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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


OS FILHOS DO ÉDEN / Ken Follett
OS FILHOS DO ÉDEN / Ken Follett

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

QUANDO JOHN TRUTH, um controverso locutor de rádio, divulga a ameaça de um sismo provocado por um grupo terrorista, quase ninguém leva a notícia a sério. Em todo o caso, as autoridades da Califórnia preferem jogar pelo seguro e Judy Maddox, jovem e brilhante agente do FBI, é encarregada de investigar o caso. Judy começa por falar com o sismólogo Michael Quercus que, para seu grande espanto, lhe garante que, de facto, é possível provocar um abalo de terra. Logo a seguir, um sismo registado nos confins do deserto confirma os piores temores de Judy e Michael: a ameaça é mesmo real. Na sombra, prossegue o sinistro plano de "Os Filhos do Paraíso", um culto secreto que tem na mira a informação guardada no computador de Michael.

 

 

 

 

Quando ele se deita para dormir, esta paisagem está sempre na sua mente:

Uma floresta de pinheiros cobre as encostas, densa como pêlo no dorso de um urso. O céu é tão azul, no ar límpido da montanha, que os olhos doem ao olhar para cima. A quilómetros da estrada existe um vale secreto com encostas íngremes e um rio de água fria na sua fenda. Aqui, escondida dos olhos de desconhecidos, uma encosta virada a sul foi desbravada, e videiras crescem em filas direitas.

Quando ele se lembra de como é belo, sente que o seu coração vai partir-se.

Homens, mulheres e crianças movem-se lentamente pela vinha, a cuidar das plantas. São os seus amigos, os seus amores, a sua família. Uma das mulheres ri. É uma mulher grande, com cabelos compridos, escuros, e ele sente um afecto especial por ela. Ela atira a cabeça para trás e abre muito a boca, e a sua voz clara flutua pelo vale como o canto de um pássaro. Alguns dos homens entoam uma ladainha em voz baixa enquanto trabalham, a pedir aos deuses do vale e das vinhas uma boa colheita. Aos pés deles encontram-se alguns cepos grossos, para lhes recordar o trabalho árduo que criou este lugar há vinte e cinco anos. O solo é pedregoso, mas é bom, porque as pedras retêm o calor do sol e aquecem a raízes das videiras, protegendo-as do gelo mortal.

Para lá da vinha existe um aglomerado de edifícios de madeira, simples mas bem construídos e à prova de água. Fumo ergue-se de uma cozinha. Numa clareira, uma mulher ensina um rapaz a fazer barris.

Este lugar é sagrado.

Protegido pelo segredo e por orações, manteve-se puro, o seu povo livre, enquanto o mundo em volta do vale degenerou em corrupção e hipocrisia, ganância e imundície.

Mas agora a visão muda.

Algo aconteceu ao ribeiro de águas rápidas e frias que costumava ziguezaguear pelo vale. A sua tagarelice foi silenciada, a sua pressa abruptamente parada. Ao invés de uma torrente de água transparente vê-se um lago escuro, silencioso e imóvel. As margens do lago parecem estáticas, mas, se afastar o olhar durante alguns momentos, o lago alarga. Em breve é obrigado a recuar para a encosta.

Não consegue compreender porque é que os outros não reparam na maré que não pára de subir. Quando o lago preto inunda as duas primeiras filas de videiras, eles continuam a trabalhar com os pés na água. Os edifícios são cercados, depois inundados. O lume na cozinha apaga-se, e barris vazios flutuam para longe pelo lago que está cada vez maior. Por que é que não fogem?, pergunta a si mesmo; e um pânico sufocante sobe-lhe pela garganta.

Agora o céu está escuro com nuvens cor de ferro, e um vento frio varre as roupas das pessoas, mas elas continuam a andar pelas vinhas, a baixar-se e a levantar-se, a sorrir umas para as outras e a conversar em vozes baixas, normais. Ele é o único que consegue vislumbrar o perigo, e apercebe-se de que deve pegar numa, duas ou mesmo três crianças e salvá-las do afogamento. Tenta correr para a filha, mas descobre que tem os pés presos na lama e não consegue mover-se; e enche-se de pavor.

Na vinha, a água sobe até aos joelhos dos trabalhadores, depois até à cintura e em seguida ao pescoço. Tenta gritar para as pessoas que ama, dizer-lhes que têm de fazer alguma coisa agora, rapidamente, nos próximos segundos, se não morrerão, mas embora abra a boca e esforce a garganta, não sairão quaisquer sons. É inundado pelo mais puro terror.

A água sobe até à sua boca aberta e começa a sufocá-lo.

E é então que acorda.

 

Um homem chamado Priest puxou a frente do chapéu de vaqueiro para baixo e espreitou para o deserto plano e poeirento do Sul do Texas.

Os arbustos verdes, baixos e murchos, de algarobo espinhoso e salva-brava, estendiam-se em todas as direcções até onde a vista alcançava. À sua frente, um trilho incerto e sulcado com três metros de largura tinha sido aberto no meio da vegetação. Os condutores hispânicos de bulldozer, que os abriam em linhas brutalmente rectas, chamavam-lhes senderos. De um lado, a intervalos de cinquenta metros exactos, bandeiras marcadoras em plástico rosa-forte flutuavam em pequenos postes de arame. Um camião deslocava-se lentamente pelo sendero.

Priest tinha de roubar o camião.

Tinha roubado o seu primeiro veículo aos onze anos, um Lincoln Continental de 1961, imaculadamente branco e novinho em folha, que estava estacionado, com as chaves na ignição, junto ao Teatro Roxy, na Broadway Sul, em Los Angeles. Priest, que naqueles tempos se chamava Ricky, quase não conseguia ver por cima do volante. Tinha ficado tão assustado que quase se mijara, mas guiara dez quarteirões e entregara orgulhosamente as chaves a Jimmy "Cara de Porco" Riley, que lhe dera cinco dólares, e depois levara a namorada a dar um passeio e batera com o carro na auto-estrada da Costa do Pacífico. Foi assim que Ricky entrou para o Bando Cara de Porco.

Mas este camião não era um mero veículo.

Enquanto observava, a maquinaria potente por detrás da cabina do condutor baixou lentamente uma placa de aço maciça, com dois metros quadrados, para o chão. Seguiu-se uma pausa, e depois ouviu um estrondo abafado. Uma nuvem de pó levantou-se à volta do camião quando a placa começou a pisar a terra ritmicamente. Sentiu o chão tremer por baixo dos pés.

Era um vibrador sísmico, uma máquina que enviava ondas de choque pela crosta terrestre. Priest nunca tivera grandes estudos, a não ser em roubar carros, mas era a pessoa mais esperta que já conhecera, e compreendia como funcionava o vibrador. Era semelhante ao radar e ao sonar. As ondas de choque reflectiam-se nos padrões da terra - como rocha ou líquido - e voltavam para a superfície, onde eram captadas por aparelhos de escuta chamados geofones, ou jarros.

Priest trabalhava na equipa dos jarros. Tinham colocado mais de mil geofones a intervalos medidos com precisão, numa grelha de um quilómetro e meio quadrado. De cada vez que o vibrador abanava, os reflexos eram captados pelos jarros e gravados por um supervisor que trabalhava num atrelado a que todos chamavam a casota do cão. Todas estas informações eram mais tarde introduzidas num supercomputador em Houston, para se produzir um mapa tridimensional do que havia por baixo da superfície da terra. O mapa seria vendido a uma empresa petrolífera.

A intensidade das vibrações aumentou, e o ruído assemelhou-se ao dos motores de um transatlântico a ganharem velocidade; depois o som parou abruptamente. Priest correu ao longo do sendero para o camião, a esfregar os olhos contra a vaga de pó. Abriu a porta e trepou para a cabina. Ao volante encontrava-se um homem atarracado, de cabelo preto, com cerca de trinta anos.

- Hei, Mário - disse Priest, e deslizou para o banco ao lado do condutor.

- Hei, Ricky.

Richard Granger era o nome de Priest na carta de condução profissional (classe B). A carta de condução era falsificada, mas o nome era verdadeiro.

Trazia um maço de cigarros Marlboro, a marca que Mário fumava. Atirou o maço para o tablier.

- Toma, trouxe-te uma coisa.

- Hei, meu, não precisas de me comprar cigarros.

- Estou sempre a cravar-te fumos. - Pegou no maço aberto, tirou um e colocou-o na boca.

Mário sorriu.

- E se comprasses os teus próprios cigarros?

- Diabos, não, não posso dar-me ao luxo de fumar.

- És doido, meu. - Mário riu-se.

Priest acendeu o cigarro. Tinha tido sempre muita facilidade para se relacionar com as pessoas, para as fazer gostar de si. Nas ruas onde crescera, as pessoas batiam em quem não gostavam, e ele tinha sido um miúdo rufia. Por isso tinha uma intuição muito apurada para o que as pessoas queriam dele - deferência, afeição, humor, o que fosse - e o hábito de lhes dar rapidamente o que pretendiam. No campo de petróleo, o que mantinha os homens juntos era o humor: normalmente trocista, por vezes inteligente, muitas vezes obsceno.

Embora estivesse ali há apenas duas semanas, Priest tinha conquistado a confiança dos colegas de trabalho. Mas não tinha achado uma maneira de roubar o vibrador sísmico. E precisava de o fazer nas próximas horas, pois amanhã o camião ia ser levado para outro local, a mil e cem quilómetros de distância, perto de Clovis, no Novo México.

O plano vago que engendrara era pedir boleia a Mário. A viagem demoraria dois ou três dias - o camião, que pesava vinte mil quilos, tinha uma velocidade de estrada de cerca de sessenta quilómetros por hora. Algures, embebedaria Mário ou coisa do género, e depois fugiria com o camião. Esperava que lhe ocorresse um plano melhor, mas até agora faltara-lhe a inspiração.

- O meu carro está a morrer - disse ele. - Queres dar-me uma boleia para San António amanhã?

Mário ficou surpreendido.

- Não vais até Clovis?

- Não. - Acenou com uma mão para a paisagem erma do deserto. - Olha à tua volta - disse ele. - O Texas é tão bonito, meu, que nunca mais vou querer sair daqui.

Mário encolheu os ombros. Neste tipo de trabalho, uma pessoa inquieta, apenas de passagem, não era nada invulgar.

- Claro, eu dou-te boleia. - Levar passageiros era contra as normas da empresa, mas os condutores faziam-no constantemente. - Encontra-te comigo na lixeira.

Priest assentiu. A lixeira era um descampado desolado, cheio de carrinhas a apodrecer e de televisores esmagados e de colchões cheios de vermes, nos arredores de Shiloh, a cidade mais próxima. Ninguém estaria lá para ver Mário recolhê-lo, a menos que andasse por lá um par de miúdos a matar cobras com uma espingarda de calibre .22.

- A que horas?

- Mais ou menos às seis.

- Eu levo café.

Priest precisava deste camião. Sentiu que a sua vida dependia dele. As palmas das mãos ardiam de vontade de agarrar Mário ali e agora e atirá-lo para fora e levar o camião. Mas não valia a pena. Para começo de conversa, Mário era quase vinte anos mais novo do que Priest e talvez não se deixasse expulsar com tanta facilidade. Para além disso, o roubo não podia ser detectado durante alguns dias. Priest precisava de levar o camião para a Califórnia e escondê-lo antes que todos os polícias da nação fossem alertados para procurar um vibrador sísmico roubado.

Ouviu-se um bip no rádio, para indicar que o supervisor da casota do cão tinha verificado as informações da última vibração e não tinha detectado problemas. Mário içou a placa, engatou a primeira e avançou cinquenta metros, parando exactamente ao lado da próxima bandeira marcadora cor-de-rosa. Depois baixou novamente a placa e enviou um sinal a indicar que estava pronto. Priest observou atentamente, como fizera várias vezes antes, certificando-se de que se lembrava da ordem por que Mário accionava as alavancas e premia os interruptores. Se mais tarde se esquecesse de alguma coisa, não teria ninguém a quem perguntar.

Esperaram pelo sinal rádio da casota do cão que daria início à vibração seguinte. Podia ser feito pelo condutor do camião, mas regra geral os supervisores preferiam deter o comando eles próprios e iniciar o processo por controlo remoto. Priest acabou o cigarro e atirou a beata pela janela. Mário acenou em direcção ao carro de Priest, estacionado a quatrocentos metros na estrada de alcatrão com duas faixas de rodagem.

- É a tua mulher?

Priest olhou. Star tinha saído do Honda Civic azul-claro, muito sujo, e estava encostada ao capot, a abanar o rosto com o chapéu de palha.

- Sim - disse ele.

- Deixa-me mostrar-te uma fotografia. - Mário tirou uma velha carteira de pele do bolso das calças de ganga. Extraiu uma fotografia e passou-a a Priest. - Esta é a Isabella - disse com orgulho.

Priest viu uma bonita rapariga mexicana de vinte e tal anos com um vestido amarelo e uma fita amarela na cabeça. Tinha um bebé na anca, e um rapaz de cabelos escuros, envergonhado, ao lado.

- Teus filhos?

Ele acenou afirmativamente.

- O Ross e a Betty.

Priest resistiu ao impulso de sorrir para os nomes anglo-saxónicos.

- Miúdos giros. - Pensou nos seus próprios filhos e quase falou a Mário sobre eles; mas conteve-se a tempo. - Onde é que vivem?

- Em El Paso.

O germe de uma ideia desabrochou na mente de Priest.

- Vê-los muito? Mário abanou a cabeça.

- Estou a trabalhar, e trabalhar, meu. A poupar dinheiro para lhes comprar uma casa. Uma casa bonita, com uma cozinha grande e uma piscina no pátio. Eles merecem isso.

A ideia floresceu. Priest'escondeu a excitação e manteve a voz indiferente de uma conversa banal.

- Pois, uma casa bonita para uma família bonita, certo?

- É nisso que estou a pensar.

No rádio soou outro bip, e o camião começou a abanar. O ruído parecia o de um trovão, mas mais constante. Começou numa nota baixa, profunda, e subiu lentamente para um tom agudo. Ao cabo de catorze segundos exactos parou.

No silêncio que se seguiu, Priest estalou os dedos.

- Acho que tive uma ideia... Não, talvez não.

- O quê?

- Não sei se resultaria.

- O quê, meu, o quê?

- Só pensei, sabes, a tua mulher é tão gira e os teus miúdos são tão engraçados que é um crime não os veres mais vezes.

- É essa a tua ideia?

- Não. A minha ideia é que eu podia levar o camião para o Novo México enquanto tu vais visitá-los, é só isso. - Era importante não parecer muito ansioso, disse Priest para si mesmo. - Mas se calhar não ia resultar - acrescentou num tom de voz estou-me-nas-tintas.

- Não, meu, não é possível.

- Provavelmente, não. Vejamos, se saíssemos cedo amanhã e fôssemos até San António juntos, eu podia deixar-te no aeroporto de lá, tu estavas em El Paso ao meio-dia, provavelmente. Brincavas com os miúdos, jantavas com a mulher, passavas a noite, apanhavas um avião no dia seguinte, eu ia-te buscar ao aeroporto de Lubbock... Qual é a distância entre Lubbock e Clovis?

- Cento e vinte, talvez cento e cinquenta quilómetros.

- Podíamos estar em Clovis nessa noite, ou na manhã seguinte o mais tardar, e ninguém descobriria que não guiaste o caminho todo.

- Mas tu queres ir para San António.

Merda. Priest não tinha pensado nisto como deve ser; estava a inventar à medida que falava.

- Hei, nunca estive em Lubbock - disse, descontraído. - Foi onde nasceu o Buddy Holly.

- Quem diabo é o Buddy Holly? Priest cantou:

- "I love you, Peggy Sue..." O Buddy Holly morreu antes de tu nasceres, Mário. Eu gostava mais dele do que do Elvis. E não me perguntes quem foi o Elvis.

- Farias todo esse caminho só por mim?

Ansioso, Priest perguntou a si mesmo se Mário estaria desconfiado ou apenas agradecido.

- Claro que sim - respondeu. - Desde que me deixes fumar os teus Marlboros.

Mário abanou a cabeça, espantado.

- És um tipo dos diabos, Ricky. Mas não sei.

Afinal, não estava desconfiado. Mas estava apreensivo, e provavelmente não podia ser pressionado para tomar uma decisão. Priest disfarçou a frustração com um espectáculo de despreocupação.

- Bom, pensa nisso - disse.

- Se alguma coisa correr mal, não quero perder o emprego.

- Tens razão. - Priest esforçou-se por afastar a impaciência. - O melhor é falarmos mais tarde. Esta noite vais ao bar?

- Claro.

- Que tal dares-me a resposta lá?

- Está bem, combinado.

No rádio soou o sinal de concluído, e Mário puxou a alavanca que içava a placa do chão.

- Tenho de voltar para a minha equipa - disse Priest. - Temos alguns quilómetros de cabo para enrolar antes do anoitecer. - Devolveu a fotografia de família e abriu a porta. - Escuta o que te digo, meu, se tivesse uma miúda tão gira, não saía da porcaria da casa. - Sorriu, e depois saltou para o chão e atirou com a porta.

O camião afastou-se para a bandeira seguinte quando Priest se afastou, a pontapear o pó com as botas bicudas.

Ao percorrer o sendero para onde tinha o carro estacionado, viu Star começar a andar para cima e para baixo, impaciente e ansiosa.

Em tempos tinha sido famosa, mas durante pouco tempo. No auge da época hippie, vivia no bairro Haight-Ashbury, em São Francisco. Priest não a conhecia nessa altura - tinha passado o final dos anos 60 a fazer o seu primeiro milhão de dólares -, mas tinha ouvido as histórias. Ela fora uma beleza avassaladora, alta e com cabelos pretos e com um corpo de formas generosas e curvilíneas. Tinha gravado um disco com uma banda chamada Raining Fresh Daisies. O álbum tinha feito pouco sucesso, e Star fora famosa durante alguns dias.

Mas o que a transformara numa lenda fora a sua promiscuidade sexual insaciável. Tinha feito sexo com qualquer pessoa que lhe agradasse brevemente; rapazes de doze anos ansiosos e surpreendidos homens de sessenta anos, rapazes que pensavam ser maricas e raparigas que não sabiam ser lésbicas, amigos que conhecia há anos e desconhecidos que encontrava na rua.

Mas isso fora há muito tempo. Agora estava a poucas semanas do quinquagésimo aniversário, e havia madeixas grisalhas nos seus cabelos. O corpo ainda era generoso, embora a elegância se tivesse perdido; pesava oitenta e cinco quilos. Mas continuava a emanar um magnetismo sexual extraordinário. Quando entrava num bar, os homens olhavam.

Mesmo agora, preocupada e com calor, as sacudidelas sensuais com que andava de um lado para o outro junto ao carro velho e bera eram um convite para o movimento da carne por baixo do vestido de algodão fino, e Priest sentiu necessidade de a agarrar ali mesmo.

- Que aconteceu? - perguntou ela logo que ele pôde ouvi-la. Priest era sempre optimista.

- Está a correr bem - disse ele.

- Isso parece mau - disse ela cepticamente. Sabia que não devia interpretar literalmente o que ele dizia.

Ele contou-lhe a proposta que fizera a Mário.

- A beleza da coisa é que o Mário é que vai ficar com as culpas - acrescentou.

- Como assim?

- Pensa nisso. Ele chega a Lubbock, procura-me, eu não estou lá, e o camião também não. Calcula que foi enganado. Que é que faz? Vai até Clovis para contar na empresa que perdeu o camião? Não me parece. Na melhor das hipóteses, é despedido. Na pior, pode ser acusado de roubar o camião e enfiado na cadeia. Aposto que nem sequer vai a Clovis. Mete-se novamente no avião, volta para El Paso, põe a mulher e os miúdos no carro e desaparece. Depois, a Polícia vai ter a certeza de que ele roubou o camião. E o Ricky Granger nem sequer vai ser suspeito.

Ela franziu o sobrolho.

- É um grande plano, mas será que ele vai morder a isca?

- Acho que sim.

A ansiedade dela aumentou. Bateu no tejadilho sujo do carro com a palma da mão.

- Merda, temos de conseguir aquele maldito camião!

Ele estava tão preocupado como ela, mas disfarçou com um ar convencido.

- Vamos conseguir - disse. - Se não for desta forma, será de outra.

Ela' pôs o chapéu de palha na cabeça, recostou-se contra o carro e fechou os olhos.

- Quem me dera ter a certeza. Ele acariciou-lhe a face.

- Precisa de boleia, senhora?

- Sim, por favor. Leve-me para o meu quarto de hotel com ar condicionado.

- Vai ter de pagar um preço.

Ela abriu muito os olhos com inocência fingida.

- Vou ter de fazer alguma coisa feia, senhor? Ele deslizou a mão para o meio das pernas dela.

- Sim.

- Oh, céus - disse ela, e puxou a parte de baixo do vestido até à cintura.

Não usava roupa interior.

Priest sorriu e desapertou as Levi's.

Ela disse:

- Que é que o Mário vai pensar se nos vir?

- Vai ficar com ciúmes - disse Priest, e entrou nela. Eram quase da mesma altura, e encaixavam com a facilidade da longa prática.

Ela beijou-o na boca.

Alguns minutos depois ele ouviu um veículo a aproximar-se na estrada. Levantaram ambos os olhos sem parar o que estavam a fazer. Era uma pickup com três estivadores no banco da frente. Os homens viram o que estava a acontecer e gritaram pela janela aberta ao passarem.

Star acenou-lhes, e disse:

- Olá, pessoal!

Priest riu com tanta vontade que se veio.

A crise tinha entrado na fase final e decisiva exactamente três semanas antes.

Estavam sentados à mesa comprida da cozinha, a comer a refeição do meio-dia, um guisado bem temperado de lentilhas e vegetais com pão fresco, acabado de sair do forno, quando Paul Beale entrou com um sobrescrito na mão.

Paul engarrafava o vinho que a comuna de Priest produzia - mas fazia mais do que isso. Era a ligação deles com o mundo exterior, o que lhes permitia lidar com o mundo e ao mesmo tempo mantê-lo à distância. Era um homem careca e com barba, usava um blusão de cabedal, e era amigo de Priest desde que os dois não passavam de uns rufias de catorze anos e rebolavam, bêbados, na pista de patinagem de L. A. no princípio dos anos 60.

Priest calculou que Paul tinha recebido a carta naquela manhã e se enfiara imediatamente no carro e viera de Napa. Também adivinhou o que continha a carta, mas esperou que Paul explicasse.

- É do Gabinete de Controlo da Terra - disse Paul. - Endereçada a Stella Higgins. - Entregou-a a Star, que estava sentada à cabeceira da mesa, diante de Priest. Stella Higgins era o seu nome verdadeiro, o nome com que arrendara esta parcela de terra ao Ministério do Interior no Outono de 1969.

A volta da mesa, calaram-se todos. Até os miúdos fizeram silêncio, sentindo a atmosfera de medo e desalento.

Star abriu o sobrescrito e tirou uma única folha. Leu-a com um olhar rápido.

- 7 de Junho - disse. Priest disse reflexivamente:

- Daqui a cinco semanas e dois dias. - Aquele tipo de cálculo ocorria-lhe automaticamente.

Diversas pessoas gemeram de desespero. Uma mulher chamada Song começou a chorar baixinho. Um dos filhos de Priest, Ringo, que tinha dez anos, disse:

- Porquê, Star, porquê?

Priest captou o olhar de Melanie, a mais recente no culto. Era uma mulher alta, magra, com vinte e oito anos, muito atraente: pele clara, cabelos compridos cor de paprica, e corpo de modelo. O filho de cinco anos, Dusty, estava sentado ao lado da mãe.

- O quê? - perguntou Melanie numa voz chocada. - Que é isto? Todos os outros sabiam que isto ia acontecer, mas era muito deprimente falar no assunto, e não tinham contado a Melanie.

Priest disse:

- Temos de sair do vale. Lamento, Melanie. Star leu a carta.

- A parcela de terra acima mencionada tornar-se-á perigosa para habitação humana a partir do dia 7 de Junho, portanto o seu arrendamento é cancelado nessa data, de acordo com a cláusula nona, parte B, parágrafo dois, do contrato de arrendamento.

Melanie levantou-se. A sua pele branca estava muito vermelha, e o rosto bonito contorceu-se numa raiva súbita.

- Não! - gritou ela. - Não! Não podem fazer-me isto... eu acabei de vos encontrar! Não acredito, é mentira. - Voltou a sua fúria para Paul. - Mentiroso! - gritou. - Filho-da-mãe mentiroso!

O filho dela começou a chorar.

- Hei, parem com isso! - disse Paul, indignado. - Eu não passo da porcaria do carteiro!

Começaram todos a gritar ao mesmo tempo. Bastaram algumas passadas para Priest estar ao lado de Melanie. Pôs um braço à volta dela e falou-lhe baixo ao ouvido.

- Estás a assustar o Dusty - disse. - Agora, senta-te. Tens razão em estar zangada, nós estamos furiosos.

- Diz-me que não é verdade.

Priest empurrou-a suavemente para a cadeira.

- É verdade, Melanie - disse. - É verdade. Depois de se acalmarem, Priest disse:

- Vá lá, pessoal, vamos lavar os pratos e voltar ao trabalho.

- Porquê? - disse Dale. Era o vinicultor. Não era um dos fundadores. Tinha chegado nos anos 80, desiludido com o mundo comercial. Depois de Priest e Star, era a pessoa mais importante do grupo. - Não estaremos aqui para a vindima - continuou. - Temos de sair daqui dentro de cinco semanas. Porquê trabalhar?

Priest fixou-o com o Olhar, o olhar hipnótico que intimidava todas as pessoas com excepção das voluntariosas. Deixou o aposento ficar em silêncio, para que todos ouvissem. Por fim, disse:

- Porque os milagres acontecem.

Um decreto local proibia a venda de bebidas alcoólicas na cidade de Shiloh, Texas, mas logo à saída da cidade havia um bar chamado Doodlebug, com imperial barata e uma banda de música do Oeste e criadas de mesa com calças de ganga justas e botas de vaqueiro.

Priest foi sozinho. Não queria que Star mostrasse o rosto e corresse o risco de ser recordada mais tarde. Desejou que ela não tivesse de vir ao Texas. Mas precisava de alguém que o ajudasse a levar o vibrador sísmico para casa. Conduziriam dia e noite, revezando-se, usando drogas para se manterem acordados. Queriam estar em casa antes de alguém dar por falta da máquina.

Lamentava a indiscrição daquela tarde. Mário vira Star à distância de quatrocentos metros, e os três estivadores na carrinha tinham-na visto apenas de passagem, mas ela tinha uma figura marcante, e provavelmente poderiam dar uma descrição tosca dela: uma mulher alta e branca, forte, com cabelos escuros e compridos...

Priest tinha mudado de aparência antes de chegar a Shiloh. Deixara crescer uma barba farfalhuda e bigode e amarrara os cabelos compridos num rabo de cavalo que mantinha escondido dentro do chapéu.

Porém, se tudo corresse de acordo com o plano, ninguém pediria descrições dele ou de Star.

Quando chegou ao Doodlebug, Mário já lá estava, sentado a uma mesa com cinco ou seis da equipa dos geofones e o chefe do grupo, Lenny Peterson, que controlava toda a equipa de exploração sísmica.

Para não parecer demasiado ansioso, Priest pegou num Long Star gigante e deixou-se ficar ao balcão durante algum tempo, a bebericar a sua cerveja pela garrafa e a conversar com a empregada do balcão, antes de ir para a mesa de Mário.

Lenny estava a ficar careca e tinha o nariz vermelho. Tinha dado o emprego a Priest dois fins-de-semana antes. Priest tinha passado uma noite no bar, a beber com moderação, sempre amigável para a equipa, a captar algumas noções de gíria de exploração sísmica, e a rir alto das piadas de Lenny. Na manhã seguinte tinha encontrado Lenny no escritório do acampamento e pedira-lhe emprego.

- Vou aceitar-te à experiência - dissera Lenny. Priest não precisava de mais nada.

Era trabalhador, aprendia depressa e dava-se bem com toda a gente, e alguns dias depois foi aceite como membro regular da equipa. Agora, quando se sentou, Lenny disse no seu lento sotaque texano:

- Então, Ricky, não vens connosco para Clovis.

- Pois não - disse Priest. - Gosto de mais do tempo daqui para me ir embora.

- Bem, só queria dizer, muito sinceramente, que foi um verdadeiro privilégio e prazer conhecer-te, mesmo por tão pouco tempo.

Os outros sorriram. Este género de gracejos era vulgar. Olharam para Priest à espera de uma resposta à altura. Ele assumiu uma expressão solene e disse:

- Lenny, és tão querido e tão bom para mim que vou perguntar-te mais uma coisa. Casas comigo?

Riram-se todos. Mário bateu nas costas de Priest. Lenny pareceu perturbado e disse:

- Sabes bem que não posso casar contigo, Ricky. Já te disse porquê. - Fez uma pausa para o efeito dramático pretendido, e inclinaram-se todos para a frente para não perder pitada. - Sou lésbica.

Soltaram gargalhadas estrondosas. Priest esboçou um sorriso pesaroso, a admitir a derrota, e pediu um jarro de cerveja para a mesa.

A conversa -mudou para basebol. A maior parte deles gostava dos Houston Astros, mas Lenny era de Arlington e seguia os Texas Rangers. Priest não se interessava por desporto, por isso esperou impacientemente, fazendo um comentário neutro uma vez por outra. Estavam com uma disposição expansiva. O trabalho tinha sido concluído a tempo e horas, tinham sido todos bem pagos, e era sexta-feira à noite. Priest bebericou lentamente a cerveja. Nunca bebia muito: detestava perder o controlo. Observou Mário a embebedar-se. Quando Tammy, a criada de mesa que estava a servi-los, trouxe outro jarro, Mário olhou sonhadoramente para os seios dela por baixo de uma blusa aos quadrados. Continua a desejar, Mário... amanhã à noite podes estar na cama com a tua mulher.

Uma hora depois, Mário foi à casa de banho dos homens.

Priest seguiu-o. Para o diabo com esta espera, chegou a hora da decisão.

Parou ao lado de Mário e disse:

- Acho que esta noite a Tammy vestiu roupa interior preta.

- Como é que sabes?

- Espreitei quando ela se inclinou sobre a mesa. Adoro ver um soutien de renda.

Mário suspirou. Priest continuou:

- Gostas de uma mulher com roupa interior preta?

- Vermelha - disse Mário, decidido.

- Sim, vermelho também é bonito. Dizem que quando a mulher veste roupa interior vermelha é sinal de que nos deseja realmente.

- A sério? - O hálito a cerveja de Mário tornou-se um pouco mais rápido.

- Sim, ouvi dizer algures. - Priest abotoou as calças. - Escuta, tenho de ir. A minha mulher está à espera no motel.

Mário sorriu e limpou o suor da testa.

- Vi-te com ela esta tarde, meu.

Priest abanou a cabeça num lamento trocista.

- É a minha fraqueza. Não consigo dizer que não a uma cara bonita.

- Estavas afazer aquilo, ali mesmo na porcaria da estrada!

- Pois. Bem, quando não vemos a nossa mulher há algum tempo, ela fica um bocado frenética para aquilo, estás a perceber o que quero dizer? - Vá lá, Mário, vê se pegas na porcaria da deixa!

- Sim, eu sei. Escuta, quanto a amanhã... Priest susteve a respiração.

- Uh, se continuas disposto a fazer como disseste... Sim! Sim!

- Vamos a isso.

Priest resistiu à tentação de o abraçar. Mário disse ansiosamente:

- Ainda queres, certo?

- Claro que sim. - Priest passou um braço à volta dos ombros de Mário quando saíram da casa de banho dos homens. - Hei, para que servem os amigos, percebes o que quero dizer?

- Obrigado, meu. - Havia lágrimas nos olhos de Mário. - És um tipo dos diabos, Ricky.

Lavaram as tigelas de cerâmica e as colheres de madeira numa grande bacia de água quente e secaram-nas com uma toalha feita de uma velha camisa de trabalho. Melanie disse para Priest:

- Bem, começamos de novo noutro sítio qualquer! Arranjamos um pedaço de terra, construímos cabanas de madeira, plantamos videiras, fazemos vinho. Por que não? Foi o que vocês fizeram há imensos anos.

- Pois foi - disse Priest. Guardou a tigela numa prateleira e atirou a colher para dentro da caixa. Momentaneamente, foi jovem de novo, forte como um touro e ilimitadamente enérgico, certo de que resolveria qualquer problema que a vida lhe trouxesse a seguir. Recordou os cheiros únicos daqueles tempos: madeira acabada de serrar; o corpo jovem de Star, a transpirar enquanto cavava o solo; o fumo característico da marijuana que cultivavam numa clareira nos bosques; a doçura inebriante das uvas ao serem esmagadas. Depois regressou ao presente e sentou-se à mesa.

- Há imensos anos - repetiu. - Arrendámos esta terra ao Governo por uma bagatela e depois eles esqueceram-se de nós.

Star acrescentou:

- Nunca nos aumentaram a renda, em vinte e nove anos. Priest continuou:

- Limpámos a floresta com o trabalho de trinta ou quarenta jovens que estavam dispostos a trabalhar de graça, doze e catorze horas por dia, por um ideal.

Paul Beale sorriu.

- As minhas costas ainda doem quando penso nisso.

- As videiras foram-nos oferecidas generosamente por um vinicultor do vale de Nappa que queria encorajar os jovens a fazer algo construtivo ao invés de estarem sentados a drogar-se o dia inteiro.

- O velho Raymond Dellavue - disse Paul. - Já morreu, Deus tenha a sua alma em descanso.

- E, mais importante, dispusemo-nos a viver no limiar da pobreza, semiesfomeados, a dormir no chão, com buracos nos sapatos, durante cinco longos anos, até obtermos a nossa primeira colheita vendável.

Star pegou num bebé que gatinhava no chão, limpou-lhe o nariz e disse:

- E não tínhamos miúdos com que nos preocupar.

- Certo - disse Priest. - Se pudéssemos reproduzir todas essas condições, começaríamos de novo.

Melanie não ficou satisfeita.

- Tem de haver uma maneira!

- Bom, e há - disse Priest. - O Paul arranjou uma maneira. Paul assentiu.

- Podiam criar uma empresa, pedir um empréstimo de um quarto de milhão de dólares a um banco, contratar uma equipa de trabalho e tornarem-se mais um bando de capitalistas gananciosos, atentos às margens de lucro.

- E isso - disse Priest - seria o mesmo que desistir.

Ainda estava escuro quando Priest e Star se levantaram no sábado de manhã em Shiloh. Priest foi buscar café ao restaurante ao lado do motel. Quando voltou, Star estava debruçada sobre um mapa das estradas à luz do candeeiro.

- Deves deixar o Mário no Aeroporto Internacional de San António por volta das nove e meia ou dez horas desta manhã - disse ela. - Depois vais querer sair da cidade pela Interestadual 10.

Priest não olhou para o mapa. Os mapas desconcertavam-no. Conseguia seguir as placas para a 1-10.

- Onde é que nos encontramos? Star calculou.

- Eu devo ter uma hora de avanço em relação a ti. - Pousou o dedo num ponto da página. - Há um sítio chamado Leon Springs na 1-10, a cerca de vinte e dois quilómetros do aeroporto. Vou estacionar num sítio onde não podes deixar de ver o carro.

- Parece-me bem.

Estavam tensos e excitados. Roubar o camião de Mário era apenas o primeiro passo do plano, mas era crucial: tudo o resto dependia disto. Star estava preocupada com coisas práticas.

- Que é que vamos fazer ao Hondal

Priest tinha comprado o carro há três semanas por mil dólares, em dinheiro.

- Vai ser difícil vendê-lo. Se virmos um stand de carros usados, talvez consigamos quinhentos por ele. Se não, procuramos um sítio com muitas árvores perto da interestadual e abandonamo-lo.

- Podemos dar-nos a esse luxo?

- O dinheiro torna-nos pobres. - Priest estava a citar um dos Cinco Paradoxos de Baghram, o guru cujo ideal de vida seguiam.

Priest sabia todo o dinheiro que tinham até ao último tostão, mas mantinha os outros na ignorância. A maior parte dos companheiros nem sequer sabia que existia uma conta bancária. E ninguém no mundo sabia que Priest guardava um fundo de emergência, dez mil dólares em notas de vinte coladas ao interior de uma guitarra acústica velha e gasta que estava pendurada num prego na parede da sua cabana.

Star encolheu os ombros.

- Não me preocupei com isso durante vinte e cinco anos, por isso acho que não vou começar agora. - Tirou os óculos que usava para ler.

Priest sorriu-lhe.

- Ficas gira com os óculos.

Ela olhou-o de lado e fez-lhe uma pergunta inesperada.

- Estás ansioso por voltar a ver a Melanie? Priest e Melanie eram amantes.

Ele pegou na mão de Star.

- Claro - respondeu.

- Gosto de te ver com ela. Ela faz-te feliz.

Uma recordação inesperada de Melanie passou pelo cérebro de Priest. Ela estava deitada, atravessada na cama dele, de barriga para baixo, e o sol da manhã entrava na cabana. Ele estava sentado a bebericar café, a observá-la, a apreciar a textura da pele branca dela, a curva do rabo perfeito, a forma como os cabelos ruivos, compridos, se espalhavam desordenadamente. Dentro de instantes ela sentiria o cheiro do café e rebolaria, abriria os olhos, e depois ele voltaria para a cama e faria amor com ela. Mas por enquanto estava numa antecipação luxuriante, a planear como ia tocar-lhe e excitá-la, a saborear este momento delicioso como um copo de vinho bom.

A visão desvaneceu-se e viu o rosto de quarenta e nove anos de Star num motel rasca do Texas.

- Não estás infeliz por causa da Melanie, pois não? - perguntou ele.

- O casamento é a maior das infidelidades - disse ela, citando outro dos Paradoxos.

Ele acenou afirmativamente. Nunca tinham pedido fidelidade um ao outro. Nos primeiros tempos era Star que troçava da ideia de se entregar exclusivamente a um amante. E quando fez trinta anos e começou a acalmar, Priest tinha testado a permissividade dela pavoneando-se com uma fila de raparigas à sua frente. Mas nos últimos anos, embora continuassem a acreditar no princípio do amor livre, nenhum deles se tinha aproveitado dos seus ideais.

Por isso Melanie tinha sido uma espécie de choque para Star. Mas não havia problema. De qualquer forma, o relacionamento deles estava muito enraizado. Priest não gostava de que ninguém pudesse prever o que ia fazer. Amava Star, mas a ansiedade mal disfarçada nos seus olhos deu-lhe uma agradável sensação de controlo.

Ela brincou com o copo descartável com café.

- Só pergunto a mim mesma o que é que a Flower pensa disto tudo. - Flower era a filha deles, uma rapariga de treze anos, a criança mais velha da comuna.

- Ela não cresceu numa família nuclear - disse ele. - Nós não a transformámos numa escrava das convenções burguesas. É esse o objectivo de uma comuna.

- Sim - concordou Star, mas não chegava. - Só não quero que ela te perca, é tudo.

Ele acariciou-lhe a mão.

- Isso não vai acontecer. Ela apertou-lhe os dedos.

- Obrigada.

Guardaram os poucos objectos pessoais em três sacos de compras. Priest pegou nos sacos e levou-os para o Honda. Star seguiu-o.

Tinham pago a conta na noite anterior. A recepção estava fechada e ninguém viu Star sentar-se ao volante e afastar-se quando o dia começava a nascer.

Shiloh era uma cidade com duas estradas e um semáforo no local onde as estradas se cruzavam. Não havia muitos veículos a esta hora, num sábado de manhã. Star passou o sinal vermelho e saiu da cidade. Chegaram à lixeira poucos minutos antes das seis horas.

Não havia qualquer placa na beira da estrada, nenhuma vedação ou cancela, apenas um trilho onde a salva-brava tinha sido esmagada por pneus de pickups. Star seguiu o trilho por uma ligeira subida. A lixeira situava-se num declive, escondida da estrada. Encostou ao lado de uma pilha de lixo a arder em fogo lento. Não havia vestígios de Mário nem do vibrador sísmico.

Priest percebeu que Star ainda estava perturbada. Tinha de lhe dar alento, pensou, preocupado. Hoje era o dia em que ela não podia dar-se ao luxo de se distrair. Se alguma coisa corresse mal, precisaria de estar alerta, concentrada.

- A Flower não vai perder-me - disse ele.

- Isso é bom - replicou ela, cautelosamente.

- Vamos ficar juntos, nós os três. Sabes porquê?

- Diz-me.

- Porque nos amamos.

Viu alívio escoar a tensão do rosto dela. Ela lutou para conter as lágrimas.

- Obrigada - disse.

Ele sentiu-se sossegado. Tinha-lhe dado o que ela precisava. Agora, ia ficar bem. Beijou-a.

- O Mário vai chegar a qualquer momento. Põe-te a andar agora. Ganha alguns quilómetros de avanço.

- Não queres que espere até ele chegar?

- Ele não pode ver-te. Não se sabe o que o futuro nos reserva, e não quero que possa identificar-te.

- Está bem.

Priest saiu do carro.

- Hei - disse ela -, não te esqueças do café do Mário. - Entregou-lhe o saco de papel.

- Obrigado. - Pegou no saco e bateu com a porta do carro. Deu a volta num círculo largo e afastou-se rapidamente, com os pneus a levantar uma nuvem de pó do deserto do Texas.

Priest olhou em volta. Achou surpreendente que uma cidade tão pequena pudesse dar origem a tanto lixo. Viu bicicletas torcidas e carros de bebé com aspecto de novos, sofás manchados e frigoríficos antiquados, e pelo menos dez carrinhos de supermercado. Aquele lugar era um desperdício de embalagens: caixas de cartão de aparelhagens estereofónicas, pedaços de polistireno muito leve para embrulhos que pareciam esculturas abstractas, sacos de papel e sacos de politeno e embrulhos de papel de alumínio, e uma imensidão de contentores de plástico que tinham contido substâncias que Priest nunca usara: activador de detergente, creme hidratante, amaciador de cabelo, amaciador de tecidos, tinteiros de fax. Viu um castelo de contos de fadas feito de plástico cor-de-rosa, presumivelmente um brinquedo de criança, e maravilhou-se com a extravagância esbanjadora de uma construção tão elaborada.

No vale do rio de Prata nunca havia muito lixo. Não usavam carrinhos de bebé nem frigoríficos, e raramente compravam alguma coisa embalada. As crianças usavam a imaginação para fazer um castelo de fadas a partir de uma árvore ou de um barril ou de uma pilha de madeira.

Um sol vermelho e nublado ergueu-se acima de uma cumeeira e reflectiu uma sombra comprida de Priest numa armação de cama enferrujada. Aquilo fê-lo pensar no nascer do Sol sobre os picos nevosos da Sierra Nevada, e sentiu uma saudade que quase doía do ar frio e puro das montanhas.

Em breve, em breve.

Algo brilhou aos seus pés. Um objecto de metal reluzente estava semienterrado na terra. Como não tinha mais nada para fazer, raspou a terra seca com a ponta da bota, depois inclinou-se e pegou no objecto. Era uma pesada chave-inglesa Stillson. Parecia nova. Priest pensou que Mário podia achá-la útil: parecia do tamanho exacto para a grande maquinaria do vibrador sísmico. Mas é óbvio que o camião devia ter um conjunto completo de ferramentas, com chaves de porcas adaptáveis a cada porca usada na sua construção. Mário não precisava de uma chave-inglesa que tinha sido deitada no lixo. Era a sociedade do usar e deitar fora.

Priest deixou cair a chave-inglesa.

Ouviu um veículo, mas não parecia um camião grande. Olhou na direcção do som. Instantes depois uma pickup escura apareceu no fim da subida, a baloiçar no trilho incerto. Era uma Dodge Ram com o vidro da frente estalado: o carro de Mário. Priest sentiu desassossego. Que significava isto? Mário devia aparecer no vibrador sísmico. O seu carro seria levado para norte por um dos colegas, a menos que tivesse decidido vendê-lo aqui e comprar outro em Clovis. Algo correra mal.

- Merda - disse ele. - Merda.

Disfarçou os sentimentos de fúria e frustração quando Mário encostou e saiu da carrinha.

- Trouxe-te café - disse ele, e estendeu o saco de papel a Mário.

- Que é que se passa?

Mário não abriu o saco. Abanou a cabeça tristemente.

- Não posso fazer isto, meu. Merda.

Mário continuou:

- Agradeço-te imenso o que te ofereceste para fazer por mim, mas tenho de dizer que não.

Que diabo é que se passa?

Priest mostrou os dentes e fez a voz parecer normal.

- Que é que aconteceu para mudares de ideias, amigo?

- A noite passada, depois de tu saíres do bar, o Lenny fez-me um grande discurso, meu, sobre quanto custa um camião, e como não posso dar boleias, nem apanhar ninguém na estrada, e como confia em mim, e coisas desse género.

Estou mesmo a ver o Lenny, cara de cu bêbado e piegas... provavelmente pôs-te à beira das lágrimas, Mário, seu filho-da-mãe idiota.

- Sabes como é, Ricky. É um trabalho bom... trabalho duro e muitas horas, mas o pagamento é bastante compensador. Não quero perder este emprego.

- Hei, não há problema - disse Priest com uma ligeireza forçada.

- Desde que ainda possas levar-me para San António. - Entre aqui e lá penso em alguma coisa.

Mário abanou a cabeça.

- É melhor não, não depois do que o Lenny disse. Não vou levar ninguém a lado nenhum naquele camião. Foi por isso que trouxe o meu carro aqui, para te poder dar boleia de volta para a cidade.

E que é que faço agora, por amor de Deus?

- Bom, então que dizes, queres ir andando?

E depois o quê?

Priest tinha construído um castelo de fumo, e agora viu-o tremer e dissipar-se na brisa ligeira da consciência culpada de Mário. Tinha passado duas semanas neste deserto quente e empoeirado, a trabalhar num emprego estúpido e inútil, e desperdiçara centenas de dólares em bilhetes de avião e contas de motel e em comidas rápidas.

Não tinha tempo para fazer tudo de novo.

Faltavam apenas duas semanas e um dia para o fim do prazo.

Mário franziu o sobrolho.

- Vamos embora, meu.

- Não vou desistir deste sítio - dissera Star para Priest no dia em que a carta chegou. Estava sentada ao lado dele numa carpete de caruma de pinheiro na orla da vinha, durante o período de descanso do meio da tarde, a beber água fresca e a comer passas feitas com as uvas do ano anterior.

- Isto não é apenas uma quinta de vinho, não é apenas um vale, não é apenas uma comuna... é à minha vida inteira. Viemos para aqui há tantos anos, porque acreditávamos que os nossos pais tinham criado uma sociedade que estava deturpada e corrupta e envenenada. E tínhamos razão, por amor de Deus! - O rosto chispou quando ela deixou o ardor evidenciar-se, e Priest pensou que ela ainda era muito bela. - Olha só o que aconteceu ao mundo lá fora - continuou ela, erguendo a voz. - Violência e fealdade e poluição, presidentes que mentem e violam a lei, motins e crime e pobreza. Entretanto, vivemos aqui em paz e harmonia, ano após ano, sem dinheiro, sem ciúmes sexuais, sem regras conformistas. Dissemos que a única coisa de que precisamos é de amor, e chamaram-nos ingénuos, mas nós estávamos certos e eles errados. Nós sabemos que encontrámos o modo certo de viver... provámo-lo. - A voz dela tinha-se tornado muito precisa, traindo as suas origens de dinheiro antigo. O pai pertencia a uma família rica mas passara a vida a exercer medicina num bairro degradado. Star tinha herdado o idealismo dele. - Faço tudo o que for preciso para salvar a nossa casa e o nosso modo de vida - continuou ela. - Morro por isso, se os nossos filhos puderem continuar a viver aqui. - A sua voz acalmou-se, mas as palavras foram claras, e falou com uma determinação impiedosa. - Também matarei por isso - disse. - Compreendes-me, Priest? Faço tudo o que for preciso.

- Estás a escutar-me? - perguntou Mário. - Queres boleia para a cidade ou não?

- Claro - disse Priest. Claro, seu idiota chapado, seu cobarde de merda, lixo maldito da terra, claro que quero boleia.

Mário virou-se.

O olhar de Priest fixou-se na chave-inglesa Stillson que tinha atirado para o chão alguns minutos antes.

No seu cérebro desenrolou-se um plano novo, completamente elaborado.

Enquanto Mário dava três passos para o carro, Priest baixou-se e apanhou a chave-inglesa.

A ferramenta tinha cerca de quarenta e cinco centímetros e pesava dois quilos ou dois quilos e meio. A maior parte do peso centrava-se na ponta de trabalho, com as bocas ajustáveis para prender grandes porcas hexagonais. Era de aço.

Olhou para além de Mário, para o trilho que conduzia à estrada. Não havia ninguém à vista.

Nenhuma testemunha.

Priest deu um passo em frente no momento em que Mário se esticou para abrir a porta da pickup.

Uma imagem súbita e desconcertante passou-lhe pela mente: uma fotografia de uma mexicana jovem e bonita com um vestido amarelo, com uma criança nos braços e outra ao lado, e por uma fracção de segundo vacilou ao sentir o peso esmagador do desgosto que traria às vidas daquelas pessoas.

Depois teve uma visão pior: um lago de água preta a subir lentamente para engolir uma vinha e afogar os homens, as mulheres e as crianças que tratavam das videiras.

Correu para Mário com a chave-inglesa erguida acima da cabeça.

Mário estava a abrir a porta do carro. Devia ter visto alguma coisa pelo canto do olho, pois quando Priest estava quase em cima dele, de súbito ele soltou um grito de medo e abriu a porta para trás, escudando-se parcialmente.

Priest chocou contra a porta, que voou para cima de Mário. Era uma porta larga e pesada, e derrubou Mário para o lado. Os dois homens cambalearam. Mário perdeu o equilíbrio e caiu de joelhos, de frente para a parte lateral da carrinha. O boné de basebol dos Houston Astros aterrou no chão. Priest caiu para trás e sentou-se pesadamente na terra pedregosa, deixando cair a chave-inglesa. Esta aterrou numa garrafa plástica de Coca-Cola de dois litros e ressaltou para um metro de distância.

Mário ofegou:

- Seu maluco... - Subiu um joelho e procurou um apoio com a mão para içar o corpo pesado. A mão esquerda fechou-se em volta da moldura da porta. Quando ele se levantava, Priest... ainda com o rabo no chão... atirou a perna para trás e pontapeou a porta com toda a força que conseguiu com o calcanhar. Esta fechou-se nos dedos de Mário e abriu-se para trás. Mário gritou de dor e caiu sobre um joelho, batendo na parte lateral da pickup.

Priest levantou-se.

A chave-inglesa brilhava em tons prateados ao sol da manhã. Agarrou-a. Olhou para Mário, e o seu coração encheu-se de raiva e ódio do homem que tinha arruinado o seu plano cuidadoso e colocado o seu estilo de vida em perigo. Avançou para junto de Mário e ergueu a ferramenta.

Mário virou-se parcialmente para ele. A expressão do seu rosto jovem mostrava uma perplexidade infinita, como se não entendesse o que estava a suceder. Abriu a boca e, quando Priest desceu a chave-inglesa, disse numa voz interrogativa:

- Ricky...?

A ponta pesada da chave-inglesa fez um baque chocante quando se esmagou na cabeça de Mário. Os cabelos escuros do homem eram espessos e brilhantes, mas isso não fez qualquer diferença perceptível. O escalpe rasgou, o crânio estalou, e a chave-inglesa mergulhou no cérebro macio por baixo.

Mas ele não morreu.

Priest começou a ficar com medo.

Os olhos de Mário ficaram abertos e fixados em Priest. A expressão mistificada e traída quase inalterada. Ele parecia estar a querer acabar o que tinha começado a dizer. Levantou uma mão, como se quisesse chamar a atenção de alguém.

Assustado, Priest deu um passo atrás.

- Não! - disse. Mário disse:

- Meu...

Priest sentiu-se possuído por um pânico imenso. Levantou mais uma vez a chave-inglesa.

- Morre, filho-da-mãe! - gritou, e bateu novamente em Mário. Desta vez a chave-inglesa afundou mais. Tirá-la foi como arrancar alguma coisa de lama mole. Priest sentiu um acesso de vómitos quando viu a substância cinzenta, viva, espalhada pelas bocas ajustáveis da ferramenta. O estômago deu voltas e ele engoliu com força, sentindo-se tonto.

Mário caiu lentamente para trás e ficou encostado ao pneu traseiro, sem se mexer. Os braços estavam moles e o queixo caído, mas continuava vivo. Com os olhos pregados aos de Priest. Sangue jorrava-lhe da cabeça e corria-lhe pelo rosto e para a gola aberta da camisa aos quadrados. O olhar dele petrificou Priest.

- Morre - implorou Priest. - Por amor de Deus, Mário, por favor morre.

Não aconteceu nada.

Priest recuou. Os olhos de Mário pareciam implorar-lhe que terminasse o trabalho, mas ele não podia bater-lhe mais uma vez. Não tinha lógica nenhuma; simplesmente, não conseguia erguer a chave-inglesa.

Depois, Mário mexeu-se. A boca dele abriu-se, o corpo ficou rígido, e um grito estrangulado de agonia irrompeu-lhe da garganta.

O grito parou e o espasmo passou.

Priest deu um passo atrás e deixou cair a chave-inglesa ao chão.

O cadáver de Mário deslizou lentamente para o lado até a confusão que tinha sido a cabeça dele chegar ao chão. Os miolos cinzentos escorreram para o solo seco.

Priest caiu de joelhos e fechou os olhos.

- Deus Todo-Poderoso, perdoai-me - disse ele. Ajoelhou-se ali, a tremer. Estava com medo de abrir os olhos e ver a alma de Mário a subir.

Para acalmar a mente, recitou a sua ladainha:

- Ley, tor, pur-doy-kor... - Não tinha significado nenhum: por isso é que concentrar-se muito nela produzia um efeito calmante. Tinha o ritmo de uma canção de embalar de que se recordava da infância:

Um, dois, três-quatro-cinco Uma vez apanhei um peixe vivo Seis, sete, oito-nove-dez E depois deixei-o ir

Quando cantava para si, passava muitas vezes da ladainha para a cantiga de embalar. O efeito era o mesmo.

Enquanto as sílabas conhecidas o acalmavam, pensou na forma como o ar lhe entrava nas narinas, percorria as fossas nasais para a parte de trás da boca, passava pela garganta e descia para o peito, penetrando finalmente nos canais mais afastados dos pulmões, antes de refazer a viagem toda ao contrário: pulmões, garganta, boca, nariz, narinas, e de volta para a atmosfera. Quando se concentrou totalmente na viagem da respiração, nada mais lhe veio à cabeça - nenhuma visão, nenhum pesadelo, nenhuma recordação.

Alguns minutos depois levantou-se com o coração frio, uma expressão determinada no rosto. Tinha-se purgado de emoção: não sentiu pena nem piedade. O homicídio estava no passado, e Mário era apenas um pedaço de lixo de que tinha de se livrar.

Pegou no chapéu de vaqueiro, sacudiu o pó e pô-lo na cabeça.

Encontrou o estojo de ferramentas da pickup atrás do banco do condutor. Tirou uma chave de parafusos e usou-a para desaparafusar as placas de matrícula, da frente e de trás. Atravessou a lixeira e enterrou-as numa massa de lixo em combustão lenta. Depois recolocou a chave de parafusos no estojo de ferramentas.

Inclinou-se sobre o corpo. Com a mão direita agarrou o cinto das calças de ganga de Mário. Com a esquerda, apertou um pedaço da camisa aos quadrados. Levantou o corpo do chão. Gemeu quando as costas receberam o impacto da força: Mário era pesado.

A porta da pickup estava aberta. Priest baloiçou Mário para trás e para a frente algumas vezes, estabelecendo um ritmo, e depois, com um grande impulso, atirou o corpo para a cabina. O cadáver ficou deitado no banco, com os saltos das botas a sair pela porta aberta e a cabeça pendurada no espaço à frente do banco do passageiro. Escorria sangue da cabeça.

A seguir ao cadáver, atirou a chave-inglesa lá para dentro.

Queria tirar gasolina do depósito da carrinha. Para isso precisava de um tubo comprido e fino.

Abriu o capot, localizou o líquido de limpeza do pára-brisas e arrancou o tubo de plástico flexível que ia do reservatório até ao pulverizador do pára-brisas. Pegou na garrafa de dois litros de Coca-Cola em que tinha reparado anteriormente, depois deu a volta à carrinha e desenroscou a tampa do depósito de gasolina. Enfiou o tubo no depósito de combustível, chupou até sentir o sabor a gasolina, e depois colocou a ponta na garrafa de Coca-Cola. Lentamente, o recipiente encheu-se de gasolina.

A gasolina continuou a cair para o chão enquanto ele se dirigia para a porta da carrinha e esvaziava a garrafa de Coca-Cola por cima do cadáver de Mário.

Ouviu o som de um carro.

Priest olhou para o cadáver ensopado em gasolina na cabina da pickup. Se alguém se aproximasse agora, não poderia dizer nem fazer nada para esconder a sua culpa.

A calma rígida abandonou-o. Começou a tremer, a garrafa de plástico escorregou-lhe dos dedos e ele agachou-se no chão como uma criança assustada. A tremer, olhou para o trilho que levava à estrada. Um condutor madrugador teria vindo livrar-se de uma máquina de lavar loiça obsoleta, ou da casa de plástico de brincar com que os miúdos já não brincavam, ou dos fatos antiquados de um avô falecido? O ruído do motor aumentou quando o veículo se aproximou, e Priest fechou os olhos.

- Ley, tor, pur-doy-kor...

O ruído começou a desvanecer-se. O veículo tinha passado a entrada e descido o caminho. Era apenas tráfego.

Sentiu-se estúpido. Levantou-se, recuperando o controlo.

- Ley, tor, pur-doy-kor... Mas o susto fê-lo despachar-se.

Encheu novamente a garrafa de Coca-Cola e encharcou sem demora o banco de plástico e todo o interior da cabina com gasolina. Usou o resto da gasolina para fazer um rasto pelo chão, até à parte traseira da pickup, depois espalhou o resto perto da tampa do depósito de combustível. Atirou a garrafa para dentro da cabina e afastou-se.

Reparou que o boné dos Houston Astros de Mário estava no chão. Apanhou-o e atirou-o para a cabina, para junto do corpo.

Tirou uma carteira de fósforos das calças de ganga, acendeu um, e usou-o para incendiar os outros todos; depois, atirou a carteira em chamas para dentro da cabina da pickup e recuou apressadamente.

Seguiu-se uma grande labareda e uma nuvem de fumo preto, e num segundo o interior da cabina parecia uma fornalha. Instantes depois, as chamas serpentearam pelo chão para onde o tubo ainda espirrava gasolina do depósito. Houve outra explosão quando o depósito de gasolina explodiu, fazendo a pickup baloiçar nas rodas. Os pneus traseiros incendiaram-se, e chamas lamberam o chassis cheio de óleo.

Um cheiro nauseabundo, como o de carne a assar, encheu o ar. Priest engoliu com força e afastou-se mais.

Ao cabo de alguns momentos as chamas tornaram-se menos intensas. Os pneus, os bancos e o cadáver de Mário continuaram a arder lentamente.

Priest aguardou alguns minutos, a observar as chamas; depois aventurou-se a chegar mais perto, tentando respirar superficialmente para manter o fedor longe do nariz. Olhou para o interior da cabina da pickup. O cadáver e o banco tinham-se coagulado numa massa preta e sinistra de cinza e plástico derretido. Quando arrefecesse, o veículo seria apenas outro pedaço de lixo a que alguns miúdos tinham pegado fogo.

Sabia que não se livrara de todos os vestígios de Mário. Um olhar fugaz não revelaria nada, mas se a polícia alguma vez examinasse o veículo, provavelmente encontraria a fivela do cinto de Mário, as obturações dos dentes, e talvez os ossos carbonizados. Um dia, pensou Priest, Mário podia voltar para o assombrar. Mas tinha feito tudo o que estava ao seu alcance para esconder as provas do crime que cometera.

Agora precisava de roubar o vibrador sísmico.

Afastou-se do corpo a arder e começou a andar.

 

Na comuna do vale do rio de Prata existia o grupo secreto chamado os Comedores de Arroz. Tinha sete elementos, os que restavam dos que tinham sobrevivido ao Inverno desesperado de 1972-73, quando tinham ficado isolados por uma tempestade de neve e não tinham comido nada a não ser arroz cozido em neve derretida durante três semanas inteiras. No dia em que a carta chegou, os Comedores de Arroz ficaram a pé até muito tarde, sentados na cozinha, a beber vinho e a fumar marijuana.

Song, que em 1972 era uma miúda de quinze anos que fugira de casa, estava a tocar um blues na guitarra acústica. Alguns membros do grupo faziam guitarras no Inverno. Ficavam com aquelas que lhes agradavam mais, e Paul Beale levava o resto para uma loja em São Francisco, onde eram vendidas a preços elevados. Star estava a cantar num tom de contralto rouco, intimista, inventando a letra.

- Não vou apanhar aquele comboio que não presta... - Tinha a voz mais sensual do mundo, sempre tivera.

Melanie estava com eles, embora não fosse uma Comedora de Arroz, porque Priest não se deu ao trabalho de a mandar embora, e os outros não se atreviam a desafiar as decisões de Priest. Ela estava a chorar em silêncio, e lágrimas grossas corriam-lhe pela face. Não parava de dizer:

- Acabei de vos descobrir.

- Nós não desistimos - disse-lhe Priest. - Tem de haver uma forma de fazer o governador da Califórnia mudar de ideias.

Oaktree, o carpinteiro, um negro musculado que tinha a mesma idade que Priest, disse num tom pensativo:

- Sabem, não é difícil fazer uma bomba nuclear.

Tinha pertencido aos Fuzileiros, mas desertara depois de matar um oficial durante um exercício de treino, e estava ali desde essa altura.

- Podia fazê-la num dia, se tivesse um pouco de plutónio. Podíamos fazer chantagem com o governador... se não fizerem o que queremos, ameaçamos mandar Sacramento para o inferno.

- Não! - disse Aneth. Estava a amamentar uma criança. O rapaz tinha três anos: Priest achava que era mais do que tempo de a criança ser desmamada, mas Aneth sentia que o devia deixar mamar enquanto ele quisesse. - Não podemos salvar o mundo com bombas.

Star parou de cantar.

- Não estamos a tentar salvar o mundo. Desisti disso em 1969, depois de a imprensa mundial transformar o movimento hippie numa anedota. Agora, tudo o que quero salvar é isto, o que temos aqui, a nossa vida, para que os nossos filhos possam crescer em paz e amor.

Priest, que já considerara e rejeitara a ideia de fazer uma bomba nuclear, disse:

- A parte difícil é arranjar o plutónio.

Aneth tirou a criança do seio e bateu-lhe nas costas.

- Esqueçam isso - disse ela. - Eu não quero ter nada a ver com essa coisa. É mortal!

Star começou novamente a cantar.

- Comboio, comboio, comboio que não presta... Oaktree persistiu.

- Eu podia arranjar emprego numa central de energia nuclear e descobrir uma forma de iludir o sistema de segurança.

Priest disse:

- Eles iam pedir o teu currículo. E que é que dirias que fizeste nos últimos vinte e cinco anos? Pesquisa nuclear em Berkeley?

- Diria que tenho vivido com um bando de janados e que agora eles precisam de mandar Sacramento pelos ares, por isso fui lá buscar um pouco de radioactividade, meu.

Os outros riram-se. Oaktree recostou-se na cadeira e começou a cantar com Star.

- Não, não, não vou apanhar aquele comboio que não presta... Priest franziu o sobrolho ao observar o ambiente irreverente. Não conseguiu sorrir. Tinha o coração cheio de raiva. Mas sabia que por vezes as discussões descontraídas geravam ideias inspiradas, por isso deixou correr.

Aneth beijou o alto da cabeça do filho e disse:

- Podíamos raptar alguém. Priest disse:

- Quem? Provavelmente, o governador tem seis guarda-costas.

- Que tal o braço direito dele, aquele tipo, o Albert Honeymoon? - Ouviu-se um murmúrio de apoio: todos detestavam Honeymoon. - Ou o presidente da Coastal Electric?

Priest acenou afirmativamente. Aquilo podia resultar.

Percebia daquelas coisas. Há muito tempo que estava fora das ruas, mas lembrava-se das regras de um golpe: planear cuidadosamente, parecer descontraído, chocar tanto a vítima que ela mal conseguisse falar, agir com rapidez, e pôr-se a andar dali para fora. Mas alguma coisa o perturbava.

- É demasiado... bem, pouco ambicioso - disse ele. - Imaginem que um manda-chuva é raptado. Qual é o problema? Se queremos assustar as pessoas, não podemos andar com pezinhos de lã, temos de os deixar cagados de medo.

Absteve-se de dizer mais alguma coisa. Quando temos um tipo de joelhos, a chorar e a mijar as calças e a implorar, a suplicar para não lhe fazermos mais mal, é nessa altura que dizemos o que pretendemos; e ele fica imensamente grato, gosta muito de nós por lhe dizermos o que tem de fazer para a dor acabar. Mas esse tipo de conversa era errado para uma pessoa como Aneth.

Neste ponto, Melanie falou novamente.

Estava sentada no chão com as costas encostadas à cadeira de Priest. Aneth ofereceu-lhe o grande charro que estava a passar em volta. Melanie limpou as lágrimas, deu uma grande passa no charro e passou-o para Priest, e depois soprou uma nuvem de fumo e disse:

- Sabem, há dez ou quinze lugares na Califórnia onde as falhas na crosta terrestre estão sob uma, digamos, sob uma pressão tremenda, de tal forma que só seria preciso um toque minúsculo, ou alguma coisa do género, para fazer as placas tectónicas deslizar, e depois, bum! É como um gigante a deslizar num seixo. Não passa de um seixo minúsculo, mas o gigante é tão grande que a sua queda abana a terra.

Oaktree parou de cantar o tempo suficiente para perguntar:

- Melanie, miúda, que raio é que estás para aí a dizer?

- Estou a falar num sismo - disse ela.

Priest não se riu. Alguma coisa lhe disse que isto era importante. Falou com uma intensidade calma:

- Que estás a dizer, Melanie?

- Esqueçam os raptos, esqueçam as bombas nucleares - declarou ela. - E se ameaçássemos o governador com um sismo?

- Ninguém pode provocar um sismo - disse Priest. - Seria precisa uma quantidade enorme de energia para fazer a terra mexer-se.

- É aí que te enganas. Pode ser necessária apenas uma pequena quantidade de energia, se a força for aplicada no lugar certo.

Oaktree disse:

- Como é que sabes todas estas coisas?

- Estudei. Tenho um mestrado em sismologia. Agora devia estar a dar aulas numa universidade. Mas casei com o meu professor, e foi o fim da minha carreira A minha candidatura para o doutoramento foi recusada.

O tom dela era amargo. Priest tinha falado com ela sobre isto, e sabia que ela sentia um ressentimento muito grande. O marido tinha feito parte da comissão universitária que a recusara. Ele tinha sido obrigado a sair da sala enquanto o caso dela era debatido, o que parecia natural a Priest, mas Melanie sentia que o marido devia de alguma forma ter garantido o seu sucesso. Priest calculou que ela não era suficientemente boa para fazer um doutoramento - mas ela preferia acreditar em qualquer coisa menos nisso. Por isso, ele dissera-lhe que os elementos da comissão tinham ficado tão aterrorizados com a combinação de beleza e inteligência que tinham conspirado para a derrubar. Ela amou-o por a deixar acreditar nisso.

Melanie continuou:

- O meu marido... que em breve será meu ex-marido... desenvolveu a teoria do desencadeamento dos sismos por tensão. Em determinados pontos ao longo da linha da falha forma-se pressão pura, no decorrer das décadas, até um nível muito elevado. Depois, só é necessária uma pequena vibração na crosta terrestre para deslocar as placas, soltar toda aquela energia acumulada e provocar um sismo.

Priest estava cativado. O seu olhar cruzou-se com o de Star. Ela acenou sombriamente. Acreditava no não ortodoxo. Para ela, era uma questão de fé a teoria bizarra transformar-se em verdade, a forma de vida não convencional ser a mais feliz, e o plano disparatado funcionar onde propostas sensatas tinham fracassado.

Priest estudou o rosto de Melanie. Tinha um aspecto do outro mundo. A pele pálida, olhos verdes surpreendentes e cabelo ruivo que a fazia parecer uma bonita extraterrestre. As primeiras palavras que lhe tinha dito tinham sido: "És de Marte?"

Saberia do que estava a falar? Estava pedrada, mas às vezes as pessoas tinham as ideias mais criativas quando estavam sob o efeito de drogas. Ele disse:

- Se é assim tão fácil, por que é que ainda ninguém se lembrou de o fazer?

- Oh, eu não disse que seria fácil. É preciso ser-se sismólogo para saber exactamente onde é que a falha está sob uma pressão crítica.

A mente de Priest estava agora a trabalhar a grande velocidade. Quando uma pessoa estava verdadeiramente em sarilhos, por vezes a maneira de se livrar deles era fazer uma coisa tão esquisita, tão completamente inesperada, que o inimigo ficasse paralisado pela surpresa. Disse para Melanie:

- Como é que se pode provocar uma vibração na crosta terrestre?

- Essa seria a parte mais difícil - respondeu ela. Andar, andar, andar.

Vou andar nesse comboio que não presta...

Ao voltar a pé para a cidade de Shiloh, Priest deu por si a pensar obsessivamente no homicídio: a forma como a chave-inglesa tinha afundado nos miolos moles de Mário, o olhar no rosto do homem, o sangue a pingar para o espaço defronte do banco.

Não era bom pensar naquilo. Tinha de se manter calmo e atento. Ainda não tinha o vibrador sísmico que ia salvar a comuna. Disse para si mesmo que matar Mário tinha sido a parte fácil. A seguir tinha de deitar areia para os olhos de Lenny. Mas como?

Foi atirado para o presente imediato pelo som de um carro.

Vinha por detrás de si, e dirigia-se para a cidade.

Nestas bandas, ninguém andava. A maior parte das pessoas presumiria que o carro dele tinha avariado. Alguém pararia e lhe ofereceria uma boleia.

Priest tentou lembrar-se de um motivo para estar a dirigir-se a pé para a cidade às seis e meia da manhã de sábado.

Não lhe ocorreu nada.

Tentou invocar o deus, qualquer que fosse, que o tinha inspirado com a ideia de assassinar Mário, mas os deuses estavam em silêncio.

Num raio de setenta e cinco quilómetros não havia sítio algum de onde ele pudesse vir - a não ser do único lugar de que não podia falar, a lixeira onde as cinzas de Mário jaziam no banco da pickup queimada.

O carro abrandou ao aproximar-se.

Priest resistiu à tentação de pôr o chapéu em cima dos olhos.

Que estive eu a fazer?

- Fui para o deserto observar a natureza. Pois, salva-brava e cobras cascavéis.

- O meu carro avariou. Onde? Não o vi.

- Vim mijar. Tão longe?

Embora o ar da manhã estivesse frio, começou a transpirar.

O carro passou por ele lentamente. Era um modelo recente de um Dodge Néon com uma pintura verde metalizada e placas de matrícula do Texas. Lá dentro, vinha uma pessoa, um homem. Viu o condutor a examiná-lo pelo espelho retrovisor, a avaliá-lo. Podia ser um polícia fora de serviço...

Encheu-se de pânico, e teve de lutar contra o impulso de se virar e correr.

O carro parou e fez marcha atrás. O condutor baixou o vidro da janela mais próxima. Era um jovem asiático com um fato completo. Disse:

- Hei, amigo, quer uma boleia?

Que vou dizer? "Não, obrigado, adoro andar."

- Estou um bocado empoeirado - disse Priest, a olhar para as calças de ganga. Caí de eu quando estava a tentar matar um homem.

- Por estes lados, quem não está?

Priest entrou no carro. As suas mãos tremiam. Pôs o cinto, só para ter alguma coisa para fazer que disfarçasse a ansiedade. Quando o carro arrancou, o condutor perguntou:

- Que diabo está a fazer aqui a pé?

Acabei de matar o meu amigo Mário com uma chave-inglesa Stillson.

No último segundo, Priest inventou uma história.

- Tive uma briga com a minha mulher - contou ele. - Parei o carro e saí e afastei-me. Não me passou pela cabeça que ela se fosse embora. - Agradeceu aos deuses que o tinham inspirado mais uma vez. As mãos pararam de tremer.

- Seria por acaso uma mulher bem-parecida e de cabelo escuro num Honda azul por quem passei há cerca de vinte ou vinte e cinco quilómetros?

Jesus Cristo, quem és tu, o Homem Memória? O fulano sorriu e disse:

- Quando uma pessoa está a atravessar o deserto, todos os carros são interessantes.

- Não, não é ela - disse Priest. - A minha mulher está a guiar a porcaria da minha pickup.

- Não vi nenhuma pickup.

- Óptimo. Talvez não tenha ido muito longe.

- Provavelmente está estacionada no caminho de acesso a uma quinta a chorar baba e ranho, a desejar tê-lo de volta.

Priest sorriu, aliviado. O tipo tinha engolido a história. O carro chegou à entrada da cidade.

- E você? - disse Priest. - Como é que está levantado num sábado de manhã tão cedo?

- Não discuti com a minha mulher, vou para casa ter com ela. Vivo em Laredo. Sou vendedor de artigos em cerâmica... placas decorativas, estatuetas, letreiros a dizer "Quarto do Bebé", coisas muito bonitas.

- A sério? - Que maneira de desperdiçar a vida.

- Vendemo-los principalmente em lojas.

- A loja em Shiloh ainda não está aberta.

- Não tem importância porque hoje não trabalho. Mas talvez pare para tomar o pequeno-almoço. Recomenda algum sítio?

Priest teria preferido que o vendedor passasse pela cidade sem parar, para não ter oportunidade de mencionar o tipo barbudo a quem dera boleia perto da lixeira. Mas ele não poderia deixar de ver o Lazy Susan's quando passasse pela Rua Principal, por isso não valia a pena mentir.

- Há um restaurante.

- Como é a comida?

- As papas de aveia são boas. É logo a seguir ao semáforo. Pode deixar-me lá.

Um minuto depois o carro estacionou em espinha junto ao Susan's. Priest agradeceu ao vendedor de novidades e saiu.

- Bom pequeno-almoço - disse enquanto se afastava E, pelo amor de Deus, não converses com ninguém de cá.

O escritório local da Ritkin Seismex, a pequena empresa de exploração sísmica para que ele tinha estado a trabalhar, situava-se a um quarteirão do restaurante. O escritório era uma grande caravana num espaço de estacionamento livre. O vibrador sísmico de Mário estava parado no parque de estacionamento ao lado do Pontiac Grand Am vermelho-arando de Lenny.

Priest parou e olhou para o camião durante alguns momentos. Era um camião de dez rodas, com grandes pneus salientes como a armadura de um dinossauro. Por baixo de uma camada de pó do Texas, era azul-claro. Priest sentiu vontade de saltar lá para dentro e fugir com ele. Olhou para a maquinaria imponente e para a placa de aço maciça, para os depósitos e válvulas e manómetros. Podia ligar esta coisa num minuto, sem precisar de chaves. Mas se o roubasse agora, todos os polícias de trânsito do Texas andariam à sua procura dentro de alguns minutos. Tinha de ser paciente. Vou fazer a terra tremer, e ninguém vai impedir-me.

Entrou na caravana.

No escritório, a azáfama era grande. Dois supervisores da equipa de geómetros estavam debruçados sobre um computador enquanto um mapa a cores da área emergia lentamente da impressora. Hoje iam recolher o equipamento do campo e começar a transferi-lo para Clovis. Um supervisor estava a discutir ao telefone em espanhol, e a secretária de Lenny, Diana, verificava uma lista.

Priest atravessou uma porta aberta e entrou no gabinete interior. Lenny estava a beber café com um telefone encostado ao ouvido. Tinha os olhos raiados de sangue e o rosto manchado por causa dos copos da noite anterior. Cumprimentou Priest com um aceno quase imperceptível.

Priest parou ao pé da porta, à espera de que Lenny terminasse. Tinha o coração ao pé da boca. Sabia razoavelmente o que ia dizer. Mas Lenny morderia a isca? Tudo dependia disso.

Um minuto depois, Lenny desligou o telefone e perguntou:

- Hei, Ricky... viste o Mário esta manhã? - Estava aborrecido. - Já devia ter saído daqui há meia hora.

- Sim, vi-o - disse Priest. - Detesto trazer-te más notícias tão cedo, mas ele lixou-te.

- De que é que estás a falar?

Priest contou a história que tinha engendrado, num momento de inspiração, pouco antes de pegar na chave-inglesa e atirar-se a Mário.

- Estava com tantas saudades da mulher e dos filhos que se enfiou na carrinha e saiu da cidade.

- Uau, merda, isto é bestial. Como é que descobriste?

- Ele passou por mim na estrada, esta manhã cedo, na direcção de El Paso.

- Por que raio é que não me telefonou?

- Demasiado embaraçado por te deixar ficar mal.

- Bom, só espero que passe a fronteira e não pare até cair no maldito oceano. - Lenny esfregou os olhos com os nós dos dedos.

Priest começou a improvisar.

- Escuta, Lenny, ele tem uma família jovem, não sejas muito severo com ele.

- Severo? Estás a falar a sério? Ele já era.

- Ele precisa mesmo deste emprego.

- E eu preciso de alguém que guie esta carripana até ao Novo México.

- Ele anda a poupar para comprar uma casa com piscina. Lenny tornou-se sarcástico.

- Acaba com isso, Ricky, estou a ficar com vontade de chorar.

- Experimenta isto. - Priest engoliu em seco e tentou parecer desinteressado. - Eu levo a porcaria do camião para Clovis se me prometeres que não despedes o Mário. - Susteve a respiração.

Lenny olhou para Priest sem dizer nada.

- O Mário não é mau tipo, tu sabes isso - continuou Priest. Não fales precipitadamente, pareces nervoso, tenta parecer descontraído!

Lenny disse:

- Tens carta de condução profissional, classe B?

- Desde os vinte anos. - Priest pegou na carteira, tirou a carta de condução e atirou-a para cima da secretária. Era falsa. Star tinha uma igual. Também tinha sido falsificada. Paul Beale sabia onde arranjar esse tipo de coisas.

Lenny verificou-a, depois ergueu o olhar e disse, desconfiado:

- Afinal, qual é a tua ideia? Pensei que não querias ir para o Novo México.

Não chateies, Lenny, diz sim ou não!

- De repente quinhentos dólares não deixavam de me fazer jeito.

- Não sei...

Seu filho-da-mãe, matei um homem por causa disto, vá lá!

- Fazias o trabalho por duzentos?

Sim! Obrigado! Obrigado! Fingiu hesitar.

- Duzentos é pouco por três dias de trabalho.

- São dois dias, talvez dois dias e meio. Dou-te duzentos e cinquenta.

O que quiseres! Passa mas é para cá as chaves!

- Escuta, de qualquer maneira vou fazer o serviço porque o Mário é um bom miúdo e quero ajudá-lo. Por isso paga-me o que achares que o trabalho vale realmente.

- Está bem, seu filho-da-mãe manhoso, trezentos.

- Tens o teu problema resolvido. - E eu acabo de ganhar um vibrador sísmico.

Lenny disse:

- Hei, obrigado por me ajudares. Agradeço-te imenso. Priest esforçou-se por não irradiar triunfo.

- Não é nada.

Lenny abriu uma gaveta, tirou uma folha de papel e atirou-a pela secretária.

- Só tens de preencher este impresso para o seguro. Priest gelou.

Não sabia ler nem escrever. Olhou para o impresso, apavorado. Impacientemente, Lenny disse:

- Vá lá, pega no papel, por amor de Deus, não é uma cobra cascavel.

Não consigo compreender, lamento, esses floreios e linhas no papel só saltam e dançam, e não consigo fazê-las estar quietas!

Lenny olhou para a parede e falou para uma audiência invisível.

- Há um minuto juraria que o homem estava completamente acordado.

Ley, tor, pur-doy-kor...

Priest estendeu lentamente o braço e pegou no impresso.

Lenny disse:

- Afinal qual é o problema? Priest disse:

- Uh, estava apenas a pensar no Mário. Achas que ele está bem?

- Esquece-o. Preenche o impresso e põe-te a andar. Quero ver esse camião em Clovis.

- Está bem. - Priest levantou-se. - Preencho lá fora.

- Certo, vou voltar aos meus outros malditos cinquenta e sete problemas.

Priest saiu do gabinete de Lenny e passou para o gabinete principal.

Já passaste por isto uma centena de vezes antes, acalma-te, sabes como lidar com a situação.

Parou do lado de fora da porta de Lenny. Ninguém reparou nele; estavam todos ocupados.

Olhou para o impresso. Aí letras grandes salientam-se, como árvores no meio dos arbustos. Se estiverem salientes para baixo, tens o impresso de pernas para o ar.

Tinha o impresso de pernas para o ar. Virou-o.

Por vezes havia um X grande, impresso a negro, ou escrito a lápis ou tinta vermelha, para mostrar o sítio onde se escrevia o nome; mas este impresso não tinha nenhuma marca fácil de detectar. Priest sabia escrever o nome, mais ou menos. Demorava algum tempo, e sabia que era um gatafunho, mas conseguia escrevê-lo.

Porém, não sabia escrever mais nada.

Em miúdo era tão esperto que não precisava de ler nem escrever. Conseguia somar de cabeça mais depressa do que qualquer outra pessoa, embora não conseguisse ler os números no papel. A sua memória era infalível. Conseguia sempre levar as outras pessoas a fazerem o que queria sem escrever nada. Na escola, conseguia arranjar maneira de evitar ler em voz alta. Quando havia um trabalho escrito, ele podia pedir a outro miúdo que o fizesse por si, mas se isso falhasse tinha mil desculpas, e os professores acabavam por encolher os ombros e dizer que se uma criança não queria trabalhar, não podiam obrigá-la. Ganhou a reputação de ser preguiçoso, e quando pressentia a aproximação de uma crise fazia gazeta.

Mais tarde, tinha conseguido gerir uma empresa de venda a retalho de bebidas alcoólicas bem sucedida. Nunca escreveu uma carta, mas fazia tudo pelo telefone e pessoalmente. Tinha dúzias de números de telefone na cabeça até conseguir que uma secretária fizesse as chamadas para ele. Sabia exactamente quanto dinheiro tinha no banco. Se um vendedor lhe dava uma nota de encomenda, ele dizia: "Eu digo-lhe o que quero e você preenche a nota de encomenda." Tinha um contabilista e um advogado para tratarem dos assuntos com o Governo. Aos vinte e um anos possuía um milhão de dólares. Quando conheceu Star e se juntou à comuna já tinha perdido o dinheiro todo - não por ser analfabeto, mas porque defraudara os clientes e não pagara os impostos e pedira dinheiro emprestado à máfia.

Preencher o impresso para a companhia de seguros tinha de ser fácil.

Sentou-se à frente da mesa da secretária de Lenny e sorriu para Diana.

- Hoje pareces muito cansada, doçura - disse.

Ela suspirou. Era uma loura roliça com trinta e tal anos, casada com um estivador, e com três filhos adolescentes. Era rápida a cortar os avanços grosseiros dos homens que entravam na caravana, mas Priest sabia que ela era susceptível a um elogio delicado.

- Tenho tanto que fazer esta manhã, Ricky, que precisava de ter dois cérebros.

Ele fez um olhar desanimado.

- Que má notícia... eu ia pedir-te que me ajudasses com uma coisa.

Ela hesitou, e depois sorriu pesarosamente.

- O que é?

- A minha caligrafia é terrível, e queria que preenchesses este impresso por mim. Detesto incomodar-te quando estás tão ocupada.

- Bem, vou fazer uma troca contigo. - Apontou para uma grande pilha de caixas de cartão cuidadosamente etiquetadas e encostadas à parede. - Eu ajudo-te com o impresso se tu puseres esses ficheiros todos na carrinha Chevy Astro que está lá fora.

- Negócio fechado - disse Priest, agradecido. Deu-lhe o impresso.

Ela olhou para ele.

- Vais conduzir o vibrador sísmico?

- Sim, o Mário ficou com saudades de casa e foi para El Paso. Ela franziu o sobrolho.

- Não é nada típico dele.

- Pois não. Espero que ele esteja bem. Ela encolheu os ombros e pegou na caneta.

- Agora, primeiro precisamos do teu nome completo e da data e local de nascimento.

Priest deu-lhe as informações, e ela preencheu os espaços em branco no impresso. Era fácil. Por que é que tinha entrado em pânico? Só porque não estava à espera do impresso. Lenny tinha-o apanhado de surpresa, e por instantes ele tinha-se assustado.

Mas tinha experiência em disfarçar a sua incapacidade. Até frequentava bibliotecas. Fora assim que soubera da existência de vibradores sísmicos. Tinha ido à biblioteca central na Rua I, na baixa de Sacramento - um lugar grande e cheio de gente onde provavelmente o seu rosto não seria lembrado. Na secretária da recepção tinha sabido que a secção de ciência era no primeiro andar. Ali, sofrera uma punhalada de ansiedade quando olhara para as longas fileiras de estantes e para as filas de pessoas sentadas junto a ecrãs de computador. Depois, tinha captado o olhar de uma bibliotecária com ar amigável que tinha aproximadamente a sua idade.

- Ando à procura de informações sobre exploração sísmica - dissera ele com um sorriso caloroso. - Será que pode ajudar-me?

Ela tinha-o levado para a prateleira certa, tirara um livro e com um pouco de encorajamento encontrara o capítulo certo.

- Estou interessado em saber como se geram as ondas de choque - explicara ele. - Será que este livro tem as informações?

Ela folheara as páginas com ele.

- Parece haver três formas - dissera ela. - Uma explosão subterrânea, a queda de um peso ou um vibrador sísmico.

- Vibrador sísmico? - dissera ele com uma piscadela de olhos subtil. - Que é isso?

Ela tinha apontado para uma fotografia. Priest olhara, fascinado. A bibliotecária tinha dito.

- Parece-se bastante com um camião.

Para Priest, parecia-se muito com um milagre.

- Posso fotocopiar algumas destas páginas? - perguntara ele.

- Claro.

Se uma pessoa fosse suficientemente esperta, havia sempre uma forma de fazer outra pessoa encarregar-se da leitura e da escrita.

Diana acabou o impresso, fez um grande X ao lado de uma linha ponteada e estendeu-lhe o papel, dizendo:

- Assina aqui.

Ele pegou na caneta dela e escreveu laboriosamente. O "R" de Richard era como uma corista com seios grandes a esticar uma perna. Depois o "G" de Granger era como uma podadeira de árvores com uma grande lâmina redonda e uma pega curta. Depois de "RG" fez apenas uma linha ondulada como uma cobra. Não era bonita, mas as pessoas aceitavam-na. Descobrira que muitas pessoas assinavam os nomes com um gatafunho: as assinaturas não tinham de ser escritas com clareza, graças a Deus.

Era por isso que a carta de condução falsa tinha de estar em seu nome: era o único que ele conseguia escrever.

Olhou para cima. Diana estava a observá-lo com curiosidade, surpreendida com a lentidão com que ele escrevia. Quando os seus olhares se cruzaram, ela ruborizou-se e desviou o olhar.

Ele entregou-lhe o impresso.

- Obrigado pela ajuda, Diana, estou-te muito grato.

- Não tens de quê. Vou buscar-te as chaves do camião logo que o Lenny desligue o telefone. - As chaves eram guardadas no gabinete do chefe.

Priest recordou-se de que prometera tirar as caixas. Pegou numa e levou-a para fora. A carrinha verde estava no pátio com a porta de trás aberta. Arrumou a caixa e foi buscar outra.

De cada vez que entrava, verificava a secretária dela. Ela estava ao telefone, a falar com alguém acerca de reservas num motel em Clovis.

Priest rangeu os dentes. Estava quase lá, já faltava pouco para ter as chaves na mão, e estava a escutar conversa estúpida sobre quartos de motel! Obrigou-se a sentar-se quieto.

Por fim, ela desligou.

- Vou pedir aquelas chaves ao Lenny - disse. Pegou no impresso e entrou no gabinete interior.

Um motorista de bulldozer gordo chamado Chew entrou. A caravana abanou com o impacto das suas botas de trabalho a pisar o chão.

- Hei, Ricky - disse ele -, não sabia que eras casado. - Riu-se. Os outros homens que se encontravam no escritório levantaram os olhos, interessados.

Merda, que é isto? Priest disse:

- Ora, onde é que ouviste uma coisa dessas?

- Há bocado vi-te sair de um carro à porta do Susan's. Depois tomei o pequeno-almoço com o vendedor que te deu boleia.

Raios, que é que ele te contou?

Diana emergiu do gabinete de Lenny com uma argola de chaves na mão. Priest teve vontade de lha arrancar das mãos, mas fingiu estar mais interessado na conversa com Chew.

Chew continuou:

- Sabes que a omeleta do oeste do Susan's é realmente bestial. - Levantou a perna e deu um peido, depois levantou os olhos e viu a secretária parada à porta, a escutar. - Desculpa, Diana. De qualquer maneira, este jovem estava a contar como te deu boleia perto da lixeira.

Raios!

- Estavas a pé no deserto, sozinho, às seis e meia, porque discutiste com a mulher e paraste o carro e saíste. - Chew olhou para os outros homens, certificando-se de que tinha a atenção deles. - Depois ela pegou no carro, arrancou e deixou-te ali! - Sorriu abertamente, e os outros riram.

Priest levantou-se. Não queria que as pessoas se lembrassem de que estava perto da lixeira no dia em que Mário desaparecera. Precisava de acabar de vez com a conversa. Fez um olhar magoado.

- Bom, Chew, vou dizer-te uma coisa. Se alguma vez souber uma coisa sobre os teus assuntos particulares, especialmente alguma coisa embaraçosa, prometo que não vou gritá-la pelo escritório inteiro. Ora, que achas disso?

Chew disse:

- Não vale a pena ofenderes-te.

Os outros homens estavam envergonhados. Já ninguém queria falar no assunto.

Fez-se um silêncio constrangedor. Priest não queria sair num ambiente mau, por isso disse:

- Bolas, Chew, nada de ressentimentos. Chew encolheu os ombros.

- Não queria ofender, Ricky. A tensão diminuiu.

Diana entregou a Priest as chaves do vibrador sísmico. Ele fechou o punho sobre o molho de chaves.

- Obrigado - disse, tentando manter o júbilo afastado da voz. Mal podia esperar para sair dali e sentar-se atrás do volante. - Adeus a todos. Vemo-nos no Novo México.

- Vai com cuidado, ouviste? - disse Diana quando ele chegou à porta.

- Oh, vou fazer isso - replicou Priest. - Não tenhas dúvida. Saiu. O Sol tinha nascido, e o dia começava a aquecer. Resistiu à tentação de fazer uma dança de vitória à volta do camião. Subiu lá para dentro e ligou o motor. Verificou os manómetros. Mário devia ter enchido o depósito na noite anterior. O camião estava pronto para a estrada.

Não conseguiu apagar o sorriso do rosto enquanto se afastou do parque de estacionamento.

Seguiu para fora da cidade, metendo as mudanças, e dirigiu-se para norte, seguindo o mesmo caminho que Star percorrera no Honda.

Ao aproximar-se do desvio para a lixeira, começou a sentir-se estranho. Imaginou Mário ao lado da estrada, com miolos cinzentos a escorrer do buraco que ele lhe fizera na cabeça. Era um pensamento estúpido, supersticioso, mas não conseguia afastá-lo. O seu estômago contraiu-se. Por instantes sentiu-se fraco, demasiado fraco para conduzir. Depois recompôs-se.

Mário não era o primeiro homem que matava.

Jack Kassner era polícia, e tinha roubado a mãe de Priest.

A mãe de Priest era prostituta. Tinha apenas treze anos quando o dera à luz. Quando Ricky tinha quinze anos, ela trabalhava com mais três mulheres num apartamento por cima de uma livraria suja na Rua Sete, no bairro perigoso da baixa de Los Angeles. Jack Kassner era um detective da brigada de costumes que vinha uma vez por mês buscar a sua comissão. Normalmente, ao mesmo tempo também lhe faziam um broche grátis. Um dia, viu a mãe de Priest tirar o dinheiro do suborno da caixa no quarto das traseiras. Nessa noite a brigada de costumes invadiu o apartamento, e Kassner roubou mil e quinhentos dólares, que nos anos 60 era muito dinheiro. A mãe de Priest não se importou de passar alguns dias na cadeia, mas ficou devastada por perder todo o dinheiro que tinha poupado. Kassner disse às mulheres que, se elas se queixassem, lixava-as com acusações de tráfico de droga e iam todas dentro durante alguns anos.

Kassner pensou que três raparigas-B e um miúdo não representavam qualquer perigo. Mas na noite seguinte, quando estava na casa de banho dos homens do bar Blue Light, na Broadway, a despejar algumas cervejas, o pequeno Ricky Granger espetou-lhe a lâmina afiada de uma faca de quinze centímetros nas costas, cortando facilmente o casaco preto do fato de mohair, a camisa de nylon branco e perfurando o rim. Kassner estava com tantas dores que não conseguiu levar a mão à arma. Ricky esfaqueou-o mais vezes, rapidamente, enquanto o polícia jazia no chão de cimento húmido da casa de banho dos homens, a vomitar sangue; depois limpou a lâmina debaixo do lavatório e saiu.

Ao olhar para trás, Priest maravilhou-se com a segurança fria do seu ego de quinze anos. Tinham sido apenas quinze ou vinte segundos, mas durante esse tempo alguém podia ter entrado na casa de banho. Todavia, não sentira medo, nem vergonha, nem culpa.

Mas a partir daí ficara com medo do escuro.

Naqueles tempos não estava muitas vezes na escuridão. Normalmente, no apartamento da mãe as luzes estavam acesas toda a noite. Mas por vezes acordava um pouco antes de amanhecer numa noite fraca, como a segunda-feira, e descobria que estavam todas a dormir e as luzes estavam apagadas; e então era possuído por um terror cego, irracional, e andava às cegas pelo quarto, a chocar contra criaturas peludas e a tocar em estranhas superfícies peganhentas, até encontrar o interruptor da luz e se sentar na beira da cama, a transpirar abundantemente, a recuperar lentamente enquanto se apercebia de que a superfície peganhenta era o espelho e a criatura peluda era o seu casaco com gola de pêlo de ovelha.

Tinha tido medo do escuro até encontrar Star.

Recordou uma canção que tinha sido um êxito no ano em que a conhecera, e começou a cantar:

- Smoke on the water... - A banda chamava-se Deep Purple, lembrou-se. Naquele Verão toda a gente ouvia o álbum deles.

Era uma boa canção apocalíptica para cantar ao volante de um vibrador sísmico.

Smoke on the water A fire in the sky

Passou pela entrada da lixeira e seguiu, dirigindo-se para norte.

- Fazemos isso esta noite - tinha dito Priest. - Dizemos ao governador que vai haver um sismo de hoje a quatro semanas.

Star estava com dúvidas.

- Nem sequer temos a certeza se é possível. Talvez devêssemos fazer tudo o resto primeiro, colocar todos os nossos trunfos em acção, e depois fazer o ultimato.

- Raios, não! - declarou Priest. A sugestão enfureceu-o. Sabia que o grupo tinha de ser liderado. Precisava de que eles se envolvessem. Tinham de se expor publicamente, de correr um risco e de sentir que não havia volta. De outro modo, amanhã pensariam em motivos para se assustarem e recuarem.

Agora estavam inflamados. A carta tinha chegado hoje, e estavam todos zangados e desesperados. Star estava sombriamente determinada; Melanie estava enraivecida; Oaktree estava pronto para declarar guerra; Paul Beale estava a voltar para o seu género de rufião de rua. Song quase não tinha falado, mas era a criança desamparada do grupo e faria o que os outros decidissem. Apenas Aneth se opunha, mas a sua oposição seria fraca porque ela era uma pessoa fraca. Seria rápida a colocar objecções, mas recuaria ainda mais depressa.

O próprio Priest sabia com uma certeza fria que, se este lugar deixasse de existir, a sua vida acabaria.

Então Aneth disse:

- Mas um sismo poderia matar pessoas. Priest disse:

- Vou dizer-te como acho que isto vai acabar. Parece-me que teremos de provocar um sismo pequeno e inofensivo algures no deserto, apenas para provar que podemos fazer o que dizemos. Depois, quando ameaçarmos com um segundo sismo, o governador vai negociar.

Aneth voltou a concentrar-se no filho. Oaktree disse:

- Estou com o Priest. Fazemo-lo esta noite.

Star desistiu.

- Como é que devemos fazer a ameaça?

- Um telefonema anónimo ou uma carta, acho eu - disse Priest. - Mas tem de ser impossível detectar a origem.

Melanie disse:

- Podíamos colocá-la numa folha de notícias da Internet. Se usássemos o meu computador e um telemóvel, ninguém conseguiria descobrir a origem.

Priest nunca tinha visto um computador até Melanie chegar. Olhou interrogativamente para Paul Beale, que sabia tudo acerca daquelas coisas. Paul acenou afirmativamente e disse:

- Boa ideia.

- Está bem - disse Priest. - Vai buscar o teu material. Melanie saiu.

- Como é que assinamos a mensagem? - perguntou Star. - Precisamos de um nome.

Song disse:

- Alguma coisa que simbolize um grupo amante da paz que foi forçado a tomar medidas drásticas.

- Eu sei - disse Priest. - Vamos chamar-nos Os Filhos do Paraíso.

Faltava pouco para a meia-noite do dia 1 de Maio.

Priest ficou tenso quando chegou aos arredores de San António. No plano original, Mário teria conduzido o camião até ao aeroporto. Mas agora Priest estava sozinho quando entrou no labirinto de auto-estradas que circundavam a cidade, e começou a transpirar.

Não havia maneira de ele conseguir ler um mapa.

Quando tinha de passar por uma estrada desconhecida, levava sempre Star consigo para lhe dar as indicações. Ela e os outros Comedores de Arroz sabiam que ele era analfabeto. A última vez que tinha guiado sozinho por estradas desconhecidas fora no fim do Outono de 1972, quando fugira de Los Angeles e acabara, por acaso, na comuna do vale do Rio de Prata. Naquela época não se importava para onde ia. Na verdade, teria ficado feliz se morresse. Mas agora queria viver.

Até os sinais de trânsito eram difíceis para ele. Se parasse e se concentrasse durante algum tempo, conseguia dizer qual era a diferença entre "este" e "oeste" ou "norte" e "sul". Apesar da sua capacidade notável para cálculo mental, não conseguia ler números sem olhar com muita atenção e pensar durante muito tempo. Com esforço, conseguiu reconhecer as placas que indicavam a estrada 10: um pau com um círculo. Mas havia muitas outras coisas nos sinais de trânsito que não significavam nada para ele e que confundiam tudo.

Tentou manter-se calmo, mas era difícil. Gostava de controlar. Sentia-se enlouquecido pela sensação de impotência e desnorteamento que o invadia quando se perdia. Sabia pelo Sol para que lado era o norte. Quando pressentia que podia estar na direcção errada, encostava na bomba de gasolina seguinte e pedia indicações. Detestava fazê-lo, pois as pessoas reparavam no vibrador sísmico - era um veículo grande, e a maquinaria na parte de trás era bastante intrigante - e havia o perigo de poder ser lembrado. Mas tinha de correr o risco.

E as indicações nem sempre eram úteis. Os empregados das bombas de gasolina diziam coisas do género "Sim, fácil, siga a auto-estrada Corpus Christi até ver uma placa a indicar a Base da Força Aérea de Brooks".

Priest tinha de fazer um esforço para se manter calmo, e continuava a fazer perguntas, escondendo a frustração e a ansiedade. Representava o papel de um motorista de camiões simpático mas estúpido, o tipo de pessoa que seria esquecida no dia seguinte. E acabou por sair de San António na estrada certa, e rezou aos céus agradecendo aos deuses que o estivessem a escutar.

Alguns minutos depois, ao passar por uma pequena cidade, ficou aliviado ao ver o Honda azul estacionado à frente de um restaurante MacDonalds.

Abraçou Star efusivamente.

- Que diabo aconteceu? - perguntou ela, preocupada. - Esperava-te há um par de horas!

Ele decidiu não lhe contar que tinha assassinado Mário.

- Perdi-me em San António - disse.

- Estava com medo disso. Quando passei por lá, fiquei surpreendida com o nível de complicação do sistema de auto-estradas.

