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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


OS FANTOCHES DE MADAME DIABO VOLUME I-2 / X.M.
OS FANTOCHES DE MADAME DIABO VOLUME I-2 / X.M.

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

OS FANTOCHES DE MADAME DIABO

VOLUME I

Segunda Parte

 

DESPONTAR DA ESPERANÇA

Por que motivo tinha o Conde de Gordes renunciado à sua resolução de partir e de se isolar, tão firmemente deliberadas na véspera?

A ambiciosa esperança de Renée começava a realizar-se? A imagem da jovem substituía, no coração de Raul, a imagem da Baronesa de Braines?

Era prematura aquela esperança.

Um reviramento tão repentino não podia aliar-se com a natureza leal do romântico amante de Julieta.

Mais do que nunca fiel ao seu amor, Raul dizia consigo:

— Esta pálida e bonita rapariga oferece a meus olhos a figura, e pelo menos, a estatura e os modos da mulher que perdi... Quando me apareceu de repente julguei, durante alguns segundos, estar vendo viva a adorada morta. Aquela indecisa semelhança que existia só para mim talvez, fez-me pulsar mais depressa o coração... Para que hei de sem motivo afastar-me de um passado saudoso? Para que hei de renunciar loucamente à dolorosa volúpia de que me permitido ainda gozar?... Para que hei de partir?

Este terna, que no espírito do senhor de Gordes se debateu febrilmente durante toda a noite, deu a seguinte conclusão:

— Eu não partirei.

E isto explica-nos como Raul, que era julgado muito longe, se apresentou no dia seguinte no palácio Cavello, onde vimos o efeito que produziu a sua inesperada chegada.

A sua visita foi mais demorada do que a da véspera.

O senhor de la Tour-du-Roy instou com ele para que ficasse para o jantar.

Não aceitou.

Mas voltou no dia seguinte, e não recusou o convite renovado pelo Marquês.

A datar daquele dia as suas visitas foram cotidianas, e muitas vezes, depois de ter consagrado a Lazarine e a sua irmã uma grande parte do dia, consagrava-lhes ainda a noite.

A presença da jovem tornava-se para ele, pouco a pouco, uma; necessidade de todas as horas, não que se sentisse apaixonado por ela, mas por uma espécie de fenômeno psicológico que o estado doentio de sua alma tornava fácil de compreender, ia perdendo a noção do real e do verdadeiro; a vaga semelhança acentuava-se a seus olhos ludibriados, chegava a confundir a viva e a morta; Julieta de Braines e Renée pareciam-lhe uma mesma mulher...

É certo que a segunda filha de Júlio Leroux, por mais viva que fosse a sua inteligência, não tinha exato conhecimento do fenômeno moral de que falamos, mas reconhecia, estremecendo de alegria, os progressos cada vez maiores da sua influência sobre Raul e, depois do que ela havia feito, o que restava ainda a fazer era pouca coisa.

Ela sustentava muito perfeitamente, com um talento de grande atriz, o papel que a si mesma destinara, e cuia primeira cena, tinha sido a primeira entrevista com o senhor de Gordes.

Estranha rapariga, aquela Renée, ocultando sob sedutoras aparências um organismo perfeito, completo para o mal, e, coisa rara, que não se redimia por dote algum.

O orgulho, a cobiça, a inveja, a ausência completa de coração, tudo ela reunia em si; incapaz de amar, podia odiar e, ferida nas vaidades ou nos seus interesses devia ser capaz de levar até à crueldade as conseqüências do seu ódio.

Além disso, soberanamente hábil e mui! o mais perigosa que as sereias mitológicas, tinha aptidão para tomar os mais diversos aspectos e encarnar-se em múltiplas formas.

Logo de princípio, ela compreendeu que para ter probabilidades de se apoderar do Conde de Gordes, dominado por uma paixão que ele julgava imorredoura, era preciso afivelar no rosto a máscara da melancolia, e transformar-se de cocotte parisiense em jovem séria e romântica A metamorfose, já o sabemos, foi completa.

À medida que se passavam os dias, a sua tocante beleza, o encanto penetrante de toda a sua pessoa, a simpática doçura do seu caráter de empréstimo produziam uma impressão cada vez mais viva no Conde de quem se tinha feito a confidente.

Outra, menos destra, teria julgado perigoso tocar na chaga do mancebo.

Renée, mais atrevida, tornava voluntariamente mais viva a chaga e fazia-a sangrar, para depois adormecer a dor com palavras consoladoras cujo segredo todas as mulheres sabem.

Ela falava de Julieta a Raul, provocava as suas lágrimas e chorava com ele.

O Conde, então, pegava-lhe nas mãos e levava-as aos lábios murmurando:

— Renée, como é boa!... Querida Renée, é um anjo!...

A jovem sem fazer oposição, abandonava as suas mãos delicadas aos beijos de Raul; olhava para ele tristemente, com um sorriso comovido, e em voz baixa murmurava:

— Disse-me hoje que eu era um anjo... Dir-me-á amanhã que me adora...

Mas, tanto no dia seguinte, como na véspera, o senhor de Gordes não proferia as palavras esperadas.

Renée, a quem o nascente amor de Raul não importava muito, irritava-se com aquele silêncio, mas, em suma, inquietava-se pouco..

O senhor de Gordes apresentava a atitude e os modos de um homem que luta contra o coração e que será vencido.

Em vão se calava; a sua maneira de estar junto de Renée; a expressão dos seus olhares; a sua contínua galanteria; os cuidados particularmente ternos de que rodeava a jovem quando acompanhava Lazarine em uma das gôndolas do palácio, equivaliam quase a uma confissão.

Raul amava com efeito?

Às vezes interrogara-se, aterrorizado, ao ver o grande lugar que Renée tomava na sua existência.

Então revoltava-se contra si mesmo, em conseqüência destas invasões de todo o seu ser por uma nova afeição.

Dizia ele consigo:

— É impossível! Se a esquecer, serei um covarde! O meu coração está em Florença sob o mármore onde repousa Julieta! Não tenho direito de trair aquela a quem dei a minha vida e que morreu por me ter amado.

Ele amaldiçoava a sua fraqueza, pensava em procurar a salvação na fuga; jurava a si mesmo não mais se aproximar da sereia; preparava-se enfim para sair de Veneza na mesma noite.

E quando checava a hora da sua visita cotidiana, uma atração-irresistível, mais forte do que a sua vontade, conduzia-o a seu pesar para o palácio Cavello, onde Renée o esperava.

 

Três semanas se tinham passado desde a apresentação do Conde de Gordes a Lazarine e a sua irmã.

A época fixada para o regresso a França aproximava-se.

O senhor de la Tour-du-Roy falou diante de Raul da retirada iminente.

O mancebo empalideceu, como se o anúncio de uma catástrofe o fulminasse de repente.

— Sabia que mais cedo ou mais tarde o senhor tinha de partir, balbuciou ele; contudo o golpe é rude, posto que não seja inesperado... Vou cair de novo e fatalmente na profunda solidão donde me arrancou, e para que lho ocultarei eu? esta idéia horroriza-me.

— Se assim é, meu rapaz, não o compreendo, redarguiu o Marquês. Coisa nenhuma o obriga a ficar na Itália, coisa nenhuma o impede de voltar à França conosco. Preciso acaso dizer-lhe que nos daria muito gosto tê-lo por companheiro de viagem?...

— Devo ficar... respondeu o Conde com a atitude acabrunhada do homem que caminha para o suplício.

— Creia no que lhe digo, meu amigo, redarguiu Roberto, o senhor exagera esse dever... Aceite um sensato conselho e venha...

Raul abanou a cabeça sem responder e, durante o resto da visita, que abreviou, não pôde disfarçar a preocupação que se tinha apoderado dele e ficou silencioso e sombrio.

A preocupação de Renée não era maior do que a do senhor de Gordes.

— Todos os meus esforços ficarão reduzidos a nada? ponderou ela. No momento em que ia tocar o porto naufrago miseravelmente?

Quando Raul saiu, Lazarine exclamou:

— Não desisto da minha primeira opinião: Este belo rapaz está doido varrido!... Julgava que ele estivesse curado pelos nossos cuidados, e eis que se declara de repente um novo acesso!... Ora, em questão de loucura, as recaídas são incuráveis!... O doutor Blanche nada conseguiria, perderia com ele todo o seu latim!... Para Chaillot, querido Conde!...

E a Marquesa terminou por uma gargalhada esta frase digna da Lazarine de outro tempo, usando a linguagem ultra-pitoresca dos peralvilhos e cortesãos do seu esquadrão volante.

O senhor de la Tour-du-Roy ficou admirado daquela excentricidade.

Os tetos nobres do palácio Cavello escandalizavam-se.

Renée não deu a entender que tinha ouvido.

À noite, a jovem tomou uma grande resolução.

Foi bater à porta do quarto do Marquês.

— Entre! disse este. Depois acrescentou vivamente:

— Como! É a senhora, minha linda mana! Seja bem-vinda! Terei eu a fortuna de que o fim da sua visita seja o fazer-me um pedido qualquer?

— Exatamente, meu mano, redarguiu Renée, venho pedir...

— O seu pedido está já de antemão satisfeito.

— Seja qual for?

— Sim, seja qual for.

— Tome cuidado! não se obrigue sem primeiro saber...

— Não me obrigo, bem entendido, senão no limite do possível, e estou certo de que a senhora nada me pedirá de absurdo... Portanto não corro risco algum. De que se trata, maninha?

— De uma coisa muito séria e da qual pode depender todo o meu futuro. Peço-lhe para que demore a nossa partida por uma semana pelo menos.

— Permite-me que lhe pergunte por que?

— Com certeza. Quero usar com o senhor uma inteira franqueza, posto que uma rapariga não se decide sem custo a certas confissões... Se partirmos já, o senhor de Gordes não nos seguirá... se ficarmos mais alguns dias, não sucederá o mesmo...

— Acompanhar-nos-á?

— Assim o creio.

O senhor de la Tour-du-Roy sorriu prosseguindo:

— E a maninha tem algum interesse em que ele nos acompanhe?

— O maior interesse. Se o senhor de Gordes partir conosco, daqui a três meses serei Condessa de Gordes.

O Marquês sorriu de novo.

— O que me declara, disse ele, não me admira muito... Já me parecia ter notado entre a senhora e Raul certa harmonia de gênios, muito natural, não obstante. Ora, diga-me, ama-o então muito?

Renée corou, o que não a impediu de responder animosamente:

— Não sei bem se o que sinto se chama amor, mas o Conde agrada-me e aceitá-lo-ia por marido.

— E tem razão, é um perfeito gentleman. Ele já lhe fez alguma declaração em forma?

— Ainda não!... Mas para que é preciso falar? Não pôde, a seu pesar, ocultar o amor que me consagra.

Rapidamente, em poucas palavras, Renée historiou ao Marquês a sua luta contra Julieta de Braines, luta terrível em que a viva tinha vencido a morta.

— Finalmente disse ela concluindo, triunfei de uma recordação, mas a minha vitória é pequena, e para a destruir bastava partir amanhã... a idéia de abandonar um túmulo e seguir um novo amor espanta Raul de Gordes e parece-lhe quase um sacrilégio. Bem vê, mano, é preciso combater ainda, e bastar-me-ão alguns dias para vencer... Peço-lhe esses dias alguns dias... Quer conceder-nos?

— Não posso recusar-lhe coisa alguma, querida mana da minha adorada mulher... Só sairemos de Veneza quando me disser: É tempo! Podemos partir!

 

VISÕES

As previsões de Renée realizaram-se rápida, e completamente desta vez.

O império da jovem sobre Raul de Gordes era indiscutível e cada dia mais se afirmava.

No fim de menos de uma semana o Conde já não tinha ânimo para-afrontar o isolamento em que o deixara a partida do Marquês, de sua mulher e de sua cunhada.

Despedaçado pelos novos combates que tinha sustentado, e vendo-se já sem forças, cedeu, sem resistência, à corrente que o arrastava e declarou estar pronto a partir de Itália, a regressar a França e instalar-se ali no castelo de Gordes, cujo nome bastava para o fazer estremecer e empalidecer um mês antes!

Renée, ao ter conhecimento daquela vitória decisiva, estremeceu de alegria.

O seu triunfo parecia-lhe certo; e quem no seu lugar julgaria o contrário?

— Lá, dizia consigo a jovem, irá diminuindo constantemente a influência que tornava inúteis aqui os meus esforços... Veneza está muito perto de Florença!... O túmulo de Julieta era o único obstáculo entre mim e Raul... eu suprimo o obstáculo arrastando Raul... Antes dum mês de solidão no castelo de Gordes, o Conde terá deposto a meus pés o seu título e os seus milhões. Eu tinha inveja de Lazarine, e é Lazarine quem há de invejar-me!... Cada uma por sua vez... é justo!...

Durante os dois ou três dias que precederam a partida, e durante toda a viagem, Renée, completamente feliz, ostentava uma beleza radiante e fulgurante, permita-se-nos a frase; ela exprime bem como o orgulho chispava nos olhos da jovem. A felicidade como que aureolava aquela encantadora cabeça. Por isso, enquanto durou aquele período, quase eclipsou Lazarine, cujo brilho e esplendor, sabemo-lo, afrontavam todas as rivalidades.

O Sr. de la Tour-du-Roy admirava sinceramente sua cunhada.

À admiração do Conde de Gordes misturava-se uma indefinível inquietação que redundava em susto.

Os viajantes chegavam a Orleans.

Uma carta do Marquês e um telegrama do Conde haviam prevenido o administrador da casa de Gordes e o de la Tour-du-Roy.

Duas carruagens e os competentes carros de bagagens das duas residências esperavam na gare.

Na ocasião das despedidas, Roberto tomou de parte Raul e disse-lhe sorrindo:

— Creio que estimará, meu amigo, ser apresentado, sem demora, ao Sr. Leroux, meu sogro, e obter dele que lhe concedo livre entrada em Vertes-Feuilles, para onde a irmã de Lazarine parte amanhã... Se assim é, disponha de mim para o que lhe puder ser prestável.

— O senhor desse modo satisfez o meu mais caro desejo... redarguiu o Conde. Ia pedir-lhe o que me ofereceu...

— Vou, pois, convidar o meu sogro; dentro em pouco avisá-lo-ei do dia ajustado, jantará conosco, e a apresentação terá lugar nessa ocasião. Está dito? Aceita?

— Muito reconhecido.

— Até então, querido Conde.

— Até então, meu melhor, ou antes meu único amigo. Enquanto os dois conversavam foram-se carregando as bagagens nos respectivos carros. Os cavalos das caleche do Marquês e da vitória do Conde faziam tilintar os guizos e escarvavam o chão de impacientes.

Apertaram-se as mãos; meteram-se nas suas carruagens; os postilhões montaram a cavalo e os trens rodaram a par até um ponto onde a estrada se bifurcava e onde tomaram direções diferentes.

Não foi sem uma profunda e dolorosa comoção que o Conde percorreu a distância que o separava do palácio de Gordes.

À medida que se aproximava a magnífica habitação onde havia passado os mais belos dias da sua ditosa mocidade, e de onde o tinha feito sair o triste epílogo de um drama de amor, iam-se avivando todas as suas dolorosas recordações.

Quando a carruagem chegou à planura que já conhecemos, quando o seu olhar distinguiu no vala para além do bosque, os telhados azulados do palácio e a fachada branca de la Grangette, sentiu oprimir-se-lhe o coração e os olhos arrasaram-se-lhe de lágrimas.

Os cavalos, que na subida tinham afrouxado o passo, recomeçaram na descida uma carreira furiosa.

O postilhão, excitando-os com a voz e as esporas, fazia estalar o chicote, como um bom servo alegre e orgulhoso por reconduzir para sua casa o senhor ausente há mais de dois anos.

O trem de toda a brida correu durante um bocado ao longo de umas tílias novas, por entre cujos ramos de uma nascente folhagem se destacava uma clareira circundada de grandes árvores.

Raul desviou a cabeça; percorreu-lhe o corpo todo um calafrio; um suor frio lhe inundou a fronte.

É que uma sombria visão se tinha erguido na sua frente.

Aquela clareira tinha sido o teatro do seu duelo com Henrique de Braines. Ali, sobre a relva manchada de sangue, havia saído o marido de Julieta largando da mão a espada.

Debalde o Conde fechava os olhos, impunha-se a seu espírito o rosto lívido do Barão, e via a ferida estreita e profunda de onde corria o sangue a jorros.

A vitória, rodando sempre velozmente, parou em frente da modesta grade que fechava o muro de la Grangette.

As janelas dos dois andares estavam fechadas; as cevadilhas e as romeiras esquecidas nos seus caixotes, alinhados ao longo da frontaria e secas pelos frios de dois invernos e pelos sóis de dois verões; a rua do jardim cheia de plantas parasitas que nenhum sacho ou enxada tinha derrubado, diziam claramente o abandono completo daquela morada outrora elegante e risonha.

— A casa deserta é por minha culpa!... murmurou o senhor de Gordes. O desespero, completando a minha obra, matou o marido!... O remorso matou a mulher!... E todo esse luto originei!... Sou duas vezes culpado e duas vezes assassino! Maldita seja a vertigem que me trouxe para estes lugares.

Assim pensava Raul, mas era já tarde para voltar para trás. A carruagem, depois de ter percorrido rapidamente a extensa avenida orlada de castanheiros seculares, deu a volta no pátio de honra e parou junto ao vestíbulo onde os numerosos criados que tinham ficado nos seus respectivos lugares, apesar de estar ausente o Conde, aguardavam felizes e surpreendidos por um regresso que não esperavam.

Preparavam-se a receber o amo por alegres aclamações, mas ao vê-lo tão pálido, tão triste, e vestido do luto, não tiveram ânimo para o fazer, e olhando uns para os outros estupefatos, limitaram-se a inclinar-se na sua presença com um respeitoso silêncio.

Eis como o senhor de Gordes entrou nas suas propriedades.

Os dois dias que se seguiram à instalação do mancebo no palácio, pareceram-lhe mortalmente longos.

Só naquela imensa casa, assaltado por pesadelos que não podia repelir uma profunda tristeza, um absoluto desânimo, envolviam-no como uma mortalha.

Não perdoava a si mesmo ter voltado. Pensava em afastar-se ainda novamente, e por de permeio grandes distâncias entre ele e aquele canto da terra onde o seu pensamento evocava fantasmas.

Finalmente, no terceiro dia, um picador com a libré do Marquês levou-lhe o seguinte bilhete:

"Querido Conde:

"Meu sogro e suas filhas jantam amanhã, quinta-feira, em Vertes-Feuilles. Fica avisado, e esperamo-lo.

"A Marquesa envia-lhe muitas saudades. Eu aperto-lhe ambas as mãos com uma afeição de que não duvida. Seu velho amigo, Roberto."

 

Estas linhas produziram no estado moral do mancebo o efeito que o quinino opera nas febres intermitentes.

O alívio foi imediato. As alucinações desapareceram, Raul, já mais senhor de si respondeu ao Sr. de la Tour-du-Roy que estimava e agradecia as suas saudades e as da Marquesa; e que aceitava com entusiasmo o seu gracioso convite.

No dia seguinte, um pouco antes das quatro horas, chegava ele a la Tour-du-Roy,

Um criado grave, o mesmo de todos os dias em Veneza, o introduziu na sala do bilhar onde o sogro e o genro concluíam uma partida disputada com todo o calor.

O Marquês apresentou nos termos mais afetuosos Raul de Gordes a Júlio Leroux, e este último, (a quem algumas palavras da sua segunda filha tinham instruído do fato) fez-lhe um acolhimento muito distinto.

— Somos vizinhos de campo, senhor Conde, ajuntou ele, creio quase supérfluo afirmar que, se me faz a honra de ir a minha casa, será ali recebido não menos cordialmente do que no palácio de la Tour-du-Roy...

Raul redarguiu naturalmente que se aproveitaria de uma per missão concedida tão delicadamente, e testemunhou com entusiasmo-a sua gratidão.

— Lazarine anda passeando no parque com suas irmãs, uma das quais lhe é desconhecida... disse por seu turno o Marquês. Peço-lhe cinco ou seis minutos para concluir a partida que está a terminar, e iremos reunir-nos às senhoras...

As jovens andavam passeando naquela rua abobadada do jardim-onde, no fim do verão anterior, o atrevido Heitor e a imprudente Lazarine se encontram de noite.

A Marquesa, contava a Joana as maravilhas da Itália.

Renée não ouvia sua irmã. Como Ruy-Blas, "ia toda entregue ao seu sonho estrelado" e, encarando quase com desdém as magnificências do parque pensava:

— O castelo de la Tour-du-Roy é com certeza uma bela casa, mas o castelo de Gordes, segundo afirmam, é ainda mais grandioso... e serei castelã de Gordes...

Ouviu-se uma bulha de passos na areia da rua coberta. Renée estremeceu e voltou-se.

— É o Conde, murmurou ela em seguida, em companhia do pai e de teu marido...

O grupo feminino parou, esperando os recém-chegados. Depois da troca dos apertos de mão à inglesa, e das formas banais da política mundana, Júlio Leroux disse a Raul:

— Senhor Conde, apresento-lhe Joana, a minha terceira filha, quase uma criança, como vê, mas a melhor criança do mundo... Espero que hão de se dar muito bem.

Joana ao ver-se assim apresentada corou um pouco, sorriu, fez um cumprimento de educanda com o mais galante acanhamento (as duas coisas são incompatíveis) fitando no rosto de Raul o seu franco e belo olhar, cintilante de candura.

Os seus olhos meigos e límpidos, o perfume de inocência que ela exalava de si, despertavam no Conde uma sensação estranha absolutamente nova para ele.

A casta beleza daquela virgem causou-lhe a perturbação profunda e por assim dizer extática que se apoderaria de um crente ao contemplar uma aparição divina que de repente se lhe mostrasse.

Uma súbita paz de espírito e do coração, uma quietação d’alma, um desentorpecimento dos nervos, um delicioso desfalecimento do todo o seu ser se sucederam àquele êxtase.

Raul sentia-se outro, não se lembrava de ter sofrido, apenas de ter amado... As febres e as dores do passado desapareceram como um mal sonho no momento de despertar.

Por que poder mágico aquela a quem chamavam uma criança operava nele tal prodígio?

O senhor de Gordes não procurou aprofundar a razão. Entregou-se sem resistência às ondas purificadas daquele batismo inesperado.

Renée, mordida no coração por uma vaga angústia, pressentia um perigo, mas não adivinhava a natureza dele.

A altiva rapariga tão orgulhosa da sua beleza, tão certa da sua vitória podia por um instante admitir que a Gatinha Borralheira se tornasse para ela uma rival?

Admirada e ofendida de ver Raul distraído na sua presença falou-lhe, e o temor da sua voz revelou a perturbação das suas idéias.

Aquela voz destruiu o encanto.

O senhor de Gordes compreendeu até que ponto a sua atitude absorta devia parecer singular, e, recobrando logo prontamente os seus hábitos de homem de sociedade, respondeu a Renée com um sorriso.

— Agora que as apresentações estão feitas, redarguiu a jovem, dê-me o braço, se quer, senhor Conde, e venha admirar os maravilhosos aspectos do parque de minha irmã...

— Filhinha, perguntou Júlio Leroux a Joana, que caminhava ao lado dele um pouco atrás dos dois pares, como achas tu o nosso novo amigo o senhor de Gordes?...

— Pareceu-me excelente pessoa, redarguiu Joana, mas muito silencioso... Não me disse uma palavra...

— Depressa se familiarizarão, continuou o ex-banqueiro, porque, se não me engano, havemos de ver muitas vezes o Conde em Vertes-Feuilles... É um perfeito fidalgo.... Tenho por ele a mais alta estima... Tem oito milhões!...

 

XLVI INDECISÃO

As duas horas da noite Raul pediu a sua carruagem.

Júlio Leroux, Renée e Joana passavam a noite em la Tour-du-Roy e não deviam regressar a Vertes-Feuilles senão no dia seguinte depois do almoço.

Os hóspedes do palácio acompanharam o mancebo até a escada.

— Meu querido Conde, disse o ex-banqueiro que se familiarizara durante o jantar, apertando pela última vez a mão àquele que olhava como um futuro genro, lembra-se de que me prometeu uma visita...

— Não o esquecerei... redarguiu Raul.

— E volta breve não é verdade?

— Antes do fim da semana hei de ter o prazer de vê-lo...

— Muito bem!... Hoje é quinta-feira... Quer que se combine para no sábado jantar em minha casa, de mui modesta fortuna?...

O convite era um pouco repentino. Raul, a quem muito agradava, aceitou-o muito entusiàsticamente e, subindo para o seu phaeton, tomou, a todo o galope, pelo caminho do castelo de Gordes.

A noite estava linda.

No horizonte, a lua emergia lentamente do cume de uma encosta, espalhando a sua pálida claridade pelos campos adormecidos.

O bem domado de dois steppers irlandeses permitia-lhe não se ocupar da sua andadura sempre igual e uniforme.

O senhor Gordes deu-lhes da mão e, só enfim, não tendo a quem.escutar, nem a quem responder, resolveu concentrar-se consigo mesmo e interrogar-se: parecia-lhe sair de uma espécie de sonambulismo, e faltava-lhe completamente a consciência da sua situação moral.

O vago e incerto que flutuava em redor dele não se revelou tão rapidamente como desejava, mas, a pouco e pouco, as idéias que ele invocava tomaram vulto, tornaram-se grandes e Raul, com grande estupefação de que seria pueril admirar-se, compreendeu que no passado tudo tinha sido ilusões mentiras e trevas, e que só a partir daquele dia, começava a ver a luz e a verdade...

Um após outro caíram por terra aqueles ídolos de barro ante os quais se prostara outrora,

Julieta de Braines foi a primeira. O delírio dos sentidos tinha forjado a cadeia quebrada depois pelo sofrimento. Era a paixão adúltera, não era o amor ideal e divino.

Renée caiu ainda mais depressa. O que Raul tinha julgado achar nela, não era uma mulher, era uma semelhança, um reflexo. Dela não ficou coisa alguma...

E de pé ou antes, pairado sobre aquelas ruínas, apareceu Joana, radiante e pura, com o seu corpo de ninfa e a sua alma de virgem angélica.

— É aquela que preciso amar! disse consigo o senhor de Gordes e amo-a!

Amava-a com efeito, pertencia-lhe completa e absolutamente. Um só olhar daquela criança fez dele o seu escravo e a sua propriedade.

Moderno S. Paulo deslumbrado em um novo caminho de Damasco por um raio milagroso, os seus olhos e o seu coração estavam; abertos.

Quanto se felicitou então por aquela reserva, graças à qual havia, evitado qualquer ação imprudente, ou qualquer palavra comprometedora!

Como se não tinha comprometido, sentia-se livre... livre para proceder à sua vontade, e seguir sem perfídia, nem deslealdade, o caminho cheio de flores, em cujo extremo antevia a felicidade...

Passado o primeiro momento de embriaguez, Raul não pode, contudo, dissimular os obstáculos que podiam sobrevir.

A segunda filha de Júlio Leroux julgava-se com certeza amada.. Como destruir uma crença que tinha feito despertar, e que o seu proceder havia animado?

Renée não era culpada de coisa alguma para com ele. De que modo, pois, procederá para não lhe ferir o coração ou magoar o seu orgulho desenganando-a?

A estas perguntas difíceis e de uma inaudita delicadeza, o Conde não soube responder.

Fatigado de procurar em vão a solução do problema, resolveu não mais diligenciar, e esperar algum acaso favorável.

— Com a graça de Deus! disse ele consigo, possuído do egoísmo do amor. tudo se arranja neste mundo; e, demais, eu seria grandemente vaidoso imaginando que Renée me adora, e que lhe custará a consolar-se da minha perda!...

Na tarde do dia imediato, Raul decidiu que esperar inda vinte e quatro horas antes de tornar a ver Joana, era uma coisa superior às suas forças, e que, além disso, segundo o código das estritas conveniências, devia uma visita àqueles em casa de quem ia jantar no dia seguinte.

Em conseqüência disto, mandou selar um cavalo e partiu parar Vertes-Feuilles.

A sua inesperada presença causou imensa alegria a Renée, cuja inquietação, desde a véspera, havia aumentado grandemente.

A jovem não sentia amor algum pelo senhor de Gordes, sabemo-lo, mas o seu ardor em querê-lo para marido, igualava em intensidade à paixão mais veemente.

À solicitude do Conde, reanimou-se de repente.

— Ontem, disse ela consigo, mostrou-se frio, distraído e pensativo... Hoje lamenta-se e vem a toda a pressa... Decididamente não tenho nada a temer...

Ai dela! Aquele estado de confiança e animação não durou muito, porque Raul durante alguns momentos de conversação com Renée, a quem encontrou só na sala, afetou acolher os galanteios de que era objeto com uma política mais glacial e mais completa do que a da véspera.

— Engana-me, disse consigo a jovem, há alguma coisa... Mas o que será? Quero sabê-lo... hei de sabê-lo... Terei eu alguma rival? Ah! Se assim fosse, desgraçada dela! Venci a morta!... despedaçaria sem piedade a viva...

A chegada de Júlio Leroux foi de grande satisfação para o senhor de Gordes a quem o "tête-à-tête" com Renée muito incomodava.

— Seja muito bem-vindo, querido Conde, exclamou o ex-banqueiro, mas com a condição de que não vem hoje dizer-nos que não contemos com o senhor para amanhã...

— Não venho dizer tal... redarguiu Raul, venho simplesmente para o ver, não trago outra intenção.

— Ainda bem! murmurou Júlio Leroux olhando para a filha de soslaio com um sorriso muito expressivo.

A conversa versou sobre banalidades, coisa inevitável entre pessoas cujas relações são de recente data.

Depois de vários rodeios, Raul conseguiu não sem dificuldade, fazer esta simples pergunta:

— Não terei o prazer de ver a menina Joana?

— Joana! respondeu rindo o dono da casa. Com certeza que não, não a verá!... Nunca se vê!... Anda sempre fora!...

E, como o visitante se mostrasse estupefato, Júlio Leroux deu algumas informações a respeito dos costumes vagabundos de sua filha mais nova, que passava a vida em casa dos pobres e dos enfermos; depois, ajuntou, em tom de zombaria, que os enfermos e os pobres da terra a denominavam o anjo bom?

— Vox populi, vox Dei! disse consigo Raul: Os pobres têm razão.

Estando ausente Joana, falhava o fim principal da visita do mancebo, por isso não a prolongou, com grande raiva, e, especialmente, com grande desapontamento de Renée.

Ao fim de meia hora, despediu-se de Júlio Leroux e montou a cavalo, satisfeito pelo que tinha acabado de saber com respeito aos piedosos hábitos e incomparável caridade da criança a quem também ele, no fundo do seu coração, chamava o anjo bom.

Quando seguia a passo a única e comprida rua da aldeia, viu sair de uma choupana isolada e de miserável aparência uma forma esbelta, vestida com um fato de pano de linho azul já desbotado, e um chapéu de palha sem enfeites, por debaixo do qual se soltavam uns finos e abundantes cabelos louros que ondulavam e caíam por sobre os graciosos ombros.

O Conde sentiu um sobressalto no coração.

— Bons dias, menina Joana... disse num tom de voz em que se revelava grande comoção.

A jovem voltou-se para ele sem manifestar grande surpresa.

— Bons dias, senhor Raul... volveu, aproximando-se do cavaleiro.

E estendeu-lhe a mãozinha desluvada, um pouco crestada pelo sol, e fitando nele, como na véspera tinha feito, o seu olhar, fraco e ingênuo, perguntou:

— Veio de casa de meu pai?

— Sim, minha menina, e muito me penalizou não a ver... O senhor Júlio Leroux disse-me que andava a visitar os seus amigos, os pobres, e eu desejava ser pobre como eles, se, a pobreza me desse alguns direitos à sua amizade...

— O senhor não precisa disso, redarguiu Joana. O que Deus faz é por bem... Sem os ricos em casa de quem tudo abunda, os desgraçados em casa de quem tudo falta seriam muito para lamentar... basta ser bom... e o senhor é um bom rico, não é verdade?

— Entre nós, assim o espero...

— Então somos amigos... regressa a Gordes?

— Sim, minha senhora...

— E eu vou àquela choupana que vê acolá, em baixo, à esquerda. Seguimos o mesmo caminho. Então vamos de companhia até lá, se é da sua vontade.

— Se é da minha vontade! repetiu Raul, ah! Com certeza que é! Apeou-se, passou a rédea do cavalo no braço, e acompanhou a jovem.

— Os habitantes daquela cabana, prosseguiu Joana, são muito para lamentar, asseguro-lhe... Imagine que o pai, um belo homem, um carpinteiro, único arrimo de sua mulher e de seus cinco filhos, quebrou outro dia uma perna caindo de um telhado que andava reparando. Ali está toda uma família sem pão. Eu faço o que posso, mas os meus recursos são pequenos... Felizmente o doutor não quer paga. Tem já algum médico de casa, senhor Raul?

— Não, minha senhora.

— Então recomendo-lhe aquele... É tão ilustrado quanto bondoso, o que não é dizer pouco... Chama-se Máximo Giraud, e mora em Rancey... Meu pai esteve muito perigoso o ano passado... O doutor Giraud curou-o. Tome para seu serviço o doutor Giraud...

— Aceito-o da sua mão, minha menina, com os olhos fechados. Devo preveni-la de que nunca estou doente, ajuntou Raul sorrindo. As funções do doutor em minha casa hão de ser uma completa sinecura.

— Tanto pior, quero dizer melhor... redarguiu a jovem rindo também. Mas pode recomendá-lo aos seus amigos, e, além disso, deve haver nos seus vastos domínios de Gordes, enfermos dignos de piedade... Chame para junto deles o senhor Giraud. Ele não é rico, e o que recusa aos pobres, aceitá-lo-á da sua mão.

— Ah! murmurou o Conde cheio de comoção, como os seus protegidos têm razão para lhe chamarem o anjo bom!

Os dois jovens estavam quase no cume da colina a dois passos da choupana do carpinteiro ferido.

Joana parou!

— É aqui... disse ela. Adeus, senhor Raul... ou antes até mais ver... até amanhã.

— Não me dá licença que eu entre também? perguntou o Conde.

— Pois não... com todo o gosto...

Raul prendeu o cavalo a uma árvore, e seguiu Joana que transpunha o limiar do pobre e humilde albergue.

Não descreveremos o interior daquela casa, que muito se assemelhava à de Genoveva.

Um homem ainda rapaz, muito moreno, estava de pé, junto do leito, dirigindo palavras consoladoras ao doente, cercado da mulher e dos filhos.

Joana exclamou:

— Ali está o nosso bom doutor de quem há pouco lhe falei... Senhor Raul, apresento-lhe o meu amigo, o doutor Giraud... Senhor Máximo, o Conde de Gordes.

Os dois homens cumprimentaram-se com toda a delicadeza, mas o médico lançando os olhos para Raul que vinha em companhia de Joana, a qual parecia ter muita familiaridade com ele, experimentou a súbito e profunda angústia que provém dos funestos pressentimentos.

Durante alguns segundos paralisaram-se as palpitações do seu coração; adivinhou com aquela intuição dos desventurados que o Conde ia ser seu rival feliz junto da meiga criança a quem ele amava em silêncio e sem esperança.

Resolvido a não lutar, curvou a cabeça.

Sujeitou-se ao sacrifício, e aquela alma heróica saboreava já a amarga volúpia de tão estranho suplício...

 

DESILUSÕES

Ao fim de um instante o senhor de Gordes, depois de haver dirigido ao ferido algumas palavras de consolação, apertou a mão de Joana, em seguida a de Máximo, e saindo da choupana levou consigo um dos pequenos.

O pequeno regressou daí a pouco, e pondo em cima da cama um papel dobrado em oito partes, exclamou:

— Olhe, pai, aqui está o que o senhor lhe manda.

O ferido desdobrou o papel, olhou para ele muito admirado, voltou-o por todos os lados e perguntou por fim:

— Senhor doutor, o que é que vem a ser isto?

— Isto, meu amigo, respondeu Máximo, é uma nota do banco... uma nota de quinhentos francos...

Ao ouvirem aquilo, a mulher e os filhos soltaram grandes gritos de alegria.

O homem ajuntou as mãos e murmurou:

— Deus abençoe a alma caritativa que se compadeceu de nós!... Parece-me que já não sofro, porque até o dia em que o bom doutor dê por completa a minha cura, os meus filhos não hão de ter necessidades... Ah! menina Joana, querida menina, é ainda a si que devemos isto, porque aquele senhor veio em sua companhia. Que Deus os recompense e lhes dê a felicidade de que são dignos!...

— Pela primeira vez da minha vida, disse consigo Máximo, tenho inveja dos ricos, porque pela primeira vez compreendo quanto eles são felizes.

No dia seguinte, no momento em que o senhor de Gordes chegava a Vertes-Feuilles, um pouco antes da hora do jantar, Joana achou meio de encontrar-se com ele no vestíbulo.

Ela apertou-lhe a mão, dizendo-lhe a meia voz com uma graça, adorável:

— Ah! senhor Raul, muito grata lhe estou pelo que fez ontem! Agradeço-lhe de todo o coração!... Como é bondoso!

Em seguida, e sem esperar a resposta do Conde, leve como um silfo, desapareceu.

O mancebo, ao entrar na sala, mostrava no rosto tão grande satisfação que Renée perguntou a si mesma:

— Que é que ele tem? Como está comovido! É a minha vista que o perturba assim?

Teve logo a prova de que não era por causa dela a satisfação que havia notado no senhor de Gordes, porque tornando-se pensativo mostrou-se cerimonioso e reflexivo como na véspera, e o modo um pouco constrangido não variou nem durante o jantar, nem durante o resto da noite.

Nem mesmo a presença de Joana conseguiu alegrá-lo, e a causa é simples. O hóspede de Júlio Leroux, sentindo os olhares de Renée assestados sobre ele com persistência, achava-se pouco a sua vontade entre as duas irmãs, e notava com espanto as dificuldades da sua posição.

Por muito pouco digna de interesse que nos pareça a segunda filha do ex-banqueiro, é-nos preciso contudo lamentá-la porque sofria muito.

O edifício que com tanto trabalho havia construído, desmoronava-se completamente; ela bem o via e cansava-se em procurar a causa daquela catástrofe inesperada...

De onde vinha a ruína das suas esperanças, do seu futuro?

Por que haviam sucedido tanta indiferença e frieza aos entusiasmos afetuosos cuja significação lhe parecera até ali clara?

Finalmente o sobretudo quem era a rival desconhecida a quem o senhor de Gordes a sacrificava? A rival de cuja existência ela não duvidava, mas que não podia adivinhar?...

Renée cansando-se em baldados esforços, interrogava a esfinge com um ardor sempre crescente, e a esfinge não revelava o segredo.

A surda raiva da jovem teve ainda motivo para aumentar.

Raul reuniu a jantar no palácio de Gordes o Marquês e Lazarine, Júlio Leroux, Joana e Renée.

Esta, em face dos esplendores da incomparável residência, sentiu a razão vacilar-lhe no cérebro perturbado pela cobiça.

— Tudo isto devia ser meu, disse consigo, e tudo isto me foge! Não soube guardar o que tinha conquistado!

Eva, expulsa do Éden, devia ter experimentado, nos tempos bíblicos, igual sensação.

Decorreram duas ou três semanas.

O Conde aparecia quase todos os dias em Vertes-Feuilles, e a segunda filha de Júlio Leroux não compreendia aquela assiduidade tão pouco de acordo com a indiferença tão claramente manifestada do mancebo.

É que aquelas visitas não passavam de um pretexto.

Para ir à casa do ex-banqueiro, Raul tinha razão para percorrer a sua vontade toda a vila e os seus arredores, tendo assim a probabilidade de encontrar Joana no limiar de algum daqueles pobres albergues aonde a sua evangélica caridade a conduzia.

Por duas ou três vezes isto aconteceu, e pôde conversar durante alguns minutos com o anjo bom assim encontrado por acaso.

Umas relações cheias de encanto, absolutamente inocentes da parte de Joana, se estabeleceram entre eles.

Ao ouvir nas pedras da estrada os passos ligeiros do cavalo de Raul, a criança que se fazia mulher não reparava que o seu coração palpitava mais agitadamente, e que as suas faces se ruborizavam.

Quando o senhor de Gordes pôde notar cheio de entusiasmo aqueles sintomas não equívocos de um amor nascente ainda ignorado, resolveu acabar sem demora com uma situação ambígua cujo peso não podia suportar.

Tomou pela manhã cedo o caminho do palácio de la Tour-du-Roy.

No momento em que o visitante se apeava, estava o Marquês admirando uns potros chegados de Inglaterra no véspera.

— Vem almoçar conosco, querido Conde? exclamou apertando a mão de Raul.

— Se a senhora Marquesa o permite...

Lazarine apareceu no terraço de penteador e cabelos soltos.

— Há de permitir, não duvide! redarguiu ela, seja muito bem-vindo, senhor Raul... conceda-me dez minutos para me vestir.

E desapareceu.

— Enquanto esperamos, veja os meus cavalos novos... redarguiu Roberto.

O Conde, como conhecedor consumado, admirou os potros destinados à carruagem de parque de Lazarine, e os corpulentos steppers para parelhas a quatro de uma incomparável distinção.

No fim de meia hora o criado veio anunciar que a senhora Marquesa estava esperando na sala, onde Roberto e o Conde se lhe reuniram e passaram com ela para a sala de jantar.

— Meu querido Marquês, disse Raul algum tanto comovido depois da refeição, o fim da minha visita é muito sério... Preciso fazer-lhe uma confidencia, e venho pedir-lhe um favor... o maior que pode fazer-me...

— Sou de mais aqui? perguntou Lazarine sorrindo.

— Não, minha senhora, de modo algum; até se não estivesse premente, eu pediria o favor da sua presença.

— Nesse caso, fico.

—Irei direito ao meu fim, prosseguiu Raul. O meu sonho é estreitar os laços de afeição que me unem aos Marqueses, vê-los tornarem-se laços de família. Amo apaixonadamente uma das manas da senhora Marquesa...

— Renée! murmurou Lazarine num tom meio despeitado. Não me diz nada que eu não saiba, querido Conde... Adivinhei há muito tempo... O senhor não sabe dissimular.

O senhor de Gordes abanou a cabeça.

— Engana-se, minha senhora, redarguiu ele logo. Por muito encantadora e digna de afeto que seja mademoiselle Renée, não foi a ela que eu me dediquei... foi à menina Joana.

O rosto de Roberto e o de sua mulher manifestaram o mais profundo espanto.

—O senhor ama Joana! exclamou Lazarine.

— Sim, minha senhora, tanto quanto é possível amar.

— Mas é uma criança!...

— Uma criança que é um anjo, e que será, como a senhora Marquesa, a mais encantadora, a mais perfeita e a melhor das senhoras... Além de que, minha senhora, ela tem dezessete anos, e eu não tenho ainda vinte e nove...

— É justo, respondeu a senhora de la Tour-du-Roy sorrindo, a proporção de idade é muito correta... e, no fim de contas, tem muita razão para preferir Joana a Renée... Pobre Renée... Aqui para nós, eu creio que ela pensava um pouco em vir a ser Condessa de Gordes... pensava até muito...

E o rosto de Lazarine alegrou-se com a idéia da má sorte da irmã.

— Pobre Renée... murmurou por seu turno Roberto, que sabia perfeitamente o que devia pensar a respeito das esperanças em Veneza.

Prosseguiu em voz alta:

— Enganei-me como a Marquesa, meu querido Conde, julgava-o todo dedicado a Renée... Joana parecia-me uma criancinha... Mas enfim é tão boa quanto é linda, e a sua escolha, refletindo bem, não deveria admirar a pessoa alguma. Ela sabe do seu amor?

— Não quis falar-lhe em tal sem primeiro ouvir a opinião de seu pai...

— Era proceder como homem de bem, e aprovo-o; mas então ignora se o seu amor é correspondido...

— Não posso responder a essas reflexões senão de um modo um pouco complexo... A menina Joana, cuja candura é angelical, ignora não somente o amor, mas o sentido exato dessa palavra... Portanto, ela não me ama ainda, tenho disso a absoluta certeza, mas, também, estou certo que não recusará ser minha mulher, e que sendo Condessa de Gordes, não poderá fazer outra coisa senão amar-me...

— Como reconhece isso?

— Não sei dizê-lo... Sinto-o, vejo-o, tenho a certeza, mas é-me impossível explicá-lo. Tenho essa fé... Explica-se a fé?

— O senhor não falou de uma confidencia a fazer, e de um favor a receber, redarguiu o Marquês após o silêncio de um minuto, a. confidencia está feita; que serviço reclame... É inútil dizer-lhe, que: pode contar comigo, não é verdade?...

— Se meu pai existisse, respondeu Raul, rogar-lhe-ia para ir procurar o senhor Leroux e pedir-lhe para mim a mão de sua filha. Na falta de meu pai dirijo-me ao senhor, ao homem a quem mais estimo e venero no mundo, e suplico-lhe para realizar em meu nome a missão respeitosa de que depende a minha felicidade.

— Essa missão tão natural e tão honrosa, por que não quer o senhor mesmo encarregar-se dela?...

— Não me atrevo...

— Que receia? um pretendente nas suas circunstâncias, não tem, de antemão, a certeza de ser bem acolhido?

— Desconfio de mim mesmo... Se o senhor Leroux, o que Deus mão queira, tivesse outros projetos, se me fizesse objeções, seria tal a minha perturbação, faltar-me-ia por tal modo a presença de espírito, que eu comprometeria a minha causa à falta de bem a advogar.

Nos lábios de Lazarine apareceu um sorriso zombeteiro, e vendo que não era observada, encolheu levemente os ombros.

As inquietações de Raul pareciam-lhe ingênuas, e diga-se até, ridículas.

Ela bem sabia que Júlio Leroux acolheria de braços abertos, como um enviado da Providência, um genro milionário e titular!

Enfim, continuou o senhor de Gordes, apelo para a sua afeição de que tantas provas tenho recebido! O senhor disse-me que eu podia contar com ela, e conto.

— E tem razão! redarguiu Roberto. Aceito o papel que me confia... Desempenhá-lo-ei conscientemente, e como conheço melhor do que ninguém a impaciência e a ansiedade de um coração loucamente enamorado, não o farei penar... Não será daqui a oito dias, nem daqui a vinte e quatro horas que fale a meu honrado sogro... Há de ser hoje mesmo...

— Ah! exclamou o Conde muito alegre, como hei de agradecer-lhe...

— Silêncio! Nem uma palavra mais! interrompeu Roberto. Agradecer-me-á se quiser, quando eu voltar... se eu me sair bem...

Tocou uma campainha e deu ordem para prepararem o trem. Depois perguntou:

— Acompanha-me?

— Não... Será muito embaraçosa a minha posição durante a sua conversação com Júlio Leroux...

— É justo... queira esperar-me então aqui falando de Joana com Lazarine. Não pouparei os cavalos.

Um quarto de hora depois, o Marquês de la Tour-du-Roy seguia em direção a Vertes-Feuilles.

 

O PEDIDO

Júlio Leroux, estendido numa poltrona no seu quarto de dormir, com a atitude do homem que se aborrece mais do que é razoável, fumava num comprido cachimbo, quando lhe vieram anunciar a visita de seu genro.

Apressou-se a descer à sala.

— Vem só, querido Marquês? perguntou ele, Lazarine não está incomodada, não?

— Descanse, respondeu Roberto, a Marquesa passa bem e manda-lhe muitas recomendações. Se me vê só, é porque venho encarregado de uma missão de confiança... Não venho como visitante, nem como genro, venho como embaixador.

— Embaixador de que potência? interrogou o ex-banqueiro rindo.

— Do nosso vizinho e amigo comum o Conde Raul de Gordes...

— Ótimo! redarguiu Júlio Leroux esfregando as mãos com modo 'contente. Viva Deus! Pode mostrar as cartas... conheço o seu jogo...

— Que sabe?

— Sei, ora essa! Que o Conde de Gordes quer casar com Renée, e que vem da parte dele pedir-ma em casamento... É o segredo de Polichinelo!... Vou já chamar Renée. Ela mesma terá o prazer de lhe responder, e muito me surpreenderia se a sua resposta fosse negativa.

E dito isto, Júlio Leroux dirigiu-se para a porta.

O senhor de la Tour-du-Roy fê-lo deter-se logo por estas palavras:

— Não chame Renée! Está enganado!...

— Estou enganado!.,. repetiu o ex-banqueiro estupefato, mas então, de que e de quem se trata?...

— De casamento como disse, mas de Joana e não de Renée...

O sogro do Marquês deixou cair os braços ao longo do corpo, o rosto tomou uma expressão espantada, absolutamente cômica.

— Isso é sério?... murmurou ele.

— Muito sério.

— O Conde pensa em casar com a Gata Borralheira?...

— O Conde ama apaixonadamente a nossa querida Joana, e pede-lhe a sua mão por meu intermédio.

Júlio Leroux deixou-se cair na cadeira.

— Dou-lhe a minha palavra de honra, querido Marquês, exclamou ele, estou admiradíssimo!... Parece-me que sonho acordado! Estava tão convencido do amor do senhor de Gordes por Renée, e Renée crê tão firmemente nesse amor! E eis que de repente, zás!... é da garotita que o Conde quer fazer uma Condessa!... A idéia parece-me extravagante, admirável, e não posso pensar nisto sem sorrir...

— Então por quê? redarguiu Roberto, Joana ter dezessete anos...

— É verdade, mas é tão criança que pouco me admiraria vê-la brincar com jantarinhos e vestir bonecas!... Enfim, é preciso responder, não é? e creia que darei o meu consentimento... Convir-me-ia muito mais, confesso-o, casar primeiro Renée, que pensa no casamento, e cujo caráter indomável me incomoda ás vezes... Joana, pelo contrário, não é importuna... Ah! Santo Deus! Aquela pobre ovelhinha quer tudo o que eu quero... É um tesouro de doçura e de docilidade... Deixo-a aqui só e vou para Paris... fica muito bem, e Renée, se lhe acontecesse tal, ninguém a aturaria! Ah! Antes quereria cem vezes guardar Joana! Mas como não sou eu que escolho, diga ao Conde que está justo. Aceito-o para genro com muita satisfação...

"Somente recuso de um modo claro e terminante comunicar a notícia a Renée. No seu primeiro ímpeto era capaz de revoltar-se contra mim, o que é preciso evitar! A minha tranqüilidade antes de tudo."

— Eu farei o que o senhor não quiser fazer, redarguiu o Marquês, mas diga-me, é a Joana a quem mais interessa o pedido de Raul, e o senhor não tenciona por certo constranger a galantinha; não lhe parece a propósito instruí-la do que se passa, e consultá-la?

— Com certeza, é indispensável...

— Ela está agora em casa?

— Seria caso para me admirar! A pequena está uma perfeita vagabunda... Já o disse no outro dia ao senhor de Gordes; os mendigos e os doentes ocuparam-na imenso... Enfim, vou ver, e se ela andar pelo campo, mandarei os criados a procurarem-na...

Júlio Leroux saiu da sala e voltou dali a pouco.

Joana ainda não tinha saído; apressou-se a ir falar-lhe.

A jovem apareceu efetivamente no fim de dois ou três minutos com o modesto vestido de linho azulado que usava ordinariamente quando ia à visita dos seu pobres, e do que Renée zombava todos os dias.

A excessiva simplicidade daquele vestuário tornava Joana ainda mais distinta.

— Querido mano, disse ela, abraçando o senhor de la Tour-du-Roy, muito estimo vê-lo... Por que não trouxe consigo Lazarine?

— Maninha, respondeu Roberto, Lazarine tinha um hóspede esta manhã, e eu não podia despedir a visita, tendo de tratar aqui um negócio grave de muita urgência...

— Com meu pai? perguntou Joana.

— Com ele, sim, e também consigo.

— Tratar de um negócio! repetiu a jovem, um negócio sério e urgente! O senhor graceja!...

— Não. Há de ter a prova que não. Antes porém, maninha, responda, se quer, a esta pergunta: Que pensa a respeito do casamento?

— Não penso nada, porque nunca pensei nisso. Pensarei talvez mais tarde se alguém se lembrar de mim, e pedir a minha mão a meu pai.

— Pense já! redarguiu o Marquês sorrindo, alguém pensa em si, e o pedido está feito há cinco minutos...

Joana corou e baixou os olhos, mas ao fim de um segundo ergueu a cabeça e pôs a rir.

— Estava quase a julgar isso sério! disse com um gesto engraçado. Vai achar-me muito tola...

— Nada mais sério do que as minhas palavras, querida maninha, disse o senhor de la Tour-du-Roy. Um mancebo, que eu e seu pai muito estimamos, sente pela menina, desde que a viu, uma terna e profunda afeição. O jovem crê firmemente, e eu partilho de sua opinião, que a felicidade será certa, se a mana consentisse em tornar-se a companheira da sua vida, e por ser minha convicção de que com ele mais do que com qualquer outro seria feliz, acedi a ser intérprete, e em caso de necessidade, seu advogado junto de seu pai e junto da mana.

Joana fitou no cunhado os seus grandes olhos muito puros, que naquele momento exprimiam alguma inquietação e um certo espanto.

— A resposta de meu pai? balbuciou ela.

— Foi afirmativa, e acho bem entendida a sua retificação formal. Então tudo depende de si... de si só.

— Esse sujeito, redarguiu Joana, este sujeito em nome de quem fala... quem é?...

— Raul de Gordes...

Durante as poucas palavras do senhor de la Tour-du-Roy, à meiga criança havia empalidecido um pouco.

Ao ouvir o nome do Conde, as suas faces tingiram-se das mais vivas cores, ao mesmo tempo que um encantador sorriso brincava nos seus lábios.

— Então... perguntou ela, é verdade que o senhor de Gordes quer casar comigo?

— É o seu mais ardente desejo, queridinha... Contente em ser sua mulher?

— A minha recusa desgostá-lo-ia muito?

— Causar-lhe-ia um profundo desgosto.

— Então para que havíamos de afligi-lo? seria proceder mal, não é verdade?

— Consente, querida maninha?

— Consinto.

— Hás de ser Condessa! exclamou Júlio Leroux esfregando as mãos de contente.

Joana fez um gesto de indiferença.

— Oh! Isso pouco me importa, redarguiu ela.

— E milionária! a juntou o ex-banqueiro.

— Ainda bem! respondeu a jovem, muito estimarei ser rica... O Marquês admirado daquela inesperada linguagem olhou para ela.

A jovem acrescentou:

— Raul parece ser muito bom... tenho a certeza de que o é... Com uma fortuna como a dele, quanto bem nós não faremos! Um mês depois do nosso consórcio não haverá nem um só pobre em dez léguas em redor.

— Então, maninha, perguntou Roberto, posso dar a esse querido Conde a boa nova que espera com febril impaciência?

— Pode... estou resolvida... Gosto muito do senhor Raul. Imagine, mano, que ele deu quinhentos francos a Mateus, o carpinteiro ferido... É caritativo e generoso. Estaremos sempre de acordo, e sinto que vou amá-lo...

Adquiridos o consentimento do pai e da filha, restava só prevenir Renée da terrível decepção prestes a fulminá-la.

Roberto de la Tour-du-Roy quis logo desempenhar-se daquela missão espinhosa para ele.

Júlio Leroux deixou a sala em companhia de Joana, a quem o seu título de noiva pouco embaraço causava, e fez prevenir a sua segunda filha de que o Marquês desejava vê-la.

Renée, quando desceu para lhe falar, sentia palpitar com força o coração; ela repelia os sombrios pensamentos que a assaltavam há muitos dias, e esperava.

— Quem sabe? Dizia de si para si. A rival desconhecida, de quem receava, não existe, talvez senão em meu espírito perturbado... Raul lutava ainda contra as suas recordações não extintas... triunfou por certo, e o Marquês vem falar-me a seu respeito... Ah! Se chego a ser sua mulher, juro que me há de pagar as angústias que me tem feito sofrer.

Um só olhar lançado sobre o senhor de la Tour-du-Roy começou-a derrota daquelas ilusões. Roberto tinha dado ao seu rosto certa expressão de ocasião, estava grave e até um pouco triste.

— Querida mana, disse a Renée, fazendo-a assentar ao seu lado-e pegando-lhe nas mãos, julguei compreender um dia, em Veneza, que pensava no senhor de Gordes como em um futuro marido possível...

— Por que não? redarguiu a jovem com altivez. Lazarine é Marquesa! Por que não havia eu de ser Condessa?

— Com certeza, e nunca a coroa de nove pérolas assentaria em mais encantadora cabeça, continuou Roberto, se o Conde pensasse nisso... ajuntou ele.

— Quer então dizer que ele não pensa tal? perguntou Renée num ímpeto.

— Pensa tão pouco, que pede a mão de outra menina, que lhe foi concedida, e que está próximo o seu casamento.

Renée estava pálida e trêmula. Contudo, ocultou a sua perturbação.

— Ah! balbuciou, ele casa-se!

— Sim, senhora.

— Pois, bem, que me importa?... é livre... O seu título e a. sua fortuna puderam deslumbrar-me um momento, mas com certeza que não o amava... A minha ambição era um jogo... a que o coração se conservava completamente indiferente. Portanto, pode-me falar sem receio... Com quem casa ele?

— Com Joana... respondeu-o Marquês.

Renée estremeceu como uma mulher surpreendida ao ver de súbito uma serpente.

— Joana... repetiu ela, que Joana?

— A sua e minha irmã...

Era já tão grande a palidez da jovem, que parecia impossível aumentar, e no entanto tornou-se ainda mais lívida.

Dir-se-ia que todo o seu sangue lhe tinha refluído ao coração.

— Minha filha, minha querida filha, exclamou o Marquês, sente-se incomodada!

Renée abanou a cabeça, e lentamente, num tom de voz estranha e surda redarguiu:

— Ora pois! Não julgue isso, mano! Que motivo tenho eu para me sentir incomodada? Raul casa com Joana... nada mais natural. Os meus cumprimentos tanto a um como a outro. Que sejam muito felizes, e que seja eterna a sua lua de mel! Querida Joaninha, que ventura para mim vê-la feliz! Obrigado, mano, por me ter advertido, porque se não fosse o senhor, não sabia eu coisa alguma... Ocultarem-se de mim... é extravagante! Talvez até desconfiassem* de mim... Ah! Que mal andaram!... Um dia me conhecerão melhor... Janta cá, mano?

— Não, não posso, regresso já a la Tour-du-Roy, onde deixei o senhor de Gordes.

— Então vá depressa. Não faça esperar esse namorado que o aguarda contando os minutos. De novo obrigado e adeus, meu mano... Abrace em meu nome Lazarine.

Renée, sempre pálida, saiu da sala, subiu os degraus da escada cambaleando e agarrando-se ao corrimão, e fechou-se no quarto.

Ali, só enfim, sem testemunhas importunas deu livre curso à horrível tempestade que se desencadeava em sua alma e no seu cérebro.

Presa durante uma hora de um verdadeiro e medonho acesso de loucura, debatia-se no seu leito, arranhando o peito, torcendo as mãos e despedaçando os vestidos.

Pensava em promover um escândalo, em reclamar os seus direitos, em censurar ao Conde a sua odiosa traição, a sua covarde perfídia.

De repente, bruscamente, a reflexão caiu como um banho de água gelada sobre aquela exaltação crescente.

Renée compreendeu que não tinha direitos alguns, e que não se tendo o Conde obrigado a coisa alguma para com ela, não podia traí-la.

Sossegou de súbito a sua cólera, extinguiu-se a febre; ato contínuo um ódio feroz, implacável, apoderou-se dela e entumeceu-lhe o coração a ponto capaz de o rebentar.

Aquele ódio tinha por objeto, não Raul, o que pareceria de algum modo lógico, mas Joana, a cândida e meiga criança que o acaso fazia sua rival, e que não desconfiava daquela rivalidade.

— A minha absurda cólera, a minha inútil loucura, iam compreender o futuro e pô-lo em risco! disse consigo Renée levantando-se. Tem paciência, Joana! Paciência! Quem sabe esperar é forte! A ventura que hoje me roubas, antes de muito tempo tê-la-ei readquirido.

Seis semanas depois, o casamento de Joana Leroux e do Conde de Gordes efetuava-se na pequena igreja das Vertes-Feuilles, onde a união de Lazarine e do Marquês se havia efetuado no ano precedente.

Renée, solteira, sorria com a raiva na alma.

Máximo Giraud, ajoelhado atrás de um pilar, no fundo de uma capela, baixou o rosto pálido e ocultava-se para enxugar as lágrimas....

 

PRENÚNCIOS

Deixemos agora, para dentro em pouco tornar a encontrá-los, o Conde e a Condessa de Gordes; transpúnhamos um intervalo de alguns meses, e roguemos finalmente aos nossos leitores, que queiram acompanhar-nos a Orleans nos primeiros dias de setembro.

O Marquês Roberto tinha começado os suas caçadas em Tour-du-Roy, para as quais convocava todos os anos a elite dos caçadores distintos.

Durante uma semana, a velha residência senhorial estava cheia de gente, de movimento, de alegre bulício.

Logo ao romper do dia ouviam-se tiros no parque e nos grandes bosques dos arredores; à noite vinham os guardas para o palácio carregados de peças de caça, e os gentlemen esqueciam a sua fadiga em redor da mesa imensa e suntuosamente servida, onde o toque dos copos e o estalar das rolhas dos frascos de Saint-Perry, do Cliquot e do vinho espumoso de la Moselle, sucediam às detonações das Lefaucheux.

O começo das caçadas, naquele ano, tinha sido mais brilhante, do que de costume; a Marquesa havia introduzido naturalmente no castelo o elemento feminino que faltara até então nas reuniões daquele gênero.

As mulheres e as filhas dos convidados aumentavam a animação com a sua presença.

A maior parte, a exemplo de Lazarine, seguia as caçadas a cavalo, ou em carros descobertos.

Depois do jantar dançava-se, e aqueles bailes improvisados prolongavam-se até tarde.

O senhor de la Tour-du-Roy possuía, em três ou quatro léguas do outro lado do Loire, vastas florestas muito férteis em boa caça e preparadas especialmente para maior alegria dos sportmen.

Invariavelmente, de 8 a 10 de setembro, o Marquês ia instalar-se no seu palácio de Orleans sem outro estado de casa, senão o seu primeiro criado grave, um ou dois lacaios, dois ou três grooms, picadores, matilha, uma dúzia de cavalos de montar e de trem, e criados de cavalariça.

As caçadas começavam imediatamente e duravam quinze dias.

Roberto convidava para aquelas caçadas alguns oficiais da guarnição e alguns caçadores de nome, mas não dava nenhuma festa nem recebia à sua mesa senão um pequeno número de amigos íntimos.

O casamento não alterou em nada os seus hábitos, porque Lazarine fez-se acompanhar a Orleans por duas criadas graves, e todos os dias montava ora Norah, ora Bob, cavalos do "Steeple-chasse" muito superiores, e tomava parte na caçada com um ardor sem igual, uma intrepidez inexcedível.

A estação anunciava-se.

Desde o primeiro de setembro fazia um tempo esplêndido, semi sol e sem nevoeiro, sem poeira e sem chuva, que favorecia os discípulos de Santo Hubert.

Como as partidas tinham lugar ao romper da aurora, não despertavam senão uma fraca curiosidade na cidade combatida, além disso, pela preguiça, mas quase toda a população esperava o regresso e apinhava-se nos arredores da ponte do Loire e na Grande-Rua para ver passar a formosa amazona e os elegantes cavaleiros, cuja chegada era anunciada pelas fanfarras; e assim como os rapazes acompanham até os quartéis as bandas militares, também a população seguia o cortejo eqüestre até a porta monumental do palácio, que o tenente Marcel Laugier havia transposto de boleto na mão.

Na tarde do quarto dia, no momento em que Roberto entrava no seu quarto, Domingos introduzia o primeiro picador.

Aquele importante personagem vinha, segundo o costume, receber as ordens do amo para executar no dia seguinte.

O senhor de la Tour-du-Roy designou qual o sítio da floresta-onde queria caçar, e escolheu o ponto da entrevista.

Deixemos agora, para dentro em pouco tornar a encontrá-los.

O picador terminou as suas perguntas por esta que nunca deixava de fazer:

— Que cavalo monta o senhor Marquês amanhã?

— O Orion para a partida, e o Black-Devil para as corridas, respondeu Roberto.

Black-Devil era um cavalo de puro sangue, chegado havia algumas semanas de Inglaterra, saltador sem rival, e de uma velocidade excepcional.

Tinha ganho muitos prêmios nas "steeples-chasses".

O seu nome: Black-Devil, dava a entender ao mesmo tempo a sua cor e o seu caráter. O pêlo de um castanho-escuro, sem uma única mancha, apresentava o brilho azulado da asa do corvo. O seu gênio e as manhas tornavam-no temível aos moços de estrebaria obrigados constantemente a estarem precavidos contra as investidas do dente e das patas, mas o seu prodigioso modo de andar e o seu inaudito vigor resgatavam completamente os defeitos da sua diabólica natureza.

Difícil de montar, só se domava depois de alguns momentos de luta.

O senhor de la Tour-du-Roy, excelente cavaleiro, achava um grande prazer em domar pela energia da sua vontade aquele instrumento ora tão rebelde, ora tão manso.

Lazarine, já o dissemos, umas vezes montava, Bob, outras Norah.

Às sete horas da manhã, o Marquês e sua mulher montaram a cavalo e saíram do palácio, acompanhados apenas de três convidados. Deviam encontra-se com os outros à entrada da ponte.

Os cavalos para as mudas, os cães e o carro de víveres, tinham partido mais cedo.

Em menos de hora e meia, chegaram a pequeno galope ao local do encontro.

O primeiro picador apresentou o seu relatório.

— Ótimo! disse o Marquês. Temos caçado sucessivamente veado, raposa e javali... A nossa boa estrela envia-me hoje um cabrito montes.

Cinco minutos depois, os cães começavam a farejar, as trompas davam o sinal de desencovar, e o cabrito fugia.

Levou duas horas para se caçar aquele pobre animal, com as peripécias sempre interessantes mas pouco uniformes daquele exercício; numa das vezes os acasos da sua fuga desvairada trouxe-o a pequena distância do seu ponto de partida, e o senhor de la Tour-du-Roy matou-o com um tiro de carabina.

Algumas centenas de passos separavam os caçadores do local onde os esperava o almoço, servido à sombra de uma grandes árvores em uma mesa improvisada.

Um pouco antes de findar a refeição, o primeiro picador veio dizer algumas palavras ao ouvido do Marquês.

— Minhas senhoras e meus senhores, disse este último, depois de ter ouvido, Frederico veio dizer-me que se descobriu agora mesmo um segundo cabrito... Não é mais de meio-dia... Temos à mão uma matilha e alguns cavalos ainda folgados... Portanto, proponho montarmos a cavalo e ir procurá-lo. Teremos tempo para regressar a Orleans antes de jantar.

"Que dizem, meus senhores?

Uma aclamação unânime e entusiasta acolheu aquela moção, e Roberto respondeu por meio de um sinal afirmativo ao picador muito satisfeito.

O almoço acabou depressa.

Todos os convivas, ao levantarem-se da mesa, estavam alegres e satisfeitos, feliz influência dos vinhos de Xerez, de Léoville e Bouzy, junto à perspectiva de um prazer prolongado que lhes fazia parecer o azul do céu mais puro e o verde da relva mais fresco.

Roberto levantou Lazarine em seus braços e assentou-a no selim do seu Bob, e depois aproximou-se de um groom, há muito tempo ao seu serviço, e que segurava à mão Black-Devil.

O magnífico puro sangue, de pernas delgadas e nervosas, de pescoço comprido, cabeça levantada, parecia manso, e coisa nenhuma denunciava nele a irritabilidade de caráter de que falamos...

Contudo, a curtos intervalos, rápidos estremecimentos lhe faziam franzir o pêlo acetinado, o seu olhar inquieto parecia espreitar o que se estava fazendo, e as suas orelhas transparentes dotadas de notável mobilidade, oscilavam ora para diante ora para trás.

O senhor de la Tour-du-Roy estava a poucos passos de distância da cavalo.

— Senhor Marquês! exclamou o groom, cuidado!...

Neste mesmo momento, Black-Devil ergueu-se nas patas de trás como os cavalos dos circos, mas de um modo muito mais violento, em seguida caiu sobre as dianteiras, despediu uma formidável parelha de coices na direção do Marquês.

Roberto que pôde fugir a tempo, fez estalar o chicote e disse rindo:

— Isso, meu amigo, é uma galanteria inútil que logo há de te custar caro... Tu te zangas bem, mas não és mais forte do que eu!...

Dir-se-ia que Black-Devil compreendera aquelas palavras acentuadas pelo estalar do chicote, porque soltou um relincho curto e insurgindo-se contra a mão que o segurava, despediu logo outras duas parelhas.

Roberto descreveu uma curva para se aproximar do cavalo e pegar-lhe nas rédeas.

— Senhor Marquês, dá-me licença que lhe faça uma observação? perguntou o groom.

— Com certeza... Fala, José.

— Pois bem, Orion está tão folgado como se saísse agora da cavalariça... peço-lhe que se torne a servir dele e não monte Black-Devil hoje.

— Por quê?

— Porque está com o diabo no corpo desde pela manhã... Não sei o que o impacienta, e qual é a sua idéia, mas está hoje vinte vezes pior do que de costume, isso é certo.

— Que me importa o seu mau gênio? Em estando montado, já não tenho nada a temer...

— O senhor Marquês é um bom cavaleiro, todos o sabemos... Mas se a desgraça quiser que o cavalo tome o freio nos dentes, pode Suceder uma fatalidade...

— Black-Devil é muito doce de boca. Nunca toma o freio nos dentes... Tem muitos defeitos, menos esse.

— Peço perdão ao senhor Marquês. Black-Devil tem esse defeito como todos os mais...

— Sim, senhor Marquês.

—Como sabes isso?

— O groom que o trouxe de Inglaterra disse-mo na sua algaravia quase ininteligível, ajuntando que era preciso muito cuidado com ele... O maroto do cavalo é lunático, segundo parece, e ainda o ano passado, tomou o freio nos dentes, e caiu em cima do jóquei matando-o instantaneamente!

O Marquês encolheu os ombros.

— Histórias tudo. Isso não prova nada. Esse jóquei era talvez uma criança cujo pulso fraco não podia conter um cavalo fogoso, e eu tenho um pulso de ferro...

Ouviu-se um latido, depois outro, em seguida toda a matilha num formidável uníssono.

Ao mesmo tempo soavam as trompas.

— O desencovar, exclamou Roberto. Que tempo perdido! Depressa, dá cá as rédeas e segura no estribo.

O senhor Marquês vai, apesar de tudo, montar Black-Devil? balbuciou o groom.

— Sem demora.

O tom do amo era de gênero para não admitir réplica. O rapaz obedeceu, ao passo que o cavalo furioso, cuja cabeça ele segurava com custo, queria mordê-lo.

Roberto pegou com a mão esquerda nas crinas e nas rédeas, meteu o pé no estribo e montou com uma admirável ligeireza, apesar dos upas e galões do cavalo.

— Larga! disse.

Black-Devil pulava e empinava como fazia sempre, mas finalmente a lula entre o cavaleiro e o cavalo não durou mais, nem foi mais perigosa do que de costume, e o cavalo agitado mas domado, começou a andar em passo regular.

— Tanta bulha para nada! disse consigo o senhor de la Tour-du-Roy, no fim de contas; um cordeiro que se disfarça em diabo... É preciso tratar de se lhe provar quem é o mais forte...

 

A CAÇADA

As trompas tocavam a avançar, e os cavaleiros afastavam-se pela avenida que parecia infinita.

Lazarine montada em Norah ia à frente, e a rapidez da carreira fazia flutuar como um estandarte o véu de gaze verde preso ao seu chapéu de homem.

O senhor de la Tour-du-Roy deu de mão a Black-Devil, e bastou-lhe algumas avançadas poderosas do nobre animal para alcançar o grupo dos "sportsmens" e colocar-se ao lado da Marquesa.

Galopavam ambos lado a lado durante vinte minutos, Black-Devil e Norah animavam-se mutuamente, e distanciavam-se cada vez mais dos cavalos menos fogosos dos outros caçadores.

Ao virar de uma avenida, uma lebre assustada veio meter-se entre as pernas dos cavalos.

Black-Devil teve medo e deu um grande recuo.

O Marquês não se destribou, mas zangado castigou-o com uma furiosa chicotada.

O puro sangue não estava costumado a correções. Aquela, ainda que merecida, exasperou-o; saltou, e de cabeça baixa, abalou numa daquelas furiosas carreiras que nenhum poder humano conseguiria diminuir.

— José tinha razão... disse consigo o senhor de la Tour-du-Roy, este demônio vai desbocado... não importa... conheço bem a floresta... não há barrancos a pique, nem rochedos perigosos pelo caminho... nenhum perigo a temer... mais cedo ou mais tarde, Black-Devil há de parar por si mesmo.

E o Marquês entregou-se, achando certa volúpia naquela velocidade de locomotiva.

O animal furioso voava como uma flecha, sempre em frente, por uma espécie de vala que tinha quinhentos metros de comprido.

Black-Devil não diminuiu o passo; daquele modo devia chegar ao limite da floresta.

Uma vaga inquietação assaltou então Roberto.

Fora do bosque e em campo livre podiam aparecer obstáculos perigosos.

Viu, de repente, três homens, de machado ao ombro, de pé e imóveis no meio do caminho.

Eram rachadores a quem a corrida quase fantástica do cavaleiro muito admirava e inquietava.

— Estou salvo... disse consigo o Marquês, e quando chegou ao alcance da voz, gritou com toda a força: Impeçam o caminho, rapazes, façam parar o cavalo... vai desbocado.

Os rachadores, reconhecendo o senhor de la Tour-du-Roy, trataram de obedecer; arremessaram-se para segurar a rédea no momento em que Black-Devil ia chegando ao pé deles, mas o terrível animal não lhes deu tempo, e subindo com a rapidez do raio, embrenhou-se no atalho transversal por onde seguiu na mesma furiosa correria.

Atrás dele, seguiam os rachadores soltando gritos, cujo sentido Roberto compreendeu logo.

A cem passos, uma grande árvore caída estorvava a passagem, e atrás desta árvore, a curta distância, viam-se outras duas...

— Que Deus me acuda! disse consigo o fidalgo, estou em perigo de vida...

Não empalideceu nem tremeu, mas ergueu a alma e o pensamento para Deus.

Black chegou ao primeiro obstáculo, e sem fazer caso, transpô-lo de um pulo. Transpôs o segundo, ainda que lhe faltasse espaço para formar o pulo.

Restava só um tronco de árvore, e ficava livre o caminho e acatava o perigo...

Roberto enterrou as esporas nos ilhais do cavalo para o obrigar .a um supremo esforço.

Black-Devil ergue-se, mas as patas de diante prendem-se nos esgalhos da árvore caída, vacila, e cai em cima do cavaleiro.

Nem cavalo nem cavaleiro se levantaram.

O cavalo morreu instantaneamente, partindo a coluna vertebral.

O senhor de la Tour-du-Roy jazia sem sentidos ao lado dele.

Os rachadores, receando uma catástrofe inevitável, corriam a toda a pressa.

Quando chegaram, ao fim de alguns minutos, ficaram persuadidos de que o Marquês estava morto. A palidez que se notava no rosto era a de um cadáver; um fio de sangue corria da boca e manchava de vermelho escuro o vermelho vivo do seu fato de caçador.

— Era impossível que escapasse este pobre senhor, disse um deles; caiu e ficou esmagado... Que grande desgraça! um homem tão "bom! É necessário prevenir os seus amigos que ignoram o que lhe aconteceu... Eu me encarrego disso. Esperem-me ali vocês...

Ouvia-se ao longe o eco das fanfarras que se aproximavam rapidamente.

O rachador retrogradou pela grande avenida, ao passo que os seus dois companheiros tiravam as pernas do senhor de la Tour-du-Roy debaixo do corpo de Black-Devil.

Lazarine foi a primeira a quem o mensageiro da má nova encontrou; a jovem tinha conservado a dianteira e caminhava alegre descuidada.

Não ignorava que o cavalo de seu marido se tinha desbocado, mas como temerária cavaleira que era, e sabendo que Roberto era um cavaleiro de primeira ordem, não se inquietou.

A medida que diminuía a distância entre ela o rachador, este;agitava os braços para a fazer parar. Intrigada por aquela pantomima, Lazarine puxou a rédea da Norah e fê-la parar a alguns passos do campônio, cujo rosto transtornado e aflito lhe pareceu singular.

— Que há de novo, meu amigo? perguntou.

O rachador respondeu perguntando:

— Pertence à companhia do senhor de la Tour-du-Roy, minha formosa dama? disse ele virando e revirando nas mãos o seu velho, chapéu de palha amolgado e gretado.

— Sou sua mulher.

Não sabendo como desempenhar, sem brutalidade, a sua missão dolorosa, visto que estava falando à própria mulher da vítima, o homem hesitou por um instante.

— Enfim, redarguiu Lazarine, que me quer? Tem alguma coisa a comunicar-me?

— Tenho a comunicar-lhe senhora Marquesa, que sucedeu a seu marido...

A jovem estremeceu.

— Coisa grave? exclamou ela.

— Receio...

— O Marquês caiu do cavalo?

— Não, minha senhora, o cavalo é que caiu em cima dele...

— Oh! horrível desgraça! Meu marido feriu-se na queda?.. queixa-se muito?

— Não se queixa, porque perdeu os sentidos...

— Desmaiado!... Morto!... Oh! diga-me que não morreu!...

— Era preciso ser médico para o saber... Eu não entendo disso...

— Onde está ele?

— A um quarto de hora de caminho daqui... num atalho à esquerda da vala.

— Conduza-me até lá... Apressemo-nos...

— Vim de propósito para isso.

Neste momento reuniram-se à Marquesa os caçadores que vinham mais distantes.

Poucas palavras bastaram para os informes do caso, que causou um desgosto geral. O Marquês só tinha amigos...

Um dos cavaleiros montou o rachador na garupa do seu cavalo para ganhar tempo, e lançaram-se a galope na direção indicada.

Foram bastantes sete ou oito minutos para chegar ao local, teatro do acidente.

Ao deparar com tal espetáculo, Lazarine, em quem a excitação nervosa produzia uma sensibilidade fictícia, sentiu-se mal.

Os campônios tinham assentado num talude de relva, e encostado a um tronco de árvore, o corpo do Marquês.

Naquela postura, o corpo inanimado parecia mais horrível do que quando estava estendido no caminho.

A cabeça caía-lhe sobre o peito em conseqüência da rutura das vértebras cervicais.

Os braços pendiam flácidos e mortos ao longo do corpo.

O sangue misturado com escuma continuava correndo da boca entreaberta, e a mancha de um vermelho escuro no casaco escarlate tornava-se cada vez maior.

A senhora de la Tour-du-Roy apeou-se do cavalo a soluçar, deu alguns passos cambaleando, e deixou-se cair de joelhos junto do marido, em cujas mãos pegou, estreitou contra o seio e cobriu de lágrimas.

— Não morreu! exclamou ela com uma voz que a comoção tornara trêmula e desconhecida. Se estivesse morto, as suas mãos estariam geladas... Conservam ainda o calor da vida... ele vive!' salvá-lo-emos!...

Um dos oficiais que haviam tomado parte na caçada, possuía algumas noções de cirurgia elementar. Desabotoou o casaco, o colete, a camisa, colou o ouvido ao lado esquerdo do peito, e declarou que sentia bater o coração, mas que lhe pareciam muito fracas as pancadas.

— Talvez fosse necessário sangrar o Marquês... disse uma voz.

— Não tomaria sobre mim essa responsabilidade... redarguiu o oficial abanando a cabeça. Este nosso infeliz amigo acaba da almoçar bem... uma sangria seria morte certa! o melhor que há a fazer é levá-lo para Orleans quanto antes, e confiá-lo aos cuidados dos médicos...

Era sensata a idéia. Resolveram segui-la sem demora.

Havia só um meio de transporte; o carro de víveres.

Um dos caçadores montou a cavalo e foi em procura do veículo. Durante a sua ausência organizaram com troncos de árvores uma padiola, na qual deitaram o senhor de la Tour-du-Roy; em seguida os rachadores carregados com aquele triste fardo, dirigiram-se para a grande avenida, onde daí a pouco chegou o carro ao trote dos seus cavalos arreados de sonoros guizos.

Três horas depois o pequeno cortejo, que tão alegre saíra da cidade ao romper do dia, voltava a passa lento com a lúgubre aparência de um acompanhamento de enterro, e o carro destinado a um fim tão diverso, transpunha o limitar do palácio hereditário de la Tour-du-Roy, conduzindo o corpo ou o cadáver do último Marquês.

Durante o longo e penoso trajeto, Lazarine havia conquistado-a simpática admiração das testemunhas da sua dor, de cuja sinceridade ninguém ousaria duvidar, tão simples e tocante era.

A profunda ternura de uma mulher tão nova por marido tão velho parecia admirável, e todos intimamente proclamavam a Marquesa como um modelo das mais elevadas e simpáticas virtudes conjugais.

O corpo inanimado de Roberto foi conduzido para o primeiro andar e colocado na cama, em seguida mandaram-se chamar os médicos.

Vieram a toda a pressa.

Lazarine de pé e pálida ao lado do marido, esperava a sua sentença com manifesta angústia.

A trágica expressão do seu rosto admirável, as lágrimas caindo dos seus olhos vermelhos, e o estremecimento das suas mãos postas, tudo dava a entender o suplício que lhe ia n’alma.

Os médicos declararam unanimemente que o senhor de la Tour-du-Roy estava ainda vivo, porém o seu estado era desesperador. O enorme peso do cavalo caindo sobre ele tinha produzido certas lesões interiores, às quais se juntava uma congestão cerebral resultante da violência da queda.

Empregaram os meios mais enérgicos para provocar uma reação.

Foi debalde.

As pulsações do coração enfraqueciam de minuto para minuto. A vida diminuía rapidamente.

— Minha senhora, disse o mais velho dos médicos a Lazarine, suplico-lhe que saia daqui...

— Por quê? perguntou a jovem.

— Porque é inevitável a catástrofe, e ai de mim! Está próxima...

— Estou no meu lugar, senhor, e aqui me conservarei até o final...

— Admiro a sua coragem, minha senhora... Devia preveni-la, preveni-a... Agora, mais uma palavra... Sei que o senhor Marquês era um bom cristão. Não lhe parece pois necessária a presença de um padre à sua cabeceira...

Lazarine ocultando o rosto entre as mãos, respondeu afirmativamente.

Um quarto de hora depois aparecia o cura munido dos santos óleos.

Rezaram-se as orações dos agonizantes em voz baixa à roda do leito fúnebre... O corpo inerte mas não gelado do Marquês recebeu a extrema-unção, em seguida a absolvição suprema...

As pulsações do coração pararam...

O Marquês Roberto de la Tour-du-Roy acabava de dar a alma a Deus sem ter recobrado os sentidos.

Lazarine estava viúva...

 

O TESTAMENTO

Durante as longas horas da noite que se seguiu a este trágico acontecimento, a Marquesa portou-se admiravelmente, e não se traiu por um momento.

Queria passar a noite no quarto mortuário, ao pé do leito fúnebre.

Foram necessárias instantes súplicas do padre e dos médicos para o decidirem a recolher-se ao seu quarto, a fim de descansar como precisava.

Encerrada no seu quarto, absolutamente só, e sabendo que estava ao abrigo de todo o olhar indiscreto, a jovem deixou de se contrafazer, as lágrimas enxugaram-se, e a sua então inútil máscara caiu deixando ver a verdadeira expressão do seu rosto.

As feições pálidas de Lazarine quase que exprimiam alegria.

A filha mais velha de Júlio Leroux nunca tinha amado o senhor de la Tour-du-Roy, sabemo-lo.

A vaidade, a ambição sobretudo, tinham sido as únicas medianeiras do seu casamento. Ela queria uma grande fortuna, um título, uma elevada posição social. A sua união com o Marquês dava-lhe tudo isso, e só por essa razão consentira.

Antes mesmo de estar casada já ela contava, entre as fortunas que lhe podia reservar o futuro, com a eventualidade de uma viuvez em curto prazo.

— Hei de ser uma viúva rica... dizia ela de si para si.

E ei-la que ganhava então a sorte grande na loteria do acaso, e ganhava mais depressa do que ousaria esperá-lo...

Livre aos vinte anos, dotada de uma beleza esplêndida, Marquesa e seis vezes milionária, tudo podia pretender.

Um novo casamento viria duplicar, triplicar, decuplar talvez a sua fortuna, porque estava resolvida a não esposar em segundas núpcias senão alguns dos dignatários do único monarca cuja onipotência é indiscutível: O Demônio Ouro.

Lazarine bem sabia que não bastava a morte do Marquês para ficar senhora dos milhões cobiçados, mas também sabia que Roberto tinha feito dela o seu ídolo, que a amava a ela só, loucamente, mais do que a todo o mundo.

Como admitir em tais condições que ele se esquecesse de, num último testamento, instituí-la sua herdeira universal?

Havia um testamento. Ela tinha a certeza disso.

Também estava não menos certa de que as disposições daquele testamento eram em seu favor.

Em que lugar existiria o testamento?

Com certeza no palácio de la Tour-du-Roy, num móvel do tempo da Renascença, onde o Marquês guardava os seus pergaminhos de família e outros papéis importantes.

A febre da impaciência fazia-lhe ferver o sangue, ao considerar que o dever e as conveniências sociais que não podia romper sem escândalo, a obrigavam a não se afastar de Orleans antes da cerimônia fúnebre, e que só daí a três dias ela poderia correr ao castelo, abrir o móvel, vasculhar as gavetas, haver à mão o preciso sobrescrito, rasgar os selos, devorar o seu conteúdo, e dizer possuída de uma inaudita embriaguez:

— Pertence-me tudo!... É meu o mundo!...

Passou toda a noite acometida dos acessos daquela febre e dos sonhos que ela originava.

Não faltaram distrações a Lazarine no dia seguinte.

Júlio Leroux, Raul de Gordes, Joana e Renée, prevenidos pelo telégrafo na tarde precedente, chegaram de manhã cedo.

Rodearam a jovem, que tornou a afivelar no rosto a máscara, recomeçou representando com a mesma habilidade da véspera, a comédia da dor.

O ex-banqueiro, como homem eminentemente prático, e que conhecia bem sua filha, admirou a perfeição daquela comédia, mas pouco a tomou a sério.

Aproveitou-se de uma curta entrevista que o acaso lhe proporcionava para lhe dizer:

— O meu genro era com certeza um bom marido. Tu lamenta-o como convém, e ostentas muito bem as tuas mágoas. É edificante e do mais perfeito bom gosto, mas é preciso pensar no positivo. Há um testemunho?

— Há... o Marquês falou disso um dia na minha presença.

— Sabes o seu conteúdo?

— Não, mas adivinho-o. Aquele pobre Roberto amava-me tanto!

Júlio Leroux pensou a seu pesar que o episódio de Heitor Bégourde podia ter deixado algumas suspeitas no espírito do Marquês, e respondeu sem convicção:

— Visto que não duvidas, ainda bem.

— Dir-se-ia que o pai desconfia! exclamou Lazarine inquieta.

— Não, não... Porque havia eu de desconfiar?... Só tu podes bem julgar as coisas... Não precisas senão interrogar-te a ti mesma...

— Ah! disse a Marquesa com amargura, se o senhor de la Tour-du-Roy me não deixasse toda a sua fortuna, se aquele velho a quem sacrifiquei a minha mocidade me tivesse ludibriado a ponto de me dar um co-herdeiro, ainda que fosse só para uma pequena parte, seria odioso!...

Seria infame! Mas não o fez...

— Oh! Com certeza que o não fez! redarguiu vivamente Júlio Leroux. Para que estar já a prever desgraças... Além disso fica-te o dote reconhecido no contrato...

— Um milhão! murmurou com desprezo Lazarine. Cinqüenta mil libras de renda! Que é isso? Uma miséria! Só no meu luto despenderei muito mais!

O funeral do Marquês verificou-se no dia seguinte com uma magnificência digna do seu nome e da sua riqueza.

Grande multidão, possuída de uma profunda comoção e profundo recolhimento, acompanhou os restos mortais ao grande jazigo de família no cemitério de Orleans.

Depois da cerimônia fúnebre, Júlio Leroux e Raul de Gordes ofereceram a Lazarine levá-la ou para Vertes-Feuilles, ou para Gordes, ou ainda acompanhá-la a la Tour-du-Roy.

A jovem mostrou-se comovida com aqueles afetuosos oferecimentos, mas respondeu que tendo necessidade de solidão os acatava.

O pai e o cunhado julgaram não dever insistir. Saíram do palácio e tomaram o caminho de suas respectivas moradas.

Lazarine soltou um suspiro de alívio.

— Enfim, murmurou ela, partiram! Posso pôr-me em ação!...

Acabava de dar as precisas ordens para a partida, quando Domingos lhe participou que o tabelião do falecido Marquês pedia a honra de uma audiência.

— Conduza o tabelião para a sala, respondeu vivamente a Marquesa, e peça-lhe o favor de esperar um pouco. Vou ter com ele.

 

O senhor Jomard não é de todo estranho aos nossos leitores.

Viram este honrado tabelião, discutindo com o senhor de la Tour-du-Roy a respeito das cláusulas do contrato do casamento cuja redação lhe tinha sido confiada, defender com todo o calor os interesses do seu cliente contra ele mesmo, e opor-se às liberdades que julgara inoportunas e comprometedoras.

A teimosia do tabelião tinha acabado por vencer o entusiasmo do velho amoroso.

No momento em que a jovem, envolta nos seu longos véus de viúva, transpunha o limiar da saleta, o senhor Jomard, sinceramente confrangido, apresentava aquela fisionomia de ocasião que se poderia denominar fisionomia do grande luto.

O rosto exprimia verdadeira desolação, e os olhos viam-se-lhe banhados de lágrimas sob os óculos com aros de ouro.

— Senhora Marquesa, disse ele inclinando-se, para me obrigar a apresentar-me em casa de nossa Excelência num dia tão triste com este. e perturbar com a minha presença a sua profunda e legítima dor, era preciso nada mais do que um imperioso dever, imposto por aquele a quem choramos, e que se dignava conceder-me toda a sua confiança...

— Seja qual for o motivo que o traz, redarguiu Lazarine, estou pronta a ouvi-lo... Queira assentar-se, senhor...

O tabelião inclinou-se outra vez, assentou-se, abriu a grande pasta de chagrin preto que trazia debaixo do braço, e tirou de dentro um sobrescrito com cinco sinetes.

Neste sobrescrito, disse ele, está o testamento do sempre chorado senhor Marquês...

Lazarine estremeceu. Abalou-a uma violenta comoção. Aquele sobrescrito encerrava o seu destino.

— Este testamento ológrafo isto é, escrito de princípio a fim pela mão do próprio testador, e cujo conteúdo ignoro, prosseguiu o senhor de Jomard, foi-me entregue pelo senhor Marquês em meado do ano passado, antes da sua partida para uma viagem à Itália, creio eu... O meu muito nobre cliente, que, desde então, nunca mais tornei a ver, parecia naquela época, apesar da sua avançada idade, poder contar com um longo futuro... mas ai dele! o destino decidiu por outra forma... A mais imprevista e lamentável das desgraças fulminou aquela tão brilhante vida, e roubou ao mundo aquele bondoso homem, aquele perfeito fidalgo!...

Lazarine, ao ouvir aquela empolada elocução tão perfumada de flores de retórica e tão comovida, julgou dever ocultar o rosto entre as mãos. As lamentações do senhor Jomard exasperavam a sua impaciência, mas não podia e não queria dá-lo a conhecer.

O tabelião levantou os óculos, enxugou uma lágrima e começou.

— No sobrescrito acham-se estas linhas, escritas pelo senhor Marquês e acompanhadas da sua assinatura:

"A leitura deste testamento há de ser feita na presença da senhora Marquesa de la Tour-du-Roy no dia do meu enterro, salvo se houver impossibilidade material.

"Roberto, Marquês de la Tour-du-Roy."

— Isto deixa ver muito claramente que não havendo a impossibilidade material, prevista pela saudoso senhor Marquês, não podia eu demorar a visita mais de vinte e quatro horas... Compreende, minha senhora?

— Perfeitamente, senhor... murmurou Lazarine.

— O sobrescrito está fechado com cinco sinetes do brasão do senhor Marquês, continuou o tabelião, os sinetes estão intatos.., Peço à senhora Marquesa que se certifique de visu.

E estendeu o sobrescrito à jovem.

— Para que? respondeu ela recusando-se, confio absolutamente no senhor.

— Permita-me que eu insista... É uma formalidade muito simples, mas que julgo indispensável...

— Então! seja!...

Lazarine olhou com modo distraído, e declarou que os sinetes estavam intatos.

— Este tabelião, não conclui hoje... Mata-me a fogo lento!... O senhor Jomard tirou da algibeira um canivete.

— Procedo sem demora à abertura do testamento, disse servindo-se do canivete para cortar, com minuciosas precauções, a parte superior do sobrescrito, e tirando para fora uma molha dobrada em quatro partes.

— Queira permitir-me, senhora Marquesa, que eu leia para mim este testamento antes de proferi-lo em voz alta. Já não tenho os meus olhos dos vinte anos, e além disso as lágrimas obscurecem-me a vista. Em tão tristes circunstâncias, ainda que me fosse muito familiar, ouso dizê-lo, a letra do defunto Marquês, arriscar-me-ia muito a ler com dificuldade, o que seria desagradável.

Lazarine fez um gesto de adesão, ou antes de resignação, e o tabelião, ajustando bem os óculos depois de ter limpado os vidros, principiou a ler pausadamente e de si para si o testamento.

A jovem, obrigada a ocultar a irritação que lhe causavam aquelas intermináveis demoras, olhou fito para o tabelião cujos beiços se moviam produzindo um murmúrio indistinto e monótono.

Em pouco tempo, teve motivo para se inquietar, porque à medida que o senhor Jomard ia lendo, tornava-se cada vez mais singular a expressão do seu rosto, e as disposições que tomava para soletrar, causavam-lhe uma admiração vizinha da estupefação.

— Que significa isto? perguntou a si mesma Lazarine. De onde provém a surpresa deste homem? Que estranhas e inesperadas coisas podem perturbá-lo àquele ponto?

A sua ansiedade, ou antes a sua angústia, não durou muito.

 

DESILUSÕES

— Começo, disse Jomard.

E lentamente, num tom grave e compassado, leu o que se segue:: "Palácio de la Tour-du-Roy, 12 de outubro de 1873. "Este é o meu testamento.

"Hoje, 12 de outubro de 1873, são de corpo e de espírito, tendo vivido quanto pude como cristão, como fidalgo, como homem de bem, recomendo minha alma a Deus, e escrevo estas últimas disposições O tabelião ergueu a cabeça.

— Senhora Marquesa, disse ele com uma voz muito mudada, concluí, e se quer conceder-me a sua atenção, estou pronto a desempenhar o dever de que fui incumbido.

— Eu o escuto, senhor, respondeu a jovem a quem um pressentimento de mau agouro apertava o coração.

"Se à hora da minha morte, houver um ou muitos filhos, a senhora Marquesa de la Tour-du-Roy, a quem a maternidade terá tornado, assim o espero, bastante séria, ficará investida da tutela daquele ou daqueles menores, e disporá à vontade do rendimento dos bens cuja nota se acha junta, até o dia em que os filhos chegados à maioridade tomarem posse da sua herança. A Marquesa conservará, contudo, um terço do rendimento da fortuna, e gozará dele até a sua morte.

"Se pelo contrário morrer sem filhos, como é o meu ardente desejo que o nome ilustrado por uma longa série de antepassados continue a brilhar, e como existe no Midi um ramo mais novo da minha família, lego toda a minha fortuna ao representante desse ramo, ao Conde Maximiliano de la Tour-du-Roy, cuja honrosa pobreza conheço, e que sei que é pai de três filhos.

"Este legado universal está sujeito às seguintes restrições:

"1.° A Marquesa de la Tour-du-Roy, minha viúva, conservará durante toda a sua vida (salvo no caso de um segundo casamento contratado por ela), o uso inteiro e pleno do palácio de la Tour-du-Roy e do parque dependente.

"2.° As despesas da conservação do parque e do palácio ficarão a cargo do legatário universal, e depois dele, aos seus herdeiros, e as somas necessárias para fazer face às despesas desta natureza, deverão antecipadamente ser depositadas no cartório do meu tabelião o senhor Jomard ou no do seu sucessor.

"O meu legatário universal satisfará aos legados particulares cuja nota está junta.

"Nomeio o senhor Jomard meu executor testamenteiro, e peço-lhe que aceite para a sua coleção, a título de recordação, dois quadros de artistas italianos que escolherá entre os que se acham no meu quarto de dormir de la Tour-du-Roy."

— Segue-se a assinatura do senhor Marquês, disse o tabelião. As outras folhas, igualmente assinadas e rubricadas por ele, contêm escritos pela sua mão, o estado dos seus bens móveis e imóveis representando uma soma de seis milhões e quatrocentos mil francos, e a relação dos legados concedidos a velhos amigos, entre os quais citarei o Príncipe de Castel-Vivant, que tem de receber um diamante de dez mil francos, e os antigos criados!... Quer que leia, senhora Marquesa?...

— Para quê? murmurou com voz fraca. Que me importam essas coisas?...

O senhor Jomard olhou para a jovem viúva, e viu-a trêmula e quase inanimada no "fauteuil" onde se sentara para ouvir a leitura do testamento.

Nunca se viu prostração e aniquilação mais completas.

A altiva Marquesa nem já tinha energia para se revoltar. A sua presença de espírito, a sua força moral soçobravam com tudo o mais, no naufrágio inesperado das suas ambições.

O futuro falira-lhe.

Do mais elevado do luxo e da opulência, a ambiciosa Lazarine caía de repente naquela mediocridade, que, para muitos, seria ainda uma fortuna, mas que para ela era a miséria.

O tabelião apiedou-se da imensa angústia que se Ha no rosto da jovem viúva.

Empreendeu reanimá-la por meio de consolações banais e de pura cortesia.

— É certo, senhora Marquesa, disse ele, que eu não suspeitava de tal rigor nas últimas disposições do meu chorado cliente... Eu julgava, finalmente, que ele lhe deixaria pelo menos ampla posse de bens, e não sei explicar os motivos que ditaram este testamento. Parece, com certeza, deserdada, mas está de todo perdida a esperança?

A senhora de la Tour-du-Roy ergueu para o senhor Jomard um olhar sem calor e sem vida.

— Não o compreendo... balbuciou ela. De que esperança fala?...

"Se à hora da sua morte, existisse um filho, a senhora seria a tutora podendo dispor dos rendimentos, e depois da maioridade desse filho, ser-lhe-ia cedido mais um terço desse rendimento...

Lazarine encolheu os ombros.

— É uma zombaria, senhor? disse ela muito penalizada, bem sabe que a minha união foi infrutífera!...

— Oh! não, minha senhora, não sei coisa alguma, redarguiu o senhor Jomard, e pode ser que a senhora mesma o ignore... Aquele a quem deploramos não sucumbiu a nenhuma grande doença... Morreu no gozo pleno da sua saúde e de toda a sua força... Amava-a...

— Não! Cem vezes não!. Ele não me amava! exclamou a Marquesa, este testamento é uma obra de ódio!...

— Afirmo-lhe que ele a adorava!... prosseguiu o tabelião. Ora, não há coisa alguma que prove que não lhe sobrevivesse um fruto do seu amor...

Lazarine ergueu a cabeça e os seus olhos cintilaram.

— Explique-se! disse ela vivamente, mal compreendendo o sentido dessas palavras.

— É muito claro... A fortuna parece fugir-lhe hoje, mas quem sabe se o nascimento de um filho póstumo virá depo-la em suas" mãos... São raros esses casos, concordo, mas dão-se de quando em quando. Poderia citar-lhe muitos exemplos... E de mais o caso está previsto pela lei...

— A lei? ponderou Lazarine.

— Exatamente, senhora Marquesa. O Código Civil, título 79, capítulo 1.°, artigo 315.°, estabelece que não se pode contestar a legitimidade do filho nascido trezentos dias depois da morte do esposo, e é prevenindo esta eventualidade que não se consente à viúva que contrate segundo casamento sem passarem dez meses depois do falecimento, Código Civil, título 5.°, capítulo 8.°, artigo 228.°... Portanto, se presentemente se acha em começo de gravidez, o que é muito possível, o filho que nascesse daqui a duzentos e noventa e sete dias, seria sem dúvida um penhor de afeto do senhor Marquês meu nunca esquecido cliente, e esse nascimento estabeleceria direito à livre disposição durante vinte e um anos do rendimento de seis milhões e quatrocentos mil francos, e ao gozo indefinido do terço do rendimento desse capital.

— Eu ignorava completamente essas coisas, disse a jovem tornando-se pensativa, e agradeço-lhe imensamente ter-me ensinado, porque me permitem encarar o futuro sob outra forma.

O senhor Jomard estremeceu e olhou para Lazarine de um modo espantado. Parecia um feiticeiro novo no ofício, estupefato ao ver aparecer o fantasma que havia evocado.

— Adivinharia eu? balbuciou.

— Talvez... disse Lazarine mais pelo gesto do que pela voz.

— Senhora Marquesa, permita-me que lhe pergunte se tem algum motivo de esperança... redarguiu o tabelião.

— Querido senhor, respondeu a Marquesa sem hesitar, tenho mais do que esperança...

— Estimo bastante, senhora Marquesa, estimo bastante, afianço-lhe e peço-lhe para aceitar os sinceros parabéns.

— Aceito e agradeço.

O tabelião despediu-se, Lazarine quis acompanhá-lo até ao vestíbulo.

Domingos, assentado, esperava as ordens; levantou-se.

— Os trens estão prontos, e tudo está preparado para a partida da senhora Marquesa.

— Manda desaparelhar... já não parto... redarguiu a jovem..

Subiu ao primeiro andar, transpôs o limiar da biblioteca, examinou as estantes carregadas de livros, e achou sem dificuldade o que procurava.

Era um volume encadernado em marroquim, e com o título Os Códigos.

Levou o volume para o seu quarto e folheou-o com todo o empenho para procurar os artigos citados pelo tabelião, depois entregou-se a uma meditação demorada e profunda...

Por instantes o rubor purpureava-lhe as faces; um estranho sorriso desabrochava em seus lábios; e logo em seguida o rosto voltava à sua palidez e imobilidade marmóreas.

Seria necessário indicar qual o objeto das meditações de Lazarine, e apontar a causa dos seus repentinos rubores e dos seus sorrisos extravagantes?

Não o julgamos.

Os nossos leitores compreenderam facilmente o muito atrevido e quase louco projeto que as revelações do senhor Jomard fizeram nascer no espírito da jovem viúva, e que foi aceito com otimismo como duplo meio de fortuna e de vingança.

Reduzir a zero, graças a uma traição póstuma, as últimas vontades do Marquês, não era efetivamente a mais sedutora das vinganças para uma índole como a de Lazarine?

Por isso não hesitou.

— Assim será! disse ela, e conseguirei o meu fim!... Antes porém de o conseguir, que enormes obstáculos não lhe era preciso vencer? Mas como procederia para não se perder, para também não se comprometer, fazendo com que tivesse bom resultado tão espantosa aventura?

Grandes, complicadíssimas, e quase insuperáveis dificuldades surgiam de todos os lados.

Lazarine chamava em seu auxílio a legendária recordação da formosa e devassa Septimanie de Richelieu, Condessa de Egmont, ora fidalga, ora grisette, esquecendo a sua nobreza nos braços de qualquer amante plebeu que julgava adorar uma Toinete ou uma Madelon.

Era preciso proceder como aquela pecadora aristocrata, e entregar-se durante uma hora, como estranha, a um estranho qualquer.

Mas o meio para tal levar a efeito?

A Condessa de Egmont vivia livre em plena Paris, no meio da elegante corrupção do século XVII... Podia, à sua vontade, alugar uma mansarda com um nome estranho, e, disfarçada, concorrer aos Porcherons, o alegre "rendez-vous" dos formosos militares e galantes caixeiros.

Lazarine, pelo contrário, via-se no fundo de uma província, conhecida por toda a gente, encerrada no seu palácio e no seu luto, rodeada de criados a quem a menor suspeita transformaria em espiões... Mais uma vez... Como proceder?

Enquanto a jovem cansa a imaginação procurando a solução do problema, expliquemos rapidamente quais as causas a que tinha obedecido o senhor de la Tour-du-Roy, ao escrever o testamento que conhecemos.

Os nossos leitores ainda não esqueceram as leviandades de Lazarine durante as festas que se seguiram ao casamento.

Lembram-se ainda melhor dos desgostos que causou ao Marquês a descoberta inesperada daquilo a que Júlio Leroux chamava o episódio de Heitor Bégourde.

Chegava a dizer, de si para si, que sua jovem mulher absolutamente falia de senso moral, e às vezes de dignidade, não merecia nem a ternura profunda, nem a estima de um homem de bem, e que se a viuvez a tornasse livre, faria um deplorável uso da sua independência reconquistada.

Foi sob o império destas desanimadoras convicções, e no momento de levar Lazarine para Itália, que o senhor de la Tour-du-Roy tinha traçado aquelas disposições em que a sua profunda desconfiança transparecia em cada linha.

Não admitia que a sua viúva pudesse regozijar-se com a sua morte, zombar da sua memória, e, graças a absurdas liberalidades, deslumbrar Paris com um luxo escandaloso.

Durante todo o tempo que durou a viagem, e mesmo depois do regresso ao Loiret, a Marquesa portou-se irrepreensivelmente, e modificou os seus modos a tal ponto que deixou de parecer frívola.

Uma mudança tão repentina havia de ter algum motivo que o justificasse. Mais do que nunca, desejosa de obter o que lhe tinha recusado no ano precedente, um palácio e a vida em Paris, Lazarine procedia de modo a conseguir os seus fins.

O senhor de la Tour-du-Roy, que continuava apaixonado, desejava ter um pretexto para de novo se iludir. Não pôs em dúvida a transformação de sua mulher.

— Fui muito severo, disse consigo. Na sua muita mocidade estava a desculpa. Procedia como criança cheia de mimos, e a minha imaginação dava vulto a inconseqüências sem gravidade real... Hei de reformar o meu testamento...

Tomada aquela resolução, o senhor de la Tour-du-Roy fez como a maior parte dos velhos, transferiu de um dia para o outro o momento de realizá-la.

Passaram-se as semanas, depois,os meses, e o Marquês foi surpreendido pela morte antes de ter modificado o testamento depositado no cartório do tabelião de Orleans.

Voltemos a Lazarine.

Tinham decorrido quarenta e oito horas depois da cerimônia fúnebre.

A senhora de la Tour-du-Roy vendo que não conseguia formar um plano razoável e prático, começava a desanimar.

— Terei então de curvar a cabeça? Murmurava ela encolerizada. Hei de submeter-me à minha derrota e renunciar à desforra a que aspirava?

Pela centésima vez se interrogava deste modo, quando ouviu certo ruído inexplicável que atraiu a sua atenção.

Aproximou-se de uma janela, afastou as cortinas e ficou surpreendida de ver no pátio do palácio um moço oficial discutindo muito acaloradamente com Domingos.

Um instante depois, o velho criado grave, de rosto compungido, aparecia a Lazarine.

— Que há de novo? perguntou.

— Senhora Marquesa, um oficial... um tenente de hussardos...

— Bem. Que quer esse oficial?

— Muito me custa ter de dizê-lo, senhora Marquesa, vem aboletar-se aqui...

— Aboletar-se aqui!... repetiu a viúva.

— Sim, senhora Marquesa... e infelizmente está no seu direito. Os empregados da mairie cometeram a imprudência de lhe dar um boleto para o palácio de la Tour-du-Roy!... Não quis tomar a responsabilidade de obedecer... Que hei de fazer?

— É preciso alojar esse oficial. Dê-lhe o quarto de tapeçarias que fica por cima deste... Ponha-se ao seu serviço... Receba as suas ordens para as horas das refeições, e diga-lhe o motivo por que a dona da casa não pode fazer-lhe as honras de comparecer na mesa.

Domingos, a quem a presença de um intruso no palácio naquelas circunstâncias muito escandalizava, afastou-se de cabeça baixa para desempenhar a sua missão.

Um pouco depois Lazarine subia ao andar superior por uma escada oculta que comunicava com o seu quarto de toilette, abria uma porta tapada, afastava duas pesadas sanefas que serviam como que de reposteiros, e fitava um longo olhar no tenente adormecido.

Quando desceu, ao fim de cinco minutos, a esperança de um bom êxito refletia-se-lhe claramente no rosto.

O acaso declarava-se seu aliado... O impossível realizava-se.

Os leitores sabem o resto.

 

Ao romper do dia, a Marquesa saía do palácio, levando um segredo que ninguém no mundo, julgava ela, seria capaz de adivinhar...

Duas horas depois daquela retirada furtiva, o tenente Marcel Lugier sabia que a sua amante de uma noite, a pretendida Mariette, traída por um retrato, chamava-se realmente Lazarine, Marquesa de la Tour-du-Roy.

Apaixonado repentinamente por aquela fidalga fantasista, interrogava-se a si mesmo: É preciso fugir dela ou persegui-la? E respondia: Preciso tornar a vê-la!...

 

EPISÓDIO

Um intervalo de pouco mais de sete meses tinha decorrido desde a morte do Marquês de la Tour-du-Roy. Estamos portanto nos primeiros dias do mês de maio de 1875.

Sob dupla influência do clima e do sol, a vegetação tinha-se desenvolvido de um modo completo e maravilhoso, e os verdes campos do Loiret ostentavam com um esplendor incomparável as galas da primavera.

O palácio de la Tour-du-Roy, isolado no seu parque, estava situado a mais de que um quilômetro da primeira casa da aldeia, a que dava o seu nome, e a própria aldeia enriquecida e aumentada pelas liberalidades dos donos sucessores do palácio, compunha-se de duzentas casas de boa aparência rodeadas de jardinzinhos muito cultivados, onde as flores vulgares de cores vivas alegravam a vista.

Não havia poças de água estagnada pelos caminhos, nem montes de estrume às portas dos currais.

Por toda parte a ordem e o asseio; indícios de sofrível mediania e de certo bem estar.

A casa mais importante da vila depois da mairie e do presbitério, era a estalagem, construção bastante vasta, de paredes bem retocadas e caiadas, situada na praça ou campo da feira, e fronteira à mairie.

Por cima da porta balouçava-se uma tabuleta de zinco pitorescamente recortada, e que quando o vento a açoitava, produzia um grande estrondo.

A tabuleta pintada de azul, liam-se estas palavras em letras douradas:

 

CAVALO BRANCO

RICARDO — ESTALAJADEIRO

CAFÉ E BILHAR

(Aloja gente e cavalgaduras)

 

Um animal quase fantástico, cuja espécie era difícil determinar à primeira vista, ocupava o centro da tabuleta, e imitava um cavalo branco.

No "rez-de-chaussée" era a cozinha, muito grande, como todas as cozinhas das estalagens de campo, uma casa de jantar, e um botequim com o competente bilhar, segundo a tabuleta.

O bilhar era um cavaca da mais antiga moda; uma enorme quantidade de remendos muito mal deitados haviam transformado o pano numa renda; assim como era, constituía para o estabelecimento do tio Ricardo um atrativo de primeira ordem.

Os aposentos do estalajadeiro e da mulher, e quatro ou cinco aposentos mobiliados com uma simplicidade dos bons tempos, ocupavam o primeiro andar.

As duas criadas dormiam em cima de uma espécie de palheiro.

O moço da estrebaria, um corcundinha de pernas tortas, tinha a sua cama no curral, onde viviam em paz duas belas vacas.

Por detrás da casa havia um grande jardim rodeado de caramanchões para os bebedores amigos do ar livre, as trepadeiras, das vinhas virgens e da cerveja de Marte.

Um jogo da bola, outro do tonel e um balouço, dividiam o resto do terreno, e contribuíam para transformar a estalagem do Cavalo Branco num verdadeiro paraíso terrestre, fértil em prazeres de todo o gênero.

O tio Ricardo, assim o denominavam, apesar de não ter sobrinhos, dono e cozinheiro da estalagem e proprietário do café, prosperava e tinha fama.

É de se perguntar em que pode consistir a fama num povoado de quinhentas almas, e quais são os meios para aí fazer fortuna, responderemos isto: A freguesia do botequim compunha-se não somente de campônios da terra que iam ali tomar o seu café e ler o jornal, mas também dos criados do palácio, que eram, em grande número, atraídos pelos copinhos de absinto e pelo bilhar, e que gastavam uma grande parte dos seus ganhos no jogo.

E não era só isto.

O tio Ricardo tinha estado em tempos empregado em casa do Marquês Roberto como primeiro ajudante de cozinheiro. Não lhe faltava mérito, e a sua legítima ambição consistia em vir a ser primeiro cozinheiro.

Como uma pequena herança lhe permitiu deixar o serviço do palácio, casou, comprou a estalagem, adquiriu uma reputação séria, e passava por ser um cozinheiro de primeira ordem.

Os burgueses abastados dos arredores, iam, de passeio, comer à sua casa belos jantares, encomendados de véspera depois falavam com grande calor dos famosos acepipes de que tinham provado.

Ricardo era bom conhecedor de vinhos.

Tinha uma adega que era gabada por aquelas dez léguas mais próximas, na qual havia, não grandes produtos de ricas lavras, mas velhos vinhos da Borgonha, de Bordeaux, e de Touraine, bem escolhidos, tratados com cuidado, de uma qualidade superior, e de um preço modesto.

Por ocasião das caçadas o ex-ajudante de cozinheiro não podia alojar todos os que aí afluíam, e via-se no Cavalo Branco (como n reino dos céus) muitos chamados e poucos eleitos.

Tiravam-se então os colchões dos leitos, e cada quarto recebia dois hóspedes.

O bilhar transformava-se num vasto dormitório, onde alguns desgraçados procuravam conciliar o sono, não o conseguindo porém.

Eram aqueles os mais famosos momentos da estalagem, onde todas as noites se ouvia por entre alegres canções o tinir dos copos e das garrafas, os caçadores saudavam com prolongados bravos. O aparecimento daqueles indescritíveis molhos de perdizes e prodigiosos guisados de lebre, que o tio Ricardo preparava tão bem.

 

Num dos primeiros dias do mês de maio de 1875, um pouco antes de anoitecer, uma carruagem de aluguel, vinda de Orleans, parou à porta do Cavalo Branco.

Como estavam desocupados todos os quartos, a chegada de um. viajante era para o estalajadeiro uma boa fortuna.

Por isso, o rodar do veículo e o estalar do chicote do boleeiro atraíram à porta de sua casa o próprio tio Ricardo, vestido com o tradicional fato de mestre cozinheiro, boné branco, jaleco da mesma cor, e avental também branco apanhado na cintura.

