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OS FILHOS DE WANG LUNG / Pearl S. Buck
OS FILHOS DE WANG LUNG / Pearl S. Buck

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

Wang Lung II

OS FILHOS DE WANG LUNG

 

Wang Lung estava a morrer. Estava a morrer na sua pequenina e sombria casa de adobe no meio dos campos, no quarto onde, rapaz ainda, dormira, na mesma cama em que se deitara na noite de noivado. O quarto não valia sequer uma das cozinhas da Grande Casa da cidade, que era também sua, onde os seus filhos e os destes presentemente habitavam. Mas já que tinha de morrer, agradava-lhe morrer aqui, no meio das suas terras, neste compartimento com a mesa e as cadeiras de madeira por trabalhar, sob aqueles cortinados de algodão.

 

Porque Wang Lung sabia que o tempo de morrer chegara, e olhava os dois filhos que se encontravam à sua cabeceira; sabia que lhe esperavam a morte, e que era a hora. Tinham mandado vir bons médicos da cidade, e estes chegaram com as suas agulhas e as suas ervas, tomaram-lhe o pulso, longamente, examinaram-lhe a língua, mas, por fim, tornaram a emalar os seus instrumentos médicos para partirem e disseram:

 

É a idade, chegou ao termo da vida e ninguém pode desviar-lhe o destino.

 

Depois Wang Lung ouviu cochicharem um com o outro os seus dois filhos, que tinham vindo para ficarem com ele naquela casa de adobe até à hora da sua morte; julgavam-no mergulhado no sono, mas ele ouvia-os, e diziam, olhando-se um ao outro com gravidade:

 

É preciso mandarmos alguém para o Sul, a prevenir o outro filho, nosso irmão.

 

E o segundo filho respondeu:

 

Sim, é preciso mandar imediatamente, porque quem sabe por onde ele andará vagabundeando com aquele general ao serviço de quem se encontra?

 

Ao ouvir isso, Wang Lung compreendeu que tomavam disposições para os seus funerais.

 

Ao lado da cama, erguia-se o caixão que os filhos lhe tinham comprado e posto ali para seu sossego. Era um enorme esquife, talhado num grande tronco de pau ferro, e que enchia todo o quartozito, de tal maneira que quem quer que andasse de cá para lá tinha de contorná-lo e de se apertar muito contra ele. Aquele caixão custara perto de seiscentas peças de prata, mas o próprio Wang Segundo não olhava à despesa, embora habitualmente o dinheiro lhe passasse tão lentamente pelos dedos que raras vezes saía deles tanto quanto entrara. Mas os filhos não lamentavam o dinheiro gasto, porque Wang Lung tirava grande consolo do belo esquife, e a cada momento, quando era capaz disso, estendia a sua cansada e amarelecida mão para acariciar a madeira negra e polida. Por dentro desse, estava outro esquife, cortado e aplainado, de pau cetim amarelo, e os dois ajustavam-se um ao outro como a alma do homem ao seu corpo. E era assim um esquife capaz de consolar o mais exigente.

 

Mas, apesar de tudo, Wang Lung não se deixava deslizar na morte tão facilmente como o seu velho pai. Já bem uma dezena de vezes, é certo, estivera a sua alma para se pôr a caminho, mas de cada uma das vezes o seu velho corpo robusto revoltava-se por ter de ficar ao abandono, acabado o seu tempo, e quando a luta entre ambos começava, Wang Lung ficava aterrorizado pela guerra que sentia em si. Fora sempre mais um corpo que uma alma, nos seus tempos, homem sólido e apaixonado, e era-lhe impossível abandonar o corpo como quem não abandona nada. Ao sentir a alma escapar-se-lhe, tinha medo, e lamentava-se em voz rouca e ofegante, tão inarticulada como os gritos de uma criança.

 

De cada vez que assim se lamentava, a sua jovem concubina Flor de Pereira, que permanecia dia e noite à cabeceira, segurava-lhe na velha mão, para acalmá-lo, e os dois filhos apressavam-se a consolá-lo, descrevendo-lhe os funerais que lhe destinavam, e contando-lhe incessantemente o que projectavam fazer. O filho mais velho, vestido de cetim, inclinava a alta estatura para o velhote encarquilhado, e gritava-lhe aos ouvidos:

 

Teremos um cortejo de mais de meia légua de comprido, e nenhum de nós faltará a chorar-vos, as vossas mulheres a chorar e a lamentar-se como é seu dever, e os vossos filhos e os filhos de vossos filhos, em trajos de luto de cânhamo branco, e toda a gente da aldeia e os feitores das vossas propriedades! E a cadeirinha da vossa alma irá à frente e atrás o retrato que mandámos fazer de vós por um artista, e depois virá o vosso grande e esplêndido ataúde, no qual descansareis como um imperador, nos novos trajos que vos mandámos preparar, e alugámos peças de brocado de escarlate e ouro para estender por cima do esquife, enquanto o conduzirem pelas ruas da cidade, aos olhos de todos!

 

Gritava desta maneira a ponto de ficar com as faces purpúreas e de perder a respiração, porque era muito gordo, e quando se levantava para respirar mais à vontade, o segundo filho de Wang Lung prosseguia a descrição. Era um homenzinho amarelo e astuto, que falava numa vozita fina, nasalada e monótona, dizendo:

 

Virão também os padres, que cantarão para a vossa alma as alegrias do Paraíso e virão todas as carpideiras de aluguer e os carregadores que conduzirão todas as coisas que preparámos para usardes quando fordes uma sombra. Temos prontas no grande vestíbulo duas casas de papel e de bambu, uma como esta e a outra como a casa da cidade, e dentro há mobília, criados e escravas, um palanquim e um cavalo, e tudo aquilo de que precisais. São em papel de todas as cores e tão bem feitas que quando as tivermos queimado no vosso túmulo e as tivermos mandado ter convosco, posso dar-vos a minha palavra de honra de que não haverá uma alma tão bem servida como a vossa, e todas essas coisas vão ser levadas no cortejo aos olhos de todos, e esperamos que estará bom tempo para os funerais!

 

Então o velho ficou muito contente e murmurou:

 

Suponho... que toda a cidade... virá assistir!

 

Toda a cidade, por certo!gritou muito alto o filho mais velho, com largo gesto. E ao longo das ruas toda essa gente abrirá alas, pois nunca se viu enterro assim desde o tempo em que a célebre Casa de Hwang se encontrava ainda em todo o seu esplendor.

 

Ah!...disse Wang Lung.

 

E sentiu-se ainda tão reconfortado dessa vez que se esqueceu de morrer e caiu num súbito e leve torpor.

 

Mas esse conforto não podia durar sempre, e uma hora chegou, com o primeiro alvor do sexto dia, em que a morte do velho se cumpriu. Os dois filhos estavam cansados de tanto esperar, porque não estavam habituados à falta de comodidades de uma casa exígua como aquela, em que nunca tinham tornado a viver desde a juventude, e, extenuados pela interminável morte do pai, tinham ido deitar-se no pequeno pátio interior que ele outrora construíra, na época em que tomara a sua primeira concubina, Lotus, época em que se encontrava ainda em todo o vigor da idade. Ao retirar-se, no princípio da noite, avisaram Flor de Pereira para que os chamasse, se o pai recomeçasse de-repente a morrer outra vez, e foram descansar um pouco. Naquele leito que Wang Lung outrora achara tão belo e onde amara tão apaixonadamente, repousava agora o filho mais velho e lamentava-se de que a cama fosse dura e tão desengonçada por já velha, e lamentava-se do quarto ser escuro e abafado em plena Primavera. Mas uma vez que se deitou, adormeceu com sono pesado e ruidoso, embaraçando-se-lhe o curto sopro na gorja farta. Quanto a Wang Segundo, estendeu-se numa camilha de bambu que se encontrava encostada à parede e adormeceu com um sono leve e furtivo, como o sono de um gato.

 

Mas Flor de Pereira não dormia. Ficou acordada toda a noite, imóvel e muda num pequeno tamborete de bambu tão baixo que, sentada à cabeceira da cama, tinha o rosto mesmo junto do do velho, cuja seca mão ressequida apertava nas suas mãos meigas. Era tão nova que podia ser filha de Wang Lung; mas apesar disso não o parecia porque tinha no rosto um ar singular de resignação e tudo quanto fazia era feito com a paciência mais perfeita, mais cultivada, o que não é próprio da juventude. E assim ficou sentada ao lado do velhote que fora tão bom para ela e mais semelhante a um pai do que qualquer outro que ela jamais tivesse conhecido. Não chorava. Olhava-lhe continuamente o rosto, horas seguidas, enquanto ele dormia com sono tão calmo e quase tão profundo como a morte.

 

De repente, naquele momento em que a noite é mais negra e que precede de pouco tempo o surgir da aurora, Wang Lung abriu os olhos, e sentiu-se tão fraco que lhe pareceu que a alma já lhe abandonara o corpo. Voltando um pouco os olhos, viu a sua Flor de Pereira ali sentada. Sentia-se tão fraco que começava a sentir medo, e disse, suspirando, numa voz que se lhe entaramelava na garganta e lhe hesitava entre os dentes:

 

Filha... será a... morte?

 

Ela viu-lhe o terror e respondeu-lhe calmamente e em voz alta e firme:

 

Não, não, meu senhor... está melhor, não vai morrer!

 

Tens... a certeza?sussurrou ele de novo, reconfortado pela naturalidade do tom da voz, e fixando-a com os olhos vítreos.

 

Então Flor de Pereira, vendo o que tinha de acontecer, sentiu o coração começar a bater forte e rapidamente, levantou-se, inclinou-se para ele e disse-lhe com a sua mesma voz meiga habitual:

 

Enganei-vos alguma vez, meu senhor? Veja, a sua mão que seguro na minha está tão quente e tão forte, que ides dentro de instantes sentir-vos melhor. Estais tão bem, meu senhor! Não precisais de ter medo... não, nada receeis... ides melhorar...

 

Acalmava-o assim com perseverança, repetindo-lhe sem cessar que estava bem e segurando-lhe a mão no calor das suas, e ele sorria-lhe do leito, com os olhos vagos e fixos, os lábios cerrados, e os ouvidos atentos à voz perseverante. Depois, quando viu que ele ia morrer, inclinou-se ainda mais e, num tom mais alto, exclamou em voz forte e nítida:

 

Vai melhor... vai melhor! Não é a morte, meu senhor... não é a morte!

 

Por este modo o reconfortava e no mesmo momento em que, ao som da meiga voz, ele concitava as últimas pulsações, morreu. Mas não era homem para morrer sossegadamente. Embora reconfortado, quando a alma se arrancou dele, o coração no extremo arranque deu-lhe como que um grande salto de cólera e os braços e as pernas agitaram-se-lhe tão violentamente que a sua velha mão ossuda foi bater em plena face de Flor de Pereira, inclinada para ele. A mão estalou-lhe em plena face numa bofetada tão violenta que ela levou a mão ao rosto e murmurou:

 

A única bofetada que o meu senhor me deu!

 

Mas ele não lhe deu resposta. Então ela baixou os olhos e viu-o estendido de través. Enquanto o olhava, exalou ele o último suspiro e não se mexeu mais. com gesto ágil e discreto, ela compôs-lhe os velhos membros e cobriu-o honestamente com os cobertores. Fechou com os seus dedos ternos os olhos esbogalhados que já não viam, e contemplou por um instante o sorriso, ainda subsistente no rosto, que lhe viera quando ela lhe dissera que não morria.

 

Depois de tudo acabado, compreendeu que devia ir avisar os filhos. Ficou ainda sentada no tamborete, mas sabia que devia avisá-los. Agarrou na mão que lhe batera, inclinou a cabeça e chorou lágrimas silenciosas, enquanto estava ainda sozinha. Tinha um coração singular, triste de sua mesma natureza, e não podia nunca consultá-lo chorando, como as outras mulheres, porque as lágrimas a ela não traziam conforto. Eis porque não permaneceu por muito tempo sentada; levantou-se e foi avisar os dois irmãos. Disse-lhes:

 

Não precisam de se apressar, porque já morreu.

 

Mas eles corresponderam ao seu apelo e apressaram-se a sair, o mais velho com a cabaia de cetim toda enrugada pelo sono e com os cabelos despenteados. Foram logo para junto do pai. Ele descansava na posição em que Flor de Pereira o estendera, e os dois filhos contemplaram-no como se o receassem agora. Depois, o mais velho disse, cochichando como se houvesse no quarto um estranho:

 

Morreu facilmente ou dificilmente?

 

E Flor de Pereira respondeu no seu tom calmo:

 

Morreu sem dar conta que morria.

 

Depois o segundo filho observou:

 

Parece dormir como se não estivesse morto.

 

Quando os dois filhos contemplaram por um momento o seu defunto pai, sentiram um medo confuso e vago, porque ele jazia ali tão impotente sob o seu olhar; Flor de Pereira adivinhou-lhes o medo e disse-lhes meigamente:

 

Há ainda muito que fazer por ele.

 

Então os dois homens tiveram um sobressalto e ficaram

 

muito contentes de que lhes fizessem recordar coisas da vida, e o mais velho apressou-se a compor o vestuário, passou a mão pelo rosto e disse, numa voz surda:

 

É verdade... é verdade... temos de tratar dos funerais...

 

E apressaram-se a sair, contentes por se verem fora daquela casa onde jazia o cadáver do pai.

 

ORA, antes de morrer, Wang Lung tinha um dia ordenado a seus filhos que lhe deixassem o cadáver no caixão na casa de adobe até ao momento de ser dado à terra. Mas, quando os filhos chegaram ao momento dos preparativos para os funerais, consideraram muito fastidioso ir e vir tão longe da casa da cidade e, pensando nos quarenta e nove dias que deviam passar antes da data do enterro, pareceu-lhes impossível obedecer ao pai, agora que ele estava morto. E de facto era para eles, de muitas maneiras, uma coisa desagradabilíssima, porque os sacerdotes do templo da cidade se queixavam por terem de ir tão longe para cantar, e até os homens que vieram lavar e vestir o corpo de Wang Lung, pôr-lhe o seu trajo de funeral, de seda, e metê-lo no caixão e velar este, reclamavam tarifa excepcional, pedindo tal salário que Wang Segundo ficou aterrado.

 

Os dois irmãos entreolharam-se então, por sobre o esquife do pai, e pensavam ambos a mesma coisa: depois de morto, o velho já nada podia dizer. Mandaram portanto vir os rendeiros e ordenaram-lhes que levassem Wang Lung para os compartimentos da casa da cidade onde ele habitara e Flor de Pereira, apesar do seu protesto, não conseguiu convencê-los. Vendo a inutilidade das suas palavras, disse-lhes calmamente:

 

Eu cuidava que aquela pobre inocente e eu nunca mais voltaríamos à casa da cidade, mas se ele vai para lá, temos de ir com ele.

 

E levou a pobre idiota, que era a filha mais velha de Wang Lung, mulher já de certa idade mas a mesma criança néscia que fora a vida inteira; quando o esquife de Wang Lung avançou pelos caminhos fora, elas seguiam atrás dele, e a inocente ria porque estava um lindo e tépido dia de Primavera e o Sol brilhava com todo o esplendor.

 

E assim Flor de Pereira regressou à propriedade onde outrora habitara com Wang Lung vivo, e ao quarto onde Wang Lung a conduzira, certo dia em que o seu sangue corria ardente e forte apesar da velhice e em que ele se sentia só no meio da sua Grande Casa. Mas o pátio estava agora silencioso e em cada uma das portas da Grande Casa os sinais de felicidade em papel vermelho tinham sido rasgados para mostrar que a morte se achava ali; em cada um dos batentes da grande porta que abria para a rua tinham colado papel branco, em sinal de morte. E Flor de Pereira vivia e deitava-se ao lado do morto.

 

Um dia em que ela estava assim de vela, mostrou-se uma criada à porta do salão. Fora encarregada de dizer, por Lotus, primeira concubina de Wang Lung, que esta vinha apresentar as suas homenagens ao defunto senhor. Flor de Pereira devia enviar-lhe em resposta algumas palavras de polidez e foi o que fez, posto detestasse Lotus, que fora sua antiga senhora, e levantou-se e ficou à espera, substituindo ora uma ora outra das velas que ardiam em torno do caixão.

 

Era a primeira vez que Flor de Pereira tornava a ver Lotus desde o dia em que esta, sabendo o que Wang Lung fizera, lhe mandou dizer que desejava nunca mais tornar a vê-la, porque estava muito zangada por ele ter tomado entre o seu pessoal uma rapariga escrava desde a infância. Ficara tão cheia de ciúme e tão zangada que fingia até ignorar se Flor de Pereira estava viva ou morta. Mas a verdade é que ela se sentia com curiosidade, e, agora que Wang Lung morrera, tinha dito a Cuckoo, sua criada:

 

Agora, visto que o velhote morreu, já não tenho que querer mal a essa rapariga e vou ver como ela está agora.

 

E assim, cheia de curiosidade, se arrastara para fora dos seus aposentos, apoiada às suas escravas, escolhendo uma hora em que os padres não estivessem a cantar junto do caixão.

 

Assim, chegou ao compartimento em que Flor de Pereira a esperava; tinha trazido, por conveniência, velas e incenso e ordenou a uma das suas escravas que as acendesse na frente do caixão. Mas, enquanto a escrava o fazia, Lotus não conseguia desviar o olhar de Flor de Pereira e abria grandes olhos ávidos para ver se ela mudara e a que ponto parecia velha. Sim, embora Lotus trouxesse sapatos e vestido de luto, o seu rosto não se mostrava de modo algum aflito e gritou a Flor de Pereira:

 

Ora, continuas o mesmo ser insignificante e pálido, não mudaste, nem sei que atractivo ele pôde jamais achar em ti!

 

Gabava-se de Flor de Pereira ser tão pequena e insignificante e sem nenhuma beleza corporal.

 

Depois, Flor de Pereira ficou de pé junto do caixão, de cabeça baixa e sem nada dizer, mas uma tal má vontade encheu-lhe o coração, de tal modo que em si própria se atemorizou e se sentiu humilhada ao saber que podia ser tão má e odiar àquele ponto a sua antiga senhora. Mas Lotus não era capaz de manter firme, nem mesmo no ódio, a sua atenção enfraquecida pela velhice, e depois de se ter fartado de fitar Flor de Pereira, olhou o caixão e murmurou:

 

Palavra que isto deve custar um bom par de vinténs aos filhos!

 

E erguendo-se pesadamente foi tactear a madeira, para verificar a sua qualidade.

 

Mas Flor de Pereira, revoltada ao ver aqueles dedos vulgares tocarem no objecto que ela tão enternecidamente velava, exclamou de repente, com vivacidade:

 

Não lhe toque!

 

E juntando as pequeninas mãos, mordeu o lábio inferior. Perante o que, Lotus se pôs a rir e exclamou:

 

Pois quê... acontecerá acaso que tu te sintas ainda por ele? Teve uma risada de falso desprezo,   depois sentou-se um

 

momento e ficou-se a ver arder e crepitar as velas, e cansada em. breve dessa ocupação, levantou-se e saiu para o pátio, na intenção de se retirar. Mas, como passeasse em redor um olhar curioso, avistou a pobre inocente ali sentada ao Sol e clamou:

 

Olha, então aquela ainda vive?

 

Ao ouvir isto, Flor de Pereira foi sentar-se junto da idiota, e um desprezo lhe encheu de novo o coração, tamanho que ela mal podia conter-se; depois da partida de Lotus, foi buscar um pedaço de pano para limpar com ele por várias vezes o sítio do caixão de Wang Lung onde Lotus pusera a mão, e deu à inocente um bolo. A infeliz pegou nele com tanto mais prazer quanto é certo que não o esperava e comeu-o com gritos de alegria. Flor de Pereira considerou-a tristemente durante um minuto e disse por fim, suspirando:

 

És tudo quanto me resta do único homem que alguma vez tenha sido bom para mim ou que em mim tenha visto mais do que uma escrava.

 

Mas a inocente contentou-se em comer o seu bolo porque ela não falava nem compreendia quando lhe dirigiam a palavra.

 

Flor de Pereira passou assim os dias de vela até ao funeral, e foram dias muito silenciosos nos átrios, excepto nas horas em que os pardais cantavam, porque os próprios filhos de Wang Lung só vinham até junto dele se algum dever os coagia a tal. Toda a gente em casa se sentia um pouco mal disposta e atemorizada, por causa dos espíritos terrestres do defunto, e visto que Wang Lung fora homem tão robusto e enérgico, não podia esperar-se que os sete espíritos do seu corpo o deixassem facilmente. E, com efeito, a casa parecia cheia de novos e estranhos ruídos, e as criadas gritavam umas para as outras que sentiam bafos gelados envolvê-las de noite na cama e puxar-lhes pelos cabelos, ou ouviam arranhar de modo suspeito nas janelas, ou uma panela era de súbito arrancada das mãos da cozinheira, ou uma taça escapava-se da mão de uma escrava que se preparava para servir à mesa.

 

Quando os filhos e as mulheres destes ouviam tais coisas das criadas, fingiam sorrir disso como de produtos de estupidez e de ignorância, mas também eles se encontravam muito mal dispostos, e quando Lotus ouviu essas histórias exclamou:

 

Ele foi sempre um velho teimoso!

 

Mas Cuckoo disse-lhe:

 

É preciso deixarmos os outros procederem como lhes apetece e falar bem deles enquanto não são dados à sepultura!

 

Flor de Pereira não tinha medo, e vivia agora sozinha com Wang Lung como fizera quando ele vivia. Mas quando ela via chegar os padres com suas túnicas amarelas, levantava-se e retirava-se para o quarto e aí ficava a ouvir o seu lúgubre salmodiar e lento rufar dos seus tambores.

 

Pouco a pouco, os sete espíritos do morto foram libertados, e de sete em sete dias o primeiro sacerdote ia ter com os filhos de Wang Lung e dizia-lhes:

 

Mais outro espírito o deixou.

 

E os filhos recompensavam-no, dando-lhe dinheiro de cada vez que ele vinha dizê-lo.

 

Assim se passaram os dias, sete vezes sete, e o dia do funeral aproximava-se.

 

Toda a cidade sabia agora o dia que o geomante fixara para o funeral de um homem de tanta consideração como Wang Lung, e nesse dia de fim de Primavera e proximidades do Estio as mães, que não queriam chegar tarde ao espectáculo, insistiam mais com os filhos para acabarem depressa a refeição da manhã; os homens que trabalhavam nos campos pararam nesse dia, e nas lojas, empregados e aprendizes entenderam-se de maneira a poderem assistir ao funeral e ver passar o cortejo. Pois toda a gente na região conhecia Wang Lung, sabia que ele fora outrora um pobre lavrador como qualquer outro, que se tornara rico e fundara uma casa e deixava os filhos ricos. Todos os pobres aspiravam a ver o enterro porque era coisa digna de meditação que um homem tão pobre como eles próprios tivesse morrido rico e era um motivo de secreta esperança para todos os pobres. Todos os ricos queriam ver o espectáculo porque sabiam que os filhos de Wang Lung eram ricos, e eis porque todos os ricos consideravam como um dever apresentar os seus respeitos àquele importante defunto.

 

Mas até mesmo na casa de Wang Lung havia nesse dia confusão e barulho, porque não era fácil pôr em ordem um tão grande enterro, e Wang Primeiro perdia a cabeça diante de tudo o que ele tinha a fazer. E como era o chefe da casa, via-se obrigado a olhar por tudo, pensar em centenas de pessoas e no luto apropriado a cada um conforme a sua dignidade, e no aluguer das cadeirinhas para as mulheres e as crianças. Andava de cabeça perdida mas, apesar disso, sentia-se orgulhoso da sua importância e do facto de todos correrem para ele e lhe perguntarem com grandes vozes o que deveria fazer-se na circunstância tal ou tal. E sentia-se tão agitado que o suor lhe escorria pela cara como em pleno Verão. O seu olhar errante caiu no segundo irmão, que se mantinha serenamente de lado. Aquele sangue-frio foi o pretexto da expansão da cólera do Wang Mais Velho, que exclamou:

 

Deixas-me tudo para mim e nem sequer sabes providenciar para que tua mulher e teus filhos se vistam e se apresentem numa atitude decente.

 

Ao que Wang Segundo respondeu com dissimulada ironia e muito calmo:

 

Porque hei-de eu fazer seja o que for, quando tu próprio não estás contente com o que fazes? Sabemos muito bem, eu e minha mulher, que nada que se faça te agradará a ti ou a tua esposa, e desejamos, antes de mais nada, agradar-vos!

 

E assim, até mesmo no dia do funeral do pai, os filhos de Wang Lung disputavam, mas era em parte porque se sentiam ambos intimamente atormentados por o outro irmão não ter ainda chegado e cada um deles responsabilizava o outro por este atraso: o filho mais velho por o segundo irmão não ter dado ao mensageiro a remuneração bastante, se este tivesse de efectuar uma viagem longa para encontrar aquele que procurava, e o segundo por o seu irmão mais novo demorar um dia ou dois a mandar o mensageiro.

 

Só havia nesse dia em toda a casa uma pessoa serena, e essa era Flor de Pereira. De luto, com um vestido de cânhamo branco que só o de Lotus suplantava, mantinha-se sossegadamente sentada à espera, ao lado de Wang Lung. Vestira-se cedo e tinha também vestido de luto a idiota, mas aquela pobre criatura não tinha ideia alguma do que isso significava e ria continuamente e o vestido inabitual incomodava-a um pouco, a ponto de ela fazer esforços para se livrar dele. Mas Flor de Pereira deu-lhe a comer um bolo e arranjou um pedaço de pano vermelho para ela brincar, acabando assim por acalmá-la.

 

Quanto a Lotus, nunca estivera numa tal aflição como nesse dia, porque engordara de tal modo que não podia sentar-se num palanquim vulgar, e experimentara um palanquim após outro, à medida que lhos traziam, e gritava que nenhum servia e que não sabia por que motivo faziam agora palanquins tão pequenos e tão estreitos, acabando por chorar. E o receio de que lhe fosse impossível tomar parte no cortejo punha-a fora de si. Quando viu a idiota vestida de luto, extravasou a sua cólera sobre ela e queixou-se ruidosamente a Wang Lung:

 

Então... aquela pobre criatura de Deus vai também?

 

E clamou que a idiota não devia mostrar-se num tal dia de cerimónia pública.

 

Mas Flor de Pereira disse, num tom suave e positivo:

 

Não, o meu senhor advertiu-me de que nunca devia abandonar esta pobre menina; foi a ordem que ele me deu. Eu sei fazê-la calar porque ela dá-me ouvidos e está acostumada a mim e nós não incomodaremos ninguém.

 

O Wang Mais Velho deixou passar o incidente porque ele estava demasiado aflito pelas inúmeras coisas que tinha a fazer, e ainda pela ideia de que centenas de pessoas esperavam que a cerimónia começasse. Ao verem a sua inquietação, os condutores de palanquins aproveitaram a ocasião para lhe pedirem mais dinheiro do que o devido; os homens que conduziam o caixão queixaram-se de que este era muito pesado e de que era muito longe o lugar da sepultura da família, e os rendeiros e ociosos da cidade espalharam-se pelos pátios que atravancavam, inúteis e de boca aberta, à espera do espectáculo. A tudo isso se juntava outra coisa e era que a esposa de Wang Primeiro o censurava constantemente e se lamentava de que as coisas não eram bem dirigidas, de maneira que no meio, de tudo isso ele se agitava de um lugar para outro e suava como poucas vezes, e por mais que gritasse e se esganiçasse, ninguém lhe dava atenção.

 

Impossível saber se nesse dia o enterro se realizaria ou não, se não tivesse ocorrido um acontecimento dos mais oportunos, e foi que Wang Terceiro chegou de repente à hora do meio-dia. Entrou no último momento e todos esgazearam os olhos para ver como ele estava, porque estivera longe durante dez anos e não tinham tornado a vê-lo desde que Wang Lung tomara para sua concubina Flor de Pereira. Partira nesse dia, num estranho movimento de cólera, e nunca mais voltara. Esse jovem corpulento partira com ar feroz, de negras sobrancelhas carregadas, odiando o pai. Voltava agora homem, o mais forte dos três irmãos, e tão mudado que se não fossem as sobrancelhas negras como sempre carregadas e a boca ainda amarga, não o teriam reconhecido quando ele cruzou a porta em grandes passadas.

 

Vestia uniforme militar, mas não era a farda de um simples soldado. A túnica e as calças eram de belo pano escuro, na túnica brilhavam botões dourados e uma espada dourada pendia-lhe do cinturão de couro. Seguiam-no quatro soldados, de espingarda ao ombro, todos eles belos mocetões, excepto um que tinha um beiço rachado; mas também este era, como os outros, de compleição robusta.

 

Quando aqueles homens franquearam o portão, um silêncio caiu ali onde há momentos reinava o tumulto e o barulho; todos os olhos se voltaram para fixar aquele Wang Terceiro, e todos se calaram ao ver-lhe o ar feroz e habituado ao comando. com grandes e firmes passadas, avançou entre a multidão dos rendeiros, dos padres e dos curiosos que se empurravam de todos os lados, para ver a cerimónia, e proferiu em voz forte:

 

Onde estão os meus irmãos?

 

Já tinham corrido a avisar os dois irmãos de que o mais novo chegara e eles acorreram, sem saber como haviam de recebê-lo, se respeitosamente, se como a um irmão mais novo que fugira da casa paterna. Mas quando viram aquele terceiro irmão vestido como estava e os quatro ferozes soldados imóveis atrás dele, às suas ordens, apressaram-se a mostrar-se delicados, tanto quanto o teriam sido para um estrangeiro. Inclinaram-se com um profundo suspiro em virtude da tristeza do dia. Depois, Wang Terceiro inclinou-se também, como convinha diante dos irmãos mais velhos, olhou para a direita e para a esquerda e perguntou:

 

Onde está meu pai?

 

Então os dois irmãos conduziram-no para o pátio interior onde Wang Lung repousava no seu caixão, sob as tapeçarias escarlates franjadas a ouro; Wang Terceiro ordenou aos seus soldados que permanecessem no pátio e entrou sozinho na sala. Quando Flor de Pereira ouviu o martelar dos sapatos de couro no lajedo, lançou um rápido olhar para ver quem chegava, e ao verificar quem era voltou imediatamente o rosto para a parede e assim ficou.

 

Mas se Wang Terceiro a viu ou notou quem ela era, não o deu a entender. Inclinou-se diante do caixão, vestiu o trajo de cânhamo que lhe fora destinado, acendeu duas velas e reclamou novos manjares para os oferecer em silêncio diante do caixão do pai.

 

Quando todas essas coisas se aprontaram, prosternou-se por três vezes até ao chão diante do pai e exclamou como convinha: «Ah, meu pai!» Mas Flor de Pereira conservou o rosto obstinadamente voltado para a parede e nem uma só vez se voltou para ver o que se passava.

 

Quando Wang Terceiro cumpriu o seu dever, levantou-se e disse em tom vivo e seco:

 

Procedam à cerimónia se tudo está pronto.

 

Verificou-se então a coisa mais estranha. Ali onde ainda há pouco ia tanta confusão e tamanho barulho de pessoas que ruidosamente se interpelavam, só havia agora silêncio e disposição para obedecer. Era como se a simples presença de Wang Terceiro e dos seus quatro soldados armados tivesse gerado o milagre, pois quando os condutores das cadeirinhas voltaram a dirigir as suas queixas a Wang Mais Velho, o seu tom tornou-se doce e as palavras razoáveis. Bastou que Wang Terceiro carregasse as sobrancelhas e fixasse aqueles homens para que as vozes deles se adoçassem, e quando ele lhes disse: «Façam o seu trabalho e fiquem certos de que serão tratados nesta casa com justiça»calaram-se e dirigiram-se para as cadeirinhas como se os soldados e as espingardas dispusessem de um poder mágico.

 

Todos tomaram os seus lugares e o grande caixão foi finalmente conduzido para o átrio. Passaram-se em volta e por baixo dele cordas de cânhamo, introduziram-se por entre as cordas longas varas semelhantes a árvores novas e os condutores meteram os ombros debaixo das varas. Havia também o palanquim destinado ao espírito de Wang Lung e tinham colocado neste alguns objectos de uso familiar do defunto, o cachimbo em que fumara durante tantos anos, um dos trajos que ele usara e o retrato que um artista de aluguel fizera dele durante a sua última doença. Na verdade, o quadro não se parecia com Wang Lung e era apenas o retrato de um velho sábio qualquer, mas o artista, apesar de tudo, fizera o melhor possível, pusera-lhe grandes suíças e carregadas sobrancelhas e muitas rugas, como têm por vezes os velhos.

 

E assim se pôs o cortejo em marcha. As mulheres começaram os seus choros e lamentações, sendo Lotus a mais barulhenta de todas. Ela arrancara os cabelos e munira-se de um lenço branco novo em folha, que levava alternadamente a um olho e outro, exclamando por entre grandes soluços:

 

Ah, aquele que era o meu sustento partiu... partiu...

 

Ao longo das ruas, as pessoas comprimiam-se para verem passar Wang Lung pela última vez, e ao verem Lotus tiveram um murmúrio de aprovação e disseram:

 

É uma mulher como deve ser, que mostra o pesar devido pela perda do homem que amava.

 

E alguns espantaram-se ao verem uma senhora tão gorda e farta chorar tanto e com tanto ruído e diziam:

 

Que rico que ele devia ser para lhe dar tão boa vida a ponto de engordar assim!

 

E invejaram a Wang Lung as suas riquezas.

 

Quanto às mulheres dos filhos de Wang Lung, chorava cada uma delas segundo a sua maneira de ser. A esposa de Wang Mais Velho chorava discretamente e tanto quanto devia, tocando de vez em quando os olhos com o lenço: nem era justo que chorasse tanto como Lotus. A concubina que seu marido tomara um ou dois anos antes, uma linda rapariguinha gorducha, observava a esposa do senhor e chorava quando ela chorava. Mas a mulher de Wang Segundo, uma campónia, esquecia-se de chorar, porque era essa a primeira vez que ela era assim levada aos ombros de homens, pelas ruas da cidade, e ver em volta de si aquelas centenas de pessoas empurradas contra as paredes e amontoadas às portas, impedia-a de chorar: se ela se lembrava disso e levava a mão aos olhos, olhava por entre os dedos e o espectáculo da multidão distraía-a outra vez.

 

Quanto a Flor de Pereira, baixara a cortina do seu palanquim para que ninguém a visse e chorava em silêncio e sem ruído. Mesmo quando os grandiosos funerais terminaram e Wang Lung foi dado à sepultura, quando as casas, os criados e os animais de bambu e de papel foram reduzidos a cinzas, quando o incenso foi queimado e os filhos do defunto fizeram as suas reverências e as carpideiras se lamentaram pelo tempo combinado e receberam o seu salário, quando já ninguém chorava e não havia necessidade de se chorar, mesmo então Flor de Pereira continuava a chorar na sua maneira silenciosa.

 

E ela não quis voltar à casa da cidade. Foi para a casa de adobe e quando Wang Mais Velho insistiu com ela para regressar com eles à casa da cidade e habitar com a família, pelo menos até às partilhas, ela abanou a cabeça e respondeu:

 

Não, foi aqui que eu vivi com ele mais tempo, foi aqui que fui mais feliz e ele deixou esta pobre menina confiada à minha guarda. Se voltarmos para além, ela incomodará a Primeira Esposa, que também não gosta de mim, e eis porque ficaremos aqui ambas na velha casa do meu senhor. Não devem preocupar-se connosco. Quando eu precisar de qualquer coisa, pedir-vo-la-ei, mas só hei-de precisar de muito pouco; viveremos aqui tranquilas com o velho rendeiro e sua mulher, poderei assim olhar por vossa irmã, e cumprir a ordem do meu senhor.

 

Bom, então está bem, se assim o desejasdisse Wang Mais Velho, como que desgostoso.

 

Mas também ele se sentia contente, porque sua esposa falara contra a idiota e dissera que uma tal criatura não devia ser vista nos aposentos da Casa Grande, especialmente onde havia mulheres grávidas, e, agora que Wang Lung desaparecera, Lotus poderia ser muito mais cruel do que se atrevia a sê-lo antes, o que ocasionaria aborrecimentos. Deixou, portanto, Flor de Pereira aqui à sua vontade, e esta pegou na inocente pela mão e levou-a para aquela casa de adobe onde cuidara de Wang Lung durante a sua velhice. Ali viveu e se ocupou dela e dali só saía para visitar a sepultura de Wang Lung.

 

Foi ela só quem, no volver do tempo, o fez bastantes vezes, porque se Lotus também o fazia era apenas nas raras épocas em que uma viúva deve por conveniência visitar a sepultura do marido; tinha o cuidado de lá ir a horas em que outros podiam testemunhá-lo para lhes mostrar como respeitava o seu dever. Mas Flor de Pereira ia lá secretamente e muitas vezes; sempre que se sentia de coração opresso e solitário, e tinha o cuidado de ir lá quando não havia ninguém nas proximidades, nas horas em que as pessoas estavam metidas em casa a dormir, ou quando estavam a trabalhar nos campos. Era a essas horas solitárias que, na companhia da idiota, se dirigia ao túmulo de Wang Lung.

 

Nunca chorava alto. Apoiava a cabeça na borda do sepulcro e se por vezes chorava um pouco, não se lhe ouvia mais que uma espécie de murmúrio uma vez ou duas:

 

«Ah, meu senhor e meu pai, e o único pai que jamais tive!»

 

ORA, posto que o poderoso senhor estivesse morto e enterrado, não podiam aindaesquecê-lo, porque lhe eram devidos três anos de luto que os filhos devem tributar aos pais.

 

Durante cem dias, os filhos deviam usar sapatos brancos e em seguida tinham o direito de os usar cinzentos ou de qualquer cor pálida semelhante. Mas não deviam trazer trajos de seda, nem os filhos de Wang Lung nem suas mulheres, até que os três anos tivessem passado e que estivesse confeccionada a tabuinha definitiva para o lugar de repouso da alma de Wang Lung, redigida e alojada no seu devido lugar entre as tabuinhas do pai e do avô.

 

E assim, Wang Mais Velho ordenou que se preparassem trajos de luto para todos os homens e todas as mulheres e crianças. Agora, de cada vez que falava, desde que era o chefe da casa, usava de um tom de voz muito alto e magistral e tomava como de direito o lugar de honra em cada sala onde se sentava com os irmãos. Estes escutavam-no, o segundo com a sua boca pequena e estreita como que contraída por um sorriso interior, porque se julgava de si para si sempre mais sensato do que o irmão mais velho, pois fora ao segundo filho que Wang Lung em vida confiara a gestão das suas terras e só ele sabia quantos rendeiros havia e que rendimento poderia esperar-se das terras em cada estação; esse conhecimento dava-lhe poder sobre os irmãos, pelo menos segundo o seu juízo pessoal. Mas Wang Terceiro escutava as indicações do irmão como alguém que aprendeu a ouvir indicações quando é útil ouvi-las, mas também como alguém cujo coração se não compromete no que faz e como se estivesse à espera de ausentar-se.

 

Na verdade, cada um dos três irmãos aspirava ao momento em que a herança seria partilhada, pois eles estavam de acordo em que devia sê-lo, dado que cada um tinha, no foro íntimo, um projecto para efectivar, e ansiava por receber o respectivo património, e nem Wang Segundo, nem Wang Terceiro desejavam que as terras ficassem inteiramente em poder do irmão mais velho, o que os tornaria dependentes dele. Cada um dos irmãos aspirava a isso de uma maneira peculiar, o mais velho porque queria saber quanto teria e se seria bastante ou não para sua casa e as suas duas mulheres e para os seus numerosos filhos e para os secretos prazeres que não podia recusar-se. O segundo irmão aspirava a isso porque fazia grandes negócios de cereais, punha dinheiro a juros e queria poder dispor da sua herança de maneira a desenvolver o seu comércio. Quanto ao terceiro irmão, era tão estranho de maneiras e tão fechado consigo que ninguém sabia o que ele desejava, e o seu rosto sombrio nunca mostrava nada. Mas sentia-se impaciente e era possível, pelo menos, ver que se sentia pressuroso em partir, posto ninguém soubesse o que ele contava fazer da sua parte na herança e ninguém se atrevesse a perguntar-lho. Era o mais novo dos três, mas toda a gente na casa tinha medo dele e os criados, homens e mulheres, acorriam ao seu chamamento duas vezes mais depressa do que para qualquer dos outros, sendo a Wang Mais Velho que respondiam mais lentamente, embora este falasse no tom de patrão.

 

Ora, Wang Lung aferrara-se por tanto tempo e tão apaixonadamente à vida que fora o último da sua geração a morrer, e do seu tempo restava apenas um primo, soldado vagabundo e crapuloso, e os irmãos não sabiam onde ele se encontrava, porque não passava de um pequeno capitão numa horda errante de indivíduos que nem mesmo chegavam a ser soldados e que pouco mais eram, afinal, do que ladrões dispostos a seguir o primeiro general que lhes pagasse bem, ou que a ninguém seguiam quando se lhes afigurava mais lucrativo agir sozinhos.

 

Não sabendo de certeza se morrera, os três irmãos sentiam-se muito satisfeitos por ignorar onde se encontrava este primo de seu pai.

 

Mas dado que não tinham outro parente mais velho, tinham, segundo a lei comum, de pedir a qualquer homem sério de entre os vizinhos que viesse a casa deles dividir a herança perante uma assembleia de bons e honrados cidadãos. E uma noite em que eles conversavam, sobre o que convinha fazer, Wang Segundo disse:

 

Não há ninguém, irmão mais velho, mais próximo de nós e mais digno de confiança, do que Liu, o negociante de cereais, em cujo estabelecimento fiz a minha aprendizagem de empregado, e cuja filha é tua esposa. Vamos pedir-lhe que faça as partilhas da nossa herança, porque é um homem geralmente considerado justo, e bastante rico para não desejar nada para si próprio.

 

Quando Wang Mais Velho ouviu aquilo, sentiu um íntimo desagrado, porque não fora o primeiro a pensar nisso e respondeu lentamente:

 

Sinto muito, irmão, que tenhas falado tão depressa, porque ia justamente dizer: convidemos o pai da mãe de meus filhos a fazer-nos isso. Mas, visto que foste tu a dizê-lo, está entendido, pedir-lho-emos. Apesar de que eu próprio estava justamente para dizê-lo, e tu corres sempre muito depressa a falar, na família, antes da tua vez.

 

Com esta reprimenda, o irmão mais velho lançou um olhar severo a Wang Segundo e respirou fortemente, franzindo os grossos lábios, mas a boca de Wang Segundo crispou-se, como se ele reprimisse uma vontade de rir. Então Wang Mais Velho desviou depressa os olhos e disse ao irmão mais novo:

 

O que te parece a ti, meu irmão mais novo?

 

Mas Wang Terceiro ergueu os olhos com o seu ar altivo e, meio sonhador, disse:

 

A mim é-me indiferente! Mas seja o que for que façam, seja depressa.

 

Wang Mais Velho levantou-se, como se quisesse agir sem demora, mas como chegara à idade madura, não podia apressar-se sem inconveniente, pois se andava um pouco mais depressa não sabia o que havia de fazer dos pés e das mãos.

 

O caso depressa se concertou e Liu, o negociante, acedeu a vir, pois tivera toda a consideração por Wang Lung. Os irmãos convidaram também aqueles seus vizinhos que tinham posição social suficientemente elevada para eles e convidaram certas altas personagens da cidade, que eram ao mesmo tempo ricas e se encontravam numa situação estável, e esses homens reuniram-se no dia marcado, no salão da casa de Wang Lung, tomando cada um lugar conforme a sua jerarquia.

 

Então Wang Segundo, tendo-lhe o negociante Liu pedido que desse pormenorizada conta de todas as terras e fundos a dividir, levantou-se e pôs nas mãos de Wang Mais Velho um papel em que tudo estava especificado e o primogénito passou-o, por seu turno, a Liu, o negociante. Começou este por desdobrar a folha e encavalitar no nariz os grandes óculos de cobre e leu em voz muito baixa a relação e toda a gente esperava em silêncio que ele acabasse. Depois, tornou a ler em voz alta, de maneira que todas as pessoas sentadas naquela grande sala ficaram sabendo que Wang Lung, à data da sua morte, possuía um número imponente de geiras, ao todo mais de oitocentas, e raras vezes se ouvira dizer no país que uma tão grande propriedade tivesse pertencido a um só homem e até mesmo a uma só família, e isso não se verificava certamente desde os tempos de esplendor da grande família Hwang. Wang Segundo sabia tudo isso, e não se mostrou surpreendido, mas os outros, por mais que, por motivos de conveniência, se esforçassem por parecer indiferentes e calmos, não puderam deixar de revelar o seu espanto. Só Wang Terceiro parecia não dar por isso e não se lhe alterou a fisionomia, como se mantivesse o espírito distante e esperasse impacientemente que tudo acabasse, para ir procurar o objecto dos seus desejos.

 

Além de toda essa terra, havia as duas casas de Wang, a casa campestre e a Grande Casa da cidade que ele comprara ao senhor moribundo da família Hwang, quando essa família caíra em decadência e os seus membros estavam dispersos. E, além de casas e terras, havia ainda somas em dinheiro emprestadas aqui e além, nos negócios de cereais, e havia sacos de dinheiro guardados, de tal modo que só o dinheiro constituía ainda um valor igual a metade do das terras.

 

Mas havia ainda certos legados a decidir antes que o grande montante da herança pudesse ser dividido pelos irmãos, e, além disso, certos pequenos legados a alguns feitores e artífices, sendo destes os principais os legados das duas concubinas que Wang Lung tomara: Lotus, que ele trouxera de uma casa de chá pela beleza dela e pelo amor que lhe tinha e para satisfação da sua maturidade, quando sua esposa, uma campónia, se lhe tornara fisicamente indiferente; e Flor de Pereira, que era uma escrava na sua própria casa quando ele a tomou para lhe acalentar a velhice. Havia essas duas, e nem uma nem outra eram uma verdadeira esposa; ambas não passavam de concubinas, e ninguém pensaria em censurar a uma concubina, ainda não demasiado velha, o procurar outro senhor quando o seu morresse. Mas os três irmãos sabiam que, se estas não desejavam ir-se embora, era preciso sustentá-las e vesti-las, e que tinham o direito de ficar durante toda a vida na casa da família. Lotus, evidentemente, não podia ir-se embora para casa de outro homem, visto que era velha e obesa, e sentir-se-ia muito contente por poder ficar confortàvelmente no seu ninho. E assim, quando o negociante Liu proferiu o seu nome, levantou-se de um banco perto da porta, apoiada a duas escravas e, limpando os olhos com as mangas, disse numa voz muito dolente:

 

Ah, já não existe aquele que me sustentava, e como posso eu pensar noutro e para onde ir agora? Tenho agora bastante idade, e não preciso de muita coisa para me sustentar e me vestir e obter um pouco de vinho e de tabaco para aliviar de mágoas o meu triste coração, e os filhos do meu senhor são generosos!

 

Então o negociante Liu, que era tão bom que julgava que os outros eram bons também, olhou-a com simpatia e não se lembrou de quem ela era, nem que a tivesse visto alguma vez senão como esposa de um bom burguês, e disse-lhe com respeito:

 

Fala bem e como deve, porque o defunto era um bom senhor, como sempre a todos ouvi. Portanto, decidirei o seguinte: vão dar-lhe vinte moedas de prata por mês e será autorizada a habitar nos seus aposentos e terá os seus servos e as suas escravas e os seus alimentos e além disso ainda algumas peças de pano.

 

Mas quando Lotus ouviu aquilo, e apurara o ouvido para não lhe escapar palavra, circunvagou os olhares de um filho para outro, soltou um agudo lamento, e disse:

 

Só vinte? Quê... só vinte? Isso nem sequer chegará para eu comprar as minhas guloseimas, das quais tanto preciso porque tenho muito pouco apetite e nunca comi coisas grosseiras e vulgares !

 

Ao ouvir estas palavras, o velho negociante tirou as lunetas, fitou-a espantado e disse:

 

Vinte moedas por mês há famílias inteiras que as não têm, e metade disso ainda seria muito generoso em muitas casas, e não somenos, por morte do senhor!

 

Então Lotus começou a chorar sentida. Agora não precisava já de fingir e chorava Wang Lung como nunca o fizera. E exclamou :

 

Prouvesse aos deuses que não me tivésseis abandonado, meu senhor! Eis-me posta para o lado, e vós partistes para um mundo melhor e não estais aqui para me proteger!

 

Ora, a mulher de Wang Mais Velho estava a assistir por detrás de um cortinado. Afastou-o então e fez sinal ao marido de que aquela atitude era indecente diante de todas aquelas pessoas. Mostrava tão profundo desagrado que Wang Mais Velho dava saltinhos na cadeira e fazia todo o possível por a não ver e, apesar disso, não podia impedir-se de a ver. Acabou, portanto, por se levantar e, dominando o barulho que Lotus fazia, disse em voz muito alta para o negociante:

 

Senhor, faça o favor de atribuir-lhe um pouco mais para que possamos prosseguir.

 

Mas Wang Segundo não pôde suportá-lo. Levantando-se do seu lugar, exclamou:

 

Se se lhe deve dar mais do que foi dito, o meu irmão mais velho deverá fazê-lo da sua parte, pois é bem certo que vinte moedas é bastante e mais do que bastante para ela, mesmo com a sua mania do jogo!

 

Dizia aquilo, porque, à medida que envelhecia, Lotus tomara a paixão do jogo e todo o tempo que não passava a comer ou a dormir, passava-o a jogar. Mas a esposa de Wang Mais Velho indignou-se ainda mais e dirigiu violentos sinais ao seu marido para lhe fazer compreender que devia recusar e cochichou muito nitidamente:

 

Não, as partes devem ser atribuídas às viúvas antes da partilha da herança. Acaso ela nos é mais alguma coisa a nós do que a eles?

 

Foi então um barulho ensurdecedor. O velho e calmo negociante passeava o olhar desconcertado de um para o outro, e Lotus não cessava um instante de fazer barulho e era um bruáá tamanho que toda a gente estava com a cabeça perdida. E poderia ter por muito tempo continuado assim, se Wang Terceiro, exasperado, não se levantasse de súbito e, batendo com as sapatorras no sobrado, exclamasse:

 

Darei eu essa parte! Que conta um pouco mais de dinheiro? Estou farto deste escândalo!

 

A todos pareceu aquilo excelente maneira de sair da dificuldade, e a esposa de Wang Mais Velho disse:

 

Pode muito bem fazê-lo, visto que não é casado. Não tem, como nós, que pensar nos filhos.

 

E Wang Segundo sorriu, meneando-se um pouco e, com o seu sorriso, parecia querer dizer-se a si próprio: «Ora, não é da minha conta se alguém é pateta a ponto de não acautelar o que é seu!»

 

Mas o velho negociante, pelo seu lado, suspirou e tirou o lenço para limpar o rosto, porque era um homem que vivia numa casa pacífica e não estava habituado a gente como Lotus. Quanto a Lotus, teria talvez ainda continuado a fazer barulho, se não fosse a expressão da fisionomia do terceiro filho, que a fez considerar que o melhor era não continuar. Interrompeu portanto subitamente a cena que estava fazendo e sentou-se, muito satisfeita de si própria, e esforçando-se a princípio por manter um ar triste e amuado, esqueceu-se depressa e começou a olhar com desplante para os homens, enquanto tomava sementes de melancia de um prato que uma escrava lhe estendia, fazendo-as estalar entre os dentes, que tinha fortes e brancos, a despeito da idade. E sentiu-se por fim satisfeita.

 

Assim se decidira no caso de Lotus. Depois o velho negociante olhou em redor e perguntou:

 

Onde está a segunda concubina? Vejo aqui o seu nome inscrito.

 

Ora, tratava-se de Flor de Pereira e ninguém ainda se lembrara de reparar se ela estava ou não ali. Olhavam todos agora através do salão e mandaram escravas à sua procura aos aposentos das mulheres, mas não a encontraram em parte alguma da casa. Então Wang Mais Velho lembrou-se de que se esquecera completamente de a avisar, e mandou buscá-la a toda a pressa. Enquanto esperavam que chegasse, o que levou uma a duas horas, beberam chá e desentorpeceram as pernas. Ela acabou por aparecer, com uma criada, à porta da sala. Mas quando olhou para dentro e viu tanta gente, não quis entrar, e quando avistou o soldado retrocedeu para o pátio, onde por fim o próprio velho comerciante teve de ir buscá-la. Olhou-a com simpatia, sem insistência, no receio de a intimidar, e vendo como era ainda jovem, delicada e bonita, disse-lhe:

 

Minha senhora, é tão nova que ninguém poderá censurá-la se a senhora considerar a sua vida como ainda não terminada. Como há muito dinheiro, isso permite atribuir-lhe uma boa soma e a senhora terá a possibilidade de regressar a sua casa e arranjar um bom marido ou fazer como entender.

 

Mas ela, que estava muito longe de esperar tais palavras, supôs que a mandavam embora e não compreendendo, exclamou, com voz insegura e de extremo desânimo:

 

Oh, senhor, não possuo casa minha, nem tenho neste Mundo ninguém a não ser a pobre inocente que o meu falecido senhor me confiou e não temos para onde ir! Oh, senhor, eu supunha que podíamos continuar a viver na casa de adobe. Comemos muito pouco e só precisamos de roupa de algodão porque enquanto viver nunca mais vestirei roupas de seda, agora que o meu senhor morreu, e não incomodaremos pessoa alguma na Casa Grande!

 

O velho negociante voltou então para a sala e muito espantado perguntou ao irmão mais velho:

 

Quem é a inocente a quem ela se refere?

 

E Wang Mais Velho, hesitante, respondeu:

 

É uma pobre criatura, nossa irmã, que, desde a infância, nunca esteve em seu juízo, e meu pai e minha mãe não a deixaram morrer de inanição como alguns fazem a essas criaturas para lhes apressar o fim da vida, e disso resulta que continuou a viver até hoje. Meu pai confiou-a à guarda desta sua mulher. Se esta não quer casar outra vez, dêem-lhe dinheiro e deixem-na fazer como deseja, porque é muito meiga e é certo que não importunará ninguém.

 

Ao ouvir isto, Lotus gritou subitamente:

 

Sim, mas não precisa de muito, porque nesta casa nunca passou de uma escrava e estava habituada às comidas mais grosseiras e à roupa de chita, até ao dia em que o meu velho senhor, já na sua velhice, se sentiu maluco por ela, por causa daquela carinha pálida, e sem dúvida também porque ela lhe fez algum feitiço... e no que se refere à idiota, quanto mais depressa morrer, melhor!

 

Assim falou Lotus. Ao ouvi-la, Wang Terceiro fitou-a com ar de tal modo aterrador que ela balbuciou e desviou a cabeça daquele olhar sombrio. E então o terceiro filho exclamou:

 

Que a nova receba o mesmo que a velha. Sou eu quem lho dará!

 

Mas Lotus fazia caretas, e não ousando proferi-lo em voz alta, disse entre dentes:

 

Não é justo que a mais velha e a mais nova sejam tratadas como iguais... e principalmente aquela que foi minha própria escrava!

 

Assim dizia ela entre dentes e parecia pronta a recomeçar o barulho de há pouco, mas o velho negociante, ao perceber isso, retomou depressa a palavra:

 

Está certo... está certo... Atribuo portanto vinte e cinco moedas à senhora mais velha e vinte à mais nova...E continuou, dirigindo-se a Flor de Pereira: volte para sua casa, e fique em paz, minha senhora. Está autorizada a proceder como entender e terá vinte moedas de prata por mês para seu sustento.

 

Então Flor de Pereira agradeceu-lhe graciosamente e de todo o coração. A sua boca pálida tremia; tremia porque ela ignorava o que lhe ia acontecer e era para ela um consolo saber que poderia continuar a viver como viúva e que se sentiria ao abrigo da miséria.

 

Tomada a decisão acerca daquelas pensões, o resto seguiu por si e o velho negociante estava prestes a fazer a partilha das terras, das casas e do dinheiro em quatro partes iguais para dar duas partes a Wang Mais Velho, como chefe da casa, uma parte a Wang Segundo e outra a Wang Terceiro, quando este tomou de súbito a palavra:

 

Não me dêem casas, nem terras! Fartei-me bastante de terra quando era garoto e meu pai queria fazer de mim um camponês. Não sou casado; para que preciso eu de casa! Dêem-me em dinheiro a parte que me cabe, meus irmãos, ou então, se eu tenho absolutamente de ter na partilha casa e terra, então comprai-as e dai-me o dinheiro!

 

Os dois irmãos mais velhos ficaram atónitos ao ouvir aquilo. Já alguém ouviu alguma vez falar de um homem que quer a totalidade da sua herança em dinheiro, o qual pode escapar-se tão facilmente das mãos sem deixar rasto, e que não quer ter nem casa, nem terras, que se mantêm na sua posse? E o irmão mais velho, com ar grave, disse:

 

Mas, irmão, nenhum homem de bem neste Mundo fica toda a vida sem se casar. Cedo ou tarde, encontraremos uma mulher de tua feição, visto que desapareceu o nosso pai, a quem incumbia fazê-lo, e terás então necessidade de casa e de terras.

 

E o segundo irmão, por seu turno, com toda a franqueza, disse:

 

Faças tu o que fizeres da parte das propriedades que te cabem, nós não ta compraremos, porque houve questões em muitas famílias por um dos membros ter tomado em dinheiro a parte respectiva da herança e vir depois queixar-se de se ver privado da terra e do resto da herança. Acho que a terra deve ser dividida. Se assim o quiseres, ocupar-me-ei da gestão das terras em teu nome e mandar-te-ei todos os anos o dinheiro que elas derem, mas não receberás a tua parte em dinheiro.

 

A sensatez desta proposta impressionou toda a gente, de tal modo que, embora o soldado dissesse ainda a meia voz: «Não quero casa, nem terras», ninguém dessa vez lhe prestou atenção, excepto o velho comerciante, que lhe perguntou com curiosidade:

 

Que é que o senhor iria fazer a tanto dinheiro?

 

Ao que o soldado respondeu em voz rude:

 

Tenho uma causa a defender!

 

Mas nenhum dos assistentes compreendeu o que ele queria dizer e ao fim de um momento o velho negociante decidiu que o dinheiro e as terras seriam partilhadas e que se realmente ele não desejava uma parte daquela excelente casa da cidade, poderia ter a velha casa campestre de adobe, que não valia grande coisa na realidade, visto que fora feita com o barro dos campos e com o custo mínimo de um pouco de trabalho.

 

Decidiu, além disso, que os dois irmãos manteriam também em reserva uma soma para o casamento de Wang Terceiro, como era dever dos irmãos mais velhos para o mais novo, se o pai já não vivia.

 

Wang Terceiro ouviu aquilo em silêncio, e quando tudo ficou por fim decidido e partilhado conforme a lei, os filhos de Wang Lung deram um banquete aos que tinham assistido às partilhas, mas abstiveram-se de se alegrar ou de usar roupa de seda, porque o tempo de luto não se completara ainda.

 

Assim foram partilhados os campos nos quais Wang Lung passara toda a sua vida; a terra pertencia agora aos filhos e já não a ele, excepto aquela pequena parcela em que repousava, e era tudo quanto possuía. Mas desse pequeno lugar secreto onde se dissolvia, a argila do seu sangue e dos seus ossos espalhava-se para se mesclar à terra profunda. Os filhos faziam como lhes parecia à superfície da terra; ele repousava profundamente nela e tinha ainda a sua porção que ninguém podia tomar-lhe.

 

Wang Terceiro dificilmente se resignara a ter de esperar que a herança fosse dividida, e logo que isso se realizou preparou-se com os seus quatro homens e dispuseram-se a partir de novo para o lugar de onde tinham vindo. Quando Wang Mais Velho notou aquela pressa, ficou surpreendido e disse ao irmão:

 

Que é que te apressa agora?

 

Então Wang Terceiro, que estava a afivelar a espada, interrompeu-se. Olhou para o seu irmão mais velho e viu um grande homenzinho mole, de rosto largo e gordo, lábios grossos, salientes, fazendo momo, com todo o corpo coberto de uma carne flácida e mole. Tinha os dedos afastados, e as mãos moles e gorduchas como as de uma mulher exibiam as unhas lustradas, compridas e brancas e palmas rosadas e flácidas. Wang Terceiro desviou os olhos e disse com desprezo:

 

Não me compreenderias se to explicasse. Basta que te diga que tenho de me ir embora depressa, porque há pessoas à espera de que eu ponha mãos à obra. Basta que te diga que tenho homens às minhas ordens, homens prontos a executar a minha vontade.

 

E pagam-te bem para isso?perguntou Wang Mais Velho, sem compreender nem perceber sequer o desprezo do irmão, visto que se tinha por homem muito estimável.

 

Pagam-me às vezes e outras vezes não respondeu o soldado.

 

Mas Wang Mais Velho, não podia imaginar que alguém fizesse qualquer coisa pela qual lhe não pagassem. Portanto continuou:

 

É uma profissão singular, mas que não dá recompensa aos que a seguem. Se um general me comandasse sem nada me pagar, mudaria de general e dirigir-me-ia a outro, no caso de ser um militar como tu, um capitão com homens às tuas ordens.

 

Mas o soldado absteve-se de responder. Tinha na intenção fazer uma coisa antes de partir. Foi ter com Wang Segundo e disse-lhe a sós:

 

Não te esqueças de pagar à esposa mais nova de meu pai a sua parte completa. Antes de me mandares o meu dinheiro, tira todos os meses as cinco moedas suplementares.

 

Ao ouvir estas palavras, o segundo irmão esgazeou os olhos piscos; não compreendia facilmente que pudessem oferecer-se tais quantias, e disse:

 

Porque lhe dás tanto?

 

O soldado respondeu com singular precipitação:

 

Ela tem também que olhar pela idiota.

 

E parecia ter mais ainda que dizer mas absteve-se disso e enquanto os seus quatro soldados emalavam as suas coisas, mostrou muita impaciência. Depois, seguido pelos quatro homens, afastou-se rapidamente, muito contente por se ir embora, como se sentisse ainda submetido aqui ao domínio do seu velho pai, sendo ele alguém que não queria submeter-se a império algum, de espécie alguma.

 

Os outros filhos não aspiravam menos a ver-se livres do pai. O filho mais velho aspirava ao fim dos três anos de luto e aspirava a colocar a tabuinha do velho na pequena alcova situada acima do salão onde se guardavam as outras tabuinhas, porque enquanto ela se encontrasse onde se encontrava, afigurava-se-lhe que Wang Lung continuava a ter influência nos filhos. Sim, o seu espírito estava ali, embuscado na tabuinha, espiando os filhos, e o mais velho aspirava à liberdade de viver como bem lhe parecia e gastar o dinheiro do pai como entendesse. Mas não podia, enquanto aquela tabuinha ali estivesse, levar a mão livremente ao cinto e colher o prazer onde o entendesse, e tinha ainda que passar aqueles anos de luto, nos quais não é decente para um filho mostrar-se muito alegre. Era assim que sobre aquele homem ocioso, cujo espírito corria constantemente atrás de prazeres novos, o velho impunha ainda o seu poder restritivo.

 

Quanto ao segundo filho, tinha também projectos. Aspirava a transformar em dinheiro várias terras, porque tinha a intenção de alargar o seu comércio de cereais e comprar alguns dos estabelecimentos de Liu, o negociante, que estava envelhecendo e cujo filho era um letrado e não gostava do negócio do pai, e com um tal comércio Wang Segundo poderia até exportar cereal da região para países estrangeiros. Mas não fica bem empreenderem-se tão grandes coisas enquanto o luto dura ainda, e eis porque Wang Segundo tinha de se revestir de paciência e de se calar, com excepção apenas das ocasiões em que perguntava ao irmão, como quem não pergunta nada:

 

Quando tiverem passado os dias de luto, que vais fazer da tua terra?... Vendê-la ou quê?

 

E o irmão mais velho respondia, com aparente desinteresse:

 

Não sei, palavra. Não tenho ideia alguma, mas suponho que devo conservar o bastante para nos alimentar, visto que não tenho uma profissão como tu tens nem posso na minha idade começar uma.

 

Mas a terra será uma preocupação para ti continuou o irmão. Sendo proprietário, tens de te ocupar com os teus rendeiros, tens de ir pesar os cereais e há muitas pesadas tarefas deste género que um proprietário tem de realizar, se quer ter de que viver. Quanto a mim, fiz todas essas coisas pelo meu pai, mas não posso fazê-las por ti, porque tenho agora os meus interesses pessoais. Conto vender tudo, com excepção da melhor terra, e colocar o dinheiro a render bom juro e veremos quem enriquecerá mais depressa de nós ambos.

 

Wang Mais Velho ouviu aquilo com a maior inveja, porque sabia que tinha precisão de muito dinheiro e de muito mais do que tinha, e disse numa voz fraca:

 

Enfim, veremos. Pode muito bem ser que eu venha a vender mais do que pensava e ponha o dinheiro a render juntamente com o teu, mas havemos de ver isso.

 

Mas, sem se aperceber de tal, quando falavam em vender a terra, baixavam o tom como se tivessem medo de que o velho ainda os pudesse ouvir.

 

E assim, portanto, esses dois irmãos esperavam com impaciência que os três anos tivessem acabado. Lotus esperava também, e resmungava enquanto ia esperando, porque não era conveniente para ela vestir-se de seda nesses três anos; devia trajar de luto fielmente, e suspirava porque estava farta das roupas de algodão e lhe estava interdito ir aos banquetes e divertir-se com as amigas, a não ser em segredo. Porque Lotus, com a idade, começara a divertir-se com cinco ou seis velhas damas de outras casas decentes e essas velhas damas iam nas suas cadeirinhas de determinada casa para outra, para jogarem, se banquetearem e contar escândalos. E dado que é direito legítimo de uma criada ter o que a sua patroa ganha ao jogo, ou então participar nos lucros, Cuckoo encorajava-a com todo o zelo a levar essa vida.

 

Só Flor de Pereira se não apressava, e ela ia como sempre chorar junto do túmulo na terra. Quando não havia ninguém que a visse, ia lá chorar.

 

Ora, enquanto os dois irmãos esperavam, era-lhes imperioso continuarem a viver juntos naquela grande casa, com suas mulheres e filhos, e não era uma coabitação fácil, por causa da hostilidade das mulheres uma para com a outra. As mulheres de Wang Mais Velho e de Wang Segundo detestavam-se tão cordialmente que os dois homens se sentiam atormentados por elas, porque as duas mulheres não podiam guardar a cólera para si próprias, mas era necessário que cada uma delas desse parte dela ao marido, quando estava a sós com ele.

 

A mulher de Wang Mais Velho dizia-lhe, no seu ar sério e digno:

 

É singular que eu não possa nunca obter o respeito que me é devido nesta casa para a qual me trouxestes. Enquanto o velhote vivia, vi-me no dever de suportar isso porque ele era tão grosseiro e ignorante que eu sentia vergonha perante os meus filhos quando eles viam o género de avô que tinham. Eu suportava isso tudo porque era justo para mim fazê-lo. Mas agora o vosso pai morreu e vós sois o chefe da família, e se ele não via o que é a mulher do vosso irmão e como ela me trata, e não via por ser tão ignorante e iletrado, vós, que sois o chefe, vede-lo e apesar disso nada fazeis para pôr essa mulher no seu lugar. Sou todos os dias reduzida a coisa nenhuma por ela, que é uma campónia grosseira e, além disso, sem religião.

 

Então Wang Mais Velho suspirou e tornou-lhe com toda a paciência de que podia dispor:

 

Que é que ela te diz?

 

Não é só pelo que ela me diz replicou a esposa, no seu tom agudo, e ao falar os seus lábios mal se entreabriam e a voz soltava-se-lhe sem inflexões.É por toda a sua maneira de agir e de ser. Quando entro num compartimento onde ela se encontra, finge estar ocupada em qualquer trabalho que não pode interromper para me dar lugar, e é tão vermelhusca e fala tão alto que não posso suportá-la se abre a boca; não, não posso sequer vê-la passar junto de mim.

 

Ora vamos, compreendes que eu não posso ir ter com meu irmão e dizer-lhe: «A tua mulher é muito vermelhusca e fala muito alto e a mãe dos meus filhos não quer admitir isso assim»respondeu Wang Mais Velho, abanando a cabeça e procurando no bolso do cinto o seu cachimbo.

 

Julgava ter dito uma coisa excelente e atreveu-se a sorrir um pouco.

 

Ora a dama não era daquelas que estão sempre prontas para a réplica, e na verdade era incapaz de responder tão depressa como desejava, e uma das razões que tinha para detestar a cunhada era que a esposa campónia tinha uma língua muito acerada, embora grosseira, e antes que a esposa cidadã conseguisse terminar um dos seus discursos que ela empreendia com lentidão solene, a esposa campónia com um revirar de olhos e uma simples palavra reduzia a nada a cidadã. E esta ficava tão mal-ferida que, quando escravas e criadas assistiam à cena, tinham de se desviar o mais depressa possível para dissimularem os sorrisos. Assim, quando Wang o mais velho falou, olhou-o vivamente para ver se ele não zombava dela também, e viu-o instalado numa poltrona de verga, sorrindo com o seu sorriso mole. Ergueu-se então com ar rígido e gelado da cadeira de pau que sempre escolhia para se sentar, e depois velando os olhos com um descer de pálpebras e fazendo um momo com os lábios, disse:

 

Sei muito bem que também vós me desprezais, meu senhor! Desde que trouxestes para casa aquela criatura vulgar, desprezastes-me constantemente, e eu quereria nunca ter abandonado a casa de meu pai. Sim, desejaria agora poder consagrar-me aos deuses e entrar para qualquer instituição religiosa e assim faria se não fossem os meus filhos. Dediquei-me a melhorar esta casa que é vossa, para fazer dela alguma coisa mais do que uma simples casa de camponês, mas vós não mo agradeceis nada.

 

Dizendo o que, limpou cuidadosamente os olhos com as mangas, depois levantou-se e retirou-se para o seu quarto e em breve Wang Mais Velho a ouviu recitar muito alto uma oração budista. Porque esta senhora, no outono da vida, recorrera à religião e aos padres. Tornara-se muito escrupulosa nos seus deveres para com os deuses e passava muito tempo em orações e em cantos e as religiosas vinham muitas vezes dar-lhe os seus ensinamentos.

 

E assim, agora, como fazia sempre que estava encolerizada, começou a rezar muito alto no quarto e quando Wang Mais Velho a ouviu, agarrou a cabeça nas mãos e, desolado, suspirou, porque na verdade a esposa nunca lhe perdoara ter metido em casa uma segunda mulher, uma linda e ingénua rapariga que’ ele vira na rua um dia, à porta de um pobre homem. Estava sentada num pequeno banco, ao lado de uma selha, a lavar trapos, e era tão nova e tão bonita que ele a olhara duas ou três vezes passando em frente e voltara a passar umas poucas de vezes. O pai da rapariguinha ficou muito satisfeito por a deixar ir para casa de um homem tão rico e tão respeitável e Wang Mais Velho pagou-lhe bem. Mas a rapariga era tão ingénua que, neste momento em que a conhecia a fundo, Wang Mais Velho espantava-se por vezes de ter podido aspirar a ela como aspirara, pois ela era tão ingénua que tinha muito receio de sua esposa e era destituída da menor personalidade. Quando Wang Mais Velho lhe pedia que viesse à noite ao seu quarto, chegava até a balbuciar, curvando a cabeça:

 

Mas a Senhora esta noite dar-me-á licença?

 

E por vezes, ao ver até que ponto ela era tímida, Wang Mais Velho enfurecia-se e jurava que na próxima ocasião tomaria uma raparigaça sólida e de carácter agreste, que não tivesse medo de sua mulher, como acontecia com todas. Mas outras vezes suspirava e dizia-se que, depois de tudo, era melhor assim, porque pelo menos não havia questões entre as suas duas mulheres, visto que a mais nova obedecia servilmente à senhora e não queria sequer encará-la, se estava na sua presença.

 

Mas, embora isso satisfizesse um pouco a senhora, nunca deixava, no entanto, de censurar a Wang Mais Velho, primeiro o ter tomado outra mulher, e depois, se absolutamente tinha de o fazer, o ter tomado um ser tão mesquinho. Quanto a Wang Mais Velho, suportava a esposa e amava ainda por vezes a rapariga, pelo seu delicado rosto infantil, e parecia amá-la principalmente de cada vez que a sua esposa falava dela com mais acrimónia, posto usasse de disfarce e estratagemas para obter aquilo que lhe pertencia. Quando ela receava vir ter com ele, respondia:

 

Podes vir sem receio porque ela está muito indisposta para que eu a incomode esta noite.

 

Certamente que sua esposa era uma mulher de coração frio, que se sentiu muito satisfeita quando o seu tempo passou. Wang Mais Velho concedeu-lhe a partir de então o respeito que lhe era devido e, durante o dia, recorria para tudo a ela, o mesmo fazendo a rapariga, e à noite esta vinha ter com ele, e assim conseguia viver em paz com as suas duas mulheres.

 

Contudo, a disputa com a cunhada não foi de tão fácil apaziguamento. A mulher de Wang Segundo foi também ter com o marido, e disse-lhe:

 

Estou profundamente aborrecida com aquele ser de faces pálidas que é a mulher do vosso irmão, e se não fazeis qualquer coisa para separar os vossos aposentos dos deles, tomarei um dia vingança e berrarei pelas ruas contra ela e isso fá-la-á morrer de vergonha, de tal maneira ela é uma lamúrias e tal modo tem quando não a cumprimentam com suficientes mesuras quando entra. Valho tanto ou mais do que ela, e sinto-me muito satisfeita por não ser como ela e por vós não serdes como aquele gorducho imbecil, apesar de vosso irmão!

 

Ora Wang Segundo e a mulher entendiam-se muito bem. Era pequeno, amarelo e taciturno e gostava dela porque ela era rosada e forte e tinha um carácter enérgico, e gostava dela porque era maliciosa e boa dona de casa e gastava muito pouco dinheiro.

 

O pai não passava de um campónio e ela não fora habituada a uma vida distinta, e apesar disso, agora que podia tê-la, não a procurava como certas mulheres teriam feito. Preferia os alimentos grosseiros e usava mais trajos de algodão que de seda, e os seus únicos defeitos eram ter a língua demasiado comprida e gostar de palrar com as criadas, que tratava como camaradas, com escândalo da esposa de Wang Mais Velho.

 

Mas o que a esta mais particularmente exasperava era vê-la correr para todos os lados, com os seus velhos trajos já fora de moda e usados, de chinelas e cabelos despenteados, e levando o filho que amamentava para toda a parte, de teta ao vento, como verdadeira rapariga do campo.

 

Até mesmo a maior disputa que os dois irmãos jamais tiveram proveio daquela cabeçuda, e essa disputa acabou por obrigá-los a procurarem meio de viver em paz. Aconteceu que, certo dia, a dama das boas maneiras chegou ao portão para subir para o seu palanquim, pois era o aniversário do nascimento de um deus que tinha um templo na cidade, e ela ia lá cumprir uma promessa. Quando chegou à rua, a campónia estava à porta com a sua teta nua como a de uma escrava, e amamentava o filho mais novo, enquanto falava a um vendedor a quem estava a comprar um peixe para a refeição do meio-dia.

 

A dama não pôde suportar aquele terrível e grosseiro espectáculo. Tomou a iniciativa de dar uma azeda reprimenda à sua cunhada e começou:

 

Na verdade é um espectáculo vergonhoso ver numa Grande Casa alguém que devia ser uma dama fazer uma coisa tal como eu não permitiria sequer a uma das minhas escravas...

 

Mas a sua língua lenta e comedida não podia rivalizar com a da outra, e a esposa campónia exclamou:

 

Quem é que não sabe que as crianças têm de ser amamentadas? Eu cá não tenho vergonha de ter filhos e de ter duas tetas para lhes dar de mamar!

 

E em vez de abotoar decentemente a blusa, mudou o filho para o outro lado e deu-lhe triunfalmente de mamar pela outra teta. Então, ao ouvir a sua voz forte, formou-se um agrupamento para ver a disputa e as mulheres saíram a galope das cozinhas e dos pátios, limpando as mãos a correr; e alguns campónios que passavam depunham um momento os cestos para gozar a cena.

 

Mas quando a dama fina viu aquelas fisionomias escuras e vulgares, não pôde suportá-lo. Desistindo de sair, com toda a sua boa disposição estragada, mandou embora o palanquim e entrou de novo, em passinhos apressados, nos seus aposentos privativos. Ora a esposa campónia nunca vira tais esquisitices: vira sempre amamentar os filhos em qualquer sítio em que as mães se encontrassem, porque nunca se sabe à certa por que motivo uma criança grita e dar-lhe o seio não será maneira segura de o acalmar?

 

Eis porque ela se manteve ali e injuriou a cunhada de maneira tão engraçada que a multidão ria em coro, divertindo-se extraordinariamente com a cena.

 

Então, uma escrava da senhora fina, que se encontrava ali por curiosidade, foi contar fielmente à sua senhora tudo o que dizia a esposa campónia. E cochichou isto:

 

Ela diz, minha senhora, que vós sois tão orgulhosa que terrificais o meu senhor e que ele nem sequer se atreve a amar a sua pequena concubina, a menos que a senhora lhe dê licença e então só pelo tempo que lhe permitis, e toda a multidão se ria!

 

Ao ouvir estas palavras, a dama empalideceu e deixou-se cair numa cadeira, ao lado da mesa, no compartimento principal, onde esperou enquanto a escrava corria outra vez para a porta. Dali voltou ofegante e disse:

 

Agora, ela está a dizer que vós vos preocupais mais com padres e religiosas do que com os vossos filhos e que bem se sabe que essa gente é secretamente partidária do mal!

 

Ao ouvir tal vilania, a senhora levantou-se e, não se dominando, mandou a escrava dar ordem ao porteiro de vir imediatamente ter com ela. A escrava saiu então outra vez, muito contente, pois não havia todos os dias um escândalo como aquele, e trouxe o porteiro consigo. Era um velho camponês muito ossudo que tinha trabalhado outrora nas terras de Wang Lung; e por ser muito velho e dedicado e não ter filho que o sustentasse, fora destinado para porteiro. Chegou aterrado, como todos se aterravam na presença daquela patroa, inclinou-se na frente dela, curvando a cabeça, e ela disse-lhe com o seu ar majestoso:

 

Visto que o meu senhor se encontra agora na casa de chá e não está ao corrente desta desordem vergonhosa e visto que seu irmão também não se encontra aqui para orientar a sua casa, tenho eu de cumprir o meu dever. Não quero que essa gentinha venha assim pôr-se de boca aberta diante da nossa casa. Vais fechar o portão, e se a minha cunhada ficar lá fora, tanto pior para ela; e se te perguntar quem te disse que fechasses o portão, dize-lhe que fui eu, e que tens de me obedecer.

 

O velhote inclinou-se outra vez, saiu sem dizer palavra e fez como lhe tinham mandado. Ora, a esposa campónia estava ainda ali e divertia-se extraordinariamente com a risota da multidão e não viu os batentes da porta fecharem-se lentamente atrás dela. Estavam já quase cerrados quando o velho porteiro aproximou os lábios da pequena abertura e cochichou com voz rouca:

 

Pcht... senhora!

 

Ela então voltou-se e viu o que havia. Precipitou-se para empurrar os batentes e, sempre com o filho ao seio, berrou para o velhote:

 

Quem te mandou fechar-me cá fora, velho cachorro ?

 

E o velhote respondeu humildemente:

 

Foi a senhora, e disse-me que devia fechar a porta e deixar-vos lá fora porque não queria tal escândalo aqui à porta. Mas eu chamei-vos para vos prevenir.

 

E então esta porta é dela, não é, e eu tenho de ficar fora de minha própria casa, não?

 

E, gritando, a esposa campónia correu para a parte da casa habitada pela cunhada.

 

Mas esta já o previra e retirara-se para os seus próprios aposentos, cuja porta aferrolhara, e pusera-se a rezar. Por mais que a esposa campónia batesse à porta com redobradas pancadas, não obteve satisfação e tudo quanto ouviu foi um contínuo e monótono ronrom de orações.

 

É certo, no entanto, que nessa noite os dois irmãos tiveram notícias da cena, cada um da boca da sua própria esposa, e quando se encontraram na rua, no dia seguinte, de manhã, ao dirigirem-se à casa de chá, olharam um para o outro com ar lastimoso, e o segundo irmão disse, esboçando um sorriso com uma carantonha:

 

As nossas mulheres acabarão por nos tornar inimigos e nós não podemos permitir-nos ser inimigos. Faremos melhor separando-as. Tu ficarás na parte da casa que já ocupas e servir-te-ás da parte que dá para a rua principal. Eu ficarei na parte da casa que habito e mandarei abrir uma porta para a rua do lado, e assim poderemos continuar a viver em paz. Se o nosso terceiro irmão voltar algum dia para viver aqui, poderá ficar com os aposentos em que vivia o nosso pai e se a primeira concubina morrer, terá os adjacentes, onde ela vive.

 

Ora, Wang Mais Velho tinha ouvido várias vezes repetir durante a noite pela mulher cada uma das palavras do que se passara e sua esposa de tal maneira o tinha apertado, que desta vez ele lhe jurara não ser afável e conciliador; não, desta vez estava decidido a fazer o que convinha que fizesse o chefe, quando a dona da casa é ultrajada a tal ponto por uma mulher que é sua inferior e que deveria mostrar-se respeitosa para com ela. E então, ao ouvir o que dizia o irmão mais novo, lembrou-se de como fora advertido de noite, e replicou num tom de tímida censura:

 

Mas tua mulher procedeu muito mal, ao falar à minha como falou diante daquela gentinha e não basta pôr a coisa de parte. É preciso que lhe apliques uma boa sova. Peço-te insistentemente que lhe apliques uma boa sova.

 

E então os olhinhos de Wang Segundo pestanejaram e, para dar satisfação ao irmão, disse:

 

Tu e eu, irmão, somos homens, e sabemos o que valem mulheres e a que ponto as melhores de entre elas são ignorantes e ingénuas. Os homens não podem imiscuir-se em questões de mulheres e nós, irmão mais velho, compreendemo-nos como homens que somos. É certo que minha mulher se portou como uma parva e que não passa de uma campónia. Repete a tua mulher que eu disse isto e que lhe apresento as minhas desculpas pelo que minha mulher fez. As desculpas nada custam. Separemos depois as nossas mulheres e os nossos filhos e ficaremos em paz, meu irmão, e poderemos encontrar-nos na casa de chá, para discutirmos as nossas questões um com o outro e viveremos em casa independentes.

 

Mas... mas...disse Wang Mais Velho, incapaz de pensar tão depressa e tão facilmente como isso.

 

Então Wang Segundo foi hábil. Viu logo que o irmão não sabia como dar satisfação à mulher e eis porque lhe disse novamente:

 

Olha, irmão mais velho, dirás isto a tua mulher: «Separei de nós a casa do meu irmão segundo, e tu nunca mais serás incomodada. Foi assim que os castiguei».

 

Muito contente, o irmão mais velho pôs-se a rir, esfregou as mãos gordas e pálidas uma na outra, e disse:

 

Trata disso... trata disso...

 

E Wang Segundo tornou:

 

Mandarei vir hoje mesmo os pedreiros.

 

E assim cada um dos dois irmãos deu satisfação a sua mulher, de tal modo que cada uma das duas se considerou triunfante e considerou a outra completamente vencida. Depois disso, os dois irmãos ficaram melhores amigos que nunca e cada um se julgou homem muito inteligente e com a melhor compreensão das mulheres.

 

Sentiam-se muito contentes cada um consigo próprio e com o outro, e aspiravam ao fim do período de luto para poderem fixar um dia em que se encontrassem na casa de chá e decidissem da venda da porção de terras que desejavam vender.

 

Assim, portanto, os três anos deslizavam na incidentada expectativa e chegou o tempo em que poderiam dar termo ao luto por Wang Lung. Escolheram para tal um dia segundo o almanaque, cujo nome tinha carácter adequado a tal acto, e Wang Mais Velho preparou tudo para os ritos de saída do período de luto. Falou disso à esposa que, desta vez também, sabia tudo quanto convinha fazer-se e lho explicou, fazendo ele conforme ouvira.

 

Os filhos e as mulheres dos filhos e todos os membros da família de Wang Lung que tinham trajado de luto durante aqueles três anos vestiram-se de sedas claras e as mulheres de vermelho. Depois, por cima desses trajos, puseram as roupas de cânhamo que tinham trazido e saíram pela grande porta, como era hábito nessas; regiões. Ali, tinham posto um monte de moedas de papel, fingindo serem de ouro e de prata, e os padres, que estavam ao lado, chegaram fogo ao papel. Depois, ao clarão das chamas, os que vestiam de luto por Wang Lung tiraram-no e mostraram-se vestidos com os alegres vestidos claros que traziam por baixo.

 

Cumpridos os ritos, reentraram em casa e todos se felicitaram reciprocamente por terem passado os dias de tristeza, e inclinaram-se perante a nova tabuinha que fora confeccionada para Wang Lung, porque a antiga fora queimada, e ofereceram-lhe em sacrifício vinho e carne cozida.

 

Ora, esta nova tabuinha, que era a definitiva, fora feita segundo as regras, com uma linda madeira dura e fora colocada numa caixinha de madeira de tamanho apropriado. Depois de a mandarem confeccionar e envernizar com um verniz preto muito caro, os filhos de Wang Lung dirigiram-se ao mais célebre letrado da cidade para inscrever nela o nome e o espírito de Wang Lung.

 

Feito tudo isso, Wang Mais Velho pegou nela cuidadosamente com as mãos ambas e foram todos juntos colocá-la no alto e pequeno compartimento onde já se encontravam as outras, as dos dois velhos campónios que tinham sido o pai e o avô de Wang Lung. As deles encontravam-se ali, naquela casa tão rica, e nunca durante a sua vida teriam sequer pensado em ter tabuinhas como apenas os ricos têm, e se pensavam até no que lhes poderia acontecer depois da morte, era apenas para suporem que os seus nomes seriam escritos num bocado de papel por qualquer indivíduo um pouco instruído e dependurado na parede da casa de campo, onde ficaria pelo tempo que demorasse a fazer-se em pedaços.

