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Os Espíritos de Gol / Kurt Mahr
Os Espíritos de Gol / Kurt Mahr

 

 

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Os Espíritos de Gol

 

O que pode uma criatura supostamente imortal querer dizer com a palavra breve? Perry Rhodan não sabia dizer. A última mensagem do desconhecido, que foi ter às mãos de Perry Rhodan durante a expedição no passado do planeta Ferrol, não diz se ele, Perry, teria de submeter-se logo à prova através da qual alcançaria o segredo da vida eterna.

Mas o chefe da Terceira Potência sabe que a nova prova a que terá de se submeter deixará longe tudo pelo que passara até então. Embora os dois arcônidas já comecem a julgar o risco excessivo, Perry Rhodan está disposto a persistir. E só essa firmeza pode salvar a expedição, quando a mesma se encontra com Os Espíritos de Gol...

 

                            

 

— Comandante a todos os girinos! Preparem seus veículos! A partida será às nove horas e vinte minutos, hora de bordo. Repit...

A voz áspera de Rhodan, lançada nos corredores da imensa nave pelos receptores do equipamento de intercomunicação, romperam o silêncio que nas últimas horas tomara conta da Stardust-III.

Era um silêncio enganador, em cuja superfície fervilhara o nervosismo, talvez o medo, mas sem dúvida a certeza de que se haviam envolvido em coisas que o cérebro humano não poderia compreender. Nunca antes os quinhentos tripulantes da Stardust-III perceberam com tamanha nitidez em que extensão o bem-estar e a segurança dos que se encontravam na nave dependiam da capacidade de um único homem: Perry Rhodan.

Entre esses quinhentos homens havia muitos que nada sabiam sobre as finalidades das ações planejadas por Rhodan. Este não julgara necessário esclarecê-los a esse respeito; por isso surgiram boatos, que de início apenas mereceram o escárnio dos homens, mas, superados por outros, ainda mais arrepiantes, acabaram sendo acreditados.

A nova ordem de Rhodan representava nova fonte de sobressalto para duzentos homens da tripulação. Mas depois de terem sofrido minuto por minuto daquelas horas enervantes de incerteza, acharam preferível mergulhar de corpo inteiro no maior dos sobressaltos a esperar mais um instante que fosse.

Os girinos eram as oito naves auxiliares da classe da Good Hope que a Stardust-III trazia a bordo. Ninguém se lembrava de quem inventara o nome. O fato é que ali estava ele, e representava a palavra-chave que, no código de comunicações, designava as naves de sessenta metros.

 

Os avisos de que as naves estavam prontas para decolar não tardaram a chegar. Reclinado no assento de piloto da sala principal de comando, Rhodan ouvia com o rosto impassível as vozes saídas do aparelho de intercomunicação. Parecia que a conversa não o interessava. Mas assim que o oitavo aviso havia chegado, inclinou-se sobre o microfone e transmitiu suas ordens:

— Viajem de acordo com os dados dos pilotos automáticos. Mantenham as naves na área do alvo, em posição de espera, e examinem o espaço para verificar eventuais alterações estruturais. Mantenham constantemente ativados todos os sensores estruturais, e avisem imediatamente se perceberem qualquer modificação na contextura espaço-temporal. A decolagem será realizada na hora combinada. Fim.

Com um movimento abrupto desligou o intercomunicador. Quando se virou de golpe, o assento rangeu.

A única pessoa que se encontrava na sala além dele era Reginald Bell, seu companheiro durante a primeira viagem à Lua, e que ainda continuava a sê-lo.

Bell esboçou um sorriso, mas este não passou de uma contorção do rosto. Naqueles dias a alegria não estaria espelhada no rosto de qualquer desses homens.

— O que está esperando? — perguntou Bell. — Naves desconhecidas?

Por algum tempo Rhodan contemplou-o em atitude pensativa. Depois sacudiu violentamente a cabeça.

— Não, não são naves — respondeu.

Bell esperou. Esperou até perceber que Rhodan não lhe daria nenhuma explicação se não perguntasse.

— Com os mil demônios, o que é? — perguntou com a voz rude. — Você quer que eu adivinhe, ou prefere contar?

Rhodan continuou sério.

— Espero um abalo estrutural — respondeu. — Não sei o que provocará o mesmo. O homem que estamos seguindo está em condições de modificar a contextura espaço-temporal à sua vontade.

Bell riu. Não era um riso muito alegre.

— O homem! — disse em tom de escárnio. — Gostaria de ver esse homem. Deve ter uma espiral energética em vez do cérebro e dois conversores de tempo no lugar em que nós temos, os braços.

— Pois vamos vê-lo — disse Rhodan em tom tranqüilo. — E então saberemos se realmente tem uma espiral energética.

Bell olhou-o de baixo para cima.

— Realmente acredita nisso? Na minha opinião...

— Acredito, sim! — interrompeu-o Rhodan. — Não sou nenhum idiota para lançar-me numa aventura mortal contra minha melhor convicção.

Bell murmurou alguma coisa que Rhodan não entendeu. Depois perguntou:

— Nossos girinos devem verificar em que setores do espaço ocorrem os abalos, não é?

— Isso mesmo!

Bell ficou quieto por algum tempo. Depois realizou nova investida.

— Ouça, chefe! No passado — é uma idéia maluca, no passado de dez mil anos atrás! — você se apoderou de um cilindro metálico, abriu-o e procurou decifrar seu conteúdo. Está convencido de que leu corretamente. O que você leu foi o seguinte: “Aquele que quer encontrar o caminho ainda tem permissão de desistir. Mas, se quiser prosseguir, saiba que não receberá mais auxílio. Em breve, o espaço sofrerá um abalo...” e sei lá mais o quê. Depois disso você some da vista de todo mundo, leva a grande máquina positrônica à incandescência e nos aparece com a idéia de que todas as naves auxiliares devem sair para localizar abalos estruturais no espaço. Não devemos esquecer que numa série de registros tão complicados a possibilidade de erro não pode ser excluída. Sendo assim, você não acha que nos envolvemos numa tarefa que não conseguiremos levar a cabo?

Rhodan ouvira-o com toda atenção. Bell se tornara sério, e ele sabia que esperava uma resposta sensata.

— Não, Bell — disse com a voz baixa e em tom persuasivo. — Estou convencido de que conseguiremos.

De um instante para outro a expressão do rosto de Bell alterou-se. Os lábios contorceram-se e a cabeça com o cabelo ruivo inclinou-se numa atitude combativa.

— Pois então diga aos outros! — resmungou. — Quem a bordo desta nave ousaria opor-se às suas ordens? Quem, a não ser os dois arcônidas?

 

Para o capitão Chaney esse vôo representava um assunto um tanto ambíguo. Comandava o girino número 5. Às nove horas e vinte minutos, hora de bordo, decolara da nave Stardust-III juntamente com outros sete girinos. Encontrou no piloto automático as rotas introduzidas pelo comandante Rhodan e, guiando-se por elas, dirigiu-se a posição que lhe fora designada, e que não distava mais de uma unidade astronômica do décimo quinto planeta de Vega.

Uma vez atingido esse ponto, parou a nave, seguindo as instruções que recebera, e manteve-se na expectativa. De início acreditara que nas próximas horas algo haveria de acontecer. Mas as horas foram se passando e nada aconteceu; apenas, o sol Vega que no momento da chegada do girino se encontrava a menos de cinqüenta milhões de quilômetros, afastara-se mais alguns milhões de quilômetros.

O capitão Chaney deitou, tentando dormir um pouco; mas não conseguiu. Voltou a levantar, tomou lugar no seu assento e lançou os olhos inflamados para as telas dos instrumentos óticos e dos sensores estruturais.

O capitão Chaney tivera poucas oportunidades de viajar numa nave desse tipo. Conhecia toda ela, do lado de dentro e de fora, mas esse conhecimento não provinha de um treinamento hipnótico intensivo, mas da simples prática visual.

Chaney realizara alguns vôos de cruzeiro no sistema solar terrestre. Mesmo isso representava uma dura provação para esse homem que um ano e meio antes ainda voara como primeiro-tenente num caça supersônico a jato, e acreditava que a Humanidade ainda levaria alguns decênios até que seus foguetes cuspidores de fogo ao menos atingissem Marte e Vênus.

Por isso havia momentos em que tinha a impressão de estar sonhando. Havia minutos em que procurava se convencer de que aquilo por que estava passando não era verdade. Mas nesse instante ouviu o som estridente de um sinal de alarma. Um instrumento de localização emitiu um zumbido e acendeu suas luzes brilhantes. Voltou a acreditar na realidade.

“Sou um sonhador”, pensou; sentia-se cansado.

— Localização ao comandante — disse uma voz entrecortada. — Objeto não identificado vindo de dezoito graus horizontal, duzentos e sessenta e seis graus vertical.

Chaney sobressaltou-se. Deslocou o marcador da escala da tela principal para o ponto dezoito graus H e duzentos e sessenta e seis graus V A tela tremeluziu e voltou à posição de repouso. No centro surgiu um ponto fulgurante. Sua luminosidade diminuía a intervalos regulares.

— O que é isso? — perguntou Chaney com a voz áspera.

— Não consigo identificar.

— Qual é a velocidade?

— Vinte e três mil metros por segundo. Vem em nossa direção.

— E a menor distância?

— Três mil quilômetros. Levará cerca de quarenta minutos.

Chaney esperou. No espaço vazio três mil quilômetros eram uma distância pequena, à qual devia ser possível reconhecer o objeto que atravessava o espaço emitindo uma luminosidade variável.

Quarenta minutos eram um tempo longo. Chaney forçou a vista até que sentiu os olhos arderem, mas sua tela não era bastante exata para permitir a fixação dos contornos do objeto.

A voz do localizador voltou a soar.

— Alarma falso. É o destroço de uma nave do tempo da invasão dos tópsidas. Trata-se de uma nave ferrônia.

Chaney sentiu-se logrado.

— Está bem — disse com a voz cansada.

Levantou-se.

— Tenente Forge, assuma o comando. Vou dormir um pouco. Acredito que ainda demorará um pouco até que vejamos alguma coisa realmente interessante.

 

Com um movimento enérgico Rhodan impôs silêncio.

— Vamos começar do princípio! — disse, derramando sua irritação tanto sobre Crest como sobre Thora. — Os senhores vieram numa nave exploradora. Provavelmente foi a última que Árcon conseguiu pôr a caminho. Dirigiram-se a este setor da galáxia, para procurar localizar o mundo em que esperam encontrar a solução do enigma da conservação perpétua das células.

“De início a expedição foi um fracasso. Mas, embora dessem várias voltas, acabaram aproximando-se do objetivo em nossa companhia, e provavelmente não levaram muito mais tempo do que teriam consumido se tivessem prosseguido sozinhos.

“Na arca existente sob o Palácio Vermelho de Thorta encontramos alguns indícios. Esforçamo-nos para seguir a pista, e encontramos novos indícios. Aproximamo-nos do objetivo, passo a passo, e justamente agora pretendem desistir.

“Por quê?”

A pergunta soou como uma chicotada. Bell, que estava sentado perto de Rhodan, encolheu-se. Não se lembrava de já ter visto Rhodan tão zangado como se mostrava naquele instante.

Crest não respondeu. Manteve abaixada a cabeça alta e estreita e fitou o chão. Thora chegara um pouco para a frente na sua poltrona e encarava Rhodan. Em seus olhos vermelhos havia uma expressão de hostilidade.

— Pois vou dizer-lhes por quê — prosseguiu Rhodan depois de algum tempo, um pouco mais calmo. — Estão com medo.

A cabeça encanecida de Crest ergueu-se num movimento súbito.

— E daí? — perguntou com a voz baixa. — Acha que é covardia sentir medo numa situação como esta?

— Acho que sim — respondeu Rhodan. — E vou dizer-lhe por quê: acreditaram que obteriam o segredo da vida eterna bem baratinho em algum ponto da galáxia. Alguém lhes disse que o problema havia sido resolvido satisfatoriamente por uma raça não identificada, que teria o maior prazer em revelar tudo.

“Já verificamos que não é assim. Os seres que conhecem o segredo da conservação das células sabem guardá-lo muito bem. Quem quiser descobri-lo terá de brigar com eles, e terá de brigar segundo suas regras.

“Acontece que um hábito de dezenas de milhares de anos fez com que acreditassem que tudo teria de lhes cair na mão sem o menor esforço. Por isso querem abandonar o jogo. Um belo dia, quando tivermos mais tempo, contarei a fábula da raposa que achou as uvas muito azedas.

“No momento apenas digo que fica inteiramente à sua vontade aguardar o fim da nossa ação lá fora, em perfeita segurança, ou se preferem vir conosco.”

Thora levantou-se de um salto. Reginald Bell conteve a respiração. Conhecia a impetuosidade de Thora. Por um instante parecia que iria agarrar Rhodan pela garganta. Deu dois passos em direção ao mesmo. Depois parou de ombros caídos.

— Seu bárbaro!

Rhodan tirou todo efeito à sua raiva, pois começou a rir.

— Se é que reconhecer as leis da necessidade é um procedimento bárbaro, e a covardia deve ser considerada uma atitude culta, prefiro mesmo ser um bárbaro.

Crest também se levantou.

— Acho que o senhor não se importará se refletirmos por algumas horas — disse em tom sério. — Vale a pena quebrar a cabeça com o assunto. Examinarei seus argumentos, Rhodan.

— Os senhores só poderão dispor de algumas horas se nossas naves não derem sinal de vida antes disso — respondeu Rhodan.

Crest confirmou com um aceno de cabeça. Saiu lentamente. Thora parecia hesitar.

— Será que já acabou de refletir? — perguntou Rhodan em tom irônico.

Thora virou-se e saiu correndo. Atrás dela a porta de enrolar automática trancou-se com um chiado.

 

O capitão Chaney acordou com um ruído que nunca ouvira. Conseguira adormecer com algum esforço e auxiliado por dois comprimidos. Não tinha a menor idéia de quanto tempo permanecera na cama.

Levantou-se e enfiou a cabeça pesada sob a torneira do camarote. Enquanto a água farfalhava em torno de seus ouvidos, a voz metálica do intercomunicador começou a soar.

— Comandante a toda a tripulação! Comandante a toda a tripulação! A nave está em alarma número 1!

Chaney cuspiu a água e saiu correndo.

Na sala de comando o tenente Forge, de pé, ainda continuava com o microfone diante da boca.

— O que houve? — gritou Chaney. — Por que ninguém me acordou?

Forge provou que havia passado por um treinamento rígido. Terminou a mensagem que estava transmitindo pelo intercomunicador, descansou o microfone e ficou em posição de sentido.

— Existem fortes alterações estruturais na vizinhança imediata da nave. A meu ver uma frota inteira de naves não identificadas deve ter completado a transição.

— Conseguiu localizá-las?

— Ainda não.

Chaney lembrou-se de que fora despertado por um ruído que não conseguira identificar. Não ouvia mais nada.

— Que barulho foi este há pouco tempo? — indagou.

— Não sei. Provavelmente o casco da nave entrou em vibração.

— O casco entrou em vibração? — gritou Chaney. — Não pôs a funcionar o envoltório protetor?

— Pus, sim.

— Com os mil demônios! Por que...

Quase foi derrubado. A sala de comando começou a balançar, e o material das paredes rangeu nas juntas. No painel do co-piloto viu-se um raio ofuscante, seguido de uma fumaça preta e mal-cheirosa. Não se ouvia o ruído da explosão, pois o casco da nave ressoou com um barulho ensurdecedor.

Chaney lembrou-se do ruído. Era o mesmo que o havia despertado.

Com as pernas cambaleantes dirigiu-se ao seu assento e entrou em contacto com o localizador.

— O que é isso? — gritou.

— Fortes alterações estruturais na vizinhança imediata — disse a voz rouca saída do alto-falante.

— Descubra o ponto em que se verificam as alterações e forneça a distância exata.

A bruxaria cessou tão subitamente como havia começado. A nave voltou à situação de repouso e o barulho retumbante cessou. Chaney conseguiu novamente manter-se ereto sobre as pernas. Foi ao assento do co-piloto e examinou o painel de comando.

A explosão despedaçara um instrumento de medida, deixando um orifício de cerca de dez centímetros de diâmetro na chapa de plástico.

— Que instrumento foi este? — perguntou Chaney, apontando para o orifício.

Forge aproximou-se.

— O indicador do pequeno medidor estrutural.

Chaney reprimiu o pânico que ameaçava tomar conta dele. Que impactos gravitacionais não deviam ser estes, que eram capazes de queimar um sensor estrutural!

Afastou-se e pediu ao oficial telegrafista que preparasse uma hipercomunicação com Ferrol.

Antes que pudesse falar, ouviu-se nova mensagem do localizador.

— A direção é zero, zero, oito graus horizontal e um, oito, nove graus vertical. Distância de 4,3 unidades astronômicas.

— Consegue ver alguma coisa nessa área?

— Sim senhor. O décimo quarto planeta de Vega.

Subitamente Chaney teve a impressão de que a hipercomunicação que solicitara era extremamente urgente. Gritou para o oficial telegrafista para que se apressasse.

 

— Gostaríamos de falar — disse Crest com a voz um pouco tímida e parou na escotilha, para evitar que a mesma se fechasse.

Rhodan fez que sim.

— Entre!

Sua raiva já se desvanecera. Sentiu pena de Crest e de todos os seres que eram como ele. O conforto milenar fizera com que os arcônidas se esquecessem de como saltar sobre sua própria sombra. Envolver-se em alguma coisa cujo resultado não era absolutamente seguro parecia-lhes tão tolo como atirar uma dose completa de raios positrônicos através do crânio, para experimentar sua resistência.

Thora entrou logo atrás de Crest.

Sentado diante de uma mesa de ensaios, Rhodan contemplava um cilindro metálico de que conseguira se apoderar numa de suas expedições ao passado. Por enquanto não encontrara nenhum indício de que, além das indicações que já lhes fornecera, esse cilindro contivesse outras informações. Mas Rhodan não duvidava. O caminho longo e sinuoso para o mundo da vida eterna teria chegado ao fim se o grande desconhecido não lhes fornecesse outras revelações.

Rhodan virou-se na poltrona e olhou fixamente para os dois arcônidas. Crest parou; parecia indeciso.

— Sentem! — disse Rhodan com um sorriso irônico. — Esta nave é sua tanto quanto é minha. Façam de conta que estão em casa.

Crest sentou. Parecia constrangido, pois levou algum tempo para erguer a cabeça e começar a falar.

— Refletimos sobre o assunto — principiou.

Não conseguiu prosseguir. Nesse exato instante aconteceram simultaneamente várias coisas surpreendentes, face às quais nas próximas horas ninguém se interessaria em saber sobre o que Crest havia refletido e qual a conclusão a que chegara.

O recinto circular encheu-se de um zumbido ensurdecedor. Rhodan levou uma pancada nas costas, que o fez erguer-se cambaleante de sua poltrona.

Virou-se instantaneamente, com a mão na arma, e enrijeceu em meio ao movimento.

O cilindro metálico que se encontrava em cima da mesa de ensaios tornara-se incandescente. Irradiava uma luz branco-azulada; parecia não emitir nenhum calor, pois a tampa da mesa não sofreu o menor dano.

Mas a luz era tão intensa que Rhodan teve de pôr a mão diante do rosto, olhando por entre os dedos.

Ficou espantado ao notar que o cilindro irradiava a matéria de que era feito. Ia minguando; quando o último pedaço de metal desapareceu, a luminosidade também cessou.

Rhodan baixou a mão. Procurou enxergar por entre os círculos dançantes que a córnea superirritada lhe traçava.

— Bell!

— Sim, chefe.

— Chame Tanaka! Peça-lhe que venha imediatamente!

A reação de Bell foi imediata e precisa. Se o cilindro ofuscante lhe causara alguma impressão, ele não o dava a perceber.

No momento em que Bell começou a falar para dentro do microfone do intercomunicador, o hiper-receptor começou a emitir uma série de zumbidos agudos. Com dois saltos enormes Rhodan pôs-se junto ao quadro de comando e regulou a chave para a recepção.

— É o comandante. Fale!

— Girino número 5 ao comandante. Capitão Chaney falando. Fortes abalos estruturais na área do décimo quarto planeta. Vêm aos golpes. São tão fortes que mal consigo controlar a nave.

— Observou mais alguma coisa?

— Não senhor. Não constatamos nada que possa ser responsabilizado por essas alterações estruturais.

— Está bem. Obrigado pelo aviso. Fim!

Virou-se apressadamente.

— Onde está Tanaka?

— Já vem.

Rhodan lançou os olhos sobre Crest e Thora, que pareciam pregados às suas poltronas de susto. Os olhos arregalados e inexpressivos de Crest continuavam fitos na mesa de ensaio, onde o cilindro metálico irradiara sua substância numa luz branco-azulada. Thora permanecia imóvel, cobrindo o rosto com as mãos.

A escotilha deslizou para o lado. Quem entrou foi Tanaka Seiko, um dos mutantes mais competentes de Rhodan. A radiatividade produzira a ativação de um setor até então inaproveitado de seu cérebro, tornando-o capaz de captar radiações eletromagnéticas e decifrar seu sentido, desde que fossem moduladas, como por exemplo as ondas de rádio.

Nos últimos dias haviam constatado que a área sensibilizada do cérebro de Tanaka não reagia apenas aos fenômenos eletromagnéticos, mas também a outros, de ordem superior.

Tanaka entrou cambaleante. Parecia reunir as últimas energias de que dispunha para manter-se de pé. Tinha o rosto pálido.

— Entendeu, Tanaka? — perguntou Rhodan com a voz áspera.

O japonês fez que sim. Rhodan apontou-lhe uma poltrona.

— Sente! Conte logo!

— Alguém disse — gaguejou Tanaka: — “Deves vir agora.” Depois aludiram a uma advertência. Entendi o seguinte: “Lembra-te da advertência! Terás de procurar no lugar em que houver o abalo.”

Fez uma pausa e respirou profundamente, para vencer o esgotamento. Depois prosseguiu:

— Ainda disseram o seguinte: “Não apareças sem a sabedoria do plano superior! Ninguém poderá vir em teu auxílio, só a montanha pulsará por ti.”

Rhodan acenou com a cabeça. Com um movimento mecânico fez retroceder a fita na qual havia gravado as declarações de Tanaka. Voltou a ouvir o que o japonês acabara de dizer.

— Venha — murmurou — mas não se esqueça da advertência. Você terá de procurar no lugar em que houver o grande abalo. Mas não apareça sem o saber superior. Ninguém virá em seu auxílio, só a montanha pulsará por você.