O estalajadeiro, homem dos seus quarenta e cinco anos aproximadamente, de rosto redondo e alegre, tinha a prosperidade estampada nos olhinhos brilhantes e nas faces rubicundas.

A carruagem era uma espécie de antigo cabriolé de forma muito extravagante, de duas rodas, muito alto, coberto com um toldo-circular e cheio de poeira, e cujos solavancos pareciam desconjuntá-lo.

Na traseira daquele singular espécime de carroça anti-diluviana,. ia presa por meio de cordas uma grande mala de couro, uma quadrada caixa de faia, e dois estojos, um contendo um pára-sol gigantesco, o outro um daqueles cavaletes portáteis de que os artistas se servem em viagem, e que não fazem, quando fechados, mais volume que uma bengala grossa.

Um mancebo, que vinha sentado debaixo do toldo ao lado do condutor, apeou-se.

Era um elegante rapaz, de aparência militar e grandes bigodes pretos.

Parecia ter vinte e sete ou vinte e oito anos.

O rosto pálido e magro, e os olhos brilhantes, tinham certo cunho de rara distinção, mas exprimiam uma profunda melancolia e uma espécie de sofrimento moral e indefinível inquietação.

O vestuário muito asseado do novo recém-chegado, consistia num fato completo de pano cinzento, que fazia realçar a elegância da sua estatura, e as suas maneiras desembaraçadas de cavaleiro.

Um chapéu de fantasia da mesma cor do fato, luvas "gris-perle" e botas de polimento, formavam um conjunto que pareceu agradar de todo ao tio Ricardo.

Por isso, apressou-se a tirar o seu barrete branco, e a descerrar os grossos lábios num sorriso obsequioso.

— Pode alojar-me, senhor estalajadeiro? perguntou o rapaz.

— Se posso, senhor... respondeu o proprietário do Cavalo-Branco. Tenho belos quartos no primeiro andar... Pode escolher...

— Não tem dúvida... De todo o modo ficarei bem. Peço-lhe que mande conduzir a minha mala e os outros objetos para um quarto.

O estalajadeiro deu as suas ordens, e em seguida redarguiu:

— O senhor tenciona passar alguns dias em la Tour-du-Roy?

— Pode ser... isso depende... conforme. Sou artista, e venho fazer alguns estudos, cópia do natural, nestes sítios que são pitorescos, segundo me disseram em Orleans. Se não exageraram, a minha estada há de prolongar-se.

— Oh! Nesse caso, exclamou o estalajadeiro, com certeza que o senhor ficará em nossa casa não só semanas, mas até meses inteiros... estes arredores são magníficos... todos os anos vêm aqui pintores de Paris como vem o senhor... porque o senhor é de Paris... bem se vê nas suas maneiras.

Como o mancebo não julgasse conveniente responder a esta pergunta indiscreta, o tio Ricardo prosseguiu:

— O senhor fica?

— Com certeza...

— O senhor há de ficar satisfeito... Os meus preços são cômodos... A minha adega não receia concorrência, e enquanto à minha cozinha, posso afirmar que tem na terra uma reputação bem estabelecida e das mais legítimas... O senhor deixará de duvidar quando souber que fui o ajudante do primeiro cozinheiro do falecido Marquês de la Tour-du-Roy, e que fiz muitas vezes o seu lugar, interinamente, no palácio. E menos, ainda, duvidará, quando tiver provado de alguns dos meus pratos.

A criada veio interromper o entusiasmo do amo, anunciando que o quarto n.° 1 estava preparado.

— Se quer seguir-me, disse o estalajadeiro, vou conduzi-lo...

Os dois atravessaram a cozinha, subiram uma escada e entraram no quarto n.° 1, cuja porta no primeiro andar ficava fronteira:à escada.

— É o melhor... disse o tio Ricardo, daqui se vê a praça e a mairie... Nos dias de feira é muito alegre...

O quarto n.° 1, ainda que fosse o melhor da casa, não brilhava nem pelo lado do luxo, nem mesmo pelo lado da comodidade.

Um papel cinzento pintado com flores azuis, que não valia mais de dez soldos a peça, revestia as paredes.

Quadros litográficos representando cenas patéticas do velho melodrama: Trinta anos da vida de um jogador, e metidos em molduras de madeira já enegrecidas, constituíam a ornamentação artística do quarto.

Sobre o fogão, que era de madeira pintada fingindo mármore, estava um relógio de zinco parado, em meio de dois vasos de porcelana comum, muito mal dourados e pintados.

Quatro cadeiras com assentos de palhinha, uma mesa de pinho, uma cômoda de nogueira difícil de abrir, mais difícil ainda de fechar, e um leito de pau branco com cortinas de paninho amarelo ornadas de rendas compunham toda a mobília do aposento.

Convém ajuntar que o leito tinha uma enxerga em lugar de enxergão, e por cima dois colchões tão chatos como dois bolos.

O mancebo lançou para tudo aquilo um olhar indiferente, o que provava ou uma profunda preocupação, ou um completo desprendimento das coisas da terra.

— Agrada-me este quarto, disse ele.

 

O QUE O AMOR FAZ

O senhor, se quiser, pode comer na sala de jantar... começou o estalajadeiro.

Para mim, é o mesmo, respondeu o mancebo.

— Mas então ficará o senhor só, porque não temos agora ninguém, continuou o tio Ricardo. O senhor comeria mais à vontade e mais distraído na sala do café, numa mesinha... Ao menos assim ouviria conversar e julgar-se-ia ainda num restaurante de Paris.

— Sirva-me onde lhe parecer.

— A que horas quer o senhor jantar?

— Quando estiver pronto.

— Daqui a meia hora... Convém-lhe?

— Convém.

O estalajadeiro retirou-se, muito contente com aquele hóspede, que com t;ido se contentava, e cuja estada no Cavalo Branco parecia que havia de durar muito.

Ficando só, o mancebo aproximou-se da janela que abriu.

Anoitecia. Começavam já a brilhar as estrelas no azul escuro do céu.

A estalagem estava situada no ponto mais elevado da vila; das suas janelas viam-se por cima dos telhados das casas fronteiras, grandes bosques que o crepúsculo da tarde fazia parecer negros.

— Ali estão os bosques do parque, murmurou o recém-chegado, e por detrás dos bosques fica o palácio de la Tour-du-Roy... Ela está ali... Entre ela e mim há um pequeno espaço fácil de transpor. Hei de vê-la talvez amanhã... Só com esta idéia o coração me palpita, e parece pequeno o peito para o conter.

Digamo-lo já, o viajante cuja chegada ao Cavalo Branco tanto agradou ao tio Ricardo, não era outro senão Marcel Lugier, o tenente de hussardos, o herói da aventura do prólogo desta narrativa.

Sabemos que Marcel, ao deixar Orleans, levava uma recordarão que não devia extingüir-se.

Aquela recordação, como a túnica de Dejanire, escaldava a carne do centauro Nessus de mitológica memória, fazia arder nas suas veias e no seu cérebro uma chama inextinguível.

Uma boa fortuna banal com uma rapariga sem importância, por mais esplêndida e maravilhosa que fosse a beleza dessa rapariga, não deixaria em seu espírito mais do que uma leve recordação, como tantas outras intrigas amorosas da vida de guarnição, cujas heroínas esquecidas se assemelham aos vagos fantasmas que povoam as longas insônias...

Mas não era assim.

Numa sala mal se atreveria a fazer uma discreta e respeitosa corte àquela fidalga de quem se havia tornado amante de um modo tão estranho e tão inverossímil...

Constantemente, a toda hora, de noite e de dia, a imagem vivíssima da fidalga perseguia-o, unia-se a ele, rodeava-o, não o abandonava.

Loucamente apaixonado, dominado por uma espécie de delírio, entregava-se sem resistência à idéia fixa que conduz à loucura.

Pensava seriamente em quebrar a sua carreira, para se aproximar da Marquesa de la Tour-du-Roy...

A si dizia, a si repetia, que ela ficara sendo, daí para o futuro, toda a sua vida.

Perguntava a si mesmo para que havia de viver, se ela não desvia mais pertencer-lhe?

E por que não lhe pertenceria de novo? Viúva e livre, negaria ela direitos que livremente concedera?

Por que não havia ela de ser sua mulher?

É certo que existia uma grande distância entre o simples tenente e a fidalga imensamente rica, mas a fidalga entregando-se ao tenente não tinha transposto essa distância?

Todas estas objeções, todas estas idéias, borbulhavam e redemoinhavam constantemente no cérebro excitado de Marcel.

O mancebo viveu num suplício durante a sua estada em Vesoul.

À medida que o tempo decorria, que os meses se sucediam uns aos outros, a sua cabeça cada vez mais se perturbava, o seu gênio bom e franco azedara-se, tornara-se provocante, agressivo, insuportável...

Os seus camaradas, que até então o tinham adorado, desconheciam-no, começaram a achá-lo impossível, e encolhiam os ombros quando falavam dele.

— É fora de dúvida que Marcel Laugier está doido! diziam uns para os outros. É pena, porque era um belo rapaz e um bom oficial...

A sua mudança física operava-se ao mesmo tempo que a sua metamorfose moral.

Pela influência da febre lenta que o minava, as faces cavaram-se-lhe, profundas olheiras se lhe desenharam no rosto, um brilho estranho animava-lhe o olhar.

O seu coronel, que lhe consagrava o mais vivo interesse, pegou-lhe um dia pelo braço e disse-lhe num tom afetuoso:

— Meu caro tenente, o senhor está adoentado... — Mas, coronel... murmurou o mancebo.

— Não negue! O senhor está doente... Salta à vista... É do corpo ou do espírito? Ignoro-o e não o interrogo. As causas do seu sofrimento são segredos seus... O que sei é que precisa curar-se... Peça uma licença de seis meses... Apoiarei o seu pedido... Uma viagem, várias distrações e prazeres restabelecerão a sua saúde momentaneamente destruída, e regressará melhor do que nunca...

Para Marcel, aquela licença tão graciosamente oferecida era a possibilidade de tornar a ver a Marquesa.

Aceitou a proposta com entusiasmo e reconhecimento, e procurou os melhores meios de aproveitar a fortuna que de repente se lhe oferecia.

Ir direito ao palácio e apresentar-se à jovem viúva era impossível, por um grande número de razões que se adivinham sem ser necessário mencioná-las.

Era necessário descobrir outro expediente. Achou-o sem custo e formou logo o seu plano.

Como se entregava à pintura nos seus momentos de ócio, nada lhe seria mais fácil do que fazer-se passar por pintor.

Iria alojar-se com a sua caixa de tintas e o seu cavalete numa estalagem qualquer da vila de la Tour-du-Roy que ele sabia que ficava a pequena distância de Orleans; ali, a pretexto de estudar paisagem, passaria a vida no campo, nas proximidades do parque, pelas estradas, e a sua boa estrela, com certeza, lhe permitiria, mais cedo ou mais tarde, encontrá-la, e falar-lhe sem a comprometer.

Tal plano oferecia, mesmo pela sua simplicidade, probabilidades de bom êxito.

Por isso, logo que se achou de posse da sua licença, Marcel Lugier partiu para Paris; mandou fazer fato à paisana que não tinha, guardou a fita encarnada da condecoração, partiu para Orleans; dirigiu-se ao guarda-portão do palácio, onde sete meses antes havia experimentado tão prodigiosa e incompreensível felicidade, e interrogou-o.

O porteiro, como o tinha visto fardado, não o reconheceu, e respondeu-lhe que a senhora Marquesa estava em la Tour-du-Roy.

Marcel meteu cem soldos na mão do bom homem, e pediu-lhe que lhe permitisse visitar como artista parisiense os objetos de arte reunidos nas salas de recepção, e de que tinha ouvido falar com tanto louvor.

O porteiro concedeu-lhe facilmente aquele favor, que já o sabíamos pelo velho Domingos, nunca se recusava a estranhos, e pegando nas chaves do palácio, conduziu o tenente ao "rez-de-chaussée" cujas portas e janelas abriu logo.

Marcel, já se sabe, tinha um só fim, tornar a ver aquele maravilhoso retrato de Lazarine pintado por Chaplin e que descrevemos no começo deste romance.

O seu exame, pois, na primeira sala foi superficial e de pura formalidade, o que não deixou de admirar um pouco o seu guia, mas logo que penetrou na tal sala levantou com mão trêmula o pano verde que ocultava o quadro colocado no cavalete, e entregou-se a uma contemplação ou antes a uma adoração, que o porteiro estranhou e achou demorada.

Mas como tinha recebido cinco francos, não disse nada, e deixou o visitante extasiar-se à sua vontade.

Aquele êxtase terminou, contudo.

Marcel, levando na alma um vulcão, cujo ardor aumentara a imagem quase viva de Lazarine, saiu do palácio e cuidou de procurar uma carruagem de aluguel que pudesse conduzi-lo a la Tour-du-Roy.

Achou aquele singular veiculo que mostramos aos nossos leitores, e cujo cocheiro conhecia por acaso a vila e a estalagem do Cavalo Branco.

O tenente fez preço com o cocheiro e partiu logo.

Assistimos à sua chegada.

Meia hora depois da instalação do mancebo no quarto n.° 1, o tio Ricardo mandou uma das criadas preveni-lo de que o jantar o esperava.

Marcel desceu, achou a mesa posta no botequim, e pareceu-lhe que o jantar não havia de estar mau.

A mesinha coberta com uma toalha muito branca iluminada por duas luzes, apresentava um aspecto agradável com a sua terrina fumegante, os seus pratos de velha faiança, e as suas duas garrafas cobertas com uma venerável poeira que atestava a muita idade do seu conteúdo.

O ex-ajudante do cozinheiro do Marquês Roberto conservava-se de pé junto da mesinha.

— Espero que o senhor há de ficar contente, disse ele. Demais, profeto ao senhor, que amanhã hei de servi-lo melhor; hoje estava desprevenido...

— Sou fácil de contentar... redarguiu Marcel.

— É pena! exclamou o tio Ricardo.

— Por que é pena?

— Sendo o senhor fácil de servir, não haverá mérito em satisfazê-lo, e sinto...

Apesar da sua preocupação, o tenente não pôde deixar de sorrir e pôs-se à mesa.

Nunca um jantar improvisado em tão pouco tempo, foi mais agradável e atraente pela sua simplicidade.

A sopa feita da olha da panela, estava muito alourada, e vinha acompanhada de um pires com queijo parmesão.

À sopa sucedeu-se uma travessa de trutas fritas, depois vitela guisada com lagosta, em seguida uma omelete de cogumelos, frangão de recheio corado, acompanhado de salada, e por último um pudim de cerejas, de uma aparência e cheiro inexplicáveis.

O vinho era velho e generoso, cor de rubi desmaiado, com reflexos amarelos, em conseqüência de dez anos de garrafa.

O tio Ricardo lembrou ao hóspede que tinha ao seu dispor Bordeaux, Borgonha e outros, cujo perfume e frescura podia garantir.

Marcel enquanto ia quebrando nozes, foi declarando que nunca, tinha jantado melhor, e que o vinho lhe parecia excelente.

O estalajadeiro muito satisfeito levantou a sobremesa, e colocou, em frente do mancebo uma chávena de café e um frasco de aguardente.

O tenente tirou da algibeira a sua charuteira.

— Senhor Ricardo, disse ele, peço-lhe que aceite um destes cilindrados, e conversemos um instante... Tenho algumas informações a pedir-lhe.

— Estou às suas ordens, senhor, respondeu Ricardo.

 

INFORMAÇÕES

Apesar do que tinha dito o dono do Cavalo Branco, a respeito da animação parisiense do seu botequim, o estabelecimento naquela noite recomendava-se pelo mais absoluto silêncio.

Dois campônios assentados a um canto em frente de uma botija de cerveja, e discutindo em voz baixa as condições de uma compra, eram os únicos fregueses.

Estas condições de solidão quase absoluta e de silêncio relativo eram favoráveis à conversação que Marcel Lugier desejava entabular com o estalajadeiro.

— Meu caro, sou artista, repito-lhe, começou o tenente, e venho aqui para trabalhar copiando do natural... Terei de ir muito longe para procurar pontos de vista dignos da atenção de um paisagista.

— Encontra-os por toda a parte e sem se incomodar muito... redarguiu o estalajadeiro. Esta vila fica quase em meio de um bosque, como não podia deixar de notar quando veio de Orleans. Abundam aqui as grandes árvores, os enormes rochedos, cristalinos regatos, e permita-me que lhe diga que os senhores pintores procuram de preferência estas coisas para copiar.

— Quem lhe afirmou isso não o enganava. Há por aqui algumas ruínas pitorescas?...

— Ruínas?... repetiu o tio Ricardo.

— Ouvi falar em palácios antigos, abandonados, meio demolidos e cobertos de era...

O estalajadeiro abanou a cabeça. — Isso não, pelo menos que eu saiba, redarguiu ele. Palácios só temos o de la Tour-du-Roy, que graças a Deus, não está demolido, nem tão cedo o será, porque é bem construído e está quase novo, apesar de já ser antigo.

— Falaram-me dele como de uma residência bela...

— Magnífico, senhor. No Loiret, só há o palácio de Gordes. que possa comparar-se com ele... fica à distância de seis léguas.

— Também me gabaram muito o parque...

— Ah! É uma coisa soberba!... Cinqüenta hectares, senhor, murados!.. matas, ruas cobertas de verdura, onde faz sombra nos dias mais ardentes, jogos de água, estátuas, quiosques e mais coisas. Um paraíso terreal!

— Julga que me darão licença para o ver?

— Lá com isso, meu senhor, dir-lhe-ei que não conte muito...

— Então por quê? Geralmente os artistas e os estrangeiros são admitidos, pedindo, a visitar os parques tão notáveis como aquele de que estamos falando...

— Bem o sei, e assim acontecia no tempo do defunto Marquês... o guarda do pavilhão da entrada tinha ordem de deixar passar as pessoas decentes que desejavam visitar as suas terras...

— E agora?

— Há sete meses que a senhora Marquesa é viúva, e deu uma ordem que não admite exceções: recusar absolutamente a entrada a quem quer que seja... A senhora vive no mais absoluto retiro...

— Oh! Absoluto!

— Sim, senhor... o mais absoluto... A senhora Marquesa apenas recebe o senhor Júlio Leroux, seu pai, as suas duas irmãs, e o senhor Conde de Gordes, seu cunhado... e de tempos a tempos... não muitas vezes...

— A senhora de la Tour-du-Roy, com certeza teve muita pena do marido?

— Podemos acreditá-lo... O senhor Marquês tinha quarenta anos mais do que sua mulher, mas era a nata dos maridos... A senhora Marquesa amava-o muito, e pode-se dizer que leva presentemente uma vida exemplar, e não pensa nada em se aproveitar da sua liberdade, como fariam tantas outras. É deveras honroso para o defunto Marquês.

— A senhora Marquesa é muito nova?

— Ainda não tem vinte anos.

— Dizem que é muito bela...

— A esse respeito, senhor, nunca será de mais tudo quanto se diga. A senhora é linda quanto se pode ser. Acho-lhe só um defeito cá para o meu gosto, é de ter os cabelos cor de cobre. Mas há muita gente que gosta disso. O senhor, que é artista, gosta dos cabelos encarnados?

— Isso depende da cabeça em que estão colocados. A Vênus de Ticiano era ruiva.

— Não conheci esse sujeito, nem essa senhora, murmurou o estalajadeiro.

— Enfim, redarguiu o tenente, espero julgar por meus próprios olhos, dessa beleza que diz ser tão maravilhosa.

— Como? Para julgar seria preciso ver a Marquesa?

— Com certeza.

— E o senhor não a verá.

— Não a verei em sua casa, é certo, mas posso vela fora.

— Então onde?

— Pela estrada, na sua carruagem, à hora do passeio. Por mais exclusivo que seja o amor da senhora Marquesa pela solidão, deve, contudo, imagino eu, transpor algumas vezes os limites do seu parque...

— Engana-se, senhor. Se tivesse vindo há cinco ou seis semanas, era possível ter a probabilidade de ver a senhora Marquesa guiando os seus poneys, mas presentemente não sai do parque...

— Nunca?

— Nunca! Nunca!... E tem para isso muito boas razões...

— Quais são?

— Ordens do médico.

— Essa senhora está doente? exclamou Marcel.

— Como costumam estar ordinariamente as senhoras no seu estado. A gravidez está já muito adiantada, e não pode fazer grandes movimentos.

Ao ouvir aquelas duas palavras: a gravidez, o mancebo ficou deslumbrado.

Parecia-lhe sentir no coração um como que choque elétrico.

— A senhora Marquesa está grávida! balbuciou ele com uma voz mudada.

— Sim, senhor... e é muito natural! Há sete meses que o senhor Marquês morreu... O filho virá ao mundo nas condições exigidas pela lei... e se Deus quiser, o nome de la Tour-du-Roy não se extinguira. Pobre senhor Marquês, como ele teria sido feliz! Um filho era o seu sonho... Quanto isso o remoçaria!

O tio Ricardo poderia continuar indefinidamente.

Marcel não lhe prestava atenção, ou para melhor dizer, tinha deixado de ouvir.

Estava entregue às suas idéias. Fazia-se luz nas misteriosas trevas da aventura de Orleans.

Repetia constantemente de si para si:

— Ela está grávida! Se o filho que traz em seu seio fosse meu filho, e se ela não o pudesse duvidar, um laço indissolúvel nos prenderia um ao outro, e debalde ela tentaria despedaçá-lo!...

O estalajadeiro continuava falando ao seu ouvinte que não lhe prestava atenção.

De repente, Marcel ergueu a cabeça e aplicou o ouvido.

Uma frase do tio Ricardo acabava de arrancá-lo repentinamente aos pensamentos que o ocupavam.

Eis a frase:

— O senhor pode facilmente imaginar o desapontamento do herdeiro quando receber a notícia daquela inesperada gravidez... Eu não o conheço, mas ao pensar na cara que ele há de fazer, rio a meu pesar.

— O herdeiro? repetiu Marcel, havia um herdeiro?

— Sim, senhor...

— A senhora Marquesa não era pois a herdeira universal do seu marido?...

— Não, senhor...

— Mas como?

— É uma coisa muito complicada e que surpreendeu a todos porque julgava-se geralmente que o Marquês deixaria tudo à senhora Marquesa, a quem muito amava... Pois bem! Não sucedeu assim! Havia um testamento, e por ele o defunto Marquês, prevendo o caso de vir a morrer sem filhos, deixava a sua fortuna a um parente afastado, certo Conde de la Tour-du-Roy que nunca foi visto cá na terra, de modo que à senhora Marquesa só ficava a sua fortuna pessoal e o usufruto do palácio.

— É possível?... murmurou o tenente.

— É possível e certo, redarguiu o estalajadeiro. Jomard o tabelião de Orleans, no dia imediato ao da morte desastrosa do senhor Marquês, leu o testamento à senhora Marquesa... Falou dele a algumas pessoas, e a pouco e pouco a coisa espalhou-se... um mês depois já todos o sabiam... A senhora é muito estimada... achou-se injusto o testamento, porque enfim, quando uma menina linda como o sol casa com um homem que poderia ser seu avô, e se porta bem com ele, tem todo o direito para esperar que o marido não a deserde em proveito de pessoas que lhe são quase estranhas. O senhor é também da minha opinião? Pois não?

— Com certeza.

— Por isso, quando se soube da gravidez, foi sincero o regozijo, e as raparigas da comuna foram, a modo de felicitação, levar à senhora Marquesa um ramo muito bonito.

Marcel achava-se, moralmente, como o homem tomado de embriaguez.

A cabeça andava-lhe à roda.

A chama das duas velas dispostas em cima da mesinha, parecia descrever em redor dele grandes círculos, de onde se escaparam multidões de luzinhas.

Levantou-se.

— O senhor vai já deitar? perguntou o estalajadeiro.

— Estou muito cansado... respondeu o mancebo. Obrigado pelas suas informações, meu caro hospedeiro; demonstram-me até a evidência que a terra é das mais pitorescas. Já contava com isso, e fico bastante contente...

— O senhor começa a trabalhar amanhã?

— É possível.

— Há de precisar de um rapaz para lhe levar a bagagem?...

— Sim, mais tarde... Quero primeiro explorar o campo como simples parisiense, para procurar belos pontos de vista.

— Quando o senhor quiser há de fazer o favor de mo dizer de véspera.

— Está dito.

— Tenciona almoçar antes de sair?

— Ainda não sei... Pode ser que saia muito cedo... E, nesse caso, hei de voltar aí por onze horas.

— Como quiser. A mesa há de estar posta quando voltar.

A obsequiosa verbosidade de Ricardo e as suas múltiplas perguntas fatigaram estranhamente Marcel, cujo pensamento estava fora dali.

— Boa noite, senhor estalajadeiro, disse ele pegando numa das velas e dirigindo-se para a porta.

Julgava-se livre, mas o estalajadeiro não o entendeu assim, e considerou como um dever acompanhá-lo ao seu quarto para se certificar pelos seus próprios olhos de que não lhe faltava coisa alguma.

Passada aquela primeira revista, o atencioso estalajadeiro desejou as boas noites e retirou-se.

— Até que finalmente!... murmurou o tenente.

 

EXPLORAÇÃO

Quando Marcel se viu só, a mais violenta tempestade se desencadeou era seu cérebro.

Aquele vago lampejo que brilhou, quando pela primeira vez o estalajadeiro falou em gravidez de Lazarine, tornava-se em luz vivíssima.

O tenente, tomado de uma acesso, misto de cólera e de desgosto, compreendera o singular papel que havia representado sete meses antes em Orleans.

As razões a que tinha obedecido a senhora de la Tour-du-Roy surgiam agora de um modo claro e brutal no seu espírito desenganado.

A fidalga disfarçada em criada que lhe tinha pertencido no quarto de tapeçarias do velho palácio, não era nem uma mulher exaltada, possuída de um súbito capricho, nem uma Messalina, nem uma louca!

Era muito pior do que isso! Era uma criatura ambiciosa que pisava aos pés toda a dignidade, e todo o pudor! Que não tinha nem o respeito de si nem do morto cujo nome usava, entregando-se nos braços de um estranho para não perder uma fortuna!

Entre aquela fidalga e uma cortesã, que diferença havia? perguntava Marcel a si próprio; e respondia a si mesmo: A diferença do preço e nada mais!...

A fidalga do mesmo modo que a cortesã, tinha vendido o seu corpo, uma para ganhar alguns escudos, a outra para salvar milhões... uma para pão, a outra para luxo...

Com certeza que não era a cortesã quem merecia menos indulgência!...

O mancebo, nos seus transportes de raiva contra a odiosa ação do que tinha sido cúmplice inconsciente, disse que o desprezo mataria em seu coração o amor, que abominava tão execrável criatura como o era a Marquesa, e que partiria no dia imediato sem ter tentado aproximar-se dela...

Disse-o com viva fé, e verdadeira convicção, o que, num oficial de hussardos, provava grande ingenuidade.

Mas quando se viu que no homem o desprezo pudesse aniquilar o amor?... Pois não se vêem todos os dias loucas paixões, que conduzem ao crime e até ao suicídio, inspirados por mulheres que conheceram todas as vergonhas, e chafurdaram no lodo de todas as infâmias?

Mas quando dizia que já não a amava, e que queria fugir, não contava com o lado material das ternuras exclusivamente sensuais que a beleza plástica e a volúpia despertam.

Após um longo e temeroso combate entre o desprezo e o amor, o desprezo foi vencido.

A idéia de que a Marquesa quando caíra em seus braços, não vira nele mais do que um meio, tornou-se um excitante, uma espécie de tempero diabólico para a sua paixão condenável.

Jurou tirar a desforra, e dar noites irmãs àquela cuja recordação lhe fazia ferver o sangue.

Jurou possuir de novo a sua estranha amante e obrigá-la a entregar-se, mas desta vez não por cálculo nem por interesse.

Marcel, que só tarde conseguira conciliar o sono em conseqüência daquelas lutas do espírito, não acordou senão ao romper do dia.

A sua primeira idéia ao abrir os olhos foi esta:

— Eu amo-a apesar de tudo! Apesar de tudo adoro-a, e mais do que nunca quero tornar a vê-la...

Tornar a vê-la! Sim. Mas como?

Apresentar-se no palácio? nem pensar nisso.

A senhora de la Tour-du-Roy não recebia pessoa alguma, à exceção de seu pai, de suas irmãs, e de seu cunhado e não admitia exceção alguma àquela regra geral... O tio Ricardo tinha-o afirmado na véspera à noite.

Com certeza que a exceção não se daria para ele.

Para que tentar uma resolução já condenada?

Ou a Marquesa não se lembraria já do nome de Marcel Laugier, que talvez nunca chegara a saber! ou com certeza que aquele nome lhe recordaria uma hora da sua vida que com certeza desejaria esquecer, tanto num caso como no outro, as portas conserva-se-iam fechadas, e, no segundo caso, mais ainda do que no primeiro.

Faltava o pretexto a Marcel para chegar junto da viúva que julgava não conhecer, e que se sepultara em uma como que absoluta solidão.

Revoltando-se contra a inflexível ordem da dona da casa pareceria um louco, e o criado encarregado de lhe recusar a entrada sorriria ironicamente.

E contudo queria ver a Marquesa, queria falar-lhe, e a todo o custo!

Mas ainda uma vez, como?

Marcel, ao cuidar da sua toilette formulara em seu espírito as reflexões que precedem, e dirigira a si mesmo a pergunta que acabamos de reproduzir.

À falia de uma solução mais prática, fez um gesto que significava claramente:

— Para que me hei de inquietar antes do tempo? O acaso não abandona os que confiam nele... auxiliar-me-á...

Às oito horas da manhã o mancebo saiu da estalagem do Cavalo Branco... sem interrogar o tio Ricardo, tão bem sabia a direção que tencionava tomar, e seguiu pelo caminho que conduzia à grade do parque, grade flanqueada pelos dois pavilhões que descrevemos no começo desta obra.

Ali via-se a frontaria do palácio, cujos vidros os raios de sol transformavam em refletores deslumbrantes. Uma luz vivíssima e brilhante iluminava aquele gigantesco edifício em que os anos tinham impresso a sua cor esverdeada.

Marcel não podia esperar, pelos menos naquela ocasião, ver abrir-se na sua presença aquela grade.

Parou e contemplou por muito tempo o imponente edifício cujas paredes lhe ocultavam a mulher adorada.

— Se ao menos, murmurou ele, o seu vestido flutuante me aparecesse no terraço... É impossível... é muito manhã. As fidalgas a estas horas dormem ainda...

Acreditando no pré-juízo de todos os burgueses, de que as mulheres do grande mundo fazem do dia noite, e da noite dia, o tenente pôs-se a caminho muito resolvido a contornar o muro do parque, e penetrar dentro se não fosse por meio de arrombamento, ao menos por escalada, e embrenhou-se no bosque.

Não precisou ir muito longe para encontrar o que procurava.

A um quilômetro aproximadamente da grade e num sítio onde o cerrado da floresta ocultava o mancebo a todos os olhares, havia duas árvores de troncos nodosos muito próximas uma da outra, e cujos ramos se entrelaçavam, uma das árvores estava plantada no parque, e a outra no bosque, separadas apenas pelo muro, sobre cujo espigão se entrelaçavam.

Nada mais fácil do que chegar àqueles ramos; os nós e os rebentos vigorosos ofereciam numerosos pontos de apoio.

— Como eu tinha razão em contar com o acaso, disse consigo o tenente... Ei-lo que me oferece uma escalada... É um feliz presságio.

E tratou logo de subir, e chegou facilmente aos troncos grossos que formavam uma como que espécie de ponte na qual se colocou de pé.

Naquele observatório aéreo, ficava sobranceiro ao parque, mas pouco via dele, porque a vegetação opulenta interceptava o olhar.

Inferior a ele e em linha reta estendia-se a alameda que corria ao longo do muro, assombrada pela dupla fileira de tílias seculares que formava uma espécie de abóbada de verdura.

Sem hesitar, mesmo sem refletir, Marcel dependurando-se pelas mãos num ramo, saltou para aquela alameda e seguiu-a em direção ao palácio.

Era, com certeza, uma das mais imprudentes ações, e o mancebo arriscava-se muito.

Podia ser surpreendido por um guarda ou por qualquer criado.

Como havia de explicar então a sua presença num recinto absolutamente fechado, e cujas portas nunca se abriam?

As suas intenções, que não poderia bem explicar, pareceriam com razão suspeitas, e desagradáveis conseqüências podiam resultar daquela loucura.

Sabia bem isso, mas não considerava no perigo.

Tinha excelentes pernas; em caso de surpresa fugiria, dizia ele consigo, e naquele parque imenso, cheio de tílias e bosques, acharia com certeza meio de desnortear os que o perseguissem, fazer-lhes perder os vestígios, e sair como entrara.

Além de que contava com a sua estrela como havia contado com o acaso...

O acaso mostrava-se favorável... A estrela não o abandonaria.

Contudo, andava com precaução, escondendo-se por detrás das árvores, aplicando o ouvido, pronto a bater em retirada ao menor ruído assustador.

Mas àquela hora da manhã a solidão era completa. Apenas se ouvia o murmúrio da água nas cascatas, o relinchar dos cavalos e o chilrear de nuvens de passarinhos saudando com os seus alegres cânticos o aparecimento da primavera e da luz vivificante do sol...

Ao fim de cem passos de caminho, e no momento em que um dos lados do edifício ficava a descoberto no extremo do túnel de verdura, Marcel chegou a um largo. Velhas tílias formavam círculo em roda de uma construção rústica muito elegante pela sua simplicidade.

Era uma casinha de pinho envernizado, construída como uma chalet da Suíça. A porta aberta deixava ver o interior composto de.uma só sala.

O tenente olhou para trás a ver se alguém se aproximava, e descansado a esse respeito, transpôs o limiar.

A única sala forrada de crétone pardo e cor de rosa, e iluminada por duas grandes janelas de caixilhos engastados de zinco, tinha por únicos móveis largos divans, um imenso "fauteuil", um piano e uma mesa redonda coberta com tapete da Índia...

No piano, uma partitura aberta!

Em cima da mesa uma caixa de costura, um bordado começado, os jornais da véspera, e uns quatro ou cinco romances publicados em Paris.

Ao lado dos jornais e dos volumes, um espelhinho de mão com abo e caixilho de marfim muito bem trabalhado.

Marcel estremeceu.

Era impossível iludir-se, o acaso, que decididamente se havia constituído em seu protetor, tinha-o conduzido diretamente ao galante buen retiro, onde a Marquesa de la Tour-du-Roy, isolada, cheia de tédio e aborrecimento, passava uma parte dos dias, e dividia o tempo que lhe parecia muito longo entre os trabalhos da agulha, leitura e música.

O coração do oficial bateu mais agitadamente.

 

OS PLANOS DO PAPAI

Na verdade, aquele aposento para um homem loucamente apaixonado e de imaginação viva, estava cheio de Lazarine...

O espelhinho de marfim conservava ainda como que um vago reflexo do rosto da jovem...

O bordado começado parecia ainda tépido do contato das suas mãos encantadoras.

As teclas do piano pareciam ainda vibrar movidas pela pressão dos seus dedos.

Um perfume indefinível, odor di femina, saturava aquela atmosfera...

Marcel ajoelhou no grande "fauteuil"; os seus lábios procuraram o lugar onde a cabeça da Marquesa se recostava tantas vezes... Achou ali outro perfume mais distinto, o dos cabelos cor de fogo que já tinha acariciado...

Passou ainda meia hora nas loucuras de um mudo êxtase, refletiu depois que adivinhava o que pretendia saber; que dali para o* futuro nada o podia impedir de obter da senhora de la Tour-du-Roy uma entrevista sem testemunhas; que era inútil comprometer a situação por uma maior imprudência, e que precisava, sem perda de tempo, regressar à estalagem do Cavalo Branco, e voltar à tarde se lhe faltasse a coragem de esperar para o dia seguinte.

Em conseqüência do que, saiu do pavilhão; voltou pelo caminho percorrido, saiu do parque como entrara, e torneou o muro para entrar na estrada.

No relógio do palácio batia meia hora depois das dez.

Um faeton bem ajaezado e guiado por um homem novo ainda e de uma perfeita elegância vinha a todo o trote.

Marcel, no momento em que o faeton passava pela sua frente, admirou a beleza dos cavalos, a sua boa andadura, e pareceu-lhe simpático o gentleman.

A equipagem parou junto à grade. O lacaio apeou-se e tocou. O porteiro saiu do pavilhão, cumprimentou respeitosamente e apressou-se a abrir.

O faeton penetrou na avenida.

O ciúme sobressaltou o tenente.

A sua primeira idéia foi de que o visitante matinal tão bem acolhido devia ser um pretendente à mão da bela viúva, e um pretendente favorecido porque era recebido com certeza.

Desejoso de esclarecer as suas suspeitas, apressou o passo, e aproximou-se do portão antes que o porteiro fechasse.

— Meu amigo, disse-lhe ele, muito lhe agradeceria se quisesse dizer-me quem é aquele senhor que possui tão bonitos cavalos?

O porteiro olhou surpreendido para o curioso que o interrogava. Marcel meteu-lhe na mão um luiz, e obteve com um grande cumprimento esta resposta:

— É o senhor Conde de Gordes, o marido da irmã mais nova da senhora Marquesa...

O tenente mais sossegado com aquelas palavras, agradeceu e tomou pelo caminho da vila.

O tio Ricardo esperava-o no limiar da estalagem.

— Então! senhor artista, exclamou ele, gostou do passeio?....

— Muito... redarguiu Marcel... Achei o que procurava.... e melhor do que esperava...

— Ainda bem... A mesa está posta... O almoço está pronto... Quando quiser pode almoçar...

— Então, já...

 

Deixemos o mancebo pôr-se à mesa, e sigamos o Conde de Gordes, ou antes, precedamo-lo alguns minutos.

A senhora de la Tour-du-Roy, recostada numa chaise-longue,. numa saleta vizinha da sala de jantar, trajava luto de viúva de um rigorismo exemplar, mas que não excluía uma certa coqueterie.

Um amplo e flutuante robe-de-chambre de casimira preta, bordado e enfeitado de escuro, não deixava ver a cintura um pouco' obesa pela gravidez e subia-lhe até ao pescoço.

As mangas largas abertas, deixavam ver os braços roliços e os pulsos de uma forma deliciosa.

A severidade daquele traje casava-se bem com o rosto de Lazarine, muito belo sempre, mais belo talvez, porque a sua palidez interessante, o tom, levemente azulado da fronte que esclarecia um pouco o contorno das pálpebras, finalmente a expressão melancólica do olhar, davam-lhe um novo encanto.

Um pente de marfim prendia os cabelos levantados no alto da cabeça, segurando a custo as opulentas madeixas, e avivava pelo contraste da cores o seu arruivado brilho.

Lazarine lia uma das cartas que o carteiro acabava de trazer juntamente com os jornais.

Aquela carta datada de Paris era de Júlio Leroux.

Eis o que o ex-banqueiro dizia à filha:

"Estás viúva há sete meses, minha Marquesinha, o termo da tua gravidez aproxima-se, e afirmo-te que já é tempo de tomares um partido.

"Aprovei, admirei a tua conduta, que devem produzir no departamento do Loiret, e mesmo fora, uma boa impressão.

"Encerrares-te na tua idade no palácio de la Tour-du-Roy, passares aí sete meses numa profunda solidão, não recebendo viva alma, não tendo a mais inocente distração, é exemplar, é soberbo! Mas há tempo para tudo...

"A morte de teu marido tornou-te livre; o nascimento de teu filho há de tornar-te rica... É preciso cuidares desde já do modo de facilitares a entrada no mundo a esta progenitura benéfica...

"Queres seguir um conselho? um bom conselho? um conselho paternal? um conselho absolutamente desinteressado?

"Sim, não é verdade?

"Pois bem! autoriza-me a alugar-te, ou, o que seria preferível, a comprar-te um palácio, e fazê-lo mobiliar por Lebel-Girardi, cujo bom gosto e boa atividade conheces, e que se desbancará para nos satisfazer.

"Tudo estaria pronto em caso de necessidade daqui a três semanas...

"A mais cômoda das tuas carruagens te conduziria a passo para Orleans.

"Transportar-te-ias num coupé-leito.

"Na gare de Paris, onde eu te esperaria, outra carruagem não menos cômoda te conduziria, também a passo, para a tua nova morada.

"Ali te estabelecerias sem te incomodares até o dia do teu parto, os príncipes da ciência viriam visitar-te de manhã e de tarde, modificando g teu regime segundo as necessidades da situação, que pode não ser amanhã o que era ontem, ou o que é hoje...

"Se, pelo contrário, persistires em ficar em la Tour-du-Roy, os príncipes da ciência não chegariam senão no último momento, o que seria inconveniente por todos os motivos.

"Além de que, o isolamento não tardaria a parecer-te intolerável, e nada é mais detestável do que o aborrecimento.

"Não contando, querida Marquezinha, que querendo acompanhar-te pela ocasião do teu parto, ser-me-ia necessário deixar momentaneamente Paris, onde estou muito ocupado, o que me transtornaria o mais possível...

"Vou concluir: Escreve-me depressa... Escreve-me na volta do correio, e já amanhã passo a procurar o dito palácio.

"Abraço-te com todo o afeto que podes imaginar e tenho pressa de ser avô, o que contudo não me remoçará...

Júlio Leroux."

"P. S. Não tenho há muito notícias de Gordes.

"Na última carta que ela me escreveu (há mais de seis semanas) a minha Condessinha dizia estar incomodada, mas parecia não ligar muita importância ao seu incômodo, por isso não estou com cuidado.

"O juvenil par vai certamente ver-te de tempos a tempos.

"Quando me responderes, fala-me de tua irmã e do marido.

"Continuam apaixonados como dois pombinhos? Passam ainda o seu tempo a arrulhar ternuras?

"Sabes como eram ridículos!...

"E Renée?... que será feito de Renée?...

"Joana parecia estar contente com a irmã e fazia-me dela o maior elogio. Estou com certeza maravilhado, mas, aqui para nós, estou admiradíssimo...

"Como é que Renée, cujo caráter indomável e gênio invejoso conhecemos, Renée que não consegue casar, apesar da sua muito real beleza, pode viver em boa inteligência com o Conde e a Confessa?

"Isto é-me certamente muito cômodo, e aplaudo-me a mim mesmo todos os dias, mas o enigma continua insolúvel como dantes.

"Ou há sob aquele sossego aparente algum mistério, que ninguém vê e que só mais tarde se descobrirá, ou então um milagre transformou minha filha Renée... E eu não creio muito em milagres...

"Até mais ver, querida Marquezinha, e como se crê sempre o que se espera, direi cheio de confiança: até breve!"

Lazarine tinha concluído.

Meteu no sobrescrito a carta do pai e atirou-a. em cima da mesa.

— Não é tolo e tem graça, o papai! murmurou ela sorrindo, mas é o deus do egoísmo!... Quer-me em Paris não por mim, mas por ele!... Há ali algum mistério que se chama Tatá ou Nana... O mistério afeta muito o coração do papai e não quer sair dali... Depois, ele queria ver-me numa casa, certo de que seria uma casa bastante divertida... Pois bem, por que não havemos de satisfazê-lo? Talvez no fim de contas, ele diga bem... Já completei o tempo... Dei um bom exemplo e a província está satisfeita com o meu proceder. Coisa nenhuma me prende aqui, e coisa nenhuma me estorva de partir. Amanhã hei de responder: "Faça o que quiser, pai. Compre e mobílie! Em estando pronto, escreva ou telegrafe, e partirei imediatamente.

No momento em que Lazarine tomava aquela resolução, o criado de quarto Domingos, abrindo a porta, anunciou:

— O senhor Conde de Gordes.

E Raul entrou na saleta exclamando:

— Por quem é, querida mana, não se levante por minha causa!... Muito me penalizaria!

Transpôs o espaço que o separava de Lazarine, inclinou-se para ela e abraçou-a.

A senhora de la Tour-du-Roy apertou-lhe as mãos com sincera ternura. Tinha pelo Conde real simpatia e fraternal amizade.

— Vem almoçar comigo? perguntou ela.

— Apresento-me às onze horas menos cinco minutos de propósito para isso...

— Seja mil vezes bem-vindo... Mas por que veio só?... Podia ter trazido Joana e Renée.

Um gesto de vaga tristeza se desenhou no rosto do Conde, que respondeu:

— Eu queria trazê-la, mas a minha querida Joana está um pouco incomodada...

— O que? ainda? disse a Marquesa, surpreendida e contristada.

— Meu Deus! sim... ainda... Ela ia muito bem, julgava tudo acabado, e de repente há três dias, recaiu...

— Não é coisa grave? redarguiu Lazarine.

— Com certeza que não!... Pois se o fosse, poderia eu estar aqui?...

 

MISTÉRIOS

— Mas enfim, prosseguiu a senhora de la Tour-du-Roy, a que atribui a recaída?

— Não sei dizê-lo, redarguiu o senhor de Gordes; vejo os efeitos, ignoro porém a causa...

A pobre criança que era dotada de robusta saúde e infatigável vivacidade, tornou-se de repente tão fraca como um convalescente após longa doença; o seu dormir é agitado e inquieto... tem fastio... e de repente, após um calor repentino, esfria e estremece...

— Sofre muito?

— Não, graças a Deus. O seu estado é mais enfraquecimento e falta de forças do que dor...

— Tem a certeza, querido mano, perguntou Lazarine sorrindo, de que não estamos em presença dos primeiros sintomas de gravidez?

— Sim, infelizmente tenho a certeza.

— Que diz o médico?

— Não diz nada, pela simples razão de que ainda não apareceu...

— Por que? exclamou Lazarine. Então é necessário mandá-lo chamar.

— Sim, com certeza, seria necessário, mas Joana não quer ouvir falar no médico... Afirma que o seu incômodo é passageiro, e que não se importando com ele, irá como veio. Receio incomodá-la, não tenho teimado e obedeço com bastante pesar.

— Joana está triste?

— De modo nenhum... Coisa nenhuma influi no seu caráter sempre o mesmo, sempre afável, sempre adorável... Não somente não se entristece nem se queixa, mas graceja a respeito da sua doença e fraqueza... Enfim é um anjo! Tem todas as qualidades boas, todos os encantos, todas as virtudes...

— Ah! disse Lazarine, bem o sei, e lembro-me de que em tempo, na minha qualidade de rapariga da época, achava-a até muito perfeita.

— Mas, querida mana, a senhora é também não menos perfeita!... afirmou Raul a modo de galanteio.

A Marquesa abanou a cabeça e redarguiu rindo:

— É muito bonito o cumprimento, mas pouco sincero. Ah conheço-me, sei o que valho, e uma perfeição absoluta não é o fim a que aspiro... Ponhamos de parte os meus merecimentos e falemos de Renée... Continua a estar satisfeito com ela?

— Ah! pois não!... exclamou Raul, Renée é uma senhora admirável!...

— Caspité! disse a Marquesa num tom de involuntária ironia, que entusiasmo!...

— Merece-o! redarguiu o Conde. É impossível levar mais longe a simplicidade, a doçura e a abnegação!

— Veja como a gente se engana! redarguiu Lazarine, eu julgava-a muito sujeita aos três pecados opostos às virtudes que o senhor encontrou nela! O que todavia me não impedia de amar de todo o coração...

— E esses pecados? perguntou Raul.

— São o orgulho, a cólera e a inveja.

— Querida mana, a senhora julga mal e mudaria de opinião, afianço-lhe, se presentemente vivesse com ela... Coisa nenhuma seria capaz de fazê-la duvidar da terna dedicação que consagra a Joana... Desde que Joana anda doente, não a deixa um momento; não se poupa a trabalhos; multiplica-se... Sinto por ela um profundo reconhecimento, confesso-o, ao vela estimar tanto aquela a quem amo mais do que tudo no mundo...

— O mano tem um meio bem simples de lhe provar esse reconhecimento.

— Como?

— Procure-lhe um marido.

— É inútil... Não quer casar...

— Ora essa!

— Afirmo-lho...

— Como sabe isso?

— Disse-mo ela...

— A que propósito?...

— Falei-lhe do vácuo que a sua ausência deixaria na casa quando o seu casamento a separasse de nós... Ela respondeu-me: "Mano, esse vácuo não o sentirão... Nunca de casarei!...

— E, continuou Lazarine estupefata, explicou ela os motivos de tão súbita resolução?...

— Não... Eu insistia por conhecê-los... fez-me compreender que a minha insistência seria inútil.

— É prodigioso! exclamou a marquesa. O que me conta espanta-me imensamente, porque Renée não tinha vocação alguma para o celibato... Acrescentaria até, com risco de lhe parecer indiscreta, que lá fora, em Veneza, ela simpatizava muito com o senhor, e mal disfarçava o seu vivíssimo desejo de vir a ser Condessa de Gordes.

Raul, involuntariamente corou.

— Ilusão pura... murmurou ele. Nunca reparei em tal...

— Pode ser! redarguiu, ter-me-ei enganado. E ajuntou em voz baixa:

— Isto deve ocultar alguma coisa... A metamorfose de Renée é-me suspeita.

O Conde, um pouco embaraçado pelas últimas palavras da cunhada desejava mudar de conversação.

— Tem tido notícias de seu pai? perguntou ele.

— Tenho... recebi esta manhã uma carta dele. Acabava de a ler quando o senhor chegou.

— Está bom?

— Perfeitamente bom. Fala-me de Joana, e queixa-se do seu. silêncio...

— Hei de escrever-lhe amanhã.

— Propõe-me para não ficar aqui eternamente, e quer que eu alugue ou compre casa em Paris... Diz que é imprudente deixar que o meu parto tenha lugar em la Tour-du-Roy, e apóia a sua opinião com raciocínios muito concludentes...

— E está resolvida a seguir o seu conselho?

— Estou... ainda que me custe muito, afirmo-lhe, afastar-me de minhas manas e do senhor, sobretudo agora que Joana está incomodada...

O mordomo abriu os dois batentes da porta da sala de jantar, e interrompeu a conversação pronunciando com dignidade esta frase:

— Senhora Marquesa, a mesa está posta...

O senhor de Gordes esteve até as três horas no palácio. Quando ia a subir para o trem, Lazarine disse-lhe então:

— Abrace em meu nome muito ternamente Joana e Renée, mas Joana sobretudo... Escreva-me muito a miúdo dando-me notícias da nossa querida doente, e venha ver-me antes da minha partida, provavelmente daqui a três semanas.

Raul prometeu e retirou-se.

A Marquesa, como ficasse só, foi dar um passeio pela parte descoberta do parque, em meio dos tabuleiros da relva e dos canteiros de flores, mas não se dirigiu para o lado da alameda sombreada que conduzia ao pavilhão cujo interior descrevemos.

Passeando de vagar, com a cabeça inclinada, pensativa, meditava, e os seus pensamentos formulavam-se pouco mais ou menos deste modo:

— Sim, com certeza, aquela transformação de Renée, e aquele ódio ao casamento, tão de súbito, não são naturais!... Eu conheço-a! Pois nada há mais impossível no mundo, do que limitar ela as suas ambições a viver junto do marido de uma outra, numa casa que não é a sua! A sua atitude e as suas palavras são uma comédia! Tem uma vontade! Qual será o seu fim? Tem um plano! Que resolveu ela? O que tencionará fazer? é difícil de resolver o problema! procuro e não sou capaz de explicá-lo.

Durante quase meia hora, Lazarine repetiu o monólogo que só mudara na forma, mas não no sentido; depois, fatigada por essa longa conversação a que não estava habituada, subiu aos seus aposentos donde não saiu.

Marcel Laugier, depois de ter passado toda a tarde no parque, oculto atrás de um grande tronco de árvore, posto de observação donde vigiava a porta do pavilhão, renunciou a esperança de entrevista naquele dia e regressou à estalagem do Cavalo Branco.

No dia seguinte, depois de almoçar, o tenente, que não queria excitar a desconfiança do tio Ricardo, pôs a sua bagagem de caixa de tintas e cavalete às costas de um rapaz contratado pelo estalajadeiro, e fez transportar aqueles objetos de pintor para uma parte do bosque perto do muro que fechava o parque, e no sítio azado para a escalada.

Ali despediu o rapaz, mandando que voltasse às quatro horas da tarde; tomou posição, e começou esboçando rapidamente uma árvore, atendendo mais ao efeito do que à verdade.

Precisava mostrar alguma coisa quando regressasse à estalagem.

Em presença de um esboço pintado de fresco, seria impossível suspeitar o verdadeiro motivo da sua presença em la Tour-du-Roy.

Marcel calculou muito logicamente que a Marquesa não devia freqüentar o pavilhão antes das horas do maior calor ao meio dia.

Por isso esperou, e só às duas horas deixou o trabalho e se introduziu no parque, graças àquela escada vegetal condescendentemente disposta ali pela natureza.

Como na véspera, ocultou-se atrás de uma árvore e esperou.

Decorreram vinte e cinco ou trinta minutos, e a alameda sombreada conservou-se deserta.

— Talvez ela já chegasse... disse consigo o mancebo.

E à moda dos Thugs querendo surpreender os cipais na Índia, deslizou devagar e cautelosamente por detrás do mais cerrado do bosque, evitando fazer bulha esmagando os ramos secos, ou despertar a atenção agitando os ramos na sua passagem.

Deste modo, chegou a dez passos de distância do largo cujo ponto central era o tal chalet.

Na sua frente ficava uma das suas duas largas janelas.

Transpôs a distância, aproximou-se da janela, lançou um olhar para dentro e estremeceu.

A Marquesa estava lá.

Viu-a a três quartos, vestida com o seu robe-de-chambre bordado, muito pálida, e esplendidamente bela com as suas fartas trancas de cabelos arruivados.

Estava assentada, ou antes, recortada em um grande "fauteuil" de espaldar inclinado que parecia feito para o sono.

Uma das suas delicadas mãos de dedos afilados, brancas como cera, pendia ao longo dos braços da cadeira.

A outra descansava sobre os joelhos ao lado de um livro aberto.

Lazarine não lia.

Os seus grandes olhos imóveis, fitos num mesmo ponto, com certeza não viam.

A senhora de la Tour-du-Roy estava entregue a uma daquelas meditações em que a alma abandona o corpo e foge para o passado ou voa para o futuro...

 

O ENCONTRO

— Em que pensa ela? Interrogou-se Marcel Laugier. Lazarine pensava, então, como todos os dias lhe sucedia no imenso aborrecimento que desde a sua viuvez caíra sobre ela como uma massa de chumbo, encerrada naquele grande palácio, obrigado a estar fechado para satisfação das inflexíveis conveniências...

Dizia ela de si para si que a fortuna adquirida por um tal preço era cara.

Contava estremecendo de impaciência as semanas, os dias e as horas que distavam ainda do dia em que terminava o seu luto, do dia do nascimento de seu filho...

Em seguida, a miragem transformava-se, e o futuro sorria-lhe.

Via-se livre de todo o constrangimento, senhora dos milhões do marquês, podendo entregar-se sem receio ao turbilhão dos prazeres ruidosos, deslumbrar Paris com a sua beleza, e causar espanto pelo seu luxo...

No momento em que Marcel, imóvel e mudo, fitava nela um demorado olhar repassado de amor, uma imagem atravessava os sonhos da Marquesa, a imagem do moço oficial, tão ingênuo nos seus transportes, tão belo, tão cheio de ardor, que a havia estreitado em seus braços murmurando:

"— Mariette, adoro-te!..."

Durante um ou dois segundos, um indefinível sorriso lhe fez arquear os lábios... em seguida, abanou a cabeça; uma nuvem lhe cruzou a fronte, e o rosto tomou uma expressão de desprezo...

Lazarine repeliu a quimera que por um instante afagara.

— Para a frente! disse consigo Marcel. Tremo, mas é preciso ousar!

Afastou-se da janela, rodeou o chalet e dirigiu-se para a porta entreaberta possuído de uma profunda comoção, mas ao mesmo tempo com a fria decisão do soldado que corre ao assalto, sabendo que lá pode deixar a vida.

A senhora de la Tour-du-Roy ouviu então um leve ruído.

Ergueu a cabeça, e viu na sua frente o homem cuja recordação acabava de repelir.

— Enlouqueço ou sonho!... disse ela consigo. Ele! aqui! Tudo é possível... menos isto!

Não era contudo sonho, nem loucura... o impossível realizava-se...

Marcel deu um passo para a frente e inclinou-se.

Lazarine tornou-se pálida como um cadáver.

Estremeceu toda; julgou que ia sucumbir a uma síncope.

Mas não faltava energia, sabemos, à filha mais velha de Júlio Leroux.

— Quem é o senhor?... Como pode penetrar no parque, e porque tem a audácia de se dirigir a mim?...

Marcel interrogou em lugar de responder.

— Então, senhora Marquesa, não me reconhece?

— Como quer que o reconheça? redarguiu Lazarine, se não o conheço...

A jovem começava mal.

Por querer disfarçar, traía-se.

Nunca teria dirigido a palavra com tão arrogante desprezo a um estranho de boa aparência perdido no seu parque...

O tenente ao saber que havia sido reconhecido, irritou-se com tão insolente acolhimento.

— Não tive a honra, concordo, de ser apresentada oficialmente à senhora Marquesa, respondeu ele ironicamente, contudo, não sou suspeito... A menina Mariette conhece-me, e responderia por mim em caso de necessidade...

Um estremecimento nervoso abalou Lazarine da cabeça aos pés, o que não obstou a que ela repetisse num tom zombeteiro:

— A menina Mariette? Quem é a menina Mariette, faz favor de me dizer, senhor?

— A primeira criada de quarto da senhora Marquesa... disse Marcel com um perfeito sangue frio.

Lazarine fingiu indignação.

— Uma criada! exclamou ela. O senhor recomenda-se por uma criada!...

O tenente inclinou-se de novo.

— Uma criada, redarguiu ele, cujo retrato se acha em Orleans, numa das salas do seu palácio, e fronteiro ao retrato do defunto Marquês de la Tour-du-Roy, não é uma criada ordinária! A recomendação de uma tal criada tem muita importância, e eu creio que a menina Mariette não me recusará a sua recomendação quando eu lha pedir em nome das recordações de uma noite que não pode ter esquecido.

Qualquer outra no lugar de Lazarine, dar-se-ia por vencida, mas a jovem queria lutar até o final.

Levantou-se vivamente com um gesto de espanto bem representado, e fez cair o seu "fauteuil" como que para colocar uma barreira entre ela e o recém-chegado.

— Que receia, minha senhora? perguntou Marcel.

— Perdão, senhor... balbuciou ela com uma bem afetada perturbação... Não queria ofendê-lo... mas, ai de mim! é mais forte se chegue a mim!... peço-lhe... quando não, grito por socorro...

O tenente sorriu.

— E a senhora pensa que eu estou doido? redarguiu ele.

— Está com certeza, por isso tremo. Não se mova, senhor! não se chegue a mim!... peço-lhe... quando não grito por socorro... grito com todas as forças...

— E virão os seus serviçais, minha senhora? perguntou o mancebo.

— Sim, porque estão ao alcance da voz... procedo assim por prudência... Bem vê que eu tinha razão...

— E quando vierem, o que hão de fazer?

— Pô-lo simplesmente lá fora, e tomarem as suas medidas para. evitar o regresso e as conseqüências de um novo ataque de loucura.

Ao ouvir Lazarine assim falar, ao vê-la continuar a sua comédia com tanta imprudência, Marcel sentia a cólera apoderar-se dele e aumentar.

Não só aquela mulher que se lhe tinha oferecido e entregado o negava atrevidamente, dizendo-lhe na cara: Não o conheço! mas ainda zombava dele despeitadamente, escarnecia-o, ultrajava-o.

O tenente podia aceitar o sofrimento e calar o ódio, mas a, idéia de servir de joguete à Marquesa exasperava-o imenso.

Ridículo para com Lazarine! Ah! isso não! nunca!...

Esqueceu por um momento o seu amor, e como a fera perseguida que faz frente aos cães, resolveu retribuir golpe por golpe.

— Senhora Marquesa, disse ele com a voz baixa, mas em que: se sentia vibrar toda a cólera, desafio-a a que chame os seus criados..

— O senhor desafia-me? repetiu Lazarine.

— Sim, minha senhora, desafio-a.

— E julga que o seu desafio me fará desistir?

— Tenho disso a certeza.

— E por que?

— Porque vossa excelência tem medo... Lazarine encolheu os ombros.

— Medo do senhor? perguntou ela com um olhar esmagador.

— Medo de mim, sim, minha senhora... ou antes medo do homem que conhece todos os seus projetos, que compreendeu todos os seus planos, e que com uma palavra pode aniquilá-los.

A Marquesa sentia copioso suor inundar-lhe a fronte.

A sua torça de vontade estava prestes a cair, desmoronava-se.

— Que quer dizer? balbuciou ela. Na verdade, senhor, não o compreendo...

— Compreende, sim, minha senhora! redarguiu o tenente com força. O seu marido morreu... Viu o testamento.. À falta de um herdeiro direto, a enorme fortuna do marquês estava perdida para a senhora... Era preciso prevenir isso, e sem perda de um minuto!... meu regimento passava... O acaso levou-me a sua casa... A minha estrela fez o resto!... Por mais fidalga que a senhora seja, por mais obscuro soldado que eu seja, fui seu amante, minha senhora, e não fará expulsar pelos seus criados o pai do filho que trás em seu seio!...

Ao proferir estas palavras, Marcel, sem o saber, tinha levantado a voz.

Lazarine, vencida, sentiu-se sem forças para continuar desempenhando o papel que a si mesmo tinha imposto.

Estendeu as mãos para o mancebo em atitude suplicante, balbuciando com voz mal distinta:

— Fale mais baixo... em nome do céu! fale mais baixo

— Ah! minha senhora, bem vê que tem medo, e, contudo, juro-lhe, não tem nada a temer de mim!...

Um silêncio seguiu estas palavras.

A Marquesa, mais senhora de si, na realidade, do que parecia, refletia na nova direção que convinha dar à conversa.

Começava a compreender que andara mal e cometera uma grande imprudência fazendo desesperar Marcel, sem saber até onde a cólera podia arrastar o mancebo.

Ora o escândalo era a coisa que Lazarine, na sua muito delicada posição, mais devia evitar.

O tenente havia dito bem; bastaria uma só palavra para aniquilar os seus projetos, para destruir completamente todos os planos.

Era preciso ganhar tempo, serenar a tempestade que ela causara, e alcançar a todo o custo a cumplicidade do homem que ela julgava firmemente não mais tornaria a ver e que um acaso inexplicável punha na sua presença.

Lazarine não pensava, então, senão no presente.

Já não a inquietava o futuro, porque sabia que era capaz, chegado o momento próprio, de afastar do seu caminho um tropeço, ainda mesmo que esse tropeço tivesse adquirido no passado direitos incontestáveis.

Como não se sentia apaixonada por Marcel, prometia a si mesma não lhe conceder novos direitos, de que ele com certeza tentaria abusar.

Não ignorava que uma mulher hábil pode achar meio de por muito tempo contentar o homem mais exigente com promessas vagas, com ternos olhares, inteligentes sorrisos e discretos apertos de mão, e outras bagatelas da mesma natureza e do mesmo valor.

Pondo logo em prática esta teoria, ergueu os olhos para Marcel, com uma expressão cheia de doçura, de humildade e arrependimento.

Ao mesmo tempo murmurava:

— Fui culpada, meu amigo, mas arrependo-me, perdoe-me...

Marcel pegou na pequenina mão estendida para ele, e ao tocar naquela acetinada pele sentiu uma violentíssima comoção, com que um choque elétrico. Empalideceu e cambaleou.

— Então, balbuciou ele, já não sou um doido... um estranho... um inimigo?... digna-se reconhecer-me?...

 

RECONSTITUIÇÃO

Lazarine fez um gesto muito meigo, tornou ainda mais lânguido o seu olhar e murmurou:

— É cruel...

— Eu! exclamou o estudante.

— Sim, o senhor...

— Que fiz?

— Pergunta-me, num tom repassado de mágoa, se me digno enfim reconhecê-lo.

— A minha pergunta é muito justa, porque desde que estou aqui que me trata como um estranho.

— Contudo reconheci-o logo no primeiro instante, ao primeiro olhar... e tinha para isso boas razões.

— Cada vez compreendo menos... começou Marcel, interrompendo-a.

— A minha atitude, não é verdade? o meu simulado desprezo? a minha fingida cólera? concluiu Lazarine.

— Sim...

A Marquesa suspirou.

— Ignora, murmurou ela que não podemos contar sempre com o testemunho dos olhos e dos ouvidos... Há coisas que é mister adivinhar... Em circunstâncias difíceis, as mulheres dizem muitas vezes, por instinto, o contrário do que pensam... Pois que, não sabe isso?

— Mas para que me havia de negar? Para que me havia de repelir com um tal desprezo?

— Para o desanimar... para o obrigar a desistir.

— Ah! murmurou dolorosamente o mancebo, bem vê que me odeia!...

Lazarine encolheu os ombros e baixou os olhos.

— Quer obrigar-me a dizer tudo?... perguntou ela num tom de voz comovida.

— Sim, diga, peço-lhe! Sejam quais forem os seus sentimentos, tenho direito de conhecê-los... Oh! minha senhora, não me oculte coisa alguma...

— Desde o dia já muito distante, de que não posso falar sem corar, começou a Marquesa, o senhor tem sido para mim um objeto de constante preocupação...

— Então é certo que me não tinha esquecido?... interrompeu Marcel.

— Quando um homem, embora só por uma hora, desempenhou na vida de uma mulher o papel que o senhor representou na minha, pode essa mulher esquecê-lo?...

— E a senhora pensava em mim?...

— Muitas vezes... quase sempre...

— Ternamente?

— Cheia de inquietação... de susto... Vivia sob a impressão de um constante pensamento, este: O acaso podia conduzi-lo ao meu encontro, não obstante julgar-me bem oculta, e colocar-nos de novo um em frente do outro...

— Pois bem! minha senhora, que importava isso? que tinha a temer?

— Do senhor, nada, com certeza... Mas de mim mesmo... — Como?...

— O lembrar-me do senhor causava-me uma grande perturbação... prosseguiu Lazarine, a quem uma força irresistível parecia impelir a confissões embriagantes para o seu ouvinte. Eu queria repelir a sua lembrança, ela impunha-se-me ao espírito, ameaçando o meu repouso, agitando o meu sono... Se a sua recordação me ocupava deste modo, que faria então na sua presença?... Pressentia o perigo; Por isso, quando há pouco o senhor me apareceu, tentei afastá-lo por todos os meios e a todo o custo... Preciso que me perdoe... mas tinha medo.

— Medo? de mim que a adoro e que desejaria morrer para a salvar! exclamou ele. Ah! minha senhora!

— Não é possível subordinar o susto... repito-lhe, tinha medo...

— E agora?

— Agora os fatos triunfam e a minha resolução nada pode contra eles... Tinha jurado a mim mesma que me conservaria estranha ao senhor... e o senhor está aqui, ao meu lado.

— Permite-me que lhe diga que a amo?

Lazarine ergueu os olhos para o mancebo e envolveu-o num olhar carregado de voluptuosa languidez; em seguida baixou de novo os olhos, colocando as faces pálidas à sombra das suas compridas pestanas...

E com uma voz fraca como um suspiro, murmurou:

— Posso proibir-lho?...

O tenente, louco de amor, caiu de joelhos junto do "fauteuil" onde a senhora de la Tour-du-Roy acabava de se assentar, e pegando-lhe as mãos, cobriu-as de ardentes beijos.

— Então, meu amigo, levante-se... disse a Marquesa ao fim de um instante, aproxime aquela cadeira, assente-se aqui ao meu lado, e conversemos mais logicamente...

— Mas não me retira as suas mãos, não?

— Não, se for prudente...

Lazarine, que trazia no seio uma criança de quem Marcel era pai, ignorava tudo o que havia a respeito daquele a quem tinha pertencido. Ignorava até o seu nome, proferido diante dela em Orleans pelo velho criado Domingos, mas esquecido logo depois.

Ela interrogou-o a seu respeito, a respeito da sua família, do seu passado e das suas esperanças no futuro.

Quis que ele lhe dissesse como tinha sabido que a criada Mariette e a Marquesa de la Tour-du-Roy eram a mesma mulher.

Não se cansavam, ela de o interrogar e ele de responder, e quando a sua curiosidade ficou satisfeita, disse com o mais vivo contentamento:

— Realmente fui feliz! Poderia apostar noventa e nove contra um que, não tendo escolhido, havia de acertar muito pior!

Marcel, depois de ter respondido minuciosamente a respeito das perguntas de Lazarine, queria começar um duo de amor...

Mas a Marquesa deteve-o logo às primeiras palavras, e olhando para o pequenino relógio preto com as suas iniciais e a coroa de prata, disse-lhe:

— Faz-se tarde... Vemo-nos separar, meu amigo.

— Já?

— É preciso que volte para casa, são as horas a que costumo regressar...

— Pois não é livre a senhora?...

A juvenil viúva redarguiu com um intraduzível movimento de ombros acompanhado destas palavras:

— Uma mulher na minha posição é uma mulher livre? Os criados, bem o sabe, são outros tantos espiões instituídos pela fortuna... Se os meus dão tréguas à sua espionagem, é que estão convictos de que eu não lhes oculto coisa alguma... Se suspeitarem um mistério, se farejarem amanhã um segredo, por-se-ão depois de atalaia... A absoluta regularidade nos meus hábitos é a minha única salvaguarda. O senhor compreende bem isso, não é verdade?

— Compreendo... não insisto mais e parto...

— Aí está o que eu quero...

— Serei sempre assim... Agora uma última palavra... Quando tornarei a vê-la? Amanhã, não é verdade, e à mesma hora que hoje?

Lazarine levou as mãos à cabeça com uma expressão de inaudito espanto.

— Mas o senhor enlouqueceu, meu pobre amigo!... exclamou ela. Fala seriamente em tornar a ver-me... aqui?

— Todavia, balbuciou Marcel, vivamente desorientado, parece-me...

— Pois bem, parece-lhe mal! interrompeu a Marquesa. O senhor jurou comprometer-me!...

— No entanto, com muito prudência, com imensas precauções...

— Bonita prudência! famosas precauções! Estabelecer o seu cavalete no bosque, a pretexto de pintura a óleo!... Abandonar o cavalete! escalar os muros! Subir como um ladrão para vir ter comigo a este pavilhão! Isso é para me perder, e cem, mil vezes! Muito obrigada!

— Não falemos mais nisso... murmurou o tenente cheio de confusão.

— Sim, é isso, não falemos mais em tal!!

— Existe porém outro meio...

— Realmente!... Qual, faz favor de dizer?...

—O mais simples de todos... Entrara pela porta, fazendo-me anunciar em voz alta... Evitemos mistérios, evitemos suspeitas...

— O senhor cada vez raciocina pior! redarguiu Lazarine impaciente. Que fez do seu bom senso? Pois não reflete que a Marquesa de la Tour-du-Roy, encerrada no seu luto e na sua solidão, e não recebendo vivalma, não pode fazer exceção àquela regra geral para o tenente Marcel Laugier, que veio da estalagem do Cavalo Branco, na qualidade de artista nômade?... Creio, no entanto, que é muito claro!

— E as suas promessas? perguntou o mancebo triste e desanimado. Não pode receber-me nem em público, nem a ocultas! Portanto, há pouco, não tinha senão um fim: iludir-me com uma falsa esperança de impossível realização.

— Ingrato! respondeu a Marquesa; acusa-me quando tenciono fazer-lhe um tão grande sacrifício.

— Um sacrifício! repetiu Marcel. Que sacrifício?...

 

— Merecia que eu nada lhe dissesse; mas sou boa e compadeço-me do senhor... Ouça-me, pois... Resolvi não sair daqui senão passado o meu parto... Minha família sabia a minha resolução, e julgava que coisa nenhuma me transtornaria... Não tinha contado com o senhor... A sua presença transtorna os meus projetos...

— Quais são eles? perguntou Marcel com ansiedade.

— Vou escrever hoje mesmo a meu pai, que está em Paris, e pedir-lhe para me preparar o mais depressa possível uma casa qualquer... Logo que ele mande dizer onde poderei ir descansar, partirei. Nenhuma incômoda vigilância embaraçará a minha liberdade de ação na grande capital onde todos têm muito que cuidar de si para se ocuparem dos demais, e poderei recebê-lo sem me comprometer...

— E, perguntou o tenente ébrio de alegria, isso será em breve?...

— Eu disse-lhe: o mais depressa possível...

— Ainda assim...

—- Pois bem! daqui a três semanas...

— Que longo prazo! Três semanas sem a ver, como é inflexível! Daqui até lá que vai ser de mim?

— O senhor amanhã busca um pretexto qualquer, sai da estalagem do Cavalo Branco e parte para Paris, onde me espera pacientemente. Há de ser prevenido da minha chegada por uma carta anônima... A propósito, onde vai alojar-se?...

— Habitualmente costumo hospedar-me no Grand-Hotel.

— Pois bem! Proceda como de costume... É ao Grand-Hotel que hei de dirigir a minha carta... E agora adeus, ou antes até mais ver... Parta depressa...

 

IDÍLIO

Marcel desejaria antes de se afastar, estreitar em seus braços a jovem, e procurar em seus lábios uma recordação do passado, uma esperança para o futuro.

Mas a Marquesa de la Tour-du-Roy já não era a criada grave Mariette.

Não fez concessão alguma, e só a muito custo o tenente conseguiu beijar-lhe uma última vez a mão, considerando-se, não obstante isso, perfeitamente feliz quando regressou à estalagem do ti Ricardo, e prometendo a si próprio, dentro em pouco, uma ventura bem diferente e mais completa.

Submisso à ordem imposta por Lazarine, anunciou, na mesma, noite, a sua partida ao estalajadeiro que ficou muito surpreendido e ainda mais descontente, e no dia seguinte uma carruagem conduzia-o a Orleans onde tomava lugar na estrada de ferro para Paris.

Parecia-lhe a ele que da sua prontidão em obedecer, resultaria aproximar o dia da reunião.

A Marquesa, que tinha ficado só no pavilhão depois da cena que historiamos fielmente, conservou-se durante alguns minutos muito pensativa e preocupada, e a ruga da sua fronte, a contração das suas sobrancelhas negras, provavam até à evidência que eram sérias tanto a sua preocupação como a sua meditação.

Pouco a pouco a ruga desapareceu, desfez-se a contração das sobrancelhas, nos lábios apareceu um sorriso.

— Decididamente, fiz mal em me inquietar... murmurou Lazarine. Pouco importa que o acaso pusesse pela segunda vez no meu caminho aquele rapaz... Está sinceramente apaixonado de mais para que seja agora perigoso ou venha a sê-lo.

Bocejou, em seguida continuou:

— Vivia tão aborrecida!... Marcel Laugier será uma distração à qual porei termo quando me parecer conveniente..

A jovem regressou ao palácio, escreveu ao pai, e fez montar a cavalo um homem para que a carta, partindo de Orleans na mesma noite, fosse entregue no dia seguinte pela manhã.

Três dias depois, Lazarine recebia duas cartas, uma de Júlio Leroux, a outra de Marcel.

A do tenente era semelhante a todas aquelas epístolas do gênero, cartas entusiastas e ardentes que não tem interesse senão para. quem as escreve, e para quem as recebe.

Não citaremos dela nem uma só linha.

Eis o que dizia Júlio Leroux:

"Aplaudo muito, minha querida Marquezinha, a tua resolução, tenho a vaidade de acreditar que os meus insensatos conselhos foram atendidos.

"Sem perda de tempo cuidei de procurar a casa que pedias, e o acaso favoreceu as minhas diligências, porque em vinte e quatro horas achei à mão um palacete muito lindo.

"Fica na rua Murillo próximo do parque Monceau, é de exíguas dimensões, e não poderia constituir para ti uma residência definitiva, mas não deixa nada a desejar com respeito a elegância e boa disposição interior.

"Não comprei. Fiz em teu nome arrendamento por um ano, por vinte mil francos, o que não é muito caro.

"As cavalariças admitem cinco cavalos, as cocheiras quatro carruagens. É pouco, sei, mas ficam próximas, na mesma rua, cavalariças e cocheiras desocupadas, que podemos tomar para o nosso serviço.

"Logo depois de feito o contrato do palácio, foi a casa de Lebel-Girard, para me entender com ele a respeito da mobília, e vais ver como fomos felizes. "Lê e julga...

"Há seis meses, aproximadamente, um príncipe búlgaro, e sua mulher, de uma beleza deslumbrante, foram hospedar-se no Grand-Hotel.

"Pareciam muito ricos, gastavam à larga, pagavam generosamente, e viviam no meio da consideração geral, tal qual como o Barão e a Baronesa de Gondremarck da Vida Parisiense...

"Compraram um palácio nos Campos-Elyseos, encomendaram a Lebel-Girard uma mobília muito elegante, dando-lhe carta branca para que ele fizesse como melhor entendesse, não se importando com o preço.

"Lebel-Girard, que não é tolo, pediu informações na legação, deram-lhas excelentes, e procedeu a todos os trabalhos. "Os búlgaros mostravam ter pressa.

"Há quinze dias, como estava pronta a mobília, o ilustre armador tinha determinado ir no dia seguinte pregar as tapeçarias,.atapetar as casas, estofar os móveis, etc., tencionando apresentar a conta na semana seguinte, quando, ao ler o Fígaro, deparou com uma notícia pouco mais ou menos neste sentido:

"A polícia acaba de prender dois aventureiros estrangeiros que, depois de terem praticado inumeráveis logros na Áustria e Alemanha, vinham exercer entre nós a sua indústria. Estes flibusteiros tiveram;a audácia de adotar o nome de uma grande família da Bulgária... Intitulavam-se o príncipe e a princesa de *** e todos os aceitavam como tais..."

"Contava uma armadilha muito bem combinada, mas que havia falhado no último momento, e que tornava o tal par possuidor de uma soma enorme de diamantes...

"Lebel-Girard ficou desesperadíssimo, e partiu outra vez a buscar novas informações

"Eram efetivamente os búlgaros que tinham sido presos... "Tinha escapado à rede armada, mas a mobília de cem mil francos ficara-lhe perdida, o que o obrigou a suspirar e fazer uma visagem muito esquisita.

"Nesta ocasião, chegava eu... Queria mobiliar um palácio... Imagina como eu seria bem recebido...

"Ficou logo sendo tua a mobília. É de bom gosto, bastante rica, e de bonita fantasia; tenho a certeza de que há de agradar-te, e, vistas as circunstâncias do negócio, conseguiu, ainda que com alguma dificuldade, um abatimento de dez por cento...

"À hora em que te escrevo, estão colocando as tapeçarias.

"Havia-te pedido três semanas; podes vir daqui a oito dias...

"Espero que a senhora Marquesa fique satisfeita com o seu muito humilde mordomo...

'Até mais ver, querida Marquezinha, aceita um estreito abraço, e estima muito poder concluir dizendo, com certeza desta vez: até breve!...

"Júlio Leroux."

"P. S. Recebi ontem noticias de Gordes.

"Meu genro dirigiu-me uma interessante carta, mas que não me agradou completamente.

"Parece que a minha Condessa teve uma recaída bastante grave da sua incompreensível doença, e que se obstina em recusar ver um médico.

"É absurdo, e na volta do correio, pedi ao Conde que não fizesse caso da teimosia dela...

"Imagina quanto me seria incômodo, se o estado de Joana se agravasse, e que eu fosse obrigado a deixar Paris, e ir enterrar-me alguns dias em Gordes, onde certamente morreria de aborrecimento, porque a presença de um doente entristece grandemente uma casa...

"Enfim, se o caso urgir, cumprirei com o meu dever de pai, como sempre fiz, mas, graças a Deus, ainda não chegamos a esse ponto!...

"Parece, disse-me o conde, que Renée está agora ainda mais admirável do que nunca!...

"Uma irmã da caridade! a encarnação da dedicação!...

"Safa! estou encantado, e aqui para nós, estava convencido de que se a minha segunda filha tinha uma vocação, não era essa com certeza...

"Enfim, emendo-me honrosamente! Renée é um anjo, concordo nosso! Não se lhe viam as asas, eis tudo!"

 

Na semana seguinte uma carta do ex-banqueiro prevenia Lazarine de que tudo estava pronto, e que podia partir.

A senhora da la Tour-du-Roy respondeu pelo telégrafo dizendo que partiria no dia seguinte.

E efetivamente partiu.

 

Deixemos a Marquesa estabelecer-se em Paris, onde iremos mais tarde encontrarmos-nos com ela, assim como com Marcel Laugier, e voltemos atrás até ao dia do casamento de Raul e de Joana.

Assistimos à união do conde e da filha mais nova de Júlio Leroux, na humilde ermidinha de Vertes-Feuilles, e sabemos o que se passava no íntimo da alma das duas testemunhas desta união.

Vimos Renée sorrir, com o coração repleto de raiva.

Vimos Máximo Giraud ocultar as suas lágrimas atrás de uma coluna, no canto escuro de um altar.

Tanto o ódio cego e o imenso amor disfarçavam-se...

Um dia, talvez, tivessem de se encontrar, face a face, aquele ódio e aquele amor, e sem tréguas, sem mercê, travarem uma luta de morte.

Os noivos e as testemunhas do casamento jantaram em Vertes-Feuilles; logo depois do jantar que não se prolongou até muito tarde, o conde conduziu sua mulher para Gordes, como no ano anterior, o Marquês Roberto conduziu Lazarine para la Tour-du-Roy.

Os projetos do Conde diferiam porém absolutamente do Marquês.

O velho apaixonado, querendo fazer ostentação da sua ventura, tinha durante duas semanas convidado toda a nobreza da província para as festas que rapidamente descrevemos no começo desta narração.

O mancebo, ao contrário, tinha só um desejo, viver na mais completa solidão com a sua muito amada Joana, e saborear no mistério e em silêncio as divinais alegrias do abençoado amor.

A lua de mel foi tal, que Raul dizia às vezes:

— Não, não é possível... uma tal felicidade, tão pura, tão completa, tão profunda, não pode ser deste mundo... É sonho de que hei de despertar...

Mas os dias e as noites sucediam-se, e o despertar não vinha. Gordes e la Tour-du-Roy, eram tidas na conta das duas melhores residências do Loiret.

Conhecemos a situação de Gordes.

Vimos o Marquês Roberto, alguns dias antes do seu casamento, indicar a Lazarine os telhados de ardósia rodeados por um parque imenso, ao mesmo tempo que lhe contava os trágicos amores do Conde Raul e da Baronesa de Braines.

Para que nos havemos de demorar fazendo uma nova descrição, por força monótona, e que seria uma repetição depois do nosso largo esboço do palácio de la Tour-du-Roy, dos seus mirantes e terraços, dos seus tabuleiros de relva, dos seus lagos onde vogavam cisnes, e das suas sombrias avenidas onde o sol nunca penetrava?

Estes castelos históricos, e estes parques duas vezes seculares:são todos entre si muito semelhantes.

 

Nada havia no mundo mais encantador do que ver Raul e Joana, à hora em que o crepúsculo sucede ao dia, quando as primeiras estrelas cintilam no azul escuro do céu, saíres do palácio, dirigirem-se vaporosamente, de braço dado, para carreiras de relva ondulante entre as negras tílias, e ali, à sombra dos velhos castanheiros, no grande silêncio da natureza em repouso, trocar em voz baixa aquelas palavras ternas:

 

... Qui depuis six mille ans

Se suspendent le soir aux levres des amants!

 

REGRESSO AO MUNDO

"A felicidade não se descreve."

Esta velha máxima é a expressão de uma verdade incontestável.

Como contar, efetivamente, as primeiras impressões que o casamento prepara a dois jovens tão absortos na embriaguez da sua felicidade que parece nada mais existir para eles fora do estreito círculo em que os encerra o amor?

Onde existiria uma pena bastante delicada, e ,ao mesmo tempo bastante ousada para empreender, sem perigo, a narração daquelas ternuras conjuntamente devoradoras e castas?

Joana e Raul amavam-se... amavam-se de todo o coração, do mais intimo de suas almas, com todas as suas forças...

Dito isto, e é o bastante, deixemos a poesia e entremos na prosa.

Durante as primeiras semanas que se seguiram ao casamento, uma ordem severa proibia aos visitantes a entrada no palácio de Gordes, e o guarda do parque desempenhava, com um rigorismo absoluto, o papel do mitológico Cérberus guardaria o jardim das Hespérides.

Júlio Leroux e Renée, o marquês e Lazarine eram os únicos que tinham entrada livre, concessão de que não abusavam, devemos fazer-lhes essa justiça.

Ao fim de um mês, Raul decidiu (não por cansaço ou saciedade, mas raciocinando logicamente), que aquela existência de isolamento absoluto não devia prolongar-se indefinidamente.

— Queridinha, disse ele a Joana, a nossa posição impõe-nos de versos aos quais é impossível fugir, e cujo cumprimento temos, talvez-demorado mais do que convém...

A jovem Condessa olhou para o marido inquieta.

— A completa liberdade é só para os humildes e para os pequenos... prosseguiu Raul. Quando se usa um grande nome, quando. se possui uma grande fortuna, não se pôde viver retirado do convívio da sociedade...

— Isso significa que devemos fazer visitas e recebê-las?... perguntou Joana muito comovida.

— Sim, minha querida...

Joana soltou um profundo suspiro.

— Éramos tão felizes ambos sós, inteiramente voltados um ao outro... murmurou ela.

Raul sorriu.

— Sim, éramos felizes, somos, e continuaremos a ser. Não se persuada, querido amorzinho, que eu quero sacrificar ao mundo a adorável liberdade do nosso viver íntimo...

— Assim o espero, porque preciso confessar-lhe, querido Raul, sou pouco mundana.

— Terei o cuidado de não obrigá-la a ser muito, ainda que tenha tudo quanto é preciso, e mais do que é necessário, para brilhar no* mundo, e aí ocupar o primeiro lugar...

— É unicamente no seu coração que eu ambiciono ocupar esse lugar... interrompeu Joana, é aí que eu o desejo.

— É seu, minha muito amada... a primeira e a única... O meu coração pertence-lhe todo...

— Sim, Raul, não é verdade?... tu me amas...

— Adoro-te, e tu bem o sabes...

Fez-se silêncio, e durante alguns segundos um duo de beijos substituiu o diálogo interrompido.

— Eis-me inteiramente satisfeita... redarguiu Joana sorrindo. Faremos visitas e recebê-las-emos, visto que o meu querido esposo e senhor entende que é preciso absolutamente... Que importa um pouco de aborrecimento? Quando estivermos em casa de estranhos, ganharei paciência ao pensar que devemos regressar para aqui....

Quando os outros estiverem aqui, pensarei que vão partir... Será tudo pelo melhor.

— Aí está o que é verdadeira filosofia, minha queridinha! disse o conde abraçando de novo a mulher. Não será necessário recorrer a ela muitas vezes... trata-se só de simples visitinhas que terei o cuidado de não tornar freqüentes... Tenho muitas relações nesta, terra onde nasci, onde tenho vivido, onde havemos de viver... Com certeza que bastamos um para o outro, mas não é preciso escandalizar ninguém... Um dos porte-cartes da sala grande está cheia de bilhetes trazidos há um mês... Vou fazer uma lista... As tardes de uma semana bastarão para ficarmos quites com todos... Não nos demoraremos em parte alguma mais de dez minutos, e participaremos que damos recepção às quintas feiras...

— Todas as quintas feiras! murmurou Joana estupefata.

— Um dia dentre sete, e ainda por duas ou três horas... realmente não é muito... Uma vez por mês daremos um jantar... O resto do tempo seremos senhores de nós, e esqueceremos à vontade que existe mais alguma coisa no mundo além do parque de Gordes, nosso querido paraíso...

Joana baixou a cabeça em tom de resignação.

— Que responde a isto? perguntou Raul.

— É simples a minha resposta... ei-la: Há de fazer-se a sua. vontade...

O Conde prosseguiu:

— É a mais linda e a mais amada das mulheres... Quero, para mostrar ao mundo, que seja também a mais elegante...

— Elegante como Lazarine? exclamou a Condessa.

— Sim, como Lazarine...

— Nunca poderia sê-lo...

— Ah! como se conhece pouco, e como se julga mal, querido tesouro de graça e de encanto!... redarguiu Raul sorrindo. Divino prazer, pérola viva, não sabes que te basta só querer para eclipsares as mais brilhantes!

Joana ergueu para o marido os seus grandes olhos de criança inocente, cujas recordações ardentes das horas de amor não velavam' ainda a angélica pureza.

— Tu vês-me assim porque me amas... balbuciou ela.

— Vejo-te tal como és. O teu primeiro olhar não se apoderou de mim? Acaso lutei? Não! Para que? Sentia-me já vencido, e minha derrota tornava-me tão feliz...

Raul uniu Joana ao coração, e pela segunda vez um duo de beijos interrompeu a conversa.

— Dizíamos então, redarguiu o mancebo ao fim de um instante,. que era preciso tornar-se elegante e coquete...

— Quero consegui-lo, mas como?... E notória a minha inexperiência... O vestuário que endoidava Lazarine e Renée, foi sempre o meu menor cuidado. As minhas irmãs zombavam, até com muito espírito, da simplicidade dos seus gostos, e tinham-me cognominado a Gatinha Borralheira... O cognome trouxe-me a felicidade, visto que o Príncipe Encantado apareceu na pessoa do conde, que me amou, fez de mim sua mulher...

— Pois bem, redarguiu alegremente Raul, a Gatinha Borralheira, feita esposa do Príncipe Encantado, há de causar a admiração de suas irmãs e deslumbrá-las... Ocupemo-nos dos meios para conseguir os fins... Vamos juntos visitar o seu guarda roupa...

— O senhor ocupa-se disso?...

— É indispensável... devem faltar-lhe muitas coisas...

— Não...

— Tenho a certeza que sim...

— Então venha...

Abriram-se os móveis, e o senhor de Gordes ficou estupefato.

O milionário loucamente apaixonado tinha por tal forma apressado o casamento que não se havia lembrado de certos pormenores importantes, esquecidos voluntariamente por Júlio Leroux.

O presente de noivado continha, é verdade, rendas muito boas, jóias de valor e grande número de objetos de luxo, mas o enxoval de noiva propriamente dito não existia, nem mesmo em estado rudimentar.

À exceção de três ou quatro vestidos sofríveis, feitos nas vésperas do casamento, a condessinha só tinha os seus fatos de rapariga solteira, mais que modestos e muito usados...

Raul, que primeiro ficou mudo de surpresa, pôs-se a rir a bom rir.

— Pobre queridinha Gata Borralheira! exclamou ele. O próprio Job, de bíblica memória, era um Cresus à sua vista! Falta-lhe tudo, tudo completamente!... e eu não sabia nada!...

— Contudo estes vestidos... começou Joana.

— As suas criadas, a quem os há de dar, aceitá-los-ão por delicadeza, mas não farão caso de tão mesquinho presente... interrompeu Raul. Depressa, queridinha, prepare-se... Vou mandar por o trem... Daqui a uma hora partiremos para Orleans e ainda esta noite havemos de estar em Paris.

— Em Paris!... repeliu a jovem. Nós vamos a Paris?

— Com certeza...

— Por muito tempo?...

— Por quarenta e oito horas, o máximo, se quer... O tempo unicamente para uma modista de fama tomar as necessárias medidas, para escolher fazendas e figurinos, e logo depois regressaremos ao nosso ninho.

Joana suspirou, em seguida sorriu.

Deixar Gordes era um desgosto, mas deixava-o indo na companhia de Raul; portanto, havia compensação.

As coisas passaram-se tal como o conde havia previsto.

No dia seguinte, à noite, o jovem par estava de volta.

Na semana seguinte, uma célebre modista, o arbítrio das grandes elegâncias, expedia doze fatos de tão fino gosto, de tão triunfante distinção que Joana, apesar de sua completa ausência de garridice, admirou-os como obras de arte.

Raul estava entusiasmado.

— Achar-me-á mais linda por estar mais brilhantemente vestida? perguntou-lhe a condessinha num tom de meiga censura.

— Não, minha amiguinha, respondeu ele, não pode ser mais linda, pode porém sê-lo de outra forma.

O momento temível chegou enfim.

Era preciso ir fazer as visitas de casamento.

Todavia esta tarefa não custou muito.

Joana foi acolhida por toda a parte como tinha direito a sê-lo pelo duplo título de encantadora mulher e de Condessa de Gordes. Sem o procurar, achou meio de agradar às senhoras idosas e enfeitiçar as novas... É inútil acrescentar que os homens classificaram-na de adorável.

Foi universal o seu êxito, nem uma falsa nota destoou no concerto unânime de elogios que se erguia na sua passagem.

Ao fim de oito ou dez dias, estando pagas todas as dívidas de boa vizinhança e abrindo-se só às quintas feiras as portas do palácio de Gordes, a plácida e íntima existência dos dois esposos amantes recomeçou e pareceu-lhes mais deliciosa por ter sido momentaneamente interrompida.

Raul e Joana isolavam-se de novo na sua felicidade, mas a bondosa criança não pode deixar de censurar os gozos egoístas daquele viver a duo que tudo lhe faziam esquecer.

Lembrou-se, então, de que em Vertes-Feuilles lhe chamavam o anjo bom, e resolveu tornar-se mais do que nunca digna de tal título.

Apressemo-nos a ajuntar que, na véspera do casamento, os pobres e os enfermos a quem a sua doce protetora ia abandonar, tinham recebido valiosos socorros e ficavam por muito tempo, não diremos para sempre, ao abrigo da necessidade.

Joana recomeçou os seus costumes de tocante beneficência. Saía todas as manhãs a pé, completamente só, vestida como uma pequena burguesa com um vestido de linho cru que ela preferia aos seus fatos de maior preço; e dentro em pouco tornara se tão estimada nas cabanas dos arredores de Gordes, quanto o era ainda em Vertes-Feuilles.

O conde ia ao encontro dela e tomando-a nos braços, muito fatigada, às vezes, daqueles longos passeios, mas com o sorriso nos lábios e a fronte radiante, dizia-lhe enternecido:

— Oh! anjo bom de minha casa, querida irmã da caridade, deixa-me beijar as tuas abençoadas mãos!... Parece-me ver-te uma auréola na fronte!...

Naquelas duas existências estreitamente ligadas, era tudo profunda serenidade, amor puro, infinita ventura...

O futuro seria semelhante àquele presente tão belo? A dúvida parecia impossível...

Mas, às vezes, no oceano, em meio de um céu radiante, uma mancha quase imperceptível aparece no extremo horizonte...

Para o viajante indiferente, é um bando de gaivotas, ou o fuma de um vapor.

O marinheiro velho abana a cabeça, aponta com o dedo para a tal imperceptível mancha e diz:

— É a tempestade!...

 

A FATALIDADE

Havia quinze dias ou três semanas, que Joana Leroux era Condessa de Gordes.

O doutor Máximo, só, no seu gabinete de trabalho, junto à mesa e encostado ao cotovelo, amparando com ambas as mãos a cabeça ao mesmo tempo vazia e pesada, entregava-se a uma sombria meditação cuja natureza nos parece supérfluo indicar.

A criadinha aldeã, que partilhava com madame Giraud os cuidados da casa, entrou de repente.

— Que há de novo, Tiennette? perguntou o médico levantando a cabeça.

— Senhor doutor, está ali um senhor que quer vê-lo... Encarregou-me de lhe entregar este cartãozinho...

E ao mesmo tempo Tiennette apresentara ao amo o que ela chamava um cartãozinho.

Era um bilhete de visita.

Máximo pegou-lhe e estremeceu ao ler nome:

 

RAUL DE GORDES

 

— Está aí o senhor de Gordes? exclamou ele.

— Sim, senhor doutor, em frente da porta, acompanhado de um rapazinho a cavalo que está segurando o dele, e que tem botões brilhantes e de canhões amarelos...

— Manda entrar o senhor de Gordes... murmurou o médico, e enquanto a criada ia conduzir o visitante, ajuntou em voz baixa: Em minha casa... ele!... o marido de Joana!...

Dai a segundos Raul transpunha o limiar da porta do gabinete, de rosto risonho e mão estendida.

Era impossível ao doutor não apertar aquela mão, mas fê-lo com um manifesto constrangimento que o Conde atribuiu à sua timidez.

Conhecemos os sentimentos de Máximo; sabemos que esperanças ele concebera por um momento, é sabemos, também, com que heróica resignação ele aceitara o sacrifício.

Contudo, a presença do homem, pelo fato de se terem aniquilado as suas esperanças e desfeitos os seus sonhos, causava-lhe uma profunda perturbação.

Joana pertencia àquele homem!

Um anjo não poderia subtrair-se à involuntária inveja, à pungente dor resultante de um tal pensamento.

Máximo impôs, como pode, silêncio à tempestade que trovejava em seu cérebro, e apresentando uma cadeira a Raul disse-lhe:

— A que devo, senhor conde, a inesperada honra de sua visita?...

— Meu querido doutor, disse o recém-chegado sorrindo, o senhor está vendo em mim um embaixador... A senhora de Gordes é quem me envia aqui.

— A senhora de Gordes passa bem, assim o espero? perguntou o médico com uma voz um pouco trêmula.

— Perfeitamente... Encarregando-me de lhe apresentar muitas recomendações, (porque o senhor é o número dos seus amigos), pediu-me para lhe dizer que lamentou vivamente a sua ausência no dia do seu casamento... Contava com o senhor na igreja...

— E lá estive... murmurou Máximo.

— Ela não o viu, e ficará muito contente sabendo que o senhor fazia parte dos que rogavam pela sua ventura.

O moço médico inclinou-se:

— Orava, efetivamente, disse ele, e do mais íntimo da minha alma.

— Permita-me que lhe agradeça em seu nome, e também no meu... Obriguei-me perante Deus e perante os homens, a tornar ditosa aquela criança, e não deixarei de cumprir tão doce e sagrada missão.

Máximo inclinou-se de novo, mas desta vez sem responder. O Conde prosseguiu:

— A senhora de Gordes professa pelo senhor a mais alta estima, ao mesmo tempo, uma muito sincera afeição. Foi o colaborador assíduo das suas obras de caridade. Foi à cabeceira de um dos seus doentes, lembra-se por certo, que eu tive a honra de lhe ser apresentado por ela. Melhor do que ninguém, sabe quanto o senhor vale, e é tão grande a confiança que a angélica criança tem no senhor, que de bom grado lhe atribuiria o poder dar vida e saúde àqueles que os seus colegas abandonassem.

— Infelizmente não é assim, redarguiu Máximo, e a benevolência da senhora de Gordes não lhe deixa ver a verdade tal qual ela é. Só o meu zelo é que não tem limites... o meu poder é pouco...

— Não é essa a opinião de Joana que lhe pede por minha voz, e instantemente, para que aceite as funções de médico de nossa casa, e que vá ser a providência dos indigentes de Gordes como já o é dos de Vertes-Feuilles...

"Peço-lhe que pense antes de responder, querido doutor, porque o previno de que minha mulher não admite a possibilidade de uma recusa...

Ao passo que o conde falava, um vivo rubor coloria o rosto de Máximo Giraud.

Aquele extraordinário rubor durou apenas alguns minutos, e o mancebo empalideceu muito.

Travava-se em seu ânimo um violento combate.

Cederia ele ao pedido da condessa tão delicadamente interpretado pelo Conde?

Quando, antes de todos, viu que Joana e Raul se amavam e iam unir-se, tinha chamado em seu auxílio toda a energia para combater o imenso amor que se havia apoderado de sua alma.

E eis que no momento em que o esquecimento, apesar da ausência, lhe parecia impossível, vinham pedir-lhe para ser assíduo no palácio de Gordes.

Tornar a ver Joana! falar-lhe! ouvi-la! era superior às suas forças... superior à sua coragem.

Não podia!

— Então, doutor?... recomeçou Raul admirado de um silêncio cujos motivos não percebia.

— Então, senhor Conde, balbuciou Máximo, preciso pedir-lhe todas as desculpas, porque a minha resposta não será conforme aos desejos da senhora de Gordes.

— Recusa! exclamou o marido de Joana.

— Assim é preciso.

— Mas, porque?

A pergunta era um pouco embaraçosa.

Que razão aceitável podia Máximo apresentar, visto que tinha de ocultar a verdade, a única boa razão? Respondeu não sem embaraços.

— De Rancey a Gordes a distância é grande... mais de vinte e quatro quilômetros, creio eu...

— Que importa? redarguiu Raul. Cinco léguas é pouca coisa para um médico. Com um bom cavalo é questão de hora e meia de caminho.

— Os pobres destes sítios estão acostumados a contar comigo... prosseguiu o doutor, devo dispensar-lhes todos os cuidados.

— Ninguém lhes proíbe que continue.

— Finalmente, começo a ter uma clientela séria. Sendo freqüentes as minhas ausências, começariam a afastar-se, e os meus interesses futuros ficariam grandemente comprometidos...

— É só isso? exclamou o conde.

— Mas. pareceu-me... balbuciou Máximo.

— Esquecia-me dizer-lhe, interrompeu Raul, que às funções de médico de casa estão ligados os honorários cujo algarismo fixará e seja qual for esse algarismo, parecer-me-á modesto.

Pela segunda vez, desde o começo da conversão, Máximo corou até aos olhos.

— Ah! murmurou ele num tom profundamente triste, merecerei a dor e a humilhação de que veja em tudo isto uma questão de dinheiro...

— E, quando assim fosse, há nada mais simples?... Todo o homem, a quem o acaso não fez nascer rico, deve viver da sua profissão. É muito honroso.

— É, com certeza, mas não trato agora disso. Não tenho, afianço-lhe, nenhuma idéia ambiciosa... Estou reconhecido à prova de confiança e de estima que a senhora de Gordes me quer dispensar, e se recuso, é porque não posso aceitar.

— Portanto, perguntou Raul, a seu pesar contrariado, é essa a sua resolução definitiva?

Máximo respondeu com gesto afirmativo. O conde levantou-se.

— Lamento, disse ele, uma decisão que minha mulher não esperava... Parece-me tão irrevogável essa decisão que andaria mal insistindo... Então, adeus, senhor doutor, já que me priva do prazer de lhe dizer: Até mais ver...

Raul cumprimentou Máximo com uma política um pouco fria, e sem lhe estender desta vez a mão, dirigiu-se para a porta. Ao jovem médico então despedaçou-se-lhe o coração.

— Que vai ela pensar a meu respeito? interrogou-se ele muito penalizado.

Raul ia a por a mão no fecho da porta.

— Senhor Conde... disse Máximo. Raul parou e voltou-se.

— Fui obrigado com bastante pesar, prosseguiu o doutor, a desprezar o oferecimento de uma posição que seria invejada por todos os meus colegas, mas se, queira Deus que não, a senhora adoecer um dia... doença grave que o assuste, suplico-lhe que me previna imediatamente...

— Agradeço-lhe muito, respondeu o conde; mas desejo que a ocasião de experimentar a sua amizade por esse modo não se ofereça.

E saiu.

Máximo deixou-se cair na sua cadeira, e quando a porta exterior se fechou, quando se extinguiu a bulha dos passos dos cavalos, ocultou entre as mãos o rosto banhado em lágrimas.

Naquele momento a senhora Giraud entrou no gabinete de trabalho, e viu o filho naquela atitude desolada.

— Meu filho, meu querido filho, que tens tu? exclamou a excelente senhora.

O doutor, descobrindo rosto, mostrou-lhe as feições descompostas.

— Bem sabe que sofro... respondeu ele. Bem sabe que o meu mal é incurável... Mostrei-lhe a minha chaga... Sondou-lhe a profundidade...

— Então, continuas a amá-la?...

— Oh! continuo e para sempre... Amo-a, e este amor aumentará até ao fim da minha vida. Este amor há de matar-me.

— Quem esteve aqui contigo há pouco?

— O Conde de Gordes.

— O marido dela!...

— Sim... o seu marido!...

— Que queria ele?...

Máximo repetiu de modo quase textual o oferecimento que Raul viera fazer-lhe da parte de Joana.

— E recusaste? redarguiu a senhora Giraud.

— Pois podia eu aceitar? Não! cem vezes não! Não podia! Compreende isto, minha mãe?...

— Sim. Compreendo bem.

— E contudo, continuou o médico, aquela a quem amo em segredo, de longe, mais do que a própria vida, mais do que tudo, a adorada criança que me chamava seu amigo, vai crer que sou ingrato, que sou indiferente, que sou egoísta talvez!... E não parece que repudio tão caras recordações?... A este esquecimento indigno, responderá ela com o seu desprezo, e amanhã terá banido o meu nome da sua memória!... Oh! minha mãe!... minha mãe, quanto sou desgraçado!...

 

UMA VISITA

Joana esperava o Conde com impaciência.

Assim que ele se apeou, saltou-lhe ao pescoço com aquela vivacidade infantil que o casamento não tinha destruído, e que era um dos seus aspectos graciosos.

— Querido Raul, perguntou ela em seguida, vem de Rancey?

— Sim, minha queridinha, respondeu o senhor de Gordes.

— Viu o nosso doutor?

— Vi.

— Desempenhou-se da missão de que o encarreguei para com ele?

— Disse-lhe o que a senhora teria dito.

— O doutor ficou contente com a minha lembrança, não é verdade? Aceita as nossas propostas e não tardará que o vejamos?

Raul abanou a cabeça.

— Trago-te uma notícia que não há de te agradar, minha querida, redarguiu ele. O senhor Giraud não vem...

— É impossível... exclamou Joana.

— Contudo, é absolutamente verdade. Rejeita os oferecimentos feitos em seu nome. Recusa-se a ser médico de nossa casa e dos pobres aqui dos arredores.

Joana parecia estar consternada.

— Mas por que é a recusa? murmurou ela.

— Os motivos alegados pelo doutor pareceram-me insuficientes e são com certeza pretextos. Diz que Gordes fica muito longe... Receia perder a clientela... Estava além disso muito comprometido e muito frio... Incomodava-o a minha presença... Mal ocultava o:seu constrangimento. Quando lhe estendi a mão, hesitou em dar-me a sua, lembro-me bem disso...

— Mas, ainda uma vez, por que? repetiu a condessinha, cujas lágrimas pareciam prestes a correr.

— Ignoro-o... a única razão que me parece explicar de um modo quase plausível a sua nova atitude é esta: O doutor Giraud pertence à burguesia, eu sou fidalgo e titular, o que presentemente constitui aos olhos de muita gente um grande crime. Ele é quase pobre; nós somos muito ricos. Talvez tenha inveja da nossa fortuna, e não pode perdoar-lhe que seja condessa de Gordes...

— Não! não! não! exclamou Joana. Não é isso! tenho a certeza.

— Então o que é?

— Não sei e debalde procuro, mas conheço muito bem o doutor para o julgar capaz de um instinto tão ínfimo como seria a inveja... Invejoso! ele!!... Não é possível! é um coração de ouro!... é um espírito superior!... Que lhe importa o nosso título e a nossa riqueza! Para que os havia ele de invejar? Não precisa de ninguém... a sua inteligência e o seu talento fazem igual a todo o mundo, e ele não o ignora... Mesmo no momento em que me ofende, eu lhe faço justiça. Há alguma coisa que nós ignoramos, e que não poderia adivinhar, mas que com certeza nada tem de vil... A recusa do doutor causa-me um vivo desgosto, e contudo não quero nem posso retirar-lhe a minha estima, porque sei que é digno dela.

— Que eloqüência, minha querida! disse Raul sorrindo. Com que entusiasmo defende os que têm a ventura de ser do número dos seus amigos!...

— Defenderia os meus inimigos de igual modo, redarguiu Joana, se eu tivesse inimigos, e se provasse que o ataque era injusto... E verá um dia que acusando Máximo Giraud, acusava-o injustamente.

A conversação mudou de rumo.

Durante quarenta e oito horas a condessinha esteve um pouco triste.

Felizmente, ao terceiro dia, uma viva e inesperada alegria veio tranquilizá-la.

Tinha regressado dos seus passeios matinais.

Um criado grave perguntou-lhe:

— A senhora condessa quer receber uma pobre mulher do campo que solicita uma audiência de vossa excelência? Vem dos sítios de Vertes-Feuilles, e parece vir muito cansada... Acompanham-na dois pequenitos...

— Recebo, sim, e já, redarguiu Joana. Acompanha a mulher para a saleta... Já lá vou ter com ela.

Dois minutos depois a senhora de Gordes entrava na saleta, e Genoveva ajoelhando a seus pés, pegou-lhe nas mãos que cobriu de beijos.

Genoveva, devem lembrar-se os nossos leitores, era aquela rapariga que tinha enviuvado e havia ficado com dois filhos, e a quem a morte do marido tinha lançado na mais horrível miséria, e cujas fatais conseqüências foram o desespero e a doença.

Joana afeiçoara-se à infeliz, digna de um interesse sem limites.

Graças aos afetuosos cuidados do anjo bom, secundados por Máximo Giraud na sua obra de dedicação, vimos Genoveva triunfar de um mal que parecia incurável.

A morte, vencida, afastava-se não arrebatando a vítima prometida.

Lembrou-se da comovente cena de que foi teatro a cabana de Genoveva.

— Ouviu o que disse o doutor, tinha dito Joana, ele está muito-esperançado... Eu quero que melhore depressa, e quando estiver completamente restabelecida, procurarei arranjar-lhe trabalho fácil para a ajudar a viver sem se cansar demasiado.

— Viver!... exclamou Genoveva. Sim, quero viver... Viver por gratidão! Viver para a amar! Viver para a servir de joelhos!...

E como Joana tentava sossegar a convalescente, esta última havia redargüido:

— É lá possível, minha menina, ter sossego quando o coração trasborda de comoção? Via-me perdida, e sentia a morte apoderar-se de mim, e morria no desespero, deixando após mim dois órfãos... dois famintos, pedindo esmola pelas estradas, sem apoio contra as tentações da fome, e os conselhos dos maus... mendigos primeiros, e quem sabe, ladrões talvez um dia... Veio a senhora... salvou-me... agora poderei viver... verei os meus filhos crescerem... farei deles gente honrada, bons entes, trabalhadores como era seu pai... Ah! menina Joana, peçam para dar a vida pela menina, e verão se eu hesito...

E a pobre, viúva tinha acrescentado enquanto que abundantes lágrimas corriam de seus olhos e lhe regavam as faces:

— Choro... sim, é verdade, choro... mas fazem-se bem estas lágrimas!... Já não estou desgostosa, pode-se retirar! Sinto-me feliz... sinto-me forte...

Era esta boa mulher que acabava de chegar ao palácio de Gordes, e que quase de joelhos, beijava as mãos da condessinha.

 

Joana, com os olhos banhados de lágrimas, obrigou-a a levantar-se e abraçou-o dizendo-lhe:

— Genoveva... boa Genoveva... Ah! quanto estimo vê-la...

— E eu, menina Joana... quero dizer, senhora Condessa... balbuciou a recém-chegada sufocada pela comoção.

A viúva do rachador de Vertes-Feuilles tinha trinta anos, era alta, delgada, e os seus modos honestos e agradáveis.

Daquela beleza já poucos vestígios existiam.

O excesso do trabalho, as privações, o sofrimento, a doença, haviam-se encarregado de envelhecer Genoveva antes de tempo, de lhe murchar as feições, de lhe lançar na fronte e nas faces rugas profundas, de misturar enfim aos seus cabelos castanhos grande número de cabelos brancos.

Mas a pobre conservava ainda uma espécie de distinção relativa; o fogo da gratidão brilhava em seus olhos negros; podiam ler-se no seu rosto a aflição e a delicadeza sem limites.

Tudo nela inspirava simpatia.

O seu fato de aldeã, e os fatinhos dos filhos eram de uma extrema pobreza, mas não tinham o cunho da miséria degradante.

Os sapatos carregados de pó eram o único indício de que a mãe e os filhos tinham feito uma longa caminhada a pé.

Depois de ter abraçado a protegida, a senhora de Gordes abraçou os pequenos e perguntou:

— Vens de Vertes-Feuilles, boa Genoveva?

— Sim, senhora Condessa.

— Mas são cinco léguas das Vertes-Feuilles aqui...

— Partimos ao romper do dia... Os pequenos andam bem,' *eu é que estou mais cansada... isto é, estava-o quando cheguei, unas nas casas como estas, os criados seguem o exemplo dos amos. Deram-nos de comer enquanto esperávamos pela senhora Condessa, já não sinto o cansaço.

— Sente-se agora inteiramente boa, Genoveva?

— Sim, minha senhora, graças a si e a Deus... Recobrei as linhas forças... O querido doutor Máximo disse-me o outro dia que eu nunca tinha passado tão bem como agora.

O nome de Máximo entristeceu Joana. Após um pequeno silêncio, continuo ela:

— Estimo muito o que acaba de me dizer, mas é preciso não abusar dessas forças que tão depressa voltaram... O que a obrigou a fazer hoje uma verdadeira viagem? Quer pedir-me alguma coisa?

— Sim, e não, senhora Condessa...

— Explique-se, boa Genoveva...

— Não preciso de coisa nenhuma, continuou a viúva, porque quando saiu de Vertes-Feuilles, depois do seu casamento, mandou-me entregar uma soma mais que suficiente para nos garantir os meios de subsistência durante muitos meses... Tenho, portanto, tempo para procurar trabalho... Além de que os pequenos crescem, e podem ir.ganhar a vida em casa de qualquer rendeiro...

Genoveva interrompeu-se.

— Então? perguntou Joana.

— Pois bem, minha senhora, deveria considerar-me feliz, a não querer passar por ingrata, e graças a Deus não mereço censura por tal motivo. E contudo sou desgraçada...

— Desgraçada! repetiu a senhora de Gordes.

— Sim, minha senhora... Porque!

— Por que me falta uma coisa, senhora, sem a qual é-me impossível viver...

— E essa coisa?

— É vossa excelência, minha senhora! respondeu Genoveva com exaltação. Se eu ainda vivo, se os meus filhos, não estão hoje órfãos, é a vossa excelência que o devo, bem sabe, e durante a minha doença costumei-me a vê-la todos os dias... a ouvir todos os dias a sua doce voz que me comovia. Quando melhorei e a senhora se retirou, fiquei como um corpo sem alma... Não tenho ânimo para nada... Deixo-me ficar sentada desde pela manhã até à noite no limiar da minha porta, alongando a vista pela estrada fora, sabendo que não vem, e contudo esperando-a, esperando-a sempre! cai-me então a roca das mãos, aperta-se-me o coração, inunda-se-me os olhos de lágrimas, e sem poder conter-me choro como se tivesse perdido os meus dois filhos... Como me sinto um pouco fraca de cabeça assaltou-me o medo de enlouquecer de todo... Disse comigo: Além, no palácio de Gordes, onde se emprega tanta gente, ha de haver alguma obra que não seja superior às forças de uma pobre mulher como eu... Vou procurar a senhora Condessa. Hei de suplicar-lhe que me dê em sua casa uma pequena ocupação... muito pequena... muito humilde... Estou pronta para tudo... dar-me-ei por feliz ficando um pouco inferior aos seus criados... Ao menos viverei junto da senhora... saberei que a sirvo... e vê-la-ei de longe... Aí está porque eu vim... Meu Deus... Meu Deus... faço-a chorar, minha senhora...

