelento.

— Chegas quando o velho Cemal não pode mais te fazer as honras, odalisca — disse em perfeito inglês. — De qualquer modo, és bem-vinda. Tu e teu amigo, que respira com muita força. É teu amante?

— Esqueça essas coisas, Cemal — respondeu “Baby”. — E agora nos leve para onde ninguém nos perturbe. Yunuz e outros virão dentro de alguns minutos. Quando nos retirarmos, darei a você um milhão de piastras.

— Que Alá seja bondoso contigo, odalisca! Venham, venham... Cedo-lhes o meu melhor aposento para a reunião.

O “melhor aposento” era o que tinha menos excrementos de gato. O fétido era, tamanho que apareceram lágrimas de irritação nos olhos dos dois. Mas em Istambul nem sempre se pode escolher o melhor lugar para encontro de espiões... com final imprevisível. Havia alguns tamboretes, mas tiveram que afugentar os gatos que deles se tinham apoderado.

— Isto é espantoso! — lamentou-se Posinov, respirando o menos possível.

Brigitte simplesmente encolheu os ombros, disposta a suportar tudo.

— Vá esperar Yunuz e os outros, Cemal. Traga-os para cá.

— E o milhão de piastras? — reclamou o cego.

— Quando formos embora.

Ficaram os dois sozinhos, envoltos em silêncio e pestilência. Os gatos, enroscados, olhavam-nos fixamente, olhos reluzindo naquela escuridão mal dissipada por uma lâmpada de cobre.

— Vai mesmo dar mil dólares a esse homem? — perguntou Posinov.

— Claro. Com um pouco de sorte, não precisará de mais nada enquanto viva. Um milhão de piastras é muito para uni homem como Cemal. E não é nada para a CIA. Apenas mil dólares, aproximadamente.

— Apenas mil dólares... — sorriu ele. — Você tem um coração terno, odalisca.

— Nem sempre. Parece que já chega alguém...

Ouvia-se o rumor de pessoa. Mihail sacou sua imponente pistola, mas Brigitte dedicou-se a algo menos agressivo: tirou de sua maleta um grande véu azul e com ele cobriu rapidamente a cabeça; em seguida, cobriu com outro véu o rosto. Uma odalisca que certamente merecia ter figurado no harém do mais suntuoso e exigente sultão do mundo.

Apareceram dois homens, que olharam antes de tudo a pistola de Posinov; depois, um tanto surpreendidos, a bela odalisca de cintilantes olhos azuis.

— “Operação Turquia” — murmuraram.

Mihail Posinov desfranziu a testa e baixou a mão armada.

Em poucos minutos entraram mais sete homens, todos eles murmurando as palavras “Operação Turquia”. Finalmente, entrou Yunuz Rumi, seguido pelo claudicante e malcheiroso

Cemal, o certo que ia ganhar um milhão de piastras.

— Estamos todos, efendim — disse Yunuz.

— Obrigada, Yunuz. Bem olhou para os nove homens —, todos sabem inglês, de modo que me entenderão perfeitamente. Não há muito que falar, pois já sabem que trabalho lhes compete fazer na “Operação Turquia”. Entreguem suas armas a Yunuz.

Houve um abafado murmúrio de desaprovação entre os homens, mas Yunuz ergueu a mão, impondo silêncio.

— Vocês não precisam de suas velhas armas para este trabalho. Serão devolvidas quando ele terminar. Para a “Operação Turquia” todos vão receber armamento moderno.

Agora o murmúrio foi de aprovação. Em poucos segundos, sobre um dos tamboretes, estavam três facas, um punhal, uma navalha, um “soco inglês” e três revolveres.

— Vocês seguirão esta mesma noite, agora, com Yunuz. Ele os levará ao local onde trabalharão no desmonte dos foguetes americanos. Obedeçam-no em tudo. Dentro de pouco, nós — indicou Mihail Posinov e ela mesma — também seguiremos para o local aonde Yunuz conduzirá vocês. Isto é tudo quanto se refere à “Operação Turquia”.

Todos ficaram olhando-a, um tanto surpresos. Brigitte considerou durante alguns segundos aqueles homens cabeludos, de tez escura, olhos brilhantes.

— Tenho aqui — sacou o receptor-gravador sob o grande véu azul — um pequeno aparelho que agentes fiéis da CIA estiveram utilizando em casa de Maulana Al-Din. É um gravador que registra conversas mantidas até trezentos metros de distância por meio de outro aparelho, muito menor, chamado microfone. Estou certa de que todos já ouviram falar destas coisas. São comuns em nosso trabalho. Pois bem: quando eu o puser em marcha, todos vocês, que naturalmente falam o turco, entenderão muito bem o significado desta conversa que foi gravada no escritório da residência de Maulana Al-Din, já executado como traidor. Mas, mesmo depois de sua traição e execução, Maulana Al-Din vai ser útil à CIA dizendo-nos os nomes de dois traidores que neste momento estão entre nós.