 

Mas quando Wang Lung viera habitar naquela casa da cidade, tinha mandado fazer tabuinhas para os seus dois antepassados, como se também eles tivessem vivido aqui, embora ninguém pudesse saber se os seus espíritos ali estavam ou não.

 

Colocaram, pois, junto das deles, a tabuinha de Wang Lung, e quando os filhos o fizeram, fecharam a porta da mansarda e afastaram-se, muito satisfeitos no íntimo dos seus corações.

 

Ora, era esse o tempo próprio para convidar hóspedes e fazer festas de alegria, e Lotus pôs um vestido de seda azul claro com flores, demasiado berrante para uma mulher tão gorda e tão velha, mas ninguém lhe fez a observação, porque a conheciam muito bem, e todos participaram da festa. E enquanto ela decorreu, riram-se muito e beberam, e Wang Mais Velho, que gostava das grandes reuniões de ruidosa alegria, berrava constantemente:

 

Bebam até ao fundo das taças... até se lhes ver o fundo!

 

E tanto bebeu que o vermelho escuro do vinho subiu nele e lhe inflamou as faces e os olhos. E então sua esposa, que estava à parte com as mulheres, noutra sala, soube que ele estava prestes a embriagar-se e mandou a criada dizer-lhe:

 

Não é conveniente embriagar-se logo numa festa deste género.

 

Eis porque ele se dominou.

 

Mas o próprio Wang Segundo estava nesse dia alegre e não olhava a nada. Aproveitou a ocasião de conversar particularmente com alguns convidados, para ver se um ou outro desejava comprar mais terra do que tinha, e espalhou o boato de que tinha uma boa porção de terra da qual pretendia desfazer-se, e assim passou aquele dia, sentindo-se ambos os irmãos satisfeitos por se ter quebrado o laço que os mantinha na dependência do velho que repousava na terra.

 

Havia alguém que não se divertia com eles: era Flor de Pereira, que lhes mandou as suas desculpas, dizendo: «O único ser que me dá preocupações encontra-se um pouco melhor do que é costume e eu peço o favor de me desculparem». E assim, visto como ninguém lamentou a sua ausência, Wang Mais Velho mandou-lhe dizer que estava inteiramente desculpada por não tomar parte na festa e só ela, nesse dia, não tirou o seu trajo de luto, nem os sapatos brancos que usava, nem o cordãozinho branco que lhe ligava os cabelos. Também não tirou à idiota esses símbolos de tristeza. Enquanto os outros se divertiam, entregou-se ela à sua ocupação favorita. Pegou na idiota pela mão e levou-a ao túmulo de Wang Lung, e ambas se sentaram no chão. E aí, enquanto a idiota brincava, satisfeita por estar perto de alguém que lhe mostrava amizade, Flor de Pereira passeou o olhar pela terra. Esta estendia-se com os seus campos verdes dispostos em todos os sentidos e embutidos uns nos outros por léguas e léguas, tão longe quanto a vista podia alcançar. Aqui e além, uma pequena mancha azul parada ou em movimento representava um camponês que trabalhava na sementeira de aveia da Primavera. Do mesmo modo também, outrora, se curvara Wang Lung sobre o fruto da sua terra, quando chegava a sua vez de a ter para si, e Flor de Pereira lembrou-se de que, na sua velhice, ele lhe falava muitas vezes dos anos anteriores ao nascimento dela, e gostava de lhe falar deles e de lhe explicar como ele costumava lavrar este e plantar aquele.

 

Assim passou aquele tempo, e assim decorreu aquele dia para a família de Wang Lung. Mas, até mesmo por ser um dia assim, o terceiro filho não veio a casa. Onde quer que fosse o sítio em que se encontrava, deixou-se lá ficar e entregou-se, longe de todos eles, às ocupações da sua vida pessoal.

 

COMO os ramos de uma grande e velha árvore saem do robusto tronco e divergem dele e cada um de outro, alongando-se e estendendo-se cada um deles na sua própria direcção, embora tenham por origem a mesma raiz, assim acontecia com os três filhos de Wang Lung; mas o mais enérgico e o mais voluntarioso dos três era Wang Terceiro, o filho mais novo de Wang Lung, soldado numa província do Sul.

 

No dia em que Wang Terceiro recebera a notícia de que seu pai acabava de morrer, encontrava-se diante de um templo fora da cidade onde vivia o seu general, pois havia na frente desse templo um espaço de terreno onde ele fazia manobrar os seus soldados de cá para lá e lhes ensinava ardis e manobras de guerra. E assim estava ele ocupado, quando o mensageiro do irmão chegou a correr e ofegante, e, com a respiração entrecortada pela importância da comunicação que trazia, gaguejou:

 

Capitão, e nosso terceiro e jovem senhor... o velho senhor... morreu!

 

Ora, Wang Terceiro não voltara a estar em relações com o pai desde o dia em que fugira de casa, num violento acesso de cólera por seu pai ter tomado, entre as serviçais de sua casa, quando já era velho, uma certa rapariga ali mesmo educada, que era Flor de Pereira, e Wang Terceiro não compreendera que a amava até ao momento de saber o que seu pai fizera. Nessa mesma noite, depois de meditar durante todo o dia, correu para os aposentos do pai; estava tão absorto na sua meditação, que entrou sem reparar no compartimento onde o pai se encontrava com a rapariga. Ora, ele irrompendo assim naquele quarto, ao sair das quentes trevas de uma noite de Verão, viu-a ali sentada, silenciosa e pálida, e compreendeu nitidamente que a amava. Então, subiu nele uma tal vaga de cólera contra o pai que não pôde contê-la, pois era sujeito à cólera. Compreendendo que, se lhe dava tempo de crescer, ela lhe faria estalar o coração, nessa mesma noite fugiu de casa do pai. E como sempre aspirara às aventuras e a tornar-se um herói sob uma qualquer bandeira de guerra, gastou o dinheiro que tinha a afastar-se, na direcção do Sul, para o mais longe que lhe era possível, e entrou ao serviço de um general que nessa época se distinguira numa revolta. E Wang Terceiro era um homem tão alto, tão robusto e tão feroz, o seu rosto tão sombrio e colérico, os lábios apertavam-se-lhe sobre os grandes dentes brancos com ar tão duro, que o general o tinha imediatamente notado e ligado à sua pessoa e o fizera promover Wang Terceiro muito depressa, mais depressa mesmo do que habitualmente, por tal modo que, de simples soldado, fez dele um capitão com o comando de muitos homens. O Wang Terceiro estava nesse posto quando se pôs a caminho para casa do pai.

 

Ao ouvir o que o mensageiro do pai tinha a comunicar-lhe, mandou os soldados dispersar e foi-se através dos campos, seguido a distância pelo mensageiro.

 

Era um dia dos começos da Primavera, um desses dias em que seu pai Wang Lung costumava ir lançar uma vista de olhos à terra. Nesses dias, pegava na enxada e volteava a terra entre os sulcos da sua aveia. Ali, posto não houvesse sinais de vida nova para outros olhos que não os seus, ele pressentia o entumescer e o alterar-se da natureza, a promessa da nova messe nascida da terra. E agora estava morto e Wang Terceiro não podia conceber a morte num dia assim.

 

Porque Wang Terceiro também pressentia a Primavera à sua maneira. Enquanto o seu pai, agitadíssimo, retomava contacto com a terra, também Wang Terceiro se agitava, e a cada nova Primavera o seu espírito regressava ao projecto que formara, e que era abandonar o velho general, empreender uma guerra por sua conta pessoal e incitar os homens que quisessem segui-lo a alinharem sob a sua própria bandeira. A cada Primavera isso lhe parecia uma coisa realizável e por fim uma coisa que devia necessariamente fazer, e como ano após ano formava projectos de o realizar, isso tornou-se o seu sonho e a sua ambição. Chegara a ponto tal que, nessa Primavera, disse de si para si que tinha de ser e que não podia continuar a suportar a vida que levava ao serviço do velho general, pois, nesses anos, a energia deste declinara, e tornara-se indolente, vivia à custa da gente da região e já não tomava parte em guerra alguma. Estava a criar barriga, comia todos os dias os melhores petiscos e bebia vinhos de países estrangeiros, desses tão fortes que queimam o estômago. Já não falava em guerras e toda a sua conversação era à volta da maneira como o seu cozinheiro tinha arranjado um molho próprio para tal ou tais peixes de mar, e acerca da habilidade do dito cozinheiro em apresentar certo prato digno do paladar de um rei, e depois de comer tudo quanto podia, o único outro prazer que então conhecia era o das mulheres. Tinha cinquenta companheiras ou mais e era do seu gosto ter mulheres de toda a espécie, de tal modo que ele tinha uma estranha mulher com uma pele muito branca e olhos verdes e cabelos de cor de cânhamo, que comprara já não sabia onde. Mas sentia grande medo dela, porque tinha consigo um profundo desencanto que a envenenava e amargurava e ela resmungava a sós, na sua própria língua estranha, como se estivesse a lançar sortes. Mas isso, apesar de tudo, divertia o velho general, que se sentia muito orgulhoso de ter entre as suas mulheres um tal espécime.

 

Sob as ordens de um general como aquele, também os capitães se tornavam fracos e negligentes e faziam pândegas e bebiam, vivendo à custa da população, que detestava do fundo do coração o general e os seus homens. Mas os mais jovens e valentes impacientavam-se e sentiam-se sufocar de inacção e quando Wang Terceiro se mostrou superior a todos eles, vivendo com simplicidade e nem querendo sequer olhar para as mulheres, os mais jovens começaram a sentir-se atraídos para ele um após outro, e reunidos em pequenos grupos diziam-se:

 

Poderá ele tirar-nos disto?

 

E voltavam, com esperanças, os olhos para ele.

 

Só uma coisa impedia Wang Terceiro de realizar o seu sonho e era a falta de dinheiro, porque depois de ter deixado a casa do pai, nada mais recebera que o miserável pequeno soldo que recebia do velho general no fim de cada mês, e muitas vezes nem sequer isso tinha, porque nem sempre o general tinha dinheiro bastante para pagar aos seus soldados, dado que precisava de muito para si próprio: cinquenta mulheres na casa de um homem são rapaces, rivalizam umas com as outras nas jóias e vestidos e no que podem extorquir, pelas lágrimas e pela sedução, a um velho que é seu senhor.

 

Afigurava-se portanto a Wang Terceiro que nunca lhe seria possível realizar o que esperava, a menos que se tornasse por algum tempo um ladrão e que fizesse dos seus homens um bando de salteadores, como muitos no seu caso teriam feito, e quando tivesse roubado durante o tempo necessário para alcançar bastante dinheiro, poderia esperar uma guerra rendosa, fazer uma convenção com um exército do Estado ou outro e pedir depois que o amnistiassem e recebessem de novo no Exército.

 

Mas repugnava-lhe tornar-se ladrão, porque seu pai fora homem honrado e não um desses homens que sucumbem facilmente à tentação de roubar durante uma época de fome ou um período de guerra, e Wang Terceiro ter-se-ia visto talvez forçado a lutar ainda durante anos e esperar uma oportunidade favorável, pois tinha agora durante tanto tempo acalentado o seu sonho que acabara por se convencer de que o próprio Céu lhe assinalara o seu destino tal como o sonhara, e só tinha que esperar a chegada da sua hora para o tomar nas mãos.

 

A única coisa que lhe tornava a expectativa absolutamente impossível, pois não era de humor paciente, era que acabara por detestar do fundo de alma aquela região do Sul onde vivia e aspirava a sair dali para regressar ao seu Norte. Era homem do Norte e havia dias em que mal podia tragar o eterno arroz branco de que aqueles meridionais gostavam e aspirava a cravar os dentes numa dura bolacha de trigo sem fermento enrolado em volta de um dente de alho. E endurecia o tom de voz, porque odiava muito cordialmente as untuosas delicadezas desta gente do Sul, que era tão excessivamente delicada que devia ser falsa, visto que é contra a natureza ser constantemente amável e, julgava ele, todas as pessoas amáveis devem ser de coração vazio. Sim, olhava muitas vezes de esguelha e zangava-se muito frequentemente contra esta gente, porque aspirava a encontrar-se de volta ao seu país natal, onde os homens crescem até se tornarem altos como homens devem ser, não ficando uns pequenos abortos como estes meridionais e onde a linguagem dos homens é sóbria e nítida e seus corações austeros e francos. E porque Wang Terceiro possuía carácter tão áspero, os homens tinham medo dele e receavam o franzir do seu sobrecenho, a expressão severa da sua boca, e os seus grandes dentes brancos tinham-lhe até valido o nome de Wang o Tigre.

 

Muitas vezes, durante a noite, no pequeno quarto que lhe estava reservado, Wang o Tigre se revolvia na tarimba dura e estreita e procurava um plano e um meio de realizar o seu sonho. Sabia muito bem que, se o velho pai morresse, receberia a sua parte da herança. Mas o pai obstinava-se em não morrer, e, rangendo os dentes, Wang o Tigre resmungava muitas vezes pela noite fora:

 

«O velhote viverá mais tempo do que o que durará a minha bela juventude e, se não morrer em breve, far-se-á muito tarde para que eu me torne alguém! Que perversidade num velho obstinar-se em não morrer!»

 

E assim portanto chegara enfim nessa Primavera à encruzilhada onde, por menos disposto que se encontrasse a fazê-lo, tomara a decisão de se tornar capitão de ladrões, de preferência a continuar na expectativa. E mal adoptara essa resolução, eis que lhe chega a notícia da morte do pai... De posse da notícia, foi através dos campos, com o coração opresso a bater-lhe violentamente no peito, pois via o caminho aberto na sua frente, e sentia-se tão consolado por não ter que se fazer ladrão, que teria gritado, se não fosse, de sua natureza, homem taciturno. Sim, muito acima de qualquer outra consideração, aparecia-lhe esta. não se enganara no seu destino e, com a sua herança, teria tudo aquilo de que precisava, e o Céu protegia-o. Sim, muito acima de qualquer outra consideração aparecia-lhe esta: podia agora dar o primeiro passo na estrada indefinidamente ascendente do seu destino, porque sabia que estava destinado a ser um grande homem.

 

Mas ninguém viu essa exultação no seu rosto. Ninguém viu jamais fosse o que fosse naquele rosto duro e impassível; da mãe herdara ele aquele olhar firme, aquela boca apertada e aquele seu ar de ter as qualidades do rochedo na própria substância de que a sua carne era feita. Portanto, sem nada dizer, foi ao seu quarto preparar-se para a longa viagem em direcção ao Norte, e designou para o acompanharem quatro homens de confiança que tinha sob o seu comando. Feitos os preparativos sumários, dirigiu-se para a grande e velha casa da cidade que o general tomara para o seu uso pessoal e mandou um soldado da guarda anunciá-lo, e o guarda voltou para lhe dizer que podia entrar. Então Wang o Tigre entrou, ordenando aos seus homens que o esperassem à porta, e dirigiu-se ao quarto onde o velho general estava a acabar a refeição do meio dia.

 

O velho comia quase de bruços em cima da comida e duas mulheres andavam a servi-lo. Não estava nem lavado, nem barbeado, e o casaco abanava-lhe no corpo, não abotoado, porque agora que envelhecera gostava de ficar assim, por lavar e barbear, e não se preocupava já com o seu aspecto como quando era jovem, pois fora outrora um muito baixo e comum trabalhador manual, mas com a particularidade de nada trabalhar e se entregar à roubalheira, tendo-se depois erguido acima da roubalheira por ocasião de uma guerra ou de outra. Mas era um velho alegre e jovial, muito pouco moderado de palavras. Fazia sempre bom acolhimento a Wang o Tigre e mostrava consideração por ele, porque o via fazer coisas para as quais ele próprio era muito indolente, dada a sua velhice obesa.

 

E assim Wang o Tigre entrou, fez a devida vénia, e disse:

 

Vieram hoje anunciar-me que meu pai morreu e que meus irmãos me esperam para o enterrar.

 

O velho general recostou-se comodamente e respondeu:

 

Vai, meu filho, cumpre o teu dever para com teu pai e depois volta para mim:

 

Meteu a mão no bolso do cinto, tirou uma mão cheia de dinheiro e continuou:

 

Aqui tens um presente para ti; não te prives de nada durante a tua viagem:

 

E inclinando-se para trás na sua poltrona, exclamou de repente que tinha qualquer coisa num dente furado, e uma das suas mulheres tirou dos cabelos um grande alfinete de prata e entregou-lho e ele pôs-se a palitar os dentes e esqueceu Wang o Tigre.

 

E assim por conseguinte voltara Wang o Tigre a casa de seu pai. com fervida impaciência esperou que se dividisse a herança e que lhe fosse permitido regressar o mais depressa possível. Mas não quis pôr o seu plano em prática antes de passarem os anos de luto. Não; era um homem escrupuloso, que se empenhava em cumprir o dever e em virtude disso esperou. Mas agora era-lhe fácil esperar, porque o seu sonho, estava certo disso, ia enfim realizar-se. E passou os três anos a aperfeiçoar todos os meios para tal, a economizar o seu dinheiro e a escolher e estudar os homens que esperava ver segui-lo.

 

ORA, enquanto Wang o Tigre se preparava para deixar o Sul e para fazer enfim uma experiência por sua própria conta, um certo dia chegou em que Wang Segundo disse ao seu irmão mais velho:

 

Se tiveres tempo amanhã de manhã, vem comigo à casa de chá da Rua das Pedras-Rubras e conversaremos de duas coisas.

 

Quando Wang Mais Velho ouviu o irmão dizer aquilo, sentiu-se admirado porque sabia que eles deviam falar da terra, mas não sabia qual o outro tema da conversa. Eis porque respondeu :

 

Vou lá sem falta, mas de qual outro assunto temos que falar?

 

Recebi uma carta muito esquisita do nosso terceiro irmão, respondeu Wang Segundo. Faz-nos um oferecimento para todos os filhos de que possamos dispor, porque vai iniciar uma grande empresa e precisa de ter em volta de si homens do seu próprio sangue, visto não ter filhos seus.

 

Os nossos filhos!repetiu Wang Mais Velho, estupefacto, com a sua grande boca entreaberta de espanto e os olhos atónitos fixados no irmão.

 

Wang Segundo abanou a cabeça e continuou:

 

Não sei o que ele vai fazer deles, mas aparece amanhã e falaremos outra vez disto.

 

E ia a prosseguir no seu caminho, porque detivera o irmão na rua, ao voltar do mercado de cereais.

 

Mas Wang Mais Velho era incapaz de acabar tão depressa fosse com o que fosse e tinha, aliás, sempre tempo para tudo quanto aparecia, e eis porque disse, com o humor divertido em que nesses dias se encontrava, proveniente do facto de estar na posse do seu património:

 

É muito fácil para um homem ter filhos! Devemos arranjar-lhe mulher, meu irmão!

 

E semicerrou os olhos, tomando um ar malicioso como se fosse dizer uma coisa com muito espírito. Mas Wang Segundo, ao ver isso, sorriu um pouco e disse no seu tom glacial:

 

Nem todos têm com as mulheres as liberdades que tu tens, irmão mais velho!

 

E dizendo isto afastou-se, pois não lhe interessava nada deixar Wang Mais Velho proferir as suas inconvenientes maneiras de ver, quando se encontravam ali na rua, no meio dos passeantes dispostos sempre a parar e escutar tudo o que se dizia.

 

Na manhã do dia seguinte, os dois irmãos encontraram-se na casa de chá e sentaram-se a uma mesa num canto do qual podiam ver tudo quanto se passava na sala, mas onde os poucos presentes não podiam facilmente ouvir o que eles tinham a dizer-se um ao outro. Wang Mais Velho sentou-se no banco estofado, que era o lugar de honra, e que de direito lhe pertencia. Chamou depois o rapaz do estabelecimento e quando ele chegou Wang Mais Velho encomendou-lhe os pratos tais e tais, bolos doces a sair do forno e peixes em salmoura, que se comem de manhã para abrir o apetite, e um jarro de vinho quente e outros alimentos que se comem para fazer passar o vinho, de maneira a impedir que o seu calor suba e que se fique embriagado o dia inteiro, pois era homem que amava a boa comida. Wang Segundo sentara-se e apurava a orelha; e, por fim, agitou-se na sua cadeira e inquietou-se, porque ignorava se sim ou não teria que pagar a sua parte de tudo aquilo. Interpelou novamente o irmão:

 

Se todas estas comezainas são para mim, irmão, previno-te de que lhes não tocarei, porque sou homem sóbrio e principalmente de manhã não tenho apetite algum.

 

Mas Wang Mais Velho respondeu com ar generoso:

 

Tu és hoje meu convidado e não deves preocupar-te, porque sou eu quem paga.

 

Tranquilizou desta maneira o irmão, e quando chegaram os pratos, Wang Segundo fez por comer o mais possível, visto que era convidado, pois era nele uma mania de que não podia impedir-se, posto tivesse dinheiro em abundância, o economizar tudo o que podia e muito particularmente se se tratava de qualquer coisa que não tinha que pagar. Enquanto outras pessoas dão aos criados as roupas velhas e os utensílios de que já se não servem, ele não podia resignar-se a fazê-lo, e tinha de levar às escondidas tais coisas a um ferro-velho para ainda deles tirar algum rendimento. Da mesma maneira, quando era convidado, não deixava de se encher de comida tanto quanto podia, embora fosse um homem magro e sem barriga. Mas forçava-se e comia o mais, possível, de tal maneira que depois não tinha necessidade de comer durante um ou dois dias.

 

Procedeu assim nessa manhã. Enquanto os irmãos comeram, não falaram e contentaram-se com comer, e enquanto esperavam que o criado trouxesse um novo prato, ficaram em silêncio a olhar através da sala, porque é muito mau para o apetite começar a discutir uma questão enquanto se come, o que impede o estômago de digerir os alimentos.

 

Ora, conquanto eles o não soubessem, era aquela a mesma casa de chá onde o pai deles, Wang Lung, viera outrora e onde encontrara Lotus, a jovem que tomara para concubina. A Wang Lung esse estabelecimento afigurara-se um lugar de maravilha e uma mágica e esplêndida casa, com os seus quadros de bonitas mulheres orladas de seda, suspensos das paredes. Mas para os seus dois filhos era um estabelecimento muito vulgar; e nunca eles teriam imaginado o que fora para o pai,- nem que ele aí entrava timidamente e meio envergonhado, como um campónio entre homens da cidade. Não, os dois filhos estavam ali instalados, em trajo de seda e olhavam em redor com grande àvontade e toda a gente sabia quem eles eram e todos se apressavam a levantar-se e cumprimentar, se os dois irmãos olhavam para o lado deles; os criados apressavam-se a servi-los e o dono do estabelecimento veio pessoalmente, com o rapaz que trazia a caneca de vinho quente, dizer-lhes:

 

Este vinho foi tirado de odres expressamente abertos e fui eu, com a minha própria mão, que quebrei, para vo-lo mandar servir, o selo de argila.

 

E perguntou por várias vezes se o serviço lhes agradava.

 

Assim acontecia aos filhos de Wang Lung, embora num canto pouco afastado estivesse ainda suspensa a sanefa de seda na qual estava pintado o retrato de Lotus, uma esbelta rapariga que segurava na sua pequenina mão um botão de lotus. Outrora Wang Lung contemplara-a com o coração a pulsar-lhe desordenadamente e o espírito em desvario, mas agora ele desaparecera e Lotus era o que era, e a sanefa pendia ali, suja de fumo e manchada das sugidades das moscas e ninguém olhava para ela nem pensava em perguntar: «Quem é aquela bonita rapariga cujo retrato se esconde ali naquele canto?» Não, aqueles dois homens, que eram os filhos de Wang Lung, nunca teriam sequer imaginado que era Lotus, nem que ela pudesse ter-se parecido com aquela mulher.

 

Terminada a refeição, Wang Segundo tirou uma carta do estreito seio e, depois de ter extraído o papel do sobrescrito, estendeu-o em cima da mesa, na frente do irmão.

 

Wang Mais Velho pegou nele. Tossiu, apurou a voz e leu a carta em meio tom, para si próprio. Depois das fórmulas iniciais de saudação, Wang o Tigre cuja letra se parecia com ele, pois era rígida, carregada e negradizia:

 

«Mandem-me tantas onças de dinheiro quanto puderem, da parte da herança que me cabe, pois todo é pouco. Se quiserdes emprestar-me do dinheiro vosso, reembolsar-vos-ei, com alto juro, no dia em que tiver realizado o que empreendi fazer. Se tiverdes filhos de mais de dezassete anos, enviai-mos também. Eu elevá-los-ei a uma alta situação, mais alta do que imaginais, pois preciso de ter em volta de mim homens do meu próprio sangue nos quais possa depositar confiança para a minha grande aventura. Mandem-me o dinheiro e mandem-me os vossos filhos, visto que eu os não tenho».

 

Wang Mais Velho leu aquelas palavras e olhou o irmão e o irmão olhou-o. Depois Wang Segundo disse, com espanto:

 

Ele contou-te alguma vez tudo quanto fazia no tal exército do general sudista? É singular que me não explique o que pretende fazer dos nossos filhos. Os filhos não são para rneter assim como quem não mete nada, numa coisa que se não sabe o que é.

 

Ficaram um momento em silêncio, a beber o chá, e cada um deles pensava com incerteza que era muito estranho mandar os filhos para longe sem saber para onde e apesar disso cada um deles repetia orgulhosamente a frase:

 

«Eu elevarei os vossos filhos a alta situação» e cada um dizia de si para consigo que, visto ter um filho ou dois com idade suficiente, poderia muito bem, depois de tudo, entregá-lo à aventura

 

Wang Mais Velho tivera da esposa seis filhos, mas dos seis, dois tinham morrido em pequenos e tivera um da sua concubina, a qual estava prestes a dar de novo à luz, dentro de um ou dois meses, e todos aqueles filhos que ele tinha eram sãos, excepto o terceiro, que uma escrava deixara cair quando ele tinha ainda poucos meses, de maneira que as costas tinham-lhe crescido tortas, formando um nó nos ombros, e a cabeça, demasiado volumosa para ele, encaixava naquela corcova como uma cabeça de tartaruga na concha. Wang Mais Velho mandara vir um médico ou dois para o ver e prometera até um manto a certa deusa do templo, se lhe curasse o filho, embora em circunstâncias normais não acreditasse nessas coisas. Mas tudo foi inútil, visto que o menino estava destinado a levar o seu fardo até à morte, e o único prazer que o pai dele tirou foi privar a deusa do vestido prometido, visto ela nada ter querido, fazer naquelas circunstâncias.

 

Quanto a Wang Segundo, tinha ao todo cinco filhos, três dos quais rapazes, sendo o mais velho e o mais novo raparigas. Mas a sua mulher estava ainda na flor da idade e a série dos filhos não terminara certamente ainda, pois, sendo como era mulher robusta, dá-los-ia até à idade madura. ’

 

Era então claro que, havendo tantos filhos, podia dispor-se de um ou dois, e foi o que cada um dos dois irmãos pensou, depois de reflectir um pouco. Por fim Wang Segundo ergueu os olhos e disse:

 

Que respondo ao nosso irmão?

 

O irmão mais velho hesitou então, porque não era homem para decidir rapidamente por si próprio fosse o que fosse, visto ter-se atido desde há anos às decisões da esposa, dizendo o que ela lhe sugeria que dissesse. Wang Segundo, sabendo-o, disse habilmente:

 

Digo-lhe que lhe mandaremos cada um de nós um filho e que eu lhe enviarei todo o dinheiro que puder?

 

Wang Mais Velho ficou muito contente por o ouvir falar assim e respondeu:

 

Sim, faz isso, irmão, e decidamos isso. Feitas todas as contas, eu mandar-lhe-ei um filho com alegria, visto que na minha casa às vezes são tantos os garotelhos que berram e os rapazolas que questionam, que, juro-te, não tenho um momento de sossego. Eu mandarei o meu segundo filho e tu o teu mais velho, e se acontecer uma desgraça, ficará o meu mais velho para perpetuar o nosso nome.

 

Assim se decidiu e ambos ficaram mais um momento em silêncio a beber o seu chá. Depois, mais calmos, começaram a falar das terras, e do que queriam vender. Ora, enquanto eles estavam a cochichar um e outro, ocorreu-lhes a ambos uma recordação intensa: era a de um certo dia em que tinham pela primeira vez falado em vender a terra. O pai Wang Lung estava já velho e eles não pensavam que tivesse ainda força bastante para vir ali sem ruído, por detrás deles, escutar o que diziam, naquele campo próximo da casa de adobe. Mas ele viera e, ao ouvi-los proferir «Vender a terra»exclamara numa violenta cólera:

 

«Pois quê, filhos indolentes... falais em vender a terra?»

 

E estava tão zangado que teria caído ao chão se o não tivessem amparado. E não cessava de murmurar: «Não, nunca venderemos a terra»e para acalmá-lo, pois já não estava em idade de se encolerizar, tinham-lhe prometido nunca a vender. Mas, enquanto o prometiam, sorriam um para o outro, por sobre a velha cabeça trémula, prevendo o dia em que se reuniriam com esse desígnio.

 

Apesar de ávidos como nesse dia se encontravam de fazer dinheiro, a recordação do velho amigo da terra era ainda neles intensa e impedia-os de vender a terra tão facilmente como o teriam pensado, e a cada um retinha no foro íntimo uma prudência que lhes lembrava que, ao fim e ao cabo, o velhote tinha talvez razão, e cada um decidiu de si para consigo não vender imediatamente tudo; podiam vir tempos difíceis e, se as coisas corressem mal, teriam ainda terra suficiente para se alimentarem. Pois em tempos como aqueles nunca se estava certo do dia em que uma guerra podia surgir nas proximidades ou um capitão de bandidos apoderar-se por uns tempos da região ou um flagelo qualquer cair sobre os habitantes, e mais valia possuir qualquer coisa que não pode perder-se. Apesar disso, sentiam-se ambos ávidos do grande juro do dinheiro que dá a venda da terra, e sentiam-se assim solicitados diversamente pelos seus desejos. Eis por que Wang Segundo disse:

 

Qual das tuas terras queres vender?

 

Wang Mais Velho respondeu com uma prudência que se lhe adequava de modo estranho:

 

-Feitas todas as contas, não tenho um ofício como tu tens, e nada sei fazer senão ser proprietário, e por isso devo vender o necessário para obter dinheiro sonante, não tudo.

 

Então Wang Segundo continuou:

 

Vamos às nossas terras ver quanto medem e onde estão situadas, e assim também as pequenas parcelas afastadas e esparsas. Pois o nosso velho pai era tão ávido de terra que, na idade madura, comprava toda a que aparecia quando fosse a preço de fome, e assim temos terras em todo, o país, e certos campos só têm alguns pés de extensão. Se deves ser proprietário de bens de raiz, será mais cómodo para ti ter as tuas terras próximas umas das outras, o que tornará mais fácil olhar por elas.

 

Isto afigurou-se razoável a ambos, e assim levantaram-se depois de Wang Mais Velho ter pago a despesa do que tinham comido e bebido, deixando mais qualquer coisa para o criado. Depois do que, saíram.

 

Às portas da cidade, Wang Mais Velho sentia-se já cansado e eis por que eles chamaram dois homens que ali estavam com burros ajaezados e prontos, de aluguer, e os dois irmãos encavalitaram-se nos bichos e saíram as portas.

 

Passaram todo esse dia nas suas terras, com excepção de uma paragem ao meio-dia, para comerem numa hospedaria do caminho, e examinaram a terra com atenção e viram o que faziam os rendeiros. E os rendeiros mostraram-se humildes e inquietos na frente deles, visto que aqueles senhores eram os novos proprietários, e Wang Segundo tomou nota de cada parcela que convinha mais vender. Marcaram também para vender todas as terras que pertenciam ao seu irmão, excepto o pedaço que ficava em frente à casa de adobe. Mas por um comum acordo os dois irmãos não se aproximaram dessa casa, assim como não se aproximaram do montículo onde o pai repousava, sob uma grande tamareira.

 

Concluída a jornada, voltaram à cidade nas cavalgaduras fatigadas e à porta desceram e pagaram aos homens o’preço combinado. Os homens estavam também fatigados, e solicitaram um pouco mais do que o estipulado, visto terem ido tão longe e caminhado durante tanto tempo que os sapatos estavam gastos. Wang Mais Velho teria dado de boa vontade o pedido suplemento, mas Wang Segundo recusou, e disse ao burriqueiro:

 

Não, dei-te aquilo a que tens direito, e quanto ao que acontece aos teus sapatos, não é comigo.

 

E afastou-se dizendo estas palavras, sem dar atenção às injúrias que lhe lançavam a meia voz os dois burriqueiros.

 

Assim chegaram os dois irmãos a casa. Ao separarem-se, olharam-se como homens que têm um desígnio comum, e Wang Segundo disse:

 

Se assim queres, mandemos os nossos filhos de hoje a oito dias, e eu próprio os conduzirei.

 

Wang Mais Velho fez um sinal de assentimento e transpôs a sua porta com um passo de extrema fadiga, pois nunca ele tivera um tal dia de trabalho em toda a sua existência, dizendo com os seus botões que a vida de um proprietário era muito fatigante.

 

E no dia marcado Wang Segundo disse ao irmão mais velho: Se o teu segundo filho está pronto, então o meu também está, e eu vou levá-los. Parto amanhã de madrugada em direcção àquela cidade do Sul onde se encontra o nosso irmão, para lhe apresentar os rapazes, dos quais fará como entender.

 

Nesse mesmo dia, como Wang Mais Velho estava de boa feição, mandou vir o seu segundo filho e olhou atentamente aquele rapaz, para ver o que valia e como se entenderia na carreira a que estava destinado. O rapaz acorreu sem demora e ficou à espera na frente do pai. Era um adolescente de pequena estatura e de aspecto muito frágil e delicado, bem longe de ser bonito, muito tímido e facilmente intimidável, sempre com as mãos trémulas e húmidas. Ali estava diante do pai, torcendo as mãos trémulas, sem saber o que fazia, e baixava a cabeça, mas a todo o momento tornava a levantar vivamente os olhos para deitar um olhar de lado ao pai e depois baixava outra vez a cabeça.

 

Wang Mais Velho considerou-o fixamente um minuto; via-o pela primeira vez sozinho e separado dos outros filhos, e disse-lhe de repente, meio distraído:

 

Melhor seria que fosses o mais velho e que o mais velho estivesse no teu lugar, pois é mais bem constituído que tu para ser um general, e tu tens um ar tão débil que não sei se serás ou não capaz de te segurar a cavalo.

 

Apenas ditas estas palavras, eis que o rapaz se lança de joelhos e implora o pai, juntando as mãos trémulas:

 

Oh, meu pai, só a ideia de ser soldado me causa horror. Eu pensava em vir a ser um letrado, pois gosto tanto dos livros! Oh, meu pai, deixe-me ficar em nossa casa consigo e com a mãe, e não lhe pedirei sequer para ir à escola... Não, lerei e estudarei sozinho o melhor que puder, e nunca o importunarei em nada se consentir em não me mandar para longe para ser soldado!

 

Wang Mais Velho ia jurar que não dissera palavra do caso, e contudo a coisa soubera-se de uma maneira ou de outra. Na verdade, Wang Mais Velho não podia guardar coisa alguma só para si. Era constituído de tal modo que de cada vez que lhe ocorria um pensamento ou que ruminava qualquer secreto projecto, os seus trejeitos, suspiros, meias palavras e ares misteriosos bastavam, sem ele dar por tal, para o trair. Teria jurado que nada dissera a ninguém, mas dissera-o ao seu filho mais velho, cjissera-o durante a noite à sua concubina e dissera-o em último lugar à sua esposa, tendo forçosamente de fazê-lo para obter a sua aprovação. Expôs-lhe, aliás, o caso tão bem que a dama, julgando que o filho ia chegar de um salto ao posto de general, concordou imediatamente, embora emitisse a opinião de que não merecia menos do que isso. Mas o filho mais velho, que era um rapaz astucioso e que sempre sabia mais do que os outros supunhampois afectava um ar tão lânguido que parecia não ver nada afligira o seu irmão segundo e escarnecera dele, dizendo:

 

«Vão fazer de ti um simples soldado e tu vais ser a ordenança do selvagem do nosso tio!»

 

Ora este segundo filho de Wang Mais Velho era um rapaz que não podia ver matar uma galinha sem fugir para qualquer lado, para vomitar, e não podia quase suportar a carne no seu estômago demasiado sensível. Quando ouviu o irmão mais velho dizer aquilo, ficou perdido de medo e não soube que fazer. Não podia acreditar naquilo e ficou toda a noite sem dormir. Mas nada podia fazer também, a não ser esperar que o chamassem, e assim se lançara aos pés do pai, pedindo compaixão.

 

Mas quando Wang Mais Velho viu o filho assim ajoelhado e suplicante, encolerizou-se, pois era homem a quem acontecia ser teimoso como um jumento e zangar-se a fundo quando tinha poder para tal. E exclamou, batendo com o pé no chão ladrilhado:

 

Tu vais, pois é essa uma daquelas possibilidades que nunca devemos recusar! Vais e teu primo vai também. Devias até sentir-te muito contente por partires. Quando eu era novo, ter-me-ia louvado de uma tal possibilidade, mas a verdade é que ela nunca surgiu. A mim, mandaram-me para o Sul, por me mandarem, e ainda lá fiquei pouco tempo, porque minha mãe morreu e o meu pai ordenou-me que voltasse a casa. E nunca pensei em desobedecer-lhe; nunca em tal teria pensado! Não, eu nunca tive possibilidade de me tornar alguém, graças à alta situação de um tio!

 

E Wang Mais Velho, de repente, suspirou ao pensar na grandeza a que teria chegado se tivesse tido a mesma sorte que seu filho e no ar altivo que teria com uma farda dourada de soldado. Era assim que ele imaginava os generais, e ele via-se a si próprio como um gorducho bem humorado, como deve ser um general. Depois, suspirou outra vez e, olhando o magricelas do filho, disse-lhe:

 

Acharia preferível mandar um filho melhor do que tu, é certo, mas não tenho nenhum com a idade suficiente além de ti, visto que o mais velho não pode abandonar a casa, pois é o meu principal herdeiro e vem logo depois de mim na família, e o teu irmão mais novo é corcunda e o seguinte não passa de um bebé. Tens que ir e todas as tuas lágrimas de nada te servirão, pois é absolutamente necessário que vás.

 

E, levantando-se, saiu apressadamente do quarto, para não ser importunado mais tempo pelo filho.

 

Mas o filho de Wang Segundo não era um rapaz como esse. Era um ser alegre e bulhento; tinha tido as bexigas loucas aos três anos e conservara sempre as marcas delas, o que lhe valera o apelido de o Bexigoso, que em vez do seu nome lhe era dado por toda a gente e até pelos parentes. Quando Wang Segundo, depois de o mandar chamar, lhe disse: «Faz uma trouxa das tuas roupas porque parto amanhã contigo para o Sul, pois vou dar-te a teu tio, o soldado»ele pôs-se a dar saltos e cabriolas de satisfação, porque era um rapaz sempre disposto a ver coisas novas e gostava de se gabar daquilo que vira.

 

Mas a mãe, que estava ali, à porta da cozinha, a mexer o conteúdo de uma panela nas brasas de um pequeno forno de barro, ergueu os olhos e, visto que não tinha ouvido falar do caso, exclamou, no seu tom quesilento:

 

Então qual é o motivo dessa viagem ao Sul, que vai custar tão bom dinheiro?

 

Wang Segundo explicou-lho e ela ouviu-o enquanto continuava a mexer o conteúdo da panela, mas sem perder de vista uma criadita que depenava uma ave ali ao pé, e sem deixar de vigiar a filha, com medo de que ela escamoteasse sub-repticiamente o fígado ou os ovos da prepostura. Por isso ouviu o fim do que o marido dizia, ou seja isto:

 

Será uma aventura e eu não sei o que ele entende por elevar o rapaz a uma alta situação, mas temos os outros rapazes que podemos meter nos negócios, e só temos este com idade bastante para lhe mandar. Aliás, o meu irmão manda também um.

 

Quando a mulher ouviu estas últimas palavras, deu atenção ao caso e disse imediatamente:

 

Pois bem, se os filhos deles devem ser elevados até uma alta situação, temos também de mandar os nossos, de outro modo eu ficarei a ouvir perpetuamente a minha cunhada falar do filho como de um herói. É certo que o nosso filho deve forçosamente vir a ser alguém, tão esperto é e tão astuto em habilidades. E como muito bem diz, temos os outros para o comércio.

 

E assim, no dia seguinte, Wang Segundo tomou consigo os dois rapazes, cada um deles com a sua bagagem, que o filho de Wang Mais Velho, sendo delicado e difícil, metera numa bela mala de pele de porco. E embora tivesse os olhos ainda vermelhos de ter chorado, demorou-se a ver se o seu criado a conduzia de forma conveniente, com a parte superior para cima, de maneira a não se estragarem os livros. Mas o filho de Wang Segundo não tinha livros, e reunira a roupa num grande lenço de algodão azul, que ele próprio levava, correndo alegre de tudo quanto via. Era um lindo e claro dia de Primavera. As ruas da cidade estavam cheias dos primeiros produtos do campo e todos se ocupavam a comprar ou a vender. Para aquele rapaz, era um bom ano e um belo dia. Estava a caminho para uma viagem que nunca antes fizera; a mãe cozinhara-lhe um petisco de que gostava, para comer nessa manhã, e ele ficara todo contente. Mas o outro rapaz caminhava com dignidade, lenta e silenciosamente. De cabeça baixa, mal olhava o primo, e, de vez em quando, humedecia os lábios descorados como se os sentisse muito secos.

 

Wang Segundo caminhava com os dois rapazes e pensava nos seus próprios negócios, pois não era homem para dar atenção a crianças, e assim chegaram ao norte da cidade onde ficava o lugar em que se subia para o carro de fogo. Wang Segundo pagou o dinheiro e subiram. O filho de Wang Mais Velho teve então de sofrer grande vergonha, porque seu tio comprara os lugares mais baratos que havia, julgando que aquilo já era bastante bom para dois garotos, e assim o jovem verificou que teria de viajar numa carruagem onde iam sentadas pessoas muito vulgares que cheiravam a alho, cujas roupas de algodão não eram lavadas e cheiravam a pobreza, e eis que ele levava um belo trajo de seda azul e tinha que se sentar no meio deles. Mas não ousava queixar-se, pois tinha medo do mal disfarçado desprezo de seu tio, e eis porque se limitou a tomar o seu lugar e a pôr a mala entre ele e o vulgar criado de quinta que ia ao lado, e olhava com ar penoso o seu próprio criado, e que tinha agora de se separar; mas no entanto não se atreveu a dizer nada.

 

Mas Wang Segundo e o filho não tinham de modo algum melhor aspecto do que os outros viajantes, porque, ao levantar-se nessa manhã, Wang Segundo vestira uma túnica de algodão, pois valia mais não aparecer com um aspecto demasiado elegante ao irmão, parecendo-lhe mais rico do que convinha. Quanto ao filho, não tinha ainda trajos de seda e as suas fortes roupas de algodão tinham sido cosidas com ponto grosseiro pela mãe, e cortadas muito largas, para lhe servirem à medida que fosse crescendo. E Wang Segundo olhou o sobrinho e disse com o seu ar melífluo:

 

É mau viajar todo o dia com roupa tão bonita como a que trazes. Farias melhor tirando essa túnica de seda e dobrando-a para a pores na mala, ficando em trajos de debaixo e economizando assim a tua melhor roupa.

 

O rapaz murmurou então:

 

Mas eu tenho melhores do que esta, pois esta é a que trago em casa todos os dias.

 

No entanto, não se atreveu a desobedecer. Levantou-se e fez O que o tio lhe dizia.

 

Viajaram assim todo o dia, por terra, e Wang Segundo contemplava os campos e as cidades através das quais iam passando, apreciava tudo quanto viam, e o filho divertia-se a cada coisa nova, e nas paragens aspirava a provar dos bolos de cada vendedor que passava; mas seu pai não o entendia assim. O outro rapaz, pálido e tímido, permanecia sentado, e sentia-se nauseado porque o carro ia com demasiada rapidez; apoiava a cabeça na mala de pele de porco e nada disse durante o dia inteiro, recusando-se até a tocar na comida.

 

Depois viajaram também dois dias por mar, num pequeno barco cheio de gente e chegaram finalmente à cidade onde deviam encontrar aquele que procuravam. Quando desceram do barco e se encontraram de novo em terra, Wang Segundo alugou dois carrinhos, um para os dois rapazes, outro para si próprio. O homem do dos rapazes queixou-se amargamente do duplo peso, mas Wang Segundo explicou-lhe que eram ainda rapazes apenas, não homens, e que um deles era pálido e magro e pesava menos que de costume, por causa do enjoo; à força de discussões e pagando um pouco mais, mas não tanto como o custo de outro veículo, o homem acabou mais ou menos por concordar. E os condutores dos carrinhos dirigiram-se à casa e à rua cujo nome Wang Segundo lhes indicara e quando lá chegaram, tirou do seio a carta, comparou os caracteres inscritos na porta com os do sobrescrito e viu que eram os mesmos.

 

Desceu então do carrinho e ordenou aos dois rapazes que descessem do seu, depois de ter regateado algum tempo com os condutores, porque o lugar não ficava tão longe como eles tinham dito, pagou-lhes um pouco menos do que o preço a princípio combinado, agarrou na mala por um lado, os dois rapazes pegaram-lhe pelo outro e decidiram-se a transpor o portão, de cada lado do qual se erguiam dois leões de pedra.

 

Mas havia ali um soldado de sentinela junto de um dos leões, que exclamou:

 

Olá, então julgam que podem entrar por esta porta assim sem mais nada?

 

E descendo a espingarda do ombro, fez ressoar a coronha no lajedo. Era de aspecto tão feroz e tão rude que os três recém-chegados ficaram aterrados e o filho de Wang Mais Velho se pôs a tremer e o próprio rapaz bexiguento mostrou durante um momento ar sério, porque nunca ainda se encontrara assim perto de uma espingarda.

 

Então Wang Segundo apressou-se a tirar do seio a carta do irmão e deu-a a examinar ao soldado, dizendo:

 

Somos as três pessoas aqui mencionadas, esta carta é a nossa salvaguarda.

 

Mas o soldado não sabia ler e eis por que ele chamou outro soldado. Este aproximou-se e depois de ter fitado durante um minuto os visitantes e escutado toda a sua história, pegou na carta. Mas também ele não sabia ler, e depois de lhe ter lançado um olhar levou-a para dentro. Ao fim de alguns momentos, voltou e apontando o edifício, disse:

 

Tudo bem...   São parentes do capitão e podem entrar.

 

Pegaram outra vez na mala e entraram, passando além dos leões de pedra, embora o homem da espingarda os seguisse com o olhar com ar indeciso, como se não estivesse ainda bem convencido. Entretanto, foram caminhando atrás do outro soldado que lhes fez atravessar pelo menos dez pátios, todos cheios de militares em descanso, uns a comer, outros a beber, outros sentados despidos ao Sol, a limparem as fardas da bicharia, e outros deitados a dormir, ressonando. Chegaram assim a uma casa interior, e ali, no compartimento central, estava sentado Wang o Tigre. Esperava-os sentado à mesa e estava vestido com uma bela farda escura de pano estrangeiro, munida de botões de cobre, nos quais havia um sinal em relevo.

 

Levantou-se vivamente ao entrarem os parentes, gritou aos soldados que o serviam que trouxessem vinho e comida e inclinou-se na frente do irmão. Wang Segundo cumprimentou por seu turno e ordenou aos dois jovens que o imitassem. Sentaram-se então todos conforme a dignidade, Wang Segundo no lugar de honra, a seguir Wang o Tigre, e os dois rapazes nos lugares laterais. Depois um criado trouxe vinho, que deitou em taças, feito o que Wang o Tigre olhou os rapazes e disse no seu tom brusco e rude:

 

Este rapaz vermelhusco tem ar bastante robusto, mas pergunto-me que bom senso haverá por trás do seu rosto bexigoso. Tem ar de pateta. Espero que o não seja, irmão, porque não gosto de quem ri demais. É teu?... Vejo nele como que uma semelhança da mãe. Quanto a este outro... É tudo quanto o meu irmão mais velho pode enviar-me de melhor?

 

Ao ouvir-lhe aquilo, o pálido jovem curvou a cabeça mais do que nunca, e pôde ver-se-lhe um leve suor frio gotejar de leve no lábio superior, que ele limpou furtivamente com a mão, continuando a manter o olhar obstinadamente baixo. Mas Wang o Tigre não cessava de fixar neles o duro olhar sombrio, e de tal maneira que mesmo o Bexigoso, que estava sempre tão à-vontade, não sabia já para onde olhar, e desviou os olhos para um lado e outro, mexeu os pés e pôs-se a roer as unhas. E então Wang Segundo disse a modo de desculpa:

 

É certo, irmão, que são apenas dois pobres seres, e temos pena de não termos outros mais apropriados à tua benevolência. Mas o filho mais velho de meu irmão é o principal herdeiro, e o que vem a seguir a este é corcunda, e este bexigoso é o meu mais velho e o que vem a seguir não passa de uma criança e eis por que estes dois são os melhores que por agora temos.

 

Então Wang o Tigre, depois de os apreciar, ordenou a um soldado que conduzisse os rapazes para uma sala contígua e que lhes dessem de comer, só devendo vir quando ele os chamasse. O soldado levou-os então, mas o filho de Wang Mais Velho lançava olhares desesperados ao tio, e Wang o Tigre, ao vê-lo hesitar desse modo, gritou-lhe:

 

Porque hesitas? Que esperas?

 

Então o jovem parou e respondeu em voz tímida:

 

Mas não poderia levar a minha mala?

 

Wang o Tigre olhou então e viu ao lado da porta a bela mala de pele de porco. E disse com certo desprezo:

 

Leva-a, mas não te servirá de nada, porque tu vais despir esses belos trajos e vestir as boas e polidas fardas que usam os soldados. Ninguém pode bater-se com túnicas de seda!

 

Ao ouvir isto, o rapaz ficou cor de tijolo e saiu sem mais palavra, ficando os dois irmãos sós. -

 

Durante momentos, Wang o Tigre conservou-se em silêncio, pois não era homem para conversar por delicadeza, e Wang Segundo acabou por lhe perguntar:

 

Em que pensas tão profundamente? Será alguma coisa que diz respeito aos nossos filhos?

 

Então Wang o Tigre disse lentamente:

 

Não, estava a pensar que a maior parte dos homens da minha idade tem filhos já crescidos, o que deve ser para um homem alguma coisa muito reconfortante.

 

Pois também tu podias tê-los, se te tivesses casado bastante cedo observou Wang Segundo, tossindo um pouco. Mas ficámos durante muito tempo sem saber onde te encontravas, e o pai, ignorando-o também, não podia casar-te como desejava. Mas meu irmão e eu de muito boa vontade o faremos, e o dinheiro a tal destinado lá está para quando tu dele precises para tal circunstância.

 

Mas Wang o Tigre afastou decididamente esse pensamento respondendo:

 

Não; há-de parecer-te, por certo, estranho, mas a verdade é que não me interesso por mulheres; é uma coisa singular mas não tive nunca relações com uma mulher...

 

Deteve-se, porque entrava nesse momento o criado com a comida. E os irmãos não disseram por então mais nada.

 

Depois de terem comido, levantado a mesa e trazido o chá, Wang Segundo preparou-se para perguntar a Wang o Tigre o que contava fazer de todo o seu dinheiro e daqueles jovens, mas não sabia como formular a pergunta, e, antes que encontrasse a maneira, Wang o Tigre disse de súbito:

 

Somos irmãos. Tu e eu compreendemo-nos. Confio em ti!

 

Wang Segundo bebeu um pouco de chá e disse seguidamente, num tom prudente e suave:

 

Podes confiar em mim, visto que somos irmãos, mas gostaria de conhecer o teu plano, a fim de saber o que devo fazer por ti.

 

Então Wang o Tigre curvou-se para a frente e falou em voz contida e as palavras precipitaram-se rápidas e o seu bafo era como um vento ardente no ouvido de Wang Segundo:

 

Tenho em torno de mim homens fiéis e dedicados, um cento ou mais, e estão todos fartos do velho general. Eu também estou farto dele, e aspiro a encontrar-me no meu país e a não ver mais um único destes macaquitos amarelos do Sul. Sim, tenho homens fiéis e dedicados! A um sinal meu, pôr-se-ão em marcha comigo, ao favor de uma noite que já não vem longe. Dirigir-nos-emos para o Norte, para onde ficam as montanhas e estaremos já bem longe nessa zona se tivermos de nos entrincheirar para fazer uma guerra de defesa, no caso de o velho general nos perseguir. Mas é incapaz de se mexer... está velho e só pensa em comer e beber e nas mulheres, sem contar que os seus homens melhores e mais fortes estão entre os meus cem, homens não do Sul, mas que provêm de raças mais ferozes e valentes.

 

Ora Wang Segundo fora toda a vida um homenzinho pacífico, um comerciante, e embora sabendo que havia sempre uma guerra em qualquer parte, só uma vez tivera alguma coisa que ver com guerras, quando durante uma revolução alguns soldados tinham sido aboletados em casa de seu pai, e nada sabia da maneira como a guerra começa ou se desenvolve, a não ser que, quando ela ocorre muito perto, os preços do cereal sobem e se ela se afasta, os preços tornam a baixar. Nunca estivera tão perto de uma guerra como desta, e esta era na sua própria família. A sua pequena boca abriu-se toda, os olhos alargaram-se-lhe e, por sua vez, murmurou:

 

Mas que posso fazer para te ajudar, eu que sou um homem pacífico?

 

Istoprosseguiu Wang o Tigre, numa voz contida que raspava como ferro no ferro.Preciso de muito dinheiro, todo o meu património, preciso que me empresteis’ muito, pelo menor juro que me puderdes conceder, até que eu me possa estabelecer!

 

Mas qual a quantia?perguntou Wang Segundo, a quem faltava o sopro.

 

Esta continou Wang o Tigre.Vós ides emprestar-me aquilo de que preciso e o que a terra render até que me seja possível reunir um poderoso exército e estabelecer-me-ei em qualquer parte, ao Norte da nossa região, e far-me-ei senhor de todo esse território. Depois, quando for o senhor, alargarei os meus domínios e tornar-me-ei cada vez maior, a cada guerra que travar...

 

Calou-se e pareceu olhar lá longe, qualquer longínquo futuro, num país longínquo, como se o visse nítido na sua frente. Wang Segundo esperava. Por fim, incapaz de esperar mais, perguntou :

 

Até que quê?

 

Wang o Tigre ergueu-se de repente.

 

Até que não haja ninguém acima de mim nesta nação ! respondeu ele em voz contida, que parecia agora um trovão.

 

Que serás tu então?perguntou Wang Segundo, atónito.

 

Serei o que quiser!exclamou Wang o Tigre.

 

E as suas negras sobrancelhas eriçaram-se-lhe subitamente acima dos olhos e bateu uma tal pancada na mesa com a mão espalmada que Wang Segundo deu um salto e os dois homens se consideraram fixamente um ao outro.

 

Ora tudo aquilo era a coisa mais estranha que Wang Segundo jamais ouvira. Não era homem para sonhar grandes sonhos e o seu maior era ficar sentado à noite em frente dos seus livros de contabilidade a recapitular o que esse ano rendera e imaginar maneiras de aumentar o seu comércio no ano seguinte. E então ficou a considerar fixamente o irmão, e viu-o tal qual era, alto, sombrio, estranho, com olhos brilhantes como olhos de tigre, e negras sobrancelhas rígidas semelhantes a bandeiras por cima dos olhos. Ao considerá-lo fixamente assim, Wang Segundo sentiu-se impressionado, a ponto de ter medo do irmão e não ousou dizer nada para o contrariar, pois havia no olhar daquele homem uma expressão quase demente e aquele olhar era tão poderoso que o próprio Wang Segundo percebeu no seu coração angustiado a força daquele homem, seu irmão. Mas apesar de tudo era prudente, e não pôde esquecer os seus hábitos de prudência, e eis porque ele tossicou e disse na sua vozinha seca:

 

Mas que há em tudo isso para mim e nós todos e qual a garantia, se te empresto o meu dinheiro?

 

E Wang o Tigre respondeu com majestade, trazendo os seus olhos ao presente para os pousar no irmão.

 

Então achas que esquecerei os meus, quando me elevar tão alto ? Não são vocês meus irmãos e os vossos filhos não são os filhos de meus irmãos? Acaso se ouviu alguma vez falar de um poderoso guerreiro que, ao elevar-se a si, não elevasse toda a sua família? Não significa nada para ti seres irmão de um... rei?

 

E mergulhou o olhar nos olhos do irmão, e Wang Segundo quase acreditou no que lhe dizia o irmão, posto sentisse por isso repugnância, pois era aquela a história mais estranha que jamais ouvira, e disse, no seu tom razoável:

 

Dar-te-ei pelo menos o que te cabe e emprestar-te-ei tudo de que puder dispor, se acontecer que realmente te eleves como dizes, pois há certamente muitos que não se elevam tão alto como pensam. Tu terás pelo menos aquilo a que tens direito.

 

Um clarão brilhou subitamente dos olhos de Wang o Tigre. Sentou-se e, apertando os lábios, disse:

 

Vejo que és prudente.

 

O tom era tão frio e tão duro que Wang Segundo ficou um pouco aterrado e disse, para se desculpar:

 

Mas eu tenho família e muitos filhos pequenos e a mãe de meus filhos ainda não é velha e é excessivamente fecunda; tenho de assegurar o futuro de todos esses seres. Tu ainda não és casado e não sabes o que é ter tantas pessoas dependentes de ti para tudo) e a alimentação e o vestuário custam, de ano para ano, cada vez mais caro.

 

Wang o Tigre afastou-se, encolhendo os ombros, e respondeu com afectado desinteresse:

 

Ignoro-o, com efeito, mas ouve-me! vou mandar-te todos os meses o meu homem de confiança e tu reconhecê-lo-ás pelo seu beiço rachado. Dar-lhe-ás tanto dinheiro quanto ele puder transportar. Vende as minhas terras o mais depressa possível, pois precisarei de mil moedas por mês.

 

Mil moedas!exclamou Wang Segundo, numa voz alterada e com ar de atónita surpresa. Mas como é que podes gastá-los ?

 

Tenho cem homens a sustentar e roupas e armas a comprar. Antes de poder aumentar o meu exército, tenho de comprar espingardas, se não puder apoderar-me sem demora das necessárias continuou Wang o Tigre, falando muito rapidamente.

 

Depois, de repente, zangou-se.

 

Não deves perguntar-me isto e aquilo rugiu ele, batendo outra vez com a mão na mesa. Sei o que devo fazer e tenho necessidade de dinheiro até ao momento em que possa fazer-me senhor de um território. Então, poderei lançar impostos sobre a população como eu quiser. Mas agora preciso de dinheiro. Ajuda-me e serás certamente recompensado. Não me ajudes... e poderei muito bem esquecer que és do meu sangue

 

Ao proferir estas últimas palavras, avançou o rosto para o do irmão e Wang Segundo, ao fitar aqueles olhos ferozes abrigados sob as espessas sobrancelhas, recuou vivamente, tossicou e disse:

 

Sim, sim, está entendido, fá-lo-ei. Sou teu irmão. Mas quando começaremos?

 

Quando é que tu podes vender a minha parte da terra? perguntou Wang o Tigre.

 

A colheita do trigo será daqui a poucos mesesrespondeu lentamente Wang Segundo, reflectindo e hesitante enquanto falava, porque se sentia atónito com tudo quanto acabava de ouvir.

 

Então os meus homens terão dinheiro replicou Wang o Tigre e tu podes por certo vender alguma coisa antes da sementeira do arroz.

 

Era muito certo e Wang Segundo não se atreveu a opor-se aos desejos do seu estranho irmão, porque tinha medo dele, e compreendeu que devia realizar a venda de toda a maneira. Portanto, levantou-se e disse:

 

Visto que é assim tão urgente, tenho de regressar sem demora para ver o que posso fazer, porque as colheitas depressa se gastam e então os camponeses julgam-se outra vez pobres e cheios de trabalho com a pouca terra que têm a semear e parecer-lhes-á demasiado ter ainda mais terra.

 

E assim ele se recusou a ficar, porque se obstinava em partir daquele lugar onde havia homens tão ferozes e espingardas e armas de guerra por todos os lados. Foi apenas o tempo de ir ao compartimento próximo para onde tinham sido mandados os jovens. Achou-os sentados num banco, diante de uma pequena mesa de madeira branca, na qual estava disposta a comida. Eram os restos dos pratos que Wang o Tigre mandara servir ao irmão, mas era bastante bom para rapazes, e o filho de Wang Segundo metia para dentro com entusiasmo. Mas o outro rapaz era delicado e acostumado a alguma coisa melhor que os restos dos outros, e não passava de tasquinhar com os pauzinhos um pouco de arroz sem tocar na carne. Então Wang Segundo sentiu uma estranha repugnância em abandonar aqueles rapazes e muito particularmente o seu, e perguntou-se durante um minuto se aquilo não seria uma aventura à qual não devesse expor o filho. Mas a coisa agora estav-a começada e não podia já desfazer o que estava começado. Disse, portanto, simplesmente:

 

Vou partir e a única recomendação que faço a ambos é obedecer em tudo ao vosso tio, porque estais agora sob o seu poder e é um homem feroz e violento que nada vos desculpará. Mas se fordes obedientes e consentirdes em fazer tudo quanto ele vos disser, tendes probabilidades de vos elevardes mais alto do que pensais. O vosso tio tem o seu destino escrito.

 

Depois afastou-se rapidamente e foi-se embora, pois não podia impedir-se de ter o coração um pouco opresso por deixar o filho, e sentiu mais do que o supusera. Mas, para se consolar, murmurou:

 

Ora! Uma tal possibilidade não é dada a todos os rapazes, e não há dúvida de que é uma bela perspectiva. No fim de tudo, não será simples soldado, mas será, se a coisa resulta, oficial de qualquer patente.

 

E concluiu que tudo estaria bem se fizesse todo o possível para o ajudar a triunfar; pelo menos, por causa do filho, faria tudo o que pudesse.

 

Mas o pálido jovem que era o filho de Wang Mais Velho pôs-se a chorar quando viu o tio partir; e como chorava muito alto, Wang Segundo saiu mais depressa. Mas o barulho dos soluços perseguia-o, e por isso se apressou a alcançar a porta dos leões, a fim de não mais os ouvir.

 

COMEÇOU então aquela empresa, empresa tal que, se a alma de   Wang Lung não estivesse num país longínquo, teria feito levantar-se o seu corpo da terra onde dormia, porque durante a sua vida ele odiara acima de tudo a guerra e os soldados, e eis que a sua boa terra ia ser vendida por uma tal causa. Mas dormia ali e ali continuou a dormir e não havia ninguém para deter os filhos no caminho que levavam; não, não havia ninguém, a não ser Flor de Pereira, que durante muito tempo não soube o que eles faziam. Os dois filhos mais velhos receavam-na pela sua fidelidade a seu pai e ocultavam-lhe os seus projectos.

 

Quando Wang Segundo chegou de regresso a casa disse a Wang Mais Velho que fosse à casa de chá, onde podiam conversar em paz e ali, diante dos bules de chá, conversaram. Mas desta vez Wang Segundo escolheu um canto desviado, onde se juntavam duas paredes sem nenhuma janela nem porta em nenhuma dessas paredes, e sentaram-se de modo a ver quem se aproximava. Inclinavam as cabeças por cima da mesa e conversavam baixinho, por alusões e frases entrecortadas. Wang Segundo contou assim a seu irmão o que Wang o Tigre projectava, e agora, que se restabelecera na sua casa e nos hábitos da existência habitual, e o projecto do soldado afigurava-se-lhe cada vez mais um sonho irrealizável, o irmão mais velho, ao ouvi-lo, via-o como uma coisa maravilhosa mas fácil de realizar. Na verdade, aquele homem corpulento e pueril aquecia à medida que o projecto se lhe revelava, pois via-se já elevado acima das suas fantasias mais ambiciosas... irmão de um rei. Era um homem que lera pouco e que, além disso, gostava de ver peças de teatro e vira muitas velhas peças celebrando os altos feitos de heróis antigos e fabulosos, que não passavam a princípio de homens ordinários que, pela sua valentia, engenho e astúcia se elevavam seguidamente bastante alto para chegarem a fundar dinastias. Via-se já como irmão de um tal herói, e, mais que isso, como seu irmão mais velho, e os olhos chamejavam-lhe e cochichou em voz rouca:

 

Disse sempre que o nosso irmão não era um rapaz como os outros. Fui eu que pedi ao nosso pai que o tirasse dos campos e lhe desse um preceptor para o instruir, como a filho de grande proprietário. O meu irmão não esquecerá certamente o que o seu irmão mais velho fez por ele, e que sem mim não passaria de um criado nas terras de seu pai.

 

E baixava os olhos, contente consigo, acariciando no farto ventre a túnica de seda que o cobria, e pensava no seu segundo filho, dizendo-se que toda a família se elevaria e que ele próprio se tornaria também um nobre; sem dúvida o seu irmão nobilitá-lo-ia quando fosse rei. Havia histórias desse género nos livros que lera e vira coisas assim no teatro. Então Wang Segundo, que cada vez mais duvidava à medida que voltava a si, e a quem até a temerária empresa parecia muito longe daquela pacífica cidadezinha, quando viu a imaginação do seu irmão mais velho lançar-se no futuro, tornou-se ciumento e a sua própria prudência o tornou cúpido e disse-o de si para si:

 

«Tenho de prestar muita atenção. Quem sabe se não há um pouco de verdade naquilo que sonha o meu irmão mais novo ? Mesmo se ele alcançar a décima parte do êxito com que sonha, tenho de me dispor a partilhar do seu êxito e não devo afastar-me».

 

E continuou, em voz alta:

 

Sim, mas eu incumbi-me de lhe fornecer dinheiro e sem mim nada poderá fazer. Deve ter aquilo de que precisar até que se possa estabelecer, e não sei ainda como vou obter o preciso. No fim de tudo, não passo de um pequeno rico, que mal é considerado rico pelos que são senhores da riqueza. Durante os primeiros meses, posso satisfazê-lo vendendo as suas terras, e depois nós podemos vender também, tu e eu, algumas terras. Mas que havemos de fazer se, passado esse tempo, se não tiver estabelecido ?

 

Eu o ajudarei... eu o ajudareidisse rapidamente o irmão mais velho, não podendo suportar a ideia de que alguém pudesse fazer mais do que ele pelo irmão mais novo.

 

Os dois homens levantaram-se então, na pressa da avidez comum a ambos e Wang Segundo disse:

 

Vamos às terras mais uma vez e preparemo-nos agora para vender.

 

Ora, fora decidido, visto que Wang o Tigre desejava dinheiro, que lhe dariam a maior porção de terra isolada e era a mais afastada da cidade e era cultivada agora por um só rendeiro, um homem em boa situação económica. O negócio foi fechado com este pelos dois irmãos, e tiveram o cuidado à ida como à vinda de não passar perto da terra onde habitava Flor de Pereira.

 

Flor de Pereira podia muito bem passar sem nunca ter ouvido falar daquela venda, porque Wang Segundo era astuto além de toda a medida, nunca aludindo a nada do que fazia, nem sequer ao trazer-lhe nos devidos prazos a pensão que lhe fora atribuída. Eram vinte e cinco moedas que ele lhe trazia todos os meses, como Wang o Tigre dissera, e da primeira vez em que o fez, ela disse-lhe na sua voz suave:

 

Mas de onde provêm as cinco moedas, visto que sei só me terem concedido vinte, e ninguém de tanto precisaria, se não fosse esta pobre filha do meu senhor? Mas deste suplemento de cinco moedas não ouvi eu falar.

 

Ao que Wang Segundo respondeu:

 

Aceite-o, porque o meu irmão mais novo disse-me que devia tê-lo e da sua parte o recebe.

 

Mas quando Flor de Pereira ouviu aquilo, contou rapidamente com as mãos trémulas cinco moedas, separou-as das outras, pôs a soma de lado, como que receosa de que a queimasse, e disse:

 

Não quero isso... não quero mais do que me é devido.

 

A princípio Wang Segundo achou que devia insistir, mas em seguida lembrou-se do risco que corria, emprestando dinheiro à aventura a seu irmão, e lembrou-se de todo o aborrecimento que tinha e pelo qual não obtinha salário algum, e lembrou-se de todas as possibilidades que havia de que a aventura abortasse. Quando pensou nisso tudo, escamoteou o dinheiro que ela pusera de lado, guardou-o no seio da túnica e disse com a sua vozinha calma:

 

Sim, talvez seja melhor assim, visto que a outra concubina, que é mais velha, tem isso, e é justo que tenha um pouco menos. vou explicá-lo ao meu irmão.

 

Mas ao ver em que disposições ela se encontrava, omitiu dizer-lhe que a própria casa onde ela habitava pertencia a esse terceiro filho, pois lhes convinha a todos que Flor de Pereira lá habitasse com a idiota. Foi-se então embora, sem nada mais dizer a Flor de Pereira, e a não serem encontros de acaso por um motivo ou outro, Flor de Pereira não frequentava a família alojada na Grande Casa da cidade. Às vezes, é certo, via Wang Mais Velho passar, na mudança de estação, na Primavera, quando ele ia medir a semente para os seus rendeiros, como deve fazer um proprietário, embora não fizesse mais do que estar ali com ar muito importante e altivo, enquanto um agente que ele contratara para o caso a media. Ou vinha algumas vezes antes da ceifa para apreciar o que os campos continham, de maneira a saber se sim ou não os rendeiros lhe mentiam quando lançavam as culpas, como sempre faziam, sobre isto ou aquilo, pretendendo que o ano fora mau para eles e que tinha chovido demasiado ou não bastante.

 

E assim, portanto, ia e vinha algumas vezes por ano, e de cada vez transpirava, bufava e mostrava mau humor pelo trabalho, e lançava entre dentes as suas saudações a Flor de Pereira, se a via, e ela, dirigindo-lhe um delicado cumprimento, não lhe falava se podia evitá-lo, porque ele se tornara uma personagem obesa que tinha uma maneira garota de olhar disfarçadamente as mulheres.

 

No entanto, ao vê-lo ir e vir, supunha que nada havia mudado nas terras e que Wang Segundo olhava pelas suas terras e pelas do seu terceiro irmão, e ninguém pensava em lhe contar nada. Não era certamente fácil parar com ela, porque era taciturna e distante nas suas atitudes para com todos, excepto para com as crianças, de maneira que, conquanto se mostrasse meiga e afável, aquela particularidade a fazia recear das pessoas crescidas. Não tinha amigos e apenas há pouco se ligara com algumas religiosas que habitavam num convento vizinho, uma construção tranquila feita em tijolo escuro, e cercada por uma sebe de salgueiros verdes. Recebia com alegria aquelas religiosas, quando vinham ensinar-lhe as suas doutrinas de resignação, que escutava atentamente, e meditava após a partida das freiras, pois aspirava a saber bastante para rezar pelo repouso da alma de Wang Lung.

 

E assim ela podia muito bem não chegar a saber nada da venda da terra se não acontecesse que, no mesmo ano em que o rendeiro comprara o primeiro quinhão, o corcundinha filho de Wang Mais Velho seguisse de longe o seu pai sem este dar por isso.

 

Ora este rapazito era um garotelho singular e não se parecia com nenhum dos pequenos da Casa Grande. A mãe tomara-o de ponta, desde a hora do nascimento, por um motivo de todos ignorado, talvez por ele ser menos rosado e de aspecto menos agradável do que os outros filhos ou porque talvez ela se encontrasse então fatigada de dar à luz e farta dele antes já de ter nascido. Mas por virtude da sua antipatia, dera-o logo a amamentar a uma escrava e essa escrava também não gostava dele, porque lhe tinham retirado o filho por causa dele, e dizia que ele tinha o olhar demasiado astuto para a idade, o que lhe ficava mal no pequenino rosto de bebé. Dizia também que era vicioso e que a mordia de propósito, quando mamava. E quando uma vez o tinha ao peito, soltou um grito lancinante e deixou-o cair no mosaico do pátio, onde estava sentada com ele, à sombra de uma árvore. Ao acorrerem para ver o que acontecera, explicou que o menino a tinha mordido até lhe fazer sangue, mostrou o seio, e era certo que sangrava.

 

A partir desse momento, o rapaz ficou corcunda, e era como se toda a sua força de crescimento se tivesse refugiado naquele grande nó que trazia em cima dos ombros; todos lhe chamavam o Corcunda, e os seus próprios pais lhe davam esse nome. E visto que ele era uma pobre criatura e que havia outros filhos, não se preocuparam com ele e não o obrigaram a aprender a ler nem a fazer nada, e ele aprendeu desde cedo a subtrair-se aos olhos das pessoas, e particularmente das outras crianças, que zombavam cruelmente dele por causa da sua deformidade. Calcurriava as ruas ou ia sozinho pelos campos além, mancando e levando às costas aquela grande bossa.

 

, Nesse dia de ceifa seguira o pai sem ser visto e manteve-se a distância, pois bem conhecia o mau humor do pai em dias em que este tinha de ir às terras; e assim o foi seguindo até à casa de adobe. Mas Wang Mais Velho continuou em direcção aos campos, e o corcunda deteve-se a ver quem estava sentado à porta da casa.

 

Ora não era senão a pobre idiota de Wang Lung, e estava ali sentada ao Sol como tinha por costume, mas era agora no corpo mulher feita, e mais do que isso, porque passara já os quarenta anos e tinha fios brancos nos cabelos. Mas era a mesma pobre menina ali sempre a fazer caretas e torcer nas mãos a sua ponta de trapo. O corcunda olhava-a com espanto, pois nunca até então a vira, e com o seu ar malicioso pôs-se a imitá-la e a fazer carantonhas, e deu-lhe com tanta força estalos com os dedos debaixo do nariz, que a pobre criatura começou a soltar gritos de terror.

 

Flor de Pereira saiu a correr de casa para ver o que havia, e quando o rapaz a avistou fugiu a manquejar para as sombras do bosque de bambu, de onde se ficou a espreitá-la como um pequeno animal selvagem. Mas Flor de Pereira viu quem era e sorriu-lhe meigamente com o seu triste e gentil sorriso e tirou do seio um pequeno pastel, pois trazia consigo desses pastéis para amansar por vezes a idiota, quando esta se obstinava de repente, por virtude de qualquer capricho, e se recusava a obedecer. Estendeu o pastel ao corcunda. Ele mirou-a primeiro com espanto e por fim aproximou-se, agarrou avidamente o pastel e meteu-o todo de uma vez na boca. Depois, sorrindo ao menino, conseguiu que ele se viesse sentar ao lado dela, num banco à porta e quando viu que o pobrezito se sentava de lado e que a sua pobre e minúscula fisionomia, de olhos tão profundamente tristes, parecia acabrunhado sob o peso que lhe sobrecarregava as costas, ela ficou sem saber se era um homem ou uma criança, pois no tamanho era pequenino, e estendendo o braço para o passar em torno daquele corpo disforme, perguntou-lhe, no seu tom meigo e compassivo :

 

Ora diz-me, irmãozinho, tu não és filho do filho do meu senhor? Pois eu ouvi dizer que ele tinha um como tu.

 

Então a criança afastou-se-lhe bruscamente do braço, acenou afirmativamente com a cabeça e fez menção de partir. Mas ela fez-lhe festas, deu-lhe outro pastel e disse-lhe a sorrir:

 

Creio na verdade que a tua boca tem um certo ar de semelhança com a boca do meu falecido senhor, que descansa agora além, sob a tamareira. E ele faz-me tanta falta, que eu gostaria que tu viesses aqui muitas vezes, visto teres um ar de parecença com ele.

 

Era a primeira vez que o pequeno corcunda ouvia alguém dizer-lhe que desejava a sua presença, porque estava habituado, embora fosse filho de um homem rico, a ver-se repelir pelos irmãos e a ver os próprios criados não se importarem com ele e a servirem-no em último lugar, por saberem que sua mãe não o estimava. E ele olhou lastimosamente para Flor de Pereira e os lábios começaram-lhe a tremer e de repente, sem saber porquê, desfez-se em lágrimas, e exclamou através delas:

 

Eu queria que não me fizesse chorar assim... Não sei porque choro assim...

 

Então Flor de Pereira acalmou-o enlaçando com o braço as costas do corcunda e, sem poder exprimi-lo, o rapaz sentiu que aquela era a carícia mais afectuosa que jamais recebera, e ficou calmo sem saber como nem porquê. Mas Flor de Pereira não se apiedou dele por muito tempo. Não; começou a olhá-lo como se ele tivesse as costas lisas e robustas como as de outro rapaz, e a partir desse dia o corcunda veio muitas vezes à casa de adobe, porque ninguém se inquietava com saber onde ele ia nem o que fazia. Vinha dia após dia, de tal modo que acabou por se ligar de toda a sua alma a Flor de Pereira. Mostrou-se hábil com ele, e fez como se se apoiasse nele e precisasse do seu auxílio para se ocupar da idiota, e dado que ninguém recorrera jamais ao jovem para lhe pedir auxílio de espécie alguma, tornou-se calmo e gentil e foi perdendo muito da sua maldade, à medida que os meses iam passando.

 

Se não tivesse sido, portanto, esse rapaz, Flor de Pereira poderia muito bem nunca ter chegado a saber que a terra estava a ser vendida. E o rapaz não se apercebeu sequer da informação que dava, porque lhe falava de tudo quanto lhe vinha ao espírito e falava disto e daquilo. Um dia disse-lhe:

 

Tenho um irmão que será um grande militar. Um dia ou outro, o meu tio vai ser um grande general, e o meu irmão está junto dele, a aprender o ofício de soldado. O meu tio vai ser um verdadeiro rei um dia ou outro, e então o meu irmão será o seu capitão, pois assim o ouvi eu contar por minha mãe.

 

Flor de Pereira estava sentada no banco, perto da porta, quando o garoto lhe disse aquilo. Desviou o olhar para os campos e respondeu, num tom calmo:

 

Então o teu tio é assim uma personagem importante? (Calou-se um momento e depois continuou) ... Mas eu desejaria que não fosse soldado porque é esse um ofício cruel.

 

Mas o garoto exclamou, no jeito de se vangloriar: Sim, ele vai tornar-se o maior general e eu acho que um soldado, se é corajoso e bom herói, é a coisa mais maravilhosa que se pode ser. E nós vamos todos ser grandes com ele. Todos os meses, o meu pai e o meu segundo tio enviam dinheiro ao meu tio soldado, em previsões da época em que ele será uma grande personalidade, e um feio homem de beiço rachado é que vem buscar o dinheiro. Mas um dia tudo isso voltará à nossa mão, pois ouvi meu pai explicá-lo assim a minha mãe.

 

Quando Flor de Pereira ouviu aquilo, ocorreu-lhe uma pequenina suspeita ao espírito e então disse suavemente como, se fosse uma coisa sem importância e como se perguntasse por simples curiosidade:

 

E de onde vem todo esse dinheiro, não me dirás? Será o teu segundo tio que o tira do seu comércio para o emprestar?

 

E o rapaz, inocentemente e com o orgulho de o saber, respondeu :

 

Não, vendem a terra que era do meu avô e eu vejo os camponeses virem todos ou quase todos os dias e tirarem um rolo do seio e desembrulharem-no; é dinheiro que brilha como estrelas ao cair em cima da mesa no quarto de meu pai. Vi isso muitas vezes e não se afligem com a minha presença, porque não conto para nada.

 

Então Flor de Pereira ergueu-se tão vivamente que o rapaz a olhou muito espantado, pois ela movia-se de ordinário muito calmamente, mas ela conteve-se e disse-lhe no tom mais meigo:

 

Acabo mesmo agora de me lembrar de uma coisa que tenho de fazer; queres olhar pela pobre inocente enquanto eu estou fora? Não confio em ninguém como em ti.

 

O rapaz sentiu-se todo orgulhoso por lhe prestar aquele serviço. E esquecendo-se do que dissera, ali ficou dignamente a segurar na mão uma ponta do vestido da idiota, enquanto Flor de Pereira se preparava para partir. Depois de ter lançado pelos ombros uma capa escura, Flor de Pereira olhou-o mais uma vez e partiu a toda a pressa através dos campos. Tinha tanta afeição por aquelas duas pobres criaturas que mesmo naquele momento se deteve um pouco para se voltar para eles e os olhar, o que lhe enterneceu o coração e lhe fez esboçar nos lábios um sorriso de melancólica ternura. Mas depressa tornou a partir, pois, se olhava aqueles dois seres com amor e se agora a ninguém mais tinha amor, havia no seu coração uma cólera tal que devia dar-lhe saída; se era uma cólera muda, visto que a sua cólera era sempre assim e nem ela podia ter uma de outra espécie, nem por isso era menos uma sólida cólera e não poderia voltar a ter descanso antes de ir ter com os dois irmãos e ter sabido o que eles tinham verdadeiramente feito das boas terras que tinham recebido de seu pai, principalmente da terra que ele lhes mandara conservar para as futuras gerações da família.

 

Ela adiantava-se rapidamente pelos estreitos caminhos através dos campos. E ia sozinha, sem que se visse ninguém naqueles caminhos a não ser, aqui e além, ao longe, a silhueta de um homem curvado para a terra, com a sua roupa de trabalho de riscado azul. Ao ver aquele homem, os olhos enchiam-se-lhe de lágrimas, como agora acontecia com frequência e facilmente, pois lembrava-se de que Wang Lung costumava passear por aqueles mesmos caminhos e amava a terra a ponto de se inclinar por vezes para apanhar um punhado de terra e o revolver entre os dedos, nunca a alugando por mais de um ano para a conservar bem sua... e eis que os filhos lha vendiam.

 

Pois embora Wang Lung tivesse morrido, vivia sempre para Flor de Pereira e, para ela, a sua alma andava sempre em redor dos campos e sentia que ele certamente saberia quando os vendessem. Sim, de cada vez que uma fresca e suave brisa lhe batia de súbito no rosto de dia ou de noite, ou que um pé de vento redemoinhava na estrada, desses ventos que outros receiam por causa do que têm de estranho, levando-os a dizer que são almas errantes que passam, Flor de Pereira erguia o rosto e sorria quando um tal vento lhe soprava na face, e isso porque julgava poder ser a alma do velho que tinha sido um pai para ela e mais querido do que o pai que a vendera.

 

com este sentimento da sua presença, apressava-se então através das terras que se alongavam belas e fecundas, na sua frente, porque de há cinco anos àquela parte não houvera fome nem tão-pouco a haveria naquele ano, e nos campos cultivados e férteis ondulava o trigo já espigado, ou ainda demasiado verde para a colheita. Caminhava ao longo de um desses campos, quando uma pequenina brisa se ergueu do seio do trigo e o fez ondular como um tecido precioso, e ela sorriu e perguntou-se que vento era aquele; e diminuiu um instante o andar até o vento cair novamente no meio do trigo e o deixar tranquilo.

 

Quando chegou à cidade e à porta em que os vendedores exibiam as suas provisões de frutos, baixou a cabeça e conservou os olhos constantemente presos ao solo e não os ergueu uma única vez para fitar os olhos de ninguém. Também ninguém lhe prestou atenção, pois era demasiado minúscula e frágil e já não jovem como outrora, e vestida como andava com o seu trajo sombrio e o rosto sem pó nem carmim, nada tinha que a fizesse notar dos homens mais que qualquer outra mulher. E assim ia. Se alguém lhe tivesse notado o rosto calmo e pálido, nem sequer pensaria que uma boa e sólida cólera ardia nela e que ela caminhava curvada por uma amarga censura e numa atitude decidida.

 

Quando chegou ao portão da casa da cidade, franqueou-o sem fazer anunciar a sua vinda. O velho porteiro, sentado ali, no limiar, meneando a cabeça, com os lábios entreabertos, mostrando um dos três únicos dentes que lhe restavam na boca, teve um sobressalto quando ela passou pela frente dele, mas reconheceu-a e recomeçou a menear a cabeça. Como tinha projectado, Flor de Pereira seguiu direita a casa de Wang Mais Velho, pois, embora o detestasse cordialmente, tinha mais esperança de comover este do que o coração ávido de Wang Segundo. Sabia também que Wang Mais Velho raras vezes era voluntariamente desagradável e sabia que, se ele era um pouco ingénuo, não deixava também por vezes de mostrar bom coração, e acontecia-lhe até ser benévolo, se isso de momento o não perturbava demais. Mas ela temia os pequeninos olhos semicerrados do segundo filho.

 

Penetrou no primeiro pátio. Estava ali uma escrava a preguiçar, linda rapariga que saíra sub-repticiamente para namoriscar um criado ainda novo que ali se encontrava. E Flor de Pereira disse à escrava, no seu tom polido:

 

Ó pequenita, vai prevenir a tua senhora de que eu vim dizer-lhe uma coisa e perguntar-lhe se me quer receber.

 

Ora, a esposa de Wang Mais Velho mostrara atitude muito amigável para com Flor de Pereira, depois da morte de Wang Lung e muito mais amigável do que a que jamais mostrara a Lotus, porque Lotus era demasiado grosseira e demasiado livre de maneiras e Flor de Pereira nunca falava nesse tom. Nos últimos tempos, quando se encontravam em qualquer dia de cerimónia comum familiar, a dama tinha até por costume dizer a Flor de Pereira:

 

«A menina e eu, depois de tudo, estamos mais perto uma da outra do que essa gente, porque os olhos dos nossos corações são mais delicados e mais nobres».

 

E recentemente dissera-lhe:

 

«Venha de vez em quando conversar comigo das coisas que as religiosas e os padres dizem dos deuses. A menina e eu somos os únicos devotos nesta casa».