Era uma mensagem parapsicológica gravada no cilindro metálico que Rhodan capturara no passado, e que voltara a irradiar-se para o nada no momento exato que o grande desconhecido considerava adequado.

“Devemos ter cuidado para não enlouquecer”, pensou Rhodan com um sentimento de amargura.

Ouviu Tanaka fungar atrás de si. O ruído distraiu-o dos seus pensamentos. Olhou para Bell, que permanecia numa atitude de expectativa junto ao intercomunicador. Num movimento inseguro estendeu a mão e levantou o fone.

Rhodan fez que sim; segurou a peça:

— O comandante a todos os tripulantes. Decolaremos em trinta minutos. Cinco minutos antes todos os postos de combate e de vigilância deverão estar ocupados. Solicito confirmação dos chefes setoriais de que tudo está pronto para a decolagem. Os majores Deringhouse e Nyssen colocarão suas esquadrilhas de caças espaciais em posição de serem ejetadas pelas comportas. Neste instante a nave entra em alarma número 1.

Os trinta minutos passaram rapidamente. Por várias vezes Crest fez menção de dizer alguma coisa, mas com um gesto Rhodan pediu-lhe que tivesse paciência. Ele mesmo estabeleceu a rota. No calculador automático estavam armazenados os dados sobre as trajetórias e as velocidades de todos os planetas do sistema Vega. Rhodan formulou a indagação. A resposta veio sob a forma de uma equação de trajetória concebida em símbolos da matemática arcônida, pronta para ser introduzida no piloto automático.

Rhodan preparou o dispositivo para a decolagem e foi recebendo os avisos que chegavam dos diversos setores da imensa nave.

O major Deringhouse foi o último a transmitir o aviso. Recitou-o apressadamente; depois perguntou num tom mais pessoal.

— Pode-se saber o que está acontecendo?

— E o quatorze — respondeu Rhodan laconicamente. — Vamos dar uma olhada por lá.

— O quatorze! — retrucou Deringhouse. — Aquele monstro?

Rhodan fez que sim.

— Aquele monstro.

Dali a alguns minutos a Stardust-III decolou. Aquela esfera imensa de oitocentos metros de diâmetro projetou uma sombra negra sobre a paisagem e causou um eclipse solar não planejado numa pequena parte da superfície do planeta de Ferrol.

O espetáculo não durou muito. Com um rugido a nave disparou para o espaço, deixando atrás uma cauda incandescente formada pela atmosfera ionizada. Uma pessoa dotada de sensibilidade ficaria estupefata ao notar como dentro de poucos segundos a gigantesca esfera ficou reduzida a um ponto negro e dali a um instante desapareceu por completo.

Na sala de comando Rhodan passou os olhos pelos controles luminosos do piloto automático. Acendiam-se na seqüência correta e com as cores previstas.

A função trajetorial não experimentou qualquer inconstância; a transição não fora planejada. O vôo consumiria cento e dez minutos.

Rhodan lembrou-se de que Crest pretendia dizer alguma coisa. Lançou um olhar indagador para o arcônida.

— O senhor não pretendia...

Crest interrompeu-o com uma risada. Há bastante tempo era a primeira vez que ria de verdade.

— Sim, Rhodan, pretendia dizer alguma coisa. Refletimos sobre o assunto e resolvemos acompanhá-lo de qualquer maneira.

Rhodan fez cara de espanto.

— Ah, é verdade! O senhor ainda tinha suas dúvidas. Agora estou lembrado.

Thora levantou-se. Seu rosto contorcia-se num misto de raiva e alegria.

— Gostaria de dizer — disse num tom odioso — o que seria de nós se tivéssemos decidido outra coisa!

— Ainda bem que não fizeram nada disso — respondeu Rhodan com um sorriso.

 

O décimo quarto planeta de Vega era um gigante de amoníaco e metano do tipo de Júpiter. Fora nas proximidades do mesmo que há tempos, por ocasião do início da invasão dos tópsidas, Rhodan, que se encontrara no comando da Good Hope, tirara Chaktor dos destroços à deriva que sobraram da frota de defesa ferrônia depois do confronto com o invasor.

O diâmetro do gigante correspondia a três vezes o de Júpiter, isto é, chegava a quatrocentos e trinta e quatro mil quilômetros; ao contrário do planeta do sistema solar, sua densidade era muito elevada. De acordo com os dados fornecidos pela astronomia ferrônia, a gravitação superficial era superior a 900 g. Um homem que se encontrasse na superfície do imenso planeta teria que carregar mais de novecentas vezes seu peso normal.

Rhodan acreditava que havia nisso um exagero. Enquanto a Stardust-III se aproximava do planeta, mandou conferir os dados. Com uma gravitação superficial de 900 g qualquer ação individual das naves auxiliares ou mesmo dos caças espaciais por cima daquele mundo de metano e amoníaco se tornaria impossível. As naves auxiliares conseguiam neutralizar uma força de até 500 g. Se a gravitação fosse mais intensa, teriam de recorrer ao mecanismo propulsor, o que reduziria sua mobilidade.

O planeta era um monstro em todos os sentidos. O rastreamento à distância revelou que sobre o núcleo propriamente dito — que poderia ser sólido ou líquido — havia uma atmosfera de uns vinte mil quilômetros de altura. Com isso as escalas de pressão na superfície excediam tudo que a técnica de alta pressurização da Humanidade já concebera ou realizara.

Quando a Stardust-III se aproximou a uma unidade astronômica do planeta, os resultados das medições gravitacionais foram entregues a Rhodan. Na superfície do planeta monstro havia uma força gravitacional de 916 g, isto é, o peso dos objetos era novecentas e dezesseis vezes o que teriam na Terra.

Face a isso Rhodan ordenou aos seus girinos, que eram as oito naves auxiliares, que se retirassem para Ferrol, o oitavo planeta, e aguardassem os acontecimentos. Pediu aos oficiais de patente mais elevada e aos dois arcônidas que comparecessem a uma conferência na sala de comando.

Quem acreditasse que Rhodan se envolveria numa discussão sairia desapontado. Parado diante de seus oficiais, trouxe ao conhecimento dos mesmos as decisões que havia tomado.

— A missão é muito arriscada — disse em tom áspero. — Não devemos nos iludir a este respeito. Corremos o risco de perder nossa nave. Mas não devíamos perder de vista o que aconteceu até aqui. Estamos lidando com um ser que só quer confiar seus segredos a alguém que julgue digno disso. A meu ver a probabilidade de que nos aconteça algo mais sério é muito pequena. Ninguém submete um candidato a uma prova de coragem para eliminá-lo através da mesma. Mas devemos ter cuidado. O desconhecido já nos avisou que teremos de confiar em nossas forças. Não tenho dúvida de que essas forças estejam em condições de medir-se com o que encontrarmos naquele planeta, seja lá o que for.

Fez uma pausa, aguardando alguma objeção. Não houve nenhuma.

— Devemos discutir alguns detalhes de ordem técnica — prosseguiu. — Precisamos de veículos que nos permitam o deslocamento sobre a superfície do planeta. Esses veículos terão de suportar uma pressão de cinqüenta mil atmosferas, e deverão ser neutralizados contra uma gravitação de 916 g. Não se esqueçam de que a segurança dos ocupantes dependerá do cuidado com que forem executadas essas medidas de segurança. Dispomos de algumas horas para preparar tudo isso. Depois as coisas começarão a ficar sérias e não haverá como voltar atrás. Obrigado.

Os oficiais saíram. Só Thora e Crest permaneceram na sala, além de Bell, cujo lugar de qualquer maneira era ali mesmo.

— Pensou bem no que está fazendo? — perguntou Crest.

— Ele não costuma refletir — interveio Thora. — Simplesmente age, e geralmente tem sorte.

— Penso em tudo — respondeu Rhodan. — Só arrisco a nave para chegar mais perto do segredo da vida eterna. Acredita que o mesmo valha mais que esta nave?

— Acredito, sim — admitiu Crest. — Mas o que nos adiantará esse segredo se ficarmos presos nesse planeta monstruoso?

— Ficar preso? Uma das naves auxiliares irá nos buscar, se...

— Buscar-nos? Com uma gravitação de 916 g?

— Está certo; será uma manobra difícil. Acontece que a nave dispõe de teledireção, de forma que nem sequer será necessário expormos um robô àquela gravidade. Quanto a nós...

— Quanto a nós — chiou Thora — se tudo der certo, talvez possamos contar com uns cinco ou seis veículos que oferecem a necessária segurança, isso para quinhentas pessoas. Cada veículo pode transportar vinte pessoas, no máximo trinta. E os outros?

— Os outros não precisarão preocupar-se mais com sua retirada — respondeu Rhodan em tom seco. — Era isso que queria ouvir?

Thora não respondeu. Rhodan entrou na brecha.

— Aliás, há uma hora a senhora afirmou que pretendia continuar a participar na operação. Será que resolveu outra coisa?

— Não, seu teimoso! — resmungou Thora em tom zangado e saiu batendo os pés.

— Devíamos chamá-lo de Gol — disse Reginald Bell em tom pensativo.

— Quem?

— Aquele ali — respondeu Bell, apontando a mão espalmada para a tela, pela qual rugiam as tempestades das camadas atmosféricas superiores. — Gol é um gigante nojento das lendas antigas, não é?

— Pode ser — respondeu Rhodan, mergulhado em pensamentos.

A Stardust-III estava estacionada dezoito mil quilômetros acima do ponto em que, segundo a sonda de microondas, se localizava a superfície propriamente dita do planeta. A nave aproximava-se do lado diurno. Face às radiações branco-azuladas da gigantesca estrela Vega, nos arredores da nave a temperatura atingia uns cinqüenta graus centígrados.

O rastreador fixara o período de rotação do planeta em pouco menos de quatorze horas. Dali se concluía que nas camadas superiores, submetidas a um movimento de rotação extremamente rápido, devia haver uma zona limítrofe em que as tempestades rugiam sem cessar. E tratava-se de tempestades desencadeadas num ambiente cuja pressão devia ser superior a quarenta mil atmosferas!

Rhodan procurou imaginar como seria o ser que escolhera um mundo desses como palco de provas. Não conseguiu.

— Quinze mil — soou uma voz indiferente no intercomunicador.

A bordo da Stardust-III seguia-se o linguajar terreno, no qual todas as distâncias eram indicadas em metros, a não ser que se tratasse de trechos mensuráveis em termos de grandeza interestelar.

— Ainda estamos a quinze mil quilômetros da superfície. A velocidade do vento é de quatrocentos metros por segundo — anunciou outra voz.

Bell começou a rir. Não era um riso alegre.

— Uma velocidade do vento superior à do som — murmurou. — A que grau corresponde isso na escala universal?

— Vinte — respondeu Rhodan bastante sério. — Acontece que a velocidade do som depende da natureza da substância a que se refere e de sua densidade. A substância é uma mistura de amoníaco e de metano, e a densidade da mesma é muito maior que a da atmosfera terrestre. Por isso a velocidade do som deve ser muito maior que no ar terreno sob a pressão normal.

Bell esteve prestes a responder, mas foi interrompido por um zumbido de advertência.

A lâmpada vermelha do sensor estrutural lançou uma luz difusa sobre os indicadores de impulsos da tela oscilográfica.

O oscilógrafo reagia a toda e qualquer alteração estrutural no espaço através de um pontinho verde projetado sobre a respectiva tela. A situação do ponto na rede de coordenadas da tela indicava o lugar do espaço em que se verificavam as modificações estruturais.

O que se ofereceu aos olhos de Rhodan foi um emaranhado tremeluzente, que partia de um ponto central e se estendia por toda a tela. Não conseguiu interpretar o modelo.

Sabia que o sensor estrutural registrava suas indicações numa fita de vídeo. Por isso não teve pressa: contemplou aquele conjunto estranho de linhas até que desaparecesse subitamente.

O cronômetro acoplado ao sensor mostrava que a reação do mesmo durara dezesseis segundos.

Rhodan teve uma ligeira palestra com Tanaka Seiko através do intercomunicador; mas Tanaka não percebera nada. Se é que essas alterações estruturais volúveis se revestiam de algum sentido suscetível de interpretação, o mesmo se ocultava nos abalos gravitacionais e não estava ao alcance de Tanaka.

O jogo tornara-se um pouco mais difícil.

— Doze mil — anunciou o localizador.

Rhodan retirou a fita de vídeo do sensor estrutural e projetou o quadro registrado. Estudou-o numa ampliação de dez vezes, mas ainda desta vez não conseguiu descobrir qualquer sentido naquilo que pouco antes havia contemplado em tamanho natural.

Mas conseguiu fixar as coordenadas do ponto central e modificou a rota da Stardust-III para aquela direção. Ao fazê-lo, ultrapassou a fronteira entre o dia e a noite; dali em diante passou a deslocar-se em meio a uma escuridão tempestuosa e turbilhonante.

A temperatura reinante para além do casco da nave descera para cento e dez graus absolutos, o que equivale a cento e sessenta e três graus centígrados negativos.

 

— Dez mil quilômetros!

No mesmo instante o sensor estrutural voltou a reagir. E da mesma forma que da vez anterior: o raio eletrônico traçou linhas verdes que se uniam num modelo sem o menor sentido. Durante dezesseis segundos brincou com a fantasia de Rhodan e apagou-se.

Houvera uma única modificação: o ponto central da amostra linear situava-se no ponto de origem das coordenadas. A Stardust-III encontrava-se na vertical do emissor, e não havia dúvida de que este se localizava na superfície do planeta gigante.

Rhodan comparou os dois quadros registrados em fita. Não teve tempo para interpretar os resultados da comparação; mas tudo indicava que não havia qualquer diferença entre as duas amostras além da situação do ponto central.

Dali se concluía que a alteração estrutural do espaço que se realizava abaixo da Stardust-III era um acontecimento dirigido. Não uma ocorrência causal no sentido estatístico. Outro indício disso consistia no fato de que em ambos os casos a alteração durara dezesseis segundos.

O localizador voltou a falar.

— O terreno abaixo de nós é bastante difícil. Parece ser montanhoso. As diferenças de altitude chegam a vinte mil metros. A área não é apropriada para o pouso.

— Conseguiu descobrir um terreno mais favorável?

— Sim senhor. A uns duzentos quilômetros daqui. Se os instrumentos não enganam, o terreno é totalmente plano.

— Corrija a rota, mas mantenha na medida do possível a direção atual.

O localizador efetuou a correção, introduzindo as coordenadas do novo local de pouso na memória programática do piloto automático. Na central a recepção dos novos dados foi anunciada através de um sinal. Rhodan, que durante a difícil manobra de pouso realizava um vôo semi-automático com a Stardust-III, realizou a adaptação à nova rota.

Numa altitude de mil quilômetros tornou-se necessário regular os geradores do envoltório energético para a potência máxima. A tempestade que, numa velocidade inconcebível, tangia diante de si massas de amoníaco e de metano, começou a alterar a rota da nave. A esfera gigantesca da Stardust-III sofreu um desvio. Só com a intensidade energética máxima dos envoltórios protetores tornou-se possível subtrair a nave aos efeitos da tormenta.

Um quadro estranho surgiu nas telas. O metano, um dos dois elementos principais da atmosfera daquele planeta, é um gás facilmente ionizável. E a ionização produzida pelo impacto das moléculas contra o envoltório energético envolveu a Stardust-III numa verdadeira auréola, que a nave arrastava atrás de si.

Naquela altura tornou-se impossível determinar o estado agregacional da atmosfera. Submetidas a uma pressão tremenda, as moléculas de amoníaco e metano se uniram numa ligação tão compacta que só seria de esperar num líquido. Mas a definição do estado agregacional líquido inclui uma superfície formada pela substância correspondente. Naquela atmosfera essa superfície se achava ausente. Rhodan concluiu que as pressões ultra-elevadas e as temperaturas extremamente baixas ali reinantes haviam produzido um estado ainda desconhecido à termodinâmica terrena em virtude da falta de possibilidades experimentais.

Nesse meio tempo o sensor estrutural havia reagido mais três vezes. O modelo surgido na tela era idêntico, o tempo de recepção foi novamente de dezesseis segundos, e Rhodan constatara que os intervalos entre as emissões também eram constantes.

Emissões!

Devia haver alguém nas proximidades do morro que, segundo as informações do localizador, se elevava a vinte quilômetros acima do nível normal, e transmitia emissões que provocavam os mesmos efeitos de distorção espacial que surgiam espontaneamente durante a transição de uma nave espacial. Até então essas distorções escapavam a qualquer influência dos homens — “devemos procurar outra palavra”, pensou Rhodan, “pois não se pode dar o nome de ‘homem’ a qualquer ser inteligente.” Não se limitava a transmitir, mas conseguira modular os efeitos das transmissões, conforme demonstrava o modelo surgido na tela do sensor.

Rhodan começou a compreender por que Crest e Thora pensaram em desistir de seus planos originais. Aqui defrontavam-se com um poder que excedia em muito o dos arcônidas.

— Altitude seiscentos mil metros. Temperatura externa oitenta e cinco graus absolutos. O dia começou, ao menos segundos nossos cálculos. O senhor percebe alguma coisa disso?

Um sorriso irônico surgiu no rosto de Rhodan.

— O senhor esperava ver o sol brilhar no fundo de um oceano de amoníaco de vinte quilômetros de profundidade?

Outras informações foram chegando. Todas elas refletiam o nervosismo que se apoderara dos homens. Dificilmente havia um dentre eles que seria capaz de sofrer a influência desse mundo estranho sem abalar-se. Ainda acontecia que na sua maioria os membros da tripulação não tinham visão direta do mundo exterior. Os localizadores e os homens que ocupavam os postos de combate só dispunham das telas dos localizadores e dos goniômetros, onde os objetos palpáveis se revelavam sob a forma de pontos, linhas ou superfície de uma cor. Ninguém sabia qual seria o aspecto do mundo situado lá fora.

Rhodan poderia consolá-los. Na tela do visor ótico direto espalhou-se um negrume acinzentado, sem contornos, sem detalhes.

Bell fitou o calendário automático.

A bordo da Stardust-III prevalecia a escala de tempo terrena. A decisão de Rhodan não fora fruto apenas do sentimentalismo; ainda acontecia que naquela nave, destinada a vôos extensos, qualquer escala de tempo que se adotasse seria tão prática e adequada como qualquer outra.

— 7 de dezembro. 18 horas e 20 minutos — disse Bell. Apenas não se percebia a leve melancolia que tremulava em sua voz porque a mesma era superada pelo nervosismo.

— A esta hora costumo...

— Quatrocentos mil metros!

— ...a esta hora costumo...

— Velocidade do vento seiscentos e cinqüenta metros por segundo. Mantém-se constante há dez minutos.

— ...a esta hora...

— Localizador ao comandante: a superfície abaixo de nós já não é tão plana como antes. Não sei como explicar isso.

— Consegue notar algum movimento? — perguntou Rhodan.

— Sim senhor. Parece que, de uma hora para outra, a pradaria se transformou num mar.

— É isso mesmo. A temperatura reinante na superfície do planeta aproxima-se do ponto de fusão do metano. Uma pequena elevação da temperatura basta para derreter o metano congelado. Realize um ensaio estrutural. Quero saber até que profundidade o metano está derretido.

— Sim senhor.

Menos de um minuto depois:

— A dez metros abaixo da superfície movimentada encontro chão firme.

— Está bem. A rota permanecerá inalterada.

Bell deu um suspiro melancólico e desistiu de contar o que teria feito a essa hora se estivesse na Terra. Dedicou sua atenção aos instrumentos.

A luz de controle dos envoltórios protetores começou a piscar. Bell reagiu antes que Rhodan percebesse qualquer coisa.

— Co-piloto ao controle de geradores do envoltório protetor. O que está acontecendo? Por que não ligou a potência máxima?

— Liguei — queixou-se o engenheiro.

— Procure controlar. Os envoltórios estão oscilando.

Rhodan reagiu à sua maneira. Diminuiu o desempenho dos jatos e fez com que a Stardust-III descesse com maior rapidez. Se algo acontecesse aos envoltórios protetores, preferia ter chão firme sob os pés.

— Chão firme!

 

— Atenção! A nave está tocando o solo.

Rhodan manteve-se imóvel diante do grande quadro de comando do piloto. O autômato incumbiu-se de sondar o subsolo e só desligar ou reduzir ao mínimo os jatos quando tivesse encontrado uma área de apoio adequada.

Até uma profundidade de dez metros o metano estava derretido; mais abaixo começava um solo enganador. Só numa profundidade de vinte metros os suportes hidráulicos da nave encontraram um apoio tal que levasse o autômato a reduzir o desempenho dos geradores.

O zumbido, que até então preenchia todos os cantos da gigantesca nave, e ao qual os ouvidos estavam tão bem adaptados, cessou quase por completo; só restou um ruído insignificante. Um silêncio quase tangível espalhou-se pelos compartimentos.

Rhodan adaptara uma trava aos geradores, que não permitiria a redução de sua aceleração a menos de 916 g. Dessa forma, juntamente com os neutralizadores gravitacionais, mesmo depois do pouso o mecanismo propulsor conservaria a Stardust-III num estado de ausência de gravidade. Os suportes haviam encontrado apoio seguro, embora não precisassem dele. Rhodan tinha certeza de que seria capaz de levantar a nave assim que o desejasse.

Mandou triplicar a guarnição do setor de vigilância dos geradores e encareceu aos homens que a segurança da nave e de seus tripulantes só estaria garantida se o mecanismo propulsor estivesse em condições de fazer a nave decolar a qualquer momento.

O incidente ocorrido numa altitude de quatrocentos quilômetros deixou-o pensativo. É bem verdade que poucos segundos depois da troca de mensagens entre Bell e o engenheiro incumbido do envoltório protetor este voltara à estabilidade; mas ainda faltava explicar o fenômeno que por trinta segundos fizera oscilar o mesmo sem qualquer motivo palpável.

O engenheiro asseverou que na regulagem dos geradores não houvera nenhuma modificação. Estes eram comandados por um quadro de comando central, e o engenheiro não tirara os olhos do mesmo. Não havia a menor explicação para o incidente.

— Até parece que alguém andou mordiscando nosso envoltório do lado de fora — disse Bell em tom pensativo.

A idéia era absurda. Mas um incidente deste tipo costuma produzir idéias absurdas.

 

— Quero pedir-lhe que examine os registros do sensor estrutural — disse Rhodan em tom sério. — Parece que estas alterações estruturais encerram alguma mensagem. Tanaka Seiko não conseguiu extrair coisa alguma de tudo isso. Não sente nada. Dependemos exclusivamente do sensor estrutural.

— Dispõe de algum ponto de referência? — perguntou Crest em tom pensativo.