Fez um gesto de por o aparelho em marcha, mas um dos turcos, o mais torvo, gigantesco e Impressionante de todos, adiantou-se um passo.

— Não há traidores entre nós! — protestou. — Sempre...

— Não? — interrompeu Brigitte. — Veremos. Aponte-os, Yunuz! Que todos saibam já quem são os traidores.

Yunuz Rumi ergueu a mão, apontando com todos os dedos para o grupo, um tanto incertamente. A jogada consistia em que todos tivessem a impressão de que estavam sendo apontados. Uma jogada velha, quase inocente, mas que deu resultado.

Um dos dois homens que estavam atrás do gigantesco porta-voz do grupo empurrou este, fortemente, contra Posinov, quase derrubando ambos devido ao encontrão. E na confusão do momento, precipitou-se para o tamborete onde estavam as armas. Sua mão crispou-se sobre um dos revólveres, mas justamente então se ouviu um zunido no malcheiroso aposento e a faca lançada por Yunuz cravou aquela mão, pelo punho, à madeira do tamborete.

O homem lançou um grito espantoso e caiu de joelhos, lívido, as feições alteradas. E imediatamente outro homem, após lançar uma exclamação de medo, precipitou-se para a saída, enquanto os demais componentes do grupo permaneciam imobilizados pela surpresa.

Posinov foi o primeiro a reagir, dispondo-se a correr atrás do fugitivo, mas Brigitte o conteve com um gesto.

— Traga-o, Yunuz. — Atirou-lhe um dos três revólveres que estavam no tamborete. — A menos que você não tenha fechado bem a segunda porta.

— Trarei o fujão, efendim. Cazim, Muza: venham.

O gigante e um outro foram com Yunuz, sem se apressar. Brigitte aproximou-se do traidor cravado ao tamborete e que agora, já recuperado do espanto e da surpresa, permanecia silencioso, lábios apertados, ainda de joelhos.

Arrancou a faca com um movimento brusco e o homem pareceu a ponto de desmaiar. Dois outros o sustiveram, até que Yunuz, Casim e Muza reapareceram, empurrando o que tentara fugir para junto do ferido.

Durante um minuto, ninguém falou. Todos esperavam que o fizesse “Baby”. E assim foi.

— Já por diversas vezes tive o prazer de executar traidores. É uma das compensações deste duro trabalho: eliminar gente de pouco coração. Pouco e deteriorado. Dir-lhes-ei uma coisa: não faz muito, num hotel, matei um homem com três balaços... e não estou contente por isso. Ao contrário, o fato me entristece, lamento-o sinceramente. Aquele homem jogava sujo com seus inimigos, quer dizer que, ao inverso, jogava limpo com os seus amigos. Para mim, essa lealdade é bonita, inclusive num inimigo. Respeito meus inimigos. A alguns deles já me vi obrigada a matar, como a este de quem falo. A outros, por sorte, pude deixar viver e talvez, qualquer dia, em outra missão, um deles de cabo de mim. Ganhe quem ganhar, será lamentável, pois isto significará que o outro morreu. Lamentável deveras. Ninguém gosta dos espiões e talvez, sob certo ponto de vista, isto se justifique. Talvez. O que não se justifica é que nós mesmos nos degrademos mais, traindo nossos próprios companheiros. Talvez seja por isso que ninguém nos estima.

Fez uma pausa. Todos estavam pendentes de suas palavras, que compreendiam perfeitamente.

Brigitte pareceu meditar. Tinha muitas idéias a respeito de traições, mas por que desperdiça-las? Por que perder seu tempo com traidores?

Suspirou profundamente e apontou para aqueles dois:

— Que morram.

E saiu do aposento, deixando, ao passar, mil dólares nas mãos Imundas do velho Cemal, que começou a dar gritos de graças a Alá e a pedir sua bênção para a odalisca da voz celestial. Atrás de Brigitte, após breve hesitação, saiu Mihail Posinov. E atrás, Yunuz Rumi, que logo passou à frente dos dois pelo corredor, abrindo as portas diante de “Baby”. Quando a deixou no umbral da que dava para a rua, o turco com cara de cigano retornou ao fundo da casa, onde Cemal ainda desafinava cânticos em louvor de Alá e da bela odalisca, rainha de todos os haréns do paraíso prometido por Maomé aos verdadeiros crentes.

— E agora? — perguntou Posinov, quando ambos já estavam sentados no carro.

— Esperaremos até que saiam todos, que Se ponham a caminho.

— Para onde?

— Não se Impaciente, Mihail. Nós também nos dirigiremos para lá Imediatamente.

— Bem.

Os homens começaram a sair pouco depois. O último foi Yunuz, acompanhado pelo ainda cantarolante Cemal, que segurava com as duas mãos as cédulas americanas como se estas fossem o pão de sua vida. E eram.