A condessinha, enternecida, tinha efetivamente o rosto banhado de lágrimas. Deitou-se nos braços da aldeã balbuciando:

— Ah! Genoveva... boa Genoveva, não há mais de apartar-se da minha companhia! nunca!...

No dia seguinte, a viúva do rachador era elevada à dignidade de criada grave; Joana encarregou-se de instruí-la no seu serviço, e os dois rapazinhos começaram a sua educação agrícola em uma das herdades do Conde.

 

UM PAI ESTRÓINA

Três meses depois do casamento de Joana, Júlio Leroux pensativo e com a cabeça inclinada para o peito, passeava de um lado para o outro como um urso numa jaula na sala de Vertes-Feuilles, fumando um charuto que quase por momentos deixava apagar, e do qual, logo depois, tirava grandes baforadas de fumo branco.

O ex-banqueiro passeando, monologava assim:

— Tenho e não tenho fortuna...

"Lazarine marquesa, Joana Condessa, e ambas riquíssimas, é com certeza soberbo, e mesmo no tempo do meu esplendor, não sonharia mais brilhantes alianças.

"Portanto, devo estar satisfeito... Lastimando-me. seria injusto, e contudo lastimo-me e com razão. É certo que as coisas não vão mal, mas no ponto de vista do meu interesse pessoal poderiam ir melhor.

"Se Raul de Gordes, (encantador rapaz a quem muito estimo), em lugar de ter casado com Joana tivesse escolhido Renée, como a princípio tinha já contado, que diferença! e como a minha vida se arranjaria perfeitamente bem!

"É preciso concordar, porque não é possível iludirmo-nos, Renée incomoda-me muito. Enervada, enervante, pretensiosa, invejosa, orgulhosa, tem tudo o que pode torná-la insuportável!... Lazarine, que não é muito boa, era um anjo comparada com Renée, e é a pior das minhas filhas que me fica por castigo!...

"Que grande serviço me teria feito o Conde desembaraçando-me de Renée!...

"Joana, essa pobre criaturinha, era menos incômoda do que o inocente cordeirinho pastando na relva verde dos prados floridos!

"Só com ela, era perfeito rapaz, podendo dispor à minha vontade do meu tempo, da minha pessoa e do meu dinheiro.

"Joana achava tudo bom...

"Que tesouro que é aquela criança!

"Muito estimo que ela seja feliz, mas se a coisa dependesse da minha vontade, com certeza que não seria ela a Condessa de Gordes.

"Aborreço-me aqui, eu, que diabo! Tenho a nostalgia de Paris... É preciso a todo o custo procurar o meio de reparar este meu estado... Renée não fica contente... Nada lhe posso fazer... Pior para ela. É muito egoísta também, e o egoísmo é um defeito repugnante!

"Vou preveni-la da minha próxima partida, e usarei as precisas formalidades.

"Pobre Joaninha, como ela aceitaria bem a coisa!...

Júlio Leroux seguia o princípio de que não se deve deixar para o dia seguinte o que se pôde fazer no mesmo dia.

Por isso, tocou a campainha, e perguntou ao criado que apareceu onde estava sua filha.

— A menina está no parque... respondeu o criado grave.

O ex-banqueiro saiu também, e dirigiu-se para a rua coberta de ramagem, à antiga, formando uma espécie de túnel vegetal num dos lados da habitação.

Na extremidade daquele túnel havia um retiro de verdura, construído de caniçado coberto de trepadeira, de vinhas e verdeselha.

Renée ia às vezes dormir para ali, ou pelo menos bocejar, nas horas amenas do dia.

Achava-se ali naquele momento, e tão absorta, que Júlio Leroux pôde aproximar-se da filha sem ela dar por isso.

Assentada num banco rústico, as mãos juntas descansadas sobre os joelhos, a cabeça inclinada para traz, a jovem não fazia o mínimo movimento. Podia julgar-se adormecida se não tivesse os seus grandes olhos abertos.

O seu formoso rosto um pouco emagrecido, apresentava na sua imobilidade marmórea uma expressão quase ameaçadora.

No momento de entrar no tal pavilhão ou retiro de verdura, Júlio Leroux parou e contemplou Renée durante alguns segundos.

— Irra! disse ele consigo, a fisionomia da amável pequena não é muito carinhosa, é preciso concordar!... Como uma rapariga tão linda toma um ar tão carrancudo!

Em seguida, em voz alta:

— Dormes? perguntou ele.

Renée fez o movimento de quem acorda em sobressalto, e contudo sabemos que ela não estava dormindo. Volveu os olhos para Júlio Leroux:

— Ah! é o pai! disse ela em tom natural.

— Estás aí há muito tempo?

— Não sei... Estava sonhando...

— Acordada? Sonhavas em que?

— Em tantas coisas que seria difícil enumerar.

— Incomodo-te?

— De modo nenhum. E mesmo que assim fosse, sou bastante delicada para não o dar a conhecer. Parece que isto o admira?

— Venho conversar...

— Pois bem, conversemos! Assente-se aqui ao meu lado, neste "banco... aviso-o de que é duro.

— Obrigado! quero antes estar de pé...

— Como quiser... pode começar! Sou toda ouvidos.

Júlio Leroux tossiu duas ou três vezes para aclarar a voz, ou para disfarçar o seu embaraço, porque parecia-lhe que a conversação era menos fácil de começar do que tinha confessado a si mesmo.

Renée, de novo entregue ao seu cogitar, olhava maquinalmente para o sapatinho que fazia mover com o bico do seu pé arqueado.

— Sabes, começou o ex-banqueiro, que esta manhã, ao almoço, recebi duas cartas de Paris...

Sei que recebeu duas cartas, mas ignoro donde vinham, e até nova ordem, pouco me importa sabê-lo...

— Em conseqüência da minha liquidação, continuou Júlio Leroux, fiquei possuidor de uma dívida que parecia até agora não valer coisa alguma...

— Que me importa?...

— Já que dizes ser tão delicada, dá prova disso não me interrompendo a cada palavra! Ora, escreveram-me, que a casa de que sou credor, vai prosperando de um modo inesperado, e que por certo será possível pagar-me tudo, ou parte do total da dívida.

— Trata-se de alguma grande quantia? perguntou vivamente Renée.

— Cinqüenta mil francos.

A jovem encolheu os ombros e fez careta.

— Uma gota de água!... murmurou ela.

— Como falas de farta!... Por uma gota de água de cinqüenta mil francos vale a pena incomodar-se a gente.

— Quem o impede de se incomodar?

— O meu correspondente ajuntou que é preciso a minha presença em Paris para regular aquele negócio.

— Portanto?... disse Renée cuja fisionomia se animara de repente, e cujos olhos brilharam.

— Portanto, vou partir... concluiu Júlio Leroux.

— Quando?

— Amanhã.

— Fique descansado, não será por minha casa a sua demora... Estarei pronta de manhã cedo... Esta noite, se for preciso.

O ex-banqueiro olhou para a filha estupefato.

— Hem!... tu dizes que?... balbuciou ele como homem que parece não ter ouvido bem.

— Que depressa faço mala de três vestidos... Levo só um chapéu... o que for na cabeça... comprarei em Paris o que for preciso.

— Não nos entendemos... disse Júlio Leroux.

— Como?

— A minha viagem há de durar pouco, consagrada unicamente a negócios, tenciono ir só.

Renée levantou-se de repelão, com as faces vermelhas de cólera, os olhos injetados, e usando a linguagem livre dos peralvilhos de outros tempos, exclamou:

— Quer dizer que tenciona deixar-me morrer de tédio e aborrecimento nesta baiúca, e se reclamo, manda-me passear, ao passo que o pai vai pandegar às escondidas como um sonso que é. Ah! mas não há de suceder assim! Isso era bom para Joana, pobre pássaro engaiolado. Comigo o caso é diferente, bem sabe! Ficar aqui só! Nunca! Nunca! Portanto, se o pai vai partir, parto eu também! Está visto, compreendido e decidido! Fique sabendo de uma vez para sempre, e não falemos mais nisso.

Júlio Leroux sofreu com resignação esta saraivada de impropérios, mas não se dando ainda por vencido, tentou a persuasão.

— Pensa, minha querida, redarguiu ele, que passarei quando muito uma semana em Paris.

— Uma semana para distrair o aborrecimento que me devora, vale mais do que coisa nenhuma!

— Hei de alojar-me em hotel.

— Mais uma razão! é muito divertido o viver em hotel! gosto muito.

— Precisarei andar por fora todo o dia para tratar do negócio que te disse.

— Sairei também... sou já mulher, e conheço bem Paris...

— Isso seria inconveniente.

— Zombo das conveniências.

— Incomodar-me-ias muito.

— Que quer que eu faça? O meu lugar é junto do pai... É meu pai, e eu agarro-me a si.

Júlio Leroux bateu com o pé no chão.

— E se eu não quiser levar-te comigo? perguntou já impacientado e quase colérico. Se eu te proibir que me sigas?

— Iria sem licença...

— Sempre queria ver isso!

— Oh! há de ver, descanse! deixá-lo-ei partir, partirei depois... O compartimento das senhoras que viajam sós salvaguardaria as conveniências que parece importar-lhe muito. Julgar-se-á livre de sua filha... e de repente abre-se a porta... e zás, apareço-lhe eu...

— Tu nem sequer sabes para onde irei hospedar-me.

— Irei procurá-lo primeiro ao Grand-Hotel, e depois em todos os outros hotéis bons... Além disso, sei a morada do seu antigo amigo, o príncipe de Castel-Vivant. Há de informar-me a respeito do seu modo de proceder, e ajudar-me-á a descobrir o seu paradeiro.

Renée tinha resposta para tudo.

Júlio Leroux levou as mãos à cabeça na atitude de uma desolação cômica.

Se realmente a filha se agarrasse a ele, como energicamente manifestava a intenção de o fazer, adeus seus belos sonhos de prazer, de vida livre e alegre.

Valia tanto como ficar em Vertes-Feuilles.

Enquanto o ex-banqueiro, muito triste, pensava nestas coisas,. Renée examinava-o atentamente com o seu olhar fixo, em que se revelava uma má resolução.

— Ouça, disse ela de repente, que lhe custa e o importuna, imenso levar-me para Paris, é claro como água.

— Oh! sim!... resmungou o pai fantasista. Sim! importuna-me imenso.

— Pois bem, redarguiu a filha, há um meio de tudo conciliar...

— Qual é? fale depressa!

— Esta viagem a Paris nada tem que me seduza... Não me recuso, portanto, a ficar, não quero porém ficar só... Harmonize isto como melhor entender e puder.

— Como?

—Conduza-me a Gordes, peça à mana Joana que me receba em sua casa durante a sua estada... e está tudo pronto.

 

O ANJO E O DEMÔNIO

Júlio Leroux olhou para a filha tomado de uma surpresa que 'não procurou dissimular.

— Fala seriamente?

— Com certeza! redarguiu Renée, e não compreendo o espanto que manifesta!...

— Pensas em passar junto de Joana o tempo da minha viagem?...

— Por que não? Não fui à Itália com Lazarine? Joana é minha irmã também... O que a mais velha fez por mim, pode também fazê-lo a mais nova. É a coisa mais simples do mundo entre as famílias unidas como a nossa.

— Joana vai achar-te incômoda!...

— Incomodava eu Lazarine?

— Não é tudo o mesmo!...

— Onde está a diferença?

À Marquesa de la Tour-du-Roy agradava um terceiro entre ela e o marido, enquanto que no palácio de Gordes cairás em plena lua de mel de jovens esposos namorados...

— Que me importa?

— Compreendo que te importe pouco, mas importa-lhes a eles, cujo viver irás perturbar...

— Tem razão!... exclamou a jovem mostrando-se impaciente. Faço mal querendo impor a minha irmã o pesado fardo da minha presença. Acabou de me abrir os olhos... Renuncio a tão absurdo projeto, e partirei amanhã consigo para Paris.

O ex-banqueiro fez uma careta, e apressou-se a emendar o que tinha dito.

— Não! não! exclamou ele. Expliquei-me mal, e tu não me compreendeste... Os namorados gostam da solidão é certo, mas a tua estada no palácio de Gordes será contudo muito natural.

— Quando me levará lá?

— Amanhã naturalmente... O negócio que me chama a Paris não admite delongas.

Renée sorriu.

— Pois bem... disse ela, vou cuidar das minhas malas... O meu querido cunhado mandá-la-á buscar aqui amanhã à noite, porque me parece mais conveniente ir sem bagagem.

E a jovem, saindo do pavilhão de verdura, dirigiu-se para casa.

— Safa! murmurou Júlio Leroux ao vê-la afastar-se. Escapei de boa!... Ia totalmente comprometendo há pouco a situação!... Onde diabo tinha eu a cabeça quando disse a Renée que iria incomodar Raul e Joana?... Que ela os importune, que me importa, contanto que me deixe em paz... Que mal me pode fazer o aborrecimento e incômodo dos outros?...

No dia seguinte de manhã, apressou-se o almoço em Vertes-Feuilles, e às onze horas o ex-banqueiro partiu para Gordes com Renée, na elegante vitória dada por Lazarine e puxada por uma bela parelha de cavalos ingleses, dádiva recente do Conde.

Uma carroça devia conduzir diretamente ao caminho de ferro a mala do velho pândego.

Quando o pai e a filha chegaram, Joana estava só no palácio; o senhor de Gordes fora obrigado a dirigir-se a Orleans, para tratar de um processo que um dos seus vizinhos intentava contra ele.

A condessinha amava ternamente o pai e a irmã, e recebia-os com uma franca alegria,

— Ah! exclamou ela depois de os ter abraçado, que pena terá Raul! Está ausente, imagine, ele que nunca sai, e teremos de almoçar sem a sua companhia...

"Felizmente há de vir a horas de jantar, porque jantam cá, assim o espero, e para serem bons, deviam dormir também.

— Almoçamos antes de sair de Vertes-Feuilles, queridinha, respondeu Júlio Leroux, e à hora em que almoçarem cá, eu mais perto de Paris do que de Orleans...

— Vai a Paris, papai?

— Vou querida. Um negócio importante...

— Um negócio como antes do meu casamento? perguntou Joana sorrindo, não sem uma certa inocente malícia...

O ex-banqueiro não sentiu a ponta do epigrama que lhe era dirigido, e redarguiu num tom sério:

— Sim, inteiramente do mesmo gênero.

— Tome cuidado em não adoecer! continuou Joana. Bem sabe pai, que os negócios fatigam-no demasiadamente.

— Tomarei as minhas precauções, prometo-te.

— E a mana cuidará de si, porque suponho eu que ela o acompanha.

— Julgando isso, querida Joana, enganas-te... redarguiu Renée. O pai recusa-se obstinadamente a encarregar-se de mim... Diz que o incomodaria muito.

— Mas então, exclamou a condessinha, hás de ficar só em Vertes-Feuilles! É impossível! Não consinto em tal! Não permito! Ficas minha prisioneira, e não te darei a liberdade senão quando o pai voltar.

— Pois que, tu queres?

— Oh! absolutamente? será inútil qualquer resistência.

— E o Conde?

— Então o que tem o Conde?

— Se ele não aprovasse o teu convite...

Joana sorriu com um modo ao mesmo tempo angélico e galante, ao passo que abanava a cabeça com encantadora temeridade.

— Não aprovar o meu convite! repetiu ela!... Ah! querida mana, bem se vê que não conheces Raul! Ficará tão contente como eu de que seja aceite!... Não temos senão um coração, uma alma, uma vontade!... O que um de nós pensa, pensa igualmente o outro... O que um de nós deseja, deseja também o outro.

— Portanto, perguntou Renée, fazendo um violento esforço para não trair na aspereza da voz a amargura do pensamento, portanto és ainda feliz?

— Ainda, e mais do que nunca, exclamou Joana. Oh! muito feliz! Eu não mudo, Raul também não... Amar-nos-emos sempre, do mesmo modo, toda a vida e até a morte... Seremos, portanto, sempre felizes.

Júlio Leroux fingiu enxugar uma lágrima.

— Palavra de honra, disse ele com uma seriedade cômica, nunca ouvi nada mais enternecedor em peça ou teatro.

— O pai zomba de mim! redarguiu a jovem sorrindo. É o mesmo! A minha ventura é tão grande! Amar... ser amada... é tão bom! E nós amamo-nos tanto! Nunca pessoa alguma saberá quanto nos amamos! Ninguém será capaz de compreendê-lo. Parece que nascemos um para o outro, Raul e eu. O bom Deus já nos tinha destinado um para o outro... sim, pai, antes de nascermos.

Dizendo o que precede, a condessinha era adorável. Não podia imaginar-se nada de mais belo no mundo do que ouvir aquele anjo de cabelos louros e olhos azuis, que parecia ainda uma menina, quase uma criança, falar do seu casto amor com uma exaltação apaixonada.

— Então, posso ficar? perguntou ela.

— Consentes em ficar? disse Joana muito viva e alegremente.

— Com certeza, visto que afirmas que teu marido concorda.

— Sim! sim!... e cem vezes sim!... repito-o, afirmo-o! certifico-o... Vou alojar-te já... Mas reparo, não trouxestes nada!... Iremos amanhã a Vertes-Feuilles buscar o que te for preciso.

— Não te dê isso cuidado... redarguiu Renée sorrindo, até ao último instante contei que o pai me levaria a Paris... Estava pronta a mala... basta mandá-la buscar.

— Vou já mandar.

E Joana saiu para dar ordens.

— Veja, disse Renée ao pai num tom de triunfo, a ninguém sou pesada como ao pai! A minha irmã não me acha incômoda! Foi supérfluo pedir hospitalidade... Ela mesma ma ofereceu.

— Ora, redarguiu Júlio Leroux, sei bem que Joana é um anjo! A condessinha voltou.

— Daqui a um quarto de hora partirá... Terás a tua mala antes da noite... Vem escolher o teu quarto...

A escolha foi difícil.

Não faltavam aposentos no palácio de Gordes, que rivalizava em grandeza com o de la Tour-du-Roy, uns porém pareciam muito * grandes a Renée, Joana achava outros pequenos.

Queria além disso que o quarto de sua irmã não fosse distante do seu.

Finalmente, Renée declarando terminantemente que o tamanho exagerado de um aposento habitado só por ela lhe pareceria horrivelmente triste, decidiu-se por um muito pequeno, ocupado noutro tempo, pela filha de uma castelã, dona de Gordes, e composto de duas salas e um quarto de toilette.

Uma porta que se podia fechar por um lado e pelo outro, estabelecia, em caso de necessidade, comunicação entre o seu quarto de toilette e o de Joana.

As três janelas que tinha, deitavam para o parque.

Uma escada secreta conduzia do "rez-du-chaussé" para as estufas,. ou antes, para a reunião de esplêndidos jardins de inverno de que em breve teremos ocasião de falar.

Nada se pode imaginar de mais elegante do que os três quartos onde Renée ia viver durante um tempo mais ou menos longo.

Tinham sido mobiliados e ornados em pleno século XVIII pela filha da castelã, e conservava a mobília e as tapeçarias do tempo intatas e apenas desbotadas.

Não descreveremos a curiosa mobília, bastará dizermos que o cravo de cauda, cujos bonitos embutidos representando cenas pastoris de Lancret assentavam em fundo de ouro despolido embelezado com delicados arabescos, excederia no Hotel des Ventes a cifra de quinze mil francos.

E tudo o mais pelo mesmo gosto.

— Agrada-te este? ficas aqui bem? perguntou Joana a Renée.

— Muito bem! respondeu esta num tom em que a amargura da sua inveja transparecia apesar de todos os seus esforços. Uma filha da burguesia, sem dote, sem futuro, está acaso no seu lugar, numa casa feita para a herdeira baronada de títulos e numerosos milhões?

A condessinha abraçou a irmã e cobriu-lhe as faces de beijos para impor silêncio aos seus lábios.

Às quatro horas, Júlio Leroux partiu para Orleans.

— Se encontrar o Conde no caminho, disse ele subindo, para a carruagem, hei de preveni-lo de que encontrará aqui Renée.

— Não faça tal, pai! exclamou Joana. Não lhe diga, peço!...

— Por que?

— Quero gozar da surpresa de Raul.

— Descansa... Não direi nada...

O conde de Gordes chegou às cinco horas e meia.

Encontrou o sogro, mas o ex-banqueiro, fiel à sua promessa, contentara-se em dizer: Vou a Paris, sem acrescentar uma palavra a respeito de Renée.

 

IRMÃ E RIVAL

— O quê, querida mana, está cá! disse Raul abraçando Renée depois de ter abraçado Joana. E meu sogro a quem encontrei há pouco, e que maliciosamente me fez crer que a senhora estava em Vertes-Feuilles. Que significa isto?

— Tinha pedido ao papai que não te dissesse nada! disse Joana, queria reservar-te o prazer da surpresa...

— Surpresa encantadora! disse o Conde com galanteria. Espero querida mana, ajuntou ele, que nos fará uma demorada visita...

Joana respondeu pela irmã:

— A visita de Renée durará tanto tempo quanto o pai estiver ausente.

— Desejamos, portanto, redarguiu graciosamente Raul, que a ausência do senhor Leroux se prolongue por muito tempo. Temos tudo a ganhar, visto que. graças a esta ausência, a nossa querida Renée conservar-se-á em Gordes.

— Obrigado, mano. disse a jovem apertando a mão do Conde. Estava quase arrependida de ter facilmente cedido às afetuosas instâncias de Joana, temendo ser-lhes importuna... A franca cordialidade do seu acolhimento anima-me... Ainda uma vez, obrigada!...

A cordialidade de que falava a segunda filha de Júlio Leroux era mais aparente do que real.

A estada de Renée em Gordes parecia inoportuna a Raul por dois motivos.

Em primeiro lugar, como muito bem previra o ex-milionário, a jovem interrompia o "tête-à-tête" de amor que não cansara ainda os novos e apaixonados esposos.

Depois, o Conde achava falsa a sua situação entre as duas irmãs.

Não se esquecia de que em Veneza se julgara muito apaixonado por Renée.

Ele compreendia bem que esta, ainda que nenhuma declaração lhe fizesse conceber esperanças, tomara a sério aquele fantasma de amor, e sonhara um casamento que ele mesmo, naquela época, olhara como possível...

Com certeza que não se sentia culpado, e que a sua consciência não lhe censurava coisa alguma, mas a presença daquela que esperara chegar a ser senhora de Gordes, devia tornar intempestivos os testemunhas de ternura que gostava de prodigalizar à sua querida condessinha.

Mas, repetimo-lo. Raul, como homem do mundo costumado aos hábitos da sociedade, não deixou transparecer no rosto o que se passava em seu ânimo, e fez, como vulgarmente se diz, das tripas; coração.

Nada impediu Renée de acreditar que era acolhida com tanto prazer pelo marido como pela mulher.

O jantar correu muito animado.

A irmã de Joana, sem dúvida, para recompensar o bom acolhimento, fez brilhar todas as facetas do seu espírito flexível e brilhante, sem se desviar muito daquela simplicidade de bom gosto, a única que agradava a Raul.

Depois do jantar andou passeando por meia hora no parque, à luz do luar, em seguida Renée recolheu-se aos seus pequeninos aposentos à Pompadour; Joana abraçou-a muito ternamente duas vezes, e deixou-a desejando-lhe um sono muito sossegado e ditosos sonhos.

Quando ficou só, e depois de ter despedido a criada grave posta ao seu serviço pela irmã, Renée fechou-se, abriu um janela, e encostando-se à varanda, como fizera Lazarine por ocasião da sua primeira visita ao palácio de la Tour-du-Roy, deixou o olhar errar pelo parque cujas infinitas perspectivas tomavam, iluminadas pela pálida claridade da rua, os fantásticos aspetos de certos quadros de Paulo Brill.

Não precisava constranger-se; a máscara hipócrita afivelada no seu rosto era inútil; podia dar livre curso à inveja que devorava sua alma...

— Tudo isto devia ser meu!... disse ela de si para si. Este palácio principesco, este imenso parque, este luxo, esta fortuna, pertenciam-me por direito de conquista!... Se não fosse eu, Raul de Gordes estaria na Itália, chorando sobre o túmulo de uma morta, pensando em morrer também!... morto talvez! Chamei aquele homem à vida!... Repeli o espectro que o oprimia. Reanimei-lhe o coração que ele julgava para sempre extinto!... Sim, fiz tudo isto!... e fi-lo para uma outra! Os meus direitos eram contudo sagrados, como os despojos do naufrágio!... Apareceu Joana e nada me deixou! Marido, título, fortuna, tudo me roubou!...

Renée bateu com o pé e passou ambas as mãos pela fronte com um gesto de cólera louca, em seguida prosseguiu:

— Ela roubou-me tudo... eu tudo lhe arrancarei!... É justo! e não consentirei por muito tempo a sua insolente felicidade!... Já dei o primeiro passo! Consegui introduzir-me no seio desta felicidade que é preciso destruir e que destruirei... Mas como?... Por todos os meios, porque todos são legítimos para vencer quem nos venceu... Joana é minha irmã... Que me importa? Joana é minha inimiga, não a conheço!...

A vista dos extensos domínios de que a Condessa de Gordes era a soberana senhora, exasperava Renée.

Afastou-se da varanda, e rudemente fechou as janelas, cujas meias portas bateram uma na outra, produzindo o som seco e sinistro do cutelo da guilhotina decepando uma cabeça.

Um candieiro colocado sobre a pedra do fogão alumiava fracamente o quarto.

A jovem acendeu as dez velas de dois candelabros, e contemplando o rosto pálido refletido no espelho entre aqueles clarões de fogo, murmurou:

— E eu sou bela, contudo! mais bela do que Joana! mais bela do que Lazarine também... Mas Lazarine tem o ascendente dos vinhos espumosos e dos perfumes sutis. Ela embriaga e enlouquece... Compreendo que por ela se cometam as loucuras que tantos homens praticam por mulheres. Demais, o velho marquês, bem o confirmou...

"Lazarine tão branca e de cabelos tão arruivados, com as suas sobrancelhas negras, e os seus olhos verdes, os seus quadris de dançarina espanhola, era qual Vênus digna de contemplação.

"Admito Lazarine, renego Joana, porque onde estão os encantos daquela burguesa Gata Borralheira? Que dizem os seus grandes olhos sem chama, e a sua linda boca de boneca?... Até a cor do cabelo, tudo me parece deslavado, insulso!...

"Foi em virtude da lei dos contrastes que ela conquistou Raul...

"Aquele fidalgo romântico acabava de ter um amor adúltero, que não fora para ele muito fértil em alegres quartos de hora.

“Apaixonou-se por aquela Ignez com maneiras de rosiére e meteu-se-lhe na cabeça casar com ela, por costume, com se toma orchata depois de certas bebidas fortes.

"Com certeza está apaixonado, ou pelo menos julga estar, o que vem a ser o mesmo, mas a ilusão não pode durar sempre... Mais cedo ou mais tarde o conde verá que se enganou... Então há de lastimar-se talvez.

Dizendo isto, Renée ia se despindo maquinalmente.

Tirado o vestido, despiu depois um colete que fazia as vezes de espartilho.

As saias caíram também por seu turno. Ficou quase nua, apenas coberta com a transparente camisa, que escorregando pelos braços deixava ver o mármore dos ombros e o peito de deusa.

Então contemplou-se de novo no espelho de vestir, e sorriu ao ver a sua imagem desvelada, ao passo que os seus olhos despediam um lampejo de orgulho.

— Se ele me visse assim, murmurou ela, por certo teria pena! Após um instante de profunda meditação, continuou:

— Pois bem, há de ter pena, quero que tenha!... Na Itália, amou-me quase, é preciso que aqui me ame completamente!... Joana arrebatou-me o homem de quem eu queria ser mulher! arrancar-lhe-ei esse homem tornado seu marido... É pena de Talião, é a desforra!...

— Hão de apedrejar-me... Dizer-me que sou imoral e cruel! Deixá-los-ei e rir-me-ei...

"Escândalo e ruído, lágrimas, uma separação, que gozo!... Não me aborrecerei e ficarei vingada...

"Que me importa a opinião do mundo?

"Vale mais ser a amante preferida e triunfante do Conde de Gordes, do que sua mulher abandonada... E depois Joana pode morrer, ocuparei o seu lugar, e terei, então, tudo: a fortuna, o coração e o nome!..."

 

Renée disse por muito tempo estas infâmias com uma exaltarão crescente que fazia faiscar os seus olhos, e tingia de púrpura as suas faces pálidas, em seguida, sentiu diminuir, pouco a pouco, a sua exaltação, e ceder o lugar a seu imenso cansaço...

Meteu-se na cama e adormeceu imediatamente com um profundo sono povoado de sonhos sinistros, em que Joana aparecia constantemente, ora soltando o seu último suspiro num leito de agonia, ora morta e já gelada.

Pequenas e leves pancadas na porta do seu quarto, arrancaram-na àquele sono.

Ergueu-se no cotovelo e olhou em redor de si, não compreendendo, no primeiro instante, o lugar desconhecido em que se achava.

Era já dia.

Os raios alegres do sol nascente inundavam de luz as tapeçarias e os móveis, e desdobravam sobre o tapete um como que tecido de ouro e fogo.

Continuavam batendo à porta.

— Quem está aí? disse Renée.

— Eu, respondeu uma voz juvenil e fresca, eu, a tua irmã Joana... que vem abraçar-te!

Instintivamente Renée franziu a testa, mas compondo logo o rosto saltou do leito e correu a abrir.

Joana, vestida como costumava andar de manhã em Vertes-Feuilles (porque em meio do luxo principesco que a rodeava, conservava amor pela simplicidade), entrou correndo, lançou-se nos braços de Renée, cobriu-lhe as faces de beijos com uma verdadeira força de ternura e exclamou:

— Então, formosa preguiçosa, ainda deitada? Que julgas? São oito horas! Veste-te depressa. Vamos sair!... É tão agradável passear de manhã, pela fresca, à sombra das grandes árvores!... Hás de ver tudo, até os mais humildes e pequenos atalhos do parque... E depois iremos à minha queijaria onde comeremos pão trigueiro, e beberemos leite quente das minhas vacas da Bretanha, porque tenho uma queijaria, minha queridinha, como tinha Maria Antonieta em Trianon, a querida e boa rainha, a santa mártir... Eu mesmo faço queijinhos da nata que cheira a avelãs... Prende os teus cabelos... Veste um penteador... Dou-te dez minutos e nem um mais... Quando regressar dar-te-ei uma hora, para preparares a tua toilette de almoço... E não tenhas medo do sol, temos imensos chapéus de palha lá em baixo no pátio. Não é preciso trazeres sombrinha... Incomodam as sombrinhas... não ficam as mãos livres para colher flores... Raul manda dar-te os bons dias... Saiu a cavalo, foi visitar uma das suas herdades, porque, convém dizer-te, minha galantinha, que estamos feitos lavradores... Vê-lo-ás quando voltar...

Decorridos os dez minutos, Joana apoderou-se da irmã, pôs-lhe na cabeça um largo chapéu para sol (verdadeiro toucado de educanda em férias), levou-a para o parque, conduziu-a à queijaria, fez-lhe ver as lindas vacas bretãs que mugiam de alegria à sua vista, e estendiam para ela as suas ventas rosadas, deu-lhe pão de rolão, fê-la beber leite quente, foram passear pelas extensas matas, bordejou num lago de águas transparentes num barco pequeno, e finalmente, um pouco antes das dez horas, reconduziu-a muito fatigada daquele passeio matinal a que não estava acostumada, nem era do seu gosto.

— Não hás de achar longo o tempo aqui passado! Disse-lhe Joana afastando-se dela à porta do quarto. Será todos os dias o mesmo! Apressa-te... Vou me vestir. Raul adora a elegância, e para lhe agradar diligencio ser elegante... Até logo, minha querida... dá-me um abraço e crê na minha amizade...

Renée entrou no quarto, e murmurou encolhendo os ombros:

— Isto, uma Condessa! Ora pois! É uma menina de escola, uma criança tagarela! Raul não há de amá-la por muito tempo!...

 

PLANOS SINISTROS

Conhecemos já o odioso projeto de Renée. Ouvimo-la expor, ela mesma, com todo o seu imprudente cinismo.

Apoderar-se do marido de sua irmã, causar o desespero de Joana pela traição e pelo abandono, matá-la talvez de desgosto, eis o fim que queria dar-lhe, e todos os seus pensamentos, todas as suas ações tendiam a aproximar esse fim.

Não hesitou uma só vez, não teve um único remorso.

Aquela rapariga invejosa e vingativa, tornada ainda pior por uma educação muito imoral, considerava de boa fé o crime projetado como uma desforra justa, e julgava usar de um legítimo dever aplicado a Joana o que ela chamava a pena de Talião.

Entre ela e o triunfo que esperava obter seguiam-se numerosos obstáculos; e já bem o sabia, não se iludia a tal respeito.

Para ter probabilidade de destruir, um após outro, esses obstáculos, ou desviá-los, era mister proceder com uma habilidade rara, com uma prudência consumada, com infinitas precauções...

A menor falta, um único passo mal dado, podiam e deviam comprometer o resultado final.

Era indispensável calcular, combinar tudo, e andar de vagar e cautelosamente para não arriscar tão infernais maquinações.

Demais, coisa nenhuma apressava Renée. A sua estada em Gordes tinha de ser demorada, não duvidada disso.

Júlio Leroux ao partir, tinha dito, é verdade, que a sua viagem não se prolongaria, e que apenas terminados os seus negócios regressaria a Vertes-Feuilles, mas Renée, que não era nenhuma ingênua, sabia o que havia de julgar a respeito da natureza dos negócios importantes que chamavam seu pai a Paris.

Não duvidava de que ele, uma vez ali, em companhia de seu amigo, o Príncipe de Castel-Vivant, e agarrado pelas rosadas garras das Tatá e das Nana do mundo do galanteio, prolongaria indefinidamente a sua estada no paraíso dos dissipadores.

Passou-se uma semana...

A todas as horas, e vinte vezes por hora, Renée fazia a si mesmo esta pergunta:

— Qual é o melhor caminho a seguir para alcançar facilmente seduzir o Conde de Gordes? É sobre o seu coração que se torna necessário atuar?... Será melhor excitar primeiro a sua imaginação e perturbar os seus sentidos?...

Da mais ou menos justa resposta dependia tudo, por isso a jovem, antes de começar a sua obra, estudara o terreno e procurara decifrar o enigma.

Teve ocasião de notar, um belo dia, que o acaso lhe dava a solução em vão esperada até ali.

Joana não dispensava Renée do passeio cotidiano, das longas digressões pelas matas, das paragens em todos os quiosques, em todas as grutas, finalmente, das várias distrações, naturais ou artificiais, do imenso parque de Gordes.

Uma manhã, as duas irmãs, depois de terem seguido, sem tenção determinada de se dirigirem a nenhum ponto certo, por intermináveis ruas retilíneas, cortadas em ângulos ora retos, ora agudos, por outras ruas igualmente geométricas, embrenharam-se num atalho, não tão bem cuidado, e Joana começou a segui-lo com uma loucura, apesar das silvas que se agarravam às saias, e apesar dos avisos de Renée.

— Imagina, querida mana, redarguiu ela rindo, que não tinha ainda percorrido este atalho, cuja existência ignorava... Andamos fazendo uma viagem de exploração em meio de terras desconhecidas! Talvez sejamos recompensadas da nossa audácia por alguma descoberta admirável e soberba...

O atalho, cada vez mais estreito, seguia em linha reta através as moitas espessas. Em diversos sítios os pimpolhos e os rebentos vigorosos estorvavam a passagem; era preciso andar com os braços estendidos para a frente para não ferir o rosto nos ramos.

Renée, furiosa, estava quase para voltar para trás sem dizer nada.

Joana, que ia adiante, parou de repente.

— Olha! exclamou ela, uma porta!

O atalho muito inculto ia terminar no muro cortado por um estreito portão de grades de ferro ferrugentas.

A chave estava na fechadura, mas com certeza aquela porta já há muito tempo não servia, porque as hastes da hera tinham subido pelas barras do portão, e as suas folhas reluzentes e muito juntas taparam a vista.

— Para onde conduz esta porta? perguntou Renée.

— Não sei... respondeu Joana, mas pode-se ver.

— Como!

— Vou abrir.

— Tens a chave?

— Está na fechadura...

A condessinha tentou abrir a porta, mas não o conseguiu. A chave soldada pela ferrugem não girava.

— Essa é boa! havemos de ver... continuou Joana. Ajudada pela irmã afastou a hera.

— É uma rua! exclamou ela, e do outro lado há uma casa.

— E até bonita, aquela casa, a juntou Renée. É uma espécie de palacete, ou melo menos de casa de campo burguesa como se encontra a todo o passo nos arredores de Paris. Mas quer palacete, quer casa de campo, parece estar deserto. Tudo fechado... A quem pertencerá?

— Ignoro-o, e nem suspeitava sequer da existência de uma vivenda tão elegante ao lado do parque.

Uma lembrança ocorreu a Renée.

— Deve ser la Grangette, disse ela de si para si, e foi por isso com certeza que Raul mandou que deixassem inculto o atalho que conduz à grade... Devo dizer a Joana o que sei, e contar-lhe toda a história?...

A jovem hesitou, esta hesitação durou pouco.

— É melhor calar-me, continuou ela falando consigo. Se Joana não sabe nada do romance de outrora, é porque Raul não terá querido contar-lho.

E calou-se.

Ao passo que Renée se consultava deste modo, ouvia-se soar na estrada a bulha das patas de um cavalo que se aproximava rapidamente, ainda que caminhando no passo vivo e cadenciado dos cavalos de fina raça.

Joana voltou-se para a irmã, e murmurou-lhe ao ouvido:

— Reconheço o andar de Harold... É Raul que aí vem.

— Muito bem, redarguiu Renée no mesmo tom, o Conde te instruirá do que desejas saber.

— Sim, e vou fazer-lhe uma surpresa...

— Como?

— Vais ver, ou antes ouvir.

O senhor de Gordes continuava avançando sempre.

Daí a pouco Joana pôde vê-lo a dez metros de distância.

Raul tinha a aparência de um homem a quem acometeu de repente uma triste recordação.

A cabeça pendia-lhe para o peito.

A mão abandonara as rédeas que se balouçavam pendentes do pescoço bem feito do seu grande cavalo preto.

No momento em que passava exatamente por entre a grade da casa abandonada e a portinha do parque, Joana exclamou:

— Raul!

O efeito foi instantâneo, mas não tal como o esperava a condessinha.

O senhor de Gordes estremeceu e vacilou no selim...

Ficou pálido.

Finalmente, fez parar de repente o cavalo, e volvendo os seus olhos espantados para a casa deserta, murmurou com voz fraca:

— Quem me chama?

Joana, com as mãozinhas afastou os ramos de hera, e mostrando o seu mimoso rosto emoldurado pela verdura, respondeu com infantil graça:

— Sou eu, querido Raul... Então por que empalideceste? Fiz-te medo?

Renée meditara:

— Que poderosa influência de uma recordação... Julgou que era a morta!...

— Responde! responde! continuou Joana. O teu silêncio inquieta-me. Desagradei-te sem querer?

Raul soltou um profundo suspiro de alívio, como o homem liberto de um peso enorme que o esmagava. Olhou para Joana sorrindo:

— Queridinha, respondeu ele, não me causaste medo, em coisa nenhuma me desagradas, e não me parece ter empalidecido; mas não pude conter a minha surpresa ao ouvir de repente uma voz pronunciar o meu nome, sem poder adivinhar donde vinha a voz.

— Ah! compreendo... redarguiu a Condessa.

— Explica-me, pois, continuou Raul, como descobriste aquele ponto do parque...

— Foi por acaso... Renée e eu aventuramo-nos por um caminho inculto que nos conduziu àquela porta, e procurávamos conhecer o sítio onde nos achávamos quando reconheci o passo do Harold...

— Muito bem! então, volta depressa para casa, necessariamente eu chego lá primeiro, e vamos jantar quanto antes, porque estou com grande vontade de comer!

— Um instante só! exclamou Joana. Diz-me primeiro de quem é este palacete em que não me tinhas ainda falado, sendo como é quase ao nosso lado.

O Conde a seu pesar não pôde deixar de franzir a testa.

É uma casa de campo denominada la Grangette... respondeu.

— Parece estar desabitada esta casa... continuou a jovem.

— Está efetivamente...

— Por que?

— Os donos morreram.

— Há muito tempo?

— Não, há pouco.

— Quem eram eles?

— O Barão e a Baronesa de Braines.

— Já velhos?

— Não, ainda novos...

— Conhecia-os?

— Conhecia.

— De muito perto?

— O bastante para me penalizar ao ouvir falar deles, porque morreram ambos de um modo muito triste.

— Ah! meu pobre amigo! se eu soubesse! murmurou a Condessa, mas descansa, nunca mais falarei em tal.

Enquanto se trocavam estas palavras, Renée dizia de si para si:

— Adivinhei! Raul, apesar do casamento, não pode banir do espírito, e quem sabe? se até do coração, a recordação de Julieta de Braines... Talvez possa começar por ali... Pensarei no caso.

— Mana, perguntou Joana, é esta a primeira vez que ouves o nome do Barão e da Baronesa de Braines?...

— Creio que sim.

— Não te pareceu, como me sucedeu a mim, que a voz de Raul tremia ao proferir aquele nome?...

— Não reparei... é possível... e seria muito natural, porque conhecia os vizinhos e amava-os.

 

A DESCOBERTA

Raul aproveitara-se da presença de Renée em Gordes para ir pela manhã visitar as suas herdades, situadas numa área de quatro a cinco léguas, e tão descuradas por ele há anos.

Tendo saído muito cedo naquele dia, descreveu uma vasta curva no campo, e seguindo, no regresso, um caminho diametralmente oposto àquele por onde fora, achou-se quase sem dar por isso, em frente de la Grangette, cuja vista lhe causava uma penosa sensação, e colocava fatalmente como que ante o seu olhar um doloroso passado.

O Conde e as duas irmãs encontraram-se à mesa.

Joana evitou aludir por qualquer modo ao passeio da manhã.

Depois de almoçar, ela foi procurar um livro à biblioteca, para esclarecer uma questão de geografia, a respeito da qual Renée não concordava com ela.

Raul disse à jovem ao passar para a sala:

— Querida mana, a senhora compreendeu o incidente desta manhã, e a causa do muito penoso embaraço que não podia disfarçar?

— De qual incidente, e de qual embaraço fala, mano? perguntou Renée em cujo rosto se revelava a surpresa.

— Ora! a senhora bem sabe, continuou Raul. Em Veneza, o Marquês de la Tour-du-Roy contou-lhe tudo, e por ocasião da minha primeira visita ao palácio Cavello, a senhora testemunhou-me uma tão patética compaixão que jamais olvidarei, e deixarei de agradecer.

— Então? perguntou Renée.

— Então, continuou o Conde, desejo ardentemente que Joana ignore o triste e fatal romance de que a minha loucura fez uma realidade... A querida criança, que me deu as primícias do seu coração, crê, em sua santa inocência, que o meu nunca bateu senão por ela... Desejo muito que conserve eternamente esta crença cuja perda muito a faria sofrer... Peço-lhe, portanto, mana, suplico-lhe que guarde segredo, e nunca diga a Joana o que Julieta de Braines foi realmente para mim...

— Ah! fique descansado!... exclamou com uma quase exaltação a segunda filha de Júlio Leroux. Guardarei o seu segredo!... Um desgosto, seja ele qual for, nunca aparecerá por culpa minha!... Amo-o muito para ser capaz de o atraiçoar.

— Obrigado! mana! respondeu Raul apertando as mãos de Renée, a quem aquela fraternal carícia pareceu causar uma estranha comoção.

Neste momento entrou Joana trazendo numa das mãos um livro, e na outra um atlas.

— Era eu quem tinha razão! disse ela a rir. Verifiquei e certifiquei-me... aqui estão o volume e o atlas, verifica e verás como sou sábia!...

 

Por muito viva que fosse a sua ternura pela irmã, Joana não aceitaria que a presença dela em sua casa viesse suprimir aqueles adoráveis colóquios, de que todos os noivos, ainda os mais ingênuos, são tão ávidos.

Muito inteligente para escandalizar Joana e para se tornar importuna, Renée passava nos seus aposentos a maior parte das tardes, deixando o Conde e a Condessa livres de isolarem-se à vontade.

Naquele dia, em lugar de matar as horas como de costume rindo ou tocando no cravo à Pompadour, meteu na algibeira um frasco de óleo aromático que havia em cima da mesa do quarto de toilette; pôs na cabeça um grande chapéu de palha para servir de pára-sol; em seguida embrenhou-se no parque e pôs-se à procura do atalho inculto por onde ela e a irmã tinham andado pela manhã.

Achou-o com algum trabalho, e por ele tomou, tendo o cuidado de apanhar durante o caminho duas ou três compridas penas que os hóspedes dos grandes parques, o aristocrático faisão assim como a plebéia pega, perdem no momento dá muda.

Chegou à portinha que ficava fronteira à da Grangette e, tirando da algibeira o frasco cujo conteúdo ia ter tão diferentemente aplicação, ensopou no óleo aromático uma pena de faisão e introduziu-a repetidas vezes na fechadura ferrugenta.

O efeito esperado foi pronto.

Para as soldaduras resultantes da ferrugem o óleo é um dissolvente de um poder irresistível. A chave que girou, primeiro devagar, depois mais depressa, é por fim completamente, fez mover a lingüeta. A porta girou nos gonzos produzindo um ranger surdo que parecia como que um protesto.

Renée passou para a estrada e porque outro nome não poderíamos dar à grande rua bordada de um lado pelos muros do parque e do outro pela cerca dos jardins de la Grangette.

O lugar de Gordes ficava distante mais de um quilômetro.

A estrada, tão longe quanto o olhar podia alcançar, estava completamente deserta.

A jovem volveu o olhar para la Grangette, e fez um gesto de surpresa; surpresa legítima ainda assim.

Aquela habitação deserta, onde a morte tinha feito o vácuo, parecia animada de um certo movimento.

A grade da entrada estava aberta e o cadeado suspenso deixava-a mover-se.

Não só as persianas, mas também as janelas do primeiro andar estavam abertas de par em par, e via-se lá dentro uma forma feminina andar dum lado para o outro, com uma vassoura na mão.

Renée, compreendendo que se oferecia uma ocasião de satisfazer a sua curiosidade, saiu do parque cuja porta empurrou docemente, tendo o cuidado de não a fechar completamente, atravessou a estrada e entrou no pátio que se estendia em frente da fachada de la Grangette.

A cem passos da grade erguia-se o palacete ou antes o pavilhão, de uma forma bastante elegante, constando de rez-de-chaussée e primeiro anda, coberto de um telhado cortado por águas-furtadas de ventoinhas elegantes.

No primeiro andar havia seis janelas.

No rez-de-chaussée quatro janelas, e duas portas de vidraças para as quais se subia por uma escada de cinco ou seis degraus.

A casa não era de cantaria, mas as suas paredes pintadas de um pardo pálido, embelezadas por pinturas vermelhas imitando tijolos nas cornijas, nos caixilhos das janelas e nas portas, destacava-se harmoniosamente do cerrado das tílias seculares colocadas atrás do corpo do edifício e aos lados.

As persianas e as janelas, dissemos, estavam abertas.

As cortinas da vidraça, brancas em outro tempo, apresentavam a cor do amarelo escuro.

Em frente do pavilhão havia um tabuleiro de relva em forma de elipse, onde existiam vários vasos de roseiras.

As carruagens transpondo a grade tinham de descrever meia curva do tabuleiro de relva para parar junto à escada.

Diferentes carreiros, traçados por um hábil desenhista, embrenhavam-se num bosquezinho cerrado.

Nos claros da verdura viam-se aqui e acolá, em pedestais, estátuas de gesso.

Eram cópias de antigüidade, ou ninfas vestidas simplesmente pelo seu pudor, copiadas das estátuas de Clodion, Pigale ou Coustou.

Do lado direito do tabuleiro, e a igual distância da grade e do pavilhão, um castanheiro gigantesco projetava uma sombra circular.

À sombra da espessa folhagem três ou quatro cadeiras de ferro, carcomidas pela ferrugem, pareciam esperar as visitas que não vinham.

Ou muito nos iludimos, ou este rápido esboço deve dar idéia de um conjunto simples e encantador, e tal era efetivamente o aspecto de la Grangette, se não fosse o estado de manifesto abandono em que se achava o jardim há mais de dois anos.

As plantas parasitas despontaram com um admirável rigor entre os degraus das escadas cada vez mais desunidos.

O lago havia-se tornado um verdadeiro pântano invadido pelos juncos e outras plantas aquáticas, e coberto de uma crosta verde-negra, que servia de quartel general a uma multidão de rãs e sapos, que traíam a sua presença e afirmavam o seu direito de propriedade, coaxando continuadamente.

As azedas de grandes hastes, as pastinacas silvestres, os dentes de leão substituíam nos tabuleiros a erva fina e luzente dos prados ingleses.

A areia das ruas ajardinadas desaparecia coberta por estas eras que crescem livremente.

As roseiras, não podadas como deviam ser, perdiam a sua seiva em rebento, inúteis, em troncos abundantes de folhas que não produziam flores.

Finalmente, debaixo do castanheiro em redor das cadeiras de ferro, as castanhas caídas tinham germinado; os germes haviam criado raízes, e os novos rebentos despontavam formando um como que viveiro de plantas.

Enquanto Renée olhava para aquelas coisas profundamente tristes como todas as coisas abandonadas, a forma feminina, cuja presença notamos dentro de casa, apareceu, primeiro, a uma janela do primeiro andar, depois, a uma porta do rez-de-chaussée, desceu a escada e dirigiu-se para a jovem.

Era uma camponesa de certa idade e figura proporcionada.

Tinha deixado a vassoura gigantesca, e trazia na mão um imenso espanador.

— Uma sua criada, minha menina, disse ela acompanhando as suas palavras de um cumprimento, em que lhe posso ser útil, que deseja?...

E sem dar à jovem tempo para responder, ajuntou:

— Ora espere... eu reconheço-a... A menina vinha ontem à tarde numa das carruagens do palácio com o senhor conde e. a sua jovem esposa... É talvez parenta sua?...

— Sou irmã da senhora de Gordes... redarguiu Renée.

A camponesa fez um novo cumprimento muito mais atencioso do que o primeiro, e prosseguiu.

— Com que então, minha menina, quis lançar uma vista de olhos por la Grangette?

— Saindo do parque pela portinha fronteira, vi o portão aberto e entrei.

— E fez bem... Não é proibido...

— Julgava esta casa desabitada?

— Com certeza, ninguém aqui tem morado desde a desgraça dos:antigos donos.

— Contudo vosmecê cá está hoje...

— Eu lhe digo, minha menina... O defunto senhor barão de Braines deixou herdeiros... Os herdeiros desejam vender la Grangette, dado o caso de acharem comprador... Então o tabelião de Orleans, que nos conhece a mim e ao meu homem, e sabe que somos honrados e pobres, encarregou-me de vir, uma vez por semana, abrir as janelas e limpar a poeira. Dá-me dez francos por mês, e faço o trabalho como deve ser.

— Pode-se ver o interior da casa?

— Pois não... vou conduzi-la e verá como é linda por dentro... Quanto ao jardim, está agora muito feio, e é natural, visto que ninguém cuida dele, mas em oito dias, um homem entendido e trabalhador, podia por tudo com ordem. Meu marido era capaz de se encarregar disso. Não era muito difícil... ceifar a relva, limpar as ruas e o tanque, podar as roseiras, arrancar os rebentos que brotam ' à direita e à esquerda... As plantas parasitas despontam livremente e em todo o terreno medram, diz o provérbio. Então ficava tão bonito como noutro tempo... Se por acaso, a menina conhecesse alguém que fosse amador.

Renée abanou a cabeça.

— Não conheço... respondeu ela.

— É pena, não tem dúvida. Quer ver, vou mostrar-lhe a casa. A jovem seguiu a sua condutora.

Não descrevemos o interior da habitação que se recomendava por uma elegante simplicidade, e que não tinha nada de notável.

— Resta-nos só um quarto a ver... disse a camponesa ao fira. de meia hora, aquele onde o senhor barão faleceu... Nunca ouviu-. falar da senhora baronesa e da sua aventura?

— Ouvi efetivamente.

— Pois bem, se quer ver o retrato da pobre senhora (Deus lhe perdoe os seus pecados) pôde satisfazer a sua curiosidade...

— De que modo?

— O senhor barão, ainda que morreu mais pelo desgosto que lhe causou o proceder da mulher, do que em conseqüência de um ferimento que lhe fez um sujeito cujo nome não direi, nunca consentiu que lhe tirassem do quarto o retrato da senhora... E o retrato lá está ainda... fronteiro ao leito... Já não podia falar o pobre e continuava sempre a olhar... Estava a morrer e com os olhos pregados no retrato...

A camponesa abriu uma porta e acrescentou:

— Entre, minha menina...

 

UMA BOA COMEDIANTE

O quarto onde Renée acabava de entrar era grande bastante, e estava quase ricamente mobiliado.

Henrique de Braines, possuidor apenas de uma modesta fortuna, pusera todo o empenho em mobiliar e organizar com o maior luxo o quarto onde a adorada esposa dormia encostada ao seu coração.

A segunda filha de Júlio Leroux desprezou os pormenores que lhe não interessavam e constituíam, finalmente, uma magnificência muito plebéia.

Dirigiu-se logo ao retrato colocado em frente do leito como a mulher lhe tinha dito.

Ao erguer os olhos para a pintura, e ao ver um retrato representando uma mulher de pé e de tamanho natural, Renée fez um movimento de surpresa, e o seu primeiro pensamento foi este:

— Raul tinha razão... Pareço-me muito com esta mulher...

O artista de Orleans, honrado com a confiança do barão de Braines, não podia classificar-se como mestre, mas não lhe faltava habilidade, e era eminente na arte de reproduzir feições com uma exatidão fotográfica.

Tinha representado Julieta em traje de montar a cavalo, segurando no braço esquerdo a longa cauda do seu vestido de amazona, e empunhando na mão direita um chapelinho de feltro cinzento com. pluma encarnada e chicote de cabo de prata.

Do mesmo modo que Renée, a juvenil baronesa era alta e delgada, os ombros e quadris eram largos, e as linhas do rosto de uma regularidade maravilhosa.

Do mesmo modo que Renée, tinha grandes olhos pretos muito vivos, nariz um pouco aquilino, dentes de marfim entre dois lábios muito vermelhos, e uma covinha no mento muito bem desenhada.

A brancura um pouco pálida da sua pele fazia lembrar, como a cor do rosto de Renée, a epiderme mate das crioulas.

Os cabelos de um negro azulado podiam lutar no confronto de magnificência com os cabelos de Renée, mas o penteado da Baronesa de um feitio inteiramente dessemelhante do da jovem, prejudicava muito a semelhança dos dois rostos, ambos igualmente belos.

Renée dividia os seus abundantes cabelos em duas bastas trancas, que, cruzando-se por cima da testa e contornando a cabeça segundo o estilo ateniense, formavam um como que capacete de ébano.

Julieta de Braines. pelo contrário, levantava o cabelo de todos" os lados e reunia-o no alto da cabeça.

A testa, que em Renée ficava a descoberto e desafrontada, em Julieta ocultava-se a meio sob uma franja sedosa de cabelos aparados curtos como os dos pajens, que se vêem nas miniaturas em pergaminho da idade média, os quais costumavam levar atrelados os galgos das, castelãs, ou como os dos filhos de Eduardo no quadro de Paulo Delaroche.

Um colarinho direito muito engomado, de feitio dos de homem, cingia o pescoço da Baronesa.

Uma estreita fitinha de seda encarnada servia de gravata.

E numa das casas do corpete via-se uma rosinha vermelha.

Calçava nas mãos finas luvas de gamo, de cor cinzento escuro.

Muito detida e minuciosamente, uma por uma, a jovem observou as feições da Baronesa, examinando o penteado e o vestuário.

A camponesa ao ver a visitante tão absorta, contemplando aquele retrato, como vimos em Orleans o tenente Marcel Laugier admirando o retrato de Lazarine, e achando demorada a contemplação interrompeu-a deste modo:

— Era uma bela mulher, pobre senhora. Não era, menina?

— Muito bela murmurou Renée.

— Ouvi dizer que ela tinha morrido no estrangeiro. É verdade?

— É, sim, morreu.

— Justa punição de Deus! Isso mostra que é preciso ser leal e fiel a seu marido. Todos os dias o digo à minha filha Suzette, uma engraçada rapariga que está para casar depois das vindimas..,

Renée perguntou:

— A senhora de Braines devia ter um quarto de toilette para seu uso particular?

— Ah! com certeza e muito elegantemente arranjado. Quer vê-lo?

A camponesa atravessou um corredor, abriu uma segunda porta

— Se faz favor...

e introduziu Renée num quartinho forrado de cretone pardo com flores cor de rosa.

O aroma forte e penetrante saturava a atmosfera.

Nas bacias de mãos e nos jarros de porcelana dispostos em cima

O principal perfume, o único por assim dizer que a Baronesa encimadas pela coroa do barão.

Uma mesinha de mármore branco continha frascos de essências e perfumes, uns meio despejados e outros inteiros.

Renée olhou para os letreiros e achou todos iguais.

O principal perfume, o único por assim dizer que a Baronesa usava era o ylang-ylang.

— Parece-me que anda gente no quarto imediato... disse jovem.

É possível, exclamou a mulher, as portas estão todas abertas...

E saiu logo do quarto de toilette.

Renée aproveitando-se da sua ausência, tirou, com o maior sangue frio, de cima da mesinha de mármore, um frasco de ylang-ylang, e meteu-o na algibeira.

— Tornei-me ladra... disse de si para si sorrindo. Darei o dinheiro aos pobres.

Voltou a mulher.

— Ninguém... disse ela, nem um gato.

— Enganar-me-ia...

— Com certeza?

— Nada mais há para ver?

— Não, minha senhora, já viu tudo...

— Então, minha boa mulher, disse Renée, obrigado pela sua condescendência e faça-me o favor de aceitar isto...

Ao mesmo tempo meteu-lhe na mão uma peça de dez francos; dirigiu-se ao quarto contíguo; olhou uma última vez para o retrato de Julieta; atravessou o jardim, depois a estrada, e entrou no parque acompanhada pelos cumprimentos e ações de graça da camponesa, estupefata por uma renumeração tão prodigiosa, tão completamente inesperada e tão facilmente ganha.

À tarde, ao jantar, Renée disse a Joana:

— Então, querida maninha, continuas a privar-te, sem razão, como fazias em Paris no tempo do esplendor do nosso pai, de um dos maiores prazeres do mundo?

— Que prazer? perguntou a Condessa.

— A equitação...

— Esqueces-te de que não sei montar a cavalo?

— És muito nova para aprender, e Raul, tenho a certeza, estimaria ser teu professor...

— Ah! com certeza que sim! exclamou o Conde. Não gostaria, minha querida, de galopar na minha companhia por esses campos fora?

— Com você tudo me agrada, bem sabe...

— A nossa linda mana acaba de ter uma brilhante idéia... Daremos belos passeios, e demais uma castelã deve ser uma cavaleira consumada e tomar parte nas caçadas do outono com o marido e os hóspedes... porque havemos de ter muitos convidados por ocasião das caçadas... é impossível evitarmos isso... Vejamos, querida Joana, quando será a primeira lição?

— Quando quiser.

— Será então quanto antes... isto é, logo que tiver um cavalo próprio para isso... e vou já hoje escrever para Paris.

— Para quê? O senhor tem dez cavalos para cavalaria.

— São muito fogosos para uma principiante, minha querida... Além de que é preciso um fato. É caso para oito dias de demora... A mana Renée monta?

— Como a mulher de um centauro... Eu e Lazarine somos apaixonadas por cavalos.

— E não o dizia? Os meus pur-sang, impossíveis para Joana, não devem causar medo?

— Gosto dos cavalos nervosos...

— Pois bem, dê as suas ordens, é sua a cavalariça, e hei de ser o seu cavaleiro.

Renée abanou a cabeça.

— Não... disse ela, não... antes de Joana poder acompanhar-nos.

A Condessa interveio.

— Ah! para que te hei de privar, exclamou ela, de um prazer que só daqui a um mês poderei partilhar?... Causar-me-ía um grande desgosto! Quero que saiam juntos amanhã... Quero-o... exijo-o.... E se receiam por mim o enfado resultante da solidão, seguirei ao longe em carruagem.

— Aceito... redarguiu Renée, como parece que as idéias me ocorrem hoje de tropel, lembro-me de um belo meio para começar as tuas lições sem demora.

— Qual é? perguntou vivamente Raul.

— Amanhã de manhã, querido Conde, mande por à minha disposição uma carruagem, um cocheiro e um groom.

— Pertence-lhe toda a casa, tanto como a Joana, e mais do que a mim mesmo... Onde quer ir?

— A Vertes-Feuilles.

— Ah! Ora essa!... Para que? Não está lá ninguém... que vai lá fazer?

— Vou buscar o meu fato de montar, um fato de Lazarine que bastará para Joana se servir enquanto não chega o que encomendar; e o groom trará o poney de meu pai, um verdadeiro cordeiro (falo do poney), que parece escolhido de propósito para as lições de uma principiante... Aqui estão os três motivos da minha viagem, e voltarei antes de almoçar.

Raul e Joana aplaudiram juntos, e a Condessa abraçou ternamente sua irmã, murmurando ao ouvido:

— Como és boa!... Esqueces de ti para pensares em mim!... por isso te amo muito! Oh! com todas as forças de minha alma!...

 

No dia seguinte, pela manhã, às sete horas, por um tempo esplêndido, um carrinho puxado por dois cavalos irlandeses, guiados por Renée corria pela estrada de Vertes-Feuilles.

Os dois criados iam no assento de trás.

A jovem chegou à casa quase deserta, onde a sua aparição encheu de espanto a cozinheira Mônica e o criado campônio, que para matarem o tempo e satisfazerem às exigências do estômago, e ao mesmo tempo às do coração, comiam juntos belos petiscos, e entregavam-se a certas liberdades amorosas acompanhadas de sopapos e cachações.

Renée fez conduzir os cavalos para a cavalariça, deu ordem para lhes dar a eles e ao poney aveia, subiu ao seu quarto e começou os seus preparativos.

No fim de menos de uma hora tinha a jovem concluído os seus preparativos.

A caixa foi transportada para o carrinho.

Renée, como tinha prometido, regressou antes da hora de almoçar.

 

A LIÇÃO

Na véspera, à tarde, Raul havia escrito para Paris encomendando um fato de amazona, e pedindo a um dos seus amigos, grande conhecedor em matéria hípica, para comprar, por todo o preço, um cavalo elegante, muito dócil, próprio para senhora, e enviá-lo o mais depressa possível para Gordes, em grande velocidade.

Logo após o regresso de Renée, as criadas graves ocuparam-se m ajustar ao corpo de Joana o costume azul da amazona de Lazarine.

Graças àquele vestido, e ao poney do ex-banqueiro, podia-se aguardar algum tempo pelo fato e pelo cavalo esperado.

No dia seguinte de manhã, Raul começou desempenhando alegremente o seu papel de picador.

Conduziram o poney para junto da escada, e Joana apareceu de chicote na mão, em companhia de Renée.

Com o seu fato de cavaleira, e com um chapéu de homem na cabeça, a Condessa era adorável.

Montou muito desembaraçadamente, e galante, apesar do acanhamento inseparável de um começo naquele gênero, deu muitas voltas ao redor do vasto tabuleiro de relva, primeiro a passo, depois a trote, em seguida a galope, sem manifestar o menor susto, sem soltar o menor grito.

Devemos dizer que o conde segurava pela arreata o poney, o que devia afastar de Joana o pensamento ou a idéia de um perigo qualquer.

De pé, na escada, e resguardando-se do sol já quente com a sua sombrinha de seda branca, Renée assistia à lição e aplaudia.

Raul declarou que Joana tinha admiráveis disposições, e que, seguindo o exemplo das suas irmãs mais velhas, tornar-se-ia em pouco de uma habilidade notável na equitação.

— Aceito o augúrio, exclamou a jovem, e quando a profecia se realizar, vamos juntos para toda a parte, nunca mais nos separaremos. Nunca?...

— Nunca, minha adorada filha! respondeu o Conde, pegando em Joana por debaixo dos braços para a apear.

Renée, para quem não olhavam, encolheu levemente os ombros. Raul voltou-se para ela.

— E nós, querida mana, quando sairemos? Hoje, não é verdade?

— Quando quiser, estou pronta.

— Escolha a hora.

— Pois bem! às três horas se lhe convém.

— Perfeitamente. Está combinado, depois de almoçar hei de mostrar-lhe o cavalo que lhe destino.

Ao meio dia o Conde, Joana e Renée dirigiam-se para as cavalariças, soberbas construções já antigas mas renovadas, e separadas do palácio por espesso arvoredo.

Nas cavalariças estavam vinte stalles e igual número de boxes.

Comunicavam as cavalariças com um vasto picadeiro, destinado ao ensino dos potros e que ficava fronteiro às cocheiras.

Um pátio coberto de vidraças permitia tratar dos cavalos e lavar as carruagens ao abrigo do tempo.

O primeiro picador esperava as ordens.

— Faz sair Jack... disse-lhe Raul.

Daí a dois minutos Jack, desembaraçado das mantas e baetilhas, saía da cavalariça pela mão de um "groom".

Era um cavalo inglês de corporatura média, metro e cinqüenta o máximo, baio-escuro com uma estrela branca na cabeça, magro e ao mesmo tempo largo de peitos e muito bem feito.

Debaixo do pelo escuro, lustroso como seda, via-se distintamente a rede das veias.

Tinha bonita aparência. A cabeça pequena e magra, as ventas móveis, os olhos muito salientes e vivos, revelavam a raça e a energia.

— Fá-lo trotar... mandou o Conde.

Jack tinha costumes muito singulares: Travava os pés no freio, para nos servirmos de uma locução de cavalariça, extravagante mas assaz expressiva.

Que lindo animal! exclamou Renée.

— Gosta de Jack?

— Muito.

— É tão suave o seu galopar que parece irmos embalados... redarguiu o senhor de Gordes. Não é manhoso, nem medroso, nem teimoso... O seu defeito é um demasiado ardor... embrulharia uma cavaleira noviça que lhe desse de mão... Por este motivo não o confiaria a Joana, mas a senhora sabe dirigir um cavalo, e vê-la-ei montar sem receio....

— Não há perigo, com certeza? perguntou a Condessa.

— Nenhum... respondeu por isso...

— E se houvesse, disse Renée num tom resoluto, montá-lo-ia do mesmo modo e talvez ainda com mais vontade... Gosto do perigo...

Raul sorriu ao ver aquela fanfarronice, e mandou recolher Jack

— Quer acompanhar-nos de carruagem, queridinha? disse ele em seguida dirigindo-se a Joana.

— Não, redarguiu ela, hoje não... Aproveitar-me-ei de sua ausência para vir ver os meus pobres de quem me tenho esquecido depois da chegada de minha irmã...

Os nossos personagens dirigiram-se para o palácio e Renée subiu para o seu quarto onde se fechou depois de ter atravessado as estufas e colhido duas ou três rosas...

Era chegado o momento de por em prática a primeira parte do plano que o acaso ditara ao seu espírito fértil em combinações diabólicas.

Tratava de se assemelhar de um modo notável à Julieta de Braines do retrato.

Pôs-se logo à obra.

Em pé, defronte de um espelho, de colete, o colo e os braços nus, desmanchou as compridas trancas que lhe compunham um capacete de ébano como à juvenil guerreira de Musset, e os cabelos soltando-se envolveram-na.

Então com o pente de tartaruga puxou os cabelos para a testa, e pegando num tartaruga cortou-os todos por igual em linha reta de uma fonte à outra, formando assim a franja de ébano que caía quase até às sobrancelhas e que dava à beleza de Julieta um caráter tão particular.

Pegou depois nas ondas sedosas que lhe custavam a segurar com as mãozinhas delicadas, alisou-as na nuca, juntou-as no alto da cabeça e segurou com compridos alfinetes a massa enorme das suas trancas.

Feito isto, pôs um colarinho de homem, passou-lhe em volta, servindo de gravata, uma estreita fitinha encarnada.

Vestiu o seu fato de amazonas negro, justo como uma luva, desenhando a graciosa curva dos seios e as linhas esquisitas dos ombros e dos quadris.

Meteu uma das rosas na casa do corpete, depois pegando com a mão esquerda na longa cauda do seu vestido e segurando na direita o seu chicote de cabo de prata e o seu chapéu de feltro com pluma encarnada, colocou-se em frente do espelho que refletiu a sua imagem de alto a baixo, não pôde conter o seu espanto.

Não era a si própria que ela estava Vendo.

Era a morta de Florença... Era Julietta de Braines, arrancada à tela, apeada do quadro.

— Palavra de honra, murmurou ela, é prodigioso! Decididamente sou muito forte!...

Ao fim de um segundo a juntou:

— Não esqueçamos coisa alguma... É preciso que a ilusão seja completa...

Tirou de uma gaveta o frasco de ylang-ylang, subtraído na véspera em la Grangette, e deitou algumas gotas do seu conteúdo no cabelo, no fato, nas mãos, no lenço...

O cheiro sutil e penetrante espalhou-se logo no quarto.

— O rosto, o fato, e até o perfume! disse consigo Renée com o seu mesmo sorriso estranho e inquietante. Não é uma imitação, é uma ressurreição...

O vestir, e, sobretudo, os minuciosos detalhes do penteado, levaram muito tempo.

Renée olhava ora para o seu relógio, ora para a pêndula à Luiz XV.

Ambos marcavam três horas menos um quarto.

— Posso descer, disse consigo a jovem, hei de encontrar Joana na sala.

Não se enganava.

A condessinha, vestida com o seu vestido mais simples e com um chapéu de palha comum na cabeça, mas tendo uma bolsa bastante recheada na algibeira, esperava a partida do marido e da irmã para sair também e ir a casa dos seus pobrezinhos...

Assentada junto de uma janela, lia.

Ao ouvir o ruído da porta que se abria, levantou a cabeça, viu Renée e ficou surpreendida.

— Pois que, és tu! exclamou no fim de um segundo.

— Com certeza... redarguiu Renée. Porque é essa admiração?...

— Não te conhecia.

— Que gracejo.

— Não, é sério, afirmo-te... Joana levantou-se.

— Já não pareces a mesma... acrescentou ela e pergunto a mim mesmo como pudeste operar uma tão completa transformação.

— Olha bem para mim... disse Renée rindo.

— Ah! redarguiu a Condessa. Já sei... É o chapéu.

— Não gostas dele...

— Pelo contrário!... acho-o encantador... um pouco singular... mas fica-te bem... Isso é moda?...

— Não sei e não me importa... Vi este chapéu em Veneza, na cabeça de uma fidalga, num velho quadro de pintor desconhecido. A fidalga parecia-se alguma coisa comigo... Quis assemelhar-me mais e pus um chapéu como o dela.

— Fizeste bem, porque estás muito bonita assim.

— Mais do que de costume?

— Creio que sim... A tua beleza, pelo menos, parece-me mais notável e mais original, a expressão dos teus olhos, sob essa franja de cabelos curtos é estranha e misteriosa...

— Aceito isso como um elogio... disse Renée sorrindo. Sabes que o mistério me agrada e que me atrai a originalidade...

— E como cheiras bem! continuou Joana... Trazes contudo algum bouquet de flores dos trópicos!... Que perfume é esse?

— Uma essência oriental trazida de Veneza.

— O cheiro é esquisito, mas muito ativo. Pode causar dores de cabeça, querida mana.

— Não tenho medo, desafio a enxaqueca.

Neste momento pela janela aberta, ouviu-se a voz do senhor de Gordes no pátio.

— John, dizia a voz, traz os cavalos.

— Aí vem Raul buscar-te, disse a Condessa.

— Não o farei esperar, redarguiu Renée. Estou pronta.

 

A VISÃO

Era preciso meio minuto para Raul subir a escada e atravessar o vestíbulo.

Renée, sem afetação e continuando a conversar com Joana, colocou-se em frente da porta pela qual o senhor de Gordes devia chegar, e tomou a atitude da senhora de Braines no retrato existente em la Grangette.

Apareceu o Conde.

Com o seu primeiro olhar envolveu a irmã dos pés à cabeça, e m lugar de transpor o limiar, parou como o homem pregado num lugar estupefato ao ver uma aparição sobrenatural.

O rosto decompôs-se-lhe, o coração deixou de bater, um tremor lhe percorreu o corpo, ao mesmo tempo que uma sensação inaudita, pungente, dolorosa, o transtornava completamente.

— Não estarei sonhando? perguntou ele de si para si. Vi Julieta morta, e ei-la viva!

Raul, como muitos rapazes deste século incrédulo, era um pouco cético, as crenças supersticiosas faziam-no sorrir de boa vontade, e, contudo, durante um segundo, naquela sala inundada de sol, o sentimento que se apoderara dele assemelhava-se ao assombro, ao terror.

— Produzi o desejado efeito... disse consigo Renée.

Joana não podia suspeitar o verdadeiro motivo do espanto do marido.

Julgando que ele hesitava como ela em reconhecer Renée, soltou uma sonora gargalhada.

— Não esperava, querido Raul, disse ela, encontrar aqui esta bela estrangeira... É justo o seu espanto... Permita—me que lhe apresente uma nobre dama de Veneza... uma patrícia do tempo dos doges.

Um profundo suspiro saiu do peito de Raul de Gordes, que se tornou logo senhor de si.

Joana gracejava, era então o joguete de uma ilusão extravagante, e a miragem ia desaparecer.

Avançou alguns passos, tranqüilo mas ainda impressionado, e impondo-se-lhe a realidade à medida que diminuía a distância, exclamou como fizera Joana um momento antes:

— Pois que, é Renée!

— É! sim, é Renée! respondeu alegremente a condessinha, e muito bonita na sua cópia viva da jovem do quadro antigo.

"Viste o quadro, Raul? ajuntou Joana que tratava às vezes por tu o marido.

— Que quadro? perguntou o Conde. Joana contou a história inventada pela irmã.

— Não, não o vi, redarguiu o senhor de Gordes, depois dirigindo-se a Renée, ajuntou: Em que palácio existe esse quadro?

Renée citou ao acaso uma das numerosas galerias particulares de Veneza.

— Não visitei essa galeria, redarguiu Raul. A patrícia que copiou é muito bela para passar desapercebida, e quem a visse jamais poderia esquecê-la.

— Obrigada pelo cumprimento, querido mano. Visto que lhe agrada o chapéu, conservá-lo-ei.

O senhor de Gordes ia responder, mas uma reflexão deteve-o e as palavras formuladas no seu pensamento não chegaram aos seus lábios.

— E agora, redarguiu Joana, agora que apresentei a nobre veneziana ao fidalgo francês, partam depressa!... Os cavalos estão impacientes e os meus pobres esperam...

Renée pôs sobre os seu cabelos sombrios o chapelinho de feltro com pluma encarnada.

O chapéu, que parecia o de Julietta de Braines, completava a identidade do vestuário.

Raul estremeceu, mas dominando de novo a sua comoção abraçou Joana e ofereceu o braço a Renée murmurando:

— Venha, mana.

A condessinha seguiu atrás deles até à escada.

O primeiro picador andava passeando Jack, selado para senhora.

Dois grooms seguravam à mão Diego, o cavalo do Conde, e o cavalo em que devia montar o groom que tinha de acompanhar.

Raul ajudou Renée a montar; o seu rosto tocou de leve no pano escuro do comprido vestido; a jovem sentiu tremer as mãos que a seguravam e disse consigo:

— É o perfume que ele acaba de reconhecer. Ela tinha razão para o crer.

Os efeitos do ylang-ylang, que em outro tempo tantas vezes aspirara nos cabelos de Julieta, avivavam muito as suas recordações e materializavam-nas de algum modo; começava a achar estranho que o acaso tivesse agrupado tantas circunstâncias cuja fortuita reunião parecia impossível.

Para se furtar àquela observação do passado, Raul montou a cavalo quase sem tocar no estribo.

Tinha necessidade de movimento; tinha necessidade sobretudo de espalhar pelas florestas e extinguir na velocidade de uma correria desenfreada, as emanações do perfume sutil que flutuava em redor dele, e que se colocava a seus lábios como um supremo beijo da morta.

Mas a morta estava ali a seu lado, ainda bela como no tempo dos seus amores, mais bela talvez.

— Para a frente! exclamou ele.

Depois, cumprimentando com a ponta do seu chicote Joana que le pé, na escada, sorria, com os olhos e o coração cheios de amor, deu de rédea ao cavalo que, depois de dois ou três pulos, partiu em um vertiginoso galope.

Renée galopava ao lado dele sem lhe deixar ganhar distância.

Jack, impetuoso e dócil ao mesmo tempo, relinchava, soprava, mordia o freio e parecia orgulhoso do galante fardo que tinha a honra de transportar...

Em mais de um minuto o cavaleiro e a amazona chegavam à grade do parque.

No momento de penetrarem no parque, Renée voltou-se para trás.

Joana, imóvel no mesmo lugar, agitava o lenço dizendo adeus e sorrindo sempre.

Uma longa avenida bordada de carvalhos seculares do comprimento do arvoredo se tornava sombria, atravessava a floresta de lado a lado.

Ruas laterais, irradiando em todos os; sentidos, partiram da rua principal.

Apesar da rapidez da corrida, quase não se ouvia a bulha das patas dos cavalos batendo no solo atapetado com aquela relva fina e rasteira que só brota à sombra dos grandes arvoredos.

Os grossos troncos pareciam deslizar à direita e à esquerda dos cavaleiros como a interminável colunata de um misterioso edifício.

0 groom, montado em um cavalo menos veloz do que Jack Diégo, ao fim de um quarto de hora ficava para trás centenas de passos.

0 senhor de Gordes, dominado por uma preocupação cuja natureza conhecemos e que debalde tentava repelir, baixava a cabeça, franzia a testa e não proferia palavra.

Renée respeitava aquele silêncio e olhava-o às escondidas, furtivamente.

Então, de entre as pálpebras meio cerradas da jovem, através as suas compridas pestanas recurvadas, brotava um raio de fogo.

— Raul... disse ela de repente.

O Conde parecia despertar de um sonho e voltou-se para a sua companheira.

— Desejava abrandar o passo... redarguiu ela. Vamos tão depressa que me falta a respiração.

O senhor de Gordes meteu logo o seu cavalo a passo.

— Ah! exclamou ele, perdão! sou um grande culpado... Devia ter-lhe perguntado há muito tempo se esta vertiginosa carreira a não incomodava... Não sei onde tenho hoje a cabeça... O meu pensamento estava longe daqui.

— Perto da nossa querida Joana, tenho a certeza... disse Renée em um tom de voz quase zombeteiro.

Raul não sabia mentir.

Em vez de responder afirmativamente, calou-se.

Jack tinha seguido o exemplo de Diégo e os dois camaradas de* cavalariça caminhavam ao lado um do outro, com um modo sossegado, sem se apressarem, como que sabendo que lhes bastaria o quererem para recobrarem o tempo perdido, e aproximando às vezes as suas cabeças inteligentes como que para trocarem uma carícia.

O Conde, durante alguns segundos, fitou os olhos em Renée, depois, desviando a cabeça, voltou ao seu silêncio e à sua meditação.

A jovem deixou decorrer uns cinco ou seis minutos e continuou, após uma gargalhada um pouco constrangida:

— Realmente, meu querido Raul, parece-me agora um fidalgo um pouco singular... Deve ter tido pena de me haver oferecido este passeio, porque está hoje tão pouco amigo de conversar... A solidão ser-lhe-ia muito mais agradável do que a minha companhia... Quer virar de rédea e regressar ao palácio? Talvez seja melhor do que continuar assim.

O senhor de Gordes, em lugar de responder à censura de sua cunhada, como se a não tivesse ouvido, murmurou:

— É na galeria Foscari que me disse estar o tal quadro?

— Que quadro? perguntou Renée com um gesto de surpresa perfeitamente fingido.

— Onde está o retrato de uma patrícia que muito se parece com a senhora.

— Pois que, ainda pensava nisso!... Sim, é na galeria Foscari.

— Por que não me falou em Veneza desse estranho quadro.

— Para que havia eu de falar-lhe, faz favor de me dizer? Podia eu lá adivinhar que a nobre dama com quem tenho a honra de me parecer um pouco, e que dorme há duzentos anos o seu eterno sono em algum túmulo blasonado, lhe interessasse?

— É justo, respondeu o Conde, a senhora não podia adivinhar isso...

— Já descansei, redarguiu a jovem; o andar contrafeito cansa muito. A galope!... a galope!...

Renée chicoteou Jack que voou como uma seta.

— Mais depressa! disse ela batendo-lhe com o chicote, mais depressa! mais depressa!...

O cavalo, excitado pelo chicote e pela voz, não galopava, parecia voar, por tal modo se alongava o seu corpo nervoso, tão poderoso era o seu tropear.

Diégo ia ficando para trás.

— Cuidado! gritou Raul.

— Em que? perguntou a jovem voltando-se um pouco para trás.

— Logo talvez não possa sopear Jack... é capaz de tomar o freio nos dentes.

— É o mesmo!... não tenho medo.

— Vamos, disse o Conde de si para si, está doida.

— Mais depressa!... mais depressa!... repetia Renée.

De repente, sem outro motivo, segundo parecia, senão um súbito-capricho, lançou Jack por uma das ruas laterais que partiam da grande avenida e ali inclinava sobre o pescoço do cavalo, fez estalar novamente o seu chicote.

Foi então uma correria insensata, louca, quase fantástica.

A paisagem mudava de natureza... A floresta tinha um aspecto-sinistro... Grandes rochedos, furados em grutas profundas, se levantavam à direita.

Renée, de repente, soltou um grito.

 

UMA SITUAÇÃO INESPERADA

Não há coisa que mais excite um cavalo que vai a toda a brida,. do que sentir outro atrás de si.

Raul sabia isso; portanto, para não espantar Jack que parecia já excitado mais do que devia ser preciso, teve o cuidado de conservar Diégo a distância.

— Que tem, mana? perguntou ele num tom de inquietação.

— Jack não obedece ao freio... respondeu a jovem. Vai desbocado...

— Já a tinha prevenido...

— Bem o sei... mas trate agora de me socorrer, e não de me censurar...

— Nada receie... não há obstáculo no caminho, e a senhora segura-se bem no cavalo.

— Agora não... sinto a cabeça tonta... estou assustada.

E com efeito Renée cambaleava no selim de um modo assustador.

— Coragem, coragem! gritou-lhe o Conde.

— Ah! murmurou ela com voz assustada, tenho coragem. Não é energia o que me falta... é força... Eu desmaio... Já não vejo... Eu caio...

A amazona tinha largado já o chicote. Parecia suster-se apenas graças às crinas a que se agarrava com ambas as mãos.

Era eminente a queda e podia ser terrível, atenta a velocidade la corrida.

Raul, cada vez mais assustado, tomou imediatamente uma resolução, e resolveu arriscar tudo para tudo salvar.

Enterrou as esporas nos ilhais do seu Diégo, obrigando-o a um desses superiores esforços que os jóqueis exigem dos cavalos para chegarem ao extremo determinado nas corridas.

O valente animal correspondeu ao desejo do dono.

Em dois galões alcançou Jack.

Ao terceiro excedeu-se, mas o senhor de Gordes teve tempo de deitar as mãos às rédeas de que Renée já não se servia.

Ato contínuo, por uma manobra às vezes muito arriscada, e sempre muito hábil, obrigou Diégo a girar sobre si mesmo.

Jack, surpreendido no mais fogoso do seu galope, e desviado com força da linha que seguia, não pôde equilibrar-se e caiu.

Raul já esperava a queda; inclinou-se para a jovem no momento em que o cavalo caía, agarrou-a pela cintura, tirou-a do selim, e colocou-a na sua frente sobre o pescoço de Diégo, que parou imediatamente com maravilhosa docilidade.

— Sossegue, mana, disse o Conde, o perigo já passou... Renée não respondeu.

O senhor de Gordes olhou para ela.

Renée tinha os olhos fechados; a cabeça caída para trás flutuava, morta, à mercê dos braços que a sustinham.

— Perdeu os sentidos!... disse consigo o marido de Joana. Aqui está o que são as heroínas que se dizem tão valentes, e não querem escutar conselhos!... O menor perigo as faz desmaiar... Seja como for, é preciso cuidar dela.

A solidão era completa.

O groom, à distância de muitos quilômetros, não tinha probabilidade alguma de encontrar vestígios do amo, e, por descargo de consciência, continuava seguindo a pequeno trote a grande avenida.

À direita (dissemo-lo) erguiam-se rochedos. Quase ao nível do solo e aberta na rocha uma gruta estreita, profunda e atapetada de relva.

Ali próximo, um fio de água caído do alto, enchia uma bacia natural e sumia-se pelo chão abaixo.

Raul apeou-se, deixando Diégo e Jack, que se tinha já levantado, à sua vontade para pastarem na relva, e levando a jovem nos braços, transpôs com ela os vinte e cinco passos que a separavam da gruta, cuja existência mencionamos.

Pelo caminho, o perfume penetrante do ylang-ylang, que se exalava dos cabelos, do fato e das mãos de Renée, subia em ondas quentes ao nariz do Conde, produzindo um efeito quase semelhante ao que experimentam os orientais pela aspiração dos vapores do ópio.

A extravagante mas explicável alucinação que uma hora antes Raul experimentara na sala do palácio, e que ele quisera vencer sem o conseguir completamente, manifestava-se de novo com uma força muito maior, com uma intensidade muito superior.

Aquele perfume que o mancebo outrora tanto tinha adorado, fazia-lhe esquecer o tempo, a distância e a morte... e a própria Joana...

Julieta ressuscitada, ou antes ainda viva e ainda em seus braços, inundava-o com os eflúvios irresistíveis da sua beleza, da sua mocidade, do seu amor...

O senhor de Gordes perdia o sentimento do real... Parecia-lhe que enlouquecia. Uma demência que por ser passageira, não era menos absoluta, se apoderara então dele.

A loucura assenhoreava-se completamente dele no momento em que entrou na gruta, e depôs sobre a relva o corpo franzino e sedutor que parecia inanimado.

Inclinou-se para a jovem.

A semelhança que Renée conseguira adquirir com tão pérfida habilidade, completou a obra que o perfume começara.

A alucinação atingiu o seu paroxismo.

— Julietta, balbuciou ele, como pôde eu julgar que a morte nos havia separado? Foi um sonho mal, e eis o despertar... Torno a possuir-te, Julietta, e amo-te...

Ah! como naquele momento pulsava cheio de contentamento o coração de Renée, pelo triunfo obtido... Como que lhe custava a conter as pálpebras cerradas, donde o fogo parecia prestes a irradiar.

Parecia-lhe certa a vitória dali em diante. Ela conseguia o seu fim.

Ia vingar-se de Joana e fazer-lhe cem vezes mais mal do que ela lhe fizera!...

Para um gênio odioso e vingativo, para um ente sem alma, era aquela uma dessas alegrias ferozes que só uma vez se experimentam na vida.

Raul prosseguiu no seu delírio.

— Teu, Julietta... minha adorada Julietta... teu, só teu!... teu para sempre!___

Subjugado por uma força magnética irresistível, ajoelhou e aproximou os seus lábios dos de Renée.

Foi tão sutil, quase imperceptível aquela carícia em que os lábios do Conde mal tocavam a rosada e fria pele da jovem, ainda assim Raul empalideceu, e levantou-se com um modo brusco e um gesto de espanto.

A fatal alucinação fugia ante a realidade. O sonho mal havia terminado, e a mais vergonhosa derrota veio substituir a vitória que Renée esperava...

— É um crime!... murmurou o senhor de Gordes. Era um infame... ou antes estava louco. Odiosa loucura!... maldita loucura! Que filtro bebi eu?... Insultava a minha querida Joana. Ultrajava a irmã de minha mulher! Como ambas me desprezariam se soubessem! Felizmente não sabem, nem o saberão nunca. Ninguém conhecerá o segredo da loucura que pratiquei...

Assestou-se numa saliência da rocha e ocultou a cabeça entre as mãos, procurando em vão conhecer a causa da sua curta demência e sem poder sequer compreendê-la.

De repente, desviou as mãos do rosto, olhou para Renée.

— Decididamente, perdi a cabeça!... disse ele quase em voz alta. Pois que! está ali aquela criança desmaiada e esqueço-me de a socorrer...

Em questão de curativo, um único tinha à sua disposição, mas o mais simples de todos e um dos mais poderosos: a água fresca.

O regato que brotava da rocha corria a vinte passos da gruta.

Raul saiu.

Apenas ele desapareceu, Renée abriu os olhos.

A ruga cavada entre as suas sobrancelhas, a sua palidez, a contração das suas feições, revelavam energicamente quanto era profunda a sua decepção, e feroz a sua cólera.

Dizia ela de si para si:

— Partida perdida! Este Conde de Gordes é homem?... Quero a minha desforra... quero a minha vingança, uma e outra hei de ter, embora corra o risco de perder a vida!... Mas como?

Quando ao fim de dois ou três minutos Raul voltou, trazendo água gelada na sua capa de veludo que pingava gota a gota; achou a cunhada encostada ao cotovelo e com os olhos abertos.

— Ah! exclamou ele, está melhor!... Ainda bem!...

— Despertei de um sonho, não é verdade? balbuciou Renée com voz fraca: onde estou, e que se passou?...

— Nada de grave... respondeu o Conde.

— Mas?

— Jack, excitado de mais pela senhora, desbocou-se; coisa inevitável de que a tinha prevenido. Não esteja descontente com o pobre animal.

— E depois?

— Uma vertigem, resultante da enorme velocidade, fê-la entontecer. Teve medo...

— E caí.

— Quer dizer, cairia, é certo, porque se sustinha no selim como por milagre, mas tive a fortuna de a receber em meus braços quando Jack caiu.

— Então salvou-me a vida?

— Evitei-lhe só uma queda um pouco forte sobre a relva, mais nada, e trouxe-a para aqui.

— Há quanto tempo?

Raul, já o sabemos, tinha horror à mentira. Corou levemente, no entanto, respondeu muito prontamente:

— Quando muito uns cinco minutos... Não foi muito grande o seu desmaio... Sente-se melhor? ajuntou ele.

— Parece-me que sim.

— Quero ver se se pode levantar.

— Com todo o gosto, mas preciso que me ajude a levantar, porque as paredes desta gruta ainda me andam à roda.

Raul estendeu as mãos para Renée, que assim que se levantou, declarou que a vertigem diminuía rapidamente, e que se sentia capaz de seguir à caminho do palácio de Gordes.

 

DESENGANO

— Ainda fica distante daqui o palácio, continuou o Conde. Talvez fizesse bem, mana, em descansar um bocado?

— Não é preciso, redarguiu Renée, não estou cansada.

— É capaz de tornar a montar a cavalo?...

— Não tenho dúvida alguma... Jack desbocou-se por culpa minha; se eu tivesse seguido os seus conselhos, nada de desagradável me teria sucedido... Foi uma lição... Aproveitá-la-ei, e serei prudente daqui para o futuro.

— Então vamos...

Raul e Renée saíram da gruta.

Os cavalos não se tinham afastado e pastavam à sua vontade.

Deixaram-se apanhar com admirável docilidade, e o Conde ajudou a cunhada a montar de novo Jack.

Ele montou também, e ambos a passo tomaram pelo caminho de Gordes.

Durante quase um quarto de hora, nem amazona nem cavaleiro trocaram palavra.

Ao fim desse tempo Raul voltou-se para Renée:

— Querida mana, disse-lhe a voz embargada pela comoção, desejava conversar muito a sério.

A jovem olhou para o cunhado muito espantada.

— Muito a sério? repetiu ela.

— Sim, prosseguiu ele, e o modo franco como lhe vou falar, provar-lhe-ei toda a confiança que me inspira.

— Com certeza, tem razão em depositar confiança em mim... redarguiu Renée. Mereço-a! De que se trata?

— Quero pedir-lhe um sacrifício.

— De que gênero?

— De garridice.

— O seu pedido, mano, deixa-me deveras embaraçada, e mais ainda, porque não me considero garrida... Enfim, que sacrifício é?

— Renunciar a um penteado que lhe fica muito bem...

— Fala daquele que adotei hoje?

— Sim.

Renée pôs-se a rir.

— Cada vez em maior embaraço me vejo! redarguiu ela. Que lhe dê cuidado o penteado de Joana, concordo... mas o meu... Por que?...

— Esta pergunta obriga-me à estranha confissão que devo fazer-lhe... Em Veneza, por ocasião da nossa primeira entrevista, cujas palavras me ficaram gravadas na memória, deixei-lhe compreender que existia uma vaga semelhança entre a senhora e aquela pobre a quem amei por desgraça sua.

— Recordo-me do que quer seja nesse gênero, murmurou a jovem afetando indiferença.

— Pois bem! continuou Raul, a senhora de Braines usava o penteado que por acaso escolheu, e copiando Julietta sem o saber tornou-se a sua viva imagem.

O coração de Renée começou a palpitar com força. A esperança aniquilada renasceu. Parecia perigosa ao Conde, logo podia triunfar ainda.

Quem sabe se ele iria dizer-lhe: Ao vê-la assim, tenho medo de amá-la!

— Que importa uma semelhança, redarguiu a jovem, visto que essa mulher morreu, e o lugar que ela ocupava em seu coração pertence hoje a Joana?...

— Oh! exclamou o Conde, é justamente porque pertenço de coração e alma à minha amada Joana, que me causa uma sensação dolorosa essa recordação importuna que não posso destruir a meu pesar. Sem pena sacrificaria dez anos da minha vida para aniquilar até o último vestígio de um passado de erros e de sofrimento... Considere quanto é penoso ter incessantemente ante os olhos a evocação desse passado funesto! Não pertenço ao número daqueles que não se entregam completamente! Assim como Joana tem todo o meu amor, é preciso que tenha todos os meus pensamentos!... Com pena de ofender aquele anjo, não devo recordar-me de que Julietta de Braines viveu... Devo esquecer ao mesmo tempo as suas feições e o seu nome! A minha ternura e a minha lealdade unem-se impondo-me essa lei! Ousaria eu aproximar os meus lábios dos lábios puros de Joana, se a recordação de outra mulher tivesse guarida em meu ânimo atribulado!... Seria uma profanação, e julgar-me-ia um sacrílego! Aí está porque, querida Renée, lhe suplico que me conceda a graça que há pouco lhe solicitava. Volte a ser o que era, isto é, a encantadora jovem que tão cara nos é, e na minha existência de completa ventura, graças à nossa adorável Joana, não faça nascer uma dor, e não desperte um remorso sob a forma do espectro de um passado... Promete-mo?

Renée estremecendo empalideceu.

A derrota desta vez era daquelas que abatem completamente! Irremediável! Sem apelo!...

Ela assim o compreendeu.

— Mano, disse num tom de voz seca e que parecia desmentir as suas palavras, o senhor inspira-me muito viva afeição para que não me pareça fácil sacrificar ao seu descanso um capricho de fútil garridice!... Sobretudo, amo muito Joana par colocar entre ambos uma recordação hoje detestada, uma imagem agora odiosa! Esteja descansado, não tornará a ver o penteado.

— Obrigado, mana... redarguiu Raul um pouco surpreendido do tom de Renée, mas longe de suspeitar a verdadeira causa da amargura que transbordava nela, e que não conseguia ocultar.

— Como ele a ama! disse consigo a jovem. Seria a mim, se não fosse ela, a quem ele teria assim amado! O seu coração e a sua fortuna tudo me pertence! E deixá-la-ei covardemente gozar em paz o bem roubado!... Ora vamos!... Não posso despedaçá-la deste modo... despedaçá-la-ei por outro...

 

A partir daquele dia operou-se uma metamorfose completa nos modos e no proceder de Renée; não de repente, o que talvez parecesse extravagante, mas a pouco e pouco e por graduações insensíveis.

Tendo modificado o seu plano primitivo, ou para melhor dizer, procurando um novo plano, a jovem disse, de si para si, que antes de tudo era preciso tornar-se indispensável, para que dado o caso de que Júlio Leroux (o que não era crível nem muito provável) abreviasse a sua demora em Paris, nem Raul nem Joana se lembrassem de a mandar para Vertes-Feuilles.

Pareceu apaixonar-se pelo campo em geral, e pela propriedade de Gordes em particular.

Testemunhou desejo de seguir o exemplo de sua irmã, e tornar-se de certo modo a providência dos que sofriam.

Quis acompanhar Joana todas as manhãs nas suas visitas caritativas aos indigentes e aos enfermos, e distribuiu em esmolas a maior parte de algumas centenas de francos que o pai lhe deixara para os gastos particulares antes de partir.

Tomou a empresa de desembaraçar Joana desses cuidados vulgares, aos quais uma dona de casa embora dez vezes milionária, não pode subtrair-se completamente, e a condessinha cujo maior desejo era entregar-se exclusivamente ao seu amor, não só consentiu, mas até lhe agradeceu muito que ela tomasse a direção da casa.

Usou moderadamente da autoridade que lhe conferira Joana.

Reinou, mas discretamente e com uma espécie de humildade. Dava as suas ordens num tom tão suave, que os criados, de ordinário pouco dispostos a admitirem quem é intermediário entre eles e os amos, obedeciam-lhe de bom grado.

A transformação do seu gênio era não menos admirável. Nada de caprichos, nada de arrebatamentos, nada de loucas aspirações pelos prazeres ruidosos, e em lugar destes defeitos uma maravilhosa condescendência e um inalterável bom gênio.

Sempre elegante por fim, mas de uma elegância simples, mostrando profundo desprezo pelas toilettes de espalhafato, Renée parecia tanto mais sedutora quanto menos duvidava das seduções da sua pessoa.

Ela testemunhava à Joana uma ternura apaixonada; a Raul uma afeição de irmã, matizada de vagos impulsos logo reprimidos.

Em conclusões, se o completo sossego e a verdadeira ventura existissem na terra, encontrar-se-iam no palácio de Gordes.

Um dia Raul e Joana foram a la Tour-du-Roy almoçar com Lazarine.

Renée, que se havia recusado a acompanhá-los pretextando um começo de enxaqueca, achou-se só.

Quando a jovem tinha a certeza de que ninguém podia espiá-la ou surpreendê-la, transformava-se-lhe logo a expressão do rosto; dir-se-ia que deixava cair a máscara.

As suas feições contraídas revelavam a obsessão de um ódio... Os seus olhares tão meigos tornavam-se fixos e ameaçadores.

Assim como um dramaturgo procura para uma peça sombria um desenlace trágico, também Renée procuraria os fatais meios que com certeza e sem perigo a conduzissem ao seu fim.

Naquele dia, quando estava só, almoçando, o criado grave pôs em cima da mesa ao seu lado, numa bandeja de prata, os jornais que acabavam de chegar.

A jovem pegou no Fígaro, rasgou a cinta, e percorreu com a vista o mais parisiense de todos os jornais de Paris.

Na seção: Notícias diversas, o título: Um drama misterioso, atraiu a sua atenção.

Leu a seguinte narração:

"Somos nós com certeza, primeiros a relatar uma estranha história, cuja autenticidade garantimos, e de que toda a cidade de Paris se há de ocupar hoje, e toda a França se ocupará amanhã.

"Estamos informados há dois dias. Poderíamos ter falado. Não o fizemos para não embaraçar a ação da justiça.

"Hoje julgamos conveniente substituir os nomes de família por iniciais. Amanhã publicaremos os nomes.

"Eis os fatos:

"Há dois anos um havanês de origem espanhola, D. Luiz de H..., de trinta e quatro ou trinta e cinco anos, veio estabelecer-se em Paris com a sua jovem esposa Mercedes, crioula da Luisiania, mais nova do que ele dez anos.

"D. Luiz possuía uma fortuna avaliada em muitos milhões... Mercedes era bela. O marido adorava a mulher que parecia retribuir-lhe de igual modo. Enfim, não se podia ver par mais encantador, mais unido, e segundo toda a verossimilhança, mais feliz.

"Logo depois da sua chegada a Paris, D. Luiz comprou um destes palácios da avenida da Imperatriz, que se tornou em pouco tempo um centro de reunião para a colônia estrangeira e para um grande número de parisienses que pertenciam à elite, onde se viam representadas a aristocracia, as grandes fortunas, a polícia, as letras e as artes.

"As festas de D. Mercedes eram notáveis.

"As salas de recepção, que comunicavam com um vasto jardim de inverno, onde a flora dos trópicos desabrochava opulentamente, eram citadas como maravilhas de luxo e de elegância, e nós mesmos mais de uma vez tivemos ocasião de falar a esse respeito.

"A bela crioula, rodeada de homens notáveis, dos quais muitos procuravam agradar-lhe e alguns pareciam verdadeiramente apaixonados, gozava uma reputação intata.

"Galante, mas indiferente, acolhendo as suas visitas com uma benevolência igual para todos, dava mostras de um tão fino tato, que se não podia acusar de coqueteria.

"D. Luiz, apesar de ser espanhol, não parecia ciumento, e dava à mulher uma liberdade completa, muito convencido de que ela nunca abusava.

"Quem poderia supor que um tenebroso drama se se ocultava sob aquelas aparências de tranqüila ventura?..."

— Que drama seria? perguntou a si mesma Renée cuja curiosidade se despertava muito especialmente porque se lembrava, perfeitamente, de ter visto passear no Bosque, em carruagens ajaezadas com. todo o luxo, a bela Mercedes e seu marido, cujo nome ela adivinhava sob a transparente inicial.

 

UM DRAMA

Renée prosseguia na leitura. O artigo continuava deste modo:

"Um dia, há seis meses, o palácio da avenida da Imperatriz deixou de abrir as suas portas, não só aos convidados, mas também aos íntimos.

"Mercedes não mais apareceu em parte alguma.

"D. Luiz acabava de adoecer, o seu estado pareceu logo bastante grave ao médico chamado à pressa.

"Alto bastante, mais seco do que magro, mas muito corpulento, trigueiro, de cabelos negros e abundantes, bigodes pretos e olhos da mesma cor, o havanês parecia um homem muito forte e gozava de robusta saúde.

"Caiu de repente, e coisa singular, o médico teve a boa fé de declarar que não compreendia a origem do mal, que não podia prever a marcha da doença, e que, recusando assumir só uma tão grave responsabilidade, desejava reunir-se em consulta com colegas seus.

"Mercedes deferiu prontamente a esse desejo tão natural.

"Os príncipes da ciência reunidos em consulta concordaram só neste ponto: o caso era único e precisava ser cuidadosamente estudado, antes de poder ser classificado, medicado e tratado de um modo lógico e eficaz.

"Estudaram efetivamente com vontade, todavia os resultados obtidos foram negativos.

"A doença parecia zombar dos médicos. De um dia para o outro, às vezes de uma hora para a outra, os sintomas variavam, destruindo as melhores previsões, e tornando indispensável variar de medicamento.

"Admirável de dedicação, animosa, incansável, Mercedes não abandonava a cabeceira do marido...

"D. Luiz conservando inalteráveis as suas faculdades em meio dos mais vivos sofrimentos, só queria receber das mãos de sua mulher as poções necessárias, já não para o sarar, mas ao menos para o aliviar.

"No fim de três meses o pobre milionário sucumbiu sorrindo a Mercedes cujas mãos ele tinha entre as suas.

"Foi imponente o préstito que conduzia ao cemitério do Père-La-chaise os restos mortais de D. Luiz.

"No dia seguinte toda Paris mandava pêsames ao palácio.

A jovem viúva foi sublime de dor resignada.

"Parecia uma mulher do Malabar, disposta a fazer-se queimar viva sobre a sepultura do marido.

"Bastará dizer que D. Luiz, em testamento, deixou-lhe toda sua fortuna, sem cláusula alguma que lhe fizesse restringir a livre disposição daquela herança colossal.

"Como Mercedes estava de luto, e não podia abrir as portas da sua casa senão no fim de meses (dado o caso dela tornar a abri-la). Paris, que o que quer é divertir-se, não mais se ocupava dela.

"Entre os amigos mais íntimos do defunto D. Luiz H..., havia, um mancebo, José D...., da Louisiania como Mercedes, a quem conhecia antes de casar, e por quem foi apresentado ao havanês.

"José, cuja galante beleza podia lutar no confronto com a do Baccho indiano, levara em Paris uma vida de dissipador, jogava forte; perdia repetidas vezes, gastava somas loucas, sem que os seus compatriotas da colônia pudessem adivinhar donde lhe vinha tanto dinheiro, porque sua família, na Louisiania, não passava por ser muito rica.

"Acabou-se por suspeitar que D. Luiz, não podendo passar sem ele, punha à sua disposição o seu cofre inesgotável, mas era engano, porque o havanês, pelo contrário, muito lhe censurava as suas loucas prodigalidades, e repreendia asperamente as suas escandalosas relações com cocotes muito conhecidas.

"Quando estas coisas se diziam na presença de Mercedes, a jovem e José trocavam um furtivo olhar e sorriam.

"Depois da sua viuvez, a jovem crioula apenas recebia José, mas de tempos, a tempos e ninguém se admirava desta visita, porque a intimidade do mancebo com o defunto se tornava muito naturais.

Nesta seção, há oito dias, demos conta da prisão de um estrangeiro muito conhecido no mundo elegante, acusado de falsário.

"O estrangeiro era José D....

"Um rico banqueiro, ao ver a sua assinatura imitada numa letra, de câmbio do valor de mil francos, descontada pelo crioulo, e pagável no dia seguinte, queixou-se.

"Debalde José provou que tinha em mão os cem mil francos para-fazer face ao vencimento.

"O delito, embora atenuado, continuava existindo, e a prisão efetuou-se.

"No trem que o transportou de Mazas para o tribunal, José cometeu a imprudência de propor aos seus guardas dez mil francos se quisessem levar à viúva de D. Luiz um bilhete de duas linhas em troca do qual ela entregaria o dinheiro.

"— Está dito, respondeu um dos agentes, aqui está papel e lápis...

"O mancebo escreveu:

"Vá imediatamente a minha casa e queime os papéis... Urgente... Dê dez mil francos ao portador.

"José."

 

"Muito bem, disse o agente, a dama receberá o bilhetinho esta tarde.

"Um quarto de hora depois, as três linhas de José estavam nas mãos do juiz de instrução.

"Nessa mesma tarde o magistrado, acompanhado de um comissário das delegações judiciárias, e de um agente de segurança, entrava no domicílio da crioula, e tomava conta de todos os papéis e cartas encontradas, reservando-se para examiná-las com toda a atenção que mereciam, porque, com certeza, não se pagam dez mil francos para queimar papéis inúteis.

"No dia seguinte, isto é, antes de ontem, fez-se uma visita policial na avenida da Imperatriz onde foi presa Mercedes.

"Porque seria aquela prisão?

"Oh! é bem simples.

"A irrepreensível esposa, a inconsolável viúva, a moderna Artemisa, era há muito, e talvez já antes do seu casamento, a amante de José.

"Para o mundo de moral fácil era aquilo um pecado venial, e a Justiça de então não tinha o direito de intervir, o marido morto não podia queixar-se, mas via-se clara, evidente e indiscutivelmente, nas cartas de Mercedes apreendidas em casa de José, que o amante e a amante tinham combinado a morte de D. Luís, para casarem depois de terminado o prazo legal do luto, e para gozarem em paz da fortuna da sua vítima.

"Faz arrepiar as carnes a narração deste sucedido.

"Como se consumou o crime?

"Por meio do veneno.

"Por que motivo os príncipes da ciência reunidos em consulta, se tinham declarado incompetentes, deixando os matadores terminarem a sua obra?

"Porque os matadores acharam mão de desviar as investigações da ciência. Tiveram o cuidado de não comprar em casa do farmacêutico láudano ou arsênico, e empregar estas drogas cujos efeitos conhecidos _ descritos, tão indiscretos como maléficos, denunciam logo a mão que os emprega.

"O jardim de inverno, onde pareciam ressoar ainda as últimas notas das orquestras dos últimos bailes, tinha sido seu laboratório...

"As plantas e as flores dos trópicos haviam-se feito suas cúmplices...

"Os venenos vegetais, a resina e o suco daquelas terríveis plantas, haviam-se tornado, nas suas mãos, armas misteriosas, matando de um modo seguro e sem deixar vestígios; vestígios apreciáveis ainda assim, porque é preciso dize-lo (com risco de atrairmos amanhã numerosas réplicas), o estudo de certos venenos vegetais jaz ainda num estado rudimentar, e os senhores assassinos ricos bastante para explorarem os recursos mortais da flora indiana estão à sua vontade...

"Mercedes H... e José D... estão no mais rigoroso segredo, e aqui está um processo interessante, uma verdadeira causa célebre, para o nosso excelente colaborador e amigo Fernando de Rodays.

"Informaremos regularmente os nossos leitores."

O Fígaro caiu das mãos de Renée, que, com o cotovelo apoiado sobre a mesa e a face encostada à mão, esteve por muito tempo mergulhada em profunda meditação.

— As flores dos trópicos... murmurou ela de repente. A flora indiana... Quem sabe?...

Depois de uma curta pausa continuou:

— Se não fossem aquelas cartas que a comprometeram, Mercedes, viúva, estaria rica e livre... Mas escrever daquele modo!... que loucura!... Eu não o faria!... Nunca!...

A jovem terminou rapidamente o almoço, mal tocando nos manjares que lhe servia o criado.

Tomou uma grande chávena de café de que gostava pouco, e de que ordinariamente não bebia senão algumas gotas, em seguida saiu da sala de jantar, levando os jornais, e passou à saleta onde os deixou, depois de ter rasgado as cintas, mas sem os ler; meteu o Fígaro na algibeira, subiu ao seu quarto, releu segunda vez o artigo que reproduzimos, e escondeu entre os fatos no fundo de uma gaveta o número do jornal.

Após isto, entregou-se de novo àquela estranha meditação que se tinha apoderado dela depois da sua primeira leitura, e que dava ao seu admirável rosto uma sinistra expressão.

Raul e Joana não prolongaram as suas visitas a la Tour-du-Roy, receosos de incomodarem Lazarine, a quem, naquele momento, a sua gravidez fazia sofrer um pouco; regressaram a Gordes às três horas la tarde.

Ao ouvir a carruagem entrar no pátio, Renée apressou-se a descer, e chegou à sala alguns momentos antes do Conde e da Condessa.

— Então! mana, perguntou Raul abraçando a jovem, como está dessa importuna enxaqueca que não lhe permitiu acompanhar-nos.

— Muito melhor, redarguiu Renée sorrindo.

— Realmente?

— Afirmo-lhe.

— Contudo, disse Joana, tu estás pálida... Acabou-se tudo completamente?... Parece-me que não!

— Quase... Mas não nos ocupemos de mim e falemos de Lazarine.

— Lazarine, respondeu Joana, vai tão bem quanto é possível... Sempre triste... Um pouco fatigada... Não obstante forte e animosa bastante. Teve mui viva e sincera pena de que não fosses, e encarregou-me de te abraçar em seu nome, o que ora faço com todo o gosto.

— Teve notícias do pai?

— Nenhumas.

— Excelente pai! exclamou Renée dando uma gargalhada em que havia um pouco de amargura. Quando se diverte, esquece-se de que tem filhas!

— Mana... mana... disse a Condessa em tom de censura.... Isso é uma maldade...

— Bem sabes, minha queridinha, que não sou má. Raul estava lendo os jornais.

— Renée, perguntou ele, viu o Fígaro?

— Não, respondeu a jovem, procurei-o também, não veio hoje....

— O serviço do correio está sendo péssimo! murmurou o Conde

 

OS RECURSOS DA BOTÂNICA

Dissemos que os aposentos da segunda filha de Júlio Leroux comunicavam, por meio de uma escada secreta, com as estufas ou antes com a reunião dos jardins de inverno contíguos às salas de recepção.

Aqueles jardins de inverno eram tidos em todo o distrito como verdadeiras maravilhas.

O seu estabelecimento tinha custado grandes somas.

Grande número de famílias ficariam ricas com o rendimento de quantias iguais à metade do dinheiro gasto todos os anos para a sua conservação.

No dia seguinte, pela manhã, Renée, que tinha até então manifestado completa indiferença a respeito dos esplendores vegetais do "rez-de-chaussée", desceu pela manhã cedo e penetrou nas estufas.

Em círculo, delgadas e inúmeras hastes de ferro subiam como caninos metálicos para sustentar a cúpula transparente e cintada semelhante à nave de uma catedral.

Por todos os lados folhagem opulenta, plantas carnudas e rebentos de verdura.

No meio da estufa principal, rente do chão, num lago circular de mármore vermelho, a flora aquática do Oriente, vivia estranha e vagamente inquietante.

Um deus índio de granito cor de rosa, vindo do país dos mistérios e dos encantos, erguia-se sobre uma coluna no centro do lago, e os verde jantes penachos dos ciclantus velavam-no a meio.

Enormes tornelias, enroscadas como serpentes, emaranhavam-se acima do lago, e as suas raízes aéreas pareciam grandes redes deixando ver através as suas malhas as transparências verde-mar da água estagnada.

Pendnus de Java desabrochavam junto às bordas do lago os ramos de folhas delgadas, dentadas e espinhosas, listradas de verde e branco.

Ao lado das folhas redondas dos euriales semelhantes a répteis, abriam-se à tona dágua as estrelas das ninfleas.

A sélaginela, pequeno feto, substituía a relva, e o seu verde tenro fazia um vivo contraste com o mármore vermelho que circundava o lago.

Uma larga rua arenosa, bordada de plantas cujas hastes tocavam tia cúpula de vidro do jardim de inverno, formava um círculo.

Os grandes bambus da índia, as palmeiras, as bananeiras, desdobravam, umas, as suas miudinhas folhas como chuva, outras as muito largas como grandes leques redondos, estas oferecendo a sua grande sombra, aquelas os seus cachos de bananas e as suas grandes folhas horizontais.

Aqui e acolá os eufórbios da Abissínia, espinhosos, enroscados, cujos nós destilavam veneno.

Debaixo das árvores dos arbustos, fetos rasteiros juncavam o solo. Eram pteridas, adiantes de folhas arredondadas, e alsofila, de hastes altivas, de ramos simétricos e hexagonais.

As folhas lanceoladas do caladium, de nervuras verdes sobre fundo branco, as folhas torcidas das begônias manchadas de verde e de encarnado, plantas singulares de aspecto conjuntamente brilhante e sombrio rodeavam os maciços.

Ao fundo das galerias envidraçadas formando os raios da grande nave, abriam-se, sob os cipós entrelaçados, cavernas de verdura.

Em parte, os jardins de inverno tinham o aspecto das florestas virgens, cheios de rebentos, de hastes, folhas e ramos de verdura.