Rhodan sacudiu a cabeça. Levou algum tempo para perceber que era a primeira vez que Crest o consultava num assunto de ordem técnica.

— Não dispomos de coisa alguma. A não ser que queiramos ver um ponto de referência naquilo que já sabemos sobre a mentalidade do desconhecido. Quer partir dali? Quanto a mim, posso partir. Mas não sei o que fazer com isso.

Crest olhou para as estreitas fitas de plástico que se encontravam diante dele; parecia contrariado.

— O que pretende fazer? — perguntou depois de algum tempo.

Rhodan sorriu.

— Nossos técnicos montaram um veículo experimental. Dispõe de um mecanismo de teledireção. Eu o farei andar um pouco por aí, e, se for capaz daquilo que esperamos dele, eu mesmo entrarei nele e darei umas voltas.

— Lá fora? — perguntou Crest, apontando com o polegar por cima do ombro.

— Lá fora — confirmou Rhodan. Crest sacudiu a cabeça.

— Às vezes até chego a sentir calafrios quando percebo seu poder de iniciativa. Não tem medo?

— Se tenho! — asseverou Rhodan com um sorriso de escárnio.

 

— Tudo em ordem. O carro esteve lá fora durante três horas e percorreu cerca de cinqüenta quilômetros. Nenhum vazamento. O funcionamento dos geradores do envoltório é impecável; a teledireção também está perfeita. Se desmaiar em caminho, poderemos trazê-lo para casa.

— Obrigado — disse Rhodan com um sorriso.

O carro era um veículo monstruoso. Não se podia cogitar de construí-lo sob a forma de um deslizador, que se movesse acima da superfície. A gravitação extrema de Gol — Rhodan aceitara o nome — excluía a possibilidade desse tipo de experiência. O veículo deslocava-se sobre esteiras. Os técnicos haviam aproveitado o chassi de uma das máquinas de trabalho robotizadas. O espaço útil não ultrapassava uns trinta por cento do volume total. Um pequeno recipiente abrigava o mecanismo propulsor propriamente dito. O espaço restante, que correspondia a quase setenta por cento do total, era ocupado por dois geradores incumbidos da criação de um campo protetor que defendia o veículo da força gravitacional mortífera.

A bem de sua segurança pessoal Rhodan teria preferido que o carro realizasse algumas viagens experimentais. Mas não havia tempo a perder. O desconhecido tinha uma noção muito precisa do tempo que o ser considerado digno consumiria na solução do mistério, e ninguém sabia qual era o tempo prefixado para a solução do grande mistério de Gol.

Bell insistira em acompanhar o chefe durante a primeira viagem, mas Rhodan não concordara.

— Nunca se esqueça de que além de mim você é o único homem que dispõe do saber dos arcônidas. A Humanidade não está em condições de perder nós dois ao mesmo tempo.

Designou o major Deringhouse e o japonês Tanaka Seiko para acompanhá-lo.

O carro de esteiras saiu da comporta inferior, que num pouso normal se situaria ao nível do solo. Rhodan assumiu a direção. O rastreador ótico, pelo qual se orientava, estava acoplado a um holofote de luz infravermelha. O raio invisível do mesmo, fortemente enfeixado, rompia a escuridão reinante em Gol a uma distância superior a um quilômetro, projetando quadros nítidos.

O major Deringhouse controlava o localizador de microondas, enquanto Tanaka Seiko desempenhava primordialmente as funções de telegrafista.

Na tela de trezentos e sessenta graus Rhodan viu quando as imensas escotilhas da comporta fechavam-se atrás dele. O metano líquido penetrara na comporta e evaporara-se no calor ali reinante. O gás extremamente perigoso foi bombeado e, formando bolhas enormes, subiu à superfície do oceano de metano, por onde o carro procurava abrir caminho em direção ao chão firme.

Rhodan fez o holofote efetuar uma rotação completa e percebeu que o carro funcionava como submarino. A extremidade superior do envoltório gravitacional elíptico ainda estava coberta por oito metros de metano líquido.

Rhodan procurou imaginar o que aconteceria se a temperatura ambiente baixasse subitamente e o metano voltasse a endurecer.

Mas as dificuldades que teve de enfrentar na direção do veículo logo lhe tiraram os pensamentos inúteis da cabeça. O chão em que se apoiavam as esteiras era pegajoso, e o veículo só saía do lugar se o mecanismo propulsor fosse regulado para a potência máxima. Dessa forma o veículo desenvolvia uma velocidade de cerca de trinta quilômetros por hora.

Rhodan manteve-se numa direção que, pelas medições magnéticas realizadas a bordo da Stardust-III, era definida como o sul. Era ali que se erguia o maciço montanhoso onde devia estar alojado o emissor que projetara os modelos incompreensíveis sobre a tela do sensor estrutural.

Dali a uns quinze quilômetros o solo começou a entrar em aclive. A altura da massa de metano líquido que cobria o carro de esteira diminuía progressivamente. Tanaka Seiko transmitiu as primeiras mensagens rotineiras para a nave. Foram recebidas e confirmadas sem problemas.

Mais alguns minutos, e o veículo emergiu do oceano de metano. Os geradores uivaram para levá-lo acima do barranco íngreme e colocá-lo em solo firme.

Rhodan parou e fez o holofote girar.

— Olhe isso! — disse.

Parara o holofote que iluminava uma agulha solitária em forma de rocha, que se erguia bem alto. Ficava a apenas duzentos metros da margem do lago do qual o carro acabara de emergir. No pé da agulha seu diâmetro era de cerca de cinco metros. A agulha estreitava-se progressivamente, terminando a um quilômetro de altura numa extremidade pontuda.

— O que é isso? — disse Deringhouse em tom de espanto. —- Está se movendo, não está?

Ninguém respondeu.

Realmente a agulha se movia. Parecia encolher. Diminuía visivelmente, e seu diâmetro diminuía na mesma proporção. Rhodan olhou para o relógio.

Dali a menos de seis minutos a agulha havia desaparecido. No lugar em que antes se via aquela formação agora se estendia a planície reluzente, que só terminava ao pé do maciço montanhoso, acerca de vinte quilômetros de distância. Rhodan deu partida no veículo.

— O que foi isso? — perguntou Deringhouse com um gemido.

Rhodan riu.

— Um bloco de gelo — disse por sobre o ombro, superando o zumbido dos motores.

Deringhouse lançou-lhe um olhar perplexo.

— Trata-se de metano congelado — explicou Rhodan. — Parece um pedaço de rocha mas quando a temperatura se eleva acima do ponto de fusão do metano, vai desaparecendo aos poucos. Se tivesse prestado atenção, teria notado os riachos de metano que corriam para todos os lados.

Dali a meia hora atingiram o promontório. No caminho encontraram outras formações rochosas que desapareceram diante de suas vistas.

A natureza estava em movimento. Na opinião de Rhodan não havia nada por ali que não fosse formado de metano ou amoníaco congelados, estando sujeito aos efeitos deformadores de pequenas oscilações de temperatura.

Rhodan percebeu as dificuldades que um ambiente destes devia representar para a orientação de quem nele tivesse de deslocar-se. O único recurso seguro era a orientação pelas coordenadas. Rhodan mandou que Tanaka transmitisse mensagem neste sentido à Stardust-III.

O importante era saber de que era feito o maciço montanhoso em. que estava alojado o misterioso emissor. Não era provável que um complexo gigantesco como este se formasse espontaneamente com massas de atmosfera congelada. Era de supor que se tratasse de um trecho da verdadeira superfície de Gol, que se elevava acima do gelo, criando uma área muito menos sujeita a alterações.

“Só a montanha pulsará por ti!”

Rhodan recordou a última frase da estranha mensagem traduzida por Tanaka Seiko.

Não se daria o nome de montanha a alguma coisa que não o fosse realmente.

O carro de esteira foi contornando lentamente algumas colinas que se estendiam diante do complexo; as sapatas moíam o solo. As encostas da colina refletiam o brilho infravermelho que Rhodan observara em toda parte: tratava-se de neve e gelo.

Depois da colina surgiu um trecho de terreno plano; mas atrás dela erguia-se um paredão de rocha quase vertical, que podia ser tudo menos convidativo. Ao que tudo indicava não havia qualquer brecha ou reentrância. A parede era compacta; Rhodan procurou descobrir um caminho que lhe permitisse contornar o obstáculo.

Girou o holofote de um lado para o outro e reduziu a velocidade do carro. Algumas centenas de metros mais adiante o facho de luz passou por cima do paredão, e subitamente desapareceu.

Rhodan ficou perplexo; repetiu o jogo. O facho luminoso deslizou lentamente pelo paredão pondo à vista gretas, fendas e as irregularidades que costumam ser encontradas em formações desse tipo.

Efetuando um giro de apenas um grau a luz apagou-se. Não havia o menor indício de que o paredão terminava naquele ponto fazendo com que o facho do holofote penetrasse na noite cinzenta de Gol até o limite de seu alcance.

O paredão estava ali; apenas a luz do holofote não aparecia nele.

Rhodan não teve tempo para espantar-se. O pequeno equipamento termonuclear que fornecia a energia necessária ao potente holofote emitiu um zumbido. Rhodan inclinou-se para verificar o que estava acontecendo. Uma faísca azulada de uns vinte centímetros de comprimento saltou do cabo que ligava o pequeno gerador e o botão do painel que comandava o holofote. Por alguns instantes o cheiro desagradável do isoladores queimados encheu o carro; logo foi expelido pelas bombas de sucção.

O holofote apagou-se de vez e no painel surgiu uma luz vermelha, que indicava a existência de um defeito no mesmo.

Rhodan compreendeu o perigo da situação. Dali em diante teria de viajar às cegas. Os localizadores manipulados por Deringhouse reagiriam aos obstáculos forma-los de metano ou amoníaco congelados de forma quase idêntica à do restante da atmosfera do planeta.

Fez meia-volta com o carro.

Deringhouse e Seiko haviam acompanhado atentamente todos os detalhes do acidente. Nenhum deles parecia compreender o dilema causado pela inutilização do holofote. Rhodan não procurou esclarecê-los. De qualquer maneira perceberiam quando a primeira rocha de gelo desabasse sobre eles, bombardeando-os com os blocos que dela se desprenderiam.

 

— Não sei decifrar isto — disse Crest bastante contrariado e desligou o projetor. — Ao que parece o desconhecido que pretendemos agarrar tem um humor muito bizarro.

Bell deu de ombros.

— E daí? Ele está guardando um segredo bastante precioso. Se quisermos possuí-lo, não devemos nos perturbar com as bizarrices de seu detentor. Não quer tentar mais uma vez?

Crest suspirou.

Pôs-se a andar em direção ao projetor; nas depois de ter dado dois passos cambaleou subitamente e teve de atirar-se numa poltrona para não cair.

No mesmo instante Bell perdeu o equilíbrio. Balançou com os braços atirados para o alto; suas costas largas acabaram batendo ruidosamente contra a parede-painel do telegrafista.

As sereias de alarma romperam o silêncio reinante na sala de comando.

— O que foi isso? — disse Bell com a voz ofegante.

Crest levantou-se e contemplou atentamente o chão. Lançou os olhos em torno e viu sobre a mesa um cilindro de plástico, do tamanho de um lápis, que servia de sonda para condutos ocos. Colocou-o no chão e virou-o de um lado para o outro. Depois de alguns segundos soltou-o.

O cilindro pôs-se em movimento. Rodando cada vez mais rápido, só parou de encontro à parede.

— Era o que eu pensava! — exclamou Crest. — A nave está em posição inclinada.

Bell recuperou a atividade. Seus dedos deslizaram rapidamente sobre o teclado do intercomunicador; dentro de dois segundos estabeleceu contato com o engenheiro incumbido do envoltório energético.

— Estou no controle — disse o engenheiro apressadamente e bastante alto para que Bell pudesse ouvi-lo com todo o barulho das sereias. — Pelo que consegui apurar, dois dos geradores gravitacionais ficaram sem carga. Por isso o envoltório neutralizador tornou-se mais fraco de um lado ou falhou por completo. Por isso afunda-mos.

— Ficaram sem carga? — gritou Bell. — Será que já voltaram a funcionar normalmente?

— Sim senhor.

Bell desligou. No mesmo instante as sereias cessaram de uivar. Bell foi ao assento do piloto e estudou os registros. A nave afundara, não havia a menor dúvida. Uma das colunas de sustentação penetrara mais de vinte metros no solo, e o chão da nave apresentava uma inclinação de pouco mais de um grau.

Bell não teve dificuldades com a correção. Sentado junto ao painel de comando do piloto, podia aumentar a potência de alguns jatos o suficiente para erguer a nave à posição normal, para depois reduzi-la ao valor anterior. Foi o que fez: constatou que tudo funcionava conforme era esperado. O incidente parecia obra de fantasmas; cessara tão subitamente como havia começado.

Mas Bell sentiu-se nervoso por não encontrar explicação para a falha dos geradores. Dominava todo o saber dos arcônidas, mas não conseguia atinar com o motivo por que dois geradores gravitacionais, cujo funcionamento era impecável, falharam por alguns segundos e voltaram a trabalhar normalmente.

Crest olhou-o.

— O senhor também não sabe explicar, não é? — perguntou abatido.

Bell sacudiu a cabeça; parecia furioso.

— Não tenho a menor idéia!

O intercomunicador emitiu um som estridente.

— Vigilância ótica ao comandante. Faça o favor de assumir o setor C. Acho que vale a pena dar uma olhada.

Muito espantado, Bell ligou a tela de vigilância ótica.

A tela iluminou-se. Desenhos cinza-escuros, disformes desfilaram diante de Bell.

— Não... — principiou.

“Não vejo nada”, ia dizer; mas nesse instante viu. Era uma formação de contornos indefinidos, que emitia uma luminosidade fraca e deslizava pelas trevas cinzentas como se fosse um véu. Parecia uma nuvem de fumaça iluminada ou então...

Bell não encontrou qualquer termo de comparação. Além disso, havia outra coisa que lhe causava uma impressão muito mais profunda naquela formação luminosa.

Lá fora, onde a mancha luminosa desenvolvia sua atividade fantasmagórica, sobravam ventos e reinavam pressões que o cérebro humano nem conseguia conceber. Uma nuvem de fumaça ou de neblina — ou qualquer coisa com que se parecesse aquela coisa — dentro de poucos segundos teria sido desfeita e tangida para longe pela tempestade que rugia ininterruptamente.

Mas aquela mancha balançava, estendia-se e voltava a encolher-se. As fúrias reinantes na atmosfera de Gol não pareciam afetá-la nem um pouco.

Bell fitou a mancha, até que desaparecesse.

— Obrigado, vigilância ótica — disse em tom indiferente. — Continue de olho naquilo.

Preferiu não olhar para Crest. Olhou fixamente para o chão.

— Não sei se vale a pena quebrar a cabeça por isso — disse Crest depois de algum tempo. — As condições aerodinâmicas desta atmosfera são tão estranhas que facilmente podem surgir fenômenos que de início nos parecem misteriosos e inexplicáveis, embora na realidade sejam bem simples. Aquilo ali, por exemplo, bem pode ter sido uma forma um tanto exótica de descarga elétrica, um tipo de trovoada.

Bell fez que sim.

— Naturalmente — disse em tom distraído. — Se considerarmos isoladamente a mancha luminosa, pode ser verdade. Mas, se recordarmos que poucos segundos antes dois dos nossos geradores fizeram uma palhaçada para a qual não encontramos a menor explicação, a coisa muda de figura.

Cortou a resposta de Crest com um gesto.

— Já sei o que vai dizer: talvez seja coincidência.

— Quer saber de uma coisa? Vamos aguardar. Se isso for obra de forças metódicas, ainda temos de lidar com elas por várias vezes. Por enquanto não parecem dispor de energia suficiente para criar um perigo real para nós.

Olhou para o relógio.

— Já está na hora de outra mensagem do carro — resmungou.

A mensagem chegou poucos segundos depois.

Tanaka Seiko avisou que o holofote de luz infravermelha deixara de funcionar e o carro procuraria encontrar o caminho de volta numa viagem às cegas. Rhodan solicitava a emissão de impulsos goniométricos pelos quais pudesse se orientar.

Bell providenciou os impulsos e voltou-se para Crest.

— Há trovoadas por toda parte — disse com uma ligeira ironia na voz. — O raio até caiu no holofote.

 

A tela era praticamente inútil; apesar disso Rhodan não a desligou. Enquanto guiava cuidadosamente o carro na direção indicada pelos impulsos goniométricos emitidos pela Stardust-III, contemplava o cinza sem contornos do ambiente, absorto em pensamentos.

Sabia que uma rocha de gelo não seria visível, mesmo que se encontrasse bem à sua frente. A densidade da atmosfera de Gol era tamanha que os raios solares, por mais intensos que fossem, eram absorvidos por completo depois de terem penetrado nela alguns milímetros.

— Os sinais goniométricos estão se tornando mais fracos — avisou Deringhouse.

Rhodan conhecia o fenômeno. Parou o carro e voltou um pedaço. Prosseguiu até que Deringhouse anunciasse que os sinais voltavam a ser captados com a mesma intensidade.

Depois dobrou à direita e voltou a ir para a frente. A velocidade do carro não ultrapassava a de uma pessoa andando. Deringhouse disse em tom tranqüilizador:

— Tudo em ordem; podemos prosseguir.

Constataram que os impulsos goniométricos eram mais sensíveis aos obstáculos que o rastreador manipulado por Deringhouse, que não distinguia entre o metano sólido, líquido e gasoso. Toda vez que um obstáculo se interpunha entre o veículo de esteira e a Stardust-III, os impulsos diminuíam de intensidade. Da primeira vez Deringhouse não notara isso e o carro foi de encontro a um bloco de gelo; felizmente desenvolvia pouca velocidade. Dali em diante Deringhouse começou a prestar muita atenção à intensidade dos impulsos.

Tanaka Seiko estava sentado diante do aparelho de telecomunicação. Captava com toda nitidez os impulsos goniométricos emitidos pela Stardust-III e percebia as diferenças de intensidade dos mesmos, embora não com a mesma precisão dos instrumentos de Deringhouse.

Era a única coisa que Tanaka ouvia. Além dos impulsos só se percebia o farfalhar comum da atmosfera.

Mais nada.

Realmente não haveria mais nada?

Tanaka não procurou saber se aquele zumbido estranho era causado exclusivamente pelas perturbações atmosféricas. A intensidade destas costumava ser variável, segundo as leis da estática: às vezes eram mais fortes, outras vezes menos.

Também agora Tanaka constatou essas variações. Mas por cima de tudo o estranho zumbido continuava com a intensidade constante.

Refletia se devia chamar a atenção de Rhodan para o fenômeno, quando o zumbido se transformou num rugir que lhe causou dor de cabeça.

No mesmo instante Rhodan deu um salto.

Na tela cinzenta via-se uma mancha luminosa. De início era pequena e circular, mas logo aumentou, derramando-se para todos os lados.

Com um solavanco Rhodan fez o carro parar.

— Ai! — gemeu Tanaka.

— O que houve?

— Estou... estou captando alguma coisa. É um ruído muito forte. Minha cabeça está estourando.

— Agüente firme! — murmurou Rhodan, fitando a mancha luminosa.

Teve uma idéia. Retirou o filtro de luz infravermelha do canal de recepção e viu a mancha desaparecer. Recolocou o filtro, e a mancha voltou a aparecer.

— É em infravermelho! — resmungou.

As antenas do rastreador controlado por Deringhouse haviam sido montadas em cima do carro.

— A antena ficou incandescente — disse Rhodan, sem tirar os olhos da tela.

Deringhouse não respondeu. Uma antena não poderia ficar incandescente. Mas ele mesmo vira os efeitos produzidos sobre a tela.

— Irei em direção dele! — disse Rhodan com a voz rouca. — Deringhouse, preste atenção aos sinais goniométricos.

O motor começou a zumbir, o carro arrancou. Avançava metro por metro, aproximando-se daquela misteriosa mancha luminosa. Ao menos de início parecia que era assim. Mas, a partir de certo instante, o tamanho da mancha permaneceu inalterável. Parecia que se afastava do carro à medida que este procurava aproximar-se dele.

Rhodan avançou mais algumas centenas de metros, depois parou.

— Não adianta! — resmungou desapontado. — Está fazendo pouco caso de nós. Talvez só esteja ali para nos enganar. Deringhouse, qual é a direção?

— Zero, zero, oito.

— Nenhuma dificuldade?

— Ao que parece, nenhuma.

— Qual é a distância?

— Faltam dois mil metros. Gastaram perto de meia hora para percorrer esses dois mil metros.

Quando o carro mergulhou no lago de metano, Rhodan teve a impressão de encontrar-se no jardim de sua casa. Mergulhou numa manobra elegante e dirigiu constantemente em direção à comporta da Stardust-III, onde Bell mandara instalar um holofote de alta potência.

Assim que as escotilhas da comporta fecharam-se atrás deles e as enormes bombas começaram a trocar cautelosamente o perigoso metano por lufadas de ar respirável, sentiram que o perigo ficara para trás.

Desceram do carro um tanto cansados, subiram pelo elevador antigravitacional e dois minutos depois viram-se na sala de comando.

 

Rhodan mantinha-se de costas para as pessoas que prestavam atenção às suas palavras. Eram Bell, Crest, Thora e os dois majores, Deringhouse e Nyssen.

— Acho que sua teoria da trovoada é excelente, Crest — disse. — Acontece que só serve... — virou-se sobre os calcanhares e fitou o arcônida — só serve para tranqüilizar a tripulação. Sabemos perfeitamente que as coisas e os fenômenos com que nos defrontamos não são casuais.

— Não diga! — respondeu Crest. — Como pode afirmar isso?

— Segundo as explicações de Tanaka — respondeu Rhodan prontamente — a mancha luminosa que vimos de dentro do carro emitiu um tipo de hiper-radiação. Tanaka sabe distinguir essas radiações de uma simples emanação eletromagnética através da intensidade da sua dor de cabeça. Não existe nenhuma emanação eletromagnética de que resultem hiper-radiações.

Ficou andando de um lado para outro. Seus ouvintes seguiam-no com os olhos curiosos.

— Há outro detalhe — prosseguiu Rhodan. — Alguma coisa lá fora estragou meu holofote. Tive a impressão de que a energia foi literalmente sugada do aparelho. Isso provocou a sobrecarga dos condutores, que se fundiram.

“Alguns minutos depois um ser luminoso encontrou-se conosco na solidão deste planeta, ser este que emitia radiações infravermelhas, isto é, funcionava na mesma faixa espectral que nós. Além disso...”