 

Disse isso quando soube que Flor de Pereira dava a sua atenção às religiosas do convento situado não longe da casa de adobe. Eis por que Flor de Pereira a vinha agora procurar. A linda escrava não demorou a voltar, passeando por aqui e por além olhares furtivos para ver se o rapaz ainda ali se encontrava, e disse:

 

A minha senhora manda recado para que se vá sentar no salão. Ela irá lá ter logo que acabe de desfiar no rosário a série de orações que fez promessa de rezar todas as manhãs.

 

Flor de Pereira entrou, portanto, no salão e sentou-se num banco lateral.

 

Ora, aconteceu que naquele dia Wang Mais Velho se levantara muito tarde, porque fora a um banquete na noite anterior, num lindo restaurante da cidade. Fora um soberbo festim regado com os melhores vinhos e detrás da cadeira de cada conviva uma linda cantora de aluguer estava encarregada de lhe servir de beber, cantar e palrar e fazer tudo quanto o conviva a quem ela era destinada pudesse ainda ter desejo de lhe mandar fazer. Wang Mais Velho comera lautamente e bebera mais do que habitualmente e a sua cantora, uma rapariguinha muito bonita de não mais de dezassete anos, era tão hábil de seduções que dir-se-ia habituada aos homens pelo menos há dez anos.

 

Mas Wang Mais Velho bebera tanto que, mesmo já de manhã, não se recordava de tudo o que se passara na noite precedente, e chegou à sala sorridente, bocejando e espreguiçando-se, sem reparar que se encontrava ali alguém que chegara antes dele. Na verdade, os seus olhos demoravam a aperceber-se, naquela manhã, fosse do que fosse, porque sorria a sós consigo e, pensando interiormente na rapariguinha, lembrava-se de que ela lhe metera a ágil mãozinha entre a túnica e o pescoço, para o arreliar quando ele brincava com ela. E ao tornar a pensar naquilo, disse de si para si que perguntaria ao amigo que o convidara onde habitava aquela rapariguinha e a que casa pública pertencia, e que iria lá procurá-la, para ver o que valia.

 

E assim, bocejando, espreguiçou-se e adiantou-se indolentemente pelo salão tendo vestido apenas o seu trajo de noite, de seda, e os pés nus em pantufas de seda. E então o seu olhar caiu de repente em Flor de Pereira. Sim, ela estava ali de pé e muda como uma sombra na sua túnica escura, mas trémula pelo muito que aquele homem lhe repugnava. Ele ficou tão atónito por a ver ali, que deixou cair os braços interrompendo-se mesmo no meio de um espreguiçamento e esgazeou os olhos. Depois, verificando que era bem ela, tossiu embaraçado e disse-lhe, muito delicadamente : -

 

Tinham-me asseverado que não estava aqui ninguém. A senhora sabe que se encontra aqui?

 

Sim, mandei preveni-la respondeu Flor de Pereira. (E enquanto dizia, inclinou-se. Depois hesitou e disse de si para si: «Vale mais falar agora e explicar só para ele o que tenho a dizer». E começou a falar rapidamente, mais depressa do que tinha por costume, e com as palavras a atropelarem-se-lhe nos lábios): Mas eu vim para falar ao senhor mais velho. Estou tão aflita... não posso acreditar no que ouvi. O meu senhor disse: «A terra não deve ser vendida». E eis que a estais a vender... sei que a estais a vender!

 

E Flor de Pereira sentiu o rubor subir-lhe às faces e viu-se de repente tão encolerizada que mal podia impedir-se de chorar.

 

Mordeu os lábios e ergueu os olhos para fitar Wang Mais Velho, embora ele lhe repugnasse tanto que mal podia suportar a sua presença, e, fazendo-o por amor de Wang Lung, via no entanto até que ponto o pescoço daquele homem aparecia flácido, branco e repugnante no sítio da túnica desabotoada e a que ponto a carne se lhe enrugava debaixo dos olhos e como se lhe tinham entumecido os lábios sem cor. Então, ao ver os olhos dela fitarem-no, ele perturbou-se, pois tinha muito receio da cólera das mulheres, e voltando-se, afectou, por decência, abotoar a gola. E disse precipitadamente, por cima do ombro:

 

Mas são histórias no ar... isso foi um sonho!

 

Então Flor de Pereira disse, num tom de violência que ninguém lhe ouvira ainda:

 

Não, não senhor... soube-o dos lábios de alguém que diz a verdade. (Não quis revelar por quem o soubera, com receio de que aquele homem batesse no seu pobre filho corcunda; eis por que se absteve de proferir o nome do rapaz e prosseguiu): Já não reconheço os filhos do meu senhor ao ver como são capazes de lhe desobedecer assim. Fraca e indigna como sou, tenho o dever de falar e de lhe dizer isto: o meu senhor não deixará de se vingar! Não está tão longe como julgam e a sua alma anda ainda a peregrinar pela sua terra, e quando a vir vendida, achará maneira de se vingar dos filhos que se recusam a obedecer a seu pai!

 

Ela disse isto de maneira tão estranha e os seus olhos desmesuradamente abertos tornaram-se tão graves e a sua voz meiga tomou um tom tão baixo e tão glacial que um vago terror invadiu Wang Mais Velho que, de facto, apesar da sua grande corpulência, era homem para se atemorizar facilmente. Ninguém poderia convencê-lo a ir sozinho, de noite, ante as sepulturas e acreditava secretamente nas mil historietas que se contam a propósito dos espíritos; por mais que fingisse rir-se disso, o facto não o impedia de acreditar secretamente. Eis por que, quando Flor de Pereira lhe falou assim, ele se apressou a responder:

 

Só se vendeu uma parte muito pequena... uma parte muito pequena do que pertencia ao meu irmão mais novo. Precisa de dinheiro, um soldado não precisa de terra. Prometo-lhe que não se venderá mais.

 

Ao ouvir aquilo, Flor de Pereira abriu a boca para falar, mas antes que tivesse proferido uma palavra, a esposa de Wang Mais Velho entrou. Estava nesse dia mal disposta e zangada com o seu senhor, porque o sentira entrar em casa embriagado e a falar de uma rapariga qualquer com quem estivera. Ao vê-lo, então, lançou-lhe um olhar de desprezo, de maneira que ele se apressou a sorrir e a dirigir-lhe um pequeno cumprimento negligente, como se nada houvesse entre eles, mas sem deixar de air olhando disfarçadamente, e sentindo-se muito satisfeito de que Flor de Pereira ali estivesse, porque a sua esposa era demasiado orgulhosa para lhe dizer o que tinha a dizer-lhe de outra maneira que não fosse a sós. Mostrou grande volubilidade e afectou interesse por tactear o bule que estava em cima da mesa, a ver se estava ainda quente e disse:

 

Ah! Eis a mãe dos meus filhos. Talvez já tenhas o chá quentinho... Eu ainda não comi e estava a preparar-me para ir à casa de chá, para o tomar ali. Vou-me e não as incomodo... Sei muito bem que as senhoras têm coisas a dizer umas às outras que não são próprias para que nós outros, homens, as ouçamos.

 

E com um riso falso, oco e contrafeito, perante o altivo silêncio da mulher e os olhares arrogantes que ela lhe lançava, inclinou-se e retirou-se com tanta precipitação que as suas carnes flácidas tremiam. Durante todo o tempo que ali esteve, a esposa não disse palavra e manteve-se sentada, de busto erecto e afastado das costas da cadeira, esperando que ele partisse até consentir em apoiar-se. Tinha por certo o ar de uma dama muito decente, porque trazia um vestido de cetim liso de cor azul escuro, e os seus cabelos estavam penteados e lustrosos, embora não fosse ainda meio-dia, hora a que as senhoras estão ainda a dar voltas na cama e a estender a mão para tomarem a sua primeira chávena de chá.

 

E quando viu que o seu senhor partira, soltou um suspiro e disse, em tom solene:

 

Ninguém pode imaginar o que é a minha vida com este homem! Dei-lhe a minha mocidade e a minha beleza, e nunca me queixei, apesar de tudo quanto lhe suportei, mesmo depois de ter tido três filhos, mesmo depois de ele ter tomado para sua companhia uma vulgar rapariga do povo, uma daquelas que eu poderia ter contratado por criada. Não, tudo eu suportei, mostrei-me paciente perante tudo quanto ele fazia, embora não tenha sido de modo algum habituada a maneiras tão vulgares como as suas.

 

Suspirou e Flor de Pereira viu que, apesar de todas as suas maneiras afectadas, estava verdadeiramente triste, e disse para a distrair:

 

Todos sabemos muito bem como sois uma boa esposa e ouvi às religiosas que sois capaz de aprender os ritos sagrados mais depressa do que qualquer irmã conversa a quem os tenham ensinado.

 

Disseram na verdade isso?exclamou a dama, muito alegre.

 

E começou a falar das orações que rezava e quantas vezes por dia, e afirmou que chegaria a fazer voto de renunciar a comer carne, e que convinha a todos os mortais pensarem a sério no futuro, visto que só há Céu e inferno como lugares de descanso para todas as almas, até ao momento de se renovar o amargo ciclo da vida, e os bons têm a sua recompensa como os maus têm a deles.

 

Falava ininterruptamente e Flor de Pereira já mal a ouvia. com a outra metade do seu coração, perguntava-se tristemente se podia acreditar naquele homem quando ele lhe prometia não vender mais terra, e custava-lhe a acreditar que ele mantivesse a sua palavra. E de repente sentiu-se saturada e aproveitou o momento em que a dama se calara um instante para acabar o chá, e, levantando-se, proferiu suavemente:

 

Não sei, minha senhora, o que o seu senhor lhe conta dos seus negócios, mas se pudesse por vezes lembrar-lhe a última recomendação do pai, que foi não vender a terra, pedir-lhe-ia que o fizesse. O meu próprio senhor trabalhou toda a vida para reunir estas terras, a fim de que os seus filhos de cem gerações possam repousar num sítio seguro e não é, certamente, bem que já nesta geração sejam vendidas. Solicito o seu auxílio, senhora!

 

Ora a dama não apreendera na realidade grande coisa da venda da terra, mas pretendeu mostrar que estava ao corrente de tudo, e eis por que disse, com grande firmeza:

 

Não receie que eu deixe o meu senhor fazer qualquer coisa de inconveniente. Se alguma terra vendeu, foi apenas o quinhão afastado, que pertence ao terceiro irmão, porque este tem o desígnio de ser um general e de nos elevar a todos a uma alta situação e precisa mais de dinheiro que de terra.

 

Quando Flor de Pereira ouviu uma vez mais o que já ouvira, ficou mais tranquila, pensando que devia ser verdade. Sentiu-se, portanto, um pouco reconfortada. Inclinou-se e despediu-se com a sua meiguice calma e com todos os sinais de respeito pela dama, de modo a deixá-la bem disposta e satisfeita consigo própria. E Flor de Pereira voltou à casa de adobe.

 

Mas Wang Mais Velho, ao dirigir-se à casa de chá, avistou o seu irmão Wang Segundo que ali se encontrava a tomar a refeição do meio-dia. Deixou-se cair pesadamente numa cadeira ao lado da mesa em que o irmão estava sentado sozinho e disse-lhe aborrecido:

 

Parece que na verdade nunca um homem pode estar ao abrigo da espionagem das mulheres! Como se a não sofresse já demasiadamente em minha própria casa, ainda por cima a terceira mulher do nosso pai vem contar-me que lhe chegou aos ouvidos o boato de que nós estamos a vender a terra. E começou a fazer lamentações para me arrancar a promessa de a não vender!

 

Wang Segundo olhou então o irmão. O rosto pequeno e astuto crispou-se-lhe num breve sorriso e respondeu:

 

Que te importa o que ela diz? Deixa-a lá falar! Ela é a pessoa de menos consideração na casa de meu pai e não tem autoridade de nenhuma espécie. Não lhe dês atenção e se ela te falar de terra, fala-lhe de tudo menos de terra. Fala-lhe disto e daquilo, mas dá-lhe a entender que não lhe ligas importância porque ela não tem o poder de fazer seja o que for. Ela devia já considerar-se muito feliz por ter todos os meses o necessário para o seu sustento e ser autorizada a viver nesta casa.

 

O criado chegou nesse momento com a conta. Wang Segundo lançou-lhe um olhar agudo, fez o cálculo mentalmente e achou que estava certa. Tirou portanto do bolso as moedas necessárias, e foi lançando-as pouco a pouco para a mesa como se o fizesse com custo. E depois de se inclinar um pouco para o irmão, foi-se embora, e Wang Mais Velho ficou sozinho.

 

A despeito do que o irmão dissera, sentia-se um pouco mal disposto e perguntava-se com algum receio o que Flor de Pereira pretendera ao sugerir que o velho pai não se encontrava longe, apesar de estar morto. E quanto mais nisso pensava, tanto mais o seu mal-estar crescia, de tal modo que, por fim, chamou o criado e pediu um raro e excelente prato de caranguejos, para se distrair e esquecer o que lhe não agradava.

 

POR duas ou três vezes, Wang o Tigre mandou o seu homem de confiança de beiço rachado, e por duas ou três vezes o homem trouxe dinheiro ao capitão. Trazia-o às costas, embrulhado num pano azul, como se fosse uma trouxa dos seus miseráveis trapos; vestia um casaco e calças de grosseiro pano também azul, calçava umas pobres sandálias. Ao ver aquele pobre diabo caminhar pela estrada poeirenta, com a trouxa às costas, ninguém podia suspeitar de que transportasse rolos de dinheiro ou que pudesse ser mais do que um indivíduo vulgar. No entanto, se reparassem mais de perto, teriam notado que o homem transpirava de estranho modo sob fardo tão pequeno. Mas, ao vê-lo tão pobremente vestido e com aquele rosto grosseiro e vulgar, ninguém pensava em olhá-lo assim. Parecia-se com outros que se encontram a todo o momento, excepto no beiço fendido; e se alguém por acaso um momento o examinava, era para se rir da sua fealdade e dos dois enormes dentes que lhe ressaltavam por baixo do nariz.

 

Assim o homem de confiança levava, seguro, o dinheiro ao seu capitão. E quando Wang o Tigre reuniu uma boa soma, enterrou-o debaixo da tenda, para lhe durar três meses, até ao momento de iniciar o que projectara. Fixou o dia em que tornaria manifesto o seu desígnio. Deu a senha e, com ela, fez passar a ordem aos homens dispostos a segui-lo; e depois da colheita do arroz, antes de descerem do Norte os primeiros frios, numa certa noite em que a Lua não surgia antes da madrugada e em que aparecia então como um delgado crescente suspenso de lado no céu, aqueles homens saíram furtivamente um a um das suas tarimbas e desertaram da bandeira do velho general sob que serviam.

 

Cem homens se deslocaram assim nas sombras da noite, depois de cada um se erguer no mais completo silêncio, enrolar o seu cobertor, atá-lo às costas e pegar na espingarda, se a tinha, tomando também a do camarada, se era possível fazê-lo sem o acordar; ora isto não era fácil porque, segundo o regulamento, cada homem dormia deitado em cima da espingarda, de tal modo que, se alguém fazia um movimento para a agarrar debaixo dele, acordava e podia dar o alarme. Esta medida provinha de que uma espingarda era um objecto muito precioso, que podia vender-se por um monte de dinheiro, e havia quem roubasse uma espingarda para a vender depois das grandes perdas ao jogo ou pelo facto de estar meses sem receber soldo, pois não havia guerra, e por isso também nem despojos nem outras entradas de dinheiro. Sim, se um soldado perdia a sua espingarda, era uma coisa grave, porque se compram as espingardas nos países estrangeiros e muito distantes. Nessa noite, portanto, os homens que saíram sub-repticiamente levaram as espingardas que puderam, mas não conseguiram ao todo mais de vinte ou cerca disso, além das suas próprias, porque os soldados dormiam todos com grandes precauções. Vinte, no entanto, já era qualquer coisa pois lhes permitia aumentar o seu número em vinte homens.

 

Deviam reunir-se num pequeno planalto, a oito quilómetros de distância. Existia aí um velho templo, onde havia apenas um velho eremita, tonto, que vivia no meio das ruínas. Mas por pior abrigo que lhes fornecesse aquele templo, sempre era uma garantia até que Wang o Tigre pudesse formar com eles um exército e conduzi-los ao lugar que escolhesse.

 

Ora Wang o Tigre já aí tinha tudo preparado. Muitos dias antes, mandara o homem de confiança e o seu sobrinho, o Bexigoso, que tinham armazenado no templo odres de vinho, porcos vivos e galinhas. E até três gordos bois tinham sido metidos numa cela vazia que um padre qualquer outrora habitara. Wang o Tigre comprara aqueles animais aos camponeses dos arredores, e como homem honrado que era, pagava tudo quanto tomava, mas não roubava, como fazem certos soldados, que se apossam do quê’ pertence aos pobres, sem pagar. Não; mandou pagar tudo pelo seu homem de confiança, conforme o justo preço e assim os animais foram levados até ao templo do cimo da montanha e o rapaz bexigoso ficou ali para olhar por eles.

 

O homem de confiança trouxera também três grandes panelas de ferro e transportara-as até ao cimo da montanha à cabeça, uma por uma, e dispô-las na boca dos fornos que construiu, utilizando velhos tijolos do templo em ruínas. Mas não comprou outras coisas porque Wang o Tigre tinha a intenção de não se demorar naquele sítio e de partir tão depressa quanto possível em direcção ao Norte, para aí alcançar qualquer refúgio onde ficasse ao abrigo do velho general. Também lhe não interessava aproximar-se da capital do Norte, receando ter de entrar demasiado cedo em luta com os soldados do Estado, que eram por vezes enviados contra os senhores da guerra, tais como Wang o Tigre tinha intenção de ser. Não receava, no entanto, nem um nem outro desses dois perigos, porque a cólera do velho general depressa se esvaía, e, quanto ao Estado, era aquela uma época em que acabara uma dinastia sem que nenhuma outra se lhe viesse substituir, de modo que o Estado se encontrava fraco, os bandidos prosperavam e os senhores da guerra lutavam com ardor uns contra os outros para obter a mais alta situação, e não havia ninguém que disso os impedisse.

 

Foi portanto àquele templo que Wang o Tigre se dirigiu naquela noite sombria levando consigo o pálido filho de Wang Mais Velho. Era muitas vezes um enigma para ele saber o que faria daquele tímido e timorato jovem. O outro, o Bexigoso, alegrara-se com a aventura e partira muito alegremente a fazer o que lhe diziam, mas este escondia-se, para que o não vissem; quando Wang o Tigre, numa voz de trovão, lhe gritou que o seguisse, ele deslizou estremecendo atrás do tio, e quando Wang o Tigre voltou para ele a luz do archote aceso, notou que o rapaz estava coberto de suor. Então, berrou-lhe com desprezo:

 

Como se explica que transpires assim, se nada fazes ?

 

Mas não se deteve a ouvir a resposta. Meteu-se pela noite dentro, a grandes passadas, seguido pelo rapaz, em passos hesitantes.

 

Ao chegar ao cimo da montanha, no desfiladeiro que conduzia ao templo em ruínas, Wang o Tigre postou-se num rochedo e mandou o rapaz ao templo, para ajudar a preparar a refeição. Ficou ali sozinho e esperou para ver quantos dos que lho tinham prometido viriam colocar-se sob a sua bandeira. Depois, começaram a chegar os homens, aos pares e isoladamente, ou em grupos de oito ou dez, e Wang o Tigre alegrava-se de os ver e ia-os interpelando um após outro:

 

Ah! Tu vieste!

 

E clamava-lhes:

 

Eis-vos chegados, queridos e valentes camaradas!

 

De cada vez que ouvia os passos dos que vinham juntar-se-lhe ressoarem nos degraus da escadaria de pedra em ruínas, no caminho que conduzia ao templo, soprava na chama do archote fumarento que segurava na mão e projectava a luz nas faces e exultava de ver entre os que iam chegando tal ou tal valente que bem conhecia. Assim se reuniram os cem e Wang o Tigre contou-os, e quando viu ali todos que sabia que viriam, deu ordem de matar os bois, as galinhas e ainda os porcos. Então os homens lançaram-se satisfeitos a esse trabalho, pois há muitos dias já que não comiam boa carne. Uns acenderam os fornos, outros foram buscar água a uma torrente que corria perto, e os outros mataram os bichos, arrancaram-lhes a pele e cortaram-nos em pedaços. E depois de depenarem as aves, espetaram-nas em paus de madeira verde, de ramos cortados das árvores que rodeavam o templo, e puseram as aves a assar, inteiras, ao fogo.

 

Quando tudo ficou pronto, foi servido o festim no terraço de pedra, em frente do templo, no terraço em ruínas onde as ervas ruins tinham deslocado as pedras. Havia ao centro um grande e velho vaso de ferro, mais alto do que um homem, mas também ele estava a fazer-se em poeira, tão enferrujado se encontrava já pelo efeito dos anos. Estava a surgir o dia e o Sol nascente inundou com a sua claridade os homens que, no ar frio e cortante da montanha, sentiam mais fome ainda, e reuniram-se todos, rindo entusiasmados em volta da comida fumegante. Cada um deles comeu até fartar, e de todos os lados se alegravam porque a todos se afigurava que novos e melhores dias iam começar para eles, sob as ordens daquele novo chefe, jovem e valente, que os levaria para países novos, onde havia boa e farta comida, mulheres e toda a abundância de que carecem homens valentes.

 

Quando satisfizeram a fome mais urgente e antes de recomeçarem a comer, fizeram saltar os selos dos odres e no copo que cada homem trouxera consigo lançaram vinho, e bebiam e riam e discutiam e exortavam-se uns aos outros a beber à saúde deste ou daquele, e principalmente do novo chefe.

 

Escondido na sombra da moita de bambus, o pobre eremita idiota espiava-os, perdido de espanto, e mascava palavras incompreensíveis, tomando-os por autênticos diabos. Esfregava os olhos ao vê-los comer e beber com tal entusiasmo e veio-lhe a água à boca quando os viu trinchar as carnes fumegantes. Mas não se atrevia a aproximar-se nem a mostrar-se, pois não sabia quem eram aqueles demónios que chegavam assim de repente ao sítio calmo onde sozinho vivia há trinta anos, cultivando uma nesga de terreno para viver. E enquanto estava a olhá-los, um dos soldados farto,, de comida e entorpecido pelo vinho, atirou para longe o osso de uma coxa de boi que estava a comer e ele caiu à beira dos bambus. Então o eremita estendeu o braço, agarrou-o e puxou-o sem ruído para si. Levando o osso à boca, sugou-o e roeu-o, e tremia singularmente, pois não tinha comido carne durante todos esses anos e esquecera-se de como era saborosa e boa. E não podia impedir-se de sugar o osso com grunhidos de prazer, mas gemendo ao mesmo tempo para si, pois, apesar de toda a sua idiotice, sabia que aquilo era para ele pecado.

 

Depois de terem comido tudo quanto podiam e de o terraço ficar cheio dos restos, Wang o Tigre ergueu-se subitamente e saltou para cima de uma enorme e velha tartaruga de pedra que se encontrava a um lado do terraço e um pouco acima, ao pé de um grande e velho zimbro. Essa tartaruga assinalara outrora

 

o lugar onde estava situado um túmulo famoso e tivera sobre a carapaça uma alta esteia de pedra que exaltava as virtudes do morto, mas a árvore, no seu crescimento irresistível, repelira daquele lado a esteia, de tal maneira que neste momento jazia partida em dois pedaços no chão com a legenda apagada pelo vento e pela chuva, enquanto a árvore continuava sempre a crescer.

 

Wang o Tigre saltou para cima da tartaruga e, de pé, pôs-se de alto a considerar todos os seus homens. Altivo, de pé, com a mão no punho da espada e um pé para a frente pousado na cabeça da tartaruga, fixava-os arrogante, com as negras sobrancelhas carregadas e os olhos chamejantes. E assim olhando aqueles homens que eram dele, sentiu o coração entumescer-se-lhe desmesuradamente, até ao ponto de supor que o corpo lhe ia estalar, e disse de si para si:

 

«São os meus homens... juraram seguir-me. A minha hora chegou!»

 

E muito alto, numa voz altaneira que ressoou naquelas matas silenciosas e ecoou nos pátios do templo em ruínas, exclamou:

 

Queridos irmãos, vou dizer-vos quem sou! Sou humilde como vós. Meu pai cultivava a terra e eu sou um filho da terra. Mas outro destino me esperava, diferente do do cultivo dos campos e fugi, quando não passava de um rapazola, indo juntar-me aos soldados da revolução, sob as ordens do velho general.

 

«Queridos irmãos! A princípio sonhei nobres guerras contra um governo corrupto, pois, segundo dizia o velho general, assim deviam ser as guerras. Mas a sua vitória foi demasiado fácil, e ele tornou-se naquilo que nós conhecemos, e eu não podia continuar a servir às ordens de tal chefe. Então, visto que a revolução que ele dirigia não deu o resultado que eu sonhava, e visto que os tempos estão cheios de corrupção e que cada um combate para si, vi que o meu destino me ordenava que me dirigisse a todos os valentes fartos de servir sob as ordens do velho general sem serem pagos, e me pusesse à frente deles para talhar um lugar para nós, um lugar bem nosso, liberto de corrupção. Não preciso de vos explicar que não existem governos honrados e que o povo geme sob as crueldades e as opressões daqueles que deviam tratá-lo do modo como os pais tratam os filhos. Assim era já no tempo antigo, mesmo há quinhentos anos, quando os heróis bons e valorosos se ligaram uns com os outros para castigarem o rico e protegerem o pobre. É o que nós vamos fazer também. Convido-vos, valentes e queridos rapazes, a seguir-me aonde vou! Juremos viver e morrer juntos!

 

Erguia-se ali, lançando-lhes aquelas palavras na sua grande voz profunda, com o olhar brilhante pousado aqui e além, sobre os homens que se tinham sentado em frente dele, nas pedras esparsas, com as sobrancelhas ora carregadas, ora erguidas como bandeiras desfraldadas, iluminando e alterando de instante a instante a expressão da sua fisionomia. Quando acabou de falar, todos os homens se puseram em pé e um imenso clamor se ergueu da multidão:

 

Juramo-lo! Viva mil e mil anos o nosso capitão!

 

Depois, um homem que era mais ousado que os outros, exclamou muito alto, em voz estrídula:

 

E eu digo-vos que ele tem o ar de um tigre de negras sobrancelhas, digo...

 

E era bem esse o aspecto de Wang o Tigre, tão esbelto e alto ele era e de movimentos ágeis, com um rosto a estreitar no queixo e de malares salientes e muito altos, vivos olhos brilhando de um duro fulgor e acima deles as compridas sobrancelhas pretas pesando sobre os olhos e ensombrando-os de tal modo que, quando fixava o olhar, pareciam os olhos espiar e luzir no fundo de uma caverna. Quando erguia as sobrancelhas, os olhos pareciam saltar de debaixo delas e todo o rosto se lhe alargava de súbito como o de um tigre no momento de saltar.

 

Então todos os homens tiveram um riso feroz e repetiram o grito e berraram:

 

Ah... Ah... o Tigre das Sobrancelhas Negras!

 

Quanto ao pobre eremita idiota, já nada compreendia de todas aquelas aclamações de animais ferozes que enchiam o planalto. Havia na verdade tigres que andavam por aquelas montanhas e ele temia-os mais que tudo. Quando ouviu aqueles grandes clamores, olhou desvairado para a mata e correu a esconder-se no fundo do templo, num misérrimo quartozito onde se deitava, e pôs a grande tranca na porta e meteu-se na cama, puxou o cobertor para cima da cabeça e ali ficou, tremendo e chorando e arrependendo-se de ter comido a carne.

 

Ora Wang o Tigre possuía também toda a prudência do tigre e sabia que a sua aventura mal começava ainda e que tinha de pensar no que o esperava. Deixou os homens dormir um pouco, para lhes permitir assimilar o vinho que tinham bebido e dar aos vapores do álcool tempo de se dissiparem, e enquanto dormiam chamou três dos seus homens que sabia serem homens hábeis em ardis e mandou-os disfarçarem-se. A um ordenou que se despisse, deixando apenas os calções em farrapos, e disse-lhe que cobrisse a cara de lama e de poeira como um mendigo e fosse mendigar pelas aldeias próximas da cidade onde acampava o velho general, escutando e vendo o que pudesse para averiguar se o velho general se preparava ou não para lhes dar caça. Aos dois outros, ordenara que fossem a um mercado da cidade e comprassem a qualquer algibebe fatos de camponeses, assim como os respectivos cestos e paus ferrados, e que adquirissem produtos, os levassem à cidade e andassem por vários pontos para verem o que se dizia e se se falava do que acontecera e do que poderia acontecer, agora que os melhores homens do velho general o tinham abandonado. A entrada do desfiladeiro, Wang o Tigre postou o seu homem de confiança, de beiço rachado, para vigiar e sondar a região com o seu agudo olhar, e se distinguisse em qualquer ponto movimentos de massas de homens, devia correr imediatamente a prevenir o capitão.

 

Feito isso, depois de aqueles homens partirem e de os outros dormirem e assentarem o vinho, Wang o Tigre tomou nota de tudo quanto possuía. Inscreveu numa folha de papel com um pincel o número dos seus homens e quantas espingardas possuía e quantas munições e em que consistiam as roupas dos homens e o que era o seu calçado, capaz ou não de aguentar uma longa marcha. Ordenou aos seus homens que desfilassem pela sua frente e olhou cada um deles atentamente e verificou que eram, sem contar os dois rapazes, cento e oito homens bem constituídos e enérgicos, entre os quais nenhum excessivamente velho e muito poucos doentes, não falando dos males de olhos ou de pele ou outras pequenas doenças análogas que toda a gente pode ter e que não contam como doenças. Ora, à medida que eles iam assim passando lentamente na sua frente, esgazeavam os olhos, espantando-se ao ver os caracteres que ele traçava no papel, pois não havia mais do que dois ou três que soubessem escrever, e Wang o Tigre inspirou-lhes mais respeitoso terror do que nunca por também possuir, além do exercício das armas, aquela sabedoria de traçar com o pincel caracteres num bocado de papel e por saber, ao olhá-los, simplesmente, descobrir neles uma significação.

 

E Wang o Tigre verificou que tinha, além dos seus homens, vinte e duas espingardas e que cada homem tinha a cartucheira cheia de munições, e à parte isso possuía dezoito caixotes de cartuchos que levantara em segredo do armazém do general, onde tinha acesso. Estes caixotes mandara-os um a um pelo seu homem de confiança que os trouxera para ali e depositara no templo, atrás do velho Buda decrépito, porque era ali que o telhado estava em melhor estado, e o Buda abrigava-os das chuvas que entravam pelas portas escancaradas.

 

Quanto a roupa, os soldados tinham aquela que traziam vestida e era bastante até chegarem os ventos de Inverno e cada homem tinha o seu cobertor em que se enrolava para dormir.

 

Wang o Tigre ficou muito satisfeito por tudo isso que possuía. Sobrara comida ainda para três dias, e concebeu portanto o projecto de partir de noite tão depressa quanto possível para novas terras, no Norte. Mesmo quê não detestasse aquela região meridional, teria ido para outro sítio, porque o velho general era tão indolente que há dez anos ou mais não se. mexera daquele ponto e vivia à custa dos habitantes, acabrunhando-os com impostos muito além do que lhes era possível pagar, tomando por isso uma boa parte dos seus cereais. com tais processos, reduzira a população à miséria e já nada tinha a tirar dela, e eis porque Wang o Tigre tinha de partir em busca de países menos explorados.

 

Também não estava na sua intenção dar batalha ao velho general para se assegurar da posse daquela zona sobrecarregada de impostos e projectava ir para regiões vizinhas da sua terra natal, pois havia na direcção Noroeste montanhas onde lhe seria possível abrigar os seus homens e, se fosse perseguido com demasiado calor, refugiar-se nas suas partes mais inacessíveis, naqueles lugares em que as montanhas são abruptas e os habitantes selvagens, e em que os próprios senhores de guerra raramente se aventuram, excepto quando se vêem compelidos à pilhagem e à vida retirada. -Não que pensasse agora nisso; afigurava-se pelo contrário a Wang o Tigre que o caminho estava aberto na sua frente, e que não tinha mais do que caminhar, sem receio, em frente, para alcançar grande nomeada no país, e não punha limites definidos à sua futura grandeza.

 

Então, um a um, os três homens que enviara voltaram. O primeiro disse-lhe:

 

Por toda a parte se sabe já que o velho enxame de abelhas se dividiu e que se formou um novo enxame e por toda a parte as populações estão cheias de medo, porque dizem que foram sugados até aos ossos e dizem que o país não pode sustentar duas hordas.

 

E o que se disfarçara em mendigo disse:

 

Andei em volta do nosso antigo acampamento e cobrira de tal modo a cara de lama e lodo que ninguém foi capaz de me reconhecer, e gemendo e pedindo esmolas, ouvi e vi tudo. O acampamento está em sobressalto e o velho general grita e berra, e manda isto e aquilo, suspende as ordens dadas e ordena outra coisa, e, desnorteado de confusão e raiva, tem a cara vermelha e inchada. Atrevi-me até a aproximar-me dele, para o ver e o ouvir berrar: «Nunca pensei que aquele diabo de sobrancelhas pretas pudesse fazer-me tal partida, pois depositava nele toda a confiança. Venham agora dizer-me que os homens do Norte são mais honrados do que nós! Gostaria de ter agora aqui, a um tiro de espingarda, esse maldito ladrão e filho de ladrão!» E a cada duas Ou três frases, grita que os seus soldados fieis devem pegar em armas, perseguir-nos e dar-nos batalha!

 

O homem calou-se e casquinou uma gargalhada. Era aquele mesmo finório que gostava de lançar graçolas em voz estridente. E concluiu em tom mais alto e mais forte, fazendo caretas sob a máscara de lama:

 

Mas não vi um único soldado mexer-se.

 

Então Wang o Tigre sorriu com o seu ar severo e compreendeu que nada tinha a temer, porque aqueles homens quase há um ano não recebiam soldo e só permaneciam fiéis para terem a possibilidade de nada fazer e de serem, apesar de tudo, sustentados. Mas se lhes fosse exigido combater, exigiriam o soldo antes de se decidirem a tal e Wang o Tigre sabia que, quando se chegasse a isso, o velho general se recusaria a pagar-lhes e que por isso dentro de um ou dois dias a sua cólera arrefeceria, encolheria os ombros e voltaria para junto das suas mulheres, e os seus soldados voltariam a dormir ao Sol, só acordando para comerem e adormecerem outra vez.

 

Wang o Tigre compreendeu que nada tinha a recear e voltou resolutamente os seus cuidados para o Norte.

 

DURANTE três dias, Wang o Tigre permitiu aos seus homens que se divertissem e eles comeram tanto quanto puderam e beberam os odres de vinho até às fezes. Quando ficaram satisfeitos, como não se tinham sentido há muitos meses, cheios e fartos de comida, e depois de dormirem à saciedade, levantaram-se fortes, quesilentos e apaixonados. Ora, Wang o Tigre vivera durante todos esses anos no meio dos soldados e aprendera a conhecer bem os homens, e sabia como se devem manejar indivíduos robustos, vulgares e ignorantes, como se deve espiar e aproveitar o que eles dizem, e como se deve fingir dar-lhes liberdade, mantendo-os o mais possível na trela da sua própria vontade. E assim, quando ouviu os seus homens travarem facilmente disputas e ameaçarem-se uns aos outros, a propósito de nada ou por causa de ninharias, e quando viu que alguns começavam a pensar nas mulheres e a correr após elas, compreendeu que chegara a hora em que era necessário empreender qualquer coisa de penoso.

 

Então, saltou mais uma vez sobre a velha tartaruga, cruzou os braços no peito e exclamou:

 

Esta tarde, quando o Sol tiver desaparecido atrás do horizonte da planície junto à montanha, temos de nos pôr a caminho para nos dirigirmos às terras que são nossas! Que cada um de vós atenda bem ao que vou dizer, e se têm ainda a intenção de regressar para junto do velho general para comer e dormir sem fazer nada, que volte para lá esta noite, e eu não o matarei. Mas se, depois de se ter posto a caminho comigo esta noite, faltar ao juramento que fizemos, então passá-lo-ei ao fio da minha espada.

 

Dizendo estas últimas palavras, Wang o Tigre desembainhou a sua espada tão vivamente como o relâmpago sai da nuvem, e brandiu-a em frente dos homens atentos. E eles ficaram tão perturbados que se desviaram caindo uns sobre os outros e se olharam aterrados. Wang o Tigre ficou à espera e, enquanto esperava, houve cinco entre os mais velhos que se entreolharam dubitativamente e fixaram a espada fulgurante que ele mantinha em riste por cima das suas cabeças, depois, sem uma palavra, levantaram-se, retiraram-se e desceram a montanha e ninguém tornou a vê-los. Wang o Tigre seguiu-os com o olhar, mantendo sempre a espada imóvel e clamou:

 

Há ainda mais?

 

Um grande silêncio reinou sobre os homens e, durante um minuto, nem um só se mexeu. Depois, de repente, uma frágil silhueta curvada separou-se da multidão e apressou-se a passar pela frente do capitão. Era o filho de Wang Mais Velho. Mas quando Wang o Tigre viu quem era, rugiu:

 

Tu não, pequeno idiota! Foste-me dado por teu pai, não és livre!

 

E assim falando, tornou a meter a espada na bainha, e murmurou com desprezo:

 

Nunca seria capaz de mergulhar esta boa lâmina num sangue tão pálido. Não, chicotear-te-ei fortemente, como se chicoteia um garoto!

 

E esperou que o rapaz retomasse o seu lugar, de cabeça baixa, como sempre.

 

Então, Wang o Tigre continuou no tom habitual:

 

Agora está bem. Verifiquem as espingardas e prendam solidamente o calçado aos pés e apertem o cinto, porque esta noite vamos fazer uma grande marcha. Dormiremos de dia e marcharemos de noite, para que os habitantes não saibam que atravessamos o território. Mas de cada vez que chegarmos aos domínios de um senhor de guerra, dir-vos-ei o seu nome, e se alguém vos perguntar quem somos, respondereis: «Somos um bando errante que veio juntar-se ao senhor desta região».

 

E assim aconteceu que à hora de pôr-do-sol, ainda com um pouco de lusco-fusco, mas em que já se acendiam as estrelas, através de uma noite sem lua, os homens meteram-se pelo desfiladeiro, cada um cingido pelo cinturão, com a mochila às costas e a espingarda na mão. Mas Wang o Tigre mandara apenas dar espingardas suplementares aos homens que conhecia bem e em que podia confiar, pois havia muitos entre esses homens que não tinham sido ainda postos à prova e ele preferia perder um homem a uma espingarda. Os que tinham cavalos levaram-nos pela rédea até ao sopé da montanha. Ao chegar lá, antes de tomar a grande estrada para o Norte, Wang o Tigre mandou fazer alto, e disse na sua voz rude:

 

Nem um só de vós deve deter-se a não ser onde eu mandar, e não faremos qualquer paragem demorada antes do crepúsculo e numa aldeia da minha escolha. Aí podereis comer e beber, que eu pagarei.

 

Dizendo isto, saltou para o cavalo, grande bicho de cor arruivada, ossudo, e com longa cauda frisada, que provinha das planuras da Mongólia, cavalo fortíssimo e infatigável. Era necessário que fosse assim nessa noite, pois debaixo dele Wang o Tigre pusera a maior parte do dinheiro que levava, e o que não podia levar no cavalo entregara-o ao seu homem de confiança e a alguns outros menores importâncias, e assim, se um deles cedesse a uma tentação que pode muito bem assaltar qualquer pessoa, não seria grande o prejuízo. Mas, apesar da sua cavalgadura ser resistente, Wang o Tigre não lhe exigia rapidez. Compassivo, no fundo, moderou o andamento do cavalo e manteve-o a passo, por consideração para com os seus homens que não possuíam montadas e tinham de seguir a pé. De um e outro lado, cavalgavam também os seus dois sobrinhos, a quem ele tinha comprado burros, cujas curtas patas não podiam rivalizar com o passo do cavalo. Dos seus homens, uns trinta seguiam a cavalo e os outros a pé, e Wang o Tigre separou os seus cavaleiros do resto e pôs metade à frente, metade atrás, e os soldados de infantaria no meio.

 

Assim foram avançando através da noite silenciosa, quilómetro após quilómetro, parando agora e logo, quando Wang o Tigre gritava que podiam descansar um momento, e voltando a partir assim que ele o ordenava. E os seus homens, sem se queixar, seguiam-no porque esperavam muito dele. Também Wang o Tigre se sentia satisfeito com eles, e jurava de si para si que se lhe não falhassem, também ele não lhes falharia a eles, e mais tarde, quando se tivesse tornado uma ilustre personagem, daria acesso de posto a cada um daqueles soldados que tinham sido os primeiros a segui-lo. Assim os olhando, pensando neles como dependentes dele e nele confiantes, assim como as crianças confiam nos que se ocupam delas, Wang o Tigre sentiu subir-lhe no coração uma ternura para com aqueles homens, pois acontecia-lhe enternecer-se assim, a sós consigo, e mostrava-se bondoso para com os seus homens, deixando-os descansar um pouco mais tempo de vez em quando, e eles então deitavam-se numa facha de terreno arrelvado, ou à sombra dos zimbros como aqueles que se plantam em redor das sepulturas.

 

Assim foram caminhando durante mais de vinte noites, e de dia descansavam nas aldeias que Wang o Tigre indicava. Mas antes de chegarem a uma aldeia, tinha o cuidado de se informar sobre quem era o senhor do território, e se alguém perguntava que bando era aquele e aonde iam aqueles homens, Wang o Tigre tinha a resposta pronta.

 

Portanto, em cada aldeia, quando os habitantes os viam chegar, soltavam grandes lamentações, não sabendo já quanto tempo aqueles soldados errantes ficariam, ou o que comeriam, ou que mulheres poderiam desejar. Mas Wang o Tigre, nestes primeiros dias, tinha altos desígnios e mantinha a trela apertada aos seus homens, e tanto mais apertada quanto a sua estranha frigidez para com as mulheres fazia com que ele se irritasse ao ver outros homens inflamarem-se por causa delas. E dizia-lhes:

 

Não somos ladrões e eu não sou um capitão de bandidos! Quero abrir um caminho melhor do que esse para a grandeza e havemos de vencer pela ciência das armas e por meios honrosos e não devorando as subsistências da população. Aquilo de que carecerdes, deverá ser comprado, eu o pagarei. Recebereis todos os meses o vosso soldo. Mas não tocareis nas mulheres, a não ser naquelas que se vos entregarem e cujo ofício é ter relações com os homens por dinheiro; e deveis dirigir-vos a elas só quando absolutamente o puderdes. Tereis cautela em não vos dirigirdes às que são demasiado acessíveis e que têm uma doença infame, e que a propagam em torno de si. Não toqueis nessas! E se eu souber que um dos meus homens tomou ilegalmente uma esposa virtuosa ou uma virgem, esse homem matá-lo-ei sem sequer lhe dar tempo de dizer o que fez!

 

Ora, quando Wang o Tigre assim falava, cada um dos seus homens detinha-se para o ouvir e para reflectir, pois viam-lhe os olhos fulgurar sob as sobrancelhas e muito bem sabiam que, apesar do seu bom fundo, o capitão não receava matar um homem. Os jovens soltavam murmúrios de admiração, porque nesses tempos Wang o Tigre era o seu herói, e gritavam-lhe: «Ah, Tigre... Ah, Tigre de sobrecenho negro!» E assim iam marchando ou se detinham sob o seu comando e cada homem obedecia a Wang o Tigre ou, no caso contrário, se escondia dos seus olhos.

 

Por numerosas razões, Wang o Tigre escolhera estabelecer-se numa região não muito distante da terra natal, e era, entre outras, porque estaria perto dos seus irmãos e assim se asseguraria de que receberia deles o dinheiro necessário até lhe ser possível lançar imposto, evitando do mesmo passo o perigo de lhe ser roubado por bandidos o dinheiro que lhe enviassem. Além disso, se tivesse algum revés considerável e inesperado, tal como pode acontecer a qualquer homem de quem se afaste o favor do Céu, ser-lhe-ia possível desaparecer no seio dos concidadãos, e a sua família era tão considerada e tão rica que ficaria protegido. Eis porque se dirigiu sem hesitação para a cidade onde habitavam os irmãos.

 

Mas na véspera do dia em que chegaram à vista das muralhas da cidade, Wang o Tigre irritou-se contra os seus homens, pois marchavam rezingando; e ao chegar a noite, quando lhes ordenou que se pusessem a caminho, demoraram tempo a preparar-se e Wang o Tigre ouviu alguns deles murmurarem e queixarem-se, e um dizia:

 

Ora, há coisas melhores do que a glória e eu pergunto-me se teremos feito bem em seguir um homem feroz e altivo como este!

 

E outro acrescentava:

 

Vale mais ter tempo de dormir e não ser obrigado a massacrar as pernas, mesmo quando não haja de comer!

 

Na verdade, aqueles homens encontravam-se extenuados. Não estavam habituados a marchar assim ininterruptamente, porque há vários anos o general levava vida tão indolente -que o seu relaxamento contaminara os seus soldados. E sabendo muito bem o que são seres ignorantes, Wang o Tigre maldizia-os no fundo do seu coração, ao ver que eles se punham a lamentar-se no momento em que se aproximavam das suas terras do Norte. Esquecia-se de que, enquanto ele se alegrara de se dirigir para o Norte e se felicitara por poder comprar o bom pão e por sentir outra vez o cheiro forte do alho, tais coisas eram ainda novas para os seus homens. Uma noite em que descansavam sob o zimbro, o seu homem de confiança disse-lhe em segredo:

 

É tempo de os deixarmos restabelecer-se em qualquer ponto uns três dias seguidos e é tempo de lhes darmos um festim e de lhes concedermos uma gratificação suplementar.

 

Wang o Tigre levantou-se de um salto e disse:

 

Mostrem-me o homem que fala em ficar para trás e eu meto-lhe uma bala nas costas.

 

Mas o homem de confiança de lábio rachado puxou Wang o Tigre de parte e cochichou-lhe para o acalmar:

 

Vamos, vamos, capitão, não fale assim. Suspenda a sua cólera. Os soldados, no fundo, não passam de crianças, e mostrariam energia que não julgaríeis possível, se tivessem perante eles a esperança de um pouco de prazer, embora fosse apenas uma pequena recompensa, tal como um prato de carne, um pichel de vinho novo ou um dia de ociosidade para se entregarem ao jogo. São tão simples como isso, tão fáceis de contentar e prontos a entristecer. Os olhos dos seus espíritos não estão abertos como os vossos, meu capitão, e são incapazes de ver na frente deles mais que o tempo de uma jornada.

 

Ora, Wang o Tigre sabia que o seu homem de confiança tinha razão, e eis por que se aproximou dos seus homens que estavam estendidos, fatigados e silenciosos, à sombra do zimbro, e lhes disse com mais afabilidade do que era habitual:

 

Queridos irmãos, estamos todos perto da minha cidade, e perto da aldeia onde nasci, e conheço todos os caminhos e atalhos para estes lados. Vós fostes valentes e infatigáveis, durante todos estes dias e estas noites penosas, e agora vou preparar-vos a devida recompensa. Levar-vos-ei até às aldeias que circundam a minha própria povoação, mas não à minha própria aldeia, porque os seus habitantes me são familiares e recearia ofendê-los. E mandarei comprar algumas cabeças de gado, assim como porcos e patos e gansos, e vós comereis tanto quanto vos apetecer. Tereis também vinho, e aqui há o melhor do país, vinho capitoso e claro, cujos vapores facilmente se dissipam. E cada homem terá três moedas de prata como recompensa.

 

Então os soldados ficaram satisfeitos e levantaram-se a rir e puseram a espingarda ao ombro, caminharam naquela mesma noite até à cidade, ultrapassaram-na, e Wang o Tigre guiou-os até às povoações situadas para além da sua. Ali, fez alto e escolheu quatro povoações para aboletar nelas os seus homens. Mas não os aboletou aí à força, como fazem os senhores de guerra. Começou por ir pessoalmente de aldeia em aldeia, no alvor da madrugada, à hora em que o fumo começa a escapar-se pelas portas entreabertas, quando se aquecem os fogões para a primeira refeição; mandou chamar os chefes da aldeia e disse-lhes delicadamente:

 

Pagarei em dinheiro tudo o que vos tomarmos e nenhum dos meus homens deverá aproximar-se de mulher que lhe seja defesa. Tendes que aboletar vinte e cinco homens.

 

Mas, apesar do seu tom delicado os anciãos da aldeia sentiam-se muito inquietos, porque já tinham recebido promessas semelhantes de outros senhores de guerra e que apesar disso lhes não tinham pago coisa alguma. Olhavam Wang o Tigre pelo canto do olho, cofiando a barbicha e falando baixinho uns com os outros, no limiar das casas, e acabaram por pedir a Wang o Tigre um penhor da sua boa fé.

 

Então Wang o Tigre tirou generosamente o seu dinheiro, pois aqueles eram conterrâneos, e deixou penhor na mão de um ancião de cada uma das aldeias e advertiu particularmente os seus soldados antes de os deixar:

 

Deveis lembrar-vos de que estes homens eram amigos de meu pai, e de que estais aqui na minha própria terra. Falai polidamente, não pegueis em nada sem pagar e se qualquer dos meus soldados se dirigir a mulher que não seja pública, matá-lo-ei!

 

Vendo a que ponto ele era duro, os seus homens prometeram-lhe em alta voz e com muitos e sólidos juramentos não deixarem de fazer o que dizia. Depois, quando ficaram todos aboletados e lhes deram de comer e o capitão pagou bastante dinheiro para transformar em sorrisos os olhares desconfiados dos camponeses, quando tudo ficou bem estabelecido, olhou os dois sobrinhos e disse-lhes num capricho de bom humor, pois era-lhe na verdade grato reencontrar-se na sua própria terra:

 

Eh! rapazes! Os vossos pais vão ficar contentes de vos ver e durante sete dias vou eu descansar também, porque a nossa guerra espera-nos.

 

E dirigiu o seu cavalo para o Sul e passou diante da casa de adobe sem se deter, pois não se aproximou muito de propósito e os seus dois sobrinhos seguiam-no nos seus burros. Chegaram assim à cidade e atravessaram outra vêz as velhas portas e chegaram a casa. pela primeira vez, há muitos meses, um pálido sorriso iluminava a fisionomia do filho de- Wang Mais Velho, que mostrou entusiasmo em dirigir-se para sua casa.

 

DURANTE sete dias e sete noites, Wang o Tigre estanciou na Grande Casa da cidade e os seus irmãos festejaram-no como o hóspede de consideração. Quatro dias e quatro noites ficou nos aposentos do seu irmão mais velho e este fez tudo quanto pôde para concitar as boas graças do seu irmão mais novo. Mas tudo o que ele soube fazer foi oferecer-lhe coisas que para si próprio considerava agradáveis, e assim levou-o todas as noites às casas de chá onde havia cantoras e tocadoras de alaúde, e levou-o ao teatro. Mas parecia que Wang Mais Velho se dava mais prazer a si do que ao irmão, porque Wang o Tigre era um homem estranho. Recusava-se a comer mais do que o necessário para satisfazer o apetite e detinha-se então e ficava em silêncio a ver comer os outros, e recusava-se a beber mais do que o necessário para matar a sede.

 

E posto acompanhasse o seu irmão mais velho a essas casas de chá onde vão os homens para se divertirem com mulheres, permanecia rígido e frio e de espada pendente ao cinturão que não desafivelava, e tudo considerava com olhar sombrio. Se não parecia descontente, também não se mostrava satisfeito, e não parecia notar que nenhuma cantora fosse superior a qualquer outra pela beleza da voz ou da fisionomia, embora várias o tivessem notado, tentadas pelo seu másculo vigor e pelo seu bom aspecto, até ao ponto de fazerem tudo por conciliar as suas boas graças. Iam pousar-lhe nos ombros as pequeninas mãos e lançavam-lhe olhares lânguidos, que demoravam longamente nele. Mas ele permanecia rígido e impassível, examinando-as a todas da mesma forma, com o habitual rictus dos seus lábios, e se lhe acontecia dizer-lhes qualquer coisa, em vez das coisas a que estão habituadas as mulheres bonitas, dizia:

 

Esta canção parece-me igual ao piar dos gaios!

 

E uma vez em que uma encantadora criaturinha, pintada e de boca deliciosa, o fixava obstinadamente, cantando a sua cançoneta, ele atirou-lhe estas palavras: «Estou farto disto tudo!» Levantou-se desabrido e foi-se embora, e Wang Mais Velho teve de o seguir, conquanto fosse contra sua vontade deixar uma tão boa representação.

 

A verdade era que Wang o Tigre herdara da mãe as suas maneiras taciturnas, de modo que nunca dizia nada senão em caso de necessidade e as suas palavras eram então de uma tão amarga franqueza que depois de as ouvir uma ou duas vezes se tinha receio até de o ver entreabrir os lábios.

 

Foi assim que ele falou, um dia em que a esposa de Wang Mais Velho teve a ideia de vir solicitá-lo um pouco e dizer-lhe algumas boas palavras em favor do seu segundo filho. Entrou uma tarde no quarto em que Wang o Tigre estava a beber chá, estando Wang Mais Velho sentado ao pé de uma mesinha, a beber vinho. Entrou com passinho miúdo, o ar modesto, os olhos baixos, e inclinou-se e requebrou-se sem sequer olhar os homens. Mas quando a viu chegar, Wang Mais Velho limpou a cara à pressa e serviu-se de uma chávena de chá, em vez de vinho que tinha ali quente, num pichel de estanho.

 

Ela entrou com ar doente e passos vacilantes, e sentou-se numa cadeira inferior àquela que por direito lhe cabia, embora Wang o Tigre se tivesse levantado e lhe fizesse sinal para se sentar mais alto. Mas a esposa disse-lhe, e adoptou a sua vòzinha aflautada, como nesses dias fazia, sempre que não se esquecesse ou não estivesse encolerizada:

 

Não, cunhado, eu sei qual o meu lugar, e não passo de uma pobre e indigna mulher. E se alguma vez o esqueço, o meu senhor não deixa de mo lembrar, visto que possui tantas mulheres melhores e mais dignas do que eu.

 

Dito isto, lançou um olhar de lado a Wang Mais Velho, de tal maneira que ele se sentiu desassossegado e murmurou, numa voz desanimada:

 

Ora vamos, senhora, quando é que eu...

 

E começou a procurar em si próprio se fizera recentemente alguma coisa de especial de que ela pudesse ter ouvido falar em seu desabono. A verdade é que tinha voltado a encontrar-se com a cantora que era jovem e gentil e que tanto lhe agradara numa noite de festa, e começara a ir vê-la e a pagar-lhe uma quantia certa, e tinha a intenção de a instalar em qualquer ponto da cidade, com uma pensão, como fazem os homens quando não lhes agrada sobrecarregar a sua vida caseira com o embaraço de uma nova mulher, e a desejam no entanto o bastante para a reservarem para si, pelo menos por algum tempo. Mas isso não o tinha ele ainda realizado, porque a mãe da pequena vivia ainda e era uma velha muito ávida, que não queria contentar-se com a soma que Wang Mais Velho oferecia pela filha. E assim ele julgara que sua esposa não podia ter ouvido falar disso. Limpou outra vez o rosto com a manga, desviando os olhos dela, e bebeu o seu chá lentamente a grandes goles sonoros.

 

Mas a esposa, que nesse momento não estava a pensar nele, prosseguiu sem dar atenção à sua resmunguice:

 

Disse de mim para mim que, embora humilde como sou, não passando de uma pobre mulher, nem por isso sou menos a mãe do meu filho e devo agradecer ao meu cunhado o que fez pelo nosso indigno filho segundo. Embora os meus agradecimentos nada valham para uma personalidade como vós, é no entanto para mim um prazer fazer aquilo que devo e assim faço, a despeito de todos os fardos e de todas as privações que tenho de suportar.

 

Neste ponto, lançou um novo olhar ao seu senhor, que coçou a cabeça, a olhou apatetadamente e ficou de novo a transpirar, porque não sabia o que ela iria dizer e era tão obeso que transpirava por uma pequena coisa. Mas ela continuou:

 

Apresento-lhe portanto os meus agradecimentos, cunhado, e embora indignos, afirmo-lhe que nascem de um coração puro. Quanto ao meu filho, direi que se há rapaz digno da sua benevolência, é bem esse, que é o rapaz mais amável, o melhor, o mais gentil, e tão inteligente! Sou sua mãe e embora digam que as mães vêem sempre os filhos pelo melhor, não deixarei por isso de repetir que vos demos o melhor filho que temos, o meu senhor e eu.

 

Entretanto, Wang o Tigre não tinha mexido um dedo e olhava-a fixamente, como tinha por costume quando alguém falava, e fitava as pessoas de modo tão estranho que não era possível saber se ele ouvia o que se dizia ou não, excepto quando vinha a sua resposta que, neste caso, veio, brutal e súbita:

 

Se assim é, cunhada, tenho grande pena por meu irmão e por si. Esse rapaz é o mais tímido e o mais fraco que eu jamais vi e não há nele mais fel do que numa galinha. Tenho pena de que me não tenhais dado o vosso filho mais velho. É um rapagão enérgico e eu podia tê-lo posto à prova e fazer qualquer coisa dele. Mas o vosso segundo filho está sempre a choramingar, o que me dá constantemente a impressão de transportar comigo um pobre passarinho. Não se pode pensar em educá-lo, porque não tem nenhuma disposição, e desse modo nada há a fazer dele. Não, os dois filhos dos meus irmãos causaram-me desapontamento, porque o vosso é demasiado mole e demasiado tímido e o seu cérebro vai-se em lágrimas, e o outro rapaz serve, é enérgico e suficientemente rude para o nosso género de vida, mas é irreflectido, gosta de se rir, é um pândego, e eu não sei se um pândego pode ir muito longe. Sinto não ter eu próprio um filho para empregar, agora que preciso de um.

 

Ora ninguém sabe o que a dama poderia ter respondido a um tal discurso, mas Wang Mais Velho estava trémulo, porque sabia que nunca ninguém falara tão claro a sua mulher, e o rubor subiu-lhe às faces e abriu a boca para dar uma resposta azeda. Mas, antes que tivesse tempo de dizer uma palavra, o filho mais velho saiu de repente de detrás de um cortinado onde estava a ouvir e exclamou fogosamente:

 

Oh, deixe-me ir, mãe... quero partir!

 

E ali, diante de todos eles, impaciente e belo na sua juventude, passava vivamente os olhos de um rosto para outro. Trazia uma túnica azul forte, da cor das penas do pavão, tal como os jovens senhores gostam de usar, e sapatos de couro de fabrico estrangeiro, e tinha no dedo um anel de jade e usava os cabelos cortados segundo a moda mais recente e alisados atrás com óleo aromático. Era pálido como os filhos das casas ricas que nunca foram obrigados a trabalhar nem a queixar-se ao Sol, e as suas mãos eram lânguidas como mãos de mulher. Mas havia com isso tudo qualquer coisa de muito enérgico no seu aspecto, e apesar do trajar luxuoso e da palidez, tinha o olhar vivo e ardente. Nem se movia com languidez quando se esquecia de que era moda para os jovens da cidade parecerem lânguidos e desabusados. Então, como agora, e sempre que estava animado pela chama do desejo, sabia apresentar-se sem langor algum.

 

Mas a mãe pôs-se a soltar altos gritos:

 

Eis a maior insânia que jamais ouvi. És o filho mais velho e o chefe da casa, depois do teu pai. Como poderíamos nós deixar-te ir para a guerra e talvez até entrares numa batalha e morrer? Nada poupámos por amor de ti; mandámos-te a todas as escolas da cidade e demos-te letrados para te ensinarem, e chegámos até a mandar-te para o Sul frequentar uma escola. Como poderíamos nós deixar-te ir para a guerra? (Depois, vendo que Wang Mais Velho permanecia em silêncio e abanava a cabeça, continuou com secura). Terei eu também de tomar sozinha este fardo sobre os meus ombros?

 

Então Wang Mais Velho corroborou timidamente:

 

A tua mãe tem razão, filho. Ela tem sempre razão, não podemos comprometer-te em tal aventura.

 

Mas o rapaz, embora tivesse perto de dezanove anos, começou a bater com o pé no chão, a chorar, a berrar e correu até dar com a cabeça na porta, gritando:

 

Vou envenenar-me, se não puder fazer o que me agradar!

 

Então os pais levantaram-se em grande aflição e a dama gritou através da porta que era preciso mandar buscar o criado do patrão mais novo, e quando o homem chegou, aterrado, gritou-lhe:

 

Leva o menino para qualquer parte, para se divertir. Trata de distraí-lo e de lhe fazer passar a cólera.

 

E Wang Mais Velho apressou-se a tirar do cinto um bom punhado de dinheiro e obrigou o filho a pegar nele, dizendo:

 

Toma lá, filho, e vai comprar qualquer coisa que te agrade ou gasta-o ao jogo ou no que quiseres.

 

A princípio, o rapaz repeliu o dinheiro e fez como se não quisesse aceitar tal consolo, mas o criado animou-o e exortou-o com tanto jeito que, ao fim de um momento, o rapaz pegou no dinheiro como se fosse contra vontade e depois correndo para um lado e para outro e gritando que queria partir e ir com o tio, deixou-se levar.

 

Quando a cena acabou, a dama deixou-se cair numa cadeira e com um suspiro de desolação, balbuciou:

 

Foi sempre assim... um voluntarioso... nunca soubemos como proceder com ele... é mais difícil de educar do que aquele que lhe demos.

 

Wang o Tigre, que ficara a considerar gravemente toda a cena, observou então:

 

É mais fácil de educar ali onde se encontra uma vontade do que quando ela não existe. Eu poderia fazer alguma coisa deste rapaz se o tivesse. Toda esta tempestade provém exactamente de ele não ter sido educado.

 

Mas a dama estava já demasiado vexada para poder suportar mais e não pôde tolerar ouvir dizer que os seus filhos não eram bem educados. Levantou-se, portanto, com o seu ar majestoso e articulou, fazendo um cumprimento:

 

Têm sem dúvida muito que dizer um ao outro.

 

E   retirou-se.

 

Então Wang o Tigre olhou para o irmão mais velho com severa piedade e calaram-se durante um momento. Wang Mais Velho recomeçou a beber, embora o fizesse agora sem gosto, e o seu largo rosto exprimisse melancolia. Por fim, disse mais pensativamente do que lhe era hábito, e soltando um profundo suspiro antes de falar:

 

Há uma coisa que é para mim um enigma e é esta: que uma mulher possa ser tão meiga e tão dócil perante a vontade de um homem quando é jovem e que com a idade se torne uma pessoa completamente diferente e seja vexante e atormentadora e destituída de todo o bom senso, a ponto de tornar um homem maluco. Desejaria poder passar sem as mulheres, pois estou convencido de que a segunda virá a ser como a primeira, e que são todas assim. E olhou o irmão com estranha inveja e ar tão tristonho como o de uma criança crescida, e continuou tristemente: Tu és feliz, mais feliz do que eu; estás livre de mulheres e livre da terra. Eu encontro-me ligado duplamente. Se eu próprio não administro, não tiro nada dela, porque os malditos camponeses são todos uns ladrões, aliados contra o proprietário, por mais justo e por melhor que ele seja. E quanto ao meu intendente, quem ouviu falar alguma vez de um intendente honrado?Nos grossos lábios passou-lhe um sorriso dolorido e, suspirando outra vez, olhou novamente o irmão, e depois continuou: Sim, tu és feliz. Não tens terra e não estás ligado a nenhuma mulher.

 

Wang o Tigre replicou com desprezo:

 

Não tenho nenhuma espécie de relações com mulheres.

 

E sentiu-se muito satisfeito quando se passaram os quatro dias e pôde ir para casa de Wang Segundo.

 

Ora, quando Wang o Tigre chegou à casa do seu segundo irmão, não pôde deixar de se maravilhar ao ver como ela era diferente da outra, e como ali reinava uma boa disposição, a despeito das disputas e das questões entre os pequenos. Todo o barulho e o bom humor se concentrava na esposa campónia de Wang Segundo. Era uma bulhenta e exuberante companheira, e de todas as vezes que falava, a sua voz alta e sonora ressoava pela casa fora. E embora perdesse a paciência vinte vezes por dia e vinte vezes por dia desse sapatadas nos filhos para a direita e para a esquerda, com a manga constantemente arregaçada até ao cotovelo, e às vezes até lançasse uma tal bofetada na cara de um, de tal maneira que toda a casa se enchia de gritos e berrata desde pela manhã até à noite, e embora cada criado gritasse mais fortemente do que a patroa, isso não a impedia também de ser boa, dentro das suas maneiras brutais, agarrando num filho que passava para lhe dar um beijo rechonchudo no pescoço gorducho. E conquanto fosse económica, se acaso um filho vinha pedir-lhe dinheiro para comprar a um vendedor que passava na rua um pau de açúcar cândi ou uma taça de qualquer guloseima quente ou um pau de cana de açúcar ou qualquer outra coisa de que as crianças gostam, ela não deixava de mergulhar a mão nas profundezas da blusa para de lá tirar a pequena moeda. Naquela casa ruidosa e apaixonada, Wang Segundo circulava tranquilo, sereno e ocupado nos seus secretos planos, e sentia-se sempre muito contente com todos e ele e a mulher viviam em perfeita harmonia.

 

Nesses dias, Wang o Tigre pôs de lado, pela primeira vez, os seus projectos de glória e enquanto os seus homens descansavam e se divertiam, ele vivia na casa do irmão, encontrando nela alguma coisa que lhe agradava. Compreendia porque seu sobrinho o Bexigoso, sempre alegre e risonho, provinha daquela casa, e por que motivo o outro estava sempre tímido e cheio de medo. Sentia o contentamento que reinava entre Wang Segundo e a mulher e sentia também o contentamento que tinham os filhos, posto que muitas vezes não estivessem lavados e nenhum criado se ocupasse com eles, excepto para lhes dar de comer durante o dia, ou para à noite os deitar numa cama ou noutra. Mas todos os filhos da ninhada eram alegres e Wang o Tigre seguia-os por toda a parte com os olhos, tendo no coração uma estranha emoção. Havia um garotinho de cinco anos ou cerca disso pelo qual Wang o Tigre se interessava sobretudo, pois era o rapazinho mais bonito e mais rechonchudo, e Wang o Tigre gostaria de conciliar a sua amizade. Mas quando ele, hesitante, estendia a mão ao menino, ou pegava numa moeda para lhe oferecer, o pequeno tornava-se de repente grave e metia os dedos na boca, considerava o rosto sombrio de Wang o Tigre, e fugia, abanando a cabeça. E Wang o Tigre sentia-se tão penalizado por aquela recusa como se o rapaz fosse um homem, embora se esforçasse por sorrir e esconder o seu despeito.

 

Wang o Tigre esperou assim que os sete dias tivessem passado. A sua insólita ociosidade tornava-o mais pensativo do que de ordinário o era, e vendo aquelas duas casas cheias de crianças, sentiu não ter um filho ligado a si. E pensava também um pouco nas mulheres, pois era a primeira vez que habitava numa casa onde havia esposas e criadas e escravas jovens a correrem daqui para ali. E sentia por vezes em si um estranho e doce alvoroço quando via uma esbelta rapariga de costas para ele, ocupada em qualquer trabalho caseiro, e lembrava-se de que Flor de Pereira lhe aparecera assim, naqueles mesmos lugares onde ele vivera quando rapaz. Mas quando a rapariga se voltava e lhe via o rosto, sentia a mesma perturbação de outrora, e a verdade era que se produzira na sua juventude um tal emparedamento das vivas nascentes que, ao aspecto de um qualquer rosto de mulher, se lhe fazia uma pausa no coração e se desviava.

 

Mas na ociosidade em que se encontrava e com aquela leve turbação de outrora, sentia-se nervoso e agitado, e uma tarde ocorreu-lhe ir apresentar os seus respeitos a Lotus, porque era na parte de casa que Lotus habitava que lhe acontecia outrora ver Flor de Pereira, e tinha um secreto desejo de voltar a ver os aposentos e o pátio. Dirigiu-se portanto a casa de Lotus, depois de lhe ter mandado anunciar a sua visita, e Lotus ergueu-se da mesa onde estava a jogar com as amigas. Mas não ficou por muito tempo. Circunvagando os seus olhares pelo quarto, recordou-se de tudo, e lamentou então ter vindo. Levantou-se e sentiu-se outra vez perturbado e não quis ficar. Mas Lotus, que não compreendia o seu ar preocupado, exclamou:

 

Fique, porque eu tenho um pote de gengibre com açúcar, raiz de lotus em doce e muitas daquelas outras coisas que agradam aos jovens. Não me esqueci do que são rapazes, não! Apesar de estar assim velha-e gorda, lembro-me bem de como vocês todos são!

 

E pousou-lhe a mão no braço e riu com o seu grosso riso, lançando-lhe olhares de lado. Ele então detestou-a de repente e tornou-se rápido e inclinou-se, e apresentando-lhe outra vez desculpas, retirou-se o mais depressa que pôde. Mas ouviu o riso escarninho das velhas que tinham recomeçado já a jogar e esse riso perseguiu-o até ao pátio.

 

Mas enquanto se afastava, sentia que a sua agitação ia aumentando. A sua vida era agora muito longe dali. Era-lhe necessário pôr-se a caminho. Logo que tivesse visitado o túmulo do pai, como era seu dever e especialmente antes de empreender a aventura, desejaria estar a caminho e longe daqueles lugares.

 

E assim, portanto, no dia seguinte de manhã, o sexto dia, disse a Wang Segundo:

 

Ficarei apenas o tempo necessário para queimar um pouco de incenso no túmulo de meu pai, de outro modo os meus homens tornar-se-ão moles” e preguiçosos e temos ainda longa jornada a fazer. Que tens tu a dizer-me a propósito das quantias de que preciso ?

 

E Wang Segundo respondeu:

 

Nada, a não ser que te darei todos os meses aquilo que combinámos.

 

Mas Wang o Tigre exclamou com impaciência:

 

Podes ter a certeza de que te reembolsarei um dia de tudo quanto me emprestares! vou agora à sepultura de meu pai. E tu, portanto, prepara as coisas de maneira que os dois rapazes estejam prontos a partir comigo e que não bebam nem comam hoje demasiado, pois partiremos amanhã de manhã ao nascer do dia.

 

E afastou-se, quase lamentando ter de levar consigo mais uma vez o filho do seu irmão mais velho, mas não sabendo como recusar, com receio de que isso fizesse nascer inveja. E, ao partir, tomou um punhado de incenso de uma provisão que havia em casa e dirigiu-se à sepultura do pai.

 

Ora os dois, pai e filho, tinham vivido muito longe um do outro, quando viviam juntos, e até mesmo a infância de Wang o Tigre fora amarga porque o pai lhe dizia que devia ficar ligado à terra, e Wang o Tigre crescera no ódio à terra. Odiava-a agora e, ao aproximar-se da casa de adobe que era sua, odiava-a; embora tivesse sido ali que, ainda criança, habitara, porque fora então uma prisão para ele e julgara nunca mais se poder dela libertar. Não passou portanto ao pé dela, mas deu uma volta e, atravessando um pequeno bosque, chegou ao montículo onde estavam abertas as sepulturas da família.

 

E quando se ia a aproximar com passo rápido, ouviu um ruído abafado, como de alguém a chorar, e ao ouvi-lo perguntou-se quem poderia estar a chorar sobre aquela sepultura, pois sabia que Lotus estava a jogar e não podia encontrar-se ali. Amorteceu então o passo, aproximou-se e olhou através das árvores. Era o mais estranho espectáculo que até então vira. Flor de Pereira inclinava a cabeça sobre o túmulo do pai e estava caída na relva à maneira das mulheres quando choram e supõem que não há ninguém nas proximidades e que podem chorar sem ser consoladas. Não longe encontrava-se sua irmã, a idiota, que não via há muitos anos e que tinha agora os cabelos quase brancos e o rosto fanado e encarquilhado. Sentada numa mancha de Sol outonal, brincava com um pedaço de trapo vermelho, dobrando-o e tornando a dobrá-lo e sorrindo de o ver assim vermelho, ao Sol. E agarrado docilmente à blusa como uma criança a quem foi dada ordem de fazer qualquer coisa que lhe agrada, estava sentado um rapazinho trôpego e corcunda. Voltava o rosto com uma expressão de tristeza para a mulher que chorava e franzia a boca, prestes a chorar também, por amor dela.

 

Wang o Tigre ficou-se imobilizado de surpresa, a ouvir Flor de Pereira lamentar-se com a sua discreção habitual, como se as lágrimas viessem do mais profundo dela própria. E, de repente, não pôde mais. Deixou cair o incenso ali onde se encontrava, deu meia volta e afastou-se a passo rápido, respirando a fortes haustos, mas sem se aperceber disso.

 

Atravessou em sentido inverso rapidamente os campos por onde viera e só uma coisa sentia: que devia fugir para longe daqueles lugares, daquela terra... daquela mulher... e ir-se embora tratar do que lhe dizia respeito. E voltando-se sob o duro Sol de Outono que caía brilhante e claro nos campos, nada via do que olhava, não notava beleza alguma na paisagem.

 

Ao nascer do dia, estava a pé e montado no seu cavalo ruivo. O cavalo relinchava e escarvava o chão no ar gelado, os seus cascos batiam fortemente no empedrado da rua, e o jovem Bexigoso, satisfeito com tudo que comera na refeição da manhã, montava o seu burro, e assim foram os dois até à porta de Wang Mais Velho, para trazer o outro rapaz. Mas logo um criado saiu precipitadamente da porta e, correndo desalmadamente, exclamou:

 

Que desgraça!... Que maldição sobre esta casa!

 

E continuou a correr.

 

Então Wang o Tigre sentiu subir nele a impaciência e berrou:

 

Que maldição? O que é uma maldição é que o Sol esteja já acima do horizonte e que eu não tenha ainda partido!

 

Mas o homem não se voltou. Então Wang o Tigre soltou uma grande praga e gritou ao Bexigoso:

 

Esse teu maldito primo não é para mim mais que um fardo e nunca será outra coisa! Vai buscá-lo e dize-lhe que deve vir ou que eu não o quero mais!

 

O jovem Bexigoso deixou-se escorregar do burro abaixo e entrou a correr. Wang o Tigre desceu do cavalo mais devagar, dirigiu-se à porta e entregou as rédeas ao porteiro. Mas sem lhe dar tempo de ir mais longe, o rapaz saíra, branco como um espectro e tão ofegante como se, a correr, tivesse dado a volta às muralhas da cidade. E balbuciou, entre suspiros:

 

Nunca mais,   nunca mais vem...   morreu...   enforcou-se!

 

Que dizes, macaquito? berrou Wang o Tigre.

 

E, de um salto, penetrou em casa do irmão.

 

Era grande o alvoroço. Homens, mulheres e criados estavam reunidos em volta de qualquer coisa no pátio, e por sobre o rumor das exclamações ouviam-se os uivos desesperados de uma mulher, e era a mãe do pequeno que assim gritava. Mas Wang o Tigre afastou a gente para o lado e no centro da multidão avistou Wang Mais Velho. O seu largo rosto estava amarelo como uma vela velha e convulsionado de soluços, e sustentava nos braços o corpo do seu segundo filho. O rapaz estava estendido no chão, sob o belo sol matinal, morto; a cabeça caía-lhe para trás, nos braços do pai. Enforcara-se com o cinto, numa trave do quarto em que dormia com o irmão mais velho, e o irmão de nada se apercebera até de manhã, ao acordar, porque dormia com sono profundo depois de ter bebido muito, na noite anterior, numa alegre orgia. Quando acordou ao alvorecer e viu pendente a delgada silhueta, supôs a princípio que era uma peça de roupa e perguntou-se por que motivo estava ali pendurada, mas quando olhou de mais perto, soltou tais gritos que acordou a casa inteira.

 

Então Wang o Tigre, quando alguém lhe contou aquela história, e umas vinte outras pessoas ajudaram a contá-la, ficou a olhar o sobrinho morto com a mais estranha emoção, e durante um momento teve pena daquele rapazinho como nunca sentira quando ele vivia. Agora que estava morto parecia ainda mais débil e mais frágil. E quando Wang Mais Velho ergueu os olhos e viu o irmão, balbuciou:

 

Nunca teria suposto que este meu filho escolhesse a morte de preferência a seguir contigo! Deves tê-lo tratado muito mal para fazeres com que te odiasse tanto! É uma sorte para ti seres meu irmão, porque... se o não fosses...

 

Não, irmãodisse Wang o Tigre mais docemente do que costumava, não o tratei mal: Ele tinha até um burro para montar, quando outros, mais velhos,, iam a pé. Mas também eu nunca poderia supor que ele fosse assim corajoso para se dar a morte. Ter-me-ia sido possível fazer qualquer coisa dele se tivesse sabido que ele tinha em si a coragem de morrer.

 

Ficou a considerar um momento o cadáver. Mas o tumulto recomeçou de súbito, quando o criado que tinha saído voltou com um geomante e com sacerdotes providos dos seus tambores e acompanhados por todos aqueles cujo dever é intervir quando ocorre um caso de morte assim estranho, e Wang o Tigre aproveitou-se do tumulto para se ir embora, esperar numa sala, sozinho.

 

Depois de fazer tudo quanto lhe cumpria como irmão, em tão tristes circunstâncias, montou a cavalo e afastou-se. E, à medida que ia seguindo, sentia-se mais triste do que antes e viu-se obrigado a endurecer-se e a recordar-se por várias vezes de que nunca tinha batido nem maltratado de modo algum o rapazinho, não havendo ninguém que pudesse supor que ele se encontrava desesperado a ponto de se tirar a si próprio a vida, e Wang o Tigre disse-se repetidas vezes que assim fora decretado pelo Céu e que nenhum ser humano poderia ter impedido aquele caso, pois a vida de qualquer ser está sob o poder celeste. Assim se forçou a esquecer o pálido rapazinho e o aspecto que tinha com a cabeça pendente do braço do pai. E Wang o Tigre disse de si para si:

 

«Nem sequer os filhos são uma bênção, segundo parece».

 

E quando assim se reconfortou, sentiu-se melhor e interpelou cordialmente o jovem Bexigoso:

 

Vamos, meu rapaz, há um longo caminho à nossa frente e temos de nos meter a ele!

 

Chegaram de manhã cedo às aldeolas onde estavam os homens acantonados e o seu homem de confiança de beiço rachado veio ao seu encontro e disse:

 

Chega em boa altura, capitão, porque os soldados descansaram já, estão bem alimentados e aspiram a um pouco mais de liberdade.

 

Reune-os então, quando eles tiverem concluído a sua refeição da manhã ordenou Wang o Tigre. Vamos pôr-nos em marcha para estarmos amanhã a meio caminho das nossas terras.

 

Ora, durante esses dias em que Wang o Tigre estivera em casa de Wang Segundo, reflectira muito nas terras que tomaria para seu próprio senhorio, e falara delas com seu irmão, que era prudente e avisado, e pareceu a ambos que as terras que ficavam para além dos limites da província vizinha eram muito boas para esse desígnio, as melhores que era possível encontrar. Essas regiões ficavam bastante afastadas do país de Wang Lung para que, no caso de uma necessidade imperiosa, não se visse obrigado a sobrecarregar aqueles que eram os seus próprios concidadãos, e ficavam ao mesmo tempo bastante próximas para que, se ele fosse vencido numa guerra, pudesse procurar refúgio entre os seus. Além disso, ficavam bastante próximas para que o dinheiro de que ele precisasse até ao seu estabelecimento pudesse ser-lhe trazido facilmente e sem correr grande perigo de ser roubado. Quanto às próprias terras, eram terras excelentes e famosas em que a fome não era muito frequente, uma parte, altas, e as outras baixas, e havia montanhas que poderiam servir de asilo e de refúgio. Havia, além disso, uma certa estrada que servia de passagem aos viajantes, do Norte para o Sul, e esses”viajantes podiam muito bem pagar direito de passagem. Havia também duas ou três grandes cidades e um pequeno burgo, de maneira que Wang o Tigre não ficaria dependente por completo da população que cultivava o solo. Essas terras tinham ainda outro valor e era que as populações não eram muito pobres, enviando cereais aos mercados.

 

Em relação a todas essas vantagens havia apenas um inconveniente, e era que existia já nessa região um senhor de guerra, tendo Wang o Tigre de o expulsar primeiro, se quisesse atingir o máximo de prosperidade, pois não há região suficientemente rica para poder manter dois senhores de guerra. Ora, quem era esse senhor de guerra e de que forças dispunha, eram coisas que Wang o Tigre ignorava, pois nada de certo pôde saber por seu irmão, a não ser que alguém tinha ouvido chamar-lhe o Leopardo, porque ele tinha uma fronte singular inclinada para trás e um crânio como têm os leopardos, e governava a população com dureza, de modo que toda a gente o odiava.

 

Por consequência, Wang o Tigre sabia que devia dirigir-se àquelas terras em segredo e não em som de guerra e de bandeira desfraldada. Não, devia dirigir-se para lá furtivamente, dividindo o seu exército em pequenos bandos, de maneira que estes não se afigurassem mais perigosos do- que bandos de soldados desertores, e procuraria qualquer abrigo numa montanha e desse ponto exploraria o país com os seus homens de confiança, para ver que género de senhor de guerra tinha a combater e a quem devia tomar as terras que já sentia terem-lhe Sido reservadas pelo destino.

 

Fez como tinha projectado. Quando os seus homens se reuniram ao sair das aldeias e quando cada homem comeu e se aqueceu bebendo bom vinho para se defender contra o vento agreste que luta com o calor do Sol, depois de verificar que tudo fora pago e de perguntar aos camponeses: «Os meus homens fizeram em vossas casas alguma coisa que não deviam ?»e de lhes ouvir responder com entusiasmo: «Não, nada de mau fizeram e nós desejávamos que todos os soldados fossem como os vossos!» então Wang o Tigre, contente, levou os seus homens para além das aldeias e, depois de os reunir em torno de si, falou-lhes das terras para onde queria conduzi-los, dizendo:

 

São as melhores terras que se podem encontrar seja onde for,   e existe só um senhor a combater. Há também nesse país um vinho capitoso, tal como nunca provastes.

 

Quando os homens ouviram aquilo, soltaram gritos de alegria e clamaram:

 

Leve-nos para lá, capitão...   são terras assim que desejamos!

 

Então Wang o Tigre respondeu-lhes, com o seu severo sorriso:

 

Não é tão fácil como isso, porque devemos antes informar-nos da força do senhor que a« mantém na sua posse. Se os seus homens forem em número grande demais para nós, temos de procurar as maneiras de os chamar para o nosso lado, separando-os dele, e cada um de nós deve tornar-se um espião para ver e ouvir. Ninguém deve saber porque vimos, de outro modo estamos perdidos. Eu irei pessoalmente ver onde poderemos estabelecer o nosso acampamento, e o meu fiel Beiço~Rachado instalar-se-á na fronteira, numa aldeola chamada Vale da Paz. Ficará ali, na hospedaria de que eu ouvi falar, e que é a última da rua, tendo por insígnia uma garrafa de vinho dependurada na frontaria. Esperar-vos-á aí para vos dizer o nome do lugar onde eu marque o ponto de encontro. Agora ides dispersar-vos em grupos de três, cinco e sete, e flanar por um lado e outro como, se fôsseis desertores, e se alguém vos perguntar onde ides, perguntai-lhe onde está Leopardo, pois ides juntar-vos a ele. Darei a cada um três moedas de prata para comer, até nos reencontrarmos. Mas há uma coisa que digo a todos: se me chegar aos ouvidos que alguém ofendeu um humilde ou olhou para uma mulher que lhe seja defesa, eu não perguntarei quem é, mas matarei dois homens por cada homem deste género de quem ouvir falar.

 

Então um interpelou-o:

 

Mas, meu capitão, nós nunca teremos a liberdade de fazer o que fazem soldados?

 

E Wang o Tigre respondeu-lhe:

 

Quando der essa ordem, sereis livres! Mas ainda não combatestes por mim. Julgais então que vou conceder-vos as recompensas de batalha antes da batalha?

 

O homem calou-se então e ficou atemorizado, porque Wang o Tigre era bem conhecido pelo seu humor brusco e como sempre disposto a usar da espada, e não era homem que fosse possível comover com uma palavra espirituosa ou uma frase divertida dita no momento próprio. Mas sabiam-no também justiceiro e os homens que o seguiram eram de muito boa têmpera para saberem o que era justo. Na verdade, ainda não tinham combatido, e consentiam de boa vontade em esperar enquanto lhes dessem boa comida, cama e soldo.

 

Wang o Tigre seguiu-os com o olhar enquanto eles se dispersavam em pequenos grupos e, quando assim se dispersaram, pagou-lhes do dinheiro em reserva que possuía, e com o jovem Bexigoso no seu burro e o homem de confiança de beiço rachado numa mula, que Wang o Tigre lhe comprara na aldeia, puseram-se os três a caminho em direcção a Noroeste.

 

Quando Wang o Tigre chegou à orla da região de que ouvira falar, fez subir o seu cavalo ruivo para cima do alto túmulo monumental de um rico que ali se encontrava, e desse observatório lançou uma vista de olhos pela região. Era a terra mais bela que jamais vira. Estendia-se na sua frente, ondulando em pequenas colinas baixas e em longos vales onde verdejava já um pouco o trigo de Inverno que há pouco brotara da terra. A Noroeste, as colinas erguiam-se bruscamente e tornavam-se montanhas cavadas,” cheias de falésias que se recortavam nítidas no céu límpido. As casas dos habitantes da região estavam esparsas por pequenas aldeias e lugares, boas casas de adobe bem tratadas, muitas das quais tinham os telhados recentemente cobertos do colmo proveniente da colheita desse ano. Havia até algumas casas de tijolo e cobertas de telhas. Nos pátios de entrada, bastante perto dele para serem nitidamente visíveis, havia medas de palha. Ouvia-se perfeitamente na distância o cacarejar das galinhas que acabavam a postura, e de vez em quando o vento trazia-lhe pedaços de canção que um campónio cantava ao amanhar os seus campos. Era uma belíssima terra e o coração saltou-lhe no peito ao contemplá-la. Mas não tinha a intenção de se dirigir lá com trajo militar e montado no cavalo ruivo, para deixar um rumor de guerra espalhar-se demasiado cedo na população. Olhou e traçou um itinerário por um caminho sinuoso até às montanhas, onde poderia esconder-se com os seus soldados e reconhecer a força do inimigo, antes que ninguém pudesse saber sequer que ele viera.