- Acho que não é tão mau como São Francisco, mas eu conheço São Francisco.

- Bom, agora estamos aqui. Vamos pedir café e ver se te acalmas.

Priest comprou um hambúrguer com feijões e recebeu um palhaço de plástico grátis, que guardou cuidadosamente no bolso para o filho de seis anos, Smiler.

Quando seguiram viagem, Star sentou-se ao volante. Planearam conduzir sem parar até à Califórnia. Levariam pelo menos dois dias e duas noites, talvez mais. Um dormiria enquanto o outro conduzia. Tinham algumas anfetaminas para combater a sonolência.

Deixaram o Honda no parque de estacionamento do MacDonald's. Quando arrancaram, Star deu um saco de papel a Priest, dizendo:

- Comprei-te um presente.

Dentro havia uma tesoura e uma máquina de barbear a pilhas.

- Agora podes livrar-te dessa maldita barba - disse ela.

Ele sorriu. Voltou o espelho retrovisor para si e começou a cortar. O seu cabelo crescia depressa e era espesso, e a barba e o bigode farfalhudos tinham tornado o seu rosto redondo. Agora, a sua face verdadeira reapareceu gradualmente. Com a tesoura, aparou os pêlos até ficarem quase rentes, e depois usou a máquina de barbear para terminar o trabalho. Por fim, tirou o chapéu de vaqueiro e desamarrou o rabo-de-cavalo.

Atirou o chapéu pela janela e olhou para a sua imagem reflectida no espelho. Os cabelos estavam puxados para trás numa testa alta e caíam em ondas à volta de um rosto magro. O nariz parecia uma lâmina e as maçãs do rosto eram chupadas, mas tinha uma boca sensual - muitas mulheres lhe tinham dito isso. Porém, normalmente era dos seus olhos que falavam. Eram castanho-escuros, quase pretos, e as pessoas diziam que tinham uma qualidade poderosa, que podia ser hipnotizadora. Priest sabia que não eram os olhos em si, mas a intensidade do olhar que podia cativar uma mulher: dava-lhe a sensação de que ele estava poderosamente concentrado nela e em nada mais. Também resultava com os homens. Usou o Olhar agora, ao espelho.

- Demónio encantador - disse Star... a rir para ele, mas de uma forma simpática, carinhosa.

- E inteligente também - disse Priest.

- Acho que és. Pelo menos, conseguiste a máquina. Priest acenou afirmativamente.

- E ainda não viste nada.

 

No Edifício Federal, na Avenida Golden Gate, 450, em São Francisco, na segunda-feira de manhã cedo, Judy Maddox, agente do FBI, estava sentada numa sala de audiências do décimo quinto andar, à espera.

A sala estava mobilada com madeira clara As salas de audiência novas tinham todas aquele tipo de mobiliário. Regra geral não tinham janelas, por isso os arquitectos tentavam torná-las mais luminosas recorrendo às cores claras. Pelo menos era essa a sua teoria. Passava muito tempo em salas de tribunal. E o mesmo acontecia à maior parte dos funcionários que faziam cumprir a lei.

Estava preocupada. No tribunal ficava sempre preocupada. Meses de trabalho, por vezes anos, a preparar um caso, mas não havia maneira de prever o que aconteceria quando fosse julgado. A defesa podia ser inspirada ou incompetente, o juiz um sábio perspicaz ou um velho senil, o júri um grupo de cidadãos inteligentes e responsáveis ou um bando de idiotas vadios que deviam estar atrás das grades.

Hoje estavam a ser julgados quatro homens: John Parton, Ernest "Taxman" Dias, Foong Lee e Foong Ho. Os irmãos Foong eram os grandes vigaristas, os outros dois os seus executivos. Em colaboração com uma tríade de Hong Kong, tinham montado uma rede de lavagem de dinheiro do narcotráfico do Norte da Califórnia. Judy tinha levado um ano para descobrir como é que eles operavam e outro ano para o provar.

Quando perseguia bandidos asiáticos tinha uma grande vantagem: parecia oriental. O pai era um irlandês de olhos verdes, mas ela era mais parecida com a falecida mãe, que era vietnamita. Judy era magra e tinha os cabelos escuros, e os olhos amendoados. Os bandidos chineses de meia-idade que ela estivera a investigar nunca tinham suspeitado de que esta bonita rapariga meio asiática era uma importante agente do FBI.

Estava a trabalhar com um advogado assistente do Ministério Público que conhecia invulgarmente bem. Chamava-se Don Riley, e até há um ano tinham vivido juntos. Tinha a idade dela, trinta e seis anos, e era experiente, enérgico e esperto como uma raposa.

Ela achara que tinham um caso à prova de falhas. Mas os réus tinham contratado a melhor firma criminal da cidade e construído uma defesa inteligente e vigorosa. Os advogados deles tinham comprometido a credibilidade de testemunhas que eram elas próprias, inevitavelmente, do meio criminal; e tinham explorado as provas documentais reunidas por Judy de forma a confundir e desnortear o júri.

Agora, nem Judy nem Don podiam adivinhar para que lado penderia a decisão.

Judy tinha um motivo especial para estar preocupada com este caso. O seu chefe imediato, o supervisor da brigada de Crime Organizado Asiático, estava prestes a reformar-se, e ela tinha-se candidatado ao lugar dele. Sabia que o director-geral do gabinete de São Francisco, o agente especial no comando, AEC, apoiaria a sua candidatura. Mas tinha um rival: Marvin Hayes, outro agente com grandes ambições e aproximadamente da sua idade. E Marvin também tinha um apoiante poderoso: o seu melhor amigo era o agente especial assistente responsável por todo o crime organizado e pelas brigadas de colarinho branco.

As promoções eram concedidas por uma comissão de carreira, mas as opiniões dos AEC e AEAR tinham muito peso. Naquele momento a competição entre Judy e Marvin Hayes estava cerrada.

Ela queria aquele cargo. Queria ir longe e depressa no FBI. Era uma boa agente, seria uma supervisora notável, e um destes dias seria a melhor AEC que o FBI já tinha tido. Tinha orgulho no FBI, mas sabia que podia torná-lo melhor: com a introdução mais rápida de técnicas novas como perfis através do uso de sistemas de gerência aerodinâmicos e - acima de tudo - livrando-se de agentes como Marvin Hayes.

Hayes era o típico agente da lei antiquado: preguiçoso, brutal, e sem escrúpulos. Não tinha prendido tantos bandidos como Judy, mas fizera prisões mais importantes. Era bom a insinuar-se numa investigação importante e rápido a distanciar-se de um caso que estava a correr mal.

O AEC tinha dado a entender a Judy que ela ficaria com o cargo, e não Marvin, se hoje ganhasse o caso.

No tribunal com Judy estava a maioria da equipa do caso Foong: o supervisor, os outros agentes que tinham trabalhado com ela, um linguista, a secretária do departamento e dois detectives do Departamento da Polícia de São Francisco. Para sua surpresa, nem o AEAR nem o AEC estavam ali. Tratava-se de um caso de vulto, e o resultado era importante para os dois. Sentiu uma ponta de mal-estar. Perguntou a si mesma se se passaria alguma coisa no escritório que ela desconhecia. Decidiu ir lá fora e telefonar. Todavia, antes de chegar à porta o escrivão do tribunal entrou e anunciou que o júri estava prestes a regressar. Sentou-se novamente.

Um momento depois Don voltou para dentro, a cheirar a cigarros: tinha recomeçado a fumar desde que se tinham separado. Ele tocou-lhe no ombro e apertou-o encorajadoramente. Ela sorriu-lhe. Ele estava bonito, com o corte de cabelo curto, um fato azul-escuro, camisa branca e uma gravata vermelho-escura Armani. Mas não havia química, não havia clique: ela já não sentia vontade de lhe despentear o cabelo e tirar-lhe a gravata e deslizar a mão dentro da camisa branca.

Os advogados de defesa regressaram, os réus foram trazidos para o banco, o júri entrou, e por fim o juiz emergiu dos seus aposentos e sentou-se.

Judy fez figas debaixo da mesa.

O escrivão levantou-se.

- Membros do júri, chegaram a um veredicto?

Fez-se silêncio absoluto. Judy apercebeu-se de que estava a bater o pé. Parou.

O presidente do júri, um lojista chinês, levantou-se. Judy tinha passado muitas horas a pensar se ele simpatizaria com os réus, porque dois deles eram chineses, ou detestá-los-ia por desonrarem a raça. Em voz baixa, disse:

- Sim.

- E como consideram os réus... culpados ou inocentes?

- Culpados.

Seguiu-se um segundo de silêncio enquanto a notícia era assimilada. Atrás de si, Judy ouviu um gemido vindo do banco dos réus. Resistiu ao impulso de gritar de alegria. Olhou para Don, que estava a sorrir-lhe abertamente. Os caríssimos advogados de defesa mexeram em papéis e evitaram olhar uns para os outros. Dois repórteres levantaram-se e saíram apressadamente, dirigindo-se para os telefones.

O juiz, um homem de rosto amargo, com cerca de cinquenta anos, agradeceu ao júri e marcou a sentença do caso para dali a uma semana.

Consegui, pensou Judy. Ganhei o caso, pus os maus na prisão e a promoção já está no papo. Agente Supervisora Especial Judy Maddox, com apenas trinta e seis anos, uma estrela em ascensão.

- Todos de pé - disse o escrivão. O juiz saiu.

Don abraçou Judy.

- Fizeste um óptimo trabalho - disse-lhe ela. - Obrigada.

- Tu deste-me um grande caso - replicou ele. Percebeu que ele queria beijá-la, por isso recuou um passo.

- Bom, trabalhámos bem os dois - disse ela.

Voltou-se para os colegas e dirigiu-se a todos, apertando-lhes as mãos e abraçando-os e agradecendo o trabalho. Depois, os advogados de defesa aproximaram-se. O mais velho dos dois era David Fielding, sócio da firma Brooks Fielding. Era um homem com cerca de sessenta anos e um aspecto distinto.

- Parabéns, Senhora Maddox, por uma vitória bem merecida - disse ele.

- Obrigada - disse ela. - Foi mais difícil do que eu esperava. Pensei que tinha tudo organizado até vocês começarem.

Ele aceitou o elogio com um aceno da cabeça bem penteada.

- A sua preparação foi imaculada. Teve formação em direito?

- Frequentei a Faculdade de Direito de Stanford.

- Bem me pareceu que tinha de ser licenciada. Bom, se alguma vez se cansar do FBI, por favor venha visitar-me. Na minha firma, em menos de um ano podia estar a ganhar três vezes mais do que o seu ordenado actual.

Ela sentiu-se lisonjeada, mas também sentiu que ele estava a ser condescendente, por isso a sua resposta foi brusca.

- É uma oferta simpática, mas eu quero pôr os maus na cadeia, não mantê-los em liberdade.

- Admiro o seu idealismo - disse ele suavemente, e voltou-se para conversar com Don.

Judy percebeu que tinha sido mordaz. Era um defeito seu, sabia. Mas que se lixasse, não queria trabalhar na Brooks Fielding.

Pegou na pasta. Estava ansiosa por partilhar a vitória com o AEC. O gabinete de investigação do FBI de São Francisco situava-se no edifício do tribunal, em dois andares mais baixos. Quando se voltava para sair, Don agarrou-lhe o braço.

- Jantas comigo? - perguntou. - Devíamos comemorar. Ela não tinha nenhum encontro marcado.

- Claro.

- Faço uma reserva e telefono-te.

Quando saiu da sala, lembrou-se da sensação que tivera antes, de que ele queria beijá-la; e desejou ter inventado uma desculpa.

Ao entrar no átrio das instalações do FBI perguntou uma vez mais a si mesma porque não teriam o AEC e o AEAR ido ao tribunal ouvir o veredicto. Aqui, não havia indícios de actividade anormal. Os corredores alcatifados estavam sossegados. O correio robô, um carro motorizado, seguia de porta em porta na sua rota predeterminada. Para uma agência da lei, tinham instalações bastante luxuosas. A diferença entre o FBI e uma esquadra de Polícia era como a diferença entre os escritórios de uma grande empresa e o chão de uma fábrica.

Dirigiu-se para a sala do AEC. Milton Lestrange tinha sido sempre um ombro amigo. Fora um dos primeiros apoiantes das agentes do sexo feminino, que agora perfaziam dez por cento dos agentes. Alguns AEC ladravam ordens como generais do exército, mas Milt era sempre calmo e delicado.

Logo que entrou na antessala viu que alguma coisa estava errada. A secretária dele estivera obviamente a chorar. Judy disse:

- Sente-se bem, Linda?

A secretária, uma mulher de meia-idade que normalmente era de uma eficiência absoluta, debulhou-se em lágrimas. Judy foi consolá-la, mas Linda acenou para que não se aproximasse e apontou para a porta do gabinete.

Judy entrou.

Era uma sala grande, dispendiosamente mobilada, com uma grande secretária e uma mesa de reuniões reluzente. Sentado atrás da secretária de Lestrange, com o casaco despido e a gravata solta, estava o AEAR Brian Kinkaid, um homem grande, cujo peito parecia um barril e estava coberto de cabelos brancos. Ergueu os olhos e disse.

- Entre, Judy.

- Que diabo é que se passa? - perguntou ela. - Onde está o Milt?

- Tenho más notícias - disse ele, embora não parecesse muito triste. - O Milt está no hospital. Foi-lhe diagnosticado um cancro no pâncreas.

- Oh, meu Deus. - Judy sentou-se.

Lestrange tinha ido ao hospital no dia anterior - para exames de rotina, dissera, mas devia saber que tinha algum problema.

Kincaid continuou:

- Vai ser operado, uma espécie de bypass intestinal, e na melhor das hipóteses não vai voltar aqui durante bastante tempo.

- Pobre Milt! - Judy estava chocada. Ele parecia um homem na flor da idade: em forma, vigoroso, um bom chefe. Agora tinha-lhe sido diagnosticada uma doença mortal. Ela queria fazer qualquer coisa para o confortar, mas sentia-se impotente. - A Jessica deve estar com ele - disse ela. Jessica era a segunda mulher de Milt.

- Sim, e o irmão vem de Los Angeles hoje. Aqui no escritório...

- E a primeira mulher dele? Kincaid pareceu irritado.

- Não sei nada dela. Falei com a Jessica.

- Alguém devia dizer-lhe. Vou ver se descubro um número para falar com ela.

- Faz o que entenderes. - Kincaid estava impaciente para abandonar os assuntos pessoais e falar de trabalho. - Aqui no escritório, inevitavelmente, há algumas mudanças. Fui nomeado EAC interino na ausência do Milt.

O coração de Judy apertou-se.

- Parabéns - disse ela, a esforçar-se por falar num tom neutro.

- Vou transferir-te para a brigada de Terrorismo Interno. No começo, Judy ficou apenas intrigada.

- Para quê?

- Acho que vais fazer um bom trabalho lá. - Pegou no telefone e falou para Linda. - Peça ao Matt Peters para vir ver-me imediatamente. - Peters era o supervisor da brigada de TI.

- Mas eu acabei de ganhar o meu caso - disse Judy, indignada.

- Hoje meti os irmãos Foong na cadeia!

- Bom trabalho. Mas isso não altera a minha decisão.

- Espere um momento. Sabe que me candidatei ao cargo de supervisora na brigada de Crime Organizado Asiático. Se for transferida da brigada agora, vai parecer que tive um problema qualquer.

- Eu acho que deves alargar a tua experiência.

- E eu penso que você quer que o Marvin fique com o departamento asiático.

- Tens razão. Acho que o Marvin é a melhor pessoa para o cargo. Que cretino, pensou Judy, furiosa. Sobe a chefe e a primeira coisa que.faz é usar o novo poder para promover um amigalhaço.

- Não pode fazer isto - disse ela. - Temos leis de Oportunidade Igual no Emprego.

- Faz o que quiseres, apresenta queixa - disse Kincaid. - O Marvin é mais qualificado do que tu.

- Eu prendi muito mais criminosos.

Kincaid sorriu-lhe, complacente, e jogou o seu trunfo.

- Mas ele passou dois anos na sede, em Washington.

Ele tem razão, pensou Judy, desesperada. Ela nunca tinha trabalhado na sede do FBI. E embora não fosse uma exigência absoluta, experiência na sede era uma característica desejável num supervisor. Por isso não valia a pena fazer uma queixa de discriminação no trabalho. Todos sabiam que ela era a melhor agente, mas Marvin ficava melhor no papel.

Judy lutou para conter as lágrimas. Tinha-se matado a trabalhar durante dois anos e conseguira uma grande vitória contra o crime organizado, e agora este sacana estava a roubar-lhe a recompensa.

Matt Peters entrou. Era um tipo forte, com cerca de quarenta e cinco anos, careca, e vestia uma camisa de mangas curtas com gravata. Tal como Marvin Hayes, estava próximo de Kincaid. Judy começou a sentir-se cercada.

- Parabéns pela vitória no caso - disse Peters para Judy. - Vou gostar de te ter na minha brigada.

- Obrigada. - Judy não conseguiu pensar em mais nada. Kincaid disse:

- O Matt tem um trabalho novo para ti.

Peters tinha um dossier debaixo do braço, e entregou-o a Judy.

- O governador recebeu uma ameaça terrorista de um grupo autodenominado Os Filhos do Paraíso.

Judy abriu o dossier, mas quase não conseguiu falar. Estava a tremer de raiva e com uma sensação avassaladora de futilidade. Para esconder as suas emoções, tentou falar sobre o caso.

- Que é que eles estão a exigir?

- Que parem a construção de novas centrais de energia na Califórnia.

- Centrais nucleares?

- De todos os géneros. Deram-nos quatro semanas para obedecer. Dizem que são o braço radical da Campanha da Califórnia Verde.

Judy tentou concentrar-se. A Califórnia Verde era um grupo legítimo de pressão ambiental com sede em São Francisco. Era difícil acreditar que fizessem uma coisa daquelas. Mas todas as organizações daquele tipo eram susceptíveis de atrair doidos.

- E qual é a ameaça?

- Um sismo.

Ela levantou os olhos do dossier.

- Estão a gozar comigo. Matt abanou a cabeça calva.

Como estava zangada e perturbada, ela não se deu ao trabalho de suavizar as palavras.

- Isto é estúpido - disse sem rodeios. - Ninguém pode provocar um sismo. É o mesmo que ameaçarem-nos com um metro de neve.

Ele encolheu os ombros.

- Vê por ti mesma.

Judy sabia que os políticos importantes recebiam ameaças todos os dias. As mensagens de malucos não eram investigadas pelo FBI a menos que tivessem alguma coisa especial.

- Como é que esta ameaça foi comunicada?

- Apareceu numa folha de notícias da Internet no dia 1 de Maio. Está tudo no dossier.

Ela olhou-o nos olhos. Não estava com disposição para ouvir tretas.

- Há alguma coisa que não me está a dizer. Esta ameaça não tem credibilidade absolutamente nenhuma. - Olhou para o relógio. - Hoje é dia 25. Ignorámos a mensagem durante três semanas e meia. Agora, de repente, a quatro dias do fim do prazo, estamos preocupados?

- O John Truth viu a folha de notícias... a surfar na Net, creio eu. Talvez estivesse desesperado e andasse à procura de um tópico novo. De qualquer maneira, falou acerca da ameaça no programa dele, na sexta-feira à noite, e recebeu imensos telefonemas.

- Estou a perceber. - John Truth era um apresentador de rádio controverso. O programa dele era feito em São Francisco, mas era transmitido em estações de toda a Califórnia. Judy ficou ainda mais zangada. - O John Truth pressionou o governador para fazer alguma coisa em relação à mensagem terrorista. O governador reagiu chamando o FBI para investigar. Por isso temos de proceder a uma investigação em que ninguém acredita realmente.

- É mais ou menos isso.

Judy respirou fundo. Dirigiu-se a Kincaid, e não a Peters, pois sabia que isto era obra dele.

- Este gabinete esteve a tentar apanhar os irmãos Foong durante vinte anos. Hoje meto-os na cadeia. - Levantou a voz. - E dá-me um caso da treta como este?

Kincaid parecia satisfeito consigo próprio.

- Se queres estar no FBI, tens de aprender a aceitar o mau com o bom.

- Eu aprendi, Brian!

- Não grites.

- Aprendi - repetiu ela num tom de voz mais baixo. - Há dez anos, quando era nova e inexperiente e o meu supervisor não sabia até que ponto podia confiar em mim, tinha trabalhos como este... e aceitava-os alegremente, e fazia-os conscienciosamente, e provei que merecia que me confiassem trabalho a sério!

- Dez anos não é nada - disse Kincaid. - Eu estou cá há quarenta e cinco.

Ela tentou argumentar com ele.

- Escute, você acabou de assumir este cargo. O seu primeiro acto é dar a um dos seus melhores agentes um caso que devia ir para um novato. Todos saberão o que fez. As pessoas vão pensar que tem qualquer coisa contra mim.

- Tens razão, acabei de assumir este cargo. E tu já me estás a dizer como o devo fazer. Vai trabalhar, Maddox.

Ela olhou para ele. Seguramente, não ia mandá-la embora. Ele disse:

- Esta reunião terminou.

Judy não podia aceitar. A raiva soltou-se.

- Não é só esta reunião que acabou - disse. Levantou-se. - Vá-se foder, Kincaid.

No rosto dele estampou-se uma expressão de espanto. Judy disse:

- Demito-me. E depois saiu.

- Disseste o quê? - perguntou o pai de Judy.

- Sim. Eu sabia que o pai ia desaprovar.

- Mas de qualquer maneira tiveste razão.

Estavam sentados na cozinha, a beber chá verde. O pai de Judy era detective na Polícia de São Francisco. Fazia muitos trabalhos à paisana. Era um homem com uma compleição muito forte, extremamente em forma para a sua idade, com olhos verde-claros e cabelos grisalhos que usava presos num rabo-de-cavalo.

Estava à beira da reforma e a ideia apavorava-o. Fazer cumprir a lei era a sua vida. Gostaria de poder ser polícia até aos setenta anos.

Ficou horrorizado com a ideia de a filha desistir quando não tinha de o fazer.

Os pais de Judy tinham-se conhecido em Saigão. O pai estava no exército na época em que as tropas americanas eram chamadas "conselheiros". A mãe pertencia a uma família vietnamita da classe média: o avô de Judy tinha sido contabilista do Ministério das Finanças. O pai de Judy trouxe a esposa para casa, e Judy nasceu em São Francisco. Em bebé chamava aos pais Bo e Me, o equivalente vietnamita de Papá e Mamã. Os polícias apanharam isso, e o pai ficou conhecido por Bo Maddox.

Judy adorava-o. Quando tinha treze anos, a mãe morreu num acidente rodoviário. Desde então Judy tinha estado muito perto de Bo. Depois de ter rompido com Don Riley, há um ano, tinha-se mudado para a casa do pai.

Ela suspirou.

- Tens de admitir que eu não perco a cabeça muitas vezes.

- Só quando é realmente importante.

- Mas agora que disse ao Kincaid que me vou demitir, acho que é o que vou fazer.

- Agora que o insultaste daquela maneira, acho que terás de o fazer.

Judy levantou-se e serviu mais chá para os dois. Por dentro, ainda estava a ferver de raiva.

- Ele é tão parvo.

- Deve ser, porque acabou de perder uma boa agente. - Bo bebericou o chá. - Mas tu és mais estúpida... perdeste um emprego bestial.

- Hoje ofereceram-me um melhor.

- Onde?

- Brooks Fielding, a firma de advogados. Podia ganhar o triplo do que ganho no FBI.

- A manter mafiosos longe das grades! - disse Bo, indignado.

- Toda a gente tem direito a uma boa defesa.

- Que tal se casasses com o Don Riley e tivesses bebés? Netos dar-me-iam alguma coisa para fazer na reforma.

Judy estremeceu. Nunca tinha contado a Bo o verdadeiro motivo do rompimento com Don. A simples verdade é que ele tinha tido um caso. Sentira-se culpado e confessara tudo a Judy. Tinha sido um relacionamento breve com uma colega, e Judy tentara perdoar-lhe, mas depois daquilo os seus sentimentos por Don nunca mais foram os mesmos.

Nunca mais sentiu desejo de fazer amor com ele. Também não se tinha sentido atraída por mais ninguém. Algures dentro dela um interruptor tinha-se desligado, e o desejo sexual tinha desaparecido.

Bo não sabia nada disto. Via Don Riley como o marido perfeito: atraente, inteligente, bem-sucedido e a trabalhar para fazer cumprir a lei.

Judy disse:

- O Don convidou-me para um jantar de comemoração, mas parece-me que vou cancelar.

- Já sei que não devo perder tempo a dizer-te com quem deves casar - disse Bo com um sorriso pesaroso. Levantou-se. - Tenho de ir. Esta noite temos uma rusga.

Ela não gostava de que ele trabalhasse à noite.

- Comeste? - perguntou ansiosamente. - Queres que te faça uns ovos antes de ir?

- Não, obrigado, querida. Mais tarde como uma sanduíche. - Pegou num blusão de cabedal e deu-lhe um beijo na face. - Adoro-te.

- Adeus.

Quando a porta se fechou, o telefone tocou. Era Don.

- Consegui uma mesa no Masa's - disse. Judy suspirou. O Masa's era muito pretensioso.

- Detesto desapontar-te, Don, mas é melhor não.

- Estás a falar a sério? Praticamente tive de oferecer o corpo da minha irmã ao maitre d' para conseguir uma mesa tão em cima da hora.

- Não me apetece comemorar. Hoje aconteceram coisas desagradáveis no escritório. - Contou-lhe que Lestrange tinha cancro e que Kincaid lhe dera um caso completamente cretino. - Por isso vou pedir a demissão do FBI.

Don ficou chocado.

- Não acredito! Tu adoras o FBI.

- Adorava.

- Isso é terrível!

- Não é assim tão terrível. De qualquer modo, chegou a hora de eu ganhar algum dinheiro. Fui óptima aluna na Faculdade de Direito, como sabes. Tive notas melhores do que algumas pessoas que agora estão a ganhar verdadeiras fortunas.

- Claro, ajudas um assassino a safar-se, escreves um livro sobre o assunto, ganhas um milhão de dólares... Essa és tul Estou a falar com a Judy Maddox? Quem está aí?

- Não sei, Don, mas com tudo isto na cabeça, não me apetece ir para a cidade.

Fez-se silêncio. Judy sabia que Don estava a resignar-se ao inevitável. Instantes depois, ele disse:

- Está bem, mas tens de me compensar. Amanhã?

Judy não tinha energia para continuar a argumentar com ele.

- Claro - respondeu.

- Obrigado. Ela desligou.

Ligou a televisão e abriu o frigorífico, a pensar no jantar. Mas não tinha fome. Pegou numa lata de cerveja e abriu-a. Viu televisão durante três ou quatro minutos antes de perceber que o programa era em espanhol. Decidiu que não queria a cerveja. Desligou a televisão e deitou a cerveja pelo lava-loiça.

Pensou em ir ao Everton's, o bar preferido dos agentes do FBI. Gostava de parar por lá, a beber cerveja e a comer hambúrgueres e a trocar histórias de guerra. Mas não sabia ao certo se seria bem-vinda agora, especialmente se Kincaid estivesse lá. Já estava a começar a sentir-se uma estranha.

Decidiu elaborar o seu currículo. Iria ao escritório para o fazer no computador. Era melhor ocupar o tempo com alguma coisa fora do que ficar sentada em casa, claustrofóbica.

Pegou na arma, mas depois hesitou. Os agentes estavam de serviço vinte e quatro horas por dia e eram obrigados a andar armados a não ser no tribunal, dentro de uma prisão ou no escritório. Mas se já não sou uma agente, não preciso de andar armada. Depois mudou de ideias. Raios, se assistir a um assalto e tiver de seguir porque deixei a arma em casa, vou sentir-me bastante estúpida.

Era uma arma standard do FBI, uma pistola SIG-Sauer P228. Normalmente tinha treze balas de nove milímetros, mas Judy recuava sempre o cursor e punha a primeira bala na câmara, depois removia o carregador e colocava mais uma, ficando com catorze. Também tinha uma espingarda de caça Remington, modelo 870, com uma câmara de cinco balas. Como todos os agentes, fazia treino de tiro uma vez por mês, normalmente na carreira de tiro do xerife, em Santa Rita. A pontaria dela era testada quatro vezes por ano. O curso de qualificação nunca lhe trazia quaisquer problemas: tinha bom olho e mão firme, e os seus reflexos eram rápidos.

Tal como a maior parte dos agentes, nunca tinha disparado a arma a não ser nos treinos.

Os agentes do FBI eram investigadores. Tinham uma formação esmerada e eram muito bem pagos. Não se vestiam para combate. Era perfeitamente normal terem uma carreira de vinte e cinco anos no FBI sem nunca se envolverem num tiroteio, nem sequer numa luta corpo-a-corpo. Mas tinham de estar preparados para essa eventualidade.

Judy guardou a arma no coldre. Tinha vestido o ao dai, um fato tradicional vietnamita composto por uma blusa comprida com um pequeno colarinho levantado e rachas laterais, que se vestia sempre sobre calças largas. Era a sua roupa informal preferida porque era extremamente confortável, e sabia que também lhe ficava bem: o tecido branco realçava os cabelos pretos pelos ombros e a pele cor de mel, e a blusa justa favorecia-lhe a figura pequena. Normalmente, não se vestia assim para trabalhar, mas já era tarde, e de qualquer maneira tinha-se demitido.

Saiu. O seu Chevrolet Monte Cario estava estacionado junto ao passeio. Era um carro do FBI, e não teria pena de ficar sem ele. Quando fosse advogada de defesa poderia comprar alguma coisa mais interessante - um pequeno carro desportivo europeu, talvez um Porsche ou um MG.

A casa do pai situava-se no bairro de Richmond. Não era muito fino, mas um polícia honesto nunca enriquecia. Judy seguiu para a baixa pela via rápida Geary. A hora de ponta tinha acabado e o tráfego era pouco, por isso bastaram-lhe alguns minutos para chegar ao Edifício Federal. Estacionou na garagem subterrânea e apanhou o elevador para o décimo segundo andar.

Agora que ia sair do FBI, o escritório assumiu uma familiaridade acolhedora que a fez sentir-se nostálgica. A alcatifa cinzenta, as salas cuidadosamente numeradas, as secretárias e os arquivos e os computadores, tudo evidenciava uma organização poderosa, com muitos recursos, confiante e dedicada. Havia poucas pessoas a trabalhar tão tarde. Entrou no gabinete da brigada do Crime Organizado Asiático. A sala estava vazia. Acendeu as luzes, sentou-se à secretária e ligou o computador.

Quando pensou em escrever o currículo, não conseguiu lembrar-se de nada.

Não havia muito para dizer da sua vida antes do FBI: apenas a escola e dois anos sem nada de interessante no departamento jurídico da Mutual American Insurance. Tinha de fazer uma descrição clara dos dez anos que passara no FBI, para mostrar todo o sucesso e progressão na carreira. Mas, ao invés de uma narrativa ordenada, a sua memória produziu uma série desarticulada de recordações: o violador em série que lhe tinha agradecido, do banco dos réus, por o ter posto na cadeia, onde não poderia fazer mal a mais ninguém; uma empresa chamada Holy Bible Investments que tinha roubado as poupanças a dúzias de viúvas idosas; a altura em que ficara sozinha numa sala com um homem armado que tinha raptado duas crianças pequenas, e o persuadira a dar-lhe a arma...

Dificilmente poderia falar naqueles momentos à Brooks Fielding. Eles queriam Perry Mason, não Wyatt Earp.

Decidiu escrever primeiro a carta de demissão formal.

Pôs a data, e depois escreveu: "Para o Agente Especial Responsável."

Escreveu: "Caro Brian: Venho por este meio confirmar a minha demissão."

Doeu.

Tinha dado dez anos da sua vida ao FBI. Outras mulheres tinham casado e tido filhos, ou iniciado um negócio próprio, ou escrito um romance, ou feito uma viagem à volta do mundo. Ela tinha-se dedicado a ser uma agente óptima. Agora estava a deitar tudo pela janela. O pensamento trouxe-lhe lágrimas aos olhos. Que tipo de idiota sou eu, sentada sozinha no meu gabinete, a chorar para o estúpido do computador?

Depois, Simon Sparrow entrou.

Era um homem muito musculado, com cabelos quase rentes e bigode. Era um ano ou dois mais velho do que Judy. Tal como ela, estava vestido informalmente, com calças escuras e uma camisa desportiva de mangas curtas. Tinha um doutoramento em Linguística e passara cinco anos na Equipa de Ciência Comportamental na Academia do FBI em Quântico, Virgínia. A sua especialidade era a análise de ameaças.

Gostava de Judy e ela gostava dele. Com os homens no escritório tinha conversas de homens, futebol e armas e carros, mas quando estava a sós com Judy reparava e comentava as roupas e as jóias dela da mesma forma que uma amiga faria.

Ele tinha um dossier na mão.

- A tua ameaça de sismo é fascinante - disse ele, com os olhos brilhantes de entusiasmo.

Ela assoou o nariz. Sem dúvida que ele reparara que ela estava perturbada, mas estava discretamente a fingir que não percebera. Continuou:

- Ia deixar isto na tua secretária, mas ainda bem que te encontrei.

Obviamente, tinha estado a trabalhar até tarde para terminar este relatório, e Judy não queria esfriar o entusiasmo dele contando-lhe que se ia demitir.

- Senta-te - disse, controlando-se.

- Parabéns por teres ganho o caso hoje!

- Obrigada.

- Deves estar excitadíssima.

- Devia estar. Mas tive uma discussão com o Brian Kincaid logo a seguir.

- Oh, ele. - Simon rejeitou o chefe com um aceno da mão. - Se fores boazinha e pedires desculpa, ele vai ter de te perdoar. Não pode dar-se ao luxo de ficar sem ti, porque tu és boa de mais.

Aquilo foi inesperado. Normalmente, Simon era mais solidário. Era quase como se já soubesse. Mas se sabia da discussão, sabia que ela se demitira. Então, por que é que lhe tinha trazido o relatório?

Intrigada, ela perguntou:

- Fala-me sobre a tua análise da ameaça.

- Fiquei confundido durante algum tempo. - Entregou-lhe uma cópia da mensagem que tinha aparecido na folha de notícias de Internet. - Em Quântico também ficaram intrigados - acrescentou. Judy sabia que ele teria contactado automaticamente a Equipa de Ciência Comportamental sobre este caso.

Ela já tinha visto a mensagem antes: estava no dossier que Matt Peters lhe entregara mais cedo naquele mesmo dia. Analisou-a de novo.

 

1 de Maio

Para o governador do estado

Oi!

Diz que se preocupa com a poluição e com o ambiente, mas nunca faz nada em relação a isso; nós vamos obrigá-lo.

A sociedade de consumo está a envenenar o planeta porque vocês são gananciosos de mais, e têm de parar agora!

Nós somos Os Filhos do Paraíso, a ramificação radical da Campanha para a Califórnia Verde.

Queremos que anuncie uma paragem imediata na construção de centrais de energia. Nada de centrais novas. Ponto final. Senão!

Senão, o quê?, pergunta.

Senão, provocaremos um sismo exactamente de hoje a quatro semanas.

Estão avisados! Nós não estamos a brincar!

Os Filhos do Paraíso

Não lhe dizia muito, mas sabia que Simon esmiuçaria cada palavra e vírgula à procura de um significado.

- Que é que te parece? - perguntou ele. Ela pensou durante um minuto.

- Vejo um estudante jovem e cretino com cabelos oleosos e uma T-shirt desbotada dos Guns n' Roses, sentado ao computador a fantasiar que vai fazer o mundo obedecer-lhe, ao invés de o ignorar da maneira que sempre ignorou.

- Bom, não podias estar mais errada - declarou Simon com um sorriso. - É um homem sem estudos e de origens humildes com quarenta e tal anos.

Judy abanou a cabeça, surpreendida. Ficava sempre espantada com a forma como Simon tirava conclusões de indícios que ela nem conseguia ver.

- Como é que sabes?

- O vocabulário e a estrutura frásica. Repara na saudação. Pessoas ricas não começam uma carta com "Oi", escrevem "Caro Senhor". E as pessoas licenciadas geralmente evitam as duplas negativas como em "nunca faz nada".

Judy acenou afirmativamente.

- Então andam à procura do Joe Colarinho Azul, com quarenta e cinco anos de idade. Parece-me bastante claro. Que é que te intrigou?

- Indicações contraditórias. Outros elementos na mensagem sugerem uma mulher jovem da classe média. A ortografia é perfeita. Existe um ponto e vírgula na primeira frase, o que indica alguma educação. E o número de pontos de exclamação sugere uma mulher... desculpa, Judy, mas é a verdade.

- Como é que sabes que é jovem?

- Pessoas mais velhas, quando escrevem, têm mais tendência para usar letras maiúsculas iniciais para uma frase como "governador do estado" e hifenizar palavras que os escritores mais jovens juntam para formar uma só. Para além do mais, a utilização do computador e da Internet sugerem uma pessoa ao mesmo tempo jovem e educada.

Ela observou Simon com atenção. Estaria ele a interessá-la deliberadamente para a impedir de se demitir? Se estava, não ia resultar. Depois de tomar uma decisão, detestava voltar atrás. Mas estava fascinada com o mistério que Simon tinha descrito.

- Estás a preparar-te para me dizer que esta mensagem foi escrita por alguém com dupla personalidade?

- Não. Mais simples do que isso. Foi escrita por duas pessoas: o homem ditou, a mulher escreveu.

- Esperto! - Judy estava a começar a ver uma imagem dos dois indivíduos por detrás desta ameaça. Tal como um cão de caça que sente o cheiro de animais, ficou tensa, alerta, a antecipação da caça já a electrizar-lhe as veias. Posso cheirar essas pessoas, quero saber onde estão, tenho a certeza de que consigo encontrá-las.

Mas demiti-me.

- Pergunto a mim mesmo por que é que ele dita - disse Simon. - Poderia ser uma coisa natural para o executivo de uma empresa que está acostumado a ter uma secretária, mas trata-se simplesmente de um tipo vulgar.

Simon falou descontraidamente, como se não passasse de pura especulação, mas Judy sabia que as intuições dele eram muitas vezes inspiradas.

- Alguma teoria?

- Será que é analfabeto?

- Pode ser apenas preguiçoso.

- Verdade. - Simon encolheu os ombros. - É só um palpite.

- Está bem - disse Judy. - Tens uma boa rapariga licenciada que está de alguma forma dominada por um tipo da rua. Como o Capuchinho Vermelho e o Lobo Mau. Provavelmente ela corre perigo, mas mais alguém correrá? A ameaça de um sismo não parece real.

Simon abanou a cabeça.

- Acho que temos de a levar a sério. Judy não conseguiu conter a curiosidade.

- Porquê?

- Como sabes, nós analisamos as ameaças segundo a motivação, intenção e selecção do alvo.

Judy assentiu. Aquilo era básico.

- A motivação é emocional ou prática. Por outras palavras. O perpetrador está a fazer isto só para se sentir bem, ou porque quer alguma coisa?

Judy pensou que a resposta era bastante óbvia.

- Aparentemente, estas pessoas têm um objectivo específico. Querem que o Estado pare de construir centrais de energia.

- Certo. E isso significa que no fundo não querem fazer mal a ninguém. Esperam alcançar os seus objectivos com uma simples ameaça.

- Ao passo que os tipos emocionais preferem matar pessoas.

- Exactamente. A seguir, a intenção é política, criminal ou mentalmente perturbada.

- Política, neste caso, pelo menos à superfície.

- Certo. As ideias políticas podem servir de pretexto para um acto que é basicamente louco, mas eu não tenho essa impressão aqui, e tu?

Judy percebeu onde ele queria chegar.

- Estás a dizer-me que estas pessoas são racionais. Mas é loucura ameaçar com um sismo!

- Já volto a isso, está bem? Por fim, a selecção do alvo é específica ou aleatória. Tentar matar o presidente é específico; passar-se com uma metralhadora na Disneylândia é aleatório. Se levarmos a ameaça de sismo a sério, apenas para podermos argumentar, mataria sem dúvida muitas pessoas indiscriminadamente, por isso é aleatório.

Judy inclinou-se para a frente.

- Está bem, tens a intenção prática, a motivação política e o alvo aleatório. Que é que isso te diz?

-       - Os livros de estudo dizem que estas pessoas ou estão a tentar negociar ou à procura de publicidade. Eu acho que eles estão a tentar negociar. Se quisessem publicidade, não teriam optado por publicar a mensagem numa obscura folha de notícias da Internet... teriam ido para a televisão ou para os jornais. Mas não o fizeram. Acho que eles só queriam comunicar com o governador.

- São ingénuos se pensam que o governador lê as suas mensagens.

- Concordo. Estas pessoas revelam uma combinação estranha de sofisticação e ignorância.

- Mas estão a falar a sério.

- Sim, e tenho outro motivo para acreditar nisso. A exigência que fazem... parar a construção de novas centrais de energia... não é o género de coisa que se escolha como pretexto. É demasiado terra a terra. Se estivessem a inventar, escolheriam uma coisa mais extravagante, como a eliminação do ar condicionado em Beverly Hills.

- Então quem diabo são estas pessoas?

- Não sabemos. O terrorista típico revela um padrão ascendente. Começa com telefonemas ameaçadores e cartas anónimas; depois escreve para os jornais e para as estações de televisão; em seguida começa a rondar os edifícios governamentais, a fantasiar. Quando aparece numa visita guiada à Casa Branca com um especial de sábado à noite num saco de plástico, nós temos grande parte do seu trabalho no computador do FBI. Mas não é o caso destes. Mandei analisar as características linguísticas por comparação com todas as ameaças terroristas que temos registadas em Quântico, mas não há nenhuma semelhante. Estas pessoas são novas.

- Então não sabemos nada acerca delas?

- Sabemos muito. Obviamente, vivem na Califórnia.

- Como é que sabes isso?

- A mensagem está dirigida ao "governador do estado". Se fossem de outro estado, mandavam-na "Para o governador da Califórnia".

- Que mais?

- São americanos, e não há indicação de nenhum grupo étnico específico: a linguagem não revela características marcadamente negras, asiáticas ou hispânicas.

- Esqueceste-te de uma coisa - disse-lhe Judy.

- De quê?

- São doidos.

Ele abanou a cabeça. Judy disse:

- Por amor de Deus, Simon! Eles estão convencidos de que podem provocar um sismo. Têm de ser doidos!

Teimoso, ele disse:

- Não sei nada sobre sismologia, mas percebo de psicologia, e não me sinto à vontade com a teoria de que estas pessoas estão loucas. Estão lúcidas, determinadas e têm um objectivo concreto. E isso significa que são perigosas.

- Não acredito nisso. Ele levantou-se.

- Desisto. Queres ir tomar uma cerveja?

- Esta noite não, Simon... mas agradeço o convite. E obrigada pelo relatório. És o máximo.

- Podes crer. Adeus.

Judy pôs os pés em cima da secretária e observou os sapatos. Agora tinha a certeza de que Simon tinha estado a tentar persuadi-la a não se demitir. Kincaid podia pensar que era um caso da treta, mas a mensagem de Simon era que Os Filhos do Paraíso podiam ser uma ameaça genuína, um grupo que era preciso apanhar e neutralizar.

Nesse caso, a sua carreira no FBI não estava necessariamente acabada. Podia transformar num triunfo um caso que lhe fora dado como um insulto deliberado. Isso fá-la-ia parecer brilhante ao mesmo tempo que fazia Kincaid parecer estúpido. A ideia era aliciante.

Pôs os pés no chão e olhou para o ecrã. Como não tocava nas teclas há algum tempo, o protector de ecrã aparecera. Era uma fotografia sua com onze anos, com falhas nos dentes e um gancho de plástico a segurar o cabelo na testa. Estava sentada no joelho do pai. Na época ele ainda era polícia de giro, e usava o uniforme da Polícia de São Francisco. Ela tinha pegado no boné e tentava pô-lo na cabeça. A fotografia havia sido tirada pela mãe.

Imaginou-se a trabalhar para a Brooks Fielding, a guiar um Porsche e a ir a tribunal defender pessoas como os irmãos Foong.

Tocou na barra de espaço e o protector de ecrã desapareceu. No seu lugar viu as palavras que tinha escrito: "Caro Brian: Venho por este meio confirmar a minha demissão." As mãos pairaram sobre o teclado. Depois de uma longa pausa, disse em voz alta:

- Ora, que se lixe.

Depois apagou a frase e escreveu: "Gostaria de pedir desculpa pela minha má educação..."

 

O Sol de terça-feira de manhã estava a nascer sobre a 1-80. O Plymouth 'Cuda de 1971 de Priest dirigia-se para São Francisco, e o ruído do motor fazia os noventa quilómetros por hora parecerem cento e trinta.

Ele tinha comprado o carro novo, no auge da sua carreira empresarial. Depois, quando o negócio de venda a retalho de bebidas alcoólicas fracassou e o IRS se preparava para o prender, tinha fugido sem nada a não ser as roupas que tinha no corpo - por acaso um fato azul-marinho, com lapelas largas e calças de pregas - e o carro. Ainda tinha ambos.

Durante a época hippie, o único carro fixe para se ter era um Volkswagen Carocha. Star costumava dizer a Priest que, ao volante do Cuda amarelo-berrante, ele parecia um chulo. Então ele fez-lhe uma pintura flipada: planetas no tejadilho, flores na tampa do porta-baga-gens, e no capot uma deusa indiana com oito braços que se estendiam pelo pára-choques, tudo em azul e cor-de-rosa e turquesa. Em vinte e cinco anos as cores tinham-se esbatido para um castanho-pintalgado, mas se uma pessoa olhasse com atenção ainda conseguia ver o desenho. E agora o carro era para a sucata.

Tinha partido às três da manhã. Melanie dormira durante o caminho todo. Tinha a cabeça no colo dele, as pernas fabulosamente compridas dobradas nos estofos pretos e gastos. Enquanto conduzia, brincava com os cabelos dela. Ela tinha os cabelos à anos 60, compridos e lisos, com risco ao meio, embora tivesse nascido aproximadamente na altura em que os Beatles se separaram.

O miúdo também ia a dormir, estendido no banco de trás, com a boca aberta. O pastor-alemão de Priest, Spirit, estava deitado ao lado da criança. O cão estava quieto, mas de cada vez que Priest olhava para trás, para ele, tinha um olho aberto.

Priest estava ansioso.

Disse a si mesmo que devia sentir-se bem. Era como antigamente. Enquanto jovem, estava sempre a fazer alguma coisa, um esquema qualquer, um projecto, um plano para ganhar dinheiro ou roubar dinheiro ou fazer uma festa ou iniciar um motim. Depois descobrira a paz. Mas por vezes achava que a vida se tinha tornado pacífica de mais. Roubar o vibrador sísmico tinha feito reviver o seu velho ego. Com uma miúda bonita ao lado e uma guerra de inteligência à frente, sentia-se mais vivo agora do que se sentira durante anos.

Mesmo assim, estava preocupado.

Tinha dado a cara durante todo o processo. Tinha-se vangloriado de que podia obrigar o governador da Califórnia a fazer o que ele queria, e tinha prometido um sismo. Se falhasse, estaria acabado. Perderia tudo o que lhe era querido. E se fosse apanhado ficaria na cadeia até ser velho.

Mas ele era extraordinário. Tinha sabido sempre que não era como as outras pessoas. As regras não se aplicavam a ele. Fazia coisas que não passavam pela cabeça de mais ninguém.

E já estava a meio caminho do seu objectivo. Tinha roubado um vibrador sísmico. Tinha morto um homem por causa disso, mas safara-se: não houvera repercussões excepto os pesadelos ocasionais nos quais Mário saía da pickup em chamas, com as roupas incendiadas e sangue fresco a jorrar da cabeça esmagada, e vinha a cambalear atrás de Priest.

O camião estava agora escondido num vale solitário nos sopés da Sierra Nevada. Hoje Priest ia descobrir exactamente onde devia colocá-lo para provocar um sismo.

E o marido de Melanie ia dar-lhe essa informação.

Segundo Melanie, Michael Quercus sabia mais do que qualquer outra pessoa no mundo sobre a falha de Santo André. As informações que fora reunindo estavam armazenadas no computador. Priest queria roubar-lhe o disco com a cópia de segurança.

E tinha de se certificar de que Michael nunca saberia o que tinha acontecido.

Para isso, precisava de Melanie. E era por isso que estava preocupado. Só a conhecia há algumas semanas. E sabia que nesse curto espaço de tempo tinha-se tornado a pessoa dominante na vida dela; mas nunca a fizera passar por um teste como este. E ela estivera casada com Michael seis anos. De repente podia arrepender-se de ter deixado o marido; podia perceber agora o quanto sentia a falta da máquina de lavar loiça e da televisão; podia aperceber-se do perigo e da ilegalidade do que ela e Priest estavam a fazer; era impossível prever o que podia acontecer a uma pessoa tão amarga e confusa e perturbada como Melanie.

No banco de trás, o filho de cinco anos acordou.

Spirit, o cão, mexeu-se primeiro, e Priest ouviu o clique das patas dele no plástico do banco. Depois, ouviu-se um bocejo infantil.

Dustin, conhecido por Dusty, era um rapaz sem sorte. Sofria de alergias múltiplas. Priest ainda não tinha assistido a um dos seus ataques, mas Melanie descrevera-os: Dusty espirrava incontrolavelmente, os olhos inchavam e ficava com erupções cutâneas que davam imensa comichão. Ela tinha anti-histamínicos fortíssimos, mas dizia que esses medicamentos só mitigavam parcialmente os sintomas.

Dusty começou a ficar inquieto.

- Mamã, tenho sede - disse ele.

Melanie acordou. Sentou-se direita, espreguiçou-se, e Priest olhou de relance para a curva dos seios na T-shirt apertada que ela usava. Ela virou-se para trás e disse:

- Bebe um pouco de água, Dusty, tens uma garrafa ao pé de ti.

- Não quero água - choramingou ele. - Quero sumo de laranja.

- Não temos porcaria de sumo de laranja nenhum - disse ela com brusquidão.

Dusty começou a chorar.

Melanie era uma mãe nervosa, com medo de fazer a coisa errada. Era obsessiva em relação à saúde do filho, por isso era superprotectora, mas ao mesmo tempo a tensão tornava-a embirrenta com o miúdo. Tinha a certeza de que um dia o marido tentaria tirar-lhe o filho, por isso tinha pavor de fazer alguma coisa que desse azo a que ele a acusasse de ser má mãe.

Priest assumiu o controlo. Disse:

- Hei, tu aí, que raio é que se aproxima por detrás de nós? - Fez uma voz verdadeiramente assustada.

Melanie virou-se.

- É apenas um camião.

- Isso é o que tu pensas. Está disfarçado de camião, mas na realidade é uma nave de guerra Centauriana com torpedos de fotões. Dusty, preciso de que batas três vezes no vidro de trás para erguer a nossa armadura magnética invisível. Rápido!

Dusty bateu na janela.

- Agora vamos saber se ele está a disparar os torpedos se virmos uma luz cor de laranja a brilhar no pára-choques canhoneiro. É melhor estares com atenção, Dusty.

O camião estava a aproximar-se rapidamente deles, e um minuto depois o pisca do lado esquerdo foi accionado e o veículo desviou para os ultrapassar.

Dusty disse:

- Está a disparar, está a disparar!

- Está bem, vou tentar manter o escudo magnético enquanto tu respondes ao fogo! Na realidade, aquela garrafa de água é uma arma de laser.

Dusty apontou a garrafa para o camião e fez ruídos de disparos. Spirit juntou-se a ele, a ladrar furiosamente para o camião quando este passou. Melanie começou a rir.

Quando o camião voltou para a pista de lentos à frente deles, Priest disse:

- Uau. Tivemos sorte em escapar inteiros. Acho que por agora eles desistiram.

- Vão aparecer mais Centaurianos? - perguntou Dusty, ansiosamente.

- Tu e o Spirit vigiem a retaguarda e digam-me o que virem, está bem?

- Está bem.

Melanie sorriu e disse suavemente:

- Obrigada. És tão bom com ele.

Sou bom com toda a gente: homens, mulheres, crianças e animais de estimação. Não nasci com este dom... aprendi. É apenas uma forma de levar as pessoas a fazerem o que quero. Tudo desde persuadir uma esposa fiel a cometer adultério, até conseguir que um miúdo cheio de comichão pare de chorar. Só é preciso charme.

- Avisa-me quando chegarmos à saída - disse Priest.

- Procura as placas de Berkeley. Ela não sabia que ele era analfabeto.

- Provavelmente, há mais do que uma. Diz-me onde é que viro.

Alguns minutos depois saíram da auto-estrada e entraram na frondosa cidade universitária. Priest sentia a tensão de Melanie aumentar. Sabia que toda a raiva contra a sociedade e a desilusão com a vida estavam de certa forma centradas neste homem que deixara há seis meses. Orientou Priest pelos cruzamentos até à Avenida Euclid, uma rua de casas modestas e edifícios de apartamentos, provavelmente arrendados por alunos finalistas e caloiros.

- Continuo a pensar que devia ir sozinha - disse ela.

Estava fora de questão. Melanie não era suficientemente forte. Priest não podia confiar nela quando estava a seu lado, e muito menos quando estava sozinha.

- Não - disse.

- Talvez eu...

Ele deixou que se notasse uma ponta de fúria.

- Não!

- Está bem, está bem - afirmou ela apressadamente. Mordeu o lábio.

Excitado, Dusty disse:

- Hei, é aqui que o papá vive!

- Isso mesmo, querido - disse Melanie. Apontou para um edifício de apartamentos baixo, em estuque, e Priest estacionou perto.

Melanie voltou-se para Dusty, mas Priest adiantou-se.

- Ele fica no carro.

- Não sei se será seguro...

- Ele tem o cão.

- Pode assustar-se.

Priest voltou-se para trás para falar com Dusty.

- Hei, tenente, preciso de ti e do alferesSpirit para guardarem a nossa nave enquanto o primeiro-comandante Mãe e eu vamos ao espaço porto.

- Vou ver o papá?

- Claro que sim. Mas primeiro queria estar alguns minutos a sós com ele. Achas que consegues cumprir a missão de vigia?

- Pode apostar!

- Na marinha espacial, tens de dizer "Sim, senhor!", não "Pode apostar".

- Sim, senhor!

- Muito bem. Continua. - Priest saiu do carro. Melanie seguiu-o, mas continuava preocupada.

- Por amor de Deus, o Michael não pode saber que deixámos o filho dele no carro - implorou ela.

Priest não lhe respondeu. Tu talvez tenhas medo de ofender o Michael, querida, mas eu estou-me cagando para isso.

Melanie tirou a bolsa do banco e colocou-a ao ombro. Caminharam pelo carreiro que conduzia à porta de entrada do edifício. Melanie tocou à campainha e não parou de pressioná-la com o dedo.

Dissera a Priest que o marido era um mocho nocturno. Que gostava de trabalhar à noite e dormir até tarde. Era por isso que tinham decidido chegar antes das sete horas da manhã. Priest esperava que Michael estivesse demasiado ensonado para perguntar a si mesmo se a visita deles teria um objectivo escondido. Se ficasse desconfiado, talvez fosse impossível roubar o disco.

Melanie tinha dito que ele era viciado em trabalho, lembrou-se Priest enquanto esperavam que Michael abrisse a porta. Passava os dias a viajar de carro por toda a Califórnia, a verificar os instrumentos que mediam pequenos movimentos geológicos na falha de Santo André e noutras falhas, e as noites a inserir os dados no computador.

Mas, por fim, o que tinha acabado por levá-la a deixá-lo fora um incidente com Dusty. Ela e o filho eram vegetarianos há dois anos, e comiam apenas comida orgânica e produtos biológicos. Melanie acreditava que uma dieta rigorosa reduzia os ataques de alergia de Dusty, embora Michael fosse céptico em relação a isso. Depois, um dia tinha descoberto que Michael comprara um hambúrguer a Dusty. Para ela, aquilo tinha sido como envenenar a criança. Ainda tremia de fúria quando contava a história. Tinha saído de casa naquela noite, e levara Dusty consigo.

Priest pensava que ela podia ter razão em relação aos ataques de alergia. A comuna era vegetariana desde o princípio dos anos 70, quando o vegetarianismo era uma coisa excêntrica. Na época, Priest tinha duvidado do valor da dieta, mas defendia uma disciplina que os diferenciasse do mundo exterior. As suas uvas eram cultivadas sem químicos simplesmente porque não podiam pagá-los, por isso tinham transformado a necessidade numa virtude e chamavam orgânico ao vinho que produziam, o que acabou por se revelar um forte incentivo de venda. Mas não pôde deixar de reparar que depois de um quarto de século de vida os companheiros da comuna eram um bando notavelmente saudável. Era raro terem uma emergência médica que não pudessem resolver eles próprios. Por isso, agora estava convencido. Mas, ao contrário de Melanie, não era obsessivo em relação à dieta. Ainda gostava de peixe, e de quando em vez comia carne numa sopa ou numa sanduíche e não pensava muito no assunto. Mas se Melanie descobria que a sua omeleta de cogumelos tinha sido cozinhada em gordura animal, vomitava.

Uma voz rouca ouviu-se no intercomunicador.

- Quem é?

- Melanie.

Ouviu-se um zumbido, e a porta do prédio abriu. Priest seguiu Melanie para o interior e subiram as escadas. No segundo andar a porta de um dos apartamentos estava aberta. Michael Quercus estava parado à porta.

Priest ficou surpreendido com a aparência dele. Estava à espera de um professor escanzelado típico, provavelmente calvo, com roupas castanhas. Quercus tinha cerca de trinta e cinco anos. Alto e atlético, tinha uma cabeça com caracóis curtos, pretos, e a sombra de barba forte nas faces. Tinha apenas uma toalha à cintura, por isso Priest viu que ele tinha ombros largos, bem musculados, e uma barriga lisa. Devem ter feito um bonito casal.

Quando Melanie chegou ao cimo das escadas, Michael disse:

- Tenho estado muito preocupado... Onde raio é que tens andado metida?

Melanie disse:

- Não podes vestir alguma coisa?

- Não disseste que tinhas companhia - replicou ele com frieza. Ficou à porta. - Vais responder à minha pergunta?

Priest percebeu que ele quase não conseguia controlar a raiva acumulada.

- Estou aqui para explicar - declarou Melanie. Estava a apreciar a fúria de Michael. Que casamento lixado. - Este é o meu amigo Priest. Podemos entrar?

Michael olhou para ela, zangado.

- E melhor teres um motivo muito bom, Melanie. - Voltou-lhes as costas e entrou.

Melanie e Priest seguiram-no para um pequeno hall. Ele abriu a porta da casa de banho, tirou um roupão de algodão azul-escuro de um cabide e vestiu-o calmamente. Soltou a toalha e amarrou o cinto. Depois conduziu-os para a sala de estar.

Aqui era indiscutivelmente o seu escritório. Havia um sofá e uma televisão, mas também um ecrã de computador e um teclado em cima da mesa e uma fileira de máquinas electrónicas com luzes a piscar numa prateleira funda. Algures naquelas caixas de um cinzento suave estavam guardadas as informações de que Priest necessitava. Sentiu-se atormentado. Não conseguiria aceder a elas sem ajuda. Tinha de depender de Melanie.

Uma parede estava totalmente ocupada com um mapa gigante.

- Que diabo é aquilo? - perguntou Priest.

Michael limitou-se a olhá-lo com um olhar quem-diabo-és-tu e não disse nada, mas Melanie respondeu à pergunta.

- É a falha de Santo André. - Apontou. - Começa no farol de Point Arena, a cento e cinquenta quilómetros a norte daqui, no distrito de Mendocino, e aqui podemos ver todo o percurso para sul e este, para lá de Los Angeles e para o interior, para San Bernardino. Uma fenda na crosta terrestre, com mil e duzentos quilómetros de comprimento.

Melanie tinha explicado a Priest o trabalho de Michael. A especialidade dele era o cálculo de pressão em diferentes locais ao longo das falhas sísmicas. Em parte, era uma questão de medição precisa de pequenos movimentos na crosta terrestre, e em parte uma questão de avaliar a energia acumulada baseada no lapso de tempo que ocorreu desde o último sismo. Tinha recebido prémios académicos graças ao seu trabalho. Mas um ano antes abandonara a universidade para iniciar o seu negócio, uma empresa de consultadoria que fornecia conselhos sobre os perigos dos sismos para firmas de construção e companhias de seguros.

Melanie era perita em computadores e ajudara Michael a criar o sistema. Tinha programado a máquina dele para fazer uma cópia de segurança todos os dias, entre as quatro e as seis horas da manhã, enquanto ele estava a dormir. Melanie tinha explicado a Priest que tudo o que estava no computador era copiado para um disco óptico. Quando ele ligava a máquina de manhã, tirava o disco da drive e guardava-o numa caixa à prova de fogo. Dessa forma, se o computador avariasse ou a casa ardesse, os dados preciosos não se perderiam.

Priest estava maravilhado por as informações acerca da falha de Santo André poderem ser guardadas num pequeno disco, mas afinal os livros constituíam um mistério tão grande como aquilo. Tinha de se limitar a aceitar aquilo que lhe diziam. O importante era que, com o disco de Michael, Melanie poderia dizer a Priest onde colocar o vibrador sísmico.

Agora tinham de tirar Michael da sala durante um período de tempo suficiente para que Melanie pudesse tirar o disco da drive óptica.

- Diga-me, Michael - perguntou Priest. - Todo este material. - Indicou o mapa e os computadores com um aceno da mão, e depois fixou Michael com o Olhar. - Como é que tudo isto o faz sentir-se)

A maioria das pessoas ficava agitada quando Priest as fixava com o Olhar e lhes fazia uma pergunta pessoal. Por vezes davam uma resposta reveladora porque estavam extremamente desconcertadas. Mas Michael parecia imune ao feitiço. Limitou-se a olhar inexpressivamente para Priest e disse:

- Não me faz sentir nada, uso-o. - Depois voltou-se para Melanie e disse: - Agora vais dizer-me por que é que desapareceste?

Cretino arrogante.

- É muito simples - disse ela. - Uma amiga emprestou-me, e ao Dusty, a cabana que tem nas montanhas. - Priest tinha-a avisado para não especificar que montanhas eram. - Teve um cancelamento de arrendamento em cima da hora. - O tom de voz dela indicava que não percebia por que é que tinha de explicar uma coisa tão simples. - Nós não podemos pagar férias, por isso aproveitei a oportunidade.

Priest tinha-a conhecido naquela altura. Ela e Dusty andavam a passear pela floresta e tinham-se perdido completamente. Melanie era uma rapariga da cidade e nem sequer sabia encontrar o caminho pelo Sol. Naquele dia, Priest tinha saído sozinho, para pescar salmão. Era uma tarde de Primavera perfeita, soalheira e quente. Estava sentado na margem de um ribeiro, a fumar um charro, quando ouvira uma criança a chorar.

Sabia que não era uma criança da comuna, cujas vozes reconheceria. Seguiu o som e encontrou Dusty e Melanie. Ela estava à beira das lágrimas. Quando viu Priest, disse:

- Graças a Deus, pensei que íamos morrer aqui!

Ele tinha-a contemplado durante um longo momento. Ela era um pouco esquisita, com cabelos compridos, ruivos, e olhos verdes, mas com as calças de ganga justas e o top curto estava bastante boa para comer. Era mágico cruzar-se com uma dama em apuros quando ela estava sozinha na floresta. Se não fosse o miúdo, Priest teria tentado deitá-la ali e naquele momento, no cobertor primaveril de caruma de pinheiro caída ao lado do ribeiro coleante.

E então perguntara-lhe se ela era de Marte.

- Não - respondera ela. - Sou de Oakland.

Priest sabia onde eram aquelas cabanas de férias. Pegou na cana de pesca e levou-a pela floresta, seguindo os trilhos e cumeeiras que conhecia tão bem. Foi uma longa caminhada, e durante o percurso falou com ela, fazendo-lhe perguntas delicadas, sorrindo-lhe encorajadoramente de vez em quando, e descobriu tudo acerca dela.

Era uma mulher com grandes problemas.

Tinha deixado o marido e fora viver com o viola-baixo de um grupo de rock conhecido; mas o baixista tinha corrido com ela algumas semanas depois. Não tinha ninguém para quem se voltar: o pai tinha falecido, e a mãe vivia em Nova Iorque com um fulano que tentara ir para a cama com Melanie na única noite que esta dormira no apartamento deles. Tinha esgotado a hospitalidade dos amigos e pedido emprestado todo o dinheiro que eles podiam dispensar. A carreira dela era uma desgraça, e trabalhava num supermercado, a encher prateleiras, mas tinha de deixar Dusty com uma vizinha o dia inteiro. Vivia numa pocilga tão suja que o miúdo tinha ataques de alergia constantes. Tinha de se mudar para um lugar com ar puro, mas não conseguia encontrar um emprego fora da cidade. Estava num beco sem saída e desesperada. Andava a tentar calcular a dose exacta de comprimidos para dormir que a mataria a ela e ao filho quando uma amiga lhe oferecera estas férias.

Priest gostava de pessoas em apuros. Sabia relacionar-se com elas. Só era preciso oferecer-lhes aquilo de que precisavam, e tornavam-se nossas escravas. Não se sentia à vontade com pessoas confiantes, auto-suficientes: era demasiado difícil controlá-las.

Quando chegaram à cabana eram horas de jantar. Melanie fez massa e salada, e depois deitou Dusty. Depois de a criança adormecer, Priest seduziu-a no tapete. Ela estava frenética de desejo. Toda a carga emocional acumulada foi libertada pelo sexo, e ela fez amor como se fosse a última vez, arranhando-lhe as costas e mordendo-lhe os ombros e empurrando-o para dentro de si como se quisesse engoli-lo. Foi o encontro mais excitante de que Priest conseguia lembrar-se.

Agora o professor-atraente e arrogante que era marido dela estava a queixar-se.

- Isso foi há cinco semanas. Não podes simplesmente pegar no meu filho e desaparecer sem um único telefonema!

- Tu podias ter-me telefonado.

- Não sabia onde estavas!

- Tenho um telemóvel.

- Tentei, mas não atendeste.

- O telefone foi cortado porque tu não pagaste a conta. Concordámos que serias tu a pagá-la.

- Atrasei-me alguns dias, foi só isso! Eles devem ter voltado a ligá-lo.

- Bom, deves ter telefonado quando estava coitado.

A discussão familiar não estava a aproximar mais Priest daquele disco e ele sentiu-se incomodado. Tenho de tirar o Michael da sala, de alguma maneira, de qualquer maneira. Interrompeu para dizer:

- E se bebêssemos todos um café? - Queria que Michael fosse para a cozinha fazê-lo.

Michael levantou o polegar por cima do ombro.

- Sirva-se - disse com brusquidão. Merda.

Michael voltou-se novamente para Melanie.

- O motivo por que não consegui apanhar-te não importa. Não consegui. É por isso que tens de me telefonar antes de levar o Dusty de férias.

Melanie disse:

- Escuta, Michael, há uma coisa que ainda não te disse. Michael pareceu exasperado, mas depois suspirou e disse:

- Já agora, sentem-se. - Sentou-se atrás da secretária. Melanie afundou-se num canto do sofá e dobrou as pernas debaixo do corpo de uma forma familiar que fez Priest pensar que aquele tinha sido o seu lugar. Priest empoleirou-se no braço do sofá, pois não queria sentar-se mais baixo do que Michael. Nem sequer consigo perceber qual destas máquinas é a drive do disco. Vá lá, Melanie, despacha o maldito marido!

O tom de voz de Michael sugeria que já tinha tido discussões destas com Melanie antes.

- Muito bem, diz o que tens a dizer - disse ele, cansado. - Que é, desta vez?

- Vou mudar-me para as montanhas, permanentemente. Estou a viver com o Priest e com um grupo de pessoas.

- Onde?

Priest respondeu à pergunta. Não queria que Michael soubesse onde viviam.

- É no distrito Del Norte. - Era na região de pau-brasil, no extremo norte da Califórnia. De facto, a comuna situava-se nos sopés da Sierra Nevada, perto da fronteira oriental do Estado. Ficavam ambos longe de Berkeley.

Michael ficou ultrajado.

- Não podes levar o Dusty para viver a centenas de quilómetros de distância do pai!

- Há um motivo - persistiu Melanie. - Nas últimas cinco semanas o Dusty não teve um único ataque de alergia. Ele é saudável nas montanhas, Michael.

Priest acrescentou:

- Provavelmente, é do ar puro e da água. Não há poluição. Michael estava céptico.

- É o deserto, não as montanhas, que normalmente faz bem às pessoas com alergias.

- Não me venhas falar em normalidadel - irritou-se Melanie. - Eu não posso ir para o deserto... não tenho dinheiro. Este é o único sítio onde posso estar e onde o Dusty pode ser saudável!

- O Priest está a pagar a tua renda?

Vá lá, estúpido, insulta-me, fala sobre mim como se eu não estivesse aqui; e eu vou continuar a comer a tua mulher, que é uma brasa. Melanie disse:

- É uma comuna.

- Jesus, Melanie, com que espécie de pessoas é que te meteste agora? Primeiro um guitarrista pedrado...

- Calma aí, o Blade não era um drogado...

- ... agora uma comuna hippie miserável!

Melanie estava tão envolvida nesta discussão que tinha esquecido o motivo daquela visita. O disco, Melanie, o maldito disco! Priest interrompeu mais uma vez.

- E se perguntasse ao Dusty o que ele pensa sobre isto, Michael?

- E vou perguntar.

Desesperada, Melanie olhou para Priest. Ele ignorou-a.

- O Dusty está lá fora, no meu carro. Michael chispou de fúria.

- Deixaram o meu filho lá fora no carro?

- Ele está bem, o meu cão está com ele. Michael olhou para Melanie, furioso.

- Que raio é que se passa contigo? - gritou. Priest disse:

- E se fosse buscá-lo?

- Não preciso da porra da sua autorização para ir buscar o meu próprio filho. Dê-me as chaves do carro.

- Não está trancado - disse Priest descontraidamente. Michael saiu de rompante.

- Eu pedi-te para não dizeres que o Dusty estava lá fora! - choramingou Melanie. - Por que é que disseste?

- Para o tirar da porcaria da sala - disse Priest. - Agora vai buscar o disco.

- Mas enfureceste-o tanto!

- Ele já estava zangado! - Aquilo não estava a levar a lado algum, pensou Priest. Talvez ela estivesse demasiado assustada para fazer o que era necessário. Levantou-se. Pegou-lhe nas mãos, levantou-a, e fitou-a com o Olhar. - Não precisas de ter medo de mim. Agora estás comigo. Eu cuido de ti. Acalma-te. Diz a tua ladainha.

- Mas...

- Diz.

- Lat hoo, dat soo.

- Não pares de a recitar.

- Lat hoo, dat soo, lat hoo, dat soo. - Ficou mais calma.

- Agora vai buscar o disco.

Ela acenou afirmativamente. Sempre a repetir a ladainha em voz baixa, inclinou-se sobre a fileira de máquinas na prateleira. Premiu um botão e um quadrado liso de plástico saiu de uma ranhura.

Priest já tinha reparado anteriormente que, no mundo dos computadores, os "discos" eram sempre quadrados.

Ela abriu a bolsa e tirou outro disco que parecia semelhante.

- Porra! - disse.

- Que é? - perguntou Priest, preocupado. - Qual é o problema?

- Ele mudou de marca!

Priest olhou para os dois discos. Pareciam-lhe iguais.

- Qual é a diferença?

- Repara, o meu é um Sony, mas o do Michael é um Philips.

- Ele vai reparar?

- É possível.

- Raios. - Era vital que Michael não soubesse que os seus dados haviam sido roubados.

- Provavelmente ele vai começar a trabalhar logo que nos formos embora. Vai ejectar o disco e trocá-lo pelo que se encontra na caixa à prova de fogo, e se olhar para eles verá que são diferentes.

- E claro que vai relacionar isso connosco. - Priest sentiu um surto de pânico. Estava tudo a dar para o torto.

Melanie disse:

- Eu podia arranjar um disco Philips e voltar outro dia. Priest abanou a cabeça.

- Não quero voltar a fazer isto. Podia falhar novamente. E estamos a ficar sem tempo. Faltam três dias para o fim do prazo. Ele tem discos a mais?

- Deve ter. Às vezes os discos estragam-se. - Olhou em volta. - Onde será que estão? - Parou no meio da sala, desamparada.

Priest teve vontade de gritar de frustração. Tinha temido uma coisa deste género. Melanie estava completamente descontrolada, e não tinham mais do que um ou dois minutos. Tinha de a acalmar depressa.

- Melanie - disse ele, a esforçar-se por manter um tom de voz baixo e tranquilizante -, tens dois discos na mão. Guarda os dois na tua bolsa.

Ela obedeceu-lhe automaticamente.

- Agora fecha a bolsa. Ela assim fez.

Priest ouviu a porta do prédio bater. Michael estava a voltar para casa. Priest sentiu o suor a correr ao fundo das costas.

- Pensa: quando vivias aqui o Michael tinha um armário para guardar papéis?

- Sim. Bem, uma gaveta.

- Então? Acorda, rapariga! Onde é?

Ela apontou para uma cómoda branca de má qualidade encostada à parede.

Priest abriu a gaveta de cima. Viu uma embalagem de blocos amarelos, uma caixa de canetas baratas, alguns montes de papel branco, uns quantos sobrescritos - e uma caixa aberta com discos.

Ouviu a voz de Dusty. Parecia vir do vestíbulo à entrada do apartamento.

Com dedos trémulos, tirou um disco da caixa e entregou-o a Melanie.

- Este serve?

- Sim, é um Philips. Priest fechou a gaveta.

Michael entrou com Dusty nos braços. Melanie estava petrificada com o disco na mão. Por amor de Deus, Melanie, faz alguma coisa! Dusty estava a dizer:

- E sabe uma coisa, papá? Não espirrei nas montanhas. A atenção de Michael estava centrada em Dusty.

- Que tal? - perguntou a criança.

Melanie recuperou a compostura. Quando Michael se inclinou para pousar Dusty no sofá, ela debruçou-se sobre a drive do disco e enfiou-o na ranhura A máquina fez um leve ruído e puxou-o para dentro, como uma cobra a engolir uma ratazana.

- Não espirraste? - disse Michael para Dusty. - Nem uma única vez?

- Isso mesmo.

Melanie endireitou-se. Michael não tinha visto o que ela fizera. Priest fechou os olhos. O alívio era avassalador. Tinham conseguido. Tinham as informações de Michael... e ele nunca saberia. Michael disse:

- Aquele cão não vai fazer-te espirrar?

- Não, o Spirit é um cão limpo. O Priest obriga-o a lavar-se no ribeiro, e depois ele sai e sacode-se e parece uma tempestade de chuva! - Dusty riu de prazer ao recordar.

- A sério? - perguntou o pai. Melanie disse:

- Eu disse-te, Michael.

A voz soava trémula, mas Michael não pareceu reparar.

- Está bem, está bem - disse ele num tom conciliatório. - Se faz uma diferença tão grande para a saúde do Dusty, vamos de ter de arranjar uma solução.

Ela pareceu aliviada.

- Obrigada.

Priest permitiu-se o fantasma de um sorriso. Estava tudo acabado. O seu plano tinha avançado mais um passo crucial.

Agora só tinham de rezar para que o computador de Michael não avariasse. Se isso acontecesse, e ele tentasse recuperar os dados a partir do disco óptico, descobriria que este estava vazio. Mas Melanie disse que as avarias eram raras. Era praticamente impossível avariar hoje. E à noite o computador faria uma nova cópia de segurança, e preencheria o disco vazio com os dados de Michael. Amanhã por esta hora seria impossível dizer que fora efectuada uma troca.

Michael declarou:

- Bem, pelo menos vieste aqui para falar no assunto. Agradeço isso.

Priest sabia que Melanie teria preferido mil vezes falar com o marido pelo telefone. Mas a mudança para a comuna era um pretexto perfeito para visitar Michael. Ele e Melanie nunca teriam podido fazer uma visita social ao marido dela sem levantar suspeitas. Mas desta forma não passaria pela cabeça de Michael interrogar-se porque é que eles tinham vindo.

Na verdade, Priest tinha a certeza de que Michael não era do tipo desconfiado. Era inteligente mas sem maldade. Não tinha capacidade para olhar por baixo da superfície e ver o que se passava realmente no coração de outro ser humano.

O próprio Priest tinha essa capacidade em grande escala.

Melanie estava a dizer:

- Vou trazer o Dusty para te ver sempre que quiseres. Venho até cá. Priest lia o que lhe ia no coração. Estava a ser simpática para

Michael, agora que ele lhe dera o que ela queria - tinha a cabeça de lado, e sorria-lhe agradavelmente - mas não o amava, já não o amava.

Michael era diferente. Estava zangado com ela por tê-lo deixado, isso era evidente. Mas continuava a gostar dela. Ainda não a esquecera, não completamente. Uma parte dele ainda a queria de volta. Ter-lhe-ia pedido, mas era orgulhoso de mais.

Priest sentiu ciúmes.

Odeio-te, Michael.

 

Judy acordou cedo na terça-feira e perguntou a si mesma se teria emprego.

No dia anterior tinha dito: "Demito-me." Mas estava zangada e frustrada. Hoje tinha a certeza de que não queria deixar o FBI. A perspectiva de passar a vida a defender criminosos, ao invés de os meter na cadeia, deprimia-a. Teria mudado de ideias tarde de mais? A noite passada tinha deixado um bilhete na secretária de Brian Kincaid. Ele aceitaria o pedido de desculpas? Ou insistiria na sua demissão?

Bo chegou às seis da manhã, e ela aqueceu um pouco de pho, a sopa de massa que os vietnamitas comiam ao pequeno-almoço. Depois vestiu-se com a sua melhor roupa, um fato Armani azul-escuro com saia curta. Num dia bom fazia-a parecer sofisticada, autoritária, e sensual ao mesmo tempo. Se vou ser despedida, já agora posso deixar saudades.

Enquanto conduzia para o emprego estava rígida de tensão. Estacionou na garagem da cave do Edifício Federal e apanhou o elevador para o andar do FBI. Foi directamente para o gabinete do chefe.

Brian Kincaid estava sentado à grande secretária, e usava uma camisa branca e suspensórios encarnados. Levantou os olhos para ela.

- Bom dia - disse com frieza.

- B'dia... - A boca dela estava seca. Engoliu e começou de novo. - Bom dia, Brian. Viu o meu bilhete?

- Vi, sim.

Era óbvio que não lhe ia facilitar as coisas. Não conseguiu lembrar-se de mais nada para dizer, por isso limitou-se a olhar para ele e esperar.

Por fim, ele disse:

- O teu pedido de desculpas é aceite. Ela sentiu-se fraca de alívio.

- Obrigada.

- Podes transferir as tuas coisas pessoais para a sala da brigada de Terrorismo Interno.

- Está bem. - Havia destinos mais cruéis, reflectiu. Havia diversas pessoas de quem gostava na brigada de TI. Começou a descontrair.

Kincaid disse:

- Começa a investigar o caso de Os Filhos do Paraíso imediatamente. Precisamos de alguma coisa para dizer ao governador.

Judy ficou surpreendida.

- Vai falar com o governador?

- Com o seu secretário de gabinete. - Verificou uma nota na secretária. - Um senhor Albert Honeymoon.

- Já ouvi falar nele. - Honeymoon era o braço direito do governador. Judy percebeu que o caso tinha subido de importância.

- Quero um relatório amanhã à noite.

Aquilo dificilmente lhe dava tempo para fazer progressos, para nem falar no pouco que tinha para começar. Amanhã era quarta-feira.

- Mas o prazo termina na sexta-feira.

- A reunião com o Honeymoon é na quinta-feira.

- Vou arranjar alguma coisa concreta para lhe dar.

- Podes dar-lho tu própria. O senhor Honeymoon quer ver o que ele chama a pessoa da acção. Temos de estar no gabinete do governador ao meio-dia.

- Uau. Está bem.

- Alguma pergunta? Ela abanou a cabeça.

- Vou tratar do assunto imediatamente.

Ao sair, sentiu-se extasiada por ter o emprego de volta mas consternada por saber que tinha de apresentar o relatório ao assessor do governador. Não era provável que conseguisse apanhar as pessoas que tinham feito a ameaça em apenas dois dias, por isso estava praticamente condenada a relatar um fracasso.

Esvaziou a sua mesa na brigada de Crime Organizado Asiático e levou as coisas pelo corredor até ao Terrorismo Interno. O novo supervisor, Matt Peters, arranjou-lhe uma secretária. Conhecia todos os agentes, e eles felicitaram-na pelo caso dos irmãos Foong, embora em tons discretos - todos sabiam que ela tinha discutido com Kincaid no dia anterior.

Peters destacou um agente jovem para trabalhar com ela no caso de Os Filhos do Paraíso. Era Raja Khan, um hindu que falava muito depressa e tinha um MBA. Tinha vinte e seis anos. Judy ficou satisfeita. Embora fosse inexperiente, era inteligente e rápido.

Pô-lo a par do caso e mandou-o investigar a Campanha para a Califórnia Verde.

- Tens de ser simpático - recomendou-lhe. - Diz-lhes que não acreditamos que eles estejam envolvidos, mas que temos de investigar todas as pistas.

- Que é que procuro?

- Um casal: um homem da classe trabalhadora com cerca de quarenta e cinco anos, que pode ser analfabeto, e uma mulher culta de aproximadamente trinta anos, que é provavelmente dominada pelo homem. Mas não me parece que os encontres ali. Seria fácil de mais.

- Em alternativa...?

- A coisa mais útil que podes fazer é conseguir os nomes de todos os responsáveis pela organização, pagos ou voluntários, e submetê-los no computador para ver se algum deles tem cadastro de actividade criminal ou subversiva.

- É para já - disse Raja. - Que é que tu vais fazer?

- Vou aprender tudo o que puder acerca de sismos.

Judy tinha vivido um grande sismo.

O sismo de Santa Rosa tinha causado estragos no montante de seis milhões de dólares - não muito, para este tipo de coisas - e fora sentido numa região relativamente pequena de dezasseis mil quilómetros quadrados. Na época, a família Maddox vivia no distrito de Marin, a norte de São Francisco, e Judy estava no primeiro ano. Agora sabia que tinha sido um sismo pequeno. Mas na época tinha seis anos, e parecera-lhe o fim do mundo.

Primeiro tinha ouvido um ruído semelhante ao de um comboio, mas bastante próximo, e acordara depressa e olhara em volta do quarto, à luz clara da alvorada, à procura da origem do som, morta de medo.

Depois a casa começou a tremer. O candeeiro do tecto, com o abat-jour com franjas cor-de-rosa, baloiçava para trás e para a frente. Na mesa-de-cabeceira, Os Melhores Contos de Fadas saltou no ar como um livro mágico e caiu aberto no "Pequeno Polegar", a história que Bo lhe contara na noite anterior. A escova de cabelo e a maquilhagem de brincar dançaram no tampo de fórmica da cómoda. O cavalo de madeira balançou furiosamente sem ninguém nele. Uma fila de bonecas caiu da prateleira, como se estivessem a mergulhar para o tapete, e Judy pensou que tinham ganho vida, como brinquedos numa fábula. Por fim conseguiu falar e gritou uma vez: "PAIZINHO."

No quarto ao lado ouviu o pai praguejar, depois uma pancada seca quando os pés dele pousaram no chão. O ruído e o tremor aumentaram, e ouviu a mãe chamar. Bo veio até à porta de Judy e girou a maçaneta, mas a porta não abriu. Ouviu outra pancada quando ele lhe bateu com o ombro, mas estava presa.

A janela esmagou-se, e estilhaços de vidro caíram no chão, e aterraram na cadeira onde as roupas da escola estavam cuidadosamente dobradas, prontas para a manhã seguinte: saia cinzenta, blusa branca, camisola verde com decote em bico, roupa interior azul-marinho e meias brancas. O cavalo de madeira balançava tão depressa que caiu em cima da casa de bonecas, esmagando o telhado em miniatura; e Judy sabia que o telhado da sua casa verdadeira podia esmagar-se com igual facilidade. A imagem emoldurada de um rapazinho mexicano de rosto redondo caiu da parede, voou pelo ar e bateu-lhe na cabeça. Ela gritou de dor.

Depois, a cómoda começou a andar.

Era uma velha cómoda de pinho com a frente curva que a mãe comprara numa loja de coisas usadas e pintara de branco. Tinha três gavetas e apoiava-se em pernas curtas que terminavam em pés semelhantes a patas de leões. No começo pareceu dançar no lugar, inquieta, nos quatro pés. Em seguida dançou de um lado para o outro, como alguém a hesitar nervosamente na soleira de uma porta. Por fim, começou a mover-se em direcção a ela.

Ela gritou de novo.

A porta do quarto abanou quando Bo tentou arrombá-la.

A cómoda avançava lentamente pelo quarto em direcção a ela. Ela pensou que talvez o tapete travasse o avanço, mas a cómoda empurrou-o com as patas de leão.

A cama abanava tão violentamente que ela caiu.

A cómoda chegou a alguns centímetros dela e parou. A gaveta do meio abriu-se como uma grande boca pronta para engoli-la. Ela gritou histericamente.

A porta partiu-se e Bo entrou a correr.

E o tremor parou.

Trinta anos depois ainda conseguia sentir o terror que a possuíra como um ataque enquanto o mundo se desmoronava à sua volta. Depois disso, e durante muitos anos, tivera medo de fechar a porta do quarto; e continuava a ter medo de sismos. Na Califórnia, sentir o chão mexer-se num pequeno tremor era vulgar, mas ela nunca se acostumara realmente. E quando sentia a terra tremer, ou via imagens de prédios destruídos na televisão, o pavor que lhe circulava nas veias como uma droga não era o medo de ser esmagada ou queimada, mas o pânico cego de uma menina cujo mundo começou inesperadamente a desmoronar-se.

Naquela noite ainda estava enervada quando entrou no ambiente sofisticado do Masa's, com um vestido de seda preta e o colar de pérolas que Don Riley lhe oferecera pelo Natal quando viviam juntos.

Don pediu um borgonha branco chamado Corton Charlemagne. Bebeu a maior parte da garrafa: Judy gostava do travo agradável, mas não se sentia à vontade a beber álcool com uma pistola semiautomática carregada com balas de nove milímetros guardada na bolsa de cerimónia preta.

Contou a Don que Brian Kincaid tinha aceite o pedido de desculpas e a autorizara a retirar o pedido de demissão.

- Tinha de o fazer - disse Don. - Recusar seria o equivalente a despedir-te. E se perdesse um dos melhores agentes no primeiro dia como AEAR seria muito mau para ele.

- Talvez tenhas razão - reconheceu Judy, mas estava a pensar que era fácil para Don ser sábio depois do acontecimento.

- Claro que tenho razão.

- Lembra-te de que o Brian é LB. - LB queria dizer lambe-botas, e significava que a pessoa tinha conseguido uma pensão tão generosa que podia reformar-se confortavelmente quando lhe conviesse.

- Sim, mas tem o seu orgulho. Imagina quando explicasse à sede como é que te perdeu. "Ela disse-me 'Vá-se foder'", diz ele. Washington replica: "E que é você, um padre? Nunca tinha ouvido um agente dizer 'foder'?" - Don abanou a cabeça. - Se recusasse o teu pedido de desculpas, o Kincaid ia parecer um idiota.

- Deves ter razão.

- De qualquer maneira, estou muito contente porque talvez voltemos a trabalhar juntos em breve. - Ergueu o copo. - A muitas mais condenações brilhantes da grande equipa de Riley e Maddox.

Brindaram e beberam um gole de vinho.

Conversaram acerca do caso enquanto comiam, recordando os erros que tinham cometido, as surpresas que tinham feito à defesa, os momentos de tensão e de triunfo.

Quando estavam a tomar o café, Don disse:

- Sentes a minha falta?

Judy franziu o sobrolho. Seria cruel dizer que não, e de qualquer maneira não era verdade. Mas não queria dar-lhe esperanças falsas.

- Sinto a falta de algumas coisas - respondeu. - Gosto de ti quando és engraçado e esperto. - Também sentia a falta de um corpo quente a seu lado à noite, mas não ia dizer-lhe isso.

Ele disse:

- Sinto a falta de falar sobre o meu trabalho, e de ouvir coisas acerca do teu.

- Eu acho que agora falo com o Bo.

- Também sinto a falta dele.

- Ele gosta de ti. Pensa que tu és o marido ideal...

- Sou, sou!

- ... para uma pessoa na Polícia. Don encolheu os ombros.

- Contento-me com isso. Judy sorriu.

- Talvez tu e o Bo devessem casar.

- Ah, ah. - Ele pagou a conta. - Há uma coisa que quero dizer-te, Judy.

- Sou toda ouvidos.

- Acho que estou preparado para ser pai. Por algum motivo, aquilo irritou-a.

- E que é que queres que faça... que grite viva e abra as pernas? Ele foi apanhado de surpresa.

- Quero dizer... bem, pensei que querias um compromisso.

- Compromisso? A única coisa que te pedi, Don, foi que parasses de comer a tua secretária, mas tu não conseguiste!

Ele pareceu mortificado.

- Está bem, não te zangues. Só estou a tentar dizer-te que mudei.

- E agora esperas que volte a correr para ti como se nada tivesse acontecido?

- Parece que continuo a não te compreender.

- E provavelmente nunca compreenderás. - A perturbação evidente dele acalmou-a. - Vem, levo-te a casa. - Quando viviam juntos era sempre ela que conduzia depois do jantar.

Saíram do restaurante num silêncio incómodo. No carro, ele disse:

- Pensei que poderíamos pelo menos falar no assunto. - Don, o advogado, a negociar.

- Podemos falar. - Mas como posso dizer-te que o meu coração está frio?

- O que aconteceu com a Paula... foi o pior erro da minha vida.

Ela acreditou. Ele não estava bêbado, apenas suficientemente tocado para revelar o que sentia. Ela suspirou. Queria que ele fosse feliz. Gostava dele, e detestava vê-lo sofrer. Aquilo também a fazia sofrer. Uma parte de si gostava de poder dar-lhe o que ele queria.

Ele continuou:

- Tivemos algumas coisas boas juntos. - Acariciou-lhe a coxa através do vestido de seda.

Ela disse:

- Se me apalpares enquanto estou a guiar, atiro-te para fora do carro. Ele sabia que ela cumpriria a ameaça.

- Como queiras. - Afastou a mão.

Momentos depois, ela desejou não ter sido tão áspera. Ter a mão de um homem na coxa não era uma coisa assim tão má. Don não era o melhor amante do mundo - era entusiástico mas não tinha imaginação. Porém, era melhor do que nada, e nada era o que ela tinha desde que o deixara.

Por que é que não tenho um homem? Não quero envelhecer sozinha. Há alguma coisa errada comigo?

Raios, não.

Um minuto depois, parou junto ao prédio onde ficava o apartamento dele.

- Obrigada, Don - disse. - Por uma grande condenação e um óptimo jantar.

Ele aproximou-se para a beijar. Ela ofereceu a face, mas ele beijou-lhe os lábios e ela não quis fazer um alarido muito grande, por isso deixou-o. O beijo prolongou-se até ela se afastar. Depois ele disse:

- Entra um pouco. Faço-te um cappucino.

O olhar de saudade nos olhos dele quase a fez ceder. Perguntou a si mesma se seria assim tão difícil. Podia guardar a arma no cofre dele, beber um brande grande para aquecer o coração e passar a noite nos braços de um homem decente, que a adorava.

- Não - replicou com firmeza. - Boa noite.

Ele observou-a por muito tempo, com tristeza no olhar. Ela fitou-o, embaraçada e com pena, mas decidida.

- Boa noite - disse ele por fim. Saiu e fechou a porta do carro.

Judy arrancou. Quando olhou pelo espelho retrovisor viu-o de pé no passeio, a mão semierguida numa espécie de adeus. Passou um sinal vermelho e fez a curva, e depois, por fim, sentiu-se novamente sozinha.

Quando chegou a casa, Bo estava a ver o Conan O'Brien e a rir a bandeiras despregadas.

- Este tipo dá cabo de mim - disse ele. Viu o monólogo até ao intervalo, e depois desligou a televisão. - Hoje resolvi um homicídio - disse. - Que tal?

Judy sabia que ele tinha diversos casos por resolver na secretária.

- Qual deles?

- O assassino-violador de Telegraph Hill.

- Quem foi?

- Um fulano que já está na cadeia. Foi preso há algum tempo por molestar raparigas no parque. Eu tinha um palpite em relação a ele e revistei-lhe o apartamento. Ele tinha um par de algemas da polícia como as que encontrei no cadáver, mas negou o homicídio, e não consegui fazê-lo confessar. Hoje, o laboratório mandou-me os resultados do exame de ADN. O sémen é igual ao que foi encontrado no corpo da vítima. Disse-lhe isso e ele confessou. Bingo.

- Bom trabalho! - Beijou-lhe o topo da cabeça.

- Etu?

- Bem, ainda tenho emprego, mas está para se ver se tenho uma carreira.

- É claro que tens uma carreira.

- Não sei. Se não sou promovida por meter os irmãos Foong na cadeia, que é que me vão fazer quando tiver um fracasso?

- Sofreste um revés. É apenas temporário. Vais ultrapassar esta situação, prometo.

Ela sorriu ao lembrar-se do tempo em que pensava que não havia coisa alguma que o pai não pudesse fazer.

- Bem, não fiz grandes progressos no meu caso.

- De qualquer maneira, a noite passada achavas que era uma porcaria de uma missão.

- Hoje não tenho tanta certeza. A análise de linguística revelou que aquelas pessoas são perigosas, sejam elas quem forem.

- Mas não podem provocar um sismo.

- Não sei.

Bo ergueu as sobrancelhas.

- Achas que é possível?

- Passei a maior parte do dia de hoje a tentar descobrir. Falei com três sismólogos e recebi três respostas diferentes.

- Os cientistas são assim.

- O que eu queria realmente é que eles me dissessem com firmeza que não pode acontecer. Mas um disse que era "improvável", outro disse que a possibilidade era "infimamente pequena", e o terceiro disse que podia fazer-se com uma bomba nuclear.

- Será que estas pessoas... como é que se chamam?

- Os Filhos do Paraíso.

- Será que têm um engenho nuclear?

- É possível. São espertos, têm um objectivo, não estão a brincar. Mas por que é que falariam em sismos? Por que é que não se limitaram a ameaçar-nos com a bomba?

- Sim - disse Bo, pensativo. - Seria tão aterrorizador, e bastante mais credível.

- Mas quem é que pode dizer como funciona a mente destas pessoas?

- Qual vai ser o teu próximo passo?

- Tenho de falar com mais um sismólogo, um Michael Quercus. Todos os outros dizem que ele tem ideias pouco ortodoxas, mas é a maior autoridade sobre as causas que desencadeiam os sismos.

Já tinha tentado falar com Quercus. No fim daquela tarde tinha tocado à campainha da casa dele. Ele dissera-lhe, pelo intercomunicador, que telefonasse a marcar uma entrevista.

- Talvez não me tenha ouvido - disse ela. - Sou do FBI.

- Isso significa que não tem de marcar uma hora?

Ela tinha praguejado em voz baixa. Era um agente da lei, não um maldito vendedor de janelas.

- Geralmente, é o que significa - disse ela para o intercomunicador. - A maior parte das pessoas pensa que o nosso trabalho é importante de mais para esperar.

- Não, não pensam - replicou ele. - A maior parte das pessoas têm medo de vocês, e é por isso que vos deixam entrar sem hora marcada. Telefone-me. O meu número vem na lista.

- Estou aqui por uma questão de segurança pública, Professor. Disseram-me que é um perito que pode dar-me informações cruciais que ajudarão a nossa tarefa de proteger as pessoas. Lamento não ter tido a oportunidade de telefonar para marcar uma hora, mas agora que estou aqui agradecia se me pudesse receber por alguns minutos.

Não houve resposta, e ela percebeu que ele tinha desligado.

Tinha voltado para o escritório, furibunda. Ela não marcava horas: era uma coisa que os agentes raramente faziam. Preferia apanhar as pessoas desprevenidas. Quase toda a gente que entrevistava tinha alguma coisa para esconder. Quanto menor era o tempo que tinham para se preparar, mais provável era que cometessem um erro revelador. Mas Quercus estava exasperantemente correcto: ela não tinha o direito de o incomodar.

Engolira o orgulho e telefonara-lhe para marcar uma reunião para o dia seguinte.

Tinha decidido não contar nada disto a Bo.

- Aquilo de que eu preciso realmente - disse ela - é de alguém que me explique a ciência de tal forma que eu possa tirar as minhas próprias conclusões sobre se um terrorista pode ou não desencadear um sismo.

- E precisas de encontrar essas pessoas de Os Filhos do Paraíso e prendê-las por fazerem ameaças. Algum progresso nessa área?

Ela abanou a cabeça.

- Mandei uma pessoa falar com todas as pessoas da Campanha para a Califórnia Verde. Ninguém corresponde ao perfil, ninguém tem alguma espécie de cadastro criminal ou subversivo; na verdade, não há absolutamente nada suspeito em relação a eles.

Bo acenou afirmativamente.

- Foi sempre improvável que os perpetradores tivessem dito a verdade acerca de quem são. Não desanimes. Só estás a trabalhar no caso há um dia e meio.

- Verdade... mas isso deixa apenas dois dias para o fim do prazo. E tenho de ir a Sacramento na quinta-feira, para fazer um relatório do caso no gabinete do governador.

- É melhor começares cedo amanhã. - Ele levantou-se do sofá. Foram ambos para o andar de cima. Judy parou à porta do quarto.

- Lembras-te daquele sismo, quando eu tinha seis anos? Ele acenou afirmativamente.

- Não foi muito grande, pelos padrões da Califórnia, mas ficaste meio morta de medo.

Judy sorriu.

- Pensei que era o fim do mundo.

- O tremor deve ter desviado um pouco a casa, porque a porta do teu quarto encravou, e eu quase desloquei o ombro a arrombá-la.

- Eu pensei que tu é que tinhas feito parar o tremor. Acreditei nisso durante anos.

- Depois do sismo tiveste medo daquela maldita cómoda de que a tua mãe tanto gostava. Não querias tê-la em casa.

- Pensava que queria comer-me.

- Por fim, acabei por cortá-la para lenha. - De súbito, Bo pareceu triste. - Gostava de voltar àqueles anos, de viver tudo novamente.

Ela sabia que ele estava a pensar na mãe dela.

- Sim - disse.

- Boa noite, miúda.

- Boa noite, Bo.

Ao atravessar a Ponte Bay na quarta-feira de manhã, em direcção a Berkeley, Judy perguntou a si mesma como seria Michael Quercus. Os seus modos irritáveis sugeriam um professor rabugento, curvado e desmazelado, a espreitar irritado para o mundo através de óculos que não paravam de lhe cair pelo nariz. Ou podia ser um gato gordo académico com um fato às riscas, encantador para pessoas que pudessem doar dinheiro à universidade, desdenhosamente indiferente para qualquer pessoa que não lhe fosse útil.

Estacionou à sombra de uma magnólia na Avenida Euclide. Quando tocou à campainha, teve a sensação horrível de que talvez ele arranjasse outra desculpa para se ver livre dela; mas quando disse o nome ouviu um zumbido e a porta abriu-se. Subiu os dois lances de escadas até ao apartamento dele. A porta estava aberta. Entrou. O sítio era pequeno e reles: o negócio não podia estar muito próspero. Atravessou um vestíbulo e encontrou-se na sala de jantar-estar-escritório.

Ele estava sentado à secretária com umas calças cor de caqui, botas de marcha escuras e um pólo azul-marinho. Viu imediatamente que Michael Quercus não era um professor rabugento nem um gato gordo académico. Era um borracho: alto, em forma, atraente, com cabelo sexy, escuro e encaracolado. Chegou rapidamente à conclusão de que era um daqueles tipos tão grandes e bem-parecidos e confiantes que achavam que podiam fazer tudo o que lhes apetecia.

Ele também ficou surpreendido. Os olhos abriram-se muito e disse:

- É a agente do FBI?

Ela deu-lhe um aperto de mão firme.

- Estava à espera de outra pessoa? Ele encolheu os ombros.

- Não é nada parecida com o Efrem Zimbalist, Júnior. Zimbalist era o actor que fazia o papel de inspector Lewis Erskine numa série de televisão chamada O FBI e que estava no ar há muito tempo. Judy disse suavemente:

- Sou agente há dez anos. Faz ideia de quantas pessoas já disseram essa piada?

Para sua surpresa, ele sorriu abertamente.