— Será que o senhor não está tirando uma conclusão apressada? — interveio Thora. — Fala em seres luminosos! Isso significa que na sua opinião essas coisas são seres?

— Aguarde um instante — pediu Rhodan. — Quero acrescentar mais uma coisa. — Deringhouse procurou localizar a coisa através do goniômetro. Não conseguiu estabelecer qualquer reflexo na tela, mas a antena esquentou até a incandescência. Estou convencido de que teríamos assistido ao mesmo fenômeno que se verificou com o holofote, se Deringhouse não tivesse desligado logo o aparelho.

De pé, com os braços cruzados nas costas, fitou seus ouvintes um por um. Quando voltou a falar, sua voz era áspera e insistente:

— Para todos os incidentes que tivemos, desde a oscilação de nosso envoltório energético, ocorrida pouco antes do pouso, até o aquecimento da antena do goniômetro, só existe uma explicação plausível. Ele, ou alguém que se encontra neste planeta, possui a capacidade de absorver energia de qualquer espécie, e faz um uso bem extenso da mesma.

Houve uma pausa. Bell achou que a mesma se prolongava demais.

— Será que devemos supor — disse — que essa coisa, ou esse alguém, é um ser vivo, talvez mesmo inteligente?

Rhodan sorriu:

— Esta é uma pergunta que teremos de enfrentar. Pode ser respondida em poucas palavras, mas nem por isso a resposta se tornará compreensível. Tanaka constatou que esses seres emitem hiper-radiações. E estas só podem ser produzidas por quem pertença, ao menos em parte, ao espaço superordenado. Estaríamos cometendo um atentado contra o princípio da lucidez científica se nessas formações procurássemos imaginar alguma coisa. Sabemos que existem. Poderemos estudá-las sempre que houver possibilidade para isso. Se tivermos sorte talvez consigamos comprovar sua existência através dos símbolos da matemática arcônida.

— “É só. Peço-lhes que voltem aos seus postos. Teremos de refletir um pouco e realizar alguns cálculos. Se acontecer algo de importante, avisarei.”

Nyssen e Deringhouse levantaram-se e saíram. Reginald Bell continuou imóvel. Crest fez menção de levantar; mas com um suspiro voltou a cair na poltrona. Thora fitou Rhodan com seus enormes olhos vermelhos.

— Não se esqueça de uma coisa — disse em tom pensativo — o senhor acaba de falar em seres que vivem num espaço superordenado. Não sei se os homens da tripulação, mesmo que sejam majores, têm um conhecimento de hipergeometria que lhes permita perceber que a palavra superordenado não exprime uma relação de valores.

Rhodan confirmou com um aceno de cabeça.

— Muito obrigado pela recomendação. Não me esquecerei.

Sorriu.

— Acontece que a palavra indica uma relação de valores — disse bem baixo, como se estivesse falando para si. — Conseguimos realizar uma transição, sabemos modular as hiperondas e realizar emissões com elas. Mas não temos a menor idéia de como lidar com um ser que habita o espaço superordenado. Alguém que viva num espaço de n dimensões subtrai-se a um ataque pelo simples fato de o atacante viver num espaço de n-1 dimensões.

Crest acabou levantando.

— Será que a esta hora já confessa que seria mais razoável desistir da expedição?

Rhodan virou-se abruptamente.

— Nada disso! — respondeu em tom áspero. — Nem penso nisso. E duvido de que seja mais razoável.

— Mas o que pretende fazer?

Rhodan sentou na braçadeira de uma poltrona e estendeu a mão.

— É este o problema de sempre, Crest — disse. — Deparamo-nos com uma coisa nova, que desperta nossa curiosidade. Queremos saber mais a respeito. Há dois motivos que nos podem levar a desistir desse intento. Podemos chegar à conclusão de que já sabemos tudo que queríamos saber; ou então acreditamos que a coisa pode custar nossa vida, e às vezes já custou. — Nenhuma dessas hipóteses se verificou aqui. Logo, continuaremos a nos esforçar para satisfazer nossa curiosidade.

Crest não respondeu.

— Conseguiu decifrar os dados registrados no sensor estrutural? — perguntou Rhodan.

— Não. Acho que é impossível.

— Será que essa conclusão não é um tanto apressada?

Crest deu de ombros.

— O sensor estrutural é um instrumento por meio do qual podemos perceber as distorções da estrutura espacial, da estrutura do espaço de quatro dimensões, bem visto. É verdade que os efeitos se localizam numa dimensão mais elevada; é esse o motivo da grande velocidade com que os mesmos se propagam. Ao que parece, até agora ninguém se lembrou da possibilidade de modular esses efeitos para a transmissão de mensagem como, ao que tudo indica, foi feito aqui. Por isso mesmo o sensor não foi concebido para captar mensagens desse tipo.

— Com um cano de chaminé não se podem captar sinais de radar. Acho que isto é uma boa comparação.

— Pode-se, sim — objetou Rhodan. — Basta preparar o cano do fogão.

Crest olhou-o com uma expressão de surpresa no rosto.

— Não vá me dizer que pretende preparar o sensor estrutural para...

— É isso mesmo — respondeu Rhodan. — Vou prepará-lo. Para isso precisamos de uma série enorme de cálculos. Quem sabe se não quer me ajudar?

 

— Que Deus guarde e proteja a matemática terrena! — disse Rhodan com um riso alegre. — A matemática arcônida é tão avançada que para as hiperoscilações só encontra uma expressão bem simples, que não pode ser decomposta. Já a matemática terrena tem de seguir um processo complicado para compreender o fenômeno. Devemos construir a fórmula, e enquanto fazemos isso, descobrimos como fazer para ampliá-la a fim de poder aplicá-la a um fenômeno de ordem superior.

Crest fez um gesto de aprovação, mas havia uma ligeira ironia em sua atitude.

— Gostaria de saber o que significam suas palavras.

— O que vem a ser uma hiperoscilação? — perguntou Rhodan. — Vamos com cuidado. É alguma coisa que resulta de um fenômeno gravitacional sujeito às alterações periódicas. Para produzir alterações num fenômeno gravitacional, recorremos a um microacelerador e fazemos com que uma série de prótons dotados de elevadíssima carga de energia esbarrem uns dos outros. A energia assim liberada causará a formação de novas partículas.

Inclinou-se sobre a mesa onde estavam espalhados seus cálculos.

— O senhor deve conhecer a formalística de sua matemática, que utiliza os dados relativos a uma partícula e, mediante uma simples inversão do sistema ultracomplexo de coordenadas, faz dessa partícula uma antipartícula.

Crest fez que sim. Começou a compreender a idéia de Rhodan, que o deixou perplexo.

— Pois bem. Então já sabemos que basta acoplar ao microacelerador convencional um acelerador destinado às antipartículas para...

— Pare! — gritou Crest. — E não fique falando em termos de basta. Se conseguir transformar sua teoria em prática, terá revolucionado toda a física.

Rhodan respondeu com um ligeiro aceno de cabeça.

— Pode ser. Por enquanto só sei de uma coisa. Para produzir antipartículas em quantidade suficiente precisarei de tanta energia que vez por outra terei que desligar os envoltórios energéticos.

 

Rhodan arriscou. Não havia tempo a perder. O sensor estrutural repetia o mesmo programa a intervalos regulares.

Restava saber até onde chegaria a paciência do desconhecido. Sempre fizera questão de que os candidatos não gastassem mais tempo na solução dos problemas do que fora fixado por ele.

Qual seria esse tempo no presente caso?

Rhodan construiu o microacelerador de antipartículas. Consumiu nisso dois dias da escala de tempo terrena.

Nesses dois dias o setor de vigilância técnica registrou por quatro vezes uma falha de algum dos geradores que alimentavam o envoltório energético. Os efeitos nunca duravam mais que dezesseis segundos e, como todos estivessem preparados para o fenômeno, conseguiu-se evitar que a Stardust-III fosse danificada.

Depois de cada falha dessa, surgiam nas telas as manchas luminosas que, na opinião de Rhodan, pertenciam a um Universo de ordem superior.

Três dias depois do início dos trabalhos Rhodan pretendia iniciar a produção de antipartículas. O microacelerador, que de certa forma funcionava como eixo central do hiperemissor, também exercia as funções de depósito. Por anos a fio os prótons nele encerrados eram mantidos numa órbita circular, com um conteúdo energético constante.

Em princípio Rhodan só precisaria uma única vez de um feixe de antipartículas, que por sua vez fariam o novo microacelerador funcionar por anos a fio. Acontece, todavia, que as antipartículas mostram uma tendência acentuada de combinar-se com as partículas normais, com o que sua massa se perde por irradiação. Por isso o microacelerador teria de ser recarregado de vez em quando.

— Se é que isso adiantará alguma coisa... — murmurou Rhodan em conexão com estas idéias.

Por volta de uma hora a Stardust-III ficou desguarnecida de qualquer envoltório protetor, além daquele produzido pelos neutralizadores gravitacionais. A força dos jatos foi reduzida. A nave afundou uns cinqüenta metros, e obteve apoio um pouco mais firme.

Era um empreendimento arriscado. O casco imenso da nave oferecia uma ampla área de ataque à tormenta; o resultado era imprevisível. Rhodan mandara que todos os tripulantes ficassem a postos e avisou-os de que a experiência seria suspensa imediatamente se surgisse um perigo mais sério para a nave.

Ficou aguardando.

Era uma espera bastante desconfortável. Livre de qualquer envoltório protetor a Stardust-III, que era muito grande para que pudesse passar despercebida à tormenta, balançava como um navio numa tempestade.

Mas, uma hora passou-se sem que a nave sofresse dano sério. Um único instrumento bastante precioso quebrou-se porque, em contrário às instruções de Rhodan, não o haviam fixado em seu suporte.

O novo microacelerador estava pronto para entrar em funcionamento. Rhodan e Crest embutiram-no no sensor estrutural. Sabiam que o novo círculo oscilatório, juntamente com o anterior, estava em condições de captar e emitir radiações gravitacionais submetidas a um processo de polarização circular, com o que o alcance do instrumento aumentava de uma dimensão.

— Quando será a nova transmissão? — perguntou Rhodan.

Bell olhou para o relógio.

— Faltam quatorze minutos. Rhodan deixou-se cair numa poltrona, acendeu um cigarro e esperou.

— Mais dois minutos — disse Bell, depois de algum tempo.

Rhodan levantou-se. O cigarro queimou seus dedos. Jogou-o fora.

Quando se viu diante do sensor estrutural, olhou para Crest com um sorriso estranho.

— Se não funcionar, pode caçoar de mim — disse.

— Um instante! — interveio Bell em tom impaciente.

A escotilha abriu-se abruptamente. Thora entrou. Sem dizer uma palavra sentou perto de Crest e também ficou à espera.

— Deve começar agora — disse Rhodan.

E começou.

Um ponto luminoso piscou na tela do oscilógrafo, começou a desmanchar-se e por uma fração de segundo deu a impressão de que se perderia no mesmo modelo disforme que já desenhara tantas vezes.

Mas decidiu de outra forma. Uma linha sinuosa estendeu-se sobre a tela. Tremeluziu uma, duas vezes e fixou-se. Era fácil reconhecer a modulação nas pequenas saliências irregulares da curva.

Os dezesseis segundos passaram num instante. A tela apagou-se. Rhodan fitou-a perplexo, como se não acreditasse no que havia visto. Crest ergueu-se cambaleante e veio em direção a Rhodan.

— Não é da minha índole — disse em tom sério — usar palavras pomposas. Mas...

— Deixe isso para depois! — interrompeu-o Rhodan num tom de voz que quase chegava a ser grosseiro. Crest assustou-se ao ver a súbita explosividade com que a atividade de Rhodan voltou a desenvolver-se. — Bell! Tanaka Seiko! Venham imediatamente! Crest, dê uma ajuda; vamos reproduzir esta mensagem para Tanaka.

O sensor estrutural foi ligado para a reprodução. Tanaka apareceu e acompanhou tudo com os olhos espantados. Usando a fita em que fora gravada a última mensagem como matriz, Rhodan fez com que o sensor irradiasse aquilo que havia captado minutos antes.

— Preste atenção, Tanaka! — ordenou ao japonês. — Entende alguma coisa?

Ligou o aparelho. Desde o primeiro instante tornou-se evidente que Tanaka estava captando alguma coisa. Inclinara-se para a frente, numa posição característica; dava a impressão de que de um instante para o outro cairia da poltrona.

Terminada a reprodução, continuou sentado por algum tempo. Alguns minutos depois reclinou-se na poltrona, respirou profundamente, e lançou os olhos espantados em torno de si.

— Compreendi perfeitamente — disse Tanaka depois de algum tempo. — Nunca consegui decifrar tão bem uma mensagem como esta.

— O que diz a mensagem?

— Diz o seguinte: “Quando tiveres compreendido isto, terás de prosseguir no caminho em direção à montanha. Só nela encontrarás a luz. Não demores muito. Os grandes de...”, aqui vem um nome. Como sabe, não consigo captar nomes. Mas sei que se trata do planeta em que nos encontramos; pois bem: “O poder dos grandes de Gol crescerá em demasia, enquanto demorares. Nunca deves vir sem a sabedoria do plano superior.”

— É só?

— É só.

— Obrigado, Tanaka. Pode se retirar.

 

— Não devemos esquecer — disse Rhodan em tom sério — que esta mensagem já vem sendo irradiada há alguns dias. Devemos nos apressar! Crest sacudiu a cabeça.

— Para falar com franqueza, isso me deixa bastante preocupado. O que significam, por exemplo, as palavras: “O poder dos grandes de Gol crescerá em demasia, enquanto demorares”?

Rhodan deu de ombros.

— Não faço a menor idéia. Vamos descobrir.

— E o que será essa sabedoria do plano superior? — perguntou Thora.

— Já quebramos a cabeça sobre isso. Não se lembra? É bem possível que esteja aludindo à mesma coisa que nós entendemos por isso.

Rhodan dispunha de três carros de esteira do tipo daquele com que realizara sua primeira excursão. Não teve dúvida em usar os três ao mesmo tempo.

Preferiu não equipar os veículos com envoltórios energéticos adicionais, pois o respectivo equipamento ocuparia ainda mais lugar que os neutralizadores gravitacionais. No entanto, fez questão de que os carros dispusessem de armamentos. Em cada um deles foi instalado um desintegrador de potência média, um radiador de nêutrons e a arma usual de impulsos térmicos. Além disso, em cada um dos veículos foi montada uma catapulta móvel, da qual ninguém sabia dizer para que serviria.

Ao que tudo indicava pertenciam a essa catapulta os vinte recipientes metálicos de paredes reforçadas colocadas em cada um dos carros. Segundo informavam os técnicos, continham oxigênio líquido e um detonador. Face a isso, todos compreenderam a finalidade do instrumento.

O oxigênio e o metano, em proporções adequadas, constituíam uma mistura altamente explosiva. Alguém que tivesse que defender-se de um inimigo num planeta de metano não encontraria um meio mais barato que misturar uma boa porção de oxigênio à atmosfera e fazer detonar a mistura no momento apropriado.

Rhodan teve dificuldades em tripular os carros. Contra sua vontade decidiu confiar o comando do segundo veículo a Bell. Quanto ao terceiro, tinha uma idéia bem definida; mas, embora fosse o comandante da Stardust-III, achou preferível não emitir uma ordem, mas formular um pedido.

— Queria perguntar-lhe — disse, dirigindo-se a Crest — se está disposto a dominar sua antipatia pelo nosso empreendimento e assumir o comando de um dos carros.

Crest olhou-o perplexo. Depois contorceu o rosto num sorriso triste.

— Muito obrigado pela delicadeza. Rhodan — respondeu. — Está se referindo ao meu medo, não à antipatia, não é verdade? Mas está bem; irei.

Bateu palmas à maneira humana e exclamou:

— Justamente eu, o mais inofensivo dos arcônidas, sou escolhido para provar a um punhado de homens que nossa raça ainda vale alguma coisa.

Ambos riram.

— Em cada carro irão dois mutantes e um oficial — prosseguiu Rhodan. — No seu carro irão Tama Yokida, o telecineta, e Ishi Matsu, a telepata, além do capitão Klein.

 

Bell foi em companhia de Betty Toufry, Ralf Marten e do major Nyssen.

Rhodan levou a mesma tripulação da vez anterior. Apenas acrescentou a telecineta Anne Sloane.

Thora assumiu o comando da Stardust-III.

O dia da partida da expedição foi, segundo o calendário terreno, 15 de dezembro.

Depois das experiências com as antipartículas, realizadas por Rhodan, a Stardust-III fora erguida novamente à sua posição normal. Os três carros saíram sem dificuldades pela comporta do pé da nave e seguiram em direção ao sul, vencendo o mar de metano, que neste meio-tempo se tornara mais raso.

A comunicação dos três carros entre si e de cada um deles com a nave funcionava perfeitamente. Rhodan constatou com satisfação que, ao menos no início, a expedição parecia estar sob uma boa estrela.

As dificuldades começaram quando atingiram o paredão de rocha, junto ao qual na tentativa anterior o holofote infravermelho de Rhodan se extinguira.

O carro de Rhodan seguiu à frente dos demais. Rhodan não tinha a intenção de dar uma grande volta para contornar a barreira de rocha. O caminho era perigoso, e cada metro percorrido a mais representava um risco adicional.

Deringhouse estava sentado junto à catapulta.

— Bomba preparada para o lançamento.

Rhodan transmitiu uma ligeira advertência aos outros carros.

— Preparar! Fogo!

No facho de luz do holofote viu-se o bujão de oxigênio, quando este, balouçando lentamente, se desprendeu da catapulta. Ainda se encontrava sob a influência do neutralizador gravitacional; por isso descreveu uma trajetória igual à que teria percorrido na Terra.

Rhodan aumentara o suprimento de energia do campo antigravitacional e estendera o mesmo até junto à barreira de rocha. O bujão foi descendo em sua trajetória lenta e atravessou o limite do campo.

Parecia que alguém o havia segurado em meio ao vôo. De súbito, precipitou-se ao solo com uma rapidez tamanha que os olhos não podiam segui-lo, e estilhaçou-se sob a força tremenda do impacto. Pingos minúsculos de oxigênio líquido misturaram-se ao metano que enchia o ambiente. Quando Rhodan acionou o mecanismo de ignição, toda a tela foi tomada por um raio tão ofuscante que fazia doer a vista.

Seguiu-se uma enorme onda de compressão, que sacudiu os carros.

A bomba abrira uma brecha no paredão; não havia a menor dúvida. Uma enorme fenda percorria o maciço, do solo à cumeeira.

Também não havia dúvida de que a fenda era estreita demais para permitir a passagem dos carros.

— Mais uma bomba! — ordenou Rhodan.

Deringhouse colocou outro bujão na catapulta.

Rhodan pegou o microfone.

— Cuidado! Realizaremos outra explosão.

Deringhouse acenou com a cabeça.

— Fogo!

O bujão saiu balouçando, subiu e voltou a descer em direção ao limite do campo antigravitacional.

— Veja! — gritou Deringhouse. Rhodan via.

Uma pequena esfera luminosa flutuava na atmosfera, junto ao paredão, mais ou menos no lugar em que o bujão bateria no solo depois de sair do campo antigravitacional.

Rhodan viu quando o mesmo atravessou o limite do campo e desceu vertiginosamente. Fechou os olhos, aguardando a luz ofegante da explosão que se devia verificar a qualquer instante. Mas esta não ocorreu.

Houve uma espécie de fogo-fátuo, mas não se notou qualquer tipo de destruição no paredão de rocha. Uma luz branca e tremeluzente espalhou-se, um fogo que ardia lentamente.

Não se apagou mais. Transformou-se numa esfera cintilante de cerca de cinco metros de diâmetro, que se manteve imóvel diante do paredão.

— A esfera pequena desapareceu — informou Deringhouse esbaforido.

O diâmetro da esfera pequena não passava de meio metro.

Rhodan sacudiu a cabeça.

— Não — disse. — É aquela ali. Apontou para a esfera de cinco metros. Deringhouse fitou-o incrédulo.

— Não é possível!

Rhodan assumiu uma atitude implacável.

— Não temos tempo para discussões. Ponha o desintegrador a funcionar. Vamos!

Deringhouse girou a arma pesada.

— Aponte para o paredão — ordenou Rhodan. — Mas não atire na esfera.

Deringhouse obedeceu.

Depois de um bombardeio de dez segundos a fenda aberta na rocha tinha largura suficiente para deixar passar dois carros de uma vez. Com um movimento automático Deringhouse girou o desintegrador para sua posição de repouso, arregalando os olhos para a esfera cintilante que executava uma espécie de dança a uns dez metros à direita da brecha aberta no paredão.

— Para a frente a toda velocidade! — berrou Rhodan pelo telecomunicador. — Crest, coloque-se ao meu lado, na fenda cabem dois carros. Bell, fique de olho na esfera, mas nada de experiências!

Crest reagiu com uma rapidez animadora. Os dois carros dispararam lado a lado, atingiram a fenda e desapareceram na mesma. Bell seguiu-os de perto.

Rhodan respirou aliviado ao ver que o desintegrador consumira a rocha em toda a profundidade do paredão.

Para além da barreira de rocha a vista era bastante animadora. Uma planície pouco acidentada estendia-se diante dos carros-esteira, até o limite do alcance de seus holofotes. À direita e à esquerda erguiam-se algumas colinas, e mais ao longe viam-se íngremes cumes de pedra, que avançavam para o negrume do céu; o vale encavado no planalto formado pelos mesmos tinha largura suficiente para permitir a passagem simultânea de um destacamento completo de carros-esteira.

O carro de Bell foi o último a sair da fenda. Rhodan fez o holofote girar e examinou o terreno. Não se via nada além dos outros carros e da desolação pedregosa do planeta Gol.

— Tudo em ordem! — resmungou Rhodan satisfeito. — Vamos adiante.

Pelas indicações fornecidas pelo sensor da Stardust-III, a montanha que estavam procurando ficava a exatamente duzentos e quinze quilômetros da nave. Considerando que se tratava da distância em linha direta, e que os carros muitas vezes não poderiam deixar de dar voltas, podia-se calcular com um grau satisfatório de exatidão que levariam pelo menos oito horas para atingir a montanha.

Seriam oito horas passadas nas proximidades de esferas luminosas, para as quais uma explosão de metano e oxigênio parecia representar um tipo de sobremesa: utilizavam a energia gerada pela explosão para aumentar seu diâmetro.

As mesmas idéias pareciam ocupar a mente de Crest.

— Observou a esfera? — perguntou pelo intercomunicador.

— Naturalmente — respondeu Rhodan.