 

Ao terminar a tarde, mas antes do pôr-do-sol, chegaram ao pé da montanha coberta de árvores, em direcção à qual tinham cavalgado horas seguidas, e Wang o Tigre desceu do cavalo fatigado e começou a escalar uma grande escadaria de pedra que levava ao cimo. Subiu a escada escoltado pelos dois companheiros, cujas montadas tropeçavam nos pedregulhos, e à medida que subiam a montanha tornava-se mais selvagem e cavava-se em precipícios que a estrada contornava, e por entre os rochedos e as árvores saltavam torrentes e crescia a erva espessa e bravia. Os musgos que cobriam as pedras eram aveludados, mas ofereciam poucos sinais de passos humanos, excepto na parte central, como se só uma ou duas pessoas tivessem passado por ali. Quando se pôs o Sol, tinham chegado ao fim daquele caminho da montanha, que acabava num templo construído de pedra dura e encostado à falésia, de tal maneira que esta lhe servia na realidade de muralha posterior. O templo estava quase oculto no meio das árvores, mas podia-se avistá-lo porque as suas velhas paredes vermelhas lançavam um fulgor ao Sol poente. Era tão só um pequeno templo vetusto e em ruínas, cujas portas estavam fechadas.

 

Wang o Tigre subiu até ali e durante um momento encostou o ouvido à porta fechada. Mas, como não ouvira nada, começou a bater na porta com o cabo do chicote. Passou muito tempo sem vir ninguém e então ele enfureceu-se e começou a bater violentamente. Por fim, a porta entreabriu-se e apareceu a cabeça rapada de um padre, com a cara cheia de rugas. E Wang o Tigre disse-lhe:

 

Procuramos abrigo para esta noite.

 

E a voz de Wang o Tigre ressoou dura, seca e nítida naquele local sereno.

 

O padre abriu a porta um pouco mais e respondeu numa voz fraca:

 

Então não há estalagens e casas de chá nas aldeias? Nós somos apenas uma pobre comunidade de alguns homens que deixaram o Mundo. Dispomos só da mais miserável alimentação, sem nenhuma parte de carne, e só bebemos água.

 

E, considerando Wang o Tigre, os joelhos cansados tremiam-lhe sob a túnica.

 

Mas Wang o Tigre meteu-se à força entre os batentes da porta, passou adiante do velho padre e gritou ao jovem companheiro e ao homem de confiança:

 

Ora eis o lugar que procuramos!

 

Entrou, portanto, sem atenção alguma para com os padres. Penetrou no templo pela grande sala onde se encontravam os deuses, que eram, como o templo, muito velhos e cujos dourados se lhes iam escamando nos corpos de barro. Mas Wang o Tigre não lhes concedeu sequer um olhar. Passou além deles, penetrou nos compartimentos laterais do fundo onde viviam os sacerdotes, e escolheu para si um pequeno alojamento mais bem conservado que os outros e limpo não há muito tempo. Ali, desafivelou a espada, e o homem de confiança andou a furar por aqui e por ali e encontrou de comer, embora apenas um pouco de arroz.

 

Mas naquela noite, quando Wang o Tigre se estava a meter na cama no quarto que escolheu, ouviu um profundo gemido abafado sair da sala onde se encontravam os deuses e levantou-se e saiu para ver o que era. Os cinco velhos padres do templo estavam ali, com os seus dois pequenos acólitos, filhos de camponeses que lhes tinham sido deixados como reconhecimento de qualquer súplica atendida. Todos eles, ajoelhados, dirigiam as suas lamentações ao Buda, cujo vulto dominador se erguia a meio da sala, apoiado no seu grande ventre, e, gemendo, pediam ao deus que os socorresse. A chama da tocha acesa vacilava sob o vento nocturno, e à luz incerta da chama, as sete pessoas estavam ajoelhadas e rezavam em coro.

 

Ora, Wang o Tigre ficou a considerá-los e a ouvi-los e notou que rezavam para serem protegidos contra ele. E eis o que eles exclamavam:

 

Protege-nos... protege-nos dos ladrões!

 

Ao ouvir aquilo, Wang o Tigre pôs-se a gritar violentamente. E, ao ouvirem-lhe a voz inesperada, os padres levantaram-se de um salto, e, na sua precipitação, tropeçaram nas sotainas, com excepção de um velho padre que era abade daquele templo e que se atirou de barriga para o chão, supondo chegada a sua última hora. Mas Wang o Tigre gritou-lhes:

 

Eu não vou fazer-lhes mal, velhos estúpidos! Vejam, vejam, tenho dinheiro. Porque têm medo de mim?

 

E, enquanto falava, abriu a bolsa do cinto e mostrou-lhes o dinheiro que ali tinha, e verdade seja que era mais dinheiro do que eles nunca tinham visto. E continuou:

 

Além deste dinheiro, tenho ainda mais e nada mais quero de vós do que um abrigo por pouco tempo, como qualquer homem pode, sendo necessário, pedir a uma igreja.

 

O espectáculo do dinheiro reconfortou muito os padres. Olharam uns para os outros, dizendo:

 

É qualquer capitão de soldados que matou um homem que não deveria ter matado, ou que perdeu o favor do seu general e deve por conseguinte esconder-se durante algum tempo. Ouvimos falar de um capitão assim.

 

Quanto a Wang o Tigre, deixou-os acreditar no que quisessem. Sorriu com o seu sorriso breve e sem alegria, e voltou a deitar-se.

 

No dia seguinte de manhã, Wang o Tigre levantou-se e saiu para a parte central do templo. Era uma manhã brumosa, as nuvens enchiam os vales e escondiam aquela cumeada a todos os olhares e ela ficava solitária e invisível aos olhos do mundo. No entanto, a frescura do ar sugeriu-lhe que o Inverno não demorava, e que havia muito a fazer antes da vinda das neves, porque os seus homens dependiam dele para a alimentação e o agasalho e para os vestuários contra o frio. Voltou portanto ao templo e foi a uma cozinha, onde dormiam o seu homem de confiança e o jovem companheiro. Tinham-se coberto de palha, dormiam ainda e o sopro do homem silvava através do seu lábio fendido. Dormiam profundamente, embora já um acólito estivesse a encher cuidadosamente de palha a abertura do forno de tijolo e de debaixo da tampa de madeira do caldeirão de ferro posto em cima dos tijolos soprava um jacto de vapor. Ao ver Wang o Tigre, o acólito teve um movimento de recuo e escondeu-se.

 

Mas Wang o Tigre não lhe prestou atenção. Interpelou o seu homem de confiança, empolgando-o e sacudindo-o, e ordenou-lhe que se levantasse, comesse e fosse à estalagem, no caso de alguns dos homens por lá passarem naquela manhã. Então, o homem de confiança levantou-se, ainda tonto de sono, esfregando a cara com ambas as mãos e bocejando de maneira horrível. Mas vestiu-se rapidamente, mergulhou uma tijela no caldeirão e bebeu o caldo de sorgo que o acólito estava a cozinhar. Depois, afastou-se e desceu a montanha, com o ar de um sólido rapagão, se visto apenas de costas e não de frente. E Wang o Tigre, que o seguia com os olhos, apreciava-o pela sua fidelidade.

 

Depois, como Wang o Tigre esperava naquele dia que os seus homens se reunissem naquele lugar solitário, traçou o plano do que ia realizar e decidiu quem escolheria como homens de confiança para seus auxiliares e conselheiros. Reservou também determinados trabalhos a certo número de homens, uns para espiões e outros para corregedores, e outros ainda para obterem combustível, cozinhar, cuidar das armas e limpá-las, assim atribuindo a parte que a cada um cabia na vida comum. E pensou que devia manter dura autoridade sobre todos, e recompensá-los somente ali e quando a recompensa era justa, e que devia organizar tudo sob o seu absoluto comando. Tinha de dispor da vida e da morte.

 

Além disso, decidiu consagrar todos os dias várias horas para exercitar os seus homens nos ardis e manobras da guerra, para que estivessem prontos quando chegasse o momento de lutar. Não se atrevia a gastar muitos cartuchos para as espingardas, nos exercícios, dado que ainda não tinha muitos para lá das suas necessidades. Mas contava ensinar-lhes tudo quanto pudesse.

 

E assim, portanto, esperou impacientemente, naquela serena cumeada da montanha e antes do fim do dia eram já cinquenta homens ou mais que se lhe tinham juntado e no fim do dia imediato quase mais outros cinquenta. Os poucos restantes nunca mais chegaram e parece que desertaram para outra causa. Wang o Tigre esperou ainda dois dias, mas eles não vieram, e ele mortificou-se com isso, não por causa dos homens mas porque, com cada um deles, perdera uma boa espingarda e uma centena de cartuchos.

 

Ora, quando os velhos padres viam aquela horda de homens reunir-se no seu pacífico templo, ficaram desesperados, sem saber o que haviam de fazer. Então Wang o Tigre reconfortou-os, dizendo-lhes por várias vezes:

 

Tudo lhes será pago e não têm motivo de receio.

 

Mas o velho chefe da comunidade respondeu, na sua vozinha fina, pois era muito velho e a carne que lhe cobria os ossos estava seca e pergaminhada pela idade:

 

Não é só por recearmos não ser indemnizados, mas porque há coisas que o dinheiro não compensa. Este templo era um lugar muito tranquilo e chama-se até o Templo da Santa Paz. A nossa pequena comunidade vive neste lugar fora do Mundo há muitos, anos. Eis agora esse lugar ocupado pelos vossos jovens soldados ardentes e famintos, com cuja chegada a paz desapareceu daqui. Empurram-se na parte do templo onde se encontram os deuses, escarram por todos os lados, nunca se inclinam perante as imagens, fazem as suas necessidades como e onde lhes apraz e mostram-se grosseiros e selvagens em tudo quanto fazem.

 

Wang o Tigre respondeu-lhe:

 

É mais fácil para vocês e para os seus deuses mudarem de lugar do que a mim mudar os hábitos dos meus homens, que são soldados. Transportem portanto os deuses para a sala mais afastada e eu dir-lhes-ei que esse lugar lhes fica interdito. E deste modo ficarão em paz.

 

Assim fez o velho sacerdote, visto que não havia outro recurso, e os padres transportaram todos os deuses, sobre os seus pedestais, excepto o Buda dourado, que era demasiado volumoso, pois receavam que, caindo, se fizesse em mil pedaços e isso trouxesse a maldição sobre todos. Os soldados ficaram, portanto, na grande sala com ele, e os padres cobriram-lhe a cara com um pedaço de pano, para que os não visse e não se ofendesse com os pecados que não podiam deixar de cometer.

 

Depois Wang o Tigre designou entre os seus homens os três de que queria fazer homens de confiança. Escolheu primeiro o homem do beiço rachado e, depois dele, mais dois, um de apelido o Falcão, porque tinha no meio da cara miúda um estranho nariz em bico e uma boca pequena e caída, e outro de apelido o Matador de Porcos. O Matador de Porcos era um homem corpulento, alto e ruivo, de rosto largo e sem relevo, de traços apagados como se a mão que o fez o tivesse deixado apenas em esboço. Mas era um rapagão valente, e era bem certo que fora matador de porcos. Mas matara também um vizinho, numa rixa, e acontecia-lhe muitas vezes deplorá-lo e dizer:

 

Se eu estivesse a comer o meu arroz e tivesse apenas os meus pauzinhos na mão, não o teria provavelmente morto. Mas ele questionou comigo quando eu tinha na mão uma faca, e esta como que saltou por si.

 

Isso não impediu que, tendo o homem morrido da sangria, o Matador de Porcos se tivesse visto obrigado a fugir, para escapar ao tribunal. Apesar de pesado e grosseiro, tinha uma grande presteza de mãos, de modo que, com um par de pauzinhos de comer, sabia cortar em duas as moscas no voo, e muitas vezes os seus camaradas lhe pediam que o fizesse para os distrair, rindo com grandes gargalhadas ao verem tal habilidade. com a mesma precisão, sabia espetar um homem delicadamente e tirar-lhe o sangue com toda a propriedade e presteza.

 

Ora esses três indivíduos eram homens muito astutos, embora nenhum deles soubesse ler nem escrever. Mas para uma vida como a deles não precisavam de aprender nos livros, e não imaginavam que tal instrução lhes pudesse ser útil. Depois de escolhê-los, Wang o Tigre mandou-os vir ao seu quarto e disse-lhes:

 

Considerá-los-ei os meus homens de confiança, situados acima de todos os outros para os vigiar e ver se algum me trai ou não cumpre as minhas ordens. Podem ter a certeza de que terão uma recompensa no dia em que alcançar o poderio.

 

Depois mandou sair o Falcão e o Matador de Porcos, retendo o seu fiel Beiço Rachado. E a este, com grande severidade, disse:

 

Ponho-te a ti acima dos dois outros e encarrego-te de veres se também estes me são leais.

 

E então, juntou de novo os três e falou-lhes outra vez assim:

 

Pelas minhas próprias mãos, daria a morte a qualquer cuja fidelidade seja só motivo de suspeita. Matá-lo-ei tão depressa que ele não terá sequer tempo de acabar de respirar.

 

Então o fiel Beiço Rachado respondeu-lhe, para o acalmar:

 

Nada tem a recear de mim, capitão. A sua mão será mais capaz de o trair do que eu próprio.

 

Depois os dois outros juraram também com veemência e o Falcão disse mais alto que todos:

 

Como podia eu esquecer que o capitão me alistou como simples soldado para me elevar de posto?

 

Assim disse, porque tinha as suas próprias esperanças.

 

Depois, os três inclinaram-se perante Wang o Tigre, para lhe mostrar a sua humildade e a sua fidelidade. E Wang o Tigre, agora seguro daqueles homens hábeis e astutos, mandou-os através da região informarem-se acerca do inimigo. Ordenou-lhes o seguinte:

 

Apressem-se a descobrir o que puderem, de maneira a podermos instalar-nos antes do começo dos grandes frios. Tratem de saber quantos homens seguem o Leopardo e, se encontrarem alguns, falem-lhes e ponham à prova a sua fidelidade para com ele e verifiquem se eles seriam capazes de se deixar comprar ou não. Comprarei todos os que puder, porque as vidas de vocês me são mais preciosas que o dinheiro, e melhor poderão poupar-se se tiver quem os substitua.

 

Os três homens despiram as fardas e vestiram os seus antigos farrapos. Wang o Tigre deu-lhes dinheiro para comprarem roupas comuns de que precisassem e eles desceram então a montanha e foram pelas aldeias comprar nos adelos, por algumas moedas, algumas velhas peças de roupa usadas, tais como as dos camponeses e do vulgo. E assim enfarpelados, os três homens giraram por toda a região. Entraram nas estalagens, sentaram-se às mesas em que os ociosos jogam para passar o tempo, detiveram-se nas lojas, e por toda a parte prestaram ouvidos. Ao voltarem, contaram tudo a Wang o Tigre.

 

Ora, o que Wang o Tigre por este modo soube foi que os habitantes odiavam e temiam o Leopardo, aquele capitão de ladrões, porque de ano para ano ele se tornava mais exigente, quando não vinha até devastar-lhes as propriedades e os campos. A sua desculpa era que aumentava de ano para ano o número de homens que tinha a sustentar e que protegia a população dos Outros bandidos. É certo que o seu bando se tornara cada vez mais considerável, de ano para ano, porque todos os ociosos da região que não queriam trabalhar e todos os que tinham cometido qualquer crime fugiam para a sua toca, na montanha do Grande Dragão, e alinhavam sob o estandarte do Leopardo. Se fossem homens fortes e valentes, eram benvindos, e se eram fracos e covardes, destinavam-nos a servirem os outros. Vinham até mulheres, mulheres ousadas, cujos maridos tinham morrido e que não se preocupavam com a sua reputação, boa ou má, e até alguns homens, ao juntarem-se ao bando, traziam as suas mulheres consigo, e havia outras raptadas e cativas, para prazer dos soldados. E era também verdade que o Leopardo mantinha à distância da região os outros capitães de bandidos.

 

Mas, com tudo isso, os habitantes odiavam-nos e estavam pouco dispostos a dar-lhes fosse o que fosse. Mas, de vontade ou não, contribuíam, pois não tinham armas. Outrora podiam ter-se sublevado com forcados, foices, facas e outros utensílios análogos, mas agora que os bandidos tinham armas de fabrico estrangeiro, tais utensílios de nada serviriam; do mesmo modo, nem a coragem, nem a cólera serviam já para nada contra instrumentos de morte de tão longo alcance como aqueles.

 

Quando Wang o Tigre perguntou aos seus espiões quantos homens seguiam o Leopardo, recebeu deles estranhas respostas, porque uns afirmavam que tinham ouvido dizer quinhentos e outro dois ou três mil e outros mais de dez mil. Não podia distinguir o que era verdade e averiguava apenas que eram muito mais do que os homens de que ele próprio dispunha. Deu-lhe isso muito que pensar. Compreendeu que tinha de recorrer à astúcia e reservar as suas armas até à última batalha decisiva e que devia até evitá-la, se lhe fosse possível. E assim ia ele reflectindo enquanto ouvia o que os seus espiões lhe diziam, e deixava-os livremente dizer, sabendo que um ignorante conta mais e melhor quando o deixam narrar espontaneamente. E o homem de bom humor, o mesmo que chamara ao seu capitão o Tigre das Sobrancelhas Negras, disse, engrossando com prosápia a sua voz fina:

 

Quanto a mim, senti tão pouco receio que continuei o meu caminho até à grande cidade, onde fica o governo de todo aquele departamento e informei-me aí também, verificando que têm medo. Todos os anos, nos dias de festa, o Leopardo tem uma exigência e os negociantes vêem-se obrigados a dar-lhe um monte de dinheiro, de outro modo ele ameaça atacar a própria cidade. E eu disse ao sujeito que me contava isto, um vendedor de croquetes de porco, os melhores que jamais comi... têm aqui muito boa carne de porco, meu capitão, e põem alho nos cozinhados, e eu sentir-me-ia muito contente se aqui ficasse... e eu disse-lhe: «Mas porque é que o vosso governador não manda os seus soldados baterem-se e lutar com esse bandido para protegerem a população?» E o fabricante dos croquetes de porco... é um bom homem, pois deu-me mais um bocado de croquete além do que paguei... respondeu-me: «O nosso governador fica mergulhado nos vapores do ópio, com receio da própria sombra e o general que mantém para dirigir o seu exército nunca esteve na guerra e nem sabe sequer pegar numa espingarda... é um homenzinho sempre colérico e agitado, que se preocupa mais com saber se a sua sopa está bem apurada do que informar-se do que nos possa acontecer! Quanto ao governador, gostaria que visses os guardas que ele mantém em volta de si e a quem paga cada vez mais, com medo que se voltem contra ele ou se deixem comprar por alguém, e gasta dinheiro como quem lança fora o chá já servido e insípido. E, com isso tudo, tem tanto medo que estremece e treme só de ouvir proferir o nome do Leopardo; aspira a ver-se livre dele e no entanto não mexe um dedo para isso e todos os anos dá mais dinheiro ao Leopardo para o ter sossegado!» Eis o que me contou aquele vendedor. E como eu acabava de comer os croquetes e vi que ele não tinha vontade de me dar mais, mesmo se eu pagasse mais um, fui para mais longe conversar com um mendigo que estava sentado ao Sol, num canto entre duas paredes, a tirar os piolhos da roupa. Era um velho mágico, que passava a vida a mendigar pelas ruas daquela cidade. Depois de falarmos de uma porção de coisas, ele disse-me que o governador parecia mais disposto a fazer qualquer coisa este ano, porque tinha chegado aos ouvidos dos seus superiores que ele deixava um ladrão dominar naquelas regiões. E como há muita gente que deseja apanhar o seu lugar, vão apresentar uma queixa contra ele no tribunal, acusando-o de não cumprir o seu dever. E se ele for posto fora, há uma dúzia de cavalheiros que disputarão para ficarem com o cargo, visto que essas regiões são excelentes e dão muito rendimento. E isso é até motivo de sofrimento para os habitantes, que dizem: «Vamos, vamos, sustentámos aquela velha raposa, que deixou de ser ávida como era outrora, e se vem outra de apetite devorador será preciso matar-lhe a fome desde o começo».

 

E assim Wang o Tigre deixou os seus soldados falarem como lhes ocorria e eles o fizeram como homens ignorantes, contando tudo quanto tinham ouvido, com bom humor, pois estavam cheios de belos sonhos e tinham fé no seu capitão, e cada um estava bem alimentado e contente das terras e lugares que tinham atravessado. Pois, apesar dos habitantes terem de alimentar aquelas duas sanguessugas, o Leopardo e o governador, ficava-lhes no entanto ainda com que se alimentarem bastante bem; a terra era tão boa que o podiam ainda fazer com abundância. Wang o Tigre ia-os deixando falar. E se eles disseram muitas coisas que não tinham valor, acontecia-lhes no entanto muitas vezes deixar escapar alguma coisa que ele tinha necessidade de saber, joeirando o trigo do joio, pois era muito mais inteligente do que eles.

 

E quando aquele rapaz acabou de palrar, Wang o Tigre fixou a última coisa que ele dissera, de que o governador receava perder o seu lugar, e reflectiu nela profundamente. Pareceu-lhe estar aí o nó secreto de toda a aventura, e que, por meio daquele fraco velho, lhe seria possível apoderar-se do poder daquelas terras. Quanto mais escutava os seus homens, mais seguro se tornava de que o Leopardo não tinha tanta força como ele supusera, e ao fim de um momento tomou a resolução de enviar um espião até às próprias fortificações da toca dos bandidos, para ver os homens que ali havia e todas as forças de que o Leopardo dispunha.

 

Lançou os olhos aos seus homens quando eles estavam acocorados diante da refeição da noite, tendo cada um deles um pedaço de pão duro e uma tigela de caldo de grão. Pensou durante momentos em qual mandaria, pois nenhum se lhe afigurava bastante hábil e inteligente. Depois, o seu olhar caiu no sobrinho. com a boca cheia, o rapaz comia nesse mesmo momento até fartar. Wang o Tigre contentou-se com dirigir-se ao seu quarto e o rapaz seguiu-o como era seu dever. Wang o Tigre mandou-lhe fechar a porta e aproximar-se para ouvir o que ele dissesse, e dirigiu-lhe estas palavras:

 

Serás tu bastante corajoso para uma certa coisa que te vou explicar?

 

E o rapaz, mastigando ainda o enorme bocado, respondeu resolutamente:

 

Ponha-me à prova, meu tio, e verá!

 

E Wang o Tigre continuou:

 

Vou pôr-te à prova. Vais arranjar uma pequena fisga como a dos rapazes que andam aos pássaros e dirigir-te-ás àquela montanha de dois picos. Chegarás aí pelo anoitecer, como se te tivesses perdido no caminho e tivesses medo dos animais ferozes da montanha, e irás chorar à porta da toca. Quando te deixarem entrar, dirás que és filho de um lavrador do vale e que vieste à montanha aos pássaros e que não deste pelo cair da noite, que te perdeste, e suplicas naquele lugar um abrigo para passares a noite. Se não te deixarem entrar, pede-lhes então pelo menos um guia até ao córrego. Serve-te bem dos olhos... espreita tudo, verifica quantos homens estão ali, quantas espingardas, e com que se parece o Leopardo, para tudo isso me contares. Serás bastante valente para tal?

 

Wang o Tigre fixou os dois olhos negros no rapaz e viu a cara rubicunda empalidecer tanto que os sinais das bexigas se lhe tornaram salientes na pele, como cicatrizes; mas o rapaz, em voz bastante segura, embora um pouco ansiosa, respondeu:

 

Sou capaz de o fazer.

 

Nunca te pedi nadacontinuou Wang o Tigre, severamente , mas o teu jeito brincalhão ser-te-á talvez agora de alguma utilidade. Se te espetares por não usares bem do teu jeito, ou se te traíres, a culpa será tua. Mas tens uma boa cabeça de pateta, sei que tens o ar de ser mais parvo do que na verdade és, e por isso te escolhi. Basta-te fingires-te um néscio ou um pateta para te saíres bem. Mas se fores apanhado... acaso serás tão valente que possas suportar a morte calando-te?

 

Então o rubor da valentia subiu às faces do rapaz. Firme e decidido, ergueu-se com o seu grosseiro fato de algodão azul, e disse:

 

Ponha-me à prova, meu capitão!

 

Então Wang o Tigre sentiu-se contente com ele e disse:

 

Valente rapaz! É uma prova. Se te saíres bem dela, serás digno de subir de posto.

 

Sorriu um pouco, fixando o rapaz, e o seu coração, que raras vezes se alterava, a não ser nos movimentos de cólera, comoveu-se então um pouco com aquele rapaz, mas no entanto não de afecto, pois não gostava dele; comoveu-se de uma vaga aspiração e de novo desejou ter um filho seu; não como aquele, não, mas um filho bem seu, forte, leal e grave.

 

E assim ordenou ao rapaz que vestisse roupa semelhante à que usam os filhos dos camponeses e que atasse uma toalha em redor do peito e mandou-lhe calçar velhos sapatos usados, pois tinha um comprido caminho a percorrer e ásperos rochedos a escalar. O rapaz, de um pequeno ramo de árvore em forquilha, fez então uma pequena fisga, semelhante às que usam os rapazes e, depois disso, passou com passo lépido para a outra vertente da montanha e desapareceu por entre as árvores do bosque.

 

Depois, durante os dois dias que se demorou, Wang o Tigre organizou os seus homens como projectara e distribuiu o trabalho de todos, de maneira que nenhum ficasse ocioso e em estado de fazer mal. Mandou os seus homens de confiança às aldeias comprar víveres. Enviou-os, separadamente, para comprarem carne e trigo em pequenas quantidades, a fim de que ninguém pudesse ter a suspeita de que compravam provisões para cem homens.

 

Quando chegou a tarde do segundo dia, Wang o Tigre saiu a olhar pela escadaria aberta na rocha, se acaso o rapaz viera. No fundo do seu coração, tinha apreensões pelo que pudesse ter acontecido ao rapaz e, imaginando-o talvez morto na tortura, sentia uma compaixão e um remorso estranhos; e como a noite descia e a Lua se ia erguendo no céu, olhou para a Montanha dos Dois Dragões e disse de si para si:

 

«Eu devia ter mandado talvez um homem que não me fizesse falta, e não o filho de meu irmão. Se morreu na tortura, como afrontarei eu o meu irmão? No entanto, não podia ter confiança senão no meu próprio sangue».

 

Depois de os seus soldados adormecerem, quando a Lua se libertou das montanhas e surgiu, alta, nos céus, continuou à espreita. Mas o rapaz decididamente não vinha. Por fim, o vento refrescou e Wang o Tigre recolheu-se. Sentiu o coração opresso ao verificar aquilo de que antes não se apercebera: que, se o rapaz não voltasse, lhe faria um pouco de falta, porque era um tal brincalhão, que não havia maneira de o fazer zangar.

 

Mas, depois da meia noite, como não dormia, ouviu bater discretamente na porta, levantou-se à pressa e saiu. Depois de Wang o Tigre tirar a tranca de madeira, viu em frente de si o rapaz, com ar de extrema fadiga, mas sempre de bom humor. Entrou a manquejar, com as calças rasgadas desde a coxa, de onde correra pela perna um fio de sangue que secara. Mas mantinha-se sempre satisfeito.

 

Estou de volta, meu tio exclamou ele, numa voz cansada.

 

Wang o Tigre soltou uma gargalhada breve e abafada como lhe era hábito, sempre que estava verdadeiramente satisfeito, e disse num tom duro:

 

Que foi isso na tua coxa?

 

Mas o rapaz respondeu, num tom desprendido:

 

Nada.

 

Então Wang o Tigre proferiu uma das raras frases espirituosas de toda a sua vida:

 

Espero que não tenha sido o Leopardo que te arranhou!

 

Ao ouvir isto, o rapaz riu muito alto, pois compreendia que o tio tinha dito aquilo por graça; e sentou-se num degrau do limiar do templo e respondeu:

 

Não, não foi ele. Caí por cima de um tronco de árvore, porque o musgo está húmido e escorregadio, e um ramo rasgou-me a perna. Estou a morrer de fome, tio!

 

Então entra e come respondeu Wang o Tigre. Come, bebe e dorme, antes de me contares a tua história.

 

E convidou o rapaz a ir para a sala e a sentar-se, e clamou em voz de estentor que um soldado trouxesse imediatamente de comer e de beber ao rapaz. Foi tal o barulho que todos os soldados, um após outro, acordaram e se reuniram em multidão no pátio iluminado pela Lua cheia, todos querendo ouvir o rapazinho contar o que vira. Então Wang o Tigre, vendo que, depois de ter comido e bebido, o rapaz estava tão cheio de importância e sobreexcitado pelo êxito da sua aventura que estava longe de ter sono, e vendo próxima a alvorada, disse:

 

Conta então agora e em seguida irás dormir.

 

E assim o rapaz sentou-se no altar em frente do Buda, cuja face estava velada e disse:

 

Pois bem, caminhei tanto, tanto, aquela montanha é duas vezes mais alta que estas, meu tio, e a toca fica lá no cimo, num vale redondo como uma taça, e quem me dera que a ocupássemos depois de nos apoderarmos da região. Têm lá casas e é exactamente como uma pequena aldeia. E eu fiz o que me disse, meu tio. Quando chegou a noite, fui manquejando, a chorar, até à porta, com os pássaros mortos no seio. Certas aves dessa montanha são de cor mais singular e mais brilhante. Um que abati tinha o

 

corpo amarelo vivo como ouro, e eu tenho-o ainda, era tão bonito...

 

E, ao dizer isto, tirou do seio uma ave amarela que lhe ficou pendente da mão, flácida e morta, como um pouco de ouro mole. Wang o Tigre tinha pressa de ouvir a narrativa do rapaz e irritou-se com aquela puerilidade do pormenor da ave morta; mas conteve-se e deixou-o contar a história à sua maneira, e assim o rapaz continuou e pôs a ave cuidadosamente no altar ao seu lado, e olhou sucessivamente as fisionomias dos homens que o ouviam. Perto dele, flamejava o archote que Wang o Tigre mandara acender e enterrar nas cinzas do incensório, no altar. O rapaz continuou:

 

Então, quando eles me ouviram bater à porta, vieram de dentro, começando por abrir um postiguinho e olharam para ver quem era. E eu implorei a compaixão deles, dizendo: «Estou longe de casa... perdi-me, a noite desceu sobre mim e estou com medo das feras. Deixem-me entrar neste templo». Então, aquele que tinha aberto a porta, tornou a fechá-la e foi falar a alguém e eu continuei a chorar e a lamentar-me o mais lamentosamente que podia.

 

E, neste ponto da narrativa, o rapaz começou a lamentar-se para lhes mostrar como fizera e todos os homens uivaram de tanto rir e o admiraram e de um e de outro lado gritavam-lhe:

 

Ah! Macaquito! Ah! Diabinho bexiguento!

 

O rosto bexigoso do rapaz contraiu-se numa careta de satisfação e a narração continuou:

 

Por fim, deixaram-me entrar, mostrando-me eu o mais pateta que podia. E depois de ter comido pão de trigo e uma tigela de caldo, fingi que tinha medo e que compreendia onde me encontrava e comecei a gritar: «Quero regressar a casa. Aqui tenho medo, porque vós sois ladrões, e eu tenho medo do Leopardo!» e corri para a porta, forcejando por sair, e disse: «Prefiro morrer devorado pelas feras!»

 

Eles começaram então todos a rir, por me verem tão simples e acalmaram-me, dizendo: «Então julgas que nós seríamos capazes de fazer mal a um garoto ? Espera até amanhã de manhã e poderás seguir em paz o teu caminho». E foi assim que, passados momentos, deixei de soluçar e de gritar e simulei estar mais confiante. Eles então perguntaram-me de onde eu era e eu disse-lhes o nome de uma aldeia do outro lado da montanha, em que ouvira falar. Perguntaram-me então o que é que eu ouvira dizer deles e respendi que ouvira dizer que eles eram muito valentes e que tinham por chefe não um homem, mas o corpo de um homem com uma cabeça de Leopardo, e disse: «Gostaria muito de o ver, mas tenho grande receio de ver semelhante fenómeno». Puseram-se então a rir todos à minha custa, e um disse: «Vem cá, vou-to mostrar». E levou-me a uma janela e, permanecendo na obscuridade, olhei para dentro de uma sala onde havia archotes a arder e onde o chefe estava sentado. É um indivíduo na verdade singular e monstruoso, meu tio, tem o aspecto de um leopardo, e estava a beber com uma mulher ainda nova. Ela parecia também muito selvagem, mas bonita, apesar de selvagem, e bebiam juntos vinho de um cântaro. Ele primeiro, e depois ela.

 

Quantos homens havia no local e quais eram as suas armas? perguntou Wang o Tigre.

 

Oh, muitos homens, meu tio respondeu logo o rapaz. Três vezes o nosso número de combatentes e muitos servos e mulheres e crianças, que correm por todos os lados, e muitos rapazes como eu. Perguntei a um deles quem era o seu pai e ele respondeu-me que o não sabia, porque não tinham pais separados e só conheciam as mães, mas não os pais. E também isso é uma coisa estranha. Todos os combatentes têm espingardas, mas os servos só têm foices e facas e outros utensílios da vida campestre. Mas, no alto das falésias que rodeiam a sua toca, têm grandes montões de rochedos redondos empilhados, para os fazerem rolar pela montanha abaixo sobre aqueles que os ataquem, e há apenas um desfiladeiro que leva ao abrigo, pois são por todos os lados precipícios, estando sempre esculcas no desfiladeiro. Mas quando eu passei, a sentinela estava a dormir e eu deslizei junto dela sem dar por mim. Dormia tão pesadamente que me teria sido possível apoderar-me da espingarda que estava ao lado dele pousada no rochedo; roncava tão bem que poderia ter-me apoderado dela. Mas não o fiz, apesar da tentação, pois podiam ter pensado que eu não era o que parecia.

 

Os combatentes parecem fortes e valentes?perguntou Wang o Tigre.

 

Muito valentes replicou o rapaz. Uns são altos, outros baixos, uns conversavam depois de acabarem de comer e não me davam atenção. E assim, passados momentos, fiquei com os rapazes e ouvi-os queixarem-se do Leopardo, porque ele não queria dividir os despojos segundo as regras e guardava uma excessiva parte para si e era ávido de todas as mulheres bonitas e não permitia que os outros as tivessem antes de ele se aborrecer delas. Não partilhava, como irmãos devem fazer, diziam, e julgava-se muito elevado, posto fosse por nascimento um indivíduo vulgar, e não sabe nem ler nem escrever, e eles estão fartos da sua altivez.

 

Ora, agradou muito aquilo a Wang o Tigre, quando o ouviu, e reflectiu nisso enquanto o rapaz continuava a contar uma coisa e outra, e falava do que comera e fazia valer a sua astúcia. Wang o Tigre, pelo seu lado, pensava e arquitectava planos, e ao fim de um momento viu que o rapaz tinha contado tudo e já não fazia mais que repetir-se e puxar pelos miolos para encontrar um último pormenor que lhe permitisse reter por mais tempo ainda a atenção e a admiração dos homens. Então Wang o Tigre levantou-se e ordenou ao rapaz que fosse imediatamente dormir e avisou os homens de que era tempo de se porem a trabalhar porque estava a nascer o Sol, e o archote estava no fim; a sua chama vacilante empalidecia na luz do Sol levante.

 

Dirigiu-se então ao seu quarto, reuniu em torno de si os seus homens de confiança e disse-lhes:

 

Reflecti e fiz os meus planos e creio que posso dar o golpe sem perder um só homem nem uma só espingarda. Devemos evitar a batalha, atendendo a que eles estão naquele lugar defendido e são em número tão superior a nós. A coisa que há a fazer, quando se mata uma centopeia, é esmagar-lhe a cabeça e então as suas cem patas ficam loucas e correm daqui para ali umas contra as outras, e inofensivas. Será assim que nós mataremos a cabeça venenosa desse bando de ladrões.

 

Estupefactos de uma tal audácia, os soldados olharam-no atónitos e o Matador de Porcos disse, na sua voz forte e grossa:

 

Está muito bem, capitão, mas é preciso primeiro apanhar o bicho antes de podermos cortar-lhe a cabeça!

 

É disso que vou tratar replicou Wang o Tigre e aqui está o meu plano. Vocês ajudar-me-ão. Vamos disfarçar-nos o melhor possível em soldados regulares e iremos ter com o governador da região e dizer-lhe que somos valentes soldados errantes e que solicitamos prestar serviço sob as suas ordens, serviço secreto como guarda privada, e comprometer-nos-emos a matar o Leopardo. Está agora receoso de perder o lugar e aceitará plenamente o nosso auxílio. Eis o meu plano. Dir-lhe-ei que simule uma trégua com os bandidos e convide o Leopardo e os seus principais oficiais para um grande banquete. Quando chegar o momento, e ele poderá indicá-lo deixando cair da mão a taça de vinho e partir-se no meio do chão, vocês e eu sairemos do nosso esconderijo, cairemos em cima dos ladrões e matá-los-emos. Eu dispersarei secretamente alguns dos nossos através da cidade e eles cairão em cima dos bandidos de menor importância que se recusem a alinhar sob a minha bandeira. Mataremos assim a cabeça da centopeia, o que não é difícil.

 

Os três homens de confiança viram que a coisa podia muito bem fazer-se, ficaram tomados de admiração e apressaram-se a concordar. Depois de ter falado ainda um pouco acerca da maneira como realizariam o plano, Wang o Tigre despediu-os e fez reunir os seus homens na grande sala do templo. Mandou os homens de confiança ver se os padres não estavam em proximidades de onde os pudessem ouvir e expôs o seu plano aos homens reunidos. Depois de o ouvirem, aclamaram-no em uníssono: Bravo! Bravo! Ah, Tigre das Sobrancelhas Negras!

 

Wang o Tigre dirigiu-se à cidade, com os seus homens de confiança, e, quando lá chegaram, foram direitos à porta do palácio do governador. Ali, Wang o Tigre disse altivamente aos guardas indolentemente encostados aos leões de pedra:

 

Deixem-me entrar, pois tenho qualquer coisa de particular a comunicar ao governador.

 

O guarda da porta não se mexeu porque Wang o Tigre não lhe mostrou dinheiro, e quando Wang o Tigre viu a má vontade do homem, proferiu uma ordem e logo os seus homens de confiança deram um salto em frente e apontaram as espingardas ao peito do guarda, que ficou verde e recuou vivamente. Assim passaram adiante, fazendo ressoar os sapatos nas lajes do pátio. Os que estavam perto da porta tinham visto o que se passara e não se atreviam a fazer um gesto contra eles. Então Wang o Tigre, carregando as sobrancelhas, exclamou numa voz rude e feroz:

 

Onde está o governador?

 

Mas nem sequer um homem se mexeu. Ao notá-lo, Wang o Tigre enfureceu-se subitamente, e com a espada picou o homem que lhe estava mais próximo, na barriga. O homem deu um salto de terror e exclamou:

 

Eu vou levar-vos à sua presença... vou levar-vos à sua presença!

 

E pôs-se a saltitar à frente de Wang o Tigre, que riu em silêncio, ao ver o terror dele.

 

Assim o foram seguindo e atravessando vários pátios, um após outro. Mas Wang o Tigre não olhava nem para a direita, nem para a esquerda. Seguia de cabeça erguida e ar colérico, e os seus homens de confiança faziam o melhor que sabiam para imitá-lo. Chegaram, finalmente, a um pátio, ao fundo, muito bonito e provido de um tanque, de um alegrete de peónias e de alguns velhos pinheiros. As gelosias dos quartos de cima estavam corridas e o silêncio reinava por toda a parte. O homem que os guiava parou no limiar e tossiu, e um criado chegou a uma janela e perguntou:

 

Que desejam? O senhor está a dormir.

 

Mas Wang o Tigre gritou muito alto, e sua voz parecia pôr ecos de trovão naquele pátio tranquilo:

 

Acordem-no, porque tenho alguma coisa da maior importância a comunicar-lhe. É forçoso que acorde, porque o que tenho a dizer-lhe se refere à segurança do seu cargo!

 

O servo olhou-os com ar indeciso, mas viu no olhar de Wang o Tigre uma autoridade irresistível, e supôs que aqueles homens fossem enviados por qualquer funcionário superior. Voltou, portanto, para dentro e sacudiu o velho governador adormecido e ele acordou dos seus sonhos, levantou-se, lavou-se, vestiu a cabaia, foi sentar-se na sala de audiências e disse ao criado que os mandasse entrar. Então Wang o Tigre entrou altivo e ruidosamente e fez-lhe a vénia devida, mas sem se inclinar demasiado profundamente nem com excessivo respeito.

 

Quanto ao velho governador, esse ficou cheio de terror pela selvageria que aqueles homens mostravam na sua presença. Ergueu-se à pressa e convidou-os a sentarem-se e mandou trazer bolos, vinho e fruta. Proferiu as habituais fórmulas de polidez que se dirigem a um hóspede, e Wang o Tigre replicou-lhe com o mínimo de polidez possível. Por fim, concluídos esses ritos, disse nitidamente:

 

Soubemos pelos superiores de Vossa Honra que vos encontrais oprimido por um bando de ladrões e viemos oferecer-vos os nossos valentes braços e a nossa destreza para vos ajudar a libertar-vos deles.

 

Durante todo este tempo, o velho governador não fora abandonado do primeiro espanto, nem deixara de tremer. Quando ouviu aquelas palavras, disse, na sua voz entrecortada e trémula:

 

É certo que me encontro afligido dessa maneira, e como não sou um homem de armas, mas sim um letrado, não sei como proceder com semelhantes homens. É certo que tenho um general ao meu soldo, mas ele é sempre pago pelo Estado, faça o que fizer, e não gosta de batalhar. Por outro lado, os habitantes desta região são tão caprichosos e tão tolos que, a haver uma batalha, não sabemos se porventura não tomariam o partido dos ladrões contra o próprio Estado, de tal maneira o mais pequeno e mais legal dos impostos os irrita! Mas quem sois vós, quais os vossos honrados nomes de família, e onde fica o lugar em que viveram os vossos antepassados?

 

Mas Wang o Tigre limitou-se a dizer:

 

Somos valentes soldados errantes e oferecemos o valor do nosso braço onde carecem dele. Soubemos que esta terra é infestada por uns terríveis ladrões e se Vossa Honra quer tomar-nos ao seu serviço, temos um plano.

 

Ora, se o velho governador, em circunstâncias ordinárias, teria dado assim atenção a desconhecidos, ninguém o poderia afirmar, mas era certo que, neste momento, ele tinha muito medo de que lhe tirassem o emprego, não tinha filhos e não podia, na sua idade, esperar outro ganha pão. Tinha uma velha esposa e uma porção de parentes, todos os quais viviam à custa dele e do seu lugar, e, perante a sua velhice impotente, todos os seus inimigos se tornavam fortes e ambiciosos; eis porque se agarrava a tudo quanto pudesse libertá-lo dos seus aborrecimentos. Prestou portanto ouvidos, depois de mandar embora os servidores, com excepção de alguns guardas. Wang o Tigre expôs-lhe o seu plano, e depois de o ouvir adoptou-o com avidez. Só uma coisa receava e era que, se não tivessem êxito e não matassem o Leopardo, os bandidos tirassem cruel vingança. Mas quando Wang o Tigre viu que o velhote tinha medo, disse, num tom descuidado:

 

Sou capaz de matar um Leopardo com tanta facilidade como um gato, sou capaz de lhe cortar a cabeça e deixá-lo a sangrar, e juro que a minha mão não hesitará um instante!

 

E o velho governador reflectiu e pensou em como era velho e como os seus próprios soldados eram fracos e poltrões e pareceu-lhe que não havia para ele outra oportunidade senão aquela. E disse:

 

Não vejo outra saída.

 

Chamou então outra vez os criados e ordenou-lhes que trouxessem comida e vinhos e que preparassem um banquete e tratou Wang o Tigre e os seus homens como hóspedes de consideração. Wang o Tigre esperou, portanto, para expor o seu plano ao velho governador e ambos dispuseram muito bem todas as suas partes, fazendo tudo nos dias seguintes como tinham projectado.

 

O velho governador enviou emissários ao abrigo do bandido.

 

Por eles lhes mandou dizer que se ia tornando velho e que ia deixar o seu cargo e que outro viria substituí-lo. Mas antes de partir tinha o desejo de assegurar-se de que não deixava nenhum inimigo e assim queria que o Leopardo e os seus chefes viessem jantar e banquetear-se com ele e que prometia recomendá-los ao novo governador. Quando os ladrões ouviram aquilo, desconfiaram, mas Wang o Tigre previra isso também, recomendando ao governador que mandasse espalhar o boato de que se ia embora. Os bandidos, portanto, informaram-se junto dos habitantes, e ouviram a mesma história. E assim acreditaram nela e pensaram que seria uma boa coisa se o novo governador pudesse ser influenciado em favor deles, receá-los e pagar-lhes as quantias que lhe exigissem, dispensando-os assim de travar batalha. Aceitaram a trégua que o velho governador lhes propunha, e mandaram-lhe dizer que viriam uma certa noite sem Lua.

 

Ora aconteceu que nessa data choveu muito e a noite estava sombria, nevoenta e tempestuosa, mas os ladrões cumpriram a promessa e chegaram vestidos com os seus melhores trajos e com as suas armas afiadas, trazendo cada homem na mão a sua espada desembainhada e fulgurante. Os pátios ficaram cheios de homens, que puseram de guarda, e alguns ficaram na rua, em frente do portão, para se precaverem contra alguma traição. Mas o velho governador desempenhava muito bem o seu papel, e se os seus velhos joelhos trôpegos tremiam debaixo da túnica, nem por isso tinha menos no rosto o ar calmo, nem a atitude era menos cortês: mandou aos seus homens que pusessem de lado todas as armas, e quando os ladrões não viram outras armas senão as suas, ficaram mais tranquilos.

 

O velho governador mandara preparar pelos seus próprios cozinheiros um excelente banquete e este banquete devia ser servido pelos chefes, na sala mais recuada, mas os guardas dos ladrões deviam comer nos pátios. Quando tudo estava preparado, o velho governador conduziu os chefes à sala do banquete, e indicou o lugar de honra a Leopardo. Depois, de muitas recusas e contumélias, o Leopardo sentou-se e o velho governador sentou-se no lugar do hóspede. Mas tivera antes o cuidado de mandar situar este perto da porta, porque, quando chegasse o momento de lançar ao chão o copo de vinho, como sinal, contava escapar-se e esconder-se até tudo estar acabado.

 

E assim começou o festim. A princípio, o Leopardo bebeu com moderação e lançava olhares furibundos àqueles seus oficiais que bebiam demasiado. Mas o vinho, excelente, era o melhor de toda aquela região, e os manjares servidos estavam muito apetitosos para fazerem sede. Eram pratos como os ladrões, que não conheciam mais do que grosseiro rancho, nunca tinham provado, pratos quentes e apurados, com os quais nem sequer tinham sonhado, pois eram apenas de sua origem indivíduos grosseiros e não habituados a tais guloseimas. Por fim a sua reserva cedeu e eles comeram francamente e imoderadamente, e os guardas fizeram outro tanto nos pátios e tanto mais à vontade quanto não tinham, como os chefes, motivos de moderação.

 

Ora, Wang o Tigre e os seus homens de confiança estavam à espreita por detrás de um cortinado, junto de uma janela de gelosia, perto da porta pela qual deviam irromper. Tinham todos as espadas desembainhadas e prontas e apuravam o ouvido para ouvir o barulho da taça de vinho ao quebrar-se no chão, que devia servir-lhes de sinal. Chegou um momento em que o banquete já durava pelo menos há três horas, momento em que o vinho corria em torrentes, e os criados se afadigavam daqui para ali e os ladrões estavam entorpecidos pela grande quantidade de carne e vinho que tinham metido na barriga. De repente o velho governador começou a tremer, o rosto tornou-se-lhe cor de cinza e balbuciou:

 

Sinto no coração uma dor estranha!

 

Levantou apressadamente a taça de vinho, mas o braço tremia tanto que se viu a delicada porcelana escapar-se-lhe da mão e cair no chão. E o velho governador dirigiu-se com passo trôpego para a porta e saiu.

 

Então, antes que tivessem tempo de dar um suspiro de surpresa, Wang o Tigre soltou um assobio e lançou um apelo aos seus homens que correram pela porta dentro sobre os chefes dos bandidos, saltando cada homem de confiança sobre aquele que Wang o Tigre já lhe indicara. Mas o Tigre reservava-se matar o Leopardo pelas suas próprias mãos.

 

Ora, os criados tinham recebido ordem de que, quando ouvissem o grito de Wang o Tigre, deviam trancar todas as portas, e quando Leopardo o viu, levantou-se de um salto e atirou-se para a porta pela qual saíra o velho governador. Mas Wang o Tigre saltou sobre ele e imobilizou-lhe os braços. O Leopardo tinha apenas um sabre curto que desembainhara ao saltar, e não a sua própria espada, e estava portanto impotente. Cada um dos homens lançou-se sobre o inimigo designado e a sala encheu-se de gritos, de blasfémias, de homens que lutavam. E nem um só homem de confiança olhou para ver o que os outros faziam, antes de ter morto o que lhe tinham indicado. Mas alguns ladrões foram facilmente mortos, porque estavam desconcertados pela embriaguez, e quando cada um dos atacantes matou o seu inimigo, correu para Wang o Tigre para ver como ele se desembaraçava e o ajudar.

 

O Leopardo não era de modo algum um inimigo desprezível e embora estivesse meio embriagado, era tão decidido e fazia tão boas paradas, que Wang o Tigre não conseguia acabar com ele de um golpe. Mas recusou deixar-se ajudar, porque queria para si a glória de vencer o Leopardo. E de facto, quando viu com que bravura aquele homem se defendia tão desesperadamente com a única arma mesquinha que apanhara, Wang o Tigre ficou comovido de admiração, tal como um homem valente fica mesmo na presença de um inimigo se ele é valente também, e sentiu pesar de ter de matar aquele homem.

 

Mas, apesar de tudo, tinha de o fazer, e eis porque, com a sua destra espada, impeliu para um canto o Leopardo que, entorpecido pela comida e pelo vinho, não podia usar de todos os seus recursos. Demais, a situação era sem esperança para o Leopardo, que aprendera por si próprio tudo o que sabia, enquanto Wang o Tigre fora instruído militarmente e conhecia a esgrima a fundo. Um momento chegou em que o Leopardo não conseguiu defender-se com a necessária rapidez e Wang o Tigre enterrou a espada na barriga do seu adversário, torceu-a vigorosamente e o sangue e a água jorraram. Mas quando o Leopardo caiu por terra e morreu, lançou a Wang o Tigre um olhar tal como Wang o Tigre não devia nunca esquecê-lo em toda a sua vida, tão duro e feroz era. E aquele homem tinha bem efectivamente o aspecto de um leopardo, porque os seus olhos não eram negros como são os olhos dos comuns mortais, mas eram amarelos claro como âmbar. Quando Wang o Tigre o viu enfim estendido, imóvel, e com aqueles olhos amarelos muito abertos e fixos, disse de si para si que aquele era um autêntico leopardo, porque, além dos olhos, o crânio era largo no cimo e estreitava para trás da maneira mais estranha e mais bestial. Os homens de confiança reuniram-se então para felicitar o seu capitão, mas Wang o Tigre, que continuava a segurar a espada sangrenta e considerava fixamente o morto, não pareceu dar por tal e disse com tristeza:

 

Lamento ter-me visto na necessidade de o matar, pois era um homem duro e bravo e tinha o olhar de um herói.

 

Mas, enquanto ficava assim a olhar tristemente a obra que se vira obrigado a executar, o Matador de Porcos exclamou que o coração do Leopardo não estava ainda frio, e antes de que alguém percebesse o que ele ia fazer, estendeu a mão, pegou numa taça de cima da mesa e com a delicada habilidade que de tão estranho modo existia na sua mão grosseira, fez-lhe uma incisão no seio esquerdo e o coração do Leopardo saltou da fenda e o Matador de Porcos recolheu-o na taça. Na verdade o coração não estava frio, palpitou uma ou duas vezes na taça e o Matador de Porcos alongou o braço, estendendo a taça a Wang o Tigre, e exclamou em voz alta e alegre:

 

Toma e come, meu capitão, pois já os antigos diziam que o coração de um inimigo valoroso, comido ainda quente, torna o nosso coração duas vezes mais valoroso!

 

Mas Wang o Tigre recusou. Desviou o rosto e disse com altivez:

 

Não preciso.

 

E o seu olhar caiu no sítio em que se encontrava a espada do Leopardo, junto da cadeira que ocupara durante o banquete. Foi apanhá-la. Era uma boa espada de aço tal como já hoje se não sabem fazer, tão acerada que poderia atravessar de lado a lado uma bola de seda e tão bem temperada que podia dividir uma nuvem em duas. Wang o Tigre experimentou-a na túnica do ladrão que estava ali estendido ao lado e sem fazer pressão alguma, ela entrou até ao osso. E Wang o Tigre disse:

 

Esta espada será o único despojo com que fico. Nunca vi espada assim.

 

Nesse momento exactamente ouviu um rumor abafado. Era o Bexigoso que se tinha ficado a ver o que fazia o Matador de Porcos. Aquilo a que acabava de assistir, dera-lhe volta ao estômago e estava a vomitar. E Wang o Tigre, ao vê-lo, disse com benevolência, pois sabia que era a primeira vez que o rapaz via matar homens :

 

Foi bom que não te viessem os vómitos antes. Vai até ao pátio tomar um pouco de ar.

 

Mas o rapaz recusou, aguentou-se decidido, e Wang o Tigre, satisfeito com isso, disse:

 

Se eu sou um tigre, tu mostras-te digno de ser filho de um tigre, palavra de honra!

 

E o rapaz ficou tão contente que esboçou um sorriso e os dentes brilharam-lhe na palidez que lhe cobria as faces.

 

Quando Wang o Tigre realizou assim o que prometera fazer, saiu para o pátio a ver o que os seus homens tinham feito dos ladrões secundários. Era uma noite nevoenta e sombria, e as silhuetas dos homens mal pareciam mais densas e mais escuras do que a noite. Estavam numa atitude de expectativa. Ordenou-lhes que acendessem archotes, à luz dos quais viu que só tinham sido mortos alguns inimigos, e sentiu-se contente com isso porque recomendara que não matassem os homens indiscriminadamente, devendo deixar-se aos mais valentes a possibilidade de escolher se queriam ou não mudar de bandeira.

 

Mas a tarefa de Wang o Tigre não estava ainda terminada. Decidira levar de assalto o abrigo dos ladrões, agora que estavam enfraquecidos e antes que tivessem tempo de obter reforços. Não se demorou sequer a falar ao velho governador, mandou-lhe apenas este recado: «Não reclamarei a recompensa sem ter destruído aquele ninho de víboras». E chamou os seus homens e seguiu com eles através dos campos, no seio da treva, em direcção à Montanha do Duplo Dragão.

 

Ora os homens de Wang o Tigre não o seguiram de muito boa sombra, pois já haviam combatido naquela noite e agora tinham de marchar perto de uma hora e ver-se-iam provavelmente obrigados a combater outra vez e muitos deles tinham suposto que seriam autorizados a fazer a pilhagem da cidade como recompensa da batalha. Queixaram-se-lhe, portanto, dizendo :

 

Combatemos por vós e arriscámos a nossa vida e não nos deixastes tomar presa alguma. Nunca servimos às ordens de um senhor tão duro, pois nunca ouvimos dizer que os soldados deviam combater sem esperar despojo; nem despojo, nem sequer a possibilidade de acariciar uma rapariga; dominámo-nos até ao momento de combatermos por vós, e, apesar de já o termos feito, não nos dais liberdade.

 

De começo, Wang o Tigre não quis responder àquilo, mas quando ouviu alguns deles murmurarem juntos, não pôde mais dominar-se e compreendeu que tinha de se mostrar cruel e duro, senão traí-lo-iam. E assim, voltou-se para eles com ar ameaçador, fez silvar no ar a sua bela espada, e rugiu:

 

Matei o Leopardo e matarei do mesmo modo, sem misericórdia, um qualquer de entre vós. Então não tendes a mínima sensatez? Então havemos de saquear a cidade que será nossa e chamar sobre nós o ódio da população logo na primeira noite? Acabem com essas loucas palavras! Quando chegarmos à toca dos bandidos, podeis pilhar tudo e apoderar-vos de tudo, com a excepção de que não deveis forçar mulher alguma contra a sua vontade.

 

Então os homens ficaram dominados e um deles disse timidamente:

 

Mas, capitão, nós estávamos simplesmente a brincar.

 

E outro, um tanto espantado, disse:

 

Mas, capitão, não era eu que me estava a queixar, e se nós pusermos o abrigo a saque, onde havemos de viver? Eu supunha que passaríamos a habitar lá.

 

Então Wang o Tigre respondeu, num tom duro, pois estava ainda encolerizado:

 

Não constituímos um bando de ladrões e eu não sou um vulgar chefe de bandidos. Tenho um plano melhor, se quereis confiar em mim e não proceder como idiotas. O abrigo será feito em cinzas do topo à terra rasa e o nome maldito desses ladrões desaparecerá desta região, de maneira que os habitantes não terão mais razão de os temer.

 

Então os homens ficaram mais espantados do que nunca, e até mesmo os homens de confiança, e um, falando por todos, disse:

 

Mas que será feito de nós então ?

 

Tornar-nos-emos   guerreiros   e   não ladrões respondeu Wang o Tigre muito duramente. Não teremos covil. Habitaremos na cidade e nas proximidades do governador; constituiremos o seu exército particular e não devemos ter medo de ninguém, porque nos encontraremos sob a protecção do Estado.

 

Então os homens calaram-se, compelidos pela habilidade do seu chefe, e o seu mau humor dissipou-se como um sopro. Riam muito alto, cheios de confiança, ao subirem os degraus que davam acesso ao desfiladeiro, ao fim do qual se encontrava o covil. Em torno deles, a bruma rolava em volutas pela montanha, e os seus archotes fumegavam no gélido nevoeiro.

 

Chegaram de súbito à entrada do desfiladeiro. O guarda que ali se encontrava ficou tão espantado que não teve forças para correr, e um dos homens, com ar alegre, atravessou-o com o sabre sem lhe dar tempo de dizer uma palavra. Wang o Tigre viu o que se passara mas não censurou o homem dessa vez, porque ele matara um apenas, e na verdade um capitão não pode apertar demasiado os seus ignorantes e selváticos subordinados, pelo receio de que eles se revoltem e o façam em pedaços. Deixou portanto o guarda estendido morto no chão e continuaram a avançar até à entrada do covil.

 

Ora o covil assemelhava-se, com efeito, a uma aldeia e tinha uma muralha feita com rochas extraídas da montanha e ligada com argila e cal, o que a tornava muito sólida, e havia uma grande porta de dois batentes chapeados e encaixados na muralha. Wang o Tigre bateu na porta, mas ela estava fechada à chave e nenhum eco chegou até ele. Depois de bater outra vez sem obter resposta, compreendeu que aquela gente soubera o que acontecera ao seu chefe, e certamente que alguns dos ladrões tinham voltado a galope, para avisar os outros, ou então que tinham fugido do covil ou se tinham entrincheirado nas casas e preparado para a defesa.

 

Então Wang o Tigre ordenou aos seus homens que preparassem novos archotes com a erva seca que cercava o covil. E acendendo esses arbustos de erva torcida, com o auxílio do fogo praticaram um buraco na porta de madeira de um dos batentes, e quando o buraco se tornou bastante largo, um homem meteu-se por ele e destrancou rapidamente a porta. Entraram então todos, indo Wang o Tigre à frente.

 

Mas no covil havia um silêncio de morte. Wang o Tigre parou a escutar. Não se ouvia um ruído. Deu então ordem a todos os homens de soprarem nos archotes para avivar a chama e chegar fogo às casas. Todos deitaram mãos à obra, soltando uivos e clamores enquanto os tectos de colmo das casas se incendiavam. Quando tudo começou a arder, as pessoas começaram a sair das casas como formigas de um formigueiro. Homens, mulheres e crianças saíam em massa e corriam de cabeça perdida para todos os lados. Então os homens de Wang o Tigre puseram-se a massacrá-los na corrida, até ao momento em que o chefe gritou que deviam deixá-los fugir, mas que os homens podiam entrar nas casas e apossarem-se dos seus haveres.

 

Então os homens de Wang o Tigre correram para as casas que ardiam menos e começaram a trazer para fora peças de seda, retalhos de pano, roupas e tudo o que podiam transportar. Alguns acharam ouro e prata e outros encontraram odres de vinho e víveres e começaram a comer e a beber glutonamente, chegando alguns, na sua avidez, a perecer no meio das chamas que eles próprios tinham ateado. Então Wang o Tigre, vendo até que ponto eles eram pueris, mandou os seus homens de confiança olharem porque lhes não acontecesse mal, de maneira que só poucos morreram.

 

Quanto a Wang o Tigre, ficou de lado a observar tudo o que se passava, e conservou o filho de seu irmão junto de si, e não quis que o rapaz tomasse parte na pilhagem. Disse-lhe:

 

Não, rapaz, nós não somos ladrões, tu és do meu próprio sangue, e nós não roubamos. Aqueles são indivíduos ignorantes e vulgares. Tenho de os deixar proceder à medida dos seus desejos de vez em quando, de outro modo deixariam de me servir lealmente. É melhor, neste caso, deixá-los. Tenho de os empregar como instrumentos... São os meios que tenho de chegar à grandeza. Mas tu não és como eles.

 

E assim conservou o rapaz junto de si, e isso foi uma sorte porque aconteceu uma coisa inesperada. Encontrando-se Wang o Tigre apoiado à sua espada e olhando as casas incendiadas onde o fogo começava já a fumegar e a palpitar debaixo das cinzas, o rapaz soltou de repente um grande grito. Wang o Tigre voltou-se e viu uma espada cair de alto em cima dele. Nesse mesmo instante ergueu a sua arma para aparar o golpe, deslizando a lâmina polida e caindo-lhe ainda na mão, mas tão de leve que lhe fez apenas uma pequena arranhadura, antes de cair.

 

Mas Wang o Tigre saltou nas trevas, mais rápido do que um tigre, e agarrou alguém que trouxe para o clarão dos incêndios. Era uma mulher.

 

Ficou espantado, segurando-a pelo braço que agarrara, e o rapaz exclamou:

 

É a mulher que eu vi beber com o Leopardo!

 

Mas antes que Wang o Tigre pudesse dizer uma palavra, a mulher torcera-se e voltara-se, e quando notou que ele a tinha segura e que não teria forças para se libertar, deitou a cabeça para trás e escarrou em cheio nos olhos de Wang o Tigre. Ora nunca tal até então lhe acontecera e era uma coisa tão desgostante e tão ignóbil que ele ergueu a mão e deu uma bofetada à cativa como quem dá um safanão num menino teimoso, e a sua dura mão deixou-lhe os sinais dos dedos impressos a vermelho na face, e gritou-lhe:

 

Toma lá, minha loba!

 

E disse aquilo sem pensar no que dizia e ela gritou-lhe perfidamente :

 

Quem me dera ter-te morto, maldito... esperava matar-te!

 

E ele tornou-lhe severamente, mantendo-a sempre segura:

 

Bem sei que o esperavas, e sem o meu pequeno Bexigoso eu estaria neste instante morto e de crânio fendido.

 

E gritou a alguns dos seus homens que arranjassem uma corda e a trouxessem para ligar aquela mulher. E eles ligaram-na a uma árvore, perto da porta, à espera de que Wang o Tigre decidisse o que se havia de fazer dela.

 

Apertaram-lhe tanto as cordas e ela debateu-se tão vivamente que macerou a carne, mas sem conseguir sequer deslassar as cordas. E, enquanto se debatia, maldizia-os a todos, e particularmente a Wang o Tigre, com injúrias tais como raras vezes se tinham ouvido em qualquer parte tão abundantes e tão ignóbeis. Wang o Tigre não deixou de a vigiar enquanto os homens a prendiam e quando ela ficou solidamente presa e atada e os homens voltaram para os seus prazeres, Wang o Tigre pôs-se a caminhar na frente dela de cá para lá, e de cada vez que passava deitava-lhe um olhar. Olhava-a de cada vez com mais demora e maior espanto. Notava que era nova e que tinha um lindo rosto claro e duro, lábios delgados e vermelhos, fronte alta e lisa, e olhos penetrantes e cintilantes de cólera. Sim, aquele rosto era belo, mesmo agora, ao contorcionar-se de ódio por ele, de cada vez que passava junto dela, e de cada uma dessas vezes, olhava-o fixamente e escarrava-lhe.

 

Ele, porém, não lhe dava atenção. Limitava-se a olhá-la em silêncio, enquanto andava. Ao fim de algum tempo, no momento em que alvorecia, tomou-a o cansaço, pois a tinham apertado tanto que ela sofria muito. Por fim, não pôde mais. Absteve-se, a princípio, de proferir injúrias e limitou-se a escarrar, mas, passados momentos, sofria tanto que deixou também de escarrar. Por fim, ofegante, humedeceu os lábios e disse:

 

Desapertem-me um bocado, sofro tanto!

 

Mas Wang o Tigre não fez caso, e teve apenas um sorriso duro, por supor que se tratava de qualquer astúcia. Ela suplicou-lhe assim de todas as vezes que ele se aproximava, mas ele não respondia. Por fim, ao passar mais uma vez, viu-a de cabeça pendente e silenciosa. Mas não se aproximou: não queria receber outro escarro, e pensava que ela se fingia adormecida de fraqueza. Como passou várias vezes sem ela fazer o menor movimento, mandou o rapaz ver, e o rapaz foi, segurou-a pelo queixo, ergueu-lhe o rosto, e verificou que a mulher estava realmente desmaiada.

 

Então Wang o Tigre aproximou-se dela, olhou-a de perto e viu que era ainda mais bela do que se lhe afigurara à luz incerta e vacilante dos incêndios prestes a extinguirem-se. Não teria mais de vinte e cinco anos, e não parecia ser filha de qualquer vulgar camponês ou de mulher do povo, e ele não pôde deixar de perguntar-se quem seria, como teria vindo parar ali, e onde teria o Leopardo descoberto semelhante mulher. Gritou a um soldado que se aproximasse e lhe cortasse as cordas e mandou atá-la outra vez, mas mais levemente e sem a amarrar a uma árvore. Mandou que a deitassem no chão e ela assim ficou e não voltou a si antes de ter despontado o dia e o Sol começar a espreitar por entre as brumas da manhã.

 

Wang o Tigre chamou então os seus homens e disse-lhes:

 

São horas. Temos mais que fazer.

 

Os seus homens deixaram pouco a pouco de altercar por causa dos despojos e reuniram-se ao seu sinal. E ele, então, exprimindo-se numa voz muito forte e imperiosa, ao mesmo tempo que segurava a espingarda carregada e pronta a disparar sobre quem quer que não quisesse obedecer-lhe, disse-lhes assim:

 

Juntem todas as espingardas e todas as munições que há aqui, porque essas coisas pertencem-me. Reclamo-as como a minha parte.

 

Depois de os seus homens o terem feito, Wang o Tigre contou as espingardas e eram cento e vinte e havia boa quantidade de munições. Mas algumas das espingardas eram velhas e ferrugentas e de pouco préstimo, e, por serem de modelo antigo e fora de uso, Wang o Tigre mandou que essas fossem postas aparte para serem abandonadas logo que pudesse obter outras melhores.

 

Em seguida, no meio do covil em ruínas fumegantes, cada um dos seus homens entrouxou o produto do saque e Wang o Tigre tornou a contar as espingardas achadas e deu-as a guardar aos homens mais dignos de confiança. Voltou-se então para a prisioneira. Recobrara os sentidos e jazia no chão, de olhos abertos. Quando Wang o Tigre a fitou, ela lançou-lhe por sua vez um olhar de cólera, e ele disse-lhe com rudeza:

 

Quem és e onde é a tua casa para eu te poder mandar para lá?

 

Mas ela obstinou-se em não lhe responder. Escarrou, por resposta, na direcção dele, e o rosto parecia o de uma gata enfurecida. Wang o Tigre sentiu-se exasperado, e gritou a dois dos seus homens:

 

Passem uma vara nas cordas, levem-na para os pátios do governador e metam-na na prisão. Talvez se resolva então a dizer quem é.

 

Os homens obedeceram. Passaram a vara com brutalidade nas cordas e puseram ao ombro as extremidades da vara que balançava entre eles com o seu peso.

 

Quando tudo ficou pronto, o Sol já se elevara acima dos cumes da montanha e Wang o Tigre pôs-se à frente dos seus homens e desceu com eles pelo desfiladeiro. Do covil elevava-se ainda uma leve nuvem de fumo, mas Wang o Tigre não se voltou uma única vez para o olhar.

 

Depois seguiram novamente, através dos campos, o caminho que levava à cidade. Ao cruzar aquele estranho cortejo, muita gente o olhava de soslaio, e especialmente à mulher dependurada da vara, de cabeça pendente e com o rosto de raposa pálido como a cinza. Toda a gente se espantava, mas pessoa alguma ousava perguntar o que se passara, com receio de se ver metida em alguma complicação. E todos, com medo, se dirigiam ao seu trabalho de olhos postos no chão, depois de terem olhado de relance uma ou duas vezes. Era já dia pleno e o Sol banhava os campos quando Wang o Tigre e os seus homens chegaram finalmente às portas da cidade.

 

Mas quando entrou na escuridão da passagem através das muralhas da cidade, o seu homem de confiança do beiço rachado aproximou-se dele, chamou-o aparte atrás de uma árvore que havia ali, junto da porta, e murmurou ao ouvido de Wang o Tigre, numa voz que a gravidade do que tinha a dizer tornava sibilante:

 

Há uma coisa que lhe devo dizer, meu capitão. É melhor evitar trapalhadas com esta mulher. Ela tem cara de raposa e olhos de raposa e as mulheres assim só têm metade de humanas e a outra metade de raposa, e são bruxas muito perigosas. Deixe-me dar-lhe uma boa punhalada e assim se acabe com ela.

 

Ora, Wang o Tigre ouvira falar muitas vezes das coisas que são capazes de fazer as mulheres que são meio raposas, mas era tão ousado e temerário que riu alto e respondeu:

 

Não tenho medo nem dos homens nem dos espíritos e isto não passa de uma mulher!

 

E repelindo o homem, foi pôr-se de novo à frente do seu cortejo.

 

Mas o homem de confiança do beiço rachado seguiu-o resmungando. E murmurava:

 

Mas esta mulher é pior do que um homem, é uma raposa, e pior ainda do que uma mulher.

 

QUANDO Wang o Tigre chegou àqueles mesmos pátios onde na noite anterior levara a cabo tamanha proeza, seguindo-o os seus homens com passo mal seguro, porque estavam muito fatigados, encontraram esses pátios limpos e repostos no primitivo estado. Os mortos tinham sido tirados e o sangue esfregado e lavado com água. Guardas e criados estavam todos no seu posto, e quando Wang o Tigre atravessou a porta e avançou tão arrogante como um rei, sentiram-se aterrados e todos se apressaram a inclinar-se.

 

Mas ele, direito e altivo, caminhava a grandes passadas através dos pátios e das salas, com um magnífico orgulho patente no rosto sombrio. Bem sabia que tinha agora toda aquela região em seu poder. Dirigiu-se a um guarda que ali se encontrava e gritou-lhe:

 

Leva esta mulher e mete-a na prisão do pátio. Guarda-a e vela pela sua alimentação e porque a não tratem mal. É minha prisioneira e decidirei, em tempo próprio, qual deve ser o seu castigo.

 

Deteve-se então e seguiu com os olhos os homens que a levavam dependurada da vara. Estava esgotada e de rosto pálido como a cera. Mesmo os lábios, há pouco tão vermelhos, estavam agora brancos, os olhos sobressaíam na palidez, negros retintos, e arquejava a cada respiração. Não cessava de lançar olhares furibundos na direcção de Wang o Tigre, e quando viu que ele a. vigiava, contorceu o rosto numa visagem de ódio, mas tinha a boca seca. E Wang o Tigre ficou espantado, porque nunca vira mulher como aquela, e perguntava-se o que havia de fazer dela, pois era impossível deixá-la em liberdade enquanto estivesse assim cheia de ódio e decidida a vingar-se.

 

Resolveu deixar a solução do caso para mais tarde e foi apresentar-se ao velho governador. Ora, este esperara-o desde antes do nascer do Sol, revestido do seu trajo de aparato, e mandara preparar os mais finos manjares. Quando viu entrar Wang o Tigre, sentiu-se impressionado e até perturbado, porque, embora reconhecido a Wang o Tigre pelo que este fizera, sabia contudo que um homem daqueles não consentiria servir a outro por nada, e receava que o que Wang o Tigre lhe pudesse pedir como recompensa fosse tanto que se lhe tornasse ainda mais pesado do que o fora Leopardo.

 

Assim, pois, esperava em mortal inquietação. E quando vieram anunciar-lhe que Wang o Tigre chegara e o viu entrar com grandes passadas regulares, como convém a um herói, o velho governador sentiu-se tão desorientado pelos seus receios que não sabia que fazer das mãos e dos pés, os quais, sem ele dar conta, tremiam e se mexiam como se fossem dotados de vida própria e independente da sua. Mas convidou Wang o Tigre a sentar-se, e Wang o Tigre respondeu-lhe conforme exigem as boas maneiras. Cumpridos os ritos da delicadeza, e depois de Wang o Tigre se ter inclinado várias vezes, mas não demasiado baixo, e de o velho governador ter mandado servir chá, vinhos e iguarias, sentaram-se finalmente e trocaram algumas frases banais.

 

Mas um momento veio em que foi impossível evitar por mais tempo falar acerca do que se tinha passado. Depois de ter olhado para a direita e para a esquerda, menos para Wang o Tigre, o velho governador abriu a boca para falar. Mas Wang o Tigre absteve-se de ir em seu auxílio, porque agora tinha a força, e bem sabia o estado em que se encontrava o coração do velho governador. Contentou-se com manter os olhos continuamente fixos no nervoso velho, porque tinha a consciência de que assim o atemorizava, e tal consciência era agradável ao espírito malicioso que havia nele. Por fim, o velho governador começou, na sua vozinha entrecortada e esganiçada:

 

Pode estar certo de que jamais esquecerei o que fez a noite passada e nunca poderei agradecer-lhe bastante ter-me libertado do flagelo que sofri durante anos, assegurando a paz da minha velhice. E que lhe direi, a si que me libertou, e como o recompensarei, a si que é para mim mais do que um filho? E como recompensar os seus nobres soldados? Peça-me o que quiser, ainda que seja o meu lugar, e pertencer-lhe-á.

 

E ficou na expectativa, a tremer e mordendo o indicador. Wang o Tigre, calmamente sentado, esperava que o velho acabasse. E depois, como as conveniências mandavam, replicou:

 

Nada peço. Desde a mocidade que fui contra todos os perversos, e o que fiz fi-lo para libertar a população de um flagelo.

 

Em seguida calou-se e, por sua vez, esperou. Era a vez do velho governador, que disse:

 

Tem o coração de um herói e não pensei que os houvesse assim nos nossos dias. No entanto, eu não poderei fechar os olhos em paz, mesmo depois de morto, se não lhe der os meus agradecimentos de maneira precisa. Fale e diga-me o que mais lhe poderá agradar.

 

Assim alternadamente praticavam, e a cada réplica, feita por sua vez e segundo todas as regras das conveniências e da delicadeza, se aproximavam da questão. Finalmente, Wang o Tigre deu a entender figuradamente que estava disposto a abrir as suas fileiras a todos os antigos partidários do Leopardo que quisessem mudar de bandeira. Ao ouvir isto, o velho governador ficou cheio de terror. Agarrou-se aos braços da sua cadeira esculpida, pôs-se de pé e disse:

 

Mas tenciona então ser outro chefe de bandidos?

 

E disse com os seus botões que em tal caso estava perdido, porque aquele estranho indivíduo de negras sobrancelhas que lhe caíra do Céu tinha um aspecto mais feroz do que o próprio Leopardo, e era mais hábil. Ao menos o Leopardo era -de todos conhecido, e sabia-se o que exigiria. E, pensando isto, o velho governador pô-se a gemer alto sem dar conta. Mas Wang o Tigre, exprimindo-se francamente, acrescentou:

 

Não tem razão para receios. Não tenho a intenção de me fazer bandido. Meu pai era um homem honesto que possuía terras e dele recebi o meu património. Não sou pobre a ponto de precisar de roubar quem quer que seja. Além disso, os meus dois irmãos são pessoas ricas e educadas. Se eu me abrir um caminho para as grandezas será pela minha própria arte na guerra e não por miseráveis ardis como os usados pelos bandidos. Não, a minha recompensa e tudo o que lhe peço, ei-lo. Deixe-me ficar aqui com os meus homens, nomeie-me seu general e dê-me o comando do exército que tem aqui. Eu e os meus homens passaremos por fazer parte do seu séquito, protegê-lo-ei dos ladrões e protegerei também a população. Poderá sustentar-nos, destinando-nos certos rendimentos que nos sejam devidos, e poderá conceder-me a protecção em nome do Estado.

 

O velho governador escutou-o atarantado e perguntou timidamente:

 

Mas que hei-de eu fazer do general que já tenho? Ficarei em má posição entre os dois, porque ele não quererá demitir-se do seu posto sem resistência.

 

Ao que Wang o Tigre deu uma resposta corajosa:

 

Resolvamos isso por meio de um combate singular como fazem homens de honra. Se ele ganhar, retiro-me e deixo-lhe os meus homens e as minhas armas. Se eu ganhar, ir-se-á ele embora e deixar-me-á os dele.

 

Então o governador, gemendo e suspirando, porque era um letrado, adepto da sabedoria e amante da paz, mandou chamar o general, que chegou passados momentos. Era um homenzinho compassado, de barriga proeminente, que usava um uniforme de guerra de corte estrangeiro. Deixando crescer uma barbicha de pêlos raros, levantava em escova as sobrancelhas e fazia todo o possível por parecer valente e cruel. Chegou arrastando a longa espada e batendo os tacões com força a cada passo. Chegou, inclinou-se e procurou dar-se ares ferozes.

 

Então, arquejando e suando, o velho governador fez-lhe mais ou menos compreender de que se tratava. Impassível, Wang o Tigre deixara-se ficar sentado, desviava os olhos e parecia pensar noutra coisa. Por fim, o velho governador calou-se e baixou a cabeça. Quereria estar morto e dizia de si para consigo que não demoraria a estar morto entre aqueles dois, porque julgara sempre o seu velho general um tanto ou quanto feroz, visto o nosso homem se exaltar facilmente, mas Wang o Tigre era muito mais pronto e concentrado na sua cólera, como quem quer podia ver olhando-lhe simplesmente para o rosto.

 

Ora, o pequeno general de barriga proeminente ficou bastante zangado com o que acabara de ouvir, levou a pequena mão gorda à espada e pareceu preparar-se para agredir Wang o Tigre. Mas Wang o Tigre quase viu o gesto antes de ele ser esboçado, embora nesse momento tivesse os olhos aparentemente fixos no canteiro de peónias do pátio, e arreganhou os lábios grossos que lhe deixaram a descoberto os dentes muito brancos, franziu as espessas sobrancelhas negras e cruzou os braços no peito. Fixou com tal intensidade e com olhar tão severo o pequeno general que o homenzinho ficou intimidado e, mudando de ideias, engoliu o melhor que pôde o seu arrebatamento. Compreendendo que o tempo dele acabara, porque não ousava medir-se com Wang o Tigre, disse por fim ao velho governador:

 

Há já muito penso que devia voltar para junto de meu velho pai, porque sou o seu único filho e ele está a ficar muito velho. Mas nunca tive a liberdade de o fazer porque os meus deveres aqui, na vossa honrada corte, eram árduos e contínuos. Além desse dever filial que me compete, há o meu mal de ventre, que de quando em quando me importuna. Estais ao corrente da minha doença, meu senhor, e sabeis como ela me impediu, apesar de todo o desejo que disso tinha, de ir castigar aqueles ladrões. Sabeis como durante todos estes anos deplorei a incapacidade que o Céu me impunha. Por isso agora me retiro com alegria para a minha velha aldeia natal, a cumprir os meus deveres para com meu velho pai, e também para tratar a minha crescente doença.

 

Dito isto, inclinou-se com rigidez; o velho governador ergueu-se, saudou também e murmurou:

 

Pode estar certo de que será bem recompensado por todos os anos de bons e leais serviços.

 

E o governador, penalizado, seguiu com os olhos o pequeno general que se retirava, suspirou e disse de si para consigo que ao fim e ao cabo tinha sido um homem de guerra muito cómodo e que, se não tinha destroçado os ladrões, não era contudo penoso tê-lo no palácio, excepto quando se irritava a propósito de qualquer pequeno pormenor de alimentação ou de bebida, questões, aliás, fáceis de resolver. Em seguida, o velho governador lançou um olhar furtivo a Wang o Tigre e sentiu-se muito pouco à vontade porque Wang o Tigre tinha um aspecto juvenil e rude, ar violento e ferozMaslimitou-se a dizer, no seu tom calmo:

 

Tem agora a recompensa que desejava. Logo que o velho general tiver partido, poderá tomar conta dos seus soldados. Mas há ainda uma coisa. Que direi eu aos meus superiores, quando se souber que mudei de general, principalmente se o anterior se for queixar de mim?

 

Mas Wang o Tigre, hábil, respondeu logo:

 

Tudo isto lhe trará glória. Responderá que tomou a seu soldo um valente que suprimiu os ladrões e que conservou o valente e os seus homens como guarda particular. Obrigará o general... e eu porei a minha força atrás da sua... a escrever uma carta na qual peça autorização para se reformar e me nomeie seu substituto, e assim o senhor terá a glória de me ter tomado a seu soldo e de, graças a mim, ter destruído os ladrões.

 

Então, embora a seu pesar, o velho governador viu que o plano não era mau e começou a ficar mais bem disposto, salvo que receava ainda Wang o Tigre e temia as suas violências, no caso de algum dia se voltar contra ele. Mas Wang o Tigre deixou-o ter medo, porque isso lhe convinha, e sorriu com o seu frio sorriso.

 

Wang o Tigre instalou-se portanto no palácio, porque o Inverno ia descer do Norte. Sentia-se contente com tudo o que fizera, pois os seus homens estavam alimentados e vestidos, os seus rendimentos começavam a aparecer, e ia poder comprar-lhes vestuário de Inverno e estariam todos livres do frio e teriam de comer.

 

Quando acabou de arranjar tudo para eles e o pino do Inverno chegou e os dias se sucederam numa série monótona, Wang o Tigre lembrou-se de repente, num dia desocupado, da mulher que mantinha na prisão. Sorriu de si para consigo ao pensar nela e gritou ao guarda da porta:

 

Vai à prisão buscar aquela mulher que para lá mandei há coisa de dois meses! Tinha-me esquecido de que não fixei o seu castigo e ela tentou matar-me. E depois continuou, com um riso silencioso: agora já está domesticada, ia jurá-lo!

 

Esperou, pois, com certo prazer e curioso de ver até que ponto ela estaria domesticada. Estava sentado, sozinho, numa sala, e tinha a seu lado uma grande braseira de ferro, cheia de carvões ardentes. Lá fora, a neve descia em grossos flocos, cobrindo o pátio por completo e fazendo pender com a espessa camada todos os ramos das árvores. Não corria vento nesse dia, apenas um frio muito vivo, agudo e gelado pela humidade da neve que caía. Mas Wang o Tigre esperava sem ter que fazer, aquecendo-se à braseira, e estava agasalhado com um casaco de pele de carneiro, e uma pele de tigre guarnecia as costas da sua cadeira, para o preservar das correntes de ar.

 

Passou-se quase uma hora antes que ele ouvisse elevar-se um tumulto no pátio silencioso. Olhou para a porta. O guarda chegava com a prisioneira, mas dois outros guardas o acompanhavam para lhe prestar auxílio. Apesar disso, ela torcia-se para um lado e para outro e resistia às cordas que a ligavam. Mas os guardas fizeram-na entrar à força pela porta dentro e no decorrer da luta a neve entrou juntamente com ela na sala. Depois de finalmente a terem conseguido dominar e prender solidamente em frente de Wang o Tigre, o guarda disse, à maneira de desculpa:

 

General, perdoe-me ter demorado tanto tempo a obedecer às suas ordens. Mas fomos obrigados a forçar a cada passo esta jovem feiticeira a avançar. Estava deitada nua na tarimba da prisão e não podíamos entrar, por decência, porque somos homens respeitáveis, casados e pais de família, e foram as outras mulheres presas que tiveram de a obrigar a vestir-se. Ela mordia-as, arranhava-as e debatia-se contra elas, mas por fim dominaram-na e vestiram-na o suficiente para podermos entrar e arrastá-la para fora. Está doida... deve estar doida. Nunca vimos mulher assim. Há mesmo na prisão quem diga que não é uma mulher, mas uma raposa transformada em mulher, para qualquer mau desígnio dos demónios.

 

Mas quando ouviu aquilo, a jovem lançou para trás, com uma sacudidela, a cabeleira esparsa. Tinham-lhe cortado os cabelos, mas tinham crescido novamente e desciam-lhe agora quase até aos ombros. Ela resmungou:

 

Não estou doida, a menos que seja de ódio contra ele!