- Está bem - disse ele. - Apanhou-me. Assim é melhor.

Reparou numa fotografia emoldurada na secretária dele. Mostrava uma bonita ruiva com uma criança nos braços. As pessoas gostavam sempre de falar nos filhos.

- Quem é? - perguntou ela.

- Ninguém importante. Quer ir direita ao assunto? Esquece a amabilidade.

Ela seguiu o conselho dele e fez a pergunta sem rodeios.

- Preciso de saber se um grupo terrorista poderia provocar um sismo.

- Receberam uma ameaça?

Eu é que devo fazer as perguntas.

- Não ouviu falar? Tem sido comentado na rádio. Não ouve o John Truth?

Ele abanou a cabeça.

- É sério?

- É o que preciso de averiguar.

- Muito bem. E a resposta rápida é sim.

Judy sentiu um arrepio de medo. Quercus parecia tão seguro. Ela tinha esperado a resposta contrária. Disse:

- Como é que podem fazê-lo?

- Pegue numa bomba nuclear, coloque-a no fundo do poço de uma mina, e detone-a. É suficiente. Mas provavelmente quer um cenário mais realista.

- Sim. Imagine que você queria desencadear um sismo.

- Oh, podia fazê-lo.

Judy perguntou a si mesma se ele estaria apenas a vangloriar-se.

- Explique-me como.

-       - Está bem. - Procurou debaixo da secretária e pegou numa pequena prancha de madeira e num tijolo vulgar. Obviamente tinha-os ali com aquele objectivo. Colocou a prancha em cima da secretária e o tijolo sobre a prancha. Depois, levantou lentamente uma extremidade da prancha até o tijolo deslizar pela inclinação até à secretária. - O tijolo desliza quando a gravidade que o puxa ultrapassa o atrito que o segura - explicou ele. - Até agora está a perceber?

- Claro.

- Uma falha como a de Santo André é um local onde duas placas adjacentes da crosta terrestre se movem em direcções diferentes. Imagine um par de icebergues a passar de raspão um pelo outro. Não se movem suavemente: comprimem-se. Depois, quando estão entalados, a pressão aumenta, lentamente mas com firmeza, ao longo de décadas.

- E como é que isso leva aos sismos?

- Acontece alguma coisa para libertar toda aquela energia acumulada. - Levantou de novo uma extremidade da prancha. Desta vez, parou pouco antes de o tijolo começar a deslizar. - Diversas secções da falha de Santo André são assim... prestes a deslizar, em qualquer década. Veja isto.

Deu a Judy uma régua de plástico transparente com quinze centímetros.

- Agora bata firmemente com a régua à frente do tijolo. Ela fez o que ele lhe pedira e o tijolo começou a deslizar. Quercus agarrou-o e interrompeu a descida.

- Quando a prancha está inclinada, basta uma pequena pancada para fazer o tijolo mover-se. E nas zonas onde a falha de Santo André está sob uma pressão enorme, um pequeno toque pode ser suficiente para soltar as placas. Depois podem deslizar... e toda a energia acumulada faz tremer a terra.

Quercus podia ser abrasivo, mas quando falava sobre a sua especialidade era um prazer escutá-lo. Era um pensador claro, e explicava-se com facilidade, sem condescender. Apesar da imagem terrível que estava a pintar, Judy apercebeu-se de que estava a gostar de conversar com ele, e não apenas por ele ser tão atraente.

- É isso que acontece na maior parte dos sismos?

- Acredito que sim, embora alguns outros sismólogos possam discordar. Há vibrações naturais que ressoam pela crosta terrestre de tempos a tempos. A maioria dos sismos são provavelmente desencadeados pela vibração certa, no lugar certo, no momento certo.

Como é que vou explicar isto ao senhor Honeymoon? Ele vai querer respostas simples de sim-não.

- E como é que isso ajuda os terroristas?

- Eles precisam de uma régua, e têm de saber onde bater.

- Qual é o equivalente da régua na vida real? Uma bomba nuclear?

- Não precisam de nada tão poderoso. Têm de enviar uma onda de choque pela crosta terrestre, é só. Se soubessem exactamente onde a falha é vulnerável, talvez conseguissem fazê-lo com uma carga de dinamite, colocada no lugar certo.

- Qualquer pessoa pode arranjar dinamite sem grande dificuldade.

- A explosão teria de ser subterrânea. Acho que fazer um poço seria o desafio para um grupo terrorista.

Judy perguntou a si mesma se o homem da classe trabalhadora imaginado por Simon Sparrow era operador de uma máquina perfuradora. Esses homens precisariam seguramente de uma licença especial. Uma verificação rápida no Depactamento de Veículos Motorizados poderia fornecer uma lista de todos os que existiam na Califórnia. Não podiam ser muitos.

Quercus continuou:

- É óbvio que precisariam de equipamento de perfuração, de alguém especializado, e de algum pretexto para obter autorização.

Aqueles problemas não eram inultrapassáveis.

- É assim tão simples? - perguntou Judy.

- Escute, não estou a dizer-lhe que isto resultaria. Estou a dizer que é possível. Ninguém saberá ao certo até experimentar. Posso tentar dar-lhe uma ideia de como estas coisas acontecem, mas você terá de fazer a sua própria avaliação do risco.

Judy acenou afirmativamente. Ela tinha usado praticamente as mesmas palavras a noite passada quando dissera a Bo aquilo de que precisava. Às vezes, Quercus podia portar-se como um idiota, mas, como Bo diria, de vez em quando toda a gente precisava de um idiota.

- Então, saber onde colocar a carga é tudo?

- Sim.

- Quem tem essa informação?

- Universidades, o instituto de geologia estadual... eu. Todos partilhamos informações.

- Alguém pode apoderar-se delas?

- Não são secretas, embora seja necessário ter alguns conhecimentos científicos para interpretar os dados.

- Nesse caso, alguém no grupo terrorista teria de ser sismólogo.

- Sim. Mas poderia ser um estudante.

Judy pensou na mulher culta de trinta anos que se encarregava da escrita, de acordo com a teoria de Simon. Podia ser uma aluna do último ano. Quantos estudantes de geologia existiriam na Califórnia? Quanto tempo levariam a descobri-los e entrevistá-los todos? Quercus continuou:

- E há um outro factor: marés terrestres. Os oceanos movem-se de um lado para o outro sob a influência gravitacional da Lua, e a terra sólida está sujeita às mesmas forças. Duas vezes por dia abre-se uma janela sísmica, quando a linha da falha está sob uma pressão extra por causa das marés; e é quando é mais provável... ou mais fácil... desencadear um sismo. E essa é a minha especialidade. Eu sou a única pessoa que tem feito cálculos aprofundados sobre as janelas sísmicas das falhas da Califórnia.

- Alguém poderia ter obtido essas informações?

- Bem, o meu negócio é vendê-las. - Fez um sorriso triste. - Mas, como pode ver, o negócio não está a fazer-me enriquecer. Tenho um contrato com uma grande companhia de seguros, e chega para pagar a renda, mas infelizmente é tudo. A minha teoria sobre janelas sísmicas faz de mim uma espécie de excêntrico, e a América empresarial detesta os excêntricos.

O tom de seca autocrítica foi surpreendente, e Judy começou a gostar mais dele.

- Alguém poderá ter-se apoderado das informações sem o seu conhecimento. Foi assaltado ultimamente?

- Nunca.

- As suas informações poderiam ter sido copiadas por um amigo ou familiar?

- Não me parece. Ninguém passa muito tempo nesta sala sem eu estar presente.

Ela pegou na fotografia que se encontrava em cima da secretária.

- Sua mulher, ou namorada?

Ele pareceu aborrecido e tirou-lhe a fotografia da mão.

- Estou separado da minha mulher, e não tenho namorada.

- Ah, sim? - disse Judy. Tinha conseguido tudo o que queria dele. Levantou-se. - Agradeço o tempo que me dispensou, Professor.

- Por favor, chame-me Michael. Gostei de falar consigo. Ela ficou surpreendida.

Ele acrescentou:

- Você percebe as coisas depressa. Isso torna tudo mais agradável.

- Bem... que bom.

Ele acompanhou-a à porta do apartamento e apertou-lhe a mão. Tinha mãos grandes, mas o aperto foi surpreendentemente suave.

- Qualquer outra coisa que queira saber, terei o maior prazer em ajudar.

Ela arriscou uma alfinetada.

- Desde que telefone antes para marcar uma hora, certo?

Ele não sorriu.

- Certo.

Enquanto voltava pela baía, reflectiu que o perigo era agora evidente. Um grupo terrorista podia muito plausivelmente ter meios para provocar um sismo. Precisariam de informações precisas sobre pontos com uma tensão crítica na linha da falha, e talvez sobre janelas sísmicas, mas isso podia obter-se. Tinham de ter alguém que interpretasse os dados. E precisavam de uma forma de enviar ondas de choque pela terra. Essa seria a tarefa mais difícil, mas não era impossível.

E ela tinha a missão desagradável de dizer ao assessor do governador que tudo aquilo era horrivelmente possível.

 

Na quinta-feira, Priest acordou com os primeiros raios de luz.

Geralmente acordava cedo durante todo o ano. Nunca precisava de muito sono, a menos que tivesse andado na farra, e isso agora era raro.

Mais um dia.

Do gabinete do governador não houvera nada a não ser um silêncio enlouquecedor. Comportavam-se como se não tivesse havido ameaça nenhuma. E o resto do mundo também. Os Filhos do Paraíso raramente eram mencionados nas transmissões que Priest escutava no rádio do carro.

Apenas John Truth os levava a sério. Não parava de insultar o governador Mike Robson no seu programa de rádio diário. Até ontem, tudo o que o governador dizia é que o FBI estava a investigar. Mas na noite anterior Truth tinha anunciado que o governador prometera uma declaração para hoje.

Essa declaração decidiria tudo. Se fosse conciliatória, e desse pelo menos um sinal de que o governador ia considerar a exigência, Priest rejubilaria. Mas se a declaração fosse improdutiva, Priest teria de provocar o sismo.

Perguntou a si mesmo se conseguiria realmente.

Melanie parecia convincente quando falava sobre a linha da falha nas placas tectónicas e no que seria preciso para as fazer deslizar. Mas jamais alguém tinha tentado uma coisa daquelas. Até ela admitia que não podia ter cem por cento de certeza se funcionaria. E se falhasse? E se funcionasse e eles fossem apanhados? E se funcionasse e morressem no sismo - quem cuidaria dos companheiros da comuna e das crianças?

Rolou na cama. A cabeça de Melanie jazia na almofada a seu lado. Estudou o rosto dela em repouso. A pele era muito branca, e as pestanas quase transparentes. Uma madeixa de cabelo comprido cor de gengibre caía-lhe sobre a face. Desceu um pouco o lençol e olhou para os seios dela, pesados e suaves. Pensou em acordá-la. Debaixo dos cobertores, estendeu a mão e acariciou-a, passando a mão pela barriga e pelo triângulo de pêlos avermelhados mais abaixo. Ela esticou-se, engoliu em seco, e depois virou-se e afastou-se.

Ele sentou-se. Estava na casa com um único quarto que fora o seu lar nos últimos vinte e cinco anos. Tinha a cama, um velho sofá defronte da lareira e uma mesa no canto com uma grossa vela amarela num castiçal. Não havia luz eléctrica.

Nos primeiros tempos da comuna, a maior parte das pessoas vivia em cabanas como aquela, e os miúdos dormiam numa camarata. Mas ao longo dos anos tinham-se formado alguns casais permanentes, que tinham construído casas maiores com quartos separados para os filhos. Priest e Star tinham mantido as suas casas individuais, mas a tendência estava contra eles. Era melhor não lutar contra o inevitável: Priest tinha aprendido isso com Star. Agora existiam seis casas de família e também as quinze cabanas originais. Actualmente, a comuna era composta por vinte e cinco adultos e dez crianças, e também Melanie e Dusty. Uma das cabanas estava vazia.

Este quarto era-lhe tão familiar como a sua própria mão, mas ultimamente os objectos tão conhecidos tinham ganho uma aura nova. Durante anos o seu olhar tinha passado por eles sem os registar: o retrato de Priest que Star tinha pintado para o trigésimo aniversário dele; o cachimbo turco de água elaboradamente decorado que uma rapariga francesa chamada Marie-Louise tinha deixado; a prateleira frágil que Flower fizera na aula de trabalhos em madeira; a grade de frutas onde guardava as roupas. Agora que sabia que talvez tivesse de abandonar aquele lugar, cada objecto da casa parecia especial e maravilhoso, e ao olhar para eles formava-se-lhe um nó na garganta. O seu quarto era como um álbum fotográfico no qual cada fotografia desencadeava uma torrente de recordações: o nascimento de Ringo; o dia em que Smiler quase se afogara no rio; fazer amor com duas irmãs gémeas chamadas Jane e Eliza; o Outono quente e seco da primeira vindima; o sabor do vintage de 89. Quando olhava em volta e pensava nas pessoas que queriam tirar-lhe aquilo tudo, enchia-se de uma raiva que ardia dentro de si como vitríolo na barriga.

Pegou numa toalha, calçou as sandálias e saiu nu. O cão, Spirit, saudou-o com uma fungadela baixa. Estava uma manhã clara, seca, com farrapos de nuvens altas no céu azul. O Sol ainda não tinha aparecido sobre as montanhas, e o vale estava mergulhado na sombra. Não havia mais ninguém nas proximidades.

Desceu a colina atravessando a pequena aldeia, e Spirit seguiu-o.

Embora o espírito comunal ainda fosse forte, as pessoas tinham embelezado os seus lares com toques personalizados. Uma mulher tinha plantado o chão à volta da sua casa com flores e pequenos arbustos: Priest tinha-lhe chamado Jardim por causa disso. Dale e Poem, que formavam um casal, tinham deixado os filhos pintar as paredes exteriores, e o resultado era uma confusão colorida. Um homem chamado Slow, que era atrasado mental, tinha construído um alpendre muito tosco no qual se via uma cadeira de baloiço de fabrico artesanal e pouco segura.

Priest sabia que aquele lugar podia não ser bonito para outros olhos. Os caminhos eram lamacentos, os edifícios pouco sólidos, e o aspecto geral desorganizado. Não havia critério em relação à divisão das zonas: a camarata dos miúdos ficava ao lado da adega, e o recinto da carpintaria situava-se no meio das cabanas. As casas de banho eram mudadas todos os anos, mas não adiantava: onde quer que fossem colocadas, num dia quente sentia-se sempre o cheiro. Todavia, tudo naquele lugar lhe aquecia o coração. E quando olhava para mais longe e via as encostas arborizadas que subiam, íngremes, desde o rio cintilante até aos picos azuis da Sierra Nevada, via uma paisagem tão arrebatadora que até doía.

Mas agora, de cada vez que olhava, o pensamento de que podia perder tudo aquilo apunhalava-o como uma faca.

Ao lado do rio, uma caixa de madeira numa grande pedra arredondada continha sabão, lâminas de barbear baratas e um espelho de mão. Ensaboou o rosto e barbeou-se, depois entrou no ribeiro frio e lavou o corpo todo. Secou-se energicamente na toalha áspera.

Aqui não havia água canalizada. No Inverno, quando estava demasiado frio para tomarem banho no rio, tinham uma noite de banho comunal duas vezes por semana e aqueciam grandes potes de água na cozinha para se lavarem uns aos outros: era bastante excitante. Mas no Verão apenas os bebés tinham água quente.

Voltou a subir a encosta e vestiu rapidamente as calças de ganga e a camisa de trabalho que usava sempre. Dirigiu-se para a cozinha e entrou. A porta não estava fechada à chave: aqui, nenhuma porta tinha fechadura. Preparou uma fogueira com troncos e acendeu-a, pôs uma cafeteira de água para fazer café e saiu.

Gostava de passear pelas redondezas quando os outros estavam a dormir. Sussurrou os nomes deles ao passar pelas respectivas casas:

- Moon. Chocolate. Giggle. - Imaginou cada um deitado, a dormir: Apple, uma rapariga gorda, deitada de costas com a boca aberta, a ressonar; Juice e Alaska, duas mulheres de meia-idade, que viviam juntas; os miúdos na camarata... os seus filhos Flower, Ringo e Smiler; Dusty, o filho de Melanie; os gémeos, Bubble e Chip, com faces cor-de-rosa e cabelos encaracolados...

O meu povo.

Que possam viver aqui para sempre.

Passou pela oficina, onde guardavam pás e enxadas e tesouras de podar; o círculo de cimento onde esmagavam as uvas em Outubro; e o celeiro onde o vinho da safra do ano anterior se encontrava em cascos de madeira, a assentar e clarificar lentamente, agora quase pronto para ser misturado e engarrafado.

Parou do lado de fora do templo.

Sentiu-se muito orgulhoso. Desde o começo que falavam em construir um templo. Durante muitos anos tinha parecido um sonho impossível. Havia sempre muito mais coisas para fazer - terra para limpar e videiras para plantar, celeiros para construir, a horta e a loja onde tudo era grátis e as lições das crianças. Mas há cinco anos a comuna parecera atingir uma plataforma. Pela primeira vez, Priest não tinha preocupações sobre se teriam o suficiente para comer ao longo do Inverno que se aproximava. Já não tinha a sensação de que uma vindima má os arrasaria. Não havia nada por fazer na lista das tarefas urgentes que ele guardava na cabeça. Por isso, anunciou que chegara o momento de construírem o templo.

E aqui estava ele.

Significava muito para Priest. Mostrava que a sua comunidade estava madura. Já não viviam do dia-a-dia. Podiam alimentar-se e ter tempo e recursos disponíveis para construir um local de oração. Já não eram um bando de hippies a tentar concretizar um sonho idealista. O sonho tinha resultado; tinham provado isso mesmo. O templo era o emblema do triunfo.

Entrou. Era uma estrutura de madeira simples, com uma única clarabóia e sem mobília. Para orar, sentavam-se todos de pernas cruzadas, em círculo, no chão de madeira. Era igualmente a escola e a sala de reuniões. A única decoração era uma bandeira que Star fizera. Priest não conseguia ler, mas sabia o que dizia:

A meditação é a vida: tudo o resto é distracção

O dinheiro torna-nos pobres

O casamento é a maior das infidelidades

Quando ninguém possui nada, todos possuímos tudo

Fazermos o que queremos é a única lei

Estes eram os Cinco Paradoxos de Baghram. Priest disse que os aprendera com um guru indiano com quem tinha estudado em Los Angeles, mas na verdade inventara-os. Nada mal para um tipo que não sabe ler.

Ficou parado no centro do aposento durante vários minutos, de olhos fechados, braços caídos de lado, a centrar a energia. Não havia nada fingido nisto. Tinha aprendido técnicas de meditação com Star, e funcionavam a sério. Sentiu a mente clarificar como o vinho nos cascos. Rezou para que o coração do governador Robson se suavizasse e ele anunciasse uma paragem na construção de novas centrais eléctricas na Califórnia. Imaginou o bem-parecido governador com o seu fato escuro e camisa branca, sentado numa cadeira de couro atrás de uma secretária brilhante; e na sua visão o governador dizia: "Decidi dar a estas pessoas o que elas querem... não apenas para evitar um sismo, mas porque faz sentido."

Passados alguns minutos, a força espiritual de Priest estava renovada. Sentiu-se alerta, confiante, concentrado.

Quando voltou para o exterior, decidiu ir ver as vinhas.

Originalmente, não havia videiras. Quando Star chegara não havia nada no vale a não ser uma cabana de caça arruinada. Durante três anos a comuna tinha andado de crise em crise, separada por discussões, varrida por tempestades, sustentada apenas por viagens de mendicidade às cidades. Depois Priest chegara.

Levou-lhe menos de um ano a ser reconhecido como igual a Star na liderança da comunidade. Primeiro tinha organizado as viagens de mendicidade para conseguirem uma eficiência máxima. Chegavam a uma cidade como Sacramento ou Stockton num sábado de manhã, quando as ruas estavam cheias de pessoas a fazer compras. Cada indivíduo era colocado numa esquina. Todos tinham de ter uma história: Aneth diria que estava a tentar arranjar dinheiro para o bilhete de autocarro para ir ter com os amigos a Nova Iorque, Song tocava a guitarra e cantava There butfor Fortune, Slow dizia que não comia há três dias, Bonés fazia as pessoas sorrir com um cartaz onde se lia "Porquê mentir? É para cerveja".

Mas pedir esmola era apenas um meio de subsistência. Sob a direcção de Priest, os hippies tinham arranjado a encosta em socalcos, desviado um regato para irrigação, e plantado uma vinha. O tremendo esforço de equipa tornou-os um grupo extremamente unido, e o vinho permitiu-lhes viver sem pedir esmola. Agora, as colheitas eram procuradas pelos conhecedores.

Priest percorreu as fileiras bem arranjadas. Plantas e flores eram plantadas no meio das videiras, em parte porque eram úteis e bonitas, mas principalmente para atrair joaninhas e vespas que destruíam os pulgões das videiras e outras pestes. Aqui não eram utilizados químicos: confiavam nos métodos naturais. Também cultivavam trevos, porque estas plantas captavam nitrogénio do ar, e quando as misturavam no solo, ao lavrar, funcionavam como um fertilizante natural.

As videiras estavam a florescer. O mês de Maio estava a chegar ao fim, por isso o perigo anual de a geada matar os enxertos novos tinha passado. Neste ponto do ciclo, a maior parte do trabalho consistia em amarrar os enxertos às latadas para orientar o crescimento e evitar os perigos do vento.

Priest tinha aprendido coisas sobre vinicultura durante os anos que fora vendedor de bebidas alcoólicas, e Star estudara o assunto em livros, mas não teriam conseguido sem o velho Raymond Dellavalle, um vinicultor de boa índole que os ajudara porque, calculava Priest, desejava que a sua própria juventude tivesse sido mais empolgante.

A vinha de Priest tinha salvo a comuna, mas a comuna tinha salvo a vida de Priest. Ele chegara aqui fugido - para escapar à Máfia, à Polícia de Los Angeles e ao Ministério das Finanças, tudo ao mesmo tempo. Era um bêbado e viciado em cocaína, solitário, falido e com tendências suicidas. Tinha percorrido a estrada de terra para a comuna, seguindo orientações vagas de um tipo que andava à boleia, e vagueara pelo meio das árvores até chegar junto de um bando de hippies nus que estavam sentados no chão, a cantar. Tinha olhado para eles durante muito tempo, enfeitiçado pela ladainha e pela sensação de profunda calma que se erguia como fumo de uma fogueira. Um ou dois tinham-lhe sorrido, mas continuaram o ritual. Ele acabara por se despir, lentamente, como um homem em transe, livrando-se do fato completo, da camisa cor-de-rosa, dos sapatos fechados, e das cuecas encarnadas e brancas. Depois, nu, sentou-se com eles.

Aqui tinha encontrado paz, uma religião nova, trabalho, amigos e amantes. Numa altura em que estava disposto a atirar-se com o seu Plymouth 'Cuda 440-6 amarelo por uma ribanceira, a comuna dera sentido à sua vida.

Agora não haveria outra existência para si. Este lugar era tudo o que tinha, e morreria para o defender.

Talvez tenha de o fazer.

Esta noite escutaria o programa de rádio de John Truth. Se o governador tivesse a intenção de abrir uma porta para a negociação, ou fazer qualquer outra concessão, seria seguramente anunciado antes do final da transmissão.

Ao chegar à extremidade mais afastada da vinha, decidiu ir ver o vibrador sísmico.

Subiu a encosta. Não havia estrada, apenas um caminho bem batido através da floresta. Nenhum veículo podia chegar à aldeia. A quatrocentos metros das casas, chegou a uma clareira lamacenta. Estacionados debaixo das árvores encontravam-se o seu velho 'Cuda, um mini-autocarro Volkswagen que era ainda mais antigo, o Subaru cor de laranja de Melanie, e a pickup da comuna, uma Ford Ranger verde-escura. Dali, um trilho escuro serpenteava três quilómetros pela floresta, subindo e descendo o monte, desaparecendo num lodaçal aqui e passando por um regato acolá, até chegar por fim a uma estrada secundária, uma estrada alcatroada com duas faixas. Eram quinze quilómetros até à cidade mais próxima, Silver City.

Uma vez por ano toda a comuna passava um dia a rebolar barris de vinho pela encosta acima e pelo meio das árvores até esta clareira, onde eram carregados no camião de Paul Beale para serem transportados para a sua fábrica de engarrafamento em Napa. Era o dia grande do calendário deles, e nessa noite faziam sempre uma festa, e no dia seguinte era feriado para celebrarem um ano bem sucedido. A cerimónia decorria oito meses depois da vindima, por isso deveria acontecer dali a alguns dias. Este ano, Priest tinha decidido que fariam a festa depois de o governador suspender a destruição do vale.

Em troca do vinho, Paul Beale comprava comida para a cozinha comunal e mantinha a loja de produtos grátis cheia de artigos: roupas, doces, cigarros, artigos de papelaria, livros, tampões, pasta de dentes, tudo o que precisavam. O sistema funcionava sem dinheiro. Porém, Paul mantinha uma escrita cuidada, e no fim de cada ano depositava o dinheiro que sobrava numa conta bancária de que apenas Priest e Star tinham conhecimento.

Da clareira, Priest percorreu o trilho ao longo de um quilómetro e meio, desviando-se das poças de água da chuva e escalando cascatas secas, e depois mudou de rumo e seguiu um caminho invisível pelo meio das árvores. Não se viam marcas de pneus porque ele tinha varrido cuidadosamente a carpete de caruma de pinheiros que formava o chão da floresta. Chegou a uma reentrância e parou. Só viu uma pilha de vegetação: ramos partidos e arbustos desenraizados amontoados até uma altura de três metros e meio, como uma grande fogueira. Teve de se aproximar da pilha e desviar alguns arbustos para confirmar que o camião ainda ali estava, debaixo da camuflagem.

Não que pensasse que alguém viria ali procurar o camião. O Ricky Granger que tinha sido contratado para a equipa dos geometros pela Ritkin Seismex no campo de petróleo do Sul do Texas não tinha ligação que pudesse descobrir-se com esta vinha remota no distrito de Sierra, Califórnia. Porém, ocasionalmente grupos de pessoas perdiam-se completamente e entravam nas terras da comuna - como acontecera com Melanie - e sem dúvida que se perguntariam porque é que esta máquina dispendiosa estava ali estacionada nos bosques. Por isso, Priest e os Comedores de Arroz tinham trabalhado arduamente durante duas horas para esconder o camião. Priest estava bastante seguro de que não seria visto, nem sequer do ar.

Expôs uma roda e pontapeou o pneu, como o comprador céptico de um carro usado. Tinha assassinado um homem por causa deste veículo. Por breves instantes, pensou na bonita mulher e nos filhos de Mário e perguntou a si mesmo se já tinham percebido que Mário nunca voltaria. Depois, afastou o pensamento da mente.

Queria certificar-se de que o camião estaria pronto para partir na manhã seguinte. O simples facto de olhar para ele fê-lo ficar tenso. Sentiu uma necessidade fortíssima de partir imediatamente, hoje, agora, só para aliviar a tensão. Mas tinha anunciado um prazo, e o seu cumprimento seria importante.

Esta espera era insuportável. Teve vontade de entrar e ligar o motor, só para ter a certeza de que estava tudo bem; mas seria uma parvoíce. Estava com os nervos à flor da pele. O camião estaria perfeitamente em condições. O melhor era manter-se longe e deixá-lo em paz até amanhã.

Afastou outra parte da camuflagem e olhou para a placa de aço que martelava a terra. Se o esquema de Melanie resultasse, a vibração desencadearia um sismo. Havia uma espécie pura de justiça neste plano. Estariam a usar a energia acumulada na terra como ameaça para obrigar o governador a cuidar do ambiente. A terra estava a salvar a terra. Priest pensou que aquilo era certo de uma forma quase sagrada.

Spirit ladrou baixinho, como se tivesse ouvido alguma coisa. Provavelmente tratava-se de um coelho, mas Priest recolocou nervosamente os ramos que tinha tirado, e depois voltou para trás.

Dirigiu-se para o trilho por entre as árvores e foi para a aldeia.

Parou no meio do trilho e franziu o sobrolho, intrigado. Quando viera para aqui tinha passado por cima de um galho caído. Agora este tinha sido desviado para o lado. Spirit não tinha estado a ladrar para coelhos. Havia mais alguém nas redondezas. Não tinha ouvido nada, mas os sons eram abafados rapidamente pela vegetação densa. Quem seria? Alguém o teria seguido? Tê-lo-iam visto a mexer no vibrador sísmico?

A caminho de casa, Spirit ficou agitado. Quando chegaram a um local de onde se avistava o círculo de estacionamento, Priest percebeu porquê.

Ali, na clareira enlameada, estacionado ao lado do seu 'Cuda, via-se um carro da Polícia.

O coração de Priest parou de bater.

Tão depressa! Como é que tinham conseguido localizá-lo tão rapidamente?

Olhou para o veículo.

Era um Ford Crown Victoria branco com uma risca verde de lado, uma estrela de seis pontas de xerife na porta, quatro antenas, e uma fila de luzes azuis, vermelhas e cor de laranja no tejadilho.

Mantém-te calmo. Todas as coisas têm de passar.

Talvez a Polícia não estivesse ali por causa do vibrador. Simples curiosidade podia ter feito um polícia seguir o trilho: nunca acontecera, mas era possível. Havia imensas razões possíveis. Podiam andar à procura de um turista desaparecido. Um delegado do xerife podia andar à procura de um sítio secreto para se encontrar com a mulher do vizinho.

Podiam nem sequer ter reparado que existia ali uma comuna. Talvez nunca descobrissem. Se Priest voltasse a internar-se nos bosques...

Tarde de mais. Quando o pensamento lhe ocorreu, um polícia saiu de detrás do tronco de uma árvore.

Spirit ladrou ferozmente.

- Calado - disse Priest, e o cão parou de ladrar.

O polícia usava o uniforme cinzento-esverdeado de ajudante de xerife, com uma estrela do lado esquerdo do peito do blusão curto, um chapéu de vaqueiro e uma arma no cinto das calças.

Viu Priest e acenou.

Priest hesitou, e depois ergueu lentamente a mão e correspondeu ao aceno.

Em seguida, com relutância, dirigiu-se para o carro.

Odiava polícias. A maior parte deles eram ladrões e rufias e psico-patas. Usavam o uniforme e o cargo que ocupavam para esconder o facto de serem criminosos piores do que as pessoas que prendiam. Mas ia forçar-se a ser educado, como se fosse um cidadão suburbano idiota que imaginava que a polícia existia para o proteger.

Respirou calmamente, descontraiu os músculos da face, sorriu e disse:

- Como vai isso?

O polícia estava sozinho. Era jovem, talvez vinte e cinco ou trinta anos, e tinha cabelos castanho-claros, curtos. O seu corpo no uniforme já era balofo: dentro de dez anos teria barriga de cerveja.

- Há algumas residências aqui perto? - perguntou o polícia. Priest sentiu-se tentado a mentir, mas um momento de reflexão disse-lhe que era demasiado arriscado. O polícia só tinha de andar quatrocentos metros na direcção certa para tropeçar nas casas, e ficaria desconfiado se descobrisse que o tinham enganado. Por isso, Priest disse a verdade.

- Não estamos longe da Exploração Vinícola do Rio de Prata.

- Nunca ouvi falar.

Não era por acaso. Na lista telefónica, o endereço e número eram os de Paul Beale em Napa. Nenhum dos elementos da comuna estava recenseado. Nenhum pagava impostos porque não tinham rendimentos. Tinham sido sempre muito recatados. Star tinha um pavor à publicidade que vinha da época em que o movimento hippie fora destruído pela sobreexposição nos órgãos de comunicação social. Mas muitos dos membros da comuna tinham um motivo para se esconder. Alguns tinham dívidas, outros eram procurados pela Polícia. Oaktree era um desertor, Song tinha fugido de um tio que abusava sexualmente dela, e o marido de Aneth batia-lhe e jurara que se ela o deixasse a encontraria onde quer que ela estivesse.

A comuna continuou a ser uma espécie de santuário, e alguns dos membros mais recentes também andavam fugidos. A única forma de se conseguir descobrir aquele lugar era através de pessoas como Paul Beale, que tinham vivido lá durante algum tempo, e depois haviam regressado ao mundo exterior, mas essas pessoas eram muito cuidadosas com quem partilhavam o segredo.

Nunca um polícia viera aqui.

- Como é que nunca ouvi falar neste lugar? - perguntou o polícia. - Sou ajudante de xerife aqui há dez anos.

- É bastante pequeno - disse Priest.

- Você é o dono?

- Não, sou apenas um trabalhador.

- E que é que fazem aqui, vinho? Ena pá, um gigante intelectual.

- Sim, é isso mesmo. - O polícia não percebeu a ironia. Priest continuou: - Que é que o traz por estas bandas de manhã tão cedo? Não temos um crime aqui desde que o Charlie se embebedou e votou no Jimmy Cárter. - Sorriu. Não existia Charlie nenhum: ele estava a tentar fazer o género de piada que um polícia poderia apreciar.

Mas este não esboçou um sorriso.

- Ando à procura dos pais de uma rapariga que diz chamar-se Flower.

Um medo terrível apoderou-se de Priest, e de súbito sentiu-se tão frio como um túmulo.

- Oh, meu Deus, que é que aconteceu?

- Ela está presa.

- Está bem?

- Não foi ferida de forma alguma, se é isso que quer saber.

- Graças a Deus. Pensei que me ia dizer que ela tinha sofrido um acidente. - O cérebro de Priest começou a recuperar do choque. - Como pode ela estar na cadeia? Pensei que estava aqui, a dormir na cama dela!

- Obviamente, não está. Tem algum grau de parentesco com ela?

- Sou o pai dela.

- Então vai ter de ir a Silver City.

- Silver City? Há quanto tempo é que ela lá está?

- Apenas desde a noite passada. Não queríamos mantê-la lá durante tanto tempo, mas no princípio ela recusou-se a dar-nos a morada. Só nos disse há uma ou duas horas.

O coração de Priest apertou-se ao pensar na sua menina presa, a tentar manter o segredo da comuna até não aguentar mais. Vieram-lhe lágrimas aos olhos.

O polícia continuou:

- Mesmo assim, foi difícil como o diabo encontrá-los. Por fim, no vale, a cerca de sete quilómetros daqui, um bando de marados armados até aos dentes indicou-me o caminho.

Priest acenou afirmativamente.

- Los Alamos.

- Sim. Tinham um cartaz enorme que diz "Não reconhecemos a jurisdição do Governo dos Estados Unidos". Idiotas.

- Sei quem são - disse Priest. Eram vigilantes de direita que tinham ocupado uma casa de quinta muito grande e velha num local ermo e a guardavam agora com armas de fogo potentes e sonhavam derrotar uma invasão chinesa. Infelizmente, eram os vizinhos mais próximos da comuna. - Por que é que a Flower está presa? Ela fez alguma coisa errada?

- É o motivo do costume - respondeu o polícia sarcasticamente.

- Que é que ela fez?

- Foi apanhada a roubar numa loja.

- Numa loja? - Por que é que uma miúda que tinha acesso a uma loja onde nada custava dinheiro quereria fazer uma coisa daquelas? - Que é que ela roubou?

- Uma fotografia a cores de tamanho grande do Leonardo DiCaprio.

Priest sentiu vontade de dar um murro na face do polícia, mas essa atitude não teria ajudado Flower, por isso agradeceu ao homem por ter vindo ali e prometeu que ele e a mãe de Flower iriam ao gabinete do xerife em Silver City dentro de uma hora para irem buscar a filha. Satisfeito, o polícia foi-se embora.

Priest foi à cabana de Star. A cabana era igualmente a clínica da comuna. Star não tinha treino médico, mas aprendera muito com o pai médico e com a mãe enfermeira. Em miúda, tinha-se acostumado a emergências médicas e até tinha assistido a partos. Tinha o quarto cheio de caixas de ligaduras, frascos de unguento, aspirinas, medicamentos para a tosse e anticoncepcionais.

Quando Priest a acordou e lhe deu a má notícia, ela ficou histérica. Odiava a polícia quase tanto como ele. Nos anos 60 tinha sido espancada por polícias com bastões em manifestações, polícias da brigada de narcóticos tinham-lhe vendido droga falsificada, e, numa ocasião, fora violada por detectives numa esquadra. Levantou-se de um salto, aos gritos, e começou a bater-lhe. Ele prendeu-lhe os pulsos e procurou acalmá-la.

- Temos de ir lá buscá-la agora! - gritou Star.

- Certo - disse ele. - Mas primeiro veste-te, está bem?

Ela parou de se debater.

- Está bem.

Enquanto ela vestia as calças de ganga, ele disse:

- Uma vez contaste-me que foste presa aos treze anos.

- Sim, e um sargento velho e sujo com um cigarro pendurado no canto da boca pôs as mãos nas minhas mamas e disse que eu ia transformar-me numa bonita senhora.

- Se entrares lá completamente doida e também fores presa, não vais ajudar a Flower - realçou ele.

Ela controlou-se.

- Tens razão, Priest. Para bem dela, temos de cair nas boas graças daqueles filhos da puta. - Penteou os cabelos e contemplou-se num pequeno espelho. - Está bem. Estou pronta para engolir sapos.

Priest tinha acreditado sempre que era preferível estar vestido convencionalmente quando se lidava com a Polícia. Acordou Dale e pediu-lhe o fato azul-escuro. Agora era propriedade comunal, e Dale tinha-o vestido mais recentemente, para ir a tribunal quando a mulher que ele deixara há vinte anos finalmente decidira divorciar-se. Priest vestiu o fato por cima da camisa de trabalho e fez o nó da gravata cor-de-rosa e verde com vinte e cinco anos, que mais parecia um bacalhau. Os sapatos há muito que se tinham gasto, por isso calçou novamente as sandálias. Depois, ele e Star entraram no 'Cuda.

Quando chegaram à estrada secundária, Priest perguntou:

- Como é que nenhum de nós reparou que ela não estava em casa a noite passada?

- Eu fui dar-lhe as boas-noites, mas a Pearl disse-me que ela tinha ido à casa de banho.

- Também me contaram essa história! A Pearl devia saber o que aconteceu e encobriu-a! - Pearl, a filha de Dale e Poem, tinha doze anos e era a melhor amiga de Flower.

- Voltei lá mais tarde, mas todas as velas estavam apagadas e a camarata estava às escuras, por isso não quis acordar os miúdos. Nunca imaginei...

- Por que é que imaginarias? O estupor da miúda passou todas as noites da sua vida no mesmo lugar... não tinhas motivos para pensar que estivesse noutro sítio qualquer.

Foram de carro para Silver City. O gabinete do xerife era ao lado do tribunal. Entraram num átrio sombrio, decorado com recortes amarelados de notícias de crimes antigos. Havia uma secretária na recepção atrás de uma janela com um intercomunicador e uma campainha. Um ajudante com camisa clara e gravata verde disse:

- Posso ajudá-los? Star disse:

- Chamo-me Stella Higgins, e têm a minha filha aqui.

O ajudante olhou-os com dureza. Priest calculou que estava a avaliá-los, perguntando a si mesmo que espécie de pais seriam. Depois, disse:

- Só um momento, por favor - e desapareceu. Priest falou para Star em voz baixa.

- Acho que devemos parecer cidadãos respeitáveis e cumpridores da lei que estão transtornados por terem uma filha com problemas com a Polícia. Não temos nada a não ser um respeito profundo pelos funcionários que fazem cumprir a lei. Lamentamos ter causado problemas a pessoas tão trabalhadoras.

- Percebi - disse Star, tensa.

Uma porta abriu-se e o delegado mandou-os entrar.

- Senhor e senhora Higgins - disse ele. Priest não os corrigiu. - Sigam-me, por favor. - Conduziu-os para uma sala de reuniões com uma alcatifa cinzenta e mobiliário moderno.

Flower estava à espera.

Ia ser formidável e voluptuosa como a mãe fora em tempos, mas aos treze anos era ainda uma rapariga escanzelada e desajeitada. Agora estava taciturna e chorosa ao mesmo tempo. Mas, aparentemente, ninguém lhe tinha feito mal. Star abraçou-a em silêncio, e depois Priest fez o mesmo.

Star perguntou:

- Passaste a noite numa cela, querida? Flower abanou a cabeça.

- Numa casa qualquer - respondeu. O ajudante do xerife explicou.

- A lei da Califórnia é muito rígida. Os menores de idade não podem ser colocados sob o mesmo tecto que os criminosos adultos. Por isso, temos algumas pessoas na cidade que se disponibilizam a receber jovens que cometem delitos. A Flower ficou em casa da menina Waterlow, uma professora da cidade que, por coincidência, também é irmã do xerife.

Priest perguntou a Flower:

- Ficaste bem?

A criança assentiu sem falar.

Ele começou a sentir-se melhor. Diabos, podiam acontecer coisas piores aos miúdos.

O ajudante do xerife disse:

- Façam o favor de se sentar, senhor e senhora Higgins. Eu sou o agente da liberdade condicional, e faz parte das minhas funções lidar com os delinquentes juvenis.

Eles sentaram-se.

- A Flower foi acusada do roubo de um póster no valor de nove dólares e noventa e nove cêntimos da Loja de Música Silver Disc.

Star voltou-se para a filha.

- Não consigo compreender isto - disse ela. - Por que é que roubaste um póster de uma porcaria de um actor de cinema?

Inesperadamente, Flower recuperou a fala. Gritou:

- Porque o queria, está bem? Porque o queria! - Depois, desfez-se em lágrimas.

Priest dirigiu-se ao polícia.

- Gostaríamos de levar a nossa filha para casa o mais depressa possível. Que é que temos de fazer?

- Senhor Higgins, devo avisá-lo de que a pena máxima para o que a Flower fez poderia ser uma pena de prisão até aos vinte e um anos.

- Jesus Cristo! - exclamou Priest.

- Porém, eu não esperaria um castigo tão duro numa primeira ofensa. Diga-me, a Flower já esteve metida em sarilhos?

- Nunca.

- Está surpreendido com o que ela fez?

- Sim.

- Estamos estupefactos - disse Star.

O agente esmiuçou a vida familiar deles, tentando estabelecer se Flower era bem tratada. Priest respondeu à maior parte das perguntas, dando a impressão de que eram simples trabalhadores agrícolas. Não mencionou nada acerca da vida comunal nem das crenças que tinham. O agente perguntou se Flower frequentava a escola, e Priest explicou que existia uma escola na exploração vinícola para os filhos dos trabalhadores.

O polícia pareceu satisfeito com as respostas. Flower teve de assinar um documento em que se comprometia a apresentar-se no tribunal dali a quatro semanas, às dez horas da manhã. O agente pediu a um dos pais que assinasse também, e Star obedeceu. Não tiveram de pagar fiança. Menos de uma hora depois já estavam fora dali.

Fora do gabinete do xerife, Priest disse:

- Isto não faz de ti uma pessoa má, Flower. Fizeste uma coisa estúpida, mas nós amamos-te tanto como sempre. Não te esqueças disso. E quando chegarmos a casa vamos conversar todos sobre o que se passou.

Voltaram para a vinha. Durante algum tempo Priest tinha sido incapaz de pensar noutra coisa a não ser em como a filha estava, mas agora que a tinha de volta, sã e salva, começou a reflectir acerca das implicações mais latas daquela detenção. A comuna nunca tinha atraído as atenções da Polícia. Não havia roubo, porque eles não reconheciam a propriedade privada. Por vezes havia lutas corpo a corpo, mas os elementos da comuna resolviam a situação sozinhos. Ninguém tinha jamais morrido ali. Não tinham telefone para falar para a Polícia. Nunca infringiam qualquer lei, a não ser a lei das drogas, e eram discretos em relação a isso.

Mas agora o sítio estava no mapa.

E era o pior momento possível para isso ter acontecido.

Não podia fazer nada em relação a isso senão ser extremamente cauteloso. Resolveu não culpar Flower. Na idade dela ele era um ladrão profissional a tempo inteiro, com um cadastro de detenções que se estendia a três anos antes. Se algum pai podia compreender, ele era um deles.

Ligou o rádio do carro. À hora certa, começou o noticiário. O último apontamento foi sobre a ameaça de sismo.

- O governador Mike Robson reúne-se com os agentes do FBI esta manhã para debater o grupo terrorista Os Filhos do Paraíso, que ameaçou causar um sismo - disse o repórter. - Um porta-voz do FBI disse que todas as ameaças são levadas a sério, mas recusou-se a fazer mais comentários antes da reunião.

Priest calculou que o governador faria uma declaração depois de se reunir com o FBI. Quem dera que a estação de rádio tivesse indicado a hora da reunião.

Chegaram a casa a meio da manhã. O carro de Melanie não se encontrava no círculo de estacionamento: ela tinha levado Dusty a São Francisco para o deixar a passar o fim-de-semana com o pai.

Na aldeia, o ambiente era pesado. A maior parte do grupo estava a mondar a vinha, e trabalhavam sem as cantigas e os risos usuais. Do lado de fora da cozinha, Holly, a mãe dos seus filhos Ringo e Smiler, fritava cebolas com o semblante carregado, e Slow, que era sempre sensível à atmosfera, parecia assustado enquanto arrancava batatas têmporas na horta. Até Oaktree, o carpinteiro, parecia sossegado enquanto se inclinava sobre a bancada de trabalho, a serrar uma prancha.

Quando viram Priest e Star a voltar com Flower, começaram todos a concluir as tarefas que tinham entre mãos e a dirigir-se para o templo. Sempre que havia uma crise, reuniam-se para a debater. Se fosse um assunto sem importância, podia esperar até ao fim do dia, mas isto era demasiado importante para ser adiado.

A caminho do templo, Priest e a família foram interceptados por Dale e Poem com a filha de ambos, Pearl.

Dale, um homem baixo com cabelos bem penteados, curtos, era o mais convencional do grupo. Era uma pessoa-chave porque era um perito em vinicultura e controlava a mistura do vinho de qualidade de cada ano. Mas por vezes Priest sentia que ele tratava a comuna como se não passasse de outra aldeia qualquer. Dale e Poem tinham sido o primeiro casal a construir uma cabana familiar. Poem era uma mulher de pele escura, com sotaque francês. Tinha uma faceta selvagem - Priest sabia, pois dormira com ela muitas vezes -, mas com Dale tinha ficado de certa forma domesticada. Dale era um dos poucos que talvez conseguisse fazer o reajustamento à vida normal se tivesse de sair. Priest tinha a impressão de que a maior parte deles não conseguiria: acabariam na prisão ou num asilo ou mortos.

- Há uma coisa que deviam ver - disse Dale.

Priest reparou que as raparigas trocaram um olhar rápido. Flower disparou um olhar acusador para Pearl, que parecia assustada e culpada.

- Que é que foi agora? - perguntou Star.

Dale levou-os todos para a cabana que estava vazia. Actualmente era utilizada como sala de estudo para as crianças mais velhas. Havia uma mesa tosca, algumas cadeiras e um armário que continha livros e lápis. O tecto tinha um alçapão que dava para um espaço muito baixo sob o telhado inclinado. Agora o alçapão estava aberto e havia uma escada por baixo.

Priest teve uma sensação horrível de que sabia o que ia seguir-se.

Dale acendeu uma vela e subiu a escada. Priest e Star seguiram-no. No sótão, iluminado pela vela, viram o cofre secreto das raparigas: uma caixa de enfeites baratos, maquilhagem, roupas da moda e revistas de adolescentes.

Priest disse em voz baixa:

- Todas as coisas que as educámos para acharem inúteis. Dale disse:

- Têm ido à boleia para Silver City. Fizeram-no três vezes nas últimas quatro semanas. Levam estas roupas e tiram as calças de ganga e as camisas de trabalho quando chegam lá.

Star disse:

- Que é que fazem lá?

- Andam pela rua, falam com rapazes e roubam nas lojas. Priest pousou a mão na caixa e tirou uma T-shirt justa, azul com uma única risca cor de laranja. Era feita de nylon e parecia fina e de má qualidade. Era o género de roupa que ele desprezava; não dava calor nem protecção, e não fazia nada a não ser esconder a beleza do corpo humano com uma camada de fealdade.

Com a T-shirt na mão, desceu a escada. Star e Dale seguiram-no.

As duas raparigas estavam mortificadas.

Priest disse:

- Vamos para o templo discutir isto com o grupo.

Quando lá chegaram, todos os outros se encontravam já reunidos, incluindo as crianças. Estavam sentados de pernas cruzadas no chão, à espera.

Priest sentou-se no meio, como sempre. Em teoria os debates eram democráticos, e a comuna não tinha líderes, mas na prática ele e Star dominavam todas as reuniões. Priest conduzia o diálogo para o desfecho que pretendia, e regra geral fazia perguntas ao invés de expor um ponto de vista. Se gostava de uma ideia, encorajava um debate acerca dos seus benefícios; se queria esmagar uma proposta perguntava como é que podiam estar certos de que resultaria. E se a corrente da reunião estava contra ele, fingia ser persuadido, e mais tarde subvertia a decisão.

- Quem quer começar? - perguntou.

Aneth falou. Era do tipo maternal, com quarenta e tal anos, e acreditava que se devia compreender e não condenar. Disse:

- Talvez a Flower e a Pearl devessem começar por nos explicar por que é que queriam ir a Silver City.

- Para conhecer pessoas - disse Flower, desafiadora. Aneth sorriu.

- Rapazes, queres tu dizer? Flower encolheu os ombros. Aneth disse:

- Bom, creio que isso é compreensível... mas por que é que tiveste de roubar?

- Para ficar bonita!

Star soltou um suspiro de exasperação.

- Qual é o mal das roupas que vocês usam?

- Mãe, não me gozes - disse Flower, trocista.

Star inclinou-se para a frente e esbofeteou-a.

Flower engasgou-se. Uma marca vermelha apareceu-lhe na face.

- Não te atrevas a falar-me nesse tom - disse Star. - Acabaste de ser apanhada a roubar, e tive de te tirar da cadeia, por isso não me fales como se eu é que fosse a estúpida.

Pearl começou a chorar.

Priest suspirou. Devia ter previsto aquilo. As roupas da loja da comuna não tinham nada de errado. Havia calças de ganga azuis, pretas e castanhas; camisas de trabalho de ganga; T-shirts brancas, cinzentas, encarnadas e amarelas; sandálias e botas; camisolas de lã grossas para o Inverno; casacos impermeáveis para trabalhar à chuva. Mas as mesmas roupas eram usadas por todos, e há anos que era assim. Claro que as crianças queriam alguma coisa diferente. Trinta e cinco anos antes Priest tinha roubado um blusão à Beatle numa loja chamada Rave, na Rua San Pedro.

Põem disse para a filha:

- Pearl, chérie, não gostas das tuas roupas? Entre soluços, ela disse:

- Queríamos ser como a Melanie.

- Ah - disse Priest, e percebeu tudo.

Melanie ainda usava as roupas que tinha trazido para ali: tops justos que mostravam a barriga, mini-saias e calções curtos, sapatos vistosos e bonés bonitos. Tinha uma aparência chique e sexy. Não era surpreendente que as raparigas a tivessem adoptado como modelo.

Dale disse:

- Precisamos de falar acerca da Melanie. - Parecia apreensivo. A maior parte dos elementos da comuna ficavam nervosos quando tinham de dizer alguma coisa que pudesse parecer uma crítica a Priest.

Priest sentiu-se defensivo. Tinha trazido Melanie para ali, e era o amante dela. E ela era crucial para o plano. Era a única pessoa que podia interpretar os dados do disco de Michael, que já tinha copiado para o computador portátil. Priest não podia deixá-los voltarem-se contra ela.

- Nunca obrigamos as pessoas a mudar de roupa quando se juntam a nós - disse ele. - Primeiro gastam as coisas que têm, foi sempre a regra.

Alaska falou. Antiga professora primária, tinha vindo para ali com a amante, Juice, dez anos antes, depois de terem sido condenadas ao ostracismo na pequena cidade onde viviam por se ter sabido que eram lésbicas.

- Não são apenas as roupas dela - disse Alaska. - Ela não trabalha muito. - Juice acenou afirmativamente em sinal de concordância.

Priest argumentou:

- Vi-a na cozinha, a lavar pratos e a fazer bolachas. Alaska pareceu assustada, mas continuou:

- Algumas tarefas domésticas leves. Ela não trabalha na vinha. Ela está de passagem, Priest.

Star viu Priest ser atacado e pôs-se do lado dele.

- Temos tido muitas pessoas assim. Lembram-se de como era a Holly quando aqui chegou?

Holly tinha sido um pouco como Melanie, uma rapariga bonita que primeiro se sentira atraída por Priest e depois pela comuna. Holly sorriu pesarosamente.

- Admito. Era preguiçosa. Mas acabei por sentir-me mal por não ajudar. Ninguém me disse nada. Apercebi-me simplesmente de que seria mais feliz a fazer a minha parte do trabalho.

Foi a vez de Garden falar. Ex-drogada, tinha vinte e cinco anos mas parecia ter quarenta.

- A Melanie é uma má influência. Fala com os miúdos sobre discos de música pop e programas de televisão e lixo desse tipo.

Priest replicou:

- Obviamente, precisamos de falar com a Melanie sobre isso quando ela voltar de São Francisco. Sei que ela vai ficar muito perturbada quando souber o que a Flower e a Pearl fizeram.

Dale não ficou satisfeito.

- O que preocupa muitos de nós...

Priest franziu o sobrolho. Parecia que um grupo tinha andado a falar nas suas costas. Jesus, terei uma rebelião em grande escala nas mãos? Deixou o desagrado transparecer na voz.

- Então? Que é que perturba muitos de vocês? Dale engoliu em seco.

- O telemóvel e o computador que ela tem.

Não havia postes de electricidade no vale, por isso tinham poucos aparelhos eléctricos; e tinha-se desenvolvido uma espécie de puritanismo em relação a coisas como televisão e videogravadores. Priest tinha de escutar o rádio do carro para ouvir as notícias. Tinham começado a desprezar tudo o que era eléctrico. O equipamento de Melanie, que ela recarregava na biblioteca pública em Silver City ligando-o a uma tomada que era normalmente usada para o aspirador, tinha provocado alguns olhares de desaprovação. Agora, diversas pessoas assentiram em sinal de concordância com a queixa de Dale.

Havia uma razão especial para Melanie manter o telemóvel e o computador. Mas Priest não podia explicá-la a Dale. Ele não era um Comedor de Arroz. Embora fosse membro de pleno direito do grupo e estivesse ali há anos, Priest não tinha a certeza se ele concordaria com o plano do sismo. Podia fraquejar.

Priest percebeu que tinha de acabar com aquilo. Estava a ficar fora de controlo. Pessoas descontentes tinham de ser tratadas uma a uma, não numa discussão colectiva onde podiam reforçar-se uns aos outros.

Mas, antes de poder dizer alguma coisa, Poem falou:

- Priest, passa-se alguma coisa? Há alguma coisa que não estás a contar-nos? Nunca compreendi bem por que é que tu e a Star tiveram de se ausentar duas semanas e meia.

Song, claramente do lado de Priest, disse:

- Uau, que pergunta tão desconfiada!

Priest podia ver que o grupo estava a desmembrar-se. Era a perspectiva iminente de terem de deixar o vale. Não havia vestígios do milagre a que ele tinha aludido. Eles viam o mundo a chegar ao fim.

Star disse:

- Pensei que tinha contado a todos. Tive um tio que morreu e deixou todos os assuntos na maior confusão, e eu era a sua única familiar, por isso tive de ajudar os advogados a esclarecer tudo.

Chega.

Priest sabia como abafar um protesto. Falou com firmeza:

- Sinto que estamos a discutir estas coisas numa atmosfera má - disse. - Alguém concorda comigo?

Claro que todos concordaram. A maior parte deles acenou afirmativamente.

- Que é que fazemos em relação a isto? - Priest olhou para o filho de dez anos, uma criança séria, de cabelos escuros. - Que dizes, Ringo?

- Meditamos juntos - respondeu o rapaz. Era a resposta que qualquer um deles daria.

Priest olhou em volta.

- Todos aprovam a ideia do Ringo? Aprovaram.

- Então vamos preparar-nos.

Cada um deles assumiu a posição de que gostava. Alguns deitaram-se de costas, outros inclinaram-se numa curva fetal, um ou dois deitaram-se como se estivessem a dormir. Priest e vários outros ficaram sentados de pernas cruzadas, com as mãos caídas nos joelhos, os olhos fechados, os rostos erguidos para o céu.

- Descontraiam o dedo mindinho do pé esquerdo - disse Priest num tom de voz baixo, penetrante. - Depois o quarto dedo, depois o terceiro, a seguir o segundo, depois o dedo grande. Descontraiam o pé todo... e o tornozelo... e depois a barriga da perna. - Enquanto percorria lentamente o corpo, uma paz contemplativa desceu no aposento. A respiração das pessoas abrandou e ficou regular, os corpos cada vez mais quietos, e os rostos assumiram gradualmente a tranquilidade da meditação.

Por fim, Priest proferiu uma sílaba lenta, profunda:

- Om.

A congregação respondeu em uníssono.

- Omm... O meu povo.

Que possam viver aqui para sempre.

 

A reunião no gabinete do governador estava marcada para o meio-dia. Sacramento, a capital estadual, ficava a cerca de duas horas de carro de São Francisco. Judy saiu de casa às nove e quarenta e cinco por causa do intenso tráfego à saída da cidade.

O assessor com quem ia encontrar-se, Al" Honeymoon, era uma personalidade muito conhecida na política da Califórnia. Oficialmente era secretário do gabinete, mas na verdade era o testa-de-ferro do governador. De cada vez que o governador Robson precisava de construir uma auto-estrada num local de grande beleza, construir uma central de energia nuclear, despedir mil funcionários do Governo, ou trair um amigo fiel, era Honeymoon quem fazia o trabalho sujo.

Os dois homens trabalhavam juntos há vinte anos. Tinham-se conhecido quando Mike Robson era apenas deputado estadual e Honeymoon acabara de sair da Faculdade de Direito. Honeymoon tinha sido escolhido para fazer o papel de mau porque era negro e, astutamente o governador calculara que a imprensa hesitaria em vilipendiar um homem negro. Esses tempos liberais já tinham passado há muito mas Honeymoon tinha-se transformado num político de grande perícia e com uma profunda desumanidade. Ninguém gostava dele, mas muitas pessoas temiam-no.

Para bem do FBI, Judy queria causar uma boa impressão nele. Não era frequente os tipos da política terem um interesse pessoal directo num caso do FBI. Judy sabia que a forma como conduzisse este caso determinaria para sempre a atitude de Honeymoon em relação ao FBI e as agências da lei em geral. A experiência pessoal tinha sempre mais impacto do que relatórios e estatísticas.

O FBI gostava de parecer todo-poderoso e infalível. Mas ela tinha feito tão poucos progressos no caso que seria bastante difícil desempenhar esse papel, especialmente para um durão como Honeymoon. De qualquer maneira, não era o seu estilo. O plano era simplesmente parecer eficiente e inspirar confiança.

E tinha outro motivo para dar uma boa imagem de si mesma. Queria que a declaração do governador Robson abrisse a porta para um diálogo com Os Filhos do Paraíso. Uma sugestão de que o governador poderia negociar talvez os persuadisse a desistir. E se reagissem com uma tentativa de negociação, isso poderia dar a Judy pistas que a levassem a descobrir quem eles eram. Naquele momento era o único meio que lhe ocorria para os apanhar. Todas as outras linhas de investigação tinham levado a becos sem saída.

Pensou que seria difícil persuadir o governador a dar esta sugestão. Ele não quereria transmitir a impressão de que dava ouvidos a exigências de terroristas, com receio de encorajar outros. Mas tinha de haver uma forma de formular a declaração para que a mensagem fosse clara apenas para os elementos de Os Filhos do Paraíso.

Não tinha vestido o fato Armani que lhe dava um ar dominador. O instinto disse-lhe que era mais provável que ele recebesse bem uma pessoa que viesse vestida de forma austera, por isso optou por um fato de calças e casaco cinzento-metalizado, amarrou os cabelos pretos num carrapito e colocou a arma num coldre na anca. Para não parecer austera de mais, pôs uns brincos de pérolas pequenos que realçavam o seu pescoço longo. Nunca fazia mal parecer atraente.

Perguntou a si mesma indolentemente se Michael Quercus a teria achado atraente. Ele era uma brasa; era uma pena ser tão irritante. A mãe tê-lo-ia aprovado. Judy recordava-se de ela dizer: "Gosto de um homem que assume o comando." Quercus vestia-se bem, de uma forma discreta. Imaginou como seria o corpo dele por baixo das roupas. Talvez estivesse coberto de pêlos escuros, como um macaco: ela não gostava de homens peludos. Talvez ele fosse pálido e mole, mas pensou que não: ele parecia em forma. Apercebeu-se de que estava a fantasiar sobre Quercus nu, e sentiu-se aborrecida consigo mesma. A última coisa de que preciso é de um ídolo que está mal-humorado de manhã.

Decidiu telefonar antes de chegar, para saber onde poderia estacionar. Marcou o número do gabinete do governador no telefone celular e o secretário de Honeymoon atendeu.

- Tenho uma reunião com o senhor Honeymoon ao meio-dia e queria saber se posso estacionar no Edifício do Capitólio. É a primeira vez que vou a Sacramento.

O secretário era jovem.

- Não temos estacionamento para visitantes no edifício, mas existe uma garagem no quarteirão a seguir.

- Onde é que fica, exactamente?

- A entrada é na Rua Dez, entre a Rua K e a L. O Edifício do Capitólio situa-se na Dez, entre a L e a M. Fica literalmente a um minuto de distância. Mas a sua reunião não é ao meio-dia, é às onze e trinta.

- O quê?

- A sua reunião está marcada para as onze e trinta.

- Foi alterada?

- Não, minha senhora, foi sempre às onze e trinta.

Judy ficou furiosa. Se chegasse atrasada causaria má impressão antes mesmo de abrir a boca. Isto já estava a correr mal. Controlou a raiva.

- Alguém se deve ter enganado. - Olhou para o relógio. Se guiasse que nem uma doida, podia chegar dentro de noventa minutos. - Não há problema, estou adiantada - mentiu. - Chego a tempo.

- Muito bem.

Carregou no acelerador e viu o velocímetro do Monte Carlo subir para os cento e cinquenta. Felizmente, a estrada não tinha muito tráfego. A maior parte do trânsito da manhã dirigia-se para o lado oposto, para São Francisco.

Brian Kincaid tinha-lhe dito a hora da reunião, por isso também ia chegar tarde. Viajavam separados porque ele tinha um segundo compromisso em Sacramento, na sucursal local do FBI. Judy marcou o número do escritório de São Francisco e falou com a secretária dele.

- Linda, fala a Judy. Não se importa de telefonar para o Brian e dizer-lhe que o assessor do governador está à nossa espera às onze e trinta e não ao meio-dia, por favor?

- Acho que ele sabe - disse Linda.

- Não, não sabe. Ele disse-me que era ao meio-dia. Veja se consegue encontrá-lo e avisá-lo.

- Está bem.

- Obrigada. - Judy desligou e concentrou-se na condução. Alguns minutos depois ouviu a sirene de um carro da Polícia.

Olhou pelo espelho retrovisor e viu a cor escura característica dos carros-patrulha da Polícia de Trânsito das Auto-Estradas da Califórnia.

- Não acredito nesta merda - disse.

Encostou e travou bruscamente. O carro-patrulha encostou atrás. Ela abriu a porta.

Uma voz amplificada disse.

- MANTENHA-SE NA VIATURA.

Ela pegou no distintivo do FBI, esticou o braço para que o polícia pudesse vê-lo, e depois saiu do carro.

- MANTENHA-SE NA VIATURA!

Ela ouviu uma nota de medo na voz e viu que o polícia estava sozinho. Suspirou. Imaginou um polícia novato a sacar da arma e disparar contra ela por nervosismo.

Ela esticou o distintivo para ele poder vê-lo.

- FBI! - gritou. - Por amor de Deus, olhe!

- VOLTE PARA O CARRO!

Ela olhou para o relógio. Eram dez e meia. A tremer de frustração, sentou-se no carro. Deixou a porta aberta.

Seguiu-se uma espera enlouquecedoramente longa. Por fim, o polícia da patrulha aproximou-se dela.

- Mandei-a parar porque ia a cento e quarenta quilómetros por hora...

- Olhe para isto - disse ela, e levantou o distintivo.

- Que é?

- Por amor de Deus, é um distintivo do FBI! Sou uma agente numa missão urgente e você está a atrasar-me!

- Bem, não se parece nada com...

Ela saltou para fora do carro, assustando-o, e esticou um dedo por baixo do queixo dele.

- Não me diga que não pareço uma agente, porra! Você não reconhece um distintivo do FBI, por isso como é que pode conhecer a aparência de uma agente? - Pousou as mãos nas ancas, empurrando o casaco para trás para ele poder ver o coldre.

- Posso ver a sua licença, por favor?

- Raios, não. Vou-me embora agora, e vou guiar até Sacramento a cento e quarenta quilómetros por hora, compreende? - Entrou novamente no carro.

- Não pode fazer isso - disse ele.

- Escreva ao seu congressista - disse ela. Bateu com a porta e arrancou.

Passou para a faixa da esquerda, acelerou até aos cento e cinquenta, e depois olhou para o relógio. Tinha perdido cerca de cinco minutos. Ainda podia chegar a tempo.

Tinha-se exaltado com o polícia da brigada de trânsito. Ele contaria ao superior, que faria queixa ao FBI. Judy seria admoestada. Mas se tivesse sido delicada com o sujeito ainda lá estaria.

- Merda - disse, aborrecida.

Chegou ao desvio para a baixa de Sacramento às onze e vinte. Às onze e vinte e cinco estava a entrar na garagem de estacionamento na Rua Dez. Levou um ou dois minutos a encontrar um lugar vazio. Desceu as escadas e atravessou a rua a correr.

O Edifício do Capitólio era um palácio de pedra branca que parecia um bolo de casamento, e situava-se no meio de jardins imaculados rodeados por palmeiras gigantes. Percorreu apressadamente um átrio de mármore para uma porta larga onde estava gravada a palavra GOVERNADOR. Parou, respirou algumas vezes para se acalmar, e olhou para o relógio.

Eram exactamente onze e trinta. Tinha chegado a tempo. O FBI não pareceria incompetente.

Abriu as portas duplas e entrou.

Encontrou-se num grande átrio dominado por uma secretária atrás de uma mesa enorme. Num dos lados havia uma fila de cadeiras onde, para sua surpresa, viu Kincaid à espera, com um aspecto fresco e descontraído, num fato cinzento-escuro, o cabelo branco muito bem penteado, de forma alguma uma pessoa que tinha corrido para chegar a tempo. De repente apercebeu-se de que estava a transpirar.

Quando Kincaid reparou nela, notou um clarão de surpresa na expressão dele, expressão essa que foi rapidamente suprimida.

Ela disse:

- Uh... olá, Brian.

- Bom dia - replicou ele, e desviou o olhar.

Não lhe agradeceu por lhe enviar a mensagem a avisá-lo de que a reunião era mais cedo. Ela perguntou:

- A que horas chegou?

- Há alguns minutos.

Aquilo significava que ele soubera a hora correcta da reunião. Mas tinha-lhe dito que era meia hora depois. Seguramente não a tinha enganado de propósito? Parecia quase infantil.

Antes de ter tempo para chegar a uma conclusão, um jovem negro emergiu de uma porta lateral. Falou para Brian.

- Agente Kincaid? Ele levantou-se.

- Sou eu.

- E a senhora deve ser a agente Maddox. O senhor Honeymoon vai recebê-los agora.

Seguiram-no pelo corredor e viraram uma esquina. Enquanto caminhavam, ele disse:

- Chamamos a isto a Ferradura, porque os gabinetes do governador estão agrupados à volta de três lados de um rectângulo.

A meio do segundo lado passaram por outro átrio, este ocupado por duas secretárias. Um jovem com um dossier esperava num sofá de couro. Judy depreendeu que era o acesso para o gabinete pessoal do governador. Alguns passos mais à frente, foram conduzidos para a sala do senhor Honeymoon.

Este era um homem grande, com uma cabeleira abundante a ficar grisalha. Tinha despido o casaco do fato cinzento às riscas e viam-se os suspensórios pretos. As mangas da camisa branca estavam arregaçadas, mas a gravata de seda encontrava-se ajustada num colarinho alto. Ele tirou uns óculos com aros dourados e levantou-se. Tinha um rosto escuro onde estava bem vincada a expressão não-me-lixem. Podia ser um tenente da Polícia, mas estava bem vestido de mais para isso.

Apesar da aparência intimidante, os seus modos eram delicados. Cumprimentou-os e disse:

- Agradeço-vos por terem vindo de São Francisco.

- Não tem de agradecer - disse Kincaid. Sentaram-se.

Sem preâmbulo, Honeymoon disse:

- Que avaliação é que fazem da situação? Kincaid disse:

- Bem, o senhor pediu especificamente para falar com o agente encarregue do caso, por isso vou deixar a Judy pô-lo a par de tudo.

Judy disse:

- Infelizmente, ainda não apanhámos essas pessoas. - Depois amaldiçoou-se por começar com uma desculpa. Sê positiva! - Temos a certeza quase absoluta de que não estão relacionados com a Campanha para a Califórnia Verde... foi uma tentativa fraca de indicar uma pista falsa. Não sabemos quem são, mas posso dizer-lhe algumas coisas importantes que descobrimos sobre eles.

Honeymoon disse:

- Continue, por favor.

- Em primeiro lugar, a análise linguística da mensagem da ameaça diz-nos que estamos a lidar, não com um indivíduo solitário, mas com um grupo.

Kincaid disse:

- Bem, pelo menos duas pessoas.

Judy fitou Kincaid, furiosa, mas ele não olhou para ela. Irritado, Honeymoon disse:

- Afinal de contas em que é que ficamos, duas pessoas ou um grupo?

Judy sentiu-se corar.

- A mensagem foi composta por um homem e escrita por uma mulher, por isso existem pelo menos dois. Ainda não sabemos se há mais.

- Muito bem. Mas por favor seja exacta. Isto não estava a correr bem.

Judy prosseguiu.

- Ponto dois: estas pessoas não são loucas. Kincaid disse:

- Bem, não clinicamente. Mas é mais do que óbvio que não são normais. - Riu-se, como se tivesse dito uma coisa muito inteligente.

Judy amaldiçoou-o em silêncio por estar a enfraquecê-la.

- As pessoas que cometem crimes violentos podem ser divididas em dois tipos, organizadas e desorganizadas. O tipo desorganizado age sob o impulso do momento, utiliza as armas que tem à mão e escolhe as vítimas ao acaso. São os verdadeiros loucos.

Honeymoon estava interessado.

- E o outro tipo?

- Os organizados planeiam os crimes, trazem as armas com eles e atacam vítimas que foram seleccionadas de antemão através de critérios lógicos.

Kincaid disse:

- São apenas doidos de uma forma diferente. Judy tentou ignorá-lo.

- Essas pessoas podem ser doentes, mas não são taradas. Podemos pensar nelas como racionais, e tentar antecipar o que poderão fazer.

- Muito bem. E as pessoas de Os Filhos do Paraíso são organizadas.

- A avaliar pela mensagem deles, sim.

- Confiam muito nesta análise linguística - disse Honeymoon, céptico.

- É uma ferramenta poderosa. Kincaid acrescentou:

- Não substitui um trabalho cuidadoso de investigação. Mas neste caso é tudo o que temos.

A implicação parecia ser que tinham de se apoiar na análise linguística porque Judy não conseguira fazer o trabalho de campo. Ela sentiu-se desesperada e continuou a lutar.

- Estamos a lidar com pessoas sérias... o que significa que, se não conseguirem desencadear um sismo, tentarão outra coisa qualquer.

- Como por exemplo?

- Uma das acções terroristas mais comuns. Explodir uma bomba, fazer um refém, assassinar uma personalidade importante.

Kincaid disse:

- Presumindo que têm capacidade, é claro. Até agora não temos nada que indique isso.

Judy respirou fundo. Tinha de dizer uma coisa, e não podia deixar de o fazer.

- Porém, não estou preparada para eliminar a possibilidade de eles poderem realmente causar um sismo.

Honeymoon disse:

- O quê?

Kincaid riu, desdenhoso. Teimosa, Judy declarou:

- Não é provável, mas é possível. Foi o que me disse o maior especialista da Califórnia, o professor Quercus. Não estaria a cumprir o meu dever se não o informasse.

Kincaid recostou-se na cadeira e cruzou a perna.

- A Judy deu-lhe as respostas dos manuais, Al - disse ele num tom de voz somos-todos-bons-rapazes. - Agora talvez possa dizer-lhe como este caso se afigura na perspectiva de alguma idade e experiência.

Judy observou-o. Hei-de lixar-te por causa disto, nem que seja a última coisa que faça, Kincaid. Passaste a reunião inteira a rebaixar-me. E se houver mesmo um sismo, seu cretino? Que é que vais dizer aos familiares dos mortos?

- Continue, por favor - disse Honeymoon para Kincaid.

- Essas pessoas não podem causar um sismo e estão-se lixando para as centrais de energia. O meu instinto diz-me que se trata de um fulano a tentar impressionar a namorada. Tem o governador aflito, o FBI a correr de um lado para o outro como moscas tontas, e o assunto é falado todas as noites no programa de rádio do John Truth. De repente é um manda-chuva e ela fica de cabeça virada!

Judy sentiu-se profundamente humilhada. Kincaid deixara-a expor tudo o que descobrira e depois troçara de todas as coisas que ela dissera. Era óbvio que tinha planeado aquilo, e ela tinha agora a certeza de que ele a enganara deliberadamente sobre a hora da reunião na esperança de que ela aparecesse tarde. Fazia tudo parte de uma estratégia para a desacreditar e ao mesmo tempo fazer Kincaid parecer o esperto. Sentiu-se enjoada.

Inesperadamente, Honeymoon levantou-se.

- Vou aconselhar o governador a não fazer nada em relação a esta ameaça. - E acrescentou, a dar por encerrada a reunião: - Obrigado a ambos.

Judy apercebeu-se de que era tarde de mais para abrir a porta de diálogo com os terroristas. O momento tinha passado. E, para além do mais, qualquer sugestão sua seria negada por Kincaid. Sentiu-se desesperada. E se é real? E se eles conseguirem?

Kincaid disse:

- Quando pudermos ser-lhe úteis, é só avisar.

Honeymoon parecia levemente trocista. Dificilmente precisaria de um convite para recorrer aos serviços do FBI. Mas estendeu educadamente a mão para se despedir deles.

Um momento depois, Judy e Kincaid estavam fora do gabinete.

Judy manteve-se em silêncio enquanto percorreram a Ferradura e atravessaram o átrio para o corredor de mármore. Ali, Kincaid parou e disse:

- Portaste-te muito bem ali dentro, Judy. Não te preocupes com nada. Não conseguia esconder o sorriso sarcástico.

Ela estava determinada a não o deixar ver até que ponto estava abalada. Queria gritar-lhe, mas obrigou-se a ficar calma:

- Acho que fizemos o nosso trabalho.

- Claro que fizemos. Onde é que estacionaste?

- Na garagem do outro lado da rua. - Esticou um polegar.

- Eu estou do outro lado. Vemo-nos mais tarde.

- Sem dúvida.

Judy observou-o a afastar-se, e depois voltou-se e seguiu na outra direcção.

Ao atravessar a rua viu uma loja de doces See's. Entrou e comprou alguns chocolates.

Enquanto voltava para São Francisco comeu uma caixa inteira.

 

Priest precisava de actividade física para não dar em doido com a tensão. Depois da reunião no templo foi para a vinha e começou a mondar. O dia estava quente, e depressa começou a transpirar e teve de despir a camisa.

Star trabalhava ao lado dele. Aproximadamente uma hora depois ela olhou para o relógio.

- Chegou a hora de fazer uma pausa - disse ela. - Vamos escutar o noticiário.

Sentaram-se no carro de Priest e ligaram o rádio. O noticiário foi idêntico ao que tinham ouvido mais cedo. Priest cerrou os dentes, frustrado.

- Raios, o governador tem de dizer alguma coisa rapidamente! Star disse:

- Não esperamos que ele ceda já, pois não?

- Não, mas pensei que haveria alguma mensagem, talvez apenas uma sugestão de concessão. Raios, a ideia de não se construírem mais centrais energéticas não é uma ideia completamente descabida. Na Califórnia, provavelmente milhões de pessoas concordam com ela.

Star acenou afirmativamente.

- Porra, em Los Angeles já é perigoso respirar por causa da poluição, por amor de Deus! Não posso acreditar que as pessoas possam viver assim.

- Mas não acontece nada.

- Bem, soubemos sempre que talvez fosse necessária uma demonstração antes de nos escutarem.

- Sim. - Priest hesitou, e depois confessou: - Acho que estou apenas com medo de que não resulte.

- O vibrador sísmico?

Ele hesitou mais uma vez. Não seria tão franco com ninguém a não ser com Star, e já estava meio arrependido desta confissão de dúvida. Mas tinha começado, por isso o melhor era acabar.

- Tudo - disse ele. - Tenho medo de que não haja um sismo, e depois estará tudo perdido.

Viu que ela estava um pouco chocada. Estava acostumada a que ele fosse supremamente confiante acerca de tudo o que fazia. Mas nunca fizera nada assim.

De novo a caminho da vinha, ela disse:

- Faz alguma coisa com a Flower esta noite.

- Alguma coisa, como?

- Passa tempo com ela. Faz alguma coisa com ela. Estás sempre a brincar com o Dusty.

Dusty tinha cinco anos. Era fácil divertir-se com ele. Ele estava fascinado com tudo. Flower tinha treze anos, a idade em que todos os adultos pareciam estúpidos. Priest estava prestes a dizer isto quando se apercebeu de que havia outro motivo para o que Star estava a dizer.

Ela acha que eu posso morrer amanhã.

O pensamento atingiu-o como um murro. Sabia que este plano do sismo era perigoso, claro, mas tinha considerado essencialmente o perigo para si próprio e o risco de deixar a comuna sem líder. Não tinha imaginado Flower sozinha no mundo aos treze anos de idade.

- Que é que faço com ela? - perguntou.

- Ela quer aprender a tocar guitarra.

Aquilo era novidade para Priest. Ele próprio não era um grande guitarrista, mas sabia tocar músicas populares e algumas melodias simples de blues, que eram o suficiente para lhe dar as primeiras noções. Encolheu os ombros.

- Está bem, começamos esta noite.

Voltaram ao trabalho, mas alguns minutos depois foram interrompidos quando Slow, a sorrir de orelha a orelha, gritou:

- Hei, vejam só quem está aqui!

Priest olhou para o outro lado da vinha. Pensou que era Melanie. Ela tinha ido a São Francisco levar Dusty para o pai. Era a única que podia dizer a Priest exactamente onde usar o vibrador sísmico, e ele não se sentiria descansado até ela estar de volta. Mas era cedo de mais para a esperar, e, de qualquer maneira, Slow não teria ficado tão empolgado com Melanie.

Viu um homem a descer a encosta, seguido por uma mulher que trazia uma criança ao colo. Priest franziu o sobrolho. Muitas vezes, passava um ano sem que um único visitante viesse ao vale. Esta manhã tinham tido o polícia; agora estas pessoas. Mas seriam desconhecidos? Semicerrou os olhos. O andar bamboleante do homem era terrivelmente familiar. Quando as figuras se aproximaram mais, Priest disse:

- Meu Deus, é o Bonés?

- Pois é! - disse Star, encantada. - Santo Deus! - E correu para os recém-chegados. Spirit juntou-se à confusão e correu com ela, a ladrar.

Priest seguiu-os mais lentamente. Bonés, cujo nome verdadeiro era Billy Owens, era um Comedor de Arroz. Mas gostava de como as coisas eram antes da chegada de Priest. Gostava da existência do começo da comuna, em que viviam apenas o dia-a-dia. Divertia-se com as crises constantes e gostava de estar bêbado ou pedrado, ou ambos, algumas horas depois de acordar. Tocava harmónica de blues com um brilhantismo maníaco e era o melhor mendigo de rua que tinham. Não tinha ido para a comuna para encontrar trabalho, autodisciplina e um acto diário de adoração. Por isso, alguns anos depois, quando ficou claro que o regime Priest-Star era permanente, Bonés foi-se embora. Não tinha sido visto desde então. Agora, mais de vinte anos depois, estava de volta.

Star atirou os braços à volta dele, abraçou-o com força e beijou-o nos lábios. Aqueles dois tinham sido um caso sério durante algum tempo. Naqueles tempos, todos os homens da comuna tinham dormido com Star, mas ela tinha uma predilecção especial por Bonés. Priest sentiu uma picada de ciúme ao observar a forma como Bonés apertava o corpo de Star contra o dele.

Quando se soltaram, Priest reparou que Bonés não parecia bem. Tinha sido sempre um homem magro, mas agora parecia estar a morrer de fome. Tinha cabelos revoltos e uma barba desgrenhada, mas a barba tinha falhas e o cabelo parecia estar a cair aos montes. As calças de ganga e a T-shirt estavam sujas, e o salto de uma das suas botas de vaqueiro tinha caído.

Está aqui porque tem problemas.

Bonés apresentou a mulher como Debbie. Era mais nova do que ele, não tinha mais de vinte e cinco anos, e bonita, embora tivesse feições macilentas. O filho era um rapaz com cerca de dezoito meses. Ela e o miúdo estavam quase tão magros e sujos como Bonés.

Eram horas da refeição do meio-dia. Levaram Bonés para a cozinha. O almoço era um guisado feito com cevadinha francesa e temperado com plantas cultivadas por Garden. Debbie comeu vorazmente e alimentou também a criança, mas Bonés tirou apenas algumas colheres, e depois acendeu um cigarro.

Havia muito para conversar acerca dos velhos tempos. Bonés disse:

- Vou contar-vos a minha recordação preferida. Uma tarde, ali mesmo naquela encosta, Star explicou-me o que era um minete. - Ouviu-se uma pequena gargalhada à volta da mesa. Foi uma gargalhada levemente embaraçada, mas Bonés não percebeu, e continuou: - Eu tinha vinte anos e não fazia a menor ideia de que as pessoas faziam aquilo. Fiquei chocado! Mas ela obrigou-me a experimentar. E o sabor! Que nojo!

- Havia muitas coisas que tu não sabias - disse Star. - Recordo-me de me dizeres que não compreendias por que é que às vezes tinhas dores de cabeça pela manhã, e eu tive de te explicar que acontecia sempre que apanhavas uma bebedeira de caixão à cova na noite anterior. Não conhecias o significado da palavra "ressaca".

Ela tinha mudado de assunto com habilidade. Antigamente, era bastante normal falar sobre minetes à mesa, mas as coisas tinham mudado desde que Bonés se fora embora. Ninguém tinha declarado especificamente que tinham de ter conversas menos porcas, mas acontecera naturalmente, à medida que as crianças começaram a compreender mais.

Bonés estava enervado, a rir muito, a esforçar-se de mais para ser amistoso, agitado, a fumar cigarros atrás de cigarros. Ele quer alguma coisa. Mas vai dizer-me o que é daqui a pouco.

Enquanto levantavam a mesa e lavavam as tigelas, Bonés puxou Priest para o lado e disse:

- Quero mostrar-te uma coisa. Vem comigo. Priest encolheu os ombros e foi com ele.

Enquanto caminhavam, Priest pegou num saquinho de marijuana e num pacote de mortalhas. Normalmente, os membros da comuna não fumavam erva durante o dia, porque fazia abrandar o trabalho na vinha, mas hoje era um dia especial, e Priest sentiu necessidade de acalmar os nervos. Na subida da encosta, ao passarem pelo meio das árvores, ele enrolou um charro com a destreza da longa prática.

Bonés lambeu os lábios.

- Não tens nada que, bem, que dê mais estaleca, pois não?

- Que é que andas a usar agora, Bonés?

- Um açucarzinho castanho de vez em quando, sabes, para manter o pensamento claro.

Heroína.

Então era isso. Bonés tinha ficado agarrado.

- Não temos cavalo aqui - disse-lhe Priest. - Ninguém usa. - E livrar-me-ia de alguém que o fizesse mais depressa do que tu consegues dizer ai.

Priest acendeu o charro.

Ao chegarem à clareira onde os carros estavam estacionados, Bonés disse:

- Aqui está.

No começo Priest não conseguiu perceber para que é que estava a olhar. Era um camião, mas que género de camião? Tinha um desenho contornado a cinzento e estava pintado de encarnado-vivo e amarelo, e dos lados via-se o desenho de um monstro a cuspir fogo e algumas letras com as mesmas cores berrantes.

Bonés, que sabia que Priest era analfabeto, disse:

- A Boca do Dragão. É um carrossel.

Então Priest percebeu. Muitos carrosséis pequenos eram montados em camiões. O motor do camião dava energia ao carrossel quando este estava a funcionar. Depois, as partes do carrossel podiam ser dobradas e o camião era levado para o local seguinte.

Priest passou-lhe o charro e perguntou:

- É teu?

Bonés deu uma grande passa, susteve o fumo, e depois soprou antes de responder.

- Ganho a vida com isto há dez anos. Mas precisa de ser reparado, e não tenho dinheiro para o arranjar. Por isso tenho de o vender.

Priest percebeu o que ia seguir-se.

Bonés deu mais uma passa no charro mas não o devolveu.

- Provavelmente, vale cinquenta mil dólares, mas eu estou a pedir dez.

Priest acenou afirmativamente.

- Parece uma pechincha... para alguém.

- Talvez vocês pudessem comprá-lo - sugeriu Bonés.

- Que diabo é que eu faria com um carrossel, Bonés?

- É um bom investimento. Se tiverem um ano mau com o vinho, podem sair com o carrossel e ganhar algum dinheiro.

De vez em quando tinham anos maus. Não podiam fazer nada em relação ao tempo. Mas Paul Beale estava sempre disposto a conceder-lhes crédito. Acreditava nos ideais da comuna, embora ele próprio não tivesse conseguido vivê-los. E sabia que haveria sempre outra colheita de qualidade excelente no ano seguinte. Priest abanou a cabeça.

- Nem pensar. Mas desejo-te sorte, velho amigo. Continua a tentar que encontras um comprador.

Bonés devia ter sabido que era uma tentativa que não levaria a nada, mas mesmo assim pareceu assustado.

- Hei, Priest, vou contar-te a verdade... estou em mau estado. Podes emprestar-me mil dólares? Chegaria para me endireitar.

Chegava para te dar uma pedrada do caraças, meu. E alguns dias depois estavas na mesma.

- Nós não temos dinheiro - disse-lhe Priest. - Aqui não usamos dinheiro, não te lembras?

Bonés olhou-o astutamente.

- Têm de ter um pé-de-meia algures, vá lá! Epensavas que eu ia contar-te?

- Lamento, amigo, mas não posso ajudar-te. Bonés acenou afirmativamente.

- É uma treta, meu. Quero dizer, estou feito. Priest disse:

- E não tentes ir pedir à Star nas minhas costas, porque vais ter a mesma resposta. - Falou num tom ríspido. - Estás a escutar-me?

- Claro, claro - disse Bonés, e parecia assustado. - Tem calma, Priest, tem calma, meu.

- Eu estou calmo - disse Priest.

Priest esteve toda a tarde preocupado com Melanie. Ela podia ter mudado de ideias e decidido voltar para o marido ou ter-se simplesmente assustado e fugido para longe no seu carro. Nesse caso, estaria acabado. Não havia a menor hipótese de ele ou algum dos outros conseguir interpretar os dados do disco de Michael Quercus e descobrir onde colocar o vibrador sísmico amanhã;

Mas, para seu grande alívio, ela apareceu ao fim da tarde. Ele contou-lhe que Flower tinha sido presa e avisou-a de que uma ou duas pessoas queriam culpá-la e às suas roupas bonitas. Ela disse que iria buscar algumas roupas de trabalho à loja.

Depois do jantar, Priest foi à cabana de Song e pegou na guitarra.

- Vais usar isto? - perguntou educadamente. Nunca diria, "Podes emprestar-me a tua guitarra?", porque, em teoria, toda a propriedade era comunal, por isso a guitarra era tanto dele como dela, embora ela a tivesse feito. Todavia, na prática todos pediam sempre.

Sentou-se do lado de fora da sua cabana com Flower e afinou a guitarra. Spirit, o cão, observava com atenção, como se também ele fosse aprender a tocar.

- A maior parte das músicas têm três acordes - começou Priest.

- Se souberes tocar três acordes, consegues tocar nove em cada dez canções do mundo inteiro.

Mostrou-lhe o acorde de dó. Enquanto ela se esforçava por carregar nas cordas com as pontas dos dedos macias, ele estudou-lhe o rosto à luz do fim de tarde: a pele perfeita, os cabelos escuros, os olhos verdes como os de Star, as pequenas rugas na testa enquanto se concentrava. Tenho de ficar vivo, para tomar conta de ti.

Pensou em si próprio com aquela idade, já um criminoso, experiente, habilidoso, endurecido para a violência, com ódio pelos polícias e desprezo pelos cidadãos que eram estúpidos ao ponto de se deixarem roubar. Aos treze anos eu já tinha enveredado por maus caminhos. Estava determinado a não deixar que Flower fosse como ele. Ela tinha crescido numa comunidade de paz e amor, intocada pelo mundo que tinha corrompido o pequeno Ricky Granger e o tinha transformado num rufia antes de lhe crescerem pêlos no queixo. Vais ficar bem, eu vou fazer tudo para que isso aconteça.

Ela tocou o acorde, e Priest apercebeu-se de que tinha uma canção na cabeça desde que Bonés chegara. Era uma canção popular do princípio dos anos 60 de que Star sempre gostara.

Mostra-me a prisão Mostra-me a cadeia Mostra-me o prisioneiro Cuja vida perdeu a graça.

- Vou ensinar-te uma canção que a tua mãe costumava cantar-te quando eras bebé - disse ele. Pegou na guitarra. - Lembras-te disto?

- cantou:

Vou mostrar-te um jovem Com tantos motivos

Na sua cabeça ouviu a voz inconfundível de Star, tão baixa e sexy naquela altura como agora.

Para ali, quis o destino Vamos tu ou eu Tu ou eu.

Priest tinha praticamente a mesma idade que Bonés, e Bonés estava a morrer. Priest não tinha dúvidas em relação a isso. Em breve a rapariga e o bebé iam deixá-lo. Ele deixaria o corpo passar fome e alimentaria o vício. Talvez tomasse uma overdose ou se envenenasse com drogas maradas, ou talvez maltratasse o seu corpo até este ser destruído e ele apanhar uma pneumonia. De uma maneira ou outra, era um homem morto.

Se eu perder este sítio, vai-me acontecer o mesmo que ao Bonés.

Enquanto Flower se esforçava para tocar o acorde de lá menor, Priest brincou com a ideia de voltar para a sociedade normal. Imaginou-se a ir todos os dias para um emprego, a comprar meias e sapatos bicudos, a ter uma televisão e uma torradeira. O pensamento arrepiou-o. Nunca tinha vivido dentro da lei. Tinha sido criado numa casa de putas, educado nas ruas, fora proprietário de um negócio semilegítimo durante pouco tempo, e líder de uma comuna hippie desligada do mundo a maior parte da sua vida.

Recordou o único emprego regular que tinha tido. Aos dezoito anos fora trabalhar para os Jenkinsons, o casal que dirigia a loja de bebidas alcoólicas ao fundo da rua. Na época tinha-os achado velhos, mas agora achava que deviam ter cerca de cinquenta anos. A sua intenção era trabalhar apenas o tempo suficiente para descobrir onde é que eles guardavam o dinheiro, e depois roubá-lo. Mas foi então que aprendeu uma coisa acerca de si mesmo.

Descobriu que tinha um talento estranho para a aritmética. Cada manhã, o senhor Jenkinson punha dez dólares de trocos na caixa registadora. À medida que os clientes compravam as bebidas e pagavam e recebiam troco, Priest servia-os pessoalmente ou ouvia um dos Jenkinsons pronunciar o total, "Um dólar e vinte e nove, senhora Roberto", ou "Dez dólares certos, por favor". E os números pareciam somar-se na sua cabeça. Ao longo do dia, Priest sabia sempre com exactidão quanto dinheiro estava na caixa, e no fim do dia podia dizer ao senhor Jenkinson o total antes de este o contar.

Ouvia o senhor Jenkinson a falar para o vendedor que telefonava, e em breve conhecia os preços de venda e de retalho de cada artigo existente na loja. Daí em diante, o registo automático no seu cérebro passou a calcular o lucro de cada transacção, e ficou abismado com a quantidade de dinheiro que os Jenkinsons ganhavam sem roubar ninguém.

Organizou tudo para que fossem assaltados quatro vezes num mês, e depois fez-lhes uma oferta pela loja. Quando eles recusaram, arranjou um quinto roubo e certificou-se de que desta vez a senhora Jenkinson era molestada. Depois disso, o senhor Jenkinson aceitou a oferta.

Priest pediu o sinal emprestado ao agiota do bairro e pagou as prestações ao senhor Jenkinson com os lucros da loja. Embora não soubesse ler nem escrever, sabia sempre ao tostão qual era a sua posição financeira. Ninguém podia enganá-lo. Uma vez deu emprego a uma respeitável senhora de meia-idade que roubava um dólar da caixa registadora todos os dias. No final da semana deduziu-lhe cinco dólares do ordenado, deu-lhe uma sova e disse-lhe para não voltar.

No espaço de um ano tinha quatro lojas; dois anos depois tinha um armazém de venda por atacado de bebidas alcoólicas; passados três anos era milionário; e no fim do quarto ano teve de fugir.

Às vezes perguntava a si mesmo o que teria acontecido se tivesse pago o empréstimo todo ao agiota, dado ao contabilista valores honestos para a declaração do IRS, e feito um acordo com o Departamento de Polícia de Los Angeles em relação às acusações de fraude. Talvez hoje tivesse uma empresa tão grande como a Coca-Cola e vivesse numa daquelas mansões em Beverly Hills com um jardineiro e um rapaz para limpar a piscina e uma garagem para cinco carros.

Mas sempre que tentava imaginar aquilo sabia que nunca poderia ter acontecido. Não era ele. O tipo que descia a escadaria da mansão num roupão branco, e ordenava friamente a uma criada que lhe fizesse um sumo de laranja, tinha o rosto de outra pessoa. Priest nunca poderia viver no mundo quadrado. Tinha tido sempre um problema com as regras: nunca conseguia obedecer às das outras pessoas. Era por isso que tinha de viver aqui.

No vale do rio de Prata eu faço as regras, eu mudo as regras, eu sou as regras.

Flower queixou-se de que lhe doíam os dedos.

- Então chegou a altura de parar - disse Priest. - Se quiseres, amanhã ensino-te outra canção. - Se ainda estiver vivo.

- Faz-te doer?

- Não, mas só porque estou acostumado. Quando praticares um pouco a tocar guitarra, as pontas dos teus dedos vão ficar duras, como a pele do teu cotovelo.

- O Noel Gallagher tem as pontas dos dedos duras?

- Se o Noel Gallagher for um guitarrista pop...

- Claro que sim! É dos Oásis!

- Bom, então tem as pontas dos dedos duras. Achas que gostarias de ser artista?

- Não.

- Que certeza! Tens outras ideias?

Ela pareceu culpada, como se soubesse que ele ia desaprovar, mas arranjou coragem e disse:

- Quero ser escritora.

Ele não percebeu ao certo como se sentia em relação àquilo. O teu paizinho nunca vai poder ler as tuas obras. Mas fingiu entusiasmo.

- Que bom! De que género?

- Para uma revista. Talvez como a Teen.

- Porquê?

- Porque conhecemos as estrelas e entrevistamo-las, e escrevemos acerca de modas e maquilhagem.

Priest cerrou os dentes para não deixar que se notasse a repulsa.

- Bem, gosto da ideia de te tornares escritora. Se escrevesses poesia e contos, ao invés de artigos para revistas, podias continuar a viver aqui no vale do rio de Prata.

- Pois, talvez - disse ela, com dúvidas.

Ele percebeu que ela não estava a pensar passar a vida ali. Mas era demasiado jovem para compreender. Quando tivesse idade suficiente para decidir por si mesma, teria uma opinião diferente. Espero.

Star aproximou-se deles.

- São horas do Truth - disse. Priest tirou a guitarra a Flower.

- Agora vai preparar-te para dormir - disse ele.

Ele e Star dirigiram-se para a zona de estacionamento, e a caminho deixaram a guitarra na cabana de Song. Melanie já lá estava, sentada no banco de trás do 'Cuda, a ouvir rádio. Tinha vestido uma T-shirt de um amarelo-vivo e calças de ganga azuis da loja da comuna. Eram ambas grandes de mais para ela, e tinha enfiado a T-shirt dentro das calças de ganga e prendido as calças com um cinto, que evidenciava a sua cintura fina. Estava mais sexy do que nunca.

John Truth tinha um tom de voz nasalado que podia tornar-se hipnótico. A especialidade dele era dizer em voz alta as coisas em que os ouvintes acreditavam no íntimo mas que tinham vergonha de admitir. Tratava-se principalmente de coisas típicas de porco-fascista: a SIDA era um castigo pelo pecado, a inteligência era herdada racialmente, o mundo precisava de uma disciplina mais rígida, todos os políticos eram estúpidos e corruptos, e coisas desse género. Priest imaginou que a audiência dele devia ser composta principalmente por homens brancos e gordos que tinham aprendido tudo o que sabiam em bares.

- Este tipo - disse Star. - É tudo o que eu odeio na América: preconceituoso, falso beato, hipócrita, cínico e estúpido como o caraças.

- Tens toda a razão - disse Priest. - Escutem. Truth estava a dizer:

- Vou ler uma vez mais a declaração feita pelo secretário de gabinete do governador, o senhor Honeymoon.

Os pêlos da nuca de Priest arrepiaram-se e Star disse:

- Aquele filho da puta!

Honeymoon era o homem por detrás do plano para inundar o vale do rio de Prata, e odiavam-no.

John Truth continuou, falando lenta e pesadamente, como se cada sílaba fosse importante.

- Escutem isto. "O FBI investigou a ameaça que apareceu numa folha de notícias da Internet no dia 1 de Maio. Essa investigação determinou que a ameaça não tem solidez."

O coração de Priest apertou-se. Era o que esperava, mas mesmo assim ficou consternado. Tinha desejado pelo menos uma ténue sugestão de apaziguamento. Mas Honeymoon parecia completamente intratável.

Truth continuou a leitura.

- "O governador Mike Robson, de acordo com uma recomendação do FBI, decidiu não tomar mais medidas." Isto, meus amigos, é a declaração no seu todo. - Obviamente, Truth achava que era ultrajantemente curta. - Estão satisfeitos? O prazo dos terroristas termina amanhã. Sentem-se seguros? Telefonem já para este número e digam-me o que pensam no "John Truth ao Vivo"!

Priest disse:

- Isto significa que temos de o fazer. Melanie declarou:

- Bem, eu nunca esperei que o governador vergasse sem uma demonstração.

- Nem eu, acho. - Franziu o sobrolho. - A declaração mencionou o FBI duas vezes. Parece-me que o Mike Robson está a preparar-se para culpar o FBI se as coisas correrem mal. E isso faz-me pensar se no fundo não terá dúvidas.

- Então, se lhe dermos provas de que podemos realmente provocar um sismo...

- Talvez pense melhor. Star pareceu deprimida.

- Porra - disse ela. - Acho que tinha esperado que não tivéssemos de fazer isto.

Priest ficou alarmado. Não queria que Star recuasse nesta fase. O apoio dela era necessário para convencer o resto dos Comedores de Arroz.

- Podemos fazer isto sem magoar pessoas - disse ele. - A Melanie escolheu a localização perfeita. - Voltou-se para o banco de trás. - Conta à Star aquilo em que estivemos a falar.

Melanie inclinou-se para a frente e desdobrou um mapa para que Star e Priest pudessem ver. Não sabia que Priest não conseguia ler mapas.

- Aqui é a falha do vale Owens - disse ela, a apontar para uma linha vermelha. - Ocorreram grandes sismos em 1790 e 1872, por isso está a aproximar-se o momento de acontecer outro.

Star disse:

- Seguramente, os sismos não acontecem segundo um horário regular...?

- Não. Mas o historial da falha mostra que ao longo de cerca de um século acumula-se pressão suficiente para um sismo. O que significa que podemos provocar um agora, se dermos um toque no lugar certo.

- Que é onde? - perguntou Star. Melanie apontou para um ponto no mapa.

- Aproximadamente aqui.

- Não podes ser mais exacta?