— O que acha dela?

— É simples. Foi atraída pela primeira explosão. Ao chegar tinha um diâmetro de cerca de cinqüenta centímetros. Sentia uma fome tremenda. Depois...

— Sentia fome?

— Isso mesmo. Colocou-se exatamente na trajetória do segundo bujão de oxigênio que disparamos e devorou a energia gerada pela explosão. Ao que parece isso foi um verdadeiro regime de engorda para ela, pois de repente seu diâmetro cresceu dez vezes.

— Acredita realmente que tenha sido assim? — perguntou Crest desconfiado.

— Não acredito — respondeu Rhodan. — Vi.

Deringhouse bateu-lhe no ombro.

— O que houve?

— Sinto incomodá-lo — disse Deringhouse, apontando para a tela — mas a esfera voltou a aparecer.

Dali em diante ela não os deixou mais. Saltitou atrás do carro e, no espaço de três horas, perdeu uns vinte por cento de seu diâmetro.

Era uma formação misteriosa e apavorante.

— Não posso fazer nada — avisou Bell enquanto os três carros, em marcha indiana, contornavam o flanco íngreme de uma montanha. — Essa coisa me deixa nervoso.

— O que pretende fazer? — perguntou Rhodan.

— Poderíamos atirar.

Para surpresa dos que acompanhavam o diálogo, Rhodan disse em tom tranqüilo:

— Está bem. Coluna, alto! O comandante Bell tentará a sorte.

Os carros pararam com os motores em movimento. Na cúpula do último deles via-se um movimento. Era Bell que girava as armas.

A voz de Bell soou no intercomunicador:

— Tudo pronto, Nyssen?

— Tudo pronto.

Do carro de Rhodan via-se perfeitamente o raio energético disparado pelo desintegrador.

A salva disparada por Nyssen atingiu a esfera em cheio. Até mesmo na tela alimentada pela luz infravermelha, que geralmente só projeta em preto e branco, notava-se que a esfera mudava de cor. Bell acreditou que isso representasse um sinal de êxito de sua ação e soltou um grito de triunfo.

Mas o grito logo lhe ficou atravessado na garganta. Longe de ser afetado pela salva do desintegrador, a esfera começou a inchar. Recuperara a cor primitiva e cresceu rapidamente.

Os ocupantes dos carros estavam de olhos fitos nas telas.

O gemido de Bell foi ouvido perfeitamente pelo intercomunicador. Todos pareciam perplexos.

Rhodan era o único que havia previsto o fenômeno.

— Vamos adiante! — disse com a voz áspera. — Não nos preocuparemos mais com essa coisa. Ela não nos fará nada; logo, não temos motivo para ficar nervosos.

A ordem arrancou-os do estupor.

Tanaka Seiko queixou-se de dores de cabeça.

— Quando começaram? — perguntou Rhodan.

— Desde o disparo — respondeu Tanaka com um gemido.

Rhodan fez que sim. Aquela esfera emitia hiperradiações que, em todas as fases, ou só temporariamente, exerciam certa influência sobre o cérebro de Tanaka. Evidentemente as hiperradiações da esfera se tornaram mais potentes, a ponto de provocar dor de cabeça em Tanaka, depois que a mesma havia absorvido a energia liberada pelo disparo do desintegrador. Não havia nada de misterioso nisso.

Para Rhodan, porém, um detalhe mais interessante residia no fato de que durante a primeira excursão uma esfera bem menor quase provocara um desmaio em Tanaka Seiko. Devia haver pelo menos duas espécies de esferas; o que as distinguia era o volume de energia ou as dimensões das radiações que emitiam.

Os carros retomaram a viagem e aproximaram-se do fim do planalto, que até ali lhes garantira uma rapidez tão surpreendente no deslocamento.

Ao chegarem ao fim do vale que ali se abria começou a grande canseira, que por algumas horas desviou sua atenção da esfera luminosa. Rhodan viu-se diante da alternativa de seguir por um caminho muito mais longo, que representaria uma demora adicional de pelo menos vinte horas, ou fazer com que os veículos escalassem encostas que talvez fossem invencíveis.

Escolheu a última alternativa. Um dos motivos foi a mensagem de Thora, vinda da Stardust-III:

— Cinco dos geradores do envoltório energético deixaram de funcionar. Neste instante notamos grande quantidade de figuras luminosas, que se movem nas proximidades da nave.

Em sua voz notava-se a preocupação com o destino da nave. Rhodan pedira-lhe que o avisasse assim que surgisse qualquer novidade. Já não tinha a menor dúvida de que aqueles seres energéticos estavam em condições de absorver parte da energia dos envoltórios energéticos, fazendo com os respectivos geradores deixassem de produzir energia.

Manteve os três carros bem juntos e iniciou a subida. O paredão que se erguia diante deles era tão alto que a luz dos holofotes não chegava até a linha da cumeeira. Face ao ângulo formado pelo encontro dos dois flancos da montanha, porém, Rhodan concluiu com alguma segurança que o obstáculo não teria mais que uns mil e quinhentos metros de altura.

O estado de espírito dos ocupantes do carros era singular. Tanaka Seiko ainda sentia uma dor de cabeça martirizante, pois a gigantesca esfera luminosa seguia a caravana sem um instante de intervalo. Rhodan se refugiara naquele espírito implacável e cônscio dos objetivos que lhe era peculiar nas situações críticas. Reginald Bell e o major Deringhouse demonstraram a mesma implacabilidade, à qual acrescentaram um certo espírito galhofeiro e despreocupado Fazia horas que Crest não proferira um única palavra. Parecia convicto de se encontrarem no caminho que conduzia diretamente ao inferno, tal qual Anne Sloane que estava sentada no chão do carro, totalmente indiferente a tudo, olhando para a frente com os olhos mortiços e desinteressada de tudo.

O major Nyssen era um homem estranho. Rhodan nunca o conhecera por esse lado. No aspecto exterior assemelhava-se bastante a Reginald Bell. Durante as últimas horas desenvolvera uma elevada capacidade de planejamento; revelando um certo entusiasmo, mas sem perder o sentido da realidade e, mais que tudo, sem superestimar as possibilidades da expedição, ficava quebrando a cabeça sobre a maneira de dar cabo desses seres energéticos que, juntamente com as condições atmosféricas gravitacionais adversas reinantes em Gol, pareciam se transformar no maior perigo para a Stardust-III.

Nyssen, que realizava verdadeiras discussões com Rhodan através do intercomunicador, ofereceu este resumo:

— Não poderemos enfrentá-los com nossas armas pesadas. Esses sujeitos devoram energia da mesma maneira como algumas pessoas devoram um bolo. Devemos bolar uma coisa inteiramente nova; ou então teremos de encontrar uma forma de energia que lhes dê indigestão.

— Uma passagem — gritou subitamente Deringhouse entusiasmado. — Ali há uma passagem.

Nas últimas duas horas os carros haviam subido cerca de oitocentos metros, Era um caminho difícil; aliás, era necessário uma boa dose de otimismo para que se pudesse falar num caminho.

Aqui, numa altitude de oitocentos metros, aquela passagem, que, sob a forma de uma fenda, cortava o paredão quase exatamente na direção sul, parecia-lhes um presente do céu. Rhodan entrou a toda com seu carro, procurando o caminho. Crest seguiu-o, sempre preocupado em não deixar que a distância entre os dois veículos aumentasse para mais de vinte e cinco metros. Reginald Bell seguiu na retaguarda.

— Quero ver esse monstro de cinqüenta metros espremer-se por aqui — observou.

Referia-se à esfera energética. Se é que acreditava que a estreiteza da fenda obrigaria a mesma a desistir da perseguição aos carros, logo sofreu uma decepção.

A esfera desmanchou-se numa figura que a geometria ainda não definiu. Tinha mais de cento e cinqüenta metros de altura; em compensação era bastante estreita. Dessa forma, aquilo que há pouco fora uma esfera saltitou atrás dos carros como se fosse um gigantesco fogo-fátuo.

Depois de uma reta de algumas centenas de metros, a passagem começou a descrever curvas. Rhodan reduziu a velocidade e adaptou a trajetória do veículo às curvas fechadas, sempre preocupado de que mais adiante a passagem pudesse estreitar-se a ponto do carro não poder prosseguir.

Se isso acontecesse, teriam de voltar em marcha à ré, pois na fenda não havia espaço para manobras.

Mas nada disso aconteceu. A fenda atravessou a montanha numa extensão de cerca de dois quilômetros, mantendo sempre a mesma largura. Subitamente, sem que ninguém o tivesse previsto, abriu-se para a encosta sul da montanha, que descia quase na vertical.

Rhodan parou. Girou o holofote e examinou o quadro que se desenhava na tela.

— Nada! — resmungou Deringhouse, que olhava sobre seu ombro. — Mas podemos avançar mais dois metros.

Rhodan confirmou com um aceno de cabeça. Com alguns solavancos cuidadosos, o carro foi empurrando o nariz para fora da fenda.

Imediatamente o campo de visão ampliou-se.

A primeira coisa que chamou a atenção de Rhodan foi uma faixa de rocha, que, num declive suave, partindo da fenda, estendia-se pelo paredão, na direção leste — oeste. Com uma manobra cuidadosa seria possível colocar o carro sobre a mesma e descer. Descer para onde?

Rhodan dirigiu o holofote para o sul. O mesmo desenhou um bloco branco na escuridão, perdendo-se no ponto em que seu alcance chegou ao fim, sem revelar qualquer detalhe do terreno.

— É o fundo de um vale — disse Rhodan. — A profundidade é tamanha que daqui não conseguimos ver nada.

— O senhor se importaria de desligar o holofote por um instante? — perguntou Deringhouse.

Rhodan olhou-o perplexo.

— É claro que não! Para que tanto segredo?

Desligou o holofote.

Um instante depois, quando o último tremeluzir da intensa luz infravermelha se havia apagado nas telas, Rhodan sabia qual era o objetivo de Deringhouse.

Uma confusão fantasmagórica e inextrincável de figuras luminosas cobriu a tela. Eram seres luminosos — pelo menos mil — cada um com um formato diferente. Só os olhos penetrantes de Deringhouse conseguiram percebê-las na luz ofegante do holofote.

— É o Vale dos Espíritos — murmurou Deringhouse.

Subitamente sua voz assumira uma tonalidade irônica, mas não era tão irônica que não se percebesse o quanto o quadro o deprimia.

— O que houve? — soou a voz de Bell, vinda do último carro da fila. — Por que não prosseguem? Onde fica o Vale dos Espíritos?

— Aqui mesmo! — respondeu Rhodan. — Bem à nossa frente. Tome cuidado com a manobra quando chegar ao lugar em que me encontro agora. Adiante!

A faixa de rocha revelou-se um caminho muito cômodo, que até parecia ter sido construído por alguém que previa que aquela expedição composta de três carros-esteira acabaria aparecendo por ali.

Enquanto avançavam pela borda de pedra, Rhodan manteve o holofote ligado, para enxergar o caminho. Por isso seus olhos deixaram de perceber os seres luminosos.

Mas não se esqueceu deles. A dúvida era se, ao se depararem em grande número com três veículos solitários, manteriam uma atitude tão pacífica como aquela figura hipergeométrica que continuava a saltitar atrás dos carros.

O paredão descreveu uma curva. Por um instante o caminho se estendia na direção sudeste, para depois retomar o rumo exato do sul. Pelos cálculos de Rhodan, a montanha que procuravam atingir não devia ficar a mais de oitenta quilômetros.

Assim que a borda de pedra havia vencido a diferença de altitude de oitocentos metros, correspondente à escalada do outro lado da montanha, ela se tornou mais larga.

Rhodan avançou o suficiente para que os outros carros pudessem sair da borda e parou.

Desligou o holofote. Sentiu-se perturbado pela luz vinda dos outros carros. Mandou que Crest e Bell também desligassem seus holofotes.

Obedeceram.

Subitamente o quadro estranho e apavorante desenhou-se nas três telas.

O imenso vale estava repleto de figuras luminosas. Era um verdadeiro exército.

Formaram seu front a uns quatrocentos metros ao sul dos três carros.

O vale era o único caminho que se abria na sua avançada para o sul. Rhodan tinha certeza de que a montanha que o fechava naquela direção era a que procuravam.

Isso significava que os carros teriam de passar entre as figuras luminosas. Até aqui haviam demonstrado qualquer hostilidade, a não ser nos casos em que absorveram a energia dos envoltórios protetores da Stardust-III. Mas acontece que só haviam aparecido sozinhos ou em pequeno número. Em sã consciência não se poderia dizer que atitude tomariam milhares delas.

Rhodan conferenciou por algum tempo com os condutores dos outros veículos.

A resposta de Bell era terminante:

— Teremos de passar! Quanto antes, melhor!

Crest tomou esta decisão:

— Decida o que devemos fazer, Rhodan. Seguirei suas instruções.

Rhodan resolveu forçar passagem. Mas achou conveniente dar uma certa cobertura de retaguarda à expedição. Como Tanaka Seiko tivesse sido colocado fora de ação em virtude da dor de cabeça, Deringhouse recebeu ordem para estabelecer contato com a Stardust-III e informar Thora a respeito da situação.

Deringhouse desligou o sinal de chamada e aguardou a confirmação. Mas esta não veio. Voltou a tentar, mas ainda não obteve outro resultado.

Rhodan indagou junto aos outros carros. Estes haviam captado perfeitamente a mensagem de Deringhouse.

Não havia problema com a emissão.

Era a Stardust-III que não respondia mais.

 

Thora acompanhara a viagem dos carros enquanto estes subiam a encosta norte da montanha e atravessavam a passagem, na medida em que isso era possível face à deficiência das comunicações. Na montagem dos veículos procuraram-se evitar quaisquer instalações supérfluas, como por exemplo as de transmissão de imagens. Cada centímetro quadrado de espaço e cada grama de peso fazia diferença. Rhodan achara que seria um conforto excessivo se as pessoas que falassem entre si pudessem contemplar o rosto umas das outras.

Prendera a respiração quando Rhodan passou pela estreita borda de rocha e quase perdeu o controle dos nervos quando Crest fez a mesma coisa. E suspirara bastante aliviada quando subitamente a passagem se abriu diante dos veículos e a escalada difícil chegou ao fim.

Acompanhara o trajeto pela passagem de pedra com base nas observações de Bell, e ouvira Deringhouse referir-se ao Vale dos Espíritos.

Foi a última coisa que ouviu. Naquele instante a Stardust-III foi palco de acontecimentos que só se diferenciavam de um fim de mundo porque no último instante surgiu uma ocorrência salvadora.

Absorta na palestra que os ocupantes dos três carros mantinham pelo intercomunicador, Thora não conseguiu saber logo em que setor da nave as coisas não estavam em ordem quando ouviu o som das sereias de alarma. Levantou-se de um salto, fitou o painel de controle com os olhos arregalados e sentiu-se tomada de pânico quando não descobriu nenhum sinal de advertência.

— Todos os aparelhos neutralizadores entraram em pane! — gritou uma voz por cima do barulho das sereias.

A voz do engenheiro revelava irritação e impaciência. O homem estava acostumado às reações instantâneas de Rhodan, mas não à lentidão de um cérebro arcônida tomado pelo pânico.

— O que vamos fazer? — perguntou Thora esbaforida.

Lembrou-se de que seu interlocutor não entendia a língua que estava falando. Repetiu a pergunta em inglês.

— Queria que a senhora me dissesse — gritou o engenheiro, que aparentemente com a falha dos geradores perdera o sentido do respeito.

— Como estão os campos energéticos?

— Continuam intactos. O campo neutralizador cessou por completo; mas posso sustentar a nave com os jatos propulsores.

As sereias pararam de uivar. Com a volta do silêncio, Thora sentiu-se livre de parte do medo e do nervosismo que a dominava.

— Continue a sustentá-la! — ordenou. — Procurarei descobrir o que está acontecendo lá fora.

O engenheiro interrompeu o contato. Thora chamou a vigilância ótica.

— Consegue ver alguma coisa?

— Não. Tudo ficou preto nas telas.

Thora ligou a grande tela de alcance global que se encontrava na sala de comando. Antes costumava apresentar um cinza homogêneo, agora oferecia um preto também homogêneo.

A arcônida correu para o receptor, onde minutos antes ouvira a palestra dos ocupantes dos carros-esteira. Não o desligara. Mas emudecera por completo, não emitindo sequer o mais leve ruído de interferência.

Thora começou a compreender que aqui se desenrolavam acontecimentos com que nunca se defrontara. Gostaria que Perry Rhodan estivesse de volta para dar-lhe algum conselho, mas ao mesmo tempo lançou uma maldição sobre ele, por ter-se atrevido a deixá-la só naquela nave imensa, em meio a um mundo povoado de monstros.

“Alguém tem de sair”, foi a primeira idéia que lhe acudiu. “Temos de descobrir o que está acontecendo lá fora.”

A segunda idéia foi que ninguém se disporia a sair, e ela não poderia levar isso a mal.

O que dissera Rhodan? Não pergunte, comande.

Isso teria sido fácil há quatro anos, quando pela primeira vez se encontrou com os homens e os considerava uma raça de selvagens idiotas. Mas, agora?

O intercomunicador soou.

— Lá fora está tudo cheio de figuras luminosas.

O rosto de Wuriu Sengu, o mutante com visão raio-X, surgiu na pequena tela.

Thora fez que sim.

Lembrou-se da experiência que horas antes fizera Reginald Bell ao bombardear um ser luminoso com um desintegrador. A Stardust-III dispunha de uma série de outras armas. Talvez alguma delas se revelasse eficiente.

— Sengu, compareça à sala de comando! — ordenou Thora, dirigindo-se ao japonês.

Logo depois, ordenou às posições de combate que preparassem os desintegradores e as centrífugas neutrônicas. Quando Sengu entrou na sala, a recepção da ordem foi confirmada.

— O senhor sabe reconhecer perfeitamente a trajetória de um irradiador de impulsos térmicos — disse Thora. — Dentro de poucos segundos nossos homens abrirão fogo. Quero que me informe sobre o resultado.

Wuriu Sengu colocou-se em posição. Olhou fixamente para um ponto na parede que ele mesmo escolhera. Quem não o conhecesse e não soubesse que, graças a certos dons desenvolvidos, o japonês era capaz de regular sua percepção ótica de forma tal que para ele a estrutura cristalina de qualquer tipo de matéria se tornava transparente, pensaria que se tratasse de alguém que refletia profundamente sobre algum problema.

— Fogo! — ordenou Thora.

Olhou para Sengu.

Durante alguns minutos este fitou a parede. Thora viu que o suor começou a gotejar em sua testa. Estava a ponto de fazer-lhe uma pergunta, mas sabia que não devia desviar sua atenção.

Subitamente o japonês tombou para a frente.

— Pare! — fungou. — Pare imediatamente!

— Suspender fogo! — disse Thora.

Sengu atirou-se numa poltrona. Sua respiração era tão rápida e violenta que levou algum tempo para proferir a primeira palavra.

— Eles engolem tudo. Os raios térmicos penetram no corpo deles, mas não o atravessam. A luminosidade torna-se mais intensa, e o tamanho cresce. Até parece que devoram a energia liberada pelos disparos.

Sengu não sabia um detalhe que Thora já conhecia: poucas horas atrás Bell realizara uma experiência semelhante.

Refletiu se devia fazer outra experiência com o radiador de nêutrons ou não. Os nêutrons eram corpúsculos, não uma forma de energia propriamente dita. Quem sabe...

— Atenção! — gritou Sengu. — Estão se aproximando.

Thora sentiu-se terrivelmente desamparada.

— Estão fazendo o quê? — perguntou perplexa.

Descobriu num instante. Um tremendo abalo sacudiu toda a nave. Thora caiu ao solo. Passado o primeiro susto tentou levantar-se, mas percebeu que seu peso aumentara pelo menos três vezes.

Afundado na poltrona, Sengu olhava fixamente através da parede.

— Estão bem perto — fungou. — Encontram-se sobre o casco da nave.

Uma voz gritou pelo intercomunicador:

— Os propulsores só trabalham com setenta por cento de sua potência normal! Os campos neutralizadores no interior da nave estão mais fracos!

Era o engenheiro; desta vez havia mais medo que impaciência em sua voz.

Thora levantou-se e foi-se arrastando até o microfone.

— Procure decolar! — disse num sopro. A enorme pressão fez com que seu corpo pesasse como se estivesse encerrado numa pesada blindagem.

As luzes começaram a piscar no painel de controle, quando o engenheiro assumiu a direção da nave na sala de controle técnico. Thora fitou as luzes, como se nunca as tivesse visto; aguardava o verde tranqüilizador da decolagem.

E veio. Por um, dois, três segundos a luminosidade intensa surgiu no painel, depois apagou-se; a nave não se moveu.

Thora soltou um grito desarticulado de pavor.

— Os propulsores estão falhando! — anunciou o engenheiro. Ao que parecia, a certeza de não poder fazer mais nada restituíra-lhe a calma.

Wuriu Sengu soltou um gemido abafado.

— Tornaram-se gigantescas, gigantescas...

— Temos de fazer alguma coisa! — gritou Thora.

Deu um passo em direção a Sengu.

Nesse preciso instante aconteceu alguma coisa. Thora foi arrastada para a frente e levou a segunda queda no espaço de poucos minutos.

Fora uma queda violenta. Levantou-se um tanto perturbada e olhou para Sengu. O movimento já não lhe fazia doer o pescoço. Levantou-se e percebeu que a pressão martirizante não existia mais. Seu corpo voltara ao peso normal.

O japonês sorriu.

— Foram embora, madame — disse com a voz tranqüila. — Bem de repente.

Thora lançou os olhos em torno, como se procurasse o motivo do milagre em algum lugar da sala de comando.

Seu olhar caiu sobre a tela oscilográfica do sensor estrutural. Viu nela a luminosidade emitida pela linha sinuosa projetada pelas transmissões moduladas do desconhecido que fizera Rhodan lançar-se nessa aventura arriscada.

Lançou um olhar automático para o relógio.

Como sempre, a transmissão fora realizada na hora exata.

 

Rhodan decidiu suspender a expedição e voltar à Stardust-III, mas nesse instante a nave voltou a chamar. Ligara o carro e havia virado a direção para voltar, quando Deringhouse deu um grito atrás dele:

— Estão chamando!

— ...chamando Rhodan. Stardust-III chamando o comandante Rhodan — disse o intercomunicador.

Era a voz de Thora. Rhodan não se lembrava de já a ter ouvido tão apática. Num gesto impaciente puxou o microfone para seu lado:

— Aqui é Rhodan. O que houve com vocês?