 

E com uma blasfémia estendeu o queixo para Wang o Tigre e escarrou na sua direcção. Teria até escarrado sobre ele se Wang o Tigre não recuasse apressadamente, e se os guardas, vendo a intenção dela, não a tivessem puxado para trás com um sacão, de modo que o escarro caiu chiando nos carvões ardentes da braseira. O guarda ficou estupefacto e repetiu num tom convicto:

 

Bem vê que ela está doida, meu general!

 

Mas Wang o Tigre nada disse. Limitou-se a fitar aquela estranha criatura selvagem e prestou atenção às suas palavras, porque, mesmo a blasfemar, não usava a linguagem de uma mulher vulgar ou ignorante. Contemplou-a com atenção e viu que, embora fina e reduzida agora a extrema magreza, se mostrava ainda bela e altiva, e nada tinha de uma grosseira campónia. Os seus pés eram contudo grandes, parecendo nunca terem sido comprimidos, o que não era uso naquelas regiões para uma mulher pertencente a boa família. Perdia-se, portanto, no meio daquelas contradições e limitava-se a considerá-la. E examinava-lhe as belas sobrancelhas negras, que se lhe torciam por cima dos olhos encolerizados, e lábios finos que deixavam ver os dentes brancos e polidos. E estando assim a olhar para ela, deu conta de que era a mais bela mulher que jamais vira. Sim, mesmo com o rosto pálido, macilento e encolerizado, era bela. E foi assim que acabou por dizer, lentamente:

 

Nunca te vi. Porque é que me hás-de odiar?

 

A mulher respondeu com paixão, e a sua voz era clara e vibrante:

 

Matou o meu senhor e não terei descanso enquanto o não tiver vingado. Ainda que me mate, conservarei os meus olhos abertos, enquanto não me tiver vingado de si!

 

Ouvindo isto, o guarda ficou horrorizado, ergueu o sabre e exclamou, escandalizado:

 

A quem estás tu a falar, feiticeira?

 

E ter-lhe-ia dado uma pancada na boca com a lâmina do sabre, se Wang o Tigre não lhe tivesse feito sinal de que não devia tocar-lhe. Em seguida, Wang o Tigre disse, no seu tom calmo :

 

O Leopardo era o teu senhor?

 

E ela exclamou, na mesma voz aguda e apaixonada:

 

Era!

 

Então Wang o Tigre inclinou-se com indolência para a frente e disse, em tom calmo e cheio de desprezo:

 

Matei-o. Agora tens um novo senhor, que sou eu.

 

Então a jovem deu um passo como se quisesse atirar-se a ele e os dois guardas tiveram de dominá-la. Wang o Tigre seguia-lhes os movimentos. Depois de novamente a terem atado de modo a não se poder mexer, o suor escorria-lhes da testa. E ela, arquejante e quase a chorar, obstinava-se a fitar com os furiosos olhos o rosto de Wang o Tigre. Então os olhares de ambos encontraram-se, e ele fitou-a em cheio. A mulher respondeu-lhe com um olhar de desafio, sem o desfitar, como se o não temesse e estivesse decidida a fazer-lhe baixar os olhos antes de ela própria baixar o olhar ousado. Mas Wang o Tigre limitou-se a olhá-la assim, sem qualquer cólera visível, com paciência poderosa e calma. Mesmo encolerizado, mantinha a sua faculdade de paciência inesgotada.

 

Quanto à mulher, perseverou durante muito tempo em fixá-lo. Mas por fim, enquanto Wang o Tigre continuava a fitá-la, impassível, bateu as pálpebras, deu um grito, voltou-se e disse para os guardas:

 

Oh, levem-me outra vez para a prisão!

 

E absteve-se de tornar a olhar para ele.

 

Então Wang o Tigre, sorrindo com aquele seu sorriso sem alegria, disse-lhe:

 

Vês, eu tinha-te dito que tinhas um novo senhor.

 

Mas ela nada respondeu. Ficara subitamente abatida, de lábios entre abertos e arquejando. Por fim, ele ordenou aos guardas que a levassem. Mas, desta vez, seguiu sem oferecer resistência, alegre por se afastar dele.

 

Então Wang o Tigre sentiu ainda mais desejo de saber quem ela seria; era grande a sua curiosidade de saber como chegara a encontrar-se no covil dos bandidos e tinha vontade de conhecer a história dela. E assim, quando o guarda voltou, abanando a cabeça e dizendo: «Tem-me passado muita selvagem pelas mãos, durante a minha vida, mas nenhuma como esta pantera» Wang o Tigre disse-lhe:

 

Dize ao chefe da prisão que quero saber quem ela é e porque estava no covil.

 

Não quer responder a nenhuma pergunta informou o guarda. Não, não diz nada. A única mudança que nela houve foi que a princípio se recusava a comer e agora devora, não como se estivesse esfomeada, mas como se comesse para ganhar forças com qualquer fim. As mulheres são estranhas. Usaram de todos os ardis para a interrogarem, mas não quer falar. Talvez a tortura a pudesse fazer confessar, e mesmo assim duvido, tão selvagem e teimosa é aquela criatura. Manda que se lhe aplique a tortura, meu general?

 

Wang o Tigre esteve um momento a reflectir, depois acabou por cerrar os dentes e proferiu:

 

Se não há outra maneira, aplique-se a tortura. Ela deve-me obediência. Mas não a devem torturar até à morte.

 

E passado um minuto acrescentou ainda:

 

E não lhe quebrem nenhum osso nem lhe estraguem a pele.

 

Ao fim do dia voltou o guarda novamente para o informar e disse consternado:

 

Meu general, muito alto senhor, não é possível conseguir que essa mulher diga seja o que for enquanto a torturarmos com tanta doçura para não lhe quebrar os ossos nem lhe estragar a pele. Ela faz troça de nós.

 

Então Wang o Tigre olhou-o com ar sombrio e disse:

 

Deixemo-la então por agora. E dá-lhe carne e vinho, de comer e de beber.

 

E relegou o caso para um recanto da sua memória, até ao momento em que tivesse decidido o que havia de fazer dela.

 

Depois, enquanto esperava que lhe ocorresse uma ideia, Wang o Tigre mandou o seu fiel Beiço Rachado para o Sul, à sua antiga casa, e ordenou-lhe que contasse a seus irmãos tudo quanto lhe acontecera e o grande êxito que obtivera, como o realizara perdendo só alguns homens e como se entrincheirara naquela região. Preveniu contudo o seu mensageiro, dizendo-lhe:

 

Não deves gabar demasiado o que fiz, porque este pequeno lugar e esta pequena capital de província são somente o primeiro passo para a ascensão da alta montanha da glória que se ergue diante de mim; nem deves fazer supor a meus irmãos que já cheguei tão alto quanto pretendia, pois senão vêm agarrar-se a mim e pedir-me que ajude este e aquele dos filhos, e eu estou farto dos filhos deles. Não, não quero mais nenhum, apesar de não ter o filho meu que desejaria. Conta-lhes o menos possível dos meus êxitos, e conta-lho de modo que fiquem animados a dar-me os fundos de que ainda careço, porque tenho cinco mil homens a alimentar e equipar, e eles comem como lobos. Mas conta-lhes que comecei e continuarei até ter esta província toda sob o meu domínio e, depois desta, outras. Não há limites para a minha carreira.

 

Tudo isto prometeu o homem de confiança, e pôs-se a caminho para o Sul, vestido como um pobre peregrino que vai fazer as suas devoções a qualquer templo distante.

 

Quanto a Wang o Tigre, pôs-se então a organizar os seus efectivos, e era certo que tinha todo o direito de se sentir orgulhoso com o que realizara. Estabelecera-se honrosamente e não como um vulgar chefe de bandidos e estava instalado no palácio do governador e como fazendo parte do governo da região. A sua fama estendia-se por toda a parte e toda a gente falava do Tigre. E quando abria as suas listas de recrutamento a todos que quisessem servir sob as suas ordens, como então fez, os homens acorriam em multidão a seguir a sua bandeira. Mas ele escolhia-os com o maior cuidado e rejeitava os velhos, os incapazes e os que pareciam de constituição débil, deficientes na visão ou imbecis, e mandava embora aqueles dos soldados do Estado que não lhe pareciam aptos ou robustos. Havia muitos nessas condições que se tinham alistado com o único fim de terem de comer. Foi assim que Wang o Tigre constituiu um poderoso exército de perto de oito mil homens, todos jovens, robustos e aptos para a guerra.

 

Tomou os cem que tinha a princípio, excepto os poucos que haviam sido mortos na luta com os ladrões ou que tinham morrido no incêndio do covil, e a esses cem elevou-os acima dos novos soldados com o posto de capitães ou de sargentos. Mas, realizado tudo isso, Wang o Tigre, ao contrário do que muitos teriam feito no seu lugar, não se deu à ociosidade, a comer e a beber. Não, obrigava-se a levantar-se cedo, mesmo no Inverno, e instruía e exercitava os seus homens e obrigava-os a aprender todas as manhas da guerra e do combate que ele próprio conhecia, e a maneira de fingir, de acatar e de fazer uma emboscada, e a arte de se retirar sem perdas. Tudo o que sabia lhes ensinava, porque não era sua intenção ficar toda a vida naquela pequena aposentadoria de um governador de departamento. Não, os seus sonhos iam-se desenvolvendo nele, e deixava-os tornarem-se tão grandes quanto fossem.

 

O Inverno era muito longo e frio naquelas regiões, e na época dos ventos gelados e na fúria das tempestades de neve não tinha outro recurso senão ficar nos pátios do governador, na função que era agora a sua e esperar a chegada da Primavera. Forte do prestígio das suas funções, reclamava incessantemente do governador novos impostos para os seus oito mil soldados. Sim, tinha até lançado sobre todas as terras um imposto em seu benefício, que se chamava imposto para a protecção do povo pelo exército do Estado, mas este exército era na realidade o próprio exército particular de Wang o Tigre, e ele instruía-o, exercitava-o e preparava-o para lhe servir a ambição de poderio, quando julgasse chegado o momento. Cada camponês de toda a região pagava qualquer coisa por cada casa de campo que possuía, e pagava-o para Wang o Tigre; e como os ladrões tinham desaparecido e o seu covil fora queimado e já não tinham que recear o Leopardo, a gente do povo não se cansava de tecer elogios a Wang o Tigre e todos estavam prontos a pagar-lhe bem, mas ainda não sabiam bem até que ponto seria.

 

Havia também outros impostos que Wang o Tigre fizera com que o governador estabelecesse para ele, alguns sobre os estabelecimentos e os mercados, e todos os viajantes que cruzassem aquela cidade, que era ponto de passagem entre o Norte e o Sul, pagavam imposto, e todos os negociantes pagavam tributo sobre as mercadorias que transportavam numa ou noutra direcção, e assim o dinheiro ia entrando incessante e secretamente nas reservas de Wang o Tigre. Tinha também todo o cuidado de evitar que o dinheiro passasse por muitas mãos, sabendo que não há no Mundo mão que de boa vontade largue tanto dinheiro quanto recebeu. Designou os seus próprios homens de confiança para velarem pela cobrança, e embora eles falassem brandamente a todos, conformes com as ordens dele, dava-lhes poder sobre todo aquele que surpreendessem a exigir mais do que o devido, e avisava os homens de confiança de que ele próprio os castigaria caso o enganassem. Estava mais ao abrigo da traição do que muitos, porque toda a gente o receava como homem implacável. Mas sabia-se também que era justo, e sabia-se que não matava ninguém sem razão e por simples prazer.

 

Mas enquanto esperava que passasse o Inverno, Wang o Tigre sentia-se muito atormentado, apesar dos seus êxitos, porque a vida que levava nos pátios do governador não lhe convinha. Nem tinha pessoas de quem pudesse fazer amigos, porque não queria estabelecer intimidade com ninguém, por saber que, enquanto o temessem, poderia conservar mais facilmente a sua situação; além disso, era pessoa que, por natureza, não gostava de tomar parte em banquetes nem de cultivar amizades; vivia sozinho, aparte o seu sobrinho, o Bexigoso, que tinha sempre junto de si, na expectativa de vir a precisar de alguma coisa, e o seu fiel Beiço Rachado, que era o chefe dos seus guardas.

 

Na verdade, o governador estava agora tão velho e tão entregue ao seu cachimbo de ópio que à volta dele tudo ia numa crescente desorganização e os seus pátios estavam cheios de grupinhos e de invejas e pululavam os subalternos e os parentes dos subalternos, que procuravam maneira de viver facilmente. Um era sempre inimigo do outro, e havia continuamente zangas, vinganças e disputas. Mas se estas chegavam aos ouvidos do velho governador, ele recorria ao ópio e distraía-se com outras coisas, porque bem sabia que não era capaz de pôr ordem em tudo. Vivia sozinho com a sua velha esposa, no interior do palácio, e só se mostrava quando os seus deveres a isso o compeliam. Mas procurava ainda cumprir as suas obrigações de funcionário, e, em todos os dias de audiência, levantava-se com a aurora, envergava o trajo oficial e dirigia-se à sala de audiência, onde se instalava no estrado e se sentava na cadeira da qual escutava os processos.

 

Aliás, o pobre homem fazia o melhor que podia, porque no fundo era bom e benévolo e imaginava fazer justiça aos que ali compareciam perante ele, os quais, para ali chegarem, tinham pago constantemente desde o porteiro da entrada, de modo que todo aquele que não tinha dinheiro suficiente para distribuir por grandes e pequenos não podia esperar sequer atingir a sala de audiência, e os próprios conselheiros que se encontravam na presença do governador também tinham recebido cada um a sua parte. E o velho governador não sabia que dependia tanto dos seus conselheiros. Sendo já tão velho, facilmente se perturbava, e acontecia-lhe muitas vezes não apreender o assunto de um processo e ter vergonha de confessá-lo, ou então dormitava à medida que a audiência prosseguia, deixava de ouvir o que se dizia, e não se atrevia a mandar repetir, receando que o julgassem incapaz.

 

Por isso recorria naturalmente aos conselheiros, que não deixavam nunca de o adular, e quando eles diziam: «Ah, este homem é criminoso e aquele tem o direito por si»o velho governador apressava-se a aprová-los e a dizer: «É o que eu estava a pensar... é o que eu estava a pensar». E quando eles exclamavam: «Fulano deve ter um bom castigo, é muito insubordinado» o velho governador gaguejava: «Sim... sim, castigue-se!»

 

Ora, no decorrer dos seus dias de ócio, Wang o Tigre ia frequentemente à sala de audiência, para ver e ouvir e para fazer passar o tempo mais depressa, e quando lá ia sentava-se a um lado, com os seus homens de confiança e o seu sobrinho o Bexigoso à volta dele, como acólitos. E assim via e ouvia todas aquelas injustiças. A princípio, dizia de si para consigo que não prestaria atenção a nenhuma daquelas coisas, porque era um senhor de guerra e aqueles casos civis não eram consigo, mas pouco a pouco ficou tão revoltado que acabou por dar a sua opinião. E ao verem o seu franzir das sobrancelhas, os conselheiros e o velho governador não podiam senão opinar de acordo com ele e suportar aquela intromissão do poder militar no civil. Aquilo acabou por se tornar hábito, e foi como se Wang o Tigre fosse o verdadeiro juiz do tribunal, suplantando inteiramente o velho governador, que não se queixava de se ver livre daquela responsabilidade e daquela maçada. O povo rejubilava, porque preferia a justiça de Wang o Tigre à do governador e dos seus conselheiros.

 

Num dia em que, por ocasião de uma festividade pública, uma deputação do povo lhe pedira que pusesse em liberdade, segundo o costume em tais circunstâncias, alguns dos presos, Wang o Tigre lembrou-se de repente de qualquer coisa, a saber, que a mulher também ainda estava na prisão. Mais de vinte vezes durante esse Inverno sentira vontade de a tirar de lá, mas de nenhuma delas decidira que destino lhe havia de dar, e por isso se limitara a recomendar que fosse bem alimentada e não a tivessem presa com cadeias, como estavam alguns. Naquele momento, ao tratar dos prisioneiros a pôr em liberdade, pensou nela e disse com os seus botões:

 

«Mas como poderei eu pô-la em liberdade?»

 

Desejava vê-la livre e contudo não queria que ficasse livre a ponto de poder ir-se embora. E admirou-se consigo próprio ao dar-se conta de que se preocupava com o que ela pudesse fazer. Admirava-se, no íntimo do seu coração, e, desconcertado, mandou vir secretamente ao seu quarto de dormir o seu homem de confiança Beiço Rachado, e disse-lhe:

 

Mas que é feito dessa mulher que trouxemos do covil?

 

O homem de confiança respondeu gravemente:

 

Continua na mesma, e eu gostaria que me permitisse dizer ao Matador de Porcos que lhe espetasse uma faca na garganta com aquele jeito que ele tem para isso, fazendo correr tão pouco sangue.

 

Mas Wang o Tigre desviou os olhos e disse devagar:

 

Não passa de uma mulher. E esperou um momento, antes de continuar:Quero ao menos tornar a vê-la, e então saberei o que devo fazer.

 

O homem de confiança pareceu ficar pouco satisfeito com aquela resposta, mas calou-se e foi-se embora. Quando já ia a sair, Wang o Tigre gritou-lhe que levasse imediatamente a mulher à sala da justiça, onde iria esperá-la.

 

Dirigiu-se pois à sala da justiça e subiu ao estrado e, por efeito de um estranho movimento de vaidade, sentou-se na poltrona do velho governador e pensou que gostaria de se mostrar à mulher ali, no cadeirão esculpido, que se elevava acima dos outros assentos. Não havia ninguém que disso o pudesse impedir, porque o velho governador o tinha mandado prevenir de que estava doente e não saía ainda dos seus aposentos pessoais. Wang o Tigre sentou-se, muito teso e altivo, com um rosto impassível e orgulhoso como cumpre que seja o de um herói.

 

Ela chegou por fim, no meio de dois guardas. Vestia uma simples blusa de algodão e calças de fazenda vulgar, azul pálido. Mas não era aquele trajo comum que a transformava. Comia agora bem, e à magreza do seu corpo substituíra-se uma plenitude de formas que não lhe prejudicava no entanto a esbelteza. Linda não podia ser, porque os traços do seu rosto eram demasiado acentuados, mas era ousada e bela. Entrou com o passo firme, sem se apressar e sem timidez, e parou em frente de Wang o Tigre, num silêncio expectante.

 

Ele considerou-a com o maior espanto, porque nunca teria imaginado semelhante transformação, e disse aos guardas:

 

Porque está ela agora tão calma, tendo-se mostrado antes tão desvairada?

 

Eles abanaram a cabeça, encolhendo os ombros, e responderam :

 

Não sabemos; só sabemos que quando saiu pela última vez parecia fraca e abatida, como se tivesse saído dela um génio mau, e desde então tem-se conservado assim.

 

Porque é quenão mo disseram?perguntou Wang o Tigre, em voz baixa. Tê-la-ia posto em liberdade.

 

A estas palavras, os guardas ficaram estupefactos e disseram para se desculpar:

 

Senhor, como podíamos nós adivinhar que o nosso general se importasse com o que lhe acontecesse? Esperávamos as suas ordens.

 

Então, umas palavras vieram espontaneamente à ponta da língua de Wang o Tigre, e esteve prestes a gritar-lhes: «Mas de facto, importo-me!» A custo as reteve, pois como podia ele dizer semelhante coisa diante de todos os seus guardas e diante daquela mulher? Bruscamente gritou:

 

Libertem-na das cordas!

 

Sem uma palavra, eles desamarraram-na e ela ficou livre. Todos esperaram para ver o que ela ia fazer, e Wang o Tigre esperava também. Ela permaneceu imóvel, como se estivesse ainda amarrada. Então Wang o Tigre interpelou-a secamente:

 

Estás livre... podes ir para onde quiseres.

 

Mas ela respondeu:

 

Para onde hei-de eu ir, se não tenho morada em parte alguma ?

 

E ao dizer isto ergueu a cabeça e olhou para Wang o Tigre com uma repentina simplicidade aparente.

 

A este olhar, a fonte selada em Wang o Tigre transbordou e uma tal paixão se espalhou pelo seu sangue que começou a tremer sob o uniforme de soldado. Desta vez, foi ele quem baixou os olhos diante dos seus. Agora era ela mais forte do que ele. Respirava-se na sala a atmosfera daquela paixão que durante tanto tempo germinara oculta e os homens agitavam-se e entreolhavam-se com embaraço. Wang o Tigre lembrou-se de repente de que eles estavam ali, e bramiu:

 

Saiam, todos, e esperem fora da porta!

 

E eles então saíram, inquietos, porque bem viam que acontecera ao seu general aquilo mesmo que pode acontecer a qualquer homem, grande ou pequeno. Saíram, portanto, e esperaram no limiar.

 

Quando na sala só ficaram os dois, Wang o Tigre inclinou um pouco o corpo para a frente e disse, numa voz dura e rouca:

 

Mulher, estás livre. Escolhe para onde queres ir, e lá te mandarei levar por alguém.

 

E ela respondeu simplesmente, já sem o menor vestígio da sua ousadia, salvo em fitar os olhos nos dele:

 

Já escolhi. Sou sua escrava.

 

SE Wang o Tigre fosse um homem grosseiro, vulgar e desprovido da noção do que era justo e decente, ter-se-ia provavelmente limitado a apossar-se daquela mulher, visto ela não ter nem pai, nem irmão, nem ninguém que a protegesse, usando dela como entendesse. Mas a hora longínqua da sua juventude, que fora para ele como que uma pancada no seu coração, tornava-o ainda delicado e o seu prazer era avivado por pensar que saberia esperar, apesar de toda a sua paixão, até poder torná-la sua esposa. Além disso, queria que ela fosse esposa, porque ao seu amor pessoal por ela, que crescia nele de hora para hora, se misturava também o desejo de ter dela um filho, o seu filho, o seu primeiro filho, e só uma mulher leal pode dar a um homem o seu verdadeiro filho. Sim, metade do ímpeto do seu secreto desejo dela consistia em imaginar que filho procriariam ambos, ele com a sua força e a sua elevada estatura e tudo o que tinha a legar, ela com a sua beleza de raposa e o seu espírito intrépido. Para Wang o Tigre, quando nisso pensava, era como se o seu filho já existisse.

 

Por esse tempo, um rumor propagado de boca em boca espalhou-se por toda aquela região, e era que o governador geral da província soubera com grande indignação que um pequeno arranjista rústico, meio ladrão, meio soldado, desertor do exército de um velho general do Sul, se apoderara da sede do governo num dos condados, e que ia ser mandado um exército contra ele para o capturar. Esse governador era responsável perante os seus chefes supremos, e se não liquidasse aquele caso, seria censurado.

 

Estava Wang o Tigre em meio do seu banquete de núpcias quando tal rumor lhe chegou também aos ouvidos, depois de três dias de grande festa em todo o palácio. Tinha mandado matar vacas, porcos e aves, e ordenara que cada animal fosse pago quando o requisitassem. Embora já fosse agora tão forte naquela região, que podia apoderar-se do que quisesse sem pagar nada e sem que ninguém ousasse protestar, não obstante pagava tudo, porque era um homem justo.

 

Esta justiça conciliava-lhe de tal modo as simpatias da gente do povo que todos o elogiavam e cada um dizia ao vizinho:

 

Poderia haver muito pior do que este senhor de guerra que exerce a sua autoridade sobre nós. É suficientemente forte para manter longe os ladrões e ele próprio não nos rouba. Não vejo que mais se possa pedir neste mundo.

 

Nessa época, ainda não se declaravam contudo muito abertamente a favor dele, porque também tinham ouvido o que constava, e esperavam a ver se ele sairia vitorioso ou não, porque, se perdesse, seriam censurados por lhe terem testemunhado simpatia. Mas, se ganhasse, poderiam então arranjar coragem para se declararem em seu favor.

 

Entretanto, tinham deixado que Wang o Tigre tomasse tudo de que precisara para o festim, embora fosse um pesado encargo para a população alimentar tanta gente ao mesmo tempo. E daquela vez ainda foi preciso o melhor, e ainda melhor que o melhor, para ele e para a sua jovem esposa e os seus homens de confiança e as mulheres que se ocupavam da jovem desposada. Estas mulheres eram uma boa dezena das que habitavam os pátios, a mulher do carcereiro e as de outras pessoas inofensivas que não cuidam de saber quem está acima deles, e que regressam sub-repticiamente aos seus lugares no dia seguinte ao de uma mudança, prontos sempre a jurar obediência a quem quer que lhes dê de comer. E Wang o Tigre quis, conforme às conveniências, ter essas mulheres em volta da sua jovem esposa, porque tinha todas as delicadezas para com ela e não a procurou nos dias que precederam o casamento: embora lhe fosse por vezes impossível dormir de noite, pensando nela e perguntando-se quem seria e ardendo de amor por ela. Mas mais forte do que esse amor era o sentimento que tinha de a fazer mãe dos seus filhos, e parecia-lhe que era seu dever para com eles agir correctamente em tudo quanto fazia.

 

Ela era bem diferente de Flor de Pereira, e por causa dessa primeira imagem de mulher deposta na sua memória, sempre pensara que havia de amar sobretudo as mulheres doces e pálidas. Mas agora já não queria saber disso, e dizia de si para consigo que não lhe importava saber quem ela era nem quê, logo que a possuísse e a prendesse para sempre a si por meio dos filhos.

 

Ninguém foi durante esses dias procurá-lo para o que quer que fosse, porque os seus homens de confiança o viam por inteiro entregue ao seu desejo. Mas consultaram-se uns e outros secretamente, porque tinham ouvido o que constava, e fizeram todos os esforços para apressar as bodas, de modo que pudessem estar terminadas e o chefe acalmado e pronto a voltar a ser o homem de antes e conduzi-los avante, quando a ocasião se apresentasse.

 

Mais rapidamente, portanto, do que o próprio Wang o Tigre esperava, as bodas foram preparadas e a mulher do carcereiro serviu de testemunha da noiva e abriram-se os pátios a todos os que desejavam assistir. Mas vieram poucos homens da cidade, e ainda menos mulheres, porque tinham medo. Acorreram os vagabundos e outra gente sem domicílio, que nada tem a perder, como quem quer pode ir a um casamento, e comeram cordialmente e contemplaram à vontade a estranha jovem desposada. Mas quando foram buscar o velho governador para o instalar num lugar de honra, como Wang o Tigre recomendara que fizessem, mandou dizer que lamentava não poder ir, porque continuava doente e lhe era impossível erguer-se da cama.

 

Quanto a Wang o Tigre, durante todo o dia das suas núpcias, agiu como num sonho e não sabia o que fazer, sentindo que as horas do dia caminhavam tão lentamente. Parecia-lhe que cada sua respiração demorava uma hora e que o Sol nunca chegaria a arrastar-se até ao zénite, e quando lá chegou, que nunca mais dali sairia. Era-lhe impossível estar alegre como se sentem os homens nas suas núpcias, porque nunca fora alegre, e conservava-se silencioso como sempre e ninguém se atrevia a gracejar. Teve muita sede durante todo aquele dia, bebeu muito vinho, mas foi incapaz de comer fosse o que fosse, porque se sentia enfartado como se tivesse comido forte refeição.

 

Mas, nos pátios do festim, os homens, as mulheres, a multidão dos pobres andrajosos e os cães das ruas chegaram por vintenas para se banquetearem, enquanto no seu quarto Wang o Tigre permanecia silencioso e meio sorridente, como num sonho. Assim passou o interminável dia, que deu, finalmente, lugar à noite.

 

Então, depois das mulheres terem preparado a jovem desposada, ele penetrou no quarto onde a encontrou. Era a primeira mulher que possuía. Era coisa curiosa e extraordinária que um homem pudesse ter chegado à idade de mais de trinta anos, ser um soldado e um fugitivo da casa paterna desde os dezoito e nunca se ter aproximado de uma mulher, tão cerrado permanecera o seu coração.

 

Mas agora a fonte corria livremente, e nada poderia jamais tornar a selá-la. À vista daquela mulher ali sentada no leito, aspirou o ar com força, e ao ouvi-lo, ela ergueu os olhos e fitou-o em cheio no rosto.

 

Assim, pois, se adiantou para ela e a encontrou silenciosa mas apaixonada e franca, no seu leito de núpcias, e a partir daquele momento amou-a poderosamente. E, como nunca tinha conhecido outra, parecia-lhe sem defeito.

 

Em certo momento, no meio da noite, voltou-se para ela e disse num murmúrio abafado:

 

Nem sequer sei quem és.

 

Ela respondeu com calma:

 

Que importa, se estou aqui? Mas um dia ou outro lhe direi quem sou.

 

E ele não insistiu, contente do momento que passa, contente porque nem um nem outro eram pessoas vulgares, e as vidas de ambos não se assemelhavam às que correntemente se vivem.

 

Mas os homens de confiança não concederam a Wang o Tigre mais do que essa noite. No dia seguinte, pela manhã, ao nascer do Sol, esperavam-no à porta e viram-no aparecer calmo e repousado, ao sair do seu quarto nupcial. Então o homem do beiço rachado disse, inclinando-se:

 

Digno senhor, não lho quisemos dizer ontem, por ser um dia de alegria, mas ouvimos boatos provenientes do Norte. O governador da província soube que o senhor se apoderou do governo e manda uma expedição contra nós.

 

E o Falcão, por seu turno, disse:

 

Ouvi-o a um mendigo que vinha daqueles lados. Contou que no seu caminho passou à frente de dez mil homens que marcham contra nós.

 

E o Matador de Porcos acrescentou o seu relato, balbuciando com a pressa de falar, logo que teve ordem para o fazer:

 

Eu... eu também ouvi dizer isso... quando fui ao mercado para ver como é que nesta cidade prendem os porcos, e um carniceiro esteve a explicar-mo.

 

Mas Wang o Tigre estava amolecido e pela primeira vez não podia decidir-se a pensar na guerra. Teve o seu leve sorriso e disse:

 

Posso confiar nos meus homens. Eles que venham.

 

E sentou-se para beber um pouco de chá, antes de comer e instalou-se a uma mesa junto de uma janela. Era já dia pleno e um pensamento surgiu de repente no seu espírito, e é que há uma noite ao cabo de cada dia. Parecia dar conta disso pela primeira vez, tanto as outras noites da sua vida tinham sido insignificantes, excepto aquela única noite.

 

Mas a mulher ouvira o que os homens de confiança diziam. Estava por trás do reposteiro, olhava por uma fresta e notou que eles estavam desconcertados ao ver o chefe mergulhado nos seus agradáveis pensamentos particulares. Quando Wang o Tigre se levantou e saiu do quarto para ir à sala de jantar, ela interpelou com voz clara o homem do beiço rachado:

 

Conte-me tudo o que ouviu.

Repugnava muito a Beiço Rachado contar a uma mulher o que não era da competência dela. E pondo-se ele a falar por entre dentes, simulando não ter nada a contar, ela disse-lhe imperiosamente:

 

Não se faça idiota comigo, que, já mulher, vi o sangue, a luta, a batalha e a retirada durante cinco anos. Conte!

 

Então, espantado e intimidado diante daqueles olhos ousados fitos nele e não postos no chão, como é habitual nas mulheres, em particular nas recém-casadas, que devem estar cheias de vergonha, contou-lhe como se ela fosse um homem o que tinham receado e como se encontravam em perigo pelo facto de estarem em marcha contra eles soldados em número superior. Se se travasse uma batalha, muitos dos homens de Wang o Tigre não eram ainda de uma fidelidade a toda a prova. Ela mandou-o logo embora, dizendo-lhe que pedisse ao chefe que fosse ter. com ela.

 

Wang o Tigre acorreu como nunca fizera a qualquer chamada, sorrindo com doçura tal como jamais alguém lhe vira. Ela sentou-se no leito e ele sentou-se ao lado dela e pegou-lhe na ponta da manga que se pôs a torcer entre os dedos. Sentia-se mais intimidado na sua presença do que ela na dele, e baixava os olhos, sorrindo.

 

Mas ela começou a falar rapidamente, na sua voz clara e aguda:

 

Não sou mulher para o embaraçar com a minha presença, se tiver de dar batalha, e diz-se que vem a caminho contra si um exército.

 

Quem te contou isso?perguntou ele. Não me incomodarei por agora. Concedi-me três dias.

 

Mas se eles chegam aqui em três dias?

 

Um exército não pode avançar duzentas milhas em três dias.

 

Como pode saber em que dia se puseram a caminho?

 

A notícia não podia ter chegado à capital da província em tão pouco tempo.

 

Podia, sim!tornou ela, com vivacidade.

 

Coisa singular, aqueles dois seres, homem e mulher, eram capazes de estar sentados a tratar de um assunto bem estranho ao amor e contudo Wang o Tigre sentia-se agora tão estreitamente associado a ela como de noite se sentira. Estava admirado de que uma mulher pudesse falar assim, porque até ali nunca conversara com nenhuma e considerara sempre as mulheres como lindas crianças com corpos de pessoas crescidas. Uma das suas razões de as temer era que ignorava o que elas sabiam e o que poderia dizer-lhes. Era constituído de tal modo que, mesmo com uma mulher paga, lhe era impossível tomá-la como faz um simples soldado, e metade da sua desconfiança das mulheres provinha de recear a conversa que podia ter de sustentar com elas. Mas eis que conversava com aquela mulher tão facilmente como se ela fosse um homem, e a ouviu com atenção replicar:

 

Tem menos homens do que o exército provincial, e quando um guerreiro vê que o seu exército é mais pequeno do que o do inimigo, deve usar de astúcia.

 

Ele teve então o seu riso silencioso e respondeu com o seu modo áspero:

 

Isso sei-o eu bem, pois caso contrário não serias agora minha.

 

A estas palavras ela baixou rapidamente os olhos como que para esconder um sentimento que eles poderiam deixar ver, mordeu o lábio inferior e respondeu:

 

A astúcia mais simples se requer para matar um homem, mas primeiro é preciso apanhá-lo. Essa mesma astúcia simples não servirá agora.

 

Então Wang o Tigre respondeu com orgulho:

 

Poderia opor os meus homens a três vezes o seu número de soldados do Estado. Exercitei-os e instruí-os durante todo este Inverno e endureci-os por meio do boxe, de corridas, da esgrima e todas as manhas da guerra, e nenhum deles tem medo de morrer. Além disso, é sabido o que valem os soldados do Estado, que nunca deixam de passar para o lado do mais forte, e sem dúvida que os desta província não são mais bem pagos do que quaisquer outros.

 

Então ela tornou-lhe com certa irritação e, enquanto falava, tirou-lhe a manga de entre os dedos:

 

Mas o senhor não tem plano! Escute-me... Fiz um plano enquanto estávamos a conversar. Temos o velho governador, que deixou ficar nos seus aposentos. Sirva-se dele como de uma espécie de refém.

 

Exprimia-se com tanto sangue-frio e tamanha seriedade que Wang o Tigre a escutava com toda a atenção, embora admirando-se de o fazer, porque não era homem que costumasse aconselhar-se com outrem, considerando-se capaz de fazer frente a qualquer situação. E ela então acrescentou:

 

Leve-o com os seus soldados, sob boa escolta, e explique-lhe que deve dizer o que lhe mandar. Mande-o ao encontro do general da província, com um homem de confiança de cada lado, para ouvir o que disser, e, se ele não disser o que lhe tiver recomendado, que tenham os sabres prontos a mergulhar-lhos na barriga e esse será o sinal da batalha. Mas ele não tem mais fel do que um frango, e fará o que lhe indicar. Deve dizer que nada se fez sem o seu consentimento; que o boato de uma revolta provém simplesmente de se ter revoltado o velho general, e que, sem o senhor, que veio libertá-lo, os Selos do Estado teriam sido roubados e ele próprio teria perdido a vida.

 

O ardil pareceu excelente a Wang o Tigre, que ouvira a mulher falar sem tirar os olhos do rosto dele. Viu todo o plano desenrolado diante de si, levantou-se, ficou silencioso a pensar no que a mulher valia, e saiu para executar o que lhe sugerira e dissera, seguido de perto por ela. Ordenou a um dos homens de confiança que fosse buscar o velho governador e que o trouxesse à sala de audiência. Então a mulher teve um capricho. Irem ambos sentar-se na sala de audiência, onde o velho governador compareceria diante deles. Wang o Tigre consentiu, porque tal atitude deixaria o velho completamente manietado. E assim se instalaram no estrado, Wang o Tigre no cadeirão esculpido e a mulher ao lado, noutra cadeira.

 

O velho governador não tardou a chegar, entre dois soldados, trémulo e com as vestes postas à pressa. Passeou pela sala um olhar meio estúpido e não viu uma só cara conhecida. Os seus próprios criados desviaram os olhos, quando ele chegou e invocaram qualquer pretexto para saírem dali. Não havia em redor da sala senão rostos de soldados, todos munidos da sua espingarda e todos dedicados a Wang o Tigre. Então, com os lábios trémulos e arroxeados, de boca entreaberta, ergueu os olhos e viu Wang o Tigre sentado, com as sobrancelhas franzidas, de aspecto intratável e agressivo, e ao lado dele uma mulher estranha que o velho governador jamais vira nem conhecia, nem concebia de onde pudesse ter vindo. Ficou trémulo e intimidado, pronto a dar o último suspiro e a ver que fim sobrevinha à vida dele, que era um homem de paz e que fora outrora estudante de Confúcio.

 

Então Wang o Tigre gritou-lhe, no seu tom brutal e duro, com pouca delicadeza:

 

Está agora nas minhas mãos e deve cumprir as minhas ordens, se quer continuar a viver aqui! Marchamos amanhã contra o exército da província, e tem de vir connosco. Quando encontrarmos o exército, irá à frente com os meus dois homens de confiança, ao encontro do general enviado contra mim. Dir-lhe-á que me escolheu para seu senhor de guerra, que o salvei de uma revolta no seu próprio palácio e que estou aqui por sua escolha. Os meus dois homens de confiança estarão a seu lado para ouvir tudo quanto disser; se se enganar numa palavra, será o seu fim e a sua última palavra. Mas se falar bem e tal como lhe indico, poderá voltar para aqui e retomar o seu antigo lugar neste estrado, e eu salvarei as aparências. Inútil é perguntar a quem pertence o poder aqui nestes pátios, porque não está nas minhas intenções ser um pequeno governador, e não quero tão-pouco ter outra pessoa aqui no seu lugar, enquanto fizer aquilo que eu mandar.

 

O fraco velho não podia fazer outra coisa senão prometer, e disse, gemendo:

 

Estou na ponta da sua espada. Seja como diz. Sou um velho e não tenho filhos, que me importa a vida?

 

E, arrastando os pés e gemendo, afastou-se, dirigindo-se aos seus aposentos, onde o esperava a sua velha mulher, que nunca dali saía. Era certo que não tinha filhos, porque os dois que ela lhe dera tinham morrido ainda antes de saberem falar.

 

Ora, se a coisa podia ou não fazer-se tal como Wang o Tigre combinara, ninguém o sabe, mas novamente a sua boa estrela o ajudou. Estava-se então em plena Primavera e na terra os salgueiros cobriam-se de novo de botões e os pessegueiros ostentavam a sua floração precoce. Ao mesmo tempo que os camponeses guardavam as suas roupas de Inverno e trabalhavam novamente de dorso nu, alegrando-se com os ventos mansos e o agradável calor do Sol sobre a sua carne de poros obstruídos, os senhores de guerra acordavam também, e a efervescência da Primavera enchia a região. Os senhores de guerra despertavam bulhentos e cheios de desejos de guerra uns contra os outros, os antigos ódios ganhavam vida nova, as antigas questões avivavam-se e cada um ambicionava apoderar-se de qualquer novo domínio enquanto durava a fresca Primavera.

 

Ora a principal responsabilidade do governo da Nação estava nessa época nas mãos de um homem fraco e indolente, e havia muitos senhores de guerra que lhe lançavam olhares ávidos e pensavam que seria fácil apoderar-se dela. Muitos contavam com os que se achavam no caminho e alguns coligaram-se e consultaram-se sobre a maneira de se apoderarem do poder da Nação e derrubarem aquele homem instável e ignorante que outros lá tinham posto, e sobre a maneira como poderiam instalar lá uma personalidade da sua própria escolha que lhes servisse os desígnios.

 

Entre esses senhores de guerra, era ainda Wang o Tigre um dos mais ínfimos e quase desconhecido entre os grandes, excepto quando os homens de guerra tagarelavam entre si, em qualquer reunião ou banquete, e um deles disse:

 

Já ouviram falar daquele capitão que se separou do seu velho general e se instalou em tal província? É um verdadeiro valente, diz-se, e chamam-lhe o Tigre, por causa das suas cóleras, do ar intratável e das sobrancelhas negras.

 

Fora assim que o principal senhor de guerra da província em que se encontrava agora Wang o Tigre ouvira falar dele. Tinham contado que Wang o Tigre destroçara o Leopardo, e ele aprovara a façanha. Ora, esse senhor de guerra era um dos grandes senhores de guerra da Nação e um dos que tinha no intuito derrubar o fraco potentado, se pudesse, e, se não pudesse, ao menos pôr lá um homem seu, de modo que os rendimentos da Nação viessem parar às suas próprias mãos.

 

Portanto, durante essa Primavera, a efervescência despontou por todos os lados, e estranhas flores de ambição desabrocharam. Apareceram proclamações afixadas nas portas das cidades e nas paredes, e em todos os lugares onde passa gente, e essas proclamações eram expedidas pelo senhor de guerra da província. Dizia ele que, visto o potentado ser tão mau e o povo estar de tal modo oprimido, lhe era impossível suportar semelhantes crimes à face do Céu. Embora fraco e destituído de engenho, não podia contudo deixar de intervir para salvar o povo. E feita a proclamação, preparou-se para a guerra.

 

Quanto ao povo, visto que pouca gente sabia ler ou escrever, ignorava que tinha nele um salvador, e limitava-se a queixar-se em voz alta porque tinham lançado novos impostos sobre as terras e as colheitas, e nas cidades sobre os estabelecimentos e as mercadorias. Se gemiam ou se queixavam em voz alta, havia emissários do senhor de guerra que os ouviam e lhes gritavam:

 

Como sois ingratos, que nem quereis sequer pagar para a vossa própria salvação! E quem havia de pagar para sustentar os soldados que vão combater por vós e garantir a vossa segurança ?

 

Assim, pois, embora contra vontade, o povo ia pagando, receoso, se o não fizesse, ou da cólera do senhor que tinha, ou então da do novo senhor que podia vir conquistá-lo e devorá-lo novamente, tornado rapace pela vitória.

 

Tendo-se, pois, resolvido a fazer a guerra, o senhor da província desejava pôr do seu lado todos os pequenos capitães e generais, de modo que, quando ouviu falar da revolta de Wang o Tigre, disse ao governador civil da província:

 

Não proceda com muita violência contra esse novo pequeno general que tem o nome de Wang o Tigre, porque eu soube que é um ousado e valente soldado e preciso de gente como ele sob a minha bandeira. A Nação inteira vai dividir-se, talvez nesta Primavera, e, caso não seja este ano, pelo menos no que vem ou no seguinte, e os senhores do Norte vão declarar-se contra os do Sul. Trate, pois, o homem com gentileza.

 

Poderá dizer-se que os senhores de guerra devem estar subordinados, numa Nação, às autoridades civis, mas é coisa sabida e mais que provada que o Poder vai cair sempre nas mãos dos homens que dispõem das armas. Como poderia um homem sem armas, mesmo tendo por si o direito, opor-se a um homem de guerra da mesma região, que tem soldados sob as suas ordens?

 

Foi assim que o destino veio em auxílio de Wang o Tigre naquela Primavera. Porque, quando chegaram os exércitos do Estado, enviados contra ele, Wang o Tigre conduziu os seus homens ao encontro deles, mandou à frente o velho governador no seu palanquim e pôs muitos dos seus homens de escol de emboscada nas proximidades, em caso de traição. Quando chegaram ao lugar do encontro, o velho governador desceu do palanquim e, titubeando na poeira da estrada, avançou, revestido do seu trajo de governador, e apoiando-se aos dois homens de confiança.

 

O general que fora mandado pelo Estado veio ao seu encontro, e terminados os ritos de delicadeza, o velho disse, com a sua voz hesitante:

 

Está enganado, meu senhor. Wang o Tigre não é um ladrão mas meu próprio capitão e o meu novo general, que protege o meu palácio e me salvou de uma revolta do meu próprio séquito.

 

Ora, apesar do general não acreditar naquilo, tendo sido informado da verdade pelos seus espiões, e embora ninguém acreditasse, tinha contudo ordens para não ofender Wang o Tigre e para não perder um homem numa disputa tão insignificante como aquela, quando se tinha necessidade de todas as espingardas para a grande guerra. Portanto, depois de ouvir o velho governador, limitou-se a repreendê-lo levemente, dizendo:

 

Devia ter-me avisado mais cedo e evitaríamos a despesa de trazer homens para castigar o que eu supunha ser um rebelde. Ser-vos-á imposta uma multa para pagar o gasto de uma expedição inútil, e são dez mil moedas de prata.

 

Quando Wang o Tigre soube que tudo ficava por ali, rejubilou e reconduziu triunfante os seus homens. Impôs por seu turno uma taxa suplementar sobre todo o sal da cidade e em menos de duas vezes trinta dias tinha as dez mil moedas e mais algumas, porque aquela cidade possuía muito sal e expediam-no mesmo para outras partes e havia quem dissesse que também para outros países.

 

Quando o episódio terminou, Wang o Tigre sentiu mais forte que nunca o seu poderio. Não perdera tão-pouco um único homem. Parecia-lhe que a glória disso cabia à mulher e honrou-a pela sua sabedoria.

 

Mas continuava na ignorância de quem ela fosse. O amor era ainda o seu principal passatempo com ela, e perguntava-se por vezes qual seria a sua história. Contudo, se a interrogava, ela sempre se esquivava, dizendo:

 

É uma longa história, e hei-de contar-lha um dia, num Inverno em que não houver guerra. Mas agora estamos na Primavera e é a estação para combater e se engrandecer e não para conversas frívolas.

 

E assim ela se esquivava constantemente, de olhos brilhantes e duros.

 

Então Wang o Tigre compreendeu que a mulher tinha razão, pois se espalhara pelo país a notícia de que nessa Primavera ia haver entre os senhores de guerra uma luta tal como não houvera semelhante nos dez últimos anos e toda a gente estava consternada, ignorando de que lado a guerra lhe cairia em cima, ouvindo dizer ora que vinha daqui ora que vinha de acolá. E, entretanto, era forçoso lavrar a terra, e lavravam-na, e nas cidades os negociantes tinham os seus estabelecimentos e os homens tinham de viver e as crianças de ser alimentadas. Assim toda a gente continuava a ganhar a vida, gemendo à aproximação do flagelo e fazendo o seu trabalho enquanto esperavam o que lhes iria acontecer.

 

Toda a gente, naquela região tinha os olhos postos em Wang o Tigre, porque o seu domínio sobre eles estava então abertamente estabelecido e sabiam que os impostos passavam pelas suas mãos. Embora o velho governador se mantivesse ainda no seu posto como representante do Estado, só lá estava para vista, e era Wang o Tigre quem tudo decidia. Sim, Wang o Tigre assistia até às audiências ao lado do governador, o velho dirigia-se-lhe sempre quando chegava o momento da sentença, e o dinheiro que até ali era costume ser pago aos conselheiros, ia agora parar às mãos de Wang o Tigre e dos seus homens de confiança. Mas Wang o Tigre era sempre o mesmo porque, se se é certo que recebia dos ricos, quando um pobre se apresentava, deixava-o falar livremente. Havia muitos que por isso o elogiavam. Mas nessa Primavera toda a gente se voltava para Wang o Tigre, a ver o que ele fazia, porque sabiam que, se ele tomasse parte na grande guerra, teriam de pagar os soldados e as espingardas de que precisasse.

 

Quanto a Wang o Tigre, reflectira muito no caso, sozinho e com sua mulher e também com os seus homens de confiança, mas estava ainda indeciso sobre o que valeria mais para si. O senhor de guerra daquela província tinha expedido ordens a todos os pequenos generais e capitães e ínfimos senhores de guerra independentes, e dissera-lhes: «Uni-vos todos sob a minha bandeira com os vossos homens, porque chegou a hora em que todos nos podemos elevar um ou dois degraus na maré da guerra».

 

Mas Wang o Tigre não sabia se convinha responder ou não àquele apelo, porque não conseguia ver qual dos partidos ganharia. Se arriscasse o seu nome no partido que fosse derrotado, isso significaria para ele um retrocesso e talvez a sua ruína, visto ter-se elevado tão recentemente. Assim, pois, inquieto acerca de si próprio, reflectiu e mandou os seus espiões para verem e ouvirem e descobrirem qual dos partidos seria o mais forte e ficaria vencedor. Explicou-lhes que, enquanto estivessem ausentes iria contemporizando, não se declarando por ninguém, e que esperaria que a guerra já estivesse quase acabada e a vitória evidente para então se apressar a declarar-se. Desse modo, não teria mais nada a fazer do que deixar-se levar com os outros até ao cume da última vaga, e não perderia um único homem, nem uma única espingarda.

 

Mandou, pois, os espiões, e esperou.

 

Durante a noite, falava daquilo com a mulher, porque o seu amor e a sua ambição estavam associados da maneira mais singular, e depois de ter matado a sede que dela tinha e de se ter recostado comodamente, conversava com ela como durante toda a vida não conversara com ninguém. Confiava-lhe todos os planos que arquitectava, terminando todos os seus sonhos por estas palavras:

 

Assim farei, e quando tu me deres um filho, ele dará nova significação a tudo isto.

 

Mas a mulher nunca respondia a esta esperança dele e quando Wang o Tigre insistia a tal respeito, ficava nervosa, falava de qualquer banalidade quotidiana e perguntava de repente: «Já tem os seus planos prontos para a batalha decisiva?» E acrescentava muitas vezes: «A astúcia é a melhor arma de guerra, e a melhor batalha é a do fim, quando a vitória está próxima e segura».

 

E Wang o Tigre nunca notava nela frieza alguma, tão ardente ele próprio era.

 

Esperou, portanto, durante toda aquela Primavera, embora esperar o contrariasse habitualmente, e teria sido agora incapaz de o suportar se não fosse ter junto de si aquela mulher nova para ele. Chegou o Verão e o trigo foi ceifado e o ruído das foices repercutia pelos vales durante todo o dia, na paz e no calor do Sol. Nos campos onde crescera o trigo, a cana de sorgo cresceu e desenvolveu as suas landes, e enquanto Wang o Tigre esperava, as guerras surgiam por toda a parte, e no Sul determinado general coligava-se com outro momentaneamente, como os generais do Norte, e Wang o Tigre esperava sempre. E era grande a sua confiança de que os generais sudistas não ganhassem, porque sentia repugnância em associar-se mais uma vez com aqueles homenzinhos escuros e enfezados. Repugnava-lhe isso tanto que, muitas vezes, meditava sobre o caso e dizia de si para consigo, de mau humor, que se o Sul ganhasse, iria refugiar-se durante algum tempo nas montanhas, onde esperaria uma nova ocasião de batalhar.

 

Mas não esperava em completa ociosidade. Exercitava, com renovado zelo, os seus soldados, cujo número mais uma vez aumentou, recrutando muitos moços valentes que se lhe vinham oferecer, e pondo os velhos soldados acima dos novos. O seu exército subiu a dez mil homens e para manter este aumento elevou um pouco os impostos sobre o sal e o vinho e sobre os negociantes de passagem.

 

O seu único aborrecimento nessa época era não ter espingardas em quantidade suficiente. Compreendeu que devia fazer de duas coisas uma: ou obter espingardas por astúcia, ou então vencer um pequeno capitão vizinho e tomar-lhe as espingardas e as munições. Provinha esta carência de serem as espingardas objecto de fabrico estrangeiro e trazidas do estrangeiro, coisa em que Wang o Tigre não pensara quando escolhera para seu domínio uma região do interior das terras. Não havia nenhum porto costeiro sob o seu domínio e os outros portos estavam tão bem guardados que não podia contar com fazer entrar espingardas secretamente por eles. Não sabia, além disso, nenhuma língua estrangeira, e não tinha junto de si ninguém que as soubesse, de modo que não havia maneira de tratar com os negociantes estrangeiros e parecia-lhe que o único recurso era uma pequena batalha em qualquer parte para adquirir as espingardas de que os seus homens careciam.

 

Uma noite explicou o projecto à mulher, e ela tomou logo grande interesse pelo caso e deu-lhe toda a atenção, ao contrário do que lhe acontecia muitas vezes, por estar distraída e não lhe prestar ouvidos. Ora, tendo ela a atenção ao caso, não tardou a dizer-lhe:

 

Mas eu pensava que me tinha dito ter um irmão negociante!

 

Tenho um nessas condições, de facto respondeu Wang o Tigre, admirado, mas é negociante de cereais e não de espingardas.

 

Sim, mas então não vê!gritou-lhe ela, no seu tom impaciente e elevando a voz. Se ele é negociante e trafica com os portos costeiros, pode comprar espingardas e passá-las escondidas nas suas mercadorias, de uma maneira ou de outra. Como, não sei, mas deve haver maneira de o fazer.

 

Ora Wang o Tigre voltou a pensar naquilo por várias vezes, e parecia-lhe que aquela mulher era muito hábil, e fez um plano em conformidade com o que ela sugerira. No dia seguinte, chamou o seu sobrinho o Bexigoso, que se desenvolvera muito durante aquele último ano e que mantinha sempre perto de si para pequenas diligências especiais que tinha de mandar fazer, e disse-lhe:

 

Vai procurar o teu pai e finge teres ido a casa fazer uma visita e nada mais, mas quando estiveres a sós com ele explica-lhe que tenho necessidade de três mil espingardas e que estou cruelmente embaraçado por não as ter. Vêm homens de toda a parte, mas faltam espingardas para eles, e são-me inúteis sem espingardas. Explica-lhe que, sendo ele negociante e traficando com a costa marítima, pode imaginar um meio para as conseguir. Mando-te a ti, visto o plano dever ser mantido secreto, e tu seres do meu próprio sangue.

 

O jovem ficou bastante alegre por partir, e apressou-se a prometer o maior sigilo, orgulhoso da sua missão. E Wang o Tigre continuou na expectativa, recebendo sempre novos homens sob a sua bandeira. Somente os escolhia agora mais cuidadosamente e os experimentava um por um, para saber se tinham ou não medo à morte.

 

PÔS-SE portanto o rapaz a caminho para sua casa, por atalhos, através de campos. Despira o trajo de soldado e envergara o de um filho de agricultor e, com a grosseira roupa azul e o rosto queimado e bexigoso, não tinha ar de outra coisa do que de um moço de lavoura, e de um digno neto de Wang Lung. Ia montado no seu velho burro branco, com um casaco esfarrapado dobrado a servir de selim, e apertava por vezes o ventre do burro com os pés nus, para o fazer andar mais depressa. Nenhuma das pessoas que o viam cavalgando assim, e muitas vezes meio a dormir sob o ardente sol de Verão, teria jamais pensado que ele levava uma mensagem que devia trazer três mil espingardas para aquela pacífica região. Mas quando não dormia, cantava uma canção celebrando os soldados e a guerra, porque gostava de cantar, e nesses casos acontecia às vezes que um camponês ocupado a trabalhar nos campos erguia os olhos para ele com descontentamento e o seguia com os olhos. E houve até um aldeão que lhe gritou:

 

Maldição sobre ti que cantas uma canção de soldados... Queres então atrair outra vez para cima de nós os corvos negros ?

 

Mas o moço, alegre e despreocupado, cuspia para um e outro lado na poeira da estrada, para mostrar que não queria saber disso, e que continuaria a cantar se assim lhe apetecesse. Na verdade, não conhecia outras canções além daquelas, tendo passado tanto tempo entre homens despreocupados e belicosos. Os soldados não costumam cantar as mesmas canções que cantam os camponeses, na paz dos seus campos.

 

Chegou a casa no terceiro dia, ao começo da tarde, e quando desmontava do burro à esquina, onde a pequena rua lateral se separava da rua larga, estava ali perto o seu primo, na mandria; esbugalhou os olhos e, interrompendo a espreguiçadela que estava a fazer, disse-lhe, como boas-vindas:

 

Então, ainda não és general?

 

O Bexigoso redarguiu com vivacidade e espirituosamente:

 

Não, mas pelo menos já recebi o primeiro grau!

 

Dizia isto para troçar um pouco o primo, pois todos sabiam que Wang o Proprietário e a sua senhora repetiam sempre que contavam fazer daquele filho um letrado e que na próxima estação iria fazer o exame neste ou naquele centro de ciência e assim se tornaria num grande homem. Mas vinha a estação e passava o ano e o seguinte, e nunca lá ia. Ora o Bexigoso sabia que o seu primo ia a caminho não de uma escola qualquer mas de alguma casa de chá, e que com certeza acabava de sair da cama, ainda fatigado da noite que passara em qualquer parte. Mas o filho de Wang o Proprietário, que era elegante e desdenhoso, examinou o primo e disse-lhe:

 

O seres um general de primeiro grau não te deu sequer para pores um casaco de seda às costas!

 

E continuou o seu caminho sem esperar pela resposta, barnboleando-se ao andar, de maneira que ,a túnica de seda, da cor dos rebentos do salgueiro, se bamboleava também a cada um dos seus passos senhoris. Mas o moço bexigoso fez uma careta, deitou a língua de fora nas costas do primo e dirigiu-se para a sua porta.

 

Quando penetrou no pátio de sua própria casa, nada encontrou mudado. Era a hora da refeição do meio dia, e a porta da casa estava aberta. Viu o pai sentado sozinho à mesa para jantar, os pequenos corriam por todos os lados enquanto comiam como faziam sempre, e a mãe, de pé, à porta, com a sua tigela junto de si e empurrando a comida para a boca com os pauzinhos, mastigava conversando com uma vizinha, que viera pedir-lhe qualquer coisa emprestada, a respeito de um peixe salgado que, apesar de suspenso da trave do tecto, o gato roubara na noite passada. À vista do filho, exclamou:

 

bom, chegas à hora de comer, não podias cair melhor!

 

E voltou à conversa.

 

O moço dirigiu-lhe um sorriso mas nada disse, depois de a saudar, e penetrou no interior. O pai, um pouco surpreendido, fez-lhe um aceno, e o filho saudou-o como era seu dever, foi buscar uma tigela e um par de pauzinhos, encheu a tigela da comida que estava posta na mesa e foi sentar-se de lado, num assento lateral, como é dever dos filhos quando estão na presença dos pais. Depois de terem comido, o pai deitou chá na sua tigela de arroz, mas pouco, porque em tudo era poupado, e depois de o ter bebido até ao fundo, aos golinhos, disse então para o filho:

 

Trazes algum recado para mim?

 

E o filho respondeu:

 

Trago, sim, mas não lho posso dar aqui.

 

Dizia isto porque os irmãos e as irmãs se lhe acotovelavam em volta e o contemplavam em silêncio, pois era para eles um estranho, escutando avidamente tudo o que dizia.

 

Não tardou que a mãe se aproximasse também para tornar a encher a sua tigela, porque tinha muito apetite e comia ainda muito tempo depois de o marido ter acabado e se ter ido embora. E contemplando também o filho disse-lhe:

 

Cresceste dez boas polegadas, ia jurá-lo! E porque trazes tu um casaco todo esfarrapado? Então teu tio não te dá melhor? De que te alimentam para te fazer crescer assim... de boa carne e bom vinho, aposto!

 

O jovem sorriu e respondeu:

 

Tenho boas roupas, mas não as vesti desta vez, e comemos carne todos os dias.

 

Ao ouvir isto, Wang o Negociante ficou pasmado e exclamou com um interesse involuntário:

 

Quê ?!.. Meu irmão dá carne todos os dias aos seus soldados ?

 

O jovem apressou-se a responder:

 

Não, só presentemente, porque está a prepará-los para a guerra e precisa de os tornar violentos e cheios de sangue. Mas eu não acamarado com os simples soldados e tenho o direito de comer o que meu tio e sua mulher deixam nas suas tigelas... eu e os seus homens de confiança.

 

Ao ouvir aquilo, a mãe disse avidamente:

 

Fala-me da mulher dele! É uma coisa singular que não nos tenha convidado para o casamento.

 

Convidoudisse muito depressa Wang o Negociante, não vendo fim àquela conversa, se a deixasse prosseguir. Sim, convidou-nos, mas eu disse que não iríamos. Teria ficado muito caro e precisarias de roupas novas e isto e aquilo, por causa das aparências, se lá tivesses ido.

 

Ao que a mulher respondeu com energia e em voz muito alta:

 

O senhor, já se sabe, é um velho avarento, eu não vou nunca a parte alguma e...

 

Mas Wang o Negociante pigarreou para aclarar a voz e disse para o filho:

 

Anda comigo, aqui não se pode estar em paz.

 

Ergueu-se, afastou as crianças, mas sem brusquidão, e saiu, seguido pelo filho.

 

Wang o Negociante desceu a rua até uma pequena casa de chá onde não ia muitas vezes, e escolheu uma mesa num canto tranquilo. A sala estava quase vazia. Era uma hora em que havia poucos clientes, porque os camponeses que tinham vindo vender os seus produtos estavam já de regresso a casa, e os clientes da cidade não tinham ainda chegado para a conversa da tarde. E foi ali, sossegadamente, que o filho de Wang o Negociante lhe explicou a sua missão.

 

Wang o Negociante escutou-o muito atento, sem o interromper, até o filho ter dito tudo o que tinha a dizer, e, quando chegou ao fim, a expressão do seu rosto não mudou. Ao passo que Wang o Proprietário se teria mostrado espantado, abrindo muito os olhos e jurando que era uma coisa impossível de realizar, Wang o Negociante tornara-se agora secretamente tão rico que nada era para ele impossível e, se hesitava, era para ver se a coisa, uma vez realizada, lhe daria ou não lucro. Tinha dinheiro colocado por toda a parte, e havia muito quem lhe pedisse emprestado tanto quanto podiam. Tinha até dinheiro nos templos budistas, emprestado aos sacerdotes sobre as terras dos templos, porque nessa época o Mundo não era já devoto como outrora, e só as mulheres, e geralmente as velhas, estavam dispostas a prestar culto aos deuses, e muitos templos tinham empobrecido e visto diminuídos os seus florescentes bens. Wang o Negociante tinha também dinheiro em navios que sulcavam os rios e os mares; tinha-o num caminho de ferro, e colocara uma bela soma num lupanar da cidade, embora não fosse nunca cliente do seu próprio estabelecimento. E o seu irmão mais velho nunca teria imaginado, quando ia jogar àquela nova grande casa de jogo aberta havia um ou dois anos, que era um estabelecimento do seu próprio irmão. Mas era um negócio que rendia muito, e Wang o Negociante contava com a comum natureza dos homens.

 

Assim, o seu dinheiro andava em circulação por cem canais secretos, e se o recolhesse de repente, milhares de pessoas sofreriam com isso. E, contudo, não comia mais nem melhor do que outrora, e abstinha-se de jogar, como é costume fazerem todos os homens, quando têm mais do que o necessário para comer e vestir, e tão-pouco deixava que os filhos se vestissem de seda, e, ao ver a sua maneira de viver, ninguém teria imaginado a que ponto ele era rico. Por consequência, podia pensar em três mil espingardas de fabrico estrangeiro sem ficar estonteado, como ficaria Wang o Proprietário. Sim, olhando para aqueles dois irmãos, quem os encontrasse na rua teria dito que o rico era Wang o Proprietário, ao vê-lo gastar tão facilmente o seu dinheiro e ao vê-lo tão enormemente gordo e ondulando nos seus vestidos de seda e de cetim e os seus filhos, também todos vestidos de seda, excepto o pequeno corcunda que vivia com Flor de Pereira e ia chegando calmamente à idade de homem, ao lado dela, sempre esquecido.

 

Assim, pois, Wang o Negociante reflectiu em silêncio durante um momento, e disse por fim:

 

E falou-te meu irmão nas garantias que terei para tanto dinheiro como é preciso empregar nessas espingardas? Preciso de ter uma boa garantia, visto que comprá-las é contrário à lei.

 

E o jovem respondeu:

 

Ele disse-me: Explica a meu irmão que, se não tem confiança na minha palavra, pode tomar toda a terra que lhe deixei em garantia, até ao momento em que eu tiver recolhido o dinheiro suficiente para pagar as espingardas. Tenho nas minhas mãos todos os rendimentos desta região, mas não posso dar uma grande quantia de um momento para o outro sem fazer sofrer os meus homens.

 

Não tenho necessidade de mais terra do que a que já tenho disse Wang o Negociante reflectindo. O ano por cá foi mau, quase de fome, e a terra está barata. Tudo o que lhe resta não seria suficiente. A despesa com o casamento levou muitas terras.

 

Então o rapaz acrescentou com gravidade, e os seus olhinhos negros e vivos brilhavam-lhe mais ainda no rosto:

 

Pai, é exacto que meu tio é um grande homem. Devia ver como todos o temem! Mas é também um homem bom, porque não mata ninguém por matar. Até o governador da província tem medo dele. Nada receia... Quem, a não ser ele, teria tido coragem para casar com uma mulher a quem toda a gente chama uma raposa! E se obtiver essas espingardas, isso dar-lhe-á mais poder do que nunca.

 

Ora, as palavras do seu próprio filho não podem impressionar muito um pai; contudo havia verdade no que ele dizia, e o que decidiu Wang o Negociante foi pensar que ter um irmão que era um poderoso senhor de guerra, valeria muito para ele. Sim, se viesse a hora de uma grande guerra, como constava nesses anos que viria, e se a guerra viesse para aqueles lados... e quem pode prever como evolucionará uma guerra?... Os seus grandes bens correriam o maior risco de ser apreendidos e postos a saque, se não pelos soldados inimigos, pelo menos talvez pelos pobres sem escrúpulos. Porque Wang o Negociante não tinha agora a sua fortuna em terras, e as terras que, possuía não contavam, por assim dizer, ao lado das suas casas e estabelecimentos e do seu negócio de emprestar dinheiro, e num tempo em que os homens têm liberdade de despojar outrem, uma fortuna deste género corre grande risco de desaparecer tão depressa que em poucos dias um homem rico pode muito bem ficar pobre, se não tem em qualquer parte um poder secreto para o ajudar e o proteger numa necessidade imprevista, como pode surgir de um momento para outro.

 

Assim, pois, pensava de si para consigo que aquelas espingardas bem podiam um dia tornar-se numa protecção para ele também, e reflectiu um pouco mais detidamente na maneira como poderia comprá-las e introduzi-las secretamente. Isso podia ele fazer, porque possuía agora dois pequenos navios para transporte de arroz para um país estrangeiro vizinho. Era proibido exportar arroz dessa maneira, e tinha de o fazer em segredo, mas realizava um grande lucro com a operação, que lhe dava bem para oferecer grandes «luvas» às autoridades. Eram estas pouco rígidas e, convenientemente subornadas, fechavam os olhos aos dois pequenos navios, que ele conservava intencionalmente pequenos, e guardavam a sua indignação e o seu zelo pela lei para os navios estrangeiros ou ainda para outros que não lhes davam lutro algum.

 

E Wang o Negociante pensou nos seus dois navios que voltavam por vezes vazios desse outro país ou então só meio carregados de panos de algodão e de chita estrangeira, e pensou que poderia facilmente arranjar as coisas de maneira a passar de contrabando espingardas estrangeiras entre essas mercadorias. Se fosse apanhado, ficaria quite com uma distribuição de dinheiro para um lado e para outro e daria aos seus capitães alguma coisa para lhes tapar a boca e tornar o silêncio agradável a todos. Sim, podia fazer isso. E então, depois de ter olhado à volta para verificar que não havia ninguém nas proximidades, nem clientes, nem criados, falou assim ao filho, por entre, dentes, sem mover os lábios e muito suavemente:

 

Posso fazer chegar as espingardas à costa e até a um certo ponto onde o caminho de ferro passa mais perto de meu irmão, mas como poderei fazê-las chegar até ele, com mais de um dia de viagem por região deserta e sem outro meio de comunicação que não seja a pé ou a cavalo?

 

Ora, Wang o Tigre nada dissera a tal respeito ao sobrinho e foi por isso que este se limitou a coçar hesitante a cabeça e a olhar para o pai. E respondeu:

 

Tenho de voltar a perguntar-lho.

 

E Wang o Negociante retorquiu:

 

Diz-lhe que me encarrego de disfarçar as espingardas no meio de mercadorias de outro género-e marcadas com outros nomes e de as depositar em lugar que se combine, e depois ele deverá levá-las daí de qualquer maneira.

 

Assim, pois, munido desta resposta, o rapaz voltou para junto do tio, e partiu logo na manhã seguinte. Mas, nessa noite, dormiu em sua casa e a mãe cozinhou para ele um prato de que gostava, pequenos bolos de pão cozidos com alho e carne de porco dentro, uma guloseima muito delicada. Comeu quanto pôde daqueles bolos e o que sobrou meteu-o no seio para ir comendo pelo caminho. Depois, sentado no burro, empreendeu a viagem de regresso para junto de Wang o Tigre.

 

DURANTE o mês seguinte, aconteceu uma coisa tal como Wang o Tigre, na sua presunção, não teria acreditado ser verdadeira se lha tivessem contado. A febre da guerra propagou-se por toda a região, quando se soube que os grandes senhores supremos declaravam a guerra uns aos outros e cindiam o país em duas partes. Naquela febre surgiam bandos de todos os lados, o espírito belicoso despontava por toda a parte, pois os homens que estavam ociosos e sem trabalho ou os que não queriam trabalhar; os que gostavam da aventura e os filhos que não se davam com os pais; os jogadores que tinham perdido ao jogo e todos os descontentes aproveitavam o momento para se revelarem e fazerem uma demonstração qualquer.

 

Naquela mesma região em que Wang o Tigre exercia agora a autoridade, em nome do velho governador, esses revoltados reuniram-se em bandos e a si próprios deram o nome de Turbantes Amarelos, por trazerem a cabeça envolvida em faixas amarelas, e começaram a saquear a região. A princípio, fizeram-no de maneira reduzida e tímida, exigindo de qualquer camponês comida, quando passavam, ou então, iam comer a uma estalagem da aldeia e partiam sem pagar ou só pagando parte, mostrando um aspecto tão intratável e elevando de tal maneira a voz que o estalajadeiro tinha medo de protestar e aguentava a perda o melhor que podia.

 

Mas estes Turbantes Amarelos foram-se tornando mais ousados, à medida que o seu número crescia e começaram a desejar espingardas, - porque as únicas que possuíam eram as poucas dos soldados desertores que havia entre eles. Tornaram-se, por consequência, mais atrevidos nos seus roubos à gente do povo, mas não se aproximavam no entanto das vilas e das cidades, ficando-se pelas aldeias e lugares. Por fim, alguns dos mais corajosos de entre os camponeses vieram ter com Wang o Tigre e expuseram-lhe os seus males. Comunicaram-lhe que os gatunos se iam tornando mais ousados por causa da impunidade e vinham já de noite para roubar, e quando não encontravam tudo o que desejavam, matavam sem remorsos famílias inteiras de camponeses. Mas Wang o Tigre não sabia se devia ou não acreditar no que lhe contavam, porque, quando mandara espiões para interrogar os camponeses, havia-os tão medrosos que receavam falar e negavam tudo. E foi por isso que, durante certo tempo, Wang o Tigre nada fez, não dando importância àquilo, pois todo o seu espírito estava ocupado na escolha do momento propício para se declarar na grande guerra.

 

Estando ele no seu quarto a reflectir, chegou um mensageiro portador de uma carta que vinha de seu irmão, Wang o Negociante. Wang o Tigre abriu o sobrescrito e leu. com palavras ambíguas, seu irmão dizia-lhe que as espingardas tinham chegado e seriam postas em certo lugar, e em determinado dia, e que estavam escondidas em sacos de cereal importado para fazer farinha nos grandes moinhos do Norte.

 

Wang o Tigre, viu-se mais embaraçado do que nunca, porque tinha de mandar buscar as espingardas de qualquer maneira, mas os seus homens estavam dispersos por toda a região, pois os tinha mandado em perseguição dos bandidos. Ficou assim um momento, e amaldiçoava aquele dia, quando entrou a mulher a quem amava. Ela movia-se com graça e languidez excepcionais, porque se estava no período dos grandes calores do Verão, e só trazia vestidas uma blusa e umas calças de seda branca, e desabotoara a gola da blusa na garganta, de modo que se lhe via o colo, muito macio, farto e mais pálido do que o rosto.

 

A despeito de todas as suas maldições e do seu aborrecimento, Wang o Tigre ao vê-la, ficou preso da visão do seu belo colo, o seu aborrecimento abandonou-o e desejou pousar os dedos naquele pescoço pálido, esperando que ela se aproximasse. Ela aproximou-se, apoiou-se à mesa e disse, olhando para a carta que ele conservava na mão:

 

Há alguma coisa que não lhe corre bem, para estar assim com ar tão sombrio e zangado?Esperou um momento, deu uma risadinha aguda, e continuou:Espero que não, pois de outro modo recearia que me matasse com esse olhar sombrio com que está agora!

 

Wang o Tigre estendeu-lhe a carta sem dizer nada, mas continuando a fitar-lhe o colo nu e a pele acetinada que se ia perder no contorno dos seios. Tinha chegado a um ponto tal com aquela mulher que sem mais detença contou-lhe tudo. Ela pegou na carta e leu-a. E ele, sentindo certo orgulho pelo saber dela, achou-a incomparavelmente linda quando ela se inclinou sobre a carta e a leu, movendo um pouco os lábios finos e bem desenhados. Tinha agora os cabelos lisos e brilhantes atados no pescoço por uma pequena rede de seda preta, e das orelhas pendiam-lhe anéis de ouro.

 

Depois de ter lido a carta, meteu-a novamente no sobrescrito e pousou-a na beira da mesa. Wang o Tigre, que lhe seguia os gestos, sem tirar os olhos das mãos leves, ágeis e finas, disse:

 

Não sei como ir buscar os sacos de cereal. Tenho de os levantar ou pela força ou pela astúcia.

 

Não é difícildisse calmamente a mulher. A força e a astúcia são fáceis. Tenho já um plano na cabeça. Ocorreu-me enquanto lia esta carta. Basta mandar um bando dos seus homens, como se fossem ladrões, desses ladrões de que se fala agora, fingirem que roubam o cereal para eles. Quem saberá depois que Wang o Tigre teve alguma coisa que ver nisso ?

 

Wang o Tigre teve o seu sorriso mudo, por a ouvir dizer aquilo, tão inteligente lhe pareceu o plano, e atraíu-a a si, porque estavam sós no quarto e os guardas saíam e ficavam diante da porta todas as vezes que ela entrava, e contentou o seu desejo de lhe percorrer a carne macia com as mãos rudes. Respondeu:

 

Nunca houve mulher que tivesse tanta sabedoria como tu! Que abençoado foi o dia em que matei o Leopardo!

 

E depois de ter contentado o seu desejo, saiu e chamou o Falcão para lhe dizer:

 

As espingardas de que precisamos estão num lugar a cerca de cinquenta quilómetros daqui, onde se cruzam duas linhas de caminho de ferro. Estão em sacos de cereal, como se se destinassem a ser expedidos dali para os moinhos do Norte. Leva quinhentos homens armados e vestidos como se fossem um bando de ladrões e vão apoderar-se desses sacos, que fingirão levar para qualquer covil. Terás carros e burros prontos num lugar próximo, e trarás os sacos para aqui, com o cereal e o resto.

 

Ora o Falcão era um homem hábil, que se fiava no seu espírito e na sua astúcia, ao passo que o Matador de Porcos confiava nos seus dois grandes punhos, e uma aventura assim agradava-lhe. E, portanto, inclinou-se. Depois, Wang o Tigre acrescentou.

 

Quando todas as espingardas estiverem aqui, podes estar certo de que te recompensarei e que cada soldado receberá uma recompensa proporcionada ao que tiver feito.

 

Dada a ordem, Wang o Tigre voltou ao seu quarto. A mulher já ali não estava. Ele voltou a sentar-se na sua cadeira de madeira esculpida, que para ser mais fresca tinha uma almofada em junco entrelaçado, desapertou o cinturão e o colarinho da farda, porque o calor do dia se tornara excessivo, e ficou a descansar, pensando no colo da mulher e no contorno dos seios e maravilhava-se de que pudesse existir uma carne tão macia como a dela, e uma pele tão lisa.

 

Em momento algum reparou no desaparecimento da carta do irmão, porque a mulher pegara nela e guardara-a no seio, tão abaixo que as mãos dele não lhe tinham tocado.

 

Ora quando já o Falcão tinha meia jornada de caminho, Wang o Tigre, antes de se deitar, foi sozinho tomar o fresco da noite, e pôs-se a passear no pátio perto de uma porta lateral que dava para uma ruazinha onde passava pouca gente, e só de dia. E estando assim a passear ouviu cantar um grilo. A princípio não prestou atenção, porque tinha demasiadas coisas em que pensar. Mas o grilo cantou outra vez, e ele acabou por reparar em que não era a época dos grilos. Ora foi por isso que, por simples curiosidade, olhou para ver onde estaria o insecto escondido. O ruído vinha da porta. Olhando para fora, no crepúsculo que descia, viu a silhueta informe de alguém que se escondia.

 

Levou a mão à espada deu um passo em frente e ali, na luz crepuscular, viu o rosto sardento e muito pálido do sobrinho voltado para ele. O rapaz, com a respiração entrecortada, murmurou:

 

Não faça barulho, meu tio! Não diga à sua mulher que estou aqui. Mas venha à rua quando puder, esperá-lo-ei na primeira esquina. Tenho uma coisa para lhe dizer e é da maior urgência.

 

Então o jovem desapareceu como uma sombra. Mas Wang o Tigre não quis esperar, visto estar sozinho, e seguindo pela sombra chegou primeiro ao lugar marcado. Depois viu chegar o sobrinho, escoando-se na obscuridade ao longo das paredes, e disse-lhe muito espantado:

 

Que tens tu para andar a esgueirar-te assim como um cão batido ?

 

E o jovem murmurou:

 

Chut!... Mandaram-me a um lugar longe daqui... Se a sua senhora me vê aqui, e é tão fina que eu não me admirava se ela me tivesse vigiado... disse que me matava se eu lhe dissesse, e não é a primeira vez que me ameaça!

 

Quando Wang o Tigre ouviu aquilo, ficou desorientado demais para poder falar. Agarrando o rapaz, quase o ergueu do chão, arrastou-o para as trevas de um beco, e ordenou-lhe que falasse. Então o rapaz colou a boca ao ouvido de Wang o Tigre e disse-lhe:

 

Sua mulher mandou-me levar esta carta a alguém, mas eu não sei a quem, porque não a abri. Ela perguntou-me se eu sabia ler e eu respondi que não. Como havia eu de saber, tendo sido criado no campo! Ela então deu-me a carta e disse-me que a entregasse a um certo homem que me encontraria esta noite na casa de chá do subúrbio do norte e deu-me uma moeda de prata pelo recado.

 

Meteu a mão no peito e tirou uma carta, de que Wang o Tigre se apoderou sem uma palavra. Sem uma palavra caminhou com largas passadas pelo beco fora até uma ruazita onde um velhote tinha aberto uma loja solitária onde vendia água quente, e aí, à luz vacilante da pequena lâmpada de azeite que pendia de um prego espetado na parede, abriu a carta e leu. E à medida que lia ia vendo claramente que havia uma conspiração. Ela... a sua mulher... tinha falado a alguém das espingardas! Sim, podia ver que se entendera com alguém para o trair, e aqui na carta fazia uma última recomendação. Escrevia:

 

«Quando tiverem as espingardas e estiverem reunidos, eu irei».

 

Quando Wang o Tigre leu aquilo, teve a impressão de que a terra lhe fugia debaixo dos pés e que os céus ruíam para o esmagar. Tinha adorado aquela mulher com tal fervor que nunca poderia ter imaginado que ela fosse capaz de o trair. Esquecera todas as advertências que o seu fiel Beiço Rachado lhe fizera, não se importara com o ar consternado dele, e amava a mulher de tal maneira que só tinha uma vontade dominante, e era que ela lhe desse um filho. Sim, constantemente lhe perguntava, e com que ardor, se ela tinha concebido ou não. De tal maneira a amara que não compreendia que ela, no íntimo do seu coração, lhe pudesse resistir. E àquela mesma hora tinha estado à espera para ir ter com o seu amor: à espera que de todo se fechasse a noite.

 

E agora via que ela nunca o tinha amado. Era capaz de conspirar assim, na mesma hora em que ele esperava para saber o rumo que tomaria a guerra e dar o seu grande passo em frente. Ela era capaz de conspirar assim e de estar deitada toda a noite ao seu lado, fingindo-se desgostosa quando ele a interrogava sobre o filho. E de súbito apoderou-se dele uma cólera tal que mal podia respirar, uma cólera que cresceu dentro dele, mais sombria do que nunca. O coração batia-lhe e ressoava-lhe nos ouvidos, fugia-lhe a vista, e as sobrancelhas contraíam-se, a ponto de lhe doerem.

 

O sobrinho seguira-o e ficara na sombra, diante da porta. Mas Wang o Tigre empurrou-o para o lado, sem uma palavra, e sem dar conta de que, com a violência da sua cólera, projectara cruelmente o rapaz sobre as pedras pontiagudas da calçada.

 

Dirigiu-se em largas passadas aos seus aposentos, levado nas asas da cólera, e pelo caminho tirou a espada da bainha, a bela espada de aço do Leopardo, e endireitou-lhe o fio na coxa enquanto caminhava.

 

Foi direito ao quarto onde a mulher repousava no leito, cujo cortinado não correra por causa do calor. Ali estava ela pousando, e a Lua cheia daquela noite subira já acima da parede do pátio e o luar caía sobre ela enquanto repousava. Estava nua por causa do calor, e de braços estendidos, e uma das mãos encurvada, meio aberta, pousada na beira da cama.

 

Mas Wang o Tigre não esperou. Embora visse a que ponto ela era bela, como uma estátua de alabastro ao, luar, e tendo consciência de que acima da sua raiva havia nele uma dor pior do que a morte, não se deteve. De momento, queria apenas lembrar-se de que ela o enganara e quisera traí-lo, e no seu furor ergueu a espada e mergulhou-lha sem hesitação na garganta, que se oferecia enquanto que a cabeça pendia sobre o ’travesseiro. Mergulhou-a de um golpe, e em seguida tirou-a e limpou-a à coberta de seda.

 

Dos lábios da mulher saiu apenas um som inarticulado; o sangue abafou-o de tal maneira que ele não percebeu o que dizia. Não se moveu, salvo que, no instante em que o sabre lhe penetrava na garganta, os braços e as pernas se projectaram para o ar e os olhos se lhe abriram desmesurados. E então morreu.

 

Mas Wang o Tigre não quis demorar-se a pensar no que fizera. Saiu em passos largos para o pátio, chamou, os seus homens acorreram, e, na sua cólera, lançou-lhes as ordens em voz brutal e segura. Precisava agora de ir em socorro do Falcão, sem perda de um minuto, e ver se não poderia atingir as espingardas antes dos ladrões. Levou consigo todos os homens disponíveis, excepto duzentos que deixou sob as ordens do seu fiel Beiço Rachado promovido a capitão.

 

Quando atravessava a porta, viu o velho guarda na cama, bocejando e atarantado com o inopinado tumulto. E Wang o Tigre gritou-lhe, sem refrear o cavalo:

 

Está uma coisa no meu quarto de dormir! Vai lá, leva-a para fora e atira-a a um canal ou a um pântano! Trata disso antes do meu regresso!

 

E Wang o Tigre afastou-se, muito altivo e orgulhoso e ainda fremente de cólera. Mas dentro do seu peito era como se o seu coração gotejasse secretamente sangue nas suas entranhas, e por mais que meditasse e avivasse a chama do seu furor, o coração gotejava-lhe sem cessar e secretamente dentro do peito. E de repente, pôs-se a gemer sem parar, embora ninguém o ouvisse no meio do surdo trovão do galope dos cavalos na poeira do caminho. E o próprio Wang o Tigre ignorava que gemia sem cessar.

 

Durante essa noite e dia seguinte, errou Wang o Tigre por toda a região, com os seus homens, à procura do Falcão, e o Sol dardejava sobre eles, porque era um dia sem vento. Mas Wang o Tigre não quis descansar os homens, porque a preocupação o tornava a ele próprio incapaz de repouso e, ao cair da tarde, na grande estrada que vai de Norte para Sul, encontrou o Falcão, à frente do seu destacamento.

 

Quando o Falcão se aproximou dele, a cólera que fervia em Wang o Tigre tornou-o áspero. E disse, por entre dentes, mal erguendo os olhos, quase escondidos pelas sobrancelhas:

 

Então, ia jurar que não tens as espingardas!

 

Mas o Falcão não era peco e o seu humor era muito vivo e orgulhoso. Decidido, respondeu acaloradamente, e sem nenhuma palavra de cortesia:

 

Como podia eu saber que os ladrões estariam informados a respeito das espingardas? Foram informados por qualquer espião e chegaram antes de nós. Tenho eu culpa de eles terem sido informados antes ?

 

E, falando assim, atirou a espingarda ao chão, cruzou os braços no peito e fitou o seu general com insolência, para mostrar que não se deixaria ir abaixo.

 

Então Wang o Tigre, vendo a razão dele, ergueu-se com cansaço do relvado onde se sentara e, apoiando-se ao tronco de uma tamareira, desafivelou o cinturão e tornou a afivelá-lo mais apertado do que estava. E por fim disse com cansaço e com grande amargura:

 

Suponho, portanto, que todas as minhas boas espingardas desapareceram. Terei de combater os bandidos para as reaver. Pois bem, se temos de combater, combatamos! Sacudiu-se com impaciência, cuspiu e animando-se continuou com mais vigor: Vamos à procura deles e apertemo-los fortemente. E se metade de vós ficar por terra depois do combate, paciência, estareis mortos e eu não vos poderei fazer nada! Preciso absolutamente das minhas espingardas, e se uma espingarda me custar dez homens, paciência, aparecerão outros dez por cada espingarda e uma espingarda vale bem isso!