- Só depois de chegar lá. As informações do Michael dão-nos a localização no raio de aproximadamente um quilómetro e meio. Quando olhar para a paisagem, devo poder detectar o local.

- Como?

- Sinais de sismos anteriores.

- Está bem.

- Agora, a melhor hora, de acordo com a janela sísmica do Michael, será entre a uma e meia e as duas e meia da tarde.

- Como é que podemos ter a certeza de que ninguém será ferido?

- Olha para o mapa. O vale Owens é escassamente povoado, apenas algumas cidades pequenas espalhadas ao longo do leito seco de um rio. O ponto que escolhi situa-se a muitos quilómetros de distância de qualquer habitação humana.

Priest acrescentou:

- Podemos ter a certeza de que o sismo será pequeno. Os efeitos quase não se sentirão na cidade mais próxima. - Sabia que não podia ter a certeza, e Melanie também; mas olhou-a duramente, e ela não o contradisse.

Star perguntou:

- Se os efeitos quase não se sentirem, ninguém vai ligar, por isso para quê provocá-lo?

Estava a ser do contra, mas era apenas um sinal de quanto estava tensa. Priest disse:

- Dissemos que provocaríamos um sismo amanhã. Logo que cumprirmos a ameaça, telefonamos para o programa do John Truth pelo telemóvel da Melanie e dizemos-lhe que cumprimos a promessa. - Que momento que vai ser, que sensação!

- Ele vai acreditar em nós? Melanie disse:

- Vai ter de acreditar, quando verificar o sismógrafo. Priest disse:

- Imaginem como o governador e a equipa dele se vão sentir. - Ouvia a exultação da sua própria voz. - Especialmente aquele cretino do Honeymoon. Vão dizer uma coisa do género, "Merda! Estes tipos podem realmente provocar sismos, meu! Que porra é que vamos fazer?".

- E depois fazemos o quê? - perguntou Star.

- Depois ameaçamos desencadear mais um. Mas desta vez não lhes damos um mês. Damos-lhes uma semana.

- Como é que fazemos a ameaça? Da mesma forma que da primeira vez?

Melanie respondeu.

- Acho que não. Tenho a certeza de que eles têm uma forma de vigiar a folha de notícias e detectar a origem do telefonema. E se usarmos uma folha de notícias diferente, há sempre a probabilidade de ninguém reparar na nossa mensagem. Lembrem-se de que só passadas três semanas é que o John Truth viu a nossa última.

- Então telefonamos e ameaçamos com um segundo sismo.

Priest acrescentou:

- Mas da próxima vez não será num deserto remoto... será num sítio onde haja estragos consideráveis. - Recebeu um olhar apreensivo de Star. - Não temos de estar a falar a sério - acrescentou. - Uma vez que mostremos o nosso poder, a simples ameaça será suficiente.

Star disse:

- Inshallah. - Tinha aprendido a expressão com Poem, que era argelina. - Se Deus quiser.

Na madrugada seguinte, quando saíram, estava escuro como breu.

O vibrador sísmico não tinha sido visto à luz do dia num raio de cento e sessenta quilómetros do vale, e Priest queria manter as coisas assim. Pensava sair de casa e regressar na escuridão. A viagem de ida e volta seria de cerca de oitocentos quilómetros, onze horas a conduzir num camião a uma velocidade máxima de setenta. Priest tinha decidido que levariam o 'Cuda como carro de apoio. Oaktree viria com eles para ajudar a conduzir.

Priest usou uma lanterna para iluminar o caminho pelo meio das árvores até ao local onde o camião estava escondido. Iam os quatro em silêncio, ansiosos. Levaram meia hora para remover os ramos que tinham empilhado sobre o veículo.

Estava tenso quando, por fim, se sentou atrás do volante, enfiou a chave na ignição e ligou o motor. O veículo começou a trabalhar à primeira com um ruído satisfatório, e ele sentiu-se exultante.

As casas da comuna situavam-se a mais de um quilómetro e meio de distância, e tinha a certeza de que ninguém ouviria o motor tão longe. A floresta densa abafava o som. Mais tarde, é claro que todos reparariam que quatro elementos da comuna se tinham ausentado. Aneth tinha recebido instruções para dizer que tinham ido a uma vinha em Napa que Paul Beale queria que vissem, onde tinha sido plantada uma nova videira híbrida. Era invulgar os companheiros fazerem viagens para longe da comuna; mas haveria poucas perguntas, pois ninguém gostava de desafiar Priest.

Acendeu os faróis e Melanie subiu para o camião ao lado dele. Meteu a primeira e conduziu o veículo pesado pelo meio das árvores até ao trilho de terra, depois começou a subir a encosta e dirigiu-se para a estrada. Os pneus todo-o-terreno adaptaram-se facilmente aos leitos de ribeiros e às zonas pantanosas.

Jesus, será que isto vai resultar?

Um sismo? Tem juízo!

Mas tem de resultar.

Entrou na estrada e dirigiu-se para leste. Vinte minutos depois saíram do vale do Rio de Prata e entraram na Estrada 89. Priest voltou para sul. Olhou pelos espelhos retrovisores e viu que Star e Oaktree continuavam atrás no 'Cuda.

A seu lado, Melanie estava muito calma. A sondá-la discretamente, perguntou:

- A noite passada o Dusty estava bem?

- Estava. Ele gosta de visitar o pai. O Michael conseguiu arranjar sempre tempo para ele, nunca para mim.

A amargura de Melanie era bastante comum. O que surpreendeu Priest foi a ausência de medo que viu nela. Ao contrário dele, ela não estava em pânico com o que poderia acontecer com o filho se morresse hoje. Parecia totalmente confiante de que nada correria mal, de que o sismo não a magoaria. Seria por saber mais do que Priest? Ou era o género de pessoa que ignorava os factos incómodos? Priest não sabia ao certo.

O dia nasceu quando percorriam a estrada sinuosa da margem norte do lago Tahoe. A água imóvel parecia um disco de aço polido caído no meio das montanhas. O vibrador sísmico era um veículo conspícuo na estrada sinuosa que seguia a margem orlada de pinheiros; mas os veraneantes ainda estavam a dormir, e o camião só foi visto por alguns trabalhadores de olhos ensonados a caminho de empregos em hotéis e restaurantes.

Quando o Sol subiu no céu encontravam-se na U. S. 395, do lado de lá da fronteira no Nevada, a percorrer uma paisagem desértica e plana para sul. Fizeram uma pausa num local de descanso para camiões, estacionaram o vibrador sísmico num local onde não podia ser visto da estrada e tomaram um pequeno-almoço de omeletas gordurosas e café aguado.

A estrada curvou de volta para a Califórnia, subiram para as montanhas, e durante algumas horas a paisagem foi majestosa, com encostas muito íngremes e densamente arborizadas, uma versão maior do vale do Rio de Prata. Desceram novamente ao lado de um mar prateado que Melanie disse ser o lago Mono.

Pouco depois estavam numa estrada com duas faixas de rodagem que atravessava um vale comprido, poeirento. O vale alargou até as montanhas na extremidade mais longínqua serem apenas uma névoa azul, e depois estreitou novamente. O solo de cada lado da estrada era escuro e pedregoso, e viam-se alguns arbustos espalhados. Não havia rio, mas os leitos salgados pareciam um lençol de água distante. Melanie disse:

- Este é o vale Owens.

Ao contemplar aquela paisagem, Priest teve a sensação de que tinha sido assolada por um desastre qualquer.

- Que aconteceu aqui? - perguntou.

- O rio está seco porque a água foi desviada para Los Angeles há vários anos.

Passavam por uma cidadezinha adormecida aproximadamente de trinta em trinta quilómetros. Agora não tinham forma de se esconder. Havia pouco tráfego, e o vibrador sísmico era observado de cada vez que parava num semáforo. Muitos homens lembrar-se-iam do veículo. Sim, vi aquela geringonça. Parecia uma máquina para estender alcatrão, ou coisa do género. Afinal, o que era?

Melanie ligou o computador portátil e desdobrou o mapa. Pensativa, disse:

- Algures por baixo de nós, duas grandes placas da crosta terrestre estão introduzidas à força uma na outra, presas, a tentar soltar-se.

Ao pensar naquilo, Priest sentiu um arrepio. Quase não podia acreditar que pretendia libertar toda aquela força destrutiva acumulada. Devo estar completamente doido.

- Algures nos próximos oito ou quinze quilómetros - declarou ela.

- Que horas são.

- Passa pouco da uma.

Tinham chegado a tempo. A janela sísmica abria dentro de meia hora e fechava cinquenta minutos depois.

Melanie disse a Priest para seguir por um desvio lateral que atravessava o solo plano do vale. Não era verdadeiramente uma estrada, apenas um trilho aberto entre os seixos e os arbustos. Embora o chão parecesse quase plano, a estrada principal desapareceu da vista atrás deles, e viam apenas os topos dos camiões altos que passavam.

- Encosta aqui - disse Melanie por fim.

Priest parou o camião, e saíram ambos. O sol, no alto de um céu impiedoso, incidiu sobre eles. O 'Cuda encostou atrás deles, e Star e Oaktree saíram, a esticar os braços e as pernas depois da grande viagem.

- Olha para aquilo - disse Melanie. - Vês a ravina seca?

Priest observou o local onde um rio, há muito seco, tinha aberto um canal através do chão rochoso. Mas, no ponto para onde Melanie apontava, a ravina terminava abruptamente, como se tivesse sido emparedada.

- É estranho - disse Priest.

- Agora olha alguns metros para a direita.

Priest seguiu o dedo dela. O leito do rio começava de novo da mesma forma abrupta e continuava para o meio do vale. Priest percebeu para onde é que ela estava a apontar.

- É a linha da falha - disse ele. - Da última vez que houve um sismo, um lado inteiro deste vale soltou-se e moveu-se cinco metros, e depois assentou novamente.

- Isso mesmo. Oaktree disse:

- E estamos prestes a fazer tudo acontecer outra vez, não é verdade? - Na voz dele sentiu uma nota de temor.

- Vamos tentar - disse Priest com vivacidade. - E não temos muito tempo. - Voltou-se para Melanie. - O camião está precisamente no lugar certo?

- Acho que sim - disse ela. - Alguns metros para um lado ou para o outro aqui à superfície não devem fazer diferença nenhuma alguns quilómetros mais abaixo.

- Está bem. - Ele hesitou. Quase sentiu que devia fazer um discurso. Disse: - Bom, vou começar.

Entrou na cabina do camião e instalou-se no banco do condutor, e depois ligou o motor que fazia funcionar o vibrador. Premiu o botão que descia a placa de aço até ao chão. Programou o vibrador para tremer durante trinta segundos a meio da banda de frequência. Espreitou pelo vidro retrovisor da cabina e verificou os manómetros. Os valores estavam normais. Pegou no rádio de controlo remoto e saiu do camião.

- Tudo pronto - anunciou.

Foram os quatro para o 'Cuda. Oaktree sentou-se ao volante. Voltaram para a estrada, atravessaram-na, e dirigiram-se para os arbustos do lado mais afastado. Subiram parte da encosta, e depois Melanie disse:

- Aqui está bem. Oaktree parou o carro.

Priest esperou que não suscitassem a curiosidade de quem passava na estrada. Mas não podia fazer nada. Porém, as cores acastanhadas da pintura do 'Cuda misturavam-se com a paisagem castanha.

Nervoso, Oaktree perguntou:

- Estamos a uma distância suficiente?

- Penso que sim - disse Melanie, despreocupada. Não estava absolutamente nada assustada. Ao observar-lhe o rosto, Priest viu um laivo de excitação louca nos olhos dela. Era quase sexual. Estaria a vingar-se dos sismólogos que a tinham rejeitado, ou do marido que a decepcionara, ou do maldito mundo inteiro? Fosse qual fosse a explicação, estava a receber uma grande carga de energia com tudo isto.

Saíram do carro e ficaram a olhar para o outro lado do vale. Só conseguiam ver a parte de cima do camião. Star disse para Priest:

- Foi um erro termos vindo os dois. Se morrermos, a Flower fica sem ninguém.

- Ela tem a comuna toda - disse Priest. - Tu e eu não somos os únicos adultos que ela ama e em quem confia. Não somos uma família nuclear, e aqui está uma boa razão para não sermos.

Melanie pareceu aborrecida.

- Estamos a quatrocentos metros da falha, presumindo que ela corre ao longo do solo do vale - disse ela num tom de voz deixem-se-de-tretas. - Vamos sentir a terra tremer, mas não corremos perigo algum. As pessoas que são feridas em sismos são regra geral atingidas por partes de edifícios: tectos que caem, pontes que ruem, vidro a voar, coisas desse género. Aqui estamos seguros.

Star olhou por cima do ombro.

- A montanha não vai cair em cima de nós?

- É possível. E também podemos morrer todos num acidente de carro na viagem de regresso para o vale do Rio de Prata. Mas é tão improvável que não devemos perder tempo a preocuparmo-nos com isso.

- É fácil para ti dizeres isso... o pai do teu filho está a quatrocentos e cinquenta quilómetros de distância, em São Francisco.

Priest disse:

- Não me importo se morrer aqui. Não posso educar os meus filhos na América suburbana.

Oaktree balbuciou:

- Isto tem de resultar. Tem de resultar. Melanie disse:

- Por amor de Deus, Priest, não temos o dia todo. Carrega na porcaria do botão.

Priest olhou para os dois lados da rua e esperou que um jipe Grand Cherokee verde-escuro passasse.

- Muito bem - declarou quando a estrada ficou vazia. - Cá vai.

Premiu o botão do comando à distância.

Ouviu de imediato o ruído do vibrador, embora estivesse abafado pela distância. Sentiu a vibração nas solas dos pés, uma sensação fraca mas nítida de tremor.

Star disse:

- Oh, Deus.

Uma nuvem de pó levantou-se em redor do camião.

Os quatro estavam esticados como cordas de guitarra, os corpos tensos para captar o primeiro sinal de movimento na terra.

Passaram-se segundos.

Os olhos de Priest esquadrinharam a paisagem, à procura de vestígios de um tremor, embora calculasse que o sentiria antes de o ver.

Vá lá, vá lá!

As equipas de exploração sísmica normalmente regulavam o vibrador para um "varrimento" de sete segundos. Priest tinha programado este para trinta segundos, que pareceram uma hora.

Por fim, o ruído parou.

Melanie disse:

- Raios partam.

O coração de Priest apertou-se. Não havia sismo nenhum. Tinha falhado.

Talvez não passasse de uma ideia hippie completamente tarada, como fazer levitar o Pentágono.

- Tenta novamente - disse Melanie.

Priest olhou para o comando à distância que tinha na mão. Por que não?

Um camião de dezasseis rodas aproximava-se na U. S. 395, mas desta vez Priest não esperou. Se Melanie tivesse razão, o camião não seria afectado pelo abalo. Se Melanie estivesse enganada, estariam todos mortos.

Carregou no botão.

O ruído longínquo começou, sentiu-se uma vibração perceptível no chão e uma nuvem de pó engoliu o vibrador sísmico.

Priest perguntou a si mesmo se a estrada se abriria debaixo do camião de dezasseis rodas.

Não aconteceu coisa alguma.

Desta vez os trinta segundos passaram mais depressa. Priest ficou surpreendido quando o ruído cessou. É só aquilo?

Foi inundado por um desespero infinito. Talvez a comuna do vale do Rio de Prata fosse um sonho que tinha chegado ao fim. Que vou fazer? Onde vou viver? Como posso evitar acabar como o Bonés?

Mas Melanie não estava preparada para desistir.

- Vamos levar o camião para outro sítio e tentar uma vez mais.

- Mas tu disseste que a posição exacta não importa - referiu Oaktree. - "Alguns metros para um lado ou para o outro aqui à superfície não devem fazer qualquer diferença a oito quilómetros de profundidade", foi o que disseste.

- Então vamos movê-lo mais do que alguns metros - disse Melanie, irada. - Estamos a ficar sem tempo, vamos!

Priest não discutiu. Ela estava transformada. Normalmente, era dominada por Priest. Era uma dama em apuros, ele tinha-a salvo, e ela estava-lhe tão agradecida que tinha de ser eternamente submissa à sua vontade. Mas agora quem mandava era ela, impaciente e dominadora. Priest podia aguentar aquilo desde que ela conseguisse fazer o que prometera. Mais tarde, pô-la-ia na linha.

Entraram no 'Cuda e atravessaram rapidamente o caminho de terra batida para o vibrador sísmico. Depois Priest e Melanie subiram para a cabina do camião e ela foi dando indicações enquanto ele conduzia. Oaktree e Star seguiam no carro. Já não seguiam o trilho, e cortaram a direito pelos arbustos. As grandes rodas do camião esmagaram os arbustos enfezados e rodaram com facilidade por cima das pedras, mas Priest perguntou a si mesmo se o 'Cuda, que era um carro baixo, sofreria danos. Calculou que Oaktrei buzinaria se acontecesse alguma coisa.

Melanie perscrutou a paisagem à procura das características especiais que mostravam o local onde se estendia a linha da falha. Priest não viu mais leitos de rio deslocados. Mas um quilómetro e meio depois Melanie apontou para o que parecia um rochedo em miniatura com cerca de um metro e trinta de altura.

- Escarpa de falha - disse ela. - Cerca de cem anos de idade.

- Estou a ver - disse Priest. Havia um buraco no chão, como uma tigela; e uma brecha na borda da tigela mostrava o sítio onde a terra se tinha desviado para o lado, como se a tigela tivesse estalado e tivesse sido colada desajeitadamente.

Melanie disse:

- Vamos experimentar aqui.

Priest parou o camião e desceu a placa. Verificou uma vez mais os manómetros e programou o vibrador. Desta vez marcou um varrimento de sessenta segundos. Terminou os preparativos e saltou do camião.

Olhou ansiosamente para o relógio. Eram duas horas. Restavam-lhes apenas vinte minutos.

Atravessaram novamente a U. S. 395 no 'Cuda e subiram a encosta no lado mais afastado. Os condutores dos poucos veículos que passavam continuaram a ignorá-los. Mas Priest estava enervado. Mais cedo ou mais tarde alguém perguntaria o que andavam a fazer. Não queria ter de dar explicações a um polícia curioso ou a um vereador da cidade metediço. Tinha preparado uma história plausível, acerca de um projecto de pesquisa para uma universidade sobre geologia no leito seco do rio, mas não queria que ninguém se lembrasse do seu rosto.

Saíram todos do carro e olharam para o outro lado do vale, onde o vibrador sísmico se encontrava perto da escarpa. Priest desejou de todo o coração que desta vez a terra se movesse e abrisse. Vá lá, Deus... dá-me esta, está bem?

Carregou no botão.

O camião rugiu, a terra tremeu ao de leve, e levantou-se pó. A vibração continuou durante um minuto inteiro ao invés de meio. Mas não houve tremor de terra. Só esperaram mais tempo pela desilusão.

Quando o ruído se desvaneceu, Star disse:

- Isto não vai resultar, pois não?

Melanie lançou-lhe um olhar furioso. Voltou-se para Priest e perguntou:

- Podes alterar a frequência das vibrações?

- Sim - respondeu Priest. - Neste momento está regulado sensivelmente no meio, por isso posso subir ou descer. Porquê?

- Existe uma teoria de que a intensidade pode ser um factor crucial. É que a terra está constantemente a repercutir vibrações ténues. Então por que é que não há sismos constantemente? Talvez porque uma vibração tenha de ter a intensidade exacta para deslocar a falha. Sabem como uma nota musical pode estilhaçar um vidro?

- Nunca vi acontecer, a não ser em desenhos animados, mas percebo o que queres dizer. A resposta é sim. Quando eles usam o vibrador em exploração sísmica, variam a intensidade num varrimento de sete segundos.

- Variam? - Melanie estava curiosa. - Porquê?

- Não sei, talvez lhes dê uma leitura melhor nos geofones. De qualquer maneira, não me pareceu a estratégia correcta para nós, por isso não seleccionei essa opção, mas posso.

- Vamos experimentar.

- Está bem... mas temos de nos despachar. Já passam cinco minutos das duas.

Entraram rapidamente no carro. Oaktree conduziu depressa, a derrapar pelo deserto empoeirado. Priest reprogramou os comandos do vibrador para um varrimento cuja intensidade aumentava gradualmente ao longo de um período de sessenta segundos. Quando voltaram a toda a velocidade para o ponto de observação, viu uma vez mais as horas.

- Duas e um quarto - disse. - É a nossa última oportunidade.

- Não te preocupes - disse Melanie. - Acabaram-se-me as ideias. Se isto não resultar, desisto.

Oaktree parou o carro, e saíram de novo.

A ideia de voltar para o rio de Prata sem nada para comemorar deprimiu Priest tão profundamente que achou que gostaria de esmagar o camião na auto-estrada e acabar com tudo. Talvez fosse a sua saída. Perguntou a si mesmo se Star gostaria de morrer com ele. Estou a ver a cena: nós os dois, uma dose excessiva de analgésicos, uma garrafa de vinho para engolir os comprimidos...

- Estás à espera de quê? - perguntou Melanie. - São duas e vinte. Carrega na porcaria do botão!

Priest premiu o botão.

Tal como antes, o camião rugiu e o chão tremeu e uma nuvem de pó ergueu-se da terra à volta da placa de metal do vibrador sísmico. Desta vez o rugido não se manteve na mesma frequência moderada. Começou num ruído surdo e baixo e começou a subir lentamente.

Depois aconteceu.

A terra por baixo dos pés de Priest pareceu ondular-se como um mar agitado. A seguir, foi como se alguém o agarrasse por uma perna e o atirasse ao chão. Aterrou de costas, e bateu no chão com força. Ficou sem ar.

Star e Melanie gritaram ao mesmo tempo, Melanie com um guincho estridente e Star com um rugido de choque e medo. Priest viu-as cair, Melanie ao lado dele e Star a alguns passos de distância. Oaktree cambaleou, manteve-se de pé, e por fim caiu.

Priest estava silenciosamente aterrorizado.

Já está, é isto, vou morrer.

Ouviram um ruído como o de um comboio expresso a passar muito próximo. Levantou-se pó do chão, pequenas pedras voaram pelo ar, e seixos rolavam por todos os lados.

O chão continuou a mexer-se como se alguém tivesse segurado na ponta de um tapete e não parasse de o sacudir. A sensação era incrivelmente desorientadora, como se, de súbito, o mundo se tivesse transformado num lugar completamente desconhecido. Era aterrador.

Não estou preparado para morrer.

Priest controlou a respiração e pôs-se de joelhos. Depois, quando pousou um pé no chão, Melanie agarrou-lhe no braço e puxou-o de novo para baixo. Ele gritou-lhe:

- Solta-me, sua vaca estúpida! - Mas não conseguiu ouvir as suas palavras.

O chão elevou-se e atirou-o pela encosta abaixo, para longe do 'Cuda. Melanie caiu em cima dele. Ele pensou que o carro podia virar-se e esmagá-los aos dois, e esforçou-se para rebolar para longe da trajectória do veículo. Não viu Star nem Oaktree. Um arbusto arrancado pela raiz varreu-lhe o rosto, e arranhou-o. Entrou-lhe pó para os olhos, e ficou momentaneamente cego. Perdeu toda a noção de orientação. Enrolou-se numa bola, cobrindo o rosto com as mãos, e esperou pela morte.

Cristo, se vou morrer, gostava de morrer com a Star.

O tremor parou tão subitamente como tinha começado. Ele não fazia ideia se tinha demorado dez segundos ou dez minutos.

Um momento depois, o barulho desapareceu.

Priest esfregou o pó dos olhos e levantou-se. A sua vista aclarou lentamente. Viu Melanie a seus pés. Estendeu uma mão e puxou-a.

- Estás bem? - perguntou.

- Acho que sim - replicou ela, abalada.

O pó no ar diminuiu, e ele viu Oaktree levantar-se sem grande equilíbrio. Onde estava Star? Depois viu-a a alguma distância. Estava deitada de costas com os olhos fechados. O seu coração apertou-se. Morta não, por favor, Deus, morta não. Ajoelhou-se ao lado dela.

- Star! - disse, ansioso. - Estás bem? Ela abriu os olhos.

- Jesus - exclamou. - Que grande abalo! Priest sorriu, e lutou para conter lágrimas de alívio. Ajudou Star a levantar-se.

- Estamos todos vivos - disse ele.

O pó estava a assentar depressa. Olhou para o outro lado do vale e viu o camião. Estava direito e parecia não ter sofrido estragos.

A alguns metros dele havia um grande rasgão no chão para norte e sul no meio do vale, até onde a sua vista alcançava.

- Macacos me mordam - disse ele em voz baixa. - Olhem para aquilo.

- Resultou - afirmou Melanie.

- Conseguimos - disse Oaktree. - Raios partam, provocámos uma porra de um sismo!

Priest sorriu para todos.

- É verdade - declarou.

Beijou Star, e depois Melanie; em seguida Oaktree beijou as duas; depois Star beijou Melanie. Riram todos. E Priest começou a dançar. Fez uma dança da chuva índia, ali no meio do vale partido, as botas a pisar o pó recém-assente. Star juntou-se a ele, depois Melanie e Oaktree, e os quatro andaram em círculo, a gritar e a saltar e a rir até os olhos se encherem de lágrimas.

 

Na sexta-feira, após a pior semana da sua carreira no FBI, Maddox dirigia-se para casa no seu carro.

Não conseguia imaginar o que fizera para merecer isto. Muito bem, tinha gritado com o chefe, mas ele fora hostil com ela antes de ela perder as estribeiras, por isso tinha de haver outro motivo. No dia anterior tinha ido para Sacramento com a intenção de fazer o parecer eficiente e competente, e sem saber como tinha acabado por dar uma impressão de confusão e incompetência. Sentia-se frustrada e deprimida.

Nada de bom tinha acontecido desde a reunião com Hal Honey" moon. Telefonara para professores de sismologia e falara com eles pelo telefone. Perguntava se o professor estava a trabalhar em locais de pontos ou linhas de falha em tensão crítica. Se assim fosse, quem tinha acesso a esses estudos? E algumas dessas pessoas estavam ligadas a grupos terroristas?

Os sismólogos não tinham ajudado. A maior parte dos académicos de hoje tinham sido estudantes nos anos 60 e 70, altura em que o FBI pagava a qualquer pulha na universidade para espiar o movimento de protesto. Fora há muito tempo, mas eles não tinham esquecido, para eles, o FBI era o inimigo. Judy compreendia como se sentiam" mas desejava que não fossem agressivos-passivos com agentes que estavam a trabalhar para o interesse público.

O prazo de Os Filhos do Paraíso terminava hoje, e não houvera um sismo. Judy sentiu-se profundamente aliviada, embora aquilo sugerisse que estava errada quando acreditara na ameaça. Talvez fosse o fim de tudo. Disse a si mesma que devia ter um fim-de-semana descontraído. O tempo estava óptimo, soalheiro e quente. Esta noite ia fazer galinha frita para Bo e abriria uma garrafa de vinho. Amanhã teria de ir ao supermercado, mas no domingo iria até à costa, para a baía Bodega, e sentar-se-ia na praia a ler um livro como uma pessoa normal. Na segunda-feira, provavelmente dar-lhe-iam outro caso. Talvez pudesse começar de novo.

Pensou em telefonar à amiga Virginia e saber se ela queria ir à praia. Ginny era a sua amiga mais antiga Também era filha de um polícia, e tinha a idade de Judy. Era directora de vendas numa empresa de segurança. Mas Judy compreendeu que não era companhia feminina que queria. Seria bom deitar-se na praia ao lado de uma coisa com pernas peludas e voz grossa. Há um ano que rompera com Don: desde a adolescência, era o maior período de tempo que passava sem um namorado. Na universidade, tinha sido um pouco louca, quase promíscua; quando trabalhava na Mutual American Insurance tinha tido um caso com o patrão; depois vivera com Steve Dolen durante sete anos e quase se casara com ele. Pensava muitas vezes em Steve. Ele era atraente e esperto e bondoso - demasiado bondoso, talvez, pois acabara por pensar nele como fraco. Talvez quisesse o impossível. Talvez, bem vistas as coisas, os homens atenciosos fossem fracos, e todos os fortes, como Don Riley, acabassem a comer as secretárias.

O telefone do carro tocou. Não precisou de levantar o auscultador: depois de dois toques passava automaticamente para o modo de mãos livres.

- Está - disse ela. - Fala a Judy Maddox.

- É o teu pai.

- Olá, Bo. Vens jantar a casa? Podíamos... Ele interrompeu-a.

- Liga o rádio do carro, depressa - disse ele. - Sintoniza o John Truth.

Cristo, que é agora? Tocou no botão para ligar o aparelho. Ouviu-se uma estação de música rock. Carregou no botão de pré-sintonização e apanhou a estação de São Francisco que transmitia o "John Truth ao Vivo". O tom nasalado do apresentador encheu o carro.

Ele estava a falar no tom pesadamente dramático que utilizava para sugerir que o que tinha para dizer era de uma importância avassaladora.

- O instituto de sismologia do estado da Califórnia confirmou já que ocorreu um sismo hoje... no próprio dia em que Os Filhos do Paraíso prometeram. Aconteceu vinte minutos depois das duas horas da tarde no vale Owens, tal como um elemento de Os Filhos do Paraíso disse, quando telefonou para este programa há alguns minutos.

Meu Deus... eles conseguiram.

Judy estava electrificada. Esqueceu a frustração, e a depressão desvaneceu-se. Sentiu-se viva de novo. John Truth estava a dizer:

- Mas uma fonte do instituto de sismologia do estado negou que este ou qualquer outro sismo possa ter sido provocado por um grupo terrorista.

Seria verdade? Judy tinha de saber. Que pensavam os outros sismó-logos? Precisava de fazer alguns telefonemas. Depois, ouviu John Truth dizer:

- Dentro de momentos passaremos uma gravação da mensagem deixada por Os Filhos do Paraíso.

Estão gravados!

Podia ser um erro crucial dos terroristas. Eles não saberiam, mas uma voz gravada podia fornecer uma quantidade enorme de informações quando analisada por Simon Sparrow.

Truth continuou:

- Entretanto, que é que vocês pensam? Acreditam nos sismólogos do estado? Ou acham que estão a tentar atirar-nos poeira para os olhos? Talvez você seja um sismólogo e tenha uma opinião sobre as possibilidades técnicas neste caso. Ou talvez seja apenas um cidadão preocupado e pense que as autoridades deviam estar tão preocupadas como você. Telefone agora para o "John Truth ao Vivo", para este número, e diga ao mundo o que pensa.

Ouviu-se o anúncio de uma loja de móveis, e Judy tirou o som.

- Ainda estás aí, Bo?

- Claro.

- Eles conseguiram, não achas?

- Não há dúvida de que parece que sim.

Ela perguntou a si mesma se ele estava genuinamente inseguro ou se estava apenas a ser cauteloso.

- Que é que te diz o teu instinto? Ele deu-lhe outra resposta ambígua.

- Que estas pessoas são muito perigosas.

Judy tentou acalmar o coração agitado e concentrou-se no que devia fazer a seguir.

- É melhor telefonar para o Brian Kincaid...

- Que é que vais dizer-lhe?

- Vou dar-lhe a notícia... Espera um instante. - Bo tinha razão. - Achas que eu não devia telefonar-lhe?

- Acho que deves telefonar ao teu chefe quando puderes dar-lhe alguma coisa que ele não possa ouvir na rádio.

- Tens razão. - Judy começou a sentir-se mais calma enquanto analisava as possibilidades. - Acho que vou voltar ao trabalho. - Virou à direita.

- Está bem. Dentro de mais ou menos uma hora vou estar em casa. Telefona-me se quiseres jantar.

Ela sentiu uma onda repentina de afecto por ele.

- Obrigada, Bo. És um pai bestial. Ele riu.

- Tu também és uma miúda bestial. Até logo.

- Até logo. - Tocou no botão que terminava a chamada, e depois aumentou o volume do rádio.

Ouviu uma voz baixa e sexy a dizer:

- Falam Os Filhos do Paraíso com uma mensagem para o governador Mike Robson.

A imagem que lhe veio à cabeça foi a de uma mulher madura com seios grandes e um sorriso aberto, simpática mas um bocado lunática. É o meu inimigo? O tom mudou, e a mulher balbuciou:

- Merda, não estava à espera de falar para um gravador.

Ela não é o cérebro organizacional por detrás de tudo isto. É demasiado estúpida. Está a receber instruções de alguém. A mulher retomou a sua voz formal e continuou:

- Tal como prometemos, hoje provocámos um sismo, quatro semanas após a nossa última mensagem. Aconteceu no vale Owens um pouco depois das duas horas, como poderão verificar.

Um leve ruído de fundo fê-la hesitar.

Que foi aquilo?

O Simon vai descobrir.

Um segundo depois, prosseguiu.

- Não reconhecemos a jurisdição do Governo dos Estados Unidos. Agora que sabe que podemos fazer o que dizemos, é melhor pensar bem na nossa exigência. Anuncie uma paragem na construção de novas centrais de energia na Califórnia. Tem sete dias para tomar uma decisão.

Sete dias! Da última vez deram-nos quatro semanas.

- Depois disso provocaremos outro sismo. Mas o próximo não será no meio de sítio nenhum. Se nos obrigarem, faremos verdadeiros estragos.

Uma escalada cuidadosamente calculada da ameaça. Jesus, estas pessoas assustam-me.

- Não gostamos disto, mas é a única forma. Por favor faça o que dizemos para que este pesadelo possa terminar.

John Truth entrou no ar.

- Aqui está a voz de Os Filhos do Paraíso, o grupo que alega ter desencadeado o sismo que abalou o vale Owens hoje.

Judy tinha de conseguir aquela gravação. Baixou novamente o volume e marcou o número da casa de Raja. Ele era solteiro, podia sacrificar a noite de sexta-feira.

Quando ele atendeu, ela disse:

- Olá, é a Judy.

Ele disse imediatamente:

- Não posso, tenho bilhetes para a ópera!

Ela hesitou, e depois decidiu entrar no jogo dele.

- Que é que vais ver?

- Uh... O Casamento de Macbeth. Ela conteve uma gargalhada.

- De Ludwig Sebastian Wagner?

- Isso mesmo.

- Não existe essa ópera, nem esse compositor. Esta noite estás a trabalhar.

- Porra.

- Por que é que não inventaste um grupo de rockl Eu teria acreditado.

- Estou sempre a esquecer-me de como és velha.

Ela riu-se. Raja tinha vinte e seis anos, Judy tinha trinta e seis.

- Vou aceitar isso como um elogio.

- Qual é a missão? - Ele não pareceu muito relutante. Judy ficou novamente séria.

- Muito bem, aqui vai. Esta tarde houve um sismo na parte oriental do estado, e Os Filhos do Paraíso afirmam tê-lo provocado.

- Uau! Talvez afinal de contas estas pessoas não estejam a brincar! - Ele parecia satisfeito e não assustado. Era jovem e impaciente, e não tinha reflectido sobre as implicações.

- O John Truth acabou de passar uma mensagem dos perpetradores. Preciso de que vás à estação de rádio e consigas a gravação.

- Estou a caminho.

- Certifica-te de que trazes o original, não uma cópia. Se te fizerem passar um mau bocado, diz-lhes que podemos arranjar uma ordem do tribunal numa hora.

- Ninguém me faz passar um mau bocado. Estás a falar com o Raja, lembras-te?

Era verdade. Ele era um sedutor.

- Leva a gravação ao Simon Sparrow e diz-lhe que preciso de alguma coisa de manhã.

- Vou tratar disso.

Ela desligou e aumentou uma vez mais o volume do John Truth. Ele estava a dizer:

- ... um sismo de pequena intensidade, a propósito, com magnitude de cinco a seis.

Como raio é que eles conseguiram?

- Não há feridos, nem edifícios ou outros bens danificados, mas o abalo foi sentido pelos residentes de Bishop, Bigpine, Independence e Lone Pine.

Judy apercebeu-se de que algumas daquelas pessoas deviam ter visto os perpetradores nas últimas horas. Tinha de ir para lá e começar a interrogá-los o mais depressa possível.

Onde exactamente é que tinha ocorrido o sismo? Precisava de falar com um perito.

A escolha óbvia era o instituto de sismologia do estado. Porém, eles pareciam ter ideias preconcebidas. Já tinham excluído a possibilidade de um sismo provocado pelo homem. Aquilo perturbava-a. Queria alguém que estivesse disposto a analisar todas as possibilidades. Pensou em Michael Quercus. Ele podia ser um chato, mas não tinha receio de especular. Para além do mais, estava do outro lado da baía, em Berkeley, ao passo que o instituto de sismologia do estado estava sediado em Sacramento.

Se aparecesse sem marcação, ele recusar-se-ia a vê-la. Suspirou e marcou o número da casa dele.

Durante algum tempo não obteve resposta, e pensou que ele devia ter saído. Mas ao sétimo toque atenderam.

- Quercus. - Parecia aborrecido com a interrupção.

- Fala Judy Maddox, do FBI. Preciso de falar consigo. É urgente e gostaria de ir já a sua casa.

- Está fora de questão. Estou com uma pessoa. Eu devia ter pensado que ias ser difícil.

- Talvez depois de o seu encontro terminar?

- Não é um encontro, e só vai terminar na segunda-feira. Sim, pois.

Judy calculou que ele tinha lá uma mulher. Mas no primeiro encontro ele dissera-lhe que não andava com ninguém. Por alguma razão recordou as palavras exactas que ele usara: "Estou separado da minha mulher, e não tenho namorada." Talvez tivesse mentido. Ou talvez fosse uma pessoa nova. Não parecia um relacionamento novo, uma vez que estava à espera de que ela ficasse a passar o fím-de-semana. Por outro lado, ele era arrogante o bastante para presumir que uma rapariga iria com ele para a cama no primeiro encontro, e suficientemente atraente para que montes de raparigas provavelmente fossem.

Não sei porque é que estou tão interessada na vida amorosa dele.

- Tem estado a ouvir rádio? - perguntou-lhe. - Houve um sismo, e o grupo terrorista de que falámos afirma tê-lo provocado.

- Ah, sim? - Contra vontade, ele pareceu intrigado. - Estão a falar verdade?

- É sobre isso que preciso de falar consigo.

- Compreendo.

Vá lá, seu filho-da-mãe teimoso... desiste, por uma vez na vida.

- Isto é verdadeiramente importante, Professor.

- Gostaria de ajudá-la... mas esta noite não é mesmo possível... Não, espere. - A voz foi abafada quando ele tapou o bocal com a mão, mas ela conseguiu distinguir as palavras. - Hei, já alguma vez viste um agente do FBI a sério? - Não conseguiu ouvir a resposta, mas um momento depois ele disse-lhe: - Muito bem, a pessoa que está cá em casa gostaria de conhecê-la. Venha.

Ela não gostou da ideia de ser exibida como uma espécie de atracção de circo, mas no estado em que as coisas estavam não ia dizer nada.

- Obrigada, estou aí dentro de vinte minutos. - Desligou o telefone. Enquanto atravessava a ponte, reflectiu que nem Raja nem Michael tinham parecido assustados. Raja estava excitado, Michael intrigado. Ela também estava electrificada com a súbita reanimação do caso; mas quando se lembrava do sismo de 1989, e das imagens televisivas das equipas de socorro a tirar cadáveres do tabuleiro de quatro faixas da auto-estrada Nimitz, ali mesmo em Oakland, e encarava a possibilidade de um grupo terrorista ter o poder de fazer aquilo, o seu coração ficava frio e pesado com maus presságios.

Para libertar a mente tentou adivinhar como seria a namorada de Michael Quercus. Tinha visto uma fotografia da mulher dele, uma ruiva lindíssima com corpo de supermodelo e uma expressão amuada. Ele parece gostar do exótico. Mas tinham rompido, por isso talvez ela não fosse realmente o tipo dele. Judy imaginava-o com uma professora, com elegantes óculos de aros finos e cabelos curtos com um bom corte mas sem maquilhagem. Por outro lado, aquele tipo de mulher não atravessaria a estrada para conhecer um agente do FBI. O mais certo era ter engatado uma burra sexy facilmente impressionável. Judy visualizou uma rapariga com roupas justas, a fumar e a mastigar uma pastilha ao mesmo tempo, a olhar em volta do apartamento e a dizer:

- Leste estes livros todos?

Não sei porque é que estou obcecada com esta namorada quando tenho tantas outras coisas com que me preocupar.

Encontrou a Rua Euclid e estacionou debaixo da mesma magnólia onde tinha deixado o carro da última vez. Tocou à campainha e ele abriu-lhe a porta. Veio à porta do apartamento descalço, com um ar agradavelmente descontraído de calças de ganga e com uma T-shirt branca. Uma rapariga podia divertir-se a passar o fim-de-semana com ele. Seguiu-o para a sala de jantar-estar-escritório.

Ali, para grande espanto, viu um rapazinho de aproximadamente cinco anos, com sardas e cabelos loiros, com um pijama com dinossauros por todo o lado. Momentos depois reconheceu-o como a criança da fotografia em cima da secretária. O filho de Michael. Era o seu convidado de fim-de-semana. Sentiu-se embaraçada por causa da loura burra que tinha imaginado. Fui um pouco injusta consigo, Professor.

Michael disse:

- Dusty, apresento-te a agente especial Judy Maddox. O rapaz apertou-lhe educadamente a mão e disse:

- É mesmo do FBI?

- Sou, sim.

- Uau.

- Queres ver o meu distintivo? - Tirou o distintivo da mala e deu-lho. Ele segurou-o com reverência.

Michael disse:

- O Dusty gosta de ver os Ficheiros Secretos. Judy sorriu.

- Eu não trabalho no Departamento de Objectos Voadores Não Identificados, só apanho criminosos comuns.

Dusty perguntou:

- Posso ver a sua pistola?

Judy hesitou. Sabia que os rapazinhos eram fascinados por armas, mas não gostava de encorajar esse interesse. Olhou de relance para Michael, que encolheu os ombros. Desabotoou o casaco e tirou a arma do coldre de ombro.

Ao fazê-lo, apanhou Michael a olhar para os seus seios, e sentiu um desejo sexual inesperado. Agora que não estava a ser grosseiro, era bastante atraente, de pés descalços e com a T-shirt solta.

Ela disse:

- As armas são bastante perigosas, Dusty, por isso vou segurá-la, mas podes olhar.

O rosto de Dusty ao olhar para a pistola ostentava a mesma expressão que o de Michael quando ela abrira o casaco. O pensamento fê-la sorrir. Um minuto depois guardou a pistola no coldre. Com uma educação esmerada, Dusty disse:

- íamos mesmo agora comer Cap 'n Crunch. Quer fazer-nos companhia?

, Judy estava impaciente para interrogar Michael, mas pressentiu que ele seria mais cooperante se ela tivesse paciência e alinhasse.

- Que simpático - disse. - Estou cheia de fome e gostaria muito de comer Cap'n Crunch.

- Venha para a cozinha.

Sentaram-se os três a uma mesa com o tampo de plástico na pequena cozinha e comeram cereais de pequeno-almoço e leite em tigelas de loiça azul-forte. Judy apercebeu-se de que estava com fome: já passava da hora de jantar.

- Meu Deus - disse ela. - Já me tinha esquecido de como o Cap'n Crunch é bom.

Michael riu-se. Judy ficou abismada com a diferença que se operara nele. Estava descontraído e amistoso. Parecia uma pessoa diferente do brutamontes que a tinha obrigado a voltar para o escritório e a telefonar-lhe para marcar uma hora. Estava a começar a gostar dele.

Depois de jantarem, Michael preparou Dusty para ir para a cama, e a criança disse para o pai.

- A agente Judy pode contar-me uma história?

Judy suprimiu a impaciência. Tenho sete dias, posso esperar mais cinco minutos. Disse:

- Acho que o teu pai quer contar-te uma história, porque não o faz tantas vezes como gostaria.

- Não faz mal - disse Michael com um sorriso. - Eu fico a ouvir. Foram para o quarto.

- Não sei muitas histórias, mas lembro-me de uma que a minha mãe costumava contar-me - disse Judy. - É a lenda do dragão bom. Gostarias de ouvi-la?

- Sim, por favor - disse Dusty.

- Eu também - disse Michael.

- Era uma vez, há muito, muito tempo, um dragão bondoso que vivia na China, país de onde vêm todos os dragões. Um dia, o dragão bondoso foi passear. Passeou para tão longe que saiu da China e perdeu-se no deserto.

"Muitos dias depois chegou a outra terra, muito para sul. Era o país mais belo que ele jamais vira, com florestas e montanhas e vales férteis, e rios para ele chapinhar. Havia bananeiras e amoreiras carregadas de frutos maduros. O clima era sempre quente e soprava uma brisa agradável.

"Mas havia um problema. Era uma terra vazia. Ninguém vivia ali: não havia pessoas nem dragões. Por isso, embora adorasse a terra nova, o dragão bondoso sentia-se terrivelmente só.

"Porém, não sabia o caminho para casa, por isso andou por ali, à procura de alguém que lhe fizesse companhia. Por fim, num dia de sorte, encontrou a única pessoa que vivia naquele país... uma princesa encantada. Ela era tão bonita que ele se apaixonou imediatamente por ela. Ora, a princesa também se sentia sozinha, e, embora o dragão parecesse feroz, tinha um coração bom, por isso casou com ele.

"O dragão bondoso e a princesa encantada amaram-se, e tiveram cem filhos. Todos os filhos eram corajosos e bondosos como o pai dragão, e belos como a mãe princesa encantada.

"O dragão bondoso e a princesa encantada cuidaram dos filhos até estes serem crescidos. Depois, de repente, ambos os pais desapareceram. Foram para longe, para viver em amor e harmonia no espírito do mundo por toda a eternidade. E os filhos deles tornaram-se o povo corajoso, bondoso e belo do Vietname. E foi onde a minha mãe nasceu."

Dusty estava com os olhos muito abertos.

- É verdade? Judy sorriu.

- Não sei, talvez.

- De qualquer maneira, é uma história muito bonita - disse Michael. Deu um beijo de boa-noite a Dusty.

Ao sair do quarto, Judy ouviu Dusty sussurrar:

- Ela é mesmo simpática, não é?

- Sim - replicou Michael.

De novo na sala de estar, Michael disse:

- Obrigado por aquilo. Foi bestial com ele.

- Não foi difícil. Ele é um sedutor. Michael acenou afirmativamente.

- Sai à mãe. Judy sorriu. Michael sorriu e disse:

- Reparo que não discute isso.

- Não conheço a sua mulher. Na fotografia, parece muito bonita.

- É. E... desleal.

Foi uma confidência inesperada, vinda tão de repente de um homem que ela pensava ser extremamente orgulhoso. Sentiu mais carinho por ele. Mas não sabia o que responder-lhe.

Ficaram ambos em silêncio por alguns instantes. Depois, Michael disse:

- Já teve mais do que a sua conta da família Quercus. Fale-me sobre o sismo.

Por fim.

- Ocorreu esta tarde, às duas e vinte, no vale Owens.

- Vamos buscar o sismógrafo. - Michael sentou-se à secretária e premiu as teclas do computador. Ela deu por si a olhar para os pés descalços dele. Alguns homens tinham pés horríveis, mas os dele eram bem moldados e com um aspecto forte, com as unhas cuidadosamente cortadas. A pele era branca, e havia um pequeno tufo de pêlos escuros em cada dedo grande.

Ele não notou o escrutínio dela.

- Quando os seus terroristas fizeram a ameaça há quatro semanas, especificaram a localização?

- Não.

- Hmm. Na comunidade científica, dizemos que a previsão correcta de um sismo teria de especificar a data, localização e magnitude. As suas pessoas só deram a data. Isso não é muito convincente. Há um sismo algures na Califórnia mais ou menos todos os dias. Talvez eles se tenham limitado a declararem-se responsáveis por algo que aconteceu naturalmente.

- Pode dizer-me exactamente onde é que o sismo ocorreu?

- Sim. Posso calcular o epicentro por triangulação. Na verdade, o computador faz os cálculos automaticamente. Eu só insiro as coordenadas. - Instantes depois, a impressora começou a funcionar.

Judy disse:

- Há alguma maneira de saber como é que o sismo foi desencadeado?

- Quer saber se, pela análise do gráfico, eu consigo dizer se foi provocado por intervenção humana? Sim, devo poder dizer.

- Como?

Ele fez clique com o rato, desviou o olhar do ecrã e fitou-a.

- Um tremor de terra normal é precedido por um aumento gradual de choques prévios, ou tremores de pequena intensidade, que podemos ver no sismógrafo. Por contraste, quando um sismo é provocado por uma explosão, não há um aumento gradual de intensidade dos choques... o gráfico começa com um pico característico. - Voltou-se de novo para o computador.

Judy pensou que ele era provavelmente um bom professor. Explicava as coisas com clareza. Mas devia ser impiedosamente intolerante com as fraquezas dos estudantes. Faria testes de surpresa e recusar-se-ia a deixar entrar os alunos que chegavam atrasados às suas aulas.

- Isto é estranho - disse ele.

Judy espreitou para o ecrã por cima do ombro dele.

- Que é que é estranho?

- O sismógrafo.

- Não vejo um pico.

- Não. Não houve explosão.

Judy não sabia se devia sentir-se aliviada ou desapontada.

- Então o sismo aconteceu naturalmente? Ele abanou a cabeça.

- Não tenho a certeza. Há choques prévios, sim. Mas nunca vi choques prévios assim.

Judy ficou frustrada. Ele tinha prometido dizer-lhe se a reivindicação de Os Filhos do Paraíso era plausível. Agora, estava exasperantemente incerto.

- Que é que os choques prévios têm de peculiar? - perguntou ela.

- São demasiado regulares. Parecem artificiais.

- Artificiais?

Ele acenou afirmativamente.

- Não sei o que provocou as vibrações, mas não parecem naturais. Acredito que os seus terroristas fizeram alguma coisa. Só não sei o quê.

- Pode descobrir?

- Espero que sim. Vou telefonar a algumas pessoas. Muitos sismólogos já estarão a estudar estas leituras. Entre nós, devemos conseguir decifrar o significado.

Ele não parecia muito seguro, mas por agora Judy tinha de se contentar com aquilo. Esta noite tinha conseguido tudo o que era possível de Michael. Agora tinha de ir para o local do crime. Pegou na folha que saíra da impressora. Esta mostrava uma série de referências de mapas.

- Obrigada por me receber - disse ela. - Agradeço muito.

- Gostei. - Ele sorriu-lhe, um sorriso luminoso que mostrou duas fileiras de dentes brancos.

- Tenha um bom fim-de-semana com o Dusty.

- Obrigado.

Ela entrou no carro e voltou para a cidade. Iria para o escritório e procuraria os horários dos aviões na Internet, para ver se havia um voo no dia seguinte de manhã cedo para um local perto do vale Owens. Também precisava de verificar qual era o gabinete operacional do FBI com jurisdição no vale Owens e falar com eles acerca do que estava a fazer. Depois, telefonaria para o xerife local e pô-lo-ia do seu lado.

Chegou ao número 450 da Avenida Golden Gate, estacionou na garagem subterrânea e apanhou o elevador para cima. Ao passar pelo gabinete de Brian Kincaid, ouviu vozes. Ele devia estar a fazer horas extraordinárias.

Era uma altura tão boa como qualquer outra para o pôr a par das novidades. Entrou na antessala e bateu à porta aberta do gabinete interior.

- Entre - disse ele.

Ela entrou. O coração afundou quando viu que Kincaid estava com Marvin Hayes. Ela e Marvin detestavam-se intensamente. Ele estava sentado diante da secretária, com um fato de Verão escuro, uma camisa branca e uma gravata preta e dourada. Era um homem atraente, com cabelos escuros e hirsutos, cortados curtos, e um bigode bem aparado. Era a imagem da competência, mas na verdade era tudo o que um agente da lei não devia ser: preguiçoso, brutal, descuidado e sem escrúpulos. Quanto a ele, achava que Judy era hipócrita.

Infelizmente, Brian Kincaid gostava do homem, e agora Brian era o chefe.

Os dois homens ficaram surpreendidos e com um ar comprometido quando Judy entrou, e ela apercebeu-se de que eles deviam ter estado a falar sobre ela. Para os fazer sentirem-se pior, disse:

- Estou a interromper alguma coisa?

- Estávamos a falar acerca do sismo - disse Brian. - Ouviste as notícias?

- Claro. Tenho estado a trabalhar nisso. Acabei de falar com um sismólogo que diz que os choques prévios são de um tipo que nunca viu antes, mas tem a certeza de que são artificiais. Deu-me um mapa com as coordenadas exactas do local onde ocorreu o sismo. Quero ir para o vale Owens de manhã, para procurar testemunhas.

Os dois homens trocaram um olhar significativo. Brian disse:

- Judy, ninguém pode provocar um tremor de terra.

- Não sabemos isso. Marvin disse:

- Eu próprio falei com dois sismólogos esta noite, e ambos me disseram que era impossível.

- Os cientistas discordam... Brian disse:

- Nós pensamos que este grupo nunca chegou perto do vale Owens. Descobriram que tinha havido esse sismo e reivindicaram a autoria.

Judy franziu o sobrolho.

- Este caso é meu - disse ela. - Como é que o Marvin anda a falar com sismólogos?

- Este caso está a ficar importante - declarou Brian. De repente, Judy soube o que se aproximava, e o seu coração encheu-se de fúria impotente. - Embora não acreditemos que Os Filhos do Paraíso possam fazer o que afirmam, podem obter muita publicidade. Não sei bem se tu consegues lidar com isso.

Judy lutou para controlar a raiva.

- Não pode tirar-me do caso sem um motivo.

- Oh, eu tenho um motivo - disse ele. Pegou num fax que tinha em cima da secretária. - Ontem envolveste-te numa altercação com um elemento da Brigada de Trânsito da Califórnia. Ele mandou-te parar porque ias em excesso de velocidade. Segundo o que está aqui escrito, tu não colaboraste e foste ofensiva, e recusaste-te a mostrar-lhe a licença de porte de arma.

- Por amor de Deus, eu mostrei-lhe o distintivo!

Brian ignorou as palavras dela. Judy percebeu que ele não estava realmente interessado em pormenores. O incidente com o polícia de trânsito era apenas um pretexto.

- Estou a organizar uma equipa especial para tratar do caso de Os Filhos do Paraíso - continuou ele. Engoliu em seco, nervoso, e depois ergueu o queixo num gesto agressivo e disse: - Pedi ao Marvin para assumir o comando. Ele não vai precisar da tua ajuda. Estás fora do caso.

 

Priest quase não conseguia acreditar que tinha feito aquilo.

Provoquei um sismo. Consegui mesmo. Eu.

Enquanto conduzia o camião para norte na U. S. 395, em direcção a casa, com Melanie a seu lado e Star e Oaktree no 'Cuda, atrás, deixou a imaginação voar desenfreada. Visualizou um repórter de televisão pálido a dar a notícia de que Os Filhos do Paraíso tinham cumprido o prometido; motins nas ruas quando as pessoas entravam em pânico com a ameaça de outro sismo; e um perturbado governador Robson, no exterior do Edifício do Capitólio, a anunciar uma paragem na construção de novas centrais energéticas na Califórnia.

Talvez aquilo fosse optimista de mais. As pessoas podiam ainda não estar prontas para entrar em pânico. O governador não cederia imediatamente. Mas pelo menos seria obrigado a encetar negociações com Priest.

Que é que a Polícia faria? O público esperaria que apanhassem os perpetradores. O governador tinha chamado o FBI. Mas eles não faziam ideia de quem eram Os Filhos do Paraíso, não tinham pistas. Tinham uma missão praticamente impossível.

Hoje já correra uma coisa mal, e Priest não conseguia deixar de se preocupar. Quando Star telefonara para o programa de John Truth, não tinha falado para uma pessoa, mas deixado uma mensagem numa máquina. Priest tê-la-ia impedido, mas quando percebeu o que estava a acontecer já era tarde de mais.

Achou que uma voz desconhecida numa gravação não servia de muito aos polícias. Mesmo assim, desejou que não tivessem uma pista tão ténue.

Pensou que era surpreendente o mundo continuar como se nada tivesse acontecido. Carros e camiões passavam para cima e para baixo na auto-estrada, pessoas estacionavam no Burger King, a Brigada de Trânsito mandou parar um jovem num Porsche encarnado, uma equipa de manutenção aparava os arbustos na beira da estrada. Deviam estar todos em choque.

Começou a perguntar a si mesmo se o sismo acontecera realmente. Teria imaginado tudo num sonho pedrado? Tinha visto com os seus próprios olhos a fenda na terra que se abrira no vale Owens - porém, o tremor de terra parecia mais rebuscado e impossível agora que não passava de uma ideia. Precisava de confirmação pública: uma reportagem num noticiário televisivo, uma fotografia na capa de uma revista, pessoas a falar sobre o assunto num bar ou na fila das caixas num supermercado.

No final da tarde, enquanto ainda estavam no lado da fronteira do Nevada, Priest parou numa bomba de gasolina. O 'Cuda seguiu-o. Priest e Oaktree encheram os depósitos, iluminados pela luz do Sol em declínio, e Melanie e Star foram à casa de banho das senhoras.

- Espero que falem de nós nas notícias - disse Oaktree, excitado. Estava a pensar no mesmo que Priest.

- Como poderiam não falar? - replicou Priest. - Provocámos um sismo!

- As autoridades podem manter segredo.

Tal como muitos hippies velhos, Oaktree acreditava que o Governo controlava as notícias. Priest pensava que talvez fosse mais difícil do que Oaktree imaginava. Priest acreditava que o público era o seu próprio censor. As pessoas recusavam-se a comprar jornais ou ver programas de televisão que desafiassem os seus preconceitos, por isso só lhes davam o que eles queriam saber.

Entrou para pagar. O ar condicionado provocou-lhe arrepios. O empregado tinha um rádio a tocar atrás do balcão. Ocorreu a Priest que poderia ouvir o noticiário. Perguntou as horas, e o funcionário disse que faltavam cinco minutos para as seis. Depois de pagar, Priest deixou-se ficar por ali, a fingir que observava um expositor de revistas enquanto escutava Billy Jo Spears a cantar '57 Chevrolet. Melanie e Star saíram juntas da casa de banho.

Por fim, o noticiário começou.

Para lhes dar um motivo para continuarem ali, Priest escolheu lentamente alguns chocolates e levou-os para o balcão enquanto escutava.

O primeiro assunto foi o casamento de dois actores que faziam o papel de vizinhos numa série de televisão. Quem é que se ralava?

Priest escutou, a bater o pé com impaciência. Seguiu-se uma reportagem da visita do presidente à índia. Priest esperou que ele aprendesse uma ladainha. O empregado acrescentou o preço dos chocolates e Priest pagou. Seguramente, o sismo viria a seguir? Mas a terceira história foi sobre um tiroteio numa escola em Chicago.

Priest encaminhou-se lentamente para a porta, seguido por Melanie e Star. Outro cliente acabou de encher o tanque do jipe Wrangler e entrou para pagar.

Por fim, o locutor disse:

- O grupo terrorista ambiental Os Filhos do Paraíso reivindicou a responsabilidade por um pequeno abalo que ocorreu hoje no vale Owens, na parte oriental da Califórnia.

Priest sussurrou:

- Boa! - e bateu na palma da mão esquerda com o punho direito num gesto de triunfo.

Star murmurou:

- Nós não somos terroristas! O locutor continuou:

- O tremor de terra ocorreu no dia em que o grupo tinha ameaçado desencadear um, mas o sismólogo estatal Matthew Bird negou que este ou qualquer outro sismo possa ser provocado por intervenção humana.

- Mentiroso! - disse Melanie entredentes.

- A reivindicação foi feita através de um telefonema para o programa número um desta estação, o "John Truth ao Vivo".

Quando se preparava para sair, Priest sentiu um choque profundo ao ouvir a voz de Star. Ficou paralisado. Ela estava a dizer: "Não reconhecemos a jurisdição do Governo dos Estados Unidos. Agora que sabe que podemos fazer o que dizemos, é melhor pensar bem na nossa exigência. Anuncie uma paragem na construção de novas centrais de energia na Califórnia. Tem sete dias para tomar uma decisão."

Star explodiu:

- Jesus Cristo... sou eu!

- Chiu! - disse Priest. Olhou por cima do ombro. O cliente do jipe estava a falar enquanto o empregado passava o cartão de crédito numa máquina. Nenhum dos homens pareceu reparar na explosão de Star.

- O governador Mike Robson não reagiu a esta última ameaça. Hoje no desporto...

Saíram.

Star disse:

- Meu Deus! Eles difundiram a minha voz! Que vou fazer?

- Mantém-te calma - disse-lhe Priest. Ele não se sentia calmo, mas estava a fingir que sim. Enquanto se dirigiam pelo asfalto para os veículos, ele disse num tom de voz baixo, razoável: - Ninguém fora da nossa comuna conhece a tua voz. Não disseste mais do que meia dúzia de palavras para um desconhecido em vinte e cinco anos. E as pessoas que poderiam recordar-se de ti dos dias de Haight-Ashbury não sabem onde vives actualmente.

- Acho que tens razão - disse Star, com dúvidas.

- A única excepção de que consigo recordar-me é o Bonés. Ele poderia ouvir a gravação e reconhecer a tua voz.

- Ele nunca nos trairia. O Bonés é um Comedor de Arroz.

- Não sei. Os agarrados fazem qualquer coisa.

- E quanto aos outros... como o Dale e a Poem?

- Sim, eles são uma preocupação - admitiu Priest. Não existiam rádios nas cabanas, mas havia um na pickup comunal, que Dale conduzia ocasionalmente. - Se acontecer, teremos de os enfrentar. - Ou repetir a solução Mário.

Não, eu não conseguiria fazer isso... não ao Dale ou à Poem.

Ou conseguiria?

Oaktree aguardava ao volante do 'Cuda.

- Vá lá, meus, por que é que demoraram tanto? - perguntou. Star explicou resumidamente o que tinham ouvido.

- Com sorte, ninguém fora da comuna conhece a minha voz... Oh, Cristo, acabei de me lembrar de uma coisa! - Voltou-se para Priest. - O agente de liberdade condicional... no gabinete do xerife.

Priest praguejou. É claro. Star tinha falado com ele ontem. O seu coração encolheu-se de medo. Se ele ouvisse a transmissão de rádio e se lembrasse da voz de Star, o xerife e uma dúzia de ajudantes podiam estar na comuna agora, à espera do regresso dela.

Mas talvez ele não tivesse ouvido o noticiário. Priest tinha de confirmar. Mas como?

- Vou telefonar para o gabinete do xerife - disse-lhes.

- E que é que vais dizer? - perguntou Star.

- Não sei, hei-de pensar em alguma coisa. Esperem aqui.

Entrou, pediu trocos ao empregado e dirigiu-se para a cabina telefónica. Obteve o número do xerife de Silver City nas informações da Califórnia e marcou o número. Lembrou-se do nome do agente de liberdade condicional.

- Queria falar com o senhor Wicks - disse. Uma voz simpática replicou:

- O Billy não está cá.

- Mas eu vi-o ontem.

- Apanhou um avião para Nassau a noite passada. Neste momento está estendido numa praia, a beber uma cerveja e a ver passar os biquinis, cão sortudo. Volta dentro de duas semanas. Mais alguém pode ajudá-lo?

Priest desligou. Jesus, que sorte. Saiu.

- Deus está do nosso lado - disse para os outros.

- O quê? - inquiriu Star, ansiosa. - Que aconteceu?

- O tipo foi de férias a noite passada. Vai estar duas semanas em Nassau. Não creio que estações de rádio estrangeiras passem a voz de Star. Estamos safos.

Star afundou-se, aliviada.

- Graças a Deus por isso. Priest abriu a porta do camião.

- Vamos voltar para a estrada - disse.

Era quase meia-noite quando Priest conduziu o vibrador sísmico pelo trilho tosco e sinuoso que atravessava a floresta até à comuna. Recolocou o camião no esconderijo. Embora fosse de noite e estivessem todos exaustos, Priest certificou-se de que cobriam cada centímetro quadrado do veículo com vegetação, para que fosse invisível de todos os ângulos e do ar. Depois entraram no 'Cuda para percorrer o último quilómetro e meio.

Priest ligou o rádio do carro para ouvirem o noticiário da meia-noite. Desta vez o sismo foi a primeira notícia.

- Hoje, o nosso "John Truth ao Vivo" desempenhou um papel principal no drama de Os Filhos do Paraíso, o grupo terrorista ambiental que diz poder provocar sismos - disse uma voz excitada. - Depois de um sismo moderado ter abalado o vale Owens, na parte oriental da Califórnia, uma mulher que afirmou representar o grupo telefonou para o John Truth e disse que eles tinham desencadeado o tremor de terra.

A estação passou então toda a mensagem de Star.

- Porra - murmurou Star quando ouviu a sua própria voz.

Priest não pôde deixar de se sentir consternado. Embora tivesse a certeza de que isto não ajudaria a Polícia, mesmo assim odiava ouvir Star exposta desta forma. Fazia-a parecer terrivelmente vulnerável, e ansiou por destruir os inimigos dela e colocá-la em segurança.

Depois de passar a gravação, o locutor disse:

- Esta noite, o agente especial Raja Khan levou a gravação para ser analisada pelos peritos do FBI em psicolinguística.

Aquilo atingiu Priest como um murro no estômago.

- Que diabo é psicolinguística? - perguntou. Melanie respondeu:

- Nunca ouvi a palavra antes, mas acho que eles estudam a linguagem que a pessoa usa e tiram conclusões sobre a psicologia dela.

- Não sabia que eram tão espertos - disse Priest, preocupado. Oaktree disse:

- Não te preocupes, meu. Eles podem analisar a mente de Star o quanto quiserem, que a análise não vai dar-lhes a morada dela.

- Acho que não.

O locutor estava a dizer:

- Ainda não há comentários do governador Mike Robson, mas o chefe do gabinete operacional do FBI em São Francisco prometeu uma conferência de imprensa para amanhã. Outras notícias...

Priest desligou. Oaktree estacionou o 'Cuda ao lado do carrossel de Bonés. Bonés tinha tapado o camião com uma lona gigante, para proteger a pintura colorida. Aquilo sugeria que estava a pensar ficar algum tempo.

Desceram a encosta a pé e atravessaram a vinha para entrarem na aldeia. A cozinha e a camarata das crianças estavam às escuras. Luz de vela brilhava por detrás da janela de Apple - ela tinha insónias e gostava de ler até muito tarde - e ouviam-se acordes de guitarra na casa de Song, mas as outras cabanas estavam às escuras e em silêncio. Apenas Spirit, o cão de Priest, veio cumprimentá-lo, feliz, a abanar a cauda ao luar. Deram as boas-noites em voz baixa e encaminharam-se para as suas cabanas, demasiado cansados para celebrar o triunfo.

A noite estava quente. Priest estava deitado na cama, nu, a pensar. Nenhum comentário do governador, mas uma conferência de imprensa do FBI de manhã. Aquilo perturbou-o. Nesta fase do jogo, o governador devia estar a entrar em pânico, a dizer, "O FBI fracassou, não podemos deixar que aconteça outro sismo, tenho de falar com estas pessoas". Priest não sabia o que o seu inimigo pensava, e isso fazia-o sentir-se inseguro. Conseguia sempre o que queria porque podia ler o que ia na mente das pessoas, imaginando o que queriam realmente dele pela forma como olhavam e sorriam e cruzavam os braços e coçavam as cabeças. Estava a tentar manipular o governador Robson, mas era difícil sem um contacto face-a-face. E que é que o FBI estava a tramar? Aquela conversa de análise psicolinguística teria alguma importância?

Tinha de descobrir mais. Não podia ficar ali à espera de que a oposição agisse.

Perguntou a si mesmo se devia telefonar para o gabinete do governador e tentar falar com ele. Conseguiria chegar ao homem? E se assim fosse, descobriria alguma coisa? Talvez valesse a pena tentar. Todavia, não gostava da posição em que aquela situação o colocava. Seria um suplicante, a pedir o privilégio de uma conversa com o grande homem. A sua estratégia era impor a sua vontade ao governador, não implorar um favor.

Depois, ocorreu-lhe que podia ir à conferência de imprensa.

Seria perigoso: se fosse descoberto, estava tudo perdido.

Mas a ideia atraía-o. Fingir que era jornalista era o género de coisa que costumava fazer nos velhos tempos. Tinha-se especializado em jogadas arrojadas: roubar aquele Lincoln branco e dá-lo ao "Cara de Porco" Riley; esfaquear o detective Jack Kassner na casa de banho do Blue Light Bar; oferecer-se para comprar a Loja de Bebidas Alcoólicas da Rua Quatro aos Jenkinsons. Tinha conseguido sempre safar-se com coisas desse género.

Talvez fosse engraçado fingir que era fotógrafo. Podia pedir emprestada a Paul Beale uma máquina fotográfica sofisticada. Melanie podia ser a jornalista. Era suficientemente bonita para fazer qualquer agente do FBI ficar com os olhos em bico.

A que horas era a conferência de imprensa?

Rolou para fora da cama, calçou as sandálias e saiu. À luz do luar, foi até à cabina de Melanie. Ela estava sentada no cimo da cama, nua, a escovar os longos cabelos ruivos. Quando ele entrou, ela ergueu os olhos e sorriu. A luz da vela realçava-lhe o corpo, criando uma aura atrás dos ombros bonitos, dos mamilos, dos ossos das ancas e no triângulo de pêlos ruivos entrepernas. Ficou sem fôlego.

- Olá - disse ela.

Ele levou alguns instantes a lembrar-se do motivo por que viera.

- Preciso de usar o teu telefone celular - disse ele.

Ela fez beicinho. Não era a reacção que queria de um homem que a encontrava nua.

Ele brindou-a com o seu sorriso de rapazinho mau.

- Mas posso ter de te atirar ao chão e comer-te, e depois usar o teu telefone.

Ela sorriu.

- Tudo bem, podes telefonar primeiro.

Ele pegou no telefone e depois hesitou. Melanie tinha sido mando-na todo o dia, e ele tinha aguentado porque ela era a sismóloga; mas aquilo tinha acabado. Não gostava de que ela lhe desse autorização para o que quer que fosse. Não era o relacionamento que deviam ter.

Deitou-se na cama, com o telefone na mão, e guiou a cabeça de Melanie para o pénis. Ela hesitou, e depois fez o que ele queria.

Ele ficou quieto durante cerca de um minuto, a gozar a sensação.

Depois ligou para as informações.

Melanie interrompeu o que estava a fazer, mas ele puxou-lhe uma madeixa de cabelo e manteve a cabeça no lugar. Ela hesitou, como se estivesse a contemplar um protesto; mas instantes depois recomeçou.

Assim é melhor.

Priest obteve o número do FBI em São Francisco e marcou-o.

Atendeu a voz de um homem:

- FBI.

Como sempre, Priest teve uma inspiração.

- Fala Dave Horlock, da estação de rádio KCAR de Carson City - disse. - Queremos mandar um repórter à vossa conferência de imprensa amanhã. Pode dar-me o endereço e a hora?

- Tudo isso foi já mandado por fax - disse o homem. Filho-da-mãe preguiçoso.

- Não estou na estação - improvisou Priest. - E o nosso repórter pode ter de sair cedo amanhã.

- É ao meio-dia, aqui no Edifício Federal, na Avenida Golden Gate, 450.

- Precisamos de credencial, ou podemos simplesmente aparecer?

- Não há credenciais. Ele só precisa da acreditação normal de imprensa.

- Obrigado pela sua ajuda.

- De que estação disse que era? Priest desligou.

Acreditação de imprensa. Como é que vou contornar esta situação? Melanie parou de chupar e disse:

- Espero que não tenham localizado a chamada. Priest ficou surpreendido.

- Por que é que fariam uma coisa dessas?

- Não sei. Talvez seja rotina do FBI localizar todos os telefonemas que recebem.

Ele franziu o sobrolho.

- Podem fazer isso?

- Com computadores, claro.

- Bem, eu não estive em linha tempo suficiente.

- Priest, não estamos nos anos 60. Não leva tempo, o computador fá-lo em nanossegundos. Só têm de verificar as facturas de pagamento para ver quem tem o número que telefonou à uma hora menos três minutos da manhã.

Priest nunca tinha ouvido a palavra "nanossegundo" antes, mas podia adivinhar o que significava. Agora estava preocupado.

- Merda - disse. - Podem descobrir onde estás?

- Só enquanto o telefone está ligado. Priest desligou-o apressadamente.

Estava a começar a ficar enervado. Hoje tinha sido surpreendido mais vezes do que a conta: pela gravação da voz de Star, pelo conceito de análise psicolinguística, e agora pela noção de um computador a localizar chamadas telefónicas. Haveria mais alguma coisa que se esquecera de antecipar?

Abanou a cabeça. Estava a ter pensamentos negativos. Precaução e preocupação nunca levavam a lado algum. Imaginação e sangue-frio eram as suas forças. E iria à conferência de imprensa amanhã, arranjaria maneira de entrar e perceberia quais eram as intenções do inimigo.

Melanie deitou-se na cama, fechou os olhos e disse:

- Foi um dia comprido e cansativo.

Priest contemplou o corpo dela. Adorava olhar para os seios. Gostava da forma como se moviam quando ela andava, com um ritmo cadenciado de um lado para o outro. Gostava de vê-la tirar a camisola pela cabeça, pois os braços esticados faziam as mamas empinarem-se como armas apontadas. Adorava vê-la vestir um soutien e ajustar os seios dentro das copas para ficar confortável. Agora, deitada de costas, estavam ligeiramente achatados, saídos dos lados, e os mamilos macios em repouso.

Precisava de afastar as preocupações da mente. A segunda melhor maneira de o fazer era a meditação. A melhor estava à sua frente.

Ajoelhou-se por cima dela. Quando lhe beijou os seios, ela suspirou, satisfeita, e acariciou-lhe os cabelos, mas não abriu os olhos.

Priest viu um movimento pelo canto do olho. Olhou de relance para a porta e viu Star, com um robe de seda roxa. Ele sorriu. Sabia o que ela tinha em mente: já fizera este tipo de coisa antes. Ela ergueu as sobrancelhas numa expressão de interrogação. Priest assentiu em sinal de consentimento. Ela entrou e fechou a porta em silêncio.

Priest sugou o mamilo rosado de Melanie, levando-o lentamente à boca com os lábios, e depois brincou com ele com a ponta da língua enquanto o deixava deslizar para fora, uma vez e outra, num ritmo constante. Ela gemeu de prazer.

Star desapertou o robe e deixou-o cair para o chão, depois ficou a ver, a tocar suavemente nos próprios seios. O corpo dela era tão diferente do de Melanie, as ancas e ombros mais largos, os pêlos escuros e grossos ao passo que os de Melanie eram vermelho-dourados e finos. Momentos depois, ela inclinou-se e beijou a orelha de Priest, depois passou-lhe a mão pelas costas, ao longo da coluna, e entre as pernas, a acariciar e a apertar.

Ele começou a respirar mais depressa.

Devagar, devagar. Saboreia o momento.

Star ajoelhou ao lado da cama e começou a acariciar o seio de Melanie enquanto Priest o sugava.

Melanie sentiu que alguma coisa estava diferente. Parou de gemer. O corpo ficou rígido e depois abriu os olhos. Quando viu Star, soltou um grito abafado.

Star sorriu e continuou a tocar-lhe.

- O teu corpo é muito bonito - disse ela em voz baixa. Priest olhou, em transe, enquanto ela se debruçava e levava o outro seio de Melanie à boca.

Melanie sacudiu-os a ambos e sentou-se muito direita.

- Não! - disse.

- Descontrai-te - disse-lhe Priest. - Está tudo bem, a sério. - Acariciou-lhe os cabelos.

Star acariciou o interior da coxa de Melanie.

- Vais gostar - disse ela. - Uma mulher pode fazer algumas coisas muito melhor do que um homem. Vais ver.

- Não - disse Melanie. Fechou as pernas com força.

Priest apercebeu-se de que aquilo não ia resultar. Sentiu-se desapontado. Adorava ver Star com outra mulher, a deixá-la louca de prazer. Mas Melanie estava demasiado assustada.

Star persistiu. A mão subiu pela coxa de Melanie, e as pontas dos dedos acariciaram ao de leve o tufo de pêlos ruivos.

- Não! - Melanie bateu na mão de Star para a afastar.

Foi uma palmada violenta, e Star disse:

- Ui! Para que é que fizeste isso?

Melanie empurrou Star para o lado e saltou da cama.

- Porque és gorda e velha e não quero fazer sexo contigo! Star ficou sem fala, Priest estremeceu.

Melanie dirigiu-se resolutamente para a porta e abriu-a.

- Por favor! - disse. - Deixem-me em paz!

Para surpresa de Priest, Star começou a chorar. Indignado, ele exclamou:

- Melanie!

Antes de Melanie poder responder, Star saiu. Melanie atirou com a porta. Priest disse-lhe:

- Uau, miúda, que maldade. Ela abriu mais uma vez a porta.

- Se é isso que pensas, também podes ir. Deixa-me em paz! Priest estava chocado. Em vinte e cinco anos ninguém o mandara sair de uma casa ali na comuna. Agora estava a ser posto na rua por uma rapariga nua que estava vermelha de raiva ou excitação ou ambas as coisas. Para aumentar a humilhação, estava duro como o mastro de uma bandeira.

Estarei a perder a firmeza?

O pensamento perturbou-o. Conseguia que as pessoas fizessem sempre o que queria, especialmente ali na comuna. Ficou tão abalado que quase lhe obedeceu. Encaminhou-se para a porta sem falar.

Depois percebeu que não podia desistir. Talvez nunca mais recuperasse o domínio se a deixasse derrotá-lo agora. E precisava de ter Melanie sob o seu comando. Ela era crucial para o plano. Não conseguiria provocar outro sismo sem a ajuda dela. Não podia deixá-la declarar independência desta maneira. Ela era demasiado importante.

À porta, virou-se e olhou para ela, nua, com as mãos nas ancas. Que é que ela queria? Hoje tinha mandado, no vale Owens, por causa dos seus conhecimentos, e aquilo dera-lhe coragem para este ataque de mau génio. Mas no fundo não queria ser independente - não estaria ali se quisesse. Preferia que uma pessoa com poder lhe dissesse o que fazer. Fora por isso que casara com o professor. Depois de o deixar, ligara-se a outra figura autoritária, o líder de uma comuna. Esta noite tinha-se revoltado porque não queria dividir Priest com outra mulher. Provavelmente, tinha receio de que Star lho roubasse. Mas a última coisa que queria era que Priest se fosse embora.

Fechou a porta.

Atravessou o pequeno quarto em três passos e parou à frente dela. Ela continuava vermelha de fúria e a respirar com dificuldade.

- Deita-te - ordenou.

Ela pareceu perturbada, mas deitou-se na cama.

- Abre as pernas - disse ele. Instantes depois ela obedeceu.

Ele deitou-se em cima dela. Entrou nela e ela abraçou-o e apertou-o com força. Ele moveu-se depressa dentro dela, deliberadamente bruto. Ela entrelaçou as pernas à volta da cintura dele. Sentiu os dentes dela no ombro, a morder. Doeu, mas gostou. Ela abriu a boca, a respirar pesadamente.

- Ah, foda-se - disse numa voz baixa, gutural. - Priest, seu filho da puta, amo-te.

Quando Priest acordou, foi à cabana de Star. Ela estava deitada de lado, de olhos abertos, a olhar para a parede. Quando ele se sentou na cama ao lado dela, ela começou a chorar. Ele beijou-lhe as lágrimas. Estava a ficar excitado.

- Fala comigo - murmurou.

- Sabias que a Flower deita o Dusty?

Não estava à espera daquilo. Qual era o problema?

- Não sabia - respondeu.

- Não gosto disso.

- Por que não? - Tentou não soar irritado. Ontem provocámos um tremor de terra, e hoje estás a chorar por causa das crianças? - É muito melhor do que roubar pósters de actores de cinema em Silver City.

- Mas tu tens uma família nova - explodiu ela.

- Que raio é que isso quer dizer?

- Tu, e a Melanie e a Flower e o Dusty. Vocês são como uma família. E não há lugar para mim, não encaixo.

- É claro que encaixas - disse ele. - Tu és a mãe da minha filha, e és a mulher que amo. Como poderias não encaixar?

- A noite passada senti-me tão humilhada.

Ele acariciou-lhe os seios através do algodão da camisa de noite. Ela cobriu a mão dele com a sua e pressionou a palma da mão dele com força contra o corpo.

- O grupo é a nossa família - disse-lhe ele. - Foi sempre assim. Nós não sofremos dos problemas da unidade suburbana mãe-e-pai-e-dois-filhos. - Estava a repetir os ensinamentos que recebera dela há muitos anos. - Nós somos uma grande família. Amamos o grupo todo, e todos cuidam de todos os outros. Desta forma, não temos de mentir uns aos outros, ou a nós próprios, sobre sexo. Podes fazê-lo com o Oaktree, ou com a Song, e eu saberei que gostas de mim e da nossa filha.

- Mas sabes uma coisa, Priest... ninguém jamais me tinha rejeitado, ou a ti, antes de hoje.

Não havia regras sobre quem podia fazer sexo com quem, mas claro que ninguém era obrigado a fazer amor se não quisesse. Porém, agora que pensava nisso, Priest não se recordava de uma única ocasião em que uma mulher o tivesse recusado. Obviamente, tinha acontecido o mesmo com Star... até Melanie.

Foi inundado por uma sensação de pânico. Sentira-a diversas vezes nas últimas semanas. Era o receio por a comuna estar a desmembrar-se, por estar a perder o domínio, e porque tudo o que amava estava em perigo. Era como perder o equilíbrio, como se o chão começasse a mover-se imprevisivelmente e o solo começasse de súbito a mudar e a ficar instável, como acontecera no dia anterior no vale Owens. Lutou para suprimir a ansiedade. Tinha de se manter calmo. Só ele podia manter a lealdade de todos e mantê-los juntos. Tinha de se manter calmo.

Deitou-se na cama ao lado dela e acariciou-lhe os cabelos.

- Vai ficar tudo bem - disse. - Ontem pregámos um susto do caraças ao governador Mike Robson. Vamos fazer o que queremos, vais ver.

- Tens a certeza?

Ele pousou as duas mãos nos seios dela. Sentia-se excitado.

- Confia em mim - murmurou. Encostou-se tanto a ela que ela sentiu a erecção dele.

- Faz amor comigo, Priest - disse ela. Ele sorriu-lhe, malandro.

- Como?

Ela sorriu através das lágrimas.

- Como te apetecer.

Depois, ela adormeceu. Deitado a seu lado, Priest preocupou-se com o problema da acreditação até encontrar a solução. Depois levantou-se.

Entrou na camarata das crianças e acordou Flower.

- Quero que vás comigo a São Francisco - disse ele. - Veste-te. Fez torradas e sumo de laranja na cozinha deserta. Enquanto ela comia, ele disse:

- Recordas-te de termos falado sobre quereres ser escritora? E disseste-me que gostavas de trabalhar para uma revista?

- Sim, a revista Teen - disse ela.

- Certo.

- Mas tu queres que eu escreva poesia para poder viver aqui.

- E continuo a querer, mas hoje vais descobrir como é ser repórter. Ela ficou feliz.

- Está bem!

- Vou levar-te a uma conferência de imprensa do FBI.

- Do FBI?

- É o tipo de coisas que tens de fazer se fores repórter.

Ela torceu o nariz em sinal de desagrado. Tinha herdado o ódio que a mãe tinha aos polícias.

- Nunca li nada sobre o FBI na Teen.

- Bem, o Leonardo DiCaprio não vai dar nenhuma conferência de imprensa hoje, eu verifiquei.

Ela sorriu timidamente.

- Que pena.

- Mas se fizeres o género de perguntas que uma repórter da Teen faria, vai ser giro.

Ela assentiu pensativamente.

- A conferência de imprensa é sobre o quê?

- Um grupo que afirma ter desencadeado um sismo. Mas não quero que contes a ninguém. Tem de ser segredo, está bem?

- Está bem.

Decidiu que contaria aos Comedores de Arroz quando voltasse.

- Podes falar com a mãe e com a Melanie sobre isso, e com o Oaktree e com a Song e com a Aneth e o Paul Beale, mas mais ninguém. É muito importante.

- Percebi.

Sabia que estava a correr um risco tresloucado. Se as coisas corressem mal, perderia tudo. Talvez até fosse preso na presença da filha. Podia acabar por ser o pior dia da vida dela. Mas os riscos doidos tinham sido sempre o seu estilo.

Quando propusera a plantação das videiras, Star tinha referido que a terra tinha um arrendamento anual. Podiam dar cabo das costas a cavar e a plantar e nunca ver o fruto do trabalho. Tinha argumentado que deviam negociar um arrendamento de dez anos antes de começarem a trabalhar. Parecia sensato, mas Priest sabia que seria fatal. Se adiassem o começo, nunca o fariam. Tinha-os persuadido a correrem o risco. No final daquele ano, a comuna tinha-se transformado numa comunidade. E o Governo tinha renovado o arrendamento de Star - naquele ano e todos os anos, até agora.

Pensou vestir o fato azul-marinho. No entanto era tão antiquado que chamaria a atenção em São Francisco, por isso usou as calças de ganga de sempre. Embora estivesse calor, vestiu uma T-shirt e uma camisa de flanela aos quadrados com uma fralda grande, que deixou solta. Do barracão das ferramentas tirou uma faca pesada com lâmina de dez centímetros que estava num estojo de pele. Enfiou-a no cós das calças, nas costas, onde ficou escondida pela fralda da camisa.

Manteve-se cheio de adrenalina durante a viagem de quatro horas para São Francisco. Teve visões de pesadelo: os dois a serem presos, ele próprio encafuado numa cela de prisão, Flower sentada sozinha numa sala de interrogatório na sede do FBI, a ser interrogada sobre os pais. Mas o medo deu-lhe alento.

Chegaram à cidade às onze da manhã. Deixaram o carro num parque de estacionamento em Golden Gate. Numa loja, Priest comprou a Flower um bloco de espiral e dois lápis. Depois levou-a para um café. Enquanto ela bebia uma gasosa, ele disse:

- Volto já - e saiu.

Dirigiu-se para a Praça da União, a perscrutar os rostos dos transeuntes, à procura de um homem que se parecesse consigo. As ruas estavam cheias de pessoas às compras, e tinha centenas de rostos para escolher. Viu um homem de rosto magro e cabelos escuros a observar a ementa do lado de fora de um restaurante, e por instantes pensou que tinha encontrado a sua vítima. Sentiu-se eléctrico de tensão e vigiou-o durante alguns segundos; depois, o tipo voltou-se e Priest viu que tinha o olho direito permanentemente fechado devido a um tipo qualquer de ferida.

Desapontado, Priest continuou a andar. Não era fácil. Havia muitos homens escuros na casa dos quarenta, mas a maior parte deles tinha dez ou quinze quilos mais do que Priest. Viu outro candidato provável, mas o fulano tinha uma máquina fotográfica à volta do pescoço. Um turista não servia: Priest precisava de alguém com documentos locais. Estou num dos maiores centros comerciais do mundo, e é sábado de manhã: tem de haver um homem que se pareça comigo.

Olhou para o relógio: onze e trinta. Estava a ficar sem tempo.

Por fim, teve sorte: um tipo de rosto magro, com cerca de cinquenta anos e óculos de aros grandes, a caminhar rapidamente. Vestia calças azul-marinho e um pólo verde, mas trazia uma pasta gasta e parecia infeliz: Priest calculou que ia para o escritório para adiantar trabalho ao sábado. Agora preciso da carteira dele. Priest seguiu-o quando ele virou uma esquina, a avaliá-lo psicologicamente, à espera de uma oportunidade.

Estou zangado, estou desesperado, sou um louco fugido do manicómio, preciso de vinte dólares para uma dose, detesto toda a gente, quero esfaquear e matar, estou doido, doido, doido...

O homem passou pelo parque onde o 'Cuda estava estacionado e virou para uma rua de antigos edifícios de escritórios. Por um momento, não se viu ninguém. Priest pegou na faca, depois correu para ele e disse:

- Hei!

O homem parou instintivamente e virou-se. Priest agarrou o tipo pela camisa, agitou a faca à frente do rosto dele e gritou:

- DÁ-ME A MERDA DA CARTEIRA SE NÃO CORTO-TE A PUTA DA GARGANTA!

O homem devia ter sucumbido de terror, mas não foi isso que aconteceu. Jesus, ele é um tipo durão. O rosto dele mostrou raiva, não medo.

Ao olhá-lo nos olhos, Priest leu o pensamento É apenas um, e não tem uma pistola.

Priest hesitou, e de repente sentiu medo. Porra, não posso dar-me ao luxo de que isto corra mal. Houve uma hesitação de uma fracção de segundo. Um homem vestido de forma descontraída, com uma pasta, a dirigir-se para o trabalho num sábado de manhã... seria um detective da Polícia?

Mas era tarde de mais para pensar duas vezes. Antes de o tipo poder mexer-se, Priest passou-lhe a lâmina pela face, deixando uma linha fina de cinco centímetros de sangue vermelho logo abaixo da lente direita dos óculos.

A coragem do homem evaporou-se, e todos os pensamentos de resistência o abandonaram. Os olhos abriram-se de medo, e o corpo pareceu descair.

- Está bem! Está bem! - disse ele num tom de voz estridente e trémulo.

Afinal, não é um chui. Priest gritou:

- AGORA! AGORA! DÁ-ME AGORA!

- Está na minha pasta...

Priest arrancou a pasta da mão do homem. No último minuto decidiu levar também os óculos do fulano. Tirou-lhos do rosto, voltou-se e fugiu a correr.

À esquina olhou para trás. O homem estava a vomitar no passeio.

Priest virou à direita. Deixou cair a faca num caixote de lixo e continuou. Na esquina seguinte parou junto a um prédio em construção e abriu a pasta. Dentro havia um dossier, um bloco de apontamentos e algumas canetas, e uma carteira em pele. Priest tirou a carteira e atirou a pasta pela vedação, para um contentor de materiais de construção. Voltou para o café e sentou-se com Flower. O café ainda estava morno. Não perdi o jeito. Passaram trinta anos desde que fiz isto pela última vez, mas ainda consigo matar as pessoas de medo. Muito bem, Ricky.

Abriu a carteira. Continha dinheiro, cartões de crédito, cartões profissionais e uma espécie de bilhete de identidade com uma fotografia. Priest pegou num cartão de negócios e estendeu-o a Flower.

- O meu cartão, minha senhora. Ela soltou pequenas risadas.

- És o Peter Shoebury, da Colefax e Brown.

- Sou advogado?

- Acho que sim.

Olhou para a fotografia do cartão de identidade. Tinha cerca de um centímetro quadrado e fora tirada numa cabina automática de fotografias. Calculou que teria cerca de dez anos. Não se parecia exactamente com Priest, mas também não se parecia muito com Peter Shoebury. As fotografias eram mesmo assim.

No entanto, Priest podia aumentar a parecença.

- Emprestas-me o teu elástico do cabelo?

- Claro. - Flower tirou um elástico do cabelo e sacudiu as madeixas à volta do rosto. Priest fez o contrário, puxando os cabelos para formar um rabo-de-cavalo e amarrando-o com o elástico. Depois colocou os óculos.

Mostrou a fotografia a Flower.

- Que tal a minha identidade secreta?

- Hmm. - Ela olhou para a parte de trás do cartão. - Isto vai dar-te entrada no escritório da baixa, mas não na filial de Oakland.

- Acho que posso viver com isso.

Ela sorriu.

- Onde é que arranjaste isto, papá?

Ele ergueu uma sobrancelha para ela e disse:

- Pedi emprestado.

- Tiraste-a do bolso de alguém?

- Mais ou menos. - Percebeu que ela pensava que aquilo era uma travessura e não uma maldade. Deixou-a acreditar no que queria. Olhou para o relógio na parede. Eram onze e quarenta e cinco. - Estás pronta para ir?

- Claro.

Percorreram a rua e entraram no Edifício Federal, um sinistro mo-nólito de granito que ocupava o quarteirão inteiro da baixa. No átrio, passaram por um detector de metais, e Priest sentiu-se aliviado por ter tido a ideia de se livrar da faca. Perguntou ao guarda de segurança em que andar ficava o FBI.

Subiram no elevador. Priest sentia-se como se estivesse pedrado com cocaína. O perigo deixava-o superalerta. Se este elevador avariasse, eu conseguiria fazê-lo andar com a minha energia psíquica. Achou que não fazia mal ser autoconfiante, talvez até um pouco arrogante, uma vez que estava a desempenhar o papel de um advogado.

Levou Flower para as instalações do FBI e seguiu uma placa que indicava uma sala de conferências para lá da entrada. Na extremidade mais afastada da sala via-se uma mesa com microfones. Perto da porta encontravam-se quatro homens, todos altos e com um aspecto forte, que vestiam fatos elegantes e bem passados a ferro, camisas brancas e gravatas sóbrias. Tinham de ser agentes.

Se soubessem quem eu sou, matavam-me sem pensar muito.

Mantém-te calmo, Priest... eles não conseguem ler pensamentos, não sabem nada sobre ti.

Priest tinha um metro e oitenta e cinco centímetros de altura, mas eles eram mais altos. Pressentiu imediatamente que o chefe era o homem mais velho cujos cabelos brancos estavam meticulosamente divididos e penteados. Estava a falar para um homem com bigode preto. Dois homens mais jovens escutavam, com expressões deferentes.

Uma mulher jovem, com um bloco na mão, aproximou-se de Priest.

- Olá, posso ajudá-lo?

- Espero bem que sim - retorquiu Priest.

Quando falou, os agentes repararam nele. Leu as reacções deles quando o fitaram. Quando viram o rabo-de-cavalo e as calças de ganga ficaram desconfiados; depois viram Flower e acalmaram novamente.

Um dos homens mais novos disse:

- Está tudo bem aqui? Priest disse:

- Chamo-me Peter Shoebury, sou advogado da Watkins, Colefax e Brown, aqui na baixa da cidade. A minha filha Florence é editora do jornal da escola. Ela ouviu no rádio que ia haver esta conferência de imprensa, e queria fazer a cobertura para o jornal. Por isso pensei, hei, é informação pública, vamos lá. Espero que não haja problemas.

Olharam todos para o tipo de cabelos brancos, confirmando a intuição de Priest de que era ele o chefe.

Seguiu-se um momento horrível de hesitação.

Raios, rapaz, tu não és advogado nenhum! Tu és Ricky Granger, que vendia anfetaminas através de uma mão-cheia de lojas de bebidas alcoólicas em Los Angeles nos anos 60... estás envolvido nesta merda do sismo? Prendam-no, rapazes, e algemem também a rapariga. Vamos metê-los dentro, descobrir o que sabem.

O homem de cabelos brancos estendeu a mão e disse:

- Sou o agente especial associado no comando Brian Kincaid, chefe do gabinete operacional de São Francisco do FBI.

Priest apertou-lhe a mão.

- É um prazer conhecê-lo, Brian.

- Para que firma disse que trabalhava?

- Watkins, Colefax e Brown. Kincaid franziu o sobrolho.

- Eu pensava que eles eram agentes imobiliários, não advogados. Oh, porra.

Priest assentiu e procurou fazer um sorriso tranquilizador.

- Correcto, e o meu trabalho é mantê-los longe de problemas. - Havia uma palavra para um advogado que era contratado por uma empresa. Priest vasculhou a memória e encontrou. - Sou conselheiro interno.

- Tem alguma identificação?

- Oh, claro. - Abriu a carteira roubada e tirou o cartão com a fotografia de Peter Shoebury. Conteve a respiração.

Kincaid olhou para ela, depois procurou semelhanças com Priest. Priest percebeu o que ele estava a pensar: Acho que pode ser ele. Devolveu o cartão. Priest respirou de novo.

Kincaid voltou-se para Flower.

- Em que escola é que andas, Florence? O coração de Priest bateu mais depressa.

- Um... - Flower hesitou. Priest estava prestes a responder por ela quando ela disse: - Liceu Eisenhower Júnior.

Priest sentiu uma onda de orgulho. Ela herdara o seu sangue-frio. Para o caso de Kincaid conhecer as escolas em São Francisco, ele acrescentou:

- É em Oakland. Kincaid pareceu satisfeito.

- Bem, estamos encantados por te ter connosco, Florence - disse ele.

Conseguimos!

- Obrigada, senhor - disse ela.

- Se quiseres que responda a algumas perguntas agora, antes de a conferência de imprensa começar...

Priest tinha tido o cuidado de não preparar Flower de mais. Pensou que se ela parecesse tímida, ou se se atrapalhasse nas perguntas, seria uma coisa natural; ao passo que, se fosse demasiado ponderada e parecesse bem ensaiada, poderia levantar suspeitas. Mas agora sentiu uma grande ansiedade por causa dela, e teve de suprimir a necessidade paternal de intervir e dizer-lhe o que devia fazer. Mordeu o lábio.

Ela abriu o bloco de apontamentos.

- O senhor é o responsável por esta investigação? Priest descontraiu um pouco. Ela ia sair-se bem.

- Esta é apenas uma das muitas investigações que preciso de controlar - respondeu Kincaid. Apontou para o homem de bigode preto. - O agente especial Marvin Hayes é o responsável por este caso.

Flower voltou-se para Hayes.

- Acho que a escola gostaria de saber que género de pessoa é o senhor, senhor Hayes. Posso fazer-lhe algumas perguntas pessoais?

Priest ficou chocado ao observar o toque de sedução na maneira como ela inclinou a cabeça e sorriu para Hayes. Por amor de Deus, ela é jovem de mais para se atirar a homens mais velhos!

Mas Hayes caiu. Pareceu satisfeito e disse:

- Claro, podes começar.

- É casado?

- Sim. E tenho dois filhos, um rapaz aproximadamente da tua idade e uma rapariga um pouco mais nova.

- Tem algum passatempo?

- Colecciono coisas relacionadas com boxe.

- Não é muito vulgar.

- Acho que não.

Priest estava ao mesmo tempo satisfeito e abismado com a naturalidade com que Flower encaixava no papel. Ela é boa nisto. Raios, espero não tê-la criado todos estes anos para se transformar numa escritora de revistas reles.

Observou Hayes enquanto o agente respondia às perguntas inocentes de Flower. Aquele era o seu adversário. Hayes estava cuidadosamente vestido, num estilo convencional. Um fato escuro, leve, camisa branca e gravata de seda escura tinham vindo provavelmente da Brooks Brothers. Usava sapatos pretos clássicos, muito bem engraxados e com os atacadores ajustados. Os cabelos e o bigode estavam irrepreensivelmente penteados.

Todavia, Priest sentiu que o aspecto ultraconservador era falso. A gravata era demasiado chamativa, tinha um anel com um rubi gigante no dedo mindinho da mão esquerda, e o bigode dava-lhe um toque libertino. Priest pensou também que o género de americano brâmane que Hayes estava a tentar imitar não estaria tão bem vestido num sábado de manhã, nem sequer para uma conferência de imprensa.

- Qual é o seu restaurante preferido? - perguntou Florence.

- Muitos de nós vamos ao Everton's, que na verdade é mais um pub.

A sala de. conferências estava a encher-se de homens e mulheres com blocos de apontamentos e gravadores de cassetes, fotógrafos carregados de máquinas fotográficas e flashes, repórteres de rádio com grandes microfones, e um par de equipas de televisão com câmaras de vídeo. A medida que entravam, a mulher jovem com o bloco pedia-lhes que assinassem um livro. Priest e Flower pareciam ter escapado àquilo. Ficou aliviado. Não conseguiria escrever "Peter Shoebury" para salvar a vida.

Kincaid, o chefe, tocou no cotovelo de Hayes.

- Agora temos de nos preparar para a conferência de imprensa, Florence. Espero que fiques para ouvir o que temos para anunciar.

- Sim, obrigada - disse ela. Priest disse:

- Foi muito simpático, senhor Hayes. Os professores da Florence ficarão verdadeiramente agradecidos.

Os agentes dirigiram-se para a mesa ao fundo da sala. Meu Deus, enganámo-los. Priest e Flower sentaram-se atrás e esperaram. A tensão de Priest diminuiu. Tinha conseguido safar-se.

Eu sabia que ia conseguir.

Ainda não tinha obtido muitas informações importantes, mas isso viria com a declaração formal à imprensa. O que tinha era uma percepção das pessoas com quem estava a lidar. Estava mais calmo depois do que tinha sabido. Nem Kincaid nem Hayes lhe pareceram brilhantes. Pareciam polícias de giro normais, o género que se safava com uma mistura de rotina persistente e corrupção ocasional. Tinha pouco a recear deles.