O ruído que precedeu a resposta tanto podia ser um suspiro de alívio como uma perturbação atmosférica.

— Fomos atacados — disse Thora, e deu um relato tão detalhado quanto conciso dos acontecimentos dos últimos minutos.

Rhodan interrompeu-a assim que havia entendido a ligação entre os fatos.

— Está em condições de decolar? — perguntou.

— No momento estamos.

— Pois decole e mantenha-se até segunda ordem numa altitude segura, talvez uns dois mil quilômetros. Não acredito que as figuras luminosas se arrisquem até lá.

— Muito bem. Mas para que tudo isso?

— Encontramo-nos num vale. Assim que eu descobrir que clube de seres luminosos é este que se instalou aqui, quero que a Stardust pouse neste mesmo lugar. Fornecerei as coordenadas.

Thora parecia deprimida, mas Rhodan não se importou.

— Mantenha contato ininterrupto conosco — recomendou.

Rhodan já formara sua opinião sobre o incidente que por pouco não acarretou a destruição da Stardust. Não havia qualquer explicação racional para a súbita retirada dos seres luminosos, a não ser que se recorresse à coincidência temporal entre essa retirada e a transmissão do desconhecido.

Haveria alguma relação entre esses fatos? Seria a energia utilizada nas transmissões do desconhecido aquela pela qual o major Nyssen procurava há várias horas?

Crest chamou.

— Rhodan, nestas circunstâncias... ainda pretende passar por aí?

— Se pretendo! — asseverou Rhodan. — Praticamente não existem envoltórios energéticos em torno dos nossos carros; quer dizer que não há quase nada que possa aguçar o apetite desses seres luminosos.

Esperava que ninguém percebesse a mentira. Os seres luminosos haviam engolido os raios infravermelhos do holofote, que continham pouca energia. Por isso era de esperar que demonstrassem um interesse bem maior por um campo de neutralização gravitacional, que era muito mais substancioso.

Mas Rhodan teve uma idéia.

— Coluna marcha! — ordenou em tom seco.

Seu carro continuou na ponta. Numa velocidade moderada aproximou-se do front armado pelos seres luminosos, que continuavam a dançar aos milhares na escuridão do vale.

Rhodan desligara o holofote. Podia sentar-se pelas figuras luminosas.

— O que está fazendo a esfera atrás de nós? — perguntou, dirigindo-se a Bell.

— A mesma coisa que vem fazendo o tempo todo — respondeu este. — Dança e balança.

— Não notou nada de especial?

— Nada.

Seu carro atingiu a primeira linha dos seres luminosos. Dali em diante não teve tempo para pensar em outra coisa além dos problemas que exigiam sua atenção imediata.

De início os seres luminosos pareciam não tomar conhecimento da presença dos carros. Mantinham entre si uma distância suficiente para permitir a passagem confortável dos pesados veículos.

— Então! — disse Bell admirado. — Nem são tão ruins como parecem!

Rhodan fez girar a lente do rastreador ótico. Haviam penetrado tão profundamente no front que não se via mais nenhum terreno livre. Na frente, dos lados, atrás, em todos os pontos, as superfícies luminosas daquelas inconcebíveis criaturas energéticas executavam seus movimentos indolentes.

Rhodan cerrou os dentes.

Olhou para o relógio: dez minutos haviam passado.

Sabia que a boa sorte de passarem incólumes entre as fileiras dos seres luminosos não duraria muito. A qualquer hora chegaria ao fim; mas quando?

Quinze minutos.

— Já consegue enxergar o fim? — perguntou a Bell.

— Ainda não.

A visão que se descortinava diante do carro ainda era idêntica à que se lhes oferecera no momento em que haviam penetrado naquele front.

A área do vale era imensa, e todo ele parecia estar repleto das criaturas luminosas.

Rhodan gostaria de saber por que haviam escolhido justamente essa área como ponto de reunião, e não qualquer outra. Haveria por aqui alguma coisa que os atraía? Ou teriam desenvolvido, tal qual as inteligências normais, um tipo de hábito que os fazia encontrarem-se sempre no mesmo lugar?

Vinte e cinco minutos.

Rhodan não avançara muito depressa. Sua preocupação principal não consistia em atravessar a linha daquelas manchas de névoa luminosa. Estava interessado principalmente em realizar uma experiência. Acreditava dispor de meios para evitar que seus homens corressem qualquer risco em virtude da experiência.

Trinta minutos.

Desde o início da experiência haviam percorrido uns dezoito quilômetros. O terreno pouco acidentado teria permitido uma velocidade muito maior.

A coisa começou aos trinta e dois minutos.

Rhodan foi o primeiro a perceber que as manchas de névoa luminosa encontravam-se menos distantes uma da outra como poucos minutos antes. Era necessário realizar manobras vigorosas para passar entre elas sem provocar colisões.

— Todas as peças prontas para disparar! — ordenou Rhodan.

Ouvia-se a respiração pesada de Crest.

— Qual será o alvo? Não venha me dizer que pretende atirar nesses seres energéticos.

— Isso mesmo. Prestem atenção: concentraremos o fogo de todas as peças, com exceção dos tubos de oxigênio, por enquanto, num ponto situado aproximadamente na altura do carro de Crest, e que fica a uns duzentos metros a oeste da linha imaginária que une nossos carros. Aguardem a ordem de abrir fogo. Ninguém deve disparar antes da hora.

Não tinha a intenção de fazer segredo; mas não havia tempo para explanações. Os seres luminosos juntaram-se numa linha quase compacta, Rhodan imaginava o que aconteceria nos próximos segundos.

Tanaka Seiko desmaiou; seu cérebro não resistiu à estafa.

Rhodan não tinha alternativa. O front fechara-se diante dele. Se quisesse prosseguir, teria de atravessar a cortina luminosa formada por aqueles seres.

Não hesitou. Na sua opinião o corpo dos seres energéticos pertencia a uma categoria espacial superior, e a luz que irradiavam não faria mal aos veículos.

— Anne, assuma o controle dos geradores!

Rhodan teve de repetir a ordem para despertar Anne do torpor em que se achava mergulhada.

— Não tenha medo, minha filha! — disse com um sorriso, ao ver seu rosto pálido.

Foi então que aconteceu.

Houve um solavanco, e o carro parou. Não é que alguém o segurasse, mas o motor já não estava em condições de deslocar o peso do veículo.

— Aumente a potência, Anne! — fungou Rhodan.

Contara com um efeito menos intenso. Sabia que os seres luminosos haviam começado a saciar seu apetite no campo de neutralização gravitacional do veículo.

Fizeram-no com uma voracidade incrível. A cada segundo que passava a força gravitacional no interior do carro crescia vertiginosamente. Já era de 9 g, segundo seus cálculos.

Lembrou-se de Crest e de seu organismo arcônida, que já não estaria em condições de suportar tamanha pressão.

— Fogo! Disparem todas as peças!

Deringhouse manipulou a chave. Por alguns segundos a armação do carro vibrou com o raio energético superpotente do desintegrados O radiador de nêutrons trabalhava com um zumbido fino, e o canhão de impulsos térmicos completava o concerto com um ruído surdo.

Na tela Rhodan percebeu que os outros carros também haviam reagido ao seu comando. Raios energéticos brilhantes partiam dos veículos e penetravam na confusão das figuras luminosas, cruzando-se na distância que Rhodan fixara antecipadamente.

Demorou algum tempo até que surgisse o efeito esperado por Rhodan.

O tempo, durante o qual a pressão aflitiva parecia manter presos os ocupantes dos veículos, mostrou-se interminável. Na verdade tudo não durara mais que alguns minutos, conforme Rhodan pôde verificar no relógio.

Finalmente a pressão começou a ceder.

Ao mesmo tempo o front compacto dos seres luminosos começou a desintegrar-se diante de Rhodan. Surgiu uma brecha, e na voz de comando de Rhodan era perceptível o triunfo:

— Vamos adiante! Velocidade máxima!

O carro saiu aos solavancos. Ainda não voltara ao peso primitivo. Alguns poucos entre os seres luminosos ainda não haviam percebido que em outro ponto, situado a duzentos metros ao oeste, na altura do carro do meio, dispunham de uma substância muito mais abundante para saciar a fome que a representada pelos débeis campos antigravitacionais dos veículos.

Mas a cada segundo que passava o carro ficava mais leve, sua velocidade aumentava, até que disparou à velocidade máxima. Os seres luminosos concentravam-se em outro ponto. Embora o foco dos disparos das peças montadas nos veículos se deslocasse com a mesma rapidez destes, aquelas criaturas preferiram evidentemente saciar seu apetite na fonte mais abundante, já que tinham de optar entre duas fontes móveis.

Quarenta e um minutos depois de se terem aventurado para dentro da linha dos seres luminosos os carros romperam o front na extremidade oposta. Subitamente a escuridão cinzenta voltou a estender-se diante do veículo de Rhodan, e este teve de executar um giro de quase cento e oitenta graus no receptor de seu rastreador ótico para enxergar os seres luminosos.

— Passamos! — exultou Reginald Bell no intercomunicador.

Rhodan sorriu com a alegria indômita expressa através do grito de Bell, e com a sensação de alívio de que se sentiu possuído depois da experiência bem sucedida.

Os seres luminosos eram criaturas pertencentes a um mundo de ordem superior; mas um punhado de homens — seres simplórios cujo cérebro era tão pequeno que nem conseguiam visualizar problemas relacionados ao espaço quadridimensional, e que não emitiam qualquer tipo de radiação com seus corpos desengonçados, além do infravermelho de seu reduzido calor orgânico — conseguiram iludi-los.

Os seres luminosos não fizeram menção de perseguir os veículos. Rhodan ordenou aos outros carros que continuassem a disparar, mas deslocassem o foco dos raios para o norte.

As manchas de névoa luminosa reuniram-se naquele ponto, continuando a devorar energia e a crescer. Os canhões dos três carros desprenderam uma quantidade enorme de energia, umas dez mil vezes mais que aquela que os seres luminosos poderiam captar se avançassem sobre os campos antigravitacionais dos veículos.

Esse fato influiu em seu tamanho. À medida que absorviam energia, o front tornava-se mais alto e a luminosidade mais intensa.

Os canhões continuaram a disparar radiações por mais quinze minutos. Depois Rhodan mandou suspender o fogo e esperou.

Subitamente os seres luminosos pararam de crescer. Por um instante a massa deles executou um movimento turbilhonante; parecia que procuravam as travessas recheadas que de repente alguém retirara de junto de suas bocas ávidas de energia.

Mas os carros já se encontravam tão longe que já não poderiam notar os débeis campos antigravitacionais que os envolviam. Por alguns minutos saltitaram desordenadamente, depois pararam. Tiveram seu repasto e cresceram para o dobro do seu tamanho. Agora havia chegado o fim! Rhodan girou o receptor.

— Como estão as coisas à nossa frente? — perguntou.

O holofote foi ligado. Quando Rhodan começou a girá-lo, o facho luminoso deslizou por uma encosta não muito íngreme. O pé da montanha distava menos de cem metros do carro.

Rhodan respirou profundamente. Os que o ouviam aguardavam nova ordem que representaria uma carga pesada para seus nervos. Mas Rhodan limitou-se a dizer:

— A montanha está à nossa frente!

Colocou tamanha ênfase na palavra, que todos sabiam a que montanha se referia.

 

Depois de uma busca de meia hora realizada à luz reunida dos três holofotes, todos tinham certeza de que aquilo que se encontrava sobre aquele morro, ou dentro dele, não devia ser procurado ao pé da encosta norte.

Concordaram com a sugestão de Rhodan, segundo o qual os carros deviam subir pelo morro o mais que pudessem.

Rhodan estava convencido de que numa altitude maior encontraria aquilo que procurava. Ainda acreditava firmemente que o desconhecido lhe forneceria alguma indicação sobre o lugar do esconderijo, ou que não haveria esconderijo algum, tratando-se de alguma coisa fácil de encontrar desde que ficasse de olhos abertos.

A encosta norte da imensa montanha ofereceu poucas dificuldades aos veículos.

Além disso, os seres nebulosos mantinham-se calmos no fundo do vale e a esfera luminosa que os seguira há horas desistira.

A uns dois mil metros acima do nível do vale a inclinação da encosta tornou-se ainda menor até terminar num planalto de dimensões espantosas. Por onde quer que girasse o holofote, Rhodan só encontrava o vazio, o que provava que numa extensão de mil metros em torno dele não havia qualquer matéria sólida, nenhum paredão, nenhuma encosta, nada além do terreno plano em que se encontravam os carros.

Rhodan decidiu fazer uma pausa.

Chamou a Stardust.

Thora respondeu imediatamente.

Conforme suas ordens, a nave subira do solo, mantendo-se imóvel numa altitude de dois mil quilômetros.

Rhodan informou a comandante sobre os acontecimentos dos últimos noventa minutos e concluiu desta forma:

— Isso significa que descobrimos dois fatos de suma importância, um deles se tornou plausível, outro foi demonstrado. A faculdade de reagir a fenômenos que se desenrolam exclusivamente no espaço de três dimensões é muito reduzida nos seres energéticos. Levaram mais de meia hora para perceber que estávamos passando entre eles e que tínhamos alguma coisa com que podiam saciar a fome. O fato que tornamos plausível é a lentidão de suas reações. Provamos que realmente se alimentam de energia. Antes de mais nada, não conhecem quaisquer escrúpulos de ordem moral e provavelmente não têm noção do dano que causam com sua voracidade. Agarram o que encontram.

“Acredito que, se é que tal idéia pode ser aplicada a seres desse tipo, na verdade são criaturas sem inteligência. Thora, antes de prosseguirmos gostaria de realizar outra experiência, se não tiver nenhuma objeção.”

— Que experiência é essa? — perguntou Thora.

— Deve estar lembrada de que o ataque à Stardust cessou no instante em que o desconhecido começou a transmitir e nosso antigo sensor estrutural captou o sinal.

— Sim, naturalmente.

— Pois bem. Ligue o instrumento adaptado a uma corrente bem forte. Transmita com ele com a potência máxima que puder suportar e dirija as emissões sobre os seres luminosos. Gostaria de conhecer a reação deles.

A idéia nunca ocorrera a Thora, embora estivesse na palma da mão.

— Para isso terei que descer, não é? — perguntou um tanto teimosa e contrariada por sua falta de capacidade de perceber coisas que se encontravam diante do seu nariz.

— Perfeitamente! — respondeu Rhodan em tom sério. — Se fizer o sensor estrutural funcionar a plena carga, gerará um alcance de pelo menos cinco quilômetros. Não precisa descer mais que isso. Outra coisa!

— O que é?

— Mergulhe o terreno em luz infravermelha. Nossa visão está muito fraca.

 

“Será que você o compreenderá algum dia?”, perguntou Thora de si para si.

O que teria feito se estivesse no lugar de Rhodan? Ficaria satisfeita por ter escapado aos seres luminosos e seguir pelo caminho mais rápido em direção ao objetivo. Quanto antes o alcançasse, melhor para todos que participavam do empreendimento.

E o que fazia ele? Intercalava uma pausa, como se estivesse realizando um passeio ou uma excursão; e, para júbilo dos espectadores, realizava uma experiência com os seres luminosos, cujo perigo mortal todos já haviam experimentado.

Era impossível compreender Rhodan: sua atividade incansável, seu espírito implacável diante de si mesmo e dos outros, a extrema agilidade do seu pensamento e sua capacidade espantosa de passar diretamente de um assunto muito sério para uma brincadeira ou mesmo uma atitude marota.

Thora sacudiu a cabeça e pôs a Stardust-III em movimento.

Cautelosamente, como da primeira vez, a nave mergulhou na atmosfera turbilhonante de Gol e foi perdendo altitude.

Thora sabia perfeitamente no que teria de prestar atenção. De quatrocentos quilômetros para baixo surgia o perigo: os seres luminosos poderiam tentar saciar sua fome nos envoltórios protetores, que representavam um verdadeiro manancial de energia. Ao que parecia, podiam afastar-se até essa distância da superfície do imenso planeta.

O sensor estrutural adaptado fora instalado. Estava em condições de emitir com uma potência de dois megawats; era o máximo que suas peças sensíveis poderiam suportar.

Thora fitou a caixinha, absorta em pensamentos.

Rhodan! Era o homem que desmontara um sensor estrutural arcônida e voltara a montá-lo de tal forma que era capaz de fazer uma coisa desconhecida mesmo para a física dos arcônidas.

— Faltam quatrocentos mil metros, madame! — anunciou o encarregado da vigilância.

Thora sobressaltou-se. Estavam entrando na zona de perigo; e o medo começou a surgir nela.

 

— A Stardust! — murmurou Deringhouse.

Uma névoa branca e transparente foi entrando na tela, vinda do lado de cima. Rhodan desligara o holofote, que não lhe servia de nada, e observou o quadro que se tornava cada vez mais nítido à medida que a Stardust descia.

Thora não tivera nenhum incidente. A nave descera sobre o vale sem ser molestada e flutuava numa altitude de dez quilômetros, mantendo uma velocidade mínima de descida.

Rhodan a instruíra a irradiar de forma difusa a luz infravermelha destinada à iluminação da cena, e logo viram que se tratava de uma medida recomendável.

A luz difusa é uma fonte de energia muito fraca que se espalha de forma isotrópica, sem manifestar preferência por qualquer direção. O estímulo de absorver a energia irradiada difusamente pelas lâmpadas infravermelhas por certo era muito reduzido para fazer com que os seres luminosos se mexessem.

Rhodan não poderia desejar um quadro mais nítido. Pela primeira vez sua vista abrangeu aquele vale circular com sua extensão impressionante. O diâmetro alcançava perto de trinta quilômetros e de todos os lados — no oeste, no norte, no leste — estava cercado por paredões quase verticais que em alguns lugares eram encimados por montanhas, enquanto em outros lugares só subiam até atingir uma pequena borda, atrás da qual se estendia um planalto cintilante coberto de metano.

O vale propriamente dito estava repleto de seres luminosos. Sua luminosidade era tão forte que sobressaíam à luz dos holofotes. Mantinham-se imóveis.

— Basta, Thora — disse Rhodan depois que a Stardust havia descido a uma altitude de cinco quilômetros. — Ligue o aparelho.

— Vou ligar — confirmou Thora.

O resultado foi fulminante, conforme todo mundo esperara, mas ninguém se atrevera a acreditar seriamente.

De início a massa de seres luminosos começou a mover-se. Ao contrário dos campos protetores e antigravitacionais da nave e dos carros, as vibrações do novo transmissor pareciam ser algo que aquelas criaturas sentiam imediatamente, e à qual reagiam sem demora.

Por alguns segundos o movimento não parecia ter um objetivo definido. Mas logo surgiu uma abertura em meio às fileiras dos seres luminosos, abertura que foi crescendo rapidamente para todos os lados.

— Estão fugindo! — gritou Deringhouse exultante. — Estão dando o fora!

Não havia a menor dúvida. Thora fez o feixe de ondas projetado por seu emissor girar de um lado para outro em meio ao exército de criaturas energéticas, e provocou o pânico quase simultaneamente em vários pontos.

Os flancos do exército atingiram os paredões que limitavam o vale e... desapareceram no interior dos mesmos. A matéria sólida não representava qualquer obstáculo para seus corpos energéticos. Enquanto disparavam aos milhares numa velocidade espantosa em direção aos paredões e desapareciam nos mesmos, estes pareciam emitir uma luminosidade vinda de dentro. Essa luminosidade ainda durou algum tempo depois que o último desses seres havia fugido, mas foi empalidecendo e finalmente desapareceu por completo.

Não havia mais nada no vale.

— Está bem, Thora — disse Rhodan em tom tranqüilo. — Pode pousar no vale.

 

Ainda observaram o pouso da Stardust, mas Rhodan logo insistiu para que partissem.

Estava prestes a dar a respectiva ordem quando Tanaka Seiko despertou. Ao ouvir seu gemido, Rhodan voltou-se.

Tanaka segurou a cabeça nas mãos e lançou um olhar indagador para Rhodan.

— O que é isso? — perguntou.

— O que é o quê?

— Esse zumbido e esse ronco forte; não está ouvindo?

Rhodan sacudiu a cabeça.

— O que poderia ser? — perguntou.

Tanaka aguçou o ouvido. Sacudiu a cabeça.

— Parece um bando de marimbondos enfurecidos. Quase juraria que aqui por perto existe um, mas evidentemente é tolice.

Rhodan refletiu.

Não havia a menor dúvida de que Tanaka “ouvia” graças às suas capacidades parapsicológicas. Assim sendo, a essa altura, quando Thora já havia desligado o emissor, restavam duas fontes de onde podia provir o ruído: o desconhecido que tinha seu esconderijo na montanha, ou os seres luminosos postos em fuga.

— Entende alguma coisa? — perguntou Rhodan.

— Não. É apenas um ruído.

Então eram os seres luminosos. Rhodan acreditava que se tratasse de seres não dotados de inteligência. Se emitissem sons que correspondessem a estrutura energética de seu corpo, os mesmos só poderiam ser inarticulados.

Rhodan refletiu sobre esses fatos. Teria que tomar uma decisão, e quanto mais cedo o fizesse, melhor seria para ele e seus companheiros.

Pegou o microfone.

— Crest e Bell. Voltem à Stardust. Não tenho certeza se conseguimos afugentar os seres luminosos para sempre. Gostaria que ajudassem Thora quando houver outro ataque.

Bell protestou.

— Até parece que você quer pintar o diabo! — disse com a voz zangada. — Acho que lhes estragamos o apetite para sempre.

— É o que você acha! — respondeu Rhodan em tom sério. — Não admito discussões. Você e Crest voltarão. Preste atenção!

— Pois não.

— Você e Crest farão o possível para construir quanto antes um emissor do mesmo tipo do sensor estrutural adaptado. No momento você está em condições de desligar os envoltórios protetores para obter um número suficiente de antipartículas destinadas ao segundo sensor. E esse novo emissor deverá ser mandado atrás de mim num dos dois carros em que vocês retornarão à nave. Emitirei sinais goniométricos. O carro será dirigido pelo major Nyssen, que levará um acompanhante. Entendido?

— Entendido.

— Está bem. Boa viagem.

Rhodan aguardou até que os dois veículos fizessem meia-volta e desaparecessem atrás da borda ligeiramente abaulada que encimava a encosta norte da montanha. Chamou Thora e pediu-lhe que preparasse tudo para a construção do segundo emissor.

Foi passando os olhos por seus homens.

— Tanaka! Como está o zumbido?

— Continua inalterado.

Rhodan respondeu com um aceno de cabeça.

— Anne, procure fazer uma cara mais alegre. Ganhamos uma batalha e devemos nos sentir felizes.