 

Em seguida, tornou a montar a cavalo e reteve violentamente o animal que se encabritava na impaciência que o tomara de provar a suculenta erva que ali havia. O Falcão considerou-o sem se mexer, com um ar aborrecido, e acabou por dizer:

 

Sei muito bem onde se encontram os ladrões. Estão a reunir-se no antigo covil, como se se preparassem para escolher um chefe.

 

Ora Wang o Tigre sabia muito bem quem calculava tornar-se chefe deles, mas, sem dizer mais nada, limitou-se a dar ordem aos seus homens de marcharem contra o covil, e disse:

 

Vamo-nos lançar ao ataque e fareis fogo sobre eles. Quando a fuzilaria acabar, parlamentarei, e cada homem que trouxer uma espingarda terá o direito de se alistar nas minhas tropas. Por cada espingarda que cada um de vocês vir e me trouxer, receberá uma moeda de prata.

 

Mais uma vez escalou Wang o Tigre os caminhos sinuosos do vale que conduzia à montanha dos dois cumes, e os seus homens esfarrapados seguiam-no em desordem. Os camponeses que trabalhavam nos campos levantavam os olhos espantados e os soldados gritavam-lhes:

 

Vamos combater os ladrões!

 

Ao que os camponeses replicavam, por vezes cordialmente:

 

Boa sorte!

 

Mas eram mais os que não diziam nada e olhavam com raiva os soldados que atravessavam os seus campos de trigo, de couves e de melões, porque não acreditavam que dos soldados pudesse vir nenhum bem, tão fartos estavam deles.

 

Uma vez mais Wang o Tigre escalou os caminhos montanhosos e, ao chegar ao sopé da montanha do duplo cume, no lugar em que o desfiladeiro se mete por entre as falésias, desmontou e conduziu o cavalo pela rédea e todos os seus homens que seguiam montados o imitaram. Mas Wang o Tigre não lhes dava atenção. Avançava como se estivesse sozinho, com o corpo inclinado para a montanha, e pensava na mulher e na maneira estranha como viera a amá-la; ainda a amava, a ponto de chorar no seu íntimo, e mal via os musgos dos degraus. Mas não se arrependia de a ter morto. A despeito do seu amor, compreendia, em qualquer obscuro recanto de si próprio, que uma mulher daquela espécie, capaz de enganar tão perfeitamente como ela o enganara ao receber a sua paixão com sorriso acolhedor, uma mulher daquela espécie não podia ser sincera senão morta, e murmurou de si para consigo:

 

«Na verdade, era bem uma raposa, afinal».

 

Assim, pois, conduziu resolutamente os seus homens até ao alto daquela montanha e, quando estavam perto da saída do desfiladeiro, mandou o Falcão, acompanhado por cinquenta homens, ver o que havia no covil e esperou à sombra de uma pequena mata de pinheiros, porque o calor era excessivo. Não passara ainda uma hora e já o Falcão estava de volta, declarando que dera a volta ao fojo e informando:

 

Estão desprevenidos, e nenhum equipado, porque estão a reconstruir o covil.

 

Viste se tinham chefe?perguntou Wang o Tigre.

 

Não, não vi chefe nenhum. Consegui chegar tão perto que ouvi até o que diziam. São muito ignorantes e sem experiência da vida de bandidos, porque o desfiladeiro não está guardado e estão a disputar uns com os outros por causa das casas menos arruinadas.

 

Eram boas notícias. Wang o Tigre gritou uma ordem aos seus homens e lançou-se à escalada do desfiladeiro, e ao mesmo tempo que corria soltava grandes gritos e ordenava aos seus homens que se precipitassem no covil e que cada um deles matasse pelo menos um ladrão, e depois sustassem a fuzilaria para ele parlamentar.

 

Assim fizeram, Wang o Tigre pôs-se de lado, os seus homens precipitaram-se no covil, deram uma salva e os bandidos caíam mortos por todos os lados, contorcendo-se e vomitando imprecações ao morrer ou enquanto agonizavam. Era exacto que não esperavam por nada, e só pensavam nas casas e na sua instalação. Deviam estar reunidos no covil de três a cinco mil, como formigas num formigueiro, todos ocupados a erguer paredes de terra e a transportar traves e palha para cobrir os tectos e fazendo projectos de futura grandeza. Ao serem assim surpreendidos, todos abandonaram o trabalho e se puseram a correr de um lado para o outro, desorientados, e Wang o Tigre verificou que não havia ali ninguém para lhes dar instruções nem tinham chefe determinado. Pela primeira vez, um raiozinho de Sol penetrou no coração de Wang o Tigre, porque bem sabia quem se lhes devia vir juntar, e viu que cedo ou tarde teria de vir combater contra a mulher a quem amava, e que melhor fora tê-la matado, como fizera.

 

Quando pensou nisto, a velha crença no seu destino reavivou-se uma vez mais dentro dele e interpelou os seus homens na sua voz dominadora, deu ordem de cessar o fogo e gritou para os ladrões sobreviventes:

 

Eu sou Wang o Tigre e governo esta região e não suportarei que haja nela bandidos! Tenho tão pouco receio de matar como de morrer. Matar-vos-ei a todos, até ao último, se se lembrarem de se juntarem outra vez contra mim! Sou contudo homem clemente, e concederei uma saída a todos aqueles que são homens honestos. vou regressar ao meu acampamento que é na capital do distrito. Durante os próximos três dias, admitirei nas minhas tropas todo aquele que vier com uma espingarda, e se trouxer duas receberá uma gratificação em dinheiro.

 

Depois dessa proclamação, Wang o Tigre deu uma ordem seca aos seus homens, que desceram em tropel o desfiladeiro. Mas teve o cuidado de fazer com que alguns dos soldados descessem com as espingardas apontadas para trás, com receio de que algum ladrão mais audacioso se lembrasse de disparar contra eles. Mas aqueles ladrões eram na verdade gente muito ignorante. Tinham entrado na conspiração da mulher que pertencera ao Leopardo, e foram açodadamente buscar as espingardas, mas poucos de entre eles sabiam manejar uma espingarda, excepto alguns soldados desertores, e não se atreveram a disparar sobre Wang o Tigre, receando que fizesse o mesmo efeito que disparar contra um tigre e ele voltasse a precipitar-se sobre eles e os aniquilasse por completo.

 

Um por um ou aos pares ou aos cinco e oito e dez, os ladrões começaram a chegar de todos os lados à cidade, trazendo as espingardas consigo. Era raro que um homem trouxesse duas, porque, se tinha deitado a mão a mais do que uma espingarda, trazia consigo um amigo ou um irmão ou qualquer outro, pois na verdade muitos homens estavam com dificuldades, sem ter de comer e ficavam bem satisfeitos por encontrarem serviço garantido sob as ordens de alguém.

 

Wang o Tigre deu ordem de ser recebido no seu exército todo o homem válido que não fosse velho demais, e aos que não lhe serviam ficava com as espingardas e remunerava-os. Mas aos homens que aceitava dava a alimentação e vestia-os.

 

Decorridos os três dias, concedeu outros três e depois desses mais outros três, e os homens chegavam de dia para dia em tal quantidade que ao fim os campos e as casernas ficaram repletos e Wang o Tigre teve de alojar os seus homens nas casas da cidade. Por vezes, um chefe de família vinha queixar-se de que tinha a casa cheia e a família acumulada num ou dois quartos. Mas se era algum que Wang o Tigre via ser novo e presunçoso em suas queixas, então ameaçava-o e dizia:

 

Podes impedi-lo? Não podes. Então suporta-o! Ou preferias ter os ladrões na região para te roubarem?

 

Mas se o queixoso era um velho ou se se apresentava delicadamente e falava mansamente, então Wang o Tigre também se mostrava correcto, dava-lhe dinheiro ou qualquer presente, e dizia-lhe delicadamente:

 

É só por pouco tempo, pois em breve partirei para a guerra. Não vou contentar-me toda a vida com uma pequena sede de distrito para minha capital.

 

E dizia isso sempre a todos, com feroz amargura, porque já não tinha mulher e, sem ele se aperceber disso, pensar num homem com uma mulher enchia-o de raiva:

 

Se algum dos meus soldados deita os olhos para uma mulher que lhe seja proibida, mato-o!

 

E instalou nas casas mais próximas dele os novos soldados e ameaçou-os com veemência se ousessem olhar sequer para uma mulher honesta.

 

A cada soldado, Wang o Tigre pagava o que lhe prometera. Embora naquele momento estivesse em grandes dificuldades de dinheiro, visto que perto de quatro mil homens provenientes dos ladrões se lhe tinham juntado e tinha apenas pouco mais de duas mil espingardas das três mil que comprara por intermédio de seu irmão, pagou contudo a cada homem e deu satisfação a todos. Mas sabia que não poderia fazer sempre assim, a menos que arranjasse qualquer novo imposto, porque estava a gastar das suas reservas secretas, e é esse um processo perigoso para um senhor de guerra, visto que, se lhe sucede de repente ser vencido e obrigado a retirar-se para qualquer parte, durante algum tempo, não lhe resta com que dar de comer aos seus soldados. E Wang o Tigre pôs-se a pensar num novo imposto.

 

Ora, nessa época, os espiões que mandara obter informações começaram a regressar, porque o Verão estava no fim, e todos traziam as mesmas notícias, e era que os generais sudistas tinham sido repelidos uma vez mais, e que o Norte estava novamente vitorioso. Nisso acreditou logo Wang o Tigre, tanto mais que durante as últimas semanas não tinha sido solicitado como anteriormente pelo general da província para mandar as suas tropas a combater por ele.

 

Assim, pois, se apressou Wang o Tigre a mandar o sobrinho e o seu fiel Beiço Rachado levarem uma carta à capital da província. Escreveu uma carta delicada, dizendo que lamentava ter demorado tanto tempo na liquidação dos ladrões daquela região, mas que estava agora a juntar as suas forças às do Norte contra o Sul, e juntava alguns presentes.

 

Mas o seu destino de novo o ajudou muito habilmente, porque no mesmo dia da chegada dos mensageiros à capital, foi concluída a trégua, os rebeldes regressaram ao Sul para se refazer, e os exércitos do Norte receberam como despojo os seus dias de pilhagem em recompensas da vitória. Assim, pois, quando o general da província recebeu o testemunho de fidelidade de Wang o Tigre, respondeu-lhe aceitando delicadamente, mas acrescentou que aquela guerra estava acabada e chegado o Outono. Mas haveria sem dúvida outras guerras e a Primavera voltaria, e Wang o Tigre devia estar pronto para essa ocasião.

 

Tal foi a resposta que os dois emissários trouxeram a Wang o Tigre, que ficou muito contente ao recebê-la, pois sabia que o seu nome figuraria entre os dos generais vencedores, e não perdera um único homem nem uma única espingarda, mantendo o seu grande exército intacto.

 

DEPOIS o Inverno desceu do Norte glacial e vieram os dias sombrios em que Wang o Tigre não podia sair nem forçar os seus homens a sair. Ficou então frente a frente com o que bem sabia que o esperava e que tanto se esforçara por evitar. Não tinha que fazer e estava só.

 

Agora, desejaria ser como os outros homens, que se apressam a recorrer ao jogo ou ao vinho ou aos banquetes ou às mulheres, para esquecerem todos os aborrecimentos que possam ter. Mas Wang o Tigre não era assim. Habituara-se a comidas simples e preferia-as a banquetes, e pensar em qualquer mulher dava-lhe náuseas. Tentou jogar uma ou duas vezes, mas não tinha temperamento para aquilo. Não era rápido aos dados nem a aproveitar a sorte. Se perdia, encolerizava-se e fazia o gesto de puxar pela espada e os que com ele jogavam alarmavam-se ao verem-lhe as sobrancelhas começarem a contrair-se e a boca a ficar mais amarga, e quando o viam levar a mão ao punho da arma, apressavam-se a deixá-lo ganhar de todas as vezes. Mas isso também aborrecia Wang o Tigre, que dizia:

 

É um jogo para idiotas, como eu sempre disse!

 

E ia-se embora, furioso, porque não se tinha distraído nem podia esquecer.

 

Pior ainda do que o dia era a noite que havia de chegar fatalmente e ele detestava-a ainda mais do que ao dia, porque dormia sozinho e tinha fatalmente de ser assim. Ora essa solidão de dia e de noite não era favorável a um homem como Wang o Tigre, porque tinha o coração pesado de amargura e que não sabia usar da ironia, como acontece com alguns que têm de suportar ainda mais do que ele, e o sono solitário também de nada lhe valia, porque tinha um corpo robusto e exigente. E contudo não havia ninguém a quem pudesse ter por amigo.

 

É certo que o velho governador continuava a habitar num pátio lateral, com a sua velha esposa que estava agora a morrer de consumpção. Era, à sua maneira, um bom velho letrado. Mas tinha tão pouco o hábito de homens como Wang o Tigre, e assustava-se tanto todas as vezes que Wang o Tigre lhe dirigia a palavra, que não podia fazer outra coisa senão cruzar as mãos e dizer muito depressa:

 

Sim, Vossa Honra... sim, General!

 

E ao fim de poucos momentos aquilo impacientava Wang o Tigre, que lançava ao velho letrado semelhante olhar que ele se punha cor de tijolo e, logo que se atrevia a fazê-lo, se retirava muito depressa para os seus aposentos, com o vestido desbotado pendendo-lhe sobre o velho corpo descarnado.

 

Contudo, Wang o Tigre dominava a sua irritação, porque era um homem justo e sabia que o velho governador fazia o melhor que podia, e muitas vezes mandava-o embora antes que a sua irritação se tivesse tornado demasiado forte, com receio de acabar por se encolerizar e fazer mal ao velho, não fosse a mão antecipar-se-lhe à intenção.

 

Havia também os seus homens de confiança, três bons e leais guerreiros. Mas nem por o serem deixavam de ser homens ignorantes e grosseiros, incapazes de falar de outra coisa que não fosse o mister das armas. Wang o Tigre não podia também abaixar-se a conversar com o sobrinho, que estava uma geração abaixo dele, como não podia tão-pouco condescender a banquetear-se e divertir-se com os seus próprios soldados, pois sabia que, se um chefe assim procede e desce a frequentar familiarmente os seus subordinados e se permite que o vejam embriagado diante deles, no dia da batalha não quererão respeitá-lo nem obedecer às suas ordens.

 

Mas ainda que Wang o Tigre convivesse com amigos durante o dia, não poderia evitar que, ao fim de cada dia, viesse a noite e então tinha por força de ficar só, e repousava sozinho no seu leito, e no Inverno as noites são longas e muito escuras.

 

Durante essas longas noites sombrias, Wang o Tigre tinha de se deitar sozinho, e às vezes acendia uma vela pontiaguda e lia os velhos livros de que gostara quando adolescente e que primeiro lhe haviam dado o gosto pela carreira das armas, as histórias dos três reinos e dos ladrões que habitavam na margem de um grande lago, e muitas histórias de proezas como essas. Mas não podia estar sempre a ler. A vela ardia até o pavio acabar, começava a sentir frio e por fim tinha de ficar deitado sozinho na noite negra e amarga.

 

Então, embora todas as noites a diferisse, nem por isso deixava de chegar a hora em que se punha a recordar a mulher que amara e de quem tinha saudades. Mas, apesar de toda a sua tristeza, não desejava vê-la reviver, porque sabia e a si próprio o repetia inces-

 

santemente, que jamais lhe seria possível confiar nela, e o encanto do seu amor fora que lhe abrira inteiramente o coração. Não, morta, podia confiar nela, mas se estivesse viva e se ele a tivesse impedido de o trair e lhe perdoasse, teria ficado sempre a receá-la. O receio tê-lo-ia dividido, de modo que teria passado a dar à sua causa apenas metade do seu coração, e nunca chegaria a ser grande.

 

Por outro lado, não podia deixar de sentir cruelmente a falta dela. Sem ela, via agora a vida estender-se diante de si longa e insignificante, e ele próprio duvidava de poder vir um dia a ser grande. E se tal acontecesse pensava de que lhe valeria isso, se não tinha filho em favor do qual alcançasse o poderio, e se tudo morreria com ele e tudo quanto possuía iria para outros? O amor que tinha pelos irmãos e pelos filhos dos irmãos não tinha força para o fazer lutar por eles com as armas e a astúcia. E no seu quarto escuro e silencioso, a sós, gemia:

 

«Quando a matei, matei dois, e o outro era o filho que poderia vir a ter dela!»

 

Então evocava-a de novo e agora aparecia-lhe sempre tal como a vira quando jazia morta, com a garganta bela e forte traspassada e escorrendo sangue vermelho. Quando assim a revia continuamente, não podia mais, tornava-se-lhe de repente impossível ficar por mais tempo deitado na cama, embora a tivesse mandado lavar e pintar de novo, e de terem desaparecido as manchas de sangue e de o travesseiro ser novo, e apesar de ninguém lhe ter jamais recordado o que ali se passara e ele nem sequer ter sabido para onde tinham levado o cadáver. Levantava-se então e, envolvendo-se na coberta, ficava sentado numa cadeira miserável, tiritando até raiar o dia, olhando, lívido e gelado, através das persianas.

 

Assim se sucediam, sempre iguais, as noites de Inverno, e por fim Wang o Tigre disse de si para consigo que aquilo não podia continuar, pois que aquelas noites tristes e solitárias o tornavam em menos do que um homem, e lhe aniquilavam a ambição. Teve medo por si próprio, ao ver que nada já lhe interessava e que se irritava contra todos os que dele se aproximavam. Sobretudo, irritava-se contra o sobrinho, e com os seus botões dizia amargamente:

 

«Eis o melhor que eu tenho, este macaco brincalhão e bexigoso, filho de um comerciante... Eis o que tenho mais próximo da minha alma!»

 

Por fim, quando lhe parecia que ia enlouquecer, deu-se nele uma reviravolta. Apercebeu-se de que, apesar de morta, aquela mulher ia ser tão seguramente causadora da sua morte como se fosse viva e pudesse ter levado a cabo os seus desígnios. E de repente fez-se duro, teve a ilusão de que falava ao fantasma da mulher para a desafiar, e disse de si para consigo:

 

«Então não pode qualquer mulher ter um filho? E não é um filho o que eu desejo, mais do que uma simples mulher? Quero ter um filho, quero tomar uma mulher, ou duas, ou três, até ter um filho».

 

E nesse mesmo dia mandou chamar o seu fiel Beiço Rachado, recebeu-o no seu quarto particular e falou-lhe assim:

 

Preciso de uma mulher, de uma mulher qualquer, logo que seja de um género decente. Vai dizer aos meus irmãos que minha mulher morreu e dize-lhes que me arranjem isso, visto eu estar ocupado com as guerras que devem rebentar na Primavera e não querer desviar o meu pensamento disso.

 

O homem do beiço rachado partiu rapidamente para desempenhar a sua missão, pois com inquietação vira um pouco, pelo menos, dos sofrimentos do seu general, adivinhava a razão deles e achava o remédio bom.

 

Quanto a Wang o Tigre, não podia fazer outra coisa além de esperar o que o tempo traria e o que por ele fariam os irmãos. Obrigou-se, enquanto esperava, a fazer o plano das suas guerras e a pensar nos meios de se engrandecer. E esforçava-se por se fatigar o mais possível para à noite conciliar o sono.

 

POR caminhos desviados, no receio de que o seu Beiço Rachado se tornasse reparado e que fossem notadas as suas frequentes viagens, o homem de confiança dirigiu-se à cidade e, chegado aí, à casa grande onde habitavam os irmãos Wang, perguntou por Wang o Negociante, o qual a essa hora, próxima do meio dia, estava na sua casa de comércio. O homem de confiança para lá seguiu imediatamente com o fim de lhe transmitir a mensagem que trazia. Wang o Negociante estava sentado no seu escritório, um cacifo sombrio que dava para o grande mercado, e manipulava as bolas de contar, calculando os benefícios que tivera com a carga de trigo de um navio. Ergueu os olhos e prestou atenção ao que lhe contou o homem de confiança, e, depois de o ter ouvido, disse, consternado, abrindo o mais possível os olhos pequeninos e apertando a boca de avarento:

 

Era-me agora mais fácil arranjar-lhe dinheiro do que mulher. Sei lá a quem me hei-de dirigir para lhe arranjar uma? É mau que ele tenha perdido a que tinha.

 

O homem de confiança, sentado de esquineta numa cadeira baixa, para mostrar que sabia qual era o seu lugar, respondeu humildemente:

 

Tudo quanto peço, irmão do meu senhor, é que encontre um género de mulher que não incomode o nosso general e que não se faça amar. Ele tem um coração singularmente profundo e prende-se a um ser de tal maneira que o amor se torna nele uma loucura. Era assim que amava essa mulher que morreu e não a esqueceu ainda. Embora muitos meses já tenham passado, não consegue esquecê-la, e semelhante fidelidade num homem não é boa para a saúde.

 

Como morreu ela?perguntou com curiosidade Wang o Negociante.

 

Mas o homem de confiança era muito fiel e discreto e quando estava prestes a responder, deteve-se, porque se lembrou de que, quando as pessoas são estranhas ao exército e não estão ao corrente das coisas guerreiras, se mostram enojadas e não podem suportar que se mate e se morra como convém a soldados cujo mister é matar e serem mortos, quando não podem escapar pela astúcia. Foi por isso que respondeu simplesmente:

 

Morreu de um repentino fluxo de sangue.

 

E Wang o Negociante contentou-se com a resposta.

 

Depois despediu o homem de confiança, não sem ter dado ordem a um empregado para o conduzir a uma pequena estalagem e lhe mandar servir porco com arroz. E Wang o Negociante, pensativo, ficou-se a monologar:

 

«Aqui está uma ocasião em que o meu irmão mais velho vai ter ensejo de se mostrar mais sabedor do que eu, pois se há alguma coisa de que ele perceba é de mulheres, e eu que mulher conheço além da minha?»

 

Dirigiu-se pois à casa de jogo, onde sabia dever encontrar o irmão àquela hora, interrogou um empregado e soube que o irmão estava em determinada sala, onde com efeito o encontrou jogando com alguns amigos.

 

Quando Wang o Proprietário viu assomar à porta a cabeça do irmão, ficou intimamente muito satisfeito por ser interrompido, porque não era dos mais hábeis ao jogo, pois já não era novo quando começara a jogar. Seu pai, Wang Lung, não teria deixado um filho seu jogar nas casas de jogo da cidade, se tal soubesse. Em compensação, o filho de Wang o Proprietário mostrava para isso grande habilidade, porque jogara desde muito novo e até o segundo filho já conseguia ganhar uma razoável soma em todos os jogos em que tomava parte.

 

Portanto, quando Wang o Proprietário viu assomar a cabeça do irmão na porta entreaberta, levantou-se deliberadamente e disse muito depressa aos amigos:

 

Tenho de os deixar, pois meu irmão precisa de mim para qualquer coisa.

 

Tomou de cima de uma cadeira o casaco de peles que tirara ao entrar na sala bem aquecida e saiu para ir ter com Wang o Negociante. Mas não lhe confessou que estava satisfeito por ele ter aparecido, pois era orgulhoso demais para lhe confessar que estava a perder. Limitou-se a perguntar-lhe:

 

Tens alguma coisa para me comunicar?

 

Wang o Negociante respondeu lacònicamente:

 

Vamos para um sítio onde seja possível conversar, se é coisa que se possa encontrar nesta casa.

 

Então Wang o Negociante levou-o a uma sala onde havia mesas de chá, e escolheram uma que estava um pouco afastada das outras. Os dois irmãos sentaram-se. Wang o Negociante esperou que Wang o Proprietário tivesse pedido chá e vinho, e depois, reparando nas horas, pediu carnes e outros pratos. O criado afastou-se por fim, e Wang o Negociante entrou abruptamente no assunto:

 

O nosso irmão mais novo deseja uma mulher, porque a dele morreu e desta vez recorre a nós. Pensei que era uma coisa que, melhor do que eu, tu podes arranjar.

 

Wang o Negociante disse aquilo franzindo os lábios num sorriso discreto. Mas Wang o Proprietário não o notou. Pôs-se a rir muito alto, e as suas faces muito gordas tremiam, e comentou:

 

Se eu percebo de alguma coisa é justamente disso, tens razão, mas contudo será conveniente não o dizerem diante de minha esposa!

 

E continuou a rir, olhando de esguelha para o irmão, como os homens costumam fazer quando falam de tais coisas. Mas Wang o Negociante não estava com disposição para graças e ficou à espera. Wang o Proprietário acabou por serenar e continuou :

 

Mas, isso vem mesmo em boa ocasião, pois deitei os olhos para as raparigas casadoiras da cidade, por causa do meu filho, e conheço todas as apresentáveis. Tenho agora o projecto de casar o meu mais velho com uma rapariga de dezanove anos, filha do irmão mais novo do governador... rapariga muito séria e bem comportada, e a mãe do meu filho viu algumas amostras dos seus bordados e trabalhos de costura. Não é bonita, mas é muito honesta. O único aborrecimento é que meu filho está com a ideia tola de escolher ele próprio esposa... ouviu falar no Sul dessa moda nova.

 

«Eu farto-me de lhe dizer que por cá não se admite que as coisas se façam assim, e que, além disso, pode depois escolher outras que lhe agradem. Quanto ao pobre corcunda, a mãe deseja ter um padre na família, e seria lamentável desperdiçar para isso um filho que não tenha as costas tortas.

 

Mas Wang o Negociante não se interessava por aquelas histórias da família do irmão, porque é mais que sabido que mais tarde ou mais cedo cada filho deve casar, e o mesmo sucederia com os seus, mas não perdia tempo com semelhantes coisas. E, achando que isso competia às mulheres, deixara-o inteiramente ao cuidado da sua, recomendando-lhe apenas que as raparigas que introduzisse em sua casa fossem virtuosas, fortes e trabalhadeiras. Foi por isso que interrompeu nessa altura com impaciência o irmão:

 

Das raparigas que viste, há alguma que possa convir para nosso irmão, e estarão os pais dispostos a vê-la entrar numa casa para desposar um homem que já foi casado?

 

Mas Wang o Proprietário não queria tratar à pressa de coisas delicadas como aquela, e deixou à sua memória o tempo necessário para passar em revista as raparigas, uma após outra, e para recapitular tudo o que se lembrava de ter ouvido dizer delas. E depois respondeu:

 

Há uma excelente menina, não demasiado nova, cujo pai é um letrado que fez dela uma espécie de sábia, porque não tem filho e sente a necessidade de ensinar a alguém aquilo que sabe. Ela é aquilo a que se chama agora uma mulher moderna, das que têm cultura e não comprimem os pés, e por ser original sob esse ponto de vista, o seu casamento tem sido mais difícil, porque os homens não ousam escolher uma mulher assim para os seus filhos, receando que daí possam vir aborrecimentos. Mas ouvi dizer que no Sul há muitas como ela, e é com certeza só por vivermos numa atrasada cidadezinha que os homens daqui não compreendem essa rapariga. Anda até na rua, via-a uma vez, e caminhava com um ar muito digno, sem olhar para ninguém. com tanta ciência, não é assim feia como poderia supor-se, e se não é muito nova não pode ter contudo mais de vinte e cinco ou vinte e seis anos. Achas que o nosso irmão quereria uma mulher assim, que não é como as mulheres vulgares?

 

Ao que Wang o Negociante respondeu com reserva:

 

Mas parece-te que ela poderá ser uma boa dona de casa e que lhe será útil? Ele próprio sabe ler e escrever muito bem, e, mesmo quando o não soubesse, podia alugar um letrado para o fazer em vez dele. Não vejo que tenha necessidade de toda essa ciência numa esposa.

 

E Wang o Negociante, que não parara de extrair activamente a comida do prato, tendo o criado servido já uns poucos a seguir, suspendeu-se, com a colher de porcelana cheia de sopa a meio caminho da boca, e observou com vivacidade:

 

Mas, no fim de contas, o nosso irmão não é pobre, e bem podemos escolher-lhe duas esposas. Escolhe tu a que te parecer melhor, e casamo-lo primeiro com essa, e um pouco mais tarde mandámos-lhe outra que escolherei eu, e se preferir uma à outra, isso é lá com ele. Mas duas mulheres não é demais para um homem como o nosso irmão e na situação em que se encontra.

 

E decidiram assim. Wang o Proprietário ficou satisfeito por lhe competir a ele a escolha da esposa, embora, pensando bem, lhe parecesse que bem merecia tal privilégio, porque nenhum homem pode passar com duas esposas a noite de núpcias e, aliás, ele era o filho mais velho e o chefe da família. Assim se puseram de acordo e em seguida separaram-se. Wang o Proprietário pôs-se apressadamente a caminho para representar o seu papel e Wang o Negociante dirigiu-se a casa, para conversar com a mulher.

 

Quando chegou, encontrou-a junto à porta, de pé na rua cheia de neve, com as mãos envolvidas no avental para as aquecer; mas tirava-as constantemente para apalpar as galinhas que um vendedor lhe estava a oferecer. A neve fazia com que as galinhas estivessem mais baratas do que de costume, e a dama desejava acrescentar uma galinha ou duas à sua reserva. Quando Wang o Negociante se aproximou, ela não ergueu os olhos e continuou o seu exame. Mas o marido disse-lhe, ao passar junto dela para entrar em casa:

 

Acaba com isso mulher, vem cá.

 

Então ela despachou-se na escolha de duas galinhas e depois de ter discutido por causa do que pesavam na balança em que o vendedor as suspendia pelas patas atadas, chegaram a acordo acerca do preço. Entrou em casa e lançou as galinhas para debaixo de uma cadeira, na qual depois se sentou de esguelha, para escutar o que o marido tinha para lhe dizer. E ele, no seu tom seco e lacónico, explicou:

 

O meu irmão mais novo deseja uma esposa, porque a que tinha morreu de repente. Não percebo nada de mulheres, mas tu tens tido de há dois anos para cá ocasião de procurar mulheres para os nossos filhos. Haverá alguma que sirva para lhe mandar ?

 

A mulher respondeu-lhe com prontidão, porque a encantavam coisas tais como nascimentos, mortes e casamentos, e disso fazia constante assunto de conversa:

 

Há uma rapariga com muito boas qualidades que morava na casa pegada à minha, na minha aldeia natal, e tem tão boas qualidades que muitas vezes tive pena de que não fosse bastante nova para o nosso filho mais velho. É menina de muito bom génio, e muito poupada, e não tem nenhum defeito, excepto nos dentes. Puseram-se-lhe negros quando ainda era criança, por causa de um bicho que lhos roía, segundo dizem, e agora caem-lhe de vez em quando. Mas ela, por vergonha, anda sempre com a boca fechada para os esconder, de modo que não se nota muito, e por esse motivo fala pouco e sempre muito baixinho. Além disso, o pai não é pobre e possui terras, e sentir-se-ia feliz por a poder casar tão bem, suponho eu, visto ela já ter passado a idade.

 

Então Wang o Negociante disse secamente:

 

Se ela não fala muito, já não é mau. Trata disso, e depois do noivado manda-se-lhe.

 

E explicou à mulher que tinham de se escolher duas mulheres, ao que ela respondeu muito alto:

 

Pois bem, tenho pena por ele vir a ter uma mulher escolhida pelo vosso irmão, pois este que mulheres conhece, além das fáceis? E garanto que, se ele deixar a esposa meter-se nisso, ela acaba por arranjar uma espécie de freira, pois ouvi dizer que anda agora tão tola com padres e freiras que o gosto dela seria ver a casa toda a rezar e a fazer palhacices. Chega bem ir ao templo quando alguém está com febre ou se uma mulher não tem filhos ou coisa assim, mas quer-me parecer que os deuses são como todos nós, e as pessoas de que mais gostamos não são as que passam a vida a importunar-nos e a pedir-nos isto e aquilo!

 

E cuspiu no chão, esfregando depois o sítio com o pé. E esquecendo-se de que as galinhas estavam debaixo da cadeira, recuou os pés e elas começaram a cacarejar com todas as forças, de tal modo que Wang o Negociante se levantou e clamou, impacientado :

 

Nunca vi casa assim! Aparecem galinhas de todos os lados!

 

E depois de ela meter os braços por baixo da cadeira para tirar dali as galinhas e explicar que as pagavam agora por menos do que habitualmente, ele interrompeu-a e disse:

 

Bem... bem... Eu tenho de tornar às minhas ocupações. Trata do caso e daqui a um mês ou dois mandaremos vir a rapariga. Mas não te esqueças de todas as despesas que fizeres, porque a lei não exige que contribuamos outra vez para o casamento de meu irmão.

 

O caso ficou assim concertado e as duas raparigas ficaram noivas com os contratos redigidos e Wang o Negociante anotou cuidadosamente as despesas nos seus livros de contabilidade, e o dia do casamento foi marcado-para daí a um mês.

 

Ora esse dia ficava próximo do fim do ano, e Wang o Tigre, quando lho anunciaram, preparou-se para se dirigir a casa dos seus irmãos para se casar pela segunda vez. Não tinha gosto por isso mas, apesar de tudo, estava resolvido, e eis porque pôs de lado todas as hesitações e deu as suas instruções aos três homens de confiança que designou para velarem pelo exército em vez dele, e deixou o sobrinho para o avisar se sobreviesse qualquer dificuldade durante a sua ausência.

 

Tomadas essas disposições, simulou pedir ao velho governador autorização para se ausentar durante cinco dias, mais seis dias para a viagem de ida e volta, e o governador apressou-se a conceder a autorização. E Wang o Tigre teve o cuidado de avisá-lo de que deixava o seu exército com os seus homens de confiança, na previsão de que houvesse contra ele qualquer vaga esperança de revolta. Vestindo depois o seu uniforme número dois e levando o número um enrolado na sela, Wang o Tigre dirigiu-se para o Sul, em direcção à sua terra, levando consigo uma pequena escolta de cinquenta homens armados, pois era homem de coragem tal que não queria, como fazem muitos senhores de guerra, cercar-se de escoltas numerosas.

 

Wang o Tigre cavalgava através do campo de Inverno, detendo-se à noite nas estalagens das aldeias para partir de novo pelos caminhos gelados. Não havia ainda sinal de Primavera, a terra estendia-se cinzenta e dura, e as casas de barro cinzento cobertas de colmo cinzento pareciam fazer parte da terra. Os próprios habitantes, mordidos pelos ventos e pela poeira do Inverno setentrional, tinham a mesma cor cinzenta, e Wang o Tigre não sentiu alegria alguma elevar-se no seu coração durante esses três dias, enquanto cavalgava para a terra de seu pai.

 

Quando chegou, dirigiu-se à casa do irmão mais velho, visto ser lá que se devia casar, e depois de ter saudado em poucas palavras- os parentes, disse-lhes imediatamente que, antes de casar, queria cumprir o seu dever e ir apresentar os seus respeitos ao túmulo do pai. E todos o aprovaram, e em particular a senhora de Wang o Proprietário, porque era uma coisa de toda a conveniência, visto que Wang o Tigre estivera tanto tempo por longe e não se encontrava ali nas épocas regulares em que as pessoas de família homenageavam os seus mortos.

 

Ora o caminho que Wang o Tigre seguira para se dirigir à sepultura passava junto ao limiar da casa de adobe e à margem da eira que era o pátio da frente, e o barulho do passo dos soldados despertou o corcundinha que habitava ali com Flor de Pereira, o qual saiu a manquejar tão depressa quanto podia e se ficou a olhar com espanto. Embora tivesse então perto de dezasseis anos, ficara do tamanho de uma criança de seis ou sete, e as suas costas subiam-lhe por detrás da cabeça e curvavam-se como um capuz. Ao vê-lo, Wang o Tigre ficou surpreendido, e perguntou, sopeando o cavalo:

 

Quem és tu que habitas aí na casa de adobe?

 

Então o rapaz reconheceu-o, pois ouvira dizer que tinha um tio que era general e sonhava muitas vezes com ele e perguntava-se com o que ele se parecia. E exclamou com veemência:

 

É o meu tio?

 

Então o Tigre recordou-se, e disse lentamente, continuando a olhar para o rapazito, de cara ansiosa:

 

Sim, ouvi dizer em qualquer lado que o meu irmão tinha um filho assim. É estranho, porque somos todos direitos e fortes, e o meu pai era também assim, um velho muito direito e forte como poucos, até mesmo na sua velhice.

 

Então o rapaz respondeu simplesmente, como se fosse uma coisa à qual estivesse há muito tempo habituado, e ao dizê-lo olhava avidamente os soldados e o grande cavalo ruivo:

 

Mas deixaram-me cair.

 

Depois estendeu a mão para a espingarda de Wang o Tigre e, erguendo os olhos, disse avidamente:

 

Nunca tive na mão uma daquelas espingardas e gostaria muito de ter uma durante um minuto.

 

Quando estendeu assim a mão, uma mãozita ressequida e enrugada como a de um velho, Wang o Tigre foi tomado de uma súbita piedade por aquele pobre garoto enfermiço e estendeu-lhe a sua espingarda para que a tocasse e olhasse de mais perto.

 

E enquanto esperava que o rapaz satisfizesse o seu desejo, apareceu alguém à porta. Era Flor de Pereira. Wang o Tigre reconheceu-a imediatamente, pois ela não tinha mudado muito, a não ser que era agora mais magra e frágil do que outrora, e o seu rosto, sempre pálido e de forma oval, estava agora coberto de uma rede de finas rugas que se desenhavam levemente na pele pálida. Mas os seus cabelos tinham permanecido tão lisos e tão negros como outrora. Então Wang o Tigre inclinou-se, muito rígida e profundamente, mas sem descer do cavalo, e Flor de Pereira fez-lhe uma pequena saudação, e preparava-se para se afastar vivamente, quando Wang o Tigre a interpelou:

 

A idiota vive ainda e está bem?

 

E Flor de Pereira respondeu, na sua vozinha meiga:

 

Está bem.

 

E Wang o Tigre perguntou ainda:

 

A senhora recebe todos os meses aquilo a que tem direito?

 

E ela respondeu, na mesma voz:

 

Muito obrigada, recebo tudo a que tenho direito.

 

Falara de cabeça baixa e olhando o chão de terra batida da eira. Mas depois daquela resposta afastou-se vivamente e ele ficou a contemplar o quadro da porta vazia.

 

E perguntou então bruscamente ao rapaz:

 

Porque traz ela uma túnica parecida com a de uma religiosa ?

 

Reparara que a túnica cinzenta de Flor de Pereira estava cruzada na garganta como a de uma religiosa.

 

O rapaz respondeu, sem quase pensar no que dizia, de tal modo a sua atenção estava absorvida pela espingarda cuja coronha tacteava e acariciava:

 

Quando a idiota tiver morrido, entrará para o convento que fica perto daqui e far-se-á religiosa. Já não come carne e sabe muitas orações de cor e é já religiosa laica. Mas não quer retirar-se do Mundo nem cortar os cabelos antes de que a idiota morra, porque o meu avô lha confiou.

 

Wang o Tigre ouviu aquilo com uma vaga sensação dolorosa e ficou por momentos silencioso. Disse enfim, compassivamente, ao rapaz:

 

Que farás tu, então, meu pobre corcunda?

 

E o rapaz respondeu:

 

Quando ela entrar para o convento, eu devo fazer-me padre no templo, porque sou muito novo ainda e devo viver ainda muito tempo e ela não pode esperar até que também eu morra. Mas, sendo eu padre, terei o meu sustento e, se adoecer, o que me acontece muitas vezes, por causa desta corcunda, então ela poderá vir tratar de mim, visto sermos parentes.

 

O rapaz dissera aquilo com ar descuidado. Depois, a voz alterou-se-lhe, tornando-se entrecortada, e erguendo os olhos para Wang o Tigre, exclamou:

 

Sim, vou ser padre... Mas, oh, como desejaria ser são! Nesse caso, seria soldado... se me quisesse, tio!

 

Havia tamanho fogo no seus sombrios olhos cavados que Wang o Tigre ficou comovido e respondeu com pesar, pois era no fundo homem compassivo:

 

Aceitava-te de muito boa vontade, meu pobre pequeno, mas, conformado como és, que podes tu agora ser senão um padre!

 

E o rapaz tirou a cabeça do seu singular alvéolo e respondeu em voz que mal se ouvia:

 

Bem sei.

 

Sem mais palavra, entregou outra vez a espingarda a Wang o Tigre, afastou-se manquejando e franqueou o limiar. E Wang o Tigre continuou o seu caminho para o casamento.

 

Foi para Wang o Tigre um estranho casamento. Daquela vez, nenhuma ardente ansiedade o fazia seguir mais depressa, era-lhe indiferente, ser de manhã ou à noite. Suportou toda a cerimónia mudamente e com dignidade, como fazia todas as coisas, a menos que a cólera o invadisse. Mas agora o amor e a cólera pareciam por igual longe do seu morto coração, e a pessoa da jovem noiva de vestido vermelho aparecia-lhe como uma figura vaga e remota com a qual nada tinha de comum. Do mesmo modo os convidados, e as pessoas dos seus irmãos e das mulheres e dos filhos deles, e a enorme figura obesa de Lotus, apoiada ao ombro de Cuckoo. Mas olhou-a, no entanto, uma vez também, porque ela ofegava só de respirar, tanto a carne lhe pesava, e Wang o Tigre, ao deter-se para cumprimentar os seus irmãos mais velhos e as testemunhas da mulher, os convidados e todos que devia saudar durante a cerimónia, ouvia-lhe a respiração penosa e entrecortada.

 

Quando se serviu o banquete de noivado, tocou apenas em alguns pratos e quando Wang o Proprietário começou a dizer as suas graças, visto que a gente deve estar divertido mesmo numas segundas núpcias, e quando um convidado por sua vez ria, o riso gelava-se logo perante o ar grave de Wang o Tigre. Este não proferiu palavra durante o seu banquete de noivado, a não ser quando trouxeram o vinho. Agarrou vivamente o seu copo, como se estivesse com sede, mas mal provou o vinho, pousou de novo o copo, dizendo em tom rude:

 

Se soubesse que o vinho não era melhor, teria trazido um odre da minha região.

 

Terminados os dias do noivado, montou no seu cavalo ruivo e foi-se embora sem sequer se voltar uma vez para olhar a sua jovem esposa e a criada que vinham atrás dele, num carro puxado a mulas, com as cortinas corridas. Afastou-se, no seu cavalo, tão aparentemente solitário como estava quando viera, seguido pelos seus soldados e pelo carro aos solavancos. Foi assim que Wang o Tigre levou a esposa para os seus domínios. Passados um ou dois meses, chegou a sua segunda mulher, conduzida pelo pai, e ele recebeu-a também, visto que lhe era indiferente ter uma ou duas.

 

Mas como era um homem muito justo, não mostrou preferência alguma a qualquer das suas duas mulheres em relação à outra, uma das quais era letrada, asseada e agradável, de maneira simples e tranquila, e a outra um tannto descuidada, mas apesar de tudo mulher de virtude e de bom coração. O seu maior defeito eram os dentes escuros e o mau hálito que sentia ao aproximar-se dela. Mas, assim mesmo, Wang o Tigre sentia-se satisfeito por as suas duas mulheres não disputarem uma com a outra. Entretanto, o seu espírito de justiça contribuía certamente para tal, visto que ele punha um cuidado escrupuloso em estar com elas cada uma por sua vez, e na verdade eram para ele parecidas e equivalentes a coisa nenhuma.

 

Mas agora só tinha que estar sozinho quando o desejava. Apesar de tudo, nunca se familiarizou com nenhuma das duas mulheres. Entrava sempre nos quartos delas com ar altivo e para um fim determinado, não conversava com elas, não havia franqueza como entre ele e a morta e nunca se abria sem reserva.

 

Reflectia por vezes na diferença de atitude que um homem pode ter com as mulheres, e quando isso lhe acontecia dizia-se amargamente que a morta nunca fora verdadeiramente franca com ele, nem sequer quando se mostrava tão livre como uma cortesã, pois nunca deixara de acalentar no coração o seu desígnio contra ele. Quando nisso pensava, Wang o Tigre cerrava novamente o seu coração e acalmava a carne no convívio com as duas mulheres. E tinha como esperança e nova luz da sua ambição que uma das duas seguramente acabaria por lhe dar um filho. Nessa esperança, Wang o Tigre exaltava uma vez mais os seus sonhos de glória, e jurava-se que naquele mesmo ano e naquela mesma Primavera iria participar numa grande guerra e adquirir poder e vastos territórios, e via já sua a vitória.

 

E como a Primavera se ia adiantando e as cerejeiras floridas de branco e os pessegueiros cor-de-rosa pálido flutuavam como leves nuvens na terra verde, Wang o Tigre reuniu conselho a respeito da guerra com os seus homens de confiança, e ficaram apenas à espera de duas coisas. A primeira era ver como a guerra recomeçaria entre os senhores do Norte e os do Sul, porque as tréguas que haviam feito no ano_ anterior eram muito exíguas e precárias, não passando de tréguas de Inverno, estação em que não convém travar batalha por causa do vento, da neve e da lama.

 

       À parte isso, os senhores do Norte e os do Sul diferiam a tal ponto em carácter, pois uns eram de forte corpulência, vagarosos e ferozes e os outros homens de pequena estatura, astutos, hábeis em manhas e armadilhas, que com tal diferença de humor e até de sangue e de linguagem não era para eles fácil estabelecer acordo para longas tréguas. A outra razão pela qual Wang o Tigre esperou e com ele os seus homens de confiança, era o regresso de numerosos espiões que mandara em reconhecimento durante o ano. E enquanto esperavam, Wang o Tigre reuniu conselho com os seus homens de confiança, para saber que território poderiam juntar àquele que já tinham e aumentar assim os seus domínios.

Reuniam conselho juntos no grande compartimento que Wang o Tigre empregava para seu uso pessoal. Sentaram-se por ordem de importância e o Falcão disse:

Não podemos ir para o Norte, porque estamos na obediência do Norte.

E o Matador de Porcos disse muito alto, pois tinha o hábito de repetir, como um eco brutal, tudo quanto o Falcão dizia, e não queria passar por menos inteligente do que ele, embora não fosse capaz de encontrar por si próprio uma coisa nova a dizer:

Sim, mas apesar de tudo, é essa uma terra muito pobre e miserável, e os porcos são tão deploràvelmente magros que não podem dar carne para comer. Vi esses porcos e juro-lhes que os seus lombos são tão aguçados como foices e que é possível saber quantos filhos uma porca tem na barriga antes de ela os dar à luz. Não é um país que mereça uma guerra para alcançar o seu domínio.

 

Mas Wang o Tigre disse lentamente:

 

Não podemos, apesar disso, dirigir-nos para o Sul, porque, se o fizéssemos, prejudicaríamos os meus próprios parentes e os de meu pai, e um homem não pode sobrecarregar de impostos a sua própria família e ficar-se a rir.

 

Ora o homem do beiço rachado falava pouco e nunca o fazia antes de os outros dizerem o que tinham para dizer. E falou por seu turno assim:

 

Há uma região onde ficava outrora o meu país natal, mas hoje nada me prende já a ela, e fica a sueste desta mesma região, entre a terra em que estamos e o mar, país muito rico e que de um lado é limitado pelo mar. Há ali um departamento que fica ao longo de um rio que se lança no mar, e é um país produtivo, com muitos campos férteis, uma série de colinas pouco elevadas, e o rio é muito rico em peixe. O governo do departamento é a única grande cidade, mas há muitas aldeias, vilas e os habitantes são económicos e vivem bem.

 

Wang o Tigre ouviu aquilo e disse:

 

Sim, mas não é provável que um sítio tão bom não tenha o seu senhor de guerra. Quem é ele?

 

Então o homem de confiança citou o nome de alguém que fora outrora um capitão de ladrões e que, no ano anterior, tomara partido pelo Sul. Ao ouvir aquele nome, Wang o Tigre decidiu prontamente marchar contra aquele capitão de ladrões, e lembrou-se daquele tempo em que odiava a gente do Sul, e em que achara insípido o seu arroz e os pratos apimentados que cozinhavam, lembrou-se dos detestáveis anos da sua juventude e exclamou:

 

É mesmo esse o lugar e o homem de quem precisamos, pois isso engrandecer-me-á e contará também nas guerras gerais.

 

Logo a coisa foi decidida. Wang o Tigre gritou a um criado que trouxesse vinho. Eles beberam todos e Wang o Tigre deu ordem de prevenir os soldados de que deviam preparar-se para se mobilizarem e que se poriam em marcha para as novas terras logo que os primeiros espiões tivessem voltado a dar notícias do que a grande guerra ia ser naquele ano. Depois os homens de confiança ergueram-se para se despedirem e para executarem as suas ordens, mas o Falcão demorou-se após a partida dos outros, e inclinou-se para Wang o Tigre, para lhe falar ao ouvido. Tinha a voz rouca e o seu hálito quente tocava a face do chefe.

 

Será preciso conceder aos soldados os dias de pilhagem habituais, depois da batalha, visto que murmuram uns com os outros e se queixam de serem mantidos aqui muito apertados e de não terem sob a sua bandeira os privilégios que dão os outros senhores de guerra. Se não tiverem o direito de pilhagem, não se batem.

 

Então Wang o Tigre pôs-se a mordiscar o rígido bigode negro que nessa época deixara crescer e disse, muito contra vontade, pois sabia que o Falcão tinha razão:

 

Então diz-lhes que, quando a vitória for nossa, terão os três dias, mas não mais de três.

 

O Falcão retirou-se, muito contente, mas Wang o Tigre ficou durante momentos preocupado, pois na verdade detestava aquela pilhagem da população e apesar disso via-se coagido a permiti-la, visto que os soldados recusariam arriscar a vida a bater-se sem uma recompensa. E assim, depois de a conceder, sentiu-se durante uns momentos mal disposto, pois não podia impedir-se de se representar o quadro do sofrimento daquela gente, e censurava-se por ser um homem demasiado brando para a profissão que escolhera. E, forçando-se à dureza, disse de si para si que, no fim de contas, devem ser os ricos que perdem mais, dado que os pobres nada possuem que tenha valor para alguém, e que os ricos podem muito bem suportar isso. Envergonhava-o ser assim fraco e por coisa nenhuma deste Mundo quereria que um dos seus homens soubesse que lhe repugnava ver sofrer, com receio de que por isso o desprezassem.

 

Depois, os espiões voltaram, um após outro, e cada um por sua vez fazia o seu relatório ao seu general, e disseram-lhe que, embora guerra alguma tivesse estalado, os senhores do Norte e os do Sul nem por isso deixavam de comprar armas nos países estrangeiros, e que a guerra viria, porque de todos os lados se aumentavam e reforçavam os exércitos. Quando Wang o Tigre soube aquilo, decidiu empreender sem demora a sua própria guerra, e naquele mesmo dia deu ordem aos seus homens para se reunirem em um campo fora das portas da cidade, porque eles eram em tão grande número que não podiam reunir-se dentro, e dirigiu-se para ali, no seu grande cavalo ruivo acompanhado pela sua escolta, e, à direita dele, o seu sobrinho, o Bexigoso, ia montado, não já num burro, mas agora num bom cavalo, pois o tio subira-o de posto. E Wang o Tigre levantava a cabeça com um ar extremamente altivo, e todos os seus homens o contemplavam em silêncio, porque, com aquele seu ar soberbo, era na verdade um guerreiro tal como não se vêem muitas vezes no Mundo, e as suas grandes sobrancelhas ferozes e o bigode que desde há pouco tempo deixara crescer davam-lhe ar de ter mais de quarenta anos. Ficou assim imóvel diante deles para se deixar contemplar um momento, e interpelando de repente os seus homens, numa voz vibrante, lançou esta proclamação:

 

Soldados e heróis! De amanhã a oito dias seguiremos para Sueste, para irmos conquistar essa região. É um país rico e fértil, que confina com um rio e com o mar, e o que eu ganhar na conquista dividi-lo-ei convosco. Ides dividir-vos em dois corpos, sob as ordens dos meus homens de confiança. O Falcão conduzir-vos-á por Leste e o Matador de Porcos por Oeste. Eu, com os meus cinco mil homens de escol, esperarei ao Norte e quando vós tiverdes atacado pelos dois lados e tiverdes segura a cidade que é o centro da região, eu intervirei para esmagar a última resistência. Há ali um senhor de guerra, mas não passa de um ladrão, e vós bem me mostrastes como sabeis tratar os ladrões, meus queridos camaradas!

 

Depois, acrescentou, mas muito contra sua vontade, embora se tivesse constrangido antecipadamente para tal:

 

Se obtiverdes vitória, tereis a liberdade nesse dia e durante três dias. Mas na aurora do quarto dia cessará a vossa liberdade. Aquele que não responder ao toque dos clarins, matá-lo-ei. Tenho tão pouco medo de matar como de morrer. Aí tendes as minhas ordens.

 

Então os homens aclamaram-no estrepitosamente, batendo com os pés, tal era a sua alegria. Mal Wang o Tigre se afastou, todos eles, com o ardor de se porem a caminho, inspeccionavam as armas, as limpavam, as afiavam e contavam os cartuchos de que dispunham. Nesse momento, muitos homens traficaram com os vizinhos, para obterem cartuchos; e os que se deixavam facilmente seduzir pelo engodo do vinho ou de uma visita a uma mulher, entregavam os seus cartuchos, tanto quanto o ousavam, mediante o que constituía o objecto do seu desejo.

 

Na aurora do oitavo dia, Wang o Tigre levou o seu poderoso exército. Mas por maior que assim parecesse, ainda uma facção ficava na cidade e ele foi ter com o velho governador que se conservava agora de cama e já se não levantava, tão fraco se tornara. Explicou ao velho que deixava aquela força para o proteger, a ele e aos seus.

 

O governador agradeceu-lhe, na sua vòzinha débil, mas bem sabia que aquela parte do exército ficava para o manter sob a sua guarda. Tinha à frente o homem do beiço rachado, para o qual era aquele um posto difícil, porque aos. soldados desagradava ficarem, e Wang o Tigre viu-se obrigado a prometer-lhes uma gratificação suplementar, se eles se portassem bem e guardassem fielmente a cidade e prometeu-lhes que, na próxima guerra que fizesse, seriam eles a marchar. Ficaram assim um pouco mais contentes, ou antes, um pouco menos descontentes.

 

Wang o Tigre seguiu então à frente dos seus soldados e fez constar entre os habitantes da cidade que ia outra vez fazer a guerra por eles contra um inimigo que vinha do Sul invadi-los. Os habitantes ficaram aterrados e, desejosos de lhe agradar, a corporação dos negociantes deu-lhe um presente em dinheiro, e muitos cidadãos acompanharam o exército naquele dia, à sua partida da cidade, detendo-se todos a verem arvorar a bandeira de Wang o Tigre e assistindo ao sacrifício de incenso e de um porco oferecido para obter bom êxito na guerra.

 

Terminada esta cerimónia, Wang o Tigre pôs-se finalmente em marcha. Para fazer a guerra, não só tinha os seus homens e as suas armas, como levava uma boa soma de dinheiro, pois era um general demasiado hábil para se lançar sem mais na luta e queria parlamentar e esperar a ver que uso poderia dar-se ao dinheiro, e se o dinheiro era de começo inútil, no fim, pelo menos, podia servir para qualquer coisa, servir para comprar um homem importante que lhes abrisse as portas da cidade.

 

Eram então meados de Primavera e na extensão de léguas e léguas o trigo chegava a ter dois pés de altura ou cerca disso e estava prestes a formar as suas espigas. Enquanto seguia cavalgando, Wang o Tigre lançava os olhos pela campina verdejante. Sentia-se orgulhoso da sua beleza e da sua fertilidade porque a mantinha sob a sua autoridade e a amava como um rei pode amar o seu reino. Mas era, apesar de tudo, sensato, e ao ver aquela beleza, sabia agora manter o seu espírito à procura de um novo sítio onde pudesse lançar um imposto para sustentar o grande exército que tinha agora e também para sua reserva privada, que lhe era necessário aumentar.

 

Saiu assim da sua própria região, e quando se distanciou muito para o Sul, para encontrar grenadeiras com os seus ramos contornados de pequenas folhas vivas cor de fogo, que brotam tardias, quando todas as outras árvores estão já cobertas de folhas, compreendeu que se encontrava nas terras novas. Olhava para todos os lados para ver como estas eram, e de todos os lados via campos férteis e bem cuidados, gado farto, e crianças gordas e rechonchudas e com tudo isso se alegrava. Mas, ao verem-no passar com os soldados, as pessoas ocupadas nas terras erguiam os olhos para eles e carregavam o sobrecenho, e as mulheres que, momentos antes, estavam a falar e a rir umas com as outras, ficavam subitamente silenciosas e pálidas e seguiam-nos com um longo olhar e muitas mães tapavam os olhos dos filhos. E se os homens entoavam uma qualquer canção de guerra, como lhes acontecia muitas vezes em marcha, então os homens ocupados nos campos blasfemavam alto, por os ouvirem perturbar assim a paz ambiente. Os próprios cães corriam furiosos para fora das aldeias, para morder aqueles desconhecidos, mas quando viam horda tamanha, recuavam, desconcertados, com o rabo entre as pernas. A todo o momento, um búfalo, assustado, fugia a toda a pressa, por causa do barulho que fazia toda aquela massa de homens e, por vezes, se estava atado à charrua, levava consigo esta e o próprio homem que a guiava. E então os soldados riam com grandes gargalhadas, mas Wang o Tigre, se o notava, detinha-se delicadamente à espera ’que o homem dominasse outra vez o animal.

 

Também nas cidades e povoações as pessoas se calavam consternadas, quando os soldados entravam pelas portas dentro, rindo, empurrando-se e pedindo, em grandes gritos, chá e vinho e pão e carne, e os lojistas, ao balcão, carregavam a viseira, porque tinham medo de os ver levar as suas mercadorias sem pagar, de modo que alguns corriam os taipais das lojas, como se estivesse a anoitecer. Mas Wang o Tigre tinha desde o princípio dado ordem de não levarem nada sem pagar e distribuíra dinheiro aos seus homens para comprarem aquilo de que precisassem para comer e para beber. Mas, apesar de tudo, bem sabia que o melhor general é incapaz de comandar tantos milhares de homens sem princípios, e posto tivesse avisado os seus homens de que os consideraria responsáveis, nem por isso ignorava que se cometeria um certo número de depredações, e tudo quanto podia fazer, era exclamar: «Se souber isso, mato os responsáveis!»e contava que os homens se tornassem mais sisudos, sem tentar saber fosse o que fosse.

 

Mas Wang o Tigre imaginou uma maneira de conter os seus soldados até certo ponto. Quando chegavam a uma cidade, mandava-os parar nos arrabaldes e, acompanhado apenas por algumas centenas, ia procurar o mais rico comerciante do sítio e ordenava-lhe que reunisse os outros comerciantes e esperava-os na loja do mais rico. Quando os tinha todos reunidos na sua frente, cheios de medo e muito correctos, Wang o Tigre, com toda a delicadeza, dizia-lhes:

 

Não receiem que lhes venha fazer uma extorsão, tomando-vos mais do que devo. É certo que tenho milhares de homens à entrada da cidade, mas basta que me dêem uma quantia suficiente para a minha despesa nesta etapa. Eu levarei os meus homens para mais longe e só nos deteremos aqui esta noite.

 

Então os comerciantes, pálidos e cheios de medo, empurravam para a frente o porta-voz que tinham escolhido e este balbuciava uma quantia, mas Wang o Tigre sabia muito bem que era a mais baixa que eles podiam propor, e sorria friamente, mas, enquanto sorria, baixava as sobrancelhas e dizia:

 

Vejo que tendes belas lojas, lojas de azeite e estabelecimentos de cereais, fábricas de sedas e de panos, e vejo também que os vossos concidadãos têm bom parecer e andam bem vestidos e que as vossas ruas são bonitas. Como podeis assim depreciar a vossa cidade e mostrá-la assim tão pobre e mesquinha ? Oferecendo tão miserável soma, amesquinhais-vos a vós próprios!

 

Assim os obrigava delicadamente a elevar a quantia, e nunca os ameaçava brutalmente, como fazem certos senhores de guerra, e não exclamava que ia dar aos seus soldados liberdade na cidade se não recebesse isto e aquilo. Não, Wang o Tigre só usava de processos legítimos, pois dizia sempre que aquela gente também tinha que viver e que não se devia pedir-lhes mais do que eram razoavelmente capazes de dar. Ao fim e ao cabo, o fruto da sua polidez era obter o que pedia e ficarem os comerciantes muito satisfeitos por se desembaraçarem tão barato dele e da sua horda.

 

Wang o Tigre levou assim os seus homens, por etapas, em direcção a Sueste, para onde ficava o mar, e de cada vez que se detinha numa cidade, recebia uma soma em dinheiro que os comerciantes lhe davam e partia com a alvorada, deixando os habitantes contentes. Mas nas povoações pobres ou nas aldeias pequenas Wang o Tigre não pedia mais do que alguns víveres e só o menos possível.

 

Durante sete dias e sete noites, Wang o Tigre conduziu assim os seus homens, e ao fim desses sete dias enriquecera um pouco com as somas de dinheiro que recebera, e os seus homens estavam todos muito bem dispostos, bem alimentados e cheios de esperança. Ao fim dos sete dias, encontrava-se a menos de um dia de marcha da cidade que projectara tomar, a qual ficava mesmo no centro da região, e avançou a cavalo até uma pequena colina de onde podia contemplá-la. Além, estendia-se a cidade, como um tesouro, cercada pelos seus muros e engastada nos campos verdes e ondulantes, e Wang o Tigre sentiu o coração saltar-lhe no peito ao vê-la tão bela e sob um céu tão belo. Mais além corria o rio, como ouvira dizer, e a porta sul da cidade dava para o rio, de tal modo que a cidade semelhava uma jóia suspensa de uma cadeia de prata. Sem detença, portanto, Wang o Tigre enviou os seus mensageiros à cidade guardada por mil homens, declarando ao senhor de guerra que ocupava aquela cidade, que Wang o Tigre descera do Norte e vinha libertar a população de um bandido e que, se o bandido não quisesse retirar-se pacificamente e por uma determinada quantia a indicar, então Wang o Tigre ver-se-ia obrigado a marchar contra a cidade com as suas dezenas de milhar de valentes homens de armas.

 

Ora o senhor de guerra daquele sítio era um velho bandido muito valoroso, homem tão sinistramente horrendo que aquela gente o cognominava da mesma maneira que o terrível deus negro que se encontra no vestíbulo da entrada dos templos para lhos servir de guardião, de modo que o senhor de guerra era chamado Siu, o Deus Porteiro. Quando ouviu a insolente mensagem que Wang o Tigre lhe enviara, enraiveceu-se de maneira terrível e mugiu de furor um momento, antes de poder dar uma resposta aos mensageiros. E quando isso foi possível, respondeu assim:

 

Volta a dizer ao teu senhor que ele pode combater-me se isso lhe apraz. Porque haveria eu de ter-lhe medo? Nunca ouvi falar desse cãozinho de regaço que se chama Wang o Tigre.

 

Os mensageiros regressaram, portanto, e repetiram fielmente aquelas palavras a Wang o Tigre. Este enfureceu-se por seu turno de maneira terrível, sentindo-se profundamente ferido por o senhor de guerra dizer que nunca ouvira proferir o nome de Wang o Tigre, e perguntava-se de si para si se não seria menos conhecido do que supunha. Mas exteriormente rangia os dentes por detrás do seu bigode negro, e dirigiu uma arenga aos seus homens, que nesse mesmo dia marcharam contra a cidade em volta da qual acamparam. Mas tinham-lhes fechado as portas, de modo que não podiam entrar. E Wang o Tigre ordenou aos seus homens que ficassem acampados até à alvorada, e mandou levantar uma fileira de tendas em volta do fosso da cidade a fim de permitir aos seus homens que vigiassem, a ver o-que fazia o inimigo e trazer-lhe notícias dele.

 

Mas ao nascer o Sol, Wang o Tigre levantou-se muito cedo e acordou os seus guardas e mandou chamar todos os seus homens ao som dos clarins e dos tambores. Quando ficaram todos reunidos, Wang o Tigre deu-lhes as suas ordens, no sentido de se prepararem para a batalha quando ele dissesse, mesmo que tivessem de esperar um mês ou dois. E então, acompanhado pelos seus guardas, dirigiu-se para uma colina situada a leste da cidade e onde havia um velho pagode. Subiu-lhe até ao cimo. deixando os seus homens em baixo, para o guardar e para aterrarem alguns velhos padres que estavam no templo vizinho, e viu que, apesar da pouca extensão da cidade, que não devia conter mais de umas cinquenta mil almas, as casas eram muito bem construídas e os tectos de telhas negras imbicadas umas nas outras, como escamas no dorso de um peixe. Tornou então a descer e foi para junto dos seus homens, que conduziu para o outro lado do fosso, mas, enquanto o fazia, uma salva de tiros veio do cimo da muralha e Wang o Tigre retirou-se precipitadamente.

 

Encontrava-se, por conseguinte, reduzido a esperar. Reuniu conselho com os seus capitães e estes sugeriram-lhe um cerco, porque um cerco é mais seguro que uma batalha, dado que as pessoas têm de comer. Isso pareceu também uma boa coisa a Wang o Tigre, porque os seus homens, se ele agora atacasse a cidade, seriam mortos, e as portas eram tão resistentes, de traves tão bem reunidas e chapeadas, que Wang o Tigre não sabia como franqueá-las. Demais, se se mantivessem de dia para dia as portas bloqueadas para impedir a entrada a toda a espécie de alimentos, ao fim de um ou dois meses o inimigo devia necessariamente enfraquecer e submeter-se, ao passo que, se se combatesse agora, estando o inimigo forte e bem alimentado, não se podia dizer com certeza para que lado se inclinaria a vitória. Assim reflectiu Wang o Tigre, parecendo-lhe preferível esperar o momento em que poderia dar batalha e ter garantida a vitória.

 

Ordenou por consequência aos seus soldados que cercassem toda a muralha da cidade, mas de bastante longe, para que as balas, incapazes de os atingir, caíssem no fosso sem dano algum. E os soldados cercaram assim a muralha sem ninguém poder entrar nem sair, e os soldados alimentavam-se dos produtos da terra vizinha e comiam galinhas, os legumes, os frutos e o trigo que possuíam os campónios, e dado que pagavam alguma coisa por aquilo que tomavam, os camponeses não se coligaram contra ele, e o exército de Wang o Tigre era muito bem abastecido. Chegou o Verão no momento próprio e a colheita foi boa e abundante, porque era para esses lados um ano nem seco, nem húmido em demasia, embora corresse o boato de que a Oeste, por detrás das montanhas, não caíra chuva e havia fome. Quando Wang o Tigre o soube, disse de si para si que a sua boa sorte o favorecia, fazendo reinar aqui a abundância.

 

Assim passou um mês ou mais. Wang o Tigre esperava de dia para dia, na sua tenda, e ninguém saía daquela cidade bloqueada. Após mais vinte dias de espera, tornou-se muito irritado e os seus homens também, mas o inimigo continuava invisível, e logo que alguém atravessava o fosso, os tiros voltavam a chover do cimo da muralha da cidade. Wang o Tigre espantava-se muito e, de cólera, disse:

 

Que poderão ainda ter de comer para que haja alguém capaz de empunhar uma espingarda?

 

E o Falcão, que se encontrava perto, escarrou como sinal de admiração por um inimigo tão valente e tão bravo, e depois de ter limpado a boca à mão, disse:

 

Devem já ter comido cães, gatos e animais de toda a espécie e até mesmo os ratos que puderam apanhar.

 

Assim se iam passando os dias e não se viram sinais de vida da cidade sitiada antes do fim do segundo mês de Verão. Então, Wang o Tigre, tendo saído uma manhã, como fazia todos os dias, para ver se não havia qualquer modificação, viu uma bandeira branca agitar-se por cima da porta norte. À pressa e com grande agitação, ordenou a um dos seus homens que arvorassem também uma bandeira branca, e sentiu-se desvanecido, pensando que era o fim.

 

Depois, a porta norte entreabriu-se, o bastante apenas para dar passagem a um homem, e tornou-se logo a fechar, ouvindo-se o barulho das trancas de ferro. Do outro lado do fosso onde ficava o acampamento, Wang o Tigre espreitava, ofegante, e viu um homem novo ainda adiantar-se para ele lentamente, trazendo uma bandeira branca na extremidade de uma vara de bambu. Então Wang o Tigre gritou aos seus homens que se pusessem em linha, e colocou-se justamente atrás deles para esperar o parlamentado. Quando este chegou bastante próximo para poder ser ouvido, gritou:

 

Vim fazer propostas de paz e pagar-vos-emos uma quantia e dar-vos-emos o que temos se consentirdes em vos retirar pacificamente.

 

Então Wang o Tigre pôs-se a rir com o seu riso seco e disse:

 

Então pensais que eu vim tão longe só por dinheiro? Dinheiro posso eu obtê-lo na minha própria região. Não! É preciso que o vosso senhor de guerra se entregue, porque eu preciso desta cidade e desta região para que faça parte da minha.

 

Então o jovem apoiou-se na vara, lançou a Wang o Tigre um olhar de desalento mortal e implorou-o dizendo:

 

Tenha compaixão e leve os seus soldados!

 

E deixou-se cair, com o rosto contra o chão, em frente de Wang o Tigre.

 

Mas este sentiu a cólera invadi-lo como acontecia sempre que encontrava oposição e o irritavam e berrou:

 

Ficarei até que esta região me pertença!

 

Então o jovem levantou-se e, lançando altivamente a cabeça para trás, disse:

 

Fique então, e passe aqui a vida se lhe agradar, isso não nos incomoda!

 

E sem uma palavra mais, voltou-se na direcção da porta.

 

Então Wang o Tigre sentiu a sua velha cólera negra subir nele e disse de si para si que era surpreendente ver um inimigo na última extremidade enviar um mensageiro tão descortês que não tinha sequer cumprido um único rito de polidez, e pensou de si para si que aquele era o jovem mais impertinente que jamais vira. Quanto mais nele pensava, mais a sua cólera aumentava, e de repente e antes de ele próprio se dar conta disso, perdeu a cabeça e disse a um soldado:

 

Pega na espingarda e deita-me abaixo aquele sujeito!

 

O soldado obedeceu imediatamente e disparou muito bem porque o jovem tombou, ficando com a face colada ao chão na estreita ponte que atravessava o fosso, a bandeira caiu à água e o pau começou a flutuar à superfície do fosso, cuja vasa ia maculando a brancura da bandeira. Então Wang o Tigre ordenou aos seus homens que fossem a correr buscar o jovem; e eles obedeceram-lhe correndo muito com receio de que alguns tiros viessem da muralha, mas não veio um sequer. Wang o Tigre espantou-se um pouco com isso e perguntou de si para si o que isso podia significar. Mas admirou-se mais ainda quando viu o jovem estendido na frente dele e já com a palidez da morte, mas sem ter de modo algum o aspecto de um faminto. Não, quando Wang o Tigre deu ordem de lhe despirem a roupa, para lhe ver a carne, viu que o jovem, se não estava gordo, tinha no entanto muito bom aspecto para dar a perceber que se alimentara de alguma coisa.

 

Um tanto perturbado com o que via, Wang o Tigre teve um instante de desânimo e exclamou:

 

Se este indivíduo está assim, que é que eles têm de comer que lhes permite aguentarem-se tão bem contra mim? (E, com uma blasfémia, continuou): Ora, posso tão bem como eles passar a minha vida neste cerco!

 

E porque estava tão encolerizado, a partir daquele dia ordenou aos seus soldados que não se constrangessem e que fizessem como lhes agradasse, e a partir daí quando os via tomarem víveres e mercadorias à gente dos arrabaldes que cercavam a cidade ou aos habitantes das herdades dispersas por aqui e por ali, já os não impedia, como outrora teria feito, e quando um campónio vinha queixar-se ou qualquer pessoa vinha solenemente acusar um soldado de se ter introduzido numa casa particular para fazer o que não devia, Wang o Tigre replicava com impaciência:

 

Sois todos um bando de patifes! Creio que mandais víveres em segredo para a cidade ou... de outro modo como se explica que os habitantes possam ter que comer para tanto tempo!

 

Mas os camponeses juravam que não faziam nada disso e muitas vezes um deles respondia tristemente:

 

Que nos faz ter acima de nós um senhor ou outro? Julga que temos alguma estima por aquele velho bandido que nos reduziu quase à fome com os seus impostos? General, se quiser tratar-nos compassivamente e impedir os seus soldados de nos prejudicarem, sentir-nos-emos muito satisfeitos de o termos no lugar dele.

 

Mas Wang o Tigre azedava à medida que o Verão avançava. Maldizia o calor e as miríades de moscas que apareciam no monte de esterco que necessariamente fazem numerosos soldados, e os mosquitos que saíam da água estagnada do fosso, e pensava com irritação na cidade onde estavam os seus aposentos e onde as suas duas mulheres o esperavam, e a sua cólera tornava-o menos afectuoso do que outrora e os seus homens tornavam-se muito insubordinados e ele não os impedia de o serem.

 

No tempo dos grandes calores, houve uma noite de luar rutilante, numa noite muito quente, em que Wang o Tigre saiu da sua tenda para ter um pouco de frescura, pois não podia dormir: levou consigo apenas a sentinela que o seguia bocejando e sonolenta, enquanto ele passeava de cá para lá. Wang o Tigre olhava, como sempre, a muralha da cidade que se erguia alta e negra ao luar e que se lhe afigurava inexpugnável. Enquanto a olhava, sentiu-se outra vez muito encolerizado, verdade seja que a cólera nunca nessa época o abandonava, e jurou a si próprio muito ferozmente fazer pagar caro a todos os homens, mulheres e até crianças da cidade o dissabor daquela guerra em que se empenhara. Nesse momento, viu deslizar pela negra muralha uma sombra, uma sombra que se deslocava para a parte inferior. Considerou-a fixamente e deteve-se. Custou-lhe a princípio admitir que a tinha visto realmente, mas à força de olhar acabou por verificar que qualquer coisa de pequeno e sombrio se deslocava como um caranguejo por entre a hera e os arbustos secos presos à velha muralha. Notou finalmente que era um homem. Sim, um homem que, ao chegar à parte mais baixa da muralha, saltou para o chão e se adiantou para a zona banhada pelo luar. Viu então que ele agitava na mão um pano branco.

 

Wang o Tigre ordenou a um homem que fosse ao seu encontro empunhando também uma bandeira branca e lhe trouxesse o indivíduo. E ali ficou à espera, fatigando os olhos a ver se distinguia o que era aquele homem. Quando ele chegou junto de Wang o Tigre, lançou-se-lhe aos pés e bateu com a cabeça na terra pedindo compaixão. Mas Wang o Tigre clamou:

 

Ponham-no de pé para que o veja!

 

Adiantaram-se dois soldados para levantarem o homem e Wang o Tigre ficou-se a olhá-lo. E, conforme o olhava, foi-se de tal maneira encolerizando que sentia como que um nó na garganta, pois também aquele homem não tinha aspecto de fome. Não, era magro e muito pálido e emaciado, mas não de fome. E Wang o Tigre rugiu:

 

Veio entregar a cidade?

 

E o homem respondeu:

 

Não, o chefe não quer ainda entregar-se porque continua a ter víveres e nós, os que de mais perto o acompanhamos, temos alimentação diária. A população está faminta, é certo, mas isso não nos embaraça, e estamos em condições de nos aguentarmos ainda por algum tempo e esperamos receber socorros do Sul porque conseguimos fazer descer um homem pela muralha para o ir pedir.

 

Ao ouvir isto, Wang o Tigre sentiu-se muito perplexo e, contendo a cólera o melhor que pôde, replicou indeciso:

 

Porque veio, se não foi para entregar a cidade?

 

E o homem respondeu com ar sombrio:

 

Venho apenas por meu respeito. O general sob cujas ordens sirvo foi incorrecto comigo. É um sujeito grosseiro e odioso, selvagem e sem educação, e eu sou um homem de sangue nobre. Meu pai era mesmo um letrado e eu estou habituado à delicadeza. O general humilhou-me diante dos meus próprios soldados.

 

Ora um homem pode perdoar muitas coisas, mas nunca pode perdoar que o humilhem. Tal humilhação não foi só um insulto a mim próprio como aos meus antepassados que hoje represento, e os antepassados dele, se acaso os conhece, eram gente que os meus considerariam criados.

 

Mas como pôde ele humilhá-lo dessa maneira?perguntou Wang o Tigre, que se sentia de si para si espantado com aquela aventura.

 

E o homem respondeu com sombrio furor:

 

Ele humilhou-me, censurando a maneira como eu empunhava a espingarda. Ora é essa a minha especialidade e sei abater infalivelmente aquilo que viso.

 

Então uma luz começou a brilhar para Wang o Tigre, pois bem sabia que a ironia e a humilhação são capazes de fazer nascer no coração de um homem o ódio mais feroz, mesmo contra um amigo, e que um homem fará tudo para se vingar, se o humilharam, principalmente se é um homem altivo, tal como aquele pelo seu aspecto o bem parecia. E Wang o Tigre de chofre perguntou-lhe:

 

Diga-me qual é o seu preço.

 

O homem olhou em redor, viu os soldados da escolta de Wang o Tigre que ouviam de boca aberta e inclinou-se para dizer em voz baixa:

 

Deixe-me entrar consigo na sua tenda e lá poderei falar à vontade.

 

Então Wang o Tigre deu meia volta, penetrou na sua tenda e ordenou que introduzissem o homem, sem conservar consigo mais de cinco ou seis soldados, para o protegerem contra uma possível traição. Mas não havia nele ideia alguma de traição, mas só de vingança e foi o que verificou Wang o Tigre, pois o homem disse-lhe:

 

Sinto-me tão cheio de ódio e raiva que estou disposto a passar outra vez o muro para o lado de lá e abrir-vos a porta. Só vos peço uma coisa, é que nos tomeis sob as vossas bandeiras a mim e àqueles homens que estão sob as minhas ordens e que eu estimo, e que nos protejais, para que o bandido, se não for morto, não me mande apanhar e matar, pois é meu figadal inimigo.

 

Mas Wang o Tigre não quis receber um tão generoso socorro grátis e sem outra recompensa a não ser essa, e eis por que disse, olhando bem de frente o homem que estava de pé, diante dele, entre dois soldados:

 

Mostrai-vos homem de honra ao não suportar o insulto. Sinto-me muito contente por ter comigo um homem honrado e bravo tal como vós. Voltai, portanto, a dizer aos vossos camaradas e a todos os soldados que receberei sob a minha bandeira todos aqueles que se entregarem com as suas espingardas. Nem um, asseguro-vos, será morto. Quanto a vós, sereis capitão no meu exército, e dar-vos-ei duzentas moedas em dinheiro a vós e cinco moedas a cada homem munido da sua espingarda que me trouxerdes.

 

Então o rosto contraído do homem desanuviou-se e ele exclamou calorosamente:

 

Sois um general como eu procurei toda a minha vida, e não deixarei de vos abrir a porta no momento em que o Sol estiver no zénite deste mesmo dia que vai nascer agora mesmo!

 

Então o homem deu bruscamente meia volta e seguiu pelo caminho que trouxera e Wang o Tigre levantou-se e saiu da sua tenda para seguir com os olhos o homem, enquanto ele trepava com jeito e habilidade pela muralha acima, ajudando-se com as raízes e arbustos secos, como teria feito um macaco, assim acabando por desaparecer por cima da muralha.

 

Dentro em pouco, ergueu-se o Sol como uma roda de cobre no horizonte da campina e Wang o Tigre deu ordem de despertar os seus soldados em segredo e sem rumor, no receio de que algum inimigo se apercebesse da agitação e suspeitasse de um novo plano. Mas a maior parte dos homens sabia já que um parlamentário saíra da cidade e já se tinham levantado e preparado de noite sem acender um único archote. E de facto a luz da Lua era tão brilhante que iluminava como um sol pálido, e os homens viam bastante bem para verificar se as alavancas das culatras estavam voltadas para baixo e para enfiar um cordão no ilhó de um sapato. Quando o Sol ia já alto, todos os homens estavam nos seus postos e Wang o Tigre dava ordem de lhes distribuir a todos carne e uma boa dose de vinho, para os tornar animosos. E assim alimentados e fortalecidos os soldados esperaram o rufar do tambor que devia lançá-los para a frente.

 

Depois, quando o Sol subiu no céu com todo o seu esplendor, projectando um calor sem sopro na campina onde se estendia a cidade, Wang o Tigre soltou um grito desde o lugar em que se encontrava e os seus homens reuniram-se como lhes fora indicado em seis longas filas. E quando ouviram o seu general soltar um grito todos os homens o acompanharam e o clamor ecoou ao longo das fileiras. E, gritando, cada um dos soldados ergueu as suas armas nas mãos, cada um deles uma espingarda e uma faca, e correram todos para a frente. Alguns atravessaram o fosso pela estreita porta, mas a maior parte atravessou a correr o fosso pouco profundo e escalaram a escorrer água a borda oposta, onde se comprimiram contra a muralha da cidade e se agruparam diante da porta norte. Mas os capitães impediram Wang o Tigre de se manter demasiado perto da frente, pois não se sabia se no último momento o homem cumpriria a sua palavra ou se haveria traição. No entanto, Wang o Tigre tinha confiança naquele homem porque sabia que o desejo de vingança é a mais segura forma de ódio.

 

Estavam assim à espera, e nem um rumor saía da cidade, e não se disparava um único tiro de espingarda da muralha. E então, no momento em que o Sol subindo no céu atingia o zénite, Wang o Tigre, imobilizado na atitude expectante, viu a grande porta de ferro entreabrir-se um pouco e alguém inclinar-se de dentro e avançar a cabeça enquanto uma pequena fenda de luz aparecia na parte superior do batente. Soltou um grito de apelo, os soldados saltaram para a frente, e Wang o Tigre com eles. Lançaram-se contra a porta que se escancarou e espalharam-se pelas ruas da cidade como a água que rebenta de um dique. O cerco acabara.

 

Mas sem se deter um instante, Wang o Tigre deu ordem de que o conduzissem imediatamente ao palácio onde habitava o chefe dos bandidos e berrou para os seus homens que eles não estavam ainda livres e que o não estariam enquanto ele não tivesse encontrado o antigo comandante. Então, impelidos pela pressa que lhes dava a cobiça, os seus soldados arrastaram-no até ao palácio, interrogando pelo caminho os homens aterrados que encontravam. Mas quando Wang o Tigre entrou no pátio do palácio com grande acompanhamento de tambores e clarins, verificou , que estava vazio, porque o chefe dos bandidos fugira. Como ele fora informado da traição ignora-se, mas o certo é que, enquanto os homens de Wang o Tigre penetravam em torrente pela porta norte, o velho bandido e os seus partidários fiéis escapavam-se pela porta sul e fugiam através da campina. Wang o Tigre, ao ouvir aquilo dos soldados que o não tinham seguido, precipitou-se para a muralha sul da cidade e olhou. Além, já longe, viu apenas uma fugitiva nuvem de poeira. Ficou um momento indeciso a perguntar-se se o não perseguiria, mas consolou-se pensando que obtivera o que desejava, isto é a cidade e a chave daquela região. Que significavam para ele um bandido e alguns seus partidários?

 

E assim, tornou a descer e entrou outra vez no palácio deserto, onde os numerosos soldados do inimigo que restavam vieram prestar-lhe homenagem e pedir protecção. Ficou muito contente pelo grande número deles. Vinham apresentar-se-lhe à sala principal onde se sentara, e chegavam em grupos de dez e vinte, e eram os homens mais magros e desamparados que jamais vira excepto nos anos de seca. Mas traziam as suas armas e ao ajoelharem-se na sua frente estendiam as mãos em sinal de submissão. E Wang o Tigre aceitava-os e ordenava que lhes dessem a todos de comer até se fartarem e lhes distribuíssem cinco moedas em dinheiro. Mas quando o homem que traíra o chefe dos bandidos entrou à frente da sua companhia, Wang o Tigre deu-lhe as duzentas moedas que lhe prometera e deu-lhas de sua própria mão, ordenando que trouxessem um uniforme de capitão e lho entregassem também. Assim, Wang o Tigre mostrou lembrar-se do que o homem fizera por ele, o recompensou e recebeu nas suas fileiras.

 

Quando tudo isso acabou, Wang o Tigre compreendeu que chegara o momento em que lhe era preciso cumprir a promessa feita aos seus homens, porque os tinha contido tanto tempo quanto possível e eles se recusavam a continuar a sê-lo. E Wang o Tigre deu a ordem para eles ficarem livres, lamentando ao mesmo tempo ter de o fazer. Coisa curiosa, agora que ele tinha o que desejava, a sua cólera contra a população desaparecera e repugnava-lhe fazê-la sofrer. Mas apesar de tudo tinha de cumprir a palavra dada aos seus soldados, e depois de lhes ter concedido a sua liberdade por três dias, confinou-se no palácio, cujas portas mandou fechar e ficou sem ninguém a não ser a sua escolta. Entretanto, aqueles duzentos ou trezentos homens, ou cerca disso, estavam muito impacientes e reclamavam a sua vez, e, por fim, Wang o Tigre viu-se obrigado a conceder-lho e a mandar vir outros para o lugar desses. Quando viu estes outros chegarem com os olhos vermelhos de luxúria e os rostos sombrios e inflamados a tal ponto que não podiam dissimular os seus ares ferozes, Wang o Tigre desviou os olhos e recusou-se a pensar no que se passava na cidade. Quando o seu sobrinho, que continuava a manter junto de si, mostrou curiosidade em ir ver o espectáculo, Wang o Tigre irritou-se com ele, sentindo-se muito satisfeito por ter alguém em quem poder com motivo descarregar a sua cólera, e rugiu:

 

Então o meu próprio sangue há-de ir cometer loucuras como esses homens grosseiros e vulgares?

 

E não quis permitir ao rapaz que se afastasse da sua vista, e manteve-o ocupado junto da sua pessoa, mandando buscar isto ou aquilo de comer ou de beber ou qualquer acessório de substituição de que ele necessitava para se vestir, e quando chegavam até ele gritos enfraquecidos vindos de compartimentos mais secretos da casa, Wang o Tigre mostrava-se mais imperioso e mais irritado que nunca para com o sobrinho, de tal modo que o rapaz andava agora aflito e a transpirar, por causa do mau humor de seu tio e não se atrevia a responder-lhe uma palavra.

