A carta chegou a Roma em fins de Novembro, um tempo de mudanças no Senado reorganizado de Sila. Os cônsules do ano estavam a chegar ao fim do seu mandato e os cônsules eleitos para o ano seguinte esperavam já ansiosos pelas transmissão do poder. Por causa da doença crónica de Lúcio Octávio, apenas um cônsulj Caio Aurélio Cota, ocupava a cadeira curul. Mamerco Princeps Senatus leu a carta de Pompeu aos senadores silenciosos — a leitura de cartas fora um dos privilégios que Sila não retirara ao chefe do Senado.
Foi Lúcio Licínio Lúculo, cônsul sénior eleito para o ano seguinte, que se levantou para responder; o seu colega júnior era o irmão do meio do actual cônsul, Marco Aurélio Cota, e nenhum dos Cotas queria responder àquela carta tão crua e perturbante.
— Pais Conscritos, a carta que acabam de ouvir é um relatório de um soldado e não uma insidiosa missiva de um qualquer político!
— Um relatório de soldado? O que eu acho é que o seu autor é tão incompetente a escrever como a comandar um exército — replicou Quinto Hortênsio, apertando o nariz como que para evitar algum fedor.
— Ora, Hortênsio, cala-me essa boca! — atirou-lhe Lúculo, farto de ouvir tais comentários. — Francamente! Não estou nada interessado em ser interrompido pelas observações elegantes de um general de trazer por casa! Quando conseguires deixar o teu divã e abandonar os teus belos peixinhos e fores, em vez disso, lutar contra Quinto Sertório, não só abrirei alas para que tu passes, como deixarei o chão juncado de pétalas de rosa! Mas enquanto a tua espada não for tão acerada como a tua língua, deixa ficar a língua onde ela deve ficar — atrás dos teus dentinhos gulosos!
Hortênsio cedeu, ainda que com um ar muito azedo.
— Como eu estava a dizer, não se trata de uma insidiosa missiva de um qualquer político. E não nos poupa a nós, os políticos. Por outro lado, também não poupa o seu próprio autor. Não apresenta desculpas para os seus fracassos e o que nos diz sobre as batalhas vencidas e perdidas é corroborado pelas cartas que temos recebido regularmente de Quinto Cecílio Metelo Pio.
”Ora bem: eu nunca estive na Hispânia. Alguns de vocês conhecem a região, mas a maior parte está no mesmo barco que eu — nada sabe da Hispânia. Em tempos que já lá vão, a Hispânia Ulterior tinha a fama de ser uma região proveitosa para o governador — uma região rica, pacífica, embora cheia de bárbaros nas suas fronteiras. No entanto, as guerras contra os bárbaros eram coisa fácil para os governadores. A Hispânia Citerior nunca gozou da mesma reputação — os ganhos eram poucos e os povos nativos mantinham-se numa agitação constante. Portanto, o governador da Hispânia Citerior só podia esperar do seu governo uma bolsa vazia e muitos problemas com as tribos das montanhas.
”No entanto, tudo mudou com a chegada de Quinto Sertório. Ele já conhecia bem a Hispânia, porque acompanhara Caio Mário nas suas missões, porque fora tribuno militar de Tito Dídio — e durante esse tribunato, não sei se estão lembrados, Quinto Sertório, apesar de ser ainda um jovem, ganhou a Coroa de Erva. E quando este homem notável e temível regressou a Hispânia, como um rebelde mariano que procurava vingar-se, a província citerior tornou-se literalmente ingovernável e a província ulterior ficou ingovernável a oeste do Bétis. Como diz a carta de Cneu Pompeu, o excelente governador da Hispânia Ulterior precisou de quase três anos para vencer uma batalha contra um dos apoiantes de Sertório, Hirtuleio — e não contra o próprio Sertório. Há uma coisa de que a carta não nos censura: não nos censura por termos deixado a Hispânia Citerior sem governador durante quase dois anos, por causa das lutas intestinas em Itália. Isso, Pais Conscritos, foi o mesmo que dar a província citerior de bandeja a Sertório!”
Lúculo fez uma pausa para olhar directamente para Filipe, que tinha a cabeça ligeiramente dobrada e sorria com todos os seus dentes. Lúculo detestava estar a fazer o trabalho de Filipe; mas era preferível ser ele a fazê-lo, do que alguém que até o mais estúpido dos senadores identificasse como um dos apoiantes de Pompeu.
— Quando o Senado deu a comissão especial a Cneu Pompeu Magno, eu estava a governar a Província de África e vocês não conseguiram encontrar um senador capaz e interessado em assumir a tarefa de vencer Quinto Sertório. Mandaram Cneu Pompeu para a Hispânia com seis legiões e mil e quinhentos cavaleiros. Pois digo-lhes, com toda a franqueza, que eu me teria recusado a ir para a Hispânia com menos de dez legiões e três mil cavaleiros — os números que Cneu Pompeu considera adequados. Os números correctos!
”Se examinarmos a folha de serviços militares de Pompeu, só podemos concluir uma coisa: é absolutamente impressionante. E Pompeu é jovem e, por isso, flexível e adaptável, qualidades que os homens perdem depois dos entusiasmos da juventude. Contra qualquer outro inimigo de Roma, seis legiões e mil e quinhentos cavaleiros teriam sido, provavelmente, suficientes. Mas Quinto Sertório é um caso muito especial. Não vimos ninguém como ele desde Caio Mário e, pessoalmente, acho-o melhor general que Mário. Por isso, as derrotas iniciais de Pompeu não têm nada de surpreendente. Como poderia ter a sorte pelo seu lado, se enfrentou uma das melhores cabeças que Roma alguma vez produziu? Duvidam disso? Pois não duvidem! Não duvidem, porque é a pura verdade!
”No entanto, até mesmo as melhores cabeças militares têm uma maneira específica e reconhecível de pensar. O governador da Província Ulterior, o nosso bom Pio, já se encontra na Hispânia há tempo suficiente para começar a entender a forma como Sertório pensa. Dou os meus parabéns a Pio por isso. Francamente, eu não acreditava que ele tivesse essa capacidade! No entanto, sozinho, não conseguirá bater Sertório. O teatro de guerra é demasiado vasto — é como a Itália durante a Guerra Italiana. Um homem não pode estar a Norte e a Sul ao mesmo tempo e, entre as duas regiões, fica uma barreira montanhosa extremamente seca.
”Vocês mandaram outro homem — um mero cavaleiro a quem puseram uma espécie de coroa militar sem nome — para governar a Província Citerior. Como é que era a tua frase, Filipe? Ah, sim, já me lembro: non proconsule, sed pró consulibus. Deram-lhe a entender que o enviavam para a Hispânia adequadamente acompanhado e adequadamente remunerado. Ah, nada de mal-entendidos: eu sei muito bem que ele estava ansioso por ocupar esse cargo! Se nós tivéssemos 29 anos de idade e fôssemos já veneráveis veteranos, estaríamos exactamente como ele: desejosos de obter um tal cargo! Ele estava tão ansioso por ir para a Hispânia que até era capaz de ter aceite menos soldados! Era muito capaz de ter levado apenas quatro legiões e quinhentos cavaleiros! Tinha-vos saído muito barato...”
— Foi pena não termos feito isso — comentou Catulo. — As baixas dele já são superiores a quatro legiões e quinhentos cavaleiros!
— Escuta o que Lúculo tem a dizer! — exclamou Hortênsio.
— E isto — disse Lúculo, ignorando desta vez os cunhados — leva-me ao cerne do problema. Como pode Roma esperar deter um homem como Quinto Sertório, se Roma não quer enviar o dinheiro ou os homens necessários para o deter? Nem mesmo um Quinto Sertório conseguiria resistir a Pompeu e Pio, se cada um destes comandasse dez legiões e três mil cavaleiros! A carta de Pompeu acusa este Senado da perda da guerra — e eu concordo com essa opinião! Como pode o Senado esperar por milagres, se não paga aos mágicos para os fazerem? Não há dinheiro, nem reforços — isto assim não pode continuar! Esta casa tem de arranjar dinheiro para pagar às poucas legiões de que Pompeu e Pio dispõem e tem também de arranjar dinheiro para dar a Pompeu pelo menos mais duas legiões. Quatro seria melhor.
Caio Cota falou da cadeira curul.
— Concordo com tudo o que disseste, Lúcio Licínio. Só que não temos dinheiro, Lúcio Licínio. O problema é só esse: não há dinheiro.
— Se não há dinheiro, então teremos de arranjá-lo. Seja de que maneira for — replicou Lúculo.
— Arranjá-lo como? — perguntou Caio Cota. — Há três anos que não recebemos rendimentos significativos da Hispânia e, desde que os Contestanos se revoltaram, deixámos de receber rendimento algum. A Província Ulterior não pode extrair os tesouros mineiros das montanhas Marianas, nem da parte sul das montanhas Orospeda. E agora a Província Citerior não pode extrair os minérios da região de Nova Cartago. Os tempos em que o Tesouro recebia de Hispânia vinte mil talentos em ouro, prata, chumbo e ferro, já acabaram — tal como as minas. Além disso, os acontecimentos dos últimos quinze anos reduziram os nossos rendimentos da Província da Ásia ao seu mais baixo nível nos últimos cinqüenta e cinco anos, ou seja, desde que herdámos a região. Estamos em guerra na Ilíria, na Macedónia e na Gália Transalpina. Chegaram-nos mesmo boatos de que o rei Mitridates se está a levantar de novo, embora ninguém possa ter uma certeza. E quando Nicomedes da Bitínia morrer, a situação no Oriente ainda se tornará mais precária.
— Negar dinheiro e tropas aos nossos governadores da Hispânia, porque prevemos determinados eventos do outro lado do Nosso Mar, os quais poderão nunca acontecer, é uma atitude absolutamente idiota, Caio Cota! — retorquiu Lúculo.
— Não, Lúcio Lúculo, não é! — atirou-lhe Cota, furioso. — Eu não preciso de fazer previsões de qualquer espécie para saber que não temos dinheiro para mandar para a Hispânia, quanto mais tropas! Cneu Pompeu e Quinto Pio têm de se arranjar com os meios de que dispõem!
O rosto alongado de Lúculo exibia a mais dura das expressões.
— Nesse caso — disse ele, num tom gélido — podem contar com um novo cometa nos céus de Roma. A cabeça do cometa será leal a íloma, pois será constituída por um Pompeu completamente desfeito, correndo a toda a pressa para Roma com o seu exército reduzido a pó. Mas quanto à cauda... ah, meus senhores, que cauda! A cauda será Quinto Sertório e os bárbaros da Hispânia que ele mantém sob o seu jugo. E não se esqueçam de que essa cauda, durante o seu trajecto, atrairá os Volcas, os Salúvios, os Vocôncios, os Alóbroges, os Hélvios e também os Bóios e os ínsubres da Gália Italiana — isto para não falar dos Lígures e dos Vagienos!
Um silêncio absoluto saudou este feroz comentário.
Decidindo que era tempo de infringir a norma de Sila, Filipe levantou-se e, deliberadamente, encaminhou-se para o meio da Cúria Hostília. Daí, olhou para toda a gente, desde o pálido Cetego às figuras encolhidas de Catulo e Hortênsio. Depois, virou-se para o pódio curul e fitou o desconcertado Caio Cota, cujo rosto reflectia bem o seu estado de espírito.
— Sugiro, Pais Conscritos — disse Filipe —, que convoquemos os chefes do Tesouro e os especialistas em impostos, para vermos como poderemos arranjar uma soma considerável, apesar de o nosso honrado cônsul dizer que não a temos. Sugiro também que tratemos de arranjar algumas legiões e um ou ou dois esquadrões de cavalaria.
Quando Pompeu chegou às proximidades de Septimanca, nas terras dos Vaceus, achou a cidade mais pequena do que imaginara, baseado nas indicações dos seus informadores. No entanto, toda a região parecia muito próspera. Septimanca ficava situada numa fraga sobre o rio Pisoraca — uma situação não propriamente invulnerável. Daí que a cidade se rendesse sem oferecer resistência. Rodeado por intérpretes, Pompeu tratou de acalmar os receios dos cidadãos de Septimanca e procurou convencer os chefes da zona de que pagaria mais tarde tudo o que lhes levasse e de que os seus homens se comportariam dignamente.
Clúnia, alguns quilômetros a norte da nascente do Douro, era a fortaleza mais ocidental de Sertório; porém, algumas das localidades situadas a sul da mesma nascente tinham sabido da sorte de Segóvia e mandado embaixadas a Septimanca, para assegurar a Pompeu a sua lealdade a Roma e oferecer-lhe tudo o que precisasse. Assim, depois de uma conferência com os seus legados, intérpretes e chefes locais, Pompeu mandou Lúcio Titúrio Sabino e quinze coortes construir o acampamento de Inverno em Termes, uma cidade que, apesar de celtibera, já não estava disposta a apoiar Sertório.
Na realidade (como Pompeu disse a Metelo Pio, numa carta de votos de bom Ano Novo), a avalancha só agora começava a formar-se. Se, nas campanhas do ano seguinte, conseguissem afectar significativamente Sertório, haveria muito mais cidades como Septimanca e Termes, desejosas de se submeterem ao poder romano. A guerra prosseguiria então no reino de Sertório, a região do Ebro; não haveria mais expedições para a costa oriental.
A Primavera chegou cedo ao Alto Douro e Pompeu não perdeu mais tempo. Deixando o povo de Septimanca e Termes a fazer as suas sementeiras (contando já com os romanos, que poderiam voltar no Inverno seguinte), as quatro legiões subiram o Pisoraca até Palância, que se tinha declarado a favor de Sertório, unicamente porque a cidade rival, Septimanca, aderira à causa romana.
Metelo Pio também deixou a Gália Narbonense bastante cedo, subindo o Ebro com a intenção de se vir a juntar a Pompeu. Contudo, a sua tarefa mais importante consistia em desimpedir a estrada entre o Ebro e a Hispânia Central, para que as tropas romanas pudessem usá-la sem problemas; por isso, quando chegou ao Saio, um grande afluente do Ebro que nascia no Juga Carpetana, resolveu seguir o seu curso e submeter, uma a uma, todas as cidades situadas nas suas margens. Concluída esta breve e animada campanha, Metelo Pio dispunha já de uma estrada rápida que dava acesso à sua própria província; por outro lado, impedia dessa forma Sertório de chegar às nascentes do Tejo e do Anas, o que implicava uma separação total das tribos da Lusitânia.
Palância revelou-se um osso duro de roer. Por isso, Pompeu instalou o seu cerco da mesma forma que Cipião Emiliano perante Numância — como tratou de informar a cidade, através de um verdadeiro bombardeamento de proclamações lidas pelos arautos. Em jeito de retaliação, Palância pediu ajuda a Sertório, que se encontrava em Osca; Sertório respondeu positivamente, cercando os sitiantes com o seu exército. Era evidente que Sertório não queria conflitos com a velha da Província Ulterior — daí que tivesse ignorado as suas conquistas nas margens do Saio; Sertório estava mais certo do que nunca de que Pompeu era o elo frágil da corrente romana.
Nenhum dos lados estava interessado numa confrontação directa em Pflância. Pompeu procurava submeter a cidade e Sertório tentava infligir o maior número possível de baixas nas hostes de Pompeu. Assim, enquanto Pompeu ia empilhando toros e achas junto às portentosas muralhas de madeira de Palância, Sertório lançava algumas incursões, matando uns quantos soldados inimigos de cada vez. E a evolução foi tal que, no início de Abril, Pompeu acabou por retirar, permitindo que Sertório ajudasse a cidade a reparar a secção das muralhas que tinha ardido.
Um mês depois, Pompeu e Metelo Pio encontraram-se defronte de uma das mais fortes cidades fiéis a Sertório: Calagorre, no Alto Ebro.
com o Bacorinho, vinham um baú cheio de dinheiro para Pompeu e duas novas legiões, mais seis mil homens formados em coortes, destinados a completarem as legiões já existentes. E, acompanhando todas estas dádivas de Roma, vinha a melhor de todas as dádivas: o novo proquestor de Pompeu, nem mais nem menos do que Marco Terêncio Varrão.
Ah, a felicidade que Pompeu sentiu ao ver aquela calva brilhante, com a franja de cabelo escuro por sobre as orelhas! O jovem general chorou ao ver o amigo e aquelas lágrimas, não as escondeu de ninguém.
— Eu já tinha partido quando Varrão e os teus reforços chegaram a Narbona — disse o Bacorinho, agora que estavam os três reunidos na tenda de Pompeu, bebendo uma taça de vinho misturado com água. — Mas encontrei-o à saída do vale do Saio. E é com todo o prazer que te anuncio, Magno, que também eu recebi um baú cheio de dinheiro.
Pompeu respirou fundo, aliviado.
— Então quer dizer que a minha carta resultou ,— disse ele para Varrão.
— Resultou?! — exclamou Varrão, rindo. — Eu diria que provocou um verdadeiro incêndio no Senado! Um incêndio como nunca foi visto, desde que Saturnino se declarou rei de Roma! Gostava que tivesses visto a cara dos senadores, quando Lúculo começou a enumerar as tribos gaulesas que se agarrariam à cauda do cometa de Sertório, quando ele te perseguisse até Roma!
— Lúculo? — perguntou Pompeu, estupefacto.
— Sim, Magno. Lúculo foi o teu grande defensor.
— Mas porquê? Não fazia a mínima ideia de que Lúculo gostava de mim.
— Provavelmente não gosta. Mas julgo que receava que o mandassem para a Hispânia, a fim de te substituir. Ele é um óptimo militar, mas a última coisa que desejava era vir para a Hispânia. Aliás, quem é que, no seu juízo perfeito, deseja vir para a Hispânia?
— Tens toda a razão — retorquiu o Bacorinho, sorrindo.
— Portanto, agora tenho seis legiões e tanto eu como Metelo Pio temos dinheiro — disse Pompeu. — Mas quanto é que eles nos deram, Varrão?
— O suficiente para pagar aos vivos e aos mortos o que lhes devem e para pagar aos vivos uma parte deste ano. Mas só uma parte. Lamento imenso, Magno. Foi o máximo que Roma conseguiu arranjar.
— Daria tudo para saber onde é que Sertório guarda o seu tesouro! Se soubesse, atacaria imediatamente essa cidade e não descansaria enquanto o dinheiro dele não fosse parar ao meu baú! — disse Pompeu.
— Duvido que Sertório possua grandes fundos, Magno — replicou o Bacorinho, abanando a cabeça.
— Ora essa! Então ele não recebeu três mil talentos de ouro do rei Mitridates, há cerca de um ano?
— Recebeu. Mas aposto que já os gastou. Não te esqueças de que ele não recebe rendimentos regulares de nenhuma província e não dispõe de escravos para trabalharem nas minas. E as tribos hispânicas também não têm dinheiro.
— Sim, suponho que tens razão.
Seguiu-se um breve e confortável silêncio. Metelo Pio rompeu-o subitamente, como se tivesse tomado uma decisão em que andava a matutar há muito tempo. Respirou tão profundamente que Pompeu e Varrão se viraram para ele, intrigados.
— Magno, tenho uma ideia — disse ele.
— Sou todo ouvidos.
— Já vimos que a Hispânia está numa situação de grande pobreza, situação que envolve tanto os Hispânicos como os Romanos. Até mesmo os Púnicos de Gades estão a passar mal. A riqueza é um sonho inatingível para a maior parte dos homens que vivem na Hispânia. Ora sucede que eu tenho um pequeno tesouro que pertence à Província Ulterior e que se encontra num baú, na residência do governador em Castulo, desde que Cipião Africano o pôs lá. Não percebo porque é que nenhum dos nossos mais gananciosos governadores o surripiou, mas a verdade é que ele ainda lá está. São cem talentos de moedas de ouro, cunhadas por Asdrúbal, o cunhado de Aníbal.
— Foi por isso que ninguém as levou — disse Varrão, com um sorriso irônico. — Como poderiam ver-se livres de moedas de ouro cartaginesas sem levantar suspeitas?
— Tens razão.
— Portanto, tens cem talentos de moedas de ouro cartaginesas — disse Pompeu. — Mas que tencionas fazer com elas?
— Para dizer a verdade, tenho um pouco mais do que isso. Também tenho vinte mil iugera de primeira qualidade nas margens do Bétis, que foram confiscadas por um Servílio Cepião a um nobre local, por este não ter pago os impostos. Essa propriedade pertence a Roma há décadas e tem dado sempre algum dinheiro. Pompeu percebeu onde Pio queria chegar.
— Vais oferecer o ouro e a terra como recompensa a todos aqueles que traírem a causa de Quinto Sertório.
— Absolutamente correcto.
— É uma ideia brilhante, Pio! Quer queiramos quer não, será muito difícil esmagar Sertório no campo de batalha. Ele é demasiado inteligente. E possui reservas enormes de homens, homens que não se preocupam com o facto de ele não lhes pagar. Tudo o que esses homens querem é acabar com o domínio de Roma. Mas também é verdade que há sempre homens gananciosos em todos os exércitos ou capitais. Se ofereceres uma tal recompensa, estarás a introduzir a guerra dentro das próprias hostes de Sertório. Será uma bela guerra de nervos! Trata já disso, Pio! Trata já disso!
Pio não perdeu tempo. Os seus arautos espalharam a notícia por todos os cantos da Hispânia: cem talentos de moedas de ouro e vinte mil iugera de primeira qualidade para o felizardo que, através das suas informações, contribuísse directamente para a morte ou para a captura de Quinto Sertório.
Metelo Pio e Pompeu depressa ficaram a conhecer a dura reacção de Sertório. com efeito, mal soube da notícia da recompensa, Sertório substituiu a sua guarda pessoal romana por um destacamento dos mais leais dos seus soldados nativos de Osca. Depois, dispensou os seus apoiantes romanos e italianos, os quais, como seria de esperar, se sentiram particularmente magoados. Como se atrevia Sertório a pensar que um romano ou um italiano poderia traí-lo?! Entre os romanos e italianos que tinham ficado mais ofendidos com tal decisão, contava-se Marco Perperna Veiento.
No meio desta guerra de nervos, a guerra no campo de batalha prosseguia inexoravelmente. Funcionando agora como uma equipa, Pompeu e Metelo Pio conquistaram algumas das cidades de Sertório, No entanto, Calagorre não caiu. Sertório e Perperna, com trinta mil homens, cercaram os sitiantes, lançando incursões traiçoeiras, ao jeito do que Sertório fizera com Pompeu durante o cerco de Palância. Por fim, foi a falta de abastecimentos, e não as incursões de Sertório, que obrigou Pompeu e Metelo Pio a desistir do cerco a Calagorre; as suas doze legiões já não tinham alimentos.
Os abastecimentos constituíam um problema perpétuo, devido à fraca colheita do ano anterior. E quando a Primavera deu lugar ao Verão e o Verão, invulgarmente quente, deu lugar à época das colheitas, um desastre inesperado e estranho veio perturbar seriamente a guerra de usura que Pompeu e Metelo Pio estavam decididos a travar. Toda a ponta ocidental do mar Mediterrâneo foi assolada por uma impressionante escassez de alimentos: no Inverno e na Primavera, as chuvas tinham sido raras; depois, quando os cereais começavam a amadurecer, veio um dilúvio que se estendeu desde a África aos Alpes, desde o oceano Atlântico à Macedónia e à Grécia. A colheita, pura e simplesmente, não existia: não existia em África, na Sicília, na Sardenha, na Córsega, em Itália, na Gália Italiana, na Gália Transalpina, na Hispânia Citerior. Só na Hispânia Ulterior sobreviveram algumas colheitas, embora sem a abundância habitual.
— O nosso único conforto — disse Pompeu a Bacorinho, em fins de Sextilis — é que Sertório também vai ficar sem comida.
— Mas os celeiros dele estão cheios, graças às colheitas dos anos anteriores — retorquiu o Bacorinho, com um ar soturno. — Ele vai sobreviver mais facilmente do que nós.
— Eu podia voltar para o Alto Douro — disse Pompeu, num tom dubitativo. — Mas, francamente, não creio que a região possa alimentar seis legiões.
c Metelo Pio tomou então uma decisão.
— Tendo em conta as circunstâncias, acho que devo regressar à minha província, Magno. Aliás, não creio que precises de mim na próxima Primavera. Não precisarás da minha ajuda para fazer aquilo que falta fazer na Hispânia Citerior. Não haverá comida para os meus homens na Hispânia Citerior, mas se conseguires introduzir-te nalgumas das principais fortalezas de Sertório, não terás dificuldade em abastecer os teus homens. Eu posso levar duas das tuas legiões para a Hispânia Ulterior e instalá-las num acampamento durante o Inverno. Se as quiseres de volta na Primavera, eu mando-tas — mas se achas que não terás comida suficiente para tanta gente, eu fico com elas. Será difícil, mas a Província Ulterior é a região menos afectada a oeste da Cirenaica. Podes ter a certeza de que os homens que eu levar serão bem alimentados.
Pompeu aceitou a oferta e Metelo Pio avançou, com oito legiões, para a sua própria província, muito mais cedo do que planeara ou desejava. As quatro legiões com que Pompeu ficou foram imediatamente enviadas para Septimanca e Termes, enquanto Pompeu, permanecendo com Varrão e a cavalaria no Baixo Ebro (graças ao dilúvio, os pastos para os cavalos tinham deixado de ser um problema e, por isso, Pompeu ia mandar os seus cavaleiros para Empórias, onde passariam o Inverno sob o comando de Varrão), tratou de escrever ao Senado e ao Povo de Roma pela segunda vez. E apesar de agora poder contar com Varrão, decidiu não lhe pedir para rever a carta.
Para o Senado e o Povo de Roma:
Estou ciente de que a escassez de cereais deve estar a afectar Roma e a Itália tanto como me está a afectar a mim. Mandei duas das minhas legiões para a Província Ulterior, com o meu colega Pio, pois essa província encontra-se em melhores condições do que a Hispânia Citerior.
O objectivo desta carta não é pedir comida. Seja lá como for, hei-de conseguir manter os meus homens vivos, tal como hei-de conseguir desgastar Sertório até à sua derrota. O objectivo desta carta é pedir dinheiro. Estou ainda a dever aos meus homens cerca de um ano de saldos e estou cansado de nunca ter uma provisão para o futuro.
Embora me encontre na ponta mais ocidental do mundo, sei muito bem o que se passa noutras paragens. Sei que Mitridates invadiu a Bitínia no princípio da Primavera, logo após a morte do rei Nicomedes. Sei que as tribos do Norte da Macedónia, de uma ponta à outra da Via Inácia, se revoltaram. Sei que os piratas impedem as frotas romanas de trazer cereais da Macedónia Oriental e da Província da Ásia — o que contribui ainda mais para a actual crise de abastecimentos. Sei que os cônsules deste ano, Lúcio Lúculo e Marco Cota, foram obrigados a deixar Roma para lutar contra Mitridates. Sei que Roma recebe inúmeros pedidos de dinheiro. Mas também sei que ofereceram ao cônsul Lúculo setenta e dois milhões de sestéricos para que ele arranjasse uma frota — e que ele declinou tal oferta. Portanto, têm pelo menos setenta e dois milhões de sestércios escondidos debaixo de alguma laje do Tesouro, não é verdade? O que realmente me deixa furioso é isto: é que vocês se preocupam mais com Mitridates do que com Sertório. Pois eu não. Mitridates é um soberano oriental cuja verdadeira força se resume aos números. Mas Sertório é um romano. A sua força é essa. E eu sei qual dos dois preferia combater. De facto, preferia que me tivessem oferecido a missão de abater Mitridates. Ficaria exultante com tal oferta, depois desta ingrata missão na Hispânia.
Não posso continuar na Hispânia sem uma parte dos setenta e dois milhões de sestércios. Sugiro-lhes, pois, que levantem essa laje do Tesouro e retirem alguns sacos para mim. Se não o fizerem, a alternativa é simples. Desmobilizarei os meus soldados aqui na Hispânia Citerior — todos os homens das quatro legiões que tenho comigo — e deixá-los-ei entregues à sua sorte. Daqui até Roma é um longo caminho. Sem a estrutura de comando e o conforto de saberem que são conduzidos, creio que poucos deles optarão por regressar a casa. A maioria fará aquilo que eu próprio faria, se me visse na mesma situação. Irão ter com Quinto Sertório e alistar-se-ão nos seus exércitos, porque Sertório alimentá-los-á e pagar-lhes-á regularmente. Cabe-vos decidir. Ou mandam o dinheiro ou eu desmobilizo as minhas tropas.
A propósito: ainda não me pagaram o meu Cavalo Público.
Pompeu recebeu o dinheiro que pretendia: os senadores eram capazes de entender um ultimato — sobretudo quando a linguagem usada era tão directa e incisiva. Roma sofreria com essa decisão, mas também era verdade que Roma não estava em condições de enfrentar uma invasão de Quinto Sertório, sobretudo se este contasse com o apoio das quatro legiões de Pompeu. E a carta de Pompeu produziu um choque tão salutar que até Metelo Pio acabou por receber dinheiro. Agora, os dois generais romanos só precisavam de encontrar comida.
As duas legiões de Pompeu regressaram por fim da Hispânia Ulterior, trazendo com elas uma enorme coluna de abastecimentos. E Cneu Pompeu Magno pôde assim retomar a sua guerra de usura contra Sertório. Conquistou finalmente Palância, e seguiu depois para Cauca, a cujos habitantes pediu que abrigassem e socorressem os soldados doentes ou feridos. Os habitantes de Cauca acederam a tal pedido; mas os soldados de Pompeu não estavam nem doentes, nem feridos — e, mal entraram na cidade, dominaram-na com a maior facilidade. As fortalezas de Sertório foram caindo uma atrás da outra, entregando os seus abastecimentos em cereais a Pompeu.
Quando chegou o Inverno, só Calagorre e Osca continuavam sertorianas.
Pompeu recebeu nessa altura uma carta de Metelo Pio.
Estou deliciado com as últimas notícias, Pompeu. A tua campanha deste ano já chegou para dar cabo de Sertório. As vitórias no campo podem ter sido minhas, mas a determinação foi sempre tua. Não cedeste nem desististe em momento algum, e nunca deste espaço de manobra a Sertório. E tu foste sempre o alvo, o único alvo, de Sertório, ao passo que eu tive a sorte de enfrentar em primeiro lugar Hirtuleio, um bom general, mas sem a classe de Sertório, e depois Perperna, que não passa de um medíocre.
No entanto, gostaria de deixar aqui lavrado um louvor aos soldados das nossas legiões. Esta foi a mais ingrata e amarga de todas as guerras de Roma e os nossos homens tiveram de passar por provações tremendas. E, no entanto, nenhum de nós teve de enfrentar motins ou qualquer tipo de descontentamento — apesar de atrasos de anos nos pagamentos, apesar de não haver qualquer possibilidade de saque. É verdade que saqueámos cidades. Porém, que fizemos nós nessas cidades? Fizemos o que fazem os ratos: andar de um lado para o outro, feitos loucos, à procura de uns míseros grãos. Sim, Cneu Pompeu, nós dispusemos de dois exércitos maravilhosos, e eu gostaria de ter a certeza de que Roma os recompensará como merecem. Mas não tenho a certeza. Roma não pode ser derrotada. Pode perder batalhas, mas nunca uma guerra. Talvez as nossas magníficas tropas sejam a grande mola que nos fez ganhar esta guerra — bastará pensarmos na sua lealdade, no seu bom comportamento e na sua inquebrantável determinação em lutar até ao fim. De nós, generais e governadores, espera-se que nos comportemos assim; mas, vendo bem as coisas, creio que os louros devem ir para os soldados de Roma.
Não sei quando planejas regressar a Roma. É possível, suponho eu, que o Senado te retire esta comissão especial, já que foi o Senado a dar-ta. Quanto a mim, continuo a ser o governador nomeado pelo Senado para a Província Ulterior, e não tenho qualquer pressa em regressar a Roma. Será mais fácil para o Senado prorrogar o meu mandato do que procurar um novo governador. Por isso, pedirei que o meu governo seja prorrogado por mais dois anos, pelo menos. Antes de me ir embora, gostaria de deixar a minha província numa situação estável, e em segurança perante as possíveis investidas dos Lusitanos.
Não desejo, quando regressar a Roma, lançar-me em mais um conflito — neste caso, um conflito com o Senado para obter terras para os meus veteranos. No entanto, não permitirei que os meus homens não sejam recompensados. Portanto, o que tenciono fazer é instalar os meus homens na Gália Italiana, mas na outra margem do Pó, onde há vastas extensões férteis e pastos de muito boa qualidade, actualmente em poder dos Gauleses. Não se trata propriamente de terras romanas e, por isso, o Senado não está interessado nelas; de maneira que a solução será lutar contra os Insubres e conquistá-las. Já discuti o caso com os meus centuriões, que se mostraram extremamente satisfeitos. Os meus soldados não terão de ficar à espera anos a fio, enquanto as comissões agrárias e os burocratas estudam o problema e conversam e congeminam listas e conversam e estudam a distribuição de terras e conversam uma vez mais, para, no fim, não fazerem nada. Quanto mais conheço o trabalho destas comissões, mais convencido fico de que a única coisa que uma comissão é capaz de organizar é uma catástrofe.
Faço sinceros votos de que tudo te corra pelo melhor, meu caro Magno.
Pompeu passou esse Inverno entre os Vascões, uma tribo poderosa que ocupava a ponta ocidental dos Pirenéus, e cujos membros se sentiam agora profundamente desencantados com Sertório. Porque os Vascões se revelaram bons amigos dos seus soldados, Pompeu ordenou ao exército que construísse uma fortaleza para aquela gente; mas, antes, obrigou a tribo a jurar que Pompaelo (assim se chamava a nova cidade) seria sempre leal ao Senado e ao Povo de Roma.
Para Quinto Sertório, aquele foi um Inverno especialmente amargo. Talvez ele soubesse, desde o princípio, que a sua era uma causa perdida; o que sabia, com toda a certeza, era que nunca fora um dos favoritos de Fortuna. Mas não era capaz de admitir conscientemente essas realidades de forma tão clara. Em vez disso, dizia para si mesmo que as coisas tinham corrido bem enquanto conseguira convencer os inimigos de que não o venceriam no campo de batalha. A sua queda ocorrera depois de a velha e o miúdo terem entendido o estratagema e adoptado a estratégia de evitar os confrontos directos. Uma estratégia que vinha dos tempos do general Fábio.
A oferta de um prêmio para quem o traísse tinha-o deixado destroçado, pois Quinto Sertório era um romano e sabia que o demônio da cupidez podia encontrar guarida mesmo no mais razoável e decente dos homens. Já não tinha confiança em nenhum dos seus aliados romanos ou italianos, educados nas mesmas tradições que ele, ao passo que os seus amigos hispânicos permaneciam inocentes dessa mácula que a civilização trazia consigo. Sempre alerta quando via alguém pegar numa faca ou quando topava com uma expressão estranha, Sertório ia sofrendo um desgaste psicológico que lhe bulia fortemente com os nervos. Consciente de que o seu novo comportamento devia parecer estranho ou invulgar aos olhos dos amigos hispânicos, Sertório lutava com todas as suas forças para controlar os acessos de mau humor; e, como nem todas as suas forças lhe bastaram, acabou por recorrer ao vinho — o vinho deixava-o mais tranqüilo.
Então — e esse foi o mais rude golpe de toda a sua vida — chegou-lhe a notícia de que a mãe tinha morrido. A maior das traições. Mesmo que os corpos ensangüentados da sua mulher germana e do seu filho, a quem recusara uma educação romana, tivessem sido depostos aos seus pés, Sertório não teria chorado tanto por eles como chorou por Maria, sua mãe. Durante dias, fechou-se no seu quarto, tendo unicamente por companhia a corça branca, Diana, e um sem-número de garrafas. Tantos anos de separação! E agora perdia-a para sempre! Para sempre! E isso fazia-o sentir-se culpado.
Quando finalmente as lágrimas secaram, Sertório era outro homem: um homem duro, implacável. Aquele que, até então, fora a personificação da cortesia e da bondade, tornara-se ríspido e desconfiado, mesmo em relação aos seus amigos hispânicos; e nem mesmo os amigos mais chegados escapavam aos seus insultos. Dir-se-ia que sentia fisicamente a perda de poder a que Pompeu, eficientemente, o submetia; dir-se-ia que sentia no corpo e na alma a desintegração daquele que fora o seu mundo. Até que, alimentado pelos insidiosos fantasmas do álcool, Sertório se transformou em pasto fácil da paranóia. Quando soube que alguns dos chefes nativos estavam a retirar sub-repticiamente os seus filhos da famosa escola que fundara em Osca, irrompeu pela colunata do edifício, acompanhado pela sua guarda pessoal, e logo ali matou muitas das crianças que restavam. Era o princípio do seu fim.
Marco Perperna Veiento não esquecera, nem perdoara, a forma como Sertório lhe retirara o comando do seu exército; por outro lado, não suportava a superioridade natural daquele renegado mariano, daquele homem das montanhas sabinas. Sempre que travavam uma batalha, Perperna tinha oportunidade de confirmar que, como general, possuía muito menos talento que Sertório. Além disso, os soldados sentiam uma espécie de adoração por Sertório — e, por ele, não sentiam nada. Ah, mas com que dificuldade chegara à conclusão de que não conseguiria ultrapassar Sertório em nada! Excepto, como se veio a verificar, no capítulo da traição.
A partir do momento em que soube da recompensa oferecida por Metelo Pio, o destino de Perperna ficou traçado. E, para mais, a sorte estava do seu lado — o facto de Sertório ter agora um comportamento permanentemente violento tornava tudo mais fácil.
Perperna ofereceu um banquete: segundo disse, resolvera convidar os seus amigos romanos e italianos porque era preciso romper, de vez em quando, com a monotonia de um acampamento de Inverno. E, como seria de esperar, convidara também Sertório. Só teve a certeza de que Sertório viria quando viu o rosto desfigurado espreitar pela porta. Perperna correu para ele e conduziu-o sem delongas até ao locus consularis do seu próprio divã. Depois, deu ordens aos seus escravos para que servissem ao chefe supremo vinho sem mistura.
Todos os homens presentes tinham colaborado na conspiração; daí que múltiplas emoções dominassem a atmosfera daquela festa, com predomínio do medo e da apreensão. Para combater tais emoções, os conspiradores não paravam de beber; de tal modo que, a certa altura, Perperna pensou que ninguém estaria suficientemente sóbrio quando fosse preciso dar o golpe. A pequena corça branca, naturalmente, viera com o seu dono — Sertório, agora, nunca a abandonava. O animal instalou-se no divã, entre Sertório e Perperna, para grande indignação deste. Por isso, logo que pôde abandonar o lectus medius, empurrou o meio-romano e meio-espanhol Marco António para o seu lugar. Indivíduo de compleição atarracada, filho de uma camponesa local e de um dos grandes Antónios, este Marco António nunca fora reconhecido pelo pai e não herdara dele a habitual generosidade dos Antónios.
O barulho foi aumentando e as conversas foram-se tornando cada vez mais grosseiras e António era talvez o mais grosseiro e barulhento dos bêbedos. Sertório, que detestava a linguagem obscena e todo o tipo de piadas, furtou-se a participar nesse tipo de conversas. Abraçado a Diana, bebia, bebia sem parar, com um ar ausente. A certa altura, um dos convivas fez um comentário especialmente grosseiro e toda a gente, menos Sertório, desatou a rir; Sertório, pelo contrário, fez um esgar de nojo. Temendo que ele se levantasse e deixasse imediatamente a festa, Perperna, tomado de pânico, deu o sinal previsto, embora, no meio de tanto barulho, não tivesse a certeza de que fora ouvido.
Perperna atirou para o chão a sua taça de prata, e com tanta força que a taça fez um estrondo metálico e saltou bem alto no ar. Seguiu-se imediatamente um silêncio absoluto. Mas António mostrou-se muito mais rápido do que Sertório, o qual, além de estar bêbedo, nunca suspeitara de nada; tirou da sua túnica uma enorme adaga de legionário romano, atirou-se a Sertório e desferiu-lhe um golpe profundo no peito. Diana desatou aos guinchos e, muito atarantada, fugiu. Sertório tentou então levantar-se. Mas todos aqueles homens correram para ele e deitaram-no de novo sobre o divã, para que António desferisse mais alguns golpes com a sua adaga. Sertório não gritou; mas, se tivesse gritado, ninguém teria vindo ajudá-lo; a sua guarda fora assassinada momentos antes.
Ainda aos guinchos, a corça branca subiu para o divã enquanto os assassinos se afastavam, satisfeitos; o animal começou então a cheirar freneticamente o dono, coberto de sangue, já cadáver. Aquela era mesmo uma tarefa para que Perperna se sentia qualificado! Apanhando a adaga que Marco António deixara cair, mergulhou-a no lado esquerdo de Diana, imediatamente atrás da perna dianteira. A corça branca afundou-se num ápice em cima do cadáver de Sertório. E quando o exultante grupo pegou no antigo chefe para o arremessar para a rua como se fosse um móvel velho, Diana não foi esquecida. Pegaram nela e atiraram-na para ao pé do adorado dono.
Pompeu soube do sucedido através de um processo que, mais tarde, consideraria previsível; na altura, porém, tal processo pareceu-lhe profundamente repugnante. É que Marco Perperna Veiento tinha-lhe mandado, e a toda a pressa, a cabeça de Sertório. com o medonho troféu, vinha uma nota que informava Pompeu de que ele e Metelo Pio deviam a Perperna cem talentos de ouro e vinte mil iugera de terra. Acrescentava a nota que uma segunda carta fora enviada a Metelo Pio, para o mesmo efeito.
Pompeu respondeu unicamente em seu nome e ordenou a um mensageiro que levasse a Metelo Pio, o mais rapidamente possível, uma cópia da sua carta:
Não sinto qualquer alegria por saber que Quinto Sertório morreu às mãos de um verme como tu, Perperna. Ele era um sacer, mas merecia um melhor fim, às mãos de uma criatura mais nobre que tu.
Sinto a maior das alegrias em negar-te a recompensa, a qual não foi oferecida em troca de uma cabeça. A. recompensa foi oferecida a quem fornecesse informações susceptíveis de nos levarem a capturar ou a matar Quinto Sertório. Se a cópia do nosso anúncio de recompensa que tiveste oportunidade de ver não especificava o fornecimento de informações, então terás de deitar as culpas ao escriba. Mas uma coisa é certa: todos os anúncios que eu vi incluíam esse pormenor. Tu, Perperna, descendes de uma família consular, pertenceste ao Senado de Roma e foste pretor. Logo, tinhas obrigação de ser mais previdente.
Como suponho que sucederás a Quinto Sertório no comando das tropas deste, é com grande alegria que te forneço a informação de que a guerra só acabará quando o último traidor for morto e o último insurrecto vendido como escravo.
Quando a Hispânia soube da morte de Quinto Sertório, os seus apoiantes nativos fugiram para a Lusitânia e para a Aquitânia; até mesmo alguns dos seus soldados romanos e italianos abandonaram Perperna. Imperturbável, Perperna reuniu todos os que ficaram com ele e, em Maio, aventurou-se a sair de Osca e a enfrentar Pompeu, cuja carta o deixara furibundo. Quem pensava ele que era, aquele novo-rico picentino, para responder em nome de um Cecílio Metelo? É que o Cecílio Metelo nem sequer se dignara responder-lhe!
A batalha não foi propriamente uma batalha. Perperna topou com uma das legiões de Pompeu, que procurava alimentos na região a sul de Pompaelo; os soldados de Pompeu encontravam-se dispersos e, além disso, tinham várias dúzias de carros de bois a estorvar-lhes os movimentos. Vendo o último exército sertoriano a carregar sobre eles, fugiram para os confins de uma íngreme garganta. Perperna, entusiasmado, seguiu-os. Só quando todos os homens de Perperna estavam no interior da garganta é que Pompeu lançou a sua armadilha; milhares de soldados abandonaram então os seus esconderijos e lançaram-se sobre os homens de Perperna, massacrando facilmente o último exército de Sertório.
Alguns soldados encontraram Perperna escondido numa moita; levaram-no a Aulo Gabínio que o conduziu imediatamente a Pompeu. Cinzento de terror, Perperna tentou salvar a pele, oferecendo a Pompeu todos os papéis privados de Quinto Sertório — os quais, choramingava ele, confirmariam que havia em Roma muitos homens importantes ansiosos por verem Sertório vencer e reconstruir Roma segundo princípios marianos.
— Mas que raio é que isso será? — perguntou Pompeu, com uma expressão pétrea, os olhos azuis inexpressivos.
— O quê?
— Os princípios marianos.
— Por favor, Cneu Pompeu, suplico-te! Deixa-me dar-te esses papéis e verás como tenho razão!
— Muito bem. Dá-me então esses papéis — disse Pompeu, laconicamente.
Extremamente aliviado, Perperna disse a Aulo Gabínio onde estavam os papéis (que trouxera consigo de Osca, pois temia deixá-los na cidade) e esperou com indisfarçável impaciência pelos preciosos documentos. Dois soldados apareceram finalmente com um grande baú, que foram pôr aos pés de Pompeu.
— Abram-no — disse Pompeu.
O general baixou-se e remexeu nos rolos e papéis durante muito tempo, lendo um ou outro dos documentos, aquiescendo para si mesmo enquanto murmurava. Olhou apenas de relance para a maior parte do conteúdo do baú; mas alguns dos papéis mais pequenos que também olhou de relance fizeram-no erguer muito as sobrancelhas. Levantou-se quando o baú ficou vazio e uma enorme pilha de documentos se acumulava desordenadamente sobre a erva molhada.
— Peguem neste lixo e queimem-no aqui e agora, à minha frente — disse Pompeu a Aulo Gabínio.
Perperna fitou-o boquiaberto, mas nada disse. Quando o conteúdo do baú era já uma fogueira, Pompeu fez um sinal na direcção de Gabínio, com um ar de profunda satisfação.
— Mata esse verme — disse.
Perperna foi morto com uma espada de legionário romano e a guerra da Hispânia acabou no momento em que a sua cabeça caiu e rolou pelo chão empapado de sangue.
— Acabou-se Perperna — disse Aulo Gabínio. Pompeu encolheu os ombros.
— Pois bons ventos o levem! — disse.
Ambos tinham estado a olhar para a cabeça de Perperna, já separada do corpo, os olhos esbugalhados num estupor trespassado do mais profundo horror; por fim, Pompeu virou costas e encaminhou-se para os outros legados, que sabiam que não deviam intrometer-se se o chefe não lhes desse ordens nesse sentido.
— Tinhas de queimar os papéis? — perguntou Gabínio.
— Sim, sim. Tinha mesmo de queimá-los.
— Não teria sido melhor levá-los para Roma? Só assim seria possível castigar todos os traidores.
Pompeu abanou a cabeça e desatou a rir.
— O quê? Para manter o tribunal que julga os casos de traição ocupado durante os próximos cem anos? — perguntou. — Por vezes, é mais sensato guardarmos as coisas só para nós. Um traidor não deixa de ser traidor porque os papéis que o denunciavam se desfizeram em cinzas.
— Não entendo o que queres dizer.
— Quero dizer que eles vão continuar a ser traidores, Aulo Gabínio. Toda a sua vida, continuarão a ser traidores.
Embora a guerra tivesse acabado, Pompeu era um homem demasiado meticuloso para pegar nas bagagens e regressar a Roma com a cabeça de Perperna espetada numa lança. Preferia deixar tudo resolvido, o que, basicamente, significava matar todos aqueles que, em sua opinião, pudessem vir a revelar-se uma ameaça ou um perigo concreto no futuro. Entre os que morreram, contavam-se a mulher e o filho germanos de Sertório, que Pompeu encontrou em Osca, quando aceitou a capitulação dessa importante fortaleza. O homem de 30 anos que lhe foi apresentado como filho de Sertório parecia-se suficientemente com este para que tal versão fosse credível; no entanto, o homem não falava latim e comportava-se como qualquer indivíduo da tribo dos Ilergetes.
Ao saberem da morte de Sertório, Clúnia e Uxama arrependeram-se da sua submissão a Pompeu, fecharam as portas e prepararam-se para agüentar o cerco. Pompeu sentiu a maior alegria em atacá-las. Clúnia pouco resistiu. Uxama também. E também Calagorre acabou por cair. Quando entraram na cidade, os militares romanos descobriram, estupefactos, que os homens de Calagorre tinham comido as suas mulheres e os filhos para agüentarem o cerco; Pompeu mandou executar todos os Calagorrenses e ordenou depois que a cidade e toda a região à volta fossem incendiadas.
É evidente que ao longo de todo este período, a comunicação entre o general vitorioso e Roma se manteve. Nem todas as cartas, porém, eram oficiais; nem todos os documentos eram destinados ao conhecimento público; entre os principais correspondentes de Pompeu contava-se Filipe, que continuava a dominar o Senado. Os cônsules do ano eram dois clientes secretos de Pompeu, Lúcio Gélio Poplicola e Cneu Cornélio Lêntulo Clodiano, o que implicava que Pompeu lhes podia pedir que garantissem a cidadania romana aos hispânicos que o tinham apoiado significativamente. No topo da lista de Pompeu vinha o mesmo nome estrangeiro escrito duas vezes: Kinahu Hadasht Byblos, tio e sobrinho, com 33 e 28 anos respectivamente, importantes cidadãos de Gades, príncipes dos mercadores púnicos. Mas não lhes foi atribuído o nome de Pompeu, pois o general não queria que Roma ficasse inundada de Cneus Pompeus mais isto ou mais aquilo, vindos da Hispânia. O tio e o sobrinho de Gades tornaram-se assim clientes de um dos mais recentes legados de Pompeu, Lúcio Cornélio Lêntulo, primo do cônsul. E assim entraram na vida e nos anais romanos como Lúcio Cornélio Balbo Maior e Lúcio Cornélio Balbo Menor.
Mas Pompeu não tinha pressas. As minas à volta de Nova Cartago foram reabertas e os Contestanos castigados por terem morto Caio Mémio: a irmã de Pompeu estava agora viúva. Teria de resolver esse problema logo que regressasse a Roma! Lentamente, a província da Hispânia Citerior foi ganhando uma unidade real. Pompeu deu-lhe uma burocracia devidamente organizada, uma estrutura fiscal, normas e leis sucintas e todos os outros acessórios necessários para que a região se tornasse realmente romana.
Até que, nesse Outono, Cneu Pompeu Magno se despediu da Hispânia, fazendo encarecidos votos de nunca mais voltar. Tinha recuperado a autoconfiança e a boa opinião que tinha de si mesmo; no entanto, sempre que voltasse a travar uma batalha, lembrar-se-ia de Sertório e sentiria, por certo, um estremecimento; e estava decidido a só voltar a travar uma guerra se tivesse mais umas quantas legiões que o inimigo. E nunca, nunca mais voltaria a combater contra outro romano!
No alto da passagem dos Pirenéus, o general vitorioso deixou os seus troféus, incluindo a armadura que pertencera a Quinto Sertório e a armadura que Perperna trazia na hora da sua morte. Ficaram firmemente presas a postes altos com cruzetas, as pteryges ondeando ao sabor do soturno vento das montanhas, uma lembrança muda, para todos aqueles que se dirigiam da Gália para a Hispânia, de que não valia a pena entrar em guerra com Roma. Ao lado dos diversos troféus, Pompeu erigiu um marco em que foi inscrito o seu nome, o seu título, a sua comissão, o número de cidades que conquistara e os nomes dos homens que haviam sido recompensados com cidadania romana.
Depois, desceu até à Gália Narbonense e passou aí o Inverno, banqueteando-se com camarões e salmonetes. Tal como a sua guerra, aquele ano conhecera uma reviravolta positiva: as colheitas eram boas em ambas as Hispânias — mas, na Gália Narbonense, eram abundantes.
Não queria chegar a Roma antes de meados do ano. Não porque sentisse, consciente ou inconscientemente, algum resquício de fracasso, mas apenas porque não sabia o que fazer a seguir, para onde ir a seguir, que pilar da tradição e da veneração romanas havia de deitar abaixo. No vigésimo oitavo dia de Setembro, faria
35 anos — não, Pompeu já não era o menino de rosto fresco que as legiões adoravam. Precisava por isso de encontrar um objectivo que se adequasse a um homem, e não a um rapaz. Mas que objectivo? Algo que o Senado odiasse dar-lhe: quanto a isso não tinha dúvidas.
Sentia que a resposta vogava nas labirínticas regiões da sua mente que ele se recusava a explorar. Mas, mesmo assim, não conseguia chegar a uma conclusão.
Até que se resolveu a pôr de parte todos esses pensamentos. Havia coisas mais imediatas a fazer, como abrir a nova estrada que descobrira nos Alpes — abri-la, pavimentá-la, consolidá-la. Como se havia de chamar, essa estrada? Via Pompeia? Hum, soava-lhe bem! Mas quem é que queria morrer deixando como monumento à sua glória o nome de uma estrada? Não, era melhor morrer deixando apenas o nome. O nome, nada mais: Pompeu, o Grande. Sim, o nome bastava — porque no nome estava tudo.
César não via qualquer razão para se apressar a regressar a casa depois de ter concluído a sua missão junto de Públio Servílio Vátia; daí que o seu regresso se tivesse transformado numa verdadeira viagem de exploração, em particular das regiões da Província da Ásia e da Lícia que ainda não conhecia. Contudo, estava de regresso a Roma em fins de Setembro do ano em que Lépido e Catulo foram cônsules. E encontrou uma Roma profundamente apreensiva quanto à conduta de Lépido, que deixara a cidade para recrutar soldados na Etrúria, antes de fazer aquilo que devia — organizar as eleições curais. Havia uma atmosfera de guerra civil — ninguém falava de outra coisa.
Mas a guerra civil — real ou imaginária — não estava entre as grandes prioridades de César. Antes de tudo o mais, tinha questões pessoais a tratar.
A mãe parecia não ter envelhecido rigorosamente nada. No entanto, havia nela alguma mudança: sentia-se que estava muito triste.
— Porque Sila morreu! — acusou o filho, com um tom de desafio na voz que fazia lembrar os tempos em que pensara que Sila era o amante da mãe.
— Sim.
— E porquê? Tu não lhe deves nada!
— Devo-lhe a tua vida, César.
— A minha vida?! Mas se ele pôs em perigo a minha vida!
— Tenho pena que ele tenha morrido — retorquiu Aurélia, secamente.
— Pois eu não.
— Nesse caso, é melhor mudarmos de assunto.
com um suspiro, César recostou-se na sua cadeira, reconhecendo a sua derrota. Aurélia fitava-o de cabeça erguida e queixo espetado: um sinal de que não cederia um palmo, ainda que os argumentos do filho fossem os mais brilhantes e incisivos.
— É tempo de consumar o meu casamento, Mater. Aurélia franziu o sobrolho.
— Ela acaba de fazer dezasseis anos.
— Concordo que é demasiado jovem para se casar. Mas Cinila está casada há nove anos, o que torna a sua situação completamente diferente. Quando cheguei, percebi pelo seu olhar que ela está preparada para partilhar a minha cama.
— Sim, creio que tens razão, meu filho. Embora o teu avô, num caso destes, tivesse dito que a união de dois patrícios apresenta muitos perigos no que toca ao nascimento dos filhos. Eu preferia que ela crescesse um pouco mais antes de ter de enfrentar uma gravidez.
— Cinila não terá problemas, mãe.
— Nesse caso, quando será?
— Esta noite.
— Mas acho que deverá haver primeiro uma espécie de reforço dos laços do matrimônio. Um jantar em família, por exemplo. As tuas duas irmãs estão em Roma.
— Não vai haver jantar nenhum. Nem jantar, nem comentários, nem confusões.
E não houve, de facto. Aurélia não falou no assunto à nora, a qual, quando se encaminhava para o seu pequeno quarto, se viu detida por César.
— Hoje, o caminho é outro, Cinila — disse César, pegando-lhe na mão e conduzindo-a na direcção do quarto dele.
Cinila ficou pálida.
— Ah! Mas eu não estou preparada!
— Para isto, nunca nenhuma rapariga está preparada. É uma boa razão para tratarmos disto rapidamente. Depois, poderemos conversar tudo o que quiseres.
Fora uma boa ideia não lhe dar tempo para pensar, ainda que, durante aqueles quatro longos anos, ela não tivesse pensado noutra coisa. César ajudou-a a despir-se e, porque era doentiamente arrumado, dobrou cuidadosamente as vestes dela, desfrutando aqueles sinais de ocupação feminina de um quarto onde não entrara nenhuma mulher desde que Aurélia, após a morte do marido, o abandonara. Cinila sentou-se na beira da cama, vendo-o arrumar as suas roupas; porém, quando ele começou a despir-se, fechou os olhos.
Depois de arrumar a sua própria roupa, César sentou-se ao lado dela e pegou-lhe nas mãos e levou-as até ao seu sexo.
— Sabes o que vai acontecer, Cinila?
— Sei — disse ela, com os olhos ainda fechados.
— Então olha para mim.
Os enormes olhos negros abriram-se, fitaram temerosamente o rosto dele, que estava sorridente e, pensou ela, cheio de amor.
— Que bonita que tu és e que bem feita! — disse ele, acariciando-lhe os seios, cheios e firmes, com uns mamilos que eram quase da cor da pele fulva. com um suspiro, Cinila ergueu as suas mãos para acariciar a mão dele.
Então César abraçou-a e beijou-a. Ah, que maravilha!, pensou ela, há quanto tempo sonhava com aquilo e, afinal, era muito melhor do que nos sonhos! Abriu os seus lábios para ele, beijou-o também, acariciou-o, deu consigo deitada ao lado dele na cama, o corpo estremecendo deliciado ao contacto com o corpo dele. A pele de César, reparou, era tão sedosa como a dela, e isso proporcionava-lhe um prazer muito intenso, uma sensação de volúpia.
Embora Cinila soubesse na perfeição o que ia acontecer, a imaginação não poderia ser nunca um sucedâneo para a realidade. Amara-o durante tantos e tantos anos, transformara-o de tal forma no foco da sua vida, que ser sua esposa não só aos olhos da lei, mas também pela entrega dos corpos, era algo de glorioso. Tinha valido a pena esperar tanto tempo, aquela longa espera contribuíra ainda mais para a sua expectativa e exaltação. Sem pressas, César assegurou-se de que ela estava absolutamente preparada para o receber, e não lhe fez nenhuma daquelas coisas que pertenciam a reinos mais sofisticados do que os sonhos das rapariguinhas virgens. Magoou-a um pouco, mas não o bastante para esfriar a sua crescente excitação; senti-lo dentro dela era a melhor de todas as coisas e quis senti-lo dentro dela até que um espasmo mágico e absolutamente inesperado a invadiu dos pés à cabeça. Aí estava algo de que ninguém lhe tinha falado. O que era aquilo? Cinila encontrou depressa uma resposta — era o que prendia as mulheres ao casamento. Sim, aquele prazer.
Quando se levantaram, ao alvorecer, para comer pão acabado de sair do forno e beber água da cisterna, encontraram a sala de jantar cheia de rosas e também uma garrafa de um vinho leve e doce numa mesinha. Nos candelabros, estavam penduradas pequenas bonecas de lã e espigas de trigo. Passado um bocado, surgiu Aurélia para os beijar e lhes desejar os melhores votos; e, logo a seguir, todos os criados, um a um, e Lúcio Decúmio e os filhos.
— Que bom que é estar finalmente e realmente casado! — disse César.
— Estou completamente de acordo — retorquiu Cinila, que estava tão bela e tão alegre como qualquer noiva deveria estar após a noite de núpcias.
Caio Macio, o último a chegar, achou a celebração profundamente comovente. Ninguém conhecia melhor do que ele a intensa actividade sexual de César; sim, César possuíra já muitas mulheres, mas aquela mulher era diferente, era a sua esposa. E era maravilhoso verificar que César não estava nada desapontado. Pondo-se no lugar de César, Caio Macio duvidava que alguma vez pudesse dar algum prazer a uma rapariga da idade de Cinila, depois de ter vivido com ela como irmã durante nove longos anos. Mas é claro que César era feito de uma matéria mais dura — tais pormenores não o afectavam.
Foi na primeira reunião do Senado a que César assistiu que Filipe conseguiu convencer os senadores a ordenar a Lépido que regressasse a Roma para organizar as eleições curais. E, na segunda reunião, ouviu a leitura da resposta negativa de Lépido, a que se seguiu a aprovação do decreto senatorial ordenando o regresso a Roma de Catulo.
Porém, entre a segunda e a terceira reuniões, César recebeu a visita do seu cunhado, Lúcio Cornélio Cina.
— Vai haver guerra civil — disse o jovem Cina. — E eu gostaria que tu estivesses do lado dos vencedores.
— Do lado dos vencedores?
— Sim, do lado de Lépido.
— Lépido não vai vencer, Lúcio. Não pode vencer.
— com o apoio da Etrúria e da Úmbria, não pode perder!
— Não pode perder, não pode perder...! Ora, Lúcio, isso é mesmo o tipo de coisas que as pessoas sempre disseram desde o princípio do mundo. Eu só conheço uma pessoa que não pode perder.
— E quem é essa pessoa? — perguntou Cina, já aborrecido com aquela conversa.
— Eu próprio.
Uma afirmação que Cina considerou extravagantemente divertida; desatou a rir incontrolavelmente.
— Mas que ave rara que tu me saíste, César! — disse ele, já recomposto.
— Ave rara, ave rara, não serei. Quando muito um galináceo, que não tem nada de raro. Ou, quem sabe, talvez seja um costado de carneiro pendurado num gancho de talhante.
— Nunca sei quando é que estás a brincar ou a falar a sério — retorquiu Cina, algo inseguro.
— Isso é porque eu raramente brinco.
— Francamente, César! Não me digas que estavas a falar a sério quando disseste que eras o único homem que não podia perder!
— Estava, sim, Lúcio. Estava a falar muito a sério.
— Não vais apoiar Lépido?
— Nem que ele estivesse já às portas de Roma, Lúcio.
— Pois bem, acho que fazes mal. Euvou apoiá-lo.
— Não te censuro. A Roma de Sila reduziu-te à miséria.
E o jovem Cina partiu imediatamente para Saturnia, onde se encontrava Lépido com as suas legiões. Assinada desta feita por Catulo, em nome do Senado, a segunda ordem foi enviada a Lépido e este recusou-se uma vez mais a regressar a Roma. Antes de Catulo partir para a Campânia e para as suas próprias legiões, César pediu-lhe uma entrevista.
— Que queres? — perguntou friamente o filho de Catulo César; nunca gostara daquele jovem demasiado belo e demasiado dotado.
— Quero integrar a tua equipa, caso haja guerra.
— Eu não te quero na minha equipa.
A expressão de César alterou-se radicalmente nesse preciso instante: o seu olhar era agora idêntico ao feroz olhar que Roma só encontrara em Sila.
— Para me usares, Quinto Lutácio, não precisas de gostar de mim.
— E como haveria de te usar? Ou, para ser mais claro, em que medida é que me poderias ser útil? Já ouvi dizer que te tinhas aliado a Lépido.
— É mentira!
— Não foi o que me disseram. O jovem Cina foi falar contigo antes de deixar Roma e, pelos vistos, chegaram a um acordo quanto ao apoio a Lépido.
— O jovem Cina veio desejar-me os seus melhores votos, ou seja, veio cumprir o seu dever de cunhado depois de o casamento da irmã ter sido consumado.
Catulo virou-lhe as costas.
— Podes ter convencido Sila da tua lealdade, César, mas nunca me hás-de convencer de que és outra coisa senão um indivíduo quezilento e conflituoso. Não te quero, porque não quero na minha equipa pessoas cuja lealdade seja suspeita.
— Pois muito bem, primo: quando — e se! — Lépido avançar, eu lutarei por Roma. Se não for como membro da tua equipa, então será noutra qualidade qualquer. Sou um patrício romano, pertenço à mesma família que tu, e não sou cliente, nem apoiante de ninguém. — A meio do caminho para a porta, César parou. — Será bom que metas na tua cabeça que eu sou um homem que há-de obedecer e respeitar sempre a Constituição de Roma. Serei cônsul quando tiver a idade necessária para tal — mas não porque um perdedor como Lépido resolveu tornar-se Ditador de Roma. Lépido não tem coragem, nem força, para tal. Nem tu, Catulo.
E foi assim que César permaneceu em Roma enquanto toda a situação se encaminhava rapidamente para uma rebelião aberta. O senatus consultum de ré publica defendendo foi aprovado, Placo Princeps Senatus morreu, o segundo interrex realizou eleições e Lépido, finalmente, marchou sobre Roma. Juntamente com vários milhares de outros romanos dos mais diversos níveis sociais, César, equipado para a guerra, apresentou-se a Catulo, no Campo de Marte; foi integrado num grupo de várias centenas de militares que controlaria a Ponte de Madeira que ligava Transtiberim à cidade. Como Catulo não queria atribuir um comando àquele jovem que já obtivera uma Coroa Cívica, César cumpriu o seu dever como qualquer outro soldado. Não participou em nenhuma acção guerreira e, quando a batalha junto às Muralhas Sérvias terminou, foi pura e simplesmente para casa, sem se preocupar sequer em apresentar-se como voluntário para a perseguição a Lépido.
A arrogância e o desdém de Catulo não foram esquecidos. Mas Caio Júlio César era paciente nos seus ódios; a vez de Catulo havia de chegar, um dia, o dia certo. Até lá, Catulo teria de esperar.
Para grande pesar de César, quando regressou a Roma, depois da sua longa viagem, encontrou o jovem Dolabela já exilado e Caio Verres pavoneando-se pela cidade com o ar mais virtuoso e probo deste mundo. Verres estava agora casado com a filha de Metelo Caprário — e era muito popular junto dos cavaleiros eleitores, que consideravam o facto de ele ter testemunhado contra o jovem Dolabela como um grande cumprimento a uma Ordo Equester em vias de reabilitação — ali estava um senador que não tinha medo de acusar um dos seus colegas senadores!
No entanto, César fez saber, através de Lúcio Decúmio e de Caio Macio, que estaria disposto a defender em tribunal qualquer habitante do bairro de Subura; e, durante os meses que levaram à queda de Lépido e Bruto e à ascensão de Pompeu, trabalhou numa série de casos particularmente humildes, mas em que obteve um êxito a cem por cento. A sua reputação no mundo dos tribunais começou a afirmar-se e os entendidos em advocacia e retórica iam já assistir a todos os processos em que ele participava — na sua maior parte, processos julgados nos tribunais presididos pelo pretor urbano ou pelo pretor para as questões externas, mas ocasionalmente também processos envolvendo homicídios, julgados no tribunal destinado unicamente a esse efeito. Por muito que Catulo tentasse difamá-lo, a verdade é que as pessoas não o queriam ouvir; e isso porque gostavam do que César dizia — e da maneira como o dizia — em tribunal.
Quando algumas das cidades da Macedónia e da Grécia Central foram ter com ele, pedindo-lhe que processasse o velho Dolabela (o qual regressara do seu longo governo porque Ápio Cláudio Pulcro o fora finalmente substituir), César anuiu. Aquele seria o seu primeiro julgamento realmente importante, pois decorreria no quaestio de repetundae — o Tribunal de Extorsão — e envolveria um homem de boas famílias e com forte influência política. Pouco sabia sobre as circunstâncias que tinham caracterizado o governo do velho Dolabela; daí que tivesse decidido entrevistar todas as eventuais testemunhas e reunir provas de forma meticulosa. Os seus clientes, etnarcas de várias cidades, adoravam-no, pois César tinha com eles um trato aberto e agradável, além de nunca esquecer que aqueles homens deviam ser tratados de acordo com a sua elevada posição social. Mas o que mais espantou os etnarcas foi a extraordinária memória de César — nunca se esquecia do que lhe diziam e, por vezes, fixava a sua atenção em afirmações aparentemente vulgares mas que, afinal, eram muito mais importantes do que os seus clientes pensavam.
— Gostaria, no entanto, de lhes fazer desde já uma advertência — disse ele aos seus clientes, no dia em que o julgamento começou. — O júri é inteiramente formado por senadores e as simpatias do Senado vão todas para Dolabela. Ele foi considerado um bom governador porque conseguiu dominar os Escordiscos. Não creio que consigamos ganhar.
E não ganharam. Apesar de as provas serem muito fortes, aquele júri senatorial acabaria forçosamente por ignorá-las — e por ignorar a soberba oratória de César. Daí que o veredicto fosse ABSOLVO. César não apresentou quaisquer desculpas aos seus clientes, nem estes se mostraram desapontados com o trabalho dele. Tanto a apresentação do caso como os discursos de César foram considerados como os melhores de toda uma geração e muitos foram aqueles que lhe pediram que publicasse as suas intervenções.
— As tuas intervenções hão-de tornar-se textos de estudo para os estudantes de retórica e leis — disse Marco Túlio Cícero, depois de lhe ter pedido cópias, — É claro que foste injustamente derrotado, mas estou muito contente por ter regressado a Roma a tempo de encontrar um advogado melhor que Hortênsio e Caio Cota.
— Também estou muito contente, Cícero. Uma coisa é ser elogiado por Cetego, outra coisa é ouvir um advogado do meu nível pedir-me cópias do meu trabalho — retorquiu César, sinceramente satisfeito com o interesse de Cícero.
— Não podes ensinar-me nada no capítulo da oratória — disse Cícero, começando, inconscientemente, a afastar-se dos cumprimentos e louvores. — Mas podes ter a certeza de que estudarei com toda a atenção a forma como investigaste o teu caso e como apresentaste as provas. — Subiam os dois o Fórum, e Cícero não parava de falar. — O que mais me fascina é a forma como consegues projectar a tua voz. É que, na conversação normal, tu tens uma voz baixa! Mas quando falas para uma multidão, consegues colocá-la bem lá no alto e torná-la, ao mesmo tempo, perfeitamente clara! Quem é que te ensinou isso?
— Ninguém — retorquiu César, surpreendido. — Reparei apenas que os homens com vozes baixas tinham mais dificuldade em fazer-se ouvir. E, como eu gosto de ser ouvido, uso uma voz de tenor em tais circunstâncias.
— Apolónio Molão, com quem estudei nestes últimos dois anos, diz que o tipo de voz depende do comprimento do pescoço. Quanto mais alto for o pescoço, mais baixa e grave será a voz. E, realmente, tu tens um pescoço enorme! Felizmente — acrescentou ele, complacentemente — o meu pescoço tem o tamanho certo.
— É pequeno — disse César.
— Médio — replicou Cícero.
— Estás com bom aspecto, Cícero. E engordaste. Bem precisavas de engordar um pouco.
— Sinto-me bem. E estou doido por voltar aos tribunais. No entanto — acrescentou Cícero, com um ar pensativo —, acho que será melhor não te defrontar. Há certos titãs que nunca deveriam confrontar-se. O que me apetece é lutar com gente como Hortênsio e Caio Cota.
— Esperava melhor da parte deles — disse César. — Se o júri não tivesse tomado já uma decisão antes de o julgamento começar, Hortênsio e Caio Cota teriam perdido. Achei-os descuidados e inábeis.
— Totalmente de acordo. Caio Cota é teu tio, não é?
— É. Mas isso não tem importância. Nós gostamos de lutar um contra o outro.
Pararam para comprar um pastel de carne a um vendedor, que há anos montara a sua tenda perto da residência do flamen Dialis.
— Creio — disse Cícero, engolindo o seu pastel (o célebre advogado adorava aquele tipo de iguarias) — que permanecem muitas dúvidas legais quanto ao teu flaminato. Não te sentes tentado a tirar proveito dessas dúvidas e a instalar-te naquela espaçosa e cômoda residência? — perguntou ele, apontando para a casa do flamen Dialis. — Disseram-me que vives num apartamento em Subura. Não é a melhor morada para um advogado com as tuas capacidades, César!
César estremeceu ao ouvir aquilo, atirou um resto do pastel para um pássaro, e declarou:
— Nem que vivesse no mais mísero casebre do Esquilino, me sentiria tentado a voltar para aquela casa!
— Pois quanto a mim, estou muito contente por viver no Palatino — disse Cícero, atacando um segundo pastel. — O meu irmão, Quinto, tem a velha casa da família nas Carinas — acrescentou ele, com um ar importante, como se a sua família tivesse aquela casa há várias gerações, quando, na realidade, a comprara era ele um rapaz. — A propósito de absolvições: sabes o que é que Quinto Calídio disse depois de um júri o ter condenado no Tribunal de Extorsão?
— Creio que perdi esse julgamento. O que é que ele disse?
— Disse que não tinha ficado surpreendido com o veredicto, porque, nos tempos que correm, subornar um júri custa trezentos mil sestércios, e ele não possuía esse dinheiro!
— Nesse caso, será melhor afastar-me do Tribunal de Extorsão!
— Sobretudo enquanto Lêntulo Sura for o chefe dos jurados. Como Públio Cornélio Lêntulo Sura fora o chefe do júri
no caso do velho Dolabela, César ergueu muito as sobrancelhas.
— Aí está uma coisa que me convinha saber, Cícero!
— Meu caro, eu sei de tudo o que se passa nos nossos tribunais! — disse Cícero, erguendo uma mão num gesto grandiloqüente. — Quando quiseres saber alguma coisa, vem ter comigo.
— Irei, sim! — retorquiu César. Depois, cumprimentou Cícero e encaminhou-se para o seu bairro, o desprezado bairro de Subura.
Quinto Hortênsio saiu de detrás de uma coluna e aproximou-se de Cícero, ao mesmo tempo que via César afastando-se rapidamente.
— Ele portou-se muito bem! — comentou Hortênsio. — com mais alguns anos de experiência, é muito capaz de disputar os nossos louros!
— Não é de experiência que ele precisa, meu caro Hortênsio. É de um júri honesto! Se o júri que absolveu Dolabela fosse honesto, os teus louros ter-se-iam transformado em pó, esta manhã!
— Antipático!
— Mas olha que a coisa não vai durar muito.
— Que coisa?
— Os júris compostos unicamente por senadores.
— Ora essa! O Senado voltou a controlar tudo e controlará tudo
para sempre.
— O que acabas de dizer é um verdadeiro disparate. Há um movimento nítido em Roma no sentido de serem devolvidos aos tribunos da plebe os poderes que tinham noutros tempos. E quando isso acontecer, Quinto Hortênsio, os júris voltarão a ser constituídos por cavaleiros.
Hortênsio encolheu os ombros.
— Isso não me afecta, Cícero. Sejam os jurados senadores ou cavaleiros, um suborno será sempre um suborno — quando necessário.
— Eu não suborno os meus júris — retorquiu gravemente Cícero.
— Eu sei que não subornas. E César também não. Mas é um costume aceite, meu caro, é um costume aceite!
— Um costume que não pode deixar nenhum advogado satisfeito. Quando eu ganho um julgamento, gosto de saber que o ganhei devido aos meus méritos, e não graças ao dinheiro que o meu cliente me deu para repartir pelos jurados.
— Se é isso que pensas, então não passas de um tonto. E não te vais agüentar por muito tempo mais!
O rosto agradável, mas sem a clássica beleza romana, de Cícero, exibiu a mais pétrea das expressões. Os olhos castanhos encheram-se de um brilho feroz.
— Aguentar-me-ei muito mais tempo que tu, Hortênsio! Muito mais tempo! Não duvides disso!
— Eu sou demasiado forte para que alguém possa deitar-me abaixo.
— Isso foi o que Anteu disse antes de Hércules o ter erguido do chão. Ave, Quinto Hortênsio.
Em fins de Janeiro do ano seguinte, Cinila deu à luz uma menina, Júlia, uma bonequita delicada e muito branca deixou os pais encantados.
— Um rapaz representa uma grande despesa, minha querida esposa — disse César. — Ao passo que uma rapariga é um trunfo político de inigualável valor, sobretudo quando a sua linhagem é patrícia tanto do lado materno como paterno, e quando dispõe de um bom dote. É impossível saber o que um rapaz virá a fazer na vida. Mas quanto às raparigas, as coisas são diferentes. E, quanto a nossa Júlia, ela é perfeita. Vai ser como a avó Aurélia: vai ter um sem-número de pretendentes!
— Não vejo grandes perspectivas quanto ao dote — disse a mãe, que tinha tido um parto difícil, mas estava a recuperar bem.
— Não te preocupes, minha querida Cinila! Quando Júlia chegar à idade de casar, não terá de esperar pelo dote!
Aurélia estava no seu elemento: encarregada de tratar do bebê, apaixonara-se de imediato pela deliciosa criatura. Era o seu quinto neto: Lia tivera dois rapazes dos seus dois casamentos e Ju-Ju tivera um rapaz e uma rapariga. Mas nenhum desses netos vivia em sua casa. E, além disso, não eram filhos do seu filho, da luz da sua vida.
— Ela vai ter olhos azuis, porque nasceu com eles muito pálidos — disse Aurélia, deliciada com o facto de Júlia se parecer com o pai. — E o cabelo não tem mais cor que o gelo!
— Ainda bem que lhe encontras cabelo! — retorquiu César com um ar grave. — Para mim, ela é completamente careca. O que não é um bom sinal, pois todos os Césares têm cabeleira farta!
— Ora, que disparate! Claro que a menina tem cabelo! Espera que ela faça um ano e logo vais ver se não tem cabelo! Vai ser um cabelo mais parecido com a prata do que com o ouro. A minha queridinha!
— A mim, parece-me tão feia como a pobre Cnéia.
— César! Francamente! É um recém-nascido! E vai sair a ti!
— Mas que sorte a minha! — replicou César, deixando a filha e a avó.
César encaminhou-se para a mais afamada estalagem da cidade, na esquina do Fórum Romano com a Clivus Orbius; recebera uma mensagem segundo a qual os seus clientes do caso Dolabela estavam de novo em Roma e ansiosos por falar com ele.
— Temos outro caso para ti — disse o chefe dos visitantes gregos, Ifícrates de Tessalónica.
— Lisonjeiam-me — retorquiu César, com um ar intrigado. — Mas quem é que vocês querem processar? Ápio Cláudio Fulcro é governador há tão pouco tempo que, com toda a certeza, ainda não fez nada de ilegal...! E mesmo assim, seria extremamente difícil convencer o Senado a autorizar o julgamento de um governador ainda em funções.
— Trata-se de um estranho caso, que nada tem a ver com governadores macedónios — retorquiu Ifícrates. — Nós queremos processar Caio António Híbrida, pelas atrocidades que cometeu quando era prefeito de cavalaria, no tempo de Sila, já lá vão dez anos.
— Por todos os deuses! Querem processá-lo ao fim de tanto tempo?!
— Não estamos à espera de ganhar, César. Não é esse o objectivo da nossa missão. Simplesmente, a nossa experiência com o mais velho dos Dolabelas levou-nos a concluir que alguns dos romanos que nos têm visitado são pouco melhores que animais. E creio que é tempo de Roma ter consciência disso. As petições não servem para nada. Ninguém se dá ao trabalho de lê-las. E muito menos o Senado. Os processos por traição ou extorsão são espectáculos para elites — só as classes altas de Roma se dão ao trabalho de lá ir. O que nós queremos é chamar a atenção dos cavaleiros e mesmo das classes baixas. Pensámos, por isso, que um julgamento no Tribunal de Homicídios seria o melhor para o efeito pretendido — trata-se de um local que todas as classes freqüentam. E quando nos reunimos para escolher o melhor dos casos, lembrámo-nos imediatamente de Caio António Híbrida.
— Que fez ele? — perguntou César.
— Híbrida era o prefeito de cavalaria encarregado dos distritos de Téspias, Elêusis e Orcomeno durante o tempo em que Sila ou parte do seu exército estiveram na Beócia. Mas a sua actividade militar foi muito reduzida. Em vez disso, deliciava-se com prazeres horrendos — tortura, mutilações, violações de mulheres, homens, rapazes, raparigas, e assassínios.
— Híbrida?
— Sim, Híbrida.
— bom, eu sempre soube que ele era um António típico — mais tempo bêbedo que sóbrio, gastador inveterado, louco por excessos envolvendo mulheres ou comida. — No rosto de César, desenhou-se uma expressão de nojo. — Mas tortura? Mesmo num António, não é coisa usual. Os Aenobarbos é que são famosos por essas tendências!
— Dispomos de provas absolutamente incontestáveis, César.
— Suponho que Híbrida foi buscar essa tendência ao lado da mãe. Ela não era romana, embora sempre tenha ouvido dizer que era uma mulher decente. Uma apuliana. Mas os Apulianos não são bárbaros e aquilo que vocês me contaram são actos perfeitamente bárbaros! Nem mesmo Caio Verres iria tão longe!
— As nossas provas são absolutamente incontestáveis — repetiu Ifícrates. A sua expressão deixou transparecer alguma malícia. — Mas ouve o que te vou dizer, e talvez compreendas o nosso empenho. Nos mais altos círculos de Roma, só acreditarão em nós a partir do momento em que toda a cidade de Roma fale do caso. E para que isso aconteça, é preciso que toda a cidade de Roma veja, com os seus próprios olhos, as nossas provas.
— Têm testemunhas que foram vítimas de Híbrida?
— Dúzias delas, se necessário. Pessoas sem a mínima mancha na sua reputação. Pessoas de elevada posição social. Algumas sem olhos, outras sem orelhas, algumas sem línguas, outras sem mãos, ou pés, ou pernas, ou órgãos genitais, ou úteros, ou braços, ou pele, ou narizes — e, por vezes, sem vários destes órgãos. Aquele homem é um animal. Ele e os seus amigos, mas os seus amigos não nos interessam, porque eram de baixa extracção.
César tinha um ar absolutamente enojado.
— Nesse caso, as vítimas sobreviveram.
— A maior parte sobreviveu, é verdade. António pensava que aquilo que fazia era uma arte. E a arte consistia em infligir todas as dores e mutilações possíveis sem que a vítima morresse. A maior alegria de António era passar por uma das suas cidades, alguns meses depois, e ver que as suas vítimas ainda estavam vivas.
— bom, vai ser um caso difícil para mim, mas não sinto a mínima hesitação quanto a aceitá-lo — retorquiu gravemente César.
— Difícil? Porquê?
— Porque o irmão mais velho de Híbrida, Marco, está casado com uma prima minha em segundo grau — Júlia, a filha de Lúcio César, que foi cônsul e que viria a ser assassinado por Caio Mário. Eles têm três filhos — sobrinhos de Híbrida e meus primos em terceiro grau. O problema, Ifícrates, é que um advogado em Roma fica mal visto se acusar membros da sua própria família.
— Mas a tua prima não está casada com Híbrida! Logo, a tua ligação com Híbrida é muito tênue.
— É verdade e é por esse motivo que eu aceito o caso. Mas haverá muita gente a criticar-me. Unicamente porque existe uma ligação de sangue entre mim e os três filhos de Júlia.
Foi com Lúcio Decúmio que César preferiu falar: antes falar com Decúmio do que com Caio Macio ou outra pessoa qualquer, próxima do seu nível social.
— Tu dás conta de tudo o que se passa, pai. Mas sabias de alguma história deste género?
Dotado de um físico que o fizera parecer mais velho quando era novo e que, agora que era velho, o fazia parecer mais novo, os anos pareciam não passar por Lúcio Decúmio; César não sabia ao certo a sua idade: calculava que Decúmio devia andar à volta dos sessenta.
— Sim, ouvi uns zunzuns, nada mais. Os escravos dele não duram mais de seis meses lá em casa, mas nunca ninguém os vê enterrados. Eu fico sempre desconfiado quando oiço histórias dessas. Desaparecem, mas não há enterros, nem nada. Normalmente, o que isso quer dizer é que os patrões praticam todo o tipo de maldades
nos seus escravos.
— Não há coisa mais desprezível do que a crueldade para com um escravo!
— É natural que penses assim, César. Tiveste a melhor mãe do mundo, ela deu-te a melhor das educações.
— Mas estas coisas não devem ter nada a ver com a educação de uma pessoa! — retorquiu César, furioso. — Por certo têm a ver com a natureza de uma pessoa: é algo que nasce com elas. Sou capaz de entender tais atrocidades quando são praticadas por bárbaros — os seus costumes, tradições e deuses exigem deles coisas que nós, Romanos, banimos há já muitos séculos. Imaginar que um nobre romano — um António! — sente prazer em infligir tais sofrimentos... ah, por todos os deuses, pai, é difícil de acreditar!
Mas Lúcio Decúmio deu-lhe uma resposta sensata.
— Basta olhares à tua volta, César. Sabes isso muito bem. Talvez não vejas coisas tão horríveis, é claro, mas isso é porque as pessoas têm medo de ser denunciadas. Pensa um pouco! Este António Híbrida é um nobre romano, como tu dizes. Os tribunais protegem-no. A sua própria classe protege-o. Por que raio é que ele há-de ter medo, a partir do momento em que começa a cometer tais actos? O que impede a maior parte das pessoas de começar é o medo de serem apanhadas. Porque, se forem apanhadas, é muito natural que sejam castigadas. E quando mais alto um homem sobe, maior será a sua queda. Só que, por vezes, há homens com poder e influência suficientes para fazer o que muito bem entende, para ser o que muito bem entende. É o caso de António Híbrida. Não há muitos como ele, seja onde for. Não há muitos! Mas há sempre alguns, César. Há sempre alguns.
— Sim, tens razão. Claro que tens razão. — As pálpebras cerraram-se, cansadas, enquanto César tentava alinhar os seus pensamentos. — O que tu me estás a dizer é que tais homens devem ser castigados. É isso, não é?
— Claro. A menos que queiras que haja muitos como Híbrida. Se permitires que um escape ao castigo, aparecem logo mais dois a fazer o mesmo.
— Então não há dúvida: ele vai ter mesmo de prestar contas. E não vai ser nada fácil.
— Pois não.
— Para além desses horríveis boatos sobre o desaparecimento dos escravos, que mais sabes acerca dele, pai?
— Não muito. Sei que é um homem odiado por muita, muita gente. Os comerciantes odeiam-no. Tal como o povo miúdo. Quando ele dá um beliscão numa rapariguinha que passa, belisca-a sempre com muita força, põe a rapariga a chorar.
— E que faz a minha prima Júlia no meio de tudo isto?
— Pergunta à tua mãe, César, não a mim!
— Eu não posso perguntar isso à minha mãe, Lúcio Decúmio! Lúcio Decúmio pensou um pouco no caso e aquiesceu.
— Pois não, César, não podes perguntar. — Fez uma nova pausa para reflectir. — bom, uma coisa é certa: essa Júlia é uma mulher muito parva — não tem nada a ver com as outras Júlias da tua família, que eram e são todas inteligentes! O António que está casado com ela não é o melhor dos homens, não sei se me faço entender. Mas também não é cruel. É um tipo sem cabeça. E os miúdos dele deviam ter levado uns bons pontapés no rabo e nunca levaram!
— Queres dizer que os filhos dele são mal-educados?
— São tão mal-educados como um urso da floresta.