Kincaid levantou-se e apresentou-se. Parecia confiante, mas um pouco peremptório de mais. Talvez não fosse chefe há muito tempo. Disse:

- Gostaria de começar deixando uma coisa muito clara. O FBI não acredita que o sismo de ontem tenha sido desencadeado por um grupo terrorista.

Os flashes dispararam, os gravadores rodaram e os repórteres escrevinharam notícias. Priest tentou não deixar que a fúria transparecesse no rosto. Os filhos-da-mãe recusavam-se a levá-lo a sério... ainda!

- Esta é também a opinião do sismólogo do estado, que acredito estar disponível para ser entrevistado em Sacramento esta manhã.

Que é que tenho de fazer para vos convencer? Ameacei com um terramoto, e depois fi-lo acontecer, e vocês continuam a não acreditar que eu o fiz! Terei de matar pessoas antes de me darem ouvidos?

Kincaid prosseguiu:

- No entanto, foi feita uma ameaça terrorista, e o FBI pretende apanhar as pessoas que a fizeram. A nossa investigação é dirigida pelo agente especial Marvin Hayes. Passo-te a palavra, Marvin.

Hayes levantou-se. Priest viu imediatamente que ele estava mais enervado do que Kincaid. Leu mecanicamente uma declaração preparada.

- Agentes do FBI interrogaram esta manhã todos os cinco funcionários pagos da Campanha para a Califórnia Verde nas suas casas. Os funcionários estão a colaborar connosco voluntariamente.

Priest ficou satisfeito. Tinha lançado uma pista falsa, e os federais estavam a segui-la. Hayes continuou:

- Agentes visitaram também a sede da campanha, aqui em São Francisco, e examinaram documentos e registos informáticos.

Priest calculou que deviam estar a passar a lista de correspondência a pente fino, à procura de pistas.

Falou mais, mas foi repetitivo. Os jornalistas reunidos fizeram perguntas que acrescentaram pormenor e cor, mas não mudaram a história básica. A tensão de Priest aumentou novamente enquanto esperava, impaciente, uma oportunidade para sair sem dar nas vistas. Ficou contente ao constatar que a investigação do FBI estava tão longe do rumo certo - ainda não tinham apanhado a segunda pista falsa -, mas sentiu-se zangado por continuarem a recusar-se a acreditar na ameaça.

Por fim, Kincaid deu por encerrada a sessão e os jornalistas começaram a levantar-se e a arrumar o equipamento.

Priest e Flower dirigiram-se para a porta, mas foram barrados pela mulher com o bloco, que sorriu abertamente e disse:

- Acho que vocês os dois não assinaram, pois não? - Entregou a Priest um livro e uma caneta. - Escrevam aí os vossos nomes e a organização que representam.

Priest paralisou de medo. Não posso, não posso! Não entres em pânico. Descontrai-te. Ley, tor, pur-doy-cor...

- Senhor? Não se importa de assinar?

- Claro, - Priest pegou no livro e na caneta. Depois passou-os a Flower. - Acho que a Florence devia assinar por nós... ela é que é a jornalista - disse ele, recordando-lhe o nome falso. Ocorreu-lhe que podia ter-se esquecido da escola em que era suposto andar. - Escreve o teu nome, e "Liceu Eisenhower Júnior".

Flower não hesitou. Escreveu no livro e entregou-o à mulher. Agora, por amor de Deus, podemos ir?

- O senhor também, por favor - disse a mulher, e deu o livro a Priest.

Ele pegou-lhe com relutância. E agora? Se fizesse um rabisco, ela podia pedir-lhe que escrevesse o nome com clareza: já lhe tinha acontecido antes. Mas talvez pudesse recusar-se e sair. Ela era apenas uma secretária.

Enquanto hesitava, ouviu a voz de Kincaid.

- Espero que tenha sido interessante para ti, Florence.

O Kincaid é um agente... faz parte do trabalho dele ser desconfiado.

- Foi, sim, senhor - disse Flower educadamente. Priest começou a transpirar por baixo da camisa.

Fez um rabisco onde devia escrever o nome. Depois fechou o livro antes de o entregar à mulher. Kincaid disse para Flower:

- Vais lembrar-te de me mandar uma cópia do jornal da tua turma quando for impresso?

- Sim, claro que sim. Vamos, vamos!

A mulher abriu o livro e disse:

- Oh, senhor, desculpe, não se importa de escrever o seu nome aqui? Infelizmente, a sua assinatura não é nada clara.

Que vou fazer?

- Vais precisar de uma morada - disse Kincaid para Flower, e tirou um cartão profissional do bolso do peito do casaco do fato. - Aqui tens.

- Obrigada.

Priest recordou-se de que Peter Shoebury tinha cartões profissionais. É a resposta... graças a Deus! Abriu a carteira e deu um à mulher.

- A minha caligrafia é terrível... use isto - disse. - Temos de nos despachar. - Apertou a mão a Kincaid. - Foram maravilhosos. Vou certificar-me de que a Florence não se esquece de mandar o jornal.

Saíram da sala.

Atravessaram o átrio e esperaram pelo elevador. Priest imaginou Kincaid a vir atrás dele, de arma em punho, a dizer: "Que género de advogado é que não consegue escrever o próprio nome, seu cretino?" Mas o elevador chegou e desceram e saíram do edifício para o ar fresco.

Flower disse:

- Tenho o pai mais doido do mundo. Priest sorriu-lhe.

- É verdade.

- Por que é que tivemos nomes falsos?

- Bem, nunca gosto que os porcos fiquem com o meu nome verdadeiro - disse ele. Pensou que ela aceitaria aquela justificação. Sabia o que os pais achavam dos polícias.

Mas ela disse:

- Bem, estou zangada contigo por causa disso. Ele franziu o sobrolho.

- Porquê?

- Nunca te perdoarei por me chamares Florence - disse ela. Priest olhou-a por um momento e depois desataram os dois a rir.

- Vá lá, miúda - disse Priest carinhosamente. - Vamos para casa.

 

Judy sonhou que estava a passear à beira-mar com Michael Quercus, e que os pés descalços dele deixavam pegadas bem vincadas na areia molhada.

No sábado de manhã deu uma ajuda numa classe de alfabetização de jovens delinquentes. Eles respeitavam-na porque ela tinha uma arma. Sentou-se na sacristia de uma igreja ao lado de um rufia com dezassete anos, a ajudá-lo a praticar a escrever a data, na esperança de que isto tornasse menos provável a eventualidade de ter de o prender daí a dez anos.

À tarde percorreu de carro a curta distância entre a casa de Bo e o Gala Foods na Praça Geary e fez compras.

As rotinas de sábado não a acalmaram. Estava furiosa com Brian Kincaid por a ter afastado do caso de Os Filhos do Paraíso, mas não podia fazer nada, por isso andou de um lado para o outro entre as prateleiras e tentou concentrar-se nas bolachas de chocolate Ahoy, no arroz A-Roni, e nas toalhas de cozinha Zee "Decor Collection" com desenhos amarelos. Na prateleira dos cereais de pequeno-almoço pensou no filho de Michael, Dusty, e comprou uma caixa de Cap'n Crunch.

Mas não parava de pensar no caso. Haverá realmente alguém que possa fazer sismos acontecerem? Ou estou doida?

De volta a casa, Bo ajudou-a a descarregar as mercearias e perguntou-lhe como estava a investigação.

- Ouvi dizer que o Marvin Hayes invadiu a Campanha para a Califórnia Verde.

- Não deve ter-lhe adiantado grande coisa - disse ela. - Eles estão limpos. O Raja esteve lá na quinta-feira a falar com eles. Dois homens e três mulheres, todos com mais de cinquenta anos. Não têm cadastros criminais... nem sequer uma multa por excesso de velocidade entre os quatro... e nenhuma associação com quaisquer pessoas suspeitas. Se eles são terroristas, eu sou o Kojak.

- Nos noticiários da televisão dizem que ele está a examinar os registos deles.

- Certo. É uma lista de toda a gente que já lhes escreveu a pedir informações, incluindo a Jane Fonda. Tem dezoito mil nomes e endereços. Agora, a equipa do Marvin tem de inserir cada nome no computador do FBI para ver se vale a pena entrevistar alguém. Pode demorar um mês.

A campainha da porta tocou. Judy abriu a porta a Simon Sparrow. Ficou surpreendida mas agradada.

- Olá, Simon, entra!

Ele usava calções de ciclista pretos e uma camisola sem alças, sapatos de treino Nike e óculos de sol presos à cabeça. No entanto, não tinha vindo de bicicleta: o Honda Del Sol verde estava estacionado junto ao passeio com a capota descida. Judy perguntou a si mesma o que é que a mãe teria pensado de Simon. "Bonito rapaz", poderia ter dito. "No entanto não é muito másculo."

Bo cumprimentou Simon, e depois trocou com Judy um olhar clandestino que dizia Quem diabo é este maricas? Judy chocou-o quando disse:

- O Simon é um dos melhores analistas linguísticos do FBI. De certa forma estupefacto, Bo disse:

- Bem, Simon, muito prazer em conhecê-lo.

Simon trazia uma cassete e um sobrescrito pardo. Estendeu-lhos e disse:

- Trouxe-te o meu relatório sobre a gravação de Os Filhos do Paraíso.

- Estou fora do caso - disse Judy.

- Eu sei, mas pensei que continuarias interessada. Infelizmente, as vozes na gravação não correspondem a nenhuma das que fazem parte dos nossos ficheiros acústicos.

- Então, não temos nomes.

- Não, mas muitas outras coisas interessantes. O interesse de Judy estava excitado.

- Disseste "vozes". Eu só ouvi uma.

- Não, há duas. - Simon olhou em volta e viu o rádio e leitor de cassetes de Bo na bancada da cozinha. Normalmente, era usado para tocar os Grandes Êxitos dos Everly Brothers. Colocou a cassete.

- Vou explicar-te enquanto ouvimos a gravação.

- Adorava, mas agora o caso é do Marvin Hayes.

- Mesmo assim, gostava de saber a tua opinião. Judy abanou a cabeça, teimosa.

- Primeiro, devias falar com o Marvin.

- Sei o que estás a dizer. Mas o Marvin é um idiota chapado. Sabes há quanto tempo é que ele não prende um criminoso?

- Simon, se estás a tentar convencer-me a trabalhar neste caso nas costas do Kincaid, esquece!

- Ouve o que tenho para dizer, está bem? Não pode fazer mal. - Simon aumentou o volume e começou a passar a gravação.

Judy suspirou. Estava desesperadamente ansiosa para saber o que Simon descobrira sobre Os Filhos do Paraíso. Mas se chegasse aos ouvidos de Kincaid que Simon tinha falado com ela antes de Marvin, seria um inferno.

A voz da mulher disse:

"Falam Os Filhos do Paraíso com uma mensagem para o governador Mike Robson."

Simon parou a fita e olhou para Bo.

- Que é que visualizou quando ouviu a voz pela primeira vez? Bo sorriu.

- Imaginei uma mulher grande, com cerca de cinquenta anos, com um sorriso grande. Um bocado sexy. Lembro-me de que pensei que gostaria de... - Olhou de relance para Judy e terminou: - ... a conhecer.

Simon acenou afirmativamente.

- Os seus instintos são de confiança. Pessoas sem experiência podem dizer muito sobre um orador apenas ouvindo-o. Sabem quase sempre se estão a escutar uma mulher ou um homem, é claro. Mas também conseguem dizer que idade tem, e geralmente calculam a altura e o tipo de corpo com bastante exactidão. Por vezes até conseguem adivinhar o estado de saúde da pessoa.

- Tens razão - disse Judy. Contra vontade, estava intrigada. - Sempre que oiço uma voz ao telefone, imagino a pessoa, mesmo se estiver a ouvir uma mensagem gravada.

- É porque o som da voz vem do corpo. Timbre, altura, ressonância, rouquidão, todas as características vocais têm causas físicas. Pessoas altas têm um tracto vocal mais longo, pessoas idosas possuem tecidos rígidos e cartilagem frágil, pessoas doentes têm gargantas inflamadas.

- Isso faz sentido - disse Judy. - Só não tinha pensado no assunto antes.

- O meu computador capta as mesmas deixas que as pessoas, e é mais preciso. - Simon tirou o relatório dactilografado do sobrescrito que trouxera na mão. - Esta mulher tem entre quarenta e sete e cinquenta e dois anos. É alta, com um metro e oitenta, pouco mais ou menos. Tem peso a mais, mas não é obesa: provavelmente, apenas uma constituição forte. Bebe e fuma, mas apesar disso é saudável.

Judy sentiu-se ansiosa mas excitada. Embora desejasse não ter deixado Simon começar, estava fascinada por saber um pouco mais sobre a mulher mistério por detrás da voz.

Simon olhou para Bo.

- E está certo em relação ao sorriso grande. Ela tem uma grande cavidade bocal, e a fala é sublabializada... Ela não franze os lábios.

- Gosto desta mulher - disse Bo. - O computador diz se ela é boa na cama?

Simon sorriu.

- A razão porque pensa que ela é sexy é porque a voz tem uma característica sussurrante. Isto pode ser um sinal de excitação sexual. Mas quando se trata de uma característica permanente, não indica necessariamente sexualidade.

- Acho que está enganado - disse Bo. - Mulheres com forte atracção sexual têm vozes sexy.

Judy protestou.

- Simon, acho que não devemos...

- Escuta. Por favor!

- Está bem, está bem.

Desta vez ele passou as duas primeiras frases. "Falam Os Filhos do Paraíso com uma mensagem para o governador Mike Robson. Merda, não estava à espera de falar para um gravador." Ele parou a gravação.

- É um sotaque do Norte da Califórnia, claro. Mas notaram mais alguma coisa?

Bo disse:

- Ela é da classe média. Judy franziu o sobrolho.

- A mim pareceu-me da alta sociedade.

- Têm ambos razão - declarou Simon. - O sotaque dela muda entre a primeira frase e a segunda.

- Isso é invulgar? - perguntou Judy.

- Não. A maioria de nós apanha o sotaque básico com o grupo social em que cresce, e depois modificamo-lo mais tarde na vida. Normalmente, as pessoas procuram melhorar: operários tentam soar mais ricos, e os novos-ricos tentam falar como dinheiro antigo. De vez em quando, dá-se o oposto: um político de uma família aristocrata pode mudar o sotaque para um estilo mais vulgar, para parecer um homem do povo, percebem o que estou a dizer?

Judy sorriu.

- Podes crer.

- O sotaque aprendido é usado em ocasiões formais - disse Simon enquanto rebobinava a gravação. - Surge quando o orador está equilibrado. Mas revertemos para os nossos padrões de discurso da infância quando estamos sujeitos a tensão. Entendido até agora?

Bo disse:

- Claro.

- Esta mulher desceu o nível do discurso. Finge ser de uma classe mais baixa do que é na realidade.

Judy estava fascinada.

- Achas que é uma espécie de Patty Hearst?

- Naquela área, sim. Começa com uma frase formal ensaiada, falada no seu tom de pessoa média. Agora, no discurso americano, quanto mais elevada é a classe a que se pertence, mais se pronuncia a letra "r". Com isso em mente, escutem a forma como ela diz a palavra "governador" agora.

Judy ia detê-lo, mas estava demasiado interessada. A mulher na gravação disse:

"Falam Os Filhos do Paraíso com uma mensagem para o governador Mike Robson."

- Ouvem a forma como ela diz "govenadô Mike"? Isto é fala da rua. Mas escutem o próximo pedaço. A mensagem no atendedor de mensagens apanhou-a desprevenida e ela fala com naturalidade.

"Merda, não estava à espera de falar para um gravador."

- Embora diga "merda", pronuncia a palavra "gravador" muito correctamente. Uma pessoa da classe mais baixa diria "gravado", pronunciando apenas levemente o primeiro r. Os licenciados médios dizem "gravado", mas pronunciam o primeiro r distintamente. Na América apenas pessoas de classes muito superiores dizem "gravador" da forma que ela disse, pronunciando cuidadosamente todos os erres.

Bo disse:

- Quem pensaria que se pode descobrir tanto em duas frases?

Simon sorriu, satisfeito.

- Mas notaram alguma coisa em relação ao vocabulário? Bo abanou a cabeça.

- Nada a que possa apontar o dedo.

- O que é um gravador? Bo riu-se.

- Uma máquina do tamanho de uma mala pequena, com duas bobinas em cima. Eu tive um no Vietname... um Grundig.

Judy percebeu onde Simon queria chegar. O termo "gravador" era antiquado. O termo que se usa hoje em dia é "leitor de cassetes". As mensagens telefónicas eram gravadas no disco rígido de um computador.

- Ela vive noutro tempo - disse Judy. - Faz-me pensar novamente na Patty Hearst. A propósito, que é que lhe aconteceu?

Bo disse:

- Cumpriu pena, saiu da prisão, escreveu um livro e apareceu no Geraldo. Bem-vinda à América.

Judy levantou-se.

- Isto está a ser fascinante, Simon, mas não me sinto bem a fazê-lo. Acho que devias levar o relatório ao Marvin agora.

- Só quero mostrar-te mais uma coisa - disse ele. Tocou no botão de avanço rápido.

- A sério...

- Escuta só isto.

A voz da mulher disse:

"Aconteceu no vale Owens pouco depois das duas horas, como poderão verificar." Ouviu-se um leve ruído de fundo e ela hesitou. Simon parou a fita.

- Aumentei aquele pequeno murmúrio. Aqui está ele reconstruído. Soltou o botão de pausa. Judy ouviu a voz de um homem, distorcida com muito ruído de fundo mas suficientemente clara para se compreender, a dizer: "Não reconhecemos a jurisdição do Governo dos Estados Unidos." O ruído de fundo voltou ao normal, e a voz da mulher repetiu:

"Não reconhecemos a jurisdição do Governo dos Estados Unidos." Continuou: "Agora que sabe que podemos fazer o que dizemos, é melhor pensar bem na nossa exigência."

Simon parou a gravação.

Judy disse:

- Ela estava a dizer as palavras que ele lhe tinha dado, e esqueceu-se de alguma coisa, por isso ele lembrou-a.

Bo disse:

- Você não achou que a mensagem original da Internet tinha sido ditada por um homem da classe operária, talvez analfabeto, e escrita por uma mulher educada?

- Sim - disse Simon. - Mas esta é uma mulher diferente... mais velha.

- Então - disse Bo para Judy -, agora estás a começar a construir os perfis de três sujeitos desconhecidos.

- Não estou nada - retorquiu ela. - Estou fora do caso. Vá lá, Simon, sabes que isto me pode meter em mais sarilhos.

- Está bem. - Tirou a cassete da máquina e levantou-se. - De qualquer maneira, já te contei tudo o que era importante. Se tiveres alguma ideia brilhante que eu possa passar ao Monstro Marvin, diz-me.

Judy acompanhou-o à porta.

- Vou levar o relatório para o escritório imediatamente... provavelmente, o Marvin ainda lá estará - disse ele. - Depois vou dormir. Estive toda a noite acordado a trabalhar nisto. - Entrou no carro desportivo e arrancou.

Quando ela voltou, Bo estava a fazer chá verde e tinha uma expressão pensativa.

- Então este rufião esperto tem um bando de damas com classe para escreverem o que ele manda.

Judy acenou afirmativamente.

- Acho que sei onde queres chegar. - É um culto.

- Sim. Tive razão ao pensar na Patty Hearst. - Ela estremeceu. O homem por detrás de tudo isto tinha de ser uma figura carismática, com poder sobre as mulheres. Podia ser analfabeto, mas não era isso que o detinha, pois tinha outros a executar as suas ordens. - Mas há alguma coisa que não está certa. Aquela exigência de não construir mais centrais energéticas... não é suficientemente tarado.

- Concordo - disse Bo. - Não dá nas vistas. Acho que eles têm um motivo muito concreto e egoísta para querer esta paragem.

- Será que... - disse Judy pensativa. - Talvez tenham interesse numa central de energia específica.

Bo contemplou-a.

- Judy, isso é brilhante! Talvez vá poluir o rio de salmão deles ou coisa do género.

- Alguma coisa desse tipo - disse ela. - Mas afecta-os profundamente. - Sentiu-se excitada. Estava a chegar a algum lado.

- Então, suspender a construção de todas as centrais é uma camuflagem. Eles têm receio de referir a única em que estão verdadeiramente interessados com medo de que isso os conduza a eles.

- Mas quantas possibilidades pode haver? Não são construídas centrais de energia todos os dias. E estas coisas são controversas. Qualquer proposta tem de ter sido noticiada.

- Vamos verificar.

Foram para o escritório. O computador portátil encontrava-se numa mesa lateral. De quando em vez ela escrevia relatórios ali enquanto Bo estava a ver futebol. A televisão não a distraía; e gostava de estar perto dele. Ligou a máquina. Enquanto esperava que o sistema carregasse, disse:

- Se reunirmos um conjunto de locais onde vão ser construídas centrais de energia, o computador do FBI dir-nos-á se existe algum culto perto delas.

Acedeu aos arquivos do San Francisco Chronicle e procurou referências a centrais energéticas nos últimos três anos. A busca produziu 117 artigos. Judy estudou os títulos, ignorando histórias sobre Pits-burgh e Cuba.

- Muito bem, temos um plano para uma central nuclear no deserto Mojave... - Guardou a história. - Uma barragem hidroeléctrica no distrito Sierra... uma central alimentada a gasolina perto da fronteira do Orégão...

Bo disse:

- Distrito Sierra? Isso lembra-me qualquer coisa. Tens uma localização exacta?

Judy fez clique sobre o artigo.

- Sim... a proposta é para fazer uma barragem no rio de Prata. Ele franziu o sobrolho.

- Vale do rio de Prata...

Judy desviou o olhar do ecrã de computador.

- Espera, isto é familiar... não existe lá um grupo de vigilantes com grande implantação?

- Isso mesmo! - disse Bo. - Chama-se Los Alamos. São dirigidos por um maluco chamado Poço Latella, que veio originalmente de Daly City. É por isso que os conheço.

- Certo. Estão armados até aos dentes, e recusam-se a reconhecer o Governo dos Estados Unidos... Jesus, eles até usaram essa frase na gravação: "Não reconhecemos a jurisdição do Governo dos Estados Unidos." Acho que os apanhámos, Bo.

- Que é que vais fazer?

O coração de Judy apertou-se quando se lembrou de que tinha sido afastada do caso.

- Se o Kincaid descobre que tenho estado a trabalhar no caso, vai ser o fim do mundo.

- Los Alamos tem de ser investigado.

- Vou telefonar ao Simon. - Pegou no telefone e marcou o número do escritório. O telefonista era um fulano que ela conhecia. - Olá, Charlie, fala a Judy. O Simon Sparrow está no escritório?

- Entrou e saiu - disse Charlie. - Queres que tente apanhá-lo no carro?

- Sim, obrigada.

Esperou. Charlie voltou a entrar na linha e disse:

- Não responde. Também tentei o número de casa. Queres que mande uma mensagem para o pager!

- Sim, por favor. - Judy lembrou-se de que ele tinha dito que ia dormir. - Mas aposto que também o desligou.

- Vou mandar-lhe uma mensagem para te telefonar.

- Obrigada. - Desligou e disse para Bo: - Acho que vou ter de falar com o Kincaid. Se lhe der uma boa pista para seguir, ele não pode ficar muito zangado comigo.

Bo limitou-se a encolher os ombros.

- Não tens outra hipótese, pois não?

Judy não podia correr o risco de que fossem mortas pessoas porque ela tinha medo de confessar o que andava a fazer.

- Não, não tenho outra hipótese - disse.

Tinha vestido calças de ganga pretas, justas, e uma T-shirt rosa-morango. A T-shirt marcava-lhe de mais o corpo para o escritório, até num sábado. Foi ao quarto e trocou-a por um pólo branco, largo. Depois entrou no Monte Carlo e dirigiu-se para a baixa.

Marvin teria de organizar uma rusga em Los Alamos. Podia haver problemas: os vigilantes eram doidos. A rusga tinha de ter muitos homens e de ser meticulosamente organizada. O FBI tinha pavor de outro Waco. Cada agente no escritório receberia instruções precisas. O gabinete operacional de Sacramento do FBI também estaria envolvido. Provavelmente, atacariam na madrugada do dia seguinte.

Foi directamente para o gabinete de Kincaid. A secretária dele estava na antessala, a trabalhar no computador, com uma indumentária descontraída de calças brancas e uma camisa encarnada. Pegou no telefone e disse:

- A Juddy Maddox está aqui. - Instantes depois desligou e disse para Judy: - Pode entrar.

Judy hesitou à porta do santuário interior. As duas últimas vezes que entrara naquele gabinete, tinha sofrido humilhação e desapontamento. Mas não era supersticiosa. Talvez desta vez Kincaid fosse atencioso e delicado.

Ainda a chocava ver aquela figura balofa na cadeira que pertencera ao delicado e elegante Milton Lestrange. Apercebeu-se de que ainda não tinha ido visitar Milt ao hospital. Tomou nota mentalmente para ir nessa noite ou no dia seguinte.

O cumprimento de Brian foi gélido.

- Que posso fazer por ti, Judy?

- Falei com o Simon Sparrow há pouco - começou ela. - Ele levou-me o relatório porque não sabia que eu tinha sido afastada do caso. Naturalmente, eu disse-lhe para o entregar ao Marvin.

- Naturalmente.

- Mas ele contou-me um pouco do que descobriu, e eu pensei que Os Filhos do Paraíso são um culto e que se sentem de alguma forma ameaçados com a iminência da construção de uma central de energia.

Brian pareceu aborrecido.

- Vou dizer isso ao Marvin - disse, impaciente. Judy insistiu.

- Actualmente, há diversos projectos de centrais de energia na Califórnia; eu verifiquei. E um deles é no vale do rio de Prata, onde existe um grupo de vigilantes de direita chamado Los Alamos. Eu penso que Los Alamos podem ser Os Filhos do Paraíso, Brian. Acho que devíamos fazer-lhes uma rusga.

- É isso que pensas? Oh, porra.

- Há alguma falha na minha lógica? - disse ela num tom gelado.

- Podes crer que há. - Ele levantou-se. - A falha é que não estás na porcaria do caso.

- Eu sei - disse ela. - Mas pensei...

Ele interrompeu-a, esticando o braço por cima da secretária e apontando um dedo acusador para o rosto dela.

- Interceptaste o relatório de psicolinguística e estás a tentar voltar para o caso... e eu sei porquê! Pensas que é um caso importante, e estás a tentar fazer-te notada.

- Por quem? - perguntou ela, indignada.

- Pela sede do FBI, pela imprensa, pelo governador Robson.

- Não estou nada!

- Escuta uma coisa. Estás afastada deste caso. Compreendes-me? A-f-a-s-t-a-d-a, afastada. Não falas com o teu amigo Simon acerca disso. Não procuras planos de centrais energéticas. E não propões rusgas a antros de vigilantes.

- Jesus Cristo!

- Vou dizer-te o que vais fazer. Vais para casa. E deixas este caso com o Marvin e comigo.

- Brian...

- Adeus, Judy. Passa um bom fim-de-semana.

Ela fitou-o. Ele estava vermelho e a respirar com dificuldade. Sentiu-se furiosa mas impotente. Conteve as respostas iradas que lhe vieram aos lábios. Já tinha sido obrigada a pedir desculpa por ofendê-lo, e não precisava dessa humilhação outra vez. Mordeu o lábio. Após um longo momento girou sobre os calcanhares e saiu da sala.

 

Priest estacionou o velho Plymouth 'Cuda na berma da estrada, à luz fraca da alvorada. Pegou na mão de Melanie e levou-a para a floresta. O ar da montanha era frio, e tremeram nas T-shirts até o esforço da subida lhes aquecer os corpos. Ao cabo de alguns minutos emergiram numa falésia de onde se avistava todo o vale do rio de Prata.

- É aqui que eles querem construir a barragem - disse Priest. Neste ponto, o vale estreitava num gargalo, e a extremidade mais afastada não se encontrava a mais de quatrocentos ou quinhentos metros de distância. Ainda estava demasiado escuro para ver o rio, mas no silêncio matinal ouviram-no a correr mais abaixo. À medida que a luz foi aumentando, distinguiram as formas escuras de gruas e máquinas de escavação gigantes no fundo, silenciosas e imóveis, como dinossauros adormecidos.

Priest já tinha perdido quase toda a esperança de que o governador negociasse. Era o segundo dia desde o sismo do vale Owens, e continuava a não haver nenhuma palavra do governador. Priest não estava a perceber a estratégia do homem, mas não era capitulação.

Teria de haver outro sismo.

Ele estava ansioso. Melanie e Star poderiam ficar relutantes, especialmente porque o segundo abalo teria de fazer mais estragos do que o primeiro. Tinha de se certificar do empenho delas. Estava a começar com Melanie.

- Vai criar um lago com dezasseis quilómetros de comprimento, até ao vale - disse-lhe. Viu o rosto pálido e oval dela ficar tenso de raiva. - A montante daqui, tudo o que vês vai ficar debaixo de água.

Para lá do gargalo, havia um vale largo. Quando a paisagem se tornou visível, viram algumas casas espalhadas e alguns campos cuidadosamente cultivados, todos ligados por trilhos de terra. Melanie disse:

- Seguramente, alguém tentou impedir a construção da barragem. Priest assentiu.

- Houve uma grande batalha jurídica. Nós não nos envolvemos. Não acreditamos em tribunais e advogados. E não queríamos repórteres e equipas de televisão a invadir o nosso sítio... muitos de nós temos segredos para guardar. É por isso que nem sequer dizemos às pessoas que somos uma comuna. A maior parte dos nossos vizinhos não sabe que existimos, e os outros pensam que a vinha é organizada a partir de Napa e trabalhada por operários sazonais. por isso não participámos no Protesto. Mas alguns dos residentes mais ricos contrataram advogados' e os grupos ambientais apoiaram os habitantes locais. Não adiantou nada- Porquê?

- O governador Robson apoiou a barragem e colocou o seu testa" -de-ferro, Al Honeymoon, a tratar do caso. - Priest odiava Honeymoon. Ele tinha mentido e enganado e manipulado a imprensa com total desumanidade. - Deturpou as coisas de tal maneira que os órgãos de informação fizeram as pessoas daqui parecerem um bando de tipos egoístas que queriam negar electricidade a todos os hospitais e escolas da Califórnia.

- Como se vocês fossem os culpados por as pessoas em Los Angeles porem luzes subaquáticas nas piscinas e terem motores eléctricos para fechar a cortinas.

- Certo. E assim a Coastal Electric conseguiu autorização Para construir a barragem.

- E todas essas pessoas vão perder as suas casas.

- Para além de um centro hípico? um parque de campismo, diversas cabanas de Verão e um bando de vigilantes doidos conhecidos como Los Alamos. Todos recebem uma indemnização... Excepto nós porque não somos proprietários da nossa terra, temos um contrato de arrendamento anual. Nós não recebemos nada... pela melhor vinha entre Napa e Bordéus.

- E o único sítio onde eu me senti em paz.

Priest soltou um murmúrio de concordância. Era este rumo que queria que a conversa levasse.

- O Dusty teve sempre estas alergias?

- Desde o nascimento. Na verdade, era alérgico ao leite... ao leite de vaca, aos leites em pó e até ao leite do peito. Sobreviveu com leite de cabra. Foi quando eu percebi. A raça humana tem de estar a fazer alguma coisa errada se o mundo está tão poluído que o meu próprio leite é venenoso para o meu bebé.

- Mas levaste-o a médicos.

- O Michael insistiu. Eu sabia que não adiantaria. Deram-nos medicamentos que suprimiram o sistema imunitário para inibir a reacção aos antialérgicos. Que maneira é essa de tratar esta doença? Ele precisava de água pura e ar limpo e de um estilo de vida saudável. Acho que ando à procura de um lugar como este desde que ele nasceu.

- Foi difícil para ti.

- Não fazes ideia. Uma mulher sozinha com um miúdo doente não consegue aguentar-se num emprego, não consegue arranjar um apartamento decente, não consegue viver. Tu pensas que a América é um lugar grande, mas é tudo a mesma porcaria.

- Estavas num caminho mau quando eu te encontrei.

- Ia matar-me, e também ao Dusty. - Vieram-lhe lágrimas aos olhos.

- E depois encontraste este sítio. O rosto dela ensombrou-se de raiva.

- E agora querem tirá-lo de mim.

- No FBI dizem que nós não provocámos o sismo, e o governador não disse nada.

- Para o diabo com eles, temos de o fazer de novo! Só que desta vez precisamos de ter a certeza de que eles não podem ignorá-lo.

Era o que ele queria que ela dissesse.

- Teria de causar verdadeiros estragos, de fazer ruir alguns edifícios. Algumas pessoas poderiam magoar-se.

- Mas não temos outra opção!

- Podíamos abandonar o vale, desfazer a comuna, voltar ao antigo estilo de vida: empregos regulares, dinheiro, ar envenenado, ganância, ciúme e ódio.

Tinha-a assustado.

- Não! - exclamou ela. - Não digas isso!

- Deves ter razão. Não podemos voltar atrás agora.

- Eu não posso.

Ele olhou uma vez mais para o vale.

- Vamos fazer tudo para que permaneça da forma que Deus o fez. Ela fechou os olhos, aliviada, e disse:

- Ámen.

Ele pegou-lhe na mão e conduziu-a através das árvores, de volta para o carro.

Enquanto conduzia pela estrada estreita que subia desde o vale, Priest disse:

- Vais buscar o Dusty a São Francisco hoje?

- Sim. Vou-me embora a seguir ao pequeno-almoço.

Priest ouviu um barulho estranho por cima do ruído asmático do velho motor V8. Espreitou para cima pela janela lateral e viu um helicóptero.

- Porra - disse, e carregou bruscamente no travão. Melanie foi atirada para a frente.

- Que foi? - disse ela numa voz assustada.

Priest parou o carro e saiu de um salto. O helicóptero estava a desaparecer para norte. Melanie saiu.

- Que é que se passa?

- Que faz aqui um helicóptero?

- Oh, meu Deus - disse ela, trémula. - Achas que anda à nossa procura?

O ruído desvaneceu-se, depois voltou. O helicóptero reapareceu de súbito por cima das árvores, a voar baixo.

- Acho que são os federais - disse Priest. - Diabos! - Depois da conferência de imprensa inconclusiva de ontem, tinha-se sentido seguro durante mais alguns dias. Kincaid e Hayes tinham parecido muito longe de o detectarem. Agora estavam aqui, no vale.

Melanie disse:

- Que vamos fazer?

- Mantém-te calma. Eles não vieram à nossa procura.

- Como é que sabes?

- Certifiquei-me disso.

Ela estava à beira das lágrimas.

- Por que é que estás a falar por enigmas, Priest?

- Desculpa. - Lembrou-se de que precisava dela para o que tinha de fazer. Aquilo significava que tinha de lhe explicar as coisas. Organizou os pensamentos. - Não podem andar à nossa procura porque não sabem nada de nós. A comuna não aparece em nenhum registo governamental... a nossa terra é arrendada pela Star. Não está nos registos da Polícia nem do FBI porque nunca atraímos a atenção deles. Nunca houve um artigo de jornal nem um programa de televisão sobre nós. Não estamos registados no Ministério das Finanças. A nossa vinha não consta de mapa algum.

- Então por que é que eles estão aqui?

- Acho que vieram por causa de Los Alamos. Aqueles doidos devem estar registados em todas as agências da lei nos Estados Unidos continentais. Por amor de Deus, eles estão sempre naquele portão com espingardas potentíssimas, só para que toda a gente saiba que há um bando de lunáticos passados da cabeça por estas bandas.

- Como é que podes ter a certeza de que o FBI anda atrás deles!

- Certifiquei-me disso. Quando a Star telefonou para o programa do John Truth, mandei-a dizer o slogan de Los Alamos: "Não reconhecemos a jurisdição do Governo dos Estados Unidos." Criei uma pista falsa.

- Então estamos em segurança?

- Não completamente. Depois de darem com os burros na água em Los Alamos, os federais podem dar uma olhada aos outros habitantes do vale. Vão ver a vinha do helicóptero e fazer-nos uma visita. Por isso é melhor irmos para casa, para avisar os outros.

Entrou no carro. Logo que Melanie entrou, acelerou a fundo. Mas o carro tinha vinte e cinco anos e não fora concebido para velocidades em estradas sinuosas de montanha. Amaldiçoou os carburadores ruidosos e a suspensão pouco firme.

Enquanto lutava para manter a velocidade na estrada cheia de curvas, interrogou-se, irritado, quem no FBI é que tinha ordenado esta rusga. Não esperava que Kincaid ou Hayes dessem o salto intuitivo necessário. Tinha de haver mais alguém no caso. Perguntou a si mesmo quem seria.

Um carro preto surgiu atrás deles, a grande velocidade, com as luzes do tejadilho a piscar, embora o dia já tivesse nascido. Estavam a aproximar-se de uma curva, mas o condutor buzinou e desviou-se para ultrapassar. Ao passar, Priest viu o condutor e o companheiro, dois homens novos e corpulentos, com roupas informais mas com a barba feita e o cabelo curto.

Imediatamente a seguir, um segundo carro apareceu por detrás, a buzinar e com as luzes a piscar.

- Porra para isto - disse Priest. Quando o FBI estava com pressa, era melhor sair da frente. Travou e encostou. As rodas do 'Cuda deslizaram na relva da berma da estrada. O segundo carro passou com uma parafernália de luzes, e apareceu um terceiro. Priest parou o carro.

Ele e Melanie ficaram sentados e observaram uma torrente de veículos a passar a toda a velocidade. Juntamente com os carros, passaram dois camiões blindados e três mini-autocarros repletos de homens de rostos sombrios e algumas mulheres.

- É uma rusga - disse Melanie, atemorizada.

- Não me lixes - disse Priest, a tensão a torná-lo sarcástico. Ela não pareceu reparar.

Depois, um carro desviou-se do comboio e encostou atrás do 'Cuda. De súbito, Priest teve medo. Olhou para o carro pelo espelho retrovisor. Era um Buick Regai verde-escuro. O condutor estava a falar para um telefone. Havia outro homem no banco do passageiro. Priest não conseguiu ver os rostos deles.

Desejou do fundo do coração não ter ido à conferência de impensa. Um dos tipos no Buick podia ter estado lá ontem. Se assim fosse, iria perguntar o que fazia um advogado de Oakland no vale do rio de Prata. Dificilmente podia ser coincidência. Qualquer agente com meio cérebro poria de imediato Priest no topo da lista de suspeitos.

O último carro do comboio passou com as luzes a piscar. No Buick, o condutor pousou o telefone. A qualquer momento, os agentes sairiam do carro. Freneticamente, Priest procurou lembrar-se de uma história plausível. Fiquei tão interessado neste caso, e recordei-me de um programa de televisão acerca deste grupo de vigilantes e o seu slogan, sobre não reconhecer o Governo, a mesma coisa que a mulher disse no atendedor de chamadas do John Truth, por isso achei que, sabe, podia brincar aos detectives e verificar pessoalmente... Mas eles não iam acreditar Por muito plausível que a história fosse, eles iam interrogá-lo tão meticulosamente que ele não conseguiria enganá-los.

Os dois agentes saíram do carro, Priest observou-os no espelho. Não reconheceu nenhum.

; Descontraiu-se um pouco. Tinha uma película de suor no rosto. Limpou a testa com as costas da mão. Melanie disse:

- Oh, Jesus, que é que eles querem?

- Mantém-te calma - recomendou Priest. - Não fiques com ar de quem quer fugir a sete pés. Vou fingir que estou muito, muito interessado neles. Isso vai fazer com que queiram ver-se livres de nós o mais depressa possível. Psicologia inversa. - Saiu do carro.

- Hei, são da Polícia? - perguntou, entusiasmado. - Passa-se alguma coisa graúda?

O condutor, um homem magro com óculos de aros pretos, disse:

- Somos agentes federais. Verificámos a matrícula, e o seu carro está registado em nome da Empresa de Engarrafamento de Napa.

Paul Beale tinha-se encarregue de fazer o seguro do carro e dos outros documentos.

- É o meu patrão.

- Posso ver a sua carta da condução?

- Oh, claro. - Priest tirou a carta de condução do bolso de trás.

- O helicóptero que vi era vosso?

- Sim, senhor, é nosso. - O agente estudou a carta de condução e devolveu-lha. - E para onde é que vão esta manhã?

- A noite passada estivemos numa festa em Silver City. Acabou bastante tarde. Mas estou sóbrio, não se preocupem!

- Está bem.

- Escutem, eu escrevo uns apontamentos para o jornal local, o Silver City Chronicle. Não se importam de me dizer umas palavras sobre esta rusga? Vai ser a maior notícia no distrito de Sierra desde há muitos anos! - A medida que as palavras lhe saíam da boca, percebeu que era um disfarce arriscado para um homem que não sabia ler nem escrever. Bateu nos bolsos. - Bolas, não tenho um lápis.

- Não podemos dizer nada - afirmou o agente. - Vai ter de telefonar para a pessoa responsável pelas relações com a imprensa do gabinete do FBI em Sacramento.

Ele fingiu desilusão.

- Oh. Oh, claro, compreendo.

- Disse que se dirigiam para casa.

- Sim. Muito bem, acho que vamos andando. Boa sorte com esses vigilantes!

- Obrigado.

Os agentes voltaram para o carro. Não tomaram nota do meu nome.

Priest voltou para o carro. Pelo espelho, observou os agentes quando estes entraram no carro. Nenhum deles pareceu escrever alguma coisa.

- Jesus Cristo - sussurrou agradecido. - Acreditaram na minha história.

Arrancou, e o Buick seguiu-o.

Ao aproximar-se da entrada da propriedade de Los Alamos alguns minutos depois, Priest baixou o vidro da janela, à escuta de tiroteio. Não ouviu coisa alguma. Ao que tudo indicava, o FBI tinha apanhado Los Alamos a dormir.

Fez uma curva e viu dois carros estacionados perto da entrada da propriedade. O portão com cinco barras de madeira que bloqueava o trilho estava esmagado: calculou que o FBI tinha avançado com o camião blindado por ele sem parar. Normalmente, o portão estava guardado... onde estaria a sentinela? Depois viu um homem com calças de camuflado, deitado no chão com o rosto virado para baixo, as mãos algemadas atrás das costas, guardado por quatro agentes. Os federais não queriam correr riscos.

Os agentes olharam atentamente para o 'Cuda, e depois descontraíram quando viram o Buick atrás.

Priest guiou lentamente, como um transeunte curioso.

Atrás dele, o Buick avançou e parou perto do portão destruído.

Logo que deixou de ser visto, Priest pisou o acelerador a fundo.

Quando voltou para a comuna, dirigiu-se para a cabana de Star, para lhe contar sobre o FBI.

Encontrou-a na cama com Bonés.

Tocou-lhe no ombro para a acordar, e depois disse:

- Temos de falar. Espero lá fora.

Ela acenou afirmativamente. Bonés não se mexeu.

Priest saiu enquanto ela se vestia. Não tinha nada a opor ao facto de Star renovar o relacionamento com Bonés, é claro. Priest andava a dormir com Melanie regularmente, e Star tinha o direito de se divertir com um antigo apaixonado. Mas mesmo assim sentiu um misto de curiosidade e apreensão. Juntos na cama seriam ardorosos, com fome um do outro... ou descontraídos e brincalhões? Star pensaria em Priest enquanto estava a fazer amor com Bonés, ou afastava todos os outros amantes do pensamento e pensava apenas naquele com quem se encontrava? Comparava-os na cabeça e reparava que um era mais enérgico, ou mais terno, ou mais habilidoso? Estas questões não eram novas. Recordou-se de ter os mesmos pensamentos sempre que Star tinha um amante. Era exactamente como nos primeiros tempos, só que agora eram muito mais velhos.

Sabia que esta comuna não era como as outras. Paul Beale seguia o destino de outros grupos. Tinham começado todos com ideais semelhantes, mas a maioria tinha-se comprometido. Geralmente continuavam a orar juntos, seguindo um guru ou uma disciplina religiosa de algum tipo, mas tinham regressado à propriedade privada e ao uso de dinheiro e já não praticavam a liberdade sexual completa. Priest achava que eram fracos. Não tinham força de vontade para se manter fiéis aos seus ideais e fazê-los funcionar. Em momentos de auto-satisfação, dizia a si mesmo que era uma questão de liderança.

Star saiu. Tinha vestido calças de ganga e uma camisola de manga comprida azul-clara que caía solta. Para uma pessoa que acabara de se levantar, estava com um aspecto formidável. Priest disse-lho.

- Uma boa foda faz maravilhas à minha compleição - replicou ela. A sua voz tinha um leve tom enervado que fez Priest pensar que Bonés era uma vingança por Melanie. Isto iria ser um factor de deses-tabilização? Já tinha preocupações de sobra.

Afastou aquele pensamento por um momento. Enquanto se dirigiam para a cozinha, contou a Star sobre a rusga do FBI a Los Alamos.

- Eles podem resolver investigar as outras residências do vale, e se isso acontecer o mais provável é que descubram o caminho para cá. Não ficarão desconfiados se não os deixarmos perceber que é uma comuna. Só temos de manter o nosso disfarce habitual. Se formos trabalhadores itinerantes, sem interesse a longo prazo no vale, não há motivo para nos preocuparmos com a barragem.

Ela acenou afirmativamente.

- É melhor dizeres a todos ao pequeno-almoço. Os Comedores de Arroz saberão qual é a nossa preocupação real. Os outros vão pensar que é apenas a nossa política normal de não dizer nada que possa atrair a atenção. E quanto às crianças?

- Eles não vão interrogar os miúdos. São o FBI, não a Gestapo.

- Está bem.

Foram para a cozinha e começaram a fazer o café.

A manhã ia a meio quando dois agentes desceram a encosta aos tropeções, com lama nos sapatos e ervas presas às bainhas das calças. Priest estava a vigiar no celeiro. Se reconhecesse alguém do dia anterior, tinha planeado esgueirar-se por entre as cabanas e desaparecer nos bosques, mas nunca tinha visto aqueles dois na sua vida. O homem mais novo era alto e largo, com um aspecto nórdico, cabelos loiros e pele clara. O mais velho era um homem asiático com cabelos pretos a rarear no alto da cabeça. Não eram os dois que o tinham interrogado esta manhã, e tinha a certeza de que nenhum deles assistira à conferência de imprensa.

A maior parte dos adultos estava na vinha, a borrifar as videiras com molho picante diluído para impedir que os veados comessem os enxertos novos. As crianças encontravam-se no templo, a receber uma lição de catequese dada por Star, que estava a contar-lhes a história de Moisés nos juncos.

Apesar dos preparativos cuidadosos que fizera, Priest sentiu uma punhalada do mais puro terror quando os agentes se aproximaram.

Durante vinte e cinco anos aquele lugar fora um santuário secreto. Até à última quinta-feira, quando um polícia viera procurar os pais de Flower, nenhum agente oficial tinha posto ali os pés: nenhum inspector distrital, nenhum carteiro, nem sequer um homem do lixo. E agora ali estava o FBI. Se pudesse ter invocado um raio para matar os agentes, tê-lo-ia feito sem pensar duas vezes.

Respirou fundo, e depois atravessou a encosta para a vinha. Dale cumprimentou os dois agentes, como tinha sido combinado. Priest encheu uma lata com a mistura de pimenta e começou a borrifar, andando em direcção a Dale para poder ouvir a conversa.

O homem asiático falou num tom amistoso.

- Somos agentes do FBI e andamos a fazer algumas perguntas de rotina nas redondezas. O meu nome é Billy Ho, e este é o John Aldritch.

Priest disse a si mesmo que aquilo era encorajador. Ao que tudo indicava não tinham um interesse especial na vinha: andavam apenas a observar, à procura de pistas. Era uma expedição de pesca. Mas aquele pensamento não o fez sentir-se menos tenso.

Olhou em volta, apreciativo, a contemplar o vale.

- Que sítio tão bonito.

Tem calma, Dale... esquece a ironia pesada. Isto não é uma merda de um jogo.

Aldritch, o agente mais jovem, disse com impaciência:

- É o senhor que manda aqui? - Tinha um sotaque sulista.

- Sou o encarregado - respondeu Dale. - Que é que posso fazer pelos senhores?

Ho disse:

- Vocês vivem aqui?

Priest fingiu que continuava a trabalhar, mas o seu coração batia desenfreadamente, e esforçou-se por ouvir.

- A maioria de nós somos trabalhadores sazonais - disse Dale, seguindo o guião combinado com Priest. - A empresa fornece acomodação porque este sítio é longe de tudo.

Aldritch disse:

- É um sítio estranho para uma quinta de fruta.

- Não é uma quinta de fruta, é uma vinha. Gostariam de experimentar um copo da última colheita especial? É realmente muito bom.

- Não, obrigado. A menos que tenha um produto sem álcool.

- Não, lamento. Só o verdadeiro.

- Quem é o proprietário deste lugar?

- A Empresa de Engarrafamento Napa. Aldritch tomou nota.

Olhou de relance para o aglomerado de edifícios no lado mais afastado da vinha.

- Podemos dar uma olhadela? Dale encolheu os ombros.

- Claro, à vontade. - Retomou o trabalho.

Priest observou, ansioso, quando os agentes se afastaram. Superficialmente, era uma história plausível estas pessoas serem trabalhadores mal pagos a viver em acomodações de má qualidade providenciada por uma gerência avarenta. Mas havia indícios que poderiam levar um agente esperto a fazer mais perguntas. O templo era o mais óbvio. Star tinha enrolado a velha bandeira com os Cinco Paradoxos de Baghram. Mesmo assim, alguém com uma mente curiosa poderia perguntar por que é que a sala de aulas era um edifício redondo sem janelas ou mobília.

Para além do mais, havia plantações de marijuana nos bosques das redondezas. Os agentes do FBI não estavam interessados em drogas leves, mas o cultivo não encaixava na ficção de uma população itinerante. A loja de produtos grátis assemelhava-se a qualquer outra loja até se perceber que não havia preços em coisa alguma nem caixa registadora.

Podia haver uma centena de outras formas de o disfarce ser desmascarado com uma investigação rigorosa, mas Priest esperava que o FBI estivesse focado em Los Alamos e apenas a verificar os vizinhos por rotina.

Teve de combater a tentação de seguir os agentes. Estava desesperado por saber o que é que eles iam ver, e ouvir o que diziam um ao outro, enquanto espiolhavam a sua casa. Mas obrigou-se a continuar a borrifar, erguendo os olhos das videiras a cada minuto ou dois para ver onde é que eles iam e o que estavam a fazer.

Entraram na cozinha. Garden e Slow estavam lá, a fazer lasanha para a refeição do meio-dia. Que estavam os agentes a dizer-lhes? Estaria Garden a tagarelar nervosamente e a denunciar-se? Slow teria esquecido as instruções e começado a relatar, entusiasmado, como decorria a meditação diária?

Os agentes emergiram da cozinha. Priest olhou para eles com atenção, a tentar adivinhar o que lhes ia no pensamento; mas eles estavam longe de mais para ler os seus rostos, e a linguagem corporal não revelou nada.

Começaram a deambular em volta das cabanas, a espreitar para o interior. Priest não podia adivinhar se alguma coisa que viam os deixaria desconfiados de que aquilo podia ser mais do que uma exploração vinícola.

Verificaram a prensa das uvas, os celeiros onde o vinho estava a fermentar, e os barris da última colheita especial à espera de serem engarrafados. Teriam notado que nada tinha energia eléctrica?

Abriram a porta do templo. Falariam com as crianças, ao contrário da previsão de Priest? Star perderia a calma e chamar-lhes-ia porcos fascistas? Priest susteve a respiração.

Os agentes fecharam a porta sem entrar.

Falaram com Oaktree, que estava a cortar aduelas para barris no pátio. Ele levantou os olhos para eles e respondeu sucintamente sem interromper o trabalho. Talvez pensasse que pareceria suspeito se fosse amistoso.

Cruzaram-se com Aneth, que estava a pendurar fraldas no estendal. Ela recusava-se a usar fraldas descartáveis. Provavelmente estava a explicar isso mesmo aos agentes, dizendo, "Não há árvores suficientes no mundo para que todas as crianças possam ter fraldas descartáveis".

Caminharam até ao rio e observaram as pedras no regato baixo, parecendo contemplar a ideia de atravessar. As plantações de marijuana situavam-se todas no canto mais afastado. Mas aparentemente os agentes não queriam molhar os pés, pois viraram-se e voltaram para trás.

Por fim, regressaram à vinha. Priest tentou estudar os rostos deles sem os olhar fixamente. Estariam convencidos, ou tinham visto alguma coisa que os deixara desconfiados? Aldritch parecia hostil, Ho amistoso, mas podia ser tudo encenado.

Aldritch falou para Dale:

- Vocês têm algumas destas cabanas bastante giras para acomodações temporárias, não têm?

Priest gelou. Era uma pergunta céptica, sugerindo que Aldritch não tinha engolido a história deles. Priest começou a perguntar a si mesmo se haveria alguma forma de poder matar os dois homens do FBI e safar-se.

- Sim - disse Dale. - Alguns de nós voltam ano após ano. - Estava a improvisar: nada disto tinha sido combinado. - E uns quantos vivemos aqui o ano inteiro. - Dale não era um mentiroso experiente. Se aquilo demorasse muito, ia meter os pés pelas mãos.

Aldritch disse:

- Quero uma lista de toda a gente que vive e trabalha aqui.

A mente de Priest trabalhou velozmente. Dale não podia usar os nomes comunais das pessoas, pois isso desvendaria o jogo - e de qualquer maneira os agentes insistiriam nos nomes verdadeiros. Mas alguns dos elementos da comuna tinham cadastros na polícia, incluindo o próprio Priest. Dale pensaria suficientemente depressa para se aperceber de que tinha de inventar nomes para todos? Teria sangue-frio para o fazer?

Ho acrescentou:

- Também precisamos de idades e moradas permanentes. - O seu tom era apologético.

Merda! Isto está a piorar. Dale disse:

- Podem obter essas informações nos arquivos da empresa. Não, não podem.

Ho disse:

- Lamento, mas precisamos delas agora. Dale pareceu atrapalhado.

- Ena pá, acho que vão ter de perguntar a todos eles. Claro que eu não sei a data de nascimento de todos. Sou o chefe deles, não o avô.

Priest pensou rapidamente. Isto era perigoso. Não podia permitir que os agentes interrogassem toda a gente. Eles iam entregar-se uma dúzia de vezes.

Tomou uma decisão arrojada e avançou.

- Senhor Arnold? - disse, inventando um apelido para Dale naquele momento. - Talvez eu possa ajudar estes senhores. - Sem planear, tinha adoptado a figura de um tipo amigável, ansioso para ajudar mas não muito inteligente. Dirigiu-se aos agentes: - Venho para aqui há alguns anos, acho que conheço toda a gente, e sei a idade que têm.

Dale pareceu aliviado por passar a responsabilidade para Priest.

- Muito bem - disse ele.

- Não querem vir para a cozinha? - disse Priest para os agentes. - Não bebem vinho, mas aposto que gostariam de uma chávena de café.

Ho sorriu e disse:

- Ia ser muito bom.

Priest conduziu-os pelas fileiras de vinhas e levou-os para a cozinha.

- Temos de tratar de alguma papelada - explicou a Garden e Slow. - Não reparem em nós, e continuem a fazer essa massa que está com um cheiro bestial.

Ho ofereceu o bloco de notas a Priest.

- E se escrevesse os nomes, idades e moradas aqui?

Priest não aceitou o bloco.

- Oh, a minha letra é a pior do mundo - disse ele, descontraído. - Sentem-se e escrevam os nomes enquanto eu vos faço café. - Pôs uma cafeteira com água no lume, e os agentes sentaram-se à comprida mesa de pinho.

- O encarregado é o Dale Arnold, e tem quarenta e dois anos. - Estes tipos nunca conseguiriam verificar. Ninguém aqui constava da lista telefónica nem de qualquer outro registo.

- Morada permanente?

- Ele vive aqui. Todos vivem.

- Pensei que eram trabalhadores sazonais.

- Correcto. A maior parte deles vai-se embora, no próximo mês de Novembro, quando a vindima estiver acabada e as uvas já estiverem pisadas; mas não são o género de pessoas que mantêm duas casas. Porquê pagar renda num lugar quando se vive noutro?

- Então a morada permanente de todas as pessoas que se encontram aqui seria...?

- Exploração Vinícola do Vale do Rio de Prata, Silver City, Califórnia. Mas a correspondência é enviada para a empresa em Napa. É mais seguro.

Aldritch parecia irritado e ligeiramente estupefacto, como Priest pretendia. Pessoas rabugentas não tinham paciência para aprofundar pequenas inconsistências.

Serviu-lhes café enquanto inventava uma lista de nomes. Para o ajudar a lembrar-se de quem era quem, usou variações dos nomes comunais: Dale Arnold, Peggy Star, Richard Priestley, Holly Goodman. Excluiu Melanie e Dusty porque não se encontravam ali... Dusty estava em casa do pai, e Melanie fora buscá-lo.

Aldritch interrompeu-o.

- Na minha experiência, a maioria dos trabalhadores agrícolas sazonais neste estado são mexicanos, ou pelo menos hispânicos.

- Sim, e este bando é tudo menos isto - concordou Priest. - A empresa tem algumas vinhas, e acho que os patrões mantêm os hispânicos todos juntos em bandos, com encarregados que falam espanhol, e põem todas as outras pessoas no nosso grupo. Não é racismo, percebe, é apenas prático.

Eles pareceram aceitar isso.

Priest continuou lentamente, a arrastar a conversa o mais possível. Os agentes não fariam mal nenhum na cozinha. Se se aborrecessem e ficassem impacientes para se irem embora, tanto melhor.

Enquanto ele falava, Garden e Slow continuaram a cozinhar. Garden estava calada e muito séria, e de certa forma conseguiu mexer as panelas de uma maneira altiva. Slow estava enervado e não parava de lançar olhares aterrorizados para os agentes, mas eles não pareceram importar-se. Talvez estivessem acostumados a que as pessoas tivessem medo deles. Talvez gostassem.

Priest levou quinze ou vinte minutos para lhes dar os nomes e as idades dos vinte e seis adultos da comuna. Ho estava a fechar o bloco de apontamentos quando Priest disse:

- Agora, as crianças. Deixe-me pensar. Meu Deus, eles crescem tão depressa, não crescem?

Aldritch soltou um resmungo de exasperação.

- Acho que não precisamos dos nomes das crianças - disse ele.

- Está bem - disse Priest descontraidamente. - Querem mais café, amigos?

- Não, obrigado. - Aldritch olhou para Ho. - Acho que terminámos aqui.

Ho disse:

- Então esta terra pertence à Empresa de Engarrafamento de Napa?

Priest viu uma forma de remediar o deslize que Dale tivera anteriormente.

- Não, isso não corresponde exactamente à verdade - disse ele.

- A empresa opera a exploração vinícola, mas creio que a terra pertence ao Governo.

- Então o arrendamento deve estar em nome da empresa.

Priest hesitou. Ho, o amistoso, estava a fazer as perguntas verdadeiramente perigosas. Mas como deveria responder? Era demasiado arriscado mentir. Eles podiam verificar em segundos. Relutantemente, disse:

- Por acaso, penso que o nome no contrato de arrendamento pode ser Stella Higgins. - Detestava dar o nome verdadeiro de Star ao FBI.

- Foi a mulher que iniciou a vinha, há muitos anos. - Esperou que não lhes servisse de nada. Não via como é que lhes daria alguma pista.

Ele escreveu o nome.

- Acho que é tudo - disse ele. Priest escondeu o alívio.

- Bem, boa sorte para o resto das investigações - disse ele enquanto os acompanhava.

Levou-os pela vinha. Eles pararam para agradecer a Dale pela sua colaboração.

- Afinal de contas, de quem é que vocês andam atrás? - perguntou Dale.

- De um grupo terrorista que anda a tentar chantagear o governador da Califórnia - disse-lhe Ho.

- Bem, espero que os apanhem - disse Dale com sinceridade. Não, não esperas.

Por fim, os dois agentes afastaram-se pelo campo, a tropeçar ocasionalmente no solo incerto, e desapareceram no meio das árvores.

- Bom, parece que correu tudo bastante bem - disse Dale para Priest, satisfeito consigo próprio.

Deus Todo-Poderoso, se tu soubesses.

 

No domingo à tarde, Judy e Bo foram ver o filme de Clint Eastwood no Cinema Alexandria, na esquina da Geary com a Dezoito. Para sua surpresa, esqueceu os sismos durante algumas horas e divertiu-se. Depois foram comer uma sanduíche e beber uma cerveja numa das espeluncas de Bo, um pub de polícias com um televisor em cima do balcão e um cartaz à porta a dizer "Enganamos os turistas".

Bo terminou o hambúrguer com queijo e bebeu um gole de Guinness.

- O Clint Eastwood devia ser o actor principal na história da minha vida - disse ele.

- Vá lá - disse Judy. - Todos os detectives do mundo pensam o mesmo.

- Sim, mas eu até me pareço com o Clint.

Judy sorriu. Bo tinha o rosto redondo e um nariz achatado. Ela disse:

- Gosto do Mickey Rooney para o papel.

- Acho que as pessoas deviam poder divorciar-se dos filhos - disse Bo, mas estava a rir.

Começou o noticiário na televisão. Quando viu a reportagem da rusga em Los Alamos, Judy sorriu tristemente. Brian Kincaid tinha gritado com ela por interferir - e depois adoptara o seu plano.

Porém, não houve uma entrevista triunfal com Brian. Viu-se a imagem de um portão de cinco barras esmagado, um cartaz onde se lia "Não reconhecemos a jurisdição do Governo dos Estados Unidos", e uma equipa de intervenção com os seus blusões negros a regressar do local. Bo disse:

- Parece-me que não encontraram nada. Aquilo intrigou Judy.

- Estou surpreendida - disse ela. - A seita de Los Alamos parecia um suspeito realmente bom. - Estava desiludida. Aparentemente, o seu instinto enganara-a redondamente.

O apresentador estava a dizer que não tinham sido efectuadas quaisquer prisões.

- Nem sequer dizem que encontraram provas - disse Bo. - Qual será a história?

- Se já terminaste aqui, podemos ir descobrir - disse Judy. Saíram do bar e entraram no carro de Judy. Ela pegou no telefone do carro e marcou o número da casa de Simon Sparrow.

- Que é que soubeste acerca da rusga? - perguntou-lhe.

- Metemos água.

- Foi o que pensei.

- Não há computadores no local, por isso é difícil imaginar que pudessem deixar uma mensagem na Internet. Ninguém ali tem sequer um curso universitário, e tenho dúvidas de que saibam soletrar sismólogo. Há quatro mulheres no grupo, mas nenhuma delas corresponde aos nossos dois perfis femininos... estas raparigas estão no princípio da casa dos vinte. E os vigilantes não têm nada contra a barragem. Ficaram satisfeitos com a indemnização que vão receber da Coastal Electric pela terra, e estão desejosos por se mudarem para o novo local. Oh... e na sexta-feira, às duas e vinte da tarde, seis dos sete homens estavam numa loja chamada Armas Desportivas Frank's, em Silver City, a comprar munições.

Judy abanou a cabeça.

- Bem, afinal de contas, quem é que teve a ideia cretina de lhes fazer uma rusga.

Tinha sido sua, claro. Simon disse:

- Esta manhã, na reunião, o Marvin disse que tinha sido dele.

- É bem feito ter metido a pata na poça. - Judy franziu o sobrolho. - Não estou a perceber. Parecia uma pista tão boa.

- O Brian tem outra reunião com o senhor Honeymoon em Sacramento amanhã à tarde. Parece que vai de mãos vazias.

- O senhor Honeymoon não vai gostar.

- Ouvi dizer que ele não é um tipo nada acessível.

Judy sorriu sombriamente. Não gostava nada de Kincaid, mas não sentia prazer com o fracasso da rusga. Significava que Os Filhos do Paraíso ainda estavam algures, a planear outro sismo.

- Obrigado, Simon. Até amanhã.

Logo que desligou, o telefone tocou. Era o telefonista do gabinete.

- Um professor Quercus telefonou com uma mensagem que disse ser importante. Tem uma notícia importante para si.

Judy pensou telefonar a Marvin e passar-lhe a mensagem. Mas estava demasiado curiosa para saber o que Michael tinha para dizer. Marcou o número da casa dele.

Quando ele atendeu, ouviu a música de uns desenhos animados de televisão ao longe. Calculou que Dusty ainda estava lá.

- Fala Judy Maddox - disse.

- Olá, como está?

Ela ergueu as sobrancelhas. Um fim-de-semana com Dusty tinha-o amolecido.

- Bem, obrigada, mas fui afastada do caso - disse ela.

- Eu sei. Tenho estado a tentar falar com o tipo que ficou no seu lugar, um homem com nome de cantor de música soul...

- Marvin Hayes.

- Certo. É como Dançar na Vinha, de Marvin Hayes e os Haystacks. Judy riu-se.

Michael disse:

- Mas ele não responde aos meus telefonemas, por isso tenho de me contentar consigo.

Aquilo era mais parecido com Michael.

- Muito bem, que é que tem?

- Pode vir cá a casa? Preciso mesmo de lhe mostrar.

Ela deu por si feliz, até um pouco excitada, ao pensar que ia vê-lo mais uma vez.

- Tem mais Cap 'n Crunchl - Acho que ainda há um pouco.

- Está bem, estou aí dentro de quinze ou vinte minutos. - Desligou. - Tenho de ir falar com o meu sismólogo - disse para Bo. - Deixo-te na paragem do autocarro?

- Não posso andar num autocarro como o Jim Rockford. Sou um detective de São Francisco!

- Então? És um ser humano.

- Sim, mas os tipos da rua não sabem isso.

- Eles não sabem que tu és humano?

- Para eles, sou um semideus.

Estava a brincar, mas Judy sabia que havia alguma verdade naquilo. Ele prendia bandidos naquela cidade há quase trinta anos. Cada miúdo numa esquina com doses de crack nos bolsos do blusão tinha medo de Bo Maddox.

- Então queres ir a Berkeley comigo?

- Claro, por que não? Estou curioso para conhecer o teu bonito sismólogo.

Ela fez uma curva em U e dirigiu-se para a Ponte Bay.

- Que é que te leva a pensar que ele é bonito? Ele sorriu.

- A forma como falaste com ele - disse ele presunçosamente.

- Não devias usar psicologia de chui com a tua própria família.

- Chui, uma ova. Tu és minha filha, consigo ler a tua mente.

- Bem, tens razão. Ele é uma brasa. Mas não gosto muito dele.

- Ah não? - Bo pareceu céptico.

- Ele é arrogante e difícil. É melhor quando tem o filho por perto, fica mais mole.

- É casado?

- Separado.

- Separado é casado.

Judy sentiu que Bo perdia o interesse em Michael. Foi como se a temperatura tivesse descido. Riu para si mesma. Ele continuava ansioso por casá-la, mas tinha escrúpulos antiquados.

Chegaram a Berkeley e percorreram a Avenida Euclid. Havia um Subaru cor de laranja estacionado no espaço onde Judy costumava parar, debaixo da magnólia. Encontrou outro lugar.

Quando Michael abriu a porta do apartamento, Judy achou que ele parecia tenso.

- Olá, Michael - disse ela. - Este é o meu pai, Bo Maddox.

- Entre - disse Michael abruptamente.

A disposição dele parecia ter mudado no curto período de tempo que ela levara a chegar ali. Quando entraram na sala de estar, Judy compreendeu porquê.

Dusty estava no sofá, com um aspecto terrível. Tinha os olhos vermelhos e lacrimejantes, e as órbitas pareciam inchadas. O nariz pingava e respirava ruidosamente. Estava a dar um desenho animado na televisão, mas ele quase não prestava atenção.

Judy ajoelhou-se ao lado dele e tocou-lhe nos cabelos.

- Pobre Dusty! - disse ela. - Que aconteceu?

- Ele tem crises de alergia - explicou Michael.

- Chamou um médico?

- Não é preciso. Dei-lhe o medicamento de que ele precisa para suprimir a reacção.

- Que tempo é que demora a fazer efeito?

- Já está a fazer efeito. O pior já passou. Mas pode ficar assim durante dias.

- Gostava de poder fazer alguma coisa por ti, homenzinho - disse Judy para Dusty.

Uma voz feminina disse:

- Eu tomo conta dele, obrigada.

Judy levantou-se e voltou-se. A mulher que acabara de entrar parecia saída da passerelle de um costureiro. Tinha um rosto pálido, oval, e cabelos lisos, ruivos que lhe caíam abaixo dos ombros. Embora fosse alta e magra, tinha um busto generoso e as ancas curvas. As pernas longas estavam envoltas numas calças de ganga justas e usava um bonito top verde-limão com decote em V.

Até agora, Judy tinha achado que estava bem vestida com calções caqui, sapatos castanhos que mostravam os tornozelos bonitos, e um pólo branco que resplandecia contra a sua pele cor de café com leite. Agora sentiu-se deselegante, de meia-idade e fora de prazo quando comparada com aquela visão de chie de rua. E Michael podia reparar que, comparada com ela, Judy tinha um rabo grande e mamas pequenas.

- Esta é a Melanie, a mãe do Dusty... Melanie, apresento-te a minha amiga Judy Maddox.

Melanie acenou levemente. Então é a mulher dele.

Michael não tinha mencionado o FBI. Quereria que Melanie pensasse que Judy era uma namorada?

- Este é o meu pai, Bo Maddox - disse Judy.

Melanie não se deu ao trabalho de fazer conversa de circunstância.

- Eu estava de saída - disse ela. Trazia uma pequena mochila com um desenho do Pato Donald de lado, obviamente de Dusty.

Judy sentiu-se rebaixada pela alta e elegante mulher de Michael. Aquela reacção aborreceu-a. Por que é que me preocupo? Melanie olhou em volta do aposento e perguntou:

- Michael, onde é que está o coelho?

- Aqui. - Michael pegou num brinquedo mole e sujo que estava em cima da secretária e deu-lho.

Ela olhou para a criança no sofá.

- Isto nunca acontece nas montanhas - disse com frieza. Michael parecia angustiado.

- Que é que vou fazer, deixar de vê-lo?

- Vamos ter de nos encontrar algures fora da cidade.

- Eu quero que ele fique comigo. Não será a mesma coisa se não dormir cá.

- Se não dormir cá, não fica assim.

- Eu sei, eu sei.

O coração de Judy condoeu-se por Michael. Ele estava obviamente perturbado, e a mulher era extremamente fria.

Melanie enfiou o coelho na mochila do Pato Donald e fechou o fecho.

- Temos de ir.

- Eu levo-o até ao teu carro. - Michael tirou Dusty do sofá. - Vá lá, campeão, vamos embora.

Depois de saírem, Bo olhou para Judy e disse:

- Uau. Famílias infelizes.

Ela acenou afirmativamente. Mas gostava mais de Michael do que antes. Queria abraçá-lo e dizer, Estás a fazer o teu melhor, ninguém pode fazer mais.

- Mas é o teu tipo - disse Bo.

- Eu tenho um tipo?

- Gostas de um desafio.

- É por ter crescido com um.

- Eu? - Ele fingiu que ficava ofendido. - Estraguei-te com mimos.

Ela beliscou-lhe a face.

- Estragaste mesmo.

Michael voltou, e o seu semblante estava sombrio e preocupado. Não ofereceu a Judy e Bo uma bebida ou uma chávena de café, e tinha-se esquecido completamente do Cap'n Crunch. Sentou-se ao computador.

- Olhem para isto - disse, sem preâmbulo.

Judy e Bo puseram-se atrás dele e espreitaram por cima do seu ombro.

Ele colocou um mapa no ecrã.

- Aqui está o sismograma do abalo do vale Owens, com as misteriosas vibrações preliminares que não consegui compreender... lembra-se?

- Claro que lembro - disse Judy.

- Aqui está um sismo típico com a mesma magnitude, aproximadamente. Este tem choques prévios normais. Vê a diferença?

- Sim. - Os choques prévios normais eram desiguais e esporádicos, ao passo que as vibrações do vale Owens seguiam um padrão demasiado regular para ser natural.

- Agora olhe para isto. - Colocou um terceiro mapa no ecrã. Mostrava um padrão de vibrações iguais, como o mapa do vale Owens.

- Que é que fez aquelas vibrações? - perguntou Judy.

- Um vibrador sísmico - anunciou Michael, triunfante. Bo disse:

- Que diabo é isso?

Judy quase disse, Não sei, mas acho que quero um. Disfarçou um sorriso.

Michael disse:

- É uma máquina usada pela indústria petrolífera para explorações subterrâneas. Basicamente, é um martelo pneumático gigante montado num camião. Envia vibrações pela crosta terrestre.

- E aquelas vibrações desencadearam o sismo?

- Não me parece que possa ser coincidência. Judy assentiu solenemente.

- Então é isso. É verdade que eles podem causar sismos. - Sentiu um arrepio gelado quando assimilou a notícia.

Bo disse:

- Jesus, espero que não venham para São Francisco.

- Ou Berkeley - disse Michael. - Sabe, embora lhe tenha dito que era possível, nunca acreditei verdadeiramente, no fundo do coração, até agora.

Judy disse:

- O abalo do vale Owens foi bastante pequeno. Michael abanou a cabeça.

- Não podemos tranquilizar-nos com isso. O tamanho do sismo não tem relação com a força da vibração utilizada para o provocar. Depende da pressão da falha. O vibrador sísmico poderia desencadear qualquer coisa desde um tremor quase imperceptível até outro Loma Prieta.

Judy recordou-se do sismo de Loma Prieta em 1989 tão vividamente como se fosse o pesadelo da noite anterior.

- Porra - disse ela. - Que é que vamos fazer? Bo disse:

- Estás fora do caso.

Michael franziu o sobrolho, intrigado.

- Você disse-me isso - disse ele para Judy. - Mas não disse porquê.

- Política de gabinete - replicou Judy. - Temos um chefe novo que não gosta de mim, e passou o caso para uma pessoa que prefere.

- Não acredito nisto! - exclamou Michael. - Um grupo terrorista está a provocar sismos e o FBI tem uma briga familiar para ver quem vai atrás deles!

- Que é que posso dizer-lhe? Os cientistas deixam que as querelas pessoais interfiram na forma como procuram a verdade?

Michael abriu um dos seus sorrisos inesperados.

- Pode apostar que sim. Mas escute, seguramente pode passar esta informação ao Marvin Não-sei-quanto.

- Quando falei ao meu chefe sobre Los Alamos, ele ordenou-me que não voltasse a interferir.

- Isto é incrível! - disse Michael, e estava a ficar zangado. - Você não pode ignorar o que acabei de lhe dizer!

- Não se preocupe, não vou fazer isso - disse Judy, frontalmente. - Vamos manter-nos calmos e pensar um pouco. Qual é a primeira coisa que precisamos de fazer com esta informação? Se descobrirmos de onde veio o vibrador sísmico, podemos ter uma pista que nos leve a Os Filhos do Paraíso.

- Certo - disse Bo. - Ou o compraram, ou, mais provavelmente, roubaram-no.

Judy perguntou a Michael:

- Quantas máquinas destas é que existem no continente dos Estados Unidos? Cem? Mil?

- Por aí - respondeu ele.

- De qualquer maneira, não são muitos. Nesse caso, as pessoas que os fabricam devem ter um registo de todas as vendas. Eu podia descobrir quem são esta noite, pedir-lhes que fizessem uma lista. E se o camião foi roubado, pode estar listado no Centro de Informação Nacional de Crimes. - O CINC, organizado pela sede do FBI em Washington, podia ser acedido por qualquer agência da lei. Bo disse:

- O CINC só é bom se a informação que é introduzida for boa. Não temos uma matrícula do veículo, e não há maneira de saber como pode estar categorizado no computador. Eu podia pedir ao DP de São Francisco para emitir uma pergunta multiestadual no Computador STL. - O STL era o Sistema de Telecomunicações da Lei. - E podia fazer com que os jornais publicassem uma fotografia de um desses camiões, para pôr elementos do público à procura dele.

- Espera um minuto - disse Judy. - Se fizeres isso, o Kincaid vai saber que estou por detrás de tudo.

Michael rolou os olhos numa expressão de desespero.

Bo disse:

- Não necessariamente. Eu não direi aos jornais que está relacionado com Os Filhos do Paraíso. Só digo que andamos à procura de um vibrador sísmico. É um roubo automóvel invulgar, eles vão gostar da história.

- Bestial - disse Judy. - Michael, posso ficar com uma cópia desses gráficos?

- Claro. - Carregou numa tecla e a impressora começou a trabalhar.

Judy pousou uma mão no ombro dele. A pele estava quente por baixo do algodão da camisa.

- Espero que o Dusty esteja melhor - disse. Ele tapou a mão dela com a sua.

- Obrigado. - O toque dele era leve, a palma da mão seca. Ela sentiu um arrepio de prazer. Depois, ele retirou a mão e disse: - Uh, talvez fosse melhor dar-me o número do seu pager, para poder contactá-la mais depressa, se for preciso.

Ela tirou um cartão profissional. Pensou alguns momentos e acrescentou o número de casa antes de lho dar. Michael disse:

- Depois de vocês os dois terem feito esses telefonemas... - Hesitou. - Gostariam de se encontrar comigo para tomar uma bebida, ou talvez para jantar? Gostava muito de saber como é que as coisas estão a correr.

- Eu não - disse Bo. - Tenho um jogo de bowling.

- E você, Judy?

Está a convidar-me para sair?

- Estava a pensar ir ver uma pessoa ao hospital - disse ela. Michael ficou desanimado.

Judy apercebeu-se de que não havia coisa que mais lhe apetecesse esta noite do que jantar com Michael Quercus.

- Mas acho que não me vai ocupar a noite inteira - disse ela. - É claro que aceito.

Só tinha passado uma semana desde que o cancro de Milton Les-trange fora diagnosticado, mas ele já parecia mais magro e mais velho. Talvez fosse o efeito do ambiente do hospital: os instrumentos, a cama, os lençóis brancos. Ou talvez fosse o pijama azul-bebé que revelava um triângulo de peito pálido abaixo do pescoço. Ele tinha perdido todos os símbolos de poder: a secretária grande, a caneta de tinta permanente Mont Blanc, a gravata de seda às riscas. Judy ficou chocada ao vê-lo assim.

- Céus, Milt, não está com muito bom aspecto - disse. Ele sorriu.

- Eu sabia que não me mentirias, Judy. Ela sentiu-se embaraçada.

- Desculpe, saiu-me.

- Não cores. Tens razão. Estou em mau estado.

- Que é que eles estão a fazer?

- Vão operar esta semana, ainda não disseram em que dia. Mas é apenas para desimpedir a obstrução nos intestinos. A perspectiva é pobre.

- Que é que quer dizer com pobre?

- Noventa por cento dos casos são fatais. Judy engoliu em seco.

- Jesus, Milt.

- Talvez tenha um ano de vida.

- Não sei o que dizer.

Ele não continuou a falar sobre o prognóstico sombrio.

- A Sandy, a minha primeira mulher, veio ver-me ontem. Disse-me que tu lhe tinhas telefonado.

- Sim. Não fazia ideia se ela te queria ver, mas achei que pelo menos gostaria de saber que estavas no hospital.

Ele pegou na mão de Judy e apertou-a.

- Obrigado. Não há muitas pessoas que tivessem pensado nisso. Não sei como é que te tornaste tão sábia, tão jovem.

- Ainda bem que ela veio. Milt mudou de assunto.

- Faz-me esquecer os meus problemas, fala-me sobre o escritório.

- Não devia estar a preocupar-se...

- Raios, não vou preocupar-me. O trabalho não é muito importante quando estamos a morrer. Estou apenas curioso.

- Bem, ganhei o meu caso. Provavelmente, os irmãos Foong vão passar a maior parte da próxima década na cadeia.

- Bom trabalho!

- O Milt teve sempre fé em mim.

- Eu sabia que eras capaz.

- Mas o Brian Kincaid recomendou o Marvin Hayes para novo supervisor.

- O Marvin? Porra! O Brian sabe que tu é que ias ficar com aquele cargo.

- Eu sei.

- O Marvin é um tipo duro, mas negligente. Não segue as regras.

- Estou confundida - disse Judy. - Por que é que o Brian o tem em tão grande conta? Que é que há entre aqueles dois... são amantes ou coisa desse género?

Milt riu-se.

- Não, não são amantes. Mas uma vez, há muitos anos, o Marvin salvou a vida do Brian.

- A sério?

- Foi num tiroteio. Eu estava lá. Emboscámos um barco que estava a descarregar heroína na Praia de Sonoma, no distrito de Marin. Foi no começo de uma manhã de Fevereiro, e o mar estava tão frio que doía. Não havia molhe, por isso os mauzões estavam a empilhar quilos de "cavalo" num bote de borracha para os trazer para terra. Deixámo-los pôr toda a carga em terra, e depois avançámos. - Milt suspirou, e nos seus olhos estampou-se uma expressão longínqua. Judy pensou que ele poderia não voltar a ver outra emboscada ao amanhecer.

Instantes depois, ele continuou.

- O Brian cometeu um erro... deixou um deles aproximar-se de mais. Esse pequeno italiano agarrou-o e apontou-lhe uma arma à cabeça. Nós tínhamos todos as armas em punho, mas se alvejássemos o italiano ele teria provavelmente puxado o gatilho antes de morrer. O Brian estava verdadeiramente assustado. - Milt baixou a voz. - Mijou-se nas calças, nós vimos a mancha nas calças do fato. Mas o Marvin foi tão frio como o próprio diabo. Começa a andar na direcção de Brian e do italiano. "Mata-me a mim em vez dele", diz. "Não faz diferença nenhuma." Nunca vi nada assim. O italiano caiu na armadilha. Girou a arma para apontar para o Marvin. Naquela fracção de segundo, cinco dos nossos mataram o tipo.

Judy acenou afirmativamente. Mas não pensou que fora uma bravata para mostrar que era macho. Os agentes do FBI não se envolviam em tiroteios com muita frequência. Nunca esqueciam a experiência. Percebia que Kincaid se tivesse sentido muito próximo de Marvin Hayes depois disso.

- Bem, isso explica os problemas que tenho tido - disse ela. - O Brian deu-me um caso de treta, e depois, quando se revelou importante, tirou-mo e deu-o ao Marvin.

Milt suspirou.

- Acho que podia intervir. Tecnicamente, ainda sou AEC. Mas o Kincaid é um político de gabinete experiente, e sabe que nunca mais vou voltar. Far-me-ia frente. E não sei se tenho energia para uma guerra.

Judy abanou a cabeça.

- Eu não quereria que o fizesse. Posso resolver isto.

- Qual foi a missão que ele deu ao Marvin?

- Os Filhos do Paraíso, as pessoas que conseguem provocar sismos.

- As pessoas que dizem poder provocar sismos.

- É o que o Marvin pensa. Mas está enganado. Milt franziu o sobrolho.

- Estás a falar a sério?

- Completamente.

- Que vais fazer?

- Trabalhar no caso atrás das costas do Brian. Milt ficou perturbado.

- Isso é perigoso.

- Sim - replicou Judy. - Mas não tão perigoso como um maldito sismo.

Michael usava um fato azul-marinho sobre uma camisa branca, aberta no colarinho e sem gravata. Judy perguntou a si mesma se ele teria vestido aquele conjunto sem pensar, ou se percebia que o deixava com um aspecto completamente comestível? Ela tinha mudado para um vestido de seda branca com pintas encarnadas. Era adequado para uma noite de Maio, e virava sempre cabeças quando o vestia.

Michael levou-a a um pequeno restaurante na baixa que servia pratos indianos vegetarianos. Ela nunca tinha experimentado comida indiana, por isso deixou-o fazer o pedido. Pousou o telemóvel em cima da mesa.

- Sei que é má educação, mas o Bo prometeu ligar-me se soubesse alguma coisa sobre vibradores sísmicos roubados.

- Por mim, tudo bem - disse Michael. - Telefonou para os fabricantes?

- Sim. Apanhei um director de vendas em casa a ver futebol. Prometeu mandar-me uma lista de compradores amanhã. Tentei que fosse esta noite, mas ele disse que era impossível. - Franziu o sobrolho, aborrecida. Não nos resta muito tempo... só cinco dias. – No entanto, mandou-me uma fotografia por fax. - Tirou da bolsa uma folha de papel dobrada e mostrou-lha. Ele encolheu os ombros.

- Não passa de um grande camião com uma máquina na parte de trás.

- Mas depois de o Bo pôr esta fotografia no STL todos os polícias da Califórnia andarão à procura de um. E se os jornais e a televisão mostrarem a fotografia amanhã, metade da população ficará também de sobreaviso.

A comida chegou. Era mais condimentada do que ela estava acostumada, mas deliciosa. Judy comeu com satisfação. Minutos depois apanhou Michael a contemplá-la com um leve sorriso. Ergueu uma sobrancelha.

- Eu disse alguma coisa engraçada?

- Gosto de ver que aprecia a cozinha. Ela sorriu.

- Nota-se?

- Sim.

- Vou tentar ser mais discreta.

- Por favor, não. É um prazer observá-la. Para além disso...

- O quê?

- Gosto da sua atitude atirada. É uma das coisas que me atrai em si. Parece ter um grande apetite pela vida. Gosta do Dusty, e diverte-se a sair com o seu pai, e orgulha-se do FBI, e obviamente gosta de roupas bonitas... até gosta de Cap'n Crunch.

Judy sentiu-se corar, mas estava contente. Gostou da imagem que ele pintara. Perguntou a si mesma o que é que a atraía nele. A força, decidiu. Ele podia ser exasperantemente teimoso, mas numa crise seria um rochedo. Esta tarde, quando a mulher fora tão impiedosa, a maior parte dos homens teriam discutido, mas ele só se preocupara com Dusty.

Para além do mais, adoraria meter as mãos dentro dos calções dele.

Judith, porta-te bem.

Bebeu um gole de vinho e mudou de assunto.

- Estamos a depreender que Os Filhos do Paraíso têm dados semelhantes aos seus sobre pontos de pressão ao longo da falha de Santo André.

- Devem ter, para escolher os locais onde o vibrador sísmico poderia desencadear um sismo.

- Podia fazer o mesmo exercício? Estudar os dados e calcular qual seria o melhor local?

- Acho que sim. Provavelmente, haverá um aglomerado de cinco ou seis localizações possíveis. - Viu a direcção que os pensamentos dela estavam a tomar. - Depois, suponho que o FBI podia delimitar os locais e ficar atento ao aparecimento de um vibrador sísmico.

- Sim... se fosse eu a mandar.

- De qualquer maneira, vou fazer a lista. Talvez a envie para o governador Robson por fax.

- Não deixe muitas pessoas verem-na. Pode causar pânico.

- Mas se a minha previsão se revelasse certa, o meu negócio ia dar um salto.

- E precisa?

- Claro que sim. Tenho um contrato grande que dá para pagar a renda e a conta do telemóvel da minha ex-mulher. Pedi dinheiro emprestado aos meus pais para iniciar o negócio, e ainda não comecei a pagar-lhes. Estava com esperança de conseguir outro cliente bom, a Mutual American Insurance.

- Eu trabalhei para eles há alguns anos. Mas continue.

- Pensei que o acordo estava no papo, mas eles estão a adiar o contrato. Acho que têm dúvidas. Se recuarem, estou metido em sarilhos. Mas se eu previsse um sismo e tivesse razão, acho que eles assinavam. E depois ficava bem.

- Mesmo assim, espero que seja discreto. Se toda a gente tentar abandonar São Francisco ao mesmo tempo, vamos ter motins.

Ele brindou-a com um sorriso que-se-lixe que era terrivelmente atraente.

- Assustei-a, não assustei? Ela encolheu os ombros.

- Admito. A minha posição no FBI é vulnerável. Se for associada a uma explosão de histeria em massa, acho que não conseguiria sobreviver lá.

- E é importante para si?

- Sim e não. Mais cedo ou mais tarde penso sair e ter filhos. Mas quero sair quando eu quiser, não pela vontade de outros.

- Tem alguém em mente para ter filhos?

- Não. - Olhou-o candidamente. - Um homem bom é difícil de encontrar.

- Imagino que deve haver uma lista de espera.

- Que elogio simpático. - Será que gostarias de te juntar afila? Será que eu queria?

Ele ofereceu-lhe mais vinho.

- Não, obrigada. Gostava de uma chávena de café. Ele fez sinal a um empregado.

- Ser pai pode ser doloroso, mas é uma coisa que nunca lamentamos.

- Fale-me sobre o Dusty. Ele suspirou.

- Não tenho animais de estimação nem flores no apartamento, muito pouco pó por causa dos computadores. Todas as janelas estão bem fechadas, e a casa tem ar condicionado. Mas fomos à livraria, e a caminho de casa ele fez uma festa a um gato. Uma hora depois, estava como o viu.

- Que pena. Pobre criança.

- Recentemente, a mãe mudou-se para um sítio nas montanhas, perto da fronteira do Orégão, e desde então ele tem estado bem... até hoje. Se não pode visitar-me sem ter uma crise, não sei o que vamos fazer. Não posso ir viver na porcaria do Orégão; não há sismos suficientes por lá.

Ele estava tão perturbado que ela esticou a mão por cima da mesa e apertou a dele.

- Vai encontrar uma solução. É óbvio que o ama. Ele sorriu.

- Pois amo.

Beberam o café, e ele pagou. Acompanhou-a ao carro.

- Esta noite passou muito depressa - disse. Acho que o tipo gosta de mim.

Boa.

- Quer ir ao cinema um dia destes? O jogo dos encontros. Nunca muda.

- Gostava, sim.

- Talvez uma noite desta semana?

- Claro.

- Eu telefono-lhe.

- Está bem.

- Posso dar-lhe um beijo de boa-noite?

- Sim. - Ela sorriu. - Sim, por favor.

Ele inclinou a face para a dela. Foi um beijo suave, experimental. Os lábios dele moveram-se suavemente contra os dela, mas não abriu a boca. Ela beijou-o da mesma forma. Sentiu os seios sensíveis. Sem pensar, premiu o corpo contra o dele. Ele apertou-a brevemente, e depois afastou-se.

- Boa noite - disse ele.

Ficou a vê-la entrar no carro e acenou-lhe quando ela se afastou do passeio.

Ela virou uma esquina e parou no semáforo.

- Uau - disse.

Na segunda-feira de manhã, Judy foi colocada numa equipa que estava a investigar um grupo militante muçulmano na Universidade de Stanford. A sua primeira tarefa era fazer uma triagem de registos informáticos sobre licenças de porte de arma, procurar nomes árabes para investigar. Teve dificuldade em concentrar-se num bando relativamente inofensivo de fanáticos religiosos quando sabia que Os Filhos do Paraíso estavam a planear o próximo sismo.

Michael telefonou às nove e cinco.

- Como está, agente Judy?

O som da voz dele fê-la sentir-se feliz.

- Estou bem, muito bem.

- Gostei da nossa saída.

Ela pensou naquele beijo, e os cantos da boca torceram-se num sorriso privado. Aceito um daqueles quando quiseres.

- Eu também.

- Está livre amanhã à noite?

- Acho que sim. - Aquela resposta soou muito fria. - Quero dizer, sim... a menos que aconteça alguma coisa com este caso.

- Conhece o Morton's?

- Claro.

- Encontramo-nos no bar às seis. Depois escolhemos um filme juntos.

- Estarei lá.

Mas aquele foi o único momento bom da manhã. À hora do almoço não conseguiu conter-se mais e telefonou a Bo, mas ele ainda não sabia nada. Telefonou para os fabricantes de vibradores sísmicos, que disseram que a lista estava quase completa e que estaria no fax dela no final do expediente. É uma porcaria de um dia que se perde! Agora só temos quatro dias para apanhar essas pessoas.

Estava preocupada de mais para comer. Foi ao gabinete de Simon Sparrow. Ele vestia uma catita camisa de estilo inglês, azul com riscas cor-de-rosa. Ignorava o código de vestuário não oficial do FBI e saía-se bem, provavelmente por ser tão bom naquilo que fazia.

Ele estava a falar ao telefone e a observar o ecrã de um analisador de ondas ao mesmo tempo.

- Pode parecer uma pergunta estranha, senhora Gorky, mas não se importa de me dizer o que vê da sua janela? - Enquanto escutava a resposta, observou o espectro da voz da senhora Gorky, comparando-o com uma cópia que tinha colada ao lado do monitor. Alguns momentos depois, fez uma linha sobre um nome numa lista. - Obrigado pela sua colaboração. Não preciso de a incomodar mais. Obrigado.

Judy disse:

- Pode parecer uma pergunta estranha, senhor Sparrow, mas por que é que precisa de saber o que a senhora Gorky vê da janela?

- Não preciso - retorquiu Simon. - Esta pergunta origina geralmente uma resposta com o tamanho aproximado que eu preciso para analisar a voz. Quando acaba, sei se é a mulher que procuro.

- E quem é?

- A que telefonou para o programa do John Truth, é claro. - Bateu no dossier de argolas que tinha na secretária. - O FBI, a Polícia e as estações de rádio que passam o programa receberam até agora um total de mil duzentos e vinte e nove telefonemas a dizer quem é ela.

Judy pegou no ficheiro e folheou-o. Estaria a pista vital ali, algures? Simon tinha posto a sua secretária a cotejar as chamadas de denúncia. Na maioria dos casos havia um nome, um endereço e número de telefone do denunciante e o mesmo para o suspeito. Em alguns casos, havia uma citação da pessoa que telefonara:

Suspeitei sempre de que ela tinha ligações com a máfia.

Ela é do tipo subversivo. Não estou surpreendido por estar envolvida numa coisa destas.

Parece uma mãe normal, mas é a voz dela... juraria sobre a Bíblia.

Um telefonema especialmente inútil não dava nome algum mas dizia:

Sei que ouvi a voz dela no rádio ou coisa do género. Era tão sexy, que me lembrei. Mas foi há muito tempo. Talvez a tenha ouvido num álbum gravado.

Judy recordou que era uma voz sexy. Na altura tinha notado. A mulher podia fazer uma fortuna como vendedora pelo telefone, a convencer executivos do sexo masculino a comprar espaço de publicidade de que não necessitavam. Simon disse:

- Hoje já eliminei cem. Acho que vou precisar de ajuda. Judy continuou a folhear o dossier.

- Se pudesse ajudava-te, mas fui avisada para me manter afastada deste caso.

- Céus, obrigado, isso faz-me sentir melhor.

- Sabes como está a correr?

- A equipa do Marvin está a telefonar para toda a gente que consta da lista de correspondência da Campanha para a Califórnia Verde. Ele e o Brian partiram há pouco para Sacramento, mas não posso imaginar o que vão dizer ao famoso senhor Honeymoon.

- Não são a porcaria dos Verdes, todos sabemos isso.

- Mas ele não tem mais ideias.

Judy franziu o sobrolho, a olhar para o dossier. Tinha encontrado outro telefonema que mencionava um disco. Como antes, não havia nome para a suspeita, mas a pessoa que telefonara dissera:

Ouvi a voz num álbum, tenho a certeza absoluta. Alguma coisa de há muito tempo, talvez dos anos 60.

Judy perguntou a Simon:

- Reparaste que dois dos telefonemas mencionam um álbum gravado?

- A sério? Escapou-me!

- Eles acham que ouviram a voz dela num álbum antigo.

- A sério? - Simon animou-se instantaneamente. - Deve ser um álbum falado... uma história para dormir, ou Shakespeare, ou uma coisa assim. A voz de uma pessoa a falar é bastante diferente da voz quando canta.

Raja Khan passou à porta e viu-a.

- Oh, Judy, o teu pai telefonou, mas pensei que estavas a almoçar. De repente, Judy ficou sem ar. Deixou Simon sem uma palavra e voltou rapidamente para a sua secretária. Sem se sentar, pegou no telefone e marcou o número de Bo. Ele atendeu logo.

- Fala o tenente Maddox.

- Que é que tens?

- Um suspeito.

- Jesus... isso é bestial!

- Escuta isto. Há duas semanas desapareceu um vibrador sísmico algures entre Shiloh, Texas, e Clovis, Novo México. O motorista habitual desapareceu ao mesmo tempo, e o seu carro completamente consumido pelo fogo foi encontrado na lixeira local, contendo o que parecem ser as cinzas do homem.

- Foi assassinado por casa da porcaria do camião? Estas pessoas não fazem prisioneiros, pois não?

- O principal suspeito é um Richard Granger, de quarenta e oito anos. Chamavam-lhe Ricky e pensavam que era hispânico, mas com um nome destes pode ser um caucasiano bronzeado. E... escuta só... tem cadastro.

- És um génio, Bo!

- Deves estar a receber uma cópia por fax neste momento. Foi um grande rufia em L. A. no final dos anos sessenta, princípio dos anos setenta, nessa cidade. Condenações por assalto, roubo, grande roubo automóvel. Interrogado por causa de três homicídios, e também por tráfico de droga. Mas desapareceu de cena em 1972. O DPLA pensou que ele teria sido despachado pela máfia... ele devia-lhes dinheiro... mas nunca encontraram um corpo, por isso encerraram o caso.

- Estou a perceber. O Ricky fugiu da máfia, tornou-se religioso e iniciou um culto.

- Infelizmente, não sabemos onde.

- Só que não é no vale do rio de Prata.

- O DPLA pode ir verificar o último endereço conhecido. Provavelmente é pura perda de tempo, mas de qualquer maneira vou pedir-lhes. Há lá um tipo nos Homicídios que me deve um favor.

- Temos uma fotografia do Ricky?

- Há uma no cadastro, mas é a fotografia de um rapaz de dezanove anos. Ele está quase a fazer cinquenta, o mais certo é estar completamente diferente. Com sorte, o xerife de Siloh preparou-me um retrato E-fit. - E-fit era o programa de computador que tinha substituído o artista da polícia dos velhos tempos. - Prometeu mandar-mo por fax, mas ainda não chegou.

- Envia-mo por fax logo que o receberes, está bem?

- Claro. Que vais fazer?

- Vou para Sacramento.

Eram quatro e um quarto quando Judy passou a soleira da porta onde estava gravada a palavra GOVERNADOR.

Atrás da grande mesa sentava-se a mesma secretária. A mulher reconheceu Judy e ficou surpreendida.

- É um dos agentes do FBI, não é? A reunião com o senhor Honeymoon começou há dez minutos.

- Não faz mal - disse Judy. - Eu trouxe umas informações importantes que chegaram à última hora. Mas, antes de entrar na '" reunião, chegou um fax para mim nos últimos minutos? - Como tinha saído do escritório antes de o retrato E-fit de Ricky Granger chegar, 1 telefonara para Bo do carro e pedira-lhe para o enviar para o gabinete do governador.

- Vou verificar. - Falou para um telefone. - Sim, o seu fax está aqui. - Instantes depois, uma mulher jovem apareceu numa porta lateral com uma folha de papel.

Judy observou o rosto no fax. Aquele era o homem que podia matar milhares. O seu inimigo. Viu um homem atraente que se tinha dado a algum trabalho para esconder o verdadeiro formato do rosto, talvez como se tivesse antecipado } aquele momento. Tinha a cabeça escondida por um chapéu de vaqueiro. Aquilo sugeria que as testemunhas que tinham ajudado o xerife a criar o retrato computadorizado nunca tinham visto o suspeito sem chapéu.

Consequentemente, não havia indicação de como era o cabelo dele. Se fosse careca, ou grisalho, ou encaracolado, ou comprido, pareceria diferente do retrato. E a parte de baixo do rosto estava igualmente bem escondido por uma barba farfalhuda e por um bigode. Por baixo, podia existir qualquer espécie de queixo. Calculou que agora teria a barba feita.

O homem tinha olhos encovados que olhavam hipnoticamente do retrato. Mas, para as pessoas em geral, todos os criminosos tinham olhares fixos.

No entanto, o retrato disse-lhe algumas coisas. Ricky Granger não usava óculos habitualmente, era óbvio que não era afro-americano nem asiático, e como a barba era escura e abundante, provavelmente tinha cabelos escuros. Pela descrição que tinha sido incluída ficou a saber que ele tinha cerca de um metro e oitenta de altura, era elegante e parecia em forma, e não tinha um sotaque digno de nota. Não era muito, mas era melhor do que nada.

E nada era o que Brian e Marvin tinham.

O assistente de Honeymoon apareceu e conduziu Judy para a Ferradura, onde o governador e a sua equipa tinham os gabinetes.

Judy mordeu o lábio. Estava prestes a infringir a primeira regra da burocracia e a ridicularizar o chefe. Provavelmente, seria o fim da sua carreira.

Que se lixe.

A única coisa que queria agora era que o chefe levasse Os Filhos do Paraíso a sério antes que eles matassem pessoas. Desde que isso acontecesse, podia despedi-la.