As baunilhas exalavam um acre perfume. As flores extravagantes dos quisqualus, os cachos vermelhos das plantas leguminosas matizavam a folhagem mais sombria.

E escapando-se de açafates suspensos, a tribo das orquídeas apresentava as suas vegetações aéreas e fantásticas.

Finalmente, que de riquezas ainda, impossíveis de descrever, cuja enumeração encheria dez páginas deste livro.

Grandes hibiscos da China, de flores vermelhas e pouco duradouras, abrindo-se como lábios de mulher ávidos de beijos.

Tanghins de Madagascar, folhas de buxo, de cujas hastes esbranquiçadas corre um suco semelhante ao leite, o mais sutil de todos os venenos.

A atmosfera estava saturada de aromas penetrantes, sensuais e venenosos ao mesmo tempo, falando, a quem sabia compreendê-los, do amor e da morte.

E por toda a parte, imerso em luxuriante folhagem, o mármore das estátuas semelhantes a ninfas a saírem do banho perfumado.

Renée passeou nas estufas vagarosamente, a passos lentos, fitando nas flores e nas plantas demorados olhares repletos de uma curiosidade feroz, e perguntando-lhes o segredo dos venenos que continham.

Quando saiu enfim do jardim de inverno, sentia a cabeça pesada. Apoderava-se dela um espécie de torpor, começava o sono a invadi-la.

A atmosfera carregada de aromas nocivos que ela tinha respirado, produzia o seu efeito.

— O jornal de ontem dizia a verdade... pensou ela de si para si. Isto é um perfeito laboratório onde a vegetação dos países quentes pode e deve tornar-se cúmplice de quem quiser vingar-se.

O palácio de Gordes, como todas as grandes casas, tinha uma boa biblioteca.

Renée sabia-o, nunca porém penetrara na vasta sala cheia de milhares de volumes ricamente encadernados e enfileirados em boa ordem.

Durante três dias passou as suas tardes ali entregue, às buscas e indagações que não foram coroadas de bom êxito.

A jovem desejava encontrar alguma obra que lhe falasse da flora dos trópicos.

A estante onde estavam as obras que tratavam de botânica continha livros que prestavam alguns esclarecimentos; mas todos esses livros datavam de uma época em que os sábios muito pouco se ocupavam da toxicologia vegetal dos climas quentes. Numa palavra, os diversos tratados que a irmã de Joana folheou não eram moda.

Como procurar obter livros mais modernos?

Como rapariga resoluta que era, Renée não hesitou e foi direita ao fim.

— Meu querido Raul, disse ela ao almoço, imagine que me apaixonei pelas maravilhas da horticultura, e que há alguns dias sou eu a única que apareço na estufa onde poucas vezes pões os pés...

— São coisas tão bela as flores! exclamou Joana. Deves-te lembrar que desde criança tenho mostrado gostar delas!... Mas gosto mais delas ao ar livre, expostas aos raios vivificantes do sol, do que encerradas nas vidraças de um jardim de inverno... Não és da minha opinião?

— Não, querida irmã... redarguiu Renée.

— Então por que?

— Porque as plantas da estufa vindo de longínquas regiões, falam à minha imaginação exaltada de uma maneira viva pelo estranho de suas formas e das suas folhas, pela vivacidade das suas cores, pelo extravagante dos seus aromas.

— Compreendo isso... disse o Conde.

— Mas, continuou Renée, admirar não basta... Tenho sede de saber; enfim (e deve esta prevenção parecer-lhe ridícula), desejava tornar-me sábia... no gênero botânica, bem entendido.

— Quem lho proíbe, querida mana? A botânica é uma ciência muito bonita e propriamente feminina. Estude.

— Pois é exatamente o que desejo... Mas...

— Ah! disse Raul sorrindo, há um mas...

— Que mas é?

— Para estudar preciso livros...

— Há-os na biblioteca.

— Os precisos faltam completamente... Achei muitos, mas tão velhos como o mundo. Estes especialistas do passado nada dizer a respeito das soberbas flores que povoam as suas estufas... Ser-me-iam precisos livros modernos.

— Só isso?... Vou escrever hoje para Paris, e prometo-lhe antes de três dias uma coleção completa de bons autores contemporâneos, (cujos nomes ignoro) que tratam da importante questão das flores tropicais... É isto o que desejas, não é, querida mana?...

— Exatamente... Obrigada, mano...

O senhor de Gordes cumpriu a palavra.

Ao terceiro dia foi um carro buscar à gare de Orleans uma caixa de livros que acabava de chegar para o Conde.

A caixa compunha-se de vinte volumes grandes e caros.

Cada volume continha um grande número de gravuras coloridas a mão, com um verdadeiro talento.

Renée não ocultou o seu entusiasmo ao reconhecer os retratos fiéis de todas as flores que desabrochavam nos jardins de inverno.

Também lá encontrou os arbustos e as plantas de diversa natureza, e cada figura acompanhada de uma notícia explicativa muito minuciosa e bem estudada.

A jovem nunca suspeitara até então que houvesse coisa tão completa.

Daí para o futuro, poderia seguir a passo firme o caminho cujo fim conhecemos.

Entregou-se ao estudo com um tal ardor que Raul e Joana julgaram a princípio algum capricho, cuja febril intensidade iria enfraquecendo, mas o ardor persistia. Renée trabalhava todos os dias, ora nas estufas, ora no quarto, e às vezes até alta noite.

— Receio que ela adoeça, dizia Joana ao marido.

— É preciso deixá-la... respondia o Conde. A nossa mana precisa ocupar o espírito... o estudo serve de lenitivo à sua muita atividade não empregada... Quando se cansar, ela parará.

O cansaço pareceu vir ao Sim de três dias.

Uma manhã Renée fechou os belos livros de imagens, e nem nesse dia, nem no seguinte, nem no outro, pôs os pés na biblioteca, nem no jardim de inverno.

— Então, e a ciência? perguntou-lhe Raul sorrindo.

— Dei a minha demissão de sábia... redarguiu a jovem sorrindo. Renuncio ao instituto e recomeço as minhas funções de superintendente da casa da muito alta e poderosa Joana Leroux, Condessa de Gordes.

Efetivamente voltou a ser o que era antes da leitura do artigo do Fígaro.

Foi nesta época que proferiu as singulares palavras repetidas pelo Conde a Lazarine, e que provocaram o espanto e a incredulidade desta.

— Como passaremos sem a sua companhia, queridinha irmã! dizia Raul, no dia em que se casar, que vácuo se fará nesta casa!

Ela respondeu com um sorriso um pouco triste:

— Sossegue, mano, o vácuo não existirá. Não me casarei.

— Por que?

— É esse o meu segredo.

— Não posso sabê-lo?

— Não.

— E se eu insistisse?

— Fá-lo-ia debalde... Ninguém saberá esse segredo, e o senhor menos que qualquer outra pessoa.

 

UM MAU SINTOMA

Joana, sabemo-lo, era uma andarilha intrépida. Todas as manhãs antes de almoçar, salvo se o tempo estava muito mau, dava grandes passeios pelos arredores de Gordes, como noutro tempo em Vertes-Feuilles, para ir visitar os seus doentes, e levar grandes esmolas aos pobres.

Nunca se servia para estas visitas de caridade das carruagens do palácio, nem do seu dockar, puxado por dois lindos poneys sardos que ela tanto gostava de guiar com as suas formosas e delicadas 'mãos.

— Pensa, meu querido Raul, redarguiu ela, que os meus protegidos são muito pobres. A sua miséria obriga-me à simplicidade... Diante daquela pobre gente a quem falta o necessário, coraria ao ostentar o luxo que a sua fortuna me permite apresentar.

Tão tocante resposta não podia ser discutida.

O senhor de Gordes abraçou a meiga criança, a quem adorava, e calou-se.

Renée, dissemo-lo, tinha por costume acompanhar Joana, e fazer-lhe boa companhia.

Uma manhã, quinze dias aproximadamente depois daquele em que a segunda filha de Júlio Leroux disse estar cansada dos seus estudos de botânica, a Condessinha e sua irmã acharam-se a três quilômetros de Gordes na choupana de um rachador cuja mulher acabava de dar à luz.

Joana forneceu o enxoval, deu o dinheiro necessário para socorrer a todas as necessidades, e disse essas boas palavras que são para as almas doloridas, o que os tônicos e os fortificantes são para os corpos enfraquecidos.

As duas jovens iam partir e encaminhavam-se para a porta, seguidas pelas bênçãos e ações de graças da pobre família.

Joana parando de repente, pegou no braço de Renée.

— Que tens? perguntou esta última, cujo tom de voz denotava surpresa e inquietação.

— Não sei... respondeu a condessinha. É muito singular, imagina tu! Parece que me falta o chão debaixo dos pés e que vou cair... Por isso me seguro a ti...

— E isso continua?

— Sim... não me sustinha em pé se tu não me servisses de amparo.

— Um des falecimento com certeza...

— Assim o creio... Andamos muito depressa e faz calor.

— Seria preciso assentar...

O rachador foi logo buscar um banco, sobre o qual Joana antes se deixou cair do que se assentou.

Ao fim de um instante, Renée redarguiu:

— Já passou?

— Não... o banco vacila... as paredes oscilam... lembro-me de ter experimentado sensação igual no vapor entre o Havre e Tronville, num dia em que o mar estava muito picado.

— Essa sensação é muito dolorosa, querida mana?

— Não... é incômoda e mais nada... Tenho sede... desejava beber...

O rachador, mudo mas atento, não deu a Joana o tempo para exprimir duas vezes o desejo.

Lavou prontamente um desses copos ordinários, tão grossos que se não quebram quando caem, e encheu-o de água cristalina e (pormenor que provava a infinita delicadeza do pobre homem) apresentou-o num prato.

Joana pegou no copo; a mão tremeu ao levá-lo aos lábios.

— Uff! disse ela levantando-se. Esta água tão fresca é um remédio maravilhoso que me reanimou, como que por milagre... Obrigada, Antônio... já estou boa, e é a ti que o devo... Até mais ver... Vem, Renée... são horas de ir almoçar... É preciso não fazer esperar Raul...

— Então já te passou o incômodo?

— Já se dissipou de todo.

— As paredes já se conservam no seu lugar, e o terreno é mais sólido?

— Iria a Orleans a pé, redarguiu a Condessa rindo.

— Vamos, graças a Deus, não foi coisa de gravidade.

— Quer dizer, não valeu nada... Ah! deixa-me fazer-te uma recomendação...

— Qual é?...

— Nem uma palavra a Raul.

— Por que?

— Ama-me tanto que se inquietaria, e bem vês que seria menos justa a sua inquietação.

— Fica descansada... Nada direi, visto que o queres. As duas irmãs chegaram a Gordes sem estorvo.

Joana tinha andado desembaraçadamente com o seu passo habitual, e não se sentia fatigada.

O Conde esperava-as no parque, à sombra de uma tílias, próximo da grade que dava para o campo.

— Queridas esposa e mana, disse ele sejam benvindas... Vêm de longe?...

— Da choupana de Antônio, no bosque de Sauzi... respondeu Joana.

— Seis quilômetros em ida e volta... é soberbo!...

— Oh! andamos ainda mais...

— Que belos soldados seriam!. Fazem falta no exército! As maiores marchas na sua companhia seriam brincos de criança! Galantinha, montaremos logo a cavalo?

— É o que desejo, e iremos até ao fim do mundo... as pernas finas do meu poney Dick sabem andar ainda mais do que as minhas...

As lições de equitação tinham continuado, e Joana tornara-se uma bela cavaleira.

— A senhora vem conosco, Renée, não é verdade? redarguiu o senhor de Gordes.

A jovem abanou a cabeça.

— Não... redarguiu ela, tenciono escrever ao pai, que não nos dá notícias suas, e darão sem mim um longo e encantador passeio.

O passeio não devia ter lugar.

Em meio do almoço a Condessinha, tão alegre como de costume, e mais ainda talvez, porque uma espécie de excitação febril a fazia conversar muito e rir quase sem motivo, deu de repente um pequeno grito.

O copo em que pegara caiu-lhe das mãos, despedaçou-se na mesa, e ela ficou hirta, um pouco pálida e o olhar fixo.

— Joana, querida Joana, exclamou Raul levantando-se logo, que tens... Que sofres?

E ela não respondeu.

Renée tinha ajoelhado junto dela e apertava-lhe as mãos.

O Conde repetiu a pergunta.

Joana balbuciou:

— Não sofro... não sinto nada... parece que já não tenho corpo... Não sinto as mãos de Renée a tocarem as minhas... Vejo grandes discos luminosos que voltejam como os grandes sóis de um fogo de artifício... Ouço a tua voz, mas parece-me vir de muito longe... e no entanto tu estás aí, a meu lado... é muito singular tudo isto!...

— Por tal forma singular, disse Renée, que apesar da minha promessa é preciso que eu fale.

— Não... não... disse a Condessa. Cala-te... peço-te...

— Oh! Meu Deus, exclamou o Conde muito assustado, que há? Que me ocultam?

— Nada de assustador... respondeu a jovem, mas enfim é necessário que tudo saiba. Esta manhã, na cabana de Antônio, a nossa querida Joana, experimentou impressão quase igual à de agora.

— Mas, disse o Conde cheio de mágoa, é preciso um médico.., é preciso e sem perda de tempo, corro já a ir buscá-lo.

Joana, por meio de um violento esforço, recuperou a faculdade de se mover, que parecia tê-la momentaneamente abandonado.

Apoiou a mão no ombro do marido, e com uma voz suplicante balbuciou:

— Não chames médico... peço-te, Raul, se me amas, não chames médico...

— Contudo... ponderou o Conde.

— Demais, continuou Joana interrompendo-o; isto não é nada... já passou... os grandes discos de fogo dissiparam-se, e começo a sentir desentorpecerem-se-me os membros...

— Realmente, queridinha? tu não dizes isso para me tranqüilizar?

— Vais ver...

Joana levantou-se recusando a ajuda do marido, e caminhou, não sem custo, cambaleando um pouco, como se os nervos e os músculos das pernas estivessem frouxos.

Todavia, depois de dar alguns passos, aquela estranha sensação de abatimento dissipou-se, e já quase senhora de si voltou-se a sentar-se.

— Pois bem! querida filha, já vi... disse Raul. Com certeza tu estás melhor e eu estou menos inquieto, mas porque me proíbes.que mande chamar um médico que me tranqüilizaria de todo...

— Porque não o quero, e conjure-te a não insistires... redarguiu a condessinha no mesmo tom de voz suplicante.

— Seja... disse o Conde, pesaroso, mas enfim, não há perigo na demora, e veremos mais tarde.

— Isso mesmo... veremos mais tarde, redarguiu Joana vivamente.

— Queres subir para o teu quarto e meteres-te na cama?

— Ah! não. Estou eu porventura doente para me deitar?... recostar-me-ei numa chaise-longue, na sala, ao pé de uma janela aberta, e descansarei um bocado, porque é preciso que o confesse, quis fazer de forte, e o passeio desta manhã fatigou-me muito, e eis a única causa do alarme, absurdo, que cometeram a imprudência, Renée e tu, de tomar como trágico... Quanto ao nosso passeio a cavalo, creio que é prudente não pensar mais nele hoje.

Cinco minutos depois, a senhora de Gordes sentada, ou antes meio deitada, como tinha desejado, numa ampla chaise-longue, sorria para o marido e para a irmã e declarava estar perfeitamente bem.

— Cometi uma falta, dizia de si para si Renée, respondendo ao sorriso de Joana por um sorriso igual, a dose foi muito forte... os fenômenos que ela originava poderiam parecer suspeitos... Isto me servirá de lição. É preciso ir pouco a pouco para dar golpe certeiro. De dia Joana passou bem, e de noite esteve sossegada. Nenhuma crise semelhante àquela que descrevemos se manifestou.

No dia seguinte Joana apenas tinha uma grande fraqueza, fraqueza persistente que não desapareceu completamente senão ao fim de alguns dias.

Lazarine e Júlio Leroux, uma em la Tour-du-Roy, e outro em Paris, foram informados da doença passageira da senhora de Gordes e da sua cura completa na aparência.

Por que motivo a Condessa, quando Raul falava do seu desejo de chamar um médico (desejo tão natural e legítimo), opunha uma resistência obstinada, inverossímil, que não era própria do seu caráter dócil e submisso, e que coisa nenhuma parecia justificar?

Os nossos leitores adivinharam já o enigma.

Havia no mundo um só médico em quem Joana depositasse uma confiança ilimitada. Era o doutor Máximo Giraud.

Ora, Máximo Giraud, sabemo-lo, tinha recusado ir ao palácio de Gordes...

 

AGRAVARAM-SE OS SINTOMAS

Decorreram algumas semanas.

Tudo parecia ir do melhor modo possível. A Condessa tinha readquirido a sua habitual vivacidade. As inquietações de Raul haviam desaparecido.

À força de querer descobrir a causa das duas crises por que passara a sua querida Joana, o Conde chegava a acusar-se a si mesmo e a persuadir-se de que a sua ternura muito viva e expansiva tinha perturbado o organismo nervoso de uma esposa tão nova.

Em conseqüência disso, mostrava uma abnegação sobrehumana, e renunciando, por algum tempo, a partilhar todas as noites do quarto conjugai, resolveu ocupar o seu quarto particular, muito próximo do de Joana.

Para evitar o isolamento à senhora de Gordes, abria-se todas as noites a porta que punha em comunicação o seu quarto de toilette com o de Renée.

A Condessa podia, assim, em caso de necessidade, chamar sua. irmã, e esta, toda a noite, tinha um livre acesso junto de Joana.

Desde a sua entrada no palácio, Genoveva se não se tornara uma criada grave da fidalguinha, era pelo menos uma criada muito suficiente para uma ama de gostos tão simples como a sua.

O seu zelo infatigável e a sua natural inteligência compensavam a falta de hábito. O ardente desejo de agradar à senhora de Gordes tornara-a desembaraçada. Lastimava-se de estar desocupada, fazendo ela só mais trabalho do que as outras duas mulheres que serviam a casa.

Ao depor os seus fatos de aldeã, mudara também de costumes.

O seu vestido de lã escura muito liso, mas bem talhado, os seus abundantes cabelos, separados na testa em dois bem feitos bandos, a sua touca branca, davam-lhe uma aparência agradável e mesmo uma espécie de elegância. A alegre gratidão que transbordava em seu coração remoçara-a dez anos.

Tinha por costume entrar todas as manhãs, às seis horas, no quarto da ama.

Abria as persianas e colocava perto do leito o vestido de linho ou de casimira, e as botinhas de grossas solas destinadas aos passeios de caridade antes do almoço.

Uma manhã, Genoveva transpôs o limiar, mas era pela segunda vez que o fazia naquele dia, e ia pé ante pé.

Joana estava com a cara voltada para o espaço entre a parede e a cama.

À hulha dos pés pisando o macio tapete, ergueu-se lentamente.

— Que horas são, boa Genoveva? perguntou ela.

Ao fazer esta pergunta, a sua voz estava tão mudada que a criada estremeceu, e em lugar de ir abrir a janela, correu direita ao leito.

Mas as persianas ainda fechadas tornavam o quarto muito sombrio.

Naquela meia sombra que as cortinas de seda azul tornavam menos transparente ainda, Genoveva não viu senão uma forma branca confundindo-se com a alvura dos lençóis.

— Senhora Condessa, respondeu ela, deram oito horas há cinco minutos...

— Oito horas! repetiu Joana, como é tarde!... Não poderei sair esta manhã!... Por que não veio às horas do costume, minha filha?...

—Vim... mas a senhora Condessa dormia tão plàcidamente, que não me atrevi a acordá-la... Fiz mal?

— Não sei... tenho a cabeça um pouco pesada...

— A senhora quer dormir ainda?

— Não! seria demasiada preguiça! Dá claridade ao quarto, boa Genoveva... Esta noite persistente é realmente triste...

A criada obedeceu.

Abriu as janelas e endireitou as tabuinhas das persianas. O sol radiante, erguendo-se no horizonte por sobre a copa das árvores do parque, lançou no quarto uma onda de luz. Joana balbuciou:

— Depressa!... fecha depressa... Esta luz deslumbrante faz-me mal...

— Por que motivo a senhora de Gordes acolhia assim o sol, o seu amigo íntimo, o companheiro dos seus longos passeios?...

Que sucedia pois?

Genoveva deixou cair as cortinas sobre as vidraças, esfumando assim a luz forte, em seguida voltou para junto do leito, e um espanto doloroso se lhe notou na fisionomia.

O meigo rosto da condessinha estava tão transtornado como a sua voz.

As cores rosadas da sua epiderme transparente tinham cedido lugar àquela palidez que dá à carne a aparência de cera.

Um círculo azulado lhe rodeava as pálpebras.

Tinha os lábios tão pálidos como as faces, e as pupilas muito dilatadas.

Pela auréola de ouro que lhe formavam os cabelos soltos em volta da cabeça, Joana assemelhava-se àquelas virgens pintadas por Cimabué ou Giotto, e a quem o tempo roubou o brilho das cores.

A criada grave não queria por modo algum causar inquietações à sua jovem ama.

Não pôde contudo deixar de lhe perguntar:

— A senhora Condessa está incomodada?

— Por que é essa pergunta, boa Genoveva? disse Joana por seu turno. Pareço então doente esta manhã?

— A senhora está mais pálida do que de costume...

— Passei mal a noite... Eram quase quatro horas quando adormeci... Foi mesmo por isso que o meu sono se prolongou até tão tarde...

— A senhora Condessa conhece as causas da sua insônia?...

— Conheço-as, mas explico porque se dão em mim... Sabe o que são alucinações, Genoveva?

— Não, minha senhora...

— Eu também não o sabia, e foi por sua causa que o fiquei sabendo... disse Joana sorrindo.

— Por minha causa! repetiu a criada muito estupefata.

— Sim, e eis como: Era no fim da sua doença... Tinha cometido uma imprudência querendo levantar-se muito cedo, e recaiu... Estava estendida na cama, febril, e com os olhos muito abertos.. Não dava nem pela minha presença, nem pela do doutor Giraud, mas julgava ver na sua presença, de encontro a parede, figuras que ninguém via, e que não existiam... As suas mãos agitavam-se de espaço a espaço, como que para repelir qualquer coisa que lhe fazia medo, e murmurava a meia voz palavras sem nexo, incompreensíveis.

Perguntei a Máximo: Que é que tem a nossa pobre Genoveva? Ele respondeu-me: Tem alucinações...

— Mas, senhora Condessa, disse Genoveva, era o delírio da febre... Exatamente... o delírio quando toma certo caráter, denomina-se alucinação.

— E a senhora teve-as esta noite?...

— Sim.

— A senhora tinha febre?

— Creio que sim... Estava ora ardente, ora gelada...

— A senhora lembra-se do que viu, ou antes do que julgou ver?...

— Não... é coisa confusa, isso dissipa-se... Lembro-me só de que estava muito triste, muito horrorizada, e que me sentia sob a influência de uma desgraça... Era tão dolorosa a impressão, que um suor frio me corria ao longo das faces... Apalpa os meus cabelos boa Genoveva... estão molhados...

— E agora, minha senhora, a impressão?...

— Desapareceu... dissipou-se como um sonho. Já não resta coisa alguma... v

— Deus seja louvado!

Exatamente naquele momento ouviu-se bulha no gabinete de toilette, e Renée apareceu completamente vestida.

— Como, querida preguiçosa, exclamou ela rindo, ainda na cama! E o nosso passeio cotidiano? Por que capricho, ou por que acaso tu sempre de pé antes da aurora, tu que acordas com os passarinhos, dormes a manhã na cama?

E Renée, assim falando, abraçara Joana, que respondeu:

— Perdoa-me, querida mana, não é culpa minha. Dormi tão mal que acordei tarde.

Renée prosseguiu:

— Por duas ou três vezes, durante a noite, ouvi a tua voz, a quem falavas tu?

— A ninguém.

— Como?

— Tinha alguma febre e delirava.

— Febre, queridinha!... Era preciso que me chamasses... Julguei que Raul estava contigo, e a sua presença possível e natural, tornava a minha inconveniente... se não fosse isso teria corrido a ver.

— Estás bem certa de não ter vindo? perguntou a senhora de Gordes.

— Como, se estou certa? repetiu a jovem. Que singular pergunta!...

— É que, prosseguiu Joana, creio lembrar-me... Num certo momento pareceu-me ver-te imóvel, de penteador branco, no vão escuro limitado pelas ombreiras da porta... Olhavas para mim... Queria falar-te... fiz um esforço... não pude...

— Querida maninha, foi sonho...

— Sim... continuou a Condessa, ou então uma alucinação como as mais... Esta porém não se dissipou... Julgo ver-te ainda... A expressão do teu olhar persegue-me... era estranho, aquele olhar... não pareciam ser os teus olhos...

Renée abraçou Joana de novo e murmurou:

— Louca visão, produzida pela febre que te atormenta...

— Com certeza, visto que não saíste do quarto... disse a jovem com toda a candura.

E dirigindo-se a Genoveva, continuou:

— Agora é preciso vestir-me imediatamente... O senhor de Gordes imaginaria que estou doente se soubesse que estava de cama a tais horas da manhã.

— Sentes-te com forças? perguntou Renée.

— Devo sentir como de costume, redarguiu Joana sorrindo. Não é uma noite má que pode abater-me... Genoveva dá-me o penteador...

A condessinha sentada à borda da cama, meteu os elegantes pés, não em chapins de vidro como a sua homônima, a Gata Borralheira, mas em chinelas de cetim azul bordadas de prata.

Quis, em seguida, pôr-se de pé para enfiar as mangas do vestido de casimira branca apertado na cintura por um cordão de seda azul, mas com grande surpresa sua, e grande espanto de Genoveva, cambaleou e foi-lhe preciso sentar-se.

Ao mesmo tempo aumentava aquela palidez mate de que falamos, e o círculo azul traçado nas pálpebras mais distinto se tornava.

— Joana, querida Joana, balbuciou Renée, que é isso? Sofres? A senhora de Gordes não respondeu.

O seu corpo encantador encurvou-se, e ela caiu para trás. Os olhos fecharam-se-lhe; tinha perdido os sentidos.

Renée e Genoveva deram um grito, e sem se demorarem com palavras inúteis, puseram todo o seu zelo e o máximo cuidado em socorrer Joana.

Ao passo que uma lhe molhava as fontes com água, a outra chegava-lhe ao nariz e fazia-a aspirar um frasco de sais ingleses.

Ao fim de alguns momentos, a jovem fez um movimento, deu um suspiro, abriu os olhos e sorriu.

O desmaio tinha passado

— Querida mana, murmurou Renée beijando-lhe as mãos, diz-me depressa que está melhor.

— É singular... há pouco parecia-me que morria... e contudo não estou doente...

 

UM MAU SONHO

Uma hora depois desta crise a condessinha recobrou forças; pôde vestir-se, saiu do quarto, e desceu à sala, onde encontrou Raul, que por causa de uma visita às suas propriedades se tinha afastado do castelo ao romper do dia.

As melhorias de Joana eram só aparentes, e o mal desconhecido de que estava atacada, apenas lhe concedia uma curta trégua.

O mal, finalmente, não parecia de natureza a inspirar sérios cuidados, e na manhã seguinte, o senhor de Gordes fazendo a Lazarine uma visita à qual assistimos, descrevia de um modo muito claro o estado da sua adorada mulher:

— A pobre criança, cuja forte natureza e infatigável vivacidade conhece, dizia ele, tomou-se de repente de fraqueza, como uma convalescente após longa doença... O seu sono agitado não a deixa descansar. Tem fastio. Bruscos estremecimentos de frio têm lugar após súbitos acessos de calor, mas graças ao céu, não sofre muito, e o seu estado sente-se mais da debilidade, do que das dores.

As coisas correram assim durante quase um mês, com alternativas de energia reconquistada e de prostração completa; as forças diminuíram insensivelmente de dia para dia; as insônias tornaram-se mais longas, e o fastio mais pronunciado.

Joana não se queixava, sorria sempre, e o seu angélico caráter não se desmentia um minuto.

Ela podia andar ainda encostada ao braço do marido, e quando no fim de um dia muito quente, o sol declinava no horizonte, dava um passeio de um quarto de hora por diante do castelo, entre a relva e as flores, desoprimindo na atmosfera tépida da tarde o peito opresso por uma constante sensação de frio.

Havia uma semana que todas as noites se estabelecia uma cama volante para Genoveva na saleta contígua ao quarto de dormir, cuja porta ficava entreaberta.

À vezes, pelo meio da noite, a senhora de Gordes acordava com muita sede.

Não tinha mais que fazer senão tocar num timbre colocado ao alcance da mão; Genoveva corria logo, tirava de um refrigerante uma garrafa e apresentava à senhora de Gordes um copo de limonada gelada, única bebida que saciava a sede da doente.

Renée opusera-se com todo o empenho àquela resolução.

— Para que é preciso uma criada no quarto de minha irmã? dizia ela. Sou eu incapaz de velar pela minha muito amada?... Receiam perturbar o meu sono, e não se compreende quanto é leve esse sono, e como está sendo interrompido ao saber que existe perto de mim aquela criança despedaçada pela insônia?...

— Sucumbirias à fadiga, boa Renée... tinha respondido a condessinha, estou muito reconhecida à tua dedicação, mas não a aceito toda. Genoveva também muito me ama e quer dedicar-se... Concedo-lhe a sua parte...

Uma noite, acabavam de dar duas horas no relógio do palácio, Joana soltou um grito agudo, o grito de uma mulher que vê erguido sobre si o punhal de um assassino.

Genoveva acordada em sobressalto levantou-se da cama, e descalça, correu para o quarto.

Renée, em camisa e com os cabelos soltos, apareceu quase ao mesmo tempo.

A luz de uma lamparina colocada num globo de alabastro, espalhava no quarto um clarão indeciso.

As duas mulheres correram para a cama.

Sob as pesadas cortinas de brocatel azul estava Joana acocorada, com os olhos abertos e fixos, e o corpo agitado por uma grande convulsão.

Ela já não gritava, mas dos lábios trêmulos soltavam-se-lhe surdos lamentos.

As suas mãos estendidas para a frente faziam um gesto sempre o mesmo. Parece que se esforçavam por afastar alguma coisa assustadora...

Joana, com certeza, não via Renée e Genoveva inclinadas para ela, nem suspeitava mesmo da sua presença.

— Que tens, querida mana? perguntou Renée.

— Que lhe aconteceu, minha senhora? ajuntou Genoveva.

Ao ouvir aquelas duas vozes a senhora de Gordes estremeceu, passou as duas mãos pela testa como se faz no teatro para manifestar a loucura nascente, e balbuciou:

— Defendam-me... salvem-me!...

— Defender-te? Contra quem, minha querida? repetiu vivamente Renée. Que perigo te ameaça?

— Luz... prosseguiu Joana, acendam as velas; em nome do céu! eles terão medo e salvar-me-ei...

— Salva de que, queridinha? continuou a segunda filha de Júlio Leroux, encostando ao seu peito a cabeça da irmã e acariciando-a muito meigamente.

Genoveva em lugar de interrogar, obedecia.

Em poucos segundos acendeu as vinte velas de cera fina, ornadas de açucenas de ouro, espetadas em candelabros à Luis XVI, de azul de Sevres.

Uma viva luz inundou o quarto.

Joana levantou a cabeça e volveu em redor de si um olhar indeciso e( quase assustador.

A expressão do profundo terror que se lhe notava no rosto desapareceu gradualmente, mas a convulsão continuou por alguns minutos ainda.

A luz estava deslumbrante.

A senhora de Gordes deu um grande suspiro, não de dor, mas de alívio, e deitando os braços em roda do pescoço de Renée, descansou a face no ombro da irmã.

— Eles partiram... disse ela com um voz muito lenta e quase sem entonação, e contudo não era um sonho... Eu tinha os olhos abertos quando entraste, não é verdade?

— Sim, galantinha, abertos e fixos... redarguiu Renée. Estava na tua frente, muito perto de ti, e parecias não me ver...

— Eu só via a eles...

— Eles? ainda uma vez, mas quem?

Joana concentrou-se durante ainda alguns segundos numa profunda meditação, em seguida com a sua mesma voz monótona continuou:

— As alucinações... sempre... mais terríveis ainda... mais assustadoras. Gelaram-me o sangue... Aquece-me...

Renée abraçou a irmã e chegou-a a si, ao passo que Genoveva lançava um chalé da índia nos ombros inteiriçados da jovem Condessa, cujos lábios se abriam num pálido sorriso murmurando:

— Estou melhor... estou boa... já não sinto o frio mortal que me fazia bater os dentes... Se soubesses que medo eu tive...

— Mas o que te causava tanto susto?

— A visão que todas as noites me persegue, e que se dissipa, quando a aurora rompe... Mas desta vez coisa nenhuma desapareceu, e tudo é distinto, e vou dizer-te tudo...

— Sim, fala querida... fala depressa... Conta-me o que foi essa visão funesta, e procuraremos juntas evitar que te acometa de novo...

E Renée beijava os cabelos úmidos da irmã. Joana começou:

— Imagina tu que era dia claro, eu já me tinha levantado e saído do quarto, achava-me sentada ao fundo do parque, naquele banco rústico em que me sento muitas vezes, à borda do lago cheio de cisnes que vêm até junto dos meus pés comer as migalhas de bolo... Raul inclinado para mim, tinha as minhas mãos entre as dele... Tu lá estavas... o pai e Lazarine também... Nunca tinha visto o céu tão puro, nem o sol tão radiante... Rebrilhava a superfície do lago... Parecia um espelho de prata...

Os passarinhos gorjeavam formando como que um concerto... As flores exalavam tão suaves perfumes, que eu sentia como que uma espécie de embriaguez respirando o ar embalsamado... Enfim, sentia-me muito feliz... Joana interrompeu-se.

— Sonho ou alucinação, o quadro era gracioso... murmurou Renée.

— Espera... De repente um espesso nevoeiro, que coisa nenhuma fazia pressentir, correu e ocultou o sol. O céu tornou-se mais sombrio do que em dezembro num dia de neve... Os pássaros emudeceram. fez-se um grande silêncio, e ouvi os sons lúgubres de uns sinos, como que para um ofício fúnebre... Perguntei a causa daquele toque lúgubre... Ninguém me respondeu... Olhei em redor de mim... Achei-me só... Admirei-me do meu abandono, e quis regressar ao palácio, porque começava a assustar-me...

Não pude andar... Os meus membros já não tinham forças para suporta o peso do meu corpo... Sentia os pés como que pregados ao solo, e muitos eram os esforços que fazia para os soltar...

"Ao passo que lutava debalde contra aquela espécie de paralisia, vi vir para o meu lado um longo cortejo silencioso. Homens e mulheres, vestidos de negro, rodeavam um ataúde que era conduzido para o cemitério, e cuja chegada se fazia anunciar por meio daqueles dobres fúnebres...

"Atrás do ataúde seguia Raul... Via-se-lhe no rosto o desespero que lhe ia na alma; grossas lágrimas caiam constantemente dos seus olhos e lhe inundavam as faces; sofria pelo ver triste, e dizia comigo: Quem, morreu? Por que m- chora ele assim?

"Neste momento, e como se a pergunta que dirigia a mim mesma fosse proferida em voz alta, os condutores pararam, os homens e as mulheres afastaram-se; uma mão ergueu o pano negro em que estava bordada uma cruz branca, e levantou a tampa do ataúde. Uma curiosidade arrasadora me impelia, apesar do meu terror, a lançar os olhos para aquele esquife aberto... E sabes tu, Renée, o que eu vi?...

A irmã de Joana abanou silenciosamente a cabeça.

"— Aquela que levaram para o cemitério, redarguiu a senhora de Gordes, aquela por quem Raul chorava tão amargamente, ouves, Renée, era eu!... Via-me estendida, inteiriçada, mais branca do que a mortalha em que me tinham encerrado, e contemplava estúpida-mente aquele cadáver que era o meu.

— Ah! murmurou Genoveva, é horrível...

— Esperem... repetiu a condessinha, esperem... ainda não é tudo! Muda, assustada, a tremer de medo, continuava olhando. Vi a minha imagem desvanecer-se, de algum modo fundir-se como uma figura de cera ao contato de uma fornalha. No fim de um instante tudo tinha desaparecido... o esquife estava vazio...

"Então todos os olhos se voltaram para mim, todas as mãos estendidas me apontaram, e ouvi uma voz em meio do silêncio.

"— Vejam, dizia a voz, a morta levantou-se; saiu do esquife, ei-la de pé, à borda da estrada, como se fosse permitido aos mortos verem passar o seu préstito... Não devemos consentir tal! O coveiro abriu a cova, os sinos dobraram, o padre entoou o De profundis; tudo está conforme, entreguemos a finada à cova que a espera, encerremo-la de novo na sua mortalha, fechemos o ataúde e preguemo-lo desta vez tão bem de modo que ela não possa fugir-nos..."

"Apenas se extinguiu a voz, senti mãos geladas pousar nos meus ombros e agarrar-me pelos vestidos...

"Dei um grito de horror, desembaracei-me da turba que me rodeava e fugi.

"A gente que compunha o préstito arremessou-se em meu seguimento com grande grita... não me seguia, dava caça... Ela era a matilha... eu a peça de caça... Corria quanto mais podia, não parando nem me detendo por obstáculo algum, correndo sempre em frente, transpondo tudo como se eu tivesse asas.

"De espaço a espaço olhava para trás, julgando ter-me distanciado muito dos meus perseguidores... Mas. não! A matilha humana estava próxima... Ia distante dela apenas uma polegada, e o cansaço vencia-me...

"De repente vi-me cercada...

— Para o esquife a morta!... para o esquife!... clamaram as pessoas vestidas de negro que queriam deitar-me viva naquele mesmo ataúde onde tinha visto o meu cadáver inteiriçado.

"Lutei quanto pude... Fiz todas as diligências para repelir os meus carrascos... Ia ser vencida... Já o estava, quando tu e Genoveva entraram aqui... Sonho ou alucinação, a sua presença tudo dissipou, e a luz das velas expulsou os fantasmas.

"Que significa isto, Renée?... Compreendes, diz-mo, minha irmã? É um presságio funesto? Quem quererá que eu morra, e de antemão me abre a cova?"

 

O PERIGO

— Querida maninha, respondeu Renée abraçando Joana de novo, compreendo as tuas angústias, porque esse sonho ou essa alucinação (demos-lhe o nome que quiseres), era, com certeza, para gelar de espanto os corações mais intrépidos... mas é preciso não te preocupares de mais... Bem sabes que as fugazes visões da noite não servem de aviso, nem de presságios...

— Não, não sei... disse ela. Sou talvez supersticiosa, porque me torno fraca, mas dou fé a estas visões que Deus envia quando a alma está isolada do corpo, e olho-as como misteriosos avisos que convém não desprezar...

Renée encolhendo os ombros redarguiu:

— Vamos é loucura, ou antes é fraqueza... Não tem explicações os sonhos, nem os pesadelos, nem as fantasmagorias noturnas, ou pelo menos não se explicam senão pela febre que os faz nascer...

— Tu deves ter razão... redarguiu Joana. Mas esta alucinação terrível... por mais que faça... não posso deixar de encarar como um aviso...

— E contudo assim é...

— Esqueceu-se de que temos visto mais de uma vez realizarem-se os sonhos? Os livros sagrados oferecem numerosos exemplos.

— Exemplos que nada provam... Mesmo nos casos mais notáveis, porque no fim de contas não passa de uma simples coincidência, obra do acaso e nada mais...

— Renée... disse Joana juntando as mãos, tu blasfemas!... os livros santos afirmam!...

— E eu duvido... Que queres, minha queridinha, sou incrédula. Genoveva escutava avidamente as palavras trocadas entre Joana e sua irmã, mas os argumentos de Renée não lograram convencê-la.

Não podendo tomar parte na conversação, não podendo discutir sobretudo, guardava silêncio, e dizia de si para si na sua superstição ingênua:

— A menina Renée não acredita nos sonhos... Faz mal! Pois eu creio!... os sonhos nunca mentiram... É o bom Deus que os envia... Pobrezinha senhora, tão bela, tão boa e tão meiga, ameaçada de uma desgraça... Qual será? Está à beira de um precipício, bem o sinto. Paira sobre ela um perigo? É preciso que eu a salve.

A condessinha prostrada de fadiga, e animada pela presença de Renée e de Genoveva no seu quarto, descansou a cabeça no travesseiro, e adormeceu quase no mesmo instante com um tão profundo sono que durou até às nove horas da manhã.

Ela quis então levantar-se como de costume, a fim de comparecer ao almoço e não assustar Raul.

Mas naquele dia as suas forças traíram-na completamente. Foi-lhe impossível ter-se de pé, e tornou-se necessário prevenir o senhor de Gordes do que se passava.

Ele correu logo muito inquieto, e estremeceu ao ver os vestígios que a crise da noite precedente deixara no rosto de Joana.

Aquele meigo rosto parecia o de uma jovem mártir.

Raul disfarçou o seu pesar, e ocultou o seu terror, cuja causa a Condessa reconhecera fatalmente.

Ele interrogou, quis saber, e apesar das respostas evasivas de Joana e das reticências de Renée, conseguiu conhecer as particularidades que até àquela hora tinham podido ocultar-lhe, pelo menos, em parte.

Genoveva, sobretudo, não lhe ocultou coisa alguma.

— Querida mana, disse em voz baixa a Renée, deixe-me um momento só com Joana, peço-lhe. Quero saber dela alguma coisa.

Renée saiu do quarto e Genoveva seguiu-a. Raul sentou-se ao pé do leito.

A Condessa com o rosto meio velado pelos seus louros cabelos, sorria para ele.

Pegou-lhe nas mãozinhas muito descarnadas já, e levou-a aos lábios, em seguida sorrindo para obstar a que as lágrimas lhe afluíssem aos olhos, murmurou:

— Minha querida filha, queres-me causar muita pena? motivar-me um profundo desgosto?

— Ah! exclamou Joana, Deus me livre disso!

— Então não insistas por mais tempo nesse capricho insensato a que me tenho sujeitado fazendo tanto mal. Permite-me que traga aqui um médico.

— Achas então que eu estou muito mal? perguntou Joana vivamente.

— Ah! com certeza que não!

— Então?

— Não, tu não o estás, redarguiu Raul, mas podes vir a estar...

Estas insônias, essas alucinações, essa fraqueza, são conseqüências de um estado febril anormal, a que é preciso remediar sem demora porque poderia prolongar-se, causar graves transtornos...

— Se é preciso para o sossegar, meu senhor, volveu a Condessa, que se cumpra a sua vontade... Traga-me um médico, com uma condição...

— Qual é?

— Sempre a mesma, é que o médico há de ser o doutor Máximo Giraud.

O Conde franziu a testa.

— Queridinha, disse ele, esqueceste-te de que o doutor Giraud recusou formalmente vir ao palácio de Gordes?

— Não me esqueço... Máximo declinou os teus oferecimentos, convencido de que o seus cuidados me seriam inúteis (e naquela época tinha razão), mas se lhe fores dizer hoje:

"Madame de Gordes precisa do senhor! o doutor Giraud, responderá com certeza: Vou já! O teu amor próprio ferido por uma recusa, sofrerá talvez por teres de dar este passo.. É muito sacrifício que espero de ti... Fá-lo.

O Conde estava já de pé.

— Parto, disse simplesmente.

— Aonde vais?

— A Rancey.

— Hoje? exclamou Joana com uma espécie de espanto. Por que vais tão depressa? Não podes esperar para amanhã?

— Não esperarei nem mais um minuto! É preciso atalhar quanto antes esse mal não combatido. Se se realizarem as tuas previsões, daqui a três horas estarei dê volta com Máximo Giraud.

Raul abraçou a Condessa, chamou Genoveva e saiu do quarto.

Sem mesmo se sentar à mesa, tomou à pressa uma pequena refeição, enquanto metiam ao seu mais leve faeton os dois mais rápidos trotadores das suas cavalariças.

Ao fim de dez minutos preveniram-no de que tudo estava pronto.

Pôs o chapéu, calçou as luvas e saiu.

Renée estava, por acaso, no poial da escada.

— Aonde vai, mano? perguntou ela.

— Procurar um médico para a nossa querida Joana, maninha... respondeu ele.

— A Orleans?

— Não, a Rancey.

— Mas Rancey é uma aldeia, creio eu?...

— Sim, é uma aldeia...

— Há um médico nessa aldeia?...

— Sim. o doutor Giraud, em quem Joana tem a máxima confiança...

— Vá, mano, e volte depressa, trazendo a cura.

O Conde subiu para a carruagem, pegou nas rédeas, deu de mão, € os cavalos partiram numa velocidade de seis léguas por hora.

Renée seguiu com o olhar o faeton.

Quando passou a grade do parque abanou a cabeça, fez um gesto significativo e murmurou:

— Um médico de campo não há de ser perigoso.

Ao fim de uma hora, menos alguns minutos, Raul, tendo percorrido a distância que separa Gordes de Rancey, fazia parar os seus steppers, brancos de espuma, diante da casa do doutor, apeava-se do faeton e batia à porta.

A criadinha veio abrir.

— O senhor doutor entrou agora mesmo, vou acompanhá-lo ao seu gabinete.

Ao reconhecer o visitante, Máximo estremeceu.

— O senhor de Gordes!... exclamou ele.

— Sim, senhor, respondeu Raul, e a minha visita admira-o, não e verdade?

— Assusta-me...

— Quando há tempos vim, foi para lhe fazer uma proposta, que entendeu não dever aceitar, mas quando eu retirava, o senhor disse-me:

"Se, o que Deus não queira, a senhora Condessa adoecer um dia... doença grave a inspirar-lhe cuidado, faça-me prevenir... Ao primeiro chamado, correrei logo. Foram estas, creio eu, as suas próprias palavras..."

— E, disse Máximo possuído de grande agitação, a senhora Condessa está muito incomodada?

— Pois de contrário, estaria eu aqui?

O doutor empalideceu.

— Que doença é a sua? perguntou ele.

— Ignoro...

— Ao menos, quais os sintomas? Raul disse tudo o que sabia.

— Que pensa o médico habitual da senhora Condessa? redarguiu Máximo.

— Não tem querido consultar médico algum... Só confia no senhor... A sua inexplicável recusa de ir à nossa casa pungiu-a dolorosamente, devo convir, mas não alterou a confiança no senhor... Ela chama-o... Espera-o.

— Pode-me levar em sua companhia?

— Sim.

— Então, partamos...

Máximo tocou.

— Previna minha mãe, disse ele à criadinha, de que desejo falar-lhe.

A senhora Giraud veio logo.

— O senhor de Gordes, minha mãe, continuou o doutor. A senhora Condessa está doente, e faz-me a honra de me chamar... Eu acompanho o senhor de Gordes...

— Voltarás à noite, meu filho?...

— Assim o espero e desejo, porque é sinal de que a doença me parece não ter gravidade real, mas não posso afirmar nada. por enquanto.

— Vai, meu filho, e diz à senhora de Gordes que a profunda simpatia que lhe consagrava é sempre a mesma, e vou pedir por ela de todo o coração, e de toda a minha alma.

Máximo abraçou a mãe, a quem Raul cumprimentou respeitosamente, e os dois homens tomaram lugar no faeton...

Durante o trajeto efetuado com extrema rapidez pelos infatigáveis steppers, poucas foram as palavras que se trocaram entre o Conde e o doutor, e todas relativas ao estado da Condessa.

Chegaram.

Renée prevenida pelo rodar da carruagem, estava no poial no momento da chegada, como estivera no momento da partida.

Ela envolveu Máximo num longo olhar investigador.

— Como vai Joana? perguntou Raul.

— Melhor, creio eu... Está na sala.

— Na sala! repetiu o Conde estupefato.

— Sim... foi uma imprudência, bem o sei... mas não houve meio de a dissuadir. Joana quis descer... foi preciso levar a pobrezinha e deitá-la numa chaise-longue... Ao ouvir o rodar do trem, perguntou-me se o doutor vinha consigo... Respondi-lhe que sim... Deu um grito de alegria.

— Doutor, disse o Conde, venha depressa. A sua presença bastara talvez para curar a minha querida doente.

— Deus o queira! respondeu Máximo seguindo o senhor de Gordes.

 

O ESTADO DA DOENTE

Pela primeira vez na sua vida, Joana resolveu proceder naquele dia em perfeita harmonia com a sua vontade, não lhe importando com a vontade dos mais.

As instâncias de Renée pedindo-lhe para ficar deitada, ou pelo menos para não sair do quarto, encontraram irrevogável decisão em contrário.

E, não contente de descer à sala, a condessinha cuidou particularmente da sua toilette de doente.

— Para que é isso, querida mana? perguntou-lhe Renée. Para que serve essa inútil fadiga?...

Joana respondeu sorrindo:

— Bem sabes que sou um pouco coquete, e o doutor Máximo não me tem visto desde o meu casamento.

— Então.

— Então! é preciso que madame de Gordes não cause medo ao amigo de Joana Leroux. Tenho amor próprio por causa de Raul.

Quando o Conde e Máximo entraram na sala, a jovem doente, dizíamo-lo, estava recostada numa chaise-longue, ao pé da janela aberta.

Os seus admiráveis cabelos louros, puxados para cima e formando uma larga trança no alto da cabeça, coroavam o seu rosto pálido e encantador.

Um cinto de seda apertava-lhe em volta da cintura delgada o penteador de casimira azul celeste que envolvendo-a completamente, não deixava ver senão a extremidade das suas pequeninas chinelas da mesma cor do penteador.

Assim vestida, com o seu meigo rosto emagrecido, Joana mostrava ter apenas quinze anos, e parecia um anjo.

Em seus olhos rasgados brilhou a alegria quando Máximo transpôs o limiar com o senhor de Gordes.

— Querido doutor, exclamou ela, é o senhor!... Tinha a certeza de que Raul o trazia consigo, mas para o senhor vir, foi necessário que eu estivesse incomodada, e mal, muito mal... Enfim, veio, e perdôo-lhe de todo o coração. A sua boa mãe, passa bem, espero?

Ao mesmo tempo estendeu as suas mãos franzinas, uma a seu marido, a outra ao doutor.

De que modo exprimir o que Máximo experimentava naquele momento?

Há sensações de um tal poder, de uma intensidade tão prodigiosa, que muito perderiam do seu valor analisando-as.

O mancebo, profundamente comovido na presença daquela por quem a sua admiração muda, o seu imenso respeito faziam da sua alma um templo, e do seu coração um altar, andava como se anda em sonhos, e perdia a faculdade de pensar.

Estava mais pálido do que Joana, e foi quase sem ter consciência do que fazia, que pegou com mão trêmula na mão estendida para ele.

Uma espécie de névoa se estendia ante seus olhos; apenas a vira, perdera a sensibilidade.

Felizmente a noção do dever excedia tudo naquela natureza de rija tempera que bem podia fraquejar, mas que se erguia logo.

Joana estava talvez em perigo.

Era preciso combater o mal, e por muito grave que fosse, era preciso vencê-lo...

Só o médico estava no seu lugar no palácio de Gordes. O homem ardentemente apaixonado nunca transporia aquele limiar.

Máximo fez consigo aquelas considerações, e o dever repeliu bruscamente a prostração causada pelo amor.

Senhor de si, Máximo, um momento abatido, ergueu-se com toda a plenitude da sua força, da sua energia.

As névoas que lhe toldavam a vista dissiparam-se. Ele olhou, viu, e o seu coração experimentou a mais pungente dor que se pode experimentar.

É que um volver de olhos lançado para a meiga criança que lhe sorria e parecia esperar palavras amigas e animadoras, lhe mostrava um abismo.

Não se tratava, ai dele! de uma dessas indisposições passageiras de que alguns cuidados e pequenos medicamentos triunfam sem custo.

A senhora de Gordes estava em perigo.

Um mal estranho, espantoso, indefinível, atacava nas suas fontes mais ricas aquela existência tão forte e tão poderosa.

Máximo dizia estremecendo.

— Demorei-me muito! vim talvez muito tarde! Se ela morrer, tê-la-ei eu morto! Era preciso impor silêncio ao meu amor, sacrifico-me eu mesmo a cuidar dela. O mal combatido logo ao principio teria desaparecido há muito... Teria talvez obstado a que nascesse. Fui egoísta e covarde! Para evitar um sofrimento, cometi um crime! Pois bem! se não posso salvá-la, segui-la-ei pelo menos.

E a juntava:

— Mas com o auxílio de Deus, hei de salvá-la.

— Querido doutor, perguntou Joana um pouco admirada e quase inquieta, por ver o silêncio do médico, acha que estou muito mal?

Máximo estremeceu. Ter-se-ia ele traído pela expressão do seu rosto. Seria uma grande desgraça, porque convinha antes de tudo ocultar a Joana a gravidade do mal.

Uma pessoa que desanima é duplamente mais difícil de curar, porque a angústia moral exerce no estado físico uma influência direta e funesta.

Máximo impôs um tom de tranqüilidade à fisionomia e respondeu:

— Não, senhora Condessa, graças ao céu não a acho muito doente. Tem pouca febre, e espero que bastarão alguns dias para se restabelecer e poder ser o anjo bom daqui como o foi de Vertes-Feuilles.

— Aceito o cumprimento, querido doutor, disse Joana sorrindo, e aceito o augúrio também, porque, bem o sabe, sou muito ativa... e depois causa tanto desgosto a Raul e a Renée verem-me incomodada, e a boa Genoveva...

— Genoveva... repetiu Máximo.

— A nossa Genoveva, redarguiu a senhora de Gordes. Conhece-a bem... Aquela boa criatura deve-lhe a saúde. Foi à cabeceira do leito onde jazia, e onde, se não fosse o senhor, teria morrido, que nos encontramos pela primeira vez.

— E Genoveva está aqui?

— Som, doutor... Empreguei-a em meu serviço... É a minha primeira criada grave. Logo a verá. Não quero privá-la da alegria, numerosa para ela, de lhe testemunhar o seu reconhecimento.

— Eu também terei muito gosto em vê-la... é uma digna mulher. Mas ocupemo-nos de vossa excelência, minha senhora. Preciso conhecer como começaram os seus incômodos, e apesar do meu receio de a fatigar pedindo-lhe para falar muito detidamente, peço-lhe para me informar. Diga-me tudo... Não omita nada. Certos sintomas que lhe parecem insignificantes, podem ter sua importância aos olhos do médico.

Joana contou de um modo simples e rápido o que nós mesmos contamos.

— Basta-lhe isso, querido doutor? perguntou ela com um novo sorriso quando concluiu.

— Sim, senhora Condessa, perfeitamente.

— Então, podem dizer o que tenho...

— Muito bem.

— Diga-o depressa. Estou desejosa de saber o nome dá minha doença.

— Vossa excelência sofre um pequeno ataque de nevrose.

— O que é nevrose?

— Uma afecção do sistema nervoso.

— E cura-me?

— No mais breve espaço de tempo, assim o espero. E enquanto se não realiza a cura completa, animá-la-ei já.

— Como?

— Suprimindo já as insônias febris que são a conseqüência da sua doença; e que a agravam. As alucinações desaparecerão ao mesmo tempo.

— Ah! exclamou Joana, que ventura! As insônias eram um suplício. Por que meio as combaterá?

— Bastará uma simples poção. Há uma farmácia no palácio?

— Sim, e muito completa, disse o senhor de Gordes.

— Acharei por certo o que me é necessário. Quer, senhor Conde, dar ordem para me conduzirem lá.

— Eu mesmo o conduzirei, redarguiu Raul levantando-se.

— Volta já? perguntou Joana vivamente.

— Antes de um quarto de hora estaremos de volta, minha senhora.

— Vá, então. Mas, doutor, ainda não me respondeu à pergunta que lhe fiz a respeito de sua mãe. Dê-se as novas que lhe pedi.

— Minha mãe, passa bem, minha senhora, e eis o que ela me encarregou de lhe dizer: "Diz à senhora de Gordes que a profunda afeição que ela me inspira, continua sendo a mesma, e que vou pedir por ela... pedir do íntimo dalma..."

— Querida senhora Giraud! exclamou a condessinha juntando as mãos comovida. Oh! como eu também a amo!... Lembra-se, senhor Máximo, de uma merenda em sua casa? Como era bom aquele pão sovado!... e o creme, e a fruta! e as lindas rosas que o senhor me deu na ocasião da partida. Veja, não esqueci coisa alguma.

Ai dele! Máximo também não se havia esquecido...

Estas reflexões faziam-lhe um mal terrível. Ele sentia as lágrimas fluírem-lhe aos olhos a seu pesar.

— Estou às suas ordens, senhor Conde, disse dirigindo-se para a porta da sala a fim de se furtar à conversação.

Raul seguiu-o.

— Voltem depressa, repetiu Joana ao passo que os dois iam saindo.

A farmácia do palácio de Gordes, como as da maior parte das grandes habitações senhoriais (o que equivale a dizer caritativas), estava efetivamente bem provida.

Os numerosos armários de uma cozinha, ao pé da copa, estavam cheios de frascos e boiões.

Aqueles vasos com letreiros continham drogas e medicamentos Je todas as espécies, que a própria Joana distribuía aos pobres dos arredores, quando se apresentavam com receitas do médico.

Balanças pequenas, dois ou três almofarizes, e alguns outros objetos para as manipulações pouco complicadas carregavam uma mesa colocada no meio do quarto.

— Doutor, disse Raul fechando a porta da farmácia depois de ambos terem entrado, estamos sós, fale-me francamente... Há pouco disse a verdade a madame de Gordes?

Máximo abanou a cabeça.

— Não, senhor Conde, respondeu ele.

Raul empalideceu como o homem que recebe uma punhalada.

— Meus Deus! exclamou ele, é então muito grave o mal?

— É grave.

— Mas não sem remédio, contudo?

— Não sem remédio, assim o espero, e ouso dizer que quase conto com isso.

— Julgava que uma nevrose não fosse coisa de perigo.

— Não se trata de nevrose...

— Mas... balbuciou Raul, o senhor disse.

— Era preciso um nome verossímil, interrompeu Máximo, lembrei-me desse...

— De que doença sofre, pois, madame de Gordes?

— A estranheza da minha resposta lhe provará a sua sinceridade. De que doença sofre madame de Gordes, me pergunta o senhor? Não sei!...

 

UM ENIGMA

— O senhor não sabe? repetiu Raul.

— Não.

— Mas é impossível.

— Não, infelizmente não é impossível, repetiu Máximo Giraud. A profissão à qual me consagrei, parece-me entre todas bela e grandiosa, mas com a condição de ser isenta de charlatanismo. Pois bem, com risco de lhe inspirar diminuta estima pelo meu humilde saber, digo-lhe francamente que tudo me parece inexplicável no estado de madame de Gordes. Eu conhecia mademoiselle Joana antes do seu casamento, bem o sabe, e admirava a saúde florescente, a superabundante vitalidade daquela jovem. Ela nunca sofreu, nem física nem moralmente. Coisa nenhuma fazia presumir aquele estranho sofrimento a que dei o nome de nevrose, mas que não o é, posto que o sistema nervoso represente aí um papel muito ativo. Estou em face de um enigma. A mais espessa obscuridade envolve para mim a causa do mal, e a origem das crises noturnas que conduzem madame de Gordes a um definhamento que me espanta.

— Mas que o senhor combaterá... interrompeu o Conde.

— Sim com certeza, combatê-lo-ei. Mas é preciso ver o inimigo de frente para ter a probabilidade de o vencer, e no caso presente vejo-me obrigado a trabalhar às cegas...

— Faça luz!

— Oh! descanse! Tudo o que podem inspirar uma ilimitada boa vontade, e uma absoluta dedicação, fa-lo-ei. Acharei a palavra do enigma. Obrigarei a esfinge a confiar-me o segredo.

— Pelo trabalho, pelo exame, pelo estudo.

— Entende que o tempo urge?

— Afirmo-lhe sob minha palavra de honra, que se há perigo, de que desejaria ter de duvidar ainda, não é imediato. Acredite além disso que não perderei um minuto. A minha biblioteca, sem ser rica, contém ainda assim as obras principais dos mestres da ciência. É a reflexão, e sobretudo aos trabalhos imensos daqueles benfeitores da humanidade enferma que eu vou pedir a solução do problema que me confunde neste momento. Aqueles gigantes tudo observaram, tudo notaram, tudo descreveram. Interrogados piedosamente pelo mais humilde, mas também pelo mais fervoroso dos seus discípulos, não recusarão a resposta esperada.

— Deus o permita!

— Há de permiti-lo. Não me pareço com os meus colegas a quem o estudo conduz ao materialismo. Sem querer censurá-los, não os imito. Tenho fé. A senhora de Gordes é um anjo, e Deus não quererá arrancá-la à terra por onde passa semeando o bem. Daqui a uma hora há de fazer-me conduzir a Rancey. Hei de trabalhar toda a noite, e amanhã quando voltar, terei já talvez achado.

— Há de com certeza ter achado! exclamou Raul a quem Máximo Giraud, apesar da franqueza da sua confissão ou talvez mesmo por causa dessa franqueza, inspirava como a Joana uma confiança quase supersticiosa. Mas, continuou ele, prometeu a madame de Gordes dar-lhe um pronto alívio.

— Prometi que passaria sossegada a noite... vou cumprir a minha palavra.

O doutor deu uma volta pela farmácia olhando para os rótulos dos boiões e dos frascos.

— Vejo aqui tudo de que preciso para preparar uma poção calmante cujo efeito é certo.

— Madame de Gordes dormirá?

— Sim, com um profundo sono, e esse sono há de reparar-lhe, em parte, as forças perdidas pelas insônias.

— Será um grande passo dado para a cura? murmurou o Conde. Máximo abanou a cabeça.

— Não, disse ele, o sono fictício, obtido pelo emprego de narcóticos, não daria para o futuro senão resultados duvidosos e talvez comprometedores. Com o auxílio dos meios diretos é que se pode atacar o mal na sua origem, e só amanhã, se as minhas pesquisas forem bem sucedidas, poderei verdadeiramente obrar.

Enquanto falava, o doutor ia manipulando as drogas para preparar a benéfica beberagem. Ê interrompeu-se.

— Precisa de alguma coisa? perguntou Raul.

— Sim, precisava de água, e também do auxílio de uma pessoa de serviço.

— Vou chamar uma criada grave.

O senhor de Gordes abriu a porta da farmácia e disse:

— Muito bem, aqui está Genoveva.

Genoveva estava efetivamente no quarto vizinho, não se atrevendo a bater, mas esperando com uma impaciência febril o momento de exprimir a gratidão de que estava possuída, tanto pelo doutor, como pela Condessa.

Ela fê-lo com algumas frases comovidas, logo que o Conde a chamou, e custou muito a Máximo obstar a que lhe beijasse as mãos.

Aliviada por aquela explosão do seu reconhecimento, perguntou?

— E a senhora Condessa, a minha querida ama, não está doente com gravidade, não é verdade, senhor doutor?

— Não, boa Genoveva, respondeu o mancebo, mas durante algum tempo a senhora de Gordes terá necessidade de cuidados regulares. Será preciso dar-lhe colheres da poção em intervalos exatos, com uma regularidade matemática. Estimo saber que está aqui, porque tenho a firme crença de que se pode contar consigo.

— Oh! sim pode, senhor doutor! redarguiu Genoveva com simplicidade. Se é preciso passar todas as noites junto da senhora sem fechar os olhos, aqui estou. E tudo quanto fizer por ela será pouco. Daria á vida por ela.

— Como a amam! disse consigo Máximo, sentindo que Genoveva era profundamente sincera na expressão, ainda mesmo exaltada, da sua imensa dedicação. Eu também, Deus bem o sabe, desejaria morrer por ela! E poderia eu viver se ela morresse?

Um quarto de hora depois voltou à sala acompanhado pelo Conde.

— Então! querido doutor, perguntou Joana alegremente, traz-me essa famosa beberagem que me há de fazer dormir com um sono de bebê apenas descanse a cabeça no travesseiro, perseverando-me de sonhos aborrecidos?

— Aqui está, minha senhora... disse o médico mostrando â condessinha um frasco de regulares dimensões cheio de um líquido escuro e opaco. Previno-a de que é muito amargo.

— Ah! é o mesmo, contanto que o resultado desejado se realize, e sei que se realizará. Sabe a confiança que deposito em si, senhor Máximo. Aceitaria veneno da sua mão, a juntou ela rindo, e o veneno me curaria.

— Que entusiasmo querida mana, disse Renée.

— Já vi obras do doutor. Um milagre custa-lhe pouco. Logo que ele entra em casa de um doente está o doente salvo.

Renée replicou.

— Nesse caso, o senhor Máximo Giraud não é ambicioso... Que pode fazer na província? Em Paris depressa seria milionário!

O doutor sem responder, olhou para a jovem e disse de si para si:

— Dir-se-á que mademoiselle Leroux me é hostil, mas por que motivo?

Joana exclamou:

— Milionário! para que? Um milionário não pode dar senão o seu dinheiro! O doutor é muito mais rico... dá saúde e vida. Senhor Máximo, como se toma a poção?

— A começar às dez horas da noite, redarguiu Máximo, tomará de quarto em quarto de hora dez gotas numa colher de chá, até sentir pesar-lhe a cabeça e fecharem-se-lhe os olhos. Recomendo uma grande exatidão. Muito regularmente todos os quartos de hora, nem mais um minuto nem menos.

— Fique descansado, doutor, disse Renée, eu me encarrego. Eu é quem contarei e darei as gotas.

— Genoveva tem as minhas instruções, menina, continuou o médico, e poderia substituí-la no caso de se cansar.

— Nunca me canso, senhor, quando se trata de servir minha irmã. Um criado veio anunciar que uma carruagem esperava o doutor.

— Pois que! exclamou Joana, o senhor parte já?

— Quanto antes, senhora Condessa.

— Por que não janta cá? Eu tinha contado que poderíamos conversar por muito tempo. Tenho tantas coisas a perguntar-lhe com respeito aos nossos antigos protegidos de Vertes-Feuilles, que são sempre os seus.

— Hoje é impossível. O senhor Conde lhe dirá que é preciso que eu parta. Tenho muito que trabalhar esta noite, por causa da sua próxima cura.

— É verdade... confirmou Raul.

— Então vá! mas ao menos volte depressa.

— Amanhã, senhora Condessa. Terei notícias do que se passar durante a noite, e poderei traçar-lhe o regime que convém seguir.

— Então, até amanhã, doutor. Abrace por mim sua mãe. Abrace-a muito e muito ternamente. Como eu a amo!

— Agradeço por ela, agradeço do íntimo dalma.

Máximo apertou a mão de Joana, cumprimentou Renée e saiu reconduzido até à carruagem pelo senhor de Gordes.

Uma hora depois da sua partida, Joana sentiu-se muito fraca. Não era um sintoma de doença, mas um grande abatimento, uma espécie de prostração geral.

— Queridinha, murmurou Renée, inclinando-se para ela e abraçando-a, preveni-te de que cometias uma imprudência levantando-te.

— Embora! mas essa imprudência não a lamento. Além de que a poção do doutor depressa me reanimará.

— Queres subir para o teu quarto?

— Sim... Parece-me que estaria bem na minha cama. Imagina a noite sossegada que vou passar sem ter febre. Sem estar a acordar constantemente. Não tendo nem sonhos extravagantes nem fantasmagorias. Não há nada como o dormir... dormir sossegada, placidamente.

Renée chamou.

Genoveva e a outra criada levantaram a Condessa, gracioso e leve fardo, e levaram-na para o primeiro andar. Num instante a despiram e deitaram.

— Como te sentes? perguntou Renée.

— Estou como um passarinho no seu ninho! Estou melhor. Estou com vontade de comer, e o doutor não me ordenou dieta!... Ainda bem!

Joana tomou algumas colheres de caldo, comeu um bocadinho de peito de frangão, bebeu um dedo de vinho de Bordeaux e ficou satisfeita.

O passarinho de que tinha falado, teria comido quase tanto como ela.

Renée saiu do quarto, ordenando a Genoveva para a substituir junto do leito de madame de Gordes.

Certificou-se de que Raul estava na cavalariça dando ordens, e pela escada oculta do seu quarto, desceu ao jardim de inverno e aproximou-se de um gigantesco eufórbio da Abissínia.

Por uma leve incisão, que na véspera tinha praticado na haste daquele arbusto espinhoso, saiam algumas gotas de liquido.

Renée tirou da algibeira um canivete e um daqueles vidrinhos liliputianos de que as mulheres usavam noutro tempo, presos por uma corrente de ouro a uma das pulseiras, e certa de não ser vista, tirou com a folha do canivete e fez cair no vidrinho as gotas do liquido do eufórbio.

 

O ENVENENAMENTO

Eram quase oito horas.

Renée, que acabara de jantar à pressa e em silêncio com o cunhado, saiu da sala de jantar e encaminhou-se para o quarto da condessa.

Joana, deitada e num estado de completa imobilidade, parecia muito abatida.

As pálpebras abaixavam-se-lhe sobre os olhos fatigados, e contudo ela não dormia.

Genoveva, sentada ao lado da cama, fitava na doente aqueles olhares que uma mãe fita num filho.

— Como estás tu, maninha perguntou Renée.

— Eu não sofro, respondeu Joana com uma voz mal distinta, mas estou muito fraca.

— Uma noite de sono profundo te reanimará. A poção dó doutor te dará esse sono, e aproxima-se o momento de tomar a primeira dose. Genoveva, onde está o frasco? )

— Aqui, menina.

— Dá-me uma colher de chá.

— Sim, menina.

— Preciso de um conta-gotas.

— Vou buscar o da farmácia. Não sei de outro aqui.

— Vai depressa. Genoveva saiu.

Durante a sua ausência Renée atravessou os dois quartos de toilette que separavam o seu do de Joana, abriu o vidrinho, mergulhou dentro a ponta de um comprido alfinete de cabeça e ia deitar na colher uma gotinha do terrível veneno arrancado ao eufórbio da Abissínia.

Uma reflexão, porém, a fez deter.

— Não, murmurou ela, esta noite não, a impaciência obriga-me a loucuras, quero caminhar muito depressa.

E, sem ter completado a sua terrível obra, voltou para o quarto da Condessa.

Genoveva chegou ao mesmo tempo com o tubo de cautchu e de vidro cujo fim e uso se indicou.

Renée contou dez gotas.

Deram oito horas.

A jovem aproximou-se da cama, e passando o braço esquerdo pelas costas de Joana para a ajudar a levantar-se, disse-lhe:

— Bebe, minha querida.

A senhora de Gordes obedeceu prontamente.

— Ah! como é mau! balbuciou ela deixando cair a cabeça no travesseiro.

Mais três vezes, de quarto em quarto de hora, como tinha recomendado Máximo Giraud, Renée obrigou Joana a tomar a dose determinada da poção.

O efeito esperado produziu-se mais depressa do que poderia esperar-se.

Um pouco antes das nove horas Joana dormia sossegadamente sem que nenhum sonho sinistro, nenhuma alucinação de mau agouro a perturbasse, o que se prolongou até pela manhã.

Renée, sempre admirável de dedicação passou metade da noite junto ao leito da irmã, e quando o cansaço a obrigou a ir repousar, substituiu-a Genoveva.

Ao romper do dia, Raul entrou no quarto na ponta dos pés.

— Então, perguntou ele em voz baixa.

— A minha querida ama adormeceu como uma criança, respondeu Genoveva. Veja, senhor Conde, como se revela a calma no rosto da senhora.

E ambos esperaram que ela acordasse.

Joana ao abrir os olhos, viu à sua cabeceira o senhor de Gordes.

Ela sorriu-lhes, estendeu-lhe a mão, e sem esperar uma pergunta exclamou:

— Ah! que bom sono que dormi, e como me sinto boa hoje! Parece-me que estou curada. Já vês que eu tinha razão para te dizer que o meu amigo Máximo Giraud fazia milagres!

— Começo a compartilhar da tua confiança, queridinha, volveu o conde abraçando Joana. A carruagem partiu há já muito tempo para Rancey. O doutor há de chegar com certeza antes da uma hora.

O que se esperava realizou-se. Daí a pouco ouviu-se o rodar do trem, e Raul de rosto alegre, correu a receber o médico, a quem logo anunciou a boa nova, ajuntando:

— Venha depressa, veja a sua obra. O efeito da poção é milagroso! Não conhecerá hoje madame de Gordes.

Máximo soltou um suspiro de alívio.

— Que bem me fez! murmurou ele, eu vinha muito inquieto e muito atormentado.

— Por quê?

— Por uma razão muito simples. Consagrei toda a noite a um trabalho insano, folheei cem volumes, esperando ver brilhar a luz, e jazo em profundas trevas, como estava ontem ao deixá-la. Não achei em parte alguma uma explicação satisfatória, ou mesmo plausível das perturbações da saúde de madame de Gordes. Alguns acessos de febre seriam insuficientes para determinarem as crises que me descreveu e as alucinações noturnas continuam a parecer-me incompreensíveis.

— Aquelas alucinações e aquelas crises têm, contudo, uma causa, interrompeu Raul.

— Com certeza, mas que causa é essa? Só diversos casos, de envenenamento têm, nos seus resultados, certas analogias com aquelas crises. Há venenos vegetais que originam alucinações e enlouquecem. Admite o senhor a possibilidade de um envenenamento acidental?

— Não, respondeu Raul. Nego-a formalmente. Minha cunhada e eu temo-nos sempre servido do mesmo modo que madame de Gordes, das iguarias preparadas para as nossas refeições, e essas iguarias têm sido preparadas pelos criados. Ninguém se queixou. Além disso o envenenamento, supondo-o possível, teria seguido o seu curso natural, conduzindo a doente a um estado cada vez mais grave, até uma conclusão fatal, ao passo que no estado de minha mulher notam-se freqüentes intermitências.

— É perfeitamente justo. É preciso contentar-me a mim mesmo com o que eu dizia ontem a madame de Gordes sem crer nisso muito, e não atribuir ao mal outra causa senão uma desordem momentânea do estado nervoso. Os nervos são o supremo recurso dos médicos nas questões que os embaraçam. Como os nervos explicam o que não sabem explicar por outro modo.

— Enfim, redarguiu Raul, pouco importa, visto que o senhor destrói o efeito. Venha ver a Condessa.

— Bons dias, querido doutor! disse Joana sorrindo, há de estar contente comigo esta manhã! Estou curada, e graças ao senhor.

O médico pegou com uma mão trêmula na mão que lhe estendia a senhora de Gordes, e apoiou dois dedos no pulso.

— Efetivamente, murmurou ele, tudo vai bem. Não há febre, e a pele está fresca. Já sei que dormiu como eu esperava.

— Faça-me dormir sempre assim, querido doutor. Parece tão bom o sono, após longas insônias.

— Há de dormir, prometo-lhe.

— Que me ordena?

— Nada.

— Como, nada?

— Quero dizer, nada de medicamentos. Nenhuma fadiga, e um regime muito simples, de que deixo a indicação escrita, bastarão, persuado-me, poucos para voltar ao seu estado normal.

— Portanto, querido doutor, tudo se acabou? A minha doença não voltará?

— Assim o espero, e conto com isso.

Máximo Giraud, infelizmente, enganava-se.

Durante uma semana, Joana foi cada vez melhor, passava as noites sossegada, as forças e o apetite voltavam-lhe depressa.

Ao oitavo dia, já ela podia dormir e passear pelo parque encostada ao braço de Raul ou ao de Renée.

Uma suave alegria reinava no palácio e na aldeia, os camponeses, sabemo-lo, adoravam a Condessa.

O doutor tendo desempenhado o seu dever, declarou, que sendo desnecessárias daí para o futuro as suas visitas quotidianas, não voltava a Gordes senão de tempos a tempos, a não ser de se dar o caso de o mandarem chamar, a juntando que então tudo deixaria para ir logo.

Ai de mim! a ocasião de cumprir tal promessa não se fez esperar.

No dia seguinte àquele em que Máximo Giraud declarou serem inúteis os seus cuidados, uma carruagem do palácio foi procurá-lo à toda a pressa, e conduziu-o cheio de espanto e de susto.

Que sucedera pois?

Repetira-se na véspera a cena da estufa, isto é, Renée, com o auxílio de um canivete passara para o vidrinho mais algumas gotas do eufórbio da Abissínia.

A condessinha acabava de ter uma recaída, e os caracteres daquela recaída em nada se pareciam com os que puseram sob os olhos dos nossos leitores.

A partir daquele momento começou uma nova doença, mais estranha ainda, mais misteriosa, mais inexplicável do que a primeira. Incompreensíveis alternativas, inesperadas melhoras e súbitas prostrações se sucediam contra toda a lógica, e tornavam improfícuos o saber e a penetração de Máximo.

Um profundo desânimo, um desespero fácil de compreender, impossível de descrever, se apoderava do moço médico.

Aquela a quem ele amava mais do que tudo no mundo, e por quem de bom grado daria a vida, sofria e definhava-se lentamente a seus olhos, e não podia fazer nada para a aliviar, nada para a salva.. — O que é então a ciência? perguntava ele a si mesmo com uma pungente amargura, e por momentos, parecia-lhe que a sua razão vacilava.

— Senhor conde, disse ele um dia a Raul, tornar-me-ia imperdoável a meus próprios olhos ocultando-lhe a grande gravidade da situação. O mal aumenta, e não tenho armas para o combater... já não tenho confiança em mim. A responsabilidade que assumo cuidando eu só da senhora de Gordes, parece-me demasiado pesada, esmaga-me. Autorize-me, peço-lhe, a reunir uma junta. Eu sou um pobre médico obscuro, faltam-me a experiência e a autoridade. Mande vir alguns dos mais ilustres entre os meus colegas parisienses. Onde eu não vejo senão trevas, eles farão surgir a luz.

Renée assistia à conversação. Um imperceptível tremer de pálpebras era o único indício da comoção.

— O senhor diz a verdade, bem o sinto, disse ela com uma voz muito lenta, mas não virá assustar minha irmã revelando-lhe as inquietações? Trazer para a sua cabeceira médicos de Paris, é mostrar-lhe a eminência do perigo. Não há aí um risco de outro gênero, e o susto não pode causar à Joana um transtorno funesto?

— Renée tem, infelizmente, razão, balbuciou Raul com angústia. Esta consulta, cuja urgência não compreendo, com certeza agravaria o estado de minha querida mulher. Hesito.

— Quer então deixar morrer abandonada a senhora de Gordes? redarguiu Máximo vivamente. Tenho a consciência da minha impotência neste caso. Se me recusa o auxílio que reclamo, retirar-me-ei. Ordena-mo a minha consciência.

— Visto que assim é, doutor, exclamou o conde, que se faça a sua vontade. Mas como preparar Joana? e que precauções tomar para minorar a violência do golpe?

— Eu me encarrego disso, respondeu Máximo. A senhora de Gordes tem confiança em mim. Obrigá-la-ei a desejar ela mesma uma medida toda de pendência, e de que não poderá assustar-se.

— Faça o que entender, querido doutor, concedo-lhe plenos poderes.

O jovem médico não perdeu um instante, e não lhe custou a convencer Joana, de que, no interesse da sua pronta cura, ele devia solicitar os conselhos de alguns colegas mais velhos, e por conseguinte mais experimentados.

— Seja! murmurou a meiga doente, que venham, visto que o senhor reclama o seu auxílio para uma empresa que poderia desempenhar só, e cure-me depressa, porque realmente é já longo o meu padecer.

Na semana seguinte, chegaram ao palácio de Gordes três daqueles médicos voga a quem principescas remunerações dificilmente faziam afastarem por quarenta e oito horas, da sua inúmera clientela.

Foram unânimes em declarar que se achavam em presença dê" uma afecção nervosa inteiramente inédita, e que não sabiam que nome dar aquele camaleão cujo diagnóstico variava de dia para dia, e, para assim dizer, de hora para hora.

Aprovaram, sem restrição o tratamento do doutor, no passado, mas deixaram de estar concordes no tratamento a seguir para o futuro, e cada um deles emitiu a este respeito, mas com a máxima cortesia, uma opinião diferente, provando evidentemente que desde Molière e Lesage, os usos e costumes do corpo médico se haviam transformado notavelmente.

Finalmente partiram, munidos de recompensa, depois de terem pedido ao seu confrade, para, no interior da ciência, tomar notas minuciosas sobre um caso tão curioso e tão raro, e para enviar à academia de medicina um relatório circunstanciado de fatos e observações, de onde resultaria para ele, sem dúvida, infinita honra.

— Portanto eis-me só de novo, disse consigo Máximo. Só para combater neste campo de batalha, de onde desertaram os meus ilustres mestres! O inimigo oculta-se nas trevas. Faltam-me as armas. E portanto é preciso vencer!... vencer ou morrer.

Máximo foi procurar Raul.

— Senhor Conde, disse-lhe ele, mande-me dar um quarto no palácio. Enquanto a senhora de Gordes estiver em perigo, não regressarei a Rancey.

 

UM CORAÇÃO DE MULHER

Deixemos desenvolver-se no palácio de Gordes o prólogo do sombrio drama que devia, num futuro próximo, apresentar tão formidáveis peripécias, e vamos a Paris encontrar Lazarine e alguns dos personagens importantes da nossa narrativa.

Vimos a jovem viúva do Marquês Roberto partir do palácio de la Tour-du-Roy, e dirigir-se à gare de Orleans, ao passo dos seus cavalos, e na mais cômoda das suas carruagens.

Júlio Leroux, o melhor dos pais (o ex-banqueiro, dava a si mesmo este titulo com a mais completa e ingênua boa fé), esperava-a na gare de Paris; fê-la subir para uma carruagem não menos cômoda, e conduziu-a à rua Murillo, ao palacete que tinha alugado para ela pela quantia de vinte mil francos por ano, e mobiliado pelo fornecedor Lebel-Girard.

Lebel-Girard, aquele armador artista, membro do conselho municipal, de Enghien e condecorado (seja dito entre parênteses), é um antigo conhecido dos leitores do Fígaro.

Foi ele que, graças as suas relações com o milionário Nicolau Bouchard (de Montmorency), e no fim certamente muito legítimo de haver uma importante dívida quase perdida, foi ele que negociou o casamento de Margarida Bouchard e do conde Paulo de Nancey.

Os parisienses familiarizados com os seus bairros, sabem que a rua Murillo corre ao longo do Parque-Monceau, onde as habitações têm jardins em miniatura, e cremos, saídas particulares.

Apesar da sua denominação de palacete, a casa alugada por Júlio Leroux para sua filha, era realmente muito ampla; ao lado do imenso palácio que no tempo da sua prosperidade o ex-banqueiro possuía no boulevard Haussemann, ao lado do palácio de Orleans, e do de la Tour-du-Roy, era pequeno em comparação.

Dificilmente se encontraria fora dali uma habitação mais elegante, mais bem dividida.

As cocheiras e as cavalariças ocupavam no pátio dois pavilhões, à direita e à esquerda da grade.

O "rez-de-chaussée" para o qual se subia por um paiol de cinto ou seis degraus, ornados de flores raras dispostas em vasos de faiança de Urbino, compunha-se de um vestíbulo, de uma casa de jantar, de duas grandes salas, de uma sala menor servindo de "boudoir," e de uma estufa que deitava para o parque.

Aquele "rez-de-chaussée" permitia, como se vê, dar festas, não a Paris inteira, mas pelo menos receber bem à vontade cento e cinqüenta ou duzentas pessoas.

O primeiro andar dividia-se em dois aposentos muito completos, constando cada um de uma saleta, de um grande quarto de dormir, de um vasto gabinete de toilette, e de uma sala de banho.

A escada era de bom estilo, não propriamente monumental, mas de boas proporções, e o tapete de moquete cor de púrpura produzia um belo efeito na alvura dos seus degraus de pedra polida, flanqueados de um corrimão de ferro lavrado segundo os melhores modelos do século XVII.

Abster-nos-emos de detalhes inúteis a respeito da mobília.

Júlio Leroux tinha-a descrito nestas duas linhas da sua última carta a Lazarine: Ê de bom gosto, rica bastante e de bem compreendida fantasia.

A marquesa, apesar da fadiga resultante da viagem, visitou o palácio de alto a baixo logo que chegou, e mostrou-se satisfeita.

— Tudo isto, papai, está muito bom, disse ela, na mobília e na ornamentação falta talvez um pouco daquilo a que se poderia chamar um luxo sério, mas como conjunto é gracioso, alegra a;vista. sobretudo sabendo-se quanto custou, porque enfim não se pode fazer grande coisa, no gênero mobília, com cem mil francos, nesta época.

— Noventa... ponderou Júlio Leroux. Obtive um desconto de dez por cento, visto as circunstâncias da operação e ser logo paga à vista.

— Sobram quinhentos luizes, bravo! A quem devo? A si ou ao armador?

— A mim. Lebel-Girard parecia muito desejoso de receber... Paguei.

— À noite assinarei um cheque, e ficará embolsado.

— Não há pressa.

— Diz isso por galanteria, mas os negócios são negócios. Amanhã será pago. A propósito, papai, não sabe! estou com fome.

O caso estava previsto, e as ordens dadas. Dentro de dez minutos estará na mesa o jantar da senhora Marquesa.

— E fará companhia à senhora Marquesa?

— Se a senhora Marquesa o permitir.

— Que papaisinho! não se vê outro igual em todo o orbe.

Dez minutos depois de trocadas aquelas palavras, Júlio Leroux e sua filha sentavam-se à mesa diante de um fino jantar vindo de uma afamada casa de pasto.

A conversação muito animada, versou sobre diferentes assuntos.

Falou-se do próximo parto de Lazarine, da doença de Joana, da metamorfose de Renée.

Em seguida a Marquesa perguntou:

— E o seu inseparável, o seu alter ego? O velho e sempre-novo Euryali, de quem se fez o Niso? Que é feito dele?

— Referes-te ao Príncipe?

— Naturalmente.

Júlio Leroux abanou a cabeça...

— Hum! hum! fez ele, sujeito muito singular, o tal príncipe! já não o vejo há séculos.

— Estão zangados?

— Não, mas saiu de Paris.

— Para onde foi?

— Ignoro. Veio uma manhã a minha casa com a aparência de muito importante e preocupado; disse-me num tom misterioso que partia para uma viagem de alguma duração, e fez-me compreender que não partia só. Nas circunstâncias de intimidade em que estamos, julguei poder dirigir-lhe algumas perguntas amigáveis. Respondeu-me de modo muito vago, sem ocultar o desejo que tinha de escapar a todas as investigações a respeito da companhia nesta mudança.

— Trata-se de uma mulher?

— Não sei ao certo, mas iria apostá-lo, Godefroy se viajasse como um homem dizia-mo claramente.

— Uma boa fortuna na idade do príncipe! disse Lazarine rindo. Seria curioso, papai.

— Ocorreu-me a idéia de que aquilo poderia ocultar, não uma boa fortuna, mas um casamento.

— Vamos.

— Meu Deus, sim; e o que torna para mim verossímil esta idéia, é que, através, as reticências de Godefroy, julguei adivinhar que contava com uma próxima mudança de posição, e que tinha a bem fundada esperança de enriquecer em pouco tempo. Ora, de onde lhe viria a fortuna, se não fosse de um casamento? Não faltam as viúvas milionárias, e mais de uma consente de bom grado em pagar por bom preço um título de princesa.

— O Príncipe casado! redarguiu Lazarine soltando uma nova gargalhada. Havia de ser divertido!...

— Não para a mulher, redarguiu Júlio Leroux rindo também. Em breve teremos a prova de que a suposição do ex-banqueiro era errônea, apesar da sua verossimilhança, e que se o senhor de Castel-Vivant deveria achar uma fortuna, ela não lhe viria de uma mulher que comprasse o seu título por preço discutido.

Lazarine fizera-se acompanhar de um número de criados suficientes para estabelecer em Paris uma casa cômoda; mas, sempre prudente, teve o grande cuidado de deixar em la Tour-du-Roy o velho criado grave Domingos.

O motivo desta precaução adivinha-se.

Não podendo subtrair-se à necessidade de receber Marcel Laugier, e sendo Domingos o único dos criados do Marquês Roberto que se achou em relações com o oficial de hussardos por ocasião da sua passagem na cidade de Joana d'Arc, o único por conseguinte que poderia reconhecê-lo, era preciso afastá-lo. Decorreram quinze dias.

A jovem, a que estavam proibidos os passeios de trem, e que não cuidava de sair a pé no seu estado de gravidez muito avançada e muito visível, não tinha outras distrações senão as curtas visitas quotidianas de seu pai, e começava a aborrecer-se muito.

Lembrou-se de ter prometido a Marcel Laugier de lhe escrever logo que a sua instalação tivesse lugar, para lhe comunicar a sua morada, e autorizá-lo a apresentar-se.

— Ele não é deleitável, disse ela consigo, mas as suas visitas sempre me farão passar uma ou duas horas...

Em conseqüência disto pegou numa folha de papel de carta sem brasão, sem iniciais, sem coroa, e escreveu estas palavras pouco comprometedoras sem assinatura:

"Rua Murillo, número...

"Amanhã, quinta-feira, às três horas."

 

E subscritou:

 

"Senhor Marcel Laugier,

"No Grand Hotel."

 

E uma das suas criadas graves recebeu ordem para ir lançar no correio aquele lacônico bilhete.

Sabemos que a senhora de la Tour-du-Roy não sentia pelo tenente coisa que de perto ou longe assemelhasse ao amor. O herói da aventura de Orleans não perturbava o seu coração; teria dado muito para que ele não mais encontrasse os seus vestígios, que durante sete meses julgava haver perdido.

E, contudo, (explique quem puder os mistérios do coração feminino), no dia seguinte, à medida que a hora indicada se aproximava, Lazarine, sentia bater mais depressa o coração, e esperava com uma espécie de impaciência a vibração da sineta do palácio anunciando a chegada de Marcel.

— Virá certamente antes da hora. Ainda que não seja senão alguns minutos, aproximará o momento combinado. De bom agrado apostaria que há muito tempo já, anda errante como alma penada nos arredores do Parque-Monceaux.

E a Marquesa seguiu com o olhar a marcha lenta do ponteiro no mostrador do relógio do "boudoir".

Deram três horas. A sineta do palácio ficou muda.

A impaciência de Lazarine tornou-se em espanto, e o espanto transformou-se numa irritação nervosa, cuja intensidade foi aumentando à proporção que decorriam os quartos de hora.

A tarde passou-se toda assim.

Marcel não apareceu.

A irritação da senhora de la Tour-du-Roy cedeu lugar a uma espécie de inquietação ou antes de angústia.

Só uma causa de espantosa gravidade podia impedir que um homem loucamente apaixonado, como o estava Marcel, não fosse à entrevista solicitada com tanto empenho.

Que causa seria essa?

— Está perigosamente doente com certeza, disse consigo a Marquesa. Morreu talvez.

Empalideceu impressionada por aquela idéia, e durante uma hora quase que amou o tenente.

A curiosidade febril transmitida pela loura Eva às suas descendentes, apoderou-se dela e não lhe deu descanso. Quis saber que obstáculo imprevisto se erguia entre ela e o tenente, qui-lo a todo custo.

Júlio Leroux não jantava naquele dia na rua Murillo.

Lazarine fez-se servir no seu quarto, e deixou o jantar quase intato.

Quando anoiteceu de todo sentiu-se fatigada; despediu as suas criadas, aferrolhou o seu quarto, deitou por sobre os seus vestidos escuros um grande chalé, velou o rosto com um véu espesso, subiu pela escada de serviço do jardinzinho contíguo ao Parque—Monceau. abriu com a sua chave particular a porta de comunicação, achou-se no parque, chegou à avenida da Rainha Hortência, chamou o primeiro coupé que passou, e sem se importar com a proibição dos médicos a do perigo que podia resultar para ela dos solavancos do pesado veículo, subiu para a carruagem e disse ao cocheiro:

— Para o Grand Hotel.

 

A MULHER QUE AMA

Em menos de cinco minutos, o coupé que seguiu pela rua Auber, virava o ângulo da praça da Nova-Ópera, encontrava no "boulevard" dos Capuchos, e o cocheiro, inclinando-se para a portinhola, perguntava:

— É preciso entrar no pátio?: — Não, respondeu Lazarine.

A carruagem parou ante a porta monumental da vasta estalagem parisiense.

A senhora de la Tour-du-Roy apeou-se, atravessou a grande multidão que enche todas as noites o asfalto dos "boulevards" elegantes, e transpôs o limiar do escritório do hotel.

— O senhor Marcel Laugier está? perguntou ela ao empregado de serviço.

Este último, conhecia muito bem o tenente, porque mesmo sem consultar os livros respondeu:

O senhor Marcel Laugier não está agora em Paris...

— É impossível! exclamou a Marquesa.

— Peço perdão, minha senhora... O senhor Laugier há oito dias, recebeu um telegrama determinando-lhe a sua imediata partida. Está por conta dele o seu quarto, o n. 220, e pode vir de um momento para o outro. Temos ordem de lhe remeter a sua correspondência. Se vossa excelência quer escrever, ele receberá a carta.

— Não é preciso... obrigado, senhor.

A Marquesa subiu para o trem que a reconduziu à entrada do Parque-Monceau, e em menos de três quartos de hora depois da sua partida, estava de novo nos seus aposentos, cansada de corpo, mas sossegada de espírito. N

Se Marcel Laugier estivesse em Paris e deixasse de ir à entrevista oferecida, teria ferido mortalmente o orgulho de Lazarine.

A ausência do mancebo explicava e justificava tudo.

O amor próprio estava salvo; não restava à senhora de la Tour-du-Roy senão uma vaga curiosidade a respeito do telegrama que tinha determinado uma tão brusca partida.

Aquela curiosidade foi logo satisfeita. No dia seguinte, Lazarine recebeu uma carta tarjada de preto e carimbada de Cherbourg.

Reconheceu a letra de Marcel, e abriu a carta com aquela espécie de vaga comoção que a avassalava, quando três dias antes, esperava o tenente.

A carta era muito extensa.

Evitaremos reproduzi-la, contentando-nos em analisá-la. Marcel Laugier acabava de receber, dizia ele, no fim da Normandia, numa propriedade vizinha de Cherbourg, o bilhete de duas linhas dirigido por Lazarine para o Grand Hotel, e contendo o nome da rua, o número da casa, e a hora da visita. Manifestava ele o seu profundo desgosto de ter, involuntariamente, feito esperar aquela a quem amava mais do que tudo no mundo; pintava com a mais exaltada eloqüência a sua paixão sempre crescente; enfim, explicava as causas da imprevista viagem que realizara.

Um irmão de sua mãe, solteirão, inimigo do casamento, e que vivia só num pequeno castelo edificado num morro à beira-mar, distante três quilômetros de Cherbourg, sentira-se muito mal após uma congestão cerebral, e tinha querido junto de si, nos seus últimos momentos, seu sobrinho, a quem muito amava.

A morte daquele tio, sucedida no dia seguinte ao da chegada de Marcel, modificava de uma maneira absoluta a situação deste último que, por um testamento em regra, fora nomeado legatário universal, com grande surpresa sua, porque se julgava que o celibatário dividiria a sua fortuna entre os seus herdeiros naturais.

Ora, o velho normando possuía mais de um milhão líquido representado por ações do banco de França, e por outros títulos de primeira ordem.

Juntando a esta herança inesperada a sua pequena fortuna pessoal, o tenente achava-se possuidor, pelo menos, de sessenta mil libras de renda.

Era filho único, e podia esperar de seu pai quase oitocentos mil francos. De um dia para o outro tornava-se possuidor de cem mil libras de renda, o que é muito bom para um simples tenente, e sê-lo-ia igualmente bom para um coronel.

Marcel tinha imediatamente pedido a sua demissão. Razões que ele não dizia, mas que Lazarine adivinhou sem o menor custo, moviam-no ao desejo imperioso de se achar completamente livre, e senhor absoluto das suas ações.

Por último, sentia-se na sua carta a autoridade que dá a riqueza e o cunho de força e de vontade que o rei do mundo, o Demônio, imprime na fronte dos seus eleitos.

A epístola terminava, como tinha começado, por juramentos e protestos de eterno amor, cuja sinceridade não podia ser posta em dúvida, e Marcel anunciava o seu regresso a Paris para um prazo próximo.

A letra do mancebo era perfeita, regular e aristocrata.

Lazarine leu as oito páginas de princípio ao fim se escapar uma linha.

Durante a leitura, ora sorria, ora uma leve ruga se desenhava entre as suas sobrancelhas negras, ora enfim, encolhia imperceptivelmente os ombros.

Quando acabou de ler a carta, pô-la num "guéridou" que lhe ficava ao alcance da mão, e começou a refletir.

Por momentos via-se moverem-se-lhe os lábios.

Não se ouvia nenhum som, mas os nossos privilégios de romancista permitem-nos ouvir aquilo que se profere em voz baixa.

— Para que era aquela demissão? disse ela de si para si. Uma licença de seis meses bastaria muito bem... Ter-se-ia visto mais tarde o que era conveniente fazer... Marcel de todos livre, em breve se tornaria importuno... não contando quais as idéias inaceitáveis de que ele se possuiria por certo... Talvez que já p assaltassem.

E ela interrompia-se, por um instante, depois continuou:

— Cem mil libras de renda... é uma boa cifra... Está quase rico este rapaz... Começa a ser alguém... Renée contentar-se-ia e diria: Muito obrigada!... Vinte e seis anos, simpático, elegante... por desgraça chamava-se Laugier... É tão burguês como Júlio Leroux, Marcel Laugier, mais ainda talvez... e eu sou viúva do Marquês de la Tour-du-Roy!!! O ex-tenente é impossível sob o ponto de vista de negócio sério... Como distração é aceitável... Que venha pois e veremos.

No dia imediato, pelas três horas, o melhor dos pais estava em casa de sua filha havia dez minutos, e falava em dar um passeio no Bosque.

Ouviu-se a sineta do palácio.

— Esperas alguém? perguntou Júlio Leroux.

— Ninguém... murmurou Lazarine num tom que a denunciava. Quase ao mesmo tempo o criado grave entrou trazendo um bilhete de visita numa salva de prata.

— A senhora Marquesa recebe? perguntou ele. Lazarine olhou para o bilhete.

— Recebo... respondeu ela.

O criado saiu e Júlio Leroux pegou também no bilhete. Marcel

Laugier... leu ele em voz alta. Ignorava este nome... Quem é este senhor?

— Um rapaz... um oficial... e muito rico...

— Onde travaste conhecimento com ele?...

— Em Veneza... redarguiu Lazarine sem hesitar.

— Era amigo de teu marido?

— Um simples conhecimento... disse a jovem que apesar dá sua tranqüilidade habitual, corou até à raiz dos cabelos.

O pai indulgente reparou muito bem naquela perturbação, mas não se admirou muito, e acreditando nalgum episódio do gênero Bégourde, disse de si para si:

— Sou incômodo... Retirar-me-ei daqui a cinco minutos O criado anunciou:

— O senhor Marcel Laugier.

— Belo rapaz, realmente! murmurou Júlio Leroux.

Marcel vestido de luto, com o seu rosto enérgico e delicado, com a sua tez pálida, com os seus compridos bigodes sedosos, com as suas maneiras de fidalgo artista e a fita vermelha na casaca, era realmente notável.

Lazarine levantou-se quase imperceptivelmente do fauteuil e disse:

— Meu pai, tenho a honra de lhe apresentar o senhor Marcel Laugier... Senhor Marcel Laugier... tenho a honra de lhe apresentar meu pai.

Assim apresentados um ao outro, os dois cumprimentaram-se, e a Marquesa continuou logo muito vivamente para prevenir o visitante antes de começar a falar:

— Que amabilidade a sua senhor, ter-se lembrado de mim depois de tanto tempo!... Ordinariamente os ausentes são injustos... Prolongou muito a sua estada em Veneza? O senhor tencionava, se me não engano, passar lá ainda dois meses?... O senhor estava de licença... Continua ao serviço? Ou tenho má memória, ou pensava em entrar na vida civil.

Marcel tinha compreendido; apesar da sua comoção, respondeu sem a menor aparência de embaraço.

— Vossa excelência não é daquelas pessoas a quem se esquece, senhora Marquesa, disse ele, e autorizado pela sua licença tão graciosamente concedida, teria já procurado a ocasião de depor a seus pés as minhas homenagens de respeito, mas a minha viagem durou muito mais do que eu esperava... Passei seis meses em Veneza, cheia para mim da sua recordação. Os limites estreitos de uma licença deixavam de me embaraçar... Já não tenho a honra de pertencer ao exército francês... pedi a minha demissão.

— Não me retiro por sua causa, senhor, creia... disse Leroux. Ia sair quando o senhor entrou, a Marquesa muito bem o sabe. Tenho pena de os deixar tão depressa, mas sou esperado.

Os dois cumprimentaram-se de novo, e o ex-banqueiro, inclinando-se para Lazarine para abraçar, segredou-lhe ao ouvido estas palavras:

— É encantador, bem o sabes! E saiu.

O tête-à-tête da Marquesa e de Marcel Laugier foi muito mais frio do que parecia verossímil supô-lo, vista a situação respectiva dos nossos personagens, e, contudo, aquela frieza era lógica.

As duas entrevistas anteriores, a de Orleans e a do parque de la Tour-du-Roy, tinha tido lugar em circunstâncias absolutamente anormais e particularmente estranhas, inúteis de recordar.

Pela primeira vez naquele dia, Marcel Laugier via-se recebido em casa de Lazarine de uma maneira oficial, sob um verdadeiro nome, sem nada de clandestino nem de misterioso, e a Marquesa acabava de apresentá-lo a seu pai, dando-lhe por este fato um lugar nas suas reuniões de família.

Além disso, o prestígio de que a senhora de la Tour-du-Roy se rodeava a seus olhos intimidava-o de um modo notável e paralisava as suas efusões de homem feliz.

Ele tivera aquela mulher em seus braços... era o pai de seu filho!... E para ele era agora a patrícia, a fidalga tão imponente pela sua posição e por todas as circunstâncias que a rodeavam como atraente pela sua beleza.

Daí esse constrangimento do primeiro momento, inevitável em Marcel Laugier.

O embaraço de Lazarine era muito natural, e mais fácil ainda de compreender.

Em tais condições de recíproco constrangimento, a primeira visita do ex-tenente não podia prolongar-se, como com efeito não se prolongou.

Ao fim de meia hora, saiu da sala da rua Murillo, dizendo:

— Até amanhã, não é verdade, minha senhora?

— Sim, respondeu a Marquesa, até amanhã.

 

NEM PADRINHO NEM PAI

As visitas de Marcel Laugier tornaram-se cotidianas. Lazarine ia-se acostumando a recebê-lo; o mútuo constrangimento dissipara-se pouco a pouco, e uma intimidade real, mas mais amigável do que amorosa, se estabelecera entre os dois jovens.

Quer isto dizer que a paixão do ex-oficial diminuía de intensidade?

Com certeza que não, mas as circunstâncias tornavam aquela manifestação difícil ou antes impossível.

Qual o meio de falar de amor a uma mulher doente, deitada numa chaise-longue, e condenada a uma imobilidade quase absoluta por uma gravidez chegada ao seu maior auge?

Seria de um gosto deplorável, Marcel bem o sentia, e calava as expansões e entusiasmos que enchiam o seu coração.

— Paciência, dizia ele consigo. Hei de tornar a possuí-la. O essencial é estar aqui. Cá estou... velarei. Ninguém sem eu o querer se aproximará do meu tesouro para mo roubar... e além disso saberei defendê-lo.

Um desgosto o esperava; desgosto muito vivo, mas inevitável, que bem previa, e no qual diligenciava não pensar. No meado do oitavo mês, Lazarine disse-lhe:

— Vemo-nos hoje, meu amigo, pela última vez até daqui a muitas semanas.

— O que! exclamou Marcel. Não percebi!!!

— Não o receberei ao senhor, nem a qualquer outra pessoa. O momento terrível está próximo. À exceção de meu pai e dos médicos, a minha porta vai ficar absolutamente fechada...

— Considere pois... começou Marcel.

Ele interrompeu-se.

— Compreendo-o bem... redarguiu Lazarine sorrindo. Sei o que era a frase interrompida, e considerava se seria justo o que pensava. Mas note, meu pobre amigo, o mundo ignora tudo, e não suspeita de nada (e ainda bem para mim!). Ora, a sua inexplicável presença em casa de uma mulher grávida, seria fatalmente a fonte de comentários malévolos e de pérfidas suposições. Diz amar-me, e creio que é verdade, quereria então comprometer-me se tivesse a fraqueza ou cometesse a loucura de o deixar proceder como quisesse?

"— Com certeza que não! murmurou tristemente Marcel, mas que vai ser de mim? Considere quais serão as minhas inquietações... as minhas angústias! Adorá-la e não saber nada! E por último, a criança que vai nascer.

— Cale-se! disse vivamente a Marquesa quase assustada, cale-se!

— Contudo.

— Nem uma palavra mais. Tratemos das suas inquietações. São absolutamente legítimas, e tudo farei por diminuí-las.

“Em primeiro lugar, escrever-lhe-ei enquanto puder, e quando não me for possível escrever, terá notícias minhas todos os dias pela minha criada grave encarregada de responder aos meus amigos. Quem o estorvará além disso de ir ver meu pai? Ele acha-o encantador,! e terá muito gosto em tranqüilizá-lo a respeito do meu estado.

— Crê isso?

— Estou certa.

— Vê-lo-ei então, não podendo ver a vossa excelência. E agora, ajuntou Marcel em voz baixa e cheia de comoção, agora, minha adorada Lazarine, vou-lhe fazer um pedido, e suplico-lhe para o acolher, porque repelindo-o, causar-me-ia um profundo desgosto.

— Um pedido, a mim? Neste momento? redarguiu a Marquesa. Afirmo-lhe que muito me intriga. De que se trata?

— Consentirá no que vou pedir-lhe?

— Ainda não sei o que é mais, mas se a coisa não for insensata, porque não? Fale primeiro. Depois veremos.

Marcel armou-se de coragem e disse resolutamente:

— Desejava ser padrinho de seu filho. Porque este filho será... Consente, não é verdade?

A senhora de la Tour-du-Roy pôs-se a rir.

— Meu pobre amigo, disse ela, já esperava uma loucura. Como eu tinha razão.

— Uma loucura! repetiu o mancebo.

— Ah! com certeza! e completa!... Não é verdade, o senhor enlouquece! Padrinho de meu filho! e com que título?

— Por que? pergunta-me com que título! lembre-se...

— Não diga mais... interrompeu a jovem. Oh! bem o sei... Representou-se em tempo um vaudeville com esse título. É a mais pura extravagância!

— Não compreendo... começou Marcel Laugier.

Lazarine interrompeu-o de novo com um gesto de impaciência.

— Realmente! disse ela em voz breve e num tom de zombaria. Realmente, o senhor não compreende que a Marquesa de la Tour-du-Roy, aceitando para padrinho de seu filho um mancebo ignorado dos seus, e que é reputado como não conhecido dela própria, passava por louca! É contudo fácil de compreender! Santo Deus, que diriam todos? Vamos, meu querido, não pense mais nisso. O padrinho está escolhido... Há muito tempo está combinado. O batizado há de ser muito bonito. Gosta de confeitos? Há de tê-los, prometo-lhe.

— Esse padrinho? perguntou Marcel cuja palidez teria causado dó a outra que não fosse Lazarine.

— É meu cunhado, o Conde de Gordes... A escolha deve parecer-lhe boa.

O ex-oficial baixou a cabeça sem responder. Dizia de si para si em voz baixa:

— Então para essa criança eu não serei nada... nada senão seu pai.

Um quarto de hora depois ele retirava-se, profundamente triste, e no dia seguinte, como a Marquesa tinha anunciado, a porta do palacete da rua Murillo ficava fechada para todos.

Na semana seguinte, (um pouco menos de nove meses, por conseguinte depois da morte do Marquês Roberto de la Tour-du-Roy), Lazarine dava à luz quase sem incômodo, uma criança perfeita, mas de uma aparência delicada.

Marcel Laugier tinha sido profeta. Aquela criança era seu filho.

Um sucesso completo e definitivo coroava o atrevido plano da Marquesa. Os direito da jovem viúva tornavam-se inatacáveis. Nada no mundo podia daí para o futuro empobrecer a filha mais velha de Júlio Leroux.

Se a criança vivesse, a mãe durante vinte e um anos administraria os rendimentos, e conservaria, em seguida, o gozo do terço desses rendimentos...

Se a criança morresse, herdaria dela.

Lazarine, digamo-lo já, não se portou como má mãe, não porque sentisse no íntimo uma ternura muito viva por aquele ente franzino que era o sangue das suas veias, e a carne da sua carne, mas achava engraçada aquela bonequinha que chorava, cujo rostinho do tamanho de um punho, mal se envolvia nas ondas de rendas brancas.

Tinha-se mandado chamar de antemão a ama, uma boa e elegante rapariga da Normandia, formas opulentas, com grande touca como as mulheres de Caux.

Aquela Vênus aldeã, e aquele toucado pitoresco hão de produzir muito belo efeito no assento da frente de um landau descoberto, dizia consigo Lazarine, desejosa de mostrar no Bosque a sua juvenil maternidade.

O batizado teve lugar oito dias depois do parto.

Raul de Gordes, a quem a doença de Joana não permitia afastar-se do Loiret, por vinte e quatro horas que fosse, foi representado na cerimônia por Júlio Leroux.

A madrinha era a Duquesa viúva de Espanv de Lautrec parenta próxima do defunto Marquês Roberto.

A criança recebeu então o nome de Raul Henrique Roberto.

Júlio Leroux, mais vaidoso do que nunca, tinha, contra todos os usos, feito numerosos convites.

A formosa igreja da Trindade, nova e resplandecente, achou-se cheia à hora da cerimônia de gente de toda a parte, curiosa de ver o ex-banqueiro, muito orgulhoso, levando à pia batismal seu neto, o marquesinho de oito dias de idade.

As Tatá e Nana e outras vantajosamente conhecidas e de igual raça, esmaltavam a multidão e lançavam olhadelas e sorrisinhos ao padrinho por procuração.

Temos necessidade de afirmar que Marcel Laugier estava na primeira fila devorando a criança com olhares de ternura.

Depois do batizado acompanhou à sacristia Júlio Leroux com que se relacionara há algum tempo por um motivo de todos conhecido.

— Então, querido amigo, perguntou-lhe o pai de Lazarine, dando lhe um aperto de mão. Como acha o meu bebê?

— Lindo... disse Marcel com convicção. Nunca vi criança alguma tão bonita.

— Parece-se muito comigo, não é verdade? continuou Júlio Leroux, e sem esperar resposta ajuntou: Quer abraçá-lo?

Ah! com certeza que Marcel o desejava.

Tomou nos braços e cobriu de carícias a criancinha, que ao sentir os beijos começou a chorar com todas as forças.

— Senhor... senhor... disse muito vivamente a ama, tome cuidado! o senhor apertou muito o querubim, magoou-o talvez. Dê-me, senhor, se faz favor, talvez lhe quebrasse algum ossinho.

Marcel um pouco humilhado, deixou a ama pegar na criancinha.

Júlio Leroux continuou esfregando as mãos:

— Ouviu, o querubim, como lhe chama a ama! não chora, berra! Realmente, que orgãosinhos aqueles! Há de ter voz de barítono. Há de ser um belo rapaz em todos os sentidos... Eu na sua idade era assim. E considerar que este boneco é já milionário! Feliz galopim! Que futuro. Entrou na vida por boa porta. O marquês, meu genro, fez bem em se apressar. Era já tempo! Mais oito dias, e o ramo mais velho dos la Tour-du-Roy extinguia-se. Desgraça irreparável!

Ao ouvir aquela última frase, Marcel Laugier, apesar da sua viva comoção, não pode deixar de sorrir...

 

O parto de Lazarine tinha sido feliz, o seu restabelecimento foi pronto.

Oito ou dez dias depois do batizado, os médicos permitiram à jovem mãe que estivesse de pé grande parte das tardes.

O palácio da rua Murillo tornou a abrir as suas portas, não só para o ex-tenente, mas para os visitantes, e este afluíam, coisa que não era para admirar, porque Lazarine tinha participado a morte do marquês a todos os conhecimentos de seu pai, e Júlio Leroux, na época do seu esplendor, conhecia toda a Paris.

Os prodigiosos casamentos de Lazarine e de Joana, casando, uma e outra com grandes senhores muito ricos, tinham feito tanto barulho como a ruína do banqueiro.

Ao saber-se da viuvez prematura de la Tour-du-Roy, cujos gostos mundanos e parisienses eram conhecidos, disse logo:

— Muito nova, bela e rica, não se enterrará na província. Acabado o luto voltará.

Enganaram-se somente na época, visto que ainda antes de terminado o luto Lazarine voltara.

Tendo Júlio Leroux divulgado a notícia do estabelecimento de sua filha em Paris, acudiram logo muito naturalmente os- antigos amigos.

Àquele núcleo, já muito numeroso, convém ajuntar os novos conhecimentos que pertenciam, não ao mundo endinheirado, mas ao mundo aristocrático.

As famílias nobres de Loiret, convidadas para o castelo de la Tour-du-Roy pelo Marquês Roberto, por ocasião das festas que tiveram lugar após o seu casamento, possuíam quase todas palácios ou casas em Paris.

Estas famílias, sabemo-lo, subjugadas pelo poderosíssimo encanto da jovem tomavam de bom grado o caminho da rua Murillo.

Os homens sobretudo eram assíduos.

Desde as três horas em diante as filas de carruagens à espera das visitas estendiam-se de um lado até a avenida da Rainha Hortência, do outro até a avenida Ruysdael.

Marcel Laugier submerso naquela aluvião mundana, e não conseguindo achar-se a sós com Lazarine, não aceitava, sem intimamente se revoltar, que fosse inesperadamente abolido o seu papel.

 

OS FAVORES DE LAZARINE

A situação era muito falsa, e exigia muito estudo; não podia pois, prolongar-se por muito tempo assim.

Lazarine, com a sua viva inteligência, e a sua feminil intuição, lia como em livro aberto no coração de Marcel e via o mancebo quase no extremo de se revoltar.

Ela porém, não deu tempo a que a revolta se manifestasse.

Um dia que via o oficial mais do que nunca meditativo, disse-lhe no momento em que ele, transpondo o limiar da sala já cheia de gente, franzia a testa e cumprimentava com ar taciturno e sombrio:

— Amanhã venha às três horas... Recebê-lo-ei só ao senhor...

A senhora de la Tour-du-Roy achava-se em momento de crise.

A vida que levava havia algumas semanas, parecia-lhe espantosamente monótona.

O seu luto quase a chegar ao termo, permitia-lhe receber e pagar visitas, mas proibia-lhe reuniões e concorrer a elas.

Ora aquelas visitas de todos os dias, sempre as mesmas, aquelas conversações quase idênticas, se não na forma, pelo menos no fundo, girando como cavalos de picadeiro no círculo das futilidades mundanas, aborreciam-na o mais possível e causavam-lhe tédio.