— Deixa-me ver... Marco, Caio, Lúcio. Ah, quem me dera saber um pouco mais acerca da minha família! Não dou atenção às conversas das mulheres, esse é que é o problema. A minha mãe podia contar-me tudo num instante... Mas ela é demasiado inteligente, perguntava-me logo por que razão é que eu estou tão interessado e depois tentava convencer-me a não aceitar o caso. E, por fim, acabávamos a discutir. É preferível que ela saiba que eu aceitei o caso, quando tudo estiver já consumado. — Suspirou, parecia triste. — Mas conta-me mais coisas acerca dos sobrinhos de Híbrida.
Lúcio Decúmio fez um esforço para se lembrar, comprimiu os lábios.
— Eu costumo vê-los aqui em Subura. Não deviam andar por aqui sem pedagogo nem criados, mas andam. Sozinhos, sem ninguém por perto. Roubam comida das lojas, mais para atormentar as pessoas do que por terem faltas em casa.
— Que idades têm eles?
— Não te posso dizer ao certo, mas Marco tem aspecto de ter doze anos. Mas de cabeça é como se tivesse cinco. Por isso, é capaz de ter uns sete ou oito. E os outros dois são mais pequenos.
— São todos umas bestas, os Antónios. Ouvi dizer que o pai dos miúdos não tem muito dinheiro.
— Está sempre à beira do abismo, César.
— Nesse caso, se eu processar Híbrida, será horrível para eles.
— Pois será.
— Mas tenho de aceitar o caso, pai. — Eu sei, eu sei!
— Do que preciso é de algumas testemunhas. De preferência, libertos que queiram testemunhar. Ele aqui deve fazer as mesmas coisas que fez na Macedónia. E nem todas as suas vítimas serão escravos que desapareceram misteriosamente.
— Euvou investigar, César.
Mal ele entrou, as mulheres da casa aperceberam-se de que havia problema; mas nem Aurélia nem Cinila fizeram qualquer tentativa para descobrir o que se passava com César. Em circunstâncias mais normais, Aurélia tê-lo-ia certamente feito; mas o bebê ocupava-a muito mais do que alguma vez admitira ser possível, e, por isso, não conseguiu decifrar a expressão do filho. E, ao mesmo tempo, perdeu uma oportunidade única para tentar dissuadi-lo de acusar Caio António Híbrida, cujos sobrinhos eram primos de César.
O Tribunal de Homicídios era o foro lógico, mas quanto mais pensava no caso, menos César gostava da ideia de um julgamento nesse tribunal. Em primeiro lugar, porque o presidente era o pretor Marco Júnio Junco, que detestara a sua nomeação para um tribunal que, em princípio, devia ser confiado a um ex-edil (mas nenhum ex-edil se apresentara como voluntário para presidir ao tribunal); César tivera já um desagradável confronto com Júnio Junco, num julgamento ocorrido em Janeiro. A outra grande dificuldade residia no facto de os litigantes não serem romanos. Era muito difícil conseguir um veredicto favorável, quando os queixosos eram estrangeiros e o réu era um romano de elevado nascimento e posição social. Os seus clientes bem podiam dizer que não se importavam de perder o caso. Só que César sabia que um juiz como Junco faria o possível para que um tal julgamento tivesse o mínimo de repercussões na sociedade — era mesmo capaz de reunir o tribunal num local afastado, de forma a evitar uma vasta audiência. E o pior de tudo era que o tribuno da plebe Cneu Sicínio andava a monopolizar as audiências do Fórum, reivindicando a restauração de todos os poderes que, em tempos, haviam pertencido aos tribunos da plebe. Não se falava de outra coisa, em especial desde que Sicínio se tinha saído com uma afirmação que não escapara a nenhum diletante literário que gostasse de coleccionar citações mais ou menos ridículas de políticos.
— Mas por que raio — perguntou-lhe o cônsul Caio Escribónio Curió, exasperado — é que tu nos importunas, a mim e ao meu colega Cneu Octávio, aos pretores, aos edis, aos teus camaradas tribunos da plebe, a Públio Cetego, a todos os nossos consulares e homens famosos, a banqueiros como Tito Ático? Nem os pobres questores escapam! E, no entanto, nunca dizes uma palavra contra Marco Licínio Crasso? Marco Crasso não será porventura digno do teu veneno? Ou será por acaso Marco Crasso quem está por detrás das luas diatribes? Vá lá, Sicínio, pára um momento com os teus latidos, e diz-me, sinceramente, por que raio é que só deixas Crasso em paz?
Sabedor de que Curió e Crasso estavam desavindos, Sicínio pôs um ar de quem estava a reflectir maduramente na questão, antes de dar uma resposta.
— Porque Marco Crasso tem palha à volta dos seus dois cornos — respondeu ele, no tom mais sério deste mundo.
A vastíssima audiência desatou numa gargalhada pegada, apreciando todas as nuances da frase. Um touro com palha à volta de um chifre era algo bastante comum; a palha era um aviso de que o animal podia parecer manso, mas que, a todo o momento, podia correr para uma pessoa e escorneá-la com aquele mesmo chifre. Quanto aos touros com palha à volta dos dois cornos, as pessoas fugiam deles como de leprosos. Como Marco Crasso tinha um ar imperturbavelmente bovino e a constituição física de um touro, aquela observação colava-se-lhe na perfeição; mas o que fizera rir as pessoas fora um outro sentido subjacente à frase: é que Marco Crasso era tão touro, em termos sexuais, que, em vez de um chifre, possuía dois.
Estando as coisas neste pé, como seria possível atrair muitos dos adeptos de Sicínio ao julgamento? Como seria possível dar ao julgamento a audiência que ele merecia? E enquanto César matutava nestas questões, os seus clientes regressaram à Boécia para reunir provas e testemunhas, de acordo com as instruções que César lhes dera; vários meses passaram entretanto, os clientes regressaram a Roma e César ainda não tinha levado o caso ao tribunal de Junco.
— Não compreendo! — exclamou Ifícrates, decepcionado. — Se continuamos assim, acabará por não haver julgamento nenhum!
— Tenho o pressentimento de que encontraremos um processo melhor — disse César. — Tem paciência, Ifícrates, espera um pouco mais. Prometo-te que tu e os teus colegas não terão de esperar em Roma durante muito tempo. As testemunhas, estão bem escondidas?
— O melhor possível. Tal e qual como tu ordenaste. Numa villa dos arredores de Cumas.
Até que, no princípio de Junho, surgiu a solução para todos os problemas. César tinha resolvido passar pelo tribunal do praetor peregrinus, Marco Terêncio Varrão Lúculo. O irmão mais novo do homem que a maior parte dos Romanos considerava ser o seu mais brilhante concidadão era muito parecido com Lúculo — e muito devotado a ele. Separados na infância pelas vicissitudes da sorte, o elo entre os dois irmãos não tinha enfraquecido; pelo contrário, tornara-se muito mais forte. Lúculo atrasara a sua subida ao longo do cursus honorum para que pudesse ser edil curul juntamente com Varrão Lúculo, e os dois tinham organizado jogos tão extraordinários que, passados alguns anos, Roma continuava a falar deles. Generalizara-se a ideia de que os dois Lúculos se tornariam cônsules num futuro próximo; além de aristocratas, eram extremamente populares entre os eleitores.
— Que tal te está a correr hoje o dia? — perguntou-lhe César, sorridente; César gostava do praetor peregrinus, em cujo tribunal defendera muitos pequenos casos com uma confiança e uma liberdade que poucos outros juizes permitiriam. Varrão Lúculo, além de ser uma sumidade em leis, era um homem de uma integridade extrema.
— Verdadeiramente entediante — retorquiu Varrão Lúculo, retribuindo o sorriso.
Por alguma razão desconhecida, a brilhante ideia de César nascera e amadurecera entre a sua pergunta e a resposta de Varrão Lúculo; isso era habitual nele — a repentina resolução de um problema difícil, ao fim de meses e meses de debates interiores.
— Quando é que partes de Roma para os tribunais rurais?
— É costume o praetor peregrinus ir para o litoral da Campânia logo que o Verão começa a tornar-se insuportável em Roma — disse Varrão Lúculo, com um suspiro. — No entanto, desta vez, parece quevou ter de ficar em Roma pelo menos mais um mês.
— Então fica, Varrão Lúculo! Demora-te em Roma o mais possível! — disse César.
Varrão Lúculo pestanejou, surpreendido. Onde estava César, que já não o via? Sim, de facto aquele jovem que tanto admirava, e a quem reconhecia invulgares capacidades de advogado, tinha pura e simplesmente desaparecido.
— Já sei o quevou fazer! — dizia César, momentos depois, a Ifícrates, no salão privado de uma estalagem, alugado por este último.
— Que vais fazer? — perguntou aquela importante figura de Tessânica, impaciente.
— Eu sabia que tinha razão em esperar, Ifícrates! Não vamos recorrer ao Tribunal de Homicídios! E não vamos acusar Caio António Híbrida de nenhum assassínio ou tentativa de assassínio!
— Não vamos?! — retorquiu Ifícrates, estupefacto. — Mas esse era o objectivo da nossa acção!
— Não, o objectivo da vossa acção é criar uma forte comoção em toda a cidade de Roma. E não conseguiremos fazer isso no tribunal de Junco. Aliás, o tribunal de Junco fugiria sempre ao público que Sicínio tem no Fórum. Junco acabaria por fechar-se no recanto menos arejado da Basílica Pórcia ou da Opimia, onde as pessoas desmaiariam por causa do calor. Só ficariam as pessoas que tinham mesmo de ficar. O júri odiar-nos-ia e Junco despacharia o julgamento num instante, pressionado por jurados e por advogados.
— Mas qual é alternativa?
César inclinou-se um pouco para o seu interlocutor.
—vou apresentar este caso ao praetor peregrinus. Ou seja, será uma acção cível e não uma acção criminal — disse ele. — Em vez de acusar Híbrida de homicídio, processá-lo-ei pelos danos decorrentes da sua conduta, enquanto foi prefeito de cavalaria na Grécia, há dez anos atrás. E tu depositaras um sponsio enorme nas mãos do praetor peregrinus — uma soma muito maior que toda a fortuna de Híbrida. Poderás arranjar dois mil talentos? E estarás preparado para os perder, caso alguma coisa corra mal?
Ifícrates respirou fundo.
— Sim, de facto é uma soma enorme. Mas nós estamos preparados para gastar o que for preciso. O importante é que Roma perceba que tem de deixar de nos atormentar com homens como Híbrida — ou como o velho Dolabela. Sim, César, nós arranjaremos os dois mil talentos. Teremos de fazer um esforço, mas conseguiremos arranjá-los aqui em Roma.
— Muito bem. Depois, depositaremos os dois mil talentos em sponsio, a fim de movermos a acção cível contra Caio António Híbrida. Só isso já chegará para causar uma forte sensação. E demonstrará a toda a cidade de Roma que estamos seriamente empenhados no caso.
— Híbrida não conseguirá arranjar um quarto dessa soma.
— Tens toda a razão, Ifícrates. Mas o praetor peregrinus pode dispensar o depósito do sponsio se considerar que há razões suficientes para reunir um tribunal. E Varrão Lúculo é um homem justo. Estou certo de que prescindirá do sponsio de Híbrida.
— Mas se nós ganharmos e Híbrida não tiver depositado os seus dois mil talentos, o que é que acontece?
— Acontece que terá de arranjar o dinheiro! Porque terá de pagar precisamente essa soma! É assim que se processa uma acção cível, de acordo com as leis romanas.
— Ah, já estou a perceber! — Ifícrates recostou-se na sua cadeira e juntou os braços à volta dos joelhos. Sorridente, acrescentou: — Se ele perder, ficará tão pobre como um mendigo. E terá de deixar Roma completamente falido. E nunca mais terá dinheiro para voltar. É isso, não é?
— Precisamente. Nunca mais poderá voltar a Roma.
— Em contrapartida, se nós perdermos, ele fica com os nossos dois mil talentos, não é?
— Isso mesmo.
— Achas que vamos perder, César?
— Acho que vamos ganhar.
— Então porque é que me disseste que alguma coisa podia correr mal? Porque é que disseste que tínhamos de estar preparados para a perda de tão elevada soma?
com a testa muito franzida, César tentou explicar àquele grego de Tessalónica aquilo que ele, um romano dos quatro costados, tinha aprendido desde a infância.
— Porque a lei romana não é tão perfeita como parece. Muitas coisas dependem do juiz e, de acordo com as leis de Sila, o juiz, neste caso, não poderá ser Varrão Lúculo. Mas eu confio inteiramente na integridade de Varrão Lúculo e espero que ele escolha um juiz capaz de estudar o caso de uma forma desapaixonada. Mas há um outro risco. Por vezes, um advogado brilhante consegue encontrar, nesta ou naquela lei, um buraco capaz de deixar entrar um oceano inteiro — e Híbrida será defendido pelos melhores advogados de Roma. — Uma tensão muito forte percorria todo o corpo de César; as suas mãos nervosas, enquanto procurava explicar aquelas questões ao seu cliente, quase ganhavam o aspecto de garras. — Se eu tive inspiração para encontrar uma solução para o nosso problema, é muito natural que outros tenham inspiração suficiente para encontrar uma solução para o problema de Híbrida! É por isso que homens como eu gostam tanto da actividade legal, quando os juizes e os processos são imunes à corrupção e aos preconceitos! Apesar de acharmos que temos toda a razão, apesar de considerarmos que preparámos exemplarmente o nosso caso, temos sempre de levar em conta que o nosso adversário pode ser brilhante. Imagina que Cícero seria o advogado de defesa! Aí tens um magnífico advogado de defesa! Claro que ele recusará um caso destes, quando souber o seu conteúdo. Mas Hortênsio não levantará problemas. Finalmente, não te esqueças de que um dos lados tem de perder. Nós estamos a lutar por um princípio e essa é a mais perigosa de todas as motivações para quem disputa um processo.
—vou consultar os meus colegas e amanhã dar-te-ei uma resposta — disse Ifícrates.
A resposta era a esperada — César devia pedir ao praetor peregrinus que reunisse o tribunal para estudar uma acção cível contra Caio António Híbrida. Acompanhado dos seus clientes, César deslocou-se então ao tribunal de Varrão Lúculo, onde depositou o sponsio de dois mil talentos, a soma que era exigida a Híbrida como indemnização pelos danos causados.
Varrão Lúculo ficou petrificado ao ouvir o que César tinha para lhe dizer; depois, abanou a cabeça, estupefacto, e tratou de examinar o documento passado pelo banco.
— Não há dúvida — disse ele para César. — Isto é mesmo a sério.
— Absolutamente, praetor peregrinus.
— Porque não pensaste no Tribunal de Extorsão?
— Porque a acção não envolve nenhuma extorsão. Envolve assassínio — mas mais do que assassínio! Envolve torturas, violações e mutilações. Passados tantos anos, os meus clientes não pretendem uma acção criminal. O que querem é uma indemnização em nome dos cidadãos de Téspias, Elêusis e Orcomeno a quem Caio António Híbrida causou danos irreparáveis. Essas pessoas ficaram incapacitadas para o trabalho, para ganharem a sua vida, para se casarem ou terem filhos. Os outros cidadãos de Téspias, Elêusis e Orcomeno, viram-se na obrigação de sustentar essas pessoas — e isso tem-lhes custado uma fortuna que, segundo eles, deverá ser Caio António Híbrida a pagar. Esta é uma acção cível, praetor peregrinus, destinada a obter uma indemnização pelos prejuízos causados.
— Nesse caso, deverás apresentar as tuas provas por carta, para que eu possa decidir se há motivos para reunir o tribunal.
— Apresentarei perante o tribunal e o juiz que escolheres os testemunhos de oito vítimas ou testemunhas das atrocidades. Seis dessas pessoas são habitantes de Téspias, Elêusis e Orcomeno. As outras duas vivem em Roma: uma é um cidadão liberto, a outra é um cidadão sírio.
— Por que razão convocas testemunhas romanas, advogado?
— Porque quero mostrar ao tribunal que Caio António Híbrida continua a dedicar-se às suas horrendas práticas, praetor peregrinus.
Duas horas depois, Varrão Lúculo aceitava a acção e depositava o sponsio. Caio António Híbrida foi imediatamente convocado para comparecer no tribunal no dia seguinte. Depois, Varrão Lúculo nomeou o seu juiz. Públio Cornélio Cetego. César ficou exultante, mas a sua expressão não denunciou os seus sentimentos.
Magnífico! O juiz era um homem tão rico que baseava todo o seu poder no facto de que ninguém poderia comprá-lo, um homem tão cultivado e refinado que chorava quando um peixe de estimação ou um cachorro morriam, um homem que cobria a cabeça com a toga para não ver matar uma galinha no mercado. E um homem que não gostava nada dos Antónios, Acharia Cetego que um seu colega senador devia ser protegido, fosse qual fosse o crime? Ou a acção cível? Não! Cetego não era desses! No fim de contas, não havia, naquele julgamento, a possibilidade de o réu perder a cidadania romana ou ser condenado ao exílio. Aquele era um mero litígio civil: o que estava em causa era o dinheiro da indemnização.
A notícia espalhou-se num ápice pelo Fórum Romano; uma multidão começou a formar-se, momentos depois de César ter aparecido no tribunal do praetor peregrinas. César aproveitou a oportunidade para estimular o interesse das pessoas, discorrendo sobre as atrocidades que Híbrida praticara; a multidão foi crescendo cada vez mais, ansiando já pelo início do julgamento. Seria possível que houvesse homens capazes de tais atrocidades? Capazes de esfolarem outros homens, capazes de dilacerarem os órgãos genitais de uma mulher, de tal forma que esta nunca mais conseguira urinar normalmente?
Mas as notícias também chegaram rapidamente à casa de César. Ele apercebeu-se disso mal viu a mãe.
— Será verdade o que me contaram, César? — perguntou ela, irada. — Vais processar Caio António Híbrida? Não é possível! Há um laço de sangue entre vocês!
— Não há qualquer laço de sangue entre mim e Híbrida.
— Os sobrinhos dele são teus primos!
— Essas crianças são filhos do irmão de Híbrida. Existe de facto um laço de sangue, mas é com a mãe dessas crianças. A consangüinidade só poderia contar se os meus primos fossem filhos de Híbrida. E não são. Aliás, Híbrida nem sequer tem filhos!
— Não podes fazer uma coisa destas a uma Júlia!
— Mãe, lamento que a família se veja envolvida num caso destes, mas a verdade é que não há nenhuma Júlia directamente envolvida.
— Os Júlios Césares aliaram-se pelo casamento aos Antónios! Isso é razão suficiente!
— Não, não é! E uma tal aliança só revela uma grande estupidez da parte dos Júlios Césares! Os Antónios não passam de uns rústicos grosseiros, de uns vadios que para nada servem! E repara bem no que te digo, mãe: eu nunca permitiria que uma Júlia da minha própria família se casasse com um António! — retorquiu César, virando-lhe as costas.
— Reconsidera, César, por favor! Muita gente reprovará a tua acção!
— Não, mãe, não contes com isso.
O resultado deste confronto foi uma desconfortável refeição, algumas horas depois. Incapaz de suportar estar no meio de dois adversários tão ferozes, Cinila correu para o quarto da filha logo que pôde, inventando que a filha estava com cólicas, dores de dentes, irritações de pele e mais uma quantidade de doenças próprias das crianças. César e Aurélia ficaram sozinhos, ignorando-se mutuamente, os dois de queixo espetado.
Houve de facto algumas vozes que se ergueram para reprovar César. No entanto, César, ao aceitar aquele caso, não estava a abrir um precedente. Pelos tribunais de Roma tinham passado já muitos outros casos em que a consangüinidade era muito mais forte do que as objecções técnicas que homens como Catulo apontaram na acção movida contra Caio António Híbrida.
Claro que Híbrida não podia ignorar a intimação; daí que estivesse à espera no tribunal do praetor peregrinus, com uma comitiva de rostos famosos, incluindo Quinto Hortênsio e o tio de César, Caio Aurélio Cota. De Marco Túlio Cícero não havia sinal, nem mesmo entre a audiência; até ao momento em que Cetego deu início ao julgamento, como César pôde ver pelo canto do olho. Cícero ia lá perder um escândalo daqueles! Especialmente quando fora escolhida a opção legal de uma acção cível.
César reparou imediatamente que Híbrida não estava à vontade. Corpulento, musculado, com um pescoço tão grosso como uma coluna, Híbrida era um António típico; o cabelo castanho-arruivado, encaracolado, e os olhos castanhos, eram tão antoninos como o nariz aquilino e o queixo proeminente, com uma boca pequena e carnuda no meio. Antes de saber das atrocidades de Híbrida, César olhava para aquele rosto abrutalhado e dizia para si mesmo que aquela era mesmo a cara de um indivíduo que bebia em excesso, que comia em excesso e que procurava compulsivamente o sexo. Agora percebia melhor. Aquele era o rosto de um verdadeiro monstro.
As coisas começaram mal para Híbrida quando Hortênsio escolheu jogar a cartada de que a acção deveria ser recusada por aquele tribunal, alegando que, se as acusações fossem realmente tão graves como o seu oponente queria fazer crer, o tribunal criminal seria o local ideal para o julgamento. Varrão Lúculo mostrava-se o mais impassível que podia, já que só queria intervir se o seu juiz lho pedisse expressamente. E Cetego dificilmente tomaria essa atitude. Mais tarde ou mais cedo ficaria com a presidência daquele tribunal e por isso nunca mostrara o mínimo interesse em ser juiz de casos menores. E este não era um caso menor, bem pelo contrário. Era muito natural que lhe repugnasse ouvir tamanhas atrocidades, mas pelo menos não corria o risco de se aborrecer mortalmente. Daí que tivesse enfrentado inteligentemente Hortênsio e que, usando sabiamente a sua autoridade, tivesse conduzido as coisas como mais lhe convinha.
Ao meio-dia, Cetego estava já pronto para ouvir as testemunhas, cujo aparecimento provocou uma verdadeira sensação no tribunal. Ifícrates e os seus companheiros tinham escolhido as vítimas, pensando nos efeitos mais imediatos, mais teatrais, e também na compaixão que poderiam suscitar. A mais comovente das testemunhas era um homem que, na realidade, não podia testemunhar; Híbrida retalhara-lhe a cara — e cortara-lhe a língua. Mas a sua esposa testemunhou por ele — uma magnífica testemunha, já que o ódio lhe refinava a eloqüência. Cetego escutou-a atentamente, enquanto fitava o pobre marido, suando as estopinhas, lívido como a cal. Ouvida esta testemunha, Cetego encerrou os trabalhos desse dia, pedindo aos deuses que agüentasse os vômitos até chegar a casa.
Mas foi Híbrida quem tentou ter a última palavra. Ao deixar o tribunal, deteve César, agarrando-o pelo braço.
— Onde é que foste buscar estes desgraçados? — perguntou ele, compondo uma expressão de dolorida perplexidade. — Deves ter passado o mundo a pente fino! Mas fica sabendo que o teu estratagema não vai resultar. Porque, afinal, quem é aquela gente? Um punhado de marginais, de vilões! Um mero punhado de desgraçados, desejosos de receberem uma pesada indemnização romana, em vez de continuarem na vadiagem, sobrevivendo à custa das esmolas gregas!
— Um mero punhado? — rugiu César, reduzindo ao silêncio a ruidosa multidão que se afastava e que, de repente, se virou para o ouvir. — É tudo o que tens a dizer? Pois ouve bem o que eu te digo, Caio António Híbrida: um já seria demais! Apenas um já seria demais! Apenas um homem, ou uma mulher, ou uma criança, desfigurado de maneira tão horrível, já seria demais! Apenas um homem, ou uma mulher, ou uma criança, espoliado da sua juventude, da sua beleza, do seu orgulho em estar vivo, já seria demais! Vai-te embora! Vai para casa!
Caio António Híbrida foi para casa, descobrindo, surpreendido, que nenhum dos seus advogados desejava acompanhá-lo. Até o seu irmão arranjara uma desculpa para não o acompanhar. No entanto, não ia sozinho; ao seu lado, vinha um homem gordinho e atarracado que se tornara seu amigo desde que Híbrida entrara para o Senado, ano e meio antes. Esse homem era Caio Élio Estaieno, uma criatura que não pensava noutra coisa senão em arranjar aliados poderosos, em comer à mesa dos outros e em acumular mais e mais dinheiro. Recebera algum dinheiro de Pompeu no ano anterior, quando fora questor de Mamerco e provocara um motim — ah, claro que não fora um motim sangrento! Tudo correra às mil maravilhas e ninguém suspeitara dele.
— Vais perder — disse ele a Híbrida, quando entraram na bela mansão deste último, situada no Palatino.
Híbrida não estava com disposição para o contestar.
— Eu sei quevou perder.
— Mas não seria agradável se ganhasses? — perguntou Estaieno, com um ar sonhador. — Dois mil talentos é o prêmio para quem ganhar.
—vou ter de arranjar dois mil talentos. E ficarei falido para o resto da vida.
— Não necessariamente — disse Estaieno, com malícia na voz. Sentou-se na cadeira dos clientes de Híbrida e olhou à sua volta. — Ainda tens daquele vinho de Quios? — perguntou.
Híbrida pegou numa garrafa e encheu duas taças. Depois de estender uma taça ao seu convidado, sentou-se. Bebeu um bom gole de vinho e olhou fixamente para Estaieno.
— Estás a tramar alguma — disse ele. — O quê?
— Dois mil talentos é muito dinheiro. Aliás, mil talentos já é muito dinheiro.
— É verdade. — A boca pequena e carnuda abriu-se, revelando os dentes pequenos e muito brancos de Híbrida. — Eu não sou nenhum idiota, Estaieno! Já percebi onde queres chegar. Se te der metade dos dois mil talentos, garantes-me que me livro desta. É isso, não é?
— Exactamente.
— Pois bem: concordo. Tu livras-me disto e recebes mil talentos.
— E nem sequer vamos ter muito trabalho — disse Estaieno, com um ar pensativo. — Tens de agradecer a Sila. Mas como ele está morto, não se importa que me agradeças a mim.
— Não me atormentes mais. Conta-me o que vai na tua cabeça!
— Ah, claro! Esqueci-me que preferes atormentar os outros a ser atormentado. — Tal como muitos homens nulos a quem de repente é dada uma posição de poder, Estaieno era incapaz de esconder o prazer que isso lhe proporcionava, embora soubesse que, depois de encerrado o caso, a sua amizade com Híbrida terminaria. Por muito êxito que o seu estratagema tivesse. Mas que lhe interessava aquela amizade? Mil talentos era prêmio suficiente. E, fosse como fosse, que ganharia ele tendo por amigo uma criatura como Híbrida?
— Então, Estaieno? Conta-me ou vai-te embora!
— O ius auxilii ferendi — disse apenas Estaieno. — Sim. E então?
— A função original dos tribunos da plebe, é a única função que Sila não lhes retirou — salvar um membro da plebe das mãos de um magistrado.
— O ius auxilii ferendil — exclamou Híbrida, espantado. Por um momento o seu rosto iluminou-se. Mas depressa as sombras voltaram. — Não. Eles não vão fazer uma coisa dessas — disse.
— Pode ser que façam — replicou Estaieno.
— Não Sicínio! Ele nunca estaria de acordo! Basta que haja um veto no colégio para que os outros nove tribunos da plebe não possam fazer nada. E Sicínio não estará de acordo, Estaieno. Ele pode ser o maior chato do mundo, mas não é subornável.
— Sicínio — disse Estaieno, com o ar mais feliz deste mundo — não é popular junto dos seus colegas. Os seus nove colegas, a quem ele roubou toda a influência que tinham no Fórum, estão fartos, mais que fartos dele! De facto, ainda anteontem ouvi dois deles ameaçá-lo de que o atiravam da Rocha Tarpeia, se ele não se calasse de vez com as suas reivindicações.
— Queres dizer então que Sicínio podia ser intimidado?
— Sim. Sem a mínima dúvida. Claro que vais ter de encontrar uma boa soma até amanhã de manhã, porque nenhum deles aceitará participar nas nossas manobras se não receber uma recompensa adequada. Mas isso podes tu fazer — tanto mais que ganharás mil talentos se os conseguires convencer.
— E quanto achas quevou ter de gastar?
— Nove vezes cinqüenta mil sestércios. Dá quatrocentos e cinqüenta mil sestércios. Consegues arranjar esse dinheiro?
— Posso tentar.vou pedir ao meu irmão. Ele não quer escândalos na família. E há mais algumas fontes. Sim, Estaieno, creio que consigo arranjar essa soma.
E assim tudo ficou combinado. Caio Élio Estaieno teve uma noite muito atarefada, visitando sucessivamente os nove tribunos da plebe que lhe interessavam — e entre os quais se contavam Marco Atílio Bulbo, Mânio Aquílio, Quinto Curió e Públio Popílio. Quem ele não visitou foi Cneu Sicínio.
O julgamento deveria recomeçar duas horas após o nascer do dia; antes disso, porém, já o Fórum Romano andava na maior agitação: os freqüentadores do Fórum estavam positivamente em transe, na expectativa de um dia cheio de peripécias. Mal o dia nasceu, Cneu Sicínio viu-se cercado e dominado pelos seus nove colegas do tribunado da plebe. Estes levaram-no então para o alto do Capitólio, onde o moeram de pancada. Depois, conduziram-no até à ponta da Rocha Tarpeia e deixaram-no ver bem os afloramentos pontiagudos que havia ao fundo do precipício. E gritaram-lhe que tinha de acabar com aquela agitação perpétua em torno da restauração dos poderes dos tribunos da plebe. E obrigaram-no a jurar que, de futuro, faria exactamente o que os seus nove colegas lhe mandassem. Por fim, Sicínio foi recambiado para casa numa liteira.
Momentos depois de Cetego ter aberto o segundo dia de audiências, nove tribunos da plebe irromperam pelo tribunal de Varrão Lúculo, gritando que um membro da Plebe estava a ser detido, contra sua vontade, por um magistrado.
— Rogo-vos que recorram ao IMS auxilii ferendi! — exclamou Híbrida, de braços estendidos, com um ar compungido.
— Marco Terêncio Varrão Lúculo, um membro da Plebe pediu-nos que exercêssemos o recurso ao ius auxilii ferendü — disse Mânio Aquílio. — Assim sendo, devo informar-te de que vamos exercer esse recurso!
— Isto é um ultraje! — gritou Varrão Lúculo, erguendo-se num ápice. — Eu não vos autorizo a exercerem esse direito! Onde está o décimo tribuno?
— Ficou em casa, porque está muito doente — retorquiu Mânio Aquílio, com um sorriso trocista. — Mas podes mandá-lo buscar. Ele não vetará a nossa decisão.
— Estão a transgredir a lei! — berrou Cetego. — Isto é um ultraje! Uma vergonha! Um escândalo! Quanto é que Híbrida lhes pagou?
— Libertem Caio António Híbrida! Caso contrário, pegaremos em todos os homens que se opõem à sua libertação e atirá-los-emos da Rocha Tarpeia! — gritou Mânio Aquílio.
— Estás a impedir que se faça justiça! — retorquiu Varrão Lúculo.
— Como tu muito bem sabes, Varrão Lúculo, num tribunal de um magistrado nunca há justiça! — atirou-lhe Quinto Curió. — Um homem não é um júri! Se queres processar Caio António, então fá-lo num tribunal criminal, onde o ius auxilii ferendi não pode ser exercido!
César não se mexeu, nem tentou protestar. Os seus clientes juntaram-se atrás dele, muito agitados. Impassível, César virou-se para eles e disse-lhes com a maior das calmas:
— Eu sou um patrício e não um magistrado. Devemos deixar o praetor peregrinus resolver o caso. Não digam nada!
— Muito bem, levem o vosso membro da Plebe! — disse Varrão Lúculo, enquanto segurava Cetego.
— Nesse caso — disse Caio António Híbrida, rodeado pelos nove tribunos da plebe —, deverá ser-me pago o sponsio depositado pelos clientes do nosso advogado César, que tanto gosta dos Gregos.
A farpa da referência aos Gregos cravou-se no espírito de César, levando-o a reviver imediatamente todo o sofrimento causado pelos boatos acerca do seu relacionamento com Nicomedes. Sem a mínima hesitação, avançou pelo meio dos tribunos da plebe e agarrou com toda a força o pescoço de Híbrida. Este sempre se considerara um verdadeiro Hércules, mas a verdade é que não conseguia libertar-se daquelas mãos poderosas nem responder, fosse de que forma fosse, à violência do agressor. Foram precisos sete homens (Varrão Lúculo e seis lictores) para arrancar César. Entre a multidão, alguns homens começaram logo a falar do estranho comportamento dos nove tribunos da plebe. De facto, nenhum deles mexeu um dedo para ajudar Híbrida.
— O julgamento está encerrado! — berrou Varrão Lúculo com toda a sua força. — Dadas as circunstâncias, não há nenhuma acção em julgamento! Eu, Marco Terêncio Varrão Lúculo, assim o declaro! Os queixosos podem levar o seu sponsio. E vão todos para casa!
— O sponsio! O sponsio pertence a Caio António! — gritou uma outra voz, a voz de Caio Élio Estaieno.
— Não pertence a Híbrida! — berrou Cetego. — O caso foi encerrado pelo praetor peregrinus e o sponsio encontra-se sob a sua jurisdição! O sponsio será devolvido a quem o depositou! Quanto a isso, não há a menor dúvida judicial!
— Levem o vosso membro da Plebe e deixem o meu tribunal!
— gritou Varrão Lúculo, perfeitamente fora de si, aos tribunos da plebe. — Vá, rua! Todos para a rua! É assim que defendem a causa do tribunado da plebe? Desfigurando, de uma maneira escandalosa, aquela que foi a sua função original? Pois fiquem sabendo uma coisa: farei tudo o que estiver ao meu alcance para manter os tribunos da plebe amordaçados para sempre!
Os nove homens foram-se embora com Híbrida, com Estaieno atrás deles lamentando a perda do sponsio. Híbrida não parava de afagar o pescoço magoado.
Enquanto a multidão excitada dispersava, Varrão Lúculo e César olharam um para o outro.
— Teria gostado muito que estrangulasses aquele animal, mas espero que compreendas que não podia permitir uma coisa dessas
— disse-lhe Varrão Lúculo.
— Compreendo, sim — retorquiu César, ainda tremendo. — E eu que pensava que conseguia controlar-me! Não sou um homem facilmente excitável. Mas não posso permitir que um sabujo como Híbrida faça insinuações acerca da minha virilidade.
— É evidente — retorquiu secamente Varrão Lúculo, lembrando-se do que o seu irmão afirmara sobre tal assunto.
César lembrou-se também nesse instante de que estava perante o irmão de Lúculo, mas decidiu que Varrão Lúculo era perfeitamente capaz de ter as suas próprias opiniões, sem se deixar influenciar por boatos.
— Mas vejam só o descaramento daquele verme! Por todos os deuses! Então não é que ele queria o sponsio! — disse Cícero, aproximando-se agora que a violência tinha acabado.
— De facto, é preciso muito descaramento! — concordou César, apontando para o homem mutilado e para a sua esposa.
— É nojento! — exclamou Cícero, sentando-se nos degraus do tribunal, enquanto limpava o suor com um lenço.
— bom, pelo menos conseguimos salvar os vossos dois mil talentos — disse César a Ifícrates, que rondava, hesitante, o seu advogado. — E, se vocês queriam criar alguma agitação em Roma, não há dúvida que o conseguiram. Creio que o Senado passará a ter muito mais cuidado com os governadores que manda para a Macedónia. Agora volta para a tua estalagem e leva estes pobres infelizes contigo. Só lamento que os seus concidadãos se vejam obrigados a gastar fortunas para os ajudar. Mas eu tinha-te avisado.
— Não é isso que eu lamento — retorquiu Ifícrates, afastando-se. — O que eu lamento é que não tenhamos conseguido castigar Caio António Híbrida.
— Não conseguimos arruiná-lo financeiramente — retorquiu César. — Mas ele terá de abandonar Roma. Tão cedo não se atreverá a aparecer em público nesta cidade.
— Acham — perguntou Cícero — que Híbrida subornou mesmo os nove tribunos da plebe?
— Não tenho a mínima dúvida! — atirou-lhe Cetego, cuja fúria custava a amansar. — Por muito pouco que eu goste de Sicínio, tenho de reconhecer que ele é uma excepção. Os outros tribunos da plebe deste ano são absolutamente miseráveis!
— E por que não haviam de ser miseráveis? — perguntou César, cuja fúria amansara já por completo. — O cargo deles nada tem de glorioso actualmente. Os tribunos da plebe encontram-se num beco sem saída.
— O que eu gostava de saber é quanto Híbrida teve de pagar por nove tribunos da plebe — disse Cícero, que não queria abandonar a linha dos seus pensamentos.
Cetego franziu os lábios.
— Deve ter pago cerca de quarenta mil por cada tribuno. Os olhos de Varrão Lúculo dançaram-lhe nas órbitas.
— Como é que podes estar tão certo disso, Cetego? Como é que sabes?
O rei dos senadores das últimas bancadas esqueceu por fim a sua ira; a ira, ainda que desculpável, era algo que não convinha ao seu estilo. E tratou de responder ao praetor peregrinus com as sobrancelhas muito erguidas e a sua característica fala arrastada.
— Meu caro praetor peregrinus, no que toca à ganância dos senadores, não há nada que eu ignore! Podia fazer-te uma lista com o preço de todos os senadores subornáveis. E, quanto àqueles miseráveis, não tenhas dúvidas: quarenta mil é o seu preço.
E, como Híbrida depressa descobriu, foi mesmo esse o preço que Caio Élio Estaieno pagou por cada tribuno; ou seja, tinha ficado com noventa mil sestércios para si.
— Devolve-me o dinheiro! — gritou o homem que gostava de torturar e mutilar os seus semelhantes. — Devolve-me o dinheiro, Estaieno, ou arranco-te os olhos com os meus próprios dedos! Porque só gastaste trezentos e sessenta mil sestércios! E eu não ganhei os dois mil talentos!
— Não te esqueças — retorquiu Estaieno, com um sorriso perverso e muito pouco impressionado com aquelas ameaças — de que fui eu quem tive a ideia do recurso ao ius auxilii ferendi. Por isso, acho que devo ficar com os noventa mil sestércios. Quanto a ti... bom, quanto a ti, o melhor é agradeceres aos deuses por não teres perdido toda a tua fortuna!
O julgamento que não chegou a sê-lo teve um impacte que ainda se fez sentir por algum tempo. Várias foram as suas conseqüências, e duradouras. Uma delas foi que o Colégio dos Tribunos da Plebe desse ano ficou nos anais dos cronistas políticos como o mais infame de sempre; outra foi que a Macedónia passou a ser governada por homens responsáveis (ainda que belicosos); Cneu Sicínio nunca mais reivindicou a restauração dos poderes dos tribunos da plebe; a fama de César como advogado não parou de crescer; e Caio António Híbrida ausentou-se de Roma e das localidades freqüentadas pelos Romanos durante vários anos. De facto, fez uma pequena viagem até à ilha de Cefalénia, no mar Jónio, onde verificou que era o único homem civilizado (se é que tal qualificativo lhe podia ser aplicado) em toda a região e descobriu vários túmulos incrivelmente antigos repletos de tesouros — punhais requintadamente cinzelados e embutidos, máscaras feitas de ouro puro, frascos de electro, taças de cristal de rocha e uma grande quantidade de jóias. Tesouros que valiam muito mais que dois mil talentos. Tesouros que bastavam para lhe garantir o consulado mal regressasse a Roma, mesmo que, para isso, tivesse de comprar todos os votos.
No ano seguinte, nenhum acontecimento importante ocorreu na vida de César, que permaneceu em Roma e continuou a sua carreira de advogado com um êxito notável. No entanto, Cícero não se encontrava em Roma nesse ano. Eleito questor, calhou-lhe por sorteio a cidade de Lilibeu, na Sicília Ocidental, onde trabalharia sob as ordens do governador, Sexto Peduceu. Como a questura implicava que passava a ser membro do Senado, Cícero preferia deixar Roma (embora quisesse ficar em Itália e tivesse ficado furioso com o seu azar) e entregar-se com entusiasmo ao seu trabalho, relacionado basicamente com o abastecimento de cereais. Aquele era um ano pobre, mas os cônsules tinham enfrentado eficazmente a escassez anunciada; haviam comprado enormes quantidades de cereais armazenados na Sicília, que depois venderam a preços baixos em Roma, recorrendo à promulgação de uma lex frumentaria.
Como quase todos os literatos, Cícero adorava escrever e receber cartas, e fora um ávido correspondente durante muitos anos. Mas durante a sua estada na Sicília Ocidental, tinha então trinta e um anos, que a sua arte epistolar atingiu o auge — ainda que, praticamente, tivesse apenas um correspondente: o erudito plutocrata Tito Pompónio Ático. Graças a Ático, a solidão de muitos meses em Lilibeu foi aliviada por um fluxo constante de informações e mexericos acerca de tudo e de toda a gente em Roma.
Afirmava Ático numa missiva enviada já perto do final da missão siciliana de Cícero:
Ao contrário do que muitos previam, não houve nenhum motim provocado por falta de alimentos. E isto, unicamente porque Roma teve muita sorte com os cônsules deste ano. Tive oportunidade de conversar com o irmão de Caio Cota, Marco, que será cônsul no próximo ano. Nesta nação de homens inteligentes, perguntei, porque é que o povo miúdo ainda é obrigado, de quando em quando, a uma dieta de painço e nabos? Creio que já é tempo, acrescentei, de Roma enfrentar os agricultores privados da Sicília e das nossas outras províncias cerealíferas e de os obrigar a vender ao Estado em vez de ficarem à espera que os mercadores privados lhes paguem mais, pois que, normalmente, isso implica que os cereais fiquem armazenados na Sicília, em vez de virem para Roma, onde o povo miúdo passa fome. Reprovo absolutamente o açambarcamento, quando isso afecta o bem-estar de uma nação cheia de homens inteligentes. Marco Cota escutou-me com imensa atenção e prometeu fazer alguma coisa a esse respeito no próximo ano. Como eu não tenho qualquer interesse nos negócios cerealíferos, posso perfeitamente mostrar-me patriótico e altruísta neste particular. E pára de rir, se fazes favor, Marco Túlio.
Quinto Hortênsio, o mais presunçoso dos nossos edis plebeus numa geração, proporcionou-nos uns jogos magníficos. Para além da distribuição gratuita de cereais à arraia-miúda. É que ele quer ser cônsul quando chegar o seu ano! Claro que a tua ausência faz com que ele se esteja a sair muito bem nos tribunais, mas o jovem César tem-lhe pregado muitos sustos e, freqüentemente, rouba-lhe os louros. Hortênsio não gosta nada disso e, ainda outro dia, ouviram-no dizer que adoraria que César também se fosse embora de Roma por uns tempos. Mas estes disparates típicos de Hortênsio não são nada, se comparados com o banquete que ele ofereceu por ocasião da sua tomada de posse (sim, finalmente aconteceu!) como augure. E que serviu ele? Pavão assado! Sim, leste bem: pavão assado! Os pássaros (seis, no total) foram assados e trinchados e, depois, os cozinheiros, não faço ideia como, devolveram todas as penas aos bichos. De tal modo que os pavões chegaram à mesa em bandejas de ouro, exibindo toda a sua bela plumagem, com as caudas abertas como leques e as cristas levantadas. Foi um verdadeiro espectáculo e outros gastrónomos como Cetego, Filipe e o cônsul sénior do próximo ano, Lúculo, ficaram tão impressionados que devem ter pensado em suicidar-se. No entanto, meu caro Marco, a degustação das aves foi um verdadeiro anticlímax. Uma velha bota do exército tem, com toda a certeza, melhor sabor, além do que é muito mais fácil de mastigar.
A morte de Ápio Cláudio Fulcro, na Macedónia, o ano passado, conduziu a uma situação particularmente divertida. Aquela família não parece ter muita sorte, pois não? Primeiro foi o sobrinho Filipe que, quando era censor, tirou tudo o que pôde a Ápio Cláudio; depois, Ápio Cláudio não se mostrou suficientemente empreendedor para fazer boas compras nos leilões das proscrições; a seguir, ficou doente e não pôde ir para a sua província; e, para cúmulo, quando finalmente foi para a Macedónia, portando-se excelentemente em termos militares, morreu antes de conseguir consolidar a sua fortuna.
Evidentemente, todos conhecemos de sobejo os seis filhos que deixou. São um horror! Em especial os mais novinhos. Mas Ápio Cláudio, o filho mais velho, está a revelar-se muito inteligente e empreendedor. Primeiro, mal o pai virou costas, deu a irmã mais velha, Cláudia, em casamento a Quinto Márcio Rei, apesar de ela não ter dote nenhum. Ou me engano muito, ou Rei pagou os olhos da cara por ela! Tal como todas as Cláudias Pulcras, ela é um verdadeiro encanto, e isso deve ter ajudado. É de crer que Rei se dê por feliz com este matrimônio, já que, das três filhas de Ápio Cláudio, esta é a única que tem fama de ser simpática.
Três rapazes é sempre um problema, quanto a isso ninguém tem dúvidas. E a adopção é uma hipótese que não se põe. O rapaz mais novo (que se atribuiu o nome de Públio Clódio — tal e qual) é uma criatura tão repelente e selvática que ninguém quer adoptá-lo. Caio Cláudio, o rapaz do meio, é idiota. Também ninguém o quer. De maneira que o jovem Ápio Cláudio, apenas com 20 anos, vê-se obrigado a financiar não só a sua carreira no Senado, mas também as carreiras dos outros dois irmãos. O dinheiro com que Quinto Márcio Rei contribuiu para a família é capaz de ser apenas uma gota no deserto dos Cláudios Fulcros.
Mas a verdade, meu caro Marco Túlio, é que o jovem Ápio Cláudio se tem saído muitíssimo bem. Sabendo que qualquer pai de família com um mínimo de juízo o recusaria, decidiu procurar uma noiva rica e tratou de cortejar — imagina quem! Nem mais nem menos do que aquela solteirona enfezada que dá pelo nome de Servília Cneia! Estás a ver quem é? Aquela rapariga que foi contratada por Escauro e Mamerco para viver com os seis órfãos de Druso. Não só não tinha dote, como ainda por cima era filha da mais horrenda criatura de Roma, uma Pórcia Liciniana. Mas parece que, entretanto, Escauro e Mamerco lhe providenciaram um dote de duzentos talentos, a que teria direito logo que os órfãos de Druso crescessem. E estes já estão bem crescidos!
Marco Pórcio Catão, o mais novo, já está com 18 anos, vive em casa do pai e declarou a sua independência.
Quando percebeu que aquele rapazinho de 20 anos estava interessado em casar-se com ela, Servilia Cneia não perdeu tempo. Ao que parece, vai já nos 32 e ainda é donzela. Não acredito no boato segundo o qual Cneia se barbeia! A mãe barbeia-se, é verdade, mas isso toda a gente sabe. Para Ápio Cláudio, o melhor do negócio foi que a sua sogra, a referida Pórcia Liciniana, se retirou para uma simpática villa junto ao mar, a qual, segundo se diz, lhe foi oferecida por Escauro e Mamerco no momento em que contrataram a filha. De maneira que Ápio Cláudio não tem de viver com a sogra. Os duzentos talentos vieram mesmo a calhar!
Mas ainda não te contei o melhor. E o melhor é que Ápio Cláudio casou a sua irmã mais nova, Clodila, imagina só com quem! com Lúculo! Diz ele, e diz Lúculo, que a rapariga tem 15 anos. Eu dava-lhe 14, mas pode ser que esteja enganado. Mas que negócio, ha?! Graças a Sila, Lúculo é fabulosamente rico e, além disso, é ele quem controla as fortunas dos Divinos Gémeos. Ah, não, não quero dizer com isto que o nosso honrado e vertical Lúculo é capaz de deitar a mão às fortunas de Fausto e Fausta — mas há algo que o impeça de guardar os juros na sua bolsa?
E assim, graças à espantosa energia e ao notável espírito de iniciativa deste jovem de 20 anos, a fortuna da família Ápio Cláudio Fulcro tomou um novo e surpreendente rumo. Toda a cidade de Roma se ri, mas não deixa de sentir sincera admiração pelo rapaz. O nosso Ápio Cláudio merece, sem dúvida, a nossa atenção! Públio Clódio, que tem 14 anos — bom, então Clodila tem mesmo 15 —, constitui já uma verdadeira ameaça, e o seu irmão mais velho não conseguirá discipliná-lo. É muito bonito e precoce, é um perigo com as raparigas e está sempre pronto para todo o tipo de patifarias. Creio, porém, que é intelectualmente brilhante, de modo que é muito capaz de assentar e de vir a ser um modelo para os nobres patrícios romanos.
E que mais te hei-de contar? Ah, sim. Aquela famosa frase de Cneu Sicínio acerca de Marco Crasso — aquela da palha nos dois cornos de Crasso! — tem muito mais razão de ser do que nós pensámos na altura. Soube-se há pouco tempo que Sicínio tinha uma dívida brutal para com Crasso há uma série de anos. De modo que a tal frase continha ainda outra nuance. Faenum é ”palha” e faenerator é ”todo aquele que empresta dinheiro”. A palha que envolvia os cornos de Crasso era o dinheiro que este emprestara a Sicínio! Roma ficou a saber desta nova nuance porque Sicínio está falido e não tem dinheiro para pagar a dívida. Eu não sabia que Crasso emprestava dinheiro. Infelizmente, ninguém lhe pode pegar. Empresta apenas a senadores e não cobra juros. Foi a maneira que ele encontrou de arranjar uma clientela senatorial. Creio que valerá a pena seguir com atenção os movimentos do nosso amigo Crasso. Mas não lhe peças dinheiro emprestado, Marco! A ausência de juros é uma grande tentação, mas Crasso exige o pagamento da dívida quando muito bem lhe apetece e manda que lhe paguem imediatamente. Se não lhe pagas, estás arrumado. E não há nada que os censores (se nós tivéssemos censores) possam fazer, porque ele não cobra juros. Quod erat demonstrandum: ele não pode ser considerado um usurário. É apenas um indivíduo muito, muito simpático, que gosta de ajudar os seus amigos senadores que se vêem em apuros.
E creio que é tudo. Terência está bem, tal como a pequena Túlia. Que bela menina que tu tens! O teu irmão está na mesma. Quem me dera que ele se desse melhor com a minha irmã! Mas creio que tanto eu como tu já desistimos de tentar melhorar aquele casamento. Pompónia é um virago e Quinto um verdadeiro camponês com isso quero dizer que ele é teimoso, frugal e orgulhoso. E quer ser o senhor da casa.
Espero que tudo te corra bem. Escrever-te-ei uma vez mais antes de partir para o Epiro, onde o meu rancho continua florescente. É claro que a região é demasiado húmida para os rebanhos de ovelhas — as patas das ovelhas apodrecem. Mas as pessoas interessam-se tanto pelo fabrico de lã que acabam por esquecer-se de que o mundo consome uma quantidade enorme de couro de vaca. Não há dúvida: o investimento no gado é muito subestimado.
Em fins de Sextilis, César recebeu uma mensagem urgente da Bitínia. O rei Nicomedes estava a morrer e pedia-lhe que fosse vê-lo. Era precisamente disso que César precisava; Roma estava a tornar-se um sítio cada vez mais sufocante e os tribunais não saíam do habitual ramerrão. E embora as notícias da Bitínia não fossem agradáveis, a morte de Nicomedes não era nada de inesperado.
Um dia depois de ter recebido a mensagem de Oradaltis, César estava pronto para partir.
Burgundo, como sempre, acompanhá-lo-ia. Demétrio, o depilador, e Brasidas, o espartano que fazia as suas Coroas Cívicas com folhas de carvalho, também tinham de ir com ele. Agora, com efeito, era natural que César se rodeasse de um maior fausto para viajar — a sua importância na sociedade romana tinha aumentado, o que implicava que precisasse de um secretário, de vários escribas, de vários criados pessoais e de uma pequena escolta dos seus próprios libertos. Daí que a sua comitiva fosse constituída por vinte pessoas: a viagem ia sair-lhe cara. No entanto, César, com 25 anos apenas, era senador há já cinco anos.
— Mas não pensem — disse Burgundo para os novos membros da comitiva — que vão viajar calma e confortavelmente. Quando Caio Júlio arranca, ninguém o apanha!
Nicomedes vivia ainda quando César chegou à Bitínia; no entanto, era já demasiado tarde para que o velho rei conseguisse recuperar da sua doença.
— É apenas velhice, nada mais — disse a rainha Oradaltis, chorando. — Ah, a falta que ele me vai fazer! Sou mulher dele desde os quinze anos. Como é quevou conseguir passar sem ele?
— Conseguirás passar sem ele, porque tens de passar sem ele — retorquiu César, secando as lágrimas. — O teu velho Sila ainda tem muita vida, vai fazer-te companhia. Pelo que me disseste, Nicomedes aceita de bom grado a morte. Eu compreendo-o. Também eu receio chegar a uma idade em que já não servimos para nada.
— Ele meteu-se na cama, à espera de morrer, já lá vão dez dias — disse Oradaltis. — Os físicos dizem que ele pode morrer a qualquer momento. Hoje, amanhã, daqui a um mês. Ninguém sabe.
Quando viu a figura definhada do rei na enorme cama de madeira entalhada, César não acreditou que Nicomedes passasse daquele dia. O corpo do rei mais não era agora que pele e osso. Perdera todas as suas características físicas: estava tão seco e mirrado como uma maçã de Inverno. Mas quando César disse o seu nome, abriu imediatamente os olhos, estendeu os braços e, enquanto as lágrimas lhe corriam pelas faces, um sorriso grato desenhou-se nos seus lábios.
— Vieste! — exclamou, com uma voz surpreendentemente forte.
— Tinha de vir! — retorquiu César, sentando-se na beira da cama para pegar nas mãos esqueléticas do rei. — Quando me pedes para vir, eu venho.
Agora que tinha a companhia de César, o qual o levava da cama para o divã e do divã para uma cadeira num sítio ensolarado e sem correntes de ar, Nicomedes animou-se. No entanto, as suas pernas já não tinham vida e estava tão fraco que ficava a cochilar a meio de uma frase e, quando acordava, momentos depois, já não se lembrava do tema da última conversa. Não conseguia já ingerir alimentos sólidos; limitava-se a beber leite de cabra, misturado com vinho fortificado e mel — mas babava-se tanto que acabava por beber muito pouco. É curioso, pensou o susceptível e imaculado César, que quando uma coisa destas acontece a pessoas que nos são queridas, nós não tenhamos as reacções habituais. De facto, não sinto qualquer espécie de repulsa. Não sinto a mínima tentação de chamar um criado para o limpar. Pelo contrário: é para mim um prazer cuidar dele. Não me importava sequer de despejar o seu bacio.
— Tiveste notícias da tua filha? — perguntou-lhe César, num dos seus melhores dias.
— Não directamente. Mas parece que ainda é viva e que está bem, na cidade de Cabeira.
— Não podes negociar com Mitridates para que ela volte à Bitínia?
— O preço é o reino, César. Sabes bem disso.
— Mas se ela não voltar, não haverá herdeiro.
— A Bitínia tem um herdeiro aqui mesmo — disse Nicomedes.
— Em Nicomédia? Quem é?
— Eu pensei deixar-te a Bitínia em testamento.
— A mim?
— Sim, a ti. Serias o rei da Bitínia.
— Não, meu querido amigo, isso não é possível.
— Darias um grande rei, César. Não gostavas de governar a tua própria terra?
— A minha terra é Roma, Nicomedes, e, como todos os Romanos, eu fui educado na crença de que a República é o melhor dos sistemas.
O lábio inferior do rei tremeu.
— Não consigo sequer tentar-te?
— Não.
— A Bitínia precisa de um homem jovem e muito forte, César. Não encontro ninguém melhor do que tu.
— Há alguém melhor: Roma.
— E romanos como Caio Verres.
— Tens razão. Mas também há romanos como eu. Roma é a única resposta possível, Nicomedes. A menos que prefiras o Ponto.
— Tudo é preferível ao Ponto!
— Então deixa a Bitínia a Roma.
— Podes fazer-me o testamento segundo os preceitos romanos?
— Claro.
— Então, fá-lo, César. Deixarei o meu reino a Roma.
Em meados de Dezembro, o rei Nicomedes in da Bitínia morreu. Uma das suas mãos repousava na mão de César; a outra, na mão da esposa. No entanto, não chegou a acordar do seu longo sonho para se despedir daqueles que mais amava.
O testamento foi enviado para Roma, logo que César recebeu uma resposta do Senado, confirmando que o governador da Província da Ásia, Marco Júnio Junco, se deslocaria à Bitínia para tratar da incorporação deste reino na Província da Ásia, após a morte do rei; como César tencionava permanecer em Nicomédia até que o rei morresse, seria ele quem deveria informar Junco do triste desenlace.
A notícia de que Junco seria o primeiro governador da Bitínia constituiu para César uma profunda decepção: o primeiro governador da Bitínia não era um homem compreensivo ou sequer simpático.
— Quero que sejam inventariados todos os tesouros e obras de arte existentes no reino — disse César à viúva. — E também o conteúdo do tesouro, o tamanho e as características da frota e do exército, e todas as armaduras, espadas, lanças, peças de artilharia e engenhos de cerco que a Bitínia possui.
— Assim farei. Mas porquê, César? — perguntou Oradaltis, intrigada.
— Porque se o governador da Província da Ásia quiser enriquecer à custa da Bitínia, só assim poderei saber. Nem que ele desvie uma só lança ou um só dracma, é preciso que eu saiba — retorquiu César, com um ar soturno. — Se ele o fizer, processá-lo-ei e garantirei a sua condenação! Enquanto estiveres a fazer o teu inventário, precisarás de ter pelo menos seis dos mais importantes cidadãos romanos nas tuas terras: eles testemunharão que o teu inventário está correcto. Dessa forma, o inventário será uma prova tão forte que nem mesmo um júri senatorial poderá ignorá-la.
— Que os deuses me valham! — disse a rainha. — Achas que corro perigo?
— Não. Mas se puderes mudar-te para outro local e para uma casa privada, levando contigo tudo o que quiseres, creio que poderás viver em paz e conforto para o resto da tua vida. De qualquer modo, é melhor que deixes Nicomédia e que não vás nem para Calcedónia, nem para Prusa.
— Não gostas nada desse Marco Júnio Junco.
— Não gosto mesmo nada.
— É outro Caio Verres?
— Duvido, Oradaltis. É apenas um indivíduo venal, igual a tantos outros. Sendo ele o primeiro representante de Roma na Bitínia, imagino que tentará roubar tudo aquilo que pense que Roma o deixa levar — disse César, calmamente. — Roma pedir-lhe-á um inventário de todas as riquezas, mas aposto que a tua lista e a lista dele não vão coincidir. E essa será a melhor altura para o apanharmos!
— E ele não suspeitará da existência de um inventário? César riu-se.
— Não, ele não! Os reinos orientais, habitualmente, não são tão meticulosos com essas coisas — só Roma o é. Claro que, sabendo que eu estou aqui, ele pensará que eu já desviei alguma coisa. Por isso, nunca lhe passará pela cabeça que eu possa ter conspirado contigo para o apanhar.
Em finais de Dezembro, o plano de César tinha já sido posto em prática. A rainha fora viver para a pequena aldeia piscatória de Reba, à entrada do Bósforo, nas margens do Euxino. Nicomedes possuía nessa aldeia uma villa privada e Oradaltis considerou que essa era a residência ideal para uma rainha retirada.
— Quando Junco pretender anexar a villa, mostra-lhe uma cópia do título de propriedade e informa-o de que o original está em poder dos teus banqueiros. A propósito: já escolheste os teus banqueiros?
— Eu tinha pensado nos banqueiros de Bizâncio. É a cidade mais próxima de Reda.
— Excelente! Bizâncio não pertence à Bitínia e, portanto, Junco não poderá investigar as tuas contas, nem poderá deitar a mão aos teus fundos. Informa também Junco de que o conteúdo da villa é inteiramente teu, pois constitui uma parte do teu dote. Dessa forma, ele não poderá levar nada do que tens dentro da villa. Por isso, não incluas no inventário nenhuma das coisas que levares! Se há alguma pessoa com direito a fazer dessas coisas o que muito bem entender, essa pessoa és tu.
— Tenho de pensar em Nisa também — disse a velha rainha, com um ar tristonho. — Sabe-se lá! Pode ser que um dia ela volte para mim.
Chegou entretanto a notícia de que Junco vogava já no Helesponto e estaria em Nicomédia passados alguns dias; segundo o seu mensageiro, tencionava parar em Prusa para inspeccionar a cidade. César conduziu a rainha para a sua villa, certificou-se de que o tesouro lhe concedia dinheiro bastante para que ela mantivesse um rendimento adequado, depositou os fundos de Oradaltis e o inventário nos bancos de Bizâncio que ela escolhera e, por fim, embarcou, nessa cidade, com a sua comitiva. Seguiria junto à costa trácia da Propôntide rumo ao Helesponto, evitando assim encontrar-se com Marco Júnio Junco, o governador da Província da Ásia — e agora também governador da Bitínia.
César não ia directamente para Roma. Em vez disso, seguiu para Rodes, onde tencionava estudar com Apolónio Molão durante um ou dois anos. Cícero convencera-o de que as aulas com Molão contribuiriam decisivamente para o refinamento da sua oratória, embora estivesse consciente de que a oratória de César alcançara já um nível óptimo. Ao contrário de Cícero, não sentia saudades de Roma, nem sentia a falta da família. Apesar de a companhia da família ser algo de muito agradável e tranqüilizante, a mulher, a filha e a mãe estariam em Roma quando ele voltasse. Nunca lhe passou pela cabeça que uma ou mais dessas pessoas lhe pudessem ser arrancadas pela morte enquanto ele estivesse fora.
Aquela era uma viagem dispendiosa e César recusara-se a receber o dinheiro que Nicomedes e Oradaltis lhe queriam dar. Pedira apenas uma recordação e os reis tinham-lhe dado uma esmeralda genuína da Cítia, muito melhor que as pedras do Sino Arábico, que eram mais pálidas e sombrias; tratava-se de um cabochão do tamanho de um ovo de galinha e tinha os perfis do rei e da rainha da Bitínia gravados. Aquela era uma recordação invendável. No entanto, César nunca se preocupava com dinheiro. Para já, tinha o suficiente, e, quanto ao futuro, estava convencido de que as coisas acabariam por arranjar-se; este tipo de atitudes provocava na mãe de César a maior perturbação. E, de facto, uma coisa era certa: uma comitiva de vinte pessoas e navios contratados significavam dez vezes mais despesas do que as viagens anteriores!
Em Esmirna, César passou algum tempo com Públio Rutílio Rufo e foi com grande prazer que ouviu as histórias do velho tio acerca de Cícero, que o visitara no regresso de Rodes a Roma.
— Um tipo espantoso de novo-rico! — foi o veredicto de Rutílio Rufo. — Nunca se sentirá feliz em Roma, embora adore a cidade. Eu diria que ele é como o sal da terra — um indivíduo decente, afectuoso e ultrapassado.
— Percebo o que queres dizer — anuiu César. — O problema, tio Públio, é que ele tem uma cabeça soberba e uma ambição extraordinária.
— Tal e qual como Caio Mário.
— De modo nenhum — retorquiu firmemente César. — Ele não é outro Caio Mário.
Em Mileto, César ficou a saber que Verres tinha roubado as meltores lãs, tapeçarias e tapetes que a cidade possuía, e aconselhou o etnarca a apresentar queixa ao Senado de Roma.
— Mas tiveste sorte — disse-lhe César, preparando-se para embarcar rumo a Halicarnasso. — Tiveste sorte por ele não te ter roubado as obras de arte e não ter pilhado os teus templos. Foi isso o que ele fez por todo o lado.
O navio que alugara em Bizâncio era um belo cargueiro de quarenta remos, com a popa alta e saliente pois era aí que ficavam os dois grandes remos de comando, e possuindo, a meia-nau, uma cabina para seu uso pessoal. Trinta cavalos e mulas — incluindo o cavalo de Neso e o seu querido Dedos — foram acomodados nos estábulos, situados entre a cabina de César e a popa. Como não viajavam mais de cinqüenta milhas sem descansarem num porto, os preparativos para reatar a viagem provocavam sempre a maior confusão, pois os cavalos e as mulas eram levados de novo para bordo e instalados no estábulo.
Mileto não se comportou de maneira diferente de Esmirna, de Pitane e da outra meia-dúzia de cidades costeiras por onde tinham passado. Toda a gente que estava no porto sabia que aquele navio fora alugado por um senador romano — e não havia ninguém que se mostrasse indiferente. Ali vinha ele! Aquele jovem encantador, vestido com a sua imaculada toga, que caminhava como se fosse o dono do mundo! E não seria mesmo o dono do mundo? Afinal, ele era um senador romano! Claro que alguns dos membros menos importantes da sua comitiva não deixaram de alimentar as conversas: daí que todos os freqüentadores do porto de Mileto soubessem que César era um aristrocrata de elevada linhagem e um homem brilhante, além do que fora ele quem convencera o rei Nicomedes da Bitínia a deixar o seu reino a Roma. Não admira que César se sentisse especialmente contente quando as pranchas de embarque eram retiradas e as âncoras subidas, e o navio se fazia de novo ao mar.
Mas como estava um belo dia e o mar estava calmo e a brisa enfunava a grande vela de linho, dispensando mesmo o trabalho dos remadores, o capitão garantiu a César que chegariam a Halicarnasso no dia seguinte.
Sete ou oito milhas a sul de Mileto, a ponta de um promontório avançava mar dentro; o navio de César vogava placidamente entre o promontório e uma ilha esbatida pela distância.
— É Farmacussa — disse o capitão, apontando para a ilha. O navio passou perto da ilha, e bastante longe de laso, a cidade
fronteira no continente, tomando um rumo que contornaria a próxima península dessa costa retalhada. Farmacussa era uma ilha muito pequena e tinha a forma de um par de seios de mulher, ainda que assimétricos, pois o monte situado a sul era maior que o outro.
— Vive alguém na ilha? — perguntou César.
— Nem sequer um pastor mais o seu rebanho.
Estavam quase a passar a ilha quando uma bela galera de guerra emergiu atrás do maior dos montes, avançando rapidamente na direcção do navio de César.
— Piratas! — gritou o capitão, lívido.
César, que se virara para ver o navio, aquiesceu.
— Sim. E estou a ver outra galera. Quantos homens vêm na da frente? — perguntou.
— Combatentes? Pelo menos cem, armados até aos dentes.
— E na de trás?
O capitão esticou o pescoço.
— É um navio maior. Talvez cento e cinqüenta.
— Nesse caso, não recomendas que resistamos, pois não?
— Não, senador, por todos os deuses! — retorquiu o homem, assustado. — Matar-nos-iam num abrir e fechar de olhos! É de crer que pretendam um resgate, pois sabem com toda a certeza que não levamos uma carga valiosa.
— Quer dizer então que eles sabem que vem alguém a bordo capaz de lhes proporcionar um bom resgate?
— Eles sabem tudo, senador! Têm espiões em todos os portos à volta do Egeu. Aposto que os espiões deixaram ontem Mileto e foram contar aos piratas que o nosso navio trazia um senador romano.
— Então, a base dos piratas é Farmacussa?
— Não, senador. Se a base deles fosse Farmacussa, Mileto e Priena correriam com eles com a maior facilidade. Eles devem ter-se escondido na ilha apenas por alguns dias — à espera de uma vítima. E não precisam de esperar muito. Há sempre um navio interessante a passar por perto. Estamos com pouca sorte. Como estamos no Inverno e o Inverno costuma trazer tempestades, sempre pensei que escaparíamos aos piratas. Mas infelizmente o tempo tem estado demasiado bom!
— Que vão eles fazer connosco?
— Vão levar-nos para a base deles e esperar pelo resgate.
— E onde crês que será essa base?
— Na Lícia, provavelmente. Algures entre Patara e Mira.
— É muito longe daqui.
— Vários dias de viagem.
— Porque é que escolheram uma região tão distante?
— Porque é absolutamente segura — aquilo é um paraíso para os piratas! Centenas de enseadas e vales ocultos! Nessa região, há pelo menos trinta grandes colônias de piratas.
César mantinha um ar imperturbável, apesar de as duas galeras se encontrarem já muito próximas do seu navio. Podia ver os homens armados alinhados nas amuradas e ouvir os seus gritos.
— Depois de ter sido resgatado, há alguma coisa que me impeça de voltar com uma frota e capturá-los a todos?
— Nunca encontrarás a enseada certa, senador. Há centenas de enseadas e são todas igualzinhas. Aquilo é um bocado como o velho labirinto de Cnossos, só que linear em vez de quadrado.
César chamou um dos seus criados pessoais e pediu calmamente a sua toga. O homem, aterrorizado, voltou num instante com a toga. César deixou então que ele o vestisse. Nesse momento, apareceu Burgundo.
— Combatemos, César?
— Não, claro que não. Uma coisa é combater quando a situação nos é remotamente favorável, outra é combater quando tudo indica que lutar eqüivale ao suicídio. Vamos portar-nos calmamente, Burgundo. Ouviste?
— Ouvi.
— Então diz a toda a gente que não quero heroísmos tontos. — César voltou-se para o capitão. — Portanto, em tua opinião nunca conseguirei localizar a enseada certa.
— Nunca, senador. Muitos foram já os que tentaram, mas em vão.
— Em Roma, levaram-nos a acreditar que Públio Servílio Vátia nos tinha libertado dos piratas quando conquistou a Isáuria. A sua campanha teria sido tão grandiosa que Vátia passou mesmo a chamar-se Vátia Isáurico.
— Os piratas são como as abelhas, César. Se fizeres fumo, elas desaparecem. Mas logo que o ar fica limpo, voltam todas.
— Estou a ver. Então, quando Vátia — ou melhor, Vátia Isáurico! — acabou com o reino de Zenicetes, o rei dos piratas, estava apenas a tirar a espuma da superfície. É isso, não é, capitão?
— Sim e não. O rei Zenicetes era apenas um dos chefes piratas. Quanto aos Isauros... — O capitão encolheu os ombros. — bom, quanto aos Isauros, os homens que viajam por estas águas nunca compreenderam por que razão um grande general romano lançou uma guerra contra uma tribo do interior, uma tribo constituída por selvagens da Pisídia, pensando que estava a desferir um rude golpe na pirataria! É possível que alguns netos dos Isauros se tenham juntado aos piratas, mas os Isauros estão demasiado longe do mar para se dedicarem à pirataria.
Os dois navios de guerra estavam agora ao lado do cargueiro e os piratas começavam já a subir a bordo deste último.
— Ah! Aí vem o chefe — disse César, sempre imperturbável.
Um homem jovem e muito alto, vestido com uma túnica feita com púrpura de Tiro e pesadamente adornada com bordados a ouro, abriu caminho entre as suas hostes e subiu a prancha até à popa do cargueiro. Não estava armado e o seu aspecto não era, de modo nenhum, marcial.
— Bons dias! — disse César.
— Estarei certo em pensar que tu és o senador romano Caio Júlio César, vencedor da Coroa Cívica?
— Absolutamente certo.
Os olhos verdes do chefe dos piratas estreitaram-se; depois, levou a mão, com as unhas muito bem tratadas, ao cabelo louro, elegantemente encaracolado.
— Estás muito calmo, senador — disse o pirata; o sotaque do seu grego indicava que talvez fosse de uma das ilhas do arquipélago das Espóradas.
— Não vejo qualquer razão para não estar calmo — retorquiu César, erguendo as sobrancelhas. — Presumo que me permitirás pagar o resgate pela minha pessoa e pelos meus homens. Por isso, é natural que esteja calmo.
— Tens razão. Mas mesmo assim os meus cativos costumam borrar-se todos de medo.
— Não este cativo!
— bom, tu és um herói de guerra. — O que é que se vai passar agora... como é mesmo o teu nome?
— Polígono, — O pirata virou-se para espreitar os seus homens, que tinham reunido a tripulação do cargueiro num grupo e os vinte membros da comitiva de César noutro grupo.
Tal como o chefe, os restantes piratas tinham um cuidado extremo com o seu aspecto; alguns usavam cabeleiras, outros tinham o cabelo em cachos, o que significava que usavam tenazes quentes para produzir tal efeito, outros ainda estavam tão maquilhados como rameiras; em contrapartida, havia alguns que preferiam usar o cabelo muito rente e exibir um ar másculo. Todos, porém, estavam extremamente bem vestidos.
— O que é que se vai passar agora? — repetiu César.
— A tua tripulação vai para o meu navio. Alguns dos meus homens irão remar para o teu navio e seguiremos todos para sul o mais depressa possível. Ao pôr do Sol já teremos passado Cnido, mas não pararemos. Daqui a três dias estarás em total segurança na minha residência, onde ficarás como meu convidado até que o teu resgate seja pago.
— Não seria mais fácil se permitisses que alguns dos meus criados deixassem o navio aqui? Uma pequena embarcação podia levá-los de volta a Mileto. Mileto é uma cidade muito rica: não deveria ser difícil levantar o meu resgate. A propósito: em quanto importa o meu resgate?
O chefe ignorou a segunda questão; quanto à primeira, abanou a cabeça e disse:
— Não, não pode ser. O nosso último resgate veio de Mileto e foi há pouco tempo. Nós preferimos distribuir a carga porque, por vezes, os homens resgatados demoram muito tempo a pagar às comunidades que aceitam emprestar-lhes o dinheiro necessário. Agora é a vez de Xanto e de Patara — na Lícia. Por isso, quando chegarmos a Patara, mandaremos os teus criados pedir o dinheiro. — Polígono agitou um nada a cabeça, fazendo flutuar os caracóis. — Quanto à soma — são vinte talentos de prata.
César recuou, horrorizado.
— Vinte talentos de prata? — exclamou, furioso. — Eu só valho isso?
— É o preço corrente para senadores. Todos os piratas concordaram quanto a isso. E tu és demasiado novo para seres um magistrado.
— Mas eu sou Caio Júlio César! — replicou o cativo, altivamente. — Não estás a compreender! Eu não sou apenas um patrício, sou também um Júlio! E que significa ser um Júlio? Significa que eu descendo da deusa Afrodite, através do seu filho Eneias. A minha linhagem é consular e hei-de ser cônsul quando chegar a hora. Eu não sou um mero senador! Ganhei uma Coroa Cívica, intervenho no Senado, sento-me na bancada do meio do Senado e, quando entro no Senado, todos os homens — incluindo os consulares e os censores! — têm de se levantar para me aplaudir. Vinte talentos de prata? Eu valho cinqüenta talentos de prata!
Polígono, fascinado, escutou-o com atenção; nunca tinha apanhado um cativo assim! Tão seguro de si mesmo, tão destemido e... tão arrogante! No entanto, havia algo naquele belo rosto de que Polígono gostava — seria o brilho dos olhos? Estaria aquele Caio Júlio César a troçar dele? Mas por que raio é que o cativo havia de troçar dele, se, dessa forma, se veria obrigado a pagar mais do que o dobro do resgate proposto? Sim, ele estava a falar a sério — tinha de estar! No entanto... aquele brilhozinho nos olhos não enganava!
— De acordo, majestade! Cinqüenta talentos de prata! — disse Polígono, também com um brilho suspeito nos olhos.
— Ah, assim está melhor! — retorquiu César, e virou-lhe costas.
Três dias depois — três dias em que não encontraram nenhuma frota, fosse ela de Rodes ou de qualquer outra cidade, patrulhando os mares —, a equipa de César desembarcou numa enseada defronte de Patara. Polígono tinha vindo na sua própria galera; César não mais o vira. Reapareceu, porém, quando foi preciso embarcar a comitiva de César num barco mais pequeno.
— Podes mandar apenas um membro da tua comitiva — disse o chefe dos piratas. — Um chega para levantar o resgate.
— Um criado não chega para um homem da minha importância — retorquiu César, impassível. — Ficarei apenas com três homens: o meu criado pessoal Demétrio e dois escribas. Se tiver de esperar muito tempo, precisarei de escribas para copiarem a minha poesia. Ou talvez venha a escrever uma peça. Uma comédia! Sim, devo ter imenso material para uma comédia. Ou talvez uma farsa.
— Quem é que conduz a tua gente?
— O meu liberto Caio Júlio Burgundo.
— O gigante? Um homenzarrão! Valia uma fortuna, se fosse escravo.
— E valeu, quando era escravo. Ele vai ter de levar o seu cavalo de Neso — prosseguiu César, meticuloso. — E os outros também precisam das suas montadas. Faço questão que os meus homens cheguem a Patara em condições condignas.
— Podes fazer questão em relação ao que quiseres, majestade. Mas os cavalos são demasiado bons.vou ficar com eles.
— Isso é que não vais! — atirou-lhe César. — Como vais receber cinqüenta talentos de resgate, podes passar perfeitamente sem os cavalos. Eu ficarei apenas com o meu Dedos — a menos que as tuas estradas tenham pavimento... O Dedos não é um cavalo ferrado e, por isso, não pode viajar em estradas pavimentadas.
— Estás a falar a sério ou quê? — disse Polígono, espantado.
— Desembarca os cavalos, Polígono — retorquiu César.
Os cavalos foram desembarcados. Burgundo ficou muito triste por deixar César nas mãos daqueles vilãos e com tão poucos criados, mas sabia que não valia a pena contestar as decisões do seu amo. A sua missão era encontrar o resgate.
E a viagem prosseguiu rumo à Lícia Oriental, junto à costa mais solitária e desolada do mundo. Não havia estradas, nem aldeias, mas apenas as portentosas montanhas de Solima, com os seus cumes permanentemente cobertos de neve, caindo a pique sobre o mar. As enseadas surgiram sem que César contasse: minúsculos pedaços de areia no flanco de uma montanha, faixas de uma areia amarela-avermelhada subindo por um penhasco amarelo-avermelhado. Mas nem um só sinal de alguma colônia pirata! Que intrigante! César não abandonou a popa desde que o navio passara o rio em que ficavam Patara e Xanto, examinando atentamente a configuração daquela estranha costa.
Ao pôr do Sol, as duas galeras e o cargueiro viraram na direcção de uma das inúmeras (e todas idênticas) enseadas. Só quando chegou à praia é que César conseguiu ver o que ninguém poderia ver do mar; o penhasco escarpado que servia de pano de fundo à enseada eram afinal dois penhascos; o rebordo de um deles ocultava o espaço que havia entre os dois; e, por detrás dos dois penhascos, ficava uma bacia enorme de terra baixa. O covil dos piratas!
— Estamos no Inverno e os cinqüenta talentos que vamos receber vão-nos permitir passar umas belas férias. Não precisaremos de nos fazer ao mar, quando surgirem as primeiras tempestades da Primavera — disse Polígono, juntando-se a César, que avançava já por entre o espaço entre os penhascos.
Os homens de Polígono estavam já a puxar para a praia as galeras e o cargueiro, usando roletes colocados sob a proa. Depois, enquanto César e Polígono assistiam ao longe às operações, os piratas puxaram os navios pela praia e por entre os penhascos; o seu destino, para já, era o vale oculto, onde ficariam assentes em esteios.
— Fazem sempre isto? — perguntou César.
— Só não fazemos quando prevemos para breve uma nova saída. Mas isso é muito raro. Normalmente, quando andamos à caça, não paramos a meio para vir a casa.
— Vocês estão muito bem organizados — disse César, com sincera admiração na voz.
A bacia de terra baixa teria cerca de dois quilômetros e meio de largura e à volta de um quilômetro e meio de comprido e possuía uma configuração mais ou menos oval. No ponto mais afastado para quem vinha da praia, uma pequena cascata caía das alturas para uma lagoa; a lagoa dava origem a um regato que serpenteava até chegar à enseada, embora, do mar, ninguém o pudesse ver. Os piratas tinham aberto um estreito canal para o regato, no fim da praia, sob os penhascos.
Uma cidade com boas construções e uma organização perfeita ocupava a maior parte do vale. Casas de pedra, com três e quatro pisos, ladeavam ruas de cascalho, vários silos e armazéns, de proporções muito razoáveis, surgiam defronte do local onde os navios eram arrumados, e uma praça com um templo constituía o centro da vida comunitária.
— Quantas pessoas vivem aqui? — perguntou César.
— Incluindo esposas, amantes e crianças — e amantes masculinos para alguns dos homens! —, serão cerca de... mil... mil e quinhentos. E também há os escravos.
— Quantos escravos?
— Dois mil, à volta disso. Nós não trabalhamos — disse Polígono, todo orgulhoso.
— Surpreende-me o facto de não haver nenhuma revolta quando os homens estão ausentes. Ou será que as mulheres e os tais amantes masculinos são temíveis guerreiros?
O chefe dos piratas riu-se desdenhosamente.
— Nós não somos parvos, senador! Os escravos estão sempre agrilhoados. E se não têm qualquer possibilidade de sair daqui, porque haveriam eles de se revoltar?
— Isso não me impediria de tentar um levantamento — retorquiu César.
— Serias apanhado quando regressássemos. Quando partimos para a caça, não deixamos nenhum navio em terra.
— Talvez fosse eu a apanhar-vos quando vocês regressassem.
— Nesse caso, ainda bem que não saímos daqui enquanto o teu resgate não chegar! Não, senador, tu não vais conseguir nenhum levantamento.
— Oh! — disse César, com um ar desapontado. — Quer dizer que te vou pagar cinqüenta talentos e nem sequer me ofereces alguma diversão feminina, enquanto espero? Eu com homens não me levanto, mas sou muito famoso com mulheres.
— Aposto que és, se essa é a tua preferência — disse Polígono, com um risinho. — Mas não temas a solidão! Se quiseres mulheres, tê-las-ás.
— Tens alguma biblioteca neste belo refúgio?
— Temos alguns livros, mas não somos propriamente eruditos. Os dois homens estavam a chegar a uma mansão.
— Esta é a minha casa. É aqui que vais ficar. Prefiro ser eu a vigiar-te. Terás os teus próprios aposentos, como é evidente.
— O que eu gostava era de umbom banho!
— Terás umbom banho, senador, porque, na minha casa, há todos os confortos do Palatino!
— Preferia que me tratasses por César.
— Assim farei, César.
Os aposentos do cativo eram suficientemente grandes para acomodarem também Demétrio e os dois escribas. César não teve de esperar muito tempo por um magnífico banho, à temperatura exacta, um pouco mais que lépido.
— Demétrio, vais ter de me barbear e de me depilar todos os dias, enquanto eu estiver aqui — disse César, penteando as suaves ondas do seu cabelo louro-claro. Depois, arrumou o espelho, feito de ouro e com incrustações de gemas. — Há uma fortuna nesta casa — disse ele, abanando a cabeça.
— Eles roubaram muitas fortunas — comentou Demétrio.
— E armazenaram muitas dessas fortunas nalguns destes edifícios. Alguns deles, de facto, não são habitados — retorquiu César, encaminhando-se para a sala de jantar, onde Polígono o esperava.
A comida era excelente e variada, e o vinho soberbo.
— Tens um óptimo cozinheiro — disse César.
— Reparei que pouco comes e que não bebes vinho — disse Polígono.
— Não tenho qualquer paixão por iguarias ou bebidas. A minha única paixão é o meu trabalho.
— Então e as mulheres?
— As mulheres — retorquiu César, enquanto lavava as mãos — são trabalho.
— Nunca ouvi chamar isso às mulheres! — disse Polígono, rindo. — És um excêntrico, César. Só um excêntrico concentra toda a sua paixão no trabalho. — Polígono afagou a barriga e, com um ar deleitado, apreciou o odor do vinho que tinha na sua taça de cristal de rocha. — Quanto a mim, a única coisa de que gosto na pirataria é a vida deliciosa que me proporciona quando não estou no mar. Mas, acima de tudo, gosto de umbom vinho!
— Não desgosto do sabor do vinho — retorquiu César. — Mas detesto a sensação de perder o controlo das minhas faculdades mentais. E já reparei que meia taça de vinho misturado com água é o suficiente para me afectar.
— Mas quando uma pessoa acorda, sente-se tão bem que o dia não lhe pode correr mal! — exclamou Polígono.
César pôs um sorriso malicioso.
— Não necessariamente.
— Que queres dizer?
— Por exemplo, meu caro: euvou acordar completamente sóbrio e com a minha saúde em perfeito estado, na manhã do dia em que chegar aqui, à frente de uma frota, e conquistar esta cidade e levar-vos a todos sob minha custódia. Posso garantir-te que quando te vir agrilhoado, sentir-me-ei muito melhor do que quando acordar! Mas até isso é relativo. Porque no dia em que te crucificar, Polígono, sentir-me-ei melhor do que nunca!
Polígono desatou a rir incontrolavelmente.
— César, és o convidado mais divertido que já alguma vez tive nesta casa! Adoro o teu sentido de humor!
— É muito simpático da tua parte, teres essa opinião. Mas olha que não te vais rir tanto quando eu te crucificar.
— Isso não pode acontecer. Nunca.
— Pode, sim, e vai acontecer.
Polígono, um verdadeiro espectáculo de ouro e púrpura, com as mãos cheias de anéis e o peito cintilando de colares, recostou-se no seu divã e desatou de novo a rir.
— Julgas que não te vi na popa do teu navio, observando a costa? Essa tua ideia é um disparate, César! Ninguém consegue voltar cá!
— Tu consegues.
— Mas isso é porque já fiz este caminho um milhar de vezes. Nas primeiras cem vezes, perdi-me sempre ou quase sempre.
— Acredito. O problema é que tu és muito -menos inteligente que eu.
Aquele comentário feriu tanto como uma punhalada. Polígono sentou-se muito direito e respondeu secamente:
— Sou suficientemente inteligente para capturar um senador romano e para lhe arrancar cinqüenta talentos!
— O teu ovo ainda não chocou.
— Se o ovo não chocar, vai ficar aqui até apodrecer! Pouco depois deste exaltado diálogo, Polígono deixou o seu
prisioneiro sozinho. Ao regressar aos seus aposentos, César tinha uma bela rapariga à sua espera, um presente que ele muito apreciou — depois de a ter mandado a Demétrio para que este a lavasse a preceito.
Durante quarenta dias, César permaneceu no esconderijo pirata; ninguém limitava a sua liberdade de movimentos, ninguém o impedia de falar com quem quisesse. A sua fama espalhou-se num ápice pela cidade e, ao fim de pouco tempo, já toda a gente sabia que ele tencionava voltar e capturar e crucificar todos os habitantes do vale.
— Não, não, apenas os homens! — disse César, com um sorriso encantador, às mulheres que foram ter com ele para indagarem das suas intenções. — Como é que eu poderia crucificar mulheres tão belas?
— Nesse caso, que farás connosco? — perguntou a mulher que estava à frente do grupo, lançando-lhe um olhar convidativo.
— Vendo-vos. Quantas mulheres e crianças vivem aqui?
— Mil.
— Mil. Se o preço médio que derem por vocês no mercado de escravos for de mil e trezentos sestércios por cabeça, poderei pagar a dívida quevou contrair por causa do resgate e ainda terei dinheiro para distribuir um pequeno lucro pelos meus credores. Mas as mulheres e as crianças deste vale são muito mais bonitas do que é costume numa comunidade pequena, e, por isso, espero conseguir um preço médio de dois mil sestércios por cabeça. Ou seja: as pessoas que vão emprestar o dinheiro do meu resgate terão um lucro muito, mas mesmo muito razoável!