Passaram a entrada da suite privada do governador, e depois o assistente abriu a porta para o gabinete de Honeymoon.

Judy entrou.

Durante breves instantes permitiu a si mesma o prazer de ver o choque e confusão nos rostos de Brian Kincaid e Marvin Hayes.

Depois, olhou para Honeymoon.

O assessor do governador vestia uma camisa cínzento-pálida com uma gravata às pintas pretas e brancas e suspensórios com um padrão cinzento. Olhou para Judy com as sobrancelhas erguidas e disse:

- Agente Maddox! O senhor Kincaid acabou de me dizer que a tirou do caso porque a senhora é uma idiota.

Judy ficou pregada ao chão. Era suposto estar a controlar esta cena; era ela que estava a causar consternação. Honeymoon tinha-a surpreendido. Não ia ser passado para segundo plano no seu próprio escritório.

Ela recuperou depressa. Muito bem, senhor Honeymoon, se quer fazer jogo duro, eu alinho.

Voltou-se para ele e disse:

- O Brian tem uma grande basófia.

Kincaid lançou-lhe um olhar carrancudo, mas Honeymoon limitou-se a erguer levemente as sobrancelhas. Judy acrescentou:

- Eu sou a melhor agente que ele tem, e acabei de o provar.

- Ah, sim? - disse Honeymoon.

- Enquanto o Marvin tem estado sentado com o dedo no cu a fingir que não há motivo para preocupações, eu resolvi este caso.

Kincaid levantou-se, com o rosto muito vermelho. Furioso, disse:

- Maddox, que diabo pensas que estás a fazer aqui? Ela ignorou-o.

- Sei quem está a mandar as ameaças terroristas para o governador Robson - disse ela para Honeymoon. - O Marvin e o Brian não sabem. Pode tirar as suas próprias conclusões sobre quem é que é idiota.

Hayes estava vermelho como um tomate. Disse com brusquidão:

- De que raio é que estás a falar?

Honeymoon disse:

- Vamos sentar-nos todos. Agora que a senhora Maddox nos interrompeu, o melhor é ouvirmos o que ela tem para dizer. - Fez um sinal ao assistente. - Feche a porta, John. Muito bem, agente Maddox, ouvi-a dizer que sabe quem é que está a fazer as ameaças?

- Correcto. - Pôs um retrato de fax em cima da secretária de Honeymoon. - Este é Richard Granger, um rufião de Los Angeles que se acreditou, erradamente, ter sido morto pela máfia em 1972.

- E que é que a leva a pensar que ele é o culpado?

- Veja isto. - Entregou-lhe outra folha de papel. - Aqui está o sismograma de um sismo típico. Repare nas vibrações que antecedem o abalo. Há uma série fortuita de magnitudes diferentes. Estes são os choques prévios típicos. - Mostrou-lhe uma segunda folha. - Este é o sismo do vale Owens. Aqui não há nada fortuito. Ao invés da confusão com um aspecto natural, aqui vemos uma série perfeita de vibrações regulares.

Hayes interrompeu.

- Ninguém conseguiu perceber o que são essas vibrações. Judy voltou-se para ele.

- Tu não conseguiste descobrir, mas eu consegui. - Pousou outra folha em cima da secretária de Honeymoon. - Veja este mapa.

Honeymoon estudou o terceiro mapa, comparando-o com o segundo.

- Regular, como o gráfico do vale Owens. Que é que faz vibrações como estas?

- Uma máquina chamada vibrador sísmico.

Hayes abafou o riso, mas Honeymoon nem sequer esboçou um sorriso.

- O que é isso?

- Uma coisa destas. - Entregou-lhe a fotografia que lhe tinha sido enviada pelos fabricantes. - É utilizado na exploração petrolífera.

Honeymoon pareceu céptico.

- Está a dizer que o sismo foi provocado pelo homem?

- Não estou a teorizar, estou a apresentar-lhe factos. Um vibrador sísmico foi usado naquele local imediatamente antes do sismo. O senhor poderá tirar as suas próprias conclusões sobre a causa e o efeito.

Ele olhou-a fixamente, a avaliá-la. Estava a perguntar a si mesmo se ela estaria a enfiar-lhe o barrete ou não. Ela não baixou os olhos. Por fim, ele disse:

- Muito bem. Como é que isso a leva ao tipo da barba?

- Um vibrador sísmico foi roubado há uma semana em Shiloh, Texas.

Ouviu Hayes dizer:

- Oh, porra. Honeymoon disse:

- E o tipo do retrato...?

- Richard Granger é o principal suspeito do roubo... e do homicídio do motorista habitual do camião. Granger trabalhava para a equipa da empresa petrolífera que estava a utilizar o vibrador. O retrato E-fit baseia-se nas recordações dos colegas de trabalho.

Honeymoon acenou afirmativamente.

- É tudo?

- Não chega? - protestou ela.

Honeymoon não respondeu. Voltou-se para Kincaid.

- Que é que tem a dizer acerca de tudo isto? Kincaid sorriu, pouco à vontade.

- Não me parece que devamos incomodá-lo com assuntos disciplinares internos...

- Oh, eu quero ser incomodado - replicou Honeymoon. A voz tinha uma nota perigosa, e a temperatura na sala pareceu descer. - Veja a coisa do meu ponto de vista. Vem aqui e diz-me que, definitivamente, o sismo não foi obra humana. - A sua voz tornou-se mais alta. - Afinal, pelas provas parece que, muito provavelmente, foi. E nesse caso temos um grupo à solta que pode provocar um enorme desastre. - Judy sentiu uma vaga de triunfo quando ficou claro que Honeymoon tinha acreditado na sua história. Estava furioso com Kincaid. Levantou-se e apontou um dedo para Brian. - Você diz-me que não conseguiu descobrir os perpetradores, e depois entra a agente Maddox com um nome, um cadastro policial e uma porcaria de um retrato.

- Acho que devia dizer...

- Acho que tem andado a gozar comigo, agente especial Kincaid - disse Honeymoon, arrasando Kincaid. Tinha o rosto escuro de raiva. - E quando as pessoas gozam comigo, eu fico um bocado irritado.

Judy deixou-se estar sentada em silêncio, a observar Honeymoon destruir Kincaid. Se és assim quando estás irritado, detestaria ver-te quando estás verdadeiramente zangado.

Kincaid tentou de novo.

- Lamento se...

- Também detesto pessoas que pedem desculpa - declarou Ho-neymoon. - Uma desculpa serve para o culpado se sentir bem e para poder repetir a asneira. Não lamente.

Kincaid tentou apanhar os pedaços da sua dignidade.

- Que é que quer que diga?

- Que vai pôr a agente Maddox à frente deste caso.

Judy olhou para ele. Aquilo era melhor do que ela esperara. Kincaid engoliu em seco. Era como se lhe tivessem pedido para se despir completamente na Praça da União. Honeymoon declarou:

- Se tiver problemas com isso, diga, e eu peço ao governador Robson que telefone ao director do FBI em Washington. O governador poderia então explicar ao director os motivos que nos levam a fazer este pedido.

- Não será necessário - disse Kincaid.

- Então ponha a Maddox à frente do caso.

- Está bem.

- Não, não "está bem". Quero que lhe diga a ela, aqui e agora. Brian recusou-se a olhar para Judy, mas disse:

- Agente Maddox, a partir deste momento está encarregue da investigação de Os Filhos do Paraíso.

- Obrigada - disse Judy. Salva!

- Agora desapareçam daqui - disse Honeymoon. Levantaram-se todos.

Honeymoon chamou:

- Maddox.

À porta, ela voltou-se:

- Sim.

- Telefone-me uma vez por dia.

Aquilo queria dizer que ele ia continuar a apoiá-la. Podia falar com Honeymoon sempre que quisesse. E Kincaid sabia.

- Com certeza - disse ela. Saíram.

Quando estavam a sair da Ferradura, Judy sorriu docemente para Kincaid e repetiu as palavras que ele lhe dissera da última vez que tinham estado no edifício, quatro dias antes.

- Portou-se muito bem ali, Brian. Não se preocupe com coisa alguma.

 

Na segunda-feira, Dusty esteve doente o dia inteiro.

Melanie foi a Silver City comprar mais do medicamento para a alergia que ele tinha de tomar. Deixou Dusty entregue aos cuidados de Flower, que estava a atravessar uma repentina fase maternal.

Voltou em pânico.

Priest estava no celeiro com Dale. Dale tinha-lhe pedido para provar a mistura do vinho do ano anterior. Ia ser um vinho com bom paladar, de maturação lenta mas com uma vida longa. Priest sugeriu a utilização de uvas mais leves, das encostas mais baixas e sombrias do vale, para fazer o vinho mais imediatamente atraente; mas Dale resistiu.

- Agora é um vinho para conhecedores - disse. - Não temos de nos vender aos compradores dos supermercados. Os nossos clientes gostam de manter o vinho nas adegas durante alguns anos antes de o beberem.

Priest sabia que aquele não era o verdadeiro motivo da conversa que Dale queria ter com ele, mas mesmo assim argumentou:

- Não arrases os compradores dos supermercados... nos primeiros tempos foram eles que nos salvaram a vida.

- Bem, mas não podem salvar-nos a vida agora - retorquiu Dale. - Por que diabo é que estamos a fazer isto, Priest? Temos de sair desta terra no próximo domingo.

Priest reprimiu um suspiro de frustração. Por amor de Deus, dá-me uma oportunidade! Já quase consegui... o governador não pode ignorar os sismos indefinidamente. Só preciso de mais algum tempo. Por que é que não consegues ter fé?

Sabia que Dale não podia ser conquistado com ameaças, adulação, ou tretas. Com ele só funcionava a lógica. Obrigou-se a falar com calma, o epítome da doce razão.

- Podes estar certo - disse, magnanimamente. Mas depois não conseguiu resistir e acrescentou um sarcasmo. - Os pessimistas têm muitas vezes razão.

- E?

- Tudo o que te quero dizer é que deixes passar esses seis dias. Não desistas agora. Dá tempo para um milagre. Talvez não aconteça. Mas talvez aconteça.

- Não sei - disse Dale.

Depois, Melanie entrou intempestivamente com um jornal na mão.

- Preciso de falar contigo - disse ela, ofegante.

O coração de Priest parou de bater. Que teria acontecido? Devia ser alguma coisa relacionada com os sismos - e Dale não estava a par do segredo. Priest sorriu-lhe de uma forma que queria dizer As mulheres não são peculiares? E conduziu Melanie para fora do celeiro.

- O Dale não sabe! - exclamou logo que ficaram fora do raio de audição dele. - Que raio...

- Olha para isto! - disse ela, a acenar o jornal à frente dos olhos dele.

Ele ficou chocado ao ver a fotografia de um vibrador sísmico.

Perscrutou apressadamente o pátio e os edifícios adjacentes, mas não se via ninguém. No entanto, não queria ter esta conversa com Melanie ao ar livre.

- Aqui não! - disse ferozmente. - Põe a porcaria do jornal debaixo do braço e vamos para a minha cabana.

Ela recompôs-se.

Atravessaram o pequeno aglomerado para a cabana dele. Logo que entraram, ele tirou-lhe o jornal e olhou de novo para a fotografia. Não restavam dúvidas. Não conseguiu ler o título que acompanhava a história, mas a fotografia era de um camião igual ao que tinha roubado.

- Merda - disse, e atirou o jornal para cima da mesa.

- Lê! - disse Melanie.

- Está muito escuro aqui - replicou ele. - Conta-me o que diz.

- A Polícia anda à procura de um vibrador sísmico que foi roubado.

- O diabo é que andam.

- Não há qualquer referência a sismos - continuou Melanie. - É como se fosse apenas uma história engraçada... quem quereria roubar uma destas porcarias?

- Não acredito nisso - disse Priest. - Não pode ser coincidência. A história é acerca de nós, mesmo que não nos mencionem. Sabem como provocámos o sismo, mas ainda não contaram à imprensa. Têm receio de gerar uma onda de pânico.

- Então por que é que publicaram esta fotografia?

- Para nos dificultar a vida. Essa fotografia impossibilita-nos de conduzir o camião na estrada. Todos os polícias de trânsito da Califórnia vão estar de sobreaviso. - Frustrado, deu um murro na mesa. - Foda-se, não posso deixá-los pararem-me com tanta facilidade!

- E se conduzirmos de noite?

Ele tinha pensado nisso. Abanou a cabeça.

- Continua a ser demasiado arriscado. À noite há polícias na estrada.

- Tenho de ir ver o Dusty - disse Melanie. Estava à beira das lágrimas. - Oh, Priest, ele está tão doente... não vamos ter de deixar o vale, pois não? Tenho medo. Nunca mais vou encontrar um lugar onde possamos ser felizes, eu sei.

Priest abraçou-a para lhe dar coragem.

- Ainda não estou derrotado, nem por sombras. Que mais é que o artigo diz?

Ela pegou no jornal.

- Houve uma manifestação junto ao Edifício Federal em São Francisco. - Sorriu através das lágrimas. - Um grupo de pessoas que afirmam que Os Filhos do Paraíso têm razão, que o FBI nos devia deixar em paz, e que o governador Robson devia parar de construir centrais de energia.

Priest ficou satisfeito.

- Quem diria. Ainda há alguns californianos que pensam bem! - Depois ficou novamente solene. - Mas isso não me ajuda a descobrir como é que podemos andar com o camião sem sermos mandados parar pelo primeiro polícia que se cruzar connosco.

- Vou ver o Dusty - disse ela.

Priest acompanhou-a. Na cabana da mãe, Dusty estava deitado na cama, com os olhos lacrimejantes, o rosto vermelho, a respirar com dificuldade. Flower sentava-se ao lado dele, e lia alto um livro com o desenho de um pêssego gigante na capa. Priest tocou no cabelo da filha. Ela ergueu os olhos para ele e sorriu sem parar de ler.

Melanie foi buscar um copo com água e deu um comprimido a Dusty. Priest sentiu pena da criança, mas não pôde deixar de pensar que a doença do garoto tinha sido uma sorte para a comuna. Melanie estava presa numa ratoeira. Acreditava que tinha de viver onde o ar era puro, mas não conseguia arranjar emprego fora da cidade. A comuna era a única saída. Se tivesse de sair dali, talvez encontrasse outra comuna semelhante que a recebesse - mas talvez não, e de qualquer maneira estava exausta e desencorajada de mais para se fazer outra vez à estrada.

E havia mais do que isso, pensou. No seu íntimo, escondia-se uma raiva terrível. Ele não conhecia a fonte, mas era suficientemente forte para ela desejar fazer a terra tremer e queimar cidades e levar as pessoas a correr aos gritos para fora das suas casas. A maior parte do tempo estava escondida por detrás da fachada de uma mulher jovem e atraente mas desorganizada. Todavia, por vezes, quando a sua vontade era contrariada e se sentia frustrada e impotente, deixava transparecer toda a raiva que sentia.

Ele deixou-os e dirigiu-se para a cabana de Star, preocupado com o problema do camião. Talvez Star tivesse algumas ideias. Talvez houvesse uma forma de disfarçar o vibrador sísmico para que parecesse outro tipo de veículo, um camião da Coca-Cola ou uma grua ou outra coisa do género.

Entrou na cabana. Star estava a colocar um penso rápido no joelho de Ringo, coisa que tinha de fazer pelo menos uma vez por dia. Priest sorriu para o filho de dez anos e disse:

- Que é que fizeste desta vez, vaqueiro? - Depois reparou em Bonés.

Estava deitado na cama, completamente vestido mas a dormir um sono profundo - ou, mais provavelmente, passado. Viu uma garrafa vazia do chardonnay do vale do rio de Prata na mesa tosca de madeira. A boca de Bonés estava aberta, e ele ressonava baixinho.

Ringo começou a contar a Priest uma longa história acerca de tentar atravessar o regato baloiçando de uma árvore, mas Priest quase não ouviu. Ao ver Bonés tinha tido uma inspiração, e a sua mente trabalhava febrilmente.

Depois de o joelho esfolado ter sido tratado, e o rapaz ter saído a correr, Priest contou a Star o problema do vibrador sísmico. Em seguida relatou-lhe a solução.

Priest, Star e Oaktree ajudaram Bonés a puxar a grande lona do carrossel. O veículo foi revelado nas suas cores gloriosas, berrantes: um dragão verde a cuspir fogo vermelho e amarelo sobre três raparigas que gritavam numa cadeira giratória, e letras coloridas que, Bonés tinha dito a Priest, diziam "A Boca do Dragão".

Priest falou para Oaktree.

- Levamos este veículo pelo trilho e estacionamo-lo ao lado do vibrador sísmico. Depois arrancamos estes painéis pintados e fixamo-los ao nosso camião, para cobrir a maquinaria. Os chuis andam à procura de um vibrador sísmico, não de um carrossel.

Oaktree, que trazia a sua caixa de ferramentas, olhou atentamente para os painéis, a examinar a forma como eram fixados.

- Não há problema - disse ele alguns momentos depois. - Posso fazê-lo num dia, com uma ou duas pessoas para me ajudarem.

- E depois podes recolocar os painéis, para que o carrossel de Bonés fique na mesma?

- Tão bom como novo - prometeu Oaktree.

Priest olhou para Bonés. A grande falha do esquema era que Bonés tinha de estar a par de tudo. Nos velhos tempos, Priest teria confiado a sua vida a Bonés. Afinal de contas, ele era um Comedor de Arroz. Talvez não fosse confiável para aparecer para o seu próprio casamento, mas sabia guardar um segredo. Porém, como Bonés se tinha tornado um drogado, já não tinha certeza nenhuma. A heroína lobotomizava as pessoas. Um drogado até roubava a aliança de casamento da própria mãe.

Mas Priest tinha de correr o risco. Estava desesperado. Tinha prometido um sismo dali a quatro dias, e precisava de cumprir a ameaça. Se não estava tudo perdido.

Bonés concordou prontamente com o plano. Priest quase esperara que ele exigisse um pagamento. Porém, ele estava a viver de graça na comuna há quatro dias, por isso era demasiado tarde para pôr o seu relacionamento com Priest numa base comercial. Para além do mais, na qualidade de elemento de uma comuna, Bonés sabia que o maior pecado imaginável era valorizar as coisas em termos monetários.

Bonés seria mais subtil. Dentro de um ou dois dias pediria dinheiro a Priest para ir comprar heroína. Priest atravessaria essa ponte quando chegasse o momento.

- Vamos ao trabalho - disse.

Oaktree e Star subiram para a cabina do carrossel com Bonés. Melanie e Priest levaram o 'Cuda na viagem de um quilómetro e meio até ao local onde o vibrador sísmico estava escondido.

Priest perguntou a si mesmo que mais saberia o FBI. Tinham descoberto que o sismo fora desencadeado por um vibrador sísmico. Teriam avançado mais? Ligou o rádio do carro, na esperança de que houvesse um boletim noticioso. Apanhou Connie Francis a cantar Breakin' in a Brand New Broken Heart, uma canção velha, até mesmo pelos seus padrões.

O 'Cuda saltou ao longo do trilho enlameado da floresta, atrás do camião de Bonés. Priest observou que Bonés conduzia o grande camião com à-vontade, embora tivesse acabado de acordar de um sono ébrio. Houve um momento em que Priest teve a certeza de que o carrossel ia ficar preso num lamaçal, mas passou por ele sem parar.

As notícias começaram quando estavam a aproximar-se do esconderijo do vibrador sísmico. Priest aumentou o volume.

O que ouviu deixou-o pálido com o choque.

- Agentes federais que estão a investigar o grupo terrorista Os Filhos do Paraíso fizeram um retrato falado de um suspeito - leu o locutor. - O nome que nos foi dado foi Richard ou Ricky Granger, um homem de quarenta e oito anos de idade, que já viveu em Los Angeles.

Priest disse:

- Jesus Cristo! - E travou a fundo.

- Granger é igualmente procurado por um homicídio em Shiloh, Texas, há nove dias.

- O quê? - Ninguém sabia que ele tinha assassinado Mário, nem sequer Star.

Os Comedores de Arroz estavam desesperadamente dispostos a provocar um sismo que poderia matar centenas, e no entanto ficariam horrorizados se soubessem que ele tinha espancado um homem até à morte com uma chave-inglesa. As pessoas eram inconsistentes.

- Isso não é verdade - disse Priest para Melanie. - Eu não matei ninguém.

Melanie estava a olhar para ele.

- É o teu nome verdadeiro? - perguntou. - Ricky Granger? Ele tinha-se esquecido de que ela não sabia.

- Sim - respondeu. Vasculhou a memória para se lembrar de quem conhecia o seu nome verdadeiro. Não o usara ao longo de vinte e cinco anos, a não ser em Shiloh. De repente, lembrou-se de que tinha ido ao escritório do xerife em Silver City, para tirar Flower da cadeia, e o coração parou de bater durante alguns instantes; depois recordou-se de que o ajudante tinha presumido que ele tinha o mesmo nome de Star e lhe chamara senhor Higgins. Graças a Deus.

Melanie perguntou:

- Como é que conseguiram uma fotografia tua?

- Não é uma fotografia - disse ele. - É um retrato falado. Deve ser um daqueles retratos de identificação que eles fazem.

- Já sei o que é - disse ela. - Só que agora usam um programa de computador.

- Existe um programa de computador para cada porcaria de coisa - resmungou Priest. Agora estava muito contente por ter alterado a sua aparência antes de arranjar o emprego em Shiloh. Valera a pena o tempo que levara a deixar crescer a barba, a maçada de amarrar os cabelos todos os dias e a chatice de ser obrigado a usar chapéu todo o tempo. Com sorte, o retrato falado não se assemelhava nem de longe à forma como era agora.

Mas precisava de ter a certeza.

- Preciso de ter acesso a uma televisão - disse ele.

Saiu do carro. O carrossel tinha encostado perto do esconderijo do vibrador sísmico, e Oaktree e Star estavam a sair. Em poucas palavras, explicou-lhes a situação.

- Comecem enquanto eu vou a Silver City - disse ele. - Vou levar a Melanie... também quero a opinião dela.

Entrou novamente no carro, saiu dos bosques e dirigiu-se para Silver City.

Nos arredores da pequena cidade existia uma loja de electrónica. Priest estacionou e saíram.

Priest olhou em volta, nervoso. Ainda era claro. E se encontrasse alguém que vira o seu rosto na televisão? Tudo dependia de o retrato ser parecido com ele. Precisava de saber. Tinha de arriscar. Aproximou-se da loja.

Na montra viam-se vários televisores, e todos mostravam a mesma imagem. O programa era uma espécie de concurso. Um apresentador de cabelos prateados com um fato azul-claro estava a gracejar com uma mulher de meia-idade que tinha um risco muito acentuado nos olhos.

Priest olhou para um lado e para o outro do passeio. Não havia ninguém nas proximidades. Olhou para o relógio: quase sete. O noticiário começaria dali a alguns segundos.

O apresentador de cabelos prateados pôs o braço à volta da mulher e falou para a câmara. Viu-se uma audiência a aplaudir com um entusiasmo histérico. Havia dois apresentadores, um homem e uma mulher. Falaram durante alguns segundos.

Depois, os múltiplos ecrãs mostraram uma imagem a preto e branco de um homem com uma barba farfalhuda e chapéu de vaqueiro.

Priest olhou.

O retrato não se parecia minimamente com ele.

- Que é que pensas? - perguntou.

- Nem sequer eu suspeitaria de que és tu - disse Melanie.

Foi inundado por uma onda gigantesca de alívio. O disfarce tinha funcionado. A barba mudara-lhe o formato do rosto, e o chapéu escondera a característica mais evidente, os cabelos compridos, espessos e ondulados. Talvez nem sequer ele tivesse reconhecido a fotografia, se não soubesse que era suposto ser ele.

Descontraiu.

- Obrigado, deus dos hippies - disse ele.

Todos os ecrãs piscaram, e apareceu outra fotografia. Priest ficou chocado ao ver, reproduzida uma dúzia de vezes, uma fotografia policial de si próprio aos dezanove anos. Era tão magro que o rosto parecia uma caveira. Agora era magro, mas naqueles dias, drogado e a beber e sem comer uma refeição normal, parecia um esqueleto. Tinha o rosto chupado, a expressão sombria. Os cabelos eram lisos e escorridos, com um corte à Beatle que até na época devia estar fora de moda.

Priest disse:

- Reconhecias-me?

- Sim - respondeu ela. - Pelo nariz.

Ele olhou novamente. Ela estava certa; a fotografia mostrava o seu característico nariz estreito, como uma faca curva. Melanie acrescentou:

- Mas não me parece que mais alguém te reconhecesse, certamente não desconhecidos.

- Foi o que me pareceu.

Ela passou um braço em volta da cintura dele e apertou afectuosamente.

- Quando eras novo parecias um rapaz muito mau.

- E acho que era.

- A propósito, onde é que eles arranjaram aquela fotografia?

- Presumo que foi tirada do meu cadastro criminal. Ela ergueu os olhos para ele.

- Não sabia que tu tinhas cadastro criminal. Que é que fizeste?

- Queres uma lista?

Ela pareceu chocada e nada contente. Não te armes em moralista comigo, miúda... lembra-te de quem é que nos disse como se provocava um sismo.

- Deixei a vida de crime quando vim para o vale - disse ele. - Não fiz nada errado nos vinte e cinco anos que se seguiram... até te conhecer.

Na testa dela desenhou-se uma ruga. Ele percebeu que ela não pensava em si mesma como criminosa. Aos seus olhos era uma cidadã totalmente respeitável que tinha sido obrigada a cometer um acto desesperado. Continuava a acreditar que pertencia a uma raça diferente das pessoas que roubavam e assassinavam.

Pensa o que quiseres, querida... mas mantém-te fiel ao plano.

Os dois apresentadores reapareceram, e depois a imagem passou para um arranha-céus. Uma linha de palavras apareceu no fundo do ecrã. Priest não precisou de saber lê-las: reconheceu o local. Era o Edifício Federal, onde o FBI tinha o seu escritório de São Francisco. Estava a decorrer uma manifestação, e Priest lembrou-se de que Melanie tinha lido sobre ela no jornal. Estavam a manifestar-se em sinal de solidariedade com Os Filhos do Paraíso, dissera ela. Um bando de pessoas com cartazes e chifres de boi abordava um grupo que entrava no edifício.

A câmara focou uma mulher jovem com feições asiáticas. Chamou a atenção de Priest porque era bela, da forma exótica que o atraía tanto. Era magra e vestia um elegante fato preto de calças e casaco, mas tinha um ar formidável de não-brinquem-comigo, e abriu caminho pela multidão com uma frieza calma.

Melanie disse:

- Oh, meu Deus, é ela! Priest ficou pasmado.

- Conheces aquela mulher?

- Conheci-a no domingo!

- Onde?

- No apartamento do Michael, quando fui buscar o Dusty.

- Quem é ela?

- O Michael apresentou-ma como Judy Maddox, mas não disse nada sobre ela.

- Que é que está a fazer no Edifício Federal?

- Diz ali no ecrã: "Agente do FBI Judy Maddox, responsável pelo caso de Os Filhos do Paraíso." É a detective que anda atrás de nós!

Priest ficou fascinado. Era aquela a sua inimiga? A mulher era uma brasa. O simples facto de a ver na televisão deu-lhe vontade de tocar na sua pele dourada com as pontas dos dedos.

Devia estar assustado, não excitado. Ela é uma detective dos diabos. Compreendeu que tinha sido usado um vibrador sísmico, descobriu de onde veio, e desencantou o meu nome e a minha fotografia. Ela é esperta e trabalha depressa.

- E conheceste-a na casa do Michael?

- Sim.

Priest ficou assustado. Ela estava perto de mais. Tinha conhecido Melanie! A sua intuição disse-lhe que corria grande perigo com aquela agente. O facto de se sentir tão atraído por ela, depois de a ter visto apenas brevemente na televisão, tornava as coisas piores. Era como se ela tivesse alguma espécie de poder sobre ele.

Melanie continuou:

- O Michael não me disse que ela era do FBI. Pensei que era uma namorada nova, por isso tratei-a com frieza. Ela levou um fulano mais velho com ela, disse que era o pai, embora não parecesse asiático.

- Namorada ou não, não gosto que ela se aproxime tanto de nós! - Afastou-se da loja e dirigiu-se lentamente para o carro. A sua mente estava a trabalhar a mil. Talvez não fosse surpreendente que a agente envolvida no caso consultasse um importante sismólogo. A agente Maddox tinha falado com Michael pelo mesmo motivo que Priest: ele era perito em sismos. Priest calculou que tinha sido Michael quem a ajudara a chegar ao vibrador sísmico.

Que mais lhe teria ele dito?

Sentaram-se no carro, mas Priest não ligou o motor.

- Isto é mau para nós - disse. - Muito mau.

- Que é que é mau? - perguntou Melanie, na defensiva. - Não faz mal se o Michael quiser andar a comer uma agente do FBI. Talvez ela lhe enfie a arma pelo cu acima. Não quero saber.

Ela não tinha o hábito de dizer ordinarices. Está verdadeiramente abalada.

- O que é mau é que o Michael pode dar-lhe as mesmas informações que nos deu a nós.

Melanie franziu o sobrolho.

- Não estou a perceber.

- Pensa. Que é que a agente Maddox tem em mente? Está a perguntar: "Onde é que Os Filhos do Paraíso vão atacar a seguir?" O Michael pode ajudá-la nesse ponto. Pode olhar para os dados que tem, da mesma forma que tu fizeste, e procurar os sítios mais prováveis para a ocorrência de um sismo. Depois, o FBI pode cercar esses locais e ficar à espreita de um vibrador sísmico.

- Nunca tinha pensado nisso. - Melanie contemplou-o. - O pulha do meu ex-marido e esta vaca do FBI vão-nos lixar isto, é o que estás a dizer-me?

Priest olhou-a de relance. Ela parecia capaz de lhe cortar a garganta.

- Acalma-te, está bem?

- Raios os partam.

- Espera lá. - Priest estava a ter uma ideia. Melanie era o elo de ligação. Talvez conseguisse descobrir o que Michael contara à belíssima agente do FBI. - Pode haver uma forma de contornar isto. Diz-me uma coisa, que é que sentes agora pelo Michael?

- Nada, é claro. Acabou, e estou contente. Só espero que consigamos despachar o divórcio sem demasiadas hostilidades, nada mais.

Priest observou-a. Não acreditou numa só palavra. O que ela sentia por Michael era raiva.

- Temos de saber se o FBI seleccionou possíveis localizações de sismos... e, se assim for, quais. Acho que é possível que ele te diga.

- Por que é que faria uma coisa dessas?

- Creio que ele ainda está caído por ti, pelo menos é o que parece. Ela fitou-o.

- Onde diabo é que queres chegar, Priest? Priest respirou fundo.

- Ele contava-te tudo, se dormisses com ele.

- Vai-te foder, Priest, não vou fazer isso. Vai-te foder!

- Detesto pedir-te. - Era verdade. Não queria que ela dormisse com Michael. Acreditava que ninguém devia fazer sexo a não ser que quisesse. Tinha aprendido com Star que a coisa mais repugnante do casamento era o direito que dava a uma pessoa de ter sexo com outra. Por isso, todo este esquema era uma traição às suas crenças. - Mas não tenho outra escolha.

- Esquece - disse Melanie.

- Está bem - disse ele. - Desculpa por ter pedido. - Ligou o carro. - Só gostava de me lembrar de outra saída qualquer.

- Lamento Priest - acabou ela por dizer -, mas não consigo.

- Eu disse-te para não te preocupares com isso.

Saíram da estrada e seguiram o trilho comprido e incerto que dava acesso à comuna. O carrossel já não era visível do trilho; Priest calculou que Oaktree e Star o tinham escondido para a noite.

Estacionou no círculo vazio no final do trilho. Ao lusco-fusco, enquanto caminhavam pelos bosques para a aldeia, pegou na mão de Melanie. Após alguns instantes de hesitação, ela aproximou-se mais dele e apertou-lhe a mão com meiguice.

O trabalho na vinha tinha terminado. Como o tempo estava quente, a grande mesa tinha sido tirada da cozinha e colocada no pátio. Algumas das crianças estavam a pôr os pratos e os talheres enquanto Slow cortava um grande pão caseiro. Havia garrafas do vinho da comuna em cima da mesa, e no ar pairava um aroma a especiarias.

Priest e Melanie foram à cabana desta, para verem como estava Dusty. Repararam imediatamente que ele estava melhor. Dormia pacificamente. O inchaço tinha desaparecido, o nariz parara de correr, e respirava normalmente. Flower tinha adormecido na cadeira ao lado da cama, com o livro no colo.

Priest observou Melanie enquanto esta entalava o lençol à volta da criança adormecida e lhe beijava a testa. Ela ergueu os olhos para Priest e sussurrou:

- Este é o único sítio em que ele esteve bem.

- É o único sítio em que eu estive bem - disse Priest em voz baixa. - É o único sítio em que o mundo esteve bem. É por isso que temos de o salvar.

- Eu sei - disse ela. - Eu sei.

 

A brigada de Terrorismo Interno do FBI de São Francisco trabalhava numa sala estreita num dos lados do Edifício Federal. Com as secretárias e os separadores de sala assemelhava-se a um milhão de outros escritórios, com a diferença de que os homens jovens em mangas de camisa e as mulheres bem vestidas usavam armas em coldres à cintura ou no ombro.

Na terça-feira, às sete horas da manhã, estavam de pé, sentados nos tampos das secretárias ou encostados à parede, alguns a bebericar café em copos descartáveis, outros com canetas e blocos nas mãos, prontos para tomar notas. Toda a brigada, com excepção do supervisor, tinha sido colocada sob as ordens de Judy. Ouvia-se um murmúrio baixo de conversas.

Judy sabia de que é que eles estavam a falar. Ela tinha-se virado contra o seu superior - e vencera. Não acontecia com frequência. Dentro de uma hora todo o andar fervilharia de rumores e coscuvilhice. No final do dia não se surpreenderia se ouvisse dizer que tinha levado a melhor porque estava a ter um caso com Al Honeymoon.

O barulho desvaneceu-se quando ela se levantou e disse:

- Por favor, prestem atenção.

Observou o grupo durante alguns instantes e sentiu um arrepio que lhe era familiar. Eram todos fortes, trabalhadores incansáveis, bem vestidos, honestos e inteligentes, as pessoas mais inteligentes da América. Sentiu orgulho em trabalhar com eles.

Começou a falar.

- Vamos dividir-nos em duas equipas. Peter, Jack, Sally e Lee vão verificar as informações que temos sobre a fotografia do Ricky Granger. - Entregou uma folha que estivera a preparar na noite anterior. Uma lista de perguntas permitiria aos agentes eliminar a maior parte das informações e aceder às que mereciam a visita de um agente ou de um polícia das redondezas. Muitos dos homens identificados como "Ricky Granger" podiam ser afastados rapidamente: afro-americanos, homens com sotaques estrangeiros, rapazes de vinte e tal anos, homens baixos. Por outro lado, os agentes teriam de visitar sem demora qualquer suspeito que se assemelhasse à descrição e que tivesse estado ausente de casa durante o período de duas semanas em que Granger tinha trabalhado em Shiloh, Texas.

- Dave, Louise, Steve e Ashok formarão a segunda equipa. Vão trabalhar com o Simon Sparrow na verificação de informações baseadas na voz gravada da mulher que telefonou para o John Truth. A propósito, algumas das informações em que o Simon está a trabalhar referem um disco de música ligeira. Pedimos ao John Truth que abordasse isso no programa a noite passada. - Não tinha feito isto pessoalmente; o relações públicas do escritório tinha falado com o produtor de Truth. - Por isso podemos receber telefonemas relacionados com o assunto. - Entregou uma segunda folha de instruções com perguntas diferentes. - Raja.

O elemento mais jovem da equipa fez o seu sorriso pretensioso.

- Estava com receio de que te tivesses esquecido de mim.

- Nem penses - disse ela, e riram-se todos. - Raja, quero que prepares um breve comunicado para ser enviado para todas as esquadras de Polícia, e especialmente para a Polícia de Trânsito da Califórnia, descrevendo-lhes como podem reconhecer um vibrador sísmico. - Levantou uma mão. - E nada de piadas sobre vibradores, por favor. - Eles riram novamente. - Agora vou arranjar mais ajuda e mais espaço para trabalharmos. Entretanto, sei que vão dar o vosso melhor. Só mais uma coisa.

Fez uma pausa para escolher as palavras. Precisava de os impressionar com a importância do trabalho que iam efectuar - mas sentia que tinha de evitar ser frontal a ponto de dizer que Os Filhos do Paraíso podiam provocar sismos.

- Estas pessoas estão a tentar fazer chantagem com o governador da Califórnia. Dizem que podem provocar sismos. - Encolheu os ombros. - Não estou a dizer-vos que podem. Mas não é tão impossível como parece, e acreditem que não estou a dizer-vos que não podem. Seja como for, precisam de compreender que esta missão é muito, muito séria. - Fez nova pausa, e depois concluiu: - Vamos ao trabalho.

Foram todos para os seus lugares.

Judy saiu da sala e dirigiu-se apressadamente para o gabinete do AEC. O começo oficial do dia de trabalho era às oito e quinze, mas apostava que Brian Kincaid tinha vindo mais cedo. Devia saber que ela convocara a equipa para uma reunião às sete horas, e quereria saber o que estava a acontecer. Ela ia dizer-lhe.

A secretária dele ainda não estava na antessala. Judy bateu à porta do gabinete interior e entrou.

Kincaid estava sentado na grande cadeira com o casaco do fato vestido, e parecia não ter nada para fazer. Os únicos assuntos na sua secretária eram um bolo de cereais com uma dentada, e o saco de papel onde este viera. Estava a fumar um cigarro. Não era permitido fumar nas instalações do FBI, mas Kincaid era o chefe, por isso não havia ninguém para o impedir. Olhou Judy com hostilidade e disse:

- Se te pedisse para me fazeres um café, aposto que me chamavas porco sexista.

Nem pensar que ela lhe faria um café. Ele aceitaria esse gesto como um sinal de que podia continuar a pisá-la. Mas queria ser conciliatória.

- Eu arranjo-lhe café - disse. Pegou no telefone da mesa dele e marcou o número da secretária da brigada de TI. - Não se importa de vir ao gabinete do EAC trazer um bule de café para o senhor Kincaid?... Obrigada.

Ele continuava furioso. O gesto dela não tinha servido para o conquistar. Provavelmente sentia que, ao arranjar-lhe café sem o fazer, o tinha de certa forma vencido.

Resumindo, não consigo conquistá-lo.

Foi direita ao assunto.

- Tenho mais de mil pistas para seguir em relação à voz gravada da mulher. E estou a prever ainda mais telefonemas sobre a fotografia do Ricky Granger. Não posso tê-los todos avaliados na sexta-feira, apenas com nove pessoas. Preciso de mais vinte agentes.

Ele riu-se.

- Não vou pôr vinte pessoas nesta missão da treta. Ela ignorou o comentário.

- Notifiquei o Centro Operacional de Informações Estratégicas.

- O COIE era um gabinete de informações que operava a partir de um escritório à prova de bomba no Edifício Hoover, em Washington D. C.

- Presumo que, logo que a notícia se espalhe na sede, vão mandar algumas pessoas para cá... mais não seja, para receberem os louros de qualquer sucesso que obtenhamos.

- Eu não te mandei notificar o COIE.

- Quero reunir a Força de Elite de Combate ao Terrorismo para termos aqui delegados de departamentos da Polícia, dos Costumes, e do Serviço de Protecção Federal dos Estados Unidos, e todos eles precisarão de um sítio para se sentarem. E a partir do pôr do Sol de quinta-feira pretendo vigiar todas as localizações prováveis para o próximo sismo.

- Não vai haver sismo nenhum!

- Também vou precisar de pessoal extra para isso.

- Esquece.

- Aqui nas instalações não existe uma única sala com tamanho suficiente. Vamos ter de montar o nosso centro operacional de emergência noutro lugar qualquer. A noite passada inspeccionei os edifícios do Presídio. - O Presídio era uma base militar desactivada perto da Ponte Golden Gate. O clube dos oficiais estava habitável, embora tivesse vivido lá uma doninha e o local cheirasse extremamente mal. - Vou usar o salão de baile do clube dos oficiais.

Kincaid levantou-se.

- És um inferno! - gritou.

Judy suspirou. Não havia forma de fazer isto sem que Kincaid se tornasse seu inimigo eterno.

- Vou ter de telefonar ao senhor Honeymoon daqui a pouco - disse ela. - Quer que lhe diga que se recusa a dar-me as pessoas de que preciso?

Kincaid estava vermelho de fúria. Fitou Judy como se quisesse sacar da arma e dar-lhe um tiro. Por fim, disse:

- A tua carreira no FBI acabou, estás consciente disso? Provavelmente, ele tinha razão, mas ouvi-lo dizer doeu.

- Eu nunca quis opor-me a si, Brian - disse ela, lutando para manter a voz baixa e razoável. - Mas você lixou-me. Eu merecia uma promoção depois de ter prendido os irmãos Foong. Ao invés disso, você promoveu o seu amiguinho e deu-me uma missão da treta. Não devia ter feito uma coisa dessas. Não foi nada profissional.

- Não me digas como... Ela interrompeu-o.

- Quando a missão da treta se transformou num grande caso, tirou-mo e depois lixou tudo. Todas as coisas más que aconteceram, aconteceram por sua culpa. Agora está amuado. Bem, eu sei que o seu orgulho está ferido, e sei que os seus sentimentos estão magoados, e só quero que compreenda que me estou completamente nas tintas para isso.

Ele olhou para ela com a boca meio aberta.

Ela dirigiu-se para a porta.

- Vou falar para o Honeymoon às nove e trinta - disse ela. - Nessa altura gostaria de ter um funcionário sénior da logística transferido para a minha equipa com autorização para organizar as pessoas de que preciso e para montar um posto de comando no clube dos oficiais. Se não tiver o que quero, vou pedir ao Honeymoon para telefonar para Washington. A decisão é sua. - Saiu e atirou com a porta.

Sentiu a alegria que vem depois de um acto temerário. Teria de lutar para ultrapassar todos os obstáculos, por isso o melhor era lutar com garra. Nunca conseguiria voltar a trabalhar com Kincaid. Numa situação destas, os quadros superiores do FBI tomariam o partido do funcionário superior. Estava quase de certeza arrumada. Mas este caso era mais importante do que a sua carreira. Podiam estar em risco centenas de vidas. Se conseguisse impedir uma catástrofe e capturar os terroristas, retirar-se-ia orgulhosamente, e para o diabo com todos eles.

A secretária da brigada de TI estava na antessala do gabinete de Kincaid, a encher a máquina do café.

- Obrigada, Rosa - disse Judy ao passar. Voltou para o gabinete de TI. O telefone da sua secretária estava a tocar. Atendeu. - Judy Maddox.

- Fala John Truth.

- Como está? - Era esquisito ouvir a conhecida voz da rádio do outro lado da linha. - Está a trabalhar cedo!

- Estou em casa, mas o produtor do programa acabou de me telefonar. O meu atendedor de chamadas na estação estava entupido de telefonemas nocturnos sobre a mulher de Os Filhos do Paraíso.

Judy não devia falar pessoalmente com a imprensa. Todos os contactos dessa natureza deviam passar por Madge Kelly, uma agente jovem com uma licenciatura em jornalismo, e a especialista do FBI para os contactos com a imprensa. E ela estava com pressa de mais para dizer a Truth que ligasse para Madge.

- Alguma coisa com interesse? - perguntou ela.

- Pode crer. Duas pessoas lembraram-se do nome do disco.

- A sério? - Judy estava espantada.

- Esta mulher lia poesia sobre um fundo de música psicadélica.

- Que vómito.

- Sim. - Ele riu-se. - O álbum chamava-se Raining Fresh Daisies. Também parece ser o nome da banda, ou "grupo", como costumavam dizer na época.

Ele parecia agradável e amistoso, nada parecido com o pulha desprezível que era no ar. Talvez estivesse apenas a representar. Mas nunca se podia confiar nos jornalistas. Judy disse:

- Nunca ouvi falar neles.

- Nem eu. Antes do meu tempo, acho. E não há dúvida de que não temos o disco na estação de rádio.

- Alguma das pessoas que lhe telefonou deu um número de catálogo, ou o nome da editora?

- Não. O meu produtor telefonou às duas pessoas, mas elas não têm o disco, só se recordam dele.

- Raios. Acho que podíamos telefonar a todas as empresas discográficas. Será que mantêm registos durante tanto tempo...

- O álbum pode ter sido editado por uma etiqueta pouco importante que já não existe... parece ser uma coisa sem importância. Quer saber o que eu faria?

- Claro.

- Haight-Ashbury está cheia de lojas de discos em segunda mão, com empregados que vivem noutro tempo. Eu ia dar uma volta por lá.

- Boa ideia... obrigada.

- Não tem de quê. Já agora, como é que está a decorrer a investigação?

- Estamos a fazer alguns progressos. Posso pedir à nossa relações públicas que lhe telefone mais tarde com pormenores?

- Francamente! Acabei de lhe fazer um favor, não é verdade?

- Sem dúvida, e gostava de poder dar-lhe uma entrevista, mas os agentes não estão autorizados a falar directamente com a imprensa. Lamento imenso.

O tom dele tornou-se agressivo.

- É esse o agradecimento que dá aos nossos ouvintes por telefonarem com informações para vocês?

De repente, ela teve um pensamento pavoroso.

- Está a gravar isto?

- Não se importa, pois não?

Ela desligou. Merda. Tinha sido enganada. Falar com jornalistas sem autorização era aquilo a que o FBI chamava um "assunto delicado", significando que se podia ser despedido por isso. Se John Truth passasse esta gravação da conversa no programa, Judy estaria em sarilhos. Podia argumentar que precisava urgentemente da informação que Truth tinha para lhe dar, e um chefe decente provavelmente deixava-a safar-se com uma reprimenda, mas Kincaid tiraria todo o proveito da situação.

Que se lixe, Judy, já tens tantos problemas que este não vai fazer grande diferença.

Raja Khan aproximou-se da sua secretária com uma folha de papel na mão.

- Queres ver isto antes de ser enviado? É o memorando para os oficiais da Polícia sobre como reconhecer um vibrador sísmico.

Que rapidez.

- Por que é que demoraste tanto tempo? - perguntou ela, trocista.

- Tive de ir ao dicionário ver como se escrevia a palavra "sísmico".

Ela sorriu e deu uma vista de olhos ao que ele tinha escrito. Estava bom.

- Está óptimo. Manda-o. - Devolveu-lhe a folha. - Agora tenho outra coisa para ti. Andamos à procura de um álbum chamado Raining Fresh Daisies. É dos anos sessenta.

- Não brinques. Ela sorriu.

- Sim, tem qualquer coisa de hippie. A voz no disco é da mulher de Os Filhos do Paraíso, e espero que consigamos um nome para ela. Se a editora ainda existir, talvez se arranje até o último endereço conhecido. Quero que entres em contacto com todas as grandes empresas discográficas, e depois telefona para lojas que vendem discos raros.

Ele olhou para o relógio.

- Ainda não são nove, mas posso começar pela costa leste.

- Ao trabalho.

Raja foi para a sua secretária. Judy pegou no telefone e marcou o número da sede da Polícia.

- Tenente Maddox, por favor. - Instantes depois ele atendeu. Ela disse: - Sou eu, Bo.

- Olá, Judy.

- Recua até ao final dos anos sessenta, quando sabias qual a música que era hippie.

- Teria de recuar mais. Princípio dos anos sessenta, fim dos anos cinquenta, é a minha especialidade.

- É pena. Acho que a mulher de Os Filhos do Paraíso gravou um disco com uma banda chamada Raining Fresh Daisies.

- Os meus grupos preferidos tinham nomes como Frankie Rock e os Rockabillies. Nunca gostei de artistas com flores nos nomes. Lamento, Jude, mas nunca ouvi falar neles.

- Bom, vale sempre a pena tentar.

- Escuta, ainda bem que telefonaste. Tenho andado a pensar no teu homem, o Ricky Granger... é o homem por detrás da mulher, certo?

- É o que pensamos.

- Sabes, ele é tão cuidadoso, tão meticuloso, que deve estar mortinho por saber o que andas a fazer.

- Faz sentido.

- Acho muito provável que o FBI já tenha falado com ele.

- Achas? - Aquilo era promissor, se Bo tivesse razão. Havia um tipo de perpetrador que se insinuava na investigação, aproximando-se da Polícia na qualidade de testemunha ou de um vizinho prestável a oferecer café, e depois tentava tornar-se amigo dos polícias e conversar com eles sobre o progresso do caso. - Mas o Granger também parece ultracuidadoso.

- Provavelmente, está uma guerra a decorrer dentro dele, entre precaução e curiosidade. Mas repara no comportamento do homem... é arrojado como o demónio. Aposto que a curiosidade vai vencer.

Judy assentiu para o telefone. Valia a pena escutar as intuições de Bo: vinham de trinta anos de experiência policial.

- Vou rever todas as entrevistas do caso.

- Procura alguma coisa inusitada. Este tipo nunca faz a coisa normal. Poderá ser um médium a oferecer-se para adivinhar onde vai ocorrer o próximo sismo, ou coisa do género. Ele é imaginativo.

- Está bem. Mais alguma coisa?

- Que é que queres para o jantar?

- O mais certo é não ir a casa.

- Não exageres.

- Bo, tenho três dias para apanhar esta gente. Se falhar, podem morrer centenas de pessoas! Não estou a pensar em jantar.

- Se ficares cansada, vais perder a pista crucial. Faz pausas, almoça, dorme o que precisares.

- Como tu fizeste sempre, não é? Ele riu-se.

- Boa sorte.

- Adeus. - Desligou, com o sobrolho franzido. Teria de rever cada entrevista que a equipa de Marvin tinha feito às pessoas da Campanha para a Califórnia Verde, mais as notas da rusga a Los Alamos e tudo o resto no dossier. Devia estar tudo na rede informática do escritório. Tocou no teclado e seleccionou o directório. À medida que observava o material, chegou à conclusão de que era demasiado para ela rever pessoalmente. Eles tinham entrevistado todos os proprietários do vale do rio de Prata, mais de cem pessoas. Quando tivesse pessoal extra, poria uma equipa pequena a tratar do assunto. Tomou nota.

Que mais? Tinha de preparar vigias em locais onde poderia ocorrer um sismo. Michael tinha dito que podia fazer uma lista. Ficou contente por ter um motivo para lhe telefonar. Marcou o número dele.

Ele pareceu satisfeito por ouvir a voz dela.

- Estou ansioso pela nossa saída esta noite. Merda... tinha-me esquecido completamente.

- Fui recolocada no caso de Os Filhos do Paraíso - disse-lhe ela.

- Isso quer dizer que esta noite não pode? - O tom dele foi desanimado.

Certamente, não podia pensar em ir jantar e ao cinema.

- Gostava de o ver, mas não tenho muito tempo. Talvez pudéssemos encontrar-nos para uma bebida?

- Claro.

- Lamento imenso, mas o caso está a evoluir rapidamente. Telefonei-lhe para lhe pedir aquela lista que me prometeu, de localizações onde poderá ocorrer um sismo. Já a fez?

- Não. Ficou ansiosa com a eventualidade de a notícia se tornar pública e causar pânico, e isso fez-me pensar que a lista poderia ser perigosa.

- Agora preciso de saber.

- Está bem, vou analisar as informações.

- Pode trazer a lista consigo esta noite?

- Claro. No Morton's, às seis?

- Encontramo-nos lá.

- Escute...

- Ainda estou aqui.

- Estou muito satisfeito por estar novamente a trabalhar no caso. É pena não podermos jantar juntos, mas agora sinto-me mais seguro por saber que é você que anda atrás dos mauzões. Estou a falar a sério.

- Obrigada. - Ao desligar, esperou merecer a confiança dele. Faltam três dias.

A meio da tarde, o centro operacional de emergência estava montado e a funcionar.

O clube dos oficiais parecia uma mansão espanhola. No interior, era a imitação sombria de um clube de campo, com painéis baratos, murais de má qualidade e instalações eléctricas horríveis. O cheiro da doninha não tinha desaparecido.

O cavernoso salão de baile tinha sido adaptado para posto de comando. Num canto via-se a zona das chefias, uma mesa com cadeiras para os chefes das principais agências envolvidas na gestão da crise, incluindo a Polícia de São Francisco, bombeiros e pessoal médico, os serviços de emergência do presidente da Câmara, e um representante do governador. Os peritos da sede, que vinham naquele momento de Washington para São Francisco num jacto do FBI, sentar-se-iam ali. À volta da sala, grupos de mesas estavam montadas para as diferentes equipas que iriam trabalhar no caso: serviços secretos e investigação, o núcleo do esforço; negociação e equipas de intervenção que seriam chamadas se houvesse reféns; uma equipa de apoio administrativo e técnico que cresceria se a crise aumentasse; uma equipa jurídica para emitir mandatos de busca, mandatos de captura ou escutas telefónicas; e uma equipa de recolha de provas, que entraria em qualquer local de crime depois do acontecimento para recolher provas.

Computadores portáteis em cada mesa estavam ligados a uma rede local. O FBI utilizara durante muito tempo um sistema de controlo de informações baseado em papel chamado Começo Rápido, mas agora tinha desenvolvido uma versão informática, usando software da Microsoft Access. Mas o papel não tinha desaparecido. Duas paredes da sala estavam cobertas com painéis de notícias: painéis de pistas a seguir, painéis de acontecimentos, painéis de suspeitos, painéis de pedidos e painéis de reféns. Informações cruciais e pistas seriam escritas ali para que todos pudessem ter acesso a elas num abrir e fechar de olhos. Naquele momento, o painel de suspeitos tinha um nome - Richard Granger - e duas fotografias. O painel de pistas tinha a fotografia de um vibrador sísmico.

A sala era suficientemente grande para algumas centenas de pessoas, mas até agora encontravam-se ali apenas cerca de quarenta e cinco. A maioria estava concentrada à volta da mesa dos serviços secretos e investigação, a falar para telefones, a escrever em teclados e a ler ficheiros no ecrã. Judy tinha-os dividido em equipas, cada uma com um líder que controlava os outros, para poder manter-se a par dos progressos falando apenas com três pessoas.

Havia um ambiente de urgência latente. Estavam todos calmos, mas muito concentrados e a trabalhar intensamente. Ninguém parava para tomar café nem conversava junto à fotocopiadora nem ia lá fora fumar um cigarro. Judy sabia que mais tarde, se a situação evoluísse para uma crise totalmente declarada, a atmosfera mudaria: as pessoas gritariam para os telefones, o quociente expletivo multiplicar-se-ia, as disposições piorariam, e ela teria de manter a tampa no caldeirão.

Lembrou-se da ideia de Bo e puxou uma cadeira para perto de Carl Theobald, um jovem agente muito inteligente que vestia uma elegante camisa azul-escura. Era o chefe da equipa que estava a rever os ficheiros de Marvin Hayes.

- Alguma coisa? - perguntou. Ele abanou a cabeça.

- Não sabemos ao certo o que procuramos, mas seja o que for ainda não encontrámos.

Ela acenou afirmativamente. Tinha dado uma tarefa vaga a esta equipa, mas não podia evitá-lo. Tinham de procurar alguma coisa fora do comum. Muito dependia da intuição do agente individual. Algumas pessoas conseguiam cheirar falsidade até mesmo no cumputador.

- De certeza que temos tudo em ficheiro? - perguntou ela. Carl encolheu os ombros.

- Devemos ter.

- Verifica se eles guardaram alguns registos em papel.

- Eles não devem...

- Mas as pessoas continuam a fazê-lo.

- Está bem.

Rosa telefonou-lhe para a mesa das chefias por causa de um telefonema. Era Michael. Sorriu ao atender.

- Olá.

- Olá. Esta noite estou com um problema. Não posso encontrar-me consigo.

Ela ficou chocada com o tom dele. Parecia brusco e hostil. Nos últimos dias tinha sido caloroso e afectuoso. Mas este era o Michael original, o que a tinha mandado embora da sua porta e lhe dissera para marcar uma hora.

- Passa-se alguma coisa? - perguntou ela.

- Apareceu uma coisa. Lamento ter de cancelar.

- Qual é o problema, Michael?

- Estou com um bocado de pressa. Depois telefono-lhe.

- Está bem - disse ela. Ele desligou.

Ela ficou com o telefone na mão, magoada.

- Agora, o que era aquilo? - perguntou a si mesma. Logo agora que eu estava a começar a gostar do homem. Que é que se passa com ele? Por que não poderá ficar como estava no domingo à noite? Ou mesmo quando me telefonou esta manhã?

Carl Theobald interrompeu-lhe os pensamentos. Parecia perturbado.

- O Marvin Hayes está a fazer-me passar um mau bocado - disse ele. - Eles têm realmente algumas informações em papel, mas quando eu disse que precisava de as ver, só faltou dizer-me para me pôr a milhas.

- Não te preocupes, Carl - disse Judy. - Estas coisas são enviadas pelo céu para nos ensinar a sermos pacientes e tolerantes. Vou arrancar-lhe os tomates.

Os agentes que estavam perto ouviram-na e riram.

- Vem comigo, eu mostro-te - disse ela.

Saíram do edifício e entraram no carro dela. Levaram quinze minutos a chegar ao Edifício Federal na Avenida Golden Gate. Enquanto subiam no elevador, Judy perguntou a si mesma como deveria lidar com Marvin. Devia arrancar-lhe os tomates ou ser conciliatória? A aproximação cooperante só funcionava quando a outra parte estava disposta. Com Marvin, o mais certo era já ter ultrapassado essa fase para sempre. "

Hesitou do lado de fora da porta do gabinete da brigada de Crime Organizado. Muito bem, vou ser a Xena, a princesa guerreira.

Entrou, e Carl seguiu-a.

Marvin estava ao telefone, a sorrir abertamente, a contar uma anedota.

- Então o empregado do bar diz para o fulano, há um texugo na sala das traseiras que faz o melhor broche...

Judy debruçou-se na secretária e disse em voz alta:

- Que treta é que estás a impingir ao Carl?

- Está uma pessoa a interromper-me, Joe - disse ele. - Já te ligo. - Desligou. - Que posso fazer por ti, Judy?

Ela inclinou-se mais, quase colando-se ao rosto dele.

- Deixa-te de merdas.

- Que é que se passa contigo? - disse ele, num tom ofendido. - Que é que pretendes ao vasculhar os meus ficheiros como se eu tivesse cometido algum maldito engano?

Ele não tinha necessariamente cometido um erro. Quando o perpetrador se apresentava à equipa de investigação sob o disfarce de um mirone ou de uma testemunha, tentava geralmente certificar-se de que não suspeitavam dele. A culpa não era dos investigadores, mas podia fazê-los parecerem idiotas.

- Acho que é possível que tenhas falado com o perpetrador - disse ela. - Onde estão esses ficheiros em papel?

Ele endireitou a gravata amarela.

- Só temos alguns apontamentos da conferência de imprensa que nunca foram introduzidos em computador.

- Mostra-me.

Ele apontou para uma caixa de arquivo numa mesa lateral encostada à parede.

- Serve-te.

Ela abriu a caixa. No cimo viu uma factura de aluguer de um sistema áudio com microfones.

- Não vais encontrar nada - disse Marvin.

Ele podia ter razão, mas tinha de tentar, e era uma estupidez da parte dele tentar dificultar-lhe a vida. Um homem mais esperto teria dito, "Hei, se deixei passar alguma coisa, espero que encontres". Toda a gente comete erros. Mas Marvin estava agora demasiado na defensiva para ser delicado. Só tinha de provar que Judy estava enganada.

Seria embaraçoso se ela estivesse enganada.

Vasculhou os papéis. Havia alguns faxes de jornais a pedir pormenores da conferência de imprensa, uma nota acerca de quantas cadeiras seriam necessárias, e uma lista de convidados, um formulário onde se tinha pedido aos jornalistas presentes na conferência de imprensa que escrevessem os nomes e as publicações ou emissoras que representavam. Judy passou o olhar pela lista.

- Que diabo é isto? - disse ela de súbito. - Florence Shoebury, Liceu Eisenhower Júnior?

- Ela queria fazer a cobertura da conferência de imprensa para o jornal da escola - esclareceu Marvin. - Que é que podíamos fazer, mandá-la desaparecer dali para fora?

- Verificaram a identidade dela?

- É uma miúda!

- Estava sozinha?

- O pai trouxe-a.

Havia um cartão profissional agrafado ao formulário.

- Peter Shoebury, da Watkins, Cloefax e Brown. Verificaram a identidade dele!

Marvin hesitou durante um longo momento, apercebendo-se de que tinha cometido um erro.

- Não - disse por fim. - O Brian decidiu deixá-los entrar na conferência de imprensa, e depois eu não voltei a pensar no assunto.

Judy entregou a folha com o cartão profissional a Carl.

- Telefona imediatamente a este homem - disse.

Carl sentou-se à secretária mais próxima e pegou no telefone. Marvin disse:

- De qualquer maneira, o que é que te faz ter tanta certeza de que falámos com o sujeito?

- O meu pai pensa que sim. - Logo que as palavras lhe saíram da boca percebeu que tinha feito asneira.

Marvin sorriu, trocista.

- Oh, então o teu paizinho pensa que sim. Foi a esse nível que descemos? Estás a espiar-me só porque o teu paizinho te mandou?

- Pára com isso, Marvin. O meu pai já prendia bandidos quando tu ainda mijavas na cama.

- Afinal, até onde é que vais com isto? Estás a tentar apanhar-me? Andas à procura de alguém para ficar com as culpas quando falhares?

- Que ideia brilhante - disse ela. - Por que será que não pensei nisso?

Carl desligou o telefone e disse.

- Judy.

- Sim?

- O Peter Shoebury nunca esteve no interior deste edifício, e não tem filha nenhuma. Mas foi assaltado no sábado de manhã a dois quarteirões daqui, e roubaram-lhe a carteira, onde ele guardava os cartões profissionais.

Fez-se um momento de silêncio, e depois Marvin disse:

- Foda-se.

Judy ignorou o embaraço dele. Estava excitada de mais com a notícia. Podia ser uma fonte completamente nova de informações.

- Ele não devia parecer-se com o retrato falado que obtivemos no Texas.

- Nem um pouco - disse Marvin. - Não tinha barba nem chapéu. Tinha óculos grandes e cabelos compridos apanhados num rabo-de-cavalo.

- Provavelmente, é outro disfarce. E quanto à estatura dele, e coisas do género?

- Alto, magro.

- Cabelo escuro, olhos escuros, aproximadamente cinquenta anos?

- Sim, sim e sim.

Judy quase sentiu pena de Marvin.

- Era o Ricky Granger, não era?

Marvin olhou para o chão como se quisesse que ele se abrisse e o engolisse.

- Acho que tens razão.

- Gostava que fizesses um retrato E-fit, por favor. Ele acenou afirmativamente, ainda sem olhar para ela.

- Claro.

- Agora quanto à Florence Shoebury?

- Bem, ela desarmou-nos. Quero dizer, que género de terrorista traz uma rapariguinha consigo?

- Um que é completamente impiedoso. Como era a miúda?

- Rapariga branca, com cerca de doze, treze anos. Cabelos escuros, olhos escuros, constituição magra. Bonita.

- É melhor fazeres também um retrato falado dela. Achas que é mesmo filha dele?

- Oh, claro. Era o que pareciam. Ela não mostrou qualquer sinal de estar sob coerção, se é no que estás a pensar.

- Sim. Muito bem, por agora vou partir do princípio de que são pai e filha. - Voltou-se para Carl. - Vamos embora.

Saíram. No corredor, Carl disse:

- Uau. Arrancaste-lhe mesmo os tomates. Judy estava jubilosa.

- Mas temos outro sujeito... a miúda.

- Sim. Só espero que nunca me apanhes a fazer uma asneira. Ela parou e olhou para ele.

- Não foi uma asneira, Carl. Alguém fez merda. Mas ele estava disposto a impedir a investigação para se safar. Foi a asneira que ele fez. E é por isso que agora parece um idiota chapado. Se fizeres um erro, admite-o.

- Sim - disse Carl. - Mas o melhor é manter também as pernas cruzadas.

Naquela noite, já tarde, Judy recebeu a primeira edição do San Francisco Chronicle com as duas fotografias novas:

O retrato E-fit de Florence Shoebury e o novo retrato E-fit de Ricky Granger disfarçado de Peter Shoebury. Anteriormente, tinha apenas olhado de relance para as fotografias antes de pedir a Madge Kelly que as fizesse chegar aos jornais e às estações de televisão. Agora, a analisá-las à luz do candeeiro da secretária, ficou surpreendida com a semelhança entre Granger e Florence. São pai e filha, têm de ser. Que será que vai acontecer-lhe se eu puser o pai na cadeia?

Bocejou e esfregou os olhos. Lembrou-se do conselho de Bo.

"Faz pausas, almoça, dorme o que precisares." Eram horas de ir para casa. O turno da noite já tinha chegado.

Enquanto conduzia para casa, reviu o dia e o que tinha conseguido. Parada num sinal vermelho, a olhar para filas gémeas de luzes de candeeiros que convergiam infinitamente ao longo da Avenida Geary, apercebeu-se de que Michael não lhe enviara por fax a prometida lista de localizações onde seria provável a ocorrência de um sismo.

Marcou o número dele no telefone do carro, mas não obteve resposta. Por algum motivo, aquilo incomodou-a. Tentou mais uma vez noutro sinal vermelho, e o número estava ocupado. Ligou para a central telefónica do escritório e pediu-lhes que contactassem a companhia dos telefones para saber se havia vozes na linha. A telefonista telefonou a confirmar que não. O telefone tinha sido tirado do descanso.

Então ele estava em casa, mas não atendia o telefone.

Tinha uma voz estranha quando telefonara para cancelar o encontro. Ele era assim; podia ser encantador e simpático, e depois mudar abruptamente e ser difícil e arrogante. Mas por que teria o telefone fora do descanso? Judy sentiu-se apreensiva.

Viu as horas no relógio do tablier. Passavam poucos minutos das onze.

Faltam dois dias.

Não posso perder tempo.

Deu meia volta e dirigiu-se para Berkeley.

Chegou à Rua Euclid às onze e quinze. Havia luzes no apartamento de Michael. Cá fora, um velho Subaru cor de laranja. Tinha visto o carro antes, mas não sabia a quem pertencia. Estacionou atrás dele e tocou à campainha de Michael.

Não houve resposta.

Judy estava preocupada. Michael tinha informações cruciais. Hoje, no próprio dia em que lhe fizera uma pergunta-chave, ele tinha cancelado abruptamente um encontro, e depois ficara incomunicável.

Era suspeito.

Perguntou a si mesma o que devia fazer. Talvez devesse pedir reforços policiais e arrombar a porta. Ele podia estar ali amarrado ou morto.

Voltou para o carro e pegou no intercomunicador do rádio, mas hesitou. Quando um homem tirava o telefone do descanso às onze da noite, podia significar uma imensidão de coisas. Podia querer dormir. Podia estar a dar uma queca, embora Michael parecesse demasiado interessado em Judy para andar a brincar com outras. Pensou que ele não era do tipo que dormia com uma mulher diferente todas as noites.

Enquanto estava hesitante, uma mulher jovem com uma pasta aproximou-se do edifício. Parecia uma professora assistente que voltava de um serão no laboratório. Parou à porta e procurou as chaves na pasta.

Impulsivamente, Judy saiu do carro e atravessou em passos rápidos o relvado para a entrada.

- Boa noite - disse. Mostrou-lhe o distintivo. - Judy Maddox, agente especial do FBI. Preciso de entrar neste edifício.

- Algum problema? - perguntou a mulher, ansiosa.

- Espero que não. Se for para o seu apartamento e fechar a porta, não vai acontecer-lhe nada.

Entraram juntas. A mulher entrou num apartamento do rés-do-chão e Judy continuou a subir as escadas. Bateu à porta de Michael com os nós dos dedos.

Ninguém respondeu.

Que é que se passava? Ele estava lá dentro. Devia tê-la ouvido tocar e bater. Sabia que nenhuma visita ocasional seria tão persistente a esta hora tão avançada. Teve a certeza de que alguma coisa estava errada.

Bateu de novo, três vezes, com força. Depois encostou o ouvido à porta e escutou.

Ouviu um grito.

E foi a gota de água. Recuou um passo e pontapeou a porta com toda a força. Usava sapatos finos, e magoou a planta do pé direito, mas a madeira à volta da fechadura fragmentou-se: graças a Deus que ele não tinha uma porta blindada. Pontapeou uma vez mais. Aparentemente, a fechadura estava quase partida. Correu para a porta com o ombro e esta abriu-se.

Empunhou a arma.

- FBI! - gritou. - Deixem cair as armas e ponham as mãos no ar! - Ouviu-se outro grito. Quase inconscientemente pensou que parecia uma mulher, mas não tinha tempo para analisar o que isso significava. Avançou para o hall de entrada.

A porta do quarto de Michael estava aberta. Deixou-se cair sobre um joelho, com os braços esticados e a arma apontada ao quarto. O que viu embasbacou-a.

Michael estava na cama, nu, a transpirar. Estava em cima de uma mulher magra com cabelos ruivos que respirava pesadamente. Judy percebeu que era a mulher.

Estavam a fazer amor.

Olharam ambos para Judy, assustados e incrédulos.

Depois Michael reconheceu-a e disse:

- Judy? Que diabo...?

Ela fechou os olhos. Nunca se tinha sentido tão estúpida em toda a sua vida.

- Oh, merda - disse. - Desculpem. Oh, merda.

 

     Na quarta-feira de manhã cedo Priest parou na margem do rio de Prata, a contemplar a forma como o céu matinal se reflectia nos planos quebrados da superfície mutante da água, maravilhando-se com a luminosidade de azul e branco na luz da alvorada. Os outros estavam todos a dormir. O cão estava sentado ao seu lado, a respirar calmamente, à espera de que acontecesse alguma coisa.

Era um momento tranquilo, mas a alma de Priest não estava em paz.

Faltavam apenas dois dias para o fim do prazo, e o governador Robson ainda não tinha dito nada.

Era de enlouquecer. Ele não queria provocar outro tremor de terra. Este teria de ser mais espectacular, teria de destruir estradas e pontes, de fazer ruir arranha-céus. Morreriam pessoas.

Priest não era como Melanie, com sede de vingança do mundo. Ele só queria que o deixassem em paz. Estava disposto a fazer tudo o que fosse preciso para salvar a comuna, mas sabia que seria mais sensato evitar matar, se pudesse. Depois de estar tudo acabado, e de o projecto para inundar o vale ter sido cancelado, ele e a comuna queriam viver em paz. O objectivo era esse. E as hipóteses de permanecerem ali sem serem perturbados seriam maiores se pudessem vencer sem matar cidadãos inocentes da Califórnia. O que acontecera até agora podia ser esquecido dentro de pouco tempo. Deixaria de ser comentado nas notícias, e ninguém se importaria com o destino dos doidos que afirmavam poder provocar sismos.

Enquanto estava a pensar, Star apareceu. Despiu o robe roxo e entrou no rio de água fria para se lavar. Priest olhou avidamente para aquele corpo voluptuoso, conhecido mas ainda desejado. Na noite anterior não tinha partilhado a cama com ninguém. Star continuava a passar as noites com Bonés, e Melanie estava com o marido em Berkeley. E o grande garanhão dorme sozinho.

Enquanto ela estava a limpar-se, Priest disse:

- Vamos comprar um jornal. Quero saber se o governador Robson disse alguma coisa a noite passada.

Vestiram-se e foram até uma bomba de gasolina. Priest encheu o tanque do 'Cuda enquanto Star comprava o San Francisco Chronicle. Ela voltou, branca como a cal.

- Olha - disse, mostrando-lhe a primeira página.

Ele viu a fotografia de uma rapariga que lhe pareceu familiar. Instantes depois percebeu, horrorizado, que era Flower.

Assombrado, pegou no jornal.

Ao lado da fotografia de Flower viu uma de si próprio.

Eram ambas imagens criadas por computador. A de Priest baseava-se na sua aparência na conferência de imprensa do FBI, quando se disfarçara de Peter Shoebury, com os cabelos amarrados e óculos grandes. Pensou que ninguém o reconheceria a partir daquilo.

Flower não fora disfarçada. A fotografia de computador era como um retrato não muito bem feito - não ela, mas parecido com ela. Priest sentiu frio. Não estava acostumado a ter medo. Era um temerário que gostava do risco. Mas não se tratava dele. Tinha posto a filha em perigo.

Furiosa, Star disse:

- Por que diabo é que tiveste de ir àquela conferência de imprensa?

- Tinha de saber em que é que eles estavam a pensar.

- Foi tão estúpido!

- Eu fui sempre precipitado.

- Eu sei. - A voz dela suavizou-se, e tocou-lhe na face. - Se fosses tímido, não serias o homem que eu amo.

Um mês antes não teria importado: ninguém fora da comuna conhecia Flower, e ninguém lá dentro lia jornais. Mas ela tinha ido a Silver City às escondidas para conhecer rapazes; tinha roubado um póster numa loja; tinha sido presa; e passara uma noite encarcerada. As pessoas que tinha conhecido lembrar-se-iam dela? E se assim fosse reconheceriam a fotografia? O agente da liberdade condicional podia recordar-se dela, mas felizmente continuava de férias nas Baamas, onde era improvável que visse o San Francisco Chronicle. Mas a mulher que a tinha acolhido naquela noite? Priest lembrou-se que era uma professora primária que era também irmã do xerife. O nome veio-lhe à cabeça: Menina Waterlow. Presumivelmente, via centenas de meninas, mas talvez se lembrasse dos rostos de todas. Talvez tivesse uma memória péssima. Talvez também tivesse ido de férias. Talvez não lesse o Chronicle de hoje.

E talvez Priest estivesse acabado.

Não podia fazer nada. Se a professora visse a fotografia e reconhecesse Flower e telefonasse para o FBI, uma centena de agentes invadiriam a comuna e estariam por todo o lado.

Olhou para o jornal enquanto Star lia o texto.

- Se não a conhecesses, reconhecê-la-ias? Star abanou a cabeça.

- Acho que não.

- Eu também não. Mas gostava de ter a certeza.

- Não pensei que os federais fossem tão espertos - disse Star.

- Alguns são, outros não. É esta rapariga asiática que me preocupa. Judy Maddox. - Priest recordou as imagens dela na televisão, tão elegante e graciosa, a abrir caminho por uma multidão hostil com um olhar de determinação implacável nas feições delicadas. - Tenho um mau pressentimento em relação a ela - disse ele. - Um pressentimento muito mau. Ela não pára de desencantar pistas... primeiro o vibrador sísmico, depois a minha fotografia em Shiloh, agora a Flower. Talvez seja por isso que o governador Robson não disse nada. Ela mantém-no na esperança de que vamos ser apanhados. Há alguma declaração do governador no jornal?

- Não. Segundo esta reportagem, muitas pessoas dizem que o governador Robson vai ceder e negociar com Os Filhos do Paraíso, mas ele recusa-se a fazer comentários.

- Assim não adianta - disse ele. - Tenho de arranjar uma forma de falar com ele.

Quando acordou, Judy não se lembrou porque é que se sentia tão mal. Depois, toda a cena deplorável voltou numa torrente pavorosa.

Na noite anterior tinha ficado paralisada de embaraço. Balbuciara uma desculpa a Michael e correra para fora do edifício, a queimar de vergonha. Mas esta manhã a mortificação tinha sido substituída por um sentimento diferente. Agora só se sentia triste. Tinha pensado que Michael poderia passar a fazer parte da sua vida. Queria conhecê-lo melhor, gostar mais dele, fazer amor com ele. Tinha imaginado que ele se interessava por ela. Mas o relacionamento esmagara-se e ardera em segundos.

Sentou-se na cama e olhou para a colecção de marionetas de água vietnamitas que herdara da mãe, arrumadas numa prateleira por cima da cómoda. Nunca vira um espectáculo de marionetas - nunca tinha estado no Vietname -, mas a mãe contara-lhe como as pessoas que manipulavam os fantoches ficavam dentro de um lago com água pela cintura, atrás de uma cascata, e usavam a superfície da água como palco. Ao longo de centenas de anos estes bonecos de madeira pintada tinham sido usados para contar histórias inteligentes e engraçadas. E, sempre que os contemplava, Judy recordava a tranquilidade da mãe. Que diria ela agora? Judy ouvia a voz da mãe, baixa e calma. "Um erro é um erro. Outro erro é normal. Só o mesmo erro cometido duas vezes é que te torna estúpida."

A noite passada fora apenas um erro. Michael tinha sido um erro. Tinha de pôr tudo aquilo atrás das costas. Tinha dois dias para impedir um sismo. Aquilo é que era realmente importante.

No noticiário da televisão as pessoas perguntavam-se se Os Filhos do Paraíso poderiam realmente provocar um sismo. As pessoas que acreditavam tinham formado um grupo de pressão para obrigar o governador Robson a ceder. Mas, enquanto se vestia, Judy não conseguia deixar de pensar em Michael. Gostava de poder falar com a mãe sobre aquilo. Ouviu Bo andar de um lado para o outro, mas não era o tipo de conversa que se tinha com o pai. Em vez de fazer o pequeno-almoço, telefonou para a amiga Virginia.

- Preciso de conversar com alguém - disse-lhe. - Já tomaste o pequeno-almoço?

Encontraram-se numa cafetaria perto do Presídio. Ginnie era uma loura baixinha, engraçada e honesta. Dizia sempre a Judy exactamente o que pensava. Judy pediu dois croissants com chocolate para se sentir melhor, e depois contou o que se passara na noite anterior.

Quando chegou à parte em que entrara de rompante com a arma na mão e os encontrara na cama, Ginny quase caiu a rir.

- Desculpa - disse, e engasgou-se com um pedaço de torrada.

- Acho que até é divertido - reconheceu Judy, a sorrir. - Mas ontem à noite não foi o que pareceu, garanto-te.

Ginny tossiu e engoliu.

- Não queria ser cruel - disse ela depois de se recompor. - Calculo que na altura não tenha tido muita graça. O que ele fez foi um nojo, sair contigo e dormir com a mulher.

- Isso só mostra que ele ainda não a esqueceu - disse Judy. - Por isso, ainda não está preparado para um novo relacionamento.

Ginny fez uma careta de dúvida.

- Não acredito necessariamente nisso.

- Achas que foi uma espécie de despedida, um último abraço em nome dos velhos tempos?

- Talvez ainda mais simples. Sabes bem que os homens nunca dizem que não a uma queca, se lhes for oferecida. Ao que tudo indica, ele tem vivido como um monge desde que ela o deixou. As hormonas deviam andar a fazer-lhe a vida negra. Dizes que ela é atraente?

- Tem um ar muito sexy.

- Então se ela entrasse com uma camisola justa e começasse a atirar-se a ele, claro que ele não ia conseguir evitar uma erecção. E depois de isso acontecer, o cérebro dos homens desliga e o piloto automático da pila assume o comando.

- Achas que sim?

- Escuta, eu nunca vi o Michael, mas conheço alguns homens, bons e maus, e é o que acho que aconteceu.

- Que é que tu farias?

- Falava com ele. Perguntava porque é que aquilo aconteceu. Via o que ele dizia. Via se acreditava nele. E se ele me desse uma desculpa da treta, esquecia-o. Mas, se parecesse honesto, tentava encontrar um sentido para todo o incidente.

- De qualquer maneira, tenho de lhe telefonar - disse Judy. - Ele ainda não me mandou aquela lista.

- Então telefona. Arranja a lista. Depois pergunta-lhe o que é que ele pensa que anda a fazer. Tu sentes-te embaraçada, mas ele também tem de pedir desculpa.

- Acho que tens razão.

Ainda não eram oito horas, mas estavam ambas com pressa para ir trabalhar. Judy pagou a conta e dirigiram-se para os seus carros.

- Que alívio - disse Judy. - Estou a começar a sentir-me melhor em relação a isto. Obrigada.

Ginny encolheu os ombros.

- Para que servem as amigas? Conta-me o que ele disser.

Judy entrou no carro e marcou o número de Michael. Estava com receio de que ele estivesse a dormir e tivesse de falar com ele enquanto estava na cama com a mulher. Porém, a voz dele soou aleita, como se estivesse levantado há algum tempo.

- Lamento o que aconteceu à porta - disse ela.

- Por que é que fizeste aquilo? - Ele parecia mais curioso do que zangado.

- Não conseguia compreender por que é que não respondias. Depois ouvi um grito. Pensei que estavas com algum problema.

- Que é que te trouxe aqui tão tarde?

- Não me mandaste a lista das localizações sísmicas.

- Oh, é verdade! Está na minha secretária. Esqueci-me. Vou mandá-la agora por fax.

- Obrigada. - Deu-lhe o número do fax do novo centro operacional de emergência. - Michael, tenho de te perguntar uma coisa. - Respirou fundo. Fazer esta pergunta era mais difícil do que pensara. Não era nenhuma flor de estufa, mas não era tão atrevida como Ginny. Engoliu em seco e disse: - Fiquei com a impressão de que estavas a começar a gostar de mim. Por que é que dormiste com a tua mulher? - Já estava. Tinha conseguido.

Do outro lado da linha fez-se um silêncio prolongado. Depois, ele disse:

- Agora não é boa altura.

- Está bem. - Esforçou-se para que a voz não deixasse transparecer o desapontamento que sentia.

- Vou enviar a lista imediatamente.

- Obrigada.

Ela desligou e ligou o motor. Afinal de contas, a ideia de Ginny não tinha sido tão boa. Eram precisos dois para falar, e Michael não estava disposto.

Quando chegou ao clube dos oficiais, o fax de Michael já lá estava. Ela mostrou-o a Carl Theobald.

- Precisamos de equipas de vigilância em cada um destes locais, atentos ao aparecimento de um vibrador sísmico - disse ela. - Estava com esperança de usar a Polícia, mas acho que não podemos. Eles podiam falar. E se os habitantes locais descobrirem que nós pensamos que eles são um alvo, entram em pânico. Por isso temos de usar pessoal do FBI.

- Está bem. - Carl franziu o sobrolho ao olhar para a folha. - Não sei se reparaste, mas estas áreas são enormes. Uma equipa não pode vigiar uma zona com um quilómetro e meio quadrado. Devemos colocar equipas múltiplas? Ou será que o teu sismólogo podia reduzir a área?

- Vou pedir-lhe. - Judy pegou no telefone e marcou novamente o número de Michael. - Obrigada pelo fax - disse. Explicou-lhe o problema.

- Teria de visitar esses locais pessoalmente - disse ele. - Os sinais de actividade sísmica anterior, como leitos de rio secos ou escarpas da falha, dar-me-iam uma ideia mais precisa.

- Não te importas de fazer isso hoje? - perguntou ela imediatamente. - Posso levar-te a todos os locais num helicóptero do FBI.

- Uh... claro, acho que sim - disse ele. - Quero dizer, claro que vou.

- Podes estar a salvar vidas.

- Exactamente.

- Sabes onde fica o clube dos oficiais no Presídio?

- Claro.

- Quando chegares aqui, o helicóptero estará à espera.

- Está bem.

- Agradeço-te isto, Michael.

- Não tens nada que agradecer.

Mas ainda gostava de saber porque é que dormiste com a tua mulher. Desligou.

Foi um dia comprido. Judy, Michael e Carl Theobald percorreram mil e setecentos quilómetros de helicóptero. Ao anoitecer tinham montado uma vigilância permanente nas cinco localizações da lista de Michael.

Voltaram para o Presídio. O helicóptero aterrou na parada deserta. A base era uma cidade fantasma, com os seus edifícios de escritórios a desfazerem-se e fileiras de casas vazias.

Judy tinha de ir ao centro operacional de emergência apresentar-se a um manda-chuva da sede do FBI em Washington que aparecera às nove da manhã com ar de quem ia assumir o comando. Mas primeiro acompanhou Michael ao carro no parque de estacionamento às escuras.

- E se eles conseguirem passar pela segurança? - perguntou ela.

- Pensei que o teu pessoal era bom.

- São os melhores. Mas se isso acontecer? Há alguma maneira de eu ser avisada verdadeiramente depressa se houver um abalo algures na Califórnia?

- Claro - disse ele. - Eu podia montar um sismógrafo permanente aqui no teu posto de comando. Só preciso de um computador e de uma linha telefónica ISDN.

- Não há problema. Não te importas de tratar disso amanhã?

- Está bem. Dessa forma, saberás imediatamente se eles ligarem o vibrador sísmico em algum lado que não esteja na lista.

- É provável?

- Não me parece. Se o sismólogo deles for competente, vai escolher os mesmos sítios que eu seleccionei. E se for incompetente, provavelmente não vão conseguir causar um sismo.

- Óptimo - disse ela. - Óptimo. - Não se esqueceria daquilo. Podia dizer ao manda-chuva de Washington que tinha a crise sob controlo.

Ergueu os olhos para o rosto de Michael, que estava na penumbra.

- Por que é que dormiste com a tua mulher?

- Tenho andado a pensar nisso o dia inteiro.

- Eu também.

- Acho que te devo uma explicação.

- Acho que sim.

- Até ontem, tinha a certeza de que estava acabado. Depois, ontem à noite, ela recordou-me as coisas que tinham sido boas no nosso casamento. Ela foi linda, engraçada, afectuosa e sexy. Mais importante, fez-me esquecer todas as coisas más.

- Como por exemplo? Ele suspirou.

- Acho que a Melanie se sente atraída por figuras autoritárias. Eu era o professor dela. Ela queria a segurança de lhe dizerem o que fazer. Eu queria uma parceira igual, alguém com quem pudesse partilhar decisões e assumir responsabilidade. E ressenti-me com isso.

- Estou a perceber.

- E há mais uma coisa. Muito no fundo, ela está profundamente zangada com o mundo inteiro. A maior parte do tempo esconde o que sente, mas quando está frustrada pode ser violenta. Atirava-me com coisas, coisas pesadas, como uma vez em que me atirou com uma frigideira. Nunca me magoou, porque não tem força suficiente, mas se houvesse uma arma na casa eu teria medo. E é difícil viver com esse nível de hostilidade.

- E a noite passada...?

- Esqueci tudo aquilo. Ela parecia com vontade de tentar de novo, e eu pensei que talvez devêssemos, para bem do Dusty. Para além do mais...

Ela gostava de poder ler a expressão dele, mas estava escuro de mais.

- O quê?

- Quero dizer-te a verdade, Judy, embora vás ficar ofendida com ela. Por isso tenho de admitir que não fui tão racional e decente como estou a fingir. Em parte foi por ela ser uma mulher bonita e por querer ir para a cama com ela. Agora já disse.

Ela sorriu na escuridão. Afinal, Ginny estava meio certa.

- Eu sabia - disse ela. - Mas ainda bem que me disseste. Boa noite. - Afastou-se.

- Boa noite - disse ele, baralhado. Alguns momentos depois chamou-a.

- Estás zangada?

- Não - disse ela por cima do ombro. - Já não.

Priest estava à espera de que Melanie voltasse para a comuna a meio da tarde. Quando chegou a hora do jantar e ela ainda não tinha chegado, começou a preocupar-se.

Ao anoitecer estava frenético. Que lhe teria acontecido? Teria decidido voltar para o marido? Ter-lhe-ia confessado tudo? Estaria agora a bufar tudo o que sabia à agente Judy Maddox numa sala de interrogatório no Edifício Federal em São Francisco?

Não conseguia estar quieto na cozinha nem permanecer deitado na cama. Pegou num castiçal, atravessou a vinha e os bosques, dirigiu-se para o círculo de estacionamento e esperou lá, a esforçar-se por ouvir o motor do velho Subaru dela ou o ruído do helicóptero do FBI que anunciaria o fim de tudo.

Spirit foi o primeiro a ouvir. Endireitou as orelhas, e depois correu pelo trilho enlameado, a ladrar. Priest levantou-se e esforçou-se por ouvir. Era o Subaru. Sentiu um alívio profundo. Observou os faróis a aproximarem-se pelo meio das árvores. Estava a ficar com dor de cabeça. Não tinha uma dor de cabeça há anos.

Melanie estacionou de qualquer maneira, saiu e atirou com a porta do carro.

- Odeio-te - disse para Priest. - Odeio-te por me convenceres a fazer aquilo.

- Eu estava certo? - perguntou ele. - O Michael está a fazer uma lista para o FBI?

- Vai-te foder!

Priest compreendeu que tinha feito asneira. Devia ter sido compreensivo e simpático. Momentaneamente, tinha deixado a ansiedade toldar-lhe o julgamento. Agora teria de perder tempo a dar-lhe a volta.

- Pedi-te que o fizesses porque te amo, não percebes isso?

- Não, não percebo. Não percebo nada. - Cruzou os braços no peito e afastou-se dele, contemplando a escuridão dos bosques. - Só sei que me sinto como uma prostituta.

Priest estava doido por saber o que ela tinha descoberto, mas acalmou-se.

- Onde é que estiveste? - perguntou.

- Andei por aí de carro. Parei para beber um copo.

Ele ficou em silêncio durante algum tempo. Depois, disse:

- Uma prostituta faz isso por dinheiro... e depois gasta dinheiro em roupas estúpidas e drogas. Tu fizeste-o para salvar o teu filho. Sei que te sentes mal, mas não és má. És boa.

Por fim, ela voltou-se para ele. Tinha lágrimas nos olhos.

- Não é só por termos feito sexo - disse. - É pior do que isso. Eu gostei. É o que me envergonha. Vim-me. A sério. Gritei.

Priest sentiu uma onda quente de ciúme e tentou escondê-la. Um dia, faria Michael Quercus sofrer por isso. Mas agora não era o momento de o dizer. Precisava de acalmar as coisas.

- Não faz mal - murmurou. - A sério que não faz mal. Eu compreendo. Acontecem coisas estranhas. - Pôs os braços à volta dela e abraçou-a.

Lentamente, ela descontraiu. Ele sentiu a tensão abandoná-la a pouco e pouco.

- Não te importas? - perguntou ela. - Não estás furioso?

- Nem um pouco - mentiu ele, acariciando-lhe os cabelos compridos. Vá lá, vá lá!

- Estavas certo em relação à lista - declarou ela. Por fim.

- Aquela mulher do FBI tinha pedido ao Michael para escolher as melhores localizações para um sismo, tal como imaginaste.

Claro que pediu. Ela é espertíssima. Melanie continuou:

- Ele estava sentado ao computador quando eu lá cheguei, a terminar.

- E que é que aconteceu?

- Eu fiz-lhe o jantar, e coisas assim.

Priest podia imaginar. Se Melanie decidia ser sedutora, era irresistível. E quando queria alguma coisa ficava no seu ponto mais atraente. Provavelmente, tinha tomado um banho e vestido um roupão, depois passeara-se pelo apartamento a cheirar a sabonete e a flores, a servir vinho ou a fazer café, deixando o roupão abrir-se de vez em quando para lhe dar relances torturantes das pernas compridas e dos seios suaves. Teria feito perguntas a Michael e escutado as respostas, a sorrir-lhe de uma forma que dizia Gosto tanto de ti, podes fazer tudo o que quiseres comigo.

- Quando o telefone tocou, eu disse-lhe para não atender, e depois tirei-o do descanso. Mas mesmo assim a maldita mulher apareceu, e quando o Michael não abriu a porta ela arrombou-a. Meu Deus, que choque que ela apanhou. - Priest calculou que ela precisava de desabafar tudo o que acontecera, por isso não a apressou. - Ela quase morreu de embaraço.

- Ele deu-lhe a lista?

- Na altura, não. Acho que ela ficou confusa de mais para perguntar. Mas telefonou esta manhã, e ele enviou-lha por fax.

- E conseguiste-a?

- Enquanto ele estava no duche, liguei o computador e imprimi outra cópia.

Então onde diabo é que está?

Ela levou a mão ao bolso de trás das calças, tirou uma única folha de papel dobrada em quatro e deu-a a Priest.

Graças a Deus.

Desdobrou-a e olhou-a à luz da vela. As letras e números impressos não significavam nada para ele.

- São estes os locais que ele lhe disse para vigiar?

- Sim, eles vão vigiar cada um destes lugares, à procura de um vibrador sísmico, exactamente como tu previste.

Juddy Maddox era esperta. A vigilância do FBI dificultaria muito o funcionamento do vibrador sísmico, especialmente se tivesse de tentar diversos locais diferentes, como tinha acontecido no vale Owens.

Mas ele era ainda mais inteligente do que Judy. Tinha antecipado esta jogada dela. E tinha pensado numa forma de a contornar.

- Percebes como é que o Michael escolheu estes sítios? - perguntou ele.

- Claro. São os locais onde a pressão da falha é mais elevada.

- Então tu podias fazer a mesma coisa.

- Já fiz. E escolhi os mesmos sítios que ele. Ele dobrou o papel e entregou-lho.

- Agora escuta com muita atenção. Isto é importante. Podias analisar novamente os dados e escolher as cinco melhores localizações seguintes?

- Sim.

- E poderíamos provocar um sismo numa delas?

- Provavelmente - disse ela. - Talvez não seja tão certo, mas as hipóteses são boas.

- Nesse caso é o que vamos fazer. Amanhã vamos dar uma vista de olhos aos sítios novos. Depois de eu falar com o senhor Honeymoon.

 

Às cinco horas da manhã, o guarda à entrada de Los Alamos estava a bocejar.

Ficou alerta quando Melanie e Priest encostaram o 'Cuda. Priest saiu do carro.

- Como está, amigo? - disse enquanto atravessava o portão.

O guarda levantou a espingarda, assumiu uma expressão má e disse:

- Quem são vocês e o que querem?

Priest deu-lhe um potente murro no rosto, partindo-lhe o nariz. O sangue começou a espirrar. O guarda gritou e levou as mãos à face. Priest disse:

- Ui! - Doía-lhe o punho. Há muito tempo que não esmurrava ninguém.

Os seus instintos apoderaram-se de si. Pontapeou as pernas do guarda por detrás. O homem caiu de costas, e a espingarda voou pelo ar. Priest deu-lhe três ou quatro pontapés nas costelas, rapidamente e com força, a tentar partir os ossos. Depois pontapeou-lhe o rosto e a cabeça. O homem enrolou-se numa bola, a soluçar de dor, impotente com medo.

Priest parou, a respirar com dificuldade. Recordou-se de tudo numa enchente de excitação. Houvera uma época em que fazia aquele género de coisa todos os dias. Era muito fácil assustar pessoas quando se sabia como.

Ajoelhou-se e tirou a pistola do cinto do homem. Era o que tinha vindo buscar.

Olhou para a arma, horrorizado. Era uma reprodução de um revólver Remington de calibre .44 com o cano comprido, originalmente fabricado nos tempos do Oeste Selvagem. Era uma arma de fogo estúpida e nada prática, uma arma para coleccionadores e para ser exibida num estojo de feltro no estúdio. Não servia para matar pessoas.

Abriu-a. Estava carregada.

Era tudo o que lhe interessava.

Voltou para o carro e entrou. Melanie estava ao volante. Estava pálida e com os olhos brilhantes, a respirar depressa, como se tivesse acabado de tomar cocaína. Priest calculou que ela nunca tinha testemunhado violência a sério.

- Ele vai ficar bem? - perguntou ela numa voz excitada. Priest olhou para trás, para o guarda. Ele estava estendido no chão, com as mãos no rosto, a baloiçar-se levemente.

- Claro que sim - respondeu Priest.

- Uau.

- Vamos a Sacramento. Melanie arrancou.

Algum tempo depois, perguntou:

- Achas mesmo que consegues convencer esse tal Honeymoon?

- Ele tem de ser chamado à razão - disse Priest, parecendo mais confiante do que na realidade estava. - Repara na escolha que ele tem. Número um, um sismo que vai causar milhões de dólares de prejuízo. Ou, número dois, uma proposta para reduzir a poluição. Para além do mais, se escolher a número um, tem de enfrentar a mesma escolha dois dias mais tarde. Ele tem de seguir pelo caminho mais fácil.

- Acho que tens razão - disse Melanie.

Chegaram a Sacramento alguns minutos antes das sete da manhã. A capital do estado estava calma, pois era cedo. Alguns carros e camiões deslocavam-se sem pressa pelas ruas largas, vazias. Melanie estacionou perto do Edifício do Capitólio. Priest colocou um boné de basebol e escondeu os cabelos compridos dentro dele. Depois pôs óculos de sol.

- Espera por mim aqui - disse ele. - Sou capaz de demorar umas duas horas.

Priest percorreu o quarteirão do Capitólio. Tinha esperado que houvesse um parque de estacionamento à superfície, mas ficou desiludido. O chão a toda a volta era um jardim, com árvores magníficas. De cada lado do edifício, uma rampa dava acesso a uma garagem subterrânea. Ambas as rampas eram vigiadas por guardas de segurança em cabinas de sentinela.

Priest aproximou-se de uma das portas grandes e imponentes. O edifício estava aberto, e não havia controlo de segurança à entrada. Ele dirigiu-se para um grande átrio com o chão em mosaico.

Tirou os óculos de sol, que pareciam suspeitos dentro de um edifício, e desceu umas escadas para a cave. Havia uma cafetaria onde alguns funcionários madrugadores recarregavam os níveis de cafeína. Passou por eles com ar de quem pertencia àquele lugar, e seguiu por um corredor que devia levar à garagem de estacionamento. Quando se aproximava do fim do corredor, uma porta abriu-se e um homem gordo com um casaco azul entrou. Atrás do homem, Priest viu carros.

Bingo.

Esgueirou-se para a garagem e olhou em volta. Estava quase vazia. Viam-se alguns carros, um veículo desportivo e um carro do xerife estacionados nos locais marcados. Não viu ninguém.

Deslizou para detrás do veículo desportivo. Era um Dodge Durango. Dali, a espreitar pelas janelas do carro, conseguia ver a entrada da garagem e a porta que dava acesso ao edifício. Outros carros estacionados de ambos os lados do Durango escondiam-no do olhar de quem chegasse.

Instalou-se para esperar. É a última oportunidade deles. Ainda há tempo para negociar e evitar uma catástrofe. Mas se isto não funcionar... bum.

Priest calculou que Al Honeymoon devia ser viciado em trabalho. Chegaria cedo. Mas muitas coisas podiam correr mal. Honeymoon podia passar o dia na residência do governador. Hoje podia ter telefonado a dizer que estava doente. Talvez tivesse reuniões em Washington; talvez estivesse a fazer uma viagem à Europa; a mulher podia estar a ter um bebé.

Priest não pensou que ele pudesse ter um guarda-costas. Não tinha sido eleito para cargo algum, era apenas um funcionário governamental. Teria motorista? Priest não fazia ideia. Isso estragaria tudo.

A intervalos de poucos minutos chegava um carro. Do seu esconderijo, Priest observou os condutores. Não teve de esperar muito tempo. Às sete e meia um elegante Lincoln Continental azul-escuro entrou. Atrás do volante estava um homem de cor com uma camisa branca e gravata. Era Honeymoon: Priest reconheceu-o das fotografias do jornal.

O carro encostou num lugar próximo do Durango. Priest pôs os óculos de sol, atravessou rapidamente a garagem, abriu a porta lateral do Lincoln e deslizou para o banco do passageiro antes de Honeymoon conseguir desapertar o cinto de segurança. Mostrou-lhe a arma.

- Saia da garagem - disse ele. Honeymoon fitou-o.

- Quem é você?

- Filho da puta arrogante de fato às riscas e com um alfinete no colarinho da camisa, eu é que faço a porcaria das perguntas. Priest armou o gatilho do revólver.

- Sou o maníaco que vai enfiar-lhe uma bala na barriga se não fizer o que digo. Agora, guie.

- Porra - disse Honeymoon. Depois, pôs o carro a trabalhar e começou a sair da garagem.

- Faça um sorriso bonito para o guarda de segurança e passe lentamente - disse Priest. - Se lhe diz uma palavra, mato-o.

Honeymoon não replicou. Abrandou o carro ao aproximar-se da cabina da sentinela. Por um momento, Priest pensou que ele ia tentar alguma coisa. Depois viram o guarda, um negro de meia-idade com cabelo branco. Priest disse:

- Se quer que este irmão morra, faça o que tem em mente. Honeymoon rogou uma praga baixinho.

- Siga pela Avenida do Capitólio e saia da cidade - disse-lhe Priest.

Honeymoon rodeou o Edifício do Capitólio e dirigiu-se para oeste pela larga avenida que levava ao rio Sacramento.

- Que quer? - perguntou ele. Não parecia estar com medo... parecia antes impaciente.

Priest teria gostado de lhe dar um tiro. Este era o idiota que tinha dado autorização para a construção da barragem. Tinha feito todos os possíveis para arruinar a vida de Priest. E não lamentava nem um pouco. Na verdade, não se importava. Uma bala na barriga dificilmente seria um castigo suficiente.