Os seus instintos caprichosos, os gostos fantasistas, e um pouco boêmios da sua primeira mocidade, na brilhante época em que os habitues do Lago diziam ao vê-la, com sua irmã Renée no seu duque puxado por poneys de preço: — Ali vão as pequenas Leroux! tudo isso lhe acudia à mente em turbilhão.

Tinha sede de distrações clandestinas; e desejamos que não se iludam sobre o sentido por nós atribuído a esta última palavra nas circunstâncias em que a empregamos.

Os prazeres clandestinos para Lazarine eram os que a sua grande situação, o nome que usava, a sua recente maternidade, lhe proibiam absolutamente.

Muito mais estouvada do que viciosa, a jovem não tinha aquela predisposição para o arrastamento sensual que os escritores do século XVIII designavam pela perífrase: Ser de compleição amorosa...

O episódio Bégourde (como dizia Júlio Leroux), não era mais do que uma simples leviandade, em que o coração tinha pequena parte, em os sentidos não tinham nenhuma.

Quanto à aventura de Orleans, os nossos leitores sabem muito bem que o Dinheiro, e não o amor, ou o capricho, tinha sido o Deus ex-máquina...

Portanto, a Marquesa queria distrair-se e provar do fruto proibido do paraíso de Paris. Foi o que fez.

Era-lhe preciso para isso um cavalheiro servente, um chichisbeu dócil.

Marcel Laugier, que ela tinha à mão, parecia-lhe competente para esta empresa, não das mais aceitáveis.

Julgar-se-ia, sem a menor dúvida, o mais feliz e o mais favorecido dos homens partilhando das aventuras da sua muito querida Lazarine. e com a maior boa fé tomaria o seu papel de comparsa por um papel de primeira ordem.

A hora fixada apareceu com o coração palpitante de comoção.

— Finalmente, murmurou ele em tom apaixonado, pegando nas formosas mãos deslumbrantes de anéis que a jovem lhe deixou levar graciosamente aos lábios. Está finalmente só, se posso falar-lhe como se não fala a uma estranha! Sentia-me enlouquecer de despeito e de raiva ciumenta ao vê-la rodeada sempre de indiferentes que a adulavam, e a quem escutava com uma benevolência que me irritava!

— Ah! meu amigo, redarguiu Lazarine sorrindo a Marcel, se soubesse como eles me aborreciam!...

— Aborreciam-lhe! repetiu o mancebo.

— Mortalmente!...

A Marquesa desuniu os lábios rosados num bocejo elegante, deixando ver os dentes deslumbrantes, e continuou:

— Veja... só em pensar naquela gente bocejo mesmo a meu pesar.

— Então para que os recebia?

— Porque não podia fazer de outro modo. Penoso sacrifício sofria.

— Quem a obriga a sofrê-lo?

— As exigências do mundo, às quais se não pôde fugir quando se é Marquesa de la Tour-du-Roy, e se tem imensas relações.

— Embora! O fogo faz parte de um incêndio... eu faço parte do mundo. Mas, porque certas exigências se lhe impõem, é razão para me sacrificar a importunos?

— Com certeza que não, e arrependo-me... e a prova do meu arrependimento, a prova sem réplica, é que está aqui, só comigo, beijando-me as mãos...

— Ah! Lazarine, vossa excelência é um anjo!

— Já se vê, visto que faço o que o senhor quer, disse a jovem rindo.

— Para o futuro não me sacrificará mais?

— Não.

— Promete-mo?

— Formalmente.

— Fechará as suas portas a essa corte de fidalgos e argentários que se apoderam da sua sala, e a tratam como cidade conquistada?

— Isso não. Continuarei a recebê-los, e acolhê-los-ei o melhor possível.

— Mas então, nada se mudará em seus hábitos?

— Nada.

— Pois bem e eu?

— O senhor não porá mais os pés aqui, meu querido amigo.

Marcel olhou para Lazarine estupefato.

— Então zomba de mim... murmurou num tom triste.

A Marquesa abanou a cabeça.

— Tão pouco zombo do senhor, redarguiu ela, que quando lhe tiver dito tudo, vai pular de alegria. Não, não voltará mais. Não quero que o homem a quem distingo com a minha estima, se confunda com aquela corte de fidalgos e argentários de que falava há pouco. Aos indiferentes darei as minhas tardes, e ao senhor consagrarei as noites. Está contente?

— Mal ouso acreditar em tanta ventura... mas...

— Mas o quê?

— Visto que a senhora não me recebe em sua casa, irá a minha?

Lazarine pôs-se a rir e exclamou:

— A sua casa! ao Grand Hotel! Ah! isso nunca! O senhor enlouquece, querido amigo!...

— Mas então onde a verei?

— Por toda a parte.

— Vossa excelência zombaria de mim, se lhe dissesse muito humildemente que a não compreender?

— Descanse, há de compreender... Tem carruagem?

— Não... por não me ter ainda estabelecido definitivamente em Paris.., vi;

— É justo e a razão é boa. Vá ter com um alugador, e tome um coupé aos meses. Escolha uma carruagem simples, e de uma elegância modesta, com um cocheiro bem exercitado, e um bom cavalo inglês. A partir de amanhã, esteja todos os dias, às seis horas, com essa equipagem banal defronte do número 5 da avenida da Rainha Hortência. Sairei de casa pelo Parque-Monceau, vestido de preto, coberta com um espesso véu, e irei ter consigo o maior número de vezes possível. Quando às sete horas eu não tiver aparecido, não me espere mais, porque não irei.

— E, perguntou Marcel que não compreendia bem o que estava ouvindo, onde iremos ambos?

— Acabo de lho dizer: por toda a parte. Levar-me-á de tempos a tempos a jantas no campo, à sombra do caramanchão, à borda do lago ou num gabinete particular dos restaurantes do "boulevard". Será de uma alegria louca. O senhor parecerá um alferes em boa ventura divertindo-se com a sua "grisete"...

"Levar-me-á ao teatro, para o fundo de um camarote muito escuro, ou para alguma frisa de boca com rótulas.

"Iremos ainda a outros lugares. Terei singulares fantasias. Os cafés-concertos dos Campos-Elysios, o Alcazar, os Embaixadores, e o Relógio, tentar-me-ão igualmente... e o Circo, e quem sabe, Mabille também talvez.

— Mabille! repetiu Marcel estupefato, quase escandalizado. Quer ir ao Mabille?

— Não sei o que é aquilo mas por que não hei de ir? Afirmam que é divertido, e estou tão aborrecida há já um ano, que tenho raivas de prazer e acessos de excentricidades. Além disso, oculta no meu véu como um frade no seu capuz, quem seria capaz de me conhecer? Quem adivinharia em mim a Marquesa de la Tour-du-Roy, pelo braço de Marcel Laugier, tenente demitido? Ora pois, mas vejamos, que tem? eu que imaginava vê-lo ébrio de alegria! Parece que me enganei, e que o seu entusiasmo vai baixando de temperatura.

— Lazarine... querida Lazarine, murmurou o mancebo, vou provar-lhe quanto a amo, porque de propósito e por amor, vou correr o risco de lhe desagradar. Deveria considerar-me o mais feliz dos homens pensando no importante lugar que me oferece na sua vida!

— E o senhor não o é?

— Não, porque os seus projetos horrorizam-me.

— Pode-se-lhe perguntar porque?

— Porque lhe tributo tanto respeito quanto amor.

— Falta-me esse respeito?

— Está arriscada a perdê-lo. Fazendo o que tenciona fazer vai comprometer-se irreparavelmente.

— Aos olhos de quem?

— Aos olhos de todos quantos a rodeiam. Recorda-se do que me dizia há três meses no parque da la Tour-du-Roy. — Os criados são espiões fornecidos pela fortuna. As suas misteriosas saídas de noite intrigarão muito e grandemente aqueles que fazem parte da sua casa. Hão de segui-la... hão de espiá-la. Saber-se-á que vai ter comigo, e os rumores da antecâmara subirão à sala, como a grande ária da Calúnia, que tocada pela filha do porteiro no piano desafinado da loja,.sa faz ouvir em todos os andares.

Lazarine tomou um ar de pessoa ferida em sua dignidade.

— Muito agradecida por suas prudentes ternuras, querido amigo, redarguiu ela. O cuidado que tem pela minha reputação chega a ponto de lhe impedir que partilhe comigo o que chama as minhas loucuras? Seria preciso dizer-mo com essa franqueza um pouco rude de que me deu uma inequívoca prova. Refletirei. Sou livre, absolutamente livre. Não dependo de ninguém no mundo. Aceito por um único juiz a minha consciência. Interrogo-a, e ela responde-me que não faço mal. Não renuncio a nada do que resolvi, mas respeitarei os seus escrúpulos, e confiada na sua discrição de homem social e urbano, escolherei outro cavalheiro que seja menos timorato do que o senhor. Que decide? Reflita depressa, e responda!

Marcel dizia consigo:

— Procedi como um tolo! Quem me manda ser moralista? Pregava eu moral à Mariette, sob os cortinados do grande leito à Luiz XII do palácio de Orleans? Que me importa, no fim de contas, a reputação senão a mim mesmo? Ela não é minha mulher, e recusará provavelmente vir a sê-lo. Por meio do jogo que juntos vamos jogar, antes de três dias serei de novo seu amante. Que mais me é preciso?

O silêncio do mancebo abatia Lazarine.

— Refletiu? disse ela cheia de impaciência. Espero, bem vê, e não tenho o costume de esperar.

Marcel quis pegar-lhe numa das mãos que ela retirou novamente

— Querida Lazarine, disse ele sorrindo, fiz o que devia fazer dizendo o que disse, mas não sou por certo menos seu. Disponha absolutamente de mim, terei muita satisfação em ser cúmplice nas suas loucuras.

A Marquesa reanimou-se.

— Oh! ainda bem! redarguiu ela, deveria puni-lo pela hesitação, mas sou boa e perdôo-lhe. Retire-se agora!

— Já?

— Sim, excitou-me os nervos... não quero vê-lo hoje.

— Amanhã, às seis horas, onde sabe.

— Até amanhã... repetia Marcel pegando de novo na galante mão que desta vez Lazarine não lhe retirou.

 

AVENTURAS

As coisas sucederam como a Marquesa tinha previsto.

No dia seguinte, à hora combinada, Marcel esperava em frente do n.° 5, da avenida da Rainha de Hortência. A senhora de la Tour-du-Roy, coberta com um espesso véu, saindo do seu palácio como uma mulher que vai à entrevista de um amante, ia juntar-se com ele, e subia para a carruagem soltando uma gargalhada argentina.

— Sou eu... disse ela. Que julga da minha exatidão? Está pelo menos contente por me ver?

— Sou tão feliz, que nem sei como exprimir a minha ventura... Essa resposta romântica era já de esperar, mas aceito-a como dinheiro de contado.

— Que quer fazer?

— Em primeiro lugar jantar. Estou morta de fome. Em casa fui à mesa, mas pretextando uma enxaqueca, não toquei em coisa alguma.

— Onde jantamos? Onde quiser.

Marcel baixou a vidraça de diante, e disse ao cocheiro o nome do restaurante vizinho de Port-Maillot.

Um quarto de hora depois, os dois jovens ocupavam um gabinete, e o ex-tenente, guiado por Lazarine, muito mais gastrônoma do que ele, encomendava uma lista digna da estima dos conhecedores.

A refeição foi encantadora.

A senhora de la Tour-du-Roy, alegre por satisfazer o seu capricho, e dar livre curso à sua fantasia, estava de uma alegria quase ruidosa. A Lazarine de outro tempo reaparecia completamente.

A filha do banqueiro milionário, a excêntrica cocodette do tempo dos peralvilhos, metamorfoseada em fidalga pelo seu casamento, tinha deixado em casa as maneiras nobres, esquecido o seu brasão, e naquele gabinete banal, onde tantas pecadoras idiotas tinham escrito os seus nomes nos espelhos com os diamantes dos seus anéis, parecia uma alegre rapariga da Boêmia galante e divertida.

Às vezes levantava-se da mesa, sentava-se ao piano, corria os dedos pelo teclado solfejando dois ou três acordes, cantava alguns compassos de um "couplet" de opereta Judic imitando Thereza, e voltando a estender o seu copo, que Marcel enchia de Saint-Péray gelado.

À sobremesa fumou cigarrilhas.

Marcel, quase incomodado, primeiro por aqueles modos que não esperava, não o deu a conhecer, e retribuiu a Lazarine com um perfeito entusiasmo.

Quis modificar o tom do diálogo, substituir os equívocos por agradáveis conceitos, e levar a conversação para os atalhos do terno, mas falhavam completamente as tentativas.

Lazarine, risonha e zombeteira, não se deixou levar senão para onde queria.

Isto é, a jovem abrigou-se sob a bandeira de uma virtude muito afetada num "tête-à-tête" em lugar perigoso? Não pensou nisso um instante; ela portou-se como um bom rapaz em toda a extensão da palavra, não se zangou; somente não permitiu nada, e quando Marcel arrastado pela sua paixão, animado pelas suas recordações queria tentar mais, uma pancada com o leque nos dedos, acompanhado de uma gargalhada, fazia-o entrar na ordem.

O ex-oficial contava muito com aquele momento de quase febril excitação que seque a um bom jantar, quando os vapores do vinho, subindo aos cérebros femininos, tornam os corações mais francos, e preparam as horas das confidencias.

Contava mal.

— Depressa! a carruagem! exclamou a Marquesa depois de ter bebido o espírito de Chartreuse com que acompanhou o café, — vamos ao Relógio, ou aos Embaixadores, e já não chegamos cedo. Quero tudo ver e tudo ouvir.

Marcel obedeceu, não sem soltar um grande suspiro, e o coupé rodou para os Campos-Elyseos.

Lazarine com certeza pretendia manter em estreitos limites o seu cavalheiro servente, mas não desanimá-lo, porque durante o trajeto, ela não obstou a que ele lhe passasse um braço em volta da cintura delgada, e até mesmo reclinou a formosa cabeça no ombro com um perigoso abandono, e o jovem pode embriagar-se em o perfume dos cabelos que lhe roçavam pelo rosto.

A carruagem parou.

Marcel, achando, não sem razão, que tinha chegado muito tarde, suspirou de novo, mas disse para se consolar:

— Ora! isto é só partida adiada.

E dando o braço a Lazarine introduziu-a no recinto enquadrado pela folhagem e das grandes árvores, e pelos cordões flamejantes de um renque de luzes de gás que projetavam uma luz branca e quente.

A noite estava bela.

Uma multidão compacta, ávida de cerveja e de melodia, enchia aquele vasto quadrilongo, templo da música popular, dos mazagrans, dos bocks e das sodas.

Havia apenas livres alguns lugares reservados atrás da orquestra.

Marcel para aí conduziu Lazarine, e sentou-se ao lado dela.

Defronte deles, distante quando muito dez passos, abriam-se os bastidores do teatrinho construído ao ar livre, que as luzes da rampa dos lustres, e dos candeeiros, inundavam de claridades deslumbrantes.

Na cena à direita e à esquerda, sentadas em fauteuil, formando semicírculo, uma dezena de raparigas com toilettes de baile muito vistosas, pretensiosamente penteadas, decotadas o mais possível, nuas dos braços até aos ombros, e dos ombros até aos rins, empunhavam enormes bouquets, e deitavam para o público olhares provocadores.

Aquelas meninas, muitas das quais eram de uma beleza bestial, não contavam e não pertenciam a nenhuma fração do mundo artístico, mesmo o mais ínfimo. Faziam parte da ornamentação, e constituíam uma exibição de várias carnaduras para maior alegria dos amadores da plástica, dos quais alguns, os menos novos, — limpavam as lunetas para melhor gozarem de tão delicado espetáculo.

Entre este duplo renque de figurantes, no proscênio e diante do buraco do ponto, uma cantora em voga, chamada cantora cômica, entregava-se ao exercício da sua profissão com um sucesso incontestado.

Era uma rapariga ainda nova, de um louro claro, baixa, muito bonita, bastante elegante, atrevida como um pajem, despachada como um gaiato.

Vestia o que no teatro se chama um costume de aldeã.

A saia muito curta, de riscado encarnado e branco,deixava ver bem as meias de seda azul muito esticadas, desenhando os contornos graciosos da perna. O seu avental branco de babadouro ajustava-se num colete de veludo negro chanfrado de modo a regozijar os olhos. Os cabelos claros soltavam-se-lhe debaixo da touca.

Cantava, com uma voz aguda e penetrante, uma canção aldeã obscena, cuja letra, por pudor, não nos atreveríamos a indicar aqui, e aqueles gracejos torpes exaltavam o auditório.

Riam a bom rir! Interrompiam o espetáculo com estrepitosos aplausos. Sublinhavam com bravos os detalhes mais livres, as palavras de duplo sentido.

No estribilho a cantora, excedendo a si mesma, fazia um rapidíssimo movimento, e dando provas de uma ciência coreográfica desenvolvida com certeza por longos e pacientes estudos no cassino Cadet, salvava o galã com um salto di primo carteio, e caia ora sobre as coxas, ora sobre os braços, desenvolvendo uma coreografia incomparável.

O entusiasmo do público subia então ao delírio. Batiam com as mãos, com os pés: Bis! e caia no palco uma avalanche de bouquês.

E a cantora, embriagada pelo seu triunfo, recomeçara os seus exercícios, sorria, cumprimentava, atirava beijos, mostrava o colo, e apanhava as flores.

Marcel Laugier, apesar de ser oficial de hussardos, sentia um certo desgosto. Ele teria dado muito, o ingênuo mancebo, para que a senhora de la Tour-du-Roy estivesse dali muito longe, e não manchasse nem os seus olhares, no contato grosseiro daquelas torpezas. Lazarine inclinou-se para ele.

— Vai-me pedir para sairmos, disse então ele de si para si!

— É muito engraçada esta rapariga! murmurou a Marquesa ao ouvido dele.

— Acha? perguntou ele com um certo ar de consternação.

— Acho, sim. O senhor há de me procurar as letras e a música da cançoneta? Hei de tocá-la na meu piano, e com ela hei de mimoseá-lo uma noite à porta fechada.

— Então, não nos vamos?

— Creio que não! Divirto-me muito! Há mais de dois anos que me não distraio tanto.

Marcel sem responder fez um gesto de resignação, e confessou em voz baixa que as mulheres eram, às vezes, um pouco singulares. À canção seguiu-se um intermédio por clowns.

Dois truões ingleses altos e magros como galgos, e tão magros que, metidos nos seus fatos de malha pretos, pareciam transparentes, entraram em cena ao lado um do outro andando sobre as mãos.

Uma esbelta rapariga, belga como um silfo, um diabinho vestido com um fato de malha encarnado, e com botinhas douradas, descansava os seus pés nos pés dos dois clowns, e a sua cabeça loura tocava nas gambiarras do teatro.

Os homens negros deram uma cambalhota e ficaram de pé.

O diabinho vermelho deu três voltas no ar e caiu sobre as mãos. ficando de pés para o ar entre os seus companheiros esguios.

Começou, então, uma coisa inaudita, difícil de seguir com os olhos, impossível de descrever; uma espécie de fantasia, furibunda, fantástica, incompreensível.

Era um rodopio de três corpos deslocando-se, torcendo-se, enlaçando-se numa tal confusão e promiscuidade, que não se sabia a que bustos pertenciam os braços, em que troncos estavam presas as cabeças, de que troncos surgiam as pernas.

Nunca as curvas de serpente pareciam mais inexplicáveis e mais inextrincáveis.

O diabinho vermelho parecia uma chama crepitando entre carvões apagados esforçando-se por acendê-los.

Em seguida, os esqueletos negros fizeram do diabinho uma espécie de voador. Com as suas mãos compridas e nervosas, verdadeiras patas de gorila, um deles atirava a jovem de um extremo ao outro da cena com a impetuosidade de um morteiro expelido pelo competente obus. O companheiro apanhava-o no ar para a reenviar logo, por tal forma e com tanta certeza, que, de segundo a segundo, via-se aquele corpinho esbelto cortar o espaço girando sobre si mesmo.

Isto durou dez minutos pouco mais ou menos.

Durante estes dez minutos, Lazarine tremendo, mas muito encantada, não respirava, e agarrava-se nervosamente com ambas as mãos aos braços do seu fauteuil.

Acabado isto ela inclinou-se para Marcel Laugier, como tinha feito depois da canção, e disse-lhe em voz baixa:

— É prodigioso! Um falso movimento, um erro, uma distração, um nada, e matariam a pobrezinha! Vê-la cair e despedaçar-se nestas tábuas! Que espetáculo! É horroroso. Faz tremer. Aqui vive-se. Ah! querido amigo, como isto é bom! Havemos de voltar cá, não é verdade?

Marcel viu-se obrigado a confessar que Lazarine falando como falava, não mostrava muita bondade de coração, mas lembrou-se das espanholas, nobres burguesas e manolas, que assistiam sem voltar a cara às corridas dos touros, e achavam um prazer ardente e feroz em ver o sangue alagar a areia da arena, e os toreros arriscarem a vida e perdê-la.

São todas assim com certeza, disse ele consigo, e esta reflexão sossegou-o.

Um pouco antes da meia noite Lazarine, embriagada com os gozos daquela noite, apeava-se da carruagem ao canto da avenida de Messine para regressar ao seu palácio pelo Parque-Monceau, e separava-se de Marcel Laugier dizendo-lhe:

— Até amanhã...

— Até amanhã, murmurou o mancebo seguindo com o olhar aquela forma elegante que se afastava rapidamente.

Amanhã terei, novos direitos, e a Marquesa de la Tour-du-Roy tornar-se-á Mariette!

 

O MOMENTO DA DERROTA

Marcel Laugier iludia-se esperando reconquistar no dia seguinte, na mais alta acepção da palavra, aquela que durante uma noite tinha sido Mariette.

A Marquesa, armada de uma resolução que ela julgava inquebrantável, queria aceitar o ex-oficial como amigo muito íntimo, como camarada de prazer, como meio de distração, mas recusava-se absolutamente a deixar-lhe tomar direitos novos.

Só o pensamento de forjar uma cadeia sólida e difícil de quebrar tornando-se a amante de Marcel, lhe causava um sério susto.

Logo às suas primeiras tentativas, o mancebo bateu-se contra uma resistência risonha e de nenhum modo feroz, mas invencível.

Muito gentleman para procurar o êxito numa insistência brutal; compreendendo, além disso, que uma desastrada teima destruiria aquela intimidade que constituía para ela uma felicidade incompleta, mas real e muito viva, resignou-se e tomou o partido de tudo esperar do tempo e da ocasião. ~

Duas os três vezes por semana a senhora de la Tour-du-Roy renovava aquelas fugas, muito inocentes em suma, que agradavam à sua natureza excêntrica, e que o mistério de que ela as rodeava lhe faziam parecer ainda mais saborosas.

Os jantares campestres nas tabernas dos arredores de Paris encantaram-na sobretudo, sem dúvida pelo contraste da sua rusticidade com o luxo no meio do qual vivia.

Marcel conduzia-a alternativamente ao Chalet de Suresne, onde aquela epicurista de paladar estragado pelos primores do seu cozinheiro, achou o peixe frito incomparável, e declarou que as caldeiradas não tinham rival; depois aquele restaurante extravagante colocado como um castelo de cartas na margem da lagoa da Ville-d'Avray e composto de um grande número de mirantes e de pequenos gabinetes sobrepostos, para os quais se subia por escadas vacilantes semelhantes às escadas da marinha, de onde se descreve, por entre os festões de vinha silvestre e da madressilva, as colinas cobertas, de mato da outra margem, refletindo as suas cumiadas verdes no espelho azul da lagoa; cochicholo original e que seria adorável se os manjares oferecidos aos comensais não fossem tão desagradáveis como encantadora era a paisagem.

Como um estudante com a sua companheira, foram juntos à Cabeça Negra de Joinville-le-Pont, adoradas pelos que passeiam em canoas, ao Chalet da Porta-Amarela, não longe do reduto de Vincenes, e a outros muitos sítios ainda, porque Lazarine não se cansava.

Iam acabar sempre à noite em algum teatro do "boulevard".

Aquelas distrações de costureira feliz divertiam muito a marquesa.

Em cada nova entrevista operava-se nela, involuntariamente, uma modificação que Marcel notava com febril alegria.

Lazarine ia perdendo a sua energia; a sua couraça de impassibilidade zombeteira caía malha por malha; a sua familiaridade tornava-se cada vez mais terna, o sentimento feminino começava a tomar parte na sua camaradagem de bom rapaz, sem o saber e sem o querer, aquele coração leviano, aquele espírito fértil, aquela brilhante e feia natureza, sofriam a serena influência da paixão viril do mancebo.

Marcel dizia consigo, que o momento psicológico estava próximo, e devemos confessar que, desta vez, o cálculo das probabilidades parecia dever dar-lhe razão.

Estava-se no começo do mês de agosto.

Davam sete horas da noite. A carruagem na qual Lazarine acabava de dirigir-se ao sítio do costume, descia rapidamente a avenida da Imperatriz.

— Aonde me leva a jantar? perguntou a Marquesa.

Ao restaurante da Cascata, respondeu Marcel, a não ser que queira o contrário.

Lazarine não tinha objeção a fazer.

Todos os parisienses, todos os estrangeiros, que nem seja uma vez em sua vida tenham posto os pés em Paris, conhecem o café, que por estar colocado na parte mais deliciosa do Bosque de Bolonha, aspectos dignos de tentar os pincéis de um artista.

A paisagem que o rodeia de qualquer ponto que seja vista, tem aspectos dignos de tentar os pincéis de um artista.

É a natureza arranjada, seja! mas com tão prodigiosa habilidade, que o arranjo não se nota nem se adivinha.

Dir-se-ia um canto da floresta de Fontainebleau, onde a desigualdade selvagem foi substituída pela graça esquisita.

À direita do caminho cheio de sombra que por um declive suave conduz dos lagos à planície de Longchamps, a grande cascata com as suas transparências, com as suas cóleras, com os seus cachões de Niagara em miniatura; as suas grandes rochas coroadas de vegetação luxuriante com as suas grutas sombrias, donde se vê, como num sonho, os horizontes longínquos através o cristal movente da água que cai.

À esquerda um tabuleiro semeado de árvores gigantes, patriarcas duas vezes seculares, vigorosas sempre e cheias de seiva, protegendo com a sua imensa sombra a relva de um verde esmeralda, e os vasos de flores brilhantes.

Todas as carruagens de Paris, desde o grande mail a quatro, e a vitória de oito molas até ao mais humilde coupé, tem dado a volta àquele tabuleiro.

Ao fundo, o café da Cascata, afogado de dia entre a folhagem, cintilante de fogos à noite, como um palácio de fadas em baile teatral. O que acabamos de descrever é um oásis, não num deserto, mas num paraíso.

Por toda a parte, nos arredores, maravilhas.

Bagatelle, a residência cheia de recordações pertencente hoje a Richard Wallace, aquele inglês de coração francês.

O Moinho, aquela jóia coberta de era, que parece arrancada a um quadro de Ruysdael, e para a qual seria preciso um cofre.

O Hipódromo de Longchamps com a sua moldura sem igual de verdejantes espessuras e colinas semeadas de vivendas campestres, e muito, no fundo, dominando com a sua alta sombra parda aquela radiante paisagem, o Monte Valeriano.

A carruagem parou.

A senhora de la Tour-du-Roy mais velada do que nunca, apeou-se e olhou em redor de si.

— Isto faz-me lembrar a minha mocidade, disse ela rindo. Quando eu era ainda a pequena Leroux, vinha aqui de manhã montada na minha Norah, ou no meu duque com os meus poneys e bebia dois dedos de Xerez sem me apear do cavalo ou do trem. Ia ao café Madrid algumas vezes, isto porém é muito mais alegre.

A Marquesa e Marcel subiram para o primeiro andar. Abriu-se um gabinete de onde se via por sobre o grande arvoredo, o moinho e uma' fonte da planície.

No gabinete vizinho ouvia-se falar, rir, e as notas claras de uma escala ascendente interrompida logo que principiava.

— Quem está ali? perguntou Lazarine ao dono do hotel que tinha vindo receber as ordens e certificar-se de que estava tudo como devia estar.

— São uns sujeitos e umas senhoras de teatro! minha senhora, jovens encantadoras. Estão muito alegres.

E nomeou muitos artistas conhecidos pertencentes aos dois principais teatros de operetas.

— Quer mudar de gabinete? disse Marcel.

— Mudar de gabinete? volveu Lazarine. Para quê?

— Aqui ouviremos quase tudo o que se disser do outro lado, porque aquelas senhoras e aqueles sujeitos falam, alto, e isso pode tornar-se incômodo.

— Não, querido amigo, redarguiu a Marquesa. Tanto melhor se se ouvir. Há de ter graça.

O fato é que o ruído das vozes chegara claro e distinto, mas não se percebia o que diziam, exceto algumas palavras articuladas muito sonoramente.

Puseram a mesa.

O calor da noite permitia, pedia mesmo, para deixar aberta a janela que deitava para o grande largo. Quando os artistas do gabinete vizinho se calaram, o murmúrio suave e monótono da cascata entrava pela janela com os aroma? agrestes das medas enormes de feno amontoadas no prado de Longchamps, onde estão uma parte do inverno.

O sol tinha desaparecido detrás das colinas de Suresnes; o crepúsculo vinha lentamente, e não devia ceder o lugar à obscuridade. porque a lua cheia aparecia redonda e prateada, no horizonte do antigo cemitério de Bolonha.

Lazarine e Marcel, sentados um defronte do outro, comiam quase sem trocar uma palavra.

A jovem estava, com certeza, menos ruidosa que de costume.

O ex-tenente olhava muito para ela, mas disfarçadamente, e parecia esperar alguma coisa.

Trouxeram a sobremesa e ao mesmo tempo um refrigerante de plaque, uma garrafa de vinho de Champanhe metida em salitre e gelo.

— A senhora quer que acenda o gás do lustre, ou prefere as velas dos candelabros? perguntou o dono do hotel.

— Nem uma nem outra coisa, respondeu a Marquesa, está-se muito bem assim.

E realmente, aquela claridade pálida, envolvendo os objetos numa meia sombra, sem contudo lhe tornar os contornos indecisos, era de uma extrema suavidade.

O dono do hotel tinha desaparecido.

— Não acha que faz muito calor, Marcel? perguntou Lazarine.

— Sim, redarguiu o mancebo, o tempo anuncia talvez borrasca.

— Tenho sede... dê-me alguma coisa de muito fresco.

— Aqui tem vinho gelado.

— Obrigada.

A Marquesa despejou duas vezes seguidas, o copo cheio até derramar.

— Ah! como isto sabe bem! disse ela; em seguida, levantando-se, ajuntou: Venha à janela.

Ambos se encostaram ao parapeito.

O clarão prateado da lua dera à planície de Longchamps um caráter particular, e transformava-o de algum modo. Parecia coberta de neve. O moinho e os grupos das grandes árvores projetavam naquele fundo nevado sombras negras como tinta. A cidadela do Monte Valeriano, cuja fachada estava vivamente iluminada, desenhava em branco no céu de um azul escuro.

Lazarine e Marcel contemplaram em silêncio durante alguns minutos aquela paisagem de singular aspecto.

A porta, abrindo-se atrás deles, obrigou-os a voltarem-se.

Traziam o café, os licores, e as caixas de charutos.

— Se quiser mais alguma coisa tocarei, disse Marcel.

— Aviemo-nos, disse Lazarine. Não sei o que tenho esta noite, desejava- ir-me embora.

— Já.

— Sim... Sinto-me triste sem motivo. Estou nervosa.

— Não iremos a parte alguma quando sairmos daqui?

— Não. Desejo retirar-me. Bem vê que estou insípida.

È, sem transição, a Marquesa ajuntou:

— Cale-se! ouça.

O piano do gabinete vizinho, tocado por mão experimentada, fazia ouvir um brilhante prelúdio.

Terminado aquele prelúdio, ouviu-se uma voz de homem doce e grave ao mesmo tempo, cantando os primeiros compassos de uma letra cujas palavras não se ouviam, mas cuja música exprimia ternuras infinitas.

Respondeu-lhe uma voz de mulher, voz de cristal, quente, penetrante, apaixonada, quase semelhante à voz de madame Perchard na Muller da Timbale.

Depois as duas vozes fundiram-se numa, e ouviu-se então um dueto de amor de uma incomparável doçura.

Lazarine experimentava uma profunda sensação que ela não explicava, e que não teria podido definir.

Deixou-se, então, cair sobre o largo divã do gabinete, com a cabeça deitada para trás, escutando com todas as forças, absorta no inesperado gozo que lhe preparava aquela música.

Marcel sentou-se ao lado dela; quase a tocá-la, beijando-lhe os ombros, ela pareceu não reparar em tal.

A voz de homem tinha recomeçado só, alternando com a voz de mulher para se abraçar a ela de novo e cada vez mais estreitamente.

A expressão da música interpretada pelos artistas invisíveis, mudará pouco a pouco de natureza, tornava-se lasciva. Por momentos o canto era um murmúrio harmonioso e vago, fraco como um suspiro, fremente como um abraço, e parecia que se ouvia como nas Orientais:

 

"S'éouffer des baisers, se mêler des raleines."

 

Lazarine deixou cair a cabeça no ombro de Marcel. Marcel passou o braço em volta da cintura da Marquesa, que se dobrou mas sem resistir...

Era chegado o momento psicológico.

 

UMA DECLARAÇÃO

Quando os cantores acabavam o duelo de amor no gabinete vizinho, ao ruído dos aplausos dos seus camaradas, Lazarine julgou acordar de um sonho ao ver Marcel ajoelhado diante dela, e beijando-lhe as mãos com todas as loucuras do amor feliz e reconhecido.

Sem mesmo escutar as ardentes palavras que a mancebo murmurava a seus pés, ela sentia-se tomada de cólera, de ódio, quase, contra ele, e não compreendendo nada da sua própria fraqueza, acusou Marcel de ter misturado no vinho que lhe deitava algum daqueles afrodisíacos de que os romancistas do antigo jogo faziam um tão freqüente uso, em seus escritos, bem entendido.

Mas para que serviam o ódio, a cólera e as absurdas acusações?

Nada podia prevalecer contra o fato consumado.

Desta vez não era Mariette, era a senhora de la Tour-du-Roy: que acabava de pertencer ao ex-tenente, e este, forte dos seus novos direitos, que, levado pela cegueira da felicidade masculina, atribuiria ao amor da Marquesa, não se deixaria facilmente desempossar.

Lazarine, tomada, por uma surpresa dos sentidos, amante de Marcel Laugier que nunca amara, ficava amando-o menos, não lhe perdoava o que havia alcançado, e perguntava a si mesma, cheia de espanto, como procederia para se livrar dele e afastá-lo do seu caminho.

A esta objeção não podia ela responder.

O mancebo, nos primeiros tempos, não se mostrou disposto à abusar do seu triunfo, ficou submisso aos menores caprichos da sua amante, não pareceu desejo só de representar na sua vida um papel mais preponderante do que aquele com que se contentara até ali; e a Marquesa notando-lhe uma moderação pela qual não esperava, tornou, elo menos momentaneamente, o partido que se toma quando nos ataca um mal sem remédio.

As partidas de campo continuaram como antes do incidente da Cascata, e Lazarine cuja moral era das mais fáceis, acabou por se habituar ao abandono quotidiano da sua pessoa, e mesmo achou nisso algum encanto.

Marcel nunca falava como senhor, abdicava da sua iniciativa, da sua vontade. A cada novo encontro jurava à sua amante que queria ser e ficar sendo seu escravo, e que achava na obediência absoluta uma suprema volúpia.

O ex-tenente dizendo isto declarava a verdade e submetia-se.

Estava pronto para tudo, para tudo aceitar, exceto um rompimento de relações. O seu amor longe de diminuir pelo posse, aumentava. Amante de Lazarine, pretendia ficar sendo seu amante. A possibilidade de perdê-la era a única eventualidade que recusava admitir.

As coisas continuaram assim durante algum tempo, depois, pouco a pouco, como quase sempre sucede, Marcel começou por não se satisfazer com aquilo a que ele primeiro chamara o ideal da sua ventura, e mostrou-se mais ambicioso.

— Para que haviam de ser aquelas ternuras clandestinas? perguntou ele a si mesmo. O nome que tenho é honroso, e a minha fortuna, sem igualar a de Lazarine, é bastante para me colocar ao abrigo de toda a suspeita de cálculo vergonhoso.

Pois não é humilhante para mim o mistério de que rodeio as minhas relações com uma mulher que não tem a quem dar contas das suas ações, e que pode livremente dispor da sua mão?...

Lazarine cora de amar-me? para que oculta ela assim o seu amor?

Daí a falar em casamento era só um passo.

Esse passo deu-se.

 

Marcel, um dia, num "tête-à-tête", cuja intimidade não podia ser mais absoluta, estreitava nos seus braços a jovem.

A linda cabeça de Lazarine envolta nas ondas dos seus cabelos despenteados, descansava no peito do mancebo.

— Queridinha, balbuciou, sabe uma idéia que tive? A Marquesa, por única resposta, abanou a cabeça.

— Não pensa como eu, prosseguiu Marcel, que uma felicidade, por mais completa que seja, aumenta sempre, e de um modo notável, pela certeza da duração?

— Talvez... murmurou Lazarine cujo intróito excitava a sua desconfiança, e que não queria obrigar-se por uma condescendência irrefletida. A palavra duração, algumas vezes, ajuntou ela, é sinônima de monotonia.

— Não nas coisas de amor.

A senhora de la Tour-du-Roy havia-se desembaraçado dos braços carinhosos que a rodeavam.

Olhou de frente para Marcel.

— O que quer? perguntou-lhe ela.

— Isto: respondeu ele, não sem uma violenta trepidação interior; por que não faz do mais terno dos amantes, o mais fiel, o mais obediente, o melhor dos maridos?

Lazarine estremeceu, e as suas negras sobrancelhas franziram-se a seu pesar. O atrevimento daquele homem irritava-a profundamente, mas não queria deixar-lhe ver a sua irritação.

— Que loucura! exclamou ela com um riso de falsete.

— Loucura, por que? disse vivamente Marcel.

— Porque tudo o que é inútil não tem razão de ser. Julga-se ganhar na mudança, e pode-se perder. Isso vê-se... Não estamos assim bem? Acaso nos amaríamos mais se fôssemos casados.

— Amar-nos-íamos menos?

— Quem sabe?

— Não fale assim, querida Lazarine, redarguiu Marcel, e pense na felicidade de confessar diante de todos, à face do mundo, o amor que é o meu orgulho.

A Marquesa abanou de novo a cabeça.

— Paradoxo! disse ela. O mundo e a publicidade não têm nada que ver nestes negócios de amor... O mistério, creia, duplica o amor. Não tem mais certeza que sou sua quando me entrego livremente, do que quando lhe pertencesse por lei? O que se me impõe, amedronta-me. Quer saber a minha opinião sem perífrases? Ei-la: 0 casamento é um negócio, e não outra coisa... Fiz um negócio casando aos dezoito anos com o Marquês de la Tour-du-Roy que poderia ser meu avô; mas entre nós, perguntou-lhe, onde está o negócio, por conseguinte, para que serve o casamento?

— Legitimar os nossos laços... começou Marcel.

— Frases! interrompeu Lazarine num tom de voz zombeteiro encolhendo os ombros. O senhor inverte os papéis, querido amigo! São as raparigas quem, por costume, quando têm cometido uma falta, suplicam ao cúmplice para a reparar e legitimar. Não reclamo nada, e é um escrúpulo bastante extravagante e bastante curioso que o perturba assim! O caso é singular! ajuntou a jovem rindo. Vejamos, tenho diminuído a sua honra?

— Oh! basta por amor de mim! interrompeu de novo Lazarine. Desista de convencer-me, perde tempo e trabalho. Fiquemos amigos, e não falemos mais nessas loucuras.

 

UMA APARIÇÃO

Marcel calou-se, um pouco comovido e assustado das teorias que tinha ouvido, mas dizendo consigo que no fundo, por certo, não eram senão fanfarronadas e excentricidades.

O hussardo recusava acreditar no cinismo da sua amante, tão escandaloso o achava.

Sentia-se muito abatido, mas não desanimado, e prometia a si mesmo voltar à questão.

Conhecemos há muito tempo o motivo da determinação de Lazarine; motivo que ele não suspeitava.

A única; idéia de deixar o título e o nome de Marquesa de la Tour-du-Roy para se apelidar simples e burguesmente madame Marcel Laugier, causava à jovem uma repugnância inaudita, repugnância que grande número de senhoras honestas qualificariam, com certeza, de muito legítima.

O ex-tenente, como prometera a si mesmo, não se deu por vencido, e tornou à carga.

Tornou até muitas vezes; e com uma persistência infatigável, e quem sabe se a jovem viúva, um dia ou outro, cansada da luta, não acabaria por se confessar quando não convencida, pelo menos vencida, e por aceitar um domínio contra o qual debalde se debatia.

Tudo é possível... Tudo acontece... Ainda mesmo o inverossímil, ainda mesmo o impossível.

Infeliz ou felizmente para Marcel Laugier, uma circunstância que ninguém no mundo teria podido prever veio destruir as suas esperanças, e aniquilar as fracas probabilidades que teria de poder um dia conseguir seus fins.

 

Lazarine, sabemo-lo, dava quase todas as suas noites a Marcel Laugier, que nunca vinha a sua casa, mas conservava a livre disposição das tardes que consagrava a receber e a pagar as suas visitas.

Uma quinta-feira, a senhora de la Tour-du-Roy estava no "faubourg" Saint-Honoré em casa da princesa Alvinzi, com quem travara conhecimento em Florença, e em casa de quem havia naquele dia recepção.

Ainda que Paris estivesse quase despovoada, naquela época do ano estava, graças aos membros da diplomacia e aos estrangeiros, muita gente na imensa sala, e a verve italiano da dona da casa não deixava um momento enfraquecer a conversação.

O camarista da princesa anunciou:

— O senhor Príncipe de Castel-Vivant.

— Oh! o querido príncipe, disse de si para si Lazarine, não o vejo há séculos.

Que se julgue do seu espanto ao ver aquele que acabavam de anunciar.

O novo recém-chegado não era o velho fidalgo, mas um homem de vinte e cinco ou vinte e seis anos, perfeito, elegante, de maneiras aristocráticas, e coisa estranha, prodigiosa, inverossímil, aquele jovem nobre parecia-se de um modo muito sensível com o brejeirete Heitor Bégourde!

Admitir que fosse ele parecia-lhe insensato. Como explicar aquele nome, aquele título, aquela transformação?...

Lazarine não o tentou, e, no primeiro momento, acreditou numa semelhança fortuita, e também aumentou o seu espanto quando ouviu a voz de Heitor dizer à senhora de Alvinzi a quem acabava de saudar:

— Princesa, far-me-á a graça de me apresentar a senhora Marquesa de la Tour-du-Roy, que por certo me não conhece, ainda que tenha a honra de lhe não ser desconhecido.

Era impossível duvidar por mais tempo.

Era ele! Heitor Bégourde, Príncipe de Castel-Vivant.

 

UM ANTIGO AMIGO

As exigências desta narrativa obrigaram-nos a por de parte o nosso antigo conhecimento de Heitor Bégourde, desde o dia em que por ter sido muito desembaraçadamente expulso do palácio de la Tour-du-Roy, por Júlio Leroux, devia ter-se retirado muito contrariado, muito humilhado envergonhado como a raposa apanhada pela galinha, da falta de Lazarine na entrevista ajustada debaixo do verdadeiro túnel da rua coberta, acontecimento este que destruía a mais cara das suas ilusões.

O interesse da nossa narrativa era muito outro, estava noutra parte.

O artista em embrião, no seu regresso a Paris, recomeçara o seu viver de boêmio, sem cuidados e desleixadamente, trabalhando algumas vezes, porque as necessidades da vida não lhe permitiam um far-niente constante, mas trabalhando o menos possível; ora pintando um quadro para Laurent Védel quando este, muito sobrecarregado de trabalho, recorria a ele, ora desenhando as caricaturas dos funcionários do estado, pedidas pelas folhas de estamparia que fazem de caricaturas políticas uma especialidade.

E embolsando algumas peças de cem soldos, Bégourde declamava mais do que nunca contra o Capital, e repetia aos ecos que Laurent Védel e os diretores dos jornais eram uma quadrilha de exploradores descarados.

Logo que o rapaz sentia um pouco de dinheiro pesar-lhe no bolso, procedia à maneira dos lazzaroni napolitanos, e ninguém no mundo seria capaz de o obrigar a pegar num lápis ou num pincel; não saía das cervejarias, comia conservas, bebia bocks, fumava, freqüentava o baile da Reine-Blanche, dignava-se honrar, às vezes, com a sua presença, o do Elysée Montmartre, e em companhia de madame Bobino e outras que tais amáveis criaturas, curava os fundos golpes que no seu amor próprio fizera aquilo a que ele chamava a traição de Lazarine.

Por meio daquele viver, Bégourde corria muito o risco de descer ràpidamente os últimos degraus da escala social. Estava no caminho perigoso muito conhecido dos rapazes novos preguiçosos e sem freio moral, para quem o senhor Alfonso, aquele tipo tão bem desenhado ao vivo pelo meu ilustre e querido amigo Dumas, era um feliz e esperto maganão.

Um resto de delicadeza ingênita e muito instintiva salvaguardava ainda o mancebo e o detinha à beira dos precipícios, mas aquela era tão estreita e tão escorregadia! De uma hora para a outra podia perder o equilíbrio e cair.

Tendo perdido toda a energia, toda a habilidade, toda a vontade, tendo, de mais a mais, horror ao trabalho, já não conseguia, senão por meio do crédito, continuar aquela existência ociosa, muito humilhante já, mas ainda não falta de honra.

E se se admirarem de que um rapaz na posição daquele, nas suas circunstâncias, sem que tivesse donde lhe viesse, conseguisse arranjar um crédito qualquer, responderíamos que se não tratava de adquirir grossos capitais (Bégourde não conseguiria juntar vinte francos), mas contraía minúsculas dívidas por toda a parte, e a propósito de tudo; dívidas de pequenos restaurante vulgarmente denominados tascas, dívidas nas lojas de tabacos, nos botequins, dívidas à lavadeira, etc. etc.

 

Heitor Bégourde, algumas vezes, depois da sua formal expulsão do palácio de la Tour-du-Roy, começava, apesar da sua habitual desenvoltura, a não saber onde ir bater com a cabeça.

A dívida berradora era já por demais.

Os seus credores convertidos em legião perseguiam-no, cercavam-no, deitavam-se a ele na rua, não o largavam, e como nada podiam obter, dirigiam-lhe em altas vozes os mais dissonantes epítetos, a ponto de fazer parar os transeuntes, e ser necessária a intervenção da polícia.

Geralmente, quanto menor é a dívida, mais grita o credor. Um carvoeiro que perde cem soldos, faz cem vezes mais barulho do que um banqueiro que perde cem mil francos.

Bégourde não temia a ação da justiça.

Como os seus domicílios eram muito vagos, e as suas roupas não constavam de outras senão das que trazia no corpo, e ai dele! muito insuficientes, estava ao abrigo dos rigores das penhoras, mas detestava as reclamações feitas em pleno "boulevard", e cônscio da pureza das suas intenções, achava intolerável ser publicamente alcunhado de caloteiro.

— Raios de Bougival! dizia ele às vezes possuído de sincera indignação: Não sei o que eles têm, todos esses cães me ladram! Eu sou um bom rapaz... que demônio! Se não lhes pago, é porque não posso... Quando puder, pagarei... Que esperem. Oh! o capital! o odioso capital explorador! o dinheiro, um rei que não vale mais do que os outros, e que deveria também ser destronado.

Resultava deste estado de coisas, que como o guarda-roupa de Bégourde não experimentava reformas, diminuía de uma maneira lamentável.

Os casacos de. veludo tão elegantes, estavam no fio, faziam-se num trapo e enchiam-se de buracos nos cotovelos.

As belas calças brancas já não eram mais do que uma sombra de si mesmas, e à falta de lavadeiras condescendentes, apresentavam escalas de variegadas cores, nenhuma das quais recordava a alvura primitiva...

Ainda não é tudo.

O giro por um grande número de ruas de Paris estava interdito para Bégourde por causa do Inglês...

O desgraçado não podia sentar-se num café, fosse onde fosse fumando e bebendo o seu bock, sem ter a quase certeza de ver aparecer um dos seus perseguidores, e parando defronte dele, gritar-lhe num tom furibundo:

— Ora pois! O senhor tem dinheiro para se encher de cerveja e de tabaco, e quando se trata de pagar dez escudos a um honrado pai de família, nem real!

Em seguida vinham logo os mais grosseiros nomes.

Bégourde ver-se-ia em grande embaraço para dar a sua morada a qualquer. De noite era às vezes seguido por diversos credores dos mais assanhados, que o esperavam à porta no dia seguinte. Por isso como certo tirano legendário, mudava de casa todos os dias.

Quando tinha algum dinheiro procurava um asilo para de noite, numa dessas pequenas estalagens dos "boulevard'' exteriores. Os donos já o conheciam, e faziam-no pagar adiantado.

O resto do tempo dormia em casa dos companheiros, em casa das amigas, e às vezes em casa de madame Bobino, boa rapariga, antiga atriz (do gênero Fretillon de Beranger), dedicada ainda assim, e apesar de tudo ao seu Totor querido.

Em meio de tais travessias e vendavais, o querido Totor não perdia a vontade de comer, nem mesmo a sua alegria.

Os maus dias, os dias tristes, eram aqueles em que o faziam trabalhar, sob pena de jejuar no dia seguinte.

Uma manhã, — nesse dia a caricatura política dava descanso, — Bégourde foi procurar Laurent Védel.

Muito a propósito o artista tinha trabalho para o seu discípulo numa luxuosa habitação que um banqueiro mandara arranjar em Ville-d'Avray. Levou Heitor, fechou-o positivamente num quarto, vigiou-o como se vigia um preso que pensa em evadir-se, e não o deixou partir senão ao fim de uma semana, com vinte e cinco luizes na algibeira.

Vinte e cinco luizes!... Uma mina do Peru!...

Alguns ingênuos suporão talvez que Bégourde empregou, não direi a totalidade, mas pelo menos uma fração dessa soma relativamente muito grande, em sossegar os credores mais ferozes dando-lhes alguma coisa por conta.

Não tratou disso!

Muito partidário daquela máxima que o pobre Murger de bom grado soltara: — "O credor a quem se paga converte-se num tigre!" — não pagou um soldo, e não cuidou senão de gozar boa vida enquanto durassem os quinhentos francos, depois de se ter feito enfarpelar desde os pés, até à cabeça num armazém de confecções.

 

CONTINUAÇÃO DO ANTECEDENTE

Existe no "boulevard" Batignolles, não longe do teatro, uma cervejaria alsaciana cuja clientela se compõe principalmente de rapazes e velhos, todos com pretensões a professarem qualquer ramo da arte.

São literatos inéditos que andam atrelados ao redator principal de uma obscura folha de couve para obterem a publicação de um artigo de cinqüenta linhas; futuros autores dramáticos que esperam fazer receber um "vaudeville" num ato no Teatro Montmartre; pessoas mais importantes, tais como os críticos imparciais adjuntos à redação do Furão dos Bastidores, jornal hebdomadário; músicos incríveis, atores do direito e seu séquito: porque não há comediante por mais inferior que seja que não tenha os seus aduladores, os seus satélites, finalmente, e sobretudo, pintores, desenhadores, gravadores fugidos dos ateliers vizinhos, sem fama alguma, mas contando com o futuro, e tendo talvez razão para isso.

Formava toda aquela gente um conjunto extravagante, ruidoso, pouco distinto, mas não ralé! Discutia-se muito e em altas vozes, mas era raro que a discussão degenerasse em rixa; os argumentos nunca se trocavam em socos.

À noite, vinham mulheres... Não eram senhoras da alta sociedade... não, meu Deus, não eram! mas o próprio Rato Morto, com justa razão tão célebre, ousaria ele afirmar que a sua clientela fosse essencialmente aristocrática?

Não, o Rato Morto não ousaria afirmá-lo... Não faltam patrícios à sua glória...

O estabelecimento alsaciano de "boulevard" de Batignolles não tinha nem podia ter mais altas vistas.

As mulheres que o freqüentavam pertenciam quase todas à tribo dessas esfomeadas virgens loucas, a quem a esperança, às vezes falsa, do oferecimento de uma gulodice ou de um bock, atrai e faz estacionar todas as noite por aquelas tabernas.

Outras eram modelos, não de virtude, mas de ateliers. Outras, enfim, atrizes dos teatros do distrito.

Como Heitor Bégourde era uma "habitue" da taberna, madame Bobino, primeira figura, dignava-se aparecer lá algumas vezes.

Dizemos primeira figura, por isto. Madame Bobino, depois de ter representado e cantado de falsete nas revistas do Luxemburgo, contentara-se durante alguns anos com entreatos, com as glórias coreográficas obtidas na Closerie des Lilás e em Valentino; depois, uma bela noite, resolveu entrar no teatro, não nos papéis de cascatas; mas nos sérios de ingênua e de primeira dama.

Com trinta anos de idade apenas, bonita rapariga, sabendo quase apresentar-se em cena, e sobretudo (coisa enorme para um diretor de teatro de arrabalde) tendo toilette; não exigindo além disso grande ordenado, foi acolhida de braços abertos, e representava com aplausos o drama em Batignolles sob o pseudônimo vaidoso de Celarina. Kervani escreveu para ela um papel.

Entremos, por uma noite do mês de junho, às nove horas, na cervejaria alsaciana.

Heitor que tinha vindo na véspera de Ville-d'Avray com os seus quinhentos francos, festejava, desde pela manhã, em companhia de meia dúzia de amigos e de Celarina, a nova estrela.

O teatro de Batignolles dava naquela noite em primeiro representação um drama que fora representado cem vezes a seguir no Ambigu-Comique.

No drama, a ex-madame Bobino fazia o papel de marquesa, e todos os personagens da peça falavam da sua aparência nobre e das soas maneiras de grande senhora.

Um grupo de rapazes, à frente dos quais vinha Heitor, irrompeu na cervejaria.

O grupo vinha do teatro, e aproveitava-se do intervalo para matar a sede.

Heitor pagava por todos, e ninguém ignorava as suas relações com a comediante. Os companheiros julgaram de bom gosto pagar em cumprimentos a sua parte.

— Esplêndida! disse um deles, está esplêndida, a senhora Bobino!

— Soberba! continuou outro. E bastante chic, de maneiras muito distintas, perfeitamente senhora da alta sociedade!

— Uma verdadeira marquesa, ajuntou um terceiro. Bégourde, com um murro violento, fez tremer a pedra da mesa e saltar os copos e garrafas.

— Uma mulher do mundo! uma marquesa! exclamou ele rindo. Oh! oh! oh! meus rapazes, que graça que vocês têm! Eu conheci mulheres da alta sociedade! Conheci marquesas! Não é aquilo!

 

UMA PERSEGUIÇÃO

A declaração que Heitor acabava de formular naqueles termos: "Conheci mulheres da alta sociedade! Conheci marquesas! Não é aquilo!" foi acolhida por uma gargalhada geral.

— Então tu freqüentas agora o "faubourg" Saint-Germain, Totor? perguntou um dos rapazes.

— E o "faubourg" Saint-Honoré? disse outro.

— Ora, por que não? redarguiu Bégourde. Parece-me que é próprio de um rapaz como eu aparecer um pouco por toda a parte. E ajuntou esticando o casaco novo:

— Tenho cabelos, olhos e dentes, e ouso dizê-lo, sem fatuidade, que pelas qualidades físicas levo vantagem a esses peralvilhos fidalgos.

— Pois que, as condessas querem-te apanhar? continuou um terceiro interlocutor.

— Falei de marquesas... há uma sobretudo.

— Autêntica?

— De trinta e seis costados... um brasão sério, à fé de Bégourde.

— Pede-se a narrativa da aventura. Escutamo-te. Vamos lá.

— Nem mais uma palavra! interrompeu Heitor. Um homem de bem, e eu prezo-me de o ser, nunca deve trair o segredo das fraquezas cujo benefício recebeu.

Nova gargalhada geral, seguida desta pergunta: — Então cinges-te à ordem moral?

— Não entendo.

— Julgava que as tuas opiniões políticas te proibiam de transigires com a nobreza.

Bégourde fez um gesto de desprezo.

— És esperto! disse ele. A política não tem nada que ver com as mulheres. Além de que a marquesa em questão, como possui cabelos louros, entra no meu programa. Serviria muito bem para um retrato da Liberdade.

— Enquanto ela não serve, vais-te servindo de nós, Totor...

— Não, realmente, se tal acontecesse, e se a Bobino o soubesse, arrancar-me-ia os olhos.

A conversação foi interrompida pela chegada de um dos cinco ou seis rapazes a quem Bégourde, antes da sua partida para Ville-d'Avray, tinha pedido hospitalidade por uma noite, pelos motivos expostos no capítulo antecedente.

— Olá, por aqui! exclamou o rapaz que se chamava Victor Petit, apertando a mão de Heitor, que tens feito? Não te vejo há oito dias.

— Estive no campo.

— Tenho uma carta para ti.

— De onde?

— Não sei. Um rapazinho mal vestido, segundo parece, modo de terceiro escrevente de oficial de justiça, deixou-a ao meu porteiro, pedindo que ta fizesse chegar à mão. Tenho-a na algibeira há quatro dias. Aqui está.

Bégourde pegou na carta que se lhe oferecia. O envelope quadrado, pardo e ordinário, tinha num dos cantos estas palavras sublinhadas: Muito urgente.

— Hein! hein! exclamou ele, estou como o ratinho de que fala da Fontaine:

 

Ce bloc enfariné ne me dit rien qui vaille!

 

Rasgou o envelope e desdobrou a folha de papel azul. No alto do papel lia-se:

 

AGÊNCIA ROCH E FUMEL

Rue Montmartre, 131 (Perto da Bolsa e do Boulevard)

 

Em seguida, estas linhas:

 

"Mrs. Roch e Fumel (Litigantes, Cobradores), convidam o senhor Bégourde (Heitor), pintor, a ir ao seu gabinete, para seu interesse logo que receba esta.

"Urgente. Qualquer demora fará transtorno."

 

Heitor amarrotou o papel nas mãos, fez dele torcida, e chegando-o à luz do gás serviu-se dele para acender o cigarro.

— Uma carta da marquesa, hem? perguntou um dos seus companheiros.

Heitor encolheu os ombros e disse:

— Uma carta de oficiais de justiça, os chamados Roch e Fumel encarregados com certeza de me perseguirem. Que belo trabalho vão ter! Para que hão de eles estarem com isto. Enfim, o papel selado, faz ganhar dinheiro aos oficiais de justiça, não é verdade? É preciso que todos vivam, mas aquela gente vai-me fazer zangar! Como diabo souberam eles que eu era conhecido de Victor Petit?

Antes que tivesse tempo de achar resposta para esta pergunta, dois novos recém-chegados, dois pintores habitues da cervejaria entraram de braço dado.

Achavam-se nas mesmas condições que Victor Petit.

Bégourde tinha passado algumas noites nos divans dos seus ateliers uma ou duas semanas antes.

— Onde tens estado, Totor? perguntou um deles depois dos cordiais apertos de mão. Temos-te procurado por toda a parte.:

— Andava em vilegiatura. E que me queriam, meus amigos?

— Entregar-te a tua correspondência.

— Mais uma carta! exclamou Bégourde. ?

— Melhor do que isso, Totor! Duas cartas! Cada um de nós tem a sua, deixou-nas em casa um rapazinho; ambas tem o dístico: muito urgente!

— Perguntávamos por ti aos ecos. Os ecos não respondiam.

E como um gesto cômico os dois recém-chegados apresentaram a Bégourde dois envelopes pardos, quadrados e ordinários, idênticos entre si e perfeitamente semelhantes ao primeiro que estava no chão feito em pedaços.

Heitor abriu os envelopes, tirou de dentro dois papéis azulados que desdobrou, comparou os dizeres do alto e leu:

— Agência Roch e Fumel, rua Montmartre 131, (perto da Bolsa e do Boulevard). Hein! que dizem a isto?

— É engraçado, exclamaram os ouvintes.

O caso tornou-se ainda mais engraçado quando três habitues retardados, companheiros de Bégourde, pareceram um depois do outro, tendo cada um na algibeira uma carta da mesma proveniência dirigida para o mesmo destinatário.

O esponto de Heitor transformara-se em estupefação.

— Ah! disse alguém, Roch e Fumel são uns espertalhões! Têm então uma polícia às suas ordens, aqueles maganões, para descobrir todos os teus amigos? Acautela-te, Totor! se tens não importa o que, não importa onde, julgo-os muito capazes de te roubarem o que tiveres.

— Palavra de honra, disse consigo Bégourde, dir-se-ia que farejaram os quinhentos francos um pouco diminuídos que tenho na algibeira. Mas se eles são espertos, eu não sou estúpido; e desafio-os a que venham travar conhecimento com a minha algibeira.

Os copos estavam vazios, os cigarros fumados, o intervalo estava a terminar; o grupo artístico e boêmio abandonou os bancos do botequim para voltar para o teatro, tratava-se de aplaudir no seu quinto ato a estrela de Batignolles.

O ator e a atriz tiveram um sucesso ruidoso, e os claquelirs improvisados voltaram para a cervejaria onde Celarina, ex-madame Bobino, devia ir encontrá-los depois de mudar de fato, e provado um bocado de presunto, salsichas, ovos e outros alimentos pesados.

Um novo personagem, absolutamente desconhecido dos habitues, sentara-se, havia um quarto de hora, a uma banca, ao fundo da sala, fumando num cachimbo, e bebendo um bock aos golinhos.

Poderia ter trinta anos de idade, era de estatura média, muito magro, e vestia miseravelmente, mostrando o fato no fio.

O rosto pálido e descorado tinha uma expressão espirituosa. astuta e cínica, os seus cabelos, outrora escuros, estavam agora grisalhos, um pequeno bigode cobria-lhe o lábio superior.

O conjunto daquela fisionomia era tão característico, que Heitor logo que viu o fumante solitário, deu com os cotovelos nos que estavam dos seus lados, e disse-lhes em voz baixa:

— Cautela! Aquele que ali está é talvez um espião! Está em relações com o portador das cartas da Agência Roch e Fumei. Não me tratem pelo meu nome diante dele.

— Basta.

— Tu, Victor, continuou Bégourde, volta para o teatro e previne madame Bobino de que a senha é estar calada.

— Vai e já.

Como a ceia estava encomendada de véspera, pôs-se a toalha sobre pequenas mesas reunidas; a sopa de cebola fumegava numa ampla terrina, a cerveja de Strasburgo espumava nos copos.

Não se esperava senão pela comediante.

Os companheiros sentaram-se à mesa, tendo o cuidado de deixar livre o lugar de honra à direita do anfitrião.

Apenas se sentaram, o desconhecido de aparência suspeita levantou-se sem largar o cachimbo, dirigiu-se para eles, e depois de os ter cumprimentado a todos, colocou-se em atitude de interrogação, e proferiu Com uma voz de encatarrado esta frase:

— Sôr Heitor Bégourde, pintor. Faz favor. Os rapazes olharam uns para os outros.

— Bégourde! disse um deles, está em Roma com um inglês.

— Não, disse o outro. Está na Turquia com um russo.

— Estão enganados, acudiu um terceiro. No Egito é que ele está com um grego.

— E não voltará tão cedo, ajuntou o próprio Heitor, alugou uma sobreloja na menos alta das Pirâmides, e tenciona lá habitar algum tempo.

O desconhecido ouviu muito sério aquele tiroteio de loucuras, cumprimentou de novo, muito politicamente, e redarguiu:

— Obrigado pelas suas informações, meus senhores. Vejo que o senhor Bégourde, pintor, está longe. Se por acaso o virem esta noite, digam-lhe que passe amanhã, sem falta, pela Agência Roch e Fumel, rua Montmartre 131, perto da Bolsa e do Boulevard, para negócios que lhe dizem respeito, muito urgente. É para negócio seu.

E o indivíduo tornando a ir sentar-se, acendeu um segundo cachimbo mandou vir um segundo bock.

Ouviu-se neste momento uma grande ovação, e madame Bobino foi recebida por uma tríplice salva de aplausos seguidas de um hourrah frenético.

A estrela das fadas do Luxemburgo, tornada a estrela dos dramas de Batignolles era uma rapariga morena, bem feita, de cabelos fartos, olhar vivo, boca encantadora, e um modo ao mesmo tempo insolente e bondoso.

Noutro tempo, na época dos fatos de malha cor de rosa e meio corpo chanfrado, citava-se o esbelto da sua estatura e a beleza das suas formas opulentas.

Estas perfeições plásticas começavam a desaparecer um pouco, mas madame Bobino era ainda agradável, e o bebedor não tirava dela os olhos.

Do bairro latino, de Closerie e das ceias da Rotisseuse, muito em voga no tempo do seu começo, madame Bobino tinha conservado hábitos que contrastavam de um modo estranho como a sua nova pretensão do que ela chamava um gênero distinto.

Durante toda a ceia representara fazendo de fidalga, possuída de um sério admirável, e uma absoluta convicção, com viva alegria das testemunhas desta pequena comédia de costumes; depois, à sobremesa, auxiliada pelo Champanhe, o natural excedia-se, e ela gritava, bebia de todos os copos, tratava a todos por tu, dava palmadinhas na barriga a todos, saltava para cima da mesa, mostrava as pernas, e dançava um passo de can-can, e cantava com um a voz aguda: Oh! Oh! cordeirinhos, quem é que quebra os copos? um estribilho do seu tempo.

— Eu conheci mulheres da alta sociedade! dizia Bégourde, conheci marquesas! Não era isto que vejo.

Bégourde tinha razão. Não era nada daquilo.

 

O FESTIM

Não dizemos quanto madame Bobino comeu, nem quanta cerveja bebeu, porque desejamos sobretudo conservarmo-nos nos limites da verossimilhança.

Os outros convivas de Bégourde, picados de emulação, seguiram como melhor puderam um tal exemplo, e excederam-se. As cinzas de Gargantua deveriam estremecer de alegria no seu túmulo.

Aquele alegre festim durou até à uma hora da madrugada.

No momento em que estava a terminar, Bégourde tomou a palavra.

— Meus queridos amigos, meus excelentes velhos, disse ele, não pôde haver bom livro nem boa festa sem ter segunda edição. Convido-os a todos para amanhã, ou antes para hoje, porque já deu meia noite, na ilha da Grande-Jatte, pelas três horas da tarde. O programa é este: "Divertissement" pela grande orquestra, passeio em botes, pesca à linha, natação para aqueles que souberem (eu me encarrego dos calções) um festim de Balthazar em casa do tio Canard; vinhos finos e licores à discrição, e para quadro final, complemento festival, representação na Reine Blanche, durante a qual a nossa bela Celarina representará o seu papel da marquesa em que se mostra ao mesmo tempo dramática e distinta.

O convite de Heitor obteve uma geral aprovação. Saíram s da cervejaria em massa, e Bégourde dando o braço a madame Bobino, dirigia-se para o domicílio desta quando viu que o bebedor, desconhecido parecia disposto a segui-los.

Por um instante Bégourde teve vontade de ir direito ao importuno e recorrer ao soco francês para lhe dar uma lição de discrição. Mas vendo que passava um fiacre vazio, e como a sua algibeira bem recheada não lhe permitia recuar ante qualquer despesa, fez entrar madame Bobino no veículo, e subiu também indicando ao cocheiro uma direção ao acaso.

O espião (se o tal homem o era), ficou muito contrariado no passeio, mas no momento em que o fiacre abalava, fez com as mãos um porta-voz e gritou:

— Agência Roch e Fumei, 131, rua Montmartre, perto da Bolsa e do Boulevard... Negócio urgente e muito importante. Não deixe de ir lá.

Heitor pôs-se a rir.

— Ali está o que se chama boa gente, pensou ele, cujos serviços vão sair caros aos meus credores!

 

A ilha da Grande-Jatte, bem conhecida dos que nós chamaremos os parisienses do domingo, está situada na encosta, junto à ponte de Courbevoie.

Ostenta a sua luxuriante vegetação, fazendo frente aos terrenos soltos do antigo parque de Luiz Filippe em Neuilly, e a essa casa de saúde, única no seu gênero, em que se dispensam os maiores cuidados, não ao homem, mas ao cão, a esse bom ser inteligente meigo que vale cem vezes mais do que o homem.

O autor deste livro adora o seu cão (a sua cadela), noventa e cinco por cento dos seus leitores tem iguais ternuras por estimados totós. Pois bem, a esses numerosos amigos da raça canina, e apesar do seu horror ao reclame de qualquer gênero, e por qualquer modo, indica o hospício Truaut, porque ali, e só ali, cães de caça e havanos, terras-novas e galgos, dogues e cães d'água, são tratados com incessante solicitude e maternal ternura.

No meio da ilha ergue-se um restaurante, ou antes uma taberna (no sentido aldeão da palavra), porque coisa nenhuma iguala a rusticidade do estabelecimento.

A taberna tinha o seguinte dístico na tabuleta:

 

À GRANDE JATTE

 

Grandes redes presas a pregos secam ao longo dos muros. Uma quantidade de mesas munidas de bancos de madeira, imovíveis. como senadores, se erguem debaixo dos caramanchões.

É ali que se servem aos rudes pescadores, aos donos das canoas e aos amadores de regalos campestres, a caldeirada de carpa e de enguia, o cadoz frito, tortas de toucinho e coelho, quatro iguarias invariáveis que constituem o usual de todos os menus, e que tornam perfeitamente supérflua a redação de uma lista.

Regam-se estas refeições com o belo vinho tinto de Suresnes ou de Argenteuil servido em picheis de fiança, mas os bons provadores podem obter, pagando, vinho engarrafado. Este vinho de milionário é geralmente cotado a quarenta soldos.

O Canard para os catraeiros, é um homenzinho gordo muito ativo, pescador, cozinheiro, até criado, e a quem não custa fazer restabelecer a ordem sem auxílio de nenhum "sergent de ville", quando entre os bebedores se trava alguma desordem que ameaça degenerar em rixa.

Ao longo da praia, uma flotilha de barcos amarrados a frades de pedra, e que serviam de manhã para a pesca, e de tarde para o passeio.

Uma cabana de tábua, cuja janela não tem vidros, ergue-se entre matas de salgueiros próximo à praia.

É nesta cabana que os partidários do banho frio e os fanáticos das diversões aquáticas podem despir-se e vestir-se, ao abrigo dos olhos indiscretos, sem ofensa da moral.

O dia estava magnífico e muito quente.

A ilha da Grande-Jatte contava já numerosos visitantes, e o tio Canard tinha tirado do tonel grande quantidade de picheis, quando chegaram os companheiros de Bégourde por pequenos grupos; em seguida, o próprio Bégourde acompanhado de madame Bobino, elegantemente vestida com um fato de musselina de riscas brancas e cor de rosa, não tardou a ir ter com eles.

Tratava de se divertir por todos os modos até à hora do anunciado festim de Balthasar.

Pôs-se a votos a ordem e a marcha dos prazeres, e decidiu-se quase unanimemente que se começaria por uma diversão aquática, a fim de se refrescarem primeiro.

Três jovens, medíocres nadadores, meteram-se num pequeno barco sob a presidência de madame Bobino, que não queria comprometer a regularidade da sua toilette, e outros entraram na barraca, de onde tornaram a sair simplesmente vestidos com os competentes calções impostos pelo pudor e pelos regulamentos da polícia.

Chegaram à borda marchando a um de fundo e à voz de Heitor: Pelo flanco direito, meia volta à direita! alto! fizeram frente ao Sena e deitaram-se à água.

Cinco ou seis banhistas os tinham precedido, e patinhavam na água azulada para os ajudar. O rio é de todos.

Bégourde que nadava como um peixe, provocou a admiração da galeria por aqueles variados exercícios que parecem aos noviços grandes provas de força e de audácia, e que são realmente a coisa mais simples do mundo, não pedindo mais do que um pouco de hábito e de desembaraço.

Acabava de percorrer por debaixo da água um extenso espaço, e aparecia em cima para respirar, quando se viu frente a frente com a cara engelhada, espirituosa e cínica do fumante solitário, cujos caracolinhos do cabelo grisalho se colaram mais do que de costume às fontes.

Aquele extravagante personagem, nadando com a mão esquerda, fez com a direita uma continência à militar, e disse como na véspera à noite:

— Sôr Heitor Bégourde, artista pintor, faz favor?

— Saiu! respondeu o rapaz rindo a seu pesar, e dando no seu interlocutor um tão violento empurrão, que o fez ir dez pés pela água abaixo.

O desconhecido nadava, tão bem como Heitor. Voltou à superfície no mesmo instante, com os caracolinhos desfeitos e encharcados, mas sem perder nada da sua fleuma habitual, e conservando- se à distância de duas ou três braças para evitar um novo empurrão, entabulou a conversação.

— Não vale a pena negar a sua identidade, sôr Bégourde, disse ele. Os seus camaradas há pouco, e a senhora (ah! que boa mulher!) gritavam bem alto o seu nome...

Heitor pensou.

— Estou apanhado, mas no fim de contas a coisa é-me indiferente. Que arrisco eu? Onde não há, o tirano perde.

As opiniões políticas do pintor impunham-lhe a obrigação de substituir a palavra rei pela palavra tirano. Depois em voz alta:

— Pois quê! foi o senhor quem mandou cartas a casa de todos os meus amigos por conta da agência da rua Montmartre?

— 131, perto da Bolsa e do Boulevard... concluiu o desconhecido, fui eu, sôr Bégourde.

— Saiba que é um bom sabujo.

— A culpa não é minha, sôr Bégourde... Pagam-me para isso.

— Enfim, o que é que quer?

— Obrigá-lo a visitar, para seu interesse, os meus patrões Roch e Fumel, que têm muita necessidade de o ver para negócio urgente, muito urgente.

— Diga da minha parte aos seus patrões, que embora eles pusessem em minha perseguição todos os oficiais de justiça dei Paris, e os dos departamentos não conseguiram fazer-me pagar um real. Sou insolúvel.

— Ah! sôr Bégourde, bem o sabemos.

— Sabem-no? repetiu o mancebo estupefato.

— Os meus patrões tratam de tudo por conta dos seus credores, e não têm a intenção de lhe pedir a menor quantia.

— Propõem-se talvez oferecer-ma! disse Heitor rindo.

— Creio que é com efeito esse o seu projeto.

— O senhor está zombando comigo?

— Sou incapaz disso, sôr Bégourde.

— Por quê me ofereceriam eles alguma coisa?

— Os meus patrões não me confiam os segredos da agência, mas sei que, com pequeno trabalho, pode arranjar uma somazinha.

— Isso é verdade?

— A fé de Sta-Pi!

— Hein? que diz?...

— Chamo-me Stanilas Picolet, por abreviatura Stani, e por contração Sta-Pi! Os meus colegas da agência é assim que me tratam, e eu acostumei-me.

— Que é que se faz nessa agência?

— Um pouco de tudo.

E Stani Picolet, nosso antigo conhecido das Tragédias de Paris, E Stani Picolet, cuja cabeça fora copiada por Jobin, expôs de um fôlego como o rapaz de escola que recita a sua lição, todas estas informações:

Roch e Fumel: litígios, cobrança de credores incobráveis, negócios particulares e secretos, buscas de devedores e herdeiros, informações de todos os gêneros no interesse das famílias e do comércio, indagações a respeito de casamentos, visíveis todos os dias, exceto aos domingos, das nove às onze da manhã, e das duas às cinco da tarde. Rua Montmartre, 131, perto da Bolsa e do Boulevard.

— Pare... disse Heitor rindo, o senhor esfalfa-se.

— Esfalfar-me! nunca! Sou magro, mas tenho peito forte. Irá à agência, sôr Bégourde?

— Se eu tivesse a certeza que não era por causa de uma reclamação.

— Pois se lhe digo: Palavra de Sta-Pi.

— É justo. Pois bem, irei.

— Quando?

— Amanhã.

— De manhã ou de tarde?

— De manhã, das nove às onze horas.

— Muito bem! Corro a prevenir Roch e Fumel, e tem de concordar sôr Bégourde, que me devem uma boa gratificação, porque me arrisquei muito.

Bégourde concordou de bom grado.

O que precede fora dito, ora parados, ora nadando ao lado um do outro.

Stani Picolet cumprimentou com a mão direita, chegou à praia em duas braçadas vigorosas, vestiu-se atrás de um salgueiro, e atravessou a ilha a passo rápido, com a aparência satisfeita de um homem que acaba de cumprir um grande dever, e que conta com uma recompensa séria e merecida.

 

PECHINCHAS CAÍDAS DOS CÉUS

— Que diabo quererá de mim aquela gente? isto dizia de si para si Heitor Bégourde no dia seguinte de manhã, um pouco antes dos dez horas, dirigindo-se a passo rápido para o número 131 da rua Montmartre. Para que me oferecem dinheiro? Com que pretexto se transformariam em banqueiros benévolos, desejosos de me abrirem o crédito que por toda a parte me recusam tão redondamente? Diga o que disser este pedante, o caso parece-me pouco verossímil. Que original que é este Sta-Pi! Que bom tipo! Hei de tirar-lhe o retrato. A sua suspeita do bigode e o seu penteado são esplêndidos. Há de me render bem dois escudos de cem soldos.

Heitor poderia continuar muito tempo, mas viu-se obrigado a interromper o seu monólogo.

Chegara.

Nos romances — As Tragédias de Paris — 0 Marido de Margarida — introduzimos os nossos leitores na oficina de polícia secreta e de negócios tenebrosos onde Roch e Fumel, aqueles associados hábeis e sem escrúpulos, exploravam Paris, como uma Califórnia, para desentranhar das suas lamas o ouro.

Isto nos dispensará de entrarmos numa série de pormenores curiosos, mas já conhecidos.

Heitor subiu ao primeiro andar, levantou o fecho de uma porta de dois batentes, e transpôs o limiar da vasta antecâmara, encerada, muito limpa, onde perto da janela estava o eterno velhinho de mangas de lustrina, copiando, numa mesa, enormes maços de processos e autos com uma regularidade automática.

O velhinho cumprimentou com a cabeça, e perguntou como costumava sempre.

— O senhor Roch, pessoalmente, ou a agência Roch e Fumei? Esses senhores escreveram-me em seu nome coletivamente, respondeu Heitor.

— Então tem uma carta?

— Uma, duas, seis, dez, não sei quantas cartas, disse o mancebo rindo. Umas serviram-me para acender o cachimbo, outras rasguei-as.

O velhinho pareceu ficar surpreendido ao ver aqueles modos faltos de respeito para com as epístolas da agência e perguntou:

— O seu nome, senhor, faz favor.

— Heitor Bégourde.

O autômato levantou-se, atravessou o antecâmara em passo cauteloso, desapareceu por uma porta secreta e voltou daí a um instante dizendo:

— Está gente na sala de espera, mas o senhor Roch vai recebê-lo já. Venha comigo, senhor.

E por um corredor interior, conduziu Bégourde ao gabinete do homem de lei, gabinete sério e de boa aparência, todo de ébano e de veludo verde, digno de um advogado da moda.

Numa cadeira magistral, rodeado de papéis e autos, catava sentado o senhor Roch com a sua habitual importância.

Não mudava o senhor Roch, não envelhecia, e conservava a sua aparência, a sua elegância, ao mesmo tempo graciosa e severa.

Os seus longos bigodes como barbatanas, um pouco grisalhos, enquadravam o rosto redondo e de carnes moles, cuidadosamente barbeado; os olhos conservavam a sua vivacidade e perspicácia através dos seus óculos com aros de ouro.

Como usava por costume o colarinho dobrado, ficava-lhe a descoberto o seu pescoço de padre, e o casaco escuro, bem feito, descobria o colete branco, que deixava também ver o imaculado peitilho da camisa, não fazendo uma única prega no peito bem nutrido do ex-advogado.

No momento da entrada de Heitor, o senhor Roch pôs os óculos na testa, sorriu com um modo de benevolência, cumprimentou com a mão e fez-lhe sinal para que se sentasse no "fauteuil" colocado ao canto do escritório, para o cliente.

— O senhor Heitor Bégourde, pintor, não é verdade? disse.

— Sim, senhor.

— Queira sentar-se meu querido senhor. Estou encantado por ter travado conhecimento com o senhor. Apreciam-se muito as coisas difíceis de se obter.

— Meu Deus, redarguiu Bégourde um pouco embaraçado, não sabia. Bem compreende.

— Compreendo perfeitamente, redarguiu o senhor Roch sempre risonho. A nossa qualidade de homem de negócios que se ocupa de cobranças inspira-lhe alguma inquietação. O senhor imaginava, iria apostar, que se tratava de reclamações, de perseguições contra si a requisição de algum credor avarento, porque o senhor tem credores, até muitos. As nossas informações a seu respeito (e tenho razão para as julgar exatas) apresentam-no como um artista de verdadeiro mérito e esperançoso futuro, mas cultivando o gênero dívida com não menos sucesso do que a pintura.

— Oh! senhor, disse Heitor, inclinando-se.

— Note que não vejo nisso mal algum, prosseguiu o senhor Roch com vivacidade. Ama-se o prazer, é muito simples... Não se pode pagar agora, pagar-se-á mais tarde... quando se puder... é naturalíssimo... É preciso passar a mocidade. É tão bela! Eu também fui rapaz, e lembro-me! Oh! a primavera da vida, o prazer e o amor! oh!

E o ex-advogado, inclinando a cabeça para trás, tomou uma expressão sentimental, depois, sem transição, ajuntou:

— Mas não foi para lhe dizer coisas destas que a Agência Roch e Fumel tomou a liberdade de o incomodar. Vamos direitos ao nosso fim O senhor chama-se com efeito Heitor Estanislau Denis Bégourde?

— Sim, senhor.

— Filho legítimo de — João Denis Bégourde, empregado que foi da "mairie" do segundo "arrondissement", e de Ursula Leber, sua esposa, que trabalhava em rendas?

— Sim senhor.

— O senhor nasceu na rua da Bota Vermelha n.° 8. em 10 de outubro de 1850?

— Sim, senhor.

— Posso além disso trazer-lhe a minha certidão de idade

— É inútil... está aqui.

— Ora essa! exclamou Bégourde.

— Juntei a outros papéis que dizem respeito ao senhor, continuou mestre Roch; há aqui na agência um empregado, empregado muito hábil!

— Mas finalmente, porque motivo se ocupam de mim?

— Para seu interesse, querido senhor, para seu interesse.

— E também para interesse dos senhores, creio, disse Heitor rindo.

— Bem entendido... de outro modo seria toleima, todo o trabalho pede recompensa... É esta a sua opinião?

— Com certeza! mas tenho empenho, confesso-o, em saber de que se trata.

— Curiosidade legítima, ainda assim, que vou satisfazer tanto quanto possível. Ser-lhe-ia agradável, não é verdade, possuir um modesto capital, cuja pequena renda lhe permitisse gozar, e só trabalhar quando lhe apetecesse?

— Ser-me-ia mais agradável que o capital não fosse modesto, e que o seu rendimento me permitisse não trabalhar nada.

— Modere as suas ambições, meu caro, é preciso que nos contentemos com pouco.

— Como não espero coisa alguma, estou pronto, certifico-lhe, a contentar-me com o que vier... mas onde está ele, esse capital modesto?

O ex-advogado, que até então se mostrara bom rapaz, julgou conveniente tomar o seu caráter oficial.

— Caminhamos muito depressa, disse ele. Antes de tudo, convém que nos entendamos.

— Há de ser fácil.

— Assim o espero. Já sabe, meu querido senhor e cliente, que sou um magistrado, à testa de uma agência, que passa, com razão, por ser a mais importante, e ouso dizê-lo, a mais estimada de toda a Paris. Os negócios dos outros é como se fossem negócios meus... Uma série de indagações, cuja extensão o admiraria, e em cujo por menor é inútil entrar por agora, puserem-me ao fato de um segredo que lhe diz respeito. Creio mesmo poder chegar a fazer-lhe receber uma soma menos má, com a qual não contava, porque não esperava coisa (como acabou de o dizer), e que, se não fosse a Agencia Roch e Fumel, estaria para sempre perdida para o senhor. Compreende agora?

— Perfeitamente, mas tudo isso me parece um romance...

— Oh! a vida é um romance, meu caro, disse sentenciosamente mestre Roch; em seguida continuou. Se chegarmos a um acordo, eu me encarregarei de todos os passos (e Deus sabe quão numerosos ha de ser); adiantarei o necessário capital para as despesas, e para que não possa duvidar da minha boa fé, nem suspeitar uma armadilha, obrigo-me a não exigir nenhuma indenização dos meus trabalhos e cuidados, nem por agora, nem para o futuro, se o não encaminhar à posse do dinheiro de que se trata. Acha leal este negócio, e entende que a minha linguagem seja de um homem de bem?

— Senhor, exclamou Bégourde, vendo já brilhar o ouro e as notas do banco, o senhor inspira-me uma ilimitada confiança.

— Confiança que me honra, e de que sou digno. Agora diga-me, de modo claro e terminante, se está disposto a remunerar convenientemente os trabalhos, adiantamentos, canseiras, consultas, indagações, requisições, incômodos e cuidados de todos os gêneros, úteis, necessários e mesmo indispensáveis para concluir felizmente o negócio de que tenho a honra e o prazer de lhe falar.

— Senhor, redarguiu Bégourde, não duvida do meu reconhecimento, e creia que não o regatearei, porque sou muito generoso.

O associado de Fumel abanou a cabeça risonho.

— Oh! estou convicto das suas boas intenções, disse, mas tenho alguma experiência da vida, e mais de um cliente que promete no princípio mundos e fundos, questiona ao ver a conta que tem de pagar, quando tem o seu dinheiro na algibeira, e quando chega o quarto de hora de Rabelais. Fui uma vez enganado... jurei a mim mesmo que daí para o futuro isso nunca mais me sucederia. Em presença de um negócio, todo a seu favor, algumas leves garantias parecem-me devidas.

— Que garantias lhe posso dar, visto que não possuo nada? Além de que estou à sua disposição. Que quer?

— Uma coisa muito simples.

— Qual?

— Um documentozinho na devida forma, assegurando-me uma parte das somas que cobrar, graças às minhas diligencias.

— Pois bem. Quanto quer?

— Vinte e cinco por cento. Bégourde de um pulo.

— Vinte e cinco por cento! repetiu. Portanto, se chego a receber vinte mil francos, há de querer para si cinco mil?

— Positivamente.

— É muito! é demais! A sua proposta é muito insensata!

— Acho-a mais que razoável. Poderia ter pedido metade.

— Ofereço dez por cento.

— Vinte e cinco ou nada. É pegar ou largar.

— Nunca.

— Como quiser, meu caro. Sinto muito tê-lo incomodado inutilmente. Se mudar de opinião, venha ver-me. Então há de ser trinta por cento.

E o senhor Roch, risonho, cumprimentou Bégourde com a mão. indicando assim que a conversação estava terminada.

Heitor deu alguns passos para a porta, depois rodando sobre si mesmo, voltou ao gabinete cocando na orelha.

— Realmente, exclamou o senhor põe-me a faca no peito!

— Seria mais justo dizer que ofereço meter-lhe escudos na algibeira, redarguiu o homem de lei.

— Oh! esses escudos não os tenho ainda.

— Não me deve nada enquanto não os tiver. Vinte e cinco por cento sobre zero, não o empobrecerá.

— Oh! se eu me decidisse, seria preciso esperar muito tempo.

— Muito tempo não, mas não posso fixar o prazo.

— E entretanto far-me-á um adiantamento?

— Sim. Precisa disso muito?

— Imenso... oh! imenso.

— O senhor é um belo rapaz, e não posso recusar-lhe coisa alguma. Pois bem! sim, consentirei em fazer o adiantamento no momento da assinatura do documentozinho. Mas corro tão grande risco que espero não será grande a quantia...

— Conceder-me-á dois mil francos? disse Heitor, não sem um certo sobressalto, porque a enormidade da quantia o espantava.

— Hum! hum! dois mil francos...

O homem de leis pareceu refletir; depois repentinamente:

— Eu, em negócios, gosto de contas redondas. Concederei essa quantia.

— E dará o dinheiro sobre a minha assinatura?

— Em ouro ou em notas do banco, como quiser.

— Hoje?

— Neste mesmo instante.

— Prepare o documento, vou já assinar.

 

UMA FORTUNA INESPERADA

O senhor Roch, antigo advogado, e um dos diretores da agência Roch e Fumei, estava defronte de Heitor na posição dum jogador destro no ponto de ao "écarté" dar capote ao parceiro, graças à engenhosa combinação que lhe permite jogar o rei e ter a mão cheia de trunfos iara a dama e para o valete.

Ele bem sabia que Bégourde não resistiria ao engodo dum adiantamento.

O documento estava já feito em duplicata, em bom papel selado.

Para o tornar de todo regular bastava datá-lo e assiná-lo.

— Estava de antemão certo que chegaríamos a um acordo, meu caro senhor, disse o senhor de Roch com um sorriso. Em conseqüência disso, e para não perder tempo, redigi as nossas convenções. Vou lê-las.

As cláusulas pouco numerosas e muito claras não ofereciam ambigüidade alguma e não podiam dar lugar, no futuro, a nenhuma discussão, mesmo entre pessoas costumadas à chicana dos tribunais.

— Bem vê como isto é simples; prosseguiu o homem de lei depois de ter lido, não lhe resta mais do que por a sua assinatura por debaixo destas palavras escritas pelo seu próprio punho: Aprovo a escritura acima.

— E receber, redarguiu Bégourde. Onde está o dinheiro?

O senhor Roch, sempre risonho, abriu a gaveta cofre da sua secretária de ébano, tirou dois rolos cujos papéis rasgou, e cem peças de vinte francos, muito novinhas, rolaram sobre a mesa com um ruído metálico e brilhando muito.

— Tem um lindo som, o ouro! murmurou o mancebo. É louro como as mulheres do Ticiano e como a cerveja da Baviera. Dê-me a pena, se faz favor.

— Ei-la.

Heitor assinou os dois papéis selados, e meteu os cem luizes na algibeira com um sério entusiasmo.

— Agora perguntou, devo esperar uma carta sua antes de voltar?

— Não é preciso. Esteja aqui depois de amanhã à mesma hora que hoje, e dar-lhe-ei todas as informações relativas à sua nova fortuna.

— O senhor tem a certeza de as haver tão depressa?...

— Tão certo estou que as tenho já.

— Então, por que não mas dá já?

— Porque o documento só amanhã poderá estar completamente registrado, e quero ter todos os documentos em forma antes de entregar o meu segredo, ou antes o seu.

— O senhor desconfia de mim? exclamou Bégourde.

— Desconfio de todos e dou-me bem.

— Até depois de amanhã, meu caro.

— Não se esqueça.

Esquecer. Heitor teria cuidado de que tal não sucedesse. Daria muito para suprimir as horas que o separavam de uma vida nova e da fortuna, porque finalmente, se a sua feliz sorte o punha à testa de uns vinte mil francos, achar-se ia rico, pelo menos durante um ano!

Bégourde dirigiu-se para a porta do gabinete, e o senhor Roch (contra o seu costume, porque nunca se incomodava) conduziu-o cerimoniosamente até a essa porta.

Na antecâmara estava apenas o velho copista, mas Estanislau Picolet esperava na sala da entrada.

O gaiato, que, apesar de tudo, era bom rapaz, deu-lhe os bons dias muito amigavelmente.

— Então? senhor Bégourde, perguntou-lhe Sta-Pi, está contente?

— Não me queixo, respondeu Heitor.

— Já vê que não o induzia a nenhum erro.

— Faço-lhe essa justiça, senhor Sta-Pi.

— Desculpe a minha indiscrição, sôr Bégourde. O patrão explicou-se?

— Recebi alguma coisinha, esperando melhor.

— Sôr Bégourde, continuou o empregado num tom de humildade e com uma voz enternecida, o senhor vê em mim um homem verdadeiramente feliz pelo que lhe sucede. Ah! custou-me muito! muito! Que canseiras para conseguir que recebesse as cartas da agência. Só de pensar nisso parece que se me encilhem as pernas. Fiz muitas despesas... gastei solas... bocks que tomei na cervejaria... ônibus da Estrela para Courbevoie... banho frio, aluguel dos calções etc. Sôr Bégourde, digo-lhe aqui para nós, Roch e Fumei são fonas. O algarismo dos ordenados é uma miséria, nem a mais pequena gratificação.

— Sempre o capital a explorar o trabalhador! sempre! sempre: murmurou Bégourde cuja mania conhecemos.

— Aqui para nós, estou aflito, continuou Sta-Pi, oh! mas muito aflito... muito aflito.

— Temos encostadela ou coisa semelhante, disse Heitor rindo. Conclua.

— Concluo: Os artistas são generosos, são uns corações de ouro, os artistas. O sôr Bégourde é artista, não é verdade? Precisava tanto de vinte francos...

— Aqui estão... disse o mancebo tirando um luís da algibeira e deixando-o cair na mão muito aberta do agente contrabandista que manifestou o seu reconhecimento com exaltação.

Nessa noite e na seguinte, houve brodio, não na cervejaria, mas num restaurante sério do boulevard Clichy. O vinho de Champagne substituiu a cerveja. À uma hora da manhã, como os convivas estavam completamente embriagados, incapazes portanto de serem senhores de si, o anfitrião cuja magnificência era ilimitada, mandou-os conduzir a suas casas, por sua conta, numa dúzia de fiacres que mandou buscar de propósito.

No dia seguinte, às onze horas em ponto, Heitor com a cabeça um pouco pesada, chegava à agência da rua Montmartre. A ordem estava dada e a porta do gabinete do senhor Roch abriu-se logo.

— Meu caro senhor disse-lhe o homem de leis com o seu mais lindo sorriso, um sorriso que reservava de ordinário para as suas clientes, quando por acaso elas eram bonitas, porque o senhor Roch era, às vezes, galanteador: O senhor é de constituição forte?

— Nunca estive doente.

— Arme-se de toda a sua firmeza de vontade, continuou o associado Fumel. Vai precisar de toda a sua energia.

Heitor mudou de cor.

— Meu Deus, murmurou ele, o senhor tem a anunciar-me uma má nova. As esperanças não se realizam? Tomou como realidades o que não passava de ilusões? Cai tudo como um castelo de cartas?...

O senhor Roch obrigou-o a calar-se com um gesto e redarguiu:

— Pelo contrário, porque as suas esperanças serão excedidas e que julgo conveniente prevenir-se conta uma viva comoção.

— Não tem dúvida! exclamou Heitor mais tranqüilo, a alegria não mata. Vá, diga-o afoitamente.

— Vou dizê-lo afoitamente, como tão elegantemente o senhor diz. A si próprio muitas vezes terá o senhor perguntado há dois dias de onde lhe viria o dinheiro prometido...

— É exato, e estou ainda à espera da resposta.

— Há de vir de uma herança.

— É impossível respondeu Heitor.

— Impossível, por que?

— Sou o último dos Bégourdes, o único, não tenho família.

— Não é forçoso chamar-se Bégourde para ser parente.

— É portanto um logogrifo. Diga-me já a explicação...

— Aqui a tem. Sua mãe chamava-se Ursula Leber.

— Muito bem. Era órfã e vivia dificilmente do seu mister de fazer rendas; como me poderia vir, por parte dela, uma fortuna?

— Tinha um irmão.

— Sim, um sujeito, segundo parece, tinha partido não se sabe para onde, antes do meu nascimento, e nunca mais se ouviu falar dele, Deve ter morrido há muito.

— Morreu efetivamente, mas só há meses, e antes de morrer enriquecera.

— Ah! ah! exclamou Bégourde tão interessado por aquela revelação, que maquinalmente aproximou o seu "fauteuil" do senhor Roch.

— Seu tio chamava-se Justino Leber, continuou o homem de lei, e gozava, com efeito, de uma reputação detestável. Citado em policia correcional por pecadilhos sem importância (tratava-se de uma batalha a golpes de garrafa por ocasião do beberete dum baile) Justino Leber de dezoito anos de idade, saiu de França e refugiou-se na América, onde, por muito tempo, viveu bastante mal ganhando apenas para o pão de cada dia, debaixo de um trabalho muito pesado. Era já velho quando a fortuna começou a bafejá-lo. Uma pequena especulação em que entrou teve bom resultado. Conseguiu por de parte três ou quatro mil dólares e empregou-os na compra de terrenos improdutivos na Pensylvania.

— Eu por mim antes queria os dólares... suspirou Bégourde.

— Então espere. Ouviu falar de Peabady?

— Nunca.

— Pois bem, seu tio procurou sabê-lo. Ou fosse instinto ou acaso, mandou operar trabalhos de sondagem nos seus terrenos, e descobriu poços de petróleo que são ainda hoje dos mais abundantes da América.

— Poços de petróleo... repetiu Bégourde, olá! olá! E isso vale dinheiro, os poços de petróleo?

— Muito dinheiro. Desde está descoberta seu tio começou a viver como homem rico.

— Sem pensar na família, interrompeu Heitor.

— Sim, sem pensar na família, mas, felizmente para o senhor, ao sentir-se morrer, lembrou-se e fez testamento, cuja cópia está aqui legalizada, e pelo qual dá e lega tudo o que possui a sua irmã Úrsula Leber se for viva ainda, ou a seus filhos se tiver casado, e já não existir, ajuntando que no caso em que Ursula Leber morresse sem posteridade, os hospícios de Paris, sua terra natal, herdariam no seu lugar. Enfim instituiu um solicitor de New York, em que tinha confiança, seu executor testamenteiro, encarregando-o de enviar para os bancos de França os capitais disponíveis que fazem parte de sucessão, e de vigiar a exploração dos poços de petróleo por conta do herdeiro ou dos herdeiros. Ora, na sua qualidade de filho único e legítimo, o senhor representa sua mãe falecida, de quem é o único herdeiro sem contestação possível. É claro?

— Muito claro, redarguiu Bégourde. Virtuoso tio! Excelente tio! Não iria ressuscitá-lo talvez, mas voto-lhe um eterno reconhecimento! E o algarismo da herança?

O senhor Roch tirou da algibeira e colocou na secretária ao alcance da mão, um frasco de sais ingleses.

Depois, lentamente, proferindo as palavras sílaba por sílaba:

— No momento em que lhe falo, existe no banco de França, onde foi depositada segundo os votos do testador, uma soma de oito milhões.

— O senhor diz?... balbuciou Bégourde.

— Digo oito milhões. Ah! demônio, aí temos uma síncope! No entanto tinha-lhe recomendado presença de espírito, meu caro. Respire isto depressa.

Ao ouvir enunciar o formidável algarismo de oito milhões, Heitor tornara-se subitamente muito vermelho, em seguida muito pálido. Fazia inúteis esforços para respirar; as pálpebras tremiam-lhe: as pupilas vacilavam; a cabeça caía-lhe para o peito. Finalmente, desmaiara de todo.

O senhor Roch mostrou-se cheio de zelo.

Chegou ao nariz do mancebo o frasco antecedentemente preparado; esfregou-lhe as mãos, e, prodigalizando-lhe só seus cuidados, murmurou:

— Iria apostar que isto sucederia... a coisa era inevitável. Meu Deus! compreendo bem que uma tal notícia assim de repente causa abalo. Então! meu caro, isso vai melhor?

Heitor fez sinal de que sim.

— Seja homem, que diabo! continuou o ex-advogado. Ei-lo rico... não tem de que se queixar.

— Um momento de fraqueza, balbuciou Bégourde, a surpresa, a comoção. O senhor não zomba de mim? hem? É verdade o que tem dito?

— Absolutamente verdade, juro-lhe, e o senhor não sabe ainda tudo.

— O que? exclamou o herdeiro já de todo reanimado, há outra coisa?

— Sim, mas devo continuar? As minhas palavras não irão provocar um segundo delíquio?

— Não, não receie coisa alguma. Agora estou forte. Explique-se depressa.

— Não falei senão do dinheiro liquido depositado no Banco. O senhor é, além disso, possuidor de poços de petróleo na Pensylvania...

— E esses poços representam?

— Um capital tão grande, que só uma sociedade poderia competir com o senhor (e encarrego-me de construir essa sociedade se quiser). Quanto aos rendimentos anuais, segundo o algarismo rigorosamente estabelecido, excedem a um milhão, e podem aumentar numa proporção notável, porque os poços estão mal explorados.

Heitor conteve-se.

— Com que então, perguntou ele, tenho quatorze mil libras de renda, pelo menos?

— Perdão, meu caro, disse o senhor Roch sorrindo, os seus rendimentos vão montar a mais do que a quantia, muito bonita ainda assim, de um milhão e cinqüenta mil francos, visto que, em conseqüência do novo contrato, a sociedade Roch e Fumel, por mim representada, tem direito à quarta parte do capital, e receberá, por conseguinte, trezentos e cinqüenta mil libras de renda.

— Ah! disse Bégourde, não sem algum desgosto. Estão ricos! faço-lhes os meus cumprimentos!

— Aceito-os, redarguiu o ex-advogado cumprimentando com um ar modesto.

— Mas, prosseguiu o mancebo, porque motivo antes de ontem, sabendo o que sabe, não me adiantou senão com grande custo a tão miserável quantia de dois mil francos?

O senhor Roch esfregou as mãos.

— Para o fazer convencer, respondeu ele, de que se tratava de uma cobrança pequena. Se não fosse assim teria recusado assinar, e revolvido céu e terra para passar sem nós... o que era preciso evitar.

— Os meus cumprimentos, repetiu Bégourde. Espertalhão! O senhor é forte no negócio!

— Este há de ser o último, afirmo-lhe positivamente, disse o ex-advogado, a não ser que se apresente outro que seja capaz de nos tentar. Mas tornamo-nos difíceis. O peixe miúdo é para os pequenos pescadores. Nós precisamos de peixes grandes, e o senhor é um salmão de primeira qualidade.

 

EXPLICAÇÕES

Como sucedia que Roch e Fumel tivessem podido por mão em tão gigantesco negócio, que de ricos que eram já, os tornava arquimilionários de repente?

É a coisa mais simples do mundo, e o acaso não representava nenhum papel na sua feliz sorte.

A agência da rua Montmartre ocupava-se, de um modo particular, de procurar herdeiros para as heranças que não os tinham. Era esta uma das suas fontes de receita, e não a menos produtiva.

Meia dúzia de empregados famélicos, mal pagos, mal vestidos, mal sustentados, mas em compensação muito sobrecarregados de trabalho, passavam as três quartas partes da sua vida a correr de "mairie" para "mairie", e a copiar certidões de batismo, de casamento e de óbito nos arquivos do estado civil.

Empregavam o resto do tempo a por em ordem e em coordenar as imensas notas, os numerosos maços trazidos por eles.

A agência mantinha correspondentes na província.

Todas as vezes que um indivíduo qualquer, possuidor de uma fortuna boa, morria sem fazer testamento e sem deixar parentes conhecidos (sabe-se quando estes casos se repetem), Roch e Fumei declaravam-se rivais do fisco, em procura de todos os bens para os quais não havia herdeiros, e punham em campos os seus sabujos, que oito vezes sobre dez, conseguiam achar, à força de muito procurar, algum herdeiro ignorado que não suspeitava do seu parentesco com o defunto.

Descoberto o herdeiro, o senhor Roch representava com ele o papel que acabamos de ver representar com Bégourde.

No caso deste último, o ponto de partida já não era o mesmo.

Existia um testamento.

O tabelião parisiense designado pelo executor testamenteiro, tinha feito publicar em dois ou três jornais um anúncio, convidando Ursula Leber, ou os seus descendentes a apresentarem-se no seu cartório para receberem uma importante comunicação.

Este aviso não foi visto por Heitor, e como todos ignoravam que madame Bégourde antes do seu casamento se chamava Leber ninguém pôde indicar o mencionado aviso ao herdeiro, sem o saber.

E suspirou de novo.

O senhor Roch, posto de atalaia, e farejando uma boa operação, meteu logo mãos à obra sem perda de um minuto; o resultado das suas diligências conhecêmo-lo nós.

Encarregou-se dos negócios de Heitor tornados seus em conseqüência do tratado concluído, e tornou-se de uma utilidade prodigiosa; vencendo as dificuldades, fazendo adiantamentos sobre a herança, empenhando-se, multiplicando-se, correspondendo-se com o executor testamenteiro de New York, e consagrando-se completamente ao seu cliente que pagava generosamente.

Finalmente, chegou o dia da entrega da herança, que fez de Heitor um dos mais ricos habitantes dessa Paris, de onde tinha sido, para nos servirmos das suas palavras, um dos cidadãos mais pelintras.

Mentiríamos afirmando que não perdeu um pouco a cabeça, mas é certo que não assinalou por nenhuma notável excentricidade o seu começo de fortuna.

Começou por pagar as sitas dívidas, e ficou muito envergonhado de ver a espantosa mesquinhez da sua soma. Envergonhava-se ao pensar que não tinha achado meio de adquirir maior crédito. Teria aumentado a seus próprios olhos, se se visse devedor de algumas centenas de mil francos.

Como todos, ou pelo menos como quase todos os rapazes que se voem de repente ricos, e que não são muito avaros, Bégourde sentiu a imperiosa necessidade de provar a si mesmo a sua fortuna, despendendo muito dinheiro.

Mostrou ser bom rapaz e generoso como um príncipe para com os antigos amigos que metiam a mão à larga na sua bolsa sempre aberta, mas as necessidades e os desejos destes boêmios eram relativamente tão restritos, que não constituíam mais do que uma modesta despesa.

Madame Bobino saiu-lhe naturalmente mais cara, as ambições da mais modesta filha de Eva excedem muito as dos maiores extravagantes, Bobino não tinha nada de modesta.

A estrela de Batignolles teve não só um aposento num primeiro andar da rua Lafayette, um coupé, uma vitória, três cavalos, diamantes e crédito em casa de uma grande modista, mas teve também rivais, tomou, porém, uma filosófica resolução.

Heitor ceou em casa de Brébant, mostrou-se nos teatros com as diversas criaturas cheias de atavios, e cujos nomes e serviços estavam inscritos no anuário do mundo do galanteio.

Bégourde não se preocupava da idade, do espírito, e mesmo da beleza daquelas mulheres. Não ligava séria importância senão à sua celebridade.

Recordava-se de as ter visto passar em carruagem para o Bosque, enquanto que ele caminhava a pé e sem um soldo na algibeira, por entre o renque de árvores dos Campos-Elysios, em meio da multidão que pronunciava os seus nomes.

Elas, as pecadoras históricas cuja origem, para algumas, se perdia na noite dos tempos, não lhe faziam naquela época a esmola de um olhar.

Pareciam-lhe então misteriosas divindades, deslumbrantes, inacessíveis entronizadas em nuvens de volúpias sobre-humanas.

Entre estas grandes sacerdotisas da Vênus Meretrix e o artista desconhecido de casaco de veludo, o abismo era insuperável.

A herança do tio lançava sobre o abismo uma ponte, nessa ponte punha uns "rails," e pelo "rails" corria com a máxima velocidade um "wagon" forrado de seda.

Bégourde tinha as fotografias destas mulheres compradas nas passagens, colecionadas com cuidado e formando um álbum incendiário.

Quis ter os originais, fez preço e pagou.

Numa rua vizinha dos Campos-Elysios, na rua de Francisco I, existia um palacete edificado para um milionário, por um arquiteto muito conhecido e apaixonado pelo suntuoso.

O palacete era muito rico e de um gosto que sofria discussão.

As cores vivas e que feriam a vista, as pinturas frescas e penetrantes, os dourados, as molduras, os relevos, quadros, frisos, etc, davam a todas as salas a aparência de salas de um luxuoso café.

Tendo o milionário perdido a sua fortuna tão facilmente como a ganhava, vendia-se o palácio com a mobília.

Heitor foi vê-lo.

Aquele fausto, aquela riqueza, aquele amontoado de ornamentos, as cadeiras de grandes espaldares, transformando toda a casa numa continuidade de "boudoirs" causaram ai mancebo um indescritível entusiasmo.

— Aqui está o que preciso, disse ele de si para si. Ao transpor os umbrais deste pequeno palacete, vê-se logo, no primeiro relance, que se entra em casa de um homem muito rico, amante do prazer e das mulheres. Iria jurar que o arquiteto trabalhou de propósito para mim! Não consentirei por certo que uma jóia tão perfeita vá parar em mãos estranhas.

Correu a casa de um tabelião encarregado da venda, não regateou, pagou logo, e instalou-se no dia seguinte.

Restava estabelecer a casa num bom pé, e montar as equipagens.

Heitor, a quem faltavam absolutamente os conhecimentos especiais, fez-se acompanhar por um corretor, o corretor conduziu-o a casa dos negociantes de gado e de trens.

Fizeram-lhe pagar por exorbitante preço cavalos já velhos, cujo único merecimento era o terem uma bonita aparência.

Quanto às carruagens e aos arreios, Bégourde deu livre curso às suas próprias inclinações.

Sob o pretexto falso de que era pintor exímio no colorido quando fora artista, escolheu carruagens de caixas amarelas com filetes encarnadas, e de rodas encarnadas com filetes amarelos. As lanternas de prata eram muito lavradas, os fechos das portinhas cheios de arabescos, os eixos das rodas chapeados.

Os arreios favoreciam a "mise-en-cene" de uma verdadeira orgia de metal. O couro desaparecia de todo sob os ornatos de prata.

Bégourde mandou vestir os seus criados com uma libré de fantasia: calções amarelos, coletes de riscado branco e encarnado, casacos cor de azul celeste com golas e canhões encarnados agaloados de prata, botões de prata com as iniciais H B enlaçadas.

O mancebo, apenas tomou posse, disse consigo que o feliz proprietário de um tão belo palácio, devia ostentar as suas maravilhas e enchê-lo de admiradores e de invejosos.

Em conseqüência do que, desejando inaugurar uma série de grandes jantares seguidos de recepções, convidou os seus velhos amigos e as suas novas amigas.

As novas amigas tiveram o cuidado de não recusar o convite de um rapaz folgazão que era só por si tão rico como meia dúzia de banqueiros.

Vieram logo muito depressa, munidas dos seus sorrisos mais sedutores, das suas "toilettes" mais fascinantes, pintadas a primor, de sobrancelhas enegrecidas pelo emprego de estanho queimado e da noz galha; de faces carregadas de opiata, decotadas amplamente, e não menos cintilantes de jóias do que a montra de um joalheiro.

Os velhos amigos, os seus fatos de todos os dias em mau estado, fizeram triste figura ao lado das cocottes, e apesar do seu grande descaro, sentiam-se incomodados por saberem que estavam atrás de si os lacaios de calções amarelos cujo gesto e sorriso zombeteiros instintivamente adivinhavam.

Por seu lado, as damas, completamente deslocadas nesse meio a que não estavam acostumadas, e que lhes parecia indigno delas, encheram-se de vaidades e mostraram-se soberbas, quase impertinentes, intoleráveis finalmente.

Incomodados por aquela atitude hostil os boêmios, dotados na maior parte daquele espírito vivo, rabelesco, quase cínico, que abunda nos ateliers e nos bastidores, crivaram as suas vizinhas de epigramas fortes e frases mordazes, que as faziam tanto mais exasperar quanto menos as compreendiam, porque eram geralmente um pouco estúpidas.

A influência pacificadora de Bégourde fez abortar as desordens nascentes, mas a falta de um perfeito acordo, causou uma tal frieza, que nem a influência dos grandes vinhos conseguiu dissipar.

Finalmente, empregando um termo dos usados pela gente em cujo convívio fizemos entrar momentaneamente os nossos leitores, diremos — o jantar fez fiasco.

Foi ainda muito pior quando ao levantar da mesa se passou para as salas. Uma bandeja carregada de charutos punha à disposição dos convidados as melhores marcas de Havana.

Os rapazes não rejeitaram, e por convite de Heitor encheram amplamente as algibeiras, mas arrastados pela força do costume, acenderam os velhos cachimbos de que não se separavam nunca, e o fumo de caporal subiu para os tetos dourados...

O caso foi um pouco escandaloso.

— Estamos no Rato-Morto? perguntou uma das damas.

— Ou no Sapo-Voador? disse uma outra. Então sirvam-nos um Rabagas...

E começou a deserção.

Heitor contava com um pequeno baile de uma alegria delirante.

Quando chegou o pianista acompanhado de um violoncelo e de um trompa, não estavam senão homens, deitados sobre os móveis forrados de cetim da China, e pedindo em altos brados bocks.

— Meu Deus! disse consigo Bégourde, a quem a poderosa influência do Demônio Dinheiro transformara rapidamente as idéias, meu Deus, que gente tão ordinária! parece que não a conheço. É uma gente impossível. Quando se forem, deixá-los ir! Boa viagem. O meu lugar é longe deles.

Dois dias depois deste jantar, o único em tais condições, foi às dez horas da manhã o criado grave do jovem milionário preveni-lo de que um sujeito cujo cartão lhe levava, pedia para lhe falar.

Heitor olhou para o cartão. O visitante madrugador era o fundador de uma pequena folha de opiniões muito coloridas, o Escorpião independente, para onde o ex-vadio desenhara em tempo, caricaturas políticas à razão de um luís a peça.

— Que me quer esse pobre diabo? disse de si para si Bégourde. Manda-o entrar para a saleta, ajuntou em voz alta, daqui a cinco minutos irei falar-lhe.

E, enquanto iam decorrendo os cinco minutos, pensava:

— No fundo, convém-me muito rebaixá-lo um pouco. Era um maroto de marca maior. Recusava-se a adiantar-me dez francos.

Foi nesta boa disposição de espírito que Heitor se dirigiu para a saleta, não suspeitando da imensa influência que uma conversação à qual ele não ligava importância alguma, ia ter no seu destino...

 

O ANTIGO SOCIALISTA

Pamphilio Godard, proprietário-redator-principal do Escorpião independente, esperava numa saleta forrada a brocado e ouro, e olhava alternadamente para os quatro espelhos de Veneza, formando cada qual o ponto central de cada uma das quatro paredes.

Os seus cabelos, incultos e compridos, a sua barba grande e hirsuta, o seu casaco abotoado até ao pescoço e esbranquiçado nas costuras, produziam um contraste extravagante naquele meio onde tudo era novo, onde tudo era deslumbrante.

As suas botas de grossas solas carregadas de poeira deixavam sinal sobre os arabescos do fino tapete persa. As mãos, virgens de luvas, apresentavam unhas um ,pouco negras.

Tinha colocado o chapéu baixo de grandes abas em cima de uma linda mesa de ébano, de embutidos de marfim e de cobre.

De tempos a tempos, aproximava-se de uma janela e, levantando as cortinas de guipure, olhava para o pátio e via os criados lanando uma das esplêndidas carruagens de que falamos.

— Isto convinha-me! disse ele consigo. Teve dedo, este polichinelo de Bégourde! Não me suceder a mim uma fortuna destas! Ah! nunca sucederá!...

A porta abriu-se.