As mulheres desataram aos risinhos; ah, que homem encantador aquele!
De facto, toda a gente o adorava. Era tão simpático, tão jovial, tão bem-humorado! E nunca mostrava o mínimo sinal de medo ou depressão. Brincava com toda a gente e eram tão freqüentes os seus apartes acerca do que faria com os homens, as mulheres e as crianças, quando voltasse, que esse tema de conversa quase se transformou num motivo de constante divertimento. Os olhos dele brilhavam, os lábios contraíam-se, quando falava disso — e divertia-se tanto como os seus interlocutores. A primeira rapariga que com ele dormiu tratou logo de falar das suas proezas como amante; daí que muitas das mulheres da cidade tentassem seduzi-lo. No entanto, os homens depressa descobriram que ele mostrava os maiores escrúpulos ao seleccionar as mulheres com quem dormia: nunca ia para a cama com uma mulher que tivesse uma ligação permanente com outro homem.
— Os únicos homens que eu corneio são os meus pares — explicava ele, com um ar superior, um aristocrata dos pés à cabeça.
— Amigos? — perguntavam os homens, rindo à gargalhada.
— Inimigos — retorquia César.
— E nós não somos teus inimigos?
— São. Mas não são meus pares: são escumalha, escumalha pura e simples! — respondia ele.
Ao ouvirem tal, os piratas riam a bandeiras despregadas, deliciados com aqueles insultos bem-humorados.
Até que, certa tarde, enquanto almoçava com Polígono, o chefe dos piratas, com um suspiro triste, anunciou:
K-vou ter saudades tuas, César.
— Ah! Já temos o resgate!
— O teu liberto trá-lo amanhã.
— E como é que ele vai dar com isto? com certeza que tens de guiá-lo até aqui. Foste tu que me disseste que ninguém conseguia encontrar este refúgio.
— O teu liberto tem andado acompanhado por alguns dos meus homens. Quando o último talento foi depositado na última saca, mandaram-me uma mensagem. Chegam amanhã por volta do meio-dia.
— E depois posso ir-me embora?
— Podes.
— E o navio que aluguei?
— Também pode ir.
— E o capitão? E os marinheiros?
— Virão também com os meus homens. Partem à hora do crepúsculo, para oeste.
— Então incluíste o aluguer do meu barco no teu preço.
— Claro que não! — retorquiu Polígono, espantado. — O capitão levantou dez talentos para pagar o aluguer do navio e os salários da tripulação.
— Ah! Mais uma dívida que eu tenho de pagar!
Como estava previsto, Burgundo chegou a meio do dia seguinte, o quadragésimo dia de cativeiro de César.
— Cardixa permitirá que eu continue a ser o pai dos seus filhos — disse Burgundo, limpando as lágrimas. — Estás com muitobom aspecto, César.
— Eles são óptimos anfitriões, Burgundo. Quem é que pagou o resgate?
— Patara pagou metade e Xanto outra metade. Não ficaram nada contentes, mas não se atreveram a recusar. Ainda estão recordados de Vátia.
— Hão-de receber o seu dinheiro de volta. E mais cedo do
que pensam.
Toda a cidade dos piratas se foi despedir de César. Algumas mulheres choravam. Polígono também.
— Nunca terei outro cativo como tu! — disse o chefe dos piratas, com um suspiro.
— Nunca ouvi maior verdade — retorquiu César, com um sorriso. — A tua carreira como pirata acabou, meu amigo. Eu voltarei antes da Primavera.
Como sempre, Polígono achou tal observação extremamente divertida. Enquanto observava as manobras do navio para rumar a oeste, lembrava-se do humor de César e não conseguia conter o riso. A luz era pouca, àquela hora.
— Não pares, capitão! — gritou o chefe dos piratas. — Se paras, apanhas logo com a minha escolta!
E, de facto, passado pouco tempo, surgia por detrás dos penhascos uma hemiolia, um navio tão rápido como os mais rápidos.
Porém, ao alvorecer, o navio pirata já não encontrou o navio de César e voltou para trás, pois estava mesmo em frente de Patara.
— bom, agora vamos ter de acalmar os receios daqueles que emprestaram o dinheiro — disse César. Olhou para o capitão e acrescentou: — A propósito, capitão, tens desde já a minha garantia de que te pagarei os dez talentos que tiveste de arranjar para resgatar o navio e a tripulação.
O capitão, obviamente, não acreditava que César conseguisse alguma vez pagar-lhe.
— Uma viagem infeliz! — lamentou-se.
— Prevejo que, quando esta viagem acabar e regressares a Bizâncio, serás o mais feliz dos homens — disse César. — Mas agora leva-me ao porto de Patara.
A sua visita a Patara foi muito breve. César queria partir no dia seguinte, esperando apenas que todos os cavalos e mulas voltassem a bordo. E, no dia seguinte, César não esperou um segundo.
— Vamos, capitão, despacha-te!
— Para Rodes?
— Para Rodes, claro.
A viagem demorou três dias, com uma paragem em Telmesso na primeira noite e outra em Cauno, na segunda. César recusou-se a desembarcar os animais em qualquer dessas cidades.
— Eu estou com muita pressa e eles não vão morrer por não saírem do navio — disse ele. — Ah, é certo que tenho sorte! A deusa Fortuna sempre me favoreceu! Graças à minha actividade como angariador de frotas, sei exactamente onde devo ir e com quem devo falar quando chegarmos a Rodes!
E tanto sabia que, menos de duas horas depois de ter aportado ”à ilha, estava já reunido com os homens com quem lhe interessava falar.
— Preciso de uma frota de dez trirremes e de cerca de quinhentos homens experientes — disse ele ao grupo de Rodenses reunidos nas instalações do capitão do porto.
— Para quê? — perguntou o jovem almirante Lisandro.
— Para me acompanhar até ao quartel-general de Polígono, o chefe dos piratas. Quero capturar aquela gente.
— Polígono? Nunca encontrarás o esconderijo dele!
— Encontrarei, sim — replicou César. — Vamos, emprestem-me a frota! Rodes ficará com uns belos despojos!
O seu entusiasmo e confiança não chegariam para convencer os homens de Rodes a participar naquele perigoso plano; foi a autoridade de César que mais pesou na decisão de Rodes de lhe conceder os dez trirremes e quinhentos soldados. Os homens de Rodes conheciam-no de há muito e, por outro lado, César pôde ainda beneficiar da fama que Vátia deixara na ilha. Apesar de o rei Zenicetes ter deitado fogo ao seu esconderijo no alto do monte Termesso quando Vátia chegou para o capturar, Rodes sentia o maior respeito por Vátia; mostrando-se imperturbável perante o que parecia ser a perda de um saque magnífico, Vátia limitou-se a esperar que as cinzas arrefecessem e, depois, joeirou os destroços, a fim de reunir os metais preciosos que, sob a acção do calor, se tinham fundido. Se Vátia fizera isso, então era muito natural que o seu legado César fizesse algo de semelhante. Daí que os homens de Rodes concluíssem que valeria a pena apostar naquele jovem senador romano.
A frota descansou na foz do rio Patara, na última noite antes de começar a busca do esconderijo de Polígono; César foi até à cidade e ordenou a todos os navios mercantes vazios que seguissem na esteira da frota rodense. E, durante todo o dia seguinte, manteve-se na popa do seu navio alugado, examinando atentamente a costa recortada por minúsculas praias.
— Antes de Polígono deixar Patara — disse ele ao capitão — eu já fazia ideia de como seria o aspecto da costa e das pequenas enseadas, pois ouvira os piratas falar sobre o assunto. Por isso, tratei de definir claramente a que reentrâncias chamaria enseadas. com essa definição na cabeça, limitei-me a contar todas as reentrâncias que considerava enseadas.
— Quanto a mim, procurei pontos de referência: rochas no meio do mar, com esta ou aquela forma, montanhas de aspecto estranho, esse tipo de coisas — disse o capitão, suspirando. — Mas já me perdi!
— Os pontos de referência podem ser uma decepção, pois a memória dos homens falha muitas vezes quando segue esse processo. Os números são melhores — retorquiu César, sorridente.
— E se te enganaste na contagem?
— Não me enganei.
E, de facto, não se tinha enganado. A pequena praia em que os quinhentos soldados de Rodes desembarcaram era igual a todas as outras. A frota ancorara, durante toda a noite, a oeste da praia, sem que ninguém a detectasse. Polígono não espalhara sentinelas pelas proximidades. Tinha as suas quatro galeras de guerra no interior do esconderijo, prontas para qualquer eventualidade; por isso, considerava-se em segurança. Mas acabava o Sol de nascer e já ele e os seus homens estavam presos com as grilhetas com que, antes, agrilhoavam os escravos.
— Não podes dizer que não te avisei — disse César a Polígono.
— Ainda não fui crucificado, romano!
— Mas serás. Serás!
— Como encontraste o nosso esconderijo?
— Aritmética. Contei todas as pequenas enseadas desde Patara até aqui. — César virou-se, acenando para o almirante Lisandro, de Rodes. — Vem, Lisandro, vamos ver que espécie de riquezas Polígono arrecadou.
Muitas e variadas riquezas, foi o que encontraram. Não só os celeiros estavam praticamente cheios, como também os outros armazéns de víveres tinham recheio suficiente para alimentar as cidades de Xanto e Patara durante o resto do Inverno e toda a Primavera. Um dos maiores edifícios da cidade estava a abarrotar de tecidos e púrpuras extremamente valiosos, de mesas de madeira de cidreira de veios raríssimos, de divas dourados, de cadeiras requintadas. Um outro edifício continha uma infinidade de baús cheios de moedas e jóias. Muitas das jóias eram de fabrico egípcio: luxuriosos trabalhos com faiança, berilo, cornalina, ónix, sardónica, lápis-lazúli e turquesa. Um pequeno baú, mal foi aberto, revelou vários milhares de pérolas do oceano, algumas das quais tão grandes como ovos de pomba e outras de cores muito raras.
”— Para dizer a verdade, não estou surpreendido — disse Lisandro. — Polígono assola estes mares há vinte anos e é um açambarcador famoso. Do que eu não sabia é que ele também costumava piratear os mares entre Chipre e o Egipto!
— Concluíste isso por causa das pérolas e das jóias?
— Claro. Pérolas e jóias destas não há noutro sítio.
— E os alexandrinos de Chipre tiveram o desplante de me dizer que os seus navios viajavam em total segurança!
— Eles não gostam que os estrangeiros saibam das suas fraquezas.
— Não precisei de muito tempo para perceber isso — retorquiu César, com um suspiro de satisfação. — Pois muito bem, Lisandro: vamos repartir os despojos!
— Para sermos rigorosos, César, nós somos apenas teus agentes. Desde que nos pagues o aluguer dos navios e os salários dos homens, os despojos são todos teus — retorquiu Lisandro.
— Alguns serão, mas não todos, meu amigo. Não quero que, no Senado, me façam perguntas a que tenha de responder com mentiras ou meias-verdades. Por isso, levarei mil talentos em moedas para o Tesouro de Roma, quinhentos talentos em moedas para mim, e uma mancheia destas pérolas, se posso escolher as que mais me agradarem. Sugiro que as restantes moedas e todas as jóias vão para Rodes: é a parte que lhe é devida. Podes vender os móveis e os tecidos, mas gostaria que a soma realizada fosse empregue na construção de um templo em Rodes, em honra da minha antepassada Afrodite.
Lisandro pestanejou, surpreendido.
— Mas esse é um gesto extremamente generoso, César! Por que não ficas com as pérolas todas? Ficarias sem problemas de dinheiro para o resto da vida!
— Não, Lisandro. Ficarei apenas com umas quantas. Gosto da riqueza como qualquer outro homem, mas a riqueza excessiva pode tornar-nos avarentos. — César debruçou-se sobre o baú das pérolas e escolheu as pérolas de que mais gostava: vinte com as cores escuras e iridescentes do lago Asfaltita, na Palestina; uma pérola com o tamanho, a cor e a forma de um morango; uma dúzia com a cor da lua cheia no tempo das colheitas; uma pérola gigante, com uma sombra de púrpura; e seis de um creme-prateado perfeito.
— Pronto, já escolhi! Não as poderei vender. Se tentasse vendê-las, provocava a maior agitação em toda a cidade de Roma. Mas posso dá-las a certas mulheres, quando tiver necessidade disso.
— A tua fama de homem generoso vai espalhar-se num ápice.
— Por favor, Lisandro, nem uma palavra sobre a minha generosidade! Estou a falar a sério! A minha continência nada tem a ver com generosidade. Tem a ver, muito simplesmente, com a minha reputação em Roma e com um voto que eu fiz de que nunca me exporia a acusações de extorsão ou de roubo dos bens de Roma.
— Encolhendo os ombros, acrescentou: — Além disso, quanto mais dinheiro tenho, mais gasto!
— E Patara e Xanto?
— Recebem as mulheres e as crianças para venderem como escravos e toda a comida que está aqui armazenada. A venda dos escravos render-lhes-á muito mais do que pagaram pelo meu resgate. A comida será um bônus. Mas, com a tua permissão, levarei mais dez talentos para pagar ao capitão do meu navio. Ele também teve de pagar um resgate. — Pondo a mão no ombro de Lisandro, César conduziu-o até à rua. — Os navios de Xanto e Patara estarão aqui pelo crepúsculo. Posso sugerir que embarques a parte do despojo que reservámos para Rodes, antes que eles cheguem? De qualquer modo, mandarei os meus funcionários fazer um inventário de tudo. E o dinheiro de Roma terá de ir para o seu destino sob escolta.
— Que queres que se faça com os piratas?
— Embarca-os em navios de Patara ou Xantos e leva-mos para Pérgamo. Eu não sou um magistrado curul e, portanto, não tenho o poder de executar homens nas províncias. Isso significa que tenho de levar os piratas para Pérgamo e pedir ao governador autorização para fazer o que lhes prometi — crucificá-los.
— Nesse caso, embarcarei a parte do despojo destinada a Roma nas minhas galeras. É pequena carga. Logo que os mares estejam seguros — no início do Verão, talvez —, mandarei o dinheiro para Roma. — Lisandro lembrou-se, entretanto, de outra coisa. — Quatro dos meus navios escoltar-te-ão até Pérgamo. Acabas de dar tantas riquezas a Rodes que Rodes terá sempre o maior prazer em assistir-te em tudo.
— Basta que te lembres do que fiz! Quem sabe se um dia não precisarei de que me retribuas este favor! — retorquiu César.
Os piratas estavam a ser levados para a praia; Polígono, o último da infindável fila, saudou gravemente César.
— Mas que amantes do luxo, estes piratas! Nunca vi gente assim! — disse César, abanando a cabeça. — Sempre imaginei os piratas como gente suja, sem instrução, belicosa. Mas estes homens não eram nada disso. Pelo contrário, eram gente simpática.
— É evidente — disse Lisandro. — Exagera-se muito quanto à sua suposta selvajaria. Quantas vezes precisam eles de combater para fazerem as suas pilhagens, César? Raramente. E quando combatem é sob o comando dos seus próprios almirantes, que são de facto notáveis. Os pequenos piratas, como Polígono, não atacam frotas. Limitam-se a atacar navios mercantes que viajam sem escolta. Os piratas que atacam em frotas encontram-se normalmente no mar de Creta. Mas quando se vive no esconderijo de Solima, como Polígono, tende-se a pensar que estamos permanentemente a salvo de qualquer ameaça. É que Solima e os outros esconderijos de piratas são, literalmente, reinos independentes.
— Rodes podia fazer mais do que faz para deter a ameaça dos piratas — disse César.
Mas Lisando abanou a cabeça e riu-se.
— É Roma que deves censurar, quanto a esse ponto! Foi Roma que insistiu que devíamos reduzir a nossa frota, quando Roma tomou a seu cargo a vigilância da ponta oriental do nosso grande mar. Roma pensava que conseguiria policiar tudo e todos, incluindo as linhas de navegação. Mas Roma é demasiado parcimoniosa — e nunca gasta o dinheiro que é preciso. Rodes encontra-se actualmente sob o domínio de Roma. Por isso, fazemos o que nos mandam. Se lançássemos, isoladamente, uma guerra para erradicar os piratas, Roma pensaria que estava a chocar o seu próprio Mitridates.
E o que Lisandro dizia, reflectiu César, era a pura verdade.
Marco Júnio Junco não se encontrava em Pérgamo quando César atingiu o rio Caico e aportou àquela cidade; o mês de Março estava a chegar ao fim, o que significava que o Inverno ainda não acabara, embora a viagem ao longo da costa tivesse decorrido sem qualquer incidente assinalável. A cidade de Pérgamo tinha um aspecto magnífico, empoleirada no cimo de um monte, mas, mesmo do rio, podiam ver-se resquícios de neve e gelo nos telhados dos templos e nos beirais dos palácios.
— Onde está o governador? Em Éfeso? — perguntou César quando encontrou o proquestor, Quinto Pompeu (mais próximo, pelo sangue, do ramo Rufo do que do ramo Pompeu).
— Não, ele está em Nicomédia — retorquiu Pompeu — E euvou para lá também. Aliás, tiveste sorte em encontrar-me porque eu estava de partida. Temos tido muito que fazer na Bitínia. Vim a Pérgamo buscar roupas mais leves para o governador. Nunca esperámos que fizesse mais calor em Nicomédia do que em Pérgamo.
— Ah, em Nicomédia faz sempre mais calor — disse César num tom grave, conseguindo abster-se de perguntar ao proquestor da Província da Ásia se não tinha coisas mais urgentes a fazer do que ir buscar roupas frescas para Junco. — Pois bem, Quinto Pompeu — prosseguiu ele, afável —, se quiseres, eu levo as roupas ao governador. Tenho um pequeno trabalho para ti antes de partires. Estás a ver aqueles navios?
— Sim — retorquiu Pompeu, francamente aborrecido por um homem mais novo lhe dizer o que devia ou não fazer.
— Há cerca de quinhentos piratas a bordo que vão ter de ficar encarcerados algures durante alguns dias. Eu tenho de ir à Bitínia pedir a Marco Júnio a autorização formal para os crucificar.
— Piratas? Crucificar?
— Isso mesmo. Capturei uma fortaleza pirata na Lícia — com a ajuda de dez navios da marinha rodense, devo acrescentar.
— Então podes ficar aqui e tratar dos teus miseráveis prisioneiros! — atirou-lhe Pompeu. — Eu peço ao governador a tua autorização formal!
— Lamento imenso, Quinto Pompeu, mas não é assim que as coisas são feitas — replicou gentilmente César. — Eu sou um privatus e era um privatus quando capturei os homens. Por isso, terei de ver o governador pessoalmente. A Lícia é uma parte da sua província e por isso tenho de ser eu a explicar-lhe as circunstâncias da captura. É isto o que a lei manda.
A discussão ainda durou um bocado, mas sabia-se de antemão quem ganharia. E César não tardou a partir para Nicomédia numa veloz galera rodense, deixando Pompeu a tratar dos prisioneiros.
Tudo está já tão mudado que eu quase não reconhecia o palácio, pensou César, enquanto esperava na antecâmara pelo atarefado Marco Júnio Junco. Os dourados ainda lá estavam, os frescos e outros objectos de arte que só poderiam ser removidos provocando danos óbvios também lá estavam, mas certas estátuas e pinturas que ele tão (bem conhecia e de que tanto gostava já tinham desaparecido de corredores e salas.
A luz começava a esbater-se quando Junco irrompeu pela antecâmara dentro; era evidente que tinha feito uma pausa para o jantar, antes de atender um colega senador.
— César! Que agradável voltar a ver-te! Que se passa? — perguntou o governador, estendendo a mão.
— Ave, Marco Júnio. Tens andado muito ocupado.
— Tenho, de facto. Tu conheces este palácio como a palma da tua mão, não é verdade? — As palavras eram suficientemente brandas, mas a insinuação era clara.
— Como fui eu quem te anunciou a morte do rei Nicomedes, deves saber que assim é. De facto, conheço muito bem este palácio.
— Mas não tiveste a gentileza de esperar por mim.
— Eu sou um privatus, Marco Júnio. Se esperasse por ti, acabaria apenas por te atrapalhar. E é melhor não atrapalhar um governador, quando tem à sua frente uma tarefa tão importante como incorporar uma nova província nos domínios de Roma — disse César.
— Nesse caso, que vieste cá fazer agora? — Junco olhava para o seu visitante com nítido rancor, pois estava ainda bem lembrado dos seus confrontos no Tribunal de Homicídios — os quais, na sua maior parte, tinham sido vencidos por César.
— Fui capturado por piratas ao largo de Farmacussa, há dois meses.
— bom, isso acontece a muitos de nós. Presumo que conseguiste arranjar dinheiro para o resgate: caso contrário, não estarias hoje aqui. Mas eu nada posso fazer para te ajudar a recuperar o dinheiro do resgate, César. No entanto, se assim o desejares, pedirei à minha equipa que apresente uma queixa ao Senado.
— Isso posso eu fazer sozinho — retorquiu César, num tom simpático. — Eu não me vim queixar, Marco Júnio. Vim apenas pedir a tua autorização para crucificar quinhentos piratas.
Junco ficou embasbacado.
— O quê?
— Como já percebeste, eu paguei o resgate pelos meus próprios meios. Depois, fui a Rodes, requisitei uma frota e alguns soldados, voltei à fortaleza dos piratas e capturei-a.
— Tu não tinhas o direito de fazer uma coisa dessas! Eu é que sou o governador! Só eu tenho direito a fazer operações desse tipo! — atirou-lhe Junco.
— Se eu mandasse uma mensagem para Pérgamo e se, de Pérgamo, te trouxessem essa mensagem até aqui, o Inverno teria passado e Polígono, o pirata, teria desaparecido da sua base para lançar de novo as suas acções. Eu posso ser um privatus, mas actuei como se espera que actuem todos os membros do Senado de Roma: fiz com que os inimigos de Roma tivessem o castigo merecido.
Esta rápida resposta obrigou Junco a fazer uma pausa; tinha de encontrar uma réplica adequada.
— Nesse caso, mereces louvor, César.
— É o que eu acho.
— E pedes-me autorização para crucificar quinhentos homens fortes e gozando de boa saúde? Não, não posso fazer isso! Os teus cativos são meus agora. Vendê-los-ei como escravos.
— Dei-lhes a minha palavra de honra de que seriam crucificados — retorquiu César, com os lábios quase cerrados.
— Deste a tua palavra de honra àquela gente? — perguntou Junco, sinceramente surpreendido. — Mas eles não passam de bandidos e ladrões!
— Mesmo que fossem bárbaros ou macacos, Marco Júnio! Jurei que havia de crucificá-los. Sou um romano e a palavra de um romano é sagrada. Tenho de cumprir o que prometi.
— Não te competia a ti prometer fosse o que fosse! Como salientaste, tu és um privatus. Concordo que agiste correctamente ao castigar os inimigos de Roma. Mas cabe-me a mim dizer o que deve ou não acontecer aos prisioneiros que se encontram na minha esfera de auctoritas. Eles serão vendidos como escravos. E esta é a minha última palavra quanto a este assunto.
— Estou a ver — disse César, com os olhos vítreos. E levantou-se.
— Um momento! — exclamou Junco. César virou-se para ele.
— Sim?
— Presumo que houve despojos...!
— Houve.
— Onde estão? Em Pérgamo?
— Não.
— Não podes ficar com os despojos!
— Não fiquei. A maior parte do saque foi para Rodes, que forneceu os navios e os homens para a operação. Uma parte foi para os cidadãos de Xanto e Patara, que providenciaram os cinqüenta talentos para o meu resgate. Quanto à minha parte, doei-a a Afrodite, pedindo a Rodes que construísse um templo em honra da deusa. E a parte de Roma vai neste momento a caminho de Roma.
— E a minha parte?
— Não sabia que tinhas direito a uma parte, Marco Júnio.
— Eu sou o governador da província!
— O saque foi proveitoso, mas nada do outro mundo. Polígono não era tão rico como o rei Zenicetes.
— Quanto mandaste para Roma?
— Mil talentos em moedas.
— Então não foi assim tão mau!
— Para Roma, foi bom. Para ti, não — replicou César, mantendo um tom afável.
— Como governador da província, competia-me a mim mandar a parte de Roma para o Tesouro!
— E quanto lhe tiravas?
— A parte que cabia ao governador!
— Nesse caso — replicou César, sorrindo —, sugiro-te que peças ao Tesouro a parte que te cabe dos despojos.
— É o que farei! Não penses que não faço!
— Nunca pensaria uma coisa dessas, Marco Júnio.
— E vou-me queixar ao Senado da tua arrogância, César! Porque, de moto próprio, assumiste as competências que cabem ao governador!
— É verdade — disse César, encaminhando-se para a saída. — Mas ainda bem que o fiz. Caso contrário, o Tesouro ficaria com menos mil talentos.
César alugou um cavalo e seguiu por terra para Pérgamo, a tal velocidade que Burgundo e Demétrio dificilmente conseguiam acompanhá-lo. Nem uma pausa fez para descansar: a raiva era tanta que nem ligava à cabeça esgotada e aos músculos doridos. Apenas sete dias depois de ter deixado Pérgamo, César estava de volta — e dois dias antes da galera de Rodes, que atravessava ainda o Helesponto.
— Já está tudo tratado! — exclamou ele, com uma expressão jubilosa, para o proquestor Pompeu. — Espero que tenhas feito as cruzes! Não tenho tempo a perder!
— As cruzes? — perguntou Pompeu, espantado. — Porque haveria eu de mandar fazer as cruzes, se Marco Júnio tenciona vender os piratas?
— Sim, essa era a sua primeira intenção — retorquiu César, num tom descontraído. — Mas depois de eu lhe ter explicado que dera a minha palavra de honra de que eles seriam crucificados, Marco Júnio compreendeu que tinha de mudar de ideias. Por isso, vamos tratar já das cruzes! Há dois meses que eu devia estar a estudar com Apolónio Molão. O tempo voa, Pompeu! Vá, vamos tratar das cruzes!
O perplexo proquestor viu-se de súbito numa azáfama que nunca conhecera sob o comando de Junco; no entanto, a sua pouca energia não deixava César satisfeito e César acabou por comprar madeira e por ordenar aos piratas que fizessem as suas próprias cruzes.
— E façam-nas bem feitas, escumalha, porque vão ficar pendurados nelas! Não há pior sorte do que passar dias a fio numa cruz à espera da morte, só porque a cruz não está bem feita!
— Porque é que o governador não nos quis vender como escravos? — perguntou Polígono, que era muito desajeitado em trabalhos braçais e que, por isso, sentia a maior dificuldade em construir a sua cruz. — Sempre pensei que seria essa a sua decisão.
— Pois enganaste-te — retorquiu César, tirando-lhe as cavilhas da mão e começando a prender a cruzeta à viga principal. — Como é que conseguiste chegar onde chegaste como pirata, Polígono? És de uma incompetência total!
— Alguns homens — retorquiu Polígono, apoiando-se numa pá
— têm carreiras gloriosas precisamente por serem incompetentes.
César levantou-se, pois já terminara a cruz.
— Não é o meu caso! — disse ele.
— Já me tinha apercebido disso — disse Polígono, com um suspiro triste.
— Vá, começa a cavar!
— Para que é aquilo? — perguntou Polígono, deixando que César lhe tirasse a pá, enquanto apontava para uma pilha de calços de madeira.
— São calços! — retorquiu César, enquanto, com a pá, fazia voar a terra à sua volta. — Quando esta cova estiver suficientemente profunda para agüentar com o peso da cruz e do homem, a cruz será enterrada nela. Mas como a terra aqui é pouco firme para agüentar a cruz, fixaremos calços no chão à volta da base. Quando vocês estiverem mortos, a cruz sairá facilmente logo que tiremos os calços. Dessa forma, o governador poderá utilizar estes maravilhosos instrumentos de morte com o próximo grupo de piratas que eu capturar.
— A falar e a trabalhar ao mesmo tempo, não ficas sem ar?
— Tenho ar suficiente para trabalhar e falar ao mesmo tempo. Vá, Polígono, ajuda-me a enterrar a tua cruz na cova... Isso! — César recuou um pouco. — Agora, trata de aplicar os calços. Como vês, a cruz está inclinada. — Arrumou a pá e pegou num maço.
— Não, não, do outro lado! Do lado onde a cruz está inclinada! Olha que de engenheiro não tens nada!
— Posso não ter nada de engenheiro — disse Polígono, com um sorriso franco —, mas não podes negar que sou esperto: até pus o meu carrasco a fazer-me a cruz!
César riu-se.
— E achas que não me apercebi disso, amigo? No entanto, há um preço a pagar. Há sempre um preço a pagar, como qualquerbom pirata deve saber.
A diversão tinha acabado. Polígono fitou fixamente César.
— Um preço?
— Os outros terão as pernas partidas. Morrerão depressa. Mas tu, em contrapartida, terás um pequeno descanso para os pés, para que o corpo não te pese muito. O que quer dizer, Polígono, que vais demorar dias a morrer!
Quando a galera rodense que seguira César desde Nicomédia entrou no rio que conduzia ao porto de Pérgamo, os remadores ficaram estupefactos e intimidados com o que viram. Em Rodes também havia execuções, mas a justiça ao estilo romano não entrara nos costumes da ilha; Rodes era um amigo e aliado, mas não pertencia a nenhuma província romana. Por isso, para aqueles homens, a visão de quinhentas cruzes plantadas num baldio entre o porto e o mar era tão estranha como monstruosa. Um campo de homens mortos — todos excepto um, o chefe, cuja cabeça estava ironicamente adornada com um diadema. O chefe dos piratas ainda gritava e gemia.
Quinto Pompeu permanecera em Pérgamo, pois só queria deixar a cidade quando César também partisse. O que o impedia de partir era a visão daquelas cruzes, como que uma floresta construída por um homem, em que todas as árvores eram iguais. As crucificações não eram invulgares — era assim que os escravos eram executados. Invulgar, isso sim, era uma crucificação em massa. E, no entanto, ali estava uma crucificação em massa, com as cruzes dispostas em filas, com espaços uniformes entre si. E o homem que conseguira organizá-la e executá-la em tão pouco tempo não poderia ser ignorado. Tal como não poderia ficar com o controlo de Pérgamo, mesmo que não oficialmente. Por isso, Quinto Pompeu preferiu esperar até que a frota de César partisse para Rodes e Patara.
Quando chegou a Nicomédia, o proquestor encontrou o governador perfeitamente extasiado; Junco tinha descoberto um esconderijo nos subterrâneos do palácio, cheio de barras de ouro; obviamente, guardara logo o ouro nos seus baús, ignorando que César e Oradaltis o tinham colocado ali de propósito.
— Pois bem, Pompeu, tu trabalhaste muito duramente na incorporação da Bitínia na Província da Ásia — disse-lhe Junco, com um ar magnânimo. — Por isso, acederei ao teu pedido. A partir de agora, podes usar o cognome de Bitínico.
Como este anúncio deixou Pompeu (Bitínico) num êxtase quase idêntico ao do governador, os dois homens foram jantar com a melhor das disposições.
Foi Junco quem primeiro falou de César, ainda que só no final do jantar.
— É o mentula mais arrogante que alguma vez encontrei! — disse Junco. — Negou-me uma parte dos despojos e, depois, teve a ousadia de me pedir autorização para crucificar quinhentos homens saudáveis que pelo menos me renderão algum dinheiro quando os vender no mercado de escravos!
Pompeu fitou-o fixamente, de queixo caído.
— Vender?!
— Sim, vender! Qual é o problema?
— Marco Júnio! Tu ordenaste que os piratas fossem crucificados!
— Não ordenei nada!
Pompeu (Bitínico) estava perfeitamente atrofiado.
— Cacat!
— Qual é o problema? — repetiu Junco, alarmado.
— César chegou a Pérgamo sete dias depois de ter falado contigo. E disse-me que tu o tinhas autorizado a crucificar os homens. Admito que fiquei um bocado surpreendido, mas nunca me passou pela cabeça que ele estivesse a mentir! Marco Júnio, ele crucificou todos os piratas!
— O quê?! Ele não se atrevia a fazer uma coisa dessas!
— Atreveu-se, sim, Marco Júnio! E com tal segurança, com tal descontracção...! Até me dava ordens, como se eu fosse seu criado! Eu disse-lhe que estava surpreendido com a tua autorização, mas ele reagiu com a maior calma e sem o mínimo sinal de desconforto ou culpa! com toda a franqueza, Marco Júnio, eu acreditei em tudo o que ele disse! E tu também não mandaste nenhuma mensagem — acrescentou ele, engenhosamente.
Júnio estava mais que furioso; chorava até.
— Aqueles homens valiam dois milhões de sestércios! Dois milhões, Pompeu! E ele mandou mil talentos para o Tesouro sem sequer me informar disso antecipadamente, sem sequer me oferecer uma parte dos despojos! Agora,vou ter de pedir a minha parte ao Tesouro e tu sabes muito bem como é o Tesouro! Já terei muita sorte se a decisão do Tesouro beneficiar o meu bisneto! Enquanto ele — o fellator! — deve ter ficado com milhares de talentos! Milhares!
— Duvido — retorquiu Pompeu (Bitínico), tentando olhar para todo o lado menos para o desolado Junco. — Falei com o capitão dos navios de Rodes e, ao que parece, César deu mesmo todos os despojos a Rodes, Xantara e Patara. Havia grandes riquezas, mas nada comparado com um tesouro egípcio. Os Rodenses crêem que César ficou com muito pouco. Um dos libertos de César disse que ele gostava de dinheiro, mas que dava mais valor à sua carreira política do que ao dinheiro. Disse-me o mesmo homem, com um sorriso manhoso, que César nunca seria incomodado pelo Tribunal de Extorsão. Por outro lado, parece que ele tinha mesmo prometido aos piratas que os crucificaria, enquanto esperava pelo resgate. Pode vir a ser difícil provar que César ficou com o que quer que fosse dos despojos, Marco Júnio.
Junco limpou as lágrimas e assoou-se.
— E também não posso provar que ele levou alguma coisa de Nicomédia ou de qualquer outra cidade da Bitínia. Mas tenho a certeza que levou! Deve ter levado! Eu já conheci muitos homens virtuosos e posso jurar que César não é um deles, Pompeu! É demasiado convencido e arrogante para ser virtuoso! Age como se fosse o dono do mundo!
— Segundo o chefe dos piratas, que o achava uma criatura muito estranha, César agiu como se fosse o senhor do mundo mesmo durante o cativeiro. Dava-se ao luxo de insultar toda a gente com o humor mais requintado! O resgate foi fixado em vinte talentos mas César ficou furioso e respondeu que valia pelo menos cinqüenta talentos! E obrigou-os a subir o resgate para cinqüenta talentos!
— Sim, ele falou-me em cinqüenta talentos! Mas eu estava demasiado furioso com ele para reparar nisso! — disse Junco, abanando a cabeça. — Mas essa história do resgate é capaz de explicar tudo, Pompeu. Só posso tirar uma conclusão: o homem é louco! Cinqüenta talentos é o resgate de um censor. Sim, o homem só pode ser louco.
— Ou talvez quisesse intimidar os cidadãos de Xanto e Patara, para que pagassem rapidamente — disse Pompeu.
— Não! Ele é louco! A sua loucura é alimentada pela vaidade. Ele sempre foi assim. — Uma expressão azeda veio perturbar a contenção de Junco. — Mas os motivos dele são irrelevantes. O que eu quero é que ele pague pelo que me fez! Ah, não posso crer! Dois milhões de sestércios!
Se César sentia alguma apreensão por causa das inimizades que as suas actividades estavam a provocar, a verdade é que o ocultava perfeitamente; quando o seu navio chegou finalmente a Rodes, pagou generosamente ao capitão, alugou uma casa confortável mas despretensiosa nos arredores da cidade e deu início às suas aulas com o grande Apolónio Molão.
Como esta vasta e independente ilha, situada perto da Província da Ásia, era uma encruzilhada na ponta oriental do mar Mediterrâneo, estava constantemente a receber notícias, boatos e mexericos; por isso, um estudante romano de visita a Rodes estava sempre a par do que sucedia em Roma ou da evolução dos acontecimentos em qualquer parte do mundo romano. Assim, César pôde saber da carta de Pompeu ao Senado e da reacção do Senado — incluindo a vibrante defesa de Pompeu feita por Lúculo; e soube também que o cônsul sénior do ano anterior, Lúcio Octávio, morrera em Tarso, pouco depois de ter chegado a essa cidade para governar a Cilícia. Mas era demasiado cedo para saber o que o Senado planeava fazer quanto à sua substituição. O testamento do rei da Bitínia agradara a todos os habitantes de Roma, desde as classes mais baixas às mais altas, mas, como César veio a saber em Rodes, nem toda a gente apoiara a integração da Bitínia na Província da Ásia; e as divergências não tinham terminado só porque Junco fora encarregado da incorporação da Bitínia. Lúculo e Marco Cota, os actuais cônsules, defendiam que a Bitínia fosse uma província separada, dotada do seu próprio governador, e Marco Cota gostaria de exercer esse cargo no ano seguinte.
Mas os cidadãos de Rodes interessavam-se mais pelas notícias locais; o que estava a acontecer no Ponto e na Capadócia tinha para eles uma importância muito maior do que os acontecimentos em Roma ou em Hispânia. Constava que depois de o rei Tigranes ter invadido a Capadócia, quatro anos antes, não ficara ninguém em Euzebeia Mazaca, pois o rei deportara todos os seus habitantes e instalara-os em Triganocerta; o rei capadócio, que deixara uma má impressão a César, alguns anos antes, vivia no exílio em Alexandria desde a invasão; fora para Alexandria porque, segundo ele, Tarso ficava demasiado perto de Tigranes e Roma era demasiado cara para a sua bolsa.
Corriam insistentes boatos de que o rei Mitridates estava a mobilizar um novo e poderoso exército no Ponto, pois ficara furioso com a notícia de que a Bitínia caíra em poder de Roma; ninguém conhecia os pormenores dessa mobilização, mas uma coisa era certa: Mitridates continuava dentro das suas fronteiras.
Marco Júnio Junco também era alvo de boatos e mexericos. Dizia-se dele que confiscara os bens de alguns dos mais importantes cidadãos romanos da Bitínia — em particular, os residentes em Heracleia, no Euxino — e que o Senado já havia recebido queixas formais contra ele. Alegavam os queixosos que Junco andava a pilhar os principais tesouros do país.
Depois, no início de Junho, toda a Província da Ásia tremeu de medo; o rei Mitridates deixara o Ponto, atravessara a Paflagónia e acabara de chegar a Heracleia, na fronteira da Bitínia. Chegara a Roma a notícia de que o rei do Ponto tencionava conquistar a Bitínia. O sangue, a origem e a proximidade ditavam que a Bitínia pertencia ao Ponto, e não a Roma, e o rei Mitridates não descansaria enquanto o antigo reino de Nicomedes estivesse em poder de Roma! Porém, ao chegar a Heracleia, o vasto exército do Ponto deteve-se e aquietou-se; como de costume, depois de ter lançado o desafio a Roma, Mitridates recuara, e agora estava quieto e parado, esperando pela resposta de Roma.
Marco Júnio Junco e Quinto Pompeu (Bitínico) regressaram rapidamente a Pérgamo, onde passaram mais tempo a escrever longos relatórios para o Senado do que a preparar a Província da Ásia para uma nova guerra contra o Ponto. Sem nenhum governador na Cilícia, depois da morte de Lúcio Octávio, as duas legiões estacionadas em Tarso não fizeram qualquer movimento para ajudar a Província da Ásia e Junco também não as requisitou. As duas legiões de fimbrianos, estacionadas em Éfeso e Sardes, foram chamadas a Pérgamo, mas daí não saíram. Dizia-se que Junco queria defender a sua pele, e não a Bitínia.
César não pôs sequer a hipótese de se deslocar a Pérgamo, pois estava mais preocupado com as notícias de que a Província da Ásia não queria negociar com Mitridates, mas também não queria combatê-lo — a menos que o governador desse ordens nesse sentido. Mas o governador não dava ordens nenhumas. As colheitas começariam em Quinctilis, na parte sul da província, e em Sextilis, na parte norte. No entanto, Junco continuava a não fazer nada. Nem sequer requisitava cereais para os seus soldados, numa altura em que a guerra era cada vez mais provável.
Em Sextilis, chegou a Rodes a notícia de que os dois cônsules, Lúculo e Marco Cota, haviam sido autorizados pelo Senado a negociar com Mitridates; de súbito, a Bitínia tornava-se uma província separada, governada por Marco Cota, ao passo que a Cilícia ia para Lúculo. Ninguém podia prever a sorte da Província da Ásia, pois o seu governador não passava de um pretor, rodeado pelos dois cônsules do ano. Lúculo e Marco Cota estavam acima de Junco e, por isso, este teria de fazer o que lhe mandassem. Mas Junco não agradava a Lúculo porque, para além de ineficiente, tivera desde sempre uma conduta censurável. As coisas estavam a correr muito mal para Junco.
Alguns dias depois, César recebeu uma carta do irmão de Lúculo, Varrão Lúculo.
Roma vive um clima de grande agitação, como podes imaginar. Escrevo-te, César, porque te encontras neste momento fora disto tudo e porque eu preciso de passar os meus pensamentos para o papel e não sou um cultor de diários e porque, de todos os meus eventuais correspondentes, é a ti que prefiro. Vejo-me obrigado a permanecer em Roma aconteça o que acontecer, a menos que os dois cônsules morram, e como o cônsul sénior é meu irmão e o cônsul júnior é teu tio, nenhum de nós desejaria que isso acontecesse. E por que razão sou obrigado a permanecer em Roma? Porque fui eleito cônsul sénior para o próximo ano! Excelente, ha? O meu colega júnior é Caio Cássio Longino — umbom homem, acho eu.
Comecemos pelas notícias locais. Provavelmente já sabes que o nosso mútuo amigo Caio Verres seduziu de tal modo o eleitorado e os encarregados dos sorteios que conseguiu ser pretor urbano. Mas sabes, por acaso, que conseguiu transformar esse cargo, normalmente ingrato, em algo de lucrativo? Depois de o plutocrata Lúcio Minúcia Basílio ter morrido sem deixar testamento, Verres teve de julgar as pretensões do parente mais próximo à herança.
Este parente é um sobrinho, um tal Marco Sátrio. Mas imagina só quem contestou as pretensões de Sátrio? Nem mais nem menos do que Hortênsio e Marco Crasso, a quem Basílio alugara algumas propriedades particularmente ricas. Pois Hortênsio e Crasso foram ter com Verres e alegaram que Basílio ter-lhes-ia deixado essas propriedades se por acaso tivesse feito um testamento! E Verres apoiou as pretensões deles! Hortênsio e Crasso ficaram mais ricos, Sátrio mais pobre. Quanto a Caio Verres, não é de crer que tenha agido por bondade, pois não?
Claro que este ano também temos um chato entre os nossos dez tribunos da plebe. O espécime deste ano é um homem muito peculiar, Lúcio Quíncio. Tem 50 anos, venceu na vida à custa de muito esforço, gosta de se vestir com uma túnica de púrpura de Tiro quando não é obrigado a usar a toga e, nos modos e no discurso, é de uma afectação absolutamente execrável. O colégio de tribunos ainda não tinha um dia de vida e já Quíncio arengava às multidões do Fórum sobre a restauração de todos os poderes do tribunado; entretanto, no Senado, todo o seu veneno se virava para o meu irmão.
Mas Quíncio agora já está muito mais calmo e bem-comportado. O meu querido irmão Lúculo enfrentou-o com a maior das habilidades, recorrendo, para usar os termos dele, a um ataque em duas frentes. Por um lado, atirou o tribuno da plebe do ano passado, Quinto Opímio, aos cães — os cães eram Catulo e Hortênsio, que processaram Opímio pelos seus constantes abusos de autoridade e conseguiram aplicar-lhe uma multa igual a toda a sua fortuna. Opímio ficou arruinado e foi obrigado a retirar-se da vida pública. Por outro lado, Lúculo, de uma forma branda e razoável, mas constante, tratou de incutir no espírito de Quíncio a ideia de que se não se calasse e moderasse o seu tom, acabaria por ser atirado aos cães Catulo e Hortênsio e apanharia uma multa tal que ficaria como Opímio. Este exercício demorou algum tempo, mas deu os melhores resultados.
Se pensas que, devido à tua ausência, caíste no esquecimento, estás completamente enganado, meu caro César. Toda a cidade de Roma fala do teu namoro com os piratas e da crucificação a que os condenaste, contra as ordens do governador. Parece que te estou a ouvir perguntar: O quê? Então em Roma já se sabe disso? Pois sabe! E não foi por Junco ter falado! O proquestor de Junco, aquele Pompeu que teve o descaramento de acrescentar o cognome de Bitínico ao seu vulgaríssimo nome, escreveu a toda a gente a contar a história. Aparentemente, a intenção dele era fazer de Junco o herói da história. Mas os caprichos do povo são de tal ordem que toda a gente — até mesmo Catulo! — te considera o verdadeiro herói de toda aquela trama. Na realidade, chegou-se mesmo a falar em conceder-te uma Coroa Naval, mas Catulo não estava preparado para ir tão longe e lembrou os Pais Conscritos de que tu actuaste como um privatus e que, por isso, não tinhas direito a receber uma condecoração militar.
Os piratas têm sido alvo de muitas discussões no Senado, este ano, mas, por favor, põe o teu ênfase mental na palavra ”discussão”. Ou porque Filipe parece atacado de uma letargia permanente, ou porque Cetego tem comparecido muito pouco às reuniões, ou porque Catulo e Hortênsio estão mais interessados nos tribunais do que no Senado, enfim, poderão ser muitas as razões, mas uma coisa é certa: o Senado, este ano, está uma verdadeira lesma. Tomar uma decisão? Oh, é impossível! Apressar as coisas? Oh, é impossível!
De qualquer modo, em Janeiro, o nosso preíor Marco António moveu mundos e fundos para que lhe fosse dada uma comissão especial, tendo em vista a erradicação da pirataria do Nosso Mar. A sua principal razão para pedir esta comissão especial parece ser o facto de, há trinta anos, o seu pai, o Orador, ter sido encarregado de uma missão idêntica. Não há dúvida que a pirataria atingiu níveis alarmantes e que, nestes tempos de escassez de cereais, temos de proteger as cargas de cereais que vêm do Oriente para Itália. No entanto, a maior parte de nós sentiu uma grande vontade de rir ao imaginar António — que não parece ser um monstro como o seu irmão Híbrida, mas que é certamente um idiota e um incapaz — com um comando tão importante como o da erradicação da pirataria de uma ponta à outra do Nosso Mar.
Para além de discussões intermináveis, nada mais aconteceu. Excepto que Metelo, o filho mais velho de Caprário (que é pretor este ano), também achou boa a ideia de Marco António e tratou de mover as suas influências para obter aquele comando. Quando tais influências se transformaram numa ameaça para António, com quem achas que António foi falar? Imagina só: com Précia! Sim, essa mesma, a amante de Cetego. Ela possui um domínio absoluto sobre Cetego — tão absoluto que, quando alguém precisa do apoio de Cetego, a primeira coisa que faz é cortejar Précia. Temos de concluir que Précia deve ter uma secreta inclinação por cretinos corpulentos e robustos — mais mentula que mente —, porque foi António quem ficou com o cargo! Metelo retirou-se da arena, com a sua auto-estima completamente desfeita, mas, ou me engano muito, ou voltará à luta um dia destes. Cetego estava tão interessado em apoiar António, que este acabou por conseguir um império ilimitado nos mares e um império proconsular em terra. Disseram-lhe que podia recrutar uma legião de tropas terrestres, mas que, quanto à frota, teria de requisitá-la às cidades portuárias da zona onde estivesse a combater. Este ano, será a ponta ocidental do Nosso Mar.
A crermos nas queixas das cidades portuárias ocidentais que o Senado começou já a receber, Marco António é melhor a extorquir dinheiro do que a erradicar piratas. Até agora, os seus feitos contra os piratas são incomparavelmente menores que os teus! Travou uma batalha ao largo da Campânia, clamando que obtivera uma grande vitória, mas, até agora, não vimos nenhuma prova dessa vitória, ou seja, não vimos um único esporão de navio ou um único prisioneiro. Creio que ameaçou Lipara e rugiu com toda a sua força nas Baleares, mas a costa oriental da Hispânia continua firmemente nas mãos dos piratas aliados de Sertório e a Ligúria ainda está por domar. De acordo com as queixas, Marco António gasta a maior parte do seu tempo e das suas energias em brigas e numa vida de luxo. No próximo ano — diz ele no último relatório que enviou ao Senado — irá para a ponta oriental do Nosso Mar, para Giteu, no Peloponeso. A partir desta base, acrescenta, atacará os mares de Creta, onde vogam as grandes frotas piratas. No fundo, acho que ele vai para Giteu porque Giteu é famosa pelo seu magnífico clima e pelas suas belas mulheres.
Mas agora vamos ao caso Mitridates.
A notícia de que o rei Nicomedes tinha morrido só chegou a Roma em Março — atrasada pelas tempestades de Inverno, ao que parece. O testamento foi imediatamente guardado no templo das Vestais e, por outro lado, Junco já tinha recebido instruções para incorporar a Bitínia na Província da Ásia logo que tu o informasses da morte do rei; daí que o Senado tivesse concluído que tudo deveria estar a correr como previsto. Porém, pouco depois, recebemos uma carta formal do rei Mitridates, dizendo que a Bitínia pertencia a Nisa, a idosa filha de Nicomedes, e que, por isso, marcharia sobre Nicomédia para dar o trono a Nisa. Ninguém levou a sério essa ameaça; há muito que não havia notícias da filha de Nicomedes. Enviámos então a Mitridates uma mensagem bastante dura, informando-o de que não reconhecíamos nenhum pretendente ao trono da Bitínia e ordenando-lhe que se mantivesse dentro das suas fronteiras. Normalmente, quando o ameaçamos ele fica com medo; daí que nunca mais se tenha pensado no caso.
Na realidade, houve alguém que continuou a pensar no caso: o meu irmão. Lúculo viveu tantos anos no Oriente que desenvolveu um faro muito apurado: e cheirava-lhe a guerra. Tentou mesmo falar no Senado da eventualidade de uma guerra — os senadores aproveitaram para dormir uma soneca. A província que Lúculo vai governar no próximo ano é a Gália Italiana. Quando viu que era esse o resultado do sorteio do Dia de Ano Novo, ficou deliciado! O que mais temia, nesse momento, era que o Senado retirasse o governo da Hispânia Citerior a Pompeu e lho desse a ele! Foi por isso que ele defendeu Pompeu com tanto vigor — Lúculo queria tudo, menos ir para a Hispânia Citerior!
Porém, em fins de Abril, quando soube que Lúcio Octávio morrera em Tarso, o meu irmão pediu que lhe dessem o governo da Cilícia e que a Gália Italiana fosse atribuída a um dos seus pretores. Ia haver guerra contra Mitridates, insistiu ele. E como é que o Senado reagiu a estes presságios? com a maior letargia! com bocejos! Quem visse aqueles senadores, era capaz de pensar que afinal Mitridates não tinha massacrado oitenta mil pessoas na Província da Ásia, há apenas quinze anos! Ou que não tinha dominado toda a região, até que Sila correu com ele! Os senadores discutiram, discutiram, discutiram... Mas não conseguiram chegar a nenhuma conclusão.
Quando chegou a notícia de que Mitridates chegara a Heracleia com trezentos mil homens, era natural que acontecesse qualquer coisa, não era? Pois bem, nada aconteceu. O Senado não conseguiu chegar a acordo sobre o que deveria ser feito, quanto mais sobre quem deveria ir para o Oriente — a certa altura, Filipe levantou-se e sugeriu que o comando fosse entregue a Pompeu Magno! O qual (façamos-lhe justiça) está muito mais interessado em recuperar a sua reputação, que tão abalada ficou na Hispânia.
Por fim, o meu pobre irmão tomou uma decisão que o levou a sentir o maior desprezo por si mesmo — foi ter com Précia. Como podes imaginar, a sua abordagem dessa mulher foi completamente diferente da de Marco António. Lúculo é demasiado senhor do seu nariz para adular seja quem for e demasiado orgulhoso para pedir. Por isso, em vez de lhe oferecer presentes caros, suspiros lânguidos ou declarações de amor eterno, não usou de rodeios e foi direito ao assunto. O Senado, disse-lhe, estava cheio de tontos e ele estava farto de gastar o seu latim com aquela gente. Em contrapartida, sempre ouvira dizer que Précia era uma criatura não só bem educada, como também extremamente inteligente. Perceberia ela porque é que era necessário que alguém fosse negociar com Mitridates o mais depressa possível? Perceberia ela que a melhor pessoa para essa tarefa era Lúcio Licínio Lúculo? Se de facto percebia, importar-se-ia por acaso de dar um pontapé no traseiro de Cetego, para que este fizesse qualquer coisa para melhorar a situação? Pelos vistos, ela adorou que lhe dissessem que era mais inteligente e mais polida do que qualquer membro do Senado (e é natural que tenha atirado à cara de Cetego que os senadores eram todos uns tontos!), pois deve ter dado a Cetego um pontapé monumental — e, num ápice, as coisas mudaram no Senado!
O governo da Gália Italiana foi entregue a um pretor (ainda por nomear) e a Cilícia foi entregue ao meu irmão. com ordens de seguir para o Oriente durante o seu consulado e de assumir as funções de governador da Província da Ásia no primeiro dia do próximo ano, sem abandonar a Cilícia. Estava previsto que Junco permanecesse na Província da Ásia, mas tal decisão foi cancelada. Junco volta para Roma no final do ano; houve tantas queixas quanto à sua conduta no pobre reino da Bitínia que o Senado acabou por se mostrar unânime no que toca a este caso.
Há apenas uma legião de tropas em Itália. Os seus homens estavam a ser recrutados e treinados para irem para Hispânia, mas afinal irão para o Oriente, com Lúculo. O pontapé que Précia deu em Cetego foi tão forte que os Pais Conscritos aprovaram a soma de setenta e dois milhões de sestércios para que Lúculo reunisse uma frota, ao passo que Marco António não recebeu dinheiro nenhum. Marco Cota foi nomeado governador da nova província romana da Bitínia, mas ele tem a marinha bitínia à sua disposição e, por isso, está perfeitamente bem quanto a navios — daí que não lhe tivessem dado nenhum dinheiro! A que estado chegámos nós, César, se uma mulher tem já mais poder que os cônsules ?
O meu querido irmão cobriu-se de glória, recusando a oferta dos setenta e dois milhões de sestércios. Disse que as medidas que Sila tomara na Província da Ásia bastavam para as suas necessidades — requisitaria a sua frota às várias cidades e distritos da Província da Ásia e, depois, deduziria o seu custo dos tributos. Como há muito pouco dinheiro nos nossos cofres, os senadores agradeceram sinceramente ao meu irmão.
Estamos a chegar ao fim de Quinctilis e Lúculo e Marco Cota partirão para o Oriente dentro de menos de um mês. Felizmente que, segundo a constituição de Sila, os cônsules eleitos para o ano seguinte têm mais poder do que o pretor urbano; por isso, sou eu e Cássia que ficaremos à frente de Roma, em vez dessa horrenda criatura que dá pelo nome de Caio Verres.
A viagem decorrerá totalmente por mar — o que não é nada de especial, pois só há uma legião para transportar —, porque, no Verão, é mais rápido ir por mar do que atravessar a Macedónia. Creio também que o meu irmão não quer ser detido por nenhuma campanha a oeste do Helesponto, como aconteceu com Sila. Ele acredita que Curió é capaz de enfrentar uma invasão da Macedónia pelas tropas do Ponto — o ano passado, Curió e Coscónio, na Ilíria, funcionaram como uma equipa e com tão bons resultados que esmagaram os Dárdanos e os Escordiscos e Cario está agora a lançar incursões contra os Bessos.
Lúculo deve chegar a Pérgamo em fins de Setembro. O que acontecerá depois, não posso prever. Nem o meu irmão.
Espero que tenhas ficado actualizado, César. Escreve-me, manda-me todas as notícias que tenhas — não creio que Lúculo tenha tempo para me manter informado!
A carta provocou em César um suspiro consternado; de repente, os exercícios respiratórios e a retórica tinham perdido todo o interesse. No entanto, não recebera nenhuma ordem de Lúculo e duvidava que alguma vez viesse a receber. Tanto mais que a sua história com os piratas já era conhecida em toda a Roma. Lúculo teria aprovado a proeza — mas não o seu autor. Lúculo gostava das coisas burocraticamente limpas, oficialmente claras. Um aventureiro privatus usurpando a autoridade do governador era coisa que não lhe agradava, por muito que compreendesse as razões de César.
Será que os nossos desejos têm influência na realidade?, pensava César no dia seguinte. Poderá um homem influenciar os acontecimentos através do poder dos seus desejos não expressos? Ou será tudo obra de Fortuna? Pois eu tenho sorte, sou um dos favoritos de Fortuna. E ei-la de novo comigo, a minha sorte. Uma grande oportunidade! E oferecida num momento em que ninguém poderá deter-me. bom, ninguém a não ser gente como Junco. Mas essa gente não conta.
Rodes insistia agora que Mitridates tinha lançado não uma, mas três invasões, cada uma das quais com origem em Zela, no Ponto, onde ele tinha o seu quartel-general e treinava os seus vastos exércitos. Era ele quem dirigia o grosso do exército, chefiando trezentos mil soldados de infantaria e cavalaria que desciam a costa da Paflagónia na direcção da Bitínia, e contando com o apoio dos seus primos Hermócrates e Taxiles — e de uma frota de mil navios (muitos dos quais piratas) sob o comando de um outro primo, Aristónico. Porém, um segundo exército comandado pelo sobrinho do rei, Diofanto, avançava pela Capadócia na direcção da Cilícia; esse exército integrava cem mil soldados. Havia ainda um terceiro exército, composto também por cem mil homens, sob o comando de um outro primo de Mitridates, Eumaco, e do filho bastardo de Caio Mário, Marco Mário, que Sertório enviara para a corte do Ponto. Esta terceira força tinha ordens para penetrar na Frígia e tentar invadir a Província da Ásia pela porta das traseiras.
É pena, lamentou César, que Lúculo e Marco Cota não tenham podido saber destas notícias a tempo; as duas legiões que pertenciam à Cilícia estavam já a caminho de Pérgamo, por mar, cumprindo assim as ordens de Lúculo e deixando a Cilícia sem protecção nenhuma contra a invasão de Diofanto. Portanto, não havia nada a fazer excepto esperar que os acontecimentos obrigassem Diofanto a abrandar o seu ímpeto; encontraria pouca oposição na Capadócia, graças ao rei Tigranes.
As duas legiões de fimbrianos encontravam-se já em Pérgamo com o cobarde Junco e não havia qualquer probabilidade de que Junco as mandasse para Sul, para enfrentar Eumaco e Marco Mário; Junco queria as legiões para protegerem a sua fuga quando a Província da Ásia caísse em poder de Mitridates pela segunda vez em menos de quinze anos. E, sem umbom exército e umbom general para os comandar, os habitantes da Província da Ásia não resistiriam. Não podiam resistir. O mês de Sextilis estava a chegar ao fim, mas Lúculo e Marco Cota tinham ainda pelo menos um mês de viagem à sua frente — e esse mês, pensou César, revelarse-ia absolutamente vital para a Província da Ásia.
”Não há mais ninguém”, disse César para si mesmo.
O outro lado de César respondeu: ”Mas ninguém me agradecerá se eu tiver êxito.”
”Eu não faço isso para me agradecerem, mas por uma questão de satisfação pessoal.”
”Satisfação? Que queres dizer com isso?”
”Quero dizer que tenho de provar a mim mesmo que posso fazê-lo.”
”Não te vão adorar como adoraram Pompeu Magno.”
”Claro que não! Pompeu Magno é um picentino, sem importância alguma, nunca poderia ser um perigo para a República. Falta-lhe o sangue. Sila tinha o sangue. E eu também.”
”Sendo assim, por que hás-de correr riscos? Ainda acabas condenado por traição — e não vale a pena dizeres que não há traição nenhuma! Não é preciso que haja. As tuas acções serão alvo de todo o tipo de interpretações. Mas qual será a interpretação dominante?”
A de Lúculo.”
”Precisamente! Há muito que Lúculo te considera um indivíduo conflituoso e desordeiro. E continuará a considerar-te assim, se fizeres o que pensas fazer. Apesar de teres ganho uma Coroa Cívica. E não te congratules por teres tomado a sensata decisão de dar a maior parte dos despojos dos piratas — porque ainda ficaste com uma fortuna que não declaraste, e homens como Lúculo suspeitarão sempre disso.”
”Mesmo assim, tenho de o fazer.”
”Então, procura fazê-lo como um Júlio, e não como um Pompeu! Nada de fanfarras, nada de espalhafato, nada de gritos, nada de te mostrares inchado, mesmo que tenhas todo o êxito deste mundo!”
”Ou seja: o cumprimento do dever, sem qualquer alarido, unicamente para minha satisfação pessoal.”
Isso mesmo.”
César chamou Burgundo.
— Amanhã de manhã partimos para Prieno. Tu, eu e os dois escribas mais discretos. Um cavalo e uma mula para cada um de nós — ou melhor, para mim são três: o Dedos e um cavalo ferrado, tal como uma mula. Tu e eu precisaremos de armaduras e armas.
Longos anos ao serviço de César tinham imunizado Burgundo contra a surpresa.
— E Demétrio? — perguntou.
— Como não estarei muito tempo longe, não precisarei dele. Além disso, é preferível que fique aqui. É um mexeriqueiro.
— Apanhamos o próximo barco para Prieno ou alugamos um?
— Aluga. Pequeno, leve e muito rápido.
— Mais rápido que os navios piratas?
César sorriu.
— É evidente, Burgundo. Uma vez já me chegou.
A viagem durou quatro dias — Cnido, Mindo, Brânquidas, Prieno, na foz do rio Meandro. Foi a viagem por mar de que César mais gostou, uma viagem rápida num navio leve e veloz, impulsionado por cinqüenta remadores que remavam ao ritmo de um tambor, com os músculos peitorais e os ombros fortemente desenvolvidos por anos e anos desse mesmo exercício; o navio levava uma segunda tripulação e os homens revezavam-se antes de se sentirem cansados, comendo e bebendo sem restrições no intervalo do trabalho.
Chegaram a Prieno às primeiras horas da manhã e César foi logo ter com o etnarca, um homem de nome etíope, Mémnon.
— Presumo que não serias agora etnarca, depois de Mitridates ter reinado na Província da Ásia, se tivesses simpatizado com a sua causa — disse César, dispensando as habituais cortesias. — Portanto, devo perguntar-te: agrada-te a ideia de Mitridates voltar a dominar a tua cidade?
Mémnon recuou, surpreendido.
— Não, César! Claro que não!
— Óptimo. Nesse caso, Mémnon,vou pedir-te um grande esforço e no mais breve prazo.
— Tentarei. Que queres?
— Quero que convoques as milícias de Prieno e que peças a todas as cidades e comunidades, desde Halicarnasso a Sardes, que façam o mesmo. Quero o máximo de homens possível, o mais rapidamente possível. Quatro legiões, e todas elas comandadas pelos seus oficiais habituais. O ponto de encontro será Magnésia, junto ao Meandro, daqui a oito dias.
Mémnon julgou perceber o que se passava. E ficou radiante.
— Ah, finalmente! Finalmente o governador fez alguma coisa!
— Ah, sim, claro — retorquiu César. — Colocou-me à frente das milícias da Ásia, embora infelizmente não possa dispensar-vos mais militares romanos. Isto significa, Mémnon, que a Província da Ásia terá de lutar com os seus próprios meios e homens, em vez de ficar à espera de que as legiões romanas recebam os louros.
— Já não era sem tempo! — disse Mémnon, com um brilho marcial no olhar.
— É o que eu acho também. As milícias locais, treinadas pelos romanos e equipadas pelos romanos, são normalmente muito subestimadas. Mas, depois disto, garanto-te que as coisas mudarão.
— E quem vamos combater? — perguntou Mémnon.
— Contra um general do Ponto chamado Eumaco e um renegado hispânico chamado Marco Mário, que não tem nada a ver com o meu tio, o grande Caio Mário — mentiu César, que não queria que a sua milícia ficasse impressionada com aquele nome.
Mémnon tratou imediatamente de convocar as milícias asiáticas, sem pedir qualquer documento oficial, sem sequer se perguntar se César era realmente quem e o que dizia ser. Quando César espicaçava os outros, ninguém parava para lhe fazer perguntas.
Nessa noite, depois de se retirar para os seus aposentos em casa de Mémnon, César conferenciou com Burgundo.
— Meu velho amigo, não estarás a meu lado nesta campanha — disse ele. — E não vale a pena protestares que Cardixa deixará de te falar se tu não me protegeres! Preciso de ti para uma tarefa mais importante do que ficar a ver uma batalha sem nada poder fazer, porque não és um legionário romano, nem um miliciano local. Preciso que vás a Ancira falar com Deiotaro.
— O nobre da Galácia — disse Burgundo, aquiescendo. — Sim, lembro-me bem dele.
— E ele deve lembrar-se de ti. Nem mesmo entre os Gauleses da Galácia há homens tão altos e corpulentos como tu. Tenho a certeza de que ele sabe mais do que eu acerca dos movimentos de Eumaco e Marco Mário, mas não é para o avisares que eu quero que vás. Quero que lhe digas que estou a organizar um exército de milicianos asiáticos e quevou tentar atrair as forças pônticas ao Meandro. Algures junto ao Meandro, espero montar-lhes uma armadilha e derrotá-los. Se o conseguir, eles retirarão para a Frígia antes de tentarem uma nova invasão. Quero que digas a Deiotaro que ele nunca terá uma oportunidade melhor de correr de vez com o exército pôntico: mas é preciso que ele o apanhe na Frígia, enquanto se recompõe. Por outras palavras: diz-lhe que eu e ele agiremos como uma equipa. Se eu, na Província da Ásia, e ele, na Frígia, cumprirmos bem as nossas tarefas, então não haverá invasão da Província da Ásia ou da Galácia
este ano.
— E como vou, César? Quer dizer, com que aspecto?
— Acho que devias ter o aspecto de um deus da guerra, Burgundo. Veste a armadura dourada que Caio Mário te deu, põe as maiores penas púrpuras que encontres no mercado na crista do teu capacete e canta uma canção germana, daquelas mais guerreiras, tão alto quanto puderes. Se encontrares soldados do Ponto, passa pelo meio deles como se eles não existissem. Tu, com o teu cavalo de Neso, serás a personificação do terror marcial.
— E depois de ter falado com Deiotaro?
— Voltas para ao pé de mim, seguindo o curso do Meandro.
Os cem mil soldados pônticos que tinham partido com Eumaco e Marco Mário de Zela, no Ponto, tinham como primeira prioridade a infiltração na Província da Ásia. No entanto, para seguirem uma linha mais ou menos directa entre Zela e qualquer remota localidade frígia significaria atravessar a Galácia; ora Mitridates não se sentia muito seguro relativamente à Galácia: uma nova geração de chefes surgira entretanto, substituindo aquela que ele assassinara num banquete, cerca de trinta anos antes. Por outro lado, a autoridade pôntica sobre a Galácia era algo de muito tênue. Seria necessário um dia enfrentar aquela nova geração de Galacianos, descendentes de Gauleses, mas não era essa a sua primeira prioridade. Mitridates reservara os melhores soldados para as suas próprias divisões e, por isso, os soldados comandados por Eumaco e Marco Mário caracterizavam-se por uma grande falta de experiência guerreira.
Uma campanha ao longo do Meandro contra comunidades desorganizadas de gregos asiáticos daria experiência e confiança às tropas.
Em conseqüência destas cogitações, o rei do Ponto manteve Eumaco e Marco Mário consigo enquanto avançava pela Paflagónia. Mitridates estava soberbamente equipado para esta investida contra Roma; nos celeiros pônticos, havia dois milhões de medimni de trigo, e um medimnus dava para produzir dois pães de meio quilo por dia durante trinta dias. Tinha, portanto, nos seus silos, trigo suficiente para alimentar todo o seu povo e todos os seus exércitos durante vários anos. Daí que não estivesse minimamente preocupado com o facto de levar consigo para a Paflagónia mais cem mil homens. Também não estava preocupado com os pormenores relativos ao transporte destas enormes quantidades de cereais e de outros víveres; isso era tarefa para os seus subordinados — estes, assim pensava Mitridates, limitar-se-iam a dar as ordens certas a outros subordinados, os quais executariam o transporte. Na realidade, estes diversos subordinados não tinham nem o treino nem a imaginação necessários para fazer aquilo que um praefectus fabrum executava com a maior naturalidade — ainda que nenhum general romano alguma vez tivesse posto sequer a hipótese de movimentar um exército com mais de dez legiões ao longo de tão extensas distâncias.
Consequentemente, quando Eumaco e Marco Mário separaram os seus cem mil homens dos trezentos mil homens de Mitridates, os abastecimentos eram já tão escassos que o rei se viu obrigado a mandar longas filas de homens buscar mais víveres para o exército; estas longas filas tinham de se deslocar muitos quilômetros para encontrar os alimentos precisos e, depois, regressavam com pesadas cargas aos ombros. O que implicava que muitos dos seus soldados estavam permanentemente exaustos, por terem de trabalhar como carregadores. Disseram então ao rei que a frota levaria abastecimentos para Heracleia; em Heracleia, o problema ficaria resolvido.
No entanto, Heracleia não resolvia o problema de Eumaco e Marco Mário, que deixaram o grosso do exército para descerem o curso do rio Bileo, atravessaram uma cordilheira e emergiram no vale do Sangário. Nesta fértil região da Bitínia, já puderam comer em condições, à custa dos agricultores locais, mas depressa tiveram de partir para as terras altas, densamente florestadas e onde os vales cultivados eram poucos e pequenos.
Não admira, pois, que Eumaco e Marco Mário tivessem acabado por separar-se, devido à sua incapacidade para alimentar os cem mil soldados pônticos.
— Não vais precisar do exército todo para enfrentar uns quantos gregos asiáticos — disse Marco Mário a Eumaco. — E por certo não precisarás de cavalaria. Por isso,vou ficar no trio Tembris com alguns dos soldados de infantaria e com toda a cavalaria. Cultivaremos a terra e faremos batidas para encontrar comida. E esperaremos as tuas notícias. Mas faz por regressar no Inverno — e põe metade dos habitantes da Província da Ásia a trabalhar como carregadores! O Alto Tembris não fica muito longe das terras dos Tolistobógios Galacianos e, por isso, atacá-los-emos e aniquilá-los-emos na Primavera. Dessa forma, teremos muita comida da Galácia para comer no próximo Inverno.
— Não creio que o rei meu primo gostasse de te ouvir apoucar a sua gloriosa aventura militar, falando dela apenas em termos de comida — retorquiu Eumaco, mas sem qualquer altivez ou arrogância; tinha demasiado medo de Mitridates para conhecer a altivez ou a arrogância.
— O rei teu primo precisa desesperadamente de uma boa orientação romana: seria a única forma de ele saber, antecipadamente, como é difícil alimentar tantos homens numa marcha tão longa — replicou Marco Mário, imperturbável. — Mandaram-me para aqui para vos ensinar a arte da emboscada, mas, até agora, tudo o que fiz foi comandar um exército. E eu não sou um comandante profissional. Mas tenho algumbom senso e o que obom senso diz é que metade desta força tem de permanecer algures junto de um rio, que é onde há terras boas para cultivar e para arrecadar alimentos. É pena que o rei não goste de falar de uma campanha em termos de comida! Se queres saber a minha opinião, sempre te digo que ele nem sequer vive na mesma terra que nós!
Perderam entretanto mais algum tempo enquanto Marco Mário se reinstalava, pois Eumaco recusou-se a partir enquanto não tivesse a certeza do local onde encontraria Mário, no seu regresso. E, assim, foi já em Setembro que Eumaco e os seus cerca de cinqüenta mil soldados de infantaria atravessaram as montanhas Díndimo e seguiriam depois um dos afluentes do Meandro. Naturalmente, quanto mais desciam o curso do rio, melhores eram as terras e os cultivos, o que era um estímulo para avançarem até que toda aquela rica região do mundo pertencesse de novo ao rei Mitridates do Ponto.
Como a maior parte das principais cidades ao longo do sinuoso rio ficava na sua margem sul, Eumaco seguiu pela margem norte, servindo-se de uma estrada pavimentada que principiava na cidade de Trípolis. Prometendo aos soldados que poderiam entregar-se ao saque e à pilhagem logo que a Província da Ásia estivesse segura, Eumaco passou por Nisa, a primeira grande cidade que encontraram, e continuou a seguir o curso do Meandro na direcção de Trales. Era impossível manter os homens completamente juntos durante a marcha, já que era preciso encontrar comida freqüentemente, e, por vezes, certas atracções, como um suculento rebanho ou um bando de gordos gansos, desencadeavam uma verdadeira caçada generalizada, provocando, nas tropas, uma agitação incontrolável.
De facto, aquele avanço, plácido e agradável, ao longo de terras muito produtivas, introduzira na marcha um elemento de festa. Os batedores que inspeccionavam a região duas vezes por dia, voltavam sempre com a mesma notícia: nenhum sinal de oposição. O que era natural, pensou Eumaco desdenhosamente, pois, a sul de Pérgamo, não havia nenhum foco de resistência! Todas as legiões romanas (até mesmo as da Cilícia) estavam aquarteladas nos arredores de Pérgamo, com a missão de protegerem a preciosa pessoa do governador; todos os generais pônticos sabiam disso há já algum tempo e Marco Mário confirmara-o, enviando batedores ao Caico.
Eumaco sentia-se tão seguro que nem sequer ficou preocupado quando, certa noite, os seus batedores não voltaram à hora habitual, uma hora antes do ocaso. A cidade de Trales estava agora mais perto deles do que Nisa, e as suaves ondulações do vale, por onde serpenteava o Meandro, ganhavam àquela hora do dia uma coloração dourada, cobertas do restolho das colheitas. Eumaco deu ordens para passarem ali a noite. Não havia fortificações, não havia qualquer organização naquele improvisado acampamento; os homens limitaram-se a espalhar-se por aquelas terras junto ao rio, tagarelando, discutindo, lutando pelos melhores sítios.
Era já muito tênue a luz do dia quando quatro legiões de milicianos asiáticos, numa formação esplendidamente romana, caíram de surpresa sobre o exército pôntico, que ceava calmamente, provocando uma verdadeira carnificina. Embora houvesse dois pônticos para cada miliciano asiático, as tropas pônticas foram apanhadas tão desprevenidas que não ofereceram resistência.
Porque tinha cavalos e porque se instalara na ponta mais afastada do acampamento em relação ao ataque de César, Eumaco e os seus legados conseguiram fugir; sem se preocuparem com a sorte do exército, correram para o rio Tembris e para Marco Mário.
No entanto, a sorte não estava, nesse ano, do lado do rei Mitridates. Eumaco chegou ao Tembris a tempo de ver Deiotaro e os Tolistobógios atacarem o exército invasor de Marco Mário. Tratava-se essencialmente de uma batalha entre cavaladas. No entanto, não chegou a ser uma batalha renhida; os recrutas sármatas e cítios que se tinham alistado no exército do Ponto lutavam bem na estepe, mas tinham a maior dificuldade em manobrar no abrupto vale do Alto Tembris. Milhares desses recrutas morreram.
Em Dezembro, o que restava do exército frígio conseguira regressar a Zela sob o comando de Eumaco; Marco Mário fora procurar Mitridates, pois preferia contar pessoalmente ao rei o que sucedera do que enviar um relatório.
A milícia asiática ficou exultante e associou-se a toda a população do vale do Meandro nas celebrações da vitória, que duraram muitos dias.
No seu discurso às tropas antes da batalha, César tinha ressaltado o facto de que a Província da Ásia se estava a defender com os seus próprios meios, que Roma estava muito longe e não podia naquele momento ajudá-la, que, desta feita, a sorte da Província da Ásia dependia inteiramente dos Gregos Asiáticos. Falando no grego coloquial da região, espicaçou de tal modo os sentimentos de patriotismo e auto-suficiência que os vinte mil homens da Lídia e da Caria que conduzia acabaram por transformar a batalha contra Eumaco numa vulgar razia. Durante quatro nundinae, César treinara-os e disciplinara-os, durante quatro nundinae imbuíra-os da consciência do seu próprio valor, e os resultados desse trabalho corresponderam em pleno às suas expectativas.
— Este ano, não aparecerão mais exércitos pônticos — disse ele a Mémnon, durante a celebração da vitória em Trales, dois dias após a derrota de Eumaco. — Mas no próximo ano é natural que apareçam. Ensinei-vos o que devem fazer e como o devem fazer. Agora, cabe aos homens da Província da Ásia defenderem-se a si mesmos. Roma terá tanto que fazer noutras frentes, que não poderá canalizar legiões ou generais para a Província da Ásia. Mas vocês agora sabem que são capazes de enfrentar sozinhos o inimigo.
— E isso, devemo-lo a ti — disse Mémnon.
— Não, de modo nenhum! Tudo o que vocês precisavam era de alguém que vos organizasse e atirasse para a frente e eu tive a sorte de estar disponível.
Mémnon inclinou a cabeça.
— Tencionamos construir um templo a Vitória o mais perto possível do local da batalha; fala-se já numa pequena colina nos arredores de Trales. Autorizas-nos a erigir uma estátua tua dentro do templo para que as pessoas nunca esqueçam quem as conduziu?
Mesmo que Lúculo estivesse presente e vetasse tal pedido, César não teria declinado tão singular honra. Trales ficava muito longe de Roma e não era uma das principais cidades da Província da Ásia; poucos (ou nenhuns) romanos da sua classe visitariam um templo a Vitória que, para além de não ser antigo, não deveria possuir grandes obras de arte. Mas uma tal honra, para César, tinha um grande significado. Aos 26 anos, teria uma estátua, adornada com todas as insígnias de um general, no interior de um templo dedicado a Vitória. Porque, aos 26 anos, conduzira um exército ao triunfo.
— Ficaria extremamente satisfeito — retorquiu ele, num tom grave.
— Nesse caso, pedirei a Glauco que te vá ver amanhã, a fim de tomar nota das tuas medidas. Glauco é umbom escultor. Trabalha nos estúdios de Afrodisíade, mas, como pertence à milícia, agora está cá connosco.vou pedir-lhe também que traga o pintor, para que este faça alguns esboços coloridos. Depois, poderás partir, caso tenhas algo a fazer noutro sítio qualquer.
César tinha de facto coisas a fazer noutro sítio. A principal era deslocar-se a Pérgamo, para falar com Lúculo antes que as notícias da vitória de Trales chegassem aos seus ouvidos por outras vias. Como Burgundo regressara da Galácia sete dias antes da batalha, podia mandá-lo escoltar os dois escribas e o seu precioso Dedos até Rodes. Viajaria sozinho até Pérgamo.
Fez os cento e setenta e cinco quilômetros de seguida, parando apenas para mudar de cavalo; e mudou freqüentemente de cavalo, de forma a conseguir fazer quinze quilômetros por hora, durante o dia, e dez quilômetros por hora, durante a noite. A estrada era romana e encontrava-se embom estado, e, embora a lua estivesse em quarto minguante, o céu não apresentava qualquer nuvem: sim, a sorte estava pelo seu lado. Tendo partido de Trales às primeiras horas do dia seguinte ao final da festa, chegou a Pérgamo nesse mesmo dia, três horas depois do ocaso. O mês de Outubro estava a chegar a meio.
Lúculo recebeu-o imediatamente. César considerou significativo que Lúculo o recebesse sem a companhia de Marco Cota, seu tio, que também estava no palácio do governador; contudo, a favor do cônsul, havia o facto de também não ter recorrido à companhia de Junco.
César estendeu a mão mas Lúculo rejeitou o cumprimento. O cônsul, aliás, nem o mandou sentar; a entrevista decorreu com os dois de pé.
— Que te traz aqui, César? Encontraste mais piratas? — perguntou Lúculo, num tom gélido.
— Piratas, não — retorquiu César, num tom sério. — Encontrei um exército de Mitridates. Desceu o Meandro e era constituído por cinqüenta mil homens. Soube da chegada desse exército antes de tu chegares ao Oriente, mas achei que não valia a pena informar o governador, cujo acesso à informação é melhor que o meu, mas que, apesar disso, nada tinha feito para defender o vale do Meandro. Por isso, pedi a Mémnon de Prieno que convocasse todas as milícias asiáticas — o que, como sabes, ele pode fazer, desde que seja instruído nesse sentido por Roma. E ele não tinha a mínima razão para pensar que eu não estava a agir em nome de Roma. Em meados de Setembro, os chefes das cidades da Lídia e da Caria tinham reunido uma força de vinte mil homens, que treinei e preparei para a guerra. O exército pôntico entrou na província na segunda metade de Setembro. Sob o meu comando, a milícia asiática derrotou o príncipe Eumaco perto da cidade de Trales, há três dias. Quase todos os soldados pônticos foram mortos ou capturados, embora o príncipe Eumaco tenha conseguido escapar. Soube, entretanto, que um outro exército pôntico, chefiado pelo espanhol Marco Mário, tinha pela frente os Tolistobógios, chefiados pelo tetrarca Deiotaro. Deveras receber em breve notícias sobre a vitória, ou a derrota, de Deiotaro. É tudo — concluiu César.
O rosto alongado de Lúculo, com os seus gélidos olhos cinzentos, não exibiu qualquer espanto.
— Creio que já chega, César! Porque não notificaste o governador? Não tinhas maneira de saber o que ele estava ou não estava a planear!
— O governador não passa de um idiota incompetente e corrupto. Sei muito bem como ele é. Quando ele quisesse fazer alguma coisa — e duvido que quisesse —, seria já demasiado tarde. Eu sabia disso. E foi por isso que não o informei. Não queria que ele estorvasse os meus movimentos, porque sabia que podia fazer o que era preciso muito melhor do que ele.
— Excedeste a tua autoridade, César. De facto, não tinhas nenhuma autoridade para exceder.
— É verdade. Portanto, não excedi nada.
— Isto não é uma competição de sofistica!
— Se calhar era melhor que fosse. Que queres que eu diga? Eu não sou velho, Lúculo, mas já conheço bem estes indivíduos que Roma manda para as suas províncias, dotados de império, e não creio que Roma seja melhor servida pela obediência cega a homens como Junco, Dolabela ou Verres, do que é por homens como eu, com ou sem império. Eu percebi o que havia a fazer e fi-lo. Devia acrescentar: fi-lo, sabendo que ninguém me agradeceria. Fi-lo, sabendo que seria repreendido, ou talvez mesmo levado a tribénal por uma pequena traição.
— Segundo as leis de Sila, não há traições pequenas.
— Nesse caso, por uma grande traição.
— Por que razão vieste ver-me? Para me rogar clemência?
— Preferia morrer!
— Tu não mudas!
— Para pior, não mudo.
— Não posso concordar com o que fizeste.
— Não esperava que concordasses.
— Mas, mesmo assim, vieste ver-me. Para quê?
— Para informar o magistrado comandante, como é meu dever.
— O teu dever como membro do Senado de Roma, presumo eu — disse Lúculo. — Embora devesses ter tido o mesmo comportamento para com o governador. No entanto, não sou injusto e já compreendi que Roma tem razões para te agradecer a tua rápida acção. Em circunstâncias similares, é possível que eu tivesse agido da mesma maneira — desde que garantisse, antecipadamente, que não estava a afrontar o império do governador. Para mim, o império de um homem é muito mais importante do que as suas qualidades. Censuraram-me alguns pelo facto de o rei Mitridates ter lançado esta terceira guerra contra Roma, invocando que, se isso estava a acontecer agora, era porque eu me tinha recusado a ajudar Fímbria a capturar Mitridates em Pitane, permitindo dessa forma que Mitridates fugisse. Tu terias colaborado com Fímbria, baseado na ideia de que os fins justificam os meios. Mas eu considerei que não podia reconhecer o representante de um governo romano ilegal. Os meus princípios levaram-me a recusar a ajuda a Fímbria. Os meus princípios levam-me a apoiar todo e qualquer romano investido de um império. E, para concluir, devo dizer que te acho muito parecido com um outro jovem que também tem ideias fantásticas e que dá pelo nome de Cneu Pompeu, autocognonimado de Magno. Mas tu, César, és muitíssimo mais perigoso do que qualquer Pompeu. Tu nasceste para ser chefe.
— Que estranho — interrompeu César. — Eu disse exactamente essas palavras. Sem tirar nem pôr.
Lúculo lançou-lhe um olhar intimidante.
— Não te vou processar, César, mas também não te vou propor para nenhuma condecoração. A batalha travada em Trales será referida em termos muito breves nos meus despachos para Roma. Direi que foi travada pela milícia asiática, sob comando local. O teu nome não será mencionado. Aliás, nem sequer te nomearei para a minha equipa, nem permitirei que qualquer outro governador te escolha para as suas equipas.
César escutara tudo isto com um ar inexpressivo e ausente, mas quando Lúculo, com um gesto abrupto, indicou que a entrevista tinha acabado, a expressão de César alterou-se. Era uma expressão firme e obstinada.
— Não estou interessado em que refiras o meu nome como comandante da milícia asiática. Mas faço questão que refiras o meu nome durante toda a campanha no Meandro. Se não for recrutado, não poderei reivindicar esta campanha, a minha quarta campanha. Estou decidido a servir em dez campanhas antes de disputar o cargo de questor.
Lúculo fitou-o espantado.
— Mas tu não precisas de disputar esse cargo! Já estás no Senado!
— De acordo com a lei de Sila, tenho de ser questor antes de ser pretor ou cônsul. E, antes de ser questor, tenciono levar a cabo dez campanhas.
— Há muitos homens que foram eleitos questores e que nunca fizeram as dez campanhas obrigatórias. Já não estamos nos tempos de Cipião Africano e Catão, o Censor! Ninguém se vai dar ao trabalho de contar as tuas campanhas quando o teu nome surgir nas eleições questoriais.
— No meu caso — insistiu César — haverá sempre alguém interessado em contar as minhas campanhas. A forma como hei-de conduzir a minha vida está traçada. Não receberei nada por favor; tudo o que receber, será contra uma forte oposição. Sou melhor que os outros e superarei todos. Mas nunca o farei, isso te juro, inconstitucionalmente. Seguirei o cursus honorum exactamente como a lei prescreve. E se eu tiver servido em dez campanhas, obtendo na primeira a Coroa Cívica, quando disputar o cargo de questor, serei o candidato mais qualificado. Estarei no primeiro lugar para ser eleito: e esse é o único lugar que acho aceitável depois de tantos anos como senador.
com os seus olhos pétreos, Lúculo fitou aquele belo rosto, aqueles olhos tão parecidos com os de Sila, e compreendeu que não podia esticar mais a corda.
— Por todos os deuses, a tua arrogância não conhece limites! Está bem, eu referirei o teu nome nos relatórios sobre a campanha e sobre a batalha.
— Tenho esse direito.
— Um dia ainda tropeças, César!