Priest controlou a raiva e disse:

- Quero salvar a vida de pessoas.

- É o tipo de Os Filhos do Paraíso, certo?

Priest não respondeu. Honeymoon estava a observá-lo. Priest pensou que estava a tentar memorizar as feições dele. Espertinho.

- Olhe para a merda da estrada. Honeymoon olhou em frente. Atravessaram a ponte. Priest disse:

- Siga pela 1-80 em direcção a São Francisco.

- Onde vamos?

- Você não vai a lado nenhum. Honeymoon virou para a auto-estrada.

- Vá a oitenta na faixa da direita. Por que diabo é que não me dá o que peço? - Priest tinha pretendido manter-se frio, mas a calma arrogante de Honeymoon enraiveceu-o. - Quer uma porcaria de um sismo?

Honeymoon estava imperturbável.

- O governador não pode ceder a chantagem, deve saber isso.

- Vocês podem ultrapassar esse problema - argumentou Priest. - Anunciem que já estavam a planear uma paragem.

- Ninguém acreditaria em nós. Seria suicídio político para o governador.

- Uma ova. Vocês conseguem enganar o público. Para que servem as relações públicas?

- Eu sou o melhor de todos, mas não posso fazer milagres. Isto é demasiado público. Não devia ter trazido o John Truth para esta história.

Furioso, Priest disse:

- Ninguém nos deu ouvidos até o John Truth se ter envolvido no caso!

- Bom, seja qual for a razão, agora é um assunto público, e o governador não pode recuar. Se o fizesse, o estado da Califórnia seria um paraíso de chantagem para todos os idiotas que tivessem uma espingarda de caça na mão e um interesse qualquer numa porcaria de uma causa. Mas vocês podiam recuar.

O filho da mãe está a tentar dar-me a volta! Priest disse:

- Siga pela primeira saída e volte para a cidade. Honeymoon fez sinal para virar à direita e continuou a falar:

- Ninguém sabe quem vocês são nem onde encontrar-vos. Se esquecerem tudo agora, podem safar-se. Não foi feito mal algum. Mas se provocarem outro sismo, terão todas as agências da lei dos Estados Unidos no vosso encalço, e não vão desistir até vos encontrarem. Ninguém pode esconder-se para sempre.

Priest estava enraivecido.

- Não me ameace! - gritou. - Quem tem a merda da arma sou eu!

- Não me esqueci disso. Estou a tentar safar-nos a ambos sem mais danos.

Honeymoon tinha conseguido assumir o controlo da conversa. Priest sentiu-se doente, tal era a frustração.

- Escute uma coisa - disse ele. - Só existe uma maneira de acabarmos com isto. Façam uma declaração hoje. Acabou-se a construção de mais centrais energéticas na Califórnia.

- Não posso fazer isso.

- Encoste.

- Estamos na auto-estrada.

- Pare a merda do carro!

Honeymoon abrandou o carro e parou na berma da estrada. A tentação de disparar foi enorme, mas Priest resistiu.

- Saia do carro.

Honeymoon pôs o veículo em ponto morto e saiu. Priest passou para o lugar do condutor.

- Tem até à meia-noite para reflectir - disse ele. Arrancou. Pelo espelho retrovisor viu Honeymoon acenar para um carro que passava. O carro passou por ele sem abrandar. Tentou mais uma vez. Ninguém pararia.

Ver aquele homem grande, com o seu fato dispendioso e sapatos brilhantes, na berma poeirenta da estrada a tentar arranjar boleia, deu a Priest um pouco de satisfação que o ajudou a mitigar a suspeita de que, inexplicavelmente, Honeymoon tinha levado a melhor no encontro, embora Priest tivesse a arma.

Honeymoon desistiu de acenar para os carros e começou a caminhar.

Priest sorriu e seguiu para a cidade.

Melanie estava à espera onde ele a deixara. Estacionou o Lincoln, deixando a chave na ignição, e entrou no 'Cuda.

- Que aconteceu? - perguntou Melanie. Priest abanou a cabeça, descontente.

- Nada - disse, zangado. - Foi uma perda de tempo. Vamos. Ela pôs o carro a trabalhar e arrancou.

Priest rejeitou o primeiro local a que Melanie o levou.

Era uma pequena cidade à beira-mar, setenta e cinco quilómetros a norte de São Francisco. Estacionaram no cimo da falésia, onde uma brisa forte embalou o velho 'Cuda nas suas suspensões cansadas. Priest desceu o vidro da janela para sentir o cheiro do mar. Teria gostado de descalçar as botas e caminhar descalço pela praia, sentindo a areia húmida entre os dedos, mas não havia tempo.

O local era muito exposto. O camião levantaria suspeitas ali. Era uma grande distância desde a auto-estrada, por isso não poderiam escapar rapidamente. E o mais importante de tudo é que não havia ali nada de grande valor para destruir - apenas algumas casas agrupadas à volta de um porto.

Melanie disse:

- Às vezes um sismo faz os piores estragos a muitos quilómetros do epicentro.

- Mas não podes ter a certeza disso - disse Priest.

- Verdade. Não podemos ter a certeza de nada.

- Mesmo assim, a melhor maneira de fazer ruir um arranha-céus é provocar um sismo por baixo dele, estou certo?

- Se tudo correr bem, sim.

Seguiram para sul pelas colinas verdes do Condado de Marin e atravessaram a Ponte Golden Gate. O segundo local de Melanie era no coração da cidade. Seguiram a Estrada 1 pelo Presídio e pelo Parque Golden Gate e encostaram não muito longe do recinto da Universidade do Estado da Califórnia.

- Isto é melhor - disse Priest imediatamente. Havia casas e escritórios, lojas e restaurantes, em toda a volta.

- Um tremor com o epicentro aqui provocaria a maior parte dos estragos na marina - disse Melanie.

- Como assim? Isso fica a quilómetros daqui.

- É tudo terra regenerada. Os depósitos sedimentares subterrâneos estão saturados de água. Isso amplifica os estremecimentos. Ao passo que aqui o solo é provavelmente sólido. E estes edifícios parecem fortes. A maioria dos edifícios sobrevive a um sismo. Os que caem são feitos de alvenaria sem reforço... tipicamente casas para rendimentos baixos... ou estruturas de betão sem vigas de ferro.

Priest decidiu que tudo aquilo era evasivo. Ela estava apenas nervosa. Um sismo é um sismo, por amor de Deus. Ninguém sabe o que vai cair. Não me importo, desde que caia alguma coisa.

- Vamos ver outro sítio - disse ele.

Melanie disse-lhe para seguir para sul na Interestadual 280.

- No local onde a falha de Santo André atravessa a Estrada 101, existe uma pequena cidade chamada Felicitas - disse ela.

Ele conduziu durante vinte minutos. Quase passaram a saída para Felicitas.

- Aqui, aqui! - gritou Melanie. - Não viste a placa? Priest guinou o volante para a direita e entrou no desvio.

- Não estava a olhar - disse.

A saída conduzia a um miradouro de onde se avistava a cidade. Priest parou o carro e saiu. Felicitas estendia-se à sua frente como um quadro. A Rua Principal seguia da esquerda para a direita ao longo do seu campo de visão, bordejada por lojas e escritórios baixos de madeira, alguns carros estacionados em espinha à frente dos edifícios. Havia uma pequena igreja de madeira com um sino na torre. A norte e sul da avenida principal via-se uma rede perfeita de ruas rodeadas de árvores. Todas as casas tinham um andar. Em cada extremo da cidade, a rua transformava-se numa estrada rural e desaparecia no meio dos campos. A paisagem a norte da cidade estava dividida por um rio sinuoso que parecia uma fenda rachada numa janela. À distância viu uma linha de caminho-de-ferro tão direita como uma linha traçada por um desenhador de este a oeste. Atrás de Priest, a auto-estrada corria ao longo de um viaduto com grandes arcos de betão.

Ao longo da encosta via-se um aglomerado de seis canos enormes, azul-claros. Mergulhavam por baixo da auto-estrada, atravessavam a cidade para oeste, e desapareciam no horizonte, parecendo um xilofone infinito.

- Que diabo é aquilo? - perguntou Priest. Melanie pensou alguns instantes.

- Acho que deve ser um gasoduto.

Priest soltou um longo suspiro de satisfação.

- Este sítio é perfeito - disse.

Naquele dia fizeram mais uma paragem.

Depois do sismo, Priest precisaria de esconder o vibrador sísmico. A sua única arma era a ameaça de mais sismos. Tinha de fazer Honey-moon e o governador Robson acreditar que tinha o poder de fazer isto uma vez e outra até eles cederem. Por isso era crucial manter o camião escondido.

Ia tornar-se cada vez mais difícil conduzir o vibrador sísmico em estradas públicas, por isso precisava de o esconder algures, onde pudesse, se necessário, provocar um terceiro sismo sem se desviar muito.

Melanie mandou-o ir para a Rua Três, que era paralela à margem do enorme porto natural formado pela baía de São Francisco. Entre a Três e a margem da água existia uma zona industrial desactivada. Viam-se carris fora de uso ao longo das ruas cheias de buracos; fábricas abandonadas, a enferrujar; armazéns vazios com as janelas esmagadas; e pátios enormes cheios de caixas, pneus e carros velhos.

- Isto é bom - disse Priest. - Fica apenas a meia hora de Felicitas, e é o género de sítio onde ninguém se interessa muito pelos vizinhos.

Cartazes de agências imobiliárias estavam optimisticamente fixados em alguns edifícios. Melanie fingiu que era a secretária de Priest, telefonou para o número que estava num dos cartazes e perguntou se tinham algum armazém para arrendar, muito barato, com cerca de quarenta e cinco metros quadrados.

Um vendedor atencioso foi ao encontro deles uma hora depois. Mostrou-lhes uma ruína enferrujada com buracos no telhado corroído. Havia uma placa partida por cima da porta, que Melanie leu em voz alta: "Perpetua Diaries." Havia muito espaço para estacionar o vibrador sísmico. O armazém também tinha uma casa de banho a funcionar e um pequeno escritório com uma placa eléctrica e um televisor Zenith grande e velho deixado pelo inquilino anterior.

Priest disse ao vendedor que precisava do armazém para guardar barris de vinho durante cerca de um mês. O homem estava-se nas tintas para o que Priest queria fazer com o espaço. Estava encantado por arrendar uma propriedade quase sem valor. Prometeu que mandaria ligar a electricidade e a água no dia seguinte. Priest pagou-lhe quatro semanas de renda adiantadas, em dinheiro, que retirara do esconderijo secreto na velha guitarra.

O vendedor resplandecia, como se aquele fosse o seu dia de sorte. Deu as chaves a Melanie e afastou-se rapidamente, antes que Priest mudasse de ideia.

Priest e Melanie voltaram para o vale do rio de Prata.

 

Na quinta-feira à noite, Judy Maddox tomou um banho de imersão. Deitada na banheira, recordou o sismo de Santa Rosa que a tinha assustado tanto quando estava na primeira classe. Veio-lhe à ideia com tanta nitidez como se tivesse sido ontem. Nada podia ser mais aterrorizador do que descobrir que o chão por baixo dos pés não estava fixo e estável, mas traiçoeiro e mortal. Às vezes, em momentos calmos, tinha visões de pesadelo de acidentes rodoviários múltiplos, pontes a ruir, edifícios a cair, incêndios e cheias - mas nenhuma dessas coisas era tão pavorosa para si como a recordação do seu próprio terror aos seis anos de idade.

Lavou os cabelos e atirou a recordação para longe. Depois fez um saco com roupa para um dia e às dez da noite voltou para o clube dos oficiais.

O posto de comando estava calmo, mas a atmosfera era tensa. Ainda ninguém sabia ao certo se Os Filhos do Paraíso podiam provocar um sismo. Mas desde que Ricky Granger tinha raptado Al Honeymoon e o deixara no meio da 1-80, todos tinham a certeza de que estes terroristas não estavam a brincar.

Agora havia mais de cem pessoas no velho salão de baile. O comandante no local era Stuart Cleever, o manda-chuva que tinha vindo de Washington na terça-feira à noite. Apesar das ordens de Honeymoon, o FBI não ia deixar uma agente modesta assumir o comando geral de uma coisa tão importante. Judy não queria o comando geral, e não tinha discutido. Porém, tinha conseguido garantir que nem Brian Kincaid nem Marvin Hayes estavam directamente envolvidos.

O título de Judy era o de coordenadora operacional de investigações. Aquilo dava-lhe todo o controlo de que necessitava. Juntamente com ela estava Charlie Marsh, coordenador de operações de emergência, que comandava a equipa de intervenção que se encontrava de prevenção na sala ao lado. Charlie era um homem com cerca de quarenta e cinco anos, com o cabelo grisalho, cortado à escovinha. Era ex-militar do exército, maníaco do exercício físico e coleccionador de armas, não o tipo de que Judy gostava normalmente, mas era directo e de confiança, e ela não tinha problemas em trabalhar com ele.

Entre o recanto das chefias e a equipa de investigação encontravam-se Michael Quercus e os seus jovens sismólogos, sentados junto aos ecrãs, atentos a sinais de actividade sísmica. Michael tinha ido a casa algumas horas, como Judy. Voltou com calções limpos e um pólo preto e trazia um saco de desporto. Estava pronto para uma longa vigília.

Durante o dia tinham falado sobre assuntos práticos enquanto ele montava o equipamento e apresentava os ajudantes. No começo não se tinham sentido à vontade um com o outro, mas Judy percebeu que ele estava a ultrapassar rapidamente os sentimentos de fúria e culpa em relação ao incidente de terça-feira. Pensou que devia ficar amuada com ele durante um ou dois dias, mas estava demasiado ocupada. Por isso afastou tudo do pensamento e percebeu que gostava de ter Michael por perto.

Estava a tentar arranjar uma desculpa para falar com ele quando o telefone na sua secretária tocou.

Ela atendeu.

- Judy Maddox. A telefonista disse:

- Uma chamada para si de Ricky Granger.

- Localize-a! - disse ela. A telefonista demoraria apenas segundos a contactar o centro de segurança permanente da companhia dos telefones. Fez sinal a Cleever e a Marsh, a indicar que deviam ouvir.

- Já está - disse a telefonista. - Quer que faça a ligação ou deixo-o em espera?

- Pode ligar. Grave o telefonema. - Ouviu-se um clique. - Fala Judy Maddox.

Uma voz masculina disse.

- É esperta, agente Maddox. Mas é suficientemente esperta para fazer o governador ver a razão?

Parecia irado, frustrado. Judy imaginou um homem com cerca de cinquenta anos, magro, mal vestido, mas acostumado a que o ouvissem. Especulou que ele estaria a perder o domínio da vida e se sentia rancoroso.

Ela disse:

- Estou a falar com Ricky Granger?

- Sabe com quem está a falar. Por que é que eles me obrigam a causar outro sismo?

- Obrigam-no? Está a enganar-se com a desculpa de que a culpa é de outra pessoa?

Aquilo pareceu enfurecê-lo ainda mais.

- Não sou eu que estou a usar cada vez mais energia eléctrica a cada ano que passa - disse. - Não quero mais centrais de energia. Eu não uso electricidade.

- Não usa?

- A sério.

- Então que é que faz o seu telefone funcionar... vapor?

- Um culto que não usa electricidade. É uma pista.

Enquanto troçava dele, estava a tentar descobrir o que é que aquilo significava. Mas onde é que eles estão?

- Não me lixe, Judy. Você é que está metida em sarilhos.

Ao lado dela, o telefone de Charlie tocou. Ele apanhou-o e escreveu em letras grandes no bloco de apontamentos: "Cabina telefónica - Oakland - 1-980 e 1-580 - Texaco."

- Estamos todos metidos em sarilhos, Ricky - disse ela num tom mais razoável. Charlie dirigiu-se para o mapa na parede. Ouviu-o dizer as palavras "bloqueio da estrada".

- A sua voz mudou - disse Granger, desconfiado. - Que é que aconteceu?

Judy recompôs-se. Não tinha treino especial em técnicas de negociação. Tudo o que sabia é que tinha de o manter ao telefone.

- De repente pensei que haverá uma catástrofe enorme se o Ricky e eu não conseguirmos chegar a um acordo - disse ela.

Ouvia Charlie a dar ordens urgentes em voz baixa.

- Telefona para o Departamento da Polícia de Oakland, para o Gabinete do Xerife do Distrito de Alameda e para a Polícia de Trânsito da Califórnia.

- Está na treta comigo - disse Granger. - Já localizaram o telefonema? Ena pá, isso é que foi rápido. Está a tentar manter-me na linha enquanto a sua equipa de intervenção vem atrás de mim? Esqueça! Tenho cento e cinquenta maneiras de sair daqui!

- Mas só uma maneira de se livrar da trapalhada em que está metido.

- Já passa da meia-noite - disse ele. - O seu tempo acabou. Vou provocar outro sismo, e não há nada que você possa fazer para me deter. - Desligou.

Judy atirou com o telefone.

- Vamos, Charlie! - Arrancou o retrato E-fit de Granger do painel de suspeitos e correu para o exterior. O helicóptero estava à espera no pátio da parada, com os motores em movimento. Saltou lá para dentro, com Charlie logo atrás.

Enquanto descolavam, ele colocou auscultadores e fez-lhe sinal para que fizesse o mesmo.

- Calculo que vai demorar vinte minutos até as barreiras de estrada estarem colocadas - disse ele. - Presumindo que ele vai a conduzir a noventa, para evitar ser interceptado por excesso de velocidade, pode estar a trinta quilómetros de distância quando estivermos prontos para o apanhar. Por isso dei ordens para que as auto-estradas fossem fechadas num raio de trinta e três quilómetros.

- E quanto às outras estradas?

- Temos de esperar que ele vá percorrer uma longa distância. Se sair da auto-estrada, perdemo-lo. Esta é uma das redes de estradas mais complexas da Califórnia. Não conseguiríamos selá-las de uma forma estanque nem que tivéssemos a porcaria do Exército dos Estados Unidos.

Quando virava para a 1-80, Priest ouviu o ruído de um helicóptero e ergueu os olhos para o ver passar por cima da sua cabeça, saindo de São Francisco pela baía em direcção a Oakland.

- Porra - disse ele. - Não podem andar atrás de nós, ou podem?

- Eu avisei-te - disse Melanie. - Eles podem localizar telefonemas quase instantaneamente.

- Mas que é que vão fazer? Nem sequer sabem para que lado fomos quando saímos da bomba de gasolina!

- Acho que podiam fechar a auto-estrada.

- Qual delas? Novecentos e oitenta, oitocentos e oitenta, quinhentos e oitenta, ou oitenta? Norte ou sul?

- Talvez todas elas. Sabes como são os chuis, fazem o que querem.

- Merda. - Priest carregou no acelerador.

- Vê lá se te mandam parar por excesso de velocidade.

- Está bem, está bem! - Abrandou novamente.

- Não podemos sair da auto-estrada? Ele abanou a cabeça.

- Não há outro caminho para casa. Há estradas secundárias, mas não atravessam a água. Podemos esconder-nos em Berkeley. Estacionamos algures e dormimos no carro. Mas não temos tempo, precisamos de chegar a casa para ir buscar o vibrador sísmico. - Abanou a cabeça. - Não podemos fazer nada a não ser atirarmo-nos de cabeça.

O tráfego diminuiu quando deixaram Oakland e Berkeley para trás. Priest espreitou para a escuridão à sua frente, atento a luzes a piscar. Ficou aliviado ao chegar à Ponte Carquinez. Depois de atravessarem a água, podiam usar estradas secundárias. Talvez demorassem metade da noite a chegar a casa, mas estariam fora de perigo.

Aproximou-se da zona das portagens lentamente, à procura de sinais de actividade policial. Só uma cabina é que estava aberta, mas depois da meia-noite não era surpreendente. Não havia luzes azuis, nem carros-patrulha, nem polícias. Parou e procurou trocos nos bolsos.

Quando ergueu os olhos viu um polícia da Brigada de Trânsito.

O coração de Priest pareceu parar.

O polícia estava na cabina, por detrás do portageiro, a fitar Priest com uma expressão surpreendida.

O polícia saiu rapidamente da cabina.

Melanie disse:

- Merda! Que é que fazemos agora?

Priest pensou em arrancar a toda a velocidade, mas chegou rapidamente à conclusão de que seria inútil. Isso serviria apenas para iniciar uma perseguição. O seu velho carro não seria mais rápido do que os dos polícias.

- Boa noite, senhor - disse o polícia. Era um homem gordo com cerca de cinquenta anos e usava um colete à prova de bala por baixo do uniforme. - Por favor encoste do lado direito da estrada.

Priest fez o que lhe era pedido. Um carro da Brigada de Trânsito estava estacionado na berma da estrada, onde não podia ser visto do outro lado da zona das portagens.

Melanie sussurrou:

- Que é que vais fazer?

- Procura manter-te calma - disse Priest.

Havia outro polícia à espera no carro estacionado. Saiu quando viu Priest encostar. Também ele usava um colete à prova de bala. O primeiro polícia aproximou-se, vindo da cabina de portagem.

Priest abriu o porta-luvas e tirou o revólver que tinha roubado naquela manhã em Los Alamos.

Depois saiu do carro.

Judy levou apenas alguns minutos a chegar à bomba de gasolina da Texaco de onde tinha sido feito o telefonema. A polícia de Oakland tinha agido depressa. No parque de estacionamento, quatro carros patrulha estavam estacionados nas esquinas de uma praça, virados para dentro, com as luzes azuis do tejadilho a piscar, os faróis a iluminar um espaço preparado para aterragens. O helicóptero desceu.

Judy saiu. Um sargento da polícia cumprimentou-a.

- Leve-me ao telefone - disse ela. Ele conduziu-a para o interior. A cabina telefónica situava-se num canto ao lado dos lavabos. Atrás do balcão havia dois empregados, uma mulher negra de meia-idade e um jovem branco com um brinco. Pareciam assustados. Judy perguntou ao sargento: - Já os interrogaram?

- Não - disse ele. - Só lhes dissemos que era uma busca de rotina.

Teriam de ser completamente burros para acreditar nisso, pensou Judy, com quatro carros da Polícia e um helicóptero do FBI lá fora. Ela apresentou-se e disse:

- Repararam em alguém que tivesse usado aquele telefone mais ou menos... - ela olhou para o relógio - há quinze minutos?

A mulher disse:

- Muitas pessoas usam esse telefone. - Judy teve instantaneamente a sensação de que ela não gostava de polícias.

Judy olhou para o jovem.

- Estou a falar num homem branco, alto, com cerca de cinquenta anos.

- Esteve aqui um tipo assim - replicou ele. Voltou-se para a mulher. - Não reparaste nele? Parecia uma espécie de hippie velho.

- Nunca o vi - replicou ela, teimosa. Judy mostrou o retrato E-fit.

- Pode ser este?

O jovem ficou indeciso.

- Não tinha óculos. E os cabelos eram bastante compridos. Foi por isso que pensei que devia ser um hippie. - Olhou com mais atenção. - Mas podia ser ele.

A mulher olhou para a fotografia com atenção.

- Agora lembro-me - disse ela. - Parece que é ele. Tipo magricelas com uma camisa de ganga.

- Foi uma grande ajuda - disse Judy, agradecida. - Agora, esta pergunta é verdadeiramente importante. Que género de carro é que ele conduzia?

- Não olhei - disse o homem. - Sabe quantos carros passam aqui todos os dias? E agora está escuro.

Judy olhou para a mulher, que abanou pesarosamente a cabeça.

- Está a perguntar à pessoa errada, querida... não consigo distinguir um Ford de um Cadillac.

Judy não conseguiu esconder a desilusão.

- Raios - disse. Recompôs-se. - De qualquer maneira, obrigada.

Saiu.

- Mais algumas testemunhas? - disse ela para o sargento.

- Não. Pode ter havido aqui outros clientes ao mesmo tempo, mas já se foram embora há muito. Só trabalham aqui aqueles dois.

Charlie Marsh veio a correr do carro com um telemóvel.

- O Granger foi detectado - disse ele para Judy. - Dois polícias da Brigada de Trânsito da Califórnia mandaram-no parar na zona das portagens da Porite Carquinez.

- Incrível! - disse Judy. Depois, algo na expressão de Charlie fê-la perceber que as notícias não podiam ser boas. - Está detido?

- Não - disse Charlie. -Abateu-os. Eles tinham coletes, mas ele alvejou-os a ambos na cabeça. Safou-se.

- Temos a marca do carro?

- Não. O portageiro não reparou.

Judy não conseguiu esconder o tom de desespero na voz.

- Então ele safou-se sem deixar vestígios?

- Sim.

- E os dois polícias da Brigada de Trânsito?

- Mortos.

O sargento da polícia empalideceu.

- Deus tenha as suas almas em descanso - murmurou. Judy afastou-se, doente de frustração.

- E que Deus nos ajude a apanhar o Ricky Granger - disse. Antes que ele mate mais alguém.

 

Oaktree tinha feito um óptimo trabalho a disfarçar o vibrador sísmico de carrossel.

Os painéis berrantes da Boca do Dragão, pintados de encarnado e amarelo, escondiam completamente a grande placa de aço, o grande motor de vibração e o complexo de depósitos e válvulas que controlavam a máquina. Enquanto Priest atravessou o estado da Califórnia na sexta-feira à tarde, desde os sopés da Sierra Nevada, pelo vale de Sacramento e até à região costeira, outros condutores sorriam e buzinavam de uma forma simpática, e as crianças acenavam dos vidros de trás de carros familiares.

A Brigada de Trânsito ignorou-o.

Priest conduziu o camião com Melanie ao lado. Star e Oaktree seguiam-nos no velho 'Cuda. Chegaram a Felicitas ao princípio da noite. A janela sísmica abriria alguns minutos depois das sete horas da tarde. Era um bom momento: Priest teria lusco-fusco para fugir. Para além disso, o FBI e os polícias já estavam alerta há dezoito horas - deviam estar a começar a ficar cansados, com as reacções lentas. Talvez estivessem já a começar a acreditar que não haveria sismo algum.

Saiu da auto-estrada e parou o camião. No fim da rampa de saída havia uma bomba de gasolina e um restaurante Big Ribs onde diversas famílias jantavam. Os miúdos espreitaram para o carrossel pelas janelas. Ao lado do restaurante existia um campo onde pastavam cinco ou seis cavalos; depois aparecia um edifício de escritórios baixo e envidraçado. A estrada que ligava aquele local à cidade estava rodeada por casas, e Priest também viu uma escola e um pequeno edifício de madeira que parecia uma capela baptista.

Melanie disse:

- A linha da falha atravessa a Rua Principal.

- Como é que sabes?

- Olha para as árvores no passeio. - Havia uma fila de pinheiros adultos no lado mais afastado da rua. - As árvores na extremidade ocidental estão cerca de metro e meio mais recuadas que as do lado oriental.

Era bastante óbvio, Priest viu que a linha estava partida mais ou menos a meio da rua. A oeste da racha, as árvores cresciam no meio do passeio ao invés de na ponta.

Priest ligou o rádio do camião. O programa do John Truth estava a começar.

- Perfeito - disse ele. O locutor disse:

- Um importante assessor do governador Mike Robson foi raptado ontem em Sacramento num incidente bizarro. O raptor abordou o secretário de gabinete Al Honeymoon na garagem de estacionamento do Edifício do Capitólio. Obrigou-o a guiar para fora da cidade e depois abandonou-o na 1-80.

Priest disse:

- Reparas que eles não mencionam Os Filhos do Paraíso? Sabem que fui eu em Sacramento. Mas estão a tentar fingir que não teve nada a ver connosco. Pensam que estão a evitar a instalação de pânico. Estão a perder tempo. Dentro de vinte minutos vai dar-se o maior pânico que a Califórnia já viu.

- Isso mesmo! - disse Melanie. Estava tensa mas excitada, com o rosto corado, os olhos brilhantes de esperança e medo.

Mas, em segredo, Priest estava cheio de dúvidas. Será que desta vez vai resultar?

Só existe uma maneira de saber.

Engrenou uma mudança no camião e desceu a colina.

A estrada de ligação da auto-estrada fazia uma curva acentuada e ia ligar-se à velha estrada rural que conduzia à cidade do lado este. Priest virou para a Rua Principal. Havia uma cafetaria precisamente na linha da falha. Priest encostou na zona de estacionamento à frente. O 'Cuda entrou atrás do camião.

- Vai comprar alguns doughnuts - disse ele para Melanie. - Age com naturalidade.

Ela saiu e caminhou vagarosamente para a cafetaria. Priest puxou o travão de mão e carregou no interruptor que baixava o martelo do vibrador sísmico para o chão.

Um polícia uniformizado saiu da cafetaria. Priest exclamou:

- Merda.

O polícia trazia um saco de papel e atravessou resolutamente o parque. Priest calculou que tinha parado para comprar café para si e para o parceiro. Mas onde estava o carro-patrulha? Priest olhou em volta e avistou a luz de tejadilho azul e branca que estava quase toda escondida por uma minicaravana. Não o tinha visto ao entrar. Amaldiçoou-se pela falta de atenção.

Mas era tarde de mais para lamentações. O polícia detectou o camião, mudou de direcção e aproximou-se da janela de Priest.

- Olá, como está hoje? - disse o polícia num tom amistoso. Era um rapaz alto e magro, com pouco mais de vinte anos e cabelo loiro, curto.

- Estou muito bem - disse Priest. Polícias de cidades pequenas comportam-se como se fossem o vizinho do lado de toda a gente. - Como está o senhor?

- Sabe que não pode pôr esse carrossel a funcionar sem licença, não sabe?

- É assim em todo o lado - disse-lhe Priest. - Mas estamos a pensar montá-lo em Pismo Beach. Só parámos para comprar café, como o senhor.

- Muito bem. Tenha um bom resto de dia.

- O senhor também.

O polícia afastou-se e Priest abanou a cabeça, assombrado. Se percebesses quem eu sou, amigo, engasgavas-te no teu donut com cobertura de chocolate.

Espreitou pela janela de trás e verificou os mostradores do mecanismo de vibração. Estava tudo verde.

Melanie reapareceu.

- Vai para o carro com os outros - disse-lhe Priest. - Eu vou já. Programou a máquina para vibrar a um sinal do comando à distância, depois saiu e deixou o motor a trabalhar.

Melanie e Star estavam no banco de trás do 'Cuda, sentadas o mais longe possível uma da outra: eram delicadas, mas não conseguiam esconder a hostilidade que sentiam uma pela outra. Oaktree estava ao volante. Priest entrou para o lugar do passageiro da frente.

- Sobe a colina para o local onde parámos antes - disse. Oaktree arrancou.

Priest ligou o rádio e sintonizou no John Truth.

- Sete e vinte e cinco da tarde de sexta-feira, e a ameaça de um sismo feita pelo grupo terrorista Os Filhos do Paraíso não se materializou, Deus seja louvado. Qual foi o maior susto que já apanhou? Telefone agora para o John Truth e conte-nos. Pode ser alguma coisa idiota, como um rato no seu frigorífico, ou talvez tenha sido vítima de um roubo. Esta noite partilhe os seus pensamentos com o mundo no John Truth ao Vivo.

Priest voltou-se para Melanie.

- Telefona-lhe pelo teu telefone celular.

- E se localizarem a chamada?

- É uma estação de rádio, não o maldito FBI, eles não conseguem localizar telefonemas. Faz o que te digo.

- Está bem. - Melanie marcou o número que o John Truth estava a repetir no rádio. - Está ocupado.

- Continua a tentar.

- Este telefone tem remarcação automática.

Oaktree parou o carro no cimo da colina e contemplaram a cidade mais abaixo. Priest perscrutou ansiosamente o parque de estacionamento defronte da cafetaria. Os polícias continuavam ali. Não queria ligar o vibrador enquanto eles estivessem tão perto - um deles podia ter a presença de espírito para entrar na cabina e desligar o motor.

- Aqueles malditos chuis! - murmurou. - E se fossem caçar alguns criminosos?

- Não digas isso... eles podem vir atrás de nós - brincou Oaktree.

- Nós não somos criminosos - disse Star energicamente. - Estamos a tentar salvar o nosso país.

- Tens toda a razão - disse Priest com um sorriso, e esmurrou o ar.

- Estou a falar a sério - afirmou ela. - Dentro de cem anos, quando as pessoas olharem para trás, vão dizer que nós é que éramos os racionais, e o Governo era louco por deixar a América ser destruída pela poluição. Como os desertores na Primeira Guerra Mundial... na altura foram detestados, mas hoje em dia toda a gente diz que os homens que fugiram eram os únicos que não estavam loucos.

Oaktree disse:

- É verdade.

O carro-patrulha saiu da cafetaria.

- Consegui! - disse Melanie. - Consegui... está? Sim, espero pelo John Truth... Ele diz para desligarmos o rádio, malta... – Priest bateu no rádio do carro com brusquidão. - Quero falar sobre o sismo - continuou Melanie, a responder a perguntas. - É... Melinda. Oh! Ele desapareceu. Porra, quase lhe disse o meu nome!

- Não teria tido importância, deve haver um milhão de Melanies - disse Priest. - Dá-me o telefone.

Ela passou-lho, e Priest encostou-o ao ouvido. Ouviu um anúncio de um stand de venda de Lexus em San José. Aparentemente, a estação passava o programa para as pessoas que estavam em espera. Observou o carro-patrulha a subir a colina em direcção a eles. Passou pelo camião, desviou para a auto-estrada e desapareceu.

De súbito, ele ouviu:

- E a Melinda quer falar sobre a ameaça de sismo. Olá, Melinda, está no "John Truth ao Vivo"!

Priest disse:

- Olá, John, não é a Melinda, são Os Filhos do Paraíso.

Fez-se uma pausa. Quando Truth falou de novo, a sua voz tinha assumido o tom portentoso que usava para anúncios de grande gravidade.

- É melhor não estar a brincar, amigo, porque se estiver pode ir parar à prisão, sabia?

- Acho que podia ir parar à prisão porque não estou a brincar - disse Priest.

Truth não se riu.

- Por que é que está a telefonar-me?

- Só queríamos ter a certeza de que desta vez toda a gente sabe que o sismo foi provocado por nós.

- Quando é que vai acontecer?

- Nos próximos minutos.

- Onde?

- Não posso dizer-lhe isso, porque tínhamos logo o FBI em cima de nós, mas digo-lhe uma coisa que ninguém poderia adivinhar. Vai acontecer na Estrada 101.

 

Khan saltou numa mesa no centro do posto de comando.

- Calem-se todos e escutem! - gritou. Todos detectaram um timbre de medo na voz dele, e a sala ficou num silêncio total. - Um tipo que afirma ser de Os Filhos do Paraíso está no "John Truth ao Vivo".

Houve um aumento de ruído quando todos começaram a fazer perguntas. Judy levantou-se.

- Calem-se todos! - gritou. - Raja, que é que ele disse?

Carl Theobald, que estava sentado com o ouvido encostado ao altifalante de um rádio portátil, respondeu à pergunta dela.

- Disse que o próximo sismo vai acontecer na Estrada 101 dentro de alguns minutos.

- Muito bem, Carl! Aumenta o volume. - Judy girou sobre os calcanhares. - Michael... coincide com algum dos locais que estão a ser vigiados?

- Não - disse ele. - Porra, calculei mal!

- Então calcula outra vez! Tenta descobrir onde é que estas pessoas poderão estar!

- Está bem - disse ele. - Pára de gritar. - Sentou-se ao computador e pousou a mão no rato.

No rádio de Carl Theobald uma voz disse:

- Aqui vem.

Um alarme soou no computador de Michael. Judy perguntou:

- Que é? Um tremor? Michael fez clique no rato.

- Espera, está agora a aparecer no ecrã... Não, não é um tremor. É um vibrador sísmico.

Judy espreitou por cima do ombro dele. No ecrã viu um padrão igual ao que ele lhe tinha mostrado no domingo.

- Onde é? - perguntou ela. - Dá-me uma localização!

- Estou a trabalhar nisso - retorquiu ele com brusquidão. - Gritares-me não vai fazer o computador trabalhar mais depressa.

Como é que ele pode ser tão estupidamente susceptível num momento destes?

- Por que é que não há um sismo? Talvez o método deles não esteja a resultar!

- No vale Owens não resultou da primeira vez.

- Não sabia.

- Muito bem, aqui estão as coordenadas.

Judy e Charlie Marsh dirigiram-se para o mapa de parede. Michael deu as coordenadas.

- Aqui! - disse Judy, triunfante. - Mesmo na Estrada 101, a sul de São Francisco. Uma cidade chamada Felicitas. Carl, telefona para a polícia local. Raja, notifica a Brigada de Trânsito. Charlie, vou consigo no helicóptero.

- As coordenadas não são completamente precisas - avisou Michael. - O vibrador pode estar em qualquer lado no espaço de um quilómetro e meio das coordenadas, mais ou menos.

- Como é que podemos encurtar o espaço?

- Se eu olhar para a paisagem, posso detectar a linha da falha.

- É melhor vires no helicóptero. Traz um colete à prova de balas. Vamos!

- Não está a resultar! - disse Priest, a tentar controlar o medo. Melanie disse:

- Não funcionou da primeira vez no vale Owens, não te lembras?

- Parecia exasperada. - Tivemos de levar o camião para outro lado e tentar outra vez.

- Merda, espero que tenhamos tempo - disse Priest. - Guia, Oaktree! Vamos para o camião!

Oaktree ligou o velho carro e desceu a colina.

Priest virou-se e gritou para Melanie por cima do rugido do motor.

- Para onde é que achas que devemos levá-lo?

- Há uma rua lateral quase em frente da cafetaria... desce-a cerca de quatrocentos metros. É onde corre a linha da falha.

- Está bem.

Oaktree parou o carro em frente da cafetaria. Priest saiu rapidamente. Uma pesada mulher de meia-idade estava à frente dele.

- Ouviu aquele barulho? - inquiriu ela. - Parecia vir do seu camião. Era ensurdecedor!

- Saia da minha frente se não esborracho-lhe a porcaria da cabeça - disse Priest. Saltou para o camião. Ergueu a placa, passou a transmissão para condução e arrancou. Entrou a grande velocidade na estrada, à frente de uma carrinha grande e velha. A carrinha travou a fundo, e o condutor buzinou, indignado. Priest dirigiu-se para a rua lateral.

Percorreu quatrocentos metros e parou do lado de fora de uma bonita casa de um andar com um jardim delimitado por uma vedação. Um pequeno cão branco ladrou-lhe ferozmente do outro lado da vedação. A trabalhar com uma pressa febril, baixou novamente a placa do vibrador e verificou os mostradores. Programou-o para comando à distância, saiu e entrou no 'Cuda.

Oaktree fez uma curva em U e afastou-se. Enquanto percorriam a Rua Principal a grande velocidade, Priest observou que as suas actividades estavam a despertar a atenção. Foram observados por um casal que levava sacos de compras, dois rapazes em bicicletas de montanha, e três homens gordos que saíram de um bar para ver o que se passava.

Chegaram ao fim da Rua Principal e começaram a subir a colina.

- Ficamos aqui - disse Priest. Oaktree parou o carro e Priest activou o comando à distância.

Ouviu o camião a vibrar a seis quarteirões de distância. Trémula, Star disse:

- Estamos seguros aqui?

Estavam calados, paralisados pela incerteza, à espera do sismo. O camião vibrou durante trinta segundos, depois parou.

- Seguros de mais - disse Priest para Star. Oaktree disse:

- Esta merda não está a funcionar, Priest!

- Isto aconteceu da última vez - disse Priest, desesperado. - Vai funcionar!

Melanie disse:

- Sabes o que penso? A terra aqui é mole de mais. A cidade está perto do rio. Os solos moles e húmidos amortecem as vibrações.

Priest voltou-se para ela, acusador.

- Ontem disseste-me que os sismos provocam mais estragos em solos húmidos.

- Eu disse que os edifícios em solos húmidos são mais susceptíveis de sofrer estragos porque o chão por baixo deles mexe-se mais. Mas para transmitir ondas de choque para a falha seria preferível haver rocha.

- Esquece a porcaria da aula! - disse Priest. - Onde é que experimentamos a seguir?

Ela apontou para o cimo da colina.

- No sítio onde saímos da auto-estrada. Não fica directamente sobre a linha da falha, mas o chão deve ser de rocha.

Oaktree ergueu uma sobrancelha para Priest. Priest disse:

- Vamos para o camião, rápido!

Voltaram a atravessar a Rua Principal a grande velocidade, observados agora por mais pessoas. Oaktree entrou a derrapar na rua lateral e parou ao lado do vibrador sísmico. Priest saltou para dentro do camião, ergueu a placa e arrancou, a carregar a fundo no acelerador.

O camião moveu-se com penosa lentidão pela cidade e arrastou-se na subida da colina.

Quando estava a meio caminho, o carro da Polícia que tinham visto anteriormente saiu da rampa da auto-estrada, com as luzes a piscar e a sirene ligada, e passou por eles a toda a velocidade, em direcção à cidade.

Por fim, o camião chegou ao local de onde Priest tinha observado a cidade pela primeira vez e a tinha declarado perfeita. Parou do lado oposto ao restaurante Big Ribs. Pela terceira vez, baixou a placa do vibrador.

Atrás, viu o 'Cuda. O carro-patrulha vinha a subir a colina, vindo da cidade. Levantou a cabeça e avistou um helicóptero no céu distante.

Não tinha tempo para sair do camião e usar o comando. Teria de activar o vibrador sentado no banco do condutor.

Colocou a mão no comando, hesitou, e empurrou a alavanca.

Do helicóptero, Felicitas parecia uma cidade adormecida.

O fim de tarde estava claro e límpido. Judy viu a Rua Principal e a rede de estradas em volta, mas nada parecia estar a mexer-se. Um homem a regar as plantas estava tão imóvel que parecia uma estátua; uma mulher com um grande chapéu de palha encontrava-se parada no passeio; três raparigas adolescentes numa esquina estavam paralisadas no lugar; dois rapazes tinham parado as bicicletas no meio da rua.

Havia movimento na auto-estrada que passava pela cidade sobre os arcos elegantes de um viaduto. No meio da habitual mistura de carros e camiões, detectou dois carros da Polícia a cerca de um quilómetro e meio de distância, a aproximarem-se da cidade a grande velocidade, vindo, presumiu, em resposta à sua chamada de emergência.

Mas na cidade ninguém se mexia.

Instantes depois percebeu o que estava a passar-se.

Estavam a escutar.

O ruído do helicóptero impedia-a de ouvir o que eles estavam a escutar, mas podia adivinhar. Tinha de ser o vibrador sísmico.

Mas onde estava?

O helicóptero voava suficientemente baixo para ela identificar as marcas dos carros estacionados na Rua Principal, mas não viu nenhum veículo grande o bastante para ser um vibrador sísmico. Nenhuma das árvores que obscureciam parcialmente as ruas laterais parecia suficientemente frondosa para esconder um camião grande.

Falou para Michael pelos auscultadores.

- Consegues ver a linha da falha?

- Sim. - Ele estava a estudar o mapa, a compará-lo com a paisagem lá em baixo. - Atravessa o caminho-de-ferro, o rio, a auto-estrada e o gasoduto. Deus Todo-Poderoso, vamos ter alguns estragos.

- Mas onde é que está o vibrador?

- Que é aquilo ali na colina?

Judy seguiu o dedo dele. Acima da cidade, perto da auto-estrada, viu um pequeno aglomerado de edifícios: um restaurante qualquer de comida rápida, um edifício de escritórios com paredes de vidro e uma pequena estrutura de madeira, provavelmente uma capela. Na estrada perto do restaurante viam-se um coupé cor de lama que parecia um carro do princípio dos anos 70, um carro da Polícia a encostar atrás dele, e um grande camião pintado por todos os lados com dragões de um encarnado-lívido e de um amarelo-ácido. Leu as palavras "A Boca do Dragão".

- É um carrossel - disse ela.

- Ou um disfarce - sugeriu ele. - Tem aproximadamente o tamanho de um vibrador sísmico.

- Meu Deus, aposto que tens razão! - disse ela. - Está a ouvir, Charlie?

Charlie Marsh estava sentado ao lado do piloto. Seis elementos da sua equipa de intervenção estavam sentados atrás de Judy e Michael, armados com pequenas submetralhadoras MP-5. O resto da equipa vinha na auto-estrada, num camião blindado que era o centro móvel de operações tácticas.

- Estou a escutar - disse Charlie. - Piloto, pode descer-nos perto daquele carrossel na colina?

- É difícil - replicou o piloto. - As encostas da colina são íngremes e a estrada estreita. Preferia descer no parque de estacionamento daquele restaurante.

- Faça isso - disse Charlie.

- Não vai haver um sismo, ou vai? - perguntou o piloto. Ninguém lhe respondeu.

Quando o helicóptero desceu, uma pessoa saiu do camião. Judy espreitou. Viu um homem alto e magro, com cabelos escuros, compridos, e sentiu de imediato que aquele tinha de ser o seu inimigo. Ele levantou os olhos para o helicóptero e foi como se tivesse os olhos pregados nela. Estava longe de mais para ver as feições dele com clareza, mas teve a certeza de que era Granger.

Fica onde estás, seu filho-da-mãe, que vou apanhar-te.

O helicóptero pairou sobre o parque de estacionamento e começou a descer.

Judy percebeu que ela e todas as pessoas que estavam consigo podiam morrer nos próximos segundos.

Quando o helicóptero tocou no chão ouviu-se um estrondo tão grande que mais parecia o fim do mundo.

O estrondo foi um trovão tão alto que afogou o ruído do vibrador sísmico e o som dos rotores do helicóptero.

O chão pareceu erguer-se e atingir Priest com um murro. Estava a ver o helicóptero aterrar no parque de estacionamento do Big Ribs, a pensar que o vibrador estava a trabalhar em vão, que o seu esquema falhara, e que agora ia ser preso e enfiado na cadeia. No momento seguinte estava estendido no chão de rosto para baixo, e sentia-se como se tivesse levado um murro do Mike Tyson.

Rolou, a tentar respirar, e viu as árvores a toda a volta a dobrarem-se e a torcerem-se como se estivesse a soprar um furacão.

Instantes depois ficou lúcido e percebeu - tinha resultado! Tinha provocado um terramoto.

Boa!

E estava no meio dele.

Então temeu pela sua vida.

O ar vibrava com um troar aterrador como pedras a serem sacudidas numa selha gigante. Pôs-se de joelhos, mas o chão não parava quieto, e ao tentar levantar-se caiu de novo.

Oh, merda, estou feito.

Rolou sobre si mesmo e conseguiu sentar-se direito.

Ouviu um som semelhante ao de cem janelas a partirem-se. Olhou para a direita e viu que era exactamente o que estava a acontecer. As paredes de vidro do edifício de escritórios estavam todas a partir-se ao mesmo tempo. Um milhão de estilhaços de vidro voaram do edifício como uma cascata.

Boa!

A capela baptista mais abaixo pareceu tombar de lado. Era um frágil edifício de madeira, e as suas paredes finas caíram numa nuvem de pó e ficaram estendidas no chão, deixando o coro de carvalho maciço de pé no meio dos destroços.

Consegui! Consegui!

As janelas do Big Ribs esmagaram-se, e os gritos de crianças aterrorizadas perfuraram o ar. Uma esquina do telhado abateu, e depois caiu sobre um grupo de cinco ou seis adolescentes, esmagando-os e à mesa deles e ao jantar de entrecosto. Os outros comensais levantaram-se numa onda e correram para as janelas agora sem vidros enquanto o resto do telhado começava a cair sobre eles.

O ar estava inundado do cheiro pungente a gasolina. Priest pensou que o tremor devia ter rachado os tanques da estação de serviço. Olhou para o outro lado e viu um mar de combustíveis a espalharem-se pelo pátio de entrada. Uma motorizada descontrolada saiu da estrada, a ziguezaguear de um lado para o outro, até o condutor cair e a máquina deslizar pelo cimento, a fazer faíscas. A gasolina entornada iluminou-se com um whoosh, e um segundo depois toda a praça estava em chamas.

Jesus Cristo!

O fogo estava assustadoramente perto do 'Cuda. Ele viu o carro a baloiçar para cima e para baixo, e o rosto aterrorizado de Oaktree atrás do volante.

Nunca tinha visto Oaktree assustado.

Os cavalos que se encontravam no campo ao lado do restaurante atravessaram a vedação partida e galoparam velozmente pela estrada na direcção de Priest, de olhos fixos, bocas abertas, apavorados. Priest não teve tempo para sair do caminho. Cobriu a cabeça com as mãos. Eles passaram ao lado.

Lá em baixo na cidade o sino da igreja tocava enlouquecido.

O helicóptero voltou a levantar um segundo depois de ter aterrado. Judy viu o chão por baixo de si abanar como uma gelatina. Depois afastou-se depressa, à medida que o helicóptero ganhava altura. Conteve a respiração ao ver as paredes envidraçadas do pequeno edifício transformarem-se em algo que parecia chuva e caírem numa grande onda para o chão. Viu um motociclista bater contra a bomba de gasolina, e gritou de desgosto quando a gasolina se incendiou e as chamas engoliram o homem caído.

O helicóptero deu uma volta, e a paisagem mudou. Agora viu a planície lisa. À distância, um comboio de mercadorias estava a atravessar os campos. No começo pensou que tinha escapado à devastação, mas depois apercebeu-se de que estava a abrandar bruscamente. Tinha descarrilado, e enquanto observava, horrorizada, a locomotiva mergulhou no campo ao longo do trilho. Os vagões carregados começaram a serpentear enquanto se amontoavam atrás da locomotiva. Depois o helicóptero deu outra volta, ainda a subir.

E então Judy viu a cidade. Foi uma visão chocante. Pessoas desesperadas, em pânico, corriam para a rua, bocas abertas em gritos de terror que ela não conseguia ouvir, a tentar escapar enquanto as suas casas ruíam, as paredes a rachar e as janelas a explodir e os telhados a tombar de uma forma horrenda para os lados e a cair nos jardins bem cuidados e a esmagar carros nos acessos. A Rua Principal parecia estar em chamas e inundada ao mesmo tempo. Carros tinham chocado nas estradas. Viu um clarão que parecia um relâmpago, e depois outro, e calculou que os fios eléctricos deviam estar a rebentar.

À medida que o helicóptero ganhava altura, a auto-estrada ficou à vista, e as mãos de Judy voaram para a boca, tal foi o horror que sentiu ao ver que um dos arcos gigantes que suportavam o viaduto se tinha dobrado e partido. O tabuleiro estalara, e uma língua de estrada estava agora suspensa no ar. Pelo menos dez carros estavam amontoados de cada lado do intervalo, e diversos estavam a arder. E a carnificina ainda não terminara. Enquanto observava, um grande Chevrolet antigo, muito largo, avançou depressa para o precipício, a derrapar enquanto o motorista tentava em vão parar. Judy ouviu-se gritar quando o carro galgou o precipício. Viu a expressão aterrorizada do condutor, um homem jovem, quando se apercebeu de que ia morrer. O carro deu voltas e mais voltas no ar, com uma lentidão horrível, e acabou por se esmagar no telhado de uma casa lá em baixo, incendiando-se e pegando fogo ao edifício.

Judy enterrou o rosto nas mãos. Era pavoroso de mais para ver. Mas depois lembrou-se de que era uma agente do FBI. Obrigou-se a olhar novamente. Viu que os carros na auto-estrada estavam agora a parar a tempo de evitar choques. Mas os veículos da Brigada de Trânsito e o camião da equipa de intervenção que vinham a caminho não poderiam chegar a Felicitas pela auto-estrada.

Um vento súbito afastou a nuvem de fumo preto que escondia a estação de serviço, e Judy viu o homem que pensava ser Ricky Granger.

Tu fizeste isto. Mataste todas estas pessoas. Seu monte de merda, vou enfiar-te na cadeia, nem que seja a última coisa que faço.

Granger conseguiu levantar-se e correu para o coupé castanho, a gritar e a gesticular para as pessoas lá dentro.

O carro-patrulha estava imediatamente atrás do coupé, mas os polícias não tiveram reflexos rápidos.

Judy percebeu que os terroristas se preparavam para fugir.

Charlie chegou à mesma conclusão.

- Desça, piloto! - gritou pelo intercomunicador.

- Está doido? - gritou este por sua vez.

- Aquelas pessoas fizeram isto! - gritou Judy, a apontar por cima do ombro do piloto. - Causaram esta carnificina e agora vão fugir!

- Porra - disse o piloto, e o helicóptero desceu para o chão.

Priest gritou para Oaktree pela janela aberta do 'Cuda.

- Vamos sair daqui para fora!

- Está bem... para que lado?

Priest apontou para a estrada que conduzia à cidade.

- Vai por esta estrada, mas em vez de virares para a Rua Principal vira à direita pela velha estrada rural... dá acesso a São Francisco, eu verifiquei.

- Está bem!

Priest viu os dois polícias locais a sair do carro-patrulha.

Saltou para dentro do camião, ergueu a placa e arrancou, soltando o volante. Oaktree fez uma curva em U no 'Cuda e começou a descer a colina. Priest virou o camião com mais lentidão.

Um dos polícias estava no meio da estrada, a apontar a pistola para o camião. Era o jovem magro que dissera a Priest para ter um bom resto de dia. Agora estava a gritar:

- Polícia! Pare!

Priest conduziu direito a ele.

O polícia disparou às cegas, e depois atirou-se para fora do caminho.

À frente, a estrada contornava a cidade para este, evitando a zona de mais estragos, que se situava no centro da cidade. Priest teve de se desviar de um par de carros acidentados no exterior do edifício de escritórios de vidro destruído, mas depois disso a estrada parecia desimpedida. O camião ganhou velocidade.

Vamos conseguir!

Depois o helicóptero do FBI aterrou no meio da estrada quatrocentos metros mais à frente.

Merda.

Priest viu o 'Cuda travar a fundo.

Muito bem, cretinos, foram vocês que pediram isto.

Priest carregou a fundo no pedal do acelerador.

Agentes com equipamento de intervenção, armados até aos dentes, saltaram do helicóptero um a um e começaram a abrigar-se na berma da estrada.

Priest, no seu camião, desceu a colina, a ganhar velocidade, e passou pelo 'Cuda parado.

- Agora sigam-me - murmurou Priest, esperançado de que Oaktree adivinhasse o que se esperava dele.

Viu Judy Maddox saltar do helicóptero. Um colete à prova de bala escondia-lhe o corpo gracioso, e tinha uma arma na mão. Ajoelhou-se por detrás de um poste dos telefones. Um homem saiu atabalhoadamente atrás dela, e Priest reconheceu o marido de Melanie, Michael.

Priest espreitou pelos espelhos retrovisores. Oaktree tinha o 'Cuda praticamente colado à retaguarda do camião, o que transformava o carro num alvo difícil. Não tinha esquecido tudo o que aprendera nos fuzileiros.

Atrás do 'Cuda, a cem metros de distância mas a ganhar terreno, vinha o carro-patrulha da Polícia.

O camião de Priest estava a vinte metros dos agentes e dirigia-se directamente para o helicóptero.

Um agente do FBI estava na berma da estrada e apontou uma pequena metralhadora para o camião.

Jesus, espero que os federais não tenham lança-granadas.

O helicóptero descolou.

Judy praguejou. O piloto do helicóptero, mau a acatar ordens, tinha aterrado perto de mais dos veículos que se aproximavam. Mal houve tempo para a equipa de intervenção e os outros agentes se espalharem e tomarem posições antes de o camião do carrossel estar em cima deles.

Michael cambaleou para a berma da estrada.

- Deita-te no chão! - gritou-lhe Judy. Viu o condutor do camião baixar-se atrás do tablier quando um dos elementos da equipa de intervenção abriu fogo com a submetralhadora. O pára-brisas estalou, e apareceram buracos no pára-choques e no capot, mas o camião não parou. Judy gritou de frustração.

Apontou apressadamente a pistola M870 de cinco tiros e disparou para os pneus, mas estava em desequilíbrio e o tiro saiu muito alto.

Depois o camião estava ao lado dela. Todos os tiros pararam: os agentes estavam com receio de se atingirem uns aos outros.

O helicóptero estava a sair do caminho - mas depois, horrorizada, Judy viu que o piloto tinha sido uma fracção de segundo lento de mais. O tejadilho da cabina do camião prendeu o trem de aterragem do helicóptero. De repente, a aeronave oscilou.

O camião seguiu, impassível. O 'Cuda castanho passou a grande velocidade, quase encostado ao camião.

Judy disparou loucamente para os veículos que se afastavam.

Deixámo-los passar!

O helicóptero parecia baloiçar-se no ar enquanto o piloto tentava corrigir a posição. Depois, uma pá do rotor tocou no chão.

- Oh, não! - exclamou Judy. - Por favor, não!

A cauda do aparelho subiu e desceu. Judy viu a expressão assustada do piloto enquanto este lutava com os comandos. Depois, inesperadamente, o helicóptero mergulhou de nariz para o meio da estrada. Ouviu-se um grande estrondo de metal a deformar e, imediatamente a seguir, o som musical de vidro a partir. Por instantes, o helicóptero ficou suspenso no nariz. Depois, começou a tombar lentamente para um lado.

O carro-patrulha que vinha em perseguição dos veículos, a viajar talvez a cento e setenta quilómetros por hora, travou desesperadamente, derrapou e esmagou-se contra o helicóptero acidentado.

Ouviu-se um estrondo ensurdecedor, e os dois veículos incendiaram-se.

Priest viu o choque pelos espelhos retrovisores e soltou um grito de vitória. Agora o FBI parecia entalado: sem helicóptero e sem carros. Nos minutos seguintes tentariam por todos os meios salvar os polícias e o piloto do helicóptero, no caso de estarem vivos. Quando um deles se lembrasse de requisitar um carro de uma casa das redondezas Priest já estaria longe.

Partiu o vidro estalado do pára-brisas alvejado sem abrandar o camião.

Meu Deus, acho que conseguimos!

Atrás dele, o 'Cuda vinha a deslizar de uma forma peculiar. Algum tempo depois percebeu que devia ter um pneu furado. Continuava a andar, por isso devia ser um pneu de trás. Oaktree podia continuar assim durante dois ou três quilómetros.

Chegaram ao cruzamento. Três carros tinham chocado no meio da estrada: uma carrinha Toyota com uma cadeira de bebé no banco de trás, uma pickup Dodge em mau estado, e um velho Cadillac Coupe de Vúle branco. Priest observou-os atentamente. Nenhuma das viaturas estava muito amolgada, e o motor da carrinha ainda estava a trabalhar. Não viu os condutores em parte alguma. Deviam ter ido procurar um telefone.

Rodeou o monte de chapa e virou à direita, para longe da cidade. Encostou na curva seguinte. Já estavam a mais de um quilómetro e meio da equipa do FBI e muito longe do campo de visão deles. Achou que estariam em segurança por um ou dois minutos. Saiu do camião.

O 'Cuda encostou atrás, e Oaktree saiu. Estava a sorrir abertamente.

- Missão cumprida com sucesso, general! - disse. - Nunca vi nada assim na merda da tropa!

Priest bateu-lhe na mão.

- Mas precisamos de sair do campo de batalha, e depressa - disse ele.

Star e Melanie saíram do carro. As faces de Melanie estavam rosadas de animação, quase como se estivesse excitada sexualmente.

- Meu Deus, conseguimos, conseguimos! - disse. Star inclinou-se e vomitou na beira da estrada.

Charlie Marsh estava a falar para um telemóvel.

- O piloto está morto, e os dois polícias locais também. Há um monte de carros batidos na Estrada 101, que tem de ser fechada. Aqui em Felicitas temos acidentes rodoviários, incêndios, inundações, um gasoduto rebentado e o descarrilamento de um comboio. Vão ter de ligar para o Gabinete de Serviços de Emergência do governador, sem dúvida.

Judy fez-lhe sinal para que lhe desse o telefone. Ele acenou afirmativamente e disse para o bocal:

- Passa o telefone a alguém da equipa da Judy. - Estendeu-lhe o telefone.

- Aqui Judy, quem fala? - disse ela rapidamente.

- É o Carl. Como estás?

- Estou bem, mas furiosa comigo mesma por ter perdido os suspeitos. Emite um aviso para dois veículos. Um é um camião com dragões pintados a encarnado e amarelo, que parece um carrossel. O outro é um Plymouth 'Cuda castanho com vinte e cinco ou trinta anos. Manda também outro helicóptero para procurar os veículos nas estradas que saem de Felicitas. - Ergueu os olhos para o céu. - Está a ficar escuro de mais, mas de qualquer maneira manda-o. Qualquer veículo que corresponda a essa descrição deve ser interceptado e os ocupantes interrogados.

- E se algum deles se assemelhar à descrição do Granger...?

- Levem-no e preguem-no ao chão até eu chegar.

- Que vais fazer?

- Acho que vou requisitar alguns carros e voltar para o escritório. Tenho de arranjar uma maneira... - Parou e afastou uma onda de exaustão e desespero. - Tenho de arranjar maneira de impedir que isto volte a acontecer.

- Ainda não acabou - disse Priest. - Dentro de uma hora, todos os polícias da Califórnia vão andar à procura de um carrossel chamado "A Boca do Dragão". - Voltou-se para Oaktree. - Quanto tempo levas a retirar estes painéis?

- Alguns minutos, com um par de martelos bons.

- O camião tem uma caixa de ferramentas.

A trabalhar depressa, os dois homens tiraram os painéis berrantes do camião e atiraram-nos para o outro lado de uma vedação de arame, para um campo. Com sorte, na confusão após o sismo, só dali a um dia ou dois é que alguém repararia neles.

- Que raio é que vais dizer ao Bonés? - perguntou Oaktree enquanto trabalhavam.

- Depois penso em alguma coisa.

Melanie ajudou, mas Star manteve-se de costas voltadas para eles, debruçada no porta-bagagens do 'Cuda. Estava a chorar. Priest sabia que ela ia causar problemas, mas agora não havia tempo para a acalmar.

Depois de terminar o que estavam a fazer no camião, afastaram-se, a transpirar devido ao esforço. Preocupado, Oaktree disse:

- Agora esta maldita coisa parece novamente um vibrador sísmico.

- Eu sei - retorquiu Priest. - Não posso fazer nada. Está a escurecer, não tenho de ir muito longe, e todos os polícias num raio de oitenta quilómetros vão estar ocupados nos trabalhos de salvamento. Só espero ter sorte. Agora desapareçam daqui... levem a Star.

- Primeiro, preciso de mudar um pneu... tenho um furo.

- Não te preocupes - disse Priest. - De qualquer maneira, temos de abandonar o 'Cuda. Os agentes do FBI viram-no e vão andar à procura dele. - Apontou para o cruzamento. - Vi três veículos ali atrás. Escolhe um transporte novo.

Oaktree afastou-se a correr.

Star fitou Priest com olhos acusadores.

- Não posso acreditar que fizemos isto - disse ela. - Quantas pessoas é que matámos?

- Não tivemos outra opção - disse ele, zangado. - Disseste-me que farias qualquer coisa para salvar a comuna... não te lembras?

- Mas tu estás tão calmo. Todas aquelas pessoas mortas, mais ainda feridas, famílias que perderam as suas casas... não tens pena!

- Claro.

- E ela. - Apontou para Melanie. - Olha para a expressão dela. Está tão excitada. Meu Deus, acho que ela gosta de tudo isto.

- Falamos mais tarde, Star, está bem?

Ela abanou a cabeça, como se estivesse espantada.

- Passei vinte e cinco anos contigo e nunca te conheci verdadeiramente.

Oktree regressou ao volante do Toyota.

- Este não tem nada a não ser algumas amolgadelas - disse. Priest disse para Star:

- Vai com ele.

Ela hesitou durante um longo momento, e depois entrou no carro. Oaktree arrancou e desapareceu depressa.

- Entra no camião - disse Priest para Melanie. Sentou-se no banco do condutor e fez marcha atrás com o vibrador sísmico até ao cruzamento. Saíram ambos e observaram os carros que restavam. Priest gostou do aspecto do Cadillac. Tinha o porta-bagagens metido dentro, mas a parte da frente não sofrera quaisquer danos, e as chaves estavam na ignição.

- Segue-me no Caddy - disse para Melanie.

Ela entrou no carro e rodou as chaves na ignição. O motor começou imediatamente a trabalhar. Ela perguntou:

- Para onde é que vamos?

- Armazém Perpetua Diaries.

- Está bem.

- Dá-me o teu telefone.

- Para quem é que vais telefonar? Espero que não seja para o FBI.

- Não, só para a estação de rádio. Ela entregou-lhe o telefone.

Quando se preparavam para partir, ouviram uma explosão enorme à distância. Priest olhou para Felicitas e viu um jacto de chama elevar-se muito alto no céu.

Melanie perguntou:

- Uau, que foi aquilo?

A chama desceu e ficou apenas um brilho forte no céu do fim de tarde.

- Deve ter sido o gasoduto que se incendiou - disse Priest. - A isto é que eu chamo fogo-de-artifício.

Michael Quercus estava sentado numa tira de erva na berma da estrada, com um ar chocado e impotente. Judy aproximou-se dele.

- Levanta-te - disse ela. - Recompõe-te. Morrem pessoas todos os dias.

- Eu sei - disse ele. - Não é por causa das mortes... embora sejam muitas. É outra coisa.

- O quê?

- Viste quem estava no carro?

- No 'Cuda! Vinha um negro ao volante.

- E atrás?

- Não reparei em mais ninguém.

- Eu reparei. Numa mulher.

- Reconheceste-a?

- Claro que sim - disse ele. - Era a minha mulher.

Só ao fim de vinte minutos de remarcações no telefone celular de Melanie é que Priest conseguiu falar para o Programa de John Truth. Quando ouviu o toque de chamada, estava nos arredores de São Francisco.

O programa ainda estava no ar. Priest disse que era de Os Filhos do Paraíso e foi passado imediatamente.

- Vocês fizeram uma coisa terrível - disse Truth. Estava a usar a sua voz mais portentosa, mas Priest percebeu que por baixo do tom solene ele estava exultante. O sismo tinha acontecido praticamente no seu programa. Isto faria dele o apresentador de rádio mais famoso da América. Sai do caminho, Howard Stern.

- Está enganado - disse-lhe Priest. - As pessoas que estão a transformar a Califórnia numa terra envenenada fizeram uma coisa terrível. Eu só estou a tentar detê-las.

- Matando pessoas inocentes?

- A poluição mata pessoas inocentes. Os automóveis matam pessoas inocentes. Telefone para o dono do stand da Lexus que patrocina o seu programa e diga-lhe que ele fez uma coisa horrível ao vender cinco veículos hoje.

Fez-se um momento de silêncio. Priest sorriu. Truth não sabia como responder-lhe. Não podia começar a discutir a ética dos seus patrocinadores. Mudou rapidamente de assunto.

- Apelo-lhe para que se entregue agora mesmo.

- Tenho uma coisa para lhe dizer a si e ao povo da Califórnia - disse Priest. - O governador Robson tem de anunciar uma paragem a nível estatal na construção de centrais energéticas... se não haverá outro sismo.

- Faria isto de novo! - Priest soou genuinamente chocado.

- Pode crer que sim. E.. -Truth tentou interrompê-lo.

- Como é que pode dizer... - Priest ignorou-o.

- ... o próximo sismo será pior do que este.

- Onde é que vai ser?

- Não posso dizer-lhe isso.

- Pode dizer quando?

- Oh, claro. A menos que o governador mude de ideia, vai haver outro sismo dentro de dois dias. - Fez uma pausa para efeito dramático. - Exactamente - acrescentou.

Desligou.

- Agora, senhor governador - disse em voz alta. - Diga às pessoas para não entrarem em pânico.

 

Judy e Michael chegaram ao centro operacional de emergência alguns minutos antes da meia-noite.

Ela estava acordada há quarenta horas, mas não tinha sono. O horror do sismo ainda a acompanhava A intervalos de poucos segundos via, na sua mente, uma das imagens de pesadelo daqueles poucos segundos: o descarrilamento do comboio, as pessoas a gritar, o helicóptero a incendiar-se, ou o velho Chevy às voltas no ar. Estava assombrada e nervosa quando entrou no velho clube de oficiais.

Mas a revelação de Michael dera-lhe uma nova esperança. Fora um choque saber que a mulher dele era um dos terroristas, mas até agora era também a pista mais prometedora. Se conseguisse encontrar Melanie, Judy encontraria Os Filhos do Paraíso.

E se conseguisse fazer isso em dois dias, poderia evitar outro sismo.

Dirigiu-se para o velho salão de baile que se tinha transformado em posto de comando. Stuart Kleever, o manda-chuva de Washington que tinha assumindo o comando, estava na zona das chefias. Era um fulano bem arranjado e metódico, imaculadamente vestido com um fato cinzento, uma camisa branca e gravata às riscas.

Ao lado dele estava Brian Kincaid.

O filho-da-mãe conseguiu voltar a infiltrar-se no caso. Quer impressionar o tipo de Washington.

Brian estava pronto para ela:

- Que diabo é que correu mal? - disse, logo que a viu.

- Chegámos alguns segundos tarde de mais - respondeu ela, cansada.

- Disseste-nos que tinhas os locais todos vigiados - atirou ele.

- Tínhamos os mais prováveis. Mas eles sabiam. Por isso escolheram uma localização secundária. Foi um risco para eles... tinham mais probabilidades de falhar... mas o risco deu frutos.

Kincaid voltou-se para Cleever com um encolher de ombros, como se quisesse dizer, "Acredite nisso, e acredita em tudo". Cleever disse para Judy:

- Depois de fazer um relatório pormenorizado, quero que vá para casa descansar. O Brian assume o comando da sua equipa.

Eu sabia. O Kincaid envenenou o Cleever contra mim. Chegou o momento do tudo ou nada. Judy disse:

- Gostaria de fazer uma pausa, mas ainda não chegou o momento. Acredito que vamos conseguir prender os terroristas dentro das próximas doze horas.

Brian soltou uma exclamação de surpresa. Cleever disse:

- Como?

- Acabo de ter uma pista nova. Sei quem é o sismólogo deles.

- Quem?

- Chama-se Melanie Quercus. É a ex-mulher do Michael, que tem estado a ajudar-nos. Ela conseguiu as informações acerca da localização da falha através do marido... roubou os dados do computador dele. E suspeito de que também roubou a lista dos locais que tínhamos sob vigilância.

Kincaid disse:

- O Quercus também devia ser suspeito! Devia estar combinado com ela!

Judy tinha antecipado isto.

- Tenho a certeza de que não está - disse ela. - Mas ele está a fazer um teste no detector de mentiras neste preciso momento, só para termos a certeza.

- Acho que é o bastante - disse Cleever. - Consegue encontrar a mulher?

- Ela disse ao Michael que estava a viver numa comuna no distrito de Del Norte. A minha equipa já anda a procurar referências da existência de comunas naquela região nas nossas bases de dados. Temos uma agência permanente com dois homens naquela zona, numa cidade chamada Eureka, e pedi-lhes que contactassem a Polícia local.

Cleever acenou afirmativamente. Olhou apologeticamente para Judy.

- Que é que quer fazer?

- Gostava de ir para lá agora. Durmo durante o caminho. Quando chegar, os tipos de lá já terão os endereços de todas as comunas da região. Teria de as invadir a todas ao amanhecer.

Brian disse:

- Não tens provas suficientes para mandatos de busca.

Ele tinha razão. O simples facto de Melanie ter dito que vivia numa comuna do distrito de Del Norte não constituía causa provável. Mas Judy conhecia a lei melhor do que Brian.

- Após dois sismos, acho que temos circunstâncias urgentes, não lhe parece? - Aquilo significava que havia vidas de pessoas em perigo.

Brian pareceu desconcertado, mas Cleever compreendeu.

- Os serviços jurídicos podem resolver esse problema, é para isso que existem - disse ele. - Acho que devemos avançar. Brian, tem mais algum comentário?

Kincaid estava carrancudo.

- É bom que ela tenha razão, é só.

Judy foi para o Norte num carro conduzido por uma agente que não conhecia, uma das diversas dúzias de agentes requisitados nos escritórios de Sacramento e Los Angeles para ajudar nesta crise.

Michael estava sentado ao lado de Judy no banco de trás. Tinha implorado para vir. Estava terrivelmente preocupado com Dusty. Se Melanie fazia parte de um grupo terrorista que estava a causar sismos, em que género de perigo estaria o filho de ambos? Judy tinha conseguido a autorização de Cleever argumentando que era preciso alguém para tomar conta do menino depois de Melanie ser presa.

Pouco depois de atravessarem a Ponte Golden Gate, Judy recebeu um telefonema de Carl Theobald. Michael tinha-lhes dito qual das cerca de quinhentas operadoras de telefones celulares era utilizada por Melanie, e Carl conseguira um registo de todos os telefonemas que ela fizera. A companhia dos telefones tinha conseguido identificar a área geral de onde cada chamada tinha sido feita, por causa das taxas de roaming.

Judy estava com esperança de que a maioria tivesse sido feita do distrito de Del Norte, mas sofreu uma desilusão.

- Na verdade, não há um padrão - disse Carl, cansado. - Ela fez telefonemas da zona do vale Owens, de São Francisco, de Felicitas, e de diversos lugares entre estas localidades; mas isto diz-nos que ela tem andado a viajar por todo o estado, e nós já sabíamos isso. Não há telefonemas da parte do estado para onde te diriges.

- Isso sugere que ela tem um telefone fixo lá.

- Ou que é cuidadosa.

- Obrigada, Carl. Valeu a pena tentar. Agora vai dormir um bocado.

- Afinal isto não é um sonho? Merda. Judy riu-se e desligou.

A condutora ligou o rádio do carro numa estação onde só passavam música, e Nat Cole cantou Let There Be Love enquanto avançavam pela noite. Judy e Michael podiam falar sem serem ouvidos.

- O mais terrível é que não estou surpreendido - disse Michael após um silêncio pensativo. - Acho que, no fundo, sempre soube que a Melanie era doida. Nunca devia tê-la deixado levar o Dusty... mas ela é a mãe dele, percebes?

Às escuras, Judy procurou a mão dele.

- Acho que fizeste o melhor que sabias - disse ela. Ele apertou-lhe a mão, agradecido.

- Só espero que ele esteja bem agora.

- Sim.

Judy adormeceu a apertar a mão dele.

Encontraram-se todos às cinco da manhã no gabinete do FBI em Eureka. Juntamente com os agentes locais, havia representantes da Polícia da cidade e do gabinete do xerife do distrito. O FBI gostava sempre de envolver agentes da lei locais numa rusga - era uma forma de manter boas relações com pessoas de cuja ajuda precisavam com frequência.

Havia quatro comunas com residência permanente no distrito de Del Norte listadas no Directório de Comunidades: Um Guia para a Vida Cooperativa. A base de dados do FBI tinha revelado uma quinta, e o conhecimento local acrescentou mais duas.

Um dos agentes locais do FBI realçou que a comuna conhecida por Vila Fénix ficava apenas a doze quilómetros do local onde havia planos para construir uma central de energia. O coração de Judy bateu mais depressa quando ouviu aquilo, e liderou o grupo que fez a rusga ao Fénix.

Ao aproximar-se do local, num carro do xerife do distrito de Del Norte, à frente de um comboio de quatro carros, o cansaço desapareceu. Sentiu-se de novo activa e enérgica. Não tinha conseguido evitar o sismo de Felicitas, mas podia garantir que não houvesse outro.

A entrada para a Fénix era um desvio de uma estrada rural, marcada por um bonito sinal pintado mostrando um pássaro a erguer-se das chamas. Não havia portão nem guarda. Os carros entraram ruidosamente no aglomerado de casas numa estrada bem feita e encostaram à volta de uma rotunda. Os agentes saltaram dos carros e espalharam-se pelas casas. Cada um deles tinha uma cópia da fotografia de Melanie e Dusty que Michael tinha em cima da secretária.

Ela está aqui, algures, provavelmente na cama com o Ricky Granger, a dormir após os esforços de ontem. Espero que estejam a ter pesadelos.

A aldeia parecia calma aos primeiros raios de luz da manhã. Havia diversos edifícios que se assemelhavam a celeiros e uma cúpula geodésica. Os agentes cobriram as entradas da frente e das traseiras antes de bater às portas. Perto da rotunda, Judy encontrou um mapa da aldeia pintado numa placa, com uma lista das casas e de outros edifícios. Havia uma loja, um centro de massagens, uma sala de correio e uma oficina de reparação de automóveis. O mapa mostrava as quinze casas e também os pastos, pomares, pátios de recreio e um campo de jogos.

Tão a norte, as manhãs eram frescas, e Judy tremeu. Arrependeu-se de não ter vestido uma coisa mais quente do que o fato de calças e casaco de linho.

Esperou pelo grito de triunfo que indicaria que um agente tinha identificado Melanie. Michael andava rapidamente à volta da rotunda, e todo o seu corpo estava rígido de tensão. Que choque, saber que a mulher se transformou numa terrorista, o género de pessoa que um polícia abateria e toda a gente aplaudiria. Não admira que esteja tenso. É um milagre não estar a bater com a cabeça na parede.

Ao lado do mapa viu um painel de notícias da aldeia. Judy leu sobre um curso de danças populares que estava a ser organizado para angariar fundos para o fundo da Lareira da Luz Que se Expande. Aquelas pessoas tinham um ar de inocuidade que era notavelmente plausível.

Os agentes entraram em todos os edifícios e espreitaram em todos os quartos, movendo-se rapidamente de casa para casa. Alguns minutos depois um homem saiu de uma das casas maiores e aproximou-se da rotunda. Tinha cerca de cinquenta anos, os cabelos e a barba desgrenhados, e usava sandálias de couro feitas à mão e um cobertor tosco pelos ombros. Disse para Michael.

- É o senhor que manda aqui?

Judy disse:

- Sou eu.

Ele voltou-se para ela:

- Quer fazer o favor de me dizer que diabo é que está a acontecer?

- Gostava muito - disse ela rispidamente. - Andamos à procura desta mulher. - Mostrou-lhe a fotografia.

O homem não lha tirou da mão.

- Já vi isso - disse ele. - Não faz parte do nosso grupo.

Judy teve a sensação deprimente de que ele estava a falar verdade.

- Esta é uma comunidade religiosa - declarou ele com uma indignação crescente. - Somos cidadãos que cumprem a lei. Não usamos drogas. Pagamos os nossos impostos e obedecemos aos decretos locais. Não merecemos ser tratados como criminosos.

- Só temos de nos certificar de que esta mulher não está aqui escondida.

- Quem é ela, e por que é que pensam que está aqui? Ou só pensam que as pessoas que vivem em comunas são suspeitas?

- Não, não pensamos nada disso - replicou Judy. Sentiu-se tentada a responder-lhe mal, mas recordou a si mesma que ela é que o tinha acordado às seis da manhã. - Esta mulher faz parte de um grupo terrorista. Disse ao ex-marido que estava a viver numa comuna no distrito de Del Norte. Lamentamos ter de acordar toda a gente em todas as comunas do distrito, mas espero que possam entender que isto é muito importante. Se não fosse, não vos teríamos incomodado, e, francamente, não nos teríamos dado a tanto trabalho.

Ele olhou para ela com atenção, e depois acenou afirmativamente e a sua atitude mudou.

- Está bem - disse. - Acredito em si. Posso fazer alguma coisa para facilitar o vosso trabalho?

Ela pensou durante alguns instantes.

- Todas as casas da comuna estão assinaladas neste mapa?

- Não - respondeu ele. - Existem três casas novas do lado oeste, a seguir ao pomar. Mas por favor tentem não fazer barulho... há um recém-nascido numa delas.

- Está bem.

Sally Dobro, uma agente de meia-idade, apareceu.

- Creio que já verificámos todos os edifícios - disse. - Não há qualquer sinal de nenhum dos nossos suspeitos.

Judy disse:

- Há três casas a oeste do pomar... encontraram-nas?

- Não - disse Sally. - Desculpe. Vou tratar disso imediatamente.

- Vá com cuidado - recomendou Judy. - Há um recém-nascido numa delas.

- Com certeza.

Sally afastou-se, e o homem do cobertor acenou em sinal de apreciação.

O telefone celular de Judy tocou. Ela atendeu e ouviu a voz do agente Frederick Tan.

- Acabámos de revistar todos os edifícios da comuna da Colina

Mágica. Népias.

- Obrigada, Freddie.

Nos dez minutos seguintes, os outros chefes de rusga telefonaram-lhe.

Tinham todos a mesma mensagem. Melanie Quercus não tinha sido encontrada. Judy afundou-se num poço de desespero.

- Raios - disse. - Lixei tudo.

Michael estava igualmente desanimado. Irritado, disse:

- Achas que deixámos escapar alguma comuna?

- Ou isso, ou ela mentiu acerca da localização.

Ele pareceu pensativo.

- Estou a lembrar-me da conversa - disse ele. - Eu perguntei-lhe onde é que ela estava a viver, mas ele é que respondeu.

Judy acenou afirmativamente.

- Acho que mentiu. Ele é esperto.

- Acabo de me lembrar do nome dele - disse Michael. - Ela chamava-lhe Priest.

 

No sábado de manhã, ao pequeno-almoço, Dale e Poem levantaram-se na cozinha diante de todos e pediram silêncio.

- Queremos fazer um anúncio - disse Poem.

Priest pensou que ela devia estar novamente grávida. Preparou-se para dar os parabéns e aplaudir e fazer o curto discurso que se esperaria dele. Sentiu-se cheio de exuberância. Embora ainda não tivesse salvo a comuna, estava quase. O seu oponente podia não estar ainda fora de combate, mas estava deitado no ringue, a esforçar-se por se manter na luta.

Poem hesitou, e depois olhou para Dale. A expressão dele era solene.

- Vamos deixar a comuna hoje - declarou ele.

Fez-se um silêncio chocado. Priest ficou embasbacado. As pessoas não se iam embora, a não ser que ele quisesse. Estes tipos estavam sob o seu feitiço. E Dale era o enólogo, o homem-chave da feitura do vinho. Não podiam dar-se ao luxo de perdê-lo.

E ainda por cima hoje! Se Dale tivesse ouvido as notícias - como Priest tinha, uma hora antes, sentado num carro parado a ouvir rádio - saberia que a Califórnia estava em pânico. Os aeroportos estavam num caos, e as auto-estradas repletas de pessoas que fugiam das cidades e de todas as zonas próximas da falha de Santo André. O governador Robson tinha convocado a Guarda Nacional. O vice-presidente estava num avião, e preparava-se para inspeccionar os estragos em Felicitas. Cada vez mais pessoas - senadores estaduais e deputados, presidentes de Câmara, líderes de comunidades e jornalistas - instavam o governador a ceder à exigência feita por Os Filhos do Paraíso. Mas Dale não sabia nada de tudo isto.

Priest não foi o único a ficar chocado com o anúncio. Apple desfez-se em lágrimas, e ao ouvi-la Poem também começou a chorar. Melanie foi a primeira a falar. Disse:

- Mas, Dale... porquê?

- Tu sabes porquê - replicou ele. - Este vale vai ser inundado.

- Mas para onde é que vocês vão?

- Rutherford. É no vale de Napa.

- Tens um emprego regular? Dale acenou afirmativamente.

- Numa exploração vinícola.

Priest pensou que o facto de Dale ter conseguido arranjar trabalho não era surpresa nenhuma. A experiência dele era inestimável. Provavelmente, ganharia muito dinheiro. A surpresa era ele querer voltar para o mundo normal.

Agora várias mulheres choravam. Song disse:

- Não podem esperar e ter esperança, como nós? Poem respondeu-lhe, chorosa:

- Temos três filhos. Não temos o direito de correr riscos com as vidas deles. Não podemos ficar aqui, à espera de um milagre, até as águas começarem a subir em volta das nossas casas.

Priest falou pela primeira vez:

- Este vale não vai ser inundado.

- Tu não sabes isso - disse Dale.

Fez-se silêncio na cozinha. Era invulgar alguém contradizer Priest com tanta frontalidade.

- Este vale não vai ser inundado - repetiu Priest. Dale disse:

- Todos sabemos que está a acontecer alguma coisa, Priest. Nas últimas seis semanas estiveste mais tempo fora do que em casa. Ontem, vocês quatro estiveram fora até à meia-noite, e esta manhã havia um Cadillac amolgado no círculo de estacionamento. Mas, seja o que for que andam a fazer, não partilharam connosco. E não posso arriscar o futuro dos meus filhos baseado na tua fé. A Shirley pensa da mesma maneira.

Priest lembrou-se de que o nome verdadeiro de Poem era Shirley. Usá-lo significava que Dale já estava a desligar-se da comuna.

- Vou dizer-vos o que vai salvar este vale - disse Priest. Por que não falar-lhes no sismo... por que não? Eles iam ficar contentes... orgulhosos! - O poder da oração. A oração vai salvar-nos.

- Eu vou rezar por vocês - retorquiu Dale. - E a Shirley também. Rezaremos por todos vocês. Mas não vamos ficar.

Poem limpou as lágrimas à manga.

- Acho que é tudo. Lamentamos. Fizemos as malas a noite passada, não que tenhamos muitas coisas. Espero que o Slow nos leve até à central de autocarros em Silver City.

Priest levantou-se e dirigiu-se para eles. Colocou um braço em volta dos ombros de Dale e o outro em volta dos de Poem. Puxou-os para si e disse num tom de voz baixo e persuasivo:

- Compreendo a vossa dor. Vamos todos para o templo, para meditarmos juntos. Depois disso, o que decidirem fazer será a coisa certa.

Dale afastou-se, desligando-se do abraço de Priest.

- Não - disse ele. - Esses dias acabaram.

Priest ficou chocado. Tinha usado todo o seu poder persuasivo, e não estava a funcionar. A fúria ergueu-se dentro de si, perigosamente incontrolável. Queria gritar contra a deslealdade e ingratidão de Dale. Se pudesse, tê-los-ia morto a ambos. Mas estava consciente de que seria um erro mostrar a raiva que sentia. Tinha de manter a fachada de controlo e calma.

Porém, não conseguia reunir a energia necessária para se despedir deles graciosamente. Dividido entre a ira e a necessidade de se conter, saiu da cozinha em silêncio, com toda a dignidade que conseguiu mostrar.

Voltou para a sua cabana.

Mais dois dias e teria ficado tudo bem. Um dia!

Sentou-se na cama e acendeu um cigarro. Spirit estava deitado no chão, a olhá-lo tristemente. Estavam ambos em silêncio e imóveis, pensativos. Melanie segui-lo-ia dentro de um ou dois minutos.

Mas quem entrou foi Star.

Não lhe tinha falado desde que se tinha vindo embora de Felicitas com Oaktree na noite anterior, na carrinha Toyota. Sabia que ela estava zangada e perturbada por causa do sismo. Ainda não tinha tido tempo para acalmá-la.

Ela disse:

- Vou à Polícia.

Priest ficou assombrado. Star odiava profundamente todos os polícias. Entrar numa esquadra seria como Billy Graham ir a um bar de homossexuais.

- Estás doida - disse ele.

- Ontem matámos pessoas - disse ela. - Eu ouvi a rádio a caminho de casa. Pelo menos doze pessoas morreram, e mais de cem foram hospitalizadas. Bebés e crianças ficaram feridos. Pessoas perderam as suas casas, tudo o que tinham... pessoas pobres, não apenas ricos. E fizemos-lhes aquilo.

Está tudo a desmoronar-se... logo agora que estou prestes a vencer!

Estendeu a mão para pegar na dela.

- Achas que eu queria matar pessoas? Ela recuou, recusando-se a dar-lhe a mão.

- Mas não ficaste nada triste quando aconteceu.

Tenho de aguentar as coisas durante mais algum tempo. Tenho de conseguir.

Fez um olhar penitente.

- Fiquei feliz por o vibrador ter funcionado, sim. Fiquei satisfeito por termos conseguido cumprir a nossa ameaça. Mas não queria magoar ninguém. Sabia que existia um risco, e decidi corrê-lo, porque o que estava em jogo era importante de mais. Pensei que tinhas tomado a mesma decisão.

- Tomei, e foi uma decisão má, uma decisão malvada. - Vieram-lhe lágrimas aos olhos. - Por amor de Deus, não vês o que nos aconteceu? Éramos os miúdos que acreditavam em paz e amor... agora estamos a matar pessoas! És exactamente como o Lyndon Johnson. Ele bombardeou os vietnamitas e justificou o seu acto. Nós dissemos que ele estava cheio de tretas, e estava. Eu dediquei a minha vida inteira a não ser assim!

- Então achas que cometeste um erro - disse Priest. - Até posso entender isso. O que acho difícil entender é que queiras redimir-te punindo-me a mim e a toda a comuna. Queres trair-nos aos polícias.

Ela ficou abalada.

- Não tinha visto as coisas dessa maneira - disse. - Não queria castigar ninguém.

Já a tinha na mão.

- Então o que é que queres na realidade? - Não lhe deu tempo para responder. - Acho que precisas de ter a certeza de que acabou.

- Acho que é isso, sim.

Ele esticou-se para ela, e desta vez ela deixou-o pegar-lhe nas mãos.

- Acabou - disse ele suavemente.

- Não sei - disse ela.

- Não haverá mais sismos. O governador vai ceder. Verás.

 

Na viagem de regresso para São Francisco, Judy foi desviada para Sacramento, onde teria uma reunião no gabinete do governador. Dormiu mais três ou quatro horas no carro, e quando chegou ao Edifício do Capitólio sentia-se preparada para morder o mundo.

Stuart Cleever e Charlie Marsh tinham apanhado um avião em São Francisco. O chefe do gabinete do FBI de Sacramento também tinha sido convocado. Reuniram ao meio-dia na sala de conferências da Ferradura, a suite do governador. Al Honeymoon presidiu à reunião.

- Há uma fila de trânsito de vinte quilómetros na 1-80 com pessoas a tentar fugir da falha de Santo André - disse Honeymoon. - O cenário nas outras auto-estradas principais é praticamente o mesmo.

Cleever disse:

- O presidente telefonou ao director do FBI e perguntou-lhe o que se passava com a ordem pública. - Olhou para Judy como se a culpa fosse dela.

- Também telefonou para o governador Robson - declarou Honeymoon.

- A partir deste momento, temos um problema sério de ordem pública - disse Cleever. - Há notícias de pilhagens em três bairros em São Francisco e num em Oakland, mas são acções esporádicas. O governador convocou a Guarda Nacional e colocou-os em arsenais, embora ainda não precisemos deles. Todavia, se houver outro sismo...

O pensamento perturbou Judy.

- Não pode haver outro sismo - disse ela.

Todos os olhares se voltaram para ela. Honeymoon assumiu uma expressão sardónica.

- Tem alguma sugestão?

Ela tinha. Era uma sugestão pobre, mas estavam desesperados.

- Só consigo lembrar-me de uma coisa - disse ela. - Montar-lhe uma armadilha.

- Como?

- Dizemos-lhe que o governador quer negociar com ele pessoalmente.

Cleever disse:

- Não acredito que caia nessa.

- Não sei - disse Judy. - Ele é inteligente, e qualquer pessoa inteligente desconfiaria de uma armadilha. Mas é um psicopata, e os psicopatas adoram controlar os outros, chamar a atenção para si próprios e para os seus actos, manipular pessoas e circunstâncias. A ideia de negociar pessoalmente com o governador da Califórnia vai tentá-lo fortemente.

Honeymoon declarou:

- Acho que sou a única pessoa aqui que o conheceu.

- Tem razão - confirmou Judy. - Eu já o vi, e falei com ele pelo telefone, mas o senhor passou diversos minutos num carro com ele. Qual foi a sua impressão?

- Você descreveu-o bastante bem... um psicopata inteligente. Estou convencido de que ele ficou zangado comigo por eu não ficar mais impressionado com ele. É como se eu tivesse de ser, não sei, mais deferente.

Judy conteve um sorriso. Honeymoon não era deferente com muitas pessoas.

Honeymoon continuou:

- Estava ciente das dificuldades políticas do que estava a pedir. Eu disse-lhe que o governador não podia ceder a chantagem. Ele já tinha pensado nisso, e tinha a resposta preparada.

- Qual foi?

- Disse que podíamos negar o que tinha acontecido realmente, anunciar uma paragem na construção de centrais de energia e dizer que não tinha nada a ver com a ameaça de sismo.

- Isso é uma possibilidade? - perguntou Judy.

- Sim. Eu não a recomendaria, mas se o governador ma apresentasse como um plano eu teria de dizer que podia resultar. Porém, a questão é académica. Eu conheço o senhor Robson, e ele não vai fazer uma coisa dessas.

- Mas podia fingir - disse Judy.

- Onde é que está a querer chegar?

- Podíamos dizer ao Granger que o governador está disposto a anunciar a paragem, mas só com as condições certas, pois tem de proteger o seu futuro político. Dizíamos que ele quer falar pessoalmente com o Granger para discutir essas condições.

Stuart Cleever acrescentou:

- O Supremo Tribunal deliberou que os agentes da lei podem recorrer a astúcia, ardis e enganos. A única coisa que não podemos fazer é ameaçar tirar os filhos do suspeito. E, se prometermos imunidade de condenação, a promessa é válida... não podemos processar. Mas podemos fazer o que a Judy sugere sem violar qualquer lei.

- Muito bem - disse Honeymoon. - Não sei se vai resultar, mas acho que temos de tentar. Vamos a isso.

Priest e Melanie dirigiam-se para Sacramento no Cadillac amolgado. Era uma tarde de sábado soalheira, e a cidade fervilhava de pessoas.

Escutavam o rádio do carro pouco depois do meio-dia quando Priest ouviu a voz de John Truth, embora não fossem horas do programa dele.

- Mensagem especial para Peter Shoebury do Liceu Eisenhower Júnior - tinha dito Truth. Shoebury era o homem cuja identidade Priest pedira emprestada para a conferência de imprensa do FBI, e Eisenhower era a escola imaginária frequentada por Flower. Priest percebeu que a mensagem lhe era dirigida. - O Peter Shoebury quer fazer o favor de me telefonar para o seguinte número? - dissera Truth.

- Eles querem chegar a um acordo - tinha dito para Melanie. - É isso... ganhámos!

Enquanto Melanie conduzia pela baixa da cidade, rodeada por centenas de carros e milhares de pessoas, Priest fez o telefonema no telefone celular dela. Mesmo que o FBI estivesse a tentar localizar a chamada, calculou que não conseguiriam descobrir um carro no meio do tráfego.

Tinha o coração na boca enquanto ouvia o sinal de chamada. Ganhei a lotaria e estou aqui para receber o cheque.

O telefonema foi atendido por uma mulher.

- Está? - Parecia na defensiva. Talvez tivesse recebido um monte de telefonemas malucos em resposta ao apelo na rádio.

- Fala Peter Shoebury, do Liceu Eisenhower Júnior. A reacção foi imediata.

- Vou passá-lo ao senhor Al Honeymoon, o secretário do gabinete do governador.

Boa!

- Só preciso de verificar a sua identidade primeiro. É um truque.

- E como é que pretende fazer isso?

- Não se importa de me dar o nome da repórter estudante que estava consigo há uma semana?

Priest recordou-se de Flower a dizer, "Nunca te vou perdoar por me chamares Florence". Prudentemente, disse:

- Florence.

- Vou passá-lo agora.

Não foi um truque... apenas uma precaução.

Priest perscrutou ansiosamente as ruas, atento a um carro da Polícia ou a um bando de homens do FBI a caírem sobre o seu carro. Não viu nada a não ser pessoas às compras e turistas. Momentos depois, a voz profunda de Honeymoon disse:

- Senhor Granger? Priest foi direito ao assunto.

- Está pronto para tomar a decisão sensata?

- Estamos prontos para falar.

- Que é que isso significa?

- O governador quer encontrar-se consigo hoje, com o objectivo de negociar uma resolução para esta crise.

Priest disse:

- O governador está disposto a anunciar a paragem que nós queremos?

Honeymoon hesitou:

- Sim - disse com relutância. - Mas tem de haver condições.

- De que género?

- Quando falámos os dois no meu carro, e eu lhe disse que o governador não podia ceder a chantagem, você falou em relações públicas.

- Sim.

- O senhor é uma pessoa sofisticada, compreende que o futuro político do governador está em risco. O anúncio desta paragem terá de ser tratado com muita subtileza.

Com satisfação, Priest reparou que Honeymoon tinha mudado de tom. A arrogância desaparecera. Tinha aprendido a respeitar o oponente. Aquilo era gratificante.

- Por outras palavras, o governador tem de tapar o eu e quer ter a certeza de que eu não lixo tudo.

- Pode encarar as coisas dessa forma.

- Onde é que nos encontramos?

- No gabinete do governador, aqui no Edifício do Capitólio. Deves estar completamente doido.

Honeymoon continuou:

- Nada de Polícia, nem FBI. Terá liberdade garantida para abandonar a reunião sem impedimento, independentemente do resultado.

Sim, pois. Priest disse:

- Acredita em fadas?

- O quê?

- Sabe, aquelas pessoas pequeninas que voam e fazem magia? Acredita que existem?

- Não, acho que não.

- Eu também não. Por isso não vou cair na sua armadilha.

- Dou-lhe a minha palavra...

- Esqueça. Esqueça, está bem?

Do outro lado da linha fez-se silêncio.

Melanie fez uma curva, e passaram pela grande fachada clássica do Edifício do Capitólio. Honeymoon estava algures ali dentro, a falar ao telefone, rodeado de agentes do FBI. Ao olhar para as colunas brancas e para a cúpula, Priest disse:

- Vou dizer-lhe onde é que nos encontramos, e é melhor começar a tomar notas. Está pronto?

- Não se preocupe, estou a tomar notas.

- Montem uma mesa redonda e duas cadeiras de jardim diante do Edifício do Capitólio, ali na relva, exactamente no meio. Será uma oportunidade para uma sessão de fotografias. O governador que esteja lá sentado às três horas.

- Na rua?

- Hei, se eu quisesse dar-lhe um tiro, podia fazê-lo de uma maneira mais fácil do que esta.

- Acho que tem razão...

- O governador deve ter no bolso uma carta assinada que me garanta imunidade de condenação.

- Não posso concordar com tudo isto...

- Fale com o seu patrão. Ele vai concordar.

- Eu falo com ele.

- Quero aqui um fotógrafo com uma daquelas máquinas fotográficas instantâneas. Quero uma fotografia dele a entregar-me a carta de imunidade, para prova. Percebeu?

- Percebi.

- É melhor fazerem isto bem. Nada de truques. O meu vibrador sísmico já está em posição, preparado para desencadear outro sismo. Este vai atingir uma cidade importante. Não vou dizer qual é, mas estou a falar em milhares de mortes.

- Compreendo.

- Se o governador não aparecer hoje às três horas... bang. Desligou.

- Uau - disse Melanie. - Um encontro com o governador. Achas que é uma armadilha?

Priest franziu o sobrolho.

- Pode ser - disse. - Não sei. Não sei mesmo.

Judy não conseguiu encontrar defeitos no cenário. Charlie Marsh tinha trabalhado nele com o FBI de Sacramento. Havia pelo menos trinta agentes à vista da mesa branca de jardim com o chapéu de sol que estava agradavelmente no relvado, mas não conseguiu ver nenhum deles. Alguns estavam atrás das janelas dos edifícios governamentais circundantes, outros agachavam-se em carros e carrinhas na rua e no parque de estacionamento, mais escondiam-se na cúpula com pilares do Edifício do Capitólio. Estavam todos fortemente armados.

A própria Judy desempenhava o papel de fotógrafa, com máquinas fotográficas e lentes à volta do pescoço. Tinha a pistola no saco de uma máquina pendurado ao ombro. Enquanto esperava que o governador aparecesse, olhou para a mesa e para as cadeiras através da lente, a fingir que estava a enquadrar a fotografia.

Esperançada de que Granger não a reconhecesse, tinha colocado uma peruca loura. Era uma peruca que tinha permanentemente no carro. Usava-a muito em trabalhos de vigilância, especialmente se passava muitos dias a seguir os mesmos alvos, para reduzir o risco de ser vista e reconhecida. Tinha de aguentar bastantes comentários trocistas sempre que a usava. Hei, Maddox, manda a loira engraçada para o meu carro, mas tu podes ficar onde estás.

Sabia que Granger estava a observar. Ninguém o tinha detectado, mas ele telefonara uma hora antes para protestar contra a montagem de barreiras policiais à volta do quarteirão. Queria que o público usasse a rua, e que o edifício fosse visitado por turistas, como era habitual.

As barreiras tinham sido retiradas.