Apareceu Heitor; o traje que usava por casa constava de uma camisa de foulard cor de rosa, calças de flanela branca, e casaco da mesma fazenda e alvura, bordado de flores.

Pamphilio Godard foi direito ao mancebo, com o sorriso nos lábios e de mão estendida.

Heitor, pelo costume, apertou a mão, mas sem o menor entusiasmo.

O redator principal do Escorpião independente não mostrou reparar naquela frieza extraordinária.

— Como estás tu, minha velha? exclamou ele.

— Como vês, respondeu Heitor, não se atrevendo a fugir àquele tratamento de tu que noutro tempo tanto o lisonjeava. E tu?...

— Oh! eu, vou vivendo. Patetinha, estás de grande! Tens um palácio muito chic! Vale bem bom dinheiro. Muitos o hão de invejar... Não eu... Estou muito contente, pelo contrário, palavra. Valha-nos ao menos, que quando a fortuna opera um milagre destes, recaia uma vez por outra num bom rapaz como tu. Digo-o todos os dias aos teus camaradas quando se fala de ti. O caso é que ganhaste no jogo.

— Maganão, assim o creio. E a arte, que é feito dela, a pobre arte? Os lápis, os pincéis? Tens um atelier, ao menos, na tua luxuosa vivenda?

— Por vida minha que não.

— Pior para ti. É pena. Tinhas futuro. Fizeste-me alguns desenhos sofríveis!

— A vinte francos a peça.

— Valiam o dobro, é certo, por isso tencionava aumentar-te logo que o algarismo das assinaturas... Ah! os assinantes, que miseráveis! Finalmente, agora, não precisas de nada, não é verdade? e felicito-te sinceramente. Tenho estado à tua espera... Dizia comigo: Ele há de vir ver-me.

— Estou muito ocupado.

— Realmente! os milhões!... É preciso tratar com os banqueiros, com os agentes de câmbios, com os tabeliões. Isso dá um trabalho dos diabos, segundo julgo, porque, bem compreendes, disso nada entendi. Enfim, tu não ias ter com a montanha, a montanha foi ter contigo, e repito, felicito-te de todo o coração.

— Agradeço-te muito. Mas não te deste ao incomodo de vir ao meu palácio simplesmente para isso?

— Para isso e outra coisa. Preciso dizer-te duas palavras a respeito de um belo negociozinho.

— Ah! ah!

— Um belo negociozinho que te faz muita conta. Hás de agradecer-me, meu rapazola.

— Finalmente, de que se trata?

— Duma idéia tua, muito simplesmente... mas uma idéia da primeira grandeza... uma idéia nova, original, e que não devia deixar escapar. Quantas vezes tinha eu abatido os companheiros repetindo-lhes: — Não é um insignificante este Totor! Não, não é! Totor não é estúpido... Tem uma boa idéia.

— Tive muitas; redarguiu Bégourde, de qual falas?

— Falo da tua idéia-monumento, como dizia o "homem-luz” Imaginaste um quadro alegórico, uma obra gigantesca, representando o infame capital explorando o desgraçado trabalhador. Lembras-te?

— Sim, ora essa! tinha o fórmula, mas era difícil exprimi-la de um modo muito claro.

— Em pintura, porque o pincel mal reproduz as idéias abstratas. respondeu Pamphilio Godard com vivacidade, mas pela pena é um brinco de criança. Apodero-me da tua idéia, exploro-a, ou antes exploramo-la juntos. Compreendes?

— Não.

É contudo simples. Eu fundo um grande jornal diário com um título de efeito.

— Que título?

— Ora essa! o teu título! 0 capital explorador. Que dizes a isto?

— Continua.

— O meu programa está feito, tenho-o na algibeira. Completei já o quadro da redação. Tenho um correspondente na Numéa. Outro em Gênova. Um terceiro em Londres. Iniciais brilhantes. Artigos de sensação, de oportunidade, e severos! No fim da semana faço uma tiragem de cinqüenta mil.

— Os meus cumprimentos!

— Aceito-os. O sucesso é certo! Imagina! dirijo-me a todos os desempregados, a todos os incapazes, a todos os invejosos, a todos os preguiçosos, a todos aqueles que imaginaram gozar sem trabalhar, e entôo para eles a Marselhesa do pequeno contra o grande, do pobre contra o rico... e grito-lhes:

— "Eia! sus! ao capital explorador! A propriedade é um roubo! O dinheiro dos ricos é teu! São teus todos esses palácios, essas magníficas propriedade, essas suntuosas casas!... Povo apodera-te do que te pertence e só rico por teu turno!" a manivela pode girar indefinidamente sempre assim. Não há senão uma ária. mas boa, e as variantes renovam-se.

— Hão de perseguir-te... condenar-te...

— Será condenado o gerente, ora essa! já o espero... e muito rigorosamente! Logo ao primeiro número: tribunal, um algarismo fabuloso a tiragem. Finalmente, a minha fortuna está feita e é à tua idéia que a devo.

— Muito bem! Quando tencionas começar a publicação?

— Logo que tiver o que me falta.

— O que te falta?

— Aquilo com que se faz a guerra.

— O dinheiro?

— Foste tu que o disseste!

— Quanto é preciso?

— Uma bagatela... Duzentos mil francos.

— Sabes onde hás de ir buscá-los?

— Sei muito naturalmente onde ir procurá-los, redarguiu Pamphilio Godard possuído da mais terna comoção. Sou capaz de fazer-te a injúria de me dirigir a outro que não sejas tu, meu velho camarada, meu bom Tutor! Nunca! Além de que, o negócio pertence-te de direito, visto que o título e a idéia são tuas. É tua a popularidade! É tua uma futura cadeira no parlamento, se te seduz a política e o coração te pede! Para nós dois os lucros! Assina-me um cheque.

— Um cheque de duzentos mil francos?

— Sim, creio que isso bastará.

Heitor soltou uma grande gargalhada.

— Então, perguntou ele, tomas-me positivamente por um parvo?

O jornalista estremeceu.

— Por quê?! exclamou ele escandalizado.

— Porque, meu amigo, redarguiu Heitor, vens-me pedir emprestada uma porção do meu capital para fundar um jornal contra o meu capital, e nesse jornal, e que hei de pagar o papel, a redação, a composição, a tiragem, a dobragem, as cintas, as multas, dirás em todas as colunas:

— Saibam este animal de Bégourde que herdou de um tio enriquecido no petróleo, tem dinheiro, mas o seu dinheiro, boa gente, sendo mais nosso do que é dele propriamente, ficará melhor nas nossas algibeiras do que nas suas. Sim... Apoderai-vos do seu dinheiro, boa gente! Tem um palácio, este Bégourde, um palácio que nos pertence; apoderai-vos dele, e se mostrar descontente, provai-lhe muito claramente que do petróleo do defunto tio se faz um bom e fácil uso!... É sempre a mesma música! Ah! mas não, meu amigo! nem tão parvinho como isso!

— És tu que eu ouço! murmurou Pamphilio Godard admiradíssimo. Não, tu gracejas, meu velho amigo, e quando tiveres rido bastante, assinarás o cheque.

Heitor fez um gesto de garoto de Paris e redarguiu:

— Escusas de te cansares!

— Então, recusas-te a sustentar o Capital explorador?

— Decididamente, amiguinho!

— E os princípios? os grandes princípios. Então, que fazes?

— Esses princípios, bem vês, são para os pelintras. Cedo-tos de graça.

Pamphilio Godard tomou uma expressão solene.

— Desgraçado apóstata! disse ele, vejo-te num caminho perigoso.

— Se as carruagens por aí passarem, respondeu o garoto rindo, isso será com o meu cocheiro, que é um espertalhão... saberá sair-se bem.

— Renegas das tuas convicções.

— Oh! deixa-me, não me importunes com as minhas convicções! Compro-te os teus cem escudos. Vai. Será um mau negócio, mas não para mim...

O jornalista, barbado, sem responder àquela impertinência prosseguiu num tom profético:

— Voltas as costas aos teus irmãos e amigos! Recusas-te a auxiliar as reivindicações necessárias. Tudo se encadeia!... Dentro em pouco hás de querer atuar com os aristocratas, mas lembra-te do que te digo, os aristocratas hão de zombar de ti e dar-te com a porta na cara. Pilho do povo, o laço que a ele te prende é indissolúvel... o laço é o teu nome. Quando nos chamamos Bégourde, bem vês, é inútil querer fazer a corte às duquesas. A bom entendedor... Até mais ver cidadão!

E Pamphilio Godard, pegando no chapéu de grandes abas que com gesto trágico enterrou na cabeça, saiu muito direito e imponente, deixando Heitor abalado pela flecha de prata que tinha recebido em pleno peito.

O mancebo sentou-se como modo melancólico numa das "chaufeuses" cor de ouro da sala forrada.

— Pedante com certeza, disse ele de si para si, e pedante da mais infame espécie, mas ele tem razão! Bégourde é um nome ridículo! Quando eu era artista, ainda vá. Não se sabia senão do meu sobrenome de Heitor. Com os meus milhões, hoje, Bégourde, é impossível!

Este indigno nome produz a meus ouvidos o efeito que produziria a meus olhos uma mancha de gordura numa saia de seda. O Demônio Ouro é, diz-se, muito poderoso.

Que o prove, fornecendo-me o meio de mudar de nome.

Desde aquele dia e desde aquela hora, Heitor repetiu constante mente os pensamentos que estenografamos.

Era aquela a sua idéia fixa.

Nenhuma solução lhe vinha. O ex-radical, convertido em conservador logo que teve alguma coisa a conservar, assinara, ato contínuo, as folhas do high-life, tais como a Vida parisiense e todos os jornais mais reacionários de Paris.

Naturalmente o Fígaro figurava na frente.

Os olhos de Heitor, percorriam um dia distraidamente os anúncios da quarta página.

Parou por acaso nas linhas que conhecemos:

"Um gentleman já idoso, sem filhos, possuidor de um nome histórico e de um título de primeira ordem que veria com pena extingüir-se por sua morte, transmitiria esse nome e esse título, por via de adoção, a um mancebo possuidor de uma grande fortuna. Escrever, posta restante, X. Y. Z. 2, 133."

Heitor teve um sobressalto.

— Um nome histórico! disse ele quase em voz alta. Um título de primeira ordem! uma adoção, aqui está o que é preciso. Eu satisfaço a única condição imposta pelo gentleman. Possuo uma grande fortuna! Estou salvo! positivamente salvo! Não ouso sonhar com um título de duque, seria coisa muito bela. Marquês ou conde é já muito bonito! Sou um lindo rapaz, sou rico! quando juntar a isto nobreza, que me faltará? Realmente, a minha estrela tem feito muito por mim!

 

UM PAI EM PERSPECTIVA

É preciso malhar no ferro enquanto está quente, diz um velho provérbio muito sensato.

Heitor teve o cuidado de não deixar para o dia seguinte; pegou numa pena, tomou uma folha do seu melhor papel de iniciais a vermelho e azul, recamadas de ouro, e escreveu as linhas seguintes:

" Senhor.

"Acabo de ler com o mais vivo interesse, o anúncio que fez publicar no Fígaro de hoje.

"O senhor manifesta o desejo de transmitir, por via de adoção, o seu nome histórico e o seu título de primeira ordem a um rapaz rico.

"O meu nome de Bégourde, que me legaram os meus defuntos pais, está em desacordo com as minhas idéias distintas.

"Podemo-nos entender perfeitamente, e não encontrará quem melhor lhe convenha do que eu.

"Tenho vinte e seis anos. Atrevo-me a dizê-lo, sem vaidade, que a minha aparência é a de um homem distinto. Os meus amigos, e às vezes as mulheres, gabam a elegância das minhas maneiras, enfim, posso honrar um título qualquer.

"Sou um bom rapaz. Não se pode dizer nada de desagradável a respeito do meu passado. Quando herdei de meu tio, paguei as minhas dívidas.

"Hoje, naturalmente, não faço nada, os meios de que disponho permitem-mo, mas antes de nadar na opulência, exercia com distinção uma profissão liberal. Era artista, começava a ter uma certa nomeada. Os senhores Jawosky e Laurent Védel, pintores de grande reputação, de quem fui discípulo e colaborador, poderão informá-lo a respeito da minha conduta.

"Possuo um milhão e quinhentos mil francos, não de capital, o que seria já bom, mas de rendimento, o que naturalmente me permite levar vida principesca. O meu tabelião, o senhor Jovard, 94, boulevard Haussmann, está habilitado a informá-lo sobre a exatidão do algarismo.

"Moro na rua de Francisco I, n.°... um palácio que é meu e cuja disposição interior nada deixa a desejar. Poderei nele dar suntuosas à sociedades quando dela fizer parte, graças ao senhor.

"Queira, senhor fazer-me saber, quando e onde poderei encontrar-me com o senhor? Conte com a minha perfeita discrição, e receba os protestos da especial estima do seu criado, que muito desejaria não mais assinar-se

"Heitor Bégourde."

Depois de ter lido esta epístola de que se declarou satisfeito (o que não provava que fosse muito difícil), o mancebo escreveu o misterioso sobrescrito:

"Senhor X. Y. X. 2, 133.

"Posta restante."

Saiu, em seguida, de propósito, para lançar ele mesmo na caixa do mais próximo escritório a importante carta que não queria confiar a um criado.

Nada chegava.

Bégourde começava a desesperar-se. o seu profundo desapontamento causava-lhe uma violenta irritação.

— Foi pura mistificação tudo isto! disse ele consigo. Caí como um toleirão! Foi algum engraçado que mandou publicar o anúncio para se ir à sua vontade dos papalvos como eu. Ah! se eu apanhasse o quidam, fazia-o passar um mau bocado.

Finalmente, na manhã do quinto dia, o criado de quarto entregou ao mancebo um envelope quadrado de um papel inglês duro como pergaminho.

Um brasão com coroa principesca destacava o seu relevo num grande fecho de lacre.

A letra da sobrescrito era grande, de um talhe original e antigo.

Heitor tinha feito pinturas decorativas em grandes casas, e ainda que ignorante em matéria de brasões, conhecia o valor relativo dos principais sinais heráldicos, e não confundia, por exemplo, um diadema de barão com a coroa de nove pérolas que acompanhava o título de conde.

Ficou deslumbrado.

— Coroa de príncipe! balbuciou ele. O anúncio era sério. É admirável, como sinto pulsar o coração.

A sua mão tremia tanto, que lhe custou a rasgar o sobrescrito.

O papel incluso tinha as mesmas armas que o sobrescrito, por cima destas poucas linhas:

"O Príncipe Godefroy de Castel-Vivant terá o prazer de receber o senhor Heitor Bégourde amanhã, quarta-feira, ao meio dia.

"O Príncipe faz ao senhor Bégourde os mais respeitosos cumprimentos.

"Rua Caumartin, n.°..."

Como Heitor estava só, podia falar em voz alta.

— O príncipe de Castel-Vivant, exclamou ele com um sorriso de satisfação. Ah! esta é muito boa! Eu conhecia o Príncipe de Castel-Vivant. Era o amigo íntimo de Júlio Leroux. Havemos de nos entender perfeitamente bem... Que belo nome e que lindo velho! tão casquilho e tão janota sempre, é encantador! Ele viu-me mais de dez vezes no boulevard Haussmann, trepado à minha escada, no tempo de Lazarine.

O mancebo interrompeu-se para suspirar, em seguida continuou:

— Reconhecer-me-á ele? Duvido. Ele não fazia caso de um garoto. Eu não era tão pouca coisa. Ele que me responde é porque aceita. Serei Príncipe de Castel-Vivant, e Lazarine, a ingrata, a esquecida, não é mais do que Marquesa de la Tour-du-Roy! Fui por ela desprezado. Vingar-me-ei A não ser que arrependida e vencida, ela consinta em amar-me.

Depois de ter ido buscar ao escritório da posta restante, rua de

Jacques Rousseau, a carta de Bégourde, o Príncipe, segundo o seu invariável costume, procedera sem demora às indagações.

Ele desejava um filho adotivo, mas sabemos que lhe não queria dar o seu nome e o seu título senão a um mancebo cujo passado fosse irrepreensível, e cuja fortuna fosse ampla e sólida.

Godefroy de Castel-Vivant falou a Jawosky, a Laurent Védel, ao tabelião e outras pessoas mais que Heitor tinha designado.

Foi à prefeitura de polícia, donde um alto funcionário era amigo seu, e conseguiu ver o cadastro de Bégourde.

O cadastro estava virgem. As outras informações concordaram em representar o ex-artista como um bom rapaz, de costumes levianos, mas de uma perfeita honestidade.

Quanto à fortuna não havia necessidade de exagerar o algarismo. A simples verdade era deslumbrante.

— Oh! oh! disse consigo Godefroy esfregando as mãos. Quem espera sempre alcança. Creio que desta vez apanho a pega no ninho.

E escreveu.

No dia seguinte à hora indicada, Heitor, anelante, corria ao "rendez-vous".

 

A PRIMEIRA LIÇÃO

O senhor de Castel-Vivant, fiel ao seu princípio de consagrar ao necessário o menos dinheiro possível, a fim de conservar mais as superfluidades, e como não possuía mais do que uma pensão vitalícia dada por um parente, ocupava na rua Caumartin uma pequena sobreloja que o dono há quarenta anos lhe cedia quase de graça.

Apesar das suas modestas proporções a sobreloja, composta de três ou quatro quartos, era muito aprazível.

O príncipe tinha à mobiliado com os restos do seu antigo luxo, e estes restos brilhavam.

Ao entrar nos aposentos de Godefroy, conhecia-se instintivamente, que não se entrava em casa de um qualquer insignificante.

As menores coisas tinham um cunho de antigüidade, de nobre elegância, de esquisito gosto.

Cada móvel tinha o seu valor particular. A idade autêntica e a sua perfeita conservação, faziam de tudo aquilo um museu. Os lustrezinhos de cristal de rocha, as guarnições do fogão de bom tempo, teriam atingido um elevado preço nas mãos de um avaliador.

Finalmente, Godefroy realizaria um sofrível capital mandando a sua mobília para o Hotel des Ventes; mas não queria de modo algum separar-se daqueles objetos.

Alguns bons quadros da escola francesa cobriam as paredes do exíguo salão. Uma avó do príncipe, pintada por Nattier, em rapariga, com um vestido de cetim branco, era um verdadeiro primor.

O quarto de dormir constituía para Godefroy um verdadeiro museu, cheio das suas recordações de amor ou antes de galanteio.

Aquele quarto, com o seu leito à Luís XVI, e os seus cortinados de um verde-mar muito desmaiado, exalava, vagamente, certos perfumes a almíscar, a âmbar, a pó de marechala.

Retratos de mulher a óleo, a pastel, a crayon em todas as posições, com todos os fatos até mesmo os mais negativos, cobriam as paredes, e a propósito de cada um destes retratos, o Príncipe tinha uma anedota interessante para contar.

As numerosas gavetas dos pequeninos móveis continham correspondências femininas divididas em bonitos padotes atados com fitas desbotadas de todas as cores.

Havia também madeixas de cabelos de todos os tons, que conservavam ainda um resto do perfume voluptuoso sob o papel dobrado, numerado, coberto com um letreiro contendo um nome e uma data.

Godefroy gostava de viver com aquelas relíquias mais sensuais do que sentimentais.

— Se eu quisesse escrever as minhas memórias, dizia ele às vezes, o cavaleiro Jacques Casanova de Seingalt ficaria a perder de vista.

— Por que não as escreve? perguntavam-lhe.

— Falta-me o tempo, mas talvez as escreva um dia, quando já a idade não me permitir ajuntar novos capítulos a ação.

Os anos passavam-lhe debalde, sem abater aquela menineira velhice e os capítulos inéditos sucediam-se.

 

As janelas do quarto do Príncipe deitavam para a rua.

Cinco minutos antes da hora aprazada, estava ele de pé junto de uma das janelas, afastando com a ponta do dedo a cortina da vidraça.

— Bégourde será pontual. É pelo menos... Deu meio dia.

Um coupé puxado por dois belos cavalos pretos, parou à porta.

O Príncipe fez um gesto característico ao ver a caixa amarela e as rodas encarnadas, as lanternas ouvadas, e os puxadores das portinholas cheios de arabescos, os eixos chapeados, os arreios cobertos de ornatos de prata, e finalmente os galões de prata, e as librés azuis, amarelas e vermelhas do cocheiro e do trintanário.

— Que luxo, disse ele de si para si, é de um mau gosto que excede todos os limites!!! É um Mangin ressuscitado! Ali está um rapaz com quem não me poderei dar muito bem. Enfim, é rapaz, é tão rico! Talvez se possa emendar.

Heitor subiu.

Parou na sobreloja e tocou.

A porta foi-lhe aberta por um criado de quinze anos, vestido de preto, muito direito, muito sério, muito grave.

— O senhor Príncipe de Castel-Vivant? perguntou Bégourde com a voz um pouco trêmula.

 

PRINCÍPIOS DE TRANSAÇÃO

Estavam dadas as ordens. O Príncipe recebia, coisa excepcional, porque de ordinário os seus mais íntimos dificilmente entravam nos seus aposentos.

Achava-se mesquinhamente alojado, e tratava o seu amor próprio não se fazendo visível em casa.

O criado abriu a porta da sala, e com a dignidade oficial de um porteiro de ministério, proferiu o seu nome:

— O senhor Heitor Bégourde.

Godefroy de Castel-Vivant, em pé, e de luneta no olho, esperava-o.

Num golpe de vista mediu o recém-chegado, analisou-o, apreciou-o.

— É um perfeito rapaz, disse ele consigo, um tanto vulgar com certeza, e que não sabe vestir-se, mas tem boa figura. Empregando boa vontade e inteligência, será possível fazer dele alguma coisa apesar das estupendas equipagens.

Durante este curto monólogo, Bégourde, muito mais intimidado do que queria confessar-se a si mesmo, cumprimentava com modo acanhado.

O Príncipe estendeu-lhe a mão sorrindo, e disse-lhe com aquela fidalga bonomia que o tornava tão agradável:

— É isso efetivamente, senhor, com exceção de que eu suspeitava, muito bem, das aspirações e dos instintos de que fala e de que a grande roda me atrai como o fogo das velas atrai as mariposas.

— Muito bem! disse o Príncipe rindo. E não se teria, por acaso, queimado na chama de alguns belos olhos de Condessa ou de marquesa?

Bégourde corou até à raiz dos cabelos. — Talvez, murmurou ele.

— Gosto dessa franqueza, redarguiu Godefroy. A sua confissão explica-me por que motivo tem pressa de deixar o seu nome plebeu, de dissipar o menor vestígio de uma existência sem dignidade, e entrar na verdadeira sociedade, de tratar de igual para igual com a duquesa e, quem sabe, de fazer um dia o brilhante casamento que lhe permitem aspirar um belo nome, um grande título e a sua imensa fortuna. É ainda isto?

— Sim, senhor... exceto o casamento. Neste momento não penso em tal.

— Pois bem, mas a marquesa ou a Condessa de que se tratava há pouco?

— Esta casada, senhor; e além disso a pessoa em questão tratou-me mui grosseiramente.

— Amava-o ela.

— Com certeza que me detestava.

— Deu-lhe provas sérias?

— Ai de mim! nunca.

— Seja, só um pouco, Príncipe e verá.

— Ah! senhor, conto com isso. Mas serei eu Príncipe? Far-me-á a honra de me dar um nome que terei tanto orgulho em usar?

— Isso depende absolutamente do senhor, redarguiu Godefroy sorrindo. O senhor agrada-me, palavra de honra. Creio que se poderá fazer da sua pessoa um Castel-Vivant muito apreciável, e não porei obstáculos aos seus desejos.

— Sendo assim, exclamou Bégourde, é negócio feito.

— Perdão, meu jovem amigo, caminha um pouco depressa. É preciso conversar.

— Conversemos, pois, senhor, assim o desejo.

— Vou explicar-me, redarguiu o Príncipe, e a explicação será clara, franca, quase brutal. Não o conhecia há uma hora, não pode portanto ser uma afeição viva e profunda o que me leva a fazer do senhor meu filho adotivo. É claro?

— Como água, respondeu Bégourde.

— É dotado de espírito, disseram-mo, continuou o senhor de Castel-Vivant, compreende, pois, muito bem que se trata não de um negócio, mas de uma troca recíproca de bom proceder e de atenções mútuas e delicadas. Entre o meu nome e o seu existe tanta diferença como entre a sua fortuna e a minha. Sou um grande fidalgo e o senhor um burguês. Em compensação, o senhor é muito rico, eu muito pobre. Por meio de uma transação tudo se pode igualar. Não julgue que vou propor-lhe a venda do meu nome... isso não! Seria talvez legal, mas a minha delicadeza não se daria bem com um mercado de tal gênero, e agrada-me acreditar que a sua também recusaria absolutamente aceitá-lo... É meu filho... É Príncipe de Castel-Vivant incontestável e incontestado. O sentimento das conveniências está entre nós desenvolvido por um modo tão extravagante que lhe permitem viver como Príncipe cinco ou seis vezes milionário, ao passo que o Príncipe seu pai continuava a vegetar muito pobremente, como sucede. Consentiria nisso?... Enganar-me-ei?

— Estimo muito vê-lo, querido senhor. Sabemos ambos o que o traz aqui; não há, por conseguinte, embaraços de qualidade alguma. Vamos, portanto, direito ao nosso fim e conversemos como velhos amigos.

— É o que desejo, senhor Príncipe, murmurou Bégourde.

— Trate-me por senhor simplesmente, redarguiu Godefroy, e saiba que a classe onde deseja entrar é muito sóbria no uso dos títulos no diálogo.

— Agradeço a lição, senhor.

— É de crer que lhe dê muitas outras.

— Muito estimarei, e aproveitá-las-ei, porque as preciso.

— Há de aproveitar, tenho a certeza, disse o senhor de Castel-Vivant a quem a resposta de Bégourde não desagradou.

Depois de um momento de silêncio, o Príncipe continuou: — Causar-lhe-ei admiração afirmando-lhe que o conheço tão bem como o senhor a si mesmo.

— De acordo, admira-me algum tanto.

— Antes de lhe escrever, continuou Godefroy, antes de lhe declarar o nome oculto sob as iniciais X. Y. Z., fiz sobre o senhor e sobre o seu passado uma séria indagação. A sua presença nesta sala basta para demonstrar que os resultados dessa indagação lhe são muito honrosos. Quando o senhor era pobre como Job, viveu como pôde do trabalho e de outros expedientes, arrastando uma vida miserável.

Era inevitável e não que lhe quero mal por isso, visto que no mísero meio em que o lançaram o seu nascimento obscuro e a sua completa pobreza não cometeu ação alguma de que deva corar hoje. Assim que a fortuna lhe sorriu, as aspirações e os instintos de boa companhia, que no senhor se achavam em estado latente e de que não suspeitava, despertaram logo. Não é isso?

— Não, exclamou Bégourde muito expansivo. Cem vezes não! Não consentiria nunca e sob nenhum pretexto. Quero arranjar-lhe em breve espaço um viver digno de si. Quero rodeá-lo de cuidados e de luxo.

 

O Príncipe mostrou-se satisfeito e replicou:

— Pensamento filial de que deve orgulhar-se. De meu filho tudo aceitarei. Não que eu consinta em tocar num soldo só do capital da sua fortuna. Esse capital pertence todo aos Castel-Vivant do futuro que hão de ter necessidade dele para manter o brilho do seu nome...

— Contudo, começou Bégourde.

— Não insista! interrompeu o Príncipe. Oferecer-me-ás uma renda vitalícia.

— Deponho-a a seus pés com entusiasmo. Fixe o senhor mesmo o algarismo.

— Bastar-me-ão cem mil francos por ano.

— Não basta.

— Sou simples em meus gostos.

— Mas...

— Não insistia, repetiu Godefroy. Proferi a minha última palavra, não conseguirá coisa alguma.

— Curvo-me ante a sua formal vontade... Receberá pois os cem mil francos.

— Repito-lhe, meu querido, que me bastará receber essa pequena renda de um modo regular.

— Conte com a minha exatidão.

— Conto com ela, porquanto o senhor depositará em casa de um tabelião o capital dos cem mil francos, e será esse tabelião quem me entregará os juros. Entre mim e o senhor não deve haver questão com respeito a dar ou receber dinheiro. Pedir um recibo ao pai, assinar um recibo ao filho, tem alguma coisa que repugna.

— Continua a ter razão, depositarei o capital. Estamos de acordo?

— Absolutamente. Resta apenas a tratar algumas pequenas questões, incidentes que não podem levantar da sua parte nenhuma objeção. Apresentá-lo-ei na sociedade, e confio que hão de lisonjear a minha vaidade os sucessos alcançados. Não me agradeça. É puro egoísmo. Ora, esses sucessos, devo eu prepará-los. O senhor é um encantador rapaz, mas muito defeituoso sob umas certas relações, e muito incompleto sob todas as outras. Duvidava disso?

— Estava muito convencido.

— Modéstia! bravo! Há de ser fácil aperfeiçoá-lo, encarrego-me disso... o terreno é bom. Monta a cavalo?

— Sim e não.

— Como?

— Monto a cavalo e seguro-me bem, mas ignoro os princípios rudimentares da equitação, porque nunca cavalguei senão nas pilecas da Porta Maillot ou de Montmorency...

— Há de ir ao picadeiro, e dentro de dois meses rivalizará em elegância e correção com qualquer sportman. Sabe guiar a dois e a quatro?

— Ando agora a aprender.

— Muito bem. Passemos à esgrima. De que força é no jogo?

— Não tenho habilidade alguma. Joguei muito à espada e ao florete como se joga nos ateliers... Tenho bom olho, pulso firme. Mais nada!

— É alguma coisa, não basta porém. Receberá lições de Vigeant. Fará do senhor uma boa espada. Atira à pistola?

— Muito sofrivelmente. Batia nos alvos nas festas de Saint-Cloud, de Bougival e de Neuilly.

— Teve duelos?

— Nunca.

— Seria bom ter um o mais cedo possível. Falo de um duelo de high-life com um gentleman por um motivo interessante. A sua presença no campo fazia bom efeito. Suponho que lhe não repugna a idéia de um encontro?

— Pelo contrário, respondeu Bégourde, seduz-me.

— Já tinha a certeza disso, disse Godefroy com visível satisfação. Continuemos o nosso interrogatório. Dança?

— Muito bem!... murmurou o mancebo sorrindo.

— Compreendo... Foi discípulo de Brididi, não é verdade? Representante autorizado da moderna escola can-can francês? Oh! meu Deus. Eu aprecio como qualquer a graça e a originalidade de um cavalheiro só, e inclino-me ante os imortais princípios da deusa fantasia, mas é preciso deixar isso ao Mabille e à Closerie, onde vou matar o tempo algumas vezes. Um mancebo em muitas ocasiões não pode subtrair-se às exigências da quadrilha no mundo sério das virgens brasonadas. Há de ter um mestre de dança por mim escolhido. É caçador?

— Não sou, porque nunca cacei.

— O gosto das caçadas depois virá. Joga?

— Uma partida de bisca, não tem nada que me desagrade, nem tão pouco que me entusiasme.

— E o whist?

— Só o conheço de nome.

— Hei de ensinar-lho. É muito útil. Não lhe pergunto, meu querido filho, se sabe entrar numa sala. Transpôs há pouco os umbrais do meu humilde aposento com manifesto acanhamento. Finalmente, a sua educação de gentleman, é necessário quase refazer-se em todos os pontos, mas havemos de refazê-la. Tem vocação, é o principal. Está resolvida a adoção, há de ser Príncipe de Castel-Vivant. Trata-se agora de alcançar esse resultado. Ocupemo-nos dos meios para o conseguir...

 

ULTIMA-SE A ADOÇÃO

A adoção está resolvida, há de ser Príncipe de Castel-Vivant, tinha dito Godefroy. Trata-se agora de alcançar esse resultado. Ocupemo-nos dos meios para o conseguir.

— Parece-me que é a coisa mais simples do mundo, redarguiu Bégourde.

— Parece-lhe mal.

— É vivo o desejo que tenho de ser adotado, e o senhor quer prestar-se à realização desse desejo. Donde poderiam vir as dificuldades?

— Da lei. Ignora o Código?

— Completamente. Causam-me tédio os grossos volumes de folhas multicores.

— Compreendo isso, mas para o projeto muito me deve preocupar certamente o título 8.° do livro 1.° do código civil. Estou tão habilitado a respeito das noções que ele encerra como um professor da escola de direito, e vamos passar em revista os artigos que nos dizem respeito, sem que seja necessário recorrer ao que chama muito pitorescamente grossos volumes de folhas multicores.

— Que diz da minha ciência?

— Admiro-a.

— Ainda bem, continuou o Príncipe rindo. Bastaria interrogar-me a respeito de outro qualquer capítulo para ficar calado... os meus conhecimentos de jurisconsulto não saem deste círculo estreito. Dizemos: "Código civil, livro 1.° da adoção e da tutela oficiosa (decretada em 23 de março de 1803, promulgada a 2 de abril), capítulo 1.° da Adoção — Seção l.a — Da adoção e seus efeitos, artigo 343.°: A adoção não é permitida senão às pessoas de um e de outro sexo, de mais de cinqüenta anos, que não tiverem na época da adoção nem filhos nem descendentes legítimos, e que tiverem pelo menos quinze anos mais do que os indivíduos que se propõem a adotar."

O Príncipe tinha recitado o artigo de uma tirada, como o estudante de direito respondendo ao examinador.

— Até aqui, disse ele em seguida, estamos perfeitamente de acordo. Passo dos cinqüenta anos, infelizmente, e muito. Não tenho tido filhos, nem herdeiros legítimos, nem ilegítimos tão pouco, e o senhor é mais novo do que eu muito mais de quinze anos. Portanto, vai tudo bem. Continuo: "Artigo 344.° Ninguém poderá ser adotado por muitos, só pois dois esposos... Exceto o caso do artigo 366.° de que não temos que nos ocupar, nenhum esposo pode adotar sem o consentimento do outro cônjuge..."

"Oferece tanto embaraço este artigo como o precedente. Sou viúvo. Passemos ao artigo 345.°, muito importante para nós, ei-lo: "A faculdade de adoção não poderá ser exercida senão para com o indivíduo a quem se tiver na menoridade, e durante seis meses pelo menos, fornecido socorros e prestados cuidados sem interrupção."

O Príncipe deteve-se.

— Com a breca! exclamou Bégourde, com a breca! Isso é que vai mal. O senhor nunca me forneceu socorros, nem me prestou nenhuns cuidados durante seis meses da minha menoridade.

— Censura-mo? perguntou Godefroy com um sorriso.

— Como o faria, visto que não me conhecia? Mas o embaraço nem por isso é menor.

— Seria até invencível, continuou o Príncipe, felizmente para nós o mesmo artigo ajunta: "Ou para com aquele que tiver salvado a vida ao adotante, ou num combate, ou arrancando-o das chamas ou das ondas."

— Pois há isso?

— Sim, senhor, é textual, e note que o estilo é lindo. Admire as chamas e as ondas. Redigiam muito os nossos legisladores de 1803.

— Oh! senhor, exclamou Bégourde, não vejo aí nada de satisfatório. Não lhe salvei a vida de modo algum.

— Com certeza, e pelo mesmo motivo que me impedia de lhe prestar cuidados, mas nada o impede, presentemente, de fazer o que não fez.

— Como?

— Logo veremos. Passemos ao artigo 346.°, que lhe diz respeito especialmente: "A adoção não poderá, em caso algum, ter lugar antes da maioridade do adotado."

— Sou maior, interrompeu Heitor.

— "Se o adotado, prosseguiu o Príncipe, tendo ainda pai e mãe, ou um dos dois não tiver contado vinte e cinco anos, terá de alegar o consentimento dado à adoção por seus pais, e se for maior de vinte e cinco anos, poderá requerer conselho de família."

— Já não tenho pais, redarguiu Bégourde.

O senhor de Castel-Vivant prosseguiu:

— "Artigo 347.° A adoção conferirá o nome do adotante ao adotado, adicionando-o ao nome próprio deste último." Aqui está o que lhe diz respeito. Passo aos artigos seguintes, que determinam os direitos de sucessão do adotado aos bens do adotante, e dos pais deste. Não nos deve incomodar este, não é verdade, visto que na hipótese, como dizem os senhores advogados, só o adotante é rico, e nada se pode esperar do adotante.

"Chegamos à seção 2.a: Das formas da adoção e ao artigo 353.° que se exprime assim: "A pessoa que se propuser a adotar, e àquela que quer ser adotada, apresentar-se-ão em casa do juiz de paz do domicilio do adotante, para ali se passarem os respectivos consentimentos.

"Artigo 354.° Este documento será remetido dentro de dez dias, o mais prontamente possível, ao procurador imperial junto do tribunal de primeira instância em cujo meio for o domicílio do adotante, para ser submetido à homologação do tribunal.

"Artigo 355.° O tribunal reunido em conselho, e depois de ter obtido as convenientes informações, verificará: 1.° Se estão preenchidas todas as condições da lei; 2.° Se a pessoa que se propõe adotar goza de boa reputação.

"Artigo 356.° Depois de ter ouvido o procurador imperial, e sem nenhuma outra forma de processo, o tribunal pronunciará, sem anunciar motivos, nestes termos: É admissível ou não a adoção.

"Artigo 357.° No mês que se seguir ao do julgamento, será este, à instância da parte mais ativa, submetido ao tribunal imperial que instruirá do mesmo modo que o tribunal de primeira instância, e pronunciará, sem dizer porque: O parecer está confirmado, ou o parecer é reformado; em conseqüência do que a adoção tem lugar ou não tem.

"Artigo 358.° O decreto do tribunal imperial admitindo uma adoção, será lido em audiência, e publicado em tantos exemplares quantos o tribunal julgar conveniente.

"Artigo 359.° Durante os três meses que se seguirem a este decreto, a adoção há de ser, a pedido de qualquer das partes, inscrita no registro civil onde o adotante tiver o seu domicílio."

Heitor escutava com uma atitude de recolhimento, mas não pôde deixar de dizer, in pettos,

— Meu Deus, como tudo isto é aborrecido! Tomara já que acabasse!

— Uf! disse Godefroy depois de ter proferido a última frase. Terminei os meus conhecimentos de legista, meu querido filho, e fica daqui para o futuro sabendo tanto como eu. Já compreendeu que para conseguirmos os nossos fins, é-nos preciso achar um meio de dar satisfação à lei.

— E esse meio? perguntou Bégourde.

— O artigo 345.° exige imperiosamente que me tenha salvado a vida... Há de salvar-me a vida...

— Como?

— Nunca saiu de França?

— Nunca.

— Um mancebo na elevada posição que o senhor vai ocupar, deve ter viajado. Vamos partir.

— Quando?

— Logo que tiver ultimado os seus preparativos de partida. Serão além disso, muito restritos. Hei de dar-lhe uma relação dos objetos que lhe serão indispensáveis, e não levará mais nada. Imitaremos os ingleses e os americanos, gente prática, que para correrem o mundo reduzem as bagagens à mais simples expressão, evitando assim notáveis embaraços nas gares do caminho de ferro, nas alfândegas, e nos hotéis. Não levarei ninguém comigo... é bastante o seu criado grave.

— Onde iremos?

— À Itália, Alemanha, Áustria, Suíça...

— Quanto tempo durará a nossa viagem?

— Três meses pouco mais ou menos, e não será com certeza muito para reformar de todo a sua educação em harmonia com os usos do mundo. Quero que seja, quando voltar, um gentleman em toda a extensão da palavra.

— Não terei senão que imitá-lo.

— Agradecido pelo cumprimento, disse o Príncipe com um sorriso, mas não se assemelha quem quer a Godefroy de Castel-Vivant.

— Enfim, aproveitarei como melhor puder as suas lições e os seus exemplos... respondeu Heitor.

— Belo. Na volta deter-nos-emos durante alguns dias ou em Genebra, ou em Lausanne... Enfim, numa cidade das margens do Lémann. Ali organizaremos excursões no lago, e usaremos a delicadeza de fazer as honras a alguns compatriotas encontrados à mesa do hotel. É nadador?

— Sou,

— De primeira, de segunda, ou de terceira força?

— De primeira. Não receio ninguém, e mergulho como um terra-nova.

— Eu também nado, ou pelo menos não nadava mal em outro tempo, e creio que em caso de necessidade saberia salvar-me; mas ninguém sabe que eu tenho esta arte, e estimo muito. Compreende?

— Começo a compreender.

— Num dia de grande calor vestimo-nos com fatos leves, acompanhados de dois outros convidados bem escolhidos; dirigimo-nos à vela para o lado de Chillon, de Vevey, de Coppet ou d'Evian; fala-se de natação, eu afirmo que não conheço os princípios rudimentares, e recomendo prudência, o que não obsta a que eu cometa a imprudência de me conservar de pé na proa do barco, de óculo em punho, a analisar um ponto de vista pitoresco.

O Príncipe interrompeu-se.

— Absorto na sua contemplação, prosseguiu Heitor sorrindo, faz um movimento em falso... É isto?

— Exatamente... perco o equilíbrio. Cambaleio, e caio à água pedindo socorro, e vou para o fundo como um prego.

— Susto geral... espanto universal, continuou Bégourde, começa o meu papel! Eu grito como no Ambigu: "Não, não deixarei perecer à minha vista, por falta de socorro, o nobre velho a quem amo como a meu pai!" e mergulho ilico. É isto?

— Sim, é isso, suprima só três palavras que aí estão de mais.

— Quais?

— Nobre, velho e ilico.

— Suprimo.

— Há de deitar-me a mão debaixo dágua. Trazer-me-á à superfície desmaiado, ou parecendo estar, o que vem a ser o mesmo. Deitar-lhe-ão remos ou cordas, enfim, salvar-nos-ão a ambos, e os cuidados assíduos que há de dispensar-me com uma dedicação filial, far-me-ão recobrar os sentidos ao fim de cinco minutos. As testemunhas desta heróica salvação redigem um processo verbal, entusiasta, dos fatos que convém confirmar por um modo irrefutável, fazemos legalizar as assinaturas pela autoridade genovesa e pelo representante da autoridade francesa, regressamos a Paris munidos de um documento bem autêntico, ante o qual se curvará o artigo 345.°, e procederemos sem perda de tempo às formalidades de que há bocado e detidamente lhe dei conhecimento. Que diz do meu plano?

— Acho-o admirável, respondeu Heitor, e o êxito parece-me certo. Se não fosse fidalgo e príncipe, poderia ter composto romances cujas peripécias não teriam iguais.

— Creio igualmente... disse Godefroy. Em todo o caso não me faltava imaginação, nem talvez estilo. Outra coisa: O senhor tem casa montada, creio eu?

— Sim, e num bom pé.

— Convide-me para jantar em sua casa amanhã.

— Que ventura para mim! convidarei todos os meus amigos.

— Não! Desejo um "tête-à-tête". Quero ver como se estabeleceu e poder dar-lhe à vontade os meus conselhos. Compreendeu?

— Muito bem!

O senhor de Castel-Vivant dirigiu-se para a janela, e disse levantando a cortina e olhando para a rua:

— É sua, aquela carruagem tão brilhante?

— É, sim senhor. Tenho cinco nas minhas cocheiras.

— Todas do mesmo estilo?

— Absolutamente. É rico, não é?

— Muito. No regresso, quando for príncipe, há de ser preciso mudar tudo isso, e há de fazê-lo de boa vontade, porque bem sabe que o verdadeiro luxo tem horror às parlapatices.

— Tenho muito a aprender, senhor, murmurou Bégourde um pouco desanimado.

— Muito e mais ainda; mas descanse, meu querido filho, vai ter boa escola

 

O PRINCÍPIO DA COMÉDIA

Dois ou três dias depois da conversação a que acabamos de assistir, o Príncipe de Castel-Vivant ao encontrar Júlio Leroux, falava-lhe em termos ambíguos e com muitas reticências de uma viagem que ia efetuar em companhia de alguém cujo nome não podia dizer, e de uma grande alteração que, com certeza, não tardaria a efetuar-se na sua fortuna.

Na semana seguinte Godefroy partia com Heitor.

Tinham combinado que as despesas da viagem fossem comuns, mas o Príncipe, movido por um sentimento muito paternal cuja natureza conhecemos, deixava, sem o menor escrúpulo, seu futuro filho adotivo despender os sete oitavos, e no fim de contas era muito justo, porque o discípulo devia naturalmente suprir as necessidades da vida do professor.

— Não seguiremos os dois nas suas peregrinações pela Europa; o detalhe dos seus feitos e ações seria interessante, mas levar-nos-ia muito longe.

Visitaram juntos Bruxelas, Berlim, Viena, S. Petersburgo, Roma, Veneza, Nápoles, Florença, muitas outras cidades ainda, e chegaram finalmente a Genebra, último ponto a visitar antes de entrar em França.

Aí instalaram-se no mais brilhante dos palácios de primeira ordem, e ocuparam-se de representar sem a menor demora a comédia composta por Godefroy e aprovada por Bégourde.

Segundo o plano formado, travaram conhecimento com alguns franceses alojados no mesmo palácio, e que, antecipadamente muito lisonjeados pela companhia de um personagem tão considerável como o Príncipe de Castel-Vivant, apressaram-se a retribuir atenção por atenção.

Um barco de recreio, um pequeno iate muito cômodo e elegante foi preparado à custa de Bégourde, cujas cartas de crédito sobre uma aluvião de banqueiros podiam fazer face a grandes despesas, e começaram as excursões ao longo das maravilhosas e célebres margens do Léman.

Todas as manhãs o iate levava alguns convivas. Não se voltava senão à tarde, e quando não se queria saltar em terra, improvisava-se na tolda uma mesa ligeira, tiravam-se da dispensa provisões de todas as qualidades e vinhos de Ivone e de Champanhe, e almoçava-se em pleno lago, sob um céu azul.

Estes passeios pitorescos eram muito falados. Muitos estrangeiros de distinção faziam diligência para serem admitidos a tomar parte neles e quase sempre o Príncipe acolhia bem estes pedidos.

Chegou finalmente o grande dia escolhido para o comovente e decisivo episódio do perigo que correria o Príncipe e o salvamento praticado por Bégourde.

O tempo estava radiante, o sol abrasador e tão transparente a atmosfera, que a olho nu e à uma grande distância se distinguiam os menores detalhes das pitorescas montanhas refletindo no lago os seus cabeços ora arados, ora cobertos de verde relva, coroados de eternas neves.

O Príncipe e Bégourde vestiam, ambos, de branco e tinham chapéus de palha.

Cinco convocados, três franceses e dois ingleses, estavam a bordo.

O vento muito fraco não conseguia senão, de espaço a espaço, enfunar as velas, e o iate caminhava tão vagarosamente que não deixava após si nenhum sulco apreciável.

Godefroy inclinou-se na borda falsa.

— Olhe, disse ele, isto não é água, é cristal. Vêem-se os peixes como através o vidro de um aquário. Podiam-se contar os seixos.

Em seguida, dirigindo-se ao piloto, ajuntou:

— É pouco profundo aqui, não é? Quatro ou cinco pés, suponho eu.

O piloto pôs-se a rir e respondeu:

— Perdão, meu caro Príncipe, cometi um pequeno erro. Temos aqui quinze a vinte pés de água para mais.

— O bastante para me afogar muito bem, redarguiu o senhor de Castel-Vivant, não sei nadar. Mas em compensação sou prudente.

— Nunca se é de mais, disse sentenciosamente o piloto.

Cinco minutos depois o Príncipe apontando para o horizonte, perguntou:

— Aquele ponto branco acolá, é uma vela?

Todos os olhares se fitaram na direção indicada.

Ninguém viu coisa alguma.

O Príncipe insistiu. Afirmou mesmo que a mancha branca aumentava, e como os ouvintes pareciam convencidos, prosseguiu, tirando da algibeira um pequeno binóculo:

— Já saímos de dúvidas, o alcance deste brinquinho de doze lentes é enorme.

Em seguida levantando-se do "fauteuil" amerinaco onde estava sentado, foi colocar-se na proa do iate e assestou para o horizonte o binóculo.

— Meu Príncipe, gritou-lhe o piloto, faz favor de se acautelar. Um acontecimento vem sem se esperar.

— Já disse que era prudente, redarguiu Godefroy com uma espécie de impaciência.

Exatamente naquele instante uma lufada de vento um pouco mais forte enfunou a vela por um segundo, apressando a marcha do iate.

Por pouco apreciável que fosse este aumento de velocidade, bastou contudo para fazer perder o equilíbrio ao Príncipe.

Cambaleou, e não achando ao alcance da mão nenhum objeto a que segurar-se, caiu no lago como uma massa exclamando:

— Acudam-me... socorro... salvem-me!...

A água profunda fechando-se sobre ele, não deixou ouvir os seus desesperados lamentos.

A bordo foram então enormes o rumor e a confusão. Convidados e tripulação falavam ao mesmo tempo, apressavam-se, empurravam-se, discutiam, aconselhavam-se, queriam ver e nada viam.

Só Bégourde não dizia nada.

Despiu o casaco num instante, saltou por cima da borda falsa e mergulhou.

— Ah! exclamou o piloto, valente rapaz! Eu fazia outro tanto, mas nado como um cão de chumbo.

Em seguida estabeleceu-se um profundo silêncio.

Os peitos opressos não respiravam. Os olhares espantados seguiam ansiosamente o drama que se passava debaixo dágua.

Como os nossos leitores sabem que este drama era uma comédia, abster-nos-emos de lhes narrar as peripécias faltas de todo o interesse.

As coisas passavam-se segundo o programa estabelecido pelo falso afogado, e o seu presumido salvador.

Ao fim de alguns segundos que pareceram mortalmente longos aos espectadores ingênuos, Bégourde reapareceu, nadando com uma mão, e sustentando com a outra o corpo do Príncipe, que com os olhos fechados, não dava sinal algum de vida.

Os mais frenéticos aplausos estrugiam na tolda.

— Com a breca! disse Bégourde com a voz rouca de comoção, não se trata de nos aplaudir, mas tirar-nos daqui! Tive a ventura de salvar o Príncipe com perigo de vida, mas carregado como estou não posso subir. Raios de Bougival! ajudem-me então.

Godefroy, com os olhos cerrados, a cabeça descansada no ombro de Bégourde, disse de si para si:

— A coisa foi muito bem feita, só foi de mais o tal Raios de Bougival. O diabo deste rapaz tem palavras de garoto que reaparecem nada a propósito, e que receio muito, hão de reaparecer sempre.

Enquanto o afogado monologava assim, o piloto e os dois homens da tripulação trataram de salvar o salvador.

Aprontou-se tudo num instante. Heitor não precisou senão pegar na corda que lhe atiraram, uma das quais tinha na extremidade um laço para servir como de estribo. Metido o pé naquele laço, içaram-no para bordo a ele e ao seu fardo sem o menor custo.

— O príncipe está desmaiado, bem o vêem, disse ele afastando os importunos que queriam dar-lhe apertos de mão. É do Príncipe que é necessário cuidar. Quem tem aí sais ingleses?

— Eu... responderam três vozes num perfeito acorde. E três vidrinhos saíram de três algibeiras.

— Basta um... continuou Bégourde pegando num dos frascos. Vou fazê-lo respirar ao Príncipe, ajuntou ele. Friccionem-lhe as mãos.

Cinco minutos de operação produziram o resultado esperado.

O senhor de Castel-Vivant fez um leve movimento, soltou um profundo suspiro, ergueu a cabeça, abriu os olhos, e volvendo em redor de si um vago olhar, balbuciou com voz mal distinta:

— Quem me salvou?...

Bégourde respondeu:

— Eu, querido Príncipe...

— A meus braços, meu filho.

Heitor precipitou-se nos braços do senhor de Castel-Vivant, e os dois uniram-se num estreito abraço.

Foi uma cenazinha muito tocante, de que se falou com admiração em toda a cidade de Genebra até durante a noite.

Como as excursões do iate se prolongavam às vezes vinte e quatro horas, havia a bordo uma mala cheia de fato que permitiu ao príncipe mudar as roupas molhadas.

Além de que regressaram logo.

Depois de um tão vivo alarme, era preciso não comprometer a preciosa saúde do Príncipe, e podiam ser necessários os cuidados de um médico.

Não foi preciso nada, e o senhor de Castel-Vivant cheio de vigor na sua verde velhice, passava muito bem no dia seguinte de manhã.

A seu pedido, redigiu-se em termos pomposos o processo verbal do salvamento; os convidados, o piloto e os dois marinheiros assinaram-no, e a legalização das assinaturas fez deste processo verbal um documento autêntico.

Munidos do documento indispensável para o bom êxito dos seus projetos, Heitor e Godefroy não tinham daí para o futuro nenhum motivo para prolongar a sua estada na Suíça. Voltaram a Paris, e no dia imediato ao da sua chegada, satisfizeram as primeiras formalidades relativas à adoção, isto é, apresentaram-se juntos em casa do juiz de paz do bairro onde morava o Príncipe, e declararam um que desejava adotar, o outro que consentia em ser adotado.

Feito isto, só lhes restava esperar, e não podendo abreviar os trâmites legalmente necessários, resolveram manter-se em status quo.

 

O Príncipe aproveitou o tempo em completar a educação de gentleman de Bégourde.

Este último, durante a viagem, tinha feito progressos reais. O garoto estouvado ia desaparecendo a pouco e pouco, e cedendo o lugar ao homem do mundo elegante e correto.

Às vezes, é verdade, em certos momentos de abandono, reaparecia por alguns minutos o gaiato, o vadio de outro tempo, esses momentos tornavam-se cada vez mais raros, e o mal não era muito grande.

Bégourde consagrava os seus dias a todos os esportes; montava a cavalo seguindo os verdadeiros princípios; exercitava-se no jogo das armas com Vigeant, maravilhado ao ver os progressos do seu discípulo; conduzia a dois e a quatro muito bem e aprendia a dançar.

Uma nuvem desses operários parisienses que são verdadeiros artistas, modificavam, segundo as leis do bom gosto, a ornamentação da mobília do palácio; o couro dos arreios já não desaparecia sob os rendilhados de metal. As cores escuras substituía mas cores muito vivas das carruagens, cujas portinholas iam dentro em pouco ser ilustradas com o brasão e a coroa dos príncipes de Castel-Vivant.

 

O PRÍNCIPE TOTOR

Chegou finalmente o dia tão impacientemente esperado. O tribunal de primeira instância, depois de ouvido o procurador do governo, tinha pronunciado:

"Tem lugar a adoção."

O supremo tribunal tendo tido conhecimento da resolução do tribunal, proferiu em audiência pública a sentença assim concebida: "Es tá confirmada a resolução do tribunal, em conseqüência do que tem lugar a adoção."

A sentença fora fixada em tais lugares e em tantos exemplares quanto o tribunal julgou conveniente, em seguida transcrita para o registro do estado civil do bairro, onde o adotante era domiciliado.

Godefroy possuía cem mil libras de rendas vitalícias, Heitor Bégourde era daí em diante o Príncipe de Castel-Vivant.

Esta adoção, precisamos dizê-lo, não passou desapercebida no mundo artístico onde o mancebo tinha vivido.

Os antigos camaradas dos cafés Frontin, Suíço, de Madrid, dos botequins do bairro latino, das cervejarias do "boulevard" des Batignolles, tanto mais se riam dele quanto mais lhe invejavam a sorte.

Denominaram-no: O Príncipe Totor, e a fama deste nome foi grande.

O nobre de fresca data adquiriu depressa uma fisionomia parisiense, tornou-se uma figura conhecida, fez-se um tipo do "boulevard" e do Bosque.

Quando se via passar na sua vitória, a cavalo ou em faeton, conduzindo dois trotadores Orloff de mil luíses, não se dizia: "Ali vai o Príncipe de Castel-Vivant", mas: "Ali vai o príncipe Totor."

O príncipe Totor adquirira depressa a celebridade. Tinha as honras de caricatura nos jornais de estampas que ele abrilhantara noutro tempo com seus desenhos a vinte francos.

Quando aparecia nalgum teatro popular em galante companhia, nunca deixaram a platéia e a galeria de aplaudi-lo ruidosamente, como se fazia no tempo de Mangin, e gritar imitando o cantar dos galos, ou o miar dos gatos:

— É o príncipe Totor! olé!

Era além disso bom príncipe, e achando graça àquilo, inclinava-se para diante, de sorriso nos lábios, e cumprimentava com a cabeça e com a mão o público que o aclamava, um pouco zombeteiramente talvez, mas enfim que o aclamava.

 

Lazarine não sabia nada disto, porque a adoção tivera lugar quando ela, no último período da sua gravidez, estava, por assim dizer, alheia ao que se passava.

Júlio Leroux, muito ao corrente de tudo, e mais do que íntimo de Godefroy rico, teria podido facilmente elucidar sua filha, e tê-lo-ia feito sem a menor dúvida, se fosse possível fazê-lo sem proferir o nome de Bégourde, mas sabemos que o ex-banqueiro tinha sérios motivos para evitar falar à Marquesa do vagabundo de outrora.

Heitor, uma tarde, seguia a avenida das Acácias nos bosque de Bolonha.

Sabe-se que aquela avenida é o lugar predileto das verdadeiras fidalgas, que de bom grado concedem a margem esquerda do lago às carruagens das grandes cocotes.

O principezinho viu passar Lazarine com quem não havia se encontrado desde a interrompida entrevista no palácio de la Tour-du-Roy.

A marquesa, toda vestida de preto, porque o seu luto não devia terminar senão alguns dias mais tarde, ia só, meio reclinada, numa postura ao mesmo tempo airosa e negligente, nos coxins de um caleche de oito molas, de um grande estilo.

No seu encantador rosto notava-se uma expressão pensativa e quase sombria.

Uma leve ruga se desenhava na sua fronte alva, e entre as sobrancelhas, escuras como o sol, via-se o esforço de um pensamento triste, de uma preocupação penosa.

Os seus mágicos olhos de profundas pupilas olhavam para a frente de um modo vago e distraído, mas não viam.

Heitor ao reconhecer Lazarine, sentiu uma viva comoção.

Sabia que ela estava viúva. Pareceu-lhe mais bela e mais sedutora do que nunca.

As recordações do passado afluíram-lhe todas à mente. A sua memória evocou as menores particularidades das entrevistas na galeria do palácio de Júlio Leroux, e nas ruas escuras do parque de la Tour-du-Roy.

A cólera de que se sentia possuído, por Lazarine ter faltado à última entrevista, evaporou-se como o fumo de um fogo de palha.

Confessou de si para si, que a Marquesa tivera razão em não ir.

Por muito ínfimo que fosse o nascimento daquele singular rapaz, bastava-lhe um nome e um título, adquirido por bom dinheiro de contado, para desenvolver nele o orgulho da casta, e excitar, por demais, aquele orgulho.

— Sim, com certeza, disse ele consigo, ela fez bem em não se comprometer irreparavelmente com o péssimo personagem que eu era então! Ela tinha-me testemunhado muita benevolência. Um pobre artista desconhecido devia erguer os olhos com insolência para uma la Tour-du-Roy? As marquesas de dezesseis avós nobres não podem, sem faltar a todas as conveniências, dar atenção a Bégourdes! O coração de Lazarine arrastava-a para mim apesar de tudo. Perdôo-lhe uma fraqueza a que dei motivo, mas aprovo-a e admiro-a por ter sabido resistir, com uma coragem heróica, à fascinação da última hora! Lutou, mas venceu! Esperei debalde debaixo do olmeiro. Merecia-o. Estimo muito! Lazarine é um anjo.

Ele tinha metido o cavalo a galope, e seguindo o mesmo caminho que a carruagem, devorava com os olhos a Marquesa sempre distraída e sempre pensativa.

 

Depois de alguns minutos de extática contemplação, continuou o seu monólogo:

— Como os tempos estão mudados! disse ele consigo. O abismo que me separava desta adorável mulher já não existe.

O Príncipe de Castel-Vivant é, pelo menos, hoje igual à Marquesa de la Tour-du-Roy. Júlio Leroux, daqui para o futuro sem direitos sobre sua filha, não virá colocar-se entre nós.

Lazarine é viúva... viúva e livre. Depende de si só. Quase que me amava quando era tão pequeno. Por que não me amaria de todo agora que estou elevado?

Heitor repetiu detidamente a si mesmo todas estas coisas e muitas outras.

Não perdeu de vista Lazarine durante o seu demorado passeio, enquanto que dez vezes, ao passo dos seus cavalos, a carruagem percorria em toda a sua extensão a avenida das Acácias.

Quando finalmente a equipagem saiu e se dirigiu rapidamente para Paris, o principezinho seguiu-a ainda mais distante, tendo o cuidado de não atrair a atenção da Marquesa.

Não queria ser reconhecido neste momento, e desejava guardar intacto o efeito da surpresa, que não deixaria de causar, à filha mais velha de Júlio Leroux a sua inesperada aparição com um novo nome, e na sua nova situação.

Heitor sabia perfeitamente que seu pai adotivo era o íntimo amigo do ex-banqueiro, e o familiar de Lazarine, portanto fazer-se-lhe apresentar parecia-lhe coisa natural e fácil, mas o ex-vagabundo não 1 queria uma apresentação muito simples segundo a sua opinião, e mui to vulgar; o seu desejo era um encontro inesperado, um reconheci-

mento de improviso, finalmente uma verdadeira cena de teatro.

Para alcançar tal resultado, indagou quais as casas mais freqüentadas pela marquesa e, a seu pedido, Godefroy, que conhecia o universo inteiro, apresentou, ou fê-lo apresentar-se nestas casas.

 

Fomos testemunhas do espanto de Lazarine, quando na sala internacional da Princesa Alvinzi, depois de ter ouvido anunciar o Príncipe de Castel-Vivant, ao entrar um rapaz em lugar de um velho, reconheceu nesse rapaz o vagabundo Heitor Bégourde, seu antigo adorador.

Primeiro, sabêmo-lo, ela julgou iludir-se, ter-se enganado, ou pelo menos ser uma vaga semelhança.

Mas foi-lhe impossível conservar-se na dúvida ao ouvir o recém-chegado dizer à dona da casa:

— Princesa, faz-me o obséquio de me apresentar à senhora Marquesa de la Tour-du-Roy, que com certeza não me reconhece, posto que tenha a honra de não ser inteiramente um desconhecido para ela?

— Pois não! respondeu a fidalga italiana, e conduzindo Heitor à presença de Lazarine, disse:

— Querida Marquesa, o Príncipe de Castel-Vivant. Lazarine, quase aniquilada por um espanto fácil de compreender,

apenas teve forças para responder inclinando a cabeça à profunda saudação do mancebo, e serviu-se do seu leque aberto para ocultar o grande rubor que lhe cobriu o rosto.

Com certeza que Heitor não podia desejar cena de teatro mais completa... A impressão produzida excedia a sua esperança.

Sentou-se ao lado da marquesa.

— Perdoe-me, minha senhora, disse-lhe ele com uma voz muito baixa que se perdeu no murmúrio da conversação geral e das palestras em particular, porque a sala estava cheia de gente, perdoar-me-á o ter-me feito apresentar à senhora sem ter antes solicitado esse favor? Sou culpado, bem o sei, mas não me terá permitido contar com a sua indulgência?

 

Lazarine, cuja perturbação se dissipara já, olhava espantada para o perfeito fidalgo que falava daquele modo.

A atitude e as maneiras corretas daquele fidalgo pareciam-lhe tão incompreensíveis, tão inverossímeis, como o nome sob o qual acabavam de o anunciar e apresentar.

O príncipe improvisado não havia herdado do Bégourde que ela tinha conhecido senão a figura e a voz, ainda que uma e outra profundamente modificadas pela diferença das entoações e da fisionomia. A metamorfose do conjunto era absoluta.

— Então, murmurou a jovem fechando o leque, inútil daí para o futuro, porque a sua vermelhidão tinha desaparecido, então, senhor Heitor Bégourde, é efetivamente o senhor?

— Não me havia reconhecido?

— Não, confesso-o, ou pelo menos duvidava. Como acreditar no testemunho dos meus olhos? Que quer, esperava tão pouco...

Lazarine interrompeu-se.

— Encontrar-me numa sala onde faria má figura noutro tempo? a juntou o principezinho. É isto, não?

— Sim, quase... Que mudança?

— Em meu favor? perguntou o artista rindo.

— Não digo isso.

— Pensa-o talvez?

— Bem sabe que não, respondeu a Marquesa cedendo a uma involuntária inclinação.

Um silêncio seguiu estas palavras. Heitor replicou no fim de um instante:

— Minha senhora, não pode adivinhar a febril imaginação com que eu esperava estas entrevistas que não são o resultado de um simples acaso. Se me fiz apresentar em casa da Princesa Alvinzi, é porque ela tem a honra de a receber. Tornando-me assíduo em casa dela, tinha a certeza de a encontrar à senhora. Há pouco, quando cheguei, reconheci a sua carruagem à porta. Portanto a senhora estava cá. Ah! como o meu coração batia no momento de transpor os umbrais desta sala onde ia vê-la. Eu tremia de comoção quando o reposteiro da princesa abria a porta e proferia o meu nome.

— O seu nome? repetiu Lazarine. O seu verdadeiro nome?

— Com certeza.

— O senhor é Príncipe de Castel-Vivant?

— Tanto quanto posso sê-lo.

— Mas o Príncipe de Godefroy que eu conhecia muito não tinha filhos. Existe algum outro ramo da mesma família?

— Nenhum. O príncipe de Godefroy é o único da sua raça.

— E o senhor é seu filho?

— Legalmente, sim, minha senhora... e também por afeição filial e por dedicação.

— Não compreendo, tudo isso me parece um enigma.

— Vou ter a honra de lho explicar.

 

A NARRATIVA

Lazarine muito intrigada e muito interessada, tomou a atitude recolhida e a fisionomia atenta de Dido escutando Enéas no quadro outrora famoso, que julgamos (mas não ousaríamos afirmá-lo absolutamente), tem a assinatura do barão Guard.

Heitor começou:

— Desde uma época à qual mal ouso fazer alusão, disse ele, porque ela me recorda uma audácia culpável punida por uma decepção cruel, e seguida de um profundo desgosto, deram-se na minha vida, senhora Marquesa, certos acontecimentos de uma importância considerável, pelo menos seguindo o meu ponto de vista pessoal.

— Posso conhecê-los? perguntou Lazarine.

— A senhora pode e deve, visto que só eles lhe darão a chave de um problema que a curiosidade a obriga a achar interessante. Eu era muito pobre. A senhora não o ignora. Tornei-me possuidor de uma fortuna.

— Por herança?

— Sim minha senhora. Um parente expatriado, e cuja existência eu mesmo ignorava, deixou-me por sua morte tudo o que possuía.

— E o algarismo da sucessão era considerável?

— Enorme até à inverossimilhança. Possuo hoje mais de um milhão de rendimento.

— Um milhão de rendimento! Repetiu a senhora de la Tour-du-Roy estupefata olhando para Heitor com os olhos muito abertos.

— Pelo menos, senhora Marquesa.

— Isso é sério?

— Se alguém pudesse, duvidar, obrigá-lo-ei a falar com o meu tabelião.

— Meu Deus, murmurou Lazarine, e eu que me julgara rica! A minha fortuna ao pé da sua não passa de uma modesta mediania.

— Logo de posse dessa herança inesperada, continuou o Príncipe, compreendi que a minha primeira educação não estava à altura da minha nova situação. Não conhecera nada, não tinha visto coisa alguma, além de que esse desgosto profundo de que lhe falava há pouco, e cuja causa vossa excelência talvez adivinhe, inspirava-me o desejo de me afastar momentaneamente. Resolvi sair de França e encetar uma viagem pela Europa, e o acaso fez do Príncipe Godefroy de Castel-Vivant o companheiro dessa viagem.

— Ah! disse consigo Lazarine, era aquele cujo nome o Príncipe ocultava a meu pai.

 

Heitor continuou:

O senhor de Castel-Vivant possuiu-se de uma viva simpatia que foi partilhada. Tornamo-nos inseparáveis. Vossa excelência conhece-o, e sabe, como toda a Paris, que não houve gentleman mais correto e mais ao corrente dessas variantes nas quais reconhece o homem do mundo. Nestas matérias delicadas como em muitas outras, eu tinha a aprender. Solicitei as lições do Príncipe, e tive a boa fortuna de obtê-las.

— O príncipe faz-lhe honra, disse Lazarine com uma voz tão baixa, que dir-se-ia falava consigo mesmo.

O mancebo cumprimentou sorrindo.

— No nosso regresso, prosseguiu ele, e antes de entrar em França, paramos em Genebra por algumas semanas. Fazíamos diferentes excursões pelo lago. O Príncipe um dia ia morrendo. Um falso movimento precipitou-o nas águas profundas onde desapareceu. Graças ao céu sou bom nadador. Estava traçado o meu dever, e o meu coração estava de acordo com esse dever. Quiseram reter-me. Não dei ouvidos a nada. Atirei-me vestido, mergulhei, e depois de longos esforços, tive imensa ventura de salvar o príncipe com perigo da minha vida.

 

Lazarine bateu as mãozinhas.

— Ah! disse ela radiante, é belo o que fez! É grande! É admirável! Como deve sentir-se ditoso e orgulhoso ao ver o resultado da sua heróica ação!

— Muito ditoso efetivamente, minha senhora, redarguiu nobremente Heitor. Mas orgulhoso por que? Repito, tinha feito o me)u dever, e nada mais.

— Como eu o conheci mal, murmurou a Marquesa.

— Uma ação tão simples merecia quando muito um elogio, continuou o narrador, obteve entretanto uma brilhante recompensa. O senhor de Castel-Vivant, mil vezes mais reconhecido do que seria preciso, aumentando, como a senhora há pouco fazia, o valor da dívida que para comigo contrairá, levado, além disso, por uma afeição paternal, quis fazer de mim, completa e legalmente, seu filho.

— Isso é possível? interrogou Lazarine.

— Sim, senhora Marquesa, em certos casos, e nós achávamos-nos justamente, o Príncipe e eu nas condições requeridas, a minha adoção teve lugar, e sou hoje o Príncipe de Castel-Vivant por um documento autêntico.

— Que aventura? disse a senhora de la Tour-du-Roy. É estranha e curiosa como um romance.

— Um romance onde tudo é verdade.

— Não saberia manifestar-lhe quanto estimo a sua felicidade que me parece cem vezes merecida. Agora que sei que é um herói, tenho orgulho em fazer parte dos seus amigos.

— Perdoa-me? perguntou vivamente Heitor.

— Que tenho a perdoar-lhe?

— Ousadas confissões que a humildade da minha posição tornara inadmissíveis!

— Inadmissíveis? Por que? Acaso não eram sinceras?

— Bem sabe que eram! Como no Ruy Blas, "Bichinho da terra apaixonado por uma estrela", eu sofria a influência de uma poderosa fascinação, e é talvez uma atenuante da minha loucura.

— O que chama sua loucura, na verdade, não deve chamar. Quando é que existiram distâncias sociais para o amor? Um coração verdadeiramente apaixonado pensa nos obstáculos, e faz caso de um título e de um brasão?

— Ah! a senhora tem razão, eu não era culpado, disse Heitor, cujo coração pulsava agitadamente. A absolvição que me concede abre-me os olhos. Podia eu lutar contra a radiante beleza que me impunha o amor? Não, cem vezes não! luta impossível, lula insensata! e depois, o instinto que me arrastava para a senhora segredava-me:

"— Podes amá-la... hás de ser príncipe um dia.

— Talvez, efetivamente, disse Lazarine.

 

Durante perto de meia hora trocaram-se a meia voz estas amabilidades, quase em segredo, por detrás do leque, entre o novel príncipe e a sereia de cabelos cor de fogo.

A ninguém ofendeu a atitude significativa dos dois jovens.

Algumas palavras de Heitor à madame Alvinzi antes da apresentação, provaram que Lazarine e ele se conheciam há muito.

Demais, o príncipe era solteiro. A Marquesa viúva.

Eram livres ambos, podiam sem ofensa da moral, amarem-se à face do mundo.

Tal foi o sentimento geral.

A duquesa viúva de Sassetot-Langeais disse até à madame Alvinzi, sorrindo e apontando com o leque para o Heitor e Lazarine.

— Seria um lindo par, não é verdade?

— A jovem viúva é adorável, e o principezinho encantador, redarguiu a italiana, talvez vejamos um casamento?

— Seria brilhante. Quantos milhões reuniriam o Príncipe e a Marquesa.

—Não se sabe ao certo: É todavia quantia fabulosa.

— E os dois somam apenas quarenta e cinco anos? Seria um casamento como se sonha, mas se vê pouco. Quero absolutamente que isso se faça.

Heitor levantou-se.

— Senhora Marquesa, perguntou ele, terei a honra de tornar a vê-la?

— Quando quiser, querido Príncipe.

— Autoriza-me, então, a apresentar-me em sua casa?

Lazarine sem responder, encolheu imperceptivelmente os ombros, e aquele movimento significava claramente:

— Meu Deus! que inútil e tola pergunta!

Em seguida prosseguiu em voz alta:

— Todos os dias, exceto às quintas feiras, estou em casa desde as três até às seis horas, para todos os meus amigos. Estimarei vê-lo lá.

— Como todos os seus amigos? murmurou o principezinho.

— Com certeza.

— Mas se eu pensasse em ser eu só mais favorecido que todos os outros? Se eu tivesse que lhe dizer coisas que ninguém mais devesse ouvir? Se me fosse preciso a ausência de estranhos para conversar a respeito do passado e do futuro?

— Finalmente, é um "tête-à-tête" que solicita? disse Lazarine rindo.

— Sim, minha senhora.

— Pois bem, falaremos disso.

— Posso, ao menos, esperar?

— Por que não? A esperança foi sempre permitida.

— Até amanhã, senhora Marquesa.

Heitor, cem vezes mais apaixonado por Lazarine do que o tinha estado dois anos antes, e recebido de um modo muito mais sério do que o fora no "boulevard" Haussmann e no palácio de la Tour-du-Roy, subiu para a carruagem, com a cabeça e o coração em fogo, dizendo de si para si com exaltação:

— Possivelmente adoro-a e nascemos um para o outro. Está muito bem provado pelo duplo acaso que a fez viúva e me transformou em príncipe. É hoje ainda mais bela do que era noutro tempo, e tenho a certeza da sua virtude, visto que me resistiu em tempo. A não ser uma recusa da sua parte, que confesso, muito me admiraria, será dentro em pouco Princesa de Castel-Vivant!

A senhora de la Tour-du-Roy não tinha entrevista naquela noite com Marcel Laugier, tão grandemente ameaçado num amor que era a sua vida, e cuja posse ele julgava segura, senão para sempre, pelo menos por muito tempo.

Júlio Leroux devia jantar com outras duas pessoas no palácio da rua Murillo.

Foi ele o primeiro que chegou.

— Que sucede, minha bela Marquesa? perguntou ele depois de ter abraçado a filha.

— Por que me faz essa pergunta, meu pai?

— Noto que não tens a tua cara do costume.

— Tenho má cara? Estou menos bonita?

— Muito linda, pelo contrário, minha galantinha, e de excelente cara, mas o sangue corre mais agitado do que do costume, e o olhar exprime uma agitação quase febril. Não é esse o teu estado normal, afirmo-o, bem o conheço. Não aconteceu nada?

— Nada de desagradável. Nada, papai.

— Então, alguma coisa de agradável.

— Não sei. Ora adivinhe quem eu vi em casa da Princesa Alvinzi?

— Sou de todo incapaz, não canso a imaginação... quem viste tu?

— O Príncipe de Castel-Vivant.

— Qual? disse Júlio Leroux num tom sossegado.

— Sabe que há dois?

— Ora essa!

— E não me tinha dito nada?

— Para que falar do outrora Bégourde, e despertar desagradáveis recordações?

— Encantadoras recordações, pelo contrário, exclamou Lazarine. — Ah! ah! isso é assim, e a agitação, provém disso! disse o ex-banqueiro com filosofia.

— Sim, papai.

—Então, agrada-te o principezinho?

— Muito, papá.

— Tem graça. Um rapaz que por duas vezes pus na rua.

— Esse tempo está longe, papai. Hoje não o poria.

— Por que não?

— Pensa em tal. O príncipe Heitor possui um milhão de renda.

— E mais ainda. Um milhão e cinqüenta mil francos, me disse Godefroy. O grande espertalhão de Godefroy colocou o seu nome em boas condições. Muito esperto, muito! Agora está rico. Eu também adotaria um milionário, se pudesse, mas o diabo é o nome de Leroux que não tenta ninguém, infelizmente.

— Imagine, pois, prosseguiu Lazarine, com rendimentos como aqueles, juntos aos meus, que fortuna!

— Espantosa, de acordo.

— Sim papai, espantosa.

— E de marquesa passava a princesa, o que é subir bastante.

— Sim papai.

— Pois bem, casa, minha querida. Serás princesa Bégourde. Não. Princesa de Castel-Vivant. Dou antecipadamente o meu consentimento, o prometo formalmente nunca mais por o príncipe na rua.

A chegada de convivas interrompeu a conversação do pai com a filha.

 

RENOVAÇÃO DE AMORES

Heitor, no dia seguinte, aproveitando com um entusiasmo fácil de prever a permissão concedida por Lazarine, apresentava-se no palácio da rua Murillo.

A senhora de la Tour-du-Roy fez-lhe um acolhimento cuja esquisita graça não era isenta de coqueteria, e este acolhimento acabou de transtornar completamente a cabeça ao mancebo.

Voltou no dia imediato e no outro, e não tardou a estabelecer-se de todo em casa.

A sua timidez do primeiro momento desapareceu; evocava agora de um modo discreto e encantador as recordações do passado, e servia-se delas para preparar o futuro.

Sem dirigir à linda viúva declaração positiva, deixava entender que ele a tinha sempre amado, que a amava ainda, e mais do que nunca, e que o fim único da sua vida, o seu único desejo, a sua cara ambição, era fazer da marquesa uma princesa.

Lazarine não desejava mais.

A sua pequena conversação com Júlio Leroux provava de um modo claro que ela aceitava de bom grado a idéia muito prática de trocar o seu título por outro melhor, e de juntar à sua fortuna, já tão, grande, a imensa fortuna do principezinho.

Com certeza que não estava apaixonada pelo seu novo adorador (aquela sedutora e frívola criatura podia lá amar?) mas gostava muito de Heitor.

Apesar das lições de Godefroy, e a despeito dos seus próprios esforços, o ex-Bégourde não tinha tão completamente estudado o velho, que por momentos, em intimidade, o artista boêmio, o alegre amante de madame Bobino, não se desse a conhecer.

Quando se sucediam, por acaso, ou por distração, algumas daquelas inevitáveis reminiscências de um tempo já passado, Lazarine punha-se a rir com o maior gosto, e Heitor ficava muito penalizado.

O pobre rapaz fazia mal.

Era aquele o aspecto pelo qual ele mais particularmente agradava à Marquesa, cujas inspirações dissolutas, não o ignoramos, tinham readquirido havia tempo, uma nova intensidade.

— Um marido deste gênero seria tão agradável como um amante! dizia ela de si para si. Compreenderia todas as loucuras, partilharia todas as excentricidades, inventá-las-ia em caso de necessidade. E que torrente de ouro jorraria noite e dia dos nossos cofres inesgotáveis sobre a Paris deslumbrada!

Lazarine dizia então estas coisas e suspirava profundamente.

É que entre ela e o principezinho erguia-se, por sua culpa, um obstáculo de primeira grandeza, difícil de remover, quase impossível de destruir.

Esse obstáculo chamava-se Marcel Laugier.

Como romper com aquele homem, a quem num minuto de incompreensível abandono, ela tinha tão loucamente deixado tomar novos direitos?

Como subtrair-se àquela exigente, insaciável paixão, nunca satisfeita, e que se mostrava tanto mais imperiosa, e tanto mais tenaz quanto mais ameaçada se sentisse.

Aniquilá-la, nem pensar nisso, mas talvez pudesse à força de picadas de alfinetes, enfraquecê-la, desarmá-la, triunfar dela pelo cansaço.

A senhora de la Tour-du-Roy resolveu empreender esse meio...

Desde o dia em que foi tomada aquela resolução começou para Marcel Laugier uma existência intolerável.

Os nossos leitores não esqueceram, que, por vontade de Lazarine, era-lhe proibido entrar no seu palácio sempre cheio de visitas, mas que três ou quatro vezes por semana, a Marquesa fugindo de casa como uma mulher adúltera que corre à entrevista de um amante, ia encontrar-se com ele.

Na previsão destes encontros. Marcel achava-se todas as noites, com a sua carruagem, em frente do número 5 da avenida da Rainha Hortência.

Lazarine começou por tornar as entrevistas menos freqüentes, depois inteiramente raras.

Deixava o oficial esperar e desesperar-se em vão durante cinco ou seis dias a seguir.

Se ele tentava queixar-se, quando finalmente ela aparecia distraída e preocupada, respondia:

— Que posso eu fazer neste caso? Ia para sair. Veio meu pai. É culpa minha? As suas censuras são injustas e ofensivas, meu querido amigo, e recuso-me a aceitá-las.

— Então o senhor Leroux vai agora todas as noites? murmurava Marcel.

— Vai muitas vezes... vai quando lhe agrada ir. Terá a lembrança de querer que eu feche a porta a meu pai?

— Porém eu tenho imenso desejo de o ver! Receba-me, pois, em sua casa.

— Bem sabe que isso é impossível. Já mo pediu. Recusei... recuso ainda... e recusarei sempre.

Inventou logo um novo pretexto. Estava terminando o seu luto.

Os salões parisienses reclamavam-na. Não podia nem queria declinar aqueles convites, e, sem motivos justos parecer afastar-se do mundo.

— Mas, exclamava Marcel, essas casas aonde vai estão fechadas para mim?

— Diligencie fazê-las abrir, se lhe parece, meu querido, volvia: Lazarine num tom de voz quase zombeteiro. Não espera, creio, que eu o apresente.

Durante toda uma semana ela não apareceu, nem deu notícias de maneira alguma.

O ex-tenente não podia conservar uma sombra de dúvida a respeito das intenções da amante.

Lazarine destruía o passado. Queria tentar uma ruptura, queria-o a todo o custo, e Marcel não a aceitava.

Os caprichos do jovem, em lugar de diminuir a sua paixão, exaltaram-na até ao paroxismo.

Estava, ao mesmo tempo, ébrio de amor e louco de cólera e ciúme,

— Se ela tivesse só deixado de amar-me, dizia ele de si para si, não levaria tão longe o brutal desprezo, mostraria ainda, alguma fieldade, hesitaria em martirizar o amado cuja ardente e profunda ternura, e ilimitada dedicação conhece; há o quer que seja; se ela deixou de me consagrar o seu amor foi para o dar a outro. Tenho um rival, esse rival quem será?

Marcel fez-se espião.

Passou as suas tardes oculto numa carruagem de estores descidos, na rua Murillo, defronte da porta do palácio.

A porta estava aberta. Lazarine recebia. Os trens entravam uns após outros no pátio, levando as visitas até ao peristilo.

— Como adivinhar, entre tantos elegantes, aquele a quem a senhora de la Tour-du-Roy distinguia?

Ah! Deus sabe que Marcel teria dado uma parte da sua vida para saber o nome desse homem Com que feroz alegria iria direito a ele! Com que sombria volúpia o teria provocado e arrastado para o campo.

Matar ou morrer! Uma ou outra coisa pouco lhe importava. Vencedor, ficaria vingado, e morto deixaria de sofrer.

Às vezes pensava:

— Vou entrar, vou subir? Os criados conhecem-me e acharão a minha presença natural, transporei o limiar daquela sala donde sou banido, e verei o que se me oculta, é simples e é fácil.

Era efetivamente fácil, e contudo Marcel não subia.

O soldado de rija tempera, enérgico e violento, pronto a ferir no rosto ou no coração um rival, tremia como uma criança diante da mulher a quem idolatrava.

Lazarine tinha-lhe proibido que se apresentasse no palácio.

Não se atrevia a desobedecer!

Um dia, exasperado por aquela espera que lhe despedaçava os nervos e fazia ferver o sangue, resolveu provocar uma explicação decisiva, e traçou as seguintes linhas:

"Há mais de uma semana que não a vejo. Viver assim é-me impossível. Esta noite, das seis para as nove horas, esperá-la-ei no sítio onde a espero todos os dias, e aonde já não vai. É preciso que Venha hoje, é preciso, assim o quero. Por muito tempo curvei a cabeça aos caprichos imperiosos que aceitava sem discussão. Hoje deixo de obedecer. Hoje ordeno. Se não vier às nove horas, baterei à sua porta, que será forçoso abrir-me. Se tiver saído do seu palácio, e estiver nalgum desses salões, onde sou esquecido e sacrificado, segui-la-ei lá, e embora daí deva resultar um escândalo, entrarei, falar-lhe-ei. Creia-me, Lazarine, não me excite. Não julgue que não tem nada a temer, e que no momento de obrar hesitarei. Desafiar os loucos é um ato de insensatez, e torno-me irresponsável, porque enlouqueço."

Marcel meteu num envelope esta carta, que não tentamos justificar de modo algum, e que só a reproduzimos, porque foi realmente escrita, e mandou-a por um moço ao palácio da rua Murillo.

Na mesma noite, às seis horas exatas, apesar da lebre ardente que o consumia, chegou em frente do número 5 da avenida da Rainha Hortência, e esperou.

Foi longa a espera.

Decorreu uma hora, depois mais outra.

De cinco em cinco minutos olhava para o relógio a luz do bico de gás, junto do qual estacionava a carruagem; aproximava-o do ouvido, e admirava-se de o ouvir andar, tão imóveis lhe pareciam os ponteiros sobre o mostrador.

Deram oito horas.

A avenida estava quase deserta.

A hulha de dois saltinhos pisando o asfalto do passeio ouviu-se acompanhado do fru-fru de uma saia de seda.

Marcel cujas pulsações do coração ficaram completamente paralisadas, ia inclinar-se para fora.

Não teve tempo.

Abriu-se bruscamente a portinha do coupé. e Lazarine subiu, ou antes, atirou-se para dentro da carruagem.

A respiração ofegante provara a rapidez da corrida

— Enfim! murmurou o mancebo tentando pegar e apertar a mão da Marquesa, mas a mão foi-lhe retirada com uma espécie de cólera.

— Jantará comigo, Lazarine? perguntou ele com uma voz que a comoção fazia tremer.

— Não, respondeu secamente a senhora de la Tour-du-Roy.

— Aonde quer ir?

— Aonde quiser. Sempre em frente. Não posso consagrar-lhe mais do que uma hora.

— Avenida dos Campos-Elyseos até à praça da Concórdia, disse Marcel ao cocheiro.

A carruagem rodou.

Ao fim de alguns segundos de um silêncio embaraçoso o ex-oficial murmurou:

— Está zangada, Lazarine, bem o vejo.

A Marquesa não respondeu, e o silêncio recomeçou.

O reflexo das lanternas alumiava debilmente o interior do coupé, forrado de cetim cor de castanha.

A jovem, sentada no ângulo esquerdo e coberta com o véu, tinha a cabeça reclinada para trás. O olhar estava fixo. Sob as rendas negras e apesar da penumbra, viam-se cintilar as suas pupilas. Os movimentos tumultuosos do seu seio, revelavam a tempestade que de um momento para o outro devia rebentar.

O próprio silêncio servia como que de precursor à tempestade próxima.

Uma luta estranha, um duelo sem tréguas, estava a ponto de travar-se entre aqueles dois seres, a quem tão pouco tempo antes uniam tão estreitos laços.

Lazarine pertencia a Marcel. Marcel era o pai do filho de Lazarine.

Todas as frases encantadoras do amor tinham flutuado entre os seus lábios unidos.

Estas recordações que Marcel evocava, Lazarine procurava esquecê-las.

De um lado amor importuno, do outro ódio implacável.

Lazarine rompeu o fogo e deu o primeiro tiro.

 

CONTINUAÇÃO DO ANTECEDENTE

A senhora de la Tour-du-Roy cruzou os braços sobre o peito, voltou-se para Marcel, e com uma voz cujo tom de profundo desespero seria difícil exprimir, disse-lhe:

— Então já chegou à ameaça?

O tenente, ferido, não das palavras, mas do tom (porque se aceitava a cólera, não queria o desprezo), respondeu com voz dura:

— Fiz bem em ameaçar, bem vê, visto que veio. Fiz bem em ordenar, visto que obedeceu.

Lazarine prosseguiu, como se não tivesse ouvido aquela resposta:

— Então o senhor escreve a uma mulher:

"Se não achar meio de estar livre quando for gosto meu que esteja; se não sacrifica as conveniências, o mundo, a sua família, tudo enfim, para vir quando me convier que venha, forçarei a sua porta, hei de persegui-la, fazer escândalo, comprometê-la, perdê-la."

— Sim, escreveu-me isto. Não são estas talvez as mesmas palavras, são porém os mesmos pensamentos. E eu julgava-o um fidalgo! O senhor um fidalgo!... ora essa! Faz favor de nos dizer o que é, senhor Marcel Laugier?

— Sou um homem que muito tem sofrido, e que não quer sofrer mais, respondeu friamente Marcel.

— Acaso sou responsável pelos seus sofrimentos?

— Sim, minha senhora, porque foi quem mos impôs.

— E segundo a sua opinião, que hei de eu fazer para lhe por termo? perguntou Lazarine ironicamente.

— Voltar a ser o que foi a algum tempo, porque a vida tal como a tenho hoje, parece-me impossível.

— Impossível, repetiu a Marquesa. Ah! como tem razão! Impossível, e não por si, mas por mim.

— Logo, perguntou Marcel sem depor a sua frieza, eu é que sou culpado?

— Então, quem há de ser?

— De que me censura?

— De ser mais tirano para mim do que um marido o foi para sua mulher? De me impor as suas vontades. De fazer um jogo da minha posição, da minha consideração, da minha honra!

— Adoro-a e quero vê-la, é isto um crime?

— Adora-me, diz o senhor! Ah! Deus livre a minha mais mortal inimiga de ser amada assim. Antes ódio do que amor! Afrontaria o eu ódio, enquanto que o seu amor impõe-se!

— Lazarine é cruel... é desapiedada.

— Porque já estou sem coragem para tolerar as suas exigências, cada vez maiores e mais impiedosas. As suas pretensões irritam-me! As suas ameaças revoltam-me! Com que direito quer perder-me aos olhos do mundo?

— Bem sabe que eu não quero tal. Bem sabe que a sua honra me é mais cara do que a si própria. Bem sabe que o meu ardente desejo seria legitimar pelo casamento os laços que nos unem!

— Eu, sua mulher! Nunca! Aceitá-lo por senhor. Eternizar um suplício sem nome! Antes morrer! Com certeza, sim, antes a morte neste instante.

Os dois atores da cena que contamos, não alteravam a voz neste diálogo, onde cada frase de Lazarine era para Marcel uma facada. Estas coisas diziam-se secretamente. As vezes não passavam de um diapasão muito baixo.

O efeito parecia mais terrível.

Marcel replicou:

— Lazarine, a senhora não me ama.

— E quando isso assim fosse?

— É.

— E depois?

— Deixou de amar-me tão completa e tão rapidamente, que este brusco reviramento deve ocultar alguma coisa. Não somente não me ama como ama a outro.

— Nego.

— Não negue! para que? Tenho a certeza.

— Ah! tem a certeza, disse a marquesa zombeteiramente.

— Sim.

— Imagina, talvez, que vou ter o incômodo de o desenganar? Se julga isso conhece-me mal. Demais, o que é falso hoje, pode ser verdade amanhã. Tenho vinte anos, hei de amar.

— Lazarine, suplico-lhe, cale-se.

— Para que hei de calar-me. As minhas palavras ofendem-no. Lamento-o, mas não posso evitar. Era mister que não as provocasse.

— Repito-lhe, Lazarine uma tal existência não pode durar por mais tempo.

— É a única coisa razoável que tem dito desde o começo desta borrascosa conversação. Que terminemos com ela é o meu mais ardente desejo.

Marcel empalideceu.

— Como entende isso?

— Do mesmo modo que o senhor entende, suponho eu. Estes laços duplamente pesados, que fala em legitimar, não são, graças a Deus, indissolúveis. Basta a nossa vontade para quebrá-los. Já que não podemos ser amantes, fiquemos sendo amigos. Despedacemos a cadeia. O senhor é livre, e eu livre sou também.

Marcel empalideceu.

— A senhora engana-me! redarguiu ele com uma voz estranha que assobiava ao passar por entre os dentes cerrados. A senhora engana-me. Não quero a minha liberdade, e recuso dar-lhe a sua. Não. a senhora não é livre.

— O que? exclamou Lazarine possuída do maior desespero.

— Não! não! e cem vezes não! interrompeu o mancebo. A senhora não é livre. Conhecia-a eu? Procurava-a? Pensava em animá-la e ser um estorvo ao seu viver de fantasias? A senhora veio ofereceu-se-me, entregou-se-me. Seu filho é meu filho. Acendeu em meu coração um fogo que o devora. fez correr nas minhas veias larvas ardentes em vez de sangue e vem hoje dizer-me, como se fora a coisa mais simples, e eu devesse esperar isso mesmo. "É livre! Quero ser livre!" Pois bem, não! não é tão simples como isso, não esperava um tal desenlace, e recuso-me a aceitá-lo. Amo-a, Lazarine, e julguei que me amava, porque me tinha dado direito para o acreditar. O meu coração é todo seu, e não saberia apoderar-me dele! Não quer ser minha mulher. Embora! Não posso impor-lhe o meu nome, mas sou seu amante por sua vontade, e ficarei seu amante.

— Ah! murmurou a Marquesa com um frêmito, com uma indignação de todo o seu ser. Ameaça-me com violências!

— Bem sabe que não, respondeu Marcel. Talvez que não torne mais a pertencer-me; é possível, mas não pertencerá a outro, isso é certo. Esse coração que foi meu, embora só por uma noite, só por uma hora, não baterá junto ao coração de um rival. Se não me ama, não amará ninguém. Proíbo-lhe o amor. Seja minha mulher, Lazarine, ou seja minha amante, porque não terá, enquanto eu for vivo, outro marido, ou outro amante além de mim.

— E como o impedirá o senhor? perguntou a senhora de la Tour-du-Roy num tom de provocação e de desafio.

— Por toda a parte, sempre, encontrar-me-á entre si e aquele que tiver escolhido.

— Diz-se isso, não se faz.

— Experimente e verá se o faço. Distinga hoje um homem, provocá-lo-ei esta noite, e matá-lo-ei amanhã.

— A não ser que ele o mate! redarguiu Lazarine com uma incrível intensidade de ódio.

— É a sua única fortuna, disse Marcel, morto eu, ficará livre.

— Pois bem. Esperarei.

Após um instante de silêncio, a Marquesa prosseguiu:

— Não temos mais nada a dizer, não é verdade?

— Não, nada mais.

O ex-tenente gritou para o cocheiro:

— Avenida da Rainha Hortência.

O coupé virou logo e rodou rapidamente.

Nenhuma palavra se trocou entre o mancebo e a jovem até ao momento em que a carruagem parou no sítio do costume.

— Portanto, perguntou Lazarine no momento de se apear, somos inimigos?

— Não sou seu inimigo, pois que a amo... respondeu Marcel.

— Mas sustenta as suas palavras e as suas ameaças de há pouco?

— Não retiro nada.

— Então! é a guerra.

— Se a quer, sê-lo-á.

— Adeus, senhor Marcel Laugier.

— Senhora Marquesa, até mais ver.

Lazarine abriu a portinha, saltou para fora da carruagem e a bulha dos seus saltinhos à Luiz XV ouviu-se no asfalto e sumiu-se ao longe.

— Ah! murmurou o ex-oficial logo que ficou só, o dia em que o acaso colocou esta mulher no meu caminho, foi um dia de desgraça.

A senhora de la Tour-du-Roy entrou pela portinha que deitava para o parque Monceaux, subiu com uma impetuosidade febril a escada furtada do palácio e fechou-se no seu quarto.

As velas acesas antes da sua partida ardiam ainda em cima do fogão.

De pé, em frente de "um grande espelho de Veneza, Lazarine arrancou o véu e o chapéu, e maquinalmente viu-se no espelho.

Teve medo de si mesma.

Uma cor lívida e escura substituía a carnação idealmente fresca e transparente do rosto.

Um largo círculo azulado desenhava-se-lhe como uma olheira ao redor das pálpebras avermelhadas.

No meio daquela auréola de azul as pupilas cintilavam-lhe como um fogo trágico, semelhante à chama sombria que ardia nos olhos de Renée, quando recolhia, gota a gota, a seiva envenenada do eufórbio da Abissínia.

Nunca o furor do paroxismo pôs um sinal mais visível numa face humana contrariada.

Lazarine tinha na mão um lenço bordado com as armas de la Tour-du-Roy, e guarnecido de rendas de Malines.

Mordeu o lenço, rasgou-o, fê-lo em pedaços, em seguida deixou-se cair numa cadeira torcendo as mãos.

Um soluço convulsivo lhe agitava a garganta. Parecia estar a ponto de chorar, mas os seus olhos conservavam-se secos, e o seu sinistro brilho animava-se cada vez mais.

Os lábios agitados proferiam palavras sem nexo. Debatia-se, como num mau sonho, contra a situação que a esmagava.

— Pois que! o homem de quem tinha feito um instrumento de fortuna, o homem cuja inconsciente cumplicidade tinha posto em suas mãos a herança do marquês, esse homem tornava-se um perseguidor! Vexava-a... perturbava-lhe a sua vida, aprisionava-a no seu amor, cavava um abismo entre ela e uma mais alta fortuna.

Era admissível? era aceitável?

Cem vezes não!

Esse homem tinha dito zombeteiramente:

— Morto eu, ficará livre.

— Foi a sua sentença que ele proferiu, disse consigo a senhora de la Tour-du-Roy. Suprime-se um obstáculo, pode suprimir-se um inimigo. E estou no caso de legítima defesa.

Ela sossegou um pouco, e pegando numa folha de papel sem brasão, escreveu:

"Eu estava louca. Proponho-lhe que façamos as pazes. Esqueça tudo, e espere-me amanhã à noite no sítio e hora do costume."

Sobrescritou-a para Marcel Laugier, em seguida chamando uma criada, enviou a carta para o correio.

 

CORAÇÃO DE DEMÔNIO

A surpresa e a alegria de Marcel, quando recebeu o bilhete de duas linhas que acabamos de reproduzir no fim do precedente capítulo, não se podem exprimir.

Como todos os namorados, ele só desejava convencer-se, coisa digna de menção, os homens mais desconfiados são também os mais crédulos logo que uma sincera e profunda paixão os possui e domina.

A Marcel não lhe custou o persuadir-se de que Lazarine o amava ainda, e que era preciso atribuir a terrível cena da noite da véspera a uma dessas crises nervosas, às quais certas mulheres são sujeitas, e que se assemelham à loucura.

Esperou: o futuro, tão negro alguns minutos antes, luminou-se-lhe de róseos clarões.

Lazarine foi exata e mostrou-se meiga e boa, afetuosa e simples, com um abandono juntamente mais terno e mais sério que de costume.

— Ti preciso que nos concedamos um perdão recíproco meu amigo, disse ela sorrindo, porque ambos fomos injustos, o senhor por exigências muito imperiosamente formuladas, eu por uma rebelião, justa no fundo, mas que bem o sinto hoje, foi formulada por um modo muito áspero e ofensivo. Seja razoável de hoje para o futuro, peço-lhe, como eu mesmo quero sê-lo, e em lugar de nos dirigirmos mútua censuras, pecamos ao nosso amor toda a ventura que ele pode dar. Uma cadeia nos liga, o senhor o disse, é essa a verdade, mas depende do senhor que a cadeia seja leve eu pesada. Não espere de mim mais do que posso dar. Não tenha ciúmes da sociedade de que faço parte, nem das obrigações que me impõe, e às quais não posso nem quero subtrair-me. O senhor é amado, a sua parte é bela. Muitos poderiam invejar-lha, mas juro conservar-lha toda completa. Um acaso estranhamente funesto me obrigou, nestes últimos tempos, a faltar muitas vezes seguidamente às nossas entrevistas. Eu fui a primeira a sofrer, creia. Esperar aborrece, compreendo, coisa nenhuma desculpa as palavras irritadas, e as violentas ameaças dirigidas contra uma mulher cujo coração lhe pertence. Procurarei evitar-lhe, daqui para o futuro, uma espera vã. Farei tudo quanto puder, tornar-me-ei livre quando souber que conta comigo, mas na existência de uma mulher cercada como eu estou, podem aparecer de repente obstáculos, frívolos na aparência, mas realmente invencíveis. Quando um desses obstáculos me detiver, a meu pesar, longe do senhor, prometa-me que não se zangará, que dirá a si mesmo que eu lamento essa circunstância e penso no senhor, e não se encolerizará nem terá suspeita. Promete-me isso?

— Com certeza, prometo! exclamou Marcel cobrindo de beijos as mãos da Marquesa.

— E cumprirá a sua promessa?

— Verdadeiramente, porque a amo.

— Ainda bem, disse Lazarine com um novo sorriso. Eis um juramento que o obriga, porque se faltasse, teria eu o direito de acreditar que não me amava.

— Não falarei.

— Portanto, nada de mais desconfianças?

— Uma fé sem limites.

— Não mais cartas ofensivas?

— Não escreverei senão as ternas frases de que o meu coração está repleto.

— Nada de mais ameaças, de forçar a minha porta, ou andar a espiar-me?

— Nunca.

— Então vai tudo bem, está perdoado. Lazarine perdoava!

E Marcel Laugier achando aquilo muito simples, aceitava reconhecido o perdão.

De que se reconhecia ele culpado?

Ver-se-ia muito embaraçado para o dizer, mas os homens são todos assim, ou pelo menos quase todos.

O vento que soprou sobre as cidades condensadas, nos tempos bíblicos, mudava a forma das montanhas.

As palavras da mulher amada dominam os animais mais firmes; como o simum oriental, amolecia o granito, e fazem mover como ventoinhas os espíritos mais sólidos.

O homem resolveu portar-se como juiz, tem na ponta da língua o seu interrogatório em forma, esmagador, fulminante, sem réplica possível.

A mulher diz duas palavras, e os papéis invertem-se; o acusador convertido em acusado, reconhece muito humildemente os erros que não praticou, igualmente solicita um perdão, que nem sempre obtém.

Durante as primeiras semanas que se seguiram a esta entrevista, Marcel foi um homem feliz.

Lazarine, fiel às suas promessas, metamorfoseava-se tão completamente que o seu amante desconhecia-.

Achava meio de não faltar a nenhuma entrevista, e de não fazer esperar o tenente senão alguns minutos.

Dirigia-lhe palavras ternas, quase apaixonadas, e deixava-lhe até esperar, que, numa época mais ou menos próxima, acolheria benevolamente aquela idéia de casamento anteriormente rejeitada por ela de uma maneira tão absoluta e com tanto desprezo.

Marcel, repetimo-lo, nunca entrevira, nem mesmo em sonhos, uma tão completa felicidade, e dizia de si para si com uma ingênua convicção:

— Se, contudo, eu não tivesse provado uma tão sobre-humana energia, o que seria de nós? Iria tudo de mal para pior? Domei Lazarine! À firmeza do meu caráter devo a minha felicidade. As mulheres amam quem as domina. Oh! se os homens soubessem...

Pobre Marcel.

A senhora de la Tour-du-Roy, representando a comédia cujo primeiro ato acabamos de ver, e cuja continuação se adivinha sem ser necessário entrarmos em detalhes, tinha um fim fácil de compreender.

Queria ganhar tempo, tirar toda a desconfiança a Marcel, procurar para si própria uma liberdade de ação relativamente completa, e continuar sem dificuldades o plano (que julgava ela) devia libertá-la.

Não tardará que conheçamos esse plano.

Lazarine, dissêmo-lo, acolhia com particular distinção Heitor Bégourde, Príncipe de Castel-Vivant.

Desde o dia seguinte ao da cena de ruptura com Marcel Laugier, ruptura seguida de um simulacro quase imediato de reconciliação, ela tornou dez vezes maior a graça daquele acolhimento, de modo a torná-lo irresistível.

Ela queria transtornar completamente a cabeça do principezinho, já muito apaixonado; e, com certeza, a empresa não oferecia dificuldades.

Ao fim de oito dias Heitor estava perdido completamente, e no mundo não existia para ele mais ninguém além da senhora de la Tour-du-Roy.

— Sem Lazarine, dizia ele consigo, não há felicidade possível, ela é viúva, eu sou príncipe. Ou ela há de ser princesa, ou eu perderei o meu nome.

A Marquesa cuidava de aumentar ainda aquela paixão com uma garridice transcendente.

Heitor tinha o direito de se julgar amado; desejava com ardor formular o seu amor de um modo positivo, e receber da boca do seu ídolo, a confirmação das suas esperanças; com grande desespero seu faltava-lhe a ocasião. Em sua casa Lazarine nunca estava só, e por toda a parte os peralvilhos rodeavam-na constantemente, como um esquadrão de cortesãos e adoradores.

Com certeza não favorecia a nenhum deles, guardava para o principezinho os seus mais meigos sorrisos, os seus olhares mais prometedores.

Era muito, mas não o bastante.

Sem cansa-, Heitor solicitava uma entrevista, e Lazarine respondia com uma evasiva, mas não desanimadora.

Finalmente a viúva do marquês Roberto disse consigo que o príncipe Totor havia chegado ao ponto a que ela queria levá-lo; que seria em suas mãos daí para o futuro um instrumento dócil, tal como lhe era preciso; um boneco que ela moveria, um ser fraco, perdidàmente apaixonado, completamente dominado, juntando a obediência passiva à credulidade cega, pronta para obrar sem hesitar, e sobretudo sem discutir.

Por isso, quando o mancebo apresentou de novo e timidamente a sua súplica habitual numa sala da melhor sociedade, Lazarine brincando com o leque, e velando os olhos com a dupla franja de suas compridas pestanas, murmurou após um ou dois segundos de aparente indecisão.

— Tem muito empenho, querido Príncipe, em me ver sem testemunhas?

— Oh! se tenho! disse Heitor num tom de incomparável eloqüência.

— Tem de me dizer coisas muito importantes e muito misteriosas?

— Muito importantes para mim. sim, minha senhora, e que só a senhora deve ouvir.

— Não sei se deva... hesito...

— Hesita? por que?

— Certifico-me que me assusta um pouco.

— Eu assusto-a? É impossível!

— Mas não... o senhor é comprometedor. Lembro-me. Noutro tempo o senhor era muito ousado, muito ousado! Oh! muito... por demais.

— Oh! minha senhora, depois dessa época tudo se mudou em mim, bem o sabe. Então, é verdade, eu era atrevido, e agora tremo a seu lado, Mal me atrevo a tocar-lhe na mão.

— É isso verdade, querido Príncipe?

— Se é verdade! Pergunta-me se é verdade? Contudo não duvida.

— Portanto, segundo a sua afirmação, posso sem receio conceder-lhe uma audiência de dez minutos?

— Que se pode dizer em dez minutos?

— Concedamos vinte. Bem vê que sou franca, redarguiu Lazarine rindo, mas há de ser muito sensato e dócil, e quando me parecer que a conversação se tem demorado bastante não insistirá em prolongá-la!

— Prometo. A minha felicidade consiste em obedecer-lhe.

— Parece tão convicto que quero acreditá-lo. Sou boa, muito boa talvez, cedo. Escute, vou amanhã à casa da Princesa Alvinzi.

— Lá estarei, disse vivamente Heitor.

— Pelo contrário, não vá lá, redarguiu a Marquesa.

— Por que?

— Porque só me demorarei lá um instante, e se o senhor partisse ao mesmo tempo que eu, a coincidência da sua saída e da minha atrairia a atenção.

— Então, que será preciso fazer?

— Vai sabê-lo. Chegarei a casa da Princesa às nove horas. Regressarei à minha casa antes das dez. Direi aos meus criados que recebo. Venha às dez e meia, tomaremos uma chávena de chá?

— Se a senhora recebe, não estaremos só, balbuciou Heitor.

— Naturalmente, note que se trata de uma ordem para os meus. criados. Pouco lhe deve importar que a minha casa esteja amanhã à noite aberta aos meus amigos, visto que eles não vêm.

— Se, contudo, viesse alguém?

— Receberia esse alguém, ora aí está, e transferiríamos para outro dia a entrevista interrompida. Vai a ventura. A ordem aos meus criados, e as portas abertas, salvaguardam as aparências. A Marquesa de la Tour-du-Roy, querido Príncipe, é como a mulher de César... não deve suspeitar-se dela.

— Tem cem vezes razão! Razão sempre.

— Bem sei que tenho razão. E agora temos conversado mais do que seria preciso. Vejo acolá dois ou três curiosos que não tiram os olhos de nós, e segredando fazem comentários malévolos. Cumprimente-me... não se dirija mais a mim até amanhã à noite.

— Até amanhã à noite, senhora Marquesa, murmurou Totor inclinando-se diante de Lazarine, depois, cheio o coração de alegria, saiu das salas dizendo de si para si:

— Amanhã à noite ela terá prometido ser dentro de pouco tempo Princesa de Castel-Vivant.

 

ANTIGOS CONHECIMENTOS

A senhora de la Tour-du-Roy ao regressar a sua casa, vindo de casa da Princesa Alvinzi, dissera:

— Recebo.

A temperatura estava baixa. Ardia um vivo fogo no fogão da sala principal. Diferentes candeeiros e as vinte e quatro velas dos candelabros iluminavam o vasto aposento.

Lazarine atirou para cima de um "fauteuil" a sua farta peliça, e sentou-se meditabunda junto do fogão.

Tencionava tentar uma partida decisiva.

A quebra de uma cadeia que achara insuportável, um título de princesa, uma fortuna colossal eram o prêmio da partida.

Portanto, era preciso ganhar, e querendo jogar pelo seguro, prometia a si mesma bem baralhar as cartas, mas a credulidade humana tem limites, e por mais apaixonado que estivesse Heitor, quem sabe se ele aceitaria como verdadeiras as inverossímeis coisas que ia ouvir?

Quase sempre a mulher nova tem confiança em si, mas naquela noite, uma vaga inquietação, uma espécie de desconfiança se apoderava do seu espírito.

Diligenciou repelir tais impressões, e abanando a cabeça, murmurou:

— Aquele que duvida do bom êxito está antecipadamente perdido. É preciso que eu me saia bem, e hei de consegui-lo. O príncipe ama-me, portanto há de acreditar-me. Marcel acreditou que eu perdoava!

Levantou-se, viu-se ao espelho, e sorrindo para a sua imagem, acrescentou:

— Quem poderia resistir-me? Estou assaz bela para de tudo triunfar.

É certo que naquele momento a beleza da Marquesa brilhava esplendidamente.

Tinha findado há pouco o ano de luto, e Lazarine por conveniência, não vestia ainda fatos de cores claras.

Como a soirée do Príncipe não era um baile, mas uma quase reunião íntima, embora muito numerosa, o vestuário severo da senhora de la Tour-du-Roy, não correra o risco de se fazer notar entre as brilhantes toilettes.

Consistia o seu traje de um vestido escuro, de pouca roda e grande cauda. O corpo sem mangas, com decote quadrado muito baixo, tanto na frente como atrás, colava-se à epiderme como uma luva se ajusta à mão.

Os braços cuja incomparável forma mais de uma vez temos descrito, estavam completamente nus até aos ombros.

Sete ou oito braceletes de esmalte negro, constelados de diamantes, cobriam o pulso esquerdo. Lazarine estava, como sempre, maravilhosamente penteada, porque a arte não tomava parte no seu penteado.

Uma criada grave lhe soltava os seus admiráveis cabelos, e ela própria, só ela, segurando-os a custo com as suas duas mãozinhas, erguia-os ao alto, torcia-os indiferentemente, e fazendo trancas ou enrolando as suas sedosas madeixas, prendia-os no alto da cabeça, com ganchos.

O famoso Leónard, ou o mais hábil dos diretos herdeiros deste ilustre homem, não poderia, com a sua consumada habilidade, obter um efeito igual ao daquela adorável desordem.

Parecia naquela noite que ao menor movimento as trancas se desenrolariam e cairiam por sobre os ombros.

Nunca houve toilette de mulher que fosse mais simples e parecesse mais provocadora.

A invejosa Renée bem o tinha dito um dia, com uma estranha felicidade de expressão. Lazarine era de enlouquecer.

Por isso a vimos sorrir ao ver a sua imagem perguntando a si: mesma, no seu ingênuo e legítimo orgulho:

— Quem me resistiria pois? Bastaria olhar para ela para responder:

— Ninguém!

Ao mesmo tempo ouviu-se parar uma carruagem na rua Murillo, e a sineta do palácio tocar.

— Ei-lo... disse consigo Lazarine.

Ao fim de meio minuto, a porta da sala abriu-se, e o criado grave anunciou:

— O senhor Príncipe de Castel-Vivant.

— Boa noite, querido Príncipe, disse a Marquesa estendendo a mão para o novo recém-chegado, ao passo que o criado metia lenha no fogão. O senhor ia passando, não é verdade? Viu luz e subiu? Por que não foi esta noite à casa da Princesa Alvinzi? Venho de lá. Meu pai, creio eu, virá logo com dois ou três amigos. O senhor vai tomar uma chávena de chá comigo. Batista, traz chá.

O criado saiu.

Heitor inclinado diante de Lazarine, não pudera soltar uma palavra em meio daquela aluvião de frases.

Depôs os lábios na mão em que pegara.

— Como está bela esta noite! balbuciou ele.

— Mais do que de ordinário? perguntou a jovem sorrindo

— Sim, todos os dias mais do que na véspera.

— Quando terminará isso?

— Não há de terminar.

— Que graça que tem, querido Príncipe, dizendo isso seriamente.

— Sou talvez engraçado, mas muito sério, porque digo o que penso.

— E quando eu envelhecer?

— Não há de envelhecer. Vá aos museus, minha senhora. Acaso as mulheres de Rafael e de Ticiano envelhecem?

— Creio-o facilmente, elas são pintadas, e eu não ponho nem mesmo pó de arroz.

— Mademoiselle de Lenclos, bem o sabe, era bela com oitenta anos.

— Eu tenho vinte. Daqui a sessenta anos tornaremos a falar disso. Basta de loucuras. Cumpri a minha palavra, como vê, estamos sós.

— É adorável, mas ficaremos sós?

— É de presumir. Ninguém sabe que estou em casa. Quem há de vir daqui a vinte minutos, bem sabe, nem mais nem um, ajuntou Lazarine com um novo sorriso.

É cruel!

— Bom! há bocado era adorável! De que se queixa? Dizem-se muitas coisas em vinte minutos.

O criado entrou, trazendo numa bandeja um bule e um açucareiro de prata dourada, chávenas de velho Saxe, um frasco de rum, sanduíches e outros acessórios indispensáveis.

— Vou servi-lo, disse Lazarine em seguida olhando para o relógio quando o criado se retirou, continuou: O tempo decorrido desde que o senhor aqui está não se conta, os vinte minutos começam agora. Espero essas revelações de alta importância que ontem tinha a fazer-me.