— Impossível! — retorquiu César, rindo-se.
— São observações desse género que te tornam detestável.
— Não percebo porquê, se estou a dizer a verdade.
— Só mais uma coisa.
Prestes a partir, César virou-se e enfrentou de novo o cônsul.
— Sim?
— Este Inverno, o procônsul Marco António vai mudar o seu teatro de comando contra os piratas da ponta ocidental do Nosso Mar para a ponta oriental. Julgo que tenciona concentrar-se nos mares de Creta. O seu quartel-general será em Giteu, onde alguns dos seus legados se encontram já a trabalhar — Marco António tem de reunir uma vasta frota. Ora, tu és precisamente o melhor de todos nós no que toca à obtenção de frotas. Eu sei-o por causa das tuas actividades na Bitínia e Vátia Isáurico também o sabe, por causa das tuas actividades em Chipre. Rodes ficou por duas vezes a dever-te favores! Se queres acrescentar mais uma campanha ao teu currículo, apresenta-te imediatamente em Giteu. O teu posto — conforme direi a Marco António — será de tribuno militar júnior e ficarás hospedado em casa de um cidadão romano de Giteu. Se eu souber que resolveste fazer as coisas à tua maneira ou que excedeste o teu estatuto júnior de alguma forma, juro-te, Caio Júlio César, que te levarei ao tribunal militar de Marco António! E não penses que não consigo convencê-lo! Depois de teres processado o irmão dele, Marco António ficou-te com um ódio de morte! Claro que podes recusar a comissão. Tens esse direito, como cidadão romano. Mas é a única comissão militar que vais conseguir, depois de eu escrever umas quantas cartas. Eu sou o cônsul. Isso significa que o meu império é superior a qualquer outro império, incluindo o do cônsul júnior — por isso, escusas de tentar obter uma comissão junto do teu tio, César!
— Estás a esquecer-te — retorquiu César, afavelmente — de que o império aquático de Marco António é ilimitado. Creio que, no mar, ele tem mais poder que o cônsul sénior do ano.
— Nesse caso, farei o possível por não vogar nas mesmas águas que ele — retorquiu Lúculo, já farto. — Vai ver o teu tio Cota antes de partires.
— O quê? Então não me dás dormida?
— A única dormida que eu te daria, César, foi a que pertenceu a Procrustes.
Momentos depois, dizia César ao seu tio, Marco Aurélio Cota:
— Eu sabia que a guerra contra Eumaco me provocaria problemas. Mas nunca pensei que Lúculo fosse tão longe. Ou talvez deva dizer que pensava que seria perdoado ou julgado por traição. Em vez disso, Lúculo preferiu retaliações pessoais, com o objectivo de afectar a minha carreira.
— Eu não tenho qualquer influência nas decisões dele — retorquiu Marco Cota. — Lúculo é um autocrata. Mas tu és igual a ele.
— Não posso ficar, tio. Tenho ordens para partir imediatamente. Irei para Rodes, suponho eu, depois de me instalar em Giteu
e tem de ser numa casa de um cidadão romano! Francamente, as exigências do teu colega sénior são extraordinárias! Terei de mandar os meus libertos para casa, incluindo Burgundo. Lúculo não me autorizou a viver em Giteu com um mínimo de condições.
— Muito curioso! Desde que tenha bastante dinheiro na bolsa, até mesmo um contubernalis pode viver como um rei. E imagino — disse Marco Cota, com um ar malicioso — que, depois das tuas escaramuças com os piratas, podes dar-te ao luxo de viver como um rei.
— Não, tio, fiquei sem nada. Foi uma decisão inteligente, escolher António. Os Antónios não gostam nada de mim. — César suspirou. — E imagina só: deu-me um cargo júnior! Eu que devia ser pelo menos tribunus militum, mesmo que não eleito!
— Se queres que gostem de ti, César... oh, mas que disparate! Para quê dar-te conselhos? Conheces mais respostas do que eu conheço perguntas, e sabes muito bem como conduzir a tua vida. Se estás com problemas, foi porque os procuraste — e com total consciência do que estavas a fazer.
— Admito que sim, tio. Mas agora tenho de ir. Preciso de arranjar um quarto nesta cidade, antes que todas as hospedarias fechem as portas. Como vai o tio Caio?
— Não prorrogou o seu governo da Gália Italiana, apesar de a província precisar de um governador. Caio já fez que chegue. E espera triunfar.
— Desejo-te sorte para a Bitínia, tio.
— Suspeito quevou precisar muito dela — retorquiu Marco Cota.
Foi em meados de Novembro que César chegou à pequena cidade portuária de Giteu, no Peloponeso, verificando, desde logo, que Lúculo não perdera tempo; toda a gente sabia já da sua vinda e dos termos que Lúculo lhe impusera para cumprir mais uma campanha.
— Mas que raio é que tu fizeste? — perguntou-lhe o legado Marco Mânio, que estava encarregado da organização do quartel-general de António.
— Chateei Lúculo — disse apenas César.
— Não podias ser um bocadinho mais claro?
— Não.
— Que pena! Morro de curiosidade! — Mânio descia a estreita rua pavimentada ao lado de César. — Pensei que era melhor mostrar-te primeiro a casa onde vais ficar. Por acaso até nem é má de todo. É uma velha mansão, pertencente a dois velhos viúvos romanos, chamados Aprónio e Canuleio. As esposas deles eram irmãs — mulheres de Giteu — e, quando a segunda irmã morreu, mudaram-se os dois para aquela casa. Quando chegaram as ordens foi logo neles que pensei, porque eles têm imenso espaço livre e vão estragar-te com mimos. São uns velhos doidos, mas muito simpáticos. Embora tu não vás ficar em Giteu por muito tempo. Olha que não invejo a tua missão, andar atrás dos gregos a pedir-lhes barcos! Mas como os teus papéis dizem que és o melhor de todos na matéria, quer-me parecer que vais conseguir.
— Pois a mim também me quer parecer quevou — concordou César, com um sorriso.
Obter navios de guerra no Peloponeso não era uma missão propriamente desagradável para um homem que mergulhara a fundo na leitura dos clássicos gregos: seria Pilos realmente arenosa? As muralhas de Argos teriam sido realmente construídas por titãs? Havia uma espécie de encantamento intemporal no Peloponeso que tornava o presente irrelevante, como se os deuses mais não fossem que crianças de colo, quando comparados com as gerações de homens que ali tinham vivido. E embora fosse um especialista em criar inimizades entre os grandes de Roma, sempre que lidava com homens mais humildes César suscitava afectos imediatos.
A sua missão foi correndo lentamente durante o Inverno, mas a um ritmo que, na opinião de César, António dificilmente poderia criticar. Em vez de aceitar promessas, o melhor angariador de frotas do mundo requisitava todos os navios de guerra que visse e depois obrigava as cidades a assinar contratos garantindo a construção de galeras e a sua entrega em Abril, no porto de Giteu. Marco António, pensava César, não estaria pronto para nada antes de Abril, já que não deveria partir de Massília antes de Março.
Em Fevereiro, a equipa do Grande Homem começou a preparar cuidadosamente a sua chegada e César — com os olhos abertos de espanto e uma tremura de raiva nos lábios — ficou com uma ideia mais concreta de como eram as campanhas de Marco António. Dado que Giteu não possuía, supostamente, uma boa residência para o chefe, a equipa pensou construir uma residência na praia banhada pelo golfo de Lacónia, em frente da bela ilha de Cítera. A residência devia possuir piscinas, quedas-d’água, fontes, banhos de chuveiro, aquecimento central e interiores revestidos a mármore multicolor, mármore que teria, naturalmente, de ser importado.
— Não vão conseguir acabá-la antes do Verão — disse César a Mânio. — Não seria melhor oferecer ao Grande Homem hospedagem na casa de Aprónio e Canuleio?
— Ele não vai ficar nada contente quando vir que a casa não está pronta — retorquiu Mânio, que achava a situação tão divertida como César. — Mas olha que os habitantes locais estão a adoptar uma atitude muito grega e muito louvável, tendo em conta o dinheiro que a cidade está a gastar na construção daquela monstruosidade sibarítica: estão a pensar alugá-la por somas astronômicas a todas as grandes personalidades que por aqui passem depois de António se ir embora.
— Podes crer que tratarei de espalhar o mais possível a fama desta monstruosidade sibarítica — disse César. — No fim de contas, este é um dos melhores climas do mundo, ideal para uma longa cura de repouso ou para a prática secreta dos vícios mais indecentes.
— Francamente, gostava que eles recuperassem o dinheiro gasto! — disse Mânio. — Quanto dinheiro mal gasto! Atenção: eu não disse aquilo que acabaste de ouvir!
— O quê? O que é que disseste? — gritou César, com a mão atrás do ouvido, fingindo-se de surdo.
Quando Marco António chegou, encontrou o porto de Giteu cheio de navios de todo o tipo (César aceitara mesmo navios mercantes, pois sabia que António tinha uma legião de tropas de terra para transportar) e a sua villa apenas meio pronta. No entanto, não havia nada que pudesse afectar a sua disposição freneticamente jovial; bebera tanto e tão pouco que, desde que deixara Massília, não conseguira ter um momento de sobriedade. Tanto quanto o seu fascinado legado Marco Mânio e o seu tribuno militar júnior Caio Júlio César podiam entender, a ideia que António tinha de uma campanha consistia em assaltar os órgãos genitais do máximo número possível de mulheres com uma arma que, segundo constava, era particularmente poderosa. Uma vitória, no léxico deste tipo de campanha, significava os gemidos de protesto femininos perante o vigor do bombardeamento e o tamanho do aríete.
— Por todos os deuses! Mas que imbecil! E que incompetente! — disse César para as paredes do seu confortável quarto, na casa de Canuleio e Aprónio. Não se atreveria a fazer um tal comentário perante ouvidos humanos.
Claro que César tivera o cuidado de insistir junto de Marco Mânio para que referisse as suas actividades de angariador de frotas nos relatórios enviados ao Senado; por isso, quando recebeu uma carta da mãe em fins de Abril, poucos dias depois de António ter chegado, pôde suspirar de alívio, pois ficou a saber que podia deixar Giteu com mais uma campanha no currículo.
O tio mais velho de César, Caio Aurélio Cota, regressado da Gália Italiana no início desse ano, morrera na véspera do seu triunfo. Deixando — para além de muitas outras coisas — uma vaga no Colégio dos Pontífices, ele que era o pontífice com mais tempo de permanência no cargo. E embora Sila tivesse promulgado que o colégio devia ser formado por oito plebeus e sete patrícios, por altura da morte de Caio Cota continha nove plebeus e apenas seis patrícios, devido à necessidade de Sila premiar este ou aquele homem com um cargo de pontífice ou de augure. Normalmente, quando um pontífice plebeu morria, o colégio substituía-o por outro plebeu; porém, tendo em vista restaurar os números previstos pela lei, os membros do colégio decidiram cooptar um patrício. E escolheram precisamente César.
Tanto quanto Aurélia podia saber, a escolha de César decorria do facto de que nenhum elemento da família Júlia era membro do Colégio dos Pontífices ou do Colégio dos Augures desde os assassínios de Lúcio César (um augure) e César Estrabão (um pontífice), trinta anos antes. Havia a ideia generalizada de que o filho de Lúcio César preencheria a próxima vaga do Colégio dos Augures, mas (segundo Aurélia) ninguém pensara alguma vez em César para o Colégio dos Pontífices. O informador de Aurélia era Mamerco, que lhe dissera ainda que a decisão não fora unânime; Catulo opusera-se, tal como Metelo, o filho mais velho de Caprário. Porém, depois de muitos augúrios e de uma consulta aos livros proféticos, César venceu.
A parte mais importante da carta da mãe era uma mensagem de Mamerco. Dizia este que, se César quisesse assegurar o seu pontificado, deveria regressar a Roma para a consagração e a tomada de posse o mais depressa possível; caso contrário, era possível que Catulo levasse o colégio a mudar de ideias.
Registada a sua quinta campanha, César juntou as suas bagagens sem o mínimo pesar. As únicas pessoas de quem sentiria saudades eram os seus anfitriões, Aprónio e Canuleio, e o legado Marco Mânio.
— Embora deva confessar — disse ele a Mânio — que gostaria de ver aquela monstruosidade sibarítica no máximo da sua glória.
— Ser pontífice é muito mais importante — retorquiu Mânio, que só agora começava a aperceber-se da importância de César; aos olhos de Mânio, César sempre parecera um indivíduo prático e despretensioso, louco por trabalho e extremamente eficiente. — Que vais fazer depois de assumires o teu lugar no colégio?
— Procurar um propretor humilde com uma guerra difícil entre mãos — disse César. — Lúculo agora é procônsul, o que significa que não pode dar ordens aos outros governadores.
— Hispânia?
— Não. A Hispânia daria demasiado nas vistas. Os relatórios que o Senado recebe vêm quase todos de lá. Não,vou ver se Marco Ponteio precisa de um jovem e brilhante tribuno militar na Gália Transalpina. Ele é um vir militaris. E os viri militarii são sempre homens sensatos. Ponteio não se preocupará com o que Catulo pensa de mim. Vai querer, muito simplesmente, que eu trabalhe. Nada mais. — De repente, havia alguma tristeza na sua expressão. — Mas há outras prioridades. A primeira de todas é processar Marco Júnio Junco.vou levá-lo ao Tribunal de Extorsão.
— Junco? Não sabes o que sucedeu? — perguntou Mânio.
— O que é que sucedeu?
— Junco morreu! Não chegou a voltar a Roma. Naufragou.
Aquele homem era trácio, mas não era trácio. No ano em que César deixou Giteu para assumir o seu pontificado, este trácio que não era trácio fez e entrou na cena da História.
Tinha uma origem respeitável, ainda que sem nada de ilustre. O pai, um campaniano de Vesúvio, fora um daqueles homens que, ao abrigo da lex Plautia Papiria, promulgada durante a Guerra Italiana, recebera a cidadania romana por não ter pegado em armas contra Roma.
Na história familiar do jovem (uma história essencialmente campesina), não havia nada que pudesse explicar a paixão que ele sentia pela guerra e por tudo o que fosse militar. Mas o certo é que o pai percebeu desde logo que este seu segundo filho se alistaria nas legiões mal fizesse 17 anos. Contudo, como gozava de alguma influência, o pai conseguiu um lugar de cadete para o filho na legião que Marco Crasso recrutara para Sila, depois de este ter desembarcado em Itália e lançado a sua guerra contra Carbão.
O rapaz, sob um regime marcial, não deixou de desenvolver rapidamente as suas capacidades, a tal ponto que se distinguiu em batalha ainda antes de fazer 18 anos; foi então transferido para uma das legiões de veteranos de Sila e, pouco tempo depois, era promovido a tribuno militar júnior. No final da última campanha, na Etrúria, propuseram-lhe a desmobilização, mas ele preferiu alistar-se no exército de Caio Coscónio, enviado para a Ilíria para submeter as tribos dos Delmatas.
De início, ficara fascinado com a região e com o tipo de guerra praticado. Rapidamente acrescentou várias armillae e phalerae ao seu já extenso rol de condecorações militares. Até que Coscónio ficou parado durante dois anos por causa de um cerco; a cidade portuária de Salonas não se rendia, nem combatia. Para aquele jovem, o cerco de Salonas constituía uma perda de tempo, algo de intoleravelmente entediante. Mas o seu rumo estava traçado: queria seguir uma carreira no exército como vir militaris — um Homem Militar. Caio Mário começara como um Homem Militar... e acabara por ser cônsul sete vezes! E, no entanto, via-se agora obrigado a passar meses e meses nas cercanias de uma massa inerte de tijolo, sem fazer nada, sem ir para lado nenhum.
Pediu a sua transferência para a Hispânia, porque, como muitos dos seus companheiros, sentia-se fascinado pelas proezas de Sertório. Contudo, o legado que comandava a sua legião, muito pouco compreensivo, recusou o seu pedido. O tédio, porém, era de tal modo insuportável, que o jovem apresentou um segundo pedido de transferência. E, pela segunda vez, o seu pedido foi recusado. Após este choque, a sua conduta deteriorou-se. Ganhou fama por insubordinação, por beber, por se ausentar do acampamento sem autorização. Mas tudo isso se desvaneceu quando Salonas caiu e o general Coscónio começou a colaborar com Caio Escribónio Curió, governador da Macedónia, numa gigantesca operação destinada a obter a submissão total dos Dárdanos. Ah, agora já lhe agradava mais!
O incidente que levou à queda do jovem foi classificado como insurreição e o legado pouco compreensivo revelou-se, afinal, um inimigo secreto. O jovem — tal como muitos outros — foi levado ao tribunal militar de Coscónio e julgado pelo crime de motim. O tribunal deu as acusações como provadas. Se ele não fosse um cidadão romano, a sentença teria automaticamente consistido em açoitamento e execução. Mas como era romano e oficial com um estatuto de tribuno júnior — e possuía muitas condecorações importantes —, o tribunal ofereceu-lhe duas alternativas. Perderia a sua cidadania, evidentemente; mas podia escolher entre ser açoitado e condenado a um exílio permanente, e tornar-se gladiador. Compreensivelmente, optou pela segunda hipótese. Assim, poderia pelo menos ir para casa. Sendo originário da Campânia, sabia tudo o que era preciso saber sobre gladiadores; as escolas de gladiadores concentravam-se à volta de Cápua.
Enviado para Aquileia, com mais sete homens condenados pelo mesmo motim e que tinham escolhido igual destino, foi comprado por um negociante e mandado para Cápua, onde seria vendido em hasta pública. Contudo, não era sua intenção revelar o seu antigo estatuto romano. O pai e o irmão mais velho não gostavam dos combates entre gladiadores e nunca iam a jogos funerários; poderia por isso viver relativamente perto da quinta do pai sem que a família suspeitasse sequer da sua nova vida. Por isso, resolveu escolher umbom nome, um nome curto, com um som marcial e evidentes conotações guerreiras: Espártaco. Sim, que bem soava aquele nome! Espártaco! E nesse momento jurou que Espártaco se tornaria um gladiador famoso, que seria procurado por todos os apreciadores de combates de Itália, que seria um herói de Cápua, recebido sempre em triunfo, com as raparigas da cidade penduradas nos seus braços, e com muitos, muitos convites para jantar nas casas ilustres da cidade.
No mercado de Cápua, foi vendido ao lanista de uma escola famosa, propriedade do consular e ex-censor Lúcio Márcio Filipe; percebia-se por que razão o tinham comprado: era alto, tinha um corpo magnificamente desenvolvido — as barrigas das pernas, as coxas, o peito, os ombros e os braços —, um pescoço como o de um touro, uma pele bronzeada, tão suave como a de uma rapariga, embora com algumas cicatrizes muito interessantes; além disso, tinha uma bela cabeça, com cabelo louro e olhos acinzentados; e movia-se com uma certa graça principesca, tinha, enfim, um porte verdadeiramente régio. O lanista, que pagou cem mil sestércios por ele, em nome de Filipe (o qual, naturalmente, não estava presente:
Filipe nunca vira nenhum dos quinhentos gladiadores que tanto lucro lhe davam), pensou, mal viu Espártaco, que aquele era um gladiador nato. Filipe, com ele, não poderia perder.
Havia apenas dois estilos de gladiador, o trácio e o gaulês. Examinando Espártaco, o lanista teve dificuldade em decidir que tipo de treino o jovem deveria seguir, se o trácio, se o gaulês. Normalmente, era o físico do homem que ditava a resposta; mas Espártaco era um espécime tão esplêndido que tanto poderia ser um lutador trácio como um lutador gaulês. Contudo, os gauleses tinham habitualmente mais cicatrizes e corriam maiores riscos de mutilações perpétuas; e o preço pago fora muito elevado. Daí que o lanista tivesse optado pelo estilo trácio. Era preciso que Espártaco mantivesse intacto aquele belo corpo: assim, logo que ganhasse fama, o seu preço não pararia de subir. Tinha uma cabeça nobre, por isso ficaria melhor sem nada em cima dela. E os lutadores trácios não usavam capacete.
Os treinos começaram. O lanista, que era um homem cauteloso, certificou-se primeiro de que as proezas atléticas de Espártaco eram o que aquele corpo prometia. Só depois encomendaria a armadura, revestida a prata e com relevos de ouro. Espártaco usava uma tanga escarlate, presa na cintura por um cinturão de couro preto, e empunhava o sabre encurvado de um cavaleiro trácio. As canelas eram protegidas por grevas que chegavam às coxas, o que o impedia de se mover tão rápida e seguramente como o seu adversário, o Gaulês — e precisava de mais inteligência e de capacidade de coordenação para ultrapassar tais obstáculos. No braço direito, usava uma manga de couro, incrustada de escamas metálicas, e segura por correias que eram atadas ao peito e à volta do pescoço; a manga chegava ainda à sua mão direita, até aos nós dos dedos. O seu equipamento era completado por um pequeno escudo redondo.
Tudo foi fácil para Espártaco. Claro que havia já algum mistério à volta dele (os sete militares condenados pelo mesmo tribunal tinham tido destinos diversos), já que ele nunca falara da sua carreira militar e o que o agente de Aquileia dissera na sua carta era extremamente vago. No entanto, falava o latim e o grego da Campânia, era razoavelmente instruído e mostrava ter conhecimentos muito precisos de como funcionava um exército. O lanista começou a ficar preocupado, prevendo que aquele homem lhe ia trazer complicações. Todo ele era um guerreiro: até mesmo nos treinos, com uma espada de madeira e um escudo de couro. O primeiro braço adversário que partiu em vários sítios podia perfeitamente ter sido um deslize; porém, depois de muitos ossos partidos — de tal modo que cinco doctores tiveram de ficar inactivos durante vários meses —, o lanista mandou-o chamar.
— Presta bem atenção ao que te vou dizer — disse o homem, num tom razoável. — Tens de ver o combate na arena como um jogo e não como uma guerra. Isto é um desporto! Os Etruscos inventaram-no há um milhar de anos e, ao longo dos séculos, a tua profissão sempre foi considerada como uma profissão honrosa e altamente especializada. Que, aliás, só existe em Itália. Quando um homem morre, os seus parentes organizam, não os jogos que Aquiles celebrou em honra de Pátroclo, e que consistiam em corridas, saltos, pugilismo e luta, mas sim uma competição particularmente solene, com o aspecto de um desporto guerreiro e o objectivo de premiar o homem atleticamente mais capaz.
O jovem gigante escutou aquilo com um rosto inexpressivo, mas o lanista reparou que a sua mão direita não parava de abrir e fechar, como que ansiando pelo toque da espada.
— Estás a ouvir-me, Espártaco?
— Sim, lanista.
— O doctor é o teu treinador e não o teu inimigo. E deixa-me que te diga, umbom doctor é muito difícil de arranjar! Graças ao teu excessivo entusiasmo, tenho agora menos cinco doctores do que há um mês atrás e não encontro substitutos à sua altura. Ah, sim, claro que eles vão sobreviver! Mas dois deles ficaram completamente incapacitados para o exercício da sua profissão! Espártaco, tu não estás a combater os inimigos de Roma! E derramar rios de sangue não é o objectivo deste jogo! O que as pessoas vêm ver é um desporto — uma actividade física de ataque e parada, de força e graciosidade, de habilidade e inteligência. Os cortes e feridas que todos os gladiadores sofrem já deitam sangue suficiente para excitar o público, o qual não vem ver dois homens matar-se um ao outro — ou cortar os braços um ao outro! O público vem ver um desporto. Um desporto, Espártaco! Uma competição que envolve proezas atléticas, nada mais. Se o público quisesse ver os gladiadores a matar-se ou a mutilar-se uns aos outros, iria para um campo de batalha — e os deuses bem sabem que a Campânia já foi palco de demasiadas batalhas! — Fez uma pausa para examinar Espártaco e acrescentou: — Será que entrou alguma coisa do que eu disse nessa cabeça? Já estás a perceber melhor?
— Sim, lanista — retorquiu Espártaco.
— Então vai-te embora e continua a treinar, mas porta-te bem! Gasta as tuas energias com as almofadas e os bonecos de madeira e, da próxima vez que combateres contra um doctor com a tua espada de madeira, concentra-te nos belos movimentos da luta e não em partir os ossos aos outros!
Como era suficientemente inteligente para entender o que o lanista lhe explicara, Espártaco concentrou-se durante algum tempo nos rituais e cerimoniais de puro movimento — e isso até lhe deu algum prazer. Os desconfiados e apreensivos doctores que contra ele combatiam puderam verificar, com a maior satisfação, que Espártaco não procurava partir-lhes os ossos, mas que, pelo contrário, se entusiasmava com a coreografia da luta, com todos aqueles movimentos de belo efeito que tanto excitavam as multidões. O lanista precisou ainda de bastante tempo para acreditar que Espártaco estava curado da sua sede de sangue; porém, ao fim de seis meses, resolveu integrá-lo numa lista de cinco pares que deveriam participar nos jogos fúnebres de um dos Gutas de Cápua. Como era um espectáculo local, o lanista poderia assistir, poderia ver com os seus próprios olhos como é que Espártaco se comportava na arena.
O gaulês que defrontou Espártaco (eram o terceiro par a lutar) estava perfeitamente ao seu nível; possuía um corpanzil esplêndido e era mesmo um pouco mais alto. Usando apenas uma pequena tanga, o gaulês lutava com um escudo enorme e ligeiramente encurvado e uma espada de gume duplo. O elemento mais vistoso do seu equipamento era o capacete, um magnífico capacete de prata com abas que protegiam as faces e um resguardo para o pescoço, tendo a coroá-lo um peixe de esmalte, maior do que a convencional pluma.
Espártaco nunca tinha visto o gaulês; numa escola tão grande como a de Filipe, os únicos homens com que um aprendiz de gladiador contactava eram os doctores, o lanista, e os colegas. Porém, Espártaco fora informado antecipadamente de que o seu primeiro adversário era um lutador experiente que já participara pelo menos em dúzia e meia de jogos e que era extremamente popular em Cápua, a arena que costumava freqüentar.
As coisas correram bem para o novo gladiador nos primeiros momentos do combate; apesar de o seu traje de lutador trácio lhe dificultar os movimentos, Espártaco, fazendo círculos lentos, conseguiu escapar aos primeiros golpes do gaulês. Reparando no belo rosto e no corpo hercúleo de Espártaco, algumas das mulheres entre o público suspiravam e mandavam-lhe beijos; Espártaco começava já a formar o núcleo de um futuro grupo de devotadas adeptas. Mas como o lanista só permitia que um gladiador tivesse contactos com mulheres depois de ter obtido algumas vitórias, Espártaco, sequioso desses contactos, ficou desconcentrado com tantos beijos. A certa altura, ergueu demasiado o seu pequeno escudo redondo e o gaulês, movendo-se como uma enguia, fez-lhe um golpe profundo na nádega esquerda.
E foi o fim de tudo, ou seja, o fim do gaulês. com um movimento de uma rapidez estonteante, Espártaco girou sobre a sua perna esquerda e brandiu o seu sabre encurvado contra o pescoço do adversário. A lâmina penetrou com tal força que atingiu a coluna; a cabeça do gaulês caiu para o lado, bateu contra o ombro e assim ficou suspensa, com os olhos escancarados de horror mexendo ainda as pálpebras e os lábios contorcendo-se e revolvendo-se, como que macaqueando grotescamente os beijos que as mulheres, momentos antes, tinham atirado a Espártaco. Ouviram-se gritos de pavor e uma onda gigantesca pareceu varrer a multidão, enquanto algumas pessoas desmaiavam, outras fugiam e outras ainda vomitavam.
Espártaco foi imediatamente conduzido para o quartel.
— Ora aqui está a prova de que nunca serás um gladiador! — atirou-lhe o lanista.
— Mas ele feriu-me! — protestou Espártaco. O lanista abanou a cabeça.
— Como pode uma pessoa tão inteligente ser tão estúpida? — perguntou. — Estúpido é o que tu és! Estúpido, estúpido, estúpido! com o teu aspecto, com a tua habilidade natural, podias ser o gladiador mais famoso de toda a Itália — ganhavas facilmente dinheiro, eu ganhava elogios e Lúcio Márcio Filipe via crescer a sua fortuna! Mas tu nunca poderás ser um grande gladiador, simplesmente porque és estúpido! Tão inteligente e tão estúpido! Vais-te já embora hoje.
— Vou-me embora? Para onde? — perguntou o lutador trácio, ainda furioso. — Tenho de cumprir o serviço gladiatorial até ao fim!
— Ah, e vais cumprir! — retorquiu o lanista. — Mas não aqui. Lúcio Márcio Filipe possui uma outra escola, mais afastada de Cápua, e é para aí que te vou mandar. É um estabelecimento pequeno e muito, muito agradável — tem cerca de cem gladiadores, uns dez doctores e o mais famoso dos lanistas. Cneu Cornélio Lêntulo Baciato. O velho Baciato, o bárbaro. É da Ilíria. Comparado comigo, Baciato é uma taça de veneno puro.
— Nãovou morrer por isso — replicou Espártaco, imperturbável. — Não posso morrer.
Ao alvorecer do dia seguinte, uma carroça fechada veio buscar o banido, que entrou nela rapidamente e que, mal a porta foi trancada, descobriu que a única comunicação existente entre o interior e o exterior eram umas estreitas fendas entre as pranchas de madeira. Era um prisioneiro que nem sequer podia ver para onde ia! Um prisioneiro! Tão estranha e horrenda era tal ideia para um romano que, quando a carroça penetrou nos formidáveis portões da escola gladiatorial de Cneu Cornélio Lêntulo Baciato, o prisioneiro estava todo esfolado e ferido e meio inanimado de tanto se atirar contra as pranchas de madeira da carroça.
Isso sucedera um ano antes. Espártaco fizera 25 anos na outra escola e 26 dentro das muralhas daquela fortaleza a que os seus colegas, por ironia, chamavam a Villa Baciato. De facto, na Villa Baciato, não havia lugar para mimos! O número exacto de alunos variava ligeiramente mas os livros, habitualmente, registavam cem gladiadores — cinqüenta trácios e cinqüenta gauleses. Para Baciato eles não eram indivíduos — apenas trácios e gauleses. Todos eles tinham vindo de outras escolas depois de terem praticado algum delito — normalmente rebelião ou excessiva violência — e viviam como escravos das minas, excepto que, dentro da fortaleza, não eram agrilhoados; por outro lado, eram bem alimentados, tinham camas confortáveis e até podiam ter relações com mulheres.
Mas tratava-se de verdadeira escravatura. Cada um daqueles homens sabia que permaneceria na Villa Baciato até morrer, mesmo que sobrevivesse aos combates; quando já eram demasiado velhos para combater, punham-nos a trabalhar como doctores ou criados. Não recebiam qualquer salário e, quando Baciato precisava de fazer dinheiro (o que era muito freqüente), nem tinham o direito de curar as suas feridas: os combates sucediam-se a um ritmo imparável.
É que Baciato era aquele que fazia os preços mais baixos; quem tivesse meia-dúzia de sestércios e quisesse honrar um parente morto com jogos fúnebres, pensava logo em Baciato. E como os preços eram baixos, esses jogos eram, na sua maior parte, puramente locais.
A fuga de Villa Baciato era praticamente impossível. O seu interior estava dividido em muitas áreas pequenas, cada uma das quais separada das outras, e nenhuma das partes por onde os gladiadores podiam andar dava acesso às altas muralhas, coroadas por espigões de ferro com a ponta virada para cima. A fuga no exterior, ou seja, durante os combates, era também praticamente impossível; cada homem era acorrentado nos pulsos e nos tornozelos, tinha uma argola de ferro à volta do pescoço, viajava numa carroça sem janelas e, quando tinha de caminhar, era escoltado para todo o lado por um grupo de arqueiros, prontos a disparar as suas setas. Só quando entrava na arena é que o gladiador se via livre das grilhetas e, mesmo assim, os arqueiros vigiavam-no de perto.
Quão diferente era aquela vida da vida de um vulgar soldado das arenas! Esse podia deixar o seu quartel, era acarinhado, podia tornar-se o ídolo das mulheres, e sabia que estava a juntar umbom pé-de-meia. Lutava apenas cinco ou seis vezes ao ano e, ao fim de cinco anos ou trinta combates, retirava-se. Havia até homens livres que escolhiam ser gladiadores, embora a grande massa fosse constituída por desertores ou amotinados das legiões; e eram muito poucos aqueles que iam para as escolas já condenados à escravatura. Todos estes cuidados e atenções deviam-se ao facto de que um gladiador treinado era um investimento muito dispendioso e, por isso, tinha de ter um tratamento especial para que o dono da sua escola arrancasse, todos os anos, um belo lucro.
Na escola de Baciato, as coisas eram completamente diferentes. Baciato não se preocupava se um homem lambia a serradura da arena no seu primeiro combate ou se combatia regularmente durante dez anos. Os homens com muito mais de vinte anos não eram aceites como gladiadores e a vida de arena durava um máximo de dez anos; aquele era um desporto para jovens. Nem mesmo Baciato mandava homens grisalhos para a arena; a multidão (e a pessoa que, em honra de um parente falecido, contratava os gladiadores) gostava que os lutadores fossem homens ainda vigorosos e ágeis. Uma vez retirado das arenas, o gladiador da Villa Baciato não tinha outra hipótese senão permanecer dentro dos seus muros.
Um destino horrível, tendo em conta que um gladiador normal, quando se retirava, podia fazer o que muito bem lhe apetecia; normalmente ia para Roma ou para outra grande cidade e trabalhava como guarda-costas ou segurança.
A vida na Villa Baciato era marcada por uma sucessão de tarefas rotineiras, anunciadas pelo batimento de uma barra de ferro num círculo igualmente de ferro, e distribuídas de acordo com instruções escritas na parede de uma das zonas de exercícios, demasiado alto para que ninguém sentisse a tentação de apagá-las. Os cerca de cem homens eram fechados ao pôr do Sol em celas de pedra. Cada uma das celas albergava sete e oito homens e não possuía qualquer comunicação com as celas vizinhas — nem mesmo o som penetrava aquelas paredes. Nenhum homem permanecia no mesmo grupo; a distribuição dos homens pelas celas era arranjada de tal modo que cada homem tinha, todas as noites, seis ou sete novos companheiros. Tão engenhoso era o esquema de permutações de Baciato que um homem novo na escola tinha de esperar um ano para conseguir conhecer todos os outros homens. As celas eram asseadas e equipadas com camas confortáveis, possuindo ainda uma antecâmara onde havia um banho, água corrente e os bacios necessários. Quentes no Inverno e frescas no Verão, as celas eram usadas apenas entre o ocaso e o nascer do Sol. Durante o dia, eram limpas por escravos com quem os homens não tinham qualquer contacto.
Ao nascer do Sol, os homens eram acordados pelo som das portas a abrir-se e logo davam início às suas rotinas diárias. Durante todo o dia, o gladiador estaria ligado ao grupo com quem passara a noite anterior, ainda que, em qualquer circunstância, as conversas estivessem proibidas. Cada grupo tomava o pequeno-almoço no pátio murado que ficava em frente da sua cela; se estivesse a chover, o pequeno pátio era coberto com um abrigo de couro. Depois dos primeiros exercícios, um doctor dividia os homens do grupo em pares — lutadores gauleses contra trácios, se possível —, os quais travavam duelos com espadas de madeira e escudos de couro. Concluídos estes duelos, seguia-se a principal refeição do dia — consistindo de pratos de carne, pão fresco à discrição, umbom azeite, fruta e legumes da época, ovos, peixe salgado, uma espécie de caldo de leguminosas empapado com pão, e toda a água que um homem podia beber. De vinho, nem o cheiro. Depois da refeição, os homens descansavam em silêncio durante duas horas, antes de começarem a polir as armaduras, a tratar do couro, a consertar botas, ou a executar qualquer outra tarefa de manutenção; todas as ferramentas eram escrupulosamente recolhidas e guardadas e, durante esses trabalhos, os gladiadores eram vigiados por arqueiros. Uma terceira refeição, mais leve, seguia-se a um conjunto de exercícios particularmente duros, e, por fim, chegava a hora de cada um daqueles homens ir passar a noite com o seu novo grupo.
Baciato mantinha na sua fortaleza cerca de quarenta escravas, cujo único trabalho, para além de tarefas pouco pesadas nas cozinhas, consistia em satisfazer os apetites sexuais dos gladiadores, que eram visitados por essas mulheres de três em três noites. Também aqui as coisas estavam programadas ao milímetro. Um homem iria para a cama sucessivamente com as quarenta mulheres; em fila, as sete ou oito mulheres escolhidas para uma cela entravam nesta sob escolta e cada uma delas dirigia-se imediatamente para a cama que lhe fora destinada — e terminada a relação sexual, a mulher não podia ficar por mais tempo nessa cama. A maior parte dos homens era capaz de ter, pelo menos, três ou quatro relações sexuais durante a noite; mas tinha de ser sempre com uma mulher diferente. Consciente de que, nesta actividade, residia o perigo terrível de que algum tipo de afeição se desenvolvesse, Baciato mantinha um vigilante nas celas escolhidas (um trabalho de que nenhum criado tinha medo, pois as celas estavam iluminadas durante a noite) e certificava-se de que as mulheres iam mudando de parceiro e de que os homens não procuravam manter conversa.
Os cem gladiadores não residiam todos na fortaleza ao mesmo tempo. Entre um terço e metade deles encontrava-se na estrada — uma existência que todos eles odiavam, pois as condições não eram tão confortáveis como na Villa Baciato e, quanto a mulheres, não havia nenhuma. Mas a ausência de um grupo permitia que as mulheres tivessem dias de descanso (rigorosamente calendarizados — Baciato tinha uma paixão por esquemas e programas e permutações) e, àquelas que estavam em adiantado estado de gravidez, dava-lhes tempo para terem os seus filhos antes de voltarem ao serviço. Só eram dispensadas do trabalho durante o último mês antes do parto e o primeiro mês depois, o que implicava que as mulheres fizessem o possível por não ficar grávidas e que muitas das que ficavam recorressem imediatamente ao aborto. Os bebês eram separados das mães à nascença; se fosse uma menina, o seu destino era o monte de lixo da Villa Baciato; se era um rapaz, levavam-no imediatamente a Baciato para que este o inspeccionasse. Baciato tinha muitas clientes ansiosas por comprar uma criança do sexo masculino.
A chefe das mulheres era trácia, de seu nome Aluso. Era uma sacerdotisa dos Bessos e possuía um temperamento guerreiro. Fora uma das prostitutas de Baciato durante nove anos e tinha mais ódio ao amo do que qualquer gladiador da escola. A menina que dera à luz durante o seu primeiro ano na Villa Baciato teria sido, segundo a sua cultura tribal, a sua sucessora no lugar de sacerdotisa, mas Baciato ignorara os seus rogos aflitos para que a deixasse ficar com o bebê e mandara-o atirar para o lixo. Depois disso, Aluso tomara remédios preventivos da gravidez e nunca mais engravidara. Mas o seu ódio nunca se esbatera e continuava a jurar que Baciato havia de ser castigado pelo mal que lhe fizera.
Tudo isto significava que Cneu Cornélio Lêntulo Baciato era um dos homens mais eficientes e meticulosos que a cidade dos gladiadores alguma vez conhecera. Nada lhe escapava, tomava todas as precauções, não deixava passar o mínimo pormenor. E essa era uma das razões por que aquela escola para gladiadores pouco recomendáveis tinha tanto êxito. A outra razão era a capacidade de Baciato como lanista. Não confiava em ninguém, a não ser em si mesmo. Por isso guardava a única chave que dava acesso à fortaleza de pedra onde se encontravam as armaduras e as armas; era ele quem tratava de todos os contratos; era ele quem tratava das eventuais viagens; era ele quem escolhia todos os arqueiros, escravos, armeiros, cozinheiros, lavadeiras, prostitutas, doctores e assistentes; era ele quem tratava da contabilidade; e só ele se encontrava com o proprietário da escola, Lúcio Márcio Filipe — que nunca visitava o seu estabelecimento, pois era Baciato quem ia ter com ele a Roma. Baciato era também o único dos velhos empregados de Filipe que sobrevivera à colossal remodelação que Pompeu impusera, anos antes, aos negócios de Filipe; de facto, Pompeu ficara tão impressionado com Baciato que lhe pedira para aceitar o cargo de director-geral das actividades de Filipe.
Mas Baciato, com um sorriso, recusara o convite; ele adorava o seu trabalho.
No entanto, o fim da Villa Baciato começou a desenhar-se quando Espártaco e mais sete gladiadores regressaram de um torneio em Larino, no final do mês de Sextilis, no ano em que César deixou Giteu e o serviço de Marco Aurélio para assumir o seu pontificado.
Larino fora uma experiência fascinante, mesmo para oito homens confinados a uma carroça-prisão e agrilhoados do princípio ao fim da viagem, excepto, como é evidente, durante os combates. No final do ano anterior, um dos homens mais proeminentes de Larino, Estácio Álbio Opiânico, fora processado pelo seu enteado, Aulo Cluêncio Hábito, por tentativa de homicídio. O julgamento decorrera em Roma e, graças a ele, Roma ficou a conhecer uma horripilante história de assassínios em massa que se vinham registando há mais de vinte anos. Opiânico, ficou Roma a saber, era responsável pelo assassínio das suas mulheres, dos filhos, irmãos, enteados, primos e outros familiares; cada um destes crimes fora cometido ou encomendado com o objectivo de acumular dinheiro e poder. Amigo de Marco Licínio Crasso, um aristocrata fabulosamente rico, Opiânico quase fora absolvido; o tribuno da plebe Lúcio Quíncio envolveu-se no caso e uma avultada soma fora entretanto distribuída para subornar o júri de senadores. O facto de Opiânico ter sido, afinal condenado devia-se unicamente à avareza do homem que se encarregara dos subornos, o mesmo Caio Élio Estaieno que tão útil fora a Pompeu alguns anos antes — e que ficara com noventa mil sestércios quando Caio António Híbrida o contratara para subornar nove tribunos da plebe. Estaieno era incapaz de cumprir honestamente os mais desonestos dos contratos; por isso, ficou com o dinheiro que Opiânico lhe deu para subornar o júri e deixou que Opiânico fosse condenado.
Larino continuava ainda a falar da perfídia de Opiânico quando os gladiadores se deslocaram à cidade para participar, quase um ano depois, em mais um torneio — é que, durante muitos anos, tinha havido demasiados jogos fúnebres em Larino. Por isso, enquanto comiam, acorrentados a uma mesa, no pátio de uma estalagem local, os gladiadores escutaram com o maior interesse as conversas dos quatro arqueiros que os vigiavam. Embora não estivessem autorizados a falar uns com os outros, era evidente que falavam. O tempo e a muita prática permitiam-lhes manter breves conversas entrecortadas por longos silêncios; por outro lado, um tema como aquele — assassínios em massa entre as classes altas de Larino — constituía uma oportunidade rara para falarem entre si, pois os seus vigilantes estavam tão entusiasmados com a conversa que nem reparavam nos gladiadores.
Apesar dos tremendos obstáculos levantados pela meticulosidade obsessiva de Baciato, Espártaco — um veterano já, pois estava há mais de um ano na Villa Baciato — ia lentamente reunindo todas as peças necessárias para lançar uma evasão de todos os gladiadores — e o assassínio de todos aqueles que os oprimiam. Já conhecia toda a gente e aprendera a comunicar com pessoas que não podia ver diariamente — ou mesmo mensalmente. Se Baciato criara uma complicada teia que impedia as suas prostitutas e os seus gladiadores de se conhecerem bem, Espártaco construíra uma teia igualmente complicada, que permitia que as prostitutas e os gladiadores passassem entre si ideias, informações e comentários, favoráveis ou críticos. De facto, o sistema de Baciato permitira que Espártaco fizesse um uso positivo destes contactos forçosamente indirectos; um uso positivo, porque as diversas personalidades envolvidas, com tão poucos contactos, dificilmente entrariam em choque, e porque, num tal contexto, ninguém pensaria em suplantar Espártaco como chefe da anunciada revolta.
Espártaco começara a apalpar o terreno no início do Verão e agora, no fim do Verão, os seus planos estavam já claramente definidos. Todos os gladiadores, sem excepção, tinham concordado em participar na insurreição, caso Espártaco conseguisse arquitectar uma evasão em massa; quanto às prostitutas — uma parte vital do plano de Espártaco —, não podiam estar mais de acordo.
Havia dois desertores romanos que compreendiam tão bem como Espártaco a disciplina e os métodos militares. Através da sua rede de informações, Espártaco nomeara-os seus legados no processo de evasão. Eram lutadores gauleses e tinham adoptado os nomes de Crixo e Enómao, porque o público detestava que os gladiadores usassem nomes latinos — isso fazia lembrar às pessoas que a maior parte dos heróis da arena eram desertores romanos. Por um acaso, Crixo e Enómao encontravam-se com Espártaco em Larino, uma dádiva para este último, já que assim pudera adiar por uns dias a data da sua projectada insurreição.
A revolta seria lançada oito dias depois do regresso de Larino, fosse qual fosse o número de gladiadores presentes na Villa Baciato. Como esse era o dia depois das nundinae, era natural que tal número fosse alto, já que Baciato tinha o hábito de reduzir os seus contratos durante o mês de Setembro, a fim de tirar férias e visitar Filipe.
A sacerdotisa trácia, Aluso, tornara-se a mais fervorosa aliada de Espártaco; certa noite, já depois de todos terem concordado com a conjura, os homens que estavam na mesma cela que Espártaco conseguiram, com a ajuda das outras mulheres, que Espártaco e Aluso passassem toda a noite juntos. com vozes sumidas, o gladiador e a prostituta discutiram os inúmeros factores envolvidos e Aluso jurou que, através da acção das suas mulheres, manteria todos os gladiadores num estado de febril entusiasmo. Desde o princípio do Verão que Aluso vinha roubando, para Espártaco, os mais diversos utensílios de cozinha. E com tal astúcia o fez que, quando se deu pela falta desses utensílios, foi um dos cozinheiros que foi considerado responsável. Nunca ninguém suspeitaria de uma revolta dos gladiadores. Um cutelo de açougueiro, uma pequena faca de trinchar, um rolo de cordel forte, um jarro de vidro desfeito em bocados, um gancho de pendurar carne. Eram armas modestas — mas chegavam bem para oito homens. Armas que as mulheres guardavam nos seus aposentos, que elas próprias limpavam. Porém, na noite anterior à revolta, as mulheres escolhidas para visitar a cela de Espártaco levavam tais utensílios escondidos sob as escassas roupas; Aluso não se encontrava entre elas.
A madrugada começava a dar lugar ao alvorecer. Os oito homens iam deixar a sua cela, supostamente para comerem a primeira refeição do dia. Vestindo apenas tangas, os gladiadores não podiam trazer nenhuma arma escondida; no entanto, dentro das tangas escarlates, cada homem trazia um cordel com cerca de um metro de comprimento. O arqueiro, um doctor e dois ex-gladiadores que agora trabalhavam como jardineiros foram estrangulados tão rapidamente que a porta de ferro da cela nem chegou a fechar-se; Espártaco e os seus sete companheiros foram então buscar as armas às suas camas e espalharam-se num ápice pelas outras celas, abrindo-as com as chaves roubadas ao arqueiro. Cada grupo de gladiadores tinha-se demorado a levantar-se da cama e, por isso, nenhum deles tinha ainda saído das celas antes de os oito colegas, no mais total silêncio, lá chegarem. com algumas cutiladas e facadas — ou mesmo com um bocado de vidro retalhando uma garganta —, os oito gladiadores foram avançando e distribuindo as oito porções de cordel.
Tudo foi feito sem uma palavra, um grito, uma advertência; Espártaco e os outros gladiadores controlavam já todas as celas e todos os pátios. Alguns dos homens mortos tinham chaves. com essas chaves, foram sendo abertas mais e mais portas naquele longo labirinto; os setenta homens que estavam encarcerados na Villa Baciato não paravam de avançar, sempre em silêncio. Havia um abrigo onde eram guardados machados e ferramentas; um golpe rápido e silencioso e os revoltosos puderam apoderar-se de tudo o que estava guardado nesse abrigo. A fortaleza de Baciato tinha afinal um defeito terrível: as paredes interiores, muito altas, impediam que a revolta transpirasse para outras secções — só se apercebiam dela os homens que estavam por perto, e esses eram logo mortos. Baciato deveria ter erigido torres de vigilância e posto lá os seus arqueiros.
O alarme foi dado quando os homens chegaram às cozinhas. Mas já era demasiado tarde. Armados com todos os instrumentos pontiagudos que havia nas cozinhas, os gladiadores usavam ainda tampas de panelas para se protegerem das setas. E não poupavam ninguém que desse sinais de vida. Incluindo Baciato, que pensara partir para férias no dia anterior, mas que afinal ficara porque encontrara um erro na sua contabilidade. Os homens mantiveram-no vivo até ele libertar as mulheres; mas então é que foi o fim de Baciato — as mulheres avançaram para ele e todas elas, sob a meticulosa direcção de Aluso, desferiram um golpe no homem que durante tanto tempo as oprimira; Aluso, rejubilando, trespassou-lhe por fim o coração.
Nascia o Sol e Espártaco e os seus sessenta e nove companheiros tinham já conquistado a Villa Baciato. Apossaram-se então de todas as armas existentes e jungiram bois ou mulas a todas as carroças. Os alimentos das cozinhas e todas as armas que não podiam empunhar foram guardados nas carroças, os portões principais foram abertos e a pequena expedição avançou corajosamente para a liberdade.
Conhecendo bem a Campânia, Espártaco não limitara o seu plano à conquista da Villa Baciato. Esta ficava perto da estrada entre Cápua e Nola, a cerca de dez quilômetros da primeira dessas cidades; Espártaco afastou-se de Cápua e rumou na direcção de Nola. Passado algum tempo, encontraram um outro comboio de carroças e atacaram-no, unicamente porque não queriam que houvesse testemunhos vivos da sua passagem. Para deleite de todos, as carroças estavam cheias de armas e armaduras que iam para outra escola gladiatorial. Havia agora muito mais armas que guerreiros.
Algum tempo depois, deixaram a estrada principal e seguiram por um caminho que levava até ao monte Vesúvio.
Vestindo a jaqueta, coberta de escamas metálicas, de um arqueiro, e empunhando um sabre trácio, Aluso foi juntar-se a Espártaco à frente da coluna. Limpara o sangue do seu sabre, mas continuava a recordar com o maior prazer a morte horrenda que infligira a Baciato.
— Pareces Minerva — disse-lhe Espártaco, sorrindo; o gladiador não encontrara nenhuma razão para criticar a forma como Aluso executara Baciato.
— Pela primeira vez em dez anos, posso dizer que me sinto bem. — E, dizendo isto, agitou a enorme saca de couro que trazia à cintura; na saca, vinha a cabeça de Baciato, que ela tencionava escarificar, transformando depois a caveira na sua taça, como era costume entre a sua tribo.
— Se estiveres de acordo, serás a minha mulher. Só minha.
— Estarei de acordo, se me deixares participar nos teus conselhos de guerra.
Falavam em grego, pois Aluso não sabia latim. E falavam com o à-vontade de duas pessoas que tinham desfrutado do corpo uma da outra sem qualquer envolvimento emocional, com o prazer novo da liberdade, com o prazer novo de se verem sem grilhetas e sem olhos ameaçadores a vigiá-los.
O Vesúvio era marcadamente diferente de todos os outros picos. Ficava situado, num soberbo isolamento, no meio das suaves e ricas planícies da Campânia, não muito longe das praias da baía de Cráter, e, ao longo dos primeiros novecentos metros de altitude, as encostas enchiam-se de vinhedos, pomares, campos de trigo ou legumes; havia água com fartura e o solo erabom para o cultivo. Porém, acima dessas encostas, erguia-se uma torre rochosa e retalhada, onde medravam apenas escassas árvores, aquelas que tinham força para implantar as raízes em gretas secas; até ao cume, não havia sinal de cultivo ou habitação.
Espártaco conhecia a montanha como a palma da sua mão. A quinta do pai ficava no flanco oeste e ele e o irmão mais velho tinham brincado durante anos nos penhascos que conduziam ao pico. Por isso, encaminhou o seu novo povo para essas fragas, até que chegou a uma concavidade situada entre os rochedos do lado norte da montanha. As paredes dessa concavidade eram abruptas e era difícil fazer descer as carroças; porém, lá no fundo, a erva crescia muito viçosa e havia espaço para toda aquela gente e muito mais. Manchas amarelas de enxofre espalhavam-se pelas ravinas escarpadas e, de um pequeno monte situado no meio da concavidade, vinha um cheiro fétido; no entanto, isso significava que aqueles pastos nunca tinham dado de comer aos animais e que os pastores nunca levavam para lá os seus rebanhos. Acreditava-se que aquele local estava assombrado — mas Espártaco nada disse aos seus seguidores.
Durante várias horas, tratou de organizar o acampamento, de construir abrigos com as pranchas das carroças; às mulheres, mandou-as preparar comida, aos homens distribuiu tarefas variadas. Mas quando o Sol deixou de iluminar o esconderijo, reuniu toda a sua gente.
— Crixo e Enómao, venham para o meu lado — disse ele. — Aluso, vem sentar-te aos meus pés, pois és a chefe das mulheres, a nossa sacerdotisa e a minha mulher. Os outros ficam onde estão.
Subindo a uma rocha, para ficar mais alto que Crixo e Enómao, Espártaco deu início ao seu discurso.
— Por ora estamos livres. Mas não devemos esquecer que, de acordo com a lei, somos escravos. Matámos os vigilantes e o nosso amo e, quando as autoridades descobrirem, seremos perseguidos. Nunca tivemos oportunidade de estar reunidos assim, como se fôssemos um povo, e de discutir os nossos objectivos, o nosso destino, o nosso futuro.
Respirou fundo e prosseguiu:
— Em primeiro lugar, não manterei aqui nenhum homem ou mulher contra sua vontade. Aqueles que desejarem seguir o seu próprio caminho poderão ir-se embora quando quiserem. Não peço votos nem juramentos, não quero cerimónias de juramento de fidelidade. Nós fomos prisioneiros, sentimos durante muito tempo o peso das grilhetas, não tivemos os privilégios que são concedidos aos homens livres, e as mulheres foram obrigadas a prostituir-se. Por isso, não farei nada para vos prender. Este é um abrigo temporário. Mais tarde ou mais cedo teremos de deixá-lo. Viram-nos a subir a montanha e a notícia da nossa proeza em breve se espalhará.
Um gladiador que estava na fila da frente, agachado, ergueu a mão para falar. Espártaco não sabia o seu nome.
— Eu sei que seremos perseguidos — disse o homem, de sobrolho franzido. — Por isso, não seria melhor dispersarmos? Se nos espalhássemos por muitas direcções, podia ser que pelo menos alguns conseguissem escapar. Se nos mantivermos juntos, seremos capturados em bloco.
Espártaco aquiesceu.
— É verdade o que dizes. No entanto, não defendo essa posição. E porquê? Principalmente, porque não temos dinheiro, não temos outras roupas senão as que Baciato nos deu — e quem nos vir com estas roupas, identificar-nos-á imediatamente —, e a única ajuda de que dispomos está nas armas que possuímos. E essas armas, se nós dispersarmos, serão perigosas. Baciato não tinha dinheiro na fortaleza. Nem um único sestércio. Mas o dinheiro é uma necessidade vital, e creio que temos de permanecer juntos até termos dinheiro.
— E como vamos fazer isso? — perguntou o mesmo homem. Espártaco sorriu para ele com um sorriso que era simultaneamente triste e encantador.
— Não faço a mínima ideia! — retorquiu ele, com a maior franqueza. — Se estivéssemos em Roma, podíamos roubar alguém. Mas estamos na Campânia, uma região de agricultores que guardam todo o seu dinheiro em bancos ou que o enterram em sítios inimagináveis. — Abriu muito as suas mãos, num apelo, e acrescentou: —vou dizer-lhes o que acho que devíamos fazer. Terão um dia para pensar. Amanhã, a esta mesma hora, reuniremos e votaremos.
Tão confusos como todos os outros, Crixo e Enómao aquiesceram vigorosamente.
— Diz-nos o que pensas, Espártaco — pediu Crixo.
A luz do dia ia desfalecendo lentamente, mas Espártaco, em cima do seu rochedo, parecia concentrar os últimos raios do sol à sua volta. Quem olhasse para ele, naquele instante, não teria dúvidas: sim, aquele era de facto um chefe, um homem determinado, seguro, forte, alguém em quem todo um povo podia confiar.
— Todos conhecem o nome de Quinto Sertório — disse ele. — Um romano em revolta contra o sistema que produz homens como Baciato. Quinto Sertório tem a Hispânia nas mãos e, em breve, marchará sobre Roma, onde será o Ditador e definirá um novo tipo de República. Sabemos disso porque, em todos os locais onde disputámos torneios, toda a gente falava de Sertório. E ficámos também a saber que há muita gente em Itália que quer Quinto Sertório à frente de Roma. Especialmente os Samnitas.
Fez uma pausa, molhou os lábios e logo prosseguiu:
— Eu sei o quevou fazer!vou para a Hispânia juntar-me a Quinto Sertório. Mas, se for possível, levar-lhe-ei mais um exército — um exército que já combateu contra a Roma de Sila e dos seus herdeiros.vou recrutar soldados entre os Samnitas, os Lucanianos e todos os outros povos de Itália que preferem ver uma nova Roma a ver a sua herança reduzir-se a nada. Recrutarei também soldados entre os escravos da Campânia e oferecer-lhes-ei a cidadania romana na Roma de Quinto Sertório. Temos mais armas do que homens — a menos que recrutemos mais homens. E quando Roma mandar tropas para nos combater, derrotá-las-emos e apossar-nos-emos das suas armas!
Espártaco encolheu os ombros.
— Não tenho nada a perder a não ser a vida e jurei que nunca mais me submeteria à vida a que Baciato me obrigou. Um homem — até mesmo um escravo! — deve ter direito a associar-se livremente com os seus companheiros, deve ter direito a mover-se livremente no mundo. A prisão é pior do que a morte. E eu nunca mais voltarei para a prisão! Para nenhuma prisão!
Emocionado, Espártaco começou a chorar, mas tratou logo de limpar as lágrimas.
— Eu sou um homem e deixarei a minha marca neste mundo! Mas todos vós deviam estar a dizer isto mesmo, neste momento! Se nos mantivermos juntos e formarmos o núcleo de um exército, teremos hipóteses de nos defendermos a nós mesmos e de deixarmos uma grande marca neste mundo. Se dispersarmos, teremos de fugir, de fugir sempre. E porque havemos de fugir como veados, se podemos marchar como homens? Porque não havemos de lutar por um lugar na Roma de Quinto Sertório, abrindo-lhe as portas da Itália e indo ter com ele quando ele avançar para a nossa península? Nós sabemos que Roma tem poucas tropas em Itália. Quem não ouviu os Capuanos queixar-se de que os seus proveitos baixaram muito desde que os acampamentos dos legionários se esvaziaram? Quem poderá deter-nos? Eu fui em tempos tribuno militar. Crixo, Enómao e muitos outros pertenceram às legiões romanas. Será que eu, ou Crixo, ou Enómao, ou qualquer um de vós, sabe menos da condução de um exército do que um Lúculo ou um Pompeu Magno? Não é assim tão difícil dirigir um exército! Por isso, por que razão não havemos nós de formar um exército? As vitórias serão fáceis! Não há legiões veteranas em Itália, apenas coortes de soldados inexperientes. Nós é que atrairemos os soldados experientes, os Samnitas e os Lucanianos que lutaram para se libertar de Roma. E treinaremos os homens inexperientes que se juntarem a nós — será que um escravo é, necessariamente, um homem sem capacidades marciais ou coragem? Por várias vezes, exércitos de escravos quase derrotaram Roma; e só não derrotaram porque não eram chefiados por homens que entendiam a forma como Roma luta. Porque não eram chefiados por romanos!
Os seus poderosos braços erguiam-se acima da cabeça; Espártaco cerrou então os punhos e brandiu-os.
— Eu conduzirei o nosso exército! E eu levá-lo-ei à vitória! E fá-lo-ei chegar a Quinto Sertório premiado com os louros da vitória e com Roma e a Itália completamente dominadas! — Espártaco baixou os braços e disse, por fim: — Pensei no que vos disse e não me perguntem mais nada.
A pequena multidão de gladiadores e mulheres nada disse quando Espártaco desceu da rocha; mas todos os olhares o seguiam com admiração e Aluso sorriu para ele cheia de orgulho.
— Eles vão votar a teu favor — disse ela.
— Sim, creio que vão.
— Então vem comigo até à nascente. Ela precisa de ser purificada, se queremos que dê de beber a muita gente.
Espártaco não percebia se Aluso compreendia inteiramente o que estava a fazer. Mas foi com assombro que descobriu que, depois dela ter murmurado as suas rezas e escavado com a mão que cortara a Baciato nas paredes da fonte quente e fétida que jorrava de uma fissura, uma segunda nascente surgiu — uma nascente de água fresca, saborosa, capaz de saciar toda aquela gente.
— É umbom augúrio — disse Espártaco.
Em vinte dias, mil voluntários tinham-se juntado naquela concavidade perto do cume do Vesúvio. Para Espártaco, o facto de a notícia se ter espalhado tão rapidamente constituía um mistério insolúvel, pois não mandara mensageiros, nem equipas de recrutamento, às regiões vizinhas. Um décimo desses voluntários seriam talvez escravos que haviam fugido aos seus amos; mas a grande maioria era constituída por homens livres de nacionalidade samnita. Nola não ficava longe e Nola odiava Roma. Tal como Pompeios, Nápoles e todas as outras cidades italianas que tinham lutado até à morte contra Sila, primeiro na Guerra Italiana e, posteriormente, nas hostes de Pôncio Telesino. Roma podia abandonar a ideia de que tinha esmagado o Sâmnio; Roma só esmagaria o Sâmnio, pensava Espártaco enquanto registava na sua lista de recrutamento uma série infindável de nomes samnitas, quando morresse o último samnita. Muitos deles traziam já armadura e armas, muitos deles eram veteranos que cuspiam ao ouvir o nome de Sila ou que faziam um gesto para afastar o mau-olhado quando ouviam os nomes de Cetego e de Verres, os dois homens que tinham reduzido a cinzas as terras samnitas.
— Há uma coisa que te quero mostrar — disse Crixo a Espártaco, com alguma impaciência na voz, na manhã do último dia de Setembro.
Espártaco, que estava a treinar uma centúria de escravos, chamou outro gladiador para o substituir e afastou-se com Crixo, que lhe puxava ansiosamente pelo braço.
— Que se passa? — perguntou.
— É melhor seres tu a ver — disse Crixo, conduzindo Espártaco até uma fenda na parede da cratera, de onde se podia abarcar as encostas norte do Vesúvio.
Duas sentinelas samnitas viraram-se, com um ar excitado, para o chefe.
— Olha! — disse um dos vigilantes.
Espártaco olhou. Imediatamente aos seus pés, o aspecto selvagem e muito pouco hospitaleiro das fragas e fendas daquela zona da montanha; mais abaixo, os campos cultivados. E, ao longo dos trigais, serpenteava uma coluna de soldados romanos, conduzidos por quatro homens, montando cavalos e usando capacetes áticos e armaduras de oficiais superiores; um desses homens vinha isolado e usava a faixa escarlate do império, ritualmente atada, à volta do peito cintilante.
— Ora muito bem! Mandaram um pretor combater-nos! — disse Espártaco, com um risinho.
— Quantas legiões? — perguntou Crixo, preocupado. Espártaco olhou para Crixo, surpreendido.
— Legiões?! Tu foste legionário, Crixo, devias saber!
— O problema é esse! Eu fui legionário. Quando se é legionário, nunca se sabe que aspecto tem uma legião.
Espártaco sorriu e, com um gesto afectuoso, despenteou o amigo.
— Tem calma, ali em baixo vem apenas meia legião: cinco coortes de recrutas inexperientes. Os mais inexperientes que já vi. Repara como eles estão mal formados: não conseguem manter uma distância uniforme entre si, nem seguir em linha recta! Mas o mais importante é que o seu chefe é tão inexperiente como eles! Estás a vê-lo atrás dos seus três legados? É um sinal mais que seguro! Um general confiante vai sempre à frente do seu exército.
— Cinco coortes? Isso dá pelo menos dois mil e quinhentos homens.
— Cinco coortes que nunca pertenceram a uma legião, Crixo.
—vou mandar tocar a reunir.
— Não, fica aqui comigo. Deixa-os pensar que nós não os vimos. Se eles ouvem cornetins e gritos, param e acampam na zona mais verdejante da encosta. Mas se pensarem que nós não demos por eles, o idiota que os comanda só parará quando chegar aos rochedos e perceber que não poderá acampar aí. Mas nessa altura já será demasiado tarde para voltar a formar e descer a montanha — terão de dormir aos grupinhos, espalhados pelas covas entre os rochedos! Imbecis! Se tivessem vindo pelo lado sul, poderiam ter encontrado o caminho que conduz à nossa cova.
Ao cair da noite, Espártaco tinha já concluído, sem a mínima dúvida, que a expedição punitiva era constituída por recrutas inexperientes e que o general era um pretor chamado Caio Cláudio Glabro; o Senado ordenara-lhe que levasse cinco coortes de Cápua — e que marchasse até encontrar os rebeldes; então, deveria expulsá-los do seu esconderijo vesuviano.
Ao alvorecer, a expedição punitiva já não existia. Ao longo da noite, Espártaco enviara pequenos grupos de guerrilha até às fragas, alguns mesmo recorrendo ao uso de cordas, para que matassem rapidamente e sem barulho. Tão inexperientes eram os recrutas romanos que tinham arrumado armaduras e armas antes de se deitarem junto às fogueiras; e as fogueiras indicavam ao inimigo o local exacto onde dormiam. E tão inexperiente era Caio Cláudio Glabro que pensou que aquelas fragas escarpadas ofereciam mais protecção que um acampamento em condições. Já para o fim da madrugada, alguns dos soldados mais despertos começaram a perceber o que se passava e deram o alarme. E foi então que começou a debandada.
Espártaco atacou-os em força, recorrendo às mulheres para iluminarem o caminho com archotes. Metade dos soldados de Glabro morreram, a outra metade fugiu — deixando armas e armaduras. Entre os fugitivos, encontravam-se Glabro e os seus três legados.
Para o esconderijo seguiram dois mil e oitocentos equipamentos de infantaria; Espártaco mandou que os seus homens despissem os trajes de gladiador e vestissem os trajes de legionários; por outro lado, juntou o comboio de bagagens de Glabro aos seus animais e carroças. Os voluntários não paravam de chegar e a maior parte eram soldados treinados; quando o total dos seus soldados chegou aos cinco mil, Espártaco decidiu que a cova do Vesúvio já não servia e que teria de mudar de esconderijo.
E Espártaco sabia perfeitamente para onde devia ir.
Assim, quando os pretores Públio Varínio e Lúcio Cossínio saíram com duas legiões do quartel de Cápua e meteram pela estrada de Nola, não demoraram muito tempo a encontrar uma fortificação romana extremamente bem construída, não muito longe da devastada Villa Baciato. Varínio, o comandante máximo, era um homem experiente nas coisas da guerra. Tal como Cossínio, o segundo comandante. Tinha-lhes bastado olhar para os seus soldados para ficarem horrorizados: aqueles homens não tinham a mínima experiência guerreira, já que só agora tinham começado o treino básico! Para tornar a missão dos pretores ainda mais difícil, o tempo estava frio, húmido e ventoso; e, pior ainda, uma virulenta infecção respiratória tinha-se propagado entre as suas hostes. Quando Varínio viu aquela magnífica fortificação perto da estrada de Nola, concluiu imediatamente que pertencia aos rebeldes — mas concluiu também que os seus soldados não seriam capazes de atacá-la. Daí que tenha instalado as duas legiões num acampamento, perto dos rebeldes.
Aos ouvidos de Roma não tinha ainda chegado o nome do chefe dos rebeldes, nem quaisquer outros pormenores; Roma sabia apenas que os amotinados tinham arrasado a escola de gladiadores de Cneu Cornélio Lêntulo Baciato (que, nos livros, aparecia como seu proprietário), que se tinham refugiado depois no monte Vesúvio e que tinham engrossado as suas hostes com alguns milhares de samnitas e lucanianos descontentes, e também com escravos. O infeliz Glabro tinha vindo com a notícia de que os rebeldes tinham ficado com todos os seus equipamentos e que teriam forçosamente de ter umbom chefe, pois haviam dizimado as suas cinco coortes com a maior facilidade.
No entanto, recorrendo ao trabalho de cuidadosos e experimentados batedores, Varínio e Cossínio puderam concluir que a força rebelde não ultrapassava os cinco mil homens e que, no acampamento, havia também algumas mulheres. Na manhã seguinte, sentindo-se mais animado, Varínio ordenou às duas legiões que formassem para batalha. Mesmo com soldados doentes, tinha muito mais homens que o inimigo — a vitória não seria difícil. Entretanto, continuava a chover impiedosamente.
Quando a batalha terminou, Varínio não sabia a que atribuir a sua derrota — se ao profundo terror que a visão dos rebeldes tinha causado aos seus homens, se à doença que levara muitos dos seus legionários a recusar-se a combater, queixando-se de que, pura e simplesmente, não podiam combater. O pior de todos os golpes foi que Cossínio morrera ao tentar reunir um grupo de soldados que procuravam desertar — sem esquecer o facto de que os rebeldes tinham levado do acampamento romano muito equipamento bélico. Não valia a pena perseguir os rebeldes, os quais, mal se asseguraram da vitória, recolheram à sua fortificação. Varínio reuniu a sua enlameada e desmoralizada coluna e regressou a Cápua, onde escreveu ao Senado com a maior das franquezas, sem poupar críticas à sua própria pessoa — mas também sem poupar críticas ao Senado. Em Itália, afirmava, não havia tropas com experiência de guerra. Ou melhor, as únicas que a tinham eram as tropas rebeldes.
E Varínio tinha um nome para ilustrar o seu relatório: Espártaco, um gladiador trácio.
Ao longo de seis intervalos entre mercados, Varínio concentrou-se no treino dos seus miseráveis soldados; muitos tinham sobrevivido à batalha, embora parecesse menos provável que sobrevivessem à infecção respiratória que continuava a assolá-los. Requisitou os serviços de alguns dos centuriões veteranos de Sila para o ajudarem nos treinos, embora não conseguisse convencê-los a alistar-se. O Senado achou prudente começar a recrutar mais quatro legiões e garantiu a Varínio que podia contar com o seu apoio relativamente a todas as medidas que decidisse tomar. Um quarto pretor do grupo de oito pretores desse ano foi enviado por Roma com o cargo de legado sénior de Varínio: Públio Valério. Um pretor fugira, outro morrera, outro fora vencido; o quarto não se sentia propriamente feliz.
Em fins de Novembro, Varínio considerou que os seus homens já tinham preparação suficiente para iniciar as operações e conduziu-os na direcção da fortificação de Espártaco. A qual estava totalmente deserta. Espártaco tinha-se escapulido: mais uma indicação de que era um militar e de que conhecia os processos bélicos romanos. A doença continuava a perseguir as hostes do pobre Varínio. Enquanto conduzia as suas duas legiões para Sul, várias coortes viram-se obrigadas a abandonar a marcha. Os centuriões podiam apenas prometer que apanhariam o grosso da coluna logo que os seus homens se sentissem melhor. Perto de Picência, do outro lado do rio Sílaro, deu finalmente com os rebeldes: mas logo descobriu, horrorizado, que a legião de Espártaco se havia transformado num verdadeiro exército. Há menos de dois meses, eram apenas cinco mil — agora eram vinte e cinco mil! Não se atrevendo a atacar, Varínio não pôde fazer outra coisa senão seguir com o olhar os movimentos daquele portentoso exército. Depois de ter atravessado o Sílaro, Espártaco rumou à Lucânia, usando a Via Popília.
Quando as coortes doentes regressaram ao grosso da coluna e os homens começaram a dar sinais de uma efectiva recuperação, Varínio e Valério discutiram a estratégia a seguir. Deveriam seguir os rebeldes até à Lucânia ou regressar a Cápua, onde passariam o Inverno treinando um exército maior?
— Aquilo que tu queres dizer — disse Valério — é se devemos enfrentá-los agora, apesar de eles serem muitos mais, ou se devemos obter mais homens durante o Inverno e adiar o confronto para a Primavera, o que, tendo em conta os números, seria mais sensato.
— Creio que não temos alternativa — retorquiu Varínio. — Temos de segui-los agora. Na Primavera, já devem ter duplicado e todos os homens que atraírem entretanto às suas hostes serão, pela certa, veteranos lucanianos.
Varínio e Valéria seguiram efectivamente os rebeldes, mesmo quando tudo indicava que Espártaco tinha deixado a Via Popília e penetrado nas agrestes montanhas da Lucânia. Durante oito dias seguiram os rebeldes, montando um acampamento seguro todas as noites — essa era a alternativa mais prudente, ainda que significasse um duro trabalho para os soldados.
Ao fim do nono dia, começaram também a montar um acampamento, apesar das queixas dos homens que, dada a sua pouca experiência, não entendiam a necessidade ou as vantagens de um acampamento seguro. E, enquanto uma parte dos soldados de Varínio construía muralhas com a terra escavada pelos outros, Espártaco atacou. Dispondo de muito menos soldados e apanhado de surpresa, Varínio não teve outra hipótese senão retirar; para trás, deixava o seu Cavalo Público, primorosamente ajaezado, e a maior parte dos seus soldados. Das dezoito coortes com que partira de Cápua, apenas cinco regressaram da Lucânia; depois de atravessar de novo o Sílaro, mas desta feita na direcção da Campânia, Varínio e Valério deixaram estas cinco coortes de vigia ao rio, sob o comando de um questor, Caio Torânio.
Os dois pretores deslocaram-se então a Roma, a fim de exortarem o Senado a treinar mais homens e o mais rapidamente possível. A situação estava a tornar-se cada vez mais grave, mas, encontrando-se Lúculo e Marco Cota no Oriente e Pompeu na Hispânia, muitos dos senadores achavam que o processo de recrutamento era uma pura perda de tempo. O poço italiano estava seco. Até que, em Janeiro, chegou a Roma a notícia de que Espártaco deixara a Lucânia com quarenta mil homens, organizados em oito eficientes legiões. Os rebeldes tinham destroçado as tropas de Caio Torânio — todos os homens tinham morrido nas margens do Silário. A Campânia ficava assim à mercê de Espártaco, o qual, segundo o relatório de Varínio, procurava agora convencer as cidades com populações maioritariamente samnitas a aliar-se à sua revolta e a declarar guerra por uma Itália livre.
Os tribunos do Tesouro foram aconselhados a deixar-se de queixas e a reunir rapidamente o dinheiro necessário para atrair os veteranos retirados às hostes romanas. O pretor Quinto Arrio (que fora nomeado para substituir Caio Verres no governo da Sicília) recebeu instruções para se deslocar imediatamente a Cápua e para começar a organizar um verdadeiro exército consular, constituído por quatro legiões e fortalecido, tanto quanto possível, por elementos veteranos. Os novos cônsules, Lúcio Gélio Poplicola e Cneu Cornélio Lêntulo Clodiano, receberam formalmente o comando da guerra contra Espártaco.
Espártaco foi gradualmente sabendo destas novidades desde o momento em que regressou à Campânia. Como o seu exército continuava a crescer, aprendera a consolidá-lo durante as marchas, formando e treinando novas coortes à medida que ia avançando. Sofrerá uma baixa importante: Enómao fora morto durante o bem sucedido ataque ao acampamento de Varínio e Valério. No entanto, Crixo continuava vivo e havia já uma boa fornada de novos legados. O Cavalo Público que pertencera a Varínio fazia uma bela montada para um comandante supremo! Um verdadeiro espectáculo! Todas as manhãs, Espártaco beijava-lhe o focinho e acariciava-lhe a crina cor de prata; chamava-lhe Baciato.
Seguro de que cidades como Nola e Nucéria se aliariam à sua causa, enviara embaixadores para conferenciarem com os seus magistrados, explicando-lhes que era sua intenção ajudar Quinto Sertório a fundar uma nova República Italiana e pedindo donativos em dinheiro, equipamentos e homens. Mas a resposta daquelas cidades foi clara — nenhuma cidade da Campânia ou de qualquer outra região de Itália apoiaria a causa de Quinto Sertório, nem tão-pouco a causa de Espártaco, o general gladiador.
— Nós não gostamos dos Romanos — retorquiram os magistrados de Nola. — E temos orgulho no facto de termos sido a cidade que mais tempo resistiu a Roma. Mas não queremos mais guerras. Nunca mais. A nossa prosperidade desapareceu, os nossos jovens morreram. Não vos apoiaremos contra Roma.
Quando soube a resposta de Nucéria — idêntica à de Nola —, Espártaco reuniu com Crixo e Aluso.
— Saqueia essas cidades — disse a sacerdotisa trácia. — Ensina-lhes que é mais sensato apoiarem-nos.
— Eu concordo — disse Crixo —, mas por outras razões. Nós temos quarenta mil homens, equipamentos que bastem para todos eles e comida em fartura. Mas não temos mais nada, Espártaco. Está muito certo que prometamos às nossas tropas distinções e riquezas sob o governo de Quinto Sertório, mas talvez fosse melhor dar-lhes alguma dessa riqueza imediatamente. Se saquearmos uma só das cidades que se recusam a apoiar-nos, deixaremos todas as outras cidades cheias de medo — e as nossas legiões ficarão contentes! Mulheres, pilhagens — não há um soldado só que não goste de saquear cidades!
Espicaçado por tais comentários, que entendia como uma rejeição, Espártaco decidiu-se mais rapidamente do que o velho Espártaco dos tempos pré-gladiatoriais teria feito; mas essa fora uma vida diferente e ele um outro homem.
— Muito bem. Atacaremos Nucéria e Nola. Diz aos soldados que ataquem sem mercê.
E os soldados assim fizeram. Examinando os resultados, Espártaco decidiu que saquear cidades era uma boa coisa. Nucéria e Nola tinham-lhe dado vários tesouros, bem como dinheiro, comida e mulheres; se continuasse a saquear cidades, poderia ofertar a Quinto Sertório uma fortuna imensa, para além de um exército! E, se assim fizesse, era mais que provável que Quinto Sertório, o Ditador de Roma, o nomeasse seu Senhor do Cavalo.
Portanto, essa imensa fortuna teria de ser obtida antes que deixasse a Itália. Ao seu exército continuavam a afluir multidões ansiosas por combater ao seu lado; e muitos desses homens traziam boas notícias, pois conheciam regiões ricas da Lucânia, do Brútio e da Campânia que não tinham sido afectadas pela Guerra Italiana e que, portanto, proporcionariam óptimos saques. Assim, os rebeldes deixaram a Campânia e seguiram para Sul, onde saquearam Consência, no Brútio, e Túrio e Metaponto, no golfo de Tarento. Para grande deleite de Espártaco, estas três cidades possuíam riquezas impressionantes.
Quando Aluso concluíra a escarificação da caveira de Baciato, Espártaco dera-lhe uma folha de prata para a forrar; porém, depois do saque de Consência, Túrio e Metaponto, disse-lhe que deitasse fora a prata e que a substituísse por ouro. E havia uma certa sedução em tudo isto — tal como a omnipresente sedução de Aluso, que pensava como uma bárbara mas possuía uma magia tremenda e acabara por ser como que um talismã para o chefe rebelde. Enquanto tivesse Aluso a seu lado, seria um dos favoritos de Fortuna.
Sim, ela era uma mulher maravilhosa. Descobria nascentes, pressentia o perigo, dava-lhe sempre os conselhos certos. Agora que ela estava grávida, e que a sua boca carnuda e muito vermelha contrastava, mais do que nunca, com o cabelo cor de linho e os olhos tão pálidos e selvagens como os de um lobo, Espártaco achava-a perfeita. Era apenas por isso que a achava perfeita e não por ela ser trácia e por ele se ter tornado trácio. Pertenciam um ao outro; ela era a personificação daquela nova e estranha vida do antigo gladiador.
Em princípios de Abril, penetrou no Sâmnio Oriental, seguro de que pelo menos aí as cidades o apoiariam. Mas Asérnia, Boviano, Benevento e Sepino rejeitaram as suas propostas — não aderimos à tua causa, não te queremos, vai-te embora! E, ainda por cima, eram cidades pobres, não valia a pena saqueá-las. Verres e Cetego não tinham deixado nada. No entanto, o seu exército continuava a receber samnitas. De tal modo que conta já com um total de noventa mil homens.
E Espártaco começava a perceber que era difícil controlar e organizar tanta gente. Embora as tropas se encontrassem distribuídas por legiões à maneira romana e estivessem armadas ao estilo romano, o seu chefe não encontrava legados e tribunos capazes de manter uma mão de ferro perante a indisciplina dos soldados, os efeitos do vinho, ou as lutas terríveis que as mulheres que acompanhavam o acampamento sempre provocavam. Era tempo — decidiu então — de marcharem para a Gália Italiana, para a Gália Transalpina, e, finalmente, para a Hispânia Citerior e Quinto Sertório. Não seguiria na direcção dos Apeninos Ocidentais — não tinha o mínimo desejo de se aventurar por regiões próximas de Roma. Subiria o litoral adriático, através de regiões que tinham combatido duramente o poder de Roma — as regiões onde viviam os Marrucinos, os Vestinos, os Frentanos, os Picentinos do Sul. Muitos dos membros destes povos juntar-se-iam ao seu exército!
Mas Crixo não queria ir para a Hispânia Citerior. Tal como os trinta mil homens da sua divisão do exército.
— Por que raio havemos de ir para tão longe? — perguntou. — Se é verdade o que dizes sobre Quinto Sertório, então mais tarde ou mais cedo ele acabará por chegar à Itália. É preferível que eles nos encontre ainda em Itália, com o nosso pé sobre o pescoço romano. A distância daqui a Hispânia é quase de mil quilômetros e teremos de passar por tribos de bárbaros, para quem nós não seremos mais do que outro exército romano. Os meus homens e eu opomo-nos à ideia de deixarmos a Itália.
— Se tu e os teus homens se opõem a essa ideia — retorquiu Espártaco, furioso —, então têmbom remédio: fiquem em Itália! Para que me hei-de preocupar? Tenho cerca de cem mil homens a meu cargo, e esse é, sem dúvida, um número mais do que excessivo! Por isso, fica, Crixo — quanto mais longe, melhor! Fica em Itália, com os teus trinta mil idiotas!
Por isso, quando Espártaco e setenta mil soldados — juntamente com um vasto comboio de carroças de carga e quarenta mil mulheres, isto para não referir as crianças — rumaram a Norte, para atravessar o rio Tiferno, Crixo e os seus trinta mil homens viraram para sul, na direcção de Brindísio. O mês de Abril chegava ao seu termo.
Mais ou menos por essa altura, os cônsules Gélio e Clodiano deixaram Roma na direcção de Cápua, onde iriam recolher as suas tropas. Quinto Árrio, o ex-pretor, comunicara ao Senado que fizera já tudo o que era humanamente possível das quatro legiões de novos soldados reunidas em Cápua; não podia garantir que aqueles homens fossem grandes combatentes, mas esperava sinceramente que se comportassem condignamente no campo de batalha.
Quando os cônsules chegaram a Cápua, foram informados da dissidência entre Espártaco e Crixo e do novo rumo que Espártaco tomara. Foi então elaborado um plano; Quinto Árrio levaria uma legião para Sul, a fim de travar imediatamente Crixo, e Gélio levaria a segunda legião e seguiria Espártaco até que Árrio pudesse ir ter com ele, enquanto Clodiano conduziria rapidamente as duas outras legiões pela Via Valéria, a fim de emergir na costa adriática, bastante a norte da eventual posição de Espártaco. Este ficaria então no meio dos dois cônsules, os quais poderiam apertar facilmente a sua presa entre os extremos da sua tenaz.
Alguns dias depois, chegaram magníficas notícias de Quinto Árrio. Embora a sua legião tivesse cinco vezes menos homens que as tropas de Crixo, Árrio conseguira montar uma emboscada no monte Gargano, na Apúlia, e caíra de surpresa sobre as indisciplinadas hostes rebeldes. Crixo e todos os seus soldados foram mortos: aqueles que escaparam à emboscada foram executados pouco depois; Quinto Árrio não tinha a mínima intenção de deixar inimigos vivos na sua esteira.
Gélio não foi tão feliz. O que Árrio fizera a Crixo, fê-lo Espártaco às suas tropas. Os soldados de Gélio, tomados de pânico, dispersaram no momento em que viram uma imensa mole armada correndo na sua direcção — e fizeram bem em dispersar porque aqueles que ficaram foram dizimados. Fugiram, porém, sem abandonar as armas ou as armaduras; por isso, quando Árrio e Gélio conseguiram voltar a reuni-los, possuíam ainda o equipamento inicial e poderiam (pelo menos teoricamente) retomar o combate sem precisarem de regressar a Cápua.
O rumo que Árrio e Gélio traçaram após a sua derrota não importava minimamente a Espártaco; de facto, o chefe rebelde marchou imediatamente para Norte, a fim de enfrentar Clodiano, de cujo estratagema fora informado por um tribuno romano capturado. Em Hádria, no litoral adriático, os dois exércitos encontraram-se e Clodiano teve praticamente a mesma sorte que Gélio. As tropas de Clodiano dispersaram em pânico. Vencedor em ambos os campos de batalha, Espártaco avançou para Norte sem qualquer oposição.
Sem desanimar, Gélio, Clodiano e Árrio juntaram os seus homens e voltaram a tentar em Firmo Piceno. De novo foram derrotados. Espártaco penetrava já no Ager Gálico. Atravessou o Rubicão e entrou na Gália Italiana em fins de Sextilis. Depois, conduziu as suas tropas pela Via Emília, na direcção de Placência e dos Alpes Ocidentais. A meta era só uma: Quinto Sertório!
O luxuriante vale do Pó possuía alimentos com fartura e os celeiros das suas cidades estavam a abarrotar de cereais. Como agora saqueava sistematicamente as cidades mais ricas, Espártaco e os seus soldados depressa suscitaram o ódio dos cidadãos da Gália Italiana.
Em Mutina, já não muito longe dos Alpes, o vasto exército rebelde deparou com o governador da Gália Italiana, Caio Cássio Longino, que tentou corajosamente bloquear o seu avanço com uma única legião. Ainda que extremamente corajosa, tal acção estava condenada ao fracasso; o legado de Cássio, Cneu Mânlio, apareceu dois dias depois com a outra legião da Gália Italiana e teve a mesma sorte. Em ambas as batalhas, as tropas romanas tinham resistido — o que significava que Espártaco levara do campo de batalha mais de dez mil novos equipamentos bélicos.