— Mas...

— Não há mas nem porém. O objetivo está próximo, e quando o tivermos atingido, nossas preocupações terão chegado ao fim.

“É tão fácil dizer isto”, pensou. Mas não adiantava expor as dificuldades da situação com todos os matizes da realidade a alguém que já sentisse medo. A tarefa mais nobre de um comandante consiste em inspirar coragem e confiança aos subordinados.

Viu que Anne lhe lançava um olhar indagador.

Rhodan contorceu o rosto num sorriso.

— Vamos prosseguir! — disse em tom áspero.

No mesmo instante o motor deu partida com um uivo.

A hora que se seguiu decorreu sem maiores novidades, tanto a bordo da Stardust como no carro-esteira de Rhodan.

Crest e Bell chegaram à nave e logo se puseram a trabalhar. Thora preparara tudo que podia ser preparado; além disso, Crest já executara o mesmo trabalho, embora apenas como assistente de Rhodan. Por isso acreditavam que concluiriam o serviço dentro de duas ou três horas. O emissor teria uma potência menor que o primeiro, pois não se arriscaram a retirar a energia dos envoltórios protetores e dos campos antigravitacionais por mais de quarenta minutos, para utilizá-la na produção de antipartículas. Mesmo esse lapso de tempo levou Crest à beira do pânico.

Enquanto isso o carro de Rhodan avançara rapidamente pelo planalto. Depois de uma hora chegou a um tipo de barranco que, num aclive suave, transpunha uma diferença de altitude de cerca de cinco metros e se estendia em linha bem reta na direção leste—oeste, até onde alcançava a vista.

Rhodan ficou admirado. Nada indicava a maneira pela qual surgira naquela forma precisa em meio ao planalto, nem havia indício de qualquer fenômeno da natureza que a pudesse ter criado.

Rhodan desceu com o carro e constatou que além do barranco o terreno ainda era um pouco mais plano que aquele que tinham percorrido até então.

Deu a potência máxima ao motor e fez o carro correr aos solavancos pela superfície lisa.

 

Dali a uma hora Bell anunciou pelo intercomunicador que o emissor estava pronto e que se poria a caminho em companhia do major Nyssen.

Rhodan sentiu um certo alívio, embora os seres luminosos não tivessem dado nenhum sinal de sua presença.

A Stardust também não voltara a ser molestada.

Para o major Nyssen a incumbência representava um tipo de esporte. Escolhera o capitão Klein como seu acompanhante, e este lhe ficou muito grato.

Dentro de poucos minutos atravessaram o trecho do vale em que poucas horas antes se encontravam os seres luminosos, e iniciaram a subida da encosta a plena potência.

 

Rhodan foi a primeira pessoa atingida pelo azar, um azar ridículo, mas nem por isso menos perigoso.

Perto de três horas se haviam passado desde que Bell e Crest voltaram à Stardust. O terreno continuava muito plano, permitindo que Rhodan desenvolvesse a velocidade máxima.

Mas de repente reduziu a velocidade, pois teve a impressão de que a direção não obedecia como antes.

Olhou para a tela e examinou o solo em que o carro se movia. Não constatou nada de extraordinário. Reduziu a velocidade mais um pouco e de repente percebeu.

O solo afundou sob o peso do carro.

Parecia que se deslocava sobre um pano esticado.

Rhodan parou e ficou dando tratos à bola para descobrir a natureza do fenômeno. Deringhouse veio rastejando e também fitou a tela. O fenômeno tornara-se bem patente. O peso do carro fez com que o solo formasse uma depressão que, se a observação de Deringhouse era correta, estendia-se por uns cinqüenta metros.

Subitamente Rhodan recuperou a atividade. Com um uivo ensurdecedor o motor voltou a funcionar, fazendo o carro dar um salto para a frente.

— Somos uns idiotas! — resmungou Rhodan. — É gelo. Há uma hora e meia estamos andando sobre um lago congelado, e ninguém percebeu nada!

Dessa forma já tinha explicação o barranco que os deixara tão admirados. Era a margem do lago.

Rhodan suspirou aliviado, quando ao sul viu um barranco idêntico que se aproximava dele. Devia estar a uns oitocentos metros de distância. Se tivessem sorte...

Acontece que não tiveram sorte.

A carroçaria assumiu as vibrações acústicas e transmitiu com uma nitidez surpreendente o forte estalo com que o gelo se rompeu. Na tela se via que subitamente no chão se abriram fendas; eram fendas negras, que se alargavam com uma rapidez assustadora.

O quadro inclinou-se. O carro começou a tombar.

— Anne! — gritou Rhodan. — Ponha a potência máxima nos geradores.

O uivo dos motores que giravam no vazio misturou-se ao zumbido forte que os geradores emitiram quando, utilizando toda a potência, procuraram reforçar o campo antigravitacional a ponto de evitar que o carro afundasse.

Rhodan sabia que havia pouca esperança. O carro tinha um espaço vazio preenchido com ar à pressão normal; mas esse espaço vazio era mais que compensado pelo peso dos revestimentos do carro, dos geradores e do motor. A densidade do metano de que era formado o lago em que começavam a afundar era enorme e tinha um poder de suspensão muito superior ao da água terrena, mas ainda assim não havia dúvida de que o carro afundaria dentro de poucos minutos.

Se soubesse que naquele ponto a profundidade do lago não era superior a quinze metros, Rhodan não teria feito o menor esforço para evitar que o carro afundasse. A estrutura do carro suportaria a pressão de quinze metros de metano líquido. Com uma camada de vinte metros de metano a pressão provavelmente já começaria a tornar-se crítica.

As esteiras reviraram o líquido viscoso, produzindo correntezas no mesmo. Rhodan manteve o motor à rotação máxima. Tudo que concorresse para atirar o metano líquido da proa para a popa produzia uma força propulsora, por menor que fosse. Numa situação dessas cada metro que avançassem representava uma fortuna.

Tanaka preparou seu emissor de grande alcance, para colocá-lo em condições de transmitir um sinal de emergência à Stardust assim que o aparelho de Rhodan não pudesse vencer mais a distância. Alguns metros de metano bastavam para tornar impossível a ligação radiofônica mais perfeita, se esta não dispusesse de energia suficiente.

Rhodan ficou observando. Metade da tela estava coberta de metano, que se movimentava lentamente. Na outra metade via a margem que representava a salvação. Não se aproximara sensivelmente.

Os geradores antigravitacionais retardaram o afundamento, mas não puderam detê-lo. E as esteiras que giravam loucamente não transmitiam ao carro qualquer velocidade mensurável em relação ao metano viscoso em que estavam prestes a afundar.

Rhodan chamou a Stardust através de seu próprio transmissor. A ligação ainda era perfeita. Por enquanto a antena sobressaía acima do nível do metano.

— Decolaremos imediatamente e tiraremos vocês de lá! — asseverou Bell.

— Vocês terão de colocar-se bem perto do carro e reforçar o campo antigravitacional da nave até que consiga levantar o veículo — explicou Rhodan apressadamente. — É a única possibilidade.

— Está bem — respondeu Bell. — Transmita sinais goniométricos com o outro emissor.

Rhodan voltou-se para Tanaka.

— Apronte o...

Neste momento houve um solavanco. O carro emitiu um leve chiado, balançou ligeiramente e ficou imóvel.

A tela só mostrou a massa turva do metano, com exceção de uma faixa de um centímetro na borda superior.

— O que foi isso? — perguntou Deringhouse esbaforido.

Rhodan pôs-se a rir.

— Chegamos ao fundo do lago.

Estavam salvos. Naquele ponto a profundidade do lago não ultrapassava a marca dos três metros. Uns oitenta por cento do carro estavam mergulhados no metano. Apesar disso as esteiras firmaram-se no solo do fundo do lago e impeliram o veículo para a frente.

Rhodan suspendeu o alarma. Bell respirou aliviado.

O carro funcionava como quebra-gelo. Rhodan dirigia cautelosamente, escolhendo de preferência os lugares em que o gelo de metano já estava rachado.

Levou meia hora para percorrer os oitocentos metros que o separavam da margem do lago. O carro saiu do lago gotejando e subiu lentamente pelo barranco suave.

Rhodan pretendia dizer algumas palavras animadoras, mas sentiu-se fascinado pelo quadro que se desenhava na tela.

A quinhentos metros de distância uma rocha erguia-se em forma de agulha. Só depois de dirigir o holofote para ela, Rhodan percebeu que tinha esta forma. Seu diâmetro era considerável e sua altura ultrapassava o alcance do holofote. Rhodan lembrou-se de que o sensor da Stardust só conseguira detectar a copa da montanha quando a nave se encontrara a uma altitude relativamente pequena. Era um indício de que o cume era pouco extenso; como o dessa agulha, por exemplo.

Seria esta a montanha?

Tanaka Seiko soltou um grito. Rhodan virou-se abruptamente. O rosto do japonês contorcia-se de dor e as mãos comprimiam as têmporas.

Rhodan dirigiu-lhe a palavra, mas Tanaka não respondeu. Durante alguns segundos ninguém sabia o que fazer.

Subitamente o japonês parou de gritar, deixou cair as mãos e olhou para a frente com uma expressão de alívio.

— O que foi isso?

— Uma mensagem.

— O que dizia? — perguntou Rhodan.

— Dizia o seguinte: “Estás no caminho certo. Continua! Mas será que possuis a sabedoria do plano superior?”

Rhodan limitou-se a resmungar. Não esperara que o desconhecido voltasse a entrar em contato com ele. Mas era um consolo. Aquele complexo de montanhas era de uma extensão descomunal, e deviam agradecer a qualquer um que lhes dissesse que se encontravam no caminho certo.

O carro-esteira rolou tranqüilamente em direção ao cume pontudo.

Rhodan transmitiu a informação à Stardust e ao major Nyssen que seguia no seu carro.

— O zumbido está cada vez mais forte — disse subitamente Tanaka Seiko.

No mesmo instante Rhodan viu aquela figura estranha na encosta norte da imensa montanha, que se encontrava a menos de duzentos metros.

Tal qual todas as formações rochosas daquele mundo, a rocha pontuda estava coberta com uma camada de metano e amoníaco congelado. Mas, como as encostas fossem muito íngremes, a camada não era tão espessa que encobrisse as características mais importantes da montanha.

Reconhecia-se perfeitamente o sulco em forma de ferradura que começava ao pé da montanha e atingia seu ponto mais elevado a uns vinte metros de altitude. O gelo fixara-se no sulco, mas refletia a luz infravermelha do holofote sob outro ângulo; por isso a ferradura destacava-se nitidamente.

Rhodan acreditava que sabia interpretar a ferradura.

— É o portão de entrada! — disse em tom sério. — Anne, tenho a impressão de que só conseguiremos abrir com um golpe de habilidade telecinética. Aplique sua sabedoria do plano superior!

Virou-se e sorriu para Anne. Deringhouse completou o pensamento de Rhodan:

— Faça um esforço, Anne! Ali estão nossos amigos vindos de uma outra dimensão.

Rhodan virou-se abruptamente.

Do lado direito aproximava-se um verdadeiro exército de luzes dançantes e tremeluzentes. Pareciam conhecer seu objetivo, pois marchavam diretamente pelo flanco da montanha, em direção ao portão em forma de ferradura. O carro não chegaria antes delas.

 

— Quero que esse tempo vá para o inferno! — resmungou Nyssen em tom irritado.

De alguns minutos para cá a tempestade tornara-se mais intensa. O carro, protegido apenas pelo campo antigravitacional, praticamente se via indefeso diante da mesma. Só seu peso extraordinário e sua pequena altura, que não oferecia uma área muito extensa à tormenta, evitavam que fosse arrastado.

Nyssen transmitira à Stardust o aviso da tormenta. A bordo da nave não haviam percebido nada.

Se estivesse mais familiarizado com a aerodinâmica de alta pressão daquele planeta, Nyssen saberia que a enorme pressão e a intensa força gravitacional reinante em Gol criavam aquilo que se poderia chamar de áreas de grandes tormentas. A tempestade nunca cessava, mas as variações de intensidade da mesma ficavam restritas a uma superfície de poucos quilômetros quadrados. Para além dos limites dessa área a mudança do tempo passava despercebida. A mesma coisa acontecia com as modificações da temperatura.

— O tempo está esfriando — queixou-se Klein, que mantinha um controle constante sobre os instrumentos.

— Estou percebendo — respondeu Nyssen enquanto desviava o carro de um bloco de gelo que mal começara a erguer-se acima do solo.

Subitamente o terreno deixou de ser plano. Colinas, blocos de gelo e verdadeiras montanhas cresciam vertiginosamente em todos os quadrantes, roubando a visão de Nyssen. Este imprimiu maior velocidade ao seu veículo, para livrar-se quanto antes daquela confusão que se ia estabelecendo; mas dali a pouco viu-se obrigado a andar mais devagar. O risco de uma colisão era muito grande.

O carro ia contornando um bloco de gelo de mais de dois metros de altura quando diante dele surgiu com uma rapidez incrível uma montanha de metano congelado. Klein olhou para o termômetro: a temperatura era de setenta graus absolutos, não era de admirar que a atmosfera de metano se condensasse às toneladas, mas o crescimento daquela montanha oferecia um espetáculo espantoso.

Nyssen soltou uma praga e parou. Recuou um pedaço para dobrar à esquerda; mas quando havia percorrido alguns metros alguma coisa segurava-o atrás. Girou o receptor de imagem e viu que atrás do carro outra montanha crescia para o alto. À direita ficava a colina que pretendia contornar, e agora também do lado esquerdo uma montanha começava a erguer-se com uma rapidez espantosa.

— Que porcaria! — disse Nyssen. — Estamos presos.

Entrou em contato com a Stardust e relatou a situação em que se encontrava.

— Iremos tirá-los — prometeu Bell. — Pelo que deduzimos das últimas mensagens, Rhodan parece ter atingido o objetivo. Dessa forma não haverá nenhum inconveniente em decolarmos e irmos até aí.

— Está bem — respondeu Nyssen em tom de alívio. — Aguardaremos.

Desligou o motor. O silêncio que se seguiu foi deprimente.

A tempestade cessara com as quatro montanhas de gelo que opunham um obstáculo à mesma.

Nyssen fitou a tela até que os olhos começaram a doer. Depois reclinou-se no assento e acendeu um cigarro.

Klein manteve-se ocupado com os instrumentos. Parecia interessar-se imensamente pelo que acontecia com os mesmos.

Nunca antes temperaturas tão baixas haviam sido constatadas em Gol.

Ninguém se preocupou com os geradores montados na parte traseira do veículo, que só era separada do compartimento de passageiros por uma chapa de plástico.

O interior do veículo só era iluminado por uma lâmpada muito fraca, para não perturbar a observação ótica.

Subitamente Nyssen teve a impressão de que a luz projetada pela lâmpada se tornara mais forte. Ficou espantado e virou-se. No mesmo instante Klein soltou um grito:

— Olhe!

Nyssen logo viu. Uma pequena nuvem luminosa saiu da placa que fechava o espaço destinado aos geradores. Balançava de um lado para outro, que nem a fumaça do cigarro de Nyssen, e sua luminosidade aumentava a cada segundo que passava.

Nyssen e Klein mantiveram-se imóveis, pasmos de susto.

A nuvem parecia não saber o que estava querendo. Virou-se de um lado para outro, sem desprender-se da chapa. Aumentou um pouco, mas voltou a encolher. Todavia, sua luminosidade crescia constantemente.

Nyssen percebeu que uma força invisível comprimia-o fortemente contra o assento. A mão que segurava o cigarro e o próprio cigarro aumentaram de peso. Levou algum tempo para compreender.

— Está sugando a energia dos geradores! — gritou.

Klein sobressaltou-se.

Ao que parecia, a figura luminosa sentiu-se ameaçada. Encolheu e não demorou a desaparecer. Klein voltou a afundar na poltrona e soltou um gemido ao perceber que seu peso havia dobrado.

— Vamos tirar a chapa! — ordenou Nyssen.

A chapa estava presa por quatro parafusos fáceis de soltar. Klein conseguiu tirá-los sem levantar-se do assento. A chapa caiu para a frente.

Nyssen lançou os olhos para o compartimento dos geradores.

O gerador que servia ao motor e ao equipamento acessório estava reduzido a um montão disforme de plástico metalizado.

O gerador do campo antigravitacional estava danificado, mas ainda funcionava com parte de sua capacidade original.

— Dê uma olhada! — gritou para Klein. — Precisamos saber se agüentará.

Gemendo, Klein engatinhou para a parte traseira do carro. Demorou algum tempo. Depois virou pesadamente a cabeça e falou por cima do ombro:

— Está bastante roído. Pode falhar a qualquer momento.

Nyssen engoliu em seco.

— Pois então...

O carro estava imobilizado. O emissor, que fora a causa da viagem, não serviria de mais nada, pois estava ligado ao gerador que alimentava o motor. A lâmpada estava apagada; a única luz existente no interior do carro provinha da tela. O receptor estava ligado ao gerador do campo antigravitacional.

Nyssen desligou-o.

Sabia que o intercomunicador também funcionava com a energia fornecida pelo gerador do campo antigravitacional. Nessas condições poderia enviar uma mensagem à Stardust.

Com um movimento lento estendeu a mão em direção ao microfone.

Nesse instante outro solavanco sacudiu o carro. Klein e Nyssen soltaram um gemido. A mão de Nyssen caiu e bateu ruidosamente no painel de comando.

A gravitação aumentara de mais l g. o desempenho dos geradores diminuíra ainda mais. Pelos cálculos de Nyssen, a força gravitacional no interior do carro devia ser de 3 g.

Voltou a estender a mão e segurou o microfone. Seu peso aumentara muito, mas ainda funcionava.

Chamou a Stardust.

Porém a Stardust não respondia mais.

 

— Vamos decolar! — anunciara Bell há poucos segundos.

Logo comprimiu todos os botões de comando do painel para dar início à decolagem.

Mas a Stardust não se movia.

Bell sabia que não havia cometido nenhum engano. Alguém que tivesse o direito de comandar uma nave como aquela não poderia cometer enganos.

Além dele encontravam-se na sala de comando Thora e mais algumas pessoas de que eventualmente poderia precisar.

Imediatamente Bell anulou os comandos e fez as máquinas parar.

Sem dar a perceber o susto, chamou o engenheiro.

O engenheiro não respondeu. Thora já percebera que alguma coisa não estava em ordem.

— Há algo de errado?

Bell sacudiu a cabeça.

— Vou descer até a sala do comando técnico — disse. — Aguarde alguns instantes. Logo estarei de volta.

Disse e saiu.

Percorreu num tempo recorde a distância considerável entre a sala de comando e a central de comando técnico. Passou correndo pelas fitas transportadoras dos corredores e lutou com a força reduzida dos elevadores gravitacionais.

O comando técnico ficava a uns duzentos metros abaixo da sala de comando. Bell espremeu-se pela porta que se abriu com dificuldade e passou os olhos pela sala recheada de mesas de comando.

Não havia ninguém.

De um lado a sala era fechada por uma parede transparente, que a separava do compartimento de geradores. Bell lançou os olhos para o outro lado e examinou os gigantes reluzentes dos imensos reatores de hidrogênio e hélio, dos geradores do campo protetor e o exército dos instrumentos auxiliares.

Os geradores do campo protetor funcionavam com um leve zumbido, que se transmitia à parede e era perceptível no centro de comando técnico. No compartimento dos geradores não se via ninguém. Com exceção do zumbido leve reinava um silêncio completo naquelas salas vazias.

Andando ruidosamente, Bell dirigiu-se à extremidade oposta do centro de comando técnico e fez com que a porta se abrisse. Atrás dela estendia-se uma fita transportadora estreita, que descia ao nível da sala dos geradores. Subiu à fita e desceu.

Uma sensação medonha e repugnante de perigo apoderou-se dele, enquanto a fita o transportou para a enorme sala. Tirou a arma e engatilhou-a. Mas por enquanto não havia ninguém em quem valesse a pena atirar.

Os reatores e os geradores enfileiravam-se em longas colunas. Os corredores que os separavam tinham alguns metros de largura. Mas como os aparelhos tivessem vinte metros de altura e mais, havia uma dificuldade desanimadora de abranger o recinto com a vista.

A sensação de perigo iminente aumentou no instante em que Bell saiu da fita, cujo movimento logo cessou, e começou a andar pelo primeiro corredor. À sua direita e à sua esquerda erguiam-se os dois reatores para o mecanismo de propulsão do setor A. Seguiram-se os dois geradores do campo protetor, também do setor A, e uma longa fileira de aparelhos auxiliares. A fileira devia ter um comprimento total de cerca de oitenta metros.

Os geradores do campo protetor estavam funcionando. Bell examinou seus instrumentos de registro e não encontrou nada de anormal.

Sentiu-se irritado pelo fato de não encontrar ninguém naquela sala. A divisão técnica recebera instruções para manter permanentemente um contingente de pelo menos dez vigias na sala de geradores. Por mais difícil que fosse a visão, a essa altura já deveria ter encontrado ao menos um desses homens.

Bell prosseguiu. Seus passos produziram um ruído oco e abafado. Pisou com mais força, e não se deu conta de que assim procedia apenas para ouvir outro ruído além daquele zumbido deprimente.

Estava parado diante de um dos dois geradores do campo protetor quando ouviu um ruído estranho. Não sabia de onde vinha; parecia uma série de toques de sino.

Antes que pudesse preparar-se, a nave foi sacudida por um solavanco. Perdeu o equilíbrio e caiu pesadamente ao chão. Quando tentou levantar-se, viu que o piso se inclinara.

Ergueu-se num instante. Abaixou-se para apanhar a arma que lhe caíra das mãos. Quando voltou a erguer a cabeça, viu perfeitamente.

De repente os pensamentos desfilaram pesadamente em sua mente, como se estivesse sonhando.

“É apenas uma”, pensou. “Pelo menos por enquanto...”

Olhava de um canto, bem ao longe, e executava movimentos lentos e indefinidos, como uma nuvem de pesada fumaça. Finalmente saiu lentamente do canto.

“Inventaram outro truque”, pensou Bell com amargura. “Por que iriam saciar a fome lá fora, nos campos energéticos, se não têm nenhuma dificuldade em atravessar as paredes e sorver a energia na fonte? Você mesmo já viu que uma parede sólida não representa nada para eles, não viu?”

Num movimento instintivo ergueu a mão que segurava a arma.

A nuvem luminosa aproximou-se.

“Sugou a energia do reator”, pensou, “foi por isso que não conseguimos decolar. Além disso, esvaziou um dos geradores, e é este o motivo por que a nave afundou. Se não der cabo dela, isso nos custará a cabeça.”