Heitor mostrou-se triste.

— Como quer que eu fale. A senhora parece zombar de mim.

— Não trato disso, querido Príncipe de Castel-Vivant.

— Contudo ri.

— Que quer? sou um pouco leviana, na aparência, porque o fundo é sério. E depois, aqui está a verdade. Sorrio, a pesar meu, do seu embaraço, ao saber tão bem como o senhor, se acaso não sei melhor, as coisas que tem de me dizer.

— O quê, exclamou o mancebo. Sabe?

— Que me amava um pouco, há muito pouco tempo, no boulevard, Haussmann, quando eu era rapariga. Que me amava um pouco mais, há dois anos, no palácio de la Tour-du-Roy, quando eu era nova, e que finalmente muito me ama hoje, que sou velha e viúva.

Heitor corou.

— Então, redarguiu ele com exaltação, sabe que a adoro e que nunca deixei de lhe pertencer completamente?

— Perdão querido Príncipe, interrompeu Lazarine com aquela graça um pouco zombeteira que a tornava irresistível, não estamos completamente de acordo. Na sua grande paixão por mim houve muitos entreatos em que o senhor se esquecia do meu fraco merecimento. (Não tome isto por uma censura, pelo menos.) Mas enfim o senhor voltava sempre, e é esse o ponto principal.

— Lazarine, prosseguiu Heitor com um aumento de entusiasmo, mesmo nesses entreatos a sua imagem ocupava o meu pensamento e nunca me deixava. Se eu não procurava tornar a vê-la, aproximar-me de si, é porque logo que a sua presença não me fascinava, eu compreendia muito bem a enorme distância que nos separava, e não me atrevia a transpô-la.

— Contudo ,tentou transpô-la, ousou muito.

— Os seus olhares enlouqueciam-me, esquecia-me do nada que era, mas hoje, Lazarine, tudo mudou, hoje existo, sou alguém, hoje a senhora é livre, uma só coisa nos pode separar.

— Que coisa?

— A sua vontade. Depende da senhora Marquesa tornar-me o mais feliz ou o mais desgraçado dos homens. Ama-me?

— É uma comediazinha em regra o que me pede, murmurou a jovem baixando os olhos, com uma comediazinha de pudor absolutamente encantadora.

— Sim, é uma confissão, e por que não a fará? Para que há de hesitar. Bem sabe que um profundo respeito se alia ao meu amor. O pobre artista não tinha senão o seu coração para lhe oferecer. O Príncipe de Castel-Vivant depõe a seus pés o seu nome. Digne-se aceitá-lo.

Ao pronunciar estas palavras, Heitor muito comovido dobrara o joelho.

Lazarine lembrou-se do Marquês de la Tour-du-Roy que também quase ajoelhara pedindo a sua mão.

— Ah! disse ela consigo, num ímpeto de orgulho, sou realmente muito poderosa pela beleza. Velhos e moços todos me prestam a mesma homenagem. Se ainda existissem reis, seria rainha!

Em seguida, em voz alta.

— Levante-se, disse ela vivamente. Imagine se entrassem? Heitor obedeceu, mas obedecendo, balbuciou com tristeza:

— A senhora não respondeu...

A Marquesa fitou no mancebo um longo olhar que, descendo até ao seu coração, lhe causou a maior e mais doce perturbação que pode experimentar uma criatura humana. Ao mesmo tempo, a fisionomia viva e móvel de Lazarine tomava uma expressão séria.

— Responda-me, disse o Príncipe. Suplico-lhe, responda-me.

— Heitor, disse a senhora de la Tour-du-Roy com uma voz comovida, o que me pede é mais do que uma resposta. É uma confissão. Quer que eu fale? Pois bem! Vou confessar-me ao senhor.

 

CONFISSÕES

— Julgava-me indiferente, frívola, excêntrica e leviana, começou Lazarine. Chego, às vezes, a persuadir-me de que sou tudo isso... e de tudo isso, contudo, não tenho a aparência. Disseram-lhe que vivo sempre para o orgulho e para o prazer, sacrificando a íntima felicidade aos requintes do luxo, e aos gozos da vaidade, e o senhor acreditou, e faz bem em acreditá-lo, porque tudo me acusa, e no entanto, apesar da evidência, engana-se julgando-me assim.

— Eu, porém, não penso em julgá-la! redarguiu vivamente Heitor, eu não a acuso de coisa alguma. Tudo na senhora me parece perfeito. Nunca a sombra de uma crítica se junta à minha admiração sem limites.

— Não me interrompa, peço-lhe, querido príncipe, disse sorrindo a Marquesa. Para nada lhe ocultar, ser-me-á precisa alguma coragem, deixe-me essa coragem.

Ela careceu recolher-se durante um ou dois segundos; em seguida continuou:

— Nunca fui muito feliz. Meu pai é um excelente homem que nos amava a seu modo, a mim e a minhas irmãs, e esse modo consistia em não se ocupar de nós, deixava-nos absolutamente livres; e usava da minha liberdade em todas as extravagâncias, esse viver estéril e ruidoso, feito de movimento e de brilho, o único possível para mim, substituía muito mal, juro-lhe, o viver sereno e calmo do lar ao lado de uma mãe cuidadosa e ternamente severa. Eis a vida que eu gostaria. Ai! nós não tivemos mãe.

A Marquesa deteve-se para enxugar com a mão furtiva uma lágrima que lhe banhava as compridas pestanas.

Heitor, grandemente enternecido, quereria sorver com os seus lábios aquela pérola preciosa caída dos olhos de um anjo.

A jovem continuou:

— Uma bela manhã, meu pai acordou arruinado. Partimos para o campo, e a existência ultra-monótona substituiu a existência ultra-ruidosa, o aborrecimento sucedia à fadiga. Não ganhava grande coisa com a troca e não tinha motivo algum para me felicitar pela minha sorte.

"O Marquês de la Tour-du-Roy, apaixonou-se então por aquilo a que ele quis chamar a beleza, e pediu a minha mão.

"Eu resistia com todas as minhas forças.

"A idéia da estranha união de um velho e de uma criança (porque eu era então uma criança), revoltava-me instintivamente.

"Meu pai, pelos seus raciocínios de enlouquecer, pela sua pertinácia infatigável sobretudo, triunfou da minha repugnância.

"Esta união devia dar-me a fortuna, um belo nome, uma grande situação. Tudo isso lhe parecia singularmente invejável para uma menina sem dote, e sou obrigada a concordar que, segundo o seu modo de ver, tinha razão.

"Contudo, a luta foi demorada, mas o resultado não poderia ser duvidoso. Cedi...

"Deus me livre de ofender por uma palavra irrefletida a memória daquele a quem o meu profundo respeito acompanha no seu túmulo.

"O Marquês de la Tour-du-Roy foi muito bom, e nem uma só vez, desde o dia do nosso casamento até ao da sua morte, a sua bondade se desmentiu.

"Não desprezou coisa alguma de tudo aquilo que, segundo a sua opinião, podia tornar-me feliz. Cercava-me de um luxo real, de uma ternura muito apaixonada, e essas indisposições da minha mocidade contra o amor de um septuagenário, renovavam-se muitas vezes.

"Sofri muito silenciosamente, sem um queixume, sem um murmúrio. O Marquês não suspeitou nada do que se passava em mim. A minha consciência diz-me que fiz o meu dever.

"Enviuvei. Ia ser mãe. Estava rica, estava livre. Reunia então, reúno ainda, todas as condições de uma ventura provável, e contudo não sou feliz.

— Não tem senão querê-lo ser daqui para o futuro! exclamou o principezinho. Confie em mim Lazarine. Confie-me o cuidado do seu futuro. Seja minha mulher, Lazarine, quer, não é verdade? Oh! diga que quer! diga, suplico-lhe.

A senhora de la Tour-du-Roy meneou docemente a cabeça.

— O que acaba de ouvir não passa de uma narração, disse ela, e eu falei de uma confissão, deixe-me, pois, concluir.

— Oh! volveu vivamente Heitor, que importa essa confissão? que preciso eu de saber! Ama-me, eis o caso, o resto nada vale.

— É preciso que saiba! prosseguiu a Marquesa num tom de voz de comando. É preciso, assim o quero.

Heitor baixou a cabeça.

— Fale, pois, murmurou ele.

— Descanse, porém, disse a senhora de la Tour-du-Roy. A confissão será curta. Somente (de novo lho peço) não obstante o que ouvir, seja qual for a impressão que lhe produzirem as minhas palavras, não me interrompa. Promete-me?

O príncipe fez um sinal afirmativo. Lazarine continuou:

— Tinha quando muito dezesseis anos, querido Príncipe, quando pela primeira vez o acaso nos pôs face a face no palácio de meu pai, e o senhor não era então príncipe. Não lhe direi que fiquei apaixonada ao vê-lo e que me senti atacada de uma paixão violenta. Recusará acreditar-me. Bem sabe que aos dezesseis anos o amor não passa de uma palavra vaga, uma palavra que apenas se pode soletrar, mas cujo verdadeiro sentido não se saberia compreender. Portanto, sem paixão, senti-me logo atraída para o senhor. Fez pulsar o meu coração de criança. Foi o primeiro, foi o único! Sim, esta é a verdade, ninguém no mundo, ninguém, à exceção do senhor, agitou jamais este coração.

Adivinha-se qual seria a cara de Heitor ao ouvir estas coisas.

Fiel à sua palavra, não interrompeu Lazarine para testemunhar a sua alegria, a sua embriaguez, o seu reconhecimento por uma tal confissão, mas a mais transcendente exaltação se lia no seu rosto ruborizado; mal podia respirar; a alegria sufocava-o; as cintilações do seu olhar seriam capazes de incendiar um barril de pólvora.

— Decorreram dois anos, continuou a marquesa, a impressão produzida por vossa excelência na minha juvenil imaginação diminuía, mas não se destruía.

"São impotentes as palavras para traduzirem o que se passou na minha alma quando, pela segunda vez, o acaso, ou antes o destino, nos pôs em presença um do outro.

"Eu estava casada, era mulher, compreendi que o amava, tive a fraqueza de lho deixar ver, e os únicos momentos luminosos de que me lembro são aqueles em que, debaixo da verdejante abóbada sombria do parque de la Tour-du-Roy, escutava as frases amorosas que o senhor murmurava aos meus ouvidos.

"Então, e durante alguns dias, vivi como num sonho.

"Ai! o despertar não tardou!

"Meu pai veio ao palácio e reconheceu-o. Fez-me compreender que a sua presença em casa de meu marido era impossível. Ele falou-lhe sem dúvida em nome da minha honra ameaçada. Pediu a sua partida, exigiu-a talvez. Resistir à sua vontade legítima, era impossível. Uma carta sua me fez saber a triste nova, pedindo-me uma última entrevista para a noite.

— A que a senhora não foi, disse Heitor com a voz fraca como um suspiro.

— Não fui, disse a Marquesa, e o senhor achou-me cruel, disse que eu era uma namoradeira de coração de gelo! Seja franco! o senhor disse isso, não é verdade?

— Sim, balbuciou o mancebo. É verdade, e parti desesperado.

— Ah! redarguiu Lazarine, se soubesse o que sofria, esta suposta namoradeira, à hora em que o senhor a esperava em vão, em lugar de a amaldiçoar, teria piedade dela! Que tarde que eu passei e que noite! Quando me lembro estremeço ainda. Eu chorava unindo os lábios à sua carta. Essa querida carta que depois nunca me deixou.

— Pois que, ainda a tem? exclamou o principezinho.

— E nunca mais me separei dela! Se quiser, ainda lha mostrarei.

A Marquesa dizendo o que precede, menina imprudentemente.

Cinco minutos depois de ter lido, não sem um sorriso zombeteiro, a carta de Bégourde, queimara à chama de uma vela aquela admirável epístola, e deitara as cinzas ao vento, mas para conseguir o desejado fim, não desprezava coisa alguma, e a sua atrevida mentira era um primor.

— Por vinte vezes me senti vencida na luta que sustentava contra mim mesma. Faltava-me a coragem. Tomada de uma espécie de loucura, levantei-me de repente do sítio onde estava sentada, dizendo de mim para mim: — Aí vou! — depois o sentimento d'o dever falava-me por seu turno, impunha silêncio à paixão, e fazia-me deter no limiar da porta. Compreendia o imenso perigo desta suprema entrevista. Tinha medo de você, Heitor, medo de você e medo de mim. Duvidava das minhas forças. Sentia que, talvez, às suas lágrimas e ao meu amor eu não soubesse resistir. Com certeza, ao escutá-lo já era culpada, mas podia contudo ainda olhar para o meu marido sem corar. Teria esse direito no dia seguinte se tivesse dado um passo para você. Mulher de um homem honrado, queria ser mulher honrada. Preferia o sofrimento à vergonha.Aí está porque não fui, e todavia eu amava-o muito, amava-o de toda a minha alma.

Lazarine calou-se.

Heitor num ímpeto de paixão, pegou-lhe nas mãos que uniu aos lábios e exclamou:

— Tudo isso eu adivinhava, ó minha adorada Lazarine, e faz-me feliz hoje o que me torturava então. Graças à senhora, o meu respeito iguala o meu amor. Amá-la-ia menos se tivesse cedido.

A senhora de la Tour-du-Roy soltou um profundo suspiro de alívio.

— Então, perguntou ela, perdoou-me?

— Logo que uma nova situação, transformando a minha vida, fez avultar os meus pensamentos, compreendi o que lhe devia, não somente perdão, mas uma profunda admiração, e pago-vos o duplo tributo. Lazarine faça que a minha felicidade seja completa. A senhora disse que me amava no palácio de la Tour-du-Roy Diga que continua amando-me.

— Continuo, e agora mais do que nunca, respondeu a Marquesa com uma voz trêmula, tapando o rosto com as mãos para ocultar um rubor imaginário.

— Mas se assim é, redarguiu Heitor ébrio de alegria, consente em tornar-se Princesa de Castel-Vivant?

— Que me importa ser princesa? murmurou a Marquesa com desprezo. Tenho eu necessidade de um título novo? A única alegria, a verdadeira, completa, imensa, era ser sua mulher.

— Minha mulher, repetiu o Príncipe desvairado de todo. Minha mulher, minha adorada mulher. Quer sê-lo, não é verdade? diga sim, Lazarine. Assim que o disser corro à "mairie"! Os nossos banhos publicar-se-ão amanhã.

A senhora de la Tour-du-Roy meneou de novo a cabeça.

— Ai de mim! disse ela, é impossível.

— Compreendo mal, ou antes, não compreendo nada, redarguiu vivamente Heitor. O que é impossível?

— O nosso casamento.

O mancebo empalideceu, mas tentou sorrir, como faz o homem que quer animar-se a si mesmo.

— E eu que tomava a resposta a sério! balbuciou ele. Vejo bem que gracejava. A senhora é viúva... e livre, não depende de ninguém no mundo, não precisa senão de um consentimento, o seu. Como e por que é então impossível o nosso casamento?

A Marquesa ergueu a cabeça.

— Heitor, redarguiu ela, a minha confissão não acatou. O senhor não sabe tudo.

— Meu Deus! que há mais?

— Ouça.

 

CONTINUAÇÃO

Lazarine inclinou a fronte, ocultou o rosto entre as mãos, e durante alguns momentos pareceu concentrar-se.

Heitor esperou angustiado.

Quando a jovem ergueu a cabeça, quando afastou as mãos. duas grossas lágrimas lhe banhavam as faces.

Certas mulheres têm o dom das lágrimas!

O Príncipe sentiu oprimir-se-lhe o coração.

— Dois meses depois da sua partida do palácio, redarguiu a Marquesa, com uma voz que parecia despedaçada pela comoção profunda, o senhor de la Tour-du-Roy levava-me para Itália com minha irmã Renée.

"Aceitei alegremente esta viagem. Ia triste, já sabe porque. Tinha necessidade de distrações. Esperava esquecer, e (veja meu amigo, quanto sou sincera), invocava o esquecimento com todas as minhas forças, porque após ele viria o repouso.

"Nas cidades que íamos habitando sucessivamente recebíamos convites e víamos muita gente.

"Em Veneza meu marido apresentou-me um rapaz, um francês, que conhecia há muito, e que se chamava Marcel Laugier.

"Aquele mancebo não pertencia à nossa sociedade pelo nascimento, mas era um rapaz muito rico, muito bem educado, que fora oficial e era condecorado, um gentleman em toda a extensão da palavra.

"O Marquês acolhia-o muito distintamente. Pensava nele para marido de minha irmã, a quem a sua falta de fortuna tornava difícil de casar.

"Infelizmente, Renée não agradou a Marcel Laugier que, por maior desgraça, se apaixonou por mim e me fez a corte, mas tão discreta e tão respeitosamente que nem meu marido nem minha irmã suspeitaram de coisa alguma.

"Eu não amava Marcel Laugier (preciso dizer-lho), não podia amá-lo, mas sou mulher, e a meu pesar, senti-me lisonjeada no meu orgulho pela vitória adquirida sobre minha irmã, cuja beleza é indiscutível.

"Confesso-me ao senhor, querido Príncipe, e toda a confissão implica a idéia de uma falta cometida. A falta existe, e é além disso venial, posto que as suas conseqüências sejam terríveis...

"A paixão de Marcel Laugier distraiu-me. Era uma distração mais engraçada do que as outras, e que julgava-o pelo menos, não me expunha a nenhum perigo. Deixei que me fizesse a corte. Que quer, aborrecia-me tanto! Fui coquete talvez, não muito, mas um pouco, e dei algumas vagas esperanças, bem resolvida, juro-lhe, a nunca realizá-las.

"Conhece-me, Heitor. Não ignora que levei a obediência ao dever até ao heroísmo, não dando resposta à sua carta, recusando ir à última entrevista. Creio, pois inútil afirmar-lhe que Marcel Laugier nada obteve de mim, e que a autorização de me beijar a mão foi o mais precioso favor que teve o direito de se gabar.

"Nunca, da minha parte, pelo menos, esta intriga anônima excedeu os limites do mais inocente "marivaudage". Não tomava a sério a bela paixão do ex-oficial de hussardos, e estava persuadida de que no dia em seu este divertimento não me distraísse, não precisaria senão dizer uma palavra para o obrigar a retirar-se.

"Essa palavra, ia proferi-la quando o Marquês decidiu que a nossa estada em Veneza tinha já se prolongado bastante, e reconduziu-nos a França.

"Julguei que a separação cortaria pela raiz tudo, e fiquei contente.

Laugier não o entendia assim.

"Em lugar de ficar na Itália algum tempo ainda, como a princípio tinha manifestado tenção, seguiu-nos.

"Meu marido acolheu-o muito bem no palácio de la Tour-du-Roy, tornou-se uma visita assídua, porque para se aproximar de nós, estabeleceu-se de passagem em Orleans.

"Minha irmã regressara a Vertes-Feuilles, a casa de meu pai, e como a sua presença já não motivava as assiduidades do mancebo, o Marquês deveria notá-lo, não viu nada. Os maridos, diz-se, assemelham-se numa coisa. São todos cegos!

"A solidão de uma grande habitação, os rodeios de um imenso parque são mais favoráveis que a estada numa cidade para as empresas galantes.

"Em cada uma das freqüentes visitas de Laugier, o acaso parecia encarregar-se de lhe preparar o ter entrevistas a sós comigo; entrevistas que eu não desejava, e de que ele abusava para me incomodar com declarações incendiárias que não me perturbavam, mas muito me embaraçavam.

"Tomava de dia para dia mais liberdade, se não nos seus atos, o que eu não admitiria, pelo menos nas suas palavras, cujo inexaurível fluxo não podia fazer parar.

"Finalmente, tornava-se tão incômodo, tão importuno, que vinte vezes estive para dizer ao Marquês.

"Mas livre-me deste falso amigo, que me prodigaliza amabilidades à sua vista.

"Não me atrevia.

"O senhor de la Tour-du-Roy, apesar da sua idade, era valente como os cavaleiros seus antepassados.

"Por certo, justamente ofendido da traição do senhor Laugier, manifestaria o seu modo de ver em termos tão claros que logo se seguiria uma provocação.

"Ora, eu estremecia só com a idéia de um encontro possível entre meu marido e o ex-oficial.

"Animado por aquele silêncio que tomava, senão por uma condescendência com os seus desejos, pelo menos por uma espécie de cumplicidade moral, Laugier multiplicava as suas visitas, e enchia-me de cartas às quais eu não respondia nunca; o meu silêncio não o desanimava.

"Coisa nenhuma poderia dar-lhe uma idéia do que sofri durante esse período da minha vida.

— Ah! querida Lazarine, compreendo-o bem, murmurou o principezinho, e lastimo-o de toda a minha alma.

— Obrigada, o senhor é bom, Heitor.

— Não sou bom, mas amo-a. Acabe, suplico-lhe. A senhora de la Tour-du-Roy continuou:

— Uma catástrofe imprevista veio de repente magoar-me. O nobre velho que me tinha dado o seu nome, e que me rodeava, repito-lhe, de uma filial e respeitosa afeição, caiu fulminado.

"Eu estava viúva.

"Devia supor, não é verdade, que o absoluto isolamento imposto pela minha viuvez me poria ao abrigo das importunações de Laugier? À exceção de meu pai, minhas duas irmãs, e meu cunhado, o Conde de Gordes, não recebia mais ninguém. Era possível acreditar que um atrevido tentaria violar uma ordem tão sagrada?

"O senhor Laugier fê-lo contudo.

"Antecipadamente, na certeza de ser despedido, não se apresentou no palácio, mas por duas ou três vezes achou meio de se introduzir no parque e chegar a minha presença, desprezando todas as conveniências, e sem recato pela minha reputação que podia irreparavelmente comprometer.

"Só a ameaça de fazer constar a sua conduta a meu cunhado, pôde decidi-lo a por um termo às suas surpresas.

"Voltei a Paris. Abri a minha casa. Era-me impossível fechar a porta a um homem a quem o senhor de la Tour-du-Roy acolhia tão amigavelmente. Buscar-se-ia conhecer a causa de uma expulsão que não parecia justificada, e eu temia os comentários.

"Então, e mais ainda que no passado, Marcel Laugier tornou-se para mim um pesadelo, um flagelo, um perseguidor.

"Em todas as minhas reuniões era ele o primeiro a chegar, e o último a sair, e fora da minha casa, por toda a parte, constantemente, o encontrava no meu caminho.

"Era odioso, era intolerável. A irritação fazia-me enlouquecer. Sentia os primeiros sintomas de uma doença nervosa.

"Era mister acabar.

"Concedi a Laugier uma entrevista sem testemunhas, e nesta mesma sala onde estamos, provoquei decididamente uma explicação necessária, que tive a ingenuidade de julgá-lo, devia ser decisiva.

"Disse-lhe na cara e sem rodeios oratórios, que não o amava, que nunca o tinha amado, e que jamais o amaria; pedi-lhe que desistisse de perseguir-me, porque nada conseguiria, não fazendo senão perturbar o meu viver e fazer-me infeliz. Um homem de bem em tais casos, não tinha senão um partido a tomar, não é assim? Obedecer e retirar-se.

— Com certeza, exclamou o principezinho.

— O senhor Laugier, que por certo não é um homem de bem, julgava de outro modo! continuou Lazarine com amargura. Teve a audácia de me responder que tinha sobre mim direitos imprescritíveis, e como sufocada, perguntava quais eram esses direitos, prosseguiu acusando-me de ter provocado, depois animado o seu amor próprio por meio de garridices e ter-lhe dado esperanças tais que equivaliam a uma promessa positiva. Negava indignada, revoltava-me contra uma tal mentira... ele ajuntou, — e vou citar-lhe de um modo quase textual as odiosas palavras proferidas com o maior sangue-frio, e gravadas na minha memória: "Convém-lhe hoje, minha senhora terminar estas relações que lhe parecem incômodas, e subtrair-se às conseqüências do passado, mas não aceito os seus caprichos, e não abdico nenhum dos meus direitos. A senhora é viúva, dispõe da sua pessoa. Decidi que seria minha mulher." Eu exclamei: "Nunca!" Ele continuou: "Não posso, é verdade, impor-lhe um casamento, para o qual o seu livre consentimento é necessário, mas depende de mim obrigá-la a efetuar esse casamento tornando-o indispensável. Entre mim e uma eterna viuvez ser-lhe-á preciso escolher. Se não me ama, não amará ninguém, se não for seu marido, ficará viúva! recuso o papel de parvo, vou vigiá-la, aquele que se apresentar para lhe fazer a corte, e para a esposar, achar-me-á no seu caminho, aprisiono-a no meu amor, provocarei uns após outros os seus adoradores e matá-los-ei, será admiravelmente defendida por uma barricada de cadáveres!... Heitor interrompeu Lazarine:

— O homem que assim lhe falava, exclamou ele, é um miserável!

— A! murmurou a Marquesa, Deve saber que é essa também a minha opinião.

— Que respondeu?

— Nada. Que podia eu responder? Com o gesto e com a voz disse: saia.

— Que fez ele?

— Depois de me ter saudado com um sorriso, cuja expressão julgo ainda ver, dirigiu-se para a porta. Chegado ali voltou-se sempre risonho, e disse-me por despedida estas palavras:

"— Senhora Marquesa, não se esqueça!... eu lembrar-me-ei".

— Há quanto tempo se passou isso?

— Seis semanas proximamente.

— E depois?

— Laugier não voltou, porém a sua ameaça não é uma palavra vã. Eu sinto, adivinho em volta de mim uma espionagem oculta. Os meus próprios criados, estou certa disso, comprados por aquele homem, têm-se feito meus espiões.

— E, perguntou o Príncipe após um silêncio, entre a senhora e ele não houve mais do que disse? inocentes galanteios da sua parte? Imprudente perseguição da dele?

Lazarine juntou as mãos, e soube dar ao rosto uma expressão de dor pungente.

— Meu amigo, perguntou ela com a voz estrangulada e fitando o seu olhar no olhar de Heitor, duvida de mim?

— Deus me livre! queria saber somente se a senhora não teria esquecido alguma coisa.

— Coisa nenhuma... E bem vê que eu tinha razão. Por isso o nosso sonho não se realizará! Por isso um casamento entre nós é impossível.

— Eu não o entendo assim, redarguiu o mancebo, e a situação parece-me, pelo contrário, a mais simples do mundo.

 

CONTINUAÇÃO DO ANTERIOR

— A situação parece-lhe a mais simples do mundo! repetiu Lazarine afetando surpresa com uma incrível perfeição.

— Com certeza! respondeu Heitor.

— Mas não compreendeu?

— Compreendi perfeitamente. Laugier, a quem por certo um violento amor pode servir, não de desculpa, mas de circunstância atenuante, ameaça-a de provocar e desafiar aquele que tentar obter no seu coração um lugar que ele quer reivindicar para si só. Com certeza que o seu proceder não é o de um homem de bem, mas revela um homem perdidamente apaixonado. Pois bem! para nos tirarmos de embaraços, basta dar a este Laugier a séria lição que merece. Se essa lição o curar das suas veleidades tirânicas e enlutar a sua família, a culpa será dele, e não terei, asseguro-lhe, o menor remorso.

— O senhor pensa em provocá-lo? exclamou a Marquesa.

— Sim, penso! e fa-lo-ei o mais depressa possível.

— Um duelo! Isso nunca! Heitor, proíbo-lhe que se bata.

— Querida Lazarine, redarguiu o mancebo sorrindo, terei o vivo desgosto de lhe desobedecer.

— Se eu lhe suplicasse?...

— Seria debalde.

— Se de joelhos lhe rogasse?

— Resistiria tanto às suas lágrimas, como às suas súplicas.

— Mas exporia a sua vida.

— Estaria cem vezes mais exposta não me batendo. Posso eu viver sem a senhora? Bem sabe que não.

— Note que aquele homem foi soldado!

— Que me importa isso? — Deve saber bem manejar as armas.

— Afirmo-lhe que não me importa isso.

— Já se bateu ao menos?

— Por vida minha que não.

— Bem vê, pois.

— Foi por falta de ocasião. Para tudo é preciso um começo.

— É ao menos destro?

— Estudo esgrima há algum tempo com muita aplicação, e o meu professor está contente comigo. Sem ser uma boa espada, sou suficiente. No tiro, a minha perícia excede a média, e muito. Ainda que eu nunca tivesse pegado num florete, nem posto os pés numa escola de tiro bater-me-ia ao mesmo modo, e com todo o gosto.

— Assim, nada pode modificar a sua resolução.

— Nada.

— Cedo então, admiro-o e amo-o! Ah! o senhor é um verdadeiro príncipe, tanto pela coragem como pelo título. Combata por mim, meu Heitor. Conquiste pela espada aquela que há de ser sua mulher.

— Com uma tal recompensa em perspectiva, como quer que eu não seja vencedor?

— Há de sê-lo, tenho o pressentimento disso. — Aceito o augúrio, disse Heitor sorrindo.

— Como provocará aquele homem?

— Do modo mais natural. Irei direto a ele e dir-lhe-ei:

"O senhor é Marcel Laugier e eu sou o Príncipe de Castel-Vivant. A senhora Marquesa de la Tour-du-Roy, a quem amo e que me faz a honra de me corresponder, lastima-se de certo proceder da sua parte, a propósito do qual entende dever pedir-lhe explicações. Quer afetar de fidalgo e foi soldado. Por este duplo título, penso que lhe convirá evitar um insulto público. Combinemos este negócio como pessoas de boa sociedade". E trocaremos o nome das nossas testemunhas.. Far-se-á bem, não é verdade?

— Santo Deus! não pense nisso! exclamou Lazarine.

— Como? perguntou o mancebo, sem compreender aquela exclamação.

— Quer então, redarguiu vivamente a Marquesa, quer então comprometer irreparavelmente a futura princesa de Castel-Vivant? O meu nome não deve ser proferido, aliás o mundo, ávido de escândalos e julgando as aparências, dirá que houve um conflito terminado por um duelo, entre os dois amantes da Marquesa de la Tour-du-Roy, e, seja qual for o resultado do duelo, ficarei desonrada. Pois não compreende isto?

— Ah! bem a compreendo, e é com certeza uma desgraça, mas desgraça inevitável. O sr. Marcel Laugier e eu somos estranhos um para o outro. Com que pretexto farei uma provocação sem que o seu nome seja pronunciado?

Lazarine encolheu levemente os ombros.

— Na sua pergunta acho a minha resposta. O senhor empregou a palavra pretexto; ora, quem diz pretexto, diz motivo imaginário. É tão pobre de imaginação que não saiba dar origem a um conflito entre o senhor e Marcel Laugier, por um qualquer motivo em que ele seja o primeiro logrado? Quanto mais fútil for esse motivo tanto mais valerá. Heitor ficou pensativo.

— A coisa é certamente possível, murmurou ele, o motivo porém não se me apresenta muito distintamente.

— Achá-lo-á facilmente. O próprio acaso pode encarregar-se de lho fornecer. Siga, sem o dar a conhecer, os passos de Marcel Laugier. Penetre na sua vida sem que ele desconfie, a esperada ocasião não deixará de se apresentar. Além de que coisa nenhuma o apressa.

— Perdão, querida Lazarine, interrompeu o Príncipe, tenho pressa de acabar com esse senhor que se coloca como um obstáculo no caminho da nossa felicidade. Tenciono começar desde amanhã a fazer o que dizia, a tornar-me o seu espião, a sua sombra. Somente existe uma dificuldade, e essa mesura é de primeira grandeza.

— Qual?

— Nunca vi o sr. Marcel Laugier. Como hei de espiá-lo sem o conhecer.

Pela segunda vez Lazarine encolheu imperceptivelmente os ombros.

— Não é muito valente o principezinho! disse ela de si para si. Marcel Laugier é um perfeito rapaz, delgado e moreno, de aparência militar; tem a fitinha vermelha e bigodes finos, mora na rua de Amsterdam, n.° 40. Em menos de vinte e quatro horas, se não for muito desastrado, deve-se conhecer o homem cuja morada se sabe.

Marcel tinha deixado havia alguns dias o Grand-Hotel para ir instalar-se na rua de Amsterdam numa casa provisória.

Convencido de que mais cedo ou mais tarde casaria com a viúva, gostava de afastar de si toda e qualquer idéia decisiva a respeito do seu estabelecimento.

— Oh! pois, meu amigo, continuou Lazarine, não lhe digo: Seja valente! seria supérfluo, mas digo-lhe: Seja hábil!... Dissimule por meu amor, e, como não quero que a sombra de uma suspeita possa ferir-me, reclamo do senhor um juramento.

— Que juramento? perguntou o príncipe.

— Jure-me que, aconteça o que acontecer, Marcel Laugier ignorará sempre o verdadeiro motivo do seu encontro, e não saberá que o senhor me conhece.

— Juro-lhe!

— Pela sua honra?

— Pela minha honra.

— Muito bem. Estou descansada. E agora querido Heitor, é muito tarde, retire-se.

— Já! tinha apenas chegado!

Lazarine sorriu apontando para o relógio.

Os dois ponteiros estavam quase a tocar-se no algarismo XII.

— É quase meia-noite, disse ela, estamos sós, e o senhor é um príncipe encantador, por conseguinte, muito perigoso. Que vão pensar os meus criados? Parta já... senão ficarei comprometida.

— Por um futuro marido?

— Um futuro marido compromete tanto como qualquer outro... e, se quero conservar-me inatacável e inatacada, é pelo senhor, creia-o mais ainda do que por mim.

— Obedeço. Quando tornarei a vê-la?

— Aqui, todos os dias, de tarde, como de costume.

— Com toda a gente? exclamou o mancebo.

— Naturalmente. Não pretende, suponho eu, obter um "tête-à-tête" cotidiano. Antes de uma semana, Paris inteiro julgaria que o senhor era meu amante.

— Mas se tiver alguma coisa de particular para lhe dizer a respeito de Laugier?

— Advertir-me-á por um imperceptível sinal que não me escapará, e à noite, às dez horas precisas, esperar-me-á no ângulo formado pela rua Murillo e pela avenida Ruysdael.

— Na minha carruagem.

— Não. Num trem de praça. O modesto veículo far-se-á notar menos do que a sua muito mais luxuosa equipagem, e devemo-nos rodear do mais profundo mistério.

— Virá encontrar-se comigo?

— Sim.

— Como sairá do seu palácio sem atrair a atenção dos seus criados?

— Não lhe dê isso cuidado.

— Tudo far-se-á segundo os seus desejos. Adeus, querida marquesa, muito amada.

— Até mais ver, Príncipe. Até logo.

Heitor beijou as formosas mãos que Lazarine lhe estendia, e que com uma não vulgar condescendência ela lhe permitiu que unisse muito estreitamente aos lábios, em seguida dirigiu-se para a porta.

Ao chegar ali voltou-se para enviar um último beijo à senhora de la Tour-du-Roy.

— "Sors vanqueur d'un combat dont Climène est le prix" 1 lhe disse ela, acompanhando o verso de Cid com um irresistível sorriso.

(1) Eu poderia ver-te completamente nu, que toda a tua pele não seria capaz de me tentar.

 

O principezinho saiu completamente doido.

Lazarine (supomos que os nossos leitores serão unânimes em fazer esta justiça) acabara de representar um papel com uma perfeição tal que as melhores atrizes lhe invejariam.

Levando Heitor ao ponto em que o vimos, tinha feito muito, porém a sua empresa não estava concluída.

O príncipe obedecendo, ia seguir os passos de Marcel Laugier, e tornar-se, de algum modo, a sua sombra até à hora em que se oferecesse a ocasião de o levar ao campo.

Lazarine devia, pois interromper absolutamente as suas relações com o ex-tenente e impedi-lo de vir esperá-la, como sucedia todas as tardes, defronte do n.° 5 da avenida da Rainha Hortência.

Como obter dele que renunciasse àquelas entrevistas quase cotidianas a que estava tão gostosamente acostumado?

A jovem conhecia muito bem o império que exercia em Marcel, para duvidar um só instante de que conseguisse esse resultado.

Escreveu as linhas seguintes:

"Prometeu-me, jurou-me, meu amigo, não mais duvidar de mim, e testemunhar-me para o futuro uma ilimitada confiança.

"A minha honra periga. Fui espiada, fui seguida. Por quem? É um segredo para mim, mas não posso infelizmente duvidar do fato. Uma carta anônima, que parece benévola e não é talvez senão uma perfídia, chegou-me às mãos esta tarde. Sabe-se que saí do palácio pela porta que deita para o parque Monceaux e vou ter com um mancebo cujo nome parece ignorar-se.

"A mais elementar prudência (compreendê-lo-á tão bem como eu) exige de um modo imperioso que interrompamos por durante alguns dias estas entrevistas cujo mistério foi surpreendido e não as recomecemos senão num lugar diferente e cercado de novas precauções.

"Com tanto desgosto como o senhor, eu tomo uma medida de uma penosa necessidade em que eu sofro também, mas a necessidade impõe-se e não se discute. Uma coisa me consola, porém, um pouco. O tempo da separação será curto, e farei todo o possível por abreviá-lo, juro-lhe.

"A sua paciência e o seu ânimo serão os mais eloqüentes testemunhos de ternura que poderá dar-me.

"O espião deve estar entre os meus serviçais. Suspeito de um modo ainda um pouco vago, mas enfim suspeito de uma das minhas criadas graves. Vou proceder de modo a transformar prontamente as minhas dúvidas em certezas, e, adquirida essa certeza, procederei ou afastando a muito curiosa criada, ou comprando a sua discrição. Tanto num como noutro caso, não teremos mais nada a temer.

"Escreva-me todos os dias, como todos os dias lhe escreverei. Não duvide de mim assim como não duvido do senhor Conte comigo, como eu conto com o senhor. Ame-me, enfim, ame-me como eu o amo".

Lazarine meteu num envelope a carta não assinada, (ela nunca assinava aquelas epístolas comprometedoras) e Marcel Laugier recebeu-a, no dia seguinte de manhã, à hora da segunda distribuição

 

A PERSEGUIÇÃO

A primeira impressão de Marcel, depois de ter lido a carta que reproduzimos no capítulo anterior, foi uma impressão de desconfiança e de cólera.

— Ela afasta-me de novo, murmurou, amarrotando o papel sem brasão e sem assinatura, prepara-se para me atraiçoar. Mas não serei um joguete seu, vigiarei. Desgraçado de quem se interpuser entre ela e mim!

Uma segunda leitura do astucioso bilhete fez com que o mancebo refletisse, e deu-lhe um pouco de sangue frio.

— Faço mal, redarguiu ele. O que ela me diz pode e deve ser verdade. Preveni-a de que o seu misterioso proceder, exista a curiosidade dos seus serviçais, era inevitável a espionagem em que ela me fala. Parece ser sincera na manifestação do seu desgosto. Para que hei-de acusá-la sem motivos? para que hei-de fantasiar quimeras e infligir-me inúteis sofrimentos? As minhas suspeitas a serem injustas, ferirão aquele gênio altivo, irritarão aquela alma orgulhosa! Prometi uma confissão cega e uma fé ilimitada. Não me perdoaria que me esquecesse da minha promessa, e é fazer um triste papel, representar de amante ciumento, andar a emboscar-me pelos cantos da rua como um marido enganado. É melhor crer e esperar, além de que a espera será curta para ela. Vamos, imponho ao meu espírito a tranqüilidade, e fecho a minha alma à dúvida. Se me iludo, se faço de parvo, depressa o saberei, e, então desligado do meu juramento, terei direito para proceder.

E Marcel, aliviado, como se fica sempre quando se acaba de tomar uma resolução, vestiu-se à pressa e saiu de casa para ir almoçar num dos restaurantes do "boulevard".

Era meio dia menos um quarto quando pôs o pé no passeio da rua Amsterdam.

Do outro lado da rua um mancebo, imóvel numa porta, esperava a mais de uma hora, fumando um charuto, e sem perder de vista a entrada do n.° 40.

Os transeuntes dotados de algum espírito de observação, notavam a atitude pacífica e significativa do mancebo, e diziam de si para si:

— Há por certo algumas meninas na casa fronteira. É um namorado à espreita.

O que tornava esta suposição verossímil é que de tempos a tempos um moço elegante afastava as bambinelas de uma janela; em seguida a cabeça loura e delicada de uma linda curiosa, a quem a presença do espreitador muito parecia impressionar, aparecia por trás da vidraça.

Os nossos leitores adivinharam já que o mancebo em questão era Heitor Bégourde, Príncipe de Castel-Vivant.

Quando Marcel saiu, o ex-artista que não o conhecia senão por algumas palavras de Lazarine ,esboçando um retrato falado, reconheceu-o logo à primeira vista, ou antes, adivinhou-o, ajudado pelo instinto da rivalidade.

— Este aspecto militar, disse ele consigo. Este rosto um pouco moreno, estes compridos bigodes finos, esta fita vermelha. É impossível enganar-me, é ele.

Deixou Marcel afastar-se uns vinte passos, depois, atravessando rapidamente a rua, entrou na casa donde saíra o seu rival, e disse ao porteiro, metendo-lhe na mão uma moeda de cinco francos:

— Esse senhor condecorado que saiu daqui é o conde de Chanzelles, não é, capitão do 7.° de dragões?

— Não, senhor. É meu inquilino, o senhor Laugier, um oficial que já o não é, porque se demitiu.

— Enganei-me... uma semelhança. Perdão por te-lo incomodado.

— Não tem dúvida, murmurou o porteiro olhando satisfeito para a moeda de cem soldos que tinha na palma da mão.

Heitor pôs-se logo a dar caça.

Marcel, que ele tinha visto virar à esquerda, não podia estar muito distante.

Efetivamente, tornou logo a velo, seguindo a passo vagaroso pelo passeio da rua de Londres, e seguiu-o, tendo o cuidado de deixar entre o caçador e a caça uma grande distância para que a peça de caça não suspeitasse da perseguição do caçador.

Pelo caminho ia dizendo:

— Tem realmente bonita figura este rapaz! Uma destas elegâncias simples tão apreciadas pelo Príncipe de Godefroy, meu excelente pai, e a sua figura não me desagradou. Ao vê-lo quem o julgava capaz de ameaçar uma mulher à qualquer impor-se pelo terror dos direitos imaginários... a mais odiosa das covardias! há aparências muito enganadoras, é admirável, palavra de honra!...

O ex-tenente atravessou a praça, tomou pela rua da Chaussée-d'Antin, depois pelo "boulevard" à esquerda, entrou no café Riche onde almoçava todas as manhãs, e sentou-se.

Heitor entrou por uma outra porta, e tomou lugar de modo a não perder de vista Marcel, evitando atrair a atenção.

Marcel, muito preocupado e muito pensativo, fosse pelo que fosse, tinha pouco apetite; contudo, a sua refeição prolongou-se muito além dos ordinários limites. Procurava matar o tempo, como pessoa que está aborrecida, em cuja existência se faz o vácuo, e que não sabe em que empregar os minutos intermináveis.

Leu uma meia dúzia de jornais sem compreender uma única palavra das frases que os seus olhos percorriam maquinalmente.

O seu espírito estava fora dali.

Em seguida pediu papel e escreveu uma extensa carta que meteu na sua carteira, apenas concluída.

O almoço, a leitura dos jornais, e o escrever da carta, tinham levado muito tempo.

Davam três horas quando Marcel pagou a conta e saiu.

O coupé forrado de cetim que servia para as suas excursões com Lazarine, quando a jovem consentia em divagar pelos mundos da fantasia, vinha todos os dias buscá-lo ao restaurante. Ele esperava no passeio.

Subiu.

Heitor, a três passos de distância dele, ouviu-o dar esta ordem ao cocheiro:

— Ao bosque, pela grande avenida de la Grande Armée e pela porta Maillot. Dê a volta à planície de Long-champ, volte pela estrada do Hipódromo, estrada de Auteuil, lagos, avenida de Imperatriz e reconduza-me ao Helder.

O passeio era grande, e o ex-oficial desejava com certeza entregar-se a uma meditação em que não fosse perturbado, visto que os três quartos do passeio deviam ter lugar na parte menos freqüentada do bosque de Bolonha.

As últimas palavras de Marcel dispensaram Heitor de continuar imediatamente a caçada, e isso era bom, porque seria difícil que o amante de Lazarine não percebesse que era seguido, na estrada encantadora e deserta que corre ao longo das margens do Sena, e que conduz à ponta de Suresnes.

Pelas quatro horas e meia, Heitor estava instalado a um canto do café, situado no "boulevard" dos Italianos, fronteiro à rua do Helder, cujo nome tomou, e preparando um copo de absinto segundo a fórmula; ocultava-se atrás de um jornal.

O café do Helder tem uma reputação e uma especialidade.

É ali que os oficiais de todas as armas, de passagem por Paris, se encontram à hora do absinto.

— É ali que os das mais afastadas guarnições têm entrevistas.

É ali, finalmente, que grande número de antigos militares que passaram à vida civil, vêm apertar a mão aos camaradas que ficaram no serviço.

No Helder, causa surpresa ver uma farda virgem de fitinha vermelha, a não ser essa farda a de algum jovem.

As palavras: promoção, transferência e aumento, repetem-se ali tantas vezes no dia quantas vezes se repetem todas as outras palavras da língua francesa.

Nenhumas outras frases ali são mais repetidas vezes do que esta:

— Rapaz, o Anuário!

Ocultando-se com o jornal, o principezinho viu o coupé de Marcel Laugier parar no boulevard, Marcel descer, pisar o asfalto, entrar no café, trocar cordiais apertos de mão com meia dúzia de oficiais seus conhecidos, e finalmente sentar-se em meio de um grupo, onde em pouco a conversação se tornou mais animada.

Heitor acha-se em face de um problema, e para o resolver dava tratos à imaginação.

— Como hei de provocar aquele rapaz que tenho de reputar como não conhecido? Perguntava ele a si mesmo. Ou, o que, seria melhor, e parecia à Marquesa mil vezes preferível, como me hei de fazer provocar por ele?

Como nenhuma solução se apresentava, continuava:

— Ora! haverá um meio muito simples ao alcance das mais medíocres inteligências. Não tinha mais nada a fazer senão levantar-me, ir direito a Laugier, e dizer-lhe, cumprimentando-o: — Senhor, antipatizo com a sua cara! e bater-lhe com a minha luva no rosto. Seria infalível, mas muito inepto. Essas coisas já não se usam hoje. Pareceria um louco ou um bruto, e ser-me-ia muito desagradável ser taxado ide loucura ou de brutalidade.

Escapava quando era ainda Heitor Bégourde, artista pintor, como dizia Sta-Pi, mas com o Príncipe de Castel-Vivant, é impossível! Antes de consentirem no duelo, as testemunhas requereriam uma junta de médicos alienistas encarregados de estudar o meu estado mental.

"Decididamente, é preciso procurar uma solução mais prática.

Heitor procurava e não achava.

Pelas dez e meia, os freqüentadores do Helder começaram a se retirar, mas o ex-tenente demorava-se com os seus camaradas.

Dois destes convidaram-no a jantar.

Ele resistiu, mas os camaradas insistiram, e como acontece sempre em tais circunstâncias, cedeu; todos três, atravessando o "boulevard", dirigiram-se à casa de Bignon, onde tomaram um gabinete com grande desespero de Heitor, que via a ocasião esperada, ir recuando sempre diante dele.

Querendo, no entanto, desempenhar-se conscienciosamente da empresa imposta por Lazarine, o príncipe fez também abrir um gabinete situado fronteiro ao ocupado pelos três oficiais.

— Quantos talheres, senhor? perguntou o empregado do hotel.

— Um só, respondeu Heitor com modo distraído.

O homem olhou espantado para o mancebo, que se dispunha a jantar só num gabinete particular.

Heitor notou aquele espanto cuja causa ele compreendeu, e apressou-se a ajuntar:

— Eu espero alguém. Ponha dois talheres. Alias como é possível que a pessoa esperada falte, será preciso servir-me imediatamente.

— Muito bem. O senhor que escrever o seu menu?

— Dê-me o que quiser.

— Bem... Que vinhos bebe?

— Aqueles que quiser.

— Perfeitamente. O senhor há de ficar satisfeito por confiar em mim. Se a pessoa esperada chegar, por quem perguntará ela?

— Há de perguntar por Heitor, respondeu o principezinho, que não queria dizer o seu nome, atendendo à vizinhança dos três oficiais.

— Pois bem. Vou tratar de o servir. O empregado do hotel saiu.

— Deixe essa porta aberta, disse-lhe Heitor, se chegar essa pessoa, quero ouvi-la vir.

— Muito bem.

O empregado do hotel obedeceu religiosamente à ordem de Heitor. Pela outra porta meia aberta do seu quarto, o mancebo via do seu lugar a porta do gabinete fronteiro.

Era impossível sair do gabinete sem que ele o soubesse.

 

A PROVAÇÃO

O despenseiro do hotel como tinha carta branca para fazer o que quisesse, preparou para o solitário anfitrião, a refeição necessária para meia dúzia de convivas, em que mal reparou Heitor, e o que quase o não preocupou, porque, fosse qual fosse a quantia, não devia causar-lhe o menor cuidado.

As refeições tiravam-lhe o apetite.

Deixou quase intactas as codornizes, os faisões recheados, as lagostas de Nantua, bebeu distraidamente três ou quatro copos de Chateau-Latour, de Corton e de Moselle espumoso gelado, depois pôs-se a fumar plantadores para matar o tempo, tomando o seu café.

Como estavam longe os dias em que aquele copioso e delicado festim, regado de grandes vinhos, teria aberta ao vadio Bégourde horizontes paradisíacos!

A espera foi interminável.

Marcel Laugier e os dois oficiais, segundo o costume dos camaradas de regimento que deixaram de se ver por algum tempo, e depois se encontram, prolongavam a sua conservação.

Foi só à meia noite e alguns minutos, que os três homens saíram. do seu gabinete.

Heitor tinha já pago para estar no momento plenamente livre.

Saiu também e desceu atrás dos oficiais a escada que conduz à rua de la Chaussée d'Antin.

Os oficiais, parados no passeio conversavam cada vez melhor.

Nova espera. O principezinho batia o pé de impaciência.

Finalmente, após um último e caloroso aperto de mão, Marcel Laugier separou-se dos seus companheiros que se dirigiram para o boulevard, ao passo que ele subia a rua de la Chaussée d'Antin.

Heitor continuou a perseguição, andando agora muito perto do homem a quem seguia desde pela manhã, e procurando encontrar um pretexto.

De repente julgou ter achado.

Marcel fumava.

O príncipe tirou da algibeira um partagas.

— Vou pedir-lhe lume, disse ele de si para si. É coisa que nunca se recusa! Aceso o meu charuto, deixarei cair o seu. Fará necessariamente um gesto de mau humor. Em lugar de me desculpar da minha inépcia, oferecer-lhe-ei reembolsá-lo do preço do charuto. Responderá que sou grosseiro, e terá muita razão. Tomarei a coisa a mal, e duas ou três palavras insolentes conduzir-me-ão ao meu fim. Será do maior mau gosto, mas não posso escolher os meios.

Heitor apressou o passo.

Mais um segundo, e ia achar-se ao lado do ex-oficial. O acaso destruiu a sua combinação.

Marcel, bruscamente, atirou fora o seu plantador já três quartos ardido e que produziu um feixe de faíscas ao bater na calçada.

— Raios de Bougival! murmurou o principezinho, recordando-se do passado. Decidi-me muito tarde. Não se pode pedir lume a quem não fuma.

O ex-tenente passou em frente da igreja da Trindade, e meteu pela rua de Londres quase deserta.

— É preciso, contudo, acabar! disse consigo Totor. Daqui a dois minutos entrar. Recomeçar amanhã o trabalho de hoje, não teria graça! Vou deitar a correr e esbarrar com ele. Chamar-me-á estúpido-e terá muita razão, mas eu estou no meu direito de não gostar, e de lho dizer. Será estúpido e brutal, bem o sei, mas, mais uma vez, não posso escolher os meios.

Heitor começara a sua corrida.

Uma reflexão o fez deter.

— Com a breca! disse ele consigo, os ratoneiros procedem muitas vezes assim. É por meio de um forte encontrão que eles começam o roubo de uma carteira ou de um relógio. Se este Laugier, tomando-me por um "pickpocket", me deita a mão e grita: Ladrão! virá a polícia, e como não será fácil explicar a minha corrida pelo passeio, passarei a noite na estação policial, embora seja Príncipe de Castel-Vivant.

Ao passo que o mancebo monologava desta forma, Marcel que não tinha parado, virava à esquina da rua de Amsterdam, batia à porta, e entrava sossegadamente em casa; depois, em lugar de se meter na cama, escreveria a Lazarine uma carta de oito páginas, a segunda do dia, porque é fácil de adivinhar que a extensa missiva redigida no café Riche era destinada à rua Murillo.

Heitor tomou uma carruagem, muito desanimado fez-se conduzir a casa, com uma vaga esperança de ser mais hábil no dia seguinte, ou melhor servido pelo acaso, porque na situação que conhecemos mais devia contar com o acaso do que com a sua habilidade.

Resumamos. No dia seguinte, até às sete horas da noite, as coisas passaram-se exatamente como na véspera.

Marcel, ao deixar o Helder, foi jantar só ao café Riche onde tinha almoçado, depois passeou pelo "boulevard" e deu alguns apertos de mão, quase sem parar.

Evitava toda a conservação seguida, e parecia nervoso, impaciente.

Chegando em frente das Variedades, hesitou durante alguns segundos, mas não sabendo como passar as horas de uma interminável noite, entrou.

Heitor, ao vê-lo subir os degraus do vestíbulo, estremeceu de alegria.

— Terei má sorte, disse ele de si para si, ou serei muito tolo se não acho meio no teatro de fazer nascer a esperada ocasião.

E subiu também os degraus.

Marcel tomou no bilheteiro um "fauteuil" de orquestra. O príncipe Totor fez o mesmo.

O amante seguiu o corredor da esquerda, desembaraçando do seu "pardessus", e deu o bilhete ao arrumador, que lhe disse:

— O terceiro "fauteuil" da quarta fila.

A grande peça ia começar. Estava muita gente. A fina flor da elegância ostentava na orquestra os seu coletes de dois botões, os seus peitilhos brancos, e os seus colarinhos abominàvelmente decotados, inventados por um extravagante camiseiro, para a desgraçada exibição do decote masculino que traz à memória estes dois versos do Tartufo:

 

Et je vous verrais nu du haut jusques en bas.

Qui toute votre peau ne me tenterait pas!...

 

Heitor foi acolhido por uma série de pequeninos: Boas noites! cumprimentos feitos com as pontas dos dedos por amigos.

— Onde fico eu? perguntou ao arrumador.

— Não tenho senão dois "fauteuils", respondeu este, o quarto da segunda, e o sexto da quinta. Distante três lugares daquele senhor que acaba de entrar...

O senhor que acabava de entrar era Marcel Laugier.

— Está bem, disse o príncipe, tomo aquele. Na segunda fila estarei muito perto.

Entrou no estreito espaço que fica entre os espectadores e as costas dos "fauteuils", passou por defronte de Marcel que acabava de se sentar, magoou-lhe os joelhos, e não cuidou de se desculpar.

O ex-tenente, cujo pensamento estava na rua Murillo, mal reparou nisso, e não soltou um murmúrio sequer.

— Será, acaso, paciente? perguntou a si mesmo Totor. Para um oficial seria engraçado. Se fosse comigo tinha-me zangado. Enfim veremos logo.

O primeiro ato da opereta representou-se sem incidente.

Apenas o pano desceu no último acorde da nota final, o principezinho levantou-se logo do seu lugar, para não dar tempo a Marcel abandonar o seu, e de cabeça levantada, chapéu inclinado ao lado, luneta no olho, dois dedos na cava do colete, passou por diante dele pisando-o como na primeira vez, sem parecer vê-lo.

Marcel franziu a testa, os beiços moveram-se-lhe, e esteve a ponto de formular a seguinte frase:

— Aí está um sujeito muito mal educado!...

Mas, como não podia admitir a premeditação, conteve-se e encolheu os ombros, dizendo de si para si em voz baixa:

— Fazer desordem no meio do espetáculo por um motivo fútil, para que? Seria absurdo!

— Decididamente, repetia a si mesmo Totor, é paciente o ex-hussardo, e muito! Aqui estão os homens que ameaçam as mulheres! Por que alto feito condecoraram aquele valente?

O filho adotivo de Godefroy esperou com impaciência o fim do entreato, deixou entrar os espectadores que ocupavam os "fauteuils", depois, quando todos estavam sentados, e no momento em que Marius Boulard levantava a batuta que lhe serve como que de bastão de comando, tornou a entrar de luneta no olho e chapéu inclinado sobre a orelha, ridículo, impertinente, vaidoso, pretensioso, enfim provocante.

Resolvido a evitar qualquer altercação, Marcel ergueu-se um pouco, afastou os joelhos, de modo a deixar, quanto possível, livre a passagem.

O partido tomado por Heitor devia tornar inútil esta sensata precaução; o mancebo teve a insigne habilidade de pisar os pés do seu rival.

Era mais do que este queria e podia suportar. Tentou, contudo, não fazer escândalo.

— Quando se é tão desastrado, disse ele com uma voz contida, mas perfeitamente distinta, tem-se ao menos a delicadeza de pedir desculpa.

Heitor deteve-se.

É a mim que o senhor diz isso? perguntou ele num tom de voz provocador.

— É ao senhor, se o quiser aceitar para si, respondeu Marcel.

— Então é uma lição?

— É.

— Dou-as às vezes, nunca as recebo.

— E eu dou-as, às vezes, às crianças mal educadas.

— Insolente? disse Heitor levantando a mão. Aquela mão não tornou a cair.

Marcel tinha agarrado o pulso do seu adversário e apertava-o a esmagar. Ao mesmo tempo dizia:

— É muito! Nada de canalhices. Ver-nos-emos depois do ato.

— Assim o espero, murmurou o principezinho soltando o pulso magoado e dirigindo-se para o seu lugar.

Era tempo.

Durante a troca das réplicas estenografadas por nós, o diapasão das vozes tinha aumentado muito, e como o pano acabava de se levantar, como os atores entravam em cena, começava-se a lançar de todos os pontos da sala, mas principalmente da platéia e da segunda galeria, interjeições no gênero destas:

— Caluda!

— Silêncio na orquestra! Calem-se.

— Senta-te, peralta.

— Saiam. Vão questionar na rua!

— Onde está o comissário?

Logo que Heitor se sentou no seu "fauteuil", a bulha findou. A representação continuou, o pano caiu.

Marcel Laugier levantou-se volvendo para Heitor um olhar que significava muito claramente:

— Venha, senhor, espero-o.

 

A PENDÊNCIA

O olhar de Marcel Laugier queria dizer:

— Venha, espero-o.

Heitor respondeu com um olhar não menos expressivo:

— Não me farei esperar.

No corredor, a alguns passos de distância da porta da orquestra,. os dois homens juntaram-se.

Grande número de curiosos a quem o começo da desordem não tinha escapado, paravam formando grupos e estorvando a circulação.

Os curiosos queriam assistir à conclusão do negócio. Entre eles achavam-se dois ou três amigos do principezinho.

Marcel Laugier iludiu a sua expectativa.

Estava muito tranqüilo, não perdeu um minuto o seu sangue frio.

— O senhor bem vê que é impossível conversar aqui, disse à meia voz cumprimentando Heitor. Queria acompanhar-me até ao "boulevard".

— Perfeitamente, redarguiu o ex-vadio, depois de ter saudado Marcel Laugier.

Os adversários saíram, e novos grupos de indiscretos se dispunham a rodeá-los em frente da fachada do teatro, tomaram pela rua Vivienne onde ninguém ousou, senão segui-los, pelo menos aproximar-se deles.

Marcel parou.

— Senhor, redarguiu num tom frio, mas que não tinha nada de agressivo, permita-me resumir rapidamente os fatos. Por três vezes o senhor esbarrou comigo com uma persistência por tal forma inverossímil que a olharia como um insulto premeditado, se não tivesse a certeza de que somos estranhos um para o outro. As duas primeiras vezes nada disse, o senhor talvez se admirasse da minha paciência. Que quer? achava ridículo que dois homens jogassem a vida por causa de um empurrão, por certo involuntário; à terceira reincidência fiz uma observação. Estava incontestavelmente no meu direito.

— Estava também incontestavelmente no meu direito de não a aceitar, interrompeu Heitor.

— Embora, mas há modo e maneiras de formular uma recusa desse gênero. Se se tivesse limitado a uma réplica pouco delicada, explicar-nos-íamos de um modo mais ou menos pacífico, mas o senhor levantou a mão para mim, e se não me esbofeteou, foi por uma circunstância independente da sua vontade. Considero a bofetada como recebida. Um tão grave insulto exige imperiosamente não uma explicação, mas uma reparação. O caso não se pode compor.

— Persuade-se, acaso, de que sou homem com quem os negócios se componham? perguntou zombeteiramente Heitor.

Marcel inclinou-se.

— Aqui está o meu cartão, disse ele.

— Eis o meu, respondeu o Príncipe.

— Não me contesta, suponho eu, a qualidade de ofendido? redarguiu o oficial.

— Poderia certamente contestar, porque não levantei a mão para o senhor senão para responder a uma observação insolente, mas pouco me importa a escolha das armas, e não discutirei a sua pretensão.

As minhas testemunhas esperarão as suas em minha casa, amanhã, depois do meio dia. Não me atrevo a fixar uma hora mais matinal, porque não sei se encontrarei os meus amigos esta noite.

— Depois do meio dia, pois seja.

— Tenho a honra de o cumprimentar.

— Sou um seu criado.

Os dois mancebos separaram-se do modo o mais regularmente polido, e a poucos passos de distância um do outro voltaram para o teatro.

— Palavra de honra, dizia Heitor, é muito bom este rapaz, e não me desagrada. Se Lazarine não mo tivesse afirmado, nunca julgaria naquele o brutal que ameaça mulheres.

Marcel Laugier parou debaixo de um bico de gás do café Véron, e olhou para o cartão que o seu futuro advogado lhe tinha entregado.

O cartão era fino, e tinha no ângulo esquerdo um brasão encimado por uma coroa fechada.

— Príncipe Heitor de Castel-Vivant, leu o ex-oficial quase em voz alta com um profundo espanto. É um príncipe, ajuntou ele, e um príncipe sério, este nome não me é estranho.

"A provocação de há pouco, já por si só muito singular, torna-se cada vez mais surpreendente, porque enfim os príncipes não têm o costume de se bater sem motivo cem qualquer... e eu sou um qualquer para esse absurdo criancelho. Parece-me doido.

Marcel refletiu durante um segundo e continuou:

— Já sei. É um peralvilho que tem o seu primeiro duelo. Não lhe dá cuidado, nem a causa, nem o adversário, contanto que se bata! Tudo se explica.

A entrada na orquestra dos dois mancebos, quase atrás um do outro, produziu um certo efeito.

Ao vê-los tão tranqüilos depois de uma altercação tão violenta, alguns disseram:

— Safa, que valentões.

Mas a maioria do público pensou que a explicação não tinha sido belicosa, e velhos freqüentadores do teatro murmuraram esta frase, outrora clássica, tirada a não sei qual peça do repertório das Variedades, do tempo de Potier e de Brunet:

— Um duelo! Depenai os patos...

Depois do último ato, Heitor sem se importar com Marcel Laugier, deixou que saíssem da sala três quartos da gente antes de se levantar do seu "fauteuil".

Não queria servir de ponto de mira à curiosidade geral.

Dois rapazes com quem se tinha relacionado depois da sua adoção pelo Príncipe Godefroy, rapazes distintos, que faziam parte de diversos círculos do high-life, o Visconde Alberto de Cussy e o Barão Couraud, neto de uma ilustração do primeiro império, esperaram-no no vestíbulo, desconfiando que havia algum acontecimento sério.

Dirigiram-se a ele, e depois de grandes apertos de mão, perguntaram:

— Vamos lá, querido príncipe, que há de novo?

— Há, meus excelentes amigos, respondeu Heitor, que se os não encontrasse aqui, passaria a noite a correr à sua procura.

— Quer dizer que tem um duelo?

— Sim.

— Com aquele sujeito condecorado, naturalmente. Quem é ele?

— Sei que é o condecorado, que foi oficial de hussardos, e que se chama Marcel Laugier. Aqui está o cartão. Não sei mais nada.

— Pois que, não o conhecia? Não tinha dele nenhum agravo anterior. Não haverá aí a história de mulheres?

Heitor corou, mas respondeu:

— Viu-o esta noite pela primeira vez na minha vida.

— E quer esbofetear assim as pessoas que não se incomodam para o deixar passar, ou que têm as pernas muito compridas? disse o Visconde de Cussy rindo. Caspité, vai bem! Ambicionar, por acaso, a reputação de espadachim?

— Há de me ser preciso muito tempo antes que alcance essa reputação, redarguiu Heitor rindo também. Esta virgindade pesava-lhe. Quis começar, e para isso serviu-se do primeiro que lhe apareceu.

— Poderia haver, efetivamente, alguma coisa desse gênero. Posso contar, meus bons amigos, que me servirão de testemunhas?

— Com o maior prazer, disseram ao mesmo tempo os dois mancebos.

— Foi o senhor o ofendido? perguntou o Barão Couraud.

— Não. Poderia reclamar, mas cedo de boa vontade ao meu adversário.

— O senhor é forte no florete?

— Como toda a gente.

— E à pistola?

— Muito mais.

— Ele desconfiará disso, e escolherá o florete.

— É o mesmo para mim.

— Onde é a entrevista com as testemunhas do adversário?

— Em casa dele, depois do meio dia.

— Belo! Disporemos a coisa para depois da amanhã pela manhã. Não tencionar ir bater-se à Bélgica, suponho eu?

— Por vida minha que não. Está-se muito bem perto de Paris, Guardando-se segredo evitam-se as perseguições, e, além disso, se há processo, faz efeito.

— Aprovo tanto mais especialmente, apoiou o Visconde de Cussy, porque conheço em Ville-d'Avray um sítio muito bonito onde se está como em casa. Ninguém nos perturbará. Já ali fui duas vezes. Quando a gente chega, o guarda campestre tem a discrição de desaparecer. Proponho uma leve ceia em casa de Brebant, e bebendo Sauterne e comendo ostras, conversaremos a respeito do caso.

Esta moção foi bem acolhida, e os três rapazes entraram num gabinete onde não os seguiremos.

Ao passo que Heitor e os seus amigos conversavam no vestíbulo das Variedades, Marcel Laugier dirigia-se para o café do Helder.

Contava encontrar ali amigos, e pedir-lhe esse serviço que entre irmãos de armas nunca se recusa.

A sua esperança não foi iludida.

Os dois oficiais com quem tinha jantado na véspera foram, ao sair da Ópera, tomar um grog.

Marcel instruiu-os sobre o que se passava, e logo muito condescendentemente ficaram ao seu dispor.

No dia seguinte, ao meio dia e um quarto, o Visconde Cussy e o baronete Couraud chegaram à rua de Amsterdam.

Introduziram-nos imediatamente, e conferenciaram com as testemunhas do ex-tenente.

A conversação não durou mais de dez minutos.

A conclusão foi que Marcel Laugier escolhia o florete. Cada um dos adversários trazia as suas armas. A sorte decidiria, no terreno de que floretes se faria uso; finalmente o encontro teria lugar no dia seguinte de manhã às nove horas, em Ville-d'Avray, à borda do lago, no caminho ensombrado que corre ao longo da encosta.

Heitor, ao fato de tudo pelas suas testemunhas, esfregou as mãos alegremente e murmurou:

— Vai tudo bem!

Às três horas da tarde fazia-se anunciar na sala cheia de gente da rua Murillo.

Lazarine que não o tinha visto na véspera, e que começava a estar inquieta sem ter notícias dele, interrogou-o com o olhar.

O Príncipe respondeu por um sinal de cabeça a respeito da significação do qual não havia que desconfiar.

— Há alguma coisa, disse de si para si a Marquesa, saberei esta noite o que devo fazer.

No mesmo dia, pelas seis horas. Júlio Leroux passeava no "boulevard" dos Italianos.

Encontrou Marcel Laugier, com quem sabemos estava nas melhores relações.

— Bons dias, querido amigo, disse-lhe dando o braço ao mancebo. Não há quem o veja! Que tem feito? Saiu de Paris?

— Não, senhor, respondeu o oficial, mas vivo muito retirado.

— Todos os seus amigos, em cujo número entro eu, têm direito para se lastimarem disso. Que há de novo?

— Nada que eu saiba, exceto uma pequenina contrariedade que me sucede.

— Uma contrariedade? Pior! Que é?

— Um duelo muito ridículo, porque não tem motivo, pelo menos motivo sério.

— Bate-se! exclamou Júlio Leroux.

— Amanhã de manhã.

— Mas finalmente, esse duelo, se não tem um motivo razoável, tem pelo menos um pretexto.

— Uma questão toda no teatro com um impertinente peralvilho.

— Por causa de uma mulher?

— Não. O peralvilho, depois de me ter pisado, não aceitou por bem as minhas observações.

— Tudo o que lhe diz respeito muito me interessa. Informe-me dos pormenores. E, em primeiro lugar, quem é o seu adversário?

— O Príncipe Heitor de Castel-Vivant.

Júlio Leroux estremeceu.

— Bégourde! disse ele consigo. Ou eu muito me engano, ou Lazarine tem parte no negócio, sem que este pobre diabo suspeite.

— Conhece o Príncipe? perguntou Marcel Laugier.

O ex-banqueiro que não queria comprometer sua filha, nem comprometer-se a si mesmo, respondeu:

— Conheço-o de nome e de vista, mais nada. Continue, peço-lhe. Marcel contou por miúdo o que os nossos leitores já sabem. Quando concluiu, Júlio Leroux apertou-lhe a mão com um modo enternecido desejando-lhe uma feliz sorte; depois, em lugar de jantar no café inglês, como tinha tenção, tomou uma carruagem e fez-se conduzir à rua Murillo.

 

PAI E FILHA

Júlio Leroux achou Lazarine no seu quarto de dormir com a ama do pequeno Raul.

A nutrida normanda, soberba com a sua rouca de rendas, oferecia o peito ao herdeiro póstumo de Roberto de la Tour-du-Roy.

— Vem jantar comigo, papai? perguntou a Marquesa.

— Sim, se não te incomodo.

— Não me incomoda nunca, e é hoje muito particularmente benvindo, porque estou só e aborrecida.

Tocou num timbre, deu ordens à criada encarregada de as transmitir ao mordomo, e continuou:

— Enquanto não se põe o seu talher, admire o seu neto para passar tempo. É uma ocupação como qualquer outra.

A criança tinha acabado de mamar, e satisfeita com aquela alimentação de primeira escolha, francamente prodigalizada, soltava esses pequeninos gritos de alegria inconsciente particulares aos bebes de alguns meses que passam bem e só querem viver.

Lazarine recebeu-o das mãos da normanda, e deu-o ao pai.

Júlio Leroux recebeu-o delicadamente.

— Não é tão bonito? perguntou a jovem mãe que se não ocupava muito da frágil criaturinha, mas que a amava a seu modo, com se estima um cãozinho de uma espécie rara e curiosa.

— Esplêndido! redarguiu o ex-banqueiro com convicção. É impossível sonhar um bebe mais perfeito! É um marquezinho muito galantinho. Já tem aparência distinta, palavra de honra! Não achas que ele se parece cada vez mais comigo?

— Com certeza, papai, respondeu Lazarine rindo, é o seu retrato. Raul, ri para o avô. Vê, papai, ele riu-se. É um anjo. Agora, Cleópatra, leva-o, cansa-nos.

Cleópatra, assim se chamava a ama, saiu do quarto com a criança. O pai e a filha desceram à sala.

— Sabes porque vim? disse o ex-banqueiro.

— Para jantar, disse-mo.

— Sim, mas não somente para isso. Tenho uma boa notícia a dar-te.

— Oh!

— Uma notícia que há de interessar-te.

— Então diga.

— Adivinha quem eu encontrei no "boulevard", há vinte minutos?

— O papai faz-me morrer de curiosidade. Como poderia eu adivinhá-lo? Não procurarei consegui-lo.

— Encontrei Marcel Laugier.

— Que tenho com isso?

— Marcel Laugier que se bate amanhã de manhã, continuou Júlio Leroux, procurando fazer efeito, e que se bate com alguém que tu conheces.

— Com alguém que eu conheço?

— O outrora Bégourde, o principezinho de Castel-Vivant.

— Realmente! disse Lazarine impassível. E a propósito de que tem lugar esse duelo?

— Uma questão no teatro, é o motivo aparente.

— O motivo aparente. Há então outro?

— É pelo menos de presumir.

— E o motivo oculto, segundo a sua opinião, qual será ele?

Júlio Leroux esboçou nos lábios uma imitação do sorriso de Voltaire, e dando ao olhar uma impressão maliciosa e perspicaz, perguntou:

— Tens a certeza de não desconfiar qual é o motivo da pendência?

Lazarine afetou um ar de ingênua e disse:

— Não o compreendo.

— Então, não tens parte no negócio?

— Ignorava mesmo que o príncipe conhecesse Laugier, eles nunca se encontraram em minha casa.

— Oh! exatamente, eles não se conheciam, e o Bégourde provocou Marcel com surpreendente insistência, sob um pretexto absolutamente fútil. Julgar-se-ía que obrando assim, obedecia a alguma ordem.

— Compreendo-o cada vez menos. Onde e quando deve ter lugar o duelo?

— Amanhã de manhã às nove horas, em Ville-d'Avray, num caminho que circunda o pequeno lago.

Lazarine estremeceu involuntariamente.

Recordava-se desse caminho.

Algumas semana antes, dissemo-lo, tinha ela jantado com Marcel em Ville-d'Avray nesse singular restaurante que se assemelha a uma sobreposição de castelos de cartas.

Depois de jantar, por um tempo muito ameno, e à branca luz da lua, tinha passeado ao redor do lago, apoiada ao braço do tenente, naquele mesmo lugar onde no dia seguinte talvez, e por sua ordem, Marcel cairia ferido mortalmente.

Este contraste era muito importante para passar desapercebido, e a marquesa ficou um pouco perturbada, mas essa perturbação não durou senão alguns segundos.

— Papai, prosseguiu ela, quer ser um pai muito amigo?

— Sempre o fui, quero sê-lo ainda. Que é preciso fazer?

— Um duelo cujos adversários são conhecidos interessa muito. Sou muito curiosa, confesso-o, de saber o mais cedo possível o desenlace daquele.

— Muito bem. Esperarei Marcel em sua casa no momento do regresso, e virei a correr dar-te parte.

— Faça melhor. Vá amanhã de manhã a Ville-d'Avray. Assista ao encontro e venha dar-me parte.

— Pensas nisso! exclamou Júlio Leroux, a quem a única idéia de um tal incômodo àquela hora matinal, parecia inaceitável, é impossível!

— Por que?

— Não tenho título com que me intrometa num negócio que não me diz respeito. Seria um intruso. A minha conduta seria incompatível.

Lazarine combateu uns após outros estes argumentos e muitos outros. Explicou-se de um modo muito claro a seu pai que ele não teria de intrometer-se, e mesmo que a sua presença não se notaria, porque a situação do restaurante de que falamos permitia-lhe assistir ao combate sem ser visto, comendo uma costeleta.

— Mas, tão cedo, não terei apetite! balbuciou o ex-banqueiro. Foi a sua última tentativa de resistência.

A jovem insistiu de tal modo que foi preciso ceder.

Ele acabava de se comprometer a isso formalmente, quando apareceu o mordomo anunciando que a senhora Marquesa estava servida, e a presença de várias pessoas durante o jantar cortou aquela conversação de uma natureza confidencial entre o pai e a filha.

Nessa mesma tarde, três horas depois, um trem de lanternas vermelhas estacionava na avenida Ruysdael, perto da grade do parque Monceaux.

No trem estava Heitor, em extremo comovido pela idéia de que a senhora de la Tour-du-Roy ia fazer pelo Príncipe de Castel-Vivant, o que outrora fizera mais de uma vez pelo vadio Bégourde, indo encontrar-se com ele às ocultas e misteriosamente.

Lazarine, tendo sabido por seu pai o que desejava saber, estimaria poder furtar-se ao incômodo de uma saída noturna daí para o futuro, sem motivo ou fim plausível.

Ela porém tinha prometido de um modo positivo, e não era no momento em que o Príncipe ia jogar a vida por um ato de obediência que podia, sem imprudência, faltar à palavra.

Além de que seria útil animá-lo, e eletrizá-lo por um beijo, o primeiro que receberia, porque nos amorosos entretenimentos do "boulevard" Haussmann e do parque de la Tour-du-Roy, os lábios de Bégourde não tinham nunca tocado mais do que a ponta dos dedos de Lazarine.

Às dez horas menos alguns minutos, Heitor ouviu ressoar no asfalto a bulha de uns passos furtivos e rápidos, que por muitas vezes tinham feito pulsar o coração de Marcel na avenida da Rainha Hortência.

Uma forma esbelta e escura se deteve perto da carruagem, uma cabeça embuçada num capuz de rendas apareceu no vão da portinhola, e a voz de Lazarine perguntou:

— Querido Príncipe, é o senhor?

Tudo o que Heitor tinha a dizer à senhora de la Tour-du-Roy é conhecido dos nossos leitores. Não assistiremos à conversação que além disso foi de curta duração.

Davam dez horas e meia quando a Marquesa tomou o caminho do seu palácio, mas no momento de deixar o crédulo campeão cuja mão tinha armado, levantou o véu e pousou os lábios na fronte de Heitor, murmurando como na véspera:

 

Sors vainqueur d'un combat dont Climène est le prix!

(Saí vencedor de um combate cuja palma é a posse de Climène.)

 

O fim tinha-se conseguido.

Uma abundante dose de eletricidade amorosa e belicosa saturava o coração e os nervos do Príncipe de Castel-Vivant.

No dia seguinte de manhã, pelas oito horas, duas carruagens que acabavam de atravessar o bosque de Bolonha, e seguiam uma após outra desde os Campos-Elysios. entraram na ponte de Suresnes e começaram subindo a interminável ladeira que corre ao longo do monte Valeriano, e termina em Montretout.

A primeira das carruagens era um grande carrinho, puxado por quatro cavalos baios conduzidos pelo próprio Heitor com uma notável mestria.

As testemunhas iam na almofada ao lado dele. Sentados no assento traseiro os dois lacaios de braços cruzados. Dentro ninguém. Espadas embrulhadas em sarja preta assentavam nos coxins.

Com certeza, a idéia de se fazer conduzir a quatro para ir a um duelo, não parecerá prático nem racional, e não aconselhamos a ninguém que siga este exemplo, exemplo que um verdadeiro príncipe não daria; Heitor porém, era príncipe de fresca data, fazia-se notar por extravagantes excentricidades, apesar dos conselhos, de seu pai adotivo.

A segunda carruagem era um landau de boa fábrica, alugado na véspera por Marcel Laugier.

O ex-tenente fazia-se conduzir com as suas duas testemunhas e um cirurgião militar, de passagem em Paris, encontrado na véspera à noite no Helder, e que tinha insistido em vir.

Marcel estava um pouco pálido.

Aquela palidez (precisamos dizê-lo), não provava uma inquietação, nem comoção, mas extrema fadiga.

Tinha passado a noite precedente a escrever uma extensa carta que se lhe sucedesse alguma desgraça, devia ser entregue a Lazarine e a redigir o seu testamento.

Por esse testamento ele legava toda a sua fortuna ao pequeno Raul de la Tour-du-Roy, o filho da Marquesa, seu filho.

As carruagens tinham subido lentamente a eminência.

Chegados à planície de Montretout alargaram o passo, atravessaram a grande trote os bosques de Villeneuve l'Étang, cujos abarracamentos parecem abandonados hoje.

Em seguida passaram à parte mais elevada da Ville-d'Avray.

Heitor, quando chegou às últimas casas da pequena cidade, virou à esquerda com uma habilidade surpreendente, e introduziu, sem hesitar, o trem numa ruazinha estreita e inclinada chamada a rua do Lago.

O landau seguiu o carrinho.

As duas carruagens deram outra volta, mas para a direita, e pararam.

Tinham chegado.

 

O RESULTADO DO DUELO

Um coupé de aluguel sem cavalos e de varais para o ar, estava no pátio da hospedaria do restaurante.

O coupé tinha levado Júlio Leroux, que não queria descontentar Lazarine, e ao qual o duelo dos dois namorados de sua filha muito excitava a curiosidade.

O ex-banqueiro não gostava do outrora Bégourde, apesar da auréola dos seus numerosos milhões. Em compensação, interessava-se por Marcel tanto quanto o seu prodigioso egoísmo lhe permitia interessar-se por alguém.

Chegado, havia um quarto de hora, Júlio Leroux instalara-se numa espécie de gabinete-caramanchel situado na parte mais elevada do castelo de cartas precedentemente descrito.

O gabinete, cujas paredes estavam cobertas com os luxuriantes festões da vinha virgem, parecia-se com aquela espécie de estufas envidraçadas que certos burgueses costumam construir nas suas quintas.

Dali dominava-se a encantadora paisagem, mas numa extensão muito limitada, e o olhar mergulhava na outra margem do pequeno lago.

O melhor dos pais tendo-se levantado mais cedo do que do costume, e havendo-lhe despertado o apetite a madrugada e o passeio, decidiu-se a almoçar bem, apesar do impróprio da hora, e acabava de encomendar o que o estabelecimento podia oferecer de mais substancial e de mais confortável: costeletas com batatas fritas, um frangão frio, presunto e conserva de feijão verde.

Uma garrafa de vinho de Chablis e outra de Pomard deviam regar aquela refeição, pouco escolhida, mas abundante.

O carrinho do principezinho e o landau de Marcel tinham passado junto à relva cortada em lindos atalhos e canteiros que conduzem ao lago, porque esta parte do pitoresco vale, está disposta em jardim inglês.

As duas carruagens estavam quase por debaixo de Júlio Leroux, que bastou inclinar-se sobre a balaustrada rústica do seu gabinete, e afastar as vinhas virgens, para ver os adversários e as testemunhas.

Durante a semana e de manhã cedo, o sítio de que se trata está por tal forma deserto, que a chegada de uma equipagem a quartos, e de uma outra menos luxuosa, mas boa também, a ninguém tinha surpreendido, além dos moços do hotel.

Os dois grupos, separados por uma distância de vinte e cinco ou trinta passos, puseram-se em movimento.

Heitor, cujas testemunhas tinham designado o local do duelo, ia na frente com o Visconde de Cussy e o Barão Couraud.

Tomaram à esquerda pela calçada arenosa situada entre o lago e uma propriedade particular, e seguiram-na até à encosta que forma, por assim dizer, o pano de fundo.

Chegados ali voltaram para a direita, circundaram um prado cheio de arvoredo, e velado de distância em distância por maciços de verdura.

Mesmo fronteiro ao castelo de cartas, onde almoçara Júlio Leroux pararam, e logo se lhes reuniram Marcel Laugier e as suas testemunhas.

Os dois grupos, que se tinham cumprimentado ao apearem-se da carruagem, aproximaram-se.

— Vejam, meus senhores, disse o visconde sorrindo, o local não foi mal escolhido. Um bonito sítio, bom terreno, nem poeira, nem lama, uma alta cortina de verdura que abriga do sol. Enfim, creio eu, salva melhor opinião, que era possível procurar por muito tempo sem encontrar melhor.

— Ninguém, naturalmente, foi de contrária opinião. Sortearam as espadas, atirando ao ar uma moeda de sete francos. O acaso, favorável a Marcel, decidiu que se serviriam as armas trazidas por ele.

Heitor fez um gesto de indiferença.

Mostrava-se realmente muito espadachim o principezinho. Ao ver a sua fisionomia descuidada, e os modos desembaraçados, ninguém julgava que ia bater-se pela primeira vez na sua vida.

Os dois adversários despiram os seus casacos e puseram-se em guarda a distância do comprimento de uma espada.

Quase da mesma idade, e quase da mesma estatura, eram ambos muito agradáveis, mas de tipos absolutamente dessemelhantes.

O rosto um pouco magro de Marcel, as suas formas esbeltas e nervosas, de uma perfeita correção, anunciavam uma força pouco comum, e uma energia pouco vulgar.

Heitor, era igualmente elegante, de feições porém menos acentuadas, de linhas mais arredondadas, mais graciosas, o conjunto era mais feminino, ou se querem, menos masculino.

A expressão era diferente também.

Marcel mostrava-se sério, quase sombrio, como homem que sem razão aceitável, vai matar talvez, ou morrer.

O príncipe sorria, como no princípio de uma partida de prazer.

O seu sossego era além disso igual, e o alegre sangue frio de um, podia lutar com a severa impassibilidade do outro.

Após cinco ou seis segundos de uma imobilidade completa, que os tornava semelhantes a estátuas cujos olhos viviam, e durante os quais eles se espiaram, deram ambos as mesmo tempo um passo a frente, e com um movimento simultâneo cada um deles manejou o ferro.

A maneira firme e de algum modo automática como se realizara aquele movimento, como se estivessem numa sala de armas, de máscaras no rosto, e de floretes inofensivos em punho, provava uma coragem isenta de toda a fraqueza, e permitia prever uma bela luta.

Júlio Leroux, no seu observatório aéreo, deixava esfriar as suas costeletas.

Acabara de tirar da algibeira do seu "pardessus" um binóculo de grande alcance, e assestando-o para os dois rivais, olhava para eles como para um espetáculo, e sem muito mais comoção.

Marcel Laugier era o que se chama um jogador de segunda força.

O jogo extravagante e irregular que tinha aprendido com um velho preboste corso, tornara-o perigoso, mesmo para adversário de força superior à sua. Três duelos felizes provavam excelentemente.

Tinha pulso rijo e braço comprido, e era muito ágil.

O pulso desembaraçado, leve e resistente ao mesmo tempo, e o seu olhar de uma singular fixidez, deviam perturbar um noviço.

Heitor, embora fosse noviço, ainda honra ao mestre.

Sempre despreocupado, sempre risonho, parecia perfeitamente í à vontade; e esperando o ataque sem descobrir o seu jogo, achava-se tão pronto para a parada, como para a resposta.

O combate começou.

Marcel desejoso de castigar severamente o principezinho, cuja absurda provocação o tinha irritado, empregou logo todos os recursos que lhe forneciam a sua agilidade e o seu hábito das armas, sem conseguir tocar Heitor.

A tática deste último era simples.

Querendo, quando não matar o tenente, pelo menos feri-lo gravemente para livrar Lazarine das suas intoleráveis perseguições, empreendia fatigá-lo, e esperava a ocasião de ferir pelo sangue.

Por isso, aproveitando, com uma maravilhosa presença de espírito, as lições recebidas, cobria-se com o seu florete como se fosse um escudo, e parava vitoriosamente os mais rudes ataques.

Marcel, admirado daquela resistência passiva, na qual julgava adivinhar uma armadilha, animava-se, irritava-se cada vez mais, e tornava-se nervoso.

As faces começavam a ruborizar-se; algumas gotas de suor lhe inundavam os cabelos; a respiração sibilando-lhe por entre os dentes serrados traía os movimentos tumultuosos do peito.

Insistia sem resultado; e ao passo que aumentava a cólera vinha a fadiga.

Heitor, não mais comovido do que no momento que o vimos brandir o ferro, continuava a parar sorrindo.

Na disposição de espírito em que se achava Marcel, aquele sorriso contínuo pareceu-lhe uma nova provocação, uma zombaria, um desafio, e esperou-o.

Redobrou de esforços. Agora, um simples ferimento parecia-lhe pouca coisa para a sua vingança. O ferro voltejando como um fogo-fátuo procurava uma passagem para ir direito ao peito do inimigo.

— Heitor, deslumbrado pelo cintilar do ferro durante a centésima parte de um segundo, chegou muito tarde à parede. Uma estocada de Marcel feriu-lhe o braço, produzindo uma ferida do comprimento de muitos centímetros, mas sem penetração.

Por muito leve que fosse aquele ferimento, o sangue correu. A manga da camisa tingiu-se logo de vermelho.

Logo as testemunhas se interpuseram, como era do seu dever, e o combate interrompeu-se.

O cirurgião rasgou a camisa e verificou ao primeiro olhar que a ponta da arma tinha apenas arranhado a superfície da pele.

— A honra está satisfeita, disseram as testemunhas, correu sangue, o negócio deve ficar por aqui.

Quando não fosse por vontade, pelo menos sem grande curso. Marcel consentiria, mas Heitor, cujos motivos conhecemos, sustentou que um duelo terminado por uma arranhadura seria uma mistificação, e insistiu em continuar imediatamente.

As testemunhas cederam, a seu pesar.

As espadas cruzaram-se de novo.

A vista do seu sangue, tinha produzido no filho adotivo de Godefroy a habitual impressão.

Por seu turno, ele ia-se animando.

Compreendia que pouco fora preciso para que a arma do oficial lhe furasse o peito em lugar de lhe arranhar só o braço.

Ora, rico, feliz, julgando-se amado, não queria morrer, e renunciando a imobilizar-se na defesa, tomou o partido de atacar por seu turno.

Oito dias antes, o seu hábil professor tinha-lhe ensinado um golpe bastante curioso e pouco em uso, que tentou por em prática.

Depois de ter executado um falso movimento muito atrevido abaixando a espada, dobrou os joelhos e correu uma estocada a Marcel a quem levemente tocou no ombro.

Mas já a espada de Marcel se tinha abaixado, e o Príncipe lançado para a frente pela violência do seu movimento, espetou-se.

A espada do seu adversário entrou no peito perto da clavícula direita, e a ponta do ferro saiu pelo outro lado, debaixo do ombro.

Heitor soltou um prolongado suspiro, e largando a arma inútil, cambaleou, e estendeu os braços.

Teria caído redondamente no chão, se o Visconde de Cussy e o Barão Couraud não tivessem corrido para o amparar.

— Senhores, disse o amante de Lazarine com uma expressão profundamente triste olhando para a sua espada ensangüentada, estou desesperado por este golpe desgraçado. Fui provocado, e, contudo, Deus o sabe, não queria a morte do senhor de Castel-Vivant. Hão de fazer-me a justiça, senhores, de que procedi como homem de bem.

As testemunhas inclinaram-se em sinal de adesão.

Deitaram na relva o corpo de seu amigo encostando-o a um tronco de árvore. Lívido, desmaiado, com os olhos fechados, Heitor respirava a custo. A cada aspiração uma espuma sangüínea lhe vinha aos lábios.

O cirurgião militar abriu de novo a camisa e examinou a ferida detidamente, abanando a cabeça com um ar que não significava nada de bom.

— Então? perguntou Marcel cuja ansiedade durante o exame custava a ver.

— Ou muito me engano, redarguiu o médico, ou este pobre rapaz está perdido, e julgo não me enganar.

 

DESENLACE

— Perdido! repetiu Marcel aterrado. O que! Não há probabilidade alguma?

— Receio muito, respondeu o médico.

— Mas o senhor vai tentar pelo menos lutar contra a morte?

— Vou sangrá-lo, o que talvez lhe desembaraçará o pulmão. Não há aqui outra coisa a fazer, e fa-lo-ei para desencargo da minha consciência, sem esperar nada de decisivo.

O cirurgião apertou o braço e picou a veia.

O sangue correu primeiro lentamente e quase gota a gota. traçando um fio vermelho na deslumbrante alvura da pele.

Ao fim de alguns segundos jorrou com mais força.

A opressão do ferido diminuiu. A espuma manchada de vermelho veio menos abundante aos lábios.

Heitor suspirou, mas não abriu os olhos, nem recobrou os sentidos.

— Não está um pouco melhor? perguntou Marcel.

— Está, mas não quereria dar-lhes uma esperança vã. Para que este bem se mantenha, seria preciso que o sangue coalhasse, para evitar a hemorragia interior.

— Seria a salvação?

— Não, mas seria uma trégua. O perigo não desapareceria. Podem dar-se infinitas complicações.

— A ciência as combateria.

— A ciência combate sempre, mas não opera milagres.

— Pode-se transportar o ferido para sua casa, em Paris?

— Com certeza que não! Morreria antes de lá chegar.

— Há ali defronte uma estalagem do outro lado do lago, respondeu Marcel.

— Pois bem, continuou o médico dirigindo-se às testemunhas de Heitor, um dos senhores vá ali àquela estalagem e traga uma padiola, dois colchões e dois homens. Creio que o ferido assim acomodado suportará um tão curto trajeto. A tentativa era indispensável.

— Vou eu lá, disse Marcel, conheço a casa.

E vestindo o colete e o casaco, afastou-se a toda a pressa. O cirurgião prosseguiu:

— Seria necessário prevenir o médico deste desgraçado rapaz. Conhecem o seu médico?

O visconde e o barão responderam negativamente.

— Mas, ajuntou o barão, e senhor não pode continuar a prestar-lhe os seus cuidados?

— É impossível.

— Por que?

— Estava de passagem em Paris; parto esta noite para me reunir ao meu regimento em Vesoul.

A razão era peremptória. O Barão Couraud não resistiu.

Júlio Leroux, armado do seu binóculo de grande alcance, tinha assistido às peripécias e ao desenlace do duelo que pusemos sob os olhos dos nossos leitores.

Viu Marcel Laugier separar-se do grupo que rodeava o corpo inanimado do príncipe, e dirigir-se para o lado do restaurante.

Que ia ele ali buscar?

O ex-banqueiro, cuja curiosidade atingira o seu paroxismo, desceu do alto do castelo de cartas, e achou-se perto dos degraus que conduzem ao lago, no mesmo instante em que Marcel ali chegara.

O pai de Lazarine foi a primeira pessoa que viu o mancebo.

— Por aqui, senhor Leroux! exclamou ele.

— Meu Deus, sim, querido amigo.

— Que estranho acaso?

— Não foi acaso, interrompeu o melhor dos pais, consagro-lhe tão vivo interesse que quis certificar-me o mais cedo possível, de que não lhe tinha sucedido nada de desagradável.

— Ah! querido senhor, sou digno de lástima.

— Não muito, parece-me, porque se saiu do conflito sem uma arranhadura.

— Queria antes cem vezes ser ferido, mesmo gravemente, do que matar o meu adversário!

O Príncipe morreu? perguntou Júlio Leroux.

— Ainda não, mas o cirurgião não espera salvá-lo.

— Pior! É pena, na idade do Príncipe, e tão rico! Mais de um milhão de rendimento! Não há de estar muito à sua vontade num esquife de seis pés, o pobre rapaz! Decididamente o homem pouco sabe. Tornamo-nos filósofos em presença das leis do destino! O que vem buscar aqui?

Marcel explicou-se rapidamente.

— Muito bem, prosseguiu o ex-banqueiro. Há de se lhe lar isso, e entretanto farei preparar o quarto. Estaria muito bem aqui, se por acaso escapasse, o pequeno Castel-Vivant, bom ar e bonita vista, mas depois do que me disse há pouco, é preciso não contar com isso.

E Júlio Leroux repetiu:

— Na sua idade, e tão rico, realmente é pena!

Vinte minutos depois, dois moços do restaurante, munidos de uma padiola improvisada, coberta de colchões, levavam o corpo inerte do ferido, e deitavam aquele corpo, ou aquele cadáver, no leito de um quarto pequeno do terraço.

Fora naquele terraço que algumas semanas antes Marcel se instalara para jantar com Lazarine.

Júlio Leroux tinha acabado o seu grande almoço e pago.

Entrou no quarto, que parecia uma câmara fúnebre, depois de se ter certificado por seus próprios olhos de que o filho adotivo de Godefroy estava muito mal, e, segundo todas as aparências, passaria do desmaio à morte, fez preparar o seu coupé de aluguel e voltou para Paris fumando um excelente charuto, com aquela sua filosofia de que acabava de se regalar.

Parava cinco minutos no café da Cascata, para ativar, pela absorção de um "grog" americano muito quente, a digestão um pouco difícil.

 

Pela uma hora chegava à rua Murillo.

Lazarine esperava-o havia muito tempo, impaciente e febril. Ela viu-o atravessar o pátio, e correndo ao seu encontro até ao vestíbulo, arrastou-o.

— Como vem tarde [exclamou ela.

— Oh! redarguiu Júlio Leroux, é longe Ville d'Avray, para ser transportado por um cavalo estafado.

— Traz-se notícias?

— Naturalmente! Se não fosse para isso, para que nos havíamos de incomodar ambos? Fiquei num dos melhores camarotes para ver bem, e o meu binóculo é excelente. Em primeiro lugar e antes de tudo, para prestar homenagem à verdade, devo dizer que se bateram admiravelmente. Ah! que lindo duelo! Não se desempenharia melhor no teatro! Valentes rapagões ambos. Eram-no pelo menos, porque aí de mim!...

Alguns deles morreu? perguntou Lazarine ofegante de comoção.

— Se não morreu, é como se assim fosse. Condenado pelo cirurgião militar. Condenado sem recurso possível.

— Mas qual, meu Deus? qual?

— Ah! ah! a causa interessa-te. Não te farei impacientar com rodeios e reticências. O que não tem esperança de salvação é Bégourde. Quero dizer, o Príncipe de Castel-Vivant.

A marquesa empalideceu.

— O Príncipe de Castel-Vivant repetiu ria com uma voz surda, diz então que o Príncipe está morto!

— Já o deve estar agora, porque apenas respirava quando parti. A senhora de la Tour-du-Roy levantou-se lívida, com as mãos

agitadas numa espécie de tremor, e com um ímpeto de cólera que Júlio Leroux não esperava, exclamou:

— Marcel Laugier matou o Príncipe! Ah! miserável! E por duas vezes repetiu:

— Miserável! miserável!

— Ah! perguntou o melhor dos pais, decididamente tu amava-o, esse principezinho?

— Quem fala de amor? redarguiu violentamente a Marquesa. O que eu queria era os seus milhões. O que eu queria era o seu titulo. Tinha jurado ser princesa. E no fim de contas, quem sabe? Amava-o talvez. Sim, parece-me agora que o amava. Oh! este Marcel, como eu o odeio! é o meu flagelo aquele homem.

— O que, o teu flagelo? perguntou Júlio Leroux com um ar inteligente. Houve entre ti e ele alguma coisa de muito particular que eu ignore?

Lazarine encolheu os ombros.

— Vai interrogar-me? disse ela. Tenho acaso que lhe dar contas das minhas ações. Deixe-se disso, e conte-me as peripécias do duelo. Viu tudo. Diga-me tudo. Quero saber tudo.

O ex-banqueiro obedeceu logo, e a filha escutou-o com uma atenção feroz, com uma comoção profunda, mas que não tinha, com certeza, nada de terno, porque os olhos ficaram-lhe enxutos, e nenhuma lágrima lhe rolou pelas faces.

Quando terminou a narração, Lazarine disse:

— Com que então, foi preciso deixar o desgraçado Príncipe em Ville d'Avray?

— Não poderia suportar o trajeto e morreria pelo caminho. Deves compreender que ele morrerá do mesmo modo, mas será

pelo menos sem abalo, e o médico terá cumprido o seu dever. Há de trazer-se o corpo para Paris para se lhe fazer o enterro, e há de, ser um bom enterro, se os herdeiros usa em alguma consideração. Mas tem lá herdeiros, esse rapaz sem família, que não dependia de nada nem de ninguém? Os seus milhões irão para o estado.

— E não há uma probabilidade de salvação? redarguiu Lazarine que seguia o seu pensamento sem dar ouvidos à verbosidade do pai.

— Nenhuma. Ouso esperar que Godefroy tomasse as suas precauções como homem sensato, e que continuará a receber a sua renda vitalícia de cem mil francos depois da morte do seu filho adotivo.

A marquesa dizia de si para si:

— Não é possível pensar em tudo. O príncipe amava-me, é fora de dúvida. Se ele tivesse a lembrança de escrever o seu testamento antes do duelo, ter-me-ia deixado a sua fortuna. Esquecida e louca que eu sou.

— E agora, concluiu Júlio Leroux, desempenhei conscienciosamente a minha comissão. Deve estar contente com teu pai, a não suceder que sejam realmente difícil de contentar. Não tenho mais nada a dizer-te, e vou ver Godefroy para o por ao corrente, para saber se está prevenido. Até mais ver, minha bela Marquesa.

— Espere, redarguiu Lazarine. Não tem mais nada a dizer-me, eu porém tenho a noticiar-lhe...

— O que?

— Hoje é dia de más novas. Recebi uma carta de Gordes.

— De Renée?

— Não, de Raul.

— E então?

— A nossa querida Joaninha está muito mal.

— Pobre condessinha! murmurou Júlio Leroux. Palavra de honra, tenho muita pena.

 

CONTINUAÇÃO

Depois de Júlio Leroux se retirar, Lazarine deu ordem para não deixarem entrar ninguém, e triste, silenciosa, com os olhos sempre enxutos, o olhar fixo, deixou-se ficar até à noite deitada numa chaise-longue, num estado que parecia uma prostração completa.

Aparência enganadora!... A senhora de la Tour-du-Roy não era mulher que esmorecesse.

Dentro de sua cabeça inclinada, ribombava uma tempestade, revoltava-se contra a decepção, e a sua raiva, por ser contraída, não era menos terrível...

Colocando-nos no seu ponto de vista, devemos confessar que não houve uma cólera mais legítima.

Falhavam deploravelmente os seus planos mais bem imaginados...

As armas de que queria fazer uso voltavam-se contra ela.

Servia-se de Heitor para se livrar de Marcel, e este, de um golpe, aniquilava não só Heitor, como os projetos de insaciável ambição arquitetados por ela a respeito do filho de Godefroy.

A coroa fechada, os milhões inúmeros, objetos da sua cobiça, não lhos podia dar o cadáver do principezinho.

Só Laugier, o inimigo, o estorvo, o perseguidor, ficava incólume e triunfante em meio destas ruínas.

Que horrível ódio Lazarine não sentia então contra aquele homem! que sonhos de vingança não tinha ela completamente desperta!...

As horas correram, sem que a jovem, toda absorta, desse por isso!

Um pouco antes de anoitecer, mudou repentinamente o curso das suas idéias.

— No fim de contas, coisa nenhuma prova que ele esteja morto! disse ela quase em voz alta.

O médico não tinha esperança alguma, disse meu pai; mas os médicos não são infalíveis. Quantos têm sido condenados pela medicina e escapam. Não confiarei senão em mim. Quero ver.

Nenhum poder humano, teria impedido a senhora de la Tour-du-Roy de realizar o que tinha resolvido, ainda mesmo, e sobretudo, talvez, quando fosse insensato o seu projeto.

Levantou-se da chaise-longue, onde a sua enganadora indolência a retivera por muito tempo imóvel, e fez soar o botão de uma campainha elétrica.

Apareceu um criado.

— Apronta o trem, ordenou ela. Previne o mordomo de que não janto em casa, e manda-me cá Virgínia.

Virgínia era a primeira criada grave.

— Que fato leva a senhora Marquesa? perguntou a criada entrando.

— Um vestido negro muito simples. Janto em casa de meu pai. Ao fim de dez minutos Lazarine estava vestida, e não contente com o véuzinho preso ao chapéu, meteu na algibeira um segundo véu muito espesso e comprido em que se envolvia muitas vezes como numa mantilha espanhola.

Foram preveni-la de que a carruagem esperava.

Desceu.

— Para casa de meu pai, disse ela ao lacaio que fechava a portinhola.

 

Júlio Leroux (que se tinha tornado completamente rapaz desde que a instalação de Renée no palácio de Gordes parecia definitiva), não morava no hotel.

Tinha alugado e mobiliado uma pequena sobreloja num grande e bonito prédio que tinha o n.° 17 no "boulevard" da Magdalena.

Ao fim de cinco minutos a carruagem estava à porta.

— É preciso esperar pela senhora Marquesa? perguntou o lacaio,

— Não.

— A que horas é necessário voltar, senhora Marquesa?

— À meia-noite, se quiser regressar mais cedo, meu pai me acompanhará.

E Lazarine entrou na escada, não para subir a casa de Júlio Leroux, provavelmente ausente, mas para dar tempo aos criados para se afastarem.

Ao fim de um instante tornou a sair. A carruagem tinha partido.

Anoitecia. O gás iluminava as lojas e cintilava nos candelabros municipais em toda a linha dos "boulevards".

A Marquesa queria realizar uma louca expedição, mas não queria confiar-se à discrição absoluta do primeiro cocheiro.

Atravessou a rua e dirigiu-se ao escritório de uma grande administração da rua Basse-du-Rempart.

— Que deseja, minha senhora? perguntou-lhe o empregado.

— Um coupé, puxado por um bom cavalo, para me conduzir a Ville-d'Avray, e reconduzir-me antes da meia-noite.

— Ville-d'Avray e regresso, a corrida é grande, importará em cinqüenta francos.

Depois, como uma mulher só e desconhecida inspira fatalmente alguma desconfiança aos alugadores de trens, o empregado continuou:

— Cinqüenta francos pagos adiantados.

A Marquesa puxou do seu "porte-monaie".

— Aqui estão três luizes, disse ela, a diferença é para o cocheiro. Há de me dar um homem seguro, sim?

— A senhora pode ficar descansada. Queira sentar-se enquanto se mete o cavalo ao trem.

Meia hora depois, o coupé, a toda a brida, transpunha a ponte de Suresnes, e metia a passo pela interminável subida.

O tempo estava sereno, mas sombrio. Nenhuma claridade vinha do céu. Só as lanternas do trem iluminavam a estrada com um clarão trêmulo, e sem o qual seria difícil ao cocheiro manter-se em bom caminho.

Esta corrida noturna numa solidão absoluta, no meio de um profundo silêncio; esta corrida empreendida para verificar de visu a morte de um homem ferido pela manhã, era muito triste.

Lazarine sentia o coração oprimido, e ainda que não fosse supersticiosa, não tentava lutar contra os pressentimentos funestos que a assaltavam. Quase que tinha medo.

Foi ainda pior quando a carruagem rodou silenciosamente por entre os taludes muito elevados que cercam as matas Villeneuve-1'Étang. As ramadas das árvores seculares juntando-se quase por cima da estrada, tornavam a escuridão ainda maior. A carruagem parecia penetrar no interior de uma mina. Quando um raio de luz das lanternas iluminava os postes colocados de distância em distância, esses postes pareciam espectros estendendo os seus braços descarnados para algum sítio sinistro.

A Marquesa julgava então ver o principezinho com o peito furado, ensangüentado, sustentando-se a custo. Julgava ouvi-lo balbuciar com uma voz extinta:

"— Morro, Lazarine... e é por tua causa!

Finalmente o coupé chegou à comprida rua de Ville d'Avray, e as alucinações, filhas das trevas, desvaneceram-se; não porque a rua fosse muito concorrida e estivesse muito iluminada, mas aqui e acolá ouvia-se o ruído das vozes que saiam das tabernas, de portas fechadas, e raros transeuntes circulavam ao longo das casas.

Eram quase nove horas da noite; aquela hora os arrabaldes de Paris dormem.

Inclinada à portinhola, a senhora de la Tour-du-Roy esforçava-se por conhecer a casa aonde só fora uma vez.

Ao passar em frente da ruazinha que desce para o lago despertaram-se-lhe as suas recordações. Um coupé particular estacionado perto da porta de uma estalagem, deu-lhe quase a certeza de que se enganava.

— Deve ser a carruagem de um médico, disse ela de si para si, mandando parar.

O cocheiro fez alto.

A jovem ocultou o rosto nas pregas do véu espesso que por prudência tinha levado, apeou-se e empurrou uma porta meio cerrada, além da qual muitas pessoas conversavam muito vivamente.

Achou-se numa sala muito vasta guarnecida de muitas mesas e que servia café.

Meia dúzia de fregueses bebiam cerveja, fumavam e conversavam a respeito do dramático sucesso da manhã.

A entrada de Lazarine, a elegância de sua figura, a riqueza de seu vestido preto que ela julgava muito simples ,o véu que lhe servia de máscara, causaram sensação.

Todos os olhares se voltaram para ela, e o mais completo silêncio sucedeu sem transição aos mais animados diálogos.

O dono da casa avançou:

Que deseja, minha senhora? perguntou ele com a interessada atenção de um homem possuidor de um triplo estabelecimento, estalagem e café do lado da rua, restaurante do lado do lago.

A Marquesa respondeu, fazendo esta pergunta:

— O mancebo ferido em duelo está em sua casa. não é verdade, senhor?

— Sim, minha senhora. O senhor Príncipe, porque ele é príncipe, esta em minha casa.

— Vive ainda? murmurou Lazarine com a voz alterada.

— Há bocado ainda vivia, mas não passará da noite. O seu criado grave, que há pouco está aqui, dizia-me ao jantar que com certeza lhe seria preciso procurar amanhã outro lugar. Acaba de chegar um médico de Paris, um famoso médico, e é o terceiro de hoje. A sua carruagem está à porta.

— Desejava ver o ferido, redarguiu a Marquesa. É possível?

— Por que não? se o médico não se opuser, bem entendido? Vou conduzir a senhora, e falaremos ao criado.

O estalajadeiro botequineiro pegou num candieiro de cobre, guiou a jovem pelos estreitos corredores, fez-lhe atravessar um jardinzinho, porque os quartos do terraço, especialmente os destinados aos parisienses ricos, ficam na parte mais elevada do castelo de cartas que domina o lago, e depois de ter subido adiante dela as excelentes escadas, parou à porta de uma antecâmara não mobiliada, e bateu devagarinho.

Um criado muito empertigado, com bigodes de gentleman e aparência de reposteiro, apareceu logo.

— Que deseja? perguntou ele com voz baixa.

— Eu, nada, respondeu o estalajadeiro, mas está aqui uma senhora que desejava visitar seu amo.

O criado olhou para Lazarine espantado.

O rosto da jovem ocultava-se no véu, mas a aparência era a de uma mulher distinta, não se enganou, por isso disse num tom respeitoso:

— A senhora conhece o Príncipe?

— Sim, murmurou a Marquesa.

— A senhora sabe que o senhor não pode ouvir nem falar?

— Não penso em falar ao Príncipe, mas se ele tem de morrer, o que Deus não queira, desejava vê-lo uma última vez.

— Não posso tomar a responsabilidade de introduzir a senhora, porque não sou eu só que estou junto de meu amo, mas vou prevenir o médico, e se ele consentir, poderá a senhora vê-lo.

— Faça isso, disse Lazarine metendo um luís na mão do criado, vá depressa. Eu espero.

— É uma namorada do senhor, disse de si para si o criado ao sair da antecâmara, mas não é uma cocote, por isso respondo eu... ela nunca foi a nossa casa.

Após um minuto apareceu:

— Pode entrar, disse ele.

 

O MORIBUNDO

Lazarine entrou.

O criado saiu discretamente e fechou a porta após si, deixando a jovem com o ferido e o médico.

O quarto onde a senhora de la Tour-du-Roy acabava de entrar, era estreito e baixo, e muito inferior.

Um velho papel cinzento, semeado de arabescos, em tempo, azuis, revestia as paredes. Cortinas de algodão branco, bordadas de um galão de lã azul desbotado, enquadravam o seu leito de mogno à moda de 1830.

Uma cômoda, um toucador, uma pequena mesa de cabeceira, dois fauteuils e uma cadeira constituíam a mobília.

No fogão, fazendo as vezes de relógio, estava uma estatueta de gesso bronzeado entre dois ramos de flores artificiais numa redoma.

Tapete não havia, apenas junto da cama estava um capacho já muito gasto que servia para descansar os pés.

Fronteira à porta da entrada havia uma larga porta-janela que comunicava com o terraço onde os pares amorosos iam jantar.

Duas velas davam àquele quarto um clarão insuficiente e sinistro.

Em lugar de caminhar para a frente, Lazarine parou: abraçou com um só olhar os objetos que acabamos de descrever, em seguida olhou para o leito.

Heitor, deitado de costas, parecia mais um cadáver, do que um homem vivo.

A cabeça enterrava-se-lhe no travesseiro. O rosto estava lívido. As longas pestanas das suas pálpebras cerradas ensombravam as faces. A boca entreaberta como a de um cadáver, deixava ver os dentes brancos.

Os lençóis estavam tintos de sangue no sítio do peito, do qual se soltava de quando em quando um suspiro imperceptível.

O médico, novo ainda e já célebre, sentado à cabeceira e tateando o pulso direito do moribundo, apoiava dois dos seus dedos na veia.

Levantou-se para cumprimentar a Marquesa, que respondeu com um leve movimento de cabeça.

Lazarine não obstante ser dificilmente impressionável e pouco sensível, não pode subtrair-se a uma pungente comoção nervosa em presença do lúgubre espetáculo que se lhe deparava. Todo o seu corpo estremeceu, as lágrimas correram, as mãos juntaram-se-lhe num gesto de compaixão dolorosa.

— Ela ama-o! disse consigo o doutor. Pobre mulher!

E, tomado de piedade, pela dor muda e profunda que julgava adivinhar, dirigiu-se à Marquesa:

— Coragem, minha senhora, murmurou-lhe ao ouvido em voz baixa e suave. Compreendo que um motivo muito diferente da curiosidade a conduz aqui, e não quis recusar-lhe a entrada neste quarto. Seja forte, suplico-lhe.

Bastou o som daquela voz que lhe falava, para que a Marquesa voltasse a si e mostrasse o seu verdadeiro gênio.

Dominando-se logo, ou antes repelindo a sua comoção, respondeu:

— Serei forte, senhor, mas é profundamente triste ver esta brilhante existência extingüir-se.

— Isso é muito verdade, minha senhora.

— E não há esperanças de o salvar?

O médico fez um sinal negativo.

— Decididamente, insistiu a senhora de la Tour-du-Roy, está condenando sem remissão?

O médico fez um novo sinal afirmativo.

— Estão esgotados todos os recursos?

— E tentados todos os meios, minha senhora. A ciência chegou até onde pôde chegar. Só a natureza poderia auxiliar-nos, mas o mal é gravíssimo, e receio muito que o auxílio venha tarde...

— O príncipe sofre muito?

— Não, minha senhora... Nenhuma sensação, de qualquer natureza que seja, o agita neste momento...

— Está desmaiado?

— Dorme...

— Poderá ouvir-nos?

— De certo, se levantarmos a voz.

— E compreender-nos-á?

— Creio que não... posso afirmar que não...

— Virá próximo o momento supremo.

— Se o príncipe resistir esta noite, ficarei imensamente surpreendido.

Despertará antes... antes de adormecer de todo e para sempre?

— É provável, ou antes o mais certo... Quando entrou, tomava-lhe o pulso... As pulsações, a princípio muito débeis, multiplicavam-se de minuto a minuto... A febre chegava... A intensidade da febre acordá-lo-á...

— E o Príncipe ficará em estado de conhecer e compreender?

— Duvido, porque o delírio acompanhará a febre que chega, e o delírio que se aproxima...

Heitor soltava murmúrios inarticulados; e a cabeça imóvel até então agitava-se, rolava no travesseiro.

O médico tomou um dos castiçais e acercou-se do leito.

Lazarine seguiu-o.