O último romano com que Espártaco falara, fora o tribuno capturado durante a primeira derrota de Gélio, alguns meses antes. Em Hádria e Firmo Piceno, vira Gélio, Clodiano e Árrio a alguma distância, mas não falara com nenhum deles. Em Mutina, porém, tinha dois prisioneiros romanos particularmente importantes: Caio Cássio e Cneu Mânlio. E ficou entusiasmado com a ideia de falar com eles: era tempo de pelo menos dois membros do Senado ficarem a conhecer o homem de quem toda a Itália e a Gália Italiana falavam! Era tempo de deixar que o Senado soubesse quem ele era. É que Espártaco não tencionava matar ou deter Cássio e Mânlio; queria que eles regressassem a Roma e contassem tudo o que haviam visto.
No entanto, mandara agrilhoar os seus prisioneiros e, quando os chamou à sua presença, tratou de se sentar num pódio e de vestir uma toga branca. Cássio e Mânlio fitaram-no com um olhar penetrante, mas foi quando Espártaco lhes falou embom latim, ainda que com algum sotaque campaniano, que se aperceberam de que aquele não era um homem qualquer.
— És italiano! — disse Cássio.
— Sou um romano — corrigiu Espártaco.
Os Cássios não eram cobardes; tratava-se de um clã guerreiro e muito violento, e se era certo que alguns Cássios tinham cometido os seus erros militares, também era verdade que nunca nenhum Cássio tinha fugido. E este Cássio provou ser um digno membro da sua família ao erguer um braço agrilhoado e ao brandir o seu punho para aquele homem corpulento que estava sentado no pódio.
— Liberta-me desta indignidade e em breve serás um romano morto! — rosnou Cássio. — Desertor das legiões, não é? Foste atirado para as arenas como lutador trácio!
Espártaco ficou vermelho.
— Não sou desertor — retorquiu ele, com um ar grave. — Sou um tribuno militar que foi injustamente acusado de um motim na Ilíria. Acham que essas grilhetas são uma indignidade?
Pois bem: que pensam que eu senti quando me mandaram para a escola de um verme como Baciato? com essas grilhetas, procônsul Cássio, estás a pagar por tudo aquilo que sofri!
— Mata-nos e acaba com isto! — disse Cássio.
— Matar-vos? Não, não tenho intenção de vos matar — replicou Espártaco, com um sorriso. —vou libertar-vos agora que já sentiram a indignidade das grilhetas. Voltarão a Roma e dirão ao Senado quem eu sou e para ondevou e que tenciono fazer quando lá chegar — e o que eu serei quando regressar.
Mânlio parecia ter vontade de responder; Cássio olhou-o furibundo e Mânlio não abriu boca.
— Quem tu és: um insurrecto. Para onde vais — para a tua perdição. Que vais fazer quando lá chegares — apodrecer. O que serás quando regressares — um fantasma esquecido — atirou-lhe Cássio, com os dentes cerrados. — Terei todo o prazer em dar estas informações ao Senado!
—vou deixar-te viver para que digas ao Senado aquilo que te vou dizer! — atirou-lhe Espártaco, levantando-se de súbito e rasgando a imaculada toga; deixando-a cair no chão, calcou-a com os pés com o mesmo prazer com que um cão raspa a terra depois de defecar e, por fim, com um pontapé, atirou-a para longe do pódio. — Tenho comigo oitenta mil homens, todos eles armados e treinados para lutarem como romanos. A maior parte são samnitas e lucanianos, mas até mesmo os escravos que se alistaram no meu exército são homens corajosos. Tenho milhares de talentos resultantes de muitos saques. Vou para a Hispânia Citerior, onde me juntarei a Quinto Sertório. Juntos, infligiremos uma derrota total aos exércitos de Roma que se encontram em ambas as Hispânias e depois regressaremos a Itália. A tua Roma não tem qualquer hipótese de sobrevivência, procônsul! Antes do fim do próximo ano, Quinto Sertório será o Ditador de Roma e eu serei o seu Senhor do Cavalo!
Cássio e Mânlio escutaram aquelas palavras com uma série de expressões sucessivas — furor, assombro, raiva, perplexidade, espanto — e, por fim, quando tiveram a certeza de que Espártaco terminara, fitaram-no com a expressão mais divertida deste mundo! Ambos desataram a rir como loucos, enquanto Espártaco sentia as faces lentamente enrubescendo. Que teria ele dito de divertido? Rir-se-iam da sua temeridade? Achá-lo-iam louco?
— Idiota! — exclamou Cássio com os olhos e as faces molhadas de tanto rir. — Labrego! Pateta! Não tens por acaso uma rede de espionagem? Claro que não tens! Não vales o cu de um comandante romano! Que diferença existe entre esta horda que comandas e uma horda de bárbaros? Nenhuma! Essa é que é essa! Não posso crer que não soubesses! Francamente, é inacreditável!
— Que soubesse o quê? — perguntou Espártaco, agora pálido. Não sentira raiva perante as palavras escarninhas de Cássio; o que Espártaco sentia agora era unicamente medo.
— Sertório está morto! Foi assassinado pelo seu próprio legado sénior, Perperna, no Inverno passado. Já não há nenhum exército rebelde na Hispânia! Só lá estão as legiões vitoriosas de Metelo Pio e Pompeu Magno, que em breve regressarão a Itália e acabarão contigo e com a tua horda de bárbaros! — E Cássio desatou de novo a rir.
Espártaco não ficou para ouvir mais; tapando os ouvidos com as mãos, correu para longe daquela sala, para os braços de Aluso.
A mãe do filho de Espártaco não encontrou palavras capazes de o consolarem; ele cobriu a cabeça com o manto escarlate de general e chorou, chorou, chorou.
— Que posso fazer? — perguntou ele, balouçando-se como uma criança. — Tenho um exército sem objectivos, um povo sem terra!
com o cabelo caindo-lhe sobre o rosto, agachada e com os joelhos muito afastados, Aluso pegou na sua taça de sangue, nos seus ossinhos de carneiro e no que restava da mão de Baciato, e lançou os ossinhos para saber o que a sorte ditava; depois, examinou-os cuidadosamente e, num murmúrio, revelou as suas conclusões.
— O grande inimigo de Roma no Ocidente está morto — disse. — Mas o grande inimigo de Roma no Oriente ainda está vivo. Os ossos dizem que devemos juntar-nos a Mitridates.
Ah, mas por que raio não tinha ele pensado nisso?! Espártaco libertou-se da capa de general e fitou Aluso com os olhos muito abertos, ainda molhados das lágrimas.
— Mitridates! Claro! Marcharemos na direcção da Ilíria através dos Alpes Orientais, depois atravessaremos a Trácia rumo ao Euxino e, finalmente, juntar-nos-emos ao reino do Ponto. — Limpou o nariz com a mão e lançou um olhar tresloucado a Aluso. — A Trácia é o teu país, mulher. Preferes lá ficar?
Ela riu-se para ele com desdém.
— O meu lugar é ao teu lado, Espártaco. Os Bessos, tenham ou não consciência disso, são um povo derrotado. Nenhuma tribo no mundo é suficientemente forte para resistir a Roma para sempre. Só um grande rei como Mitridates pode fazê-lo. Não, marido, não ficaremos na Trácia. Iremos ter com Mitridates.
Um dos muitos problemas levantado por um exército tão vasto como o de Espártaco era a impossibilidade de uma comunicação directa entre o chefe e todos os seus subordinados. No entanto, o antigo gladiador reuniu a imensa mole o melhor que pôde e tentou explicar claramente aos seus homens e mulheres por que razão iam mudar de rumo e regressar a Bonónia, através da Via Emília, para depois seguirem pela Via Ánia na direcção de Aquileia e da Ilíria. Muitos foram aqueles que não compreenderam, ou porque não o ouviram claramente ou porque, como todos os Italianos, temiam e detestavam o rei oriental. Quinto Sertório era romano. Mitridates era um selvagem que comia bebés italianos e que reduziria toda aquela gente à escravidão.
A marcha foi reatada, desta feita para leste, mas, à medida que se aproximavam de Bonónia, o descontentamento entre os soldados não parava de crescer. Se para chegar a Hispânia se demorava uma eternidade, que dizer então do Ponto? Muitos dos samnitas e lucarçianos — a maioria do exército — falavam latim e oscano, mas pouco ou nenhum grego; como iriam desenvencilhar-se num país como o Ponto, que falava grego?
Em Bonónia, uma delegação constituída por cem legados, tribunos, centuriões e soldados foi falar com Espártaco.
— Não deixaremos a Itália. — Foi o que lhe disseram.
— Nesse caso, eu não vos abandonarei — retorquiu Espártaco, calando toda a sua decepção. — Sem mim, vocês desintegrar-se-ão. Os romanos matar-vos-ão a todos.
Quando a delegação se foi embora, Espártaco virou-se, como sempre, para Aluso.
— Estou derrotado, mulher, mas não por um inimigo externo. Nem mesmo por Roma. Eles têm demasiado medo. Não compreendem.
Os ossinhos de Aluso não diziam nada de bom. Furiosa, Aluso afastou-os com um golpe súbito; depois voltou a guardá-los.
Não poderia contar a Espártaco o que diziam os ossinhos; certas coisas, era melhor que não saíssem das mentes e dos corações das mulheres, que estavam mais próximas da terra.
— Nesse caso, vamos para a Sicília — disse ela. — Os escravos sicilianos aliar-se-ão a nós, pois já se revoltaram por duas vezes. Talvez os Romanos nos deixem ocupar a Sicília em paz se lhes prometermos vender os cereais a preços baratos.
Mas Aluso não conseguia disfarçar a incerteza que havia na sua voz; apercebendo-se disso, Espártaco, num instante de desvario, chegou a contemplar a ideia de seguir para Sul, pela Via Cássia, e marchar sobre a cidade de Roma. Porém, a sensata sugestão de Aluso acabou por vencer. Ela tinha razão. Tinha sempre razão. Teria de ser a Sicília.
Ao tornar-se pontífice, um cidadão romano entrava no mais exclusivo enclave do poder político; o cargo de augure tinha quase tanta importância como o de pontífice e havia algumas famílias que, possuindo tradicionalmente augures, lhes atribuíam o mesmo valor e importância que eram atribuídos aos pontífices; a verdade, porém, é que o pontífice estava sempre um nada acima do augure. Assim, quando foi escolhido para o Colégio dos Pontífices, Caio Júlio César sabia que esse era o mais seguro dos passos tendo em vista o seu objectivo final, o consulado, e que tal investidura mais do que compensava o seu fracasso como flamen Dialis. Ninguém teria coragem de lhe apontar o dedo e de sugerir que o seu estatuto era duvidoso, que o seu cargo talvez devesse ser afinal o de flamen Dialis; a sua posição como pontífice cooptado revelava, aos olhos de toda a gente, que César se encontrava agora firmemente integrado no próprio cerne da República.
A sua mãe, como veio a saber, tinha-se tornado amiga de Mamerco e da esposa deste, Cornélia Sila. Aliás, Aurélia dava-se agora muito mais com os círculos da alta aristocracia, algo que nunca fizera devido a um quase exílio na ínsula de Subura. E não lhe fora difícil operar essa mudança, pois era extremamente respeitada e admirada. O opróbrio a que se vira sujeita por causa do seu casamento com Caio Mário, impedira Júlia de ocupar, na sociedade romana, a posição que, de outra forma, seria agora sua: a de uma moderna Cornélia, a mãe dos Gracos. E dir-se-ia que era precisamente Aurélia quem ia herdar esse título! Actualmente, Aurélia jantava com mulheres como a esposa de Catulo, Hortênsia, a esposa de Hortênsio, Lutácia, com jovens matronas como Servília (viúva de Bruto e agora esposa de Décimo Júnio Silano, de quem tivera já duas meninas), e ainda com várias Licínias, Márcias, Cornélias Cipião e Júnias.
— Acho isso maravilhoso, mãe. Mas porquê essa mudança? — perguntou César, fazendo um ar intrigado.
Os belos olhos de Aurélia brilharam e os vincos nos cantos da boca comprimiram-se até que minúsculas covinhas se formaram nas suas faces.
— Esperas que dê uma resposta a uma pergunta retórica? — perguntou ela. — Sabes tão bem como eu qual é a resposta, César. A tua carreira avança rapidamente e eu resolvi dar uma ajuda. — Pigarreou um pouco, e acrescentou: — Além disso, a maior parte dessas mulheres sofre de um absoluta falta de bom senso. Por isso, é natural que venham ter comigo e que me contem os seus problemas. — Reflectiu sobre o que tinha acabado de dizer e emendou: — Quer dizer, nem todas. Servília é uma excepção. Aí tens uma mulher perfeitamente estruturada! Sabe exactamente o que quer e para onde vai. Devias conhecê-la, César.
César parecia absolutamente entediado.
— Obrigado, mãe, mas não. Agradeço-te muito toda a ajuda que me puderes dar, mas isso não implica que eu tenha de conviver com o círculo dos bolinhos e do vinho doce aguado. As únicas mulheres que me interessam, para além de ti e de Cinila, são as esposas dos homens que pretendo cornear. E como não tenho qualquer conflito com Décimo Júnio Silano, não vejo nenhuma razão para conviver com a esposa dele. Para mais, os patrícios Servílios são insuportáveis!
— Esta não é insuportável — disse Aurélia, mas sem qualquer intenção de convencer o filho. Aliás, mudou imediatamente de assunto. — Não vi ainda nenhum sinal de que tencionas regressar à vida urbana.
— É porque não tenciono mesmo.vou aproveitar os próximos meses para fazer uma campanha rápida junto de Marco Ponteio, na Gália Transalpina. Estarei de volta em Junho, para disputar as eleições dos tribunos dos soldados.
— Uma decisão sensata — aprovou ela — disseram-me que és um magnífico soldado, por isso ficar-te-á bem ocupar um cargo oficial...
César estremeceu ao ouvir aquela piada. — Além de antipática, és injusta, mãe!
Ponteio que, como a maior parte dos governadores transalpinos, se tinha instalado em Massília, desejava manter César ocupado durante dez meses. Tinha ficado com uma perna gravemente ferida durante uma batalha contra os Vocôncios e ficava deprimido só de pensar que todo o seu trabalho podia ir por água abaixo só porque não conseguia montar. Por isso, quando César chegou, Ponteio entregou-lhe imediatamente as duas legiões da província e ordenou-lhe que concluísse a campanha nas margens do rio Druência; Ponteio ocupar-se-ia apenas com as linhas de abastecimento para a Hispânia. Quando recebeu a notícia da morte de Sertório, o governador suspirou de alívio e decidiu-se a participar com César numa campanha de limpeza do vale do Ródano, mais precisamente nas terras dos Alóbroges.
Ambos soldados natos, Ponteio e César deram-se extremamente bem e, no final da segunda campanha, confessavam abertamente um ao outro que não havia maior alegria do que trabalhar com um colega eminente em questões militares. Por isso, quando César regressou a Roma com a impetuosidade que lhe era peculiar, sabia que já tinha sete campanhas no seu registo de serviços militares — e que apenas lhe faltavam três! Adorara o tempo que passara na Gáulia, tanto mais que não conhecia as terras para oeste dos Alpes; por outro lado, fora-lhe fácil enfrentar os povos gauleses porque (graças ao seu velho tutor, Marco António Gnifo, a Cardixa, e a alguns inquilinos da mãe) falava fluentemente vários dos dialectos desses povos. Pensando que nenhum romano entendia as suas línguas, os batedores e espiões salúvios e vocôncios costumavam falar gaulês sempre que queriam trocar informações que os romanos não deveriam conhecer; mas César entendia o que eles diziam, ficava a saber aquilo que o inimigo não queria que soubesse — e nunca se traía.
Aquela era uma boa altura para disputar o cargo de tribuno dos soldados. A presença de Espártaco implicava que teria de cumprir o seu serviço nas legiões dos cônsules, dentro das fronteiras de Itália. Mas primeiro tinha de garantir a sua eleição — tinha de vestir a toga especialmente branqueada de candidato e apresentar-se aos eleitores em todos os mercados e basílicas de Roma, em todas as arcadas e colunatas, em todos os colégios e guildas, em todos os pórticos. Como a Assembleia do Povo elegia anualmente vinte e quatro tribunos dos soldados, não era especialmente difícil ser eleito; no entanto, César impusera-se uma tarefa muito mais difícil que a mera eleição: estava determinado a ser o candidato com mais votos em todas as eleições que disputasse ao longo do seu cursus honorum. Por isso, entregou-se a uma série de actividades que qualquer candidato médio à mais baixa de todas as magistraturas consideraria supérfluas. Por outro lado, não recorreu aos serviços de um nomenclator, funcionário que os candidatos normalmente contratavam para elaborarem as listas com os nomes dos eleitores; César seria o seu próprio nomenclator — nunca se esqueceria de um rosto, nem do nome associado a esse rosto. Um homem lisonjeado com o facto de César o reconhecer ao fim de muito tempo sem se verem, ficaria naturalmente com uma óptima opinião daquele jovem brilhante, cortês e inteligente — e por certo votaria nele. Curiosamente, a maior parte dos candidatos esquecia-se do bairro de Subura. Ou melhor, quase todos o punham de lado, pois achavam que Roma passaria muito bem sem aquele ninho das classes baixas. Mas César, que vivera toda a sua vida em Subura, sabia que o bairro estava cheio de gente da camada mais baixa da Primeira Classe e da camada mais alta da Segunda Classe. E toda essa gente o conhecia. E toda essa gente votaria certamente nele.
César ficou em primeiro lugar nas eleições e, tal como os vinte questores eleitos pela mesma Assembleia do Povo, iniciaria os seus serviços como tribuno dos soldados no quinto dia de Dezembro, em vez do dia de Ano Novo. O sorteio que lhe atribuiria uma legião (com mais cinco tribunos, seria integrado numa das quatro legiões dos cônsules) só seria realizado depois da tomada de posse. E César não queria levantar problemas, tomando a iniciativa de se apresentar a uma legião consular antes do tempo; nem sequer poderia ir até Cápua. O que era absolutamente deprimente, já que os acontecimentos militares daquele ano tinham sido particularmente desastrosos!
Em fins de Quinctilis, era evidente, mesmo para os mais obtusos dos senadores, que os cônsules Gélio e Clodiano não conseguiriam deter Espártaco. com Filipe à frente do coro (uma tarefa difícil para Filipe, já que Gélio e Clodiano eram, tal e qual como ele, homens de Pompeu), o Senado, mostrando o maior tacto, disse aos cônsules que se via obrigado a retirar-lhes o comando da guerra contra Espártaco; que eram necessários em Roma para governar; e que se tinha tornado evidente que o comando da guerra devia ser atribuído a um homem com um império proconsular — um homem que tivesse acesso pessoal aos veteranos retirados e influência e poder suficientes para os fazer regressar aos campos de batalha. Um homem com um boa folha de serviços militares e, de preferência, adepto de Sila. Um homem que não só pertencesse ao Senado, mas que também tivesse sido pelo menos pretor.
Claro que toda a gente, dentro e fora do Senado, sabia que havia apenas um candidato para tal cargo, um candidato que não estava a fazer nada em Roma e que não tinha províncias para governar nem guerras para travar, um candidato que tinha uma óptima folha de serviços e capacidade para atrair os veteranos: Marco Licínio Crasso. Pretor urbano no ano anterior, Crasso recusara o governo de uma província, apresentando como desculpa o facto de Roma precisar mais dele dentro dos seus limites do que numa qualquer cidade ou região estrangeira. Noutra pessoa qualquer, uma tal letargia e uma tão grande ausência de zelo político teriam sido imediatamente condenadas; mas Marco Crasso tinha direito a ter fraquezas. O que não admirava, pois a maior parte dos senadores devia-lhe dinheiro.
Aliás, Crasso nada fez para obter aquele cargo. Nem esse era o seu estilo. Pelo contrário: limitou-se a esperar, no seu edifício de escritórios por detrás do Mercado Cupedénis. Um edifício de escritórios seria normalmente algo de imponente — mas não era esse o caso do estabelecimento de Crasso. Não havia quadros caros pendurados nas paredes, nem divas confortáveis nas salas, nem espaçosos salões de entrada onde os clientes poderiam juntar-se e conversar, nem criados oferecendo vinho de Falerno e queijos raros. Tito Pompónio Ático, o antigo sócio de Crasso e que, agora, tanto o detestava, era exactamente o oposto: conduzia os seus negócios em instalações do maior requinte. Crasso, contudo, nem sequer chegara a entender a necessidade que um homem de negócios tinha de se rodear de coisas belas e confortáveis. Para Crasso, desperdiçar espaço era desperdiçar dinheiro, e dinheiro gasto a embelezar escritórios era dinheiro deitado à rua. Nos seus escritórios, sentava-se habitualmente a uma secretária, num canto de um salão cheio de gente, apertado entre os contabilistas, escribas e secretários que partilhavam a mesma área; talvez não fosse muito agradável, mas a verdade é que, desse modo, podia vigiar permanentemente a sua equipa — e ele era um vigilante perfeito.
Não, de facto Crasso nada fez para obter aquele cargo. Não precisou sequer de comprar um grupo de pressão senatorial. Pompeu Magno é que desperdiçava dinheiro com esse género de coisas! Crasso não precisava disso — bastava-lhe emprestar a um senador necessitado todo o dinheiro de que este precisasse. E sem juros. Pompeu nunca recuperaria o seu dinheiro. Ao passo que Crasso podia reaver os seus empréstimos em qualquer altura e nunca correria o risco de ficar sem dinheiro.
Finalmente, em Setembro, o Senado actuou. Pediu a Marco Licínio Crasso que aceitasse um império proconsular, que levasse consigo oito legiões e que comandasse a guerra contra o gladiador trácio Espártaco. Crasso demorou vários dias a responder. Por fim, deslocou-se a uma sessão do Senado e, usando do mínimo de palavras, como era seu costume, deu a resposta que o Senado esperava: aceitava o cargo. Para César, que o observara do seu lugar, no lado oposto da Cúria Hostília, aquela intervenção de Crasso fora uma clara lição sobre o poder que a presença de um homem podia ter, mas também sobre o poder corrupto e nojento do dinheiro.
Crasso era alto, mas não parecia, pois era muito largo. Não que fosse gordo. Tinha, isso sim, uma constituição de touro, umas mãos enormes, uns pulsos grossos, um pescoço e uns ombros poderosos. Vestido com uma toga, parecia uma massa bruta, algo disforme; mas essa impressão desfazia-se quando ele elevava o braço direito e exibia os músculos, ou quando cumprimentava alguém e fazia sentir toda a força que tinha nesse braço. Tinha um rosto grande e largo, inexpressivo mas não desagradável, e os olhos, de um cinzento-claro, tinham o hábito de focar as pessoas e as coisas de uma forma branda e amável. O cabelo e as sobrancelhas eram de um castanho-pálido e a sua pele ganhava rapidamente, sob a acção do sol, uma cor trigueira.
Crasso falava agora no seu tom de voz normal — uma voz surpreendentemente alta (Apolónio Molão diria que era por ter um pescoço baixo, pensou César).
— Pais Conscritos, sensibilizou-me muito a honra que me concederam ao oferecer-me este elevado comando. Gostaria de aceitar, mas...
Fez uma pausa, deixando que o seu olhar afável passeasse de rosto em rosto.
— Mas sou um homem humilde e tenho perfeita consciência de que a influência que possuo se deve a um sem-número de homens da ordem dos cavaleiros, cuja presença nesta casa não podem fazer sentir directamente. Não poderia aceitar este alto comando sem ter a certeza de que esses homens estariam de acordo. Portanto, peço humildemente a esta Casa que apresente um senatus consultum à Assembleia do Povo. Se esse corpo aprovar o meu comando, terei todo o gosto em aceitá-lo.
Mas que inteligente, este Crasso!, pensou César.
O que o Senado dava, também podia tirar. Tal como acontecera no caso de Gélio e Clodiano. Mas se a Assembleia do Povo ratificasse um decreto vindo do Senado — e, neste caso, ratificou-o —, então só a Assembleia do Povo poderia revogá-lo. O que não era de modo nenhum impossível. Porém, uma lei aprovada pela Assembleia do Povo deixaria Crasso numa posição extremamente forte junto dos tribunos da plebe, que há muito exibiam garras afiadas e presas ameaçadoras por causa das leis de Sila e da apatia do Senado perante as decisões que urgia tomar. Sim, que inteligente era aquele Crasso!
Ninguém ficou surpreendido quando o Senado, obedientemente, aprovou o senatus consultum, nem quando a Assembleia do Povo votou esmagadoramente a sua ratificação. Marco Licínio Crasso era, graças a isso, um comandante muito mais sólido que Pompeu; o império de Pompeu fora concedido apenas pelo Senado, não era uma lei inscrita nas tábuas de Roma.
com a mesma eficiência com que transformara num êxito estrondoso uma empresa tão dúbia como a de ensinar escravos a executar trabalhos dispendiosos, Marco Crasso lançou-se imediatamente ao trabalho, movido pela certeza de que venceria mais um desafio.
A primeira coisa que fez foi anunciar os nomes dos seus legados: Lúcio Quíncio, um homem de cinqüenta e dois anos conhecido por importunar cônsules e tribunais; Marco Múmio, que tinha quase a idade necessária para ser pretor; Quinto Márcio Rufo, que era um pouco mais novo mas já pertencia ao Senado; Caio Pomptino, um jovem Homem Militar; e Quinto Amo, o único veterano da guerra contra Espártaco que Crasso aproveitou.
Declarou depois que, estando as quatro legiões dos cônsules reduzidas a duas por causa das baixas e das deserções, empregaria apenas os doze primeiros tribunos dos soldados, mas não os tribunos desse ano; o seu mandato estava praticamente no fim, e não havia nada de pior do que mudar os comandantes imediatos dos soldados ao fim de um mês de campanha. Por isso, convocaria mais cedo do que o previsto os tribunos dos soldados do ano seguinte. Finalmente, decidiu integrar na sua equipa um dos questores do ano seguinte: Cneu Tremélio Escrofa, de uma velha família pretoriana.
Entretanto, instalou-se em Cápua e enviou delegações aos seus soldados veteranos, aqueles que tinham combatido com ele contra Carbão e os Samnitas. Precisava de recrutar seis legiões o mais rapidamente possível. Alguns dos seus críticos lembraram que os seus soldados não tinham apreciado a relutância dele em partilhar os despojos de cidades como Tuder, e predisseram que seriam poucos os voluntários. Porém, fosse porque a memória dos homens é curta ou porque o tempo dulcifica os corações, a verdade é que os veteranos de Crasso acorreram em massa. No início de Novembro, altura em que se soube que os espartacanos tinham dado meia volta e retomado a Via Emília, Crasso estava quase pronto para avançar.
Antes, porém, tinha de resolver os problemas do que restava das legiões dos cônsules, as quais permaneciam no acampamento de Firmo Piceno desde a derrota de Gélio e Clodiano. Aqueles soldados formavam vinte coortes (que era o número exacto de coortes para duas legiões), mas eram os sobreviventes de quatro legiões, e, por isso, poucos deles tinham combatido juntos, em termos de uma unidade legionária. Não fora possível transferi-los para Cápua enquanto Crasso formava e organizava as suas seis legiões; nos últimos anos, tinham sido organizadas tão poucas legiões que metade dos acampamentos à volta de Cápua haviam sido encerrados e desmantelados.
Quando enviou Marmo Múmio e os doze tribunos dos soldados buscar essas vinte coortes a Firmo Piceno, Crasso estava consciente de que Espártaco e os seus espartacanos se aproximavam rapidamente de Arimino. Múmio recebera ordens rigorosas. Deveria evitar todo o tipo de contacto com Espártaco, o qual, segundo se pensava, ainda estaria bastante a norte de Firmo Piceno. Infortunadamente para Múmio, Espártaco, mal chegara a Arimino, tinha feito avançar as suas tropas independentemente de todo o outro pessoal do acampamento e do comboio de bagagens, pois sabia que não havia qualquer ameaça na sua retaguarda. De tal modo que Múmio chegou ao acampamento construído por Gélio e Clodiano praticamente ao mesmo tempo que Espártaco.
A batalha era inevitável. Múmio fez o melhor que pôde, mas tanto ele como os seus tribunos dos soldados (entre os quais César) pouco podiam fazer. Nenhum deles conhecia as tropas, as tropas nunca tinham sido devidamente treinadas e os soldados temiam Espártaco tal e qual como as crianças temem o papão. Aliás, dificilmente se poderia chamar àquilo que se passou uma batalha; os espartacanos limitaram-se a irromper pelo acampamento como se ele não existisse, enquanto os soldados das legiões dos cônsules debandavam em todas as direcções. Na fuga, deixaram as armas, os capacetes, as cotas de malha, tudo o que pudesse atrapalhar-lhes os movimentos. Os homens de Espártaco nem se deram à maçada de persegui-los; continuaram o seu caminho, depois de terem recolhido as armas e armaduras inimigas e despido os cadáveres daqueles que não tinham conseguido fugir a tempo.
— Não podias ter feito nada para evitar isto — disse César a Múmio. — A culpa é da nossa espionagem.
— Marco Crasso vai ficar furioso! — exclamou Múmio, desesperado.
— Furioso é pouco — retorquiu César com um ar triste. — Mas, de qualquer modo, uma conclusão podemos tirar: os espartacanos desconhecem por completo a disciplina.
— Sim, mas são mais de cem mil!
Estavam acampados no alto de uma colina, não muito longe da multidão que prosseguia na sua marcha para Sul; César, que via bem à distância, apontou.
— Quanto a soldados, não tem mais de oitenta mil, talvez menos. Aquilo que estamos a ver agora são os acompanhantes das tropas — mulheres, crianças, até mesmo homens que não parecem estar armados. E esses são pelo menos cinqüenta mil. Espártaco tem um grande peso sobre os ombros. Tem de arrastar consigo as famílias e os bens pessoais dos seus soldados. O que tu estás a ver, Múmio, não é um exército: é um povo sem pátria.
Múmio afastou-se.
— bom, não há qualquer razão para ficarmos aqui mais tempo. Marco Crasso tem de ser informado do que aconteceu. Quanto mais depressa, melhor.
— Os espartacanos estarão já bem longe daqui dentro de um dia ou dois. Posso sugerir que fiquemos aqui até que eles desapareçam e que depois reunamos os soldados das legiões dos cônsules? Caso contrário, esses homens desaparecerão para sempre. Acho que Marco Crasso ficaria mais contente se nós lhos levássemos. Ainda que os soldados se encontrem no pior estado possível — disse César.
Múmio deteve-se ao ouvir aquilo, virou-se e fitou o seu tribuno sénior.
— Lá esperto és tu, César! Tens toda a razão! Devíamos realmente reunir os desgraçados que restam e levá-los connosco. Sempre é uma maneira de refrear a fúria do nosso general!
Entre as ruínas do acampamento, jaziam cinco coortes. Os centuriões, na sua maior parte, também estavam mortos. Quinze coortes tinham sobrevivido. Múmio demorou onze dias a localizar e a reunir esses homens, uma tarefa menos difícil do que temia, já que aqueles pobres soldados pouco ânimo e engenho tinham para fugir.
Vestidos apenas com túnicas e sandálias, os soldados das quinze coortes foram conduzidos a Crasso, que se encontrava agora num acampamento às portas de Boviano. Tinha-se cruzado com um destacamento de espartacanos que se afastara da coluna principal e matado seis mil desses homens; Espártaco, no entanto, avançava já na direcção de Venúsia, e Crasso considerara que não seria inteligente persegui-lo numa região desfavorável e com uma força tão pequena. Era o princípio de Dezembro, mas como o calendário estava adiantado quarenta dias em relação ao ritmo normal das estações, o Inverno ainda não se fazia sentir.
O general ouviu o que Múmio lhe tinha para dizer num silêncio que não augurava nada de bom.
— Não te considero responsável pelo que aconteceu — disse ele, por fim. — Mas que vou eu fazer com quinze coortes constituídas por homens em quem não podemos confiar e que não têm coragem para combater?
Ninguém lhe respondeu. Crasso sabia exactamente o que ia fazer, apesar da pergunta. Todos os homens presentes compreenderam isso, mas apenas Crasso sabia o que ia fazer.
Lentamente, os olhos brandos do general passearam pelos rostos dos seus assistentes, demorando-se ligeiramente em César.
— Quantos são eles? — perguntou.
— Sete mil e quinhentos, Marco Crasso. Quinhentos por cada côorte — respondeu Múmio.
—vou dizimá-los — disse Crasso.
Fez-se um silêncio absoluto naquela tenda; ninguém movia sequer um músculo.
— Manda formar todo o exército amanhã ao nascer do Sol e, entretanto, prepara tudo. César, tu és pontífice, portanto vais oficiar. Escolhe a tua vítima para o sacrifício. O sacrifício deverá ser oferecido a Júpiter Optimus Maximus ou a qualquer outro deus?
— Creio que deveríamos oferecê-lo a Júpiter Stator, Marco Crasso. Ele é o deus que obsta à deserção dos soldados. E também a Sol Indiges e a Belona. A vítima tem de ser um vitelo preto.
— Múmio, os teus tribunos dos soldados tratarão do sorteio. Excepto César, claro.
E logo de seguida o general ordenou à sua equipa que se retirasse. Nenhum daqueles homens trocou palavra à saída, o que não admirava, pois o castigo decidido era nem mais nem menos do que a dizimação!
Ao nascer do Sol, as seis legiões de Crasso estava já formadas; em frente delas, formados em dez filas, cada uma com setecentos e cinqüenta homens, encontravam-se os soldados que iam ser condenados. Múmio trabalhara febrilmente para encontrar o procedimento mais simples e mais rápido, já que a divisão numérica mais importante, no caso da dizimação, era a decúria de dez homens; Crasso, obviamente, deu-lhe uma importante ajuda a nível logístico.
Os soldados culpados estavam ainda como Múmio os trouxera: vestidos apenas com túnicas e sandálias. No entanto, cada homem segurava agora um bastão com a mão direita, além de ter recebido um número de um a dez por causa do sorteio. Acusados de cobardia, tinham todo o aspecto de cobardes, pois todos eles tremiam, com expressões de terror, o suor caindo-lhes pelas faces apesar do frio dos primeiros momentos da manhã.
— Pobres desgraçados — disse César ao seu colega tribuno Caio Popílio. — Não sei o que mais os amedronta — se a ideia de morrerem, se a ideia de terem de matar. Aqueles homens não são guerreiros.
— São demasiado jovens — disse Popílio, com um ar triste.
— Isso normalmente é uma vantagem — disse César, que trazia a sua toga pontifícia, um belo e rico traje, formado inteiramente por largas faixas escarlates e roxas. — Que sabe uma pessoa aos dezassete ou dezoito anos? com essa idade, não temos preocupações nem com esposas, nem com filhos. A juventude é turbulenta, precisa de uma saída para os seus impulsos violentos. E, para isso, a guerra é preferível ao vinho, às mulheres, às rixas nas tabernas — na guerra, pelo menos, o Estado extrai deles algo que lhe é útil.
— És um homem duro — disse Popílio.
— Não. Sou apenas prático.
Crasso estava pronto para começar. César encaminhou-se para o local onde estavam a ser praticados os rituais, cobrindo a cabeça com uma dobra da toga. Qualquer legião tinha o seu sacerdote e o seu augure, e foi um augure militar quem inspeccionou o fígado do vitelo preto. Mas como a dizimação era uma condenação restringida ao império de um general proconsular, era necessário que interviesse uma autoridade religiosa superior ao religioso legionário; por essa razão, César tinha de verificar as conclusões do augure. Depois de anunciar bem alto que Júpiter Stator, Sol Indiges e Belona tinham aceite o sacrifício, César concluiu a sua intervenção com as orações da praxe. E acenou para Crasso para que começasse.
garantida a aprovação divina, Crasso falou. Ele e os seus legados encontravam-se numa tribuna erigida junto a uma das extremidades das coortes culpadas. O único tribuno dos soldados que fazia parte deste grupo era César, o sacerdote oficiante; os outros tribunos encontravam-se à volta de uma mesa, no meio do espaço entre as legiões veteranas e as coortes condenadas, a fim de procederem ao sorteio.
— Legados, tribunos, cadetes, centuriões, soldados! — disse Crasso com a sua voz alta e potente. — Estamos hoje reunidos aqui para assistir a uma punição que é tão rara que já passaram muitas gerações desde a última vez que foi aplicada. A dizimação é uma pena reservada aos soldados que se mostraram indignos de pertencer às legiões de Roma, que desertaram da forma mais cobarde e imperdoável. Ordenei que as quinze coortes aqui presentes fossem dizimadas, por uma boa razão: desde que entraram para o serviço militar, no início deste ano, fugiram sempre dos campos de batalha onde, pelo contrário, deveriam combater. E agora, na sua última debandada, cometeram o pior dos crimes de um soldado — abandonaram as suas armas e armaduras no campo, deixando-as à disposição do inimigo. Nenhum deles merece viver, mas eu não tenho poder para os executar a todos. Essa é uma prerrogativa do Senado, apenas do Senado. Por isso, na minha qualidade de comandante-chefe proconsular, exercerei o meu direito a dizimar as suas hostes, na esperança de que, dessa forma, inspire os sobreviventes a lutar, no futuro, como soldados romanos — e para mostrar a todos vós, meus leais e constantes seguidores, que não tolerarei a cobardia! E que todos os deuses possam testemunhar que vinguei obom nome e a honra de todos os soldados romanos!
À medida que Crasso se aproximava do fim do seu discurso, César ia-se sentindo cada vez mais tenso. Se os homens das seis legiões saudassem com vivas o seu discurso, então Crasso teria o consentimento do exército; mas se o seu discurso fosse saudado com o silêncio, então era mais que certo que teria pela frente uma campanha cheia de motins. Ninguém gostava da dizimação. Era por isso que nenhum general a praticava. Crasso, que era tão perspicaz nos negócios e na política, seria igualmente perspicaz no seu relacionamento com os veteranos de Roma?
As seis legiões saudaram vibrantemente o discurso. Examinando-o com atenção, César pôde aperceber-se de que Crasso soltara um quase indistinto suspiro de alívio; portanto, nem mesmo ele tinha tido a certeza!
O sorteio começou então. Havia setecentas e cinqüenta decúrias, o que significava que setecentos e cinqüenta homens iam morrer. Era um processo muito demorado, mas Crasso e Múmio tinham-no apressado através de uma excelente organização. Num cesto enorme, encontravam-se setecentas e cinqüentas pequenas tábuas — setenta e cinco com o número I, setenta e cinco com o número II, e assim por diante até ao número X. Tinham sido atiradas ao acaso para o cesto e depois baralhadas. O tribuno dos soldados Caio Popílio tinha de se certificar, depois, que, em dez cestos mais pequenos, havia exactamente setenta e cinco dessas pequenas tábuas. Feito esse trabalho, Popílio deu cada um desses cestos aos restantes tribunos.
Fora por isso que as coortes culpadas tinham sido dispostas em dez filas bem espaçadas, sendo cada fila formada por setenta e cinco decúrias, também bem espaçadas entre si. Um tribuno dos soldados ia de uma ponta à outra da sua fila, parando em frente de cada decúria e retirando uma tábua do seu cesto. Dizia o número retirado, o homem a quem pertencia esse número dava um passo em frente e o tribuno passava depois à decúria seguinte.
Entretanto, a carnificina tinha começado. Até mesmo nas execuções havia ordem e meticulosidade. Vários centuriões das legiões de Crasso, que não conheciam os soldados das coortes culpadas, tinham a seu cargo a tarefa de supervisionar as execuções. Poucos eram os centuriões das coortes cobardes que tinham sobrevivido; mas os sobreviventes não tinham sido poupados e tinham tantas hipóteses de morrer (e de matar) como os soldados. O homem sorteado era morto pelos seus nove colegas da decúria; estes deveriam espancá-lo até à morte com os seus bastões. Dessa forma, ninguém escapava ao sofrimento: nem os nove que ficavam vivos, nem aquele que morria.
Os centuriões sabiam muito bem como tudo devia ser feito.
— Tu, ajoelha-te e não te mexas — diziam para o homem condenado. — Tu, dá-lhe na cabeça a matar — diziam para o homem mais afastado. — Tu, dá-lhe a matar — diziam ao homem seguinte, e assim por diante. Os nove carrascos eram obrigados a atingir com os bastões a nuca e o crânio do colega ajoelhado e indefeso. Essa era a forma menos violenta que a execução podia assumir, já que, pelo menos, ninguém desataria a espancar violentamente a vítima em todas as partes do seu corpo. Como nenhum dos carrascos tinha coragem para matar, nem todos os golpes eram certeiros, longe disso. Mas os centuriões não paravam de berrar, ordenando-lhes que batessem com força e com precisão, e, à medida que o processo ia avançando, os carrascos iam-se tornando também mais rápidos e eficientes. A repetição, combinada com a resignação, só poderia ter esse efeito.
Ao fim de treze horas, já caíra a escuridão, a dizimação chegava ao seu termo. Crasso mandou dispersar os seus soldados, fartos daquilo e com os pés doridos, pois tinham sido obrigados a permanecer formados até à última execução. Os setecentos e cinqüenta cadáveres foram distribuídos por trinta piras e queimados; em vez de serem mandadas para as famílias, as cinzas foram atiradas para os esgotos das latrinas do acampamento. Por outro lado, os testamentos desses homens não seriam honrados. O dinheiro e os bens que tivessem iam para o Tesouro, a fim de compensar as perdas causadas pelo abandono das armas, dos capacetes, dos escudos e de todo o equipamento legionário no campo de batalha.
Nenhum dos homens que assistira à primeira dizimação ao fim de tanto tempo se sentiu indiferente; na maior parte, o efeito foi profundo e terrível. Reduzidos agora a catorze fracas coortes, os desgraçados que sobreviveram engoliram o medo e o orgulho e só pensavam em tornar-se os legionários que Crasso exigia. Mais sete coortes, constituídas por soldados devidamente treinados, vieram de Cápua e foram incorporadas nas outras catorze, a fim de formarem duas legiões. Como Crasso continuava a referir-se a elas como as legiões dos cônsules, os doze tribunos dos soldados foram nomeados para as comandar, com César, o sénior, à frente da Legião I.
Enquanto Marco Crasso mandava executar os soldados que não tinham encontrado dentro de si a coragem para enfrentar os espartacanos, Espártaco realizava jogos fúnebres em honra de Crixo, nos arredores da cidade de Venúsia. Não era seu hábito fazer prisioneiros, mas, desta feita, tinha aprisionado trezentos homens das legiões dos cônsules (e alguns outros que tencionava manter vivos por ora) no acampamento de Firmo Picentino; durante toda a caminhada até Venúsia, treinara-os como gladiadores, metade gauleses, metade trácios. Depois, dotando-os dos melhores trajes e equipamentos gladiatoriais, obrigou-os a combater até à morte em honra de Crixo. Quanto ao vencedor de todos os vencedores, executou-o segundo normas integralmente romanas — mandou que o açoitassem e que, depois, o decapitassem. O fantasma de Crixo devia ter ficado satisfeito com o sangue de trezentos inimigos.
Os jogos fúnebres de Crixo tinham servido outro objectivo; enquanto as suas vastas hostes festejavam, Espártaco aproveitou para falar aos soldados de uma maneira mais pessoal do que em Mutina, e para os convencer de que a Sicília era a solução para o difícil problema de encontrarem uma região onde pudessem residir permanentemente. Embora tivesse esvaziado todos os celeiros ao longo da sua marcha, e possuísse óptimas reservas de queijo, leguminosas, raízes e frutos duradouros, e levasse consigo milhares de ovelhas, porcos, galinhas e patos, a ameaça de uma eventual fome entre o seu povo perturbava-o muito mais que o espectro de qualquer exército romano. O Inverno estava perto; teriam de se estabelecer na Sicília antes que viesse o tempo frio.
E assim, em Dezembro, Espártaco continuou a sua marcha para Sul, desta feita na direcção do golfo de Tarento, onde as indefesas comunidades dessa rica planície de muitos rios perderam as colheitas de Inverno e os primeiros legumes de Inverno. Em Túrios, uma cidade que já tinha saqueado, Espártaco virou para o interior, subiu o vale do Grátis e emergiu na Via Popília. Não havia tropas romanas por perto; usando a estrada que atravessava as montanhas do Brútio, chegou facilmente ao pequeno porto pesqueiro de Cileu.
E ali estava ela, para lá do estreito — a Sicília! Uma breve viagem de mar e as longas marchas acabariam! Mas que viagem terrível! Cila e Caríbdes habitavam aquelas perigosas águas. Logo à saída da baía de Cileu, Cila rangia as suas três fileiras de dentes em cada uma das suas seis cabeças, enquanto as cabeças dos cães cingidos aos seus rins se babavam e uivavam. E se um navio tivesse a sorte de passar por Cila enquanto ela dormia, mesmo assim ainda teria de enfrentar Caríbdes, que rugia, rugia, rugia, num imenso e violento redemoinho.
Claro que Espártaco não acreditava em tais histórias; porém, sem se aperceber, estava a ficar cada vez menos romano e a tornar-se cada vez mais primitivo e infantil. Desde que fora expulso das legiões de Coscónio, há quase cinco anos, que deixara de viver como um romano. A mulher que desposara acreditava implicitamente em Cila e Caríbdes, tal como muitos dos seus seguidores. E por vezes — uma vez por outra! — até ele via essas terríveis criaturas nos seus sonhos.
Para além de possuir uma grande frota pesqueira que se dedicava essencialmente à pesca do atum que, em migração, passava duas vezes ao ano por aquelas águas, Cileu abrigava piratas. A proximidade da Via Popília e das legiões romanas que iam e vinham da Sicília impedia que Cileu se transformasse num ancoradouro para grandes frotas piratas. Mas os pequenos piratas que usavam o porto de Cileu estavam precisamente a chegar à praia nos seus pequenos navios, a fim de passarem o Inverno em terra, quando a multidão de seguidores de Espártaco avistou a cidade.
Deixando o seu exército para se empanturrar de peixe, Espártaco procurou imediatamente o chefe dos piratas locais e perguntou-lhe se conhecia algum almirante pirata habituado a comandar muitos navios de grande porte.
— Claro que conheço! Conheço até vários! — foi a resposta.
— Então manda-os vir ter comigo — disse Espártaco. — Preciso de embarcar imediatamente para a Sicília com alguns milhares dos meus melhores soldados e estou disposto a pagar um milhar de talentos de prata a quem nos transportar até à ilha no prazo de um mês.
Embora Crixo e Enómao estivessem mortos, Espártaco havia já encontrado substitutos para eles, de entre a sua poliglota colecção de legados e tribunos. Casto e Ganico eram ambos samnitas e tinham combatido com Mutilo durante a Guerra Italiana e com Pôncio Telesino durante a guerra contra Sila; eram por natureza marciais e tinham alguma experiência de comando. O tempo tinha ensinado a Espártaco que as suas hostes se recusavam a marchar como um exército se não houvesse uma ameaça directa do inimigo — muitos dos seus homens tinham esposas, alguns tinham filhos, outros tinham mesmo diversos parentes na vasta comitiva. Era impossível a um homem só controlar ou dirigir massas tão instáveis. Por isso, Espártaco dividira as suas hostes em três divisões, com três colunas de bagagens separadas; ele comandava a maior divisão e dera o comando das outras duas a Casto e Ganico.
Quando soube que dois almirantes piratas vinham falar com ele, Espártaco chamou Aluso, Casto e Ganico.
— Ao que parece, terei em breve navios suficientes para transportar vinte mil homens até Peloro — disse ele. — Mas o que me preocupa é a grande massa de pessoas quevou ter de deixar aqui. Provavelmente, só ao fim de alguns meses poderei voltar cá para as levar para a Sicília. Que acham da ideia de as deixar em Cileu? Há comida suficiente? Ou deverei mandá-los de volta para Bradano? Os agricultores e os pescadores daqui dizem que vamos ter um Inverno muito frio.
Casto, mais velho e experiente que Ganico, reflectiu sobre este problema antes de responder.
— Na realidade, Espártaco, as terras aqui à volta não são más. A oeste do porto, há um pequeno promontório, plano e fértil. Acho que todos nós podíamos ficar por aqui, sem recorrer demasiado aos abastecimentos, durante... durante um mês, talvez dois. E, se os vinte mil homens que mais comem vão para Sicília, então poderemos ficar três meses por aqui.Espártaco tomou então uma decisão.
— Nesse caso, ficaremos todos aqui. Mudamos o acampamento para oeste da cidade e as mulheres e as crianças começam já a cultivar a terra. Até mesmo os nabos e as couves serão bem-vindos.
Quando os dois samnitas deixaram a tenda, Aluso fitou o marido com os seus olhos de lobo selvagem e, muito no fundo da sua garganta, começou a formar-se um som rosnado, horrendo. Espártaco sentia sempre um sobressalto quando a via com aquele ar fantasmagórico, animalesco, ou seja, sempre que o espírito profético se apossava dela.
— Tem cuidado, Espártaco! — disse ela.
— Cuidado de quê? — perguntou ele, intrigado. Ela abanou a cabeça e de novo rosnou.
— Não sei. Alguma coisa. Alguém. Vem através da neve.
— Ainda falta pelo menos um mês para começar a nevar — disse ele, num jeito afável. — Nessa altura já eu estarei na Sicília com os melhores dos meus homens e duvido que a campanha na Sicília seja perigosa para nós. É com aqueles que vão ficar aqui que devo ter cuidado?
— Não — retorquiu ela, sem a menor dúvida. — É contigo que deves ter cuidado.
— A Sicília é uma região calma e mal defendida. Não correrei nenhum perigo perante as milícias e os barões dos cereais.
Todo o corpo da mulher se encrespou nesse instante. Depois, um estremecimento percorreu-a dos pés à cabeça.
— Tu nunca chegarás à Sicília, Espártaco — disse ela. — Nunca chegarás à Sicília.
Mas o dia seguinte veio desmentir a profecia de Aluso, pois dois almirantes piratas chegaram a Cileu e ambos eram tão famosos que Espártaco até conhecia os seus nomes: Farnaces e Megadates. Tinham começado como piratas muito longe da Sicília, nas águas do mar Euxino. No entanto, nos últimos dez anos, tinham controlado os mares entre a Sicília e a África, atacando tudo o que fosse mais pequeno que uma frota cerealífera romana. Quando lhes apetecia, até aportavam a Siracusa — mesmo debaixo do nariz do governador! — para roubarem víveres e vinho.
Os dois piratas, pensou o estupefacto Espártaco, tinham um ar de mercadores bem sucedidos na vida — eram pálidos, roliços, amaneirados.
— Vocês sabem quem eu sou — disse ele, bruscamente. — Estão dispostos a fazer negócio comigo, apesar dos Romanos?
Os dois homens trocaram uns sorrisos manhosos.
— Nós fazemos negócio em todo o lado e com toda a gente, apesar dos Romanos — disse Farnaces.
— Preciso de transporte até Peloro para vinte mil dos meus soldados.
— É uma viagem muito curta, mas cheia de perigos durante o Inverno — retorquiu Farnaces, obviamente o porta-voz.
— Os pescadores locais disseram-me que não é nada do outro mundo.
— Claro, claro.
— Então? Ajudam-me?
— Deixa-me ver... Vinte mil homens... Duzentos e cinqüenta por navio... São poucas milhas, eles não se importam de ir como nabos numa saca... Ora bem: serão precisos portanto oitenta navios! — disse Farnaces, com um ligeiro esgar. — Não temos tantos navios suficientemente grandes para um tal número de homens. Os dois juntos, possuímos vinte desses navios.
— Cinco mil de cada vez — disse Espártaco, com a testa franzida. — Terão de ser quatro viagens, nada mais! Quanto cobram vocês? E quando podem começar?
Como dois lagartos gémeos, os dois homens pestanejaram em perfeito uníssono.
— Meu caro amigo, não regateias? — perguntou Megadates.
— Não tenho tempo. Qual é o preço e quando podem começar? Farnaces voltou a tomar conta do caso.
— Cinqüenta talentos de prata por navio e por viagem. Quatro mil no total — disse ele.
Era a vez de Espártaco pestanejar.
— Quatro mil! Mas esse é todo o dinheiro que tenho! — retorquiu.
— É pegar ou largar — disseram os almirantes, em perfeito uníssono.
— Se me garantirem que os vossos navios estão neste porto dentro de cinco dias, aceito — disse Espártaco.
— Dá-nos os quatro mil talentos antecipadamente e nós garantimos-te que os navios estarão cá nesse prazo — replicou Farnaces.
— Ah, não, isso não! — exclamou. — Metade agora, a outra metade quando o trabalho estiver feito.
— Negócio feito! — disseram Farnaces e Megadates num uníssono perfeito.
Aluso não fora autorizada a participar nesta reunião. Por razões que não entendia bem, Espártaco sentiu relutância em contar-lhe o que se tinha passado; talvez tivesse medo de que Aluso o visse morto num naufrágio, já que, segundo ela, ele nunca chegaria à Sicília. Porém, como seria de esperar, Aluso conseguiu convencê-lo a contar-lhe e, para grande surpresa do chefe rebelde, reagiu com o ar mais feliz deste mundo.
— É umbom preço — disse ela. — Recuperarás o teu dinheiro quando chegares à Sicília.
— Mas não disseste que eu nunca chegaria à Sicília?
— Isso foi ontem e a visão mentia. Hoje vejo com mais clareza, e está tudo bem.
Desta forma, dois mil talentos de prata foram retirados das carroças e embarcados no belo quinquerreme de vela púrpura e dourada que trouxera Farnaces e Megadates a Cileu. com a ajuda dos seus poderosos remos, o barco foi-se afastando rapidamente da baía.
— Parece uma centopeia — disse Aluso. Espártaco riu-se.
— Tens razão! Parece uma centopeia! Talvez seja por isso que não tem medo de Cila.
— É demasiado grande para caber na boca de Cila.
— Cila é um bloco de rochas perigosas — disse Espártaco.
— Cila — retorquiu Aluso — é uma entidade.
— Dentro de cinco dias, saberei o que é Cila afinal, se rochas, se essa entidade de que tu falas.
Cinco dias depois, os primeiros cinco mil homens reuniram-se no porto de Cileu, cada homem com a sua armadura vestida, com o capacete na cabeça, as armas ao lado e um medo terrível no coração. Iam fazer a travessia entre Cila e Caríbdes! Só o facto de terem falado com os pescadores locais lhes dava coragem para fazerem tal viagem; os pescadores juravam que Cila e Caríbdes existiam, mas conheciam os encantos capazes de fazê-las adormecer e prometeram que os usariam.
Apesar de o tempo estarbom e de o mar estar calmo, os vinte navios piratas não apareciam. Espártaco reuniu-se então com Casto e Ganico e decidiu que os cinco mil homens passariam a noite onde estavam. Seis dias passaram. Sete dias, oito dias. E os navios piratas sem aparecer. Dez dias, quinze dias. Os cinco mil homens tinham regressado há muito aos seus acampamentos, mas Espártaco ia todos os dias ao porto e perscrutava o mar, com as mãos sobre os olhos. Eles viriam! Tinham de vir!
— Foste enganado — disse Aluso no décimo sexto dia, ao ver que Espártaco não iria ao porto naquele dia.
As lágrimas começaram a surgir-lhe nos olhos e, num instante, Espártaco soluçava convulsivamente.
— Fui enganado! — dizia, apenas.
— Oh, Espártaco, o mundo está cheio de trapaceiros e mentirosos! — exclamou ela. — Pelo menos o que nós fizemos foi feito de boa fé e tu és um pai para esta pobre gente! Eu vejo um lar para nós do outro lado do mar, vejo-o tão claramente que quase posso tocá-lo! E no entanto nunca lá chegaremos! Da primeira vez que deitei os ossinhos, foi isso que vi, mas, mais tarde, os ossinhos também me mentiram. Trapaceiros e mentirosos, trapaceiros e mentirosos! — Os olhos dela brilhavam como brasas, a sua voz rosnava. — Mas tem cuidado com o homem que vem da neve!
Espártaco não a escutava. As suas lágrimas eram demasiado amargas para escutar fosse o que fosse.
— Sou um imbecil — disse ele a Casto e Ganico, horas depois. — Eles partiram com o nosso dinheiro, sabendo que nunca voltariam. Dois mil talentos por um trabalho de nada.
— Tu não tiveste a culpa — disse Ganico, que normalmente era o legado mais calado. — Até mesmo nos negócios se espera que haja honra.
Casto encolheu os ombros.
— Mas eles não são homens de negócios, Ganico. O trabalho deles é roubar. Um pirata é um ladrão. Um ladrão sem qualquer disfarce.
— Muito bem — disse Espártaco, suspirando. — O mal está feito. O que interessa agora é o nosso futuro. Temos de permanecer em Itália até ao Verão e, nessa altura, requisitaremos todos os navios de pesca existentes entre a Campânia e Régio e partiremos para a Sicília.
A existência de um novo exército romano na península era obviamente conhecida, mas Espártaco estava já tão habituado à impunidade que pouco ligava aos esforços militares romanos. Os seus batedores tinham-se habituado à preguiça e ele mesmo, mais do que preguiçoso, mostrava-se indiferente. Depois de tanto tempo à frente daquele imenso rebanho, Espártaco acabara por ter de si uma imagem muito pouco marcial. Via-se como o patriarca em busca de um lar para os seus filhos, e não como um rei ou como um general. E agora teria de obrigá-los a novas andanças. Mas para onde haviam de ir? Comiam tanto, aquelas bocas todas!
Quando iniciou a sua marcha para Sul, Crasso chefiava já uma organização militar que tinha um único objectivo — acabar com os espartacanos. O general não tinha, por ora, qualquer pressa. Sabia perfeitamente onde estava a sua presa e adivinhara que o seu objectivo era a Sicília. Mas isso pouco lhe importava. Tanto melhor, se tivesse de combater os espartacanos na Sicília. Trocara mensagens com o governador (que ainda era Caio Verres) e ficara ciente de que os escravos da Sicília não estavam em condições de fomentar uma terceira revolta contra Roma, mesmo contando com o apoio dos espartacanos. Verres tinha posto em alerta a milícia, fazendo-a acampar perto de Peloro; entretanto, tinha de reserva as suas tropas romanas para o caso de a campanha exigir a sua intervenção. Mas Verres estava certo e seguro de que Crasso perseguida os espartacanos e que assumiria o comando do grosso das operações.
Mas nada disso aconteceu. A vasta massa de espartacanos continuou acampada nas redondezas de Cileu, ao que parecia devido à ausência de navios disponíveis. Por essa altura, Caio Verres escreveu a Marco Crasso.
Ouvi uma história muito curiosa, Marco Crasso. Parece que Espártaco contactou os almirantes piratas Farnaces e Megadates e lhes pediu que transportasse vinte mil dos seus melhores soldados de Cileu para Peloro. Os piratas concordaram, fazendo um preço de quatro mil talentos — dois mil de depósito, dois mil quando o trabalho estivesse concluído.
Espártaco deu-lhe os dois mil talentos e eles deixaram Cileu. E o que eles se devem ter fartado de rir! Em troca de uma mera promessa, ficaram ricos! Embora alguns possam dizer que eles foram idiotas por não terem realizado o trabalho e não terem ganho assim os quatro mil talentos, a verdade é que, pelos vistos, Farnaces e Megadates preferiram receber uma fortuna em troca de trabalho nenhum. Tinham ficado com fraca opinião de Espártaco e previam que correriam riscos se por acaso tentassem ganhar os outros dois mil talentos.
A minha opinião pessoal é que Espártaco não passa de um amador em questões militares. Um labrego, nada mais. Farnaces e Megadates enganaram-no com a mesma facilidade com que um vigarista romano engana um apuliano. Se o ano passado houvesse um exército decente em Itália, tenho a certeza de que o homem já estava acabado. Ele só tem uma coisa a seu favor: muitos soldados. Mas quando se confrontar contigo, Marco Crasso, será um desastre. Espártaco não tem sorte, ao passo que tu, meu caro Marco Crasso, já mostraste que és um dos favoritos de Fortuna.
Ao ler esta última frase, César desatou a rir.
— Que quer ele? — perguntou, devolvendo a carta a Crasso. — Precisa de algum empréstimo? Por todos os deuses, aquele homem come dinheiro!
— Eu nunca lhe emprestaria — retorquiu Crasso. — Verres não vai aguentar-se por muito tempo.
— Espero que tenhas razão! Como é que ele sabe tanta coisa sobre os contactos entre os strategoi piratas e Espártaco?
Crasso pôs um sorriso malicioso; um sorriso que operava um pequeno milagre no seu rosto enorme, o qual, de repente, parecia jovem e cheio de uma maldade infantil.
— Atrevo-me a dizer que os piratas lhe contaram tudo quando ele lhes foi pedir a sua parte dos dois mil talentos.
— Crês que os piratas lhe deram uma parte?
— Não tenho a mínima dúvida. Ele deixa-os usar a Sicília como sua base.
Estavam sentados na tenda de comando do general, num acampamento fortificado junto à Via Popília, nos arredores de Terina, a cerca de cento e cinqüenta quilômetros de Cileu. Estava-se já em Fevereiro e o Inverno começava a fazer-se sentir; dois braseiros produziam algum calor.
O facto de Marco Crasso ter escolhido o jovem César como seu particular amigo era uma questão muito debatida entre os legados, que se sentiam mais perplexos do que ciumentos. Antes de ter começado a partilhar os seus momentos de lazer com César, Crasso não tinha amigo nenhum e, por isso, nenhum legado se sentia posto de parte ou suplantado. Aquela relação era enigmática precisamente devido à sua incongruência: havia entre os dois homens uma diferença de idade de dezasseis anos; as suas atitudes em relação ao dinheiro eram absolutamente opostas; não havia entre eles qualquer traço de ligação literário ou artístico; e, finalmente, quando eram vistos juntos, toda a gente acharia que um tal par não faria sentido. Homens como Lúcio Quíncio conheciam Crasso há muitos anos. Crasso tivera negócios, comerciais e políticos, com ele, mas entre os dois nunca houvera uma amizade profunda. E no entanto, desde que cooptara os tribunos daquele ano, dois meses antes, Crasso interessara-se logo por César e mostrara-se muito receptivo à sua amizade. E, curiosamente, fora correspondido.
A verdade, porém, era muito simples. Crasso e César sabiam que tanto um como o outro viriam a ser figuras proeminentes de Roma. Por outro lado, ambos nutriam as mesmas ambições políticas. Se não se tivessem apercebido disso, a sua amizade dificilmente se teria consolidado. No entanto, outros factores vieram contribuir para apertar esses laços de amizade. A dureza de temperamento que era tão evidente em Crasso também existia em César, apesar de todo o seu encanto pessoal e dos seus modos afáveis; nenhum deles nutria ilusões acerca do mundo nobre em que viviam; ambos se deixavam guiar profundamente pelo senso comum e nenhum deles se preocupava muito com luxos pessoais.
As diferenças entre os dois eram superficiais, ainda que descomunais: César era um belo homem que ganhara uma reputação impressionante como conquistador de mulheres, ao passo que Crasso era o típico pai de família, absolutamente fiel à esposa; César era um intelectual brilhante, cheio de estilo e talento, ao passo que Crasso era um homem pragmático, diligente. Um estranho par. Este era o veredicto dos fascinados observadores, os quais, a partir desse momento, começaram a considerar César como uma força com que era necessário contar no futuro; porque se assim não fosse, por que raio se dera Crasso ao trabalho de manter com ele tão estreita amizade?
— Vai nevar esta noite — disse Crasso. — Amanhã de manhã, marcharemos. Quero usar a neve. Não quero que a neve seja um obstáculo.
— Faria muito mais sentido — disse César — se o nosso calendário e as estações coincidissem! Não suporto estas imprecisões!
Crasso fitou-o, confuso.
— Que te leva a dizer isso?
— O facto de estarmos em Fevereiro e de só agora começarmos a sentir os efeitos do Inverno.
— Isso parece conversa de Gregos. Desde que uma pessoa saiba em que dia está e ponha a mão fora da porta para sentir a temperatura, que importância é que o calendário pode ter?
— Tem importância porque revela desleixo e desordem! — retorquiu César.
— Se o mundo fosse demasiado ordenado, seria difícil ganhar dinheiro.
— Seria mais difícil acumulá-lo, não? — disse César, com um sorriso de todo o tamanho.
Quando Cileu já não estava longe, os batedores de Crasso informaram-no de que Espártaco continuava acampado no pequeno promontório para lá do porto, embora houvesse sinais de que pudesse abandoná-lo muito em breve. De facto, os espartacanos tinham já comido tudo o que havia para comer na região.
Crasso e César seguiam à frente com os engenheiros do exército e uma escolta de soldados, sabendo que Espártaco não possuía nenhuma cavalaria; tentara converter alguns dos seus soldados de infantaria a cavaleiros e domar os cavalos selvagens que pastavam nas florestas e montanhas lucanianas: mas não tivera sorte, nem com os homens, nem com os cavalos.
A neve caía incessante, numa tarde sem vento, quando os dois nobres romanos e a sua comitiva começaram a rondar a região onde estavam acampados os espartacanos; se havia alguma vigilância, era muito tênue, pois não encontraram nenhuns inimigos. A neve constituía evidentemente uma ajuda, pois amortecia o ruído e cobria de branco os cavalos e os cavaleiros.
— Melhor do que esperava — comentou Crasso, extremamente satisfeito, quando o grupo se pôs a caminho do acampamento. — Se construirmos um fosso e uma muralha entre aquelas duas ravinas, deixaremos Espártaco preso no seu actual território.
— Mas isso não os deterá por muito tempo — disse César.
— Detê-los-á o tempo suficiente para que aconteça o que me interessa. Eu quero que eles fiquem esfomeados, cheios de frio, desesperados. E quando eles saírem da sua prisão, quero que eles vão para Norte, para a Lucânia.
— Fosse como fosse, eles iriam sempre para Norte. Vão tentar atacar o nosso ponto mais fraco, que não é o Sul. Quanto ao fosso e à muralha, vais querer que sejam as legiões dos cônsules a fazer esse trabalho, não é verdade?
Crasso ficou surpreendido.
— Eles podem trabalhar, sim, mas com todos os outros. O fosso e a muralha têm de estar prontos dentro de oito dias e isso implica que os veteranos participem também. Além do mais, o exercício mantê-los-á quentes.
— Eu conduzo os trabalhos, se quiseres — ofereceu-se César, mas sem qualquer esperança de uma resposta positiva.
Como seria de esperar, Crasso declinou a oferta.
— Preferia que fosses tu a conduzi-los, mas não é possível. Lúcio Quíncio é o meu legado sénior. É ele quem deve conduzir os trabalhos.
— É pena. Quíncio é um homem de gabinete e de oratória. É possível que Quíncio fosse isso mesmo, mas a verdade é que
se lançou ao trabalho com grande entusiasmo. Afortunadamente, teve obom senso de pôr tudo nas mãos dos engenheiros; César tinha razão: Quíncio não era, de facto, nenhum arquitecto de fortificações.
com uma largura e uma profundidade de quatro metros e meio, o fosso mergulhava entre as duas ravinas; a terra escavada foi empilhada de modo a formar uma muralha reforçada com toros e encimada por uma paliçada e torres de vigia. De ravina a ravina, o fosso, a muralha, a paliçada e as torres de vigia estendiam-se por uma distância de doze quilômetros. E tudo ficou pronto em oito dias, apesar da neve incessante. Oito acampamentos — um para cada legião — foram montados, de forma espaçada, atrás das muralhas; o general teria bastantes soldados para guarnecer os seus doze quilômetros de fortificações.
Espártaco apercebeu-se de que Crasso chegara no momento em que a actividade começou, mas a sua reacção foi de quase total desinteresse. De repente, canalizou as energias dos seus homens para a construção de uma vasta frota de jangadas, as quais, aparentemente, deveriam ir a reboque dos barcos de pesca de Cileu. Para os romanos, parecia que Espártaco tinha investido tudo numa fuga por mar e que achava tal plano suficientemente seguro, ao ponto de ignorar o facto de que as suas possibilidades de fuga por terra estavam a ser fortemente minadas. Até que chegou o dia em que este êxodo por mar começou; os romanos que não tinham outros deveres a cumprir subiram a encosta do monte Sila para terem uma melhor perspectiva do que ia suceder no porto de Cileu. E o que sucedeu foi um desastre. As poucas jangadas que agüentaram por algum tempo o peso dos fugitivos não conseguiram sair da barra, quanto mais avançar pelas águas do estreito; os barcos de pesca não tinham sido construídos para rebocar objectos tão pesados e difíceis de manejar.
— Pelo menos, parece que não se afogaram muitos — disse César a Crasso, enquanto viam a cena do monte Sila.
— Espártaco, provavelmente, preferia que se afogassem mais — disse Crasso. — Seriam menos bocas a comer.
— Creio que Espártaco gosta daquela gente — disse César. — Gosta deles da mesma forma que um rei nomeado gostaria do seu povo.
— Nomeado?!
— Os reis que nascem reis pouco se preocupam com o seu povo — disse César, que conhecera um rei nessas circunstâncias. Apontou para as margens da baía, onde se registava uma actividade frenética. — Garanto-te, Marco Crasso, que aquele homem ama todos os membros da sua vasta horda, por muito ingratos que eles possam ser! Se não os amasse, ter-se-ia separado deles há um ano. Gostava de saber quem é realmente este Espártaco!
— Depois do que nos disse Caio Cássio, mandei investigar essa questão — retorquiu Crasso, preparando-se para descer. — Vamos embora, César, já viste que chegue. Amar! Se ele ama o seu povo, então não passa de um tonto!
— Ah, sim, sem dúvida — disse César, seguindo-o. — Que descobriste?
— Quase tudo, excepto o seu verdadeiro nome. Talvez nunca venhamos a sabê-lo. Um idiota de um arquivista, pensando que o Tabulário de Sila servia para arquivar tudo, incluindo registos militares, não se deu ao trabalho de pôr estes registos num local inteiramente à prova de água. E o resultado é que os registos estão praticamente indecifráveis. Coscónio, por seu turno, não se lembra de nenhum nome. Actualmente, estou a ver o que consigo arrancar aos tribunos de Coscónio.
— Desejo-te boa sorte! Também não se vão lembrar dos nomes dos seus soldados.
Crasso soltou um grunhido que talvez correspondesse a um risinho.
— Sabes que em Roma corre uma história acerca dele? Dizem que ele é trácio!
— bom, toda a gente sabe que ele é um trácio. Só há dois tipos de gladiadores: trácios e gauleses! — disse César, rindo-se. — Mas creio que essa história tem sido cuidadosamente espalhada pelos agentes do Senado.
Crasso parou, virou-se para fitar César, com uma expressão de absoluta surpresa.
— Não há dúvida: és muito inteligente!
— Lá isso sou.
— Mas diz-me lá: não achas que faz sentido que andem a espalhar essa história?
— Claro que faz — retorquiu César. — Já tivemos demasiados renegados romanos. Seria idiota juntar mais um a uma lista que inclui militares tão proeminentes como Caio Mário, Lúcio Cornélio Sila e Quinto Sertório. É preferível, de longe, que as pessoas pensem que ele é trácio.
— Huh! — fez Crasso, desta vez com um genuíno grunhido.
— Adorava vê-lo de perto!
— Pode ser que o vejas quando travarmos batalha. Ele monta um cavalo malhado, ataviado com uma sela de couro vermelha e com todo o tipo de adornos que possas imaginar. Pertencia a Varínio. Além disso, Cássio e Mânlio viram-no de perto e por isso dispomos de uma boa descrição. Finalmente, é um homem que não passa despercebido — é muito alto, corpulento, e louro.
Começou então um impiedoso duelo que duraria mais de um mês: Espártaco tentava romper as fortificações de Crasso, mas Crasso fazia-o recuar. O alto comando romano ficou a saber que a comida devia já ser escassa nos acampamentos espartacanos, quando todos os soldados que Espártaco possuía — César estimara o total em setenta mil — começaram a atacar toda a frente de doze quilômetros, tentando encontrar o ponto fraco romano. Acabaram por encontrá-lo, mais ao menos ao meio da muralha, onde o fosso cedeu um pouco, devido às águas de uma nascente; Espártaco fez avançar os seus homens por essa única fenda, mas o resultado foi que caíram todos numa armadilha. Doze mil dos seus soldados morreram, os restantes recuaram.
Depois disto, o trácio que não era trácio torturou alguns prisioneiros que tinham restado das legiões dos cônsules, distribuindo pelos seus homens tenazes aquecidas ao rubro e atiçadores de brasas e mandando executar as torturas num local onde estas pudessem ser vistas pelo máximo de soldados romanos. Porém, depois de terem passado pelos horrores da dizimação, as legiões de Crasso tinham muito mais medo do seu comandante do que compaixão pelos pobres prisioneiros retalhados e queimados; optaram por não ver aquele triste espectáculo e, para não ouvirem os gritos dos seus camaradas, taparam os ouvidos com bolas de lã. Desesperado, Espártaco apresentou o seu prisioneiro mais prestigioso, o centurião primus pilus da segunda legião de Gélio e pregou-o a uma cruz sem lhe conceder a mercê de lhe partir as pernas para que ele morresse mais depressa. A resposta de Crasso foi simples: dispôs os seus melhores arqueiros no alto das muralhas e o centurião, atingido por uma chuva de setas, teve morte quase imediata.
Já em Março, Espártaco mandou Aluso negociar os termos da rendição. Crasso recebeu-a na sua tenda de comando, na presença dos legados e dos tribunos dos soldados.
— Por que motivo não veio Espártaco? — perguntou Crasso. Aluso fitou-o com um sorriso compassivo.
— Porque sem o meu marido, os espartacanos desintegram-se — disse ela. — Por outro lado, ele não confia em ti, Marco Crasso, mesmo em período de tréguas.
— Então é porque está mais esperto do que quando deixou que os piratas lhe ficassem com dois mil talentos.
Mas Aluso era demasiado inteligente para engolir o isco: por isso não respondeu à provocação, nem sequer com um olhar. Havia no seu aspecto, pensou César, algo de deliberado, uma intenção clara de chocar qualquer comissão de recepção civilizada; dir-se-ia um arquétipo do bárbaro. O seu cabelo cor de linho caía selvagem e pegajoso sobre as costas e os ombros. Usava uma espécie de túnica de feltro enegrecido com mangas longas e, debaixo da túnica, umas calças muito apertadas. Sobre a roupa, nos braços e nos tornozelos, cintilavam correntes e braceletes de ouro. Os grandes lóbulos das orelhas, tinha-os também carregados de ouro e, nos dedos trigueiros, não faltavam os anéis. À volta do pescoço, usava vários colares de minúsculas caveiras de pássaros e, do cinto de ouro puro, estavam suspensos medonhos troféus — uma mão que ainda exibia algumas unhas e bocados de pele, a caveira de uma criança, a espinha dorsal de um cão ou de um gato a que não faltava a cauda. A rematar tudo isto, uma magnífica pele de lobo, com as patas atadas sobre os seios de Aluso, e com a cabeça, despojada dos dentes e com jóias no lugar dos olhos, caindo-lhe sobre a testa.
com este aspecto invulgar, Aluso não deixava de atrair os homens silenciosos que a observavam, ainda que nenhum deles a considerasse bela; aquele tipo de rosto, com os seus olhos tresloucados, era demasiado estranho para o gosto dos romanos.
No entanto, Aluso não causara em Crasso a impressão que esperava. Crasso estava a salvo de qualquer tipo de atracção — a não ser a atracção do dinheiro. Por isso, fitou-a exactamente do mesmo modo como fitava toda a gente, com algo que se confundia com brandura ou docilidade.
— Fala, mulher — disse ele.
— Vim negociar contigo os termos da rendição, Marco Crasso. Não temos comida e as mulheres e as crianças estão a passar fome para que os nossos soldados possam comer. O meu marido não suporta ver gente indefesa a sofrer. Prefere entregar-se e entregar o seu exército. Diz-me quais são os teus termos e eu comunicá-los-ei ao meu marido. E amanhã voltarei com a sua resposta.
O general virou-lhe as costas. Por cima do ombro, respondeu-lhe, com um grego muito mais puro que o dela:
— Podes dizer ao teu marido que não há termos possíveis para aceitar a sua rendição. Não permitirei que ele se renda. Foi ele quem começou isto. Pois que vá até ao fim, ainda que o fim seja amargo.
Aluso ficou estupefacta. Estava preparada para todas as contingências, menos para aquela.
— Eu não lhe posso dizer isso! Tens de deixá-lo render-se!
— Não — disse Crasso, ainda de costas viradas. A sua mão direita mexeu-se, fez um estalido com os dedos. — Leva-a, Marco Múmio, acompanha-a através das nossas linhas.
Só ao fim de algum tempo César conseguiu ficar a sós com Crasso.
— Trataste disto brilhantemente — disse. — Ela estava convencida de que conseguiria perturbar-te.
— Uma imbecil! Segundo as minhas informações, Aluso é uma sacerdotisa dos Bessos. Mas a mim pareceu-me mais uma bruxa. A maior parte dos Romanos são suspersticiosos — até tu, César!
Mas eu não sou. Acredito no que vejo. E o que eu vi foi uma mulher com uns restos de inteligência e que se tinha arranjado de forma a parecer-se com aquilo que ela imagina que é uma Górgona. — Crasso desatou a rir-se, espontaneamente. — Lembro-me de ter ouvido dizer que, quando era jovem, Sila foi a uma festa vestido de Medusa. Sobre a cabeça, levava uma cabeleira de cobras vivas. Toda a gente fugiu, cheia de medo. Mas nós sabemos que não foram as cobras que assustaram as pessoas. Foi Sila. Apenas Sila. Se ela tivesse esse estranho poder que Sila possuía, talvez eu tivesse tremido um bocado.
— Concordo contigo. Mas uma coisa é certa: aquela mulher tem capacidades visionárias.
— Há muitas pessoas que têm essas capacidades! Conheci avozinhas tão frágeis como cordeirinhos que tinham essa capacidade. Até mesmo advogados, de aspecto imponente, que, à primeira vista, parecem ter só leis nos miolos. Mas adiante. Porque é que achas que ela é uma visionária?
— Porque o medo com que ela veio à reunião era incomparavelmente superior ao medo que ela alguma vez poderia causar em ti. Porque ela já sabe o que vai acontecer.
Durante um mês, o Inverno estabilizou-se: noites com temperaturas muito negativas, dias não muito mais quentes, céus azuis, gelo nos caminhos. Porém, depois dos Idos de Março, surgiu uma tempestade terrível que começou com aguaceiros de saraiva e terminou com verdadeiros bancos de neve. Espártaco aproveitou a oportunidade.
No local onde a muralha e o fosso se fundiam com a ravina mais perto de Cileu — e onde a mais antiga das legiões de veteranos de Crasso tinha o seu acampamento —, os cem mil espartacanos que tinham sobrevivido lançaram-se numa frenética luta para atravessar o fosso e subir a muralha. Toros, pedras, cadáveres de humanos e animais, até mesmo alguns restos de saques, foram lançados para o fosso; quando este ficou cheio, empilharam materiais idênticos para conseguirem uma altura idêntica à da paliçada. Como fantasmas, a enorme massa de gente avançou pela passagem improvisada e fez-se à violência da tempestade. Ninguém se opôs à fuga; Crasso dissera à legião que não pegasse em armas, mas que, pelo contrário, permanecesse quieta e parada no seu acampamento.
Improvisada e desorganizada, a fuga destruiu por completo a frágil estrutura que as hostes espartacanas ainda possuíam. Enquanto os guerreiros — melhor conduzidos e disciplinados — seguiram para Norte, pela Via Popília, com Espártaco, Casto e Ganico, a grande massa das mulheres, crianças, velhos e não combatentes perdeu-se pelas florestas do monte Sila; no meio daquele emaranhado de ramos, rochas e moitas, a maior parte deitou-se para morrer, demasiado esfomeados e gelados para continuarem a lutar. Aqueles que escaparam aos rigores do Inverno acabaram por ir ter a povoações do Brútio, onde, facilmente identificados pelas populações, foram imediatamente dizimados.
Não que a sorte deste segmento dos espartacanos apresentasse algum interesse para Marco Licínio Crasso. Quando a neve começou a abrandar, levantou o acampamento e conduziu as suas oito legiões pela Via Popília, na esteira dos soldados espartacanos. O seu avanço era tão laborioso como o de um boi, pois Crasso mostrava-se sempre metódico e prudente. Não valia a pena mover uma perseguição declarada ao inimigo; o frio, a fome e a ausência de um objectivo real acabariam por esfriar o ímpeto dos espartacanos e por reduzir o tamanho do seu exército. Era melhor manter o comboio das bagagens no meio da coluna legionária do que correr o risco de o perder. Mais tarde ou mais cedo acabaria por apanhar Espártaco.
Em contrapartida, os batedores de Crasso mantinham-se muito atarefados. Já perto do fim de Março, informaram Crasso de que os espartacanos, depois de chegarem ao rio Sílaro, se tinham dividido em duas forças. Uma, dirigida por Espártaco, continuara a subir a Via Popília, na direcção da Campânia; a outra, comandada por Casto e Ganico, virara para leste, subindo o vale do médio Sílaro.
— Óptimo! — exclamou Crasso. — Por ora, vamos deixar Espártaco em paz e concentrar-nos nos dois samnitas.
Os batedores informaram-no depois que Casto e Ganico não tinham ido muito longe; tinham encontrado a próspera cidade de Volces e estavam a comer em condições pela primeira vez em dois meses. Não havia necessidade de se apressarem!
Quando as quatro legiões que antecediam o comboio de bagagens de Crasso se aproximaram de Volces, Casto e Ganico estavam demasiado ocupados com festejos para repararem nisso. Os espartacanos tinham-se espalhado (sem qualquer preocupação de montarem um acampamento) pelas margens de um pequeno lago que, naquela altura do ano, continha água potável; no Outono, aquele mesmo local seria muito menos aprazível. Por detrás do lago, havia uma montanha. Crasso viu imediatamente o que tinha de fazer e decidiu não esperar pelas quatro legiões que vinham atrás do comboio das bagagens.
— Pontino e Rufo, levem doze coortes e dêem a volta, furtivamente, pelo lado mais afastado da montanha. Quando estiverem em posição, carreguem. Dessa forma, cairão sobre o meio do... como é que lhe hei-de chamar? Acampamento? bom... Logo que vos veja, atacá-los-ei pela frente. Assim, vamos esmagá-los como se esmaga uma barata.
O plano deveria ter resultado. E teria resultado. Só que os batedores não podiam prever os caprichos da sorte. De facto, quando viram que Volces era um verdadeiro manancial de comida, Casto e Ganico mandaram uma mensagem a Espártaco, pedindo-lhe que alterasse o seu rumo e viesse ter com eles a Volces. Foi isso mesmo o que Espártaco fez. E no preciso momento em que Crasso lançava o seu ataque, Espártaco aparecia do outro lado do lago. Os homens de Casto e Ganico correram a misturar-se com os recém-chegados e todos os espartacanos desapareceram num instante.
Alguns generais teriam ficado furiosos com este fracasso. Mas não Crasso.
— Foi um acaso infeliz. Mas acabaremos por vencer — disse ele, imperturbável.
Uma série de tempestades abrandou os movimentos dos exércitos oponentes. Permaneceram durante algum tempo na região do Sílaro, até que por fim Espártaco pareceu deixar a Via Popília, enquanto que Casto e Ganico seguiram por essa estrada na direcção da Campânia. Crasso seguia furtivamente os seus movimentos, como uma aranha gorda que quisesse engordar ainda mais. Também ele decidira dividir as suas forças; o comboio das bagagens estava seguro. Duas legiões de infantaria e toda a cavalaria ficaram sob o comando de Lúcio Quíncio e Tremélio Escrofa; Crasso ordenou-lhes que perseguissem o segmento dos espartacanos que abandonasse a Via Popília; Crasso, por seu turno, perseguiria aqueles que avançassem por essa estrada.
Como a sua legião pertencia à divisão do general, César sentia-se positivamente maravilhado com a absoluta tenacidade e o rigoroso método daquele homem extraordinário. Em Éburo, não muito longe do Sílaro, apanhou finalmente Casto e Ganico e aniquilou o seu exército. Trinta mil morreram no campo de batalha; foram muito poucos aqueles que conseguiram escapar pelas linhas romanas e fugir para o exército de Espártaco.
Para todos os soldados do exército vitorioso, o maior prazer foi a descoberta que Crasso fez no meio das pilhas de bagagens espartacanas, após a batalha: as cinco águias que tinham sido levadas pelos espartacanos depois de várias forças romanas terem sido derrotadas, os estandartes de vinte e seis coortes e os fasces pertencentes a cinco pretores.
— Olhem-me só para isto! — exclamou Crasso, radiante. — Não é uma visão magnífica?
O general podia agora mostrar que, quando era preciso, era capaz de se mover muito mais depressa do que o normal. Chegara-lhe a notícia de que Lúcio Quíncio e Escrofa tinham caído numa emboscada — embora sem perdas graves — e que Espártaco continuava por perto. Crasso avançou.
O grande empreendimento tinha soçobrado. Espártaco dispunha agora apenas da parte do exército que marchava com ele até às nascentes do rio Tanagro; era tudo o que ele possuía, para além de Aluso e do seu filho.
Depois de não ter conseguido infligir uma derrota clara a Quíncio e Escrofa, porque a cavalaria destes, agüentando o embate, permitiu que a infantaria romana retirasse, Espártaco não fez qualquer movimento para deixar a região. Três pequenas cidades forneciam aos seus homens comida suficiente e o chefe dos rebeldes não fazia ideia nenhuma do que o esperava nos próximos vales. A Primavera aproximava-se; os celeiros estavam quase vazios, não havia legumes nos campos depois de um Inverno tão duro, as galinhas estavam magras e os porcos (astutas criaturas!) tinham-se escondido nos bosques. Um antipático cidadão de Potência, a cidade que ficava mais perto, tivera o maior prazer em deslocar-se ao acampamento de Espártaco para lhe dizer que Varrão Lúculo desembarcaria em breve em Brindísio e que o Senado lhe ordenara que reforçasse as tropas de Crasso.
— Os teus dias estão contados, gladiador! — disse o homem, cheio de júbilo. — Roma é invencível!
— Eu devia era cortar-te a garganta! — retorquiu o gladiador, cansado.
— Pois corta-me a garganta! Sempre esperei que o fizesses! E estou-me marimbando!
— Não te vou dar a satisfação de teres uma morte nobre. Vá, vai-te embora, vai para casa!
Aluso ouviu a conversa. Depois de o cidadão de Potência se ter ido embora (muito decepcionado com o facto de o seu sangue não ter manchado aquelas terras), Aluso abeirou-se de Espártaco e, agarrando-o ternamente pelo braço, disse-lhe:
— É aqui que tudo acaba — disse ela.
— Eu sei, mulher.
— Eu vi que vais perder a batalha, mas não te vi morto.
— Se eu perder a batalha, morrerei.
Espártaco estava exausto e a catástrofe de Cileu continuava a atormentá-lo. Como podia olhar para os seus homens na cara, sabendo que fora por causa da sua negligência que eles tinham ficado encurralados? As mulheres e as crianças tinham-se perdido e ele sabia que elas não voltariam. Tinham todas morrido de fome, algures nos bravios campos do Brútio.