Não havia nenhuma outra vedação em volta dos jardins, por isso os turistas passeavam livremente pelos relvados, e visitas guiadas seguiam as rotas predefinidas pelo Capitólio, pelos jardins e pelos elegantes edifícios governamentais em ruas adjacentes. Judy estudou sub-repticiamente toda a gente através da lente. Ignorou aparências superficiais e concentrou-se em características que não se podiam disfarçar facilmente. Escrutinou todos os homens altos e magros de meia-idade, independentemente do cabelo, rosto ou roupa.

Faltava um minuto para as três e ainda não tinha visto Ricky Granger.

Michael Quercus, que conhecia Granger pessoalmente, também estava a vigiar. Encontrava-se numa carrinha de vigilância com janelas escurecidas que estava estacionada à esquina. Tinha de se manter escondido, porque Granger poderia conhecê-lo e assustar-se.

Judy falou para o microfone por baixo da blusa, preso ao soutien.

- O meu palpite é que o Granger só vai aparecer depois de o governador chegar.

Um auscultador minúsculo atrás do seu ouvido deu um estalido e ouviu Charlie Marsh responder:

- Nós estávamos a dizer a mesma coisa. Quem me dera que tivéssemos podido fazer isto sem a ajuda do governador.

Tinham pensado na hipótese de usar um duplo, mas o governador Robson vetara o plano, dizendo que não permitiria que alguém se arriscasse a morrer no seu lugar.

Agora, Judy disse:

- Mas se não pudermos...

- Seja o que Deus quiser - disse Charlie.

Um momento depois, o governador emergiu da imponente entrada do edifício.

Judy ficou surpreendida por ele ser um pouco mais baixo do que a média. Ao vê-lo na televisão, tinha imaginado que era um homem alto. Parecia mais forte do que era costume devido ao colete à prova de bala que usava por baixo do casaco do fato. Atravessou o relvado com um passo descontraído, confiante, e sentou-se junto à mesa pequena debaixo do chapéu de sol.

Judy tirou-lhe algumas fotografias. Mantinha o saco da máquina pendurado ao ombro para poder ter acesso fácil à pistola.

Depois, pelo canto do olho, detectou movimento.

Um velho Chevrolet Impala aproximava-se lentamente pela Rua Dez.

Tinha uma pintura desbotada em dois tons, azul-céu e bege, e estava a enferrujar junto às rodas. O rosto do condutor estava na sombra.

Ela olhou rapidamente em volta. Não se avistava um único agente, mas estariam todos a vigiar o carro.

O veículo parou junto ao passeio em frente do governador Robson.

O coração de Judy bateu mais depressa.

- Deve ser ele - disse o governador num tom de voz notavelmente calmo.

A porta do carro abriu-se.

A figura que saiu usava calças de ganga azuis, uma camisa de trabalho aos quadrados aberta sobre uma T-shirt branca, e sandálias.

Quando se levantou, Judy reparou que ele tinha aproximadamente um metro e oitenta de altura, talvez um pouco mais, era magro e tinha cabelos compridos, escuros.

Usava óculos com aros grandes e um lenço de algodão colorido amarrado na cabeça.

Judy olhou para ele e desejou poder ver os seus olhos.

O auscultador deu um estalido.

- Judy? É ele?

- Não sei! - disse ela. - Pode ser.

Ele olhou em volta. Era um relvado grande, e a mesa tinha sido colocada a vinte ou trinta metros do passeio. Ele começou a dirigir-se para o governador.

Judy sentia os olhos de todos em si, à espera de um sinal.

Moveu-se, colocando-se entre ele e o governador. O homem reparou no movimento dela, hesitou, e depois continuou a andar.

Charlie falou novamente.

- Então?

- Não sei! - sussurrou ela, tentando não mexer os lábios. - Dê-me mais alguns segundos!

- Não demores de mais.

- Não me parece que seja ele - disse Judy. Todas as fotografias tinham mostrado um nariz que parecia a lâmina de uma faca. Este homem tinha um nariz largo e achatado.

- Tens a certeza?

- Não é ele.

O homem estava tão perto que Judy podia tocar-lhe. Passou por ela e aproximou-se do governador. Sem abrandar o passo, pôs a mão dentro da camisa.

No seu auscultador, Charlie disse:

- Ele vai tirar alguma coisa!

Judy deixou-se cair num joelho e procurou a pistola no saco da máquina fotográfica.

O homem começou a tirar alguma coisa da camisa. Judy viu um cilindro escuro, como o cano de uma arma. Gritou:

- Não se mexa! FBI!

Agentes saíram de carros e carrinhas e vieram a correr do Edifício do Capitólio.

O homem ficou imóvel.

Judy apontou a arma para a cabeça dele e disse:

- Tire-a lentamente e entregue-ma.

- Está bem, está bem, não me mate! - O homem tirou o objecto de dentro da camisa. Era uma revista, enrolada num cilindro, com um elástico a prendê-la.

Judy tirou-lha. Ainda a apontar-lhe a arma, ela examinou a revista. Era a Time desta semana. Não havia nada dentro do cilindro. Num tom de voz assustado, o homem disse:

- Um tipo deu-me cem dólares para entregar isso ao governador! Agentes rodearam Mike Robson e escoltaram-no para o interior do

Edifício do Capitólio.

Judy olhou em volta, a observar os jardins e as ruas. O Granger está a ver isto, tem de estar. Onde diabo está ele? As pessoas tinham parado para ver os agentes a correr. Um grupo de uma visita guiada descia as escadas da entrada principal, conduzido por um guia. Judy viu um homem com uma camisa havaiana desligar-se do grupo e afastar-se, e algo nele lhe chamou a atenção.

Franziu o sobrolho. Ele era alto. Como a camisa era larga e caía solta sobre as ancas, não conseguiu perceber se era magro ou gordo. Tinha os cabelos tapados por um boné de basebol.

Foi atrás dele, a andar depressa.

Ele não parecia ter pressa. Judy não deu o alarme. Se pusesse todos os agentes que se encontravam ali a perseguir um turista inocente, o verdadeiro Granger poderia escapar. Mas o instinto levou-a a acelerar o passo. Tinha de ver o rosto deste homem.

Ele virou a esquina do edifício. Judy começou a correr.

Ouviu a voz de Charlie no auscultador.

- Judy? Que é que se passa?

- Só estou a verificar uma pessoa - disse ela, a transpirar um pouco. - Provavelmente é um turista, mas mande alguns homens seguir-me para o caso de eu precisar de ajuda.

- É para já.

Chegou à esquina e viu a camisa havaiana atravessar um par de portas altas de madeira e desaparecer no interior do Edifício do Capitólio. Pareceu-lhe que ele estava a andar com mais rapidez. Olhou por cima do ombro. Charlie estava a falar para alguns agentes e a apontar para ela.

Na rua lateral do outro lado do jardim, Michael saiu de uma carrinha estacionada e veio a correr na direcção dela. Ela apontou para o edifício.

- Viste aquele tipo? - gritou ela.

- Sim, era ele! - respondeu ele.

- Fica aqui - gritou ela. Ele era um civil; não queria que se envolvesse. - Mantém-te fora disto! - Correu para o Edifício do Capitólio.

Encontrou-se num grande átrio com um sofisticado chão de mosaico. Estava fresco e sossegado. À sua frente havia uma larga escadaria alcatifada com uma balaustrada esculpida. Ele teria ido para a esquerda ou para a direita, para cima ou para baixo? Escolheu a esquerda. O corredor fazia uma curva para a direita. Passou pelos elevadores e encontrou-se na rotunda, uma sala circular com uma escultura no meio. A sala estendia-se por dois andares até uma cúpula ricamente decorada. Aqui defrontou-se com outra escolha: ele teria seguido em frente, virara à direita para a Ferradura, ou subira a escadaria à sua esquerda? Olhou em volta. Alguns turistas olharam, assustados, para a arma dela. Ergueu o olhar para a galeria circular no primeiro andar e avistou uma camisa profusamente colorida.

Correu para uma das duas imponentes escadarias.

No cimo das escadas observou a galeria. Na extremidade oposta havia uma porta aberta que conduzia a um mundo diferente, um corredor moderno com lâmpadas fluorescentes e um chão forrado a linóleo. A camisa havaiana estava no corredor.

Ia a correr.

Judy foi atrás dele. Enquanto corria, falou para o microfone do soutien, a transpirar.

- É ele, Charlie! Que diabo é que aconteceu aos agentes que deviam dar-me apoio?

- Perderam-te, onde estás?

- No primeiro andar da zona do gabinete.

- Está bem.

As portas do gabinete estavam fechadas, e não se via ninguém nos corredores: era sábado. Seguiu a camisa quando esta virou uma esquina, e depois outra, e uma terceira. Mantinha-o à vista, mas não estava a aproximar-se.

O filho-da-mãe é muito ágil.

Ele fez um círculo completo e voltou à galeria. Ela perdeu-o de vista momentaneamente e calculou que tinha subido novamente.

A respirar com dificuldade, subiu outra escadaria ornamentada para o segundo andar.

Placas de sinalização indicaram-lhe que a galeria do senado ficava do lado direito, a assembleia do lado esquerdo. Virou à esquerda, chegou à porta da galeria, e viu que estava trancada. Sem dúvida que a outra estaria igualmente fechada à chave. Voltou para o cimo da escadaria. Para onde teria ele ido?

Numa esquina, reparou numa placa onde se lia "Escada Norte - Sem Acesso ao Telhado". Abriu-a e encontrou-se numa escadaria estreita e funcional com mosaicos lisos e uma balaustrada de ferro. Ouvia os seus próprios sapatos a fazer barulho enquanto descia as escadas, mas não o viu.

Precipitou-se para baixo.

Emergiu no rés-do-chão, na rotunda. Não viu Granger, mas avistou Michael, a olhar em volta, distraído. Ele captou o olhar dela.

- Viste-o? - perguntou ela.

- Não.

- Deixa-te estar onde estás!

Da rotunda, um corredor em mármore conduzia aos aposentos do governador. A sua visão foi obscurecida por um grupo a quem estava a ser mostrada a porta para a Ferradura. Era uma camisa havaiana à frente deles? Não tinha a certeza. Correu atrás dela, pelo átrio de mármore, passou expositores emoldurados que mostravam cada distrito do estado. A sua esquerda, outro corredor conduzia a uma saída com uma porta automática de vidro grosso. Viu a camisa sair.

Seguiu-a. Granger percorria a Rua L em passo acelerado, a serpentear perigosamente pelo tráfego impaciente. Os condutores que tinham de guinar para se desviar dele buzinavam, indignados. Ele saltou para o capot de um coupé amarelo, amolgando-o. O condutor abriu a porta e saiu, enraivecido, e depois viu Judy de arma em punho e entrou apressadamente no carro.

Ela perseguiu-o rua fora, correndo os mesmos riscos loucos com o tráfego. Atravessou-se à frente de um autocarro que parou com uma travagem brusca, atravessou o capot do mesmo coupé amarelo, e obrigou uma limusina enorme a atravessar três faixas. Estava quase no passeio quando uma mota apareceu a grande velocidade na faixa da direita, em direcção a ela. Deu um salto para trás, e a mota não lhe bateu por uma unha negra.

Granger correu pela Rua Onze, e depois entrou numa porta. Judy correu atrás dele. Ele tinha entrado num estacionamento subterrâneo. Ela virou para a garagem, a correr o mais depressa que conseguia, e algo a atingiu, um golpe fortíssimo no rosto.

A dor explodiu-lhe no nariz e na testa. Ficou cega. Caiu de costas, e atingiu o cimento com um estrondo. Ficou quieta, paralisada pelo choque e pela dor, incapaz até de pensar. Alguns segundos depois sentiu uma mão forte atrás da sua cabeça e ouviu, como se estivesse a uma grande distância, a voz de Michael a dizer:

- Judy, por amor de Deus, estás viva?

A sua cabeça começou a desanuviar, e recuperou a visão. O rosto de Michael ficou visível.

- Fala comigo, diz alguma coisa! - disse Michael. Ela abriu a boca.

- Dói - balbuciou.

- Graças a Deus! - Tirou um lenço do bolso das calças e limpou-lhe a boca com uma gentileza surpreendente. - O teu nariz está a sangrar.

Ela sentou-se direita.

- Que é que aconteceu?

- Vi-te vir aqui para dentro como um furacão, e depois, no minuto seguinte, estavas estendida no chão. Acho que ele estava à tua espera e te bateu quando viraste a esquina. Se ponho as mãos nele...

Judy apercebeu-se de que tinha deixado cair a arma.

- A minha pistola...

Ele olhou em volta, apanhou-a e entregou-lha.

- Ajuda-me a levantar.

Ele puxou-a até ela ficar de pé.

O rosto doía-lhe como o diabo, mas via bem e as pernas estavam firmes. Tentou pensar com clareza.

Talvez ainda não o tenha perdido.

Havia um elevador, mas ele não podia ter tido tempo para o apanhar. Devia ter subido a rampa. Ela conhecia esta garagem - tinha estacionado ali quando viera ver Honeymoon - e recordou-se de que se estendia ao longo de todo o quarteirão, com entradas nas Ruas Dez e Onze. Talvez Granger também soubesse isso, e já estivesse a sair pela porta da Rua Dez.

Não havia nada a fazer a não ser seguir.

- Vou atrás dele - disse ela.

Correu pela rampa. Michael seguiu-a. Ela deixou-o. Tinha-o mandado ficar afastado duas vezes, e não tinha energia para lhe dizer outra vez.

Chegaram ao primeiro nível de estacionamento. A cabeça de Judy começou a latejar, e de súbito as pernas ficaram fracas. Sabia que não poderia avançar muito mais. Começaram a atravessar o piso.

Inesperadamente, um carro saiu do seu lugar de estacionamento e acelerou directamente para eles.

Judy saltou para o lado, caiu ao chão e rolou, com uma velocidade frenética, até se encontrar debaixo de um carro estacionado.

Viu as rodas do carro preto quando este virou com os pneus a chiar e acelerou pela rampa como um tiro de pistola.

Judy levantou-se e procurou Michael com ansiedade. Ouvira-o gritar de surpresa e medo. O carro tinha-o atingido?

Viu-o a alguns metros de si própria, de gatas, branco de susto.

- Estás bem? - perguntou ela. Ele levantou-se.

- Estou bem, apenas assustado.

Judy olhou para ver a marca do carro preto, mas este tinha desaparecido.

- Merda - disse. - Perdi-o.

 

Judy estava a entrar no clube dos oficiais às sete horas da tarde, quando Raja Khan saiu a correr. Parou quando a viu.

- Que é que te aconteceu?

Que é que me aconteceu? Não consegui impedir um sismo, calculei erradamente o local onde a Melanie Quercus estava escondida, e deixei o Ricky Granger escapar-me por entre os dedos. Lixei tudo, e amanhã haverá outro sismo, e vão morrer mais pessoas, e a culpa será minha.

- O Ricky Granger deu-me um murro no nariz - disse ela. Tinha um penso na face. Os comprimidos que lhe tinham dado no hospital em Sacramento tinham diminuído as dores, mas sentia-se desgastada e sem ânimo. - Onde é que vais com tanta pressa?

- Andávamos à procura de um álbum chamado Raining Fresh Daisies, lembras-te?

- Claro. Esperávamos que nos desse uma pista sobre a mulher que telefonou para o programa do John Truth.

- Localizei um exemplar... e está aqui mesmo na cidade. Uma loja chamada Vinyl Vic's.

- Dá uma estrela de ouro a esse agente! - Judy sentiu a energia regressar. Esta podia ser a pista de que precisava. Não era muito, mas encheu-a novamente de esperança. Talvez ainda houvesse uma hipótese de conseguir impedir outro sismo. - Vou contigo.

Saltaram para o sujo Dodge City de Raja. O chão estava cheio de invólucros de chupa-chupas. Raja saiu do parque de estacionamento e dirigiu-se para Haight-Ashbury.

- O dono da loja chama-se Vic Plumstead - disse ele enquanto guiava. - Quando telefonei, há dois dias, ele não estava lá, e fui atendido por um miúdo que trabalha lá em tempo parcial e que disse que achava que não tinham o disco mas que ia perguntar ao patrão. Deixei um cartão, e o Vic telefonou-me há cinco minutos.

- Por fim, um golpe de sorte!

- O disco foi editado em 1969 por uma etiqueta de São Francisco, a Transcendental Tracks. Teve alguma publicidade e vendeu alguns exemplares na zona da Baía, mas a etiqueta nunca mais teve um sucesso e faliu alguns meses depois.

A alegria de Judy esfriou.

- Isso significa que não há ficheiros onde possamos procurar pistas de onde ela poderá estar agora.

- Talvez o próprio álbum nos diga alguma coisa.

A Vynil Vic's era uma pequena loja a rebentar pelas costuras com discos antigos. Algumas prateleiras de discos convencionais no meio do chão tinham sido tapadas por caixas de cartão e grades de fruta empilhadas até ao tecto. O lugar tinha o cheiro de uma biblioteca velha e empoeirada. Lá dentro encontrava-se um cliente, um homem com tatuagens que vestia uns calções de couro, a analisar um álbum do David Bowie. Nas traseiras, um homem baixo e magro com calças de ganga justas e uma T-shirt manchada estava atrás da caixa registadora, a bebericar café de uma caneca que dizia "Legalizem-na!".

Raja apresentou-se.

- O senhor deve ser o Vic. Falei consigo ao telefone há alguns minutos.

Vic observou-os. Parecia surpreendido. Disse:

- Por fim, o FBI vem à minha loja, e são dois asiáticos? Que é que aconteceu?

Raja disse:

- Eu sou o não branco símbolo, e ela é a mulher símbolo. Cada gabinete do FBI tem de ter um de cada, é a norma. Todos os outros agentes são homens brancos com cabelos curtos.

- Oh, certo. - Vic estava confuso. Não sabia se Raja estava a brincar ou não.

Impaciente, Judy disse:

- E quanto a este disco?

- Aqui está. - Vic virou-se para um lado, e Judy viu que ele tinha um prato rotativo atrás da caixa registadora. Passou o braço por cima do disco e baixou o estilete. Uma explosão de guitarra maníaca introduziu uma faixa de música jazz-funk surpreendentemente baixa com acordes de piano sobre uma complexa batida de bateria. Depois, entrava a voz da mulher:

Estou a derreter

Sintam-me a derreter

Liquefacção

A ficar mais suave - Na verdade, acho que até tem conteúdo - disse Vic.

Judy pensou que era uma porcaria, mas não se importava. Era a voz da gravação de John Truth, sem dúvida. Mais jovem, mais nítida, mais suave, mas com aquele mesmo tom inequivocamente baixo e sexy.

- Tem a capa? - perguntou, apressada.

- Claro. - Entregou-lha.

Estava a enrolar nos cantos, e a cobertura de plástico transparente estava a soltar-se do papel brilhante. A parte da frente tinha uma espiral multicolorida que provocava fadiga ocular. As palavras "Raining Fresh Daisies" mal se discerniam. Judy virou-a. A parte de trás estava suja, e tinha a marca de uma chávena de café no canto superior direito.

As notas da parte de trás começavam: "A música abre as portas que levam aos universos paralelos..."

Judy saltou as palavras. No fundo via-se uma fila de cinco fotografias esbatidas, apenas cabeça e ombros, de quatro homens e uma mulher. Leu as letras maiúsculas:

Dave Rolands, teclas Ian Kerry, guitarra Ross Muller, baixo Jerry Jones, bateria Stella Higgins, poesia

Judy franziu o sobrolho.

- Stella Higgins - disse, excitada. - Acho que já ouvi este nome antes! - Tinha a certeza, mas não conseguia lembrar-se onde. Talvez fosse um pensamento motivado pelo desejo. Olhou para a pequena fotografia a preto e branco. Viu uma rapariga com cerca de vinte anos, com um rosto sorridente e sensual emoldurado por cabelos escuros e a boca larga, generosa, que Simon Sparrow previra. - Ela era uma beleza - murmurou Judy, quase para si mesma. Pesquisou o rosto à procura da loucura que faria uma pessoa ameaçar com um sismo, mas não conseguiu ver qualquer sinal que evidenciasse uma coisa dessas. Tudo o que viu foi uma mulher jovem cheia de vitalidade e esperança. Que é que correu mal na tua vida?

- Pode emprestar-nos isto? - perguntou Judy. Vic ficou mal-humorado.

- Estou aqui para vender discos, não para os emprestar - disse. Ela não ia discutir.

- Quanto custa?

- Cinquenta dólares.

- Está bem.

Ele parou o prato giratório, pegou no disco e enfiou-o na capa de papel. Judy pagou-lhe.

- Obrigada, Vic. Agradecemos a sua ajuda.

Na viagem de volta no carro de Raja, ela deu-lhe o álbum.

- Faz cópias aumentadas desta fotografia e manda-as para as esquadras de Polícia - disse ela. - Dá o disco ao Simon Sparrow. Nunca se sabe o que ele pode desencantar.

Entraram no posto de comando. O grande salão de baile agora estava cheio de gente. O recanto das chefias tinha mais uma mesa. Judy presumiu que, entre as pessoas amontoadas à volta delas, haveria mais alguns fatos da sede do FBI em Washington, e pessoas das agências de protecção civil da cidade, do estado e federais.

Dirigiu-se para a mesa da equipa de investigação. A maior parte da sua gente estava a trabalhar ao telefone, a eliminar pistas. Judy falou para Carl Theobald.

- Que é que estás a fazer?

- Verificação de Plymouth 'Cudas escuros.

- Tenho uma coisa melhor para ti. Temos algures por aqui a lista telefónica da Califórnia em CD-ROM. Procura o nome Stella Higgins.

- E se a encontrar?

- Telefona-lhe e vê se parece a mulher na gravação do John Truth. Ela sentou-se a um computador e iniciou uma pesquisa de cadastros criminais. Descobriu que havia uma Stella Higgins nos ficheiros. A mulher tinha sido multada por posse de marijuana e apanhado uma pena suspensa por atacar um oficial da Polícia depois de uma manifestação. A data de nascimento coincidia, e o endereço era Rua Haight. Não havia fotografia na base de dados, mas parecia a mulher certa.

As duas condenações datavam de 1968, e desde então não havia nada.

O cadastro de Stella era como o de Ricky Granger, que tinha desaparecido da circulação no princípio dos anos 70. Judy imprimiu o ficheiro e pregou-o no painel de suspeitos. Mandou um agente verificar a morada da Rua Haight, embora tivesse a certeza de que a Higgins não estaria lá trinta anos depois.

Sentiu uma mão no ombro. Era Bo. Nos olhos dele estampava-se uma grande preocupação.

- Meu bebé, que é que aconteceu ao teu rosto? - Com as pontas dos dedos, tocou suavemente no penso que ela tinha no nariz.

- Acho que fui descuidada - disse ela. Ele beijou-lhe a testa.

- Esta noite estou de serviço, mas tive de vir ver como estás.

- Quem é que te contou que eu estava magoada?

- Aquele tipo casado, o Michael.

Aquele tipo casado. Ela sorriu. A lembrar-me que o Michael pertence a outra pessoa.

- Não há grandes estragos, mas acho que vou ficar com dois olhos negros.

- Tens de descansar um bocado. Quando é que vais para casa?

- Não sei. Acabei de descobrir alguma coisa. Senta-te. - Contou-lhe sobre o Raining Fresh Daisies. - Da maneira como vejo as coisas, ela é uma bela rapariga que vive em São Francisco nos anos setenta, que vai a manifestações, fuma erva e anda com bandas de rock.

"Os anos sessenta passam a setenta, ela fica desiludida ou talvez apenas aborrecida, e liga-se a um tipo carismático que anda fugido da máfia. Os dois iniciam um culto. De alguma forma, o grupo sobrevive, a fazer bijutaria ou outra coisa qualquer, ao longo de três décadas. Depois, alguma coisa corre mal. De alguma maneira, a existência deles é ameaçada por um plano para construir uma central de energia. Quando se vêem defrontados com a ruína de tudo aquilo por que trabalharam e que construíram ao longo dos anos, engendram uma forma, qualquer forma, de bloquear esta central de energia. Depois uma sismóloga junta-se ao grupo e sugere uma ideia louca.

Bo acenou afirmativamente.

- Faz sentido, ou algum sentido, do género que atrai os tarados.

- O Granger tem a experiência criminal para roubar o vibrador sísmico, e o magnetismo pessoal para persuadir outros membros do culto a alinhar no esquema.

Bo pareceu pensativo.

- Provavelmente, não são proprietários da terra onde vivem - disse ele.

- Porquê?

- Bem, imagino que vivem algures perto do lugar onde esta central nuclear vai ser construída, por isso têm de se mudar. Se a casa, ou quinta, ou seja lá o que for, lhes pertencesse, receberiam uma indemnização, e recomeçariam noutro sítio qualquer. Por isso, acho que têm um arrendamento a curto prazo, ou talvez se tenham apoderado da terra ilegalmente.

- Possivelmente tens razão, mas isso não ajuda. Não temos uma base de dados a nível estadual sobre arrendamento de terras.

Carl Theobald apareceu com um bloco de apontamento na mão.

- Três registos na lista telefónica. A Stella Higgins de Los Angeles é uma mulher com cerca de setenta anos e uma voz trémula. A senhora Higgins de Stockton tem uma forte pronúncia de algum país africano, talvez a Nigéria. E S. J. Higgins em Diamond Heights é um homem chamado Sidney.

- Raios - exclamou Judy. Explicou a Bo: - Stella Higgins é a voz na gravação do John Truth... e tenho a certeza de que já vi o nome antes.

Bo disse:

- Procura nos teus ficheiros.

- O quê?

- Se o nome te parece familiar, talvez seja porque já apareceu durante esta investigação. Procura nos ficheiros do caso.

- Boa ideia.

- Tenho de ir - disse ele. - Com todas estas pessoas a sair da cidade deixando as casas vazias, a Polícia de São Francisco vai ter uma noite movimentada. Boa sorte... e descansa um pouco.

- Obrigada, Bo. - Judy activou a função Procurar no computador e fez uma busca de Stella Higgins em todo o directório de Os Filhos do Paraíso.

Carl espreitou por cima do ombro dela. Era um directório grande e a pesquisa demorou algum tempo. Por fim, o ecrã piscou e disse:

 

1 ficheiro (s) encontrado (s)

Judy sentiu uma explosão de alegria. Carl gritou:

- Cristo! O nome já está no computador! Oh, meu Deus, acho que a encontrei.

Dois outros agentes espreitaram por cima do ombro de Judy enquanto ela abria o ficheiro.

Era um grande documento que continha todas as notas efectuadas por agentes durante a rusga sem êxito em Los Alamos seis dias antes.

- Que diabo? - Judy estava mistificada. - Ela estava em Los Alamos e não a vimos?

Stuart Cleever apareceu ao lado dela.

- A que é que se deve toda esta confusão?

- Encontrámos a mulher que telefonou para o John Truth! - disse Judy.

- Onde?

- Vale do rio de Prata.

- Como é que isso lhe escapou?

Foi o Marvin Hayes, não eu, quem organizou essa rusga.

- Não sei, estou a trabalhar nisso, dê-me um minuto! - Usou a função de pesquisar para localizar o nome nas notas.

Stella Higgins não tinha estado em Los Alamos. Era por isso que não a tinham encontrado.

Dois agentes tinham visitado uma exploração vinícola alguns quilómetros mais adiante no vale. O lugar estava arrendado ao governo federal, e o nome da arrendatária era Stella Higgins.

- Raios, estivemos tão perto! - exclamou Judy, exasperada. - Por pouco não a apanhámos há uma semana!

- Imprimam isto para que toda a gente possa ver - disse Cleever.

Judy carregou no botão de imprimir e continuou a ler.

Os agentes tinham anotado cuidadosamente o nome e idade de todos os adultos que trabalhavam na exploração vinícola. Judy viu que alguns eram casais com filhos, e a maioria deu a morada da exploração agrícola. Então, viviam ali.

Talvez fosse um culto, e os agentes não se tivessem apercebido.

Ou as pessoas tivessem tido o cuidado de esconder a verdadeira natureza da comunidade.

- Apanhámo-los! - disse Judy. - Fomos desviados, a primeira vez por Los Alamos, que pareciam suspeitos perfeitos. Depois, quando verificámos que estavam limpos, pensámos que devíamos estar a ladrar à árvore errada. Isso fez com que nos descuidássemos na procura de outras comunas naquele vale. Foi por isso que não encontrámos os verdadeiros perpetradores. Mas agora encontrámo-los.

Stuart Cleever disse:

- Acho que tem razão. - Voltou-se para a mesa da equipa de intervenção. - Charlie, telefone para o gabinete de Sacramento e organize uma rusga conjunta. A Judy tem a localização. Vamos atacá-los ao amanhecer. Judy disse:

- Devíamos atacar agora. Se esperarmos até de manhã, eles podem já ter ido embora.

- Por que é que sairiam agora? - Cleever abanou a cabeça. - De noite é arriscado de mais. Os suspeitos podem fugir na escuridão, especialmente no campo.

Ele tinha uma certa razão, mas o instinto dizia a Judy para não esperar.

- Eu preferia correr esse risco - disse ela. - Agora que sabemos onde estão, vamos apanhá-los.

- Não - disse ele, peremptório. - Não quero mais discussão, Judy, por favor. Atacamos ao amanhecer.

Ela hesitou. Tinha a certeza de que era a decisão errada. Mas estava demasiado cansada para continuar a argumentar.

- Assim seja - disse ela. - A que horas saímos, Charlie? Marsh olhou para o relógio.

- Saímos daqui às duas da manhã.

- Ainda posso dormir algumas horas.

Lembrou-se de ter estacionado o carro lá fora, no pátio da parada. Parecia ter sido há meses, mas na verdade tinha sido na quinta-feira à noite, apenas quarenta e oito horas antes.

A caminho da rua encontrou Michael.

- Estás com um ar exausto - disse ele. - Deixa-me levar-te a casa.

- E depois como é que volto para cá?

- Eu durmo uma soneca no teu sofá e depois trago-te. Ela parou e olhou para ele.

- Tenho de te dizer que o meu rosto está tão dorido que acho que não ia conseguir beijar, para nem falar em mais alguma coisa.

- Contento-me em segurar-te a mão - disse ele com um sorriso. Estou a começar a pensar que este tipo gosta de mim.

- Aconchegas-me os lençóis e trazes-me leite quente e aspirinas?

- Sim. Deixas-me ver-te dormir?

Ena pá, era o que mais gostava no mundo. Ele leu a expressão dela.

- Acho que estou a ouvir um sim - disse ele. Ela sorriu.

- Sim.

Priest estava terrivelmente zangado quando voltou de Sacramento. Tinha a certeza de que o governador ia chegar a acordo com ele. Sentia que estava à beira da vitória. Já estava a dar os parabéns a si próprio. E tinha sido tudo um logro. O governador Robson não tinha a intenção de chegar a um acordo. Tinha sido uma armadilha. O FBI tinha imaginado que podia apanhá-lo numa ratoeira estúpida, como se ele fosse um patife sem miolos. O que o afectou profundamente foi o desrespeito. Pensavam que ele era um drogado qualquer.

Aprenderiam a verdade. E a lição sairia cara.

Custar-lhes-ia outro sismo.

Todos os elementos da comuna estavam ainda abalados com a partida de Dale e Poem. Recordara-lhes algo que eles tinham fingido esquecer: que amanhã deviam sair do vale.

Priest contou aos Comedores de Arroz toda a pressão que tinham feito ao governador. As auto-estradas continuavam repletas de carrinhas cheias de miúdos e malas a escapar do sismo que estava para vir. Nos bairros semidesertos que tinham deixado para trás, ladrões saíam de casas suburbanas carregados de fornos microondas e leitores de CD e computadores.

Mas também sabiam que o governador não mostrava indícios de ceder.

Embora fosse sábado à noite, ninguém queria divertir-se. Depois do jantar e da oração da noite, a maior parte das pessoas retirou-se para as suas cabanas. Melanie dirigiu-se para a camarata, para ler para as crianças. Priest sentou-se do lado de fora da sua cabana, a ver a lua descer sobre o vale, e acalmou-se lentamente. Abriu uma garrafa com cinco anos do seu próprio vinho, uma colheita de qualidade excelente com o sabor fumado que adorava.

Era uma guerra de nervos, disse para si mesmo quando conseguiu pensar com calma. Quem é que aguentaria mais, ele ou o governador? Qual deles conseguiria manter melhor a sua gente sob controlo? Os sismos poriam o Governo estadual de joelhos antes de o FBI conseguir detectar Priest no seu reduto na montanha?

Star apareceu, iluminada pela lua, a caminhar descalça e a fumar um charro. Deu uma grande passa no charro, inclinou-se sobre Priest e beijou-o, abrindo a boca. Ele inalou o fumo intoxicante dos pulmões dela. Expirou, sorriu e disse:

- Recordo-me da primeira vez que fizeste isso. Foi a coisa mais sexy que me aconteceu.

- A sério? - disse ela. - Mais sexy do que um broche?

- Muito mais. Lembro-me de que quando tinha sete anos vi a minha mãe a fazer um broche a um gajo qualquer. Mas ela nunca os beijava. Eu era a única pessoa que ela beijava. Ela disse-me isso.

- Que raio de vida que tu tiveste, Priest. Ele franziu o sobrolho.

- Falas como se tivesse acabado.

- Esta parte acabou, não acabou?

- Não!

- É quase meia-noite. O teu prazo está prestes a esgotar-se. O governador não vai ceder.

- Tem de ceder - disse Priest. - É apenas uma questão de tempo. - Levantou-se. - Tenho de ouvir as notícias da rádio.

Ela caminhou ao lado dele enquanto ele atravessava a vinha ao luar e subia o trilho até aos carros.

- Vamos embora - disse ela de súbito. - Só tu e eu e a Flower. Metemo-nos num carro, agora mesmo, e partimos. Não nos despedimos, nem fazemos uma mala, nem sequer levamos roupas ou outra coisa qualquer. Vamos embora, como eu fiz quando saí de São Francisco em 1969. Vamos onde a vontade nos levar... Orégão, ou Las Vegas, ou até Nova Iorque. E que tal Charleston? Eu sempre tive vontade de ver o Sul.

Sem responder, ele entrou no Cadillac e ligou o rádio. Star sentou-se ao lado dele. Brenda Lee estava a cantar Let's Jump the Broomstick.

- Vá lá, Priest, que é que dizes?

O noticiário começou, e ele aumentou o volume.

- Richard Granger suspeito de ser o líder do grupo terrorista Os Filhos do Paraíso escapou ao FBI hoje em Sacramento. Entretanto, residentes que fogem dos bairros perto da falha de Santo André provocaram uma paragem no trânsito de muitas auto-estradas na região da baía de São Francisco, com quilómetros de carros a bloquear grandes secções das Estradas Interestaduais 280, 580, 680 e 880. E um vendedor de discos raros de Haight-Ashbury afirma que agentes do FBI lhe compraram um álbum com uma fotografia de outra suspeita de terrorismo.

- Álbum? - disse Star. - Que diabo...?

- O dono da loja, Vic Plumstead, disse aos jornalistas que o FBI lhe telefonou para ele ajudar a encontrar um álbum dos anos 60, que acreditavam ter a voz de um dos suspeitos de Os Filhos do Paraíso. Ele declarou que, após dias de esforço encontrou o álbum, de uma obscura banda de rock chamada Raining Fresh Daisies.

- Jesus Cristo! Eu própria quase os tinha esquecido!

- O FBI não confirmou nem negou que anda à procura da vocalista, Stella Higgins.

- Porra! - explodiu Star. - Eles sabem o meu nome!

A mente de Priest voava. Até que ponto é que isto era perigoso? O nome não lhes servia de muito. Star não o usava há quase trinta anos. Ninguém sabia onde é que Stella Higgins vivia.

Sabiam, sim.

Suprimiu um gemido de desespero. O nome Stella Higgins estava no arrendamento da terra. E ele tinha dito aquilo aos dois agentes do FBI que tinham vindo ali no dia da rusga a Los Alamos.

Isto mudava tudo. Mais cedo ou mais tarde, alguém no FBI faria a ligação.

E se por algum infortúnio o FBI não conseguisse descobrir, havia um ajudante de xerife em Silver City, actualmente de férias nas Baamas, que tinha escrito o nome "Stella Higgins" num dossier que devia ir a tribunal dali a algumas semanas.

O vale do rio de Prata já não era um segredo.

O pensamento deixou-o insuportavelmente infeliz.

Que podia fazer?

Talvez devesse fugir com Star agora. As chaves estavam no carro. Podiam estar no Nevada daí a algumas horas. Ao meio-dia de amanhã estariam a oitocentos quilómetros de distância.

Raios, não. Ainda não estou derrotado.

Ainda conseguia aguentar as coisas.

O plano original tinha sido que as autoridades nunca saberiam quem eram Os Filhos do Paraíso nem porque é que tinham exigido a paragem da construção de novas centrais energéticas. Agora o FBI estava prestes a descobrir - mas talvez eles pudessem ser obrigados a manter segredo. Isso podia passar a fazer parte da exigência de Priest. Se fossem obrigados a concordar com a paragem, também podiam engolir isto.

Sim, era ultrajante - mas tudo isto era ultrajante. Ele ia conseguir.

Só tinha de se manter longe das garras do FBI.

Abriu a porta do carro e saiu.

- Vamos - disse para Star. - Tenho muito que fazer. Ela saiu lentamente.

- Não vais fugir comigo? - perguntou, triste.

- Raios, não. - Atirou com a porta e afastou-se.

Ela seguiu-o pela vinha e de volta para a aldeia. Foi para a cabana sem lhe dar as boas-noites.

Priest foi à cabana de Melanie. Ela estava a dormir. Abanou-a bruscamente para a acordar.

- Levanta-te - disse ele. - Temos de ir. Depressa.

 

Judy observou e esperou enquanto Stella Higgins chorava convul-sivamente.

Era uma mulher grande, e embora pudesse ter sido atraente em circunstâncias diferentes, agora parecia destruída. Tinha o rosto contorcido pelo desgosto, a sombra de olhos antiquada escorria-lhe pelas faces, e os ombros pesados abanavam com soluços.

Estavam sentadas na cabana minúscula que era a sua casa. Viam-se artigos médicos por todo o lado: caixas de ligaduras, caixas de Aspirinas e Rolaids, Tylenol e Trojans, frascos de água oxigenada, xarope para a tosse e iodeto. As paredes estavam decoradas com desenhos infantis de Star a cuidar de miúdos doentes. Era um edifício primitivo, sem energia eléctrica nem água corrente, mas tinha uma aura feliz.

Judy foi até à porta e espreitou para fora, dando a Star um minuto para se recompor. O lugar era muito belo à luz pálida do começo da manhã. As últimas tiras de um leve nevoeiro estavam a desaparecer das árvores nas encostas íngremes, e o rio brilhava e refulgia na bifurcação do vale. Nas encostas mais baixas viu uma vinha muito bem cuidada, as fileiras ordenadas de videiras com os enxertos amarrados a latadas de madeira. Por momentos, Judy foi invadida por uma sensação de paz espiritual, uma sensação de que aqui neste lugar as coisas eram como deviam ser, e que o resto do mundo é que era esquisito. Abanou a cabeça para se livrar da sensação estranha.

Michael apareceu. Uma vez mais ele dissera que queria estar aqui para cuidar de Dusty, e Judy dissera a Stuart Cleever que ele devia ser autorizado porque os seus conhecimentos eram vitais para a investigação. Ele levava Dusty pela mão.

- Como é que ele está? - perguntou Judy.

- Está óptimo - respondeu Michael.

- Encontraste a Melanie?

- Ela não está aqui. O Dusty diz que há uma rapariga grande chamada Flower que tem estado a tomar conta dele.

- Alguma ideia do local para onde a Melanie foi?

- Não. - Ele acenou em direcção a Star. - Que é que ela diz?

- Nada, ainda. - Judy voltou para dentro e sentou-se na beira da cama. - Fale-me sobre o Ricky Granger - disse.

- Há bem e mal dentro dele - disse Star enquanto o choro continuava. - Eu sei que foi um bandido antes, que até matou pessoas, mas durante todo o tempo que passámos juntos, mais de vinte e cinco anos, ele não magoou uma única pessoa, até agora, até alguém ter tido a ideia desta estúpida barragem.

- Tudo o que quero fazer - disse Judy suavemente - é encontrá-lo antes que ele magoe mais pessoas.

Star acenou afirmativamente.

- Eu sei.

Judy obrigou Star a olhar para ela.

- Para onde é que ele foi?

- Se soubesse, dizia-lhe - disse Star. - Mas não faço ideia.

 

Priest e Melanie partiram para São Francisco na pickup da comuna. Priest achou que o Cadillac amolgado dava demasiado nas vistas, e a Polícia podia andar à procura do Subaru cor de laranja de Melanie.

O tráfego dirigia-se todo na direcção oposta, por isso não perderam muito tempo. Chegaram à cidade pouco depois das cinco horas, no domingo de manhã. Viam-se algumas pessoas nas ruas: um casal de adolescentes abraçados numa paragem de autocarros, dois viciados em crack, nervosos, a comprar uma última dose a um passador de casaco comprido, um bêbado inútil a ziguezaguear pela rua. Porém, a zona ribeirinha estava deserta. A paisagem industrial abandonada tinha um aspecto ermo e assustador à primeira luz da manhã. Encontraram o armazém Perpetua Diaries, e Priest abriu a porta com a chave. O agente imobiliário cumprira a promessa: a energia eléctrica estava ligada e havia água na casa de banho.

Melanie levou a pickup para o interior, e Priest foi ver se estava tudo em ordem no vibrador sísmico. Ligou o motor, depois baixou e subiu a placa. Estava tudo a funcionar.

Deitaram-se para dormir no sofá do pequeno escritório, muito juntos. Priest ficou acordado, a reflectir vezes sem conta sobre a posição em que se encontrava. Analisou a situação de todos os ângulos, e a única coisa inteligente que o governador Robson tinha a fazer era ceder. Priest viu-se a fazer discursos imaginários no programa do John Truth, a dizer como o governador estava a ser estúpido. Ele podia parar os sismos com uma palavra! Depois de uma hora nisto percebeu que não levava a lado algum. Deitado de costas, efectuou o ritual de relaxamento que usava para meditar. O corpo ficou imóvel, os batimentos cardíacos tornaram-se mais lentos, a mente esvaziou-se e adormeceu.

Acordou às dez da manhã.

Pôs uma panela de água na placa eléctrica. Tinha trazido da comuna uma lata de café orgânico e algumas chávenas. Melanie ligou a televisão.

- Na comuna sinto a falta das notícias - disse ela. - Estava sempre a ver.

- Normalmente, detesto noticiários - disse Priest. - Fazem-nos ficar preocupados com um milhão de coisas em relação às quais não podemos fazer nada. - Mas viu com ela, para saber se falavam nele.

Foi tudo acerca dele.

- As autoridades da Califórnia estão a levar a sério a ameaça de um sismo hoje, quando o prazo dado pelos terroristas se aproxima do fim - disse o apresentador, e havia uma quantidade enorme de funcionários camarários a erigir uma tenda-hospital no Parque Golden Gate.

Ao ver aquilo, Priest ficou zangado.

- Por que é que não nos dão o que queremos? - disse para o televisor.

A reportagem seguinte mostrou agentes do FBI a invadir cabanas de madeira nas montanhas. Instantes depois, Melanie exclamou:

- Meu Deus, é a nossa comuna!

Viram Star, envolta no seu velho roupão de seda roxa, com desgosto estampado no rosto, a ser levada da sua cabana por dois homens com coletes à prova de bala.

Priest praguejou. Não estava surpreendido - fora a possibilidade de uma rusga que o levara a partir tão apressadamente na noite anterior -, mas mesmo assim, ao ver aquilo, mergulhou numa enorme raiva e desespero. O seu lar tinha sido violado por estes filhos-da-mãe hipócritas.

Deviam ter-nos deixado em paz- Agora é tarde de mais.

Viu Judy Maddox com uma expressão carrancuda. Estavas à espera de me pescar na tua rede, não era? Hoje não estava tão bonita. Tinha dois olhos negros e um penso grande sobre o nariz. Mentiste-me e tentaste armar-me uma cilada, e foste castigada com um nariz a sangrar.

Mas no íntimo estava intimidado. Tinha subestimado o FBI ao longo de todo o processo. Quando começara, nunca lhe passara pela cabeça que veria agentes a invadir o santuário do vale que tinha sido um local secreto durante tantos anos. Judy Maddox era mais inteligente do que ele imaginara.

Melanie ofegou. Via-se uma imagem do marido, Michael, com Dusty pela mão.

- Oh, não! - exclamou ela.

- Eles não estão a prender o Dusty - disse Priest, impaciente.

- Mas para onde é que o Michael vai levá-lo?

- Isso interessa?

- Interessa, se vai haver um sismo!

- O Michael sabe melhor do que ninguém onde ficam as linhas de falha! Não vai para nenhum sítio perigoso.

- Oh, Deus, espero que não, especialmente se tiver o Dusty com ele. Priest já tinha visto bastante televisão.

- Vamos sair - disse. - Traz o teu telefone.

Melanie tirou a pickup do armazém, e Priest fechou a porta à chave atrás deles.

- Vai para o aeroporto - disse-lhe ao entrar.

Evitando as auto-estradas, chegaram perto do aeroporto antes de ficarem presos no trânsito. Priest calculou que devia haver milhares de pessoas a usar telefones nas proximidades - a tentar arranjar voos, a telefonar para as famílias, a saber o tamanho da fila de trânsito! Telefonou para o programa de John Truth.

Foi o próprio John Truth quem atendeu. Priest imaginou que ele estava à espera de que ele telefonasse.

- Tenho uma nova exigência, por isso escute atentamente - disse Priest.

- Não se preocupe, estou a gravar isto - disse Truth.

- Acho que vou estar no seu programa esta noite, não, John? - disse Priest com um sorriso.

- Espero que esteja na porcaria da cadeia - disse Truth maldosamente.

- Ora, vá-se foder você também. - Não havia necessidade de o tipo ser merdoso. - A minha exigência nova é um perdão presidencial para toda a gente de Os Filhos do Paraíso.

- Vou informar o presidente.

Agora era como se estivesse a ser sarcástico. Não compreendia até que ponto isto era importante?

- Isto é juntamente com a paragem da construção de novas centrais de energia.

- Espere lá - disse Truth. - Agora que toda a gente sabe onde fica a sua comuna, não precisa de uma paragem a nível estadual. Só quer impedir que o seu vale seja inundado, não é?

Priest reflectiu. Não tinha pensado nisto, mas Truth tinha razão. Mesmo assim, decidiu não concordar.

- Raios, não - disse ele. - Eu tenho princípios. A Califórnia precisa de menos energia eléctrica, não mais, se vai ser um sítio decente para os meus netos viverem. A nossa exigência original mantém-se. Haverá outro sismo se o governador não concordar.

- Como é que você pode fazer isto? A pergunta apanhou Priest de surpresa.

- O quê?

- Como é que pode fazer isto? Como é que pode trazer tanto sofrimento e infelicidade a tantas pessoas... matar, ferir, danificar propriedades, fazer as pessoas abandonar os seus lares, aterrorizadas... Como é que alguma vez vai conseguir dormir?

A questão enraiveceu Priest.

- Não ponha as coisas como se você é que fosse o ético - disse ele. - Eu estou a tentar salvar a Califórnia.

- Matando pessoas. Priest perdeu a paciência.

- Cale a merda da boca e escute - disse. - Vou falar-lhe no próximo sismo. - Segundo Melanie, a janela sísmica abriria às seis e quarenta da tarde. - Sete horas - disse Priest. - Vai acontecer às sete horas, esta tarde.

- Pode dizer-me... Priest desligou.

Ficou em silêncio durante algum tempo. A conversa tinha-o deixado com uma sensação intranquila. Truth devia ter ficado com um pavor de morte, mas quase tinha troçado de Priest. Tinha tratado Priest como um falhado, era o que tinha acontecido.

Chegaram a um cruzamento.

- Podíamos virar aqui e voltar para trás - disse Melanie. - Não há trânsito para o outro lado.

- Está bem.

Ela virou. Estava pensativa.

- Alguma vez vamos voltar para o vale? - perguntou. - Agora que o FBI toda a gente sabe da sua existência?

- Sim! - disse ele.

- Não grites!

- Claro que vamos voltar - disse ele mais calmamente. - Sei que as coisas parecem más, e que talvez tenhamos de nos manter afastados por algum tempo. Tenho a certeza de que vamos perder a colheita deste ano. Os jornalistas vão invadir o lugar durante semanas a fio. Mas acabam por se esquecer de nós. Vai haver uma guerra, ou eleições, ou um escândalo sexual, e seremos uma notícia velha. Depois podemos voltar para lá discretamente, e instalarmo-nos nas nossas casas, e voltar a pôr as videiras em ordem, e cuidar de uma nova colheita.

Melanie sorriu.

- Sim - disse.

Ela acredita. Eu não sei se acredito. Mas não vou pensar mais nisso. Inquietar-me vai destruir a minha vontade. Agora não há dúvidas. Apenas acção.

Melanie disse:

- Queres voltar para o armazém?

- Não. Dou em doido se ficar fechado naquele buraco o dia inteiro. Vai para a cidade e procuramos um restaurante que sirva refeições. Estou esfomeado.

Judy e Michael levaram Dusty para Stockton, onde os pais de Michael viviam. Foram de helicóptero. Dusty estava encantado. O aparelho aterrou no campo de futebol de um liceu dos subúrbios.

O pai de Michael era um contabilista aposentado, e tinham uma bonita casa suburbana cujas traseiras confinavam com um campo de golfe. Judy bebeu café na cozinha enquanto Michael instalava Dusty. Preocupada, a senhora Quercus disse:

- Afinal, talvez toda esta confusão dê um empurrão ao negócio... é um vento mau que não traz nada de bom a ninguém. - Judy lembrou-se de que eles tinham investido dinheiro na empresa de consultadoria de Michael, e ele estava preocupado pois não sabia como pagar-lhes. Mas a senhora Quercus tinha razão, o facto de ele ser o perito em sismos do FBI poderia ajudar.

Judy não conseguia parar de pensar no vibrador sísmico. Não estava no vale do rio de Prata. Não era avistado desde sexta-feira, embora os painéis que o faziam parecer um carrossel tivessem sido encontrados na berma da estrada por um dos muitos trabalhadores que continuavam a limpar os destroços em Felicitas.

Sabia o que Granger estava a conduzir. Tinha descoberto depois de perguntar aos elementos da comuna que carros é que tinham e de verificar qual deles é que faltava. Ele estava a usar uma pickup, e ela tinha emitido um boletim com todos os pormenores. Em teoria, cada polícia da Califórnia deveria andar à procura do veículo, embora a maior parte deles estivesse demasiado ocupado a resolver a emergência.

O pensamento de que podia ter apanhado Granger na comuna se tivesse lutado mais e persuadido Cleever a atacar o lugar na noite passada ao invés de esta manhã atormentou-a profundamente. Mas estava cansada de mais. Hoje sentia-se melhor - a rusga tinha-lhe injectado adrenalina no sistema e dera-lhe energia. Mas estava física e mentalmente ferida, a correr no vazio.

Um pequeno televisor na bancada da cozinha estava ligado, mas sem som. O noticiário começou e Judy pediu à senhora Quercus se não se importava de aumentar o som. Era uma entrevista com John Truth, que falara ao telefone com Granger. Ele passou uma parte da conversa. "Sete horas", dizia Granger na gravação. "Vai acontecer às sete horas, esta tarde."

Judy estremeceu. Ele estava a falar a sério. Não havia arrependimento nem remorso na voz, nenhum sinal de que hesitava ao pôr em risco as vidas de tantas pessoas. Parecia racional, mas havia uma falha na sua humanidade. Não se importava realmente com o sofrimento dos outros. Era a característica dos psicopatas.

Perguntou a si mesma o que é que Simon Sparrow pensaria da voz. Mas agora era demasiado tarde para psicolinguística. Foi à porta da cozinha e chamou:

- Michael! Temos de ir!

Teria gostado de deixar Michael ali com Dusty, onde estavam ambos em segurança. Mas precisava dele no posto de comando. Os seus conhecimentos podiam ser cruciais.

Ele entrou com Dusty.

- Estou pronto - disse. O telefone tocou e a senhora Quercus atendeu. Instantes depois, estendeu o auscultador para Dusty.

- Uma pessoa para ti - disse.

Dusty pegou no telefone e falou, hesitante:

- Está? - Depois o rosto iluminou-se. - Olá, mãe! Judy ficou paralisada.

Era Melanie. Dusty disse:

- Esta manhã acordei e a mãe não estava! Depois o pai veio buscar-me!

Quase de certeza que Melanie estava com Priest e o vibrador sísmico. Judy pegou no telemóvel e marcou o número do posto de comando. Raja atendeu e ela disse em voz baixa:

- Localiza uma chamada. A Melanie Quercus está a telefonar para um número em Stockton. - Leu o número que se encontrava no aparelho que Dusty estava a utilizar. - O telefonema começou há cerca de um minuto e ainda está a decorrer.

- Estou a tratar disso - disse Raja. Judy desligou.

Dusty estava a escutar, a acenar e a abanar a cabeça de vez em quando, esquecendo-se de que a mãe não conseguia ver os seus movimentos.

Depois, abruptamente, estendeu o telefone ao pai.

- Ela quer falar consigo. Judy sussurrou para Michael:

- Por amor de Deus, descobre onde é que ela está!

Ele pegou no telefone e encostou-o ao peito, abafando-o.

- Pega na extensão do quarto.

- Onde?

A senhora Quercus disse:

- Do outro lado do corredor, querida.

Judy correu para o quarto, atirou-se para cima da colcha florida e pegou no telefone que estava na mesa-de-cabeceira, tapando o bocal com a mão.

Ouviu Michael dizer:

- Melanie... onde diabo é que estás?

- Não interessa - replicou Melanie. - Vi-te a ti e ao Dusty na televisão. Ele está bem?

Então ela tem estado a ver televisão, onde quer que esteja.

- O Dusty está óptimo - disse Michael. - Acabámos de chegar aqui.

- Estava com esperança de que estivessem aí. Estava a falar em voz baixa, e Michael perguntou:

- Podes falar?

- Não, não posso, por isso escuta com atenção, está bem?

Ela não quer que o Granger a oiça. Isso é bom... pode ser um sinal de que estão a começar a discordar.

- Está bem, está bem - disse Michael.

- Vais ficar aí com o Dusty, não vais?

- Não - disse Michael. - Vou para a cidade.

- O quê? Por amor de Deus, Michael, é perigoso!

- É onde o sismo vai acontecer... em São Francisco?

- Não posso dizer-te.

- Será na península?

- Sim, na península, por isso mantém o Dusty longe!

O telefone celular de Judy tocou. Mantendo o bocal do telefone do quarto bem tapado, ela levou o telefone celular ao outro ouvido e disse:

- Sim. Era Raja.

- Ela está a telefonar do celular. Está na baixa de São Francisco. Não podem fazer melhor do que isso com um telefone digital.

- Põe algumas pessoas na rua à procura da pickupl - É para já. Judy desligou. Michael estava a dizer:

- Se estás tão preocupada, por que é que não me dizes onde está o vibrador sísmico?

- Não posso fazer isso! - sussurrou Melanie. - Não estás bom da cabeça!

- Vá lá. Eu não estou bom da cabeça? Tu é que estás a causar sismos!

- Não posso falar mais. - Ouviu-se um clique.

Judy recolocou o auscultador na mesa-de-cabeceira e rolou até ficar de costas, a pensar em mil coisas. Melanie tinha dado muitas informações. Estava algures na baixa de São Francisco, e embora isso não a tornasse fácil de encontrar, era um palheiro mais pequeno do que toda a Califórnia. Ela tinha dito que o sismo seria desencadeado algures na península de São Francisco, a larga extensão de terra entre o oceano Pacífico e a baía de São Francisco. O vibrador sísmico tinha de se encontrar algures naquela área. Mas o mais intrigante para Judy fora a sugestão de alguma divisão entre Melanie e Granger. Era óbvio que ela telefonara sem lhe dizer, e parecera receosa de que ele a ouvisse. Aquilo era esperançoso. Devia haver uma maneira de Judy poder aproveitar-se de uma cisão.

Fechou os olhos, concentrando-se. Melanie estava preocupada com Dusty. Era a sua fraqueza. Como é que poderia ser usada contra ela?

Ouviu passos e abriu os olhos. Michael entrou no quarto. Olhou-a de uma forma estranha.

- Que é? - perguntou ela.

- Isto pode parecer fora de propósito, mas ficas bestial deitada numa cama.

Ela lembrou-se de que estava em casa dos pais dele. Levantou-se. Ele pôs os braços à sua volta e a sensação foi boa.

- Como está o teu rosto? - perguntou ele.

Ela ergueu os olhos para ele.

- Se fores muito cuidadoso...

Ele beijou-a suavemente nos lábios.

Se ele quer beijar-me quando eu estou tão mal, deve gostar mesmo de mim.

- Mm... - disse ela. - Quando isto acabar...

- Sim.

Ela fechou os olhos por um momento.

Depois começou a pensar novamente em Melanie.

- Michael...

- Ainda estou aqui.

Ela soltou-se do abraço dele.

- A Melanie está preocupada com a possibilidade de o Dusty poder estar na zona do sismo.

- Ele vai estar aqui.

- Mas tu não confirmaste isso. Ela perguntou-te, mas tu disseste-lhe que se estava preocupada devia dizer-te onde está o vibrador sísmico, e nunca respondeste concretamente à pergunta dela.

- Mesmo assim, a implicação... quero dizer, por que é que o poria em perigo?

- Estou só a dizer que ela pode ter uma dúvida a incomodá-la. E, onde quer que ela esteja, há uma televisão.

- Às vezes ela vê notícias o dia inteiro... descontrai-a. Judy sentiu uma punhalada de ciúme. Ele conhece-a tão bem.

- E se arranjássemos um repórter para te entrevistar no centro operacional de emergência em São Francisco, acerca do que estás a fazer para auxiliar o FBI... e o Dusty estivesse algures por perto?

- Nesse caso, ela saberia que ele estava em São Francisco.

- E que é que faria?

- Telefonava-me aos gritos, suponho.

- E se não conseguisse encontrar-te...

- Ficaria verdadeiramente assustada.

- Mas impediria o Granger de usar o vibrador sísmico?

- Talvez. Se pudesse.

- Vale a pena tentar?

- Há outra alternativa?

Priest tinha um sentimento de fazer ou morrer. Talvez o governador e o presidente não cedessem às suas exigências, mesmo depois de Felicitas. Mas esta noite haveria um terceiro sismo. Depois telefonaria para John Truth e diria:

- Vou repetir! Da próxima vez será em Los Angeles, ou São Bernardino, ou São José. Posso fazer isto quantas vezes quiser. Vou continuar até cederem. A escolha é vossa!

O centro de São Francisco era uma cidade-fantasma. Poucas pessoas queriam parar ou ver a paisagem, embora muitas se dirigissem para a igreja. O restaurante estava semivazio. Priest pediu ovos e bebeu três Bloody Marys. Melanie estava deprimida, preocupada com Dusty. Priest pensava que o miúdo ia ficar bem, pois estava com o pai.

- Já alguma vez te contei por que é que me chamo Granger? - perguntou a Melanie.

- Não é o apelido dos teus pais?

- A minha mãe chamava-se Verónica Nightingale. Disse-me que o nome do meu pai era Stewart Granger. Ele tinha ido fazer uma longa viagem, dizia ela, mas um dia voltaria, numa grande limusina carregada de presentes... perfumes e chocolates para ela e uma bicicleta para mim. Em dias chuvosos, quando eu não podia brincar nas ruas, costumava sentar-me junto a uma janela à espera dele, horas a fio.

Por instantes, Melanie pareceu esquecer os seus problemas.

- Pobre miúdo - disse ela.

- Tinha mais ou menos doze anos quando percebi que o Stewart Granger era um grande actor de cinema. Fez o papel de Allan Quater-main em As Minas do Rei Salomão, na altura em que eu nasci. Deve ter sido fantasia da minha mãe. Mas garanto-te que me partiu o coração. Todas aquelas horas a espreitar pela maldita janela. - Priest sorriu, mas a recordação doía.

- Quem sabe? - disse Melanie. - Talvez ele fosse o teu pai. Actores de cinema vão a prostitutas.

- Acho que devia perguntar-lhe.

- Ele já morreu.

- Já? Não sabia.

- Sim, li na revista People, há alguns anos.

Priest sentiu uma tristeza de perda. Stewart Granger era a coisa mais próxima de um pai que jamais tivera.

- Bem, agora nunca saberei. - Encolheu os ombros e pediu a conta.

Quando saíram do restaurante, Priest não quis voltar para o armazém. Era fácil sentar-se sem fazer nada quando estava na comuna, mas numa sala sombria numa zona industrial em ruínas ficaria com claustrofobia. Vinte e cinco anos a viver no vale do rio de Prata tinham-no estragado para a cidade. Por isso, ele e Melanie passearam pelo Molhe dos Pescadores, a fingir que eram turistas, a apreciar a brisa salgada da baía.

Por precaução, tinham alterado a aparência. Ela prendera os exuberantes cabelos ruivos e escondera-os debaixo de um chapéu, e tinha óculos escuros. Priest enchera o cabelo escuro de gel e colara-o à cabeça, e uma barba de três dias escurecia-lhe as faces, dando-lhe o ar de um macho latino que era bastante diferente do seu aspecto de hippie velho. Ninguém os olhou uma segunda vez.

Priest escutou as conversas das poucas pessoas que andavam por ali. Todos tinham uma desculpa para não sair da cidade.

- Eu não estou preocupado, o nosso prédio é à prova de sismos...

- O meu também, mas às sete horas vou estar no meio do parque...

- Eu sou fatalista; ou o sismo tem o meu nome escrito nele, ou não...

- Exactamente, uma pessoa pode ir de carro para Vegas e morrer num acidente rodoviário...

- A minha casa acabou de ser remodelada...

- Ninguém pode provocar sismos, foi uma coincidência... Voltaram para o carro alguns minutos depois das quatro. Priest não viu o polícia até ser quase tarde de mais.

Os Bloody Marys tinham-no deixado estranhamente calmo, e sentia-se quase invulnerável, por isso não estava atento à Polícia. Estava apenas a três ou quatro metros da pickup quando reparou num polícia uniformizado a olhar para a matrícula e a falar para um intercomunicador.

Priest estacou e agarrou no braço de Melanie.

Um momento depois, percebeu que a atitude mais inteligente seria passar sem parar; mas depois já era tarde de mais.

O polícia levantou o olhar da matrícula e reparou em Priest.

Priest olhou para Melanie. Ela não tinha visto o polícia. Ele quase disse, Não olhes para o carro, mas apercebeu-se a tempo de que ela olharia de certeza. Ao invés disso, disse outra coisa que lhe veio à cabeça.

- Olha para a minha mão. - Levantou a palma para cima. Ela olhou, e depois voltou a olhar para ele.

- Que é que queres que veja?

- Continua a olhar para a minha mão enquanto eu explico. Ela fez o que ele lhe dizia.

- Vamos passar pelo carro. Está um polícia a registar a matrícula. Ele reparou em nós; estou a vê-lo pelo canto do olho.

Ela levantou os olhos da mão para o rosto dele. Depois, para espanto dele, deu-lhe um estalo.

Doeu. Ele conteve a respiração. Melanie gritou:

- E agora podes voltar para a tua loura burra!

- O quê? - disse ele, furioso. Ela continuou a andar.

Ele ficou a olhá-la, espantado. Ela passou pela pickup em passos rápidos.

O polícia olhou para Priest com um leve sorriso. Priest seguiu atrás de Melanie, a dizer:

- Espera aí!

O polícia voltou a concentrar-se na matrícula. Priest apanhou Melanie e viraram uma esquina.

- Muito espertinha - disse ele. - Mas não precisavas de me bater com tanta força.

Um potente holofote portátil incidiu sobre Michael, e um microfone miniatura estava preso à parte da frente do seu pólo verde-escuro. Uma pequena câmara de televisão num tripé estava apontada para ele. Atrás dele, os jovens sismólogos que ele trouxera trabalhavam junto aos seus computadores. À frente dele sentava-se Alex Day, um apresentador de televisão de vinte e tal anos com um corte de cabelo muito moderno. Usava um colete de camuflagem que Judy achou exageradamente dramático.

Dusty estava ao lado de Judy, a segurar-lhe confiantemente a mão, a ver o pai a ser entrevistado.

Michael estava a dizer:

- Sim, podemos identificar os locais onde se pode desencadear mais facilmente um sismo... mas, infelizmente, não podemos dizer qual é que os terroristas escolheram antes de eles ligarem o vibrador sísmico.

- E qual é o conselho que dá aos cidadãos? - perguntou Alex Day. - Como é podem proteger-se se houver um sismo?

- O lema é "Agachar, tapar e ficar", e esse é o melhor conselho - replicou ele. - Agachem-se debaixo de uma mesa ou de uma secretária, tapem o rosto para se protegerem de vidros a voar, e fiquem onde estão até os tremores pararem.

Judy sussurrou para Dusty:

- Agora vai ao papá.

Dusty entrou no alcance da câmara. Michael colocou o menino nos joelhos. Aproveitando a deixa, Alex Day perguntou:

- Podemos fazer alguma coisa em especial para proteger as nossas crianças?

- Bem, podem praticar o exercício de "Agachar, tapar e ficar" com eles agora mesmo, para que saibam o que fazer se sentirem um tremor. Certifiquem-se de que eles calçam sapatos grossos, não chinelos ou sandálias, porque haverá muitos vidros partidos por todo o lado. E mantenham-nos perto, para não terem de andar à procura deles depois.

- Alguma coisa que as pessoas devam evitar?

- Não corram para fora de casa. A maior parte dos ferimentos durante os sismos são provocados por tijolos e outros destroços que caem de edifícios danificados.

- Professor Quercus, obrigado por ter estado connosco hoje. Alex Day sorriu para Michael e Dusty durante um longo momento, e depois o operador de câmara disse:

- Bestial.

Todos descontraíram. A equipa começou a arrumar o equipamento rapidamente. Dusty disse:

- Quando é que posso ir para a avó no helicóptero?

- Agora mesmo - disse-lhe Michael. Judy perguntou:

- Quando é que a reportagem vai para o ar, Alex?

- Quase não precisa de edição, por isso vai já. Dentro de meia hora, diria.

Judy olhou para o relógio. Eram cinco e quinze.

Priest e Melanie caminharam meia hora sem avistar um táxi. Depois, Melanie ligou para um serviço de táxis pelo telefone celular. Esperaram, mas não veio carro algum.

Priest sentiu que estava a enlouquecer. Depois de tudo o que tinha feito, o seu grande esquema estava em perigo porque não conseguia encontrar um maldito táxi!

Mas, finalmente, um velho Chevrolet encostou no Cais 9. O motorista tinha um nome ilegível da Europa Central, e parecia pedrado. Não percebia inglês, a não ser "esquerda" e "direita", e provavelmente era a única pessoa em São Francisco que não ouvira falar no sismo. Voltaram para o armazém às seis e vinte.

No centro operacional de emergência, Judy afundou-se na cadeira, a olhar para o telefone.

Eram seis e vinte e cinco. Dentro de trinta e cinco minutos, Granger ligaria o vibrador sísmico. Se funcionasse tão bem como das últimas duas vezes, haveria um sismo. Mas este seria o pior. Presumindo que Melanie dissera a verdade, e o vibrador estava algures na península de São Francisco, o sismo atingiria quase certamente a cidade.

Certa de dois milhões de pessoas tinham fugido da área metropolitana desde sexta-feira à noite, quando Granger anunciara no programa de John Truth que o próximo sismo atingiria São Francisco. Mas isso deixava mais de um milhão de homens, mulheres e crianças que não podiam ou não queriam deixar as suas casas: os pobres, os idosos e os doentes, para além dos polícias, bombeiros, enfermeiros e funcionários camarários que esperavam para começar os trabalhos de socorro. E isso incluía Bo.

No ecrã da televisão, Alex Day estava a falar a partir de um estúdio temporário montado no centro de comando de emergência do presidente da Câmara na Rua Turk, a alguns quarteirões dali. O presidente da Câmara vestia um chapéu duro e um colete roxo e estava a dizer aos cidadãos para se agacharem, taparem e não saírem do lugar.

A entrevista com Michael passava a intervalos de poucos minutos em todos os canais: os editores de televisão tinham sido postos a par do verdadeiro objectivo.

Mas, aparentemente, Melanie não estava a ver.

A pickup de Priest tinha sido encontrada estacionada no Molhe dos Pescadores às quatro horas da tarde. Estava a ser vigiada, mas ele não tinha voltado para o veículo. Naquele momento, cada garagem e parque de estacionamento das redondezas estava a ser revistado na tentativa de encontrar o vibrador sísmico.

O salão de baile do clube dos oficiais estava cheio de pessoas. Havia pelo menos quarenta engravatados no recanto das chefias. Michael e os seus ajudantes estavam concentrados nos computadores, à espera do som alegremente melodioso e nada apropriado que seria o primeiro sinal do tremor sísmico que todos receavam. A equipa de Judy continuava a trabalhar nos telefones, seguindo pistas de pessoas que se pareciam com Granger ou Melanie, mas nas suas vozes adivinhava-se um tom cada vez mais desesperado. Usar Dusty na entrevista televisiva com Michael fora a última tentativa, que, aparentemente, também falhara.

A maior parte dos agentes que estava a trabalhar no COE tinha casas na zona da baía. A equipa administrativa tinha organizado a evacuação de todas as suas famílias. O edifício onde se encontravam era considerado tão seguro quanto possível: tinha sido reforçado pelos militares para o tornar resistente a sismos. Mas não podiam fugir. Como os soldados, os bombeiros, os polícias, tinham de ir para onde estava o perigo. Era o trabalho deles. Lá fora, no pátio da parada, uma frota de helicópteros estava a postos, com os rotores a girar, à espera para levar Judy e os colegas para a zona do sismo.

Priest foi à casa de banho. Enquanto estava a lavar as mãos, ouviu Melanie gritar.

Correu para o escritório com as mãos molhadas. Encontrou-a a olhar para a televisão.

- Que é? - perguntou.

O rosto dela estava branco, e tinha a boca tapada com a mão.

- O Dusty! - disse ela, a apontar para o ecrã.

Priest viu o marido de Melanie a ser entrevistado. Tinha o filho no joelho. Um momento depois, a imagem mudou, e uma locutora disse:

- Foi Alex Day, a entrevistar um dos maiores sismólogos do mundo, o professor Michael Quercus, no centro operacional de emergência do FBI no Presídio.

- O Dusty está em São Francisco! - disse Melanie, histérica.

- Não está nada - disse Priest. - Talvez estivesse, quando a entrevista foi filmada. Agora deve estar a muitos quilómetros de distância.

- Tu não sabes!

- Claro que sei. E tu também. O Michael vai tomar conta do seu miúdo.

- Gostava de poder ter a certeza - disse Melanie com voz trémula.

- Faz uma chávena de café - disse Priest, para a manter ocupada.

- Está bem. - Ela tirou a panela da placa eléctrica e foi enchê-la com água à casa de banho.

Judy olhou para o relógio. Eram seis e meia. O seu telefone tocou. A sala ficou em silêncio.

Pegou no auscultador, deixou-o cair, praguejou, pegou nele novamente e encostou-o ao ouvido.

- Sim?

A telefonista disse:

- Melanie Quercus está a perguntar pelo marido. Graças a Deus! Melanie apontou para Raja.

- Localiza o telefonema.

Ele já estava a falar para o telefone. Judy disse para a telefonista:

- Pode passá-la.

Todos os engravatados do recanto das chefias se reuniram à volta da cadeira de Judy. Ficaram em silêncio, a tentar ouvir.

Este pode ser o telefonema mais importante da minha vida. Ouviu-se um clique na linha. Judy tentou manter a voz calma e disse:

- Fala a agente Maddox.

- Onde está o Michael?

Melanie parecia tão assustada e perdida que Judy sentiu uma súbita compaixão por ela. Não parecia mais do que uma mãe tonta, preocupada com o filho.

Tem juízo, Judy. Esta mulher é uma assassina.

Judy endureceu o coração.

- Onde é que está, Melanie?

- Por favor - sussurrou Melanie. - Diga-me só para onde é que ele levou o Dusty.

- Vamos combinar uma coisa - disse Judy. - Eu certifico-me de que o Dusty fica bem... se me disser onde é que está o vibrador sísmico.

- Posso falar com o meu marido?

- Está com o Ricky Granger? Quero dizer, com o Priest?

- Sim.

- E têm o vibrador sísmico com vocês, onde quer que estejam?

- Sim.

Então estão quase apanhados.

- Melanie... quer realmente matar todas essas pessoas?

- Não, mas temos de...

- Não vai poder cuidar do Dusty enquanto estiver na cadeia. Não o vai ver crescer. - Judy ouviu um soluço do outro lado da linha. - Só vai poder vê-lo através de uma divisória de vidro. Quando a deixarem sair, ele vai ser um homem adulto que não a conhece. Melanie estava a chorar.

- Diga-me onde está, Melanie.

No grande salão de baile o silêncio era absoluto. Ninguém se mexia. Melanie sussurrou alguma coisa, mas Judy não conseguiu ouvir.

- Fale mais alto!

Do outro lado da linha, ao longe, um homem gritou:

- Para quem diabo é que estás a ligar? Judy disse:

- Depressa, depressa! Diga-me onde está! O homem rugiu:

- Dá-me a merda do telefone! Melanie disse:

- Perpetua... - depois gritou. Instantes depois, a ligação foi interrompida. Raja disse:

- Está algures perto da água, a sul da cidade.

- Não chega! - exclamou Judy.

- Eles não podem ser mais precisos!

- Porra!

Stuart Cleever disse:

- Calem-se todos. Vamos passar a gravação daqui a pouco. Primeiro, Judy, ela deu-lhe algumas pistas?

- Disse alguma coisa no fim. Parecia "Perpetuai". Cari, procura uma rua com o nome de Perpetuai.

Raja disse:

- Devíamos procurar também uma empresa. Eles podem estar na garagem de um edifício de escritórios.

- Faz isso.

Frustrado, Cleever deu um murro na mesa.

- Que é que a levou a desligar?

- Acho que o Granger a apanhou a telefonar e lhe tirou o telefone.

- Que é que quer fazer agora?

- Gostava de ir para o ar - disse Judy. - Podemos sobrevoar a linha da costa. O Michael pode vir comigo e mostrar onde correm as linhas de falha. Talvez avistemos o vibrador sísmico.

- Faça isso - disse Cleever.

Priest olhou para Melanie, irado, enquanto esta se agachava contra o lavatório enegrecido. Ela tinha tentado traí-lo. Se tivesse uma pistola, tinha-a morto ali mesmo. Mas o revólver que tirara ao guarda em Los Alamos estava no vibrador sísmico, sob o assento do motorista.

Desligou o telefone de Melanie, enfiou-o no bolso da camisa e tentou acalmar-se. Era uma coisa que Star lhe ensinara. Quando era jovem, tinha acessos de raiva terríveis, sabendo que assustavam os outros, porque era mais fácil lidar com as pessoas quando elas estavam assustadas. Mas Star ensinara-o a respirar bem e a descontrair-se e a pensar, o que a longo prazo era melhor.

Agora avaliou os estragos que Melanie fizera. O FBI tinha conseguido localizar o telefonema? Podiam descobrir onde é que um telefone celular estava a ser utilizado? Tinha de presumir que sim. Se assim fosse, daí a pouco estariam a patrulhar as redondezas, à procura de um vibrador sísmico.

O tempo tinha-se esgotado. A janela sísmica abria às seis e quarenta. Olhou para o relógio: eram seis e trinta e cinco. Para o diabo com o prazo das sete horas - tinha de provocar o sismo agora.

Saiu da casa de banho a correr. O vibrador sísmico estava no meio do armazém vazio, de frente para a porta da entrada. Saltou para a cabina do motorista e ligou o motor.

Foi preciso um ou dois minutos para o mecanismo de vibração ficar sob pressão. Ele observou os manómetros com impaciência. Vá lá, vá lá! Por fim, os valores ficaram verdes.

A porta do passageiro do camião abriu-se e Melanie subiu.

- Não faças isso! - gritou. - Não sei onde é que o Dusty está! Priest estendeu a mão para a alavanca que descia a placa do vibrador para o chão.

Melanie desviou-lhe a mão.

- Por favor, não!

Priest bateu-lhe na face com as costas da mão. Ela gritou, e escorreu-lhe sangue do lábio.

- Sai do caminho! - gritou ele. Puxou a alavanca, e a placa desceu. Melanie esticou-se e recolocou a alavanca na posição de começar. Priest viu tudo vermelho. Bateu-lhe de novo.

Ela soltou um grito e cobriu o rosto com as mãos, mas não fugiu. Priest colocou a alavanca na posição de baixo.

- Por favor - disse ela. - Não faças isso.

Que é que vou fazer com esta puta estúpida? Lembrou-se da arma. Estava debaixo do banco. Esticou a mão e apanhou-a. Era grande de mais, uma arma pouco adequada para um espaço tão pequeno. Apontou-a para Melanie.

- Sai do camião - disse.

Para sua surpresa, ela atravessou-se à frente dele outra vez, encostando o corpo ao cano da pistola, e subiu a alavanca.

Ele puxou o gatilho.

Na pequena cabina do camião o estrondo foi insuportável.

Por uma fracção de segundo, uma pequena parte da sua mente sentiu um choque de desgosto por lhe ter arruinado o corpo maravilhoso; mas esqueceu o assunto.

Ela foi atirada para a outra ponta da cabina. A porta ainda estava aberta, e ela escorregou e caiu, batendo no chão do armazém com uma pancada assustadora.

Priest não parou.para verificar se ela estava morta.

Pela terceira vez, puxou a alavanca.

A placa desceu lentamente para o chão.

Quando fez contacto, Priest ligou a máquina.

O helicóptero tinha quatro lugares. Judy estava sentada ao lado do piloto, Michael atrás. Enquanto sobrevoavam a margem da baía de São Francisco, Judy ouviu nos seus auscultadores a voz de um dos alunos assistentes de Michael, a falar do posto de comando.

- Michael! É a Paula! Começou... um vibrador sísmico!

Judy ficou gelada de medo. Pensei que tinha mais tempo! Olhou para o relógio: eram seis e quarenta e cinco. Ainda faltavam quinze minutos para o fim do prazo dado por Granger. O telefonema de Melanie devia tê-lo decidido a começar mais cedo.

Michael estava a dizer:

- Alguns tremores no sismógrafo?

- Não... até agora, apenas o vibrador sísmico. Ainda não há nenhum sismo. Graças a Deus. Judy gritou para o seu microfone:

- Dê-nos a localização, depressa!

- Espere um pouco, as coordenadas estão a sair agora. Judy pegou num mapa.

Depressa, depressa!

Um longo momento depois, Paula leu os números no ecrã. Judy encontrou o local no seu mapa. Disse para o piloto:

- Três quilómetros para sul, e depois cerca de quinhentos metros para o interior.

O seu estômago apertou-se quando o helicóptero mergulhou e ganhou velocidade.

Estavam a sobrevoar o velho bairro ribeirinho, cheio de fábricas abandonadas e cemitérios de carros. Teria estado calma num domingo normal: hoje estava vazia. Judy perscrutou o horizonte, à procura de um camião que pudesse ser o vibrador sísmico.

A sul, viu dois carros-patrulha que convergiam rapidamente para a mesma localização. Olhou para oeste e viu o camião da equipa de intervenção do FBI a aproximar-se. No Presídio, os outros helicópteros deviam estar a descolar, cheios de agentes armados. Em breve, metade dos veículos da Polícia do Norte da Califórnia estariam a dirigir-se para as coordenadas que Paula tinha dado.

Michael disse para o microfone:

- Paula! Que é que está a acontecer nos vossos ecrãs?

- Nada... o vibrador está a funcionar, mas não está a fazer efeito.

- Graças a Deus! - disse Judy. Michael disse:

- Se ele seguir o padrão anterior, vai levar o camião para uns setecentos metros de onde se encontra agora e tentar de novo.

O piloto disse:

- É aqui. Chegámos às coordenadas. - O helicóptero começou a voar em círculos.

Judy e Michael espreitaram para fora, a procurar freneticamente o vibrador sísmico.

No chão, nada se movia.

Priest praguejou.

O mecanismo de vibração estava a funcionar, mas não havia sismo nenhum.

Isto tinha acontecido antes, das duas vezes. Melanie dissera que não compreendia realmente porque é que resultava em alguns locais e não noutros. Provavelmente, tinha alguma coisa a ver com diferentes tipos de subsolo. Das duas vezes, o vibrador tinha desencadeado um sismo à terceira tentativa. Mas hoje Priest precisava realmente de ter sorte à primeira vez.

E não teve.

Quase a explodir de raiva, desligou o mecanismo e ergueu a placa.

Tinha de mudar o camião.

Saltou para o chão. Passou por cima de Melanie, que estava atirada contra a parede, a sangrar para o chão de cimento, e correu para a entrada. Havia um par de antiquadas portas altas que se dobravam para admitir veículos de grande porte. Inserida num painel existia uma pequena porta, que permitia a passagem de pessoas. Priest abriu-a.

Por cima da entrada de um pequeno armazém, Judy viu uma placa onde se lia "Perpetua Diaries".

Tinha pensado que Melanie estava a dizer "Perpetuai".

- E ali! - gritou ela. - Desça!

O helicóptero desceu rapidamente, evitando um fio de electricidade que ia de um poste ao outro ao longo da berma da estrada, e pousou no meio da rua deserta.

Logo que sentiu a pancada do contacto com o chão, Judy abriu a porta.

Priest olhou para a rua.

Um helicóptero tinha pousado na estrada. Enquanto observava, uma pessoa saiu. Era uma mulher com um penso na face. Reconheceu Judy Maddox.

Gritou uma praga que se perdeu no barulho do helicóptero.

Não havia tempo para abrir as portas grandes.

Correu para o camião, entrou e engatou a marcha atrás. Recuou o mais possível dentro do armazém e parou quando o pára-choques bateu na parede. Depois engatou a primeira. Acelerou, e depois soltou a embraiagem com um sacão. O camião saltou para a frente.

Priest carregou no pedal a fundo. O motor guinchou e o grande camião ganhou velocidade dentro do armazém e depois chocou contra a velha porta de madeira.

Judy Maddox estava mesmo à frente da porta, de pistola em punho. Choque e medo estamparam-se-lhe no rosto quando o camião irrompeu pela porta. Priest sorriu selvaticamente enquanto carregava sobre ela. Ela atirou-se para um lado, e o camião passou a dois centímetros dela.

O helicóptero estava no meio da rua. Um homem saía. Priest reconheceu Michael Quercus.

Guinou em direcção ao helicóptero, pôs outra mudança e acelerou.

Judy rolou sobre si mesma, apontou para a porta do condutor e disparou dois tiros. Pareceu-lhe que tinha atingido alguma coisa, mas não conseguiu deter o camião.

O helicóptero descolou rapidamente.

Michael correu para o passeio.

Judy calculou que Granger estava a tentar prender o trem de aterragem, como tinha feito em Felicitas, mas desta vez o piloto foi rápido de mais para ele e subiu alto enquanto o camião atacava o espaço onde a aeronave estivera.

Mas, com a pressa, o piloto esquecera os fios de electricidade aéreos.

Havia cinco ou seis cabos, esticados entre postes altos. A lâmina do rotor apanhou os fios e cortou alguns. O motor do helicóptero falhou. Um dos postes entortou devido à tensão e caiu. A lâmina do rotor girou livremente outra vez, mas o helicóptero tinha perdido altura e caiu no chão com um estrondo enorme.

Priest ainda tinha uma esperança.

Se conseguisse percorrer quatrocentos metros, e depois descer a placa e ligar o vibrador, talvez conseguisse desencadear um sismo antes de o FBI o apanhar. E, no caos de um sismo, podia escapar, como tinha feito antes.

Rodou o volante e desceu a rua.

Judy disparou de novo quando o camião se desviou do helicóptero caído. Estava com esperança de atingir Granger ou alguma parte essencial do motor, mas não teve sorte. O camião deslocou-se pesadamente pela estrada esburacada.

Ela contemplou o helicóptero acidentado. O piloto não se mexia. Olhou para o vibrador sísmico enquanto ele ganhava velocidade gradualmente.

Quem me dera ter uma espingarda.

Michael correu para ela.

- Estás bem?

- Sim - disse ela. Tomou uma decisão. - Vê se consegues ajudar o piloto... eu vou atrás do Granger.

Ele hesitou, e depois disse:

- Está bem.

Judy guardou a pistola no coldre e correu atrás do camião.

Era um veículo lento, que levava muito tempo a acelerar. No começo, ela cobriu a distância rapidamente. Depois Granger meteu outra mudança e o camião ganhou velocidade. Judy correu a toda a velocidade, com o coração aos saltos, o peito a arder. A retaguarda do camião tinha um pneu suplente gigantesco. Ela continuava a aproximar-se, mas não tão depressa. Quando começou a pensar que nunca o apanharia, Granger meteu outra mudança e, com o abrandamento momentâneo, Judy aumentou a velocidade e agarrou-se ao camião.

Conseguiu pôr um pé no pára-choques e agarrou o pneu sobressalente. Por um momento assustador pensou que ia escorregar e cair; olhou para baixo e viu a estrada a fugir-lhe debaixo dos pés. Mas conseguiu segurar-se. Escalou para a plataforma no meio dos depósitos e válvulas da maquinaria. Procurou manter o equilíbrio, quase caiu, e endireitou-se.

Não sabia se Granger a tinha visto.

Não podia ligar o vibrador enquanto o camião estivesse em movimento, por isso deixou-se ficar onde estava, com o coração aos saltos, à espera que ele parasse.

Mas ele tinha-a visto.

Ela ouviu vidro a partir e viu o cano de uma pistola espreitar pela janela de trás da cabina. Agachou-se instintivamente. No instante seguinte, ouviu um ricochete no depósito ao seu lado. Inclinou-se para a esquerda, para ficar directamente atrás de Granger, e agachou-se bem, com o coração na boca. Ouviu outro tiro e aninhou-se, mas ele falhou. Depois pareceu desistir.

Mas não tinha desistido.

O camião travou a fundo. Judy foi atirada para a frente, batendo dolorosamente com a cabeça num cano. Em seguida, Granger guinou violentamente para a direita. Judy escorregou para o lado e, por um momento aterrador, pensou que ia morrer na superfície dura da estrada, mas conseguiu aguentar-se. Viu que Granger se dirigia como um suicida para a fachada de tijolo de uma fábrica desactivada. Agarrou-se a um depósito.

No último instante, ele travou e virou, mas atrasou-se uma fracção de segundo. Evitou um choque frontal, mas um lado do pára choques mergulhou na parede com um estrondo de metal a vergar e vidro a partir. Judy sentiu uma dor agonizante nas costelas quando foi esmagada contra o depósito a que se agarrava. Depois, foi atirada ao ar.

Durante alguns instantes ficou totalmente desorientada. Depois caiu no chão, aterrando sobre o lado esquerdo. Todo o ar que tinha no corpo foi expelido, por isso nem sequer conseguiu soltar um grito de dor. A cabeça bateu no alcatrão, o braço esquerdo ficou dormente, e a sua mente encheu-se de pânico.

A cabeça desanuviou um segundo ou dois depois. Estava com dores, mas conseguia mexer-se. O colete à prova de bala tinha ajudado a protegê-la. As calças pretas estavam rasgadas e um joelho sangrava, mas não muito. Também tinha o nariz a sangrar: tinha voltado a abrir a ferida que Granger lhe fizera no dia anterior.

Caíra perto da esquina da retaguarda do camião, perto das enormes rodas duplas. Se Granger fizesse um metro de marcha atrás, matá-la-ia. Rolou para o lado, mantendo-se atrás do camião mas fugindo dos pneus gigantes. O esforço provocou-lhe uma dor lancinante nas costelas, e ela praguejou.

O camião não fez marcha atrás. Granger não estava a tentar atropelá-la. Talvez não tivesse visto onde é que ela caíra.

Olhou para um lado e para o outro da rua. Viu Michael a tentar tirar o piloto do helicóptero acidentado, a quatrocentos metros de distância. Na outra direcção, não havia sinais do camião da equipa de intervenção nem dos carros da Polícia que ela tinha avistado do ar, nem dos outros helicópteros do FBI. Provavelmente, estavam a segundos de distância - mas ela não podia desperdiçar segundos.

Pôs-se de joelhos e empunhou a arma. Esperava que Granger saltasse do camião para a alvejar, mas ele não o fez. Levantou-se com dificuldade.

Se se aproximasse pelo lado do condutor, de certeza que ele ia vê-la pelo espelho retrovisor. Foi para o outro lado e arriscou uma espreitadela pela esquina da retaguarda. Deste lado também havia um espelho grande.

Deixou-se cair de joelhos, deitou-se de barriga e rastejou por baixo do camião.

Avançou até estar quase por baixo da cabina do condutor.

Ouviu um barulho novo por cima da cabeça e perguntou a si mesma o que seria. Olhou para cima e viu a placa enorme por cima de si.

Estava a ser baixada para ela.

Rolou freneticamente para o lado e ficou com o pé preso numa das rodas de trás. Por alguns segundos horrendos lutou para se libertar enquanto a placa maciça descia inexoravelmente. Ia esmagar-lhe a perna como um brinquedo de plástico. No último momento puxou o pé do sapato e rolou sem impedimentos.

Estava em campo aberto. Granger ia vê-la a qualquer instante. Se se debruçasse agora na porta do passageiro, de arma na mão, poderia alvejá-la com toda a facilidade.

Ouviu um estrondo que parecia uma bomba nos ouvidos, e o chão por baixo dela tremeu violentamente. Ele tinha ligado o vibrador.

Tinha de o deter. Pensou momentaneamente na casa de Bo. Na sua mente, viu-a abanar e cair, e depois toda a rua sucumbir.

Fez pressão com a mão esquerda para diminuir a dor e forçou-se a levantar-se.

Dois passos deixaram-na na porta mais próxima. Precisava de a abrir com a mão direita, por isso passou a pistola para a esquerda - sabia disparar com as duas - e apontou-a para o ar.

Agora.

Saltou para o degrau, agarrou no puxador da porta e abriu-a.

Ficou frente a frente com Richard Granger.

Ele parecia tão assustado como ela.

Ela apontou-lhe a arma com a mão esquerda.

- Desligue isso! - gritou. - Desligue!

- Está bem - disse ele, e sorriu ao levar a mão debaixo do banco. O sorriso alertou-a. Sabia que ele não ia desligar o vibrador. Preparou-se para o matar.

Nunca tinha morto uma pessoa antes.

A mão dele apareceu com um revólver que parecia saído do Oeste Selvagem.

Quando o cano comprido girou para ela, ela apontou a pistola para a cabeça dele e premiu o gatilho.

A bala atingiu-o na face, ao lado do nariz.

Ele atirou um segundo depois. O clarão e o ruído do tiro duplo foi terrível. Sentiu uma dor ardente na têmpora direita.

Anos de treino deram os seus frutos. Tinha sido ensinada a disparar duas vezes, e os músculos recordaram-se. Automaticamente, premiu o gatilho mais uma vez. Desta vez acertou-lhe no ombro. O sangue espirrou imediatamente. Ela rodopiou e caiu contra a porta, deixando a arma cair dos dedos moles.

Oh, Jesus, é assim quando matamos uma pessoa?

Judy sentia o seu próprio sangue a escorrer pela face direita. Lutou contra uma onda de tontura e náusea. Manteve a arma apontada a Granger.

A máquina continuava a vibrar.

Ela olhou para o amontoado de interruptores e mostradores. Tinha morto a única pessoa que sabia desligar aquela coisa. Encheu-se de pânico. Lutou contra aquela sensação. Tem de haver uma chave.

Havia.

Esticou-se por cima do corpo inerte de Ricky Granger e rodou-a.

De repente, fez-se silêncio.

Ela observou a rua. Do lado de fora do armazém Perpetua Diaries, o helicóptero estava a arder.

Michael!

Abriu a porta do camião, a lutar para se manter consciente. Sabia que tinha de fazer alguma coisa, uma coisa importante, antes de ir ajudar Michael, mas não conseguia lembrar-se do que era. Desistiu de tentar e desceu do camião.

A sirene distante de um carro da Polícia aproximou-se e viu um carro-patrulha a aproximar-se. Fez-lhe sinal para parar.

- FBI - disse em voz fraca. - Leve-me para aquele helicóptero. - Abriu a porta e caiu dentro do carro.

O polícia percorreu os quatrocentos metros que os separavam do armazém e encostou a uma distância segura da aeronave em chamas. Judy saiu. Não conseguia ver ninguém dentro do helicóptero.

- Michael! - gritou. - Onde estás?

- Aqui! - Ele estava atrás das portas destruídas do armazém, inclinado sobre o piloto. Judy correu para ele.

- Este tipo precisa de ajuda - disse Michael. Olhou para ela. - Jesus, e tu também!

- Eu estou bem - disse ela. - A ajuda já vem a caminho. - Pegou no telefone celular e ligou para o posto de comando. Raja atendeu.

- Que é que está a acontecer, Judy? - perguntou ele.

- Diz-me tu, por amor de Deus!

- O vibrador parou.

- Eu sei, fui eu que o desliguei. Alguns tremores?

- Não. Absolutamente nada.

Judy caiu, aliviada. Tinha parado a máquina a tempo. Não ia haver um sismo.

Encostou-se à parede. Sentia-se fraca. Lutou para se manter direita.

Não sentia qualquer triunfo ou sensação de vitória. Talvez isso viesse mais tarde, com Raja e Carl e os outros, no bar Everton's. Mas agora estava completamente esgotada.

Outro carro-patrulha encostou, e o agente saiu.

- Tenente Forbes - disse ele. - Que diabo é que aconteceu aqui? Onde está o criminoso?

Judy apontou para o vibrador sísmico que se encontrava ao fundo da rua.

- Está na parte da frente daquele camião - disse ela. - Morto.

- Vamos dar uma olhada. - O tenente voltou para o carro e desceu a rua.

Michael tinha desaparecido. Judy foi procurá-lo no interior do armazém.

Viu-o sentado no chão de cimento, numa poça de sangue. Mas não estava ferido. Nos braços, tinha Melanie. O rosto dela estava ainda mais pálido do que o costume, e a T-shirt justa estava ensopada de sangue de uma ferida profunda no peito.

O rosto de Michael estava desfigurado pelo desgosto.

Judy aproximou-se dele e ajoelhou-se. Procurou pulsação no pescoço de Melanie. Não encontrou.

- Lamento, Michael - disse ela. - Lamento muito. Ele engoliu em seco.

- Pobre Dusty - disse ele. Judy tocou-lhe na face.

- Vai ficar tudo bem - disse ela.

Alguns momentos depois, o tenente Forbes reapareceu.

- Desculpe, minha senhora - disse ele delicadamente, que estava um homem morto naquele camião?

- Sim - disse ela. - Eu matei-o.

- Bem - disse o polícia -, agora não está lá.

Disse

 

Star foi condenada a dez anos de prisão.

No começo, a cadeia foi uma tortura A existência cheia de regras era um inferno para uma pessoa que tinha defendido a liberdade durante toda a vida. Depois, uma bonita guarda chamada Jane apaixonou-se por ela e trazia-lhe maquilhagem e livros e marijuana, e as coisas começaram a melhorar.

Flower foi entregue a pais adoptivos, um ministro metodista e a mulher. Eram pessoas de bom coração, mas não compreendiam de onde é que Flower viera. Ela tinha saudades dos pais, portava-se mal na escola e meteu-se em mais sarilhos com a Polícia. Depois, alguns anos mais tarde, encontrou a avó. Verónica Nightingale tinha treze anos quando Priest nascera, por isso tinha apenas sessenta e poucos anos quando Flower a encontrou. Dirigia uma loja em Los Angeles que vendia acessórios eróticos, roupa interior e vídeos pornográficos. Tinha um apartamento em Beverly Hills e guiava um carro desportivo vermelho, e contou a Flower histórias sobre o pai quando era criança. Flower fugiu do ministro e da mulher e foi viver com a avó.

Oaktree desapareceu. Judy sabia que houvera uma quarta pessoa no 'Cuda em Felicitas, e conseguira perceber o papel dele no caso. Até conseguiu uma série completa de impressões digitais da carpintaria na comuna. Mas ninguém sabia para onde ele fora. Porém, as impressões digitais apareceram alguns anos mais tarde, num carro roubado que tinha sido utilizado num assalto à mão armada em Seattle. A polícia não suspeitou dele porque ele tinha um álibi sólido, mas Judy foi notificada automaticamente. Quando reviu o ficheiro com o procurador dos Estados Unidos - o seu velho amigo Don Riley, agora casado com uma mediadora de seguros -, perceberam que tinham um caso pouco sólido contra Oaktree pelo seu papel em Os Filhos do Paraíso, e decidiram deixá-lo em paz.

Milton Lestrange morreu de cancro. Brian Kincaid reformou-se. Marvin Hayes pediu a demissão e tornou-se director de uma cadeia de supermercados.

Michael Quercus tornou-se moderadamente famoso. Como era atraente e bom a explicar sismologia, os programas de televisão chamavam-no sempre quando queriam um comentário acerca de sismos. O negócio prosperou.

Judy foi promovida a supervisora. Foi viver com Michael e Dusty. Quando a empresa de Michael começou a fazer dinheiro a sério, compraram uma casa juntos e decidiram ter um bebé. Um mês depois ela estava grávida, por isso casaram-se. Bo chorou no casamento.

Judy percebeu como é que Granger tinha saído.

O ferimento no rosto fora feio mas não sério. A bala no ombro tinha rompido uma veia, e a perda súbita de sangue fizera-o perder a consciência. Judy devia ter-lhe verificado o pulso antes de ir ajudar Michael, mas estava enfraquecida pelos seus próprios ferimentos e confusa por causa da perda de sangue, e não conseguiu seguir a rotina.

A posição caída de Granger fez a pressão sanguínea subir novamente, e ele veio a si alguns segundos depois de ela sair. Esgueirou-se pela esquina da Rua Três, onde teve a sorte de encontrar um carro parado nos semáforos. Entrou, apontou a arma ao condutor, e exigiu que ele o levasse para a cidade. No caminho, usou o telefone de Melanie para telefonar a Paul Beale, o engarrafador de vinho que fora seu companheiro de crime nos velhos tempos. Beale dera-lhe a morada de um médico vigarista.

Granger obrigou o condutor a parar numa esquina, num bairro perigoso. (O traumatizado condutor foi para casa, telefonou para a esquadra local, e como o telefone estava ocupado não se deu ao trabalho de relatar o incidente antes do dia seguinte.) O médico, um cirurgião expulso da ordem que era viciado em morfina, tratou de Granger. Granger passou a noite no apartamento do médico e depois foi-se embora.

Judy nunca conseguiu saber para onde é que ele foi depois disso.

A água está a subir depressa. Inundou todas as pequenas casas de madeira. Atrás das portas fechadas, as camas e as cadeiras artesanais flutuam. A cozinha e o templo também estão inundados.

Esperou semanas até que a água chegasse à vinha. Agora chegou, e as preciosas plantas estão a afogar-se.

Esperava encontrar Spirit ali, mas o seu cão desapareceu há muito.

Bebeu uma garrafa do seu vinho preferido. É difícil para ele beber ou comer, por causa do ferimento no rosto, que foi mal cosido por um médico que estava pedrado. Mas conseguiu enfiar o bastante pela garganta para ficar bêbado.

Atira a garrafa para longe e tira do bolso um grande charro de marijuana misturado com heroína suficiente para o arrumar. Acende-o, dá uma passa, e desce a encosta.

Quando a água lhe chega às coxas, senta-se.

Olha uma última vez para o vale. Está praticamente irreconhecível. Não há um ribeiro a correr. Apenas são visíveis os telhados dos edifícios, que parecem destroços voltados de pernas para o ar a flutuar à superfície de uma lagoa. As videiras que plantou há vinte e cinco anos estão agora submersas.

Já não é um vale. Transformou-se num lago, e tudo o que ali existia morreu.

Dá uma grande passa no charro que tem entre os dedos. Inala profundamente o fumo venenoso. Sente a onda de prazer quando a droga entra na corrente sanguínea e os químicos lhe invadem o cérebro. Pequeno Ricky, feliz por fim, pensa ele.

Rebola e cai na água. Cai com o rosto no chão, impotente, profundamente pedrado. Lentamente, a sua consciência esvai-se, como uma luz distante a ficar mais fraca, até, por fim, se apagar.

 

 

                                                                  Ken Follett

 

 

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