O rosto do ferido perdera os tons lívidos de cadáver. Substituíra-se a palidez por um roxo sombrio.

As pálpebras, úmidas, inchadas, tremulavam, mas não se levantavam, denotando que o Príncipe fazia inúteis esforços para os abrir. A alteração das feições exprimiam a angústia. Um estremecimento contínuo percorria-lhe a linha arqueada dos lábios. Os dentes rangiam.

A Marquesa sentiu-se repassada de frio e empalideceu através do véu.

— Ah! murmurou ela, é horrível!

— A senhora permite-me que lhe dê um conselho acertado? perguntou o médico.

— Escutarei com atenção, senhor.

— E cumpri-lo-á?

— Talvez...

— Bem, é uma esperança que me dá nesse talvez; retire-se, minha senhora.

— Por que?

— Porque a agonia começará de um momento, para outro e pode ser aflitíssima...

— Sou forte e animosa, doutor, replicou Lazarine; desejo ficar até ao fim... Ficarei...

— Resigno-me à sua vontade.

A Marquesa de la Tour-du-Roy chegou uma cadeira para junto do leito e sentou-se.

O médico monologava baixinho:

— Quem é esta estranha e gentil criatura, e que vem procurar Aqui? Há pouco iludia-me, julgando-a enamorada e loucamente desesperada... A sua comoção durou apenas um minuto... Nem um movimento para beijar as mãos desfalecidas daquele que está prestes a expirar... Não há amor no seu coração, nem lágrimas nos seus olhos... Que pretende esta mulher! Qual o fim que a impulsiona a afrontar este trágico espetáculo?... A curiosidade não basta... Há outro sentimento qualquer... Qual?

E o médico não lograva responder às suas próprias interrogações.

Muda, concentrada, as mãos crispadas, cruzadas sobre os joelhos, os olhos fitos no rosto desfigurado de Heitor, Lazarine repetia:

— Com o seu último suspiro fogem os meus sonhos... Marcel, matando Heitor, roubou-me os milhões e o título de princesa!... Ah! Marcel, Marcel, que terrível ajuste de contas entre nós!...

Estabeleceu-se longo silêncio na triste e mal iluminada alcova. unicamente interrompido por débeis gemidos, ou antes pelos murmúrios inarticulados que se exalavam dos lábios arrefecidos do moribundo.

O Príncipe moveu-se francamente, depois, quase de repente, à maneira do homem que desperta de sobressalto, levanta-se sobre os cotovelos, percorreu o âmbito da alcova com os olhos largamente abertos, abrindo-os e fechando-os com as oscilações das luzes, e balbuciou com a voz rouca, sibilante, e dolorosamente entrecortada:

— É dia claro... o sol está ardente... Por que me deixaram dormir tanto tempo? Esqueceram-se das minhas ordens... O criado fica despedido... rua! rua! D'aqui a Ville d'Avray é longe... muito longe... e eu queria ser o primeiro a chegar!...

É uma vergonha, a estas horas!... O que se dirá do brio do meu nome?! Depressa, depressa; depressa... Eu guiarei o carro... verão como desbanco os mestraços... Se a Marquesa que vê passar, ela dirá consigo: O principezinho tem muito bom. gosto! Que lindo carro!...

Heitor interrompeu-se.

Estava extenuado, respirava com dificuldade, as palavras saíam lentamente uma a uma.

Ao cabo de alguns segundos o êxtase, uma espécie de contemplação mística, de visão, de ideal ignoto, imprimiu-lhe nas feições um sorriso de doçura.

Os lábios agitaram-se e murmurou com inflexão apaixonada:

— Sinto ainda os seus lábios sobre a fronte, e o perfume de seus cabelos embriagar-me!... Oh! sim, sim, voltarei vencedor... Sim, hei de matar o covarde que persegue a minha bem amada, que pretende interpor-se entre nós... Hei de matá-lo; a Marquesa ficará contente e satisfeita, e terá a prova de quanto a adoro...

Novo silêncio. Os lábios do moribundo continuaram a agitar-se, sem articularem um som.

O médico inclinou-se sobre o ouvido de Lazarine:

— Ouviu, minha senhora? perguntou ele.

— Perfeitamente.

— Talvez conheça a mulher de que fala o Príncipe?

— Conheço, conheço muito bem...

— Se ela o ama, é amada, deve sofrer cruelmente... Porque mandaria ela o seu amante ao encontro de uma fatalidade quase certa?

— Senhor, replicou Lazarine, o Príncipe não era amante dessa senhora... a causa que ele intentou defender, era uma causa justa... E quem lhe diz que essa mulher não sofre muito?...

O médico pensou:

— É ela! Mas nesta mulher não há alma nem coração! Heitor, levando a mão à parte superior do peito, um pouco abaixo do ombro, gritou de repente:

— Como é dolorosa esta queimadura!... Parece que me atravessaram a carne com um ferro em brasa... Para que me fazem tanto mal?

— Não compreendo...

Depois fugiu-lhe dos lábios um grito agudíssimo e arquejante, o rosto desfigurado, continuou, enquanto que uma espécie de estertor lhe entrecortava as palavras:

—É uma espada, uma espada cor de fogo e de sangue!... Nasce do chão e vem subindo, quase me chega ao peito... Cá está! cá está embebe-me na carne e caminha para o coração... Arranquem este bocado de ferro... tirem-no depressa... por piedade, senão atravessa-me o coração, e depois não me pode salvar... Tortura-me, abrasa-me. mata-me... Ai, que dor!... Acudam-me... morro!...

Sobreveio um delírio furioso, terrível. O Príncipe, apesar dos esforços do médico, que tentava dominá-lo, erguendo-se, esbracejou, debateu-se, soltando gritos abafados, roucos, querendo arrancar a ponta da espada que ele julgava ver e sentir penetrar-lhe no peito. Nesta espantosa luta com as suas próprias forças e contra o doutor os curativos colocados sobre a ferida saltaram violentamente.

Dois largos fios vermelhos espalharam-se pelo peito correu do para as roupas, e uma espuma sangüínea borbulhou nos lábios contraídos...

Heitor estorceu os braços retesados, e depois caiu de chofre sobre a cama, batendo com a cabeça na cabeceira do leito...

— Retire-se minha senhora, retire-se! exclamou o médico; são os últimos momentos!...

Lazarine escondeu o rosto entre as mãos e fugiu horrorizada...

 

CONTINUAÇÃO DO ANTERIOR

A senhora de la Tour-du-Roy, louca de terror, enfiou por aquele corredor sombrio e escuro, que pouco tempo antes percorrera acompanhada do estalajadeiro, e deveu ao acaso não se perder num dédalo de quartos e escadas, porque não cuidou orientar-se.

A sua única preocupação era sair daquela casa sinistra onde o Príncipe agonizava.

Atravessou o pequeno jardim, entrou na sala que servia de café, e sem responder às perguntas do dono do restaurante acerca do estado do ferido, saiu, correu para a carruagem e gritou ao cocheiro:

— A Paris... depressa! depressa...

O coupé gastara duas horas para chegar a Ville d'Avray, mas desceu a trote a estrada de Montretout, e o regresso efetuou-se em hora e meia.

Lazarine esteve apenas maia hora à cabeceira do moribundo.

A duração total da excursão noturna não excedeu quatro horas, e a carruagem entrou na praça da Estrela antes da meia-noite.

Durante o trajeto, a Marquesa. — é inútil dizê-lo — recuperou todo o sangue frio abalado.

O cocheiro parou ao pé do Arco do Triunfo.

— Para onde, minha senhora? perguntou ele.

— Boulevard de Magdalena, 17, replicou a Marquesa. Desceu em frente do número indicado e informou-se.

Júlio Leroux ainda não tinha voltado; prevendo maior demora, a Marquesa fez-se transportar a um dos grandes clubs de que seu pai era sócio.

Aí informou-se novamente:

— Sim minha senhora, replicou um dos criados, o senhor Leroux está na sala do bilhar...

— Queira preveni-lo de que uma senhora lhe deseja falar, e que o espera na carruagem...

O criado educado na alta escola da descrição, dissimulou um sorriso que lhe veio aos lábios, e com gesto grave e digno, desempenhou-se da missão de que o encarregou a Marquesa.

Cinco minutos depois, a cabeça do ex-banqueiro aparecia à portinhola do coupé.

— És tu, Tatá? perguntou ele.

— Não, papai, não é Tatá! replicou Lazarine.

— Como! exclamou ele surpreendido pelo timbre da voz, és tu!

— Sim, papai.

— Que me queres, minha pequerrucha?

— Pode dar-me meia hora de palestra?

— Perfeitamente! Só à meia noite é que me esperam...

— Em casa da Tatá?

— Curiosa!

— Tenho que falar-lhe... Suba, e mande o cocheiro para a rua Murillo... Depois, aproveita e segue para o seu destino...

Júlio Leroux, muito intrigado, obedeceu passivamente.

— Que tens a dizer-me, marquesita? começou ele apenas o coupé entrou em movimento.

— Amanhã de manhã cedo retiro-me de Paris.

— Por muito tempo?

— A Orleans, e depois à Tour-du-Roy.

— Que diabo vais fazer à Tour-du-Roy?

— As notícias de Gordes inquietaram-me... Joana cada vez vai para pior... Desejo ver minha irmã, e ficar o mais próximo de Gordes...

— Se é isso, fazes bem!... Fazes muito bem; é admirável! Aprovo plenamente a tua idéia, e quereria imitar o teu exemplo... Infelizmente, nesta ocasião, tenho de tratar de negócios importantíssimos, de que não posso levantar mão, porém, se acontecer que a doença da minha pobre Joaninha se torne mais grave, escreve-me... Irei imediatamente...

— Sim, papai...

— Esperemos que não seja coisa de maior cuidado... Na idade da condessita, é a natureza quem oferece os melhores recursos... Tem-se vistos milagres assombrosos... Tens tu outros motivos que te obriguem a sair de Paris?...

— Que outro motivo posso ter? — A propósito, papai, o Príncipe morreu...

— Sempre o esperei... Coitado, pobre rapaz... Deus lhe fale n’alma. Quando morreu?

— Há duas horas...

— Como sabes isso?

— Ver e crer como diz o santo... Venho de Ville d'Avray

— Sozinha! alta noite! que loucura!... Decididamente sempre tinhas por ele o teu bocadinho de amor... Pobre Príncipe! Compreendo, compreendo perfeitamente... E valia a pena, porque o rapaz era rico... Com que então viste-o morrer?

— Vi... com uma agonia horrível...

— Bonito espetáculo para uma mulher! Aposto que não te reconheceu?

— Levava um espesso véu no rosto... Impossível!

— Fizestes bem, é bom acautelar-nos dos curiosos. — Quando saí da tua casa, passei pela de Godefroy e subi. Ele é finório, dispôs as coisas de modo que nada tem a perder com o falecimento do filho adotivo... Não obstante, a catástrofe pareceu afligi-lo enormemente... O príncipe tem um coração muito sensível, um coração de pomba, eu que o diga!...

O coupé parou em frente do portão do palacete.

— Chegamos sem novidade, continuou Júlio Leroux bocejando. Agora, deixo-te.

— Não. Dê-me o braço. Quero que o vejam...

— Basta... não é preciso mais, sou bom entendedor.

O melhor dos pais deu o braço à filha, subiu a escada atapetada, parou no grande vestíbulo, abraçou-a, encarregou-a de transmitir muitas ternuras para a Condessa de Gordes, recomendando-lhe que lhe escrevesse sem demora para o sossegar quanto ao estado da querida doente, e dar-lhe freqüentes notícias suas; e tendo assim salvaguardado as aparências, voltou para a carruagem e desceu ao café inglês, onde devia cear com Tatá e algumas outras damas de relações fáceis e agradáveis.

Lazarine seguiu logo para os seus aposentos, onde a esperava uma das criadas graves.

— Tem algumas ordens a dar, minha senhora? perguntou ela despindo a Marquesa.

A gentil viúva não tinha jantado e morria de debilidade; respondeu demonstrando apetite:

— Sirva-me alguma coisa...

— É preciso chamar o cozinheiro?

— Não, é inútil... Traga o que encontrar, qualquer coisa me basta...

Lazarine sempre cautelosa, desviava qualquer suspeita, declarando que se contentava com pouco.

De um jantar expressamente para ela, e que não fora servido pelos motivos que sabemos, não restava coisa nenhuma. A criada voltou um pouco confusa, trazendo numa bandeja, biscoitos, alguns bolos finos, e uma garrafa de Bordeaux.

— Não é preciso mais... disse Lazarine.

— A senhora quer que fique para a acompanhar?

— Sim. Volta daqui a um quarto de hora.

Depois de calar as exigências do estômago com a frugal refeição que lhe serviram, a Marquesa sentou-se à pequenina mesa que lhe servia de secretária, e escreveu o texto de um telegrama dirigido ao mordomo do solar de Gordes, ordenando-lhe que mandasse uma carruagem à estação e Orleans, à chegada do comboio do meio dia e quarenta e três minutos.

Depunha a pena quando a criada entrou.

— Amanhã, levante-se cedo, e mande levar este telegrama ao telégrafo, disse Lazarine. Venha acordar-me às sete e meia. Almoço às nove menos um quarto, uma costela, perdiz grelhada e omelete, coupé deve estar pronto às nove horas e um quarto. Vou passar alguns dias à Tour-du-Roy. Levo apenas o necessário. Prepare-se para me acompanhar, prevenindo a ama que se arranje, e ao menino, para também me acompanhar.

— Sim, minha senhora.

— Bem, pode retirar-se, e não esqueça o que lhe recomendo. A criada saiu.

— Estou morta de fadiga, pensou Lazarine quando ficou só; e contudo preciso escrever a esse homem execrável, que preciso endoidecer de todo para que a vingança seja possível...

A vingança! Como me vingarei?...

— Não sei, mas hei de vingar-me, juro. E a Marquesa traçou estas linhas:

"Perdoe-me, meu amigo, se me ausento de Paris sem o prevenir... Tenho a melhor de todas as desculpas para me justificar. Há duas horas ignorava ainda que esta viagem estivesse tão próxima... Triste viagem... Oh! sim, bem triste!...

"Acabo de receber um telegrama de meu cunhado. Minha irmã a condessinha, está gravemente enferma e receia-se pela sua existência... A pobre criança quer ver-me... Compreende de certo que o meu lugar é à cabeceira daquele anjo... Parto sem demora...

"É necessário dizer-lhe que, pelo fato de me ausentar sem primeiro o ver, levo além da minha profunda e dolorosa consternação, uma viva tristeza na alma!...

"Que tempo durará a minha ausência? Ignoro; prouvera a Deus que soubesse dizê-lo! A duração depende do restabelecimento mais ou menos rápido de minha irmã, ou de uma catástrofe que me recuso a acreditar... porque seria horrível...

"Escreva-me; escreva-me sempre, todos os dias... Não me atrevo a prometer-lhe que lhe responderei com pontualidade, no meio dos cuidados que me sobressaltam, mas não se inquiete com o meu silêncio, e lembre-se de que o meu pensamento está com o seu espírito...

"Meu pai acaba de dizer-me que o meu amiguinho se bateu esta manhã em duelo por uma causa demasiadamente insignificante... Graças a Deus, por ter saído a salvo desse odioso encontro, e deixe-me repreende-lo severamente por ter tido a loucura de arriscar a vida, que não é exclusivamente sua...

"Desta vez serei indulgente, perdôo-lhe, perdôo-lhe, mas não abuse.

"Fica expressamente proibido de ter duelos para o futuro! Se transgredir, recuso-lhe a minha bondade, e serei implacável, não o perdoarei..."

— Nem tudo é mentira nesta carta, murmurou a Marquesa terminando, o meu pensamento está contigo, Marcel Laugier! O meu pensamento seguir-te-á como uma sombra até soar a hora da vingança! Não queiras ver-me muito cedo, assassino do Príncipe Heitor, porque até o dia em que nos tornarmos a encontrar, terei o que procuro; e a tua vida correrá perigo!

Lazarine recolheu-se, e dormiu um mau sono, povoado de visões funestas...

Sonhou que estava vendo Heitor, estorcendo-se nas convulsões da agonia, e debalde nos seus sonhos tentava fugir do hediondo espetáculo como tinha fugido da realidade. Despertava banhada em suores frios, mas os olhos cerravam-se-lhe, e o implacável pesadelo empolgava a sua vítima e de novo a torturava.

Enfim, os primeiros arrebóis da madrugada coloriam o céu, e os fantasmas da noite desapareceram com as trevas.

A criada entrou na alcova às sete horas e meia, cumprindo a ordem dada de véspera, e achou a Marquesa de pé.

— Esta carta imediatamente para o correio, ordenou Lazarine, passando-lhe a carta endereçada a Marcel Laugier.

Às dez horas e dez minutos, a Marquesa, a criada, e a ama normanda, levando nos braços o pequenino Raul, subiam para um vagão reservado.

Ao meio-dia e quarenta e três minutos, um carro tirado por boa parelha castanha transportava a viúva do Marquês Roberto e a sua comitiva para o solar de la Tour-du-Roy.

Era num dos belos dias de outono, nos últimos dias que a clemência do céu concede à natureza, que os frios do inverno vão em breve tornar triste e melancólica.

O sol ainda tépido brilhava no espaço, suavizado por uma bruma transparente.

Os campos despojados da colheita, ofereciam ao olhar o seio da terra rica e ubérrima, repousando da atividade e fecundidade da produção.

Rebanhos de carneiros pascentavam nas ervagens, nos valados, e matizavam de grupos irrequietos as extensas várzeas.

Tudo, neste agreste quadro, respirava a paz e tranqüilidade.

Lazarine não sentia nem a influência nem a atmosfera rural. Reclinada indolentemente sobre as almofadas, no fundo do caleche, pensava, e os seus negros pensamentos tinham o ódio por incentivo e a vingança por objetivo. O seu espírito voava no espaço das conjecturas ardentes, e repetia incessantemente, no segredo da sua consciência:

— Como há de pagar este homem, cento por cento o mal que me fez! como hei de libertar-me deste inimigo? como desfazer-me aniquilar este objeto que se chama Marcel Laugier? O enigma continuava insolúvel.

O postilhão estalegava o chicote estimulando os cavalos, e estes corriam velozes no largo leito da estrada espalhando no ar o retinido agitado dos guizos que enfeitavam os arreios. A carruagem subiu rápida uma ladeira do cimo da qual se avistava, num amplo círculo azulado, a aldeia de la Tour-du-Roy, o castelo e o parque.

Este panorama encantador, desviando bruscamente o curso das idéias de Lazarine, emergiu-a na melancolia de uma meditação que tinha o que quer que fosse de sombrio e taciturno.

Os fatos acontecidos desde a época em que pela primeira vez, tinha, na flor da sua mocidade gentil, transposto os largos e soberbos pórticos do solar de la Tour-du-Roy, acudiam-lhe à imaginação.

Como um imenso quadro fotográfico, desenrolava-se-lhe na memória todo o passado...

Ficou como que surpreendida dos extraordinários acasos do destino que bordaram os tecidos da sua vida, ela, parisiense amiga da indolência, excêntrica, mesmo com uns laivos de loucura, nascida para o luxo e para a dissipação, e arremessada do casamento para um meio trágico, para o revoltoso oceano de graves acontecimentos.

— Três homens me amaram, dizia ela, o Marquês, o Príncipe, Marcel... Os dois primeiros morreram de morte violenta, e a vida do terceiro está talvez, presa por um fio... Sem mim, Raul de Gordes ignoraria a existência de Joana... Não a conheceria se não fosse eu... Amou-a, deu-lhe o lugar de esposa... e quem sabe se a estas horas está nos céus, pedindo a Deus que perdoe o mal que tenho feito... Decididamente, há em mim quer que seja de fatal, que comunica a desgraça a todos que me cercam...

Lazarine pensava estas coisas quando o caleche parou no majestoso pátio interior do castelo, em frente da escada monumental que dava ingresso aos terraços e ao vestíbulo.

O grave e circunspecto Domingos, aquele velho atencioso, nosso conhecido, esperava a nobre ama e senhora no último degrau.

Depois de repetidas reverências respeitosas e humildes, o velho servo disse num tom solene:

— Sabendo que a senhora Marquesa chegava hoje, tomei a liberdade de mandar esta manhã um picador ao castelo de Gordes, saber novas da senhora Condessa...

— O criado já regressou? perguntou vivamente Lazarine.

— O senhor Conde mandou esta carta para a senhora.

E apresentou à Marquesa uma carta sem sobrescrito nem timbre, e que denotava precipitação de quem a escrevera. A Marquesa tirou com ansiedade a carta que vinha dentro.

Era um bilhete com estas breves palavras escritas a lápis:

"A minha adorada Joana espera-a com impaciência... Venha, minha querida irmã, venha quanto antes... O tempo urge, e peço a Deus que chegue sem demora!

"Raul."

 

A DOENÇA DE JOANA

Chegando a la Tour-du-Roy, a Marquesa sentiu-se fatigada de corpo e alma ,a tal ponto, que depois da leitura do aflitivo bilhete do Conde Raul, não teve forças nem coragem de pôr-se novamente a caminho.

No dia seguinte de manhã, por volta das dez horas, ainda que ressentida do incômodo de uma noite mal dormida, deu ordem para que atrelassem o coupé e partiu para o castelo de Gordes.

Em menos de hora e meia os possantes cavalos venceram os vinte e quatro quilômetros que separavam as duas residências.

Raul confiado na visita da senhora de la Tour-du-Roy, vigiava por uma janela do primeiro pavimento a extensa avenida que conduzia ao castelo.

Quando o trem parou no pátio da casa senhorial. o Conde desceu lentamente para oferecer a mão a Lazarine.

— Seja bem vinda, minha querida irmã, seja bem vinda! disse ele abraçando-a com efusão e ternura... A sua presença é de grande consolação para mim... Queira aceitar o meu braço e venha...

— Para junto de Joana, sim?

— Não, ainda não. Desejo primeiro conversar a sós com a Marquesa... e depois veremos a nossa adorável doentinha...

Lazarine acompanhou Raul a um pequeno gabinete nos seus aposentos reservados.

Sentou-se, e durante alguns minutos o conde esteve de pé em frente dela imóvel, de olhos baixos.

Foi então que a senhora de la Tour-du-Roy pôde contemplá-lo e ficou surpreendida pela alteração que notava nas suas feições desde o dia em que partira do castelo. Aquela figura simpática, apaixonada e sempre bela, apresentava os mesmos traços, mas sob o aspecto de dor e da tristeza.

Em alguns meses, Raul tinha envelhecido oito ou dez anos.

Uma grande ruga atravessava-lhe a fronte.

Um largo círculo de bistre cercava-lhe os olhos encovados onde brilhava o fogo da febre. As rosetas afogueadas das faces destacavam-se fortemente na magreza do seu rosto pálido.

Os cabelos que descreviam a linha ondeada da testa tinham embranquecido. Na sua barba, espessa, bem talhada e correta, misturavam-se uns fios de prata.

Lazarine estudava com visível compaixão os vestígios materiais e palpáveis de uma dessas tristezas que minam surdamente e que matam de uma maneira mais lenta e mais certa do que o veneno, e respeitando o silêncio desolador do cunhado, não ousava ser a primeira a falar.

O senhor de Gordes ergueu a cabeça.

— Querida irmã, disse ele com a voz repassada de lágrimas, sou infeliz, tanto quanto se pode ser... sou muito infeliz...

— Magoa-me imenso a sua dor, creia. Perdeu toda a esperança? Perguntou vivamente a Marquesa.

— Não perderei a esperança senão quando Joana for cadáver... Até então esperarei da misericórdia de Deus o milagre que lhe peço todos os momentos... Mas há horas de tanta aflição, dias de tanta tristeza e desalento, que sou obrigado a dizer à minha pobre alma que toda a esperança é uma loucura...

— Joana é ainda tão nova!

— Ah!... Esta mocidade na sua primavera já não tem forças para fazer recuar a morte! Sabe porque, minha irmã, desejei falar-lhe primeiro do que visse a Condessa?...

— Não, não sei. Suponho porém que fosse para lastimar em silêncio...

— E pedir-lhe que me auxiliasse... Queria pedir-lhe que modificasse a expressão do seu cuidado... que não revelasse a sua dor e o seu assombro... Sim, digo bem, o seu assombro... Quando vir aquela radiosa e bela criança, tão alegre e gentil quando partiu para Paris, parecer-lhe-á agora um fantasma... o espectro da minha adorada Joana...

— Meu Deus! pois chegou a esse estado?

— E a que tristíssimo estado, querida Lazarine!... e compreende, de certo, que o mal que a devora é tanto mais cruel que lhe deixa intacta a inteligência brilhante e viva, e que a expressão do susto que se refletir no seu rosto, far-lhe-á o efeito de uma revelação perigosa

— Tranqüilize-se, conde. Deixar-lhe-ei apenas perceber a minha ternura por ela, e saberei sorri com o coração despedaçado!...

— Fico descansado, confio tanto na sua prudência como na sua bondade... Julguei conveniente adverti-la...

— E fez bem. Joana não suspeita da gravidade da doença?

— Parece ignorar... não ouso afirmar nada de positivo...

— Por que?

— Joana, na sua índole angélica, julga-se talvez perdida, e não quer dar a conhecer-me a sua convicção...

— Que motivos a levariam a dissimular?

— Para não me arrebatar a única esperança que me resta... Para não juntar nova dor à torturante desolação que me devora... Em matéria de sacrifício, de abnegação, de esquecimento de si mesma e de coragem, a adorável criatura é capaz de tudo... A minha doce Joana é um anjo, e os anjos não podem viver no mundo... Deus chama-a para seu lado... Oh! lastime-me, pranteie-me, minha irmã, e chore comigo... Não há sobre a face da terra homem mais desgraçado...

E Raul, sentando-se no sofá, ao lado de Lazarine, escondeu o rosto nas mãos.

Permaneceu alguns minutos sem proferir palavra, mas o movimento convulsivo dos ombros provava o terrível combate, o imenso dilaceramento, de que o seu espírito era teatro.

Enfim os soluços rebentaram, as lágrimas jorraram copiosas como chuva de tempestades, deslizando em líquidos fios por entre os dedos Unidos e rolando para o peito arquejante.

O aspecto deste homem aniquilado que chorava como uma mulher, era o mais lancinante e pungente espetáculo que se poderia contemplar.

Lazarine profundamente e sinceramente comovida, porque amava Joana tanto quanto o seu coração lhe permitia amar, sentia-se desfalecer, e misturou as suas lágrimas com as do Raul.

— Coragem, meu irmão... balbuciou ela após um momento de silêncio, tomando as mãos do Conde e apertando-as entre as suas.

O senhor de Gordes, voltando o rosto úmido e contraído para a Marquesa, respondeu:

— Coragem!... É possível ter coragem quando esta meiga criança que é toda a minha vida, quando este anjo a quem entreguei todo o amor que pode haver em peito humano, que é toda a minha felicidade, que é todo o meu futuro, sofre sem um queixume, sem um murmúrio, com uma resignação de jovem mártir, e tem o sorriso angélico da bondade a esvoaçar-lhe nos lábios pálidos, só para não me contristar e afligir? Antes de conhecer Joana, podia dizer que existia? Poderei dizer que existirei quando a Providência chamar aquela bela alma? Ah! Deus fere-me cruelmente, arrebatando-me minha adorada noiva!... Sem dúvida que os erros do meu passado mereciam ser castigados, mas a punição que Deus me inflige é demasiada para as forças do homem!... Veja, minha irmã, tudo se vai, tudo desaba em torno de mim!... Fico só no meio de ruínas, com um abismo aos pés!... Se soubesse como era feliz... ah! se soubesse, Lazarine!... e amanhã talvez, o nada... o vácuo... um sepulcro para onde descerá o corpo da minha adorada Joana... um sepulcro a que não poderei descer, porque a lei de Deus proíbe o suicídio, e separados neste mundo pela morte, sê-lo-e-mos no outro pelo crime... Lazarine, minha irmã, tenha piedade de mim, lastime-me, mas não tente resignar-me! E as lágrimas de Raul caíam em grossas bagas copiosamente, abrasadas de febre, e as suas frases, quase indistintas, entrecortadas pelos soluços, morriam nos lábios convulsos.

— Não, meu irmão, replicou a senhora de la Tour-du-Roy, não tentarei resigná-lo... Compreendo bem a sua dor, de que partilho... sei que toda a consolação seria inútil... mas não posso deixar de lhe dizer: "Não se entregue à desesperança!... O desespero que lhe aniquila o ânimo, pode ser um erro e uma fraqueza! Não se trata de chorar, trata-se de lutar, de lutar com tenacidade até o fim..."

— Ah! a luta é impossível...

— Quem sabe?

— Todos os recursos estão esgotados... A ciência está vencida...-

— Mas resta a fé que é invencível.

— Ah! pudesse o céu ouvi-la!

— O céu vem sempre em auxílio dos que não desesperam! Aproveitemos o tempo para me informar de coisas que ignoro... As suas cartas, apesar de revelarem a gravidade do mal não me preveniam de que estivéssemos próximos da iminência da catástrofe...

— Porque me recusava acreditar na possibilidade da desgraça... Apesar da evidência, obstinava-me em conservar as ilusões...

— Como foi que as perdeu?

— Lentamente, mas de modo progressivo... Hoje uma, ontem outra, e assim se iam dilacerando... Por fim a verdade apareceu-me na sua cruel nudez...

Lazarine replicou:

— Quando parti de la Tour-du-Roy, algumas semanas antes da solução do meu estado, escreveu-me o conde dizendo-me que Joana estava num período de fraqueza anormal, quase inquietador, mas que os seus sofrimentos não estavam bem caracterizados...

— Os sofrimentos vieram depois. A pobre criança passou por crises atrozes às quais mais de um homem robusto e na maior força de idade não teria resistido... Imagine o efeito produzido por estas crises a um corpo frágil, e numa organização delicada como a da minha querida Joana!...

— Quais foram os médicos consultados?

— Os mais célebres... reuni em conferência as notabilidades de Paris...

— E disseram?

— Muito, muitíssimo. Uma aluvião de coisas que se podem reunir em cinco palavras: Não conhecem nada do mal!

— Singular!

— Menos singular do que o próprio mal que muda de caráter em cada dia, zombando dos medicamentos, porque todos os meios curativos indicados presentemente pela situação tornam-se inconvenientes na sua aplicação no dia seguinte... Estes sucessivos combates contra a misteriosa e terrível enfermidade alcançam este desolador resultado; tudo inútil!A contrário, por mais variados que sejam os aspectos do mal, caminha sempre a passos seguros para um desenlace único! Agora mesmo, Joana chegou ao último grau do enfraquecimento... A implacável anemia decompõe-lhe nas veias o sangue jovem, rico e generoso... O fogo da febre devora-lhe a carne, mas respeita-lhe a beleza... É uma sombra do que foi, mas ainda assim uma sombra cheia de graça e de encantos... Quase implacável, é sempre formosa e adorável... Vai vê-la, minha irmã, e terá compaixão de mim que estou prestes a perdê-la!

A Marquesa resolvida a que Raul não se imobilizasse na dor, prosseguiu nas suas interrogações.

— Quem trata atualmente a condessinha, perguntou ela?

— O doutor Máximo Giraud.

— Quem é esse doutor Giraud?

— O único médico em que ela tem confiança.

— O Conde partilha igualmente desse sentimento?

— Sem restrição... O doutor Giraud alia ao seu elevadíssimo talento a mais profunda afeição... Joana que ele conheceu nas Vertes-Feuilles, antes do nosso casamento, não é uma cliente, é para ele uma irmã...

Desde que o perigo se declarou que está junto de nós... De dia e de noite de pé, sem se cansar, nunca desalentado, pelo menos na aparência, combate o mal com toda a energia do seu caráter perseverante e varonil... Se a ciência e a afeição pudessem fazer milagres, Joana estaria salva...

 

A DEDICAÇÃO DE RENÉE

— Com que entusiasmo fala do médico, Conde! murmurou Lazarine.

— Faço-lhe justiça, mais nada... replicou Raul.

— Não obstante o zelo e ciência dele falharam em resultados negativos...

— Posso exigir-lhe impossíveis? Muito lhe devemos por se consagrar a nós de corpo e alma... Tudo de que é capaz a força humana, unida à vontade, ele tem feito... Que as suas tentativas sejam coroadas de feliz êxito, e o meu reconhecimento será ilimitado... Ah! a nossa querida Joaninha está cercada da imensa ternura que merece... A sua enfermeira, uma linda camponesa dos arredores das Vertes-Feuilles, simples e boa criatura, não hesitaria em dar a sua vida, estou certo, para prolongar os dias da Condessa!

— Creio profundamente, Conde!

— É bela tanta dedicação, mas naturalíssima! Quem pode conhecer Joana, que não a adore?

— E Renée é um anjo! acudiu Raul vivamente para emendar o esquecimento. Não tenho palavras para exprimir a admiração que ela me inspira! Desde o primeiro dia em que se declarou a doença da irmã, a sua dedicação não se desmentiu um minuto. É inexcedível de cuidados a todas as horas, sacrificando, sem um queixume, o seu repouso, o sono, a própria saúde, porque, apesar da sua obstinação em negar, é fácil de ver que a fadiga a traz abatida e alterada... Não sei como a pobre menina tem forças para tanto! Quantas vezes penso que estes excessos a podem fazer adoecer e ver-me privado da sua angélica ternura!

— Tem razão, meu irmão... Joana encontra a ternura e a dedicação de que é merecedora!... Deus queira que a nossa querida enferma não seja roubada aos corações dos que a adoram.

— Ah! minha irmã! exclamou o Conde, se soubesse o bem que as suas palavras me fazem! Parece que um pressagio feliz transpira nas suas consolações... Ainda bem que veio! É a pomba da arca trazendo o raminho verde da esperança e da salvação! Não quero privá-la mais tempo de beijar Joaninha... Vamos vê-la...

Raul introduziu a Marquesa no salão imediato, cujas portas abriam para os aposentos privados da enferma.

— Um minuto, minha boa irmã... A Condessinha está tão fraca que qualquer comoção inesperada lhe pode agravar o estado... Ela já sabe que chegou a Tour-du-Roy, e deseja ardentemente vê-la...

Vou preveni-la da sua chegada... Ouça, escute as minhas palavras, e quando lhe parecer que não há perigo, queira então aparecer...

— Descanse, serei prudente...

O Conde entrou devagarinho, deixando a porta entreaberta. A Marquesa aproximou-se com a mesma precaução, e aplicou o ouvido.

— Não te assustes, meu querido amor... disse o senhor de Gordes abeirando-se do leito da jovem enferma... Trago-te uma boa nova; vais ver a nossa boa irmã Lazarine...

— Estás certo de que virá hoje? perguntou Joana com a sua voz infantil.

— Vem a caminho... — Quem te disse?

— Os meus próprios olhos...

— Saíste?

— Não, mas a carruagem já entrou no portão do parque.

— Então vê-la-ei daqui a poucos minutos?

— Sim, sim. Os cavalos correm... não podem tardar senão momentos...

— Que felicidade! Eu amo tanto Lazarine!... Que alegria que vou ter, santo Deus!

— Promete estar sossegadinha e não se agitar muito?

— Prometo... terei muito juízo... a alegria não faz mal...

— Bem; Lazarine pode subir? — O quê! ela já chegou?

— A carruagem parou agora mesmo, ou viste?

— Não; mas que importa! Conde, vá depressa; Raul corre a buscá-la...

Raul deu dois passos para a porta, pôs a mão sobre o puxador, e voltou:

— É inútil. Ai vem.

A Marquesa acabava de entrar. Dirigiu-se ao leito, levantou cuidadosamente Joana nos braços, e cobriu-lhe de beijos as faces e o? cabelos.

A condessinha balbuciou, pagando-lhe caricia com caricia:

— Ah! querida irmã; como estou contente, que bem me faz ver-te... minha boa Lazarine!... Como está o meu afilhado Raul?...

— Magnificamente... forte e robusto como o padrinho... Para outra ocasião o trarei...

Lazarine dispôs o "fauteuil" que o Conde lhe ofereceu, sentou-se à cabeceira do leito e contemplou a irmã.

— Ah! o Conde tivera milhares de razões para dizer-lhe: "Disfarce, não dê a conhecer a dolorosa impressão que sentirá quando a vir!

Sem esta cautelosa recomendação, a Marquesa teria sem dúvida traído as suas impressões, teria recuado de espanto ao contemplar a profunda destruição do mal que minava os dias da bela enferma.

A realidade excedia muito o doloroso espetáculo que ela entrevira através das lágrimas do infortunado marido.

Joana parecia uma estátua que um artista ingênuo da idade média tivesse modelado em cera, suprimindo os contornos femininos para imprimir no conjunto a maior castidade.

A Condessa tornara-se, permitam-nos o emprego literal da palavra, uma criatura imaterial, e apesar de um espantoso emagrecimento, não perdera nenhuma das suas graças infantis.

A pródiga riqueza dos seus louros cabelos moldurava-lhe o rosto gracioso e macio numa auréola de ouro.

Seus grandes olhos azuis, agora dilatados pela febre, conservavam a sua incomparável doçura; o mesmo sorriso de outrora, cândido e bom, descobria-lhe entre os lábios descoloridos o brilhante esmalte dos dentes

Raul tinha dito a verdade; Joana não era mais de que uma sombra, um fantasma, mas um fantasma encantador.

Lazarine reprimia a custo as lágrimas que sentia assomarem-lhe aos olhos. Para ocultar a perturbação que lhe causava no ânimo o estado da enferma, tomou entre as suas as brancas mãos da irmã, pobres mãos franzinas e diáfanas! e levou-os aos lábios.

— Talvez desejem estar sós... trocar as suas confidencias, disse o Conde; deixo-as por um momento...

E saiu, limpando furtivamente as lágrimas que já não podia conter. Joana volveu para a Marquesa um demorado olhar cheio de ternura e sentimento, e perguntou sorrindo:

— Se não soubesses que era eu, terias reconhecido a tua Gatinha Borralheira de outro tempo?

— Que idéia, tontinha! replicou vivamente Lazarine. Não estás tão mudada como queres dizer!

A senhora de Gordes retirou lentamente a mão direita dentre as mãos da irmã, e com o índex designou um gesto de ameaça carinhosa.

— Mentirosa! murmurou ela abraçando-se a Lazarine.

 

O MÉDICO

Estes corações tão dessemelhantes pulsaram unidos um sobre o outro alguns minutos.

Joana foi a primeira que rompeu o angustioso silêncio, desatando os braços do íntimo amplexo em que prendera a irmã:

— É duro morrer!... volveu ela. É triste, é atroz! Era tão feliz! O bom Deus, em todo o seu poder supremo não saberia mandar ao mundo uma alma tão perfeita como Raul... As aspirações do meu espírito, as delicadezas do meu coração, adivinhou-as ele, compreendeu-as e partilhou-as... Ele era para mim o universo... para ele era eu o mundo inteiro... Vivíamos um para o outro, ou antes, depois da nossa abençoada união cassamos de ser dois para só constituirmos a mesma alma... Quem nos diria, quando julgávamos ter diante de nós um largo futuro de felicidade, que a hora de separação devia soar tão depressa?... No principio da minha doença tive um sonho horrível... Ouvi o dobre de finados... vi passar o caixão... Raul ia atrás vestido de luto... Este sonho realiza-se hoje... A estas horas, talvez, estão os coveiros abrindo a campa do mausoléu da família de Gordes... vou morrer, deixando no mundo, abandonado, o meu Raul... Ah! Lazarine, morrer aos dezoito anos, é duro, é atroz!

E Joana, reclinando novamente a formosa cabeça no seio da irmã, soluçou amargamente.

— Que vai ser do meu querido Raul? balbuciou após um momento de silêncio, que vai ser do meu amado, de quem a morte me separa?...

"O pensamento que ele fica só no mundo, onde em breve deixarei de existir, assusta-me, causa-me uma pungente agonia... Terá coragem de se resignar? Não desejava que sofresse muito, mas não queria sobretudo que outra mulher tivesse nele os direitos que vou perder, e que lhe impusesse o meu esquecimento... Lazarine, minha boa Lazarine, dize-me, repete-me, que ele não sacrificará a minha memória...

Lazarine ia para responder, mas não teve tempo. Abriu-se a porta e Renée apareceu.

— Bons dias, Marquesa... disse ela. Apesar dos meus bons desejos, e de querer ser a primeira a abraçar-te, não me fez Deus a vontade... Perdoa-me... Há dez noites que não me deito... por fim, a fadiga venceu-me e adormeci.

— Anda com as forças perdidas a minha boa Renée! murmurou a enferma; mas Lazarine vai juntar as suas às minhas rogativas, para ela recuperar o seu perdido descanso... é preciso cuidar da tua saúde abalada, Renée, se não por ti, ao menos por mim, que me aflijo verte nesse estado... Pensa que, abusando das tuas forças, podes cair doente, e ficarás privada de me dispensares as ternuras dos teus inexcedíveis cuidados, sem os quais já não posso passar...

— Algumas horas de sono bastou para recuperar as forças, replicou Renée, depois de abraçar Lazarine, e ficarei forte e corajosa, como antigamente.

A senhora de la Tour-du-Roy contemplava Renée e admirava-se da alteração porque tinha passado em alguns meses a irmã enfermeira.

A segunda filha de Júlio Leroux não tinha perdido os traços principais da sua beleza soberana que descrevemos, mas a expressão de seu rosto tinha-se modificado de uma maneira sensível e inesperada.

Dir-se-ia que Renée vivia da obcecação de um pensamento sombrio, sempre o mesmo, porque as linhas corretas das suas feições ofereciam a mais rígida gravidade.

Uma profunda ruga delineava-se por cima das sobrancelhas. Os lábios estavam desertos do sorriso que outrora os animava.

Os olhos, circulados de bistre, quase meio cerrados, perderam a chama que irradiava centelhas quando se fitavam ousadamente. As suas escuras e fartas pestanas projetavam sombra transparente rias faces emagrecidas e da palidez do mármore.

Um observador, porém, teria notado, quando ela erguia os olhos, dentre as negras pestanas, que fulgia furtivamente um estranho clarão.

Vêem-se desses clarões inquietadores nos olhares perigosos dos doidos.

— Joana tem, razão pensou a Marquesa, Renée corre perigo de adoecer... Abusa da coragem, e as noites perdidas consomem-lhe as forças.. Julguei-a egoísta como o pai, e como ele incapaz de qualquer sacrifício ou abnegação, e na melhor boa fé caluniava-a... Positivamente um enigma, esta rapariga! É impossível contestar a evidência, mas não reconheço minha irmã!... É uma metamorfose assombrosa, e não tenho senão que felicitar-me...

— Minhas queridinhas, disse a Condessa juntando as mãos de Renée às de Lazarine, já que as vejo reunidas ao meu lado, querem dar-me um grande prazer?

— Se queremos! exclamaram ao mesmo tempo as duas irmãs.

— Pois bem, replicou Joana sorrindo, não tratemos mais de mim e falemos como se eu não estivesse doente... Querem saber? parece-me que estou de todo restabelecida...

— Deus te ouvisse! acudiu a Marquesa: mas de quem queres tu que falemos?

— De tudo, contanto que não seja a meu respeito... Os assuntos não faltam, e as meninas têm muito espírito para discorrerem bem sobre qualquer coisa... Falemos primeiro do papai... Como vai o papai... sempre o mesmo, rapaz apesar dos anos e das contrariedades de fortuna?

— Agora, mais do que nunca, um rapaz estouvado... Chega a ser assombroso! respondeu a Marquesa.

— Assombroso! Oh! não... exageras por força! Uma natureza alegre, uma organização em plena primavera, nisso sim... Assombroso, ele! o melhor dos homens! Faço idéia do seu contentamento, julgando que as filhas são felizes...

Lazarine relanceou um olhar para Renée.

Renée cujos lábios, como sabemos, tinham esquecido o sorriso, contraíram-se num sorriso da amargura.

Joana continuou:

Quando foi a última vez que estivestes com o papai, Lazarine?

— Na véspera de partir... Encarregou-me de te abraçar por ele com toda a ternura do seu amor e estima.

— Ingrata! Repara que ainda não te desobrigaste da incumbência!... Hei de fazer-lhe queixa... Abraça-me já, para castigo, abraça-me duas vezes... Agora, sim! Bom papai! Boa irmã da minha alma! Quando virá ele às Vertes-Feuilles?

— Eu sei! São tantos os seus negócios... A condessinha desatou a rir.

— Sim, sim... atalhou ela. Oh! conheço bem os seus negócios... ou antes adivinho-os! Desde que sou casada, tenho perdido a minha ingenuidade de outrora... Os negócios do papai! Adiante. Ele ainda continua a ser amigo daquele outro eterno rapaz de sessenta anos, o Príncipe de Castel-Vivant?

Lazarine empalideceu.

O nome pronunciado pela irmã arremessava-a bruscamente ao abismo que uma catástrofe cavara dois dias antes aos seus pés.

Dissimulou a súbita perturbação, e respondeu:

— Sempre...

— O Príncipe vai bem?

— Creio que sim.

— Melhor... Desejo saúde e prosperidades a todos que conheço... É tão bom ter saúde! E o meu Raulzinho, e meu querido sobrinho, não me dizem nada!... Faço idéia de que deve ser um bebê lindíssimo! belo como um herdeiro das graças da manhã!

— Dizem que sim... Eu especialmente, acho-o soberbo...

O mesmo que eu penso, sem favor, porque conheço a formosura da mãe... Quando poderei vê-lo! Tenho saudosos desejos de vê-lo...

— Amanhã, talvez.

— Que felicidade!... Sofreste muito quando ele veio ao mundo?

— Não, me admiro... És tão forte e corajosa...

A conversação seguiu neste sentido. Joana interrogava curiosamente a irmã a propósito de mil nadas a que a pobre doentinha parecia ligar imenso interesse.

Quis que Lazarine lhe contasse todas as particularidades da sua instalação em Paris.

Renée, silenciosa e distraída, escutava.

O conde de Gordes interrompeu a conversação, entrando neste momento. Acompanhava-o o doutor Máximo.

— Minha querida Lazarine, disse Raul, permita-me que lhe apresente o nosso médico, o nosso amigo e hóspede, o doutor Máximo Giraud... Como conhece o conceito que me merecem as distintíssimas qualidades do doutor, não fica de certo surpreendida pedindo para ele um lugar reservado nas suas afeições...

A senhora de la Tour-du-Roy apertou a mão de Máximo e replicou:

— A afeição de que fala o Conde, senhor, pertence-lhe desde já, e com ela todo o meu reconhecimento.

Relanceemos agora um olhar sobre o rosto de Máximo.

— Como está desfigurado!

As incessantes preocupações, as angústias pungentes, as trabalhosas lutas contra o desconhecido, as batalhas multiplicadas è sem tréguas contra o impossível, o encarniçado afinco dos seus estudos e investigações para conhecer a origem do mal, o sentimento da sua importância para o vencer, o desalento, enfim, que se apoderam dele levando-o ao auge do desespero, tinha cavado de profundas rugas e emagrecido o seu rosto irregular, porém inteligente e simpático.

Contava vinte e sete anos apenas, e parecia ter quarenta. '

— Perdoem-me se as interrompo... disse ele depois de responder, como devia, às boas palavras da marquesa; a visita de uma irmã estremecida é uma preciosa consolação para a nossa querida enferma, e dará em resultado apressar a convalescença; mas é preciso não abusar das melhores causas... A atenção demorada, a conversação prolongada, podem trazer a fadiga e o cansaço... A senhora Condessa tem absoluta necessidade de repouso... Permitam-me que reclame para ela algumas horas de solidão e de sono...

— Meu bom doutor, acudiu Joana sorrindo, sabe que é um tirano... um desmancha-prazeres?... Quase que cheguei a esquecer-me da doença, e deliciava-me alegremente na melhor de todas as conversações, e eis que por ordem terminante do médico tenho de calar-me, fechar os olhos e dormir... Enfim, sou obediente como sabe. obedeço sempre com a maior docilidade... Obedecerei ainda desta vez, se bem que sintas, neste momento, umas certas veleidades de resistir...

Renée interviu:

—Doutor, disse ela, posso agora dar-lhe o remédio?

— Sim, minha senhora.

Renée levantou-se, atravessou o quarto, passou ao gabinete de toilette, pelo qual comunicava o seu aposento com o da irmã.

Joana replicou:

Tornarei hoje, a ver-te Lazarine? Prometes?

— Com certeza, replicou Máximo; se a senhora Marquesa prolongar até à noite a sua visita.

— Ficarás, sim, meu querido anjo? perguntou Joana com súplicas na voz e no olhar.

— Sim, volveu Lazarine, ficarei... Basta quereres, meu amor... Jantarei, e só regressarei à Tour-du-Roy depois das nove horas da noite.

Joana teve ainda uns restos de força para bater palmas com as mãos transparentes, e prosseguiu:

— E voltas amanhã?

— Volto.

— Trazendo o meu sobrinho, sim? Prometeste.

— Cumprirei a promessa.

— Como és boa, e como te amo!...

Renée apareceu trazendo o medicamento prescrito. A senhora de Gordes tomou a chávena, e esgotou o conteúdo até à última gota.

— Ai! como é amargo! murmurou ela.

— Tanto como de outras vezes... observou o doutor. — Não, não, agora mais... oh! muito mais! Máximo pareceu surpreendido.

— Doutor, disse Renée, a garrafa anda por metade...

Quer ter a bondade de provar? Talvez o medicamento esteja alterado...

— É possível... Vamos ver...:

O doutor acompanhou a segunda filha de Júlio Leroux, deitou numa colher algumas gotas do medicamento que receitara, e de que assistira à preparação, e levou a colher aos lábios.

— Então! perguntou Renée depois da experiência.

— Idêntico... replicou ele. Em bom estado, não há dúvida. Uma disposição particular aumentou hoje, no paladar da Condessa, o, amargo quase insignificante do remédio.

— Mas não é mau sintoma?...

— Não, não há perigo...

— Parece-me, doutor, que não será conveniente dar a conhecer a Joana o estado deplorável do seu paladar... Talvez seja bom dizer-lhe que o medicamento é mais amargo do que o outro que ela tem tomado. É a sua opinião?

— Sim, minha senhora. Vou prevenir as coisas...

Máximo voltou aos aposentos da enferma, procedeu como.! tinha anunciado, e a senhora de Gordes exclamou:

— Tinha razão... Se estranhei tanto! Aquele amargo áspero. enjoativo, nauseante, subsiste ainda na garganta... Parece, que bebi fel... Posso tomar algumas gotas de xarope, doutor?

— Faz bem, minha senhora, respondeu o médico. Retiramo-nos, ajuntou ele, e vou recomendar a Genoveva que fique à disposição da senhora para a acompanhar.

Lazarine e Renée, Raul e Máximo, saíram do quarto da gentil enferma, passaram ao salão, e a maior parte do dia foi consagrada a discutir o assunto que é inútil historiar.

Joana dormiu um sono febril, e despertou mais abatida, mais fraca do que pela manhã desse dia; mas dissimulou o seu estado, e deu-se por melhor quando vieram as irmãs e o marido.

A Marquesa e o Conde deixaram-se iludir com as suas palavras, Máximo, porém, não partilhou da ilusão, porque franziu, sem querer, as sobrancelhas, e tornou carregada a expressão do rosto.

Pelas nove horas da noite, Lazarine voltou para la Tour-du-Roy, prometendo vir no dia seguinte com o pequeno Raul, para o apresentar à tia e ao padrinho.

Cumpriu gentilmente a promessa à Joana, cujo estado não apresentava modificação, cobriu de beijos, com explosão de ternura, o branco e rosado bebê que os débeis e magros braços mal podiam sustentar.

No dia seguinte, no momento em que a Marquesa se sentava para saborear o seu almoço solitário, Domingos depôs ao seu lado uma salva de prata dourada com os jornais e cartas que o correio acabava de entregar.

Lazarine examinou a correspondência.

Dois sobrescritos com letra conhecida, a de Marcel Laugier e a de Júlio Leroux, despertaram-lhe a atenção.

A senhora de la Tour-du-Roy pôs de parte a missiva do ex-tenente, tomou distraidamente a carta do melhor dos pais, e rasgou o sobrescrito...

Teria apenas percorrido as primeiras linhas, e logo a expressão glacialmente indiferente da sua fisionomia desapareceu; abriu os olhos de maneira desmesurada, ao mesmo tempo que um grito de assombro lhe fugia dos lábios...

 

A RESSURREIÇÃO

Realmente, nunca houve admiração mais legítima do que a da senhora de la Tour-du-Roy.

"Grande novidade, minha querida Marquesa, enorme e mitifica novidade!

"Como bom e excelente pai que sempre tenho sido, que sou ainda, e que certamente continuarei a ser, não quero perder um momento, e apresso-me a informar-te, e ou eu me engano redondamente, ou a coisa vai interessar-te de uma maneira admirável, pasmosa.

"Portanto vou direitinho ao assunto, sem procurar os efeitos do estilo, como outro qualquer faria em meu lugar...

"Viste, como me contaste, o pobre Bégourde, quero dizer, o Príncipe Heitor de Castel-Vivant, soltar, a teus olhos lacrimosos, o último suspiro, em resultado do ferimento que recebeu do duelo com Marcel Laugier... Palavra de honra, bonito duelo!... "Pois meu amorzinho, viste mal...

"O chorado Bégourde não está oficialmente morto, parece mesmo que não morrerá, pelo menos desta vez...

Foi depois destas últimas linhas que Lazarine soltou o grito de que tomamos nota.

— Vivo! murmurou ela, vivo! ainda não está tudo perdido! tudo pode voltar ao antigo estado de coisas! Cometi uma imprudência saindo de Paris... Felizmente Tour-du-Roy não está longe...

E continuou a leitura.

Júlio Leroux prosseguia nestes termos:

"Esta manhã, pelas onze horas, almoçava no Café Inglês.

"Um coupé do melhor estilo parou no ângulo do "boulevard".

"Olhei e vi o Príncipe descer. Compreendes que falo do verdadeiro Príncipe de Godefroy.

"Deu ordens ao trintanário e dirigiu-se para o restaurante, enquanto que o cocheiro depunha na almofada o pingalim, e lançava coberturas sobre os cavalos.

— Bom! disse eu, vou ter notícias exatas do enterro...

"Godefroy entrou. Não trazia nenhum sinal de luto e deu-me que pensar os seus modos vivos e alegres dada a circunstância que sabemos.

"Cheguei mesmo a surpreender-me, porque o príncipe é ultra-formalista em tudo que respeita a conveniências...

"Dirigiu-se para mim. Apertos de mão, frases amáveis...

— "Almoçaremos ambos, meu caro, disse ele: e teremos meia hora de cavaco... Não posso demorar-me mais porque vou imediatamente para Ville-d'Avray...

"Repliquei, dando à fisionomia uma certa solenidade exigida pelas circunstâncias:

— "Vai cumprir o último dever? "Godefroy olhou-me admirado.

— "Qual último dever? perguntou ele. — "O enterro...

— O enterro de quem?

— "Aquele pobre moço... o seu filho adotivo... "

O Príncipe desatou a rir e replicou:

— "Então não sabe de nada?

— "Absolutamente nada.

— "As cerimônias fúnebres, meu rico amigo, ficam transferidas para outra ocasião... Há quinze dias que Heitor goza tão boa saúde como qualquer de nós...

— "É célebre!... todos disseram que tinha morrido...

— "Andou por isso, e havia razão para o dizer... O médico, depois de uma violenta crise, ligou-lhe o aparelho, e encomendou-lhe a alma...

— "O médico enganou-se... A crise que ele julgava mortal, ao contrário, foi a crise que o salvou... Felizmente o homem aproveitou-se a tempo, corrigiu o equívoco, e como o organismo do moribundo era dotada de grande robustez, teve artes e afugentar a morte o pô-lo são e salvo... Numa palavra, o meu Heitor, graças à constituição excepcionalmente vigorosa que possui na sua qualidade de Castel-Vivant (todos herdamos, na nossa família, estas boas qualidades), escapou de uma aventura que esteve a ponto de pagar com a ossada...

— "Parabéns, caro Príncipe.

— "Aceito; estou encantado... O rapaz é realmente gentil... Gosto dele, amo-o, e não me esqueço de que salvou de morrer afogado...

— Já o viu depois do.duelo?

— "Estive ontem com ele...

— "Reconheceu-o...

— "Perfeitamente...Ficou doido de alegria quando me viu... absolutamente doidinho... Vou hoje a Ville-d'Avray para combinarmos o dia em que, sem perigo, deve regressar a Paris... O pobre rapaz está mal alojado, e naquela gaiolita o conforto brilha pela ausência....

— "Acompanha-o alguém a Ville-d'Avray, Príncipe?

— "Ninguém... ,

— "Quer dar-me um lugar no coupé?

— "Com mil vontades... Magnífico! Não posso ter melhor companheiro...

"Enquanto o coupé rodava, Godefroy contava-me a lenda da antevéspera, que lhe tinha sido referida na véspera, na estalagem de Ville d'Avray.

"Esta lenda, que se transmitira na localidade de geração em geração, é extremamente pitoresca, extremamente dramática, e suponho mesmo que te não é desconhecida.

"Trata-se de uma parisiense (uma grande dama certamente, diz a lenda), vestida como uma princesa, envolvida num imenso véu como uma sultana favorita, e mais bela do que o dia (embora não se tivesse podido ver o seu rosto encoberto), que chegou por meia noite, lavada em lágrimas e no maior desalento; entrou no quarto do moribundo, apesar das observações do estalajadeiro, apesar das hesitações do criado, apesar das objeções do médico, apesar das dificuldades de todo o mundo... representando uma cena de paixão e desespero imitada de um drama qualquer do "boulevard"; provocando o delírio de um príncipe que lutava nos braços de morte, e depois de uma crise lançando-se sobre o corpo inerte, que ela tomou por cadáver, desaparecendo por fim, como tinha chegado, nas trevas do mistério e da noite.

"Adivinharás por acaso o nome da heroína?

 

"Entramos no quarto do jovem Príncipe, e meia hora depois falara-se a teu respeito.

"O meu velho amigo começava:

"Meu caro Júlio, apresento-lhe o Príncipe Heitor de Castel-Vivant, meu filho adotivo...

"Durante dois ou três segundos, a palidez do nobre herdeiro de Godefroy, desapareceu-lhe do rosto, e apesar de ter perdido grande quantidade de sangue, fez-se vermelho como uma lagosta...

"Apresso-me a dizer-te que me pareceu naturalíssima semelhante coisa... Era a primeira vez que ele e eu nos achávamos frente a frente, depois da anedota passada num certo palácio cujo nome julgo supérfluo recordar.

— "Aquele que, a estas horas, esperávamos estivesse gozando a bem aventurança, murmurou não sei que, enquanto eu taramelava este cumprimento que nem pelo diabo queria sair de entre os dentes:

— "Encantado de o conhecer, palavra de honra! encantado e satisfeito!

"Godefroy continuou:

— "O meu querido amigo Júlio Leroux é o ditoso pai de senhora Marquesa de la Tour-du-Roy essa adorável estrela do mundo elegante, de quem recebeu a honra de ser admitido às suas soirées...

"A palidez crescera de novo nas faces do ferido, apesar de este estar um pouco mais senhor de si.

— "Permite-me o senhor Leroux que me informe do estado da saúde da senhora Marquesa? balbuciou ele.

"Respondi:

— "É-me impossível dar-lhe notícias da última hora... Minha filha mais nova, a Condessa de Gordes, está infelizmente doente, e um telegrama do Conde, meu genro, forçou a senhora de la Tour-du-Roy a partir precipitadamente para o Loiret no dia seguinte ao do seu fatal duelo...

"Bem vês que a resposta foi delicada e cortês, quase vulgar...

"Pois bem! o falso morto Bégourde depois de ouvir com a maior atenção, ergueu os olhos e soltou um suspiro beatífico, como se o aliviassem de um peso enorme. Dir-se-ia que ficou contentíssimo de saber que estavas longe de Paris, e de poder atribuir esse afastamento à tua indiferente aparência...

"Por que? perguntei eu.

"Não me disseste, não me afirmaste de maneira positiva, que não tinhas a mínima parte nesse duelo nem razão poderosas para interessares particularmente pelo resultado da pendência?

"Estou quase resolvida a acreditar que este gentleman de fresca data não tem a cabeça no melhor estado...

"Pareceu-me conveniente ajuntar mais algumas palavras:

— "A Marquesa, minha filha, partiu muito inquieta, sabendo que estava gravemente ferido. Vou tranquilizá-la escrevendo-lhe hoje mesmo e dizendo-lhe que, apesar do ferimento ser grave, não me parece que as conseqüências sejam fatais.

"O falso morto Bégourde volveu-me um olhar cheio de gratidão, embora o fundo da minha natureza não seja positivamente sentimental quando a família está excluída dos acontecimentos, me comoveu...

"Palavra de honra que é verdade o que digo.

"Parece-me que este rapaz tem um grande fraco por ti, e se te conviesse casar com ele, seria um negócio soberbo, não digo já por causa do título de príncipe que, entre nós, não pode tomar-se a sério, mas pelo milhão de rendimento que é de um chic e bom gosto indiscutível.

"A final, despedimo-nos do ferido, sendo acompanhados até à carruagem pelo médico.

"Depois de amanhã deve regressar a Paris.

"Outra coisa...

"Como vai a condessinha?

"O pobre Conde está inconsolável, escreveu-me cartas desoladoras, mas estou persuadido de que pinta o caso mais feio do que realmente é. Resta-me porém a esperança de que irás encontrar a Joaninha em plena convalescença. Enquanto não tiver a certeza positiva, fico inquieto, e peço-te que me dês notícias com a maior brevidade possível...

"Júlio Leroux.".

"P. S. Esquecia-me dizer-te que entre Ville-d'Avray e Paris encontramos a carruagem de Marcel Laugier. Este gentleman ia pessoalmente informar-se do estado do seu adversário.

"A ação parece-me cavalheiresca e do mais fino gosto. É também a opinião de Godefroy."

 

Lazarine empalideceu.

Assustavam-na as conseqüências possíveis da cortesia do ex-tenente.

— Uma palavra imprudente pode deitar tudo a perder!... murmurou ela; é preciso que estes dois homens se não vejam!...

 

DIPLOMACIA

Depois de ter devorado a extensa epístola paternal, a senhora de la Tour-du-Roy, de sobrolho carregado, olhar sombrio, lábio encrespado, abriu com gesto desabrido a carta de Marcel Laugier, e percorreu-a entremeando a leitura de exclamações de desprezo, de sarcasmos e de bocejos desdenhosos.

Adivinhe-se que impressão podiam e deviam de produzir em uma natureza como a de Lazarine as frases amorosas de um homem execrado.

Declinamos o desejo de reproduzir as fogosas quatro páginas do ex-tenente.

Julgamos, porém, conveniente que o leitor tome conhecimento da parte final:

"Estou profundamente contristado com o que me diz a respeito do meu duelo... Teria sido, na verdade, culpado em arriscar loucamente uma existência que é toda sua, se dependesse de mim evitar um encontro absurdo e sem motivos... Sabe porém que eu não fiz mais do que o meu dever. A minha honra de homem e de militar obrigava-me a seguir aquele ousado doido no caminho para que me impelia, e de que quisera desviar-me.

"Tive a felicidade de saber que o meu adversário, condenado pela medicina no primeiro momento, iludiu as tristes previsões da ciência... Graças a Deus, a ferida não foi mortal... Creia que, apesar da insolência dele, sentiria imenso desgosto se lhe roubasse a vida com a ponta da minha espada...

"O motivo que a obrigou a partir, minha querida Lazarine, é extremamente legítimo e sagrado para que não aceite com resignação a dor que me causa a sua ausência, embora a mágoa seja profunda... Em volta de mim existe o vácuo... Sou um corpo sem alma; a alma e o coração acompanharam-na, estão no castelo de la Tour-du-Roy com a sua gentil castelã."

Lazarine amarrotou colèricamente a carta entre as mãos, arremessou-a com força ao tapete, e voltou aos pensamentos que tinha formulado quando terminou a leitura da epístola paternal e repetiu:

— É preciso que uma aproximação entre o Príncipe e Marcel Laugier se torne impossível... Custe o que custar é preciso impedir que se vejam e falem... Como? por que meio?...

Esquecendo o almoço que arrefecia sobre a mesa a que estava sentada, a viúva do Marquês Roberto caiu em profunda meditação.

Procurava a solução do problema.

Ao fim de alguns minutos ergueu a fronte como quem se sente inspirado pela coragem.

— Para grandes males, grandes remédios... disse ela em voz alta. A prudência é demais quando a necessidade o impõe!... Vou jogar um lance decisivo... Como não tenho auxiliar, nem tão pouco posso procurá-lo, eu mesmo tratarei de resolver o negócio...

A Marquesa almoçou depressa, como para recuperar o tempo perdido.

Depois levantou-se e dirigiu-se para o gabinete da livraria, e escreveu de um fôlego três cartas.

Na primeira, muito lacônica, dava a Júlio Leroux notícias de Joana.

A segunda, endereçada a Marcel Laugier, era concebida nestes termos:

"Encontrei minha pobre irmã mais doente do que supunha quando saí de Paris... Resta-me um fraco clarão de esperança, e ainda mal para mim, este clarão pode de um momento para outro apagar-se...

"Para me dar a coragem que me abandona, e a energia que me falta, tenho necessidade de sentir ao meu lado uma dessas dedicações absolutas de que é crime duvidar...

"Autorizo-o hoje ao que formalmente me escusei e lhe proibi meses antes...

"Arranje as suas malas, a sua bagagem de artista, e volte aos seus antigos hábitos; disponha o cavalete, os pincéis, a caixa de tintas, todas as minudências de um pintor-turista, e tome quartos na estalagem do Cavalo Branco, executando agora o que em outros tempos fez...

"Avise-me, por carta de Paris, do dia da sua chegada.

"Logo que esteja instalado, é da mais alta conveniência que não dê sinal de vida, não trate de apresentar-se no castelo, não pretenda escalar os muros, saia o menos possível para não provocar nos habitantes da aldeia a curiosidade de saberem quem é, dê ordem para ser servido no seu quarto, enfim, proceda de modo que não chame as atenções do público sobre si.

"Prometo-lhe que a recompensa não se fará esperar

"Há fora do parque, na parte da floresta que corre ao longo do muro do recinto, e não muito distante de certo pavilhão onde um dia entrou de surpresa; há digo eu, um carvalho enorme, um colosso de três ou quatro séculos, propósito do qual se conta uma lenda inteiramente destituída de interesse.

"Chama-se este carvalho o Patriarca...

"Não há ninguém no país que não o conheça, e todos lhe podem dizer onde é; tenho a certeza de que o descobrirá sem auxílio de cicerone ou de recorrer a informações, tão grande é a árvore que domina orgulhosamente todas as outras que a rodeiam, e que podem comparar-se a parasitas! O tronco é tão volumoso como o do legendário castanheiro de Robinson, a árvore amiga e confidente dos estudantes e das grisettes, que fazem dos ramos um ninho para os seus amores aéreos...

"Todos os dias, a partir do meio dia, arme o cavalete em frente do Patriarca, e comece um estudo qualquer da sua venerai folhagem...

"Revista-se de paciência e coragem, porque é possível passar uma ou mais semana sem que eu aí possa ir, já porque a doença de minha irmã se agrave e me demore a sair de la Tour-du-Roy... Compreende de certo que me cumpre ser reservada e prudente, tanto ou mais ainda do que em Paris...

"Seja como for, mais cedo ou mais tarde, irei, e combinaremos então o meio de nos encontrarmos.

"Se, como firmemente creio, é para si uma grande alegria poder aproximar-se de mim, parta sem demora...

"Durante o tempo que vai decorrer entre a recepção da minha carta e a sua partida de Paris, que será breve, penso eu, não receba ninguém. Evite mesmo meu pai... Sobretudo não lhe fale de mim... A sua voz treme pronunciando o meu nome, e essa perturbação poderia trair-nos...

"Dos meus sentimentos não lhe direi nada... esta carta é mais significativa de que todas as frases eloqüentes que poderia empregar...

"Não partilho da sua alegria a respeito da salvação imprevista e inesperada do seu adversário...

"Esse louco absurdo tinha a idéia fixa de o matar... Era ele que merecia morrer...

 

Lazarine escrevia rapidamente, de inspiração, sem tempo de corrigir a frase, sem fazer uma emenda; a pena corria sobre o papel com a velocidade do pensamento.

Quando terminou, releu a carta; parecendo-lhe a expressão justa do fim que se propunha, dobrou-a, meteu-a no sobrescrito e endereçou-a a Marcel Laugier.

Depois, lançou novamente mão à carta de Júlio Leroux, e percorreu com o olhar o fino cursivo paternal até deparar com a seguinte frase:

"— Depois de amanhã deve regressar a Paris."

— Depois de amanhã, é hoje... murmurou a senhora de la Tour-du-Roy. Heitor deve estar na rua Francisco I quando a minha carta chegar...

Tomou a pena pela terceira vez e escreveu:

"É provável que lhe tenham dito querido Príncipe, que na noite desse funesto duelo, uma mulher chegada de Paris, uma mulher vestida de luto, envolvida num véu, louca de dor, esteve ajoelhada à cabeceira do leito, em que jazia lavada em lágrimas, no momento em que, num acesso de delírio horrível, queria arrancar do peito a ponta do ferro ensangüentada que lhe varava o coração...

"Essa mulher, Heitor, era eu...

"O médico acabava de proferir a sentença fatal...

"Por felicidade, no dia seguinte soube que a Providência fizera um milagre, e que estava livre de perigo!

"Se não fosse isto, Heitor, juro-lhe que a estas horas estaria morta ou doida...

"Heitor, querido Heitor, por que não me atendeu? por que não escutou as minhas súplicas?... Por que não tive eu força de o abandonar, de o deixar partir, quando ainda era tempo?...

"Enfim, está salvo, graças aos céus; parece-me tudo um pesadelo, um sonho horrível... Mas vive!

"Admira-se talvez e está no seu direito, cavalheiro, de não me ver junto de si durante os maus dias do seu sofrimento...

"Seria à cabeceira do leito o meu lugar, bem sei... E se aí não estive como devia estar, como quisera estar, é que um dever não menos sagrado, igualmente doloroso de cumprir, me afastou de si...

 

Aqui explica Lazarine, minuciosamente, o que o Príncipe sabia já por algumas palavras soltas de Júlio Leroux , isto é, a doença da Condessa de Gordes, doença cuja gravidade arrebatava todas as esperanças.

Depois a Marquesa continuou:

"Tratemos agora do futuro.

"Pense, querido Príncipe, que doravante uma nova pendência com esse odioso adversário é impossível! Proíbo-lhe com todas as forças da minha alma que pense em provocá-lo outra vez logo que esteja restabelecido, e se tiver a loucura de me desobedecer, creia que me interporei entre as espadas para evitar esse horrível duelo.

"Estou a ouvi-lo... Vai dizer-me, vai objetar-me que as circunstâncias permanecem idênticas, que são hoje as mesmas que eram ontem...

"Não, cem vezes não! Ao contrário, são inteiramente diferentes.

"Desde o momento em que estive a ponto de perdê-lo, compreendi o imenso amor que lhe dedicava...

"Para ser sua esposa estou pronta a tudo, e para que a sua existência não torne a correr risco, prefiro sacrificar a minha honra, ou a minha reputação, porque sei quanto tomará a peito tudo que se referir à minha personalidade... Heitor, um susto, o mais pequeno receio da sua vida, matava-me!

"Se tanto for preciso, querido Príncipe, partiremos para o estrangeiro, sairemos de Paris, apagando todos os vestígios dos nossos passos...

"Os documentos indispensáveis para o enlace ficariam ao cuidado de meu pai, e o casamento realizar-se-ia nalguma grande cidade de Inglaterra, Itália ou Alemanha, no consulado de França...

"Nada teremos a temer do mundo depois de casados; o meu perseguidor sentir-se-ia vencido, e não ousaria dirigir um ataque contra qualquer de nós...

 

Lazarine que não tinha assinado a carta destinada a Marcel Laugier, assinou esta, e chamou um criado, deu-lhe ordem de montar a cavalo e levar as três cartas ao correio de Orleans, para serem expedidas nessa mesma noite, e distribuídas em Paris na manhã do dia seguinte.

Voltemos agora ao palácio de Gordes.

 

UM RAIO DE ESPERANÇA

Tinham decorrido três dias.

O estado da condessinha agravava-se cada vez mais.

O mal, como sabemos, tinha respeitado a inteligência da infeliz menina, deixando-a lúcida e firme, apesar dos costumados sofrimentos.

Agora a enfermidade apresentava novo aspecto; uma sonolência física e moral paralisava-lhe os membros, e desdobrava uma espécie de véu através do seu pensamento.

Se não fossem os seus grandes olhos abertos, de uma fixidez que tinham o que quer que fosse de assustador, dir-se-ia que Joana dormia constantemente.

Chegara ao ponto em que parecia ter cessado completamente de sofrer.

Por vezes murmurava, como nos primeiros sintomas da doença:

— Tenho o corpo entorpecido...

Renée passava dias inteiros sentada à cabeceira do leito da irmã, muda, imóvel, numa atitude trágica, com uma expressão singular estampada na sua bela e pálida fisionomia de esfinge.

Máximo Giraud, constatando no meio do mais doloroso assombro os indícios precursores do próximo fim da enferma, blasfemava da ciência impotente, estéril e inútil, acusava Deus e os homens, e amaldiçoava-se a si próprio.

Raul, abrasado nas chamas do desespero, fugia para o parque onde errava como alma penada, subindo, descendo, entrando, saindo, caminhando ao acaso; depois, sufocado em lágrimas, erguia-se com a impetuosidade de um doido, arrepelava-se e fugia daquele anjo prestes a tornar-se cadáver, para soluçar em liberdade.

Joana parecia não dar fé do que se passava em volta dela e mergulhava, cada vez mais nessa sonolência que não é nem o estado consciencioso absoluto, nem o sono completo.

De horas a horas, como que um clarão trêmulo brilhava como um meteoro no fundo do seu olhar vago e mórbido, e nas feições: brancas e descarnadas, refletia-se a dolorosa inquietação que lhe ia n’alma.

É que, no naufrágio das suas faculdades mentais, sobrenadava uma idéia pungente, e avivava-se o sofrimento moral no espírito da pobre mártir.

Sabemos qual era a idéia; ouvimos a senhora de Gordes expressá-la com amargura, chorando sobre o peito e as mãos de Lazarine, no momento preciso em que Renée aparecia no limiar da porta da sua alcova.

Ninguém ignora que durante os últimos dias, e mesmo no correr das horas supremas que precedem a agonia, travam-se a maior parte das vezes lutas rijas, inesperadas, entre a vida desfalecida e a morte implacável.

A alma prestes a voar, despedaçada, rompe o invólucro nebuloso que a obscurece, e readquire toda a sua lucidez.

Na madrugada do quarto dia, realizava-se em Joana o fenômeno cuja existência acabamos de denunciar.

O leito da condessinha, — um grande leito do estilo Luis XVI — ocupava o meio do cômodo, e tocava a parede com a cabeceira.

Era meio dia.

Raul e Renée sentados, um à direita, outro à esquerda do luxuoso tálamo feito para o amor e não para a agonia, contemplavam com igual fixidez a loura criança tão branca como a fina tela, e como as rendas das almofadas em que descansava a formosa cabeça.

Para salvar esta criança, o Conde teria dado a vida.

Renée friamente o de olhos enxutos, contemplava a vítima do seu ódio, e aplaudia-se da sua obra infame.

A sombria e rancorosa criatura repetia no segredo do seu espírito sem remorso:

— Ela roubou-me tudo! Eu tudo lhe roubo. É justiça!...

Joana fez um ligeiro movimento...

Uma fugitiva faísca fulgiu nos seus olhos meio cerrados; delineou-se o esboço de um sorriso nos lábios pálidos, e com voz débil, mas distinta, murmurou:

— Estão aqui, ao pé de mim, bem os vejo... o meu querido Raul, e a minha boa irmã... Julgavam talvez que dormia... mas estava acordada, com os olhos fechados... Pensava...

— Em que pensavas, minha queridinha? perguntou o Conde curvando-se sobre Joana, e cobrindo-lhe de beijos a fronte emoldurada por suas formosas trancas soltas.

— Pensava naqueles que me amam, e que eu amo de toda a minha alma... Em ambos... e em Lazarine também... respondeu ela com expressão de tristeza. Pensava em ambos, principalmente...

— Como te sentes agora? perguntou Raul?

— Nem eu sei dizer! Uma coisa extraordinária, que não posso explicar... Parece que dormi um sono interminável e que desperto agora.

— De forças, como estás?

— Muito abatida... Quero mudar de posição, e não posso... Ajudem-me... Doe-me o corpo de estar tanto tempo deitada... Sentada devo estar melhor...

O Conde e Renée apressaram-se em realizar os desejos da enferma. Levantaram-na docemente e cercaram-na de almofadas, de modo que estivesse naturalmente reclinada.

E tornou a sorrir, com o sorriso casto e ideal da beleza angélica.

— Bem dizia eu... tornou; estou melhor assim...

Dois dias antes a senhora de Gordes perdera a fala e parecia estar presa à vida por um fio.

A transformação por que acabava de passar, quase se poderia dizer uma ressurreição.

O Conde, radiante de alegria, pensou:

— Deus faz talvez o milagre... Uma crise salutar está-se operando neste organismo de mártir, quando julgava tudo perdido...

E ajuntou em voz alta, com indizível expressão de contentamento:

—Veja, Renée, veja minha querida René, como está a nossa doentinha! Transfigurada, completamente transfigurada! Diz-me o coração que está salva.

— O meu coração participa também desse instinto, Conde... replicou a segunda filha de Júlio Leroux. E ainda bem que essas esperanças se confirmam aos meus olhos... A convalescença de Joana começa por um passo de gigante... Está mais animada e com melhor parecer... O sangue circula livremente, e a palidez vai desaparecendo sob o belo rosado da saúde... A febre diminui... e não tardará a recuperar as forças.

 

A condessinha ouvia, sorrindo sempre, mas a expressão desse sorriso, apesar dos seus esforços, tornava-se pungente.

— Minha doce Joaninha, replicou Raul, o nosso bom doutor Giraud ficará contentíssimo com as tuas melhoras repentinas, que ele de certo previa, se bem que não fossem tão próximas... Queres que vá chamá-lo e que venha ver-te?

— Não... disse ela; agora não...

— Por que?

— Porque tenho de dizer-te umas tantas coisas que eu não quero adiar para mais tarde... Preciso falar-te, meu bom Raul, falar-te muito...

— Muito?... repetiu o Conde espantado.

— Sim.

— E se a fadiga e o cansaço te fizer mal, minha filha?

— Que importa! As confidencias que desejo que escute, são muito graves para que se retardem, uma hora mais que seja... Devo aproveitar estes momentos de tréguas que Deus me concede.

— Isso que tu chamas momentos de trégua prolongar-se-ão, creio eu, e voltarás depressa ao teu estado normal.

— Quem sabe?

— Eu, sei eu... e Renée também...

— Pode-se responder pelo futuro? murmurou com desalento a senhora de Gordes.

— Sim pode, respondo eu! continuou Raul; podes falar minha queridinha uma vez que são esses os teus desejos... De que se trata?

— Renée... disse Joana, dá-me as tuas mãos...

Renée depôs nas mãos da condessinha as suas e prosseguiu.

— Abraça-me...

— De toda a minha alma... balbuciou o Caim feminino, tão infame como o Caim bíblico, pousando os lábios nas faces da irmã, que continuou com a sua voz trêmula e repassada de meigas carícias:

— Sabes como te amo, minha boa Renée... Sabes como seria reconhecida à tua inexcedível ternura, como agradeceria os teus inexcedíveis cuidados de todas as horas, a tua dedicação incansável... — Amo profundamente Lazarine, adoro meu pai, más sois vós, Raul, e tu, as duas grandes afeições da minha vida... Não duvidam, pois não?

— Não... replicou Renée. Não duvido.

O Conde respondeu beijando-lhe a boca.

:— Coisa alguma que parta de mim, um desejo, uma vontade pode ferir as tuas suscetibilidades, ou magoar-te, sim? prossegue a Condessa.

— Que singular idéia, tontinha!

— Nenhuma das minhas ações te parecerá inspirada pela desconfiança?

— Nenhuma...

— Bem; obrigada! Agora posso pedir-te, sem receio de te ofender, que me deixes só com Raul... O que tenho a dizer-lhe só deve ser ouvido por ele, e não me julgo autorizada a falar na tua presença, embora sejas para nós a confiança personalizada...

Renée levantou-se.

— Querida mana, murmurou ela, de que servem essas precauções oratórias para me pedires o que há de mais simples no mundo?... Retiro-me; ficarei no meu quarto; quando quiseres, dirás a Raul que vá prevenir-me, para estar junto de ti...

E beijou novamente a irmã. Quando se dirigiu para a porta do gabinete de toilette que comunicava com as alcovas ia pensando:

— Que terá ela que dizer-lhe? Trata-se duma criancice, ou estas confidentes in extremas são realmente graves?... Preciso saber o que é... Escutarei...

Chegando ao limiar da porta afastou as tapeçarias de Gobelins que serviam de reposteiros; voltou-se, enviou um sorriso a Joana, € deixou cair a pesada tela, desaparecendo.

Em pé, ao lado esquerdo da cama e sem adivinhar o motivo da confidencia misteriosa que a senhora de Gordes lhe solicitava, o conde esperava, muito comovido.

— Querido Raul, disse a Condessa com um gesto, senta-te.

O Conde lançou mão de um fauteuil.

— Não, não... objetou Joana vivamente; assim não... Senta-te na cama, ao meu lado... Passa o teu braço por sobre os meus ombros... Ampara-me... Quero que a minha boca fique colocada aos teus ouvidos... Raul... incomodo-te?...

— Não, lindinha; estou bem, sinto-me feliz satisfazendo sempre as tuas vontades.

— Como és bom!

E o senhor de Gordes tomou desde logo a posição indicada pela angélica enferma.

Joana descansou sobre o ombro do marido não somente o braço mas a cabeça e murmurou:

— Antes de começar, tenho que pedir-te duas coisas...

— Quais?

— Um perdão e uma promessa...

— Um perdão!... Que tenho eu a perdoar-te, meu anjo?

— É preciso perdoar-me o desgosto que naturalmente vou causar-te... Quero primeiro que me prometas cumprir o que vou pedir-te... seja o que for...

— Não compreendo, mas prometo...

— Palavra de honra?

— Palavra de honra...

— Aceito o teu juramento, Raul... Agora escuta-me...

 

CONFIDENCIAS

— Agora escuta-me... dissera Joana, e contudo calou-se.

A cabeça e o braço esquerdo apoiado sobre o ombro do marido, e uma das mãos entre as mãos dele, a Condessa parecia meditar. Procurava sem dúvida um meio qualquer de atenuar, de suavizar o golpe terrível que ia descarregar sobre o seu noivo querido.

Noivo! Para a sua alma, para o seu coração dulcíssimo, Raul era, seria sempre o seu noivo!

— Meu bom Raul, começou ela com voz débil como um murmúrio, que foi elevando-se gradualmente, desde certos dias, desde certas semanas, que respeito as tuas ilusões, embora sinta não poder partilhá-las... Tenho feito tudo quanto depende de mim para te conservar esperanças que não abrigo... que há muito se desfolharam...

Interrompeu-se...

— Não te compreendo, Joaninha... balbuciou o senhor de Gordes.

— É melhor dizer volveu a Condessa, que não queres compreender-me. É impossível que o nosso bom doutor, cuja ciência e dedicação conheço, perfeitamente, se iluda de um modo absoluto a ponto de ser absurdo acerca do meu estado; — é impossível que uma ou outra vez, não tenha levantado uma ponta do véu para que vejas a verdade; unicamente parece que te recusas vê-la, porque a verdade faz-te medo... e tu fechas os olhos à evidência porque a evidência desespera-te. Pois bem, querido Raul, por muito dolorosa que seja a realidade, chegou o momento de a fitar de perto. A felicidade que me destes desde que nos amamos, desde que sou tua esposa, era muito grande, completa, infinita, — não podia durar sempre... Seria o meu paraíso sobre a terra!... Fui, graças ao teu amor, mais feliz na minha breve existência que milhares de criaturas humanas a quem o céu concede largos anos de vida... Não me lastimo porque seria ingrata. Deus foi generoso em me dar uma grande parte nas venturas do amor conjugai, e o meu reconhecimento é igual à sua bondade na hora em que sou chamada a agradecer-lhe... A minha sentença está escrita, meu querido Raul... Antes de partir para a eternidade, onde nos tornaremos a unir, vou causar-te a única tristeza que terás de queixar-te de mim, mas essa tristeza prometes-me perdoá-la...

O senhor de Gordes sentia-se desfalecer.

Assim, não se iludia, conferenciando dias antes com Lazarine:

— "Joana, em sua natureza angélica, sente-se condenada talvez,. mas parece ignorá-lo... Faz tudo quanto lhe é possível para não me arrebatar uma suprema esperança! recusa juntar nova dor ao horrível desespero que me devora..."

Ah! tudo isso era verdade!

Joana via a morte caminhar para ela e calava-se sorrindo!...

O que antes dele tinha feito a Marquesa de la Tour-du-Roy na sua confidencia com a irmã, Raul exclamou, envolvendo Joana num estreito abraço e beijando-lhe os louros cabelos que flutuavam sobre a brancura das espáduas.

— Não, não, minha querida Joaninha... Não há de morrer... A condessinha fez um gesto negativo com a cabeça e replicou:

— Sei que vou morrer... É inútil combater a convicção que me domina... deixa-me, pois, que continue sem me interromperes... Não destruas o pouco que me resta em forças e coragem... As tuas lágrimas inundam-me as mãos, caem sobre o meu coração... Raul!' alenta-me... anima-me porque quero dizer tudo...

Raul compreendeu que, se pronunciasse uma palavra, rebentaria um dilúvio de soluços.

Calou-se e em sinal de consentimento, limitou-se a apertar as mãos de Joana.

— Compreendo-te. "Respondes-me: — Sim... replicou a pobre criança. — Obrigada de toda a minha alma...

Depois de breve silêncio, continuou:

— O sacrifício aceitou-se... embora com amargura... Morrer aos dezoito anos, morrer em plena felicidade... é atrós! Contudo, resigno-me, assim é preciso, e mais resignada ficarei quando me livrares da angústia, de que não posso aliviar-me, e que enche de espinhos os meus últimos momentos... Um destes dias dizia eu a Lazarine: — "Que vai ser dele, meu adorado Raul, de quem a morte me separa? não quisera que ele sofresse mais, mas também não desejava ser esquecida depressa... Aflijo-me pensando que, pertencendo para o futuro a uma outra mulher, esta lhe ordenasse que me esquecesse..."

O senhor de Gordes fez um movimento brusco.

— Outra mulher! repetiu ele com voz rouca, estrangulada, como se as palavras viessem dilaceradas por lâminas de aço. Inspiro-te tanto desprezo para que possas ter essa idéia, Joana? Não, não hás de morrer; mas se Deus te levar, o meu coração irá contigo para o túmulo, enquanto o corpo não vai... Oh! sim, não se demorará muito...

Joana abaixou docemente a cabeça.

— Não quero que morras! disse ela com intimativa. Raul, ordeno-te que vivas...

— Está na minha mão obedecer-te?

— Juraste pela tua honra que me concederia a graça que implorasse, fosse qual fosse...

— Impossível!

— Juraste! Lembra-te do teu juramento. Cumpre a tua palavra de cavalheiro... deixa-me levar comigo essa última alegria...

— Joana, tem piedade de mim! balbuciou o Conde lutando contra a dor que o sufocava.

Ficou porém vencido... as lágrimas rebentaram copiosas, ardentes, intensíssimas como a dor que lhe cruciava a alma.

— Sou cruel, meu pobre amigo, bem sei... mas não é por minha culpa... Eleva para Deus o coração, meu Raul... Eleva para o céu o teu coração, querido, e escuta-me... Queres ouvir-me?

— Fala, querida, e que Deus se compadeça de mim... Joana prosseguiu:

— Quando deixar de existir, o mundo parecer-te-á um desterro horrível, — porque sei que me amas quanto é possível amar-se na terra... A solidão é má conselheira... O isolamento e a tristeza podiam matar-te, e eu ordenei-te vivesses... Ora, tu não podes viver só... Raul, vou confiar-te a minha suprema vontade... Eis a graça que imploro, que me concederás, porque prometeste, porque juraste... Um ano depois da minha morte, nem mais tarde, nem mais cedo... Um ano depois da minha morte casarás...

— Nunca! exclamou o Conde impetuosamente; nunca! Repetiu. Não!

A senhora de Gordes continuou como se não tivesse ouvido:

— Uma desconhecida que tomasse o meu lugar, que unicamente quisesse ser querida, e dispondo dos direitos que era natural exercer no teu ânimo, impor-te-ia o esquecimento à minha memória... Seria para ti uma necessidade, embora duríssima, apagar do teu coração a minha imagem, esquecer até o meu nome... este nome que teus lábios pronunciam com uma inflexão tão suave e terna quando me dizias: Joaninha, adoro-te!... Veria tudo isso, meu Raul, nas alturas do país celeste para onde me chama a vontade de Deus; minha alma sofreria horrivelmente, e morta, teria ciúmes!... Estremeço de susto, com este pensamento. É para evitar o suplício, é para morrer em paz, com a tranqüilidade no coração e o sorriso nos lábios, que quero dar-te para esposa uma mulher digna de ti... uma mulher que, tendo-me amado com dedicação, respeitasse a minha memória e orasse pelos descanso da minha alma... Essa mulher conhece-a... As afeições profundas da sua vida resumem-se em nós... Queres-lhe como uma irmã... Acostumar-te-ás depressa a amá-la como esposa... e depois pensarão ambos na sua pobre Joaninha... hão de falar dela muitas vezes, e irão ajoelhar sobre a sua sepultura, orvalhá-la de lágrimas e plantar-lhe violetas... Amá-la-as muito... menos talvez do que me amas... consente este último egoísmo, querido, peço-te que a ames um quase nada menos... Ah! eu sei que o teu amor por mim resume tudo quanto é belo, grande, único! Não pode amar-se assim duas vezes na vida, pois não?... Raul, querido Raul... também eu te amei assim... Como eu te amo, Deus do céu, como te quero... e morrer!...

A voz de Joana extinguiu-se num febril murmúrio. As lágrimas por muito tempo reprimidas, jorravam com abundância, como momentos antes tinham jorrado as do Conde.

A crise foi breve.

A senhora de Gordes salvou do naufrágio da sua prostração uns restos de força para não sucumbir.

Ao cabo de alguns instantes continuou, imprimindo à voz os tons da firmeza, apesar dá suavidade e tristeza que o seu gesto exprimia:

— Esta mulher em que tenho confiança... que desejo seja tua esposa, adivinhas de certo quem é... É Renée... Prometes, meu adorado Raul, prometes casar com Renée um ano depois da minha morte?.

O Conde tentou responder, e, sem prender a sua palavra a uma promessa positiva, pretendeu sossegar Joana com umas palavras ambíguas que a enferma pudesse tomar por consentimento. Foi-lhe, porém, impossível pronunciar uma palavra, articular um son... Asfixiava, e, no paroxismo dá sua agonia moral, parecia-lhe sentir vacilar a razão.

— Que significa o teu silêncio, Raul? perguntou a Condessa. Não sabes... Tenho o teu juramento!... Raul, responde-me!...

O senhor de Gordes soltou-se docemente dos braços que o enlaçavam... Depôs sobre as almofadas a loura cabeça de Joana, e como ela tornasse a repetir. — Raul responde-me! responde-me!" — precipitou-se para fora do quarto com a impetuosidade do homem que não resiste a uma revolução cerebral e endoidece...

— Ele jurou pela sua honra, murmurou a senhora de Gordes, e não ousará perjurar quando eu não existir...

Imóvel e com o ouvido colado ao reposteiro, Renée ouvira tudo.

Um sorriso de orgulho satisfeito, triunfante, iluminou-lhe o rosto sombrio e fatídico.

— Eis aqui um auxílio poderoso e inesperado para os meus projetos! pensou ela. Tenho minha irmã por advogada da causa, o triunfo é certo, certíssimo! Só me resta uma coisa — acabar com isto! Dentro de oito dias, Raul ficará viúvo...

No momento em que terminava a confidencia a que os nossas leitores assistiram, parava defronte do largo portão de ferro do. palácio um caleche, e a senhora de la Tour-du-Roy descia, ou antes saltava com a mais encantadora agilidade.

Interrogado o criado que veio recebê-la respondeu:

— Nada de novo, senhora Marquesa; a situação permanece do mesmo modo, modificações... O senhor Conde está com a senhora....

O criado enganava-se, porque ao atravessar um dos salões do "rez-de-chaussée" Lazarine, viu, com a maior admiração, Raul sentado, ou antes enovelado, num sofá, com a cabeça entre as mãos soluçando dolorosamente.

A Marquesa dirigiu-se vivamente para ele.

— Meu irmão, exclamou ela, que tem? A sua atitude assusta-me... Aconteceu alguma fatalidade?

O Conde abriu as mãos trêmulas, mostrando a lividez do rosto e os olhos vermelhos e lacrimosos.

— Não minha irmã... balbuciou com voz mal segura... Joana não morreu ainda... mas conhece o seu estado, sabe que vai morrer...

— Foi ela quem lhe disse?

— Sim; foi ela...

— Como? A propósito de que?... replicou a Marquesa. Que se passou?... Peço-lhe, suplico-lhe, que me conte tudo, sem ocultar coisa alguma...:

O senhor de Gordes não resistiu à rogativa de Lazarine. Contou o que sabemos.

A Marquesa, tocada de emoção profunda, escutou a pungente narrativa.

— Devia terminar assim... murmurou ela em seguida. A idéia fixa que a domina, que mal pode dissimular, conduzia fatalmente a nossa querida Joana à resolução que tomou... Pobre criança! Tão nova e com o coração dilacerado! Que sofrimentos cruéis e que coragem para os suportar!... E o Conde prometeu obedecer-lhe?

O Conde fez um gesto negativo.

— Pois é preciso prometer... continuou Lazarine. É preciso dar à nossa querida moribunda essa suprema consolação...

— Para quê? objetou Raul. Não poderia cumprir a promessa que Joana me exige...

— Por que?

— Renée inspira-me profunda afeição; mas é impossível considerá-la de outro modo que não seja como irmã...

— Pois bem é precisamente por isso que inspira mais confiança à Joana, exclamou Lazarine. Não é o seu amor que ela quer para Renée; é o seu nome, para que nenhuma outra se apossasse dele e do seu coração... seja generoso, Conde... Deixe que eu diga a Joana, que realizará a suprema vontade dela...

O senhor de Gordes hesitou primeiro; depois, curvando a cabeça respondeu:

— Vá, minha irmã, já que é preciso seja feita a sua vontade...

 

UMA PROMESSA SALUTAR

Quando Lazarine entrou no quarto da irmã, Joana estava imersa numa profunda prostração física absoluta, conseqüência inevitável de uma grande perda de força vital.

Como ninguém tinha chamado Renée depois da repentina fuga do Conde, a senhora de Gordes ficou só, imóvel, respirando com dificuldade, com a cabeça enterrada nas rendas das almofadas, mas conservando toda a lucidez e penetração do espírito.

Ouvindo rumor de passos no tapete do quarto, não fez nenhum movimento, nem voltou os olhos para o lado de onde partiam.

— É Raul que volta... pensou ela.

A senhora de la Tour-du-Roy aproximou-se do leito, curvou-se sobre o corpo da irmã, e beijou-lhe as pálpebras quase diáfanas.

— Querida Lazarine, és tu... murmurou Joana sorrindo, — quanto sou feliz por te ver a meu lado!

— Como te sentes, lindinha? perguntou com meiguice a Marquesa.

— O costumado... um pouco mais próximo do fim, eis tudo.

— Sempre esse lúgubre pensamento!

— Sempre... e tu sabes, querida irmã, que tenho razões para pensar assim...

Lazarine sabia perfeitamente que qualquer negativa era inútil. Não respondeu às últimas palavras da irmã, e replicou passado um instante:

— Quando cheguei, a primeira pessoa que vi foi Raul...

A Condessinha estremeceu e perguntou vivamente:

— Falou-te?

— Sim.

— Que te disse?

— Tudo.

— Então, já sabes...

A senhora de Gordes interrompeu-se.

— Sei tudo que se passou, concluiu Lazarine. Sei que pediste ao Conde que, se ele te perdesse, casa-se com a nossa irmã Renée, passado um ano do teu falecimento...

— Pedi isso a Raul, é verdade, balbuciou Joana, Raul recusou-me a promessa que lhe solicitava... Não sabias talvez?

— Também sabia, e trago-te essa promessa... No presente e no futuro Raul não pode senão amar-te, minha adorada Joaninha, mas para assegurar a tranqüilidade da tua alma, aceitará o sacrifício que lhe impões... Renée será Condessa de Gordes, uma vez que o exiges, no caso que se realizem os teus negros pressentimentos, o que de certo Deus não permitirá; mas só terá o nome, título e fortuna, porque o Conde para ela será um irmão... nada mais que um irmão...

Joana sentiu despertar-lhe a força, e abriu os olhos que fulgiram.

— Obrigada, minha irmã! exclamou ela com arrebatamento. Trazes-me nessa promessa a minha última alegria! Obrigada, cem vezes obrigada!... Abençoada hora em que vieste! Presta-me um serviço, um grande serviço... Farás o que seja possível para que a minha vontade seja cumprida, sim?

— O que depender de mim, farei de todo o coração... replicou Lazarine. De que se trata?

— De falar a Renée, e obter o seu consentimento, visto que temos o de Raul... Compreendes, de certo, que me seria difícil tratar eu mesma desse assunto, que não teria coragem de lhe fazer semelhante pedido... contei com o teu auxílio, minha boa irmã... Fazes-me isso?

— Sim, farei, já que o queres.

— Quando?

— Hoje, se entenderes conveniente...

Oh! sim, hoje... agora mesmo! peço-te!... levarei na minha alma o doce alívio da gratidão!...

— Onde está Renée?

— Provavelmente no seu quarto...

— Vou ter com ela.

 

A senhora de la Tour-du-Roy dirigiu-se para a porta, levantou o pesado reposteiro, por detrás do qual, um minuto antes a segunda filha de Júlio Leroux se ocultara para escutar, atravessou dois gabinetes de toilette e penetrou no pequeno salão à Luís XV. que descrevemos quando Renée veio residir para o palácio de Gordes.

Renée, reclinada num largo sofá, estava numa atitude de estudo, que traduzia habilmente a dor e o quebrantamento de espírito.

O leve rumor de passos de Lazarine pareceu despertá-la de um sombrio letargo.

Levantou a custo a cabeça.

— És tu, querida irmã! murmurou ela. Não sabia que tinhas chegado... As preocupações, a debilidade e tristeza de que estou possuída são tão grandes que não ouvi a carruagem...

— Cheguei há pouco tempo, — meia hora se tanto... explicou a Marquesa relanceando sobre a irmã um olhar investigador. Estive sucessivamente com Raul e Joana, e venho desempenhar-me de uma missão que me magoa, ao mesmo tempo dolorosa e sagrada...

Renée soube dar à fisionomia a expressão de profunda surpresa.

— Uma missão dolorosa e sagrada... repetiu ela com lentidão. Não compreendo bem...

As circunlocuções e os rodeios seriam supérfluos, replicou Lazarine. Irei direita ao fim... A Joaninha não tem ilusões algumas acerca do seu estado. Sabe que tem os dias contados, talvez as horas, e cessando para ela toda a esperança de futuro, — aos dezoito anos! — a meiga e angélica criança pensa no futuro daquele que ama e de que vai ser separada pela morte...

Renée levou o lenço aos olhos como para enxugar as lágrimas.

A Marquesa continuou:

— Ninguém no mundo lhe dispensou maiores testemunhas de ternura e dedicação do que Raul e tu; a melhor porção das suas afeições concentra-se naturalmente em ambos, e a felicidade futura desses dois entes que a acompanham, é objeto das suas continuadas preocupações... Ora, pareceu-lhe a ela ter encontrado o meio de assegurar essa felicidade...

Renée afastou o lenço de sobre o rosto, e perguntou: — Qual é esse meio?

— O mais simples de todos, — respondeu Lazarine resolutamente, — ainda que no primeiro momento, e partindo a proposta de Joana, parece singular e inacreditável... O meio é este: Nossa irmã solicitou e obteve de Raul a promessa solene de casar contigo, depois de terminado o luto...

É insensato o que dizes, Lazarine! exclamou. Não, não pode ser... Isto é um pesadelo...

— Nem pesadelo, nem insensato, volveu a Marquesa; é o que é: a vontade de Joana não tem nada de impossível, se tu consentes em que se realize... É o teu consentimento que venho pedir em nome dela...

— Quê! Repentinamente? sem refletir, replicou com aparente terror.

— Sabes que não há tempo a perder...

— Convenço-me...

— Amo o Conde como se ama a um irmão, e creio que não liderei amá-lo de outra maneira...

— Olha, minha querida Renée, a pobre Joana deseja este casamento porque está persuadida que entre ti e o Conde nunca haverá amor... A idéia desta união é a única que não lhe causará ciúmes além da campa... Vamos, é preciso consentir...

— Mas por Deus! exiges-me que sacrifique o coração!

— Bem sei; mas sem contar a imensa alegria de dar a Joana a última consolação, a suprema felicidade, esse sacrifício oferece-te sérias compensações. Esse casamento, em que forçosamente não haverá paixão, alcança-te um belo nome, um título, uma grande fortuna, e um palácio principesco... Entre nós, diz, que outra união te daria estas coisas? Acredita-me, não hesites! Aceita...

Renée imprimiu na fisionomia a expressão de um desdém superlativo.

— Um nome... um título... uma grande fortuna, repetiu ela. Que me importa isso? Que conceito fazes de tua irmã, Lazarine? Crês que se consentisse ser Condessa de Gordes, sê-lo-ia por interesse?

Lazarine encolheu os ombros e respondeu:

— Pouco me importa o motivo do consentimento, contanto que consintas...

— Importa, porém, para meu crédito e consideração... replicou, altivamente Renée. Não quero que um ato de profunda abnegação se atribua a uma idéia ambiciosa... Desde muito tempo que a minha existência não tem outro fim senão afastar de Joana tudo que possa causar-lhe dor e tristeza, e prolongar a sua vida, que de dia a dia parece fugir... Completarei esta obra santa...

— Numa palavra, consentes? exclamou Lazarine impaciente. Posso levar a Joana a tua promessa?

Cumprirei o meu dever... replicou a hipócrita. Bem sabes que não tenho duas palavras...

 

Pouco, depois do meio dia, Máximo Giraud despedia-se do senhora de Gordes, um tanto inquieto pelo estado em que a encontrou, e dirigiu-se para a casa que no palácio servia de farmácia, onde devia encontrar Genoveva preparando uma bebida que ele tinha formulado.

Com grande surpresa sua, esta criada tão dedicada, e de ordinário tão conscienciosa, não tratava de cumprir o que se lhe ordenara.

Os frascos, destapados saturavam a atmosfera de um forte odor de empireuma.

Genoveva sentada, com o os cotovelos fincados sobre a urna, as mãos amparando o rosto inclinado, parecia adormecida.

E contudo não dormia, embora tivesse os olhos fechados, grossas lágrimas, deslizando das pestanas, traçassem nas faces um sulco úmido.

No momento em que o doutor entrou, ergueu a cabeça e deu dois passos, cambaleando, mas a sua atitude tão pensativa como respeitosa, indicava uma preocupação pouco comum.

— Senhor doutor, perguntou ela, a minha adorada senhora cada vez vai de mal a pior, não é assim?

— Sim, boa Genoveva; vai mal, muito mal...

— E não há esperanças de salvar-se?

— Nenhumas, quase nenhumas... Não há que esperar...

— Não conseguiu ainda descobrir a causa desta funesta doença, senhor doutor?

Máximo fez um gesto negativo, e pôs tristemente os olhos no chão.

— Se eu conhecesse a causa poderia combatê-la... respondeu ele. Desgraçadamente estou em frente de um enigma indecifrável que os príncipes dá ciência não alcançam, quanto mais eu, pobre médico obscuro!...

Depois de um silêncio de instantes, a fiel serva replicou fitando corajosamente o doutor:

— Senhor Máximo?

— Minha boa Genoveva?...

— Dá-me licença que lhe faça uma pergunta?

— Pois não; diga...

— Mas se essa pergunta o espantar, não há de julgar que estou doida, não? Não dirá que perde tempo em me escutar?

— Não pensarei nem direi semelhante coisa, porque sei que tem juízo são, as faculdades em bom estado, e que não fala senão depois de ter refletido...

— Nesse caso, senhor doutor, posso ter a convicção de que me responderá francamente?...

— Sem dúvida, valha-nos Deus! Mas para que são tantos preliminares, e qual a causa de tanta hesitação?...

— Hesito... sim, é verdade que hesito... Que quer? As palavras que vou pronunciar são terríveis... até me fazem medo!

— Talvez possa tranquilizá-la... Fale depressa e sem receio... Genoveva volveu um olhar de susto e desconfiança por toda a casa como para procurar invisíveis espiões, e disse com voz breve e abafada:

— Nunca suspeitou, senhor Máximo, que se comete um crime no palácio de Gordes?

 

CONTINUAÇÃO

— Um crime! repetiu o doutor estremecendo violentamente.

— Sim, respondeu Genoveva, um crime infame e covarde... um crime monstruoso! Assassinam a minha querida ama...

Máximo fez-se lívido.

— Genoveva! está demente!... exclamou.

— Prometeu não me julgar doida, senhor Máximo! replicou a dedicada mulher. Digo o que penso...

— E quem cometeria esse crime?...

— Não sei...

— Que interesse determinaria o crime?...

— Ignoro...

— Por que meio se realiza?

— Pelo veneno...

— Mas lembre-se, Genoveva, ponderou o doutor, que a senhora de Gordes está cercada de pessoas que a adoram... O Conde, a menina Renée, eu, a própria Genoveva, vigiamos incessantemente por ela... Como é que um inimigo poderia aproximar-se de Condessa, se é possível admitir que tenha inimigos?... É das suas mãos e das da irmã que ela toma todos os medicamentos e recebe alimentos...

— É verdade...

— Perante estas dedicações absolutas, que fecham a doente num apertado círculo de cuidados, como é que pode levantar semelhante acusação? Quem é o criminoso?

— Não acuso ninguém, Deus me defenda!... Não ousaria tanto!... Acreditei no veneno, eis tudo...

— Mas esse veneno, prosseguiu o doutor, donde viria? Sabe qual é a procedência?

— Ah! se sei!...

— Genoveva, fale depressa...

— Senhor Máximo, o campônio, o rústico mais estúpido colheria nos campos, aí por esses vaiados, sem receio de se enganar, ervas que fazem morrer, a beladona, a cicuta, muitas outras cujo nome ignoro...

— Não há dúvida; mas o médico mais ingênuo não se enganaria a respeito da natureza do envenenamento produzido por algumas dessas plantas... ,

— Mas não haverá nas estufas do palácio, senhor Máximo, arbustos e plantas de países longínquos, e cem vezes mais perigosas de que a dos nossos campos?...

— Os arbustos e plantas a que se refere são tão numerosos...

— Os médicos podem reconhecer logo à primeira vista os efeitos produzidos pelas vegetações desses países estrangeiros?

— Convenho que não, sem um estudo especial sobre a flora dos trópicos, pelo menos correm risco de se enganar redondamente.

— O senhor doutor já fez esse estudo?

— Confesso que não, nem mesmo tenho à minha disposição meios para o fazer...

— Nesse caso, um crime cometido com o auxílio do que se chama flora dos trópicos, deixá-lo-ia em dúvida sobre qual seria a origem?

— Sim; mas que importa? Sabe tanto como eu, Genoveva, que ninguém, exceto os donos da casa e os criados do palácio, podem introduzir-se nas estufas; por conseqüência, a menos que não queira acusar determinadamente...

— Perdão, senhor doutor, interrompeu Genoveva; não acuso ninguém!

— Mas suspeita...

— Afirmo a existência do crime, sem suspeitar do autor...

— A sua convicção é puramente instintiva ou baseada num fato material?

— O fato material existe...

— Qual é?

— Renée e o senhor Conde estão neste momento juntos da minha querida senhora... disse a dedicada serva em lugar de responder; quer vir comigo, senhor Máximo?

— Onde?

— Às estufas. — Vamos...

Quando Genoveva pronunciou a terrível palavra crime, Máximo fizera-se pálido, e durante todo o tempo que a conversação durou, esteve ele numa constante convulsão.

É que se recordava dos primeiros sintomas da singular enfermidade de Joana, e tinha dito a Raul quando o interrogava acerca das alucinações noturnas da Condessa, e a causa dessas alucinações:

— É precisamente a causa que não consigo descobrir... Fogem-me, escapam-me absolutamente os resultados de casos de envenenamento que oferecem, é verdade, frisantes analogias com as crises que afligem a enferma. Existem venenos vegetais que produzem alucinações e levam até à loucura... Admite a possibilidade de um envenenamento acidental?...

— Nego formalmente... replicara Raul; minha mulher e cunhada, eu alimentamo-nos à mesma mesa; e tanto nós como os criados, nunca nos queixamos nem sentimos o menor incômodo até hoje...

Máximo deixou-se convencer pela lógica aparente desse raciocínio.

E desde essa época a idéia de um crime inverossímil, para não dizer impossível, lhe não tornara a passar pela cabeça.

Agora erguia-se dessa ilimitada confiança, e Deus sabe com que amargura!

Uma única palavra de Genoveva, pobre mulher ignorante, acabava de abrir-lhe aos pés abismos de uma profundidade medonha!...

Ignorava até ao presente sobre que bases aceitáveis se formavam as suspeitas da fiel serva, mas ia mais além do que ela na senda das conjeturas sinistras.

Pressentia os móveis do crime, quase que enxergava ao longe, através da bruma transparente do pressentimento, o vulto do criminoso...

Admitindo o envenenamento por meio de uma substância vegetal desconhecida, os fenômenos até o presente incompreensíveis da singular doença de Joana, torna explicáveis, quase claros como as mais simples enfermidades.

Compreendendo que, enfim, ia brilhar a luz no meio das trevas em que andava perdido; o doutor sentiu cair-lhe dos olhos a venda que lhe ocultava o crime.

— Talvez, dizia ele num desespero concentrado, talvez tenham na minha própria presença propinado a morte à angélica criatura que amo em silêncio, que adoro como a expressão mais completa de uma bela alma, e não tenho visto nada!... Se assim é, a minha fatal cegueira torna-me cúmplice do assassinato... Sem a minha louca e criminosa credulidade, tê-la-ia defendido e salvo... Agora é já tarde para a salvar, mas fica-me ao menos o recurso da vingança! Oh juro, pela honra de minha mãe, que a cabeça do assassino rolará no cadafalso!...

 

Enquanto Máximo pensava estas coisas, Genoveva, caminhando rapidamente, conduzira-o ao jardim de inverno, cujas maravilhas descrevemos com largueza numa parte deste livro.

Fez girar a porta envidraçada sem ranger nos gonzos. Esta porta dava comunicação para uma das salas do "rez-de-chaussée", e antes de entrar, parou um ou dois segundos.

Os jardineiros tinham esquecido ou desprezado os seus trabalhos especiais, e as rótulas para o renovamento do ar nas estufas estavam desde muito tempo fechadas.

O calor era sufocante. Um vapor pesado, intenso, elevando-se nas terras adubadas e dos tanques tépidos prendia-se sob a forma de um nevoeiro escuro ao vidros convexos da cúpula. Acres odores vegetais saturavam a atmosfera e tornavam-na quase irrespirável.

Genoveva recuou, voltando-se para Máximo:

— Sente o efeito destes venenos flutuantes? perguntou ela. Que tempo seria preciso para dar a morte a quem se fechasse aqui?...

— A asfixia seria rápida... respondeu o doutor.

— Venha, senhor Máximo... Pouco tempo preciso para mostrar-lhe o que desejo que veja...

A dedicada serva penetrou resolutamente nas abóbadas de folhagem e entre os grupos cerrados de arbustos de que se exalavam os perfumes terríveis das vegetações orientais.

Conduziu sucessivamente Máximo para o canteiro dos eufórbios da Abissínia, espinhosas e de troncos recurvados, para os donpendanus de Java, de grupos de folhas delgadas e recortadas, estriadas de verde e tranco, para o dos tanglins de Madagascar, de hastes azuladas e alvacentas, de folhas parecidas com as do buxo.

Em frente de cada um destes preciosos exemplares da flora oriental, Genoveva parava e dizia simplesmente a Máximo:

— Veja bem, senhor doutor.

Ao mesmo tempo indicava numerosas incisões, umas antigas, outras ainda frescas, praticadas na epiderme dos troncos com a ponta de canivete.

Destas incisões pouco profundas ressumavam gotas de seiva, umas transparentes e viscosas como resina, outras mais opacas e de um branco leite.

— Veja bem, senhor doutor.

— Sim, vejo... respondeu Máximo. Acreditará que o acaso fez isto?

— Não; é impossível.

— Parece-lhe então evidente, como julgo, que o fim destes golpes é para deixar correr o veneno?...

— Sem dúvida... replicou o doutor. Mas será verdadeiramente veneno que corre?

— Vai ter a prova.

— Onde?

— Na biblioteca. Venha, senhor Máximo; não temos mais que fazer aqui...

Máximo antes de sair do jardim de inverno, levou a ponta do dedo à mais recente das incisões de um tanglin de Madagascar, recolheu uma pequenina bolha láctea, e depositou-na na língua.

Despertou imediatamente uma sensação de intolerável amargo, acompanhada de causticante ardor, como se tivesse levado à boca um ferro em brasa. Tossiu, escarrou, limpou com o lenço a amargosa saliva, mas a dupla sensação continuava.

Ao mesmo tempo a extremidade do dedo aquecia, sentia um formigueiro de dores agudíssimas, e a epiderme manchada pela seiva do tanglin enegrecia como se tivesse contato com um pedaço de nitrato de prata.

— Ah! descobri enfim o veneno! exclamou ele, não são precisas mais provas... Esta é fulminante! Como se chama este arbusto?

— Não me recordo; verá o nome no livro...

— Qual livro?

— Um livro grande que está na biblioteca, com muitos outros iguais, que o senhor Conde estava lendo no dia em que o senhor doutor veio cá pela primeira vez... O senhor Conde lia com muita atenção como se quisesse decorá-lo. Ah! é um livro lindíssimo, com estampas, um livro curioso... Uma vez fui sozinha à biblioteca para o ver à minha vontade... e se não fosse esse livro não tinha eu essa idéia...

Máximo, cada vez mais agitado, subiu com Genoveva ao segundo andar, e entraram na biblioteca.

 

                                                                                            Xavier de Montépin  

 

                      

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