 

Na verdade, Wang o Tigre só podia ser cruel quando estava encolerizado, e é certamente uma fraqueza num senhor de guerra, cujo meio de glória é a morte, só poder matar encolerizado, e sabia que era fraqueza não poder matar a sangue-frio, ou com indiferença ou para servir uma causa. E achava que era uma fraqueza ser incapaz de manter a sua cólera contra os habitantes da cidade e dizia-se que deveria ainda odiá-los por causa da sua estúpida obstinação e porque eles não tinham descoberto maneira de lhe abrir as portas. E apesar disso, quando os seus soldados chegaram num péssimo estado a pedir-lhe de comer, ele gritou-lhes mum misto de furor e pesar:

 

Então eu tenho ainda de dar-vos de comer quando andais na pilhagem?

 

Ao que eles responderam:

 

Não há um punhado de trigo em toda a cidade e nós não podemos comer ouro, prata e sedas. Disso nós encontrámos, mas não de comer, porque os camponeses ainda têm medo de vir trazer os seus produtos,

 

E Wang o Tigre sofria e continuava pensativo, porque via que o que eles diziam era verdade e viu-se obrigado a mandar que lhes dessem de comer, embora, ao fazê-lo, berrasse no seu tom mais azedo. Mas ainda ouviu a um soldado grosseiro esta vulgar exclamação:

 

Sim, e as mulheres são tão magras que se diriam frangas depenadas e não se tem prazer nenhum com elas.

 

Então, de súbito, Wang o Tigre sentiu o peso da vida. Retirou-se sozinho para um quarto onde ficou a suspirar durante momentos antes de poder endurecer-se outra vez. Mas conseguiu-o mais uma vez. Pensou nas belas terras, pensou que tinha aumentado o seu poder e que tinha naquela guerra mais do que duplicado o território sob o seu domínio, e disse de si para si que era aquela a sua profissão e a sua maneira de se engrandecer, e, enfim e principalmente, pensou nas duas mulheres que tinha e que de uma delas nasceria seguramente o seu filho e gritou ao seu próprio coração:

 

«Não serei eu capaz de suportar por esse filho o que outros são obrigados a suportar durante três curtos dias?»

 

Foi assim que ele se endureceu para os três dias e que se firmou na sua promessa.

 

Mas na alvorada do quarto dia ergueu-se cedo da sua cama de insónia e ordenou que fosse dado sinal e que se tocasse o clarim por todos os lados, sinal para todos os soldados de que a pilhagem acabara e de que lhes era necessário reentrarem todos sob a sua autoridade. E como se levantou nessa manhã mais feroz e mais sombrio do que era costume e franzia continuamente o sobrecenho, ninguém se atreveu a desobedecer-lhe.

 

Depois, Wang o Tigre foi pela cidade fora e ficou extraordinariamente surpreendido de aí não ver senão alguns miseráveis habitantes que se arrastavam penosamente para fora das portas de suas casas e se sentavam acabrunhados nos bancos do limiar, tão fracos que nem sequer podiam levantar a cabeça quando Wang o Tigre se aproximava a grandes passadas, no claro sol de Outono, acompanhado pela sua escolta de armas refulgentes que retiniam. Permaneciam assim, tão alheios e mudos que os julgaríeis mortos, e Wang o Tigre sentia no seu coração uma vergonha que o impedia de se deter a conversar fosse com quem fosse. Caminhava de cabeça alta e fingia não ver as pessoas mas apenas as lojas. Havia nestas lojas muitas mercadorias como ele ainda não vira, dado que aquela cidade ficava na margem sul do rio, e o rio se lançava no mar, o que permitia conduzir para ali aquelas mercadorias. Sim, Wang o Tigre viu muitas curiosidades estrangeiras que ainda não vira, mas elas estavam agora dispostas sem cuidado e cobertas de poeira, como se ninguém tivesse vindo há muito fazer compras.

 

Mas havia duas coisas que ele naquela cidade não encontrava.

 

Não via géneros de alimentação à venda em parte alguma, e o sítio do mercado estava vazio e mudo e não havia nas ruas nenhum daqueles vendedores nem daqueles bufarinheiros que dão vida às ruas das cidades. Também não via crianças. Não notara a princípio como as ruas eram calmas e depois notou-o e perguntou-se a razão dessa calma. Apercebeu-se então de que lhe faltavam as vozes e o rir álacre dos garotos de que cada casa está em tempos ordinários cheia, e fazia-lhe falta vê-los correr pelas ruas. E de repente foi-lhe insuportável olhar os rostos sombrios, melancólicos e emaciados dos homens e das mulheres que restavam. Não fizera pior do que qualquer outro senhor de guerra pode fazer, e não podiam imputar-lho como crime, dado que não havia outro meio que lhe permitisse alcançar êxito. Mas Wang o Tigre era na verdade homem demasiado compassivo para o seu modo de vida.

 

Deu meia volta, voltou a casa porque não podia suportar ver aquela-cidade que agora era sua. Sentia-se abatido, de mau humor, e lançara injúrias aos seus soldados e berrava-lhes que se afastassem do seu caminho, pois não podia suportar ouvir-lhes as grossas gargalhadas de satisfação nem ver-lhes os olhos brilhantes de luxúria aplacada, e olhava com furor os anéis de ouro que tinham metido nos dedos e os relógios de fabrico estrangeiro que exibiam e todos os objectos análogos de que se tinham apoderado. Viu até anéis de ouro nos dedos dos seus homens de confiança, na mão brutal do Falcão um anel de ouro, e um anel de jade no polegar do Matador de Porcos, polegar tão grosso e rude que o anel ficara a meio caminho da falange, recusando-se a entrar mais. Mas apesar de tudo, usava-o assim. Ao ver tudo isso, Wang o Tigre sentiu-se muito afastado e muito diferente de todos aqueles homens e murmurou de si para si que eram indivíduos vis e bestiais e que ele se encontrava solitário nas profundidades do seu ser. Foi sentar-se sozinho no seu quarto, de muito mau humor, e gritava pelo menor motivo se alguém se aproximava dele.

 

Mas quando ficou assim um dia ou dois e os seus soldados, ao verem-no tão zangado, tiveram medo e se acalmaram um pouco, Wang o Tigre endureceu-se outra vez e repetiu de si para si que aqueles eram os costumes da guerra, que ele escolhera aquele modo de vida e que o Céu o predestinara a ser o que era. Devia levar a cabo o que começara. E assim, portanto, se levantou e lavou, pois ficara ali três dias sem se lavar nem barbear, tão encolerizado estava, vestiu-se de lavado e mandou um mensageiro ao governador da cidade, para lhe ordenar que viesse prestar acto de submissão. Depois Wang o Tigre dirigiu-se à sala de audiência e sentou-se, à espera da chegada daquele homem.

 

Ao cabo de uma ou duas horas, chegou o governador, tão pressuroso quanto podia, apoiado a dois homens, com o aspecto muito abatido. Mas, pela saudação que lhe dirigiu e pelas suas maneiras distintas, Wang o Tigre viu que se tratava de um homem bem nascido e letrado. Ergueu-se por conseguinte e, inclinando-se por seu turno, fez sinal ao visitante para que se sentasse. Depois, Wang o Tigre sentou-se igualmente e não pôde impedir-se de considerar o seu visitante com surpresa, pois o rosto e as mãos do governador eram da cor mais estranha e mais horrível, seja a cor de um fígado já seco de um ou dois dias, e estava tão magro que parecia não ter mais que a pele em cima dos ossos. No seu espanto, Wang o Tigre exclamou de repente:     Pois quê!... Também o senhor passou sem comer? E o homem respondeu com simplicidade:     Sim, fiz como os meus concidadãos, e não é a primeira vez.         Mas o homem que primeiro me mandaram para estabelecer tréguas estava bem alimentado continuou Wang o Tigre.

 

Sim, mas tinham-no alimentado especialmente desde o princípio respondeu o governadorpara que, se recusasse as tréguas, inferisse que existiam víveres e que era possível resistir muito tempo ainda.

 

Então Wang o Tigre não pôde impedir-se de aprovar uma tão boa manha e com espanto e admiração exclamou:

 

Mas o capitão que se escapou, esse estava também bem alimentado!

 

O governador respondeu com simplicidade:

 

Alimentaram-se os soldados melhor que os outros, e o melhor possível até ao fim. Mas os civis, esses passavam sem comer e centenas deles morreram. Todos os débeis morreram, assim como os mais velhos e os mais novos.

 

Wang o Tigre soltou um suspiro e disse:

 

com efeito, não vejo crianças de peito em parte alguma.

 

Contemplou um momento o governador e depois, obrigando-se a dizer o que devia,, continuou:

 

Submeta-se agora à minha pessoa, pois ganhei o direito de tomar o lugar daquele outro senhor de guerra que era o seu chefe e chefe de toda a região que mantinha sob o seu domínio. Sou eu agora o chefe e acrescento este país ao domínio que a Norte já possuo. É para as minhas mãos que terão de vir agora os réditos e eu pedir-lhe-ei todos os meses uma certa quantia fixa, além de uma parte dos réditos.

 

Wang o Tigre disse isso e proferiu a seguir algumas palavras delicadas, pois não era desprovido de certa delicadeza. O governador respondeu, em voz fraca e cavada, deixando, pelo movimento dos lábios ressequidos, a descoberto os dentes que pareciam demasiado grandes e brancos para a boca exangue:

 

Estamos nas suas mãos. Dê-nos apenas um mês ou dois, para nos refazermos...Depois, esperou um momento e continuou com muita amargura:Que nos importa quem nos governe desde que tenhamos paz, possamos prosseguir os nossos negócios, ganhar a nossa vida e alimentar os nossos filhos ? Juro-lhe que eu e os meus concidadãos estamos dispostos a pagar-lhe tudo o que for razoável, desde que seja bastante forte para afastar os outros senhores de guerra e vivamos em paz durante a nossa geração.

 

Era tudo quanto Wang o Tigre desejava saber. O seu coração compassivo sofria por ouvir a voz fraca e ofegante daquele homem, e gritou aos soldados:

 

Tragam comida e vinho e dêem-lhe de comer a ele e aos seus homens! E quando viu que as suas ordens estavam a ser executadas, chamou os seus homens de confiança e ordenou outra vez: Vão agora percorrer a região, levando soldados para obrigarem os camponeses a-, virem à cidade com os seus cereais e os seus produtos, a fim de que a população possa comprar que comer e refazer-se desta guerra cruel.

 

Wang o Tigre mostrou assim o seu espírito de justiça, o governador agradeceu-lho e ele sentia-se comovido com a sua gratidão. Wang o Tigre viu então como ele era-delicado, pois embora estivesse semimorto de inanição e comesse com os olhos a comida que estava servida em uma mesa em frente dele, forçou-se a esperar pacientemente, apertando estreitamente uma contra a outra as suas mãos cruzadas que tremiam, até que se proferissem todas as fórmulas de delicadeza e de cortesia que deviam trocar-se entre um convidado e o seu anfitrião, e até que fosse possível a Wang o Tigre sentar-se no lugar deste. Então o pobre homem atirou-se à comida, mas como tentava ainda dominar-se, Wang o Tigre teve pena dele e pretextou uma qualquer ocupação que o chamava. Saiu, pois, e deixou o homem comer sozinho, pois os seus subordinados comiam separadamente e, mais tarde, Wang o Tigre ouviu os seus criados dizerem com espanto que os pratos e os copos pareciam não precisar de ser limpos, de tal modo os famintos os tinham lambido.

 

Depois Wang o Tigre sentiu gratíssimo prazer em ver os mercados daquela cidade encherem-se outra vez e em ver os víveres expostos nos cestos dos vendedores alinhados, ao longo das ruas ou nos balcões, e julgava ver homens e mulheres engordarem de dia para dia e os rostos perderem a sua cor pardacenta e lívida para retomarem as cores claras e douradas da saúde. Durante todo o Inverno, Wang o Tigre manteve-se naquela cidade, apurando os seus réditos e reorganizando os seus interesses e alegrou-se quando começou a ver nascer meninos e mulheres amamentarem os filhos. Sentia, ao vê-lo, despertar-se-lhe no coração um sentimento profundo que não compreendia e apossou-se dele o desejo de voltar e perguntou de si para si, pela primeira vez, o que seria feito das suas mulheres. E projectou regressar a casa no fim do ano.

 

Ora, quando Wang o Tigre terminara o cerco da cidade, os espiões que mantinha noutras partes do país tinham voltado anunciando-lhe que uma grande guerra estava travada entre o Norte e o Sul, e vieram novamente dizer-lhe que o Norte mais uma vez ganhara. Então Wang o Tigre apressou-se a enviar um grupo de homens, levando presentes de prata e sedas, ao general da província, e escreveu-lhe uma carta. Wang o Tigre escreveu a carta da sua própria mão, pois tinha certa vaidade na sua ciência, dado que poucos senhores de guerra são letrados, e apôs o grande selo vermelho que possuía, agora que se tornara uma grande personalidade. Nessa, carta explicava como combatera pelo Norte contra um general sudista e o derrotara e tomara a região que ficava ao longo do rio.

 

O general enviou-lhe por sua vez uma excelente resposta, em que felicitava muito Wang o Tigre pelo seu êxito e lhe conferia um novo e belo título. E tudo quanto pedia era que lhe remetessem todos os anos uma certa soma para o exército provincial. Então Wang o Tigre, dado que não se sentia ainda bastante forte para recusar, prometeu a soma e estabeleceu-se assim no Estado.

 

Como o fim do ano se aproximava, Wang o Tigre fez o balanço da situação. Verificou que tinha mais do que duplicado os seus territórios, e com excepção das partes montanhosas estéreis, as terras cultiváveis, boas e férteis, produziam ao mesmo tempo trigo e arroz na proporção, e, além disso, sal, pez, gergelim e feijão. E ainda, além disso, tinha acesso livre ao mar, com a possibilidade de importar muitas coisas de que carecia e poderia prescindir do irmão, Wang o Negociante, quando quisesse importar armas de fogo.

 

Pois Wang o Tigre tinha grande precisão das peças de artilharia estrangeiras e viera-lhe o desejo delas, principalmente porque, entre outras coisas que o chefe dos bandidos deixara, figuravam duas enormes e singularíssimas armas de fogo, tais como Wang o Tigre nunca vira. Eram de excelente aço sem rugosidades nem buracos de espécie alguma, e tão bem polidas que deviam ser obra de um hábil ferreiro. Estas peças de artilharia eram pesadas, tão pesadas que só para as levantar eram precisos vinte homens empregando toda a sua energia.

 

Tais canhões excitavam muito a curiosidade de Wang o Tigre e ele tinha desejo de ver como os disparavam, mas ninguém sabia como proceder, e também não se podiam encontrar balas para eles. Mas acabaram por descobrir num velho armazém duas bolas redondas de ferro, e ocorreu a Wang o Tigre a ideia de que eram destinadas às peças de artilharia. Encantado com a descoberta, mandou trazer para o ar livre uma das peças que foi instalada diante de um velho templo que tinha atrás um largo onde não havia casas. A princípio, ninguém quis oferecer-se para experimentar o canhão, mas Wang o Tigre ofereceu uma grande recompensa em dinheiro, e por fim apresentou-se o capitão que traíra a cidade, desejoso da recompensa e de conciliar as boas graças do seu chefe. Vira outrora fazer fogo com peças de artilharia, e dispôs tudo como convinha e muito habilmente atou um archote na ponta de uma longa vara e chegou fogo ao canhão de longe. Quando se viu começar a fumarada, todos os assistentes correram à desfilada até respeitosa distância e se puseram de longe à espera. O canhão disparou com um fragor de trovão, que fez tremer a terra e rugir os céus, o fumo e o fogo saltaram, de tal modo que até Wang o Tigre se sentiu abalado e que por instantes o seu coração perturbado deixou de pulsar. Quando aquilo acabou, toda a gente foi ver e no sítio onde antes se encontrava o velho templo havia agora um montão de ruínas e poeira. Então Wang o Tigre, perante um brinquedo tão divertido e tão bela arma de guerra como aquela peça de artilharia, foi tomado de um acesso de alegria e exclamou:

 

Se possuísse uma peça de artilharia assim, não teria havido cerco, porque eu meteria dentro a tiro as portas da cidade!

 

E depois de ter reflectido um momento, perguntou ao capitão:

 

Mas por que motivo o seu antigo comandante não se serviu dela contra nós?

 

Ao que o capitão respondeu:

 

Não pensáramos em tal. Estes dois canhões tomou-os ele a outro senhor de guerra com quem eu estive também outrora, e trouxeram-nos para aqui, mas nunca se serviram deles. Não sabíamos que estas balas se encontravam ao nosso alcance e já não pensávamos sequer nestes canhões, tanto tempo eles permaneceram no pátio de entrada.

 

Mas Wang o Tigre guardou muito preciosamente como um tesouro os dois canhões, para os quais contava comprar ainda balas e mandou transportá-los e colocá-los num lugar onde os teria frequentemente debaixo dos olhos.

 

Quando fez o cômputo de tudo quanto realizara, Wang o Tigre sentiu-se muito satisfeito consigo e preparou-se para o regresso a casa. Deixou naquela cidade um exército muito respeitável, comandado pelos seus antigos companheiros, e levou com ele as tropas mais recentes e o novo capitão. Depois de reflectir um pouco, deixou para comandar superiormente naquela cidade dois homens nos quais podia confiar. Deixou o Falcão e deixou o sobrinho, que se tornara agora um jovem bastante sólido, não alto mas corpulento e robusto, e que não tinha mau aspecto, excepto no rosto bexigoso que se manteria sempre assim crivado, mesmo se morresse de velho. Wang o Tigre supôs dessa maneira deixar um bom par de chefes, porque o Bexigoso era demasiado jovem para assumir sozinho o comando, e não se podia depositar confiança completa no Falcão. E assim, portanto, Wang o Tigre os deixou juntos e disse secretamente ao Bexigoso:

 

Se descobrires que planeia alguma traição, manda-me um mensageiro que tenha asas de dia e de noite.

 

O Bexigoso prometeu, de olhos risonhos pela alegria de ficar num alto posto sozinho, e Wang o Tigre pôde seguir tranquilo, pois é possível a um homem confiar nos do seu próprio sangue. E depois de ter tomado as suas disposições e atendido à segurança de tudo, Wang o Tigre, vitorioso, regressou a casa.

 

Quanto aos habitantes daquela cidade, dedicaram-se resolutamente a reconstruir o que fora destruído. Uma vez mais forneceram as suas lojas e restabeleceram os teares de algodão e de seda, compraram e venderam e só conversavam agora dos novos tempos felizes, pois o que passara, passara, e o Céu a todos impõe o destino.

 

Wang o Tigre dirigiu-se a casa, dizendo consigo que o fazia para ver se o seu exército ficara calmo como ele o deixara, E acreditava sinceramente que era esse o seu principal motivo, pois não se sabia movido de razão mais íntima, e era ver se lhe nascera ou não um filho. Ficara fora de casa perto de dez meses num ano, e posto tivesse durante esse tempo recebido por duas vezes cartas da sua mulher letrada, eram cartas tão discretas e tão cheias de fórmulas respeitosas, que nada dizia de mais nada, a não ser que tudo ia bem.

 

Mas no momento em que entrava triunfalmente no palácio, logo se apercebeu de que o Céu continuava a velar por ele, pois ali mesmo, no pátio cheio de luz, expostas ao sol do meio dia e abrigadas do vento, estavam sentadas as suas duas mulheres, cada uma das quais com um bebé, e cada um dos bebés estava vestido de escarlate desde a cabeça aos pés, e tendo nas cabecitas também gorros da mesma cor. A mulher iletrada tinha cozido no gorro do seu filho uma fileira de pequenos Budas de ouro, mas a mulher letrada não acreditava, por isso mesmo que o era, naqueles feitiços de boa sorte e bordara flores no gorro do seu. À parte isso, não havia diferença alguma entre as duas crianças, e Wang o Tigre olhava-os estupefacto, pois não esperava ver dois. E balbuciava:

 

Pois quê! Pois quê!...

 

Então a mulher letrada levantou-se, pois era ágil e graciosa nas suas palavras e falava sempre de maneira agradável, num tom uniforme, intercalando uma expressão letrada ou um verso de qualquer velho poema clássico, e enquanto falava sobressaíam-lhe os dentes alvos e brilhantes:

 

São os bebés que nasceram enquanto estáveis ausente. São vigorosos e sãos da cabeça aos pés.

E estendeu o seu para que Wang o Tigre visse.

 

Mas a outra mulher não pôde resistir ao desejo de fazer valer que procurara um rapaz, porque a mulher letrada tivera uma rapariga. Erguendo-se portanto também, apressou-so a dizer, embora raras vezes falasse por causa dos seus dentes escuros e das brechas nos sítios onde lhe faltavam, e mantendo, por isso, os lábios cerrados-:

 

O meu é um rapaz, meu senhor, e o outro é uma rapariga.

 

Mas Wang o Tigre nada disse. Encontrava-se, com efeito, incapaz de falar, pois não previra todo o efeito que nele produziria sentir que um ser da sua própria geração lhe pertencia.

 

Ficou durante um instante mudo de surpresa a considerar aqueles dois pequeninos seres que não davam sinais de o ver, olhando-o plàcidamente como se ele tivesse estado sempre ali como uma árvore ou uma parte do muro. Semicerravam os olhos ao reverberar do Sol e o rapaz espirrava com força tão extraordinária, para o seu tamanho, que Wang o Tigre ficou ainda mais espantado por ouvir tal estrondo de tão pequeno instrumento. Mas a filha contentara-se com abrir a boca como uma gatinha. Bocejava abrindo muito a boca, enquanto o pai a contemplava. Nunca segurara um filho nos braços e não se atrevia a tocar naqueles dois.

 

Também não sabia que dizer àquelas duas mulheres, num tal momento, visto que as suas conversas se referiam sempre às coisas de guerra; limitou-se portanto a sorrir um pouco fixamente, enquanto os soldados que o acompanhavam soltavam gritos de admiração diante do filho do seu general. E quando ele ouviu aquelas exclamações, sentiu um tal prazer que murmurou:

 

Ora, é muito natural que as mulheres dêem à luz!

 

E não dominando a sua alegria, retirou-se apressadamente para os seus aposentos.

 

Ali, lavou-se e comeu e trocou o seu áspero trajo de guerra por uma túnica de seda azul escuro. Quando acabou de mudar de roupa, descia a noite. Wang o Tigre sentou-se então junto do braseiro ardente, porque a noite se anunciava glacial e ficou sozinho a reflectir em tudo quanto lhe acontecera.

 

Afigurou-se-lhe que o destino o favorecera em tudo, e de tal modo que nada mais havia agora a que pudesse aspirar. Agora que tinha um filho, a sua ambição tinha um sentido, e o que ele fazia, fazia-o com um fim. Enquanto reflectia, sentiu o coração dilatar-se-lhe e esqueceu todos os pesares da solidão que conhecera, e, no silêncio do quarto, exclamou de repente:

 

«Vou fazer um verdadeiro guerreiro deste meu filho!» E levantou-se, bateu com a mão nas coxas, rindo com prazer.

 

Pôs-se então durante alguns momentos a percorrer o quarto em toda a sua extensão, sorrindo sem se dar conta disso, pensando que era uma coisa reconfortante ter um filho que já não estava agora dependente dos filhos dos irmãos, porque tinha um filho para prolongar a sua vida depois dele e para aumentar os seus domínios de guerra. Ocorreu-lhe depois outro pensamento e foi que tinha também uma filha. Passou então um breve momento a perguntar-se o que faria dela, e deteve-se diante da gelosia de uma janela, a torcer os pêlos da barba, pensando na sua filha de modo reticente, porque era uma rapariga e por fim disse-se, não sem alguma dúvida:

 

«Suponho que poderei casá-la com qualquer valoroso guerreiro, quando chegar a ocasião, e é tudo quanto posso fazer por ela».

 

A partir desse dia, Wang o Tigre viu uma nova finalidade naquelas suas duas mulheres, pois imaginava que lhe nasceriam delas ainda outros filhos, filhos fiéis e leais, que nunca o trairiam como seria capaz de fazer outro que não tivesse nas veias o seu próprio sangue. E não voltou a usar daquelas duas mulheres para consolo do seu coração e da sua carne. O seu coração fora consolado ao primeiro aspecto do seu filho, e da sua carne esperava ver ainda nascerem-lhe filhos, valentes soldados que se manteriam ao seu lado e o secundariam quando se tivesse tornado velho e fraco. E assim, portanto, ia regularmente até junto das suas duas esposas, e não mais a uma do que a outra, apesar de toda a secreta emulação que elas punham em obter o seu favor, e sentia-se contente com cada uma da sua maneira, porque não procurava junto de ambas senão uma e a mesma coisa, e não esperava mais de uma que da outra. Já o não perturbava, agora que tinha o filho, não viver com uma mulher o autêntico amor.

 

Assim o Inverno se foi passando em contentamento. Chegou a festa do Ano Novo e passou também, e Wang o Tigre celebrou-a mais que de costume, porque o ano fora bom, e recompensou todos os seus homens com vinho, iguarias e uma gratificação em dinheiro. Deu também a cada um daquelas pequenas coisas que eles apreciam: tabaco, uma toalha, um par de peúgas e outras pequenas coisas assim. Distribuiu presentes às suas mulheres e toda a casa participou alegremente da festa. Só houve uma coisa desagradável e essa aconteceu depois dos dias de alegria, de modo que não perturbou a festa. E foi que o velho governador morreu uma noite, durante o sono. Ou porque tivesse absorvido ópio demais, ou porque o frio glacial o tivesse surpreendido no seu torpor opiado, não era possível sabê-lo. Mas o acontecimento foi anunciado a Wang o Tigre e ele mandou preparar um bom esquife e fazer tudo quanto convinha fazer pelo amável velho, e no dia seguinte àquele em que tudo terminou e em que o esquife estava pronto para ser enviado para a terra natal do governador, pois este não era natural da província, vieram ainda anunciar que a sua velha esposa absorvera o resto do ópio que ficara do marido e assim o seguira de seu próprio alvedrio. Ninguém o sentiu, porque era velha e doente, nunca saía dos seus aposentos e Wang o Tigre nunca a vira. Encomendou portanto outro caixão e quando tudo ficou prestes, mandou os dois defuntos com três criados para os transportarem à sua terra, na província vizinha. Depois, Wang o Tigre dirigiu um relatório nos termos adequados aos seus superiores, que deviam ser informados do caso, e enviou a missiva pelo seu fiel Beiço Rachado, acompanhado por alguns soldados. E Wang o Tigre disse em segredo ao homem de confiança:

 

Há coisas que se devem dizer só ao ouvido e por isso as não escrevi. Mas se tiveres ocasião disso, toma cuidado em dar a entender que eu devo ter a minha opinião a dar na nomeação do que será aqui o governador civil.

 

Ouvindo isto, o homem de confiança acenou afirmativamente e Wang o Tigre ficou satisfeito. Em tempos tão perturbados como aqueles, não receava a chegada precipitada de um governador e podia muito bem exercer ele próprio o poder civil. E assim, portanto, esqueceu o caso e tomou, para os dar a suas esposas, os compartimentos onde vivera o velho, não tardando a esquecer-se de que alguém mais do que ele e os seus aí tinham alguma vez vivido.

 

ORA Wang o Tigre tinha sempre em mente que lhe era necessário aumentar o seu território e melhorar a sua situação em favor do filho, e eis por que o dizia muitas vezes a si próprio- e procurava imaginar como o alcançaria, onde poderia insinuar-se e alcançar vitória, no fim de qualquer grande guerra, como poderia avançar para o sul do rio e apoderar-se de um ou dois departamentos vizinhos, num ano de fome em que os habitantes vivessem atormentados pela seca e pela inundação. Mas aconteceu que, durante alguns anos, não houve grande guerra geral, e que no governo central se sucederam homens fracos e ineptos, e se é certo que não havia ainda paz assegurada, também não houve grande explosão de guerra, nem momento de que um grande senhor da guerra pudesse aproveitar-se, sem se aventurar excessivamente.

 

Em segundo lugar, afigurava-se a Wang o Tigre que já não era possível como outrora pôr todo o seu ânimo nessas ambições de grandeza, pois existia aquele filho para o qual era preciso fazer projectos, e depois havia todos os seus soldados e negócios do seu território, pois ninguém ainda viera ocupar o lugar do velho governador. De uma ou duas vezes, fora proposto um nome a Wang o Tigre, mas ele depressa o rejeitara, porque lhe convinha mais ficar sozinho em campo, e agora que o filho saíra da infância para entrar na adolescência, Wang o Tigre pensava por vezes que, se ele conseguisse ludibriar o Estado ainda durante alguns anos, seria uma coisa excelente ficar ele a ser o governador quando fosse velho demais para guerreiro e o filho pudesse substituí-lo no comando do exército. Mas fazia segredo desse plano, porque era ainda demasiado cedo para dá-lo a conhecer. E de facto o filho só tinha então seis anos. Mas Wang o Tigre tinha tanta pressa de o ver homem, que enquanto por vezes sentia que os anos passavam depressa, noutros momentos imaginava que nunca mais passariam, e olhando o filho via nele, não o rapazinho que ele era, mas o jovem guerreiro que desejava que ele fosse, e sem se dar conta disso, contrariava o filho de muitas maneiras.

 

Quando o filho tinha apenas seis anos, Wang o Tigre tirou-o à mãe e ao gineceu para o fazer habitar nos seus aposentos pessoais. Adoptou esta medida, principalmente, para impedir a criança de se tornar demasiado indolente com os carinhos femininos e com as conversas e usos feminis, mas também em parte porque tinha pressa de fazer do rapaz o seu constante companheiro. A princípio, o rapazinho mostrou-se tímido e como que perdido de si junto do pai. Errava daqui para ali, com um olhar de terror e quando Wang o Tigre, fazendo um grande esforço, adiantava a mão para atrair o filho a si, o rapaz tornava-se rígido, recuava e suportava dificilmente o contacto do pai. Wang o Tigre, que sentia o medo que se apossava do menino, pretendia amansá-lo, mas ficava mudo porque não achava as palavras necessárias, e nada mais lhe restava senão deixar o pequeno. A princípio, Wang o Tigre tivera a intenção de cortar completamente as relações da criança com a mãe e com quaisquer outras mulheres, dando-lhe apenas o convívio dos soldados, mas não tardou a aperceber-se de que uma separação tão nítida não seria suportável para aquele coraçãozinho frágil de criança. O rapazinho abstinha-se de qualquer queixa. Era um garoto de ar grave e taciturno, que suportava pacientemente o que devia, mas nunca se mostrava contente. Ficava ao pé do pai quando este lho mandava, punha-se correctamente em guarda logo que o pai entrava no compartimento em que se encontrasse, e estudava os seus livros com o velho preceptor que vinha todos os dias ensiná-lo, mas nunca falava mais do que -aquilo a que era obrigado.

 

Uma noite, ao jantar, Wang o Tigre estava a olhar para ele, e o rapaz, ao sentir que o pai o vigiava, curvava a cabeça o mais possível para os pratos e fingia estar a comer, mas não engolia bocado. Então Wang o Tigre encolerizou-se, pois tinha realmente feito por aquela criança tudo o que podia imaginar e naquele mesmo dia o levara consigo a passar em revista os seus exércitos, e pusera-o à sua frente, na sela, e o coração dilatava-se-lhe de orgulho enquanto os homens aclamavam o pequeno general, como lhe chamavam. O rapaz sorrira fracamente e desviara a cabeça, até ao momento em que Wang o Tigre o obrigou a erguê-la, dizendo:

 

Mantém a cabeça alta... são os teus homens... os teus soldados, filho! Conduzi-los-ás um dia à guerra!

 

Forçado desta maneira, o pequeno levantou um pouco a cabeça, com as faces cobertas de vivo rubor, e ao inclinar-se Wang o Tigre viu que o filho, muito longe de olhar os soldados, olhava além, para os campos, para fora do terreno onde as tropas andavam em manobras. E quando Wang o Tigre lhe perguntou o que estava a ver, indicou com o dedo um rapazito nu e queimado pelo Sol que, num campo próximo, escarranchado no dorso de um búfalo, contemplava o imponente espectáculo dos soldados, e o rapaz respondeu:

 

Gostaria de ser aquele garoto e montar como ele um búfalo.

 

Descontente com tão vulgar aspiração, Wang o Tigre respondeu-lhe severamente:

 

Ora vamos, parece-me que o meu filho pode aspirar a coisa mais alta do que a ser boieiro.

 

E compeliu duramente o pequeno a olhar o exército e a ver como os soldados evoluíam e como empunhavam as armas para dar uma carga de baioneta. O pequeno fez docilmente o que o pai lhe dizia, e deixou de olhar o pastorinho.

 

Mas Wang o Tigre ficou todo o dia perturbado pelo desejo do filho e agora, ao olhá-lo, via que não podia engolir a comida e estava prestes a chorar. Receando que o filho estivesse doente, Wang o Tigre levantou-se, aproximou-se da criança e exclamou pegando-lhe na mão:

 

Estás com febre? Estás doente?

 

Mas a mãozinha estava fria e húmida e o rapaz abanou negativamente a cabeça. Recusou-se durante muito tempo a responder, apesar das instâncias de Wang o Tigre, que acabou por chamar o seu fiel Beiço Rachado, para o ajudar a vencer a resistência do filho. Quando o homem apareceu, Wang o Tigre estava tão roído de inquietação e receio e também um po’uco de cólera, pela obstinação do menino, que gritou ao recém-chegado:

 

Leva contigo este pateta lá para fora e tenta descobrir o que ele tem.

 

O rapaz começava a soluçar com desespero e deixara cair a cabeça nos braços para soluçar e esconder a cara e Wang o Tigre, de rosto contraído e puxando os pêlos do bigode, estava ali encolerizado e prestes a chorar. Então o homem de confiança ergueu o menino nos braços, levou-o para qualquer sítio e durante algum tempo Wang o Tigre esperou, desolado, contemplando a comida intacta que fora posta ao filho. Quando o homem apareceu outra vez, sem trazer o menino consigo, Wang o Tigre rugiu:

 

Fala e conta-me tudo.

 

Meio hesitante, o homem respondeu:

 

Não é de modo algum uma doença que o aflige, é muito simplesmente incapaz de comer porque se sente demasiado só. Nunca viveu sozinho até hoje e sem companhia de crianças e aspira a encontrar-se com a mãe e as irmãs.

 

Mas na sua idade não pode já passar todo o tempo a brincar e a preguiçar com mulheres continuou Wang o Tigre.

 

E quase fora de si, torcia-se na cadeira.

 

Não respondeu calmamente o homem, que conhecia o carácter do chefe e não tinha medo dele, mas podia de vez em quando ver a mãe ou a irmã poderia vir algumas vezes brincar com ele, dado que são ambos ainda crianças, e assim a separação seria por certo facilitada. De outro modo cai para aí doente.

 

Wang o Tigre ficou um momento silencioso. Sentia um ciúme mais feroz do que jamais experimentara, desde que a mulher que matara vinha torturá-lo pela ideia de que ela amara outrora o bandido morto. Mas agora o ciúme provinha de o filho não o amar exclusivamente a ele e aspirar a outras companhias que não só a de seu pai. Wang o Tigre sofria porque, pondo ele toda a sua alegria e o seu orgulho no filho, este não se contentava com tamanho amor e não o apreciava, e cercado como se encontrava pelo amor do pai, aspirava à companhia de uma mulher. E Wang o Tigre disse para si próprio, com violência, que detestava todas as mulheres, e erguendo-se desabridamente da cadeira, gritou ao homem de confiança:

 

Então, se é assim um fracalhote, que vá! Que me importa o que ele faz, se acabará por se tornar um filho como Os de meus irmãos ?

 

Mas o homem de confiança respondeu com suavidade:

 

Esquece, meu general, que não passa ainda de uma criança.

 

Wang o Tigre tornou a sentar-se, suspirou e disse:

 

Então, não te disse eu já que pode ir lá?

 

A partir de então, mais ou menos uma vez em cada cinco dias, o pequeno foi aos aposentos da mãe e de cada vez que lá ia Wang o Tigre ficava a mordiscar a barba até que o menino voltasse e então interrogava-o de todas as maneiras, sobre o que ele vira e ouvira. Perguntava-lhe:

 

Que é que elas fazem?

 

E o pequeno respondia-lhe sempre, um pouco Surpreendido ao ler a cólera nos olhos do pai:

 

Nada, meu pai.

 

Mas Wang o Tigre insistia, perguntando:

 

Divertiam-se, estavam a costurar ou que faziam? As mulheres nunca estão sem fazer nada, ou então conversam, e isto é também qualquer coisa.

 

Então o rapaz aplicava-se, semicerrando os olhos, e dava uma resposta lenta e penosa:

 

A minha mãe estava a cortar uma blusa para a minha irmã mais nova num tecido vermelho com desenhos de flores, e a minha irmã mais velha, cuja mãe não é a minha, estava a ler para me mostrar que sabia ler. Gosto mais dela do que das minhas duas outras irmãs, porque me compreende quando lhe falo e não ri a propósito de tudo e de nada como elas. Tem uns olhos muito grandes e quando se penteia, os cabelos descem-lhe até às pernas. Mas nunca fica muito tempo a ler. É turbulenta e gosta de conversar.

 

Esta resposta foi grata a Wang o Tigre, que disse com prazer: As mulheres são todas assim. Têm de estar sempre a conversar a propósito seja do que for.

 

Havia no coração de Wang o Tigre uma estranha forma de ciúme que o punha ainda mais afastado das outras pessoas do seu próprio convívio e ia cada vez mais raras vezes visitar uma ou outra das suas mulheres. E, de facto, à medida que o tempo passava, bem parecia-que o rapaz tivesse de continuar como seu filho único, porque a mulher letrada de Wang o Tigre tivera unicamente uma filha, e a mulher ignorante tivera duas filhas com alguns anos de intervalo; quer pelo sangue de Wang o Tigre se ter arrefecido e já não sentir grande atracção pelas mulheres,

 

quer porque o amor do filho o contentasse, acabou por deixar de ir aos aposentos das mulheres. Experimentava, por um lado, um estranho pudor que, quando o filho viera deitar-se com ele no seu quarto, o teria impedido, por respeito do filho, levantar-se e sair de noite para ir ter com uma das suas mulheres. Não, com o tempo, Wang o Tigre não fez como muitos senhores de guerra que, tendo-se tornado ricos e fortes, vivem no meio de festas e de mulheres. Aplicava o seu tesouro em espingardas e soldados, excepto aquela determinada soma que punha em reserva e que não cessava de aumentar, na previsão do momento em que poderia acontecer-lhe uma desgraça, e levava vida severa, simples e solitária, à parte a companhia do filho.

 

Algumas vezes, e era a única mulher que jamais vinha aos seus aposentos, Wang o Tigre mandava chamar a sua filha mais velha para brincar com o irmão. Das duas ou três primeiras vezes, foi a mãe que a trouxe e sentou-se durante alguns momentos. Mas Wang o Tigre sentia-se muito constrangido por a ter ali, tanto mais sentindo que aquela mulher tinha qualquer coisa a censurar-lhe ou ainda que ela desejava obter alguma coisa dele, e ele não adivinhava o que pudesse ser. Eis por que se ergueu e se afastou com algumas palavras de polidez, para explicar a sua partida. com o tempo, parece que ela deixara de esperar qualquer coisa dele e não tornou a vê-la. Passou a ser uma escrava que trazia a rapariguinha, as poucas vezes que vinha, para brincar com o irmão.

 

Mas, ao fim de um ou dois anos, a própria rapariguinha deixou de vir, e a mãe mandou dizer que ia meter a filha na escola, para ela se instruir. Wang o Tigre ficou muito contente com isso, porque o incomodava ver a rapariguinha vir aos austeros aposentos que habitava e porque ela trazia uma blusa demasiado clara e, espetada nos cabelos, uma flor vermelha de romeira ou um jasmim branco muito odorífero e porque gostava acima de tudo de usar na trança um cacho de flores de canafístula, e Wang o Tigre não podia suportar as flores de canafístula por causa do seu perfume suave mas penetrante, detestando essa espécie de perfume. Achava-a também excessivamente ruidosa na sua alegria, caprichosa e obstinada, com todos os defeitos que detestava nas mulheres, e detestava acima de tudo a alegria que iluminava os olhos do filho e o sorriso que se lhe abria nos lábios, quando a irmã chegava. Só ela tinha o dom de lhe dar alegria e de correr e brincar com ele no pátio.

 

Então Wang o Tigre sentiu o coração fechar-se-lhe dominadoramente sobre o filho, e a filha foi excluída dos seus aposentos. A débil simpatia que sentira quando era pequenina desaparecera agora que ela se tornara uma esbelta rapariguinha, que se transformaria em breve numa mulher, e quando a mãe se dispôs a mandá-la para longe, ficou muito satisfeito e deu dinheiro à discreção e de muito boa vontade, e não o lamentou porque tinha agora o filho só para ele.

 

Antes que este tivesse tempo de se sentir outra vez sozinho, apressou-se a encher a sua vida de numerosas ocupações. Disse-lhe:

 

Filho, nós somos homens, tu e eu, e tu vais agora deixar de ir aos aposentos de tua mãe, fora daquelas horas em que convém ires apresentar-lhe os teus respeitos, pois é demasiado fácil gastar sem dar conta a vida com as mulheres, mesmo com mãe ou irmã, pois elas, apesar de tudo, não passam de mulheres ignorantes e fúteis. Eu desejaria agora mandar-te ensinar todas as subtilezas da arte do soldado, tanto antigas como modernas. Os meus homens de confiança são capazes de te ensinar tudo quanto precisas de saber das antigas, o Matador de Porcos a servir-te dos teus punhos e dos teus pés, e Beiço Rachado a manejar a espada e o pau. Quanto ao que se refere aos novos processos de guerra de que ouvi falar, mas que nunca vi, mandei à costa alguém para contratar para ti um novo preceptor, que aprendeu os seus métodos de guerra em países estrangeiros, e conhece toda a espécie de armas e processos de combate empregados no estrangeiro. Em primeiro lugar, instruir-te-á e o tempo que tiver de sobra vai dedicá-lo à instrução do exército.

 

O menino nada respondeu, mantendo-se na defensiva, como costumava fazer quando o pai lhe falava, e escutou aquelas palavras num completo silêncio. Wang o Tigre, que olhava com ternura o rosto do menino, não via indício algum do que ele sentia. Esperou uns momentos e como o rapaz só falou para dizer: «Dá-me licença de sair?»Wang o Tigre fez um sinal afirmativo e suspirou sem saber porquê.

 

Era assim que Wang o Tigre educava e admoestava o seu filho e era assim que velava por que cada hora da existência do menino, excepto as passadas a comer e a dormir, fosse ocupada por uma ou outra lição. Obrigava-o a levantar-se cedo e a praticar os seus exercícios de guerra com os homens de confiança e quando acabara e comera a sua primeira refeição, passava a manhã com os seus livros e depois de ter comido outra vez, o novo preceptor tomava conta dele durante a tarde e ensinava-lhe toda a espécie de coisas.

 

Ora este novo preceptor era um jovem tal como Wang o Tigre ainda não vira. Usava uma farda militar ocidental e óculos no nariz, era robusto e desempenado. Sabia correr e saltar e conhecia a esgrima; sabia disparar toda a espécie de armas de guerra estrangeiras Umas, segurava-as na mão e elas estalavam., lançando chamas, e outras, disparava-as como uma espingarda, premindo o gatilho, e havia ainda muitas de outros géneros. Wang o Tigre ficava sentado junto deles, enquanto o filho aprendia todos aqueles processos de guerra, e posto o não pudesse confessar, ficava conhecendo muitas coisas que jamais vira nem ouvira dizer, e dava-se conta da sua ingenuidade ao sentir-se orgulhoso daquelas duas peças de artilharia estrangeiras, as únicas que possuía. Sim, via que sabia muito pouco, mesmo em matéria de guerra, dado que havia mais a conhecer do que imaginara. Ficava muitas vezes pela noite além a conversar com o novo preceptor do filho, aprendia toda a sorte de maneiras engenhosas de matar, a morte mandada pelos ares que se abate sobre os homens, e a morte que vagueia nas entranhas do mar e delas surge subitamente, e a morte que voa a mais léguas de distância do que alcança a vista dos homens, e que de súbito cai e explode sobre o inimigo. Wang o Tigre escutava tudo aquilo maravilhado e dizia:

 

Vejo que os habitantes dos outros países são habilíssimos em matar e ignorava-o.

 

Depois, pôs-se a reflectir em tudo quanto ouvira e um dia disse ao preceptor:

 

Possuo um riquíssimo território em que não temos fome geral mais de uma vez de dez em dez ou quinze em quinze anos, e tenho um pouco de dinheiro de lado. Noto agora que me dei demasiado depressa por satisfeito com os meus soldados, e vejo que, se o meu filho deve aprender todos estes novos processos de guerra, lhe é também necessário um exército instruído neles. Comprarei alguns desses aparelhos que em nossos dias se usam para fazer a guerra em países estrangeiros, e o senhor instruirá os meus homens e organizará um exército adequado para o meu filho comandar, quando chegar tempos disso.

 

O jovem oficial teve o seu habitual sorriso rápido e fugitivo e com toda a franqueza respondeu:

 

Tentei iniciar os seus soldados, mas a triste verdade é què eles não passam de um grupo de indolentes, que só gostam de comer e beber.   Se comprar novos instrumentos de guerra e se fixar as horas do dia em que eles se exercitarão para aprenderem a servir-se deles, verei se é possível habilitá-los.

 

Ora Wang o Tigre ficou secretamente descontente com uma franqueza tão pouco cortês, pois consagrara muitos dias da sua vida a instruir os seus soldados, e disse num tom áspero:

 

Deve em primeiro lugar instruir o meu filho.

 

Instruí-lo-ei até aos quinze anos respondeu o jovem preceptore então, se se me permite conselho a tão alta personalidade como V. Ex.adirei que será necessário mandá-lo a uma escola de guerra no Sul.

 

Pois quê, pode aprender-se a guerra numa escola?disse Wang o Tigre, surpreendido.

 

Existem escolas dessas, sim replicou o jovem preceptor , e aqueles que de lá saem são logo capitães no exército do Estado.

 

Mas, ao ouvir estas palavras, Wang o Tigre, altivamente, retorquiu:

 

Meu filho não precisa de ir procurar um pequeno lugar de capitão no exército do Estado como se não tivesse já um exército seu. E ao fim de um momento continuou:Aliás, suspeito de que do Sul nada de bom pode sair. Servi na minha juventude sob as ordens de um general do Sul que era um indivíduo indolente e libidinoso, e os seus soldados mais pareciam caricaturas de homens do que homens autênticos.

 

O preceptor, ao vê-lo descontente, sorriu e pediu licença para se retirar, e Wang o Tigre ficou-se a pensar no filho. Afigurava-se-lhe que fizera seguramente por ele tudo quanto podia. E, sondando laboriosamente o fundo do seu coração, para se recordar da sua juventude, lembrou-se de que sentira uma vez desejo de possuir um cavalo propriamente seu. Logo no dia seguinte, portanto, comprou para o filho um cavalo negro, lindíssimo exemplar da Mongólia, a um vendedor de cavalos que conhecia.

 

Quando o deu ao filho, chamou-o para vir ver a surpresa que o esperava, e mostrou-lhe no pátio o cavalinho negro, com uma sela nova de couro vermelho e umas rédeas vermelhas com placas de cobre; e o groom que segurava o cavalo e cujas únicas funções eram tratar dele, empunhava um chicote novo, de couro vermelho entrançado. Wang o Tigre disse orgulhosamente de si para si que era um cavalo como aquele com que ele próprio, jovem, sonhara, e considerava-o demasiado belo para ser vivo, e olhou o filho ansiosamente, para surpreender a alegria que esperava lhe surgisse nos olhos e no sorriso.

 

Mas o rapaz não se alterou o mínimo deste mundo na sua gravidade. Olhou o cavalo e disse, com o sangue frio de sempre:

 

Agradeço-lhe, pai.

 

E Wang o Tigre esperou, mas fulgor algum apareceu nos olhos do rapaz, que se absteve de saltar para o cavalo, empunhar as rédeas e experimentar a sela, parecendo esperar apenas autorização de se retirar.

 

Então Wang o Tigre afastou-se, profundamente desiludido, e foi fechar-se no quarto, onde se sentou e agarrou a cabeça entre as mãos e se afligiu por causa do filho com a cólera e a amargura do mal recompensado. Mas, depois de se ter afligido um momento, endureceu-se outra vez, segundo o seu velho costume, e disse-se com obstinação:

 

Que pode ele então desejar mais? Tem tudo quanto eu sonhava na sua idade e até mais do que eu sonhara. Sim, que não teria eu dado para ter um preceptor tão instruído como o seu, e para ter uma bela espingarda como a dele e agora um cavalinho negro impetuoso, com uma sela e umas rédeas vermelhas e um chicote vermelho de cabo de prata!»

 

Consolou-se assim, e recomendou ao preceptor do jovem que não poupasse ensino algum ao filho, e que se não preocupasse com os ares de fadiga que o pequeno pudesse ter, pois isso são inconvenientes comuns a todos os adolescentes que estão a desenvolver-se, e não se deve prestar atenção a tal.

 

Mas à noite, quando Wang o Tigre acordava e não podia conciliar o sono, ouvia no quarto a calma respiração do filho. E então uma ternura dolorosa lhe enchia o peito e dizia-se incessantemente a si próprio:

 

«É absolutamente necessário que eu faça mais alguma coisa por ele... É absolutamente necessário que descubra o que me será possível fazer ainda por ele!»

 

A cada Primavera que acabava por suceder enfim ao Inverno interminável, Wang o Tigre sentia em si o novo despertar da sua ambição por guerras maiores, e a cada Primavera olhava em torno de si para ver o que podia fazer para se engrandecer. Enviava espiões em reconhecimento, para tentar averiguar o aspecto que tomariam as guerras gerais desse ano e como poderia adaptar uma guerra particular à grande, e esperava, repetia-se ele, que os espiões estivessem de volta e que a estação aquecesse bastante e que a hora chegasse em que sentisse que o destino o chamava. Mas a verdade era que Wang o Tigre ultrapassara a juventude e agora que tinha o filho estava mais tranquilo e satisfeito e perdera a sua antiga ansiedade impaciente pela guerra. A cada Primavera se repetia que devia, por amor mesmo do filho, partir em expedição e realizar o que projectava fazer ao longo da sua vida, mas parecia haver qualquer forte razão imediata que o levava a adiar para o ano seguinte o seu projecto. Não que houvesse grandes guerras gerais durante a juventude do filho. Havia apenas em todo o país uma porção de pequenos senhores de guerra, cada um dos quais defendia o seu minúsculo domínio pessoal, e nem um só grande homem que se revelasse superior a todos os outros. Por essa razão também, Wang o Tigre julgava mais seguro esperar um ano ainda e quando nesse novo ano também passava a Primavera, adiava para o seguinte, e estava certo de que, um dia ou outro, quando soasse a hora do destino, estaria ainda à altura de qualquer vitória que pretendesse.

 

Numa certa Primavera, quando o filho tinha perto de treze anos, chegou um mensageiro dos dois irmãos de Wang o Tigre, que vinha trazer uma notícia muito grave, a saber que o filho mais velho de Wang o Proprietário estava encerrado na prisão municipal da cidade. Os dois irmãos mandavam o mensageiro solicitar a influência de Wang o Tigre, seu irmão, junto da autoridade provincial, para obter que o jovem fosse posto em liberdade. Wang o Tigre escutou a história, e viu aí excelente ocasião de experimentar o seu poder na capital provincial e o seu valimento junto do general da província. Adiou, por consequência, para um ano depois, a guerra em que pensara, e decidiu fazer o que os irmãos lhe pediam, e não sem certo orgulho por eles, mais velhos, terem vindo pedir um favor ao mais novo, e não sem algum desprezo derivado do facto de um dos filhos deles ter sido metido na prisão, coisa que nunca poderia acontecer ao seu.

 

Eis agora a história da aventura por virtude da qual o filho mais velho de Wang o Proprietário fora preso.

 

Este filho de Wang o Proprietário andava então nos seus vinte e oito anos e não estava casado, nem sequer noivo. A razão de tão singular circunstância era que na adolescência frequentara durante um ou dois anos uma escola de novo tipo, fundada na cidade, e aprendera muitas coisas, e uma das coisas que aí aprendeu foi que era para um jovem uma servidão abjecta e coisa fora de moda deixar-se casar pelos seus pais com uma rapariga escolhida por eles, e que os rapazes deviam ser eles próprios a escolher as meninas com quem se deviam casar, meninas que eles conheciam, com quem tinham conversado e pelas quais sentissem verdadeiro amor. E portanto, quando Wang o Proprietário fez a recapitulação de todas as raparigas em idade casadoira para fixar numa delas a escolha para o seu filho mais velho, o dito filho mostrou-se muito rebelde. Fez uma cena, amuou e declarou que ele próprio escolheria a sua esposa.

 

Ao ouvir aquilo, Wang o Proprietário e a mulher ficaram escandalizados, concordando assim pela primeira vez, e a dama gritou vivamente ao filho:

 

E como é que uma menina decente seria capaz de se deixar ver por ti de bastante perto para poderes conversar com ela e saberes se lhe tens amor ou não? E quem é mais capaz de ta escolher do que teus pais que te fizeram e te conhecem todas as tendências de espírito e de carácter?

 

Mas o jovem persistia na sua oposição com violência. Puxou as longas mangas de seda para as suas mãos brancas e lisas, e, deitando os negros cabelos para trás, exclamou por sua vez:

 

Nem a senhora nem meu pai sabem nada além dos velhos costumes já postos de lado, e ignoram portanto que no Sul todas as pessoas ricas e instruídas deixam os seus filhos escolher por si! (E quando viu seu pai e sua mãe entreolharem-se e o pai limpar a testa com a manga e a mãe franzir os lábios, exclamou ainda): Então casem-me, eu sairei de casa e não voltarão a ver-me!

 

Esta ameaça atemorizou enormemente os pais e Wang o Proprietário disse precipitadamente:

 

Mas diz-nos qual é a rapariga por que estás apaixonado e nós veremos se as coisas se podem concertar.

 

Ora a verdade era que o rapaz não encontrara rapariga por quem se tivesse apaixonado e da qual pudesse fazer sua esposa, porque as mulheres que conhecera eram daquelas que se podem comprar facilmente, mas não quis confessá-lo, e limitou-se a franzir os lábios vermelhos e a contemplar com ar amuado as lindas unhas dos dedos; mas tinha o ar tão violento e obstinado que dessa vez e de todas as outras que os pais falaram do caso, acabaram por acalmá-lo dizendo:

 

Bem, bem, deixemos isso por agora!

 

Duas vezes, com efeito, Wang o Proprietário se viu na necessidade de renunciar ao contrato respeitante a uma menina com a família da qual começara a negociar, visto que, quando o rapaz ouvira falar de tal coisa, jurava que ia enforcar-se numa trave como seu irmão fizera, e essa ameaça enchia o pai e a mãe de terror, a ponto de cederem sempre, uma vez e outra.

 

Entretanto, à medida que o tempo decorria, Wang o Proprietário e a esposa tornavam-se mais ansiosos por ver o filho casado, pois era o mais velho e o principal herdeiro, e os filhos dele deviam ser os principais de entre os netos. Wang o Proprietário sabia muito bem ainda que o jovem ia a tal ou tal casa de chá e gastava a sua mocidade aqui e além, e embora sabendo que todos os rapazes sem necessidade de trabalhar são assim, como Wang o Proprietário ultrapassara a idade das paixões para se tornar mais calmo, inquietava-se muito a respeito daquele seu filho e receava, com sua esposa, que, se ele não casasse em breve, acabasse um dia por tomar por mulher uma rapariga da casa de chá, daquelas que é lícito tomar para concubinas, mas que seria vergonhoso ter por mulher. Mas o jovem, se lhe expunham os seus receios, repetia-lhes impiedosamente que, em nossos dias, rapazes e raparigas estavam libertos da tutela dos pais, e que os homens e as mulheres eram livres e iguais, e dizia ainda muitas tolices análogas, de tal modo que os pais se viam ambos reduzidos a conservar-se em silêncio, porque o rapaz tinha a língua tão comprida e tão pronta que não havia maneira de lhe responder. Depressa aprenderam a calar-se logo que ele dava livre curso aos seus ásperos descontentamentos e fulminava com o olhar os dois velhos esposos, um após outro, e a cada momento lançava para trás os cabelos que alisava com a fina mão branca.

 

Mas depois dessas conversas, logo que ele saía, pois não se mantinha muito tempo no mesmo sítio, a esposa olhava o marido com ar de censura e dizia-lhe:

 

Foi o senhor quem lhe ensinou essas coisas, com as suas maneiras dissolutas, e foi com o seu próprio pai que ele aprendeu a satisfazer-se com tais raparigas, em vez de preferir uma mulher honesta.

 

Enquanto assim dizia, passava a manga pelos olhos e limpava-os um após outro, considerando-se ultrajada. Quanto a Wang o Proprietário, sentia-se inquieto. Sabia que aqueles brandos começos podiam originar tempestade, pois quanto mais a dama envelhecia, mais se tornava virtuosa e de humor difícil. Por isso levantou-se para se escapulir, dizendo, num tom muito submisso:

 

Sabes como agora que já sinto os anos, não procedo como outrora, e esforço-me por atender às tuas advertências. Se tiveres maneira de nos tirar desta tormentosa situação, prometo-te seguir o teu conselho.

 

Ora, na verdade, aquela dama era incapaz de encontrar por si própria qualquer maneira de dominar o turbulento filho, e resignara-se mais ou menos a adoptar os processos brandos. Wang o Proprietário via cessar nela a irritação, e por isso se apressava a sair de casa. E um dia, ao passar pelo pátio, viu a sua outra mulher ali, ao Sol, a amamentar um bebé, e disse-lhe:

 

Vai lá dentro buscar qualquer coisa para a tua senhora, porque ela está prestes a encolerizar-se. Leva-lhe o chá ou um dos seus livros de orações ou qualquer outra coisa, e conta-lhe loas e diz que este ou aquele padre disse dela isto ou aquilo!

 

A mulher ergueu-se docilmente e afastou-se, segurando a criança nos braços. E Wang o Proprietário saiu para a rua e, perguntando-se para onde se dirigiria, bendizia a hora em que encontrara a sua segunda mulher, pois se tivesse ficado sozinho com a esposa, esta ter-lhe-ia dado que fazer. Mas a segunda mulher ia-se tornando com os anos mais meiga e plácida do que nunca, e nisso era Wang o Proprietário muito feliz, dado que duas mulheres com um mesmo senhor estão muitas vezes a questionar uma com a outra e levam vida bulhenta, muito principalmente se uma delas ou ambas gostam do seu senhor.

 

Mas esta segunda mulher de Wang o Proprietário consolava-o de mil pequenos modos e fazia coisas que as criadas não queriam fazer. Porque as criadas sabiam quem é que gozava de autoridade naquela casa de Wang o Proprietário, e quando ele berrava para chamar algum criado, homem ou mulher, o criado gritava: «Sim, sim, já se lá vai, já se lá vai!»mas demorava-se ou não chegava até a aparecer. E se Wang o Proprietário se zangava, o criado invocava como pretexto: «A senhora mandou-me fazer isto e aquilo»e reduzia assim o patrão ao silêncio.

 

Mas a sua segunda mulher servia-o discretamente, era ela quem o consolava. Quando voltava das suas terras, cansado e aborrecido, ela preparava as coisas de maneira a que ele encontrasse o chá bem quente no bule ou, se era no Estio, que estivesse um melão a refrescar no poço, sentava-se-lhe ao lado, abanava-o enquanto comia, e ia buscar água para lhe banhar os pés e trazia-lhe meias lavadas e pantufas. Era também a ela que confiava todos os seus pesares e rancores, e o principal era o que tinha contra os rendeiros. Contava-lhe todas as suas recriminações. Dizia-lhe:

 

E hoje, para mais, aquela velha desdentada que é a mãe do rendeiro da terra do ocidente lançou água no cesto das sementes que o intendente estava a pesar... é, um idiota tamanho, ou então um tal canalha, e eles pagam-lhe para -não ver... Mas eu bem vi o salto da balança!...

 

A tais discursos, ela replicava:

 

Não creio que eles consigam fazer grande trapaça, o senhor é tão inteligente! É o mais inteligente dos homens que eu conheço!

 

A sua amargura contra o filho revoltado confiava-lha também, e também nesse ponto ela o aplacava. E neste -momento, ao afastar-se pela rua fora, projectava contar-lhe que a sua esposa o censurara cruelmente e comprazia-se na meiguice da resposta que ela lhe daria, dizendo-lhe como já muitas vezes fizera:

 

« Para mim o senhor é o melhor dos homens, e juro-lhe que a senhora não sabe o que são os homens e como o senhor é melhor que nenhum!»Sim, na sua fadiga do filho e da esposa, e em todos os seus aborrecimentos com o pouco de terra que ainda possuía e que não se atrevia a vender de todo, Wang o Proprietário agarrava-se à sua segunda mulher e pensava no fundo do seu coração que, de todas as mulheres que conhecera, só aquela lhe era agradável, e dava como motivo disso: «É de todas as que mantive a única que realmente me conhece».

 

E o coração enchia-se-lhe nesse dia de uma amargura particular contra o filho, porque ele causara novos aborrecimentos ao seu pai.

 

Ora, nesse dia, enquanto Wang o Proprietário passeava pelas ruas, reflectindo, o filho dirigiu-se pelo seu lado a casa de um amigo e foi aí que por acaso encontrou a rapariga em condições de lhe agradar. O dito amigo do rapaz era filho do comissário de polícia da cidade e o filho de Wang o Proprietário jogava constantemente jogos de azar com ele de preferência a outro, pois dado que esses jogos eram contrários à nova lei que acabava de ser promulgada, se sobreviesse algum desaire, o filho do comissário de polícia podia escapar e os seus amigos também. Nesse dia, o filho de Wang o Proprietário contava jogar um pouco para esquecer a sua irritação e distrair-se do aborrecimento que os pais lhe causavam, e por consequência dirigiu-se a casa do amigo.

 

Quando lhe franquearam a porta, disse o nome à criada, e ficou à espera na sala de visitas, pensando aborrecido em todas as suas arrelias. De repente, abriu-se uma porta interior e entrou sozinha uma linda jovem. Ora, se ela fosse uma rapariga vulgar e ele também um rapaz vulgar, ela deveria cobrir o rosto com a manga do vestido e retirar-se o mais depressa possível. Mas ela não fez nada disso. Olhou muito calmamente o filho de Wang o Proprietário, olhou-o de frente e demoradamente, mas sem ar de sedução, e perante aquele olhar calmo e directo, nada tímido, foram os olhos do rapaz que primeiro se baixaram. Viu, como toda a gente podia tê-lo visto, que, apesar de toda a sua audácia, era uma rapariga muito decente e uma das que pertenciam já aos novos tempos. Usava os cabelos negros curtos, não tinha os pés comprimidos e usava a saia comprida e sem pregas, à maneira das novas raparigas, e como a Primavera estava a acabar, a saia era feita de uma seda fina de cor castanha.

 

Ora, apesar de todos os seus discursos importantes, a verdade era que o filho de Wang o Proprietário tinha muito poucas ocasiões de encontrar uma daquelas raparigas, e era com uma assim que pretendia casar. Quando não estava a jogar ou a divertir-se ou a flanar por qualquer lado, passava os dias a ler histórias de amor. Não gostava das velhas histórias, mas lia com o maior ardor os recentes romances de amor livre entre rapazes e raparigas, e sonhava com meninas bem nascidas que, sem ser cortesãs, não fossem contudo tímidas e reservadas na presença dos homens, mas como os homens com homens, e a uma dessas procurava. Não conhecia, no entanto, nenhuma, porque até aí uma tal liberdade existia mais nos livros que na realidade. Mas nessa hora afigurou-se-lhe que encontrara verdadeiramente aquela que procurava, e o coração incendiou-se-lhe imediatamente, porque era como uma fogueira pronta a arder que só esperava o fogo para entrar em combustão.

 

Bastou-lhe esse único instante para amar aquela rapariga de um tão poderoso amor, que se sentiu maravilhado, e que até depois de a deixar prosseguir o seu caminho, sem lhe dizer uma palavra, ficou num deslumbramento. Quando o seu amigo entrou, gaguejou, com a boca seca e o coração prestes a estalar:

 

Quem é aquela menina que acaba de passar aqui?

 

O amigo respondeu, com ar negligente:

 

É minha irmã, que está num colégio estrangeiro de uma cidade da costa e veio a casa passar as férias da Primavera.

 

O filho de Wang o Proprietário, quase a desfalecer, limitou-se a perguntar:

 

Então não é casada?

 

O irmão pôs-se a rir e respondeu:

 

Não, é a mais obstinada das raparigas, está constantemente a discutir com meu pai a respeito disso, pois não quer aceitar homem que não seja de sua própria escolha.

 

O filho de Wang o Proprietário ouviu aquela resposta, que teve o efeito de uma taça de vinho que lhe chegassem aos lábios sequiosos. Nada mais disse e foi jogar. Mas, enquanto jogava, mantinha-se distraído, pois sentia as chamas envolver-lhe o coração e o fogo ardia nele. Não tardou a excusar-se eapressou-se a voltar a casa e a fechar-se à chave no seu quarto. Ali, sozinho, sentiu-se ligado àquela rapariga por todos os laços. Era uma vergonha pensava que ela tivesse também, como ele, de sofrer a tirania dos pais, e dizia de si para consigo que se recusaria a unir-se a ela de outro modo que não fosse pelos livres meios de que homens e mulheres usavam em tempos livres. Não, não queria nenhum intermediário, nem os pais, nem sequer o seu amigo, irmão dela. Depois, com pressa febril, tirou da sua estante os livros que lera e consultou-os para ver que género de cartas esses heróis enviam às suas livres amorosas, e escreveu uma carta análoga.

 

Sim, escreveu àquela rapariga e assinou com o seu nome o que lhe escrevia, e começou a carta pelas fórmulas de delicadeza adequadas. Mas disse-lhe também que era um espírito livre e que via acontecer o mesmo com ela, sendo ela portanto para ele como a luz do Sol, o colorido de uma flor de peónia, o som da flauta, e acrescentava que, num instante, ela lhe arrancara o coração do peito. Quando acabou de escrever a carta, mandou-a pelo criado particular, e depois de a ter mandado ficou à espera da resposta em sua casa, num estado tão febril que os pais não sabiam o que ele tinha. Como o criado voltou a anunciar-lhe que a resposta viria mais tarde, o jovem viu-se obrigado a continuar à espera, e enquanto esperava, maldizia aquela espera, detestava toda a gente na casa, dava palmadas nos irmãos e nas irmãs mais pequenos logo que lhe chegavam ao alcance; berrava contra os criados de tal modo que a concubina do pai acabou por exclamar:

 

O senhor comporta-se como um cão prestes a ficar raivoso !

 

E pôs os seus próprios filhos longe do alcance dele.

 

Mas, ao fim de três dias, chegou um portador com uma resposta e o rapaz, que passava os dias a circular nas proximidades do portão, pegou na carta, correu para o quarto, onde rasgou o texto, na pressa de abrir o sobrescrito. Uniu as duas partes e leu. A rapariga manejava o pincel com habilidade e talento. Depois de ter traçado as fórmulas de delicadeza e frases justificativas da sua ousadia, acrescentava: «Também eu sou um espírito livre, e não me encontro resolvida a deixar-me constranger pelos meus pais».

 

Assim lhe assinalava delicadamente a sua preferência por ele, e o jovem ficou maravilhado de prazer.

 

Foi, portanto, dessa maneira que a aventura começou, e os apaixonados não se contentaram em trocar numerosas cartas, mas foi-lhes absolutamente necessário falarem-se de qualquer maneira, e assim se encontraram uma ou duas vezes, à porta das traseiras da casa da rapariga. Tinham ambos receio, e tanto um como o outro se empenhavam em o não mostrar, e nesses apressados encontros e em muitas cartas trocadas entre eles, à força de gorjetas aos criados e disfarçando os seus nomes nas cartas, aquele amor tornou-se cada vez mais ardente. E dado que nem homem nem rapariga jamais puderam passar sem uma coisa que vivamente desejam, assim aconteceu então com eles. Ao terceiro encontro, o jovem disse com todo o ardor:

 

Não posso continuar à espera, é absolutamente necessário que me case contigo e é o que vou dizer a meu pai.

 

Ao que a rapariga respondeu, de muito boa vontade:

 

E eu, pelo meu lado, vou prevenir meu pai de que me envenenarei se não puder ser tua.

 

E assim decidiram avisar os pais. Mas, enquanto Wang o Proprietário se sentia todo satisfeito por ver a fantasia do filho fixar-se em uma rapariga de tão boa casa e se dispunha desde logo a concertar o casamento, o pai da rapariga recusou-se obstinadamente a deixar a filha casar-se. Dado que era o comissário de polícia e que tinha espiões por toda a parte, como era do seu ofício, sabia mais do que ninguém a respeito do rapaz. E gritou à filha:

 

Pois quê, com esse valdevinos que passa o tempo em todas as casas de prazer de má fama?

 

E ordenou aos criados que mantivessem a filha fechada à chave nos seus aposentos, até chegar o dia de regressar ao colégio, e quando ela irrompeu furiosamente no seu quarto, para conversar com ele e o implorar, recusou-se a ouvi-la. Era homem muito calmo e enquanto a rapariga argumentava, pôs-se a cantar uma canção e a folhear um livro. E quando ela se mostrou excessivamente encolerizada e disse coisas que uma rapariga não deveria dizer, voltou-se para ela e disse-lhe:

 

Sempre pensei que deveria manter-te em casa e não te mandar ao colégio. O que se aprende nas escolas é que estraga as raparigas dos nossos dias. Se fosse possível voltar atrás, deixar-te-ia ignorante e simples como tua mãe, o que me permitiria casar-te com um homem de bem. Mas é ainda tempo de o fazer!rugiu ele tão bruscamente que ela estremeceu aterrada.

 

A partir de então, os dois jovens escreveram-se lindíssimas cartas de desespero, enquanto os criados enchiam os bolsos à custa da sua generosidade, correndo de casa de um para casa do outro. Mas o rapaz, recolhido, emagrecia, e já não saía nem para jogar, nem para se divertir. Os pais viam-no emagrecer e não sabiam que fazer. Wang o Proprietário mandou um presente em dinheiro, por caminhos desviados, ao comissário de polícia, e embora este fosse homem para aceitar da melhor vontade um presente, apesar disso não se sentia desta vez disposto a aceitar, e todos se desesperavam. Quanto ao jovem, recusava-se a comer e falava em enforcar-se, e Wang o Proprietário sentia-se completamente desmoralizado.

 

Ora, uma noite em que o jovem passeava perto da porta das traseiras da casa da bem-amada, viu a pequena porta abrir-se e a criada que trazia as cartas da rapariga deslizar pela abertura e fazer-lhe sinal para que fosse. Ele aproximou-se, desfalecendo de receio, mas, no entanto, arrastado pelo coração, e quando se aproximou, ali, no pequeno pátio por detrás da porta, encontrou a bem-amada. Ela mostrava-se decidida e resoluta e tinha feito todos os seus planos. Mas agora que se encontravam um em frente do outro, as palavras não lhes ocorriam já tão facilmente como as palavras escritas no papel, e na verdade o jovem tinha muito receio de ser descoberto ali onde não devia encontrar-se sob pretexto algum. Mas a rapariga era decidida, e sendo instruída, estava empenhada em «viver a sua vida». E disse:

 

Não quero dar atenção ao que dizem os velhos. Fujamos juntos para qualquer parte. Quando o souberem, deixar-nos-ão casar, por vergonha. Sei que o meu pai me adora, porque sou sua filha única e a minha mãe morreu, e tu, pelo teu lado, és o filho mais velho de teu pai.

 

Mas antes que o jovem tivesse tempo sequer de se pôr ao diapasão do seu ardor, o comissário de polícia, aparecendo inopinadamente à porta que dava para o pátio, porque uma criada que queria mal à confidente da rapariga a tinha denunciado por vingança, gritou para os seus acólitos:

 

Prendam aquele homem e metam-no na prisão, porque atentou contra o pudor da minha filha!

 

Ora, era uma circunstância lamentável para o filho mais velho de Wang o Proprietário que o pai da sua amada fosse comissário de polícia, com a possibilidade de meter na prisão quem muito bem lhe parecesse, pois nenhum outro homem possuiria tal poder e teria de pagar bom dinheiro para o conseguir. Mas à ordem do comissário, os seus serventuários levaram o rapaz. A rapariga soltava gritos estridentes e agarrava-se-lhe a um braço, clamando que não se casaria com ninguém mais e que ia engolir os anéis. Mas o pai, velhote sereno, dirigiu-se às criadas e disse-lhes:

 

Olhem por ela. Se a deixarem sozinha e se ela por acaso fizer o que diz, respondereis pela sua morte.

 

E afastou-se como se não ouvisse os gritos e as lamentações da filha, e as criadas, receando tornarem-se responsáveis, não se atreveram a deixá-la, o que fez com que ela tivesse de resignar-se a viver.

 

Quanto ao comissário de polícia, mandou prevenir Wang o Proprietário de que o filho estava na prisão, porque atentara contra a honra da filha, e depois de ter enviado essa comunicação, sentou-se tranquilamente à espera. A casa de Wang o Proprietário ficou então na maior atrapalhação e Wang perdeu completamente a cabeça e não sabia que fazer. Mandou sem demora de presente todo o dinheiro de que podia dispor, e vestindo à pressa a sua melhor túnica foi pessoalmente a casa do comissário para lhe apresentar as suas desculpas. Mas o homem não era de feição a permitir que as coisas se concertassem tão facilmente. Mandou dizer ao visitante que toda aquela trapalhada o fizera adoecer, que não podia receber ninguém, e, quanto ao dinheiro, devolveu-o dizendo que Wang o Proprietário se enganara acerca dos seus sentimentos e que ele não era daqueles que é possível corromper assim.

 

Então Wang o Proprietário voltou suspirando para casa e compreendeu que a soma era pouco avultada, mas como ainda não tinham chegado as colheitas, estava com muita falta de dinheiro, e pensou que tinha de recorrer ao auxílio do irmão. Sofria também por ter o filho preso, e devia mandar-lhe de comer e roupa de cama, para que ele não sofresse privações. Depois de ter feito isso e de mandar chamar Wang o Negociante, ficou nos seus aposentos à espera. E sua esposa, esquecendo todas as conveniências na sua perturbação, entrou no quarto onde ele se encontrava, com a cabeça entre as mãos, e tomou tal e tal deus como testemunha de tudo quanto tinha que sofrer naquela casa.

 

Mas por essa vez Wang o Proprietário não se perturbou mais do que já estava com os gritos e censuras da esposa, pois estava aterrado até ao fundo do seu coração, por saber o filho assim em poder do comissário de polícia. Wang o Negociante entrou com toda a calma, simulando uma expressão serena, como se ignorasse o que se passava, embora a história circulasse já por toda a parte, sendo já contada pelos próprios criados, e embora a mulher lha tivesse contado de fio a pavio, dizendo, repetidas vezes, com manifesto prazer:

 

«Bem eu sabia que nada sairia de bom dos filhos daquela mulher e principalmente com um pai tão libidinoso».

 

Entretanto, pois tinha de ser, Wang o Negociante sentou-se e escutou a história conforme a versão do pai e da mãe do rapaz. Atenuaram muito a sua culpabilidade, e Wang o Negociante tomou um ar judicioso, como se admitisse realmente a inocência do jovem, pensando na maneira de libertá-lo. Suspeitava de que o irmão desejava pedir-lhe emprestada uma grande quantia, e procurava maneira de esquivar-se ao pedido. Contada a história, quando por fim a esposa se pôs a chorar abundantemente, disse:

 

Verdade seja que o dinheiro é muito útil quando a gente tem que haver-se com funcionários, mas há coisa melhor ainda e é a força das armas. Antes de gastarmos tudo o que temos, vamos solicitar o nosso irmão, que é agora um poderoso general, para que interponha e use de toda a sua influência junto da suprema autoridade da província, para que venha uma ordem de cima ao nosso governador e este ordene ao comissário de polícia que ponha o vosso filho em liberdade. E nesse momento será ocasião de empregar um pouco de dinheiro aqui e ali, para ajudar as coisas.

 

Este plano a todos se afigurou admirável e excelente e Wang o Proprietário admirou-se de não lhe ter ocorrido a ideia dele, e sem demora, nesse mesmo dia, enviou um mensageiro a Wang o Tigre, que assim ficou a saber o que ocorrera.

 

Ora, Wang o Tigre, além do dever que tinha de ajudar os irmãos, viu ser aquela uma óptima ocasião de experimentar o seu poder e a sua influência. Escreveu por conseguinte ao general da província a humilde carta que convinha, preparou presentes e remeteu tudo pelo seu homem de confiança, acompanhado por uma escolta, para o preservar dos bandidos. Aquele general, quando recebeu os presentes e leu a carta, reflectiu um momento e pareceu-lhe estar ali um meio útil de conciliar o apoio de Wang o Tigre, no caso de uma guerra, afigurando-se-lhe bom negócio assegurar-se tal favor mandando soltar da prisão um jovem. Quanto ao comissário de polícia, que o era numa pequena cidade, era personalidade demasiado mesquinha para que isso o afectasse. E assim mandou a nota que lhe pedia Wang o Tigre, avisando o governador da província, e este enviou uma ordem imperativa ao prefeito do departamento, que, por seu turno, enviou outra ordem imperativa ao da cidade onde ficava a Casa dos Wang.

 

E então Wang o Negociante mostrou-se mais hábil e mais astuto do que nunca. Apoiou cada iniciativa do dinheiro suficiente para que todo o funcionário que intervinha no caso se considerasse recompensado, mas não tanto que pudesse fazer nascer neles um espírito de cobiça por mais. Chegou o momento em que o comissário de polícia recebeu por seu turno a ordem imperativa. Wang o Proprietário e Wang o Negociante estavam cuidadosamente à espreita do momento em que ela chegaria, pois sabiam como era difícil a alguém expor-se a uma humilhação pública, e eis por que, quando souberam que ele recebera a ordem imperativa, foram ter com ele, com uma soma decente e muita força de desculpas, e pediam ao comissário, como se se tratasse de um favor a eles, fingindo ignorar o que fora ordenado desde as instâncias superiores. Fizeram-lhe mil vénias e invocaram a sua piedade. E ele, com ar de indiferença, acabou por aceitar o dinheiro, mas do alto da sua grandeza, como um homem que concede um especial favor. Ordenou depois que pusessem o rapaz em liberdade e, depois de lhe ter dado uma reprimenda, mandou-o para casa.

 

Quanto aos dois irmãos, ofereceram um grande banquete ao comissário de polícia; e o caso terminou assim, porque o rapaz estava de novo em liberdade e o seu amor um tanto acalmado com a prisão.

 

A rapariga, essa estava mais obstinada do que nunca e foi queixar-se outra vez ao pai. Ele estava um pouco mais bem disposto, agora que compreendia como a família dos Wang era poderosa, que influente senhor de guerra era um dos três irmãos e como Wang o Negociante tinha dinheiro. Enviou um intermediário a Wang o Proprietário, dizendo-lhe:

 

Casemos os dois jovens e selemos a nossa nova amizade.

 

E assim, portanto, se realizou a coisa, e os esponsais e as bodas foram logo no primeiro dia adequado que se pôde marcar, achando-se Wang o Proprietário e a esposa no maior consolo e satisfação. Quanto ao noivo, embora um tanto atónito com aquele súbito desenlace, sentia no entanto voltar um pouco do seu antigo ardor, achava-se muito satisfeito e a rapariga estava triunfante.

 

Mas, para Wang o Tigre, todo aquele caso não tinha grande importância, a não ser nisto: era agora um homem poderoso naquela província e sabia que o general o tinha por alguém cujo favor vale a pena conciliar, e o coração encheu-se-lhe de orgulho. Terminada a questão, já à Primavera sucedera o Estio e Wang o Tigre disse consigo que visto ter tido uma tão grande preocupação e o ano estar já adiantado, convinha ainda dessa vez adiar a expedição para o ano seguinte. Resignou-se a isso, tanto mais facilmente por, no princípio daquele Verão, os seus espiões terem começado a vir fazer-lhe os seus relatos, dizendo que corria o boato de uma guerra qualquer lá muito para o Sul, mas não se sabia ainda que guerra era, nem quem a dirigia. Quando Wang o Tigre ouviu isso, compreendeu plenamente o valor do seu exército para o general da província e por que motivo este procurava conciliar os seus favores. E esperou, portanto, outra Primavera para ver o que ela traria.

 

E como sempre fazia, Wang o Tigre passava todo o seu tempo com o filho. O rapaz cumpria gravemente os seus deveres e Wang o Tigre sentia prazer em seguir com os olhos o jovem, nas suas maneiras silenciosas. Ficava-se muitas vezes a olhá-lo, gostando de fitar-lhe o rosto sério, meio infantil, meio juvenil. E assim, quando estava a estudar o rosto do filho, inclinado sobre qualquer livro ou sobre o seu trabalho, Wang o Tigre sentia-se surpreendido com a expressão tão familiar que encontrava nas faces angulosas do rapaz e na energia da boca. Não era uma boca bonita, mas era bastante firme e muito decidida para rapaz tão novo ainda.

 

E Wang o Tigre notou um dia que o filho herdara aquela expressão da avó, a mãe dele, Wang o Tigre. Compreendeu que era a expressão de sua mãe, embora só lhe fosse possível recordá-la no leito de morte, e que o rosto vermelho do rapaz fosse muito diferente do rosto pálido da morta. Mas mais profundamente gravado em Wang o Tigre do que qualquer nítida recordação, um sentimento lhe dizia que o seu filho tinha as atitudes lentas e o ar calado de sua mãe e que a gravidade desta se encontrava nos lábios e nos olhos do seu filho. E quando Wang o Tigre se apercebeu, no filho, daquela vaga expressão familiar, pareceu-lhe que o seu coração se reacendia mais com isso, que amava o filho mais profundamente ainda e que, por uma razão que não compreendia, o tinha mais estreitamente ainda ligado a si.

 

O filho de Wang o Tigre era agora um jovem deste género: cumpria diligentemente todos os seus deveres e fazia tudo quanto lhe diziam que fizesse. Aplicava-se a executar as manhas de guerra e posturas que os seus professores executavam perante ele, e montava a cavalo muito bem, senão com tanta presteza como Wang o Tigre. Mas o jovem fazia tudo como se nisso não tivesse prazer algum e como se se forçasse a todas essas coisas como a uma maçada. Quando Wang o Tigre perguntava ao preceptor   se   o   filho   fazia   progressos,   o   preceptor   respondia hesitando:

 

Não posso dizer que ele não faz progressos, pois faz conforme e exactamente o que se lhe explica, mas nunca vai além disso. É como se no que faz não pusesse nada de si.

 

Esta resposta perturbou muito Wang o Tigre, pois já lhe parecera antes que seu filho ignorava a boa e sã cólera, que nunca se zangava e que não havia nele nem ódio nem desejo por nada, mas simplesmente que se devotava com gravidade e com paciência a tudo o que tinha a fazer. Ora, Wang o Tigre sabia que um guerreiro não pode ser assim. Um guerreiro deve ter em si entusiasmo, cólera, obstinação e apaixonar-se espontaneamente, e afligia-se e perguntava-se como poderia mudar nesse ponto o carácter do filho.

 

Ficava o dia inteiro no pátio, junto do adolescente e examinava-o enquanto ele atirava ao alvo, sob a orientação do preceptor, e embora o adolescente permanecesse calmo e levantasse vivamente o braço e não hesitasse em premir firmemente o gatilho, à voz de comando, afigurava-se no entanto a Wang o Tigre que via o filho entesar-se e que o rosto imberbe do rapaz tomava uma expressão especial, como se ele se endurecesse para poder fazer o que fazia, tanto aquilo lhe era odioso. Então Wang o Tigre dirigiu-se ao filho e disse-lhe:

 

Filho, faz isso com entusiasmo, se queres ser-me agradável.

 

O jovem, com a pistola ainda fumegante na mão, lançou um rápido olhar ao pai. Uma estranha expressão lhe passou então nos olhos e entreabriu os lábios, como se se dispusesse a falar. Mas tinha ali diante dele Wang o Tigre, que não sabia tomar um ar amável, mesmo quando o pretendia, e ao ver as suas espessas sobrancelhas negras, a boca contraída e a espessa e a hirsuta barba negra, o jovem desviou os olhos outra vez, soltou um suspiro e respondeu, no seu tom resignado:

 

Sim, meu pai.

 

Então, Wang o Tigre olhou o filho com vago pesar, pois, a despeito do seu ar duro e áspero, tinha coração terno, não sabia exprimir a voz do seu coração. E, passados momentos, suspirou também e seguiu em silêncio a lição até ao fim. Então o jovem lançou ao pai um olhar indeciso e disse:

 

Posso agora ir-me embora, pai?

 

Wang o Tigre reparara que o seu filho se afastava muitas vezes para qualquer parte sozinho, escapulindo-se sub-repticiamente, e não sabia para onde, sabendo apenas que o guarda que ele designara para seguir o filho para toda a parte, o seguia sem dúvida também para ali. Mas nessa tarde Wang o Tigre olhou o filho e vendo que este deixara de ser criança, pôs-se intimamente a questão de saber se sim ou não o pequeno ia para onde não devia. Mordido por súbito ciúme, Wang o Tigre adoptou o tom de voz mais meigo que podia para perguntar:

 

Mas onde vais tu, meu filho?

 

O rapaz hesitou, baixou a cabeça e acabou por responder, meio atemorizado:

 

Para parte nenhuma, pai. Gosto de ir para além dos muros da cidade e passear alguns momentos pelos campos.

 

Se o rapaz lhe tivesse respondido que ia para qualquer lugar de prazer, Wang o Tigre não se teria sentido mais desconcertado.