Sem saber ao certo se aquilo que o homem de Potência lhe dissera sobre Varrão Lúculo era ou não verdade, Espártaco concluiu, contudo, que não poderia marchar na direcção de Brindísio. Crasso controlava a Via Popília; as notícias de Casto e Ganico tinham-lhe chegado ainda antes de ter lançado a sua emboscada a Quíncio e Escipia. Não tinha para onde ir. A não ser para o campo de batalha — onde a derrota o esperava. E sentia-se feliz, feliz, feliz... Não nascera, nem tinha as capacidades necessárias, para assumir uma tão grande responsabilidade — para zelar pelas vidas e pelo bem-estar de todo um povo. Não passava de um vulgar romano, de família italiana, que nascera nas encostas do monte Vesúvio. E era aí que devia ter ficado, com o pai e o irmão. Quem pensava ele que era, para tentar criar uma nova nação? Não era nobre, não era instruído, não era um grande homem. Mas havia alguma honra em morrer como um homem livre num campo de batalha; nunca mais voltaria a uma prisão. Isso nunca.
Quando soube que Crasso e o seu exército se estavam a aproximar, conduziu Aluso e o filho para uma carroça puxada por seis mulas e ordenou-lhes que se afastassem o suficiente para escaparem a qualquer tipo de perseguição. Teria preferido que fugissem imediatamente, mas Aluso recusou-se, dizendo que devia esperar pelo desfecho do conflito. Nas traseiras cobertas da carroça, havia ouro, prata, tesouros vários, moedas; uma garantia de que a mulher e o filho viveriam bem. Sabia que eles poderiam ser mortos. No entanto, o destino das pessoas estava nas mãos dos deuses e os deuses tinham-se comportado ultimamente de um modo muito estranho.
Cerca de quarenta mil espartacanos formaram para enfrentar Crasso. Espártaco não fez qualquer discurso antes da batalha, mas os seus soldados saudaram-no vibrantemente enquanto ele avançava pelo meio das hostes, montado no seu cavalo luxuosamente ataviado. Espártaco ocupou o seu lugar sob o estandarte do seu povo — o peixe de esmalte dos capacetes de combate gauleses — e desceu da sela. Tinha a espada na mão direita, o sabre encurvado de gladiador trácio; fechou os olhos, ergueu o sabre e mergulhou-o no pescoço do cavalo. O sangue esguichou e jorrou abundante, mas o belo cavalo não emitiu um único guincho de dor. Como uma vítima sacrificial, soçobrou num ápice, e o seu corpo caiu sem vida no chão.
Não era preciso nenhum discurso. A execução do seu amado cavalo dizia tudo o que era preciso aos seus soldados. Espártaco não tencionava deixar o campo vivo; tinha acabado de matar o animal em que poderia fugir.
A batalha não teve nada de invulgar ou complicado no que toca à estratégia ou à táctica. Foi, muito simplesmente, mais uma batalha sangrenta. Seguindo o exemplo de Espártaco, os seus homens lutaram até cair, alguns deles mortos, outros exaustos. Espártaco matou dois centuriões antes que um desconhecido lhe cortasse os tendões de uma perna. Incapaz de se manter de pé, caiu de joelhos, mas continuou a lutar obstinadamente até que uma imensa pilha de cadáveres se desfez e o enterrou.
Quinze mil espartacanos sobreviveram e conseguiram fugir; seis mil foram na direcção da Apúlia e os outros tomaram o rumo das montanhas do Brútio.
— Demorámos apenas seis meses a acabar com eles e, ainda por cima, numa campanha de Inverno — disse Crasso a César. — Perdi muito poucos homens e Espártaco está morto. Roma recuperou as águias e os fasces e uma grande parte do produto das pilhagens dos rebeldes ficará connosco, pois só muito dificilmente encontraremos os seus proprietários originais. O saldo será muito bom para todos nós.
— Há um problema, Marco Crasso — disse César, a quem fora dada a missão de inspeccionar o campo de batalha e verificar se ainda havia sobreviventes.
— Que problema?!
— Espártaco. Espártaco não está no campo.
— Ora essa! — exclamou Crasso, estupefacto. — Eu vi-o cair!
— Também eu. Até memorizei o sítio exacto. Posso levar-te lá. Vem, se quiseres eu levo-te! Mas a verdade é que ele não está lá, Marco Crasso. Não está lá.
— Que estranho! — O general bufou, comprimiu os lábios, pensou por um momento e, por fim, encolhendo os ombros, disse: — Mas afinal que importância é que isso tem? O exército dele acabou, isso é que importa. Não posso celebrar um triunfo por ter derrotado um inimigo considerado como um escravo. O Senado dar-me-á uma ovação, mas não é o mesmo. Não é o mesmo! — com um suspiro, perguntou: — E a mulher dele, aquela bruxa trácia?
— Também não a encontrámos, apesar de termos apanhado bastantes acompanhantes do exército espartacano. Perguntei-lhes por ela — descobri que ela se chama Aluso —, mas juraram-me que tinha fugido numa quadriga que faiscava lume, puxada por ferozes serpentes que a levaram directamente para o céu.
— Como o espectro de Medeia! Nesse caso, Espártaco só pode ser Jasão! — comentou Crasso, acompanhando César até ao local onde Espártaco ficara enterrado sob o monte de cadáveres. — O que eu acho é que os dois conseguiram fugir. Não achas?
— Sim, tenho a certeza que fugiram.
— bom, de qualquer modo temos de esquadrinhar os campos próximos à procura de espartacanos. Pode ser que eles apareçam.
César não respondeu. Em sua opinião, eles nunca mais apareceriam. Era inteligente, aquele gladiador. Demasiado inteligente para conduzir uma nova revolta e erguer um novo exército. Suficientemente inteligente para se reduzir ao anonimato para o resto da sua vida.
Durante todo o mês de Maio, o exército romano procurou os fugitivos espartacanos nas mais recônditas paragens da Lucânia e do Brútio, abrigos ideiais para bandoleiros. Era imperativo que fossem capturados todos os espartacanos que tinham sobrevivido à batalha. César calculara que seriam à volta de nove ou dez mil aqueles que tinham fugido para Sul. No entanto, tinham encontrado apenas seis mil e seiscentos fugitivos. Os restantes tornar-se-iam provavelmente bandidos, um perigo para quem descia a Via Popília na direcção de Régio sem uma escolta armada.
— Posso continuar com as operações de busca — disse ele a Crasso nas Calendas de Junho. — Mas será cada vez mais difícil encontrá-los e as capturas tornar-se-ão cada vez mais raras.
— Não — retorquiu firmemente Crasso. — Quero o meu exército de volta a Cápua no próximo dia de mercado. Incluindo as legiões dos cônsules. As eleições curuis estão marcadas para o mês que vem e eu quero dispor de tempo suficiente para disputar o consulado.
Esta notícia não constituía uma surpresa; César, de facto, nem considerou que merecesse comentários. Retomou, em vez disso, o tema dos fugitivos.
— E os cerca de seis mil que fugiram para Nordeste, para a Apúlia?
— Conseguiram chegar à fronteira da Gália Italiana — retorquiu Crasso. — Mas depois deram com Pompeu Magno e as suas legiões, que regressavam da Hispânia. Sabes bem como é Magno! Matou-os a todos!
— Nesse caso, só aqui é que há prisioneiros. Que queres fazer com eles?
— Irão connosco até Cápua. — Crasso fitou o seu tribuno sénior dos soldados com a sua habitual expressão fleumática, mas, nos olhos, havia uma frieza inexorável. — Roma não precisa destas fúteis guerras contra escravos, César. Estas guerras servem apenas para deixar o Tesouro mais pobre. Se a sorte não estivesse do nosso lado, tínhamos perdido para sempre cinco águias e cinco fasces, uma mancha insuportável na honra de Roma. E homens como Espártaco poderiam ser sempre aproveitados, sabe-se lá com que conseqüências, por algum inimigo de Roma. Outros homens poderiam tentar imitá-lo, sem nunca conhecerem a verdade. Tu e eu sabemos que Espártaco era um produto das legiões, um homem muito mais perto de um Quinto Sertório do que de um escravo maltratado. Se ele não fosse um produto das legiões, nunca teria ido tão longe. Não quero que ele se transforme numa espécie de herói escravo. Por isso, usarei Espártaco para pôr um ponto final em todo o fenómeno das revoltas de escravos.
— Isto foi mais uma revolta samnita do que uma revolta de escravos.
— É verdade. Mas os samnitas são uma maldição com que Roma vai ter de viver para sempre. Ao passo que os escravos vão ter de aprender qual é o seu lugar na sociedade. E eu tenho meios para lhes ensinar isso. E assim farei. Depois de ter acabado com o que resta dos espartacanos, não haverá mais levantamentos de escravos no nosso mundo romano.
Apesar de estar habituado a pensar rápido e a adivinhar o que ia na cabeça dos homens, a verdade é que, desta feita, César não fazia a mínima ideia do que Crasso tencionava fazer.
— E como é que vais conseguir isso? — perguntou. O contabilista respondeu-lhe.
— Foi o facto de haver seis mil e seiscentos prisioneiros que me deu a ideia — disse Crasso. — A distância entre Cápua e Roma é de cerca de duzentos quilômetros. Ora, se dividirmos esses duzentos quilômetros por seis mil e seiscentos prisioneiros, obteremos um resultado de trezentos metros para cada prisioneiro. E eu tenciono crucificar um espartacano todos os trezentos metros, entre Cápua e Roma. E ficarão dependurados das cruzes até apodrecerem, até ficarem reduzidos a ossos.
César respirou fundo.
— Uma paisagem horrenda.
— Tenho uma dúvida — disse Crasso, franzindo a testa. — Achas que ponha as cruzes todas do mesmo lado da estrada ou que asgdivida pelos dois lados alternadamente?
— Todas do mesmo lado — retorquiu imediatamente César. — Não tenho a mínima dúvida. Quer dizer, se estás a pensar na Via Ápia e não na Via Latina.
— Ah, sim, terá de ser a Via Ápia. É direita que nem uma seta e não tem tantos montes.
— Então, põe todas as cruzes do mesmo lado da estrada. O impacte visual será muito mais forte. — César sorriu. — Tenho alguma experiência no que toca a crucificações.
— Ouvi falar disso — retorquiu Crasso com um ar sério. — No entanto, não te posso dar este trabalho. Não é adequado a um tribuno dos soldados, pois o tribuno dos soldados é um magistrado eleito. É o praefectus fabrum quem deve tratar do caso.
Como o praefectus fabrum — o homem que tratava de todos os factores técnicos e logísticos relacionados com o abastecimento do exército — era um dos libertos de Crasso e mostrara já desempenhar as suas funções de um modo brilhante, nem César nem Crasso duvidaram que a operação decorreria da melhor maneira.
Assim, no final de Junho, quando Crasso, os seus legados e tribunos dos soldados e os tribunos militares que ele próprio nomeara, subiram a Via Ápia a partir de Cápua, escoltados por uma única coorte, o lado esquerdo da velha e esplêndida estrada estava já cheio de cruzes. De trezentos em trezentos metros, havia um antigo membro do exército espartacano preso a cordas que lhe apertavam cruelmente os braços por altura do cotovelo e as pernas ligeiramente abaixo dos joelhos. Crasso não revelara a mínima compaixão. Os seis mil e seiscentos espartacanos morreram lentamente, pois não lhes tinham partido as pernas ou os braços. Em todo o caminho desde Cápua até à Porta Capena, em Roma, ouvia-se um murmúrio constante de gemidos.
Muitas pessoas saíram a ver o horrendo espectáculo. Algumas levavam consigo um escravo recalcitrante, para que visse a obra de Crasso e percebesse que todo o amo tinha o direito de crucificar o seu escravo, caso este infringisse as normas instituídas. Mas muitos, depois de olharem para aquela paisagem de morte, regressaram imediatamente às suas casas; e aqueles que, por alguma razão, se viam obrigados a viajar pela Via Ápia, entre Cápua e Roma, davam graças aos deuses pelo facto de as cruzes se encontrarem apenas de um dos lados da estrada. Como a distância tornava aquela visão mais suportável, os habitantes de Roma iam sobretudo para o alto das Muralhas Sérvias para ver a triste paisagem das cruzes; uma paisagem que se estendia ao longo de quilômetros e em que os rostos dos crucificados não passavam de manchas muito, muito vagas.
Os cadáveres dos antigos soldados de Espártaco ficaram pendurados das cruzes durante dezoito meses, passando pelo lento ciclo de decadência que, depois de os despojar da pele e dos músculos, os transformou em meros esqueletos. Crasso não permitiria que as cruzes fossem deitadas abaixo enquanto não terminasse o seu consulado.
E, pensou César com alguma admiração, por certo que em toda a história de Roma nunca tinha havido uma campanha militar tão perfeita, tão clara, tão claramente definida: aquilo que começara com uma dizimação terminara com uma crucificação. Quando chegou à fronteira do rio Rubicão, Cneu Pompeu Magno não ordenou ao seu exército que parasse. A parte do Ager Gálico que possuía ficava em Itália e era para Itália que iria, ainda que as leis de Sila não o autorizassem a fazer isso. Os soldados estavam ansiosos por voltar a casa — e, para mais, o seu exército continuava a ser constituído maioritariamente pelos seus veteranos picentinos e úmbrios. Nas cercanias de Sena Gálica, instalou-os num vasto acampamento, ordenando-lhes que só o abandonassem depois de obterem a permissão de um tribuno. Finalmente, avançou na direcção de Roma, pela Via Flamínia, com uma coorte de infantaria a escoltá-lo.
A ideia tinha-lhe ocorrido pouco depois de ter iniciado a longa marcha a partir de Narbona, na direcção da passagem que descobrira através dos Alpes, e ficara espantado com o facto de só então ter chegado a essa conclusão. Já lhe tinham sido confiadas três comissões especiais: uma vez por Sila, duas vezes pelo Senado; duas vezes com estatuto propretoriano, uma vez com estatuto proconsular. Conclusão: ele era, indubitavelmente, o Primeiro Homem de Roma. Mas Pompeu também sabia que nenhuma das grandes personalidades romanas aceitaria isso. Por isso, teria de prová-lo a toda a gente. E a única maneira de o fazer seria lançar um golpe tão impressionante na sua audácia e tão obviamente inconstitucional que, depois de consumado, todos os homens teriam forçosamente de lhe conceder o título a que tinha direito: o Primeiro Homem de Roma.
Ele, que ainda era um cavaleiro, obrigaria o Senado a aceitá-lo como cônsul.
A opinião que tinha do Senado era cada vez mais negativa. Nunca gostara do Senado e não era agora que ia gostar. Era tão fácil comprar senadores como comprar bolos numa pastelaria. Por outro lado, o Senado sofria de uma inércia tão profunda que dificilmente moveria um dedo para impedir a sua própria queda. Quando iniciara a sua marcha de Tarento para Roma, com o objectivo de levar Sila a conceder-lhe um triunfo, Sila tinha recuado! Na altura, Pompeu não interpretara as coisas desse modo — tal era o efeito que Sila tinha sobre as pessoas —, mas agora compreendia que a sua iniciativa resultara numa vitória para si e não para Sila. E Sila era um adversário incomparavelmente mais poderoso do que o Senado.
Durante o seu último ano nas províncias ocidentais, acompanhara as notícias dos êxitos de Espártaco com a maior incredulidade; não podia acreditar que os cônsules Gélio e Clodiano (que ele próprio comprara) fossem tão incompetentes no campo de batalha — e, ainda por cima, a melhor desculpa que encontraram para o seu fracasso foi a má qualidade dos seus soldados! Pompeu sentira-se tentado a escrever-lhes que, se fosse com ele, até um exército de eunucos se teria portado melhor! No entanto, conteve-se: não fazia sentido estar a hostilizar dois homens que ele comprara a um preço muito alto.
Em Narbona, teve conhecimento de outros dois factos que só vieram reforçar a sua incredulidade. O primeiro foi-lhe referido numa carta de Gélio e Clodiano: o Senado retirara-lhes o comando da guerra contra Espártaco. O segundo, soube-o através de Filipe: depois de ter feito chantagem com o Senado para obter uma lei da Assembleia do Povo, Marco Licínio Crasso atrevera-se a aceitar o comando, contando com oito legiões e uma vasta força de cavalaria. Pompeu, que tinha feito campanhas com Crasso, considerava-o um general medíocre, tão medíocre como as suas tropas. Por isso, enquanto lia a carta de Filipe, Pompeu não parava de abanar a cabeça, não só porque reprovava a medida do Senado, mas também porque não acreditava que Crasso conseguisse derrotar Espártaco.
No preciso momento em que deixou Narbona, pôde consolidar a opinião que tinha acerca da guerra contra Espártaco — era tão pouca a qualidade das tropas de Crasso que ele decidira dizimá-las! E uma tal decisão, como todos os comandantes sabiam, fosse pelas lições da história, fosse pelos manuais do método militar, estava sempre votada ao fracasso — porque minava por completo o moral dos soldados. A dizimação serviria apenas para os tornar ainda mais cobardes. Mas aquilo era mesmo típico daquele brutamontes que dava pelo nome de Crasso! Só ele acreditaria que a dizimação poderia acabar com as deficiências do seu exército!
Começou então a pôr a hipótese de chegar a Itália a tempo de esmagar Espártaco. E foi nessa altura que, como um trovão, irrompeu A IDEIA. Claro que o Senado lhe pediria de joelhos que aceitasse outra comissão especial — a exterminação dos espartacanos. Desta vez, porém, só aceitaria a missão depois de ter sido nomeado cônsul. Se Crasso podia fazer chantagem sobre os senadores e obter um comando legalizado pelo Povo, que resistência poderia oferecer o Senado a Cneu Pompeu Magno? Nenhuma! O título de procônsul (non pró consule, sed pró consulibus) já não lhe chegava! Estaria condenado a ser o eterno burro de carga do Senado, a quem impingiam perpetuamente um império desvinculado de um verdadeiro poder senatorial? Não, nem pensar! Nunca, nunca mais! Não se importava de entrar para o Senado, desde que o fizesse na qualidade de cônsul. Tanto quanto se lembrava, nunca ninguém tinha conseguido tal proeza. Seria uma novidade absoluta, uma novidade espectacular — algo que demonstraria a toda a gente que ele era, de facto, o Primeiro Homem de Roma.
Ao longo da Via Domícia, Pompeu entregara-se às suas fantasias e mostrava-se tão feliz e afável que Varrão (entre muitos outros) não conseguia perceber o que se passaria naquela cabeça. Por vezes, Pompeu sentia-se tentado a contar o que lhe ia na alma, mas depois refreava-se e guardava para si mesmo o seu delicioso plano. Varrão e os outros em breve ficariam a saber.
Esta disposição jubilosa manteve-se depois de a nova passagem dos Alpes ter sido pavimentada e de o exército ter descido o vale dos Salassos na direcção da Gália Italiana. Já na Via Emília, Pompeu continuava a assobiar e a cantarolar como um menino. Até que, na pequena cidade de Fórum Popílios, já bem no interior da Itália, veio o terrível golpe. Pompeu e as suas seis legiões esmagaram literalmente uma multidão desgarrada e desgarradamente armada — tratava-se, evidentemente, de soldados espartacanos. Cercá-los e matá-los foi fácil; o que foi difícil para Pompeu foi saber que Marco Crasso aniquilara o exército de Espártaco numa batalha travada há menos de um mês. A guerra contra Espártaco estava acabada.
A sua tristeza tornou-se tão evidente que todos os seus legados concluíram que a alegria anterior se devia ao facto de Pompeu contar com uma nova campanha mal chegasse a Roma. Mas a ninguém ocorreu que Pompeu planeara tornar-se cônsul precisamente por causa dessa eventual campanha. Durante vários dias, a tristeza foi a única companhia de Pompeu; até mesmo Varrão evitava estar com ele.
Ah, perguntava-se Pompeu, mas porque é que eu não soube disto quando estava na Gália Transalpina? Terei de recorrer à ameaça que o meu exército representa, mas a verdade é que infringi a constituição de Sila, introduzindo esse exército no território da Itália. E Crasso ainda tem um exército operacional. Se eu estivesse na Gália Transalpina, podia esconder-me lá até que Crasso celebrasse a sua ovação e as suas tropas retomassem a vida civil. Poderia usar os senadores que comprei para bloquearem as eleições curuis até que eu avançasse. Mas a verdade é que estou em Itália. E por isso, terei de recorrer à ameaça personificada pelo meu exército.
No entanto, estes sucessivos dias de tristeza deram lugar a uma nova disposição; quando conduziu os seus homens para o acampamento de Sena Gálica, Pompeu não assobiava nem cantarolava, mas também já não tinha uma expressão soturna. Depois de muito reflectir, tinha chegado a uma importante questão: afinal, o que valia o exército de Crasso? Resposta: não valia nada, pois era a escória da Itália, gente demasiado cobarde para enfrentar o inimigo. A vitória de Crasso não tinha alterado em nada essa realidade. Os seis mil fugitivos que ele encontrara em Fórum Popílios eram, pura e simplesmente, patéticos. Talvez a dizimação tivesse dado alguma coragem aos homens de Crasso — mas quanto tempo duraria essa coragem? E alguma vez poderia comparar-se com a magnífica coragem, com a magnífica perseverança dos seus homens, que tinham suportado o calor e o frio da Hispânia, durante anos, sem receberem salário, sem qualquer possibilidade de saque, sem comida em condições, sem agradecimentos do Senado? Não. A resposta final era clara e definitiva: NÃO!
E à medida que se ia aproximando de Roma, Pompeu ia recuperando gradualmente a boa disposição e o ar feliz de algum tempo antes.
— Diz-me uma coisa, Magno: em que é que tu andas a pensar? — perguntou-lhe Varrão.
— Ando a pensar que me devem um Cavalo Público. O Tesouro nunca me pagou o meu querido cavalo.
— Então este cavalo não é o teu Cavalo Público? — perguntou Varrão, apontando para a montada ruça de Pompeu.
— O quê?! Esta pileca? — retorquiu Pompeu com o maior desdém. — O meu Cavalo Público tem de ser branco.
— Mas este também não é nenhuma pileca, Magno — retorquiu o proprietário de uma parte da rosea rura, um especialista reconhecido em cavalos. — Na realidade, trata-se de um animal magnífico.
— Só porque pertenceu a Perperna?
— Não! Só porque pertence a si mesmo!
— Pois bem, para mim não chega!
— Era nisso que estavas a pensar?
— Era. O que é que achas que eu estava a pensar?
— Eu não acho nada! Por isso te perguntei!
— Não tens nenhum palpite? Varrão franziu o sobrolho.
— Pensei que tinha adivinhado quando esmagámos os espartacanos. Pensei que tinhas previsto obter mais uma comissão especial e que tinhas ficado muito decepcionado quando descobriste que Espártaco tinha morrido. Mas agora, francamente, não faço a mínima ideia!
— Pois bem, Varrão, podes continuar a fazer palpites. Creio que, neste caso, serei o meu próprio conselheiro. Pelo menos por ora — retorquiu Pompeu.
A coorte que Pompeu escolhera para o escoltar até Roma era constituída por homens que viviam em Roma. Este tipo de senso comum era característico de Pompeu — para quê arrastar para Roma homens que prefeririam ir para outro sítio? Por isso, depois de os ter instalado num pequeno acampamento junto à Via Recta, Pompeu permitiu-lhes que vestissem os trajes civis e visitassem a cidade. Afrânio, Petreio, Gabínio, Sabino e os outros legados depressa seguiram o exemplo dos soldados, tal como Varrão, que estava ansioso por ver a mulher e os filhos.
E assim Pompeu ficou sozinho no comando do Campo de Marte — ou pelo menos no seu segmento do Campo de Marte. À sua esquerda, mais próximo da cidade, havia outro pequeno acampamento. O acampamento de Marco Crasso. Pelos vistos, escoltado também por uma única coorte. Tal como Pompeu, Crasso também tinha uma bandeira escarlate à saída da tenda de comando, para indicar que o general se encontrava presente.
Ah, que infortúnio!... Por que raio teria de haver um outro exército dentro de Itália? Mesmo que esse exército fosse constituído por cobardes? Não fazia parte dos planos de Pompeu travar uma guerra civil; essa era uma ideia que não lhe agradava. Não eram a lealdade ou o patriotismo que o levavam a rejeitar a ideia. A razão era outra: é que Pompeu não sentia dentro de si as emoções que homens como Sila sentiam. Para Sila, não tinha havido alternativa possível. Roma era a cidadela em que morava o seu coração, a sua honra, a própria fonte da sua vida. Ao passo que a cidadela de Pompeu sempre fora e seria o Piceno. Não, não travaria uma guerra civil. Mas era preciso que os outros pensassem que ele estava disposto a travá-la. Sentou-se para fazer o rascunho da sua carta para o Senado.
Para o Senado de Roma:
Eu, Cneu Pompeu Magno, recebi uma comissão especial do Senado, já lá vão seis anos, para pôr termo à revolta de Quinto Sertório na Hispânia Citerior. Como sabem, em conjunto com o meu colega na província ulterior, Quinto Cecília Metelo Pio, consegui esmagar essa revolta e provocar a morte de Quinto Sertório. E também a morte dos seus vários legados, incluindo o miserável Marco Perperna Veiento.
Não trouxe comigo grandes despojos. Não havia grandes despojos num país devastado por uma longa série de catástrofes. A guerra de Hispânia foi, para Roma, uma guerra feita de incertezas. No entanto, peço-lhes a celebração de um triunfo, ciente de que procedi de acordo com o que me foi ordenado, ciente de que muitos milhares de inimigos de Roma morreram devido à minha acção. Peço ainda que este triunfo me seja concedido sem demora, a fim de que possa candidatar-me ao consulado, nas eleições curuis que serão disputadas em Quinctilis.
Pompeu tinha pensado em fazer um rascunho para que Varrão fizesse a revisão habitual e desse à carta um tom mais diplomático. Porém, depois de ter lido aquela breve nota por várias vezes, chegou à conclusão de que não era preciso melhorá-la. Era preciso dar-lhes forte!, como Metelo Pio lhe aconselhara na Hispânia.
Filipe chegou no preciso momento em que Pompeu, depois de ter lido a carta uma última vez, se recostava satisfeito na sua cadeira.
— Ainda bem que vieste! — exclamou Pompeu, levantando-se e cumprimentando Filipe. — Tenho uma carta para tu leres. E podes levá-la para o Senado.
— Pedindo o triunfo a que tens direito? — perguntou Filipe, sentando-se com um suspiro; tinha vindo a pé porque as liteiras eram demasiado lentas, mas esquecera-se de que o acampamento ficava muito longe e de que em Junho já fazia muito calor (ainda que, pelas estações, fosse ainda Primavera).
— Algo mais que isso — retorquiu Pompeu, entregando-lhe a sua tábua de cera com um sorriso imenso.
— Não me ofereces primeiro uma bebida, meu caro? Filipe demorou algum tempo a decifrar a horrenda caligrafia
de Pompeu; chegou à última frase no preciso momento em que bebia o seu primeiro gole de vinho misturado com água — e tão grande foi a sua surpresa que se engasgou. Desatou a tossir e a salpicar tudo de vinho e tão grande era a sua aflição que Pompeu teve de lhe bater nas costas. Só ao fim de algum tempo conseguiu recompor-se o suficiente para comentar a carta.
No entanto, não fez qualquer comentário. Em vez disso, olhou para Pompeu como se nunca o tivesse visto antes. Era um olhar genuinamente exploratório, um olhar que percorreu o corpo musculado, ainda vestido com a couraça e o saiote, a pele branca e ligeiramente sardenta, o rosto extremamente atraente com a covinha no queixo e a cabeleira de um ouro muito vivo. Uma cabeleira como a de Alexandre. E os olhos — grandes, cândidos, impacientes, de um azul tão radiante! Pompeu Magno, o novo Alexandre. Onde é que ele tinha ido buscar aquela ousadia, aquela irreverência que lhe permitia fazer um tal pedido? O pai fora um homem muito estranho, mas o filho sempre conseguira convencer as pessoas de que não tinha nada de estranho. Ah, mas o filho era muito mais estranho que o pai! Lúcio Márcio Filipe surpreendia-se com muito poucas coisas. Mas aquilo era mais do que uma mera surpresa. Era um choque capaz de levar um homem desta para melhor!
— Isto é mesmo a sério? — perguntou ele com uma voz sumida.
— Porque é que não havia de ser?
— Magno, aquilo que tu pedes não te pode ser concedido! Não é... não é possível! Pura e simplesmente! É algo que vai contra todas as leis, escritas ou não escritas! Ninguém pode ser cônsul sem passar antes pelo Senado! Até mesmo o jovem Mário e Cipião Emiliano só foram eleitos cônsules depois de terem passado pelo Senado! Poderás talvez dizer que Cipião Emiliano abriu um precedente ao tornar-se cônsul antes de ser pretor. Por outro lado, o jovem Mário nunca tinha passado de questor. Mas entrou para o Senado muito antes das eleições! E Sila eliminou por completo tais precedentes! Magno, por favor, não mandes esta carta!
— Eu quero ser cônsul! — disse Pompeu, comprimindo muito os lábios.
— A tua carta vai provocar uma tal tempestade de gargalhadas que, num instante, a terás de volta! Não, Magno, tu não podes ser cônsul!
Pompeu sentou-se, descansou uma perna sobre o braço da cadeira e pôs-se a balançar com o pé.
— Claro que posso, Filipe! — disse ele, com um ar muito doce. — Eu tenho seis legiões constituídas pelos melhores e mais duros soldados do mundo. E o que essas legiões dizem é que eu posso ser cônsul.
Filipe ficou sem fôlego. Começou a tremer.
— Tu não farias uma coisa dessas! — exclamou.
— Faria, sim.
— Mas Crasso tem oito legiões em Cápua! Seria uma nova guerra civil!
— Ora! — retorquiu Pompeu, balançando ainda o pé. — Oito legiões de cobardes. Uma boa sobremesa para o meu jantar.
— Isso era o que dizias de Quinto Sertório.
eO pé parou. Pompeu ficou lívido, o corpo muito tenso.
— Nunca mais me digas uma coisa dessas, Filipe!
— Oh, caçai! — gemeu Filipe, contorcendo as mãos. — Magno, Magno, por favor, não faças uma coisa dessas! Onde é que foste buscar essa ideia de que Crasso comanda um exército de cobardes? É por causa das legiões dos cônsules, da dizimação? Pois bem, desengana-te! Ele conseguiu formar um exército esplêndido, um exército que em lealdade não fica nada a dever ao teu. Marco Crasso não é um Gélio, não é um Clodiano! Sabes o que ele fez na Via Ápia, entre Cápua e Roma?
— Não — retorquiu Pompeu, com uma expressão em que se notava um nada de incerteza. — O que é que ele fez?
— Crucificou seis mil e seiscentos espartacanos em seis mil e seiscentas cruzes ao longo da Via Ápia, entre Cápua e Roma. Uma cruz em cada trezentos metros, Magno! Dizimou os sobreviventes das legiões dos cônsules, para lhes mostrar o que pensava dos soldados cobardes, e crucificou os sobreviventes do exército de Espártaco para mostrar a todos os escravos o que lhes acontecerá se se revoltarem. Estas não são acções de um homem que tu possas menosprezar, Magno! São acções de um homem que é muito capaz de deplorar uma guerra civil — uma guerra civil só lhe prejudicará os negócios! —, mas que, se receber ordens do Senado nesse sentido, pegará em armas contra ti. E terá bastantes hipóteses de te destruir! A incerteza deu lugar à obstinação.
—vou dizer ao meu escriba que copie a minha carta. E tu amanhã vais lê-la no Senado, Filipe.
— Vai ser o teu fim!
— Não vai.
A entrevista tinha chegado ao fim; Filipe levantou-se. Ainda não tinha saído da tenda e já Pompeu começava a escrever outra carta. Desta feita, dirigida a Marco Licínio Crasso.
Recebe as minhas saudações e congratulações, meu velho amigo e colega dos tempos da guerra contra Carbão. Enquanto estava a pacificar a Hispânia, soube que tu estavas a pacificar a Itália. Disseram-me que transformaste os cobardes consulares num magnífico exército e que nos ensinaste a todos qual era a melhor maneira de lidar com escravos rebeldes.
Uma vez mais, dou-te os meus parabéns. Se não pensas sair do teu acampamento esta noite, posso dar aí um salto para termos uma conversinha?
— Mas o que é que ele quererá agora? — perguntou Crasso a César.
— Que interessante! — comentou César, devolvendo a carta a Pompeu. — Tem um estilo literário muito pobre.
— Estilo literário?! Ele sabe lá o que isso é! Não passa de um bárbaro!
— Tencionas recebê-lo para a tal ”conversinha”? E será que esta expressão é inocente?
— Conhecendo Pompeu como eu conheço, creio que ele pensa que essa é a expressão correcta. bom, de qualquer forma era minha intenção ficar no acampamento. Portanto,vou recebê-lo — disse Crasso.
— Comigo ou sem mim? — perguntou César.
— Contigo. Conhece-lo?
— Vi-o há muito, muito tempo. Mas duvido que ele se lembre de mim ou da ocasião em que nos conhecemos.
Uma afirmação que Pompeu confirmou ao chegar à tenda de Crasso.
— Alguma vez nos vimos, Caio Júlio? Não me lembro. O riso de César foi espontâneo, mas sem sinal de troça.
— Não me surpreende que não te lembres, Cneu Pompeu. Tu só tinhas olhos para Múcia.
Fez-se luz na cabeça de Pompeu.
— Ah, sim! Tu estavas em casa de Júlia quando eu fui lá para conhecer a minha esposa! Claro!
— Como está ela? Há anos que não a vejo.
— Eu tenho-a em Piceno — respondeu Pompeu, sem se dar conta de que uma tal resposta podia soar estranha. — Temos dois filhos. Um casal. E espero ter mais em breve. Infelizmente, também não a vejo há anos, Caio Júlio.
— César. Prefiro que me chamem César.
— Óptimo! É que eu prefiro que me tratem por Magno!
— Não tenho dúvida!
Crasso decidiu que era tempo de intervir.
— Senta-te, Magno, por favor. Estás com um aspecto óptimo para a tua idade. Sim, porque tu já estás a ficar velho. Trinta e cinco, não é?
— Só no penúltimo dia de Setembro.
— Isso são miudezas. O que interessa é que tu, em trinta e cinco anos, já fizeste mais do que a maior parte dos homens faz em setenta. O que tu não terás feito quando chegares aos setenta! Mas, conta-me lá, como é que está a Hispânia? Tudo resolvido?
— Tudo calmo. Mas — acrescentou Pompeu com um ar magnânimo — tive a meu lado um homem extremamente competente.
— Sim, o velho Pio. Foi uma grande surpresa para toda a gente. Nunca tinha feito nada antes de ir para a Hispânia. — Crasso levantou-se. — Vinho?
Pompeu riu-se.
— Só se a safra for melhor do que da última vez! Sim, porque tu és um forreta incurável!
— O vinho é sempre o mesmo — disse César.
— É vinagre!
— Ainda bem que eu não bebo vinho. Caso contrário, não agüentava uma campanha com ele — disse César, com um sorriso.
— Não bebes vinho?! Por todos os deuses! — Perplexo, Pompeu virou-se para Crasso. — Já pediste a celebração do teu triunfo? — perguntou.
— Eu não posso pedir um triunfo. O Senado considera que a guerra contra Espártaco foi uma guerra contra escravos. Por isso, só posso pedir uma ovação. — Crasso pigarreou, parecendo um pouco perturbado. — No entanto, pedi uma ovação. O mais depressa possível. Quero deixar o meu império a tempo, a fim de disputar as eleições consulares.
— Sim, claro, como foste pretor há dois anos, não há qualquer impedimento — disse Pompeu, com um ar falsamente alegre. — Duvido que tenhas dificuldade em chegar ao consulado depois da tua retumbante vitória. Ovação num dia, cônsul no dia seguinte.
— É essa a minha ideia — disse Crasso, que ainda não tinha sorrido. — Tenho de convencer o Senado a conceder-me terra para pelo menos metade dos meus soldados. Por isso, o consulado será uma ajuda.
— Lá isso será — disse Pompeu cordialmente, levantando-se imediatamente. — bom, tenho de ir. Gosto de dar os meus passeios. Andar a pé faz bem. Impede-me de engordar. De ficar velho, como tu dizes!
E foi-se logo embora, deixando Crasso e César a olhar um para o outro, estupefactos.
— Mas que ideia era a dele? — perguntou Crasso.
— Tenho o pressentimento — disse César, com um ar pensativo — de que muito em breve saberemos.
Visto que, ao princípio da tarde, tinha recebido, das mãos de um mensageiro, a cópia da carta de Pompeu, já com a caligrafia apurada do escriba, Filipe não esperava mais notícias de Pompeu até que lesse a carta no Senado. Porém, mal acabou de jantar, bateu-lhe à porta um outro mensageiro de Pompeu, pedindo-lhe que fosse ao Campo de Marte. Por um momento, Filipe, completamente fora de si, chegou a pensar numa recusa pura e simples; mas lembrou-se da choruda soma que Pompeu continuava a pagar-lhe todos os anos, e, com um suspiro, ordenou que lhe trouxessem uma liteira. Agora já não ia a pé!
— Se mudaste de intenções quanto à leitura da carta no Senado, só precisavas de me informar, Magno! Não era preciso eu vir cá pela segunda vez num só dia!
— Ah, não te preocupes com a carta! — retorquiu Pompeu, impaciente. — Lê a carta e não te importes se eles se desmancharem a rir! Em breve, deixarão de ter vontade de rir. Não, não foi por causa disso que te chamei. Tenho um trabalho para ti que é muito mais importante e quero que comeces imediatamente.
Filipe franziu muito o sobrolho.
— Que trabalho? — perguntou.
—vou pôr Crasso do meu lado — disse Pompeu.
— Ah sim?! E como é que vais fazer isso?
— Não sou eu quem vai fazer isso. Tu e o meu grupo de pressão é que vão fazer. Quero que influencies o Senado no sentido de recusar a Crasso a concessão de terras para os seus soldados. Mas tens de agir imediatamente, antes que ele receba a ovação e muito antes das eleições curuis. Tens de manobrar as coisas de modo a impedir que Crasso ofereça o seu exército ao Senado, caso o Senado decida que ele tem de me esmagar pela força das armas. Fui ver Crasso há umas horas atrás e só então me apercebi do que devia fazer. E sugere que ele quer disputar o cargo de cônsul porque acredita que, nessa qualidade, estará em melhor posição para pedir terra para os seus veteranos. Tu conheces bem Crasso! Crasso nunca gastaria dinheiro do seu bolso para oferecer terras aos seus soldados. No entanto, quando os desmobilizar, vai ter de lhes oferecer terras. Provavelmente não pedirá muito — no fim de contas, tratou-se de uma campanha breve. E é por aqui que tu vais pegar — uma campanha de seis meses não justifica que se distribua pelos soldados o ager publicus, tanto mais que o inimigo era um exército de escravos! Se o produto do saque fosse avultado, talvez o exército se contentasse com ele. Mas eu conheço Crasso! A maior parte do saque não aparecerá na lista para o Tesouro. Ele não consegue dominar-se — fará tudo para ficar com o saque só para ele. E, por isso mesmo, tentará levar o Estado a compensar os seus homens.
— Na realidade, ouvi dizer que o saque não foi grande coisa — disse Filipe, sorrindo. — Crasso declarou que Espártaco gastou quase tudo o que tinha com os piratas, quando tentou contratá-los para o levarem para a Sicília. Porém, de acordo com outras fontes, a verdade seria outra: a soma que Espártaco pagou aos piratas seria apenas metade do que ele tinha em dinheiro.
— Isso é mesmo típico de Crasso! — disse Pompeu, com um sorriso escarninho, lembrando-se de outras situações parecidas. — É o que eu te digo: a ganância é mais forte que ele. Quantas legiões tem ele? Oito? Vinte por cento para o Tesouro, vinte por cento para Crasso, vinte por cento para os legados e tribunos, dez por cento para a cavalaria e centuriões e trinta por cento para a infantaria.
O que significa que cada soldado de infantaria receberia cerca de cento e oitenta e cinco sestércios. Uma soma que não dá para muito tempo, pois não?
— Não sabia que eras tãobom em contas, Magno!
— Sempre fui melhor em contas do que a ler ou a escrever.
— E quanto vão receber os teus homens do produto do saque?
— Praticamente o mesmo. Mas a repartição dos despojos é honesta e eles sabem que é. Eu tenho sempre representantes dos soldados comigo quando faço as contas do produto do saque. Isso fá-los sentir-se bem, não tanto por poderem confirmar que o general é honesto, mas sobretudo porque acham que é para eles uma honra participar nas contas. Os meus soldados que ainda não têm terras receberão terras. Do Estado, espero. Mas se não for o Estado a dar-lhas, eu próprio lhas darei.
— É muito generoso da tua parte, Magno.
— Não, Filipe, não se trata de generosidade. Trata-se, antes, de acautelar o futuro. Euvou precisar desses homens — e dos filhos deles! — no futuro e, por isso, não me importo de ser generoso agora. Mas quando eu for velho e travar a minha última campanha, garanto-te que não serei eu a suportar os prejuízos! — disse Pompeu, com um ar decidido. — A minha última campanha vai trazer-me mais dinheiro do que Roma alguma vez viu em cem anos. Não sei que campanha será, mas sei que escolherei uma campanha rica. É na Partia que eu estou a pensar. E quando trouxer as riquezas da Partia para Roma, espero que Roma dê terras aos meus veteranos. A minha carreira, até agora, já me levou muito do meu dinheiro — e tu sabes muito bem o que eu te tenho pago todos os anos, a ti e aos outros membros do meu grupo de pressão no Senado!
Filipe curvou-se, com um ar defensivo.
— Está descansado que o teu dinheiro dará os frutos esperados!
— Espero bem que sim, meu amigo. E podes começar já amanhã — disse Pompeu, com um ar jovial. — O Senado deve recusar-se a dar terras às tropas de Crasso. Também quero que adiem as eleições curuis. E quero que o meu pedido de autorização para disputar o consulado seja afixado no Senado. Entendido?
— Perfeitamente — retorquiu o contratado de Pompeu, levantando-se. — Só estou a ver um problema, Magno. Há muitos senadores que devem dinheiro a Crasso e duvido que os possamos pôr do nosso lado.
— Podemos, se dermos aos homens que não têm dívidas exorbitantes o dinheiro necessário para pagarem a Crasso. Vê quantos lhe devem quarenta mil sestércios ou menos. Se esses senadores estiverem já do nosso lado ou quiserem estar, dá-lhes ordens para que paguem a Crasso imediatamente. Isso é o suficiente para que Crasso perceba quão séria é a sua situação — disse Pompeu.
— Mesmo assim, gostaria que me deixasses adiar a leitura da tua carta!
— Vais ler a minha carta amanhã, Filipe. Não quero que haja ilusões quanto aos meus motivos. Quero que o Senado e Roma saibam, aqui e agora, que euvou ser cônsul no próximo ano.
Roma e o Senado sabiam já dessa novidade a meio do dia seguinte, pois foi a essa hora que Varrão irrompeu pela tenda de Pompeu, todo esbaforido e desalinhado.
— Não pode ser verdade! — disse Varrão com alguma dificuldade, atirando-se para cima de uma cadeira e passando com a mão pelo rosto suado.
— É verdade.
— Água. Preciso de água. — Fazendo um esforço enorme, Varrão levantou-se da cadeira e foi até à mesa onde Pompeu guardava as suas bebidas. Bebeu umbom gole de água, encheu de novo a taça e voltou para a cadeira. — Magno, eles vão esmagar-te como se esmaga uma traça!
Pompeu fez um gesto de desdém ao ouvir tal comentário. Depois, fitando impacientemente Varrão, perguntou-lhe:
— Como é que eles reagiram, Varrão? Quero ouvir todos os pormenores!
— bom, Filipe apresentou um pedido para falar ao cônsul Orestes — que é quem tem os fasces para Junho — ainda antes da sessão começar. E como foi ele quem pediu a realização daquela reunião, falou aos outros senadores logo que os augúrios terminaram. Levantou-se e leu a tua carta.
— E eles? Riram-se?
Varrão, que ia beber mais um gole de água, suspendeu o seu gesto, tão espantado ficou com a pergunta.
— Rir?! Por todos os deuses, Magno, ninguém se riu! Todos os senadores ficaram estupefactos. Depois começaram a murmurar, baixinho de início, mas depois cada vez mais alto, até que a certa altura já estava tudo aos gritos. O cônsul Orestes conseguiu por fim restabelecer a ordem e Catulo pediu para falar. Imagino que sabes o que ele disse.
— Disse que nem pensar. Que era inconstitucional. Uma afronta a todos os preceitos legais e éticos da história de Roma.
— Isso tudo e ainda mais. Quando acabou o discurso, até espumava da boca.
— Que aconteceu depois de ele se ter calado?
— Filipe fez um discurso francamente magnífico — um dos melhores que já lhe ouvi, e ele é um grande orador. Disse que tu merecias o consulado, que era ridículo pedir a um homem que fora propretor duas vezes e procônsul uma vez que entrasse furtivamente para o Senado sob voto de silêncio. Disse que tu tinhas salvo Roma de Sertório, que tinhas transformado a Hispânia Citerior numa província modelo, que tinhas até aberto uma nova passagem através dos Alpes, e que tudo isso provava que foras sempre o mais leal dos servidores de Roma. Não sou capaz de reproduzir todas as maravilhas do seu discurso — se quiseres, pede-lhe uma cópia —, mas a verdade é que causou uma profunda impressão. Quanto a isso, não tenho a mínima dúvida.
”Só que nesse momento — prosseguiu Varrão, com um ar perplexo — mudou completamente de assunto! Que coisa mais estranha! Depois de ter defendido a tua eleição como cônsul, pôs-se a falar do hábito de se distribuir bocadinhos do nosso precioso ager publicus, para se saciar a ganância dos nossos soldados, os quais, graças a Caio Mário, esperavam sempre uma recompensa em terras públicas, mesmo que tivessem participado na mais breve e apagada das campanhas! E acentuou que essas terras eram dadas, não em nome de Roma, mas em nome do general! Há uma prática que terá de acabar, disse ele. A prática que consiste em criar exércitos privados à custa do Senado e do Povo, porque dá aos soldados a ideia de que pertencem primeiro ao seu general e só depois a Roma.”
— Óptimo! — disse Pompeu, todo contente. — Filipe parou aí?
— Não — disse Varrão, bebendo mais água. Lambeu os lábios, o que nele era uma reacção nervosa; ocorrera-lhe de repente que Pompeu estava por detrás de toda aquela trama. — Depois, referiu-se especificamente à campanha contra Espártaco e ao relatório que Crasso enviou ao Senado. Filipe reduziu Crasso a pó! A pó, Magno! Como é que Crasso se atrevia a pedir terras para os seus soldados, quando estes, só depois da dizimação, mostraram coragem para combater o inimigo! E como é que Crasso se atrevia a pedir terras para homens que só tinham feito aquilo que se espera de qualquer romano leal — esmagar um inimigo que ameaça a sua terra natal! Uma guerra contra um poder estrangeiro era uma coisa, disse ele, mas uma guerra contra um bandido que conduzia um exército de escravos, em solo italiano, era uma coisa completamente diferente. Nenhum homem tinha o direito de pedir recompensas quando defendia a sua terra natal. E Filipe terminou pedindo ao Senado que não tolerasse a impudência de Crasso, nem que encorajasse Crasso a pensar que podia comprar a lealdade dos seus soldados à custa de Roma.
— Magnífico Filipe! — exclamou Pompeu, radiante. — E que aconteceu depois?
— Catulo levantou-se de novo, mas desta feita para apoiar Filipe. Disse que Filipe tinha toda a razão quando pedia que se pusesse cobro à prática iniciada por Caio Mário. Essa prática de distribuir terras pelos soldados tem de acabar!, disse Catulo. O ager publicus de Roma tem de continuar a ser do Estado. Não pode ser usado para comprar a lealdade dos soldados aos seus comandantes!
— E o debate terminou aí?
— Não. Cetego falou depois, para apoiar sem reservas Filipe e Catulo. Sem reservas, insistiu ele. E houve mais uma dúzia que fizeram o mesmo: Curió, Gélio e Clodiano, entre outros. Por fim, Orestes decidiu concluir a sessão.
— Que maravilha! — exclamou Pompeu.
— És tu que estás por detrás disto tudo, não é verdade, Magno? Os olhos azuis abriram-se muito.
— Eu? Que queres dizer com isso, Varrão?
— Sabes muito bem o que quero dizer — retorquiu Varrão, furioso. — Estás a usar todos os teus representantes no Senado para cavar um abismo entre Crasso e o Senado! E se tiveres êxito, conseguirás retirar o exército de Crasso do comando do Senado. E se o Senado não tiver nenhum exército para comandar, Roma não poderá dar-te a lição que tu mereces, Cneu Pompeu!
Genuinamente ferido, Pompeu fitou o amigo com olhos de súplica.
— Varrão, Varrão! Eu mereço ser cônsul!
— Mereces ser crucificado!
A oposição dos outros dava ainda mais força a Pompeu; Varrão atentou naqueles olhos azuis, tão frios como o gelo. E, como sempre, sentiu-se intimidado. Por isso, tentando emendar-se, disse-lhe:
— Desculpa, Magno, falei movido pela ira. Retiro o que disse. Mas com certeza que percebes que estás a fazer uma coisa terrível! Se a República precisa de sobreviver, então todos os homens influentes terão de evitar minar a constituição. Aquilo que tu pediste ao Senado vai contra todos os princípios da mos maiorum. Nem mesmo Cipião Emiliano foi tão longe — e ele descendia directamente de Africano e Paulo!
Mas este último comentário só serviu para piorar as coisas. Pompeu levantou-se, ofendido.
— Ah, vai-te embora, Varrão! Já percebi onde queres chegar! Se um príncipe de sangue não se atreveu a ir tão longe, como é que um mero mortal do Piceno como eu se atreve a fazer uma coisa destas? É isso, não é? Pois uma coisa te garanto: eu serei cônsul!
O efeito que esta sessão do Senado teve em Marco Terêncio Varrão não foi nada de especial, se comparado com o efeito que teve em Marco Licínio Crasso. As informações chegaram-lhe através de César, que, mal a sessão terminou, conseguiu evitar que Quinto Árrio e os outros legados senatoriais corressem à tenda de Crasso a contar-lhe o que se passara. Lúcio Quíncio foi o que maior resistência opôs a César.
— Deixem-me ser eu a contar-lhe — rogou-lhes César. — Vocês estão todos demasiado excitados e vão deixá-lo tão excitado quanto vocês. Neste momento, ele precisa de estar calmo.
— Nem sequer tivemos oportunidade de falar! — exclamou batendo com o punho na palma da outra mão. — Aquele verpa do Orestes permitiu que falassem todos os que eram a favor de Pompeu e encerrou a sessão sem que nenhum de nós tivesse podido responder!
— Eu sei — disse César, pacientemente. — Mas sossega que, na próxima reunião, todos teremos oportunidade de falar. Orestes fez o que era sensato. Estávamos todos demasiado agitados. E, da próxima vez, poderemos falar. Nada ficou decidido! Por isso, deixem-me ser eu a contar a Marco Crasso. Por favor!
E assim, ainda que relutantemente, os legados foram para casa, e César correu ao Campo de Marte e ao acampamento de Crasso. As notícias da reunião tinham-se espalhado rapidamente; ao passar pelas multidões reunidas no baixo Fórum Romano, a caminho da Clivus Argentarius, César pôde ouvir fragmentos de algumas conversas; pelos vistos, estas giravam todas à volta da perspectiva de mais uma guerra civil. Pompeu queria ser cônsul. O Senado não lho permitiria. Crasso não obteria as terras pretendidas. Era tempo de Roma dar uma lição a estes generais que tinham a mania de que dominavam tudo. Pompeu era um indivíduo extraordinário. Etc, etc, etc.
Crasso escutou, com o ar mais inexpressivo deste mundo, o sucinto sumário dos acontecimentos feito por César. Agora que César terminara, mantinha essa mesma máscara inexpressiva. Durante algum tempo manteve-se calado e quieto, limitando-se a olhar, pela abertura da sua tenda, para a beleza tranqüila do Campo de Marte. Finalmente, fez um gesto na direcção da paisagem e, sem se virar para César, disse-lhe:
— Uma bela paisagem, não é? É difícil imaginar que um lugar tão fétido como Roma fica apenas a um quilômetro daqui!
— Sim, de facto é uma bela paisagem — disse César, sinceramente.
— E que pensas tu dos acontecimentos do Senado, que são muito menos belos do que esta paisagem?
— Penso — disse César, calmamente — que Pompeu te agarrou pelos tomates.
Esta observação provocou um sorriso, seguido de um risinho silencioso.
— Tens toda a razão, César. — Crasso apontou para a sua secretária, onde se viam pilhas de sacas de dinheiro. — Sabes o que é aquilo?
— Dinheiro, pela certa. Mas mais não sei.
— Aquelas sacas representam todas as pequenas dívidas que os senadores tinham para comigo — disse Crasso. — Cinqüenta dívidas pagas no mesmo dia.
— Menos cinqüenta votos no Senado.
— Precisamente. — Crasso fez girar a sua cadeira, pôs os pés em cima das sacas e recostou-se na cadeira com um suspiro. — Como tu muito bem disseste, Pompeu agarrou-me pelos tomates.
— Ainda bem que estás a reagir calmamente.
— De que me vale desatar aos berros? De nada. Não mudava nada. Mais importante é saber se haverá alguma coisa susceptível de mudar a situação.
— Do ponto de vista dos teus testículos, decerto que não. Mas podes continuar a manobrar dentro dos parâmetros definidos por Pompeu. É possível dar alguns passos, mesmo com a pata peluda de alguém a prender-nos pelos tomates — disse César, com um sorriso imenso.
— Tens razão. Mas quem é que ia pensar que Pompeu era capaz de ter ideias brilhantes?
— Ah, sim, ele é capaz de ter ideias brilhantes. Brilhantes, mas destrambelhadas. O que ele fez não tem nada a ver com estratégia política, Crasso. Pompeu limitou-se a atordoar-te primeiro e a impor depois os seus termos. Se ele possuísse algum senso político, teria vindo ter contigo e ter-te-ia dito o que tencionava fazer. E tudo poderia ter sido resolvido pacificamente, em vez de se deixar Roma na maior agitação, perante a perspectiva de mais uma guerra civil. O problema de Pompeu é que ele não faz a mínima ideia de como pensam os outros ou de como os outros vão reagir. A menos que os pensamentos e reacções dos outros sejam idênticos aos seus.
— É muito provável que tenhas razão, mas creio que o que se passou tem mais a ver com as próprias dúvidas de Pompeu. Se ele acreditasse sinceramente que conseguia obrigar o Senado a deixá-lo ser cônsul, teria vindo ter comigo antes de fazer fosse o que fosse. Mas eu sou menos importante para ele do que o Senado. É o Senado que ele tem de dominar. Eu não passo de um instrumento nas mãos dele. Por isso, que importância pode ter para ele o facto de me deitar abaixo primeiro? Como tu disseste, ele tem-me bem preso pelos tomates. Se eu quiser terras para os meus veteranos, terei de informar o Senado de que não poderá contar comigo ou com os meus soldados para se opor a Pompeu. — Crasso trocou os pés; as sacas de dinheiro chocalharam.
— Que tencionas fazer?
— Tenciono — disse Crasso, tirando os pés de cima da secretária e levantando-se — mandar-te falar com Pompeu imediatamente. Não preciso de te dizer o que deves fazer. Negoceia, César.
E César assim fez.
Uma das poucas certezas que tinha era que encontraria os dois generais nas respectivas tendas; enquanto não fosse realizado o triunfo ou a ovação, nenhum general poderia atravessar o pomerium e penetrar na cidade; se o fizesse, perderia automaticamente o seu império e, por isso mesmo, não poderia celebrar o triunfo ou a ovação. Por isso, enquanto os legados e tribunos dos soldados podiam movimentar-se como muito bem entendessem, o general era obrigado a permanecer no Campo de Marte.
Portanto, Pompeu tinha forçosamente de estar na sua tenda. Os seus legados séniores, Afrânio e Petreio, estavam com ele. Mal César entrou, examinaram-no atentamente. Tinham ouvido algumas coisas acerca dele — histórias de piratas e outras coisas do género — e sabiam que ele ganhara uma Coroa Cívica aos 20 anos de idade. Pactos que, em princípio, levariam viri militares como Afrânio e Petreio a sentir o máximo respeito por César; e no entanto, aquele jovem encantador, tão bem-parecido e janota, não tinha nada o ar de quem alcançara tais proezas. Vestindo uma toga em vez do traje militar, as unhas aparadas e polidas, os sapatos senatoriais num estado impecável, sem esfoladuras nem pó, o cabelo perfeitamente arranjado, aquele César com toda a certeza que não tinha vindo a pé desde o acampamento de Crasso até ao de Pompeu, enfrentando o sol e o vento!
— Lembro-me de teres dito que não bebias vinho. Posso oferecer-te água? — perguntou Pompeu, fazendo um gesto para que César se sentasse.
— Obrigado, Pompeu, mas a única coisa que pretendo é uma conversa em privado — disse César, sentando-se.
— Até mais logo — disse Pompeu aos seus legados. Pompeu esperou até que os dois homens, obviamente decepcionados, se afastassem o suficiente. Depois, virou-se para César.
— Então? — perguntou ele, no seu jeito rude.
— Venho em representação de Marco Crasso.
— Esperava que Crasso viesse pessoalmente.
— Ficas melhor servido se negociares comigo.
— Ele está furioso, não é?
César ergueu muito as sobrancelhas.
— Crasso, furioso? De modo nenhum!
— Nesse caso, porque é que não veio ele pessoalmente?
— Para quê? Para Roma ficar ainda mais agitada? — perguntou César. — Se tu e Marco Crasso têm de negociar, então será melhor que o façam através de homens como eu, homens discretos e leais aos seus superiores.
— Devo concluir, portanto, que és um homem de Crasso...
— Neste assunto, sou. De um modo geral, sou um homem de mim mesmo.
— Que idade tens tu? — perguntou Pompeu, bruscamente.
— Faço vinte e nove em Quinctilis.
— Crasso diria que isso são miudezas. com vinte e nove anos, quer dizer que em breve estarás no Senado.
— Já estou no Senado. Sou senador há quase nove anos.
— Porquê?
— Porque ganhei uma Coroa Cívica em Mitilene. A constituição de Sila diz que os heróis militares entram automaticamente para o Senado — retorquiu o elegante militar.
— Toda a gente diz ”a constituição de Sila”, em vez de ”a constituição de Roma” — retorquiu Pompeu, ignorando deliberadamente uma informação tão pouco agradável para ele, que nunca ganhara uma coroa importante. E isso magoava-o. — Não sei se deva estar grato a Sila!
— Devias estar. Deves-lhe as tuas comissões especiais — disse César. — Porém, depois deste pequeno episódio, duvido muito que o Senado queira conceder outra comissão especial a um cavaleiro.
Pompeu fitou-o espantado.
— Que queres dizer com isso?
— Apenas aquilo que disse. Não podes obrigar o Senado a deixar-te ser cônsul e esperar que o Senado te perdoe. Nem podes esperar controlar o Senado para sempre. Filipe está velho. Tal como Cetego. E quando eles morrerem, quem usarás em vez deles? Os séniores do Senado serão todos homens ligados a Catulo — os Cecílios Metelos, os Cornélios, os Licínios, os Cláudios. Por isso, um homem que queira uma comissão especial terá de ir pedi-la ao Povo e, quando digo Povo, não estou a pensar nos patrícios e plebeus juntos. Estou a pensar na Plebe. Roma, em tempos, funcionava quase exclusivamente através da Assembleia da Plebe. Prevejo que, no futuro, voltará a ser assim. Os tribunos da plebe são extremamente úteis — mas só se tiverem os seus poderes legislativos. — César pigarreou. — E sai mais barato comprar tribunos da plebe do que comprar grandes personalidades como Filipe ou Cetego. Pompeu bebia sequiosamente todas aquelas palavras; e César, impassível, apercebia-se perfeitamente disso. E sentia que não gostava dele, embora não soubesse exactamente porquê. Tendo passado a sua infância em estreito contacto com tantos gauleses, não era por causa do gaulês que havia em Pompeu que César sentia aquela aversão. Qual seria então o motivo? Enquanto Pompeu digeria o que acabara de ouvir, César pensou nessa questão e chegou à conclusão de que sentia aversão pelo homem, e não por aquilo que ele representava. Detestava aquela presunção, aquela concentração quase infantil no seu próprio ego, as lacunas de uma mente que, de um modo muito óbvio, não sentia o menor respeito pela Lei.
— O que é que Crasso tem para me dizer? — perguntou Pompeu.
— Crasso gostaria de negociar um acordo, Cneu Pompeu.
— Envolvendo o quê?
— Não seria melhor se tu apresentasses primeiro as tuas exigências, Cneu Pompeu?
— Pára de me chamar Cneu Pompeu! Odeio essa forma de tratamento! Eu sou Magno para toda a gente!
— Esta é uma negociação formal, Cneu Pompeu. O hábito e a tradição exigem que eu te trate pelo praenomen e pelo nomen. Não desejas apresentar primeiro as tuas exigências?
— Ah, sim, sim, claro! — atirou-lhe Pompeu, sem saber ao certo por que razão estava a ficar de repente mais calmo; talvez fosse por causa daquele tipo tão educado e tão simpático que Crasso escolhera para seu representante. Tudo o que César dissera até então fazia sentido, mas, se fazia sentido, então a situação ainda era mais confusa do que ele pensara. Ele, Magno, é que devia estar com as rédeas na mão. Mas aquela entrevista não estava a corresponder às suas expectativas. De modo nenhum. César comportava-se como se fosse ele que detivesse o poder, como se fosse ele quem estivesse na mó de cima. O raio do homem era mais bonito que o falecido Mémio e mais esperto que Filipe e Cetego juntos — e, apesar disso, tinha ganho a segunda maior condecoração militar romana! E, ainda por cima, o comandante dele, na altura, era o incorruptível Lúculo! Logo, César só poderia ser um óptimo soldado, um militar extremamente corajoso. Se Pompeu conhecesse também as histórias dos piratas, do testamento de Nicomedes e da batalha do Meandro, teria por certo conduzido a entrevista de um modo completamente diferente; Afrânio e Petreio tinham ouvido uns rumores, mas ele — como era típico do seu carácter! — não ouvira nada de nada. Daí que a entrevista prosseguisse com um Pompeu muito mais exposto e frágil do que ele alguma vez esperaria.
— As tuas exigências? — insistiu César.
— As minhas exigências são muito simples: convencer o Senado a aprovar uma resolução para que eu possa disputar as eleições para o consulado.
— Sem seres membro do Senado?
— Sem ser membro do Senado.
— E se convencesses o Senado a permitir a tua participação nas eleições e depois perdesses as eleições?
Pompeu desatou a rir, genuinamente divertido.
— Mesmo que quisesse, não perdia! — disse.
— Ouvi dizer que as eleições vão ser muito disputadas. Marco Minúcio Termo, Sexto Peduceu, Lúcio Calpúrnio Pisão Frujos, Marco Fânio, Lúcio Mânlio, tal como os dois principais contendores nesta fase, Metelo Cabrito e Marco Crasso — disse César, com um ar igualmente divertido.
Mas aqueles nomes, exceptuando o último, nada diziam a Pompeu. Sentou-se muito direito e perguntou.
— Isso quer dizer que ele ainda pensa concorrer?
— Se lhe vais pedir, como parece provável, que ele retire o seu exército do controlo do Senado, então é óbvio que ele terá de disputar o cargo de cônsul, e que terá de ser eleito — retorquiu afavelmente César. — Se ele não for cônsul no próximo ano, será processado por traição antes do final de Janeiro. Na qualidade de cônsul, Crasso não poderá ser processado por motivo nenhum enquanto for cônsul e procônsul. Ou seja, enquanto não voltar a ser um privatus. Portanto, o que ele tem a fazer é conseguir a eleição para o cargo de cônsul e, depois, restaurar todos os poderes dos tribunos da plebe. Posteriormente, terá de convencer um tribuno da plebe a promulgar uma lei validando a medida que agora vai ter de tomar, isto é, a anulação do controlo do Senado sobre o seu exército — e terá ainda de convencer os restantes nove tribunos a não vetar tal lei. Assim, quando voltar a ser um privatus, já não poderá ser processado pela traição que tu queres que ele cometa.
No rosto de Pompeu, sucederam-se as mais diversas expressões — perplexidade, compreensão, espanto, total confusão e, por fim, medo.
— Que queres dizer com isso? — gritou ele, começando a sentir uma estranha e horrível sensação de falta de ar.
— O que eu estou a dizer — e de forma muito clara, acho eu! — é que se tu e Crasso quiserem evitar ser processados por traição, em conseqüência dos jogos em que envolveram o Senado e os dois exércitos que, na realidade, pertencem a Roma, tanto tu como Crasso terão de ser cônsules no próximo ano. E tanto tu como Crasso terão de trabalhar muito duramente para devolver ao tribunado da plebe a sua antiga forma — replicou César com um ar grave. — A única forma de vocês conseguirem furtar-se às conseqüências das vossas acções, consistirá em convencer a Assembleia da Plebe a realizar um plebiscito que vos absolva aos dois de todas as culpas, no que toca aos vossos exércitos e à manipulação do Senado. A menos que o teu exército não tenha atravessado o Rubicão, Cneu Pompeu.
Rompeu tremeu.
— Eu não tinha pensado nisso! — exclamou.
— O Senado — disse César, num tom informal — é composto na sua maioria por ovelhas. Toda a gente sabe disso. Mas há muita gente que não se apercebe de outro facto — é que o Senado tem alguns lobos no seu redil. Não incluo Filipe entre os lobos senatoriais. Nem Cetego, já agora. Mas Metelo Cabrito deveria, com toda a razão, ser cognominado de Lobão em vez de Cabrito. E Catulo tem presas para despedaçar a carne e não molares para ruminar. Tal como Hortênsio, que ainda não foi cônsul, mas que possui uma influência colossal e cujo conhecimento das leis é extraordinário. E temos ainda o meu tio mais novo, e também o mais brilhante de todos, Lúcio Cota. E podes mesmo dizer que eu também sou um lobo senatorial! Qualquer um dos homens que referi é capaz de vos processar aos dois, a ti e a Marco Crasso, por traição. Embora seja mais provável que actuem como um grupo. E, nesse caso, terás de suportar um julgamento num tribunal dominado por senadores. Depois de teres tratado com o maior desprezo um sem-número de senadores. Marco Crasso pode ser que escape, mas tu não. Estou certo de que tens muitos adeptos no Senado, mas será que vais conseguir mantê-los unidos, depois de teres lançado uma ameaça de guerra civil e de teres obrigado os senadores a aceder aos teus desejos? Podes manter a tua facção unida enquanto fores cônsul e procônsul, mas não depois de voltares a ser um privatus. A menos que mantenhas o teu exército em funcionamento durante toda a tua vida — mas isso, visto que o Tesouro não pagará tal despesa, não será possível, nem mesmo para um homem com os teus recursos. Quantas ramificações naquele discurso, quantos desvios!, pensou Pompeu. A horrível sensação de falta de ar tornava-se cada vez mais forte, mais presente; por um momento, Pompeu sentiu-se como se tivesse regressado ao campo de batalha em Lauro, incapaz de impedir que Quinto Sertório o superasse. De súbito, porém, recompôs-se, exibindo um ar absolutamente determinado.
— Daquilo que acabas de dizer, que percentagem é que Marco Crasso percebe?
— Uma boa percentagem — retorquiu César, tranqüilamente. — Ele está no Senado há já bastante tempo e em Roma há ainda mais tempo. Freqüenta os tribunais, conhece perfeitamente a constituição. E tudo isto está na constituição! Na constituição de Sila e de Roma.
— Então o que tu queres dizer é que eu tenho de recuar. — Pompeu respirou fundo e acrescentou: — Pois bem, não contes com isso! Eu quero ser cônsul! Mereço ser cônsul e serei cônsul!
— Isso pode arranjar-se. Mas apenas segundo o esquema que eu delineei — manteve César, com toda a firmeza. — Tu e Marco Crasso sentar-se-ão nas cadeiras curuis, o tribunado da plebe será restaurado, haverá um plebiscito absolutório e, por fim, outro plebiscito para dar terras aos homens de ambos os exércitos. — César encolheu ligeiramente os ombros e comentou: — No fim de contas, Cneu Pompeu, tu tens de ter um colega no consulado! Não podes ser cônsul sem um colega. Por isso, porque não um colega com os mesmos problemas e incorrendo nos mesmos riscos? Imagina que Metelo Cabrito era o teu colega! Terias os dentes dele marcados no teu pescoço desde o primeiro dia. Metelo Cabrito recorreria a todos os expedientes possíveis para te impedir de restaurar o tribunado da plebe. Em contrapartida, o Senado dificilmente resistirá a dois cônsules que trabalhem em íntima colaboração. Especialmente se os dois cônsules tiverem dez novos tribunos da plebe, rigorosamente unidos, a apoiá-los.
— Estou a perceber — disse Pompeu lentamente. — Sim, é uma grande vantagem ter um colega que colabore comigo. Está bem. Serei cônsul ao lado de Marco Crasso.
— Desde que — disse César, afavelmente — não te esqueças do segundo plebiscito! Marco Crasso tem de obter terras para os seus homens.
— Quanto a isso não há problema! Ele obterá terras e eu também.
— Nesse caso, podemos considerar que já demos o primeiro passo.
Antes desta perturbante discussão com César, Pompeu pensava que Filipe planearia adequadamente a sua candidatura ao consulado, faria tudo o que fosse necessário; mas agora já não estava tão certo disso. Teria Filipe previsto todas as conseqüências? Porque é que ele não lhe tinha dito nada acerca de eventuais julgamentos por traição ou da necessidade de restaurar o tribunato da plebe? Estaria Filipe cansado de ser um funcionário pago? Ou estaria a ficar senil?
— Eu sou um ignorante em política — disse Pompeu, procurando iniciar uma conversa franca e aberta. — O problema é que a política não me fascina. A chefia militar atrai-me muito mais. E o consulado, para mim, é uma espécie de grande chefia civil. Fizeste-me ver as coisas de maneira diferente. E o que disseste faz todo o sentido, César. Por isso, diz-me uma coisa... como é que eu hei-de proceder? Devo continuar a mandar cartas através de Filipe?
— Não, isso já está feito, já lançaste o teu desafio — disse César, aparentemente disposto a fazer o papel de conselheiro político de Pompeu. — Presumo que deste ordens a Filipe para adiar as eleições curuis. Portanto, não discutirei esse ponto. Ora bem: o próximo movimento do Senado será no sentido de recuperar o controlo das coisas. O Senado fixará as datas para o teu triunfo e para a ovação de Marco Crasso. Essas datas terão de ser respeitadas. E, como é evidente, o decreto senatorial obrigar-vos-á a desmantelar os vossos exércitos logo que as celebrações terminem. Isso é perfeitamente normal.
Aquele jovem, pensou Pompeu, continuava exactamente na mesma desde que chegara; não mostrava sinal de sede, nem de desconforto, apesar de vestir uma toga num dia tão quente; apesar da cadeira ser dura e desconfortável, dir-se-ia que tinha o traseiro sentado numa almofada; e, apesar de olhar para Pompeu ligeiramente de viés, não se queixava de dores no pescoço. E o pensamento, que bem organizado! E as palavras, que bem escolhidas! Não havia dúvida: aquele César merecia toda a sua atenção.
César continuou.
— O primeiro passo terá de vir de ti. Quando te comunicarem a data do triunfo, recuarás horrorizado e explicarás que só nesse momento te lembraste de que só podes celebrar o triunfo quando Metelo Pio regressar da Hispânia Ulterior, porque vocês tinham concordado em celebrar em conjunto o triunfo — dirás ainda que o produto do saque não tem qualquer valor, etc., etc. Mas quando apresentares esta desculpa para não desmantelares o teu exército, Marco Crasso porá uma expressão horrorizada e protestará que não poderá desmantelar o seu exército, pois, se o fizer, haverá um único exército integralmente mobilizado em Itália — o teu exército. Vocês podem manter esta farsa até ao final do ano. O Senado depressa compreenderá que nenhum de vós tenciona desmantelar os vossos exércitos e que estão, muito simplesmente, a tentar legalizar as vossas posições. Desde que nenhum de vós faça um movimento militar agressivo na direcção de Roma, posso dizer, desde já, que ambos estarão numa óptima posição.
— Estou a gostar! — disse Pompeu, radiante.
— Ainda bem! Dá menos trabalho pregar aos convertidos. Mas... onde é que eu ia? — César franziu o sobrolho, fingindo que se tinha esquecido. — Ah, sim! Quando o Senado compreender que os dois exércitos não vão ser desmobilizados, aprovará as consulta necessárias para que vocês disputem o consulado in absentia — dado que nenhum de vós poderá apresentar pessoalmente as vossas candidaturas. Só o sorteio decidirá qual será o magistrado encarregado das eleições: se Orestes, se Lêntulo Sura. Mas não vejo grandes diferenças entre os dois.
— E como é que eu contorno o facto de não pertencer ao Senado? — perguntou Pompeu.
— Não contornas. Isso é um problema do Senado. Será resolvido com um senatus consultum que, depois de aprovado pela Assembleia do Povo, permitirá a um cavaleiro disputar o cargo de cônsul. Imagino que a Assembleia do Povo aprovará debom grado o consultum. Os cavaleiros considerarão que se trata de uma grande vitória!
— E eu e Marco Crasso poderemos desmobilizar os nossos exércitos depois de ganharmos as eleições — disse Pompeu, satisfeito.
— Não — disse César, abanando a cabeça. — Os vossos exércitos continuarão mobilizados até ao Ano Novo. Portanto, vocês não celebrarão o triunfo e a ovação antes da segunda metade de Dezembro. Deixa Marco Crasso celebrar primeiro a sua ovação. Poderás celebrar o teu triunfo no último dia de Dezembro.
— Tudo isso se encaixa lindamente — disse Pompeu. — Porque é que Filipe não me explicou as coisas como devia?
— Não faço a mínima ideia — retorquiu César, com um ar inocente.
— Pois eu acho que faço — disse Pompeu, com uma expressão triste.
César levantou-se, fazendo depois uma pausa para arranjar as dobras da sua toga. Concluída essa tarefa, encaminhou-se, no seu passo elegante, para a porta da tenda. Quando aí chegou, parou, olhou para trás e sorriu.
— Uma tenda é uma estrutura extremamente provisória, Cneu Pompeu. Para um general que está à espera do seu triunfo, uma estrutura assim é inteiramente adequada. Mas creio que seriabom que, a partir de agora, desses de ti mesmo uma imagem mais forte, mais imponente. Posso sugerir que alugues uma villa razoavelmente luxuosa, no monte Pinciano, por exemplo, até ao fim do ano? E podias mandar vir a tua mulher! Enquanto esperas, divertes-te. Até podes dedicar-te à criação de peixes de aquário. Eu insistirei para que Marco Crasso faça o mesmo. Assim, darão a impressão de que estão preparados para viver no Campo de Marte uma eternidade.
E logo se foi embora, deixando Pompeu a recuperar das surpresas do dia e a alinhar os seus pensamentos. As férias tinham acabado: tinha de chamar Varrão e de estudar as leis com ele! César parecia saber tudo de tudo e, no entanto, tinha menos seis anos que ele. Se havia lobos no Senado, iria ser ele um dos cordeirinhos? O quê?! Cneu Pompeu Magno, um cordeirinho?! Nunca! Quando o novo ano começasse, já Cneu Pompeu Magno conheceria todas as leis! E conheceria muito bem o seu Senado!
— Por todos os deuses, César, foste muito inteligente! — disse Crasso, com uma voz sumida, mal César lhe contou tudo o que se passara. — Eu não tinha pensado em metade disso! Não digo que não acabasse por chegar a essas conclusões, mas tu não precisaste de muito tempo; deves ter ruminado tudo isso no caminho entre a minha tenda e a tenda dele. Claro, claro, uma villa no Pinciano! Eu tenho uma casa óptima no Palatino e acabei de gastar uma fortuna a redecorá-la. Porque havia de gastar dinheiro com uma villa no Pinciano? Estou perfeitamente confortável numa tenda.
— És um sovina incurável, Marco Crasso! — disse César, rindo-se. — Tu vais alugar uma villa no Pinciano pelo menos tão luxuosa como a de Pompeu! E vais dizer a Tertula e aos teus filhos que se mudem imediatamente. Tens dinheiro que chegue para isso. Encara o caso como um investimento necessário. E é! Tu e Pompeu vão ter de parecer adversários encarniçados nos próximos seis meses!
— E tu, que vais fazer? — perguntou Crasso.
—vou ver se encontro um tribuno da plebe. De preferência picentino. Não sei porquê, mas os homens do Piceno sentem-se atraídos pelo tribunado da plebe. E dão óptimos tribunos. Não deve ser difícil. No colégio deste ano, deve haver pelo menos uma dúzia de picentinos.
— Porquê um picentino?
— Porque deverá, com toda a certeza, apoiar Pompeu. Os Picentinos funcionam muito como um clã. E também porque, sendo picentino, só poderá ser brigão. Eles já nascem brigões, no Piceno!
— Tem cuidado, César, não leves algum murro! — retorquiu Crasso, que já estava a pensar noutro assunto: qual dos seus libertos teria mais talento para discutir os preços com os agentes que alugavam villae no monte Pinciano? Que pena ele nunca se ter lembrado de investir naquela zona! Porque era o local ideal! Havia sempre reis e rainhas estrangeiros à procura de um palácio romano — não, não, ele não alugaria! Ele compraria! Alugar era um desperdício de dinheiro; nem um sestércio se ganhava!
Em Novembro, o Senado cedeu. Marco Licínio Crasso foi informado de que estava autorizado a disputar o consulado in absentía.
Cneu Pompeu Magno foi informado de que o Senado mandara um consultum para a Assembleia do Povo, pedindo a este corpo que dispensasse as habituais exigências — ser membro do Senado, ter sido questor e pretor — e legislasse no sentido de o autorizar a disputar o consulado. Logo que a Assembleia do Povo aprovou a lei que era necessária, o Senado informou Cneu Pompeu Magno que estava autorizado a disputar in absentia as eleições consulares, et cetera, et cetera.
Um candidato que disputava um cargo in absentia tinha dificuldade em angariar votos. Não podia atravessar o pomerium e encontrar-se com os votantes, não podia conversar com as multidões do Fórum, não podia aparecer por perto quando algum tribuno da plebe convocava uma confio da Assembleia da Plebe para discutir os méritos do seu candidato preferido — e desancar nos seus rivais. Estas candidaturas in absentia eram muito raras dado que implicavam uma autorização especial do Senado. Mas era a primeira vez que dois candidatos ao consulado disputavam as eleições in absentia. Contudo, como depressa se verificou, as habituais desvantagens pouco se fizeram sentir desta feita. Os debates no Senado — mesmo sob a ameaça daqueles dois exércitos que ainda não tinham sido desmobilizados — tinham sido tão agitados quanto prolongados; quando finalmente o Senado cedeu, todos os outros candidatos ao consulado se retiraram da corrida, em protesto contra a gritante ilegalidade da candidatura dç Pompeu. E, não havendo outros candidatos, Pompeu e Crasso pareceriam aquilo que, de facto, eram: ditadores disfarçados.
Muitas e variadas foram as ameaças que ficaram a pairar sobre as cabeças de Pompeu e Crasso. Mas a principal foi a ameaça de um processo por traição logo que perdessem o império; por isso, quando o tribuno da plebe Marco Lólio Palicano (um homem do Piceno) convocou uma reunião especial da Assembleia da Plebe para o Circo Flamínio (no Campo de Marte), todos os senadores que se tinham oposto a Pompeu e Crasso aperceberam-se, de súbito, do que se preparava — e o seu choque não foi pequeno. De facto, os novos cônsules iam escapar às acusações de traição, restaurando todos os poderes do tribunado da plebe e levando os dez tribunos, obviamente gratos, a legislar a sua imunidade em relação às conseqüências das suas acções!
Muitos eram aqueles que, em Roma, defendiam a restauração dos poderes dos tribunos da plebe; a maior parte, porque o tribunado da plebe era uma instituição sagrada, em perfeita harmonia com a mos maiorum; outros — e não eram assim tão poucos — tinham saudades da agitação e da efervescência dos velhos tempos no baixo Fórum Romano, quando os demagogos deixavam a Plebe em tal alvoroço que tudo acabava ao murro (e com a participação de ex-gladiadores contratados para o efeito). Era pois natural que a reunião convocada por Lólio Palicano atraísse multidões, tanto mais que fora anunciado por toda a Roma que o tema do encontro era a restauração do tribunado da plebe. Mas quando se soube que os candidatos consulares Pompeu e Crasso iam falar em apoio de Palicano, o entusiasmo da população atingiu alturas nunca vistas desde que Sila transformara a Assembleia da Plebe num clube privado sem qualquer importância.
Usado para os jogos menos importantes, o Circo Flamínio tinha capacidade para acolher apenas cinqüenta mil pessoas; porém, no dia da assembleia de Palicano, todas as bancadas estavam apinhadas de gente. Como só aqueles que estavam relativamente perto da tribuna conseguiriam ouvir os discursos, a maior parte estava presente por uma única razão — sempre poderiam dizer aos seus netos que tinham assistido à reunião em que dois candidatos consulares que também eram heróis militares se tinham comprometido a restaurar o tribunado da plebe. Porque era isso mesmo que eles iam fazer! Sem tirar nem pôr!
Palicano abriu a reunião com um discurso destinado a atrair o maior número possível de votos para as candidaturas de Pompeu e Crasso; aqueles que estavam suficientemente perto da tribuna para ouvir os discursos eram os eleitores mais importantes de cada classe. Os nove colegas de Palicano estavam presentes e todos eles defenderam as candidaturas de Pompeu e Crasso. Depois, surgiu Crasso, sob uma chuva de aplausos. Chuva que se repetiu quando acabou de falar. Uma bela série de números preliminares, antes de aparecer a principal atracção. Que era, evidentemente, Pompeu, o Grande! Vestido com uma cintilante armadura dourada, tão cintilante como o sol, Pompeu tinha um aspecto absolutamente magnífico. Nem precisava de ser umbom orador; podia perfeitamente recitar coisas sem nexo que a multidão aplaudiria sempre. A multidão tinha vindo para ver Pompeu, o Grande. E foi em delírio que regressou a casa.
Não surpreendeu ninguém que, nas eleições curuis, realizadas no dia anterior aos Nonos de Dezembro, Pompeu tivesse tido mais votos que Crasso, cabendo-lhe por isso o cargo de cônsul sénior. Roma ia ter um cônsul que nunca tinha sido membro do Senado — e Roma preferira-o ao seu colega que, além de mais velho, era claramente mais ortodoxo.
— E assim Roma vai ter o seu primeiro cônsul que nunca foi senador! — disse César a Crasso, depois das eleições. Estava sentado com Crasso na varanda da villa do Pinciano que, noutros tempos, abrigara o rei Jugurta da Numídia e as suas conspirações; Crasso tinha comprado a propriedade depois de ter visto a lista de ilustres nomes estrangeiros que a tinham alugado ao longo dos anos. Os dois homens observavam os escravos públicos que estavam a limpar os recintos murados, as pontes e as plataformas de votação das Saepta.
— E a razão é só uma: é que ele queria ser cônsul! — disse Crasso, imitando o tom de irritação que Pompeu punha na voz sempre que o contrariavam. — Aquele homem não passa de um bebê crescido!
— Sim, a certos níveis. — César virou-se para olhar para o rosto de Crasso, plácido como sempre. — És tu quem vai governar. Ele não entende nada de governação.
— Claro que não! Apesar de ter andado a estudar o manual de Varrão sobre a conduta de senadores e cônsules — disse Crasso. — Francamente! O cônsul sénior a estudar um manual de conduta! O que Catão, o Censor, não diria, se voltasse a este mundo!
— Pompeu convidou-me para fazer o rascunho da lei que há-de devolver todos os poderes ao tribunado da plebe. Ele contou-te isso?
— Achas que ele me conta alguma coisa?
— Eu rejeitei o convite.
— Porquê?
— Em primeiro lugar, porque ele partia do princípio que seria cônsul sénior.
— Ele sabia que seria cônsul sénior!
— Em segundo lugar, porque tu és perfeitamente capaz de elaborar leis — foste pretor urbano!
Crasso abanou a sua enorme cabeça e agarrou o braço de César.
— Faz o que ele te pediu, César. Pompeu ficará todo feliz. Como todos os bebês grandes mimados, ele tem o dom de recorrer às pessoas certas para realizar os seus fins. Se rejeitas porque não gostas de ser usado, estou perfeitamente de acordo. Mas se te apetece um desafio desses e achas que vais ganhar experiência legislativa, então aceita. Ninguém vai saber — Pompeu encarregar-se-á disso.
— Tens toda a razão! — disse César, rindo-se. Depois, mais sério, acrescentou: — Na realidade, gostava de o fazer. Não temos tribunos da plebe decentes desde a minha adolescência. Sulpício foi o último. E prevejo que daqui a uns tempos vamos todos precisar de leis tribunícias. Para um patrício como eu, tem sido muito interessante estar ligado aos tribunos da plebe, como tem acontecido ultimamente. A propósito: Palicano e eu já chegámos a acordo quanto ao seu substituto.
— Quem?
— Um tal Pláucio. Não, não pertence à velha família dos Silvanos. Este Pláucio é do Piceno e, ao que parece, descende de um liberto. Ébom tipo. Está pronto a fazer tudo o que eu lhe peça na nova e revitalizada Assembleia da Plebe.
— As eleições tribunícias ainda não se realizaram. Pláucio pode não ser eleito — disse Crasso.
— Será eleito — retorquiu César, confiante. — Não pode perder. É um homem de Pompeu.
— E isso, nos tempos que correm, é um sinal bem claro!
— Pompeu pode dar-se por feliz em ter-te como colega, Marco Crasso. Se o outro cônsul fosse Metelo Cabrito, seria um verdadeiro desastre! Mas lamento que não tenhas tido a distinção que merecias: ser cônsul sénior.
Crasso sorriu, aparentemente sem rancor.
— Não te preocupes, César. Já aceitei esse facto — disse ele. Depois, com um suspiro, acrescentou: — No entanto, seria muito agradável se Roma lamentasse mais a minha partida do que a dele, quando cessarmos funções.
—bom — disse César, levantando-se. — É tempo de ir para casa. Tenho dedicado muito pouco tempo às mulheres da minha família desde que regressei a Roma e elas devem estar impacientes por saber as novidades das eleições.
Porém, mal entrou em casa, César arrependeu-se da pressa; aquela casa estava cheia de mulheres! Seis mulheres, mais precisamente: a sua mãe, a sua esposa, a irmã Ju-Ju, a tia Júlia, a mulher de Pompeu, e uma outra mulher que, pelos vistos, era a sua prima Júlia, ou mais propriamente Júlia Antónia, pois tinha-se casado com Marco António, o exterminador de piratas. Todas as atenções estavam concentradas nela, o que não surpreendia: Júlia Antónia estava empoleirada na ponta de uma cadeira, com as pernas esticadas, e berrava!