Alguma coisa fez com que se virasse e olhasse para o outro lado do corredor.

Era outro ser luminoso. Também foi contornando o canto e veio em sua direção.

Bell perdeu o controle dos nervos e começou a disparar.

Atingiu o ser que havia visto em primeiro lugar. Ao que parecia, o mesmo alegrou-se com o tiro. Emitiu uma luminosidade mais intensa no lugar em que fora atingido. Além disso, aumentou a velocidade com que se aproximava de Bell.

Com um grito selvagem, que exprimia um misto de raiva e pavor, Bell virou-se e disparou contra o segundo inimigo. O efeito foi o mesmo. Subitamente as nuvens luminosas encontravam-se junto dele.

Muito admirado percebeu que um formigamento percorreu seu corpo, como se tivesse entrado em contato com uma fonte de eletricidade de baixa voltagem. A sensação era agradável; ao menos por algum tempo. Mas cresceu de intensidade. Bell arregalou os olhos e notou que os seres luminosos lhe roubavam toda visão. Apenas percebeu uma massa luminosa trêmula e disforme.

A dor foi aumentando. Crescia e crescia, até que um ruído retumbante encheu sua cabeça. Finalmente foi libertado por um desmaio benfazejo.

 

Thora já não compreendia mais nada.

Procurara entrar em contato com Rhodan, mas este não respondia. A mesma coisa acontecia com Nyssen, que em algum lugar, lá longe, esperava ser socorrido pela Stardust.

As telas tornaram-se negras, depois que a nave abaixou num solavanco repentino e o soalho se tornou inclinado.

“Estamos sitiados”, pensou Thora. “Estão engolindo toda energia que entra nesta nave ou sai dela.”

Nem desconfiava de que aqueles seres estranhos já haviam penetrado na nave.

Esteve a ponto de chamar Crest e admirou-se por não ter o mesmo vindo assim que a nave estremeceu com um forte solavanco.

Naquele instante Thora teve a sensação de que seu corpo era feito de chumbo, tal qual acontecera por ocasião do primeiro ataque das criaturas luminosas.

Os geradores estavam trabalhando a potência reduzida!

Ouviu os homens gritarem e praguejarem em torno dela. A luz começou a piscar e apagou-se.

Thora não resistiu mais ao peso enorme de seu corpo: caiu ao chão e não se moveu mais. Ainda não estava inconsciente, mas na situação em que se encontrava julgou mais conveniente abandonar-se completamente ao desamparo total em que se encontrava.

 

— Conseguiu? — perguntou Rhodan.

— Daqui a pouco — ofegou Anne. — Vejo um canal na rocha e... Oh! Mais nada.

Pelo que Anne conseguira descobrir com seu sentido telecinético, havia naquele paredão algumas centenas de canais da grossura de um braço humano, que percorriam a rocha nas direções mais variadas e terminavam sem que tivessem chegado a qualquer lugar.

Anne teria que dar busca em todos eles para descobrir o mecanismo que abria o portão.

Mas até lá...

Deringhouse resmungou cheio de impaciência. Ocupara o lugar de Tanaka, já que o japonês voltara a ser torturado por dores de cabeça insuportáveis depois que os seres luminosos voltaram a aparecer. Com seu intercomunicador de potência reduzida Rhodan não conseguira mais estabelecer contacto com Nyssen ou com a Stardust. Há dez minutos Deringhouse vinha tentando com um emissor bem mais potente, mas também sem resultado.

O exército de seres luminosos postara-se diante do portão-ferradura e parecia aguardar alguma coisa.

Rhodan receava que as forças abandonassem Anne antes que descobrisse o mecanismo. Ainda temia um segundo ataque contra a Stardust, e algum incidente com o carro de Nyssen.

Anne atirou a cabeça para a frente. Oferecia um aspecto irreal.

— Descobri! — disse com um gemido abafado.

Rhodan virou-se abruptamente.

— Não abra! — gritou. — Aguarde um pouco.

O carro saiu aos solavancos. Parará a cem metros do portão; agora ainda faltavam oitenta metros, sessenta...

Os seres luminosos não se moviam. Bloqueavam o portão; Rhodan estava preocupado em saber quantos deles conseguiriam penetrar no interior da montanha quando Anne a abrisse.

— ...quarenta metros, vinte...

— Abra! — berrou Rhodan com a voz rouca.

Anne rangeu os dentes.

Durante meia hora nada se alterou. De repente surgiu uma fenda no lugar em que a ferradura tocava o solo. Rhodan fitou-o e viu que o portão se abria para cima, como uma cortina de palco.

Procurou calcular a velocidade do carro e a altura que a abertura teria quando o veículo chegasse lá. Por um instante sentiu vontade de frear, porque o portão se abria muito devagar, mas logo desistiu desse intento.

Não teve tempo para observar os seres luminosos. Quando o carro esbarrou na parte superior do portão houve um solavanco ligeiro, mas forte, e um estalo assustador.

Haviam passado.

— Feche o portão! — gritou Rhodan.

Descreveu um grande círculo sem procurar saber para onde estava indo e fez uma curva de noventa graus. Sentiu-se tranqüilizado ao perceber na tela que o portão se fechara e que tudo fora muito rápido para os seres luminosos. Sua reduzida capacidade de reação não permitiu que compreendessem em tempo o que estava acontecendo.

Ouviu perto de si um ligeiro farfalhar de roupas e um baque.

Os esforços dos últimos quinze minutos fizeram com que Anne Sloane perdesse os sentidos.

Rhodan ia dizer alguma coisa, mas nesse instante a tela emitiu uma luz tão intensa que todos fecharam os olhos.

Rhodan piscou os olhos. Por entre as pálpebras semicerradas procurou estudar o quadro que se desenhava na tela.

O carro encontrava-se num grande pavilhão circular. Tinha trinta metros de diâmetro e sua altura era considerável.

A fonte de luz que iluminava a cena fora concebida para olhos acostumados ao esplendor branco-azulado de Vega, não para olhos terrenos.

Rhodan sentiu-se estupefato ao notar que o pavilhão estava completamente vazio, com exceção de um aparelho que não era muito grande.

Logo percebeu de que se tratava. Era um transmissor de objetiva, igual ao que haviam visto quando procuravam seguir a pista do desconhecido. Naquela oportunidade encontravam-se num recinto que parecia uma fábrica e Bell, que se arriscara demais, subira para o ar, transformado numa cintilante espiral energética.

Então era um transmissor de objetiva, um aparelho que transmitia através do hiperespaço, sem que aquele que quisesse fazer uso da teleportação tivesse de estar num lugar determinado ou precisasse estar ligado com o aparelho. Esse transmissor, que funcionava com base em raios captadores-impulsores pentadimensionais, constituía um aperfeiçoamento do aparelho usado pelos ferrônios.

O aparelho, diante do qual se encontravam agora, era maior que aquele que haviam visto no recinto da fábrica. Tinha ao menos cinco vezes o tamanho daquele, mas parecia perdido em meio ao imenso pavilhão.

Rhodan virou-se abruptamente. A gravitação existente no interior do pavilhão era idêntica à da superfície do planeta Gol.

Subitamente o carro começou a tremer. Rhodan percebeu que a direção girava; procurou descobrir a causa. Olhou para a tela e viu que o transmissor de objetiva havia descido.

Teria descido mesmo?

Fora o carro que se movera. Flutuava cinqüenta centímetros acima do solo e continuava a subir.

— Está vendo, Deringhouse?

— Sim.

— Regule o gerador antigravitacional. Alguém está eliminando a gravidade. Compense com a regulagem antes que o carro saia voando por aí.

Deringhouse cumpriu a incumbência com muita habilidade. Alguns minutos de angústia se passaram enquanto o carro ora se mantinha, mal e mal, no solo, ora subia alguns centímetros.

— Não há mais nada — anunciou Deringhouse depois de algum tempo. — Terminou.

O carro estava equipado com um gravímetro. A força gravitacional reinante do lado de fora era de 1,2 g.

Rhodan fechou o capacete. Deringhouse fez o mesmo, e também Tanaka Seiko, que voltara a recuperar as forças, depois que tinham deixado para trás os seres luminosos. Anne Sloane continuava inconsciente; seu capacete foi fechado sem que ela o percebesse.

Teriam de sair. O carro possuía uma saída, mas não dispunha de comporta, pois ninguém contara com a possibilidade de que os ocupantes teriam de abandonar o veículo fora da nave.

Não sabiam o que havia lá fora. Talvez a atmosfera fosse respirável, talvez não fosse, e era possível que não houvesse nenhuma.

— Vamos! — ordenou Rhodan.

Abriu a portinhola. Não houve qualquer dificuldade; só houve um pequeno solavanco, quase imperceptível.

Isso significava que no pavilhão havia uma atmosfera, e a diferença de pressão entre a mesma e a de que dispunham no interior do veículo não era muito grande. De que seria formada?

Rhodan não assumiu qualquer risco. Os capacetes dos trajes espaciais continuaram fechados.

Examinou o transmissor de objetiva. Ao que tudo indicava o princípio de seu funcionamento era idêntico ao que tinham visto em outro lugar. Havia uma fileira de botões coloridos, um regulador direcional, concebido segundo o princípio do ângulo espacial, dotado de uma lente que reproduzia numa tela o alvo apontado.

Rhodan sabia manejar aquilo. Aprendera. Sabia localizar um alvo a ser teleportado e contemplá-lo na tela.

Mas havia uma coisa que não sabia fazer: pôr o transmissor a funcionar.

Durante a primeira atuação compreendera que para isso precisava de um mutante dotado de capacidades telecinéticas. Não havia outro meio de fazer o contato.

Rhodan comprimiu os botões com as luvas rígidas de seu traje espacial. A tela iluminou-se. Parecia dispor de uma observação ótica do alvo dotada de elevada potência. Fosse qual fosse o alvo escolhido, o quadro sempre era nítido e luminoso, mais luminoso que o resultante de uma irradiação de luz infravermelha.

Viu áreas desconhecidas da superfície de Gol. Havia planícies formadas por cristais de metano congelado e montanhas enormes e entrecortadas, que se erguiam para o infinito. Girou o regulador direcional para o ponto que sua intuição lhe dizia corresponder ao norte. Ao que tudo indicava sua intuição não fora totalmente correta; mas um ligeiro movimento e o apertar de um botão que regulava a distância do alvo bastou para fazer a Stardust-III aparecer na tela de imagem.

Deringhouse soltou um grito de surpresa:

— A nave está inclinada!

Rhodan confirmou com um aceno de cabeça. Depois que fora interrompido o contato com a Stardust-III, não esperava outra coisa.

A inclinação da nave não era muito acentuada. Se nada mais tivesse acontecido à Stardust-III, não haveria o que temer.

Mas havia outro detalhe que prendia a atenção de Rhodan.

O dispositivo ótico de localização do alvo parecia trabalhar com uma objetiva de ângulo bem amplo. Na tela não se via apenas a Stardust-III, mas também o lago em que o carro de Rhodan quase afundara, o caminho que este havia percorrido do vale em diante e numerosas montanhas de gelo formadas nos últimos trinta minutos na margem norte do lago em virtude de uma repentina queda de temperatura.

— Anne Sloane está recuperando os sentidos! — disse o japonês com a voz baixa.

Rhodan olhou para o lado. Anne começou a se mexer.

Só ela poderia fazer funcionar o transmissor de objetiva.

“Seria isso mesmo que estavam procurando?”, perguntou Rhodan de si para si. “Um simples transmissor de objetiva?”

Nunca tivera uma idéia muito clara do que os esperaria no planeta Gol. Mais uma indicação, acreditava. Um sinal que lhes mostraria o próximo trecho do caminho que teriam de percorrer.

“Seria o transmissor? Será que dali sairia a indicação?”

Parecia que sim. No pavilhão não havia nada além do transmissor. Rhodan não sabia o que aconteceria quando Anne o pusesse a funcionar.

Mas confiava no desconhecido. Sabia perfeitamente da situação que todos aqueles que seguissem sua pista teriam de enfrentar em Gol. O transmissor devia representar um meio de livrar-se dos perigos que ali os aguardavam.

 

Anne pôs-se de joelhos. Rhodan ajudou-a a levantar-se.

— Ficou boa? — perguntou em tom delicado.

Anne fez que sim.

— Tenho de ficar, não é verdade?

Sorriu através do visor do capacete.

— Muito bem. Já conhece o mecanismo. O alvo foi regulado. Pode ligar.

Anne fechou os olhos.

Os músculos de Rhodan crisparam-se, na expectativa da dor cruciante que logo se faria sentir.

E a dor veio.

Numa fração de segundo a luminosidade dolorida desvaneceu-se. Uma dor martirizante apossou-se de Rhodan, que teria gritado, se durante a transição houvesse possibilidade de gritar.

Quanto tempo?...

 

... Um tempo infinito.

Ninguém sabia dizer como funcionava o sentido temporal do homem durante a teleportação. Mas Rhodan teve a impressão de que nunca uma teleportação durara tanto quanto esta.

Parecia que várias horas se tinham passado até que voltou a surgir a dor martirizante que indicava o fim da teleportação e a claridade começou a surgir diante do visor do capacete.

Aquilo era...

Sentiu uma pancada, como se tivesse caído; mas estava firmemente apoiado nas pernas.

Deringhouse surgiu perto dele. Desequilibrou-se ligeiramente e esbarrou em Rhodan. Atrás deles apareceram Tanaka Seiko e Anne Sloane.

E o lugar em que se encontravam era a sala de comando da Stardust-III.

Seria mesmo?

Thora estava estendida no chão. Apoiou-se sobre os braços, levantou a cabeça e olhou espantada em torno de si. Seu olhar caiu sobre as pernas de Rhodan, subiu por elas, reconheceu o rosto.

— Você?!

Naquele momento de enorme surpresa Rhodan deu prova de sua capacidade extraordinária, que há algum tempo, em Nevada Fields, quando seu treinamento de piloto espacial chegou ao estágio final, fizeram com que entre os psicólogos da equipe científica gozasse da fama de ser um monstro.

Foram transportados de maneira totalmente inexplicável do interior da montanha para bordo da Stardust-III. Pois bem! Era um mistério sobre o qual quebrariam a cabeça mais tarde. Por enquanto havia coisa mais importante a fazer.

— Tudo em ordem a bordo da nave? — perguntou em tom áspero.

Thora levantou-se.

— Como... como chegou até aqui?

— Tudo em ordem por aqui? — repetiu Rhodan em tom ainda mais áspero.

Thora fitou-o, boquiaberta.

— Não — gaguejou depois de algum tempo. — Bell... aqueles seres luminosos...

— Onde está Bell?

Thora teve de refletir.

— Na sala de comando técnico.

Rhodan dirigiu-se a Deringhouse.

— Tome conta da sala de comando. Procure descobrir o que aconteceu. Logo estarei de volta.

 

Encontrou Bell. Estava estendido na sala dos geradores, inconsciente com um choque elétrico. Foi submetido a tratamento e dali a trinta minutos estava totalmente recuperado.

Relatou o que lhe acontecera. Após isso procuraram localizar os seres luminosos, mas a bordo da Stardust não havia mais nenhum.

Poucos minutos depois que Bell havia terminado seu relato, o major Nyssen e o capitão Klein entraram na sala de comando. Pareciam bastante perturbados. Disseram que ficaram presos com o carro danificado em meio a algumas montanhas de gelo. Um ser luminoso havia penetrado no veículo; o gerador do motor fora destruído totalmente e o do campo antigravitacional em parte. A última impressão que tiveram do planeta Gol foi a de que a força gravitacional no interior do carro subira para cerca de 10 g. Em pensamento fizeram uma espécie de testamento, já que da Stardust não chegava qualquer resposta. Até que...

Era um relato desconexo. Subitamente tiveram a impressão de que o carro entrara em transição. Depois de algum tempo recuperaram os sentidos e viram-se no interior de uma das comportas da Stardust, juntamente com o carro. Saíram do veículo com as pernas trêmulas e subiram correndo para a sala de comando. Ali estavam eles!

Os complexos energéticos da Stardust funcionavam perfeitamente. A invasão dos seres luminosos não lhes causara qualquer dano.

Onde foram parar os seres luminosos?

“A pergunta não é esta”, pensou Rhodan. “Onde é que nós fomos parar?”

 

As telas enormes da sala de comando mostravam um setor do espaço que nenhum deles jamais havia visto, nem mesmo Crest e Thora.

Podiam-se contar as estrelas, deviam ser umas cinqüenta ou sessenta em todo o trecho do espaço abrangido pelo ângulo de visão.

Quem já tinha visto o céu luminoso da galáxia, com os bilhões de pontos luminosos, sabia o que significava o quadro que via diante de si.

Ao sair da teleportação provocada pelo transmissor de objetiva guardado no interior da montanha do planeta Gol, a Stardust encontrava-se num ponto do espaço que não pertencia mais à galáxia por eles habitada.

Em nenhum ponto da Via Láctea existia um céu com sessenta estrelas.

Rhodan percebera-o imediatamente. Por um instante entreteve a esperança enganosa de que Crest pudesse descobrir em que região espacial foram parar. Mas o volume de saber arcônida que Crest dominava era igual ao de Rhodan. Não conhecia aquele setor do espaço, mas com a ajuda dos mapas procurou descobrir algum ponto de referência pelo qual a Stardust-III pudesse se orientar.

 

Em meio àquela incerteza deprimente Tanaka Seiko captou uma mensagem do desconhecido. Subitamente o japonês viu uma bola incandescente em meio à sala de comando. De início levou um susto tremendo, pois pensava que se tratasse de um dos seres luminosos.

Mas ninguém a não ser ele viu aquela bola, e só ele entendeu a mensagem que irradiava:

— A advertência foi dirigida a você. “Procura encontrar o mundo em que foram depositadas as coordenadas. Sabe que não conseguirás voltar se não descobrires o caminho certo. O objetivo está muito longe!”

Traduziu a mensagem para Rhodan, que respondeu com um aceno de cabeça.

Crest procurou encontrar algum ponto de referência.

Depois que a calma voltou a reinar e ninguém podia fazer outra coisa senão aguardar o resultado dos esforços de Crest, Rhodan procurou fazer um sumário dos acontecimentos que se desenrolaram em Gol.

Teve alguns ouvintes atentos, que eram as pessoas que tiveram participação ativa nos acontecimentos do planeta Gol. Entre eles se encontrava, por exemplo, o engenheiro, que os seres luminosos arrastaram para um canto da sala dos geradores, juntamente com doze homens do serviço de vigilância, depois de deixá-los desacordados.

— Gol é um mundo cujas características se afastam dos demais — principiou Rhodan. — Sua densidade média é de cerca de cento e cinqüenta gramas por centímetro cúbico. É uma densidade superior à do ósmio, que é o metal mais denso que conhecemos.

“Gol deve ser uma espécie de sol esfriado, embora percorra sua órbita em torno de Vega como qualquer planeta. Em seu interior devem existir campos gravitacionais que não se baseiam exclusivamente nos princípios de Newton, mas têm outras causas.

“No meu entender os seres luminosos são uma emanação da natureza extraordinária desse planeta. Certamente provêm da gravisfera não-newtoniana situada no núcleo de Gol.

“Não são dotados de inteligência, ou melhor, sua inteligência não é superior à de um cachorro ou de um gato. Consistem em, como direi, energia individualizada ou indivíduos energéticos.

“Sabem o que pretendo dizer. Nossa língua não dispõe de palavras para descrever uma coisa como esses seres energéticos.

“Quando os expulsamos do vale, por meio do emissor recém-construído, cujas vibrações não suportavam, comportaram-se tal qual um bando de marimbondos espantados. Entraram em forma e voltaram ao ataque. Adotaram um comportamento diferente daquele ao qual estávamos acostumados e conseguiram nos lograr.

“Entraram na Stardust sem que ninguém desse pela coisa. Penetraram, ou melhor, um deles penetrou no carro do major Nyssen, inutilizou o gerador que movimentava o veículo e com isso cortou o suprimento de energia do segundo emissor, que Nyssen levava com ele. Também se interpuseram no nosso caminho, mas não conseguiram nada.”

Ficou calado por algum tempo e sugou no seu cigarro.

— O que sabemos sobre os seres luminosos é só isto — concluiu. — E uma parte não passa de suposição. Ainda teremos interesse em saber mais a seu respeito, mas por enquanto nosso objetivo é outro.

Todos mantinham a cabeça abaixada e refletiam.

Estiveram no mundo que ultrapassava a capacidade imaginativa dos homens e mesmo dos arcônidas. Foram salvos de uma maneira tão estranha que até parecia ridícula.

A maior parte deles achou que a missão realizada em Gol não servira para muita coisa. Os que tinham uma visão mais ampla perceberam que ao menos haviam aprendido duas coisas:

Em nosso universo existe muito mais saber do que que nosso cérebro consegue imaginar. A fantasia do Criador não se esgotara com a criação do homem, dos arcônidas, dos habitantes de Fantan, dos DI, dos ferrônios, dos tópsidas e de outros seres mais. Criara seres que não eram formados de sangue de carne e destinara-lhes um espaço de ordem superior. O Universo apresentava uma multiplicidade tremenda, e quem, ao retornar de uma série de viagens espaciais, afirmasse que não poderia encontrar mais nada de novo, cometeria um sacrilégio.

E ainda:

Andavam no encalço de um desconhecido que dispunha de recursos técnicos cuja potencialidade ultrapassava a fantasia mais ousada. Com um aparelho relativamente minúsculo realizara a teleportação de uma nave até então considerada a conquista máxima da técnica, de um pesado veículo de esteira e de um grupo de quatro pessoas, e reunira tudo aquilo em outro ponto do espaço. Não havia explicação para o fenômeno; qualquer pessoa cônscia das possibilidades de sua mente não quebraria a cabeça com o problema.

Talvez um dia o desconhecido lhes oferecesse a solução, quando o tivessem alcançado. Talvez nessa oportunidade também revelasse a finalidade do jogo de passos pequenos, que vinha arrastando Rhodan e seus homens metro após metro pelas pegadas do desconhecido.

Talvez...

 

A escotilha se abriu. Crest entrou. Rhodan olhou-o.

— Acredito que encontrei alguma coisa — disse Crest, com uma certa insegurança na voz. — Mas não se alegre antes da hora. Não tenho a menor certeza.

Rhodan levantou-se e, enquanto caminhava em direção a Crest, seu rosto contorceu-se num sorriso.

— Coragem! — disse em tom firme. — Já enfrentamos inseguranças piores que esta.

 

                                                                                            Kurt Mahr

 

 

                      

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