 

Mas   que   pode   haver   nisso   de   interessante   para   um militar ?

 

E o rapazinho, sem erguer os olhos, triturou com as mãos o cinturão de couro e respondeu, em voz apagada, no habitual tom resignado:

 

...Mas é repousante e agradável ver o campo nesta altura em que as árvores de fruto estão floridas, e eu gosto de conversar por vezes com um camponês e ouvi-lo explicar-me como cultiva a sua terra.

 

Então Wang o Tigre ficou completamente desnorteado. Já nada compreendia do seu filho. E murmurou, de si para si, que era aquele seu filho um ser muito singular para senhor de guerra. E pensar que ele odiara desde a juventude os trabalhos campestres! E, de repente, com maior cólera do que tinha na intenção, porque estava de algum modo desapontado sem bem saber porquê, exclamou:

 

Eh! Faz o que quiseres, quero lá saber!

 

E ficou um momento sentado tristemente, porque o filho, com a presteza de uma ave a quem damos a liberdade, se escapulira para longe dele.

 

Wang_o_Tigre permaneceu mergulhado em penosa meditação, sem no entanto saber por que motivo o seu coração estava tão triste. E acabando por se irritar e se endurecer um pouco, disse de si para si que, com um tal filho, devia ainda sentir-se contente, visto que o pequeno não era vicioso e fazia o que lhe mandavam, e assim Wang o Tigre deixou uma vez mais de se preocupar com o» caso.

 

Ora, durante esses anos, correu o boato de que um novo grande descontentamento estava motivando uma guerra, e os espiões de Wang o Tigre contavam-lhe histórias de rapazes e de raparigas que, nas escolas do Sul, tomavam parte na guerra e referiam-lhe ainda o que se dizia sobre vulgares campónios que faziam o mesmo, e não se tinha até então ouvido coisa assim, por que a guerra sempre dissera respeito aos senhores de guerra e nada tinha a ver com o vulgo. Mas quando Wang o Tigre, atónito, perguntava por que causa se batiam, os seus espiões não sabiam explicar-lho e Wang o Tigre dizia de si para consigo que deviam, ser disputas de escolas, ou qualquer professor que cometera uma injustiça, ou, se se tratava de gente do povo, devia ser algum prefeito desonesto, e que os habitantes excitados se revoltavam para o matar e pôr termo a uma situação que não podiam continuar a suportar.

 

Mas, pelo menos até que ele pudesse ver como se orientaria aquela nova guerra e como poderia adaptar-se a ela, Wang o Tigre não empreendia guerras por sua conta. Conservava os seus rendimentos e comprava os apetrechos de guerra de que carecia. E já não precisava de pedir ao seu irmão Wang o Negociante que o ajudasse, porque tinha agora um porto próprio na foz do rio que possuía e alugava navios e importava de contrabando, muito facilmente, as suas armas, dos países estrangeiros. Se havia personalidades acima dele que disso tinham conhecimento, calavam-se, por saberem que ele era um general do seu partido e -que cada espingarda que possuía era uma arma a favor deles, na luta que devia chegar um dia ou outro, dado que a paz em parte alguma pode durar eternamente.

 

Assim, Wang o Tigre aumentou os seus recursos, enquanto o seu filho, crescendo,” chegava aos catorze anos.

 

Ora, durante esses quinze anos ou mais em que Wang o Tigre fora um grande senhor de guerra, a sorte favorecera-o de muitas maneiras, a principal das quais era não ter havido grandes fomes nas suas regiões. Houvera pequenas fomes num lugar ou noutro, pois assim deve necessariamente acontecer sob um céu cruel, mas não houvera fome em todas as regiões ao mesmo tempo, de maneira que, se uma parte estava com fome, não havia necessidade de a apertar muito, podia lançar impostos noutro lado, onde os habitantes não tinham fome ou a sofriam menos cruel. Isso o fazia ele com prazer, porque era homem justo e não tomava de boa vontade a moribundos o pouco de que dispõem, como fazem certos senhores de guerra.

 

Os habitantes eram-lhe gratos por essa indulgência e louvavam-no por ela, e em toda a sua região muitos diziam:

 

Temos, de facto, visto senhores de guerra muito piores do que o Tigre, e visto terem de existir tais senhores, é ainda uma sorte termos este que nos faz pagar apenas a mantença dos seus soldados e que ele não tenha o gosto pelos banquetes, pelas mulheres e todas as coisas de que tais senhores gostam.

 

Na verdade, Wang o Tigre aplicava-se a ser justo tanto quanto podia para a gente vulgar. Até então nenhum novo governador viera assumir no tribunal o lugar do antigo. É certo que fora nomeado um, mas esse, ao saber que violento homem era Wang o Tigre, adiara a sua vinda, dizendo que o pai estava no extremo da vida e que tinha de esperar que ele morresse e fosse sepultado, antes de poder vir. E assim, até que ele chegasse, Wang o Tigre administrava a justiça, pessoalmente, no tribunal; ouvia os queixosos que se lhe apresentavam, defendeu muitas vezes um pobre contra um rico ou um usurário. Na verdade, Wang o Tigre não tinha nenhum rico a recear, e metia o rico na prisão se este não pagava o que Wang o Tigre dele pretendia, de maneira que aconteceu aessa cidade que os proprietários e os usurários e todas essas pessoas detestavam muito cordialmente Wang o Tigre e iam muito longe para evitar submeterem-lhe um processo. Mas ele para nada se importava com o seu ódio, dado que se sentia poderoso e não tinha motivo para ter medo. Pagava aos seus soldados regularmente e se era por vezes duro com um homem que cometia qualquer falta de vulto, nem por isso deixava de lhe pagar o soldo mensal e era mais do que faziam muitos senhores de guerra, que têm necessariamente de se entregar à pilhagem para conservarem os seus soldados em torno de si. Mas Wang o Tigre não se via coagido à guerra por causa dos seus homens; e podia adiá-la se lhe agradasse, e a sua situação naquela região entre o povo e entre as suas próprias tropas era agora muito boa e segura.

 

Mas desde que os homens conseguem estabelecer-se, têm de contar com um céu adverso, e tal o foi o caso de Wang o Tigre. No ano em que seu filho fazia catorze anos, quando Wang o Tigre se preparava para enviar um novo exército para a escõla de guerra, terrível fome se abateu sobre todas as partes do seu território e se espalhou de um extremo ao outro como uma cruel epidemia.

 

Aconteceu que as chuvas habituais da Primavera caíram na estação própria, mas quando foi a época da cessação, os céus continuaram a lançar água e as chuvas duraram dias e dias, semanas e semanas, até ao pino do Verão, de tal modo que o trigo apodrecia nos campos e se afogava na água, tornando-se as belas campinas em pântanos cobertos de água lodosa. E até o pequeno rio, de sua natureza um curso de água tranquilo, se precipitou escabrejando volumoso e em fúria, e arrancando as margens de argila ou transpondo-as, se lançou contra os diques interiores que derrubou, continuou varrendo tudo no seu percurso e foi lançar todo o lodo no mar, de tal modo que as claras águas verdes estavam manchadas e sujas numa légua de extensão. Quanto aos habitantes, viveram a princípio nas casas levantando as suas mesas e camas em pranchas para as manter fora de água. Mas quando as águas subiram até aos telhados das casas, e os muros de adobe ruíram, passaram os habitantes a viver em barcos ou em rochedos e agarrando-se aos poucos diques e montículos que restavam ainda acima da água, ou então trepavam pelas árvores acima e suspendiam-se-lhes dos ramos. E nem só as pessoas assim faziam, mas também os animais ferozes e as serpentes dos campos os imitavam, e essas serpentes subiam aos grupos pelas árvores e pendiam em festões dos ramos e perdiam o seu receio dos homens e deslizavam pelos troncos para irem viver no meio deles, de tal maneira que os homens já’ não sabiam qual era o maior terror, se o da água, se o das serpentes. Mas à medida que os dias passavam e que a água se obstinava em não baixar, surgiu ainda outro terror, o terror de morrer de fome.

 

Era essa para Wang o Tigre uma prova das mais penosas, que este ainda não suportara. Estava, aliás, em pior situação do que os outros, porque enquanto esses só têm a sua própria família a sustentar, ele tinha de prover às necessidades de uma imensa horda composta unicamente de homens muito ignorantes, inclinados a queixar-se, e que só se sentiam satisfeitos se estavam bem alimentados e bem pagos, e que eram fiéis apenas enquanto recebiam o que consideravam ser-lhe devido. Os rendimentos deixaram pouco a pouco de vir, primeiro de um lugar, depois de outro, até que cessaram de todo, e por fim, como as águas tinham ficado a cobrir os campos durante o Verão e como, quando veio o Outono, não houve colheita, faltaram no Inverno seguinte os rendimentos, excepto o do ópio, de que se fazia naquelas regiões contrabando, mas até mesmo esse rendimento estava muito diminuído, dado que os habitantes não podiam comprar e que por isso os contrabandistas levavam então as suas mercadorias para outros pontos. Os próprios impostos sobre o sal cessaram, porque as águas inundaram as minas, e os «potiers» ceramistas já não faziam odres para vinho, visto que nesse ano não houvera vinho novo.

 

Wang o Tigre estava numa grande aflição e pela primeira vez depois de tantos anos em que era senhor de guerra e exercia a sua autoridade, no último mês desse ano foi-lhe impossível pagar aos seus soldados.

 

Era-lhe necessário, pelo menos, fornecer alimentação ao seu exército, se queria mantê-lo fiel. Mas onde obter víveres? Faltava-lhe dinheiro para os obter em países estrangeiros. E então, mais uma vez, lembrou-se do seu irmão Wang o Negociante. Disse de si para consigo que, numa hora dessas, os irmãos devem ajudar-se e decidiu ir ver como estavam as coisas na casa de seu pai e que socorro poderia deles obter.

 

Fez portanto correr entre os seus soldados o boato de que ia buscar víveres e dinheiro para eles e prometeu-lhes a abundância, e quando os viu todos alegres-com essa perspectiva, e um pouco reconfortados na sua esperança e na sua fidelidade para com ele, designou uma guarda escolhida, propôs aos homens que a constituíam velarem pela sua casa e recomendou à sua própria escolta que se preparasse para a viagem.

 

No dia que fixara, mandou vir barcos e, embarcando com o filho, soldados e cavalos nesses barcos, passaram as águas da inundação para atingirem o ponto do Estado onde os diques resistiam ainda, e ali montaram a cavalo e se dirigiram à cidade onde habitavam os irmãos de Wang o Tigre.

 

Nos estreitos diques, os cavalos avançavam a passo, porque a água se estendia para ambos os lados como um mar, e os diques estavam cobertos de uma multidão que quase por completo os cobria. E não só as pessoas, mas ratazanas, serpentes e animais ferozes lutavam para compartilhar esse escasso território com a multidão dos humanos, e os animais ferozes esqueciam os seus receios e tentavam com as suas fracas forças conquistar o terreno. Mas o único sinal de vida que manifestava aquela gente consistia nos clamores da cólera que se elevavam, quando as serpentes e outros bichos se tornavam demasiado numerosos- e eles tinham, com repugnância embora, de escorraçar umas e outros. Mas por vezes, durante longos intervalos, nem sequer lutavam, as serpentes insinuavam-se e rastejavam por onde queriam, e os homens permaneciam mergulhados numa atonia profunda.

 

Wang o Tigre caminhava pelos diques, e não o teria feito sem a escolta e as espingardas, pois sem isso aquela gente o teria atacado. Mesmo assim, a todo o momento, um homem ou uma mulher levantava-se aqui ou ali e enlaçava-se-lhe às pernas do cavalo, no silêncio do desespero, mas ainda com um leve clarão de esperança. E inspiravam alguma compaixão a Wang o Tigre que sofreava o cavalo para não lhe passar por cima. Esperava que um dos seus guardas viesse agarrar a miserável criatura e pô-la de lado, e Wang o Tigre passava sem olhar para trás. Algumas vezes o homem ficava estendido no lugar para onde o tinham lançado, mas outras vezes soltava um uivo selvagem e, com um salto, lançava-se à água, pondo fim dessa maneira a si e ao seu tormento.

 

Durante todo o trajecto, o rapaz cavalgou ao lado do pai, sem dizer palavra, e Wang o Tigre via-o tão absorto que receava dirigir-lhe a palavra. O rapaz mantinha o rosto inclinado, excepto nos momentos em que lançava, furtivamente, um olhar oblíquo à gente faminta, e lia-se-lhe no rosto tal expressão de horror, que, por fim, Wang o Tigre não pôde conter-se e lhe disse:

 

É gente vulgar e que está habituada a isto de anos a anos, há dezenas de milhares como estes e ao fim de cinco anos não se vê já o lugar dos que morreram. Reproduzem-se como o arroz.

 

Então o rapazinho disse bruscamente, e a sua voz, que era agora de diferentes tonalidades, como a de um frango na muda, deu um guincho agudo, tão comovido estava e tanto o dominava o receio de chorar na frente do pai:

 

Mas, no entanto, suponho que é tão duro para eles morrer como se fossem governantes e homens como nós.

 

E, enquanto falava, contraía os lábios, mas aqueles espectáculos eram na verdade terrivelmente penosos e os lábios tremiam-lhe, apesar do esforço.

 

” Wang o Tigre teria gostado de lhe dizer algumas palavras deconsolo, mas sentia-se estupefacto com o que o filho dissera. Não notara que aquela gente sofria como ele poderia sofrer, dado que os homens nascem como nascem e que um não pode tomar o lugar de outro. Não gostava do que o filho dissera, por ser aquilo excessivamente comovido para um senhor de guerra que não pode deter-se em pôr simpatia em qualquer homem a que acontece sofrer desgraças. E assim, portanto, Wang o Tigre foi incapaz de imaginar uma frase de consolo, pois era certo que ninguém podia encontrar de comer nesses dias, excepto os corvos, que comem cadáveres e que descreviam constantemente grandes círculos em torno das águas. E tudo quanto disse, foi isto:

 

Somos todos semelhantes, sob a cruel vontade do Céu.

 

Depois do que, Wang o Tigre deixou o filho ao seu modo. Dadas as ideias que o rapaz tinha, Wang o Tigre nada mais lhe perguntou.

 

Durante aquela viagem, Wang o Tigre lamentou muitas vezes o ter que levar o filho consigo. Mas, na verdade, nunca ousaria deixá-lo, com receio das más disposições de alguns homens. Apesar disso, se receava pelo filho se o deixasse, receava quase outro tanto levá-lo a casa dos irmãos. Receava a moleza dos jovens e receava o grosseiro amor do dinheiro característico dos comerciantes. Deu, portanto, ordem ao seu fiel Beiço Rachado para não abandonar sequer por um instante o seu jovem senhor, e além disso indicou dez velhos soldados veteranos para se manterem dia e noite junto do filho, e preveniu este de que teria de não interromper os estudos. Mas não se atreveu a dizer-lhe: «Meu filho, não deves ir para junto das mulheres»pois não sabia se o rapaz tinha ou não pensado nisso. Durante os anos em que Wang o Tigre tivera o filho junto de si, nos seus aposentos pessoais, não convivera ali com mulheres, nem com criadas, nem com escravas, nem com cortesãs, e o jovem não conhecia de modo algum mulheres, com excepção da sua mãe e de suas irmãs, e nos últimos anos Wang o Tigre nem sequer o deixava ir sozinho fazer as raras visitas que devia à mãe, mandando acompanhá-lo por um guarda. Desse modo, Wang o Tigre protegera o filho, sentindo mais ciúmes daquele filho do que outros homens têm das mulheres a quem amam.

 

Mas apesar de tudo, a despeito dos seus secretos receios, foi um agradável momento para Wang o Tigre o da sua chegada a cavalo junto do portão da casa do irmão com o filho a cavalgar ao seu lado. Wang o Tigre tivera a fantasia de mandar cortar pelos seus alfaiates um trajo para o filho exactamente como o seu, e o rapaz vestia uma túnica igual, de tecido estrangeiro, e os mesmos botões dourados e as mesmas dragonas com fios dourados e um barrete como o de Wang o Tigre, com uma insígnia, Wang o Tigre, para o décimo quarto aniversário do jovem, mandara até à Mongólia um homem que trouxera de lá dois cavalos exactamente semelhantes, excepto em que um era um pouco mais pequeno do que o outro, e ambos robustos e de crina castanha, e os olhos brancos e de grande mobilidade. E era uma música suave aos ouvidos de Wang o Tigre ouvir as pessoas exclamarem na rua, quando paravam a ver passar os soldados:

 

«Ora vejam o velho senhor de guerra e o pequeno senhor de guerra, tão parecidos como os dois dentes da frente na boca de um homem!»

 

E assim chegaram a cavalo até ao portão de Wang o Proprietário, e o rapaz saltou do cavalo ao mesmo tempo que o pai, e levou a mão ao punho da espada ao mesmo tempo, e pôs-se com ar grave a caminhar ao lado do pai, sem suspeitar sequer de que fazia tudo como o pai. Quanto a Wang o Tigre, quando foi recebido em casa dos irmãos e estes e seus filhos entraram um após outro para o cumprimentar, à medida que sabiam da sua vinda, Wang o Tigre saboreou os olhares de admiração que eles lançavam ao seu filho como um homem com sede saboreia o seu vinho. Nos dias que se seguiram; enquanto Wang o Tigre esteve naquela casa, examinou os filhos dos irmãos avidamente e, sem quase se aperceber disso, desejando certificar-se de que o seu valia mais do que os deles e querendo assim animar-se pela comparação favorável.

 

E Wang o Tigre encontrou muitos motivos para tal. O filho mais velho de Wang o Proprietário estava agora muito bem casado, posto não tivesse ainda filhos, e ele e a mulher habitavam a mesma casa que o pai e a esposa. O aludido filho mais velho ia-se tornando já mais ou menos como o pai, crescia-lhe a barriga e o seu corpo elegante ia-se cobrindo de uma camada mole de gordura. Mostrava também um ar de aborrecimento e na verdade tinha razão para tal, porque sua mulher não vivia em boa harmonia com sua mãe, e era impertinente na sua sabedoria dos novos tempos e gritava ao marido quando estavam sós e ele tentava acalmá-la:

 

Pois quê?... Então eu hei-de servir de criada a essa velha orgulhosa? Não sabe ela que, nos dias de hoje, nós, as mulheres jovens, somos livres e já não estamos ao serviço das sogras?

 

E a jovem não receava de modo algum a velha dama e quando esta lhe dizia, com a sua majestade fora de moda: «Pois eu, quando era nova, considerava-me ao serviço da minha sogra, como era de meu dever, e levava-lhe o chá todas as manhãs, como tinha aprendido a fazer»a nova lançava com um gesto os cabelos curtos para trás, batia no chão com os lindos pés não comprimidos e respondia muito insolentemente:

 

Mas nós, mulheres de hoje, não nos inclinamos perante ninguém.

 

Esta dissensão causava ao jovem marido frequentes aborrecimentos, e ele não tinha a possibilidade de consolar-se recorrendo às suas antigas distracções, porque a sua jovem esposa o vigiava, conhecia todas as casas de prazer e era tão atrevida que não -receava segui- lo a rua e exclamava que iria onde ele fosse, que nos nossos dias as mulheres já não ficavam fechadas em casa e que os homens e as mulheres eram iguais. com tais ditos, divertia de tal maneira a gente que passava nas ruas que, por simples pudor, o jovem marido renunciou às suas antigas distracções, pois a considerava suficientemente atrevida para o seguir por toda a parte. Aquela mulher era tão ciumenta que quis romper com todos os hábitos e todos os desejos naturais que o marido tinha. Ele não podia sequer olhar uma jovem escrava e se tinha a pouca sorte de se aproximar de um lupanar com os amigos, ela não deixava de o acolher no regresso a casa com gritos e soluços tais que era um escândalo em casa. Uma vez, um amigo a quem ele se queixava deu-lhe este conselho:

 

Ameaça-a de tomares uma concubina... é muito humilhante para uma mulher!

 

Mas quando ele tentou isso, a mulher, muito longe de se sentir humilhada, pôs-se a vociferar e os seus olhos redondos fulminaram-no com o olhar.

 

Numa época como esta, nós, as mulheres, recusamo-nos a suportar coisas dessas.

 

E sem lhe dar tempo de se precaver, saltou em cima dele com as mãos para a frente e esgadanhou-o nas faces como uma gata. Ele ficou com quatro profundos arranhões vermelhos de cada lado da cara, e a origem deles era tão manifesta para toda a gente que, por vergonha, lhe foi impossível sair do quarto durante cinco dias ou mais. E não se atreveu a submeter a mulher a mais nenhuma vergonha pública, pois tinha por amigo o irmão dela e o pai era comissário de polícia e tinha o poder na cidade.

 

Apesar de tudo, à noite, amava-a ainda com entusiasmo, porque ela sabia chegar-se para ele com muita meiguice e fazer-lhe festas e simular tão bem o arrependimento que ele a amava ainda de todo o coração, e abrandava até ao ponto de lhe ouvir tudo quanto ela dizia.

 

A mulher arrancou-lhe assim a promessa de pedir dinheiro ao pai para irem passar algum tempo juntos num porto da costa, e viverem aí, à nova maneira, entre os seus iguais. E quando o pai recusou a primeira vez, ela obrigou o marido a voltar à carga. Para o deixarem sossegado, Wang o Proprietário cedeu por fim e prometeu que arranjaria maneira de obter dinheiro, embora soubesse muito bem que a única maneira que tinha era vender uma parte da terra que ainda possuía. Quanto à jovem esposa, quando alcançou aquela meia promessa, não fazia outra coisa senão falar da partida. Tomou todas as disposições e tanto falou dos numerosos meios de prazer da cidade da costa, e de como as mulheres lá se vestiam bem, e de como ela tinha de comprar um vestido novo e um casaco de peles, e de como todos os vestidos que tinha não passavam de miseráveis farrapos, próprios quando muito para um sítio rústico como aquele tanto falou disso tudo, que excitou também no marido o desejo de partir e de ver todas as maravilhas de que ela falava, e até o irmão mais novo do marido sonhava já com imitar o jovem casal e ir também fazer uma vilegiatura até à costa.

 

Mas na casa de Wang o Negociante os jovens eram exteriormente mais modestos e quando regressavam à noite dos seus estabelecimentos sentavam-se de lado nos bancos, a contemplarem o tio e o primo. E Wang o Tigre tinha um secreto prazer pelos olhares que aqueles jovens negociantes lançavam ao seu filho, notava com que olhos de espanto eles contemplavam o jovem, e a pequena espada dourada que por vezes desafivelava e pousava nos joelhos, para permitir aos mais pequenitos olhá-la e tocar-lhe com as mãos.

 

Ora, naquela casa de seu pai, onde os seus dois irmãos viviam ainda tão facilmente e tão bem, era como se não reinasse fome na terra e como se os campos de semeadura não estivessem cobertos por toalhas de água, e como se ninguém tivesse privações em parte alguma. Mas como Wang o Proprietário e Wang o Negociante sabiam muito bem o que se passava fora da sua calma residência, quando Wang o Tigre lhes expôs as suas dificuldades e por que viera, e quando acabou por dizer: «É do interesse de ambos salvar-me deste perigo, porque o meu poder os salva a vocês, também»eles sabiam muito bem que ele dizia a verdade.

 

Havia, com efeito, perto da cidade, populações atingidas pela fome e muitos habitantes odiavam ferozmente os dois irmãos. Odiavam Wang o Proprietário porque possuía ainda terras e os que as trabalhavam deviam partilhar com ele, que não trabalhava, o fruto amargo da terra; e parecia-lhes, quando se curvavam para os seus campos, quer fizesse frio, quer calor, com chuva ou Sol, que a terra e os seus produtos lhes pertenciam. Achavam muito, muito duro que, no tempo da colheita, tivessem de dar uma boa parte dela a alguém que ficara tranquilamente numa casa da cidade a esperar aquele tributo, e que até no tempo da fome tivesse ainda de receber a sua parte.

 

É certo que nos anos em que o Wang Mais Velho fora proprietário e enquanto vendia a terra, nem sempre fora um patrão cómodo. Para homem tão fraco e indolente como era, sabia muito bem questionar com o pessoal e até injuriá-lo. O seu ódio pela terra estendia-se aos homens que a cultivavam para ele e odiava-os, não só por causa da terra, mas também porque estava frequentemente muito atrapalhado de dinheiro para atender às necessidades da sua casa e às suas próprias, e era duplamente amargo porque se lhe afigurava que os seus feitores retinham de caso pensado o que lhe era devido e lhe fora transmitido pelo pai E as coisas chegaram a ponto tal que, quando os seus feitores o viam vir, erguiam os olhos ao céu e diziam entre dentes: «Vamos ter por certo chuva, visto que os maus génios andam ca por fora!» E muitas vezes insultavam-no, dizendo:

 

«Não sois um bom filho de vosso pai, porque ele era um homem compassivo depois de enriquecer, e, até mesmo na velhice, lembrava-se de que outrora penara como nós, e nunca nos apertava por causa do aluguer, nem nos reclamava o grão em tempos de fome. Mas nunca sofrestes e a misericórdia não tem domicílio no vosso coração!»

 

Assim tinha surgido o ódio contra ele, que se tornou manifesto nesse ano tão duro. E de noite, quando o portão estava aferrolhado, havia quem ali viesse bater e deitar-se nos degraus, exclamando:

 

«Nós estamos a morrer de fome e vocês têm ainda arroz para comer e para fazer vinho1» E outros gritavam, ao passarem diante da porta, até mesmo em pleno dia:«Oh, se pudéssemos matar estes ricos e retomar-lhes o que eles nos roubaram!»

 

A princípio, os dois irmãos não davam atenção àquilo, mas, com o tempo, alugaram alguns soldados da cidade para lhes guardarem a porta e afastarem todos os que não tinham razão legítima para ali vir. E havia por certo muitas pessoas ricas naquela cidade e no campo, que eram roubadas e despojadas à medida que o ano avançava, e os ladrões começaram a surgir, numerosos e audaciosos, como acontece em todas as épocas más. Mas, apesar de tudo, os dois filhos de Wang Lung estavam bastante em segurança, porque o comissário de polícia e chefe dos soldados da cidade casara a filha naquela casa e porque Wang o Tigre se encontrava perto e era senhor de guerra. E eis por que, diante daquela Casa de Wang, a populaça não se atrevia a mais do que lamentos e maldições.

 

Também não tinham ido saquear a casa de adobe que pertencia àquela odiada família. A casa de adobe elevava-se no seu montículo, ao abrigo das águas que se retiravam lentamente, e Flor de Pereira viveu aí em bastante segurança, durante o cruel Inverno com os seus dois protegidos. Isso porque Flor de Pereira era agora bem conhecida pela sua caridade e sabia-se que ela mendigava provisões na Casa de Wang e muitos vinham à sua porta, nos seus barquinhos, e ela sempre lhes dava de comer.

 

Uma vez Wang o Negociante viera ter com ela, e disse-lhe:

 

Em tempos maus como estes, devia vir para a cidade e habitar na Casa Grande.

 

Mas Flor de Pereira respondera-lhe, com a sua habitual placidez:

 

Não, não posso. Não tenho medo e há aqueles que contam comigo para viver.

 

Mas como o frio do Inverno se ia agravando, tinha por vezes medo, porque havia homens que eram levados ao desespero pela fome e pelo vento feroz que soprava sobre as águas geladas onde eles viviam em barcos ou seguros como podiam nos cimos das árvores, e irritavam-se por Flor de Pereira sustentar ainda a idiota e o corcunda e murmuravam, até em frente dela, quando lhes dava de comer:

 

É justo dar de comer ainda a esses dois seres, quando homens de trabalho, com um filho perfeito ou dois, se vêem forçados a morrer de fome?

 

De facto, esses murmúrios, proferidos cada vez mais alto, tinham-se tornado muito frequentes, e Flor de Pereira começava exactamente a perguntar-se se não deveria levar os seus dois protegidos para a cidade, para os impedir de serem mortos um dia ou outro, por causa do que comiam, e sem que ela tivesse força para os defender, quando a pobre idiota, que tinha agora mais de cinquenta e dois anos, mas que continuava a ser sempre a mesma criança atardada, morreu súbita e rapidamente, da maneira habitual nesses pobres seres. Um dia em que comera e estava como sempre a brincar com o seu pedaço de trapo, saiu do portal e avançou até à água, sem suspeitar de que era água e não a terra firme onde de ordinário se sentava. Flor de Pereira correu para a tirar, mas a idiota estava já toda molhada e tremia sob o efeito do banho gelado. E apesar de toda a solicitude de Flor de Pereira, morreu ao fim de algumas horas, mas tão facilmente como vivera, sem dar acordo de nada.

 

Então Flor de Pereira mandou dar a notícia à cidade a Wang o Proprietário, para que este arranjasse o caixão. E como Wang o Tigre se encontrava ali, vieram juntos os três irmãos, e Wang o Tigre trouxe também o filho. E ficaram-se a ver meter no caixão a pobre criatura que repousava, pela primeira vez na sua vida, sensata e grave, com uma dignidade que só a morte lhe conferira. E Flor de Pereira, sinceramente triste, ficou um pouco consolada por ver o ar que tinha a sua menina e disse, na sua voz habitual, calma e murmurante:

 

A morte curou-a enfim e tornou-a sensata. É agora como toda a gente.

 

Mas os irmãos não lhe fizeram funerais, atendendo ao que ela em vida fora, e Wang o Tigre deixou o filho na casa de adobe enquanto ele se dirigia de barco com seus irmãos e Flor de Pereira, a mulher do feitor e um trabalhador dos campos ao outro montículo onde estavam os túmulos da família, e ali, num sítio um pouco baixo, mas ainda dentro do perímetro tumular, enterraram a idiota.

 

Quando tudo acabou e que, de regresso à casa de adobe, se preparavam para voltar à cidade, Wang o Tigre olhou Flor de Pereira e, falando-lhe pela primeira vez, disse-lhe no seu tom calmo e frio:

 

E agora, senhora, que conta fazer?

 

Flor de Pereira ergueu a cabeça e atreveu-se pela primeira vez na sua vida a olhá-lo de frente, sabendo que tinha agora cabelos brancos e o rosto envelhecido e enrugado. E respondeu:

 

Já há muito tempo eu vinha dizendo que, quando esta minha menina desaparecesse, entraria no convento que fica aqui perto e onde as religiosas me esperam. Vivo há anos perto delas, já fiz votos, as religiosas conhecem-me, sei que entre elas me sentirei mais feliz. (Depois, dirigindo-se a Wang o Proprietário, continuou) : O senhor e a sua esposa já dispuseram quanto à sorte deste seu filho. O seu templo fica perto do meu e poderei ainda olhar por ele, dado que estou agora velha, bastante velha para ser sua mãe, e se se encontrar doente ou com febre, como muitas vezes lhe acontece, poderei ir para junto dele. Padres e religiosas vão ao mesmo tempo às cerimónias da manhã e da noite, e eu poderei vê-lo duas vezes por dia, mesmo se não pudermos falar um com o outro.

 

Então os três irmãos olharam o corcundinha que se agarrava mais a Flor de Pereira e que mostrava um ar alheio, agora que perdera a idiota, de quem muitas vezes se ocupava com Flor de Pereira. Era agora homem e teve um sorriso doloroso, sob os olhares deles. Wang o Tigre sentia-se um tanto impressionado ao ver o filho, tão desenvolvido e tão forte, atónito com todas aquelas coisas de que antes não tivera notícia, e ao notar que ele sorria ao corcunda, disse muito benevolamente a este último:

 

Quero-te bem, meu pobre pequeno, e se fosses capaz, ter-te-ia adoptado de muito boa vontade como adoptei teu primo e teria feito por ti tanto como fiz por ele. Mas já que o destino decidiu de outro modo, acrescentarei alguma coisa ao dote que tu dás para o templo e para ,o vosso também, senhora, porque o dinheiro dá sempre uma melhor situação, e eu atrever-me-ia dizer que acontece o mesmo nos templos que noutras partes.

 

Mas Flor de Pereira respondeu docemente e num tom seguro:

 

Nada aceitarei para mim e de nada preciso, porque as religiosas me conhecem e eu as conheço, e tudo o que eu possuo pertencer-lhes-á também, quando eu for unir a minha sorte à delas. Mas para o pequeno aceitarei alguma coisa, porque lhe será proveitoso.

 

Por meio destas últimas palavras, dirigia uma discreta censura a Wang o Proprietário, porque a soma que este dera, quando a mãe do pequeno e ele decidiram destinar o filho a essa vida, era demasiado mesquinha, mas ele, se compreendeu a censura, não deu nada a perceber, e limitou-se a sentar-se para esperar os irmãos, visto que estava muito pesado e lhe era penoso ficar em pé. Mas Wang o Tigre continuava a fitar o corcundinha e dirigiu-lhe outra vez a palavra:

 

E tu preferes, na verdade, ir para o templo a ir para outra parte ?

 

O jovem deixou de fitar o seu elegante primo, que devorava com os olhos, e, baixando a cabeça, mediu com um olhar o seu breve corpo disforme, e respondeu lentamente:

 

Sim, visto que não posso ser diferente do que sou. (E após uma pausa, continuou): uma veste de padre talvez me esconda a corcunda.

 

Voltou de novo os olhos para o primo, e depois, de repente, pareceu tornar-se-lhe intolerável conservar mais tempo os olhos nele, porque os baixou e, girando sobre os calcanhares, saiu vivamente do compartimento.

 

Nessa noite, quando Wang o Tigre estava de volta a casa dos irmãos, e quando entrou para dar as boas noites ao filho, já na cama, encontrou o pequeno acordado. E este perguntou-lhe:

 

Meu pai, aquela casa pertencia também a meu avô? E Wang o Tigre respondeu surpreendido:

 

Sim, e eu vivi lá em rapaz, até ao dia em que ele comprou esta casa e nos trouxe a todos para cá.

 

Então o jovem ergueu os olhos e, com a cabeça apoiada nas mãos cruzadas atrás da nuca, olhou avidamente o pai e disse com ardor e entusiasmo:

 

Aquela casa agrada-me. Gostaria de viver numa situada assim nos campos, como a casa de adobe, mas tranquila, no meio das árvores e também com búfalos!

 

Mas Wang o Tigre respondeu, como quem não compreendia, apesar de que o filho não dissera, afinal, nada de mau:

 

Não sabes o que dizes! Eu, pela minha parte, sei, pois vivi lá adolescente, que é uma existência muito odiosa e simplória, e aspirava constantemente a sair de lá!

 

Mas o rapaz tornou, com singular obstinação:

 

Agradava-me, agradava.,. Sei que me agradava!

 

Estas poucas palavras pronunciou-as com firmeza e ardor tal que Wang o Tigre sentiu em si um movimento singular de cólera, levantou-se e saiu. Mas o filho sonhou nessa noite que a casa de adobe era a sua habitação e que vivia ali, no meio dos campos.

 

Quanto a Flor de Pereira, partiu para o convento, e o filho

de Wang o Proprietário foi para o templo. E a velha casa de adobe ficou abandonada das três pessoas que durante tantos anos a tinham habitado. Da família de Wang Lung, ninguém já ali vivia, e só o feitor e a mulher lá permaneciam, agora sozinhos. Por vezes, a velhota pegava num pé de couve que guardava, ou num punhado de farinha que economizara, atava isso num lenço e ia ao convento dá-lo a Flor de Pereira, pois durante os anos em que ficara ao seu serviço, aprendera a amar a gentil e silenciosa mulher. Sim, até mesmo durante aqueles tempos tão duros, a velhota pegava no pouco que lhe sobrava e ia esperar à porta que Flor de Pereira saísse, vestida como agora andava com uma túnica cinzenta de religiosa, e murmurava-lhe baixinho:

 

Trago aqui um ovo muito fresco da única galinha que me resta, para si!

 

Depois metia a mão no seio, tirava um ovo minúsculo, e estendia-o disfarçadamente a Flor de Pereira. Esforçava-se por lho meter na mão e amimava-a, murmurando:

 

Coma-o,   senhora!   Juro-lhe   que   muitas   religiosas   não deixariam de o comer apesar dos votos, e já vi muitos padres comer carne e beber vinho. Fique aqui onde ninguém a vê e sorva-o cru... está tão pálida!

 

Mas Flor de Pereira recusava. Não, fizera já os votos definitivos. Sacudia a cabeça rapada debaixo da coifa cinzenta e repelia suavemente as mãos da velhota, dizendo:

 

Não, deve-o comer a senhora porque precisa mais dele do que eu. Não tenho licença de o comer, e, se a tivesse, estou bastante nutrida para o que é necessário Mas mesmo que o não estivesse, não poderia comê-lo, por causa dos votos!

 

Apesar de tudo, a velhota não ficava satisfeita e metia o ovo à força no seio de Flor de Pereira, no lugar em que a túnica abotoava no pescoço, e apressava-se a entrar no barco e a fazê-lo deslizar da porta para o meio das águas, para impedir Flor de Pereira, de o alcançar. E afastava-se então sorridente e satisfeita. Mas Flor de Pereira, ainda não passara meia hora, e já tinha dado o ovo a uma pobre faminta que se arrastara da beira da água até à porta do templo. Trazia nos braços um filho famélico, a quem dava de mamar no pedaço de pele enrugada que fora outrora seio redondo e farto, e, apontando-o, mendigava a Flor de Pereira, que acorrera ao seu tímido apelo:

 

Olhe os meus seios! Eram outrora redondos e fartos e este menino gordinho como um deus.

 

E olhava a esquálida criaturinha que tinha nos braços, cujos lábios se colavam em vão à nascente seca. Então Flor de Pereira tirou o ovo do seio para a mulher e sentiu-se contente por ter uma coisa tão boa para lhe dar.

 

Foi nestes caminhos de paz que Flor de Pereira viveu a partir de então a sua existência, e Wang o Tigre nunca mais tornou a vê-la.

 

Ora Wang o Negociante era muito capaz, se quisesse, de socorrer Wang o Tigre, naquele ano de desgraça, porque na verdade possuía grandes reservas de cereal e se a fome trazia a outros a pobreza, a ele e aos seus trazia aumento de riqueza. Prevendo que ano mau esse seria, acumulara cereal que vendia caríssimo aos ricos. Tinha dessa maneira mais dinheiro que nunca,, a tal ponto que não sabia o que fazer dele, e, não querendo comprar mais terras, emprestava-o com grande juro aos camponeses, por conta das futuras colheitas, a tal ponto que antecipadamente lhe pertencia todo o cereal da região, quando a terra voltasse a produzir.

 

Entretanto, sabia-se odiado muito cordialmente, e sabia que Wang o Tigre tinha alguma utilidade, pelo facto de ser senhor de guerra. Fez, portanto, um esforço, prometeu a Wang o Tigre diversas reservas de cereal muito consideráveis e emprestou-lhe uma grande quantia com modesto juro, não mais de vinte por cento ou cerca disso por cada moeda de prata. E no dia em que fecharam o acordo na casa de chá, Wang o Proprietário, que assistia, soltou um profundo suspiro, dizendo:

 

Eu queria, irmão, ser rico como este nosso irmão negociante, mas a verdade é que me vou tornando cada vez mais pobre de ano para ano. Não tenho uma profissão rendosa como ele tem, e mais não possuo que um pouco de dinheiro em empréstimos e a pouca terra que me resta de todos os campos de meu pai. É uma sorte para todos nós termos na nossa família um homem rico!

 

Ao ouvir isto Wang o Negociante não pôde reprimir um sorriso muito azedo e replicou com viveza, pois não tinha nenhuma elegância de linguagem, nem espírito algum de cortesia:

 

Se alguma coisa possuo,   é porque   tenho trabalhado   e porque pus todos os meus filhos no comércio, não os trago Vestidos de seda, e me contento com uma mulher.

 

Mas Wang o Proprietário, embora o seu génio se tivesse adoçado muito nos últimos anos, não quis deixar passar uma frase tão brutal, pois compreendia que o seu irmão lhe censurava o ter vendido uma grande parte das terras que lhe restavam para permitir aos seus dois filhos irem, como desejavam, fazer uma vilegiatura à costa. E depois de se ter recolhido um pouco, acabou por dizer em voz bem alta e irritada:

 

Mas eu penso que um pai deve sustentar os filhos, e amo demais os meus filhos para lhes fazer passar os belos anos da juventude atrás de um balcão. Se tenho afecto pelos netos de meu pai, é isso motivo para os deixar morrer de fome? Tenho o dever de sustentar os meus filhos, julgo eu, mas talvez não saiba qual é o meu dever quando os educo como devem sê-lo os filhos de um senhor!

 

Não lhe foi possível adiantar mais, porque uma tosse rouca e constante, que nesses anos o importunava, lhe subiu nesse momento do peito e lhe abafou a voz. Emudecido, viu-se reduzido a mostrar a cólera no gesto, com os olhos mais cavados no rosto largo, enquanto um vivo rubor lhe incendiava o pescoço. Mas Wang o Negociante teve um pequeno sorriso, ao ver que o irmão compreendera o intento da censura, e não achou necessário acrescentar mais nada.

 

Quando o acordo ficou em fim regulado e estabelecido, Wang o Negociante quis que fosse reduzido a escrito. Ao ouvir formular essa pretensão, Wang o Tigre exclamou:

 

Pois quê... então nós não somos irmãos?

 

Wang   o   Negociante   respondeu, à maneira de desculpa:

 

É para eu próprio me lembrar... tenho agora tão má memória!

 

E foi estendendo o pincel a Wang o Tigre, de tal modo que este não pôde fazer outra coisa senão pegar nele e apor o seu nome no fim do contrato. Depois, Wang o Negociante acrescentou ainda, sempre com o seu sorriso:

 

E trazes contigo o teu sinete?

 

E então Wang o Tigre viu-se na contingência de tirar do cinto o sinete que tinha o seu nome gravado na pedra, e teve de imprimir também esse sinete no papel, antes que Wang o Negociante consentisse em pegar na folha, que dobrou e meteu cuidadosamente na bolsa do cinto. Wang o Tigre, diante daquela manobra, embora tivesse obtido o que pretendia, foi tomado de cólera, jurou aumentar a todo o preço os seus territórios e lamentou ter deixado passar aqueles anos como deixara, de modo a tornar a cair na dependência do irmão.

 

Entretanto, por agora os homens de Wang o Tigre estavam salvos. Tendo prevenido o filho de que devia preparar-se, avisou os componentes da escolta de que deviam reunir-se para regressar. A Primavera estava já bastante adiantada, as terras iam secando rapidamente e por todos os lados os habitantes se mostravam ansiosos por semear de novo as suas terras, e por todos os lados se apressavam a esquecer o Inverno eos mortos, e de novo cheios de esperança encaravam tempos melhores.

 

E assim também Wang o Tigre sentia um desejo de renovo e. disse adeus aos irmãos. Estes ofereceram-lhe um banquete de despedida, e, depois do banquete, Wang o Tigre dirigiu-se ao compartimento onde se guardavam as tabuínhas dos antepassados para aí queimar incenso; levara o filho consigo, e enquanto o espesso fumo odorífero subia em turbilhões, Wang o Tigre fez as suas reverências ao pai, e ordenou ao filho que se prosternasse também. Ao considerar o nobre aspecto do filho assim inclinado, Wang o Tigre sentiu subir nele um orgulho suave e forte. Afigurava-se-lhe que os espíritos dos antepassados se reuniam ali próximo para ver aquele tão belo descendente da sua raça e sentiu que estava cumprindo o seu dever para com a família. Quando tudo acabou e o incenso se consumiu até ao fim na caçoleta, Wang o Tigre montou a cavalo, o filho imitou-o, e, acompanhados pela escolta, regressaram por terreno seco à sua própria região.

 

NA Primavera do ano em que o filho de Wang o Tigre completou quinze anos, o preceptor que contratara veio ter com ele, num dia em que passeava sozinho no pátio, e disse-lhe:

 

Meu general, ensinei ao jovem general, seu filho, tudo quanto me foi possível, e ele precisa agora de ir para uma escola de guerra, onde terá comandos com os quais faça marchas, lute e se exercite na guerra.

 

Embora soubesse que esse dia devia chegar, Wang o Tigre teve a impressão de que uma dezena de anos tinha passado num abrir e fechar de olhos. Mandou recado ao filho para vir ter com ele, ao pátio. Sentiu-se de súbito fatigado e velho, e sentou-se à espera num banco de pedra que havia ali debaixo de um zimbro. Quando o jovem desembocou da porta que punha em comunicação as duas partes da casa, caminhando no seu passo lento mas seguro, Wang o Tigre olhou-o. Na verdade, o rapaz era alto e quase da estatura de um homem; o rosto ganhara já linhas mais duras e mantinha os lábios cerrados. Era já mais propriamente o rosto de um homem que o de uma criança. E enquanto olhava aquele filho único, recordava com uma espécie de espanto que se sentira já impaciente por ver o filho crescer e tornar-se homem, e que outrora a sua própria infância lhe parecera a ele interminável. Neste momento, parecia antes que chegara de um salto e sem transição da pequena infância ao estado viril. E então Wang o Tigre suspirou e pensou de si para si:

 

«Desejaria que a escola não ficasse no Sul. Desejaria que ele não precisasse de ir aprender para o meio daqueles pequenos meridionais!»

 

E, em voz alta, disse ao preceptor, que cofiava os curtos pêlos do bigode:

 

E está convencido de que será melhor mandá-lo para essa escola ?

 

O preceptor fez um aceno afirmativo com a cabeça. Wang o Tigre olhou para o filho com pesar e finalmente perguntou:

 

E tu, meu filho, queres ir?

 

Ora, era muito raro que Wang o Tigre perguntasse ao filho o que queria, porque ele próprio sabia muito bem aquilo para que o destinava, mas tinha alguma esperança de que o rapaz se recusasse a ir, pois isso lhe serviria a ele de desculpa. Mas o rapaz, que estava a olhar para um renque de lírios brancos que cresciam à sombra de um «zimbro», ergueu vivamente os olhos e disse:

 

Se fosse possível ir para outra escola, agradar-me-ia do mesmo modo.

 

Esta resposta não foi grata a Wang o Tigre. Carregou o sobrecenho, puxou os pêlos da barba e disse com despeito:

 

Mas, vejamos, para que escola poderias tu ir, a não ser para uma escola de guerra, e para que te serviriam todos os livros que estudaste, tu que deves ser um senhor de guerra ?

 

O rapaz respondeu timidamente e em voz baixa:

 

Ouvi dizer que há agora escolas em que se aprende a cultivar a terra e tudo quanto se refere à terra.

 

Mas Wang o Tigre ficou estupefacto com tamanha tolice. Nunca ouvira falar de uma escola daquele género e rugiu de repente:

 

Mas, vejamos, se tais escolas existem, é uma tolice! Então tu queres que eu acredite que na nossa época o camponês precisa de aprender a lavrar, a semear e a fazer as colheitas! Pois eu ainda me lembro muito bem de que meu pai costumava dizer que não é preciso aprender a cultivar, pois basta ver como o vizinho faz. Depois acrescentou num tom muito duro e frio: Mas que tem isso a ver contigo e comigo ? Somos senhores de guerra, e tu deves ir para uma escola de guerra ou então para nenhuma e ficas aqui, para tomar conta do exército depois de mim.

 

O filho suspirou, recuou um pouco, como fazia sempre que o pai se zangava, e disse calmamente e com singular resignação:

 

Irei portanto para a escola de guerra.

 

Havia no entanto nesta resignação alguma coisa que ainda fazia zangar Wang o Tigre. Olhou tristemente o filho e, cofiando a barba, lamentou que o filho não quisesse exprimir-se francamente e apesar disso sabia que se encolerizaria se soubesse aquilo que o filho lhe ocultava. Gritou:

 

Faz os teus preparativos,’pois é amanhã que deves partir!

 

O jovem fez-lhe a continência como aprendera, girou nos calcanhares e retirou-se sem acrescentar palavra.

 

Mas à noite, quando ficou sozinho no seu quarto, Wang o Tigre pôs-se a pensar no filho que ia partir para tão longe dele. Invadiu-o uma espécie de terror, ao ver o que poderia acontecer ao filho, em países onde os homens eram tão enganadores e tãotraidores, e ordenou à sentinela que chamasse o seu fiel Beiço Rachado. Quando este apareceu, Wang o Tigre voltou-se para olhar o medonho rosto dedicado e disse, num tom meio súplice e não como um senhor fala ao servo:

 

Aquele meu filho, meu único filho, vai partir amanhã para uma escola de guerra, e o preceptor acompanha-o. Mas como posso eu saber os secretos intentos de um homem que passou tantos anos em países estranhos? Os olhos escondem-se-lhe por detrás dos óculos e os lábios por detrás do bigode, e parece-me um desconhecido quando penso que o meu filho deve confiar-se-lhe inteiramente. Tu vais portanto seguir com o meu filho porque a ti conheço-te eu bem, e a ninguém conheço como te conheço a ti, que ficaste comigo desde o tempo em que eu vivia pobre e solitário e eras já então o que és agora, depois que me tornei rico e poderoso. O meu filho é o maior bem que possuo. Tu vais velar por ele em meu lugar.

 

Ora, coisa singular, quando Wang o Tigre disse aquilo, Beiço Rachado tomou a palavra com energia. E tamanha era a sua enérgica sinceridade que as palavras lhe sibilavam por entre os dentes:

 

Meu general, nesta única coisa não lhe obedecerei eu; fico junto de si. Se o jovem general deve partir, eu escolherei cinquenta homens de escol, já de certa idade, e ensinar-lhes-ei o seu dever para com ele, mas eu ficarei onde estou. Não sabe até que ponto lhe é necessário ter junto de si um homem dedicado, porque, num exército tão grande como o seu, há sempre descontentamentos e vontades venenosas, um que se mostra indignado e outro que fala de um general melhor, e correm agora boatos esquisitos de uma estranha nova guerra que se prepara lá para o Sul.

 

Ao que Wang o Tigre respondeu obstinadamente:

 

Tu consideras-te precioso demais. Não me restam ainda o Falcão e o Matador de Porcos?

 

Então Beiço Rachado tomou um ar de desprezo e, na sua agitação, contorceu de modo terrível a cara. E respondeu:

 

Esses... esse ambicioso e esse idiota! Sim, mas eu desconfio da fidelidade de um numa grave circunstância; e o outro é muito capaz de matar moscas a voar, ou o primeiro que apareça se eu lhe disser que deve fazê-lo e quando deve descarregar o soco com o seu punho formidável, mas não tem espírito para ver seja o que for só por ele, enquanto não lhe dizem para onde deve olhar.

 

Recusou-se a deixar-se abalar na sua resolução, apesar das ordens reiteradas de Wang o Tigre, e este suportou a sua revolta como jamais teria suportado qualquer recusa de obediência. Finalmente, Beiço Rachado disse por várias vezes:

 

-bom, então só me resta lançar-me sobre o meu sabre...

 

É uma sorte ter o sabre e o pescoço aqui tão perto um do outro...

 

Ao fim e ao cabo, não houve mais recurso do que ceder. Quando Beiço Rachado viu que Wang o Tigre se resignava a isso, ficou contentíssimo, embora momentos antes tivesse sido tão melodramático e falasse em morrer. Pôs-se nessa mesma noite a procurar os cinquenta homens que foi arrancar ao sono, injuriou-os copiosamente enquanto eles, no pátio, sob o ar fresco da Primavera, permaneciam com ar estúpido, bocejando e estremecendo. E berrava-lhes através do beiço rachado:

 

Se o nosso pequeno general tiver um dente que lhe doa, a culpa será de vocês, de vocês que devem morrer por ele, e cuja função é segui-lo para toda a parte para onde ele for, velar por ele e protegê-lo! À noite, devem deitar-se em volta da sua cama, e, durante o dia, não devem fiar-se em ninguém, nem escutar ninguém, nem sequer ele. Se se tornar obstinado e disser que já não os quer na sua companhia e que o incomodam, devem responder: «Estamos aqui por ordem do velho general, seu pai. É ele que nos paga e só a ele devemos dar ouvidos. Sim, devem protegê-lo contra si próprio.E injuriou os cinquenta homens abundantissimamente e a fundo, para bem os atemorizar e lhes fazer compreender toda a gravidade do seu dever. E para terminar, acrescentou:«Mas se se saírem bem, receberão uma boa recompensa, pois não há coração mais generoso do que o do nosso general, e eu lhe falarei em seu favor».

 

Então, em uníssono, eles rugiram o seu juramento, pois sabiam que aquele homem de confiança tinha mais intimidade com o general do que ninguém, com excepção do filho, e na verdade sentiam-se muito contentes por irem para províncias distantes e verem novas terras.

 

Ao romper a manhã, Wang o Tigre levantou-se do seu leito de insónia para assistir à partida do filho. Acompanhou-o ao extremo do caminho, porque não podia suportar o ver-se separado dele. Não era apesar de tudo senão uma leve pausa e um pequeno atraso no inevitável. Depois de cavalgar um momento ao lado do filho, puxou pelas rédeas e disse bruscamente:

 

Já foi dito, meu filho, desde os tempos antigos que mesmo quando um homem acompanhasse o seu amigo três mil léguas, não evitaria o momento de separação, e é assim também contigo e comigo. Adeus!

 

Firmou-se então muito rígido no cavalo para receber as vénias do filho, e ficou-se a ver o rapaz pôr-se a cavalo de um salto e afastar-se a trote, acompanhado pelos cinquenta homens e o preceptor. Depois, Wang o Tigre deu meia volta ao cavalo para regressar à sua casa vazia, e não se voltou nem uma vez para olhar o filho.

 

Wang o Tigre concedeu-se três dias para se afligir, não comeu nada, nada pensou enquanto o último dos homens que mandara com o filho como mensageiros não chegou a fazer-lhe o seu relato. Voltavam de tantas em tantas horas de lugares diferentes, escalados no caminho e cada um trazia o seu relato. Um-dizia:

 

Segue muito bem e mais alegre do que é costume. Desceu duas vezes do cavalo para entrar num campo em que havia um camponês e conversar com ele.

 

E que podia ter ele que dizer a um ser assim ? perguntou Wang o Tigre, estupefacto.

 

E o homem respondeu, evocando fielmente as suas recordações:

 

Perguntou-lhe o que estava a semear e ele olhou para ver a semente, e olhou ainda para ver como o búfalo estava atrelado à charrua. E os homens da escolta riam-se ao ver aquilo, mas ele, não se preocupando com isso, olhava resolutamente para o búfalo.

 

Wang o Tigre ficou intrigado e disse:

 

Não vejo por que motivo um senhor de guerra se há-de preocupar a ver como um búfalo está atrelado à charrua ou que é que os lavradores semeiam. E, depois de uma pausa, continuou : Não tens mais nada a dizer-me do que isso ?

 

O homem reflectiu um momento e respondeu:

 

Deteve-se à noite numa hospedaria e comeu com apetite pão e carne, arroz e peixe, e só bebeu um pequeno copo de vinho Deixei-o ali e voltei para dar notícias dele.

 

Vieram depois outro e mais outro, trazendo notícias da saúde do filho e do que ele comia e bebia. Os7 relatos continuaram assim até ao dia em que o jovem chegou ao sítio onde devia embarcar para descer o rio de barco até ao mar. Então Wang o Tigre viu-se reduzido a esperar a chegada de uma carta, porque os mensageiros não tinham podido chegar mais longe.

 

Wang o Tigre não sabia realmente se lhe seria possível suportar a inquietação que lhe causava a ausência do filho, mas duas coisas vieram distraí-lo e impedi-lo de se confinar nos seus próprios sentimentos. A primeira foi que os espiões voltaram com estranhas informações, dizendo:

 

Soubemos que uma estranha guerra está a subir do Sul para o Norte, guerra que provém de uma espécie de revolta ou revolução e não uma boa guerra habitual, entre senhores de guerra.

 

Então Wang o Tigre, que nesses dias estava de muito mau humor, respondeu com certo tom depreciativo:

 

Isso não é novo: Quando eu era pequeno, ouvi falar de uma guerra de revolução e fui-me bater nela, supondo que realizava um nobre feito. Mas, apesar de tudo, não foi mais do que uma como as outras. Enquanto os senhores de guerra lutaram contra a dinastia, estiveram unidos, mas quando alcançaram vitória e o trono foi derrubado, separaram-se e de novo surgiu a cizânia entre eles.

 

Entretanto, os espiões regressavam todos com a mesma história, e respondiam:

 

Não, não, é uma nova espécie de guerra. Chama-se uma guerra do povo e pelo povo.

 

E como é que o povo pode ter uma guerra?replicava Wang o Tigre com força, erguendo as negras sobrancelhas diante dos seus ignaros espiões. Têm acaso espingardas ou vão fazer a guerra com bengalas e paus, forcados e foices ?

 

E lançava aos espiões olhares de tal modo fulminantes que eles se sentiam desconcertados, tossiam e se entreolhavam. Por fim, um deles disse humildemente:

 

Mas nós limitamo-nos a repetir aquilo que ouvimos dizer. Então Wang o Tigre perdoou-lhes com majestade e acrescentou :

 

É certo, e é esse o vosso dever, mas o que vocês ouviram são absurdos.

 

E mandou-os embora. Não lhes perdoava no entanto, inteiramente, o que haviam dito, e repetia-se a si próprio que lhe era necessário examinar aquela guerra para ver o que realmente era.

 

Mas antes que tivesse ocasião de reflectir, surgiu nas suas próprias regiões outra questão que lhe absorveu todos os pensamentos.

 

Aproximava-se o Verão, e visto que nada é tão mudável como o céu acima dos homens, era um Verão deslumbrante, de chuva e sol mesclados, e as águas retiravam-se e deixavam a terra fértil a descoberto, e por toda a parte onde os homens conseguiam encontrar um pouco de semente, bastava-lhes lançá-la ao solo tépido e fremente, fumegando ao sol, e a vida brotava da terra, e a colheita prometia sustento e abundância para todos.

 

Mas enquanto se esperava a colheita, havia ainda muitos homens famintos e nesse ano os ladrões espalharam-se de novo nas regiões de Wang o Tigre, e pior do que nunca. Sim, até mesmo nas regiões em que ele mantinha o seu grande exército bem alimentado e pago, havia homens tão desesperados que se atreveram a reunir-se em bandos de ladrões e a opor-se-lhe, e quando ele enviava os seus soldados contra eles, não os encontravam. Assemelhavam-se a um bando de fantasmas, porque os espiões de Wang o Tigre acorriam a dizer-lhe:

 

«Ontem, os ladrões estavam para Norte e queimaram a aldeia da família Ch’ing»ou diziam: «Há três dias, um bando de ladrões assaltou os negociantes, matou-os todos e levou os seus volumes de ópio e de sedas».

 

Então Wang o Tigre encolerizou-se muito ao ouvir tais excessos e principalmente porque assim se lhe frustravam os rendimentos das mercadorias em trânsito, de que precisava muito para se libertar de Wang o Negociante, e ficou tão furioso que sentiu necessidade de matar alguém. Começou a berrar pela casa e gritou aos seus capitães ordem de mandarem os seus soldados repartidos por grupos, numa expedição através de toda a região. Por cada cabeça de bandido que lhe trouxessem, daria como recompensa uma moeda de prata.

 

Mas, apesar de tudo, quando os seus soldados, estimulados pela recompensa, empreenderam o raid para se apoderar dos ladrões, não apanharam ninguém. Na verdade, a maior parte dos ladrões eram simples camponeses, que só operavam quando não eram perseguidos. Mas, se viam os soldados à sua procura, punham-se a cavar os campos e faziam aos soldados a triste narrativa do que tinham sofrido da parte de tal ou tal bando, e de todos os bandos falavam, mas não do seu próprio, que nunca mencionavam. E se ouviam qualquer outra pessoa mencioná-lo, passeavam em torno deles um olhar ausente e diziam que ignoravam a existência de um bando como aquele, de que nem o nome conheciam. Mas, por causa da recompensa que Wang o Tigre prometera e porque muitos dos seus homens eram ávidos, matavam o primeiro que encontravam e traziam a cabeça dele, dizendo que era a cabeça de um ladrão. E como ninguém podia dizer o contrário, recebiam a recompensa. Foram assim mortos muitos inocentes, mas ninguém ousava queixar-se, porque se sabia que Wang o Tigre mandava os seus homens por uma causa boa e justa, e se alguém se queixasse, arriscar-se-ia a enfurecer qualquer soldado e atrair a atenção sobre o autor da queixa, sugerindo assim ao soldado que tinha também uma cabeça.

 

Mas, num dia de pleno Verão, quando a cana do sorgo estava já muito mais alta que um homem, os ladrões espalharam-se por todos os lados, como um incêndio repentino, e Wang o Tigre sentiu-se a tal ponto zangado que partiu um dia em pessoa contra os ladrões, o que não lhe acontecera já há muitos dias e anos. Mas ouvira falar de um certo bando em uma aldeia, e os seus espiões tinham espreitado e tinham visto que de dia os camponeses eram cultivadores e à noite eram ladrões. As terras desses camponeses eram, segundo Aparece, terras baixas, e a aldeia ficava situada numa depressão, e os camponeses não tinham podido semear quando os outros, de maneira que não tinham ainda que comer.

 

Quando Wang o-Tigre soube com segurança até que ponto aqueles homens eram perversos e como iam de noite a outras aldeias, onde despojavam os habitantes dos seus víveres e matavam os que resistiam, a sua indignação subiu ainda de ponto. Dirigiu-se pessoalmente à aldeia, com as suas tropas, e deu-lhes ordens de a cercar e de não deixarem saída alguma pela qual alguém pudesse escapar-se. Depois, com outros soldados, percorreu a galope a aldeia, apoderando-se de todos os homens, novos e velhos, no número total de cento e setenta e três.

 

Depois de os mandar atar com cordas uns aos outros, Wang o Tigre deu ordem de os conduzir a uma eira que ficava em frente da casa do chefe da aldeia, e ali, do cimo do cavalo, lançou um olhar fulminante àqueles miseráveis. Uns choravam e tremiam, outros estavam cor de barro, mas alguns, que conheciam já o extremo desespero, mantinham-se rígidos e intrépidos. Só os velhos aceitavam o seu destino, dada a sua idade avançada, e todos esperavam a morte.

 

Mas quando viu que os tinha todos à sua mercê, Wang o Tigre sentiu arrefecer-se em si a cólera assassina. Já não sabia matar com o rigor de outrora; o movimento de piedade do filho perante os miseráveis famintos tornara-o mais fraco. E, para ocultar a sua presente fraqueza, carregou o sobrecenho, apertou os lábios e rugiu para os camponeses:

 

Merecem todos a morte desde o primeiro ao último! Então ainda não me conhecem, depois de tantos anos e não sabem que não admito ladrões nas minhas terras? Sou no entanto um homem misericordioso. Lembro-me dos seus avós e dos seus netos, e por esta vez não os mando matar. Reservo-lhes a morte para a próxima vez em que ousarem desobedecer-me e tornar a roubar. (Depois, dirigindo-se aos seus soldados que cercavam os aldeões, ordenou-lhes): Tirem as facas aguçadas dos cinturões e cortem-lhes só as orelhas, para que se lembrem do que hoje eu lhes disse!

 

Então os soldados de Wang o Tigre deram um passo em frente, endireitaram o fio das facas nas solas das botas e depois de terem cortado as orelhas dos ladrões amontoaram-nas no chão diante de Wang o Tigre. E Wang o Tigre olhou os ladrões, em cada um dos rostos dos quais corriam dois fios de sangue, e disse-lhes:

 

Que estas orelhas cortadas vos ajudem a não esquecer.

 

Depois, deu meia volta ao cavalo e partiu a galope. E enquanto ele se afastava, pensou que deveria talvez ter morto os ladrões, para acabar de uma vez com eles e assim limpar as suas regiões, pois uma tal morte ficaria como aviso para os outros; e pensou ainda que estava talvez a tornar-se fraco e demasiado misericordioso, agora que se ia fazendo velho. Mas consolou-se, dizendo de si para si:

 

«Por amor do meu filho, poupei aquelas existências e um dia lembrar-lhe-ei de que, por amor dele, me abstive de matar cento e setenta e três homens, o que lhe dará prazer».

 

ASSIM ocupou Wang o Tigre os meses durante os quais o filho o deixou sozinho na sua casa vazia. Quando expulsou mais uma vez os ladrões dos seus domínios e vieram as colheitas que resolveram as dificuldades, porque os habitantes tinham outra vez de comer, tomou consigo umaparte do exército e, no Outono, quando os ventos não tinham ainda refrescado e o Sol já não conservava o mesmo ardor, percorreu uma vez mais todas as suas terras, dizendo por várias vezes que devia pôr tudo em ordem para o filho, quando este voltasse. Porque, agora, Wang o Tigre concebera o projecto de lhe entregar o generalato naquelas regiões e de lhe oferecer o seu grande exército, só conservando para si uma pequena escolta. Teria então cinquenta’ e cinco anos e o filho vinte, e seria um homem. Ao perseguir com os olhos da fantasia aqueles belos sonhos, Wang o Tigre percorria as suas terras. Via já em imaginação o filho do filho, enquanto com os olhos materiais olhava os habitantes e o campo e enquanto ia pensando nos rendimentos que possuía e nas promessas de uma boa colheita. Agora, que a fome mais uma vez desaparecera, as terras produziam bem, apesar de mostrarem, como as pessoas, sinais daqueles dois anos de fome: a terra porque as colheitas iam ainda atrasadas, e as pessoas porque se viam ainda muitas faces chupadas, e se apresentavam em maior número velhos e gente nova. Mas a vida recomeçara e consolava Wang o Tigre ver muitas mulheres outra vez grávidas. E dizia de si para consigo:

 

«É muito possível que o Céu tenha mandado as fomes para me mostrar de novo o meu destino, porque me deixei descansar demasiado nestes últimos anos e me contentei muito facilmente com o que já possuía. É possível que as fomes tenham sido mandadas para me excitarem a tornar-me ainda maior do que sou, tendo um tal filho por herdeiro de tudo o que realizo e de tudo quanto ganho».

 

No decurso da viagem, chegou à cidade que outrora cercara e onde o seu sobrinho o Bexigoso exercia, há bastantes anos, o comando em seu nome. Wang o Tigre mandou à frente mensageiros, para anunciar a sua vinda, e olhou atentamente à direita e à esquerda, para ver como a cidade se comportara sob a autoridade do sobrinho.

 

Ultrapassara este a juventude, era agora homem feito, e tinha já um filho ou dois da herdeira de um tecelão de sedas que tomara por mulher. Quando soube que o tio estava a chegar e que se encontrava mesmo às portas da cidade, ficou no maior embaraço. A verdade era que vivia há anos já na mais profunda paz, e levara vida de tal modo tranquila que quase se esquecera de que era um soldado. Permanecera alegre e de costumes fáceis, ávido de prazer e de novidades e gostava da vida que ali levava, pois exercia autoridade, de maneira que os habitantes se mostravam gentis para com ele. Não o importunava grande trabalho, a não ser o de receber os rendimentos, e engordara. Nos últimos anos, deixara até de usar o uniforme de soldado para vestir roupas mais confortáveis, e apresentava todo o aspecto do negociante enriquecido. Estava, de facto, em boa amizade com os comerciantes da cidade e quando estes depunham na sua mão o dinheiro dos impostos para Wang o Tigre, ele tirava umas pequenas vantagens, conforme é uso entre comerciantes, e usava por vezes do nome do tio para lançar qualquer leve imposto sobre isto ou aquilo. Mas, se os comerciantes o sabiam, não o censuravam por isso, dado que qualquer outro faria o mesmo. Eram amigos do Bexigoso e presenteavam-no às vezes, sabendo que ele podia dizer o que lhe parecesse nos relatórios ao tio e ocasionar-lhes dificuldades.

 

Ora, quando ele soube daquela vinda inopinada, apressou-se a ordenar à mulher que tirasse o uniforme da cómoda onde ela o guardara, e mandou alinhar os soldados que, pelo seu lado, viviam também agradavelmente, servindo mais como criados do que como militares. Ao introduzir as grossas pernas nos calções do uniforme, perguntou-se o sobrinho de Wang o Tigre de que maneira pudera usar uma tal vestimenta tão áspera e tão dura. E como também a barriga se lhe desenvolvera mais do que quando era rapaz, as duas abas do dólman não o cingiam, de tal modo que se viu obrigado a traçar uma larga faixa para esconder isso. Então, revestido o menos mal possível do uniforme e com os soldados o mais bem alinhados que pôde ser, esperou a chegada de Wang o Tigre.

 

Ora, Wang o Tigre não precisou de muitos dias para discernir tudo quanto se tinha passado e para compreender a significação dos grandes banquetes que lhe ofereciam os negociantes e também o governador. Notava perfeitamente que o seu sobrinho transpirava debaixo da farda, e teve um sorriso mudo e sarcástico, num dia em que caíra o vento e o Sol escaldava, dia em que o sobrinho teve de despir a túnica por causa do calor, o que deixou ver que as duas partes do dólman não abotoavam por baixo da faixa. E Wang o Tigre pensou de si para si:

 

« Devo dar-me por muito feliz em ter um filho que é um homem senhorial, e não como aquele, filho de meu irmão, que, no fim de contas, não é mais do que um comerciante».

 

E mostrou atitude negligente para com o sobrinho e não o felicitou. Disse-lhe friamente:

 

Os soldados que comandas nem sequer sabem pegar na espingarda. Precisam evidentemente de uma nova guerra. Porque não os levas em uma expedição, no ano que vem, para os habituares de novo à vida militar?

 

Ao ouvir isto, o sobrinho começou a soprar, transpirando, pois embora não fosse, na verdade, um covarde e tivesse podido dar um soldado, se a sua vida fosse orientada em tal sentido, não era homem para comandar soldados numa expedição, nem para se fazer temer deles, e preferia agora a vida repousada. Quando Wang o Tigre se apercebeu do seu mal-estar, com o seu riso seco, bateu com a mão no punho da espada e gritou:

 

Ora vamos, sobrinho, já que levas tão boa vida e já que a cidade é tão rica, podemos aumentar os impostos! Tenho» tido que fazer grandes despesas para manter o meu filho no Sul e, pensando nele, tenho pensado em ir acrescentando os nossos rendimentos enquanto está longe. Sacrifica-te, portanto, um pouco e eleva para o dobro os impostos que me são destinados! ’,

 

Ora, o sobrinho de Wang o Tigre comprometera-se secretamente com os comerciantes. Se o seu tio procurasse elevar os impostos, falaria da miséria dos duros tempos que iam, e se conseguisse demovê-lo, devia receber uma boa soma como recompensa. Começou, portanto, timidamente, a falar naquele sentido, mas Wang o Tigre não se mostrou de modo nenhum impressionado pelas suas jeremiadas e acabou por exclamar muito brutalmente:

 

Vejo o que se passou aqui. Há outras maneiras de trabalhar contra mim sem ser a recusa de obediência, mas o meu remédio é o mesmo!

 

Então, com ar desolado, por virtude do bom dinheiro que perdia, o sobrinho fez o seu relato aos negociantes e estes enviaram a Wang o Tigre as suas próprias lamentações, dizendo:

 

O seu imposto não é o único. Temos também o imposto municipal e o do Estado. O seu é já o mais avultado dos três e não tiramos quase lucro dos negócios que fazemos.

 

Mas Wang o Tigre viu que era tempo de mostrar a espada. Dando por findas as maneiras polidas usadas até aí, respondeu com energia:

 

Sim, mas como tenho a força, tomarei eu próprio aquilo que não querem dar-me quando o peço delicadamente.

 

Assim Wang o Tigre castigou o sobrinho e o repôs no seu lugar, e assim assegurou o seu domínio sobre a cidade e sobre todas as regiões suas dependentes.

 

Quando tudo ficou regulado e estipulado, voltou a casa, para esperar aí o fim do Inverno, e ocupou-se a enviar espiões em busca de notícias, e a fazer projectos. Sonhava com grandes conquistas na Primavera, e sonhava que ainda mesmo naquela hora em que a idade ia aumentando, poderia talvez apoderar-se de toda a província para o filho.

 

Durante aquele longo Inverno, Wang o Tigre aferrou-se àquele sonho. Foi para ele um Inverno dos mais solitários, tão solitário que quase a todo o momento se dirigia aos aposentos das mulheres, tanto se encontrava fora de si. Mas nada tinha a esperar dessas visitas, porque a sua mulher ignorante habitava sozinha com as filhas e Wang o Tigre nada tinha a dizer-lhes, e assim portanto ficava triste e solitário junto delas, e mal as sentia suas. Perguntava-se por vezes o que seria feito da sua mulher letrada, que não vinha a casa há muitos anos, e habitava perto da filha que frequentava uma escola. Mandara uma vez a Wang o Tigre um retrato dela e da filha, e Wang o Tigre detivera-se uns momentos a contemplá-las. A rapariga era muito bonita. Mostrava no retrato um arzinho impertinente e olhava-o atrevida, com os olhos negros como que emboscados sob os cabelos curtos, e não chegava a senti-la sua. Bem sabia que ela devia ser uma dessas meninas alegres e conversadoras que há nos nossos dias, e diante das quais ele ficava sem ter que dizer. Depois olhou a mulher letrada. Olhou-a mais demoradamente do que à filha. Não a conhecera nunca; não, nem mesmo no tempo em que à noite ia para junto dela. Olhou-a mais longamente, e do seu retrato ela olhava-o também. E sentiu outra vez o mesmo mal-estar que de ordinário o invadia na presença dela, como se ela tivesse qualquer coisa a dizer-lhe que ele não queria ouvir, como se lhe dirigisse um pedido, um pedido de alguma coisa que ele não estava em condições de lhe dar. E murmurou de si para consigo, guardando o retrato para não tornar a vê-lo:

 

«Um homem não tem durante a vida tempo para todas essas coisas... Eu vivi muito ocupado... Não tive tempo para as mulheres».

 

Endureceu-se um pouco e considerou que era nele uma virtude não se ter aproximado das suas mulheres há inúmeros anos. Nunca tivera amor por elas.

 

Mas as horas mais solitárias eram aquelas em que ficava sozinho, à noite, diante da braseira. De dia, podia ainda ocupar-se melhor ou pior, mas as noites vinham sempre a seguir aos dias, e pesavam sobre ele negras e tristes como outrora, no passado. Nesses momentos, duvidava de si e sentia-se velho, duvidava de que, mesmo na Primavera, fosse capaz de fazer qualquer nova conquista. Nesses momentos, de olhar perdido nas brasas, com doloroso sorriso, mordiscava a barba e pensava tristemente no mais profundo de si:

 

«Pode muito bem ser que nenhum homem realize jamais tudo quanto se propunha fazer». Passados momentos, pensava ainda: «Suponho que um homem, quando lhe nasce um filho, faz no decorrer da vida suficientes projectos para ocupar três gerações».

 

Mas havia o velho homem de confiança de beiço rachado, que velava pelo seu velho chefe. E este, quando via Wang o Tigre meditar longamente à noite, diante das brasas, e sem gosto para se ocupar dos seus soldados durante o dia, a ponto tal que os deixava ociosos e com a liberdade de fazerem o que queriam; quando o via assim, o velho homem de confiança entrava sem mais cerimónias no quarto, trazendo com ele uma caneca de bom vinho quente e algumas carnes salgadas, para excitar a sede, e de mil maneiras insistia com ele para o distrair. Ao fim de alguns momentos, Wang o Tigre acabava por sair da sua obsessão. Bebia um pouco e depois um pouco mais, ficava alegre e podia dormir. Quando bebia assim, pensava, antes deadormecer:

 

«Ora, tenho o meu filhot e o que eu não puder fazer no decorrer da minha vida, ele o fará».

 

Nesse Inverno, sem se aperceber disso, Wang o Tigre habituou-se a beber como nunca bebera, e era isso uma-consolação para o velho homem de confiança, que o adorava. Se Wang o Tigre por vezes repelia a caneca, o fiel velho insistia, animando-o:

 

Beba, meu general, pois é bem preciso que a gente tenha um qualquer consolo e um pouco de alegria quando se vai fazendo velho, e o meu general é demasiado duro para consigo próprio.

 

Então, para lhe dar prazer e para lhe dar prova da sua estima, Wang o Tigre bebia. E por isso conseguia dormir, mesmo naquele Inverno, porque se sentia dessa maneira confortado, e quando bebia punha ardentemente a sua fé no filho, e escapava-lhe que jamais tivesse existido entre eles qualquer dissentimento. Nesses tempos, nunca ocorreu ao espírito de Wang o Tigre que os sonhos do filho pudessem diferir dos dele, e vivia na expectativa da Primavera.

 

Mas chegou uma noite antes da Primavera em que Wang o Tigre estava no calor do seu quarto meio adormecido. O vinho arrefecia na mesinha pequena, ao alcance da mão, e a espada afivelada fora posta ao lado do jarro de vinho.

 

De repente, no profundo silêncio da noite de Inverno, ouviu no pátio um tumulto de cavalos e de soldados que entravam e se detinham. Soergueu-se, com as mãos apoiadas nos braços da poltrona, não sabendo de quem aqueles soldados podiam ser e perguntando-se se estaria a sonhar. Mas, antes que lhe fosse possível qualquer outro movimento, alguém entrou precipitadamente:

 

O generalzinho, seu filho, acaba de chegar!

 

Ora, Wang o Tigre bebera muito naquela noite, por causa do frio, e teve dificuldade em voltar a si. Passou a mão pela boca e murmurou:

 

«Julgava, no meu sonho, tratar-se de um inimigo!»

 

E esforçou-se por acordar de todo, pôs-se a pé e foi até ao pátio de acesso.

 

Estava a quadra iluminada pelo clarão dos archotes que empunhavam numerosas mãos. No meio da claridade, avistou o filho. O jovem descera do cavalo e ficara numa atitude de expectativa. Ao ver o pai, inclinou-se, mas, ao inclinar-se, lançou-lhe um olhar singular, meio hostil. Wang o Tigre, que tremia de frio, aconchegou a túnica e, hesitando um pouco, perguntou, admirado:

 

Onde está o teu preceptor?... Porque estás aqui, meu filho? Ao que o jovem respondeu sem quase mexer os lábios:

 

Zangámo-nos e eu deixei-o.

 

Então Wang o Tigre saiu mais ou menos da sua obnubilação e compreendeu que ocorrera qualquer acidente desagradável, do qual não convinha falar na presença de todos aqueles simples soldados que se comprimiam tumultuàriamente em torno deles e que estavam sempre dispostos a testemunhar uma disputa. Deu meia volta e pediu ao jovem que o seguisse.

 

Dirigiram-se então ao quarto particular de Wang o Tigre, e este mandou sair toda a gente, e ficou sozinho com ele. Mas absteve-se de se sentar. Ficou de pé e o filho também. Wang o Tigre olhou-o da cabeça aos pés, como se nunca tivesse visto aquele jovem, que era seu filho. Por fim, disse lentamente:

 

Que uniforme é esse, tão singular, que vestes?

 

Ao ouvir isto, ele ergueu a cabeça e respondeu, no seu tom calmo e áspero:

 

É o uniforme do novo exército da Revolução.

 

E, passando a língua pelos lábios, ficou à espera, na frente do pai.

 

Nesse instante, Wang o Tigre compreendeu o que o filho fizera e quem agora era. Compreendeu que aquele era o uniforme do exército do Sul, na nova guerra cujo boato chegara até ele. E gritou:

 

É o exército do meu inimigo!

 

Sentou-se então bruscamente, porque a respiração embaraçava-se-lhe na garganta e faltava-lhe o ar. Ficou ali, sentindo subir por ele a sua cólera assassina, como não acontecera desde que matara a ex-mulher do Leopardo. Empunhou a espada estreita e acerada que estava em cima da mesa e clamou com um rugido:

 

És meu inimigo... Devia matar-te, filho!

 

Começou a ofegar, porque daquela vez a cólera era insólita e subia nele com uma rapidez tal que o tornava subitamente doente, e engolia em seco, sem se dar conta.

 

Mas naquele momento, o jovem já se não deixava intimidar como outrora, quando era criança. Não, ficou ali de pé, calmo e obstinado, e elevou as duas mãos para entreabrir a túnica e pôr a descoberto o peito glabro frente ao pai. Quando tomou a palavra, fê-lo com profunda amargura, e disse:

 

Bem eu sabia que sentiria vontade de me matar... É o seu exclusivo e único recurso. (Fixou os olhos no rosto do pai e acrescentou sem cólera): Mate-me!

 

E ficou pronto, à espera, com o rosto calmo e duro à luz das velas.

 

Mas Wang o Tigre era incapaz de matar o filho. Não, embora soubesse que qualquer homem tem a liberdade de matar um filho que lhe é rebelde, e que isso lhe seria contado como acto de pura justiça, apesar disso não foi capaz. Atirou a espada ao chão, levou a mão à boca para esconder os lábios e murmurou:

 

Sou demasiado fraco... demasiado fraco... ao fim e ao cabo, sou demasiado fraco para senhor de guerra.

 

Então, o jovem, que via o pai ficar assim com a boca escondida pela mão e a espada por terra; tornou a cobrir o peito, e tomou a palavra, num tom calmo e razoável, como se estivesse a falar para um velho:

 

Pai, julgo que não compreende. Nenhum dos que são já velhos compreendem. Não concebem a Nação no seu conjunto, não vêem como ela é fraca e desprezada...

 

Mas Wang o Tigre pôs-se a rir. Constrangeu o riso mudo a tornar-se ruidoso e disse, muito alto, sem no entanto retirar a mão:

 

Então julgas que nunca ninguém falou assim? Quando eu era novo... Vocês, os novos, julgam ser os únicos...

 

E Wang o Tigre fez retinir um riso forçado e estranho que o filho jamais ouvira em toda a sua vida. Aguilhoava-o como arma desconhecida, e despertou nele uma cólera que o pai jamais vira. E gritou subitamente:

 

Nós não somos o mesmo! O senhor é um revoltado... um chefe de bandidos! Se os meus camaradas o conhecessem, apelidá-lo-iam de traidor... mas eles nem sequer o seu nome conhecem... ínfimo senhor de guerra numa pequena capital de departamento!

 

Assim falou o filho de Wang o Tigre, que fora sempre tão paciente. Depois, olhou o pai, e no mesmo instante sentiu-se envergonhado. Calou-se, o rubor invadiu-lhe as faces e, baixando os olhos, pôs-se a desabotoar lentamente o cinto de couro e deixou-o cair no chão onde os cartuchos retiniram. E nada mais disse.

 

Mas Wang o Tigre não respondeu. Sentado na poltrona, permanecia imóvel com a boca oculta pela mão. Aquelas palavras tinham-lhe penetrado o entendimento e ele sentia em si o refluxo de uma força que para sempre o abandonava. Ressoava ainda até ao íntimo do seu coração o eco das palavras do filho. Sim, não passava de um ínfimo senhor de guerra... de um pequeno senhor de guerra numa minúscula capital de departamento... Depois, murmurou por detrás da mão, sem convicção, como que por um velho hábito:

 

Mas eu nunca fui chefe de bandidos.

 

O filho sentia-se nesse momento realmente arrependido, e acorreu pressuroso:

 

Não... não... não. (E depois, como que para disfarçar a vergonha, continuou:) Pai, devo dizer-lhe, que tenho de me esconder quando o meu exército tiver alcançado a vitória e chegar ao Norte. O meu preceptor instruíu-me durante anos e contava comigo. Era o meu capitão... Não me perdoará facilmente ter-vos preferido, meu pai...

 

O jovem deixou descair a voz e lançou um breve olhar ao pai. E havia nos seus olhos secreta ternura.

 

Mas Wang o Tigre absteve-se de responder. Era como se não tivesse ouvido. O jovem retomou a palavra, e lançava de vez em quando um olhar ao pai como quem solicita qualquer coisa.

 

Há a velha casa de adobe, onde poderia esconder-me. Poderia ir para lá. Se se lembrassem de aí me procurar, por mais que olhassem, não veriam em mim mais que um vulgar campónio e não o filho de um senhor de guerra!

 

E então o rapaz teve um sorrizinho, como se esperasse seduzir o pai por meio da sua tímida brincadeira.

 

Mas Wang o Tigre absteve-se de responder. Não compreendia o que o filho queria significar quando dizia: «Escolhi-o, pai». Não, Wang o Tigre continuava mudo e sentia acumularem-se sobre ele todas as vagas de amargura da sua existência. Nesse momento, saiu dos seus sonhos como se sai de repente de um nevoeiro, no seio do qual por muito tempo se caminhou e, olhando o filho, via um homem que não reconhecia. Sim, Wang o Tigre sonhara o filho e modelara a sua visão dele em conformidade com o seu sonho, e eis que o filho se encontrava ali e Wang o Tigre não o reconhecia. Um vulgar campónio! Wang o Tigre olhava e via o filho, e à medida que o olhava, sentia-se invadir de novo por uma velha impotência familiar. Era a mesma impotência amarga que ele costumava sentir, no tempo da sua juventude, em que a casa de terra era a sua prisão. Uma vez mais, seu pai, aquele velho enterrado, estendia a mão terrosa e a pousava no filho. E Wang o Tigre deitou um olhar oblíquo ao seu próprio filho e murmurou por detrás da mão, como se falasse só para si:

 

Não o filho de um senhor de guerra!

 

De repente, apercebeu-se de que a sua própria mão se tornava incapaz de refrear mais tempo o tremor dos lábios. Sentia a necessidade irresistível de chorar. E teria cedido a essa necessidade se nesse instante o seu fiel Beiço Rachado não entrasse, trazendo uma jarra de vinho quente, fumegante e perfumado.

 

O velho homem de confiança olhou o patrão como fazia sempre que entrava no quarto, e o que naquele momento viu fê-lo precipitar-se em direcção a ele tão depressa quanto podia; e lançou o vinho quente na taça vazia que se encontrava em cima da mesa.

 

Só então Wang o Tigre tirou a mão dos lábios. Pegou com avidez na taça de vinho, levou-a aos lábios e bebeu longamente. Era bom... quente, tão bom! Pousou a taça e murmurou:

 

Mais.

 

E, ao fim e ao cabo, não chorou.

 

                                                                                            Pearl S. Buck  

 

                      

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