Antes que César pudesse dar mais um passo, sentiu um murro tremendo no fundo das costas; fez meia volta e deu de caras com uma criança que o fitava com um sorriso todo arreganhado: claro que aquele miúdo só podia ser um Antoniozinho! Mas a criança não sorriu por muito tempo. César pegou nele pelo nariz e arrastou-o consigo. O miúdo desatou a gritar com tanta força como a mãe, mas nem por isso deixou de tentar defender-se, procurando dar pontapés nas canelas de César e ameaçando-o com os punhos cerrados. Ao mesmo tempo, dois outros rapazes, mais pequenos, atiraram-se a César, batendo-lhe no peito e nas ilhargas; no entanto, as largas dobras da toga obstavam a que este triplo assalto provocasse algum dano em César.
Depois, num ápice, qualquer dos três rapazes ficou literalmente fora de combate. Em relação aos dois mais pequenos, César pegou-lhes nas cabeças e bateu-as uma contra a outra, após o que os atirou de encontro à parede; quanto ao mais crescido, levou um bofetão na cara que o deixou a chorar, após o que foi levado para junto dos irmãos, graças a uma série de pontapés no traseiro.
A mãe deixara de berrar quando vira aquela cena e agora saltava da sua cadeira na direcção do torturador dos seus queridos e preciosos filhos.
— Senta-te, mulher! — rugiu César, com um voz tonitruante. Ela recuou, cambaleante, na direcção da cadeira, deixou-se cair
e desatou de novo a berrar.
César virou-se então para os três rapazes, que estavam meio sentados, meio deitados contra a parede, berrando tão exuberantemente como a mãe.
— Se algum de vocês se mexe, nem sabe o que lhe acontece! Esta é a minha casa e não uma estalagem do Pinciano! E enquanto aqui estiverem, terão de se comportar como Romanos civilizados e não como macacos tingitanos! Entendido?
Segurando nas dobras da desalinhada e suja toga, César encaminhou-se para a porta do seu gabinete, passando pelo meio das mulheres.
—vou tentar minorar os prejuízos causados pelos fedelhos — disse ele, num tom falsamente calmo. — E quando regressar, espero que a paz tenha voltado a esta casa! Calem-me essa desgraçada, nem que tenham de a amordaçar! E entreguem os filhos ao cuidado de Burgundo. Digam a Burgundo que os estrangule se for necessário!
César não demorou muito tempo. Quando regressou à sala, os rapazes já tinham desaparecido e as seis mulheres estavam sentadas, muito direitas, e no maior silêncio. Seis pares de olhos arregalados seguiram-no enquanto ele se sentava entre a mãe e a esposa.
— Muito bem, mãe, o que é que se passa? — perguntou ele, afavelmente.
— Marco António morreu — explicou Aurélia. — Suicidou-se. Em Creta. Sabes que ele foi derrotado pelos piratas por duas vezes no mar e uma vez em terra. Perdeu todos os seus navios e homens. Mas se calhar não sabes que os almirantes piratas Panares e Lastenes o obrigaram a assinar um tratado entre Roma e o povo cretense. O tratado acaba de chegar a Roma, acompanhado pelas cinzas do pobre Marco António. Embora o Senado ainda não tenha tido tempo para discutir o caso, já se diz em Roma que Marco António desgraçou o seu nome para sempre — as pessoas até já lhe chamam Marco António Creticus! Creticus, não no sentido de cretense, mas no de homem de barro!
César suspirou. Pela sua expressão, dir-se-ia que estava mais exasperado do que triste.
— Marco António não era o homem certo para esse cargo — disse ele, que não queria poupar os sentimentos da viúva, uma mulher profundamente idiota. — Eu apercebi-me disso quando fui seu tribuno em Giteu. No entanto, confesso que não previ que as coisas acabassem assim. Mas que havia muitos sinais nesse sentido, lá isso havia. — Olhou para Júlia Antónia. — Lamento muito, Júlia Antónia, mas não creio que possa fazer alguma coisa por ti.
— Júlia Antónia veio pedir-te que organizasses os rituais fúnebres de Marco António — disse Aurélia.
— Mas ela tem um irmão. Porque não pede a Lúcio César? — perguntou César, espantado.
— Lúcio César está no Oriente, com o exército de Marco Cota, e o teu primo Sexto César recusa-se a imiscuir-se no caso — disse a tia Júlia. — Na ausência de Caio António Híbrida, nós somos os familiares mais próximos que Júlia Antónia tem em Roma.
— Nesse caso, organizarei as exéquias. Mas seriabom que o funeral decorresse na mais absoluta tranqüilidade.
Júlia Antónia levantou-se para se ir embora, deixando cair uma verdadeira cascata de objectos e adornos, desde lenços a pentes, passando por broches e alfinetes; parecia não guardar já qualquer ressentimento em relação a César por causa do tratamento sumário que este aplicara aos seus filhos — ou por causa da apreciação desapaixonada das capacidades do seu falecido marido. Era evidente que ela gostava que a pusessem na ordem, concluiu César enquanto a conduzia até à porta. Não havia dúvida que o falecido a tinha obrigado a portar-se convenientemente. Só era pena que não tivesse disciplinado também os seus filhos, já que a mãe era incapaz de o fazer. Os rapazes apareceram então, vindos dos aposentos de Burgundo, onde haviam sido submetidos a uma salutar experiência: os filhos de Cardixa e Burgundo tinham-nos reduzido à mais total impotência. Tal como a mãe, também não pareciam ressentidos. Mas olhavam para César com evidente desconfiança.
— Não precisam de ter medo de mim! — disse César com um ar jovial. — A menos que passem as marcas! Se não se portarem bem, podem contar comigo!
— Tu és muito alto, mas não pareces muito forte — disse o rapaz mais velho, o mais bem-parecido dos três, ainda que tivesse uns olhos demasiado juntos para o gosto de César. Esses olhos fitavam-no agora bem de frente e, à sua expressão, não faltava coragem, nem inteligência.
— Deixa estar que um dia encontrarás um tipo enfezado que te há-de deitar por terra antes que tu possas mexer um dedo — retorquiu César. — Mas agora vai para casa e cuida da tua mãe. E faz os teus trabalhos de casa em vez de andares a vaguear pelo bairro de Subura, a fazer maldades e a roubar pessoas que não te fizeram nenhum mal. A longo prazo, os trabalhos de casa serão mais benéficos para a tua vida.
Marco António pestanejou, surpreendido.
— Como é que sabes isso?
— Eu sei tudo — respondeu César, fechando-lhes a porta na cara. Regressou então à sala e sentou-se. — A invasão dos Germanos! — disse ele, com um sorriso. — Mas que tribo horrenda! Não há ninguém que lhes dê um pouco de educação?
— Ninguém — disse Aurélia. Soltando um suspiro de satisfação, acrescentou: — Ah, que contente que eu fiquei quando os puseste na ordem! Desde que chegaram que me apetecia dar-lhes uma boa sova!
Os olhos de César demoraram-se um pouco em Múcia Tércia. Que atraente!, pensou ele. Não havia dúvida: o casamento com Pompeu tinha-lhe feito bem. Mentalmente, César incluiu o nome dela na sua lista de futuras conquistas — ah, e Pompeu merecia bem uns cornos! Mas ainda não. Esperaria que o abominável Miúdo Carniceiro subisse ainda mais alto. César não tinha a mínima dúvida de que conseguiria seduzir Múcia Tércia; tinha-a apanhado a olhar para ele por várias vezes. Mas ainda era cedo. Ela precisava de mais tempo para amadurecer no vinhedo de Pompeu; só então é que ele colheria o cacho. Por ora, César já tinha fruta que chegasse — Metela Cabrita, a esposa de Caio Verres. E que pomar aquele! Cultivar e saborear os frutos daquele pomar era para ele um exercício extremamente gratificante!
Reparando que a sua doce esposa estava a observá-lo, César desviou a sua atenção para ela. Piscou-lhe o olho e Cinila teve de conter o riso. Ficou muito corada, muito vermelha — uma característica que herdara do pai. Uma esposa querida. Nunca se mostrava ciumenta, embora tivesse conhecimento dos boatos — e acreditasse neles, provavelmente. Ao fim de tantos anos, com certeza que já conhecia bem o seu César! Mas a influência de Aurélia sobre ela era tão grande que Cinila nunca se atrevera a falar dos namoriscos do marido. E, como seria de esperar, ele também não falava. A sua esposa não tinha nada a ver com as suas aventuras.
com a mãe, César não se mostrava tão circunspecto — aliás, fora ela quem lhe sugerira que seduzisse as esposas dos seus pares. E, de vez em quando, chegava mesmo a pedir-lhe conselho, sobretudo quando certas mulheres se revelavam mais difíceis. As mulheres eram um mistério e seriam sempre um mistério. Daí que as opiniões de Aurélia contassem muito para ele. Agora que tinha amizades no Palatino e nas Carinas, Aurélia tinha acesso a todos os boatos e mexericos e contava-os ao filho tal e qual como os tinha ouvido. Do que ele gostava, evidentemente, era de deixar as mulheres completamente apaixonadas antes de as abandonar; depois de uma tal experiência, essas mulheres nunca mais veriam com bons olhos os maridos enganados.
— Imagino que vocês se reuniram para consolar Júlia Antónia — disse ele, perguntando-se se a mãe teria o descaramento de lhe oferecer bolinhos e vinho doce misturado com água.
— Ela apareceu em minha casa carregada de jóias baratas e com aqueles rapazes horríveis atrás dela — disse a tia Júlia. — Eu percebi logo que não conseguiria agüentá-los por muito tempo e, por isso, trouxe-os para aqui.
— E tu estavas de visita à tia Júlia? — perguntou César a Múcia Tércia com um sorriso devastador.
Ela tomou fôlego, pigarreou e, por fim, respondeu:
— Eu visito a tia Júlia muitas vezes, Caio Júlio. O Quirinal fica muito perto do Pinciano.
— Ah, sim, claro. — César fitou a tia com idêntico sorriso; Júlia adorava aquele sorriso, mas, naturalmente, interpretava-o de um modo completamente diferente.
— Infortunadamente, suspeito que, de futuro, vamos ter de suportar muitas visitas de Júlia Antónia — disse a tia Júlia, com um suspiro. — Quem me dera ter a tua técnica para tratar daqueles rapazes!
— As visitas dela acabarão em breve, tia Júlia. E, quanto aos rapazes, não te preocupes que euvou ter uma conversinha com eles. Júlia Antónia tem de casar outra vez. E quanto mais depressa, melhor.
— Mas ninguém a vai querer! — exclamou Aurélia.
— Há muitos homens que gostam de mulheres completamente indefesas — disse César. — Infelizmente, Júlia Antónia não sabe escolher. Não acredito que arranje um marido melhor que Marco António, o Homem de Barro.
— Lá nisso, meu filho, tens toda a razão.
César fitou a irmã Ju-Ju, que até então nada dissera; Ju-Ju sempre fora o membro silencioso da família, apesar de possuir um temperamento muito afável.
— Eu acusava a Lia de escolher mal — disse ele. — Mas a ti, não te dei nenhuma hipótese de mostrares se sabias escolher. Pois não, irmã?
Ju-Ju retribuiu-lhe o sorriso.
— Estou muito satisfeita com o marido que me escolheste, César. No entanto, devo confessar que os jovens que me atraíam antes de casar se revelaram todos muito maus maridos.
— Nesse caso, deixa-me ser eu e Átia a escolher marido para a tua filha, quando chegar a altura. Átia vai ser uma bela mulher. E inteligente, o que significa que não agradará a todos os homens.
— Não é uma pena? — perguntou Ju-Ju.
— O quê? O facto de ela ser inteligente ou o facto de os homens não gostarem de mulheres inteligentes?
— O facto de os homens não apreciarem mulheres inteligentes.
— Eu gosto de mulheres inteligentes — respondeu César. — Mas há muito poucas. Não te preocupes: encontraremos um marido para Átia capaz de apreciar as suas qualidades.
A tia Júlia levantou-se.
— Já é quase noite, César. Eu sei que tu preferes ser tratado por César, até mesmo pela tua mãe. Mas eu ainda não me habituei! bom, tenho de ir andando.
—vou pedir aos filhos de Lúcio Decúmio que tragam uma liteira e que vos escoltem — disse César.
— Eu tenho uma liteira — disse Júlia. — Como o marido de Múcia não a deixa andar a pé, viemos de liteira. E teria sido uma viagem muito confortável, se não fosse a companhia de Júlia Antónia, que quase nos encharcava com tantas lágrimas! Ah, e também dispomos de uma boa escolta!
— Eu também vim de liteira — disse Ju-Ju.
— Mas que degeneradas! — atirou-lhes Aurélia. — Deviam andar todas a pé.
— Eu gosto de andar a pé — retorquiu Múcia Tércia. — Mas os maridos não vêem as coisas da mesma forma que tu, Aurélia. Cneu Pompeu acha impróprio que eu ande a pé.
César arrebitou as orelhas. Ah! Afinal sempre havia algum descontentamento! Ela sentia-se constrangida, demasiado fechada e vigiada! Não fez, porém, qualquer comentário. Limitou-se a conversar com toda a gente enquanto um criado ia à praça do cruzamento chamar as liteiras.
— Tu não andas bem, tia Júlia! — disse-lhe César ao conduzila para a espaçosa liteira de Múcia Tércia.
— Estou velha, César — disse ela num murmúrio, apertando-lhe a mão. — Cinqüenta e sete anos. Mas não tenho nada de especial. Só umas dores nos ossos quando o tempo esfria. Começo a ter medo do Inverno.
— A tua casa não é lá muito quente, pois não? — perguntou ele. — É uma casa exposta ao vento norte. Queres que te mande um hypocausis?
— Não, César, não quero que gastes dinheiro. Se eu precisasse, já tinha instalado uma fornalha — respondeu ela, fechando as cortinas.
— A tia não está bem de saúde — disse César à mãe ao
regressarem a casa.
Aurélia reflectiu um pouco sobre o assunto e só depois deu a sua opinião.
— Ela estaria bem se tivesse motivos para isso, César. Mas o marido e o filho morreram. E Júlia não tem ninguém, a não ser nós e Múcia Tércia. É pouco.
A sala de entrada estava já iluminada e as cortinas tinham sido corridas por causa do vento frio. No chão daquela agradável e quente divisão, Cinila brincava com a filha, agora com quase seis anos de idade. Uma criança invulgarmente bela, elegante e graciosa, tão branca que parecia uma bonequita de prata.
Quando viu o pai, os seus olhos azuis muito grandes brilharam de contentamento. Estendeu os braços para ele.
— Tata, lata! — exclamou. — Pega-me ao colo!
César pegou nela e beijou-a nas faces, de um rosa muito pálido.
— Que tal está hoje a minha princesa?
E enquanto César escutava, fascinado, uma ladainha de histórias, Aurélia e Cinila observavam-nos. Os pensamentos de Cinila limitavam-se ao facto de que os amava muito, mas Aurélia matutava naquela palavra: princesa. A sua neta era isso mesmo: uma princesa. César irá longe e será muito rico. E a sua filha terá um sem-número de pretendentes. Mas ele não se mostrara tão aberto com a filha como a minha mãe e o meu padrasto se mostraram comigo. César acabará por casá-la com alguém de que ele precise e pouco se importará com os sentimentos dela. Por isso, terei de prepará-la para aceitar a sua sorte, para encarar o seu destino sem ressentimentos
nem rancores.
No vigésimo quarto dia de Dezembro, Marco Crasso celebrou finalmente a sua ovação. Como houvera uma inegável participação samnita no exército de Espártaco, Crasso obtivera duas concessões do Senado: em vez de ir a pé, podia ir a cavalo; e em vez de usar a coroa de murta, poderia usar a coroa de louros, a coroa do triunfador. Uma apreciável multidão apareceu a saudar Crasso e o seu exército, o qual viera directamente de Cápua para as celebrações. Quando a multidão viu os miseráveis despojes da campanha, muitas foram as cotoveladas e ainda mais as piscadelas de olhos. Toda a cidade de Roma conhecia as fraquezas de Marco Crasso.
A multidão que assistiu ao triunfo de Pompeu, no último dia de Dezembro, era muito mais vasta. Pompeu conseguira conquistar a população de Roma, talvez por causa da sua relativa juventude, da sua beleza, da suposta semelhança com Alexandre, o Grande, ou da sua expressão de felicidade. O amor que sentiam por Pompeu nada tinha a ver com o amor que, noutros tempos, Caio Mário suscitara. Caio Mário, apesar de todos os esforços de Sila, continuava a ser lembrado como o melhor de todos.
Enquanto as eleições curuis decorriam em Roma, no princípio de Dezembro, Metelo Pio atravessou finalmente os Alpes e penetrou na Gália Italiana com o seu exército, que tratou de desmobilizar antes de instalar as suas tropas nas vastas e ricas terras a norte do rio Pó. Talvez porque suspeitara de que Pompeu não se contentaria com um regresso à obscuridade, Metelo Pio mantivera-se obstinadamente à parte dos conflitos de Roma. Catulo, Hortênsio e os outros Cecílios Metelos mais prestigiosos tinham-lhe escrito, mas o Bacorinho recusara-se a discutir assuntos para os quais, depois de uma tão longa ausência na Hispânia, não dispunha dos dados suficientes. E, no final de Janeiro, quando chegou a Roma, celebrou um modesto triunfo com as poucas tropas que o tinham acompanhado a Roma e sentou-se no seu lugar, num Senado presidido por Pompeu e Crasso, como se tudo estivesse bem. Era uma atitude que lhe poupava muitos aborrecimentos, embora implicasse que os seus créditos na derrota de Quinto Sertório nunca viessem a ser reconhecidos.
A lex Pompeia Licinia de tribunicia potestate foi apresentada ao Senado no princípio de Janeiro, sob a égide de Pompeu que, na sua qualidade de cônsul sénior, era quem empunhava os fasces. A popularidade desta lei, que restaurava todos os poderes do tribunado da plebe, fez retrair a oposição senatorial. Pompeu e Crasso esperavam que os seus opositores contestassem violentamente a lei. No entanto, poucas e frágeis foram as vozes que se ergueram para a contestar. O senatus consultam recomendando à Assembleia do Povo a promulgação da lei foi aprovado quase que por unanimidade. Alguns senadores ainda aventaram que a lei deveria ser ratificada pela Assembleia das Centúrias, mas César, Hortênsio e Cícero insistiram, com extrema firmeza, que só uma assembleia tribal poderia ratificar as leis que envolvessem as tribos. Após o prazo estipulado de três dias de mercado, a lex Pompeia Licinia foi pomulgada. Os tribunos da plebe poderiam de novo vetar leis e magistrados, realizar plebiscitos que teriam força de lei na sua Assembleia da Plebe, sem terem de esperar pelo senatus consultam, e mesmo processar por traição, extorsão e outras transgressões.
César intervinha agora regularmente no Senado; como os seus discursos eram sempre inteligentes, breves e incisivos, depressa ganhou adeptos. Pediam-lhe freqüentemente que publicasse os seus discursos, considerados tão bons como os de Cícero. Segundo constava, até mesmo Cícero considerava César o melhor orador de Roma — depois dele, obviamente.
Ansioso por utilizar alguns dos seus poderes recentemente restaurados, o tribuno da plebe Pláucio anunciou no Senado que ia legislar na Assembleia da Plebe, tendo em vista a devolução da cidadania e dos direitos a todos aqueles que haviam sido condenados com Lépido e com Quinto Sertório. César levantou-se imediatamente para defender a lei. E mais: para defender, com uma eloqüência apuradíssima, que uma tal medida fosse também aplicada a todos os homens que haviam sido prescritos por Sila. No entanto, quando o Senado se recusou a alargar o âmbito da lei, limitando-a aos que tinham sido proscritos por apoiarem Lépido e Sertório, César mostrou uma expressão estranhamente alegre, como se não tivesse sido derrotado.
— O Senado derrotou a tua proposta, César — disse-lhe Marco Crasso, perplexo. — E no entanto, tu estás todo contente!
— Meu caro Crasso, eu sabia perfeitamente que o Senado nunca apoiaria um perdão para os proscritos de Sila! — retorquiu César, sorridente. — Se isso acontecesse, muitos daqueles que ficaram ricos graças às prescrições teriam de devolver tudo. Mas a minha intenção não era essa! Pareceu-me, com efeito, que os apoiantes de Catulo iam bloquear os perdões para os seguidores de Lépido e Sertório. E foi por isso que propus o alargamento da lei aos proscritos de Sila — é que, assim, a medida proposta pareceria muito mais modesta! Se queres que alguma coisa seja aprovada e sabes que vai haver uma forte oposição, então deves pôr a fasquia muito mais alto! A oposição concentra-se de tal modo nas coisas que mais a irritam que acaba por esquecer-se das medidas pouco significativas que nós queríamos ver aprovadas!
Crasso fitou-o com um sorriso imenso.
— Tu és um verdadeiro político, César. Espero que os teus adversários não dêem demasiada atenção aos teus métodos. Caso contrário, terás de enfrentar muitas dificuldades ao longo da tua vida.
— Eu adoro a política — retorquiu apenas César.
— Tu gostas de tudo o que fazes e é por isso que te sais bem em tudo. Esse é o teu segredo. Para além de teres uma grande cabeça.
— Não me lisonjeies, Crasso, a minha cabeça não é assim tão grande — disse César, brincando com a duplicidade de sentidos da palavra ”cabeça”.
— Se queres saber a minha opinião, até a acho demasiado grande — retorquiu Crasso, rindo. — Devias ser um pouco mais discreto nas tuas aventuras com as mulheres dos outros, pelo menos por ora. Ouvi dizer que os nossos novos censores vão examinar a conduta dos senadores com a mesma atenção com que uma ama cata os piolhos às crianças.
Era a primeira vez que havia censores em Roma desde que Sila riscara esse cargo da lista de magistraturas: um par muito peculiar, constituído por homens muito diferentes entre si — Cneu Cornélio Lêntulo Clodiano e Lúcio Gélio Poplicola. Toda a gente sabia que eram homens de Pompeu, mas quando este propôs os seus nomes ao Senado, aqueles que tinham planeado disputar o cargo (e que tinham mais qualidades para isso) — Catulo e Metelo Pio, Vátia Isáurico e Curió — retiraram-se imediatamente da corrida, deixando o campo livre a Clodiano e Gélio.
As previsões de Crasso revelaram-se correctas. Era prática normal dos censores tratar, em primeiro lugar, de todos os contratos do Estado; porém, depois de terem firmado os contratos sagrados para a alimentação dos gansos e galinhas do Capitolino e tratado de outros assuntos religiosos, Clodiano e Gélio resolveram examinar os registos senatoriais. As suas conclusões foram lidas numa contio especial e provocaram uma agitação como há muito não se via. Nada mais nada menos do que sessenta e quatro senadores foram afastados, a maior parte por suspeitas de terem aceite ou pago luvas na qualidade de jurados. Muitos dos jurados presentes no julgamento de Estácio Álbio Opiânico foram afastados, e o queixoso, o afilhado de Opiânico, que ganhara a causa, foi punido, tendo sido transferido da sua tribo rural para a tribo urbana de Esquilina. Mas muito mais sensacionais foram as expulsões de um dos questores do ano anterior, Quinto Curió, do cônsul sénior do ano anterior, Públio Cornélio Lêntulo Sura, e de Caio António Híbrida, o Monstro do Lago Orcomeno.
Um senador expulso tinha possibilidades de voltar a entrar para o Senado — mas nunca o conseguiria através das diligências dos censores que o tinham expulso; teria de concorrer às eleições para o questorato ou para o tribunado da plebe. Um caso muito desagradável para Lêntulo Sura, que já tinha sido cônsul! Mas Lêntula Sura, que estava apaixonado, pouco se preocupou com a sua expulsão do Senado. Pouco tempo depois, casava com Júlia Antónia. César tinha razão. Júlia Antónia não sabia escolher marido. E Lêntulo Sura era ainda pior que Marco António, o Homem de Barro.
Resolvidos os casos do Senado, Clodiano e Gélio retomaram a celebração de contratos, desta feita civis. Estes contratos envolviam sobretudo a colecta de taxas e tributos provinciais, mas também cobriam a construção ou restauração de inúmeros edifícios do Estado e obras públicas (desde a renovação de latrinas à reconstrução de bancadas dos circos, até à construção de pontes ou basílicas). De novo, a agitação foi grande: os censores anunciaram que iam abandonar o sistema de taxas que Sila introduzira para apaziguar a Província da Ásia.
Lúculo e Marco Cota pareciam ter levado abom termo a guerra contra o rei Mitridates, ainda que os louros pertencessem definitivamente a Lúculo. No ano do consulado de Pompeu e Crasso, Mitridates viu-se obrigado a fugir para a corte do seu genro Tigranes da Armênia (onde Tigranes se recusou a recebê-lo) e Lúculo ficou a dominar a quase totalidade do Ponto, para além da Capadócia e da Bitínia; faltava apenas tratar do caso Tigranes. com as mãos livres para tratar do trabalho administrativo, Lúculo tratou imediatamente de investigar os complexos negócios financeiros da Província da Ásia, que governava, há três anos, em conjunto com a Cilícia. E mostrou-se tão duro com os publicam, ou cobradores de taxas, que, por duas vezes, exercendo os seus direitos de governador, mandou executar vários desses homens, tal como fizera Marco Emílio Escauro alguns anos antes.
Esta actuação provocou um verdadeiro motim em Roma, tanto mais que as reformas de Lúculo reduziam, ainda mais que as de Sila, os lucros dos cobradores de impostos. Membro do grupo ultraconservador do Senado, Lúculo nunca fora popular nos principais círculos de negócios, o que significava que homens como Crasso e Ático o detestavam. Talvez porque Lúculo era, entre os generais romanos, o único capaz de eclipsá-lo, Pompeu também o detestava.
Por isso, não causou grande surpresa o anúncio de que os censores de Pompeu iam abandonar o sistema de Sila para a Província da Ásia; tudo voltaria a ser como nos tempos anteriores a Sila.
Lúculo, porém, resolveu ignorar as directivas censoriais. Enquanto fosse governador da Província da Ásia, manteria o sistema de Sila, que, segundo ele, era um modelo que devia ser aplicado em todas as províncias de Roma. As sociedades criadas à pressa tiveram de recuar, vozes ergueram-se no Fórum e no Senado, e os mais poderosos dos cavaleiros reivindicaram o afastamento de Lúculo.
Lúculo, no entanto, continuou a ignorar as directivas de Roma, e a ignorar a sua precária posição. Dava muito mais importância à limpeza que sempre ocorria depois das grandes guerras; quando deixasse as suas duas províncias, estas estariam completamente limpas do ponto de vista financeiro. E livres de corruptos.
Embora, por natureza ou inclinação, não se sentisse atraído por senadores ultraconservadores como Catulo e Lúculo, César tinha razões para estar grato a Lúculo; tinha recebido, havia pouco tempo, uma carta da rainha Oradaltis da Bitínia.
A minha filha regressou a casa, César. Sabes certamente que Lúcio Licínio Lúculo concluiu com grande êxito a guerra contra o rei Mitridates e que conduz uma campanha no próprio território do Ponto há já um ano. Das muitas fortalezas que o rei possuía, Cabeira era considerada a mais forte. Este ano, porém, caiu em poder de Lúculo, o qual deparou com todo o tipo de horrores — as masmorras estavam cheias de prisioneiros políticos e parentes do rei, potencialmente perigosos, os quais haviam sido torturados ou usados como cobaias pelo rei para as suas constantes experiências com veneno. Mas não me alongarei mais sobre estes assuntos, pois estou demasiado feliz para falar de coisas tão tristes.
Entre as mulheres que Lúculo encontrou na fortaleza, encontrava-se Nisa. A minha filha já lá estava há quase vinte anos: tem agora mais de sessenta. No entanto, Mitridates deu-lhe o tratamento que seria de esperar. — Mas seria mais uma das esposas menores e concubinas que mantinha em Cabeira. Também guardava lá algumas das irmãs que não queria ver casadas. De maneira que a minha pobre filha teve por companhia um sem-número de solteironas durante estes vinte anos. O rei tem tantas esposas e concubinas que as mulheres de Cabeira acabavam por ficar virgens! Enfim, uma verdadeira colônia de solteironas.
Quando Lúculo abriu a prisão das mulheres, mostrou-se muito delicado para com elas e tomou todas as providências para que os homens não abusassem delas. Segundo conta Nisa, comportou-se como Alexandre, o Grande, em relação à mãe, às mulheres e outros membros do harém do rei Dario in. Creio que Lúculo mandou as mulheres do Ponto para o seu aliado da Ciméria, Macares, um dos muitos filhos de Mitridates.
Quanto a Nisa, deu-lhe total liberdade a partir do momento em que soube quem ela era. E não só. Encheu-a de presentes, incluindo valiosos objectos em ouro, e mandou-a para minha casa acompanhada por uma escolta de soldados, os quais, antes de partirem, tiveram de jurar que respeitariam a sua honra. Imagina só o prazer daquela mulher envelhecida ao ver-se livre como um pássaro ao fim de tantos anos!
Ah, e o que eu senti quando a tive de novo nos meus braços! Eu não sabia de nada. E, de repente, vejo-a entrar na minha villa de Reba, radiante como uma menina! Estava tão contente por me ver! O meu último desejo tornou-se realidade: tenho a minha filha de novo comigo.
Nisa veio mesmo a tempo. O meu velho e querido cão, Sila, morrera de velhice um mês antes e eu estava desesperada. Os criados tentaram em vão convencer-me a arranjar outro cão, mas tu sabes como são estas coisas. Começamos a pensar nas habilidades e nas brincadeiras que o nosso querido bichinho fazia, no lugar que ele ocupava na vida familiar, e parece-nos que estamos a atraiçoá-lo quando, pouco tempo depois de o enterrarmos, vemos outro bicho no seu cesto. Não digo que seja errado fazer isto, mas uma pessoa tem de esperar tanto tempo até que o novo animal adquira uma personalidade própria que, para falar francamente, creio que morrerei antes de o substituto de Sila se tornar um cão como deve ser.
Mas agora já não se fala em morrer! Nisa fartou-se de chorar quando lhe disse que o pai tinha morrido. Mas tudo já passou. Temos vivido estes últimos tempos na maior harmonia, na maior felicidade.
E estamos bem aqui na aldeia: vamos pescar à linha e damos todos os dias o nosso passeio higiênico. Lúculo convidou-nos para vivermos no palácio de Nicomédia, mas decidimos ficar aqui. E, entretanto, arranjámos um cachorrinho, a que pus o nome de Lúculo.
Por favor, César, vê se arranjas tempo para voltar ao Oriente! Gostava tanto que conhecesses Nisa! E tenho tantas saudades tuas!
Foi ao tribuno da plebe do ano anterior, Marco Lólio Palicano, que os representantes de todas as cidades da Sicília, excepto Siracusa e Messana, pediram que processasse Caio Verres. Palicano, porém, mandou-os ir falar com Pompeu, o qual, por seu turno, os mandou para Marco Túlio Cícero, dizendo-lhes que Cícero era o homem ideal para aquele caso específico.
Verres assumira o cargo de governador da Sicília .depois de ter sido pretor urbano. E, em grande parte graças a Espártaco, permanecera no governo da ilha durante três anos. Tinha acabado de regressar a Roma quando a delegação siciliana procurou Cícero. Tanto Pompeu como Palicano tinham algum envolvimento pessoal no caso; Palicano tinha apoiado alguns dos seus clientes contra as perseguições de Verres e Pompeu acumulara um considerável número de clientes sicilianos no período em que ocupara a Sicília em representação de Sila.
Questor em Lilibeu, sob o governo de Sexto Peduceu, no ano anterior à chegada de Verres à Sicília, Cícero apaixonara-se por aquela terra e por aquela gente. E conseguira também umbom número de clientes. No entanto, quando os sicilianos lhe expuseram o caso, Cícero recuou.
— Eu nunca acuso — explicou. — Eu só defendo.
— Mas Cneu Pompeu Magno recomendou-te! Disse-nos que eras o único homem que podia vencer um caso destes. Por favor, Cícero, abre uma excepção e processa Caio Verres! Se não vencermos este caso, é muito provável que a Sicília se revolte contra Roma.
— Verres saqueou a Sicília. É isso, não é? — perguntou Cícero, clinicamente.
— Sim, foi isso mesmo. Mas depois de ter saqueado a nossa terra, desmembrou-a. Ficámos sem nada! Ficámos sem uma única obra de arte nos templos. Quanto aos privados, perderam todos os seus objectos de valor. Que podemos dizer de um homem que teve a ousadia de escravizar uma mulher livre famosa pelas suas tapeçarias e de a obrigar a dirigir uma fábrica para seu próprio proveito? Ficou com o dinheiro que o Tesouro de Roma lhe deu para comprar cereais e depois encomendou cereais e não os pagou! Roubou quintas, propriedades, até mesmo heranças. A lista é infindável! Este catálogo de perfídias deixou Cícero estupefacto. No entanto, continuou a dizer que não.
— Lamento imenso, meus amigos, mas eu nunca processo ninguém.
O porta-voz respirou fundo.
— Nesse caso, voltaremos para casa — disse. — Pensávamos que um homem como tu, que conhece tão bem a história da Sicília que até se deu ao trabalho de redescobrir o local do túmulo de Arquimedes, entenderia a difícil situação em que nos encontramos e nos ajudaria. Mas tu já não gostas da Sicília e é evidente que não tens Cneu Pompeu em tão boa conta como ele te tem a ti.
Lembrarem-no de Pompeu e de uma proeza famosa — de facto, Cícero tinha redescoberto o túmulo perdido de Arquimedes, nos arredores de Siracusa — era de mais. A acusação, segundo Cícero, eqüivalia a um desperdício dos seus talentos, pois os honorários (em grande parte ilegais) eram sempre inferiores aos incentivos oferecidos pelos ex-governadores ou publicani que corriam o risco de perder tudo. E além disso — tal era a mentalidade das pessoas — os acusadores não eram nada populares! O advogado de acusação era imprevisto como uma criatura malvada, determinada a arruinar a vida de um indivíduo indefeso; ao passo que o advogado de defesa era sempre um herói popular. As pessoas nem ligavam ao facto de a maior parte daqueles indivíduos indefesos serem extremamente avaros e astuciosos, para além de culpados; qualquer ameaça ao direito de um homem conduzir a sua vida como muito bem entendida era normalmente considerada como um atentado à sua livre iniciativa.
Cícero suspirou.
— Pois bem, eu tomo conta do caso! — disse. — Mas não se esqueçam de que os advogados de defesa falam depois dos advogados de acusação e que, quando o júri vai decidir sobre o seu veredicto, já se esqueceu de tudo o que os acusadores disseram! Não se esqueçam também de que Caio Verres tem as melhores relações na sociedade romana. A mulher dele é uma Cecília Metela, o homem que devia ter sido cônsul este ano é seu cunhado, o actual governador da Sicília também é seu cunhado — daí é que não nos virá qualquer ajuda! — e todos os Cecílios Metelos estarão do seu lado. Se eu o acusar, Quinto Hortênsio defendê-lo-á, assistido por outros advogados quase tão famosos como ele. Eu disse que tomava conta do caso. Isto não quer dizer que ache quevou ganhar.
A delegação ainda não tinha deixado a sua casa e já Cícero lamentava a sua decisão; para que ia ele ofender todos os Cecílios Metelos se as suas hipóteses de vir a ser cônsul assentavam todas na precária base das suas capacidades enquanto advogado? Ele era tanto um Homem Novo como o seu conterrâneo Caio Mário, que abominava; mas Cícero não tinha qualquer tendência militar e os progressos de um Homem Novo eram muito mais difíceis se não se notabilizasse no campo de batalha.
Claro que Cícero sabia por que razão tinha aceite: a absurda lealdade que sentia em relação a Pompeu. Podiam ter passado já muitos anos, mas como poderia ele esquecer a amabilidade de um cadete de 17 anos para com o cadete que o seu pai desprezava? Enquanto vivesse, Cícero sentir-se-ia sempre grato para com Pompeu, porque ele o ajudara naquela miserável experiência militar nas hostes de Pompeu Estrabão; porque o protegera da crueldade e das fúrias de Pompeu Estrabão. Ninguém mexeria um dedo para o ajudar: no entanto, o jovem Pompeu, o filho do general, mexera todos os seus dedos! Graças a Pompeu, passara aquele Inverno no maior conforto, graças a Pompeu tinham-lhe sido concedidos deveres clericais, graças a Pompeu nunca precisara de erguer uma espada. E Cícero nunca poderia esquecer isso.
Por isso, passado pouco tempo, deslocou-se às Carinas a fim de falar com Pompeu.
— Queria apenas informar-te — disse ele, com uma voz de condenado — que decidi processar Caio Verres.
— Ah, esplêndido! — disse Pompeu, todo contente. — Muitas das vítimas de Verres são — ou eram, nalguns casos — meus clientes, tu podes ganhar, eu sei que podes. E diz-me já que favores precisas de mim.
— Eu não preciso de favores, Magno. Além disso, eu é que te devo favores.
Pompeu ficou surpreendido.
— Favores? Que favores?
— Conseguiste tornar suportável o ano que passei no exército do teu pai.
— Ah! Mas foi só isso?! — rindo-se, Pompeu abanou Cícero pelo braço, — Francamente, Cícero, isso não vale a gratidão de uma vida!
— Para mim, vale — retorquiu Cícero, com lágrimas nos olhos. — Partilhámos muitas coisas durante a Guerra Italiana.
Pompeu deve ter-se lembrado nesse instante das coisas menos agradáveis que partilharam, e em particular da busca do cadáver do pai, pois abanou a cabeça como que para apagar todas as recordações da Guerra Italiana. Depois, ofereceu a Cícero uma taça de um vinho magnífico.
— Pois bem, meu amigo! Só quero que me digas o que posso fazer para te ajudar agora!
— Assim farei — disse Cícero, agradecido.
— Todos aqueles Cabritos dos Cecílios Metelos estarão contra esta acusação — disse Pompeu, com um ar pensativo. — Tal como Catulo, Hortênsio e outros mais.
— Acabas de referir a principal razão por que terei de apresentar este caso o mais depressa possível. Não me atrevo a correr o risco de ver o caso adiado para o próximo ano, porque Cabrito e Hortênsio deverão ser cônsules. Pelo menos, é o que toda a gente diz.
— Isso só em parte seria um inconveniente — disse Pompeu. — Porque no próximo ano é possível que os júris voltem a ser formados por cavaleiros. E os cavaleiros estariam contra Verres.
— Há sempre o risco de os cônsules manipularem o tribunal, Magno. Além disso, não há qualquer garantia de que o nosso pretor Lúcio Cota venha a ser favorável a jurados cavaleiros. Falei com ele um dia destes — ele pensa que os seus estudos sobre a composição dos júris demorarão ainda vários meses — e Cota não está convencido de que os júris formados por cavaleiros serão melhores que os senatoriais. E os cavaleiros não podem ser processados por aceitarem luvas.
— Podemos alterar a lei — disse Pompeu, o qual, não tendo qualquer respeito pelas leis, pensava que estas, sempre que se tornavam inconvenientes, deviam ser alteradas — de acordo com os seus pontos de vista, naturalmente.
— Isso é capaz de ser difícil.
— Não estou a ver porquê.
— Porque — disse Cícero, pacientemente — alterar essa lei específica implicaria a necessidade de promulgar mais uma lei numa das duas Assembleias tribais, ambas dominadas por cavaleiros.
— Eles perdoaram-nos, a mim e a Crasso, as acções que praticámos o ano passado — retorquiu Pompeu, incapaz de distinguir a diferença entre duas leis.
— Isso foi porque tu foste simpático para eles, Magno. E eles querem que tu continues a ser simpático. Uma lei prevendo a sua culpabilidade por aceitarem subornos é algo completamente diferente.
— Pois bem, pode ser que Lúcio Cota não seja favorável aos júris compostos por cavaleiros. Foi só uma ideia que eu tive.
Cícero levantou-se para se ir embora.
— Obrigado uma vez mais, Magno.
— Mantém-me informado, Cícero.
Um mês depois, Cícero notificou o pretor urbano, Lúcio Cota, de que processaria Caio Verres no Tribunal de Extorsões, em nome das cidades da Sicília, e que pediria uma indemnização no valor de quarenta e dois milhões e quinhentos mil sestércios — mil e setecentos talentos —, bem como a devolução de todas as obras de arte e objectos valiosos roubados aos templos e aos cidadãos da Sicília.
Embora tivesse regressado da Sicília com o ar mais superior deste mundo, confiante no facto de que a sua posição como cunhado de Metelo Cabrito constituiria uma protecção adequada contra um possível processo, quando soube que Cícero — Cícero, que nunca processava ninguém! — ia acusá-lo em tribunal, Caio Verres entrou em pânico. Tratou imediatamente de escrever ao seu cunhado Lúcio Metelo, governador da Sicília, para que ocultasse todas as provas que Verres, na sua pressa em sair da ilha com os depojos, se esquecera de ocultar. Significativamente, Siracusa e Messana não se tinham associado às queixas das outras cidades; isso devia-se ao facto de Siracusa e Messana terem ajudado Verres e partilhado com ele os lucros das suas nefandas actividades. Mas que sorte a sua! O novo governador era precisamente o irmão do meio da sua esposa!
Os dois irmãos que estavam em Roma, Quinto Cabrito (o qual tinha a certeza de vir a ser cônsul no ano seguinte) e o mais jovem dos três filhos de Metelo Caprário, Marco, reuniram-se apressadamente com Verres, para ver o que poderia ser feito para impedir o desastre de um julgamento, e concordaram em entregar o caso a Hortênsio. Este, por certo, conduziria a defesa se o caso chegasse ao tribunal, mas, naquela fase, o que era preciso era evitar um julgamento, especialmente quando o advogado de acusação era Cícero.
Em Março, Hortênsio apresentou uma queixa ao pretor urbano. Cícero, alegava Hortênsio, não era o homem adequado para processar Caio Verres. Em vez de Cícero, Hortênsio apontou Quinto Cecílio Nigro, um familiar dos Cabritos que fora questor de Verres na Sicília a meio dos seus três anos como governador. A única forma de determinar as capacidades de Cícero para acusar consistia na realização de uma audição especial, denominada divinatio, ou adivinhação (assim chamada porque os juizes, nesta audição especial, chegavam a uma conclusão sem que tivessem sido apresentadas provas formais — ou seja, chegavam a uma conclusão através de conjecturas). Os dois acusadores teriam de lutar pelo cargo perante os juizes e, depois de terem ouvido Cecílio Nigro, cuja eloqüência era nula, e Cícero, os juizes não tiveram a mínima dúvida: escolheram Cícero e ordenaram que o julgamento se realizasse o mais rapidamente possível.
Verres, os dois Metelos Cabritos e Hortênsio tinham de pensar num novo estratagema.
- Tu vais ser pretor no próximo ano, Marco — disse o grande advogado ao mais novo dos irmãos. — Portanto, vamos ter de fazer com que o sorteio te leve à presidência do Tribunal de Extorsão. O presidente deste ano, Glábrio, detesta Caio Verres. E basta isso para que Glábrio não permita o mínimo escândalo no seu tribunal — ou seja, se o julgamento decorrer este ano e Glábrio for, portanto, o presidente do tribunal, não teremos a mínima hipótese de subornar o júri. E não se esqueçam de que, este ano, Lúcio Cota anda a observar todos os júris importantes com a mesma atenção com que um gato observa um rato. Como este caso vai atrair a atenção de muita gente, creio que Lúcio Cota irá servir-se dele para elaborar a sua opinião sobre os júris constituídos unicamente por senadores. bom, e quanto aos nossos cônsules Pompeu e Crasso — é evidente que não gostam nada de nós!
— Queres dizer — disse Caio Verres, francamente menos bronzeado do que quando chegara da Sicília — que temos de esperar pelo próximo ano porque só então Marco será presidente do Tribunal de Extorsão?
— Precisamente — disse Hortênsio. — Quinto Metelo e eu seremos cônsules no próximo ano — uma grande ajuda! Não será difícil manipular o sorteio e dar a Marco o Tribunal de Extorsão. E pouca diferença fará se os jurados do próximo ano forem senadores ou cavaleiros — suborná-los-emos!
— Mas ainda estamos em Abril! — disse Verres, com um ar desanimado. — Não estou a ver como é que vamos arrastar as coisas até ao fim do ano.
— Ah, isso não é impossível! — retorquiu Hortênsio, confiante. — Em casos destes, as provas têm de ser reunidas a uma longa distância de Roma — e, para mais, numa região tão vasta como a Sicília! Por isso, um acusador precisará entre seis a oito meses para preparar o seu caso. Eu sei que Cícero ainda não começou porque continua em Roma e ainda não mandou nenhum representante à Sicília. É claro que ele espera reunir as provas e as testemunhas rapidamente. E é aí que Lúcio Metelo entra. Como governador da Sicília, pode levantar todos os obstáculos às investigações de Cícero ou dos seus agentes.
Hortênsio estava radiante.
— Prevejo que Cícero não estará pronto antes de Outubro. Ou mesmo mais tarde. Claro que ainda tem tempo suficiente para ir a tribunal. Mas nós não deixaremos! Porque, nessa altura, tentaremos pôr outro caso à frente do teu no tribunal de Glábrio. A vítima terá de ser alguém que deixou provas muito concretas, provas que possamos reunir rapidamente. Um desgraçado qualquer que fez uma pequena extorsão, e não uma personalidade importante como um governador de uma província. O prefeito de um distrito administrativo da Grécia, por exemplo. Eu tenho uma vítima em mente — disporemos de provas suficientes para satisfazer o pretor urbano e para apresentarmos o caso em finais de Quinctilis. Cícero, nessa altura, ainda não estará pronto. Mas nós estaremos!
— Em que vítima é que estás a pensar? — perguntou Metelo Cabrito, mais aliviado; naturalmente, ele e os seus irmãos tinham partilhado os lucros de Caio Verres, mas isso não significava que estivesse interessado em ver um cunhado exilado e caído em desgraça pelo crime de extorsão.
— Estou a pensar naquele Quinto Cúrtio que foi legado de Varrão Lúculo e prefeito de Aquéia enquanto Varrão Lúculo foi governador da Macedónia. Se Varrão Lúculo não tivesse tido tanto que fazer na Trácia, por causa dos Bessos, estou certo de que ele próprio teria processado Cúrtio. Porém, quando regressou a Roma e se deu conta das pequenas extorsões de Cúrtio, achou que já era demasiado tarde e que os crimes eram tão pouco importantes que não valia a pena processar o homem. Mas as provas não faltam e Varrão Lúculo terá o maior prazer em ajudar-nos. Eu apresentarei um pedido ao pretor urbano para que Quinto Cúrtio seja julgado ainda este ano no Tribunal de Extorsão — disse Hortênsio.
— O que significa — disse Verres, ansioso — que Lúcio Cota ordenará a Glábrio que julgue o primeiro dos casos. E o primeiro, como tu dizes, será o de Cúrtio. Depois, arrastarás o julgamento até ao fim do ano! Cícero e o meu julgamento terão de esperar. Brilhante, Quinto Hortênsio, absolutamente brilhante!
— Sim, creio que é bastante astucioso — disse Hortênsio, vaidoso.
— Cícero vai ficar furioso! — disse Metelo Cabrito.
— E eu adoro vê-lo furioso! — disse Hortênsio.
Mas nenhum deles viu Cícero furioso. Quando soube que Hortênsio apresentara um pedido de julgamento de um ex-prefeito de Aquéia, percebeu claramente os objectivos de Hortênsio. E não ficou furioso: apenas desanimado e, por fim, desesperado.
O seu primo Lúcio Cícero, de Arpino, tinha vindo visitá-lo a Roma. Mal entrou no gabinete do advogado, apercebeu-se do estado em que ele se encontrava.
— Que se passa, primo? — perguntou Lúcio Cícero.
— Hortênsio! Hortênsio vai ocupar com um julgamento o Tribunal de Extorsão antes que eu consiga reunir as minhas provas contra Caio Verres! — Cícero sentou-se, com um ar extremamente deprimido. — A minha acusação terá de esperar até ao próximo ano; e eu apostava toda a minha fortuna em que os Metelos Cabritos já arranjaram as coisas com Hortênsio, para que Marco Cabrito seja o pretor encarregado do Tribunal de Extorsão, no próximo ano.
— E Caio Verres será absolvido — disse Lúcio Cícero.
— Só poderá ser absolvido!
— Nesse caso, tens de estar pronto antes do processo movido por Hortênsio.
— O quê? Antes do final de Quinctilis? Essa foi a data que o nosso amigo Hortênsio pediu ao pretor urbano. Eu não consigo estar pronto nessa altura! A Sicília é uma região enorme, o actual governador é cunhado de Verres e, portanto, levantar-me-á todos os obstáculos possíveis e imagináveis! É impossível, primo, é impossível!
— Claro que é possível — disse Lúcio Cícero, muito mais animado que o primo. — Meu caro Marco Túlio, quando tu te atiras a um caso és a pessoa mais organizada deste mundo. És tão disciplinado e lógico, e tens tanto método! E conheces muito bem a Sicília, tens amigos sicilianos, incluindo aqueles que sofreram às mãos do temível Caio Verres. Sim, é verdade que o governador tentará atrasar o teu trabalho, mas não te esqueças de que, no outro prato da balança, estão todas as pessoas a quem Verres ofendeu — e que te ajudarão com todas as suas forças! Estamos em fins de Abril. Acaba o teu trabalho em Roma dentro de dois intervalos entre mercados. Entretanto, eu tratarei de alugar um navio para nos levar à Sicília. Partiremos os dois para a Sicília em meados de Maio. Vá, Marco, tu vais conseguir!
— Vens mesmo comigo, Lúcio? — perguntou Cícero, já mais animado. — És quase tão bem organizado como eu, serás a melhor ajuda que eu poderei ter. — O seu entusiasmo natural reemergia; de repente, aquela tarefa parecia muito menos terrível do que ele julgara ao princípio. — Terei de ir falar com os meus clientes. Não tenho dinheiro que chegue para alugar navios rápidos e para percorrer toda a Sicília em carroças de duas rodas puxadas por mulas velozes. — Cícero bateu com uma mão na secretária e exclamou: — Por Júpiter, Lúcio,vou adorar fazer isto! Nem que seja só para ver a cara com que Hortênsio vai ficar!
— Então, mãos à obra! — exclamou Lúcio, com um sorriso imenso. — Cinqüenta dias: nem mais um dia para fazer o que temos a fazer. Dez dias de viagem, ida e volta, e quarenta dias para reunir as provas.
E enquanto Lúcio Cícero foi ao porto de Roma para tratar do aluguer do navio, Cícero seguiu para a casa do Quirinal, onde os seus clientes o esperavam.
Cícero conhecia bem o mais velho dos seus clientes — Hiero de Lilibeu, que fora etnarca desse importante porto siciliano na altura em que Cícero fora questor da ilha.
— O meu primo Lúcio e eu vamos ter de reunir todas as nossas provas sicilianas no prazo máximo de cinqüenta dias — explicou Cícero. — Isto se eu quiser derrotar Hortênsio. Nós temos possibilidades de o fazer, mas é preciso que vocês paguem as despesas. — Cícero corou, mas prosseguiu: — Eu não sou rico, Hiero, não me posso dar ao luxo de pagar um transporte rápido. E também há pessoas a quem tenho de pagar para obter informações. E, finalmente, será preciso trazer testemunhas para Roma.
Hiero sempre adorara e admirara Cícero. Os homens de negócios sicilianos tinham gostado imenso do trabalho de Cícero como questor, pois Cícero era rápido, brilhante, e inovador no que tocava à contabilidade e aos problemas fiscais, e também um esplêndido administrador. Mas também tinham gostado dele porque Cícero era uma raridade: era um homem honesto.
— Temos todo o prazer em adiantar-te todo o dinheiro de que precises, Marco Túlio — disse Hiero. — Mas creio que agora é uma boa altura para discutirmos a questão dos teus honorários. Pouco temos para te dar a não ser dinheiro e eu sei que os advogados romanos - não gostam de receber dinheiro, porque os censores detectam facilmente isso. Eu sei que as obras de arte são a forma de pagamento mais habitual. Mas não temos nenhuma obra de arte importante para te dar.
— Ah, não se preocupem com isso! — retorquiu Cícero, com a maior alegria. — Eu sei muito bem que honorários quero. Gostaria de ser edil plebeu no próximo ano. Os meus jogos serão bons, mas não poderei competir com os homens ricos que normalmente são edis. Mas posso tornar-me o mais popular dos homens se distribuir cereais baratos. Paga-me em cereais, Hiero — é a única coisa dourada que, todos os anos, a terra nos dá. Eu compro-te os cereais com os meus fundos de edil, mas o preço não poderá ser superior a dois sestércios o modius. Se me garantes que me venderás cereais a esse preço e nas quantidades que eu pretendo, então não te pedirei outros honorários! Desde que, evidentemente, seja eu a ganhar o caso!
— Negócio feito! — disse Hiero imediatamente, pensando já em fazer um depósito de dez talentos no seu banco, em nome de Cícero.
Marco e Lúcio Cícero estiveram fora exactamente cinqüenta dias, durante os quais trabalharam infatigavelmente na recolha de provas e selecção de testemunhas. E apesar de o governador, piratas diversos e os magistrados de Siracusa e Messana (e também alguns cobradores de impostos romanos) tentarem atrasar o seu trabalho, havia muito mais gente — incluindo altas personalidades locais — interessada em apressá-lo. Se os arquivos questorianos de Siracusa eram omissos ou inadequados, já os de Lilibeu continham um sem-número de provas. As testemunhas apareceram, tal como os contabilistas e os mercadores, para além dos agricultores, obviamente. A deusa Fortuna também estava do lado de Cícero; quando chegou o momento de partir, e lhe restavam apenas quatro dias dos cinqüenta previstos, o tempo estava tão propício que ele, Lúcio e todas as testemunhas e registos dos arquivos puderam fazer a viagem para Óstia num barco aberto, muito leve e veloz. Chegaram a Roma no último dia de Junho, o que significava que teriam um mês para organizar o caso.
Durante esse mês, para além de trabalhar afincadamente no processo contra Verres, Cícero apresentou-se como candidato ao cargo de edil plebeu. Como conseguiu fazer tudo isso ao mesmo tempo, era para ele um mistério; mas a verdade é que Cícero trabalhava sempre melhor quando tinha a secretária tão cheia de papéis que nem lhe conseguia ver o tampo. As decisões surgiam tão rápidas como relâmpagos, tudo se encaixava no lugar certo, a língua de prata e a voz de ouro eram veículos espontâneos da sua inteligência e sabedoria, a sua bela e imponente cabeça ganhava, aos olhos de todos, o mais nobre dos aspectos, e a criatura extraordinária que, por vezes, se intimidava e escondia nas profundezas mais sombrias do seu ego, surgia à vista de toda a gente. Durante esse mês, Cícero conseguiu mesmo delinear uma técnica completamente nova para a condução de um julgamento, uma técnica que permitiria fazer aquilo que, até então, os procedimentos legais romanos nunca tinham conseguido fazer — obter uma massa esmagadora de provas conclusivas e apresentá-la a um júri com tal rapidez e eficácia que a defesa, pura e simplesmente, não poderia defender.
O seu regresso da Sicília, após uma ausência que parecia demasiado breve, deixou Hortênsio estupefacto, tanto mais que a organização do processo contra o indefeso Quinto Cúrtio se revelara muito mais difícil do que alguma vez pensara — mesmo com o apoio de Varrão Lúculo, de Ático e da cidade de Atenas. Contudo, após um momento de reflexão, Hortênsio convenceu-se de que Cícero estava, isso sim, a comportar-se como um belíssimo actor. Sim, pensou Hortênsio, aquilo era tudo uma mentira pegada! Ele nunca conseguiria estar pronto antes de Setembro, na melhor das hipóteses!
Cícero, porém, ao regressar a Roma, não encontrou tudo como desejaria, Metelo Cabrito e o seu irmão mais novo tinham feito um excelente trabalho junto dos clientes sicilianos de Cícero, convencendo-os de que Cícero perdera interesse pelo caso — pois tinha aceite um suborno impressionante das mãos de Caio Verres, murmuravam os Metelos Cabritos através de agentes cuidadosamente escolhidos. Cícero precisou de fazer várias reuniões com Hiero e os seus colegas para perceber por que razão se mostravam todos tão frios e distantes. Logo que descobriu, foi-lhe fácil aquietar os seus receios.
Em Quinctilis, decorreram as três eleições. As primeiras eram as eleições curuis na Assembleia Centurial. No que toca aos interesses de Cícero, os resultados foram profundamente desanimadores: Hortênsio e Metelo Cabrito seriam os cônsules do ano seguinte e Marco Cabrito seria um dos pretores. Depois, realizaram-se as eleições na Assembleia do Povo; mas Cícero nem ligou ao facto de César ter sido eleito questor, à frente de todos os outros concorrentes. Finalmente, no vigésimo sétimo dia de Quinctilis, Cícero foi eleito edil plebeu, juntamente com um tal Marco Cesónio (sem qualquer relação com os Júlios que usavam o cognome César); concluíram que iam dar muito bem e Cícero ficou profundamente satisfeito com o facto de o seu colega ser um homem muito, muito abastado.
Graças aos cônsules daquele ano, Pompeu e Crasso, tantas foram as coisas que se passaram em Roma naquele Verão que as eleições acabaram por ficar para segundo plano; em vez de lhes darem um lugar destacado na vida de Roma, os funcionários eleitorais e o Senado preferiram despachar, o mais depressa possível, as eleições. Por isso, no dia seguinte às eleições na Assembleia da Plebe, realizou-se o sorteio que determinaria os vários cargos para o ano seguinte. Ninguém ficou surpreendido com o facto de, por artes mágicas, o sorteio ter dado o Tribunal de Extorsão a Marco Cabrito! Tudo estava já preparado para absolver Caio Verres no início do ano seguinte.
No último dia de Quinctilis, Cícero atacou. Como não havia nenhuma reunião das assembleias, o tribunal do pretor urbano estava aberto e Lúcio Aurélio Cota atendia pessoalmente os casos. E Cícero, acompanhado pelos seus clientes, foi ter com ele e anunciou-lhe que tinha o processo contra Verres pronto. E pediu-lhe que ele e o presidente do Tribunal de Extorsão, Mânio Acílio Glábrio, marcassem um dia para o início do julgamento. De preferência, o mais breve possível.
Todo o Senado vinha seguindo o duelo entre Cícero e Hortênsio com a maior expectativa. A facção dos Cecílios Metelos era uma minoria e Lúcio Cota e Glábrio não eram seus membros; na realidade, a maior parte dos senadores adoraria que Cícero derrotasse o sistema montado por Hortênsio e pelos Metelos Cabritos para livrar Verres. Daí que Lúcio Cota e Glábrio tivessem o maior prazer em marcar o início do julgamento para uma data muito próxima.
Os primeiros dois dias de Sextilis eram feriae — o que não impedia a realização de audiências nos tribunais criminais —, mas o terceiro dia era mais problemático — era o dia da procissão dos Cães Crucificados. Quatrocentos anos antes, quando os Gauleses tinham invadido Roma e tentado estabelecer uma cabeça de ponte no Capitólio, os cães de guarda não tinham dado sinal; foi graças aos cacarejos dos gansos sagrados que o cônsul Marco Mânlio acordou e pôde, assim, frustrar a tentativa de ocupação gaulesa. Desde então, um desfile solene lembrava todos os anos esse episódio. Nove cães eram crucificados em nove cruzes de madeira de sabugueiro e um ganso era engrinaldado e levado numa liteira cor de púrpura: assim se lembrava a traição dos cães e o heroísmo dos gansos. E esse não era um diabom para o julgamento de uma acção criminal, pois os cães eram animais ctónicos.
Por isso, o início do julgamento de Caio Verres foi marcado para o sexto dia de Sextilis, numa Roma paralisada pelo calor e cheia de visitantes ansiosos por assistirem às festas especiais organizadas por Pompeu e Crasso. A competição entre os dois era rija, mas ninguém cometeu o erro de pensar que o julgamento de Caio Verres não atrairia multidões, ainda que decorresse durante a festa pública de Crasso e os jogos vitoriosos de Pompeu.
As leis de Sila para os novos tribunais mantiveram no essencial os procedimentos gerais relativos aos julgamentos, definidos por Caio Servílio Gláucia — mantiveram-nos, mas refinaram-nos consideravelmente, ainda que em detrimento da rapidez. O julgamento era dividido em duas secções, a actio prima e a actio secunda; entre as duas actiones, havia uma pausa de vários dias, embora o presidente do tribunal tivesse a liberdade de prolongar essa pausa, se assim o entendesse.
A actio prima consistia de um longo discurso do advogado de acusação, seguido de um discurso igualmente longo do advogado de defesa; depois, era a vez de todos os advogados júniores da acusação e da defesa pronunciarem, alternadamente, os seus longos discursos. Os discursos só acabavam quando todos os advogados júniores tivessem falado. De seguida, compareciam as testemunhas de acusação, cada uma das quais era interrogada pela defesa e, nalguns casos também, pela acusação. Se houvesse obstruções, tanto de um lado como do outro, a audição das testemunhas podia transformar-se num processo particularmente longo. Posteriormente, compareciam as testemunhas de defesa: a acusação interrogava-as e, nalguns casos, também a defesa o fazia. Por fim, decorria um longo debate entre o principal advogado de acusação e o principal advogado de defesa; estes longos debates podiam também ocorrer entre os depoimentos das testemunhas, se algum dos lados o desejasse. A actio prima só terminava com o último discurso do principal advogado de defesa.
A actio secunda era praticamente uma repetição da actio prima, embora as testemunhas nem sempre fossem chamadas. Era nesta segunda parte que se registavam os discursos mais apaixonados e importantes, já que, depois deles, o júri teria de dar o seu veredicto. O júri não tinha tempo para discutir este veredicto: este teria de ser pronunciado mal o advogado de defesa tivesse acabado de falar. Esta era a principal razão por que Cícero preferia fazer a defesa e odiava acusar.
Mas Cícero sabia como ganhar aquele processo: precisava apenas de um presidente de tribunal capaz de o deixar manobrar à sua vontade.
— Pretor Mânio Acílio Glábrio, presidente deste tribunal, pretendo conduzir o meu caso segundo linhas muito diferentes das habituais. O que proponho não é ilegal. É apenas novo, nada mais. Os meus motivos residem no número invulgar de testemunhas que chamarei a depor, e no número igualmente invulgar de ofensas de quevou acusar o réu, Caio Verres — disse Cícero. — Deseja o presidente do tribunal ouvir um esboço daquilo que proponho?
Hortênsio interrompeu inopinadamente.
— Mas o que é isto? O que é isto? — perguntou. — Pergunto uma vez mais: o que é isto? O julgamento de Caio Verres deve ser conduzido segundo as linhas habituais! Não posso deixar de insistir neste ponto!
— Vamos ouvir aquilo que Marco Túlio Cícero nos propõe — disse Glábio, e acrescentou, com um ar afável: — E sem interrupções.
— Gostaria de poder dispensar os habituais longos discursos — disse Cícero. — E de me concentrar num crime de cada vez. Os crimes de Caio Verres são tantos e tão variados que é absolutamente vital que os membros do júri apreendam claramente cada um deles. Abordando um crime de cada vez, pretendo apenas que o tribunal apreenda tudo da forma mais clara possível, nada mais. Por isso, o que me proponho fazer é resumir cada um dos crimes e, logo a seguir, apresentar as minhas testemunhas e as minhas provas para esse crime particular. Como vêem, tenciono trabalhar sozinho — não disponho de nenhum advogado assistente. A actio prima, neste julgamento, não deveria conter os habituais longos discursos da acusação e da defesa. É um desperdício de tempo e o tribunal não tem tempo a perder, pois espera-o mais um caso antes que este ano finde — o caso de Quinto Cúrtio. Proponho por isso que os grandes discursos passem todos para a actio secunda! Só depois desses discursos é que o júri dá o seu veredicto. Por isso, não percebo por que razão há-de o meu colega Quinto Hortênsio opor-se à minha proposta: o júri poderá ouvir pela primeira vez os nossos apaixonados e longos discursos na actio secunda! Imaginem só a expectativa, e o prazer da expectativa, dos jurados!
Hortênsio demonstrava agora alguma incerteza; o que Cícero dizia fazia sentido. No fim de contas, a defesa continuaria a ter a última palavra e Hortênsio começava já a imaginar o choque que produziria no júri, no final da actio secunda. Sim, Cícero tinha razão! Despachavam-se as coisas chatas na actio prima, e os grandes e brilhantes discursos viriam com a apoteose.
Quando Glábrio olhou para ele com um ar inquisitivo, Hortênsio respondeu sem hesitação:
— Marco Túlio que discorra um pouco mais sobre o assunto.
— Podes continuar, Marco Túlio — disse Glábrio.
— Pouco mais há a dizer, Mânio Acílio. Pretendo apenas que os advogados de defesa não tenham mais tempo para falar do que eu — mas apenas durante a actio prima, é claro! Na adio secunda, estou pronto a conceder à defesa todo o tempo que os seus ilustres advogados acharem necessário. Como a defesa possui uma equipa impressionante de advogados e euvou actuar sozinho, essa será uma vantagem apreciável. Mas acho, sinceramente, que a defesa deverá dispor dessa vantagem. Portanto, só peço uma coisa: que a actio prima seja conduzida segundo os termos que delineei.
— A ideia tem muito mérito, Marco Túlio — disse Glábrio. — Que tens a dizer, Quinto Hortênsio?
— Que se faça então como Marco Túlio quer — retorquiu Hortênsio.
Apenas Caio Verres parecia preocupado.
— Ah, quem me dera saber o que é que ele está a tramar! — segredou Verres a Metelo Cabrito. — Hortênsio não devia ter concordado!
— Quando começar a actio secunda, garanto-te que o júri já se esqueceu de tudo o que as testemunhas disseram — respondeu-lhe o cunhado.
— Nesse caso, porque é que Cícero insistiu tanto nestas alterações?
— Porque sabe que vai perder e quer atirar-nos poeira para os olhos. A inovação não é a melhor maneira de atirar poeira para os olhos dos outros? César usou o mesmo processo quando processou velho Dolabela — insistiu nas inovações. Foi muito elogiado, mas perdeu o caso. Tal como Cícero vai perder. Não te preocupes! Hortênsio vai ganhar!
As únicas observações de carácter geral que Cícero fez, antes de se debruçar sobre a primeira categoria de crimes de Caio Verres, foram consagradas ao júri.
— Lembrem-se de que o Senado encarregou o nosso pretor urbano, Lúcio Aurélio Cota, de fazer um estudo sobre a composição dos júris, e concordou em recomendar as suas conclusões à Assembleia do Povo para que fossem promulgadas como lei. Entre os tempos de Caio Graco e os tempos do nosso Ditador, Lúcio Cornélio Sila, o Senado perdeu por completo o controlo de um direito até então incontestado — o direito a providenciar os júris dos tribunais criminais de Roma. Caio Graco deu esse privilégio aos cavaleiros — e todos sabemos com que resultados! Sila devolveu os tribunais ao Senado. Porém, como mostraram os sessenta e quatro homens que os nossos censores expulsaram, nós, os senadores, não honrámos a confiança que Sila depositou em nós. Caio Verres não é a única pessoa que está a ser julgada neste tribunal. O Senado de Roma também está a ser julgado! E se este júri senatorial não se comportar de uma forma honesta e honrada, quem poderá censurar Lúcio Cota se ele, amanhã, recomendar o afastamento dos senadores dos júris dos tribunais? Membros do júri, rogo-lhes que não se esqueçam, em momento algum, que têm sobre os vossos ombros uma responsabilidade enorme — o destino! — e a reputação! — do Senado de Roma.
Depois desta intervenção, Cícero tratou de chamar as suas testemunhas e de apresentar as suas provas. Uma a uma, as testemunhas foram ouvidas: queixaram-se de roubos de cereais: trezentos mil modii em apenas um ano e num só distrito, para além das outras quantidades pilhadas nos outros distritos; de roubos de propriedades e bens que reduziram o número de agricultores num só distrito de duzentos e cinqüenta a oitenta, em três anos, para além dos roubos de propriedades em muitos outros distritos; do desfalque de dinheiro do Tesouro que deveria ter sido empregue na compra de cereais; de usura, com juros a vinte e quatro por cento, ou mesmo mais; da destruição ou alteração dos registos dos tributos; do saque de estátuas e pinturas dos templos; do convidado que, em frente do seu anfitrião, lhe roubou as jóias que ornamentavam as taças; do convidado que levou todas as baixelas de ouro e prata do seu anfitrião, metendo-as em sacas para melhor as transportar; da construção gratuita de um navio em que Caio Verres veio a embarcar uma parte do seu saque; da tolerância demonstrada para com os piratas, com quem o réu partilhava os lucros; da anulação de testamentos, que passaram, obviamente, a favorecê-lo; e de muitas outras coisas se queixaram.
Cícero tinha registos, documentos, tábuas de cera em que se podiam ver números rasurados e alterados — e muitas testemunhas, testemunhas que não se deixavam intimidar e que não se contradiziam, quando interrogadas pela defesa. Cícero não trouxera testemunhas de roubos num só distrito, mas em muitos distritos, e o catálogo de obras de Praxíteles, Fídias, Policleto, Mirão, Estronguilião e outros escultores famosos que Verres havia saqueado era apoiado por notas de ”venda” que demonstravam que os proprietários dessas obras tinham sido praticamente obrigados a dá-las de graça a Verres. As provas eram retumbantes e absolutamente conclusivas. Ao longo de nove dias, as provas inundaram literalmente aquele tribunal; a actio prima só veio a terminar no décimo quarto dia de Sextilis.
Hortênsio tremia quando deixou o tribunal. Porém, quando Verres tentou falar com ele, abanou a cabeça, furibundo.
— Só falo contigo na tua casa! — atirou-lhe. — E traz os teus cunhados!
A casa de Caio Verres ficava na melhor zona do Palatino; embora fosse uma das maiores mansões dessa colina, a quantidade de obras de arte que ele armazenara era tal que a casa parecia pequena e tão cheia de esculturas como o pátio de um escultor do Velabro. Onde não havia estátuas ou pinturas, viam-se armários cheios de colecções de baixelas de ouro e prata, de jóias, de bordados e tapeçarias magnificamente trabalhados. Havia mesas de madeira de cidreira, com pedestais de marfim e ouro, apertadas entre cadeiras adornadas a ouro ou encostadas a fabulosos divãs. No jardim do peristilo, estavam concentradas as maiores estátuas, na sua maior parte de bronze, embora também as houvesse em ouro e prata. Um acervo que representava quinze anos de pilhagens e muitas e várias fortunas.
Os quatro homens reuniram-se no gabinete de Verres, tão atravancado como o resto da casa, e sentaram-se onde lhes foi possível sentar-se.
— Vais ter de te exilar voluntariamente — disse Hortênsio. Verres fitou-o estupefacto.
— Estás a brincar! Ainda falta a actio secunda! Os teus discursos vão-me livrar de apuros!
— Imbecil! — atirou-lhe Hortênsio. — Ainda não percebeste? Eu fui enganado, mistificado, logrado, ludibriado! Escolhe à vontade a palavra, porque o que interessa é que Cícero acabou com todas as hipóteses que eu tinha de vencer este maldito caso! Podia até passar um ano entre a actio prima e a actio secunda, e os meus assistentes podiam fazer os melhores discursos do mundo durante um mês, que mesmo assim o júri não esqueceria aquela montanha de provas! Digo-te com toda a franqueza, Caio Verres: se eu tivesse tido conhecimento de uma décima parte dos teus crimes, antes disto começar, nunca teria aceite defender-te! Ao pé de ti, Múmio e Paulo parecem principiantes! E que fizeste tu a tanto dinheiro? Onde está ele, por amor de Juno? Como é que um homem pôde gastar tanto dinheiro se não pagou quase nada por aquelas obras de arte? Já defendi muitos vilões na minha vida, mas tu, Caio Verres, és o maior de todos! Por isso, faz o que te digo: exila-te voluntariamente!
Verres e os Metelos Cabritos ouviram aquele discurso com o ar mais surpreso e desanimado deste mundo.
Hortênsio levantou-se.
— Leva o que puderes para o exílio, mas, se queres o meu conselho, deixa ficar as obras de arte que roubaste na Sicília. De qualquer modo, também não poderás levar mais do que aquilo que roubaste em Hera de Samos. Concentra-te nas pinturas e nos objectos pequenos. E põe o teu dinheiro longe de Roma amanhã de manhã. Não o deixes em Roma nem mais um momento. — Encaminhou-se para a porta, abrindo caminho entre os preciosos artefactos. — Mas euvou levar a minha esfinge de marfim, aquela que é de Fídias. Onde está ela?
— A tua quê?! — retorquiu Verres, atônito. — Eu não te devo nada. Tu não conseguiste a minha absolvição!
— Deves-me uma esfinge de marfim de Fídias — disse Hortênsio. — E agradece à tua boa sorte por eu não pedir um preço mais alto. O conselho que te acabei de dar vale bem a esfinge! A minha esfinge de marfim, Verres. E quero-a já!
A esfinge era suficientemente pequena para que Hortênsio a pudesse esconder nas dobras da sua toga; uma requintada obra de arte, perfeita em todos os pormenores, incluindo a asa coberta de penas e os minúsculos tufos de pêlos entre as garras.
— Que descarado! — disse Marco Cabrito mal Hortênsio saiu.
— Um ingrato, um ingrato é o que ele é! — rosnou Verres. Mas o cônsul designado Metelo Cabrito franziu muito o sobrolho e disse:
— Ele tem razão, Caio. Vais ter de deixar Roma amanhã à noite o mais tardar. Cícero vai conseguir que o tribunal mande selar a tua casa, logo que saiba que estás a levar as tuas coisas — mas por que raio é que tu guardaste tudo aqui?!
— Eu não guardei tudo aqui, Quinto. Aqui estão apenas as obras que eu sinto necessidade de ver todos os dias. A maior parte dos meus bens encontram-se armazenados na minha casa de Cortona.
— Então, há mais? Por todos os deuses, Caio, eu conheço-te há muito tempo, mas ainda consegues surpreender-me! Não admira que a nossa pobre irmã se queixe de que tu a ignoras! Porque afinal tu só sentes necessidade de ver estas coisas! E eu que pensava que mantinhas a tua casa como se fosse uma loja de antigüidades do Porticus Margaritaria, porque nem sequer confiavas nos teus escravos!
Verres lançou-lhe um sorriso trocista,
— A tua irmã queixa-se, não é? E que direito tem ela de se queixar, se César a tem deixado com a cunnus húmida há uma série de meses? Será que ela pensa que eu sou parvo? Ou que sou tão cego que só tenho olhos para os bronzes de Mirão? — Levantou-se. — Eu devia ter dito a Hortênsio para onde foi a maior parte do meu dinheiro. Sempre era uma maneira de vos ver corar de vergonha, não era? Os três Cabritos têm-me custado muito dinheiro! Mas tu, Quinto, tens sido o mais caro de todos! Porque as obras de arte eu fiquei com elas, mas quem é que ficou com os lucros das vendas de cereais? Ha? Pois bem, agora acabou-se tudo! Euvou seguir o conselho do advogado que me roubou a esfinge! Irei para o exílio voluntariamente! com alguma sorte, pode ser que mantenha em meu poder aquilo que levar! Acabou-se o dinheiro para os Cabritos, incluindo Metela Caprária! César que trate dela como ela gosta! E espero que consigam arrancar algum dinheiro a esse homem! Porque o dote da vossa irmã é que nunca mais o vêem!vou divorciar-me dela, e já hoje, invocando o adultério com César.
O resultado deste discurso foi a saída imediata dos cunhados, ofendidos e furiosos; por um momento, Verres ficou ainda à secretária, acariciando, com um ar ausente, a face de mármore de uma Hera de Policleto. Depois, encolhendo os ombros, chamou pelos escravos. Ah, como poderia ele suportar separar-se daquelas obras de arte, de uma única que fosse? Só a salvação da sua pele e o conhecimento de que ficar com algumas era melhor do que ficar sem nada, o faziam aceitar a ideia de que teria de separar-se de muitas maravilhas. E lá foi ele de sala em sala, acompanhado pelo chefe dos criados, escolhendo as obras que havia de levar.
— Nem uma palavra sobre isto, senão crucifico-te! — disse ele para o homem. — As carroças que estejam nas traseiras da casa amanhã à meia-noite! E quero tudo bem encaixotado, ouviste?
Como Hortênsio previra, Cícero conseguiu que Glábrio selasse a casa de Caio Verres, na manhã seguinte à sua fuga; por outro lado, Glábrio ordenou aos bancos onde Verres tinha dinheiro que não efectuassem qualquer transferência de fundos. Já era demasiado tarde, evidentemente; o dinheiro era o mais portátil dos tesouros — bastava apresentar um papel para o levantar.
— Glábrio está a constituir um júri para determinar o montante da indemnização, mas temo que não consigamos nada de extraordinário — disse Cícero a Hiero de Lilibeu. — Ele levantou todo o seu dinheiro já fora de Roma. Contudo, parece que deixou ficar a maior parte dos bens que roubou aos templos da Sicília. Infelizmente, ainda levou muitas jóias e baixelas pertencentes a cidadãos sicilianos. Os escravos que deixou em Roma — um lote muito fraco, mas o ódio que lhe votavam revelou-se útil — dizem que aquilo que ele tinha armazenado em Roma não era nada, quando comparado com o que tinha escondido na sua propriedade perto de Cortona. Imagino que os irmãos Metelos foram para Cortona, mas eu adoptei uma táctica do meu amigo César, que é o mais rápido viajante em todo o mundo. Prevejo que a expedição do tribunal chegue primeiro a Cortona. Por isso, é natural que encontremos nessa propriedade outros bens pertencentes à Sicília.
— E para onde foi Caio Verres? — perguntou Hiero, curioso.
— Parece que foi na direcção de Massília. É uma cidade muito popular entre os nossos exilados que gostam de obras de arte — respondeu Cícero.
— Estamos muito contentes por termos de volta a nossa herança nacional! — exclamou Hiero, radiante. — Muito obrigado, Marco Túlio, muito obrigado!
— Creio que o último a agradecer serei eu — disse Cícero, delicadamente. — Se vocês estão satisfeitos com o meu trabalho, isso significa que vão honrar o nosso acordo sobre os cereais no próximo ano, não é verdade? Os Jogos Plebeus não serão disputados antes de Novembro e, portanto, o vosso preço não terá de ser pago com a colheita deste ano.
— É com grande satisfação que te vamos pagar, Marco Túlio, e prometo-te que a tua distribuição de cereais ao povo de Roma será magnificente.
— E assim — disse Cícero, mais tarde, ao seu amigo Tito Pompónio Ático —, esta incursão única nos domínios da acusação transformou-se num bônus de que eu tinha uma extrema necessidade. Comprarei os meus cereais a dois sestércios o modius e vendê-los-ei por três sestércios. O sestércio de diferença chegará perfeitamente para pagar o transporte.
— Vende por quatro sestércios o modius — sugeriu Ático. — Assim, poderás meter algum dinheiro na tua bolsa que, por acaso, está bastante magra.
Cícero ficou chocado com tal sugestão.
— Não, Ático, nem pensar! Eu não poderia fazer uma coisa dessas. Os censores diriam que eu ganhara ilegalmente dinheiro, recebendo honorários pelos meus serviços como advogado.
Ático suspirou.
— Cícero, Cícero! Tu nunca serás rico! E a culpa é toda tua. É verdade que se pode tirar o homem de Arpino, mas não se pode tirar Arpino do homem! Tu pensas como um nobre rural!
— Eu penso como um homem honesto — disse Cícero. — O que me deixa muito orgulhoso.
— Queres dizer com isso que eu não sou honesto?
— Não, de modo nenhum! — exclamou Cícero, irritado. — Tu és um homem de negócios com uma elevada posição social, além de seres romano de Roma! As normas que se aplicam a ti não são as mesmas que se aplicam a mim! Eu não sou um Cecílio, mas tu és!
Ático mudou de assunto.
— Vais publicar as tuas intervenções no julgamento de Verres? — perguntou.
— Sim, de facto pensei nisso.
— Incluindo os grandes discursos de uma actio secunda que não chegou a haver? Escreveste alguma coisa para a actio secundai
— Sim, sim, eu faço sempre esboços dos meus discursos muito tempo antes de os pronunciar. No entanto,vou modificar os discursos da actio secunda, de forma a incorporar neles muitas das coisas que abordei na actio prima. Melhorando o estilo, naturalmente.
— Naturalmente — disse Ático, com um ar grave.
— Porque perguntaste?
— Porque estou a pensar dedicar-me a um trabalho que é mais um passatempo que um trabalho. Os negócios são algo de enfadonho, Cícero. E os homens com quem negoceio ainda são mais enfadonhos que os negócios. Por isso, estou a pensar abrir uma pequena loja com uma grande oficina nas traseiras, no Argileto. Sósio vai ter finalmente alguma competição, porque tenciono tornar-me editor. E, caso estejas de acordo, gostaria de ter os direitos exclusivos de publicação de todos os teus trabalhos futuros. Pagar-te-ei um décimo do que eu receber por cada exemplar das tuas obras. Cícero soltou um risinho.
— Mas que maravilha, Atico! Negócio feito, meu caro, negócio feito!
Foi em Abril, pouco depois de os censores recentemente eleitos terem confirmado Mamerco como Princeps Senatus, que Pompeu anunciou que celebraria os seus Jogos da Vitória, os quais começariam em Sextilis e terminariam poucos dias antes dos ludi Romani, previstos para o quarto dia de Setembro. Toda a gente se apercebeu da imensa satisfação com que Pompeu anunciou a realização daqueles jogos. No entanto, essa satisfação não derivava totalmente dos jogos. É que Pompeu tinha acabado de alcançar uma verdadeira proeza (em termos de negócios matrimoniais) para um homem do Piceno. A sua irmã Pompeia, que ficara viúva algum tempo antes, ia casar-se: e o futuro marido era nem mais nem menos do que o sobrinho do falecido Ditador, Públio Sila sive Sexto Perquitieno. Não havia dúvida: os Pompeus do Norte do Piceno estavam a subir no mundo romano! O seu avô e o seu pai tinham-se limitado a negócios com os Lucílios, ao passo que ele conseguira aliar-se aos Múcios, aos Licínios e aos Cornélios! Extremamente satisfatório!
Mas Crasso não deu a mínima importância à escolha matrimonial da irmã de Pompeu; o que o preocupava eram os Jogos que este ia organizar.
— É o que te digo, César — acentuou Crasso. — Ele tenciona atrair os camponeses todos a Roma. Vão-se fartar de gastar dinheiro, durante mais de dois meses, e ainda por cima no auge do Verão! Os comerciantes vão erigir estátuas dele em toda a cidade — isto para não falar dos avozinhos e avozinhas que adoram receber hóspedes durante o Verão para ganharem uns sestércios extra!
— Isso ébom para Roma. Ebom para o dinheiro.
— De acordo. Mas qual é o meu lugar no meio disto tudo? — perguntou Crasso, agastado.
— Vais ter de criar um lugar para ti mesmo.
— Como? E quando? Os jogos de Apoio duram até aos Idos de Quinctilis. Depois, há três eleições, separadas apenas por cinco dias — as eleições curuis, as eleições para a Assembleia do Povo, as eleições para a Assembleia da Plebe. Nos Idos de Quinctilis, Pompeu tenciona realizar aquele maldito desfile do Cavalo Público. E, depois das eleições plebéias, há um tempo infindo para fazer compras — mas não o tempo suficiente para regressar à província e voltar! — até ao início dos Jogos da Vitória, em meados de Sextilis. Jogos que vão durar quinze dias. Ah, mas que presunção! E depois de terminarem esses jogos, temos os Jogos Romanos! Por todos os deuses, César, as diversões públicas de Pompeu vão manter os campónios em Roma durante mais de dois meses! Quase três meses, aliás! E será que o meu nome foi sequer mencionado? Não! Eu não existo, pura e simplesmente!
César parecia tranqüilo.
— Tenho uma ideia — disse.
— Que ideia? — perguntou Crasso. — Que eu me vista como Pólux?
— E Pompeu como Castor? Gosto dessa! Mas vejamos as coisas seriamente. Tudo o que faças, meu caro Marco, vai ter de custar mais dinheiro do que aquele que Pompeu vai gastar nas suas diversões públicas. De outro modo, nada do que faças conseguirá eclipsá-lo. Estás disposto a gastar uma fortuna?
- Eu estou disposto a gastar tudo para ficar com melhor imagem do que Pompeu quando deixarmos o consulado! — retorquiu Crasso. — No fim de contas, eu sou o homem mais rico de Roma — há dois anos que o sou.
— Não te iludas, Marco — disse César. — A questão é que tu falas da riqueza que tens, e os outros calam-se. Ou seja, não houve até agora ninguém que dissesse ter mais dinheiro que tu. Mas o nosso Pompeu é um nobre rural típico — muito discreto quanto à sua riqueza. E ele tem muito mais dinheiro e bens que tu, Marco. Garanto-te que tem. Quando o Ager Gallicus foi oficialmente incluído dentro dos limites da Itália, o preço dessas terras subiu muito. Ele possui — e estou a dizer possuir e não alugar ou emprestar! — vários milhões de iugera das melhores terras de Itália, e não apenas na Úmbria e no Piceno. Pompeu herdou aquelas propriedades magníficas que os Lucílios tinham no golfo de Tarento e regressou de África a tempo de adquirir algumas terras óptimas, nas margens do Tibre, do Volturno, do Líris e do Aterno. Tu não és o homem mais rico de Roma, Crasso. Garanto-te que esse homem é Pompeu. Crasso estava espantado.
— Não é possível!
— É possível, sim. Lá porque um homem não divulga quanto dinheiro e quantos bens possui, isso não quer dizer que esse homem seja pobre. Tu falas do teu dinheiro a toda a gente porque começaste pobre. Pompeu nunca foi pobre — e nunca será pobre. Quando dá terras aos seus veteranos, Pompeu é elogiado e adorado por toda a gente. Mas aposto que ele não lhes dá as terras: limita-se a permitir que eles as ocupem e cultivem. Porque o dono das terras continua a ser ele. E aposto que todos esses veteranos lhe pagam com uma parte do que essas terras produzem. Pompeu é uma espécie de rei, Crasso! Por alguma razão escolheu o cognome de Magno.
O povo dele vê-o como um rei. E agora que é cônsul sénior, pensa que o seu reino se alargou!
— A minha riqueza ascende a dez mil talentos — retorquiu Crasso, rispidamente.
— O que dá duzentos e cinqüenta milhões de sestércios — disse César, sorrindo e abanando a cabeça. — Consegues dez por cento disso em lucros anuais?
— Claro que sim.
— Nesse caso, estarias disposto a dispensar os lucros deste ano?
— Ou seja, estaria disposto a gastar mil talentos?