Yunuz inclinou-se diante da janela de Brigitte, que estava ao volante do carro. Não disse nada. Apenas passou o dedo índice pela garganta com uni gesto seco, de orelha a orelha. Ela assentiu com a cabeça e ele seguiu atrás do grupo da “Operação Turquia”.

— Vamos — disse “Baby”.

Pôs o carro em marcha e durante quase dez minutos, tempo que lhe custou sair daquelas velhas ruas cheias de gatos e odores nauseabundos, permaneceu em silêncio, simplesmente atenta ao volante.

A seu lado. Mihail Posinov, também silencioso, olhava-a de soslaio. A personalidade daquela mulher, daquela espiã, começava a agigantar-se a seus olhos. Era forçoso admitir que não se tratava de uma pessoa comum. Máximo Zorian tivera razão.

— Mihail.

— Diga, Nadezda.

— Estou triste... mas temos que prosseguir.

— Eu sei. Estamos a caminho da base secreta dos projéteis dirigidos?

— Estamos. Teremos que sair de Istambul e cruzar o Bósforo num lanchão, com o carro. Mas já não há pressa nem perigo. A menos que Maulana Al-Din soubesse mais do que admitiu saber quando a CIA o solicitou para esta missão.

— Como saber isso, Nadezda?

— Ignoro. Mas, espere... Talvez o aparelho confiscado ao homem que espionava você no hotel possa servir-nos de alguma coisa. Ouçamos o que está gravado, Mihail... Quer manejá-lo você mesmo? Apanhe-o em minha maleta.

— Está bem

Posinov pôs em marcha o pequeno gravador. Primeiro ouviu-se sua própria voz, em tom forte, muito claro. Depois a de Brigitte. Era a primeira conversa mantida entre os dois por meio dos rádios de bolso:

“Alô!”

“É você, Mihail?”

“Os americanos... Quero dizer: os espiões americanos estão malucos... Como está, Nadezda?”

“Otimamente. Teve algum contratempo em seu regresso ao hotel?”

“Nenhum. Há alguma novidade?”

“Duas. Uma delas é que...”

 

Terminada aquela conversa, alguns segundos de silêncio. Depois a voz de Mihail Posinov, claríssima:

“Penso que você ouviu tudo, Máximo. Para trocarmos impressões e já que não o posso ouvir, seria conveniente que você descesse um momento à minha suíte.”

Brigitte Montfort parecia não compreender bem, apesar de haver demonstrado que entendia o russo à perfeição. Enquanto escutava aquilo, olhava o ar à sua frente, atônita, estupefata, com a expressão que poderia adotar uma pessoa que vê uma baleia voando.

— Mas...

— Suponho que esteja surpreendida — disse acremente Posinov.

— Mihail, não é pos...

Tinha voltado ligeiramente a cabeça para ele. O bastante para que o cano da automática de Posinov quase lhe penetrasse na vista.

— Sim, é possível — disse sinistramente o traidor. Completamente possível, querida Nadezda.

— Mas você... Não! Você não pode ser um traidor, não... Você, não, Mihail!

— Pare o carro. Mais para a direita, longe da luz. E quando tiver parado, mantenha as mãos no volante. Você já estragou tantas coisas bem preparadas, querida, que não posso absolutamente facilitar.

— Mihail, por Deus! Isto é... é uma brincadeira? Diga-me que é uma brincadeira, querido!

—        Pare aqui. Assim... — O carro deteve-se na sombra, sob um espesso grupo de paineiras, a um lado da avenida. — Não. Não é nenhuma brincadeira, Nadezda. Eu teria preferido que as coisas saíssem de outro modo, inclusive permitindo-me poupar-lhe a vida. Mas agora, para que eu possa voltar aos Estados Unidos e continuar na CIA, não tenho mais remédio que matá-la.

— Não... Não, Mihail, não!

— Só que, antes, você me dirá o lugar exato onde estão esses projéteis americanos. Onde estão?

Brigitte pareceu recuperar-se de súbito, recobrar seu caráter absolutamente firme. Lançou um olhar torvo a Posinov e apertou os lábios.

— Muito bem — sorriu este. — Será como você quiser.

Levantou rapidamente a pistola e, não menos rapidamente, golpeou com ela a cabeça da agente “Baby”. Um suspiro brotou dos formosos lábios, os olhos azuis giraram mostrando o branco, a cabeça abateu-se sobre o volante.

Quase em seguida, um tênue fio de sangue deslizou da têmpora pelo bonito e pálido rosto.

 

 

[1] O “Senhoy Europa”, chefe dos serviços da CIA no Velho Mundo, já apareceu em aventuras anteriores de Brigitte

[2] Efendim, “minha senhora” tratamento que prevalece a despeito da abolição, na Turquia, de designações hierárquicas como

[3] ver: VIAGEM DE PRAZER

[4] Até logo, camarada

[5] ver: FEITIÇO

 

 

                                                                                                    Lou Carrigan

 

 

 

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