— Precisamente.
Pela expressão de Crasso, era visível que aquela ideia lhe causava não pouco sofrimento.
— Sim... quer dizer, se eu não tiver outra forma de eclipsar Pompeu, lá terá de ser!
— Um dia antes dos Idos de Sextilis, ou seja, quatro dias antes do início dos jogos de Pompeu, realiza-se a festa de Hércules Invicto. Como sabes, Sila dedicou um décimo da sua fortuna a esse deus, dando uma festa pública que contou com cinco mil mesas.
— Quem poderá esquecer esse dia? O cão preto bebeu o sangue da primeira vítima. Foi a primeira vez que vi Sila aterrorizado. A primeira e a última, aliás. A Coroa de Erva caiu em cima do sangue profanado.
— Esquece os horrores, Marco, porque te prometo que não haverá cães pretos por perto quando dedicares um décimo da tua fortuna a Hércules Invicto! Vais dar um banquete público com dez, mil mesas! — disse César. — Todos aqueles que tiverem pensado passar umas férias na praia, com tantos espectáculos seguidos, acabarão por ficar em Roma. A um banquete público ninguém resiste!
— Dez mil mesas? Se eu encher dez mil mesas de ostras, enguias, salmonetes e outros peixes, não gastarei mais de duzentos talentos — disse Crasso, que sabia os preços de tudo. — Além disso, um homem com a barriga cheia hoje pensa que nunca mais terá fome, mas amanhã o mesmo homem voltará a saber o que é a fome. Os banquetes morrem num dia, César. E a memória deles não dura mais.
— Tens toda a razão. No entanto — prosseguiu César, entregue aos seus pensamentos —, esses duzentos talentos deixam ainda oitocentos talentos para gastar. Imaginemos que, em Roma, entre Sextilis e Novembro, haverá cerca de trezentos mil cidadãos romanos. A distribuição normal de cereais significa que cada cidadão recebe cinco modii — ou seja, um medimnus — de cereais por boca, ao preço de cinqüenta sestércios. É umbom preço, mas superior ao preço real dos cereais, evidentemente. O Tesouro consegue sempre fazer um pequeno lucro, mesmo nos anos de escassez. Este ano, segundo me disseram, não é um ano de escassez. Tal como não foi o ano passado. Vê só a tua sorte: é que vais ter de comprar precisamente os cereais da colheita do ano passado!
— Comprar? — perguntou Crasso, com um ar perdido.
— Deixa-me acabar. Cinco modii de trigo por um período de três meses... Vezes trezentas mil pessoas... Dá quatro milhões e meio de modii. Se comprares agora, em vez de esperares pelo Verão, imagino que poderás obter quatro milhões e meio de modii de trigo a cinco sestércios o modius. O que dá vinte e dois milhões e meio de sestércios: aproximadamente oitocentos talentos. E é precisamente nisso, meu caro Marco — concluiu César, com um ar triunfante —, que vais gastar os restantes oitocentos talentos! Porque, Marco Crasso, tu vais distribuir cinco modii de trigo por mês, durante esses três meses, a todos os cidadãos romanos, e absolutamente grátis! Não a um preço reduzido, meu caro Marco. Grátis!
— Um acto de uma generosidade espectacular — disse Crasso, com o ar mais inexpressivo deste mundo.
— Inteiramente de acordo. E tem uma grande vantagem em relação a todos os estratagemas de Pompeu. As diversões de Pompeu acabarão mais de dois meses antes da tua última distribuição de cereais. Se as memórias dos homens são curtas, então tu terás de ser o último homem a ser recordado. A maior parte dos cidadãos romanos comerá pão grátis, graças a Marco Licínio Crasso, entre o mês em que os preços sobem e o mês em que a nova colheita os faz descer novamente. E tu serás um herói! E as gentes de Roma adorar-te-ão para todo o sempre!
— É mesmo provável que deixem de me acusar de incêndios criminosos — disse Crasso, com um sorriso radioso.
— Pois aí tens a diferença entre a tua riqueza e a riqueza de Pompeu! — disse César, com um sorriso tão radioso como o de Crasso. — O dinheiro de Pompeu não flutua como cinzas nos ares de Roma. É tempo, é mais que tempo, de dourares a tua imagem pública, Marco Crasso!
Enquanto Crasso comprava sub-repticiamente vastas quantidades de trigo e não abria a boca quanto à sua intenção de dedicar um décimo das suas riquezas a Hércules Invicto, um dia antes dos Idos de Sextilis, Pompeu avançava com os seus planos, completamente ignorante do perigo de ser ultrapassado, e de que maneira, pelo outro cônsul.
A intenção de Pompeu era levar toda a cidade de Roma — e toda a Itália — a pensar (e a sentir) que o mau tempo tinha passado de vez; e dar a todo o país jogos, festejos e férias não seria precisamente a melhor maneira de o fazer? O consulado de Cneu Pompeu Magno viveria na memória do povo como um tempo de prosperidade, alegria, felicidade — tinham-se acabado as guerras, as fomes, as lutas intestinas. E embora a vaidade lhe maculasse as intenções, a verdade é que estas eram sinceras. O povo miúdo — aqueles que não eram importantes e que, por isso, não tinham sofrido os efeitos das proscrições — recordava com nostalgia o tempo em que Sila fora Ditador; porém, depois do consulado de Cneu Pompeu Magno, o reinado de Sila apagar-se-ia nas memórias dos homens.
No início de Quinctilis, Roma começou a encher-se de gente do campo — a maior parte à procura de alojamentos até meados de Setembro. Quanto aos habitantes de Roma, não foram muitos os que deixaram a cidade para passarem umas férias na praia — nem mesmo entre as classes altas. Consciente de que, com as festas, cresceriam o crime e as doenças, Pompeu consagrou alguns dos seus magníficos talentos organizativos ao combate ao crime e à eventual propagação de doenças. Assim, contratou antigos gladiadores para policiarem todos os becos e ruelas da cidade, ordenou ao Colégio dos Lictores que apertasse a vigilância aos vigaristas que freqüentavam o Fórum Romano e outros locais importantes, mandou alargar as termas do Trigário e encheu as paredes com avisos sobre os locais onde havia água potável, sobre a necessidade de urinar e defecar apenas nas latrinas públicas, sobre a necessidade de lavar sempre as mãos e de evitar os alimentos estragados ou deficientes.
Temendo que a gente do campo não entendesse plenamente o que havia de extraordinário na sua eleição como cônsul sénior de Roma (pois fora eleito ainda cavaleiro e só se tornara senador depois da tomada de posse no dia de Ano Novo), Pompeu resolvera usar o desfile do Cavalo Público para reforçar esse facto. Nesse sentido, ordenou aos censores Clodiano e Gélio, seus homens de mão, que fizessem reviver o transvectio (assim era chamado o desfile), e reviver era a palavra exacta, pois não havia tais cortejos desde os tempos de Caio Graco. Mas Cneu Pompeu Magno queria fazer uma tal exibição com o seu Cavalo Público que não poderia dispensar a realização do transvectio.
Tudo começou aos primeiros alvores da manhã, nos Idos de Quinétilis, onde os mil e oitocentos detentores do Cavalo Público fizeram as suas oferendas a Marte Invicto, cujo templo ficava no perímetro do Circo Flamínio (dentro do Campo de Marte). Feitas as oferendas, os cavaleiros montaram os seus Cavalos Públicos e seguiram em solene procissão, centúria após centúria, atravessando a porta que dava para os mercados de legumes, avançando depois ao longo do Velabro até à Vicus lugarius e daí para o baixo Fórum Romano. Aí chegados, subiram o Fórum até um lugar onde, numa tribuna especialmente erigida em frente do templo de Castor e Pólux, se encontravam os censores, os quais tinham a missão de passar em revista cavaleiros e cavalos. Ao aproximar-se da tribuna, cada homem devia descer da sela e conduzir o Cavalo Público até aos censores, que procediam então a uma inspecção minuciosa. Se o cavaleiro ou o cavalo não cumprissem os antigos preceitos da ordem dos cavaleiros, os censores podiam retirar ao cavaleiro o Cavalo Público e afastá-lo das dezoito centúrias originais. Isso acontecera já, em tempos; Catão, o Censor, ficara famoso pela sua inflexibilidade nas inspecções.
Mas o transvectio era de tal forma uma novidade que a maior parte do povo de Roma tratou de aglomerar-se no Fórum Romano para assistir à cerimónia; no entanto, muitos tiveram de contentar-se com a passagem do desfile entre o Circo Flamínio e o Fórum. Todos os locais de onde se podia ver melhor a cerimónia estavam a abarrotar de gente — telhados, plintos, pórticos, escadarias, colinas, penhascos, árvores. Vendedores de petiscos, leques, guarda-sóis e bebidas lutavam com denodo para abrir caminho por entre a multidão e para vender os seus produtos, apregoando em altos berros, batendo nas cabeças das pessoas com os cantos das suas arcas, retribuindo implacavelmente todos os insultos de que eram alvo, e cada um deles trazia consigo um escravo que deveria estar sempre muito atento, pois era sua função reabastecer a arca de produtos e impedir que algum indivíduo furtasse sub-repticiamente os artigos ou o dinheiro. Do alto dos telhados ou varandas havia crianças de tenra idade que urinavam para cima dos que passavam, por todo o lado bebês berravam, miúdos mais crescidos metiam-se afoitos entre aquela chusma de gente e não paravam de correr de um lado para o outro todo o dia, as túnicas enchiam-se de manchas de molhos salgados e cremes doces, aqui e ali rebentavam rixas, os mais susceptíveis desmaiavam ou vomitavam, e toda a gente comia sem parar. Uma típica festa romana.
Os cavaleiros tinham-se distribuído por dezoito grupos (cada um dos quais correspondente a uma centúria), todos eles precedidos pelos seus antiquíssimos emblemas — o lobo, o urso, o rato, um pássaro, o leão, e assim por diante. Em certas ruas mais estreitas, não podiam seguir mais de quatro cavaleiros lado a lado, o que implicava que cada centúria ficasse com vinte e cinco filas e que o desfile se estendesse por um quilômetro e meio, aproximadamente. Todos os homens traziam armaduras, algumas das quais muito antigas e, por isso mesmo, de bizarro aspecto; outros (como Pompeu, cuja família se tinha integrado tardiamente nas dezoito centúrias originais e não possuía nenhuma armadura antiga que pudesse fazer passar por etrusca ou latina) envergavam magnificentes armaduras de ouro e prata. Mas não havia nada que igualasse os Cavalos Públicos, cada um deles um exemplar magnífico da rosea rura, e a maior parte brancos ou malhados. Vinham engalanados com todos os adornos e jóias imagináveis, desde selas ornadas e freios de couro tingido às mais fabulosas mantas e às cores mais brilhantes. Alguns haviam sido treinados e executavam belos passos, outros tinham crinas e caudas entrançadas a ouro e prata.
Aquela era de facto uma belíssima encenação e toda ela executada no sentido de fazer brilhar Pompeu, Por muito rápidos que fossem os censores, era manifestamente impossível examinar todos aqueles homens e cavalos; o desfile teria demorado trinta horas, debaixo de um sol quente, a passar perante a tribuna. Mas a centúria de Pompeu fora colocada num dos primeiros lugares e, por isso, quando chegou a sua vez, ainda os censores cumpriam solenemente as normas do ritual, perguntando a cada um dos homens o nome, a tribo, o nome do pai, se tinha feito dez campanhas ou servido durante seis anos, após o que a sua posição financeira (previamente determinada) era aprovada; só depois, o cavaleiro podia conduzir o seu cavalo para a obscuridade de onde tinha saído.
Quando a primeira fila da quarta centúria desmontou, Pompeu encontrava-se entre os primeiros; fez-se silêncio no Fórum, ainda que por iniciativa dos agentes de Pompeu. com a armadura de ouro brilhando ao sol, a púrpura do cargo de cônsul flutuando-lhe dos ombros, de mistura com o escarlate correspondente às funções de general, Pompeu conduziu o seu corpulento cavalo branco, envergando couro escarlate e phalerae de ouro, até à tribuna; se o cavalo cintilava, não menos cintilava o cavaleiro, generosamente ataviado de medalhões e braceletes e com o capacete ático encimado por uma profusão de penachos escarlates.
— Nome? — perguntou Clodiano, que era agora o censor sénior.
— Cneu Pompeu Magno! — gritou Pompeu.
— Tribo?
— Clustumina!
— Pai?
— Cneu Pompeu Estrabão, cônsul!
— Fizeste as dez campanhas ou serviste durante seis anos?
— Sim! — berrou Pompeu o mais que podia. — Duas na Guerra Italiana, uma defendendo a cidade durante o Cerco de Roma, duas com Lúcio Cornélio Sila em Itália, uma na Sicília, uma em África, um na Numídia, uma defendendo Roma de Lépido e Bruto, seis em Espanha, e uma contra os espartacanos! Ao todo, dezasseis campanhas! E todas aquelas em que não participei como cadete, foram por mim comandadas!
A multidão ficou frenética; gritava, saudava, aplaudia, batia com os pés, agitava os braços; ondas e ondas de aplausos e vivas deixaram censores e cavaleiros completamente surdos; alguns cavalos reagiram mal, afocinharam e deitaram por terra os cavaleiros.
Quando a infernal barulheira finalmente se esbateu — o que ainda demorou algum tempo, pois Pompeu tinha-se encaminhado entretanto para o centro do espaço em frente do templo de Castor, onde retribuiu os aplausos da multidão — os censores acabaram com as suas ladainhas rituais e sentaram-se como reis, limitando-se a aquiescer à medida que as dezasseis centúrias que vinham atrás de Pompeu passavam a trote.
— Um espectáculo magnífico! — rosnou Crasso, cujo Cavalo Público era propriedade do seu filho mais velho, Públio, agora com vinte anos. Ele e César tinham seguido o desfile da varanda da casa de Crasso, a antiga casa de Marco Lívio Druso, que tinha uma vista soberba para o baixo Fórum. — Mas que farsa!
— Uma farsa muito bem encenada, Crasso! Muito bem encenada! Tens de concordar que não faltam a Pompeu nem imaginação nem capacidade de atrair multidões. Os jogos dele ainda serão melhores.
— Dezasseis campanhas! E diz ele que comandou todas aquelas em que não participou como cadete! Mas que comandante! Numa delas, foi comandante por oito dias, depois de o pai ter morrido, no Cerco de Roma — e a única coisa que fez foi levar o exército do pai de volta para o Piceno! Em Itália, foi Sila quem comandou, Sila e Metelo Pio! E Catulo foi o general contra Lépido e Bruto. E que me dizes da última campanha, a pretensa campanha contra os espartacanos? Por todos os deuses, César, se interpretássemos as nossas carreiras tão levianamente como ele, éramos todos generais!
— Consola-te com o facto de que Catulo e Metelo Pio devem estar a dizer exactamente o mesmo que tu — retorquiu César, que também se sentia indignado com o comportamento de Pompeu. — Mas que se há-de fazer? Pompeu não passa de um campónio novo-rico!
— Só espero que o plano dos cereais grátis resulte!
— Vai resultar, Marco Crasso, prometo-te que vai.
Pompeu seguiu exultante para a sua casa das Carinas, mas a euforia durou pouco. Na manhã seguinte, os arautos de Crasso começaram a proclamar a notícia de que, na festa de Hércules Invicto, Marco Licínio Crasso, cônsul, consagraria um décimo da sua riqueza àquele deus, e que haveria um banquete público servido em dez mil mesas, e que a maior parte da doação seria usada para dar a todos os cidadãos romanos cinco modii de trigo, inteiramente grátis, durante os meses de Setembro, Outubro e Novembro.
— Que atrevimento! — disse Pompeu, estupefacto, a Filipe, que fora dar-lhe os parabéns pelo excelente espectáculo do dia anterior, embora também quisesse ver como ia reagir o Grande Homem àquela novidade.
— É uma atitude muito inteligente — comentou Filipe. — Especialmente porque os Romanos são muito rápidos a fazer contas. Os jogos são algo de confuso e distante para o povo. O que não acontece com a comida, evidentemente. O povo sabe o preço de tudo, desde a mais requintada iguaria a uma vulgar petinga salgada. E perguntam sempre os preços, mesmo quando não têm dinheiro sequer para a petinga salgada. É a curiosidade humana. E também vão saber quanto é que Crasso pagou pelo trigo e quantos modii teve de comprar. Multidões e multidões de Romanos estão a esta hora a fazer as suas contas.
- O que tu estás a querer dizer é que os cidadãos de Roma vão concluir que Crasso gastou mais dinheiro com eles do que eu! — disse Pompeu, com um brilho vermelho nos olhos azuis.
— Receio bem que sim.
— Nesse caso,vou ter de dizer aos meus agentes que comecem a espalhar boatos sobre o custo dos meus jogos. — Pompeu olhou para Filipe com um ar inquisitivo. — Quanto é que Crasso vai gastar? Tens alguma ideia?
— À volta de mil talentos.
— Crasso? Mil talentos?
— Pelo menos.
— Mas se ele é um avarento de primeira...!
— Deixou de ser este ano, Magno. É evidente que a tua generosidade e o êxito dos teus espectáculos acicataram o touro. Aí o tens, investindo com toda a sua força!
— Que posso fazer?
— Muito pouco, excepto organizar uns jogos realmente magníficos.
— Filipe, tu estás a esconder-me qualquer coisa...!
A papada sob o queixo tremeu, os olhos escuros agitaram-se. Mas Filipe conformou-se. Encolheu os ombros, suspirou, respondeu:
— Pois bem, é melhor ser eu a dizer-te do que algum dos teus inimigos. Os cereais grátis é que vão dar a vitória a Crasso.
— O quê?! Porquê? Porque vai encher barrigas vazias? Ora! Este ano não há barrigas vazias em Roma!
— Crasso vai distribuir cinco modü por todos os cidadãos romanos vivendo em Roma, durante os meses de Setembro, Outubro e Novembro. Faz as contas, Magno! Isso dá um pão de meio quilo por dia durante noventa dias. E a grande maioria desses noventa dias virá depois, muito depois, das tuas diversões. Nessa altura, já toda a gente terá esquecido a tua pessoa e os teus jogos. Ao passo que, até ao fim de Novembro, todas as bocas romanas agradecerão a Marco Licínio Crasso o pão que estão a comer. Nestas condições, como pode ele perder, Magno?
Já há muito tempo que Pompeu não tinha um acesso de fúria, mas aquele que Lúcio Márcio Filipe presenciou foi, certamente, o mais violento de todos. O cabelo saía-lhe aos novelos, tal era a força com que o puxava, as faces e o pescoço encheram-se rapidamente de arranhões profundos, o corpo cobriu-se de equimoses, tal era a violência com que se atirava contra as paredes ou esperneava no chão. As lágrimas corriam em enxurrada, as mãos reduziam a cacos objectos de arte e destruíam móveis, os berros ameaçavam trespassar o telhado. Múcia Tércia correu a ver o que sucedera mas com tanta pressa veio como logo desapareceu. Os criados seguiram-lhe o exemplo. Mas Filipe, fascinado, deixou-se ficar a apreciar a cena, sozinho, até que Varrão apareceu.
— Por Júpiter! — murmurou Varrão.
— Espantoso, não é? — perguntou Filipe. — Agora já está muito mais calmo. Devias tê-lo visto uns minutos antes. Uma coisa medonha!
— Eu já o vi assim — disse Varrão, contornando Pompeu, que estava deitado de braços no chão de ladrilhos de mármore brancos e pretos, e abeirando-se do divã de Filipe. — Foi por causa das notícias sobre Crasso, evidentemente.
— Claro. Quando é que o viste assim?
— Quando não conseguiu fazer passar os elefantes pela porta triunfal — disse Varrão, com uma voz muito sumida, não fosse Pompeu ouvir; pela experiência que tinha, concluíra que era impossível saber qual era a parte de encenação ou de verdade nos acessos de fúria de Pompeu. — E também quando Caninas escapou ao seu cerco em Espolétio. Não suporta uma derrota.
— O touro investiu com os dois cornos — disse Filipe, com um ar pensativo.
— O touro — disse Varrão, com um ar mordaz — agora tem mais um corno. E segundo os boatos espalhados por certas mulheres, o terceiro corno é o maior de todos!
— Ah! E, pelos vistos, também tem um nome!
— Caio Júlio César.
Pompeu sentou-se imediatamente no chão de mármore, as roupas reduzidas a farrapos, o crânio e o rosto sangrando.
— Eu sei muito bem o que estavas a pensar, Varrão! — disse ele, respondendo à análise que Varrão não se atrevera a fazer em voz alta. — E César? Que se passa com César?
— Foi César quem planeou a campanha de Crasso — retorquiu Varrão.
— Quem te disse isso? — perguntou Pompeu, erguendo-se agilmente e aceitando o lenço de Filipe.
— Palicano.
— Palicano deve saber, sempre foi um homem de César — disse Filipe, estremecendo só de ver Pompeu assoar-se ruidosamente.
— César é muito amigo de Crasso — disse Pompeu, com uma voz indistinta; acabou de limpar o nariz e atirou o lenço a Filipe que, indignado, o apanhou. — Foi ele que conduziu as negociações em nome de Crasso, o ano passado. E foi ele quem sugeriu que restaurássemos o tribunado da plebe. — Isto foi dito com um olhar furibundo em intenção de Filipe, o qual se esquecera de tal sugestão.
— Tenho imenso respeito pelas capacidades de César — disse Varrão.
— Tal como Crasso. Tal como eu — disse Pompeu, com o mesmo ar furibundo. — bom, pelo menos fico a saber para que lado vai a lealdade de César!
— César só é leal a si mesmo, Magno — disse Filipe. — Nunca te esqueças disso. Mas, se adoptares uma atitude inteligente, conseguirás atrair e seduzir César, apesar de todos os laços que o possam unir a Crasso. Pode ser que venhas a precisar dele, especialmente depois da minha morte — que não deve tardar muito. Estou demasiado gordo para chegar aos setenta. Lúculo tem medo de César, sabes isso muito bem! E meter medo a Lúculo não é proeza para qualquer um. Só me lembro de um homem de quem Lúculo tinha medo. Sila. Experimenta reparar bem em César. Verás nele outro Sila. Isso mesmo: outro Sila!
— Se achas que devo atrair e seduzir César, como tu dizes, então está descansado: é isso que farei — disse Pompeu, com um ar magnânimo. — Mas não esquecerei tão cedo que foi ele que estragou o meu consulado!
Após os jogos de Pompeu (um grande êxito, basicamente porque os gostos do cônsul sénior em teatro e circo eram idênticos aos do homem da rua) e antes dos ludi Romani, chegaram as Calendas de Setembro e, nas Calendas de Setembro, o Senado realizava sempre uma reunião. Era uma sessão importante e a sessão daquele ano mantinha a tradição; foi nela que Lúcio Aurélio Cota revelou as suas conclusões.
— Considero terminada a missão de que o Senado me incumbiu no início deste ano — disse Lúcio Cota da tribuna curul. — Espero que aprovem a forma como conduzi os trabalhos. Antes de entrar em pormenores, farei um breve esboço das minhas conclusões, que gostaria que recomendassem para promulgação.
Lúcio Cota não tinha nenhum papel na mão e o seu funcionário também não parecia ter trazido documentos. Como o dia estava extremamente quente (pelas estações, estava-se a meio do Verão), o Senado suspirou de alívio; pelos vistos, a reunião não ia demorar muito. O que não admirava, pois Lúcio Cota não era pessoa dada a circunlóquios; dos três Cotas ele era, aliás, o mais brilhante e também o mais jovem.
— Para falar com toda a franqueza, colegas senadores — disse Lúcio Cota com a sua voz clara e bem colocada —, não fiquei bem impressionado com os antecedentes dos senadores ou dos cavaleiros, no que toca ao cumprimento dos deveres dos jurados. Quando um júri é inteiramente formado por senadores, favorece aqueles que pertencem à sua ordem. E quando um júri é formado por cavaleiros que possuem o Cavalo Público, é a ordem dos cavaleiros que sai favorecida. Estes dois tipos de júris mostraram sempre uma clara propensão para aceitar subornos, basicamente, ao que creio, porque estão ligados a uma ou outra ordem — ou seja, ou são senadores ou são cavaleiros.
”O que proponho — disse — é que dividamos os deveres dos júris de uma forma inteiramente nova e muito mais equitativa. Caio Graco tirou os júris ao Senado e entregou-os às dezoito centúrias da Primeira Classe que possuíam um Cavalo Público e um censo de pelo menos quatrocentos mil sestércios de rendimentos anuais. Ora não há dúvida de que, com poucas excepções, todos os senadores vêm de uma família pertencente às dezoito centúrias e situada no topo da Primeira Classe. O que eu quero dizer é que Caio Graco não foi suficientemente longe. Proponho, portanto, que os júris passem a ser entidades tripartidas, isto é, que sejam formados por um terço de senadores, um terço de cavaleiros do Cavalo Público e um terço de tribuni aerarii — os cavaleiros que integram o grosso da Primeira Classe e têm um censo de pelo menos trezentos mil sestércios de rendimentos anuais.”
Começou a ouvir-se um murmúrio, mas nada havia nele que denunciasse indignação; os rostos que se viravam como flores para o sol de Lúcio Cota exibiam expressões surpresas e pensativas.
Lúcio Cota tornou o seu discurso mais persuasivo.
— Parece-me — disse — que nós, membros do Senado, fomos atacados de nostalgia durante o período que transcorreu desde Caio Graco até à ditadura de Lúcio Cornélio Sila. Evocávamos nostalgicamente o privilégio de pertencer a um júri e não tínhamos uma ideia precisa das realidades inerentes aos deveres dos júris. Trezentos senadores eram então nomeados para os júris, contra mil e quinhentos cavaleiros do Cavalo Público. Então, Sila devolveu-nos por completo os júris e, apesar de ter alargado o Senado para solucionar os problemas que isso levantava, depressa nos apercebemos de que todos nós acabaríamos por ficar perpetuamente ligados a este ou àquele júri. Porque, como é evidente, os tribunais actuais ampliaram consideravelmente os deveres dos júris. Os julgamentos eram muito menos numerosos quando eram as Assembleias que tinham o dever de os abrigar. Creio que Sila pensou que o facto de cada júri passar a ser mais pequeno, tornando-se o Senado maior, obstaria a que os membros dos júris estivessem perpetuamente em funções. No entanto, a verdade é que Sila subestimou o problema.
”Iniciei o meu inquérito convencido unicamente desse facto — do facto de que o Senado, mesmo depois de alargado, não possui um número suficiente de elementos para abastecer todos os júris de todos os julgamentos. E no entanto, Pais Conscritos, sentia-me relutante em devolver os tribunais aos cavaleiros das dezoito centúrias. Fazer isso, parecia-me, significava uma dupla traição: uma traição à minha ordem senatorial e uma traição ao sistema de justiça, verdadeiramente excelente, que Sila nos legou.”
Toda a gente o escutava agora com a maior atenção, com uma atenção absolutamente invulgar: de facto, o que Lúcio Cota estava a dizer fazia todo o sentido!
— De início, portanto, pensei em dividir os júris equitativamente entre o Senado e as dezoito centúrias séniores. Cada júri seria assim formado por cinqüenta por cento de senadores e cinqüenta por cento de cavaleiros. No entanto, após alguns cálculos, verifiquei que os senadores continuariam a ter de assumir uma pesada carga.
com uma expressão muito séria, os olhos muito brilhantes, os braços estendidos, Lúcio Cota mudou ligeiramente de rumo.
— Se um homem tem de julgar outro homem — disse ele, serenamente —, seja qual for o seu estatuto ou posição, terá de mostrar disponibilidade, interesse, abertura. Ora isso não é possível quando um homem tem de participar em demasiados júris. Esse homem fica necessariamente exausto, e torna-se céptico e desinteressado — e mais propenso a aceitar subornos. E, muito provavelmente, o que ele pensa é isto: que outra compensação terei eu, como membro de um júri, a não ser o dinheiro do suborno? O Estado não paga aos seus jurados. Portanto, o Estado não deveria ter o direito de roubar a esses homens parcelas muito largas do seu tempo.
Ouviram-se murmúrios de aprovação; o Senado estava a gostar do rumo que Lúcio Cota estava a dar ao seu discurso.
— Estou consciente de que muitos de vós tinham ideias idênticas às minhas, ou seja, que os deveres dos jurados deveriam ser distribuídos por um corpo mais vasto que o Senado. Claro que sei que, em tempos, durante um curto período, os júris foram divididos entre as duas ordens. Porém, como já disse, nenhuma das soluções até agora encontradas foi suficientemente longe. Se há mil e oitocentos homens que não pertencem ao Senado nas dezoito centúrias séniores, então o número de cavaleiros é bastante vasto e, por isso, não será difícil encontrar cavaleiros para formar os júris.
Lúcio Cota fez uma pausa, satisfeito com o que os seus olhos viam. Resolveu então avançar sem mais delongas.
— Um homem da Primeira Classe, colegas senadores, é isso e apenas isso. Um homem da Primeira Classe. Um cidadão proeminente, com um rendimento não inferior a trezentos mil sestércios por ano. No entanto, porque Roma existe já há muito tempo, há instituições que não mudaram ou que continuaram na mesma ainda que com novos elementos ou funções. É o caso da Primeira Classe. No princípio de tudo, tínhamos apenas as dezoito centúrias séniores. Porém, como nos agarrámos obstinadamente ao princípio de que cada centúria deveria ter apenas cem homens, tivemos de expandir a Primeira Classe, criando mais centúrias. Quando chegámos a um total de setenta e três centúrias, decidimos expandir a Primeira Classe de uma forma diferente — não através da criação de mais centúrias, mas sim aumentando o número de elementos de cada centúria para além do velho total de cem. Por isso, acabámos por ter uma Primeira Classe que parece muito pouco ”primeira”! Mil e oitocentos homens das dezoito centúrias séniores e muitos milhares de homens das restantes setenta e três centúrias!
”Por isso, perguntei eu para mim mesmo, porque não haveremos nós de alargar o cumprimento dos deveres públicos a esses muitos milhares de homens da Primeira Classe que não são suficientemente séniores no que respeita à família ou ao nome para pertencerem às dezoito Centúrias do Cavalo Público? Se esses homens, pertencentes às centúrias júniores, formassem um terço dos júris, a carga distribuída por todos os jurados seria extremamente leve. E, ao mesmo tempo, isso constituiria um grande incentivo para o vasto corpo de cavaleiros júniores a que chamamos os tribuni aerarii. Os dezassete senadores têm todo o peso da sua experiência, dos seus conhecimentos das leis e de uma longa ligação aos deveres dos júris. Os dezassete cavaleiros do Cavalo Público possuem o peso de pertencerem a famílias distintas e de possuírem grandes riquezas. E os dezassete tribuni aerarii têm o peso da frescura e da disponibilidade, de viverem uma experiência nova e diferente, a experiência de serem cidadãos romanos da Primeira Classe, e de possuírem pelo menos uma riqueza considerável.”
Lúcio Cota estendeu de novo os braços; deixou, porém, cair o braço direito e, com o esquerdo, apontou na direcção das maciças portas de bronze da Cúria Hostília.
— Esta é a minha solução, Pais Conscritos! Um júri tripartido, com um número igual de homens das três ordens da Primeira Classe. Se me concederem um senatus consultum, elaborarei o meu projecto da forma mais adequada do ponto de vista legal e apresentá-lo-ei à Assembleia do Povo.
Era Pompeu quem detinha os fasces durante o mês de Setembro. Estava por isso sentado na sua cadeira curul na frente da tribuna. Atrás dele, havia uma cadeira vazia — a cadeira de Crasso.
— Que pensa o cônsul sénior eleito para o próximo ano? — perguntou Pompeu a Hortênsio.
— O cônsul sénior eleito para o próximo ano gostaria de elogiar Lúcio Cota pelo seu magnífico trabalho — disse Hortênsio. — Falando na minha dupla qualidade de magistrado curul eleito e de advogado, só posso aplaudir esta solução particularmente sensata para um problema tão complicado.
— E o cônsul júnior eleito para o próximo ano? — perguntou Pompeu.
— Estou plenamente de acordo com o meu colega sénior — retorquiu Metelo Cabrito, que não tinha qualquer razão para se opor, agora que o julgamento de Caio Verres pertencia ao passado e que o próprio Verres tinha desaparecido.
E esta mesma opinião foi expressa por todos aqueles que Pompeu interrogou; ninguém encontrava qualquer deficiência no projecto de Cota. Evidentemente que havia alguns que se sentiam tentados a apontar deficiências; no entanto, se o fizessem, sairiam prejudicados, pois todos tinham sido jurados e haviam permitido deficiências muito mais graves — e por isso recuaram, e calaram-se muito bem calados.
— É de facto magnífico! — disse Cícero para César, quando se encontraram no meio da multidão, à saída do Senado. — Tanto eu como tu gostamos de trabalhar com júris honestos. Lúcio Cota foi muito esperto! É que, assim, para subornarem um júri, terão de subornar dois segmentos dele, o que sairá muito mais caro! Além disso, aquilo que um segmento aceitar, os outros dois sentir-se-ão inclinados a recusar! Prevejo, meu caro César, que haverá muito menos casos de subornos, ainda que não desapareçam por completo. Os tribuni aerarii comportar-se-ão decentemente a fim de justificarem a sua incorporação. Farão disso um ponto de honra. Sim, não há dúvida que Lúcio Cota tomou uma decisão muito inteligente !
César teve o maior prazer em contar este tipo de reacções ao tio, à hora do jantar, no seu próprio triclinium. Aurélia e Cinila não estavam presentes; Cinila estava no quarto mês de gravidez e sofria de problemas de estômago quase constantes e Aurélia cuidava da pequena Júlia, que também tinha problemas de saúde, ainda que menores. Daí que os dois homens estivessem sozinhos, o que não desagradava a nenhum deles, bem pelo contrário.
— Admito que a questão dos subornos me ocorreu — disse Lúcio Cota, sorridente. — Mas se queria que a medida fosse aprovada, não podia ser tão directo no Senado.
— Claro. No entanto, a maior parte dos senadores percebeu. E para mim e para Cícero, é uma medida magnífica. Por outro lado, é muito possível que, em privado, Hortênsio a deplore. Para além dos subornos, o que a tua medida tem de melhor é que preserva os tribunais de Sila, que eu considero como o maior passo em frente da justiça romana desde que foram instituídos os julgamentos e os júris.
— Mas que belo elogio, César! — disse Lúcio Cota, radiante. No entanto, o sorriso durou pouco. Lúcio Cota pôs a sua taça na mesa e olhou para César com um ar preocupado. — Tu és amigo de Marco Crasso, César, tens a confiança dele. Por isso, talvez possas minorar os meus receios. A muitos níveis, este tem sido um ano tranqüilo — não há guerras no horizonte que não possamos ganhar confortavelmente, o Tesouro já há muito tempo que não estava tão bem, um censo adequado está a ser feito junto de todos os cidadãos romanos de Itália, as colheitas em Itália e nas províncias são boas, e regista-se umbom equilíbrio entre o velho e o novo na governação. Se pusermos de lado a inconstitucionalidade do consulado de Magno, é evidente que só podemos concluir que este tem sido umbom ano. Enquanto caminhava pelas ruas de Subura, fiquei com a impressão de que o povo miúdo de Roma — aqueles homens que dificilmente conseguirão chegar a eleitores durante a sua vida e que consideram que a distribuição grátis de cereais constitui um contributo sincero para aumentarem os seus parcos rendimentos — não se sentia tão feliz há pelo menos uma geração. Concordo que não são eles que sofrem quando as cabeças rolam e as sarjetas do Fórum se enchem de sangue, mas a verdade é que também eles acabam por ser contaminados por esse tipo de acontecimentos.
Lúcio Cota fez uma pausa para beber umbom gole de vinho.
— Creio que sei o que vais dizer, tio, mas de qualquer forma di-lo — interveio César.
— Este tem sido um Verão magnífico, especialmente para os pobres. Uma série de festas e banquetes, comida bastante para encher as barrigas e levar para casa, para os restantes membros da família, caçadas aos leões, elefantes que fazem habilidades, corridas de quadrigas em abundância, todo o tipo de farsas e mimos habituais nos palcos romanos — e trigo grátis! O desfile dos Cavalos Públicos. Eleições pacíficas, finalmente realizadas dentro dos prazos previstos. Até mesmo um julgamento sensacional em que o vilão teve o que merecia e Hortênsio apanhou uma boa bofetada. As termas do Trigário foram limpas. As doenças atacaram muito menos do que se esperava e, quanto à paralisia de Verão, nem sinal. No que toca a crimes e vigarices, baixaram imenso! — Lúcio Cota sorriu. — Quer eles mereçam, quer não, a verdade é que os créditos e os elogios têm ido quase todos para os cônsules. O povo adora-os, ainda que essa adoração assente em fantasias. Mas tu e eu, como é evidente, sabemos o que está para lá das aparências. Embora não possamos negar que eles têm sido excelentes cônsules — legislaram apenas para salvarem as suas cabeças e, quanto ao resto, remeteram-se para um plano secundário. E no entanto, os boatos não param de crescer, César. Boatos segundo os quais as coisas não vão bem entre Pompeu e Crasso. De que não falam um com o outro. De que quando um é obrigado a ir a determinado sítio, o outro não vai. E eu estou preocupado, porque acredito que esses boatos são verdadeiros — e porque acredito que nós, os membros da classe superior, devemos dar ao povo miúdo pelo menos um ano em que tudo corra bem.
— Sim, os boatos são verdadeiros — disse César, com um ar grave.
— Porquê?
— Sobretudo porque Marco Crasso eclipsou Pompeu e Pompeu não suporta isso. Pompeu pensou que, entre a sua farsa dos Cavalos Públicos e os Jogos da Vitória, seria o herói de toda a gente. Até que Crasso resolveu distribuir cereais grátis durante três meses. Demonstrando assim que Pompeu não era o único homem em Roma com uma fortuna infinita. Foi por isso que Pompeu retaliou, afastando Crasso da sua vida, consular e privada. Por exemplo: Pompeu deveria ter informado Crasso de que havia uma reunião do Senado. Claro que toda a gente sabe que há sempre uma reunião do Senado nas Calendas de Setembro. Mas o cônsul sénior é que tem de convocá-la e, ao mesmo tempo, é obrigado a notificar o cônsul júnior e todos os outros elementos abaixo dele.
— Ele notificou-me — disse Lúcio Cota.
— Notificou toda a gente excepto Crasso. E Crasso interpretou isso como um insulto. Por isso, não foi à reunião. Tentei convencê-lo, mas sem qualquer resultado.
— Oh, cacau — exclamou Lúcio Cota, caindo desanimado sobre o seu divã. — Esses dois vão arruinar um ano que, de outro modo, teria sido brilhante!
— Não, não vão — disse César. — Eu não osvou deixar. Mas se conseguir a paz entre os dois, essa paz não durará muito tempo. Por isso,vou esperar até ao fim do ano e integrar alguns Cotas nos meus planos. Até ao final do ano, teremos de forçá-los a encenar uma espécie de reconciliação pública, uma encenação capaz de pôr toda a gente a chorar. Dessa forma, no último dia do ano, teríamos um final grandioso, com toda a gente a cantar a plenos pulmões: Plaufe ficaria encantado com uma tal comédia!
— Sabes — disse Lúcio Cota, com um ar pensativo, endireitando-se —, quando tu eras pequeno, defini-te como alguém a quem Arquimedes teria chamado ”uma força motriz”, enfim, como aqueles homens que podem dizer: ”Dêem-me um lugar de relevo e eu mudarei o inundo inteiro!”. Era assim mesmo que eu te via e por isso lamentei que tivesses sido nomeado flamen Dialis. Quando conseguiste libertar-te desse cargo, voltei a dar-te o lugar que te tinha atribuído. Mas as coisas não se passaram como eu tinha previsto. É que tu procedes segundo esquemas muito complicados! Sendo ainda um jovem, és já muito conhecido, e a muitos níveis, desde o Senado a Subura. Mas não como uma ”força motriz”. Mais ao jeito de um primeiro-ministro de uma corte oriental: gostas de ser a mente que está por detrás de todos os acontecimentos, mas permites aos outros que desfrutem a glória. — E, abanando a cabeça, concluiu: — Acho isso tão estranho em ti!
César escutara as palavras do tio com um ar muito sério e duas manchas de rubor nas faces, o que nele era raríssimo.
— Não te enganaste a meu respeito, tio — disse ele. — Mas creio que o meu flaminato foi a melhor coisa que me podia ter acontecido, dado que consegui libertar-me dele. Essa experiência ensinou-me a ser subtil e ao mesmo tempo poderoso, ensinou-me a ocultar a minha importância sempre que a sua exibição pudesse afectá-la, ensinou-me que o tempo é um aliado mais valioso do que o dinheiro ou os conselheiros, ensinou-me a ter paciência, coisa em que a minha mãe nunca acreditou — ensinou-me que nada se perde! Ainda estou a aprender, tio. Espero que nunca pare de aprender! E Lúculo ensinou-me que eu podia continuar a aprender, desenvolvendo as minhas ideias e lançando-as por intermédio de outros homens. Eu limito-me a ficar nos bastidores e a ver o que acontece. Mas sossega, tio. A hora em que eu me hei-de tornar a maior de todas as forças motrizes acabará por chegar. Quando tiver idade para isso, serei cônsul. Mas o cargo de cônsul será, para mim, apenas um começo.
Novembro foi um mês cruel, apesar de o tempo estar tão agradável que parecia Primavera. A tia de César, Júlia, adoeceu subitamente, apresentando queixas obscuras que nenhum dos físicos de Roma, incluindo Lúcio Túcio, conseguia diagnosticar. A única certeza que havia era que se tratava de uma síndrome de perda — perda de peso, de ânimo, de energia, de interesse.
— Julgo que está cansada, César — disse Aurélia.
— Mas não cansada de viver, certamente! — exclamou César, que não conseguia suportar a ideia de um mundo sem a tia Júlia.
— Sobretudo cansada de viver — retorquiu Aurélia.
— Mas ela tem tantos motivos para se agarrar à vida!
— Não, César, não tem. O marido e o filho morreram e Júlia não tem nada que a prenda à vida. Já te tinha dito isto. — E, prodígio dos prodígios, os belos olhos cor de púrpura encheram-se de lágrimas. — Em parte, compreendo-a. O meu marido também morreu. Se tu morresses, César, seria o meu fim. Deixaria de ter razões para viver.
— Seria uma grande dor, por certo, mas não o fim, Mater — disse César, incapaz de acreditar que podia significar tanto para a mãe. — Tens netos, tens duas filhas.
— É verdade. Júlia nem isso tem. — Aurélia limpou as lágrimas e acrescentou: — Mas a vida de uma mulher está nos homens dessa mulher, César, e não nas mulheres que ela gerou, nem nos filhos delas. Não há mulher nenhuma que aprecie verdadeiramente a sua sorte, o seu destino ingrato e obscuro. São os homens que fazem andar o mundo, que controlam o mundo, não as mulheres. Por isso, uma mulher, se é inteligente, vive a sua vida através dos seus homens.
César sentiu a mãe fragilizada e atacou.
— Mãe, o que significou Sila para ti? E, fragilizada, Aurélia respondeu-lhe.
— Sila significou excitação e interesse. Sila gostava de mim de uma maneira completamente diferente do teu pai, embora eu nunca tivesse sentido o mínimo desejo de casar com ele. Ou de ser sua amante, já agora. O teu pai foi o meu companheiro, a cem por cento. Sila foi o meu sonho. Não por causa da grandeza da sua personalidade, mas sim por causa da agonia em que ele vivia. Entre os seus pares, não tinha amigos. Os únicos amigos de Sila eram o actor grego que o acompanhou quando ele se retirou e eu, uma mulher. — De repente, Aurélia parecia ter recuperado a sua força habitual. — Mas já chega de conversas sobre este assunto! Acompanha-me a casa de Júlia.
A tia de César parecia uma sombra de si mesma. Mas animou-se um pouco quando viu César, o qual compreendia agora melhor o que a mãe lhe dissera: uma mulher, se é inteligente, vive através dos homens da sua vida. Estaria isso certo?, perguntou-se. Não deveriam as mulheres ter mais poder? Mas depois imaginou o Fórum Romano e a Cúria Hostília equitativamente ocupados por homens e mulheres e, só de pensar nisso, estremeceu. As mulheres existiam para dar prazer aos homens, para lhes fazer companhia, para os servirem, para lhes serem úteis. Seria um horror se quisessem mais do que isso!
— Conta-me uma história do Fórum — pediu Júlia, segurando na mão de César.
A mão dela — reparou César — parecia-se cada vez mais com uma garra. O nariz dele, tão habituado ao requintado perfume que sempre exalava do corpo da tia, sentiu um odor acre, um odor que nada conseguia disfarçar. Não, não era da idade. Ocorreu-lhe a palavra morte; afastou-a rapidamente da sua mente e pôs um sorriso.
— De facto, tenho uma história do Fórum para te contar, ou melhor, uma história de basílica — disse ele, com um ar divertido.
— Basílica? Qual delas?
— A primeira de todas, a Basílica Pórcia, que Catão, o Censor, mandou construir há cem anos. Como sabes, uma das extremidades do piso térreo da Basílica Pórcia foi desde sempre ocupada pelo Colégio dos Tribunos da Plebe. E talvez porque os tribunos da plebe voltaram a desfrutar dos poderes que tinham, o colégio deste ano decidiu melhorar as suas instalações. Mesmo no meio do seu quartel-general existe uma coluna enorme. Por causa disso, é praticamente impossível realizar naquele espaço reuniões com mais de dez pessoas. Pláucio, o presidente do colégio, achou então que o melhor era deitar abaixo a coluna. Chamou os arquitectos mais notáveis da cidade e perguntou-lhes se seria possível deitar a coluna abaixo. Depois de muitas medidas e cálculos, recebeu a resposta: sim, a coluna podia ir abaixo e o edifício não sofreria com isso.
Júlia estava deitada num divã e o corpo dela envolvia César, que estava sentado na beira do divã; os enormes olhos cinzentos da velha senhora, muito fixos, pareciam afundados nas órbitas enegrecidas. Sorria e mostrava-se sinceramente interessada.
— Não faço ideia do fim desta história! — disse ela, apertando a mão do sobrinho.
— Os tribunos da plebe também não faziam! Os construtores trouxeram os andaimes e escoraram devidamente o edifício, os arquitectos examinaram e sondaram e tudo estava preparado para a demolição do pilar. Até que, de repente, aparece um jovem de vinte e três anos — ao que me disseram, vai fazer vinte e quatro em Dezembro — e anuncia que proíbe a destruição do pilar! ”E quem és tu para proibir a destruição do pilar?”, perguntou Pláucio. ”Eu sou Marco Pórcio Catão, o bisneto de Catão, o Censor, que construiu esta basílica”, respondeu o jovem. ”Pois tanto melhor para ti!”, retorquiu Pláucio. ”Mas agora desaparece antes que o pilar te caia em cima!”. Mas Marco Pórcio Catão não se mexia nem um milímetro. Nada nem ninguém conseguiria arrancá-lo dali. E não parava de arengar! E com uma voz que, segundo Pláucio, e eu concordo com ele, pois também a ouvi, era capaz de partir ao meio uma estátua de bronze!
Aurélia parecia agora tão interessada como Júlia.
— Mas que disparate! — disse ela. — Espero que os tribunos tenham declarado o seu veto perante tal posição!
— E declararam. Mas Catão recusou-se a aceitar o veto. Respondeu-lhes que era um membro da Plebe na plena posse dos seus direitos e que o seu bisavô tinha construído aquele edifício. Por isso, só deitariam abaixo a coluna se primeiro o deitassem abaixo a ele. Uma coisa é certa: Catão não transigiu! As razões que apresentava eram infindáveis, mas andavam todas à volta do mesmo — o seu bisavô tinha construído a Basílica Pórcia de uma determinada maneira e essa maneira era sagrada, intocável, um elemento da mos maiorum.
Júlia riu-se.
— E quem venceu no fim? — perguntou.
— O jovem Catão, é claro. Os tribunos da plebe já não agüentavam aquela voz.
— E não tomaram uma posição de força? Não podiam atirá-lo da Rocha Tarpeia? — perguntou Aurélia, escandalizada.
— Teriam gostado de o fazer, sem dúvida. O problema é que, todos os dias, se juntavam verdadeiras multidões para assistir ao confronto e Pláucio concluiu que os tribunos da plebe ficariam muito mal vistos pelo povo se por acaso recorressem à força. É claro que o puseram fora do edifício uma quantidade de vezes. Mas ele voltava sempre! E era óbvio que nunca desistiria. Por isso, Pláucio convocou uma reunião para discutir o caso e os dez membros do colégio concordaram que era melhor suportarem a presença da coluna — disse César.
— Como é esse Catão, fisicamente? — perguntou Júlia. César franziu o sobrolho.
— Muito difícil de descrever. É feio e bonito ao mesmo tempo. Talvez a melhor maneira de o descrever seja esta: faz-me lembrar um cavalo de boa raça tentando comer uma maçã através de uma latada.
— Todo ele é dentes e nariz! — disse Júlia imediatamente.
— Precisamente.
— Posso contar-vos outra história acerca dele — disse Aurélia.
— Conta, mãe, conta! — disse César, reparando no interesse da tia.
— Aconteceu antes de o jovem Catão fazer vinte anos. Ele sempre adorara a prima, Emília Lépida, a filha de Mamerco. Ela já estava comprometida com Metelo Cipião quando este foi para a Hispânia servir com o pai. Porém, quando Metelo Cipião regressou, as coisas correram muito mal entre os dois. Tão mal que Emília Lépida rompeu o compromisso e anunciou que ia casar com Catão. Mamerco ficou furioso! Especialmente porque a minha amiga Servília, que é meia-irmã de Catão, já o tinha avisado da ligação que existia entre Catão e Emília Lépida. De qualquer modo, tudo acabou em bem, porque Emília Lépida não tinha a mínima intenção de se casar com Catão. Usou-o apenas para fazer ciúmes a Metelo Cipião. E bastou Metelo Cipião ir pedir-lhe perdão para que ela mudasse de ideias. Pouco tempo depois, estavam casados. Catão, no entanto, reagiu tão mal que tentou matar Metelo Cipião e Emília Lépida! E, como não conseguiu matá-los, tentou processar Metelo Cipião por lhe ter roubado o afecto de Emília Lépida! O meio-irmão dele, Servílio Cepião, um belo jovem que casou há pouco tempo com a filha de Hortênsio, convenceu Catão de que estava a fazer figura de parvo e só assim Catão desistiu. Desistiu, mas passou não sei quanto tempo a escrever poesia. Poemas atrás de poemas. Todos muito maus, com certeza!
— Curioso — disse César, rindo.
— Na altura não foi nada curioso. Não sei como será a vida ou a carreira do jovem Catão daqui para a frente. Mas uma coisa parece certa, desde já: ele há-de ter sempre uma tendência muito forte para irritar intensamente as pessoas! — disse Aurélia. — Mamerco e Cornélia Sila — já para não falar de Servília! — detestam-no. E creio que Emília também já não pode com ele.
— Mas ele entretanto casou, não foi? — perguntou César.
— Sim, casou com uma Atília. Não foi grande escolha, mas a verdade é que ele também não tem muito dinheiro. Atília teve uma menina o ano passado.
Examinando a tia, César apercebeu-se de que, se ficassem por muito mais tempo, acabariam por incomodá-la. Por isso, não ficaram com ela por muito mais tempo.
— Não quero acreditar, mas creio que tens razão, mãe. A tia Júlia vai morrer — disse ele a Aurélia, mal deixaram a casa de Júlia.
— Sim, mas não será já. Júlia resistirá até ao Ano Novo, talvez mais tempo.
— Ah, espero que viva até eu partir para Hispânia!
— César! Essa é uma atitude cobarde! — retorquiu a mãe, inflexível. — Tu não costumas fugir a acontecimentos desagradáveis!
César parou no meio da Alta Semita, com os braços estendidos e os punhos cerrados.
— Ah, deixa-me em paz! — gritou ele, tão alto que chamou a atenção de dois transeuntes. — Para ti, só conta o dever! Sempre o dever! Pois bem, Mater, estar em Roma para enterrar a tia Júlia é um dever que eu não quero! — E só o costume e a cortesia o impediram de abandonar a mãe a meio do caminho para casa; naquele momento, César teria dado tudo para não a acompanhar.
A casa de César também não era o mais feliz dos lares. Cinila, que ia no sexto mês de gravidez, não estava nada bem. A afecção inicial, a doença que durava ”todo o dia e toda a noite”, como dizia César, por brincadeira, dera lugar a outra — um inchaço dos pés e das pernas que deixava a futura mãe triste e alarmada. Cinila via-se obrigada agora a passar a maior parte do tempo na cama, com os pés e as pernas elevados. Para além de se sentir mal fisicamente e de ter muito medo do que pudesse acontecer-lhe, Cinila mostrava-se constantemente irritada. E todas as pessoas da casa tinham a maior dificuldade em enfrentar esse estado de espírito, tanto mais que Cinila era, por natureza, a mais afável e simpática das criaturas.
E assim, pela primeira vez durante os seus períodos de residência em Roma, César optou por passar as noites e os dias num outro local que não a sua casa de Subura. Não conseguia estar com Crasso; este não pensava noutra coisa senão no dinheiro que teria de gastar por causa dos cereais grátis. Caio Macio tinha-se casado há pouco tempo e, por isso, César também não poderia freqüentar assiduamente o outro apartamento térreo da ínsula de Aurélia. Por outro lado, também não sentia disposição para aventuras amorosas; a sua ligação com Cecília Metela Cabrita terminara abruptamente depois de Verres ter fugido para Massília e não tinha por ora ninguém que a substituísse. Para dizer a verdade, os problemas de saúde da tia e da mulher deixavam-no sem vontade de procurar novas ligações amorosas. Por isso, acabou por arrendar um pequeno apartamento de quatro casas, na Vicus Patricius, e passava aí a maior parte do seu tempo, na companhia de Lúcio Decúmio. Como a vizinhança era tão pouco recomendável como a da ínsula da mãe, os seus amigos políticos não se atreveriam a visitá-lo — e o lado reservado de César gostava disso. Ao mesmo tempo, apercebia-se das vantagens que aquele apartamento ofereceria, quando voltasse a sentir o desejo de se envolver em aventuras amorosas. Começou por isso a interessar-se pela casa (que ficava numbom edifício) e a comprar alguns belos móveis e objectos de arte. Para além de uma boa cama.
No início de Dezembro, César conseguiu operar uma reconciliação particularmente comovente. Os dois cônsules encontravam-se nos rostra, à espera do pretor urbano Lúcio Cota, para presidirem à reunião da Assembleia do Povo que deveria ratificar a lei que reformava o sistema dos júris. Embora Crasso empunhasse os fasces em Dezembro e fosse por isso obrigado a estar presente, Pompeu não poderia deixar de comparecer a uma reunião tão importante. E apesar de a presença de ambos suscitar animados comentários da multidão, a verdade é que estavam finalmente juntos. Em silêncio, sem dúvida, mas pelo menos com um ar de aparente amizade.
A certa altura, entre a multidão, apareceu o primo direito de César, o jovem Caio Cota, filho do falecido cônsul Caio Cota. Embora não fosse ainda membro do Senado, nada o teria impedido de ir votar, tanto mais que a lei em causa fora obra do seu tio Lúcio. Porém, quando viu Pompeu e Crasso juntos ao fim de tantos meses, manifestou-se com tal exuberância que toda a gente se calou e virou-se para ele.
— Oh! — exclamou. — O meu sonho! O meu sonho tornou-se realidade!
E subiu aos rostra tão de repente que Pompeu e Crasso, automaticamente, se afastaram. O jovem Caio Cota instalou-se entre os dois, com um braço por cima de cada um deles e olhou para a multidão enquanto as lágrimas lhe corriam pelo rosto.
— Quirites! — gritou. — A noite passada, tive um sonho! Júpiter Optimus Maximus apareceu-me no meio de uma nuvem de fogo e encharcou-me e queimou-me! Muito abaixo do sítio onde eu estava, vi duas figuras: eram os nossos cônsules, Cneu Pompeu Magno e Marco Licínio Crasso! Mas não estavam como os vejo hoje. Não estavam juntos! Um estava virado para oeste e o outro virado para leste. E não olhavam um para o outro! E a voz do Grande Deus disse-me, no meio da nuvem e do fogo: ”Eles devem deixar o consulado como amigos! Nunca como inimigos!”
Entre a multidão fez-se um silêncio absoluto; um milhar de rostos olhavam para os três homens. Caio Cota deu um passo em frente e virou-se para os dois cônsules.
— Cneu Pompeu, Marco Licínio, façam as pazes, por favor!
— pediu o jovem, com uma voz vibrante.
Durante um longo momento, ninguém se mexeu. A expressão de Pompeu era grave, tal como a de Crasso.
— Vamos, cumprimentem-se! Façam as pazes! Sejam amigos!
— gritou Caio Cota.
Nenhum dos cônsules se mexeu. Até que Crasso se virou para Pompeu e estendeu a sua manápula.
— Estou muito feliz por dar o primeiro passo para reatar a amizade com um homem a quem chamaram Magno antes de ter barba e que celebrou, não um, mas dois triunfos, antes de se tornar senador! — gritou Crasso.
Pompeu emitiu um som algures entre o guincho e o grito, e apertou a mão e o antebraço de Crasso, com o rosto transfigurado. Avançaram ainda mais e caíram nos braços um do outro. E a multidão ficou como que desvairada. A notícia da reconciliação espalhou-se num ápice pelo Velabro, por Subura, pelas manufacturas que ficavam para lá dos pântanos de Palus Ceroliae; as pessoas vinham a correr de todos os lados, para ver se era realmente verdade que os cônsules tinham voltado a ser amigos. Durante o resto do dia, Crasso e Pompeu passearam juntos pela cidade, cumprimentando toda a gente, deixando que o povo tocasse neles, aceitando os parabéns de multidões entusiásticas.
— Há triunfos e triunfos... — disse César ao tio Lúcio e ao primo Caio. — O triunfo de hoje foi o melhor de todos. Agradeço-lhes muito a vossa ajuda.
— Foi difícil convencê-los? — perguntou o jovem Caio Cota.
— Não foi propriamente difícil. Se há uma coisa que eles compreendem, é a importância da popularidade. Nenhum deles é adepto da arte do compromisso, mas eu dividi os créditos equitativamente pelos dois e isso satisfê-los. Crasso teve de engolir o orgulho e de fazer aqueles horrendos elogios a Pompeu. Mas, por outro lado, foi muito louvado por ser o primeiro a estender a mão e a fazer concessões. Assim, tal como no duelo para agradar ao povo, foi Crasso quem ganhou. Felizmente Pompeu não se apercebe disso.
Pensa que foi ele quem ganhou, porque manteve o seu ar altivo e obrigou o colega a admitir a sua superioridade.
— Então façamos votos para que Magno não descubra quem foi realmente o vencedor — disse Lúcio Cota.
— O problema é que a tua reunião teve de acabar. Era impossível convencer a multidão a votar.
— Hoje ou amanhã, tanto faz.
Os dois Cotas e César deixaram o Fórum Romano, subindo as Escadas Vestais na direcção do Palatino, mas, a meio da escadaria, César parou e virou-se. Lá estavam eles, Pompeu e Crasso, rodeados por hordas de romanos felizes. E, agora que as zangas estavam esquecidas, também eles se mostravam felizes.
— Este ano foi um ponto de viragem — disse César, recomeçando a subir as escadas. — Todos nós vencemos uma espécie de barreira. Tenho a estranha sensação de que nenhum de nós voltará a desfrutar do mesmo tipo de vida.
— Percebo o que queres dizer — retorquiu Lúcio Cota. — A minha principal contribuição para a história de Roma ocorreu este ano, com a lei sobre os júris. Se alguma vez decidir disputar o cargo de cônsul, creio que será um perfeito anticlímax.
— Eu não estava a pensar em termos de clímax ou anticlímax — disse César, rindo-se.
— Que vão fazer Pompeu e Crasso quando o ano acabar? — perguntou o jovem Caio Cota. — Diz-se que não querem ir governar nenhuma província.
— E é verdade — disse Lúcio Cota. — Vão regressar os dois à vida privada. Porque não? Ambos tiveram grandes campanhas há pouco tempo — são tão ricos que não precisam dos lucros das províncias — e coroaram o seu consulado com leis que os ilibam de todas as suspeitas de traição e com a concessão de terras aos seus veteranos. Se eu estivesse no lugar deles, não ia governar nenhuma província!
— Quer-me parecer que a situação deles não é assim tão invejável — disse César. — Para onde podem ir eles? Pompeu diz que vai regressar às suas queridas terras do Piceno e que nunca mais passará as portas do Senado. E Crasso está absolutamente decidido a recuperar os mil talentos que gastou este ano. — E, com um suspiro feliz, César acrescentou: — E euvou para a Hispânia Ulterior como questor, e com um governador de que gosto.
— O ex-cunhado de Pompeu, Caio Antístio Veto — disse o jovem Cota, com um sorriso.
Mas César não referiu, porém, o seu mais profundo desejo — que pudesse partir para Hispânia antes que a tia Júlia morresse.
Mas esse desejo não se cumpriria. César foi chamado à cabeceira da tia numa noite de tempestade em meados de Fevereiro; Aurélia encontrava-se em casa de Júlia há já vários dias.
A tia estava consciente e não perdera ainda a visão; quando César entrou no quarto, os olhos dela iluminaram-se um pouco.
— Estava à tua espera — disse ela.
O peito de César doía-lhe, tal era o esforço que precisava de fazer para controlar as suas emoções. No entanto, conseguiu pôr um sorriso enquanto a beijava. Depois, sentou-se na beira da cama, como sempre fazia.
— Eu não faltaria a um encontro contigo — disse ele, num tom ligeiro.
— Queria ver-te — disse ela, ainda com uma voz forte e clara.
— Pois estás agora a ver-me, tia Júlia. Que posso fazer por ti?
— Que farias tu por mim, Caio Júlio?
— Por ti faria tudo, tia Júlia! — retorquiu César, e de facto assim era.
— Ah, se soubesses quanto isso me consola! Porque assim posso ter a certeza de que me perdoas.
— Perdoar-te?! — disse ele, atônito. — Não há nada para perdoar, absolutamente nada!
— Perdoar-me por não ter impedido Caio Mário de te ter nomeado flamen Dialis — respondeu ela.
— Tia Júlia, ninguém poderia impedir Caio Mário de fazer o que muito bem entendesse! — exclamou César. — Os arredores de Roma estão cheios de túmulos de homens que tentaram fazer isso! Nunca, em momento algum, me passou pela cabeça censurar-te! E tu não deves censurar-te. Porque não há motivo nenhum!
— Não me censuro, se tu não me censurares.
— Claro que não te censuro. Dou-te a minha palavra de honra. Os olhos dela fecharam-se, e lágrimas assomaram sob as pálpebras.
— O meu pobre filho... — murmurou ela. — É uma coisa terrível, ser-se filho de um grande homem... Espero que não tenhas filhos varões, porque tu vais ser um grande homem.
O olhar de César cruzou-se com o da mãe e ele apercebeu-se, de súbito, que havia resquícios de ciúme na expressão dela.
Mas a sua resposta a esse ciúme foi violenta e imediata; abraçou Júlia e encostou a sua cara à dela.
— Tia Júlia — disse-lhe ele ao ouvido —, que vou eu fazer sem os teus braços à minha volta, sem os teus beijos? — E, enquanto dizia isto a Júlia, os seus olhos diziam a Aurélia que fora a tia, e não a mãe, que o abraçara e beijara quando ele era menino. Nunca a mãe! Nunca! Como poderia ele viver sem a tia Júlia?
Mas a tia não respondeu, nem ergueu as pálpebras para olhar para ele. Não voltou a falar, nem a olhar, pois morreu, ainda nos braços de César, várias horas depois.
Lúcio Decúmio e os seus filhos estavam presentes, tal como Burgundo; César mandou a mãe para casa, com eles, e, sozinho, caminhou pelas ruas de Roma, por entre a multidão apressada, sem ver uma única pessoa. A tia Júlia estava morta e ninguém, a não ser ele e a sua família, sabia disso. A mulher de Caio Mário estava morta e ninguém, a não ser ele e a sua família, sabia disso. No momento em que as lágrimas ameaçavam explodir nos seus olhos, ocorreu-lhe uma ideia luminosa e as lágrimas foram para sempre contidas. Roma tinha de saber da morte de Júlia! Roma havia de saber da morte dela!
— Um funeral discreto — disse Aurélia, quando ele entrou no apartamento da mãe, ao entardecer.
— Nem pensar! — retorquiu César, que parecia ainda mais alto do que era, cheio de poder ou de uma poderosa luz interior. — A tia Júlia vai ter o maior funeral que alguma mulher já teve desde a morte de Cornélia, a mãe dos Gracos! E no funeral aparecerão todas as máscaras ancestrais, incluindo as máscaras de Caio Mário e do filho.
Ela fitou-o perplexa.
— César, não podes fazer isso! Hortênsio e Metelo Cabrito são cônsules e Roma vive uma época muito conservadora! Se exibisses as imagens de dois homens que Roma considera traidores, acabarias os teus dias na Rocha Tarpeia, às mãos de algum tribuno da plebe da confiança de Hortênsio!
— Pois eles que tentem! — retorquiu César, desdenhando o perigo. — A tia Júlia partirá para a escuridão da morte com todas as honras, com todos os tributos públicos que merece!
E esta determinação, evidentemente, permitia-lhe suportar melhor a dor; César tinha algo concreto a fazer, algo que considerava ser mais digno daquela notável mulher do que todas as lágrimas que pudesse chorar, do que um sentimento constante de perda, de irreparável perda. Não pararia, não choraria. Lutaria, lutaria por ela.
César sabia que ia conseguir realizar o seu desejo. Para isso, teria de impedir os magistrados de lhe levantarem obstáculos ou de o processarem. O melhor seria mesmo impedi-los de tentar fazer fosse o que fosse. O funeral foi tratado com os mais afamados agentes funerários de Roma — e o preço acordado era de cinqüenta talentos de prata. Toda a gente concordou em participar nas despesas, apesar de César tencionar exibir, perante toda a cidade de Roma, as máscaras de Caio Mário e do jovem Mário. Actores foram contratados, tal como os carros em que seguiriam: os antepassados incluiriam o rei Anco Márcio, Quinto Márcio Rex, lulo, o primeiro cônsul dos Júlios, Sexto César e Lúcio César, e Caio Mário e o filho.
Mas esta não era a disposição mais importante — de facto, César decidiu que Lúcio Decúmio e a sua Confraria das Encruzilhadas deveriam espalhar por toda a cidade a notícia de que a grande Júlia, viúva de Caio Mário, tinha morrido e que seria enterrada à terceira hora, no prazo de dois dias. Todos os que quisessem podiam assistir ao funeral. Para Caio Mário, não houvera nenhum funeral público; e, para o filho, houvera apenas a visão de uma cabeia apodrecendo nos rostra. Por isso, as exéquias de Júlia teriam de ser magníficas, e Roma, assistindo às cerimónias, poderia prestar a homenagem há muito tempo devida aos Mários.
César apanhou todos os magistrados desprevenidos. De facto, ninguém informou os magistrados do que se ia passar e nenhum deles projectara estar presente no funeral de Júlia. Mas Marco Crasso compareceu, tal como Varrão Lúculo, e Mamerco, com Cornélia Sila, e também, inesperadamente, Filipe. Metelo Pio, o Bacorinho, também assistiu ao funeral. Para além dos dois Cotas, evidentemente. Mas eles tinham sido avisados; César não queria que ninguém se sentisse comprometido.
E toda a cidade compareceu em massa, milhares e milhares de pessoas do povo, que não se preocupavam com interdições, nem com condenações, por sacrilégio ou outros motivos. Teriam assim finalmente uma oportunidade de chorar Caio Mário, de ver aquele rosto orgulhoso e decidido que tanto amavam, aquele rosto grave e sério, com aquelas sobrancelhas imensas. Para mais, a máscara era usada por um actor tão alto e tão corpulento como Caio Mário. E podiam ver também o jovem Mário, aquele belo e comovente rosto! Mais comovente ainda era a visão do sobrinho de Caio Mário — vestido com uma toga de luto, tão negra como os cavalos que puxavam os carros, uma imagem negra que contrastava com o cabelo muito louro e o rosto pálido. Tão belo! Parecia uma divindade! Era a primeira vez que César aparecia perante uma multidão tão vasta, desde os tempos em que fora a companhia predilecta do velho e doente Mário, e não queria perder aquela oportunidade — era preciso que o povo de Roma nunca mais o esquecesse. Era ele o único herdeiro de Caio Mário e queria que todos os homens e mulheres que assistissem ao funeral de Júlia soubessem quem ele era: o herdeiro de Caio Mário.
César pronunciou o elogio fúnebre nos rostra; era a primeira vez que falava dessa tribuna, a primeira vez que olhava para baixo e via um mar de rostos cujos olhos se fixavam unicamente nele. Quanto a Júlia, fora requintadamente preparada para a sua última (e a mais pública) aparição — tão engenhosamente cuidada e vestida que parecia uma jovem! Só a sua beleza chegava para deixar toda aquela multidão de lágrimas nos olhos. Três outras belas mulheres estavam perto dela, na plataforma dos rostra: uma delas, aparentando ter cinqüenta anos, era a mãe de César, conforme os agentes de Lúcio Decúmio tinham espalhado por entre a multidão; a segunda, que teria cerca de quarenta anos, só podia ser a filha de Sila, tão parecida era com ele; a terceira, era uma jovem morena, com uma gravidez já adiantada, e estava sentada numa cadeirinha de liteira negra — a mulher de César, como a multidão depressa descobriu. Ao seu colo, estava sentada uma criança de uma beleza extraordinária, que teria uns sete anos — não era difícil descobrir que se tratava da filha de César.
— A minha família — começou César, com a sua voz forte e bem colocada de orador — é uma família de mulheres! Da geração do meu pai não, não resta nenhum homem vivo e, dos homens da minha geração, eu sou o único que, hoje, em Roma, presta a derradeira homenagem à mais velha das mulheres da minha família. Júlia, cujo nome nunca foi abreviado, nem acrescentado, pois ela era a mais idosa na sua família e honrou o nome da sua gens de forma tão notável que Roma não conhece mulher que se lhe possa comparar. Júlia possuía beleza, um temperamento afável, toda a lealdade que um homem pode pedir a uma esposa, a uma mãe, a uma tia, o fervor de uma natureza apaixonada, a simpatia de um espírito generoso. Só há uma mulher a quem posso compará-la e que também perdeu o marido e os filhos muito antes de morrer — estou a falar, evidentemente, de uma outra grande mulher patrícia, Cornélia, a mãe dos Gracos. E as vidas de Cornélia e Júlia tiveram semelhanças, pois ambas sofreram a perda dos filhos, condenados à morte por decapitação e cujos funerais não foram autorizados. E quem poderá dizer qual das duas mais sofreu, se uma teve de suportar a morte de todos os seus filhos mas não conheceu a desgraça de um marido desonrado, e a outra suportou a morte do seu único filho, mas conheceu a desgraça de um marido desonrado, e a pobreza quando chegou à velhice? Cornélia viveu até aos oitenta anos, Júlia expirou aos cinqüenta e nove anos. E se assim foi, teria sido porque faltou coragem a Júlia ou porque Cornélia tinha uma vida menos difícil? Nunca saberemos, povo de Roma. Nem devemos perguntar. Porque elas foram duas grandes mulheres, duas mulheres ilustres.
”Mas eu estou aqui para honrar Júlia, e não Cornélia. Júlia dos Júlios Césares, aquela que, em Roma, tinha a mais notável das linhagens. Porque nela juntavam-se os reis de Roma e os deuses que fundaram Roma. A mãe dela foi Márcia, a filha mais nova de Quinto Márcio Rex, o augusto descendente do quarto rei de Roma, Anco Márcio, e que é lembrado todos os dias nesta grande cidade com gratidão e louvor, pois foi ele quem conduziu para Roma a água fresca e boa que brota das fontes em todas as praças e encruzilhadas públicas. O pai dela foi Caio Júlio César, o filho mais novo de Sexto Júlio César. Patrícios da tribo Fábia, outrora reis de Alba Longa, descendentes de lulo, que era filho de Eneias, o qual era filho da deusa Vénus. Nas veias dela corria o sangue de uma deusa poderosa e o sangue de Marte e também de Rómulo — porque quem era Reia Sílvia, a mãe de Rómulo e Remo, senão uma Júlia? Assim, na minha tia, estavam associados o supremo e mortal poder dos reis e o poder imortal dos deuses, perante os quais até os maiores reis são escravos.
”Aos dezoito anos, Júlia casou-se com um homem que todos conhecem e que muitos de vós conheceram enquanto vivo. Casou-se com Caio Mário, o primeiro homem a ser cônsul de Roma por sete vezes, a quem chamaram o Terceiro Fundador de Roma, que dominou o rei Jugurta da Numídia, que venceu os Germanos, que venceu as primeiras batalhas da Guerra Italiana. E até ao momento da morte deste homem, no auge do seu poder, Júlia foi-lhe sempre leal e fiel. Júlia deu-lhe o seu único filho, Caio Mário Júnior, que foi cônsul sénior de Roma com a idade de vinte e seis anos.
”Não foi por culpa dela que as reputações do marido e do filho ficaram manchadas após a sua morte. Não foi por culpa dela que, em conseqüência de uma interdição, foi obrigada a mudar-se do seu lar de vinte e oito anos para uma casa modesta, exposta ao frio vento norte que assobia nas cercanias do Quirinal. Não foi por culpa dela que Fortuna a deixou sem razões para viver, a não ser a ajuda que prestava a todas as pessoas carenciadas do sítio onde vivia. Não foi por culpa dela que morreu prematuramente. Não foi por culpa dela que proibiram, para todo o sempre, a exibição das máscaras do seu marido e do seu filho.
”Na minha infância, privei muito com ela, pois fui o companheiro predilecto de Caio Mário durante aquele ano terrível em que o antigo cônsul de Roma sofreu uma segunda trombose, que o afectou horrivelmente. Todos os dias ia a casa de Júlia cumprir os meus deveres para com o seu marido e receber dela os mais ternos agradecimentos. Junto dela, conheci um amor que mais nenhuma mulher me deu, pois a minha mãe tinha de ser mãe e pai ao mesmo tempo e não se podia permitir o luxo de me encher de abraços e beijos, que não pertencem aos domínios de um pai. Mas para tal eu tinha a tia Júlia e, mesmo que vivesse um milhar de anos, nunca esqueceria um único abraço, um único beijo, um único olhar de amor dos seus belos olhos cinzentos. E por isso vos digo, gente de Roma, chorai por ela! Chorai por ela como eu choro! Chorai o seu destino e a triste vida que ela não merecia. Chorai também os destinos do seu marido e do seu filho, cujas imagens vos mostro neste dia infortunado. Dizem que eu não posso mostrar-vos as máscaras dos Mários, que me podem retirar os meus cargos e mesmo a cidadania por cometer um crime tão ultrajante, por exibir aqui, no Fórum — que conhecia tão bem esses dois homens! —, dois rostos inanimados, feitos com cera e tinta e com os cabelos de outra pessoa! Pois eu respondo: então tirem-me os meus cargos, tirem-me a cidadania, se assim o entenderem! Porque eu tinha de honrar esta tia do meu sangue como ela merecia e toda a sua honra está concentrada na sua devoção aos Mários, que eram marido e filho. É pensando em Júlia que vos mostro estas imagens e não permitirei a nenhum magistrado desta cidade que as retire do desfile fúnebre! Avança, Caio Mário, avança, Caio Mário Júnior! Honrem a vossa esposa e mãe, Júlia dos Júlios Césares, filha dos reis e dos deuses!” A multidão chorava desolada, mas quando os actores envergando as máscaras de Caio Mário e do jovem Mário avançaram para prestar uma derradeira homenagem a Júlia, o choro deu lugar a um murmúrio que, rapidamente, se transformou num coro de exclamações até que explodiu num clamor imenso. E Hortênsio e Metelo Cabrito, observando atônitos o que se passava, do alto da escadaria do Senado, viraram as costas derrotados. Ao crime de Caio Júlio César só podiam responder com o silêncio, pois Roma aprovava esse crime de todo o coração.
— Foi brilhante! — disse Hortênsio a Catulo, pouco depois. — Não só desafiou as leis de Sila e do Senado, como ainda aproveitou a oportunidade para lembrar a toda aquela gente que ele descende de reis e de deuses!
— Pois bem, César, conseguiste fazer o que querias — disse Aurélia, no final desse longo dia.
— Eu sabia que conseguiria — retorquiu ele, deixando cair a sua toga preta com um suspiro de profundo cansaço. — O grupo conservador pode estar no poder este ano, mas nenhum dos seus membros sabe se os eleitores do próximo ano apoiarão essa tendência. Os Bomanos gostam de mudar de governo. E gostam de um homem que tenha a coragem de defender as suas convicções. Especialmente quando esse homem eleva Caio Mário ao pedestal de que o povo nunca o retirou, por muitas estátuas suas que tenham sido derrubadas.
Caminhando como uma velha que sofresse de hidropisia, Cinila arrastou-se até à sala e foi sentar-se ao lado de César.
— Foi muito bonito — disse ela, dando-lhe a mão. — Estou contente por o meu estado me ter permitido assistir pelo menos ao elogio. Falaste tão bem!
César rodeou-lhe o rosto com as mãos e afastou-lhe o cabelo da testa.
— Minha pobrezinha! — disse ele, ternamente. — Já não falta muito! — Depois, ergueu as pernas dela e deixou-as repousar no seu colo. — Não devias sentar-te assim, com as pernas a balançar!
— Ah, César, esta gravidez parece durar uma eternidade! com Júlia, foi completamente diferente. Não me custou nada. Quem havia de dizer que a segunda gravidez seria tão difícil? Não compreendo — disse ela, com lágrimas nos olhos.
— Eu compreendo — disse Aurélia. — É que desta vez é um rapaz. com as raparigas, não tive qualquer problema durante a gravidez. Mas contigo, César, foi uma gravidez terrível.
— Acho que vou para o meu apartamento. Preciso de dormir — disse César, depondo as pernas de Cinila no divã e levantando-se.
— Ah, não vás, César, por favor! — rogou a mulher, aflita.
— Fica cá esta noite. Prometo-te que não falaremos de bebês nem de problemas de mulheres. Aurélia, não fales mais de gravidezes, senão ele vai-se embora.
— Ora! — retorquiu Aurélia, levantando-se. — Onde está Eutico? Do que nós precisamos é de comer.
— Eutico ficou a fazer companhia a Estrofantes — disse Cinila com um ar triste. Ao ver que César voltara a sentar-se no divã, o seu rosto, porém, alegrou-se um pouco. — Pobre velho! Ficou sozinho naquela casa. Só lhe restava Júlia e Júlia morreu.
— Também ele morrerá em breve — disse César.
— Ah, não digas isso!
— Basta olhar para ele, mulher. E para Estrofantes, será uma bênção.
— Espero não ter a sorte dele — disse Cinila. — É a pior de todas as sortes, sobreviver a todos os entes queridos.
— Pior sorte — disse César, que não queria que lhe lembrassem coisas que o faziam sofrer — é só falar de coisas tristes.
— Isso é porque estás em Roma — disse Cinila, sorridente.
— Quando fores para Hispânia, sentir-te-ás melhor. Quando viajas, sentes-te muito mais feliz do que quando estás em Roma.
— Partirei no próximo nundinus, mulher. Por mar. No início do Inverno. Tens toda a razão. Eu não gosto de estar em Roma. Por isso, seria boa ideia se tivesses o bebê antes do próximo nundinusl Gostava de ver o meu filho antes de partir.
César viu o filho antes de partir. Porém, quando a parteira e Lúcio Túcio conseguiram retirá-lo do ventre da mãe, tornou-se óbvio que o menino estava morto há vários dias. E Cinila, tomada de convulsões, com um dos lados paralisados devido a uma violenta trombose, morreu praticamente no mesmo momento em que dava à luz o nado-morto.
Ninguém queria acreditar no que tinha acontecido. Se a morte de Júlia causara choque e dor, a perda de Cinila era insuportável. César chorou como nunca tinha chorado em toda a sua vida, e pouco se preocupou se os outros o viam chorar. Hora após hora, desde o momento em que se dera a primeira e horrenda convulsão até ao momento em que a enterrou. Uma morte, ainda era suportável, apesar de tudo. Duas era um pesadelo, um pesadelo de que pensava nunca mais poder acordar. Não pensava na criança morta — não havia espaço na sua mente torturada para lhe dedicar os seus pensamentos; Cinila estava morta e Cinila pertencera à sua família desde que ele fizera 14 anos, sofrera com ele o flaminato, aquela pequenita morena que amara como a uma irmã mesmo quando ela fora sua esposa. Dezassete anos! Tinham sido meninos juntos, os únicos meninos naquela casa.
A morte de Cinila afectou Aurélia de uma maneira que a morte de Júlia não poderia afectar. E aquela mulher de ferro chorou lágrimas tão tristes como as do seu filho. Apagara-se uma luz na vida de Aurélia. Uma luz que prometia iluminar o resto da sua vida: aquela que em parte fora para ela como uma neta, apesar de ser sua nora, era agora apenas uma sombra, um lugar vazio ao tear, uma cama vazia. Burgundo chorava, Cardixa chorava, os seus filhos choravam, e Lúcio Decúmio, Estrofantes, Eutico, todos os criados que dificilmente conseguiriam imaginar a casa de Aurélia sem a presença de Cinila. Os inquilinos da ínsula choravam e, com eles, muita da gente de Subura.
O funeral de Cinila foi muito diferente do de Júlia. Nas exéquias de Júlia, houvera algo de grandioso, de glorioso, tanto mais que o orador César aproveitara a ocasião para falar a toda a cidade daquela grande mulher e da sua própria família. No entanto, houve semelhanças; César foi buscar as imagines dos Cornélios Cinas à arrecadação onde as escondera durante muito tempo, ao lado das máscaras dos dois Mários. Para grande escândalo de Hortênsio e Metelo Cabrito, as máscaras dos Cinas foram também exibidas. E, embora o elogio fúnebre de uma mulher jovem não constituísse uma prática aceite, César resolveu afrontar também esse desafio. Mas sem qualquer resquício de glória. Desta feita, o seu discurso foi feito de palavras ternas e saudosas. Limitou as suas observações ao prazer que sentira na companhia dela e à recordação dos anos em que ela o consolara pela perda da sua liberdade de rapaz. Falou do sorriso dela e dos trajes pobres que ela envergara — pois esse era o seu dever — enquanto fora flaminica Dialis. Falou da sua filha, que tinha ao colo enquanto falava. E chorou. Terminou o seu elogio, dizendo:
— Não conheço dor maior do que a que sinto agora. Essa é a tragédia da dor — cada um de nós considera sempre a sua própria dor maior do que a dos outros. Mas estou pronto a confessar-vos que eu talvez seja um homem frio e duro, que ama a sua dignitas mais do que qualquer pessoa ou coisa. Pois que assim seja. Em tempos, recusei-me a divorciar-me da filha de Cina. Na altura, pensei que me recusava a obedecer às ordens de Sila para meu próprio benefício e por causa das possibilidades que essa recusa me poderia proporcionar. Pois bem, já vos expliquei o que é a tragédia da dor. Mas essa tragédia não é nada, se a compararmos com a tragédia de só sabermos o que uma pessoa significava para nós depois de ela estar morta.
Ninguém saudou a imago de Lúcio Cornélio Cina, nem as dos seus antepassados. Mas Roma chorou com tal tristeza pela segunda vez em dois nundinae que os inimigos de César se viram impotentes para o julgar ou condenar.
Aurélia estava de repente mais velha, absolutamente destroçada. Um problema nada fácil para o filho, cujas tentativas para a confortar com abraços e beijos continuavam a ser rejeitadas.
Serei eu tão duro e frio porque ela também o é?, perguntava-se César. Mas ela só é dura e fria comigo! Por que razão se comporta assim comigo? Ela, que chorou tanto a morte de Cinila! Ela, que chorou tanto a morte daquele horrendo Sila!
Se eu fosse uma mulher, os meus filhos seriam um consolo, uma bênção! Mas sou um nobre romano, e os filhos de um nobre romano, na melhor das hipóteses, estão sempre na periferia da sua vida. Quantas vezes vi eu o meu pai? E mesmo que o visse mais vezes, de que ia falar com ele?
— Mãe — disse ele —, quero que fiques com Júlia como se ela fosse tua filha. Júlia tem praticamente a mesma idade que Cinila quando ela veio viver connosco. A seu tempo, a menina acabará por preencher a tua vida, agora tão vazia. Não farei nada para a tirar de ti.
— Ela é minha filha desde que nasceu — retorquiu Aurélia.
O velho Estrofantes entrou na sala, olhou com um ar desolado para a mãe e para o filho, e saiu imediatamente, arrastando-se penosamente.
— Tenho de escrever ao tio Públio — disse Aurélia. — Pobre tio Públio, também ele sobreviveu a toda a gente.
— Sim, mãe, escreve-lhe.
— Não te compreendo, César, quando tu te comportas como a criança que chora porque comeu o bolo de mel todo e pensa que, mesmo assim, o bolo não devia ter acabado.
— E qual é a razão desse comentário?
— Aquilo que tu disseste no elogio fúnebre de Júlia. Disseste que eu tinha sido tua mãe e teu pai, e que, por isso, não podia dar-te os abraços e os beijos que Júlia te deu. Quando te ouvi dizer isso, fiquei aliviada. Finalmente tinhas compreendido. Mas agora encontro-te mais amargo do que nunca. Aceita o teu destino, meu filho. Para mim, tu significas mais do que a vida, mais do que a pequenita Júlia, mais do que Cinila, mais do que qualquer pessoa no mundo. Para mim, tu significas mesmo mais do que o teu pai. E muito mais do que Sila poderia ter significado, se por acaso eu tivesse tido alguma fraqueza. Se não pode haver paz entre nós, não poderemos pelo menos declarar tréguas?
César sorriu para ela, de esguelha.
— Porque não? — perguntou.
”— Ficarás melhor logo que saíres de Roma, César.
— Era isso o que Cinila dizia.
— E tinha razão. Nada conseguirá apagar a dor causada por esta morte. No entanto, uma viagem por mar, como a que vais fazer, limpará a tua mente de toda a perturbação, de todas as confusões, que por ora a impedem de funcionar convenientemente. Porque ela voltará a funcionar devidamente. Não pode deixar de ser assim.
Não pode deixar de ser assim: as palavras da mãe ecoavam no cérebro de César enquanto, montado no seu cavalo, seguia na direcção de Óstia, onde o esperava o barco que havia de levá-lo a Hispânia. É verdade, pensava ele. O meu espírito pode estar destroçado, mas a minha mente não foi afectada. Há novas coisas a fazer, novos povos para conhecer, uma região desconhecida a explorar — e Lúculo não estará por perto! Sim, eu hei-de sobreviver!
Colleen McCullough
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